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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A AMEAÇA / Ken Follett
A AMEAÇA / Ken Follett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A AMEAÇA

Primeira Parte

 

Unanimemente considerado um dos mestres actuais do policial, Ken Follet tem a capacidade única de, a cada novo romance, que o mesmo é a cada novo bestseller, reinventar o próprio thriller injectando-lhe novas e sempre mais elevadas doses de originalidade, de suspense e de uma inquebrantável impetuosidade literária. Em A Ameaça somos fustigados pelos inquietantes golpes narrativos de um enredo tempestuoso e surpreendente. Um poderoso agente antiviral desaparece misteriosamente das instalações da Oxenford Medical, uma empresa farmacêutica que está a desenvolver um antivírus para uma das mais perigosas variedades do Ébola. Quem o poderá ter roubado? E com que obscuras intenções? Toni Gallo, responsável pela segurança da empresa, está profundamente consciente do valor incalculável daquela fórmula secreta... e da terrível ameaça que o seu desaparecimento pode significar. Tem então início uma vertiginosa corrida contra o tempo, mas o que Toni, Stanley Oxenford, o director da empresa, e a própria polícia vão encontrar pela frente é um pesadelo capaz de ultrapassar os seus piores receios... Traições, violência, heroísmo e paixão num thriller absolutamente brilhante.

 

 

                   VÉSPERA DE NATAL

                   1:00

Os dois homens, cansados, olharam para Antonia Gallo com os olhos carregados de ressentimento e hostilidade. Queriam ir para casa, mas ela não deixava. E sabiam que ela tinha razão, o que tornava as coisas ainda piores.

Estavam os três no departamento de pessoal da Oxenford Medical. Antonia, a quem toda a gente tratava por Toni, era directora das instalações, e a sua principal responsabilidade era a segurança. A Oxenford era uma pequena empresa farmacêutica — uma boutique, no jargão do mercado bolsista — que fazia investigação sobre vírus potencialmente fatais. A segurança era, por isso, de importância vital.

Toni tinha organizado um inventário de stocks e tinha descoberto que faltavam duas doses de um fármaco experimental. E isso já era suficientemente mau: o produto, um agente antiviral, era um segredo bem guardado, pelo que a sua fórmula tinha um valor incalculável. Podia ter sido roubado para ser vendido a uma empresa da concorrência. Mas havia uma outra possibilidade ainda mais assustadora, que estava a causar aquela expressão de ansiedade no rosto sardento de Toni e a desenhar-lhe aqueles círculos escuros por baixo dos olhos verdes: a de o produto ter sido roubado por um ladrão para uso pessoal. E só havia uma razão que podia levar alguém a fazer isso: ter sido infectado por um dos vírus letais utilizados nos laboratórios da Oxenford.

Os laboratórios estavam localizados num enorme edifício do século XIX, que tinha sido construído na Escócia para servir de casa de férias a um milionário vitoriano. Tinha a alcunha de Kremlin por causa da vedação com duas fileiras de grades, arame farpado, guardas à paisana, e do sofisticado sistema de segurança electrónico. Porém, na realidade, parecia mais uma igreja, com arcos em ogiva, uma torre e uma fila de gárgulas a contornar o telhado.

O departamento de pessoal ficava num dos quartos mais grandiosos. Ainda tinha janelas góticas e lambrins de linho, mas agora com armários de arquivo onde outrora tinham existido guarda-fatos e secretárias com computadores e telefones onde dantes havia toucadores repletos de frascos de cristal e escovas de prata.

Toni e os dois homens estavam a telefonar, a contactar todas as pessoas com acesso ao laboratório de segurança máxima. Havia quatro níveis de biossegurança. No mais elevado, o BSN4, os cientistas, equipados com fatos espaciais, manuseavam vírus para os quais não havia vacina ou antídoto. Como era o local mais seguro do edifício, era aí que estavam guardadas as amostras do fármaco experimental.

Nem toda a gente tinha acesso ao BSN4. A formação em riscos biológicos era obrigatória, até mesmo para os funcionários do serviço de manutenção que iam mudar os filtros de ar ou reparar as autoclaves. Toni também tinha frequentado as sessões de formação para poder entrar no laboratório a fim de verificar o sistema de segurança.

Dos oitenta funcionários da empresa, só vinte e sete tinham esse nível de acesso. No entanto, muitos deles tinham partido para as férias de Natal. Já era terça-feira, e os três responsáveis continuavam infatigavelmente a tentar apanhá-los.

Toni acabara, de ligar para um resort em Barbados, o Le Club Resort, e depois de muita insistência tinha conseguido convencer o subdirector a ir à procura de uma jovem técnica do laboratório chamada Jenny Crawford.

Enquanto esperava, Toni olhou para a sua imagem reflectida na janela. Considerando o adiantado da hora, estava a aguentar-se bem. O seu fato castanho-chocolate com riscas brancas mantinha o mesmo aspecto de fato de negócios, o cabelo espesso continuava bem arranjado, e o seu rosto não mostrava sinais de fadiga. O pai era espanhol, mas Toni tinha herdado a pele clara e o cabelo ruivo da mãe, que era escocesa. Era alta e elegante. Não estava nada mal para uma mulher de trinta e oito anos, pensou.

- Devem ser altas horas da noite aí! - disse Jenny, quando finalmente veio ao telefone.

- Descobrimos uma discrepância nos registos do BSN4 - explicou Toni.

Jenny estava um pouco embriagada.

- Já não é a primeira vez que acontece - disse, num tom despreocupado. - E nunca ninguém fez um drama por causa disso.

- Mas nessa altura eu ainda não trabalhava cá - retorquiu Toni com brusquidão. - Quando foi a última vez que acedeste ao BSN4?

- Terça-feira, acho eu. O computador não dá essa indicação?

Dava, de facto, mas Tom queria confirmar se a versão de Jenny coincidia com os registos do computador.

- E quando foi a última vez que acedeste ao cofre?

O cofre era um frigorífico seguro com o nível BSN4. Jenny estava a ficar mal-humorada.

- Não me lembro, mas deve estar registado no vídeo. - A fechadura do cofre, uma combinação que tinha de ser inscrita num painel digital, accionava uma câmara de vigilância que gravava tudo enquanto a porta estivesse aberta.

- Lembras-te da última vez que utilizaste o Madoba-2? - Era o vírus em que os cientistas estavam a trabalhar.

Jenny ficou chocada.

- Que horror! Foi isso que desapareceu?

- Não, não foi. Mesmo assim...

- Acho que nunca manipulei nenhum vírus directamente. Trabalho quase sempre com os tecidos que estão em cultura no laboratório.

Estava de acordo com a informação de que Toni dispunha.

- Alguma vez notaste que qualquer um dos teus colegas estivesse a ter um comportamento estranho ou fora do normal nas últimas semanas?

- Isso parece a maldita Gestapo - comentou Jenny.

- O que parece não interessa. Notaste ou não?

- Não, não notei nada.

- Só mais uma pergunta. A tua temperatura está normal?

- Porra! Estás a sugerir que posso ter sido infectada pelo Madoba-2?

- Estás constipada ou tens febre?

- Não.

- Então, está tudo bem contigo. Saíste do país há onze dias, por isso, se houvesse algum problema, já estarias com sintomas de gripe. Obrigada, Jenny. Pode ser só um erro de registo, mas temos de nos certificar.

- Estragaste-me a noite - disse Jenny, e desligou.

- Foi pena - comentou Toni para o telefone, já em silêncio. Pousou o auscultador e anunciou: - A Jenny Crawford confere. É uma cabra, mas honesta.

O director do laboratório era Howard McAlpine. Tinha uma barba grisalha cerrada que lhe subia pelas maçãs do rosto, fazendo a pele à volta dos olhos parecer uma máscara cor-de-rosa. Era meticuloso sem ser mesquinho, e Tom gostava normalmente de trabalhar com ele, mas naquele momento estava muito irascível. Recostou-se na cadeira e prendeu as mãos atrás da cabeça.

- O mais plausível é que o material em falta tenha sido utilizado de forma perfeitamente legítima por alguém que pura e simplesmente se esqueceu de actualizar os registos.

Estava a falar num tom irritado, e era a terceira vez que dizia a mesma coisa.

- Espero que tenhas razão - disse Toni, à cautela.

Levantou-se e foi até à janela. O departamento de pessoal dava para o edifício onde ficava o laboratório BSN4. Era um edifício novo mas semelhante ao resto do Kremlin, com chaminés cor de açúcar amarelo e uma torre com um relógio, para que, visto de fora, fosse difícil perceber onde ficava localizado no complexo o laboratório de alta segurança. Contudo, as suas janelas em ogiva eram opacas, as portas de carvalho trabalhadas não podiam ser abertas, e das cabeças monstruosas das gárgulas espreitavam, como olhos, as câmaras de televisão em circuito fechado. Era um forte de betão disfarçado de edifício vitoriano. Tinha três andares. No rés-do-chão ficavam os laboratórios, uma zona de investigação e armazenagem e uma unidade de cuidados intensivos, isolada, para o caso de alguém ser infectado por um vírus perigoso. Nunca tinha sido utilizada. No andar de cima ficava o equipamento de tratamento do ar e, no andar inferior, estava instalado um complexo sistema de esterilização de todos os resíduos do edifício. Não havia nada que saísse dali a não ser as pessoas.

- Aprendemos muito com este exercício - disse Toni, num tom conciliador.

Sentia, com alguma ansiedade, que estava numa posição delicada. Os dois homens tinham uma posição superior à sua na empresa e eram mais velhos do que ela - andavam ambos na casa dos cinquenta. Embora não tivesse o direito de lhes dar ordens, insistira para que considerassem aquela discrepância como uma situação de crise. Gostavam dela, mas estava a levar a paciência deles ao limite. Apesar disso, Toni sentia que tinha de pressioná-los ainda mais. Não era só a segurança das pessoas que estava em jogo - era também a reputação da empresa e a sua carreira.

- De futuro, temos de ter os números de telefone de toda a gente que tem acesso ao BSN4, onde quer que estejam, para que possamos contactá-los rapidamente em caso de emergência. E temos de verificar os registos mais do que uma vez por ano.

McAlpine resmungou qualquer coisa. Sendo director do laboratório, era responsável pelo registo, e a verdadeira razão do seu mau humor era que devia ter sido ele a descobrir a discrepância. A eficiência de Toni contribuía para denegrir a sua imagem.

Voltou-se para o outro homem, que era o director dos recursos humanos.

- Ainda falta muita gente da tua lista, James?

James Elliot levantou os olhos do ecrã do computador. Vestia-se como um corretor da Bolsa, com um fato às riscas e uma gravata com pintas, como se quisesse distinguir-se dos cientistas com os seus casacos de tweed. Parecia considerar as regras de segurança uma burocracia fastidiosa, talvez por nunca ter trabalhado directamente com os vírus. Tom achava-o pomposo e idiota.

- Só falta falar com uma das vinte e sete pessoas com acesso ao BSN4 - respondeu, com uma precisão exagerada, como um professor farto de explicar a mesma coisa ao aluno mais burro da turma. - Todos disseram a verdade sobre quando foi a última vez que entraram no laboratório e abriram o cofre. Nenhum deles notou qualquer comportamento estranho nos colegas. E nenhum deles está com febre.

- Falta falar com quem?

- Com um técnico do laboratório, o Michael Ross.

- Eu conheço-o - disse Toni. Era um homem tímido e inteligente, uns dez anos mais novo do que ela. - Até já estive em casa dele. Mora numa pequena moradia a menos de vinte e cinco quilómetros daqui.

- Trabalha na empresa há oito anos, sem a mais pequena mancha no seu cadastro.

McAlpine percorreu com o dedo os dados impressos numa folha e disse:

- A última vez que entrou no laboratório foi há três domingos, para uma inspecção de rotina aos animais.

- O que é que ele tem andado a fazer desde então?

- Tem estado de férias.

- Há quanto tempo?... Três semanas?

- Devia ter voltado hoje - informou Elliot. Olhou para o relógio e corrigiu: - Ontem, melhor dizendo. Na segunda-feira de manhã, mas não apareceu.

- Telefonou a dizer que estava doente?

- Não.

- E não conseguimos contactá-lo? - perguntou Toni, erguendo as sobrancelhas.

- Ninguém atende, nem no telefone fixo nem no telemóvel.

- Não acham estranho?

- Que um rapaz solteiro prolongue as férias sem avisar o patrão? É tão estranho como chover em Dezembro.

Toni voltou-se para McAlpine.

- Mas disseste que o cadastro dele era impecável.

O director do laboratório parecia preocupado.

- É um rapaz muito consciencioso. É de admirar que tenha faltado sem autorização.

- Quem é que estava com o Michael da última vez que ele entrou no laboratório? - perguntou Toni. Sabia que ele tinha de estar acompanhado pois havia uma regra no BSN4: por causa do perigo, ninguém podia trabalhar lá sozinho.

McAlpine consultou a sua lista.

- A Dra. Ansari, engenheira bioquímica.

- Acho que não a conheço.

Toni pegou no auscultador.

- Qual é o número dela?

Monica Ansari tinha um sotaque de Edimburgo e parecia estar a dormir profundamente.

- O Howard McAlpine já me telefonou.

- Peço desculpa por voltar a incomodá-la.

- Aconteceu alguma coisa?

- É por causa do Michael Ross. Não conseguimos encontrá-lo. Acho que esteve com ele no BSN4 fez neste domingo duas semanas, não foi?

- Foi. Só um minuto. Deixe-me acender a luz. - Seguiu-se uma pausa. - Meu Deus, são estas horas?

Toni insistiu.

- O Michael foi de férias no dia seguinte.

- Disse-me que ia a Devon visitar a mãe.

Aquelas palavras fizeram Toni lembrar-se da razão por que tinha ido a casa de Michael Ross. Há uns seis meses tinha dito por acaso, numa conversa no refeitório, que gostava muito dos retratos de velhas pintados por Rembrandt, com as rugas tão carinhosamente delineadas uma a uma. Percebia-se por esses retratos que Rembrandt devia ter gostado muito da mãe. Michael dissera, muito animado, que tinha cópias de várias gravuras de Rembrandt, recortadas de revistas e catálogos de leilões. Toni fora então a casa dele, depois do trabalho, para ver os desenhos, todos de velhinhas, que cobriam uma das paredes da sua sala de estar em molduras de bom gosto. Receara que ele tivesse outras intenções em relação a ela - gostava dele, ainda que não desse modo - mas, para seu alívio, ele queria apenas mostrar-lhe a sua colecção. Concluíra que era um menino da mamã.

- Já é uma ajuda - disse Toni a Monica. - Só um momento. - Voltou-se para James Elliott. - Temos os contactos da mãe dele?

Elliott mexeu o rato e clicou-o.

- Está na ficha dele como parente mais próximo - respondeu ele, pegando no telefone.

Toni tornou a falar com Monica.

- E ele pareceu-lhe normal nessa tarde?

- Completamente.

- Entraram juntos no BSN4?

- Entrámos. Depois fomos para vestiários diferentes, como é óbvio.

- Quando a Monica entrou no laboratório, já ele lá estava?

- Já. Mudou de roupa mais depressa do que eu.

- Esteve a trabalhar ao lado dele?

- Não. Estive noutro laboratório a ver umas culturas em tecidos. Ele foi ver os animais.

- Saíram ao mesmo tempo?

- Ele saiu uns minutos antes de mim.

- Pelos vistos, ele podia ter acedido ao cofre sem a Monica dar por isso.

- Era fácil.

- Qual é a sua opinião sobre o Michael?

- Simpático... Acho que é um tipo inofensivo.

- Sim, é uma boa maneira de o descrever. Sabe se ele tem namorada?

- Não me parece.

- Acha-o atraente?

- Acho que tem bom aspecto, mas não se pode dizer que seja sexy.

Toni sorriu.

- E exactamente isso. Pela sua experiência, acha que há alguma coisa de estranho nele?

- Não.

Toni sentiu que tinha havido uma hesitação e ficou em silêncio, para dar tempo à sua interlocutora. Elliot estava ao seu lado, a falar com alguém, a perguntar por Michael Ross ou pela mãe.

Passado um momento, Monica acrescentou:

- Lá por uma pessoa viver sozinha não quer dizer que seja maluca, pois não?

Elliot estava a dizer ao telefone:

- Que estranho! Peço muita desculpa por tê-lo incomodado a esta hora da noite.

A curiosidade de Toni estava ao rubro pelo que estava a ouvir da conversa de Elliot. Terminou o telefonema, dizendo:

- Obrigada mais uma vez, Monica. Espero que consiga adormecer rapidamente.

- O meu marido é médico de família - retorquiu Monica. - Estamos habituados a telefonemas a meio da noite.

Toni desligou.

- O Michael Ross teve mais do que tempo para abrir o cofre - informou. - E mora sozinho. - Olhou para Elliot. - Conseguiste ligar para casa da mãe dele?

- O número é de um lar de idosos - disse Elliot. Parecia assustado. - E a mãe dele morreu no Inverno passado.

- Oh, merda! - exclamou Toni.

 

                   3:00

As torres e empenas do Kremlin estavam iluminadas pela luz potente dos holofotes da segurança. Estavam cinco graus abaixo de zero, mas o céu estava limpo e não havia neve. O edifício dava para um jardim vitoriano, com grandes árvores e arbustos. A lua, quase cheia, lançava uma luz cinzenta sobre as ninfas desnudadas que pareciam brincar nas fontes secas, sob o olhar vigilante dos dragões de pedra.

O silêncio foi cortado pelo barulho dos motores de duas carrinhas que saíram da garagem. Tinham ambas o símbolo de risco biológico, quatro círculos negros entrecortados sobre um fundo amarelo-vivo. O guarda do portão já tinha levantado a barreira.

Toni Gallo ia a guiar o veículo da frente como se fosse o seu Porsche, ocupando toda a estrada, puxando pelo motor e acelerando nas curvas. Temia que fosse tarde de mais. Iam com ela três especialistas em des-contaminação. O segundo veículo era uma unidade móvel de isolamento e nele seguiam um paramédico, ao volante, e uma médica, Ruth Solomons, no banco do passageiro.

Toni tinha medo de estar enganada, mas estava aterrorizada com a possibilidade de estar certa.

Tinha accionado um alerta vermelho com base apenas numa suspeita. O produto podia ter sido utilizado para fins legítimos por um cientista que simplesmente se tinha esquecido de fazer a respectiva entrada no registo - era essa a convicção de Howard McAlpine. Michael Ross podia apenas ter decidido prolongar as férias sem autorização, e a história da mãe dele podia ser apenas um mal-entendido. Se assim fosse, de certeza que alguém diria que a reacção de Toni tinha sido exagerada - a reacção típica de uma histérica, acrescentaria James Elliot. Poderia muito bem encontrar Michael Ross, na cama, a dormir tranquilamente com o telefone desligado, e estremeceu ao pensar no que diria ao seu patrão, Stanley Oxenford, na manhã seguinte.

No entanto, seria muito pior se estivesse certa.

Um funcionário faltara ao trabalho sem autorização; tinha mentido sobre o local para onde ia; e haviam desaparecido amostras do novo fármaco do cofre. Seria possível que Michael Ross tivesse feito alguma coisa que o pusesse em risco de apanhar uma infecção letal? O fármaco ainda estava em fase experimental e não era eficaz contra todos os vírus, mas ele achara que era melhor do que nada. Fosse qual fosse a ideia dele, o certo era que quisera garantir que ninguém aparecia lá em casa durante algumas semanas; e, para isso, tinha fingido que fora a Devon visitar a mãe que já tinha morrido.

Monica Ansari dissera: Lá por uma pessoa viver sozinha não quer dizer que seja maluca, pois não? Era uma daquelas frases que significava exactamente o contrário do que pretendia significar. A engenheira bioquímica apercebera-se de qualquer coisa de estranho em Michael, apesar de, sendo ela uma cientista racional, hesitar em confiar na mera intuição.

Toni achava que a intuição era algo que nunca se devia ignorar.

Não suportava pensar nas consequências de uma eventual fuga do vírus Madoba-2. Era altamente infeccioso e propagava-se rapidamente através da tosse e dos espirros. E era fatal. O terror fê-la estremecer da cabeça aos pés, e carregou mais a fundo no acelerador.

A estrada estava deserta; demoraram apenas vinte minutos a chegar à casa isolada de Michael Ross. A entrada não estava assinalada de forma muito visível, mas Toni lembrava-se onde era. Voltou para um caminho que ia dar a uma casa baixa de pedra atrás de um muro de jardim. Estava tudo às escuras. Toni parou a carrinha ao lado de um Volkswagen Golf, provavelmente de Michael, e buzinou várias vezes.

Não aconteceu nada. Não se acendeu nenhuma luz e ninguém abriu nenhuma porta ou janela. Toni desligou o carro e fez-se silêncio.

Se Michael não estivesse em casa, por que estaria ali o carro dele?

- Meus senhores, os fatos de protecção, por favor - disse.

Vestiram todos os fatos espaciais cor-de-laranja, incluindo a equipa médica que vinha na outra carrinha. Não era tarefa fácil. Os fatos eram feitos de um plástico pesado que não se moldava facilmente e fechavam com um fecho de correr que os tornava estanques. Ajudaram-se uns aos outros a prender as luvas à volta dos pulsos com fita isoladora e, por último, calçaram umas botas de borracha por cima dos pés de plástico dos fatos.

Os fatos eram completamente estanques. Respirava-se através de um filtro HEPA, um filtro de ar altamente eficiente, com uma ventoinha eléctrica accionada por pilhas presas ao cinto. O filtro impedia a entrada de quaisquer partículas que pudessem conter germes ou vírus. Isolava também os cheiros - só os muitos fortes se sentiam. A ventoinha produzia um zumbido permanente, insuportável para algumas pessoas. Os capacetes tinham uns auscultadores e um microfone que lhes permitiam falar uns com os outros e também comunicar com a central telefónica do Kremlin por um canal de rádio cheio de interferências.

Quando já estavam todos prontos, Toni tornou a olhar para a casa. Se alguém espreitasse por uma janela naquele momento e visse sete pessoas com fatos espaciais cor-de-laranja, iria pensar que os OVNIs e os extraterrestres eram coisas reais.

No entanto, se houvesse alguém naquela casa, não estava a espreitar por nenhuma das janelas.

- Eu vou à frente - anunciou Toni.

Caminhou em direcção à porta da frente com passos rígidos, apesar de estar enfiada naquele fato desajeitado de plástico. Tocou à campainha e bateu à aldraba. Alguns minutos depois, dirigiu-se para as traseiras da casa. Havia um jardim bem-arranjado com uma arrecadação em madeira. Descobriu que a porta das traseiras não estava trancada e entrou. Lembrava-se de ter estado na cozinha enquanto Michael fazia chá. Atravessou rapidamente a casa, acendendo as luzes. Os Rembrandts continuavam na parede da sala. A casa estava limpa, arrumada e vazia.

Falou com os colegas através do auricular.

- Não está ninguém em casa.

Reparou no tom abatido da sua própria voz.

Por que teria ele deixado a porta destrancada? Talvez nunca mais voltasse.

Era um choque. Se Michael estivesse em casa, o mistério poderia ser rapidamente resolvido, mas agora teria de haver uma busca. Ele podia estar em qualquer parte do mundo. Era impossível saber quanto tempo demorariam a encontrá-lo. A ideia dos dias ou mesmo semanas de nervos e ansiedade que iria viver deixou-a angustiada.

Saiu para o jardim. À cautela, experimentou também a porta da arrecadação. Quando a abriu sentiu um cheiro desagradável, ainda que vagamente familiar. Pensou que devia ser um cheiro muito intenso para passar pelo filtro de ar do fato. Percebeu que era sangue. A arrecadação cheirava tanto a sangue como um matadouro.

- Oh meu Deus! - murmurou.

Ruth Solomons, a médica, ouviu-a e perguntou:

- O que é?

- Só um minuto. - Não havia luz no interior da pequena casa de madeira: não tinha janelas. Tacteou no escuro e encontrou um interruptor; Quando a luz se acendeu, deu um grito.

Os outros falaram todos ao mesmo tempo a querer saber o que tinha acontecido. - Venham depressa! - disse Toni. - A arrecadação do jardim. A Ruth primeiro.

Michael Ross estava caído no chão, com a cara voltada para cima. Estava a sangrar de todos os orifícios; olhos, nariz, boca, ouvidos. O sangue estava espalhado à sua volta sobre as tábuas de madeira do chão. Toni não precisou de dizer à médica que Michael tinha tido uma hemorragia múltipla - um sintoma clássico do Madoba-2 e das infecções provocadas por vírus semelhantes. O corpo dele era um perigo, uma bomba por explodir cheia de vírus mortais. Contudo, estava vivo. Via-se o seu peito a subir e a descer e ouvia-se um débil som bor-bulhante a sair da sua boca. Toni baixou-se, ajoelhou-se sobre a poça pegajosa de sangue amda fresco e exammou-o atentamente.

- Michael! - gritou, para se fazer ouvir através do plástico do capacete. - Sou a Toni Gallo do laboratório!

Houve um movimento vacilante de reconhecimento nos olhos ensanguentados de Michael. Abriu a boca e murmurou qualquer coisa.

- O quê? - gritou Toni, aproximando-se mais dele.

- Não há cura - disse Michael e depois vomitou. Um jacto de líquido preto jorrou da boca dele e espalhou-se sobre a viseira do capacete de Toni. Ela deu um salto para trás e gritou assustada, apesar de saber que estava protegida pelo fato.

Alguém a afastou, e Ruth Solomons debruçou-se sobre Michael.

- Tem o pulso muito fraco - disse a médica através do auricular. Abriu a boca de Michael e com os dedos protegidos pela luva tentou tirar-lhe algum sangue e vomitado da garganta.

- Preciso de um laringoscópio. Depressa! - Alguns segundos depois já estava um paramédico a dar-lhe o instrumento. Ruth enfiou-o na boca de Michael para lhe limpar a garganta e o ajudar a respirar melhor.

- Tragam a maca de isolamento. O mais depressa que puderem!

Abriu a mala e tirou uma seringa já preparada “com morfina e um coagulante”, pensou Toni. Ruth espetou a agulha no pescoço de Michael e carregou no êmbolo. Quando retirou a seringa, Michael sangrou copiosamente do pequeno orifício.

Toni estava dominada por uma grande dor. Lembrava-se de Michael a andar pelo Kremlin, sentado em sua casa a tomar chá, a falar animadamente das gravuras, e isso tornava a visão daquele corpo destruído ainda mais dolorosa e trágica.

- Pronto - disse Ruth. - Vamos levá-lo daqui.

Dois paramédicos pegaram em Michael e levaram-no para uma maca envolta numa tenda de plástico transparente. Fizeram deslizar o seu corpo por uma abertura numa das extremidades da tenda e depois selaram-na. Empurraram a maca através do jardim de Michael.

Antes de entrarem para a ambulância, tinham de se descontaminar a si próprios e à maca. Um dos membros da equipa de Toni já tinha preparado uma pequena banheira de plástico semelhante àquelas onde as crianças costumam patinhar e brincar. A Dra. Solomons e os paramédicos puseram-se um a um de pé na banheira para serem pulverizados com um potente desinfectante que destruía quaisquer vírus, oxidando a sua proteína.

Toni ficou a ver, consciente de que cada segundo que passava tornava mais improvável que Michael sobrevivesse, mas também de que o processo de descontaminação tinha de ser seguido à risca para impedir outras mortes. Estava perturbada com a ideia de um vírus mortal ter saído do seu laboratório. Era algo que nunca tinha acontecido na história da Oxenford Medical. O facto de ter tido razão em fazer tanto barulho por causa do desaparecimento dos fármacos e de os seus colegas estarem errados ao não darem importância ao assunto não lhe servia de consolação. O seu trabalho era impedir que aquilo acontecesse e tinha falhado. A consequência seria a morte do pobre Michael? Haveria outras mortes?

Os paramédicos meteram a maca na ambulância. A Dra. Solomons entrou para a parte de trás para ir ao pé do doente. Fecharam as portas e afastaram-se ruidosamente, noite dentro.

- Mantém-me informada, Ruth - disse Toni. - Podes ligar-me para este auricular.

A voz de Ruth estava a tornar-se menos audível à medida que a distância ia aumentando.

- Ele está em coma - disse. Acrescentou qualquer coisa, mas as suas palavras foram imperceptíveis até que deixou de se ouvir por completo.

Toni abanou-se para tentar sair do torpor em que caíra. Era preciso meter mãos à obra.

- Vamos limpar isto!

Um dos homens pegou num rolo de fita amarela com a inscrição “Risco biológico - Não passar” e começou a estendê-la à volta de toda a propriedade, da casa, da arrecadação, do jardim e também à volta do carro de Michael. Felizmente não havia outras casas por perto com que tivessem de se preocupar. Se Michael vivesse num edifício de apartamentos com condutas de ar comuns, já seria tarde de mais para se proceder a qualquer descontaminação.

Os outros foram buscar rolos de sacos do lixo, pulverizadores de jardins cheios com desinfectante, caixas de panos de limpeza e uns bidões de plástico brancos. Todas as superfícies tinham de ser pulverizadas e limpas. Os objectos rígidos e os bens de valor, como jóias, seriam selados nos bidões e levados para o Kremlin para serem esterilizados a alta pressão numa autoclave. O resto seria metido em sacos que, por sua vez, seriam metidos noutros sacos, para ser tudo destruído no incinerador de resíduos médicos por baixo do laboratório BSN4. Toni pediu a um dos homens que a ajudasse a limpar o vomitado de Michael do seu fato e que a pulverizasse. Teve de reprimir o impulso de arrancar o fato conspurcado de cima de si.

Enquanto os homens limpavam o local, Toni foi à procura de alguma pista que pudesse explicar por que razão aquilo tinha acontecido. Tal como receava, Michael roubara o fármaco experimental porque sabia ou suspeitava que tinha sido infectado pelo Madoba-2. Mas o que teria ele feito para se expor ao vírus?

Na arrecadação havia uma redoma de vidro com um extractor de ar, que fazia lembrar um contentor de biossegurança improvisado. Quase não tinha olhado para ele antes por estar tão concentrada em Michael, mas viu que estava um coelho morto lá dentro. Aparentemente tinha morrido da mesma doença que infectara Michael. Teria vindo do laboratório? Ao seu lado estava um recipiente de água com a inscrição “Joe”. Era um dado significativo. O pessoal do laboratório raramente dava nomes aos animais com que trabalhava. Tratavam com cuidado os sujeitos das suas experiências, mas não se permitiam desenvolver quaisquer laços afectivos com os animais que iam morrer. No entanto, Michael tinha dado uma identidade àquele animal e tratava-o como se fosse um bicho de estimação. Sentir-se-ia culpado por causa do seu trabalho?

Toni saiu da arrecadação. Um carro-patrulha da Polícia estava a parar ao pé da carrinha. Toni já estava à espera de que eles chegassem. Segundo o Plano de Resposta a Acidentes Críticos que ela própria delineara, os seguranças do Kremlin tinham ligado automaticamente para a divisão regional da Polícia em Inverburn para lhes comunicar que havia um alerta vermelho. Tinham ido ali para avaliar até que ponto a crise era real.

Toni tinha trabalhado até há dois anos na Polícia. Ao longo da sua carreira, fora sempre uma polícia-modelo - fora rapidamente promovida, mostrada aos meios de comunicação como o novo estilo da Polícia e apontada como a primeira mulher chefe da Polícia da Escócia. Depois entrara em rota de colisão com o seu superior hierárquico por causa de uma questão delicada - o racismo na Polícia. Ele afirmava que a instituição não podia ser acusada de racismo, e Toni contrapusera que os agentes escondiam quase sempre os incidentes racistas e, por isso, essa atitude podia ser generalizada a toda a instituição. A discussão tinha chegado a um jornal, Toni recusara-se a negar o que dissera e fora obrigada a demitir-se.

Na altura vivia com Frank Hackett, também detective Estavam juntos há oito anos, embora não se tivessem casado. Quando ela caiu em desgraça, ele deixou-a. Ainda sofria por causa disso.

Dois jovens agentes saíram do carro, um homem e uma mulher. Tom conhecia a maior parte dos polícias locais da sua geração, e alguns dos mais velhos lembravam-se do pai dela, já falecido, o sargento Antonio Gallo, a que inevitavelmente todos se referiam pela alcunha de Tony Espanhol. Porém, não reconheceu aqueles dois.

- Jonathan, a Polícia chegou - informou pelo auricular. - Importas-te de te descontaminar e ir falar com eles? Diz-lhes só que confirmámos a fuga de um vírus do laboratório. Eles vão chamar o Jim Kincaid, e eu dou-lhes as informações necessárias quando ele chegar.

O superintendente Kincaid era responsável pelo departamento conhecido por AQBRN - acidentes químicos, biológicos, radiológicos e nucleares. Tinha colaborado com Toni na elaboração do plano. Desenvolveriam em conjunto uma resposta cuidadosa àquele incidente, sem fazer muito barulho.

Quando Kincaid chegasse, ela gostaria de já ter algumas informações para lhe dar sobre Michael Ross. Entrou na casa. Michael tinha transformado o outro quarto em escritório. Numa mesa estavam três molduras com fotografias da mãe: uma adolescente magra com uma camisola apertada; uma mãe feliz com um bebé ao colo, que se parecia com Michael; e com uns sessenta anos, um gato enorme preto e branco no colo. Toni sentou-se à secretária e leu os e-mails dele, mexendo no teclado com alguma dificuldade por causa das luvas de borracha. Tinha encomendado na Amazon um livro intitulado Ética Animal. Também tinha pedido informações sobre cursos universitários de filosofia moral. Consultou o browser da Internet e descobriu que recentemente ele tinha visitado sites sobre direitos dos animais. Era óbvio que estava preocupado com a moralidade do seu trabalho. Mas aparentemente ninguém na Oxenford Medical se apercebera de que ele andava insatisfeito. Tony compreendia-o. Sempre que via um cão ou um hamster numa gaiola, com uma doença que os cientistas lhes tinham provocado deliberadamente para a estudarem, sentia pena deles. Contudo, depois lembrava-se da morte do pai. Aos cinquenta e poucos anos descobrira que tinha um tumor no cérebro e morrera confuso, humilhado e com grande sofrimento. A doença dele poderia ser curável um dia graças às pesquisas feitas em cérebros de macacos. Na sua opinião, as pesquisas em animais eram uma triste necessidade.

Michael tinha os seus papéis muito bem organizados numa caixa arquivadora de cartão, separados por “Contas”, “Garantias”, “Extractos Bancários”, “Manuais de Instruções”. Em “Associações”, Toni descobriu que ele se tinha inscrito numa organização chamada “Os Animais São Livres”. O quadro estava a ficar bastante claro.

O trabalho acalmou a sua angústia. Sempre tivera jeito para investigações. Tinha sido um golpe muito duro para ela ter sido forçada a deixar a Polícia. Sabia-lhe bem pôr em prática as suas antigas competências e saber que ainda tinha algum talento.

Encontrou numa gaveta o livro de moradas de Michael e a sua agenda. A agenda não tinha qualquer anotação ao longo das duas últimas semanas. Quando ia a abrir o livro de moradas, viu um clarão azul e olhou para a janela, vendo um Volvo cinzento com uma luz da Polícia no tejadilho. Devia ser Jim Kincaid.

Saiu e pediu a um dos elementos da equipa que a descontaminasse. Depois tirou o capacete para falar com o superintendente. Aconteceu, porém, que o homem do Volvo não era Jim. Quando o luar incidiu sobre o rosto dele, Toni viu que era o superintendente Frank Hackett - o seu antigo namorado. Sentiu o coração cair-lhe aos pés. Embora tivesse sido ele a deixá-la, agia sempre como se fosse ele que tivesse ficado ofendido.

Resolveu ser calma, simpática e profissional.

Ele saiu do carro e dirigiu-se para ela.

- Não passes a barreira - disse-lhe. - Eu vou aí. - Apercebeu-se imediatamente de que tinha cometido um erro de tacto. Ele era o agente da Polícia e ela era o elemento civil - ele iria pensar que devia ser ele a dar-lhe ordens e não o contrário. Ao vê-lo franzir as sobrancelhas, percebeu que ele tinha entendido aquilo como uma desconsideração. Tentando ser mais simpática, perguntou-lhe: - Como estás, Frank?

- O que é que aconteceu aqui?

- Parece que um técnico do laboratório apanhou um vírus. Acabámos de o levar numa ambulância isolada. Agora estamos a descontaminar a casa. Onde está o Jim Kincaid?

- Está de férias.

- Onde?

Toni tinha esperança de que fosse possível contactar Jim e fazê-lo regressar para aquela emergência.

- Em Portugal. Ele e a mulher têm lá um pequeno apartamento em regime de time-sharing.

Que pena, pensou Toni. Kincaid percebia de acidentes biológicos, e Frank não.

Como se lhe tivesse lido a mente, Frank disse-lhe:

- Não te preocupes. - Tinha na mão um documento quase com três centímetros de espessura. - Tenho aqui o protocolo. - Era o plano que Toni tinha elaborado com Kincaid. Era óbvio que Frank tinha estado a lê-lo enquanto estivera à espera. - O meu primeiro dever é isolar a área. - Olhou à sua volta. Toni já tinha feito isso, mas não disse nada. Frank precisava de se afirmar. Gritou para os dois guardas que estavam no carro-patrulha: - Vocês dois! Levem o carro para a entrada do desvio e não deixem ninguém passar sem me perguntarem.

- Boa ideia - disse Toni, embora na verdade aquela medida não fizesse a mínima diferença.

Frank consultou o documento.

- Depois temos de garantir que ninguém sai do local.

Toni acenou com a cabeça em sinal de assentimento.

- Não está cá mais ninguém, tirando os membros da minha equipa, e estão todos com fatos especiais para acidentes biológicos.

- Não gosto deste protocolo. Põe civis a mandarem no local de um crime.

- O que te leva a pensar que tenha havido aqui um crime?

- Foram roubadas amostras de um fármaco.

- Mas não foi daqui.

Frank deixou passar a observação sem dizer nada.

- Como é que o vosso homem apanhou o vírus? Andam todos com fatos especiais no laboratório, não andam?

- Tem de ser a comissão local de saúde a descobrir isso - disse Toni, como subterfúgio. - Não vale a pena estar a especular.

- Havia cá algum animal quando chegaste?

Toni hesitou.

Era o suficiente para Frank, que era um bom detective porque não deixava escapar nada.

- Quer dizer que houve um animal que fugiu do laboratório e infectou o técnico quando estava desprotegido?

- Não sei o que aconteceu e não quero ver a circular teorias apressadas. Podemos concentrar-nos por agora na segurança das pessoas?

- Podemos. A verdade, porém, é que tu não estás preocupada só com a segurança das pessoas. Queres proteger a tua empresa e o teu precioso Professor Oxenford.

Toni ficou a pensar por que teria ele dito “precioso” - mas, antes de poder reagir, ouviu um tinido vindo do seu capacete.

- Estão a ligar-me - disse a Frank. - Desculpa. - Tirou o auricular do capacete e colocou-o. Ouviu outro tinido e depois um zumbido, quando a ligação foi estabelecida. Por fim, chegou-lhe aos ouvidos a voz de um segurança do Kremlin.

- E a Dra. Solomons. Pretende falar com Ms. Gallo.

- Está lá? - disse Toni.

A médica apareceu na linha.

- O Michael morreu, Toni.

Toni fechou os olhos.

- Oh, Ruth, lamento muito.

- Teria morrido mesmo que o tivéssemos encontrado vinte e quatro horas antes. Tenho quase a certeza de que tinha o Madoba-2.

A voz de Tom estava embargada pelo desgosto.

- Fizemos tudo o que pudemos.

- Fazes alguma ideia de como aconteceu?

Toni não queria dizer muita coisa à frente de Frank.

- Ele andava perturbado com a crueldade para com os animais. E talvez tenha reagido mal à morte da mãe, há um ano.

- Coitado.

- Está aqui a Polícia, Ruth. Falamos mais logo.

- Está bem.

A ligação foi cortada. Tom tirou o auricular.

- Quer dizer que morreu - disse Frank.

- Chamava-se Michael Ross e aparentemente contraiu um vírus chamado Madoba-2.

- Que animal foi?

Sob o impulso do momento, Toni decidiu preparar uma pequena armadilha a Frank.

- Um hamster - disse. - Chamado Fluffy.

- Haverá mais pessoas infectadas?

- Essa é a principal questão. O Michael vivia aqui sozinho; não tinha família nem amigos. Quem o tiver visitado antes de ter adoecido, não tem problema, a menos que tenham feito algo de muito íntimo, como por exemplo partilhar uma agulha hipodérmica. Se alguém cá tivesse vindo quando ele já estava com os sintomas, de certeza que chamaria um médico. Por isso, há boas probabilidades de não ter transmitido o vírus. - Toni estava a simplificar a questão. Se estivesse a falar com Kincaid, teria sido mais honesta, porque teria a certeza de que ele não ia lançar o pânico. No entanto, com Frank era diferente. Concluiu dizendo: - Mas obviamente a nossa primeira prioridade terá de ser contactar todas as pessoas que podem ter estado com o Michael nos últimos dezasseis dias. Encontrei o livro de moradas dele.

Frank tentou uma abordagem diferente.

- Ouvi-te dizer que ele andava preocupado com a crueldade para com os animais. Pertencia a algum grupo?

- Pertencia. A um grupo chamado “Os Animais São Livres”.

- Como é que sabes?

- Estive a ver as coisas dele.

- É à Polícia que compete fazer isso.

- Concordo. Só que vocês não podem entrar lá em casa.

- Posso vestir um fato desses.

- A questão não é só o fato. E a formação em acidentes biológicos que é preciso antes de se obter autorização para vestir um fato destes.

Frank estava outra vez a ficar zangado.

- Então, traz-me as coisas para aqui.

- E se for um dos membros da minha equipa a mandar-te tudo por fax? Também podemos transferir tudo o que está no disco rígido do computador dele.

- Quero os originais! O que é que estás a esconder ali dentro?

- Nada, garanto-te, mas tudo o que está naquela casa tem de ser descontaminado, ou com desinfectante ou com vapor a alta pressão. Ambos os processos destroem os papéis e podem danificar o computador.

- Vou mandar alterar este protocolo. Duvido que as chefias saibam o que o Kincaid te deixou fazer.

Toni estava exausta. Era tardíssimo, tinha entre mãos uma situação grave e ainda estava a ser obrigada a andar com pezinhos de lã para não irritar um ex-companheiro cheio de ressentimentos.

- Oh, Frank, por amor de Deus! Até podes ter razão, mas é isto que temos de fazer. Será que consegues esquecer o passado e trabalhar em equipa?

- Para ti, trabalhar em equipa significa os outros fazerem tudo o que tu dizes.

Ela riu-se.

- Está bem. Então diz lá: o que devemos fazer a seguir?

- Vou informar a comissão de saúde. Segundo o protocolo, são a principal entidade a contactar. Eles vão designar um consultor em acidentes biológicos que irá convocar uma reunião logo de manhã. Entretanto, devemos começar a contactar todas as pessoas que possam ter estado com o Michael Ross. Vou pôr alguns detectives a telefonar para todos os números que estiverem nesse tal livro de moradas. Sugiro que interrogues todos os funcionários do Kremlin. Seria útil isso estar concluído antes da reunião com a comissão de saúde.

- Está bem. - Toni hesitou. Tinha uma coisa a perguntar a Frank. O melhor amigo dele era Cari Osborne, um jornalista da televisão local que prezava mais o sensacionalismo do que a verdade dos factos. Se o caso chegasse aos ouvidos de Cari, ele desencadearia uma agitação diabólica.

Toni sabia que a melhor maneira para conseguir qualquer coisa de Frank era ser prosaica e não parecer nem demasiado assertiva nem pedinchona.

- Há uma cláusula no protocolo para a qual gostava de chamar a tua atenção - disse-lhe. - Diz que não devem ser feitas quaisquer declarações à imprensa sem primeiro as discutir com as entidades envolvidas, incluindo a Polícia, a comissão de saúde e a empresa.

- Tudo bem.

- Estou a falar disto porque não há necessidade de lançar uma onda de pânico. Há fortes probabilidades de não haver ninguém em perigo.

- Óptimo.

- Não queremos esconder nada, mas a divulgação dos factos deve ser feita com calma e moderação. Não é preciso entrar em pânico.

Frank fez um sorriso irónico.

- Estás com medo de histórias sensacionalistas sobre hamsters assassinos à solta pela Escócia.

- Estás em dívida para comigo, Frank. Espero que não te esqueças disso.

- Estou em dívida para contigo}

Toni baixou a voz, embora não houvesse ninguém por perto.

- Lembras-te do Lavrador Johnny Kirk? - Kirk fora um grande importador de cocaína. Tinha nascido em Garscube Road, um bairro problemático de Glasgow, e nunca tinha visto um palmo de terra na vida. A alcunha vinha das enormes botas de borracha verdes com que andava sempre por causa das dores que os calos lhe provocavam nos pés. Frank tinha investigado o Lavrador. Durante o julgamento, por mero acaso, Toni tinha descoberto umas provas que ajudariam a defesa. Dissera a Frank, mas ele não informara o tribunal. Claro que Johnny era culpado, e Frank conseguiu que o tribunal o acusasse, mas se alguma vez se soubesse a verdade, seria o fim da carreira de Frank.

Frank perguntou-lhe num tom de grande irritação:

- Estás a ameaçar trazer isso ao de cima, se eu não fizer o que tu queres?

- Não. Só estou a lembrar-te de que já houve tempos em que precisaste que eu ficasse calada, e eu fiquei.

A sua atitude tornou a mudar. Por um momento, ficara assustado, mas quando tornou a falar, já o fez com a mesma arrogância de sempre.

- Toda a gente foge às regras de vez em quando. É a vida.

- Pois é. E eu estou a pedir-te que não contes nada disto ao teu amigo Cari Osborne nem a ninguém da imprensa.

Frank tornou a sorrir com desdém.

- Ora essa, Toni! - exclamou com uma falsa indignação. - Eu nunca faço coisas dessas.

 

                   7:00

Kit Oxenford acordou cedo, sentindo-se ao mesmo tempo impaciente e ansioso. Era uma sensação estranha.

Tinha chegado o dia em que ia assaltar a Oxenford Medical.

Estava extremamente excitado com a ideia. Seria o maior golpe de sempre. Apareceria contado em livros com títulos como O Crime Perfeito, mas, melhor ainda, seria a forma de se vingar do pai. A empresa ficaria destruída e o pai na bancarrota. O facto de o velho nunca vir a descobrir quem lhe tinha feito aquilo ainda tornava a história mais saborosa. Seria uma espécie de secreta gratificação que Kit teria para o resto da vida.

Ao mesmo tempo, porém, estava também ansioso, o que era raro nele. Não era, por natureza, pessoa de se preocupar. Sempre que estava metido em apuros, arranjava maneira de se livrar deles. Raramente planeava o que quer que fosse.

No entanto, desta vez tinha tudo planeado. Talvez fosse esse o problema.

Estava deitado na cama., de olhos fechados, a pensar nos obstáculos que iria ter de ultrapassar.

Em primeiro lugar, havia a segurança física em torno do Kremlin: a vedação dupla, o arame farpado, as luzes, os alarmes. Alarmes esses que estavam protegidos por caixas, sensores e circuitos intermináveis que detectariam qualquer curto-circuito. Encontravam-se também ligados à divisão regional da Polícia, em Inverburn, através de uma linha telefónica que estava continuamente a ser verificada pelo sistema para garantir a sua operacionalidade.

Todavia, nada disso iria proteger o Kremlin de Kit e dos seus ajudantes. Depois havia os guardas, que vigiavam as zonas importantes através de um circuito fechado de câmaras de televisão e passavam revista às instalações de hora a hora. Os monitores das televisões estavam equipados com dispositivos de alta segurança capazes de detectar a substituição de equipamento se, por exemplo, em vez de imagens de uma câmara passassem a receber sinal de um gravador de vídeo. Kit tinha pensado numa maneira de contornar isso.

Por fim, havia o elaborado esquema de controlos de acesso: os cartões plastificados com uma fotografia do utilizador autorizado e um chip com a informação das suas impressões digitais.

Seria complicado furar todo esse sistema, mas Kit sabia como fazê-lo.

Era formado em Engenharia Informática e tinha sido o melhor do seu ano, mas possuía uma vantagem ainda mais importante. Tinha sido ele a desenhar todo o software que controlava o sistema de segurança do Kremlin. Era uma espécie de filho para ele. Tinha feito um trabalho fantástico para o ingrato do pai, e o sistema era virtualmente impenetrável para qualquer pessoa exterior à empresa, mas Kit conhecia os seus segredos.

Por volta da meia-noite entraria no santuário dos santuários, o laboratório BSN4, o local mais seguro da Escócia. Na sua companhia estaria o cliente, um londrino calado e ameaçador chamado Nigel Bu-chanan, e dois colaboradores. Quando estivessem lá dentro, Kit abriria o cofre frigorífico com um simples código de quatro dígitos, e Nigel roubaria amostras do novo e precioso fármaco antiviral de Stanley Oxenford.

Não ficariam muito tempo com as amostras em seu poder. Nigel tinha um prazo muito rígido. Via-se obrigado a entregar as amostras às dez da manhã do dia seguinte, Dia de Natal. Kit não sabia o que motivava aquela exigência. Também não sabia quem era o cliente, mas não lhe custava muito adivinhar. Só podia ser um dos grandes laboratórios farmacêuticos multinacionais. Verem-se na posse de uma amostra para analisar poupar-lhes-ia anos de investigação. Poderiam então fazer a sua própria versão do fármaco, em vez de terem de pagar milhões à Oxenford para obter as licenças.

Claro que era uma desonestidade, mas as pessoas conseguem justificar a desonestidade quando há muita coisa em jogo. Kit até imaginava o distinto presidente da empresa, de cabelo grisalho e fato às riscas, a dizer num tom hipócrita: “Garantem-me que nenhum funcionário da nossa empresa violou quaisquer leis para obter esta amostra?”

Para Kit, a melhor parte do seu plano era o facto de ninguém dar pela intrusão a não ser muito depois de ele e Nigel terem saído do Kremlin. Naquele dia, terça-feira, era véspera de Natal. O dia seguinte e o outro eram feriados. Na melhor das hipóteses, o alarme seria dado na sexta-feira, quando um ou dois cientistas zelosos se apresentassem ao trabalho; mas havia boas hipóteses de o roubo não ser descoberto nessa altura nem durante o fim-de-semana, dando a Kit e aos restantes membros do gangue até segunda-feira da semana seguinte para esconder quaisquer provas. Era mais do que precisavam.

Então por que estava assustado? Veio-lhe à mente a cara de Toni Gallo, a chefe de segurança que o seu pai contratara. Era uma ruiva sardenta, muito atraente para quem gostasse de mulheres musculadas, mas com uma personalidade demasiado forte para o gosto de Kit. Seria ela a razão do medo que sentia? Já uma vez subestimara as capacidades dela - e o resultado tinha sido desastroso.

Porém, o seu plano era brilhante. “Brilhante” disse em voz alta, tentando convencer-se a si próprio.

- O que foi? - perguntou uma voz de mulher ao seu lado.

Deu um gemido de surpresa. Tinha-se esquecido de que não estava sozinho. Abriu os olhos. O apartamento estava completamente às escuras.

- O que é que é brilhante? - repetiu a mulher.

- A maneira como danças - disse Kit, improvisando. Tinha-a conhecido num clube na noite anterior.

- Tu também não danças nada mal - retorquiu a mulher com um forte sotaque de Glasgow. - Tens um jogo de pés impecável.

Deu voltas à cabeça a tentar lembrar-se do nome dela. Era Maureen. Com aquele nome, devia ser católica. Virou-se de lado e pôs o braço por cima dela, tentando lembrar-se de como ela era. Parecia ser bastante rechonchuda. Kit não gostava de raparigas muito magras. Ela voltou-se prontamente para ele. Seria loura ou morena? pensou. Devia ser muito picante fazer amor com uma mulher sem saber como ela era. Ia a estender a mão para lhe apalpar os seios quando se lembrou do que tinha de fazer, e o seu desejo evaporou-se instantaneamente.

- Que horas são? - perguntou.

- São horas de uma queca - respondeu Maureen ansiosamente.

Kit voltou-se para o outro lado. O relógio digital indicava 07:10.

- Tenho de me levantar. Vou ter um dia muito ocupado. - Queria estar em casa do pai à hora de almoço. O pretexto era o de que iria lá passar o Natal, mas na realidade ia roubar uma coisa de que precisava para o assalto daquela noite.

- Como é que podes estar ocupado na véspera de Natal?

- Se calhar, sou o Pai Natal. - Sentou-se à beira da cama e acendeu a luz.

Maureen estava desapontada.

- Bem, se o Pai Natal não se importar, este duende fica mais um bocado na cama - resmungou.

Ele olhou para ela, mas Maureen tinha tapado a cabeça com o edredão. Continuava sem saber como ela era. Foi nu até à cozinha e começou a fazer café.

O apartamento estava dividido em duas grandes áreas. Havia a sala de estar com uma kitchenette e, ao fundo, o quarto. A sala estava cheia de equipamentos electrónicos: um plasma enorme, um complexo sistema de som e uma pilha de computadores e acessórios ligados por um emaranhado de cabos. Kit sempre gostara de testar as defesas dos computadores das outras pessoas. E a única maneira de uma pessoa se tornar especialista em segurança informática era começar por ser hacker.

Enquanto estava a trabalhar para o pai, a conceber e a instalar o sistema de segurança do laboratório BSN4, realizara um dos seus melhores golpes. Com a ajuda de Ronnie Sutherland, que na altura era o chefe de segurança da Oxenford Medical, tinha descoberto uma maneira de desviar dinheiro da empresa. Tinha adulterado o software da contabilidade de forma a que, ao somar as facturas dos fornecedores, o computador limitava-se a adicionar um por cento ao total e depois transferia esse montante para a conta de Ronnie, transacção essa que não aparecia em nenhum registo. O esquema funcionava se ninguém verificasse as contas feitas pelo computador - e nunca ninguém as verificou até ao dia em que Tom Gallo viu a mulher de Ronnie a estacionar um Mercedes coupé novinho em folha à porta do Marks e Spencer em Inverburn.

Kit ficara admirado e assustado com a persistência e obstinação com que Toni investigara o caso. Havia uma discrepância, e ela tinha de encontrar a explicação. Nunca desistia. Pior ainda, quando descobriu o que estava a acontecer, não houve nada que a demovesse de contar ao patrão, o pai de Kit. Ele tinha-lhe implorado que tivesse em atenção a idade avançada do pai a fim de não lhe causar angústia. Tentara convencê-la de que, num acesso de raiva, o pai a despediria a ela e não a Kit. Por fim, pusera-lhe ao de leve a mão na anca, fizera o seu melhor sorriso de menino travesso e dissera-lhe numa voz insinuante: “Nós os dois devíamos ser amigos, não inimigos.” Mas nada resultara.

Kit nunca mais tinha arranjado emprego desde que o pai o despedira. Infelizmente, tinha continuado a jogar. Ronnie tinha-o introduzido num casino ilegal onde lhe concediam crédito, certamente devido ao facto de ser filho de um famoso cientista milionário. Tentava não pensar no dinheiro que estava a dever: era uma soma que o deixava doente pelo medo e pelo nojo que tinha de si próprio e que lhe dava vontade de se atirar de Forth Bridge. No entanto, a sua recompensa pelo trabalho daquela noite daria para pagar tudo e ainda para recomeçar de novo.

Levou o café para a casa de banho e viu-se ao espelho. Noutros tempos pertencera à equipa britânica das Olimpíadas de Inverno e passava todos os fins-de-semana a esquiar ou a treinar. Nessa altura, era magro e ágil como um galgo, mas agora tinha uma pequena protuberância quando se via de perfil. “Estás a engordar”, disse. Ainda assim, continuava a ter o mesmo volumoso cabelo castanho, que lhe caía com tanta graça para a testa. O rosto pareceu-lhe tenso. Tentou fazer a sua expressão à Hugh Grant, com a cabeça baixa e um ar tímido, a olhar para cima pelo canto de um dos seus olhos azuis e com um sorriso irresistível. Ainda conseguia fazê-la. Toni Gallo podia ser imune a ela, mas tinha conquistado Maureen na noite anterior.

Enquanto fazia a barba, ligou a televisão da casa de banho. Estava a dar um noticiário local. O primeiro-ministro britânico tinha ido passar o Natal ao seu círculo eleitoral, na Escócia. Os Glasgow Rangers tinham pagado nove milhões de libras por um avançado chamado Gio-vanni Santangelo. “Aí está um belo nome escocês”, dissera Kit para si próprio. O tempo ia continuar frio, mas com céu limpo. Uma tempestade de neve vinda do Mar da Noruega estava a deslocar-se para Sul, mas previa-se que passasse a Oeste da Escócia. Seguiu-se uma notícia local que gelou o sangue de Kit.

Ouviu a voz familiar de Cari Osborne, uma celebridade da televisão escocesa, famoso pelas suas notícias sinistras. Olhando de relance para o ecrã, Kit viu o edifício que estava a planear assaltar nessa noite. Osborne estava a falar em directo junto aos portões da Oxenford Medical. Ainda era de noite, mas os potentes holofotes da segurança iluminavam a elaborada arquitectura vitoriana do edifício. “O que é que aconteceu?”, murmurou Kit num tom preocupado.

- Os cientistas fazem experiências com alguns dos vírus mais perigosos do mundo aqui na Escócia, neste edifício que está atrás de mim, a que os locais puseram a alcunha de “Castelo de Frankenstein” - dizia Osborne.

Kit nunca tinha ouvido ninguém chamar-lhe “Castelo de Frankenstein”. Osborne estava a inventar. A alcunha era Kremlin.

- Mas hoje, naquilo que alguns observadores consideram ser a vingança da Natureza pela intromissão da Humanidade, morreu um técnico contaminado com um desses vírus.

Kit pousou a máquina de barbear. Pensou imediatamente que aquela notícia seria uma péssima publicidade à Oxenford Medical. Em condições normais, teria rejubilado com o problema do pai, mas naquele momento estava mais preocupado com o efeito daquela notícia sobre os seus próprios planos.

- Michael Ross, de trinta e um anos, foi contaminado por um vírus denominado Ebola, o nome da aldeia africana onde germinou. O seu efeito é terrivelmente doloroso, enchendo o corpo da vítima de furúnculos purulentos.

Kit tinha a certeza de que Osborne estava a dar uma informação errada, mas o público não sabia. Era um canal sensacionalista. Até que ponto poderia a morte de Michael Ross afectar o assalto planeado por Kit?

- A Oxenford Medical sempre garantiu que as suas pesquisas não representam qualquer ameaça para os habitantes locais nem das zonas vizinhas, mas a morte de Michael Ross levanta sérias dúvidas quanto a isso.

Osborne tinha um anorak enorme e um chapéu de lã, e parecia não ter dormido muito na noite anterior. De certeza que alguém o tinha acordado de madrugada para lhe dar uma dica, pensou Kit.

- Ross pode ter sido mordido por um animal que roubou do laboratório e terá levado para sua casa, a alguns quilómetros daqui - continuou Osborne.

- Oh, não! - exclamou Kit.

As coisas iam de mal a pior. Seria possível que fosse obrigado a abandonar o seu plano? Achava que não ia aguentar.

- Terá Michael Ross trabalhado sozinho ou faria parte de um grupo mais vasto que poderá tentar libertar mais animais infectados dos laboratórios secretos da Oxenford Medical? Estaremos perante a possibilidade de cães e coelhos aparentemente inocentes andarem à solta pela Escócia a espalhar indiscriminadamente o vírus letal? Aqui ninguém está disposto a dizê-lo.

Independentemente do que eles dissessem ou não, Kit sabia o que as pessoas estavam a fazer no Kremlin: a aumentar o nível de segurança o mais rapidamente possível. De certeza que Toni Gallo já lá estava, a reforçar todos os procedimentos, a verificar os alarmes e as câmaras, a dar instruções aos seguranças. Era a pior notícia possível para Kit. Estava fora de si. “Por que é que eu tenho tanto azar?”, disse em voz alta.

- Seja como for - continuou Cari Osborne —, Michael Ross parece ter morrido por amor a um hamster chamado Fluffy. - O tom da sua voz era tão trágico que Kit quase estava à espera de o ver limpar uma lágrima do olho, mas Osborne não chegou a tanto.

A pivô em estúdio, uma loura atraente com o cabelo muito armado, interveio:

- Cari, a Oxenford Medical já fez algum comentário sobre este incidente tão extraordinário?

- Já. - Cari olhou para um bloco-notas. - Dizem que estão profundamente abalados com a morte de Michael Ross e que tudo aponta para que mais ninguém tenha sido contaminado pelo vírus. Ainda assim, vão tentar falar com todas as pessoas que possam ter estado com Ross nos últimos dezasseis dias.

- Provavelmente as pessoas que estiveram com ele apanharam o vírus.

- Sim, é provável, e podem ter infectado outras pessoas. Por isso, a declaração da empresa de que não há mais ninguém que tenha sido contaminado parece mais uma esperança piedosa do que um facto científico.

- Uma notícia muito preocupante - disse a pivô para a câmara.

- Foi Cari Osborne em directo do local. E agora o futebol.

Enfurecido, Kit agarrou no comando da televisão, tentando desligá-la mas estava demasiado agitado e só carregava nos botões errados. Por fim, puxou o fio da televisão, arrancando-o da tomada. Apetecia-lhe atirar o aparelho pela janela fora. Era uma catástrofe.

A previsão apocalíptica de Osborne sobre a propagação do vírus podia não ser verdade, mas uma consequência era certa: a segurança do Kremlin torná-lo-ia absolutamente inviolável. Não deveria haver altura pior para um assalto ao laboratório. Teria de adiar a operação. Era um jogador: quando tinha uma cartada boa, mostrava-se disposto a apostar tudo o que tinha, mas sabia que era melhor passar quando as cartas estavam contra ele.

“Pelo menos não vou ter de passar o Natal com o meu pai”, pensou amargamente.

Talvez pudessem efectuar o roubo noutra altura, quando a agitação passasse e a segurança voltasse ao nível normal. Talvez fosse possível convencer o cliente a adiar o prazo. Kit estremeceu ao pensar na dívida enorme que tinha para pagar, mas não valia a pena avançar quando as probabilidades de insucesso eram tão grandes.

Saiu da casa de banho. O relógio da aparelhagem marcava 07:28. Se bem que fosse cedo para telefonar, o caso era urgente. Pegou no auscultador e marcou o número.

Atenderam imediatamente. Uma voz de homem disse apenas:

- Sim?

- É o Kit. Ele está?

- O que é que queres?

- Preciso de falar com ele. É importante.

- Ainda não se levantou.

- Merda! - Kit não quis deixar mensagem. E, pensando bem, não queria que Maureen ouvisse o que ele tinha para dizer. - Diz-lhe que vou para aí. - Desligou sem esperar pela resposta.

 

                   7:30

Toni Gallo achou que ia poder sair da empresa por volta da hora de almoço.

Olhou para o seu gabinete. Não estava ali há muito tempo. Ainda mal começara a arrumá-lo a seu jeito. Sobre a secretária tinha posto uma fotografia dela com a mãe e a irmã, Bella, tirada há alguns anos, quando a mãe ainda gozava de boa saúde. Ao lado da moldura, estava o seu velho dicionário - escrever não era o seu forte. Na semana passada tinha pendurado na parede uma fotografia sua, com a farda da Polícia, tirada há dezassete anos - a sua expressão era jovem e ansiosa.

Ainda não conseguia acreditar que tinha perdido o emprego.

Já descobrira o que Michael Ross havia feito. Tinha arranjado uma maneira inteligente e elaborada de contornar as medidas de segurança implementadas por ela. Tinha descoberto os pontos fracos e tinha-os explorado. Só havia um culpado: ela.

Há duas horas ainda não sabia isto, quando telefonara a Stanley Oxenford, presidente e accionista maioritário da Oxenford Medical.

Estava a custar-lhe fazer a chamada. Tinha de lhe dar a pior das notícias e assumir-se como culpada. Preparou-se para enfrentar a frustração, a indignação ou até talvez a raiva dele.

Afinal, ele perguntara:

- Estás bem?

Toni quase começara a chorar. Não estava à espera de que a primeira preocupação dele fosse com o seu bem-estar. Não merecia tamanha amabilidade.

- Estou bem - disse. - Vestimos todos fatos isolantes antes de entrarmos na casa.

- Ainda assim, deves estar exausta.

- Consegui dormir uma hora, por volta das cinco.

- Ainda bem - dissera Stanley e continuara rapidamente. - Eu conheço o Michael Ross. Um tipo calado, na casa dos trinta... Está cá há alguns anos. É um técnico experiente. Como é que isto aconteceu?

- Encontrei um coelho morto na arrecadação do jardim dele. Acho que deve ter levado para casa um animal do laboratório e foi mordido por ele.

- Duvido - retorquiu Stanley com alguma agressividade. - É mais provável que se tenha cortado com uma faca contaminada. Mesmo as pessoas mais experientes podem ser descuidadas. Se calhar o coelho era um vulgar animal de estimação que morreu à fome depois de o Michael ter adoecido.

Toni gostaria de poder fingir que acreditava naquela versão, mas tinha de revelar ao patrão a verdade dos factos.

- O coelho estava numa espécie de contentor de biossegurança improvisado.

- Ainda assim, continuo a duvidar. O Michael não podia estar a trabalhar sozinho no BSN4. Mesmo que o colega dele não estivesse a olhar, há câmaras de televisão por toda a parte. Não podia ter roubado um coelho sem ser apanhado pelos monitores. Depois tinha de passar por vários seguranças, que certamente notariam que ele estava a levar um coelho. Por último, os cientistas que fossem trabalhar para o laboratório na manhã seguinte aperceber-se-iam imediatamente de que faltava um animal. Podiam não saber dizer ao certo qual é que faltava, mas sabiam de certeza quantos estavam a ser utilizados na experiência.

Apesar de ser tão cedo, o cérebro dele estava com tanta potência como o motor VI2 do seu Ferrari, pensou Toni. Mas estava enganado.

- Fui eu que concebi todas as medidas de segurança - disse-lhe Tom. - E garanto-te que não há nenhum sistema que seja perfeito.

- Tens razão. - Um bom argumento fazia-o voltar atrás com uma velocidade alarmante. - Presumo que tenhas as imagens de vídeo da última vez que o Michael esteve no BSN4.

- É a próxima coisa que vou fazer.

- Estarei aí por volta das oito. Espero que nessa altura já tenhas algumas respostas para me dar.

- Só mais uma coisa. Assim que os empregados começarem a chegar, vão aparecer boatos. Posso anunciar-lhes que irás fazer uma declaração ?

- Boa ideia. Reúne toda a gente no átrio, por exemplo, às nove e meia. - O átrio da casa antiga era a maior divisão, sendo por isso sempre utilizada para reuniões com muita gente.

A seguir, Toni tinha mandado chamar Susan Mackintosh, do serviço de segurança, uma rapariga bonita de vinte e poucos anos, com o cabelo cortado à rapaz e um piercing numa sobrancelha. Susan reparou imediatamente na fotografia que estava na parede.

- Fica bem de farda - disse.

- Obrigada. Sei que já acabaste o teu turno, mas preciso que seja uma mulher a fazer o que vou pedir.

Susan ergueu uma sobrancelha, com um ar insinuante.

- Sei como são essas coisas.

Toni estava a pensar na festa de Natal da empresa, na sexta-feira anterior. Susan tinha-se vestido como o John Travolta em Grease, com o cabelo lustroso, umas calças de ganga muito justas e uns sapatos com umas solas maleáveis que, em Glasgow, eram conhecidos por “penetra-bordéis”. Tinha convidado Toni para dançar. Toni fizera um sorriso caloroso e dissera: “Acho melhor não”. Um pouco mais tarde, depois de mais algumas bebidas, Susan perguntara-lhe se dormia com homens, e Toni respondera: “Não tantas vezes quantas gostaria.”

Toni sentiu-se lisonjeada pelo facto de uma rapariga tão jovem e bonita se sentir atraída por ela, mas fingiu não reparar.

- Preciso que impeças todos os funcionários de entrarem. Põe uma secretária no átrio, e não os deixes ir para os respectivos gabinetes ou laboratórios sem primeiro falares com eles.

- E o que é que lhes digo?

- Diz-lhes que houve um problema de segurança com um vírus e que o Professor Oxenford vai fazer uma comunicação a todo o pessoal durante a manhã. Fala-lhes num tom calmo e tranquilizador, mas não entres em pormenores. É melhor deixar isso para o Stanley.

- Está bem.

- Depois pergunta-lhes quando foi a última vez que viram o Mi-chael Ross. Essa pergunta já foi feita a alguns pelo telefone, ontem à noite, mas só aos que têm acesso ao BSN4, e não há problema nenhum em perguntar duas vezes. Se alguém o tiver visto desde que ele saiu de cá, fez no domingo duas semanas, avisa-me imediatamente.

- Está bem.

Toni tinha uma pergunta delicada a fazer e estava a hesitar, mas acabou por perguntar:

- Achas que o Michael era gay?

- Se era, não assumia.

- Tens a certeza?

- Inverburn é uma cidade pequena. Há dois pubs, um clube, alguns restaurantes, uma igreja para gays... Conheço todos esses sítios e nunca o vi em nenhum deles.

- Está bem. Espero que não leves a mal eu ter partido do princípio -de que tu saberias, por causa de...

- Não faz mal. - Susan sorriu e olhou discretamente para Toni. - Vai ter de se esforçar mais do que isso para conseguir ofender-me.

- Obrigada.

Isso tinha sido há quase duas horas. Desde então, Toni passara o tempo quase todo a ver as gravações de vídeo da última vez que Mi-chael Ross estivera no BSN4. Já tinha as respostas que Stanley queria. Ia dizer o que havia acontecido, e era provável que ele lhe pedisse que apresentasse o seu pedido de demissão.

Lembrou-se da sua primeira reunião com Stanley. Estava no pior momento de toda a sua vida. Queria trabalhar por conta própria como consultora de segurança, mas não tinha clientes. Tinha sido abandonada por Frank, que fora seu companheiro durante oito anos. E a sua mãe estava a ficar senil. Sentia-se como Job depois de ter sido proscrito por Deus.

Stanley tinha-a convocado para uma entrevista e oferecera-lhe um contrato de curto prazo. Tinha descoberto um fármaco tão valioso que temia poder ser alvo de espionagem industrial. Queria que ela verificasse. Toni não lhe dissera que era o seu primeiro trabalho a sério.

Depois de passar revista às instalações, em busca de dispositivos de escuta, voltara a sua atenção para possíveis sinais de que os funcionários principais estivessem a viver acima das suas posses. Descobriu que ninguém andava a espiar a Oxenford Medical - mas, para sua consternação, descobriu que o filho de Stanley, Kit, andava a desviar fundos da empresa.

Ficara chocada. Achara Kit encantador e, ao mesmo tempo, desonesto; mas que tipo de homem é capaz de roubar o próprio pai? “O sacana tem dinheiro para isso e muito mais”, dissera Kit despreocupadamente; e Toni sabia, pela sua experiência na Polícia, que não havia nada de muito profundo na maldade - os criminosos eram apenas pessoas fúteis e insaciáveis com desculpas desajustadas.

Kit tentara convencê-la a não dizer nada. Prometera nunca mais fazer o mesmo, se Toni não contasse a ninguém só por aquela vez. Sentiu-se tentada: não queria dizer a um homem que há tão pouco tempo sofrera um desgosto bastante grande que o filho não prestava. Mas não dizer nada era ser desonesta.

Por isso, com grande ansiedade, acabara por contar tudo a Stanley.

Jamais esqueceria a expressão dele. Empalideceu, fez um esgar e disse “Aah”, como se tivesse sentido de repente uma dor dentro do seu corpo. Nesse momento em que tentava dominar a sua profunda emoção, Toni pôde ver a sua força e sensibilidade e sentiu uma forte atracção por ele.

Dizer-lhe a verdade tinha sido a decisão correcta. A sua integridade havia sido recompensada. Stanley despedira Kit e dera a Toni um lugar permanente. Só por isso, sentia que lhe devia uma lealdade inquebrantável. Estava profundamente determinada a recompensá-lo pela confiança que tinha depositado nela.

E a sua vida melhorara. Stanley promoveu-a rapidamente de chefe da segurança a directora das instalações e aumentou-a. Toni comprou um Porsche vermelho.

Quando um dia deixou escapar que tinha jogado squash na equipa nacional da Polícia, Stanley desafiou-a para um jogo no court da empresa. Ganhou, mas não com uma vitória folgada, e começaram a jogar todas as semanas. Ele sabia jogar bem e tinha um bom serviço, mas ela era vinte anos mais nova do que ele e os seus reflexos eram rapidíssimos. Volta e meia ele lá ganhava um jogo ou outro, quando ela não estava tão concentrada, mas normalmente era ela que ganhava.

E foi ficando a conhecê-lo melhor. O seu jogo era inteligente; assumia riscos que normalmente compensavam. Tinha um espírito competitivo, mas mantinha o bom humor quando perdia. O espírito rápido dela não ficava atrás do cérebro dele, e Toni tinha grande prazer naqueles confrontos. Quanto melhor o conhecia, mais gostava dele. Até que, um dia, percebeu que o que sentia por ele era mais do que apenas gostar dele.

Por isso, naquele momento, o que mais lhe custava ao perder o emprego era deixar de o ver.

Estava prestes a ir ao encontro dele no átrio, quando o telefone tocou.

Uma voz de mulher, com um sotaque do sul de Inglaterra, disse-lhe:

- Daqui fala a Odette.

- Olá!

Toni ficara satisfeita. Odette Cressy era detective da Polícia Metropolitana de Londres. Tinham-se conhecido num curso em Hendon há cinco anos. Eram da mesma idade. Odette era solteira e, depois de Toni se ter separado de Frank, já tinham ido duas vezes de férias juntas. Se não morassem tão longe uma da outra, seriam grandes amigas. Assim, limitavam-se a falar ao telefone, de duas em duas semanas, mais dia menos dia.

- É por causa da tua vítima do vírus - disse Odette.

- Por que é que estás tão interessada? - Toni sabia que Odette pertencia à brigada antiterrorista. - Não devia ter perguntado.

- Pois não. Só vou dizer-te que o nome de Madoba-2 fez soar aqui os alarmes e agora vou deixar que descubras porquê.

Toni franziu a testa. Com a sua experiência de polícia, era-lhe fácil adivinhar o que estava a acontecer. Odette tinha provas de que havia algum grupo interessado no Madoba-2. Talvez aquele nome tivesse sido mencionado por algum suspeito durante um interrogatório, ou tivesse vindo à baila numa conversa sob escuta, ou talvez tivesse sido no motor de busca de um computador por alguém cujas linhas telefónicas estavam a ser interceptadas. A partir daí, sempre que houvesse algum desaparecimento do vírus, a brigada antiterrorista iria desconfiar que tinha sido roubado por esses fanáticos.

- Não me parece que o Michael Ross fosse terrorista - disse Toni. - Acho que ele apenas se afeiçoou a um animal do laboratório.

- E os amigos dele?

- Descobri o livro de moradas dele, e a Polícia de Inverburn está neste momento a verificar os nomes.

- Ficaste com uma cópia? Estava sobre a sua secretária.

- Posso mandar-te imediatamente por fax.

- Obrigada. Vai poupar-me algum tempo. - Odette disse um número e Toni anotou-o. - Como é que vão as coisas com o borracho do teu patrão?

Tom nunca dissera a ninguém o que sentia por Stanley, mas Odette parecia ter o dom da telepatia.

- Sabes bem que não acredito no sexo no emprego. Além disso, a mulher dele morreu há pouco tempo...

- Tanto quanto me lembro, há dezoito meses.

- Não é muito, depois de quase quarenta anos de casamento. E ele é muito dedicado aos filhos e aos netos, e iria certamente detestar que alguém tentasse ocupar o lugar da sua mulher.

- Sabes o que tem de bom o sexo com um homem mais velho? Está tão preocupado por não ser jovem e vigoroso que faz o dobro do esforço para satisfazer a mulher.

- Vou acreditar na tua palavra.

- E que mais? Ah, pois, já me esquecia! Ainda por cima, é rico. Só vou dizer-te mais uma coisa: se não o quiseres, eu fico com ele. Entretanto, vai-me dizendo se encontrares alguma coisa de novo sobre o Michael Ross.

- Claro. - Toni desligou e olhou pela janela. O Ferrari F50 azul-escuro de Stanley Oxenford estava a chegar ao sítio do parque de estacionamento que lhe era reservado. Pôs a cópia do livro de moradas de Michael no fax e marcou o número de Odette.

Depois, sentindo-se como se fosse uma criminosa prestes a ouvir a sentença, foi ter com o patrão.

 

                   8:00

O átrio parecia a nave de uma igreja. Tinha umas janelas grandes em ogiva que deixavam entrar grossos feixes de luz que desenhavam padrões no chão de pedra, e era atravessado por grossas traves de madeira que sustentavam um telhado também revestido a madeira. De uma forma algo incongruente, a recepção ficava a meio daquele espaço tão belo, com o seu balcão alto e oval. Por detrás do balcão estava um segurança fardado sentado num banco.

Stanley Oxenford entrou pela porta principal. Era um sexagenário alto, com cabelo grisalho e olhos azuis. Não correspondia ao protótipo de cientista - não era careca, não tinha as costas curvadas, não usava óculos. Toni achava-o mais parecido com os actores que costumam fazer de generais nos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Vestia-se bem, sem parecer pomposo. Naquele dia trazia um fato de tweed cinzento com colete, uma camisa azul-clara e - talvez por respeito para com o funcionário falecido - uma gravata de malha preta.

Susan Mackintosh tinha posto uma mesa junto à porta da frente. Assim que Stanley entrou, falou logo com ele. Ele respondeu-lhe em poucas palavras e voltou-se para Toni:

- Foi boa ideia interceptar toda a gente logo à entrada e perguntarem-lhes quando foi a última vez que viram o Michael.

- Obrigada.

“Pelo menos fiz uma coisa acertada”, pensou Toni.

- E as pessoas que estão de férias? - perguntou Stanley.

- O Departamento de Pessoal vai telefonar-lhes durante a manhã.

- Óptimo. Já descobriste o que aconteceu?

- Já. Era eu que tinha razão. Foi o coelho.

Apesar de as circunstâncias serem trágicas, ele sorriu. Gostava que as pessoas o confrontassem, sobretudo mulheres atraentes.

- Como é que sabes?

- Pelas gravações de vídeo. Queres vê-las?

- Quero.

Percorrera um corredor amplo com as paredes revestidas com cai-xotins de linho e depois viraram para um corredor lateral, mais estreito, que ia dar à central de monitorização, normalmente chamada sala de controlo. Era ali o centro de segurança. Em tempos tinha sido uma sala de bilhar, mas as janelas haviam sido substituídas por tijolos, por razões de segurança, e tinha sido posto um tecto falso a tapar o ninho de cobras formado pelos cabos. Numa das paredes via-se um conjunto de monitores de televisão que mostravam áreas-chave do edifício, incluindo todas as salas do BSN4. Numa secretária enorme havia inúmeros painéis digitais que controlavam os alarmes. Havia milhares de detectores que mediam a temperatura, a humidade e o sistema de gestão de ar em todos os laboratórios - se alguém mantivesse uma porta demasiado tempo aberta, era logo accionado um alarme. Um segurança impecavelmente fardado ocupava uma estação de trabalho que dava acesso ao computador central da segurança.

- Isto foi arrumado desde a última vez que aqui estive - disse Stanley num tom surpreendido.

Quando Toni assumira o serviço de segurança, a sala de controlo estava um caos, cheia de copos de café sujos, jornais velhos, esferográficas partidas e caixas tupperwares meio vazias. Agora estava limpa e arrumada, sem nada sobre a secretária a não ser o dossier que o guarda estava a ler. Tom ficou satisfeita por Stanley ter reparado.

Stanley olhou para a sala contígua, que noutros tempos tinha sido a sala das armas e agora estava cheia de equipamento, incluindo a CPU do sistema telefónico. Mostrava-se profusamente iluminada. Havia centenas de cabos identificados com etiquetas inamovíveis e claramente legíveis, a fim de minimizar o tempo de espera em caso de falha técnica. Stanley acenou em sinal de aprovação.

Aquilo era tudo muito bonito, mas Stanley já sabia que ela sabia organizar tudo de forma muito eficiente. No entanto, a parte mais importante do seu trabalho era garantir que não saía nada de perigoso do laboratório BSN4 - e aí falhara.

Havia alturas em que não sabia o que Toni estava a pensar, e aquela era uma dessas ocasiões. Estaria condoído pela morte de Michael Ross, receoso do futuro da empresa ou furioso com a quebra de segurança? Voltaria a sua raiva contra ela, contra Michael ou Howard McAlpine? Quando lhe mostrasse o que Michael tinha feito, Stanley elogiá-la-ia por ter descoberto tudo tão depressa ou despedi-la-ia por ter permitido que tal acontecesse?

Sentaram-se ao lado um do outro à frente de um monitor, e Toni foi accionando os botões do teclado até chegar às imagens que queria que ele visse. A gigantesca memória do computador guardava as imagens durante vinte e oito dias e só depois as apagava. Toni estava muito familiarizada com o programa e navegava nele com bastante à-vontade. Mostrou-lhe no monitor Michael a chegar ao portão principal e a apresentar o seu cartão de acesso.

- A data e a hora estão na parte de baixo do ecrã - esclareceu. Fora às catorze horas e vinte e sete minutos do dia oito de Dezembro. Continuou a mexer no teclado, e no monitor apareceu um Volkswagen Golf verde a estacionar. Viu-se um homem de pequena estatura a sair do carro e a tirar uma mochila do banco de trás. - Repare na mochila - disse Tom.

- Porquê?

- Porque tem um coelho lá dentro.

- Como é que ele conseguiu?

- Deve ter-lhe dado um tranquilizante e provavelmente embrulhou-o em qualquer coisa. Lembre-se que ele trabalha com animais de laboratório há anos. Sabe o que tem de fazer para os manter calmos.

A imagem seguinte mostrava Michael a apresentar outra vez o cartão de acesso na recepção. Uma paquistanesa bonita com uns quarenta anos entrou no átrio.

- É a Momca Ansan - disse Stanley.

- Era a colega dele. Tinha de fazer um trabalho qualquer com culturas em tecidos, e ele ia fazer a visita de rotina aos animais.

Foram pelo mesmo corredor por onde Toni e Stanley tinham vindo, mas, em vez de voltarem para a sala de controlo, tinham continuado até à porta do fundo. Parecia igual a todas as outras portas do edifício, com quatro painéis entalhados e um puxador de latão, mas era feita de aço. Na parede ao lado da porta estava o símbolo internacional amarelo e preto de perigo biológico.

A Dra. Ansari acenou um cartão de plástico à frente do controlo de acesso e depois encostou o indicador da mão esquerda a um pequeno ecrã. Houve uma pausa, enquanto o computador verificava se as suas impressões digitais coincidiam com a informação que constava do mi-crochip inserido no cartão. Era uma forma de garantir que os cartões perdidos ou roubados não pudessem ser utilizados por pessoas não autorizadas. Enquanto esperava, a Dra. Ansari olhou para a câmara de vigilância e, por brincadeira, fez continência. Depois a porta abriu-se, e ela entrou. Michael entrou a seguir.

Uma outra câmara mostrava-os no pequeno átrio. Na parede havia uma série de mostradores que monitorizavam a pressão do ar no laboratório. A medida que se ia avançando no BSN4, a pressão ia diminuindo. Esta diminuição era uma forma de garantir que qualquer fuga de ar seria no sentido de fora para dentro, e não o contrário. No átrio separaram-se, indo para os respectivos vestiários.

- Foi nesta altura que ele tirou o coelho do saco - disse Toni. - Se tivesse ido com um colega do sexo masculino, o plano não teria resultado. Mas foi com a Mónica, e não há câmaras de vigilância nos vestiários.

- Bolas! Também não podemos pôr câmaras nos vestiários - retorquiu Stanley. - Ninguém iria querer trabalhar cá.

- Claro - disse Toni. - Vamos ter de pensar noutra alternativa. Vê isto.

A imagem seguinte era de uma câmara instalada no interior do laboratório. Mostrava gaiolas convencionais de coelhos com uma cobertura isolante de plástico transparente. Toni fez pausa.

- Podes explicar-me exactamente o que os cientistas fazem neste laboratório?

- Posso. O nosso novo fármaco é eficaz contra muitos vírus, mas não todos. Nesta experiência, estava a ser testado contra o Madoba-2, uma variante do vírus Ebola que causa uma febre hemorrágica fatal em coelhos e seres humanos. Estimulámos dois grupos de coelhos com o vírus.

- Estimularam?

- Desculpa. É a palavra que costumamos utilizar. Significa que foram infectados. Depois o fármaco foi injectado a um dos grupos.

- A que conclusão chegaram?

- Que nos coelhos o fármaco não é eficaz sobre o Madoba-2. Ficámos um pouco desapontados. É quase certo que também não será eficaz nos humanos.

- Mas há dezasseis dias ainda não sabiam isso.

- Exactamente.

- Nesse caso, acho que estou a perceber o que o Michael estava a tentar fazer. - Voltou a tocar no teclado para que a imagem avançasse. Apareceu então no ecrã uma pessoa com um fato de isolamento azul-claro e um capacete. Parou junto à porta para calçar as botas de borracha. Depois estendeu o braço e puxou uma mangueira amarela que pendia do tecto. Ligou-a a um adaptador incorporado no cinto. O ar foi entrando e fazendo inchar o fato, até ele ficar parecido com o homem da Michelin.

- É o Michael - disse Toni. - Foi mais rápido do que a Mónica a mudar de roupa e, por isso, naquele momento está sozinho.

- Isso não devia acontecer, mas acontece - explicou Stanley. - A regra de que têm de ser sempre duas pessoas a entrar no laboratório é observada, mas não minuto a minuto. Merda! - Stanley deixava escapar com frequência algumas imprecações em italiano, que aprendera com a mulher. Toni, que falava espanhol, percebia quase sempre.

Viu-se no ecrã Michael a dirigir-se para as gaiolas dos coelhos, caminhando com uma lentidão deliberada por causa do fato. Estava de costas para a câmara e, por momentos, o fato insuflado não deixou ver o que estava a fazer. Depois afastou-se e deixou cair qualquer coisa em cima de uma bancada de aço inoxidável.

- Reparaste em alguma coisa? - perguntou Tom.

- Não.

- Nem os seguranças que estavam a ver os monitores. - Toni estava a defender os seus funcionários. Se Stanley não tinha visto o que acontecera, não podia culpar os guardas por também não terem visto. - Agora torna a ver. - Fez o filme andar alguns minutos para trás e parou a imagem no momento em que Michael apareceu. - Estás a ver um coelho naquela gaiola de cima, do lado direito?

- Estou.

- Olha melhor para o Michael. Tem qualquer coisa debaixo do braço.

- Pois tem. Uma coisa embrulhada em plástico azul igual ao do fato. Fez avançar o filme e tornou a parar no momento em que Michael se afastou das gaiolas.

- Quantos coelhos estão na gaiola de cima do lado direito?

- Dois. Bolas! - Stanley parecia incrédulo. - Pensava que a tua teoria era que Michael tinha levado um coelho do laboratório, mas afinal as imagens mostram-no a trazer um!

- Para substituir o outro. Senão, os cientistas iam dar pela falta de um.

- Não percebo a motivação dele. Para salvar um coelho, teve de condenar outro à morte!

- Considerando que mantinha alguma racionalidade, só posso imaginar que sentia qualquer coisa de especial pelo coelho que salvou.

- Por amor de Deus! Tanto faz um coelho como outro.

- Acho que para o Michael, isso não era bem assim.

Stanley acenou com a cabeça.

- Tens razão. É impossível saber o que lhe ia na cabeça.

Toni avançou o filme.

- Cumpriu todas as tarefas habituais, viu se havia comida e água nas gaiolas, viu se os animais ainda estavam vivos, seguindo à risca todos os itens da lista de coisas a verificar. A Monica entrou, mas foi trabalhar para um outro laboratório, de onde não podia vê-lo. Ele foi para o laboratório seguinte, o maior, para ver os macacos. Depois voltou. Agora vê.

Michael desligou o ventilador, como era normal quando se passava de uma sala para outra no interior do laboratório - o fato continha ar para três ou quatro minutos e, quando estava a acabar-se, a viseira do capacete começava a ficar embaciada, em sinal de aviso. Entrou numa sala pequena onde estava o cofre, um frigorífico estanque utilizado para conservar amostras vivas dos vírus. Sendo o local mais seguro de todo o edifício, era também lá que estava guardado todo o stock do precioso antivírico. Marcou uma combinação de dígitos no sensor. A câmara de vigilância mostrava-o a tirar duas doses do fármaco, já medidas e metidas em seringas descartáveis.

- A dose mais pequena para o coelho e a maior presumivelmente para ele próprio - disse Toni. - Também esperava que o fármaco agisse sobre o Madoba-2. O plano dele era curar o coelho e imunizar-se a si próprio.

- Os guardas podiam tê-lo visto a tirar o fármaco do cofre.

- Mas não iam achar nada de estranho nisso. Ele estava autorizado a lidar com esses materiais.

- Podiam ter reparado que não escreveu nada no registo.

- Pois podiam, mas lembra-te de que há um guarda a ver trinta e sete monitores e sem formação em prática laboratorial.

Stanley resmungou qualquer coisa.

- O Michael deve ter imaginado que a discrepância só seria notada no momento da auditoria anual e, mesmo nessa altura, podia ser atribuída a um erro humano. Não sabia que eu estava a planear fazer uma verificação de surpresa.

No ecrã da televisão, viu-se Michael a fechar o cofre e a voltar para o laboratório onde se encontravam os coelhos, tornando a ligar a mangueira.

- Já fez tudo o que tinha a fazer - explicou Toni. - Agora está a voltar para junto das gaiolas dos coelhos. - Mais uma vez as costas de Michael não deixavam que a câmara registasse o que estava a fazer. - Agora vai tirar o seu coelho preferido da gaiola. Parece-me que o envolve num fato miniatura, talvez feito com pedaços de um fato já usado.

Michael voltou-se de lado para a câmara. Quando se aproximou da saída, parecia ter qualquer coisa debaixo do braço direito, mas era difícil dizer ao certo.

Ao sair do BSN4, toda a gente tinha de ser pulverizada com químicos num chuveiro por onde era obrigatório passar para descontaminar o fato e, a seguir, tomar um duche normal antes de se vestir.

- O fato deve ter protegido o coelho no duche de descontaminação - disse Toni. - Depois deve ter deitado o fato do coelho para o incinerador. O duche de água não fazia mal ao animal. Quando chegou ao vestiário, pôs o coelho na mochila. Ao sair do edifício, os guardas viram-no levar o mesmo saco com que entrou e não desconfiaram de nada.

Stanley recostou-se na cadeira.

- Raios me partam! - exclamou. - Era capaz de jurar que era impossível.

- Levou o coelho para casa. Se calhar, ele mordeu-lhe quando lhe injectou o fármaco. Injectou-se também e pensou que estava em segurança, mas enganou-se.

Stanley parecia triste.

- Pobre rapaz - disse. - Que pateta!

- Agora já sabes tudo o que eu sei - confessou Toni e ficou a observá-lo, à espera do veredicto. Seria o fim daquela fase da sua vida? Já estaria sem emprego no Natal?

Stanley olhou-a com firmeza.

- Há uma medida óbvia de segurança que podíamos ter instituído e que teria evitado isto.

- Eu sei - disse Toni. - Era revistar as malas de toda a gente que entrasse e saísse do BSN4.

- Exactamente.

- Instituí essa medida esta manhã.

- Pôr trancas à porta depois de a casa ter sido roubada.

- Lamento muito - disse Toni. Tinha a certeza de que ele queria que ela se demitisse. - Sou paga para impedir que coisas destas aconteçam. Falhei. Parto do princípio de que queiras que eu apresente o meu pedido de demissão.

Stanley mostrou-se irritado.

- Quando eu quiser despedir-te, sabê-lo-ás.

Tom olhou para ele de olhos esbugalhados. Teria sido poupada? A expressão dele tornou-se mais suave.

- És uma pessoa conscienciosa e sentes-te culpada, apesar de nem tu nem eu nem ninguém poder prever o que iria acontecer.

- Podia ter implementado a revista das malas.

- E eu, muito provavelmente, tê-la-ia vetado por achar que ia ser um incómodo para o pessoal.

- Oh.

- Só vou dizer-te isto uma vez. Desde que estás na empresa, a segurança tem sido mais apertada do que nunca. És extremamente competente, e quero que continues cá. Por isso, acabou-se a autocomiseração.

O alívio foi tão grande que, de repente, Toni sentiu-se fraquejar.

- Obrigada - disse.

- Vá, temos muito que fazer. Vamos meter mãos à obra - disse ele e saiu.

Toni fechou os olhos, francamente aliviada. Tinha sido perdoada. “Obrigada”, pensou.

 

                   8:30

Miranda Oxenford pediu um cappuccino Viennoise com uma pirâmide de chantilly. No último momento pediu também uma fatia de bolo de cenoura. Meteu o troco no bolso da saia e levou o pequeno-almoço para a mesa onde a sua irmã Olga estava sentada com um café duplo e um cigarro. A sala estava enfeitada com grinaldas de papel, e havia uma árvore de Natal a piscar por cima da torradeira de panini, mas alguém com um óptimo sentido de humor tinha posto a tocar o Surfin' USA dos Beach Boys.

Miranda encontrava-se muitas vezes com Olga naquele café de Sauchiehall Street, no centro de Glasgow, logo de manhã. Trabalhavam perto uma da outra: Miranda era directora executiva de uma empresa de recrutamento especializada em funcionários do sector das tecno-logias de informação, e Olga era advogada. Ambas gostavam de ter cinco minutos para pôr as ideias em ordem antes de irem para os respectivos empregos.

Não pareciam irmãs, pensou Miranda, vendo de relance a sua imagem reflectida num espelho. Era baixa, com cabelo loiro encaracolado, e tinha um ar, por assim dizer, amoroso. Olga era alta como o pai, mas tinha as sobrancelhas pretas da sua mãe, já falecida, que era italiana e a quem sempre toda a gente tinha tratado por Mamma Marta. Olga vestia um fato cinzento com um ar profissional e uns sapatos muito bicudos. Podia desempenhar o papel de Cruella de Vil. Provavelmente aterrorizava os júris.

Miranda tirou o casaco e o cachecol. Tinha uma saia de pregas e uma camisola com pequenas flores bordadas. Vestia-se para agradar, não para intimidar. Quando se sentou, Olga disse-lhe:

- Vais trabalhar na véspera de Natal?

- Só uma hora - respondeu Miranda. - Para ter a certeza de que não fica nada por fazer durante os feriados.

- Exactamente como eu.

- Já sabes da notícia? Um técnico do Kremlin morreu com um vírus.

- Oh, meu Deus, isso vai dar cabo do nosso Natal.

Olga podia parecer uma mulher sem coração, mas isso não era verdade, pensou Miranda.

- Ouvi na telefonia. Ainda não falei com o papá, mas parece que o pobre rapaz se afeiçoou a um hamster do laboratório e levou-o para casa.

- O que é que ele fez? Fez sexo com ele?

- Se calhar, mordeu-lhe. Vivia sozinho e, por isso, ninguém pediu ajuda. Pelo menos, isso significa que provavelmente não passou o vírus a ninguém. Mesmo assim, é terrível para o papá. Não vai dar a entender nada, mas tenho a certeza de que vai sentir-se responsável.

- Devia ter escolhido um ramo da ciência menos perigoso... Qualquer coisa como investigação de armas atómicas.

Miranda sorriu. Estava particularmente satisfeita por ter encontrado Olga naquele dia. Apetecia-lhe ter uma conversa em sossego. A família ia reunir-se em Steepfall, a casa do pai, para festejar o Natal. Miranda ia levar o seu noivo, Ned Hanley, e queria ter a certeza de que Olga iria ser simpática para ele, mas abordou o assunto de forma indirecta.

- Espero que isto não estrague a festa. Andava desejosa que este dia chegasse. Sabes que o Kit também vai?

- Fico muito sensibilizada pela honra que o nosso irmãozinho se digna conceder-nos.

- Não queria ir, mas eu convenci-o.

- O papá vai ficar satisfeito - disse Olga com algum sarcasmo.

- Pois vai - retorquiu Miranda num tom crítico. - Sabes bem que lhe custou imenso despedir o Kit.

- Só sei que nunca o vi tão zangado. Pensei que ele ia matar alguém.

- Depois chorou.

- Isso já não vi.

- Nem eu. Foi a Lori que me contou. - Lori era a governanta de Stanley. - Agora quer perdoá-lo e esquecer tudo.

Olga apagou o cigarro.

- Eu sei. A magnanimidade do papá não tem limites. O Kit já tem emprego?

- Não.

- Não lhe arranjas nada? É a tua área, e ele é bom.

- As coisas estão muito calmas. E as pessoas sabem que foi despedido pelo próprio pai.

- Já deixou de jogar?

- Espero que sim. Prometeu ao papá que ia parar. E, além disso, não tem dinheiro.

- O papá pagou-lhe as dívidas, não pagou?

- Não é para nós sabermos.

- Vá lá, Mandy. - Olga estava a utilizar o nome pelo qual Miranda era tratada em criança. - Quanto foi?

- Tens de perguntar ao papá... ou ao Kit.

- Dez mil libras?

Miranda desviou a cara.

- Mais do que isso? Vinte mil?

- Cinquenta - sussurrou Miranda.

- Meu Deus! Aquele sacana estoirou cinquenta mil libras da nossa herança? Espera até eu o apanhar à minha frente.

- Bem, já chega do Kit. Vais ficar a conhecer muito melhor o Ned. Quero que o trates como se fosse da família.

- O Ned já devia ser da família. Quando é que te casas? Já não tens idade para andar muito tempo a namorar. Já foram os dois casados. Não tens de poupar para o enxoval.

Não era aquela a reacção de que Miranda estava à espera. Queria que Olga se mostrasse entusiástica com a presença de Ned.

- Ora, já sabes como é o Ned - disse, à defesa. - Está perdido no seu próprio mundo. - Ned trabalhava como editor de The Glasgow Review of Books, uma conceituada revista na área da política e da cultura, mas era totalmente desprovido de sentido prático.

- Não sei como consegues suportar isso. Não aguento hesitações.

A conversa não estava a correr como Miranda queria.

- Acredita em mim. Depois do Jasper, é uma bênção e um alívio.

- O primeiro mando de Miranda tinha sido um mandão e um tirano. Ned era o oposto, e essa era uma das razões por que o amava.

- O Ned nunca vai ser suficientemente organizado para querer mandar em mim. A maior parte das vezes nem sabe que dia é.

- Verdade seja dita, aguentaste-te perfeitamente bem sem homem durante cinco anos.

- Pois aguentei, e senti-me muito orgulhosa de mim mesma, sobretudo quando a situação económica piorou, e deixaram de me pagar aqueles bónus chorudos.

- Então, para que queres outro homem?

- Bem, sabes como é...

- Por causa do sexo? Por favor... Nunca ouviste falar em vibradores?

Miranda deu uma risadinha.

- Não é a mesma coisa.

- Pois não. Um vibrador é maior, mais duro e mais fiável e, quando já não te apetece mais, podes guardá-lo na mesa-de-cabeceira e esquecer que ele existe.

Miranda começou a sentir-se atacada, como muitas vezes acontecia quando falava com a irmã.

- O Ned dá-se muito bem com o Tom. - Tom era o seu filho de onze anos. - O Jasper quase nunca falava com o Tom a não ser para lhe dar ordens. O Ned interessa-se por ele. Pergunta-lhe coisas e ouve as respostas.

- A propósito de enteados, como é que o Tom se dá com a Sophie? - Ned tinha uma filha de catorze anos do primeiro casamento.

- Também vai a Steepfall. Vou buscá-la ao fim da manhã. O Tom vê a Sophie da mesma forma que os Gregos viam os deuses, como seres sobrenaturais que são perigosos a menos que sejam pacificados através de oferendas. Está sempre a tentar dar-lhe doces. Ela preferia cigarros. É magra como um palito e era capaz de morrer para continuar assim.

Miranda olhou deliberadamente para o maço de Marlboro Lights de Olga.

- Todas as pessoas têm as suas fraquezas - disse Olga. - Come mais uma fatia de bolo.

Miranda pousou o garfo e bebeu um gole de café.

- A Sophie pode ser difícil, mas a culpa não é dela. A mãe dela está muito ofendida comigo, e a miúda é fatalmente contagiada pela atitude dela.

- Aposto que o Ned deixa o problema por tua conta.

- Não me importo.

- Agora que ele já se mudou para a tua casa, paga-te renda?

- Não tem dinheiro para isso. A revista paga-lhe uma miséria. E ainda está a pagar a hipoteca da casa onde vive a ex-mulher. Podes crer que não se sente nada bem por depender de mim financeiramente.

- Não percebo por que não há-de sentir-se bem. Pode dar uma queca sempre que lhe apetecer, tu aturas as madurezas da filha dele e não tem de pagar renda.

Miranda ficou ofendida.

- Estás a ser um bocado dura.

- Não devias tê-lo deixado ir viver contigo enquanto não se tivesse comprometido com uma data para o casamento.

Essa ideia passara pela cabeça de Miranda, mas não estava disposta a admiti-lo.

- O Ned acha que toda a gente precisa de mais algum tempo para se habituar à ideia de ele voltar a casar.

- Quem é “toda a gente”?

- Bem, para começar, a Sophie.

- E, como disseste há pouco, ela reflecte as atitudes da mãe. Por isso, o que estás a dizer é que o Ned não casa contigo enquanto a ex-mulher dele não der autorização.

- Olga, por favor, vê lá se despes a toga de advogada quando estás a falar comigo.

- Alguém tem de te dizer estas coisas.

- Tu simplificas tudo demasiado. Sei que é a tua função, mas eu sou tua irmã, não sou uma testemunha hostil.

- Desculpa ter falado.

- Até te agradeço que tenhas falado, porque disseste exactamente o tipo de coisas que eu não quero dizer ao Ned. É o homem que eu amo, e quero casar com ele. É por isso que estou a pedir-te que sejas simpática para ele no Natal.

- Vou tentar - disse Olga sem grande convicção.

Miranda queria que a irmã compreendesse como aquilo era importante para ela.

- Preciso que ele sinta que nós os dois podemos construir juntos uma nova família, por nós e pelos miúdos. Só estou a pedir-te que me ajudes a convencê-lo de que isso é possível.

- Está bem.

- Se o Natal correr bem, acho que ele vai concordar em marcar a data do casamento.

Olga tocou na mão de Miranda.

- Já percebi a mensagem. Sei que é importante para ti. Vou portar-me bem.

Miranda tinha conseguido o que queria. Satisfeita, voltou o espírito para outra área de fricção.

- Espero que corra tudo bem entre o papá e o Kit.

- Também eu, mas não podemos fazer nada em relação a isso.

- O Kit telefonou-me há uns dias. Por qualquer razão, está desejoso de dormir na casa de hóspedes de Steepfall.

- Por que há-de ele ficar com a casa só para ele? - refilou Olga. - Isso implica que tu e o Ned, e eu e o Hugo tenhamos de ficar apertados em dois quartos acanhados na casa antiga!

Miranda já estava à espera de que Olga resistisse à ideia.

- Sei que não faz sentido, mas disse-lhe que por mim estava bem. Já foi tão difícil convencê-lo a vir. Não quis criar-lhe nenhum obstáculo.

- Ele é um egoísta. Qual foi a razão que ele te deu?

- Não lhe perguntei.

- Pois, mas eu vou perguntar. - Olga tirou um telemóvel da pasta e marcou um número.

- Não faças disto um problema - implorou Miranda.

- Só quero perguntar-lhe isso. - Falando ao telefone, perguntou: - Kit, que ideia é a tua de dormires na casa de hóspedes? Não achas que é um bocado... - Fez uma pausa. - Oh. Porquê?... Estou a ver... mas por que não... - Parou abruptamente, como se ele lhe tivesse desligado o telefone na cara.

Miranda pensou, com tristeza, que sabia o que Kit tinha dito.

- O que foi?

Olga tornou a guardar o telemóvel.

- Já não é preciso discutirmos por casa da casa de hóspedes. O Kit mudou de ideias. Afinal, não passa o Natal em Steepfall.

 

                   9:00

A Oxenford Medical parecia sitiada. Jornalistas, fotógrafos, equipas de televisão apinhavam-se junto aos portões, assediando os empregados quando chegavam para ir trabalhar, cercando os seus carros e bicicletas, apontando-lhes à cara câmaras e microfones, gritando perguntas. Os guardas tentavam desesperadamente separar os veículos da imprensa do trânsito normal a fim de prevenir acidentes, mas não estavam a conseguir a colaboração dos jornalistas. Para piorar ainda mais a situação, um grupo de defensores dos direitos dos animais estava a aproveitar a oportunidade para obter alguma publicidade. Tinham organizado uma manifestação junto aos portões e estavam a acenar bandeiras e a entoar canções de protesto. Os operadores de câmara das televisões estavam a filmar a manifestação, na falta de outras imagens para recolher. Toni Gallo observava, zangada e impotente.

Estava no gabinete de Stanley Oxenford, uma espaçosa divisão de canto que tinha sido o quarto principal da casa. Stanley trabalhava rodeado pelo antigo e pelo novo: o seu computador estava sobre uma mesa de madeira já muito riscada, que tinha há trinta anos, e, numa mesinha ao lado, havia um microscópio óptico dos anos sessenta que de vez em quando ainda utilizava. O microscópio estava agora rodeado de cartões de Boas Festas, um deles de Toni. Na parede via-se uma gravura vitoriana com a tabela periódica dos elementos ao lado de uma fotografia de uma jovem lindíssima, de cabelos negros e vestida de noiva - a sua falecida mulher, Marta.

Stanley falava muitas vezes da mulher. “Fria como uma igreja costumava dizer a Marta... Quando a Marta era viva, íamos a Itália de dois em dois anos... A Marta adorava íris.” Porém, só uma vez é que tinha falado dos seus sentimentos por ela. Toni dissera que Marta estava muito linda na fotografia. “A dor esmorece, mas não desaparece” dissera Stanley. “Acho que vou sentir a falta dela todos os dias de vida que ainda me restarem.” A frase dele levara Toni a interrogar-se se alguma vez alguém a amaria como Stanley amara Marta.

Naquele momento, Stanley estava à janela ao lado de Toni, sem que os seus ombros estivessem propriamente a tocar-se. Viam com desânimo mais Volvos e Subarus a estacionarem no relvado adjacente e as pessoas a fazerem cada vez mais barulho e a ficarem mais agressivas.

- Lamento muito tudo isto - disse Toni, com grande tristeza.

- A culpa não é tua.

- Sei que disseste para eu acabar com a autopiedade, mas deixei escapar um coelho pelo meu cordão de segurança e depois o sacana do meu ex-companheiro foi contar a história ao Cari Osborne, por coincidência repórter de televisão.

- Pelos vistos não te dás muito bem com o teu ex.

Nunca falara abertamente com Stanley sobre isso, mas já que agora Frank se tinha intrometido na sua vida profissional, Toni aproveitou para explicar.

- Honestamente não sei por que é que o Frank me odeia. Nunca o rejeitei. Foi ele que me deixou - e logo numa altura em que precisava mesmo de ajuda e apoio. Sempre pensei que já me tinha castigado o suficiente por o que quer que fosse que eu tivesse feito de mal. E agora acontece isto.

- Eu consigo compreender. Para ele, simbolizas uma acusação. Sempre que te vê, lembra-se de como foi fraco e cobarde quando precisaste dele.

Toni nunca tinha pensado em Frank daquela forma, mas o seu comportamento fazia sentido visto por aquela perspectiva. Sentiu-se invadida por um caloroso sentimento de gratidão. Tendo o cuidado de não deixar transparecer demasiado as emoções, disse apenas:

- Dá para perceber.

Stanley encolheu os ombros.

- Nunca perdoamos às pessoas que enganámos.

O paradoxo fez Tony sorrir. Stanley possuía tanta argúcia relativamente às pessoas como aos vírus.

Pousou ao de leve a mão no ombro dela - seria para lhe dar coragem ou quereria dizer mais do que isso? Raramente estabelecia qualquer contacto físico com os seus funcionários. Tom conhecia-o há um ano e, durante esse tempo, ele já lhe tinha tocado três vezes. Tinha-lhe dado um aperto de mão quando a contratara, quando a levara ao serviço de pessoal e quando a promovera. Na festa de Natal, Stanley tinha dançado com a sua secretária, Dorothy, uma mulher corpulenta, de gestos maternais, que parecia a mãe-pata. Não dançara com mais ninguém. Toni gostaria de o ter convidado para dançar, mas receara que isso tornasse os seus sentimentos óbvios. Depois arrependera-se e lamentara não ser mais decidida, como Susan Mackintosh.

- O Frank pode não ter contado a história apenas para se vingar de ti - disse Stanley. - Desconfio que o teria feito em qualquer dos casos. Imagino que o Osborne irá mostrar a sua gratidão, dando notícias elogiosas sobre a Polícia de Inverburn em geral e o superintendente Frank Hackett em particular.

Sentia o calor da mão dele através da seda da blusa. Seria um gesto casual, feito sem pensar? Estava a sofrer com a frustração, que já lhe era familiar, de não saber o que ia na mente dele. Pensou se ele estaria a sentir a alça do soutien. Só esperava que ele não estivesse a sentir o quanto gostava que ele lhe tocasse.

Toni não tinha a certeza se ele estaria certo em relação a Frank e Cari Osborne.

- És muito generoso em ver as coisas assim - disse Toni.

De qualquer forma, estava decidida a não deixar que a empresa se ressentisse com o que Frank tinha feito.

Ouviram bater à porta e, logo a seguir, entrou Cynthia Creighton, relações públicas da empresa. Stanley tirou rapidamente a mão do ombro de Toni.

Cynthia era uma mulher magra, de cinquenta anos, com uma saia de tweed e collants de lã. Era uma idealista e uma apoiante sincera de causas humanitárias. Uma vez Toni fizera Stanley rir-se ao dizer que Cynthia era o tipo de pessoa que ainda comia papas de aveia. Tendo normalmente uma maneira algo hesitante de falar, naquele momento estava à beira da histeria. Tinha o cabelo desgrenhado, a respiração ofegante, e as palavras saíam-lhe em catadupa.

- Aqueles tipos empurraram-me - exclamou. - São uns animais! Onde é que está a Polícia?

- Vem aí um carro-patrulha - respondeu Toni. - Devem chegar daqui a dez, quinze minutos.

- Deviam prendê-los todos!

Toni percebeu, com grande desânimo, que Cynthia não conseguia lidar com aquela crise. A sua principal função era gerir um pequeno orçamento para fins de beneficência, concedendo apoios a equipas de futebol e outros patrocínios, por forma a garantir que o nome da Oxenford Medical aparecesse frequentemente no Inverburn Chronide em notícias que não tivessem nada que ver com vírus ou experiências com animais. Toni sabia que era um trabalho importante, pois os leitores acreditavam na imprensa local, ao contrário do cepticismo que demonstravam pelos jornais nacionais. A discreta publicidade veiculada por Cynthia imunizava a empresa contra as virulentas histórias de Fleet Street, capazes de arrasar qualquer feito científico. Na verdade, porém, Cynthia nunca fora obrigada a lidar com os chacais da imprensa britânica e estava demasiado perturbada para tomar boas decisões.

Stanley estava a pensar exactamente o mesmo.

- Cynthia, quero que trabalhes em conjunto com a Toni neste caso - disse. - Ela está habituada a lidar com os meios de comunicação por causa do tempo que esteve na Polícia.

Cynthia fez uma expressão aliviada e, ao mesmo tempo, agradecida.

- A sério?

- Estive um ano no gabinete de imprensa, mas nunca tive de lidar com nenhuma situação tão grave como esta.

- O que é que achas que devemos fazer?

- Bem... - Tom não se sentia habilitada a assumir o comando, mas era uma situação de emergência e, pelos vistos, era a melhor candidata disponível. Relembrou os princípios básicos. - Há uma regra muito simples para lidar com os meios de comunicação. - Pensou que talvez fosse demasiado simples para aquela situação, mas não o disse.

- Primeiro, decidir qual é a mensagem. Segundo, ter a certeza de que é verdade, para não ter de a rever. Terceiro, repeti-la até à exaustão.

- Hura - Stanley murmurou com ar céptico, mas aparentemente sem ter nenhuma sugestão melhor.

- Não acham que devíamos pedir desculpa? - alvitrou Cynthia.

- Não - respondeu Toni muito depressa. - Será interpretado como uma confirmação de que fomos descuidados, e isso não é verdade. Ninguém é perfeito, mas a nossa segurança é de alto nível.

- Vai ser a nossa mensagem? - perguntou Stanley.

- Não me parece. É demasiado defensiva. - Toni ficou a pensar por um momento. - Devíamos começar por dizer que estamos a fazer um trabalho que é vital para o futuro da Humanidade. Não, isso é um tom demasiado apocalíptico. Estamos a fazer uma investigação que irá salvar vidas - assim já é melhor. Tem os seus riscos, mas a nossa segurança é o mais rigorosa possível. Uma coisa é certa: se pararmos, muitas pessoas irão morrer desnecessariamente.

- Gosto disso - afirmou Stanley.

- É verdade? - perguntou Toni.

- Sem sombra de dúvida. Todos os anos aparece um novo vírus na China, responsável por milhares de mortes. O nosso fármaco irá salvar essas vidas.

Toni fez um sinal de assentimento.

- É perfeito. Simples e esclarecedora.

Contudo, Stanley ainda estava preocupado.

- E como é que vamos passar a mensagem?

- Acho que devias convocar uma conferência de imprensa para daqui a umas duas horas. Por volta do meio-dia, os jornalistas vão começar à procura de uma nova abordagem da notícia. Vão ficar satisfeitos por lhes darmos mais informações. E a maior parte das pessoas que estão lá fora ir-se-á embora quando isso acontecer. Vão perceber que é pouco provável que haja novos desenvolvimentos e, além disso, querem ir passar o Natal a casa como toda a gente.

- Espero que tenhas razão - disse Stanley. - Cynthia, importas-te de tratar disso?

Cynthia ainda não tinha recuperado a calma.

- Mas o que é que hei-de fazer?

Toni assumiu de novo o comando.

- Vamos dar a conferência de imprensa no átrio. É o único espaço suficientemente grande, e já estão a ser postas lá cadeiras para a comunicação que o professor Oxenford vai fazer ao pessoal às nove e meia. A primeira coisa a fazer é avisar as pessoas que estão lá fora. É uma maneira de lhes dar qualquer coisa para transmitirem aos editores e talvez fiquem um pouco mais calmos. Depois tens de ligar para a Press Association e a Reuters e pedir-lhes que difundam a informação para que chegue aos órgãos de comunicação que ainda cá não estão.

- Está bem - anuiu Cynthia num tom que denotava incerteza.

- Está bem.

Voltou-se para sair. Toni registou mentalmente que teria de ir ver se ela estava a dar conta do recado o mais depressa possível.

Quando Cynthia saiu, Dorothy ligou pelo intercomunicador para Stanley a fim de o avisar que Laurence Mahoney, da embaixada dos Estados Unidos em Londres, estava ao telefone na linha um.

- Lembro-me dele - disse Toni. - Esteve cá há uns meses. Andei a mostrar-lhe as instalações.

As pesquisas da Oxenford Medical eram financiadas em grande parte pelas Forças Armadas americanas. O Ministério da Defesa estava profundamente interessado no novo fármaco antiviral de Stanley, que prometia ser uma arma poderosa contra a guerra biológica. Stanley precisara de fundos para subsidiar o longo processo de testes, e o governo americano mostrara-se ansioso por investir. Mahoney ia mantendo uma certa vigilância da situação em nome do Ministério da Defesa.

- Só um minuto, Dorothy. - Stanley não atendeu logo o telefone.

- O Mahoney é mais importante para nós do que todos os meios de comunicação ingleses juntos. Não quero que ele me apanhe desprevenido. Preciso de saber como é que ele está a encarar o caso, para pensar como hei-de reagir - disse ela a Tony.

- Queres que eu o empate um bocado?

- Apalpa-lhe o pulso.

Toni levantou o auscultador e carregou num botão.

- Olá, Larry, daqui fala a Toni Gallo. Conhecemo-nos em Setembro. Como está?

Mahoney tinha uma voz lamurienta que lembrava a Tom o Pato Donald.

- Estou preocupado - respondeu ele.

- Porquê?

- Estava à espera de poder falar com o Professor Oxenford - queixou-se, com uma certa irritação na voz.

- E ele está desejoso de falar consigo assim que puder - retorquiu Toni o mais sinceramente possível. - Neste momento está em reunião com o director do laboratório. - Na realidade estava sentado à beira da secretária a observá-la, com uma expressão no rosto que tanto podia ser de ternura como apenas de interesse. Tom viu-o a olhar para ela, e Stanley desviou os olhos. - Ele telefona-lhe assim que souber tudo o que aconteceu. De certeza que isso acontecerá antes do meio-dia.

- Como diabo deixaram uma coisa destas acontecer?

- O nosso técnico levou um coelho do laboratório escondido na mochila. Já impusemos a revista obrigatória das malas à entrada do BSN4 para impedir que volte a acontecer.

- Estou preocupado é com a publicidade negativa para o governo americano. Não queremos ser acusados de andarmos a propagar vírus mortais entre a população da Escócia.

- Esse perigo não existe - disse Toni, a fazer figas.

- Algum dos repórteres que estão no local levantou a questão de esta investigação ser financiada pelos Estados Unidos?

- Não.

- Mas vão trazer isso à baila, mais cedo ou mais tarde.

- Vamos estar preparados para responder a quaisquer perguntas sobre a matéria.

- A perspectiva mais perigosa para nós - e, portanto, também para vocês - é dizerem que a investigação está a ser feita aqui porque os americanos acham que é demasiado perigosa para ser levada a cabo nos Estados Unidos.

- Obrigada pelo aviso. Acho que temos uma resposta muito convincente para lidar com esse argumento. Afinal, o produto foi descoberto aqui na Escócia pelo professor Oxenford, por isso é natural que também seja testado aqui.

- Só não quero ficar numa situação em que a única forma de demonstrar a nossa boa vontade seja transferir a investigação para Fort Detrick.

Toni ficou tão chocada que não foi capaz de dizer nada. Fort Detrick, na cidade de Frederick, no estado de Maryland, albergava o Instituto de Investigação Médica de Doenças Infecciosas do Exército Americano. Como poderia a investigação ser transferida para lá? Significaria o fim do Kremlin. Depois de uma longa pausa, disse:

- Não estamos nessa situação, nem pouco mais ou menos. - Gostaria de ter conseguido pensar num contra-argumento mais arrasador.

- Espero bem que não. Diga ao Stanley para me ligar.

- Obrigada, Larry. - Desligou e, virando-se para Stanley, disse:

- Eles não podem transferir as tuas pesquisas para Fort Detrick, pois não?

Stanley empalideceu.

- Não há nenhuma cláusula no contrato que preveja isso - referiu ele -, mas eles são do governo do país mais poderoso do mundo e podem fazer tudo o que quiserem. O que poderia eu fazer - metê-los em tribunal? O processo iria durar até ao fim da minha vida, e era preciso ter dinheiro para isso.

Toni estava perturbada por ver Stanley a mostrar-se vulnerável. Era sempre a pessoa curau e confiante que sabia resolver todos os problemas. E naquele momento parecia assustado. Apetecia-lhe poder abraçá-lo para lhe dar coragem.

- Achas que eles eram capazes disso?

- Tenho a certeza de que os microbiologistas de Fort Detrick preferiam ser eles a fazer a investigação, se lhes fosse dado a escolher.

- Etu?

- Ficava na falência.

- O quê? - Toni estava horrorizada.

- Investi tudo no novo laboratório - disse Stanley com um ar triste. - Tenho a minha conta pessoal a descoberto no valor de um milhão de libras. O nosso contrato com o Ministério da Defesa cobriria os custos do laboratório durante quatro anos. Porém, se eles nos puxarem o tapete agora, não tenho maneira de pagar as dívidas - nem as da empresa, nem as minhas.

Toni quase não conseguia digerir o que estava a ouvir. Como podia o futuro de Stanley - e o seu próprio - ficar ameaçado tão de repente?

- Mas o novo fármaco vale milhões.

- Há-de valer. Acredito na ciência - foi por isso que não me importei de pedir tanto dinheiro emprestado. Contudo, nunca previ que o projecto pudesse ser destruído por uma mera publicidade.

Toni tocou-lhe no braço.

- E tudo porque uma estúpida vedeta da televisão precisa de uma história de terror - exclamou. - Não dá para acreditar.

Stanley deu-lhe uma palmadinha na mão pousada sobre o seu braço e depois retirou-o e levantou-se.

- Não vale a pena estarmos com lamúrias. Temos é que resolver a situação.

- Exactamente. Está na hora de ires falar com o pessoal. Estás preparado?

- Estou. - Saíram juntos do gabinete. - Vai ser um bom treino para a conferência de imprensa.

Quando passaram pela secretária de Dorothy, ela levantou uma mão para os obrigar a parar.

- Só um momento - disse ao telefone. Carregou num botão e comunicou a Stanley - É o primeiro-ministro da Escócia. - Depois acrescentou, visivelmente impressionada - Em pessoa. Quer falar consigo.

Stanley disse a Toni:

- Vai andando para o átrio e entretém-nos. Vou despachar-me o mais depressa possível.

Dito isto, voltou para o gabinete.

 

                   9:30

Kit Oxenford esperou mais de uma hora por Harry McGarry. McGarry, conhecido por Harry Mac, tinha nascido em Govan, um bairro operário de Glasgow. Crescera num prédio de habitação social perto de Ibrox Park, berço da equipa protestante de futebol da cidade os Rangeis. Com os lucros do tráfico de droga, jogo clandestino, roubos e prostituição mudara-se para Dumbreck, do outro lado de Paisley Koad - geograficamente a pouco mais de um quilómetro de distância mas, socialmente falando, a uma grande distância. Agora morava numa vivenda enorme, com piscina, construída há pouco tempo

A casa estava decorada como um hotel de luxo, com móveis de marca e quadros nas paredes, mas sem qualquer toque pessoal: não havia fotografias de familiares, nem ornamentos, nem flores, nem animais de estimação. Kit, muito nervoso, ficou à espera no espaçoso átrio de entrada a olhar para o papel de parede às riscas amarelas e para as finas pernas das diversas mesas que o decoravam, vigiado por um guarda-costas corpulento, com um fato preto de má qualidade

O império de Harry Mac estendia-se pela Escócia e pelo Norte de Inglaterra. Trabalhava com a filha, Diana, a quem todos tratavam por Daisy {malmequer). A alcunha era irónica: tratava-se de uma mulher violenta e sádica.

Harry era o dono do casino clandestino onde Kit jogava. Na Inglaterra, os casinos legais estavam sujeitos a leis mesquinhas que limitavam os seus lucros: não havia percentagem para a casa, nem comissões de banca, nem ratificações, não se podia beber nas mesas de jogo e uma pessoa só podia jogar vinte e quatro horas depois de ser membro. Harry ignorava essas leis. Kit gostava do ambiente decadente do jogo clandestino.

Na sua opinião, os jogadores eram, na sua maioria, estúpidos; e os donos dos casinos não eram muito mais espertos. Por isso, um jogador inteligente devia ganhar sempre. No blackjack havia uma forma correcta de jogar todas as mãos possíveis - um sistema chamado Básico - e ele conhecia-o de cor e salteado. Depois, começou a aumentar as suas possibilidades, mantendo um registo de todas as cartas retiradas do baralho. Começando no zero, acrescentava um ponto por cada carta baixa - dois, três, quatro, cinco e seis - e retirava um ponto por cada uma das cartas altas - dez, valete, dama, rei e às. (Ignorava o sete, o oito e o nove.) Quando o número que estava na sua cabeça era positivo, o resto do baralho continha mais cartas altas do que baixas e, por isso, tinha probabilidades acima da média de tirar um dez. Um número negativo significava uma maior probabilidade de tirar uma carta baixa. Conhecendo as probabilidades, sabia quando havia de apostar muito ou não.

O certo, porém, é que Kit tinha tido um período de azar e, quando a sua dívida atingiu as cinquenta mil libras, Harry pediu-lhe o dinheiro. Kit fora ter com o pai para lhe pedir que o salvasse. Uma humilhação, escusado será dizer. Quando Stanley o despedira, Kit acusara amargamente o pai de não querer saber dele, mas depois admitira a verdade: o pai gostava dele e faria quase tudo por ele, e Kit sabia isso perfeitamente. A sua vaidade caíra por terra da forma mais ignominiosa. Contudo, tinha valido a pena. Stanley pagara.

Kit tinha prometido que nunca mais voltaria a jogar, e estava de facto decidido a fazê-lo, mas a tentação fora demasiado forte. Era uma loucura, uma doença, a um tempo um facto vergonhoso e humilhante; mas era a coisa mais excitante do mundo, e ele não conseguia resistir. Quando a sua dívida tornou a ascender às cinquenta mil libras, foi de novo ter com o pai, mas dessa vez Stanley fizera finca-pé.

- Não tenho esse dinheiro - disse. - Talvez pudesse pedi-lo emprestado, mas para quê? Acabarias por perdê-lo e virias pedir-me mais até estarmos ambos falidos.

Kit acusara-o de não ter coração, de ser ganancioso, comparara-o às personagens mais avarentas e mesquinhas e jurara que nunca mais voltaria a dirigir-lhe a palavra. Tinha magoado o pai - sabia que acabava sempre por magoar o pai - mas Stanley não mudara de ideias. Naquele momento, Kit deveria ter saído do país. Sonhava ir viver para Itália, para a terra onde a mãe tinha nascido - Lucca. Fora até lá várias vezes com a família durante a infância, antes de os avós morrerem. Era uma terra bonita, antiga e pacata, rodeada por uma muralha, com pequenas praças onde se podia beber café espresso à sombra. Sabia algumas palavras em italiano - Mamma Marta falara sempre com eles na sua língua materna quando eram pequenos. Podia alugar um quarto numa das casas antigas e ajudar as pessoas a resolver os problemas com os computadores; seria um trabalho fácil. Achou que podia ser feliz, vivendo assim.

Mas, em vez disso, tentou ganhar ao jogo o que perdera.

A sua dívida ascendeu às duzentas e cinquenta mil libras.

Por esse dinheiro, Harry Mac seria capaz de o perseguir até ao Pólo Norte. Pensou matar-se e deu consigo a olhar para alguns dos prédios altos na zona central de Glasgow e a pensar se conseguiria chegar ao telhado de algum deles para se atirar de lá.

Três semanas antes, tinha sido chamado à casa onde se encontrava. Quase ficara doente, tamanho fora o medo que sentira. Tinha a certeza de que iriam espancá-lo. Quando o mandaram entrar para a sala e viu os sofás de seda amarela, pensou como iriam impedir o sangue de estragar os estofos. “Está aqui um cavalheiro que quer perguntar-te uma coisa”, dissera Harry. Kit não conseguia imaginar que pergunta poderiam os amigos de Harry querer fazer-lhe a não ser: Onde está a merda do dinheiro?

O cavalheiro era Nigel Buchanan, um tipo calmo, de quarenta e tal anos, com uma roupa informal mas cara: um casaco de caxemira, umas calças escuras e uma camisa aberta no colarinho. Com um ligeiro sotaque londrino, perguntara-lhe:

- Consegues pôr-me dentro do laboratório de Nível Quatro da Oxenford Medical?

Naquele momento havia mais duas pessoas na sala de estar amarela. Uma era Daisy, uma rapariga musculosa com uns vinte e cinco anos, o nariz partido, a pele estragada e uma argola no lábio inferior. Tinha umas luvas de cabedal. A outra pessoa era Elton, um negro bonito, mais ou menos da mesma idade de Daisy, aparentemente comparsa de Nigel.

Kit ficara tão aliviado por não ter sido espancado que teria concordado com tudo o que lhe dissessem.

Nigel ofereceu-lhe uma comissão de trezentas mil libras por esse trabalho.

Kit nem conseguia acreditar na sua sorte. Dava para pagar as dívidas e ainda sobrava. Sairia do país. Poderia ir para Lucca e realizar o seu sonho. Não cabia em si de contente. Os seus problemas tinham ficado resolvidos de uma penada.

Mais tarde, Harry falara de Nigel num tom reverente. Era um ladrão profissional que só fazia roubos por encomenda, por um preço previamente estabelecido. “É o maior”, dissera Harry. “Queres um quadro de Miguel Angelo? Não há problema. Uma ogiva nuclear? Ele arranja-ta - desde que tenhas dinheiro para isso. Lembras-te do Shergar, aquele cavalo de corrida que foi raptado? Foi o Nigel.” E acrescentara: “Vive no Liechtenstein”, como se o Liechtenstein fosse um local mais exótico para se morar do que Marte.

Kit passara as três semanas seguintes a planear o roubo do antivínco. Às vezes, quando estava a aprimorar o esquema para roubar o pai, sentia algum remorso, mas o sentimento que o dominava era uma satisfação delirante por pensar que ia vingar-se do pai que o despedira e depois se recusara a salvá-lo dos gangsters. Ainda por cima, seria também uma boa punhalada na Toni Gallo.

Nigel analisara meticulosamente todos os pormenores com Kit, perguntando-lhe tudo e mais alguma coisa. De vez em quando via-se obrigado a consultar Elton, que tinha a seu cargo o equipamento, principalmente os carros. Kit ficara com a sensação de que Elton era um técnico de valor que já tinha trabalhado mais vezes com Nigel. Daisy também participaria na operação, alegadamente para fazer uso dos seus músculos, caso fosse preciso - se bem que Kit achasse que a sua verdadeira intenção era sacar-lhe duzentas e cinquenta mil libras, mal o dinheiro da comissão lhe fosse parar às mãos.

Kit sugerira que se encontrassem num campo de aviação desactivado, que ficava perto do Kremlin. Nigel olhara para Elton.

- Porreiro - respondera Elton com um sotaque londrino bem vincado. - Podemos encontrar-nos lá com o comprador, isto no caso de ele querer vir de avião.

No fim, Nigel apelidara o plano de brilhante, e Kit ficara radiante.

Mas agora Kit estava ali para dizer a Harry que o negócio tinha ido por água abaixo. O seu estado era deplorável: sentia-se desapontado, deprimido e assustado.

Por fim, foi chamado à presença de Harry. Nervoso, seguiu o guarda-costas, atravessando a lavandaria que ficava na parte de trás da casa em direcção ao pavilhão da piscina. Tinha sido construído por forma a imitar o estilo de um caramanchão eduardiano, com azulejos de cores sombrias, tendo a própria piscina um tom verde-escuro desagradável. Devia ter sido sugerido por um qualquer decorador de interiores, pensou Kit, e Nigel concordara sem sequer olhar para o projecto.

Harry era um homem atarracado de cinquenta anos, com o tom acinzentado de pele de um fumador inveterado. Estava sentado junto à mesa de ferro forjado com um roupão de turco púrpura, a beber um café forte e a ler o Sun. O jornal estava aberto no horóscopo. Daisy estava na água a fazer piscinas sem se cansar. Kit ficou admirado ao ver que ela estava aparentemente nua. A única peça de vestuário que conseguia vislumbrar eram as luvas de mergulho. Daisy andava sempre de luvas.

- Não preciso de te ver, rapaz - disse Harry. - Não quero ver-te. Não sei nada sobre ti nem sobre o que vais fazer esta noite. E nunca falei com ninguém chamado Nigel Buchanan. Estás a perceber onde eu quero chegar?

Nem se deu ao trabalho de perguntar a Kit se queria um café.

O ar estava quente e húmido. Kit tinha vestido o seu melhor fato

- um fato de mohair azul-escuro - com uma camisa branca aberta no colarinho. Estava a respirar com dificuldade e sentia a pele descon-fortavelmente húmida por baixo da roupa. Percebeu que tinha quebrado uma norma qualquer da etiqueta criminal ao contactar Harry no dia do roubo, mas não tinha outra alternativa.

- Precisava de falar contigo - disse Kit. - Não viste as notícias?

- E se tiver visto?

Kit reprimiu uma onda de irritação. Os homens como Harry nunca admitiam que não sabiam uma coisa qualquer, por mais banal que fosse.

- A Oxenford Medical está em pé de guerra - explicou Kit. - Morreu um técnico com um vírus.

- O que é que queres que eu faça? Que lhe mande flores?

- Vão reforçar a segurança. É a pior altura possível para fazer um assalto. Já era difícil, mas agora... Têm um sistema de alarme do mais sofisticado que pode haver. E a mulher que manda na segurança é tesa como um pau.

- Saíste-me cá um choramingas.

Kit não tinha sido convidado a sentar-se e, sentindo-se algo embaraçado, apoiou-se nas costas de uma cadeira.

- Temos de cancelar a operação.

- Deixa-me explicar-te uma coisa. - Harry tirou um cigarro de um maço que estava em cima da mesa e acendeu-o com um isqueiro de ouro. Depois tossiu, com aquela tosse de fumador vinda do fundo dos pulmões. Quando o espasmo passou, cuspiu para a piscina e bebeu um pouco de café. Só então continuou. - Para começar, já disse que era hoje. Podes não perceber isto, sendo um rapaz tão bem-educado, mas quando um homem diz que uma coisa vai acontecer e depois não acontece, as pessoas ficam a achar que ele é um cobarde.

- Sim, mas...

- Nem penses em interromper-me. Kit calou-se.

- Depois, o Nigel Buchanan não é nenhum menino da escola drogado que quer assaltar o Woolworth's de Govan Cross. É uma lenda, e mais importante do que isso, está ligado a pessoas altamente respeitadas em Londres. E quando estamos a lidar com gente desta, então não queremos mesmo parecer cobardes.

Fez uma pausa, como se estivesse a desafiar Kit a contra-argumentar, mas Kit não disse nada. Como se tinha ele envolvido com gente daquela? Tinha-se metido na toca do lobo e agora estava paralisado, à espera de ser despedaçado.

- Em terceiro lugar, deves-me duzentas e cinquenta mil libras. Nunca houve ninguém que me devesse tanto dinheiro durante tanto tempo e ainda conseguisse andar sem muletas. Espero estar a ser bastante claro.

Kit acenou com a cabeça em silêncio. Estava com tanto medo que lhe parecia que ia vomitar.

- Por isso, não me digas que vamos ter de cancelar.

Harry pegou no jornal, como se a conversa tivesse acabado. Kit obrigou-se a falar.

- Eu disse adiar, não disse cancelar. Pode ser noutro dia, quando passar a confusão.

Harry nem sequer levantou os olhos.

- Dia de Natal às dez da manhã, disse o Nigel. E quero o meu dinheiro.

- Não vale a pena avançarmos, se vamos ser apanhados! - contrapôs Kit, desesperado. Harry não respondeu. - Toda a gente pode esperar mais um pouco, não pode? - Era como estar a falar para uma parede. - Mais vale tarde do que nunca.

Harry olhou para a piscina e deve ter feito um sinal com a mão ou com a cabeça. Daisy devia estar a olhar para ele, pois saiu imediatamente da piscina. Não tirou as luvas. Tinha uns ombros largos e uns braços fortes. Os seus seios planos quase nem se mexiam quando andava. Kit reparou que ela tinha uma tatuagem num dos seios e uma argola no mamilo do outro. Quando se aproximou mais dele, viu que estava toda depilada. Tinha o ventre liso e as pernas muito magras, tornando a zona púbica proeminente. Todos os pormenores do seu corpo estavam à vista, não só de Kit, mas também do pai dela, desde que ele quisesse olhar. Kit sentiu-se desconfortável.

Harry pareceu não dar por nada.

- O Kit quer que esperemos pelo nosso dinheiro, Daisy. - Levantou-se e apertou o cinto do roupão. - Explica-lhe o que pensamos disso - eu estou muito cansado.

Dito isto, pôs o jornal debaixo do braço e foi-se embora. Daisy agarrou Kit pelas lapelas do seu melhor casaco.

- Só quero ter a certeza de que isto não vai acabar em desastre para todos nós - implorou Kit.

Daisy empurrou-o. Ele perdeu o equilíbrio e teria caído para o chão, se ela não o tivesse agarrado em peso e o tivesse atirado para dentro da piscina.

Foi um choque mas, se o pior que ela ia fazer era estragar-lhe o fato, dava-se por muito feliz. Mas, quando pôs a cabeça à superfície, ela saltou para cima dele, dando-lhe com os joelhos nas costas, o que o fez soltar um grito de dor e engolir água, no momento em que a cabeça tornou a afundar-se.

Estavam no lado mais baixo da piscina. Quando os seus pés tocaram no fundo, tentou endireitar-se, mas Daisy estava a prender-lhe a cabeça, e tornou a desequilibrar-se. Daisy empurrou-lhe a cara, mantendo-a debaixo de água.

Kit susteve a respiração, à espera que ela lhe desse um murro ou coisa do género, mas Daisy ficou imóvel. Sem conseguir respirar, Kit começou a debater-se, tentando libertar-se, mas ela era demasiado forte. Começou a ficar irritado e a agitar febrilmente os braços e as pernas. Parecia uma criança a fazer uma birra, tentando desesperadamente que a mãe a soltasse.

A sua necessidade de ar começou a tornar-se aflitiva, e teve de controlar o pânico para resistir ao impulso de abrir a boca para respirar. Percebeu que Daisy estava a prender-lhe a cabeça com o braço esquerdo e tinha um joelho assente no fundo da piscina, ficando com a cabeça rente à superfície da água. Deixou de se mexer, para que os pés flutuassem para baixo. Talvez ela pensasse que ele tinha desmaiado. Os pés de Kit tocaram no fundo, mas Daisy continuava a prendê-lo com a mesma firmeza. Ele apoiou os pés no chão e concentrou todas as suas forças para dar um violento impulso para cima, a fim de conseguir que Daisy o libertasse. Porém, ela quase nem se mexeu e ainda lhe prendeu a cabeça com mais força. Era como ter o crânio preso numa tenaz de aço.

Abriu os olhos debaixo de água. Sentia na face as costelas proeminentes de Daisy. Voltou ligeiramente a cabeça, abriu a boca e deu-lhe uma dentada. Sentiu-a estremecer e abrandar um pouco a pressão que estava a fazer com o braço. Kit cerrou os maxilares, tentando apanhar-lhe a prega da pele. Mas depois sentiu a mão enluvada de Daisy na sua cara. Estava a tentar enfiar-lhe os dedos nos olhos. Tentou instintivamente afastar-se e, sem querer, descontraiu os maxilares e deixou escapar a carne dela.

Foi dominado pelo pânico. Já não conseguia suster mais a respiração. O seu corpo, privado de oxigénio, forçou-o a abrir a boca, arquejante, e a água precipitou-se até aos pulmões. Começou a tossir e a vomitar ao mesmo tempo. A seguir a cada espasmo, descia-lhe mais uma golfada de água pela garganta. Percebeu que, se aquilo continuasse, iria morrer rapidamente.

Mas depois ela pareceu abrandar. Puxou-lhe a cabeça para fora de água. Ele abriu muito a boca e sorveu o abençoado ar puro. Tossiu, fazendo sair uma golfada de água dos pulmões. No entanto, antes de poder respirar uma segunda vez, ela empurrou-lhe a cabeça para debaixo de água e, em vez de ar, inalou água.

O pânico transformou-se em algo de pior. Louco de medo, começou a esbracejar. O terror deu-lhe força mas, apesar de Daisy ter de se esforçar para o agarrar, não conseguiu pôr a cabeça para cima. Deixou de tentar manter a boca fechada, e a água foi entrando. Quanto mais depressa se afogasse, mais depressa o seu sofrimento acabaria.

Daisy tornou a puxar-lhe a cabeça para fora.

Cuspiu água e sorveu uma preciosa golfada de ar, mas depois a sua cabeça voltou a ser submersa.

Gritou, mas não saiu nenhum som. Começou a fraquejar. Sabia que Harry não queria que Daisy o matasse porque, se isso acontecesse, não haveria assalto - mas Daisy não era muito de fiar, e parecia disposta a ir mesmo longe de mais. Kit decidiu que ia morrer. Tinha os olhos abertos, mas a única coisa que via era uma mancha verde; depois começou a ver tudo mais escuro, como se estivesse a anoitecer.

Por fim, desmaiou.

 

                   10:00

Ned não sabia guiar e, por isso, era Miranda que ia ao volante do Toyota Previa. Tom, o seu filho, ia sentado no banco de trás a jogar Game Boy. Os bancos de trás tinham sido recolhidos para dar espaço ao monte de presentes embrulhados com papel vermelho e dourado e atados com fitas verdes.

Quando deixaram para trás o prédio georgiano junto da Great Western Road onde ficava o apartamento de Miranda, começou a nevar ligeiramente. A norte havia uma tempestade de neve sobre o mar, mas os meteorologistas tinham dito que ia passar ao largo da Escócia.

Miranda sentia-se satisfeita por ir com os dois homens da sua vida a caminho da festa de Natal com a família em casa do seu pai. Lembrou-se de quando voltava da universidade nas férias, ansiosa por comida caseira, casas de banho limpas, lençóis engomados e a sensação de ter quem gostasse e cuidasse dela.

Primeiro tomou a direcção do local onde vivia a ex-mulher de Ned, nos arredores da cidade. Iam buscar a filha dele, Sophie, antes de irem para Steepfall.

O brinquedo de Tom tocou uma melodia numa escala descendente, talvez a indicar que tinha destruído a sua nave espacial ou sido decapitado por um gladiador. Ele suspirou e disse:

- Vi um anúncio numa revista de carros de uns ecrãs muito fixes que se põem na parte de trás dos encostos de cabeça para as pessoas que vão no banco de trás poderem ir a ver filmes e coisas do género.

- Um acessório indispensável - comentou Ned, com um sorriso.

- Deve ser caro - disse Miranda.

- Não são muito caros - retorquiu Tom. Miranda olhou para ele pelo espelho retrovisor.

- Então, quanto é que custam?

- Não sei, mas não pareciam ser caros. Percebes o que eu quero dizer?

- Descobre o preço e logo vemos se podemos comprar um.

- Bestial! Se for muito caro para ti, posso pedir ao avô.

A mãe sorriu. Bastava apanhar o avô de feição para ele lhe dar o que quer que fosse.

Miranda sempre esperara que fosse Tom a herdar o génio científico do avô. Ainda não sabia. Era um aluno excelente, mas dentro de certos limites. No entanto, Miranda não sabia com exactidão qual era o talento especial do seu pai. Era obviamente um microbiologista brilhante, mas tinha mais qualquer coisa. Por um lado, era a imaginação para ver onde estava o progresso e, por outro, a capacidade de liderança necessária para inspirar uma equipa de cientistas. Como seria possível dizer se um rapaz de onze anos tinha esse tipo de capacidades? Entretanto, não havia nada que despertasse tanto a imaginação de Tom como um novo jogo de computador.

Ligou o rádio. Um coro entoava um cântico de Natal.

- Se tornar a ouvir o “Noite Feliz” vou ter de me suicidar, empalando-me numa árvore de Natal - disse Ned. Miranda mudou de estação e apanhou John Lennon a cantar “War Is Over”. Ned perguntou com um gemido: - Já pensaste bem no que é a Radio Hell dar música de Natal o ano inteiro?

Miranda deu uma gargalhada. Pouco depois encontrou um posto de música clássica que estava a transmitir um trio para piano.

- É isto?

- Haydn. Perfeito.

Ned era arrasador em relação à cultura popular. Fazia parte da sua aura de intelectual, tal como não saber guiar. Miranda não se importava: também não gostava de música pop, nem de telenovelas, nem de reproduções baratas de quadros famosos. Contudo, gostava de cânticos de Natal.

Gostava das idiossincrasias de Ned, mas a conversa com Olga no café tinha-a deixado aborrecida. Ned seria realmente fraco? Às vezes gostava que ele fosse mais assertivo. O seu marido, Jasper, fora-o em excesso. No entanto, por vezes, dava consigo a pensar nos seus momentos de sexo com Jasper. Ele era egoísta na cama, possuía-a com alguma brutalidade, pensando apenas no seu próprio prazer - e Miranda, apesar de se sentir envergonhada por isso, sentira-se liberta nesses momentos; gostara. A excitação acabara por desaparecer quando se fartou do egoísmo e da falta de consideração dele em relação a tudo o resto. Mas gostaria que, às vezes, Ned conseguisse ser assim.

Os seus pensamentos voltaram-se para Kit. Estava profundamente desapontada por ele ter desistido. Tinha tido tanto trabalho para o convencer a ir passar o Natal com a família. A princípio, recusara, depois cedera; por isso, não era de admirar que tivesse tornado a mudar de ideias. Mesmo assim, tinha sido um rude golpe porque gostaria imenso que estivessem todos juntos no Natal, como acontecera quase sempre antes de a Mamma morrer. A zanga entre Kit e o papá tinha-a assustado. Acontecera tão pouco tempo depois de a mãe ter morrido que fizera a família parecer perigosamente frágil. E, se a família era vulnerável, que certezas podia ela ter?

Virou para uma rua de antigas casas de operários e parou junto a uma vivenda maior, que podia ter pertencido a um capataz. Era ali que Ned tinha vivido com Jennifer até se terem separado, havia dois anos. Antes disso, tinham gastado uma fortuna a modernizar a casa, uma despesa que ainda continuava a pesar sobre Ned. Sempre que Miranda passava por aquela rua, sentia-se irritada ao pensar no dinheiro que Ned estava a pagar a Jennifer.

Miranda puxou o travão de mão, mas deixou o carro a trabalhar. Ficou com Tom no carro, enquanto Ned foi a casa. Miranda nunca lá entrava. Embora Ned tivesse saído de casa antes de ter conhecido Miranda, Jennifer mostrava-se tão hostil para com ela como se tivesse sido responsável pela separação de ambos. Evitava encontrar-se com ela, só falava ao telefone por monossílabos e, de acordo com as indiscrições de Sophie, referia-se a ela como “aquela vaca gorda” quando conversava com as amigas. Jennifer era magra como um passarinho, com um nariz que parecia um bico.

Foi Sophie que abriu a porta. Estava de calças de ganga e com uma camisola justa. Ned deu-lhe um beijo e entrou.

O rádio do carro estava a dar as danças húngaras de Dvorak. No banco de trás, o Game Boy de Tom apitava de vez em quando. Os flocos de neve dançavam à volta do carro. Miranda pôs o aquecimento mais forte. Ned saiu de casa com um ar aborrecido.

Aproximou-se da janela de Miranda.

- A Jennifer saiu. A Sophie ainda nem sequer começou a arranjar as coisas. Importas-te de ir lá dentro ajudá-la a fazer a mala?

- Acho que é melhor não, Ned - disse Miranda, com um ar infeliz. Não gostava de entrar quando Jennifer não estava em casa.

Ned ficou em pânico.

- Para dizer a verdade, não sei bem do que é que uma rapariga precisa.

Não foi difícil para Miranda acreditar nele. Para Ned até fazer a sua própria mala era um verdadeiro desafio. Nunca tinha feito uma mala durante todo o tempo que vivera com Jennifer. Quando ele e Miranda se preparavam para fazer a sua primeira viagem juntos - aos museus de Florença -, Miranda recusara-se categoricamente a fazer-lhe a mala e ele fora obrigado a aprender. No entanto, nas viagens seguintes - um fim-de-semana em Londres, quatro dias em Viena -,tinha sempre verificado a bagagem dele e constatado que ele se esquecera sempre de qualquer coisa importante. Por isso, fazer a mala de outra pessoa estava completamente fora do alcance dele.

Suspirou e desligou o carro.

- Tom, tens de vir também.

A casa tinha uma decoração atraente, pensou Miranda ao entrar no átrio. Jennifer tinha bom gosto. Combinara móveis rústicos simples com tecidos coloridos da mesma forma que a mulher de um capataz orgulhosa da sua casa poderia ter feito há cem anos. Sobre o fogão de sala havia cartões de boas-festas, mas não tinham feito a árvore de Natal.

Pareceu-lhe estranho pensar que Ned tinha morado ali. Todas as noites regressava àquela casa como agora regressava ao apartamento de Miranda. Tinha ouvido as notícias na telefonia, tinha-se sentado à mesa a jantar, lido romances de autores russos, lavado os dentes automaticamente e tinha ido para a cama, para os braços de outra mulher.

Sophie estava na sala, deitada num sofá à frente da televisão. Tinha umpiercing no umbigo com uma jóia barata. Miranda sentiu um cheiro a tabaco.

- Vá lá, Sophie, a Miranda vai ajudar-te a arranjar as coisas, está bem, boneca? - disse Ned. Havia um tom de súplica na sua voz que fez Miranda estremecer.

- Estou a ver um filme - respondeu Sophie, amuada.

Miranda sabia que Sophie só reagia à firmeza e não à súplica. Pegou no comando da televisão e apagou-a.

- Mostra-me onde é o teu quarto, Sophie - disse com brusquidão.

Sophie parecia disposta a espingardar.

- Despacha-te. Temos pouco tempo.

Sophie levantou-se com relutância e saiu sem pressas da sala. Miranda subiu a escada atrás dela e entrou num quarto completamente desarrumado, decorado com cartazes de rapazes com penteados esquisitos e calças ridiculamente largas.

- Vamos estar cinco dias em Steepfall. Por isso, para começar, precisas de dez cuecas.

- Não tenho dez cuecas.

Miranda não acreditou nela, mas disse:

- Então, leva as que tiveres. Se for preciso, podes sempre lavá-las.

Sophie ficou parada a meio do quarto, com uma expressão de rebeldia no seu rosto bonito.

- Vá lá - disse Miranda. - Não sou tua criada. Vai buscar as cuecas. - Olhou fixamente para ela.

Sophie não conseguia suportar o olhar dela. Baixou os olhos, deu meia-volta e abriu a primeira gaveta da cómoda. Estava cheia de roupa interior.

- Guarda cinco soutiens - aconselhou Miranda.

Sophie começou a tirar coisas da gaveta.

Acabou a crise, pensou Miranda. Abriu a porta de um roupeiro.

- Vais precisar de alguns vestidos para a noite. - Tirou um vestido vermelho com umas alças finas, demasiado sexy para uma miúda de catorze anos. - Este é bonito - mentiu.

- É novo - disse Sophie, já num tom mais ameno.

- É melhor embrulhá-lo para não se amarrotar. Onde é que tens um papel fino ?

- Na gaveta da cozinha, acho eu.

- Vou lá buscá-lo. Procura umas calças de ganga lavadas.

Miranda desceu a escada, sentindo que estava a começar a estabelecer com Sophie o equilíbrio certo entre simpatia e autoridade. Ned e Tom estavam na sala a ver televisão. Miranda entrou na cozinha e perguntou:

- Ned, sabes onde é que há papel de embrulho?

- Não, não sei. Desculpa.

- Que pergunta estúpida! - murmurou Miranda, e começou a abrir gavetas.

Acabou por encontrar um rolo de papel no fundo de um armário com coisas de costura. Teve de se pôr de joelhos para conseguir tirá-lo de trás de uma caixa de fitas. Era difícil chegar ao fundo do armário e sentiu-se corar. “Que ridículo”, pensou. “Tenho trinta e cinco anos; devia conseguir dobrar-me sem esforço. Tenho de perder cinco quilos. Não vou tocar nas batatas assadas que vêm com o peru.”

Quando tirou o papel, ouviu a porta das traseiras da casa abrir-se e depois uns passos de mulher. Olhou para cima e viu Jennifer.

- O que é que você julga que está a fazer? - exclamou Jennifer. Era uma mulher pequena, mas conseguia impressionar, com a sua testa alta e o seu nariz adunco. Estava vestida com elegância, com um casaco cintado e umas botas de salto alto.

Miranda pôs-se de pé, a arfar ligeiramente. Para sua humilhação, sentiu o pescoço inundado de suor.

- Estava à procura de papel de embrulho.

- Isso já eu percebi. Só não percebo é por que é que está em minha casa.

Ned apareceu à porta.

- Olá, Jenny, não te ouvi entrar.

- Obviamente não te dei tempo de accionares o alarme - retorquiu Jennifer num tom sarcástico.

- Desculpa - disse Ned -, mas pedi à Miranda que entrasse para...

- Não tornes a fazer isso! - interrompeu Jennifer. - Não quero as tuas mulheres cá em casa.

Pelo seu tom, dir-se-ia que Ned tinha um harém. A verdade é que, depois de Jennifer, só tinha andado com duas mulheres. Com a primeira saíra apenas uma vez, e a segunda era Miranda, mas parecia uma infantilidade explicar isso.

- Só estava a tentar ajudar a Sophie - explicou Miranda.

- Eu trato da Sophie. Saia, por favor.

- Desculpa se te assustámos, Jenny, mas... - tentou dizer Ned.

- Não te incomodes com desculpas. Só quero que a leves daqui.

Miranda corou intensamente. Nunca ninguém tinha sido tão grosseiro com ela.

- É melhor ir-me embora - disse.

- Também acho - retorquiu Jennifer.

- Eu levo a Sophie o mais depressa possível - disse Ned.

Miranda estava tão zangada com Ned como com Jennifer, embora naquele momento não soubesse bem porquê. Dirigiu-se para a entrada.

- Pode sair pelas traseiras - disse-lhe Jennifer.

Para sua vergonha, Miranda hesitou. Olhou para Jennifer e viu no seu rosto um esboço de um sorriso de desdém, e isso deu-lhe um pouco de coragem.

- Não me parece - respondeu calmamente e dirigiu-se para a porta da frente. - Tom, vem comigo.

- Só um minuto - gritou o filho.

Entrou na sala. Tom estava a ver televisão. Agarrou-o pelo pulso, obrigou-o a pôr-se de pé e arrastou-o para fora de casa.

- Estás a aleijar-me! - protestou o miúdo.

Bateu com a porta da rua.

- Para a próxima vez, vem quando eu mandar.

Quando entrou no carro, apetecia-lhe chorar. Ia ter de ficar ali à espera, como uma criada, enquanto Ned estava em casa com a ex-mulher. Teria Jennifer planeado todo aquele drama para a humilhar? Era possível. Ned tinha sido um desastre. Percebeu que era por isso que estava tão zangada com ele. Tinha deixado Jennifer insultá-la sem uma palavra de protesto. Passara o tempo todo a pedir desculpa. Porquê? Se Jennifer tivesse feito a mala da filha, ou se a tivesse obrigado a fazê-la, Miranda não teria sido obrigada a entrar lá em casa. E o pior de tudo era que Miranda tinha despejado a raiva em cima do filho. Devia ter gritado com Jennifer e não com Tom.

Olhou para ele pelo espelho retrovisor.

- Desculpa se te aleijei no braço, Tommy.

- Não faz mal - respondeu Tom, sem tirar os olhos do Game Boy. - Também peço desculpa por não ter ido quando me chamaste.

- Então, estamos perdoados - disse Miranda. Correu-lhe uma lágrima pela face, e apressou-se a limpá-la.

 

                   11:00

“Os vírus matam milhares de pessoas todos os dias”, disse Stanley Oxenford. “Aproximadamente menos de dez em dez anos, uma epidemia de influenza mata cerca de vinte e cinco mil pessoas no Reino Unido. Em 1918, a gripe causou mais mortes do que a Primeira Guerra Mundial. Em 2002, morreram três milhões de pessoas com SIDA, que é causada pelo vírus da imunodeficiência humana. Os vírus estão também envolvidos em três por cento dos cancros.”

Toni estava a ouvir com toda a atenção, sentada no átrio ao lado de Stanley, sob as madeiras envernizadas do tecto pretensamente medieval. Stanley parecia calmo e controlado, mas Tom conhecia-o suficientemente bem para vislumbrar o tremor quase inaudível da sua voz. Tinha ficado chocado e desanimado com a ameaça de Laurence Mahoney, e o medo de perder tudo estava apenas escondido debaixo da sua fachada imperturbável.

Observou os rostos dos repórteres presentes. Ouviriam o que ele estava a dizer e compreenderiam a importância do trabalho realizado por aquele homem? Sabia como eram os jornalistas. Alguns eram inteligentes, mas muitos eram estúpidos. Alguns acreditavam na verdade; mas a maioria limitava-se a escrever a história mais sensacionalista que conseguisse arranjar. Sentia-se indignada por eles poderem ter nas suas mãos o destino de um homem como Stanley. No entanto, o poder dos tablóides era uma evidência brutal da vida moderna. Se a maioria daqueles escribas decidisse descrever Stanley como um cientista louco num castelo como o de Frankenstein, os americanos podiam ficar embaraçados ao ponto de suspenderem o financiamento.

Seria uma tragédia - não só para Stanley, como para todo o mundo. Era verdade que o programa de testes do antivírico podia ser concluído por outra pessoa, mas Stanley, arruinado e na bancarrota, não inventaria mais curas milagrosas. A irritação de Toni levou-a a pensar que gostava de dar umas bofetadas nas caras idiotas dos jornalistas e dizer-lhes: “Acordem! Isto também tem que ver com o vosso futuro!”

“Os vírus são um facto da vida, mas não temos de aceitar esse facto passivamente”, continuou Stanley. Toni admirava a forma como ele falava. Tinha uma voz cadenciada, mas descontraída. Era com aquele tom de voz que explicava coisas aos colegas mais novos. O seu discurso parecia mais uma conversa. “Os cientistas podem derrotar os vírus. Antes da SIDA, o grande assassino era a varíola - até um cientista chamado Edward Jenner ter inventado a vacina em 1796. Hoje em dia, a varíola desapareceu da espécie humana. Da mesma forma, também a poliomielite se encontra já erradicada numa grande parte do mundo. Com o tempo, acabaremos por vencer a influenza, a SIDA e até o cancro - e isso será feito por cientistas como nós, que trabalham em laboratórios como este.”

Uma mulher levantou a mão e perguntou:

- E aqui estão a trabalhar exactamente em quê?

- Não se importa de se identificar? - pediu Toni.

- Edie McAllan, correspondente para a ciência, Scotland on Sunday.

Cynthia Creighton, sentada do outro lado de Stanley, tomou nota.

- Desenvolvemos um fármaco antiviral - informou Stanley.

- É raro. Há muitos antibióticos que matam as bactérias, mas há poucos que ataquem os vírus.

- Qual é a diferença? - perguntou um homem, e acrescentou

- Clive Brown, do Daily Record.

O Record era um tablóide. Toni estava satisfeita com a direcção que as perguntas estavam a tomar. Queria que a imprensa se concentrasse na ciência. Quanto melhor compreendessem, menos probabilidades havia de publicarem mentiras que os prejudicassem.

- As bactérias ou germes são seres minúsculos que podem ser vistos com um microscópio normal - explicou Stanley. - Cada um de nós é hospedeiro de milhares de milhões de germes. Muitos deles são úteis - ajudando-nos, por exemplo, a digerir os alimentos ou a liber-tarmo-nos das células mortas da pele. Alguns causam doenças que, nalguns casos, podem ser tratadas com antibióticos. Os vírus são mais pequenos e mais simples do que as bactérias. Precisamos de um microscópio de electrões para os vermos. Os vírus não se reproduzem; comprometem o funcionamento bioquímico das células vivas, obrigando-as a produzir cópias desse vírus. Não se conhece nenhum desses vírus que seja útil para os seres humanos. E existem poucos medicamentos para os combater. É por isso que um novo antivírico é uma notícia tão boa para a humanidade.

- E sobre que vírus actua o vosso medicamento? - perguntou Edie McAllan.

Era outra questão científica. Toni começou a acreditar que aquela conferência de imprensa produziria todos os efeitos que ela e Stanley desejavam. Só a custo refreou o seu optimismo. Sabia, pela sua experiência no gabinete de imprensa da Polícia, que um jornalista podia fazer perguntas sérias e inteligentes e depois voltar para o jornal e escrever notícias incendiárias. E mesmo que o autor entregasse um artigo sensato, ainda havia a possibilidade de ser reescrito por alguém ignorante e irresponsável.

- É a essa questão que estamos a tentar responder - afirmou Stanley. - Estamos a testar o fármaco contra diversos vírus para determinar o seu espectro de acção.

- Isso inclui vírus perigosos? - perguntou Clive Brown.

- Inclui - respondeu Stanley. - Ninguém está interessado em fármacos para vírus inofensivos.

A assistência riu-se. Era uma resposta inteligente a uma pergunta estúpida. Brown, contudo, parecia ter ficado aborrecido, e Toni sentiu um baque no coração. Não havia nada que impedisse um jornalista humilhado de se vingar. Interveio rapidamente.

- Obrigada pela sua pergunta, Clive - disse, tentando apaziguá-lo. - Na Oxenford Medical impomos os mais elevados padrões de segurança aos laboratórios onde são manuseados materiais especiais. No BSN4, que significa Biossegurança de Nível 4, o sistema de alarme está directamente ligado à divisão regional da Polícia em Inverburn. Há guardas de serviço vinte e quatro horas por dia, e hoje de manhã duplicámos o número de guardas. Como precaução adicional, os guardas não podem entrar no BSN4, mas apenas monitorizar o laboratório através de um circuito fechado de câmaras de televisão.

Ainda assim, Brown não estava satisfeito.

- Se a vossa segurança é assim tão perfeita, como é que o hamster escapou?

Toni estava preparada para aquela pergunta.

- Gostava de esclarecer três coisas. Em primeiro lugar, não se tratou de um hamster. Foi a Polícia que deu essa informação, mas não corresponde à verdade. - Tinha dado deliberadamente uma informação errada a Frank, e ele caíra na armadilha, revelando-se assim como a fonte da história que chegara aos meios de comunicação. - Se querem saber o que se passa aqui, é em nós que têm de confiar. Foi um coelho, e não se chamava Fluffy.

Riram-se todos ao ouvir aquilo. Até Brown sorriu.

- Em segundo lugar, o coelho foi tirado do laboratório dentro de uma mochila e, a partir de hoje, passa a ser obrigatório revistar todas as malas à entrada do BSN4 para que isto não possa voltar a acontecer. Em terceiro lugar, não dissemos que a nossa segurança era perfeita. Dissemos que utilizamos os mais elevados padrões de segurança. É o máximo que um ser humano pode fazer.

- Nesse caso, está a admitir que o vosso laboratório é um perigo para membros inocentes da população escocesa.

- Não. Estão mais seguros aqui do que se estivessem a andar de carro na M8 ou a apanhar um avião em Prestwick. Os vírus matam muitas pessoas todos os dias, mas no nosso laboratório só morreu uma pessoa por causa de um vírus, e não era um membro inocente da população escocesa - era um empregado que violou voluntariamente as normas e se colocou conscientemente numa situação de risco.

O saldo estava a ser positivo, pensou Toni ao perscrutar a sala à procura da pergunta seguinte. As câmaras de televisão continuavam a filmar, os flashes continuavam a disparar, e Stanley estava a mostrar exactamente aquilo que era - um cientista brilhante com um forte sentido de responsabilidade. Mas tinha medo que os noticiários das televisões preferissem as imagens dos jovens que entoavam slogans sobre os direitos dos animais junto aos portões às imagens sem dramatismo da conferência de imprensa. Quem lhe dera conseguir pensar numa coisa mais interessante sobre a qual os operadores de câmara pudessem fazer convergir as suas lentes.

Cari Osborne, o amigo de Frank, falou então pela primeira vez. Era um homem bem-parecido, mais ou menos da idade de Toni. Parecia uma estrela de cinema. O seu cabelo era um tudo-nada demasiado amareio para ser natural.

- Qual é exactamente o perigo que esse coelho representa para a população em geral?

- O vírus não é muito infeccioso de umas espécies para outras - respondeu Stanley. - Pensamos que, para infectar o Michael, o coelho deve ter-lhe mordido.

- E se o coelho tivesse fugido?

Stanley olhou para a janela e viu que estava a nevar ligeiramente.

- Teria morrido congelado.

- E se tivesse sido comido por outro animal? Uma raposa podia ficar infectada? _ .

- Não. Os vírus estão adaptados a um pequeno número de espécies, normalmente uma, eventualmente duas ou três. Tanto quanto sabemos, este não infecta raposas nem qualquer outra espécie da vida selvagem da Escócia. Só seres humanos, macacos e alguns tipos de coelhos.

- Então o Michael podia ter transmitido o vírus a outras pessoas.

- Se espirrasse. Foi a possibilidade que mais nos alarmou. Mas parece que o Michael não esteve com ninguém durante o período crítico. Já contactámos todos os seus colegas e amigos. Mesmo assim, ficaríamos muito gratos se utilizassem os vossos jornais e televisões para apelar a alguém que o tenha visto que entre imediatamente em contacto connosco.

- Não estamos a tentar minimizar o risco - apressou-se Toni a acrescentar. - Estamos profundamente preocupados com o incidente e, como expliquei, já implementámos medidas de segurança mais eficazes. Mas também temos de ter o cuidado de não exagerar. - Dizer a jornalistas para não exagerarem era o mesmo que dizer a advogados para não serem conflituosos, pensou Toni com alguma perversão. - A verdade é que a população não corre perigo. Osborne ainda não tinha acabado.

- Imaginando que o Michael o transmitiu a um amigo, que por sua vez o transmitiu a outra pessoa... Quantas pessoas poderiam morrer?

- Não podemos entrar nesse tipo de especulações - atalhou Toni imediatamente. - O vírus não se espalhou. Morreu uma pessoa. Não devia ter morrido, mas isso não é razão para começar a falar dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. - Mordeu a língua. Tinha sido uma estupidez utilizar aquela frase: podiam citá-la, fora de contexto, transmitindo a ideia de que ela tinha previsto uma catástrofe.

- Soube que o vosso trabalho é financiado pelas Forças Armadas americanas - disse Osborne.

- Sim, é, pelo Ministério da Defesa - respondeu Stanley. - E natural que estejam interessados em combater as armas biológicas.

- Não é verdade que os americanos querem que este trabalho seja feito na Escócia por acharem que é demasiado perigoso para ser desenvolvido nos Estados Unidos?

- Pelo contrário. Estão em curso muitos trabalhos deste tipo nos Estados Unidos, nos Centros de Controlo de Doenças em Atlanta, na Georgia e no Instituto de Investigação Médica de Doenças Infecciosas do Exército Americano, em Fort Detrick.

- Por que é que escolheram a Escócia?

- Porque o fármaco foi descoberto aqui na Oxenford Medical.

Toni decidiu pôr fim à conferência de imprensa, enquanto estavam em vantagem.

- Não quero limitar as perguntas, mas sei que alguns de vocês têm trabalho para fazer até ao meio-dia. Julgo que já todos têm o material que preparámos. Se precisarem, a Cynthia tem mais exemplares.

- Só mais uma pergunta - disse Clive Brown do Record. - Qual é a vossa reacção à manifestação que está a decorrer lá fora?

Toni apercebeu-se de que ainda não tinha pensado em nada mais interessante para as câmaras.

- Eles propõem uma resposta simples para uma questão ética complexa - respondeu Stanley. - Como acontece com a maior parte das respostas simples, a deles está errada.

Era a resposta certa, mas corria o risco de parecer um pouco insensível. Por isso, Toni acrescentou:

- E esperamos sinceramente que não se constipem.

Enquanto os presentes se riam da sua observação, Toni levantou-se para dar a entender que a conferência de imprensa tinha acabado. Depois teve um golpe de inspiração. Fez sinal a Cynthia Creighton. Voltou-se de costas para o público e disse-lhe em voz baixa, mas num tom urgente:

- Vai depressa ao refeitório. Pede a dois ou três empregados do refeitório que levem uns tabuleiros com café e chá quente e o distribuam pelos manifestantes que estão lá fora ao portão.

- Que ideia tão simpática - observou Cynthia.

Toni não estava a ser amável - até estava a ser cínica -, mas não havia tempo para explicações.

- Têm dois minutos para fazer isso - insistiu Toni. - Vai depressa!

Cynthia saiu rapidamente.

Toni voltou-se para Stanley e disse:

- Correu bem. Foste perfeito.

Ele tirou um lenço vermelho às pintas do bolso do casaco e limpou discretamente a cara.

- Espero que tenha resultado.

- Vamos saber quando virmos os noticiários da hora de almoço. Agora é melhores ires-te embora porque, caso contrário, vão tentar apanhar-te para uma entrevista exclusiva.

Stanley estava sob pressão, e Toni queria protegê-lo.

- Boa ideia. Aliás, preciso de ir para casa. - Stanley vivia numa propriedade numa falésia a menos de dez quilómetros do laboratório. - Gostava de lá estar para receber a família.

Toni ficou desapontada. Queria rever a conferência de imprensa com ele.

- Está bem - disse. - Vou ver qual é a reacção.

- Pelo menos, ninguém me fez a pior pergunta.

- Qual era?

- A taxa de sobrevivência ao vírus Madoba-2.

- O que significa isso?

- Por muito letal que seja uma infecção, normalmente há pessoas que conseguem sobreviver-lhe. A taxa de sobrevivência serve para avaliar a perigosidade do vírus.

- E qual é a taxa de sobrevivência do Madoba-2?

- Zero - respondeu Stanley.

Toni olhou para ele de olhos esbugalhados. Ainda bem que ele não lhe tinha dito aquilo antes.

Stanley acenou por cima do ombro dela.

- Vem aí o Osborne.

- Vou ter com ele para o afastar. - Dirigiu-se ao repórter, e Stanley saiu por uma porta lateral. - Olá, Cari. Espero que tenhas conseguido tudo o que precisavas.

- Acho que sim. Gostava de saber qual foi o primeiro êxito do Stanley?

- Fez parte da equipa que desenvolveu o aciclovir.

- Que é?

- A pomada que pomos nas frieiras. O nome comercial é Zovirax. É um antivírico.

- A sério? Isso é interessante.

Toni não acreditava que Cari estivesse genuinamente interessado. Gostava de saber o que quereria ele de facto.

- Podemos confiar que vais dar uma notícia sensata e factual, que não exagere o perigo?

- Estás a perguntar se vou falar dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse?

Toni estremeceu.

- Foi uma idiotice ter dado um exemplo usando o tipo de hipérbole que queria desencorajar.

- Não te preocupes. Não vou citar-te.

- Obrigada.

- Não tens de agradecer. Teria todo o gosto em utilizá-la, mas o meu público não faria a menor ideia do que queria dizer. - Mudou de registo. - Quase não te via desde que te separaste do Frank. Há quanto tempo foi?

- Faz agora dois anos, pelo Natal.

- Como é que tens passado?

- Se queres mesmo saber a verdade, passei um mau bocado. Mas as coisas estão a melhorar. Pelo menos, estavam até hoje.

- Devíamos juntar-nos para contarmos as novidades.

Tom não tinha o mínimo desejo de desperdiçar tempo com Osborne, mas disse delicadamente.

- Claro. Por que não?

Ele surpreendeu-a ao aproveitar imediatamente a deixa dela.

- Queres jantar comigo?

- Jantar? - perguntou Toni.

- Sim.

- Um jantar assim do tipo uma noite a dois?

- Sim, repito.

Era a última coisa que ela esperava.

- Não! - respondeu. Depois lembrou-se de como aquele homem podia ser perigoso e tentou suavizar a sua rejeição.

- Desculpa, Cari, apanhaste-me de surpresa. Já te conheço há tanto tempo que nunca pensei em ti dessa maneira.

- Talvez eu possa mudar a tua maneira de pensar. E parecia de uma vulnerabilidade infantil.

- Se me deres oportunidade...

A resposta continuava a ser “não”, mas Tom hesitou por um momento. Cari era uma celebridade local - era bonito, tinha charme e ganhava bem. A maior parte das mulheres solteiras à beira dos quarenta daria saltos de alegria. A verdade, porém, era que ela não se sentia minimamente atraída por ele. Mesmo que não estivesse apaixonada por Stanley, não se sentiria tentada a sair com Cari. Porquê?

Só demorou um segundo a descobrir a resposta. Cari não possuía integridade. Um homem capaz de distorcer a verdade para arranjar uma notícia sensacionalista devia ser igualmente desonesto nos outros aspectos da sua vida. Não era nenhum monstro. Havia muitos homens como ele, bem como algumas mulheres, mas Toni não conseguia imaginar-se íntima de alguém tão reles. Como seria possível beijar, revelar segredos, perder as inibições, ou entregar o corpo a alguém em quem não se podia confiar? Era uma ideia revoltante.

- Fico muito lisonjeada - mentiu -, mas é melhor não.

Ele não estava preparado para desistir.

- A verdade é que sempre gostei de ti, até mesmo quando estavas com o Frank. Deves ter percebido isso.

- Costumavas atirar-te a mim, mas fazias isso com a maior parte das mulheres.

- Não era a mesma coisa.

- Não andas com aquela rapariga do boletim meteorológico? Parece que vi uma fotografia no jornal.

- A Marnie? Nunca foi uma coisa séria. Fi-lo sobretudo por uma questão de publicidade.

Pareceu ter ficado irritado por ela lhe ter lembrado aquilo, e Toni percebeu que Marnie tinha corrido com ele.

- Lamento muito - disse, com um ar pretensamente compreensivo.

- Mostra-me a tua compaixão em actos e não em palavras. Janta comigo hoje à noite. Até tenho uma mesa marcado no La Chaumière.

Era um restaurante da moda. Devia ter feito a reserva há algum tempo - provavelmente para jantar com Marnie.

- Esta noite estou ocupada.

- Não me digas que ainda tens um fraquinho pelo Frank. Toni deu uma gargalhada amarga.

- Idiota como sou, ainda tive durante uns tempos. Mas agora já passou. Por completo.

- Então, tens outra pessoa?

- Não, não tenho ninguém.

- Mas estás interessada em alguém. Não é o velho professor, pois não?

- Não sejas ridículo - disse Toni.

- Não estás a corar, pois não?

- Espero bem que não, se bem que qualquer mulher submetida a um interrogatório destes tenha todo o direito de corar.

- Meu Deus, gostas do Stanley Oxenford. - Cari não sabia lidar com a rejeição, e o seu rosto ficou feio com tanto ressentimento.

- Claro. O Stanley é viúvo, não é? Os filhos já crescidos. Montes de dinheiro, só para vocês os dois gastarem.

- Estás a ser ofensivo, Cari.

- A verdade é muitas vezes ofensiva. Gostas de gente importante, não é? Primeiro o Frank, o detective com a ascensão mais meteórica da história da Polícia escocesa. E agora um cientista milionário e investigador. Tens uma queda por estrelas, Toni!

Tinha de acabar com aquilo antes que perdesse a cabeça.

- Obrigada por teres vindo à conferência de imprensa - disse Toni. Estendeu a mão e ele apertou-lha automaticamente. - Adeus. - Voltou-se e foi-se embora.

Estava a tremer de raiva. Ele tinha tornado indignas as suas emoções mais profundas. Apetecia-lhe estrangulá-lo, não sair com ele. Tentou acalmar-se. Tinha entre mãos uma terrível crise profissional e não podia permitir que os seus sentimentos a atrapalhassem.

Foi à recepção e disse ao supervisor dos guardas, Steve Tremlett:

- Fica aqui até saírem todos e certifica-te de que nenhum deles tenta fazer uma visita não autorizada. Um certo intruso podia tentar entrar nas áreas de alta segurança ficando à espera de alguém que tivesse acesso e entrando depois imediatamente a seguir a essa pessoa.

- Deixe isso comigo - garantiu Steve.

Toni começou a sentir-se mais calma. Vestiu o casaco e saiu. Estava a nevar mais intensamente, mas mesmo assim conseguiu vislumbrar a manifestação. Foi até à guarita junto do portão. Três funcionários do refeitório estavam a distribuir bebidas quentes. Os manifestantes tinham parado momentaneamente de gritar slogans e agitar as bandeiras e, em vez disso, estavam a sorrir e a conversar.

E todas as câmaras estavam voltadas para eles.

Tinha corrido tudo na perfeição, pensou Toni. Por que se sentiria deprimida?

Voltou para o seu gabinete. Fechou a porta e ficou parada, dando graças por estar sozinha durante um minuto. Parecia-lhe que tinha controlado bem a conferência de imprensa. Tinha protegido o patrão de Osborne. E a ideia de distribuir bebidas quentes pelos manifestantes resultara em cheio. Claro que não era aconselhável festejar antes de ver os noticiários, mas sentia que todas as decisões que tinha tomado tinham sido acertadas.

Nesse caso, por que se sentia tão em baixo?

Em parte era por causa de Osborne. Qualquer encontro com aquele homem podia deixar uma pessoa em baixo. No entanto Toni percebeu que era sobretudo por causa de Stanley. Depois de tudo o que tinha feito por ele naquela manhã, Stanley fora-se embora quase sem uma palavra de agradecimento. Era isso que significava ser o patrão. E há muito tempo que sabia como a família era importante para ele. Ela, ao invés, era apenas uma colega que ele apreciava, respeitava, de quem gostava - mas não amava.

O telefone tocou. Olhou para ele por um momento, ofendida com o seu alegre tinido, sem vontade de falar. Acabou por atender.

Era Stanley, a ligar do carro.

- Por que é que não apareces lá em casa daqui por uma hora ou coisa do género? Podíamos ver o noticiário e ficávamos a saber o nosso destino.

O humor de Toni mudou instantaneamente. Era como se o sol tivesse descoberto.

- Claro - disse. - Terei todo o gosto.

- Podemos ser crucificados ao lado um do outro - acrescentou Stanley.

- Eu consideraria isso uma honra.

 

                   12:00

A neve tornou-se mais intensa à medida que Miranda ia avançando para norte. Grandes flocos brancos precipitavam-se sobre o vidro do Toyota Previa, sendo depois afastados pelos hmpa-pára-brisas. Teve de abrandar, pois a visibilidade estava a diminuir. A neve parecia isolar o carro dos sons, restando apenas o barulho de fundo dos pneus em competição com a música clássica do rádio.

O ambiente lá dentro era deprimente. No banco de trás, Sophie ia com uns auscultadores a ouvir a sua própria música, e Tom tinha-se perdido no mundo cheio de bips do Game Boy. Ned ia calado, limitando-se a reger de vez em quando a orquestra com o indicador em riste. Enquanto olhava fixamente para a neve e ouvia o concerto para violoncelo de Elgar, Miranda observava o seu rosto tranquilo, coberto de barba, com a certeza de que ele não fazia a mínima ideia de quanto a desapontara.

Ned apercebeu-se do descontentamento dela.

- Peço desculpa pelo ataque de raiva da Jennifer.

Miranda olhou pelo espelho retrovisor e viu que Sophie estava a acenar a cabeça ao ritmo da música do seu iPod. Satisfeita por ela não poder ouvir, Miranda disse:

- A Jennifer foi terrivelmente mal-educada.

- Desculpa - repetiu Ned. Parecia óbvio que não sentia qualquer necessidade de explicar nem de pedir desculpa pela sua actuação.

Miranda teve de deitar por terra a confortável ilusão de Ned.

- Não foi o comportamento da Jennifer que me incomodou. Foi o teu.

- Percebo que foi um erro convidar-te para entrares sem a avisar.

- Não é isso. Toda a gente comete erros.

Ned parecia confuso e aborrecido.

- Então, o que foi?

- Ora, Ned! Não me defendeste!

- Achei que eras perfeitamente capaz de te defenderes.

- Não é isso que está em questão! Claro que eu sei tratar de mim. Não preciso de uma mãezinha. Mas tu devias ter tomado a minha defesa.

- Como um cavaleiro com uma armadura reluzente.

- Exactamente!

- Pensei que era mais importante acalmar as coisas.

- Pensaste mal. Quando o mundo é hostil para mim, não quero que te ponhas a analisar criteriosamente a situação - quero que estejas do meu lado.

- Receio não ser do tipo combativo.

- Eu sei - disse Miranda, e ficaram ambos em silêncio.

Iam por uma estrada estreita junto à margem de um braço de mar. Passaram por pequenas quintas onde se viam cavalos a pastar, tapados com mantas, e por aldeias com igrejas de um branco imaculado e filas de casas à beira-mar. Miranda sentia-se deprimida. Mesmo que a sua família aceitasse Ned como ela lhes pedira que fizessem, não sabia se queria casar com um homem tão passivo. Tinha desejado encontrar um homem que fosse meigo, culto e inteligente, mas compreendia agora que também queria um homem que fosse forte. Seria querer de mais? Pensou no pai. Sempre fora meigo, quase nunca se zangava, nunca discutia - mas nunca ninguém o achou fraco.

O seu estado de espírito melhorou quando se aproximaram de Steepfall. Junto à rampa de acesso à casa havia um antigo estábulo que tinha sido arranjado e tinha agora três portas de garagem. Miranda passou por ele e continuou até chegar à frente da casa.

Ao ver a antiga casa sobranceira à praia, com as suas grossas paredes de pedra, as janelas pequenas e o telhado de ardósia, Miranda sentiu-se dominada pela recordação da sua infância. Tinha ido ali pela primeira vez aos cinco anos e, sempre que lá voltava, transformava-se por momentos numa menina de meias brancas, sentada ao sol nos degraus de granito, a fazer de conta que era professora de uma turma de três bonecas, dois porquinhos-da-índia numa gaiola e um cão velho e sonolento. Era uma sensação intensa, mas passageira: de repente, lembrou-se exactamente do que sentira aos cinco anos, mas tentar prender aquela recordação era o mesmo que tentar aprisionar fumo.

O Ferrari azul-escuro do pai estava à frente da casa, onde sempre o deixava para Luke, o empregado, tratar de o ir arrumar. O carro era perigosamente rápido, obscenamente curvilíneo e ridiculamente dispendioso para a sua viagem diária de sete quilómetros e meio até ao laboratório. Ali estacionado, no alto de uma falésia erma da Escócia, parecia tão deslocado como uma cortesã de saltos altos no pátio enlameado de uma quinta. Na verdade, porém, o pai não tinha um iate, nem uma adega, nem um cavalo de corrida; não ia esquiar para Gstaad nem jogar para Monte Cario. O Ferrari era a sua única leviandade.

Miranda estacionou o Toyota. Tom correu para dentro de casa. Sophie seguiu-o mais lentamente: nunca ali tinha estado, embora já tivesse ido uma vez com Stanley à festa de anos de Olga, alguns meses antes. Miranda decidiu que, por agora, iria esquecer o episódio com Jennifer. Deu a mão a Ned, e entraram juntos.

Como sempre, entraram pela porta da cozinha, num dos lados da casa. Havia um átrio com um armário onde estavam guardadas galochas, e depois uma segunda porta que dava para a espaçosa cozinha. Miranda sentia sempre que estava a regressar a casa. Na sua cabeça pairavam inúmeros cheiros familiares: a carne assada do jantar, o café moído, as maçãs e um vestígio permanente dos cigarros franceses que Mamma Marta fumava. Nenhuma outra casa substituíra aquela na alma de Miranda: nem o apartamento em Camden Town, onde fizera uma vida de pândega enquanto era nova, nem a casa moderna dos arredores onde morara durante o seu curto casamento com Jasper Cas-son, nem o apartamento georgiano de Glasgow onde vivera com Tom, primeiro sozinhos e agora com Ned.

Uma cadela-de-água preta chamada Nellie abanava não só a cauda mas todo o corpo de satisfação e lambia toda a gente. Miranda cumprimentou Luke e Lori, o casal filipino que estava a fazer o almoço.

- O seu pai acabou de chegar. Está na casa de banho a lavar-se - informou Lon.

Miranda mandou Tom e Sophie irem pôr a mesa. Não queria que eles se fossem pôr à frente da televisão a tarde toda.

- Tom, mostra à Sophie onde estão as coisas.

Além disso, ter um trabalho para fazer ia ajudar Sophie a sentir-se parte da família.

Havia várias garrafas com o vinho branco preferido de Miranda no frigorífico. O pai não era grande bebedor, mas a Mamma sempre bebera vinho e, por isso, o pai tinha sempre vinho em casa. Miranda abriu uma garrafa e serviu um copo a Ned.

As coisas estavam a começar bem, pensou Miranda: Sophie a ajudar alegremente Tom a pôr as facas e os garfos, e Ned a beber Sancerre, com visível satisfação. Podia muito bem acontecer que fosse aquele momento, e não a cena com Jennifer, a dar o tom à festa.

Se Ned ia fazer parte da vida de Miranda, só podia gostar daquela casa e da família que tinha crescido nela. Já lá estivera, mas nunca tinha levado Sophie e nunca tinha ficado para dormir, pelo que aquela era a sua primeira grande visita. Miranda queria tanto que ele se divertisse e se desse bem com toda a gente!

O marido de Miranda, Jasper, nunca tinha gostado de Steepfall. A princípio, tinha-se esforçado por ser muito agradável para toda a gente, mas nas últimas visitas tinha-se mantido sempre afastado enquanto lá estavam, e zangado depois de saírem. Parecia não gostar de Stanley e queixava-se de que ele era autoritário, o que não deixava de ser estranho uma vez que Stanley raramente mandava alguém fazer o que quer que fosse - ao passo que Marta se mostrava tão mandona que às vezes lhe chamavam Mamma Mussolini. Agora, olhando para trás, Miranda percebia que Jasper sentia o seu controlo sobre ela ameaçado pela presença de outro homem que a amava. Não se sentia à vontade para a maltratar com o pai dela por perto.

O telefone tocou. Miranda atendeu na extensão que estava na parede ao lado do frigorífico.

- Está lá?

- Miranda, é o Kit. Ficou contente.

- Olá, maninho! Como é que estás?

- Por acaso, um bocado abalado.

- Como assim?

- Caí para uma piscina. É uma longa história. Como estão as coisas aí por Steepfall ?

- Estamos sentados a beber o vinho do papá e com pena de não estares ao pé de nós.

- Afinal, vou passar aí o Natal.

- Que bom! - Miranda decidiu não perguntar o que o tinha feito mudar de ideias. Provavelmente, seria outra longa história.

- Devo chegar daqui a uma hora, mais ou menos. Agora, ouve, posso ficar no anexo?

- Acho que sim. O papá é que decide, mas vou falar com ele.

Quando Miranda estava a pousar o auscultador, o pai entrou. Trazia o colete e as calças do fato, mas tinha arregaçado as mangas da camisa. Deu um aperto de mão a Ned e um beijo a Miranda e às crianças. Miranda achou-o muito elegante.

- Andas a fazer dieta? - perguntou.

- Tenho andado a jogar squash. Quem era ao telefone?

- Era o Kit. Afinal, sempre vem.

Olhou para a cara do pai, desejosa de ver a reacção dele.

- Só acredito quando o vir.

- Oh, paizinho! Podias mostrar um pouco mais de entusiasmo.

Ele deu-lhe uma palmadinha na mão.

- Gostamos todos muito do Kit, mas sabemos como ele é. Gostava muito que ele viesse, mas não vou ficar a contar com isso. - O seu tom era ligeiro, mas Miranda percebeu que ele estava a tentar esconder um sentimento de dor. - Ele continua a querer dormir no anexo.

- Disse porquê?

- Não.

- Se calhar, vai trazer uma rapariga, e não quer que se ouçam os gemidos de prazer dela - disse Tom.

Fez-se silêncio na cozinha. Miranda estava incrédula. Donde tinha saído aquilo? Tom tinha onze anos e nunca falava de sexo. Passado um momento, desataram todos a rir. Tom ficou muito corado e acrescentou:

- Li isso num livro.

Devia estar a querer armar-se em adulto à frente de Sophie, pensou Miranda. Ainda era uma criança, mas já não por muito mais tempo.

- Sabem bem que para mim é indiferente onde dormem - rematou Stanley. Olhou para o relógio com um ar preocupado. - Tenho de ir ver o noticiário da hora de almoço.

- Lamento muito o que aconteceu ao técnico lá do laboratório - disse Miranda. - O que é que o levou a fazer aquilo?

- Toda a gente tem ideias estranhas, mas a uma pessoa que vive sozinha não há ninguém que diga para não ser maluco.

A porta abriu-se, e Olga entrou. Como sempre, já vinha a falar quando entrou.

- Este tempo é um pesadelo! Só se vêem carros a despistarem-se. O que é isso que estão a beber, é vinho? Dêem-me um copo antes que eu rebente. Nellie, não me cheires aí. É considerado feio pela sociedade. Olá, papá, como estás?

- Ne lia merde - respondeu Stanley.

Miranda reconheceu uma das expressões da mãe. Significava “na merda.” Mamma Marta imaginara ingenuamente que, se dissesse asneiras em italiano, os filhos não iriam perceber.

- Já sei do tipo que morreu - disse Olga. - É mau para si?

- Vamos ficar a saber quando virmos o noticiário.

Olga vinha com o marido, Hugo, um homem pequeno, com um ar encantador e travesso. Quando cumprimentou Miranda com um beijo, deixou ficar os lábios sobre a face dela um tudo-nada mais do que seria preciso.

- Onde é que o Hugo põe as malas? - perguntou Olga.

- Lá em cima - respondeu Miranda.

- Quer dizer que já decidiste que o anexo é para ti.

- Não, é para o Kit.

- Por favor! - protestou Olga. - Uma cama de casal enorme, uma casa de banho linda e uma kitchenette, tudo só para uma pessoa, enquanto nós os quatro temos de partilhar a minúscula casa de banho lá de cima?

- Ele pediu especificamente para lá ficar.

- Eu também estou a pedir especificamente para ficar lá.

Miranda sentiu-se irritada com a irmã.

- Por amor de Deus, Olga. Para variar, pensa noutra pessoa sem ser em ti própria. Sabes bem que o Kit não vem cá desde... desde aquela confusão. Só quero que ele se sinta bem.

- Ou seja, vai ficar com o melhor quarto porque roubou o papá. Achas lógico?

- Vamos lá, vocês as duas - interveio o pai, exactamente com o mesmo tom de voz de quando eram pequenas. - Neste caso, acho que a Olga tem razão. O Kit está a ser egoísta ao pedir o anexo só para ele. A Miranda e o Ned podem lá dormir.

- Assim ninguém tem o que quer - disse Olga.

Miranda suspirou. Para que estava ela a discutir? Conhecia o pai tão bem como ela. Tentava sempre dar-lhes o que queriam, mas quando dizia não, era não mesmo. Sabia ser indulgente, mas não tolerava que fossem mal-educados para ele.

- E para aprenderem a não discutir - rematou Stanley.

- Não, não é. Há trinta anos que impõe essas decisões de Salomão, e ainda não aprendemos.

Stanley sorriu.

- Tens razão. Falhei redondamente na educação dos meus filhos. Queres que comece outra vez do princípio?

- É tarde de mais.

- Graças a Deus.

Miranda só esperava que Kit não ficasse tão ofendido que desse meia-volta e se fosse embora. A discussão acabou com a entrada de Caroline e Craig, os filhos de Hugo e Olga.

Caroline, de dezassete anos, trazia uma gaiola com várias ratazanas brancas. Nellie cheirou-a, muito excitada. Caroline relacionava-se com os animais como forma de evitar as pessoas. Era uma fase por que muitas raparigas passavam, mas Miranda achava que aos dezassete anos já deveria estar ultrapassada.

Craig, de quinze anos, trazia dois sacos de plástico cheios de presentes embrulhados. Tinha o mesmo sorriso malicioso de Hugo, e era alto como Olga. Pousou os sacos, cumprimentou todos com superficialidade e dirigiu-se logo a Sophie. Miranda lembrou-se de que os dois já se tinham visto uma vez, na festa de aniversário de Olga.

- Tens um piercing no umbigo! - exclamou Craig para Sophie. - Que fixe! Doeu-te?

Miranda deu pela presença de uma desconhecida na cozinha. Tinha ficado parada junto à porta que dava para o hall - devia, por isso, ter entrado pela porta da frente. Era alta e muito bonita: com umas maçãs do rosto altas, um nariz curvado, uma enorme cabeleira ruiva e uns olhos verdes maravilhosos. Trazia um fato castanho com riscas brancas que estava um pouco amarrotado, e a sua maquilhagem cuidadosa não conseguia esconder completamente os sinais de cansaço sob os olhos. Entretinha-se a observar com um ar divertido a cena animada que decorria na cozinha apinhada. Miranda perguntou a si própria há quanto tempo estaria ela ali a vê-los em silêncio.

Os outros também repararam nela e a pouco e pouco foram ficando em silêncio. Por fim, Stanley voltou-se e, saindo de um salto da sua cadeira, exclamou:

- Ah, Tom! - deixando Miranda admirada com o seu ar de satisfação. - Ainda bem que vieste. Meninos, esta é a minha colega, An-tonia Gallo.

A mulher sorriu como se achasse que não havia nada mais encantador do que uma família quezilenta. Tinha um sorriso rasgado, generoso, e uns lábios grossos. Miranda percebeu que era a ex-polícia que tinha apanhado Kit a roubar a empresa. Apesar disso, Stanley parecia gostar dela.

Stanley apresentou-os, e Miranda reparou no tom orgulhoso da voz do pai.

- Toni, esta é a minha filha Olga, o marido, Hugo, e os filhos, a Caroline com as ratazanas de estimação, e o Craig, o alto. A minha outra filha, Miranda, o filho dela, o Tom, o namorado, Ned, e a filha do Ned, a Sophie. - Toni foi olhando para cada um dos membros da família, acenando afavelmente com a cabeça e mostrando-se verdadeiramente interessada. Era difícil decorar oito nomes de uma vez, mas Miranda tinha um pressentimento de que Toni ia fixá-los todos. - Aquele é o Luke, a descascar cenouras, e temos a Lori, ao pé do fogão. Nellie, a senhora não quer provar o teu osso de couro, embora tenha ficado muito sensibilizada com a tua generosidade.

- Tenho muito gosto em conhecê-los - disse Toni.

Parecia estar a ser sincera mas, ao mesmo tempo, parecia sob tensão.

- Deve ter sido um dia difícil - disse Miranda. - Lamento muito a morte do técnico.

- Foi a Toni que o encontrou - esclareceu Stanley.

- Meu Deus!

Tom acenou com a cabeça.

- Graças a Deus, temos a certeza de que ele não contagiou ninguém. Agora só esperamos que os meios de comunicação não nos crucifiquem.

Stanley viu as horas.

- Desculpem - disse aos familiares. - Vamos ver o noticiário no meu escritório. - Segurou a porta para Toni passar e saíram os dois.

Os miúdos começaram outra vez a tagarelar, e Hugo disse qualquer coisa a Ned sobre a equipa escocesa de rugby. Miranda voltou-se para Olga, já esquecida da discussão.

- Uma mulher atraente... - comentou com um ar pensativo.

- Pois é - anuiu Olga. - Terá o quê, a minha idade?

- Sim, trinta e sete, trinta e oito. E o papá está mais magro.

- Eu reparei.

- As crises aproximam as pessoas.

- E mesmo.

- Então, o que é que achas?

- O mesmo que tu. Miranda despejou o copo.

- Bem me parecia.

 

                   13:00

Toni tinha ficado acabrunhada com a cena na cozinha: adultos e crianças, criados e animais de estimação, a beberem vinho, a fazerem comida, a brigarem e a rirem-se de piadas. Tinha sido o mesmo que entrar numa festa excelente, mas onde não conhecesse ninguém. Quisera juntar-se a eles, mas sentira-se excluída. Era aquilo a vida de Stanley. Ele e a mulher tinham criado aquele grupo, aquela casa, aquele calor. Admirava-o por isso e invejava os filhos dele. Provavelmente não faziam ideia de quão privilegiados eram. Toni deixara-se ficar ali vários minutos, divertida e, ao mesmo tempo, fascinada. Não era de admirar que ele fosse tão ligado à família.

Sentira-se emocionada e desanimada. Se se permitisse fazer isso, poderia fantasiar sobre pertencer àquela família, estar sentada ao lado de Stanley na qualidade de mulher dele, amá-lo a ele e aos filhos, desfrutando do conforto de estarem na companhia uns dos outros. No entanto, reprimiu aquele sonho. Era impossível, e não devia torturar-se. Era a própria força dos laços familiares que a obrigava a ficar de fora.

Quando finalmente haviam dado pela presença dela, as duas filhas dele, Olga e Miranda, tinham olhado para ela com dureza, naquela que constituíra uma observação atenta: pormenorizada, hostil, sem desculpas. Lori, a cozinheira, olhara-a da mesma forma, ainda que mais discretamente.

Compreendia a reacção das filhas. Marta mandara naquela cozinha durante trinta anos. Ter-se-iam sentido desleais para com ela, se não tivessem sido hostis para Toni. Qualquer mulher de quem Stanley gostasse poderia transformar-se numa ameaça. Podia significar uma ruptura para a família. Podia mudar as atitudes do pai delas, desviar o seu afecto para outras direcções. Podia dar-lhe filhos, meios-irmãos ou meias-irmãs que não iam ter qualquer interesse pela história da família original, nem se sentiriam ligados a elas pelos laços inquebrantáveis de uma infância partilhada. Ficaria com uma parte da herança delas, porventura tudo. Teria Stanley sentido aquela corrente? Ao segui-lo em direcção ao escritório, Toni sentiu mais uma vez a exasperante frustração de não saber o que lhe ia na cabeça.

A decoração era marcadamente masculina, com uma secretária vitoriana de pedestal, uma estante cheia de volumosos textos de micro-biologia e um sofá de pele já gasto à frente de uma lareira. A cadela foi atrás dele e estirou-se à frente da lareira fazendo lembrar um tapete preto de pêlo encaracolado. Sobre a lareira havia uma moldura com uma fotografia de uma adolescente de cabelo escuro e ténis brancos - a mesma rapariga que aparecia vestida de noiva na fotografia que Stanley tinha na parede do seu gabinete na empresa. Os calções deixavam ver que tinha umas pernas altas e atléticas. A maquilhagem acentuada e a fita no cabelo indicavam a Toni que a fotografia tinha sido tirada nos anos sessenta.

- A Marta também era cientista? - perguntou Toni.

- Não. Era formada em Inglês. Quando a conheci, dava aulas de Italiano num liceu em Cambridge.

Toni ficou admirada. Tinha imaginado que Marta partilhara a paixão de Stanley pelo seu trabalho. Pelos vistos, não era preciso ser-se doutorada em Biologia para casar com ele, pensou Toni.

- Era bonita.

- Assombrosa - respondeu Stanley. - Bela, alta, sexy, estrangeira, diabólica no ténis. Arrasava todos os corações. Foi como se tivesse sido atingido por um raio. Cinco minutos depois de a conhecer, já estava apaixonado por ela.

- E ela por ti ?

- Isso demorou mais tempo. Estava rodeada por admiradores. Os homens caíam como moscas à volta dela. Nunca percebi por que acabou por me escolher a mim. Costumava dizer que não conseguia resistir a um intelectual.

Não havia ali nenhum mistério, pensou Toni. Marta tinha gostado do mesmo que Toni gostava: a força de Stanley. Bastava olhar para ele para ver que estava ali um homem que fazia o que dizia, que era o que parecia ser, um homem em quem se podia confiar. Mas também possuía outros atractivos: era meigo, inteligente e vestia bem.

Toni tinha vontade de dizer: Mas o que é que sentes agora? Continuas casado com a memória dela? Porém, Stanley era seu patrão. Não tinha o direito de lhe fazer perguntas sobre os seus sentimentos mais profundos. E, além disso, Marta estava ali, sobre a lareira, a empunhar a raqueta de ténis como se fosse um bastão.

Toni sentou-se no sofá ao lado de Stanley e tentou afastar as suas emoções e concentrar-se na crise que tinham entre mãos.

- Ligaste para a embaixada americana? - perguntou-lhe.

- Liguei. Consegui acalmar o Mahoney por momentos, mas vai ver o noticiário, tal como nós.

Havia muita coisa que dependia dos próximos minutos, pensou Toni. A empresa poderia ser destruída ou salva, Stanley podia ficar na falência, ela podia perder o emprego e o mundo podia perder os serviços de um grande cientista. “Não entres em pânico”, disse para si própria; “sê prática”. Tirou um bloco da mala. Cynthia Creighton estava a gravar o noticiário na empresa, por isso, Toni poderia voltar a vê-lo mais tarde, mas queria tomar já nota do que lhe ocorresse. O noticiário da Escócia antecedia o do Reino Unido. A morte de Michael Ross continuava a ser o tema de abertura, mas a notícia foi introduzida pelo pivô e não por Cari Osborne. Era bom sinal, pensou Toni, esperançada. Tinha-se acabado a ciência ridiculamente imprecisa de Cari. O vírus foi correctamente referido como Madoba-2. O apresentador teve o cuidado de salientar que a morte de Michael seria investigada pelo xerife.

- Até agora, tudo bem - murmurou Stanley.

- Tenho a sensação de que algum responsável da estação viu a notícia vergonhosa que o Cari Osborne deu de manhã e decidiu aprimorar a cobertura do caso - afirmou Toni.

A imagem seguinte era dos portões do Kremlin.

- Os defensores dos direitos dos animais aproveitaram a tragédia para organizar um protesto junto à Oxenford Medical - continuou o apresentador. Toni estava agradavelmente surpreendida. Aquela frase era bastante mais favorável do que ela esperaria. Sugeria que os manifestantes eram cínicos e manipuladores dos meios de comunicação.

Depois de algumas imagens da manifestação, a notícia voltou para o átrio da empresa. Toni ouviu a sua própria voz, com um sotaque escocês marcado do que estava à espera, a explicar como funcionava o sistema de segurança do laboratório. Não estava a ser muito eficaz: apenas uma voz a falar, em tom monocórdico, de alarmes e guardas. Teria sido melhor deixar as câmaras filmarem a entrada estanque do BSN4, com o sistema de reconhecimento de impressões digitais e as portas iguais às dos submarinos. As imagens eram sempre melhores do que as palavras.

Depois surgiu uma imagem de Cari Osborne a perguntar: “Qual é exactamente o perigo que esse coelho representa para a população em geral?”

Toni chegou-se à frente no sofá. Era o momento crítico.

Foram alternando a imagem entre Cari e Stanley, com Cari a sugerir cenários catastróficos e Stanley a dizer como eram improváveis. Toni sabia que aquilo não era bom. Os espectadores iriam gravar a ideia de os outros animais poderem ser contagiados, apesar de Stanley ter afastado com firmeza essa hipótese.

No ecrã apareceu Carl a dizer. “Mas o Michael podia ter transmitido o vírus a outras pessoas” e, a seguir, Stanley a responder com um ar grave: “Se espirrasse.”

Infelizmente, foi naquele ponto que cortaram o diálogo entre ambos.

- Bolas! - resmungou Stanley.

- Ainda não acabou - disse Toni. Podia melhorar - ou piorar.

Toní tinha esperança de que mostrassem a sua intervenção apressada, quando tentara contrariar a impressão de complacência, dizendo que a Oxenford Medical não estava a tentar minimizar o risco. Mas, em vez disso, surgiu uma imagem de Susan Mackintosh ao telefone, com uma voz por cima a explicar que a empresa estava a ligar para todos os funcionários para saber se tinham estado em contacto com Michael Ross. Tudo bem, pensou Toni com alívio. O perigo tinha sido descrito sem tibiezas, mas a empresa estava a tomar acções positivas.

A última imagem da conferência de imprensa foi um grande plano de Stanley, com um ar responsável, a dizer: “Com o tempo, acabaremos por vencer a influenza, a SIDA e até o cancro - e isso será feito por cientistas como nós, que trabalham em laboratórios como este.”

- Foi bom - disse Toni.

- Vai prevalecer sobre o diálogo com o Osborne a propósito do contágio dos outros animais?

- Acho que sim. Foste muito tranquilizador.

Na imagem, viam-se funcionários do refeitório a distribuírem bebidas quentes pelos manifestantes debaixo de neve.

- Óptimo! Usaram esta imagem - exclamou Toni.

- Não tinha visto isto - disse Stanley. - Quem é que teve a ideia?

- Eu.

Cari Osborne apontou o microfone à cara de uma das empregadas e perguntou-lhe: “Estas pessoas estão a manifestar-se contra a sua empresa. Por que está a servir-lhes café?

“Porque está frio cá fora”, respondeu a mulher.

Toni e Stanley riram-se, deliciados com a perspicácia da mulher e com o efeito positivo que as suas palavras tinham sobre a empresa.

O apresentador tornou a aparecer e disse:

- O primeiro-ministro da Escócia emitiu um comunicado esta manhã onde dizia: “Falei com os representantes da Oxenford Medical, com a Polícia de Inverburn e com as autoridades sanitárias de Inver-burn, e fiquei com a certeza de que está a ser feito tudo o que é possível para garantir que não haja riscos para a população.” Vamos agora passar a outra notícia.

Toni desabafou:

- Meu Deus, acho que ganhámos o dia!

- Distribuir as bebidas quentes foi uma óptima ideia. Quando é que te ocorreu?

- No último minuto. Vamos ver o que diz o noticiário do Reino Unido. No noticiário principal, a notícia de Michael Ross surgiu em segundo lugar, depois de um terramoto na Rússia. Foram utilizadas algumas das imagens anteriores, mas não aquelas em que aparecia Cari Osborne, que só era conhecido na Escócia. Havia um clip de Stanley a dizer. “O vírus não é muito infeccioso de umas espécies para outras. Pensamos que, para infectar o Michael, o coelho deve ter-lhe mordido.” Seguiu-se uma declaração circunspecta do Ministro do Ambiente, em Londres. A notícia continuou no mesmo tom, sem a histeria do noticiário escocês. Toni estava profundamente aliviada.

- É bom saber que nem todos os jornalistas são como o Cari Osborne - disse Stanley.

- Convidou-me para jantar - confessou Toni, sem perceber por que estava a dizer-lhe aquilo.

Stanley pareceu surpreendido.

- Ha La faceia peggio dei culo! - exclamou. - É preciso descaramento.

Toni riu-se. O que ele tinha dito era: “A cara dele ainda é pior que o cu”; devia ser uma das expressões de Marta.

- É um homem atraente - comentou.

- Não acredito que penses isso.

- Pelo menos, é bem-parecido.

Toni percebeu que estava a tentar fazer-lhe ciúmes e disse para si própria: “Não te ponhas com jogos.”

- O que é que lhe disseste? - perguntou Stanley.

- Claro que recusei.

- Era o que eu estava à espera. - Stanley parecia embaraçado e acrescentou: - Não tenho nada a ver com isso, mas ele não te merece, nem de longe. - Voltou as suas atenções para a televisão e mudou para um canal generalista.

Ficaram alguns minutos a ver as imagens das vítimas do terramoto na Rússia e das equipas de salvamento. Toni sentia que tinha sido uma patetice falar a Stanley do convite de Osborne, mas tinha ficado satisfeita com a reacção dele.

Seguiu-se a notícia sobre Michael Ross, mas mais uma vez num tom absolutamente factual. Stanley desligou a televisão.

- Bem, não fomos crucificados pela televisão.

- Amanhã não há jornais, é dia de Natal - observou Toni. - Na quinta-feira a história já perdeu a actualidade. Acho que estamos salvos, isto desde que não haja desenvolvimentos inesperados.

- Pois. Se agora perdêssemos outro coelho, ficávamos outra vez em apuros.

- Não vai haver mais incidentes de segurança no laboratório - disse Toni com firmeza. - Vou tomar todas as providências.

Stanley acenou com a cabeça.

- Tenho de confessar que lidaste extraordinariamente bem com tudo isto. Estou-te muito grato.

Toni ficou radiante.

- Dissemos a verdade, e eles acreditaram em nós - retorquiu. Sorriram um para o outro, num momento de intimidade e felicidade.

Depois o telefone tocou.

Stanley esticou o braço por cima da secretária para atender.

- Oxenford - disse. - Sim, passa a chamada para aqui, por favor. Estou desejoso de falar com ele. - Olhou para Toni e disse com os lábios: - É o Mahoney.

Toni levantou-se com nervosismo. Ela e Stanley estavam convencidos de que tinham controlado bem a publicidade - mas seria essa a opinião do governo americano? Perscrutou o rosto de Stanley, enquanto falava ao telefone.

- Olá, Larry. Viste as notícias?... Ainda bem que pensas assim... Evitámos as reacções histéricas que tu temias... Sabes, a minha directora das instalações, a Antonia Gallo, é que lidou com a imprensa... sim, fez um óptimo trabalho, estou plenamente de acordo... Tens toda a razão. A partir de agora vamos ser muito firmes em relação às questões de segurança... Obrigado por teres telefonado. Adeus.

Stanley desligou e sorriu para Tom.

- Estamos salvos. - Exuberante, pôs os braços à volta dela e abraçou-a.

Toni encostou a cara ao ombro dele. O tecido do colete dele era surpreendentemente macio. Sentiu o seu perfume ténue mas acolhedor e apercebeu-se de que há muito tempo que não estava tão perto de um homem. Pôs os braços à volta dele e abraçou-o também, sentindo a pressão dos seios contra o peito dele.

Teria ficado assim para sempre, mas passados alguns segundos, ele retirou suavemente os braços, com um ar envergonhado. Como se quisesse repor o decoro, deu-lhe um aperto de mão.

- Os louros são inteiramente teus.

O breve momento de contacto físico tinha-a excitado. “Meu Deus, como eu estou”, pensou. “Como foi possível isto ter acontecido tão rapidamente?”

- Queres ver o resto da casa? - perguntou-lhe Stanley.

- Gostava muito. - Tom estava satisfeita. Era raro um homem oferecer-se para mostrar a casa aos convidados. Era um outro momento de intimidade.

As duas divisões que ela já tinha visto, a cozinha e o escritório, ficavam na parte de trás da casa, voltadas para um pátio rodeado por anexos. Stanley levou Toni até à parte da frente, mostrando-lhe em primeiro lugar a casa de jantar com vista para o mar. Parecia ser uma extensão da antiga casa. A um canto havia um armário com taças de prata.

- São as taças que a Marta ganhou no ténis - disse Stanley, com orgulho. - O serviço dela parecia um lança-foguetes.

- Ela chegou muito longe no ténis?

- Qualificou-se para o torneio de Wimbledon, mas não chegou a competir porque ficou grávida da Olga.

Do outro lado do hall, também com vista para o mar, havia uma sala de estar com uma árvore de Natal. Os presentes estavam espalhados pelo chão por baixo da árvore. Havia outra imagem de Marta, um quadro de corpo inteiro, retratando-a por volta dos quarenta anos, mais cheia e com alguma flacidez no pescoço. A sala era acolhedora, agradável, mas sem ninguém, e Toni percebeu que o verdadeiro coração da casa era a cozinha.

O traçado da casa era simples: a sala e a casa de jantar na parte da frente, a cozinha e o escritório na parte de trás.

- Lá em cima não há muita coisa para ver - disse Stanley, mas subiu à mesma, e Toni foi atrás dele. Estaria a visitar a sua futura casa? Era uma fantasia estúpida, que afastou de imediato da sua mente. Ele estava apenas a ser simpático.

E, contudo, tinha-a abraçado.

Na parte mais antiga da casa, por cima do escritório e da sala, havia três quartos pequenos e uma casa de banho. Ainda tinham vestígios das crianças que neles tinham crescido. Havia um cartaz dos Clash numa parede, um velho bastão do críquete com o punho a desfazer-se a um canto, um conjunto completo das Crónicas de Nárnia numa prateleira.

Na parte nova da casa havia uma suite, com quarto de vestir e casa de banho. A cama, enorme, estava feita, e todas as divisões estavam impecáveis. Toni sentiu-se ao mesmo tempo excitada e desconfortável por estar no quarto de Stanley. Porém, via-se uma fotografia de Marta sobre a mesa-de-cabeceira, desta vez uma fotografia a cores tirada quando ela se encontrava na casa dos cinquenta. O cabelo já estava grisalho e o rosto magro, sem dúvida por causa do cancro que a tinha matado. Era uma fotografia pouco abonatória. Tom pensou que Stanley devia amá-la ainda para querer ter perto de si até mesmo aquela recordação tão infeliz.

Não sabia o que a esperaria a seguir. Tomaria alguma iniciativa, com a mulher a vê-los da mesa-de-cabeceira e os filhos no andar de baixo? Parecia-lhe que não era esse o estilo dele. Ainda que isso lhe passasse pela cabeça, não iria atirar-se repentinamente a uma mulher. Acharia que a etiqueta o obrigava a cortejá-la como seria normal. Que se lixe o jantar e a ida ao cinema, era o que Toni tinha vontade de dizer. Agarra-me, por amor de Deus. Mas manteve-se em silêncio, e Stanley, depois de lhe mostrar a casa de banho em mármore, voltou para o andar de baixo.

Claro que aquela visita era um privilégio e devia tê-la aproximado de Stanley; mas na realidade tinha-se sentido excluída, como se estivesse a ver através de uma janela uma família reunida à mesa, bastando-a si própria, centrada nos seus membros. Teve a sensação de que estava a viver um anticlímax.

No hall, a cadela tentou chamar a atenção de Stanley, dando-lhe com o focinho.

- A Nellie quer ir à rua - disse Stanley. - Olhou pela pequena janela ao lado da porta. - Já não está a nevar. Vamos apanhar um pouco de ar?

- Vamos.

Toni vestiu zparka, e Stanley foi buscar um velho anorak azul. Ao saírem, depararam com um mundo pintado de branco. O Porsche Boxster de Toni estava ao lado do Ferrari FO de Stanley, ambos cobertos de neve, como bolos cobertos de açúcar. A cadela dirigiu-se para a falésia, seguindo obviamente um percurso habitual. Stanley e Toni foram atrás dela. Toni reparou que a cadela era estranhamente parecida com a falecida Marta, com o seu pêlo negro e encaracolado.

Os seus pés afastaram a neve ainda em pó, revelando por baixo as ervas próprias do litoral. Atravessaram um longo relvado. Algumas árvores cresciam contorcidas, oblíquas, sob a força do vento constante. Cruzaram-se com dois dos miúdos que vinham de um passeio pela falésia: o rapaz mais velho com o sorriso atraente e a rapariga amuada com o piercing no umbigo. Toni lembrava-se dos seus nomes: Craig e Sophie. Quando Stanley fizera as apresentações na cozinha, fixara avidamente todos os detalhes. Percebeu que Craig estava a esforçar-se imenso por conquistar Sophie, mas a rapariga, continuava a andar de braços cruzados e a olhar para o chão. Toni invejou a simplicidade das escolhas com que se viam confrontados. Eram jovens, solteiros, no limiar da idade adulta, sem nada para fazer a não ser abraçar a aventura da vida. Apetecia-lhe dizer a Sophie que não se fizesse dura. “Aceita o amor enquanto podes”, pensou; “pode não te aparecer sempre com tanta facilidade.”

- Quais são os teus planos para o Natal? - perguntou Stanley.

- Não podiam ser mais diferentes dos teus. Vou para um spa com alguns amigos, todos solteiros ou casais sem filhos, para um Natal de adultos. Sem peru, nem botas de Natal, nem Pai Natal. Só mimos e conversas de adultos.

- Parece maravilhoso. Pensava que costumavas passar o Natal com a tua mãe.

- Foi assim nos últimos anos. Mas este ano a minha irmã Bella resolveu levá-la para casa dela, o que, aliás, me deixou muito admirada.

- Admirada?

Toni fez uma careta.

- A Bella tem três filhos e acha que isso serve de desculpa para não assumir outras responsabilidades. Não sei se é justo, mas gosto muito da minha irmã e, por isso, aceito as atitudes dela.

- Queres ter filhos ?

Toni susteve a respiração. Era uma pergunta profundamente íntima. Não sabia que resposta preferiria ele, por isso, disse a verdade.

- Talvez. Foi a coisa que a minha irmã sempre mais quis. A vida dela foi dominada pelo desejo de ter filhos. Eu não sou assim. Invejo-te por teres a família que tens - é óbvio que te amam e respeitam e gostam de estar contigo. Mas não estou necessariamente disposta a sacrificar tudo na vida para ser mãe.

- Não sei se é preciso sacrificar tudo - retorquiu Stanley. “Podia não ser preciso”, pensou Toni, “mas Marta não pudera estar em Wimbledon.” No entanto, não foi isso que disse.

- E tu ? Podias começar outra família.

- Isso não - respondeu ele rapidamente. - Os meus filhos iam ficar muito aborrecidos.

Toni sentiu-se um pouco desiludida pela determinação dele em relação àquela questão.

Chegaram ao extremo da falésia. À esquerda, o promontório tinha um declive até à praia, agora coberta de neve. À direita, havia uma ravina a pique para o mar. Desse lado, havia uma sólida vedação de madeira com quase um metro e meio de altura, suficientemente alta para impedir a passagem de crianças, mas sem obstruir a vista. Debruçaram-se ambos e ficaram a ver as ondas trinta metros abaixo. O mar erguia-se e baixava como o tronco de um gigante a dormir.

- Que sítio maravilhoso! - exclamou Toni.

- Há quatro horas pensei que ia ficar sem ele.

- Sem a tua casa?

Stanley acenou com a cabeça.

- Tive de hipotecar a casa como garantia do empréstimo. Se for à falência, o Banco tira-me a casa.

- Mas a tua família...

- Ficariam destroçados. E agora, desde que a Marta morreu, são a única coisa que me interessa.

- A única? - perguntou Toni.

- Pensando bem, sim - respondeu Stanley, encolhendo os ombros.

Ela olhou para ele. A sua expressão era séria, mas desprovida de sentimentalismo. Por que estaria a dizer-lhe aquilo? Devia ser uma mensagem, concluiu Toni. Não era verdade que os filhos fossem a única coisa que lhe interessava - estava profundamente envolvido no seu trabalho. No entanto, queria que ela percebesse como a unidade da família era importante para ele. Depois de os ter visto juntos na cozinha, era fácil para Toni perceber isso. Mas por que tinha ele escolhido aquele momento para o dizer? Talvez tivesse medo de lhe ter transmitido uma ideia errada.

Toni precisava de saber a verdade. Tinham acontecido muitas coisas nas últimas horas, mas todas elas ambíguas. Ele tinha-lhe tocado, tinha-a abraçado, tinha-lhe mostrado a casa e tinha-lhe perguntado se queria ter filhos. Tudo aquilo quereria dizer alguma coisa ou não? Precisava de saber.

- Estás a dizer-me que nunca farias nada que pudesse pôr em causa o que eu pude presenciar na cozinha, ou seja, a unidade da tua família?

- Sim, é isso. É aí que todos eles vão buscar força, quer se apercebam disso ou não.

Toni olhou-o nos olhos.

- E isso é tão importante para ti que nunca pensarias em ter outra família.

- Exactamente.

A mensagem era clara, pensou Toni. Stanley gostava dela, mas não iria passar daí. O abraço no escritório tinha sido uma manifestação espontânea de triunfo; a visita à casa um momento irreflectido de intimidade; e agora estava a fazer marcha-atrás. A razão tinha prevalecido. Sentiu as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos. Horrorizada pela possibilidade de estar a revelar as suas emoções, voltou-se e disse:

- Este vento...

Foi salva por Tom, que apareceu a correr pela neve e a gritar:

- Avô! Avô! O tio Kit já chegou!

Regressaram a casa com o miúdo, ambos calados e embaraçados.

As marcas recentes de duas filas de pneus terminavam junto de um Peugeot coupé preto. Não era um grande carro, mas tinha estilo - era o carro perfeito para Kit, pensou Toni amargamente. Não queria encontrar-se com ele. Não teria descartado essa possibilidade numa altura melhor mas, naquele momento, estava demasiado abalada para aguentar um encontro cheio de fricção. Contudo, tinha deixado a mala dentro de casa e, por isso, foi obrigada a entrar depois de Stanley.

Kit estava na cozinha a receber as saudações da família - como se fosse o filho pródigo, pensou Toni. Miranda abraçou-o, Olga beijou-o, Luke e Lori fizeram um sorriso rasgado, e Nellie ladrou a pedir a atenção dele. Toni ficou parada junto à porta da cozinha a ver Stanley cumprimentar o filho. Kit parecia desconfiado. Stanley, por seu turno, parecia ao mesmo tempo satisfeito e entristecido, como lhe acontecia quando falava de Marta. Kit estendeu-lhe a mão, mas o pai abraçou-o.

- Fico muito feliz por teres vindo, meu rapaz - exclamou. - Muito feliz mesmo.

- É melhor ir buscar a mala ao carro - disse Kit. - Fico no anexo, não é?

Miranda, aparentemente com algum nervosismo, corrigiu:

- Não, ficas lá em cima.

- Mas...

Olga interrompeu-o.

- Não armes confusão. O papá já decidiu, e a casa é dele.

Toni viu um clarão de raiva nos olhos de Kit, que disfarçou rapidamente.

- Tudo bem.

Estava a tentar transmitir a ideia de que lhe era indiferente, mas não era isso que sugeria o clarão nos seus olhos. Toni pensou que plano secreto teria ele para ter tanta vontade de dormir fora da casa principal.

Foi ao escritório de Stanley. A recordação do abraço voltou em força. Nunca estaria mais perto de fazer amor com ele do que estivera no momento desse abraço. Limpou os olhos à manga do casaco.

O bloco e a mala estavam sobre a secretária antiga, tal como os tinha deixado. Guardou o bloco na mala, pôs a alça ao ombro e voltou para o hall.

Olhou para a cozinha e viu Stanley a dizer qualquer coisa à cozinheira. Acenou-lhe, e ele interrompeu a conversa e foi ter com ela.

- Obrigado por tudo, Toni.

- Feliz Natal.

- Para ti também. - Saiu rapidamente.

Kit estava lá fora, a abrir a mala do carro. Olhando de relance lá para dentro, Toni viu umas caixas cinzentas com material de informática. Kit era especialista nessa área, mas para que precisava de levar tanta coisa para passar o Natal em casa do pai?

Esperava conseguir passar por ele sem lhe falar mas, quando estava a abrir a porta do carro, ele levantou a cabeça e viu-a a olhar para ele.

- Feliz Natal, Kit - disse Toni educadamente.

Ele tirou uma pequena mala de viagem da mala e fechou-a violentamente.

- Vai-te lixar, minha cabra - retorquiu Kit, e entrou em casa.

 

                   14:00

Craig estava entusiasmado por estar outra vez com Sophie. Tinha ficado fascinado por ela na festa de aniversário da sua mãe. Era bonita à sua maneira - olhos escuros e cabelo escuro - e, embora fosse baixa e magra, tinha um corpo cheio de formas. Não fora, no entanto, a sua beleza que o cativara, mas a sua atitude. Não queria saber de nada, e isso fascinava-o. Não havia nada que a impressionasse: nem o Ferrari F5 do avô, nem a perícia de Craig no futebol - jogava na selecção escocesa dos sub-dezasseis - nem o facto de a mãe dele ser conselheira da Rainha. Sophie vestia o que gostava, ignorava os letreiros “Proibido Fumar” e, se alguém a aborrecia, voltava costas a meio de uma frase. Na festa, tinha tido uma discussão com o pai por querer fazer um piercing no umbigo - algo que ele proibia terminantemente - e agora ali estava ela com o umbigo furado.

Era difícil alguém relacionar-se com ela. Ao mostrar-lhe Steepfall, Craig constatara que nada lhe agradava. O silêncio parecia ser a sua forma de elogiar qualquer coisa. Em caso contrário, proferia pequenas palavras de rejeição: “Que nojo!” ou “Que estúpido!” ou “Que estranho!” Porém, como nunca lhe tinha voltado as costas, Craig pôde perceber que não estava a aborrecê-la.

Levou-a ao celeiro. Era o edifício mais antigo da propriedade, construído no século XVIII. O avô tinha mandado pôr lá aquecimento, luz e canalizações, mas ainda se via a antiga estrutura de madeira. O rés-do-chão era uma sala de jogos, com uma mesa de bilhar, uns matraquilhos e uma televisão enorme.

- Este sítio é fixe para se estar - disse Craig.

- É giro - concordou Sophie, na maior manifestação de entusiasmo até ao momento. Apontou para uma plataforma levantada. - O que é aquilo?

- Um palco.

- Para que precisam de um palco?

- A minha mãe e a tia Miranda costumavam fazer peças de teatro quando eram miúdas. Uma vez representaram António e Cleópatra aqui no celeiro só com quatro pessoas na plateia.

- Que estranho.

Craig mostrou-lhe duas camas de campismo.

- Eu e o Tom dormimos aqui - disse. - Vamos lá acima. Vou mostrar-te o teu quarto.

Subia-se por uma escada de mão para o sítio onde outrora se guardava o feno. Não tinha parede, apenas um corrimão por segurança. Estavam lá duas camas feitas. A única mobília era um cabide para pendurar roupa e um espelho alto. A mala de Caroline estava aberta no chão

- Não tem muita privacidade - disse Sophie.

Craig já tinha reparado nisso. A disposição das camas parecera-lhe muito promissora. Claro que a sua irmã mais velha, Caroline, e o primo, Tom, estariam por perto mas, mesmo assim, tinha uma sensação vaga, mas excitante de que tudo poderia acontecer.

- Olha - disse ele, abrindo um velho biombo. - Se fores muito tímida, podes despir-te aqui atrás.

Os olhos dela faiscaram de ressentimento.

- Não sou tímida - disse, como se a sugestão de Craig fosse insultuosa.

Craig achou aquele assomo de raiva terrivelmente excitante.

- Só estava a perguntar - desculpou-se ele, sentando-se numa das camas. - É bastante confortável. Muito melhor do que as nossas camas de campismo.

Sophie encolheu os ombros.

A fantasia dele era que Sophie se sentaria na cama ao seu lado. Numa das versões, ela empurrava-o para trás, fingindo que estava a lutar com ele e, no meio da briga, acabavam por se beijar. Na outra versão, ela pegava-lhe na mão e dizia-lhe como a sua amizade era importante para ela e, a seguir, beijava-o. Mas na vida real ela não era nem brincalhona nem sentimental. Voltou-se e admirou a decoração desoladora do celeiro com uma expressão de repulsa. Craig percebeu que não passava pela cabeça dela beijá-lo. Sophie cantarolou em voz baixa “Estou a sonhar com um Natal de merda.”

- A casa de banho fica aqui por baixo, atrás do palco. Não tem banheira, mas o duche é óptimo.

- Que luxo! - Levantou-se da cama e desceu a escada, ainda a cantar a adaptação obscena do clássico de Natal de Bing Crosby.

Bem, pensou Craig, ainda só estamos cá há umas horas. Tenho cinco dias para a conquistar. Desceu também. Havia ainda uma coisa que talvez a entusiasmasse.

- Tenho mais uma coisa para te mostrar. Levou-a para fora do celeiro.

Chegaram a um enorme pátio quadrado com uma casa de cada um dos lados: a casa principal, a casa de hóspedes, o celeiro de onde tinham acabado de sair e a garagem para três carros. Craig levou Sophie até à parte da frente da casa, evitando a cozinha, onde poderiam dar-lhes alguma tarefa. Quando entraram, viu que ela tinha flocos de neve presos nos seus cabelos brilhantes. Parou e ficou a olhar, extasiado.

- O que foi? - perguntou Sophie.

- Tens neve no cabelo - disse Craig. - Está lindo.

Ela abanou a cabeça com impaciência, e os flocos de neve desapareceram.

- És estranho - exclamou.

“Está bem”, pensou Craig. “Já percebi que não gostas de elogios.”

Subiram a escada. Na parte antiga da casa havia três quartos e uma casa de banco antiquada. A suite do avô ficava na extensão da casa. Craig bateu à porta, para ver se o avô lá estava. Não houve resposta e, por isso, entrou.

Atravessou rapidamente a casa de banho, o quarto com a grande cama de casal e o quarto de vestir. Abriu a porta de um armário e afastou uma fila de fatos, às riscas, de tweed e de xadrez, quase todos cinzentos e azuis. Pôs-se de joelhos, meteu o braço dentro do armário e empurrou a parede do fundo. Um painel quadrado com uns sessenta centímetros abriu-se, ficando preso por uma dobradiça. Craig passou de gatas pelo buraco.

Sophie foi atrás dele.

Craig puxou a porta do armário, fechou-a e depois fechou o alçapão. Tacteou no escuro à procura de um interruptor e acendeu a luz, uma lâmpada sem abat-jour que pendia de uma trave do telhado.

Estavam num sótão. Havia um sofá velho com o estofo a sair pelos buracos do forro. Ao lado dele via-se uma pilha de velhos álbuns de fotografias. Existiam também várias caixas de cartão e de madeira que, em visitas anteriores, Craig descobrira conterem as cadernetas da escola da mãe, romances de Enid Blyton com a inscrição, numa letra de criança: “Este livro pertence a Miranda Oxenford com nove anos e meio”, e uma colecção de taças, jarras e cinzeiros feios que tanto podiam ter sido presentes de que ninguém tinha gostado ou compras pouco sensatas. Sophie percorreu com os dedos as cordas de uma viola coberta de pó: estava desafinada.

- Pode-se fumar aqui - anunciou Craig.

Os maços de tabaco vazios, de marcas já esquecidas como Woodbmes, Players, Sénior Service, espalhados pelo chão, tinham-no levado a pensar que devia ter sido ali que a mãe adquirira o vício do tabaco. Havia também papéis de chocolates: talvez a gordura da tia Miranda tivesse alguma coisa que ver com eles. Concluíra também que devia ter sido o tio Kit a levar para lá uma colecção de revistas com títulos como Só Para Homens, Jogos de Cuequinhas e Quase Ilegal.

Craig tivera esperanças de que Sophie não desse pelas revistas, mas os seus olhos recaíram imediatamente sobre elas. Pegou numa.

- Uau, olha só para isto, pornografia! - exclamou, subitamente mais animada do que estivera durante toda a manhã. Sentou-se no sofá e começou a folheá-la.

Craig desviou os olhos. Já tinha visto as revistas todas, mas estava pronto a negá-lo. A pornografia era coisa de rapazes, e rigorosamente privada. A verdade, porém, é que Sophie estava a ler a Hustler mesmo à frente dele, a ver atentamente cada página como se estivesse a estudar para um exame. Para a distrair, disse:

- Esta parte da casa era a leitaria, quando isto era uma quinta. O avô mandou construir a cozinha no sítio onde era a leitaria mas, como o telhado era muito alto, pôs um tecto falso e guardou este espaço para arrumações.

Sophie nem sequer levantou os olhos da revista.

- Estas mulheres estão todas depiladas! - disse, deixando-o ainda mais embaraçado. - Que nojo!

- Podemos espreitar para a cozinha - insistiu Craig. - Por aqui, que é onde o cano do fogão passa pelo tecto.

Deitou-se no chão e espreitou por uma abertura entre as tábuas e um cano de metal. Conseguia ver a cozinha toda: a porta que dava para o hall, a comprida mesa de pinho, os armários de ambos os lados, as portas laterais para a casa de jantar e a lavandaria, o fogão e as duas portas, uma de cada lado do fogão, uma para a despensa e a outra para o átrio onde estavam guardadas as botas, e a porta lateral da casa. Quase todos os membros da família estavam à volta da mesa. A irmã de Craig, Caroline, estava a dar de comer às ratazanas, Miranda estava a deitar vinho num copo, Ned estava a ler o Guardian e Lori estava a pôr um salmão numa panela comprida, própria para cozer peixe.

- Acho que a Tia Miranda está a ficar com os copos - disse Craig.

Aquela frase despertou o interesse de Sophie. Pousou a revista e deitou-se ao lado de Craig para espreitar.

- Eles não nos vêem? - perguntou em voz baixa.

Craig observou-a enquanto espreitava pela abertura. Tinha posto o cabelo por trás das orelhas. A pele do seu rosto parecia insuportavelmente macia.

- Da próxima vez que estiveres na cozinha, olha cá para cima - disse Craig. - Vais ver que há uma luz no tecto mesmo por trás da abertura e, por isso, é difícil distingui-la, mesmo sabendo que existe.

- Quer dizer que ninguém sabe que estamos aqui?

- Bem, toda a gente sabe que há aqui um sótão. E cuidado com a Nellie. Assim que nos mexemos, põe-se logo a olhar para cima, com a cabeça de lado, à escuta. Sabe que estamos aqui e, se alguém estiver a olhar para ela, pode descobrir também.

- Mesmo assim, é muito fixe. Olha o meu pai. Está a fingir que está a ler o jornal, mas está sempre a fazer olhinhos à Miranda. Que nojo! - Voltou-se de lado, apoiou-se num cotovelo e tirou um maço de tabaco do bolso das calças. - Queres um?

Craig abanou a cabeça.

- Quem joga futebol a sério não pode fumar.

- Como é que podes dizer que jogas futebol a sério? É uma porcaria de um jogo!

- O desporto tem muito mais piada se formos bons.

- Pois, tens razão - disse ao mesmo tempo que soprava o fumo. Ele admirou os lábios dela. - Deve ser por isso que não gosto de desporto. Sou uma pata-choca.

Craig percebeu que tinha quebrado uma barreira. Ela estava finalmente a falar com ele. E dizia coisas inteligentes.

- És boa em quê? - perguntou-lhe.

- Em nada, quase.

Ele hesitou, mas depois disse abruptamente:

- Uma vez, numa festa, uma rapariga disse-me que eu sabia beijar bem.

Dito aquilo, susteve a respiração. Precisava de quebrar o gelo com ela - mas seria cedo de mais?

- Oh? - Sophie mostrou-se interessada, mas de uma forma académica. - O que é que fazes?

- Podia mostrar-te.

Pelo rosto dela passou uma expressão de pânico.

- Nem pensar!

Levantou a mão, como que para o afastar, embora ele não se tivesse mexido.

Percebeu que tinha sido demasiado impetuoso. Apetecia-lhe esbofetear-se.

- Não te preocupes - disse com um sorriso para esconder o seu desapontamento. - Não vou fazer nada que tu não queiras. Prometo.

- É que eu tenho namorado.

- Ah, estou a ver.

- Pois. Mas não digas a ninguém.

- Como é que ele é?

- O meu namorado? Anda na universidade.

Desviou a cara e semicerrou os olhos, para os proteger do fumo do cigarro.

- En Glasgow?

- Sim. Tem dezanove anos. Pensa que eu tenho dezassete.

Craig não sabia se devia acreditar nela.

- Anda a estudar o quê?

- O que é que isso interessa? Uma coisa chata. Direito, acho eu.

Craig tornou a espreitar pela abertura. Lori estava a espalhar salsa picada sobre as batatas que fumegavam numa tigela. De repente, sentiu fome.

- O almoço está pronto - anunciou. - Vou mostrar-te a outra saída.

Foi até ao fundo do sótão e abriu uma porta grande. Havia uma saliência e depois uma altura de quase cinco metros até ao chão. Por cima da porta, na parte de fora da casa, havia uma roldana: era assim que o sofá e as caixas tinham sido levados lá para cima.

- Não consigo saltar daqui - disse Sophie.

- Não é preciso. - Craig limpou a neve do rebordo com as mãos e depois percorreu-o até ao fim e deu um salto de meio metro para um telhado inclinado sobre o átrio onde se guardavam as botas. - É fácil.

Com uma expressão ansiosa, Sophie seguiu os passos dele. Quando chegou ao fim da saliência, ele estendeu a mão para a ajudar. Ela aceitou-a, agarrando-a com uma força desnecessária. Ajudou-a a descer para a aba do telhado. Depois saltou outra vez para o rebordo para fechar a porta e voltou para junto de Sophie. Desceram cuidadosamente o telhado escorregadio. Craig deitou-se de barriga para baixo e deixou-se escorregar. Depois saltou para o chão.

A seguir, Sophie fez o mesmo. Quando estava deitada no telhado com as pernas a balançar do beiral, Craig esticou os dois braços, agarrou-a pela cintura e levantou-a. Era leve.

- Obrigada - disse Sophie. Parecia triunfante, como se tivesse vencido uma experiência difícil.

“Não tinha sido assim tão difícil”, pensou Craig, quando iam a entrar em casa para almoçarem. “Talvez ela não seja tão segura como finge ser.”

 

                   15:00

O Kremlin estava bonito. A neve acumulava-se nas gárgulas e nas ameias, nas grades das portas e nos peitoris das janelas, delineando a branco os ornamentos vitorianos. Toni estacionou e entrou. Reinava o silêncio. A maior parte das pessoas já tinha ido para casa com medo de ficar presa na neve - não que fosse preciso arranjar uma desculpa para sair mais cedo na véspera de Natal.

Estava magoada e sensível. Era como se tivesse sofrido um acidente emocional. Tinha de afastar da mente, com toda a firmeza, quaisquer pensamentos de amor. Talvez mais tarde, quando estivesse sozinha na cama, pudesse pensar nas coisas que Stanley dissera e fizera; mas agora tinha de trabalhar.

Obtivera um êxito retumbante - fora por isso que Stanley a abraçara - mas ainda tinha uma preocupação que não a largava. As palavras de Stanley ecoavam-lhe no cérebro: Se agora perdêssemos outro coelho, ficávamos outra vez em apuros. Era verdade. Um outro incidente do mesmo género traria de novo o caso à ribalta, mas seria dez vezes pior. Não haveria trabalho de relações públicas que pudesse abafá-lo. Não vai haver mais incidentes de segurança no laboratório, dissera Tom. Vou tomar todas as providências. Agora tinha de provar que essas palavras correspondiam à verdade.

Foi para o seu gabinete. A única ameaça que conseguia imaginar era dos activistas dos direitos dos animais. A morte de Michael Ross podia inspirar outras pessoas a “libertar” animais do laboratório. Ou então Michael podia andar metido com activistas que tivessem outro plano. Podia até ter-lhes dado informações privilegiadas que os ajudassem a furar a segurança do Kremlin.

Ligou para a divisão regional da Polícia de Inverburn e pediu para falar com o Detective Superintendente Frank Hackett, o seu ex-companheiro.

- Conseguiste safar-te, não foi? - disse ele. - Tiveste uma sorte dos diabos. Devias ter sido crucificada.

- Dissemos a verdade, Frank. Sabes bem que a honestidade é a melhor política.

- A mim não disseste a verdade. Um hamster chamado Fluffy! Fizeste-me passar por parvo.

- Tenho de reconhecer que não foi bonito da minha parte. Mas não devias ter contado a história ao Cari. Estamos empatados, não é?

- O que é que queres?

- Achas que houve alguém a ajudar o Michael a roubar o coelho?

- Não tenho opinião.

- Dei-te o livro de moradas. Presumo que tenhas andado a verificar os contactos. Por exemplo, os tipos de “Os Animais São Livres” - o seu protesto é pacífico ou poderiam fazer algo mais perigoso?

- A minha investigação ainda não está concluída.

- Vá lá, Frank, só queria um pouco de orientação. Devo ou não preocupar-me com a possibilidade de outro incidente?

- Lamento muito, mas não posso ajudar-te.

- Frank, houve um tempo em que nos amámos. Fomos companheiros durante oito anos. Tem mesmo de ser assim?

- Estás a servir-te da nossa antiga relação para me convenceres a dar-te informações confidenciais?

- Não. Que se lixem as informações! Posso arranjá-las noutro lado. Só não queria ser tratada como inimiga por alguém que amei. Há alguma lei que diga que não podemos ser simpáticos um para o outro?

Ouviu-se um estalido e depois um sinal contínuo. Frank tinha desligado.

Toni suspirou. Ele mudaria alguma vez? Quem lhe dera que ele arranjasse outra namorada. Talvez isso o acalmasse.

Ligou para Odette Cressy, a sua amiga da Scotland Yard.

- Vi-te na televisão - disse Odette.

- E o que é que achaste?

- Muito autoritária - respondeu Odette dando uma risadinha. - Como se nunca na vida entrasses num nightclub com um vestido transparente. Mas eu conheço-te...

- Agora vê lá, não digas a ninguém.

- O teu incidente com o Madoba-2 não parece ter qualquer relação com... com a minha área.

Estava a referir-se ao terrorismo.

- Ainda bem - disse Toni. - Gostaria de saber uma coisa, em termos puramente teóricos.

- Claro.

- Os terroristas podiam arranjar amostras de um vírus como o Ebola com relativa facilidade. Bastava que fossem a um hospital algures na África central, onde a única segurança é um tipo de dezanove anos esparramado no átrio de entrada a fumar cigarros. Por que haviam de tentar algo tão extraordinariamente difícil como roubar um laboratório de alta segurança?

- Por duas razões. Uma, por não saberem que era assim tão fácil arranjar o Ébola em África. A outra, que o Madoba-2 não é o mesmo que o Ébola. É pior.

Toni lembrou-se do que Stanley lhe tinha dito e estremeceu.

- A taxa de sobrevivência é zero.

- Exactamente.

- E os tipos de “Os Animais São Livres”? Já os investigaste?

- Claro. São inofensivos. A pior coisa que podem fazer é cortar uma estrada.

- Isso é uma óptima notícia. Só quero ter a certeza de que não acontece outro incidente do mesmo género.

- Em minha opinião, é pouco provável.

- Obrigada, Odette. És uma amiga, e isso é raro nos tempos que correm.

- Pareces um bocado em baixo.

- O meu ex está a dar-me cabo da cabeça.

- É só isso? Já estás habituada a ele. Aconteceu alguma coisa com o professor?

Toni nunca conseguia enganar Odette, nem mesmo ao telefone.

- Disse-me que a família é a coisa mais importante do mundo para ele e que nunca faria nada que os aborrecesse.

- Sacana.

- Quando encontrares um homem que não seja sacana, pergunta-lhe se tem um irmão.

- Onde é que vais passar o Natal?

- Vou para um spa. Massagem, limpeza de pele, manicure, longos passeios.

- Sozinha?

Toni sorriu.

- És muito querida por te preocupares comigo, mas não estou assim tão mal.

- Com quem é que vais?

- Com uma data de gente. Com a Bonnie Grant, uma velha amiga - andámos juntas na universidade, éramos as únicas duas raparigas da faculdade de Engenharia. Divorciou-se há pouco tempo. O Charles e o Damien, que tu conheces. E dois casais que não conheces.

- Os maricas vão animar-te.

- Pois vão. - Quando Charles e Damien se soltavam, faziam Toni rir até as lágrimas. - E tu?

- Ainda não sei bem. Sabes como detesto fazer pianos.

- Viva a espontaneidade!

- Feliz Natal.

Desligaram, e Toni chamou Steve Tremlett, supervisor dos seguranças.

Tinha arriscado ao escolher Steve. Era amigo de Ronnie Sutherland, o antigo chefe de segurança que colaborara na conspiração de Kit Oxenford. Não havia provas de que Steve soubesse da fraude. Mas Toni temera que ele tivesse ficado ressentido com ela por ter despedido o amigo. Decidira dar-lhe o benefício da dúvida e nomeara-o supervisor. Ele tinha-a recompensado pela confiança depositada nele mostrando-se leal e eficiente.

Chegou passado um minuto. Era um homem baixo, bem-arranjado, de trinta e cinco anos, o cabelo louro já com entradas e quase rapado como era moda. Trazia uma pasta de cartão. Toni indicou-lhe uma cadeira, e ele sentou-se.

- A Polícia acha que o Michael Ross não estava a trabalhar com ninguém - declarou Toni.

- Sempre o achei muito solitário.

- Mesmo assim, temos de manter as instalações sob uma vigilância extrema, esta noite.

- Não vai haver problema.

- Vamos confirmar isso. Tens a escala de serviço?

Steve entregou-lhe uma folha de papel. Normalmente havia três guardas de serviço durante a noite e aos fins-de-semana e feriados. Um ficava na guarita ao pé do portão, outro na recepção e outro na sala de controlo a ver os monitores. Quando tinham de se afastar dos seus postos de trabalho, levavam telefones que eram extensões sem fios da rede do edifício. De hora a hora, o guarda da recepção fazia a ronda pelo edifício principal, e o guarda que estava junto ao portão fazia a ronda pelo exterior do edifício. A princípio, Toni achara que três guardas era muito pouco para uma operação de alta segurança, mas a verdadeira segurança era a tecnologia sofisticada. A componente humana era apenas um apoio. Mesmo assim, tinha duplicado o número de guardas para os feriados do Natal, para que houvesse dois guardas em cada posto. Além disso, a ronda seria feita de meia em meia hora.

- Já vi que vais ficar a trabalhar esta noite.

- Dá-me jeito o dinheiro das horas extraordinárias.

- Está bem.

Normalmente os seguranças faziam turnos de doze horas, mas acontecia por vezes trabalharem vinte e quatro horas, quando havia falta de pessoal ou em situações de emergência, como a daquela noite.

- Mostra-me a lista de números de emergência.

Steve deu-lhe uma folha numa mica que tirou da pasta. Tinha todos os números para onde ele deveria ligar em caso de incêndio, inundação, corte de energia, avaria nos computadores, deficiências no sistema telefónico ou outros problemas.

- Quero que ligues para todos esses números na próxima hora - disse Toni. - Pergunta-lhes se o número vai estar em funcionamento durante o Natal.

- Muito bem.

Tom devolveu-lhe a folha.

- Não hesites em ligar para a Polícia de Inverburn, se houver o que quer que seja que te preocupe.

Ele fez um sinal de assentimento.

- Por acaso, o meu cunhado Jack está de serviço esta noite. A minha mulher vai levar os miúdos para casa deles para passarem lá o Natal.

- Sabes quantas pessoas vão estar de serviço na Polícia esta noite?

- No turno da noite? Um inspector, dois sargentos e seis agentes. E haverá um superintendente pronto a ser chamado.

Era um pequeno complemento mas não haveria muito mais a fazer quando os pubs fechassem e os bêbedos fossem para casa.

- Por acaso não sabes quem é o superintendente que está de serviço?

- Sei. É o teu Frank.

Tom não fez comentários.

- Vou estar com o telemóvel ligado dia e noite e não espero ir a nenhum sítio onde não haja rede. Se acontecer qualquer coisa fora do normal, quero que me ligues imediatamente, sejam que horas forem. Está bem?

- Claro.

- Não me importo que me acordes a meio da noite.

Iria dormir sozinha, mas não disse isso a Steve, que podia considerá-lo uma confidência embaraçosa.

- Estou a perceber - disse Steve, e talvez estivesse mesmo.

- É tudo. Vou sair daqui a cinco minutos. - Viu as horas; eram quase quatro. - Feliz Natal, Steve.

- Para ti, também.

Steve saiu. A noite estava a chegar, e Toni viu o seu reflexo na janela. Estava desgrenhada e com um ar exausto. Fechou o computador e trancou a secretária.

Tinha de se ir embora. Precisava de ir a casa mudar de roupa e depois ir de carro até ao spa, que ficava a quase oitenta quilómetros de distância. Quanto mais depressa se metesse à estrada melhor: segundo as previsões, o tempo ia piorar, mas podia ser que se enganassem.

Estava a custar-lhe deixar o Kremlin. A segurança daquele prédio era a sua missão. Tinha tomado todas as precauções possíveis e imaginárias, mas detestava delegar a responsabilidade.

Obrigou-se a levantar-se. Era directora das instalações, não segurança. Se já tinha feito tudo o que era possível para salvaguardar aquela casa, podia ir-se embora. Se não, era incompetente e devia demitir-se.

Além disso, sabia a verdadeira razão por que queria ficar. Mal voltasse as costas ao trabalho, ia começar imediatamente a pensar em Stanley.

Pôs a mala ao ombro e saiu do edifício.

Estava a nevar com mais intensidade.

 

                   16:00

Kit mostrava-se furioso com a distribuição dos quartos. Estava na sala de estar com o pai, o sobrinho Tom, o cunhado Hugo e o namorado de Miranda, Ned. Mamma Marta olhava para eles do quadro na parede. Kit sentia sempre que ela estava com um ar impaciente naquele quadro, como se estivesse desejosa de despir o vestido de noite, pôr um avental e começar a fazer lasanha.

As mulheres da família estavam a preparar o almoço de Natal do dia seguinte, e os miúdos mais velhos encontravam-se no celeiro. Os homens entretinham-se a ver um filme na televisão. O herói, papel desempenhado por John Wayne, era um rufia de vistas curtas, que Kit achou parecido com Harry Mac. Estava a ser difícil para ele seguir o enredo. Sentia-se demasiado tenso.

Tinha dito especificamente a Miranda que precisava do anexo. A irmã ficara tão comovida por ele ir passar o Natal com a família que só faltara pedir-lhe de joelhos que não mudasse de ideias. Mas, apesar de ele ter concordado em fazer o que ela queria, ela não cumprira a única condição que ele impusera. Era mulher.

O velho, porém, não fora tão sentimental. Estava tão sensível como um polícia de Glasgow num sábado à noite. Era óbvio que tinha passado por cima de Miranda, com o apoio de Olga. Kit pensou que os nomes das suas irmãs deviam ser Goneril e Regan, as filhas predadoras do Rei Lear.

Kit teria de sair de Steepfall nessa noite e voltar na manhã seguinte sem ninguém dar por isso. Se tivesse ficado no anexo, seria mais fácil. Podia fingir que ia para a cama, apagava as luzes e depois escapulia-se em silêncio. Já tinha posto o carro no pátio à frente da garagem, longe da casa, para que ninguém ouvisse o motor a trabalhar. Voltaria a meio da manhã, quando ninguém esperasse que ele já estivesse levantado, entraria calmamente em casa e iria inocentemente para a cama.

Assim seria muito mais difícil. O quarto dele ficava ao pé do de Olga e Hugo, na parte antiga da casa onde era impossível o chão não ranger. Teria de esperar até estarem todos na cama. Quando a casa estivesse em silêncio, teria de sair do quarto, descer as escadas em bicos de pés e sair para a rua sem fazer o mínimo barulho. Se alguém abrisse uma porta - por exemplo, Olga, para ir à casa de banho do outro lado do patamar -, o que iria ele dizer? “Vou só apanhar um pouco de ar.” A meio da noite, estando a nevar? E como faria de manhã? Era quase inevitável que alguém o visse entrar. Ver-se-ia obrigado a dizer que tinha ido dar um passeio a pé ou de carro. E depois, mais tarde, quando a Polícia estivesse a fazer perguntas, alguém se lembraria do seu incaracterístico passeio matinal?

Tentou afastar essa preocupação da mente. Deparava-se com um problema mais imediato. Tinha de roubar o smart card que o pai utilizava para entrar no BSN4.

Podia ter comprado os cartões que quisesse a um fornecedor de equipamentos de segurança, mas os smart cards traziam já do fabricante um código específico que garantia que só funcionavam num local. Qualquer cartão comprado a outro fornecedor teria um código errado para o Kremlin.

Nigel Buchanan interrogara-o insistentemente sobre o roubo do cartão.

- Onde é que o teu pai o guarda?

- Normalmente no bolso do casaco.

- E se não estiver lá?

- Deve estar na carteira ou na pasta.

- Como vais poder roubá-lo sem seres visto?

- A casa é grande. Roubo-o quando ele estiver a tomar banho ou a passear.

- E ele não vai dar pela falta dele?

- Só quando precisa de o utilizar, e isso nunca será antes de sexta-feira. Nessa altura já o terei posto onde o tirei.

- Tens a certeza?

Nessa altura, Elton interrompera-os para dizer com o seu acentuado sotaque do sul de Londres:

- C’um caraças, Nigel. Estamos a contar com o Kít para entrar num laboratório de alta segurança. Estamos bem tramados, se ele nem sequer conseguir roubar uma merda de um cartão ao sacana do pai.

O cartão de Stanley teria o código correcto para acesso ao local, mas o chip teria os dados das impressões digitais de Stanley e não de Kit. No entanto, ele tinha pensado numa maneira de contornar esse problema.

O filme estava a atingir o auge. John Wayne ia começar a matar pessoas. Era um bom momento para Kit executar uma manobra clandestina.

Levantou-se, balbuciou qualquer coisa sobre ir à casa de banho e saiu. Quando chegou ao hall, espreitou para a cozinha. Olga estava a rechear um peru enorme, e Miranda a lavar couves-de-bruxelas. Numa parede havia duas portas, uma que dava para a lavandaria e outra para a casa de jantar. Enquanto estava a olhar, Lori saiu da lavandaria com uma toalha de mesa dobrada e entrou na casa de jantar. Kit entrou no escritório do pai e fechou a porta. O sítio mais provável para encontrar o smart card era num dos bolsos do casaco do pai, tal como dissera a Nigel. Estava a contar que o casaco estivesse pendurado no cabide atrás da porta ou nas costas da cadeira da secretária, mas viu imediatamente que não se encontrava ali. Já que lá estava, decidiu esgotar outras possibilidades. Era arriscado - podia entrar alguém e, se isso acontecesse, o que diria? Porém, tinha de tentar. A alternativa era não haver assalto, nem trezentas mil libras, nem bilhete para Lucca -, mas, o pior de tudo, era a dívida a Harry Mac continuar por pagar. Lembrou-se do que Daisy lhe tinha feito nessa manhã e estremeceu.

A pasta do pai estava no chão ao lado da secretária. Kit vasculhou-a rapidamente. Tinha uma pasta cheia de gráficos sem nenhum significado para Kit; o Times desse dia com as palavras cruzadas quase feitas, meia tablete de chocolate e o pequeno bloco de cabedal onde o pai anotava as coisas que tinha para fazer. Kit já reparara que os velhos tinham sempre listas daquelas. Por que os assustaria tanto a possibilidade de se esquecerem de alguma coisa?

O tampo da secretária estava arrumado, e Kit não viu nenhum cartão nem nada onde pudesse estar guardado um cartão: só uma pilha de pastas, um frasco com lápis e um livro intitulado Sétimo Relatório do Comité Internacional sobre Taxonomia de Vírus.

Começou a abrir as gavetas. A sua respiração estava ofegante e sentia o coração acelerado. Contudo, vendo bem, se fosse apanhado, o que fariam - chamavam a Polícia? Disse para si próprio que não tinha nada a perder e continuou, ainda que as suas mãos estivessem muito trémulas. Há trinta anos que o pai utilizava aquela secretária, e era desconcertante a quantidade de objectos inúteis que se acumulavam sobre ela: porta-chaves, canetas secas, uma calculadora antiquada, papel timbrado com números de telefone já em desuso, tinteiros, manuais de programas de computador obsoletos - há quanto tempo ninguém utilizava o Plan-Perfect Mas de smart card, nada.

Kit saiu do escritório. Ninguém o tinha visto entrar e ninguém o vira sair.

Subiu a escada em silêncio. O pai não era um homem desarrumado e raramente perdia coisas. Não teria deixado a carteira num lugar improvável como, por exemplo, o armário das botas. A única possibilidade que restava era o quarto.

Kit entrou e fechou a porta.

A presença da mãe estava a desaparecer gradualmente. Da última vez que ali estivera, ainda havia coisas dela espalhadas ali: um estojo de escrita em cabedal, um conjunto de escovas de prata que pertencera à mãe dela, uma fotografia de Stanley numa moldura antiga. Tudo isso tinha desaparecido, se bem que os cortinados e a colcha fossem os mesmos, feitos de um arrojado tecido azul e branco, típico dos gostos chocantes da mãe.

De cada um dos lados da cama havia duas cómodas vitorianas de mogno, que eram utilizadas como mesas-de-cabeceira. O pai sempre dormira do lado direito da enorme cama de casal. Abriu as gavetas da cómoda desse lado e encontrou uma lanterna, provavelmente para os cortes de energia, e um livro de Proust, talvez para as insónias. Viu as gavetas da cómoda do lado da mãe, mas estavam vazias.

A suite do pai tinha três divisões: primeiro o quarto, depois o quarto de vestir e por fim a casa de banho. Kit entrou no quarto de vestir, um espaço quadrado, rodeado de roupeiros, alguns pintados de branco, outros com portas de espelho. Lá fora estava a anoitecer, mas ainda conseguia ver suficientemente bem para o que precisava de fazer e, por isso, não acendeu a luz.

Abriu a porta do armário onde estavam os fatos do pai. Num cabide estava o casaco do fato que Stanley trazia vestido naquele dia. Kit meteu a mão no bolso de dentro e tirou uma carteira de pele preta, já velha e gasta. Tinha algumas notas e uma série de cartões de plástico. Um deles era um smart card do Kremlin.

- Bingo! - exclamou Kit em voz baixa.

Nesse momento, a porta do quarto abriu-se.

Kit não tinha fechado a porta que dava para o quarto de vestir e viu pela porta a sua irmã Miranda entrar com um cesto de plástico cor-de-laranja com roupa.

Kit estava na linha de visão dela, junto da porta aberta do armário dos fatos, mas, como havia pouca luz, ela não o viu imediatamente, e Kit pôde esconder-se rapidamente atrás da porta do quarto de vestir. Se espreitasse pela ranhura da porta, via-a reflectida no espelho que estava na parede do quarto.

Acendeu as luzes e começou a desfazer a cama. Pelos vistos, ela e Olga andavam a fazer algumas das tarefas que cabiam a Lori. Kit decidiu que teria de esperar.

Por momentos, sentiu alguma repugnância por si próprio. Estava a agir como um intruso na casa da sua própria família. Estava a roubar o pai e a esconder-se da irmã. Como teria chegado àquele ponto?

Sabia a resposta. A culpa fora do pai, que não o ajudara quando ele precisara. Era aí que residia a causa de tudo.

O certo, porém, é que iria deixá-los a todos. Nem sequer lhes diria para onde ia. Começaria uma nova vida noutro país. Mergulharia na rotina tranquila de Lucca, comendo tomates e pasta, bebendo vinho da Toscana e jogando às cartas fazendo pequenas apostas ao serão. Seria como uma figura no plano de fundo de um quadro grande, o transeunte que não olha para o mártir moribundo. Ficaria em paz.

Miranda começou a fazer a cama com lençóis lavados e, nesse momento, entrou Hugo.

Tinha vestido uma camisola vermelha e umas calças de bombazina verdes. Parecia um duende do Natal. Fechou a porta atrás de si. Kit franziu a testa. Que segredos teria Hugo a discutir com a irmã da mulher?

- O que é que queres, Hugo? - perguntou Miranda. Parecia desconfiada.

Hugo olhou para ela com um sorriso de conspiração, mas disse:

- Pensei que talvez precisasses de ajuda. - Foi para o outro lado da cama e começou a entalar os lençóis.

Kit estava atrás da porta do quarto de vestir com a carteira do pai numa mão e o smart card do Kremlin na outra mas, se se mexesse, corria o risco de ser descoberto.

Miranda atirou uma fronha lavada para o outro lado da cama.

- Toma - disse.

Hugo enfronhou a almofada, e depois puseram a colcha.

- Parece que não te via há uma eternidade - disse Hugo. - Estava com saudades tuas.

- Não digas disparates - retorquiu Miranda com frieza.

Kit estava, ao mesmo tempo, intrigado e fascinado. O que estaria a acontecer ali?

Miranda endireitou a colcha. Hugo contornou a cama, e ela pegou no cesto da roupa e pô-lo à sua frente como se fosse um escudo. Hugo fez um dos seus sorrisos maliciosos e disse:

- E que tal um beijo em nome dos bons velhos tempos?

Kit estava baralhado. De que velhos tempos estava Hugo a falar? Era casado com Olga há quase vinte anos. Teria beijado Miranda quando ela tinha catorze anos?

- Pára com isso, imediatamente! - disse Miranda com firmeza.

Hugo agarrou o cesto da roupa e empurrou-o. A parte de trás das pernas de Miranda ficaram encostadas à beira da cama. Involuntariamente, sentou-se. Soltou o cesto e tentou equilibrar-se com as mãos. Hugo empurrou o cesto para o lado, debruçou-se sobre Miranda e empurrou-a para trás, ajoelhando-se na cama com uma perna de cada lado do corpo dela. Kit estava estupefacto. Sempre desconfiara de que Hugo fosse um mulherengo, só por causa da maneira como se atirava a qualquer mulher bonita, mas nunca imaginara que pudesse envolver-se com Miranda.

Hugo puxou-lhe a saia larga, de pregas, para cima. Miranda tinha umas ancas e umas coxas volumosas. Trazia umas cuecas de renda pretas e um cinto de ligas e, para Kit, isso foi uma revelação ainda mais surpreendente.

- Larga-me - disse Miranda.

Kit não sabia o que havia de fazer. Não tinha nada que ver com aquilo e, por isso, não ia interferir; mas estava a custar-lhe ficar ali a ver. Mesmo que voltasse as costas, não conseguiria deixar de ouvir o que estava a acontecer. Talvez conseguisse passar por eles à socapa enquanto estavam envolvidos. Não, o quarto era demasiado pequeno. Lembrou-se do alçapão ao fundo do armário que dava para o sótão, mas não conseguia chegar lá sem se arriscar a ser visto. Acabou por ficar ali paralisado, a ver.

- Só uma rapidinha - disse Hugo. - Ninguém vai saber.

Miranda conseguiu libertar o braço direito e deu uma valente bofetada na cara de Hugo. Depois levantou com força um joelho, atingindo um ponto qualquer na virilha dele. Contorceu-se, empurrou-o e pôs-se de pé.

Hugo ficou deitado na cama.

- Isso doeu! - protestou.

- Ainda bem - retorquiu Miranda. - Ouve bem o que vou dizer: não voltes a fazer isto.

Hugo apertou a braguilha e levantou-se.

- Porquê? O que é que fazes? Vais contar ao Ned?

- Devia contar-lhe, mas não tenho coragem. Dormi contigo uma vez, quando estava só e deprimida, e nunca deixei de me arrepender amargamente do que fizera.

Então era isso, pensou Kit. Miranda tinha ido para a cama com o marido de Olga. Sentia-se chocado. Não estava surpreendido com o comportamento de Hugo - havia muitos homens que gostavam desse arranjinho fácil de dormirem com a irmã da mulher. Mas Miranda era de uma moral impoluta em relação a essas coisas. Kit seria capaz de jurar que ela jamais dormiria com o marido de outra mulher, quanto mais com o marido da irmã.

- Foi a coisa mais vergonhosa que fiz em toda a minha vida - continuou Miranda. - Não quero que o Ned descubra. Nunca!

- Nesse caso, estás a ameaçar fazer o quê? Contar à Olga?

- Divorciava-se de ti e nunca mais falava comigo. Seria uma bomba nesta família.

Podia não ser assim tão grave, pensou Kit; mas Miranda queria acima de tudo manter a família sempre unida.

- Não tens muito para onde te virar, pois não? - observou Hugo, com um ar satisfeito. - Se não podemos ser inimigos, por que é que não me dás um beijo e voltamos a ser amigos?

- Porque tu me metes nojo - respondeu Miranda, com uma voz gélida.

- Ah, então está bem. - Hugo parecia resignado mas não envergonhado. - Então, odeia-me. Eu vou continuar a adorar-te. - Fez o seu sorriso mais encantador e saiu do quarto a coxear ligeiramente.

Quando a porta bateu, Miranda exclamou:

- Sacana de merda!

Kit nunca a tinha ouvido falar assim.

Miranda pegou no cesto da roupa mas, em vez de sair, como seria de esperar, começou a andar em direcção a ele. Devia ir mudar as toalhas da casa de banho. Kit não tinha tempo para sair dali. Com apenas três passos, ela chegou à entrada do quarto de vestir e acendeu a luz.

Kit só teve tempo para guardar o smart card no bolso das calças. Ela viu-o logo a seguir e deu um gritinho:

- Kit! O que é que estás aqui a fazer? Pregaste-me cá um susto! - Pálida, acrescentou: - Deves ter ouvido tudo.

- Desculpa - disse Kit, encolhendo os ombros. - Não foi por querer.

O rosto dela passou num ápice de pálido a corado.

- Não vais dizer nada, pois não?

- Claro que não.

- A sério, Kit. Não podes contar a ninguém. Seria horrível. Podia ser o fim de dois casamentos.

- Eu sei, eu sei.

Miranda viu a carteira na mão dele.

- O que é que estás a fazer?

Ele hesitou, mas depois teve um momento de inspiração.

- Precisava de dinheiro - confessou e mostrou-lhe as notas.

- Oh, Kit! - O seu tom era de tristeza, não de crítica. - Por que é que tens de andar sempre à procura de dinheiro fácil?

Ele reprimiu uma resposta indignada. Miranda acreditara na história dele, e isso é que era importante. Não disse nada e tentou mostrar-se envergonhado.

- A Olga está sempre a dizer que preferes roubar um xelim a ganhar uma libra honestamente - continuou Miranda.

- Está bem. Não batas mais no ceguinho.

- Não devias tirar dinheiro da carteira do pai. É horrível!

- Estou um bocado desesperado.

- Eu dou-te dinheiro!

Pousou o cesto da roupa. A saia tinha dois bolsos. Meteu a mão num deles e tirou algumas notas amarrotadas. Escolheu duas de cinquenta, endireitou-as e deu-as a Kit.

- Podes pedir-me a mim. Eu não te deixo ficar mal.

- Obrigado, Mandy - disse Kit, utilizando o nome de infância dela.

- Não tornes a roubar o papá.

- Está bem.

- E, por amor de Deus, não contes a ninguém o que aconteceu comigo e com o Hugo.

- Juro - disse Kit.

 

                   17:00

Toni estava a dormir profundamente há uma hora quando o despertador a acordou.

Viu que tinha adormecido sobre a cama completamente vestida. Estava tão cansada que nem sequer o casaco e os sapatos tirara, mas a soneca tinha-a deixado mais fresca. Estava habituada a horários estranhos por causa dos turnos da noite na Polícia, e conseguia adormecer em qualquer lado e acordar instantaneamente.

Vivia num andar de uma casa vitoriana em propriedade horizontal. Tinha um quarto, uma sala de estar, uma cozinha pequena e uma casa de banho. Em Inverburn havia um porto de ferry-boats, mas da casa dela não se via o mar. Não gostava particularmente de ali viver: tinha sido o local onde se refugiara quando se separara de Frank, e não guardava muitas recordações felizes daquela casa. Estava lá há dois anos, mas continuava a considerá-la temporária.

Levantou-se. Despiu o fato com que andava há dois dias e uma noite e atirou-o para o cesto da roupa para levar para a lavandaria. Só de roupa interior e roupão, andou rapidamente pela casa a preparar uma mala para as cinco noites no spa. Tinha planeado fazer a mala na noite anterior e sair ao meio-dia, por isso tinha de recuperar o atraso.

Estava ansiosa por ir até ao spa. Era mesmo do que estava a precisar. As massagens levar-lhe-iam as mágoas; o suor na sauna libertá-la-ia das toxinas; pintaria as unhas, cortaria o cabelo e arranjaria as pestanas. Mas o melhor de tudo seria poder divertir-se e contar histórias com um grupo de velhos amigos e esquecer as preocupações.

A mãe já devia estar em casa de Bella. Era uma mulher inteligente, ainda que estivesse a perder as capacidades mentais. Tinha sido professora de Matemática no liceu e sempre ajudara Toni nos estudos, até mesmo no último ano do curso de Engenharia. Agora não conseguia verificar o troco que lhe davam nas lojas. Toni amava-a profundamente e custava-lhe muito assistir ao declínio dela.

Bella era um nadinha descuidada. Limpava a casa quando lhe apetecia, fazia comida quando tinha fome e, às vezes, esquecia-se de mandar os filhos para a escola. O marido, Bernie, era cabeleireiro, mas tão depressa estava a trabalhar como não estava, isto por causa de uma vaga dor no peito. Quando lhe perguntavam: “Como estás?”, a resposta normalmente era: “O médico deu-me mais quatro semanas de baixa.”

Tom esperava que a mãe estivesse bem em casa de Bella. Bella era desmazelada, e a mãe nunca parecera importar-se muito com isso. Sempre gostara de ir até àquela zona ventosa de Glasgow e comer batatas mal fritas com os netos. Na verdade, porém, estava a ficar senil. Continuaria a ser tão filosófica como sempre fora em relação à forma desorganizada como Bella cuidava da casa? E Bella, saberia lidar com a crescente teimosia da mãe?

Uma vez, Tom deixara escapar uma observação irritada sobre Bella, e a mãe dissera com azedume: “Ela não se esforça tanto como tu e, por isso, é mais feliz.” As conversas da mãe estavam a ficar desprovidas de tacto mas, por vezes, as suas observações eram de uma acutilância dolorosa.

Depois de fazer a mala, Toni foi lavar o cabelo e tomou um banho de imersão para arrancar a tensão daqueles dois dias. Adormeceu na banheira. Acordou assustada, mas só tinha passado um minuto - a água continuava quente. Saiu da banheira e enxugou-se vigorosamente.

Olhou para o espelho de corpo inteiro e pensou: “Tenho tudo o que tinha há vinte anos - só que está sete centímetros mais abaixo. Uma das coisas boas de Frank, pelo menos nos primeiros tempos, fora o prazer que retirava do corpo dela. “Tens umas mamas lindas” dizia de vez em quando. Toni achava que eram grandes de mais para a sua estatura, mas Frank tinha uma verdadeira adoração por elas. “Nunca vi uma rata desta cor” dissera-lhe uma vez quando estava a penetrá-la. “Parece um biscoito de gengibre.” Quanto tempo demoraria até que alguém voltasse a maravilhar-se com a cor dos seus pêlos púbicos?

Vestiu umas calças de ganga desbotadas e uma camisola verde-escura. Quando estava a fechar a mala, o telefone tocou. Era a irmã.

- Olá, Bella - disse Toni. - Como está a mãe?

- Não está cá.

- O quê? Ficaste de ir buscá-la à uma da tarde!

- Eu sei, mas o Bernie é que tinha o carro, e não pude sair.

- E ainda não saíste? - Toni olhou para o relógio. Eram cinco e meia. Imaginou a mãe em casa, sentada no hall, de casaco e chapéu, com a mala ao lado da cadeira, a ver as horas passarem, e sentiu-se irritada. - O que é que te passou pela cabeça?

- Sabes, o problema é que o tempo piorou.

- Está a nevar em toda a Escócia, mas não está assim tão mau.

- É que o Bernie não quer que eu guie de noite.

- Não serias obrigada a guiar de noite, se tivesses ido buscá-la à hora a que prometeste!

- Ó querida, estás a ficar zangada. Eu sabia que isto ia acontecer.

- Não estou zangada... - Toni fez uma pausa.

A irmã já a tinha apanhado mais vezes com aquele truque. Daí a pouco estariam a falar sobre a necessidade de Toni controlar a zanga e não do facto de Bella não ter respeitado um compromisso.

- Deixa lá o que eu sinto - disse Toni. - E a mãe? Não achas que deve estar desapontada?

- Claro que sim, mas não posso fazer nada contra o tempo.

- O que é que vais fazer?

- Não há nada que possa fazer.

- Então, vais deixá-la passar o Natal no lar?

- A menos que possas ir buscá-la. Estás a quinze quilómetros dela.

- Bella, fiz uma reserva num spal. Tenho sete amigos à minha espera para passarmos cinco dias juntos. Paguei um depósito de quatrocentas libras e estou a precisar desesperadamente de descansar.

- Acho que estás a ser um bocado egoísta.

- Espera aí! Passei os últimos três natais com a mãe, e eu é que estou a ser egoísta?

- Não sabes como a minha vida é difícil, com três filhos e um marido doente e sem poder trabalhar. Tu tens montes de dinheiro e só tens de cuidar de ti.

“E não sou estúpida ao ponto de me casar com um mandrião e ter três filhos dele”, pensou Toni, mas não o disse. Não valia a pena discutir com Bella. A vida dela já era castigo que chegasse.

- Portanto, estás a pedir-me que cancele as minhas férias, que vá buscar a mãe ao lar e que passe o Natal com ela.

- É contigo - disse Bella, num tom piedoso. - Faz o que a tua consciência te mandar.

- Obrigada pelo conselho. É muito útil. - A consciência de Toni dizia-lhe que devia ficar com a mãe, e Bella sabia isso. Toni não conseguia deixar a mãe passar o Natal num lar, sozinha no quarto, ou a comer um peru desenxabido com couves frias num refeitório, ou a receber um presente barato num papel piroso das mãos da directora do lar vestida de Pai Natal. Nem queria pensar nisso.

- Está bem, eu vou buscá-la.

- É pena não conseguires dizer isso com uma voz mais amável - comentou a irmã.

- Ora, vai-te lixar, Bella! - exclamou Toni e desligou.

Sentindo-se muito deprimida, ligou para o spa e cancelou a reserva. Depois pediu para falar com um dos amigos. Passado algum tempo, foi Charlie que veio ao telefone. Tinha um sotaque de Lancashire.

- Onde é que estás? - perguntou ele. - Nós estamos todos no jacuzzi. Nem sabes o que estás a perder!

- Não posso ir - disse num tom muito infeliz e explicou o que tinha acontecido.

Charlie ficou furioso.

- Não é justo para ti - exclamou. - Precisas de descansar.

- Eu sei, mas não consigo imaginá-la sozinha naquele sítio enquanto os outros vão estar com as famílias.

- Ainda por cima, tiveste alguns problemas hoje no teu trabalho.

- Pois. Foi pena, mas acho que a Oxenford Medical se saiu bem - desde que não aconteça mais nada.

- Vi-te na televisão.

- E o que é que achaste?

- Estavas um espanto, embora goste mais do teu patrão.

- Eu também, mas tem três filhos adultos que não quer aborrecer. Por isso, acho que é uma causa perdida.

- Cos diabos, tiveste um dia mesmo mau!

- Peço desculpa a todos.

- Não vai ser a mesma coisa sem ti.

- Tenho de desligar, Charlie. Tenho de ir buscar a minha mãe o mais depressa possível. Feliz Natal. - Pousou o auscultador e sentou-se a olhar para o telefone. - Que miséria de vida! - desabafou em voz alta. - Que vida de merda!

 

                   18:00

A relação de Craig com Sophie estava a avançar muito devagar.

Tinha passado a tarde toda com ela. Tinha-a derrotado no pingue-pongue e sido derrotado no bilhar. Tinham os mesmos gostos musicais - ambos preferiam bandas com guitarras em vez do drum and bass. Ambos liam romances de terror, apesar de ela gostar de Stephen King e ele preferir Anne Rice. Craig falou-lhe do casamento dos pais, que era tumultuoso mas apaixonado, e Sophie falou-lhe do divórcio de Ned e Jennifer, que tinha sido rancoroso.

Contudo, Sophie não lhe dera qualquer sinal de encorajamento. Nunca lhe tocara casualmente no braço, nunca olhara atentamente para o seu rosto quando ele estava a falar com ela, nem nunca trouxera à baila temas românticos como curtir e namorar. Em vez disso, ele passou o tempo a falar-lhe do mundo que o excluía, um mundo de night-clubs - como é que ela lá entrava, tendo catorze anos? -, de amigas que se drogavam e de rapazes com motos.

À medida que o jantar se ia aproximando, começou a ficar desesperado. Não queria passar cinco dias atrás de Sophie para no fim ela lhe dar um beijo. A sua ideia era conquistá-la logo no primeiro dia e passar o resto dos dias a conhecê-la. Era óbvio que não era esse o timing dela. Precisava de descobrir um atalho para o coração dela.

Sophie dava a sensação de o considerar incapaz de merecer qualquer atenção romântica. Aquela conversa sobre os mais velhos implicava que ele era apenas um miúdo, apesar de ter mais um ano e sete meses do que Sophie. Tinha de arranjar uma maneira de provar que era tão adulto e sofisticado como ela.

Sophie não seria a primeira rapariga que ele beijara. Tinha andado com Caroline Stratton, uma rapariga do seu liceu, durante seis semanas mas, embora ela fosse bonita, tinha-se fartado dela. Linda Riley, a irmã gorducha de um amigo seu do futebol, tinha sido mais excitante e deixara-o fazer várias coisas que nunca havia feito, mas depois voltara o seu afecto para o teclista de uma banda rock de Glasgow. E depois havia ainda várias raparigas que tinha beijado uma ou duas vezes.

No entanto, aquele caso era diferente. Desde que conhecera Sophie na festa de anos da mãe, não tinha havido um único dia nesses quatro meses em que não pensasse nela. Tinha copiado para o seu computador uma fotografia que o pai tirara na festa, onde se via Craig a gesticular e Sophie a rir-se, e até a tinha posto como protecção do ecrã. Olhava para outras raparigas, mas comparava-as sempre com Sophie, concluindo que uma era demasiado pálida, outra demasiado gorda, outra não tinha nada de especial e todas eram insuportavelmente convencionais. Não se importava que ela fosse difícil - estava habituado a mulheres difíceis; a sua mãe era uma delas. Decididamente havia qualquer coisa em Sophie que o perturbava profundamente.

Às seis horas, estirado no sofá no celeiro, decidiu que já tinha visto MTV que chegasse para um dia.

- Queres ir até lá a casa? - perguntou-lhe.

- Fazer o quê?

- Devem estar todos à mesa da cozinha.

- E então ?

“Deve ser simpático”, pensou Craig. A cozinha era acolhedora, sentia-se o cheiro do jantar, o pai contava histórias com piada e a tia Miranda ia bebendo vinho, e sabia bem. Ciente de que nada disso impressionaria Sophie, disse:

- Deve haver lá bebidas.

- Boa! Quero um cocktail! - exclamou Sophie, levantando-se.

“Vai sonhando”, pensou Craig. O avô nunca iria servir bebidas alcoólicas a uma miúda de catorze anos. Se estivessem a beber champanhe, talvez lhe desse meio copo. Todavia Craig deixou-a ficar com a ilusão. Vestiram os casacos e saíram.

Já estava noite cerrada, mas o pátio estava profusamente iluminado por candeeiros distribuídos pelas paredes dos edifícios circundantes. A neve continuava a revolutear no ar, e o chão estava muito escorregadio. Atravessaram em direcção à casa principal e dirigiram-se para a porta lateral. Antes de entrarem, Craig olhou para a esquina da casa e viu o Ferrari do avô ainda estacionado à frente da casa, com quase cinco centímetros de neve amontoada no spoiler traseiro. Luke ainda não devia ter tido tempo de o ir arrumar.

- Da última vez que cá estive - disse Craig -, o avô deixou-me ir arrumar o carro dele na garagem.

- Não sabes guiar - retorquiu Sophie com cepticismo.

- Não tenho carta, mas isso não significa que não saiba guiar. - Estava a exagerar. Tinha guiado duas vezes a carrinha Mercedes do pai, uma vez numa praia e outra num campo de aviação desactivado, mas nunca em estrada.

- Está bem. Então, vai estacioná-lo - encorajou Sophie.

Craig sabia que devia pedir autorização. Mas se dissesse isso, ia parecer que estava a voltar com a palavra atrás. O avô podia dizer que não, e Craig perderia a oportunidade de se afirmar perante Sophie. Por isso, disse:

- Está bem.

O carro estava destrancado e a chave na ignição.

Sophie encostou-se à parede da casa, junto à porta lateral, de braços cruzados, com uma expressão que dizia: Muito bem, mostra lá. Craig não ia deixá-la levar a melhor.

- Por que é que não vens comigo? - perguntou. - Estás com medo?

Entraram os dois no carro.

Não era fácil. Os assentos eram muito baixos, quase ao nível da parte de baixo das portas, e Craig teve de pôr uma perna lá dentro e depois deslizar pelo apoio do braço. Bateu com a porta.

A alavanca das mudanças era terrivelmente utilitária, apenas um tubo de alumínio com uma maneta em cima. Craig confirmou que estava em ponto morto e depois rodou a chave na ignição. O carro começou a trabalhar com um barulho que parecia de um 747.

Craig tinha, de certo modo, alimentado a esperança de que o barulho fizesse Luke sair de casa a correr e de braços no ar. Mas o Ferrari estava ao pé da porta da frente e a família estava na cozinha, na parte de trás da casa voltada para o pátio. O estampido do carro não conseguiu penetrar nas grossas paredes de pedra da antiga casa.

O carro tremia como se estivesse a haver um tremor de terra, enquanto o motor desenvolvia preguiçosamente a sua potência. Craig sentia no corpo as vibrações do carro através do assento de cabedal preto.

- Que fixe! - exclamou Sophie muito excitada.

Craig acendeu os faróis. Dois cones de luz estenderam-se desde a parte da frente do carro até ao fundo do jardim, coberto de flocos de neve. Pôs a mão na maneta das mudanças, carregou na embraiagem e depois olhou para trás. A rampa ia em linha recta até à garagem; só depois curvava em direcção à falésia.

- Vá lá! - disse Sophie. - Guia.

Craig pôs um ar desinteressado para esconder a sua relutância.

- Tem calma - disse. Soltou o travão de mão. - Espero que gostes. - Carregou na embraiagem e meteu a marcha atrás. Tocou no acelerador o mais ao de leve que conseguiu. O motor rosnou amea-çadoramente. Depois foi libertando a embraiagem, quase um milímetro de cada vez. O carro começou a arrastar-se para trás.

Agarrou o volante sem fazer força, sem o rodar para nenhum dos lados, e o carro começou a andar a direito. Depois de soltar comple-tamente a embraiagem, tornou a tocar no acelerador. O carro disparou para trás, passando a garagem. Sophie deu um grito de medo. Craig passou o pé do acelerador para o travão. O carro derrapou na neve mas, para grande alívio de Craig, não se desviou da linha a direito. Quando o carro parou, lembrou-se no último minuto de carregar na embraiagem para não ir abaixo.

Sentiu-se satisfeito consigo próprio. Tinha conseguido manter o controlo. Melhor ainda, tinha assustado Sophie, enquanto aparentemente ele continuava calmo. Talvez ela acabasse com aqueles seus ares de superioridade.

A garagem ficava em ângulo recto com a casa. A porta estava agora à esquerda do Ferrari. Via-se o carro de Kit, um Peugeot coupé preto, estacionado à frente da garagem, num dos lados. Craig encontrou um comando por baixo do tablier do Ferrari e accionou-o. A terceira porta da garagem abriu-se.

O pátio fronteiro à garagem estava coberto por uma camada de neve. Num dos cantos havia um conjunto de arbustos e na extremidade mais distante uma árvore grande. Bastava a Craig evitar essas duas coisas e enfiar o carro no lugar.

Já mais confiante, meteu a primeira, carregou no acelerador e depois soltou a embraiagem. O carro avançou. Rodou o volante que, com a primeira, não tinha direcção assistida e, por isso, era pesado. O carro voltou obedientemente para a esquerda. Carregou ligeiramente no acelerador, e o carro ganhou velocidade, mas só o suficiente para se tornar excitante. Voltou para a direita, apontando para a porta aberta, mas ia depressa de mais. Pôs o pé no travão.

Foi esse o erro.

O carro ia a andar depressa sobre a neve com as rodas viradas para a direita. Assim que Craig tocou no travão, os pneus traseiros perderam a tracção. Em vez de continuar a andar para a direita em direcção à porta aberta da garagem, o carro deslizou de lado sobre a neve. Craig percebeu o que estava a acontecer, mas não sabia o que fazer. Girou o volante mais para a direita, mas isso ainda fez o carro derrapar mais, deslizando irremediavelmente sobre a superfície escorregadia como um barco empurrado por um vento forte. Carregou no travão e na embraiagem ao mesmo tempo, mas o efeito foi nulo.

Viram o edifício da garagem a fugir para o lado direito do pára-brisas. Craig pensou que ia chocar com o Peugeot de Kit, mas para seu grande alívio o Ferrari passou por milímetros ao lado do outro carro. Perdendo a aceleração, o carro abrandou. Por um momento, Craig pensou que tinha conseguido dominá-lo, mas, antes de o carro parar completamente, bateu de lado na árvore.

- Que espectáculo! - exclamou Sophie.

- Não foi nada.

Craig deixou o carro em ponto morto, tirou o pé da embraiagem e saltou do carro. Deu a volta pela parte da frente. O impacto parecera ligeiro, contudo, à luz dos candeeiros na parede da garagem, viu com grande desânimo que a reluzente ala azul tinha uma amolgadela enorme e indisfarçável.

- Merda! - lastimou-se.

Sophie saiu e foi ver.

- Não está muito amolgado - disse.

- Não digas asneiras.

O tamanho da amolgadela não interessava. A carroçaria estava estragada, e a culpa era de Craig. Sentiu uma náusea no estômago. Que belo presente de Natal para o avô.

- Pode ser que não reparem - disse Sophie.

- Claro que vão notar - contrapôs Craig, cheio de raiva. - O avô vai dar por isso assim que olhar para o carro.

- Pode ser que ainda demore. Com este tempo, não é provável que ele saia de carro.

- Que diferença faz? - perguntou Craig com impaciência. Sabia que estava a ser petulante, mas não lhe interessava. - Vou ter de confessar.

- Era melhor não estares por perto quando descobrirem.

- Não estou a ver... - Fez uma pausa.

Estava a ver. Se confessasse imediatamente, o Natal ficaria estragado. Mamma Marta teria dito: “Vai haver um bordello”, que era a palavra que ela utilizava para discussão. Caso não dissesse nada e confessasse mais tarde, talvez não houvesse tanta confusão. De qualquer forma, a perspectiva de adiar a descoberta por alguns dias era tentadora.

- Vou ter de o meter na garagem - disse, pensando em voz alta.

- Estaciona-o com o lado amolgado encostado à parede - sugeriu Sophie. - Assim, quem passar por aqui não dá por nada.

A ideia de Sophie estava a começar a fazer sentido para Craig. Havia mais dois carros na garagem: um jipe Toyota Land Cruiser Amazon enorme, com tracção às quatro rodas, que o avô costumava guiar quando o tempo estava como naquele dia, e o velho Ford Mondeo de Luke, que ele e Lori utilizavam para se deslocar para a sua casa, a pouco mais de um quilómetro dali. Luke ia de certeza buscar o carro à garagem nessa noite quando fosse para casa. Se o tempo piorasse muito, podia pedir o Land Cruiser emprestado e deixar ali o Ford. Em qualquer dos casos, teria de entrar na garagem. Mas, se o Ferrari estivesse encostado à parede, seria impossível ver a amolgadela.

O motor ainda estava a trabalhar. Craig sentou-se ao volante. Meteu a primeira e avançou muito devagar. Sophie correu para a garagem e ficou sob a luz dos faróis. Quando o carro entrou na garagem, foi fazendo sinais com as mãos para indicar a Craig até onde podia aproximar-se da parede.

À primeira tentativa, ficou a meio metro da parede. Não podia ser. Tinha de tentar outra vez. Olhou nervosamente pelo espelho retrovisor, mas não viu ninguém por perto. Sentiu-se grato por aquele frio que mantinha toda a gente dentro de casa.

À terceira tentativa conseguiu pôr o carro a uns dez centímetros da parede. Saiu e foi ver. Era impossível ver a amolgadela fosse de que lado fosse.

Fechou a porta e depois ele e Sophie encaminharam-se para a cozinha. Craig sentia-se desanimado e culpado, mas Sophie estava diver-tidíssima.

- Foi um espectáculo! - admitiu.

Craig percebeu que tinha finalmente conseguido impressioná-la.

 

                   19:00

Kit montou o computador no quarto de arrumações, um pequeno espaço a que só havia acesso através do seu quarto. Ligou o computador, um scanner e um leitor de smart carás que tinha comprado por duzentas e setenta libras no eBay.

Aquele quarto fora sempre a sua toca. Quando era pequeno, a casa só tinha três quartos: o da mamã e do papá, o maior de todos, o de Olga e Miranda, o segundo, cabendo a Kit um berço naquele espaço contíguo ao quarto das irmãs. Depois de ter sido construída a extensão da casa, e de Olga ter ido para a universidade, Kit tinha ficado com o quarto e também com aquele espaço, mas o quarto das arrumações fora sempre o seu antro.

Ainda estava mobilado como a sala de estudo de um menino da escola, com uma secretária barata, uma estante, uma pequena televisão e um sofá-cama, que dava para uma pessoa dormir e tinha sido muitas vezes utilizado pelos amigos da escola que ficavam lá em casa. Sentado à secretária, pensou melancolicamente nas entediantes horas que ali passara a fazer trabalhos de casa, a estudar Geografia, Biologia, reis medievais e verbos irregulares, Avé César! Tinha aprendido tanta coisa e esquecido tudo.

Pegou no cartão roubado ao pai e passou-o no leitor. A parte de cima saía da ranhura, mostrando claramente as palavras impressas “Oxenford Medical”. Esperava que ninguém entrasse no quarto. Estavam todos na cozinha. Lori estava a fazer osso bueco segundo a famosa receita de Mamma Marta. Kit sentia o cheiro a orégãos. O papá tinha aberto uma garrafa de champanhe. Já deviam ter chegado à fase em que se punham a contar histórias que começavam sempre por “Lembram-se de quando...?”

O chip do cartão continha a informação sobre as impressões digitais do pai. Não era uma imagem simples, pois isso seria demasiado fácil de falsificar - uma fotografia do dedo podia enganar qualquer scanner normal. Kit tinha feito um instrumento que media vinte e cinco pontos da impressão digital, utilizando diferenças eléctricas mínimas entre as partes côncavas e as convexas. Tinha feito também um programa que armazenava todos esses dados em código. No seu apartamento tinha vários protótipos do scanner das impressões digitais e como não podia deixar de ser, uma cópia do programa por ele feito.

A seguir deu instruções ao computador que lesse o smart cará. O único perigo era que alguém na Oxenford Medical - porventura Toni Gallo - tivesse modificado o software, o que faria com que o programa de Kit deixasse de funcionar; podia, por exemplo, pedir um código de acesso antes de ler o cartão. Era pouco provável que alguém se tivesse dado a esse trabalho e gastado dinheiro para precaver uma possibilidade que parecia inimaginável - embora fosse concebível. Não tinha falado a Nigel daquele potencial entrave.

Esperou alguns segundos, ansioso, a olhar para o monitor que, por fim, tremeluziu e mostrou uma página de códigos: os dados da impressão digital de Stanley. Kit suspirou de alívio e salvou o ficheiro.

A sua sobrinha Caroline entrou no quarto, trazendo uma ratazana.

Estava vestida com roupas já não adequadas à sua idade, um vestido às flores e umas meias brancas. A ratazana tinha o pêlo branco e os olhos cor-de-rosa. Caroline sentou-se no sofá a fazer festas à ratazana.

Kit reprimiu uma blasfémia. Não podia dizer-lhe que estava a fazer uma coisa secreta e preferia estar sozinho. Mas também não podia continuar enquanto ela ali estivesse.

Aquela rapariga sempre fora um estorvo. Desde pequenina que adorava o tio Kit. Quando era novo, rapidamente se fartara daquela veneração e de a ver sempre atrás de si. Porém, era difícil uma pessoa ver-se livre dela. Tentou ser simpático.

- Como é que está a ratazana? - perguntou.

- Chama-se Leonard - respondeu Caroline, num tom de reprovação.

- Leonard? Onde é que o compraste?

- Na Paradise Pets, em Schachiehall Street. - Soltou a ratazana que correu pelo braço dela e foi empoleirar-se no ombro. ; ; ,

Kit achou que a rapariga estava louca por andar assim com uma ratazana como se fosse um bebé. Caroline era parecida com a mãe, Olga, com uns longos cabelos negros e umas sobrancelhas também grossas e escuras, mas, ao contrário do ar duro e seco de Olga, Caroline parecia mole como uma papa. Como só tinha dezassete anos, podia ser que aquilo lhe passasse.

Kit esperava que ela estivesse demasiado concentrada em si própria para reparar no cartão metido no leitor com as palavras “Oxenford Medical” à mostra. Até ela veria que não era normal ele ter um cartão de acesso ao Kremlin nove meses depois de ter sido despedido.

- O que é que estás a fazer? - perguntou-lhe.

- Estou a trabalhar - respondeu Kit. - Tenho de acabar isto hoje.

- Tinha vontade de tirar o cartão do leitor, mas tinha medo de que isso chamasse a atenção dela.

- Eu não te incomodo. Podes continuar.

- Não está a acontecer nada lá em baixo?

- A mamã e a tia Miranda estão a pôr os presentes na sala de estar e, por isso, mandaram-me embora.

- Ah! - Voltou-se para o computador e mudou o software para o modo “Só leitura”. O seu próximo passo seria fazer o scanning das suas impressões digitais, mas não podia deixar que ela visse. Talvez não percebesse o que aquilo significava, mas podia falar disso a alguém que percebesse. Fingiu estar concentrado no monitor, dando volta à cabeça à procura de uma maneira de se ver livre dela. Passado um minuto, teve um momento de inspiração. Fingiu espirrar.

- Santinho - disse Caroline.

- Obrigado. - Tornou a espirrar. - Sabes, acho que é o pobre do Leonard que está a fazer-me espirrar.

- Porquê? - perguntou ela, indignada.

- Sou um bocado alérgico, e este quarto é muito pequeno.

Caroline levantou-se.

- Não queremos pôr as pessoas a espirrar, pois não, Lennie? - E saiu.

Kit fechou a porta, depois sentou-se e pôs o indicador direito sobre o vidro do scanner. O programa leu a sua impressão digital e codificou os dados. Kit guardou o ficheiro.

Por fim, copiou os dados da sua impressão digital para o smart card, sobrepondo-os aos do pai. Nenhuma outra pessoa poderia fazer aquilo, a menos que tivesse uma cópia do software de Kit e um smart card com o código correcto de acesso ao local. Mesmo que estivesse a recriar todo o sistema, Kit não se daria ao trabalho de fazer com que os cartões não fossem regraváveis. Contudo, Toni Gallo poderia tê-lo feito. Olhou ansiosamente para o ecrã, em parte à espera de que aparecesse uma mensagem a dizer.

 

         “NÃO TEM ACESSO”

 

Porém, essa mensagem não apareceu. Desta vez, Toni não tinha sido mais esperta do que ele. Tornou a ler os dados do chip, para se certificar de que o procedimento tinha sido concluído com êxito. E assim acontecera de facto: o cartão tinha agora os dados das impressões digitais de Kit e não de Stanley.

- Boa! - disse em voz alta, num tom triunfante.

Tirou o cartão da máquina e guardou-o no bolso. Dar-lhe-ia acesso ao BSN4. Quando acenasse o cartão perante o leitor e encostasse o dedo ao ecrã digital, o computador leria os dados do cartão e compará-los-ia com a impressão digital. Ao verificar que coincidiam, a porta abrir-se-ia.

Quando voltasse do laboratório, faria o processo contrário, apagando os dados das suas impressões digitais do cartão e tornando a instalar os de Stanley. No dia seguinte, guardaria calmamente o cartão na carteira do pai. O computador do Kremlin registaria que Stanley Oxenford tinha entrado no BSN4 às primeiras horas do dia vinte e cinco de Dezembro. Stanley protestaria, garantindo que a essa hora estava em casa, na cama, e Toni Gallo garantiria à Polícia que ninguém poderia ter utilizado o cartão de Stanley por causa da verificação das impressões digitais.

- Baril!

Estava satisfeito por imaginar até que ponto iriam ficar intrigados.

Alguns sistemas biométricos de segurança comparavam as impressões digitais com os dados armazenados num computador central. Se no Kremlin fosse utilizada essa configuração, Kit teria precisado de aceder à base de dados. Mas os empregados tinham uma aversão irracional à ideia de os seus dados pessoais estarem guardados nos computadores das empresas. Sobretudo os cientistas, muitos deles leitores do Guardian, eram extremamente ciosos dos seus direitos civis. Kit tinha preferido guardar os registos das impressões digitais no smart card, e não na base de dados central, para garantir que o novo sistema de segurança seria mais bem aceite pelo pessoal. Não previra que um dia seria ele próprio a tentar furar o esquema que tinha concebido.

Sentia-se satisfeito. A Fase Um estava concluída. Tinha um cartão de acesso ao BSN4. No entanto, antes de poder utilizá-lo, tinha de entrar no Kremlin.

Tirou o telefone do bolso. Marcou o número do telemóvel de Hamish McKinnon, um dos guardas de serviço no Kremlin naquela noite. Hamish era o vendedor de droga da empresa, fornecendo marijuana aos cientistas mais novos e ecstasy às secretárias para os fins-de-semana. Não vendia heroína nem crack, pois sabia que qualquer pessoa com uma dependência mais grave acabaria por delatá-lo, mais cedo ou mais tarde. Kit tinha pedido a Hamish que fosse o seu homem de mão lá dentro naquela noite, confiante de que Hamish não daria com a língua nos dentes, tendo ele próprio os seus segredos a esconder.

- Sou eu - disse Kit, quando Hamish atendeu. - Podes falar?

- Feliz Natal também para ti, Ian, meu grande sacana - disse Hamish alegremente. - Espera um bocadinho. Vou até lá fora... Assim já ouço melhor.

- Está tudo bem?

A voz de Hamish adquiriu um tom mais grave.

- Está, mas ela reforçou a segurança. Pôs dois guardas em cada posto. Estou com o Willie Crawford.

- Onde é que estás?

- Na guarita do portão.

- Perfeito. Está tudo tranquilo?

- Como num cemitério.

- Quantos guardas ao todo?

- Seis. Dois aqui, dois na recepção e dois na sala de controlo.

- Está bem. Nós tratamos disso. Avisa-me, se acontecer alguma coisa de anormal.

- Está bem.

Kit desligou e marcou um número que lhe dava acesso ao computador da central telefónica do Kremlin. O número era utilizado pela Hibernian Telecom, a empresa que tinha instalado o telefone, para detecção de avarias. Kit tinha trabalhado em colaboração com a Hibernian, porque os alarmes que instalara funcionavam através das linhas telefónicas. Sabia o número e o código de acesso. Teve, mais uma vez, um momento de tensão, receando que o número ou o código pudessem ter sido alterados nos nove meses que haviam decorrido desde que deixara a empresa. Mas não tinham.

O seu telemóvel estava ligado ao computador portátil através de uma ligação sem fios que funcionava em distâncias até mais ou menos quinze metros - mesmo através de paredes, o que poderia vir a ser útil mais tarde. Utilizou, então, o computador para aceder ao computador da central telefónica do Kremlin. O sistema tinha um detector de interferências, mas não registava qualquer alarme nos casos em que eram a linha telefónica e o código da empresa a ser utilizados.

Primeiro desligou todos os telefones do Kremlin à excepção do da recepção.

A seguir desviou todas as chamadas de e para o Kremlin para o seu telemóvel. Já tinha programado o seu computador de forma a reconhecer os números com mais probabilidades de aparecerem, como o de Tom Gallo. Iria ele próprio responder às chamadas ou utilizar gravações ou, ainda, transferir as chamadas e ficar a ouvir as conversas.

Por último, fez todos os telefones do edifício tocarem durante cinco segundos para chamar a atenção dos seguranças.

Depois desligou e sentou-se na beira da cadeira, à espera.

Estava mais ou menos certo do que iria acontecer a seguir. Os guardas tinham uma lista de pessoas a contactar em diferentes casos de emergência. A primeira coisa que fariam seria ligar para a companhia dos telefones.

Não teve de esperar muito tempo. O telemóvel tocou. Deixou-o tocar e olhou para o monitor do computador. Passado um momento, apareceu a seguinte mensagem no ecrã: “Kremlin chama Toni”.

Não era daquilo que estava à espera. Deviam ter ligado primeiro para a Hibernian. Porém, estava preparado. Activou rapidamente uma mensagem gravada. O guarda que estava a tentar contactar Toni Gallo ouviu uma voz de mulher a dizer que o telemóvel que estava a tentar contactar estava desligado ou fora de rede e a pedir-lhe que tentasse mais tarde. O guarda desligou.

O telefone de Kit tornou a tocar quase de imediato. Kit esperava que os guardas estivessem finalmente a ligar para a empresa dos telefones, mas tornou a ficar desapontado. No ecrã apareceu a mensagem: “Kremlin chama DRP”. Os guardas estavam a ligar para a Divisão Regional da Polícia de Inverburn. Kit ficou satisfeito por estarem a alertar a Polícia. Passou a chamada para o número correcto e ficou a ouvir a conversa.

- Daqui fala Steve Tremlett, supervisor da segurança da Oxenford Medical. Queria participar uma ocorrência estranha.

- O que se passa, Mr. Tremlett?

- Não é nenhuma emergência grave, mas temos um problema com os nossos telefones e não sei se não irá impedir os alarmes de funcionarem.

- Vou tomar nota da ocorrência. Consegue mandar arranjar os telefones ?

- Vou pedir que mandem uma equipa, mas na véspera de Natal sabe-se lá a que horas virão.

- Quer que mande aí um carro-patrulha?

- Não faria mal nenhum. Se não estiverem muito ocupados...

Kit gostaria que a Polícia fosse ao Kremlin. Tornaria o seu plano mais convincente.

- Vão estar ocupados mais logo, quando os pubs fecharem - disse o polícia. - Mas por agora está tudo sossegado.

- Está bem. Diga-lhes que eu lhes ofereço uma caneca de chá.

Desligaram. O telemóvel de Kit tocou pela terceira vez e no ecrã apareceu a mensagem: “Kremlin chama Hibernian”. Finalmente, pensou com alívio. Era a chamada que esperava. Carregou num botão e disse ao telefone:

- Hibernian Telecom, em que posso ajudar?

- Estou a ligar da Oxenford Medical - disse Steve. - Temos um problema com o nosso sistema telefónico.

Kit exagerou o seu sotaque escocês para disfarçar a voz.

- É em Greenmantle Road, Inverburn?

- É, sim.

- Qual é o problema?

- Nenhum telefone funciona a não ser este. Claro que não está ninguém a trabalhar, mas o problema é que o sistema de alarme utiliza as linhas telefónicas e precisamos de garantir que está tudo operacional.

Nesse momento, o pai de Kit entrou no quarto.

Kit ficou petrificado, paralisado pelo medo e pelo terror, como se tivesse voltado aos seus tempos de criança. Stanley olhou para o computador e para o telemóvel e ergueu as sobrancelhas. Kit controlou-se. Já não era nenhum miúdo com medo de um ralhete. Tentando fazer uma voz calma, disse ao telefone:

- Eu ligo-lhe daqui a dois minutos. - Carregou nalgumas teclas do teclado do computador, e o ecrã ficou às escuras.

- Estás a trabalhar? - perguntou o pai.

- Tenho de acabar isto.

- Na véspera de Natal?

- Prometi que entregava este programa até ao dia vinte e quatro de Dezembro.

- A esta hora o teu cliente já foi para casa, como todas as pessoas de bom senso.

- Mas o computador vai mostrar que mandei o e-mail com o programa antes da meia-noite da véspera de Natal e, assim, não vai poder dizer que me atrasei.

Stanley sorriu e acenou com a cabeça.

- Fico contente por estares a ser tão consciencioso.

Ficou em silêncio durante alguns segundos, sendo óbvio que tinha mais qualquer coisa para dizer. Como era típico dos cientistas, não se importava de fazer longas pausas nas conversas. O importante era ser preciso.

Kit ficou à espera, tentando esconder a sua impaciência exasperante. Depois o telemóvel tocou.

- Merda! - exclamou.

Pediu desculpa ao pai. Olhou para o ecrã. Não era uma chamada desviada do Kremlin, mas alguém que estava a ligar directamente para ele. Era Hamish McKinnon, o segurança. Tinha de atender. Encostou bem o telefone ao ouvido, para que o pai não pudesse ouvir o que o seu interlocutor dissesse.

- Está lá?

Hamish disse muito excitado:

- Os telefones deixaram todos de funcionar!

- Não faz mal. Já era de esperar. Faz parte do programa.

- Tinhas dito para te avisar, se acontecesse alguma coisa...

- Sim, sim, e fez muito bem em telefonar, mas agora tenho de desligar. Muito obrigado.

Desligou.

O pai decidiu-se finalmente a falar.

- A nossa briga já pertence ao passado?

Kit não gostava daquele tipo de conversas. Dava a entender que ambas as partes eram igualmente culpadas. Todavia, queria desesperadamente voltar a telefonar e, por isso, disse:

- Sim, acho que sim.

- Sei que achas que fui injusto para ti - disse o pai, lendo-lhe a mente. - Não percebo a tua lógica, mas aceito que estejas convencido das tuas razões. E eu também sinto que fui vítima de injustiça. Contudo temos de tentar esquecer isso e voltar a ser amigos.

- É o que diz a Miranda.

- Não tenho a certeza de que já tenhas atirado isso para trás das costas. Tenho a sensação de que ainda tens ressentimentos.

Kit tentou impedir que a expressão do seu rosto mudasse, para não revelar a culpa que sentia.

- Estou a fazer o melhor que posso - disse. - Mas não é fácil.

Stanley pareceu satisfeito.

- Bem, não posso pedir-te mais do que isso. - Pousou a mão no ombro de Kit, inclinou-se e deu-lhe um beijo no alto da cabeça. - Vim dizer-te que o jantar está quase pronto.

- Estou quase a acabar. Desço daqui a cinco minutos.

- Óptimo. - Stanley saiu.

Kit afundou-se na cadeira. Estava a tremer com um misto de vergonha e alívio. O seu pai era astuto e não se deixava enganar - mas Kit tinha sobrevivido ao interrogatório. No entanto, enquanto durara, fora aterrador.

Quando as mãos pararam de tremer, tornou a ligar para o Kremlin.

Atenderam imediatamente.

- Oxenford Medical - disse a voz de Steve Tremlett.

- Daqui fala da Hibernian Telecom. - Kit não se esqueceu de alterar a voz. Não conhecia bem TremJett e já tinham passado nove meses desde que saíra da Oxenford Medical. Por isso, era pouco provável que Steve reconhecesse a voz dele mas, mesmo assim, preferiu não arriscar. - Não consigo aceder ao vosso computador central.

- Não é de admirar. Essa linha também não deve estar a funcionar. Vão ter de mandar cá alguém.

Era o que Kit queria, mas teve o cuidado de não se mostrar ansioso.

- Vai ser difícil arranjar alguém para ir aí na véspera de Natal.

- Não me venha com essa. - A voz de Steve deixou transparecer alguma raiva. - Garantiram-me que prestariam assistência sempre num espaço de quatro horas, todos os dias do ano. Pagamos para prestarem esse serviço. Neste momento são dez para as oito, e vou registar esta chamada.

- Está bem. Não se enerve. Vou mandar alguém o mais depressa possível.

- Daqui a quanto tempo?

- Vou tentar que estejam aí antes da meia-noite.

- Obrigado. Fico à espera. - Steve desligou.

Kit pousou o telemóvel. Estava a suar. Limpou a cara à manga da camisa. Até agora tinha corrido tudo na perfeição.


20:30

 

Stanley soltou a bomba durante o jantar.

Miranda mostrava-se alegre. O osso bucco estava apetitoso, e o pai tinha aberto duas garrafas de Brunello di Montelpulciano. Kit denotava uma certa agitação, correndo escada acima sempre que o seu telemóvel tocava, mas todos os outros estavam bastante descontraídos. Os quatro miúdos comeram depressa e depois foram para o celeiro ver o DVD do filme Gritos 2, deixando os seis adultos à volta da mesa da casa de jantar: Miranda e Ned, Olga e Hugo, o papá à cabeceira da mesa, e o Kit do outro lado. Lori serviu o café, enquanto Luke metia a louça na máquina.

A certa altura, Stanley disse:

- O que é que achavam se eu voltasse a namorar?

Ficaram todos em silêncio. Até Lori reagiu: parou de servir o café e ficou muito direita, a olhar para ele como que em choque.

Miranda tinha desconfiado, mas, de qualquer forma, era perturbador ouvi-lo dizer aquilo.

- Estás a falar da Tom Gallo, não é? - perguntou.

Ele pareceu sobressaltar-se e disse:

- Não.

- Ora... - retorquiu Olga.

Miranda também não acreditava nele, mas não se atreveu a desmenti-lo.

- Não estou a falar de ninguém em particular. Só estou a discutir um princípio genérico - prosseguiu Stanley. - A Mamma Marta morreu há um ano e meio, Deus a tenha em descanso. Durante quase quatro décadas foi a única mulher da minha vida. A verdade, porém, é que tenho sessenta anos e provavelmente ainda tenho mais vinte ou trinta anos de vida. Posso não querer passar esse tempo sozinho.

Lori lançou-lhe um olhar ofendido, dando a entender que ele não estava sozinho; tinha-a a ela e a Luke. Olga disse num tom irritado:

- Então, para que está a consultar-nos? Não precisa da nossa autorização para dormir com a sua secretária ou com quem quiser.

- Não estou a pedir autorização. Só quero saber o que irão sentir se isso acontecer. E já agora não vai ser a minha secretária. A Dorothy está muito bem casada.

Miranda interveio, sobretudo para impedir que Olga se saísse com uma tirada mais dura:

- Acho que ia ser difícil para nós ver-te com outra mulher nesta casa, papá. No entanto, queremos que sejas feliz, e tenho a certeza de que faríamos todos o possível para recebermos bem uma pessoa que tu amasses.

Stanley lançou-lhe um olhar circunspecto.

- Não é propriamente um apoio entusiástico, mas obrigado por tentares ser positiva.

- De mim não vai ter a mesma reacção - disse Olga. - Por amor de Deus, o que quer que eu lhe diga? Está a pensar casar com essa mulher? Ter mais filhos?

- Não estou a pensar em casar com ninguém - contrapôs Stanley, de mau humor. Olga estava a irritá-lo por se recusar a discutir nos termos que ele queria. A Mamma sempre o irritara por causa disso. - Mas também não estou a excluir nenhuma hipótese - acrescentou.

- É um escândalo! - gritou Olga. - Em criança quase nunca o via. Estava sempre no laboratório. Eu e a Mamma estávamos em casa com a Mandy, ainda bebé, desde as sete e meia da manhã até às nove da noite. Parecíamos uma família monoparental, e tudo por causa da sua carreira, para poder inventar antibióticos de espectro estreito e um remédio para as úlceras e outro para o colesterol, e ficar famoso e rico. Pois bem, agora quero ter a recompensa desse sacrifício.

- Tiveste uma educação muito cara - contrapôs Stanley.

- Só isso não chega. Quero que os meus filhos herdem o dinheiro que o papá ganhou. Não quero que tenham de o dividir com uma ninhada de miúdos mal-educados nascidos de uma puta qualquer que soube aproveitar-se de um viúvo.

Miranda soltou um grito de protesto. Hugo, embaraçado, aconselhou:

- Não fujas à questão, Olga, querida, diz o que estás a pensar.

Com uma expressão carregada, Stanley disse:

- Não estou a planear andar com nenhuma puta.

Olga percebeu que tinha ido longe de mais.

- Não queria dizer essa última parte - confessou.

Para ela, aquilo equivalia a pedir desculpa

Kit disse num tom irreverente:

- Não vai fazer grande diferença. A Mamma era alta, atlética, não era intelectual e era italiana. A Toni Gallo é alta, atlética, não é intelectual e é espanhola. Só não sei se saberá cozinhar.

- Não sejas estúpido - disse-lhe Olga. - A diferença é que nos últimos quarenta anos a Toni não fez parte desta família, não é uma de nós. É uma estranha.

Kit respondeu com um ar de superioridade:

- Não me chames estúpido. Pelo menos eu vejo o que está debaixo do meu nariz.

O coração de Miranda deu um salto. Do que estaria ele a falar? Olga teve a mesma dúvida.

- O que é que eu não estou a ver debaixo do meu nariz?

Miranda olhou sub-repticiamente para Ned. Tinha medo que mais tarde ele perguntasse o que tinha querido Kit dizer. Era costume ficar a pensar naquele tipo de coisas. Kit recuou.

- Ora, parem de me fazer perguntas. São cá uns chatos!

- Não estás preocupado com o teu futuro financeiro? - perguntou Olga a Kit. - A tua herança está tão ameaçada como a minha. Tens assim tanto dinheiro que não te importas?

Kit riu-se, mas sem humor.

- Pois, pois...

- Não achas que estás a ser um bocado mercenária? - perguntou Miranda a Olga.

- Só estou a responder ao que o papá perguntou.

- Pensei que pudessem sentir-se mal por verem outra mulher ocupar o lugar da vossa mãe - disse Stanley. - Nunca pensei que a vossa grande preocupação fosse o meu testamento.

Miranda sentiu na pele o sofrimento do pai, mas estava mais preocupada com o que Kit pudesse dizer. Em criança, nunca tinha muito jeito para guardar segredos. Ela e Olga eram sempre obrigadas a esconder tudo dele. Se lhe fizessem alguma confidência, ele não demorava cinco minutos a contar tudo à Mamma. E agora Kit sabia o segredo mais recôndito de Miranda. Já não era criança, mas a verdade é que nunca tinha crescido. E isso era perigoso. O seu coração estava a bater descompassadamente. Talvez conseguisse controlá-lo, se participasse na conversa. Dirigiu-se a Olga:

- O importante é mantermos a família unida. Seja qual for a decisão do papá, não podemos deixar que isso nos afaste.

- Não me venhas com sermões sobre a família - disse Olga, muito zangada. - Fala com o teu irmão.

- Não me metam ao barulho! - gritou Kit.

- Não quero voltar a ouvir falar desse assunto - interrompeu Stanley.

Porém Olga insistiu:

- Foi ele que esteve quase a dar cabo desta família.

- Vai à merda, Olga! - exclamou Kit.

- Calma - disse Stanley com firmeza. - Podemos ter uma discussão acalorada sem ser preciso descer aos insultos e à obscenidade.

- Ora, papá - contrapôs Olga. Estava furiosa, porque lhe tinham chamado mercenária e precisava de contra-atacar. - O que é que pode ser mais ameaçador para a família do que um de nós andar a roubar os outros?

Kit estava vermelho de vergonha e raiva.

- Já te digo - anunciou.

Miranda sabia o que vinha aí. Aterrorizada, esticou o braço para Kit e pôs a mão ao alto a fazer-lhe sinal para que parasse.

- Tem calma, Kit, por favor - disse muito agitada.

Mas ele não estava a ouvi-la.

- Vou dizer-te o que é que pode ser mais ameaçador para a família.

Miranda gritou:

- Cala-te!

Stanley percebeu que havia qualquer coisa que ele desconhecia e franziu a testa, algo perplexo.

- De que estão vocês a falar?

- Estou a falar de alguém que...

Miranda levantou-se.

- Não!

- De alguém que anda a dormir...

Miranda pegou num copo de água e atirou-a à cara de Kit. Houve um silêncio súbito.

Kit limpou a cara com o guardanapo. Com toda a gente a olhar para ele em silêncio e choque, continuou:

- ... que anda a dormir com o marido da irmã.

Olga estava confusa.

- Isso não faz sentido. Nunca dormi com o Jasper... nem com o Ned.

- Não estava a falar de ti - disse Kit.

Olga olhou para Miranda, que desviou a cara.

Lori, ainda parada com a cafeteira na mão, susteve a respiração, chocada, tendo repentinamente percebido.

- Valha-me Deus! Nunca ia imaginar uma coisa dessas! - exclamou Stanley.

Miranda olhou para Ned. Estava horrorizado.

- É verdade? - perguntou.

Miranda não respondeu.

Olga voltou-se para Hugo.

- Tu e a minha irmã?

Hugo tentou fazer o seu sorriso de menino maroto. Olga levantou o braço e deu-lhe uma bofetada. Pelo som, parecia mais um soco do que uma bofetada.

- Ai! - gritou ele e balançou para trás na cadeira.

- Meu malandro, sacana, mentiroso... - Estava à procura de palavras. - Verme. Porco. Cabrão. - Depois voltou-se para Miranda. - E tu!

Miranda não conseguia olhar para ela. Estava de olhos postos na mesa. À sua frente estava uma pequena chávena de café, de porcelana fina, com uma risca azul. Era a preferida da Mamma.

- Como é que tiveste coragem? - perguntou-lhe Olga. - Como?

Um dia Miranda tentaria explicar; mas naquele momento tudo o que dissesse iria parecer uma desculpa. Por isso, limitou-se a abanar a cabeça.

Olga levantou-se e saiu da sala.

Hugo estava acabrunhado.

- É melhor eu... - balbuciou e saiu atrás dela.

De repente, Stanley apercebeu-se de que Lori estava ali a assistir a tudo. Tarde de mais, disse-lhe:

- É melhor ires ajudar o Luke na cozinha, Lori.

Ela deu um salto, como se tivesse acordado.

- Sim, senhor Professor.

Stanley olhou para Kit.

- Foste brutal. - Tinha a voz a tremer de raiva.

- Pois, está bem. Agora a culpa é minha - disse Kit com petulância. - Não fui eu que dormi com o Hugo, pois não? - Atirou com o guardanapo e saiu.

Ned estava de rastos.

- Com licença - disse, e saiu também.

Só Miranda e o pai ficaram na casa de jantar. Stanley levantou-se e foi para junto dela. Pôs-lhe a mão no ombro.

- Vais ver que vão acabar por se acalmar todos - disse. - Foi grave, mas vai passar.

Miranda voltou-se para ele e encostou a cara ao tecido macio do colete.

- Desculpa, papá - disse, e começou a chorar.

 

                   21:30

O tempo começava a ficar pior. A viagem de Toni até ao lar tinha sido demorada, mas a viagem de regresso ainda estava a ser mais lenta. Havia uma fina camada de neve na estrada, endurecida pelos pneus dos carros e demasiado sólida para começar a transformar-se em lama. Os condutores nervosos seguiam a passo, retardando todos os outros. O Porsche Boxster vermelho de Toni era o carro perfeito para ultrapassar os mais lentos, mas o piso estava muito escorregadio, e Toni não podia fazer nada para encurtar a viagem.

A mãe ia sentada a seu lado, com um ar feliz, com um casaco de malha verde e um chapéu de feltro. Não estava nada zangada com Bella, o que deixara Toni desapontada e, ao mesmo tempo, com vergonha por sentir isso. Lá no fundo, queria que a mãe estivesse furiosa com Bella, tal como ela ficara. Seria uma forma de se vingar. Mas, aparentemente, a mãe pensava que tinha sido Toni a culpada de ter estado tanto tempo à espera. Toni dissera muita irritada:

- Não percebes que era a Bella que devia ter-te vindo buscar há horas?

- Percebo, querida, mas a tua irmã tem de tratar da família dela.

- E eu tenho um emprego de responsabilidade.

- Bem sei, é para substituir o facto de não teres filhos.

- Por isso, não faz mal a Bella tê-la deixado pendurada, mas comigo já faz mal.

- Pois, querida.

Toni tentou seguir o exemplo da mãe e ser magnânima. Contudo, não conseguia deixar de pensar nos seus amigos no spa, sentados no jacuzzi, ou a contarem piadas, ou a beberem café junto à lareira. Charles e Damien iriam ficar cada vez mais hilariantemente efeminados à medida que a noite fosse avançando e eles se fossem descontraindo. Michael iria contar histórias sobre a sua mãe irlandesa, um verdadeiro vulcão em Liverpool, onde vivia. Bonnie iria recordar os tempos da faculdade, as dificuldades em que ela e Toni se tinham visto, sendo as duas únicas alunas num curso de Engenharia com trezentos estudantes.

De certeza que estavam todos a divertir-se imenso, enquanto Toni ia a conduzir por uma estrada coberta de neve e com a mãe ao lado.

Disse para si própria que tinha de parar de ser ridícula. “Sou adulta”, pensou, “e os adultos têm responsabilidades. Além disso, a mãe pode já não viver muito mais anos e, por isso, devo aproveitar para estar ao pé dela enquanto posso.”

Constatou que lhe era mais difícil ter uma atitude positiva, quando pensava em Stanley. Tinha-se sentido tão próxima dele naquela manhã, e agora a distância entre eles parecia maior do que o Grand Canyon. Estava constantemente a pensar se não teria sido demasiado insistente. Tê-lo-ia obrigado a escolher entre a família e ela? Se tivesse sido mais cautelosa, talvez ele não se tivesse sentido obrigado a tomar uma decisão. Mas não se podia dizer que se tivesse atirado a ele, e as mulheres tinham de encorajar um pouco os homens, pois, se assim não fosse, eles nunca diziam nada.

Não valia a pena estar com arrependimentos, disse para si própria. Tinha-o perdido e ponto final.

Viu à sua frente as luzes de uma estação de serviço.

- Precisas de ir à casa de banho, mãe? - perguntou.

- Preciso.

Toni abrandou e parou junto à bomba. Atestou o carro e depois levou a mãe lá dentro. A mãe foi à casa de banho, enquanto Toni foi pagar. Quando voltou para o carro, o seu telemóvel tocou. Pensou que poderia ser do Kremlin e apressou-se a atender.

- Toni Gallo.

- Daqui fala Stanley Oxenford.

- Oh!

Ficou surpreendida. Não estava à espera daquilo.

- Se calhar, estou a ligar em má altura - disse ele educadamente.

- Não, não, não - garantiu Toni, deslizando no banco. - Pensei que fosse do Kremlin e fiquei preocupada, com medo que tivesse acontecido alguma coisa. - Fechou a porta do carro.

- Pelo que sei, está tudo bem. E o teu spa?

- Não estou no spa - confessou ela, contando-lhe o que acontecera.

- Que frustração! Deve ter sido terrível!

Toni sentia o coração a bater mais depressa, mas não via razão para isso.

- E por aí, está tudo bem?

Intrigava-a o motivo que o teria levado a telefonar. Ao mesmo tempo, olhou para o edifício mal iluminado da área de serviço. A mãe devia estar a aparecer.

- O jantar de família acabou muito mal. Não é novidade nenhuma - às vezes temos as nossas discussões.

- O que é que aconteceu?

- Talvez seja melhor não contar.

“Então, por que é que me telefonaste?”, pensou Toni. Era muito raro Stanley fazer um telefonema sem um objectivo. Estava sempre tão atento a tudo que Toni imaginava-o com uma lista à sua frente com os assuntos sobre os quais tinha de falar.

- Resumidamente, o Kit contou que a Miranda dormiu com o Hugo, o marido da irmã.

- Meu Deus!

Toni imaginou-os, um a um: Kit, bonito e malicioso; Miranda, gordinha e engraçada; Hugo, o conquistador; e a formidável Olga. Uma história de estalo, mas o mais surpreendente era Stanley estar a contá-la a Toni. Mais uma vez, estava a tratá-la como se fossem amigos íntimos. No entanto, desconfiou dessa ideia. Se alimentasse as suas esperanças, ele voltaria a destrui-las. Mesmo assim, não lhe apetecia pôr fim à conversa.

- Como é que isso te fez sentir? - perguntou.

- Bem, o Hugo sempre foi muito atiradiço. A Olga já deve conhecê-lo, ao fim de vinte anos de casamento. Sentiu-se humilhada e ficou como louca - aliás, neste preciso momento, estou a ouvi-la gritar - mas acho que vai acabar por lhe perdoar. Miranda explicou-me em que circunstâncias aquilo aconteceu. Não teve nenhum caso com o Hugo, apenas dormiu com ele uma vez, por estar muito deprimida com o fim do seu casamento; e, desde então, nunca mais deixou de sentir vergonha do que tinha feito. Acho que a Olga vai acabar por lhe perdoar também. Estou mais preocupado com o Kit. - A sua voz ficou triste. - Sempre quis que o meu filho fosse um miúdo corajoso e de princípios, e que se transformasse num adulto recto e respeitado por todos. Mas é fraco e velhaco.

Num momento de revelação, Toni apercebeu-se de que Stanley estava a falar com ela como teria falado com Marta. Depois de uma discussão daquelas, teriam certamente ido os dois para o quarto falar do comportamento dos filhos. Sentia a falta da mulher, e Toni estava a substitui-la. Mas aquele pensamento não a alegrava; pelo contrário: sentia-se ofendida. Ele não tinha o direito de a utilizar daquela forma. Sentia-se explorada. E tinha mesmo de ir ver se a mãe estava bem.

Estava prestes a dizer-lhe isso, quando ele acrescentou:

- Mas não quero estar a aborrecer-te com estas coisas. Telefonei por outro motivo.

“Já parecia mais o Stanley a falar”, pensou. E a mãe podia esperar mais alguns minutos.

- Depois do Natal, gostava que jantasses comigo uma noite. Pode ser? - perguntou Stanley.

“O que seria agora?”, pensou Toni.

- Claro que sim - respondeu.

O que significaria aquilo?

- Sabes como sou contra os homens que se atiram às mulheres que trabalham com eles. Deixam-nas numa situação muito difícil. Não podem deixar de pensar que, se recusarem, a sua carreira pode ser prejudicada.

- Eu não tenho esses problemas - disse Toni, num tom um pouco duro. Estaria ele a dizer que aquele jantar não tinha nada de romântico e, por isso, não tinha de se preocupar? Percebeu que estava a respirar com dificuldade e esforçou-se por manter um tom de voz normal. - Tenho todo o gosto em jantar contigo.

- Estive a pensar na conversa que tivemos hoje de manhã, na falésia.

“Também eu”, pensou Toni.

- Disse-te uma coisa, mas estou muito arrependido de a ter deixado escapar - continuou Stanley.

- O quê? - Toni quase não conseguia respirar. - O que foi?

- Que nunca teria outra família.

- Não era isso que querias dizer?

- Disse-o porque estava a ficar... com medo. É estranho, não é? Com esta idade, e com medo.

- Com medo de quê?

Houve uma longa pausa e depois ele disse:

- Dos meus sentimentos.

Toni ia deixando cair o telefone. Sentiu-se corar do pescoço à ponta dos cabelos.

- Sentimentos - repetiu. - Se esta conversa estiver a deixar-te embaraçada, basta dizeres-me, e eu não torno a falar do assunto.

- Continua.

- Quando me disseste que o Osborne te tinha convidado para sair, percebi que não ias ficar sozinha para sempre, talvez nem por muito mais tempo. Se estiver a fazer figura de pateta, por favor, diz-me já, e acaba com o meu sofrimento.

- Não... - Toni engoliu em seco. Percebeu que estava a ser extraordinariamente difícil para ele. Há quarenta anos que não devia falar assim com uma mulher. Tinha de o ajudar. Tinha de lhe mostrar que não estava a ficar ofendida. - Não estás a ser nada pateta.

- Hoje de manhã, pensei que talvez sentisses alguma coisa de especial por mim, e foi isso que me deixou assustado. É verdade o que estou a dizer? Quem me dera poder estar a ver a tua cara.

- Estou muito feliz - disse Toni em voz baixa. - Muito.

- A sério?

- Sim.

- Quando é que posso estar contigo? Tenho mais coisas para te dizer.

- Estou com a minha mãe. Estamos numa área de serviço. Ela vem a sair da casa de banho neste momento. - Toni saiu do carro, ainda com o telefone encostado ao ouvido. - Falamos amanhã de manhã.

- Não desligues ainda. Tenho tanta coisa para te dizer.

Toni acenou para a mãe e gritou-lhe: “Aqui!” A mãe viu-a e dirigiu-se para ela. Toni abriu a porta do carro e ajudou-a a entrar, dizendo:

- Vou só acabar de falar.

- Onde estás? - perguntou Stanley.

Toni fechou a porta do lado da mãe.

- A uns quinze quilómetros de Inverburn, mas a andar terrivelmente devagar.

- Quero ver-te amanhã. Ambos temos obrigações familiares, mas também temos direito a algum tempo para nós.

- Havemos de arranjar uma maneira. - Abriu a porta do seu lado. - Agora tenho de desligar. A minha mãe está a ficar com frio.

- Adeus - disse Stanley. - Telefona-me sempre que te apetecer. A qualquer hora.

- Adeus. - Toni fechou o telefone e entrou para o carro.

- Que grande sorriso - disse a mãe. - Estás muito animada, quem era ao telefone? Alguém simpático?

- Sim - respondeu Toni. - Uma pessoa mesmo muito simpática.

 

                   22:30

Kit esperou no quarto, impaciente pelo momento em que todos se deitassem. Precisava de sair o mais depressa possível, mas se alguém o ouvisse sair, o plano iria por água abaixo e, por isso, teria mesmo de esperar.

Sentou-se junto à velha secretária do quarto das arrumações. O computador ainda estava ligado à corrente, para poupar a bateria: iria precisar dele mais logo. Guardara o telemóvel no bolso.

Tinha interceptado três chamadas de e para o Kremlin. Duas eram telefonemas pessoais inofensivos para os guardas, e fizera a ligação. A terceira era uma chamada do Kremlin para Steepfall. Kit pensou que Steve Tremlett, não conseguindo contactar Toni Gallo, devia ter querido informar Stanley do problema com os telefones. Accionou uma mensagem gravada a dizer que havia avaria na linha.

Enquanto esperava, foi escutando, impaciente, os sons da casa. Ouviu Olga e Hugo a discutirem no quarto ao lado do seu - Olga a disparar perguntas e afirmações como se fosse uma pistola, e Hugo sucessivamente abjecto, suplicante, persuasivo, irónico e outra vez abjecto. No andar de baixo, Luke e Lori continuaram a fazer barulho com as panelas e a loiça na cozinha por mais meia hora, e depois ouviu-se a porta da frente a bater, quando saíram para irem para a sua casa a menos de dois quilómetros de distância. Os miúdos estavam no celeiro, e Miranda e Ned deviam ter ido para a casa de hóspedes. Stanley fora o último a ir para a cama. Tinha ido para o escritório, fechara a porta e fizera uma chamada - Kit sabia quando alguém fazia uma chamada porque aparecia uma luz a dizer “ocupado” em todas as extensões da casa. Pouco depois Kit ouviu-o subir a escada e fechar a porta do quarto. Olga e Hugo foram ambos à casa de banho e depois ficaram em silêncio; ou se tinham reconciliado ou estavam exaustos. A cadela, Nellie, devia estar na cozinha, deitada ao lado do fogão, o sítio mais quente da casa.

Kit esperou um pouco mais, dando tempo a todos de adormecerem.

Sentia-se vingado pela discussão que a família tivera à mesa. O pecadilho de Miranda provara que não era ele o único pecador da família. Tinham-lhe levado a mal pelo facto de ter revelado um segredo, mas era sempre melhor pôr aquelas coisas em pratos limpos. Por que razão exageravam tanto as transgressões dele e escondiam discretamente as delas? Eles que se zangassem à vontade. Tinha gostado de ver Olga dar uma bofetada a Hugo. “A minha irmã mais velha tem cá uma direita!”, pensou divertido.

Não sabia se já teria coragem para sair. Estava preparado. Tinha tirado o anel de brasão que podia ser reconhecido, e trocado o relógio de pulso Armani por um discreto Swatch. Tinha vestido umas calças de ganga e uma camisola preta quente; levaria as botas na mão e só as calçaria lá em baixo.

Levantou-se mas, nesse momento, ouviu a porta das traseiras bater. Praguejou de frustração. Alguém tinha entrado - talvez um ou dois miúdos, para assaltarem o frigorífico. Esperou até ouvir outra vez a porta - seria sinal de que tinham saído. Mas, em vez disso, ouviu alguém a subir as escadas.

Pouco depois, ouviu a porta do seu quarto abrir-se. Os passos atravessaram o quarto, e Miranda apareceu na arrecadação. Trazia umas galochas e um Barbour por cima da camisa de dormir e, na mão, um lençol e um edredão. Sem dizer nada, dirigiu-se ao sofá de cambalhota e abriu-o. Kit estava fora de si.

- Por amor de Deus, o que é que queres?

- Vou dormir aqui - respondeu Miranda com toda a calma.

- Não podes - disse ele, em pânico.

- Não percebo porquê.

- Porque o teu quarto é no anexo.

- Tive uma discussão com o Ned, graças à revelação que fizeste ao jantar, meu merdoso.

- Não te quero aqui!

- Estou-me nas tintas para o que tu queres!

Kit tentou manter a calma. Viu com desânimo Miranda fazer a cama no sofá. Como iria ele sair do quarto com a irmã ali a ouvir tudo? Ainda por cima, estava irritada e podia ficar horas acordada. E, de manhã, ia de certeza levantar-se antes de ele voltar e dar pela falta dele. O seu álibi estava a cair por terra.

Tinha de sair imediatamente. Ia fingir que estava ainda mais irritado do que na realidade estava.

- Vai à merda! - exclamou. Desligou o computador e fechou a tampa. - Não vou ficar aqui contigo - anunciou ele, passando para o quarto.

- Onde vais?

Sem que ela o visse, pegou nas botas.

- Vou ver televisão para a sala.

- Não a ponhas alto - disse Miranda, atirando com a porta que separava as duas divisões.

Kit saiu.

Percorreu o patamar às escuras e desceu a escada, sempre em bicos de pés. As tábuas rangeram, mas a casa era antiga e ninguém estranhava aqueles barulhos. Pela pequena janela ao lado da porta entrava uma luz fraca que iluminava o cabide com os chapéus, o pilar das escadas e a pilha de listas telefónicas sobre a mesa do telefone. Nellie veio da cozinha e ficou ao pé da porta a abanar a cauda, esperando com o seu irreprimível optimismo canino que ele fosse levá-la a passear.

Kit sentou-se nas escadas e calçou as botas, sempre à escuta de alguma porta a abrir-se no andar de cima. Era um momento perigoso, e sentiu um arrepio de medo enquanto apertava as botas. Havia sempre pessoas a levantarem-se a meio da noite: Olga podia querer beber água, Caroline podia vir do celeiro à procura de um comprimido para as dores de cabeça, Stanley podia ter uma súbita inspiração científica e ir para o computador.

Apertou os atacadores e vestiu a parka preta. Estava pronto para sair. Se alguém o visse naquele momento, sairia na mesma. Nada o deteria. O problema seria a manhã seguinte. Sabendo que ele saíra, podiam adivinhar onde tinha ido, e para o plano dele funcionar era preciso que ninguém percebesse o que tinha acontecido.

Afastou Nellie e abriu a porta. A casa nunca ficava fechada à chave. Stanley achava que era pouco provável que aparecessem ladrões num lugar tão isolado e, de qualquer forma, a cadela era o melhor sistema de alarme.

Saiu. Estava muito frio e nevava intensamente. Empurrou o focinho de Nellie para dentro e fechou a porta com um ligeiro estalido.

As luzes à volta da casa ficavam acesas toda a noite, mas, mesmo assim, quase não conseguia ver a garagem. O chão estava coberto com uma camada de neve com vários centímetros de altura. Ficou com as meias e as bainhas das calças encharcadas num ápice. Quem lhe dera ter podido trazer as galochas.

O carro estava fora da garagem, com um manto de neve no tejadilho. Esperava sinceramente que pegasse. Entrou e pousou o computador no banco ao lado do seu para poder reagir rapidamente às chamadas de e para o Kremlin. Girou a chave na ignição. O carro engasgou-se mas, passados poucos segundos, o motor arrancou.

Esperava que ninguém o tivesse ouvido.

A neve era tanta que não o deixava ver. Foi obrigado a acender os faróis e a rezar para que ninguém estivesse a espreitar por uma janela.

Afastou-se. O carro ia a derrapar de forma alarmante sobre a camada de neve. Teve o cuidado de nunca virar o volante de repente. Foi em ponto morto até à rampa, desviou-se cuidadosamente do promontório, entrou no bosque e seguiu pelo caminho que ia dar à estrada principal.

Ali a neve não estava tão imaculada. Tinha marcas de pneus em ambas as direcções. Voltou para Norte, o lado oposto ao do Kremlin, e entrou na estrada. Dez minutos depois saiu para uma estrada lateral que contornava as montanhas. Ali não havia marcas de pneus, e abrandou ainda mais, lamentando o facto de não ter um jipe.

Por fim viu um letreiro que dizia “Escola de Voo de Inverburn”. Virou para uma entrada. Os portões estavam abertos. Os faróis do carro iluminaram um hangar e uma torre de controlo.

O lugar parecia deserto. Por momentos, Kit teve uma certa esperança de que os outros não aparecessem, e ele pudesse desistir de tudo. A ideia de poder pôr fim àquela tensão era tão tentadora que começou a sentir-se deprimido. “Controla-te”, pensou. “Esta noite vai ser o fim de todos os teus problemas.”

A porta do hangar estava parcialmente aberta. Kit entrou devagar. Lá dentro não havia nenhum avião - o campo só estava em actividade nos meses de Verão - mas viu imediatamente um Bentley Continental claro, que reconheceu como sendo o carro de Nigel Buchanan. Ao lado do carro estava uma carrinha com a inscrição “Hibernian Telecom”.

Os outros não estavam à vista, mas distinguiu uma luz ténue nas escadas. Pegando no computador, Kit subiu a escada para a torre de controlo.

Nigel estava sentado à secretária, com uma camisola de gola alta cor-de-rosa e um casaco de desporto. Parecia calmo e tinha o telemóvel encostado ao ouvido. Elton estava encostado à parede, com uma gabardina castanha com a gola levantada. Tinha um saco de lona grande aos pés. Daisy estava enterrada numa cadeira, com umas botas pesadas apoiadas no parapeito da janela. Trazia umas luvas de pelica clara, com um incongruente toque feminino.

Nigel estava a falar ao telefone, dizendo com o seu discreto sotaque londrino:

- Aqui está a nevar imenso, mas segundo as previsões a tempestade vai poupar-nos... Sim, vais poder aterrar amanhã de manhã, não há problema nenhum... Estaremos aqui muito antes das dez... Vou estar na torre de controlo. Assim que apareceres, falo logo contigo... Não vai haver problema nenhum desde que tragas o dinheiro, todo, em notas de cinquenta, como combinámos.

Kit sentiu-se excitado ao ouvir falar em dinheiro. Dentro de doze horas e alguns minutos teria trezentas mil libras nas mãos. Era verdade que teria de dar imediatamente a maior parte desse dinheiro a Daisy, mas ainda ficaria com cinquenta mil para si. Que espaço ocupariam cinquenta mil libras em notas de cinquenta? Não sabia se o dinheiro caberia nos bolsos. Devia ter trazido uma pasta...

- Obrigado - disse Nigel. - Adeus. - Voltou-se. - Boa, Kit. Mesmo à hora!

- Estavas a falar com quem? - perguntou Kit. - Com o comprador?

- Com o piloto. Vem de helicóptero.

Kit franziu a testa.

- O que dirá o plano de voo dele?

- Vai levantar voo em Aberdeen e aterrar em Londres. Ninguém vai saber que fez uma paragem não prevista na Escola de Voo de Inverburn.

- Óptimo.

- Ainda bem que concordas - disse Nigel com algum sarcasmo.

Kit estava constantemente a interrogá-lo sobre aspectos da sua responsabilidade, com receio que Nigel, apesar de ser muito experiente, não tivesse tantos conhecimentos ou não fosse tão inteligente como ele. Nigel respondia às perguntas dele de uma forma pretensamente divertida, pensando obviamente que Kit, sendo um amador, tinha a obrigação de confiar nele.

- Vamos preparar-nos, está bem? - disse Elton.

Tirou do saco quatro fatos-macacos com a inscrição “Hibernian Telecom” nas costas.

Kit disse a Daisy:

- As luvas não jogam lá muito bem com o fato-macaco.

- É pena - retorquiu Daisy.

Kit olhou fixamente para ela por uns instantes e depois baixou os olhos. Ela não era boa peça, e preferia que não estivesse ali. Não só tinha medo dela como a odiava, e estava decidido a pô-la fora de acção, não só para marcar a sua autoridade como para se vingar do que ela lhe tinha feito naquela manhã. Iam entrar em confronto mais cedo ou mais tarde, e ele temia que isso acontecesse, mas, ao mesmo tempo, desejava que acontecesse.

A seguir, Elton distribuiu cartões de identidade falsos com a indicação “Hibernian Telecom - Equipa de Manutenção”. O cartão de Kit tinha uma fotografia de um homem mais velho, sem qualquer semelhança com ele. O homem da fotografia tinha o cabelo preto a tapar as orelhas, um estilo que Kit não se lembrava de alguma vez ter sido moda, e ainda um enorme bigode à Zapata e uns óculos.

Elton tornou a meter a mão no saco e deu a Kit uma peruca preta, um bigode preto, uns óculos com uma armação grossa e lentes escuras. Deu-lhe também um espelho e um tubo de cola. Kit colou o bigode ao lábio superior e pôs a cabeleira. O seu cabelo era castanho-claro e curto. Ao olhar para o espelho, ficou satisfeito por ver que o disfarce mudava radicalmente o seu aspecto. Elton tinha feito um bom trabalho.

Kit confiava em Elton. O seu humor era a cobertura de uma eficiência implacável. Faria o que fosse preciso para levar o trabalho até ao fim, pensou Kit.

Naquela noite, Kit tencionava evitar qualquer dos guardas que tivessem trabalhado no Kremlin quando ele também lá trabalhara. No entanto, se tivesse de falar com algum deles, achava que não iria ser reconhecido. Tinha tirado as jóias com que habitualmente andava e trataria de disfarçar a voz.

Elton também tinha disfarces para Nigel, Daisy e para si próprio. Ninguém os conhecia no Kremlin e, por isso, não havia perigo de serem reconhecidos; no entanto, mais tarde, os guardas descreveriam os assaltantes à Polícia e os disfarces eram uma forma de garantir que essas descrições não tivessem qualquer semelhança com o seu aspecto real.

Kit viu que Nigel também tinha uma cabeleira. O cabelo de Nigel era louro e curto, mas a cabeleira era grisalha e comprida, dando àquele londrino elegante o ar de um velho Beatle. Também arranjara uns óculos com umas armações completamente fora de moda.

Daisy tinha posto uma longa cabeleira loura na sua cabeça rapada. As lentes de contacto coloridas transformaram os seus olhos castanhos em azul-claros. Estava ainda mais detestável do que era habitual. Por vezes, Kit dava consigo a pensar como seria a vida sexual dela. Tinha conhecido um homem que dizia que dormira com ela, mas a única coisa que ele dizia a esse propósito era “Ainda tenho as marcas”. Sob o olhar de Kit, tirou as argolas da sobrancelha, do nariz e do lábio inferior, ficando apenas com um ar menos estranho.

O disfarce de Elton era o mais subtil. Tinha apenas uns dentes postiços que lhe tornavam o maxilar saliente, mas que lhe davam um ar completamente diferente. O rapaz bonito tinha desaparecido, e no seu lugar estava um idiota.

Estavam prontos. Houve um momento de silêncio durante o qual olharam uns para os outros. Depois, Nigel disse:

- Vamos a isto!

Saíram da torre de controlo, descendo as escadas para o hangar. Elton sentou-se ao volante da carrinha. Daisy sentou-se ao lado dele. Nigel ocupou o terceiro lugar. Não havia mais nenhum lugar à frente. Kit teria de se sentar na parte de trás da carrinha, no chão, ao pé das ferramentas.

Enquanto estava a olhar para eles, sem saber o que fazer, Daisy chegou-se mais para Elton e, pousando-lhe uma mão no joelho, perguntou:

- Gostas de louras?

Elton olhou fixamente para a frente, sem expressão, e disse-lhe apenas:

- Sou casado.

Daisy chegou a mão mais para cima, em direcção à coxa.

- Aposto que gostas de uma branca, para variar, ou não?

- Sou casado com uma branca - respondeu ele agarrando-lhe no pulso e tirando-lhe a mão de cima da perna.

Kit decidiu que tinha chegado o momento de lhe fazer frente. Com o coração na boca, disse-lhe:

- Daisy, vai lá para trás.

- Vai à merda! - respondeu ela.

- Não estou a pedir. Estou a mandar. Vai lá para trás.

- Tenta obrigar-me.

- Está bem.

- Força - incitou ela com um sorriso de desdém. - Estou desejosa.

- A operação está cancelada - disse Kit. Estava a ofegar, cheio de medo, mas manteve um tom de voz calmo. - Desculpa, Nigel. Boa noite a todos. - Afastou-se da carrinha com as pernas a tremer.

Conseguia ver a parte da frente da carrinha. Estavam a discutir. Daisy estava a gesticular. Passado um minuto, Nigel saiu da carrinha e segurou a porta. Daisy continuava a discutir. Depois Nigel deu a volta, abriu a porta de trás e voltou para a frente.

Daisy acabou por sair. Lançou um olhar malévolo a Kit. Nigel disse-lhe qualquer coisa. Por fim, entrou para a parte de trás e atirou com a porta.

Kit voltou para a carrinha e sentou-se à frente. Elton começou a andar, saiu da garagem e depois parou. Nigel fechou a porta do hangar e entrou na carrinha.

- Espero que tenham acertado na previsão do tempo - resmungou Elton. - Maldita neve.

Dirigiram-se para o portão.

O telemóvel de Kit tocou. Abriu a tampa do computador portátil. No ecrã apareceu a seguinte mensagem: “Toni chama Kremlin”.

 

                   23:30

A mãe de Toni adormeceu no momento em que saíram da estação de serviço. Toni parou o carro, inclinou mais o assento e dobrou o cachecol a fazer de almofada. A mãe estava a dormir como um bebé. Toni achava estranho estar a tratar da mãe como se estivesse a tratar de um bebé. Sentia-se mal.

Porém, não havia nada que pudesse pô-la triste depois da conversa que tinha tido com Stanley. Declarara-lhe os seus sentimentos, no estilo contido que lhe era característico. Acarinhou a ideia enquanto percorria lentamente quilómetro após quilómetro em direcção a Inverburn.

A mãe continuava a dormir profundamente quando chegaram aos arredores da cidade. Ainda havia gente na rua. O trânsito tinha impedido a neve de se acumular nas ruas, e Tom conseguiu guiar sem nunca sentir que podia perder o controlo do carro. Aproveitou a oportunidade para ligar para o Kremlin a fim de ver se estava tudo bem. Foi Steve Tremlett que atendeu.

- Oxenf o rd Medical.

- Daqui é a Toni. Está tudo bem?

- Olá, Toni. Temos um pequeno problema, mas estamos a resolvê-lo.

Toni sentiu um calafrio.

- O que é que aconteceu?

- Os telefones deixaram de funcionar. Este da recepção é o único que está a funcionar.

- Como é que isso aconteceu?

- Não faço ideia. Talvez tenha sido por causa da neve. Toni abanou a cabeça, incrédula.

- Esse sistema telefónico custou centenas de milhares de libras. Não devia avariar-se por causa do mau tempo. Podemos mandar arranjá-los?

- Podemos. Chamei os tipos da Hibernian Telecom. Devem estar a chegar.

- E os alarmes?

- Não sei se estão a funcionar ou não.

- Bolas. Já ligaste para a Polícia?

- Já. Esteve aqui um carro-patrulha há bocado. Os polícias andaram a dar uma vista de olhos, mas não viram nada de anormal. Entretanto foram-se embora. Foram prender mais uns bêbedos na cidade.

Um homem apareceu a cambalear à frente de Toni, e ela teve de guinar o volante para se desviar dele.

- Dá para ver - exclamou.

Houve uma pausa.

- Onde estás?

- Em Inverburn.

- Pensava que ias para umas termas ou lá o que era.

- Pois ia, mas tive um problema familiar. Depois telefona-me a dizer a que conclusão chegaram os homens, está bem? Liga-me para o telemóvel.

- Está bem.

Toni desligou.

- Bolas! - disse para si própria. Primeiro a mãe, agora isto.

Foi desbravando caminho pela teia de ruas residenciais que subiam a colina sobranceira ao porto. Quando chegou a sua casa, estacionou, mas não saiu.

Tinha de ir ao Kremlin.

Se estivesse no spa, nem lhe passaria pela cabeça voltar atrás - era demasiado longe. No entanto estava em Inverburn. Com aquele tempo, a viagem demoraria algum tempo - talvez uma hora em vez dos habituais dez ou quinze minutos -, mas era perfeitamente possível. O único problema consistia na presença da mãe.

Toni fechou os olhos. Seria mesmo preciso ir lá? Mesmo que Mi-chael Ross tivesse agido em conluio com a organização “Os Animais São Livres”, parecia pouco provável que eles pudessem ter alguma coisa que ver com a avaria dos telefones. Não era fácil sabotá-los. Por outro lado, ainda no dia anterior garantira que era impossível tirar um coelho do BSN4.

Suspirou. Só havia uma decisão a tomar. Era responsável pela segurança dos laboratórios e, por isso, não podia ficar em casa e ir para a cama enquanto estava a acontecer qualquer coisa de estranho na Oxen-ford Medical.

A mãe não podia ficar sozinha, e àquela hora da noite Toni não podia pedir a nenhum vizinho que ficasse com ela. Teria de levá-la consigo até ao Kremlin.

Quando meteu a primeira, viu um homem sair de um Jaguar claro estacionado um pouco mais adiante. Pareceu-lhe ver nele qualquer coisa de familiar e, por isso, hesitou em arrancar. O homem ia pelo passeio em direcção a ela. Pelo andar dele, pareceu-lhe que estava ligeiramente embriagado, mas sob controlo. Aproximou-se da janela dela, e Toni reconheceu Cari Osborne, o repórter. Tinha um pequeno embrulho na mão.

Toni tornou a pôr o carro em ponto morto e abriu a janela.

- Olá, Cari - disse. - O que estás aqui a fazer?

- Estava à tua espera. Estava quase a desistir.

A mãe acordou e disse:

- Olá. É o teu namorado?

- É o Cari Osborne, e não é meu namorado.

Com a sua habitual falta de tacto, a mãe disse: .

- Se calhar, gostava de ser.

Toni voltou-se para Cari, que ostentava um sorriso rasgado.

- Esta é a minha mãe, Kathleen Gallo.

- É uma honra conhecê-la, Mrs. Gallo.

- Por que é que estavas à minha espera? - perguntou-lhe Tom.

- Trouxe-te um presente - disse Cari e mostrou-lhe o que tinha na mão. Era um cachorrinho. - Feliz Natal. - Pôs-lhe o cachorro no colo.

- Por amor de Deus, Cari, não sejas ridículo! - exclamou ela, ao mesmo tempo que pegava naquele monte peludo e tentava devolver-lho.

Ele afastou-se e, levantando as mãos, disse:

- É teu!

Sentiu o pêlo macio e quente do cãozinho nas suas mãos, e havia uma parte de si que queria ficar com ele. Mas sabia que não podia. Saiu do carro.

- Não quero ter um animal em casa - disse com firmeza. - Sou uma mulher solteira, com um emprego exigente e uma mãe idosa, e não posso dar ao cão os cuidados e a atenção de que precisa.

- Vais conseguir. Que nome pensas dar-lhe? Cari é um nome bonito.

Toni olhou para o cachorro. Era um cão pastor que tinha umas oito semanas, com umas manchas cinzentas no pêlo. Conseguia pegar nele só com uma mão. Lambeu-a com a língua áspera e olhou para ela com uma expressão de súplica. Toni teve de se fazer dura.

Dirigiu-se para o carro dele e pôs o cachorro no banco da frente.

- Põe-lhe tu o nome - disse. - Eu já tenho preocupações que cheguem.

- Pensa bem - disse Cari, desapontado. - Vou ficar com ele esta noite e amanhã ligo-te.

Toni voltou para o seu carro.

- Por favor, não me telefones.

Meteu a primeira.

- Tens um coração de pedra - lastimou-se Cari, enquanto ela se afastava.

Por qualquer razão, aquelas palavras impressionaram-na. “Não tenho um coração de pedra”, pensou. Inesperadamente, os seus olhos encheram-se de lágrimas. “Tive de aguentar a morte do Michael Ross, uma matilha de jornalistas fanáticos, o Kit Oxenford chamou-me cabra, a minha irmã tramou-me, cancelei umas férias que estava ansiosa de ter. Sou responsável por mim, pela mãe e pelo Kremlin e, por isso, não posso ter ainda um cachorro, e pronto.”

Depois lembrou-se de Stanley e percebeu que a opinião de Cari Osborne lhe era completamente indiferente.

Esfregou os olhos com as costas da mão e tentou ver por entre o turbilhão dos flocos de neve. Saiu da sua rua de casas vitorianas, dirigindo-se para a rua principal pela qual se saía da cidade.

- O Cari parece simpático - comentou a mãe.

- Mas, por acaso, não é nada simpático, mãe. É fútil e desonesto.

- Ninguém é perfeito. Não deve haver muitos homens à escolha para uma mulher da tua idade.

- Não há quase nenhum.

- Não queres acabar sozinha, pois não?

Toni sorriu para si própria.

- Acho que isso não vai acontecer.

O trânsito começou a diminuir de intensidade à medida que se ia afastando do centro da cidade, e a neve ia ganhando espessura sobre a estrada. Enquanto contornava cuidadosamente uma série de rotundas, reparou num carro que parecia segui-la de perto. Espreitou pelo espelho retrovisor e identificou o Jaguar de Cari Osborne.

Parou, e ele parou também.

Toni saiu do carro e aproximou-se da janela dele.

- O que é agora?

- Sou jornalista, Toni. É véspera de Natal, é quase meia-noite, estás com a tua mãe mas, mesmo assim, vais a guiar, aparentemente em direcção ao Kremlin. Tem de haver aí uma história.

- Merda! - exclamou Toni.

 

                                                                               CONTINUA  

 

                      

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