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A AVENTURA DO PUDIM DE NATAL / Agatha Christie
A AVENTURA DO PUDIM DE NATAL / Agatha Christie

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A AVENTURA DO PUDIM DE NATAL

 

Este livro de ceia de Natal pode ser descrito como “As Suges­tões do Cozinheiro-Chefe”. Eu sou o cozinheiro-chefe!

Os pratos principais são dois: A Aventura do Pudim de Natal e o Mistério do Baú Espanhol; várias são as Entrées: A Extravagância de Greenshaw, O Sonho, e O Reprimido, e há, também, um sorvete de frutas: O Caso das Amoras Pretas.

O Mistério do Baú Espanhol pode ser classificado como um Especial de Hercule Poirot. E um caso em que ele considera ter estado em sua melhor forma! Miss Marple, por sua vez, sempre se orgulha de sua perspicácia em A Extravagância de Greenshaw.

A Aventura do Pudim de Natal é um deleite para mim mesma, uma vez que me faz lembrar, com prazer enorme, dos Natais de minha juventude.

Depois da morte de meu pai, minha mãe e eu sempre passá­vamos o Natal com a família de meu cunhado, no norte da Inglaterra — e que Natais soberbos para a mente de uma criança! Em Abney Hall havia de tudo! O jardim ostentava uma cascata, um riacho e um túnel sob a passagem para os carros! A ceia de Natal atingia propor­ções colossais. Eu era uma criança magricela, aparentando delica­deza, mas, na verdade, tinha uma saúde de ferro e estava per­manentemente faminta! Os meninos da família e eu costumávamos competir para ver quem conseguia comer mais no dia de Natal. Sopa de Ostra e Linguado eram devorados com excessivo prazer, mas depois vinham Peru Assado, Peru Cozido e um enorme Filé. Os me­ninos e eu comíamos dois pratos de todos os três quitutes! Depois serviam Pudim de Passas, Tortas de Frutas, Bolo de Amêndoas, todos os tipos de sobremesa. Durante a tarde, comíamos choco­late a valer. Em momento algum nos sentíamos enjoados. Que ma­ravilha ser uma criança gulosa de onze anos!

Que delícia era o dia de pôr as “Meias” junto da cama, pela manhã, e depois a Igreja e os hinos de Natal, a ceia de Natal, os Presentes e, Finalmente, o acender das luzinhas da Árvore de Natal!

E quão profunda a minha gratidão à bondosa e hospitaleira anfitriã, que devia trabalhar tão arduamente, que o Dia de Natal é, até hoje na minha velhice, uma lembrança maravilhosa.

Então, deixem-me dedicar este livro à memória de Abney Hall — à sua bondade e hospitalidade.

E um Feliz Natal a todos que o lerem.

                                                                                        AGATHA CHRISTIE

 

 

— Sinto muitissimamente — disse M. Hercule Poirot.

Foi interrompido. Não rudemente interrompido. A interrupção foi delicada, jeitosa, mais persuasiva do que contraditória.

— Por favor, não recuse precipitadamente, M. Poirot. Trata-se de um grave problema de Estado. Sua cooperação será apreciada nos mais altos escalões.

— Muita bondade sua — Poirot fez um aceno com a mão — mas, realmente, não posso fazer o que o senhor me pede. Nesta época do ano...

Novamente o Sr. Jesmond o interrompeu.

— Natal — disse ele persuasivamente. — Um Natal como os de antigamente, no campo inglês.

Hercule Poirot estremeceu. A idéia do campo inglês nesta época do ano não o atraía.

— Um Natal bom como os de antigamente! — enfatizou o Sr. Jesmond.

— Quanto a mim, eu não sou inglês — disse Hercule Poirot. — No meu país, o Natal é das crianças. O Ano Novo, sim, este nós comemoramos.

— Ah — falou o Sr. Jesmond, — mas o Natal na Inglaterra é uma grande instituição, e eu lhe garanto que em Kings Lacey o senhor o verá em sua melhor forma. O senhor poderá conhecer um velho casarão maravilhoso. Basta dizer que uma das alas data do século quatorze.

Novamente Poirot estremeceu. A idéia de uma mansão inglesa do século quatorze encheu-o de apreensão. Ele já sofrera, com muita freqüência até, nas históricas casas de campo da Inglaterra. Passou os olhos, com satisfação, por seu apartamento moderno e confortá­vel, com aparelhos de calefação e os mais recentes artifícios para eliminar quaisquer tipos de correntes de ar.

— No inverno — falou com firmeza, — eu não saio de Londres.

— Acho que o senhor não percebeu exatamente, M. Poirot, a gravidade do assunto. — O Sr. Jesmond deu uma rápida olhada para seu companheiro, e depois voltou-se novamente para Poirot.

Até aquele momento, o segundo visitante de Poirot limitara-se a dizer, apenas, um “Como vai o senhor” educado e formal. Ele estava sentado, os olhos perdidos em seus sapatos muito bem polidos, o rosto cor de café expressando a mais profunda melan­colia. Era um jovem de vinte e três anos no máximo, e encontrava-se, visivelmente, num estado de completo abandono.

— Sei, sei — disse Hercule Poirot. — Ê claro que o assunto é grave. Já percebi, sim. Sua Alteza merece minhas sinceras condolências.

— A situação é extremamente delicada — replicou o Sr. Jesmond.

Poirot transferiu seu olhar do jovem para o seu companheiro mais velho. Se se quisesse resumir o Sr. Jesmond em uma única palavra, essa palavra seria discrição. Tudo no Sr. Jesmond era dis­creto. As roupas eram bem talhadas, mas sóbrias, a voz suave e educada, que raramente abandonava o tom agradavelmente monó­tono, o cabelo castanho-claro, começando a escassear junto das têm­poras, o rosto pálido e sério. A impressão de Hercule Poirot era que ele não conhecera apenas um Sr. Jesmond, mas uma dúzia de Srs. Jesmonds em toda a sua vida, sendo que todos eles, mais cedo ou mais tarde acabavam dizendo a mesma frase — “uma posição extremamente delicada”.

— A polícia — disse Hercule Poirot — também pode ser muito discreta, o senhor sabe.

O Sr. Jesmond abanou a cabeça com firmeza:

— A polícia, não. Para recuperar o... é... o que queremos recuperar, será preciso, quase que inevitavelmente, recorrer às cortes de justiça, e nós sabemos muito pouca coisa. Nós suspei­tamos, mas não sabemos.

— O senhor merece minhas condolências — disse Hercule Poirot novamente.

Se ele imaginava que suas condolências teriam algum signi­ficado para os dois visitantes, enganava-se. Eles não queriam con­dolências, queriam ajuda prática. O Sr. Jesmond, mais uma vez, co­meçou a falar sobre as delícias do Natal inglês.

— Está em extinção, o senhor sabe — explicou ele —, o ver­dadeiro Natal de antigamente. Hoje em dia as pessoas passam-no em hotéis. Mas o Natal inglês com toda a família reunida, as cri­anças e suas meias penduradas, a árvore de Natal, o peru e o pudim de passas, os fogos de Natal. O boneco de neve visto pela janela...

Em nome da exatidão, Hercule Poirot interveio:

— Para se fazer um boneco de neve, é necessário que se tenha neve — observou com severidade. — E não é possível fazer um pe­dido de neve, nem mesmo para um Natal inglês.

— Hoje mesmo estive falando com um amigo meu que trabalha no serviço de meteorologia — explicou o Sr. Jesmond — e ele me disse que é muito provável que tenhamos neve neste Natal.

Não foi a coisa mais acertada para se dizer. Hercule Poirot estremeceu com mais violência do que todas as outras vezes.

— Neve no campo — falou. — Seria mais abominável ainda. Uma mansão de pedra, grande e fria.

— De maneira nenhuma — replicou o Sr. Jesmond. — As coi­sas mudaram muito nos últimos dez anos. Já tem aquecimento central.

— Eles têm aquecimento central em Kings Lacey? — per­guntou Poirot. Pela primeira vez pareceu hesitar.

O Sr. Jesmond se agarrou à oportunidade:

— Mas é claro! E um esplêndido sistema de água quente. Radiadores em todos os quartos. Posso lhe garantir, meu caro M. Poirot, que Kings Lacey é a personificação do conforto no inverno. Talvez o senhor até ache a casa quente demais.

— Isto é bastante improvável — disse Hercule Poirot.

Com grande habilidade, o Sr. Jesmond mudou um pouco de assunto.

— O senhor bem percebe o terrível dilema em que nos encontramos — disse em tom confidencial.

Hercule Poirot assentiu com a cabeça. Na verdade, o problema não era dos mais felizes. Um jovem futuro potentado, filho único do governante de uma Nação estrangeira, chegara a Londres há umas poucas semanas. Seu país passara por um período de agitação e descontentamento. Embora leal ao pai, cujo modo de vida permanecera estritamente oriental, a opinião popular era um tanto ambígua em relação ao jovem. Suas farras tinham sido tipicamente ocidentais e, por causa disto, vistas com desaprovação.

Recentemente, no entanto, seu noivado fora anunciado. Ele deveria se casar com uma prima do mesmo sangue. Uma jovem que, embora educada em Cambridge, tinha o cuidado de não demonstrar, em seu próprio país, as influências sofridas no ocidente. O dia do casamento fora anunciado e o jovem príncipe viajara para a Inglater­ra, trazendo algumas das famosas jóias de sua casa para receberem engastes mais modernos por Cartier. Dentre elas, vinha um famoso rubi, que fora retirado de um colar antiquado e pesadão, e ganhara uma nova aparência nas mãos dos famosos joalheiros. Até aí, nada de mais, mas foi então que aconteceu a coisa. Não era de se esperar que um rapaz jovem, possuidor de grande fortuna, propensão festei­ra, não cometesse algumas tolices do tipo mais agradável. Quanto a isso, ninguém teria o direito de censurá-lo. Todos imaginavam que os jovens príncipes devessem se divertir dessa forma. Se um prín­cipe levasse a sua namorada do momento para um passeio a pé em Bond Street, e lhe desse uma pulseira de esmeraldas ou uma presilha de diamantes como recompensa pelo prazer que lhe pro­porcionara, o fato seria visto com bastante naturalidade, correspon­dendo, a bem da verdade, aos Cadillacs que seu pai, invariavelmen­te, dava de presente às suas dançarinas preferidas na ocasião.

Mas o príncipe fora bem mais indiscreto do que isso. Lison­jeado pelo interesse da moça, o príncipe lhe mostrara o famoso rubi em seu novo engaste e cometera, finalmente, a insensatez de per­mitir que ela o usasse — apenas por uma noite!

O resultado foi curto e triste. A moça se retirara da mesa de jantar para empoar o rosto. Passou-se o tempo. Ela não voltou. Saíra do restaurante por uma outra porta e, desde então, sumira no espaço. O fato mais importante e trágico é que o rubi em seu novo engaste desaparecera com ela.

Estes eram os fatos que não podiam ser tornados públicos sem as mais calamitosas conseqüências. O rubi era mais do que um rubi, era um objeto histórico de grande significado para seu possuidor, e as circunstâncias de seu desaparecimento eram tais, que qualquer publicidade indevida traria conseqüências políticas da maior gravi­dade.

O Sr. Jesmond não era do tipo de expor estes fatos em lingua­gem simples. Ele os embrulhava, por assim dizer, num monte de verbosidade. Quem era exatamente o Sr. Jesmond, Hercule Poirot não sabia. Conhecera outros Srs. Jesmonds ao longo de sua carrei­ra. Se ele pertencia ao Ministério do Interior, ao Ministério de Relações Exteriores, ou a algum outro ramo do serviço público, isto não estava explícito. Ele agia no interesse do país. O rubi tinha que ser recuperado.

  1. Poirot, de acordo com a delicada insistência do Sr. Jesmond, era o homem capaz de recuperá-lo.

— Talvez... sim — admitiu Poirot — mas as informações são tão poucas. Sugestão... suspeita... não é muito para se começar.

— Ora, Monsieur Poirot, tenho certeza de que o caso não está além de sua capacidade. Ah, deixe disso.

— Nem sempre eu resolvo tudo.

Mas isso era falsa modéstia. O tom de voz de Poirot indicava claramente que, quando ele assumia uma missão, era quase sinôni­mo de ser bem sucedido.

— Sua Alteza é muito jovem — acrescentou o Sr. Jesmond. — Seria triste se toda a sua vida fosse arruinada por uma simples tolice cometida na juventude.

Poirot olhou com bondade para o abatido rapaz.

— A juventude é que é o tempo certo de se fazer pequenas loucuras — disse para encorajá-lo — e, em se tratando de um jovem comum, não tem muita importância. O bondoso papai, este paga; advogado da família, este o ajuda a se desembaraçar dos inconvenientes; quanto ao jovem, este aprende por experiência própria, e tudo acaba bem. Já na sua posição, aí sim, fica verdadeiramente difícil. Seu casamento se aproxima...

— É isso. É exatamente isso. — Pela primeira vez, as palavras jorravam da boca do rapaz. — Ela é muito, muito séria, o senhor entende? Ela leva a vida a sério. Em Cambridge, ela adquiriu muitas idéias bastante sérias. É preciso que haja educação em meu país. É preciso que haja escolas. É preciso que haja diversas coisas. Tudo em nome do progresso, entende, da democracia. Nada vai ser, diz ela, como no tempo de meu pai. Naturalmente ela imaginava que eu iria me divertir em Londres, mas não me meter em escândalos. Não! O escândalo é que me preocupa. Veja o senhor que este rubi é muito, muito famoso. Há toda uma história por detrás dele. Muito derramamento de sangue — muitas mortes!

— Mortes — disse Hercule Poirot, pensativo. Olhou para o Sr. Jesmond. — Espero que não chegue a tanto.

O Sr. Jesmond fez um barulho estranho, como o de uma galinha que havia decidido pôr um ovo e depois mudou de idéia.

— Não, não, realmente — falou, parecendo um tanto afetado. — Não existe a menor hipótese, tenho certeza, de nada deste tipo.

— O senhor não pode ter certeza — replicou Hercule Poirot. — Alguém está de posse do rubi no momento, mas pode haver outras pessoas desejando possuí-lo, e que não se prenderiam a de­talhes, meu amigo.

— Realmente não creio — voltou o Sr. Jesmond, parecendo mais afetado do que nunca — que devamos entrar em especulações deste tipo. Seria bastante inócuo.

— Quanto a mim — disse Hercule Poirot, subitamente se tornando deveras estrangeiro —, eu examino todas as possibilidades, como os políticos.

O Sr. Jesmond olhou para ele com ar de dúvida. Readquirindo o domínio de si, falou:

— Bem, então está combinado, M. Poirot? O senhor irá a Kings Lacey?

— E como explicarei minha presença lá? — perguntou Hercule Poirot.

O Sr. Jesmond sorriu confiantemente.

— Isto, creio eu, pode ser arranjado com facilidade — falou. — Posso lhe garantir que tudo parecerá bastante natural. O senhor achará os Laceys encantadores. Gente deliciosa.

— E o senhor não está me enganando quanto ao aquecimento central?

— Não, não, de maneira nenhuma — o Sr. Jesmond parecia deveras ofendido. — Tenho certeza que o senhor terá todo o con­forto.

— Tout confort moderne — murmurou Poirot para si mesmo, como quem se recorda de alguma coisa. — Eh bien, eu aceito.

 

A temperatura na longa sala de estar de Kings Lacey estava confortavelmente em torno de vinte e três graus, enquanto Hercule Poirot conversava com a Sra. Lacey, perto de uma das grandes jane­las com pinázios. A Sra. Lacey ocupava-se com umas costuras. Mas ela não estava fazendo o petit point e nem bordando flores sobre a seda. Ao invés disso, parecia estar entretida na prosaica tarefa de dar bainha em uns panos de prato. Enquanto costurava, falava com voz macia e cheia de reminiscências, que Poirot achava encantadora.

— Espero que o senhor goste de nossa festa de Natal, M. Poirot. É só para a família, o senhor sabe. Minha neta, um neto com um amigo, Bridget, minha sobrinha-neta, Diana, uma prima, e David Welwyn, um velho amigo. Apenas uma reunião de família. Mas Edwina Morecombe me disse que era isso o que o senhor real­mente queria ver. Um Natal como os de antigamente. Ninguém poderia ser mais antiquado do que nós! Meu marido, o senhor sabe, vive completamente no passado. Ele gosta que tudo seja exatamente como era quando ele tinha doze anos, e costumava vir passar as fé­rias aqui. — Ela sorriu para si mesma. — As mesmas coisas de sem­pre, a árvore de Natal e as meias penduradas, e a sopa de ostras e o peru — dois perus, um cozido e outro assado — e o pudim de passas com o anel e o emblema de solteirão, e tudo o mais que tem lá dentro. Hoje em dia não se pode mais pôr a moeda de seis pence, porque elas já não são feitas apenas de prata. Mas todas as outras velhas sobremesas, as ameixas de Elvas e as ameixas de Carlsbad e as amêndoas e passas, frutas cristalizadas e gengibre. Céus, eu mais pareço um catálogo do Fortnum e Mason.

— A senhora estimula meus sucos gástricos, Madame.

— Imagino que amanhã à noite teremos todos uma tremenda indigestão — disse a Sra. Lacey. — As pessoas não estão mais acostumadas a comer tanto, não é verdade?

Foi interrompida pelos altos gritos de risadas vindas do lado de fora. Ela deu uma olhadela.

— Não sei o que estão fazendo lá fora. Brincando de alguma coisa, suponho. O senhor sabe, eu sempre tive muito receio que esses jovens se aborrecessem com este nosso Natal. Mas acontece justamente o oposto. Já meus próprios filhos, um rapaz e uma moça, costumavam ser um tanto sofisticados quanto ao Natal. Diziam que tudo bobagem e muita confusão, e que seria muito melhor irmos dançar num hotel qualquer. Mas a geração mais nova parece achar tudo isso incrivelmente divertido. Além do mais — acrescentou a Sra. Lacey, com senso prático — esses meninos e meninas estão sempre com fome, não é verdade? Acho que eles passam fome na escola. Afinal de contas, todo mundo sabe que crianças dessa idade comem tanto quanto três homens fortes.

Poirot riu e falou:

— Foi muita bondade sua e de seu marido, Madame, terem me incluído desta forma numa festa familiar.

— É um prazer para nós dois, posso lhe garantir — disse a Sra. Lacey. — E se o senhor achar Horace um pouco mal-humorado — prosseguiu — não repare. Ele é assim mesmo, o senhor entende.

Seu marido, o Coronel Race, realmente dissera o seguinte:

— Não consigo entender por que você quis convidar esse mal­dito estrangeiro para se intrometer aqui em nossa festa de Natal. Por que ele não veio em outra ocasião qualquer? Não suporto es­trangeiros! Está certo, está certo, foi Edwina Morecombe quem quis trazê-lo. O que ele tem a ver com ela, é isso o que eu gostaria de saber. Por que ela quis convidá-lo para o Natal?

— Porque você sabe muito bem — respondera a Sra. Lacey — que Edwina sempre vai a Claridge’s.

O marido lhe lançara um olhar penetrante e dissera:

— Você não tem nada em mente, tem, Em?

— Alguma coisa em mente? — disse Em, arregalando os olhos muito azuis. — É claro que não. Por que haveria de ter?

O velho Coronel Lacey deu uma risada profunda e estrondosa.

— Eu não ponho a minha mão no fogo por você, Em — falou.

— Quando você aparenta maior inocência, aí sim, é que tem alguma coisa em mente.

Revolvendo estas idéias na cabeça, a Sra. Lacey prosseguiu:

— Edwina disse que talvez o senhor pudesse nos ajudar... Não sei bem como, mas ela disse que o senhor foi muito útil para uns amigos dela num... num caso semelhante ao nosso. Eu... bem, talvez o senhor não saiba do que eu estou falando.

Poirot olhou-a para que ela tivesse ânimo. A Sra. Lacey tinha quase setenta anos, era firme como uma rocha, o cabelo com a alvura da neve, faces rosadas, olhos azuis, um nariz ridículo e quei­xo determinado.

— Se eu puder ajudar em alguma coisa, ficarei muito contente em fazê-lo — disse Poirot. — Trata-se, se não me engano, de uma paixão desagradável de uma moça.

A Sra. Lacey assentiu.

— Exatamente. O extraordinário é que eu queria... bem, que queria falar com o senhor sobre o caso. Afinal de contas, o senhor é um perfeito estranho ...

— E estrangeiro — acrescentou Poirot, de modo compreensivo.

— Exato — concordou a Sra. Lacey — mas talvez isso facilite de alguma forma. Enfim, Edwina parecia pensar que o senhor talvez pudesse saber qualquer coisa... como direi... qualquer coisa de útil a respeito desse jovem Desmond Lee-Wortley.

Poirot fez uma pausa para admirar a engenhosidade do Sr. Jesmond e a facilidade com que se utilizara de Lady Morecombe para levar adiante seus próprios objetivos.

— Ele não tem, se não me engano, uma reputação muito boa, esse rapaz — começou ele delicadamente.

— Ih, mas não tem mesmo! Uma péssima reputação! Mas para Sarah, isso de nada adianta. Nunca adianta, não é verdade, dizer às moças que os homens têm má reputação. Só serve... só serve para incitá-las.

— A senhora tem toda a razão — respondeu Poirot.

— No meu tempo — prosseguiu a Sra. Lacey — (Céus, mas há tanto tempo atrás!) costumávamos ser alertadas, o senhor entende, a respeito de certos rapazes e, é claro, isto apenas aumentava nosso interesse por eles, e se alguém conseguisse dançar com um deles, ou ficar a sós num canto escuro — ela sorriu. — É por isso que não deixo Horace fazer nada de que ele gostaria.

— Diga-me — falou Poirot — o que exatamente a preocupa?

— Nosso filho foi morto na guerra — disse a Sra. Lacey. — Minha nora morreu quando Sarah nasceu, de forma que ela sempre viveu conosco e nós a educamos. Talvez nossa educação não tenha sido muito sensata — não sei. Mas sempre achamos que devíamos lhe dar a maior liberdade possível.

— Mas isto é desejável, creio eu — disse Poirot. — É preciso dançar conforme o ritmo da música.

— Exato — concordou a Sra. Lacey, — era isso o que eu sentia. E, é claro, as moças de hoje realmente fazem este tipo de coisa.

Poirot olhou-a com ar indagador.

— Não sei como se diz ao certo — falou a Sra. Lacey — mas acho que Sarah se juntou a esses grupinhos que freqüentam bares. Ela não vai a festinhas de dança, e nem quis entrar na sociedade como debutante, nada disso. Pelo contrário, ela tem dois quartos bastante desagradáveis em Chelsea, próximo ao rio, e usa essas roupas engraçadas que elas gostam de usar, com meias pretas ou de um verde berrante. Meias bastante grossas. (Eu sempre acho que devem ser muito espinhentas!) E ela sai sem tomar banho e sem pentear o cabelo.

— Ça, c’est tout à fait naturelle — disse Poirot. — É a moda atual. Depois elas a abandonam.

— Sim, sei disso — concordou a Sra. Lacey. — E nem eu me preocuparia com este tipo de coisa. Mas ela se apegou a esse tal de Desmond Lee-Wortley, o senhor entende, e a reputação dele é real­mente detestável. Ele vive, mais ou menos, com o di­nheiro de jovens abastadas. E elas parecem ficar doidinhas por ele. Ele quase, quase casou com a jovem Hope, mas a família dela con­seguiu tutela judicial ou coisa do gênero. Isto é o que Horace quer fazer, é claro. Mas não acho que seja uma boa idéia, M. Poirot. Quer dizer, eles fugiriam juntos para a Escócia, ou Irlanda, ou Ar­gentina, ou qualquer outro lugar, e lá se casariam ou viveriam juntos do mesmo jeito. E embora isto possa parecer desprezo pela justiça e tudo o mais — bem, isto não resolve o caso no final, não é verdade? Principalmente se vier um bebê. Aí a gente tem que ceder e permitir que se casem. E depois, quase sempre vem o divórcio com dois ou três anos de casados, assim me parece. E aí a moça volta para casa e, passados um ou dois anos, ela se casa com um homem tão bom, quase maçante, e se ajeita. Mas tudo isso é particularmente triste, é minha impressão, quando existe um filho, porque não é a mesma coisa ser criado por um padrasto, por melhor que ele seja. Não, acho que seria muito melhor se se fizesse como no meu tempo. Quero dizer, o primeiro rapaz por quem a gente se apaixonava era sempre indesejável. Eu me lembro de ter ficado perdidamente apaixonada por um rapaz chamado — como era mesmo o nome dele? — que es­tranho, não lembro o primeiro nome dele de maneira nenhuma! Tibbitt era o sobrenome. O jovem Tibbitt. Meu pai, é claro, mais ou menos expulsou-o de nossa casa, mas ele costumava ser convi­dado para as mesmas festas, e nós dançávamos juntos. E às vezes conseguíamos escapar e ir lá fora, ou alguns amigos combinavam piqueniques para nós dois irmos juntos. E claro que era tudo muito emocionante e proibido, e nós nos divertíamos demais. Mas também não chegávamos... bem, não chegávamos a extremos, como essas meninas de hoje. Sendo assim, depois de um tempo os Srs. Tibbitts desapareciam. E quer saber de uma coisa? Quando eu o vi, quatro anos depois, fiquei espantada tentando imaginar o que eu jamais po­deria ter visto nele! Me pareceu um rapaz tão chato. Espalhafatoso, o senhor entende. E uma conversa muito desinteressante.

— As pessoas sempre acham que sua juventude foi melhor do que a dos outros — falou Poirot, um tanto gravemente.

— Sei disso — retrucou a Sra. Lacey. — É repetitivo, não é mesmo? Não devo ser repetitiva. Mas, mesmo assim, eu não quero que Sarah, uma menina realmente muito querida, se case com Des­mond Lee-Wortley. Ela e David Welwyn, que está aqui conosco, sempre foram tão amigos, sempre gostaram tanto um do outro, que nós realmente desejávamos, Horace e eu, que eles se casassem quando crescessem. Mas é claro que, agora, ela o acha aborrecido e está completamente apaixonada por Desmond.

— Eu não entendo muito bem, Madame — disse Poirot. — Ele está aqui agora, hospedado nesta casa, esse tal de Desmond Lee-Wortley?

— Isto foi arranjo meu — explicou a Sra. Lacey. — Horace que­ria proibi-la de vê-lo a todo custo. Mas é claro, pois no tempo de Horace o pai ou responsável teria ido à casa do rapaz com um chico­te! Horace queria, a todo custo, proibi-lo de freqüentar nossa casa e proibir Sarah de vê-lo. Eu disse a ele que esta era uma atitude to­talmente errada. “Não”, falei. “Vamos convidá-lo. Ele passará o Natal aqui, junto com toda a família”. Meu marido, é claro, disse que eu estava maluca! Mas eu falei: “De qualquer forma, querido, vamos tentar. Vamos deixar que ela o veja em nosso ambiente e em nossa casa, vamos ser agradáveis e educados e pode ser que, então, ele se torne menos interessante para ela!”

— Eu acho, como se costuma dizer, que a senhora tem coisa na cabeça, Madame — disse Poirot. — Acho seu ponto de vista muito sensato. Mais sensato do que o de seu marido.

— Bem, espero que seja — disse a Sra. Lacey com ar de dúvida. — Parece que ainda não está dando certo. Mas, é claro, ele está aqui há apenas dois dias. — Uma covinha apareceu subita­mente em sua face enrugada. — Vou lhe confessar uma coisa, M. Poirot. Eu mesma não consigo deixar de gostar dele. Não quero dizer que eu gosto dele realmente, racionalmente, mas percebo o charme dele, sim. Ah, e como! Eu consigo ver o que Sarah vê nele. Mas sou uma mulher bastante velha, e tenho muita experiência para saber que ele não presta mesmo. Mesmo que eu aprecie de fato sua companhia. Embora ache — acrescentou a Sra. Lacey, um pouco desejosamente, — que ele tenha alguns aspectos posi­tivos. Ele perguntou se poderia trazer a irmã para cá, o senhor sabe. Ela foi operada e estava no hospital. Ele disse que ela ficaria tão triste de passar o Natal numa enfermaria e perguntou se seria muito incômodo trazê-la para cá. Disse que levaria todas as refeições dela no quarto e tudo o mais. Bem, para dizer a verdade, acho que foi muita bondade dele, o senhor não acha, M. Poirot?

— Demonstra uma consideração — respondeu Poirot, pensati­vo — destoante de seu caráter em geral.

— Ah, não sei. É possível se ter afeição pela família e, ao mesmo tempo, se aproveitar de uma moça rica. Sarah vai ser muito rica, o senhor sabe, não só pelo que nós vamos deixar para ela — o que, é claro, não será muito porque a maior parte do dinheiro, juntamente com a casa, ficará para Colin, meu neto. Mas a mãe dela era uma mulher muito rica, e Sarah herdará todo o dinheiro quando completar vinte e um anos. Ela ainda está com vinte. Não, acho mesmo que foi bondade de Desmond se preocupar com a irmã. E ele não mentiu, não disse que ela era nenhuma maravilha. Ela é taquígrafa, eu imagino — trabalha como secretária em Londres. E ele foi fiel à palavra, realmente leva as refeições para ela. Nem sempre, é claro, mas quase sempre. De forma que eu acho que ele tem alguns aspectos positivos. Mas mesmo assim — disse a Sra. Lacey com grande determinação, — não quero que Sarah se case com ele.

— Pelo que ouvi — disse Poirot — seria um terrível desastre.

— O senhor acha que seria possível nos ajudar de alguma forma? — perguntou a Sra. Lacey.

— Acho que é possível, sim — respondeu Poirot, — mas não gostaria de prometer demais. Porque os Desmond Lee-Wortleys da vida são inteligentes, Madame. Mas não se desespere. É possí­vel, talvez, se fazer um pouquinho. De qualquer forma, usarei de todos os meus recursos, nem que seja para apenas demonstrar mi­nha gratidão por me haver convidado para as festividades natalinas. — Passou os olhos em torno de si. — E não deve ser muito fácil pro­gramar festividades natalinas nos dias de hoje.

— Não, não é mesmo — suspirou a Sra. Lacey. Inclinou-se para frente. — O senhor sabe, M. Poirot, qual é realmente meu sonho... o que eu adoraria ter?

— Mas diga, Madame.

— Eu simplesmente adoraria ter um bangalô simples e mo­derno. Não, talvez não exatamente um bangalô, mas uma casinha moderna, fácil de administrar, construída em algum lugar deste par­que aqui, e viver nela, com uma cozinha absolutamente moderna e sem corredores compridos. Tudo fácil e simples.

— É uma idéia muito prática, Madame.

— Não é muito prática para mim — retrucou a Sra. Lacey. — Meu marido adora esta casa. Ele ama morar aqui. Ele não liga que seja ligeiramente desconfortável, não liga para as inconveni­ências e detestaria viver numa casinha moderna no parque.

— Então a senhora se sacrifica aos seus desejos?

A Sra. Lacey se aprumou.

— Não considero isso um sacrifício, M. Poirot — respondeu. — Casei com meu marido com o propósito de fazê-lo feliz. Ele tem sido um bom marido para mim, e eu tenho sido feliz durante todos estes anos, e desejo lhe dar felicidade.

— Então a senhora continuará morando aqui — disse Poirot.

— Na verdade não é tão desconfortável — replicou a Sra. Lacey.

— Não, não — disse Poirot, apressadamente. — Pelo contrá­rio, é extremamente confortável. Seu aquecimento central e sua água para o banho são a própria perfeição.

— Gastamos um bocado de dinheiro para tornar esta casa confortável — explicou a Sra. Lacey. — Conseguimos vender alguma terra. Livre de embaraços, acho que é assim que eles dizem. Felizmente não dá para ser vista desta casa, do outro lado do par­que. Um terreno realmente feio, sem vista bonita, mas conseguimos um bom preço. De forma que fizemos todos os melhoramentos pos­síveis.

— Mas e o serviço, Madame?

— Ah, bem, ele apresenta menos dificuldades do que o senhor poderia imaginar. É claro que não se pode esperar um atendimento como se costumava ter. Vêm diversas pessoas da aldeia. Duas mu­lheres de manhã, outras duas fazem o almoço e lavam a louça, e mais umas outras à tarde. Existem muitas pessoas querendo traba­lhar algumas horas por dia. É claro que, no Natal, temos muita sor­te. A querida Ross sempre vem no Natal. Ela é uma cozinheira mara­vilhosa, de primeira classe realmente. Ela se aposentou há cerca de dez anos, mas sempre vem nos ajudar em alguma emergên­cia. E temos, também, o querido Peverell.

— Seu mordomo?

— É. Ele é aposentado e mora numa casinha perto da do jardineiro, mas é tão devotado, e insiste em vir nos servir no Natal. Na verdade eu fico apavorada, M. Poirot, porque ele é tão velho e tão trêmulo que eu tenho certeza que se ele carregar qualquer coisa mais pesada, vai deixar cair. É uma verdadeira agonia olhar para ele. E o coração dele também já não está muito bom, de forma que eu tenho medo que ele se exceda. Mas ficaria terrivelmente ofendido se não o deixasse vir. Ele gagueja e engasga e faz ruídos desaprova-dores quando vê o estado em que se encontra nossa prataria, e nos três dias que passa aqui tudo volta a ficar maravilhoso. É. Ele é um amigo querido e leal. — Ela sorriu para Poirot. — Então, veja o senhor, estamos todos preparados para um feliz Natal. E um Natal branco, também — acrescentou, olhando para a janela. — Está vendo? Está começando a nevar. Ah, as crianças estão entrando. O senhor precisa conhecê-las, M. Poirot.

Poirot foi apresentado com a devida cerimônia. Primeiro a Colin e Michael, o neto em idade escolar e seu amigo, rapazes sim­páticos de quinze anos, um moreno e outro louro. Depois à prima deles, Bridget, uma menina de cabelos pretos, mais ou menos da mesma idade, e com enorme vitalidade.

— E esta é minha neta Sarah — disse a Sra. Lacey.

Poirot olhou para Sarah com algum interesse. Era uma moça atraente, com uma mecha de cabelos ruivos; suas maneiras lhe pareceram atrevidas e um pouco rebeldes, mas demonstrava afeição verdadeira pela avó.

O Sr. Lee-Wortley vestia uma camisa de malha e uma calça pre­ta e justa, de jeans; o cabelo era um tanto longo, e não dava para saber ao certo se ele fizera a barba naquela manhã. Contrastando com ele, havia um rapaz apresentado como David Welwyn, sério e calmo, de sorriso agradável, e visivelmente viciado em água e sabão. Havia um outro membro do grupo, uma moça bonita de olhar pro­fundo, apresentada como Diana Middleton.

Trouxeram o chá. Uma refeição completa com bolinhos assados cm chapa, pães-de-minuto, sanduíches e três tipos de bolo. Os mais jovens do grupo apreciavam o chá. Finalmente chegou o Coronel Lacey, observando em tom evasivo:

— Ei, chá? Ah, sim, o chá.

Recebeu sua xícara de chá das mãos da mulher, serviu-se de dois bolinhos, deu um olhar de aversão a Desmond Lee-Wortley e sentou-se o mais longe dele possível. Era um homem grande, com sobrancelhas espessas e rosto vermelho, curtido pelo tempo. Pa­recia mais um agricultor do que o senhor da mansão.

— Começou a nevar — falou. — Vai ser mesmo um Natal branco.

Depois do chá, o grupo se dispersou.

— Espero que resolvam brincar com os gravadores agora — disse a Sra. Lacey a Poirot. Olhou o neto com prazer, enquanto este saía da sala. Seu tom de voz parecia dizer “Agora as crianças vão brincar com seus soldadinhos.” — Eles são tremendamente técnicos, é claro, e dão extrema importância a tudo.

Os meninos e Bridget, no entanto, resolveram ir até o lago para ver se o gelo já permitia que se patinasse.

— Eu acho que poderíamos ter patinado hoje de manhã — disse Colin. — Mas o velho Hodgkins disse que não. E ele sempre é terrivelmente cuidadoso.

— Vamos dar uma volta, David — disse Diana Middleton, com voz macia.

David hesitou por meio minuto, os olhos fixos nos cabelos vermelhos de Sarah. Ela estava de pé ao lado de Desmond Lee-Wortley, segurando o braço do rapaz e olhando seu rosto.

— Está bem — disse David Welwyn — vamos, sim.

Diana escorregou a mão rapidamente pelo braço de David, e saíram em direção ao jardim.

— Que tal irmos também, Desmond? — perguntou Sarah. — Está terrivelmente abafado aqui dentro.

— E quem quer andar? — disse Desmond. — Eu vou buscar o carro. Iremos até o Speckled Boar beber alguma coisa.

Sarah hesitou um instante antes de dizer:

— Vamos até o White Hart, no Market Ledbury. É muito mais divertido.

Embora por motivo algum do mundo Sarah transformasse isso em palavras, ela rejeitava instintivamente a idéia de ir ao bar local com Desmond. De alguma forma, aquilo não pertencia à tradição de Kings Lacey. As mulheres de Kings Lacey jamais freqüentaram o bar do Speckled Boar. Sarah tinha a sensação obscura de que, indo lá, deixaria o Coronel Lacey e sua mulher em má situação. E por que não? — teria dito Desmond Lee-Wortley. Num momento de exasperação Sarah sentiu que ele deveria saber por que não! Não se devia aborrecer velhinhos tão queridos como o vovô e a querida Em, a não ser em caso de necessidade. Na verdade, eles tinham sido extremamente bondosos permitindo que ela levasse sua própria vida, sem entender nem um pouquinho por que ela preferia morar em Chelsea daquela maneira, mas aceitando o fato. É claro que aquilo era coisa de Em. O avô nem hesitaria em aprontar o maior rebuliço.

Sarah não se iludia em relação à atitude do avô. Ela sabia que não fora pelo avô que Desmond tinha sido convidado para Kings Lacey. Fora por Em, e Em era muito querida, como sempre tinha sido.

Quando Desmond saiu para buscar o carro, Sarah enfiou a cabeça na sala de estar.

— Nós vamos dar um pulo em Market Ledbury — falou. — Vamos beber alguma coisa no White Hart.

Havia um ligeiro desafio em seu tom de voz, mas a Sra. Lacey não pareceu perceber.

— Muito bem, querida — disse. — Tenho certeza de que irão se divertir. David e Diana foram dar uma volta. Fico tão con­tente. Eu realmente acho que foi uma idéia brilhante de minha parte ter convidado Diana para vir aqui. Que tristeza ficar viúva tão jovem — apenas vinte e dois anos — espero que ela se case logo, logo.

Sarah lançou-lhe um olhar cortante.

— O que você está pretendendo, Em?

— É um pequenino plano — respondeu a Sra. Lacey alegre­mente. — Acho que ela é ideal para David. Ê claro que sei que ele estava terrivelmente apaixonado por você, Sarah querida, mas você não serve para ele e creio que ele não é seu tipo. Mas não quero que ele continue infeliz, e acho que Diana combina muito bem com ele.

— Que grande alcoviteira você é, Em — disse Sarah.

— Sei disso — retrucou a Sra. Lacey. — As velhas sempre são alcoviteiras. Diana já gosta imensamente dele, creio eu. Você não acha que ela seria perfeita para ele?

— Eu não diria isso — respondeu Sarah. — Acho Diana extremamente... bem, profunda demais, séria demais. Acho que David ficaria entediado se se casasse com ela.

— Bem, veremos — disse a Sra. Lacey. — De qualquer manei­ra, você não quer casar com ele, não é querida?

— Não mesmo — respondeu Sarah rapidamente, e acrescentou de súbito: — Você realmente gosta de Desmond, não gosta, Em?

— Tenho certeza de que ele é muito simpático — respondeu a Sra. Lacey.

— O vovô não gosta dele.

— E nem você poderia esperar que gostasse, poderia? — disse a Sra. Lacey sensatamente. — Mas ouso dizer que ele cederá assim que se acostumar com a idéia. Você não deve apressá-lo, Sarah querida. Os velhos custam muito a mudar de idéia, e seu avô é deveras obstinado.

— Não me importo com o que vovô pense ou diga — replicou Sarah. — Eu vou me casar com Desmond quando eu quiser!

— Eu sei, querida, eu sei. Mas procure ser realista. Seu avô poderia criar uma série de problemas, você sabe disso. Você não é maior ainda. Daqui a um ano você poderá fazer o que quiser. Espero que Horace tenha mudado de idéia muito antes disso.

— Você está do meu lado, não está, querida? — perguntou Sarah. Jogou os braços em volta do pescoço da avó e deu-lhe um beijo afetuoso.

— Quero que você seja feliz — disse a Sra. Lacey. — Ah! Lá está o seu jovem trazendo o carro. Sabe, eu gosto dessas calças bem apertadas que os rapazes usam hoje em dia. São tão elegantes... só que, é claro, realçam os joelhos pontudos.

É mesmo, pensou Sarah, os joelhos de Desmond eram pontudos e ela nunca percebera isso antes...

— Vá, minha querida, e divirta-se.

Viu a neta se encaminhar para o carro e depois, lembrando-se de seu convidado estrangeiro, dirigiu-se para a biblioteca. Ao chegar lá, viu que Hercule Poirot tirava uma agradável soneca e, sorrindo para si mesma, atravessou o vestíbulo e foi para a cozinha conferenciar com a Sra. Ross.

— Vamos, beleza — disse Desmond. — Sua família estava criando caso porque você vai a um bar? Eles vivem há anos atrás da realidade, não é mesmo?

— É claro que não estavam criando caso nenhum — respondeu Sarah asperamente, ao entrar no carro.

— Que idéia foi essa de trazer esse estrangeiro para cá? Ele é detetive, não é? O que é que tem aqui para ele descobrir?

— Ah, mas ele não veio como profissional, Edwina More­combe, minha madrinha, perguntou se ele podia vir. Acho que ele já se aposentou há muito tempo.

— Ele parece uma carroça quebrada, bem velha — disse Desmond.

— Ele queria ver um Natal inglês tradicional, creio eu — disse Sarah vagamente.

Desmond sorriu zombeteiramente.

— Um monte de baboseiras, esse negócio todo. Não sei como é que você agüenta.

Sarah jogou os cabelos vermelhos para trás e levantou seu queixinho agressivo.

— Eu me divirto! — respondeu Sarah.

— Não é possível, baby. Vamos acabar com isso amanhã. Vamos para Learborough, ou para qualquer outro lugar.

— Não posso fazer isso.

— Por que não?

— Ah, eles ficariam magoados.

— Ai, caramba! Você sabe que não gosto desta porcaria sentimentalóide e infantil.

— Bem, talvez não, mas... — Sarah desmoronou. Ela perce­beu, com sensação de culpa, que esperava com verdadeira ansie­dade as comemorações do Natal. Ela gostava da movimentação toda, mas tinha vergonha de admiti-lo a Desmond. Por um momento ela desejou que Desmond não tivesse vindo no Natal. Era muito mais divertido ver Desmond em Londres do que em casa.

Enquanto isso, os meninos e Bridget voltavam do lago, ainda discutindo seriamente os problemas da patinação. Os flocos de neve continuavam a cair e, olhando-se para o céu, poder-se-ia profetizar que dentro em breve haveria neve pesada.

— Vai nevar a noite toda — disse Collin. — Aposto com vocês que na manhã de Natal teremos uns sessenta centímetros de neve.

A perspectiva era agradável.

— Vamos fazer um boneco de neve — disse Michael.

— Nossa! — exclamou Colin. — Eu não faço um boneco de neve desde... bem, desde que eu tinha uns quatro anos.

— Não acho que seja assim tão fácil de fazer — disse Bridget. — Quer dizer, é preciso saber fazer.

— Poderíamos fazer a efígie do M. Poirot — acrescentou Colin. — A gente bota um bigodão preto. Tem um lá no baú de fan­tasias.

— Eu não entendo, sabe — disse Michael, pensativo — como é que o M. Poirot podia ser detetive. Não vejo como ele podia se dis­farçar.

— É mesmo — concordou Bridget, — e não dá para imaginar ele com uma lente, procurando pistas e medindo pegadas.

— Tive uma idéia — disse Colin. — Vamos fazer uma encena­ção para ele!

— O que é que você quer dizer com encenação? — perguntou Bridget.

— Bem, preparar um crime para ele.

— Que idéia brilhante! — exclamou Bridget. — Você quer dizer um corpo na neve — esse tipo de coisa?

— Exatamente. Ele se sentiria em casa, não é mesmo?

Bridget deu uma risadinha.

— Nunca pensei que eu pudesse chegar a tanto.

— Se nevar — disse Colin, — teremos um ambiente perfeito. Um corpo e pegadas — teremos que combinar tudo cuidadosamente, apanhar um dos punhais do vovô e fazer um pouco de sangue.

Deram uma parada e, esquecidos da neve que caía rapida­mente, iniciaram uma discussão animada.

— Tem uma caixa de tinta lá na velha sala de aula. Podería­mos preparar um pouco de sangue — carmesim, eu acho.

— Carmesim é muito rosado, eu acho — discordou Bridget. — Tem que ser um pouco mais puxado para o marrom.

— Quem vai ser o corpo? — perguntou Michael.

— Eu! — respondeu Bridget rapidamente.

— Ah, essa não — disse Colin. — A idéia foi minha.

— Não, não e não — retrucou Bridget, — tem que ser eu. Tem que ser uma menina. É mais emocionante. Bela menina esten­dida morta sobre a neve.

— Bela menina! Ah-ha — disse Michael zombando.

— Além do mais, meu cabelo é preto — acrescentou Bridget.

— E daí?

— Bem, é que sobressai na neve, e aí eu visto meu pijama vermelho.

— Se você usar pijama vermelho, as manchas de sangue não vão aparecer — disse Michael, com espírito prático.

— Mas causa tanto efeito na neve — disse Bridget, — e é enfeitado de branco, onde poderia ficar o sangue. Não vai ser óti­mo? Vocês acham que ele vai acreditar mesmo?

— Vai sim, se nós capricharmos — disse Michael. — Vamos fazer as suas pegadas na neve e as de uma outra pessoa indo até o corpo e voltando — um homem, é claro. Ele não vai querer desman­chá-las, e aí não vai saber que você não está morta de verdade. Vocês não acham — Michael parou subitamente, atingido por uma idéia. Os outros olharam para ele. — Vocês não acham que ele pode ficar chateado com a brincadeira?

— Ah, eu acho que não — respondeu Bridget, de otimismo fácil.

— Tenho certeza que ele vai entender que fizemos a brinca­deira só para diverti-lo. Uma espécie de trote de Natal.

— Acho que não deveríamos fazer no dia de Natal — disse

Colin pensativo. — Acho que vovô não ia gostar muito.

— Um dia depois do Natal, então — disse Bridget.

— Está bem — concordou Michael.

— E nós teremos mais tempo, também — prosseguiu Bridget. — Afinal de contas, temos muito o que fazer. Vamos dar uma olhada nas coisas que a gente vai usar.

Correram para dentro da casa.

 

A noite foi bem movimentada. Azevinho e visco foram trazidos em grande quantidade, e uma árvore de Natal foi feita numa das extremidades da sala de jantar. Todos ajudaram a decorá-la, a arrumar os ramos de azevinho atrás dos quadros e a pendurar o visco num lugar adequado do vestíbulo.

— Nunca pensei que ainda existisse coisa tão arcaica — murmurou Desmond a Sarah, com ar de deboche.

— Sempre fizemos isso — respondeu Sarah, na defensiva.

— Bela explicação!

— Ora, não seja enjoado, Desmond. Eu acho divertido.

— Sarah, minha boneca, não é possível!

— Bem, pode ser que não, mas de certa forma eu acho.

— Quem vai enfrentar a neve para ir à Missa do Galo? — perguntou a Sra. Lacey, aos vinte minutos para a meia-noite.

— Eu não — disse Desmond. — Venha cá, Sarah.

Segurando o braço da moça, Desmond levou-a para a biblioteca e foram para junto do gravador.

— Tudo tem limites, querida — disse Desmond. — Missa do Galo!

— É sim — disse Sarah. — É mesmo.

Vestindo os casacos e pisando firme no chão, quase todos os demais saíram, em meio a muita risada. Os dois meninos, David e Diana, se dispuseram a caminhar durante dez minutos, com a neve caindo, até a igreja. As risadas foram sumindo na distância.

— Missa do Galo! — exclamou o Coronel Lacey, bufando. — Nunca fui à Missa do Galo em minha juventude! Missa, essa é boa! Carolice, isso sim! Oh, perdão, M. Poirot.

Poirot fez um aceno com a mão.

— Está tudo bem. Não se preocupe comigo.

— As missas matinais são suficientes para todo mundo, diria eu — acrescentou o Coronel. — Como as missas das manhãs de do­mingo. “Escutai os anjos cantando” e todos os belos hinos de Natal. E depois a ceia de Natal. Isso é o bastante, não é, Em?

— É, querido — respondeu a Sra. Lacey. — Isto é o que nós fazemos. Mas os jovens gostam de missa da meia-noite. E acho mesmo muito bom que eles queiram ir.

— Sarah e aquele sujeito não quiseram ir.

— Bem, querido, acho que você está enganado — disse a Sra. Lacey. — Sarah, você bem sabe, queria ir, embora não quisesse admiti-lo.

— Não entendo como ela se preocupa com a opinião daquele sujeito.

— Ela é realmente muito jovem — disse a Sra. Lacey placidamente. — O senhor vai se deitar, M. Poirot? Boa noite. Espero que durma bem.

— E a senhora, Madame? Não vai se deitar ainda?

— Daqui a pouquinho — respondeu a Sra. Lacey. — Tenho que encher as meias, o senhor sabe. Ah, eu sei que já são todos praticamente adultos, mas eles realmente gostam das meias. A gente faz umas brincadeirinhas! Coisa tola, mas sempre serve para alegrar um bocado.

— A senhora trabalha demais para tornar esta casa feliz no Natal — disse Poirot. — Meus cumprimentos.

Poirot levou a mão dela a seus lábios, de maneira cortês.

— Ha — grunhiu o Coronel Lacey quando Poirot saiu. — Um tipo um tanto rebuscado. Ainda assim ... ele parece gostar de você.

A Sra. Lacey sorriu para ele.

— Você reparou, Horace, que eu estou debaixo de um visco? — perguntou, com o decoro de uma menina de dezenove anos.

Hercule Poirot entrou em seu quarto. Era bastante grande, equipado com radiadores. Ao se encaminhar para sua imponente cama, observou um envelope em cima do travesseiro. Abriu-o e reti­rou um pedaço de papel. Era uma mensagem escrita com letras tre­midas e maiúsculas:

 

“NÃO COMA NENHUM PEDAÇO DO PUDIM DE PASSAS.

UMA PESSOA QUE LHE QUER BEM.”

 

Hercule Poirot olhou a mensagem fixamente. Levantou as sobrancelhas.

— Enigmático — murmurou — e altamente inesperado.

IV

A ceia de Natal começou às duas horas da tarde, e foi um verdadeiro banquete. Enormes toras de madeira crepitavam alegremente na grande lareira, e mais alto que o crepitar elevava-se a babel de muitas línguas falando ao mesmo tempo. A sopa de ostras havia sido consumida, dois enormes perus tinham chegado e saído, meras carcaças da forma anterior. E agora, o momento sublime, o pudim de Natal foi servido com toda pompa. O velho Peverell, as mãos e os joelhos trêmulos devido à fraqueza de seus oitenta anos, não permitia que ninguém além dele o trouxesse. Á Sra. Lacey per­manecia sentada, pressionando as mãos em nervosa apreensão. Em algum Natal, tinha certeza, Peverell cairia morto. Tendo que esco­lher entre deixá-lo cair morto ou ferir seus sentimentos a tal ponto que ele talvez preferisse estar morto a vivo, até o momento preferira a primeira alternativa. Numa bandeja de prata, o pudim de Natal repousava em sua glória. Um pudim do tamanho de uma grande bola de futebol, com um ramo de azevinho espetado como uma bandeira triunfante e gloriosas chamas vermelhas e azuis ao seu redor. Ou­viram-se aplausos e exclamações de “Oh!, Ah!”.

Uma coisa a Sra. Lacey fizera: convencera Peverell a colocar o pudim à sua frente para que ela pudesse servir, ao invés de ele ir passando ao redor da mesa para que cada um se servisse. Suspirou de alívio quando o pudim foi depositado em segurança à sua frente. Os pratos foram passando rapidamente, as chamas ainda lambendo os pedaços.

— Faça um desejo, M. Poirot — gritou Bridget. — Faça um desejo antes que a chama se apague. Depressa, vozinho, depressa.

A Sra. Lacey se recostou com um suspiro de satisfação. Em frente de cada um havia um pedaço com a chama ainda acesa. Houve um silêncio momentâneo em toda a mesa, todos desejando com fervor.

Ninguém pôde perceber a expressão um tanto curiosa do rosto de M. Poirot, enquanto ele examinava o pedaço de pudim em seu prato. “Não coma nenhum pedaço do pudim de passas.” Que signi­ficado poderia ter tão sinistra recomendação? Não podia haver nada de diferente entre o seu pedaço do pudim de passas e os dos de­mais! Suspirando ao se reconhecer desconcertado — e Hercule Poirot jamais gostou de se reconhecer desconcertado — apanhou a colher e o garfo.

— Calda de açúcar, M. Poirot?

Poirot serviu-se consideravelmente de calda de açúcar.

— Surrupiou meu melhor conhaque outra vez, hein, Em? — disse o Coronel, bem-humorado, da outra extremidade da mesa. A Sra. Lacey piscou para ele.

— A Sra. Ross insistia em usar o melhor conhaque, querido — falou. — Diz ela que tudo depende disso.

— Bem, bem — disse o Coronel Lacey, — Natal só temos uma vez por ano, e a Sra. Ross é uma excelente pessoa. Excelente pessoa e excelente cozinheira.

— E é mesmo — concordou Colin. — Este pudim de passas está divino. Mmmm. — Encheu a boca com deleite.

Gentilmente, quase com escrúpulos, Hercule Poirot atacou seu pedaço de pudim. Comeu uma enorme colherada. Estava delicioso! Investigou com o garfo. Bridget, à sua esquerda, veio em sua ajuda. Alguma coisa retiniu de leve em seu prato.

— O senhor ganhou alguma coisa, M. Poirot — disse ela. — Nem imagino o que seja,

Poirot destacou um pequenino objeto de prata das passas que se agarravam a ele.

— Ih! — disse Bridget — é o emblema de solteirão! M. Poirot ganhou o emblema de solteirão.

Hercule Poirot mergulhou o pequeno botão de prata no vaso-de-dedos colocado ao lado de seu prato, para tirar as migalhas do pudim.

— Muito bonitinho — observou.

— Quer dizer que o senhor vai ficar solteiro, M. Poirot — expli­cou Colin prestativamente.

— Já era de se esperar — disse Poirot com gravidade. — Sou solteiro há muitos e muitos anos e é pouco provável que mude de status agora.

— Ah, jamais diga dessa água não beberei — disse Michael. — Eu li outro dia no jornal que um sujeito de noventa e cinco anos se casou com uma moça de vinte e dois.

— Você me estimula — disse Hercule Poirot.

O Coronel Lacey soltou uma exclamação súbita. Seu rosto tor­nou-se rubro e levou as mãos à boca.

— Raios a partam, Emmeline — urrou, — por que você deixou a cozinheira pôr vidro no pudim?

— Vidro?! — exclamou a Sra. Lacey, atônita.

O Coronel Lacey retirou o material cortante da boca.

— Poderia ter quebrado um dente — resmungou. — Ou ter engolido esta droga e ficado com apendicite.

Mergulhou o pedaço de vidro no vaso-de-dedos, lavou-o e depois levantou-o.

— Meu santo Deus! — exclamou. — É uma pedra vermelha caída de um daqueles broches de fantasia. — Segurou-a no alto.

— O senhor me permite?

Com muito cuidado, Poirot esticou-se na frente de seu vizinho, retirou a pedra dos dedos do Coronel Lacey e examinou-a atenta­mente. Conforme dissera o dono da casa, era uma enorme pedra vermelha, da cor de um rubi. Girando a pedra, Poirot percebeu que suas facetas brilhavam. Em algum lugar da mesa, uma cadeira foi empurrada abruptamente, e depois voltou a posição anterior.

— Fiu! — assoviou Michael. — Que estranho se ela fosse verdadeira.

— Talvez seja verdadeira — disse Bridget, esperançosamente.

— Ora, não seja idiota, Bridget. Puxa, um rubi deste tamanho valeria milhares e milhares e milhares de libras. Não é mesmo, M. Poirot?

— Valeria mesmo — respondeu Poirot.

— Mas o que eu não consigo entender — interrompeu a Sra. Lacey, — é como ele foi parar dentro do pudim.

— Uau! — exclamou Colin, entretido com a última colherada. — Eu ganhei o porco. Não é justo.

Bridget cantou imediatamente:

— Colin ganhou o porco! Colin ganhou o porco! Colin é o porco guloso e beberrão.

— Eu tirei o anel — disse Diana, em voz alta e clara.

— Sorte a sua, Diana. Você vai se casar antes de todos nós.

— Eu tirei o dedal — lamentou-se Bridget.

— Bridget vai ficar para tia — cantaram os dois meninos. — Bridget vai ficar para tia.

— Quem tirou o dinheiro? — perguntou David. — Tem uma moeda verdadeira de dez shillings, de ouro, no pudim. Eu sei. A Sra. Ross me contou.

— Acho que sou eu o felizardo — disse Desmond Lee-Wortley.

Os dois vizinhos do Coronel Lacey ouviram-no murmurar:

— É, tinha que ser.

— E eu também ganhei um anel — disse David. Olhou para Diana. — Que coincidência, não é?

As risadas prosseguiram. Ninguém percebeu que Poirot, assim como quem está pensando em outra coisa, havia displicentemente guardado a pedra em seu bolso.

As tortas de frutas e as sobremesas de Natal seguiram-se ao pudim. Depois, os mais velhos do grupo se retiraram para uma merecida sesta, antes da cerimônia do chá e do acender das lu­zes da árvore de Natal. Hercule Poirot, no entanto, não tirou sua so­neca. Ao invés disso, encaminhou-se para a enorme e antiquada cozinha.

— Será que me permitem — perguntou, correndo os olhos e sorrindo, — que eu felicite a cozinheira pela esplêndida refeição que acabo de saborear?

Houve um momento de pausa, e então a Sra. Ross aproximou-se de maneira imponente. Era uma mulher graúda, de constituição nobre e dignidade teatral de uma duquesa. Duas mulheres magras e grisalhas estavam mais adiante, na copa, lavando os pratos, é uma moça de cabelos louro-pálido caminhava de lá para cá, entre a copa e a cozinha. Mas estas, nitidamente, apenas obedeciam ordens. A Sra. Ross era a rainha do setor de culinária.

— Alegra-me o senhor ter gostado, sir — disse graciosamente.

— Gostado! — gritou Hercule Poirot. Com um gesto extravagantemente estrangeiro, levou sua própria mãos aos lábios, beijou-a e jogou o beijo para o teto. — A senhora é um gênio, Sra. Ross! Um gênio! Jamais provara eu comida tão maravilhosa. A sopa de ostras — fez um barulho expressivo com os lábios — e o recheio. O recheio de nozes do peru, este foi para mim uma experiência única.

— Bem, e engraçado que o senhor diga isso, sir — falou a Sra. Ross, graciosamente. — É uma receita muito especial, a do recheio. Me foi dada por um mestre-cuca austríaco com quem trabalhei há muitos anos. Mas o resto — acrescentou — não passa da simples e boa cozinha inglesa.

— E existe algo melhor? — indagou Poirot.

— É muita bondade sua dizer isso, sir. É claro que, sendo o senhor estrangeiro, talvez preferisse o estilo do continente. Não que eu não saiba preparar pratos do continente também.

— Tenho certeza, Sra. Ross, que a senhora seria capaz de executar qualquer coisa! Mas a senhora deve saber que a cozinha inglesa — a boa cozinha inglesa, não a que se encontra em hotéis ou restaurantes de segunda classe — é muito apreciada pelos gourmets do continente, e, se não me engano, no início do século dezenove enviaram uma expedição especial a Londres, que mandou um re­latório para a França falando das maravilhas dos pudins ingleses. “Não existe nada no gênero na França”, escreveram. “Vale a pena fazer a viagem até Londres nem que seja só para provar as varie­dades e delícias dos pudins ingleses”. E acima de todos os pudins — prosseguiu Poirot, já enlevado num tipo de rapsódia — está o pudim de passas de Natal, como o que saboreamos hoje. Foi feito em casa, não foi?

— Mas é claro, sir. Eu mesma o fiz, seguindo minha própria receita de muitos e muitos anos. Quando vim para cá, a Sra. Lacey disse que havia encomendado um pudim numa loja de Londres. Não, Madame, falei, foi muita bondade sua, mas nenhum pudim com­prado pronto se compara ao feito em casa. Veja bem — disse a Sra. Ross, entusiasmando-se com a arte do assunto — que ele não foi feito muito antes do dia de ser comido. Um bom pudim de Natal tem que ser feito semanas antes, para poder apurar o gosto. Quanto mais tempo antes, dentro de limites, melhor ele fica. Lembro-me agora que, quando eu era criança e íamos à igreja aos domingos, es­perávamos pela coleta que começava assim: “Despertai, ó Senhor, nós Vos imploramos”, porque esta coleta era o sinal, por assim dizer, de que os pudins deveriam ser feitos naquela semana. E eram sempre feitos. Havia a coleta no domingo, e naquela semana, com toda certeza, minha mãe fazia os pudins de Natal. E assim é que deveria ter sido este ano. Mas, na verdade, o pudim foi feito há apenas três dias, um dia antes do senhor chegar. No entanto, mantive o velho costume. Todas as pessoas da casa vieram até a cozinha, deram uma mexida no pudim e fizeram um desejo. É um velho costume, sir, e não me desligo dele.

— Muito interessante — disse Hercule Poirot. — Muito interessante. Quer dizer que todos estiveram na cozinha?

— Sim, senhor. O jovem cavalheiro, a Srta. Bridget e o rapaz de Londres que está hospedado aqui, e a irmã dele, e o Sr. David e a Srta. Diana — Sra. Middleton, melhor dizendo. Todos deram uma mexida, sim.

— Quantos pudins a senhora fez? Só este?

— Não, sir, fiz quatro pudins. Dois grandes e dois pequenos. O outro pudim grande eu pretendia servir no dia de Ano Novo, e os pequenos eram para o Coronel e a Sra. Lacey, quando estiverem sozinhos, sem o resto da família.

— Entendo, entendo — disse Poirot.

— A bem da verdade, sir — disse a Sra. Ross — os senhores comeram o pudim errado no almoço.

— O pudim errado? — Poirot franziu a testa. — Como assim?

— Bem, sir, nós temos uma fôrma grande de Natal. Uma fôrma de louça com o desenho de azevinhos e viscos na base e sempre cozinhamos nela o pudim do dia de Natal. Mas houve um acidente muito desagradável. Hoje de manhã, quando Annie estava tirando a fôrma da prateleira da despensa, ela escorregou, a fôrma caiu e se quebrou. Bem, sir, é claro que eu não poderia servi-lo, não é mesmo? Podia ter alguns cacos. Então tivemos que servir o outro — o do dia de Ano Novo, que estava numa vasilha lisa. Tem um for­mato bonito, mas não é tão decorativa quanto a fôrma de Natal. Na verdade não sei aonde vamos conseguir outra fôrma daquela. Nin­guém faz mais nada daquele tamanho. É tudo muito miudinho. Ora, basta dizer que não se consegue mais comprar um prato para café da manhã onde caibam de oito a dez ovos e o bacon. Ah, as coisas não são mais como antigamente.

— Não mesmo — disse Poirot. — Mas hoje foi diferente. Este Natal foi igualzinho aos Natais de antigamente, não é verdade?

A Sra. Ross suspirou.

— Bem, alegra-me que o senhor diga isso, sir, mas é cla­ro que não tive a mesma ajuda que costumava ter. Ajuda especia­lizada, entende? Essas meninas de hoje — ela baixou ligeiramen­te a voz — elas se esforçam e têm boa vontade, mas não foram treinadas, sir, se o senhor me entende.

— É, os tempos mudam — disse Hercule Poirot. — Eu tam­bém fico um pouco triste, às vezes.

— Esta casa, sir — prosseguiu a Sra. Ross — é muito grande para a patroa e o Coronel, o senhor sabe. A patroa sabe disso. Viver apenas num canto, como eles fazem, não é a mesma coisa. A casa só ganha vida no Natal, quando a família se reúne.

— É a primeira vez, creio eu, que o Sr. Lee-Wortley e a irmã vêm aqui?

— E sim, sir. — Uma nota de ligeira reserva se insinuou na voz da Sra. Ross. — Ele é muito gentil, mas, bem... é um amigo um pouco estranho para a Srta. Sarah, de acordo com nossas idéias. Mas, que fazer? Em Londres tudo é diferente! É uma pena que a irmã dele esteja tão mal. Fez uma operação. Ela parecia estar bem no dia em que chegou, mas naquele mesmo dia, depois que todos mexeram o pudim, ela teve uma recaída e está de cama até agora. Acho que se levantou logo depois da operação. Ah, esses médicos de hoje, eles mandam a gente para fora do hospital antes mesmo da gente conseguir se firmar sobre as pernas. Ora, a esposa do meu próprio sobrinho...

E a Sra. Ross iniciou uma longa e espirituosa fábula sobre tratamento hospitalar, segundo seus parentes, comparando-a desfavoravelmente com a consideração que costumava ser dispensada aos doentes em outras épocas.

Como era seu dever, Poirot se compadeceu dela.

— Resta ainda — falou — agradecer-lhe pela refeição suntuosa e requintada. A senhora permite um pequeno reconhecimento de minha apreciação?

Uma nota novinha de cinco libras foi empurrada da mão de Poirot para a da Sra. Ross, que disse negligentemente:

— O senhor não precisava fazer isto, sir.

— Eu insisto. Eu insisto.

— Bem, é muita bondade sua, sir. — A Sra. Ross aceitou o tributo, como era sua obrigação. — E eu lhe desejo, sir, um Natal muito feliz e um Próspero Ano Novo.

 

O dia de Natal acabou como costuma acabar a maioria dos dias de Natal. Acenderam a árvore, serviram um esplêndido bolo de Natal na hora do chá, que foi recebido com alegria, mas consumido com moderação. Houve um jantar frio.

Tanto Poirot como seus anfitriões recolheram-se cedo.

— Boa noite, M. Poirot — disse a Sra. Lacey. — Espero que te­nha se divertido.

— Foi um dia maravilhoso, Madame, maravilhoso.

— O senhor está muito pensativo — observou a Sra. Lacey.

— Faço considerações sobre o pudim inglês.

— Será que talvez estivesse um pouco pesado? — perguntou a Sra. Lacey, delicadamente.

— Não, não, não são considerações gastronômicas. Considero seu significado.

— É tradicional, é claro — disse a Sra. Lacey. — Bem, boa noite, M. Poirot, e não sonhe demais com pudins de Natal e tortas de frutas.

— É — murmurou Poirot ao se despedir. — Não deixa de ser um problema, este pudim de passas do Natal. Existe nele algo que não compreendo de maneira nenhuma. — Abanou a cabeça de modo irritado. — Bem... veremos.

Depois de algumas preparações, Poirot se deitou, mas não para dormir.

Sua paciência foi recompensada umas duas horas depois. A porta de seu quarto foi aberta gentilmente. Sorriu de si para si. Era exatamente como ele pensou que seria. Sua mente se voltou, por pouco tempo, para a xícara de café que lhe fora entregue por Desmond Lee-Wortley, com toda polidez. Logo depois, quando Desmond virou de costas, Poirot pôs a xícara na mesa por alguns instantes. Depois pegou-a de novo, aparentemente, e Desmond teve a satisfação, se aquilo era satisfação, de vê-lo tomar o café até a última gota. Mas um breve sorriso levantou o bigode de Poirot, enquanto ele refletia que uma outra pessoa, e não ele, deveria estar dormindo um sono profundo.

— O jovem e simpático David — disse Poirot de si para si — ele está preocupado, infeliz. Não lhe fará mal algum dormir um sono realmente profundo. E agora, o que vai acontecer?

Ele estava completamente imóvel, respirando de maneira regular, sugerindo ocasionalmente, mas muito de leve., um ronco.

Alguém se aproximou da cama e curvou-se sobre ele. Então, satisfeito, este alguém virou-se de costas e foi até a penteadeira. O visitante examinava os pertences de Poirot, muito bem arrumados sobre o móvel, à luz de uma pequenina lanterna. Os dedos exami­naram a carteira de dinheiro, abriram gentilmente as gavetas, e depois passaram a vasculhar os bolsos das roupas de Poirot. Final­mente, o visitante aproximou-se da cama e, com extrema cautela, escorregou a mão sob o travesseiro. Ao retirar a mão, permaneceu um ou dois minutos parado, sem saber bem o que fazer em seguida. Andou pelo quarto olhando seus enfeites, entrou no banheiro contí­guo, de onde saiu logo depois. Então, com uma ligeira exclamação de desapontamento, retirou-se do quarto.

— Ah — disse Poirot, num sussurro. — Ficou desapontado. Sim, sim, seriamente desapontado. Ora! Imaginar, então, que Hercule Poirot esconderia alguma coisa onde você pudesse encon­trar. — Depois, virando-se para o outro lado, dormiu em paz.

Na manhã seguinte, foi acordado por batidas leves e insistentes em sua porta.

— Oui est là? Entre, entre.

A porta se abriu. Sem respiração, o rosto vermelho, Colin estava de pé no limiar da porta. Atrás dele estava Michael.

— Monsieur Poirot, Monsieur Poirot.

— Sim? — Poirot sentou-se na cama. — Já é o café da manhã? Ah, não. É você, Colin. O que houve?

Por um momento, Colin ficou sem fala. Parecia estar sob gran­de impacto emocional. A bem da verdade, fora a visão da touca de dormir usada por Hercule Poirot que lhe afetara momentaneamente os órgãos da fala. Logo depois conseguiu se controlar e disse:

— Eu acho ... M. Poirot, o senhor poderia nos ajudar? Acon­teceu uma coisa terrível.

— Aconteceu alguma coisa? Mas o quê?

— É... é Bridget. Ela está lá fora na neve. Eu acho... ela não se move e nem diz nada... Oh, é melhor o senhor ir ver pessoalmen­te. Estou com muito medo... ela pode estar morta.

— O quê? — Poirot jogou de lado as cobertas. — Mademoi­selle Bridget... morta!

— Acho... acho que alguém a matou. Tem... tem sangue e... oh, venha, por favor!

— Mas é claro. Mas é claro. Irei neste minuto.

Com grande habilidade, Poirot enfiou os pés no sapato e vestiu um casaco forrado de pele sobre o pijama.

— Estou indo — falou. — Irei neste minuto. Vocês acordaram o restante da casa?

— Não. Não, até agora não falamos com ninguém além do senhor. Achei que seria melhor. Vovô e vovó ainda não se levanta­ram. O café está sendo servido lá embaixo, mas não falei nada com Peverell. Ela — Bridget — está do outro lado da casa, perto do terraço e da janela da biblioteca.

— Entendo. Mostrem-me o caminho. Eu vou atrás.

Virando-se de costas para esconder um sorriso de satisfação, Colin desceu as escadas na frente de todos. Saíram pela porta lateral. A manhã era límpida e o sol ainda não estava acima do ho­rizonte. Não nevava no momento, mas nevara bastante durante a noite e, por toda parte, havia um tapete intacto de neve espessa. O mundo parecia muito puro e branco e belo.

— Ali! — disse Colin sem fôlego. — Eu... bem... ali! — Apontou dramaticamente.

A bem da verdade, a cena era um tanto dramática. A poucos metros de distância, Bridget estendia-se na neve. Usava um pijama escarlate e um agasalho de lã branca sobre os ombros. O agasalho de lã branca estava manchado de carmesim. A cabeça estava virada de lado e escondida pela massa de seus negros cabelos, espalhados. Um dos braços estava debaixo de seu corpo, o outro estendido, os dedos da mão cerrados e, surgindo de bem do centro da mancha carmesim, o cabo de uma grande faca do Curdistão que o Coronel Lacey mostrara a seus convidados nada mais nada menos do que no dia anterior.

— Mon Dieu! — exclamou M. Poirot. — Parece coisa de teatro.

Michael emitiu um ligeiro ruído de riso abafado. Colin pôs-se a falar rapidamente.

— Eu sei — disse ele. — Bem... de alguma forma não parece real, não é? Mas o senhor está vendo estas pegadas? Acho que não deveríamos desmanchá-las.

— Ah, sim, as pegadas. Não, devemos ter cuidado para não desmanchá-las.

— Foi o que pensei — disse Colin. — Por isso é que não deixei ninguém chegar perto dela antes do senhor vir até aqui. Achei que o senhor saberia o que fazer.

— Mesmo assim — disse Hercule Poirot, rapidamente — em primeiro lugar temos que ver se ela ainda está viva! Não é mesmo?

— Bem... sim... é claro — disse Michael, um pouco em dúvida, — mas sabe, nós pensamos ... quer dizer, não gostaríamos...

— Ah, vocês são prudentes! Leram histórias de detetives. É da maior importância que não se mexa em nada e que o corpo per­maneça como está. Mas ainda não podemos ter certeza de que se trata de um corpo, ou podemos? Afinal de contas, embora a prudên­cia seja admirável, os sentimentos humanos vêm em primeiro lugar. Temos que pensar no médico, não é mesmo, antes de pensarmos na polícia.

— Ah, sim. É claro — disse Colin, ainda um pouco desconcer­tado.

— Nós apenas achamos... quer dizer... achamos que devíamos chamar o senhor antes de qualquer coisa — disse Michael, apressadamente.

— Então fiquem vocês dois aqui — disse Poirot. — Vou pelo outro lado para não desmanchar as pegadas. Pegadas excelentes, não é mesmo, muito bem delineadas. Pegadas de um homem e de uma menina indo para o local onde ela se encontra. E depois as pegadas do homem volta, mas as da menina — não.

— Devem ser as pegadas do assassino — disse Colin, o fôlego contido.

— Exatamente — disse Poirot. — As pegadas do assassino. Um pé longo e estreito, com um sapato característico. Muito inte­ressante. E fácil, creio eu, de reconhecer. Sim, estas pegadas serão muito importantes.

Nesse momento, Desmond Lee-Wortley saiu de casa com Sarah, e se juntaram ao grupo.

— Que diabo vocês estão fazendo aqui? — perguntou de maneira um tanto teatral. — O que houve? Santo Deus, o que é aqui­lo? Pa... parece...

— Exatamente — disse Hercule Poirot. — Parece um assassi­nato, não é mesmo?

Sarah ficou boquiaberta, depois lançou um olhar rápido e suspeito aos dois meninos.

— O senhor quer dizer que alguém matou a garota... como é mesmo o nome dela. — Bridget? — perguntou Desmond. — Quem quereria matá-la? Inacreditável!

— Existem muitas coisas inacreditáveis — disse Poirot. — Principalmente antes do café, não é mesmo? E o que diz um dos clássicos de vocês. Seis coisas impossíveis antes do café da manhã. — E acrescentou: — Por favor esperem aqui, todos vocês.

Fez a volta cuidadosamente, aproximou-se de Bridget e cur­vou-se sobre o corpo durante alguns instantes. Colin e Michael já se sacudiam todos, por causa do riso contido. Sarah juntou-se a eles, murmurando:

— O que é que vocês andaram aprontando?

— Bridget, amiga velha — sussurrou Colin. — Ela não está maravilhosa? Nem um movimentozinho!

— Nunca vi nada tão morto como Bridget parece estar agora — sussurrou Michael.

Hercule Poirot levantou-se de novo.

— Que coisa mais terrível — disse. Sua voz demonstrava uma emoção inexistente até aquele momento.

Dominados pelo riso, Michael e Colin viraram-se de costas. Com voz sufocada, Michael perguntou:

— O que... o que vamos fazer agora?

— Só há uma coisa a fazer — disse Poirot. — Temos que chamar a polícia. Será que um de vocês poderia telefonar, ou pre­ferem que eu o faça?

— Eu acho — disse Colin, — eu acho... o que é que você acha, Michael?

— É — disse Michael — acho que está na hora de acabar a brincadeira. — Deu um passo adiante. — Pela primeira vez aparen­tava insegurança. — Mil desculpas — falou, — espero que o senhor não fique muito zangado. Foi... bem... foi uma espécie de brincadei­rinha de Natal, o senhor entende. Nós achamos que... bem, achamos que poderíamos encenar um crime para o senhor.

— Acharam que poderiam encenar um crime para mim? Quer dizer que então que... então isso...

— E apenas um espetáculo que criamos — explicou Colin, — Para... para que o senhor se sentisse à vontade, entende?

— Ah — disse Hercule Poirot. — Compreendo. Pregaram-me um primeiro-de-abril, não é isso? Mas acontece que hoje não é primeiro de abril, é vinte e seis de dezembro.

— Acho que, na verdade, não deveríamos ter feito isso — disse Colin, — mas... mas... o senhor não ficou muito zangado, ficou, M. Poirot? Pronto, Bridget — gritou ele, — pode se levantar. Você já deve estar quase congelada.

A figura na neve, entretanto, não se moveu.

— Estranho — disse Hercule Poirot — ela não parece estar ouvindo vocês. — Olhou para os dois com ar pensativo. — Vocês disseram que é uma brincadeira? Vocês têm certeza de que é brincadeira?

— Ora, é claro — disse Colin, pouco à vontade. — Nós... nós não queríamos fazer nada demais.

— Mas então por que Mademoiselle Bridget não se levanta?

— Não faço a menor idéia — disse Colin.

— Vamos, Bridget — disse Sarah com impaciência. — Não fique aí deitada que nem uma boba.

— Sentimos muito mesmo, M. Poirot — disse Colin, apreen­sivo. — Mil perdões.

— Não precisam ficar se desculpando — disse Poirot, num tom peculiar.

— O que o senhor quer dizer? — Colin olhou-o fixamente. Virou-se de novo. — Bridget! Bridget! O que é que está havendo? Por que ela não se levanta? Por que fica lá deitada?

Poirot fez um sinal para Desmond.

— O senhor, Sr. Lee-Wortley. Venha cá.

Desmond aproximou-se.

— Tome o pulso dela — disse Poirot.

Desmond Lee-Wortley abaixou-se. Tocou o braço, o pulso.

— Não tem pulso... — arregalou os olhos para Poirot. — O braço dela está duro. Santo Deus, ela está morta mesmo!

Poirot confirmou com a cabeça.

— Sim, ela está morta. Alguém transformou esta comédia em tragédia.

— Alguém — quem?

— Existem várias pegadas indo e vindo. Pegadas extrema­mente semelhantes às que o senhor fez neste minuto, Sr. Lee-Wortley, para vir até aqui.

Desmond Lee-Wortley girou o corpo.

— Que diabo... O senhor está me acusando? A MIM? O senhor está maluco? Por que cargas d’água eu iria matar essa garota?

— Ah... porquê? Eu posso imaginar... vejamos...

Abaixou-se, e gentilmente abriu os dedos enrijecidos da mão fechada da menina.

Desmond perdeu a respiração. Olhava fixamente para baixo sem acreditar. Na palma da mão da menina morta estava o que pa­recia ser um imenso rubi.

— É aquele troço que estava dentro do pudim! — gritou.

— É — perguntou Poirot. — Tem certeza?

— Claro que é.

Com um movimento rápido, Desmond se abaixou e tirou a pe­dra vermelha da mão de Bridget.

— O senhor não deveria ter feito isso — disse Poirot, com um ar de reprovação. — Não se deve mexer em nada.

— Eu não mexi no corpo, mexi? Mas esta coisa poderia... po­deria se perder e é uma evidência. O mais importante é fazer com que a polícia chegue aqui o mais rápido possível. Vou telefonar imediatamente.

Fez a volta e disparou em direção a casa. Sarah veio rapida­mente para o lado de Poirot.

— Eu não entendo — murmurou ela. Seu rosto aparentava uma palidez mortal. — Eu não entendo. — Segurou o braço de Poirot. — O que o senhor quis dizer com... com aquele negócio das pegadas?

— Veja com seus próprios olhos, Mademoiselle.

As pegadas que iam e vinham do corpo eram iguais às que iam e saíam do lado de Poirot.

— O senhor quer dizer... que foi Desmond? Bobagem!

Subitamente, o barulho de um carro cortou o ar límpido. Todos se voltaram. Viram nitidamente o carro se afastando numa veloci­dade incrível, e Sarah o reconheceu.

— É Desmond — falou. — É o carro de Desmond. Ele... ele deve ter ido buscar a polícia ao invés de telefonar.

Diana Middleton saiu de casa correndo e se juntou a eles.

— O que houve? — gritou, quase sem fôlego. — Desmond entrou em casa voando. Disse qualquer coisa a respeito de Bridget ter sido assassinada, começou a sacudir o telefone, mas estava mudo. Disse que a única coisa a fazer era pegar o carro e ir até a polícia. Por que a polícia?...

Poirot fez um gesto.

— Bridget? — Diana olhou-o fixamente.   — Mas natural­mente... não seria uma espécie de piada? Ouvi algo... algo a res­peito ontem à noite. Pensei que iam pregar uma peça no senhor, M. Poirot.

— Exato — disse Poirot, — era essa a intenção... pregar uma peça a mim. Mas vamos para casa, todos nós. Vamos pegar uma gripe mortal aqui e, além do mais, nada há a fazer até que o Sr. Lee-Wortley volte com a polícia.

— Espere aí — disse Colin, — não podemos... não podemos deixar Bridget aqui sozinha.

— Não adianta nada você ficar — disse Poirot, gentilmente. — Vamos, é uma tragédia, muito triste, mas não há nada que pos­samos fazer para ajudar Mademoiselle Bridget. Então vamos entrar, nos aquecer e, quem sabe, tomar uma xícara de chá ou de café.

Seguiram-no obedientemente para dentro de casa. Peverell estava prestes a soar o gongo. Se achou estranho que a maioria dos hóspedes estivesse fora de casa, e que Poirot fizesse sua aparição de pijama e sobretudo, nada demonstrou. Apesar da idade avançada, Peverell ainda era um perfeito mordomo. Não observava nada que não lhe fosse pedido. Entraram na sala de jantar e sentaram-se. Quando todos já se tinham servido de café e o tomavam em peque­nos goles, Poirot falou:

— Tenho uma pequenina história para lhes contar. Não posso entrar em detalhes, isso não. Mas posso dar uma idéia geral. Tra­ta-se de um jovem príncipe que veio a este país. Trouxe consigo uma famosa jóia, que receberia um novo engaste antes de ser dada de presente à moça com quem iria se casar. Mas, infelizmente, antes disso ele conheceu uma jovem muito graciosa. Esta jovem graciosa não dava muita importância ao rapaz, mas dava extrema importância à jóia — tanto assim que ela desapareceu juntamente com o objeto histórico, que pertencia à casa do príncipe há várias gerações. De forma que, como vocês podem perceber, o infeliz jovem encontra-se num dilema. O escândalo precisa ser evitado, acima de tudo. Impossível recorrer à polícia. Então, ele recorre a mim, a Hercule Poirot. “Recupere para mim”, disse ele, “meu histórico rubi”. Eh bien, esta jovem tem um amigo que já efetuou diversas transa­ções duvidosas. Esteve envolvido em chantagens e em venda de jóias no exterior. Tem sempre demonstrado muita inteligência. Há suspeitas sobre ele, sim, mas nada pode ser provado. Chegou a meu conhecimento que este inteligente cavalheiro viria passar o Natal aqui nesta casa. É importante que a jovem graciosa, uma vez conseguida a jóia, suma de circulação por uns tempos, para que não sofra pressões e para que não responda perguntas. Fica combinado, portanto, que ela venha aqui para Kings Lacey, ostensivamente como irmã do cavalheiro inteligente...

Sarah respirou fundo.

— Ah, não. Ah, não, aqui não! Não comigo aqui!

— Mas é assim que é — disse Poirot. — E, com um pequeni­no arranjo, eu também sou convidado para o Natal. A tal jovem supostamente acaba de sair do hospital. Ao chegar aqui, está bem melhor. Mas depois chega a notícia de que eu viria também, um de­tetive — um detetive famoso. Na mesma hora ela tem uma recaída. Esconde o rubi no primeiro lugar que lhe vem à mente e depois, com grande rapidez, tem a tal recaída que a leva de volta para a cama. Ela não quer que eu a veja porque, sem dúvida alguma, tenho uma fotografia e vou reconhecê-la. E muito maçante para ela, sim, mas tem que ficar em seu quarto enquanto o irmão lhe leva as bandejas.

— E o rubi? — perguntou Michael.

— Eu acho — prosseguiu Poirot — que no momento em que minha vinda foi mencionada, a moça estava na cozinha com vocês, todos rindo e falando e mexendo os pudins de Natal. Os pudins são colocados em tigelas e a moça esconde o rubi,’empurrando-o para o fundo de uma das tigelas com pudim. Não o que vamos comer no Natal. Ah, não, este ela sabe que está numa tigela especial. O rubi é posto numa outra, na que deve ser servida no Dia de Ano Novo. Antes disso ela irá embora e, ao sair, sem dúvida alguma levará o pudim de Natal. Mas vejam a mão do destino. Na manhã do dia de Natal acontece um acidente. O pudim de Natal, em sua fôrma própria, cai no chão duro e a fôrma se estilhaça por completo. O que pode ser feito, então? A bondosa Sra. Ross apanha o outro pudim para servir.

— Santo Deus — disse Colin, — quer dizer, então, que no dia de Natal era um rubi de verdade aquilo que foi parar na boca do vovô?

— Precisamente — respondeu Poirot, — e você bem pode ima­ginar as emoções do Sr. Desmond Lee-Wortley ao ver aquilo. Eh bien, o que acontece em seguida? O rubi passa de mão em mão. Eu o examino e consigo colocá-lo em meu bolso sem ser notado. De modo displicente, como se aquilo não me interessasse. Mas uma pessoa, pelo menos uma, observa o que fiz. Ao me deitar, essa pessoa dá uma busca em meu quarto. Dá uma busca em mim. Não encontra o rubi. Por quê?

— Porque — disse Michael, sem fôlego — o senhor o havia entregue a Bridget. Por isso. Então foi por isso... mas não estou entendendo direito... quer dizer... Escute aqui, o que aconteceu de fato?

Poirot sorriu para ele.

— Venha até a biblioteca — falou — e olhem pela janela, porque lhes mostrarei algo que talvez explique o mistério.

Saiu andando na frente e todos o seguiram.

— Examinem mais uma vez — disse Poirot — a cena do crime.

Apontou para fora da janela. Uma exclamação simultânea partiu dos lábios de todos. Não havia corpo algum sobre a neve, nenhum vestígio da tragédia, a não ser um monte de neve amarro­tada.

— Não foi sonho, aquilo, foi? — perguntou Colin, com voz su­mida. — Eu... alguém levou o corpo?

— Ah — disse Poirot. — Estão vendo? O Mistério do Corpo Desaparecido. — Fez um gesto afirmativo com a cabeça e piscou gentilmente.

— Santo Deus — gritou Michael. — M. Poirot, o senhor está... o senhor não... ora, vejam só, ele nos tapeou o tempo todo!

Poirot piscou mais do que nunca.

— É verdade, meus garotos. Também eu preguei minha pequenina peça. Eu sabia do arranjo de vocês, entendem, de forma que combinei um contra-arranjo meu mesmo. Ah, voilá, Mademoi­selle Bridget. Não lhe aconteceu nada por ter ficado exposta na neve? Assim espero. Jamais me perdoaria se você pegasse une fluxion de poitrine.

Bridget acabara de entrar no aposento. Vestia uma saia grossa e um suéter de lã. Estava rindo a valer.

— Mandei um tisane para o seu quarto — disse Poirot, muito sério. — Já o bebeu?

— Um gole foi suficiente! — respondeu Bridget. — Eu estou bem. Saí-me bem, M. Poirot? Nossa, meu braço ainda dói, mesmo depois daquele torniquete que o senhor me mandou usar.

— Você esteve esplêndida, minha filha — disse Poirot. — Esplêndida. Mas veja, os outros ainda estão meio perdidos. Ontem à noite procurei Mademoiselle Bridget. Disse-lhe que sabia da exis­tência do pequeno complô de vocês e perguntei se ela poderia repre­sentar um papel para mim. Ela o fez com muita inteligência. Fez as pegadas com um par de sapatos do Sr. Lee-Wortley.

Sarah falou com voz áspera:

— Qual o objetivo de tudo isso, M. Poirot? Para que o senhor mandou Desmond ir chamar a polícia? Vão ficar muito zangados quando descobrirem que tudo não passa de piada.

— Mas não creio nem por um minuto, Mademoiselle, que o Sr. Lee-Wortley tenha ido chamar a polícia. Assassinato é o tipo da coisa com que o Sr. Lee-Wortley não gostaria de se ver envolvido. Ele per­deu completamente o controle. A única coisa que conseguia ver era a oportunidade de recuperar o rubi. Apanhou-o, fingiu que o telefo­ne estava enguiçado e fugiu em seu carro, pretensamente para ir buscar a polícia. Eu, particularmente, acho que foi a última vez que você o viu, pelo menos durante um bom tempo. Ele tem, se não me engano, seus próprios meios de sair da Inglaterra. Ele tem um avião particular, não é verdade, Mademoiselle?

Sarah assentiu com a cabeça.

— Tem. Nós estávamos pensando em... — Parou de falar.

— Ele queria que você fugisse com ele dessa forma, não é verdade? Eh bien, é uma boa maneira de se contrabandear uma jóia para fora do país. Quando você está fugindo com uma moça, e o fato ganha publicidade, ninguém suspeitará que você também esteja contrabandeando uma jóia histórica para o exterior. Ah, sim, a camuflagem seria perfeita.

— Não acredito — disse Sarah. — Não acredito em nada disso!

— Então pergunte à irmã dele — disse Poirot, gentilmente acenando a cabeça sobre o ombro. Sarah virou o rosto rapidamente.

Uma mulher de cabelos louros esbranquiçados encontrava-se de pé na soleira da porta. Vestia um casaco de peles e trazia o ce­nho franzido. Estava visivelmente furiosa.

— Irmã uma ova! — disse, com um riso breve e desagradá­vel. — Aquele imbecil não é meu irmão porcaria nenhuma! Quer dizer que ele se arrancou, não é, e me deixou na pior? Foi tudo idéia dele. Ele é que me meteu nisso! Disse que a grana era garantida. Que nunca haveria processo, por causa do escândalo. A todo mo­mento eu podia ameaçar dizer que Ali me dera a pedra histórica. Des e eu íamos dividir a moamba em Paris... e agora o animal me deixa na mão! Se eu pudesse eu o matava! — Virou-se abruptamente. — Quanto mais rápido eu sair daqui... Será que alguém pode chamar um táxi?

— Há um carro à sua espera na porta da frente, para lhe levar até a estação, Mademoiselle — disse Poirot.

— O senhor pensa em tudo, não é?

— Quase tudo — respondeu Poirot, complacentemente.

Mas Poirot não conseguiu se livrar com tanta facilidade. Ao voltar para a sala de jantar, depois de ver a falsa Senhorita Lee-Wortley entrar no carro, encontrou Colin à sua espera.

Seu rosto infantil tinha um ar carrancudo.

— Escute aqui, M. Poirot. E o rubi? Quer dizer que o senhor permitiu que o levassem?

As feições de Poirot tomaram um ar de desânimo. Torceu os bigodes. Parecia pouco à vontade.

— Ainda hei de recuperá-lo — disse com voz fraca. — Existem outros meios. Ou ainda...

— Muito bonito! — exclamou Michael. — Deixar aquele im­becil fugir com o rubi.

Bridget foi mais incisiva.

— Ele está nos tapeando de novo! — gritou. — Não é verdade, M. Poirot?

— Vamos fazer nosso último truque em parceria, Made­moiselle? Apalpe o meu bolso esquerdo.

Bridget enfiou a mão. Retirou-a com uma exclamação de triunfo e segurou no alto o enorme rubi, brilhando em esplendoroso carme­sim.

— Você entende — explicou Poirot, — que o que pus em sua mão foi uma perfeita réplica. Trouxe-o de Londres, caso precisasse fazer alguma substituição. Entendem? Não queremos escândalos. Monsieur Desmond tentará se desfazer do rubi em Paris ou na Bél­gica, ou onde quer que ele tenha seus contatos. Descobrirá, então, que a pedra não é a verdadeira! Poderia haver algo melhor? Tudo acaba bem. Evita-se o escândalo, o meu jovem príncipe recupera o rubi, volta para o seu país e realiza um casamento sóbrio e, espe­ramos, feliz. Tudo acaba bem.

— Menos eu — murmurou Sarah, com voz sumida.

Ela falou tão baixo que ninguém a ouviu, exceto Poirot. Abanou a cabeça, gentilmente.

— Você se engana, Mademoiselle Sarah, nisso que está di­zendo. Você ganhou experiência. E toda experiência é valiosa. À sua frente, eu profetizo, encontra-se a felicidade.

— Isto é o que o senhor diz — retrucou Sarah.

— Mas escute aqui, M. Poirot — Colin franzia a testa, — e como é que o senhor sabia da peça que tínhamos combinado?

— Meu ofício é saber as coisas — respondeu Hercule Poirot. Torceu o bigode.

— Eu sei, mas não entendo como conseguiu ficar sabendo. Alguém deu com a língua nos dentes... alguém lhe disse alguma coisa?

— Não, não, isso não.

— Então, como? Diga como foi.

Todos repetiram em coro:

— Diga como foi.

— Isso não — protestou Poirot. — Isso não. Se eu lhes disser como deduzi, perderia todo o valor. É como se o mágico, ao fim do espetáculo, explicasse todos os seus truques!

— Conte, M. Poirot! Vamos, diga logo!

— Vocês realmente querem que eu resolva este último misté­rio para vocês?

— Queremos sim. Diga logo.

— Ah, acho que não posso. Vocês ficariam tão desapontados...

— Ora, M. Poirot, conte. Como é que o senhor sabia?

— Bem, vamos lá. Eu estava numa cadeira perto da janela da biblioteca, depois do chá, um dia desses, repousando. Eu havia adormecido e, quando acordei, vocês estavam discutindo seus pla­nos lá fora, bem pertinho da minha janela, que estava aberta no alto.

— Só isso? Exclamou Colin, aborrecido. — Como foi simples!

— Não foi? — disse Hercule Poirot, sorrindo. — Viram? Vocês ficaram desapontados.

— Bem — disse Michael, — mas, de qualquer maneira, agora sabemos tudo.

— Sabemos? — murmurou Hercule Poirot para si mesmo. — Eu não. Eu, cujo ofício é saber as coisas.

— Dirigiu-se para o vestíbulo, abanando vagarosamente a ca­beça. Pela vigésima vez, mais ou menos, retirou do bolso um pedaço de papel um tanto sujo.

 

“NÃO COMA NENHUM PEDAÇO DO PUDIM DE PASSAS

ALGUÉM QUE LHE QUER BEM”.

 

Hercule Poirot abanou a cabeça, pensativo. Ele, que tudo podia explicar, não tinha explicação para isso! Humilhante. Quem teria escrito? Por que teria sido escrito? Até descobrir tudo, não teria um momento de paz. Subitamente despertou em seus sonhos e percebeu a exclamação peculiar de alguém que leva um susto. Olhou rápido para baixo. No chão, ocupada com uma escova e uma pá, havia uma criatura de cabelos louros pálidos, vestida num macacão florido. Tinha os olhos grandes e redondos fixados no pedaço de papel.

— Oh sir — disse a aparição. — Oh sir, por favor, sir.

— E quem é você, mon enfant? — indagou Poirot, jovialmente.

— Annie Bates, sir, por favor, sir. Estou aqui para ajudar a Sra. Ross. Não tive a intenção, sir, não tive intenção de... de fazer o que não devia. Minha intenção foi boa, sir. Pelo seu bem, quero dizer.

A mente de Poirot se iluminou. Mostrou o pedaço de papel sujo.

— Foi você que escreveu isso, Annie?

— Não quis fazer mal algum, sir. Não quis mesmo.

— Claro que não, Annie. — Sorriu para ela. — Mas vamos conversar. Por que escreveu isso?

— Bem, foram eles dois, sir. O Sr. Lee-Wortley e a irmã dele. Não que ela era irmã dele, tenho certeza. Nenhuma de nós achava isso! E ela não estava nem um tiquinho doente. Todo mundo podia ver isso. Pensamos — todas nós pensamos — que estava acontecendo alguma coisa esquisita. Vou contar tudo direitinho, sir. Eu estava no banheiro dela, botando as toalhas limpas, e ouvi pela porta. Ele estava no quarto dela, e os dois estavam conversando. Ouvi o que eles disseram, tintim por tintim. “O detetive”, ele falou. “Esse tal de Poirot que vem para cá. Temos que fazer alguma coisa. Temos que nos livrar dele o mais rápido possível”. E depois ele falou, de maneira meio grosseira, sinistra, baixando a voz, “Onde foi que você colocou?” E ela respondeu “No pudim”. Oh, sir, meu coração deu um pulo tão grande que eu pensei que ia parar de bater. Pensei que eles estavam querendo envenenar o senhor com o pudim de Natal. Eu não sabia o que fazer! A Sra. Ross, ela não ia me dar ouvidos. Foi então que eu tive a idéia de escrever um bilhete. Escrevi e pus no seu travesseiro, onde o senhor ia ver na hora de deitar. — Annie fez uma pausa, já sem fôlego.

Poirot examinou-a gravemente durante alguns segundos.

— Acho que você vê muitos filmes sensacionalistas, Annie — disse ele por fim, — ou será que está sendo afetada pela tele­visão? Mas o que importa é que você tem um bom coração e um pouco de engenhosidade. Quando eu voltar a Londres lhe enviarei um presente.

— Oh, eu agradeço, sir. Muito obrigada, sir.

— O que você gostaria, Annie, de ganhar de presente?

— O que eu quiser, sir? Posso pedir o que eu quiser?

— Dentro de limites — disse Hercule Poirot, prudentemente, — pode.

— Oh, sir, posso pedir um estojo de cosméticos? Que nem um daqueles estojos de verdade que a irmã do Sr. Lee-Wortley, sei que não era irmã, tinha?

— Pode — respondeu Poirot, — pode, acho que isso não é difícil. Interessante — refletiu ele, — outro dia eu estava num museu analisando algumas antigüidades da Babilônia, ou de um desses lugares, com milhares de anos — e dentre elas havia estojos de cosméticos. O coração da mulher não muda.

— Como disse, sir? — perguntou Annie.

— Nada — respondeu Poirot. — Estava pensando. Você ga­nhará seu estojo, minha filha.

— Oh, obrigada, sir. Oh, muitíssimo obrigada, sir.

Annie saiu em êxtase. Poirot seguiu-a com os olhos, balançando a cabeça, satisfeito.

— Ah — disse para si mesmo. — E agora... me vou. Não há mais nada a fazer aqui.

Um par de braços envolveu seus ombros, inesperadamente.

— Se o senhor quiser ficar de pé debaixo de um visco... — disse Bridget.

Hercule Poirot se divertiu. Divertiu-se bastante. Disse para si mesmo que tivera um excelente Natal.

 

           O MISTÉRIO DO BAÚ ESPANHOL

Extremamente pontual, como sempre, Hercule Poirot entrou na pequena sala onde a Srta. Lemmon, sua eficiente secretária, aguar­dava as instruções do dia.

À primeira vista, a Srta. Lemmon parecia ser completamente composta de ângulos — satisfazendo, assim, o gosto de Poirot pela simetria.                                                

Não que Hercule Poirot levasse a tal ponto sua paixão pela precisão geométrica, no que dizia respeito às mulheres. Era, pelo contrário, antiquado. Tinha um preconceito continental pelas curvas — curvas voluptuosas, melhor dizendo. Gostava que as mulheres fossem mulheres. Gostava de mulheres exuberantes, extremamente exageradas, exóticas. Houve uma certa condessa russa — mas há muitos anos atrás. Loucura da juventude.

Mas ele nunca considerara a Srta. Lemmon como mulher. Era uma máquina humana — um instrumento de precisão. De eficiência terrível. Tinha quarenta e oito anos de idade, e a sorte de não possuir qualquer espécie de imaginação.

— Bom dia, Srta. Lemmon.

— Bom dia, M. Poirot.

Poirot sentou-se e a Srta. Lemmon pôs à sua frente a correspondência da manhã, muito bem organizada por assuntos. Retomou seu lugar, lápis e papel em punho.

Mas, naquela manhã, haveria uma ligeira modificação na roti­na. Poirot trouxera consigo o jornal do dia, e seus olhos o percorriam com interesse. A manchete estava em letras garrafais:

 

         MISTÉRIO DO BAÚ ESPANHOL

         ÚLTIMOS DETALHES

 

— Já leu o jornal de hoje, não, Srta. Lemmon?

— Já, M. Poirot. A notícia de Genebra não é das melhores.

Poirot descartou a notícia de Genebra com um gesto significa­tivo do braço.

— Um baú espanhol — refletiu ele. — Srta. Lemmon, será que poderia me dizer o que vem a ser exatamente um baú espa­nhol?

— Suponho, M. Poirot, que seja um baú originário da Espanha.

— É o que se poderia supor. Então a senhorita não tem ne­nhum conhecimento específico?

— Costumam ser do período elizabetano, creio eu. Grandes, e com muitos enfeites de bronze na parte externa. Ficam muito bo­nitos, quando bem conservados e polidos. Minha irmã comprou um numa liquidação. É usado para guardar roupa de cama e mesa. Muito bonito.

— Tenho certeza de que na casa de qualquer uma de suas irmãs a mobília é bem conservada — disse Poirot, curvando-se com elegância.

A Srta. Lemmon replicou tristemente que as empregadas de hoje pareciam desconhecer o batente. Poirot ficou um pouco es­pantado, mas decidiu não perguntar o significado intrínseco da pa­lavra “batente”.

Voltou os olhos novamente para o jornal, fixando-se nos nomes: Major Rich, Sr. e Sra. Clayton, Comandante McLaren, Sr. e Sra. Spence. Nomes, nada além de nomes para ele; ainda assim cada qual possuía sua própria personalidade, odiando, amando, temendo. Um drama, este, no qual ele, Hercule Poirot, não tinha a menor participação. E como gostaria de participar! Seis pessoas numa festa, à noite, numa sala com um grande baú espanhol encostado na parede, seis pessoas, cinco das quais conversando, cada uma fazen­do seu prato, pondo discos na vitrola, dançando, e a sexta morta, no baú espanhol...

Ah, pensou Poirot. Como o meu querido amigo Hastings ia se divertir! Que vôos românticos de imaginação não teria! Que coisas fora de propósito não teria dito! Ah, ce cher Hastings, neste mo­mento, hoje, sinto falta dele... Ao invés...

Suspirou e olhou para a Srta. Lemmon. A Srta. Lemmon, percebendo inteligentemente que Poirot não se encontrava com humor adequado para ditar cartas, havia descoberto a máquina de es­crever e aguardava o momento propício para retomar uns trabalhos atrasados. Nada poderia interessá-la menos do que sinistros baús espanhóis contendo cadáveres.

Poirot suspirou e voltou os olhos para a fotografia de um rosto. As reproduções que apareciam nos jornais nunca eram muito boas, e esta estava decididamente borrada — mas que rosto! A Sra. Clayton, esposa do assassinado...

Obedecendo a um impulso, empurrou o jornal para a Srta. Lemmon.

— Olhe — ordenou. — Veja este rosto.

A Srta. Lemmon olhou obedientemente, sem emoção.

— O que acha dela, Srta. Lemmon? Esta é a Sra. Clayton.

A Srta. Lemmon apanhou o jornal, olhou a foto com negli­gência e fez a seguinte observação:

— Parece um pouco com a mulher do gerente do banco lá de Croydon Heath, onde moramos.

— Interessante — disse Poirot. — Conte-me, se não for incômodo, a história da mulher do gerente do banco.

— Bem, na verdade não se trata de uma história agradável, M. Poirot.

— Já imaginava que não o fosse. Continue.

— Falava-se muito... a respeito da Sra. Adams e de um jovem artista. Depois o Sr. Adams se matou. Mas a Sra. Adams não se casou com o outro homem e ele tomou um veneno qualquer, mas conseguiram salvá-lo; e, finalmente, a Sra. Adams casou-se com um jovem advogado. Acredito que ainda tenha havido mais problemas depois disso, só que nós saímos de Croydon Heath nessa ocasião, é claro, e não soubemos de mais nada.

Hercule Poirot balançou a cabeça com gravidade.

— Ela era bonita?

— Bem... não era exatamente bonita... Mas parecia haver alguma coisa nela...

— Exatamente. E o que vem a ser esta alguma coisa que elas possuem — as sereias do mundo! As Helenas de Tróia, as Cleópatras...?

A Srta. Lemmon colocou vigorosamente um papel na máquina de escrever.

— Ora, M. Poirot. Nunca pensei nesse assunto. Isso tudo me parece uma grande tolice. Se as pessoas se preocupassem apenas com seus afazeres e não pensassem nestas coisas, tudo seria muito melhor.

Descartando, dessa forma, a paixão e a fragilidade humanas, a Srta. Lemmon deixou os dedos sobre o teclado da máquina de escre­ver, aguardando com impaciência permissão para iniciar seu tra­balho.

— Este é o seu ponto de vista — disse Poirot. — E, neste exato momento, o seu desejo é ter permissão para dar continuidade ao seu trabalho. Mas o seu trabalho, Srta. Lemmon, não se restringe a anotar minhas cartas, arquivar meus papéis, receber telefonemas, datilografar minhas cartas... Todas estas coisas a senhorita faz admiravelmente bem. Ao passo que eu, eu não lido apenas com documentos, mas com seres humanos também. E também nestes casos preciso de assistência.

— Certamente, M. Poirot — disse a Srta. Lemmon paciente­mente. — O que é que o senhor quer que eu faça?

— Este caso me interessa. Ficaria satisfeito se a senhorita fi­zesse uma análise das notícias de hoje, em todos os jornais, e depois acrescentasse as notícias dos jornais da tarde... Apresente-me um resumo dos casos.

— Muito bem. M. Poirot.

Poirot retirou-se para a sua sala de estar, um sorriso triste no rosto.

— É realmente uma grande ironia — disse de si para si, — que depois de meu querido amigo Hastings eu tenha que recorrer à Srta. Lemmon! Que contraste maior poderia haver? Ce cher Has­tings... como não estaria se divertindo! Como não estaria andando para baixo e para cima, falando sobre o caso, dando as interpreta­ções mais românticas a cada incidente, acreditando em todas as palavras impressas nos jornais como quem acredita no evangelho! E a pobre da Srta. Lemmon não vai se divertir de jeito nenhum com o que pedi para ela fazer!

No momento devido, a Srta. Lemmon apareceu com uma folha datilografada.

— Aqui estão as informações que o senhor queria, M. Poirot. Receio, porém, que não mereçam total confiança. Os jornais variam muito quanto aos acontecimentos. Eu diria que os fatos apresenta­dos não são mais do que sessenta por cento corretos.

— Talvez seja uma estimativa conservadora — murmurou Poirot. — Obrigado, Srta. Lemmon, pelo incômodo.

Os fatos eram sensacionalistas, mas bastante claros. O Major Charles Rich, um solteirão abastado, dera uma festa para alguns amigos em seu apartamento. Estes amigos eram o Sr. e a Sra. Clayton, o Sr. e a Sra. Spence, e um tal de Comandante McLaren. O Comandante McLaren era um velho amigo, tanto de Rich como dos Claytons. O Sr. e a Sra. Spence, um casal mais jovem, eram amigos recentes. Arnold Clayton trabalhava no Ministério da Fazenda. Jeremy Spence era funcionário público. O Major Rich tinha quarenta e oito anos, Arnold Clayton cinqüenta e cinco, Comandante McLaren quarenta e seis, Jeremy Spence trinta e sete. Dizia-se que a Sra. Clayton era “alguns anos mais nova do que o marido”. Uma pessoa foi impossibilitada de comparecer à festa. Ã última hora, o Sr. Clayton fora chamado à Escócia para resolver uns negócios urgentes, e supunha-se que ele havia partido de King’s Cross no trem das 8hl5min.

Na festa, as coisas ocorreram como em todas as festas. Todos pareciam estar se divertindo. Não se tratava de uma festa devassa, com bebidas em excesso. Terminou por volta das 11h45min. Os quatro convidados saíram juntos e pegaram o mesmo táxi. O Co­mandante McLaren foi o primeiro a saltar, em seu clube; depois os Spences deixaram Margharita Clayton em Cardigan Gardens, logo depois da Rua Sloane, e seguiram para a casa deles em Chelsea.

A terrível descoberta ocorreu na manhã seguinte, tendo sido feita por William Burgess, empregado do Major Rich. Ele chegara cedo, a fim de pôr a sala de estar em ordem, antes de chamar o Major Rich para o seu chá matutino. Foi durante a arrumação que Burgess assustou-se ao perceber uma enorme mancha sujando o tapete de cor clara, onde se encontrava o baú espanhol. Parecia ha­ver escorrido de dentro do baú, e o mordomo imediatamente levantou a tampa e olhou o que havia lá dentro. Ficou horrorizado ao ver o corpo do Sr. Clayton, com um punhal atravessado no pescoço.

Obedecendo a um primeiro impulso, Burgess correu para a rua e trouxe o policial mais próximo.

Estes eram os fatos nus e crus. Mas havia alguns detalhes complementares. A polícia transmitira imediatamente a notícia à Sra. Clayton, que ficara “completamente prostrada”. Vira o marido pela última vez às dezoito horas do dia anterior. Ele chegara em casa bastante aborrecido por ter que ir à Escócia resolver uns negócios urgentes, relacionados a algumas propriedades suas. Insistira com a mulher para que ela fosse à festa sem ele. Depois o Sr. Clayton pas­sara no clube dele e do Comandante McLaren, tomara um drinque com o amigo, e explicara a situação. Olhando o relógio, dissera que só havia tempo de dar um pulo na casa do Major Rich para explicar-lhe o caso, e depois ir para King’s Cross. Tentara telefonar, mas a linha parecia estar enguiçada.

Segundo William Burgess, o Sr. Clayton chegara ao aparta­mento por volta das 7h55min. O Major Rich não estava em casa, mas era esperado a qualquer momento, de forma que Burgess sugeriu que o Sr. Clayton entrasse e esperasse. Clayton disse que não tinha tempo, mas que entraria para escrever um bilhete. Explicou que estava a caminho de King’s Cross para pegar o trem. O mordomo levou-o até a sala de estar e voltou para a cozinha, pois cuidava da preparação dos canapés para a festa. O mordomo não ouviu o patrão chegar, mas uns dez minutos depois o Major Rich foi até a cozinha e pediu a Burgess para ir depressa comprar uns cigarros turcos, que eram os preferidos da Sra. Spence. O mordomo saiu e, na volta, entregou os cigarros ao patrão, na sala de estar. O Sr. Clayton não estava lá, mas o mordomo pensou, naturalmente, que ele já saíra para pegar o trem.

A versão do Major Rich era curta e simples. O Sr. Clayton não se encontrava no apartamento quando ele chegou e ele não fazia a menor, idéia de que o amigo estivera lá. Nenhum bilhete lhe fora deixado, e ele só soube que o Sr. Clayton viajara para a Escócia depois da chegada da Sra. Clayton e dos demais convidados.

Os jornais da tarde traziam mais duas notícias. A Sra. Clayton, que estava “prostrada com o choque”, deixara seu apartamento em Cardigan Gardens e acreditava-se que ela se encontrasse em casa de amigos.

A segunda notícia estava na imprensa sensacionalista. O Major Rich fora acusado do assassinato de Arnold Clayton e preso.

— Então é isso — disse Poirot, levantando os olhos para a Srta. Lemmon. — A prisão do Major Rich já era esperada. Mas que caso extraordinário. Que caso mais extraordinário! Não acha?

— Acho que coisas assim acontecem, M. Poirot — respondeu a Srta. Lemmon, sem interesse.

— Oh, mas é claro! Acontecem todos os dias. Ou quase todos os dias. Mas, geralmente, são bastante compreensíveis... embora desgastantes.

— Trata-se de um assunto extremamente desagradável.

— Ser apunhalado e enfiado num baú espanhol deve ter sido extremamente desagradável para a vítima — extremamente! Mas quando digo que se trata de um caso extraordinário, refiro-me ao comportamento inusitado do Major Rich.

A Srta. Lemmon falou com ligeira repugnância:

— Parece haver a sugestão de que o Major Rich e a Sra. Clayton eram amigos muito íntimos... Como era uma sugestão, e não um fato concreto, resolvi não incluir.

— Muito correto de sua parte. Mas é o tipo da sugestão que salta aos olhos. Era tudo o que a senhorita tinha a dizer?

A expressão da Srta. Lemmon era de vazio total. Poirot suspi­rou, e sentiu saudades da imaginação rica e fértil de seu amigo Hastings. Discutir um caso com a Srta. Lemmon era nadar contra a corrente.

— Considere este tal de Major Rich por um momento. Ele está apaixonado pela Sra. Clayton — muito bem... Ele quer se livrar do marido dela — até aí tudo bem. Mas se a Sra. Clayton está apai­xonada por ele, e estão tendo um caso, qual a urgência disso? Será que o Sr. Clayton não queria dar o divórcio à mulher? Mas não é so­bre isso que estou falando. O Major Rich é um oficial reformado, e às vezes se diz que os oficiais não são lá muito brilhantes. Mas tout de même, este Major Rich, será ele, poderá ser, um completo imbecil?

A Srta. Lemmon não respondeu. Pensou se tratar de uma pergunta puramente de retórica.

— Bem — indagou Poirot. — O que a senhorita acha de tudo isso?

— O que eu acho? — A Srta. Lemmon ficou apavorada.

— Mais oui — a senhorita!

A Srta. Lemmon ajustou a mente ao esforço que lhe fora im­posto. Não era dada a nenhum tipo de especulação mental, a não ser que lhe fosse imposta. Nos momentos de lazer, sua mente enchia-se de detalhes de como montar um sistema de arquivos superlativamente perfeito. Era sua única recreação mental.

— Bem... — ela começou e fez uma pausa.

— Diga-me apenas o que aconteceu... o que a senhorita acha que aconteceu naquela noite. O Sr. Clayton está na sala de estar escrevendo um bilhete quando o Major Rich volta — e aí?

— Ele vê o Sr. Clayton lá. Eles... acho que discutem. O Major Rich o apunhala. Depois, quando vê o que fez, ele... ele coloca o corpo no baú. Afinal de contas, os convidados, acho eu, estavam para chegar a qualquer minuto.

— Sim, sim. Os convidados chegam! O corpo está no baú. A noite prossegue. Os convidados vão embora. E aí...

— Bem, aí eu acho que o Major Rich vai para a cama e... Oh!

— Ah — disse Poirot. — A senhorita percebeu agora. Você assassina um homem. Esconde o corpo dele no baú. E depois... vai tranqüilamente para a cama, sem se perturbar com o fato de que seu mordomo descobrirá o crime pela manhã.

— Acho que talvez houvesse a possibilidade de o mordomo não abrir o baú.

— Com uma enorme mancha de sangue no tapete, bem debai­xo dele?

— Talvez o Major Rich não tivesse percebido que havia san­gue.

— Não seria um tanto negligente da parte dele não dar uma olhada?

— Talvez estivesse muito perturbado — retrucou a Srta. Lemmon.

Poirot levantou as mãos num gesto de desespero.

A Srta. Lemmon aproveitou a oportunidade para sair da sala bem ligeiro.

II

A bem da verdade, Poirot não tinha nada a ver com o mistério do baú espanhol. No momento encontrava-se numa delicada missão para uma grande companhia petrolífera, em que um dos chefões fora possivelmente envolvido numa transação duvidosa. Era um assunto secreto, importante, e altamente lucrativo. Fora envolvido o suficiente para requisitar a atenção de Poirot, e havia a grande vantagem de requerer pouco esforço físico. O caso era sofisticado e sem derramamento de sangue. Crime do mais alto nível.

O mistério do baú espanhol era dramático e emocional; duas qualidades que, conforme Poirot freqüentemente alertava Hastings, podiam ser superestimadas — e na verdade o eram por este último. Poirot fora severo com ce cher Hastings neste ponto, e agora lá es­tava ele, comportando-se exatamente como teria feito seu amigo, obcecado por belas mulheres, crimes passionais, ciúme, ódio, e todas as outras causas românticas de um assassinato! Ele queria co­nhecer tudo a respeito do caso. Queria saber como era o Major Rich, e como era o seu mordomo Burgess, e como era Margharita Clayton (embora esta, pensou, ele já soubesse), e como fora o falecido Arnold Clayton (uma vez que ele supunha ser o caráter da vítima de importância vital num caso de assassinato), e até mesmo como eram o Comandante McLaren, amigo leal, e o Sr. e a Sra. Spence, conhe­cidos recentes.

E ele não via exatamente como satisfazer sua curiosidade!

Naquele dia ainda pensou no assunto.

Por que o caso o intrigava tanto? Chegou à conclusão, após refletir, de que era porque — da maneira como os fatos foram rela­tados — a coisa toda era mais ou menos impossível. Sim, havia um quê de euclidiano.

O primeiro ponto aceitável é que houvera uma discussão entre dois homens. Causa presumível: uma mulher. Um dos homens matou o outro no clímax da discussão. Sim, estas coisas acontecem — embora fosse mais aceitável que o marido tivesse matado o aman­te. Ainda assim — o amante matou o marido, apunhalando-o (?) — de certa forma uma arma um tanto ou quanto improvável. Tal­vez a mãe do Major Rich fosse italiana. Em algum ponto — certa­mente — haveria alguma coisa que explicasse a escolha do punhal como arma. De qualquer forma, tinha-se que aceitar o punhal (al­guns jornais diziam tratar-se de um estilete!). Estava à mão e fora usado. O corpo foi escondido no baú, o que era razoável e inevitá­vel. O crime não fora premeditado, o mordomo podia chegar a qual­quer momento, e quatro convidados chegariam em breve. Parecia ser a única saída.

A festa se realiza, os convidados saem, o empregado já fora embora — e — o Major Rich vai se deitar!

Para compreender tal coisa, era preciso conhecer o Major Rich e descobrir que tipo de homem age desta forma.

Será que, possuído pelo terror do que fizera e pelo tremendo esforço de aparentar normalidade durante toda uma noite, ele tomara um comprimido para dormir, ou um tranqüilizante que lhe provocara um sono tão profundo que acordara além de sua hora habitual? É possível. Ou seria o caso, fazendo jus a um psicólogo, em que o sentimento subconsciente da culpa do Major Rich fez com que ele quisesse que o crime fosse descoberto? Para se chegar a uma conclusão a esse respeito, era preciso conhecer o Major Rich. Tudo voltava à estaca...

O telefone tocou. Poirot deixou-o tocar algumas vezes, até que se lembrou que a Srta. Lemmon, depois de lhe trazer algumas cartas para assinar, já se fora há algum tempo, e que George provavelmen­te não estava em casa.

Apanhou o fone.

— M. Poirot?

— Ele mesmo.

— Oh, esplêndido! — Poirot piscou ligeiramente devido ao fervor da voz feminina. — Aqui é Abbie Chatterton.

— Ah, Lady Chatterton. Em que lhe posso ser útil?

— Vindo aqui o mais rápido possível, imediatamente, para um coquetel maravilhoso que estou oferecendo. Não exatamente para o coquetel — na verdade trata-se de algo bem diferente. Preciso do senhor. É absolutamente vital. Por favor, por favor, por favor não me desaponte. Não me diga que será impossível.

Poirot não estava pensando em dizer nada desse tipo. Lorde Chatterton, além de ser um par do reino e de fazer um ou outro discurso monótono na Casa dos Lordes, não era ninguém especial. Mas Lady Chatterton era uma das jóias mais caras daquilo que Poirot chamava de le haut monde. Tudo o que fazia ou dizia era novidade. Era inteligente, bonita, original, e tinha vitalidade suficiente para levar um foguete à lua.

Ela falou de novo:

— Preciso do senhor. Dê apenas uma ligeira voltinha nesse seu bigode maravilhoso, e venha!

Não foi tão rápido assim. Em primeiro lugar, Poirot tinha que fazer uma toalete meticulosa. Depois é que houve a voltinha do bigode e ele saiu.

A porta da deliciosa casa de Lady Chatterton, na Rua Cheriton, estava aberta. O barulho que vinha de dentro parecia o de um motim de animais no zoológico. Lady Chatterton, que entrelinha dois embaixadores, um jogador internacional de rugby e um evangelista americano em ação, delicadamente descartou-se de todos, com a rapidez de um truque de mão, e pôs-se ao lado de Poirot.

— M. Poirot, que prazer em vê-lo! Não, não tome este detestá­vel Martini. Tenho algo especial para o senhor — um tipo de xarope que os xeques bebem em Marrocos. Está no meu próprio quarto lá em cima.

Ela subiu na frente e Poirot a seguiu. Deu uma parada para falar sobre o ombro:

— Não cancelei a vinda destas pessoas porque é absolutamente essencial que ninguém perceba que há algo de especial aqui, e já prometi gordas gratificações aos empregados, se não deixarem es­capar nenhuma palavra. Afinal de contas, ninguém gosta de ver a própria casa assediada por repórteres. E a pobre coitada já teve tantos transtornos.

Lady Chatterton não parou no primeiro andar, continuando a subir.

Com falta de ar e um tanto ou quanto atônito, Hercule Poirot seguiu-a.

Lady Chatterton parou, deu uma rápida olhadela para baixo sobre o corrimão, e escancarou a porta, exclamando:

— Consegui, Margharita! Consegui! Ei-lo aqui!

Deu um passo para o lado, triunfante, deixou Poirot entrar e fez uma breve apresentação:

— Esta é Margharita Clayton. Ela é uma amiga muito, muito querida. O senhor vai ajudá-la, não vai? Margharita, este é o maravilhoso Hercule Poirot. Ele fará tudo o que você quiser, não é mesmo, caro M. Poirot?

E sem esperar pela resposta, que ela obviamente imaginava de antemão (durante toda a vida, Lady Chatterton não usara sua beleza em vão), saiu depressa do quarto e desceu as escadas, gritando indiscretamente: “Não posso ficar afastada daquelas pessoas detestáveis...”

A mulher que estivera sentada na cadeira junto à janela le­vantou-se e andou em direção a ele. Ele a teria reconhecido mesmo se Lady Chatterton não lhe tivesse dito o nome. Lá estavam aquela testa larga, muito larga, de onde saíam os cabelos pretos, como asas, os olhos acinzentados, distantes um do outro. Ela usava um vestido longo e justo, completamente preto, que acentuava a bele­za de seu corpo e a brancura de magnólia de sua pele. O rosto era mais estranho do que bonito — uma daquelas faces com proporções esquisitas, às vezes vistas em quadros primitivos italianos. Havia nela um certo ar de simplicidade medieval — uma inocência estra­nha que podia ser, pensou Poirot, mais devastadora do que qualquer sofisticação de volúpia. Falava com sinceridade quase infantil.

— Abbie me disse que o senhor me ajudaria...

Olhou-o gravemente, inquisidora.

Ele permaneceu imóvel durante alguns segundos, analisando-a atentamente. Mas não o fazia de maneira mal-educada. Parecia mais o olhar perscrutador que um médico famoso dispensa a um novo paciente.

— A senhora tem certeza, Madame — disse finalmente, — de que eu posso lhe ajudar?

Um ligeiro rubor subiu-lhe à face.

— Não entendi bem.

— O que a senhora quer que eu faça, Madame?

— Oh, — parecia estar surpresa. — Pensei... que o senhor soubesse quem sou eu.

— Sei quem é a senhora. Seu marido foi assassinado — apunhalado, e um tal de Major Rich foi preso e acusado do crime.

O rubor aumentou.

— O Major Rich não matou meu marido.

Rápido como um raio, Poirot replicou:

— Por que não?

Ela o encarava, confusa.

— Como... como disse?

— Eu a confundi — porque não fiz as perguntas que todos fazem — a polícia... os advogados... “Que motivos teria o Major Rich para matar Arnold Clayton?” Perguntei justamente o contrário. Perguntei, Madame, por que a senhora tem certeza de que o Major Rich não matou seu marido?

— Porque... — ela fez uma pausa — porque eu conheço o Major Rich muito bem.

— A senhora conhece o Major Rich muito bem — repetiu Poirot, sem entonação.

Fez uma pausa e disse abruptamente:

— Quão bem?

Se ela compreendera o que ele queria dizer, ele não pôde adivinhar. Pensou de si para si: “Eis aqui uma mulher de grande simplicidade ou de grande sutileza... Muita gente deve ter pensado o mesmo de Margharita Clayton...”

— Quão bem? — Ela olhava para ele, com ar de dúvida. — Cinco anos... não, quase seis anos.

— Não foi exatamente isso que perguntei... Procure compreen­der Madame, que terei que fazer perguntas indiscretas. Talvez a senhora fale a verdade, talvez minta. Às vezes as mulheres precisam mentir. Elas têm que se defender, e a mentira pode ser uma boa arma. Mas existem três pessoas, Madame, a quem a mulher deve dizer a verdade. Ao padre que a confessa, ao cabeleireiro e ao deteti­ve particular — se ela confiar nele. A senhora confia em mim, Madame?

Margharita Clayton respirou profundamente.

— Sim — respondeu, — confio. — E acrescentou: — É preciso.

— Muito bem, então. O que a senhora quer que eu faça — descubra quem matou seu marido?

— É, acho que sim.

— Então isso não é o essencial? A senhora quer que o Major Rich fique livre de suspeitas?

Ela assentiu com a cabeça rapidamente — e grata.

— Isto... e apenas isto?

Ele percebeu que a pergunta era desnecessária. Margharita Clayton era do tipo de mulher que só via uma coisa de cada vez.

— E agora — disse ele — vamos às perguntas indiscretas. A senhora e o Major Rich são amantes mesmo?

— O senhor quer saber se estamos tendo um caso? Não.

— Mas ele está apaixonado pela senhora?

— Está.

— E a senhora... está apaixonada por ele?

— Creio que sim.

— Mas não tem muita certeza?

— Eu tenho certeza... agora.

— Ah. Então a senhora não amava seu marido?

— Não.

— Suas respostas são admiravelmente simples. A maioria das mulheres daria uma explicação tão longa quanto seus sentimentos. Quanto tempo a senhora foi casada?

— Onze anos.

— A senhora poderia falar um pouco de seu marido — que tipo de homem ele era?

Ela franziu a testa.

— É difícil. Eu mesma não sei exatamente que tipo de homem era Arnold. Ele era muito calado... muito reservado. Ninguém sa­bia o que ele estava pensando. Era inteligente, é claro — todos diziam se tratar de uma pessoa brilhante — em seu trabalho... Ele não... como posso explicar?... Ele nunca dava explicação a seu res­peito...

— Ele a amava?

— Oh, sim. Acredito que sim. Caso contrário não teria se importado tanto... — calou-se subitamente.

— Com os outros homens? Era isso o que a senhora ia dizer? Ele era ciumento?

Novamente ela falou:

— Acredito que sim. — E depois, como se sentisse que a frase necessitasse de uma explicação, prosseguiu. — Às vezes ficava dias sem dar uma palavra...

Poirot assentiu com a cabeça, pensativo.

— Quanto a este tipo de violência — é a primeira vez que lhe acontece isso?

— Violência? — Ela franziu a testa, depois enrubesceu. — É... o senhor está se referindo àquele pobre rapaz que se matou?

— É — disse Poirot. — É a isso que me refiro.

— Não fazia a menor idéia de que se sentisse daquela forma... tinha pena dele — parecia ser tão tímido — tão solitário. Devia ser neurótico, acho eu. E depois ninguém morreu... E, honestamente, nunca dei a mínima bola para nenhum dos dois! E nem nunca fingi dar.

— Não. Havia apenas a sua presença! E onde a senhora está presente... as coisas acontecem! Já vi disso ao longo de minha vida. Exatamente porque a senhora não dá bola, os homens ficam loucos. Mas não é esse o caso do Major Rich. De forma que — precisamos fazer o possível...

Ficou calado durante um ou dois minutos.

Ela o observava com gravidade.

— Deixemos as personalidades, que geralmente são as coisas verdadeiramente importantes, e passemos aos fatos. Sei apenas o que foi dito nos jornais. De acordo com o que publicaram, apenas duas pessoas tiveram oportunidade para matar seu marido, apenas duas pessoas podem tê-lo matado: o Major Rich e o mordomo do Major Rich.

Ela voltou a insistir:

— Eu sei que Charles não o matou.

— Sendo assim, deve ter sido o mordomo. A senhora concorda?

Ela respondeu, com ar de dúvida.

— Entendo seu raciocínio...

— Mas tem lá suas dúvidas...

— Parece simplesmente — fantástico!

— Ainda assim, existe a possibilidade. Sem dúvida alguma seu marido foi ao apartamento, já que o corpo foi encontrado lá. Se a versão do mordomo for verdadeira, foi o Major Rich que o matou. Mas e se esta versão for falsa? Então quem o matou foi o mordomo, escondendo o corpo no baú antes da volta de seu patrão. Um meio excelente de se livrar do corpo, segundo o ponto de vista dele. Basta que ele “perceba a mancha de sangue” na manhã seguinte e “descubra” o corpo. A suspeita imediatamente cairá sobre Rich.

— Mas por que ele haveria de matar Arnold?

— Ah, por quê? O motivo não deve ser muito claro — caso contrário a polícia já teria investigado. Talvez seu marido soubesse de algo que pudesse desacreditar o mordomo, e estava prestes a pôr o Major Rich a par dos fatos. Seu marido alguma vez lhe falou alguma coisa sobre esse tal de Burgess?

Ela abanou a cabeça.

— A senhora acha que ele teria falado — se fosse realmente este o caso?

Ela franziu a testa.

— É difícil dizer. Provavelmente não. Arnold nunca falava muito das pessoas. Já lhe disse que era reservado. Não era... não era homem de muita conversa.

— Era um homem capaz de guardar segredos... Sim, e qual é a sua opinião sobre Burgess?

— Não é do tipo de chamar muita atenção. Um mordomo razoavelmente bom. Conveniente, mas não muito educado.

— De que idade?

— Em torno de trinta e sete ou trinta e oito anos, acho eu. Foi ordenança do exército durante a guerra, mas não era soldado.

— Há quanto tempo ele está com o Major Rich?

— Não faz muito tempo. Há um ano e meio, mais ou menos.

— E a senhora nunca notou nada estranho nos modos dele em relação a seu marido?

— Não íamos lá com muita freqüência. Não, nunca notei nada.

— Fale-me dos acontecimentos daquela noite. A que horas era a festa?

— Oito e quinze, oito e meia.

— E que tipo de festa ia ser?

— Bem, íamos tomar uns drinques, e depois haveria uma espé­cie de jantar — geralmente muito bons. Foie gràs e torradas quen­tes. Salmão defumado. Às vezes havia um prato quente de arroz — Charles aprendera uma receita especial no Oriente Próximo — mas que ele preferia servir no inverno. Depois ouvíamos música — Charles tinha uma excelente vitrola estereofônica. Tanto meu marido quanto Jock McLaren apreciavam muito os discos clássicos. E depois pusemos música para dançar — os Spences dançam muito bem. Esse tipo de coisa — uma noite calma e informal. Charles é um excelente anfitrião.

— E aquela noite em particular... foi igual às outras em que vocês lá estiveram? A senhora não notou nada de estranho... nada fora do lugar?

— Fora do lugar? — ela franziu a testa durante um minuto. — Quando o senhor falou que eu... não, não me lembro. Havia alguma coisa... — Abanou a cabeça novamente. — Não. A resposta para sua pergunta é: não havia nada de estranho naquela noite. Apenas nos divertimos. Todos pareciam tranqüilos e felizes. — Ela estre­meceu . — E pensar que o tempo todo...

Poirot fez um gesto rápido com a mão.

— Não pense. O tal negócio que o seu marido ia resolver na Escócia, o que a senhora sabe a esse respeito?

— Pouca coisa. Houve uma disputa sobre as limitações de venda de um terreno que pertencia a meu marido. A venda aparen­temente já fora consumada, mas depois surgiu um contratempo.

— O que foi que seu marido disse, exatamente?

— Ele chegou com um telegrama na mão. Se minha memória não falha, ele disse: “Que coisa desagradável. Tenho que pegar o noturno para Edimburgo e falar com Johnston amanhã logo cedo... É um aborrecimento, quando a gente pensava que tudo estava se resolvendo sem problemas.” Depois acrescentou: “Quer que eu ligue para Jock e peça a ele para vir buscá-la?” E eu disse: “Bo­bagem, eu tomo um táxi”, e ele disse que ou Jock ou os Spences me deixariam em casa. Perguntei se ele queria que lhe arrumasse uma mala, e ele respondeu que ia pôr coisas numa sacola e tomar um lanche no clube antes de pegar o trem. Depois saiu e — foi a última vez que o vi.

A voz dela falseou um pouco nestas últimas palavras.

Poirot olhou-a diretamente.

— Ele lhe mostrou o telegrama?

— Não.

— É uma pena.

— Por que diz isso?

Ao invés de responder à pergunta, disse rapidamente:

— E agora aos negócios. Quem são os advogados do Major Rich?

Ela disse e ele anotou o endereço.

— A senhora poderia escrever um bilhete para eu mostrar aos advogados? Gostaria de dar um jeito de ver o Major Rich.

— Ele... recebeu uma nova ordem de prisão para mais uma semana.

— Naturalmente. E o procedimento normal. A senhora poderia escrever um bilhete também para o Comandante McLaren e para os Spences? Gostaria de ver todos eles, e é essencial que não me batam a porta na cara.

Quando ela se encaminhava para a escrivaninha, ele acrescen­tou:

— Mais uma coisa. Farei um registro de minhas próprias impressões, mas quero também as suas — do Comandante McLaren e do Sr. e Sra. Spence.

— Jock é um de nossos amigos mais antigos. Conheço-o desde criança. Aparenta ser uma pessoa muito severa, mas na ver­dade é muito querido — sempre o mesmo — sempre digno de con­fiança. Não é alegre nem engraçado, mas tem grande firmeza — tanto eu como Arnold confiávamos muito em seu julgamento.

— E também ele, sem dúvida, está apaixonado pela senhora. — Os olhos de Poirot piscaram ligeiramente.

— Ah, sim — respondeu Margharita alegremente. — Ele sempre foi apaixonado por mim — mas agora já se tornou uma espé­cie de hábito.

— E os Spences?

— Eles são divertidos — e excelentes companheiros. Linda Spence é uma moça bastante inteligente. Arnold gostava de con­versar com ela. E é atraente, também.

— Vocês são amigas?

— Ela e eu? De certa forma. Mas não tenho muita certeza se gosto dela. É maliciosa demais.

— E o marido dela?

— Oh, Jeremy é agradabilíssimo. Muito musical. E entende um bocado de pintura. Ele e eu sempre vamos juntos às exposi­ções...

— Bem, bem, verei com meus próprios olhos. — Segurou a mão dela. — Espero, Madame, que a senhora não venha a se arre­pender de ter me pedido ajuda.

— Por que me arrependeria? — Os olhos dela se arregalaram.

— Nunca se sabe — respondeu Poirot dubiamente. — E eu, eu não sei — disse de si para si ao descer as escadas. O coquetel ainda estava bastante animado, mas ele conseguiu não ser importunado e ganhou a rua. — Não — repetiu. — Não sei.

Ele pensava em Margharita Clayton.

Aquela aparente sinceridade infantil, aquela franca inocência — Seria apenas aquilo? Ou tudo isso não passava de máscara? Houvera mulheres assim na Idade Média — mulheres sobre quem a história não conseguira entrar em acordo. Ele se lembrou de Maria Stuart, rainha da Escócia. Será que tinha conhecimento, naquela noite cm Kirk O’Fields, do que estava para acontecer? Ou estava completamente inocente? Será que os conspiradores não lhe haviam dito nada? Seria ela uma daquelas mulheres simples e in­fantis, capazes de dizer para si mesmas “Eu não sei”, e acreditar no que dizem? Ele sentia o encantamento de Margharita Clayton. Mas não estava inteiramente seguro a seu respeito...

Tais mulheres podiam ser, embora inocentes, a causa dos crimes.

Tais mulheres podiam ser, em desejo e propósito, verdadeiras criminosas, embora não em ação.

Suas mãos nunca empunhavam a faca.

Quanto a Margharita Clayton — não — ele não sabia!

III

Hercule Poirot não achou os advogados do Major Rich muito prestativos. E nem esperava o contrário.

Conseguiram demonstrar, embora sem dizer diretamente, que seria do total interesse de seu cliente que a Sra. Clayton não desse mostras de agir em seu favor.

A visita que Poirot fizera a eles fora em nome da “correção”. Tinha bastante entrada junto ao Ministério dos Negócios Interiores e ao CID para conseguir uma entrevista com o prisioneiro.

O Inspetor Miller, encarregado do caso Clayton, não era um dos preferidos de Poirot. No entanto, não era hostil em tais ocasiões, apenas desdenhoso.

— Não posso perder muito tempo com esse velho gagá — dis­sera ele ao sargento, antes de Poirot entrar. — Mesmo assim, devo ser educado.

— Você vai ter mesmo que realizar uns passes de mágica se quiser fazer alguma coisa por este sujeito, M. Poirot — observou ele alegremente. — Ninguém mais, além de Rich, poderia ter matado o cara.

— Exceto o mordomo.

— Ah, sim, o mordomo! Apenas como possibilidade. Mas você não descobrirá nada aí. Não há motivo de espécie alguma.

— Nunca se pode ter certeza total. Os motivos são coisas muito curiosas.

— Bem, ele não tinha nenhuma ligação com Clayton. Tem um passado completamente limpo. E não me parece estar doente da cabeça. O que mais deseja?

— Desejo provar que Rich não cometeu o crime.

— Para agradar à moça, hein? — O Inspetor Miller sorriu maldosamente. — Está sendo influenciado por ela, creio eu. Uma mulher e tanto, não? Cherchez la femme com uma vingança. Se tivesse tido oportunidade, você sabe, ela mesmo o teria feito.

— Isto não!

— Você ficaria espantado. Conheci uma mulher assim, certa vez. Tirou dois maridos de sua vida, apenas com um piscar de seus inocentes olhinhos azuis. Também ficou mortificada, nas duas vezes. O júri a teria absolvido, se tivesse tido oportunidade — mas não teve, dada à clareza das evidências.

— Bem, meu amigo, não vamos discutir. Atrevo-me apenas a perguntar alguns detalhes sobre o fato. Os jornais imprimem as notícias — mas nem sempre a verdade!

— Eles precisam se divertir. O que você quer saber?

— A hora da morte, o mais próximo possível.

— Que não pode ser muito exata porque o corpo só foi exami­nado na manhã seguinte. Calcula-se que a morte tenha ocorrido de treze a dez horas antes. Ou seja, entre sete e dez horas da noite an­terior... O punhal atravessou-lhe a jugular — a morte deve ter ocorrido em minutos.

— E a arma?

— Uma espécie de estilete italiano — bem pequeno — afiado como uma navalha. Ninguém o tinha visto antes, e nem sabe de onde surgiu. Mas saberemos no final de tudo... É uma questão de tempo e paciência.

— Poderia ter sido apanhado no decorrer de uma discussão.

— Não. O mordomo disse que aquilo não pertencia ao apartamento.

— O que me interessa é o telegrama — disse Poirot. — O telegrama que chamava Arnold Clayton à Escócia... Esta chamada era verdadeira?

— Não. Não havia nenhum problema lá. A transferência das terras, ou qualquer coisa no gênero, estava sendo resolvida normalmente.

— Então, quem enviou o telegrama? Presumo que tenha havido um telegrama.

— Deve ter havido... Não que necessariamente acreditemos na Sra. Clayton. Mas o próprio Clayton disse ao mordomo que recebera um telegrama chamando-o à Escócia. E disse, também, ao Coman­dante McLaren.

— A que horas ele esteve com o Comandante McLaren?

— Lancharam juntos no clube — Combined Services — isto por volta das sete e quinze. Depois Clayton pegou um táxi, chegando ao apartamento de Rich pouco antes das oito. Depois disso... — Miller abriu as mãos, as palmas voltadas para cima.

— Ninguém notou nada de estranho nas maneiras de Rich naquela noite?

— Ah, bem, o senhor sabe como são as pessoas. Depois do fato sabido, todos pensam ter notado uma porção de coisas que aposto nunca terem sido vistas. Agora, a Sra. Spence diz que ele estava distraído a noite toda. Nem sempre respondia ao que lhe era perguntado. Como se tivesse “alguma coisa em mente”. E eu aposto que tinha mesmo, com aquele corpo no baú! Imaginando que diabos faria para se livrar daquilo!

— E por que não se livrou?

— Não entendo. Talvez tenha perdido o controle. Mas foi lou­cura deixá-lo lá até o dia seguinte. Teve uma excelente oportunidade aquela noite. Não existe vigia noturno. Ele poderia ter trazido o car­ro, enfiado o corpo embrulhado na mala — a mala é bem grande — ido para o campo e estacionado o carro por lá. Talvez pudesse ter sido visto colocando o corpo na mala, mas os apartamentos ficam numa rua lateral, e existe um pátio por onde se pode passar com o carro. Ás três horas da manhã, digamos, as chances dele eram razoáveis. E o que faz ele? Vai se deitar, dorme até tarde na manhã seguinte, acordando com a polícia em seu apartamento!

— Foi se deitar e dormiu como dormiria um homem inocente.

— Interprete como quiser. Mas você acredita mesmo nisso?

— Tenho que deixar de lado esta questão até ver o homem com meus próprios olhos.

— Você acha que é capaz de reconhecer uma pessoa inocente apenas ao vê-la? Não é tão fácil assim.

— Sei que não é fácil — e nem ousaria dizer que sou capaz de tal coisa. Quero apenas saber se o homem é tão estúpido como parece.

IV

Poirot não pretendia ver Charles Rich antes de conhecer todos os outros.

Começou pelo Comandante McLaren.

McLaren era alto, moreno e pouco comunicativo. Tinha feições duras, mas agradáveis. Era tímido e de conversa difícil. Mas Poirot insistiu.

Segurando o bilhete de Margharita, McLaren falou, quase relutante:

— Bem, se Margharita quer que eu lhe diga o que sei, é claro que farei isso. Embora não saiba o que dizer. O senhor já ouviu tudo. Mas qualquer coisa que Margharita queira — sempre fiz todas as suas vontades — desde que ela tinha dezesseis anos. É o jeitinho dela, o senhor sabe.

— Sei, sim — respondeu Poirot, e prosseguiu: — Em primeiro lugar, gostaria que me respondesse uma pergunta com toda honestidade. O senhor acha que o Major Rich é o culpado?

— Acho, sim. Não diria isso a Margharita, já que ela quer que ele seja inocente, mas simplesmente não consigo ver outra saída. É o diabo, mas só pode ser ele o culpado.

— Havia alguma animosidade entre ele e o Sr. Clayton?

— Nem sombra. Arnold e Charles eram grandes amigos. E é isto que torna o caso tão extraordinário.

— Talvez a amizade entre o Major Rich e a Sra. Clayton...

Foi interrompido.

— Bah! Isso é balela. Todos os jornais fazem esta maldosa insinuação... Malditas indiretas! A Sra. Clayton e Rich eram bons amigos, e só! Margharita tem muitos amigos. EU sou seu amigo. Há anos. E não há nada que não possa ser dito a todo o mundo. A mesma coisa entre Charles e Margharita.

— Então o senhor acha que eles não estavam tendo um caso?

— Claro que NÃO! — McLaren estava irado. — Não dê ouvidos àquela víbora que é a Sra. Spence. Ela é capaz de dizer qualquer coisa.

— Mas talvez o senhor Clayton suspeitasse da existência de algo entre a mulher dele e o Major Rich.

— Pode ir por mim — ele não suspeitava de nada no gênero! Caso contrário, eu saberia. Arnold e eu éramos muito ligados.

— Que tipo de pessoa era ele? O senhor, mais do que qualquer um, deve saber.

— Bem, Arnold era um camarada tranqüilo. Mas era inteligen­te — brilhante, eu acho. O que eles chamam de cérebro financeiro de primeira classe. Ocupava um alto cargo no Ministério da Fazen­da, o senhor sabe.

— Foi o que me disseram.

— Lia um bocado. E colecionava selos. E gostava extrema­mente de música. Não dançava, e nem fazia muita questão de sair.

— O senhor acha que o casamento era feliz?

A resposta do Comandante McLaren não veio logo. Parecia estar se decidindo.

— Este tipo de coisa é difícil de dizer... Sim, acho que eram . Ele era devotado a ela, no seu modo tranqüilo. Tenho certeza de que ela gostava muito dele. Não pareciam estar prestes a se separar, se é isto que o senhor está imaginando. Talvez não tivessem muita coisa em comum.

Poirot assentiu. Era o máximo que conseguiria saber. Falou:

— Agora me fale sobre a última noite. O Sr. Clayton jantou com o senhor no clube. O que disse ele?

— Disse-me que tinha que ir à Escócia. Parecia estar aborre­cido com o fato. A propósito, não jantamos. Não dava tempo. Comeu sanduíches e tomou uns drinques. Só ele. Eu tomei apenas o drin­que. Lembre-se que eu ia a um jantar.

— O Sr. Clayton mencionou um telegrama?

— Mencionou.

— Ele chegou a lhe mostrar o telegrama?

— Não.

— Ele lhe disse que ia passar na casa de Rich?

— Não com certeza. Na verdade disse que tinha dúvidas se da­ria tempo. Falou: “Margharita pode explicar, ou então você.” E acrescentou: “Leve-a direitinho para casa, está bem?” Depois saiu. Foi tudo muito simples e natural.

— E ele nem desconfiava que o telegrama não era verdadeiro?

— Não era? — O Comandante McLaren ficou espantado.

— Aparentemente, não.

— Que estranho... — O Comandante McLaren entrou numa espécie de coma, saindo subitamente para dizer: — Mas é muito estranho. Quer dizer, qual o objetivo? Por que alguém quereria que ele fosse à Escócia?

— Esta é uma pergunta que, certamente, necessita de uma resposta.

Hercule Poirot saiu, deixando o comandante aparentemente elaborando o assunto.

 

Os Spences moravam numa pequenina casa em Chelsea.

Linda Spence recebeu Poirot com o maior prazer.

— Conte-me — falou. — Conte-me tudo sobre Margharita! Onde está ela?

— Não tenho autorização para lhe dizer isso, madame.

— Ela se escondeu bem! Margharita é muito inteligente para essas coisas. Mas ela vai ser chamada para depor no julgamento, não vai? Ela não vai conseguir se livrar disso.

Poirot avaliou-a com um olhar. Decidiu, de má vontade, que ela era atraente, de acordo com o estilo moderno (que, naquele mo­mento, ela parecia uma criança órfã e subnutrida). Não era do tipo que ele admirasse. O cabelo era artisticamente despenteado, dois olhos espertos o observavam, e o rosto, ligeiramente sujo, não tinha nenhuma pintura, excetuando-se os lábios, que tinham uma tonalidade vermelho-cereja. Vestia uma enorme suéter amarela-pálida, que lhe batia quase nos joelhos, e uma calça preta e justa.

— Qual seu papel nisso tudo? — perguntou a Sra. Spence. — Arranjar um jeito de tirar o namoradinho dessa fria? É isso? Que esperança!

— Então a senhora acha que ele é o culpado?

— Claro. Quem mais?

Esta, pensou Poirot, era exatamente a questão. Desviou-se com uma outra pergunta.

— Que impressão lhe causou o Major Rich naquela noite fatal? De normalidade? Ou de anormalidade?

Linda Spence levantou as sobrancelhas, ponderadamente.

— Não, ele não parecia o mesmo. Estava... diferente.

— Diferente como?

— Bem, é lógico que quando alguém acaba de apunhalar um homem a sangue-frio...

— Mas no momento a senhora não sabia que ele acabara de apunhalar um homem a sangue-frio. Ou sabia?

— Não, claro que não.

— Então como a senhora explica ele ter estado “diferente”? De que forma?

— Bem... distraído. Oh, não sei. Mas, pensando bem, depois cheguei à conclusão de que, definitivamente, havia alguma coisa.

Poirot suspirou.

— Quem chegou primeiro?

— Nós, Jim e eu. Depois Jock. E, finalmente, Margharita.

— E quando se mencionou pela primeira vez a ida do Sr. Clayton à Escócia?

— Quando Margharita chegou. Ela disse a Charles: “Arnold mandou pedir desculpas. Teve que ir às pressas para Edimburgo, no trem noturno.” E Charles disse: “Ora, que chato.” E depois Jock falou: “Desculpe. Pensei que você soubesse.” Depois tomamos uns drinques.

— Em algum momento o Major Rich mencionou ter visto o Sr. Clayton naquela noite?

— Não que eu tivesse escutado.

— Estranha, não é mesmo — disse Poirot, — a história do telegrama?

— O que é estranho?

— Era falso. Ninguém em Edimburgo tem conhecimento do fato.

— Então é isso. Bem que eu imaginei.

— A senhora tem uma explicação para o telegrama?

— Acho que salta aos olhos

— O que a senhora quer dizer, exatamente?

— Meu caro — replicou Linda. — Não banque o inocente. Brincadeira de um desconhecido para ver o marido pelas costas! Naquela noite, pelo menos, o terreno estaria livre.

— A senhora quer dizer que o Major Rich e a Sra. Clayton haviam planejado passar a noite juntos?

— O senhor sabe que estas coisas existem, não sabe? — Linda parecia estar se divertindo.

— Então o telegrama foi mandado por um dos dois?

— Eu não me espantaria.

— E a senhora acha que o Major Rich e a Sra. Clayton estavam tendo um caso?

— Digamos que eu não me surpreenderia se estivessem. Não posso ter certeza.

— O Sr. Clayton desconfiava?

— Arnold era uma pessoa extraordinária. Era um homem muito contido, se é que o senhor me entende. Na minha opinião, ele sabia de tudo. Mas era do tipo que jamais deixaria transparecer. Qualquer um podia pensar que ele era um sujeito duro, sem senti­mentos de espécie alguma. Mas tenho certeza de que não era assim por dentro. O mais estranho é que eu teria ficado muito menos es­pantada se Arnold tivesse apunhalado Charles. Tenho para mim que Arnold tinha um ciúme doentio.

— Interessante.

— Embora fosse mais provável, é verdade, que ele tivesse ma­tado Margharita. Otelo — qualquer coisa desse gênero. Margharita, o senhor sabe, exerce um extraordinário fascínio sobre os homens.

— É uma mulher interessante — ponderou Poirot, moderadamente.

— Mais que isso. Ela tem alguma coisa. Os homens ficam excitados — loucos por ela — e aí ela se vira, arregala os olhos como se estivesse surpresa e faz com que todos fiquem abobalhados.

— Une femme fatale.

— Deve ser o nome estrangeiro disso.

— A senhora a conhece bem?

— Nossa, é uma de minhas melhores amigas — mas não confio nela nem um pouco!

— Ah, — disse Poirot, e desviou a conversa para o Coman­dante McLaren.

— Jock? O Velho Fiel? É um amor. Nasceu para ser o amigo da família. Ele e Arnold eram grandes amigos. Acho que Arnold se abria mais com ele do que com qualquer outra pessoa. E, é claro, era o bichinho de estimação de Margharita. Há anos que é comple­tamente devotado a ela.

— E o Sr. Clayton também sentia ciúmes dele?

— Ciúmes de Jock? Que idéia! Margharita adora Jock, mas nunca lhe dispensou um pensamento deste tipo. Eu acho que ninguém jamais... Não sei por quê... Parece vergonha. Ele é tão simpático.

Poirot passou a fazer considerações sobre o mordomo. Mas além de dizer vagamente que ele sabia preparar um ótimo drinque, Linda Spence parecia não ter opinião formada sobre Burgess e, a bem da verdade, quase não o notara.

Mas compreendeu com grande rapidez.

— O senhor está imaginando, creio eu, que ele poderia ter matado Arnold tão facilmente quanto Charles? Parece-me absurda­mente improvável.                                                        

— Esta observação me deprime, Madame.   Por outro lado, a mim me parece (embora a senhora talvez não concorde) absurda­mente improvável — não que o Major Rich tenha matado Arnold Clayton — mas que o tenha feito daquela forma.

— Aquela história do estilete? É, definitivamente não corres­ponde ao caráter dele. O mais provável seria uma arma sem lâmina. Ou, quem sabe, estrangulamento?

Poirot suspirou.

— Cá estamos nós de volta a Otelo. É, Otelo... a senhora me deu uma pequenina idéia...

— É mesmo? O quê... — Ouviu-se um ruído de chave e de uma porta se abrindo. — Ah, é Jeremy. O senhor também quer falar com ele?

Jeremy Spence era um homem de trinta e tantos anos, de aparência agradável, bem vestido, e quase ostensivamente dis­creto. A Sra. Spence disse que era melhor ela ir à cozinha ver uma caçarola que estava no fogão, e deixou os dois homens sozinhos.

Jeremy Spence não demonstrou a mesma franqueza cativante de sua esposa. Estava nitidamente contrariado de ver-se envolvido no caso, e suas respostas eram cuidadosamente destituídas de in­formação. Conheciam os Claytons há algum tempo, mas não conhe­ciam Rich tão bem. Parece um sujeito agradável. Pelo que se lembrava, Rich parecera absolutamente normal na noite em ques­tão. Clayton e Rich sempre se deram bem. A coisa toda parecia de­veras inexplicável.

Durante toda a conversa, Jeremy Spence deixou bem claro que aguardava a saída de Poirot. Foi educado, mas nada além disso.

— Desconfio — disse Poirot — que o senhor não aprecia este tipo de perguntas.

— Bem, já tivemos uma verdadeira sessão na polícia. Pensei que fosse o bastante. Já dissemos tudo o que sabemos ou vimos. Agora... gostaria de esquecer tudo.

— Sinto muito. É extremamente desagradável ver-se envolvido num caso desses. Ter que responder não apenas o que se sabe ou se viu, mas talvez até mesmo o que se pensa.

— Melhor não pensar.

— Mas será possível evitar? O senhor acha, por exemplo, que a Sra. Clayton estaria envolvida? Que ela planejou a morte do marido junto com Rich?

— Santo Deus, isso não — Spence parecia chocado e consternado. — Nem sequer imaginava que se desconfiasse de algo no gênero.

— Sua mulher não lhe sugeriu esta possibilidade?

— Oh, Linda! O senhor sabe como são as mulheres — sempre prontas a ferirem-se umas às outras. Margharita nunca conquistou muita simpatia dentre os membros de seu próprio sexo — excessivamente atraente. Mas é claro que esta teoria de que Rich e Margha­rita planejaram o assassinato em conjunto — isto é fantástico!

— São coisas que acontecem. A arma, por exemplo. É o tipo da arma que uma mulher, mais do que um homem, poderia possuir.

— O senhor quer dizer que a polícia descobriu que a arma era dela? Não é possível! Ou melhor...

— Não sei de nada. — Poirot falou a verdade e escapou apressadamente.

Pela consternação estampada no rosto de Spence, ele julgou que dera o que pensar ao cavalheiro!

 

— O senhor vai me desculpar, M. Poirot, mas não vejo de que forma sua assistência me pode ser útil.

Poirot não respondeu. Olhava pensativamente para o homem acusado de haver assassinado seu amigo, Arnold Clayton.

Via o maxilar firme, a cabeça estreita. Um homem esguio e bronzeado, atlético e musculoso. Havia nele alguma coisa de um galgo. Um homem cuja expressão não deixava transparecer nada, e que recebia seu visitante com visível ausência de cordialidade.

— Entendo perfeitamente que a Sra. Clayton o tenha mandado aqui com a melhor das intenções. Mas, honestamente, acho que foi insensato da parte dela. Insensato tanto para ela como para mim.

— Como assim?

Rich deu uma olhadela nervosa por sobre seu ombro. Mas o guarda encontrava-se na distância regulamentar. Rich baixou a voz.

— Eles precisam encontrar um motivo para essa acusação ridícula. Tentarão descobrir uma... associação entre mim e a Sra. Clayton. E isto, tenho certeza que lhe foi dito pela Sra. Clayton, é totalmente inverídico. Somos amigos, e nada além disso. Mas é claro que seria aconselhável que ela não tomasse nenhuma atitude em minha defesa.

Hercule Poirot ignorou a argumentação. Ao invés de respondê-la ateve-se a uma palavra.

— O senhor disse acusação “ridícula”. Mas não é bem assim, o senhor sabe.

— Eu não matei Arnold Clayton.

— Diga, então, que a acusação é falsa. Diga que não é ver­dadeira. Mas ela não é ridícula. Muito pelo contrário, é bastante plausível. E o senhor deve saber muito bem disso.

— Posso apenas lhe dizer que a coisa toda me parece fan­tástica.

— O que não lhe será de grande utilidade. Temos que encon­trar algo mais razoável do que isso.

— Estou sendo representado por meus advogados. Segundo me consta, eles estão de posse dos fatos que poderão ser usados em minha defesa. Não posso aceitar que o senhor use a palavra “nós”.

Inesperadamente, Poirot deu um sorriso.

— Ah — falou, ressaltando seus modos estrangeiros, — quer dizer que está com pulga atrás da orelha. Muito bem. Vou-me embora. Queria vê-lo. Já o vi. Já examinei sua carreira. Passou muito bem para Sandhurst. Passou para a Escola do Estado-Maior. E assim por diante. Já tenho minha opinião formada sobre o senhor. Não é um homem idiota.

— E o que tem tudo isso a ver com o caso?

— Tudo! É impossível que um homem com sua habilidade ti­vesse cometido um crime como esse. Muito bem. O senhor é ino­cente. Agora fale-me de seu empregado, Burgess.

— Burgess?

— É. Se o senhor não matou Clayton, só pode ter sido Burgess. A conclusão parece inevitável. Mas por quê? Tem que haver um “por quê?” O senhor é a única pessoa que conhece Burgess a ponto de tentar achar um motivo. Por que, Major Rich, por quê?

— Não consigo imaginar. Simplesmente não consigo entender. Oh, já segui esta mesma linha de raciocínio. É, Burgess teve oportunidade — foi a única pessoa, além de mim, que também teve opor­tunidade. O problema é que eu não consigo acreditar. É impossível imaginar Burgess matando alguém.

— E o que pensam seus advogados?

Rich contraiu ferozmente os lábios.

— Meus advogados perguntam o tempo todo, de modo persuasivo, se não é verdade que sofro de desligamentos temporários Quando não sei o que estou fazendo!

— Muito mal — retrucou Poirot. — Bem, talvez venhamos a descobrir que quem realmente sofre de desligamentos seja Burgess. Não deixa de ser uma idéia. E agora, a arma. Eles lhe mostraram e perguntaram se era sua?

— Não era minha. Nunca tinha visto antes.

— Não, não era sua. Mas tem certeza de que nunca a tinha visto antes?

— Não. — Houve uma ligeira hesitação. — Parece um enfeite de brinquedo... é verdade... A gente vê coisas desse tipo na casa das pessoas.

— Na sala de estar de uma mulher, talvez. Talvez na sala de estar da Sra. Clayton.

— Claro que NÃO!

Á última palavra foi dita em voz tão alta que o guarda olhou para cima.

— Très bien. Claro que não — e não precisa gritar. Mas em algum lugar, em alguma ocasião, o senhor viu algo parecido. Hein? Estou certo?

— Acho que não... Numa loja de raridades... talvez.

— Ah, é bem provável. — Poirot levantou-se. — Vou-me embora.

 

— E agora — disse Hercule Poirot — Burgess. Sim, finalmente Burgess.

Ele Obtivera informações sobre as pessoas envolvidas no caso a partir delas mesmas e dos outros envolvidos. Mas ninguém dera informações sobre Burgess. Nenhuma pista, nenhum palpite, de que tipo de pessoa ele era.

Ao ver Burgess, ele entendeu por quê.

O mordomo estava à sua espera no apartamento de Rich, tendo sido avisado de sua visita por um telefonema do Comandante McLaren.

— Sou Hercule Poirot.

— Sim, sir, já o aguardava.

Burgess abriu a porta respeitosamente e Poirot entrou. Um pequenino vestíbulo de entrada quadrado, uma porta à esquerda, aberta, dando para a sala de estar. Burgess apanhou o casaco e cha­péu de Poirot, e acompanhou-o até a sala de estar.

— Ah — disse Poirot, olhando ao seu redor. — Foi aqui, então, que aconteceu.

— Foi, sir.

Um sujeito calado, Burgess, pálido, ligeiramente magro. Ombros e cotovelos desajeitados. Uma voz monótona, com sotaque provinciano que Poirot desconhecia. Da costa leste, talvez. Um homem um tanto nervoso, talvez — mas, além disso, sem quaisquer características definidas. Era difícil associá-lo a qualquer tipo de ação positiva. Seria possível postular um assassino negativo?

Tinha olhos azuis-claros, que não se fixavam, do tipo que as pessoas desatentas costumam associar à desonestidade. Mas, na verdade, um mentiroso é capaz de olhá-lo no rosto, com olhos atre­vidos e confiantes.

— Como está o apartamento? — indagou Poirot.

— Ainda estou cuidando dele, sir. O Major Rich combinou um pagamento para eu mantê-lo em ordem até... até...

Burgess revirou os olhos sem jeito.

— Até... — concordou Poirot. Depois acrescentou de maneira incisiva: — Eu diria, com quase certeza, que o Major Rich será submetido a um julgamento. O caso deverá se encerrar provavel­mente dentro de três meses.

Burgess abanou a cabeça, não como negativa, simplesmente perplexo.

— Realmente não me parece possível — falou.

— Que o Major Rich seja assassino?

— A coisa toda. O baú...

Seu olhar atravessou a sala.

— Ah, então aquele é o famoso baú?

Era uma peça enorme, de madeira escura bastante polida, crivada de bronze, com uma grande argola de bronze, e uma fechadura antiga.

— Uma bela peça. — Poirot aproximou-se do baú.

Ficava encostado na parede junto à janela, próximo a uma estante moderna onde se guardavam os discos. Do outro lado havia uma porta entreaberta. A porta ficava parcialmente escondida por uma grande tela de couro pintado.

— É a porta que dá para o quarto do Major Rich — disse Burgess.

Poirot assentiu. Seu olhar dirigiu-se para o outro lado da sala. Havia duas vitrolas estereofônicas, cada uma numa mesinha, de on­de saíam fios flexíveis como uma serpente. Havia poltronas — uma mesa grande. Nas paredes havia um conjunto de figuras japonesas. Era uma sala simpática, confortável sem ser luxuosa.

Olhou novamente para William Burgess.

— A descoberta — falou com bondade — deve ter sido um tremendo choque para você.

— Oh, se foi, sir. Jamais esquecerei. — O mordomo desandou a falar. As palavras saíam aos borbotões. Sentia, talvez, que quanto mais contasse a história, mais facilmente poderia expulsá-la da cabeça.

— Eu estava na sala, sir. Fazendo a limpeza. Apanhando os copos, e coisas assim. Havia me abaixado para pegar duas azeitonas que estavam no chão... e aí vi... no tapete, uma mancha escura, cor de ferrugem. Não, o tapete não está aqui. Foi lavar. A polícia liberou. O que vem a ser isso? pensei. Disse a mim mesmo, quase em tom de piada: “Parece até sangue! Mas de onde surgiu? O que foi que derramou?” E depois eu vi que saía do baú — escorria pelo lado, onde tem uma fenda. E eu disse, ainda sem pensar em nada, “O que vem a ser...?” E levantei a tampa assim — (o gesto seguiu-se à palavra) — e lá estava... o corpo de um homem deitado de lado e encolhido... como se estivesse dormindo. E aquela horrenda faca ou punhal estrangeiro espetado no pescoço dele. Jamais esquecerei — jamais! Pelo menos enquanto eu viver! O choque, sem estar esperando, o senhor entende...

Respirou profundamente.

— Larguei a tampa e saí correndo do apartamento. Procurei um guarda e, sorte a minha, encontrei um logo ali na esquina.

Poirot olhava-o, pensativamente. A encenação, se é que era encenação, estava muito boa. Ele começou a desconfiar que não se tratava de encenação — que as coisas tinham acontecido daquela forma.

— Não pensou primeiro em acordar o Major Rich? — perguntou.

— Nem me passou pela cabeça, sir. O choque foi tão grande. Eu... só queria sair dali... — ele engoliu em seco — ... e conseguir socorro.

— Você percebeu que era o Sr. Clayton?

— Deveria ter percebido, sir, mas o senhor entende, acho que nem o reconheci. É claro que assim que voltei com o guarda, eu disse: “Caramba, é o Sr. Clayton!” E ele falou: “Quem é o Sr. Clayton?” Aí eu respondi: “Ele esteve aqui ontem à noite.”

— Ah — disse Poirot — ontem à noite... Você se lembra exatamente a que horas o Sr. Clayton chegou aqui?

— Exatamente, não. Mas eu diria que foi, no máximo, às quinze para as oito...

— Você o conhecia bem?

— Ele e a Sra. Clayton faziam visitas freqüentes, durante o ano e meio que trabalho aqui.

— A aparência dele era normal?

— Creio que sim. Estava meio sem fôlego, mas achei que era por causa da pressa. Ia pegar o trem, pelo menos foi isso que disse.

— Ele trazia alguma mala, já que estava de partida para a Escócia?

— Não, sir. Suponho que um táxi estivesse esperando por ele lá embaixo.

— Ficou desapontado ao saber que o Major Rich não estava?

— Não que eu percebesse. Disse apenas que deixaria um bilhe­te. Entrou aqui, dirigiu-se à escrivaninha e eu voltei para a cozinha. A preparação das ovas de anchova estava um pouco atrasada. A co­zinha fica no fundo do corredor, e não se escuta muito bem de lá. Não ouvi quando ele saiu e nem quando meu patrão chegou — aliás, também não era de se esperar que eu ouvisse.

— E depois?

— O Major Rich me chamou. Estava de pé nesta porta aqui. Disse que havia se esquecido dos cigarros turcos da Sra. Spence. Queria que eu saísse depressa para comprá-los. Foi o que fiz. Trouxe-os e coloquei-os nesta mesa aqui. É claro que imaginei que o Sr. Clayton já tivesse saído para pegar o trem.

— E ninguém mais entrou neste apartamento durante a ausên­cia do Major Rich, quando você estava na cozinha?

— Não, sir — ninguém.

— Tem certeza?

— Como alguém poderia ter entrado? Seria preciso tocar a campainha.

Poirot abanou a cabeça. Como alguém poderia ter entrado? Os Spences, McLaren e a Sra. Clayton, ele já o sabia, tinham ex­plicações para todos os minutos que antecederam a festa. McLaren estivera no clube com alguns conhecidos, os Spences tinham rece­bido uns amigos para tomar Um drinque antes de saírem. Mar­gharita Clayton estivera ao telefone, falando com uma amiga, naquele exato período. Não que ele desconfiasse de alguma dessas pessoas. Haveria melhores formas de matar Arnold Clayton, de que segui-lo até um apartamento onde se encontrava um mordomo, e cujo dono estava para chegar a qualquer instante. Não, ele tinha a esperança remota de um “estranho misterioso”! Alguém surgido do aparentemente impecável passado de Clayton, que o reconhecera na. rua e o seguira. Atacara-o com o estilete, enfiara o corpo no baú e fugira. Puro melodrama, destituído de razão ou de probabilidades! Combinando com as ficções históricas românticas — de acordo com o baú espanhol.

Atravessou novamente a sala e dirigiu-se ao baú. Levantou a tampa. Ela subiu facilmente, sem um ruído.

Com voz fraca, Burgess falou:

— Foi polido, sir. Eu me encarreguei disso.

Poirot curvou-se sobre a peça. Com uma ligeira exclamação, abaixou-se mais ainda. Explorou-a com os dedos.

— Estes buracos — um nas costas e um do lado — eles pa­recem — dão a impressão de terem sido feitos recentemente.

— Buracos, sir? — O criado curvou-se para olhar. — Não posso dizer nada. Não os havia notado antes.

— Não são muito visíveis. Mas estão aqui. Para que servem, o que você acha?

— Não sei mesmo, sir. Algum animal, talvez... Quer dizer, um besouro, ou coisa no gênero. Quem sabe um roedor?

— Animal? — disse Poirot. — Tenho minhas dúvidas.

Atravessou novamente a sala.

— Quando você voltou com os cigarros, notou alguma coisa diferente nesta sala? Qualquer coisa. Cadeiras fora do lugar, uma mesa, qualquer coisa deste tipo?

— É estranho o senhor dizer isso, sir... Agora que o senhor mencionou, lembro-me que notei, sim. Esta tela que reduz a corren­te de ar que vai para o quarto, ela estava um pouco mais para a es­querda.

— Assim? — Poirot moveu-a rapidamente.

— Mais um pouco... Aí.

A tela já escondera quase a metade do baú. Com a nova arrumação, escondia o baú quase todo.

— Por que você achou que tinha sido empurrada?

— Eu não acho nada, sir.

(Outra Srta. Lemmon)

Burgess acrescentou, em dúvida:

— Acho que era para deixar a passagem para o quarto mais desimpedida... caso as senhoras quisessem deixar os casacos lá.

— Talvez. Mas podia haver uma outra razão. — Os olhos de Burgess eram indagadores. — Desta forma, a tela esconde o baú, e esconde o tapete debaixo do baú. Se o Major Rich apunhalara o Sr. Clayton, ele sabia que o sangue logo escorreria pelas fendas na base do baú. Alguém poderia notar — corno você notou na manhã seguinte. Por isso a tela foi mudada de lugar.

— Não havia pensado nisso, sir.

— Como são as luzes aqui, fortes ou fracas?

— Vou lhe mostrar, sir.

Rapidamente, o mordomo fechou as cortinas e acendeu duas lâmpadas. A luz era suave e mal dava para ler. Poirot olhou para a lâmpada do teto.

— Aquela não estava acesa, sir. É muito pouco usada.

Poirot passou os olhos pelo aposento, à luz suave.

O mordomo disse:

— Acho que não daria para ver as manchas de sangue, sir, fica muito escuro.

— É, você tem razão. Por que, então, mudaram ateia de lugar?

Burgess estremeceu.

— E terrível pensar que... que um cavalheiro tão simpático como o Major Rich tenha feito uma coisa dessas.

— Você não tem dúvidas de que foi ele? Mas por que fez isso, Burgess?

— Bem, ele esteve na guerra., é claro. Pode ter sido ferido na cabeça, não pode? Dizem que, às vezes, a coisa toda vem à tona anos depois. De repente, eles ficam estranhos e não sabem o que estão fazendo. E dizem que, quase sempre, a vítima é a pessoa mais pró­xima e mais querida. O senhor não acha que pode ter sido isso?

Poirot encarou-o. Suspirou. Virou-se de costas.

— Não — falou, — não foi nada disso.

Com ar de cúmplice, enfiou um pedaço de papel meio áspero na mão de Burgess.

— Oh, obrigado, sir, mas realmente não creio...

— Você me ajudou — disse Poirot. — Mostrou-me esta sala. Mostrou-me o que aconteceu naquela noite. O impossível nunca é impossível! Lembre-se disso. Eu disse que havia duas possibilida­des — estava errado. Existe uma terceira possibilidade. — Passou os olhos novamente pela sala, e sentiu um ligeiro arrepio. — Abra as cortinas. Deixe que entrem luz e ar nesta sala. Ela precisa disto. Pre­cisa de uma limpeza. Ainda vai demorar muito tempo, creio eu, para que a sala se purifique daquilo que a aflige — a longa lembrança do ódio.

Burgess, de queixo caído, entregou o chapéu e o casaco de Poirot. Parecia atônito. Poirot, que gostava de enunciados incompre­ensíveis, ganhou a rua em passos rápidos.

 

Ao chegar em casa, Poirot telefonou para o Inspetor Miller.

— O que aconteceu com a mala de Clayton? A mulher dele disse que ele a levara.

— Estava no clube. Deixou-a com o porteiro. Deve ter se esquecido e saído sem ela.

— O que tinha lá dentro?

— O esperado. Pijama, uma camisa, e coisas de banho.

— Tudo certinho.

— O que esperava encontrar?

Poirot ignorou a pergunta. Acrescentou:

— Sobre o estilete. Sugiro que entre em contato com a mulher que faz a limpeza da casa da Sra. Spence. Descubra se ela viu alguma coisa semelhante por lá.

— A Sra. Spence? — Miller assoviou. — É para esse lado que se dirige seu raciocínio? O estilete foi mostrado aos Spences. Não o reconheceram.

— Pergunte de novo.

— Você acha...

— E depois me conte o que disseram.

— Não consigo imaginar o que você pensa ter descoberto!

— Leia Otelo, Miller. Pense nos personagens de Otelo. Esquecemo-nos de um deles.

Desligou. Depois discou para Lady Chatterton. O telefone es­tava ocupado.

Tentou novamente um pouco mais tarde. Sem sucesso. Chamou George, seu criado, e pediu para que ele continuasse a ligar até obter resposta. Lady Chatterton, ele o sabia, era viciada em tele­fone.

Sentou-se numa cadeira, afrouxou cuidadosamente os sapatos de verniz, relaxou os dedos dos pés e recostou-se.

— Estou velho — disse Hercule Poirot. — Canso-me com facilidade... — Animou-se. — Mas as células, elas ainda funcionam. Devagar, mas funcionam... Otelo, é. Quem foi que me disse isso? Ah, sim, a Sra. Spence. A mala... A tela... O corpo, deitado como o de um homem adormecido. Um crime inteligente. Premeditado, planejado... Acho até que causou prazer!...

George comunicou que Lady Chatterton estava ao telefone.

— Quem fala aqui é Hercule Poirot, Madame. Poderia falar com sua hóspede?

— Ora, mas é claro! Oh, M. Poirot, o senhor já fez alguma descoberta maravilhosa?

— Ainda não — respondeu Poirot. — Mas, ao que tudo indi­ca, as coisas estão se encaminhando bem.

Logo depois ouviu a voz de Margharita — calma e meiga.

— Madame, quando lhe perguntei se notara alguma coisa fora do lugar na noite da festa, a senhora franziu a testa como quem se lembra de algo — e depois a idéia lhe escapou. Teria sido a posição da tela naquela noite?

— Tela? Oh, é lógico, era isso, sim. Não estava exatamente no mesmo lugar de costume.

— A senhora dançou naquela noite?

— Um pouco.

— Com quem dançou mais?

— Com Jeremy Spence. Ele é um excelente dançarino. Charles dança bem, mas não é nada de espetacular. Ele e Linda dançaram e, vez por outra, trocávamos de par. Jock McLaren não dança. Ele selecionava os discos e os punha na vitrola.

— Ouviram música clássica mais tarde?

— Ouvimos.

Seguiu-se uma pausa. Depois Margharita falou:

— M. Poirot, o que significa... tudo isso? O senhor tem... existe... esperança?

— A senhora imagina, Madame, quais são os sentimentos das pessoas à sua volta?

A resposta veio numa voz ligeiramente surpresa:

— Eu... creio que sim.

— Pois eu creio que não. Acho que não faz a mínima idéia. Acho que esta é a tragédia de sua vida. Mas a tragédia é vivida pelas outras pessoas — não pela senhora. Hoje uma pessoa fez alusão a Otelo. Perguntei a senhora se seu marido era ciumento, e sua resposta foi que achava que ele devia ser. Mas disse isso sem se preocupar. Respondeu como Desdêmona teria respondido, sem se aperceber do perigo. Também ela sabia reconhecer o ciúme, mas não o compreendia porque ela mesma nunca havia experimentado este sentimento, e nem poderia ser de outra forma. Desconhecia, assim creio, a força de uma paixão física aguda. Amava o marido com fervor romântico, como quem adora um herói. Amava seu amigo Cássio inocentemente, como um companheiro muito próximo... Acho que, por ser imune à paixão, ela enlouquecia os homens... A senhora está entendendo meu raciocínio, Madame?

Houve uma pausa — depois Margharita respondeu. A voz fria, delicada, um pouco assustada:

— Eu... eu não estou entendendo muito bem...

Poirot suspirou. Falou em tom decidido:

— Hoje à noite far-lhe-ei uma visita.

 

O Inspetor Miller era uma pessoa difícil de se persuadir. Por outro lado, Hercule Poirot não era do tipo que desistia facilmente de seus propósitos. O Inspetor Miller resmungou, mas rendeu-se.

— ... embora Lady Chatterton nada tenha a ver...

— Não tem nada mesmo. Simplesmente ofereceu teto a uma amiga.

— E quanto aos Spences — como descobriu?

— Que o estilete saíra da casa deles? Mera suposição. Uma das frases de Jeremy Spence me deu a idéia. Sugeri que o estilete per­tencia a Margharita Clayton. Ele demonstrou claramente ter certeza que não. — Fez uma pausa. — O que foi que eles disseram? — per­guntou com alguma curiosidade.

— Admitiram ser muito parecido com um punhal de brinquedo que tinham tido. Mas como ele havia desaparecido algumas se­manas antes, esqueceram-se realmente. Acho que Rich o pegou lá.

— Um sujeito cauteloso, o Sr. Jeremy Spence — disse Hercule Poirot. Murmurou para si mesmo: — Algumas semanas antes... Ah, sim, a idéia já vinha de muito tempo.

— Ei, o que está resmungando?

— Chegamos — disse Poirot. O táxi parou junto à casa de Lady Chatterton, na Rua Cheriton. Poirot pagou.

Margharita Clayton os aguardava no segundo andar. Suas feições tornaram-se duras ao avistar Miller.

— Eu não sabia...

— Não sabia quem era o amigo que propus trazer?

— O Inspetor Miller não é meu amigo.

— Isto depende da senhora querer ou não que se faça justiça, Sra. Clayton. Seu marido foi assassinado...

— E agora vamos falar sobre a pessoa que o matou — interrompeu Poirot rapidamente. — Podemos nos sentar, Madame?

Vagarosamente, Margharita Clayton sentou-se numa cadeira de espaldar alto, de frente para os dois homens.

— Peço-lhes — iniciou Poirot, dirigindo-se a seus dois ouvin­tes — que me escutem com paciência. Penso que sei agora o que ocorreu no apartamento do Major Rich, naquela noite fatal... Come­çamos, todos nós, por uma suposição falsa — a suposição de que apenas duas pessoas tiveram oportunidade de esconder o corpo no baú — ou seja, o Major Rich, ou William Burgess. Mas estávamos errados — havia uma terceira pessoa no apartamento, aquela noite, que teve a mesma oportunidade.

— E quem era essa pessoa? — perguntou Miller, um tanto cé­tico. — O ascensorista?

— Não. Arnold Clayton.

— O quê? Esconder o seu próprio cadáver? Você está louco.

— Seu cadáver, não, naturalmente — mas esconder-se vivo. Sejamos claros: ele se escondeu no baú. O tipo da coisa que tem sido feita ao longo da história. A noiva morta, em Mistlestol Bough; Iachimo, com o objetivo de provar a virtude de Imogen, e assim por diante. Esta idéia me ocorreu tão logo vi que havia no baú uns buracos feitos recentemente. Por quê? Tinham sido feitos para que entrasse ar suficiente lá dentro. Por que haviam mudado o lugar da tela, naquela noite em especial? A fim de esconder o baú das demais pessoas na sala. Para que o homem escondido pudesse levantar a tampa, aliviando a cãibra, e ouvindo melhor o que se passava.

— Mas por quê? — perguntou Margharita, os olhos arregala­dos de espanto. — Por que Arnold quereria se esconder no baú?

— E é a senhora quem faz esta pergunta, Madame? Seu ma­rido era um homem ciumento. Falava pouco, também. Um homem contido, como bem se expressou sua amiga Linda Spence. O ciúme dele aumentava. Torturava-o! A senhora era ou não era amante de Rich? Ele não sabia! Ele tinha que saber! Então “um telegrama da Escócia”, um telegrama que nunca fora enviado e que ninguém vira! A mala com algumas roupas é arrumada, e convenientemente esquecida no clube. Ele chega ao apartamento numa hora em que tem certeza de não encontrar Rich... Diz ao mordomo que vai deixar um bilhete. Assim que se vê só, faz os buracos no baú. afasta a tela, e se esconde lá dentro. Naquela noite saberá a ver­dade. Talvez sua mulher se demore um pouco mais, talvez saia mas volte depois. Naquela noite, o homem desesperado, atormentado pelo ciúme, saberá...

— Você não está insinuando que ele mesmo se apunhalou, está? — O tom de voz de Miller era de incredulidade. — Tolice!

— Ah, não, ele foi apunhalado por uma outra pessoa. Uma pes­soa que sabia que ele estava lá. Foi assassinato, sim. Um crime cuidadosamente planejado, premeditado há algum tempo. Vejamos os outros personagens de Otelo. Não podemos nos esquecer de Iago. Envenenando sutilmente as idéias de Arnold Clayton; insinuações, suspeitas. O honesto Iago, o amigo fiel, um homem sempre digno de confiança! Arnold Clayton acreditava nele. Arnold Clayton deixou que se brincasse cora seu ciúme, até atingir as raias da doença. Teria sido o plano de se esconder no baú idéia do próprio Arnold? Ele pode ter pensado que sim — e provavelmente o pensou! A cena está pronta. O estilete, sutilmente roubado algumas semanas antes, está preparado. Chega a noite. As luzes são fracas, a vitrola ligada, dois casais dançam, o homem estranho está afastado, ocupado com os discos, junto do baú espanhol e da tela que o esconde. Escapole para detrás da tela, levanta a tampa e golpeia... Audacioso, mas muito simples!

— Clayton teria gritado!

— Não se estivesse drogado — disse Poirot. — De acordo com as palavras do mordomo, o corpo parecia “um homem adormecido”. Clayton estava dormindo, tendo sido drogado pelo único homem que tivera oportunidade de drogá-lo, o homem com quem tomou um drinque no clube.

— Jock? — a voz de Margharita tornou-se mais aguda, num tom de surpresa infantil. — Jock? Não, não o querido Jock. Nossa, conheço Jock há tanto tempo! Por que diabos...?

Poirot voltou-se para ela.

— Por que os dois italianos duelaram? Por que um jovem se matou? Jock McLaren é um homem contido. Havia se resignado, talvez, a ser um amigo fiel seu e de seu marido, mas eis que entra em cena o Major Rich. É demais! Nas trevas do ódio e do desejo, planeja o que há de mais próximo a um crime perfeito — e duplo assassinato, pois é quase certo que Rich será considerado culpado. E afastando Rich e seu marido de sua vida — ele acha que, final­mente, a senhora se lembrará dele. E talvez, Madame, isso tivesse acontecido... Hein?

Ela o olhava fixamente, os olhos arregalados de horror...

Quase inconscientemente, murmurou:

— Talvez... eu não... sei...

O Inspetor Miller falou com súbita autoridade:

— Muito bem, Poirot. Mas não passa de uma teoria. Não há a menor evidência. Talvez nenhuma de suas palavras seja verda­deira.

— É a mais completa verdade.

—Mas não há evidência. Não há nada para que possamos agir.

— Você está errado. Acho que o próprio McLaren, se tudo lhe for explicado, admitirá. Quer dizer, se ficar bem claro que Mar­gharita Clayton já sabe...

Poirot fez uma pausa e acrescentou:

— Porque, ao saber disto, compreenderá que perdeu... O crime perfeito terá sido em vão.

 


         O REPRIMIDO

Lily Margrave alisou a luva sobre o joelho, num gesto nervoso, e lançou um olhar para o ocupante da enorme cadeira, diante dela.

Já ouvira falar em M. Hercule Poirot, o famoso detetive, mas aquela era a primeira vez que o via em carne e osso.

O aspecto cômico, quase ridículo, que ele aparentava perturbou a concepção que fazia a seu respeito. Será que aquele homenzinho engraçado, de cabeça oval e enormes bigodes, era realmente capaz de fazer as maravilhas que lhe eram atribuídas? Naquele momento, sua ocupação espantou-a por parecer particularmente infantil. Em­pilhava pequenos blocos de madeira, coloridos, e dava a impressão de estar muito mais interessado no resultado do que na história que ela estava contando.

Quando ela se calou de repente, no entanto, olhou-a prontamente.

— Mademoiselle, continue, por favor. Não pense que não estou ouvindo; pelo contrário, ouço com muita atenção.

Começou novamente a empilhar os pequenos blocos de ma­deira, assim que a moça retomou sua história. Era uma história hor­rível, violenta e trágica, mas a voz era tão calma e tão destituída de emoção, a narração tão concisa, que parecia estar faltando um toque de humanidade.

Ela acabou finalmente.

— Espero — falou ansiosa — que tenha deixado tudo claro.

Poirot balançou a cabeça diversas vezes, em sinal de enfático assentimento. Depois passou a mão pelos blocos de madeira, espalhando-os sobre a mesa e, recostando-se em sua cadeira, as pontas dos dedos bem juntas e os olhos fixos no teto, começou a recapitular.

— Sir Reuben Astwell foi assassinado há dez dias atrás. Na quarta-feira, antes de ontem, o sobrinho dele, Charles Leverson, foi Preso pela polícia. Pelo que a senhorita sabe, os fatos contra ele são os seguintes — Corrija-me se estiver errado, Mademoiselle: Sir Reuben ficou acordado até tarde, escrevendo em seu gabinete pri­vado, a sala da Torre. O Sr. Leverson chega em casa tarde, abrindo a Porta com sua própria chave. O mordomo, cujo quarto fica diretamente abaixo da sala da Torre, ouviu-o a discutir com o tio. A dis­cussão terminou com um ruído surdo, repentino, como o de uma ca­deira caindo no chão, e com um grito meio abafado. O mordomo ficou assustado e pensou em se levantar para ver o que tinha havido, mas segundos depois ouviu o Sr. Leverson sair do gabinete alegre­mente, assoviando uma música e não pensou mais no assunto. Na manhã seguinte, no entanto, uma empregada descobriu Sir Reuben morto ao lado da escrivaninha. Havia sido atingido por um instru­mento pesado. O mordomo, suponho, não contou logo sua história à polícia. O que é natural, creio eu, hein, Mademoiselle?

A pergunta inesperada assustou Lily Margrave.

— O que foi que o senhor disse? — falou.

— Sempre procuramos o lado humano nestes casos, não é verdade? — perguntou o homenzinho. — Sua narração da história — tão admirável, tão concisa — transformou os personagens deste drama em máquinas — fantoches. Mas eu, eu sempre investigo a natureza humana. Digo para mim mesmo — este mordomo, este tal de... como é mesmo o nome dele?

— Chama-se Parsons.

— Este tal de Parsons, pois, deve ter as características de sua classe, deve se opor fortemente à polícia, deve contar o mínimo pos­sível. Acima de tudo, não dirá nada que possa incriminar um dos membros da casa. Um assaltante, um ladrão, ele se prenderá a esta idéia com todas as forças de uma obstinação extrema. Sim, a lealda­de dos empregados é um estudo interessante.

Recostou-se, radiante.

— Nesse ínterim — prosseguiu — todos os membros da casa contaram sua versão, dentre eles o Sr. Leverson, e a versão dele é que chegara em casa tarde e fora se deitar sem ver o tio.

— Foi isso o que disse.

— E ninguém tinha motivos para pôr a versão em dúvida — ponderou Poirot — exceto Parsons, é claro. Depois, eis que entra em cena um inspetor da Scotland Yard, Inspetor Miller, não foi esse o nome que a senhorita disse? Eu o conheço, já cruzei com ele uma ou duas vezes, tempos atrás. É o que costumam chamar de um homem decidido, o furão, o esperto. Sim, eu o conheço! E o decidido Ins­petor Miller percebe aquilo que havia escapado ao inspetor local, que Parsons está pouco à vontade, e que deixou de dizer alguma coisa. Eh bien, ele liquida Parsons rapidamente. Àquela altura, já havia sido claramente provado que ninguém entrara na casa para roubar, e que o assassino devia ser encontrado dentro e não fora da casa. Parsons sente-se infeliz e assustado, e com grande alívio deixa que lhe seja sabido o segredo. Fizera o possível para evitar um escândalo, mas há limites; e então o Inspetor Miller ouve a história de Parsons, faz uma ou duas perguntas, e parte para suas próprias investigações. O desenvolvimento do caso é evidente — muito evidente. Dedos manchados de sangue apoiaram-se na quina do móvel da sala da Torre, e as impressões digitais eram as de Charles Leverson. A empregada disse a ele que esvaziara uma bacia com água suja de sangue, no quarto do Sr. Leverson, na manhã seguinte ao crime. Ele explicou a ela que havia cortado o dedo, e realmente havia um pequenino corte, havia sim, mas era um cortezinho tão pequeno! O punho da camisa que usara à noite fora lavado, mas foram encontradas manchas de sangue na manga de seu paletó. Ele estava seriamente necessitado de dinheiro, e herdaria a fortuna de Sir Reuben quando este morresse. Ah, sim, um caso muito evidente, Mademoiselle.

Fez uma pausa.

— Mesmo assim, a senhorita me procura hoje.

Lily Margrave sacudiu seus ombros esguios.

— Como lhe disse, M. Poirot, Lady Astwell mandou-me.

— A senhorita não teria vindo por vontade própria, não é mesmo?

O homenzinho lançou-lhe um olhar manhoso. A moça não respondeu.

— A senhorita não respondeu minha pergunta.

Lily Margrave começou a alisar as luvas novamente.

— É um tanto difícil para mim, M. Poirot. Tenho que conside­rar minha lealdade a Lady Astwell. Estritamente falando, sou apenas sua dama de companhia, mas ela sempre me tratou como uma filha ou sobrinha. Tem sido extremamente boa e, quaisquer que sejam seus defeitos, não gostaria que pensasse que critico suas ações, ou... bem, não gostaria de induzi-lo a preconceito em relação ao caso.

— Impossível induzir Hercule Poirot a preconceito, cela ne ce fait pas — declarou o homenzinho alegremente. — Percebo que a senhorita acha que Lady Astwell está com alguma idéia fixa. É ou não é verdade?

— Já que o senhor me perguntou...

— Fale, Mademoiselle.

— Acho tudo isso uma grande tolice.

— É esta a impressão que lhe causa, não?

— Não gostaria de falar nada contra Lady Astwell...

— Compreendo — murmurou Poirot, gentilmente. — Compre­endo perfeitamente. — Seus olhos induziam-na a prosseguir.

— Ela é, realmente, um tipo maravilhoso, e extremamente bondosa, mas não é — como direi? Não é uma mulher educada. O senhor sabe que ela era atriz quando se casou com Sir Reuben, de forma que tem tudo quanto é preconceito e superstição. Quando ela diz qualquer coisa, tem que ser aquilo, e simplesmente se recusa a ouvir quaisquer argumentos. O inspetor não teve muito tato com ela, e ela se enfureceu. Diz que é bobagem suspeitar do Sr. Leverson, que é o tipo do erro idiota e estúpido que a polícia costuma cometer e que, é claro, o querido Charles não fez nada daquilo.

— Mas ela não tem lá suas razões?

— De jeito nenhum.

— Ah! É mesmo? Ora essa!

— Eu disse a ela — prosseguiu Lily — que não adiantaria nada vir até aqui com essa simples frase, e nada além disso.

— A senhorita disse isso — falou Poirot, — disse mesmo? Interessante.

Olhou Lily Margrave de alto a baixo, num exame rápido e abrangente, percebendo os detalhes de sua roupa preta e arrumada, o toque de branco na garganta e o elegante chapeuzinho preto. Viu a elegância da moça, seu belo rosto com o queixo ligeiramente pontudo, os olhos azuis-escuros, com longos cílios. Insensivelmente, sua atitude mudou; naquele momento estava mais interessado na moça que se encontrava diante dele do que no caso propriamente.

— Lady Astwell, imagino eu, Mademoiselle, é um pouco fútil, com ligeira tendência ao desequilíbrio e à histeria, não é mesmo?

Lily Margrave assentiu enfaticamente.

— Isto a descreve com exatidão. Ela é, como já lhe disse, muito boa, mas é impossível argumentar com ela, ou fazer com que ela veja as coisas com lógica.

— Talvez ela tenha suas próprias suspeitas — sugeriu Poirot. — Talvez suspeite de uma pessoa um tanto absurda.

— Exatamente — gritou Lily. — Está terrivelmente desconfia­da do secretário de Sir Reuben, pobre coitado. Diz que sabe que foi ele. No entanto, já foi devidamente provado que não pode ter sido o pobre Owen Trefusis.

— E ela não tem motivo nenhum?

— Claro que não; é apenas intuição.

O tom de voz de Lily Margrave foi bastante sarcástico.

— Percebo Mademoiselle — disse Poirot, sorrindo — que a senhora não acredita em intuição.

— Acho que é bobagem — retrucou Lily.

Poirot recostou-se em sua cadeira.

— Les femmes — murmurou — elas acham que a intuição é uma arma especial que lhes foi dada por Deus, mas para cada simples acerto, pelo menos nove vezes são induzidas a erro.

— Eu sei — disse Lily — mas já lhe disse como é Lady Astwell. É simplesmente impossível discutir com ela.

— De forma que a senhorita, sendo sensata e discreta, veio me procurar como lhe foi pedido, e conseguiu pôr-me au courant da situação.

Alguma coisa em seu tom de voz fez com que a moça o olhasse subitamente.

— É claro que sei — disse Lily, desculpando-se — como seu tempo é valioso.

— A senhorita muito me lisonjeia, Mademoiselle, mas de fato — sim, é verdade, no presente momento tenho muitos casos em mãos.

— Era o que eu receava — disse Lily, levantando-se. — Direi a Lady Astwell...

Mas Poirot não se levantou. Pelo contrário, encostou-se em sua cadeira e olhou a moça fixamente.

— A senhorita tem pressa, Mademoiselle? Sente-se mais um minuto, eu lhe peço.

Ele viu o rubor chegar e sair de seu rosto. Ela sentou-se de novo, vagarosamente e a contragosto.

— A senhorita é rápida e decidida — disse Poirot. — Deve fazer concessões a um velho como eu, que decide as coisas devagar. Fui mal interpretado, Mademoiselle. Não disse que não iria ver Lady Astwell.

— O senhor virá, então?

A voz da moça tornou-se apática. Ela não olhava para Poirot, e sim para o chão, totalmente inconsciente do olhar penetrante que lhe estava sendo dirigido.

— Diga a Lady Astwell, Mademoiselle, que estou a seu inteiro dispor. Estarei em — Mon Repos, não é? — hoje à tarde.

Levantou-se. A moça o seguiu.

— Eu... eu direi a ela. E muita bondade sua, M. Poirot. Receio, no entanto, que o senhor esteja sendo levado a uma investigação inútil.

— É bem provável, mas... quem sabe?

Levou-a até a porta e despediu-se com formalidade. Depois vol­tou para a sala de estar, a testa franzida, mergulhado em seus pensamentos. Balançou a cabeça uma ou duas vezes, depois abriu a porta e chamou seu secretário.

— Meu caro George, prepare-me uma maleta, por favor. Irei para o campo hoje à tarde.

— Está bem, sir.

Era uma pessoa de aparência extremamente inglesa: alto, cadavérico, e destituído de emoção.

— Uma jovem é um fenômeno muito interessante, George — disse Poirot, ao largar-se novamente em sua poltrona e acender um cigarro. — Principalmente, você entende, quando raciocina. Pedir a alguém para fazer uma coisa e, ao mesmo tempo, tentar evitar que a pessoa o faça, é uma operação delicada. Requer astúcia. Ela foi muito habilidosa — oh, muito habilidosa — mas Hercule Poirot, caro George, tem uma inteligência deveras excepcional.

— O senhor já disse isso antes, sir.

— Ela não está pensando no secretário — refletiu Poirot. — Ela trata a acusação de Lady Astwell com desprezo. Mesmo assim, está ansiosa para que não se mexa em casa de marimbondos. Eu, meu caro George, eu irei mexer, farei com que os marimbondos saiam! Existe um drama em Mon Repos. Um drama humano, e ele me atrai. Ela foi habilidosa, aquela pequena, mas não o suficiente. Fico imaginando... fico imaginando o que encontrarei lá.

A voz de George, desculpando-se, interrompeu a pausa dra­mática que se seguiu a estas palavras.

— Devo colocar outras roupas na mala, sir?

Poirot olhou-o com tristeza.

— Sempre a mesma concentração, a mesma atenção para com suas tarefas. Você é muito bom para mim, George.

Quando o trem das 4h55min chegou à estação de Abbots Cross, dele saiu Hercule Poirot, vestido elegante e afetadamente, os bi­godes engomados até o ponto de rigidez. Entregou seu bilhete, cru­zou o portão, e foi abordado por um chofer alto.

— M. Poirot?

O homenzinho olhou-o sorridente.

— Sou eu mesmo.

— Por aqui, sir, por favor.

Abriu a porta de um grande Rolls Royce.

A casa ficava a uns três minutos da estação. O chofer saltou mais uma vez, abriu a porta do carro, e Poirot desceu. O mordomo já o aguardava com a porta da frente aberta.

Poirot deu uma olhadela breve e apreciativa no exterior da casa, antes de cruzar a porta. Era uma enorme mansão, solidamente construída com tijolos vermelhos, sem nenhuma pretensão à beleza, mas com um ar de conforto sólido.

Poirot entrou no vestíbulo. O mordomo ajudou-o destramente a tirar o chapéu e o sobretudo, e disse-lhe no murmúrio respeitoso, característico dos melhores empregados:

— A senhora está à sua espera, sir.

Poirot subiu a escada, coberta por um tapete macio, atrás dele. Este, sem dúvida, era Parsons, um mordomo muito bem treinado, cujas maneiras eram adequadamente destituídas de emoção. No topo da escada, tomou um corredor à direita. Passou por uma porta que dava para uma pequena ante-sala, onde havia mais duas portas. Abriu a da esquerda e anunciou:

— M. Poirot, senhora.

O aposento não era muito grande e estava abarrotado de móveis e bugigangas. Uma mulher, vestida de preto, levantou-se de um sofá e caminhou rapidamente em direção a Poirot.

— M. Poirot — disse ela, com a mão estendida. Em questão de segundos, seus olhos percorreram a figura ajanotada.   Ela fez uma ligeira pausa, ignorando o homenzinho que se curvava sobre sua mão e o murmúrio “Madame”, e então, soltando a mão dela, depois de um súbito e vigoroso aperto, exclamou:

— Eu acredito nos baixinhos! Eles é que são inteligentes.

— O Inspetor Miller — murmurou Poirot — é um homem alto se não me engano.

— Ele é idiota e presunçoso — disse Lady Astwell. — Sente-se aqui ao meu lado, por favor, M. Poirot.

Ela mostrou o sofá e prosseguiu:

— Lily fez o possível para me convencer a não chamá-lo, mas ainda não chegou o momento de decidirem as coisas por mim.

— Uma coisa rara de se ver — disse Poirot, ao acompanhá-la até o sofá.

Lady Astwell arrumou-se confortavelmente entre as almofadas, de forma a ficar de frente para ele.                            

— Lily é uma moça muito querida — disse Lady Astwell — mas pensa que sabe tudo e, segundo minha experiência, pessoas assim quase sempre estão erradas. Não sou inteligente, M. Poirot, nunca fui, mas tenho razão em coisas que muitas pessoas mais estúpidas que eu não têm. Acredito em intuição. O senhor quer que eu lhe diga quem é o assassino, ou não? As mulheres sabem, M. Poirot.

— A Srta. Margrave sabe?

— O que foi que ela lhe disse? — perguntou Lady Astwell abruptamente.

— Ela narrou os fatos do caso.

— Os fatos? Oh, é claro que eles são definitivamente contra Charles, mas eu lhe digo, M. Poirot, não foi ele. Eu sei que não foi ele! — Ela se inclinou sobre ele com uma veemência quase des­concertante.

— A senhora tem certeza, Lady Astwell?

— Trefusis matou meu marido, M. Poirot. Disso eu tenho certeza.

— Por quê?

— O senhor quer saber por que ele matou meu marido, ou por que eu tenho certeza? Digo-lhe que sei disso! Sou engraçada nesse tipo de coisa. Chego a uma conclusão imediatamente, e apego-me a ela.

— O Sr. Trefusis teria algum benefício com a morte de Sir Reuben?

— Não lhe deixou nenhum centavo — respondeu Lady Astwell, prontamente. — O que apenas demonstra que o querido Reuben não gostava ou não confiava nele.

— E ele já estava há muito tempo com Sir Reuben?

— Quase nove anos.

— É um bocado de tempo — disse Poirot, delicadamente — muito tempo para se trabalhar para uma só pessoa. É, o Sr. Trefusis devia conhecer seu patrão muito bem.

Lady Astwell encarou-o.

— Aonde o senhor quer chegar? Não vejo o que uma coisa tem a ver com a outra.

— Estava desenvolvendo uma ideiazinha — disse Poirot. — Uma ideiazinha que talvez não seja interessante, mas que não deixa de ser original, sobre os efeitos do serviço.

Lady Astwell continuava com os olhos fixos nele.

— O senhor é muito inteligente, não é? — perguntou ela, em tom de dúvida. — É o que todos dizem.

Hercule Poirot deu uma gargalhada.

— Talvez a senhora também me faça este elogio, Madame, qualquer dia desses. Mas voltemos ao motivo. Fale-me, agora, sobre as pessoas da casa, sobre as pessoas que se encontravam aqui no dia da tragédia.

— Havia Charles, é claro.

— Pelo que eu saiba, ele era sobrinho de seu marido, e não seu.

— É, Charles era o único filho da irmã de Reuben. Ela se casou com um homem relativamente rico, mas aconteceu um desastre qualquer — como acontecem nas cidades — ele morreu, a mulher morreu também e Charles veio morar conosco. Estava com vinte e três anos na ocasião, quase formado em Direito. Mas quando surgiram os problemas, Reuben levou-o para o escritório.

— E M. Charles era trabalhador?

— Gosto de homens que pegam as coisas com rapidez — disse Lady Astwell, balançando a cabeça em aprovação. — Não, e aí é que está o problema, Charles não era trabalhador. Estava sempre entrando em atrito com o tio por causa de uma ou outra confusão que inventava. Não que o pobre Reuben fosse uma pessoa de fácil con­vivência. Muitas foram as vezes em que eu mesma lhe disse que ele se esquecera o que era ser jovem. Naquele tempo ele era muito di­ferente, M. Poirot.

Lady Astwell deu um suspiro de recordação.

— As mudanças são inevitáveis, Madame — disse Poirot. — E a vida.

— Mesmo assim — prosseguiu Lady Astwell — ele nunca foi realmente rude comigo. Pelo menos quando era, sempre ficava tristonho depois — meu querido Reuben.

— Era uma pessoa difícil, hein? — perguntou Poirot.

— Sempre consegui controlá-lo — respondeu Lady Astwell, com o ar de um domador de leões vitorioso. — Mas era um tanto desagradável, às vezes, quando ele perdia a paciência com os empregados. Existem meios de se fazer isso, e o de Reuben não era o mais correto.

— Como foi feita, exatamente, a divisão do dinheiro de Sir Reuben, Lady Astwell?

— Metade para mim e metade para Charles — respondeu Lady Astwell, prontamente. — Os advogados não apresentam os fatos com tanta simplicidade, mas na verdade é isso.

Poirot balançou a cabeça.

— Entendo... entendo — murmurou. — Agora, Lady Astwell, vou lhe pedir que descreva as pessoas da casa. Havia a senhora, e o sobrinho de Sir Reuben, o Sr. Charles Leverson, e o secretário, o Sr. Owen Trefusis, e a Srta. Lily Margrave. Talvez a senhora me fale um pouco sobre esta moça.

— O senhor quer que eu fale sobre Lily?

— Quero. Ela está com a senhora há muito tempo?

— Há cerca de um ano. Já tive muitas damas de companhia, o senhor sabe, mas, de uma forma ou de outra, todas acabavam me dando nos nervos. Ela tem muito tato e bom-senso e, além do mais, é tão simpática. Não gosto de aparentar o que não sou, M. Poirot. Sou uma pessoa engraçada; gosto ou não das pessoas logo à pri­meira vista. Assim que vi esta moça, disse a mim mesma: “Esta serve.”

— Ela lhe foi mandada por alguma amiga, Lady Astwell?

— Acho que veio por um anúncio. É — foi isso.

— A senhora sabe de alguma coisa sobre a família dela, de onde ela veio?

— Os pais dela estão na Índia, creio eu. A bem da verdade, não sei muita coisa a respeito deles, mas percebe-se logo que Lily é uma dama, não é mesmo, M. Poirot?

— Oh, perfeitamente, perfeitamente.

— É claro — prosseguiu Lady Astwell — que eu mesma não sou uma dama. Sei disso, e os empregados sabem, mas também não sou nada mesquinha. Eu sei apreciar uma coisa verdadeira quando a vejo, e ninguém poderia ter sido mais bondosa para mim do que Lily. Considero esta moça quase como uma filha, M. Poirot, é ver­dade.

Poirot esticou a mão direita e arrumou um ou dois objetos que estavam sobre a mesa, perto dele.

— Sir Reuben compartilhava seus sentimentos? — perguntou.

Os olhos dele estavam ocupados com as bugigangas mas, sem duvida alguma, ele percebeu a pausa que antecedeu a resposta de Lady Astwell.

— Os homens são diferentes. É claro que eles... eles se davam muito bem.

— Obrigado, Madame — disse Poirot. Sorria para si mesmo. — E eram estas as únicas pessoas que se encontravam em casa, naquela noite? Excetuando-se os empregados, é claro.

— Oh, o Victor também estava.

— Victor?

— É, irmão do meu marido, sabe, e seu sócio.

— Ele morava aqui?

— Não, havia chegado recentemente para nos visitar. Ele mora na África Ocidental já há alguns anos.

— África Ocidental — murmurou Poirot.

Poirot havia percebido que Lady Astwell era capaz de desen­volver um assunto por si mesma, desde que lhe fosse dado algum tempo.

— Dizem que é um país maravilhoso, mas acho que é o tipo do lugar que pode ter um efeito negativo sobre os homens. Eles bebem demais e perdem o controle. Nenhum dos Astwell tem tempera­mento fácil, e Victor, desde que voltou da África, tem sido simples­mente chocante. Ele já assustou a mim uma ou duas vezes.

— Teria, por acaso, assustado a Srta. Margrave? — murmurou Poirot gentilmente.

— Lily? Oh, não creio que tenha estado muito com Lily.

Poirot fez umas anotações em seu minúsculo caderno; depois colocou o lápis de volta na presilha e pôs o caderno em seu bolso.

— Eu lhe agradeço, Lady Astwell. Agora, se me permite, entrevistarei Parsons.

— Quer que o chame?

A mão de Lady Astwell dirigiu-se para a campainha. Poirot impediu o gesto rapidamente.

— Não, não, mil vezes não. Falarei com ele lá embaixo.

— Já que o senhor prefere...

Lady Astwell ficou visivelmente desapontada por não poder participar da cena seguinte. Poirot assumiu um ar secreto.

— É essencial — disse misteriosamente, deixando Lady Astwell devidamente impressionada.

Encontrou Parsons na copa, polindo a prataria. Poirot deu início à conversa com uma de suas breves e engraçadas reverências.

— Devo explicar quem sou — disse. — Um detetive.

— Sim, sir — respondeu Parsons. — Já imaginávamos.

Seu tom era respeitoso, mas arredio.

— Lady Astwell mandou me chamar — prosseguiu Poirot. — Ela não está satisfeita, não, não está satisfeita mesmo.

— Já ouvi a patroa dizer isso em diversas ocasiões — replicou Parsons.

— Neste caso — falou Poirot, — estou lhe dizendo as coisas que você já sabe, hein? Não percamos tempo, então, com bobagens. Tenha a bondade de me levar ao seu quarto e de me dizer exata­mente o que ouviu na noite do crime.

O quarto do mordomo ficava no andar térreo, ao lado do saguão dos empregados. Tinha janelas com grades e a casa-forte ficava em um dos cantos. Parsons mostrou sua cama estreita.

— Eu havia me recolhido, sir, às onze horas. A Srta. Margrave já fora se deitar, e Lady Astwell estava com Sir Reuben na sala da Torre.

— Lady Astwell estava com Sir Reuben? Ah, prossiga.

— A sala da Torre, sir, fica exatamente aqui em cima. Quando tem alguém conversando lá, podemos apenas ouvir o murmúrio das vozes, mas, naturalmente, nada do que está sendo dito. Devo ter adormecido por volta das onze e meia. À meia-noite fui acordado com o barulho da porta da frente e sabia que era o Sr. Leverson que havia chegado. Logo depois ouvi passos aqui em cima e, um ou dois minutos depois, ouvi a voz do Sr. Leverson conversando com Sir Reuben. Naquele momento, sir, tive a impressão de que o Sr. Lever­son estava... não deveria dizer exatamente bêbado, mas ligeiramente indiscreto e barulhento. Gritava com o tio a plenos pulmões. Dis­tingui uma ou outra palavra, mas não o suficiente para entender o que estava se passando, e depois ouvi um grito agudo e uma pan­cada pesada.

Houve uma pausa, e Parsons repetiu as últimas palavras.

— Uma pancada pesada, repetiu, impressionado.

— Se não me engano, na maioria dos romances diz-se uma pancada surda — murmurou Poirot.

— Talvez, sir — retrucou Parsons seriamente. — Mas eu ouvi uma pancada pesada.

— Mil perdões — disse Poirot.

— Não tem de que, sir. Depois da pancada, no silêncio, ouvi o Sr. Leverson gritar com nitidez mais que total. “Meu Deus”, disse ele, “meu Deus”, assim mesmo, sir.

Parsons, que antes relutara em contar sua história, agora chegava a sentir um verdadeiro prazer. Imaginava-se um grande narrador. Poirot o incentivava.

— Mon Dieu — murmurou. — E que emoção não deve ter sen­tido!

— Mas é verdade mesmo, sir — disse Parsons, — como o se­nhor disse. Não que eu tenha pensado muito no assunto, naquela hora. Mas realmente me ocorreu a idéia de que alguma coisa estava errada, e pensei se não seria melhor eu me levantar para ir ver. Ia acender a luz mas, por azar, derrubei uma cadeira. Abri a porta, atravessei o saguão dos empregados, e abri a outra porta que dá Para um corredor. A escada dos fundos fica nesse corredor, e eu fi­quei ao pé dela, hesitando. Ouvi o Sr. Leverson dizer lá de cima, animado e cordial: “Nada de mais, felizmente. Boa-noite.” E ouvi quando se afastou, pelo corredor, em direção ao seu quarto, asso­viando. É claro que voltei para a cama imediatamente. Deve ter caído alguma coisa, foi o que pensei. E eu lhe pergunto, sir, era de se imaginar que Sir Reuben tivesse sido assassinado, se o sobrinho dele lhe deu boa-noite e tudo o mais?

— Você tem certeza de que a voz que ouviu era a do Sr. Le­verson?

Parsons olhou o pequeno belga com ar de dó, e Poirot percebeu claramente que, certo ou errado, Parsons não tinha a menor dúvida.

— Mais alguma coisa que o senhor queira me perguntar, sir?

— Só uma — disse Poirot, — você gosta do Sr. Leverson?

— Como... como disse, sir?

— É uma pergunta simples. Você gosta do Sr. Leverson?

Parsons, assustado a princípio, agora parecia embaraçado.

— A opinião geral dentre os empregados, sir — começou, e fez uma pausa.

— Não se acanhe — disse Poirot, — fale como achar melhor.

— A opinião, sir, é que o Sr. Leverson é um jovem generoso, sem ser particularmente inteligente, se me permite, sir.

— Ah! — disse Poirot. — Você sabe, Parsons, que mesmo sem conhecê-lo é exatamente esta a idéia que faço do Sr. Leverson?

— Não diga, sir.

— Qual sua opinião, ou melhor, a opinião dos empregados sobre o secretário?

— É um cavalheiro muito calmo e paciente, sir. Faz o possível para não causar problemas.

— Vraiment — disse Poirot.

O mordomo tossiu.

— A patroa, sir — murmurou ele, — tende a ser um pouco apressada em seu julgamento.

— Então, na opinião geral dos empregados, o Sr. Leverson cometeu o crime?

— Nenhum de nós deseja achar que tenha sido o Sr. Leverson — respondeu Parsons. — Nós... bem, para ser claro, não pensáva­mos que ele fosse capaz de tal coisa, sir.

— Mas o temperamento dele é um tanto violento, não é mes­mo?

Parsons aproximou-se de Poirot.

— Se o senhor deseja saber quem tinha o temperamento mais violento desta casa...

Poirot levantou uma das mãos.

— Ah! Mas eu não faria tal pergunta — disse calmamente. — Minha pergunta seria: quem tem o melhor temperamento?

Parsons encarou-o, boquiaberto.

Poirot não perdeu mais tempo com ele. Com um amável cumprimento — ele era sempre amável — saiu do quarto e perambulou pelo vestíbulo, grande e quadrado, de Mon Repos. Ali deixou-se ficar pensando durante um ou dois minutos e depois, ao ouvir um ligeiro ruído, inclinou a cabeça para o lado, como um tordo saltitante e, finalmente, encaminhou-se para uma das portas, silenciosa­mente.

Ficou parado na porta, olhando para a sala; uma pequena sala com aspecto de biblioteca. Numa enorme escrivaninha, na outra extremidade, um jovem magro e pálido escrevia qualquer coisa. Ti­nha o queixo para dentro e usava pince-nez.

Poirot observou-o durante alguns minutos e depois quebrou o silêncio com um pigarro completamente artificial e teatral.

— Aham! — pigarreou Hercule Poirot.

O jovem na escrivaninha parou de escrever e virou a cabeça. Não parecia estar muito assustado, mas seu rosto assumiu um ar de perplexidade ao avistar Poirot.

Este aproximou-se com um breve cumprimento de cabeça.

— Tenho a honra de falar com M. Trefusis, não é? Ah! Meu nome é Poirot, Hercule Poirot. Talvez já tenha ouvido falar a meu respeito.

— Oh... é... sim, sem dúvida — respondeu o jovem.

Poirot observou-o atentamente.

Owen Trefusis tinha cerca de trinta e três anos, e o detetive percebeu imediatamente por que ninguém conseguia levar a sério a acusação de Lady Astwell. O Sr. Owen Trefusis era um jovem formal, correto, desconcertantemente humilde, o tipo de pessoa que pode ser, e é, sistematicamente intimidada. Podia-se ter quase cer­teza de que ele jamais demonstraria qualquer ressentimento.

— Lady Astwell mandou chamá-lo, é claro — disse o secre­tário. — Ela mencionou que iria fazê-lo. Há alguma coisa em que eu possa ajudá-lo?

Seus modos eram educados, mas não efusivos. Poirot aceitou uma cadeira e murmurou gentilmente:

— Por acaso Lady Astwell lhe disse alguma coisa sobre suas crenças e suspeitas?

Owen Trefusis deu um breve sorriso.

— Quanto a isso — disse ele — acho que ela desconfia de mim. E um absurdo, mas é verdade. Ela mal me dirige a palavra desde a morte de Sir Reuben, encolhe-se na parede toda vez que passa por mim.

Seu jeito era perfeitamente natural, e o tom de voz aparentava ser mais divertido do que ressentido. Poirot assentiu, com ar de cumplicidade.

— Cá entre nós — explicou ele, — ela me disse a mesma coisa. Não discuti com ela — tenho por regra nunca discutir com mulheres muito dogmáticas. Você entende, é uma perda de tempo.

— Ah, se é.

— Digo sempre: sim, Madame — oh, perfeitamente, Madame — précisément, Madame. Estas palavras não significam nada, mas acalmam do mesmo jeito. Faço minhas próprias investigações, porque embora pareça quase impossível que outra pessoa além do Sr. Leverson tenha cometido o crime, ainda assim... bem, o impos­sível acontece.

— Compreendo perfeitamente sua posição — disse o secretá­rio. — Por favor, considere-me ao seu inteiro dispor.

— Bon — replicou Poirot. — Nós nos entendemos. Agora fale-me dos acontecimentos daquela noite. É melhor começar pelo jantar.

— Leverson não jantou aqui, como o senhor sem dúvida já deve saber — começou o secretário. — Teve uma discussão séria com o tio e foi jantar no clube de golfe. Em conseqüência, Sir Reuben ficou com um péssimo humor.

— Não era muito amável, ce Monsieur, hein? — insinuou Poirot, delicadamente.

Trefusis deu uma risada.

— Oh! Era uma pessoa intratável! Durante estes nove anos que trabalhei com ele, fiquei conhecendo seus menores hábitos. Era um homem extraordinariamente difícil, M. Poirot. Costumava ter acessos infantis de raiva e destratar qualquer pessoa que se aproximasse dele. Àquela altura, já estava acostumado a tudo isso Tinha por hábito não dar a mínima importância ao que ele dizia A bem da verdade, ele não era uma má pessoa, mas às vezes seus modos eram extremamente tolos e irritados. A melhor coisa era não retrucar.

— As outras pessoas eram tão sensatas quanto você neste aspecto?

Trefusis deu de ombros.

— Lady Astwell gostava de uma boa briga. Não tinha o mínimo medo de Sir Reuben, e sempre o enfrentava, respondendo a tudo que lhe era dito. Sempre faziam as pazes depois, e Sir Reuben era realmente dedicado a ela.

— Eles discutiram aquela noite?

O secretário olhou-o de lado, hesitou um pouco, e depois disse:

— Creio que sim; por que fez esta pergunta?

— Uma idéia, apenas.

— Não tenho certeza, é claro — explicou o secretário, — mas tudo indica que as coisas estavam se encaminhando para isso.

Poirot não insistiu no assunto.

— Quem mais estava no jantar?

— A Srta. Margrave, o Sr. Victor Astwell e eu.

— E depois?

— Fomos para a sala de estar. Sir Reuben não nos acompa­nhou. Uns dez minutos depois ele chegou e me chamou a atenção com severidade por causa de uma bobagem de uma carta. Subi com ele para a sala da Torre e acertamos tudo; depois entrou o Sr. Victor Astwell, dizendo que queria conversar com o irmão, de forma que voltei para baixo e juntei-me às duas senhoras. Cerca de quinze minutos depois, ouvi a campainha de Sir Reuben tocar violenta­mente, e Parsons veio me dizer que Sir Reuben queria que eu fosse vê-lo naquele mesmo instante. Quando entrei na sala, o Sr. Victor Astwell estava saindo. Quase me derrubou. Era evidente que ficara perturbado com alguma coisa. Tinha um temperamento muito vio­lento. Acredito mesmo que não tenha me visto.

— Sir Reuben fez algum comentário sobre o assunto?

— Ele disse: “Victor é maluco; qualquer dia desses vai dar cabo de alguém num desses acessos de raiva.”

— Ah! — disse Poirot. — Você tem alguma idéia do que pode ter sido?

— Não, nem imagino.

Poirot virou a cabeça muito lentamente e olhou o secretário. As últimas palavras tinham saído depressa demais. Ficou conven­cido de que Trefusis poderia ter dito mais alguma coisa, caso dese­jasse. Mais uma vez, no entanto, Poirot não insistiu.

— E depois? Prossiga, por favor.

— Trabalhei com Sir Reuben durante uma hora e meia, mais ou menos. Às onze horas Lady Astwell apareceu, e Sir Reuben disse que eu podia ir me deitar.

— E você foi?

— Fui.

— Você tem idéia de quanto tempo ela ficou lá com ele?

— Nenhuma. O quarto dela fica no primeiro andar e o meu no segundo, de forma que não ouvi quando ela foi se deitar.

— Entendo.

Poirot balançou a cabeça uma ou duas vezes e pôs-se de pé.

— E agora, Monsieur, leve-me à sala da Torre.

Subiu a larga escada que dava para o primeiro pavimento, atrás do secretário. Depois Trefusis conduziu-o por um corredor e atra­vessou uma porta de baeta que havia no final, que dava para a escada dos empregados e terminava numa porta. Passaram por esta porta e chegaram à cena do crime.

O teto era pelo menos duas vezes mais alto do que o dos outros aposentos. e a sala tinha, aproximadamente, dez metros quadrados. Espadas e azagaias adornavam as paredes, e diversas raridades indígenas estavam arrumadas sobre as mesas. Na outra extremidade, no vão da janela, havia uma imensa escrivaninha. Poirot encaminhou-se diretamente para lá.

— Foi este o lugar onde Sir Reuben foi encontrado?

Trefusis assentiu.

— Ele foi atingido pelas costas, se não me engano.

Novamente o secretário assentiu.

— O crime foi cometido com um destes porretes indígenas — explicou ele. — Um objeto tremendamente pesado. A morte deve ter sido quase instantânea.

— Isto reforça a hipótese de que o crime não foi premeditado. Uma discussão violenta, e uma arma apanhada quase inconscientemente.

— É, o que deixa o pobre Leverson em má situação.

— E o corpo foi encontrado caído sobre a mesa?

— Não, escorregou para o lado e caiu no chão.

— Ah — disse Poirot, — interessante.

— Por que interessante? — perguntou o secretário.

— Por causa disto.

Poirot apontou para uma mancha redonda e irregular que havia na superfície polida da escrivaninha.

— Isto é uma mancha de sangue, mon ami.

— Talvez tenha respingado ali — sugeriu Trefusis — ou talvez tenha sido feita depois, quando removeram o corpo.

— É possível, é possível — disse o homenzinho. — Só existe uma porta que dê entrada para esta sala?

— Há uma escada aqui.

Trefusis abriu uma cortina de veludo no canto da sala mais próximo da porta, de onde subia uma pequena escada em espiral.

— Este aposento foi originalmente construído por um astrô­nomo. A escada sobe até a torre, onde ficava o telescópio. Sir Reuben transformou-a em quarto, e às vezes dormia lá quando tra­balhava até tarde.

Poirot subiu a escada lepidamente. O quarto circular lá em cima tinha mobília simples: uma cama de armar, uma cadeira e uma penteadeira. Poirot verificou se não havia uma outra saída, e voltou para o local onde Trefusis o aguardava.

— Você ouviu o Sr. Leverson chegar? — perguntou.

Trefusis abanou a cabeça.

— Já estava dormindo a sono solto.

Poirot assentiu. Passou os olhos vagarosamente pela sala.

— Eh bien! — disse finalmente. — Acho que não há mais nada aqui, a não ser... você poderia fechar as cortinas para mim?

Obedientemente, Trefusis puxou as cortinas pretas, pesadas, que cobriam a janela, na outra extremidade da sala. Poirot acendeu a luz — escondida por trás de um grande globo de alabastro, pendu­rado no teto.

— Havia algum abajur na escrivaninha? — perguntou.

Como resposta, o secretário acendeu uma forte luz esverdeada, que havia sobre a escrivaninha. Poirot apagou a outra luz, depois acendeu, depois apagou de novo.

— C’est bien! Já terminei.

— O jantar é às sete e meia — murmurou o secretário.

— Obrigado, Sr. Trefusis, por sua gentileza.

— Não há de quê.

Poirot seguiu pensativo pelo corredor, em direção ao quarto que lhe fora reservado. O inescrutável George estava arrumando as coi­sas do patrão.

— Meu caro George — disse logo depois, — espero encontrar no jantar um certo cavalheiro que começa a me intrigar demais. Um homem que veio dos trópicos, George. Com um temperamento tropical — pelo menos é o que dizem. O homem sobre quem Parsons tenta me dizer qualquer coisa, e que a Srta. Margrave sequer menciona. O falecido Sir Reuben tinha lá o seu temperamento, George. Suponhamos que um homem assim entrasse em contato com um outro, cujo temperamento fosse pior do que o seu — como é que vocês dizem? Ia ser uma briga dos demônios, hein?

— “Dos diabos” é a expressão correta, sir, e nem sempre acontece isso, sir, nem sempre.

— Não?

— Não, sir. Lembro-me de minha tia Jemima, sir, que tinha uma língua de cobra e vivia humilhando a pobre da irmã que morava com ela. Era chocante o que fazia. Quase a matava de aborreci­mentos. Mas se aparecesse alguém que lhe enfrentasse, bem, aí a coisa ficava diferente. O que ela não conseguia tolerar era a submis­são.

— Ah! — disse Poirot. — Bastante sugestivo.

George pigarreou como que se desculpando.

— Há alguma coisa que possa fazer — perguntou delica­damente — para... é... ajudá-lo, sir?

— Certamente — respondeu Poirot, de imediato. — Você pode descobrir para mim de que cor era o vestido da Srta. Margrave na noite do crime, e qual a empregada que a atende.

George recebeu estas ordens com a costumeira impassibilidade.

— Está bem, sir, o senhor terá estas informações amanhã de manhã.

Poirot levantou-se, os olhos fixos no fogo.

— Você me é de grande utilidade, George — murmurou. — Sabe de uma coisa? Não me esquecerei de sua tia Jemima.

No fim das contas, Poirot não se encontrou com Victor Astwell aquela noite. Receberam um telegrama dizendo que ele tivera que permanecer em Londres.

— Ele está resolvendo os negócios de seu falecido marido? — perguntou Poirot a Lady Astwell.

— Victor era seu sócio — explicou ela. — Foi para a África cuidar de algumas concessões para mineração, para a firma. Era mineração, não era, Lily?

— Era sim, Lady Astwell.

— Minas de ouro, acho eu. Ou eram de cobre? Ou de estanho? Você deve saber, Lily, pois vivia fazendo perguntas a Reuben sobre essas coisas. Oh, cuidado, querida, ou acabará derrubando o vaso!

— Está terrivelmente quente aqui, com este fogo — disse a moça. — Posso... posso abrir um pouco a janela?

— Como queira, querida — respondeu Lady Astwell, placidamente.

Poirot observou a moça enquanto esta ia até a janela para abri-la. Ficou ali parada, durante um ou dois minutos, respirando o ar fresco da noite. Quando voltou e sentou-se, Poirot falou-lhe, delica­damente:

— Então a Mademoiselle interessa-se por minas?

— Oh, não muito — respondeu a moça, com indiferença. — Costumava ouvir Sir Reuben, mas não entendo nada do assunto.

— Então sabia fingir muito bem — disse Lady Astwell. — A bem da verdade, o pobre Reuben achava que você devia ter algum motivo para fazer todas aquelas perguntas.

Os pequeninos olhos do detetive não se afastaram do fogo, que ele encarava fixamente mas, mesmo assim, percebeu o breve rubor de vergonha no rosto de Lily Margrave. Habilmente, ele mudou de assunto. Ao chegar a hora de dar boa noite, Poirot disse à sua anfi­triã:

— Poderíamos trocar umas palavrinhas, Madame?

Lily Margrave desapareceu discretamente. Lady Astwell olhou o detetive com ar indagador.

— Foi a senhora a última pessoa a ver Sir Reuben com vida, naquela noite?

Ela assentiu. As lágrimas saltaram-lhe dos olhos, e rapi­damente levou até eles um lenço debruado de preto.

— Ah, não se atormente, peço-lhe que não se atormente.

— O senhor está certo, M. Poirot, mas não consigo evitar.

— Neste caso, sou três vezes idiota por lhe haver entristecido.

— Não, não, continue. O que o senhor ia dizer?

— Eram, aproximadamente, onze horas quando a senhora en­trou na sala da Torre e Sir Reuben despachou o Sr. Trefusis, não é verdade?

— Deve ter sido em torno disso.

— Quanto tempo a senhora ficou com ele?

— Faltavam quinze minutos para a meia-noite quando subi para o meu quarto; lembro-me de ter olhado o relógio.

— Lady Astwell, a senhora poderia me dizer sobre o que conversou com seu marido?

Lady Astwell afundou num sofá e descontrolou-se por completo. Seus soluços eram profundos.

— Nós dis... dis... discutimos — lamentou-se.

— A propósito de quê? — A voz de Poirot era persuasiva, quase suave.

— M... m... muitas coisas. Co... co... começou com L... Lily. Reuben tomou uma implicância com ela, sem motivo algum, e disse que já a havia pego mexendo em seus papéis. Queria mandá-la em­bora, mas eu disse que ela era uma moça muito boa e que eu não iria permitir. Então ele começou a be... be... berrar comigo, o que eu não tolero, e disse-lhe tudo o que achava dele. Não que eu sentisse realmente aquilo, M. Poirot. Ele disse que me tirara da sarjeta para se casar comigo, e disse também... ah, mas o que im­porta isso agora? Jamais me perdoarei. O senhor sabe como é, M. Poirot, eu sempre digo que uma boa briga esclarece tudo, e como poderia adivinhar que ele seria assassinado naquela mesma noite? Meu pobre Reuben.

Poirot ouviu compassivamente esta explosão.

— Trouxe-lhe sofrimento — falou. — Peço-lhe desculpas. Agora sejamos mais objetivos — mais práticos, mais exatos. A senhora ainda mantém a idéia de que o Sr. Trefusis assassinou seu marido?

Lady Astwell se recompôs.

— O instinto feminino, M. Poirot — falou solenemente — nunca se engana.

— Exato, exato — replicou Poirot. — Mas quando foi que ele o matou?

— Quando? Depois que saí de lá, é claro.

— A senhora deixou Sir Reuben às onze e quarenta e cinco. As onze e cinqüenta e cinco o Sr. Leverson chegou. A senhora diz que nestes dez minutos o secretário saiu de seu quarto e o matou?

— É perfeitamente possível.

— Tantas coisas são possíveis — disse Poirot. — Poderia ter acontecido em dez minutos. Oh, sim! Mas será que aconteceu?

— É claro que ele diz que estava em sua cama, dormindo a sono solto — retrucou Lady Astwell, — mas quem pode garantir se estava ou não?

— Ninguém o viu por lá — lembrou-lhe Poirot.

— Todos estavam na cama, dormindo a sono solto — disse Lady Astwell, triunfantemente. — É claro que ninguém o viu.

— Não sei — disse Poirot, de si para si.

Uma curta pausa.

— En bien, Lady Astwell, desejo-lhe uma boa noite.

George colocou a bandeja com o café da manhã na mesa de cabeceira de seu patrão.

— A Srta. Margrave, sir, usava um vestido de chiffon verde-claro na noite em questão.

— Obrigado, George, você merece toda confiança.

— A terceira criada é quem atende à Srta. Margrave, sir. O nome dela é Gladys.

— Obrigado, George. Você é uma raridade.

— Não há de quê, sir.

— Está uma bela manhã — disse Poirot, olhando pela janela — e é pouco provável que as pessoas iniciem suas atividades muito cedo. Acho, meu caro George, que usaremos a sala da Torre com exclusividade, para uma pequena experiência.

— O senhor vai precisar de mim?

— A experiência — disse Poirot — não será dolorosa.

Ao chegarem lá, as cortinas da sala da Torre ainda estavam fechadas. George estava prestes a abri-las, quando Poirot o deteve.

— Deixemos a sala como está. Quero apenas que você ligue o abajur da escrivaninha.

O criado obedeceu.

— Agora, meu caro George, sente-se naquela cadeira. Finja que está escrevendo. Très bien. Eu pegarei este porrete, aproximar-me-ei de você pelas costas, assim, e atingi-lo-ei na parte de trás da cabeça.

— Sim, senhor.

— Ah! — disse Poirot, — mas quando eu bater em você, não continue escrevendo. Procure entender que não posso ser violento. Não posso atingi-lo com a mesma força que o assassino atacou Sir Reuben. Quando chegarmos neste momento, temos que começar o faz-de-conta. Atinjo-o na cabeça e você cai, assim. Os braços bem relaxados, o corpo flácido. Permita-me que o arrume. Mas não, não contraia os músculos.

Deu um suspiro de exasperação.

— Você passa calças muito bem, George — disse ele, — mas imaginação, isto você não possui. Levante-se e deixe-me ficar em seu lugar.

Poirot sentou-se à escrivaninha.

— Eu estou escrevendo — declarou — estou escrevendo atarefadamente. Você se aproxima de mim pelas costas e me dá com o porrete na cabeça. Pou! A caneta escorrega-me dos dedos, eu caio para a frente, mas não muito, porque a cadeira é baixa e a escrivaninha é alta e, além do mais, meus braços me sustentam. Te­nha a bondade, George, de ir até a porta e me dizer o que está vendo.

— Aham!

— Sim, George? — disse Poirot, para animá-lo.

— Eu o vejo, sir, sentado à escrivaninha.

— Sentado à escrivaninha?

— É um pouco difícil ver nitidamente, sir — explicou George — já que a distância é tão grande e a luz muito encoberta. Posso acender esta luz, sir?

Esticou a mão para alcançar o comutador.

— De maneira nenhuma. — disse Poirot abruptamente. — Está muito bem assim. Aqui estou eu, inclinado sobre a escriva­ninha, e aí está você, de pé na porta. Aproxime-se agora, George, aproxime-se e ponha sua mão em meu ombro.

George obedeceu.

— Apóie-se um pouco em mim, George, como se fosse para se equilibrar. Ah! Voillà.

O corpo flácido de Hercule Poirot escorregou artisticamente para o lado.

— Eu caio — assim! — observou ele. — Sim, foi tudo bem imaginado. Agora temos que fazer o mais importante.

— Não diga, sir! — disse o criado.

— Sim, é necessário que eu tome um bom café da manhã.

O homenzinho riu alegremente de sua própria piada.

— O estômago, George; ele não pode ser ignorado.

George manteve seu silêncio reprovador. Poirot desceu as es­cadas rindo alegremente para si mesmo. Estava satisfeito com o rumo que as coisas estavam tomando. Depois do café, apresentou-se a Gladys, a terceira criada. Estava bastante interessado no que ela teria a lhe dizer sobre o crime. Tinha compaixão de Charles, embora não tivesse a menor dúvida de que era ele o culpado.

— Pobre jovem, sir, é um bocado duro, e como, ele ter perdido o controle naquele momento.

— Ele e a Srta. Margrave deviam se dar bem — sugeriu Poirot — visto serem os únicos jovens da casa.

Gladys abanou a cabeça.

— A Srta. Margrave era muito reservada com ele. Não queria amizade com ele, e deixava isto bem claro.

— Ele gostava dela, não gostava?

— Oh, coisa passageira, ou algo que o valha; não tinha nada de mais, sir. O Sr. Victor Astwell, sir, este gosta mesmo da Srta. Lily.

Deu uma risadinha.

— Ah, vraiment!

Gladys deu outra risadinha.

— Encantou-se logo com ela. A Srta. Lily parece mesmo um lírio, não é verdade, sir? Tão alta e com um tom dourado de cabelos tão bonito.

— Ela ficaria bem com uma túnica verde, à noite — insinuou Poirot. — Existe uma certa tonalidade de verde...

— Mas ela tem um vestido assim, sir — disse Gladys. — É claro que não pode vesti-lo agora, estando de luto, mas era o vestido que ela estava na noite em que Sir Reuben morreu.

— Melhor seria verde-claro, e não verde-escuro — disse Poirot.

— E é verde-claro, sir. Se o senhor esperar um pouco, eu lhe mostro o vestido. A Srta. Lily acabou de sair com os cachorros.

Poirot assentiu. Ele sabia disso tão bem quanto Gladys. Na verdade, só procurou a criada depois de ter visto Lily se afastando da casa. Gladys saiu depressa e voltou minutos depois, com um vestido verde, próprio para a noite, pendurado num cabide.

— Exquis! — murmurou Poirot, levantando as mãos em sinal de admiração. — Permita-me vê-lo perto da luz por um instante.

Pegou o vestido de Gladys, voltou-lhe as costas e apressou-se em direção à janela. Inclinou-se e estendeu os braços.

— É perfeito — declarou. — Absolutamente encantador. Mil vezes obrigado por tê-lo me mostrado.

— Não há de quê, sir — disse Gladys. — Todos nós sabemos que os franceses interessam-se por vestidos.

— Muita bondade sua — murmurou Poirot.

Observou-a sair depressa com o vestido. Depois olhou para as próprias mãos e sorriu. Na mão direita havia uma delicada tesourinha de unhas, na esquerda havia um pequenino pedaço de chiffon verde.

— E agora — murmurou ele — ao ato de heroísmo.

Voltou ao seu apartamento e chamou George.

— Na penteadeira, meu caro George, você encontrará um alfi­nete de cachecol, de ouro.

— Sim, sir.

— Na pia há uma solução de ácido carbólico. Peço-lhe que mergulhe a ponta do alfinete nesta solução.

George fez o que lhe foi pedido. Há muito deixara de se impor­tar com os caprichos de seu patrão.

— Pronto, sir.

— Très bien! Agora aproxime-se. Aqui está o meu dedo indi­cador; enterre nele a ponta do alfinete.

— Desculpe-me, sir, o senhor quer que eu o espete?

— Mas é claro, você adivinhou bem. Deve sair sangue, enten­de, mas não muito.

George segurou o dedo do patrão. Poirot fechou os olhos e inclinou-se para trás. O criado afundou o alfinete no dedo, e Poirot deu um grito agudo.

— Je vous remercie, George — disse ele. — Você fez um belo serviço.

Tirando o pequenino pedaço de chiffon verde do bolso, Poirot secou o dedo com ele, cautelosamente.

— A operação foi um verdadeiro milagre — observou ele, admirando o resultado. — Você não tem curiosidade, George? Realmente admirável!

O criado acabara de olhar discretamente pela janela.

— Com licença, sir — murmurou ele, — chegou um cavalheiro num enorme carro.

— Ah! Ah! — exclamou Poirot, levantando-se com vivacidade. — O esquivo Sr. Victor Astwell. Vou descer para conhecê-lo.

Poirot estava destinado a ouvir o Sr. Victor Astwell antes de vê-lo. Uma voz gritava do vestíbulo:

— Cuidado com o que faz, seu imbecil! A mala está cheia de vidros. Maldito seja, Parsons, saia da minha frente! Ponha isso no chão, seu idiota!

Poirot descia as escadas saltitando com agilidade. Victor Astwell era um homem grande. Poirot cumprimentou-o educada­mente.

— Quem é você, diabos? — urrou o homenzarrão.

Poirot cumprimentou-o novamente.

— Meu nome é Hercule Poirot.

— Santa! — disse Victor Astwell. — Quer dizer então que Nancy mandou-o chamar mesmo?

Pôs uma das mãos no ombro de Poirot e conduziu-o até a biblioteca.

— Então é você o sujeito sobre quem as pessoas fazem tanto estardalhaço — observou ele, examinando Poirot de alto a baixo. — Desculpe-me pela linguagem de há pouco. Este meu chofer é uma besta quadrada, e Parsons sempre me dá nos nervos, aquele velho idiota. Não me dou muito bem com os idiotas, você entende — disse ele, meio se desculpando, — mas você não é nenhum idiota, hein, M. Poirot?

Deu uma risada gostosa.

— Os que pensaram assim descobriram estar redondamente enganados — respondeu Poirot, calmamente.

— É mesmo? Bem, então Nancy trouxe-o mesmo para cá — está com idéia fixa em relação ao secretário. Mas não vai descobrir nada; Trefusis é manso como um cordeiro. E só bebe leite, acho eu. É abstêmio. Você vai perder seu tempo, não é?

— Quando se tem oportunidade para observar a natureza humana, nunca o tempo é perdido — respondeu Poirot.

— A natureza humana, é?

Victor Astwell encarou-o, depois jogou-se numa cadeira.

— Alguma coisa que eu possa fazer?

— Sim, pode me dizer o motivo da briga com seu irmão naquela noite?

Victor Astwell abanou a cabeça.

— Não tem nada a ver com o caso — respondeu, decidida­mente.

— Nunca se pode ter certeza — argumentou Poirot.

— Não tinha nada a ver com Charles Leverson.

— Lady Astwell acha que Charles Leverson não tem nada a ver como crime.

— Ora, Nancy!

— Parsons supõe que foi Charles Leverson quem entrou naque­la noite, mas ele não o viu. Lembre-se de que ninguém o viu.

— Nisto é que você se engana — disse Astwell. — Eu o vi.

— Você o viu?

— É muito simples. Reuben andava implicando com o jovem Charles e não sem razão, devo dizer. Mais tarde tentou me inti­midar. Disse-lhe umas poucas verdades e, apenas para aborrecê-lo, resolvi defender o rapaz. Pretendia vê-lo aquela noite, para lhe dizer em que pé estavam as coisas. Subi para o meu quarto, mas não me deitei. Pelo contrário, deixei a porta toda aberta e fiquei lá sentado, fumando. Meu quarto é no segundo andar, M. Poirot, e o quarto de Charles fica ao lado do meu.

— Perdoe minha interrupção... o Sr. Trefusis, ele também dorme neste andar?

Astwell fez que sim com a cabeça.

— Dorme, o quarto dele é depois do meu.

— Mais perto da escada?

— Não, para o outro lado.

Uma estranha luz invadiu o rosto de Poirot, mas o outro nada percebeu e continuou:

— Como estava dizendo, fiquei acordado esperando Charles. Ouvi a porta da frente bater, como pensei, por volta de cinco minutos para a meia-noite, mas durante dez minutos, nem sinal de Charles. Quando subiu as escadas, vi que de nada adiantaria conversar com ele aquela noite.

Levantou os ombros significativamente.

— Entendo, murmurou Poirot.

— O pobre diabo não conseguia nem andar em linha reta — prosseguiu Astwell. — Estava, também, com uma expressão horro­rosa. Naquele momento, atribuí à sua condição. É claro que agora sei que ele acabara de cometer o crime.

Poirot interrompeu com uma rápida pergunta.

— Você não ouviu nenhum barulho na sala da Torre?

— Não, mas você deve se lembrar que eu estava justamente na outra extremidade da casa. As paredes são grossas, e não creio que seria possível ouvir nem mesmo o disparo de uma pistola naquela sala.

Poirot assentiu.

— Perguntei-lhe se queria ajuda para ir se deitar — continuou Astwell. — Mas ele disse que estava bem, foi para o seu quarto e bateu a porta. Troquei minha roupa e fui me deitar.

Poirot estava pensativo, os olhos fixos no tapete.

— Você percebe, M. Astwell — disse, finalmente, — que sua evidência é muito importante?

— Creio que sim, pelo menos... o que você quer dizer?

— A sua evidência de que se passaram dez minutos entre a ba­tida da porta da frente e o aparecimento do Sr. Leverson no segundo andar. Ele mesmo afirma, pelo que entendi, que entrou em casa e foi direto para a cama. Mas não é só isso. A acusação que Lady Astwell faz ao secretário é fantástica, eu admito, mas até hoje nada foi provado ser impossível. Mas sua evidência cria um álibi.

— Como assim?

— Lady Astwell diz que deixou o marido às onze e quarenta e cinco, enquanto o secretário se recolhera às onze horas. O único momento em que ele poderia ter cometido o crime foi entre as onze e quarenta c cinco e o regresso de Charles. Agora, se como você diz, ficou sentado com a porta aberta, ele não poderia ter saído do quarto sem que você o visse.

— Exato — concordou o outro.

— Não existe nenhuma outra escada?

— Não, para ir até a sala da Torre, ele teria que ter passado pela minha porta, e não passou, tenho certeza. Além do mais, M. Poirot, o homem é manso como um cordeiro, como disse há pouco. Isso eu garanto.

— Sei, sei — disse Poirot, calmamente. — Compreendo tudo isso. — Fez uma pausa. — Você vai mesmo me dizer o motivo de sua briga com sir Reuben?

O rosto do outro ficou rubro.

— Não arrancará nada de mim.

Poirot olhou para o teto.

— Eu sou sempre discreto — murmurou — quando o assunto envolve uma dama.

Victor Astwell pôs-se de pé de um salto.

— Caramba, como é que você... o que está querendo dizer?

— Estava pensando — disse Poirot — na Srta. Lily Margrave.

Victor Astwell ficou indeciso durante um ou dois minutos, depois seu rubor aquietou-se, e ele sentou-se de novo.

— Você é mais inteligente do que eu, M. Poirot. Sim, brigamos por causa de Lily. Reuben estava de marcação com ela; havia des­coberto qualquer coisa a respeito da moça... referências falsas, ou algo no gênero. Eu mesmo não acredito em nada disso. Depois foi mais além do que tinha direito, e falou que ela saía furtivamente de casa, à noite, para se encontrar com um sujeito qualquer. Meu Deus! Fiquei transtornado; disse-lhe que homens melhores do que ele tinham sido mortos por falarem muito menos. Isto fez com que ele se calasse. Reuben tinha um pouco de medo de mim, quando me via naquele estado.

— É difícil de imaginar — disse Poirot, educadamente.

— Penso muito em Lily Margrave — disse Victor, num outro tom. — É uma moça muito correta.

Poirot não respondeu. Olhava fixamente para a frente, aparentemente perdido em abstrações. Saiu deste estado de meditação profunda com um tremor.

— Acho que preciso caminhar um pouco. Existe algum hotel por aqui?

— Dois — respondeu Victor Astwell, — o Golfe Hotel, mais para cima, e o Mitre, para cá da estação.

— Obrigado — disse Poirot. — É, sem dúvida preciso ca­minhar um pouco.

O Golfe Hotel, como bem diz o nome, fica dentro dos limites do campo de golfe, quase ao lado da sede do clube. Poirot reparou primeiro neste hotel, no curso da “caminhada” que ele tanto anun­ciou. O homenzinho tinha seus próprios métodos para fazer as coi­sas. Três minutos depois de haver entrado no Golfe Hotel, encontra­va-se numa conversação privada com a Srta. Langdon, a gerente.

— Sinto incomodá-la de alguma forma, Mademoiselle — disse Poirot, — mas a senhorita há que entender que sou um detetive.

A simplicidade era seu forte. Neste caso, o método provou ser eficaz e imediato.

— Um detetive! — exclamou a Srta. Langdon, olhando-o com ar de dúvida.

— Não da Scotland Yard — assegurou-lhe Poirot. — A bem da verdade... talvez o tenha reparado, não sou inglês. Não, estou fa­zendo investigações particulares sobre a morte de Sir Reuben Astwell.

— Não diga! — A Srta. Langdon arregalou os olhos, em expectativa.

— Precisamente — disse Poirot, exultante. — Somente a uma pessoa com sua discrição revelaria tal fato. Creio, Mademoiselle, que seja capaz de me ajudar. A senhorita sabe me informar se um dos cavalheiros hospedados aqui na noite do crime ausentou-se do hotel à tarde e voltou em torno de meia-noite, meia-noite e meia?

Os olhos da Srta. Langdon se arregalaram mais do que nunca.

— O senhor não acha... ? — espantou-se ela.

— Que o assassino estava hospedado aqui? Não, mas tenho razões para crer que um de seus hóspedes saiu para passear na dire­ção de Mon Repos naquela noite e, sendo assim, ele pode ter visto alguma coisa que, embora sem significado para ele, pode ser muito útil para mim.

A gerente assentiu com sapiência, com ar de quem está muito bem informada sobre os anais da lógica detetivesca.

— Compreendi perfeitamente. Agora, deixe-me ver; quem es­tava hospedado aqui?

Ela franziu a testa, evidentemente repassando os nomes em sua cabeça e, ocasionalmente, ajudando a memória conferindo-os na ponta dos dedos.

— Capitão Swann, Sr. Elkins, Major Blunt, o velho Sr. Benson. Não senhor, não creio que ninguém tenha saído aquela noite.

— A senhorita teria reparado se isso tivesse ocorrido, não?

— Ah, sim, sem dúvida, não é muito comum. Quer dizer, os cavalheiros costumam jantar fora, mas não saem depois do jantar porque... bem, não há para onde ir, não é mesmo?

As atrações de Abbots Cross eram o golfe e nada além do golfe.

— É verdade — concordou Poirot. — Então, que a senhorita se lembre, ninguém saiu daqui aquela noite.

— O Capitão England jantou fora com a mulher.

Poirot abanou a cabeça:

— Não é bem isso o que quero dizer. Tentarei o outro hotel; o Mitre, não é?

— Oh, o Mitre — disse a Srta. Langdon. — É claro que alguém pode ter saído de lá.

O menosprezo em seu tom de voz, embora vago, foi evidente, e Poirot bateu eu retirada, habilmente.

Dez minutos depois ele estava repetindo a cena, desta vez com a Srta. Cole, a rude gerente do Mitre, um hotel menos pretensioso, de preços mais baixos, situado próximo à estação.

— Só um cavalheiro saiu até tarde naquela noite, e chegou por volta da meia-noite e meia, pelo que me lembro. Era um hábito dele, sair para passear àquela hora da noite. Já o havia feito uma ou duas vezes antes. Deixe-me ver, como era mesmo o nome dele? Um momentinho, pois não consigo lembrar.

Puxou para si um enorme livro e começou a virar as páginas.

— Dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois. Ah, aqui está! Naylor, Capitão Humphrey Naylor.

— Ele já havia se hospedado aqui anteriormente? A senhorita o conhece bem?

— Uma vez só — respondeu a Srta. Cole, — mais ou menos uns quinze dias antes. Lembro-me de ele ter saído à noite.

— Veio jogar golfe, será?

— Creio que sim — disse a Srta. Cole, — é o que a maioria dos cavalheiros vem fazer aqui.

— É verdade — concordou Poirot. — Bem, Mademoiselle, muitíssimo obrigado, e desejo-lhe um bom dia.

Voltou para Mon Repos com o rosto pensativo. Uma ou duas vezes retirou qualquer coisa do bolso e olhou-a.

— Tem que ser feito — murmurou para si mesmo — e logo, tão logo eu crie a oportunidade.

A primeira providência que tomou ao chegar em casa foi perguntar a Parsons onde poderia encontrar a Srta. Margrave. Foi informado de que ela se encontrava no pequeno escritório, vendo a correspondência de Lady Astwell, e a informação pareceu deixar Poirot satisfeito.

Encontrou o pequeno escritório sem dificuldade. Lily Margrave estava sentada a uma escrivaninha perto da janela, escrevendo. Mas, para ela, o aposento estava vazio. Poirot fechou a porta cui­dadosamente atrás de si e andou em direção à moça.

— Poderia me ceder alguns minutos de seu tempo, Mademoi­selle?

— Certamente.

Lily Margrave afastou os papéis e virou-se para ele.

— O que posso fazer pelo senhor?

— Na noite da tragédia, Mademoiselle, segundo fui informado, quando Lady Astwell foi falar com o marido a senhorita foi direto para a cama. Não é verdade?

Lily Margrave assentiu.

— A senhorita não desceu de novo, por acaso?

A moça abanou a cabeça.

— Creio que a senhorita disse, Mademoiselle, não ter estado na sala da Torre em momento algum aquela noite.

— Não me lembro de ter dito isto mas, a bem da verdade, foi o que ocorreu. Não estive na sala da Torre aquela noite.

Poirot levantou as sobrancelhas.

— Curioso — murmurou ele.

— O que o senhor quer dizer?

— Muito curioso — murmurou Poirot novamente. — Que explicação me dá, então, para isto?

Tirou do bolso um pequeno retalho de chiffon verde manchado e deu-o para que a moça o examinasse.

A expressão dela não mudou, e ele sentiu, mais do que ouviu, o ruído de uma inspiração súbita.

— Não compreendo, M. Poirot.

— Pelo que eu saiba, a senhorita usou um vestido de chiffon verde aquela noite, Mademoiselle. Isto — ele bateu com o pequeno retalho nos dedos — foi retirado do vestido.

— E o senhor encontrou isto na sala da Torre? — perguntou a moça abruptamente. — Onde?

Hercule Poirot olhou para o teto.

— No momento digamos apenas... na sala da Torre.

Pela primeira vez, uma expressão de medo surgiu nos olhos da moça. Ela começou a falar e depois se retraiu. Poirot observou suas mãozinhas brancas agarradas na beirada da escrivaninha.

— Não tenho certeza de ter ido à sala da Torre aquela noite — pensou ela. Antes do jantar, melhor dizendo. Creio que não. Tenho quase certeza que não. Mas com este retalho na sala da Torre todo este tempo, parece-me uma coisa extraordinária que a polícia não o tenha descoberto logo.

— A polícia — disse o homenzinho — não pensa nas coisas que Hercule Poirot costuma pensar.

— Posso ter passado por lá antes do jantar — pensou Lily Margrave — ou talvez tenha sido na noite anterior. Usei o mesmo vestido. É, tenho quase certeza de que foi na noite anterior.

— Creio que não — disse Poirot com segurança.

— Por quê?

Ele apenas abanou a cabeça lentamente de um lado para o outro.

— Aonde o senhor quer chegar. — sussurrou a moça.

Ela estava inclinada para a frente, encarando-o, a cor fugindo-lhe do rosto.

— A senhorita não percebeu, Mademoiselle, que a fazenda está manchada? Não há a menor dúvida quanto a isto, esta mancha é de sangue humano.

— O senhor quer dizer...?

— Quero dizer, Mademoiselle, que a senhorita esteve na sala da Torre depois do crime, e não antes. Acho que a melhor coisa a fazer é me dizer toda a verdade, a fim de que o pior não lhe aconteça.

Ele estava de pé agora, uma pequena figura de homem severo, o dedo indicador apontando para a moça acusadoramente.

— Como descobriu? — soluçou Lily.

— Não importa, Mademoiselle. Digo-lhe que Hercule Poirot sabe. Sei de tudo a respeito do Capitão Humphrey Naylor, e que a senhorita saiu para encontrar-se com ele aquela noite.

Subitamente, Lily pousou a cabeça sobre os braços e desatou a chorar. Imediatamente, Poirot amenizou sua atitude acusadora.

— Calma, calma, minha pequena — disse ele, batendo leve­mente no ombro da moça. — Não fique angustiada. É impossível enganar Hercule Poirot; basta perceber isto, e todos os seus problemas chegarão ao fim. E agora vai me contar a história toda, não vai? Não vai contar ao velho tio Poirot?

— Não é nada do que o senhor está pensando, não é mesmo. Humphrey — meu irmão — jamais tocou num fio de cabelo dele.

— Seu irmão, hein? — disse Poirot. — Então é isso. Bem, se não quiser que as suspeitas recaiam sobre ele, é melhor me contar tudo, sem reservas.

Lily aprumou-se de novo, afastando os cabelos da testa. Um ou dois minutos depois, começou a falar em voz baixa e clara.

— Vou lhe contar a verdade, M. Poirot. Percebo agora que seria absurdo inventar qualquer outra coisa. Meu nome verdadeiro é Lily Naylor, e Humphrey é meu único irmão. Há alguns anos atrás, quando ele estava na África, descobriu uma mina de ouro, ou melhor, descobriu a existência de ouro, para ser mais correta. Não posso explicar direito essa parte, porque não entendo os detalhes técnicos, mas a coisa se resume no seguinte: era provável que o negócio viesse a ser um grande empreendimento, e Humphrey voltou para cá trazendo algumas cartas para Sir Reuben, na espe­rança de que ele se interessasse pelo assunto. Até hoje não entendo bem o que se passou, mas imagino que Sir Reuben tenha mandado um especialista para fazer uns relatórios e, depois, tenha dito a meu irmão que o relatório do especialista era desfavorável e que ele, Humphrey, cometera um grande erro. Meu irmão voltou para a Áfri­ca numa expedição pelo interior e foi perdido de vista. Supúnhamos que ele e a expedição se tivessem perdido. Logo depois disso, criou-se uma companhia para explorar os Campos de Ouro de Mpala. Quando meu irmão voltou para a Inglaterra, chegou imediatamente à conclusão de que aqueles campos de ouro eram idênticos aos que ele havia descoberto. Aparentemente, Sir Reuben Astwell nada tinha a ver com a companhia, e parecia que tinham descoberto o local por si mesmo. Mas meu irmão não ficou satisfeito; estava con­vencido de que Sir Reuben o havia enganado deliberadamente. Tornou-se cada vez mais violento e insatisfeito quanto ao assunto. Nós dois somos sozinhos no mundo, M. Poirot, de forma que eu pre­cisava trabalhar para ganhar meu próprio dinheiro. Tive a idéia de arranjar um emprego nesta casa e descobrir se havia alguma co­nexão entre Sir Reuben e os Campos de Ouro de Mpala. Por motivos óbvios, não usei meu verdadeiro nome, e admito francamente ter-me utilizado de referências falsas. Havia muitas candidatas para o posto, a maioria com qualificações melhores do que as minhas, de forma que... bem, M. Poirot, escrevi uma bela carta em nome da Duquesa de Perthshire, que eu sabia que tinha acabado de viajar para a América. Imaginei que uma duquesa teria um grande efeito sobre Lady Astwell, e não me enganei. Ela me contratou na hora. A partir de então tornei-me esta coisa detestável, uma espiã, e até pouco tempo sem nenhum sucesso. Sir Reuben não era do tipo que falava sobre os segredos de seus negócios, mas quando Victor Astwell voltou da África, ele é menos retraído em suas conversas e comecei a acreditar que, na verdade, meu irmão não se enganara. Meu irmão esteve aqui duas semanas antes do crime, e eu saí de casa para encontrá-lo em segredo, à noite. Disse-lhe as coisas que ouvira de Victor Astwell; ele ficou muito agitado e me garantiu que, definitivamente, eu encontrara a pista certa. Mas depois disto as coisas começaram a dar errado; alguém deve ter me visto saindo de casa e dito a Sir Reuben. Ele ficou desconfiado e foi verificar minhas referências, e logo descobriu que haviam sido forjadas. A crise se deu no dia do crime. Acho que ele pensou que eu estava atrás das jóias da mulher dele. Quaisquer que fossem suas suspeitas, ele estava decidido a não me deixar permanecer em Mon Repos, embora tivesse concordado em não me processar por causa das referências. Lady Astwell ficou todo o tempo ao meu lado e enfrentou Sir Reuben com dignidade.

Ela fez uma pausa. A expressão de Poirot era bastante séria.

— E agora, Mademoiselle — disse ele, — chegamos à noite do crime.

Lily engoliu em seco e balançou a cabeça.

— Para início de conversa, M. Poirot, devo-lhe dizer que meu irmão havia voltado, e que eu havia dado um jeito de sair de novo para encontrar-me com ele mais uma vez. Subi para o meu quarto, como já disse, mas não fui me deitar. Ao invés disso, esperei até o momento em que eu achava que todos estavam dormindo, desci silenciosamente a escada e saí pela porta lateral. Encontrei-me com Humphrey e disse-lhe apressadamente o que ocorrera. Disse-lhe que achava que os papéis que ele queria estavam no cofre de Sir Reuben, na sala da Torre, e concordamos em tentar nos apossarmos dos papéis aquela noite, como uma última tentativa desesperada. Eu entraria primeiro para ver se o caminho estava desimpedido. Ouvi o relógio da igreja batendo meia-noite quando entrei pela por­ta lateral. Estava a meio caminho da escada que leva à sala da Torre, quando ouvi o ruído surdo de uma coisa caindo e uma voz gritando “Meu Deus!” Um ou dois minutos depois a porta da sala da Torre se abriu e de lá saiu Charles Leverson. Pude ver nitidamente o rosto dele à luz da lua, mas eu estava encolhida abaixo dele, na escada, num lugar onde estava escuro, e ele não me viu mesmo. Ele ainda ficou lá um pouco, cambaleante e com uma expressão de horror. Parecia estar ouvindo; depois, fez um esforço para se controlar, abriu a porta da sala da Torre e gritou qualquer coisa a respeito de não ter havido nada demais. A voz dele era bastante alegre e jovial, mas o rosto o traía. Ele esperou mais um minuto, depois subiu a es­cada vagarosamente e sumiu de vista. Quando ele saiu, esperei mais um pouco e dirigi-me pé ante pé até a porta da sala da Torre. Tinha a sensação de que algo de trágico havia acontecido. A luz do teto estava apagada, mas a da escrivaninha estava acesa, de forma que pude ver Sir Reuben deitado no chão, ao lado da mesa. Não sei como consegui, mas dominei meus nervos finalmente e ajoelhei-me ao lado dele. Vi logo que estava morto, atingido pelas costas e. tam­bém, que não devia estar morto há muito tempo; toquei a mão dele e ainda estava quente. Foi simplesmente horrível, M. Poirot. Hor­rível!

Ela estremeceu à lembrança.

— E depois? — perguntou Poirot, examinando-a atentamente.

Lily Margrave balançou a cabeça.

— Sei, M. Poirot, eu sei o que o senhor está pensando. Por que eu não dei o alarme para avisar todos da casa? Era o que deveria ter feito, eu sei, mas tudo me surgiu num relance, enquanto estava lá ajoelhada, que minha discussão com Sir Reuben, minha escapada para encontrar-me com Humphrey, o fato de que eu seria mandada embora pela manhã, tudo se encaixava numa seqüência fatal. Diriam que eu deixei Humphrey entrar e que, por vingança, Hum­phrey assassinara Sir Reuben. Se eu dissesse que tinha visto Charles Leverson saindo da sala, ninguém acreditaria em mim. Foi terrível, M. Poirot! Eu fiquei lá ajoelhada, pensando, pensando, e quanto mais eu pensava, mais meus nervos me faltavam. Logo depois per­cebi as chaves de Sir Reuben, que haviam caído de seu bolso. Dentre elas encontrava-se a chave do cofre. A combinação eu já sabia, uma vez que Lady Astwell a havia mencionado em minha presença. Fui até o cofre, M. Poirot, abri-o e vasculhei os papéis que lá se encon­travam. Finalmente encontrei o que estava procurando. Humphrey tinha toda razão. Sir Reuben estava por trás dos Campos de Ouro de Mpala, e havia enganado Humphrey deliberadamente. E isto agravou tudo. Serviria como motivo para que Humphrey tivesse co­metido o crime. Pus os papéis de volta no cofre, deixei a chave na porta e subi direto para o meu quarto. Pela manhã, fingi estar sur­presa e horrorizada, como todos os demais, quando a criada des­cobriu o corpo.

Ela parou e olhou para Poirot em busca de compaixão.

— O senhor acredita em mim, M. Poirot? Oh, por favor, diga que acredita em mim!

— Acredito, sim, Mademoiselle — disse Poirot; — a senhorita explicou muitas das coisas que me intrigavam. Sua absoluta certeza de que Charles Leverson cometera o crime, por exemplo, e, ao mesmo tempo, seus esforços persistentes para que eu não viesse aqui.

Lily aquiesceu.

— Tinha medo do senhor — admitiu ela com franqueza. — Lady Astwell não podia saber, como eu, que Charles era culpado, e eu não podia dizer nada. Minha grande esperança era que o senhor se recusasse a pegar o caso.

— Se não fosse essa ansiedade óbvia de sua parte, talvez tivesse recusado — disse Poirot secamente.

Lily olhou-o rapidamente, os lábios ligeiramente trêmulos.

— E agora, M. Poirot, o que... o que o senhor vai fazer?

— No que diz respeito à senhorita, nada. Acredito em sua his­tória e aceito-a. O próximo passo é ir a Londres, ver o Inspetor Miller.

— E depois? — perguntou Lily.

— Depois — disse Poirot, — veremos.

Já do lado de fora do escritório, olhou mais uma vez para o pequenino pedaço de chiffon manchado que segurava nas mãos.

— Impressionante — murmurou para si mesmo, complacentemente — a engenhosidade de Hercule Poirot.

O Inspetor-Detetive Miller não era particularmente um admira­dor de M. Hercule Poirot. Não pertencia ao pequeno grupo de ins­petores da Yard que aceitava de bom grado a cooperação do peque­nino belga. Costumava dizer que Hercule Poirot era superestimado. Neste caso ele estava bastante seguro de si e, em conseqüência, cum­primentou Poirot com o melhor dos humores.

— Trabalhando para Lady Astwell, não é? Bem, neste caso to­das as suas descobertas serão inglórias.

— Quer dizer, então, que não há a menor dúvida quanto ao caso?

Miller piscou.

— Nunca houve um caso tão claro. Quase pegamos o assassino com as mãos ainda sujas de sangue.

— M. Leverson já prestou depoimento, não?

— O melhor que teria a fazer seria ficar com a boca fechada — disse o detetive. — Ele só faz repetir que foi direto para o quarto e nem chegou perto do tio. É uma história idiota, em vista dos fatos.

— Certamente vai de encontro às evidências — murmurou Poirot. — Que impressão você tem desse jovem M. Leverson?

— Um jovem tremendamente tolo.

— De caráter fraco, não?

O inspetor concordou.

— É difícil acreditar que um jovem deste tipo tenha tido — como é mesmo que se diz? — estômago para cometer tal crime.

— Nestes termos, é mesmo — concordou o inspetor. — Mas, Santo Deus, já vi este mesmo tipo de coisa diversas vezes. Pegue um sujeito fraco, um jovem perdulário em apuros, encha-o de bebida e, durante um certo tempo, você pode transformá-lo num valentão. Um homem fraco em apuros é mais perigoso do que um forte.

— É verdade, sim; é verdade isso que você está dizendo.

Miller abriu-se mais um pouco.

— É claro que você tem que fazer isso, M. Poirot — pros­seguiu. — Você recebe seu dinheiro do mesmo jeito e, natural­mente, precisa fingir que está examinando as evidências para satis­fazer à Lady. Compreendo tudo isso.

— Você compreende coisas muito interessantes — murmurou Poirot, e saiu.

Sua próxima visita foi ao advogado de Charles Leverson. O Sr. Mayhew era um cavalheiro magro, seco e cauteloso. Recebeu Poirot com reserva. Poirot, entretanto, tinha seus próprios meios de in­duzir as pessoas à confidência. Em dez minutos os dois conversavam amigavelmente.

— Você entende — disse Poirot, — que minha participação neste caso é unicamente em benefício de Charles Leverson. É o de­sejo de Lady Astwell. Ela está convencida de que ele não é o cul­pado.

— Sei, sei, entendo — disse o Sr. Mayhew sem entusiasmo.

Os olhos de Poirot brilharam.

— Você, talvez, não dê muita importância às opiniões de Lady Astwell — sugeriu Poirot.

— Amanhã mesmo ela pode estar convencida de que ele é culpado — respondeu o advogado, secamente.

— É claro que suas intuições não constituem evidências — concordou Poirot, — e, em vista destas evidências, a situação deste pobre rapaz é negra.

— É uma pena que ele tenha dito o que disse à polícia — falou o advogado; — de nada vai lhe adiantar ficar repetindo a mesma história.

— Ele também lhe diz a mesma coisa? — indagou Poirot.

Mayhew aquiesceu.

— Nunca muda uma vírgula. Repete-a como um papagaio.

— E é isso que faz com que você não acredite nele — ponderou Poirot. — Ah, não o negue — acrescentou rapidamente, fazendo um gesto para que o outro se calasse. — Percebo isso claramente. No fundo você acredita que ele seja o culpado. Agora ouça-me, a mim, Hercule Poirot. Vou lhe apresentar um caso. Este rapaz chega em casa, tendo bebido um coquetel, outro coquetel, e mais outro co­quetel e também, sem dúvida, muitas doses de uísque com soda. Está — como se diz mesmo? — cheio de coragem de bêbado e, neste estado, entra em casa abrindo a porta com sua própria chave e sobe para a sala da Torre com passos irregulares. Olha pela porta e, à luz fraca, vê o tio, aparentemente curvado sobre a escrivaninha. Como já vimos, o Sr. Leverson está cheio de coragem de bêbado. Entra na sala e diz ao tio tudo o que acha dele. Desafia-o, insulta-o e, como o tio não responde, ele prossegue com firmeza cada vez maior, repete as mesmas coisas diversas vezes, e cada vez mais alto. Mas, finalmente, o silêncio prolongado do tio desperta sua apreensão. Aproxima-se dele, põe a mão em seu ombro, e a figura do tio cai por terra a um simples toque, desmoronando no chão. Então ele fica mais sóbrio, o tal Sr. Leverson. A cadeira cai com um estrondo e ele se inclina sobre Sir Reuben. Percebe o que aconteceu e olha para a mão coberta com uma coisa quente e vermelha. Fica tomado de pânico, então, e daria tudo para recolher o grito que acabara de lhe sair dos lábios, ecoando pela casa. Levanta a cadeira mecanica­mente, vai depressa para a porta e escuta. Imagina ter escutado um ruído e imediatamente, automaticamente, finge estar falando com o tio pela porta aberta. O ruído não se repete. Ele se convence de ter se enganado ao pensar que ouvira qualquer coisa. Agora tudo está em silêncio, ele vai pé ante pé para o seu quarto e, de imediato, lhe ocorre que será muito melhor se ele fingir nunca ter estado com o tio aquela noite. Então conta sua história. Naquela ocasião, Parsons não disse nada do que ouvira, lembre-se disso. Quando o faz, já é tarde demais para o Sr. Leverson contar outra história. Ele é bobo, é obstinado, e repete sempre a mesma coisa. Diga-me, Monsieur, isto não é possível?

— É — respondeu o advogado, — acho que, da maneira como você apresentou, é possível.

Poirot pôs-se de pé.

— Você tem o privilégio de ver o Sr. Leverson — disse ele. — Apresente a ele a história que lhe contei, e pergunte se não é verdadeira.

Do lado de fora do escritório do advogado, Poirot fez sinal para um táxi.

— Rua Harley, 348 — murmurou ele para o motorista.

A ida de Poirot a Londres pegou Lady Astwell de surpresa, pois o homenzinho sequer mencionara o que pretendia fazer. Quando vol­tou, vinte e quatro horas depois, foi informado por Parsons de que Lady Astwell gostaria de vê-lo o mais breve possível. Poirot encontrou Lady Astwell em seu próprio boudoir. Estava deitada num divã, a cabeça apoiada em algumas almofadas, com uma aparência surpreendentemente doentia e abatida; muito mais do que no dia em que Poirot chegara.

— Então o senhor voltou, M. Poirot?

— Voltei, Madame.

— O senhor foi a Londres?

Poirot fez que sim com a cabeça.

— O senhor não me disse que ia — falou Lady Astwell, duramente.

— Mil perdões, Madame, pelo meu erro, deveria tê-lo feito. La prochaine fois...

— Fará exatamente o mesmo — interrompeu Lady Astwell, com um ligeiro toque de humor. — Faça as coisas primeiro e depois comunique às pessoas, este é o seu lema.

— Não seria este o seu lema também? — Os olhos dele brilha­ram.

— De vez em quando, talvez — admitiu a outra. — O que o senhor foi fazer em Londres, M. Poirot? Suponho que agora já possa me dizer.

— Tive uma conversa com o bom Inspetor Miller, e também com o excelente Sr. Mayhew.

Os olhos de Lady Astwell examinaram o rosto de Poirot.

— E o senhor acha, agora...? — disse ela, lentamente.

Os olhos de Poirot estavam fixos nela.

— Que há uma possibilidade de que o Sr. Leverson seja ino­cente — disse ele, gravemente.

— Ah! — Lady Astwell sentou-se, jogando duas almofadas no chão. — Eu estava certa, então, eu estava certa!

— Eu disse possibilidade, Madame, e nada mais.

Alguma coisa em seu tom de voz surpreendeu-a. Apoiou-se num dos cotovelos e lançou-lhe um olhar penetrante.

— Algo que eu possa fazer? — perguntou ela.

— Há, sim — ele confirmou com a cabeça, — a senhora pode me dizer, Lady Astwell, por que suspeita de Owen Trefusis.

— Já lhe disse que sei — e é só.

— Infelizmente isso não é o bastante — disse Poirot, seca­mente. — Traga a sua memória para a noite fatal, Madame. Lem­bre-se de cada detalhe, de cada pequenino acontecimento. O que a senhora percebeu e observou no secretário? Eu, Hercule Poirot, digo-lhe que deve ter havido alguma coisa.

Lady Astwell abanou a cabeça.

— Quase não reparei nele durante toda a noite — disse ela. — E, seguramente, não estava nem pensando nele.

— Sua mente estava voltada para outra coisa?

— Estava.

— Para a animosidade de seu marido em relação à Srta. Margrave?

— Exato — respondeu Lady Astwell, balançando a cabeça; — o senhor parece já saber de tudo, M. Poirot.

— Eu, eu sei tudo — declarou o homenzinho, com um ar de absurda grandiosidade.

— Eu gosto muito de Lily, M. Poirot; o senhor já viu com seus próprios olhos. Reuben começou a criar caso por causa das referên­cias que ela apresentou. Veja bem, não estou dizendo que não eram falsas. Eram, sim. Mas, Santo Deus, eu mesma já fiz coisas piores nos meus tempos. A gente precisa lançar mão de todos os recursos para se ver livre dos empresários de teatro. Não existe nada que eu não pudesse ter escrito, ou dito, ou feito, naquele tempo. Lily queria este emprego, e se utilizou de artifícios que não eram — bem, não eram lá muito corretos; Lily mais parecia uma bancária que fugira com alguns milhões, tal a confusão que Reuben armou. Eu passei a noite terrivelmente preocupada porque, embora eu geralmente conseguisse convencer Reuben, ele às vezes era um tremendo cabeça-dura, o pobre coitado. Então, é claro que não tive tempo para ficar reparando em secretários; não que haja muito o que reparar no Sr. Trefusis, de qualquer maneira. Ele está ali, e é só o que se percebe.

— Já observei isso no Sr. Trefusis — disse Poirot. — A personalidade dele não se sobressai, não brilha, não atinge ninguém diretamente.

— Não — disse Lady Astwell, — ele não é como Victor.

— M. Victor Astwell é explosivo, diria eu.

— Ê um termo esplêndido para ele — concordou Lady Astwell. — Ele explode pela casa toda, como esses morteiros de S. João.

— Tem um temperamento instável, imagino eu — sugeriu Poirot.

— Oh, é um verdadeiro demônio quando espicaçado — disse Lady Astwell, — mas, acredite, eu não tenho medo dele. Victor só late, mas não morde.

Poirot olhou para o teto.

— E a senhora não sabe me dizer nada sobre o secretário, naquela noite? — murmurou gentilmente.

— Estou lhe dizendo, M. Poirot, eu sei. A intuição feminina...

— Não leva um homem à forca — disse Poirot, — e, o que vem mais ao caso, não salvará um homem da forca. Lady Astwell, se a senhora acredita sinceramente que o Sr. Leverson é inocente, e que suas suspeitas do secretário são bem fundamentadas, daria per­missão para uma pequena experiência?

— Que tipo de experiência? — perguntou Lady Astwell, desconfiada.

— A senhora permite ser posta em estado hipnótico?

— Por quê?

Poirot inclinou o corpo para frente.

— Se eu lhe dissesse, Madame, que sua intuição baseia-se em determinados fatos gravados em seu subconsciente, a senhora provavelmente tornar-se-ia cética. Direi apenas, portanto, que a experiência que proponho pode ser da maior importância para aquele pobre rapaz, Charles Leverson. A senhora recusará?

— Quem vai me hipnotizar? — perguntou Lady Astwell, desconfiada. — O senhor?

— Um amigo meu, Lady Astwell, deve chegar, se não me engano, neste exato minuto. Estou ouvindo as rodas do carro lá fora.

— Quem é ele?

— Um tal de Dr. Cazalet, da Rua Harley.

— Ele... ele é bom? — perguntou Lady Astwell, apreensiva.

— Não é nenhum charlatão, Madame, se é isto que está querendo saber. Pode confiar nele com toda segurança.

— Bem — disse Lady Astwell, com um suspiro — acho tudo isso besteira, mas o senhor pode tentar, se quiser. Ninguém poderá dizer que atrapalhei seu trabalho.

— Mil vezes obrigado, Madame.

Poirot saiu depressa. Voltou minutos depois, conduzindo um homem baixo, de rosto redondo, cheio de vivacidade, de óculos, que muito perturbou a imagem que Lady Astwell fazia de um hipnotizador. Poirot apresentou-os.

— Bem — disse Lady Astwell, bem-humorada — como come­çamos esta bobagem?

— Muito simples, Lady Astwell, muito simples — disse o pe­queno médico. — Basta se recostar, assim... está bem. Não precisa se preocupar.

— Não estou preocupada nem um pouquinho — replicou Lady Astwell. — Gostaria de ver alguém me hipnotizar contra minha vontade.

O Dr. Cazalet deu um largo sorriso.

— Mas se a senhora consentiu, não será contra sua vontade, será? — disse ele alegremente. — Assim está bem. Apague aquela outra luz, por favor, M. Poirot. Agora adormeça, Lady Astwell.

Ele mudou ligeiramente de posição.

— Está ficando tarde. A senhora está com sono... com muito sono. Suas pálpebras estão pesadas, fechando... fechando... fe­chando. Logo estará dormindo.

Ele falava em voz baixa, calma e monótona. Pouco depois inclinou-se e suspendeu gentilmente a pálpebra direita de Lady Astwell. Voltou-se para Poirot, balançando a cabeça, satisfeito.

— Está tudo pronto — disse em voz baixa. — Vamos adiante?

— Como queira.

O médico falou rispidamente e com muita autoridade:

— A senhora está dormindo, Lady Astwell, mas pode me ouvir e pode responder minhas perguntas.

Sem se mexer e nem abrir os olhos, a figura imóvel no sofá respondeu em voz baixa e monótona.

— Estou ouvindo. Posso responder suas perguntas.

— Lady Astwell, quero que a senhora se reporte à noite em que seu marido foi assassinado. Lembra-se desta noite?

— Lembro.

— A senhora está na mesa do jantar. Descreva-me o que viu e o que sentiu.

Mesmo deitada, ela agitou-se um pouco.

— Estou muito angustiada. Estou preocupada com Lily.

— Sabemos disso; diga-nos o que viu.

— Victor está comendo todas as amêndoas salgadas; ele é guloso. Amanhã direi a Parsons para não pôr os pratos daquele lado da mesa.

— Continue, Lady Astwell.

— Reuben está de mau-humor hoje à noite. Não creio que seja apenas por causa de Lily. Tem algo a ver com os negócios. Victor o olha de maneira estranha.

— Fale-me do Sr. Trefusis, Lady Astwell.

— O punho esquerdo de sua camisa está puído. Põe muito óleo no cabelo. Gostaria que os homens não o fizessem, pois estraga os estofamentos da sala de estar.

Cazalet olhou para Poirot; este lhe fez sinal com a cabeça.

— O jantar acabou, Lady Astwell, a senhora está tomando café. Descreva a cena para mim.

— O café está bom esta noite, o que nem sempre acontece. O café da cozinheira não é digno de confiança. Lily está o tempo todo olhando pela janela. Não sei por quê. Agora Reuben entra na sala; o humor dele é um dos piores e ele explode numa perfeita enxurrada de insultos em cima do pobre Sr. Trefusis. O Sr. Trefusis está Segu­rando o cortador de papéis, aquele grande, com a lâmina afiada como a de uma faca. E com que força o segura; os nós de seus dedos estão bastante brancos. Veja, ele o enfiou com tanta força na mesa que a ponta chegou a escorregar. Ele o segura como alguém seguraria um punhal para enfiar noutra pessoa. Agora eles saíram juntos. Lily está usando o vestido verde; ela fica tão bem de verde, parece mesmo um lírio. Preciso mandar lavar os estofamentos semana que vem.

— Espere um pouco, Lady Astwell.

O médico curvou-se na direção de Poirot.

— Já conseguimos, acho eu — murmurou ele; — o gesto dele com o cortador de papéis foi o que a convenceu de que o secretário cometera o crime.

— Vamos para a sala da Torre agora.

O médico assentiu, e começou mais uma vez a interrogar Lady Astwell, em voz alta e decidida.

— É a mesma noite, mais tarde; a senhora está na sala da Torre com seu marido. A cena entre vocês é terrível, não?

Novamente a figura mexeu-se impacientemente.

— É... terrível... terrível. Dissemos coisas horrorosas... nós dois.

— Não se preocupe com isso agora. A senhora pode ver a sala nitidamente, as cortinas estão fechadas, as luzes estão acesas.

— A luz do meio, não; só a da escrivaninha.

— Agora a senhora está se despedindo de seu marido, desejando-lhe boa-noite.

— Não, eu estava muito zangada.

— É a última vez que a senhora o vê; logo, logo ele será assassinado. A senhora sabe quem o matou, Lady Astwell?

— Sei. O Sr. Trefusis.

— Por que diz isso?

— Por causa da saliência... da saliência na cortina.

— Havia uma saliência na cortina?

— Havia.

— A senhora viu?

— Vi, quase esbarrei nela.

— Havia um homem escondido lá... o Sr. Trefusis?

— É.

— Como a senhora sabe?

Pela primeira vez, a voz monótona hesitou e perdeu a confiança.

— Eu... eu... por causa do cortador de papéis.

Poirot e o médico trocaram rápidos olhares.

— Não estou entendendo, Lady Astwell. A senhora diz que havia uma saliência na cortina. Alguém escondido lá atrás. A senhora viu esta pessoa?

— Não.

— A senhora achou que era o Sr. Trefusis pela maneira como ele segurara o cortador de papéis anteriormente?

— Mas o Sr. Trefusis tinha ido se deitar, não tinha?

— É... é verdade, ele já havia se recolhido.

— Então ele não poderia estar atrás da cortina, na janela.

— Não... não, é claro que não, ele não estava lá.

— Ele dera boa-noite a seu marido algum tempo antes, não é mesmo?

— É

— E a senhora não o viu de novo?

— Não.

Ela se mexia agora, jogava-se de um lado para o outro, ge­mendo ligeiramente.

— Ela está despertando — disse o médico. — Bem, acho que já conseguimos o possível, não?

Poirot concordou. O médico inclinou-se sobre Lady Astwell.

— A senhora está acordando — murmurou ele, calmamente. — A senhora está acordando agora. Daqui a pouco abrirá os olhos.

Os dois homens esperaram e, logo depois, Lady Astwell sentou-se, olhando-os fixamente.

— Eu tirei uma soneca?

— Exatamente, Lady Astwell, apenas uma soneca — disse o médico.

Ela olhou para ele.

— Usou um de seus truques, hein?

— Espero que não esteja se sentindo mal — disse o médico.

Lady Astwell bocejou.

— Sinto-me cansada, exausta.

O médico se levantou.

— Vou pedir um café para a senhora — disse ele, — e vamos deixá-la por ora.

— Eu... eu disse alguma coisa? — perguntou Lady Astwell, quando os dois já se encontravam na porta.

Poirot sorriu para ela.

— Nada de grande importância, Madame. A senhora nos informou que os estofamentos da sala de estar estão precisando de uma limpeza.

— E precisam mesmo — confirmou Lady Astwell. — Mas não era necessário me hipnotizar para saber isso. — Ela riu, bem-humorada. — Mais alguma coisa?

— A senhora se lembra se o Sr. Trefusis pegou um cortador de papéis na sala de estar, aquela noite? — perguntou Poirot.

— Não sei, não tenho certeza — respondeu Lady Astwell. — Pode ser.

— Uma saliência na cortina lhe diz alguma coisa?

Lady Astwell franziu a testa.

— Lembro-me vagamente — respondeu ela, com lentidão. — Não... já sumiu, e ainda assim...

— Não se preocupe, Lady Astwell — disse Poirot rapida­mente; — não tem importância, não tem a menor importância.

O médico acompanhou Poirot até o quarto deste.

— Bem — disse Cazalet, — acho que as coisas estão muito bem explicadas. Não há dúvida de que quando Sir Reuben insultou o secretário, este agarrou o cortador de papéis e precisou de um tre­mendo autocontrole para não dar uma resposta. O consciente de Lady Astwell estava completamente absorvido pelo problema de Lily, mas seu subconsciente reparou e interpretou a ação errada­mente. Ela está completamente convicta de que Trefusis assassinou Sir Reuben. Agora chegamos à saliência da cortina. Interessante. Pelo que você me descreveu da sala da Torre, entendi que a escri­vaninha fica bem na janela. E a janela tem cortinas, é claro.

— Tem, mon ami, cortinas de veludo preto.

— E o vão da janela tem espaço suficiente para uma pessoa ficar escondida?

— Acho que o espaço dá exatamente para uma pessoa.

— Então existe, pelo menos, uma possibilidade — disse o médico, lentamente, — de ter alguém escondido na sala mas, se for assim, não pode ter sido o secretário, já que os dois viram-no sair de lá. Não pode ter sido Victor Astwell, pois Trefusis o viu ao sair, e não pode ter sido Lily Margrave. Quem quer que fosse, deve ter se escondido lá antes de Sir Reuben entrar na sala aquela noite. Você me explicou bem como estavam as coisas. E o que me diz do Capitão Naylor? Não seria ele que estava escondido lá?

— Sempre é possível — admitiu Poirot. — Ele seguramente jantou no hotel, mas é difícil precisar a hora que saiu de lá. Voltou em torno de meia-noite e meia.

— Então pode ter sido ele — disse o médico — e, se for, ele cometeu o crime. Ele tinha motivos, e havia uma arma à mão. Mas você não parece estar satisfeito com esta idéia.

— Eu, eu tenho outras idéias — confessou Poirot. — Agora diga-me, M. le Docteur, suponhamos, por um minuto, que Lady Astwell tenha cometido o crime. Será que ela necessariamente se trairia em estado hipnótico?

O médico soltou um assovio.

— Então é isto o que você está pensando, hein? Lady Astwell seria a assassina? Claro... é possível; não havia pensado nisso ainda. Ela esteve com ele por último, e ninguém o viu com vida depois. Quanto à sua pergunta, eu estaria inclinado a dizer... não. Lady Astwell entraria em estado hipnótico, mas com forte censura mental para nada revelar sobre sua participação no crime. Ela responderia às minhas perguntas sem mentir, mas ficaria muda neste ponto. Mesmo assim, não era de se esperar que ela insistisse tanto na culpa do Sr. Trefusis.

— Compreendo — disse Poirot. — Mas não estou dizendo que Lady Astwell seja assassina. Foi apenas uma sugestão.

— É um caso interessante — disse o médico; existem muitas possibilidades: Humphrey Naylor, Lady Astwell, e até mesmo Lily Margrave.

— Você deixou de mencionar um — disse Poirot, calmamente. — Victor Astwell. Pelo que ele falou, ficou sentado em seu quarto, com a porta aberta, esperando Charles Leverson, mas temos apenas a palavra dele, entende?

— É este o sujeito mal-humorado, não é? — perguntou o médico. — Aquele que você me falou.

— Exato, concordou Poirot.

O médico pôs-se de pé.

— Bem, preciso voltar à cidade. Você me informará sobre o andamento das coisas, está bem?

Depois que o médico saiu, Poirot tocou a campainha chamando George.

— Uma dose de tisana, George. Meus nervos estão em frangalhos.

— Pois não, Sir — disse George. — Vou preparar imediata­mente.

Dez minutos depois ele trouxe uma xícara fumegante para o patrão. Poirot aspirou a fumaça nociva com prazer. Entre um gole e outro, conversou consigo mesmo em voz alta.

— A caçada é diferente em todas as partes do mundo. Para se caçar uma raposa, é preciso andar muito com os cães. É preciso gritar, correr, é tudo questão de velocidade. Eu mesmo nunca matei um veado, mas soube que para fazê-lo é preciso se arrastar durante horas, deitado sobre a barriga. Foi meu amigo Hastings quem me contou. Nosso método aqui, meu bom George, não pode ser nenhum dos dois. Vamos analisar o nosso gato doméstico. Ele fica horas à espreita na toca do rato, sem fazer nenhum movimento, sem desper­diçar energias, mas... não se afasta.

Ele suspirou e pôs a xícara vazia sobre o pires.

— Disse-lhe para arrumar a mala para alguns dias. Amanhã, meu caro George, você irá a Londres e trará o necessário para duas semanas.

— Está certo, sir — respondeu George. Como sempre, não demonstrou a menor emoção.

A presença aparentemente permanente de Hercule Poirot em Mon Repos causou espécie a muitas pessoas. Victor Astwell re­clamou com a cunhada.

— Está tudo muito bem, Nancy. Mas você não sabe como são esses sujeitos. Ele achou o lugar muito cômodo e, evidentemente, vai se estabelecer aqui durante um mês, mais ou menos, com todo conforto, cobrando-lhe muitos guinéus por dia, esse tempo todo.

Como resposta, Lady Astwell disse que sabia cuidar de seus próprios assuntos, sem interferência.

Lily Margrave tentou, veementemente, esconder todas as suas perturbações. Na época, ela tivera certeza de que Poirot acreditara em sua história. Agora já não estava tão segura.

O papel de Poirot não foi totalmente passivo. No quinto dia de sua permanência, ele trouxe um pequeno livro de impressões digitais para o jantar. Como método para conseguir as impressões digitais das pessoas da casa, parecia um artifício um tanto sem jeito, embora nem tanto, pois ninguém podia se recusar e deixar as marcas de seus polegares. Somente depois de o homenzinho se reti­rar para o seu quarto, Victor Astwell declarou seu ponto de vista.

— Você está vendo, Nancy? Ele está atrás de um de nós.

— Não seja absurdo, Victor.

— Bem, que outro significado pode ter aquele livrinho dele?

Mr. Poirot sabe o que está fazendo — respondeu Lady Astwell, complacente, e olhou significativamente para Owen Trefusis.

Numa outra ocasião, Poirot introduziu o jogo de deixar as mar­cas dos pés numa folha de papel. Na manhã seguinte, entrando com seu passo macio de gato na biblioteca, o detetive deu um susto em Owen Trefusis, que deu um pulo da cadeira como se tivesse levado um tiro.

— Peço-lhe desculpas, M. Poirot — disse ele, formalmente — mas o senhor nos deixa sobressaltados.

— É mesmo, como assim? — perguntou o homenzinho, inocentemente.

— Eu admito — disse o secretário — que achava a situação de Charles Leverson totalmente comprometida. Aparentemente o senhor não acha o mesmo.

Poirot estava de pé, olhando pela janela. Voltou-se subitamen­te para o outro.

— Vou lhe dizer uma cosia, M. Trefusis... confidencialmente.

— O quê?

Poirot não parecia estar com pressa de começar. Esperou um minuto, hesitante. Quando falou, suas palavras iniciais coincidiram com o abrir e fechar da porta da frente. Para um homem que falava confidencialmente, sua voz era tão alta que abafava o ruído de uns passos no vestíbulo.

— Vou lhe dizer isso em confiança, Sr. Trefusis. Há uma nova evidência. Servirá para provar que quando Charles Leverson entrou na sala da Torre aquela noite, Sir Reuben já estava morto.

O secretário encarou-o.

— Mas que evidência? Por que não ouvimos falar nada disso?

— Vocês ouvirão — disse o homenzinho, misteriosamente. — Por enquanto, apenas eu e você sabemos o segredo.

Saiu agilmente da biblioteca, e quase colidiu com Victor Astwell no vestíbulo.

— Acaba de chegar, não, Monsieur?

Astwell fez que sim com a cabeça.

— O tempo lá fora está péssimo — disse ele, respirando fundo, — frio e com vento.

— Ah — disse Poirot, — hoje não vou dar meu passeio... eu, eu sou como um gato: sento-me junto ao fogo para aquecer-me.

— Ça marche, George — disse ele, naquela noite, a seu fiel mordomo, esfregando as mãos ao falar, — estão todos ansiosos... sobressaltados! É difícil, George, fazer o papel de gato, o jogo de espera, mas surte efeito, ah, surte um efeito maravilhoso. Amanhã daremos um passo adiante.

No dia seguinte, Trefusis foi obrigado a ir à cidade. Seguiu no mesmo trem que Victor Astwell. Tão logo eles deixaram a casa, Poirot foi galvanizado por uma atividade febril.

— Venha, George, vamos depressa ao trabalho. Se a empre­gada se aproximar destes aposentos, faça com que ela se atrase. Converse sobre qualquer bobagem, George, e mantenha-a no corre­dor.

Entrou primeiro no quarto do secretário, e deu início a uma busca completa. Nenhuma gaveta ou prateleira deixou de ser ins­pecionada. Depois guardou tudo apressadamente, e deu a busca por finda. George, montando guarda na porta, pigarreou respeito­samente.

— Com licença, Sir.

— O que foi, meu caro George?

— Os sapatos, sir. Os dois pares de sapatos marrom estavam na segunda prateleira, e os de verniz estavam na prateleira de baixo. Ao guardá-los, o senhor inverteu a ordem.

— Maravilhoso! — gritou Poirot, levantando as mãos. — Mas não nos preocupemos com isso. Não tem a menor importância, eu lhe garanto, George. M. Trefusis jamais perceberá coisa tão in­significante.

— O senhor é quem sabe, sir.

— Seu ofício é perceber as coisas — disse Poirot para animá-lo, batendo-lhe no ombro. — Isto é o que lhe dá crédito.

O mordomo não respondeu, e quando, mais tarde, o mesmo se deu 110 quarto de Victor Astwell, não fez nenhum comentário sobre o fato de que as roupas de baixo do Sr. Astwell não tinham sido postas na gaveta, estritamente como haviam sido encontradas. Mas, no segundo caso pelo menos, os acontecimentos demonstravam que o mordomo estava certo e Poirot errado. Victor Astwell entrou furioso na sala de estar.

— Agora escute aqui, seu belgazinho arrogante, o que pre­tendia ao revistar meu quarto? Que diabo espera encontrar lá? Não admito isso, está me ouvindo? É nisso que dá ter um espiãozinho abelhudo dentro de casa.

As mãos de Poirot espalmaram-se eloqüentemente, ao mesmo tempo que suas palavras embolavam umas nas outras. Pediu cem, mil, um milhão de desculpas. Tinha sido desastrado, intrometido, estava confuso. Tomara esta liberdade sem respaldo legal. No final, o cavalheiro enfurecido foi obrigado a acalmar-se, ainda rosnando.

E novamente naquela noite, saboreando sua tisana, Poirot murmurou para George.

— Está indo, meu caro George, é... está indo.

— Sexta-feira — observou Poirot, pensativo — é meu dia de sorte.

— Não diga, sir.

— Você não é supersticioso, é, meu caro George?

— Prefiro não sentar com mais doze à mesa, sir, e sou contrá­rio a se passar embaixo de escadas. Mas não sou supersticioso quanto às sextas-feiras, sir.

— Então está bem — disse Poirot — porque, veja você, hoje será a nossa Waterloo.

— É mesmo, sir.

— Você tem tanto entusiasmo, meu caro George, que nem pergunta o que eu me proponho a fazer.

— E o que é, sir?

— Hoje, George, darei uma última busca na sala da Torre.

Na verdade, depois do café, com permissão de Lady Astwell, Poirot voltou à cena do crime. Ali, em diversos momentos da manhã, membros da casa viram-no andando de quatro, examinando mi­nuciosamente as cortinas de veludo preto, e de pé em cadeiras al­tas para examinar as molduras dos quadros nas paredes. Pela pri­meira vez, Lady Astwell demonstrou estar inquieta.

— Devo admitir — disse ela. — Finalmente ele está me dando nos nervos. Está escondendo alguma coisa, e eu não sei o que é. E a maneira como se arrasta pelo chão, como um cachorro, faz com que eu estremeça toda. Gostaria de saber o que ele está procurando. Lily querida, gostaria que fosse lá em cima para ver o que ele está aprontando. Não, pensando bem prefiro que fique aqui comigo.

— Quer que eu vá, Lady Astwell? — perguntou o secretário, levantando-se da escrivaninha.

— Se o senhor quiser, Sr. Trefusis.

Owen Trefusis retirou-se e subiu a escada que levava à sala da Torre. A primeira vista, pensou que a sala estivesse vazia, pois, seguramente, não havia o menor sinal de Hercule Poirot. Já estava prestes a descer de novo, quando um ruído lhe chamou a atenção; viu, então, o homenzinho no meio da escada em espiral que levava ao quarto de cima.

Estava apoiado nas mãos e nos joelhos; na mão esquerda havia uma pequenina lente de bolso e, por meio dela, ele examinava minuciosamente alguma coisa no trabalho em madeira ao lado do tapete da escada.

Enquanto o secretário o observava, ele soltou um grunhido sú­bito e enfiou a lente no bolso. Depois pôs-se de pé, segurando qual­quer coisa entre o polegar e o indicador. Naquele momento per­cebeu a presença do secretário.

— Ah, ah! M. Trefusis, não o ouvi entrar.

Naquele momento ele era um homem diferente. Seu rosto irradiava triunfo e exultação. Trefusis olhou-o, surpreso.

— O que há, M. Poirot? O senhor parece estar muito satisfeito.

O homenzinho encheu o peito.

— Sim, é verdade. Veja você que, finalmente, encontrei o que procurava desde o início. Tenho aqui, entre o meu polegar e o indicador, a prova que levará o assassino à cadeia.

— Então — o secretário levantou as sobrancelhas — não é Charles Leverson?

— Não é Charles Leverson — disse Poirot. — Até este mo­mento, embora eu já conhecesse o assassino, não sabia seu nome ao certo, mas, finalmente, está tudo claro.

Desceu a escada e deu uns tapinhas no ombro do secretário.

— Preciso ir a Londres imediatamente. Diga isto a Lady Astwell para mim. O senhor pode pedir a ela que reúna todos na sala da Torre, hoje às nove horas da noite? Estarei aqui e revelarei a verdade. Ah, como estou satisfeito.

E, irrompendo numa dança fantástica, saiu lepidamente da sala da Torre. Trefusis permaneceu ali, olhando-o fixamente.

Minutos depois Poirot apareceu na biblioteca, perguntando se alguém poderia lhe arranjar uma caixinha de papelão.

— Infelizmente não trago tal coisa comigo — explicou ele — e é necessário que eu guarde dentro dela uma coisa de imenso valor.

De uma das gavetas da escrivaninha, Trefusis retirou uma caixinha, e Poirot demonstrou estar terrivelmente agradecido.

Subiu depressa a escada com seu tesouro; ao encontrar George no patamar, entregou-lhe a caixa.

— O que está aí dentro é de grande importância — explicou ele. — Guarde-a, meu caro George, na segunda gaveta de minha penteadeira, ao lado da caixa de jóias onde estão meus botões de pé­rola.

— Está bem, sir — disse George.

— Não deixe que se quebre — falou Poirot. — Tenha muito cuidado. Dentro desta caixa existe uma coisa que levará um assas­sino à forca.

— Não diga, sir — disse George.

Poirot desceu as escadas ligeiro e, apanhando o chapéu, deixou a casa numa carreira animada.

Sua volta foi menos espalhafatosa. O fiel George, obedecendo a ordens, abriu-lhe a porta lateral.

— Estão todos na sala da Torre? — indagou Poirot.

— Estão, sir.

Houve um burburinho de vozes, e Poirot entrou com o andar triunfante do vitorioso naquela sala onde ocorrera um assassinato, menos de um mês antes. Seus olhos percorreram o aposento. Estavam todos lá: Lady Astwell, Victor Astwell, Lily Mar­grave, o secretário e Parsons, o mordomo. Este último encontrava-se ao lado da porta, hesitante.

— George disse que eu deveria vir também, sir — disse Parsons, quando Poirot fez sua aparição. — Não sei se devo, sir.

— Está certo — respondeu Poirot. — Fique aqui, por favor.

Caminhou até o centro da sala.

— Este é um caso muito interessante — disse ele em voz lenta e pausada. — Interessante porque qualquer um poderia ter assassi­nado Sir Reuben Astwell. Quem herdaria o dinheiro? Charles Le­verson e Lady Astwell. Quem esteve com ele por último aquela noite? Lady Astwell. Quem discutiu violentamente com ele? Outra vez Lady Astwell.

— O que o senhor está dizendo? — gritou Lady Astwell. — Eu não entendo...

— Mas uma outra pessoa discutiu com Sir Reuben — continuou Poirot, em tom pensativo. — Aquela noite alguém o deixou pálido de ódio. Suponhamos que Lady Astwell tenha deixado seu marido com vida às onze e quarenta e cinco, aquela noite. Dez minutos se passaram antes do regresso de Charles Leverson e, nestes dez minutos, é possível que alguém do segundo andar tenha descido fur­tivamente, cometido o crime e voltado para o seu quarto.

Victor Astwell deu um pulo, gritando:

— Que diabo...? — Parou de falar, sufocado de raiva.

— Num acesso de raiva, Sr. Astwell, certa vez o senhor matou um homem na África Ocidental.

— Eu não acredito — gritou Lily Margrave.

Ela se chegou para a frente, as mãos muito apertadas, duas manchas vermelhas na face.

— Eu não acredito — repetiu a moça. Aproximou-se de Victor Astwell.

— É verdade, Lily — disse Astwell — mas existem coisas que este homem desconhece. O sujeito que eu matei era um curandeiro, que acabara de fazer um massacre com quinze crianças. Considero minha ação justificada.

Lily aproximou-se de Poirot.

— M. Poirot — disse ela, veementemente — o senhor está errado. O fato de um homem ter um temperamento violento, de explodir e dizer tudo quanto é coisa, não significa que ele seja capaz de assassinar. Eu sei... eu sei, estou lhe dizendo... que o Sr. Astwell é incapaz de tal coisa.

Poirot olhou-a, um sorriso muito curioso nos lábios. Depois tomou a mão dela e acariciou-a gentilmente.

— Está vendo. Mademoiselle? — disse ele, com suavidade. — A senhorita também tem suas intuições. Então acredita no Sr. Astwell, não é mesmo?

Lily falou calmamente.

— O Sr. Astwell é uma boa pessoa, e é honesto. Ele nada tinha a ver com os assuntos internos dos Campos de Ouro de Mpala. É um homem extremamente correto e... prometi casar-me com ele.

Victor Astwell aproximou-se dela e tomou-lhe a outra mão.

— Juro por Deus, M. Poirot — disse ele, — eu não matei meu irmão.

— Sei que não matou — replicou Poirot.

Percorreu os olhos pela sala.

— Ouçam, meus amigos. Num transe hipnótico, Lady Astwell mencionou ter visto uma saliência na cortina.

Todos os olhares se dirigiram para a janela.

— O senhor quer dizer que havia um ladrão escondido ali? — exclamou Victor Astwell. — Que solução esplêndida!

— Ah! — disse Poirot, suavemente. — Mas não foi naquela cortina.

Girou sobre os calcanhares e apontou para a cortina que ocul­tava a pequena escada.

— Sir Reuben usou o quarto na noite anterior ao crime. Tomou café na cama e mandou chamar o Sr. Trefusis para lhe dar algumas instruções. Não sei o que o Sr. Trefusis deixou naquele quarto, mas deixou alguma coisa. Ao dar boa-noite a Sir Reuben e Lady Astwell, lembrou-se desta coisa e subiu as escadas para buscá-la. Não creio que o marido ou a mulher o tenham percebido, pois já haviam dado início a uma nova discussão violenta. Estavam no meio da discussão, quando o Sr. Trefusis desceu a escada. As coisas que diziam um para o outro eram de natureza tão íntima e pessoal que o Sr. Trefusis sentiu-se numa posição bastante desagradável. Para ele ficou claro que os dois imaginavam que ele já tivesse deixado o aposento há algum tempo. Temendo despertar o ódio de Sir Reuben contra si, decidiu permanecer lá e escapulir mais tarde. Ele ficou atrás da cor­tina e, quando Lady Astwell deixou a sala, percebeu inconscien­temente sua silhueta ali. Depois que Lady Astwell saiu da sala, Trefusis tentou se esquivar sem ser percebido, mas, por acaso, Sir Reuben virou a cabeça e se deu conta da presença do secretário. Já de mau-humor, Sir Reuben insultou o secretário, acusando-o de estar deliberadamente se intrometendo e espionando. Senhoras e senhores, eu conheço psicologia. Em todo este caso, procurei não o homem ou mulher de temperamento difícil, pois este funciona como válvula de escape. Cão que ladra não morde. Não. Procurei o homem de boa índole, o homem paciente e com autocontrole, o homem que durante nove anos desempenhou o papel de reprimido. Não há tensão maior do que a que ele suportou durante anos, não há ressen­timento maior do que aquele que acumula lentamente. Durante nove anos, Sir Reuben humilhou e destratou seu secretário, e durante nove anos este homem suportou tudo em silêncio. Mas chega um dia em que a tensão atinge o limite. Alguma coisa se rompe! Foi o que aconteceu naquela noite. Sir Reuben sentou-se à escrivaninha de novo, mas o secretário, ao invés de encaminhar-se humilde e mansamente para a porta, apanha o pesado porrete de madeira e atinge o homem que o humilhou com tanta freqüência.

Ele virou-se para Trefusis, que o encarava como se tivesse se transformado em pedra.

— Seu álibi era muito simples. O Sr. Astwell pensou que o senhor estivesse em seu quarto, mas ninguém o viu ir para lá. O senhor estava exatamente saindo da sala, depois de matar Sir Reuben, quando ouviu um barulho e voltou depressa para o esconde­rijo atrás da cortina. E encontrava-se lá quando Charles Leverson entrou na sala, e quando Lily Margrave chegou. E só muito depois o senhor atravessou a casa silenciosa, em direção ao seu quarto. O senhor o nega?

Trefusis começou a gaguejar.

— Eu... eu... nunca...

— Ah! Deixem-me terminar. Durante duas semanas represen­tei a comédia. Mostrei-lhe a rede fechando pouco a pouco ao seu redor. As impressões digitais, as pegadas, a busca em seu quarto com as coisas artisticamente recolocadas. Inspirei-lhe terror com tudo isso; o senhor passou noites em claro, temendo, pensando: será que deixei a impressão digital na sala, ou uma pegada em algum lugar? Inúmeras vezes repassou mentalmente os acontecimentos daquela noite, pensando no que tinha feito ou deixado de fazer, e então coloquei-o neste estado em que o senhor se traiu. Hoje vi o medo transparecer em seus olhos, quando apanhei alguma coisa na escada, onde o senhor se escondera aquela noite. Então fiz um grande estardalhaço, confiando-a a George e saindo.

Poirot voltou-se para a porta.

— George?

— Pronto, sir.

O mordomo deu um passo adiante.

— Você poderia dizer a estas damas e cavalheiros quais foram minhas instruções?

— Eu deveria ficar escondido no armário de seu quarto, sir, depois de guardar a caixinha onde o senhor mandara. Às três e meia desta tarde, sir, o Sr. Trefusis entrou no quarto; ele foi até a gaveta e retirou a caixinha em questão.

— E naquela caixinha — continuou Poirot — havia um simples alfinete. Eu, eu sempre digo a verdade. Realmente encontrei algo na escada hoje de manhã. E um ditado inglês, não é? “Se vir um al­finete, não deixe de o pegar; durante todo o dia, a sorte o acom­panhará”. Eu, eu tive sorte, descobri o assassino.

Voltou-se para o secretário.

— Está vendo? — disse ele, calmamente. — O senhor se traiu.

Subitamente Trefusis se descontrolou. Afundou na cadeira soluçando, o rosto enterrado nas mãos.

— Eu estava louco — gemeu — eu estava louco. Mas, oh meu Deus, durante anos ele me insultou e me humilhou além dos limites. Durante anos eu o detestei, eu o odiei.

— Eu sabia! — gritou Lady Astwell.

Ela deu um passo adiante, seu rosto irradiando um triunfo selvagem.

— Eu sabia que tinha sido este homem.

Ela permaneceu ali, selvagem e triunfante.

— E a senhora tinha razão — disse Poirot. — Uma coisa pode ter diferentes nomes, mas o fato permanece. Sua “intuição”, Lady Astwell, provou ser verdadeira. Eu a felicito.

 

         O CASO DAS AMORAS PRETAS

Hercule Poirot jantava com seu amigo Henry Bonnington no Gallant Endeavour, em King’s Road, Chelsea.

O Sr. Bonnington era admirador do Gallant Endeavour. Gostava da atmosfera descontraída, gostava da comida, que era “simples” e “inglesa” e “não um monte de gororobas fabricadas”. Gostava de dizer às pessoas que lá jantavam com ele onde exatamente Augustus John costumava sentar-se e de chamar-lhes a atenção para os nomes dos artistas famosos no livro dos visitantes. O Sr. Bonnington em si era o menos artístico dos homens — mas tinha um certo orgulho das atividades artísticas dos outros.

Molly, uma garçonete simpática, cumprimentou o Sr. Bonnin­gton como a um velho amigo. Orgulhava-se por se lembrar das pre­ferências e desagrados dos fregueses, em matéria de comida.

— Boa-noite, sir — disse ela, quando os dois haviam ocupado seus lugares numa mesa do canto. — O senhor está com sorte, hoje — peru recheado com castanhas — é o seu prato favorito, não é? E temos um maravilhoso Stilton! Prefere sopa ou peixe de entrada?

O Sr. Bonnington deliberou sobre o assunto. Falou a Poirot, em tom de aviso, enquanto este examinava o cardápio.

— Nada de quitutes franceses. Desta vez teremos comida in­glesa boa e bem feita.

— Meu amigo, — Hercule Poirot acenou a mão — não peço nada melhor! Ponho-me em suas mãos, sem reservas.

— Ah... ruup... er... hum — respondeu o Sr. Bonnington, e examinou cuidadosamente o assunto.

Resolvidos estes assuntos delicados e a questão do vinho, o Sr. Bonnington se recostou com um suspiro e desdobrou o guarda­napo, enquanto Molly afastava-se rapidamente.

— E uma boa moça! — disse ele, com ar de aprovação. — Já foi um bocado bonita... os artistas costumavam usá-la como modelo. E entende de cozinha, também — o que é muito mais importante. Via de regra, as mulheres não têm bom-senso em matéria de co­mida. Muitas mulheres, quando saem com um camarada, ficam sonhando — nem percebem o que comem. Pedem a primeira coisa que vêem.

Hercule Poirot abanou a cabeça.

— C’est terrible.

— Os homens não são assim, graças a Deus! — disse o Sr. Bonnington, complacentemente.

— Nunca? — Havia um certo brilho nos olhos de Hercule Poirot.

— Bem, talvez quando muito jovens — concedeu o Sr. Bonnington. — Garotões! Hoje em dia os rapazes são todos iguais... não têm firmeza... perseverança. Eu de nada sirvo para os jovens... e eles — acrescentou, com total imparcialidade — de nada servem para mim. Talvez estejam certos! Mas quando a gente ouve um desses moços falando, a impressão que se tem é que ninguém de­veria ter o direito de viver depois dos sessenta! Do modo como eles falam, é de se imaginar se muitos deles não ajudaram os paren­tes idosos a deixar este mundo.

— É possível — disse Hercule Poirot — que o façam.

— Que bela mente você tem, Poirot. Esse trabalho na polícia corroeu seus ideais.

Hercule Poirot sorriu.

— Tout de même — falou. — Seria interessante fazer uma tabela de mortes acidentais das pessoas acima dos sessenta anos de idade. Eu lhe garanto que daria margens a algumas especulações curiosas.

— O seu problema é que você começou a perseguir o crime... ao invés de esperar que o crime venha até você.

— Desculpe-me — disse Poirot. — Estou falando de trabalho. Fale-me, meu amigo, de seus próprios afazeres. Como vão as coisas?

— Uma mixórdia! — disse o Sr. Bonnington. — Este é que é o problema do mundo hoje em dia. Muita mixórdia. E falação em excesso. A falação ajuda a esconder a mixórdia. Como um molho altamente condimentado ajuda a esconder o fato de que o peixe que está por baixo não é dos melhores! É preferível um honesto filé de linguado, sem nenhum molho por cima.

Justamente naquele momento Molly lhe trouxe o filé e ele resmungou qualquer coisa em sinal de aprovação.

— Você sabe exatamente do que eu gosto, minha filha — disse ele.

— Bem, o senhor vem aqui com bastante regularidade, não é mesmo, sir? Já deveria mesmo conhecer suas preferências.

Hercule Poirot disse:

— As pessoas sempre pedem a mesma coisa? Elas não gostam de variar de vez em quando?

— Os cavalheiros, não, sir. As senhoras gostam de variar... os cavalheiros sempre pedem a mesma coisa.

— O que foi que eu lhe disse? — resmungou Bonnington. — As mulheres são fundamentalmente insensatas no que diz res­peito à comida!

Passou os olhos pelo restaurante.

— O mundo é um lugar engraçado. Está vendo aquele velhi­nho estranho de barba, lá no canto? Molly vai lhe dizer que ele sem­pre vem aqui às terças e quintas, à noite. Há quase dez anos, já — é uma espécie de ponto de referência do local. Mesmo assim, nin­guém sabe o seu nome, ou onde mora, ou em que trabalha. É estra­nho quando a gente pensa nessas coisas.

Quando a garçonete trouxe as porções de peru, ele disse:

— Pelo que vejo, o Velho Pai do Tempo ainda vem aqui.

— É verdade, sir. Todas as terças e quintas. Imagine que na semana passada ele veio aqui na segunda! Fiquei um bocado espantada! Pensei que meus dias estavam trocados e que era terça-feira sem eu saber! Mas ele voltou na noite seguinte — então a segunda foi uma espécie de extraordinário, por assim dizer.

— Uma alteração interessante em seus hábitos — murmurou Poirot. — Qual terá sido a razão?

— Bem, sir, se o senhor me perguntar, acho que estava perturbado ou preocupado com alguma coisa.

— Por que achou isso? Por causa dos gestos?

— Não, sir... não dos gestos, exatamente. Estava muito quieto, como de hábito. Nunca diz muita coisa além do boa-noite quando chega e quando sai. Não, foi por causa do pedido.

— Pedido?

— Acho que os senhores vão rir de mim — Molly enrubesceu, — mas quando um cavalheiro vem aqui há dez anos, a gente passa a saber do que gosta e do que não gosta. Ele nunca suportou pudim feito com gordura de rins ou amoras pretas, e nunca o vi tomar sopa cremosa — mas naquela segunda, ele pediu creme de tomate, bife, de rins e torta de amoras pretas. Parecia que ele nem notava o que estava pedindo!

— Sabe de uma coisa? — disse Hercule Poirot. — Estou achan­do essa história extremamente interessante.

Molly pareceu ficar satisfeita e saiu.

— Bem, Poirot — disse Henry Bonnington com uma risadi­nha. — Vamos ouvir algumas de suas deduções. Na melhor forma.

— Prefiro ouvir as suas primeiro.

— Quer que eu banque o Watson, hein? Bem, o velhinho foi ao médico e o médico lhe alterou a dieta.

— Para creme de tomate, bife, pudim de rins e torta de amo­ras pretas? Não consigo imaginar um médico fazendo isso.

— Não acredita, meu velho? Os médicos são capazes de mandar a gente fazer qualquer coisa.

— É a única solução que lhe ocorre?

Henry Bonnington disse:

— Bem, falando sério, acho que só existe uma explicação possível. Nosso amigo desconhecido estava tomado de forte emoção mental. Eslava tão perturbado que, literalmente, nem notou o que estava pedindo ou comendo.

Fez uma pequena pausa, e depois prosseguiu:

— Agora você vai me dizer que sabe exatamente o que se passava na cabeça dele. Vai dizer, talvez, que ele estava se resol­vendo a cometer um crime.

Riu da própria sugestão.

Hercule Poirot não riu.

Admitiu, naquele momento, estar seriamente preocupado. Disse que, na ocasião, ele deveria ter tido algum pressentimento do que estava para ocorrer.

Os amigos lhe garantiram que esta idéia era um tanto fan­tástica.

Somente umas três semanas depois Hercule Poirot e Bonning­ton encontraram-se de novo — desta vez o encontro se deu no metrô.

Cumprimentaram-se com um gesto de cabeça, o corpo balançando com o movimento do trem, os dois viajando em pé. Depois, em Piccadilly Circus houve um êxodo geral e eles se sentaram na extremidade anterior do vagão — um lugar calmo, já que ninguém entrava ou saía por ali.

— Melhorou — disse o Sr. Bonnington. — Um bando de egoístas, a raça humana; eles não pegam outro vagão, não importa o quanto a gente peça!

Hercule Poirot deu de ombros.

— O que você queria? A vida é muito incerta.

— É isso mesmo. Hoje aqui, amanhã no outro mundo — disse o Sr. Bonnington, numa espécie de desabafo melancólico. — Por falar nisso, lembra-se daquele velhote que vimos no Gallant Endeavour? Eu não me espantarei se ele não tiver passado desta para melhor. Há uma semana que ele não vai lá. Molly está bas­tante preocupada com isso.

Hercule Poirot aprumou-se no assento. Seus olhos verdes brilharam.

— É mesmo? — disse ele. — É mesmo? Bonnington prosseguiu:

Lembra-se de que eu sugeri que ele tinha ido ao médico e que este lhe havia passado uma dieta? Dieta é bobagem, é claro — mas eu não me espantaria se ele tivesse consultado um médico para saber de sua saúde e o parecer do médico tenha sido um choque para ele. Isto explicaria os pedidos que fez sem se dar conta. Ê bem pro­vável que o choque o tenha levado deste mundo mais depressa. Os médicos deveriam ter cuidado com o que dizem aos pacientes.

— E geralmente têm — retrucou Hercule Poirot.

— Esta é a minha estação — disse o Sr. Bonnington. — Até logo. Acho que nunca saberemos quem era o velhote, e nem mesmo o nome dele. Que mundo engraçado!

Deixou o trem apressadamente.

Hercule Poirot, de testa franzida, não parecia achar o mundo tão engraçado.

Foi para casa e deu algumas instruções a seu fiel mordomo, George.

Hercule Poirot correu o dedo por uma lista de nomes. Era a relação de mortes em uma determinada área.

O dedo de Poirot parou.

— Henry Gascoigne. Sessenta e nove. Vou tentar este pri­meiro.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Hercule Poirot encontrava-se no consultório do Dr. MacAndrew, perto de King’s Road. Mac-Andrew era um escocês alto, de cabelos vermelhos, e com uma ex­pressão inteligente.

— Gascoigne? — disse ele. — Ê verdade. Um sujeito excên­trico. Morava sozinho, numa dessas casas velhas, abandonadas, que estão sendo desapropriadas para dar lugar a modernos edifícios de apartamentos. Nunca o atendera antes, mas já o tinha visto por aí e sabia quem ele era. Foi o pessoal da leiteria que começou a espalhar a notícia. As garrafas de leite estavam se acumulando do lado de fora. Finalmente, os vizinhos chamaram a polícia. A porta foi arrombada e encontraram-no lá dentro. Estava com um roupão velho, com o cadarço esfarrapado — possivelmente tropeçou nele.

— Entendo — disse Hercule Poirot. — Muito simples... um acidente.

— Exato.

— Ele tinha algum parente?

— Um sobrinho. Costumava visitar o tio mais ou menos uma vez por mês. Lorrimer é o nome dele, George Lorrimer. É médico também. Mora em Wimbledon.

— Ficou chateado com a morte do velho?

— Não sei dizer se ficou chateado. Quer dizer, ele tinha alguma afeição pelo velho, mas na verdade não o conhecia muito bem.

— Há quanto tempo o Sr. Gascoigne estava morto quando o senhor o viu?

— Ah! — disse o Dr. MacAndrew. — Agora sim, passamos aos dados concretos. Não menos de quarenta e oito horas, não mais de setenta e duas horas. Foi encontrado na manhã do dia seis. Na ver­dade, conseguimos ser mais precisos do que isso. Havia uma carta no bolso de seu roupão — escrita no dia três — remetida de Wimbledon naquela tarde — deve ter sido entregue por volta das nove e vinte da noite. O que significa que ele morreu depois das nove e vinte da noite do dia três. Coincide com o conteúdo de seu es­tômago e com o processo de digestão. Ele fizera uma refeição cerca de duas horas antes de morrer. Examinei-o na manhã do dia seis e sua condição mostrava que a morte ocorrera cerca de sessenta horas antes — por volta das dez da noite do dia três.

— Tudo muito compatível. Diga-me, quando ele foi visto com vida pela última vez?

— Foi visto em King’s Road, por volta das sete horas daquela mesma noite, quinta-feira, dia três, e jantou no restaurante Gallant Endeavour às sete e meia. Parece que ele sempre jantava lá às quintas. Ele era meio artista, sabe. E um péssimo artista.

— Não tinha nenhum outro parente? Só este sobrinho?

— Tinha um irmão gêmeo. É uma história muito curiosa. Não se viam há anos. Parece que o outro irmão, Anthony Gascoigne, ca­sou-se com uma mulher bastante rica e abandonou as artes — e os irmãos brigaram por causa disto. Não se viam desde essa época, acho eu. Mas, por estranho que pareça, morreram no mesmo dia. O gêmeo mais velho faleceu às três horas da tarde do dia três. Certa vez eu tive conhecimento de um caso de gêmeos que morreram no mesmo dia — em diferentes partes do mundo! Provavelmente apenas uma coincidência — mas é isto.

— A mulher do outro irmão está viva?

— Não; morreu há alguns anos atrás.

— Onde morava Anthony Gascoigne?

— Tinha uma casa em Kingston Hill. Pelo que o Dr. Lorrimer me disse, acho que ele era meio eremita.

Hercule Poirot balançou a cabeça, pensativamente.

O escocês lançou-lhe um olhar penetrante.

— O que, exatamente, se passa pela sua cabeça, M. Poirot? — perguntou bruscamente. — Respondi suas perguntas — como era meu dever, em vista das credenciais que me apresentou. Mas não estou entendendo nada.

Poirot respondeu, vagarosamente:

— Um simples caso de morte por acidente, foi o que o senhor disse. O que se passa na minha cabeça é igualmente simples — um simples empurrão.

O Dr. MacAndrew pareceu ficar surpreso.

— Em outras palavras, um assassinato! O senhor tem dados Para acreditar nesta hipótese?

— Não — disse Poirot. — É uma mera suposição.

— Deve haver alguma coisa... — insistiu o outro.

Poirot manteve-se calado. MacAndrew disse:

— Se é do sobrinho, Lorrimer, que suspeita, não me incomodo em lhe dizer que está trabalhando em vão. Lorrimer estava jogando bridge em Wimbledon, das oito e meia até meia-noite. Este ponto foi levantado no inquérito.

Poirot murmurou:

— E, presumivelmente, foi verificado. A polícia é cuidadosa.

O médico falou:

— Talvez o senhor saiba de alguma coisa que o desabone.

— Ignorava a existência de tal pessoa até o senhor mencioná-la.

— Então suspeita de uma outra pessoa?

— Não, não. Não é nada disso. Trata-se de um caso dos hábitos rotineiros do bicho homem. Isto é muito importante. E o falecido M. Gascoigne não se encaixa. Está tudo errado, entende?

— Para falar a verdade, não estou entendendo.

Hercule Poirot murmurou:

— O problema é o seguinte: há muito molho escondendo o peixe ruim.

— Mas o que é isso?

Hercule Poirot sorriu.

— Daqui a pouco o senhor estará me internando como lunático, Monsieur le Docteur. Mas, na verdade, não sou um caso mental — apenas um homem apaixonado pela ordem e pelo método, que se preocupa quando se depara com um fato que não se encaixa. Peço-lhe que me perdoe por lhe ter causado tantos problemas.

Levantou-se e o médico também.

— Sabe — disse MacAndrew — honestamente, não vejo nada que possa ser nem ligeiramente suspeito sobre a morte de Henry Gascoigne. Eu digo que ele caiu... o senhor diz que foi empurrado. Está tudo... bem... no ar.

Hercule Poirot suspirou.

— É — disse ele. — Primoroso. Alguém fez um belo serviço!

— O senhor ainda acha...?

O homenzinho abriu as mãos.

— Sou um homem obstinado — um homem com uma peque­nina idéia — e nada que a sustente! A propósito, Henry Gascoigne usava dentaduras?

— Não, os dentes dele encontravam-se em ótimo estado. Muito louvável, na idade dele.

— Ele cuidava bem deles — eram brancos e bem escovados?

— Eram, foi um detalhe que reparei bem. Os dentes tendem a ficar amarelados com a idade, mas os dele estavam em ótimas condições.

— Não tinham perdido nenhum brilho?

— Não. Não creio que ele fumasse, se é isso o que quer saber.

— Não, não era isso exatamente — apenas uma conjectura — que, provavelmente, não se concretizará! Até logo, Dr. MacAndrew, e obrigado pela atenção.

Apertou a mão do médico e saiu.

— E agora — disse ele — à conjectura.

No Gallant Endeavour, sentou-se à mesma mesa que compartilhara com Bonnington. A moça que o atendeu não foi Molly. Molly, a moça lhe disse, estava de férias.

Eram apenas sete horas e Hercule Poirot não encontrou dificuldades para puxar conversa com a moça sobre o assunto do velho Sr. Gascoigne.

— É — disse ela. — Ele vinha aqui há anos. Mas nenhuma de nós sabia o seu nome. Lemos nos jornais sobre o inquérito, e havia uma foto dele. “Veja se não é o nosso ‘Velho Pai do Tempo’”, como costumávamos chamá-lo.

— Ele jantou aqui na noite em que morreu, não é?

— Exato. Quinta-feira, dia três. As quintas, ele estava sempre aqui. Terças e quintas — pontual como um relógio.

— Você por acaso se lembra o que ele comeu?

— Deixe-me ver, foi sopa hindu com caril, é, isso mesmo, pudim de carne, ou foi de carneiro? — não, pudim mesmo; amoras pretas, torta de maçã e queijo. E aí, pensar que ele foi para casa e caiu da escada naquela mesma noite. A causa, segundo dizem, foi o cadarço esfarrapado do roupão. É claro que as roupas dele eram algo de horrível — fora de moda e vestidas de qualquer maneira, aos farrapos; mesmo assim, ele tinha um quê, como se fosse alguém! Oh, temos tantos tipos interessantes de fregueses aqui.

Ela se afastou.

Hercule Poirot comeu seu filé de linguado. Dos olhos transpa­recia uma luz verde.

— Estranho — disse para si mesmo — como mesmo as pessoas mais inteligentes são traídas pelos detalhes. Bonnington achará muito interessante.

Mas ainda não chegara o momento para uma conversa despreocupada com Bonnington.

De posse das apresentações de um certo setor influente, Hercule Poirot não teve dificuldade alguma para entrar em contato com o magistrado encarregado de investigar as mortes suspeitas do distrito.

— Uma figura curiosa, o falecido Gascoigne — observou ele. — Um velhote solitário, excêntrico. Mas a morte dele parece despertar uma atenção extremamente grande.

Olhou o visitante com alguma curiosidade enquanto falava.

Hercule Poirot escolheu as palavras com cuidado.

— Existem algumas circunstâncias ligadas a ela, Monsieur, que tornam a investigação desejável.

— Bem, em que lhe posso ser útil?

— Se não me engano, está em seu poder mandar destruir ou guardar os documentos apresentados em sua corte, dependendo do caso. Foi encontrada uma certa carta no bolso do roupão de Henry Gascoigne, não é mesmo?

— Exato.

— Uma carta do seu sobrinho, o Dr. Lorrimer.

— Correto. A carta foi apresentada no inquérito para ajudar a determinar a hora da morte.

— Que foi corroborada pela evidência médica.

— Exatamente.

— Esta carta ainda está disponível?

Hercule Poirot aguardou a resposta com ansiedade.

Ao ouvir que a carta ainda estava disponível para exame, deu um suspiro de alívio.

Quando finalmente lhe foi entregue, examinou-a com algum cuidado. Fora escrita com caneta-tinteiro, numa caligrafia ligeira­mente rígida.

Dizia o seguinte:

“Querido tio Henry:

Lamento dizer-lhe que não obtive êxito junto ao tio Anthony. Não demonstrou entusiasmo pela sua provável visita, e não res­pondeu ao seu pedido de esquecer as águas passadas. É claro que ele está bastante doente, e sua mente tende a devaneios. Imagino que o fim lhe esteja muito próximo. Aparentemente, foi-lhe difícil lembrar-se quem era o senhor.

Lamento ter lhe desapontado, mas posso lhe garantir que fiz o possível.

Toda a afeição de seu sobrinho,

George Lorrimer.”

A carta estava datada do dia 3 de novembro. Poirot deu uma olhadela no carimbo do envelope: 16:30/Nov. 3.

Murmurou:

— Tudo belamente organizado.

Kingston Hill era o seu próximo objetivo. Depois de algum trabalho, em que exercitou sua pertinácia bem-humorada, conseguiu entrevistar-se com Amelia Hill, cozinheira e governanta do falecido Anthony Gascoigne.

A princípio a Sra. Hill mostrou-se esquiva e desconfiada, mas a ingenuidade encantadora daquele estrangeiro de aparência estranha amoleceria até mesmo uma pedra. A Sra. Hill começou a amolecer.

Encontrou-se, como já acontecera com muitas outras mulheres antes dela, despejando seus problemas em cima de um ouvinte realmente solidário.

Durante quatorze anos fora encarregada dos serviços domésti­cos do Sr. Gascoigne — e não era nada fácil! Não, mesmo! Muitas mulheres teriam fraquejado diante da carga que ela tivera que suportar! O pobre homem era excêntrico, não havia como negá-lo. Extremamente afeiçoado ao seu dinheiro — era uma espécie de mania dele — logo ele, um homem tão rico. Mas a Sra. Hill o servira fielmente, agüentara seus modos e, naturalmente, espe­rava dele uma lembrança qualquer. Mas não — absolutamente nada! Apenas um velho testamento que deixava todo o dinheiro para a mulher e, se ela falecesse antes dele, iria tudo para o irmão, Henry. Um testamento feito há anos. Não parecia justo!

Pouco a pouco, Hercule Poirot afastou-a de seu tema principal, cupidez insatisfeita. Era, sem dúvida, uma injustiça cruel! A Sra. Hill não poderia ser culpada por sentir-se magoada e surpresa. Era um fato sabido que o Sr. Gascoigne era pão-duro em matéria de di­nheiro. Comentava-se mesmo que o falecido recusara a assistência de seu único irmão. A Sra. Hill provavelmente sabia de tudo aquilo.

— Foi por isso que o Dr. Lorrimer veio aqui visitá-la? — perguntou a Sra. Hill. — Eu sabia que tinha alguma coisa a ver com o irmão, mas pensei que ele só quisesse se reconciliar. Brigaram há anos atrás.

— Pelo que eu saiba — disse Poirot — o Sr. Gascoigne recusou completamente.

— Foi mesmo — disse a Sra. Hill, com um gesto afirmativo de cabeça. — “Henry?” disse ele, já bem fraco. “O que é que tem Henry? Não o vejo há anos e nem pretendo vê-lo. Um criador de casos, o Henry.” E foi só.

A conversação, então, reverteu para as queixas próprias da Sra. Hill, e para a atitude insensível do advogado do falecido Sr. Gascoigne.

Com alguma dificuldade, Hercule Poirot despediu-se sem interromper a conversa muito rudemente.

E assim, logo depois da hora do jantar, ele chegou em Elmcrest, Dorset Road, Wimbledon, à residência do Dr. George Lorrimer.

O médico estava em casa. Hercule Poirot foi levado para o consultório onde, logo depois, encontrava-se o Dr. George Lorrimer, que obviamente acabara de se levantar da mesa de jantar.

— Não sou um cliente, doutor — disse Hercule Poirot. — E minha vinda aqui talvez seja um tanto impertinente — mas eu sou um homem velho e acredito num contato simples e direto. Não ligo para os advogados e nem para seus métodos prolixos e cheios de rodeios.

Sem dúvida alguma, ele despertara o interesse de Lorrimer. O médico era um homem bem barbeado, de estatura mediana. O cabelo era castanho, mas os cílios eram quase brancos, o que lhe emprestava aos olhos um aspecto pálido, sem sal. Seus modos eram sagazes, e não destituídos de humor.

— Advogados? — disse ele, levantando as sobrancelhas. — Detesto esta espécie! O senhor desperta minha curiosidade, meu caro. Sente-se, por favor.

Poirot o fez e então pegou um de seus cartões profissionais, entregando-o ao médico.

Os cílios brancos de George Lorrimer piscaram.

Poirot curvou-se para frente, com ar confidencial:

— Muitos de meus clientes são mulheres — disse ele.

— Naturalmente — disse o Dr. George Lorrimer, com um li­geiro piscar de olhos.

— Como o senhor diz, naturalmente — concordou Poirot. — As mulheres não confiam na polícia. Preferem as investigações particulares. Não querem que seus problemas sejam tornados pú­blicos. Uma senhora idosa veio me consultar há alguns dias. Estava com problemas a respeito de um marido com quem brigara há muitos anos. O marido dela era seu tio, o falecido Sr. Gascoigne.

O rosto de George Lorrimer ficou escarlate.

— Meu tio? Que bobagem! A mulher dele morreu há muitos anos.

— Não o seu tio Anthony Gascoigne. Refiro-me ao outro tio, Henry Gascoigne.

— Tio Henry? Mas ele não era casado!

— Ah, era, sim — disse Hercule Poirot, mentindo sem enrubescer. — Não há a menor dúvida. A senhora até mesmo levou a cer­tidão de casamento.

— É mentira! — gritou George Lorrimer. Seu rosto agora estava vermelho como um morango. — Não acredito nisso. O senhor é um cínico e mentiroso.

— Que coisa desagradável, não? — disse Poirot. — O senhor cometeu um crime para nada.

— Crime? — A voz de Lorrimer ficara trêmula. Seus olhos pálidos quase lhe saltaram das órbitas de terror.

— A propósito — disse Poirot, — percebo que estava comendo torta de amoras pretas de novo. Um péssimo hábito. Dizem que a amora preta é rica em vitaminas, mas pode ser fatal de outras formas. Nesta ocasião, imagino que as amoras tenham ajudado a pôr uma corda no pescoço de um homem — de seu pescoço, Dr. Lorrimer.

— Como vê, mon ami, você se enganou na suposição funda­mental. — Hercule Poirot, sorrindo placidamente para o amigo, do outro lado da mesa, acenou a mão retoricamente. — Um homem que está passando sob forte tensão mental não escolhe este exato mo­mento para fazer uma coisa que nunca fez. Seus reflexos o levam ao caminho que oferece a menor resistência. Um homem perturbado com alguma coisa pode, até mesmo, sair de pijamas para jantar — mas o pijama será dele — e não de outra pessoa. Um homem que não gosta de sopa cremosa, de pudim feito com gordura de rins e nem de amoras pretas, subitamente pede os três numa só noite. Você diz que é por ele estar pensando em outra coisa. Mas eu digo que quando um homem está preocupado com alguma coisa, pedirá, automaticamente, o prato que está acostumado a pedir na maioria das vezes. Eh bien, que outra explicação poderia haver, então? Eu simplesmente não conseguia achar uma explicação ra­zoável. E fiquei preocupado! O incidente estava todo errado. Não se encaixava! Eu tenho uma mente organizada e gosto que as coisas se encaixem. O pedido que o Sr. Gascoigne fez no jantar preocupa­va-me. Depois você me disse que o homem desaparecera. Pela pri­meira vez em anos, faltara numa terça e numa quinta. Gostei menos ainda. Uma hipótese estranha surgiu em minha cabeça. Caso fosse verdadeira, o homem estava morto. Investiguei. O homem estava morto. E morrera de forma muito arrumada e organizada. Em outras palavras: o peixe ruim estava escondido pelo molho! Fora visto em King’s Road às sete horas. Jantara aqui às sete e meia — duas horas antes de morrer. Tudo se encaixava — a evidência do conteúdo do estômago, a carta. Molho demais, demais! Não dava para ver o peixe de jeito nenhum! O sobrinho dedicado escrevera a carta, o sobrinho dedicado tinha um belo álibi na hora da morte. Uma morte muito simples — uma queda da escada. Simples acidente? Um crime simples? Todos achavam o primeiro. O sobrinho dedicado era o único parente vivo. O sobrinho dedicado será o her­deiro — mas há alguma coisa a ser herdada? O tio é sabidamente pobre. Mas há um irmão. E o irmão, quando jovem, casara-se com uma moça rica. E o irmão mora numa casa grande e luxuosa em Kingston Hill, de forma que o esperado é que a esposa rica tenha lhe deixado todo o seu dinheiro. Veja a seqüência — esposa rica deixa o dinheiro para Anthony, Anthony deixa o dinheiro para Henry, o dinheiro de Henry vai para George — uma corrente com­pleta.

— Tudo muito bonito em teoria — disse Bonnington. — Mas o que você fez?

— Uma vez sabido — geralmente se obtém aquilo que se deseja. Henry morrera duas horas depois de uma refeição — e o inquérito só se preocupou com isso. Mas suponhamos que a refei­ção não tenha sido jantar, e sim almoço. Ponha-se no lugar de George. George está necessitado de dinheiro — e muito. Anthony Gascoigne está à morte — mas a morte dele de nada adianta a George. O dinheiro dele irá para Henry e Henry Gascoigne pode viver durante muitos anos. De forma que Henry precisa morrer — e quanto mais cedo melhor — e a morte dele deve ser posterior à de Anthony e, ao mesmo tempo, George precisa de um álibi. O hábito de Henry jantar regularmente num restaurante duas vezes por semana sugeriu-lhe um álibi. Sendo um sujeito cauteloso, expe­rimenta o plano antes. Ele representa o tio na noite de segunda-feira, no restaurante em questão. Tudo sai às mil maravilhas. Todos o tomam pelo tio. Ele fica satisfeito. Resta-lhe apenas esperar que o tio Anthony apresente os sinais definitivos de que já está nas últi­mas. A ocasião se apresenta. Escreve uma carta para o tio na tarde do dia dois de novembro, mas data-a de três. Vem à cidade na tar­de do dia três, visita o tio e executa seu plano. Um empurrão rápido, e lá se vai o tio Henry escada abaixo. George procura em todos os cantos a carta que escrevera e enfia-a no bolso do roupão do tio. Às sete e meia ele se encontra no Gallant Endeavour, de barba, sobrancelhas espessas, todos os detalhes. Sem dúvida alguma, o Sr. Henry Gascoigne está vivo às sete e meia. A rápida metamorfose num banheiro, de volta a Wimbledon em seu carro, a toda velocida­de, e uma noitada de bridge. O álibi perfeito.

O Sr. Bonnington olhou-o:

— Mas e o carimbo do correio na carta?

— Ora; muito simples. O carimbo estava borrado. Por quê? Fora alterado com tinta preta, de dois de novembro para três de novembro. Não dava para perceber, a não ser que se olhasse com atenção. É, finalmente, havia as amoras pretas.

— Amoras pretas?

— George, você sabe, não foi um ator tão bom no final das contas. Você se lembra do sujeito que se pintou todo de preto para representar Otelo? Este é o tipo de ator que se precisa ser para um crime. George parecia com o tio e andava como o tio e falava como o tio, e tinha a barba e sobrancelha do tio, mas esqueceu-se de comer como o tio. Pediu pratos que eram do seu agrado. Amoras pretas tiram o brilho dos dentes — os dentes do cadáver não tinham per­dido o brilho e, mesmo assim, Henry Gascoigne comeu amoras pre­tas no Gallant Endeavour, naquela noite. Mas não havia amoras pre­tas em seu estômago. Perguntei hoje de manhã. E George cometeu a tolice de guardar a barba e o resto da maquilagem. Oh! evidência em excesso, quando alguém se dá ao trabalho de procurar. Fiz uma visita a George e desconcertei-o. Foi o que o liquidou! Por falar nisso, estava comendo amoras pretas de novo. Um sujeito guloso — preocupava-se demais com a sua própria comida. Eh bien, a gula o levará à forca, a não ser que eu esteja redondamente enganado.

Uma garçonete trouxe-lhes duas porções de amoras pretas e torta de maçã.

— Leve isso daqui — disse o Sr. Bonnington. — Não se deve ser tão guloso. Traga-me um pouco de pudim de sagu.

 

         O SONHO

Hercule Poirot observou a casa com ar de total aprovação. Seus olhos vagaram pelos arredores durante alguns instantes: as lojas, a grande fábrica à direita, os quarteirões de edifícios de apartamentos baratos do outro lado.

Depois, mais uma vez seus olhos voltaram-se para Northway House, relíquia de uma era antiga — uma era de espaço e lazer, quando os campos Verdejantes rodeavam sua fina arrogância. Atual­mente era um anacronismo, submersa e esquecida no mar agitado da moderna Londres, e ninguém, em cinqüenta pessoas, saberia di­zer onde ficava a casa.

Além do mais, muito poucas pessoas sabiam a quem pertencia, embora o nome de seu proprietário fosse reconhecido como o de um dos homens mais ricos do mundo. Mas se o dinheiro pode ostentar publicidade, também pode extingui-la. Benedict Farley, aquele milionário excêntrico, preferiu não anunciar sua escolha de residência. Ele mesmo era raramente visto, quase nunca aparecia em público. De vez em quando comparecia às reuniões de diretoria, sua figura esguia, nariz pontudo e voz áspera, que dominava facilmente os di­retores reunidos. Excetuando-se isto, era apenas uma figura legen­dária famosa. Havia suas estranhas mesquinharias, suas incríveis generosidades, bem como detalhes mais pessoais — seu famoso roupão de retalhos, supostamente com vinte e oito anos de idade, sua invariável dieta de sopa de repolho e caviar, seu ódio a gatos. Todas estas coisas o público sabia.

Hercule Poirot também as sabia. Era tudo o que realmente sabia a respeito do homem que estava prestes a visitar. A carta que se encontrava no bolso de seu sobretudo dizia-lhe pouco mais.

Depois de examinar em silêncio aquele marco melancólico de uma era passada durante um ou dois minutos, subiu os degraus que levavam à porta da frente e tocou a campainha, dando uma olhadela no elegante relógio de pulso que, finalmente, substituíra o seu fa­vorito — um cebolão dos melhores tempos. Sim, eram exatamente nove e meia. Como sempre, Hercule Poirot chegara com extrema pontualidade.

A porta se abriu depois do devido intervalo. Um perfeito espécime do gênero mordomo delineou-se à luz do vestíbulo.

— Sr. Benedict Farley? — perguntou Hercule Poirot.

O olhar impessoal examinou-o da cabeça aos pés, inofensivamente, mas com eficácia.

En gros et en détail, pensou consigo Hercule Poirot, apreciativo.

— O senhor tem hora marcada, sir? — perguntou a voz suave.

— Tenho.

— Seu nome, por favor?

— Monsieur Hercule Poirot.

O mordomo fez uma mesura e deu um passo para trás. Hercule Poirot entrou na casa. O mordomo fechou a porta atrás dele.

Mas ainda havia uma formalidade antes que as mãos habi­lidosas pegassem o chapéu e a bengala do visitante.

— Queira me desculpar, sir. Devo lhe pedir uma carta.

Vagarosamente. Poirot retirou a carta dobrada de seu bolso e entregou-a ao mordomo. Este apenas deu uma ligeira olhadela e devolveu-a com nova mesura. Hercule Poirot colocou-a de volta em seu bolso. Seu conteúdo era simples.

 

“Northway House, W 8

  1. Hercule Poirot

Caro Senhor,

O Sr. Benedict Farley gostaria de ouvir sua opinião. Se lhe for conveniente, ele gostaria que o senhor o visitasse no endereço acima, amanhã (quinta-feira), às 9h30min da noite.

Atenciosamente,

Hugo Cornworthy

(Secretário)

P.S. Por favor, traga esta carta com o senhor.”

 

Habilidosamente, o mordomo pegou o chapéu, bengala e sobretudo de Poirot. Disse:

— O senhor quer ter a bondade de me acompanhar à sala do Sr. Cornworthy?

Subiu na frente a larga escadaria. Poirot seguiu-o, apreciando aqueles objets d’art, de natureza tão opulenta e ostentosa! Seu gosto artístico era um tanto burguês.

No primeiro andar, o mordomo bateu a uma porta.

As sobrancelhas de Hercule Poirot levantaram-se ligeiramente. Foi a primeira nota destoante. Porque os melhores mordomos não costumam bater à porta — e, indubitavelmente, aquele mordomo era de primeira classe!

Era, por assim dizer, a primeira sugestão do contato com as excentricidades de um milionário. Ele anunciou (e novamente Poirot sentiu um desvio deliberado do comportamento ortodoxo):

— O cavalheiro que o senhor aguardava, sir.

Poirot entrou no aposento. Era uma sala de tamanho regular, mobiliada com bastante simplicidade e esmero. Arquivos, livros de consulta, duas espreguiçadeiras e uma grande e imponente escrivaninha, coberta de papéis organizadamente relacionados. Os cantos da sala eram escuros, pois a única luz provinha de um grande abajur de cúpula esverdeada, próprio para leitura, que ficava numa mesinha ao lado do braço de uma das espreguiçadeiras. Sua localização era tal, que o principal foco recaía em quem se aproximasse pela porta. Hercule Poirot piscou um pouco, imaginando que a lâmpada devia ter, pelo menos, 150 velas. Na poltrona sentava-se uma figura magra, num roupão de retalhos — Benedict Farley. Sua cabeça era jogada para frente, numa atitude característica. O nariz pontudo sobressaindo como o de um passarinho. Uma crista de cabelos brancos, como a de uma cacatua, saltava-lhe da testa. Seus olhos brilhavam por detrás de lentes espessas, ao perscrutar desconfiada­mente o visitante.

— Ei — disse ele, finalmente, e sua voz era aguda e estridente, com um tom áspero. — Então o senhor é Hercule Poirot, hein?

— Ás suas ordens — respondeu Poirot educadamente, curvan­do-se, uma das mãos no encosto da cadeira.

— Sente-se, sente-se — disse o velho, impaciente.

Hercule Poirot sentou-se, recebendo de cheio todo o clarão da lâmpada. Por detrás dele, o velho parecia analisá-lo com atenção.

— Como é que eu vou saber que o senhor é Hercule Poirot, hein? — perguntou ele irritadamente. — Como é, hein?

Mais uma vez Poirot retirou a carta do bolso e entregou-a a Farley.

— É — admitiu o milionário, de má vontade. — É a própria. Foi o que mandei Cornworthy escrever. — Dobrou-a e jogou-a de volta. — Então é o senhor, não é?

Com um pequeno aceno de mão, Poirot disse:

— Garanto-lhe que não se decepcionará!

Subitamente, Benedict Farley deu uma risadinha.

— É o que diz o mágico antes de tirar o coelhinho da cartola! Dizer isto faz parte do truque, o senhor sabe.

Poirot não respondeu. Farley disse subitamente:

— Pensa que eu sou um velho desconfiado, hein? Sou mesmo. Não confie em ninguém! Este é o meu lema. Não se pode confiar em ninguém, quando se é rico. Não, não, não vale a pena.

— O senhor desejava — insinuou Poirot, delicadamente — me consultar?

O velho fez que sim com a cabeça.

— Exato. Sempre compre o melhor. Este é o meu lema. Vá ao especialista e não meça o preço. O senhor perceberá, M. Poirot, que não lhe perguntei quanto cobra. Nem vou perguntar! Mande-me a conta depois — eu não vou pechinchar. Aqueles bobalhões da quitanda pensaram que conseguiriam me vender ovos por doze e noventa, quando doze e setenta é o preço de tabela — um bando de ladrões! Eu não vou ser roubado. Mas quando um homem é uma autoridade em determinado assunto, é diferente. Ele vale o di­nheiro. Eu mesmo sou uma autoridade — sei disso.

Hercule Poirot não respondeu. Ouvia com atenção, a cabeça um pouco inclinada para o lado.

Por trás do aspecto impassivo, ele estava consciente de uma sensação de desapontamento. Não conseguia determinar com exa­tidão. Até aquele momento, Benedict Farley era o esperado — ou seja, coincidia com a idéia popular que se fazia dele; mesmo assim... Poirot estava desapontado.

— Este homem — disse para si mesmo, aborrecido — é um charlatão — não passa de um charlatão!

Poirot conhecera outros milionários, homens excêntricos tam­bém, mas em quase todos os casos ele percebera uma certa força, uma energia interior que inspirava respeito. Se usassem um roupão de retalhos, seria porque gostavam de usar um roupão assim. Mas o roupão de Benedict Farley, pelo menos era a impressão que causava em Poirot, era essencialmente um acessório teatral. E o homem em si era essencialmente teatral. Todas as palavras que dizia, disso Poirot tinha certeza, eram apenas de efeito.

Ele repetiu, impassivelmente:

— O senhor desejava me consultar, Sr. Farley?

Subitamente, os modos do milionário mudaram.

Inclinou-se para frente. Sua voz baixou tanto de tom que mais parecia um coaxo.

— Sim, sim... Gostaria de ouvir o que tem a dizer — o que acha... Procure uma autoridade! É assim que eu ajo! O melhor mé­dico — o melhor detetive — ou um, ou outro.

— Por enquanto, Monsieur, não estou entendendo.

— Naturalmente, retrucou Farley. — Ainda não comecei a contar.

Inclinou-se para frente mais uma vez e lançou uma pergunta súbita.

— O que o senhor sabe, M. Poirot, a respeito de sonhos?

As sobrancelhas do homenzinho levantaram. O que quer que ele esperasse, não era nada daquilo.

— Quanto a isto, M. Farley, recomendo-lhe o Livro dos Sonhos, de Napoleão — ou os psicólogos mais atualizados da Rua Harley.

Benedict Farley disse seriamente:

— Já tentei os dois...

Houve uma pausa, depois o milionário falou, a princípio quase num sussurro, depois com voz cada vez mais e mais alta.

— É o mesmo sonho — noite após noite. E estou com medo, digo-lhe isso — estou com medo... Sempre o mesmo. Estou sentado na minha sala ao lado desta. Sentado à minha mesa, escrevendo. Existe um relógio lá, olho para ele e vejo as horas — exatamente três horas e vinte e oito minutos. Sempre a mesma hora, entende? E quando vejo as horas, M. Poirot, sei que tenho que fazer aquilo. Não quero fazer — odeio fazer — mas sou obrigado...

Sua voz tornara-se estridente.

Sem se perturbar, Poirot perguntou:

— E o que é que o senhor tem que fazer?

— Às três horas e vinte e oito minutos — disse Benedict Farley, com voz rouca, — abro a penúltima gaveta, à direita, de minha escrivaninha, pego o revólver que tenho lá guardado, carre­go-o e caminho para a janela. Depois... depois...

— Sim?

Benedict Farley disse num sussurro:

— Depois dou um tiro em mim mesmo...

Silêncio.

Poirot falou:

— É este o seu sonho?

— É.

— O mesmo todas as noites?

É.

— E o que acontece depois que o senhor se mata?

— Eu acordo.

Poirot balançou a cabeça, vagarosa e pensativamente.

— Só por curiosidade, o senhor guarda mesmo um revólver nesta gaveta específica?

— Guardo.

— Por quê?

— Sempre guardei. É bom estar preparado.

— Preparado para quê?

Farley respondeu com irritação:

— Um homem em minha posição tem que estar prevenido. Todos os homens ricos têm inimigos.

Poirot não insistiu no assunto. Permaneceu em silêncio durante um ou dois minutos, depois perguntou:

— Para que, exatamente, mandou me chamar?

— Vou-lhe dizer. Antes de mais nada consultei um médico — três médicos, para ser mais preciso.

— E aí?

— O primeiro me disse que era apenas uma questão de dieta. Era um senhor idoso. O segundo era um jovem, pertencente à escola moderna. Garantiu-me que tudo se relacionava a um determinado acontecimento que ocorrera em minha infância, àquela hora especí­fica do dia: três e vinte e oito. Eu estou tão decidido, disse ele, a não me lembrar do acontecimento, que o simbolizo pela autodestruição. Esta foi a explicação dele.

— E o terceiro médico? — perguntou Poirot.

A voz de Benedict Farley tornou-se estridente de ódio.

— Era um jovem, também. A teoria dele é absurda! Afirmou que, no íntimo, estou cansado da vida, que minha vida me é tão insuportável que, deliberadamente, desejo acabá-la! Mas, uma vez que reconhecer este fato significaria, em essência, reconhecer que eu sou um fracasso, recuso-me, quando acordado, a enfrentar a verdade. Mas ao dormir, todas as inibições são anuladas, faço o que realmente desejo fazer. Dou um fim a mim mesmo.

— A teoria dele é que o senhor, inconscientemente, deseja se suicidar? — perguntou Poirot.

Benedict Farley gritou asperamente:

— E isto é impossível — impossível! Sou absolutamente feliz! Tenho tudo o que quero — tudo o que o dinheiro pode com­prar! É fantástico — inacreditável mesmo sugerir uma coisa dessas!

Poirot olhou-o com interesse. Talvez alguma coisa nas mãos trêmulas, na estridência trêmula da voz, lhe tenha sugerido que a negativa era veemente demais, que a própria insistência era sus­peita por si mesma. Contentou-se em dizer:

— E onde eu entro nisso, Monsieur?

Benedict Farley acalmou-se subitamente. Bateu enfaticamente com o dedo na mesa ao seu lado.

— Existe uma outra possibilidade. E, se for verdadeira, o senhor é o homem indicado para sabê-lo! O senhor é famoso, já resolveu centenas de casos — casos fantásticos, impossíveis! O senhor saberia, se é que alguém sabe.

— Saberia o quê?

A voz de Farley desceu a um sussurro.

— Suponhamos que alguém queira me matar... Poderia ser feito assim? Alguém poderia me fazer sonhar o mesmo sonho, noite após noite?

— Hipnose, o senhor diz?

— É.

Hercule Poirot considerou a questão.

— Acho que seria possível — disse ele, finalmente. — Um mé­dico saberia melhor.

— O senhor nunca resolveu um caso deste tipo?

— Não, assim nestas linhas, não.

— Está vendo aonde quero chegar? Sou obrigado a ter o mesmo sonho, noite após noite — e depois — certo dia a sugestão é forte demais para mim — e ajo em obediência a ela. Faço o que so­nhei com tanta freqüência — mato-me!

Hercule Poirot abanou a cabeça, vagarosamente.

— O senhor acha que isto é possível? — perguntou Farley.

— Possível? — Poirot abanou a cabeça. — É o tipo da palavra que não gosto de usar.

— Mas acha que é improvável?

— Bastante improvável..

Benedict Farley murmurou:

— Foi o que o médico disse, também... — Depois, a voz ficando novamente estridente, ele gritou: — Mas por que eu tenho este sonho? Por quê? Por quê?

Hercule Poirot abanou a cabeça. Benedict Farley perguntou abruptamente:

— Tem certeza de que nunca viu nada semelhante em toda a sua experiência?

— Nunca.

— Era isso o que eu queria saber.

Poirot pigarreou delicadamente.

— O senhor me permite uma pergunta?

— O que é? O que é? Pergunte o que quiser.

— O senhor suspeita de quem esteja querendo lhe matar?

Farley respondeu bruscamente:

— Ninguém. Absolutamente ninguém.

— Mas a idéia apareceu em sua cabeça? — persistiu Poirot.

— Eu queria saber — se havia alguma possibilidade.

— De acordo com minha própria experiência, eu diria “Não”. A propósito, o senhor já foi hipnotizado?

— Claro que não. O senhor acha que me presto a estas tolices?

— Então acho que se pode afirmar que sua teoria é definitivamente improvável.

— Mas o sonho, caramba, o sonho.

— O sonho é, sem dúvida alguma, impressionante — disse Poirot, pensativo. Fez uma pausa, e depois prosseguiu: — Gostaria de ver a cena deste drama — a mesa, o relógio e o revólver.

— Claro, vamos até lá.

Embrulhando-se no roupão, o velho fez menção de se levantar da cadeira. Depois, subitamente, como se lhe tivesse vindo algo à cabeça, voltou ao seu lugar.

— Não — disse ele. — Não há nada para ver lá. Já disse tudo o que tinha a dizer.

— Mas eu gostaria de ver pessoalmente...

— Não há necessidade — retrucou Farley. — O senhor já me deu sua opinião. Agora chega.

Poirot deu de ombros.

— Como queira. — Pôs-se de pé. — Lamento, Sr. Farley, não ter podido lhe dar assistência.

Benedict Farley tinha os olhos fixos diante de si.

— Não quero confusão por aqui — grunhiu ele. — Já lhe disse os fatos — o senhor nada pôde deduzir deles. Assunto encerrado. Pode me mandar sua conta pela consulta.

— Não tardarei em fazê-lo — respondeu o detetive, secamente. Andou em direção à porta.

— Espere aí. — O milionário chamou-o de volta. — Aquela carta — quero-a para mim.

— A carta de seu secretário?

— É.

As sobrancelhas de Poirot levantaram-se. Pôs a mão no bolso, retirou uma folha dobrada e entregou-a ao velho. Este examinou-a e colocou-a na mesa ao seu lado, com um aceno de cabeça.

Mais uma vez Poirot dirigiu-se à porta. Estava confuso. Sua mente ocupava-se em passar e repassar a história que acabara de ouvir. Ainda assim, no meio de sua preocupação mental, uma sensa­ção aborrecida de que algo estava errado importunava-o. E este algo dizia respeito a ele — não a Benedict Farley.

Com a mão na maçaneta da porta, sua mente iluminou-se. Ele, Hercule Poirot, incorrera em erro! Entrou na sala mais uma vez.

— Mil perdões! Absorvido por seus problemas, cometi uma to­lice! A carta que lhe entreguei — por engano pus a mão no meu bolso direito, e não no esquerdo...

— O que significa isso? O que significa isso?

— A carta que acabei de lhe entregar — uma desculpa de mi­nha lavadeira, relativa ao tratamento de meus colarinhos. — Poirot sorria, desculpando-se. Vasculhou o bolso esquerdo. — Aqui está a sua carta.

Benedict Farley tomou-a da mão dele, resmungando:

— Ora, diabo, por que não presta atenção no que faz?

Poirot recuperou a comunicação de sua lavadeira, desculpou-se imediatamente mais uma vez e saiu da sala.

Parou um instante no patamar da escada. Era espaçoso. Bem diante dele havia um grande e velho canapé de carvalho, em frente a uma mesa elástica. Na mesa havia revistas. Havia também duas poltronas e uma mesa com flores. Lembrou-lhe um pouco a sala de espera de um dentista.

O mordomo encontrava-se no vestíbulo, embaixo, aguardando-o para abrir a porta.

— Quer que chame um táxi, sir?

— Não, obrigado. A noite está agradável. Prefiro andar.

Hercule Poirot parou um instante na calçada, esperando que o tráfego acalmasse um pouco, antes de atravessar aquela rua movimentada.

Algumas rugas apareceram-lhe na testa.

— Não — disse para si mesmo. — Não estou entendendo nada. Nada faz sentido. É lamentável ter que admitir, mas eu, Hercule Poirot, estou absolutamente confuso.

Isto foi o que poderia ser chamado de primeiro ato do drama. O segundo ato aconteceu uma semana depois. Começou com um telefonema de um tal de Dr. John Stillingfeet.

Ele falou com uma notável ausência de decoro médico:

— É você, Poirot, seu bestalhão? Quem fala aqui é Stillingfeet.

— Olá, meu amigo. O que houve?

— Estou falando de Northway House — da casa de Benedict Farley.

— Ah, é? — Poirot começou a falar mais depressa, interes­sado. — O que houve com... o Sr. Farley?

— Farley está morto. Matou-se hoje à tarde.

Houve uma pausa, depois Poirot disse:

— Sei...

— Pelo que percebo, não está muito surpreso. Sabe de alguma coisa, seu bestalhão?

— O que o leva a crer nisso?

— Bem, não se trata de nenhuma dedução brilhante, nem de telepatia, nem de nada no gênero. Encontramos uma nota de Farley dirigida a você, marcando um encontro há cerca de uma semana atrás.

— Entendo.

— Tem um inspetor da polícia, mansinho, por aqui — é preciso ter cuidado, você sabe, quando esses ricaços resolvem bater as botas. Pensei que você pudesse dar alguma luz ao caso. Se puder, seria bom dar uma chegada até aqui.

— Irei imediatamente.

— Ótimo, meu velho. Algum despacho de encruzilhada, hein?

Poirot limitou-se a repetir que iria imediatamente.

— Não quer abrir o jogo pelo telefone? Está bem. Até logo.

Quinze minutos depois, Poirot estava sentado na biblioteca, uma sala baixa e comprida, nos fundos de Northway House, no andar térreo. Havia mais cinco pessoas no aposento. O Inspetor Barnett, o Dr. Stillingfeet, a Sra. Farley, viúva do milionário, Joanna Farley, sua única filha, e Hugo Cornworthy, seu secretário particular.

Destes, o Inspetor Barnett era um homem discreto, com aparência soldadesca. O Dr. Stillingfeet, cujas maneiras profissionais eram inteiramente diferentes de seu estilo telefônico, era um jovem de trinta anos, alto e de rosto alongado. A Sra. Farley era, obviamente, muito mais moça do que o marido. Era uma mulher bonita, de cabelos escuros. Tinha os lábios contraídos, e seus olhos pretos não deixavam transparecer a menor emoção. Parecia estar sob total autocontrole. Joanna Farley tinha cabelos claros e rosto sardento. O queixo e o nariz proeminentes tinham sido visivelmente herdados do pai. Seu olhar era inteligente e esperto. Hugo Cornworthy era um homem vistoso, impecavelmente vestido. Parecia ser inteligente e eficaz.

Depois dos cumprimentos e apresentações, Poirot narrou, sim­ples e claramente, as circunstâncias de sua visita e a história que Benedict Farley lhe contara. Não pôde se queixar de falta de in­teresse.

— É a história mais extraordinária que já ouvi! — disse o Inspetor. — Um sonho, hein? A senhora sabia de alguma coisa a esse respeito, Sra. Farley?

Ela inclinou a cabeça.

— Meu marido havia mencionado qualquer coisa. Ele andava muito perturbado. Eu... eu disse a ele que era indigestão... a dieta dele, o senhor sabe, era muito peculiar... e sugeri que ele procuras­se o Dr. Stillingfeet.

O jovem abanou a cabeça.

— Não me consultou. Segundo a história de M. Poirot, imagino que tenha ido à Rua Harley.

— Gostaria de ouvir sua opinião sobre este assunto, Doutor — disse Poirot. — O Sr. Farley me disse que consultara três especialis­tas. O que acha das teorias que eles apresentaram?

Stillingfeet franziu a testa.

— É difícil dizer. É preciso levar em consideração que o que ele lhe disse não foi exatamente o que ouviu. Foi a interpretação de um leigo.

— Você quer dizer que ele usou o jargão errado?

— Não é bem isso. Quero dizer que os fatos lhe foram expostos em termos profissionais, ele entendeu o significado com ligeira distorção e depois transmitiu-os em sua própria linguagem.

— De forma que o que ele me disse não foi exatamente o que os médicos disseram.

— Em resumo é isto. Ele compreendeu tudo ligeiramente errado, se é que me entende.

Poirot assentiu com a cabeça, pensativo.

— Alguém sabe quais foram os médicos consultados? — perguntou ele.

A Sra. Farley abanou a cabeça e Joanna Farley observou:

— Nenhum de nós tinha a menor idéia de que ele houvesse consultado alguém.

— Ele falou com você a respeito do sonho? — perguntou Poirot.

A moça abanou a cabeça.

— E com o senhor, Sr. Cornworthy?

— Não, ele não me disse absolutamente nada. Escrevi-lhe a carta que ele ditou, mas não fazia idéia do porquê desejava consultá-lo. Pensei que poderia ter alguma coisa a ver com irregularidades nos negócios.

Poirot perguntou:

— E quanto aos fatos concretos sobre a morte do Sr. Farley?

O Inspetor Barnett olhou interrogativamente para a Sra. Farley e para o Dr. Stillingfeet, e tomou para si o papel de relator.

— O Sr. Farley tinha o hábito de trabalhar em sua própria sala, no primeiro andar, todas as tardes. Pelo que entendi havia um grande negócio em perspectiva...

Ele olhou para Hugo Cornworthy, que disse:

— Companhias de Ônibus Consolidadas.

— Com relação a isso — prosseguiu o Inspetor Barnett — o Sr. Farley concordou em dar uma entrevista a dois jornalistas. Muito raramente ele fazia coisas desse tipo — apenas uma vez em cada cinco anos, se não me engano. Os dois repórteres, então, um do Associated Newsgroups, e outro do Amalgamated Press-sheets, chegaram às três e quinze, conforme o combinado. Esperaram no primeiro andar, do lado de fora da sala do Sr. Farley — onde costu­mavam esperar as pessoas que tinham encontro marcado com ele. As três e vinte chegou um mensageiro das Companhias de Ônibus Consolidadas, com uns documentos urgentes. Entrou no quarto do Sr. Farley e entregou-lhe os documentos. O Sr. Farley acompanhou-o até a porta e, de lá, disse aos dois jornalistas: “Lamento fazê-los esperar, cavalheiros, mas tenho que resolver uns negócios urgentes. Serei o mais breve possível”. Os dois cavalheiros, o Sr. Adams e o Sr. Stoddart, garantiram que esperariam o momento mais conveniente. Ele voltou ao quarto, fechou a porta — e não foi mais visto com vida!

— Continue — disse Poirot.

— Pouco depois das quatro horas — prosseguiu o inspetor, — o Sr. Cornworthy saiu de seu próprio aposento, que fica ao lado do do Sr. Farley, e surpreendeu-se ao ver os dois repórteres ainda es­perando. Queria que o Sr. Farley assinasse umas cartas e achou que seria conveniente lembrar-lhe que os dois cavalheiros ainda estavam esperando. Então entrou na sala do Sr. Farley. Para sua surpresa, a princípio não o viu e pensou que o quarto estivesse vazio. Depois avistou, uma bota atrás da escrivaninha, que fica diante da janela. Dirigiu-se rapidamente para lá e descobriu o Sr. Farley morto, com um revólver ao seu lado. O Sr. Cornworthy saiu apressadamente do seu quarto e mandou o mordomo telefonar para o Dr. Stillingfeet. Seguindo o conselho do médico, o Sr. Cornworthy também informou a polícia.

— Alguém ouviu o tiro? — perguntou Poirot.

— Não. Há muito barulho de tráfego por aqui, e a janela da rua estava aberta. Com tantos caminhões e buzinas, é pouco pro­vável que se ouvisse alguma coisa.

Poirot balançou a cabeça, pensativo:

— A que horas, aproximadamente, ele morreu? — perguntou.

— Examinei o corpo assim que cheguei aqui — respondeu o Dr. Stillingfeet — ou seja, às quatro e trinta e dois. O Sr. Farley já estava morto há, pelo menos, uma hora.

A expressão de Poirot era bastante grave.

— De forma que é possível que a morte tenha ocorrido na hora que ele mencionou — ou seja, às três horas e vinte e oito minutos.

— Exatamente — respondeu Stillingfeet.

— Alguma impressão digital no revólver?

— Sim, as dele.

— E o revólver em si?

O inspetor retomou a narração.

— Era o que ele guardava na penúltima gaveta, à direita, de sua escrivaninha, conforme ele lhe disse. A Sra. Farley identificou-o definitivamente. Além do mais, o senhor entende, há apenas uma entrada para a sala, a porta que dá para o patamar. Os dois repór­teres estavam sentados bem em frente à porta, e juram que ninguém entrou lá entre o momento que o Sr. Farley falou com ele e o que o Sr. Cornworthy entrou na sala, pouco depois das quatro.

— De forma que tudo leva a crer que o Sr. Farley tenha se suicidado.

O Inspetor Bernett sorriu ligeiramente.

— Não haveria a menor dúvida, a não ser por um aspecto.

— E qual é?

— A carta que lhe escreveu.

Poirot sorriu também.

— Entendo! Onde Hercule Poirot se encontra — imediata­mente surge a suspeita de crime.

— Precisamente — disse o inspetor, com secura. — Entretan­to, depois que o senhor esclareceu a situação...

Poirot interrompeu-o.

— Um minutinho... — Voltou-se para a Sra. Farley. — Seu marido já fora hipnotizado?

— Nunca.

— Costumava ler alguma coisa sobre hipnotismo? Interessava-se pelo assunto?

Ela abanou a cabeça.

— Creio que não. — Subitamente perdeu o autocontrole. — Aquele sonho horrível! Que coisa sinistra! Ele teve aquele sonho... Noite após noite... e depois... é como se estivesse sendo... acuado até a morte!

Poirot lembrou-se das palavras de Benedict Farley: “Faço o que realmente desejo fazer. Dou um fim a mim mesmo.”

Ele falou:

— Alguma vez lhe ocorreu que seu marido pudesse ser tentado a dar cabo da própria vida?

— Não... pelo menos... às vezes ele era esquisito...

A voz de Joanna Farley fez-se ouvir clara e sarcasticamente:

— Papai nunca teria se matado. Cuidava bem demais de si mesmo.

O Dr. Stillingfeet falou:

— Não são as pessoas que ameaçam se suicidar as que geralmente o fazem, sabe, Srta. Farley? É por isso que, às vezes, certos suicídios parecem inexplicáveis.

Poirot pôs-se de pé.

— Permitem-me — perguntou ele — que eu veja o aposento onde ocorreu a tragédia?

— Certamente. Dr. Stillingfeet...

O médico acompanhou Poirot ao primeiro andar.

A sala de Benedict Farley era bem maior do que a do secretário, que ficava ao lado. Era luxuosamente mobiliada, com confortáveis poltronas cobertas de couro, um tapete bastante felpudo, e uma escrivaninha de tamanho colossal.

Poirot passou por trás dela, onde havia uma mancha escura no tapete, junto à janela. Lembrou-se das palavras do milionário: “Às três horas e vinte e oito minutos, abro a penúltima gaveta, à direita, de minha escrivaninha, pego o revólver que tenho lá guar­dado, carrego-o e caminho para a janela. E depois... depois dou um tiro em mim mesmo.”

Balançou a cabeça, vagarosamente. Depois disse:

— A janela estava aberta assim?

— Estava. Mas ninguém pode ter entrado por aqui.

Poirot pôs a cabeça para fora. Não havia parapeito, peitoril, ou encanamento. Nem mesmo um gato poderia ter acesso por ali. Do lado oposto havia a parede nua da fábrica, uma parede vazia, sem janelas.

Stillingfeet falou:

— Um lugar engraçado para um sujeito rico fazer dele seu escritório, com esta vista. É como se se estivesse olhando para o muro de uma prisão.

— E — disse Poirot. Pôs a cabeça para dentro e olhou fixa­mente para aquela vastidão de tijolo sólido. — Eu acho — prosse­guiu ele — que esta parede é importante.

Stillingfeet olhou-o com curiosidade.

— Você quer dizer... psicologicamente?

Poirot encaminhara-se para a escrivaninha. Negligentemente, pelo menos assim parecia, pegou uma tenaz pantográfica. Pressio­nou o cabo; a tenaz esticou por completo. Delicadamente, Poirot le­vantou com ela um fósforo queimado, ao lado de uma cadeira a um metro de distância, e depositou-o com cuidado na cesta de papéis.

— Quando você acabar de brincar com esse negócio... — falou Stillingfeet, irritado.

Hercule Poirot murmurou:

— Uma invenção engenhosa. — E colocou a tenaz em cima da mesa. Depois perguntou: — Onde estavam a Sra. e a Srta. Farley na hora do... da morte?

— A Sra. Farley estava descansando em seu quarto, no andar de cima. A Srta. Farley estava pintando em seu estúdio, no topo da casa.

Hercule Poirot tamborilou, negligentemente, com os dedos na mesa durante um ou dois minutos. Depois falou:

— Gostaria de ver a Srta. Farley. Você poderia pedir a ela para vir aqui um instantinho?

— Pois não.

Stillingfeet olhou-o com curiosidade e saiu. Logo depois a porta se abriu e Joanna Farley entrou.

— Será que me permite, Mademoiselle, que lhe faça algumas perguntas?

Ela olhou-o com frieza.

— Por favor, pergunte o que quiser.

— A senhorita sabia que seu pai guardava um revólver na escrivaninha?

— Não.

— Onde se encontravam a senhorita e sua mãe — ou melhor, madrasta, não é mesmo?

— É, Louise é a segunda esposa de meu pai. É apenas oito anos mais velha que eu. O que o senhor estava dizendo?

— Onde estavam vocês na quinta-feira da semana passada? Quinta à noite, melhor dizendo.

Ela pensou durante um ou dois minutos.

— Quinta-feira? Deixe-me ver. Ah, já sei, tínhamos ido ao tea­tro. Fomos ver O Cachorrinho Riu.

— Seu pai não quis acompanhá-las?

— Ele nunca ia ao teatro.

— O que ele costumava fazer à noite?

— Sentava-se aqui e lia.

— Não era um homem muito social?

A moça olhou-o diretamente.

— Meu pai — disse ela — tinha uma personalidade particularmente desagradável. Ninguém que convivesse de perto com ele podia gostar dele.

— Esta, Mademoiselle, é uma afirmação muito franca.

— Estou economizando seu tempo, M. Poirot. Percebo muito bem aonde o senhor quer chegar. Minha madrasta casou-se com meu pai por dinheiro. Eu moro aqui porque não tenho dinheiro para morar em outro lugar. Há um rapaz com quem desejo me casar — um rapaz pobre; meu pai fez com que ele perdesse o emprego. Ele queria que eu fizesse um bom casamento, entende? É muito sim­ples, uma vez que sou sua herdeira!

— A fortuna de seu pai passou para a senhorita?

— Passou. Quer dizer, ele deixou para Louise, minha ma­drasta, duzentos e cinqüenta mil, livres de impostos, além de al­gumas doações, mas o resto da herança é meu. — Ela sorriu subita­mente. — De forma que, como o senhor percebe, eu tinha todos os motivos para desejar a morte de meu pai!

— Percebo, Mademoiselle, que herdou a inteligência de seu pai.

Ela falou, pensativa:

— Papai era inteligente... Sentia-se que ele — tinha força — poder de comando — mas tudo se tornara árido — amargo — não havia um pingo de humanidade...

Hercule Poirot falou baixinho:

— Grand Dieu, mas que imbecil eu sou...

Joanna Farley dirigiu-se para a porta.

— Mais alguma pergunta?

— Duas perguntinhas. Esta tenaz aqui — ele pegou a tenaz pantográfica — ficava sempre em cima da mesa?

— Ficava. Papai usava-a para pegar as coisas. Não gostava de se abaixar.

— Mais uma pergunta. A vista de seu pai era boa?

Ela encarou-o.

— Oh, não — ele não via nada — quer dizer, não enxergava sem óculos. Tinha a vista ruim desde menino.

— E com os óculos?

— Ah, aí ele enxergava bem, é claro.

— Ele conseguia ler jornais e letras miúdas?

— Ah, sim.

— É só, Mademoiselle.

Ela saiu do aposento.

Poirot murmurou:

— Que estupidez a minha. Estava aqui o tempo todo, bem diante do meu nariz. E, justamente por estar tão perto, não conse­gui ver.

Inclinou-se pela janela mais uma vez. Lá embaixo, na passagem estreita entre a casa e a fábrica, avistou um pequeno objeto escuro.

Hercule Poirot balançou a cabeça, satisfeito, e desceu a escada novamente.

Os outros ainda estavam na biblioteca. Poirot dirigiu-se ao secretário:

— Gostaria, Sr. Cornworthy, que me contasse em detalhes as circunstâncias exatas do chamado que o Sr. Farley dirigiu a mim. Quando, por exemplo, o Sr. Farley ditou a carta?

— Na tarde de quarta-feira — às cinco e trinta, se não me falha a memória.

— Havia alguma recomendação especial para enviá-la?

— Ele mandou que eu mesmo a pusesse no correio.

— E o senhor o fez?

— Fiz.

— Ele fez alguma recomendação especial ao mordomo para quando eu chegasse?

— Fez. Pediu que eu dissesse a Holmes (Holmes é o mordomo) que chegaria um cavalheiro às nove e meia. Holmes deveria per­guntar-lhe o nome. Deveria, também, pedir para ver a carta.

— Precauções um tanto peculiares, não acha?

Cornworthy deu de ombros.

— O Sr. Farley — disse ele, cuidadosamente — era um homem um tanto peculiar.

— Alguma outra recomendação?

— Sim. Ele me disse que eu poderia sair à noite.

— O senhor saiu?

— Saí, logo depois do jantar fui ao cinema.

— A que horas voltou?

— Entrei em casa às onze e quinze.

— O senhor ainda viu o Sr. Farley aquela noite?

— Não.

— E ele não tocou no assunto na manhã seguinte?

— Não.

Poirot fez uma breve pausa, depois prosseguiu:

— Quando eu cheguei, não fui levado à sala do Sr. Farley.

— Não. Ele me pediu para dizer a Holmes para levá-lo à minha sala.

— Por que razão? O senhor sabe?

Cornworthy abanou a cabeça.

— Jamais questionei nenhuma das ordens do Sr. Farley — disse ele, secamente. — Se o fizesse, ele se ressentiria.

— Ele costumava receber os visitantes na própria sala?

— Geralmente, mas nem sempre. Às vezes recebia-os em minha sala.

— Alguma razão para isso?

Hugo Cornworthy refletiu.

— Não — não creio — na verdade nunca pensei nisso.

Dirigindo-se à Sra. Farley, Poirot perguntou:

— A senhora me permite que chame o seu mordomo?

— Naturalmente, M. Poirot.

Muito correto, muito cortês, Holmes atendeu ao chamado.

— A senhora me chamou, madame?

A Sra. Farley indicou com um gesto. Holmes, voltou-se, educadamente.

— Pois não, sir?

— Quais eram as recomendações, Holmes, na noite de quinta-feira, quando estive aqui?

Holmes pigarreou e respondeu:

— Depois do jantar o Sr. Cornworthy me disse que o Sr. Farley aguardava um certo Sr. Hercule Poirot, às nove e meia. Eu deveria verificar o nome do cavalheiro, confirmando a informação ao dar uma olhada na carta. Depois deveria levá-lo à sala do Sr. Cornwor­thy.

— Também lhe pediu para bater à porta?

Uma expressão de desagrado passou pelo rosto do mordomo.

— Era uma das ordens do Sr. Farley. Eu deveria bater sempre à porta quando trouxesse visitante — visitantes a negócio, melhor dizendo — acrescentou ele.

— Ah, isto me intrigou! Você recebeu mais alguma reco­mendação a meu respeito?

— Não, sir. Quando o Sr. Cornworthy disse o que acabei de repetir para o senhor, ele saiu.

— Que horas eram?

— Dez para as nove, sir.

— Você viu o Sr. Farley depois disso?

— Vi, sir, levei-lhe um copo de água quente, como de costume, às nove horas.

— Ele estava na sala dele ou na do Sr. Cornworthy?

— Na sala dele, sir.

— Percebeu alguma coisa estranha na sala?

— Estranha? Não, sir.

— Onde estavam a Sra. e a Srta. Farley?

— Tinham ido ao teatro, sir.

— Obrigado, Holmes, está ótimo.

Holmes curvou-se e saiu da biblioteca. Poirot voltou-se para a viúva do milionário.

— Mais uma pergunta, Sra. Farley. Seu marido tinha boa visão?

— Não. Não sem óculos.

— Ele era muito míope?

— Ah, era sim, era praticamente inválido sem os óculos.

— Ele tinha muitos óculos?

— Tinha.

— Ah, — disse Poirot. Recostou-se. — Acho que, com isto, o caso está encerrado...

Houve um silêncio na sala. Todos olhavam o homenzinho que estava ali sentado, complacentemente acariciando o bigode. No rosto do inspetor havia perplexidade, o Dr. Stillingfeet tinha a testa franzida, Cornworthy simplesmente olhava sem compreender. A Sra. Farley tinha o olhar perdido, completamente atônita, Joanna Farley parecia ansiosa.

A Sra. Farley quebrou o silêncio.

— Não compreendo, M. Poirot. — A voz dela era irritada. — O sonho...

— Sim — disse Poirot. — Aquele sonho era muito importante.

— Eu nunca acreditei em nada sobrenatural... mas agora... sonhar antecipadamente, noite após noite...

— É extraordinário — disse Stillingfeet. — Extraordinário! Se não tivéssemos sua palavra, Poirot, e se você não tivesse ouvido diretamente da boca daquela besta... — ele tossiu embaraçado, e prosseguiu, retomando sua atitude profissional. — Perdão, Sra. Farley. Se o Sr. Farley em pessoa não tivesse contado aquela his­tória...

— Exatamente — disse Poirot. Seus olhos, que estavam entreabertas, arregalaram-se subitamente. Estavam muito verdes. — Se Benedict Farley não tivesse me contado...

Fez uma breve pausa, percorrendo com os olhos o círculo de rostos inexpressivos.

— Existem certas coisas, vejam os senhores, que aconteceram aquela noite e que me deixaram confuso, pois não conseguia explicá-las. Em primeiro lugar, por que fazer tanta questão para que eu trouxesse aquela carta comigo?

— Identificação — sugeriu Cornworthy.

— Não, não, meu caro rapaz. Na verdade esta idéia é ridícula demais. Deve haver uma razão mais forte. Porque o Sr. Farley não só pediu para que eu a trouxesse, como também exigiu definitiva­mente que eu a deixasse aqui. E, além do mais, ela nem mesmo foi destruída! Foi encontrada entre seus papéis, hoje à tarde. Por que guardou-a?

Ouviu-se a voz de Joanna Farley:

— Ele queria, caso lhe acontecesse algo, que os fatos de seu estranho sonho se tornassem conhecidos.

Poirot balançou a cabeça em assentimento.

— A senhorita é astuta, Mademoiselle. Deve ter sido esta — só pode ter sido — a razão pela qual a carta foi guardada. Quando o Sr. Farley morresse, a história daquele estranho sonho deveria ser contada! O sonho era muito importante. Aquele sonho, Mademoi­selle, era vital! Abordarei agora — prosseguiu ele — o segundo ponto. Depois de ouvir a história, pedi ao Sr. Farley para mostrar-me a escrivaninha e o revólver. Ele parecia estar prestes a se levan­tar, e subitamente se recusou. Por que recusou?

Desta vez não houve resposta.

— Farei a pergunta de outra maneira. O que havia na sala ao lado que o Sr. Farley não queria que eu visse?

Silêncio ainda.

— Sim, — disse Poirot — essa é difícil. Ainda assim havia al­guma razão premente que fez com que o Sr. Farley me recebesse na sala de seu secretário e se recusasse categoricamente a levar-me à sua própria sala. Havia alguma coisa naquela sala que eu não podia ver em hipótese alguma. E agora chegamos à terceira coisa inexplicável que aconteceu aquela noite. O Sr. Farley, quando eu estava de saída, pediu-me que lhe entregasse a carta que recebera. Por engano, entreguei-lhe um comunicado de minha lavadeira. Ele olhou-o e colocou-o na mesa a seu lado. Pouco antes de sair da sala, descobri meu erro — e retifiquei-o! Depois disso deixei a casa e — confesso — sentia-me totalmente perdido! A história toda, e es­pecialmente o último incidente, parecia-me deveras inexplicável.

Ele olhou um por um.

— Os senhores não percebem?

Stillingfeet falou:

— Não consigo entender onde sua lavadeira entra nisso, Poirot.

— Minha lavadeira — explicou Poirot — foi muito importante. Aquela maldita mulher que arruína meus colarinhos foi, pela pri­meira vez em toda a sua vida, de alguma utilidade para alguém. Certamente os senhores percebem — é tão óbvio. O Sr. Farley deu uma olhada na comunicação — uma única olhadela ter-lhe-ia mostrado que aquela era a carta errada — e no entanto ele não notou. Por quê? Porque não pôde vê-la direito!

O Inspetor Barnett falou bruscamente:

— Ele estava sem óculos?

Hercule Poirot sorriu.

— Não — disse ele. — Estava de óculos. É isto que torna a coisa tão interessante.

Inclinou-se para frente.

— O sonho do Sr. Farley era muito importante. Ele sonhava, vejam os senhores, que se suicidava. E, pouco depois, realmente suicidou-se. Ou melhor, estava sozinho numa sala, onde foi encontrado com um revólver ao seu lado, e ninguém entrou ou saiu da sala no momento em que ele se matou. O que significa isto? Significa, não é mesmo, que só pode ter sido suicídio!

— É — disse Stillingfeet.

Hercule Poirot abanou a cabeça.

— Pelo contrário — falou. — Foi crime. Um crime invulgar e planejado com muita inteligência.

Novamente inclinou-se para frente, tamborilando na mesa, os olhos verdes e brilhantes.

— Por que o Sr. Farley não permitiu que eu entrasse em sua sala, aquela noite? O que havia lá dentro que eu estava proibido de ver? Eu acho, meus amigos, que lá se encontrava... Benedict Farley em pessoa!

Ele sorriu para os rostos perplexos.

— Sim, sim, não estou dizendo nenhum absurdo. Por que o Sr. Farley com quem eu estava falando não pôde perceber a diferença entre duas cartas totalmente distintas? Porque, mes amis, era um homem com vista normal usando óculos com lentes fortíssimas. Aqueles óculos tornariam uma pessoa de vista normal praticamente cega. Não é mesmo, doutor?

— É isso mesmo... é claro — murmurou Stillingfeet.

— Por que, ao conversar com o Sr. Farley, tive a impressão de estar conversando com um charlatão, com um ator representando um papel? Considerem o ambiente. A sala meio escura, a lâmpada esverdeada impedindo que se enxergasse direito a figura na cadeira. O que eu vi: o famoso roupão de retalhos, o nariz pontudo (falsifica­do com a massa própria para isso), a crista de cabelos brancos, as lentes poderosas escondendo os olhos. Que provas temos de que o Sr. Farley realmente sonhou aquilo? Apenas a história que me contou e a palavra da Sra. Farley. Que provas temos que o Sr. Farley guardava um revólver na escrivaninha? Novamente apenas a histó­ria que me contou e a palavra da Sra. Farley. Duas pessoas pla­nejaram esta fraude — a Sra. Farley e Hugo Cornworthy. Cornwor­thy escreveu-me a carta, deu instruções ao mordomo, saiu ostensi­vamente para o cinema, mas entrou de novo, imediatamente, com uma chave, subiu para sua sala, fantasiou-se e representou o papel de Benedict Farley. E agora chegamos à tarde de hoje. Eis que surge a oportunidade que o Sr. Cornworthy aguardava. Existem duas tes­temunhas no patamar para jurar que ninguém entra ou sai da sala do Sr. Farley. Cornworthy espera por um momento em que o tráfego se torne mais intenso. Depois inclina-se para fora de sua janela e, com a tenaz pantográfica que furtara da mesa na sala ao lado, segura um objeto diante da janela daquela sala. Benedict Farley chega à janela. Cornworthy recolhe a tenaz rapidamente e, quando Farley olha para fora, com os caminhões passando na rua, Cornworthy atira nele com o revólver que já estava preparado. Lembrem-se que, em frente, existe apenas uma parede nua. Ninguém poderá testemunhar o crime. Cornworthy deixa passar mais de meia hora, depois reúne alguns papéis, esconde a tenaz e o revólver no meio deles, passa pelo patamar e entra na sala ao lado. Recoloca a tenaz na escrivaninha, deixa ali o revólver, depois de marcá-lo com os de­dos do morto, e sai apressadamente com a notícia do “suicídio” do Sr. Farley. Dá um jeito para que a carta que me mandou seja en­contrada, para que eu chegue com a minha história — a história que ouvi dos lábios do próprio Sr. Farley — de seu “sonho” extraordiná­rio — a estranha compulsão que sentia para se matar! Alguns cré­dulos discutirão a teoria da hipnose — mas o resultado final con­firmará, sem dúvida, que a mão que segurou o revólver era a do próprio. Sr. Farley.

Os olhos de Poirot dirigiram-se ao rosto da viúva — ele notou com satisfação o desânimo — a palidez mortal — o pavor cego...

— No fim de tudo — concluiu ele, gentilmente, — o final feliz seria alcançado. Duzentos e cinqüenta mil e dois corações que batem num só compasso...

John Stillingfeet, médico, e Hercule Poirot caminhavam no lado de Northway House. Á direita havia o paredão da fábrica. Acima deles, à esquerda, havia as janelas de Benedict Farley e de Hugo Cornworthy. Hercule Poirot parou e pegou um pequeno objeto — um gato preto empalhado.

— Voilà — disse ele. — Foi isto o que Cornworthy segurou com a tenaz diante da janela de Farley. Você está lembrado que ele odiava gatos? Naturalmente correu para a janela.

— Por que, diabos, Cornworthy não veio aqui pegá-lo depois?

— Como? Se fizesse isso, seria definitivamente suspeito. Afinal de contas, se este objeto fosse encontrado aqui, o que se po­deria pensar? Que alguma criança andou por estas bandas e deixou-o cair.

— É — disse Stillingfeet com um suspiro. — Isto, provavel­mente, era o que pensaria uma pessoa qualquer. Mas não o velho Hercule! Sabe de uma coisa, velhinho? Até o último minuto, pensei que você estivesse querendo chegar a alguma teoria sutil de crime “sugestionado”, pretensiosa e psicológica. Aposto que aqueles dois pensaram a mesma coisa! Uma boa bisca, a Farley. Caramba, como ela se destemperou. Cornworthy poderia ter se livrado dessa, se ela não tivesse ficado histérica e nem tentado estragar sua beleza, avançando para cima de você com as unhas. Consegui segurá-la bem na hora. — Ele fez uma pausa, e depois disse: — Gostei da garota. Corajosa, sabe, e tem cabeça. Será que eu passaria por caçador de fortunas se fizesse uma investida para cima dela...?

— Tarde demais, meu amigo. Já existe alguém sur le tapis. A morte do pai abriu-lhe as portas da felicidade.

— Mudando de assunto, ela tinha uma boa razão para dar cabo daquele pai desagradável.

— Razão e oportunidade não são o bastante — replicou Poirot. — É preciso que se tenha o temperamento assassino.

— Fico imaginando se você seria capaz de cometer um crime, Poirot — disse Stillingfeet. — Aposto que você se sairia bem. Na verdade, seria fácil demais para você — quer dizer, nem valeria a pena, por não ter a menor chance de dar errado.

— Esta — disse Poirot — é uma idéia tipicamente inglesa.

 

         A EXTRAVAGÂNCIA DE GREENSHAW

Os dois homens contornaram a sebe.

— Bem, chegamos — Raymond West disse. — É isto aí!

Horace Bindler inspirou profunda e apreciadoramente.

— Mas que maravilha, meu caro — ele exclamou. Sua voz ele­vou-se num grito estridente de prazer estético, depois baixou de tonalidade para expressar uma estupefação respeitosa.

— É inacreditável! Não existe! Uma das melhores peças da época.

— Achei que você gostaria — Raymond retrucou complacen­temente.

— Gostar? Meu caro — Horace não conseguiu exprimir-se. Desafivelou a correia de sua câmera e dela se ocupou. — Esta será uma das preciosidades da minha coleção — falou alegremente. — Você não acha que é bastante divertido ter uma coleção de mons­truosidades? Tive esta idéia há sete anos atrás quando estava tomando banho. Encontrei minha última peça rara verdadeira no Campo Santo em Gênova, mas acredito sinceramente que esta lhe seja superior. Como se chama?

— Não tenho a mínima idéia — Raymond respondeu.

— Será que tem um nome?

— Deve ter. A verdade é que, por estas bandas, só nos referi­mos a ela como a Extravagância de Greenshaw.

— É o nome do homem que a construiu?

— É! Em 1860 ou 70, por aí. Na época só se falava nisso por aqui. Jovem paupérrimo que Obtivera enorme prosperidade. A opinião das pessoas da cidade divide-se quanto ao motivo que o levou a construir esta casa. Tanto pode ter sido simplesmente por possuir dinheiro em demasia, ou com o intuito de impressionar seus credores. Neste último caso, não surtiu efeito. Foi à falência ou andou por pouco. Daí o nome de a Extravagância de Greenshaw. A câmera de Horace deu um estalido.

— Pronto — disse com satisfação. — Lembre-me de mostrar-lhe o número 310 da minha coleção. Uma incrível moldura de lareira feita de mármore, no estilo italiano. E, olhando para a casa, conti­nuou: — Não posso imaginar como o Sr. Greenshaw idealizou tudo isto.

— De certa maneira, é bastante óbvio — disse Raymond. — Depois, por azar, parece ter viajado pelo Oriente. A influência do Taj-Mahal é nítida. Gosto bastante da ala em estilo mourisco e dos vestígios de palácio veneziano.

— É de se admirar que ele tenha conseguido um arquiteto para executar estas idéias.

Raymond deu de ombros.

— Penso que não houve dificuldade quanto a isto — ele disse.

— Provavelmente o arquiteto se aposentou com uma boa renda enquanto o pobre Greenshaw faliu.

— Poderíamos dar uma olhadela do outro lado? — perguntou Horace — ou é proibido?

— Lógico que é proibido — disse Raymond — mas não acre­dito que isto tenha qualquer importância.

Virou-se em direção à esquina da casa e Horace saltitou atrás dele.

— Mas quem mora aqui? Órfãos ou turistas? Não pode ser uma escola, pois não há local para recreação — nem tampouco sinais daquela eficiência enérgica.

— Oh, um dos Greenshaw ainda mora aqui — disse Raymond por sobre os ombros. — A casa propriamente dita não se perdeu com a falência. O filho do velho Greenshaw a herdou. Ele era um tanto quanto pão-duro e morava aqui num cantinho da casa. Jamais gastou um centavo. Provavelmente nunca teve um níquel para gastar. Sua filha mora aqui agora. Uma velha dama — muito excên­trica.

À medida que falava, Raymond congratulava-se por ter se lembrado da Extravagância de Greenshaw, com o intuito de distrair seu hóspede. Estes críticos literários sempre declaravam ter muita vontade de passar um fim-de-semana no campo, e, comumente, achavam a vida Campestre extremamente monótona, quando dela desfrutavam. Amanhã haveria os jornais de domingo e, por hoje, Raymond West felicitava-se por ter sugerido uma visita à Extrava­gância de Greenshaw, o que enriqueceria a coleção de monstruo­sidades, bastante conhecida, de Horace Bindler.

Deram a volta na esquina da casa e depararam-se com um gramado abandonado. Em um canto deste havia um grande jardim pedregoso artificial e, inclinando-se sobre ele, uma figura cuja visão fez com que Horace excitadamente agarrasse o braço de Raymond.

— Meu caro! — exclamou. — Você está vendo o que ela está usando? Um vestido estampado, de ramos de flores. Exatamente como uma empregada doméstica — quando as havia. Uma das minhas mais gratas recordações de menino é a de ter passado uns tempos numa casa de campo onde uma empregada de verdade acordava-me, de manhãzinha, usando um vestido estampado, que fazia um barulhinho característico, e uma touca. Sim, meu jovem, uma touca de verdade. Musselina com fitas. Não, talvez fosse a copeira que usasse as fitas. Bem, de qualquer maneira, era uma empregada de verdade e entrava no quarto carregando uma enorme vasilha de latão cheia de água quente. Que dia extraordinário esta­mos tendo hoje!

A figura de vestido estampado endireitou-se e virou-se para eles, uma colher de pedreiro na mão. Era uma figura bastante surpreendente. Mechas despenteadas de um cinza-ferroso caíam-lhe por sobre os ombros e um chapéu de palha, muito parecido com os usados pelos cavalos na Itália, enterrado em sua cabeça. O vestido estampado que usava ia até quase os tornozelos. Olhos argutos, num rosto não muito limpo e de pele ressecada, examinaram os dois avaliadoramente.

— Peço-lhe desculpas pela invasão, Srta. Greenshaw — Raymond West disse, enquanto encaminhava-se em sua direção — mas o Sr. Bindler, que está passando uns dias comigo...

Horace fez uma mesura e tirou o chapéu.

— ... Tem grande interesse em — bem — história antiga e — bem — construções requintadas.

Raymond West expressou-se com a facilidade de um escritor famoso que sabe que é uma celebridade e que pode se atrever a fa­zer coisas que outras pessoas não se atreveriam.

A Srta. Greenshaw ergueu os olhos às suas costas para a exuberante casa espalhada pelo terreno.

— É realmente uma bela casa — disse com admiração. — Meu avô a construiu, antes de eu ter nascido, é claro. Dizem que o desejo dele era espantar os moradores daqui.

— Acredito piamente que ele os surpreendeu bastante, senho­ra — Horace Bindler comentou.

— O Sr. Bindler é o crítico literário de renome — disse Ray­mond West.

Evidentemente a Srta. Greenshaw não sentia o menor respeito pelos críticos literários, pois não teve nenhuma reação.

— Considero-a — disse a Srta. Greenshaw, referindo-se à casa — como um monumento à genialidade de meu avô. Uns bobalhões vêm aqui e me perguntam por que não a vendo e vou morar num apartamento. O que eu faria num apartamento? Aqui é o meu lar e é aqui que eu moro — disse a Srta. Greenshaw. — Éramos três. Laura casou-se com um cura. Papai negou-se a lhe dar di­nheiro alegando que os curas não eram mundanos. Ela morreu ao dar à luz. O bebê morreu também. Nettie fugiu com o professor de equitação. Papai, naturalmente, deserdou-a. Sujeito bonito, o Harry Fletcher, mas não prestava. Não pense que Nettie foi feliz com ele. De qualquer modo, ela viveu pouco. Tiveram um filho. De vez em quando ele me escreve, mas é lógico que ele não é um Greenshaw. Sou a última dos Greenshaws. — Endireitou os ombros com um certo orgulho e ajustou outra vez a posição de seu chapéu de palha. Depois, virando-se, disse rispidamente:

— Sim, Sra. Cresswell, o que deseja?

Perto deles, vinda da casa, via-se uma mulher que, se compa­rada à Srta. Greenshaw, era ridiculamente diferente. Sra. Cresswell tinha os cabelos azulados maravilhosamente penteados para cima formando cachos e rolos meticulosos. Era como se ela tivesse se penteado para ir a um baile de carnaval fantasiada de marquesa francesa. O resto desta mulher de meia idade vestia o que deveria ter sido um vestido de seda farfalhante, mas que na realidade era feito de raion preto dos mais brilhantes. Embora não fosse corpu­lenta, tinha seios grandes e espetaculares. Quando falava, sua voz era inesperadamente grave. Sua dicção era apurada — uma pequena hesitação na pronúncia de palavras começadas por “h”, e a enunciação destas dotadas de aspiração exagerada levava-nos a suspeitar que há muito tempo, quando ainda jovem, tivera tendência a não pronunciá-la.

— O peixe, madame — disse a Sra. Cresswell, — o bacalhau. Ainda não foi entregue. Pedi a Alfred para ir buscá-lo e ele se nega.

De repente Srta. Greenshaw deu uma gargalhada semelhante a um cacarejo.

— Ele se recusa, é?

— Alfred, madame, não tem sido muito prestativo.

A Srta. Greenshaw levou dois dedos sujos de terra à boca e, repentinamente, deu um assobio agudo. Em seguida berrou: — Alfred, venha aqui.

Em resposta a seu chamado um jovem contornou a esquina da casa, uma pá na mão. Seu rosto era bonito e atrevido e, enquanto se aproximava, sem sombra de dúvidas, lançava à Srta. Greenshaw olhares rancorosos.

— Chamou-me, madame? — ele disse.

— Sim, Alfred. Disseram-me que você se recusou a ir buscar o peixe. O que você me diz, hein?

Alfred respondeu rudemente.

— Irei se a senhora quer, madame. Ê só dizer.

— Realmente, eu quero. Preciso dele para o jantar.

— Tá bem. Já vou.

Deu uma rápida olhada insolente em direção à Sra. Cresswell, que corou e resmungou.

— Pensando bem — disse a Srta. Greenshaw, — estamos exatamente precisando de alguns desconhecidos, não é Sra. Cresswell?

A Sra. Cresswell não entendeu.

— Desculpe, madame...

— Para aquilo que você já sabe muito bem o que é — disse a Srta. Greenshaw, balançando a cabeça. — O beneficiário de um tes­tamento não pode testemunhá-lo. Não é? — perguntou a Raymond West.

— Cem por cento certo — disse Raymond.

— Conheço as leis suficientemente bem para saber isto — disse a Srta. Greenshaw; — e os senhores são homens de prestígio.

Jogou a pá de pedreiro dentro da cesta de jardinagem.

— Importar-se-iam de vir comigo até minha biblioteca?

— Com prazer — Horace respondeu prontamente.

Mostrou-lhes o caminho através de portas envidraçadas e de uma sala de estar dourada, cujas paredes estavam recobertas por um brocado desbotado, e cujos móveis estavam protegidos da poeira por capas. Depois atravessou um grande vestíbulo sombrio, subiu a escada e entrou num quarto no segundo andar.

— A biblioteca de meu avô — ela explicou.

Horace examinou a sala com grande prazer. De seu ponto de vista, era um aposento repleto de monstruosidades. Cabeças de esfinges podiam ser vistas nos mais esdrúxulos móveis, havia um bronze imenso representando, assim ele acreditava, Paulo e Virgí­nia, e um relógio de bronze enorme com motivos clássicos. Sentiu uma vontade tremenda de fotografá-los.

— Uma bela coleção de livros — disse a Srta. Greenshaw.

Raymond já os estava examinando. Uma rápida olhada convenceu-o de que não somente os livros eram de pouco valor, como também do fato de que jamais tinham sido lidos. Eram coleções de clássicos, lindamente encadernados, comumente vendidas há noventa anos atrás para compor bibliotecas de cavalheiros. Alguns romances de um período mais antigo tinham sido incluídos. Todavia demonstravam poucos sinais de terem sido lidos.

A Srta. Greenshaw estava mexendo nas gavetas de uma grande escrivaninha. Finalmente tirou de uma das gavetas um documento apergaminhado.

— Meu testamento — explicou. — Tenho que deixar meu dinheiro para alguém — foi o que me disseram. Se eu morrer sem fazer um, creio que aquele filho do vendedor de cavalos fica com tudo. Sujeito bonito, Harry Fletcher, mas um bom velhaco. Não vejo porque seu filho deveria herdar. Não — continuou como se esti­vesse respondendo a alguma inaudível objeção — já me decidi. Vou deixar tudo para Cresswell.

— Sua governanta?

— É. Já expliquei tudo para ela. Faço um testamento deixando tudo que tenho para ela e não preciso, então, lhe pagar ordenado algum. Com isso, economizo um bocado agora e a mantenho em rédea curta. Não pode se despedir e ir embora de um momento para o outro. Muito metida a besta e tudo o mais, não é? Seu pai, porém, era apenas um bombeiro hidráulico de segunda categoria. Não vejo por que ela se tem em tão alta conta.

Ao mesmo tempo em que falava, a Srta. Greenshaw desdobrava o documento. Pegou uma pena, molhou-a no tinteiro e assinou, Katherine Dorothy Greenshaw.

— Pronto — ela disse. — Os senhores viram-me assiná-lo, agora os dois o assinam e, com isto, o documento é legal.

Entregou a pena a Raymond West. Este hesitou um momento, sentindo uma inexplicável repulsa em relação ao que lhe era pedido. Então, rapidamente, escreveu seu tão conhecido autógrafo, que lhe havia sido solicitado por carta, naquela manhã, por nada menos que seis diferentes pessoas.

Entregou a caneta a Horace que acrescentou sua própria assinatura miúda.

— Acabou-se — disse a Srta. Greenshaw.

Moveu-se por entre as estantes de livros, parou, ficou a olhá-las de maneira insegura, e então abriu uma porta de vidro, apanhou um livro, enfiando o documento por entre as suas folhas.

— Tenho os meus próprios lugares para guardar as coisas — ela disse.

— O Segredo de Lady Audley — observou Raymond West, lendo o título do livro enquanto ela o repunha no lugar.

A Srta. Greenshaw deu outra de suas risadas cacarejantes.

— Foi um best-seller na época — ela comentou. — Bem di­ferente dos seus livros, não?

Deu uma repentina cotovelada amigável nas costelas de Raymond.

Este ficou bastante surpreso ao perceber que ela tinha conhecimento de que ele escrevesse livros. Embora o seu fosse um nome dos “bons” em literatura, ele dificilmente poderia ser considerado um autor de um best-seller. Apesar de ter suavizado sua maneira de escrever à medida que ficava mais velho, seus livros tratavam avidamente dos aspectos mais sórdidos da vida.

— Será — Horace perguntou esbaforidamente — que eu posso, pelo menos, tirar uma fotografia do relógio?

— Lógico — disse a Srta. Greenshaw. — Acredito que tenha vindo da Exposição de Paris.

— Com toda certeza — disse Horace. Bateu a chapa.

— Este quarto não tem sido muito usado desde que meu avô morreu — disse a Srta. Greenshaw. Esta escrivaninha está cheia de seus velhos diários. Creio que são interessantes. Meus olhos can­sados não me permitem lê-los. Gostaria de vê-los publicados, mas penso que isso daria muito trabalho.

— A senhorita poderia empregar alguém para se desincumbir de tal tarefa — disse Raymond West.

— Verdade? Acho que é uma boa idéia. Vou pensar nisto.

Raymond West espiou seu relógio.

— Não devemos abusar mais de sua bondade — disse ele.

— Foi um prazer — disse a Srta. Greenshaw graciosamente.

— Pensei que o senhor fosse um policial quando o pressenti virando a esquina da casa.

— Por que um policial? — quis saber Horace, que nunca tinha vergonha de fazer perguntas.

A Srta. Greenshaw reagiu estranhamente.

— Se você quiser saber as horas, pergunte a um policial — ela cantarolou, e com este exemplo de humor vitoriano ela cutucou Horace nas costelas e riu às gargalhadas.

— Foi uma tarde maravilhosa — suspirou Horace, quando voltaram para casa. — Não resta dúvida que aquela casa tem de tudo. A única coisa que está faltando naquela biblioteca é um corpo. Aquelas velhas histórias de detetive sobre um crime na biblioteca... exatamente o tipo de biblioteca que os escritores têm em mente, tenho certeza!

— Se você quiser falar sobre assassinato — disse Raymond — deve conversar com a tia Jane.

— Tia Jane? Você quer dizer Miss Marple? Horace sentiu-se um tanto perplexo.

Aquela velhinha encantadora, que tão bem representava uma época já passada e a quem tinha sido apresentado na noite anterior, seria a última pessoa do mundo a ser lembrada quando se pensava em assassinatos.

— Ela mesma — disse Raymond. — É uma de suas especialidades.

— Mas meu caro, que coisa esquisita! O que você quer dizer com isso?

— Exatamente isto — disse Raymond. — Vou explicar me­lhor. Alguns cometem assassinatos, outros nele se envolvem, en­quanto que outros os têm literalmente atirados em seus braços. Minha tia Jane pertence a este terceiro grupo.

— Você está brincando.

— Nem um pouquinho. Pode perguntar ao último Comissário da Scotland Yard, vários chefes de polícia, e um par de dedicados detetives do “Departamento de Investigação Criminal”.

Horace comentou com prazer que coisas surpreendentes es­tavam sempre acontecendo. À mesa, enquanto tomavam chá com Joan West, a esposa de Raymond, Louise Oxley, a sobrinha de Joan, e a idosa Miss Marple, os dois fizeram um relato dos últimos aconte­cimentos, contando, em detalhes, tudo o que a Srta. Greenshaw lhes dissera.

— Sinceramente acredito — disse Horace — que há alguma coisa um tanto ou quanto sinistra nesta história toda. Aquela cria­tura que nos lembra uma duquesa, a governanta — quem sabe uma pitada de arsênico no chá, agora que ela já sabe que sua patroa fez um testamento em seu favor?

— O que a senhora acha, Tia Jane? — disse Raymond. — Será que vai haver um assassinato ou não? O que a senhora acha?

— Penso — disse Miss Marple, enrolando um novelo de lã, com um ar bastante severo — que você não deveria brincar tanto quanto você brinca com estas coisas, Raymond. Realmente, arsênico é uma possibilidade bem viável. É tão fácil de se comprar. Prova­velmente neste momento deve haver um pouco no galpão de ferra­mentas e utensílios, em forma de fungicida.

— Ora, francamente, minha querida — disse Joan West, carinhosamente. — Isto não seria excessivamente óbvio?

— Fazer um testamento, isto eu compreendo — disse Ray­mond, — contudo não creio que a pobre mulher tenha algo a deixar a não ser aquela casa, um verdadeiro elefante branco! E quem é que iria querer comprar aquilo?

— Talvez uma companhia cinematográfica, um hotel ou uma instituição, — aparteou Horace.

— Comprá-la-iam por uma bagatela — disse Raymond; con­tudo Miss Marple discordou.

— Sabe, meu caro Raymond, não posso de modo algum con­cordar com esta sua opinião. Quero dizer, a respeito do dinheiro. O avô era, evidentemente, uma dessas pessoas que gastam dinheiro a rodo por terem facilidade em ganhá-lo, mas que não consegue eco­nomizar. Pode ter ficado em situação financeira precária, como você nos contou, mas dificilmente deve ter ido à falência. Caso isto tivesse acontecido, seu filho não teria herdado a casa. Bem, como sempre acontece, o filho tinha uma personalidade totalmente dife­rente da do pai. Era um unha de fome. Um homem que economizava cada centavo. Arrisco-me a dizer que durante a sua vida ele prova­velmente juntou uma boa quantia. Neste aspecto parece que a Srta. Greenshaw saiu a ele — isto é, ela não gosta de gastar dinheiro. É, acho muito possível que ela tenha escondido uma quantia bem substancial.

— Neste caso — disse Joan West, — eu me pergunto... que tal Lou?

Olharam para Lou, que estava silenciosamente sentada ao pé da lareira.

Lou era sobrinha de Joan. Como ela própria dizia, seu casa­mento tinha degringolado, deixando-a com dois filhinhos e dinheiro que mal dava para sustentá-los.

— Isto é — disse Joan, — se esta tal de Srta. Greenshaw realmente deseja alguém que examine os diários e prepare um livro para ser publicado...

— É uma idéia — disse Raymond.

Lou falou em voz baixa:

— É o tipo de trabalho que eu poderia fazer... e penso que teria prazer em fazê-lo.

— Vou escrever para ela — Raymond disse.

— Gostaria de saber — retrucou Miss Marple pensativamente — o que a velha senhora quis dizer ao se referir a um policial.

— Ora, foi somente uma piada.

— Lembra-me — disse Miss Marple, sacudindo a cabeça vigorosamente — sim, lembra-me muito o Sr. Naysmith.

— Quem foi o Sr. Naysmith? — perguntou Raymond, cheio de curiosidade.

— Dedicava-se à apicultura — disse Miss Marple — e era bamba em resolver os acrósticos dos jornais dominicais. Gostava de dar impressões erradas às pessoas. Só de farra. Mas algumas ve­zes esta sua atitude criou problemas.

Todos ficaram quietos por uns instantes, pensando no Sr. Naysmith, mas como não parecia haver qualquer semelhança entre ele e a Srta. Greenshaw, chegaram à conclusão de que a querida tia Jane talvez estivesse um pouco desligada por causa de sua idade.

 

Horace Bindler voltou para Londres sem acrescentar nada à sua coleção, e Raymond West escreveu para a Srta. Greenshaw comunicando-lhe que conhecia uma Sra. Louise Oxley que teria competência para escrever o livro baseado nos diários de seu avô. Dias após, chega uma carta manuscrita com caligrafia antiga e traços tão finos que pareciam ter sido feitos por uma aranha. A Srta. Greenshaw declarava-se ansiosa em assegurar os serviços da Sra. Oxley e marcava uma data para que esta fosse vê-la.

Lou compareceu pontualmente e chegaram ambas a um acordo bastante generoso. Louise começou a trabalhar no dia seguinte.

— Estou muitíssimo grata — disse ela a Raymond. — Vai dar tudo maravilhosamente certo. Levo as crianças para a escola, vou para a Extravagância de Greenshaw e, ao voltar para casa, apanho as crianças. Tudo aquilo é extraordinário. É preciso ver aquela mu­lher para se acreditar que ela realmente existe.

Quando seu primeiro dia de trabalho terminou, Lou foi à casa de Raymond para lhe contar tudo o que acontecera.

— Praticamente não vi a governanta — ela contou. — Apa­receu às 11:30 para me trazer café e biscoitos. Seus lábios contraídos de maneira afetada mal se abriram para falar comigo. Acho que ela é totalmente contrária à minha presença. — E prosseguiu: — Parece existir uma rixa entre ela e o jardineiro, Alfred. Ele é um jovem das vizinhanças e bastante preguiçoso, pelo menos esta é a minha im­pressão. Ele e a governanta não se falam. A Srta. Greenshaw ex­plicou-me com muita dignidade: “Sempre houve inimizade entre o pessoal do jardim e o da casa. Isto já acontecia quando meu avô era vivo. Naquela ocasião tínhamos três homens e um menino trabalhando no jardim, e oito empregadas domésticas, e os atritos eram constantes”.

No dia seguinte, Lou voltou com notícias frescas.

— Imagine só — ela disse. — Hoje me pediram para telefonar para o sobrinho.

— O sobrinho da Srta. Greenshaw?

— Ele mesmo. Parece que ele é um ator que trabalha numa companhia que está fazendo uma temporada de verão em Boreham-on-Sea. Telefonei para o teatro e deixei um recado convidando-o para vir almoçar amanhã. É realmente engraçado. A velhinha não queria que a governanta soubesse. Acho que a Srta. Cresswell fez alguma coisa que a aborreceu.

— Não perca, amanhã, o próximo capítulo desta novela emocionante — murmurou Raymond.

— É exatamente iguaizinhos uma novela, não é? Reconci­liação com o sobrinho. Os laços de família são mais fortes. Vai fazer outro testamento e destruir o anterior.

— Tia Jane, a senhora está com uma cara muito séria!

— Verdade, meu querido? Você ouviu alguma outra coisa sobre o policial?

Louise ficou perplexa.

— Não sei de policial nenhum.

— Aquela observação dela, minha querida — disse Miss Marple — deve ter algum significado.

No dia seguinte, Lou chegou ao trabalho toda animada. Entrou pela porta da frente que, como todas as portas e janelas da casa, es­tava sempre aberta. A Srta. Greenshaw dava a impressão de não te­mer ladrões, e provavelmente tinha razão em não temê-los, pois a maioria das coisas pesava toneladas e não renderia nada. Lou passara por Alfred quando se dirigia à casa. Quando o viu, ele estava encostado a uma árvore, fumando um cigarro; mas assim que ele a percebeu, pegou de uma vassoura e começou diligentemente a varrer as folhas. Um jovem preguiçoso mas de boa aparência, ela pensou. Ao atravessar o vestíbulo em direção às escadas que leva­vam à biblioteca, deu uma espiada no quadro de Nathaniel Gre­enshaw que, por cima da lareira, dava a impressão de tudo contro­lar. O quadro o retratava no auge de uma prosperidade vitoriana, sentado numa cadeira de braços, mãos pousadas na corrente de ouro tipo príncipe Alberto, que passava por cima de seu amplo estômago. Ao levantar os olhos para seu rosto de mandíbulas fortes, sobran­celhas cerradas e basto bigode, ocorreu-lhe a idéia que Nathaniel Greenshaw deveria ter sido muito bonito quando jovem. Talvez um pouco parecido com Alfred...

Encaminhou-se para a biblioteca no segundo andar, fechou a porta atrás de si, abriu a máquina de escrever, e retirou os diários da gaveta lateral da escrivaninha. Olhando pela janela, vislumbrou a Srta. Greenshaw lá embaixo, usando um vestido estampado, cor de burro quando foge, curvada sobre seu canteiro, removendo laborio­samente todas as ervas daninhas. Havia chovido durante dois dias e elas haviam crescido rapidamente.

Lou, jovem criada na cidade, resolveu que se algum dia ela tivesse um jardim, este nunca seria do tipo que exigisse que as ervas daninhas fossem tiradas manualmente. Só então começou a traba­lhar.

Quando a Sra. Cresswell entrou na biblioteca, às 11:30, tra­zendo o café, percebia-se facilmente que estava de muito mau humor. Pousou, com violência, a bandeja na mesa e comentou para quem quisesse ouvir:

— Temos um convidado para o almoço e não temos nada em casa. Gostaria de saber o que eu posso fazer? E nem sequer sinal de Alfred.

— Ele estava varrendo a entrada quando eu cheguei — Lou falou, tentando ajudar.

— Provavelmente, pois é um trabalho fácil.

A Sra. Cresswell saiu da sala, como um vendaval, batendo a porta. Lou sorriu maliciosamente. Estava imaginando como seria o “sobrinho”.

Terminou o café e recomeçou a trabalhar. O que estava fazendo era tão absorvente que as horas passaram rapidamente. Quando começara a escrever seu diário, Nathaniel Greenshaw tinha se dei­xado levar pelas delícias da franqueza. Ao datilografar um trecho relativo aos encantos pessoais de uma empregada de um botequim na cidade mais próxima, Lou refletia sobre o fato de que seria neces­sário reescrever quase tudo.

Foi quando se entretinha com este pensamento que se assustou com um grito vindo do jardim. Logo abaixo de sua janela viu a Srta. Greenshaw cambalear em direção à casa. Suas mãos apertavam-lhe o peito e por entre elas via-se uma haste emplumada que Lou, estupefata, reconheceu ser a haste de uma flecha.

A cabeça da Srta. Greenshaw, com seu velho chapéu de palha, tombou por sobre seu peito. Chamou por Lou com voz enfraquecida:

— ... atirou... ele me acertou... com uma flecha... peça so­corro...

Lou correu para a porta. Virou a maçaneta, porém a porta não se abriu. Lou levou alguns momentos forçando a porta antes que percebesse que haviam-na trancado. Correu de volta para a janela e gritou:

— Estou trancada!

A Srta. Greenshaw, oscilando de costas para Lou, apelava para a governanta que se encontrava numa janela um pouco mais dis­tante.

— Telefone polícia... telefone...

Então, cambaleando de um lado para outro, como um bêbado, a Srta. Greenshaw desapareceu do campo de visão de Lou, ao penetrar na sala de visitas no andar térreo. Pouco depois Lou ouviu o estrondo de porcelana quebrada, uma queda violenta e, em seguida, silêncio. Sua imaginação reconstituiu a cena. A Srta. Greenshaw devia ter ce­gamente ido de encontro a uma mesinha, onde estava colocado um serviço de chá de Sèvres.

Desesperadamente, Lou esmurrou a porta da biblioteca, chamando, berrando. Não havia trepadeira ou cano de escoamento do lado de fora, que ela pudesse usar para descer.

Exausta de tanto esmurrar a porta, Lou voltou à janela. A cabeça da governanta, lá de longe, da janela da sala de estar, po­dia ser vista.

— Venha me soltar, Sra. Oxley. Estou trancada.

— Eu também.

— Oh meu Deus, isto é horrível, não? Já telefonei para a polí­cia. Há uma extensão nesta sala, mas, Sra. Oxley, não posso en­tender por que estamos trancadas. Nem sequer ouvi barulho de cha­ves. A senhora ouviu?

— Não. Nadinha. Oh, Deus, o que vamos fazer? Talvez Alfred pudesse nos ouvir. — Lou gritou o mais alto possível: — Alfred, Alfred.

— Vai ver que ele foi almoçar. Que horas são?

Lou olhou para o seu relógio de pulso.

— Doze e vinte e cinco.

— Ele tem ordens para ir às 12:30, mas sai de mansinho, antes da hora, sempre que pode.

— A senhora acha... acha...

Lou queria perguntar “Acha que está morta?” mas as palavras não lhe saíam.

Não havia nada a fazer a não ser esperar. Sentou-se no para­peito da janela. Pareceu-lhe que uma eternidade havia se passado quando viu o feio capacete de um policial aproximar-se da casa. Debruçou-se para fora da janela e ele olhou para cima, protegendo os olhos com a mão.

— O que está se passando?— ele perguntou.

De suas respectivas janelas, Lou e a Sra. Cresswell despejaram nervosamente uma torrente de informações.

O policial tirou lápis e bloco de um bolso.

— As senhoras correram para cima e se trancaram? Como se chama, por favor?

— Alguém nos trancou. Venha nos tirar daqui.

O policial respondeu desaprovadoramente:

— Tudo a seu tempo — e desapareceu pela porta envidraçada do andar de baixo.

Mais uma vez o tempo parecia não passar. Lou ouviu o barulho de um carro chegando, e, depois do que lhe pareceu uma hora, mas na realidade haviam se passado somente três minutos, primeiro a Sra. Cresswell e depois Lou foram soltas por um sargento de polícia mais ativo que o outro policial.

— Srta. Greenshaw? — A voz de Louise vacilou. — O que... o que aconteceu?

O sargento pigarreou.

— Sinto ter de lhe informar, madame — disse ele. — o que já contei à Sra. Cresswell. A Srta. Greenshaw está morta.

— Assassinada — disse a Sra. Cresswell. — É isto aí — assassinato.

Em dúvida, o sargento disse:

— Poderia ter sido um acidente — algum menino da redondeza brincando com seu arco e flecha.

Ouviu-se, outra vez, o barulho de um carro chegando.

O sargento explicou:

— Deve ser o médico-legista — e dirigiu-se às escadas.

Contudo, não era o médico. Quando Lou e a Sra. Cresswell estavam descendo as escadas, um jovem entrou hesitantemente e parou, olhando a seu redor com um ar perplexo.

Em seguida, falando com uma voz agradável, que de algum modo soou familiar a Lou, talvez por lembrar a voz da Srta. Greenshaw, perguntou:

— Com licença, bem, é aqui que mora a Srta. Greenshaw?

— Por favor, pode me dizer seu nome? — disse o sargento encaminhando-se em sua direção.

— Fletcher — respondeu o jovem. — Nat Fletcher. Aliás, sou sobrinho da Srta. Greenshaw.

— Verdade, senhor? Bem, sinto muito mas...

— Aconteceu alguma coisa? — perguntou Nat Fletcher.

— Houve um... acidente. Sua tia foi atingida por uma flecha... que penetrou em sua jugular...

A Sra. Cresswell interveio histericamente e sem sua afetação normal:

— Sua tia foi assassinada, foi isto que aconteceu. Sua tia foi assassinada!

 

O Inspetor Welch puxou a cadeira para mais perto da mesa e deixou que seu olhar vagasse de uma para outra das quatro pessoas que estavam na sala. Era a tarde do mesmo dia. Tinha vindo à casa dos Wests para interrogar Lou outra vez.

— A senhora tem certeza que foram exatamente estas pala­vras? Atirou... ele me acertou... com uma flecha... peça socorro?

Lou balançou a cabeça, confirmando.

— E que horas eram?

— Olhei para o relógio um ou dois minutos mais tarde, eram então 12:25...

— Seu relógio funciona bem?

— Também olhei para o relógio de parede. — Lou não deixou dúvidas quanto à sua exatidão.

O Inspetor dirigiu- se a Raymond West.

— Parece que há cerca de uma semana atrás o senhor e o Sr. Horace Bindler foram testemunhas do testamento da Srta. Greenshaw.

Concisamente Raymond relatou os acontecimentos da visita que ele e Horace Bindler tinham feito à Extravagância de Greenshaw.

— Seu depoimento pode ser muito importante — disse Welch. — A Srta. Greenshaw claramente lhe disse, não foi? que estava fazendo um testamento em favor da Sra. Cresswell, a governanta, e que não esteve lhe pagando ordenado algum, face às perspectivas que a Sra. Cresswell tinha em lucrar com a morte dela?

— É, foi o que ela me disse.

— O senhor poderia afirmar que a Sra. Cresswell estava inteiramente a par destes fatos?

— Eu diria que não resta a menor dúvida. A Srta. Greenshaw comentou, em rainha presença, da impossibilidade do beneficiário ser testemunha e a Sra. Cresswell, sem sombra de dúvidas, en­tendeu as implicações do que a Srta. Greenshaw dissera. A própria Srta. Greenshaw referiu-se ao fato de que havia chegado a um acordo com a Sra. Cresswell.

— Donde se conclui que a Sra. Cresswell tinha razão para acreditar que ela era a parte interessada. Em seu caso, o motivo é bastante evidente, e ouso dizer que ela seria a principal suspeita se não fosse pelo fato de se encontrar, tanto quanto a Sra. Oxley, inegavelmente prisioneira em seu quarto. Há também o fato de que a Srta. Greenshaw disse explicitamente que um “homem” atirara nela...

— Não há a menor dúvida de que alguém a tivesse trancado em seu quarto?

— Claro que não. O Sargento Cayley soltou-a. A porta tem uma fechadura grande e antiquada e a chave também é grande e antiga. A chave estava na fechadura e não havia a menor possibilidade de ter sido virada pelo lado de dentro, ou que tivesse havido qualquer truque deste tipo. Não, o senhor pode acreditar cem por cento no fato de que trancaram a Sra. Cresswell no quarto e que ela não podia sair. Além disso, não havia nem arcos nem flechas em seu quarto e a Srta. Greenshaw não poderia ter sido atingida desta janela. Não havia ângulo. Não, a Sra. Cresswell pode ser excluída. Fez uma pequena pausa e depois prosseguiu. — O senhor acha que a Srta. Greenshaw era dada a pregar peças?

Miss Marple, de seu canto, olhou-o como quem já viu tudo.

— Então, afinal de contas, a Sra. Cresswell não era a beneficiá­ria, não é? — perguntou Miss Marple.

O inspetor olhou para ela bastante atônito.

— Esta sua suposição é muito arguta, madame — ele disse. — Não. a Sra. Cresswell não é a beneficiária.

— Igualzinho ao Sr. Naysmith — disse Miss Marple, balan­çando a cabeça. — A Srta. Greenshaw disse para a Sra. Cresswell que iria lhe deixar tudo e com isto deixou de lhe pagar ordenado; e d então, deixou seu dinheiro para uma outra pessoa. Não é de se admi­rar que tenha dado uma risadinha de contentamento quando guar­dou o testamento entre as folhas de O Segredo de Lady Audley.

— Felizmente a Sra. Oxley pôde nos contar tudo a respeito do testamento, e também nos dizer onde havia sido guardado — disse o Inspetor. — Caso contrário, perderíamos um tempo enorme procurando-o.

— Um senso de humor vitoriano — murmurou Raymond West.

— Então ela afinal legou todo o seu dinheiro para o sobrinho — disse Lou.

O Inspetor sacudiu a cabeça negativamente.

— Não, — ele disse, — ela não o legou a Nat Fletcher. Co­menta-se por aí, e naturalmente sou um estranho e somente sei dos mexericos em segunda mão, mas parece que, outrora, tanto a Srta. Greenshaw como a irmã estavam interessadas no jovem e bonito professor de equitação, e que a irmã o conquistou. Não, ela não deixou nada para o sobrinho... — o Inspetor fez uma pausa e esfregou o queixo. — Deixou tudo para o Alfred — ele disse.

— Alfred — o jardineiro? — Joan perguntou inteiramente surpresa.

— É, Sra. West. Alfred Pollock.

— Mas por quê? — exclamou Lou.

Miss Marple tossiu e falou num sussurro:

— Embora eu possa estar enganada, acredito que deva ter ha­vido o que costumamos chamar de “razões familiares”.

— De uma certa maneira — concordou o Inspetor. — Parece que é de conhecimento geral no povoado que Thomas Pollock, o avô de Alfred, era um dos filhos ilegítimos do Sr. Greenshaw.

— Lógico — gritou Lou, — a semelhança!

Lembrou-se de que, após ter passado por Alfred ao se dirigir a casa, havia olhado para o retrato do velho Greenshaw.

— Suponho que — disse Miss Marple — ela pensara que Alfred Pollock poderia orgulhar-se da casa, poderia até querer morar nela, enquanto que seu sobrinho não ia querer ter nada com a casa e, assim que possível, vendê-la-ia. Ele é um ator, não é? Em que peça está trabalhando agora?

Somente uma senhora idosa desviar-se-ia tanto do assunto, pensou o Inspetor Welch, embora respondesse educadamente:

— Creio, madame, que estão fazendo uma temporada dedicada às peças de Sir James M. Barrie.

— Barrie — ecoou Miss Marple, pensativamente.

— O Que Toda a Mulher Sabe — disse o Inspetor e ficou corado. — É o nome da peça — acrescentou rapidamente. — Não sou muito de ir ao teatro, continuou — mas a patroa foi vê-la a semana passada. Ela me disse que está muito bem encenada.

— Barrie escreveu algumas peças muito encantadoras — disse Miss Marple — devo confessar, entretanto, que quando fui com um velho amigo meu, General Easterly, ver a peça A pequena Maria, de Barrie, — abanou a cabeça num gesto triste, — nenhum de nós sabia para onde olhar.

O Inspetor, por desconhecer a peça A pequena Maria, ficou totalmente confuso.

Miss Marple explicou:

— Quando eu era jovem, inspetor, ninguém jamais mencionava a palavra “estômago”.

O Inspetor dava a impressão de estar desorientado. Miss Marple começou a pronunciar títulos de peças à meia-voz.

— O Admirável Crichton. Muito sagaz, Mary Rose, uma peça deliciosa. Lembro-me que chorei. Já a Rua da Nobreza não gos­tei tanto. Depois levaram Um beijo para Cinderela. Oh, é claro!

O Inspetor Welch não tinha tempo a perder, discutindo peças teatrais. Voltou ao assunto em pauta.

— O problema é este — ele disse, — será que Alfred Pollock sabia que a velha senhora tinha feito um testamento em seu favor? Será que ela lhe contou? — E continuou: — Vejam bem, existe um clube de Arco e Flecha lá pelos lados de Boreham, e Alfred Pollock é sócio dele. É excelente no arco e flecha.

— Neste caso não está tudo bem claro? — perguntou Raymond West. — Explicaria as portas trancadas, e ele sabia muito bem onde encontrar as duas mulheres.

O Inspetor olhou para ele e falou com profunda tristeza na voz.

— Ele tem um álibi.

— Sempre achei que os álibis são indiscutivelmente suspeitos — Raymond observou.

— Talvez — disse o Inspetor Welch. — O senhor fala como escritor.

— Não escrevo histórias de detetive — disse Raymond West, horrorizado pela simples idéia.

— É muito fácil se dizer que os álibis são suspeitos — prosse­guiu o Inspetor Welch. — Infelizmente, no entanto, temos de lidar com fatos. — O Inspetor suspirou. — Temos três bons suspeitos — continuou. — Três pessoas que, como os fatos provam, estavam muito próximas da cena no momento do crime. Contudo o mais es­tranho é que, aparentemente, nenhuma das três o poderia ter come­tido. Já analisamos a situação da governanta; o sobrinho, Nat Flet­cher, no momento em que a Srta. Greenshaw foi assassinada, esta­va a um par de milhas, num posto de gasolina, enchendo o tanque de seu carro e pedindo informações como chegar aqui; quanto a Alfred Pollock, seis pessoas poderão testemunhar que às 12:20 ele entrou no “Dog and Duck” onde permaneceu por uma hora co­mendo seu habitual sanduíche de queijo e bebendo cerveja.

— Deliberadamente criando assim um álibi — disse Raymond esperançosamente.

— Talvez — disse o Inspetor Welch — mas, se é este o caso, ele realmente conseguiu seu objetivo.

Houve um longo silêncio. Então Raymond voltou-se para onde Miss Marple estava sentada, ereta e pensativa.

— Agora é com a senhora, Tia Jane — ele disse. — O Inspetor está perplexo, o Sargento está perplexo, eu estou perplexo, Joan está perplexa, Lou está perplexa. Mas para a senhora tudo está claro como a água. Não é verdade?

— Não diria isto — disse Miss Marple, — não claro como a água. E crime, meu caro Raymond, não é um jogo. Não creio que a própria Srta. Greenshaw quisesse morrer, e o crime foi particular­mente brutal. Muito bem planejado e a sangue-frio. Não é caso para brincadeiras.

— Desculpe — disse Raymond. — Não sou tão insensível como pareço. Às vezes referimo-nos a uma coisa levianamente para exorcizar, bem, todo o seu horror.

— Esta é, acredito, a tendência atual — disse Miss Marple. — Todas estas guerras, e ter que falar amenamente sobre funerais. É, talvez eu tenha sido descuidada quando dei a entender que você estava sendo insensível.

— Lógico que não é como se a tivéssemos conhecido a vida toda — disse Joan.

— Isto é bem verdade — disse Miss Marple. — Você, cara Joan, nem sequer a conhecia. Nem eu. Raymond formou uma opinião sobre ela baseada numa só conversa. Lou só a conhecia há dois dias.

— Vamos, Tia Jane — disse Raymond, — conte-nos suas idéias. O senhor não se importa, não é Inspetor?

— Nem um pouco — disse o Inspetor delicadamente.

— Bem, meu caro, tudo nos leva a crer que tenhamos três pessoas que tinham — ou podemos acreditar que tivessem — um motivo para matar a velha senhora. E três razões bastante simples para que nenhuma das três pudesse tê-lo feito. A governanta não po­deria ter matado a Srta. Greenshaw porque se encontrava presa em seu quarto e porque sua patroa positivamente declarou ter sido um homem. O jardineiro estava no “Dog and Duck” na ocasião, e o sobrinho no posto de gasolina.

— A senhora expôs tudo muito bem, madame — disse o Inspetor.

— E, posto que parece bastante improvável que qualquer pes­soa de fora o tivesse cometido, onde, então, nos encontramos?

— É isto o que o Inspetor quer saber — disse Raymond West.

— É muito comum ter-se uma falsa perspectiva das coisas — disse Miss Marple, como que se desculpando. — Se não podemos al­terar as localizações e movimentos destas três pessoas, então será que não poderíamos alterar a hora em que o crime foi cometido?

— A senhora está sugerindo que, tanto o meu relógio de pulso como o de parede estavam com defeito? — perguntou Lou.

— Não, meu bem — disse Miss Marple, — isto nem me passou pela cabeça. O que estou sugerindo é que o crime não foi cometido à hora em que pensamos que ocorreu.

— Mas eu mesmo o vi sendo cometido — bradou Lou.

— Bem, minha cara, o que eu gostaria de saber era se não pretendiam que você o visse. Sabe, eu me pergunto se esta não foi a verdadeira razão de lhe terem dado este emprego.

— Tia Jane, o que a senhora realmente tem em mente?

— Ora, meu bem, é esquisito. A Srta. Greenshaw não gostava de gastar dinheiro. No entanto ela a contrata e concorda, com toda a boa vontade, com as suas condições. Parece-me que queriam que você estivesse lá, naquela biblioteca do segundo andar, olhando pela janela de maneira a se tornar a testemunha-chave, alguém es­tranha à casa e de conduta irrepreensível, que pudesse fixar a hora e local exatos do crime.

— Contudo a senhora não pode ter a intenção de dizer — disse Lou incredulamente — que alguém tinha planejado assassinar a Srta. Greenshaw.

— O que eu quero mostrar, querida — disse Miss Marple, — é que você nunca a conheceu. Acho que não há prova alguma de que a Srta. Greenshaw, que você encontrou quando foi contratar o em­prego, seja a mesma Srta. Greenshaw que Raymond vira alguns dias antes, você não acha? Oh, sim, eu sei — prosseguiu Miss Marple imediatamente, com o objetivo de sustar a réplica de Lou, — ela estava vestindo aquela roupa estampada e antiquada e bastante incomum, aquele chapéu de palha esquisito, e seus cabelos estavam despenteados. Tudo isso correspondia exatamente à descrição que Raymond nos fez no último fim de semana. Todavia, não sei se você percebeu, aquelas duas mulheres eram aproximadamente da mesma idade, altura e tamanho. Quero dizer, a governanta e a Srta. Gre­enshaw.

— Mas a governanta é gorda! — Lou exclamou. — Ela tem seios enormes.

Miss Marple deu uma tossidinha encabulada.

— Entretanto, meu bem, realmente, hoje em dia eu mesma os tenho visto, muito indelicadamente, expostos nas vitrines. É muito fácil alguém ter... hum, hum... seios de qualquer tamanho e di­mensão.

— O que que a senhora está insinuando? — exigiu Raymond.

— Eu só estava pensando que, durante os dois dias em que Lou trabalhou lá, uma mulher poderia ter desempenhado ambos os papéis. Você própria disse, Lou, que quase nunca viu a governanta, exceto de manhã, por um instante, quando ela lhe trazia o café. Vê-se, no palco, atores representando diferentes papéis com so­mente pouquíssimos minutos para trocarem de roupa, e tenho cer­teza que a substituição, no caso, podia se processar muito facil­mente. O penteado à marquesa poderia ser simplesmente uma peruca que se põe ou tira rapidamente.

— Tia Jane! A senhora está afirmando que a Srta. Greenshaw já estava morta antes de eu começar a trabalhar lá?

— Morta não. Drogada, sim. Tarefa bastante fácil para uma mulher inescrupulosa como a governanta. Aí ela lhe contratou, pediu que você telefonasse para o sobrinho convidando-o para ir, a uma hora marcada, almoçar lá. A única pessoa que poderia saber que a Srta. Greenshaw não era a Srta. Greenshaw seria Alfred. E, como você se lembra bem, os primeiros dois dias em que você trabalhou estava chovendo e a Srta. Greenshaw ficou dentro de casa. Alfred jamais entrava na casa por causa de sua briga com a go­vernanta. E, na última manhã, Alfred estava na entrada da casa, en­quanto a Srta. Greenshaw estava trabalhando no jardim pedre­goso... gostaria de dar uma olhada neste jardim.

— Então foi a Sra. Cresswell quem matou a Srta. Greenshaw?

— Acredito que depois de ter-lhe levado o café, a governanta trancou-a, ao sair do quarto, depois carregou a inconsciente Srta. Greenshaw para a sala de visitas lá embaixo, depois vestiu seu disfarce de “Srta. Greenshaw” e foi lá para fora trabalhar no jardim de modo que você a pudesse ver de sua janela no segundo andar. No momento adequado, ela gritou e cambaleou em direção a casa se­gurando uma flecha como se esta tivesse lhe penetrado na garganta. Pediu socorro e teve o cuidado de dizer “ele me acertou” de modo a desviar qualquer suspeita sobre a governanta, sobre ela própria. Também olhou para cima, para a janela do quarto da governanta, e gritou por ela como se a tivesse vendo. Aí, já dentro da sala de visitas, derrubou a mesinha com o serviço de porcelana, correu escada acima rapidamente, botou a sua peruca de marquesa, e assim pôde, alguns momentos depois, debruçar-se sobre o peitoril da janela para lhe dizer que ela também estava aprisionada.

— Mas ela realmente estava aprisionada — disse Lou.

— Eu sei. É aí que entra o policial.

— Que policial?

— Exatamente — que policial? Será, Inspetor, que o senhor se importaria de me dizer como e quando o senhor entrou em cena?

O inspetor dava a impressão de estar um tanto confuso.

— Às 12:29 recebemos um telefonema da Sra. Cresswell, a governanta da Srta. Greenshaw, que declarava que tinham atirado em sua patroa. O Sargento Cayley e eu próprio nos dirigimos de carro para lá imediatamente e chegamos a casa às 12:35. Encon­tramos a Srta. Greenshaw morta e as duas senhoras trancadas em seus quartos. — Você compreende, minha querida — disse Miss Marple para Lou. — O oficial da polícia que você viu não era, de jeito algum, um policial de verdade. Você jamais pensou nele outra vez — nin­guém pensa — simplesmente aceita um uniforme a mais como símbolo da lei.

— Mas quem? Por quê?

— Quanto ao “quem” — ora, o personagem principal da peça Um Beijo para Cinderela, que está sendo encenada agora, é um policial. Nat Fletcher unicamente teria que usar o traje que veste no palco. Pediria orientação no posto de gasolina, tendo o cuidado de chamar atenção para a hora — 12:25; depois dirigiria à toda velocidade, deixaria o carro numa esquina, envergada seu uniforme de policial, e representaria sua parte.

— Mas por que — por quê?

— Alguém tinha que trancar a porta do quarto da governanta por fora, alguém tinha que enfiar uma flecha na garganta da Srta. Greenshaw. Você pode enfiar uma flecha em alguém tão bem quanto se você a disparasse — é preciso somente ter força.

— A senhora quer dizer que eles estavam ambos agindo de comum acordo?

— Oh, acredito que sim! Provavelmente são mãe e filho.

— Porém a irmã da Srta. Greenshaw morreu há muito tempo.

— Foi, mas, sem dúvida, o Sr. Fletcher se casou outra vez — parece ter sido um homem deste tipo. Pense que é bem possível que a criança tenha morrido também e que este suposto sobrinho é filho da segunda esposa do Sr. Fletcher, e assim não tem paren­tesco algum com a Srta. Greenshaw. A mulher conseguiu este emprego de governanta e inspecionou a propriedade. Então ele escreveu para a Srta. Greenshaw dizendo-se seu sobrinho e dispôs-se a visitá-la — pode ter até feito alguma referência jocosa ao fato de ir vestido de policial — lembram-se, ela comentou que estava esperando um policial. Suponho, no entanto, que a Srta. Greenshaw suspeitou da verdade e recusou a vê-lo. Ele teria sido seu her­deiro se ela tivesse morrido sem fazer um testamento — mas, natu­ralmente, no momento em que ela fizesse um testamento a favor da governanta, pensaram, então também não haveria problema.

— Mas por que uma flecha? — objetou Joan. — Tão forçado!

— Nem um pouco, meu bem. Alfred é membro de um Clube de Arco e Flecha — Alfred levaria a culpa. Foi muito azar dele ter estado no botequim às 12:20. Ele sempre ia para lá um pouquinho antes da hora combinada e isto se ajustava como uma luva. — Ba­lançou a cabeça. — Parece tudo errado — quero dizer, do ponto de vista moral, o fato de que a preguiça de Alfred o tenha salvo.

O Inspetor pigarreou.

— Bem, madame, estas suas sugestões são muito interessan­tes. Terei, obviamente, que fazer investigações.

 

Miss Marple e Raymond West estavam perto do jardim e olha­vam para a cesta de jardinagem que estava repleta de vegetação murcha.

Miss Marple murmurou:

— Alisso, saxífraga, citisus, dedaleiras... É, era essa toda a evidência de que eu necessitava. Quem quer que estivesse tirando as ervas daninhas aqui, ontem de manhã, não entendia nada de jardinagem — arrancou tanto as plantas quanto as ervas daninhas. Assim, agora sei que estou certa. Muito obrigada, meu caro Ray­mond, por ter-me trazido aqui. Eu queria ver o local com os meus próprios olhos.

Ela e Raymond, ambos, olharam para aquela coisa ultrajante que era a Extravagância de Greenshaw.

Uma tossidela fê-los virar-se. Um jovem bem apessoado também olhava para a casa monstruosa.

— Uma casa desmesuradamente grande — ele disse. — Demasiadamente grande para os dias de hoje, todo mundo diz. Não sei. Se eu ganhasse a loteria esportiva e ganhasse um bocado de dinheiro, este é exatamente o tipo de casa que eu ia construir.

Sorriu encabuladamente para eles.

— Acho que agora eu posso contar que aquela casa ali foi construída pelo meu bisavô — disse Alfred Pollock. — Todo o mundo pode chamá-la de “A Extravagância de Greenshaw”, mas é muito bacana.

 

                                                                                Agatha Christie  

 

                      

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