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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A AVENTURA NO VALE / Enid Blyton
A AVENTURA NO VALE / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A AVENTURA NO VALE

 

A passagem era sempre alta e larga, mas não seguia a direito. Descia e, apesar de muitas curvas, ia sempre na mesma direcção, para o centro da montanha.

De repente, a passagem terminou. João parou, boquiaberto. Diante dele estava qualquer coisa de extraordinário.

A lanterna iluminou uma porção interminável de colunas brancas e brilhantes que pendiam do tecto alto duma gruta. Que seriam?

Maria da Luz agarrou-lhe o braço, também muito admirada. Olhou para aquelas coisas brancas e brilhantes e viu que, do chão da gruta, se erguiam mais colunas brancas. Algumas haviam-se unido às que pendiam do tecto, o que dava a impressão de o tecto da gruta estar sendo sustentado por pilares.

- João! Que é isto? É o tesouro? - segredou Maria da

Luz.

(...)Os pequenos ficaram ali calados sem se cansarem de admirar a bela gruta silenciosa. O tecto era alto como o de uma catedral, e as graciosas estalactites pendiam às dúzias, brilhando à luz da lanterna de João.

(...) João apagou a lanterna, e imediatamente os pequenos ficaram boquiabertos de espanto. No tecto e nas paredes brilhavam milhares de estrelinhas. Eram verdes e azuis e tinham um maravilhoso brilho tremulante.

- Céus! Que é isto? -segredou Dina de olhos esbugalhados. - Será alguma coisa viva?

(...) «Margarida vai à fonte», disse a Didi, dando bicadas na cabeleira da mulher em que se tinha empoleirado.

Os pequenos ficaram outra vez muito encolhidos. Que iria a mulher fazer à Didi? Encantá-la com aqueles olhos estranhos? Lançar-lhe um feitiço que a transformasse em pedra? Teria toda aquela gente sido transformada em pedra?...

 

 

         NO AVIÃO DE JAIME

Didi, a catatua, estava desolada. Tinham-na deixado completamente só durante todo o dia, e o bicho, zangado, não parava de palrar consigo próprio.

«Que pena, que pena, que pena, pobre Didi, pobre animal! Viva o rei! É o r-r-rei que vai à caça. Bom dia, bom dia!»

A Sr.a Mannering veio espreitar à porta do quarto onde estava a Didi.

«Não sejas tonta, Didi. Todo o dia a falar sozinha! Os teus amigos já não podem tardar».

«Pobre Didi», fez a Didi em tom lamentoso e batendo castanholas com o bico.

«Faz-te cá falta o João, não é?», observou a Sr.a Mannering, entretanto, fechando a porta com cuidado. «Ele já não se demora, Didi. Vais ver que não tarda que estejas a ouvi-lo. Porta-te bem e não faças mais barulho».

A Didi abriu o bico, engoliu e fez a sua já famosa imitação do comboio, apitando à entrada dum túnel. A Sr.a Mannering tapou os ouvidos.

«És mesmo má! Quantas vezes te tenho dito que não faças isso?»

«Quantas vezes te tenho dito que feches a porta, feches a porta, feches a porta», replicou a Didi, emproando-se tão descaradamente que a Sr.a Mannering lhe deu uma pancadinha no bico, dizendo:

«És um bicharoco levado da breca. Mas escuta: parece que vêm aí os pequenos. Imagina que foram de avião, sabes, Didi! Foi por isso que tiveste de cá ficar sozinha».

«João, João, João!», gritou a Didi ao ouvir a voz do dono. Os quatro pequenos irromperam pelo quarto com as faces vermelhas de entusiasmo.

- Olá, vivam! - exclamou a Sr.a Mannering. - Então gostaram? Foi divertido andar lá em cima, tão alto?

- Ó mãe, nem faz ideia de como nos divertimos!

- Tia Lia, assim que eu for crescido hei-de comprar um avião.

- A mãe devia ter vindo connosco. Jaime pilotou o avião que foi uma maravilha!

- E eu não enjoei, tia Lia, embora o Jaime me tivesse dado um saco de papel para qualquer eventualidade...

A Sr.a Mannering ria-se. Falávam os quatro, todos ao mesmo tempo, e ela via-se atrapalhada para conseguir perceber o que diziam. A Didi deu um gritinho de contentamento e voou para o ombro de João.

Então, os quatro pequenos lá se sentaram e prepararam-se para relatar a aventura do dia. Eram eles Filipe e Dina, filhos da Sr.a Mannering, de olhos e cabelos escuros como os da mãe e também com um engraçado tufo de cabelos que teimava em não assentar.

Era por isso que tanto a Dina como Filipe tinham a alcunha de Trunfa no colégio. Depois havia os outros dois, João e Maria da Luz, que eram irmãos, não tinham pai nem mãe e viviam com a «tia Lia», como eles chamavam à Sr.a Mannering. Os quatro eram amigos e unidos como irmãos.

João e Maria da Luz eram muito parecidos. Ambos de cabelos ruivos e olhos verdes, tinham tantas sardas que era positivamente impossível descobrir-lhes um bocadinho de pele branca no rosto, nos braços ou nas pernas. Por isso, não admirava que chamassem tantas vezes Pintinhas ao João.

Didi, a catatua, pertencia-lhe. Já a tinha há anos, era um bicho divertido e palrador, com um jeito notável para repetir o que ouvia e para imitar qualquer ruído, desde o de uma máquina de costura até ao apito dum comboio. Adorava João e ficava desolada quando se via separada dele.

João tinha uma verdadeira paixão por pássaros e Filipe gostava de bichos de todas as espécies. Era dotado de um dom muito especial para os atrair, a ponto de eles lhe obedecerem e gostarem dele dum modo inexplicável. Trazia sempre com ele qualquer bicharoco estranho, facto que provocava discussões entre ele e a irmã, Dina, que se assustava com quase todos os animais. Mas agora nenhum deles pensava em coisa alguma senão naquele maravilhoso passeio no avião do amigo Jaime.

Jaime Smugs era um amigo dedicado. Ele e os pequenos já tinham vivido juntos aventuras de pôr os cabelos em pé. Uma vez haviam descido até ao fundo duma velha mina de cobre, permitindo que uns falsários muito perigosos fossem capturados. De outra vez, deram com o antro de uns perigosos espiões. Como Jaime Smugs costumava dizer, aqueles pequenos apareciam, sem se saber como, «no meio de aventuras extraordinárias».

Ora acontece que tinham oferecido a Jaime um belo avião, aparelho de grande utilidade na profissão dele.

Os pequenos tinham ficado doidos de entusiasmo quando ele lhes escrevera para o colégio a contar o facto.

- Vais ver que nos vai proporcionar um passeio - havia observado João. - Vais ver.

- Senão, nós pedimos-lhe - respondera Filipe. Mas não foi preciso pedir, porque Jaime estava desejoso de lhes mostrar o avião e de, apesar de ter poucas lições, fazer ver como era capaz de pilotar bem.

- A mãe faz lá ideia! Subimos muito acima das nuvens, - explicou Dina. - E quando me pus a olhar para elas não pareciam nuvens. Era mesmo um grande campo coberto de neve. Que sensação estranha!

- Eu tinha um pára-quedas amarrado a mim para o caso de cair, e Jaime mostrou-me o cordão que eu devia puxar se houvesse perigo - afirmou Maria da Luz, a mais nova, com os olhos a brilhar. - Mas não houve perigo.

- Sobrevoámos até a nossa antiga casa, a Casa do Penhasco!

- explicou Filipe. - Não faz ideia como era estranha assim, vista de cima. E também passámos por aqui, mãe. A nossa casa parecia uma casinha de brincar.

- Ó tia Lia, o Jaime diz que é ainda mais engraçado voar de noite, porque se vê a terra coberta de pontinhos luminosos

- cortou João. - Fartámo-nos de lhe pedir que nos levasse num voo nocturno, mas ele diz que tem de vir cá pedir-lhe licença. Vai dar, não vai? O que não dirão os rapazes lá da escola, quando eu lhes contar que subimos de avião de dia e de noite.

«Dia e noite», repisou a Didi. «Lá vai uma...»

- Anda com a cantiga das pombinhas na cabeça - lembrou João. - O pequenito daqui do lado leva o dia a cantarolar e a Didi escuta e aprende bocadinhos. Ontem só falava na «saia da Carolina», hoje é «Lá vai uma». Que será amanhã?

«A loja do mestre Ané», interrompeu a Didi, amavelmente.

«André, André», corrigiu João. «Não é Ané».

«Ané, Ané, Ané», repetiu a Didi, coçando solenemente a cabeça com a pata. «Ané, Ané...»

«Pronto, está bem», atalhou João. - Tia Lia, vai deixar-nos ir à noite com o Jaime? Amanhã vem ele cá pedir-lhe, Dá licença, não dá?

- Que remédio tenho eu - respondeu a Sr.a Mannering, rindo. - Vocês e o Jaime! Desde que não se atirem de cabeça para o meio de alguma aventura horrível.

- As aventuras não são horríveis, são formidáveis! - rectificou Filipe.

- Mas não para quem está de fora - respondeu a Sr.a Mannering. - Às vezes até me sinto mal só de pensar nas aventuras em que vocês andaram envolvidos. Agora já basta.

- Está bem. Este Verão não nos meteremos em mais aventuras - prometeu Maria da Luz, abraçando a tia. - Não havemos de dar-lhe preocupações. Eu também não quero mais. Já me chegaram as outras.

- Maricas! - exclamou Dina desdenhosamente. - Deixa estar que se entrarmos noutra, deixamos-te à parte, Maria da Luz.

- Isso é que não deixamos - interrompeu Filipe, dando um encontrão a Dina. - Não podemos passar sem a Luzinha.

- Juizinho e nada de discussões - disse a Sr.a Mannering, prevendo a formação duma das habituais e intermináveis querelas. - Vocês estão cansados depois de tanta excitação. Entretenham-se sossegadamente até ao jantar.

«O jantar está na mesa», observou a Didi. Os pequenos desataram a rir.

«És uma pateta, Didi», disse João com afecto. «Tiveste saudades nossas? Eu tive medo que fugisses se te levássemos. Mas eras capaz de te portares bem, não eras, sempre empoleirada no meu ombro?»

A Didi pôs-se a debicar delicadamente a orelha de João, emitindo sons carinhosos e colocando-se bem junto dele. Os pequenos começaram a falar das emoções do dia.

- Foi uma beleza, nós a passarmos a porta com os nossos cartões de ingresso e a irmos ter com o Jaime como se fôssemos crescidos - observou Filipe. - E que rico o avião de Jaime!

- Nunca pensei que fosse tão grande - comentou Maria da Luz.--Sabem, foi uma coisa estranha, eu sustive a respiração quando o avião descolou, pensando que ia ter uma sensação esquisita quando despegássemos do chão, tal como me acontece quando vou de elevador. Pois nem dei conta das rodas levantarem da pista. Até me assustei quando olhei para baixo e vi que íamos por cima das casas.

- Parece tão fácil pilotar um avião! - interveio João -, Mais fácil do que guiar um carro. Quem me dera que o Jaime me deixasse experimentar.

- É o deixas - respondeu Filipe. - E quando apanhámos aquele poço de ar e o avião se pôs a descer sem nós esperarmos? Até senti uma contracção no estômago!

Os outros riram-se.

- Também eu - respondeu Maria da Luz. - Ainda bem que não enjoei. De nada me serviu aquele saco de papel, mas ainda bem.

- Andámos quilómetros - afirmou João. - Só não me senti muito bem quando íamos por cima do mar. Parecia que não tinha fim, e tão monótono. Não gostava de cair ali! Havia de espirrar água por todos os lados!

- A mãe com certeza que nos deixa ir de noite com o Jaime - tornou Dina. - Lia-se-lhe na cara que ia dizer que consentia. Que bom! Jaime afirmou que podíamos ir até casa dele, aterrar de madrugada e passar o resto da noite com ele, como quiséssemos, divididos pelos dois quartos que ele tem, e podíamos dormir até ao meio-dia. Imaginem: voar de noite e ir para a cama de madrugada!

- Depois regressaríamos à tarde, com certeza - prosseguiu João. - Que sorte termos um amigo como o Jaime. É uma pessoa cheia de interesse. E também é emocionante saber que ele anda sempre metido em assuntos secretos, dos quais, aliás, nunca fala, sempre pronto a desvendar mistérios intrincados. Estará agora a tratar de algum?

- Está, com certeza! - respondeu Filipe. - É para isso que ele tem o avião. Pode ter de partir a todo o momento atrás de espiões ou coisa parecida. Oxalá eu esteja com ele quando isso acontecer.

- Descansa que não estás - disse Dina. - O Jaime não nos deixava correr riscos.

- Quem me dera que deixasse - retorquiu Filipe. - Está a tocar para o jantar. Tenho uma fome!

- Isso não é novidade - interveio Dina. - Vamos, vamos ver o que há. Cheira a presunto com ovos.

Foram jantar. Tinham fome e liquidaram os ovos, o presunto e o bolo num abrir e fechar de olhos. A Didi serviu-se de bolo até a Sr.a Mannering protestar:

- João! Vê se consegues que a Didi não depenique as passas do bolo. Olha para isto! Daqui a pouco já não há bolo. Bate-lhe no bico.

«Grande marota!», observou João, batendo-lhe no bico. «Comer tudo não vale!»

«Quantas vezes te tenho dito...», começou a Didi. Mas João estava cansado de mais para lhe dar troco.

«Nada de discussões», interrompeu ele. «Tenho tanto sono que vou já para a cama».

Estavam todos a cair de sono, e, por isso, foram-se deitar e depressa adormeceram para sonharem com aviões que voavam por cima das nuvens e davam reviravoltas e cambalhotas dum modo espantoso mas seguro.

 

         JAIME LEVA A SUA AVANTE

No dia seguinte, Jaime veio almoçar com eles. Era um sujeito de rosto vermelhusco e cabeça com uma grande careca e muito cabelo dos lados. Os garotos correram para ele. A Sr.a Mannering sorriu-lhe.

- Os pequenos gostaram imenso do passeio de ontem - afirmou ela. - Estão agora todos entusiasmados com um voo nocturno. Não sei porque há-de estar sempre a incomodar-se com um bando de marotos como estes.

- É que nunca se sabe quando eles se preparam para alguma aventura extraordinária - retorquiu Jaime Smugs, fazendo-Lhes uma careta. - E eu não quero perder pitada. Além disso, tenho muita pena de si por ter de os aturar durante oito ou nove semanas, estas férias, por isso, pensei que seria uma obra de misericórdia tomar conta deles também.

- E que projecta fazer? - perguntou a Sr.a Mannering. - Voar de noite, ir dormir à sua velha casa e voltar no dia seguinte?

- Foi a minha primeira ideia - admitiu Jaime. - Mas disseram-me agora que me vão dar dois ou três dias de férias, e eu pensei que talvez não se importasse de se separar dos pequenos por mais tempo. Podíamos ir até à minha casita e ficar lá a explorar aquilo. Há pássaros com fartura para o João ver e o Filipe encontraria sem dúvida outros bicharocos. As pequenas também deviam gostar, com certeza.

- Que bom seria! - exclamou João, e os outros fizeram coro. A Sr.a Mannering ficou uns momentos a pensar.

- Bem, não vejo porque não hão-de ir consigo, Jaime. Bem sei que vai tomar conta deles para evitar que se metam em mais alguma aventura horrível.

- Isso lhe prometo eu - redarguiu Jaime. - Lá para os meus lados não há aventuras. É um lugar calmo e pacífico. Nunca lá acontece coisa alguma.

- Se vocês prometerem não se meterem em qualquer complicação arriscada deixo-vos ir - dirigiu-se a Sr.a Mannering aos pequenos, encantados. - Quando os quer, Jaime?

- Amanhã, se for possível - respondeu Jaime. - O caso que tenho neste momento entre mãos parece que não ata nem desata, por isso, bem posso aproveitar estes dias agora.

- Que caso é, Jaime? Conte! - pediu Maria da Luz. Jaime pôs-se a rir.

- Impossível - disse ele. - Bem sabem que o meu trabalho é sempre secreto. Mas, quando estiver terminado, conto-lhes tudo. Verão que é interessante.

- Vamos ter de fazer as malas, não vamos? - inquiriu Dina. - Como passamos lá uns dias, devemos precisar de roupas e abafos.

- Levem camisolas e calções para andarem por lá - preveniu Jaime. - E impermeáveis também porque chove muito lá para aqueles sítios. E se a Sr.a Mannering pudesse dispensar umas mantas, talvez não fosse mau, porque não devo lá ter cobertores que cheguem para todos.

- Eu arranjo isso - concordou a Sr.a Mannering.

- Vou levar a minha bela máquina fotográfica - disse João. - No avião há lugar para estas coisas, não há, Jaime?

- Então não há! - respondeu Jaime. - Traz também o teu binóculo se quiseres observar os pássaros da serra.

- Vai ser maravilhoso! - exclamou João, com os olhos brilhantes de entusiasmo. - Parece que nem sou capaz de esperar pelo amanhã. E se fôssemos já hoje?

- O avião não está preparado - retorquiu Jaime. - Tenho de dar-lhe hoje um jeito. Também só amanhã é que entro de licença. Vocês fazem as malas, preparam tudo e vão ter comigo ao aeroporto amanhã à noite. Conto com vocês às onze horas

em ponto. Mando cá um carro buscá-los.

- Mas que hora para começar uma viagem! - observou a Sr.a Mannering. - Confesso que não me agrada muito.

- Agora não pode voltar com a palavra atrás! - exclamaram os pequenos.

- Descansem, que não volto - tranquilizou-os a Sr.a Mannering. - Mas não me sinto muito confiante. Vocês nada vão fazer de perigoso, pois não?

- Nada há de perigoso que se possa fazer - sossegou Jaime. - Eu tomo conta deles. Aquele que fizer alguma coisa de arriscado será recambiado para a Sr.a Mannering.

Os outros pequenos riram-se mas João ficou, de repente, muito sério.

- E a Didi? Posso levá-la? E parece-lhe que ela se porta bem no avião.

- É melhor metê-la num cesto, ou coisa idêntica - opinou Jaime. - Pode assustar-se com o barulho e levantar voo. Numa cesta vai bem. Deixá-la cá é que não pode ser.

- Belo! - exclamou João, satisfeito. «Estás a ouvir, Didi! Vais viajar de cesto, vê lá como te portas!»

«Limpa os pés», fez a Didi, «Viva o rei! Pobre Lena!» «Pateta», exclamou João, coçando-lhe a cabeça. «Só espero que não te ponhas a imitar o barulho do avião. O apito do comboio já chega para nos atormentar».

O almoço decorreu alegremente. Por fim Jaime retirou-se. Os pequenos subiram aos quartos para arranjarem as suas coisas. Dina pôs na mala um grande pacote de chocolates, para o caso de não haver lojas perto da casa de Jaime. João preveniu-se com bolachas. Acordava muitas vezes de noite e gostava de ter uma bolacha para trincar.

- É melhor levares bastantes rolos de películas contigo para o caso de quereres fotografar os pássaros - recomendou-lhe Filipe. - Apostaria em como não há onde os comprar lá onde o Jaime vive. É que fica mesmo no meio do campo.

A Sr.a Mannering veio ver o que eles estavam a meter nas malas. Era Agosto, mas, por vezes, chovia e o tempo estava fresco, por isso precisavam de muitas coisas quentes.

Levavam camisolas, casacos, impermeáveis e chapéus de oleado, a mãe acrescentou ainda botas de borracha, pensando que os sapatos não eram grande coisa para andar pelos campos molhados.

- Também arranjei umas mantas - disse ela. - Cada um de vocês leva uma. São velhas, mas grossas e quentes. Valem bem por dois cobertores. Se o Jaime não tiver cobertores para todos, também não fazem falta, as mantas chegam para vos aquecer. Vejam lá não se esqueçam de as trazer.

João preparou a máquina e arranjou os rolos. Hesitou se levaria ou não um livro sobre pássaros, mas decidiu-se pela negativa porque a mala já pesava muito.

- Está tudo pronto, tia Lia - disse Maria da Luz, sentando-se na mala para a fechar. - Quem me dera cá o dia de amanhã. Imaginem, nós a voar às escuras! Nunca pensei que iria fazer semelhante coisa. Oxalá leve muito tempo a chegar a casa de Jaime.

- E leva realmente - respondeu a Sr.a Mannering. - Mas vamos a ver: o melhor é eu arranjar-vos umas fatias de pão e bolo para a viagem, porque se ficarem a pé toda a noite vão ter fome. Amanhã trato disso. Já arranjaste o cesto para a Didi, João? E comida para ela? Veio hoje um pacote de sementes de girassol. Mete-o na mala.

João arranjou um belo cesto com uma tampa para a Didi. Pô-lo em cima da mesa. A Didi voou para lá cheia de curiosidade. Saltou para dentro e pôs-se a espreitar para fora com um ar muito cómico.

- Isto é que ela é esperta! - exclamou João. Já sabes que vai ser o teu cesto de viagem, não sabes?

«Deus salve o rei!», fez a Didi, começando a esfregar o bico adunco nas bordas do cesto.

«Não faças isso», intimou João. «Dás cabo dele. Pára lá com isso, Didi!»

A Didi saiu do cesto, empoleirou-se no ombro de João e começou a esfregar o bico no cabelo.

«Lá vai uma», murmurou. «Três pombinhas a voar».

«Uma catatua a voar, queres dizer», observou Maria da Luz. «Não sei se sabes que vais andar de avião!»

O dia passou lentamente, mesmo muito lentamente. O dia seguinte ainda custou mais a passar. À hora do chá os pequenos já tinham a sensação de que a noite nunca mais chegaria.

Mas ao jantar já se sentiam mais animados. O carro que os transportava ao aeroporto chegava às dez e um quarto. Depois entrariam para o avião com o Jaime e lá iriam pelo escuro fora. Não sabiam porquê, mas parecia-lhes muito mais emocionante voar de noite do que à luz do dia.

Deram as dez horas. Trouxeram as malas e as mantas para a entrada. Também lá puseram a máquina de João e um grande embrulho com as fatias de pão com presunto e os bolos. O binóculo levava-o João a tiracolo. O cesto da Didi também estava, mas a catatua andava à solta. Só tencionavam fechá-la à última hora.

- Lá vem o carro! - exclamou Filipe, cujo ouvido apurado depressa captou o ruído do carro que subia até à porta. - Venham! Adeus, mãe! Tenha cuidado consigo até nós voltarmos!

- Adeus, tia Lia - despediu-se João, abraçando-a. – Nós mandamos-lhe um postal. Anda, Didi, são horas de ir para o cesto.

A Didi custou um bocado a entrar. Estava contagiada pela excitação dos quatro pequenos. Ainda levou tempo a metê-la no cesto e a fechar a tampa. Pôs-se a gritar com quanta força tinha.

«Pobre Lena, pobre Lena, viva o rei! Lá vai uma, andaram de mão em mão!»

«Estás a fazer uma salada de cantigas», observou Maria da Luz, rindo-se. «Cala-te, Didi! Devias estar contente por vires connosco, mesmo tendo de viajar numa cesta fechada».

Estavam feitas as despedidas e a Sr.a Mannering ainda observou:

- Não sei porquê, mas não me agrada deixá-los ir. - É uma tolice, mas a verdade é que não fico tranquila. Parece que tenho um pressentimento, como se vocês fossem meter-se numa situação perigosa.

- Já prometemos que não - retorquiu Filipe muito sério. - Não se preocupe. Nada nos vai acontecer e daqui a uns dias voltaremos são e salvos. Seja como for, o Jaime tem telefone, por isso pode comunicar connosco quando quiser.

O carro desceu a vereda e a Sr.a Mannering ficou à porta a fazer acenos de despedida.

Os pequenos acenavam também, muito excitados. E lá foram.

- Cá vamos a caminho do aeroporto! - comentou Filipe, radiante. - Parecia que a noite nunca mais chegava. Que horas são? Ainda é cedo. Belo. Tens os bilhetes de ingresso, João?

- A Dina é que os meteu na mala - respondeu João. Dina lá os encontrou. Eram as autorizações de entrada na pista que lhes permitiriam chegar junto de Jaime.

Ainda era longe o aeroporto. A noite estava escura e o céu coberto de nuvens, o pára-brisas começou a ficar salpicado de gotas de chuva.

- Cá está o campo! - exclamou João, ao ver as luzes pela janela. - Olhem para a pista, toda iluminada. Não é maravilhosa? Que grandes ficam os aviões com aquelas sombras aos lados! Vamos, Dina, as autorizações. Temos de as mostrar agora.

Mostraram os bilhetes ao homem que estava na entrada e lá foram.

- Vão ficar aqui para falar ao vosso amigo - declarou o motorista. - Depois vou ao avião e deixo-lhes lá as malas. Até já!

- Agora vamos procurar Jaime - disse Filipe enquanto o carro se afastava. - Lá está ele! Jaime, já cá estamos!

 

       UM PERIGOSO ENGANO

Jaime estava a conversar com alguns homens. Acenou aos pequenos, não parecendo, no escuro da noite, mais do que uma sombra alta e corpulenta.

- Olá, pequenos! Agora estou ocupado. Vão para o avião e esperem lá por mim. Arrumem as malas atrás, ao pé da minha. Daqui por uns dez minutos lá estarei.

- Está bem, Jaime - respondeu João, e os quatro dirigiram-se para o local onde o motorista lhes tinha deixado as malas, ao pé de um avião.

Estava muito escuro, mas os pequenos viam o suficiente para arrumarem as malas. Subiram a escada e entraram.

Lá dentro nada se via. Como não sabiam onde acender a luz, dirigiram-se às apalpadelas para a cauda do avião, onde pousaram as malas e as mantas. - João pôs o cesto da Didi no chão com todo o cuidado. A catatua não parava de exteriorizar a sua indignação.

«Foi na loja do mestre Ané», palrava ela. «Deus salve o rei!»

A meio do avião estava um grande caixote. Os pequenos não puderam deixar de pensar no que estaria lá dentro. Estaria vazio ou cheio? Devia ser qualquer coisa que o Jaime queria levar para casa.

- Ocupa o espaço todo - comentou João. - Com isto aqui nem podemos sentar-nos como deve ser. Instalemo-nos lá atrás em cima das mantas. Ali ficamos bem. Quando o Jaime vier, talvez arrede um bocadinho o caixote e nos diga onde havemos de ficar.

E sentaram-se pacientemente nas mantas, à espera.

O barulho dos motores dos aviões lá fora nada mais deixava ouvir, apesar de João dizer uma vez que ouvia alguém a falar alto.

Foi até à porta e olhou para fora. Estava tudo escuro e de Jaime nem sombra. Que demora!

Voltou para o lugar, bocejando. Maria da Luz estava meia a dormir.

- Quem me dera que Jaime viesse - dizia Filipe. - Estou aqui estou a dormir.

Foi então que, num momento, aconteceram muitas coisas. Sobrelevando os ruídos dos motores ouviram-se tiros. Os pequenos levantaram-se de um salto.

Depois ouviu-se outro tiro, alguém subiu apressadamente a escada do avião e um homem atirou-se para a cadeira do comando. Depois chegou outro, arquejante, que quase não se via, no escuro. Os pequenos ficaram estarrecidos. Que queria aquilo dizer? Algum daqueles homens seria o Jaime? Mas quem era o outro? E porquê tanta pressa? O primeiro homem tomou o comando e os pequenos ficaram admirados ao notar que iam a andar. Mas porque não lhes teria Jaime falado? Nem sequer olhava para trás para se certificar de que eles estavam lá!

- Calem-se! - aconselhou João aos outros. - Se o Jaime não nos fala é porque lá tem as suas razões. Talvez não queira que o outro saiba que estamos aqui. Deixem-se estar calados.

O avião descolou, com os motores a fazerem um grande barulho, contra o vento.

Os homens falavam bem alto um com o outro, mas os pequenos não conseguiam perceber o que eles diziam por causa do ruído dos motores. Deixaram-se ficar quietos e calados, escondidos pelo grande caixote que ocupava o centro do avião.

Jaime não lhes dirigia a palavra. Nem perguntava se eles lá estavam, nem mandava o companheiro ver se iam bem. Fazia de conta que eles não estavam ali. Era estranho e Maria da Luz não estava a gostar daquilo.

Um dos homens tacteou a parede e encontrou um interruptor. Puxou o botão e a luz iluminou a zona onde estavam os dois homens, deixando o resto do avião às escuras.

Filipe foi espreitar por trás do caixote para ver se encontrava o olhar de Jaime, mas logo a seguir regressou para o pé dos outros, sentando-se silenciosamente, sem dizer palavra.

- Que foi? - perguntou João, sentindo que Filipe estava preocupado.

- Vai tu dar uma espreitadela por ali - disse Filipe. - E repara bem nos dois homens.

João foi espreitar. Voltou admirado e assustado.

- Nenhum deles é o Jaime. Que coisa estranha! - exclamou.

- Que queres dizer? - perguntou Maria da Luz alarmada. - Um deles tem de ser o Jaime. Este avião é dele.

- Tens a certeza? - perguntou Dina subitamente. - Repara ali naqueles assentos que estão iluminados, Maria da Luz. São encarnados, e os do avião de Jaime eram verdes, que eu bem me lembro.

- Pois eram - disse João, lembrando-se. - E esta! Enganámo-nos no avião!

Fez-se um penoso silêncio. Ninguém sabia o que pensar. Tinham-se enganado no avião. Aquele não era o do Jaime! Iam dois estranhos no comando, que provavelmente ficariam muito zangados quando descobrissem aqueles inesperados passageiros. Pelo menos nem João nem Filipe gostavam do aspecto dos homens. A verdade é que só lhes tinham visto as nucas e uma das faces de um deles que se virara para falar com o outro, mas nenhum dos rapazes se sentira atraído por eles.

«Têm um pescoço tão gordo!», pensou João. «É horrível! E depois aqueles tiros, quem sabe se terão alguma coisa que ver com eles! Subiram para o avião tão precipitadamente e puseram-se logo a andar. Parece-me que voltamos a cair em cheio noutra aventura».

Filipe falava com cautela. Segredar era impossível, porque ninguém ouviria. Por isso via-se obrigado a falar em tom mais alto, esperando não ser ouvido pelos homens que seguiam à frente.

- Que havemos de fazer? Enganámo-nos realmente no avião! A culpa foi daquele estúpido motorista que foi pôr as nossas coisas ao pé deste avião.

Estava tão escuro que nós não vimos a diferença.

Maria da Luz chegava-se muito a João, assustada. Não lhe era agradável voar no escuro, num avião desconhecido, com homens que nunca tinham visto.

- Que havemos de fazer? - perguntava João a si próprio. - Estamos metidos numa grande alhada. Estes dois homens devem ficar furiosos quando derem por nós!

- Serão capazes de nos deitar pela porta fora - lembrou Maria da Luz, alarmada. - E nem sequer temos pára-quedas. João, não deixes que eles nos descubram.

- Mais tarde ou mais cedo descobrir-nos-ão - respondeu Dina. - Fomos uns palermas em nos enganarmos no avião! Foi coisa que nunca me passou pela cabeça.

Fez-se novo silêncio. Cada qual procurava uma solução.

- E se nos deixássemos estar aqui atrás em cima das mantas? Pode ser que não nos vejam - sugeriu Filipe. - Quando chegarmos a qualquer parte talvez possamos sair do avião sem sermos vistos e pedir a alguém que nos ajude.

- É a única solução - concordou João. - Aqui estamos bem escondidos, a não ser que venha algum deles cá atrás buscar qualquer coisa. Talvez cheguem ao destino, saiam sem nos ver, e nós, então, escapamo-nos e pedimos a alguém que nos ajude a voltar para casa.

- Gostava tanto de estar com o Jaime - lamentava-se Maria da Luz, quase a chorar. - Que irá ele pensar?

- Quem sabe! - exclamou João tristemente. - Deve andar à nossa procura por todo o aeroporto. Sabem, parece-me que era o Jaime que nós ouvimos gritar quando eu fui à porta ver o que era. Deve ter entrado no avião dele, viu que não estávamos lá e pôs-se a gritar por nós. Se eu tivesse adivinhado!

- Agora é tarde - protestou Filipe. - Oxalá a mãe não esteja preocupada. Vão pensar que nos metemos de cabeça noutra complicação. E nós que prometemos não ter mais aventuras...

O avião roncava pela noite fora.

Os pequenos não sabiam se iam para o Norte, para Sul, Leste ou Oeste. Foi então que João se lembrou que tinha uma bússola de algibeira e tirou-a para fora.

- Vamos na direcção Leste - disse ele - Para onde iremos nós? Nem me parece que estou num avião, nada posso ver lá para baixo.

Os outros sentiam o mesmo. Maria da Luz deitou-se nas mantas a bocejar.

- Vou dormir. Assim acordada só consigo assustar-me e preocupar-me.

- É boa ideia - admitiu Filipe, estendendo-se também nas mantas.

- Quando chegarmos, acordamos com certeza.

- Alguém quer uma sanduíche ou uma fatia de bolo? - perguntou Dina, lembrando-se do embrulho. Mas nenhum deles quis coisa alguma. O susto de se encontrarem num avião desconhecido tinha-lhes tirado o apetite.

Todos adormeceram, excepto João. Ficou acordado a pensar. Teria Jaime alguma coisa que ver com aqueles tiros que eles tinham ouvido? E estes homens, estariam eles relacionados com o caso em que Jaime andava empenhado, o caso «secreto»? Talvez ele e os outros descobrissem alguma coisa que fosse útil ao Jaime. Era importante que os dois homens não viessem a saber que havia passageiros escondidos no avião.

A Didi soltou um guincho desesperado de dentro do cesto. João deu um salto. Tinha-se esquecido da Didi. Bateu no cesto e falou numa voz tão baixa quanto possível, esperando que o animal o ouvisse.

«Cala-te, Didi! Haja o que houver não faças barulho. É muito importante o que estou a dizer. Estás a ouvir, Didi! Tens de estar calada, percebeste?»

«Calada»,, repetiu a Didi de dentro do cesto. «Ch-ch-ch-ch-ch!». João não pôde deixar de sorrir.

«Pois», disse ele, encostando-se ao cesto. «Ch-chchch-chch!»

Depois disto, a Didi calou-se. Era um pássaro maroto e barulhento, mas ficava calado sempre que João ordenava. Deixou-se ficar no cesto, procurando meter a cabeça debaixo da asa para dormir. Mas o ruído forte dos motores perturbava-a. Nunca ouvira semelhante coisa. Estava-lhe mesmo a apetecer imitá-lo. Felizmente não o tentou nessa altura.

Passado um bocado, os homens trocaram de lugares, passando o segundo para o comando. O primeiro bocejou e espreguiçou-se. Depois pôs-se de pé e João ficou apavorado só de pensar que ele era capaz de vir à cauda do avião.

Não sabia se devia ou não acordar os outros.

Mas o homem não veio para a cauda. Deixou-se ficar de pé um bocado, como para desentorpecer as pernas e depois acendeu o cachimbo. O fumo azulado evolou-se para a cauda do avião. João ficou aliviadíssimo quando viu o homem voltar a sentar-se.

Depressa lhe veio o sono. Deitou-se ao pé dos outros, contente por ter um casaco, porque estava muito frio. Depressa adormeceu. Só a Didi ficou acordada, batendo o bico de vez em quando, intrigada, sem perceber nada desta estranha aventura nocturna.

O avião continuava a voar no escuro, passando por cidades e aldeias, campos, rios e bosques. Também passou pelo mar, onde tremulavam tenuamente as luzes de barcos. Viam-se brilhar as luzes das cidades e, aqui e ali, o foco dum aeroporto iluminava o céu. Mas o avião não descia. Passava por eles, sempre na direcção de Leste, até de madrugada.

Então, pouco antes de romper o Sol, começou a descrever círculos mais devagar. Descia e, de uma vez, desceu tão depressa que os pequenos iam rebolando. Acordaram e sentaram-se sem saber onde estavam. Mas depressa se lembraram e ficaram a olhar muito uns para os outros.

- Vamos aterrar. Onde teremos vindo dar? Agora alerta! Assim que surgir uma oportunidade, escapamo-nos - segredaram uns aos outros. - Cá vamos nós a descer, estamos a aterrar!

 

         ONDE ESTAREMOS?

O avião aterrou, pousando com uma certa violência e assustando os pequenos. Depois correu um pouco sobre as rodas enormes e parou. Tinham chegado ao destino.

Onde estariam? A manhã rompera e a luz entrava pelas janelas, mas ainda não era dia claro. Um dos homens desligou os motores. Imediatamente uma grande calma e paz invadiram o avião. Que maravilha deixar de ter aquele ensurdecedor ruído a atormentar os ouvidos! As quatro crianças sentiram-se aliviadas.

Ouviram as vozes dos homens:

- Foi um trajecto rápido e a aterragem foi boa. Manobraste bem o aparelho, José.

- Não temos muito tempo a perder - respondeu o interpelado. - Toca a sair para ver se desentorpecemos as pernas. Vamos à barraca ver se comemos.

Para grande alegria dos pequenos, os homens saíram do avião e desapareceram. Nem sequer tinham ido atrás do caixote, onde descobririam os quatro amigos! Talvez pudessem sair já dali para pedir ajuda a alguém. Fosse como fosse, poderiam mandar recado a Jaime e à Sr.a Mannering para que não estivessem em cuidado.

- Vamos - disse João, levantando-se cautelosamente. - Temos de espreitar pela janela para ver onde estamos. Com certeza que num campo de aviação. Devemos encontrar um ou dois mecânicos e pedir-lhe-emos que nos indiquem alguma autoridade.

Comprimiram-se todos junto da janela mais próxima, mas ficaram desolados!

Não estavam em qualquer campo de aviação, mas sim num vale, num terreno amplo e plano, coberto de erva, e o vale parecia rodeado de enormes montanhas por todos os lados.

- Mas onde estaremos nós? - perguntou João. - Parece que viemos dar ao fim do mundo.

- Estamos num vale - respondeu Filipe. - Com montanhas a toda a volta. São lindas, não há dúvida, mas horrivelmente solitárias! Quem nos poderá ajudar num sítio destes? Avião que nos leve outra vez para casa não arranjamos com certeza.

Não se via uma casa ou qualquer outra construção. Do outro lado do avião a vista era precisamente a mesma: montanhas por todo o lado. Pelo que viam, estavam no sopé de todas, num vale verdejante. Que estranho! Que viriam ali fazer aqueles homens?

- E agora? Saímos, ficamos, ou quê? - perguntou Dina.

- Não sei o que pensas, Filipe, mas eu não gosto daqueles homens, nem da maneira como saíram, no meio da noite, depois daquele tiroteio, nem deste vale solitário - comentou João. - Mas, em todo o caso, parece-me melhor sairmos para explorarmos isto.

Talvez encontremos gente do campo, pastores, ou coisa parecida.

- Em que país estaremos?--perguntou Maria da Luz. - Falaremos a língua deles?

- Estou convencido de que não - respondeu Filipe. - Mas temos de esforçar-nos por nos fazermos compreender.

- Só gostava de saber o que quererão daqui aqueles homens - dizia Dina pensativa. - Isto é tão solitário! Não parece que andem metidos em coisa boa. O melhor será ver se saímos daqui enquanto podemos. Depois escondemo-nos e tentaremos descobrir alguém que possa ajudar-nos. Quando voltarmos para casa havemos de contar tudo ao Jaime.

- Boa ideia - concordou logo João.

- Quem me dera outra vez o ar livre. Está muito abafado dentro do avião.

Olharam com cuidado por todas as janelas para ver se conseguiam descobrir os dois homens mas nem sinais deles havia.

- É melhor irmos andando - opinou João. - E que fazemos nós às malas, às mantas e à Didi?

- Não podemos deixá-los aqui - respondeu Filipe. - Não queremos que eles descubram que nós viajámos no avião deles. Levamos tudo connosco.

Os quatro lá saíram do avião, dando as malas e as mantas uns aos outros. A Didi emitiu umas palavrinhas de desagrado por ser tratada como bagagem, mas sempre baixinho.

Pouco depois já os pequenos estavam fora do avião, sem saber para onde ir. João deu uma cotovelada a Filipe tão repentinamente que o fez dar um salto.

- Olha! Olha para ali!

Todos olharam e viram uma espessa espiral de fumo azul que se erguia no ar.

- Os homens acenderam lume lá adiante - disse João em voz baixa. - É melhor não irmos naquela direcção. Vamos por este caminho, se é que se lhe pode chamar caminho.

O grupinho contornou umas grandes rochas e foi dar a um riacho que gorgolejava pelo monte abaixo. Rebentava como uma nascentezinha para logo se transformar num ribeiro.

- Podíamos beber água daquela - disse Filipe. - Tenho tanta sede! Fome é que não tenho. É curioso!

- É de estarmos cansados, preocupados e sem sabermos o que fazer - respondeu João. - Bebamos com as mãos em concha. Também tenho sede.

A água, deliciosa, era muito fresca e cristalina. Todos se sentiram melhor depois de beber. Dina mergulhou um lenço no ribeiro e limpou a cara. Depois sentiu-se muito mais fresca e Maria da Luz fez o mesmo.

- O que temos a fazer é arranjar um bom lugar onde possamos esconder-nos e à bagagem - lembrou João. - Se aqueles homens se põem a andar por aqui, podem encontrar-se connosco. Para onde havemos de ir?

- Continuemos a andar - sugeriu Dina. - Pelo monte acima. Se ficarmos num lugar elevado poderemos ver o avião no vale e orientar-nos-emos. Temos é de seguir junto às árvores.

- Está bem - respondeu Filipe, e lá foram andando devagar junto às árvores. Estavam mais seguros ali. Não seria fácil descobri-los. Por outro lado, viram que já não conseguiam vislumbrar o avião.

- Para o vermos só temos de trepar a uma árvore - disse João.

- Olhem, aquilo não é uma casa?

Numa clareira estava o que parecia uma casa, mas, quando se aproximaram, verificaram que estava toda queimada, era uma ruína negra, vazia e deserta.

- Que pena! - lamentou Filipe. - Podíamos tão bem pedir ajuda aos donos desta casa. Porque terá ela ardido?

Subiram mais um bocadinho, através dum grupo de vidoeiros prateados. Viram outra construção um pouco mais acima, mas ficaram admirados e desolados ao verificar que também não passava duma ruína negra e torcida.

- Duas casas queimadas e ninguém que se veja - disse João. - É estranho. Que terá acontecido neste vale?

Ainda mais acima viram outra casa. Estaria também queimada? Foram até lá e ficaram a olhar desesperados.

- Tudo queimado - exclamou Dina. - Que coisa horrível! Que terá acontecido às pessoas que viviam aqui? Deve cá ter havido guerra, ou coisa parecida. Onde estaremos nós?

- Olhem: aquele estábulo ou lá o que é, não está muito queimado - informou João. -- Vamos ver se ainda tem tecto. Se assim for, pomos lá as nossas coisas.

Dirigiram-se para o estábulo. Parecia que as chamas tinham devorado metade e deixado a outra. O tecto estava em parte derrubado, mas atrás havia um lugar abrigado, com divisórias onde as vacas costumavam ficar.

- Estamos aqui bem - afirmou João entrando na última divisória. - O tecto aqui abriga-nos da chuva, se a houver, e há por ali umas grandes nuvens. Podemos cá pôr as nossas coisas.

- O chão está todo sujo - observou Maria da Luz, torcendo o nariz, enjoada.

- Talvez arranjemos uma vassoura ou coisa parecida para o limparmos. Depois cobrimo-lo com ervas e fetos - sugeriu Dina. - Então, se pusermos as mantas em cima, até podemos dormir aqui. Somos capazes de não encontrar hoje alguém que nos ajude. Sempre podemos passar cá a noite.

Pousaram as malas naquele canto e colocaram-lhes as mantas em cima. No topo puseram o cesto com a Didi. A catatua soltou um protesto.

- Parece-vos que a podemos soltar? - perguntou João. - Estou convencido de que, se eu lhe disser, é capaz de ficar horas seguidas empoleirada no meu ombro. Deve sentir-se muito pouco confortável ali encaixada.

- É melhor soltá-la - interveio Filipe. - Se voar para qualquer parte e os homens a virem não saberão o que ela é nem a quem pertence.

Se se puser a falar, ainda lhes prega um bom susto.

Soltaram a Didi, que ficou radiante. Saiu do cesto e voou para o ombro do João, para lhe dar bicadinhas ternas na orelha.

«Onde meteste o lenço?» perguntou. «Quantas vezes te tenho dito...»

«Pronto, Didi, pronto», interrompeu João. «Se queres ser bonita, não fales tão alto».

«Chhhhhh», fez a Didi com toda a energia. Depois calou-se e deixou-se estar quieta a bater o bico.

- E agora, que fazemos? - perguntou Filipe, sentando-se na mala. - Vamos prosseguir nas explorações, e ver se encontramos alguém que nos ajude? Preferem vigiar aqueles homens para ver se descobrimos o que vieram cá fazer, ou ficamos simplesmente aqui escondidos?

- Parece-me que o melhor é continuar a explorar isto. O que mais nos interessa é descobrir quem nos ajude. Devemos regressar a casa imediatamente, se pudermos. A tia Lia e o Jaime devem estar doidos de aflição por nossa causa - afirmou João.

- Este vale é tão bonito! - observou Dina, espreitando para fora do estábulo arruinado. - Não percebo porque não está coberto de casas, gado e carneiros. O facto é que não se vê vivalma. Nem fumo, a não ser aquele bocadinho que vem de onde os homens estão. Que mistério! Porque estarão aquelas casas todas queimadas e por que será que não há ninguém aqui?

- A verdade é que nós só explorámos um bocadinho do vale e da encosta - respondeu Filipe. - Podemos dar uma volta e talvez encontremos uma aldeia completa. Que grandes são as montanhas!

- Formam um círculo em volta do vale - observou Maria da Luz. - Onde será a passagem? Há sempre passagens nas montanhas, não há?

- Pois há - respondeu João. - Mas não me interessava pôr-me à procura duma sem saber o caminho. Vês aquela montanha?

É branca lá no alto. Deve ser neve. Por aqui já se vê como é alta.

Era realmente um bonito vale e magníficas as montanhas que o rodeavam. Mas tinha um ar solitário e deserto, e até os poucos pássaros que por ali passavam pareciam silenciosos e cautelosos.

- Aqui há um mistério qualquer - lembrou João. - Sabem, estou convencido de que nos metemos noutra aventura.

- Tolice! - exclamou Filipe. - Daqui a pouco encontramos uma quinta, pedimos ajuda, mandamos notícias, dirigimo-nos até uma estrada, vamos de carro à cidade mais próxima e de lá para um aeroporto. Vão ver que amanhã estamos em casa.

- Vão ver que não - discordou João. Maria da Luz ficou alarmada.

- E que comemos nós? - perguntou ela. - Só temos o embrulho da tia Lia, umas bolachas e chocolate. Se não formos para casa depressa morreremos de fome. Aqui nada há que comer.

Ninguém tinha pensado nisso. Que aborrecimento! Uma aventura era uma coisa, mas uma aventura sem nada que comer era muito diferente. Isso é que não podia ser.

- Não me parece realmente que isto venha a ser grande aventura - ripostou João. Mas foi realmente. Aquilo não era ainda mais do que o princípio.

 

         CONTINUAM AS EXPLORAÇÕES

As quatro crianças dirigiram-se à porta arruinada e olharam para as montanhas que as rodeavam. Parecia fecharem o vale e transformá-lo numa prisão verde. Nenhum dos pequenos tinha jamais visto montanhas tão altas. Duas ou três delas tinham, a meio, círculos de nuvens e só se lhes viam os cumes quando,' de quando em quando, as nuvens deslizavam e se dividiam!

- Que lugar solitário! - exclamou João. - Deve haver por aqui uma espécie de pássaros estranhos, embora ainda não tenha visto mais do que um ou dois, É curioso aqueles homens saberem assim aterrar neste vale, aquele relvado é realmente um belo campo de aterragem. Não deve ser a primeira vez que cá vêm.

Mas que virão cá fazer? Não parece haver grandes atractivos por aqui, nem um hotel, nem sequer uma cabana que não esteja queimada, pelo que parece.

- Pode ser que haja - refutou Filipe. - Mas olha para esta lagartixa. Nunca vi nenhuma assim. Que bonita!

A lagartixa correu junto dos pés de Filipe. O rapaz curvou-se e as suas mãos hábeis agarraram o bichinho pelo pescoço. Se o tivesse apanhado pelo rabo, este com certeza se quebraria e a lagartixa fugiria sem ele.

- Põe-na no chão, Filipe, põe! - exclamava Dina. - Que bicho horrível!

- Isso não é verdade - respondeu Filipe. - Olha para as patinhas dela, e para os deditos. Olha, Dina!

Dina soltou um guincho e empurrou Filipe. Maria da Luz e João ficaram a olhar para a lagartixa com interesse.

- Parece um dragão minúsculo - observou João. - Abre a mão para ver se ela fica contigo, Filipe.

- Está claro que fica! - respondeu Filipe, que parecia ter um poder mágico sobre os animais nos quais tocava. Abriu a mão e deixou a lagartixa descansadamente na palma. O bichinho nem tentou fugir.

- Vês? Quer ficar comigo. E há-de ficar. Como te chamas, bichinha? És capaz de ser Tixa.

Maria da Luz não pôde deixar de rir, esquecida por momentos de todas as preocupações. Que belo nome para uma lagartixa. Era mesmo do Filipe arranjar um nome assim.

- Vamos ver se consigo apanhar umas moscas para ti, Tixa - proferiu Filipe, dirigindo-se para um lugar cheio de sol onde as moscas zumbiam. Apanhou uma, segurou-a entre os dedos e estendeu-a à lagartixa. A mosca desapareceu num abrir e fechar de olhos, e a lagartixa pestanejou deliciada.

- Agora estou a ver que vais deixar que essa lagartixa habite a tua algibeira ou qualquer outra parte do teu vestuário durante séculos - asseverou Dina, enojada. - Nunca mais me chego para o pé de ti. Quando não tens um rato no pescoço, tens um sapo na algibeira, um ouriço bebé que passeia por ti, ou umas carochas. És insuportável!

- Nada de discussões - ordenou João. - Temos coisas mais importantes para nos preocuparmos.

A lagartixa enfiou-se pela manga de Filipe acima. A Didi tinha estado a observá-la com a cabeça de lado. Não apreciava muito os bicharocos de Filipe, e, às vezes, até tinha ciúmes deles.

«Lá se vai a lagartixa por água abaixo», disse ela, fazendo uma daquelas observações inesperadas, mas certas. Os outros desataram a rir. A Didi ficou satisfeita. Balançou-se dum lado para o outro, batendo o bico.

«Chhhhhhhhhh!», fez ela.

- Oh, Didi ainda bem que te trouxemos, - exclamou João. - E agora, que planos temos nós?

- Temos de continuar a explorar isto para ver se há alguém a viver neste vale - respondeu Filipe. - Se houver estamos bem. Se não houver, é que é pior. Temos de cá ficar até que nos venham salvar.

- Olha, salvar! E como queres tu que nos venham salvar se não fazem a mais pequena ideia de onde nos encontramos?

- perguntou Dina. - Não digas tolices, Filipe.

- Então estás disposta a viver aqui neste vale até ao fim dos teus dias? - perguntou Filipe.

- Cá está outra vez a Tixa a sair da outra manga. Tu é que és uma bela exploradora. Quem dera que soubesses dizer como se sai deste vale.

Dina seguia tão longe de Filipe quanto possível. Detestava aqueles bicharocos. E era pena, porque eles eram divertidos e simpáticos.

- Temos de ter cuidado para não nos perdermos - observou Maria da Luz ansiosamente. - Este vale e as encostas das montanhas são enormes. Não podemos afastarmo-nos uns dos outros.

- Pois não - concordou João. - E temos de saber voltar ao estábulo, uma vez que deixámos lá as coisas. Aqui pelo

menos, temos abrigo e as mantas para nos deitarmos.

Se ao menos tivéssemos mantimentos! As bolachas e o chocolate não vão dar para muito.

- A tua bússola vai ser-nos muito útil - observou Filipe, lembrando-se. - Escutem: se nós agora metêssemos pés ao caminho e explorássemos mais um bocado, fazendo deste estábulo uma espécie de quartel general ao qual devemos regressar?

- Boa ideia - respondeu Dina. - Mas temos de cobrir as malas e o resto para os camuflar, não vão os homens entrar aqui e verem-nas.

- Não vêem nada. Que interesse poderiam eles ter num velho estábulo em ruínas? - observou Filipe. - Bem podemos deixar aqui tudo.

Saíram do estábulo. O Sol agora inundava os cumes das montanhas, iluminando o vale. Os pequenos viram a espiral de fumo que se erguia do lume que os homens deviam ter acendido.

Então João disse:

- Só temos de conservar-nos afastados daquela direcção. Vamos por este caminho. Parece que foi em tempo um caminho daqui até outra qualquer parte. É melhor fazermos uns golpes nas árvores por que passarmos, para podermos encontrar o caminho no regresso.

A ideia agradou a Maria da Luz. Fazia-lhe lembrar os índios peles-vermelhas e os seus costumes.

João e Filipe puxaram do canivete. De cinco em cinco ou seis em seis árvores faziam um golpe até que foram dar a um bosquezito e se encontraram numa encosta coberta de flores e erva verde.

Maria da Luz ficou maravilhada com aquele tapete de flores.

- Que beleza! Nunca vi cores tão vivas. Já viste aquela florzinha azul, João? Ainda é mais azul do que o céu. E estas muito pequeninas cor-de-rosa? Tantas!

- E se nos vêem aqui neste descampado? - perguntou Dina de repente. João e Filipe olharam lá para baixo, para o vale.

Tinham subido um pedaço e estavam na encosta das montanhas.

- Lá está o avião! - exclamou João. - E, reparem, parece que vai ali um dos homens na direcção do aparelho. Deitem-se no chão, depressa!

Rapidamente, todos se estenderam ao comprido. João trazia o binóculo e levou-o aos olhos. Agora já via nitidamente que o homem era José. Tinha cara pálida, cabelo negro e oleoso, e um pequeno bigode também negro. O pescoço era grosso e todo ele era entroncado. Desapareceu no avião.

- Entrou no avião. Ir-se-á embora? - interrogou João.

- Irá cá deixar o outro? Ainda não pôs os motores a trabalhar.

Um ou dois minutos depois o homem voltou a sair, trazendo qualquer coisa que João não conseguiu distinguir. Andou na direcção do fumo. Havia ali perto um bosquezito e ele ficou encoberto pelas árvores.

- Foi ao avião buscar qualquer coisa - explicou João.

- Agora foi-se embora outra vez. É melhor irmos para outro lado porque se nós o vemos também ele poderia ver-nos se tivesse olhado para cima. Vêem aquela fossa, acolá? Vamos por ali! Lá ninguém nos vê.

Dirigiram-se para a tal fossa, coberta de sol. Devia, sem dúvida, ter sido um caminho pela montanha acima. Os pequenos seguiram por ali e chegaram a uma saliência de rocha que contornava, bastante perigosamente, parte da montanha. João foi à frente.

Afinal não era tão perigoso como parecia. Por isso, disse para os outros:

- Parece-me que não há novidade. É mais largo do que eu julgava. Venham. Isto deve ir dar a qualquer parte.

Fizeram caminho pela saliência, contornando a montanha, e chegaram a um ponto da encosta que lhes proporcionava um maravilhoso panorama do vale e arredores.

Estava completamente deserto. Não se via uma casa, um carneiro ou uma cabra. Um pouco mais acima estava uma construção negra e carbonizada que fora, com certeza, uma grande casa de quinta.

Só restavam as vigas enegrecidas e parte das paredes de pedra. Tudo o mais abatera, transformando-se numa triste ruína.

- Mais ruínas! - exclamou João, atemorizado. - Que terá acontecido a este vale tão bonito? Porque será que as casas arderam assim? Estou a começar a pensar que não há aqui vivalma além de nós quatro e dos dois homens.

- Parece-me que tens razão - respondeu Filipe. - Não se vê fumo em parte alguma, nem um único animal doméstico, um cão que seja. E não percebo porque não terá vindo gente dos vales próximos reconstruir as casas e trazer o seu gado a pastar nesta erva maravilhosa.

- Talvez este vale seja um vale maldito - lembrou Maria da Luz, arrepiada. - Parece que não estou a gostar muito disto.

Sentaram-se ao Sol, que já ia alto, sentindo, de repente, muita fome. Inesperadamente, Dina tirou bolachas e chocolate dum saco que trazia, dizendo:

- Calculei que não tardaríamos a ficar cheios de fome e resolvi trazer metade das bolachas e do chocolate que tínhamos.

Filipe ficou satisfeito:

- Tiveste uma boa ideia! Tixa, anda comer uma migalha.

Imediatamente Dina se colocou a razoável distância. Tixa saiu pelo decote da camisa de Filipe e desceu-lhe pelo peito. Era evidente que não tencionava separar-se dele.

«A Tixa foi à caça», observou a Didi, depenicando um bocado de chocolate que João tinha na mão.

«Dá cá isso, Didi», gritou-lhe João. «Que modos são esses?»

«Foi à caça, foi à caça», continuou a Didi, que parecia não tirar aquilo da cabeça.

Depois do chocolate e das bolachas ficaram cheios de sede.

- Quem me dera que encontrássemos qualquer coisa para beber, água fresca e cristalina como a daquela nascente - desejou João.

«À caça», respondeu a Didi.

«Combinado. Vais tu à caça dela», proferiu João.

- Não poderíamos dormir um bocadinho? - perguntou Dina, cheia de sono. - Está-se aqui tão bem.

- Só um bocadinho - respondeu Filipe. - Parece-me que estamos aqui seguros. Os homens não se lembrarão de subir até cá acima.

- Sabem uma coisa? Parece-me que ouço água a correr - disse Maria da Luz, que estava deitada de costas com a carita sardenta iluminada pela luz do Sol. - Não é muito perto, mas escutem.

Puseram-se todos à escuta. Não havia dúvida de que ouviam qualquer coisa além do vento. Que seria? Parecia realmente o gorgolejar duma nascente.

- Vamos investigar - declarou João. - Vocês, se quiserem, fiquem aqui. Vou eu e o Filipe.

- Isso não! - exclamou Maria da Luz. - Antes queremos ir com vocês. Poderemos perder-nos.

E partiram os quatro na direcção daquele estranho ruído. Subiram mais alto e chegaram a uma parte rochosa, íngreme e difícil de subir. Mas o ruído ouvia-se agora muito mais próximo.

- Assim que virarmos ali, já vemos o que será - declarou João. - Venham!

Subiram um bocadinho mais e o caminho foi dar subitamente a um rochedo. Do outro lado alargava um pouco e os quatro pequenos ficaram a olhar estarrecidos para o que fazia aquele ruído.

Era uma cascata, e que grande! A água caía duma grande altura, quase perpendicularmente, pela encosta da montanha e formava uma cascata muito abaixo deles, enchendo tudo de espuma que se espalhava no ar. Embora estivessem a uma boa distância daquela massa de água, ficaram com os rostos molhados só de estarem ali.

- Que panorama soberbo! - exclamou Filipe maravilhado. - Nunca tinha visto uma queda de água tão grande. Faz um barulho! Quase tenho de gritar. É formidável!

Lá em baixo, a queda de água tornava-se um rio serpenteante que contornava o sopé da montanha. Os pequenos não conseguiam ver aonde ia dar. A água que caía cintilava, formando, aqui e ali, pequenos arco-íris. Maria da Luz nunca tinha visto coisa alguma que se lhe comparasse.

Ia lambendo os salpicos que lhe chegavam à cara e lhe escorriam até à boca.

- Estou a beber a espuma! - disse. - Mas, já viram? Naquela rocha está uma pocinha de água, da espuma que cai ali. Será boa para beber?

Era clara e brilhante. João provou-a e disse:

- É óptima. Podem beber.

Ficaram um tempo a ver a queda de água. A Didi estava entusiasmada. Por qualquer razão aquilo encantava-a doidamente. Voou até perto e deixou-se ficar toda salpicada, palrando alto.

- É um espectáculo magnífico! - dizia Dina sem tirar os olhos da água que caía com estrondo. - Era capaz de ficar aqui um dia inteiro a olhar.

- Amanhã voltaremos cá - respondeu João. - Agora parece-me que é melhor voltarmos ao estábulo. Vamos! É evidente que não há aqui alguém que possa ajudar-nos.

 

         QUE ESTARÃO TRAMANDO OS DOIS HOMENS?

Maria da Luz estava um tanto receosa de que se perdessem no regresso. Mas os rapazes tinham fixado tudo. Podiam ter surgido dificuldades depois de entrarem no bosque, mas aqui as árvores golpeadas guiaram-nos no bom caminho.

Viram que o avião ainda se conservava no vale. Os homens deviam andar por ali. Tinham de ter cuidado e João recomendou à Didi que estivesse calada. A queda de água parecia ter-lhe subido à cabeça e o animal não parava de fazer barulho, cantando e palrando.

- Cá está o nosso estábulo - exclamou Maria da Luz aliviada. Voltar para ali depois daquela enorme encosta da montanha era quase como voltar para casa.

- Oxalá as nossas coisas estejam lá a salvo.

Entraram. Tudo estava conforme eles tinham deixado. Belo!

O Sol começava já a descer. Deviam ser horas do chá, e os pequenos ficaram hesitantes sem saber se deveriam ou não acabar com as bolachas e o chocolate.

- É melhor não - opinou João. - Se logo à noite tivermos muita fome, então comemo-los. Mas, esperem aí: e o farnelzinho que a tia Lia nos arranjou? Ainda o temos, não temos? Não o comemos ainda, pois não?

- Claro que não - respondeu Dina. - Estava a poupá-lo. Temos tão pouco que pensei que seria melhor guardá-lo para mais tarde.

- Mas o pão vai ficar todo seco - alegou Filipe, que sentia um verdadeiro vazio no estômago.

- Depois para nada serve. Bem podíamos comê-lo enquanto está tragável.

- Então podemos comer o pão e deixarmos para amanhã o bolo, as bolachas e o chocolate - respondeu Dina. - Mas primeiro temos de pôr isto em condições de se poder cá dormir. Está imundo.

- Não quero dormir aqui - atalhou Maria da Luz. - Não gosto disto. Porque não dormimos lá fora? Temos os impermeáveis para nos deitarmos em cima, quatro mantas e podíamos tirar umas roupas da mala para nos servirem de almofadas.

- E se vier uma carga de água? - observou Dina.

- Talvez eu consiga improvisar um telhado - disse João, passando uma vista de olhos pelo estábulo em ruínas. - Há ali uns postes velhos e um bocado de chapa de ferro ondulada. Se Filipe me desse uma ajuda, eu podia pôr a chapa de ferro em cima dos velhos postes.

Os dois rapazes tentaram pôr isto em prática, mas a chapa não estava bem segura.

As raparigas ficaram horrorizadas só de pensar que o vento podia atirá-la para cima deles enquanto dormiam.

- Se ao menos encontrássemos uma gruta! - lembrou Maria da Luz.

- Mas não encontramos - respondeu João um pouco azedo por ver que todos os seus esforços com os postes e a chapa eram baldados. - Seja como for, não me parece que venha chuva. O céu está tão limpo... Se vier uma carga de água, temos de entrar na última divisória do estábulo e pronto.

O trabalho com os postes tinha-lhes aumentado mais o apetite. Dina abriu o embrulho e tirou o pão e enormes fatias de bolo. Comeram o pão em silêncio, saboreando cada dentada.

- Só gostava de saber o que estarão aqueles homens a fazer - disse finalmente João. - Já não vejo fumo. E se eu fosse sorrateiramente até ao avião, sempre escondido, para ver se os via?

- É uma ideia - respondeu Filipe. - Tens a certeza de que sabes bem o caminho de ida e volta? Por amor de Deus, não te percas!

- Se me perder, peço à Didi que imite o apito do comboio - disse João sorrindo. - Ficam logo a saber onde estamos.

- Se tiveres oportunidade, espreita para dentro do avião e vê se por lá há alguma coisa de comer - lembrou Dina. E João lá foi com a Didi no ombro. Maria da Luz não gostou de o ver ir só. Bem desejaria ir com ele, mas sabia que ele não o permitiria.

- Vamos nós tratar das camas - disse Dina, que gostava de estar sempre ocupada com qualquer coisa. - Vamos, Luzinha, ajuda-me a abrir as malas para arranjarmos qualquer coisa que nos sirva de almofada e temos de trazer também os impermeáveis.

Na ausência de João, os três estiveram muito ocupados. Depressa ficaram com uma confortável cama feita sobre a erva, debaixo do grande vidoeiro. Primeiro puseram os impermeáveis para se preservarem da humidade. Depois uma manta para dar conforto. Quatro montes de roupas de lã serviam de almofadas, e, por último, as outras três mantas para os cobrir.

- Parece-me que está mesmo bem - aprovou Dina. - Puxa essa manta mais para aqui, Maria da Luz. Isso mesmo. Tu, Filipe, dormes do lado de fora. Não quero ter essa lagartixa a andar em cima de mim de noite.

- A Tixa não faz mal - disse Filipe, tirando a lagartixa duma manga. - Pois não, Tixa? Faz-lhe uma festinha, Dina. É tão simpática.

- Quieto, Filipe! - ordenou Dina, dando um gritinho, por o irmão lhe estender a lagartixa na mão. - Dou-te uma bofetada se te atreves a deixar a lagartixa tocar-me!

- Não a irrites, Trunfa - pediu Maria da Luz. - Empresta-me a Tixa. Eu gosto dela.

Mas a Tixa não quis ir para a Maria da Luz, com grande aborrecimento desta. Correu pela manga de Filipe acima e desapareceu. Depois foram aparecendo aqui e ali uns altinhos na camisola dele que permitiam localizá-la.

Dina olhou para o céu. Estava limpo. O Sol já se tinha posto. Cedo apareceram as primeiras estrelas. A pequena estava cansada e irritável.

Os outros estavam na mesma.

O facto de terem dormido pouco e o susto que tinham apanhado estavam a produzir efeito. Maria da Luz viu que dum momento para o outro podia rebentar uma violenta discussão entre Dina e Filipe.

Então, levou Dina consigo para a nascente, lavaram-se na água fresca e cristalina e beberam. Depois deixaram-se ficar ali uns momentos para gozarem a beleza do vale e das montanhas que o rodeavam.

- Parece que crescem para nós - observou Maria da Luz. - Que se aproximam.

- Isto é que tens uma imaginação! - exclamou Dina. - E agora vamos embora. O João deve estar a chegar e eu estou morta por saber o que ele tem para contar.

Regressaram. Filipe deitara-se sobre os casacos e as mantas e bocejava.

- Já estava decidido a ir à vossa procura. Demoraram-se tanto! O João também ainda não voltou. Oxalá nada lhe tenha acontecido.

Maria da Luz ficou alarmada. Adorava o irmão. Por isso, subiu a uma rocha de onde podia vê-lo. Mas virou-se para os

outros quase imediatamente.

- Lá vem ele! - gritou. - Traz a Didi no ombro. Saltou da rocha e correu ao encontro de João. Ele sorriu-lhe e a Didi voou para o ombro de Maria da Luz.

- Já estava em cuidado, João - exclamou ela. - Aconteceu alguma coisa? Viste os dois homens? Que estavam a fazer?

Chegaram ao pé de Dina e Filipe. João olhou para a cama e estendeu-se ao comprido:

- Que cama soberba! Isto sim. Estou cansado!

- Então, João, aconteceu alguma coisa? - perguntou Filipe.

- Praticamente nada - declarou João. - Aproximei-me do avião tanto quanto pude, mas não me atrevi a ir mesmo até lá com medo de ser visto. Não se esqueçam que está num descampado. Dos homens, nem sinal.

- A Didi portou-se bem? - perguntou Maria da Luz ansiosamente. - Fiquei com medo que ela guinchasse ou coisa parecida e chamasse a atenção para ti.

- Pois, portou-se muito bem - respondeu João, coçando a cabeça ao animal. «Foi ou não foi, Didi?» -

Ora eu pensei que o que havia a fazer a seguir era tentar descobrir onde estavam os homens, e de onde vinha aquele fumo. Por isso, fui andando na direcção dele, conservando-me o mais possível encoberto com os arbustos e árvores. Deviam ter voltado a acender o lume, porque se via no ar um rolo de fumo espesso e negro.

- E viste os homens? - perguntou Dina.

- Primeiro ouvi-lhes as vozes - respondeu João. - Então, pensei que seria uma boa ideia subir a uma árvore e observá-los pelo binóculo. Trepei e fiquei no cimo de uma arvorezinha. Lá em baixo, não muito longe, perto de uma cabana em ruínas, estavam os dois homens, cozinhando qualquer coisa numa fogueira.

- Céus! - exclamou Maria da Luz. - Não tiveste medo que te vissem?

- Não. A árvore escondia-me bem - respondeu João. - Eu não fazia o mais pequeno ruído. Peguei no binóculo e pus-me a ver. Os homens estavam a estudar um mapa qualquer.

- Para quê? - perguntou Dina admirada. - Eles devem conhecer muito bem esta parte do mundo, senão não tinham aterrado com tanta facilidade.

- Eles que vieram aqui para alguma coisa foi - respondeu João. - Não sei o que quererão, eles lá sabem. Devem andar à procura de alguém, ou de alguma coisa, e o mapa deve mostrar-lhes o caminho a seguir. Ouvi um deles dizer: «Por aqui!» e «depois por aqui acima», como se estivessem a planear qualquer expedição.

- Se nós fôssemos atrás deles ficaríamos a saber tudo - lembrou Dina.

- Isso não, muito obrigado - respondeu João. - Não serei eu quem vá escalar montanhas atrás daqueles homens. Têm cara de poucos amigos. A minha ideia é outra: deixamo-los partir e vamos inspeccionar a cabana deles e o avião. Talvez encontremos alguma coisa que nos diga quem são e o que procuram.

- Isso! Havemos de fazer isso - apoiou Maria da Luz, cheia de sono. - Talvez possa ser amanhã. Oxalá que sim. O João fica a observá-los com o binóculo e quando eles desaparecerem já nós podemos inspeccionar tudo bem.

- Já contei tudo - disse João, bocejando. - Nada mais. Os homens enrolaram o mapa e ficaram a falar baixo. Então eu desci da árvore, voltei, e aqui estou.

- E se nos preparássemos para dormir? - alvitrou Maria da Luz.- Nem consigo ter os olhos abertos. Aqui estamos seguros, não estamos?

- Estou convencido disso - respondeu João, satisfeito por se estender. - Seja como for, a Didi avisa-nos se vier alguém. Boa noite.

- Boa noite - disseram os outros. Filipe acrescentou mais umas palavras.

- Ó Dina, não grites se sentires alguma aranha, rato ou ouriço a passar por ti. Aqui deve haver muitos.

Dina deu um gritinho e cobriu logo a cabeça. Fez-se silêncio. Adormeceram todos.

 

        UMA MARAVILHOSA DESCOBERTA

Depressa as estrelas cintilaram no céu. Um mocho piava e o vento segredava qualquer coisa às árvores, lá em cima. Mas as quatro crianças não viam as estrelas, nem ouviam o mocho ou o vento. Estavam estafadas. Dormiam profundamente e, embora Dina estivesse quase a ponto de sufocar, com a manta a cobrir-lhe a cabeça, não acordou, nem sequer se mexeu.

A Didi também dormiu com a cabeça debaixo da asa. Estava empoleirada num ramo do vidoeiro que ficava exactamente por cima da cabeça de João. Acordou ao ouvir o mocho e respondeu-lhe, piando também baixo. Depois voltou a meter a cabeça debaixo da asa e adormeceu novamente.

Quando rompeu a madrugada ainda os pequenos dormiam. A Didi acordou antes deles. Estendeu primeiro uma asa, depois a outra. Encrespou as penas da cabeça e sacudiu-as. Depois coçou pensativamente o pescoço e pôs-se a olhar para Filipe.

A lagartixa também tinha acordado e corria pela manta que cobria Filipe. Chegou até ao ponto onde os pés deste estavam a espreitar e desapareceu por debaixo da manta.

Os olhos da Didi ficaram a observar os altinhos que ela fazia na manta, subindo pelo Filipe acima para desaparecer pelo pescoço.

«Limpa os pés», fez de repente a Didi, dirigindo-se à lagartixa. «Quantas e quantas vezes te tenho dito que limpes os pés?»

A Tixa assustou-se. Saltou do pescoço de Filipe para João e ficou meia escondida no cabelo dele, olhando para as árvores, embora sem conseguir localizar nada. A Didi, aborrecida por ver a bichinha atrever-se a pôr os pés no seu querido dono, deu um grito furioso e desceu da árvore, decidida a dar-lhe uma bicada, mas a lagartixa desapareceu outra vez rapidamente debaixo da manta.

A Didi veio aterrar pesadamente no estômago de João, dando uma bicada severa na parte da manta que cobria a perna direita de Filipe, por lá ter visto um altinho móvel, indício de que a lagartixa ia a correr por ali abaixo. João e Filipe acordaram sobressaltados.

Ficaram admirados por verem as folhas verdes das árvores oscilando por cima deles. Depois viraram a cabeça e deram de cara um com o outro. Num abrir e fechar de olhos lembraram-se de tudo.

- Não havia meio de perceber onde estava - disse João, sentando-se. «Ah, és tu, Didi! Vai-te embora. Toma lá umas sementes de girassol e deixa-te estar calada senão acordas as raparigas».

Meteu a mão na algibeira e tirou de lá umas sementes chatas que a Didi muito apreciava. O animal voou para o ramo, fazendo estalar duas com o bico.

Os rapazes começaram a falar baixo para não incomodarem as irmãs, que dormiam ainda descansadamente.

- Agora sim, já me sinto melhor - exclamou João, esticando os braços. - Ontem à noite estava tão cansado que até me apetecia chorar. E tu, Filipe?

- Eu também já me sinto bem - respondeu Filipe, bocejando muito. - Mas ainda tenho sono. O que vale é que não é preciso levantarmo-nos já para o pequeno almoço.

Não vai tocar gongo algum para nos chamar. Por isso vamos dormir outra soneca.

Mas João estava esperto de mais para voltar a dormir. Deslizou da manta para fora e foi lavar-se à nascente. Então, olhou para baixo e viu a espiral de fumo tal como na véspera.

«Aqueles fulanos já andam a pé», disse para consigo próprio. «Não deve ser muito cedo. O Sol já vai bastante alto. Bolas! Esqueci-me de dar corda ao relógio ontem à noite».

As raparigas depressa acordaram e ficaram muito admiradas ao verificarem que tinham dormido profundamente durante toda a noite, sem praticamente mudarem de posição. Dina pôs-se à procura da lagartixa com o olhar.

- Não há novidade - disse-lhe Filipe amavelmente. - Está numa das minhas peúgas. Eu gosto de lhe sentir as patitas na minha perna.

- És um parvo! - exclamou Dina. - Vou lavar-me. Depois tomaremos o pequeno almoço: bolo e bolachas, uma vez que nada mais temos.

Infelizmente tinham tanta fome que devoravam o bolo, as bolachas e o resto do chocolate. Acabaram com os mantimentos.

- Temos de nos arranjar de qualquer maneira, seja ela qual for - afirmou Dina. - Nem que tenhamos de comer a tua lagartixa, Filipe.

- Ficava na cova dum dente, não era, Tixa? - disse Filipe. - Mas que é aquilo?

«Aquilo» era o som de vozes. Os quatro pequenos levantaram-se a toda a pressa e, arrastando com eles as mantas, impermeáveis, e as outras roupas, correram a esconder-se no estábulo. Amontoaram tudo na última divisória e acocoraram-se sem fôlego.

- Teremos lá deixado alguma coisa? - segredou João.

- Não me parece - respondeu Filipe muito baixo. - A erva é que está um bocado pisada. Esperemos que eles não reparem.

Havia uma brecha numa parede do velho estábulo e João pôs-se a espreitar por ela. Tinham fugido mesmo a tempo.

Os homens vinham subindo devagar na direcção dos vidoeiros, conversando. Chegaram ao local onde os pequenos haviam passado a noite anterior.

Atravessaram-no, mas um deles pôs-se a olhar para trás com ar intrigado. Fixou o local que os pequenos tinham ocupado. O que disse não conseguiu ouvir-se, mas apontou para a erva calcada. Então os dois voltaram para trás e ficaram a olhar muito sérios.

- Quem terá feito isto? - perguntou o homem que se chamava José.

- É estranho - murmurou o outro. Tinha uma cara gorda, os lábios grossos e uns olhinhos pequenos e muito juntos. - Talvez tenha sido um animal qualquer.

- Pois olha que este espaço dava para um ou dois elefantes!- exclamou José. - E se fôssemos investigar isso?

O outro consultou o relógio e depois disse:

- Não, agora não, talvez quando voltarmos. Temos muito que fazer hoje. Anda. Não deve ser nada.

Continuaram a andar e depressa desapareceram no arvoredo. Então João disse aos outros:

- Vou subir a uma árvore com o binóculo e ver para onde eles vão. Temos de nos certificar de que estão longe antes de virmos cá para fora.

Saiu cautelosamente do estábulo e deu uma corrida na direcção de uma árvore alta. Como trepava muito bem, num abrir e fechar de olhos ficou lá em cima. Sentou-se num ramo que balouçava, enlaçando-o bem com as pernas. Depois pôs-se a espreitar pelo binóculo.

Assim que os homens chegaram à zona da encosta que estava coberta de erva e flores, João viu-os logo. Não seguiram na mesma direcção que os pequenos haviam tomado na véspera, mas mantiveram-se na clareira por um tempo. João continuava a segui-los com o binóculo. Então tiraram um mapa ou papel, abriram-no e pararam a observá-lo.

«Parece que não sabem bem o caminho», pensou o rapaz. «Lá vão eles outra vez».

Começaram a subir uma encosta íngreme e João ficou a observá-los enquando pôde. A certa altura contornaram uma rocha e desapareceram por trás dela. O pequeno desceu da árvore.

- Até pensámos que tinhas adormecido na árvore - exclamou Dina impaciente. - Estou farta de esperar neste estábulo imundo. Os homens já se foram?

- Já. Agora estão bem longe - informou João. - Podemos muito bem sair para ver isto. Eles não foram pelo caminho que nós tomámos. Vi-os subir a montanha por uma encosta muito íngreme. Vamos, toca a sair daqui enquanto é tempo.

- Podíamos ir ver o avião por dentro - alvitrou Dina. Largaram a toda a pressa para o vale e chegaram ao pé

do avião, que lá continuava, apoiado nas suas enormes rodas. Os quatro subiram a escada que ia dar à carlinga.

- O caixote já cá não está - informou João. - Não sei como conseguiram tirá-lo de cá. Devia estar vazio senão os dois homens nunca teriam podido com ele. Foi ali que nos escondemos naquela noite!

Filipe e João passaram uma busca a todo o avião para ver se encontravam alimentos ou quaisquer informações. Mas nada havia ali de comer, nem um pedacito de papel que lhes pudesse dar uma ideia de quem fossem os homens ou do que viriam ali fazer.

Saíram todos outra vez.

- Bolas! - exclamou João. - Estamos na mesma! Nem um pedacito de chocolate! Vamos morrer à fome.

- Se conseguíssemos explorar aquela cabana onde viste os homens a noite passada, ia apostar em como encontraríamos muito que comer - lembrou Dina. - Não te lembras de que eles disseram: «Vamos à cabana comer qualquer coisa?» Se não houvesse lá provisões eles não podiam ir comer, por isso deve ser lá que eles as guardam.

Esta ideia animou-os. João foi à frente, para os guiar até onde vira os homens sentados junto da fogueira na noite anterior.

O lume estava quase apagado, embora ainda fumegasse um bocadinho.

A cabana ficava mesmo ali. Estava arruinada mas não queimada como as outras que eles tinham visto. Tinha sido toscamente reparada. A única janela que tinha parecia sólida e era tão pequena que não permitiria a alguém entrar ou sair por ela se quisesse. A porta também era sólida. Estava fechada.

- Fecharam-na à chave - observou João, dando-lhe um empurrão. - E levaram a chave. Quem pensariam eles que poderia cá vir tirar-lhes alguma coisa? Nem sabem da nossa existência.

- E se espreitássemos pela janela? - sugeriu Maria da Luz. - Era fácil vermos o que há lá dentro.

João içou Filipe. Este esteve um tempo a olhar lá para dentro, sem conseguir distinguir nada porque o interior da cabana estava escuro. A única luz entrava por aquela janela.

- Agora já vejo melhor - disse por fim. - Dois colchões, mantas, uma mesa e uma cadeira, um fogão pequeno. Olha! Olhem para aquilo!

- Que é? - gritaram todos impacientes. Maria da Luz pôs-se aos saltos para ver se também distinguia alguma coisa pela janela.

- Que quantidade enorme de provisões! - exclamou Filipe. - Latas e mais latas. Boiões e potes. Até me fazem crescer água na boca!

João já não podia mais com o peso de Filipe. Fê-lo saltar para baixo.

- Agora iça-me tu - disse ele, e Filipe assim fez. Os olhos de João quase lhe saíram das órbitas quando viu tanto comer, tudo arrumado em prateleiras que ocupavam uma parede da cabana.

- É uma espécie de armazém ou abrigo - disse, saltando das costas de Filipe. - Se ao menos pudéssemos apanhar umas coisas daquelas! Para que terão eles levado a chave? Que gente desconfiada!

- Não será possível entrar pela janela? - perguntou Filipe, e ficou-se a olhar para lá ansiosamente. - Impossível! Nem a Maria da Luz lá cabe. E de mais a mais não se pode abrir. É um vidro metido num caixilho de madeira sem fecho. Tinha de se partir, e isso mostrar-lhes-ia que estava aqui alguém.

Os pequenos puseram-se a andar tristemente à volta da cabana. Depois foram ver se haveria por ali mais qualquer coisa. Mas não havia.

- Parece-me que o melhor será voltarmos ao nosso estábulo, tirarmos de lá as coisas e escondermo-las em qualquer outra parte para o caso desses homens resolverem passar uma busca por lá quando voltarem - disse João. - Irrita-me tanto deixar a comida toda nesta cabana! Estou cheio de fome.

- Também eu - disse Maria da Luz. - Parece-me que até era capaz de comer as sementes de girassol da Didi.

- Toma - disse João, oferecendo-lhe uma mão-cheia. Não são venenosas.

- Agradecida - respondeu Maria da Luz. - A fome também não é assim tanta.

Filipe voltou à porta da cabana e ficou-se a olhar para ela. - Gostava tanto de te deitar abaixo - explodiu. - Obstáculo que nos separas duma belíssima refeição, toma lá.

Para grande divertimento dos outros pregou um formidável pontapé na porta, e depois outro.

A porta abriu-se de par em par. Os pequenos sustiveram a respiração de admirados e quedaram-se de olhos esbugalhados até que João disse:

- Afinal estava fechada, mas não à chave. Fomos uns palermas em pensar que estava fechada à chave! Agora vamos banquetear-nos !

 

         A DIDI FALA DE MAIS

Meteram-se todos dentro da cabana mal iluminada e ficaram a contemplar alegremente as pilhas de coisas que estavam nas prateleiras.

- Bolachas! Língua! Ananás! Sardinhas! Leite! Há de tudo!

- Por onde havemos de começar? - perguntou João.

- Espera lá. Não devemos desarrumar as prateleiras de maneira que eles descubram que esteve aqui alguém - explicou Filipe. - É melhor tirarmos as latas de trás e não as da frente. E não vamos comer aqui a fruta e as outras coisas, levamos tudo connosco.

Então João falou devagar:

-Parece-me... sim, parece-me boa ideia levarmos daqui tanto quanto pudermos, para o caso de termos de ficar bastante tempo neste vale. Até devemos encarar a hipótese de estarmos completamente perdidos e separados do mundo que conhecemos e de ninguém vir em nosso auxílio senão daqui a muito tempo.

Todos ficaram com ar solene e Maria da Luz fez também uma cara assustada.

- Tens razão, Pintinhas - respondeu Filipe. - Vamos levar de cá tudo quanto pudermos. Olhem, estão aqui muitos sacos velhos. E se enchêssemos uns dois deles de latas e os carregássemos a meias? Era a maneira de levarmos mais coisas.

- Boa ideia - exclamou João. - Aqui temos um saco para ti e para Dina, e aqui está outro para mim e para a Maria da Luz.

Filipe empoleirou-se numa das cadeiras e meteu a mão por trás da primeira fila de latas. Foi atirando para baixo lata após lata que os outros iam metendo nos sacos. Que fornecimento havia naquela cabana!

Os sacos depressa ficaram cheios e muito pesados para serem transportados. Sabia bem pensar em todos aqueles petiscos que haviam de comer. João encontrou também um abre-latas e meteu-o na algibeira.

Filipe lembrou então:

- Antes de nos retirarmos, vamos passar uma vista de olhos por isto para ver se descobrimos quaisquer papéis ou documentos que nos digam alguma coisa sobre estes misteriosos aviadores.

Mas, embora passassem revista a todos os cantos e até debaixo do monte de sacos, nada encontraram.

- Só gostava de saber o que terão eles feito àquele caixote que vinha no avião - disse João. - Ainda não o encontrámos. Também gostava de lhe dar uma olhadela.

O caixote não estava na cabana. Por isso, os pequenos resolveram sair e passar uma busca às imediações e, numa moita de árvores novas e arbustos, cobertos com um oleado, encontraram uns caixotes.

- É boa! - notou João, retirando o oleado. - Olhem para isto: tantos e todos vazios! Que quererão eles cá meter?

- Sabe-se lá! - respondeu Filipe. - Mas também quem se lembraria de trazer caixotes vazios para este vale deserto na esperança de encontrar com que os encher? Só doidos.

- Não me digas que estás convencido de que aqueles homens são doidos - exclamou Maria da Luz alarmada. - Que havemos de fazer?

- Conservamo-nos afastados deles - disse Filipe. - Vamos. A porta ficou fechada? Ficou. Então, mãos à obra, Dina, pega na ponta dum dos sacos e toca a andar para o nosso abrigo.

Tropeçando sob o peso dos sacos e chocalhando as latas, os pequenos dirigiram-se devagar para o estábulo, onde tinham escondido as malas. João largou rapidamente o saco e correu a trepar à árvore onde já estivera, para perscrutar tudo com o binóculo e ver se os homens viriam de regresso. Mas nem sequer sinais deles havia.

- Por enquanto não há novidade - disse, voltando para o pé dos outros. - Agora toca a comer. Vai ser a refeição mais apetecida de toda a vida, porque nunca tivemos tanta fome.

Escolheram uma lata de bolachas e abriram-na. Tiraram de lá umas quarenta, certos de que cada um comeria pelo menos umas dez. Abriram uma lata de língua que João cortou às fatias com o canivete. Depois uma lata de pedaços de ananás e outra de leite.

- Que banquete! - exclamou João, sentando-se ao sol, satisfeito. - Vamos a isto!

Nunca qualquer coisa lhes soubera tão bem.

- Mmm-mm-mmm - fez Maria da Luz, e com isto queria dizer: «Que maravilha!» A Didi imitou-a logo:

«Mmm-mm-mmm! Mmm-mm-mmm!» Não se disse palavra a não ser quando a Dina viu a Didi mergulhar na lata de ananás.

- João! Olha a Didi! Vai comer tudo!

A Didi retirou-se para o ramo da árvore que lhes ficava por cima, levando um grande pedaço de ananás na pata e repetindo:

«Mmm-mm-mmm! Mmm-mm-mmm!»

Dina foi à nascente lavar a lata de leite vazia. Depois encheu-a de água fresca e regressou. Despejou a água sobre o sumo de ananás que ficara no fundo da lata e agitou-a. Depois ofereceu a todos um refresco de ananás para terminar!

- Agora sim, já me sinto melhor - disse João, desapertando o cinto e alargando-lhe uns dois ou três furos. - Ainda bem que te irritaste e te puseste aos pontapés àquela porta, Filipe. Estávamos convencidos de que a tinham fechado e levado a chave.

- Que tolos! - exclamou Filipe, deitando-se e fechando os olhos. - Que fazemos nós às latas vazias?

- Tu, nada - respondeu Dina. Eu encarrego-me de as enfiar numa toca de coelho. Os coelhos até as podem lamber.

Pegou numa lata, mas logo soltou um grito. Deixou-a cair e a lagartixa fugiu de lá. Estivera deliciada a cheirar os restos de língua que lá tinham ficado. O bichinho correu para Filipe e desapareceu-lhe pelo pescoço abaixo.

«Não faças cócegas, Tixa», murmurou Filipe ensonado.

- Eu vou vigiar para o caso de os homens voltarem - disse João, voltando a trepar à árvore. Maria da Luz e Dina encheram uma toca de coelho com as latas vazias. A Didi ficou-se a olhar admirada para as latas no buraco depois foi até lá e pôs-se a depenicar numa delas.

«Isso não, Didi», disse-lhe Maria da Luz. - João, leva a Didi contigo para a árvore.

João assobiou. Didi voou logo para ele e empoleirou-se-lhe no ombro, satisfeita, enquanto o pequeno subia pela árvore, mudando de posição sempre que um ramo ameaçava deitá-lo abaixo.

- É melhor trazermos cá para fora malas e tudo o mais, para estarmos prontos para as escondermos noutro sítio sem ser o estábulo - observou Dina. - Se os homens resolverem passar aqui uma busca quando voltarem, é mais do que certo que vão ver o estábulo.

E as duas puseram tudo cá fora, com a Dina sempre a resmungar porque o Filipe parecia dormir e não mexia um dedo para as ajudar. João desceu da árvore, dizendo:

- Ainda não se vêem sinais deles. Mas temos de descobrir um sítio onde esconder tudo isto.

«Tudo isto», repetiu a Didi.

«Cala-te», ordenou João. Pôs-se a olhar para todos os lados, mas nada conseguiu descobrir. Foi então que teve uma ideia.

- Já sei onde há-de ser.

- Onde é? - perguntaram as raparigas.

- Vêem aquela árvore, ali? Aquela que tem uns ramos grandes e largos? Podemos subir, levar as coisas para cima e esconder-nos na folhagem.

Ninguém se lembraria de nos procurar ali. Nem a nós nem às nossas coisas.

As raparigas puseram-se a olhar para aquela árvore cheia de folhas. Era um castanheiro-da-índia, escuro e recamado de folhas brilhantes. Um óptimo esconderijo.

- E como havemos de levar para lá as malas? - perguntou Dina. - Não são muito grandes mas ainda pesam bastante!

João desatou uma corda que trazia à cintura. Andava quase sempre com uma.

- Aqui têm! Eu subo à árvore e deito a corda cá para baixo. Vocês enfiam-na nas pegas das malas e atam-na. Eu puxo e pronto!

- Vamos acordar o Filipe - disse Dina, que não via por que razão o irmão não havia de ajudar a içar as coisas para a árvore. Foi abaná-lo. Ele acordou sobressaltado.

- Vem ajudar-nos, preguiçoso. João encontrou um esconderijo esplêndido para nós e para as coisas - afirmou Dina.

Filipe veio juntar-se aos outros e concordou que era realmente um belo lugar. Propôs-se subir com João e ajudar a içar as malas.

A Didi estava interessadíssima na tarefa. Quando João fez descer a corda, o animal voou para ela e deu-lhe uma bicada tal que João a deixou fugir.

«.Didi, para que fizeste isso, patifa?», gritou-lhe João. «Agora tenho de descer e voltar a subir! Grande peste!»

A Didi desatou às gargalhadas. Esperou nova oportunidade e voltou a puxar a corda ao pobre João.

João chamou-a com rudeza. O animal veio, batendo o bico, pouco satisfeito com o tom de voz do dono. Este deu-lhe uma boa pancada no bico.

«Traste! Grande traste! Vai-te embora! Não te quero aqui. Vai-te embora!»

A Didi voou, palrando desanimada. João raramente se zangava com ela, mas o bicho sentia que desta vez era a sério.

Refugiou-se no estábulo escuro e foi empoleirar-se lá no alto, numa trave enegrecida, balouçando-se de um lado para o outro.

«Pobre Didi! Pobre Didi!», resmungava. «Lá se vai a Didi!»

João e Filipe depressa içaram tudo, instalando as coisas na bifurcação dos grandes ramos. Depois, João trepou um bocadinho mais alto e levou o binóculo aos olhos. O que viu fê-lo chamar apressadamente as raparigas.

- Vêm aí os homens! Subam depressa. Vejam lá nada deixem aí.

As raparigas deitaram um olhar rápido em redor. Nada viram. Maria da Luz trepou apressadamente pela árvore acima e, logo atrás dela, Dina. Instalaram-se em ramos largos e ficaram a olhar para baixo. Nada viam porque a folhagem era muito espessa. Ora se eles não viam para baixo, ninguém poderia ver para cima. Estavam seguros.

Depressa começaram a ouvir vozes. Os homens aproximavam-se. Os pequenos ficaram calados que nem ratos. Maria da Luz sentiu uma vontade enorme de tossir e tapou a boca com a mão.

Lá em baixo os homens faziam uma busca ao velho estábulo. Mas nada encontraram, porque os pequenos já tinham tirado tudo. Voltaram a sair e ficaram a olhar para a erva amachucada. Estavam muito intrigados.

Então o que se chamava José disse:

- Vou dar mais uma vista de olhos ao estábulo.

Desapareceu no escuro mais uma vez. Ora a Didi ainda estava empoleirada na trave enegrecida, toda amuada, e ficou aborrecida por voltar a vê-lo.

«Limpa os pés! Quantas vezes te tenho dito que feches a porta!», disse severamente.

O homem deu um salto e pôs-se a olhar para todos os lados. A Didi estava escondida num cantinho do tecto e ele não a via. Procurou em todos os outros cantos, sem querer acreditar no que ouvia. Então, gritou para o companheiro:

- Olha! Houve alguém que me mandou limpar os pés e fechar a porta.

- Não estás bom da cabeça! - afirmou o outro. - Não estás a regular bem.

«Bem, muito obrigado», respondeu a Didi. «Bem, bem, bem! Onde meteste o lenço?»

Os homens agarraram-se um ao outro. A voz da Didi soara tão inesperadamente dentro do estábulo escuro...

- Vamos escutar. Está calado - ordenou José. Didi ouviu a ordem de «estar calado» e fez logo com toda a força:

«Chhhhhhhhhh! Chhhhhhhh!»

Isto foi de mais para os homens. Largaram a fugir para fora do estábulo.

 

         NOVOS PLANOS

A Didi ficou contente por ver sair os dois homens e gritou-lhes:

«Fecha a porta! Fecha a porta».

Os homens foram a correr e só pararam quando já estavam afastados do estábulo. José enxugou o suor da testa.

- Que te parece isto? - perguntou. - Uma voz e mais nada!

O outro recobrava ânimo rapidamente.

- Se há uma voz, há um corpo - afirmou. - Está ali alguém, alguém que nos quer pregar partidas. Quando vi esta manhã a erva amachucada pensei logo que não estávamos aqui sós. Quem estará cá? Parece-te que haja alguém que saiba do tesouro?

Os quatro pequenos, bem escondidos na folhagem da árvore mesmo por cima das cabeças dos dois homens, arrebitaram logo as orelhas. Tesouro! Então era isso que os homens procuravam neste vale solitário e deserto. Um tesouro!

- Ninguém pode conhecer o que nós sabemos - disse José com desdém. - Não te enerves só porque ouviste uma voz, Firmino. Se calhar foi um papagaio.

Firmino riu alto. Era o momento de ele se mostrar desdenhoso:- Um papagaio? Que mais tolices dirás tu hoje, José? Já viste alguma vez papagaios aqui? E a falarem? Eu coma o meu chapéu e o teu se aquilo é um papagaio!

Os pequenos ouviram tudo e ficaram com cara de riso. Maria da Luz pensou que gostaria de ver Firmino, quem quer que ele fosse, a comer o chapéu. E bem teria de comer também o de José, porque se a Didi não era um papagaio era sem dúvida uma ave palradora.

- É alguém que está ali escondido - observou Firmino. - Como cá veio ter é que não sei. Talvez haja uma cave por baixo do estábulo. Vamos entrar e havemos de descobrir se está lá alguém escondido. Há-de arrepender-se de querer brincar connosco.

Os pequenos não gostaram do tom de voz do homem. Maria da Luz ficou arrepiada. Que gente horrível!

Dirigiram-se cautelosamente para o estábulo. José ficou junto da porta arruinada e gritou.

«Quem quer que sejam, saiam dessa cave! Não terão outra oportunidade».

É claro que ninguém saiu. Primeiro, porque não estava lá alguém, depois, porque nenhuma cave havia. José empunhava um revólver. A Didi, assustada com aquela voz de trovão, deixou-se estar calada, o que foi uma sorte para ela.

O silêncio tornou-se insuportável a José. Apontou para onde calculava que fosse a entrada da cave e fez fogo. Pum!

A Didi quase caiu da viga com o susto e os pequenos iam tombando da árvore também. João deitou a mão a Maria da Luz mesmo a tempo, e segurou-a firmemente.

Pum! Outro tiro. Os pequenos chegaram à conclusão de que José devia estar a atirar à toa, só para assustar quem ele pensava ter ouvido falar. Que pena a Didi ter ficado no estábulo, amuada! João estava em cuidado. Receava que a catatua tivesse apanhado algum tiro.

Os homens voltaram a sair.

Estiveram a examinar tudo por uns momentos e depois seguiram a conversar na direcção do castanheiro.

- Agora ninguém lá está. Deve ter-se escapado. Sabes o que te digo, Firmino? Está cá gente, e anda a espiar-nos!

- Se assim fosse não ia trair-se mandando-nos limpar os pés e fechar a porta - respondeu Firmino com desdém.

- Amanhã voltaremos cá e passaremos uma busca a sério a tudo - retorquiu José. - Tenho a certeza de que há cá gente. E gente que fala a nossa língua. Que quererá isto dizer? Estou preocupado. Não nos interessa que alguém suspeite da nossa missão.

- É claro que temos de fazer uma batida a este lugar - concordou Firmino. - Temos de descobrir quem fala. Até aí estamos de acordo, e até começaríamos agora a bater isto tudo se não estivesse já a escurecer e a fome a apertar. Vamos, toca a ir embora.

E, para grande alívio dos pequenos, os dois homens desapareceram. João, que do cimo da árvore avistava o avião, ficou à espera até ver os dois homens atravessarem o vale, a caminho da cabana. Então, gritou para os outros.

- Está tudo bem. Vão a passar pelo avião. Céus, que susto apanhei quando eles dispararam. A Maria da Luz ia caindo do ramo.

- A Tixa largou a fugir da minha algibeira e desapareceu - disse Filipe. - Oxalá não tenha acontecido nada à Didi. Deve ter apanhado o maior susto de toda a vida ao ouvir os tiros ressoarem naquele estábulo tão pequeno.

A Didi estava como petrificada em cima da viga quando os pequenos entraram no estábulo. Acocorou-se a tremer. João chamou-a baixinho.

«Pronto, Didi. Anda. Estou aqui para te vir buscar».

A Didi desceu logo e veio pousar no ombro de João. Fez-lhe muita festa, repetindo:

«Mm-mm-mm! Umm-mm-mm!»

O estábulo era escuro e os pequenos não gostavam de lá

estar. Maria da Luz tinha a sensação de que havia gente escondida nos cantos e disse:

- Vamo-nos embora. Que fazemos esta noite? Será prudente voltarmos a dormir no mesmo sítio da noite passada?

- Não. É melhor levarmos as mantas e tudo para outro local - respondeu João. - Há uns arbustos mais acima onde ficaríamos abrigados do vento e escondidos. Podíamos ir para lá.

- Olhem! Já viram o que nós deixámos no estábulo? - observou Filipe de repente. - Os sacos com as latas. Ali naquele canto!

- Que sorte os homens não terem reparado que estavam cheios! - exclamou João. - Mas também não admira, não parecem mais do que montes de lixo. Mas vamos levá-los para os arbustos. Os nossos mantimentos são bastante preciosos para que os deixemos ficar aqui.

Arrastaram os sacos para os arbustos e deixaram-nos lá. Depois pôs-se a questão das coisas que estavam na árvore.

- O melhor é trazermos para baixo as mantas e os impermeáveis - alvitrou João. - As roupas que nos serviram de almofadas estão embrulhadas nas mantas. As malas podem ficar lá em cima. Não temos necessidade de andar com elas atrás de nós.

Estava a ficar tão escuro que se tornou difícil tirar as mantas e os impermeáveis para baixo, mas lá conseguiram arranjar-se. Dina e Maria da Luz fizeram «a cama», como elas diziam.

- Aqui não estaremos tão quentes - observou Dina.

- O vento sopra à nossa volta. E amanhã onde havemos de esconder-nos? Os homens hão-de vir procurar atrás destes arbustos, disso não resta dúvida.

- Lembram-se da queda de água? - perguntou Filipe.

- É possível que hajam muitas rochas e esconderijos lá em baixo. Podemos descer e talvez encontremos um bom lugar.

- Isso! - exclamou Maria da Luz. - Gostava muito de voltar a ver a queda de água.

Deitaram-se todos nas mantas. Como desta vez estava frio, encostaram-se muito uns aos outros. Dina tirou uma camisola da «almofada» e vestiu-a.

De repente, soltou um grito que fez com que os outros dessem um salto com o susto.

- Ai! Ai! Anda aqui uma coisa a correr por mim acima!

- Não é nada - respondeu Filipe, encantado. - É a Tixa! Já me encontrou! Tixazinha linda!

E assim era. Como a lagartixa descobrira onde Filipe estava é que nunca ninguém soube. Fazia parte daquela espécie de magia que Filipe exercia sobre os bichinhos.

- Sossega, Dina - disse Filipe. - A Tixa já está sã e salva na minha algibeira. Coitada da bicha, deve ter ficado tonta ao cair da árvore.

«Bicha Tixa», repetiu logo a Didi, encantada com as duas palavras Bicha e Tixa.

Todos se riram. A Didi às vezes era impagável.

- Isto é que ela gosta de juntar palavras com o mesmo som! - exclamou Maria da Luz. - Vocês lembram-se quando ela, nas férias passadas, não parava de dizer «bolorento, poeirento, bafiento» até nós quase gritarmos de irritados?

«Bolorento, poeirento, bafiento, bicha Tixa», repetiu logo a Didi, guinchando.

«Cala-te», ordenou João. «Lá estás tu a exibir-te, Didi. Vai dormir. E se te lembrares de me enterrar as unhas no estômago, como hoje de manhã, dou cabo de ti».

«Deus salve o rei», fez a Didi concentrada, e calou-se.

Os pequenos ficaram ainda um tempo a conversar. Depois as raparigas e Filipe adormeceram. João deixou-se ficar deitado de costas, com a Didi empoleirada num tornozelo, a ver as estrelas. De que servia prometerem à tia Lia que não teriam mais aventuras? Na mesma noite da promessa tinham voado num avião desconhecido para um vale solitário onde, pelo que parecia, havia um tesouro escondido. Era espantoso. E João adormeceu também. As estrelas ficaram brilhando sobre os quatro, deslizando no céu até que o Sol nasceu no Oriente, apagando-as uma a uma.

Filipe acordou cedo. Era isso mesmo que ele queria, uma vez que não sabia a que horas os homens se lembrariam de procurar o dono da «voz».

Acordou os outros e não deu ouvidos aos protestos deles.

- É preciso acordares, Dina - disse ele. - Hoje temos de nos levantar cedo. Vamos, acorda! Olha que te meto a bicha Tixa pelo pescoço abaixo.

Foi a maneira de Dina acordar de vez. Levantou-se dum salto e tentou dar uma palmada a Filipe, mas este escapou-se. A palmada foi acertar na Didi, que soltou um grito de surpresa e indignação.

«Desculpa, Didi», exclamou Dina. «Desculpa. Não era em ti que eu queria acertar. Coitadinha da Didi».

«Que pena, que pena!», fez a Didi, fugindo, não fosse dar-se o caso de Dina errar outra vez a pontaria.

- Vamos tomar um pequeno almoço rápido - alvitrou João. - Talvez umas sardinhas, bolachas e leite, não acham? Vi uma lata de sardinhas no cimo de um dos sacos. Ei-la.

Começou a avistar-se uma coluna de fumo que se erguia do local onde estavam os dois homens e os pequenos ficaram assim a saber que eles também já andavam a pé. Apressaram-se, por isso, a acabar de comer, a Dina voltou a enfiar as latas numa toca de coelho e levantaram as ervas onde tinham estado deitados para que não ficassem tão amachucadas.

- O melhor será arranjarmos um bom esconderijo para estas latas e levarmos só o que chegue para hoje - alvitrou Filipe. - Não podemos andar com estes sacos tão pesados atrás de nós.

- E se os atirássemos para o meio daqueles arbustos? - lembrou Dina. - São tão bastos que ninguém adivinharia que estavam lá. E nós podíamos voltar aqui quando quiséssemos.

Deitaram os sacos para o meio dos arbustos, e realmente só se alguém se metesse mesmo pelo meio deles os descobriria. Então, os pequenos agarraram nas mantas, nos impermeáveis e noutras roupas e puseram-se a caminho. Os rapazes levavam as latas e João ainda mais a máquina fotográfica e o binóculo.

Seguiram pelo caminho da véspera. Quando chegaram à encosta coberta de ervinhas e flores, sentaram-se a descansar. Os homens não lhes iam, com certeza, no encalço! Deviam andar a passar uma busca ao estábulo e às imediações.

Mas, de repente, ao longe, João vislumbrou um brilho cintilante. Rapidamente estendeu-se no chão e disse aos outros que fizessem o mesmo, dizendo:

- Está lá em baixo alguém com um binóculo. O reflexo do Sol nas lentes veio acertar em mim. Ora bolas! Esqueci-me de que os homens podiam revistar as montanhas com um binóculo. Se nos viram, vêm atrás de nós.

- O melhor será arrastarmo-nos até àquela rocha e pormo-nos atrás dela -lembrou Filipe. - Vamos. Depois já podemos continuar a andar até à queda de água.

 

         UM BELO ESCONDERIJO

Uma vez atrás do rochedo, os pequenos ficaram certos de que não seriam vistos e respiraram fundo. Filipe pôs-se a olhar em volta. O fosso onde já tinham estado na véspera ficava um pouco à esquerda. Podiam lá chegar sem serem vistos de baixo.

- Vamos - decidiu Filipe, escolhendo um caminho onde rochas e arbustos os encobriram do vale. - Por aqui.

Os pequenos subiram o fosso e chegaram à orla do rochedo que contornava uma parte íngreme da montanha. Seguiram por lá e voltaram a ter a mesma magnífica visão da véspera. Acima deles estava a casa grande arruinada e queimada. Maria da Luz não olhou para lá. Sentia-se sempre triste ao ver as vigas enegrecidas e as paredes derrubadas.

Quedaram-se a escutar o ruído da catarata. Chegava até eles como um som musical e contínuo, como uma orquestra longínqua, tocando uma simples melodia.

- Parece música! - comentou Dina. - E, agora, subimos ou descemos, Filipe? Se querem ir até à base da queda de água para nos escondermos nas rochas, temos de descer, não é? Ontem subimos para aquela parte rochosa, não foi?

Os rapazes ficaram um momento a pensar. Por fim João disse:

- Talvez seja melhor descermos desta vez. Aquelas rochas, que ficam mesmo por cima da queda de água, são capazes de ser muito escorregadias porque devem estar cheias de espuma. Nós não queremos escorregar e temos as mãos ocupadas com tudo o que temos de levar.

Escolheram então outro caminho que ia até lá abaixo. Filipe foi à frente para experimentar o trajecto mais seguro porque caminho verdadeiro não havia. Conforme se aproximavam da queda de água começaram a chegar até eles uns salpicos de espuma que lhes humedeciam os cabelos. Como estavam cheios de calor da escalada sentiam-se deliciosamente refrescados com aquela espuma.

Contornaram uma rocha e viram logo o buraco de onde saía a água em cascata. Que espectáculo maravilhoso! Maria da Luz susteve a respiração, cheia de admiração e espanto, e ficou-se a olhar.

- Que barulho ensurdecedor! - gritou João. - Excita-me imenso.

- Também a mim - corroborou Dina. - Apetece-me dançar, saltar ou qualquer coisa assim. E dá-me vontade de gritar.

- Gritemos todos! - lembrou João, pondo-se a gritar como se fosse maluco. Os outros imitaram-no. Só Maria da Luz ficou calada. Era como se quisessem gritar mais alto e movimentar-se mais do que a água que caía em catadupas.

Em breve pararam, exaustos. Estavam sobre uma rocha lisa, coberta de espuma. Ainda não tinham chegado à base da queda de água, estavam a cerca de um quarto de caminho. O barulho ensurdecia-os, e às vezes, a força da espuma deixava-os sem fôlego. Era realmente emocionante.

Depois de terem olhado por largo tempo para a queda de água, João disse finalmente:

- Vamos em busca de um bom esconderijo. Não me parece que aqueles homens se lembrem de vir procurar-nos aqui.

Puseram-se todos à procura duma gruta ou rochas por trás das quais pudessem esconder-se. Maria da Luz não parecia muito entusiasmada.

- Não me parece que possa vir a suportar este barulho todo durante o dia inteiro. Até fico tonta.

«Tonta, Tixa, Tixa Bicha», observou logo a Didi. Também a catatua ficara excitada com a queda de água e gritara como os outros.

- Pois bem, terás de aguentar - respondeu João. - Vais ver que te habituas.

Maria da Luz ficou preocupada. Tinha a certeza de que nunca se habituaria àquele constante ruído ensurdecedor. Nunca conseguiria dormir.

Os pequenos foram passando revista ao local da queda de água, sem nunca se aproximarem muito, por causa da espessa massa de espuma. Parecia que nunca mais descobriam um bom esconderijo. As rochas estavam todas húmidas e parecia não haver um lugar confortável onde pudessem instalar-se.

- Com estes salpicos todos ficávamos com as mantas molhadas num instante - disse Dina. - E nós não podemos deitar-nos em mantas húmidas. Afinal, não me parece que esta ideia tenha sido muito boa.

João subiu um pouco mais e enfrentou um feto gigante. Pendia como uma enorme cortina verde e era lindíssimo. João pensou que talvez pudessem esconder-se atrás dele.

Afastou uma das hastes e soltou uma exclamação que os outros não ouviram por causa do barulho da água.

«Formidável!» repetiu para si próprio. «Há uma gruta atrás do feto, e deve estar seca, uma vez que o feto a protege dos salpicos. Parece uma cortina espessa! Eh! Companheiros!»

Mas ninguém o ouvia e João estava impaciente de mais para esperar que os outros lhe prestassem atenção. Passou para o outro lado do feto e encontrou-se numa gruta seca e sombria, de tecto bastante baixo e chão coberto de musgo. Apalpou-o. Estava seco.

Provavelmente, quando o feto murchara, no Outono, os salpicos tinham entrado na gruta e o musgo, humedecido, cresceu bem. Mas agora não era mais do que um leito fofo verde-seco.

«Exactamente o que nos faltava!» exclamou João encantado. «Formidável. Aqui ninguém dará connosco porque o feto tapa a entrada toda. Foi por mero acaso que encontrei isto. Que belíssimo esconderijo para nós!»

Num dos lados havia uma saliência de rocha que formava uma espécie de banco e João pensou logo:

«Ali podemos pôr as nossas coisas, latas e tudo. E se pusermos os impermeáveis em cima do musgo ficamos com uma cama maravilhosa, tenho de dizer aos outros».

E eram horas de voltar a aparecer, porque os outros tinham dado por falta dele e andavam a gritar com toda a força.

- João! João! Onde estás? João!

João ouviu-os quando afastou as hastes do feto e espreitou pondo só a cabeça de fora. Dina e Didi viram aquela cabeça a espreitar por entre o feto, um pouco acima deles. A Didi soltou um grito de surpresa e voou logo para lá. Dina deu um salto.

- Olhem para ali! - gritou ela para Filipe e Maria da Luz. - Já viram onde ele está? Escondido atrás daquele enorme feto!

João pôs as mãos em concha na boca e gritou o mais alto que pôde numa tentativa para fazer-se ouvir acima do ruído da catarata.

- Venham cá ver o que encontrei!

Os outros apressaram-se a subir. João afastou as hastes do feto para eles entrarem, dizendo cerimoniosamente:

- Não querem entrar para a minha sala? Que prazer em vê-los por cá.

Atravessaram a cortina verde e entraram na gruta, soltando exclamações de surpresa e contentamento.

- Que sítio estupendo! Aqui é que ninguém dará connosco !

- E tem um tapete macio, todo feito de musgo!

- E não se ouve tanto a queda de água. Já podemos falar uns com os outros.

- Ainda bem que gostam - disse João modestamente. - Encontrei isto por acaso. Mas foi um rico achado, não foi?

E era verdade. Maria da Luz ficou aliviada por ver que o ruído imenso da queda de água ficava muito diminuído ali, na gruta. Dina ficou encantada com aquele chão tão macio.

Filipe ficou contente com a segurança que este esconderijo oferecia. Ninguém os encontraria, a não ser por acaso.

- Vamos buscar as coisas que deixámos na rocha - alvitrou Dina que gostava de ver tudo junto e organizado. - Aqui há muito onde as arrumar. Vou pôr as latas naquela espécie de banco de rocha.

- A altura dá à justa para nos pormos de pé - observou Filipe. Dirigiu-se para as pernadas de fetos que pendiam sobre a entrada, tornando a gruta escura, afastou aquela cortina verde e logo um raio de Sol entrou na gruta, iluminando-a perfeitamente.

- Podíamos amarrar parte do feto para o Sol entrar na gruta - sugeriu Filipe. - Daqui tem-se uma visão maravilhosa da queda de água e vemos o que se passa lá fora, se alguém vier por aqui, nós descobrimos logo. Belíssimo!

- Aqui não me importo de viver por um tempito. Sinto-me segura - confessou Maria da Luz, satisfeita.

- Se calhar temos de cá ficar um tempão - respondeu Filipe. - Mas olha que há sítios bem piores.

- Aqui é que os homens nunca nos descobrirão - opinou João.

Amarrou umas pernadas do feto e os pequenos sentaram-se no chão para gozarem por momentos o Sol, que entrava agora a jorros. O musgo era fofo como uma almofada.

Minutos depois, desceram para irem buscar as mantas, latas e tudo o mais e levaram-nas para a nova casa. Dina arrumou as coisas desirmanadas na saliência do rochedo. E que bem que ficaram!

- Esta noite vamos ter uma cama fofinha - regozijou-se ela. - E vamos dormir aqui bem. Não é abafado nem bolorento.

«Bolorento, poeirento, bafiento», fez logo a Didi, lembrando-se das três palavras que aprendera nas outras férias. «Bolorento, poeirento, bafiento...»

«Não comeces, Didi. Já estamos fartos dessa», interrompeu João.

A Didi voou-lhe para o ombro e ficou a olhar para fora da grutazinha. A vista era realmente soberba: primeiro, a água em cascata, com reflexos coloridos, aqui e ali, para além dela a encosta íngreme da montanha, e muito para lá, mais abaixo, o vale verde que se estendia até ao sopé das montanhas que, do lado oposto, se erguiam umas atrás das outras.

Eram horas de comer. Parecia que os pequenos ficavam todos com fome ao mesmo tempo, e começaram a olhar para as latas arrumadas na «prateleira». João levou a mão à algibeira à procura do abre-latas.

- Cuidado não o percas. O teu abre-latas é presentemente o nosso maior tesouro, João - preveniu Filipe.

- Não te preocupes, que não o perco - respondeu João, começando a abrir a lata. A Didi ficou a observá-lo de cabeça ao lado. Gostara muito daquelas latas. Já sabia que lá dentro havia coisas extraordinárias.

Momentos depois já todos estavam sentados, comendo com todo o apetite e olhando a queda de água através da entrada da gruta. Que bom era estar ali, saboreando o almoço, com tão bonita vista, no musgo fofo e com as pernas estendidas ao Sol!

- Realmente parece que somos dados a aventuras - observou João. - É estranho que não possamos conservar-nos afastados delas. Oxalá o Jaime e a tia Lia não estejam muito preocupados. Se ao menos pudéssemos mandar notícias!

- Mas não podemos - respondeu Filipe. - Estamos encalhados aqui e afastados de tudo, sem possibilidade de nos pormos em contacto com alguém que se saiba, tirando aqueles dois homens. Não há meio de saber que resolução tomar. Ainda bem que temos bastantes mantimentos.

- O melhor que há a fazer é voltar aos arbustos onde pusemos as outras latas e trazê-las para aqui logo que pudermos - disse João. - O que trouxemos não nos vai dar para mais do que hoje.

Vocês duas importam-se que eu vá com o Filipe buscar o que pudermos? Não vamos poder trazer tudo de uma vez. Temos de fazer várias excursões até lá.

- Aqui ficamos bem - disse Dina, dando à Didi o último pedaço de salmão da lata dela. - Podem ir esta tarde e deixem a Didi aqui a fazer-nos companhia.

 

         A GRUTA DO ECO

Pouco passava do meio-dia. Os rapazes sabiam que tinham muito tempo para irem buscar as latas escondidas nos arbustos. Talvez eles os dois conseguissem trazer um saco.

- É melhor irmos - disse João. - Temos de estar alerta, que aqueles homens devem ir passar uma busca minuciosa a tudo e não queremos que eles nos vejam. Vocês duas têm a certeza de que não precisam de nós?

- Absoluta - respondeu Dina, cheia de preguiça. Estava bem contente por não ter de voltar aos arbustos e carregar com um saco pesado até à gruta. Deitou-se ao comprido no musgo, tão fofo que parecia que tinha molas.

João pôs o binóculo a tiracolo. Podia vir a ser útil para descobrir os homens ao longe. Ele e Filipe atravessaram as hastes verdes do feto. João, então, ergueu a voz para gritar para as raparigas.

- Se por acaso virem alguém por aqui não se esqueçam de desatar o feto imediatamente, perceberam? As hastes voltam à forma primitiva e a gruta fica encoberta. Maria da Luz, vê lá se fazes com que a Didi não venha atrás de nós.

A Didi estava no ombro de Maria da Luz, onde João acabara de a pôr. A pequena segurou-lhe as patas e a Didi, percebendo que não queriam que fosse com o João, soltou um grito de ira.

«Que pena, que pena!», fez ela, elevando a poupa, furiosa. Mas Maria da Luz não a soltou. Segurou-a firme até João e Filipe desaparecerem. Então largou-a e a Didi voou-lhe do ombro e saiu da gruta, indo empoleirar-se num rochedo, à procura de João.

«Foi-se por água abaixo», resmungou ela aborrecida. «Três pombinhas por água abaixo».

«Três pombinhas a voar, Didi. Trocas tudo», corrigiu Maria da Luz.

«Pobre Didi!», exclamou o bicho, batendo o bico. «Pobre Didi!»

E voltou para a gruta. Dina dormia a sono solto, estendida no musgo, de boca aberta. A Didi passou por ela e pôs a cabeça ao lado a ver a boca aberta da Dina. Depois foi apanhar um bocado de musgo com o bico.

«Didi! Ora atreve-te a pôr isso na boca da Dina! Grande má!», gritou-lhe Maria da Luz, que já conhecia as partidas do bicharoco.

«Limpa os pés», atalhou a Didi zangada, voando para o fundo da gruta. Maria da Luz virou-se de barriga para baixo para a ver. Não podia confiar-se na Didi quando ela estava com semelhante disposição.

O Sol entrava a jorros na gruta. Era de sufocar. Maria da Luz pensou que seria uma boa ideia desatar o feto para tapar o Sol. Puxou pelo fio como João lhe ensinara e imediatamente a cortina de feto desceu e a gruta mergulhou numa penumbra verde na qual dava gosto ficar.

Dina não acordou. Maria da Luz voltou a deitar-se de barriga para baixo, pensando em tudo o que acontecera. O ruído da cascata chegava agora até ela, bastante abafado, porque a cortina de feto era muito espessa. «Didi! onde estás?», perguntou.

Da Didi não veio resposta. Maria da Luz tentou descobrir onde estaria o bicho. Devia estar amuada por o Filipe e o João não a terem levado com eles. Muito pateta era a Didi! E Maria da Luz voltou a chamar:

«Didi! Anda cá! Vem falar comigo. Eu ensino-te uma cantiga bonita.

Mas da Didi não se ouvia nem um som. Maria da Luz não percebia porquê. Mesmo quando a Didi estava amuada, não deixava de responder quando lhe falavam.

Examinou o fundo da gruta. A Didi não estava lá. Olhou para a saliência onde estava tudo arrumado. Didi, nem vê-la. Onde se teria metido? Pelo feto não saíra ela de certeza. Então tinha de estar na gruta!

Na saliência da rocha estava uma lanterna. Maria da Luz tacteou até a encontrar e pegou nela. Acendeu-a e iluminou a gruta com ela. Não se via nem sinal da Didi. Não estava empoleirada em parte alguma, no tecto baixo da gruta. Que mistério!

Maria da Luz começou a ficar em cuidado. Acordou Dina, que se sentou a esfregar os olhos, zangada por terem-na acordado.

- Que aconteceu? - perguntou ela. - Estava a dormir tão bem.

- Não encontro a Didi - informou Maria da Luz. – Já procurei em todo o lado.

- Não sejas tola. Deve ter saído à procura do João - respondeu Dina, ainda mais zangada. Voltou a deitar-se, bocejando. Maria da Luz abanou-a.

- Não vais adormecer outra vez, Dina. Já te disse que a Didi estava ali no fundo da gruta, há uns minutos, e desapareceu. Parece que se evaporou.

- Não te importes, ela já volta. E agora deixa-me em paz, Maria da Luz - replicou Dina.

E fechou os olhos. Maria da Luz nada mais ousou dizer. Dina era dada a fúrias quando se zangava, por isso, a pequenita suspirou, desejando que os rapazes estivessem de volta. E a Didi?

Maria da Luz levantou-se e atravessou o musgo até ao fundo da gruta. A rocha formava aí uma espécie de pregas, e atrás duma delas havia um vão. Maria da Luz espreitou para lá com todo o cuidado, esperando ver a Didi ali escondida, pronta a gritar «Uh!» como tantas vezes impertinentemente fazia.

Mas a Didi não estava lá. Maria da Luz iluminou tudo em cima e em baixo com a lanterna até que, a certa altura, a luz deixou de se reflectir por ter desaparecido num buraco.

«Olha um buraco!», exclamou Maria da Luz, surpreendida. «A Didi deve ter ido por ali!»

Trepou até à abertura, que lhe ficava à altura do ombro e não dava para mais do que um corpo. Esperava ir dar a outra gruta, mas nada disso aconteceu. O buraco subia levemente, era uma espécie de túnel circular e estreito. Maria da Luz ficou certa de que a Didi devia ter desaparecido por este estranho tunelzinho tão estreito.

«Didi», gritou ela, iluminando o túnel com a lanterna. «Onde estás, minha pateta? Anda cá!»

Da Didi não veio resposta. Maria da Luz enfiou-se pelo túnel dentro, com desejos de saber se seria muito comprido. Era quase circular, como um cano. Possivelmente a água fizera caminho por ali há anos atrás, mas agora estava completamente seco. Uma vez lá dentro, e por mais que se esforçasse por escutar, Maria da Luz deixou completamente de ouvir a cascata. Ali reinava o silêncio.

«Didi!», gritou. «Didi!»

Dina ouviu o grito em sonhos e acordou sobressaltada. Sentou-se, outra vez zangada. Mas desta vez Maria da Luz não estava na gruta com ela. Coube a vez a Dina de se assustar. Lembrava-se de Maria da Luz lhe ter dito que a Didi desaparecera de repente.

Agora parecia que acontecera o mesmo à Maria da Luz. As hastes do feto tapavam a entrada e ela não ia passar por lá sem dizer a Dina que ia sair.

Dina examinou bem toda a gruta. De Maria da Luz nem sinais. Que lhe teria acontecido, a ela e à Didi?

Ouviu-se, então, outro grito abafado e distante. Foi até ao fundo da gruta e descobriu as pregas de rochas. Foi buscar outra lanterna à prateleira improvisada e iluminou tudo. Ficou boquiaberta ao ver dois sapatos a saírem dum buraco redondo aproximadamente à altura do ombro dela.

Puxou um bocado pelos tornozelos de Maria da Luz e gritou:

- Luzinha! Que estás aí a fazer? Onde vais? Que há nesse buraco?

Maria da Luz respondeu:

- Não sei. Descobri isto por acaso. A Didi deve ter subido por aqui. Achas que vá ver se a encontro? Anda também.

- Está bem, vai andando - respondeu Dina.

Maria da Luz arrastou-se por aquele túnel estreito acima. De repente o túnel alargou, e, à luz da lanterna, viu, mais abaixo, outra gruta, mas desta vez muito ampla.

A pequenita conseguiu sair do buraco e pôs-se a olhar em volta. A gruta parecia um salão subterrâneo. Tinha um tecto bastante alto. De algures, naquela vastidão mal iluminada, vinha uma voz lamentosa.

«Que pena, que pena!»

«Oh, Didi! Estás aqui!», exclamou Maria da Luz e depois ficou admirada com o eco que se fez logo ouvir, repetindo como por magia.

«Aqui, aqui, aqui, aqui!»

- Despacha-te, Dina! - gritou Maria da Luz, pouco satisfeita com o eco.

Mas o eco repetiu: «Dina, Dina, ina, ina!»

A Didi voou assustada para Maria da Luz. Tantas vozes! Que seria aquilo?

«Pobre Didi!», disse a catatua assustada. «Pobre Didi!».

«Didi, Didi, Didi!», repetiu o eco. O animal, apavorado, olhava para todos os lados para ver quem o chamava. Então, deu um grito forte de desafio.

Imediatamente uma série de gritos ecoou pelo ambiente, como se a gruta estivesse cheia de catatuas.

A Didi ficou sem fala. Tantos pássaros ali e ela sem ver nenhum!

Dina saiu também do buraco e ficou ao lado de Maria da Luz.

- Que coisa enorme! - exclamou. «Enorme!», ouviu-se.

- Repete-se tudo - disse Maria da Luz. - Parece magia. «Magia, magia», fez o eco.

- Vamos falar baixo - sugeriu Dina, segredando. Imediatamente a gruta ficou cheia de murmúrios que assustavam as raparigas mais do que os gritos que tinham ouvido anteriormente. Instintivamente chegaram-se uma para a outra. Dina depressa se refez do susto.

- É o eco - explicou. - É vulgar estas grutas grandes fazerem eco. Sempre gostava de saber se alguém terá alguma vez entrado aqui.

- Com certeza que não - respondeu Maria da Luz, revistando tudo com a lanterna. - Somos capazes de estar a pisar um lugar onde nunca alguém pôs os pés!

- Vamos explorar isto - declarou Dina. - Não que pareça ter muito que ver, mas nada mais temos que fazer até os rapazes voltarem.

Devagar, foram dando a volta à grande gruta escura, ouvindo os próprios passos repetidos múltiplas vezes pelo eco. Uma vez, quando Dina espirrou, as raparigas ficaram apavoradas com os enormes ruídos explosivos que as rodearam. Parecia que o eco se estava a divertir à custa delas.

- Por favor, não voltes a espirrar - pediu Maria da Luz. - É horrível ouvir estes espirros todos. Pior do que os gritos da Didi.

Tinham já quase completado a volta à gruta quando chegaram a uma passagem alta e estreita entre duas paredes de rocha.

- Olha para isto! - exclamou Dina.-Uma passagem. Parece-te que isto vá dar a algum sítio?

- É capaz disso - disse Maria da Luz, com os olhos brilhantes. - Não te esqueças, Dina, de que aqueles homens andam à procura dum tesouro. Não sabemos que espécie de tesouro será, mas é possível que esteja escondido algures nestas montanhas.

- Então, toca a seguir pela passagem - disse Dina. - Didi Anda! Não te queremos para trás.

A Didi voou-lhe para o ombro. Em silêncio, as duas raparigas entraram na passagem estreita e rochosa, de lanternas acesas. Que iriam encontrar?

 

         NOVA PERSPECTIVA DA CASCATA

A passagem era aos «esses». Descia um bocado e o chão era muito pouco plano, o que fazia com que as duas raparigas escorregassem e tropeçassem a cada passo. A certa altura o tecto tornou-se tão baixo que tiveram de andar de gatas. Mas depressa voltou a ser alto como de princípio.

Passado um tempo começaram a ouvir qualquer coisa que não sabiam o que fosse. Era um troar interminável que não tinha um segundo sequer de interrupção.

- Que é aquilo? - exclamou Dina. - Estaremos a aproximar-nos do coração da montanha? Parece-te que seja o crepitar dum fogo enorme, Maria da Luz? Que poderá ser isto? Não sei o que possa provocar tanto barulho no meio da montanha.

- Nem eu - disse Maria da Luz já cheia de vontade de voltar para trás. Um fogo no centro da montanha, a fazer um barulho daqueles? Não, não era coisa que se desejasse ver. Só de pensar nisso se sentia estremecer e sem fôlego.

Mas Dina é que não ia recuar depois de ter chegado até ali.

- Voltar para trás antes de sabermos onde isto vai dar? - admirou-se ela. - Nem pensar! Os rapazes até se ririam de nós se soubessem. É raro termos assim uma oportunidade de descobrirmos qualquer coisa antes deles. Até podemos ir dar com o tesouro, Maria da Luz.

Mas Maria da Luz já não estava nada interessada em tesouros. O que queria era voltar para o ambiente seguro da gruta que conhecia, a gruta com a cortina de feto.

- Então vai - respondeu Dina, desabrida. - Eu continuo por aqui. Maricas!

Apavorava-a mais a ideia de voltar sozinha à gruta do eco do que continuar por ali com Dina. Por isso, a pobre Maria da Luz lá seguiu caminho. Com aquele estranho ruído abafado nos ouvidos foi descendo pela passagem, sempre chegada à amiga. O ruído ia-se tornando cada vez mais forte.

Foi então que elas perceberam o que era. Pois claro, era a cascata! Que tolas eram por não terem descoberto isso logo! Mas ali, na montanha, o ruído parecia que soava diferente.

- Afinal não temos vindo a andar na direcção do centro da montanha. Vamos sair algures perto da queda de água. Onde, é que não sei - disse Dina.

Mas quando viram a luz do dia ficaram boquiabertas de espanto. A passagem fez uma curva e chegou até elas uma claridade quebrada, curiosamente cintilante. Envolveu-as uma corrente de ar frio e qualquer coisa lhes humedeceu os cabelos.

- Maria da Luz! Viemos dar a um rochedo precisamente por trás da queda de água! - exclamou Dina admirada. - Olha para aquela massa de água na nossa frente, e que cores! Estás a ouvir o que eu digo? A água faz tanto barulho!

Maria da Luz ficou a olhar, dominada pela surpresa e pelo barulho. A água formava uma enorme cortina móvel que as separava do ar livre. Caía em catadupas, brilhante, cheia de energia, sem parar. Aquela força poderosa deixou as raparigas em respeitoso silêncio.

Sentiam-se pequenas e fracas perante aquela enorme massa de água que caía em torrente a uns metros delas.

Era espantoso poderem estar numa rocha precisamente por trás da cascata e sem serem afectadas por ela a não ser por aquela brisa húmida cheia de gotinhas minúsculas. A rocha era muito larga e abrangia a queda de água de uma ponta à outra. Numa extremidade, a uns trinta centímetros do solo, havia uma rocha pequena e as raparigas sentaram-se a admirar o deslumbrante panorama que tinham diante de si.

- Que dirão os rapazes? - perguntou Dina. - Vamos ficar aqui até eles virem. Sentadas nesta ponta até podemos acenar-lhes. Vão ficar pasmados por nos verem aqui. Nenhum caminho há que venha cá dar a não ser o que nós descobrimos.

- Vai ser uma bela surpresa! - exclamou Maria da Luz, já sem medo. - Olha, daqui vê-se a nossa gruta, pelo menos vê-se o feto gigante que tapa a entrada. É fácil vermos os rapazes quando chegarem.

A Didi estava silenciosa, admirada por ter vindo sair por trás da grande cortina de água. Empoleirou-se numa rocha e ficou a olhar, pestanejando de vez em quando.

- Oxalá aquela pateta não se lembre de querer atravessar a água - disse Maria da Luz preocupada. - Ia por ali abaixo e ficava feita em bocados!

- Ela não faz uma coisa dessas - respondeu Dina. - Tem senso bastante para saber o que lhe aconteceria se tentasse semelhante coisa. É capaz de voar por um lado da queda de água, mas daí não lhe vem grande mal.

As raparigas ficaram sentadas durante bastante tempo, sem se cansarem de ver a turbulência da água. Passado algum tempo, Maria da Luz soltou um grito e apertou o braço de Dina.

- Olha! Não são eles que vêm aí? São eles mesmos e trazem um saco. Ainda bem. Agora já temos comida que chegue.

Ficaram a ver os dois rapazes, subindo penosamente as rochas que iam dar à gruta. Nada adiantava acenar-lhes já.

Mas, de repente, o rosto de Dina tomou uma expressão de horror.

- Que aconteceu? - perguntou Maria da Luz, assustada com aquela expressão.

- Olha! Vem alguém atrás deles. É um dos homens. Vês? E o outro também lá vem. Parece-me bem que nem Filipe nem João sabem que estão a ser seguidos. Os homens vão ver que caminho eles tomam e ficam a saber do nosso esconderijo. João! Filipe! Cuidado, João!

Chegou-se mesmo à beira da queda de água e, segurando-se a um feto que lá crescia, debruçou-se para a frente, gritando e acenando, completamente esquecida de que os homens a podiam ver e ouvir tão bem como os rapazes.

Infelizmente, absorvidos pela tarefa de levar o saco pela rocha acima, nenhum deles viu ou ouviu Dina, mas os homens avistaram-na e ficaram a olhar para ela. A espessa cortina de água continuamente a correr não os deixava perceber se era rapariga, rapaz, homem ou mulher. Tudo o que conseguiam distinguir era que estava alguém a dançar e a acenar por trás da cascata.

- Olha! - disse um dos homens para o outro. - Olha para aquilo! Ali atrás da água! É ali que eles se escondem. Que belo lugar! Como terão eles conseguido ir até ali?

Os homens ficaram a olhar boquiabertos para a queda de água, procurando com os olhos um caminho que fosse dar até à rocha onde estava aquele vulto, agitando-se e acenando.

Entretanto, João e Filipe, sem a mínima consciência de estarem a ser seguidos, e sem verem Dina, tinham chegado à gruta. Filipe afastou as hastes do feto e João empurrou o saco para dentro, já sem fôlego por ele ser tão pesado.

O saco ficou finalmente no musgo. Os rapazes atiraram-se para o chão, com o coração a bater muito, cansados da escalada até à gruta, carregando com o saco pesado. De princípio, nem sequer notaram a ausência das raparigas.

Perto dali, um pouco mais abaixo, estavam os dois homens, intrigadíssimos. Distraídos a ver Dina por trás da queda de água, não tinham visto João e Filipe atravessar o feto e entrar na gruta. Por isso, quando deixaram de olhar para a queda de água deram porque os rapazes, que eles tinham tão afanosamente seguido, pareciam ter desaparecido sem deixar rasto. -Onde se terão eles metido? - perguntou José. - Da última vez que os vimos estavam naquele rochedo.

- Pois estavam. Foi quando eu vi aquela pessoa a acenar e desviei os olhos deles por um momento. E agora sumiram-se - resmungou Firmino. - Para onde eles foram é fácil de ver. Devem ter seguido por um caminho que vai dar à queda de água. Estão escondidos ali atrás, e que belo esconderijo! Não lembra ao diabo esconderem-se atrás duma queda de água. Mas agora já sabemos onde os encontrar. Descemos para onde a água cai e depois trepamos até àquela rocha. Vamos caçar os ratos no buraco.

Começaram a descer, esperando encontrar um caminho que fosse dar ao rochedo, por trás da queda de água. As rochas eram escorregadias, o que tornava a descida difícil e perigosa.

Na gruta, os rapazes depressa se recompuseram. Sentaram-se e puseram-se à procura das irmãs.

- Onde estarão a Maria da Luz e a Dina? - perguntou João admirado. - Prometeram ficar aqui até nós voltarmos. Oxalá não se tenham lembrado de ir por aí fora. Perdiam-se que era uma beleza!

Mas na gruta não estavam. Isso era certo. Os rapazes não viram o buraco nas pregas da rocha ao fundo e ficaram intrigadíssimos. João afastou as hastes do feto e espreitou lá para fora.

Ficou espantadíssimo ao ver os dois homens, fazendo equilíbrios nas rochas perto da queda de água. Ia ficando sem fala.

- Olha para aquilo! - gritou Filipe, cerrando mais o feto, com medo de ser visto. - Estão ali os homens! Até podiam ter-nos visto entrar! Como terão chegado aqui? Nós vimo-los ao pé do avião quando íamos para os arbustos!

Dina, entretanto, desaparecera. Não chegara a perceber se os homens tinham ou não visto os rapazes atravessar o feto e entrar na gruta. Fosse como fosse, pensou que devia avisá-los da presença dos homens, pois estava certa de que nem Filipe nem João tinham dado por eles.

- Anda daí, Maria da Luz - disse-lhe apressada. - Temos de ir ter com os rapazes. Mas olha-me para aqueles homens! Parece que andam a tentar subir até aqui. Devem ter-me visto acenar. Anda depressa, Maria da Luz.

Tremendo de excitação, Maria da Luz seguiu Dina e as duas atravessaram a passagem escura e aos esses que ia dar à gruta do eco. Dina ia tão depressa quanto podia, sempre de lanterna em punho. Nenhuma se lembrou mais da Didi, que ficou só atrás da queda de água, de penas humedecidas pela espuma, seguindo interessada os equilíbrios difíceis dos homens. Nem deu pela retirada das duas.

Por fim, Dina e Maria da Luz chegaram à gruta do eco. Dina parou para pensar dizendo:

- Onde será o buraco por onde entrámos? «Cala-te - ralhou Dina ao eco.

«Cala-te, cala-te, cala-te!», respondeu o eco, irritante. Dina iluminou a parede toda com a lanterna, e teve sorte em não levar muito tempo a encontrar o buraco. Num abrir e fechar de olhos meteu-se por ele dentro, rastejando, com Maria da Luz logo atrás. Esta tinha a sensação de que vinha alguém perseguindo-a, disposto a agarrar-lhe os pés, e quase dava cabeçadas nos pés de Dina tão depressa queria andar.

João e Filipe estavam a observar os homens por entre o feto quando as pequenas saíram do buraco ao fundo da gruta e se atiraram aos rapazes. Iam caindo de susto.

Filipe pôs-se aos socos, pensando que eram inimigos. Dina apanhou um e gritou, pagando-lhe na mesma moeda. Rolaram os dois pelo chão.

- Acabem com isso - pediu Maria da Luz, quase a chorar. - Somos nós! Não vêem que somos nós?

Filipe afastou Dina e levantou-se, João ficou a olhar, muito admirado, perguntando:

- Mas de onde surgiram vocês? Sempre nos pregaram um destes sustos! Saltarem assim sobre nós! Onde estiveram?

- Ali no fundo há um buraco e nós entrámos por lá - explicou Dina, deitando um olhar furibundo a Filipe. - E vocês sabem que os dois homens vos seguiram? Ficámos cheias de medo que eles vissem para onde vocês entraram.

- Mas eles vinham realmente a seguir-nos?!- exclamou João. - Isso é que nós não sabíamos. Espreitem vocês duas pelo feto e vejam onde eles andam à nossa procura.

 

         SÃOS E SALVOS NA GRUTA

Foram todos espreitar por entre as hastes do feto. Maria da Luz tinha a respiração suspensa. Realmente os dois homens continuavam a fazer equilíbrios prodigiosos junto da queda de água.

- Mas que estão eles a fazer? - perguntou João, intrigado. - Não me digam que andam ali à nossa procura. Se nos seguiram devem saber muito bem que nós não fomos por ali.

- Devem ter-nos visto acenar por trás da queda de água - explicou Dina. - E, com certeza, pensaram que nos escondemos ali.

- A acenar por trás da queda de água? - repetiu Filipe, muito admirado. - Que estás a dizer, Dina? Não deves estar boa da cabeça.

- Aí é que tu te enganas - disse Dina. - A Maria da Luz e eu estávamos lá quando vocês vinham a subir a encosta até à gruta. Encontrávamo-nos mesmo por trás da queda de água e eu fiz todos os esforços possíveis para que vocês nos vissem, porque queria avisá-los de que aqueles dois homens vos vinham a seguir.

- E como conseguiram vocês chegar a semelhante lugar?

- perguntou João. - Que falta de juízo! Lembrarem-se de trepar por aquelas rochas escorregadias, para se porem atrás da água! Até podiam...

- Não sejas pateta, que nós não fomos por aí - atalhou Dina. - Seguimos por outro caminho. E contou a João e a Filipe como tinham descoberto o buraco ao fundo da gruta, entrado na gruta do eco e encontrado a passagem que ia dar à rocha atrás da queda de água.

Os rapazes ouviram tudo muito admirados.

- Que coisas extraordinárias! - exclamou João. - Quer dizer que os homens devem ter-te lá visto, Dina, desviaram o olhar de nós por um momento e perderam-nos de vista. Que sorte!

- Por isso eles não largam aquelas rochas todas molhadas - comentou Filipe, rindo. - Pensam que nós nos escondemos ali, por trás da cascata e querem ir apanhar-nos. Não sabem que o caminho não é aquele. Não sei como eles hão-de conseguir passar para trás da cascata por aquelas rochas. Se não se acautelam ainda vão na enxurrada.

Maria da Luz ficou toda arrepiada.

- Não quero ver uma coisa dessas.

E nunca mais quis espreitar pelo feto. Mas Dina e os rapazes ficaram a observar tudo, radiantes. Sentiam-se seguros na gruta encoberta pelo feto e achavam divertido ver os dois homens a escorregarem nas rochas ao pé da água, cada vez mais furiosos.

A Didi ainda estava por trás da cascata a observar a cena, muito interessada. A certa altura soltou uma enorme gargalhada que os homens ouviram apesar do barulho da água. Olharam um para o outro, espantados.

- Ouviste? - perguntou José. - Está ali alguém a rir-se de nós. Deixem estar que não perdem pela demora. Devem estar mesmo por trás da cortina de água. Como terão eles ido para lá?

Era impossível chegar à rocha por trás da cascata fazendo caminho pela parte de cima ou pelas rochas que ficavam em baixo. Absolutamente impossível. E os homens acabaram por chegar a esta mesma conclusão depois de terem caído muitas vezes e quase resvalado de uma rocha molhada para a água da cascata. Sentaram-se então numa rocha afastada da água, para limparem a cara. Estavam furiosos e a suar e tinham a roupa ensopada.

E o pior era que nada compreendiam. De onde teriam surgido aqueles rapazes? Haveria algures por ali um grupo de gente acampada?

Estariam escondidos nas montanhas? Não deviam estar, senão tê-los-iam visto por ali em busca de comida. Não podiam ser muitos e deviam ter mandado os rapazes buscar mantimentos.

Os pequenos continuavam a observá-los, divertidíssimos. Dava um certo prazer ver os inimigos na mó de baixo, vê-los agir sem serem vistos. Até a Maria da Luz veio dar uma espreitadela, agora que já não estavam na iminência de cair à água.

- O melhor é nós irmo-nos embora - disse José. - Se o esconderijo deles é aquele, que lhes faça bom proveito. Podíamos era arranjar alguém para nos ajudar. Púnhamo-lo aqui de guarda e ele havia de dar conta de quem entrasse para trás da queda de água. Mas agora vamos embora, já estou farto disto até aos cabelos.

Levantaram-se. João vigiava-os através do feto. Para onde iriam? Para a barraca? Para o avião? Mas, compreendendo que iam passar bastante perto da gruta, o pequeno apressou-se a fechar as hastes do feto e fez recuar os outros, dizendo:

- Estejam calados. São capazes de passar muito perto daqui.

E passaram realmente. Tomaram um caminho que passava mesmo rente à gruta. Os pequenos ficaram mudos e quedos, ouvindo os homens lá fora. De repente, o feto oscilou, e Maria da Luz levou a mão à boca para abafar um grito.

«Vão entrar, descobriram-nos!», pensou, e o coração quase lhe parou de bater. O feto voltou a oscilar e depois tudo ficou calmo. Os rapazes afastaram-se e os pequenos ouviram as vozes dos dois, dizendo qualquer coisa que já não se percebia.

- Foram-se embora? - foi a pergunta muda de Dina ao olhar para João, erguendo as sobrancelhas. Ele fez que sim com a cabeça. Sim, já se tinham ido embora. Mas que susto apanharam quando os dois homens se agarraram ao feto para os ajudar na escalada! Mal sabiam José e Firmino que a dois passos deles estavam quatro crianças caladas que nem ratos.

João voltou a afastar o feto. Dos homens nem sinal. Ficou certo de que eles se tinham ido embora, mas não teve coragem para sair e examinar as redondezas.

- O melhor será descansarmos um bocadinho. Comemos, e depois eu saio e vou dar uma vista de olhos por aí. Onde está a Didi?

Ninguém lhe soube responder. Foi então que Dina se lembrou de que o bicho estivera com elas por trás da cascata. Tinham voltado sem ela, na ânsia de avisarem os rapazes da presença dos dois homens. Ainda devia estar no mesmo sítio.

- Que aborrecimento! O melhor é irmos buscá-la - alvitrou João. - Agora também não me apetecia fazê-lo. Estou cansadíssimo por ter vindo a carregar com aquele saco tanto tempo.

De fora da gruta veio uma voz triste, lamentosa e cheia de censuras:

«Pobre Didi! Sozinha. Que pena, que pena, pobre Didi!»

Os pequenos desataram a rir, e João abriu cautelosamente a cortina de feto, não fosse dar-se o caso de ainda por lá andarem os homens. Didi enfiou-se por ali dentro, com ar de quem tinha muita pena de si própria. Voou para o ombro de João e pôs-se a dár-lhe bicadinhas na orelha.

«Tudo a bordo», palrou a catatua, já mais animada, dando estalinhos com o bico. Dina ajeitou-lhe as penas da cabeça.

- A Didi deve ter-se escapado por um lado da queda de água e vindo cá ter - lembrou ela. «Sua espertalhona!»

«Deus salve o rei», exclamou a Didi. «Limpa os pés!» O abre-latas voltou a ser manobrado e os pequenos foram escolher as latas e os boiões cujo conteúdo haviam de comer. Faltava ainda acabar uma lata de bolachas e eles escolheram carne assada para comerem com elas e uma grande lata de alperches sumarentos. João afastou um tudo-nada as hastes do feto, apenas o suficiente para a luz lhes permitir ver o que faziam. Depois, mais uma vez se sentaram a saborear uma boa refeição e a Didi até se viu atrapalhada por tirar mais alperches do que devia.

Os pequenos esperaram ainda um bocado antes de se atreverem a sair da gruta. Quando o Sol começou a descer, João veio, então, cá fora examinar todas as redondezas. Não havia sinais dos homens. João descobriu um sítio de onde podia ver até longe em qualquer direcção.

- Vamos ficar de sentinela à vez - propôs ele. - Daqui por meia hora podes vir substituir-me, Filipe.

Depois divertiram-se imenso a vaguear por ali. Encontraram groselhas bravas e fartaram-se de comer. Eram deliciosas. A Didi também comeu e não parava de murmurar: «Mmmmmmmm».

A cada um deles coube a vez de vigiar, mas nada de notável aconteceu. O Sol escondeu-se por trás das montanhas e veio o lusco-fusco. Voltaram todos para a gruta.

- Vai ser tão bom dormir aqui esta noite - declarou Maria da Luz, contente. - O musgo é tão bom, tão macio! Parece veludo.

Passou-lhe a mão por cima. Parecia mesmo veludo. Ajudou Dina a pôr no chão os impermeáveis e uma manta e pôs as camisolas a servirem de almofadas.

- Um refresco de alperche e bolachas para todos - ofereceu Dina quando todos se sentaram na «cama», estendendo a lata das bolachas. João afastou as hastes do feto e amarrou-as bem amarradas, explicando:

- Temos de deixar entrar ar na gruta. Com quatro cá dentro isto é capaz de ficar muito abafado.

- Com cinco. Não te esqueças da Didi - lembrou Dina.

- Seis - corrigiu Filipe, mostrando-lhes a lagartixa. - Não se esqueçam da bicha Tixa.

- E eu que estava toda esperançada em que a tivesses perdido - confessou Dina aborrecida. - Não a vi em todo o dia.

Comeram as bolachas e deitaram-se. Lá fora estava escuro. A «cama» era quente e fofa. Os pequenos aconchegaram-se, procurando cada um a posição mais confortável.

- Se não fosse lembrar-me de que a mãe deve estar aflita por nossa causa, eu até gostava disto - declarou Filipe, cobrindo-se com a manta. - Não faço a mais pequena ideia de onde estaremos, mas é em sítio bem bonito. Que agradável é a música da queda de água, assim, à noite.

- Toca um bocado alto de mais - contrariou João, bocejando. - Mas não me parece que vá impedir-me de dormir. «Ó Didi, sai de cima da minha barriga. Não sei porque tanto gostas de te colocares aí à noite. Põe-te antes num dos pés».

«Limpa os pés», palrou logo a Didi, levantando voo para aterrar no pé direito de João. Depois meteu a cabeça debaixo da asa.

- Amanhã Filipe e eu havemos de ir a essa gruta do eco de que vocês falaram e de nos pôr por trás da queda de água - disse João. - Imagine-se, vocês as duas a terem uma aventurazinha sozinhas.

- Aventurazinha! - exclamou Maria da Luz. - Foi uma aventura das grandes, sobretudo quando vimos que estávamos mesmo por trás da queda de água!

Dina estava cheia de receio que a Tixa se pusesse a correr sobre ela durante a noite, e ficou acordada durante um tempo à espera de lhe sentir os pezitos. Mas a Tixa estava enroscada na axila de Filipe, fazendo-lhe umas cócegas horríveis quando se mexia.

Maria da Luz adormeceu quase imediatamente e os outros não tardaram a seguir-lhe o exemplo. Toda a noite o ruído da queda de água se fez ouvir ininterruptamente. Levantou-se vento que veio agitar as hastes do feto. Uma raposa ou outro bicho parecido veio até à entrada da gruta cheirar, mas, alarmado com o cheiro de gente, fugiu silencioso.

Ninguém se mexeu, a não ser Filipe quando a lagartixa acordou, sentindo que precisava de mudar de posição, foi procurar outro lugar quentinho, desta vez atrás da orelha dele. Acordou segunda vez, sentiu a Tixa a mexer-se e fechou os olhos quase imediatamente, contente por lhe sentir os pezitos.

Ao amanhecer, os quatro pequenos foram acordados por um ruído de motores que penetrou na gruta, mais forte do que o da queda de água. João levantou-se logo, surpreendido. Que seria aquilo?

O ruído foi-se aproximando cada vez mais, como se estivesse quase em cima das cabeças deles. Realmente, que seria?

Rr-rr-rr-rrrrrrrrrrrrr!

- É um avião! - exclamou João. - Um avião! Deve vir salvar-nos. Vamos, depressa para fora da gruta!

Atropelaram-se na ânsia de saírem da gruta, à procura do avião. Ia um a subir, uma forma grande que se recortava no azul do céu. Era evidente que se aproximara muito da encosta da montanha, acordando-os com o barulho.

- Um avião para nos salvar? - proferiu Filipe com desdém.-Não me parece! Aquele é o avião em que nós viemos, o avião dos homens, seu pateta!

 

         O POBRE PRISIONEIRO

Não havia dúvida de que se tratava do avião dos homens. Os quatro reconheceram-no perfeitamente e viram-no sumir-se ao longe. Ia para Oeste.

- Irá outra vez para o aeroporto do Jaime? - perguntou João. - Bem gostava de saber se o Jaime saberá o que eles andam a tramar.

- Nem nós sabemos muito bem, a não ser que andam à procura de um tesouro qualquer - pronunciou-se Filipe. - Agora que tesouro eles pensam encontrar aqui é que não percebo.

- Nem eu - respondeu João.--Pronto, lá vão! Parece-te que voltam?

- Isso é mais do que certo - disse Filipe. - Não vão desistir com tanta facilidade. São capazes de ir dizer que há gente agora por aqui. Possivelmente pensam que andamos também à procura do tesouro! E são capazes de trazer com eles mais homens para ver se nos encontram.

- Isso é que não convinha! - exclamou Maria da Luz, alarmada.

- Parece-te que terão ido os dois no avião? - perguntou Filipe.

- Devem ter ido - respondeu João. - Mas nós podemos ir investigar. Se cá ficou um, deve estar algures perto da cabana, uma vez que não sabe quantos nós somos. Até é capaz de pensar que haja homens connosco, sabem? E não se atreve a afastar-se muito, assim sozinho.

Mas mais tarde, quando os pequenos saíram da gruta, nessa manhã, e foram dar uma vista de olhos, como João sugeriu, não encontraram sinais nem de José, nem de Firmino. Não havia lume. Tinham-no apagado e calcado. Desta vez a cabana estava realmente fechada à chave e a chave retirada da porta. Não houve empurrões ou pontapés que a abrissem.

- Se nós soubéssemos que eles iam regressar, podíamos ter-lhes pedido uma boleia - disse João, tentando fazer espírito. - Bem gostava de saber quando virão, se é que tencionam cá voltar.

- Antes de amanhã de manhã não estarão cá, com certeza - respondeu Filipe. - Devem voltar a partir da noite como da outra vez. E se tornássemos a examinar aqueles caixotes?

Mas nada havia lá para ver. Continuavam vazios e cobertos com o oleado. Os pequenos brincaram durante umas horas e comeram debaixo de uma árvore o conteúdo de umas latas que foram buscar onde as tinham escondido, nos arbustos. Foi João quem as abriu.

Depois de comerem, Filipe lembrou que seria altura de voltarem à queda de água para as raparigas lhes mostrarem a gruta do eco e a passagem que ia a dar por trás da cascata. E lá foram, não sem primeiro destruírem todos os vestígios da sua presença próximo da cabana dos homens.

Mas quando chegaram à gruta, João soltou uma exclamação de aborrecimento e pôs-se a meter a mão em todas as algibeiras.

- Que foi? - perguntou Maria da Luz.

- Sabem o que fiz? Deixei lá ficar o abre-latas - respondeu João. - Imaginem só! Esta minha cabeça! Pensei que talvez precisássemos de abrir outra lata e pu-lo sobre as raízes da árvore debaixo da qual comemos. Com certeza que o deixei lá ficar. Não o tenho aqui.

- Ó João! Mas nós nada podemos comer sem abrirmos latas - exclamou Filipe, já com horríveis visões de uma noite de fome. - Que estupidez!

- Pois é - respondeu João, cabisbaixo. - Só há uma coisa a fazer. Vou lá buscá-lo. Tu vais ver a gruta do eco com as raparigas, e eu vou com a Didi buscar o abre-latas. Não mereço outra coisa.

- Eu vou contigo, João - interveio Maria da Luz, com pena do irmão.

- Não, que já andaste muito - respondeu João. - Tu vais com eles. Sozinho até ando mais depressa. Vou só sentar-me aqui a descansar um bocadinho. À gruta posso eu ir em qualquer altura.

Sentou-se no musgo. Os outros fizeram o mesmo, cheios de pena por saberem como ele devia sentir-se aborrecido consigo próprio. Mas mais aborrecido ainda era ficarem sem comer. Alguém tinha de ir buscar o abre-latas.

Cerca de meia hora depois já João se sentia capaz de nova caminhada. Despediu-se alegremente dos outros e partiu, descendo ágil pelas rochas abaixo. Os outros sabiam que ele não se perderia. Agora já todos sentiam que conheciam bem o caminho.

João levava a Didi no ombro e conversavam todo o caminho. A Didi estava radiante por ter o João só para si. Ele andava quase sempre com os outros. Só disseram disparates, mas divertiram-se na mesma.

Por fim João chegou à árvore à sombra da qual tinham almoçado e pôs-se à procura do abre-latas com certo receio de que alguém o tivesse levado. Mas lá estava onde o deixara.

«Sou capaz de dar três saltos!», exclamou.

«Salta a pulga na balança», respondeu a Didi. «As meninas a aprender, o filho do Luís».

«Também me parece», monologou João. «Bem, o melhor será voltarmos. O Sol está a pôr-se e eu nenhuma vontade tenho de voltar de noite. Toca a andar, Didi, vamos a isto».

«Mãos à obra», palrou a Didi.

«Pés à obra, queres tu dizer», corrigiu João, rindo-se e começando a andar. Mas, de repente, parou para escutar. Ao longe ouvia-se um ruído familiar, um ruído de motores: Rr-rr-rr-rr!

«Caramba, Didi! Que cedo vêm aqueles sujeitos», exclamou João, fixando o olhar a Oeste, no céu, que estava ainda raiado pelo Sol. «Não há dúvida, é um avião. Será o deles?»

O avião foi-se aproximando cada vez mais e João teve uma ideia. Correu para a cabana dos homens e trepou rapidamente para uma árvore perto do local onde eles costumavam acender a fogueira.

Depois recomendou à Didi.

«Está calada! Nem uma palavra, minha tonta! Percebeste? Chhhhhhh!»

«Que pena, que pena!», fez a Didi num murmúrio rouco. Depois calou-se, encostando-se ao pescoço de João e empoleirada no ombro dele.

O avião aproximou-se mais.

Foi descrevendo círculos ao mesmo tempo que descia. Por fim, inclinou-se para aquele vasto terreno liso que tão bem servia de campo de aterragem, pousou as rodas no solo e parou. De onde estava, João não via o aparelho.

Contava que os homens viessem para a cabana ou para a fogueira, e acertou. Não tardaram a aparecer, e João ficou a espreitar por entre as folhas, quase em riscos de se desequilibrar de tanto se esforçar por distinguir o que se passava, já com pouca luz.

Desta vez vinham quatro homens. João observava tudo atentamente. Percebia-se que um dos homens era um prisioneiro porque trazia as mãos amarradas. Que estranho!

De cabeça descaída, o homem bamboleava-se de um lado para o outro como se estivesse tonto. De vez em quando um dos outros dava-lhe um empurrão para o endireitar. Foram direitos à fogueira.

José começou a tratar de tudo para a acender. Firmino foi à cabana, tirou uma chave do bolso e abriu a porta. Voltou a sair com latas de sopa e carne.

O prisioneiro sentou-se na erva, sempre de cabeça pendida. Era evidente que não se sentia bem, ou seria simplesmente medo? João não sabia.

O quarto homem que, pelo que João pensava, era uma espécie de guarda do prisioneiro, ficou sentado ao pé do lume sem dizer palavra, a ouvir o que José e Firmino diziam.

De princípio falavam muito baixo e João não conseguia perceber o que diziam. Comeram sopa quente e foram cortando fatias de língua acompanhada de pão que trouxeram do aparelho. O prisioneiro levantou os olhos, os outros comiam numa total indiferença para com o homem. Este, em voz baixa, murmurou qualquer coisa. José riu-se e disse ao guarda:

- Diz-lhe que não lhe damos de comer nem de beber enquanto não nos der as informações que pretendemos.

O guarda repetiu isto numa língua que João não percebeu. O prisioneiro respondeu qualquer coisa e o guarda deu-lhe uma bofetada. João ficou indignado. Bater num homem que tem as mãos amarradas! Cobardes!

O homem, depois de, sem êxito, tentar fugir à bofetada, voltou a deixar descair a cabeça e lá ficou, sem ânimo.

- Diz que vocês têm o mapa, por isso, que mais querem? - proferiu o guarda.

- Mas não se percebe nada - retorquiu José. - É muito confuso. Se não quiser explicá-lo, terá de nos mostrar o caminho amanhã.

O guarda traduziu isto para o prisioneiro. Este abanou a cabeça e o guarda explicou:

- Ele diz que está fraco de mais para chegar até lá.

- Nós arrastamo-lo se for preciso - respondeu Firmino, cortando nova fatia de língua e metendo-a no pão. - Diz-lhe que amanhã tem de levar-nos até lá sob pena de não comer nem beber. Quando estiver a morrer de fome amansará.

Acabaram de comer. José bocejou longamente e disse:

- Eu vou para a cama. Tu, Luís, tens ali uma cadeira na barraca. Ao prisioneiro chega-lhe bem o chão.

O homem pediu que lhe desatassem as mãos, mas eles não o atenderam. João estava cheio de pena dele. Apagaram o lume e foram para o interior da barraca. João pôs-se a imaginar José e Firmino no colchão e Luís na única cadeira.

O pobre prisioneiro tinha de ficar deitado no chão frio e duro e ainda por cima de mãos amarradas atrás das costas.

João esperou até sentir que o terreno estava livre. Então, desceu da árvore. A Didi tinha sido um anjo. Do bico dela não saíra nem um murmúrio. Em passos silenciosos, João dirigiu-se à cabana. Estava uma vela acesa e ele viu os quatro homens àquela luz vacilante. O prisioneiro tentava aconchegar-se no chão.

Era quase noite cerrada. João esperava ser capaz de chegar à gruta sem novidade. Meteu a mão na algibeira e ficou mais aliviado ao encontrar lá uma pequena lanterna. Ao menos isso.

João orientava-se normalmente bem no escuro, parecia que tinha olhos de gato. Desta vez, uma ou duas vezes parou sem saber por onde seguir - mas a Didi é que não se enganava. Voava um bocadinho à frente e chamava-o ou assobiava.

«Bendita Didi!», exclamou. «Se não fosses tu era capaz de nunca mais dar com o caminho».

Os outros estavam muito preocupados. Quando escureceu sem que o João tivesse aparecido, Maria da Luz quis ir procurá-lo.

- Perdeu-se, com certeza - dizia ela, quase a chorar.

- E se fôssemos para a montanha com esta escuridão, perdíamo-nos todos - dizia Filipe. - Com certeza levou tempo a encontrar o abre-latas, viu que estava a cair a noite e resolveu não se arriscar a voltar pelo escuro. Amanhã de manhã cedo já ele cá está de certeza.

Estava escuro de mais para fazerem fosse o que fosse. Dina arranjou a cama e deitaram-se todos, Maria da Luz chorava baixinho. Sentia que devia ter acontecido alguma coisa a João.

Foi então que lhes chegou aos ouvidos um ruído de passos apressados. O feto foi afastado e os pequenos sentaram-se de repente, com os corações a bater apressadamente. Seria o João ou estariam descobertos?

- Vivam! - disse a voz familiar de João. - Onde estão todos?

Acendeu a lanterna e viu três rostos radiantes. Maria da Luz atirou-se-lhe ao pescoço.

- João! Pensámos que te tivesses perdido. Que estiveste a fazer. Estamos cheios de fome. Trouxeste o abre-latas?

- Trouxe, e venho carregadinho de novidades - exclamou João. - Mas podíamos ir comendo enquanto eu as conto.

 

        OS HOMENS APANHAM UMA DESILUSÃO

Abriram logo as latas e a Didi soltou uma gargalhadinha deliciada ao ver o ananás de que tanto gostava. Maria da Luz chegou-se muito para João.

- Que te aconteceu? Estou morta por ouvir tudo. Conta depressa.

- Primeiro, deixa-me comer qualquer coisa - respondeu João, arreliador, farto de saber que os outros ardiam em impaciência por ouvir as novidades. Mas como ele ansiava por contá-las tanto quanto os outros por ouvi-las, depressa começou a narrativa.

- Com que então o avião já voltou! - exclamou Filipe, quando João começou a narrativa. - E também voltaram os dois homens?

João contou que eram quatro. Maria da Luz ficou desolada ao saber da existência do pobre prisioneiro.

- Estou a começar a ver claro - observou Filipe, por fim. - Algures neste vale está escondido um tesouro, talvez coisas que pertenciam à gente que viveu nestas casas antes de elas arderem. Aqueles dois homens souberam disso, e conseguiram, não se sabe como, arranjar um mapa do trajecto para o esconderijo. Mas aquele mapa não chega para o encontrarem, e, então, conseguiram deitar a mão a alguém que sabe o caminho para lá.

- Exactamente - disse João. - Ele é estrangeiro. Talvez tenha vivido neste vale e até escondido também coisas. Aprisionaram-no e tencionam obrigá-lo a mostrar-lhes o esconderijo. Nada lhe dão de comer nem de beber até que ele lhes mostre o que querem saber.

- Selvagens! - exclamou Dina, e os outros concordaram com ela.

- Acham que ele irá explicar tudo? - perguntou Maria da Luz.

- Oxalá que sim. Era para bem dele - opinou João. - Mas vou contar-lhes os meus planos. A minha ideia era fazermos o possível para um de nós, ou mais, os seguir para sabermos onde fica o esconderijo. Os homens não conseguem tirar logo tudo. Talvez pudéssemos arranjar ajuda e evitar que eles roubassem o resto. Não lhes pertence, com certeza.

- Que te parece que haja no tesouro? - perguntou Maria da Luz, com a cabeça cheia de visões de barras de ouro e jóias maravilhosas.

- Isso não sei - respondeu João. - Nós devemos estar algures nas profundezas da Europa, onde houve guerra, como sabem, e muita gente, boa ou má, escondeu, nos mais estranhos lugares, coisas valiosas de todas as espécies. Na minha ideia deve ser qualquer coisa deste género que estes homens procuram. Eles falam inglês, mas não são ingleses. Devem ser sul-americanos ou qualquer outra coisa, sabe-se lá!

Os outros ficaram calados, pensando no que João dissera. Parecia-lhes que ele tinha razão. Mas a ideia de seguir os homens não agradava a Maria da Luz. E se eles descobrissem que estavam a ser seguidos e os fizessem prisioneiros?

- O melhor seria Filipe e eu irmos amanhã na excursão - propôs João. - É melhor vocês duas não se meterem nisto.

Dina ficou zangada, mas Maria da Luz sentiu-se secretamente aliviada.

- O que vocês querem é gozar isto tudo sozinhos - disse

Dina. - Mas enganam-se, porque eu também vou.

- Isso é que não vais - respondeu João. Acendeu a lanterna e virou a luz para a cara de Dina, dizendo:

- Logo vi que devias estar vermelha de fúria. Mas não é caso para isso, Dina. Seja como for, tu e Maria da Luz já hoje tiveram uma aventura, quando descobriram a gruta do eco e a passagem que vai dar à queda de água.

É justo que nós também tenhamos uma oportunidade.

- Conversa tens tu -resmungou Dina, mas não insistiu no assunto, com grande alívio de Maria da Luz.

- Onde está a Tixa? - perguntou Dina, sem querer instalar-se antes de saber ao certo onde parava a lagartixa.

- Sei lá - foi a resposta arreliadora de Filipe. - Pode estar em qualquer parte. Até debaixo da tua almofada.

- Está aqui - respondeu João. - Dum lado do meu pescoço está a Didi e do outro a Tixa. Estou quentinho que é um regalo.

«Que pena!», fez a Didi, palrando alto.

«Calada!», ordenaram logo todos. Ninguém gostava do horrível grito da Didi.

Ofendido, o animal meteu a cabeça debaixo da asa.

Os pequenos deitaram-se todos. Estavam cheios de sono. Então Filipe proferiu:

- É a nossa quarta noite neste vale, pode chamar-se ao que nos sucede a Aventura no Vale. Só gostava de saber que mais irá acontecer.

Depressa adormeceram. A Tixa passou a correr por cima de Maria da Luz e foi aninhar-se ao pé de Dina, que teria protestado veementemente se soubesse. Mas, como ignorava, continuou a dormir com sossego.

No dia seguinte estavam todos bem dispostos.

- Sabem uma coisa? - disse Dina, tirando umas latas da «prateleira». - Parece-me que já vivo nesta gruta há imenso tempo. É espantoso como a gente se habitua a coisas novas.

- Como havemos de descobrir quando os homens partem para a expedição e que caminho tomam? - perguntou Filipe.

- Deves lembrar-te de que os dois vieram nesta direcção, e não na outra, quando quiseram orientar-se com o mapa - respondeu João. - Parece-me que, se formos para aquela grande rocha negra por onde passamos sempre que vimos para aqui, conseguiremos vê-los. Depois é só segui-los.

Por isso, quando acabaram de comer dirigiram-se cautelosamente para o grande rochedo negro. Acocoraram-se atrás dele e João foi espreitando de vez em quando para ver se avistava alguma coisa.

Passada cerca de uma hora o rapaz soltou uma exclamação em voz baixa:

- Olha! Lá vêm eles, todos quatro, o prisioneiro, coitado, ainda continua com as mãos amarradas e vem aos tropeções.

Os quatro homens passaram de largo. Os pequenos viram-nos muito bem. Reconheceram os dois que já conheciam, e João disse-lhes que o quarto homem se chamava Luís. O prisioneiro não sabia ele como se chamava. Do que não restavam dúvidas era de que o pobre homem estava tonto de fome e de sede.

- Vocês, meninas, ficam aqui - observou João. - Pelo menos até nos perderem de vista. Depois voltam para a queda de água e deixam-se ficar por lá para não se perderem. Toma a Didi, Maria da Luz. Não pode ir connosco.

Maria da Luz pegou na Didi e segurou-lhe as pernas. O bicho soltou um grito tal que os pequenos olharam aflitos na direcção dos quatro homens para verem se eles por acaso teriam ouvido aquilo. Mas não.

João e Filipe prepararam-se para partir. João foi dizendo:

- Eu tenho aqui o binóculo. Podemos segui-los a distância para que não dêem por nós, que eu não os perco de vista. Viva!

E os dois lá foram, cautelosamente, encobrindo-se sempre que podiam. Ao longe viam-se ainda os homens.

- Será preciso marcarmos o caminho ou parece-te que saberemos orientar-nos no regresso? - perguntou Filipe.

- O melhor será marcarmos o que pudermos - respondeu João. - Nunca se sabe. Marcam-se as rochas com um pedaço de gis branco que eu trago aqui e nas árvores faz-se um golpe visível.

Continuaram a andar, seguindo sempre a uma boa distância dos quatro homens. Em breve chegaram a uma subida muito íngreme, difícil de escalar porque era tão arenosa que se escorregava a cada passo.

- Oxalá tenham desatado as mãos ao pobre prisioneiro - disse João ofegante. - Detestava ter de subir uma coisa destas de mãos amarradas, sabendo que não tinha possibilidades de escapar à queda se escorregasse.

Quando chegaram ao fim da difícil escalada não se viam sinais dos homens e João exclamou aborrecido:

- Ora bolas! Com esta subida demorámo-nos tempo de mais e perdemo-los de vista.

Levou o binóculo aos olhos e examinou toda a encosta. Um pouco a Leste, e acima deles, vislumbrou quatro pequenas silhuetas e disse:

- Lá estão eles! Belo! Agora já os vejo. Vamos por ali, Trunfa.

Continuaram a andar, desta vez mais depressa, uma vez que o caminho era mais fácil. Passaram por framboesas selvagens e apanharam algumas, até pararam uma vez para beber numa nascente de água cristalina que jorrava por baixo de uma rocha.

Não voltaram a perder os homens de vista, a não ser por um momento. Estes nunca se viraram para trás nem se serviram de binóculos. Claro que não esperavam ser seguidos.

Por fim, os rapazes chegaram a uma parte da encosta muito desolada. Tinham abatido grandes blocos de pedra. As árvores estavam partidas pelo meio. Viam-se grandes brechas na terra e nas rochas e, embora a erva crescesse por toda a parte, escondendo mazelas, era evidente que se dera ali qualquer catástrofe.

- Deve ter sido uma avalanche - disse João. - Com certeza caiu aqui uma enorme tempestade de neve que arrastou pedras e rochas de todos os tamanhos, deitou abaixo árvores e abriu estas brechas. Deve ter sido no Inverno passado.

- E onde estão os homens? - perguntou Filipe. - Já não os vejo. Eles contornaram aquela rocha.

- Pois foi. E nós temos de ter cuidado a dar a volta. Esta zona está tão devastada que quase não temos onde nos escondermos.

Contornaram a rocha com todo o cuidado, e fizeram bem, porque imediatamente soaram vozes e viram os quatro homens.

João fez parar Filipe. Por cima da rocha estava um arbusto. Os rapazes treparam até lá e deixaram-se ficar muito encostados a ele, espreitando por entre as folhas. Lá em baixo havia um fosso de rocha.

Também ali se viam sinais duma tremenda derrocada. Em frente de um monte de pedras estava o prisioneiro. Já tinha as mãos desatadas. Apontava para o monte de pedregulhos e dizia qualquer coisa em voz baixa e monótona. O guarda traduziu e João apurou o ouvido para saber o que ele dizia.

- Diz que a entrada era aqui - foram as palavras do guarda. Os quatro homens ficaram-se a olhar para as rochas.

- Exactamente em que sítio? - perguntou José, ardendo de impaciência e cólera. O prisioneiro voltou a apontar, murmurando qualquer coisa.

- Ele diz que não sabia que tinham caído aqui estas pedras - traduziu o guarda. - Diz que lhe parece que a entrada ficou obstruída, mas talvez removendo umas pedras destas encontrem espaço suficiente para entrarem.

José teve uma fúria, se contra o prisioneiro se contra as rochas não se sabia bem. Atirou-se aos pedregulhos e começou a puxar por eles com quanta força tinha, gritando a Luís e Firmino que o ajudassem. De princípio, o prisioneiro limitou-se a sentar-se numa rocha com ar infeliz. José deu-lhe um berro e ele levantou-se com dificuldade para ajudar também, embora estivesse fraco de mais para semelhante tarefa.

Puxou por uma pedra, oscilou e caiu. Os outros deixaram-no caído e continuaram a puxar pelos pedregulhos, ofegantes e com as testas cobertas de suor.

Os dois rapazes ficaram a ver a cena. De onde estavam parecia-lhes impossível desimpedir qualquer entrada de gruta.

João disse baixinho a Filipe:

- Devem ter caído ali centenas de pedras! Não acredito que assim consigam alguma coisa!

Passados uns momentos, tornou-se evidente que os homens haviam chegado à mesma conclusão, porque desistiram de puxar pelos pedregulhos e sentaram-se a descansar. O guarda apontou para o prisioneiro caído por terra e disse:

- E este? Como havemos de o levar outra vez para baixo?

- Dêem-lhe de comer e de beber que já fica outro - resmungou José.

- Agora é melhor irmo-nos embora - segredou Filipe. - Não tardará que comecem a descida. Vamos. Foi uma desilusão nada termos descoberto! Sempre esperei que pudéssemos ver um bocadinho do tesouro.

- Se é ali que ele está vão ser precisas máquinas para o tirarem de lá - respondeu João. - Não há forças humanas capazes de arrastar dali aquelas rochas maiores. Vamos, depressa.

Iniciaram o caminho de regresso tão depressa quanto podiam, satisfeitos por terem marcado rochas e árvores, porque senão ver-se-iam em riscos de se perderem.

As raparigas receberam-nos cheias de satisfação e encheram-nos de perguntas. Mas os pequenos abanaram as cabeças com ar desiludido.

- A gruta do tesouro tem a entrada obstruída - explicou João. - Só espero que os homens não desistam e não se lembrem de abandonar este vale para sempre. Então é que nós ficávamos sem quaisquer recursos.

 

         SALVANDO O PRISIONEIRO

Pouco depois de João e Filipe terem chegado à gruta, Maria da Luz, que estava a espreitar lá fora, soltou um grito:

- Está ali um homem! Ao pé da queda de água! São dois, não, três.

João puxou o fio que prendia as hastes do feto e a gruta ficou encoberta. Depois pôs-se a espreitar com todo o cuidado.

- Era de calcular que voltassem por aqui para ver se nos caçavam - proferiu ele. - Ora bolas! Realmente são três. E o prisioneiro?

- É capaz de ter ficado caído no caminho, coitado - respondeu Filipe, espreitando também. - Tinha todo o aspecto de estar muito fraco.

Os pequenos ficaram a observar os três homens, ansiosos por saberem o que tencionavam eles fazer. Mas depressa se esclareceu tudo. Luís e José iam voltar à cabana e Firmino ficava a vigiar a queda de água para ver quem entrava ou saía, e tentar descobrir que caminho tomavam. Os pequenos não ouviam o que eles diziam, mas estava tudo bem claro.

Luís e José foram-se embora. Do prisioneiro é que ninguém sabia. Firmino sentou-se numa rocha que dava para a queda de água, precisamente ao nível da saliência onde as raparigas haviam estado no dia anterior.

- Ora esta! - exclamou João. - Não podemos sair nem entrar sem sermos vistos. Bem sei que está de costas para nós, mas pode virar-se em qualquer altura.

Maria da Luz começou a ficar preocupada com o prisioneiro.

- Suponham que caiu no caminho e os homens o deixaram lá ficar. É capaz de morrer, não é?

- Pois é - respondeu João, também preocupado.

- Mas nós não podemos deixá-lo morrer, João - disse Maria da Luz, de olhos muito abertos. - Não pode fazer-se isso. Não descanso enquanto não souber o que foi feito dele.

- E eu estou um pouco como tu - respondeu João, e os outros concordaram. - Tinha um ar tão triste ali sentado, sem poder nada contra os outros. Está doente com certeza.

- Mas como havemos de descobrir o que lhe aconteceu, com aquele fulano ali de guarda? - perguntou Filipe melancolicamente.

Todos se calaram. Aqui estava um caso de difícil solução. Foi então que Maria da Luz teve uma ideia e exclamou:

- Já sei. Há uma maneira de termos a certeza de que o Firmino não dá conta de ninguém sair desta gruta.

- Qual é? - perguntou João.

- Se um ou dois de nós se puser atrás da queda de água aos saltos para lhe chamar a atenção, ele fica de olhos fitos e não dá conta de quem quer que saia da gruta - explicou Maria da Luz.

- Parece-me boa ideia - disse João, e Filipe concordou.

- Boa ideia, não há dúvida. O melhor é metermos mãos à obra. Vai começar o espectáculo, o espectáculo em honra do nosso querido Firmino. O melhor será vocês duas irem fazer a representação. Atrás da queda de água estão seguras porque não há quem lá chegue, a não ser pelo caminho que vocês tomam, e o Firmino não conhece esse caminho. Enquanto vocês o entretém, Filipe e eu saímos para ver se descobrimos sinais do prisioneiro.

- Então, esperem aqui até nos verem por trás da água - disse Dina, começando a subir. Ela e Maria da Luz desapareceram pelo buraco ao fundo da gruta. Os rapazes esperaram pacientemente que elas aparecessem por trás da cascata.

Passado um tempo, Filipe apertou o braço de João, dizendo:

- Lá estão elas! Querida Maria da Luz, querida Dina! Que belo espectáculo! Que têm elas na mão? Olha! Tiraram as camisolas vermelhas e estão a agitá-las muito e a fazer uma espécie de dança.

Firmino viu-as logo. Admirado, ficou a olhar, e depois levantou-se. As raparigas não fizeram caso e continuaram a dançar. Firmino começou a experimentar todos os caminhos possíveis para chegar onde elas estavam.

- Chegou a altura - disse João. - Vamos. Vai ficar de olhos postos na Maria da Luz e na Dina durante muito tempo.

Saíram rapidamente da gruta, deixando o feto de hastes pendentes a tapar bem a entrada. Treparam às rochas que ali havia e depressa ficaram encobertos. Quando as raparigas viram que eles já estavam fora da gruta e longe da vista, saíram da saliência da rocha e entraram na passagem que ia dar à gruta do eco. Já tinham representado o seu papel.

Os rapazes seguiram cautelosamente pelas rochas, prestando atenção a tudo, não fosse aparecerem os outros. Quando já estavam bastante afastados de Firmino, pararam para combinar o que fazer.

- E agora? Vamos até àquela gruta que tem a entrada obstruída e onde parece estar o tesouro para ver se encontramos o prisioneiro caído pelo caminho? Ou seguimos no outro sentido, para a cabana dos homens, para ver se, por acaso, eles o levaram para lá?

- É melhor irmos à cabana dos homens - optou Filipe, depois de pensar um bocado. - Não me parece muito provável que o tenham deixado pelo caminho. Podem vir ainda a precisar que ele lhes dê quaisquer informações mais.

Dirigiram-se, então, para a cabana. Agora já sabiam o caminho de cor e salteado. Viram o fumo da fogueira ainda muito ao longe e ficaram a saber que eles já lá estavam.

Mas dos dois homens ou do prisioneiro não se via sinal. Com mil cuidados, os rapazes espreitaram através das árvores perto da cabana.

A porta estava fechada, possivelmente à chave. Estariam os homens lá dentro?

- Escuta, aquilo não é o barulho dos motores do avião? - perguntou Filipe de repente.

- É, não há dúvida. Irão eles levantar voo outra vez? Foram para um lugar de onde viam bem o avião com o

binóculo de João. Os homens não se preparavam para levantar voo, estavam a fazer qualquer reparação. Não dava ideia de o prisioneiro estar com eles.

- Vais ficar aqui com o meu binóculo, Filipe, e vigias o avião e os homens - recomendou João, metendo o binóculo na mão de Filipe. - Se acabarem o trabalho e começarem a dirigir-se para a cabana, tu vens logo dizer-me. Vou espreitar pela janela para ver se lá está o prisioneiro. Estou preocupado com ele.

- Vai descansado - respondeu Filipe, levando o binóculo aos olhos. João partiu a correr. Depressa chegou à cabana. Experimentou abrir a porta, que estava realmente fechada à chave. Foi até à janela e espreitou.

O prisioneiro estava lá dentro. Sentado na cadeira com o rosto apoiado nas mãos, era a própria imagem da desolação. Enquanto espreitava, João ouviu-o gemer e ficou de coração apertado com aquele gemido.

«Se ao menos o pudesse tirar cá para fora!», pensou. «Rebentar a janela não adianta. É pequena de mais para eu entrar quanto mais para ele sair. Que hei-de fazer? Não consigo meter a porta dentro, que é forte como tudo!

Fez uma inspecção a toda a volta da casa, duas ou três vezes, sem conseguir descobrir meio de entrar. Depois, ficou-se a olhar para a porta com ódio. Antipática! Tão forte!

Foi então que viu uma coisa inacreditável. Ao lado da porta estava um prego e nesse prego uma chave pendurada! Era uma chave grande que devia ser da porta, senão, para que estaria ali? Deviam tê-la lá posto para que qualquer dos homens pudesse entrar ou sair sem ter de esperar pelo detentor da chave.

Com a mão trémula, João tirou a chave do prego, meteu-a na fechadura e procurou dar-lhe a volta. Estava perra, mas esforçou-se e conseguiu o seu intento.

A porta abriu-se e João entrou. O prisioneiro, ouvindo abrir a porta, levantou os olhos e ficou surpreendido a olhar para João. O pequeno sorriu-lhe.

- Venho libertá-lo - explicou. - Quer vir comigo?

O homem não dava mostras de compreender. Franziu um pouco mais o sobrolho, fixou ainda mais o olhar em João, dizendo depois:

- Fale devagar.

João repetiu o que já dissera. Depois bateu no peito e afirmou:

- Sou seu amigo. Amigo! Percebe?

Viu-se que o homem compreendera porque, lentamente, um sorriso veio iluminar-lhe o semblante. Tinha um rosto simpático, bom, triste, e que inspirava confiança, pensou João, e estendeu-lhe a mão, dizendo:

- Venha comigo.

O homem abanou a cabeça e apontou para os pés. Estavam firmemente amarrados com uma corda que ele não tivera força para desatar. Num abrir e fechar de olhos, João puxou dum canivete e cortou os fios da corda, que caiu em bocados. O homem levantou-se, mas tão cambaleante que parecia tombar a cada momento. João ajudou-o a equilibrar-se e pensou que o pobre nunca mais conseguiria chegar à gruta deles. Parecia ainda mais fraco do que anteriormente.

- Vamos - disse o pequeno, apressado. - Não há tempo a perder.

Meteu os bocados de corda na algibeira, trouxe o homem até cá fora e voltou a fechar a porta sem se esquecer de pendurar a chave no prego. Depois sorriu ao prisioneiro, dizendo:

- O José e o Luís não vão deixar de ficar admirados ao verem que o senhor, pelo que parece, atravessou uma porta fechada à chave. Gostava de cá estar para ver a cara que eles farão quando abrirem a porta e descobrirem que desapareceu.

Depois pegou no braço do homem e conduziu-o até umas árvores que os protegiam de vistas estranhas. O prisioneiro tinha grande dificuldade em andar. De vez em quando, soltava um gemido como se lhe fosse penoso caminhar. João cada vez se convencia mais de que ele nunca seria capaz de chegar à gruta.

Não sabia que fazer. Lembrou-se de abrigar o homem no velho estábulo que eles tinham descoberto no dia da chegada. Deixá-lo-ia na última divisão e, no dia seguinte, quando ele estivesse mais recomposto, viria buscá-lo. Era o melhor que tinha a fazer.

- Espere aqui um bocadinho - disse o pequeno, pensando que o melhor seria dar uma corrida até Filipe para o pôr ao corrente de tudo e dizer-lhe que continuasse a vigiar até ele instalar o homem no estábulo.

Filipe ficou muito admirado com o que João lhe contou e concordou em ficar de guarda até João voltar.

- Os outros devem andar a inspeccionar o avião todo - disse ele. - Parece que ainda vão ter que fazer durante um tempo.

João ajudou o prisioneiro cambaleante a ir até ao estábulo. Levaram muito tempo a lá chegar por ele andar com tanta dificuldade.

Quando lá chegaram, deixou-se cair no chão, ofegante. Não restavam dúvidas de que era um doente. Mas ali não havia médico, só lhe restava a boa vontade de João, que já parecia deixá-lo muito grato.

- O senhor vai ficar aqui até amanhã, que eu depois venho cá para o levar para um sítio melhor - disse João, falando muito devagar. - Deixo-lhe água para beber e qualquer coisa para comer.

E ia para abrir uma ou duas latas das que estavam ainda escondidas nos arbustos. Nada lhe custava ir buscá-las e deixá-las ao pé do homem.

Mas este bateu no peito e repetiu duas ou três vezes:

- Otto Engler.

João acenou com a cabeça e, apontando para si próprio, disse:

- João Trent. Eu, João, o Senhor, Otto.

- Amigo - disse o homem. - Inglês?

- Inglês - repetiu João solenemente. - E o senhor?

- Austríaco - disse o homem, pronunciando a palavra duma maneira estranha. - Amigo. Bom amigo. Aqui, porquê?

João tentou explicar como ele e os outros tinham vindo ali parar, mas era uma história complicada de mais para o homem que se pôs a abanar com a cabeça.

- Não perceber - disse. Então inclinou-se para João e falou em voz baixa.

- Sabes do tisoro?

- Do tisoro? Ah! Do tesouro! - exclamou João. - Nem por isso. Sabe?

- Sei tudo - continuou o homem. - Tudo! Eu desenhar mapa de tisoro para ti. Bom rapaz. Eu confiar.

 

         UM MAPA DO TESOURO

A primeira sensação de João ao ouvir isto foi a de grande excitação. Mas depois lembrou-se. Já sabia onde estava o tesouro, mas de que lhe servia isso? Ali ninguém podia ir buscá-lo.

- Já sei onde está o tesouro - disse João, tentando falar devagar e com simplicidade. - Vi o senhor mostrar aos homens esta manhã, mas caíram lá tantas pedras que eles não conseguiram entrar na gruta do tesouro.

O homem soltou uma gargalhada curta. Parecia que tinha compreendido porque disse:

- São uns palermas. Uns grandes palermas. Ali não há tisoro.

João ficou-se a olhar para ele e depois perguntou:

- Quer dizer que os enganou? Sabia que tinham caído ali aquelas rochas e levou-os até lá para fazer de conta que a entrada para o tesouro estava obstruída? Então o tesouro não está atrás daqueles pedregulhos?

O homem franzia muito a testa, esforçando-se por compreender tudo o que João dizia. Pôs-se a abanar a cabeça, dizendo:

- Jáh não há tisoro. Eu enganar José e Firmino. Eles a magoar as mãos, a puxar pelas pedras, que engraçado!

João não pôde deixar de rir. Que rica partida! Então, onde estaria o «tisoro»?

- Eu desenhar mapa - continuou Otto. - Mostro a ti a saída do vale. Pela passagem Ventosa. Tu e os amigos ir) por ali e levar o mapa a um amigo meu. Já é tempo de encontrar o tisouro escondido.

- Porque não vem connosco? - perguntou João. - Mostrava-nos o caminho, a Passagem, e íamos ter com o seu amigo.

- Eu muito doente - respondeu Otto. - Se não arranjar médico e, como se diz, remedes...

- Remédios - corrigiu João.

- Se não arranjar remedes, morrer - prosseguiu Otto. O coração, mal, muito mal, doer muito. Não pode andar muito. Tu leva mapa do tisoro, ser bom rapaz, sai do vale pela Passagem, procura Julius, o meu amigo. Está assim tudo bem.

- Fica combinado - respondeu João. - Tenho pena de si. Gostava bem de o poder ajudar. Hei-de fazer o possível por encontrar o Julius depressa, para ele o socorrer. Parece-lhe que amanhã poderá vir até ao nosso esconderijo? Podia ficar lá enquanto nós fôssemos.

- Como? - fez Otto. - Não percebo. Falas depressa. João repetiu tudo mais devagar. Otto acenou com a cabeça.

Desta vez percebera.

- Hoje deixas-me aqui e amanhã talvez tenha forças para ir contigo para o vosso esconderijo - disse. - Havemos de ver. Senão, vão pela Passagem Ventosa. É estreita, mas não custa...

- Passar por ela? - ajudou João. Otto fez que sim com a cabeça. Depois pegou num lápis e num livrinho de notas e pôs-se a desenhar. João seguia-lhe os movimentos com interesse. Apareceu a queda de água, depois um rochedo com uma forma especial, depois uma árvore toda curvada e uma nascente. Pequenas setas indicavam a direcção a seguir. Era realmente uma coisa cheia de interesse.

Otto dobrou o mapa e deu-o a João dizendo:

- Julius percebe logo o mapa. Antigamente vivia na casa grande que fica aqui perto, mas os nossos inimigos queimaram-na, essa e outras, e levaram-nos as vacas, os cavalos, os porcos e tudo o que nós tínhamos. Mataram muita gente. Poucos escaparam.

- E qual é o caminho para a Passagem? - perguntou João.

Otto voltou a desenhar um mapa. Lá apareceu outra vez a queda de água. João pôs o dedo sobre o desenho e disse muito devagar para Otto perceber:

- Conheço isto. O nosso esconderijo é perto. Muito perto.

- Belo! - exclamou Otto, contente. - Para se chegar à Passagem vai-se por cima da queda de água. Tem de se trepar até ao buraco de onde ela sai, na montanha. Eis aqui, o mapa já está pronto.

- Como hei-de encontrar o Julius? - perguntou João.

- Do outro lado da Passagem há uma aldeia meia queimada - explicou Otto. - Pergunta a qualquer pessoa que dizem logo onde está Julius. Todos sabem. Julius trabalhou muito contra o inimigo. Todos conhecem Julius. Neste momento devia ser grande entre os dele, mas os tempos mudam e agora, que temos paz, é capaz de não ser importante. Mas todos conhecem Julius, e ele sabe o que há-de fazer quando lhe deres o mapa do tisoro. Eu escrevo também carta.

Rapidamente Otto escreveu um bilhete que deu a João. Era dirigido a Julius Muller.

- Agora vai - disse Otto. - Vai para os teus amigos. Se amanhã estiver melhor, irei contigo. Hoje o coração está mal, mal. Dá dor sempre aqui. - E pôs a mão sobre o coração.

- Adeus e obrigado - disse João, levantando-se. - Oxalá esteja aqui seguro. Tem aqui latas de carne e fruta já abertas. Até amanhã.

O homem esboçou um sorriso cansado, encostou-se à parede do estábulo e fechou os olhos. Estava exausto. João teve muita pena dele. Se Otto não estivesse melhor no dia seguinte, tinha de ir buscar socorros o mais depressa possível. Ele e os outros sairiam do vale e iriam logo procurar Julius, quem quer que ele fosse. Como era amigo de Otto, com certeza arranjaria um médico imediatamente.

E João saiu do estábulo, vendo tudo mais cor-de-rosa. Que diriam os outros quando soubessem que ele tinha o mapa com as indicações da localização da gruta do tesouro e instruções sobre a maneira de sair daquele vale!

Filipe vinha por ali acima a correr já sem fôlego.

- Os homens saíram do avião agora mesmo e seguem na direcção da cabana. Temos de nos afastar. O prisioneiro está já instalado no estábulo?

- Está. Oxalá não se lembrem de ir procurá-lo - respondeu João. - Vamos, toca a seguir para o pé das raparigas. Já saímos de lá há imenso tempo.

- Agora, no regresso, temos de ter cuidado com o Firmino - recomendou Filipe. - A estas horas já se deve ter cansado de olhar para a queda de água e para os saltos das raparigas e resolvido vir ter com os outros.

- Nem tu sonhas o que trago aqui! - exclamou João, incapaz de se conter por mais tempo.

- Que é? - perguntou Filipe.

- Um mapa com a localização do tesouro! - retorquiu João.

- Mas isso já nós sabemos - disse Filipe. - Está por trás daqueles pedregulhos todos que vimos esta manhã.

- Pois enganas-te!-exclamou João triunfante. - O prisioneiro, que se chama Otto, pregou uma partida aos outros. Convenceu-os de que o tesouro estava numa gruta atrás das rochas. Já sabia que elas tinham caído ali, mas fingiu não saber e disse que o tesouro tinha ficado tapado pela avalanche. Percebes?

- E o tesouro está noutro sítio qualquer! - observou Filipe. - Que belo trabalhinho! E tu tens um mapa com pontos de referência para o tesouro, João? E já sabes que espécie de tesouro é?

- Esqueci-me de lhe perguntar - respondeu João. - Mas sei muito mais coisas. Tenho aqui indicações para encontrar a passagem que serve de saída a este vale, um bilhete para um homem chamado Julius, e já sei como estas casas e tudo se queimou e porquê. Otto diz que, se amanhã tiver forças, nos leva até à passagem, mas foi-me dando os mapas para o caso de não poder vir connosco. São fáceis de interpretar.

Isto sim, é que eram boas novas. Filipe ficou radiante. Parecia que desta vez conseguiriam sair do vale, pedir socorros e talvez até presenciar a descoberta do tesouro.

- Cuidado! Parece-me que vi ali um vulto a mexer - segredou João subitamente. Os dois rapazes aninharam-se atrás de um arbusto, e fizeram bem porque Firmino surgiu dum bosquezinho e veio andando rapidamente na direcção deles. Mas percebeu-se logo que os não tinha visto, porque continuou a andar sem sequer olhar para o arbusto atrás do qual eles se haviam escondido.

- Deve estar com fome e vai ver se come alguma coisa - disse João, sorrindo. - Ainda bem que o vi. Se déssemos mais uns passos íamos esbarrar nele. Agora estamos livres, podemos ir depressa e sem receio de que nos vejam. Estou cheio de fome!

Estavam os dois. Havia muito tempo que não comiam. E diante deles começaram a surgir visões de salmão enlatado, sardinhas, língua, alperches, pêssegos e pêras. Puseram-se a andar tão depressa quanto podiam.

Ficaram aliviados quando afastaram as hastes do feto e viram as raparigas sentadas no chão da gruta. Dina preparava tudo para o jantar.

- És um amor, Dina! - exclamou João. - Até me apetece dar-te um abraço! - Dina riu-se e respondeu:

O Firmino foi-se embora. Não o viram?

- íamos esbarrando nele - comentou Filipe. - E eu tenho tanta fome que era capaz de comer o salmão inteirinho de uma lata. Que tal estiveram vocês? Bem?

- Aborrecemo-nos - respondeu Dina. - Nada havia que fazer a não ser uns saltos de vez em quando por trás da água, para manter o Firmino interessado. Haviam de ver o que ele se esforçou por descobrir o caminho até cá acima. Uma vez, a Maria da Luz e eu chegámos a pensar que a água o tinha levado. Escorregou, caiu, e, durante uns vinte minutos, não tornámos a pôr-lhe a vista em cima. Ficámos muito aliviadas quando voltámos a vê-lo.

- E vocês? - perguntou Maria da Luz. - Parece que estão contentes. Trazem boas novas? E o prisioneiro?

Com a boca cheia, os rapazes contaram o que tinham feito naquele dia. As raparigas ouviram tudo interessadissimas. Quando João puxou dos mapas que trazia na algibeira caíram em cima dele radiantes.

- Um mapa do tesouro! - exclamou Maria da Luz. - E eu que sempre ambicionei ver um. Olha a nossa queda de água! Não digam que o tesouro fica aqui perto!

- Quando vamos procurá-lo? - perguntou Dina, com os olhos brilhantes de excitação.

- Isso não é connosco - respondeu João e ela ficou com uma cara desconsoladíssima. Mas ele explicou:

- Temos de sair deste vale e procurar esse tal Julius. Deve ser ele a presidir às buscas do tesouro. Tenho pena de vos desiludir, meninas, mas realmente parece-me que o melhor é sairmos deste vale o mais depressa possível e mandar dizer à tia Lia e ao Jaime onde estamos. Perdíamos muito tempo à procura do tesouro e parece-me que uma vez que nos disseram onde é a saída do vale devemos ir por lá e ver se arranjamos quem nos ajude e venha socorrer o pobre Otto. Está muito doente.

Era evidente que João tinha razão. Dina não pôde deixar de suspirar.

- Gostava tanto de ir procurar esse tesouro. Mas, paciência, talvez esse Julius, quem quer que ele seja, nos deixe tomar parte na expedição. Podíamos cá ficar para assistirmos.

Já era quase noite. Os rapazes estavam estafados. Cheios de sono, deitaram-se na «cama» que a Dina fizera. Mas as raparigas e a Didi estavam com vontade de conversar. Falaram, falaram, as duas e a Didi, mas os rapazes quase não tinham força para lhes responder.

- A Didi hoje andou a entrar e a sair da gruta do eco, a gritar com quanta força tinha - contou Maria da Luz. - Já não tem medo do eco. Haviam de ouvir a barulheira quando ela imitou o apito do rápido!

- Ainda bem que não ouvi - disse João, a gaguejar de sono. - Mas agora calem-se, meninas. Toca a dormir, que amanhã vamos ter um dia em cheio. Temos de ir buscar o Otto, procurar a Passagem Ventosa e depois o Julius.

- Parece que esta aventura está a acabar - disse Maria da Luz.

Mas aí é que ela se enganava. Ainda estavam muito longe do fim.

 

         A CAMINHO DA PASSAGEM VENTOSA

Na manhã seguinte, os pequenos espreitaram com todo o cuidado pelas hastes do feto não fosse dar-se o caso de Firmino estar outra vez de guarda. Mas dele nem sinais havia.

- Gostava de saber o que terão pensado José e Luís quando, de volta à cabana, abriram a porta e viram que o prisioneiro tinha desaparecido - comentou João, rindo. - Hão-de admirar-se por ele ter atravessado uma porta fechada à chave.

- Pois sim, devem ter percebido logo que foi um de nós que o libertou - respondeu Dina. - Vão ficar furiosos. Oxalá não o descubram no estábulo. Era capaz de lhes contar coisas a nosso respeito.

- Isso não - disse logo João. - Tem um ar simpático, que inspira confiança, como o Jaime, a única diferença é que não é assim forte.

- Quem me dera que o Jaime aparecesse aqui de repente

- suspirou Maria da Luz. - Era tão bom! Bem sei que vocês dois têm tratado de tudo como poucos mas, não sei porquê, quando o Jaime chega sinto-me muito mais confiante.

- Pois olha que está aqui em segurança - respondeu João.

- E digam lá quem descobriu um rico esconderijo quem foi?

- Foste tu - respondeu Maria da Luz. - Ó Filipe olha a Didi atrás da Tixa.

A Tixa apareceu a descer pela perna do Filipe, e a Didi, que por acaso estava ali perto, soltara um grito de satisfação, disposta a dar-lhe bicadas. Mas a lagartixa, rápida como o pensamento, correu a refugiar-se no sapato de Filipe.

«Acaba lá com isso, Didi!», gritou-lhe Filipe. - Bem, o melhor será comermos alguma coisa.

«Coisas e loisas», atalhou logo a Didi, pondo os pequenos a rir.

- Esta Didi lembra-se de cada uma - exclamou Maria da Luz. - Mas que ideia! Isto é que ela é esperta!

A Didi soltou um grito e ergueu a poupa, balançando-se de um lado para o outro como costumava fazer quando se sentia muito satisfeita consigo própria.

«Vaidosa! Emproada!», disse-lhe João, coçando-lhe a cabeça. «Vê mas é se deixas a Tixa em paz. É o bicharoco mais inofensivo de todos os que o Filipe tem arranjado».

- Realmente sempre é melhor do que aqueles horríveis ratos e ratazanas, aranhas, carochas e ouriços com que ele às vezes acamarada - retorquiu Dina, arrepiada. - Até gosto da Tixa, em comparação com os outros.

- Ena! - exclamou Maria da Luz admirada. - Estás a fazer progressos, Dina.

A Tixa e a Didi partilharam do pequeno almoço dos pequenos, embora a Didi nunca perdesse de vista a Tixa, não fosse ela resolver-se a comer qualquer coisa que lhe agradasse a ela. Quando acabaram, puseram-se a combinar o que iriam fazer naquele dia.

- Primeiro vamos buscar o Otto - declarou João. - Quer dizer, vou eu e o Filipe. Vocês duas não precisam de ir. O melhor será juntarem umas latas para levarmos connosco quando formos pelas montanhas à procura da passagem. Pelo caminho devemos ter fome.

- Está bem - respondeu a Dina. - Oxalá o Otto esteja melhor. Quando aqui chegarem com ele comemos qualquer coisa antes de partirmos. Depois atravessamos a passagem, vamos indagar de Julius e procuraremos mandar notícias à mãe e ao Jaime. Talvez ele se meta no avião...

- ... venha ajudar a descobrir o tesouro e nos deixe ir também - interrompeu Maria da Luz. - Isto é que era bom!

Realmente era um rico plano. Os rapazes partiram, deixando a Didi com as raparigas. Atravessaram rapidamente a encosta da montanha, sempre de olho alerta, não fosse o Firmino e os companheiros aparecerem por ali.

Mas ninguém viram. Cautelosamente, dirigiram-se para o estábulo. João deixou Filipe de guarda ali perto para ele o avisar no caso de vir alguém. Depois foi com todo o cuidado até ao estábulo e espreitou para dentro. Nada se ouvia.

De onde estava não via a última divisão. Entrou sem fazer ruído, passando por cima do entulho caído e disse baixinho:

- Otto! Cá estou! Está melhor? - Não se ouviu resposta. João ficou sem saber se o homem estaria a dormir e resolveu ir até à última divisão.

Ninguém. Otto não estava lá. Rapidamente, João examinou tudo em redor. Que teria acontecido?

Reparou que as latas de carne e fruta, que deixara abertas para Otto, estavam intactas. Otto nada comera do que lhe deixara. Porquê?

«Que maçada! Aqueles homens devem ter passado uma busca a tudo, quando deram por falta dele», pensou João. «Vieram descobri-lo aqui. Só gostava de saber o que terão feito dele. O melhor será acautelarmo-nos, não vão eles prepararem-nos alguma emboscada. Mesmo que o Otto nada tenha dito, devem ter compreendido que alguém o libertou.

Foi ter com Filipe e disse-lhe:

- O Otto desapareceu. Será prudente irmos dar uma espreitadela à cabana? É possível que descubramos alguma coisa, o que eles fizeram ao Otto, por exemplo.

- O melhor é treparmos àquela árvore - respondeu Filipe. - Aquela de onde se vê o avião. Se víssemos todos ocupados com o avião ficávamos a saber que podíamos lá ir, agora arriscarmo-nos a encontrar os homens ao pé da cabana não é coisa que me seduza. Podem estar precisamente à espera que nos aproximemos. Se nos apanhassem, as raparigas ficavam sem saber o que fazer.

- Tens razão. Vou trepar à árvore - concordou João, começando a subir, logo seguido de Filipe. Levou o binóculo aos olhos, dirigindo-o para o avião e, surpreendido, exclamou:

- Já viste esta? O avião foi-se embora outra vez! Não está lá!

- Pois não - confirmou Filipe surpreendido. - Desta vez é que eu não senti levantar voo, e tu?

- Eu tenho uma ideia de ter ouvido ruído de motores a noite passada, quando estava meio a dormir - respondeu João.

- É isso, devia ser o avião o que eu ouvi. Se calhar fomos nós que os assustámos. Ficaram cheios de medo quando descobriram que havia cá mais gente, escondida num local que eles não conseguiam desencantar, e gente que lhes arrancara o prisioneiro.

- E, ainda por cima, depois de descobrirem que não podiam chegar ao tesouro porque a derrocada das pedras tinha obstruído a entrada, devem ter chegado à conclusão de que não valia a pena demorarem-se por cá mais - acrescentou Filipe.

- E foram-se. Ainda bem! Agora podemos ir ter com as raparigas e seguir a caminho da passagem sem mais cautelas. Para falar-te com franqueza, estava a preocupar-me o facto de levarmos o Otto. Pelo que tu contaste não dava ideia que pudéssemos ir muito depressa com ele. E se ele tivesse um ataque de coração pelo caminho ficávamos sem saber o que fazer.

- Só gostava de saber para onde o levaram - prosseguiu João. - Esperemos que, ao verificarem que ele para nada lhes serve, o reconduzam ao local de onde o arrancaram e lhe proporcionem a oportunidade de ele ser visto por um médico.

Desceram da árvore e iniciaram a viagem de regresso tão depressa quanto possível, para empreenderem depois o caminho da passagem.

As pequenas ficaram muito admiradas por verem os dois de volta tão cedo, e ainda as surpreendeu mais o facto de virem sozinhos.

- E o Otto? - perguntou Dina.

«Foi-se por água abaixo», atalhou a Didi, mas ninguém lhe prestou atenção e o bicho soltou uns guinchos. João explicou:

- O avião foi-se embora, o Otto também, por isso penso que devem ter ido todos, aborrecidos por não poderem chegar ao tesouro. Bom vento os leve!

- Viva! Viva! - exclamou Dina muito aliviada por saber que o inimigo já andava longe. - E agora, que se faz?

- Vamos procurar a passagem - respondeu João. - Tenho aqui o mapa que o Otto desenhou. Sem isso é que nunca mais dávamos com a saída. Parece que só há uma, que é essa tal Passagem Ventosa. Vamo-nos então embora. Já temos algumas latas para levar, Dina?

- Já - respondeu ela. - Para onde vamos? Para cima ou para baixo?

- Para cima - disse Filipe, embrenhado na consulta do mapa que João tirara da algibeira. - Subimos até onde começa a cascata, estão a ver? Depois seguimos por um caminho formado por saliências de rochas, foi o que Otto desenhou. Depois chegamos a um bosque espesso, vêem? E voltamos a subir u trecho íngreme até outras saliências. Chegaremos então a uma estrada, a estrada que serve de comunicação e que as pessoas do vale utilizavam quando queriam visitar o outro lado. Quando chegarmos à estrada já me sentirei mais confiante.

- Também eu - concordou Dina com entusiasmo. - E, sabe bem ver uma estrada. Até pode acontecer vermos algo que vá por ela fora.

- Nisso é que eu não acredito muito, uma vez que não vimos ainda alguém no vale, a não ser os homens e nós quatro - respondeu João. - Para falar com franqueza, até acho um bocado estranho que, havendo uma passagem em perfeito estado, que serve de entrada e saída a este belíssimo vale, continue deserto. Não percebo por que será.

- Deve haver qualquer razão - interveio Dina. - Mas agora vamos embora. A primeira parte não vai custar, porque só temos de nos manter perto da cascata.

Mas não era tão fácil como ela pensava, porque o penhasco era muito íngreme e eles tiveram de armar em autênticos alpinistas. Mas conseguiram vencer porque já tinham as pernas bem treinadas a andar e trepar.

Todo o caminho o ruído ensurdecedor da cascata os acompanhou. Era tremendo, e Maria da Luz só pensava em como seria bom quando chegassem ao cimo e não precisassem de suportar tão formidável estrondo.

Algum tempo depois chegaram até ao começo da cascata. A água jorrava dum grande buraco na encosta da montanha e caía a pique, batendo pelo caminho em rochas enormes. Era, sem dúvida, um espectáculo magnífico.

- Céus, produz-me uma sensação impressionante ver aquela grande massa de água a sair da montanha - comentou Maria da Luz, sentando-se. - Tem um não-sei-quê de inesperado.

- Quando as neves derretem e a chuva cai, deve acumular-se no cimo da montanha uma enorme quantidade de água que se infiltra - explicou João. - Essa água junta-se toda e tem de procurar saídas. Este buraco deve ser uma delas. E transformou-se, assim, nesta enorme queda de água.

- Por onde vamos agora? - perguntou Dina, que estava cheia de impaciência por sair do vale.

- Vamos subir para aquelas saliências de rocha - respondeu João. - Parece-me que é um caminho estreito, e bem estreito, e passa mesmo por cima da cascata! Não olhes para baixo, Maria da Luz, que és capaz de ter alguma tontura.

- Não me apetece nada ir por ali - disse a pobre Maria da Luz.

- Eu ajudo-te - respondeu João. - Desde que não olhes lá para baixo nada te acontece.

Atravessaram sãos e salvos aquele caminhito de rocha, com a Maria da Luz sempre bem agarrada à mão de João. A Didi voava-lhes por cima das cabeças com gritos de exortação.

«A voar, a voar!», gritava ela, lembrando-se da cantiga das pombinhas.

Maria da Luz deu uma risadinha, dizendo:

- Não pode dizer-se que a gente vá a voar. Felizmente que já chegámos ao fim desta rocha. Agora atravessamos aquele bosque, não é?

Entraram no bosque. Era um pinhal escuro e silencioso. Debaixo dos pinheiros, muito altos, nada vivia. O vento soprava-lhes a rama, produzindo um murmúrio que não passou despercebido à Didi.

«Ch!», fez a catatua. «Chhhhhhhhhh!»

- Chegámos ao fim do pinhal! - exclamou João. - Agora temos de trepar mais um bocado até outro caminho de rocha para irmos dar à estrada. Vamos, companheiros, toca a andar!

João consultou o mapa.

- É isso mesmo. E temos de seguir sempre na mesma direcção. Onde está a minha bússola? Com ela podemos seguir em linha recta na direcção que o Otto indica aqui no mapa.

 

         UMA GRANDE DESILUSÃO E NOVOS PLANOS

A subida era muito difícil porque a encosta até ao caminho de rocha, que eles viam acima deles, era íngreme e lisa. Maria da Luz quase chorava de tanto escorregar.

- Avanço um passo e escorrego dois - lamentava-se ela.

- Agarra-te a mim - disse Filipe, e passou a dar-lhe um puxão de cada vez que ela dava um passo.

Quando chegaram ao segundo caminho de rocha estavam todos precisados de descanso e ficaram encantados ao verem ali uma pequena extensão coberta de framboesas bravas. Podiam sentar-se entre os caniços e banquetear-se. Que beleza! A Didi gostava imenso de framboesas e comeu tantas que João lhe disse:

«Ó Didi! Tu rebentas!»

«O balão rebentou», foi a resposta do bicho, que largou a comer mais uma dúzia de framboesas.

Depressa se recompuseram e puderam recomeçar a escalada. Estavam já a uma grande altitude e até já viam mais montanhas acastelando-se atrás das que eles conheciam. O panorama era soberbo.

- Sinto-me muito pequena e perdida no meio destas enormes montanhas - comentou Maria da Luz, e os outros concordaram. - Vamos agora contornar mais esta saliência de rocha. Daqui a pouco deve ver-se a estrada. Ainda bem que este caminho não é estreito. Quase dava para se ir de carro.

Mas o trajecto pela rocha não era tão fácil como Maria da Luz pensava porque, mais adiante, houvera uma derrocada, o que tornou difícil a passagem. Os rapazes seguiram à frente para procurarem o caminho mais seguro para as raparigas. Depois de passadas as pedras, todos respiraram fundo por voltarem a pisar terreno liso.

A rocha contornava uma parte da encosta e foi então que, de repente, os pequenos viram a estrada mesmo por baixo deles. Uma estrada a valer! Extasiados, ficaram a olhar.

- Nunca pensei que me sentisse tão contente por voltar a ver uma estrada - afirmou Dina. - A estrada que serve de saída a este vale! Até que enfim surge um caminho para algures!

- Vejam - exclamou Maria da Luz. - Vem a serpentear tanto! Até nem se vê onde vai dar porque a perdemos naquela curva.

- Mas a Passagem Ventosa vê-se daqui - disse João, apontando. - Estão a ver onde esta montanha e a outra quase se tocam? É ali que deve ser a passagem, bem alta e muito estreita. Vamos ter de seguir em fila indiana.

- Qual quê! - disse Filipe em ar de escárnio. - Deve ser larga que chegue para passar por lá uma carroça. Parece estreita por nós estarmos tão longe.

- Então não querem descer à estrada? - perguntou Dina, iniciando a descida.

Estavam a cerca de sete metros acima dela.

- Está coberta de ervas! - exclamou João admirado. - Quer dizer que ninguém se tem utilizado dela. É estranho, não é? Dava a ideia que as pessoas haviam de querer manter em bom estado a única estrada que comunica com este vale.

- Realmente dá que pensar - respondeu Filipe. - Mas vamos, mesmo coberta de ervas vê-se ainda bem que é uma estrada.

Seguiram durante um tempo por ali fora. A estrada serpenteava pela montanha fora, formando grandes curvas pela encosta acima. Por fim, já se via nitidamente onde devia ser a Passagem Ventosa, uma passagem estreita entre duas montanhas, a deles e a que lhe ficava próxima.

Estava frio naquela altitude e o vento soprava com força. Se os pequenos não estivessem quentes da escalada teriam batido os dentes de frio. Assim, continuavam quentinhos como borralhos.

- Ia apostar que, quando passarmos aquela curva, já se vê a passagem! - vaticinou João. - E lá vamos nós para fora deste vale misterioso!

Passaram a curva e realmente lá estava a passagem ou o que devia ter sido a passagem, porque agora já não era caminho para parte alguma.

Acontecera qualquer coisa e a passagem ficara obstruída até muito acima por grandes rochas e pedregulhos negros tornando-a intransitável.

Os pequenos, de princípio, nem perceberam bem. Limitaram-se a olhar admirados.

- Que foi isto? - perguntou João, finalmente. - Parece que houve cá um terramoto ou coisa parecida. Já viram isto?

- Nas rochas que servem de parede à passagem há buracos enormes - disse Filipe. - Olhem, até lá em cima há buracos que parecem crateras.

Ficaram a olhar em silêncio, até que João se virou para os outros e disse:

- Sabem o que deve ter acontecido? Quando estiveram aqui inimigos em luta, bombardearam a passagem e obstruíram-na. Toda esta destruição deve ter sido causada por bombas.

- Deves ter razão, João - concordou Filipe. - É a ideia que dá. Os aviões devem ter sobrevoado o vale e largado dúzias de bombas sobre aquela estrada estreita. Agora está completamente intransitável.

- Queres dizer que não podemos sair? - perguntou Maria da Luz, com voz trémula. Filipe acenou com a cabeça, dizendo:

- É verdade. Ninguém consegue ultrapassar esta muralha tão perigosa e a pique, formada pelas rochas amontoadas pelo bombardeamento. Está explicada a razão por que ainda não veio gente ocupar este vale. A maior parte dos que cá viviam devem ter sido mortos, e os que escaparam fugiram pela passagem. Esta foi bombardeada, e ninguém pôde voltar. Aqueles homens do avião, o José e os outros, devem ter ouvido falar num tesouro escondido no vale e projectaram cá vir de avião, aliás a única maneira de se entrar aqui.

Maria da Luz sentou-se no chão e pôs-se a chorar:

- Que grande desilusão! E eu que estava tão convencida de que íamos finalmente poder sair deste horrível vale. Mas continuamos presos aqui e não há ninguém que possa vir libertar-nos.

Os outros sentaram-se ao pé dela, também muito tristes, olhando desolados para a passagem obstruída. Que balde de água fria! E eles tão esperançados em sair dali e ir ter com Julius para lhe contarem do tesouro.

- Vamos comer qualquer coisa - propôs Dina. - Depois já nos sentiremos melhor. Não admira que estejamos tão patetas.

«Patetas e idiotas», palrou logo a Didi. Os pequenos puseram-se a rir.

«Idiota és tu!», disse-lhe Filipe. «A ti não te aflige uma passagem obstruída, pois não, Didi? Atravessa-la de um voo. Pena é que não possamos atar-te um bilhete a uma perna e mandar-te ir ter com o Julius para lhe pedir ajuda».

- E se fizéssemos isso?--disse logo Maria da Luz.

- Que ideia! Primeiro, a Didi era capaz de arrancar o bilhete da perna - respondeu João -, depois, nunca mais sabia onde ir ou quem procurar. É um bicho esperto, mas não tão esperto como isso.

Depois de comerem, sentiram-se realmente muito melhor. Comeram sempre de costas para a passagem obstruída. Nenhum deles queria sequer olhar para lá.

- Agora vamos ter de voltar para a nossa gruta, não é? - disse por fim Dina. - Parece que realmente nada mais nos resta fazer.

- Também me parece - respondeu João com ar melancólico. - Foi uma rica partida, não há dúvida.

Descansaram um bom bocado. O Sol estava muito quente, mas, como o vento era forte, nunca chegaram a aquecer de mais. Maria da Luz até se pôs atrás de uma rocha que a abrigava do vento, porque chegou a sentir frio.

Depois de descansarem, iniciaram a viagem de regresso. Não iam tão alegres e conversadores como quando tinham partido, de manhã. A ideia de terem de ficar naquele vale solitário, depois de alimentadas tantas esperanças de lá sair, atormentava-os a todos.

Maria da Luz tinha um ar tão desconsolado que João tentou lembrar-se de qualquer coisa que a animasse. E pensou numa coisa verdadeiramente surpreendente.

- Alegra-te, Maria da Luz - disse ele. - Talvez agora possamos descobrir o tesouro para nos compensar desta desilusão.

Maria da Luz parou e pôs-se a olhar para ele, entusiasmada.

- Sério? - disse ela. - Ó João, vamos procurar o tesouro.

Todos pararam e ficaram muito excitados a pensar no assunto por momentos, até que Filipe disse:

- E porque não? Não podemos mandar recado ao Julius porque a passagem está intransitável. Os homens foram-se, e com eles Otto. Só ficámos nós. Bem podemos ir em busca do tesouro. É uma coisa divertida na qual podemos passar o tempo.

- Que formidável! - exclamou Dina. - E eu que sempre desejei ir em busca dum tesouro. Quando começamos? Amanhã?

- E se nós realmente o encontrássemos? - disse Filipe entusiasmado. - Parece-lhes que nos caberia alguma parte?

- Ainda bem que o Otto te deu um mapa, Pintinhas! - dirigiu-se Dina a João. Chamava-lhe sempre Pintinhas quando estava excepcionalmente bem disposta. - Ora, mostra-o cá.

João tirou-o da algibeira. Desdobrou a folha de papel e estendeu-a. Otto tinha assinalado tudo com pontos cardeais tal como fizera com o mapa que indicava o caminho para a Passagem Ventosa.

- Reparem no que ele desenhou - disse João. - Vêem esta rocha de forma extravagante? Parece um homem de capote com uma cabeça muito redonda. Se víssemos uma rocha assim, sabíamos logo que estávamos no caminho do tesouro.

- E isto que é? Uma árvore torta? - perguntou Dina.

- Mas como havemos de saber onde procurar estas coisas? Não podemos pôr-nos a andar por toda a encosta da montanha à procura de rochas de formas estranhas, árvores tortas e coisas que tais.

- Claro que não - respondeu João. - Temos de começar como deve ser: pelo princípio. E o princípio é a nossa queda de água. O Otto desenhou um caminho que vai do estábulo até à queda de água, vêem? Mas não temos de preocupar-nos com ele. Começamos logo na cascata. Depois, lá no cimo, temos de procurar a árvore e ir até lá. Da árvore torta procuramos isto, que vem a ser, se não me engano, uma extensão de rocha negra e lisa. Quando lá chegarmos procuramos uma nascente e, daí, esta tal rocha extravagante. O tesouro fica algures por ali.

- Óptimo - exclamou Maria da Luz, com os olhos quase saídos das órbitas. - Vamos depressa para a queda de água para podermos começar já. Venham!

João dobrou o mapa e encarou os rostos excitados dos companheiros. Não pôde deixar de sorrir, dizendo:

- Não pode dizer-se que o tesouro nos vai servir de grande coisa, aqui engaiolados como estamos. Mas sempre é qualquer coisa de emocionante para passar o tempo.

Puseram-se novamente a caminho, com as cabeças cheias de visões de tesouros. E se fossem eles a descobrir o que aqueles homens queriam encontrar e não conseguiram? Que diria o Jaime? Havia de ter imensa pena de não poder estar com eles. Passava a vida a dizer que eles se metiam de aventura em aventura.

Quando chegaram à cascata, o Sol desaparecia e da montanha pendiam enormes nuvens negras. Pesadas gotas de chuva começaram a cair. Os pequenos olharam desapontados aquele céu tão carregado.

- E esta? - disse Filipe. - Vem aí uma enorme carga de água. Assim não se pode ir à procura do tesouro. O melhor é metermo-nos na gruta antes que fiquemos ensopados. Que grande chuvada!

Entraram mesmo a tempo na gruta acolhedora. A chuva começou logo a cair em grandes bátegas, vindo juntar mais aquele ruído ao da cascata.

- Agora pode chover a cântaros - exclamou João. - Mas amanhã precisamos de sol, porque vamos procurar o tesouro!

 

         A CAMINHO DO TESOURO

Naquela noite dormiram que foi uma beleza, porque todos eles estavam estafados. Toda a noite a chuva caiu, mas ao aproximar-se a madrugada o céu foi limpando, e quando o Sol nasceu já estava todo azul claro. Quando Maria da Luz afastou as hastes do feto e espreitou lá para fora ficou encantada.

- Está tudo tão lavadinho, até o céu - exclamou ela. - Ora venham ver! Que lindo!

- Um óptimo dia para se procurar um tesouro - afirmou João. Oxalá este sol seque depressa a erva, senão molhamos os pés todos.

- Ainda bem que trouxemos tantas latas da cabana dos homens - disse Dina, indo buscar umas duas ou três. - E ainda há mais nos arbustos onde as escondemos, não há, João?

- Há muitas - respondeu ele. - Anteontem tirei umas duas que abri para o Otto mas ainda ficaram muitas. Em qualquer altura podemos lá ir buscar mais.

Puxaram as hastes do feto para trás e tomaram o pequeno almoço na entrada da gruta, olhando as montanhas que ao longe se recortavam naquele céu dum azul cada vez mais profundo.

- Vamos, então? - disse João, quando acabaram de comer. «Ó Didi, tira a cabeça dessa lata. Bem sabes que já está vazia».

«Pobre Didi!», lamentou-se o animal. «Que pena!» Por fim saíram todos da gruta. Com aquele Sol quente de Verão tudo ia secando rapidamente. Até Maria da Luz apontou admirada para umas rochas, exclamando:

- Já viram o vapor que se desprende daquelas rochas? Realmente era estranho vê-las assim a fumegar.

- É melhor levarmos de comer - disse João. - Lembras-te disso, Dina?

- Podia lá esquecer! - respondeu esta. - Não havíamos de cá voltar para almoçar, com certeza.

- Temos de ir até ao sítio de onde sai a água da cascata, como ontem - disse João. - Sigam-me que eu já sei o caminho.

Depressa chegaram ao cimo da queda de água e mais uma vez pararam a admirar a grande torrente que saía do coração da montanha. Parecia duas vezes maior e mais barulhenta do que na véspera.

- Deve ter engrossado com a chuva desta noite - observou Filipe. - É por isso que está maior e mais forte.

- É, com certeza - concordou João, erguendo a voz e gritando para se ouvir acima do barulho da água. «Pára de gritar ao meu ouvido, Didi!»

O ruído da cascata excitava a Didi, que se pôs a fazer muito barulho naquela manhã. Pouco depois, já João não a podia aturar, empoleirada no ombro, por causa dos gritos que ela soltava. Enxotou-a e a catatua levantou voo.

- E, agora, onde está a árvore torta? - perguntou Dina, lembrando-se. Estavam um pouco acima do começo da queda de água. - Não vejo nenhuma árvore torta!

- Não digam que não há aqui nenhuma árvore assim! - respondeu João, olhando para um lado e para o outro, para cima e para baixo. - Realmente parece que não se vê nenhuma, pois não?

E não. As poucas árvores que eles viam eram completamente direitas. Mas, de súbito, Maria da Luz soltou um grito e pôs-se a apontar para baixo dizendo:

- Está ali, ou não será? Ali em baixo, do outro lado da queda de água. Olhem!

Puseram-se todos ao lado de Maria da Luz e olharam na direcção indicada. Era verdade. Do outro lado da queda de água, um pouco mais abaixo, estava uma árvore estranhamente curvada. Era um vidoeiro e não se percebia porque estaria tão torto. O vento por ali não era mais forte do que nos outros lados. Fosse como fosse era uma árvore torta e isso é que lhes interessava.

Atravessaram por cima da queda de água, saltando de rocha em rocha, e depois, desceram com cuidado do outro lado, até chegarem ao vidoeiro.

- O primeiro ponto de referência - disse João.

- O segundo - corrigiu Dina. - O primeiro é a queda de água.

- Seja o segundo - concordou João. - Vamos ao terceiro: uma extensão de rocha negra e lisa, uma espécie de muro, parece-me.

Olharam para todos os lados à procura da rocha negra. Desta vez foram os olhos de lince do João que a descobriram. Estava um bocado afastada e parecia difícil de alcançar porque para tal era preciso andar ao longo da encosta íngreme da montanha que, exactamente naquele sítio, estava cheia de penhascos.

Mas tinha de ser e eles lá foram. Afinal, dados os primeiros passos, foi mais fácil do que parecia, porque havia uma grande variedade de plantas e arbustos bem fixos ao rochedo e os pequenos serviam-se deles para se agarrarem e porem os pés. João deu uma ajuda à Maria da Luz, mas Dina não aceitou o auxílio do irmão. Sobretudo porque sabia que ele trazia algures consigo a lagartixa.

Levaram mais de meia hora em equilíbrios sobre penhascos para alcançarem o muro de rocha negra embora ele não ficasse, na realidade, a grande distância. Chegaram lá ofegantes.

- Que rocha tão estranha, tão negra e brilhante - disse João, passando os dedos sobre aquela superfície tão lisa. - Que rocha será?

- Para o caso tanto faz - respondeu logo Dina, cheia de impaciência por continuar o caminho. - Qual é o próximo ponto de referência? Este é o terceiro.

--Uma nascente - respondeu Filipe. - É ou não é, João? Vê lá no mapa.

- Não é preciso, que eu já sei de cor - respondeu João.

- Agora vem uma nascente. Não é que eu veja por aqui alguma, mas bem me apetecia beber aguinha fresca depois desta tirada difícil. Tenho as mãos e os joelhos todos sujos.

- Estamos todos a precisar dum banho - disse Filipe. Mas nenhuma nascente se via e Maria da Luz começou a ficar desanimada.

- Coragem! - disse João. - Pode acontecer não vermos a nascente daqui deste muro de rocha, mas se estiver perto encontramo-la com certeza.

- Calem-se todos para podermos escutar - disse Dina. Ficaram mudos e quedos, à escuta.

- «Chhhhhhhh!», fez Didi, só para aborrecer.

João deu-lhe uma tapa no bico. A Didi soltou um grito de indignação e calou-se.

E, então, no silêncio da montanha, os pequenos ouviram o murmúrio da água, um murmúrio alegre e convidativo.

- Já estou a ouvir! -exclamou Maria da Luz encantada.

- Vem de algures para aquele lado.

Atravessou rapidamente um bosquezito e lá, muito escondida na erva semeada de flores, gorgolejava uma nascente límpida que corria pelo monte abaixo, uma correntezinha de água fresca e cristalina.

- Começa ali - disse João, apontando para um grande arbusto debaixo do qual brotava a nascente.

- Quarto ponto de referência!

- Agora toca a procurar o quinto e último! - exclamou Maria da Luz muito excitada. - Vocês acham que estamos realmente perto do tesouro? Não pode dizer-se que estejamos muito, muito longe da nossa gruta. Quando estivemos calados à escuta do ruído da nascente até me pareceu ouvir a queda de água, lá ao longe.

- Também a mim - disse Dina. - E, agora, que falta procurar.

- A tal rocha de forma extravagante - respondeu João.

- Aquela que parece um homem com uma grande capa e uma cabeça muito redonda.

- É fácil - disse Filipe com ar triunfante, apontando para cima. - Olha ali, toda recortada no céu azul.

Olharam todos para cima. Filipe tinha razão. Lá estava a rocha com aquele formato extravagante, tão fácil de ver com o céu a servir de fundo.

- Vamos! - exclamou João muito excitado. - Toca a subir, exploradores de tesouros!

Treparam até à rocha. Havia outras em redor, mas esta era muito mais alta e distinguia-se das outras pela altura e pela forma.

- O nosso último ponto de referência! - exclamou João.

- E agora, onde estará o tesouro?

Era verdade, onde estaria o tesouro? Maria da Luz pôs-se a olhar em volta para toda a encosta, como se esperasse encontrá-lo ali espalhado. Os outros puseram-se à procura de uma entrada de gruta. Mas nenhum deles encontrou coisa alguma.

- Porque não perguntaste ao Otto onde ficava exactamente o tesouro, depois de alcançado o último ponto de referência? - perguntou Dina a João, cansada e desapontada.

- Eu sabia lá que seríamos nós que o havíamos de procurar? - respondeu João. - Sempre pensei que o Julius Muller tomasse isso a seu cargo. Com certeza que, uma vez chegados aqui, ele saberia muito bem onde estava o tesouro.

- Deves concordar que é de arreliar. Vir uma pessoa fazer esta caminhada, seguir o mapa tão bem e nada encontrar- comentou Dina, que estava zangada e cansada. - Estou farta. Eu já não procuro mais. Se quiserem continuem vocês na busca porque eu vou ver se descanso.

Deixou-se cair no chão e estendeu-se ao comprido, olhando para cima, para a encosta íngreme da montanha. Estava coberta de camadas chatas de rocha, salientes aqui e ali, como prateleiras. Dina examinou-as preguiçosamente com o olhar. De repente, levantou-se.

- Eh! - gritou para os outros. - Olhem para ali!

Os companheiros vieram ter com ela e puseram-se a olhar para cima.

- Vêem aquelas camadas de rochas salientes que cobrem todo este lado do penhasco? - perguntou. - Parecem prateleiras. Olhem a meio. Estão a ver uma mais saliente do que as outras? Reparem por baixo. Aquilo não é um buraco?

-- Se não é, parece - concordou João. - É capaz de ser alguma toca de raposa. Mas como é o único buraco de bom tamanho que há por aqui, o melhor é explorá-lo. Eu vou até lá acima. Tu vens, Trunfa?

- Vou, pois - respondeu Filipe. - Não parece custoso. Vocês duas não vêm?

Dina, esquecida de que estava farta, juntou-se ao grupo e pôs-se a trepar até ao buraco que ficava debaixo da camada de rocha. Quando lá chegaram viram que era realmente grande. De cima ninguém via porque a rocha era tão saliente que o encobria completamente. Via-se de baixo e, mesmo assim, só de determinado ângulo, precisamente aquele em que Dina se colocara quando resolvera estender-se no chão.

- Foi uma sorte tu tê-lo visto, Dina - disse João. - Bem podíamos andar todo o dia à procura sem nunca darmos com ele. Vamos a ver se será a entrada da verdadeira gruta do tesouro.

Espreitaram para dentro. O buraco escancarava-se, apresentando um aspecto vasto, mas completamente escuro.

- Ora, onde meti eu a lanterna? - perguntou João e, tirando-a da algibeira, acendeu-a.

Os pequenos olharam lá para dentro. Não parecia ser mais do que um buraco. Nenhum tesouro lá havia. Mas, quando João iluminou o fundo com a lanterna, Dina teve a impressão de que vira uma passagem e, entrando quase de roldão por ali dentro, de excitada que estava, disse:

- Parece-me que lá no fundo há uma passagem.

A Didi voou do ombro de João e desapareceu por ali dentro. Depois chegou até aos pequenos uma voz lamentosa.

«Que há aí, Didi?», gritou-lhe João.

«Três pombinhas», foi a resposta da Didi, com voz solene, mas faltando à verdade. «Três pombinhas. Hum!»

«És uma mentirosa!», disse João. «Seja como for, nós já lá vamos para descobrirmos...»

«... as três pombinhas», respondeu a Didi, lançando-se numa imitação do risinho de Maria da Luz.

 

         AS GRUTAS ESTRANHAS

João foi o primeiro a entrar no buraco. Baixou-se e não teve mais do que descer um degrau até ao chão, que ficava em nível inferior.

- Agora vem tu, Maria da Luz - disse ele, ajudando-a a descer. Depois vieram os outros, excitados e ansiosos. Seria realmente a gruta do tesouro?

- Isto tem mesmo de ser o esconderijo do tesouro! - exclamou João. - Não há por aqui outro buraco ou gruta. Agora deixem-me iluminar com a lanterna.

Lá no fundo, tal como Dina pensava, havia uma passagem, uma passagem larga e bastante elevada. Até um homem muito alto lá poderia entrar com facilidade.

- Vamos! - disse João, numa voz trémula de excitação. - Agora é que isto está a tornar-se interessante!

Seguiram-no pela passagem abaixo. A Didi empoleirara-se-lhe no ombro e Maria da Luz agarrara-o pela manga, meia receosa do que iriam encontrar.

A passagem era sempre alta e larga, mas não seguia a direito. Descia e, apesar de muitas curvas, ia sempre na mesma direcção, para o centro da montanha.

De repente, a passagem terminou. João parou, boquiaberto. Diante dele estava qualquer coisa de extraordinário.

A lanterna iluminou uma porção interminável de colunas brancas e brilhantes que pendiam do tecto alto duma gruta. Que seriam?

Maria da Luz agarrou-lhe o braço, também muito admirada. Olhou para aquelas coisas brancas e brilhantes e viu que, do chão da gruta, se erguiam mais colunas brancas.

Algumas haviam-se unido às que pendiam do tecto, o que dava a impressão de o tecto da gruta estar sendo sustentado por pilares.

- João! Que é isto? É o tesouro? - segredou Maria da Luz.

- É gelo, não é? - disse Dina num tom de admiração. - Nunca, na minha vida, vi nada tão bonito. Olha para aquelas que pendem do tecto, tão brancas, tão brancas e tão lindas!

- Não é gelo - disse João. - São estalactites, pelo menos as que vêm do tecto, e são de calcário, parece-me. Céus, que coisa linda!

Os pequenos ficaram ali calados sem se cansarem de admirar a bela gruta silenciosa. O tecto era alto como o de uma catedral, e as graciosas estalactites pendiam às dúzias, brilhando à luz da lanterna de João.

- As que vêem no chão são estalagmites, parece-me - disse João. - É assim, Filipe? Sabes alguma coisa sobre isto? Nunca na vida vi coisa alguma que se lhe compare!

- São estalagmites, são - disse Filipe. - Lembro-me de as ver em fotografia. Estalactites e estalagmites. Que coisa maravilhosa.

A Didi tentou repetir as duas palavras novas, mas não foi capaz. Até ela parecia admirada com aquela descoberta espantosa e inesperada.

- Olha! - exclamou Maria da Luz de repente, apontando para o que parecia um xaile muito antigo esculpido em marfim.- Isto também nasceu aqui? Parece mesmo um xaile, até o desenho dá ideia! E vejam aquela espécie de porta, toda de talha! Com certeza que foi alguém que os fez, não podem ter nascido assim.

- Formaram-se - disse João, tentando explicar. - Tal como os cristais formam um floco de neve. Não nasceram, porque não têm vida. Formaram-se.

Maria da Luz não percebia muito bem. Lá no íntimo pensava que todos aqueles maravilhosos pilares tinham crescido, e depois gelado, em toda a sua beleza.

- Até pensei que isto fosse o tesouro! - confessou ela, meio a rir.

- Não me admiro - respondeu João. - É realmente lindíssimo. Imagine-se, nós a encontrarmos uma gruta destas! Parece uma enorme catedral subterrânea. Só lhe falta um órgão e alguém tocando um hino grandioso.

- Aqui no meio há uma espécie de corredor - disse Dina. - Não sei se será natural ou feito pelo homem. Estão a ver ao que me refiro?

- Perfeitamente - respondeu João, iluminando-o com a lanterna. - Deve ter sido em parte o homem e em parte a natureza que o fizeram. Então, vamos? Aqui não há tesouro nenhum.

Seguiram pelo meio do enorme salão silencioso, rodeado por todos os lados de pilares que pareciam de gelo. Maria da Luz chamou a atenção para muitos que se tinham unido a colunas que vinham do chão.

- As gotas de água das estalactites devem ter pingado para o chão e formado estalagmites que foram aumentando até se encontrarem com a coluna que pendia do tecto - explicou Filipe. - Devem ter levado anos e anos a formar, séculos mesmo. Não admira por isso que esta gruta tenha um aspecto tão antigo. Eu até tenho a sensação de que o tempo aqui não existe, nem anos, nem dias da semana ou horas, nada.

Maria da Luz não estava a gostar daquilo. Dava-lhe a sensação estranha de estar a viver num sonho, sem realidade. Segurou o braço de João e soube-lhe bem sentir o calor agradável e real dele.

Foram andando devagar até ao fim daquela gruta enorme. Aí encontraram um grande arco, também coberto de estalactites, mas que não vinham até muito abaixo. Os pequenos atravessaram-no com toda a facilidade.

- Este arco parece um túnel - lembrou Filipe. A voz dele ressoou aumentada e oca, assustando-os. A Didi fez uma tossinha triste que também se transformou numa tosse gigantesca e oca, o que espantou todos muito. Foram dar a outra gruta.

O tecto desta não era tão alto como o da anterior e de lá só pendiam pequenas estalactites.

- As estalactites brilham no escuro? - perguntou Dina de repente. - Parece-me ver qualquer coisa a brilhar naquele canto.

João apagou a lanterna, e imediatamente os pequenos ficaram boquiabertos de espanto. No tecto e nas paredes brilhavam milhares de estrelinhas. Eram verdes e azuis e tinham um maravilhoso brilho tremulante.

- Céus! Que é isto? -segredou Dina de olhos esbugalhados. - Será alguma coisa viva?

Os rapazes não sabiam. Olhavam espantados aquelas estrelas cintilantes que pareciam acender e apagar, como as luzinhas dos génios das histórias.

- É capaz de ser alguma espécie de pirilampo - alvitrou João. - Mas são lindas!

Voltou a acender a lanterna e o tecto brilhou, iluminado por aquela luz amarelada. Mas as estrelas desapareceram.

- Apaga a lanterna! - pediu Maria da Luz. - Quero ficar mais um bocadinho a ver estas estrelas. Nunca na vida vi coisa que me atraísse tanto. Parece uma fosforescência, azul-verde, verde-azul, vejam como elas acendem e apagam. Quem me dera apanhar um cento delas para as pôr no tecto do meu quarto, lá em casa!

Os outros riram-se dela, mas também se sentiam atraídos por aquelas estrelas de brilho cintilante. João não voltou a acender a lanterna enquanto não se fartaram de as ver.

- São duas grutas simplesmente maravilhosas - disse Maria da Luz com um suspiro. - Que haverá na próxima? Sinto-me como se tivéssemos descoberto o subterrâneo de Aladino ou coisa parecida.

Um corredor bastante comprido e sempre a descer levou-os para fora da gruta das estrelas, como Maria da Luz a tinha denominado.

- Encontramos uma gruta de eco, uma gruta de estalactites e uma gruta de estrelas - comentou ela. - Esta parte da nossa aventura está a agradar-me. Agora só gostava de encontrar uma gruta do tesouro.

O túnel onde estavam era largo e alto tal como o primeiro corredor. A lanterna de João iluminou de repente qualquer coisa que brilhava no chão. O rapaz parou.

- Olhem para aquilo! - exclamou. - Que será? Dina baixou-se para apanhar e disse:

- É uma pregadeira. Uma pregadeira sem pé. O pé deve ter-se partido e a pregadeira caiu de quem quer que a trazia. Mas é muito bonita.

E era realmente. Tratava-se de uma grande pregadeira de ouro com cerca de sete centímetros de largura, incrustada de pedras brilhantes e vermelhas como o sangue.

- Serão rubis? - perguntou Dina extasiada. - Vejam como brilha! Ó João, parece-te que isto faça já parte do tesouro?

- É possível - respondeu João e logo a excitação voltou a apossar-se dos pequenos, fazendo-lhes bater o coração mais apressado. Uma pregadeira de rubis incrustados em ouro lavrado! Que seria o resto do tesouro? Visões maravilhosas encheram os espíritos das crianças, que seguiram aos tropeções, na ânsia de avançarem, de olhos postos no chão em busca de qualquer outra coisa que brilhasse.

- E se nós encontrássemos uma gruta de jóias? - disse Maria da Luz. - Iiiiih, todas a brilharem como estrelas e sóis! Disso é que eu gostava.

- Pode ser que encontremos qualquer coisa do género - respondeu Dina. - Se assim for, hei-de enfeitar-me com elas dos pés à cabeça para fazer de conta que sou uma princesa.

O corredor continuava, sempre a descer, mas quando João consultou a bússula reparou que já não seguiam para o centro da montanha, mas na direcção oposta. Só esperava que não viessem de repente dar à luz do dia sem encontrarem a gruta do tesouro.

De súbito, foram dar a umas escadas que desciam. Eram uns degraus altos e largos cavados na rocha que continuavam a curva do corredor.

- É quase uma escada de caracol - disse João. - Onde irá isto dar?

Os degraus eram cerca de vinte. Depois apareceu uma enorme porta feita duma madeira rija e coberta de pregos de ferro. Os pequenos ficaram a olhar para ela.

Uma porta! Que haveria do outro lado? Estaria fechada à chave e trancada? Quem a teria posto ali e porquê? Seria para fechar e guardar a gruta do tesouro?

Não se via puxador. Nem sequer uma fechadura. Tinha trancas grandes mas não estavam postas.

- Não sei como se há-de abrir uma porta sem puxador - disse João desesperado. Empurrou a porta, mas ela nem oscilou.

- Dá-lhe um pontapé, como fizemos com a porta da cabana - sugeriu Filipe, e João deu-lhe um pontapé valente. Mas a porta não abriu.

Desesperados, os pequenos não tiravam de lá os olhos. Chegaram até ali para aparecer uma porta a barrar-lhes o caminho ! Era de mais! João iluminou a porta de cima abaixo.

Os olhos perspicazes de Maria da Luz notaram qualquer coisa.

- Vês aquele prego de ferro? - disse ela, apontando. - É muito mais brilhante do que os outros. Porque será?

João fez incidir a luz sobre ele e reparou que era um prego maior do que os outros, e também, como Maria da Luz dissera, mais brilhante, como se tivesse tido uso.

Carregou nele. Nada aconteceu. Bateu-lhe com uma pedra. Não deu resultado.

- Deixa-me experimentar - disse Filipe, empurrando João para o lado. - Vira a luz bem para cá. Isso.

Agarrou o prego de ferro e abanou-o. Pareceu ceder um bocadinho. Abanou-o segunda vez. Nada. Então pensou em torcê-lo.

O prego deu a volta com toda a facilidade. Ouviu-se um estalido forte e a porta abriu-se lentamente. João apagou a lanterna, receoso de que estivesse na gruta alguém que os visse. Apesar de que, se lá estivesse alguém, já teria ouvido todos aqueles encontrões e pontapés na porta.

A porta estava agora toda aberta. Do outro lado entrava uma luz velada que lhes permitiu ver que estavam noutra gruta. Foi então que Maria da Luz agarrou o braço de João, segredando-lhe muito assustada:

- Está cheia de gente. Repara!

 

         O TESOURO

Os quatro pequenos ficaram à porta a olhar, sem quase se atreverem a respirar. O que viam punha-lhes os cabelos de pé.

Na semiobscuridade da gruta distinguiam-se vultos por toda a parte. Os olhos e os dentes brilhavam duma maneira estranha. Os braços e os pescoços cintilavam, cobertos de jóias.

Os pequenos agarraram-se uns aos outros, muito assustados.

Quem seria esta gente estranha e silenciosa e que faria ali de pé, de olhos brilhantes e coberta de jóias?

As pessoas que estavam na gruta não se mexeram, nem disseram palavra. Não havia uma única que estivesse sentada. Estavam todas de pé, umas viradas para os quatro pequenos apavorados, outras voltadas para o outro lado. Porque seria que não falavam? Porque não apontavam para eles dizendo: «Já viram quem está ali?»

Maria da Luz começou a soluçar:

- Vamos embora. Não gosto deles. Só os olhos deles é que têm vida. Eles não.

A Didi soltou um grito, deixou o ombro de João e voou para o de um dos vultos que estava mais perto, o de uma mulher com roupas que brilhavam faustosamente na semiobscuridade da gruta.

Mas a mulher não se mexeu. Que estranho! Os pequenos sentiram-se então muito melhor ao verem que a Didi não parecia impressionada com a estranha companhia.

«Margarida vai à fonte», disse a Didi, dando bicadas na cabeleira da mulher em que se tinha empoleirado.

Os pequenos ficaram outra vez muito encolhidos. Que iria a mulher fazer à Didi? Encantá-la com aqueles olhos estranhos? Lançar-lhe um feitiço que a transformasse em pedra? Teria toda aquela gente sido transformada em pedra?

- Vamos embora - rogava Maria da Luz. - Não gosto desta gruta. Não gosto destas pessoas e daqueles horríveis olhos brilhantes.

Mas, de repente, João transpôs de um salto o degrau que dava acesso à gruta e entrou ousadamente por ali dentro. Maria da Luz soltou um gritinho e tentou prendê-lo pela manga.

João dirigiu-se para a mulher em cujo ombro a Didi se empoleirara e pôs-se a olhar bem para ela. Fixou de perto aqueles olhos brilhantes e bem abertos. Tocou-lhe no cabelo. Depois virou-se para os outros, que o olhavam horrorizados.

- Sabem o que ela é? É uma estátua, ricamente vestida, com cabelo verdadeiro e pedras preciosas a fazerem de olhos. Que pensam vocês de tudo isto?

Os outros não queriam crer, mas ficaram muito gratos por ouvir as palavras de João e vê-lo a vaguear por entre aqueles vultos imóveis sem que parecesse acontecer-lhe mal nenhum.

Filipe e Dina resolveram entrar também na gruta, mas Maria da Luz é que não se atrevia a tal. Ficou a ver os outros a examinarem aquelas estátuas estranhas mas belas, tentando convencer-se a juntar-se a eles.

Por fim, encheu-se de coragem e desceu à gruta. Olhou cheia de medo para a mulher em cujo ombro a Didi estivera. Realmente João tinha razão. Não passava de uma estátua, muito bela, de rosto finamente modelado e uma massa de cabelo negro. Tinha soberbas pedras preciosas a servirem de olhos e os dentes brilhantes eram também gemas magníficas. À volta do pescoço tinha correntes de ouro incrustadas de pedras preciosas e nos dedos cor de cera brilhavam anéis. Na cintura tinha o cinto mais belo que Maria da Luz vira, lavrado e recamado de pedras vermelhas e azuis.

A gruta estava cheia de estátuas assim, umas de homens e outras de mulheres. Algumas tinham bebés nos braços, uns bebés gordos e risonhos com as vestes mais delicadas ornadas de milhares de pérolas pequeninas.

Estes bebés é que levaram João a perceber do que se tratava.

- Sabem o que elas são? - disse ele. - São imagens tiradas das igrejas algures neste país. Esta representa a Virgem Maria e o bebé é o Menino Jesus. É por isso que estão enfeitadas com estas jóias todas. As pessoas gastavam rios de dinheiro para as embelezarem.

- Pois é, e, às vezes, até as levam em procissões por altura das festas na igreja - corroborou Dina, recordando-se de como a mãe lhe descrevera uma dessas festas. - Imagine-se, imagens de igrejas! E que estarão elas aqui a fazer?

- Devem ter sido roubadas - respondeu João. - Roubadas por pessoas que se aproveitaram da confusão da guerra e as esconderam aqui, na intenção de as virem buscar quando tivessem oportunidade para isso.

- Devem valer muito dinheiro - disse Filipe, passando os dedos por aquelas jóias maravilhosas-, mas digo-lhes que sempre apanhei um susto dos grandes quando as vi. Pensei que fossem realmente pessoas.

- Também eu - confessou Maria da Luz, que já estava completamente calma. - Era insuportável vê-las assim tão quietas e caladas. Estive quase a gritar de medo!

- Fomos uns tolos em não vermos logo que eram estátuas- decidiu Dina. - Mas, digam: de onde vem a luz que as ilumina? É uma luz muito ténue mas que chega bem para as vermos.

João pôs-se a olhar para todos os lados, e depois disse:

- Parece ser uma espécie de brilho fosforecente que vem das paredes e do tecto da gruta. Esta luz até é um bocadinho esverdeada, não acham?

- Olhem - chamou Filipe do lado de lá das estátuas - aqui há outra escada! Venham ver. É capaz de haver mais outra gruta.

Foram todos ver. Para lá da escada havia realmente outra gruta, iluminada pelo mesmo brilho ténue e esverdeado. Estava cheia de umas coisas pouco espessas, quadradas, ovais e redondas. Estátuas não havia nenhumas.

Os pequenos foram inquirir que coisas eram aquelas.

- Quadros! -exclamou João, tentando virar um para ele. - Enormes! De onde viriam? De igrejas também?

- Possivelmente de museus - disse Filipe. - São capazes de ser quadros famosos e de muito valor. Devem ser de outro tempo. Olha aquele. Que trajos tão antigos! Céus! Estas coisas devem valer uma fortuna, ou muitas fortunas! Lembro-me de ter lido, há relativamente pouco tempo, acerca de uns quadros que valiam dois ou três milhões de libras.

- Eu nem sabia que havia tanto dinheiro no mundo - disse Maria da Luz espantada. E ficou a olhar boquiaberta para aqueles quadros antigos e poeirentos, passando-lhes um dedo pelas enormes molduras.

- Alguns dos quadros foram retirados das molduras para poderem ser trazidos para aqui - informou João, puxando por um rolo de tela espessa. - Olhem, deve ter sido cortado da moldura e enrolado para ser mais facilmente transportado.

Além dos quadros emoldurados havia cerca de cinquenta rolos de telas. João iluminou muitos com a lanterna, mas nenhum dos quatro os achou muito interessantes. Muitos eram retratos de homens sisudos e gordos. Outros, cenas da Bíblia ou de lendas antigas.

- Que formidável descoberta! - exclamou João.- Se aqueles homens encontrassem isto, podiam fazer fortuna se os vendessem.

- Claro, andavam à procura de tudo isto - respondeu Filipe. - Para isso é que eles traziam aqueles caixotes todos. Para os embalar. Pensaram encaixotar tudo e levar os caixotes no avião pouco a pouco. Lá espertos eram eles.

- Mas o Otto enganou-os! - exclamou João. - Levou-os até uma derrocada de rochas e disse que a gruta do tesouro ficava por trás daquilo tudo, e eles, humildemente, desistiram e foram-se embora. Que tolos!

-E nós viemos encontrar tudo! - regozijou-se Maria da Luz. - Gostava tanto de poder contar isto ao Jaime!

- Haverá mais grutas?--perguntou João, dirigindo-se para o outro extremo da segunda gruta. - Há mesmo! Cá está outro arco e outra gruta. Aqui há livros! E documentos antigos! Venham ver!

- Os livros doutro tempo e raros são, às vezes, tão valiosos como os quadros antigos - explicou Filipe, olhando as rimas de livros enormes pesadamente encadernados. - Olhem para este! É uma Bíblia escrita em língua estrangeira. É enorme! Reparem na letra de imprensa. Que antiga!

- Estas é que são mesmo grutas de tesouros - comentou João. - Tesouros de igrejas, bibliotecas e museus. Suponho que os homens dessa altura devem tê-los escondido na intenção de vir buscá-los quando chegasse a paz, para poderem encher-se de dinheiro com esta colecção. Mas não há direito que se roubem assim coisas.

- Há aqui outra grutazinha, mesmo à saída desta gruta de livros - gritou-lhes Dina, que andava sozinha a explorar aquilo. - Está aqui uma grande arca. Olha outra! E mais outra! Só gostava de saber o que terão lá dentro.

João veio ter com ela e levantou a pesada tampa de uma das arcas. Ficou mudo de espanto ao ver moedas brilhantes empilhadas na arca.

- Ouro! - exclamou. - Moedas de ouro de um país qualquer, não sei qual. Nunca vi moedas de ouro como estas. Formidável! Aquela caixa também contém uma fortuna, e aquela arca, e aquela! Coisas valiosas por todo o lado!

- Parece um sonho - disse Maria da Luz, sentando-se numa das arcas. - Olhem que parece mesmo. Uma gruta de colunas de gelo ou de estalagas, ou lá o que são! Outra gruta de estrelas! Ainda uma outra de estátuas brilhantes cheias de jóias! Mais uma gruta de quadros e outra de livros antigos! E agora uma gruta de ouro! É inacreditável.

Era realmente extraordinário. Os pequenos sentaram-se a descansar nas arcas de carvalho. Tudo estava iluminado por aquela luz ténue e esverdeada, uma espécie de brilho pálido que parecia não provir de lado algum em especial mas que estava em toda a parte.

Conservava-se tudo silencioso. Os pequenos até ouviam a própria respiração e mesmo uma simples tosse de João lhes soou assustadoramente alto aos ouvidos.

Foi então que, naquele silêncio, outro som surgiu, mas este tão completamente inesperado e surpreendente que eles nem queriam acreditar no que ouviam.

«Có-có-có-có!»

- Que é aquilo? - perguntou, por fim, Maria da Luz. - Parecia uma galinha.

- Deve ter sido a marota da Didi- pretendeu explicar João, procurando-a com a vista. Mas a catatua estava ali mesmo, empoleirada noutra arca, macambúzia e acabrunhada. Estava farta de grutas. Os pequenos olharam para ela. Teria sido a Didi?

Puseram-se à escuta para ver se ela repetia aquele som. Mas o animal nem se mexeu. E foi então que o ruído voltou a fazer-se ouvir claramente, vindo duma direcção completamente diferente.

«Có-có-có-có-có-có!»

- É uma galinha, não há dúvida! - exclamou João, levantando-se de um salto. - Até parece que pôs ovo. Mas uma galinha nestas grutas! Não pode ser!

Os pequenos estavam agora todos de pé. Dina apontou para uns degraus ao fundo da grutazinha do ouro, dizendo:

- É dali que vem o som.

- Vou lá ver se será realmente uma galinha - disse João. - Nem quero acreditar.

Subiu cautelosamente os degraus e logo o cacarejar recomeçou. A Didi acordou e ouviu-o admirada. Imediatamente se pôs também a cacarejar, o que evidentemente surpreendeu quem estava escondido e cacarejando, porque se excitou e se lançou em intermináveis cacarejos.

João chegou ao cimo das escadas. Ali havia outra porta mas não muito forte. Estava só encostada. Abriu-a um bocadinho mais, muito devagar para poder espreitar para dentro sem atrair a atenção de ninguém, apesar de não esperar ver lá mais do que uma galinha.

Porém, o que viu deixou-o espantado. Filipe espetou-lhe os dedos nas costas.

- Então, João, que há?

João virou-se para os outros e respondeu em voz baixa:

- É muito estranho isto. Ali há um quartinho pequeno, uma espécie de cela, mobilado com uma mesa, cadeiras e um candeeiro aceso! A mesa está posta e há lá coisas de comer.

- Então, desce depressa - segredou Dina. - Não queremos encontrar alguém. Deve ser pessoa que está de guarda ao tesouro até que os outros o venham buscar. Desce!

Mas era tarde. Uma voz esquisita e trémula fez-se ouvir no quartinho para onde João estivera a espreitar.

Até eles chegaram umas palavras estranhas, das quais eles não perceberam uma única. Que iria acontecer?

 

          OS GUARDIÕES DO TESOURO

Os pequenos ficaram mudos e quedos. Quem estaria ali, naquele quartinho, ao cimo das escadas? A voz fez-se ouvir novamente, repetindo as mesmas palavras que os pequenos não percebiam.

Então, no cimo da escadinha, surgiu uma galinha acastanhada. Ali ficou, de cabeça ao lado, a olhar para os pequenos e a repetir numa voz amigável:

«Có! Có-có-có!»

«Cóó», fez logo a Didi.

Maria da Luz agarrou Dina e perguntou-lhe muito baixo, cheia de admiração:

- Terá sido a galinha que se manifestou há bocadinho?

Mas era claro que não tinha sido. A voz trémula fez-se ouvir outra vez e os pequenos ficaram admirados por repararem que parecia muito assustada.

Ninguém veio até onde João estava, quase ao cimo da escada. Então, o rapaz encheu-se de coragem e entrou no quartito.

No outro extremo, sob um arco ou rocha, estava um homem muito velho. Por trás dele escondia-se uma mulher, tão velha como ele, mas mais curvada. Olhavam João espantados, mas, depois, virando-se um para o outro, desataram a falar, a falar sem que os pequenos percebessem nada do que diziam.

Maria da Luz não compreendia o que estaria João a fazer lá em cima. E, pensando que alguém devia estar com ele, subiu os degraus e juntou-se-lhes. Os dois velhotes ficaram a olhar para aquela pequenita sardenta e de cabeleira vermelha, tão parecida com o João.

Então a velhinha emitiu uma exclamação de ternura, empurrou o marido para poder passar e foi ter com Maria da Luz. Depois abraçou-a, beijou-a e acariciou-lhe os cabelos. Maria da Luz estava admirada e não muito contente. Quem seria esta velhinha estranha que parecia gostar tanto dela?

E gritou para os outros:

- Dina! Filipe! Podem subir! São dois velhotes e a galinha. Em breve todos os pequenos estavam no quartinho do subterrâneo. Assim que o velhinho os ouviu falar, meteu-se na conversa, falando inglês com um sotaque estranho e sacudido.

- Ah! Os meninos são ingleses! Belo, belo! Uma vez, há muito tempo, estive na vossa terra. Muito bonito! Estive em Londres, num grande hotel.

- Felizmente fala inglês - comentou Filipe. - Mas que estarão eles aqui a fazer? Serão cúmplices dos outros homens?

- Temos de descobrir - observou João. - Lá inofensivos parecem eles. Mas podem cá estar outros.

A velhinha continuava a fazer uma grande festa a Maria da Luz. Era evidente que há muito tempo não via crianças. Então, João virou-se para o velhote e perguntou:

- Quem está aqui além dos senhores?

- Estou eu, a Elsa, que é a minha velhota, e a nossa galinha, a Marta - respondeu o velhinho. - Estamos de guarda a essas coisas todas que estão nas grutas até ao dia em que voltem para onde pertencem. Oxalá esse dia não tarde!

- Parece-me que esta pobre gente não sabe que a guerra já acabou há muito - comentou João, em voz baixa, para os outros. - Sempre gostava de saber quem os deixou aqui de guarda a isto.

Virou-se outra vez para o velhinho e perguntou:

- Quem lhes disse que guardassem estas coisas?

- Julius Muller - respondeu logo o velhinho. - Que grande homem! O que ele trabalhou contra o inimigo, até mesmo enquanto ele bombardeava e queimava este vale! Foi ele quem descobriu que o inimigo estava a servir-se das grutas da montanha para esconder estes tesouros, roubados das nossas igrejas e de muitos outros lugares.

- Tal como nós pensámos - observou Filipe, muitíssimo interessado. - Conte mais coisas!

- Foi então que as pessoas fugiram deste vale - continuou o velhinho. - Muitas foram mortas. No vale não ficou ninguém a não ser eu e a Elsa, a minha velhota. Escondemo-nos com as nossas galinhas e o nosso porco e ninguém nos encontrou. Mas um dia Julius Muller deu connosco e mandou-nos vir para aqui, por um caminho que ele conhecia, para guardarmos o tesouro, não para o inimigo, nada disso! Para ele e para o nosso povo! Disse que um dia o inimigo seria derrotado e fugiria, e, então, ele e os outros voltariam para vir buscar o tesouro. Mas ainda não voltou.

- Não voltou porque não pôde - retorquiu logo João. - A passagem está obstruída. Agora ninguém pode entrar ou sair deste vale, a não ser de avião. A guerra já acabou há muito tempo. Mas há gente má que anda à procura deste tesouro, gente que ouviu dizer que ele está aqui escondido e que veio para o roubar.

O velhote pareceu ficar assustado e intrigado, como se não compreendesse muito bem o que João dissera. Os pequenos pensaram que o ter vivido tanto tempo naquele subterrâneo fizera com que a cabeça dele não pudesse receber muitas notícias de fora. Para ele só interessavam a mulher, o tesouro e talvez, ainda, a galinha.

- Vivem aqui neste quarto? - perguntou Maria da Luz.

- Onde vão buscar de comer? A sua galinha gosta de viver aqui debaixo do chão?

- Temos uma grande reserva de alimentos - explicou o velhinho. - Até há milho para a Marta, a nossa galinha. Quando viemos para cá tínhamos seis galinhas e o nosso porco. Mas o porco morreu, e, uma por uma, as galinhas morreram também. Só ficou a Marta. Mas agora já não põe muitos ovos. Aí um de quinze em quinze dias.

«Có-ó-ó», fez a Marta num tom de orgulho. Não havia dúvida de que se orgulhava daquele ovo quinzenal.

A Didi imitou a galinha e depois pôs-se a imitar os patos. A galinha pareceu ficar admirada e alarmada. Os velhotes também.

«Cala-te, Didi», ordenou João. «Deixa-te de exibições».

-Que pássaro é esse? - perguntou o velhinho. - Será uma... como se chama, uma catatua?

- Pois é - respondeu João. - É minha. Vai sempre comigo para todo o lado. Mas não quer saber como viemos aqui parar?

- Ah, sim, claro, claro! --fez o velhinho. - Foi uma surpresa tão grande, tudo isto, sabe? E depois a minha cabeça já não está muito boa. Não consigo perceber muita coisa ao mesmo tempo. Hão-de contar-me o que lhes aconteceu. Mulher! E se arranjasses de comer para estes pequenos?

Elsa não percebeu e o velho repetiu o que tinha dito na língua deles. Ela acenou com a cabeça e sorriu com ar bondoso, mostrando uma boca sem dentes. Pegando na mão de Maria da Luz foi até à prateleira de rocha onde estavam latas e boiões.

- Parece que gosta muito de Maria da Luz - disse Filipe.

- Nem sabe que mais lhe há-de fazer.

O velhinho ouviu e explicou.

- É que nós tínhamos uma netinha, que era muito parecida com esta menina. Tinha os cabelos ruivos e uma carita assim simpática. Vivia connosco. Mas um dia o inimigo veio e levou-a e nós nunca mais a vimos.

Agora a minha mulher vê na vossa irmã a pequenina que perdeu. Têm de a desculpar, porque ela deve pensar que é realmente a Greta que voltou. - Coitados! - exclamou Dina. - Que vida horrível que eles têm tido aqui metidos no centro da montanha, guardando um tesouro para o Julius Muller, à espera dele há imenso tempo sem mais saberem o que se passava lá fora. Se nós não viéssemos aqui eram capazes de nunca mais voltarem a sair.

Para grande alegria dos pequenos, Elsa preparou-lhes uma bela refeição. Apenas não deixava que a pobre Maria da Luz se afastasse dela. Por isso, a pequena era obrigada a segui-la por todo o lado. João contou parte da história deles ao velhote, embora fosse evidente que o pobre homem não conseguia compreender aquilo realmente. A cabeça já não lhe regulava muito bem, e ele sentia-se incapaz de compreender todas estas súbitas notícias de um mundo que quase esquecera.

A Didi divertia-se à grande. Marta, a galinha, via-se bem que estava habituada a fazer companhia ao casal, porque andava a depenicar debaixo da mesa, roçando-se pelas pernas de todos. A Didi juntou-se-lhe e manteve uma conversa interessante apesar de unilateral.

«Quantas vezes te tenho dito que limpes os pés?», perguntava ela à Marta. «Assoa-te. Vai à fonte».

«Có-ó-ó», respondia Marta delicadamente. «Três pombinhas a voar», continuava a Didi, evidentemente ansiosa por ensinar umas cantigas à Marta. «Deus salve o rei! Cuá, cuá, cuá, cuá!»

A galinha pareceu ficar admirada, sacudiu as penas e pôs-se a olhar para a Didi. Depois apanhou umas migalhinhas e fez: «Có-ó-ó. Có-ó-ó. Có-ó-».

Maria da Luz e os outros não podiam deixar de rir com semelhante conversa. Foi então que a Tixa, vendo que havia ali muito de comer, resolveu fazer a sua aparição. Desceu pela manga de Filipe e surgiu em cima da mesa, deixando a velhinha assaz assustada.

- Apresento-lhes a bicha Tixa - disse Filipe delicadamente.

- Esta gente não pode deixar de pensar que somos uns estranhos visitantes! - observou Dina sem tirar os olhos da Tixa, não fosse ela aproximar-se. - Entramos assim por aqui dentro, com uma catatua e uma lagartixa para lhes comermos o almoço.

- Não me parece que se importem muito - observou Filipe. - Diverte-os a mudança. Deve saber bem ver gente depois de se estar só tanto tempo.

Quando acabaram a refeição, a velhinha disse qualquer coisa ao marido. Este, então, traduziu para os pequenos:

- A minha mulher está a perguntar se não estão cansados. Talvez queiram descansar. Nós temos um belo lugar ao Sol para quando queremos descansar.

Os pequenos ficaram muito admirados. Ao Sol?! Como seria que estes velhotes conseguiam ver o Sol a não ser passando por todas as grutas e passagens até ao buraco que ia dar à encosta da montanha?

- Onde fica esse lugar onde descansam? - perguntou João.

- Vem comigo - convidou o velhinho, levando-o para fora daquele quartito-cela. Elsa levou Maria da Luz pela mão. Todos seguiram o velhinho. Este meteu por um largo corredor cavado na rocha.

- Estou convencido de que a maior parte destes túneis devem ter sido cavados por rios subterrâneos aqui há muitos anos - assegurou João. - Esses rios seguiram depois outro curso, os túneis secaram e tornaram-se corredores que vieram servir de comunicação de umas grutas para as outras.

O corredor fez uma curva e veio, de repente, dar à luz do dia. Os pequenos encontraram uma espécie de larga prateleira de rocha, cheia de fetos e outras plantas, bem exposta ao Sol. Que beleza!

- Quer dizer que há outro caminho que vai dar às grutas do tesouro - admitiu Dina. Mas enganava-se. Por ali nunca alguém poderia entrar nas grutas. A prateleira de rocha estendia-se sobre um enorme precipício, completamente a pique, de muitas centenas de metros de altura. Ninguém, nem uma cabra, seria capaz de o subir ou descer. Era, como o velhinho dissera, um belo lugar ao Sol, bom para repousar e nada mais.

Marta ia depenicando na rocha embora os pequenos não conseguissem descobrir o que ela encontrava lá. A Didi ficava a observá-la de perto. Já tinha estabelecido firmes relações de amizade com a galinha. Os pequenos também gostavam dela. Era uma criaturinha simpática, gordinha, amável e natural, e os velhotes gostavam dela como eles da Didi.

Deitaram-se todos ao Sol. Que bom era sentir aqueles raios quentes depois de estarem tanto tempo em subterrâneos. Ali deitados, chegava-lhes aos ouvidos um murmúrio distante.

- É a queda de água - disse Maria da Luz. - Quer dizer que devemos estar perto dela para a ouvirmos aqui.

Ali ficaram, meio ensonados. O velhote sentou-se numa rocha perto deles, a fumar o seu cachimbo. Parecia muito satisfeito. Elsa desaparecera.

- O estranho é pensar que encontrámos o tesouro mas nada podemos fazer - lhe! - exclamou Dina. - Estamos aqui encalhados. Nada podemos mandar dizer a alguém. E, pelo que vejo, nunca mais poderemos, a não ser que desobstruam o vale, coisa que pode levar ainda muitos anos a acontecer!

- Não digas essas coisas - pediu Maria da Luz. - Seja como for, os homens já se foram embora. Já é uma coisa boa. Andava sempre com tanto medo quando eles estavam no vale. Ainda bem que se foram embora!

Mas Maria da Luz deitava foguetes antes do tempo. Um ruído de motores, já familiar, chegou até eles, e todos se levantaram de um salto.

- O avião voltou. Que maçada! Aqueles homens vão tornar a andar por aqui agora e talvez até já tenham arrancado a verdade ao Otto sobre o lugar do tesouro!-lembrou João. - Agora é que precisamos de ter muito cuidado.

 

         JOSÉ DESCOBRE AS GRUTAS

Os pequenos reuniram-se em conselho. Qual seria o melhor partido a tomar? E se os homens agora soubessem realmente o caminho até às grutas do tesouro e fossem até lá? Iam logo começar a tirar o tesouro, isso era mais do que certo.

- E nós nada podemos fazer - disse Filipe. - Aqueles são homens duros. Não vão deixar que uns miúdos como nós e dois velhinhos os impeçam de levar o que eles quiserem. E eles, se voltaram, deve ser para tornarem a procurar o tesouro e para o encontrarem realmente desta vez.

Todos concordaram com João. Filipe suspirou:

- Se ao menos conseguíssemos escapar-nos e comunicar com o Jaime. Mas não há possibilidade.

O avião passara sem se ver dali. Só ouviram o ruído dos motores. O velhinho parecia nada ter ouvido e os pequenos resolveram nada lhe contar, não fosse ele assustar-se.

- Que acham vocês que devíamos fazer? - perguntou Filipe. - Ficar aqui com os velhinhos para vermos se os homens vêm realmente e levam alguma coisa? É fácil escondermo-nos em qualquer parte. Ou voltamos antes para a nossa gruta do feto, do outro lado da cascata? Lá sempre me senti seguro. E temos lá muito que comer.

- Isso também aqui - respondeu Dina. - Acho melhor não sairmos de cá. Se os homens vierem, podemos sempre esconder-nos naquela gruta de estalactites. Há lá muito esconderijo, por trás daquelas colunas geladas. Lá ninguém nos vê. E podia ficar sempre um de nós ali de guarda, para ver quem entra ou sai.

- Talvez tenhas razão - admitiu João. - Temos de esperar para ver o que acontece. Uma vez que eles descubram as grutas do tesouro vai haver muito movimento de gente a entrar e a sair para levarem o tesouro para o avião. Levantam voo para o irem levar, voltam para vir buscar mais, etc.

- E nada me admirava se eles trouxessem mais aviões assim que descobrirem onde está realmente o tesouro - observou Filipe. - Se se põem a levar um ou dois caixotes de cada vez nunca mais acabam.

- A Maria da Luz já está a dormir - disse Dina. - Vou ver se passo também pelo sono. Está-se aqui tão bem ao Sol! Os homens ainda não vêm por aí, por isso, não é preciso estarmos de atalaia nas grutas.

- O melhor seria ficarmos de guarda à entrada - lembrou Filipe, depois de pensar um bocado. - Era a maneira de avistarmos com uma boa antecedência quem quer que viesse.

- Também me parece que é melhor - concordou João, instalando-se para ver se também dormia. - Mas hoje com certeza que os homens não vêm cá. O Sol já está a declinar. Devem esperar por amanhã.

Os pequenos passaram aquela noite no «quarto» do casal. Este era uma gruta de pequenas dimensões que dava para a «sala de estar» onde os pequenos tinham jantado. No «quarto» havia um monte de mantas impecavelmente limpas e os velhotes insistiram muito em ceder este quarto aos pequenos.

- Nós dormimos em cadeiras - rematou o velhote. - Nada nos custa.

A velhinha cobriu Maria da Luz com todo o cuidado e até lhe deu um beijo de despedida.

- Está convencida de que eu sou mesmo a Greta, a neta que ela perdeu - disse Maria da Luz. - Tenho tanta pena dela que não posso impedir-me de corresponder a tanta festa.

De manhã, depois de outra boa refeição, João disse que ia ocupar o lugar de vigilante, num primeiro turno, à entrada da passagem que ia dar às grutas. Filipe entraria no segundo turno, duas horas mais tarde.

O pequeno sentou-se na entrada, debaixo da grande camada de rocha que se salientava na encosta do monte. Estava uma bela manhã de Sol. Os outros decidiram ir examinar umas figuras da gruta das imagens e o velhote disse que lhes contaria a história delas e de onde tinham vindo.

João ficou a olhar para toda a encosta. Dali abrangia uma grande extensão. Via muitas montanhas em redor, umas por trás das outras. Os pinhais nas encostas até pareciam simples arrelvados. Levou o binóculo aos olhos para ver que pássaros havia por ali.

Mas a região era pobre de aves selvagens. Eram raras. João foi examinando tudo bem com o binóculo.

E foi então que teve uma surpresa desagradável. Dirigia o binóculo para um arbusto atrás do qual lhe pareceu ter visto qualquer coisa movendo-se rapidamente. Quis saber se se escondia ali algum pássaro ou outro animal.

Mas não. Em vez disso, o que ele viu foi a cabeça e os ombros de José, o qual empunhava um binóculo e estava precisamente a olhar para João, tal como este o olhava, também através do binóculo.

O pequeno ficou petrificado. Olhou bem para baixo, pelo binóculo, e José olhou para cima, cada um deles vendo o outro perfeitamente. Com que então José tinha voltado em busca do tesouro! A sua permanência ali devia-se ao acaso ou teria conseguido arrancar de Otto o mesmo mapa que este desenhara para João?

«Agora sou capaz de trair tudo num momento», pensou João aborrecido. «Não tenho mais do que retirar-me para dentro e ele fica já a saber onde é a entrada. Se eu for dar uma volta pela montanha, ele vem atrás de mim. Sempre estou envolvido num tal problema!

José não tirava os olhos de João. Ajoelhara-se ao pé do arbusto, sempre binóculo assestado para o rapaz, espiando-lhe os movimentos.

«Dali não vê ele o buraco que fica atrás de mim», pensou João. «O melhor será eu sair daqui e começar a subir a encosta.

Se eu assim fizer e o José vier atrás de mim é capaz de passar sem dar com a entrada».

Ia precisamente pôr em execução este plano quando Filipe veio colocar-se ao seu lado dizendo:

- Agora é a minha vez, Pintinhas. Mas para onde estás tu a olhar?

- Foi pena teres vindo precisamente neste momento - respondeu João. - Ali em baixo está o José com o binóculo virado para mim e agora para ti também. Eu ia agora mesmo começar a subir a encosta para que ele se pusesse a perseguir-me e não desse com a entrada. Assim já ele ficou a saber que há aqui uma gruta e não tardará a chegar cá.

- Ora esta! - alarmou-se Filipe. - Temos de ir já prevenir os outros.

- Agora é a única coisa a fazer - respondeu João, entrando de um salto. - Anda. O José não tarda cá a chegar. Que tremenda maçada! Mas porque não calculei eu logo que ele já devia andar por aí?

Seguiram rapidamente pela passagem e atravessaram todas as grutas até chegarem ao pequeno quarto onde estavam os outros.

João explicou apressadamente o que acontecera.

- Temos de esconder-nos - acrescentou. Mas os velhotes não aceitaram a ideia. Não queriam esconder-se.

- Nada temos a recear - disse o velhinho cheio de dignidade. - Não vêm fazer-nos mal.

- Enganam-se, têm até muito que recear - disse João desesperado. - Venham esconder-se!

Mas eles não se convenciam e João não podia perder tempo a discutir porque queria pôr as raparigas a salvo. Desistiu e fê-las seguir à frente dele.

- Para a gruta das estalactites? - perguntou Dina. João fez que sim com a cabeça. Mas quando chegaram à gruta das imagens, hesitou. Não ficariam ali melhor? E se se colocassem atrás, na sombra, imóveis como estátuas? Com certeza que ninguém daria por eles. Valia a pena tentar.

- Tirem os mantos às imagens - disse ele. - Embrulhem-se bem neles, e deixem-se ficar muito quietas aí atrás.

Pouco tempo levaram a embrulharem-se e a colocarem-se onde João dissera, Maria da Luz segredou-lhe então:

- Lembram-se de quando brincávamos às estátuas? Tínhamos de ficar muito quietos para não perdermos. Até me parece que estou a jogar a isso.

- Então vê se ficas realmente quieta, senão perdes mesmo, porque te apanham - respondeu João. - Oh! Vem aí gente. «Chhhhhhh!», fez logo a Didi. João deu-lhe uma tapa no bico.

«Cala-te! Vê lá se queres trair-nos, palerma!» A Didi ainda abriu o bico para palrar mas arrependeu-se. Levantou voo e desapareceu. João ficou bem contente por vê-la ir porque não queria que ela se pusesse a palrar, acabando por chamar a atenção para eles.

Do túnel chegou um ruído. Já lá andava gente. Devia ser o José.

- José atravessou a gruta das estalactites e das estrelas - segredou Filipe. - Já entrou no túnel que vem dar aqui. Não tarda a aparecer ali à porta. Que pena não a termos fechado. Podia não descobrir que é preciso rodar o prego para a abrir.

A porta ficara só encostada, e quando os pequenos olharam para lá notaram, na semiobscuridade esverdeada da gruta, que alguém a abria lentamente. Viram então brilhar o cano dum revólver. Era evidente que José não estava disposto a arriscar-se.

Maria da Luz engoliu em seco. Oxalá aquela arma não se disparasse. Detestava armas de fogo.

A porta abriu-se de par em par e no limiar surgiu José de revólver em punho.

Ao ver aquelas imagens silenciosas, de olhos estranhamente brilhantes, ia ficando sem fôlego.

«Mãos no ar»!, ordenou ele rispidamente às estátuas. Estas, claro, não obedeceram. A mão de José tremeu. Os pequenos perceberam que ele estava a deixar-se invadir pelo pânico, tal como lhes acontecera a eles ao verem pela primeira vez aquele grupo estranhamente silencioso.

«Limpa os pés!», ordenou uma voz autoritária. Os pequenos ficaram estarrecidos. Era a Didi. Tinha-se empoleirado numa saliência de rocha mesmo por cima da cabeça de José.

«Quem está aí?», perguntou José. «Se alguém se mexe, disparo».

As estátuas não se mexeram, nem mesmo as quatro que eram de carne e osso.

«Quem está aí?», voltou a perguntar José.

«Três pombinhas», foi a resposta da Didi, seguida de uma enorme gargalhada. Isto era de mais para José.

O homem recuou um pouco, tentando descobrir qual das estátuas falara.

«Lá se vai tudo por água abaixo!», exclamou a Didi, pondo-se depois a cacarejar como a Marta. A mão de José voltou a tremer mas avançou um pouco e desceu o degrau para entrar na gruta. Foi nessa altura que viu, como acontecera aos pequenos, que tinha à sua frente imagens cobertas de jóias.

Então, pôs-se a rir alto.

«Que doido!», disse.

«Que doido!» repetiu a Didi, fazendo José virar-se de um salto.

«Quem está aí? Deve ser um dos miúdos. Deixem estar que não perdem pela demora!»

A Didi começou a miar. O homem pôs-se à procura do gato mas terminou por chegar à conclusão de que um dos pequenos estava tentando pregar-lhe uma partida.

A Didi voou silenciosamente para a gruta seguinte, onde se pôs a palrar sozinha.

«Lá vai uma, lá vão duas, Margarida vai à fonte!»

O homem deitou um último olhar ao grupo de imagens e dirigiu-se à gruta seguinte. Os pequenos soltaram um suspiro de alívio, mas ainda não se atreveram a mexer-se.

Parecia-lhes que o homem nunca mais voltava. Por fim, lá o avistaram. Com ele vinham os dois velhotes, visivelmente assustados.

José gritava-lhes na língua deles, e, por isso, os pequenos não perceberam palavra.

Depois, sem voltar a olhar para as estátuas, José transpôs a pesada porta de carvalho e fechou-a, deixando os velhos.

O estrondo ecoou por toda a gruta e fê-los dar um salto a todos.

Depois ouviram outro ruído que os deixou sem pinga de sangue. Era o barulho das trancas a serem colocadas na porta, do outro lado.

Tau! Tau! Tau! As três trancas haviam sido atravessadas. Agora era impossível abrir a porta do lado de dentro.

- Ouviram? - resmungou João. - Estamos presos. Se nos temos escondido na gruta de estalactites ou na gruta das estrelas nada disto nos aconteceria. Podíamos sair quando quiséssemos. Assim não podemos. Temos de cá ficar até que os homens nos soltem - se é que alguma vez o façam.

 

         O AUDACIOSO PLANO DE FILIPE

Os dois velhinhos pareciam pregados ao chão com o susto, ao verem quatro das estátuas falarem e andarem. Mas, quando os pequenos tiraram os mantos e voltaram a colocá-los nas imagens de onde os haviam tirado, os velhinhos viram logo quem eles eram.

Elsa veio a correr para Maria da Luz e aconchegou-a. O velhote ficou onde estava, muito trémulo.

- Que lhes disse ele? - perguntou João.

- Disse que íamos ficar aqui presos e que depois ele traria outros com ele para levarem o nosso tesouro todo - respondeu o velhote, e as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo.

- Ele é mau. É possível que eu estivesse a guardar todas estas coisas tão lindas para as deixar nas mãos de um homem tão mau?

- O que revolta é a gente nada poder fazer - disse João.

- Temos de ficar aqui de braços cruzados a ver estes malandros levarem tudo, meterem o tesouro nos caixotes para o levarem com eles no avião.

- Eu vou lá para fora, para o Sol - disse Dina. - Já não posso mais com este lusco-fusco. Lá sempre hei-de sentir-me melhor. Vê se o velhinho diz à mulher que nos arranje qualquer coisa que possamos comer lá, João. Tu e o Filipe ajudem-na. Aqui no escuro, com todas estas imagens de olhos postos em nós, nem consigo concentrar-me para pensar.

- Está bem - concordou João ao ver que Dina estava quase a chorar. - Vai e leva a Luzinha e a Didi. Nós já lá vamos ter. Quando estiveres ao Sol já te sentirás melhor.

- A Didi foi uma espertalhona em desviar o homem do nosso lado, não foi? - disse a Maria da Luz. - Que assustado que ele ficou quando começou a ouvi-la falar. Eu também ficava se me acontecesse o mesmo. Pensava logo que era uma das estátuas que estava a falar.

Ela e Dina foram andando até ao cantinho soalheiro dos velhinhos. Quando lá chegaram, Dina atirou-se para o chão, aliviada.

- Já não estou a gostar desta aventura. E tu, Dina?

- perguntou Maria da Luz. - Se pudéssemos fazer alguma coisa, não custava tanto, mas parece-me que nada há que possamos fazer.

- Eu gosto de ver as aventuras a correr como eu quero - disse Dina um tanto amuada. - Detesto que me obriguem a fazer coisas que não gosto. Não me digas nada, Maria da Luz. Estou tão zangada que com qualquer coisa rebento.

- Foi do esforço que fizemos para não nos mexermos enquanto fazíamos de estátuas - disse Maria da Luz.

- Falas que nem uma pessoa crescida - ripostou Dina.

- Não é nada disso. Estou de mau humor porque quero sair deste vale e não posso.

Maria da Luz calou-se e instalou-se ao Sol à espera da merenda que o João e o Filipe haviam de ajudar Elsa a trazer. A Didi ficou ali perto a palrar sozinha. Marta, a galinha, veio ter com ela, esgaravatando amigavelmente. A Didi pôs-se a falar com ela e ela respondia cacarejando.

Dina esqueceu o mau humor quando os outros chegaram com o almoço. Banquetearam-se e voltaram a discutir todos os acontecimentos daquela manhã. A meio da discussão voltaram a ouvir o ruído do avião, e, desta vez, viram-no erguer-se no ar.

- Foram-se embora outra vez! - exclamou João, admirado.

- Porque será?

- Possivelmente foram buscar mais homens para os ajudarem a levar tudo, uma vez que já sabem onde está o tesouro - aventou Filipe. - E podem até trazer mais aviões, como tu disseste, João.

Era revoltante sentirem-se irremediavelmente presos. João e Filipe ainda foram, desesperados, tentar arrombar a porta trancada, mas em vão.

As trancas estavam velhas mas eram ainda muito fortes.

Nada havia que pudessem fazer e sentaram-se, aborrecidíssimos. Foram mais uma vez examinar de perto as imagens, os velhos quadros e os livros bafientos.

As estátuas estavam cobertas de jóias magníficas. Algumas imagens eram realmente belas e estavam bem vestidas, mas outras eram toscas e berrantes. Contudo, todas elas estavam adornadas de jóias, embora os pequenos não soubessem se todas as pregadeiras brilhantes, brincos, colares e fosforescentes pulseiras, cintos e anéis seriam realmente de valor. Provavelmente uns eram e outros não teriam senão um valor muito relativo.

- Os homens devem tirar as jóias e deixar cá as imagens - lembrou João. - Os quadros e os livros metem eles em caixotes.

- E se tirássemos as jóias e as escondêssemos algures onde os homens não conseguissem descobri-las? - sugeriu Dina de repente. - Não sei porque havemos de consentir que homens maus como aqueles as levem.

- Boa ideia! - exclamou João. - Vamos! Toca a tirar as jóias para as escondermos em qualquer parte!

Mas, assim que começaram a tirá-las, os velhotes horrorizados vieram sobre eles.

- Não se faz! Menino mau! - exclamou o velhinho, tirando uma pregadeira das mãos de João.

- Nós só queremos esconder isto daqueles homens - quis explicar João. - Não tardarão a cá voltar para roubarem estas coisas.

- Tudo isto pertence a estes - disse o velhinho apontando para as imagens. - Ninguém deve tirar nada daqui. É contra as leis da Igreja.

Os pequenos não insistiram. Era evidente que Elsa e o velhote se enfureciam se eles fizessem nova tentativa. Parecia pensarem que era um acto mau e sacrílego tirar qualquer adorno pertencente às imagens.

Chegou finalmente o fim daquele longo dia e naquela noite ninguém dormiu muito bem. Estavam todos preocupados com o que iria acontecer. Era horrível sentirem-se à mercê de patifes como José.

De manhã, reuniram-se todos outra vez naquele cantinho soalheiro, para tomarem o pequeno almoço. Agora não comiam nas grutas sempre que era possível fazê-lo.

- Escutem - proferiu Dina de repente. - Aí vem outra vez o avião.

Puseram-se todos à escuta, incluindo o casal de velhotes. O ruído aumentou. Tornou-se mesmo muito intenso. João levantou-se dum salto e exclamou:

- Não é só um! São muitos! Olhem, lá vem um a descer, e outro além! E aqui vem outro. Não há dúvida! O José trouxe uma esquadrilha de aviões.

Eram quatro. Via-se bem que o José estava decidido a fazer as coisas em grande escala. Os pequenos imaginaram os aviões aterrando um por um no grande relvado, no fundo do vale.

- Agora aguardemos os acontecimentos - disse João. - O tesouro não tardará a desaparecer todo.

- Que raiva! - exclamou Dina. - E nós sem podermos fazer nada para impedir isto!

- Se ao menos pudéssemos comunicar com o Jaime!

- explodiu João desesperado. - Mas não há possibilidades de se sair do vale a não ser num avião daqueles.

Filipe ficou uns momentos a olhar para João, e, depois, teve uma ideia tão ousada que os outros nem queriam acreditar no que ouviam.

- Não há dúvida. E é esse caminho que vou tomar. Fez-se silêncio. Por fim, João interveio admirado:

- Que queres dizer com isso? Não sabes pilotar um avião.

- Claro que não. Mas hei-de saber esconder-me num! - respondeu Filipe. - Nós não viemos escondidos, todos os quatro, num avião que veio para aqui? Porque não hei-de eu esconder-me num que saia daqui? Aposto que era capaz de me ocultar sem que dessem comigo, sair quando visse uma oportunidade e comunicar com o Jaime para lhe contar tudo!

- Filipe! Que magnífica ideia! - exclamou João. - Mas quem vai sou eu, e não tu.

- Então não vais! - respondeu Filipe. - A ideia foi minha. Não deixarei que se aproveitem duma ideia destas. Quem vai sou eu, ouviste?

- Eu não queria que qualquer de vocês fosse - refutou Maria da Luz, de lábios a tremer. - Podiam vê-los e acontecer-lhes qualquer coisa muito má. Não vão!

- João fica com vocês - disse Filipe. - Os velhinhos também. Nada vos acontecerá. Esta é a única maneira de se ir buscar socorros: seguir num daqueles aviões quando os homens fizerem nova viagem. Para levarem tudo, terão de cá voltar mais duas ou três vezes. E, se eu conseguir comunicar com o Jaime, apanhamo-los quando eles estiverem ocupados com o roubo.

- Parece-me bom de mais para ser verdade - disse Dina. - Não acredito que consigas. Seja como for, como queres tu ir para o avião?

Esqueces-te de que estamos trancados. Ninguém pode sair daqui.

- Espero uma oportunidade para me escapar por aquela porta quando os homens estiverem aqui ocupados - respondeu Filipe antegozando o plano. - Depois escondo-me na gruta das estalactites e sigo pela passagem fora logo que possa. A seguir vou para o avião, escolho um e meto-me lá dentro. Como pensam que nós estamos todos bem guardados não creio que deixem lá alguém de guarda.

- Parece fácil, mas não vai ser - disse João. - Deixa-me tentar, Trunfa.

- Não insistas! - respondeu Filipe. - Esta vai ser a minha melhor aventura.

- Até talvez pudesses meter-te num dos caixotes - disse Dina pensativa. - Ninguém se lembraria de ir ver dentro dum caixote pronto para ser levado.

- Boa ideia! - respondeu Filipe. - Belíssima ideia!

- Bem podemos esperar ter hoje por cá um bando de homens - disse João. - Vai fazer confusão aos pobres velhinhos. Não sei como ficarão quando se virem sem o tesouro, tão bem guardado estava.

- Filipe, hoje, quando os homens vierem, não vamos voltar a fazer de estátuas, não? - implorou Dina.- Só tu. Se não nos encontram hoje é mais do que certo que vão passar aqui uma busca, e, por isso, é melhor que nos encontrem todos, menos a ti. Tu voltas a fazer de estátua e esperas por uma oportunidade para fugires pela porta fora.

- Vou fazer precisamente isso - respondeu Filipe. - Pode ser que não dê resultado, mas não há outra solução. Quando chegarão aqueles homens? Leva-lhes bem hora e meia para chegar até aqui. Vimos os aviões há meia hora. Não posso esperar pelo último minuto para me colocar no lugar.

- É melhor ires já - disse Maria da Luz que estava nervosíssima com aquilo tudo.

- Nós vamos contigo para ver se estás em bom sítio e pareces realmente uma estátua.

Atravessaram todos o corredor e as várias grutas até chegarem à das estátuas. Marta, a galinha, foi com eles. Tinha-se afeiçoado a João e agora seguia-o para onde quer que ele fosse. Naquela manhã pusera um ovo e a velhinha obrigara Maria da Luz a comê-lo ao pequeno almoço.

- Olha! Aqui perto da porta há uma saliência de rocha - observou Dina ansiosamente. - Se te pusesses ali, estou convencida de que ninguém te via. Está tão escuro! Ficavas ao pé da porta, o que te facilitaria a fuga, quando tivesses oportunidade para tal.

- Realmente parece-me o melhor lugar - respondeu Filipe.

- É o melhor, não há dúvida. O que tenho a fazer é cobrir-me com um manto, senão o meu cabelo curto trai-me logo.

Descobriram um manto muito grande e envolveram Filipe nele.

Este empoleirou-se na rocha e todos concordaram em que o lugar era esplêndido.

- Será difícil descobrirem-te - disse João. - Boa sorte, Trunfa. Agora vamos embora e não nos escondemos. Os homens ver-nos-ão e esperemos que pensem que não há mais alguém nas grutas.

Se não conseguires fugir, nós logo à noite já sabemos, porque havemos de encontrar-te cá.

- Adeus - disse Filipe, que parecia mesmo uma estátua. - Não se preocupem comigo. Daqui a pouco já eu vou a caminho e hei-de comunicar com Jaime e com a mãe. Não se aflijam que nós viremos cá salvá-los!

 

         O FUGITIVO

Aproximadamente uma hora depois, Filipe ouviu o barulho de passos e das trancas a serem retiradas. O revólver de José voltou a aparecer. Mas, desta vez, não estava lá a Didi para lhe falar, ninguém que ele ouvisse ou visse a não ser o grupo silencioso das estátuas.

José entrou na gruta. Seguiram-no outros homens. Filipe ficou a vê-los por uma fresta do manto. Só esperava que eles não começassem logo a tirar as jóias às imagens, porque eram capazes de o descobrir.

Os homens soltaram exclamações de admiração ao verem as estátuas. Vinham munidos de lanternas potentes que imediatamente acenderam. Por esta não esperava Filipe.

Encolheu-se muito no seu cantinho, contente por o manto o encobrir tão bem.

Os homens tinham todos um aspecto pouco agradável e, surpreendidos com o fulgor das jóias que adornavam os pescoços e braços das imagens, não paravam de clamar uns pelos outros.

Houve quem deitasse logo a mão a alfinetes e colares, mas, a uma ordem áspera de José, tudo voltou aos seus lugares, embora de má vontade.

Filipe contou os homens. Eram oito. Otto não se encontrava entre eles, o que também não era para admirar. José, Firmino e Luís estavam presentes. Pelo que parecia, vinham dois homens em cada avião.

José foi à frente ensinar o caminho pelo túnel até à gruta seguinte, os passos ecoavam por ali fora. Filipe só queria saber se eles iriam depois à outra gruta e à outra. Se assim fosse cedo poderia escapar-se pela porta aberta para seguir imediatamente pelo monte abaixo.

Pôs-se à escuta. Até ele chegava o som de vozes vindas da gruta seguinte, onde estavam os quadros. Depois mais passos, desta vez mais ao longe. Por fim, só o murmúrio de vozes distantes.

«Foram para a gruta dos livros e de lá hão-de ir para a gruta onde está o ouro», pensou Filipe. «Tenho muito tempo para transpor a porta e sair daqui».

Deixou cair o manto no chão e dirigiu-se silenciosamente para a porta. Transpô-la num abrir e fechar de olhos, subiu as escadas de caracol, atravessou a gruta das estrelas e chegou à gruta das estalactites. Aqui começou a sentir-se mais seguro. Não lhe parecia que houvesse alguém de guarda fora da entrada, todavia decidiu acautelar-se.

Mas não havia ninguém. A encosta estava deserta.

Filipe saiu e iniciou a descida. Pouco depois já ele ia longe, sempre de olho alerta, não fosse dar-se o caso de nem todos os homens terem ido para as grutas.

Quando chegou ao pé da cabana dos homens, estava cansado e cheio de fome. Felizmente, a porta estava aberta e ninguém havia ali. Então, entrou e banqueteou-se. Encontrou uma caixa com barras de chocolate e meteu umas na algibeira para o caso de ter de ficar um tempo sem comer.

Depois foi até aos aviões. Lá estavam eles, todos quatro, mostrando-se bem grandes ao pé dele. Em qual haveria de entrar? Subiu à cabina de cada um deles e espreitou lá para dentro. No último estava um grande monte de mantas e casacos. Parecia o indicado para ele. Podia cobrir-se com tudo aquilo e esconder-se assim. Por enquanto, não via qualquer possibilidade de se meter num caixote como Dina sugerira, até porque os caixotes não se encontravam no avião, mas debaixo dos toldos onde sempre haviam estado.

Uma vez decidido tudo o que havia de fazer, viu que tinha muito tempo à sua frente. Bem sabia que os homens não regressariam tão cedo. Haviam de trazer cargas pesadas e mal ajeitadas e, por isso, desceriam muito mais lentamente do que ele.

Então, resolveu divertir-se, metendo o nariz em tudo. Foi à cabana e encontrou lá pendurado um casaco. Revistou-lhe as algibeiras, pensando que todas e quaisquer informações que conseguisse poderiam ser úteis a Jaime quando ele lá chegasse.

Numa das algibeiras estava um livro de notas. Filipe folheou-o, mas não percebeu patavina. Continha frases numa espécie de código, e muitos números. Talvez Jaime conseguisse decifrar aquilo. Ele é que não percebia nada.

Foi ao estábulo. Ali nada havia que ver, a não ser latas de fruta ainda abertas e cobertas de moscas. Filipe ficou um bocado a olhar para elas, mas depois pensou:

«É verdade, foi o João que as deixou cá ficar para o Otto. Que nojo, estas moscas!»

Pegou num pau, fez um buraco e enterrou aquelas latas de cheiro nauseabundo, com tudo o que tinham dentro. Depois foi dar novo passeio e chegou à árvore onde uma vez se haviam escondido todos quatro. Olhou lá para cima e viu qualquer coisa: «Que será aquilo?», perguntou a si mesmo. Mas depois é que se lembrou.

«Pois claro! Fomos nós que deixámos ali as malas. Já me tinha esquecido. Parece impossível que ainda estejam lá em cima».

Ficou um momento a pensar se devia trazê-las para baixo e escondê-las ou não. Optou pela negativa, pensando:

«Os homens podiam descobri-las e eram capazes de se porem à minha procura. Deixá-las ficar».

Ao cair da tarde pôs-se de atalaia, porque os homens deviam estar de regresso. Cerca das cinco horas comeu umas bolachas e uma lata de pêssegos. Dos homens nem sombra.

Mas, uns dez minutos depois, viu-os lá ao longe. Estava à espera, ao pé dos aviões, pronto a saltar para dentro do que escolhera mal vislumbrasse os homens.

Contou-os rapidamente. Oito! Haviam regressado todos. Subiu as escadas e entrou na cabina. Dirigiu-se à pilha de mantas e casacos e meteu-se por baixo delas, cobrindo-se bem, de maneira a não ficar nem uma ponta do sapato de fora.

«Ainda bem que o dia está quente», pensou. «É a maneira de eles não precisarem dos casacos e das gabardinas».

Ouviu as vozes dos homens. Era evidente que estavam contentes com o êxito daquele dia. Depois fez-se silêncio. Tinham passado pelos aviões e continuado a caminho da cabana.

«Devem ir comer para depois acondicionarem o que trouxeram das grutas do tesouro», pensou Filipe, bocejando. Assim deitado, ficara cheio de sono.

Depressa adormeceu, e tão profundamente que nem se mexeu quando, horas mais tarde, os homens entraram no avião. Mas quando as hélices começaram a rodar e os motores troaram, então acordou, e por um triz que não se pôs de pé dum salto, com o susto.

Mas depressa se lembrou de onde estava e deixou-se ficar muito quieto, desejoso de saber se já seria noite, porque, debaixo de todos aqueles casacos, nada conseguia ver. Pelo que sabia, tanto podia ser meia-noite como meio-dia.

Um por um, todos os aviões levantaram voo. O de Filipe foi o último. Sentiu-o descolar como um pássaro e lá foram pelos ares.

«Não deram comigo! Nem sonham que me levam a bordo!», pensou o rapaz radiante. «Afinal foi fácil. Vivó-ó-ó!»

Voltou a adormecer e os aviões continuaram, de motores a troar, pela noite fora. Para onde iriam? Para um campo de aterragem secreto? Para um vulgar aeroporto?

Os outros pequenos tinham ficado a dormir cá fora, sobre a rocha e ouviram o barulho dos aviões. A noite estava tão quente que parecia sufocarem lá dentro, e, por isso, pediram aos velhinhos que os deixassem trazer as mantas para fora.

- Não são sonâmbulos, pois não? - perguntou o velhote. - É que, se assim fosse, podiam cair da rocha abaixo.

- Nenhum de nós o é - respondeu João. - Esteja descansado que nada nos acontece.

Elsa, a velhinha, não queria que Maria da Luz dormisse na rocha e quase chorava quando a viu persistir na ideia. A Didi e a Marta também lá ficaram. Só faltava a lagartixa. Mas essa estava com Filipe na mesma aventura.

O dia tinha sido horrível para os pequenos. Os homens tinham-nos encontrado com os dois velhotes na «salinha», e haviam-lhes gritado e submetido a um interrogatório, assustando-os muito. O velhinho dissera-lhes que vivia nas grutas há muito, muito tempo, sempre de guarda ao tesouro, e os homens concluíram que os pequenos também lá haviam estado sempre com eles.

- Ainda bem que não nos perguntaram como viemos ter a este vale - disse depois João. - Partiram do princípio de que viemos com os velhinhos há muito tempo.

O casal acorrera em socorro das suas queridas imagens quando os homens começaram a tirar-lhes as jóias. Os homens bateram nos pobres e gritaram-lhes. O velho, então, retirara com a mulher, que tremia e chorava, e os pequenos envidaram todos os esforços por reconfortá-los.

Não voltaram para o pé dos homens. Foram sentar-se ao Sol, pensando em Filipe, se teria ou não conseguido fugir.

- Fugiu, com certeza - dizia Maria da Luz. - Os homens estiveram sempre todos juntos, e, por isso, foi fácil a Filipe escapar-se da gruta das imagens, quando eles vieram interrogar-nos.

Os homens haviam retirado finalmente, levando com eles um montão de jóias, uma imagem muito preciosa, uns quadros e alguns documentos antigos. Dois deles levaram uma arca de ouro. Os pequenos puseram-se a imaginar as dificuldades por que iriam passar, subindo aqui, descendo ali, pela encosta da montanha abaixo.

Os homens voltaram a trancar a porta e o grupinho ficou novamente prisioneiro. Não pararam de pensar no que teria acontecido a Filipe. Teria conseguido esconder-se num dos aviões? Iria meter-se num caixote? Quando partiriam os aparelhos?

Quando acordaram, de noite, com o ruído dos motores, ficaram a saber que os aviões tinham partido naquele momento. Sentaram-se e ficaram à escuta. A Didi soltou um grito e deu uma bicada a Marta para a acordar.

- Lá vão os aviões - disse João. - Filipe deve ir num deles. Agora não tardarão a vir salvar-nos. Isso é que o Jaime vai ficar surpreendido quando ouvir contar tudo o que nos aconteceu. Acham que virá cá no avião dele?

- Oxalá que sim - disse Maria da Luz veementemente.

- Estou desejosa de voltar a ver o Jaime. Às vezes tenho a sensação de que vamos ter de ficar neste vale toda a vida.

- Não sejas tola - respondeu Dina. «Ó Didi, deixa a Marta em paz. Que estás tu a fazer para ela cacarejar assim?»

«Chhhhhhhhh!», fez a Didi, descarada.

«Nada de respostas!» disse Dina, voltando a deitar-se.

- Bem, estou contente por ter ouvido os aviões. Boa sorte, Filipe, onde quer que estejas!

- Boa sorte! - exclamaram os outros, e a Didi repetiu também:

«Boa sorte!»

«Có-có-có-có!», fez a Marta como se quisesse fazer coro com eles.

 

         UMA DESCOBERTA... E UMA BOA IDEIA

No dia seguinte todos os homens estavam de volta nos seus quatro aviões. Depressa voltaram a entrar nas grutas do tesouro, examinando todos os livros e documentos antigos, desenrolando dúzias de telas e inspeccionando as pinturas. Foram novamente ter com o casal de velhos e com as crianças e voltaram a gritar com eles.

Tinham descoberto que alguém estivera a comer na cabana deles e não percebiam como aquilo era possível. Não estavam todos os miúdos e os velhotes ali fechados nas grutas?

Os pequenos, claro, perceberam logo que tinha sido obra do Filipe, mas nada disseram. João fez-se muito admirado e deu umas respostas tolas e Dina fez o mesmo. Maria da Luz pôs-se a soluçar e os homens depressa desistiram de interrogá-la.

Quanto aos velhinhos, ignoravam tudo. Nem pareciam terem dado pela falta de Filipe. Passado um tempo, os homens desistiram de os interrogar e voltaram ao trabalho.

Elsa ficou triste por ver Maria da Luz a soluçar. Pegou-lhe na mão e levou-a para o «quarto». Uma vez lá, tirou um quadro que estava colocado sobre uma saliência da rocha e mostrou a Maria da Luz um espaço que ficava por trás dele. Maria da Luz esbugalhou os olhos.

- Que é isto? - perguntou, e pôs-se a chamar o irmão:

- João! Anda cá e traz o velhinho contigo. Quero perguntar umas coisas, mas a senhora não percebe o que eu digo.

Vieram os dois e, quando João viu o buraco que ficava por trás do quadro, voltou-se para o velhinho e perguntou-lhe.

- Que é isto? Um esconderijo?

- É um buraco na parede - respondeu o velhote. - A minha mulher não gostava dele e tapou-o com um quadro.

A velhinha então largou a falar. Ele virou-se para João e explicou:

- A minha mulher está triste porque a sua irmãzinha se assusta com aqueles homens. Por isso, diz que ela pode esconder-se neste buraco, que eles nunca mais a encontram.

- Deixe-me ver que tal é - respondeu João, entrando por ali dentro. Era mais do que um buraco. Era um tunelzinho redondo e escuro que fora outrora leito de curso de água. Onde iria ter? Se é que ele ia ter a alguma parte.

- É um tunelzinho! - gritou João de lá de dentro. - Parece aquele que ia da nossa gruta para a gruta do eco. Vou ver se tem saída.

Rastejou durante certo tempo, mas, de repente, aquilo desceu tanto que, se não fosse tão estreito, bem teria escorregado por ali abaixo. Terminava num buraco que parecia ficar no tecto duma passagem muito maior. João acendeu a lanterna para ver melhor. Era verdade! Lá em baixo havia uma passagem. Voltou a rastejar até junto das raparigas.

- Venham atrás de mim - disse ele. - Parece-me que encontrei maneira de escaparmos. Mas vamos precisar da minha corda.

Rastejaram em fila indiana até chegarem ao buraco que ia dar à passagem larga. João desatou a corda que trazia sempre à cintura, atou-a a uma rocha, deixou-a pender para dentro da passagem, e lá foi ele.

As pequenas seguiram-no. João acendeu a lanterna para iluminar tudo para um lado e para o outro. Depois perguntou:

- Por que lado havemos de ir?

- Ouço um barulho estranho - observou Maria da Luz. - Parece da queda de água.

Desceram pela passagem fora guiados pelo ruído, e qual não foi a surpresa e o contentamento deles quando vieram dar à rocha que ficava por trás da queda de água, aquela onde Maria da Luz e Dina haviam estado a saltar dias antes para prender a atenção de Firmino.

- Olhem! Esta é a rocha da queda de água, e aquela é a passagem que vai dar outra vez à gruta do eco! - exclamou João. - Até custa a crer! Já podemos voltar para a nossa querida gruta do feto sem termos de estar presos nas grutas do tesouro. Vamos buscar os velhotes para o pé de nós.

Voltou por onde viera, trepou pela corda, rastejou pelo tunelzinho acima e veio sair ao quarto. Contou ao velhinho onde a passagem ia dar e disse-lhe:

- Venham comigo. Nós levamo-los para um sítio seguro. O velhinho sorriu tristemente e respondeu:

- Nós não podemos fazer o que vocês fazem, como andar de gatas e trepar ou descer por cordas. É impossível. Vão vocês, que nós ficamos aqui. Descansem que não dizemos por onde foram. Voltamos a tapar o buraco com o quadro, e ninguém descobrirá coisa alguma.

João voltou para o pé das raparigas, levando a Didi consigo.

- É pena não podermos trazer também a Marta - disse ele. - Afeiçoei-me à bichinha. Mas os velhinhos haviam de sentir a falta dela. Eles não se convencem a vir connosco. E parece-me que têm razão, nunca seriam capazes de passar o túnel de rastos, deslizar pela corda e descer à gruta do feto. Vamos. Estou desejoso de voltar à nossa gruta. Conseguimos escapar! Os homens vão ficar furiosos!

- Oxalá não maltratem os dois velhinhos - disse Maria da Luz, em cuidado. - Ela era tão simpática, tão boazinha!

Desceram a passagem cheia de curvas e chegaram à gruta do eco onde a Didi os aborreceu gritando sempre e fazendo ouvir o eco de centenas de gritos muito aumentados, que quase os ensurdeciam.

Passaram pelo túnel em forma de cano que ia dar ao fundo da gruta do feto e deixaram-se cair nas mantas que ainda lá estavam estendidas.

-. O regresso ao lar - disse João, rindo. - Parece impossível que alguém sinta isto como regresso ao lar, mas eu sinto.

Sentaram-se a descansar.

Por fim, Dina disse, pensativa:

- Ontem à noite aqueles homens devem ter levado os aviões a qualquer parte, descarregado e voltado quase em seguida, para estarem de volta tão depressa. Eu nem esperava vê-los hoje nas grutas. Tu ouviste os aviões? Eu não.

- Nem eu. Mas o vento mudou, por isso talvez o som não viesse na nossa direcção - admitiu João.

- Até nem está tanto Sol. É capaz de vir chuva. E o vento está a soprar com força.

- Temos de estar alerta para o caso de o Jaime e o Filipe cá virem - recomendou Dina. - O Filipe não sabe que estamos aqui.

- Vocês duas importam-se que eu vá esta tarde fazer uma inspecção à cabana dos homens? - perguntou João. - Pode, às vezes dar-se o caso de o nosso Trunfa não ter conseguido escapar, ter sido apanhado e estar lá preso.

- E eu que nem me lembrei disso! - exclamou Maria da Luz horrorizada. - Mas tu não estás convencido de que o apanharam, pois não, João?

- Nem por sombras - respondeu João, alegremente. - Mas sempre é bom certificarmo-nos. E o melhor será eu ir agora, enquanto eles estão ocupados nas grutas. É verdade, vocês repararam se lá estavam os oito?

- Parece-me que sim - respondeu Dina, concentrando-se. - Mas não tenho a certeza. Tu lembras-te, Maria da Luz?

- Não. Nem olhei para eles. Que gente antipática!

- Deviam lá estar todos - disse João. - Br-r-r-r-r! Isto é que o vento está hoje frio. Vou vestir mais uma camisola. Até já, meninas, eu não me demoro!

E lá foi pelo caminho, já seu velho conhecido, que ia dar à cabana dos homens. Não supunha que Filipe tivesse sido apanhado, mas sempre era melhor certificar-se. Inspeccionou tudo cautelosamente. A porta da cabana estava fechada. João foi até lá e espreitou pela janela. Filipe não estava. Ainda bem!

«O melhor será dar uma espreitadela ao estábulo», pensou João. «Podem tê-lo lá amarrado».

E foi. Mas também ninguém lá estava. Que bom!

Veio uma rabanada de vento como as que tantas vezes fustigavam os vales montanhosos. Começou a cair uma carga de água e o pequeno correu para uma árvore. A árvore era a mesma na qual se tinham escondido todos, uma grande árvore boa e espessa, que o abrigaria da chuva. Encolheu-se, muito encostado a ela, enquanto o vento assobiava ali à volta.

E o assobio do vento era tal que o rapaz não ouviu passos que se dirigiam para lá, mesmo por trás dele, nem viu a figura corpulenta de Firmino que ficara a olhar admirado para o rapaz.

Num abrir e fechar de olhos Firmino contornou a árvore e deitou a mão aos ombros de João. O pequeno, com o susto, soltou um grito e Firmino segurou-o vigorosamente.

- Largue-me! - gritou João. - Selvagem, deixe-me! Está a dar-me cabo do ombro!

Firmino pegou num pau e, arreganhando os dentes disse:

- Vais ver como isto te faz bem. Vocês, miúdos, dão-nos muito que fazer. Onde estão os outros? Ou me dizes já ou te ponho negro com pancada.

- Largue-me! - gritou João, dando um valente pontapé no tornozelo de Firmino. O homem soltou um berro, com a dor, e assentou uma violenta paulada nas costas de João. Este dirigiu-lhe um novo pontapé.

É fácil adivinhar o que teria acontecido ao pequeno se não tivesse acontecido primeiro qualquer coisa a Firmino! O vento assobiava forte e abanou a árvore violentamente. Então qualquer coisa caiu de lá de cima e veio acertar em cheio no ombro daquele homem furioso. Ele caiu logo, berrando e levando a mão ao ombro. João fugiu para o vento. Depois virou-se para ver o que havia. Firmino tentava levantar-se, a gemer. O vento soprou outra vez mais forte e a enorme árvore voltou a cuspir outra coisa que acertou na cabeça de Firmino. Este caiu e não se mexeu mais.

- «Olha!», exclamou João, pasmado. «Foram duas das malas que nós deixámos na árvore! Caíram mesmo na hora H. Oxalá não o tenham morto!»

Avançou cautelosamente até ao homem caído. Não, morto não estava, encontrava-se apenas desmaiado. Imediatamente João viu uma oportunidade única. Tirou a corda da cintura, amarrou o homem de pés e mãos e depois colocou-o junto da árvore.

«Agora já não és capaz de vir atrás de mim, Firmino querido», comentou João, lançando um olhar para o cimo da árvore, não fossem as outras duas malas caírem também. «Os outros, pelos vistos, deixaram-te aqui hoje de guarda, uma vez que alguém fora comer o que era deles. Não vais hoje guardar grande coisa, não, mas também não é preciso. A árvore abriga-te da tempestade.

De repente teve uma ideia de tal maneira luminosa que até parou, de respiração suspensa. Depois bateu com a mão na testa

e gritou:

«Tenho de o fazer, tenho de o fazer! Resta saber se terei tempo. Terei ou não?»

E pôs-se a correr tanto quanto podia, ao vento e à chuva.

«Mas, porque não me lembrei eu disto há mais tempo? Se eles estiverem nas grutas do tesouro posso trancar-lhes a porta, como eles nos fizeram a nós, e deixá-los lá presos!

«Mas, porque não me teria lembrado disto há mais tempo? Agora é capaz de já ser tarde de mais».

Correu, correu, sem fôlego, estafado, quente como o fogo apesar do vento e da chuva.

«De nada serve. A estas horas já eles estão cá fora», pensou. Estou aqui, estou a vê-los. Mas, porque não havia eu de pensar nisto há mais tempo? Podia ter ido trancá-los antes de deixar a Dina e a Maria da Luz.

A ideia era, sem dúvida, esplêndida. Os homens iam ficar ali presos. Não sabiam que havia uma saída por trás do quadro e nunca se lembrariam de ir procurá-la ali. Os velhinhos não iriam dizer-lhes. Se, ao menos, eles ainda estivessem nas grutas!

A chuva caía em torrentes e soprava um vento ciclónico. Felizmente estava agora nas costas de João, e ajudava-o. O rapaz estava molhado até aos ossos, mas não se importava com isso.

Não viu sinal dos homens. Ao chegar próximo da queda de água abrandou a marcha. Não lhe interessava correr até esbarrar neles. Pôs-se a pensar com mais calma.

«Talvez não saiam enquanto a chuva não parar e a tempestade não amainar. A chuva estragaria os livros antigos, os papéis e os quadros. Esperam, com toda a certeza. Pode ser que ainda chegue a tempo. Podem até ter decidido passar lá a noite, se a tempestade não abrandar».

João acertou. Os homens, depois de terem espreitado à saída das grutas, tinham visto o vendaval, assolando a encosta, e decidiram não arriscar os tesouros que levavam. Ficariam todos estragados.

- O melhor será passarmos aqui a noite - alvitrou um deles. - Naquele quarto onde estão as mantas. Pomos os velhos e os miúdos cá fora.

Só lá estavam os velhinhos, e quando os homens perguntaram pelos pequenos fizeram gestos vagos, apontando para a passagem que ia dar à rocha onde costumavam apanhar o Sol.

Os homens instalaram-se em cima das mantas e um deles tirou um baralho de cartas da algibeira. Pôs o candeeiro de maneira a que todos pudessem ver e começou a baralhar.

Os velhinhos foram para a «salinha», tristes e assustados. Só esperavam que os homens não espreitassem por trás do quadro.

Quando João chegou às grutas do tesouro quase não tinha pernas para percorrer as várias passagens. Atravessou cambaleante a gruta das estalactites e a das estrelas e entrou na primeira gruta do tesouro, transpondo a porta que ficava ao fundo da escada em caracol. Nenhuns homens viu e começou a desanimar. Ter-se-iam ido embora? Ter-se-iam desencontrado?

Avançou cautelosamente. Quando chegou à salinha, espreitou e viu que o casal estava lá com a Marta, a galinha.

Então, ouviu o barulho dos homens no quarto ao lado. Fez sinal aos velhinhos. Estes levantaram-se silenciosamente e seguiram-no admirados. João não falou enquanto não se convenceu de não ser ouvido pelos homens.

- Venham - disse ele, fazendo-os sair da gruta das imagens e transpor a porta maciça. - Vou trancar aqui os homens, mas não quero deixar os senhores também cá fechados.

E, triunfante, colocou as três trancas. Conseguira! Conseguira!

 

         DEPOIS DA TEMPESTADE

Assim que acabou de colocar as trancas João caiu desmaiado. A luta com Firmino, a longa corrida ao vento e à chuva e a tremenda excitação de pensar que ia prender os homens, tinham sido de mais para ele. Caiu nos degraus fora da porta trancada e ali ficou.

Estava escuro. Assustados, os velhinhos procuraram João às apalpadelas. Que teria acontecido ao pobre rapazito?

Encontraram-lhe a lanterna na algibeira e tiraram-na para fora. Acenderam-na e olharam aflitos o rosto pálido de João e os seus olhos fechados. Tentaram arrastá-lo pelas escadas acima.

- Tem a roupa toda molhada - disse a velhinha, apalpando a camisa e os calções de João, que estavam todos encharcados. - Vai apanhar um resfriado e um resfriado grande. Até é capaz de morrer. Que havemos nós de fazer, homem?

O velhinho respondeu-lhe na língua dela:

- Arrastamo-lo pelas escadas acima e instalamo-lo na gruta das estrelas. Tu embrulha-lo no teu xaile e eu ponho-lhe o meu casaco.

Reunindo todas as forças, os velhinhos conseguiram arrastar João pelas escadas acima, arquejando e gemendo. Mas não conseguiram ir além dali. O velho, então, tirou as roupas molhadas a João e pôs-lhe o casaco dele. A velhinha embrulhou-o no seu espesso xaile. Torceram-lhe as roupas molhadas e penduraram-nas na parede rochosa para secar.

Estavam assustados. Que iriam fazer agora? Os homens estavam fechados nas grutas com o que ainda restava do seu precioso tesouro.

Iam ficar furiosos quando descobrissem o que tinha acontecido.

João depressa voltou a si. Sentou-se sem saber onde estava. Estivera meio desmaiado, meio a dormir. Apalpou as roupas. Mas que trazia ele vestido? Um xaile? Dar-se-ia o caso de estar ainda vestido de estátua?

Os velhinhos ouviram-no mexer-se e voltaram a acender a lanterna. Olharam-no cheios de ansiedade e ficaram aliviados por ver que já não estava tão pálido.

- Está melhor? - perguntou o velhinho com bondade.

- Obrigado, estou bem - respondeu João, puxando pelo xaile. - Mas que é isto?

- As suas roupas estavam muito molhadas - explicou o velhinho. - Tivemos de lhas tirar para secar, senão apanhava um resfriado perigoso. O que tem vestido são o meu casaco e o xaile da minha mulher.

- Ah! Muito obrigado - disse João, sentindo-se um tanto ridículo com o casaco e o xaile. - Desculpem o susto que lhes preguei. Fui-me abaixo. Deve ter sido da corrida pela montanha acima. E que tal a minha ideia de fechar ali os homens?

- São capazes de nos fazer mal quando derem por isso - disse o velhinho tristemente.

- Impossível! - exclamou João. - Não vê que estão do lado de dentro duma porta trancada por fora? Não se aflijam que nada nos acontece.

Levantou-se. Não tinha as pernas muito firmes mas era capaz de andar. Disse então aos velhinhos:

- Vou só até à entrada das grutas para ver se, por acaso, aquela horrível tempestade e ventania já abrandaram. Se assim for já poderei ir até à gruta do feto, onde estão as raparigas. Devem estar assustadíssimas.

Lá foi, meio trôpego, até à entrada. As nuvens eram tão negras e estavam tão baixas que parecia noite. A chuva continuava a fustigar a encosta em catadupas. Era impossível sair.

«Perder-me-ia logo», pensou João. «As raparigas vão ficar preocupadíssimas comigo. Oxalá não tenham medo de estar sozinhas.

Mas nem adianta pensar nisso. Tenho de passar aqui a noite com os velhinhos, embora não possamos ficar muito bem instalados.

Não ficaram mesmo nada bem. Arranjaram um lugarzinho na gruta das estrelas, uma espécie de bacia cavada na rocha com muito poucas arestas. Para se conservarem quentes aconchegaram-se uns aos outros. João tentou convencer os velhinhos a voltarem a receber o casaco e o xaile, dizendo que as roupas dele estavam quase secas, mas a velhinha ficou muito zangada quando ele sugeriu semelhante coisa e ralhou muito ao marido com palavras que João não compreendeu, mas cujo significado adivinhou.

- A minha mulher diz que está a ser um menino muito mau. A falar em vestir roupas molhadas! - disse o velho. - Juntemo-nos bem uns aos outros. A gruta não é fria.

Realmente não estava frio ali. João ficou entre o velhinho e a mulher, de olhos fitos no tecto daquela estranha gruta. Deixou-se estar a ver aquelas curiosas estrelas azuis-esverdeadas, que acendiam e apagavam, tremulavam e brilhavam. Eram às centenas e deslumbravam a vista. João ficou bastante tempo a pensar nelas e por fim adormeceu.

De manhã, os velhinhos foram os primeiros a acordar. Sentiam o corpo dormente e pouco confortável, mas nem se mexeram, com receio de incomodarem João. Este, por fim, lá acordou e levantou-se. Viu-se rodeado de estrelas brilhantes e lembrou-se logo onde estava.

- Que horas serão? - disse ele, olhando para o relógio. - Já sete e meia! Só gostava de saber o que estarão aqueles homens a fazer. As minhas roupas já terão secado?

Felizmente estavam secas. João vestiu-as rapidamente e restituiu o casaco e o xaile com calorosos agradecimentos.

- Agora fiquem aqui só um bocadinho, que eu vou até à porta trancada ver se ouço alguma coisa - disse ao casal velhinho.

Lá foi, sentindo-se já completamente seguro de si. Assim que chegou ao cimo das escadas de caracol que iam dar à porta de carvalho ouviu logo muitas pancadas. Pelos vistos os homens já haviam descoberto que estavam trancados.

Trás, trás, trás, trás!

Batiam na porta maciça com quanta força tinham. Isso é que eles gritavam, barafustavam, davam pontapés na porta e tentavam arrombá-la!

João deixou-se ficar no alto das escadas com um sorriso de satisfação. Era bem feito! Voltava-se o feitiço contra o feiticeiro. Tinham fechado os pequenos lá dentro e agora os presos eram eles.

De repente, ouviu-se um estampido que fez João dar um salto para trás. Era um tiro de revólver. Os homens estavam a disparar para a porta na esperança de rebentarem as trancas.

Pum! Pum! Pum!

João afastou-se um pouco, com receio de que uma bala conseguisse furar a madeira e viesse acertar-lhe. Mas era impossível. Pum! Pum!

As trancas não rebentavam. Os homens deram mais umas pancadas na porta com qualquer coisa depois pararam. João foi a correr contar tudo ao casal dos velhos.

Mas eles ficaram assustados. Por isso, não se divertiu com o relato dos acontecimentos. Então, disse o velhinho:

- Parece-me que o melhor será levá-los para a gruta do feto, onde estão as raparigas. Lá teremos de comer e mantas.

Venham comigo.

Mas os velhinhos não arredaram pé daquele lugar que conheciam tão bem. O ar livre, a encosta, o mundo exterior atemorizavam-nos. Recusaram, e nada houve que João dissesse que os conseguisse fazer mudar de ideias.

- Bem, eu tenho de ir ter com as raparigas - disse ele por fim. - Trago-as cá com comida e mantas. Podemos continuar juntos. Os homens já não representam um perigo para nós. Não conseguem sair de onde estão. Mesmo que descubram o buraco que está por trás do quadro, não acredito que consigam ir além da gruta do eco.

Despediu-se dos velhinhos assustados e saiu para o Sol.

Que delícia, sentir aquele calorzinho na cabeça e nas costas. O céu estava outra vez azul e o vento desaparecera.

Dirigiu-se para a queda de água e chegou lá sem se enganar, porque agora já sabia seguir os pontos de referência com toda a facilidade. As raparigas saudaram-no mal o viram. Estavam à espreita por entre o feto.

- João! Não voltaste a noite passada! Ó João! Não consegui dormir quase nada, sempre a pensar no que te teria acontecido - exclamou Maria da Luz.

- Que aconteceu? - perguntou Dina, que também estava bastante pálida. Também ela estivera em cuidado, sobretudo quando estalara a tempestade.

- Muita coisa! - respondeu João. - Trago novidades estupendas! As melhores do mundo.

- Sério? Então o Filipe voltou, foi? E o Jaime também veio? - exclamou logo Maria da Luz.

- Bem, não são essas as novidades que trago - respondeu João. - Sabem o que eu fiz? Tranquei os homens nas grutas. Que dizem a isto?

- Que ideia formidável! - exclamaram as duas.

- E os velhinhos? - perguntou Dina.

- Trouxe-os cá para fora primeiro - respondeu João.

- E encontrei o Firmino ao pé do estábulo e amarrei-o de pés e mãos. Ficou junto daquela árvore grande onde nos escondemos uma vez.

- João! És extraordinário! - exclamou Maria da Luz.

- Lutaste com ele, foi?

- Não foi bem isso - confessou João. - Ele apanhou-me, e eu dei-lhe uns pontapés valentes. Foi então que o vento soprou com muita força e duas malas das nossas caíram da árvore e deitaram-no por terra. Eu fiquei tão surpreendido como ele.

- É verdade! Nós realmente deixámos lá as malas! - disse Dina. - Oh, João! Que sorte terem lá ficado!

- O Firmino não deve ter passado muito bem a noite. - prosseguiu João. - Só teve o vento e a chuva a fazerem-lhe companhia.

Contou-lhes que deixara os velhos na gruta das estrelas e que os homens, furiosos, tinham querido arrombar a porta.

- Não consigo convencer os velhinhos a saírem das grutas - disse ele. - Por isso, o melhor será levarmos comida e as mantas para lá, para lhes fazermos companhia. Ontem à noite emprestaram-me o casaco e o xaile deles porque a minha roupa estava toda encharcada. Não podemos deixá-los lá sozinhos, sem comida e sem terem onde dormir.

- Que pena! Gosto desta gruta mais do que de qualquer outra parte - suspirou Maria da Luz. - Mas realmente os velhinhos foram tão bons para nós! Também lá está a Marta, João?

- Ora esta! E eu que me esqueci dela por completo - respondeu João, lembrando-se nessa altura. - Oxalá os homens não a matem para a comerem.

Este horrível pensamento deixou a pobre Maria da Luz calada durante um ou dois minutos. Pobre Marta. Iriam os homens deixá-la em paz?

A Didi ficara muito contente por ver João como as pequenas. Aninhou-se-lhe no ombro, emitindo murmúrios ternos enquanto ele falava, dando-lhe bicadinhas na orelha e levantando-lhe os cabelos. João coçou a cabeça à catatua, também contente por tê-la consigo outra vez.

As raparigas juntaram umas latas e João pôs as mantas ao ombro. Depois, com a Didi voando à frente, partiram para seguirem os já familiares pontos de referência até às grutas do tesouro. O Sol estava quente e o dia ficara realmente maravilhoso.

- Gostava imenso de desenhar um plano do caminho que vai desde o buraco, por trás do quarto, até à nossa gruta do feto - disse Dina. - Esta montanha está crivada de buracos e grutas. Isto é que a queda de água está hoje barulhenta! E parece maior do que nunca. Deve ter sido da chuvada desta noite.

Chegaram finalmente à entrada das grutas e entraram. Dirigiram-se para a gruta das estrelas e o velho casal saudou-os calorosa e alegremente. A velhinha ficou radiante por voltar a ver Maria da Luz e encheu-a de carícias.

- Tenho fome - disse Maria da Luz, tentando libertar-se dos braços de Elsa. - Tenho muita fome.

Todos tinham. A gruta das estrelas era um lugar um tanto estranho para se comer.

Os pequenos ficaram a ver aquelas luzinhas tremulantes a brilhar, encantados com elas. Se ao menos se pudesse levar umas para casa para pôr no tecto do quarto!

Foi o que voltou a desejar a Maria da Luz ao ver aquelas estrelas a brilhar.

- Bem, agora o que há a fazer é esperar - afirmou João, ajeitando as mantas de maneira a que todos se pudessem sentar tão confortavelmente quanto possível. - Agora está tudo nas mãos de Filipe. É evidente que aqueles homens não sabem que ele se escondeu num avião, senão tinham dito alguma coisa. Deve ter-se escapado sem novidade. Só gostava de saber o que estará ele a fazer.

 

         UMA ESTRANHA VIAGEM

Mas vejamos o que acontecera a Filipe. Estava realmente em plena aventura.

Dormiu no avião debaixo do monte de casacos e mantas até de madrugada. Então, o avião aterrou, tocando no solo com as rodas enormes. Filipe acordou imediatamente.

Fez um buraquinho por entre as mantas, para espreitar, e ficou a ver o que faziam os dois homens do avião. Tratavam de sair. Que sorte nem sequer terem examinado o aparelho ou tirado um casaco do monte!

Lá fora estavam mais homens, que saudaram os recém-chegados. Filipe levantou-se, tentando perceber o que diziam. Mas falavam em parte numa língua estrangeira, e havia tanta confusão que era impossível perceber-se fosse o que fosse.

Olhou à sua volta, por todo o avião, e viu que estava agora lá um caixote com um oleado mal amarrado. Filipe tentou ver o que havia lá dentro. Toda metida em palha estava uma das imagens, com certeza de muito valor.

Filipe espreitou cautelosamente pela janela do avião, uma vez que as vozes dos homens haviam cessado. Onde estariam eles? Poderia sair sem ser visto e fugir para pedir socorro?

Mas ficou admirado com o que viu. Os aviões, aqueles e mais outros, estavam numa planície coberta de erva, e em frente e a toda a volta, havia mar. A toda a volta. Quer dizer que estavam algures numa ilha.

Sentou-se e ficou um momento a pensar. Aqueles homens eram uns patifes. Deviam estar a negociar com tesouros escondidos e possivelmente esquecidos durante a última guerra, tinham aviões próprios e um campo de aterragem secreto.

Nada seria melhor para isso do que uma ilha solitária, talvez nas costas da Escócia.

«Então, devem ter barcos a motor ou lanchas próprias para levar a mercadoria», pensou Filipe. «É o que se chama uma quadrilha organizada. Nunca mais conseguirei sair daqui sem que me vejam, nunca. Se é uma ilha, como realmente parece, estou tão preso aqui como estava nas grutas do tesouro. Bolas!» Foi então que lhe veio à lembrança a ideia de Dina. E se se escondesse no caixote? Aquela imagem seria, com certeza, posta a bordo dum barco e mandada para qualquer parte para ser vendida. Seria possível seguir com ela?

Voltou a espreitar para ver onde estariam os homens. Estavam, com certeza, a comer e a beber numa barraca que ficava um pouco afastada dali. Filipe calculou que devia ter pelo menos meia hora para agir.

Alargou ainda mais o oleado. Descobriu que o caixote estava fechado com um ferrolho. Puxou-o e todo um lado se abriu, como uma tampa lateral. Começou a cair palha.

A imagem estava lá dentro, com palha pouco apertada à volta. Filipe pensou que devia ser a estátua de qualquer santo antigo. Olhou bem para ela. Seria feita de ouro? Parecia. Mas isso não importava. Ia ficar onde Filipe estivera, debaixo do monte de mantas e casacos, e Filipe ia ocupar o lugar dela.

Não foi muito difícil tirar a imagem da palha, mas depois de cá estar fora revelou ser bem pesada. Filipe quase ia caindo com o peso, apesar de não ser maior do que ele.

Arrastou-a até ao monte de agasalhos. Pô-la por baixo de tudo e colocou-lhe as coisas em cima, de maneira a que nada ficasse de fora. Depois apanhou todos os bocadinhos de palha e meteu-os, com todo o cuidado, outra vez no caixote.

Restava-lhe a tarefa de se encafuar na palha. A estátua deixara lá um buraco e Filipe colocou-se no mesmo sítio. Puxou a palha com todo o cuidado e fechou a tampa lateral. Só não conseguiu fechar o ferrolho e teve de o deixar assim esperando qUe, se os homens o vissem aberto, pensassem simplesmente que caíra por acaso.

Estava muito quente na palha e Filipe começou a assustar-se com receio de, passado tempo, não ser capaz de respirar. Então, fez um tunelzinho que ia da boca e do nariz até fora da palha e sentiu-se melhor.

Estava no caixote há cerca de um quarto de hora quando chegaram dois homens numa carroça. Descarregaram todos os aviões. Fizeram deslizar com todo o cuidado o caixote onde estava Filipe para fora do avião, e, quando a tampa se abriu, puseram o ferrolho com todo o cuidado. Nem por momentos lhes passou pela cabeça que lá estivesse um rapaz vivo em vez de uma imagem silenciosa.

O caixote de Filipe foi colocado na carroça com outras coisas. A carroça seguiu depois na direcção do mar, saltando por sobre os sulcos do caminho. Filipe foi sacudidíssimo. A palha fazia-lhe cócegas e picava-o todo. Quase não conseguia respirar.

Mas nem se importava. Em breve estaria a bordo dum barco e seria levado para algures no continente. Então fugiria e iria à Polícia. Por isso, ali ficou, com toda a paciência, tentando esquivar-se às picadas agudas da palha, mexendo-se de vez em quando.

No caixote era impossível ver-se fosse o que fosse. Não pôde senão calcular que a carroça chegava a um pequeno molhe, ao lado do qual estava amarrada uma lancha. Depois foi levado para bordo e arrumado num convés baixo.

Pumba! Filipe susteve a respiração porque fora sacudidíssimo. Ao lado dele arrumaram mais coisas. Depois veio o barulho de vozes e ordens. O motor da lancha começou a trabalhar e Filipe sentiu que a embarcação deslizava suavemente pela água fora. Lá iam!

«Estes homens não perdem tempo», pensou Filipe. «Não deixam que as coisas lhes fiquem nas mãos por muito tempo. Quem comprará tudo isto?»

A viagem até ao continente, onde quer que ele fosse, foi longa. Filipe estava agora mais do que certo de que o campo de aterragem dos aviões ficava em qualquer ilha solitária. Por fim, a lancha abrandou a marcha numa espécie de porto e parou. Imediatamente vieram descarregá-la.

O caixote foi manuseado um tanto descuidadamente, e duma vez o pobre Filipe chegou a estar meio minuto de pernas para o ar. Isso foi o pior de tudo. Chegou a pensar que ia ter de gritar por socorro. Mas, precisamente quando estava já certo de que não podia suportar mais aquilo, sentiu que o caixote fora novamente colocado num carro ou camião que partiu quase imediatamente.

Passados momentos parou. Filipe ouviu uma máquina apitar e o coração saltou-lhe de alegria. Devia estar numa estação de caminho de ferro. Talvez o colocassem no furgão ou num comboio de mercadorias. Então seria fácil escapar-se. Anteriormente não havia ousado fazê-lo porque estava convencido de que todos os homens que pegavam no caixote eram cúmplices dos outros.

Mas não o puseram em nenhum comboio. Deixaram-no num pátio juntamente com outras mercadorias que deviam seguir num comboio mais tarde. Apurou o ouvido para ver se dava conta da retirada do camião. Então, pensou, poderia sair sem receio.

Esperou cerca de vinte minutos. Depois começou a tentar sair dali. Mas não conseguia fazer saltar o ferrolho. Que maçada!

Então gritou:

«Eh! Eh! Socorro!»

Um carregador que estava ali perto assustou-se e pôs-se a olhar para todos os lados. Ninguém se via a não ser um passageiro solitário que esperava pelo próximo comboio e outro carregador no cais do lado de lá.

Filipe voltou a gritar:

«Eh! Eh! Ajudem-me a sair!»

O carregador ficou assustadíssimo. Olhou para o passageiro que estava ali à espera. Teria também ouvido os gritos ou não seriam mais do que imaginação sua?

O passageiro também ouvira e ficara da mesma maneira alarmado.

- Parece que está alguém aflito não sei onde - disse o homem, caminhando na direcção do carregador. - Parece que é ali naquele patiozinho.

- Mas ali não está ninguém - disse o carregador, olhando para o pátio.

«Eh! Depressa, deixem-me sair!», voltou a gritar a voz de Filipe, com quanta força tinha e, para cúmulo do terror do passageiro e do carregador, o grande caixote começou a abanar violentamente.

- Está gente ali dentro! - exclamou o carregador, correndo para lá. Com dedos trémulos, tirou o ferrolho e Filipe saiu, com palha na cabeça, no pescoço, em todo ele, e muitíssimo excitado.

- Tenho de ir já a uma esquadra da Polícia - clamou Filipe. - Agora nada posso explicar. Onde fica a esquadra?

- Ali - gaguejou o carregador, apontando para um pequeno edifício quadrado que ficava a uns cem metros da estação. - Mas... mas... mas...

Filipe deixou-o, mais os seus «mas», e largou a correr para a esquadra da Polícia, radiante por ter conseguido escapar. «Tinha feito tudo muito habilmente», pensou.

Entrou pela esquadra dentro, pregando um grande susto ao polícia que lá estava.

- Tenho uma coisa muito importante para relatar às autoridades - disse Filipe. - Quem é aqui o chefe?

- Eu sou o guarda daqui - respondeu o polícia. - Quem é o menino e que deseja? Pode relatar-me tudo.

- Precisava de telefonar - disse Filipe, pensando que seria bom pôr-se imediatamente em comunicação com Jaime. - É capaz de me pedir uma chamada?

- Espere, espere. Não se pode servir dos telefones da Polícia sem uma boa razão - disse o polícia, começando a pensar que este rapazinho coberto de palhas não estava bom da cabeça.

- Qual é o seu nome e morada?

- O meu nome é Filipe Mannering - respondeu Filipe impaciente. - Por favor não me prenda. Tenho coisas muito importantes a relatar.

O nome chamou logo a atenção do polícia.

- Filipe Mannering? Ora escute: o menino é uma das crianças desaparecidas? Já há dias que desapareceram quatro. O menino é alguma delas?

Tirou uma folha da gaveta e consultou-a. Depois, estendeu-a a Filipe. O rapazinho ficou admirado ao ver uma fotografia dele, de Maria da Luz, de João e Dina, sem esquecer a Didi, no cimo do jornal, e os nomes e descrições por baixo.

- Olhe, sou este - disse ele, apontando para a fotografia-, Filipe Mannering. E quero comunicar imediatamente com o Jaime Smugs, quero dizer, Cunningham. É um assunto muito importante.

O polícia, então, agiu rapidamente. Pegou no auscultador do telefone e pediu muito alto um número. A ligação foi imediatamente feita e viu-se que ele comunicava com alguém de importância.

- Veio aqui ter uma das crianças desaparecidas, Filipe Mannering. Diz que tem qualquer coisa a relatar ao inspector detective Cunningham. Sim, senhor. Com certeza.

Depois virou-se para Filipe.

- Os outros estão com o menino?

- Não, mas estão bem. Deixei-os bem - respondeu Filipe.

- Eu fugi e preciso que me ajudem a libertá-los. Posso falar com o Jaime Cunningham?

O polícia continuou a falar ao telefone.

- Os outros não estão com ele, mas estão bem. Mandem dizer isto mesmo à Sr.a Mannering. Ainda vai haver mais novidades. Quando chegará cá o inspector?

O polícia desligou e ficou a olhar para Filipe com ar satisfeito. Pensar que o empolgante caso das «Crianças desaparecidas» ia ser relatado na esquadrazinha dele!

- Onde estamos? - perguntou Filipe de repente. – Como se chama esta terra?

- Então não sabe? - perguntou o polícia, admirado. – E Gairdon, na costa nordeste da Escócia.

- Já calculava que devia ser por aí -respondeu Filipe. - Lamento nada poder contar-lhe, Sr. Guarda, mas parece-me que o melhor será esperar pelo Jaime.

Jaime veio... de avião! Aterrou no aeródromo mais próximo, meteu-se num carro da Polícia e chegou a Gairdon em duas horas. Estava tudo a correr bem. Filipe ouviu o carro e correu ao encontro dele.

- Jaime! Já sabia que havia de vir! Ó Jaime, tenho as novidades mais espantosas para contar. Nem sei por onde hei-de principiar.

 

         JAIME ENTRA EM ACÇÃO

Jaime saiu rapidamente do carro, agarrou Filipe pelo braço e examinou-o de perto, perguntando-lhe:

- Estás bem? Estão todos bem? A tua mãe tem andado de cabeça perdida com a aflição.

- Estou óptimo, Jaime. E os outros também. Mas fomos cair na aventura mais extraordinária que possa imaginar-se - respondeu Filipe. - Tenho de contar tudo depressa, porque é preciso agir imediatamente. Sabe...

- Entra aqui para a esquadra - disse Jaime. Filipe seguiu aquele homem corpulento, satisfeito por lhe ouvir a voz decidida e lhe ver o rosto inteligente e forte.

Depressa contou toda a história. Jaime ouviu tudo muito admirado, lançando de quando em quando uma pergunta rápida. Quando Filipe contou que tirara a estátua do caixote, se colocara no lugar dela e fora levado para a estação, desatou a rir à gargalhada.

- Vocês são uns garotos nunca vistos! Não sei que mais lhes resta fazer. Batem-me aos pontos! Mas, agora, fora de brincadeiras, isto tudo, Filipe, é espantoso. Os homens com quem vocês estão metidos são precisamente aqueles atrás de quem eu ando já há tempo. Não conseguíamos descobrir o que eles andavam a tramar, embora soubéssemos que não andavam a fazer coisa boa.

- Sério? - perguntou Filipe, admirado. - A propósito, Jaime, naquela noite em que era para irmos consigo e nos enganámos no avião, ouvimos tiros. Tinham alguma relação com isto?

- Pois tinham - respondeu Jaime, de sobrolho carregado.

- Acontece que se avistaram ali dois homens, que foram detidos. Mas conseguiram fugir, disparando uns tiros, foi isso que vocês ouviram. Um ia-me acertando numa perna. Sempre te digo que ficamos bem contentes por lhes deitarmos a mão e termos elementos para os condenar. São uns patifes, muito espertos, sul-americanos relacionados com antigos nazis que lhes revelaram o paradeiro de muitos dos tesouros perdidos ou escondidos na Europa. Não sei se sabes que muitos deles nunca chegaram a ser descobertos.

- Eu só queria que visse as nossas grutas do tesouro! - disse Filipe. - A propósito, está aqui um livro de notas que surripiei do casaco de um dos homens.

Estendeu-o a Jaime. Este folheou-o e ficou boquiaberto com o que viu.

- É espantoso! Formidável! Um código, o código que aqueles patifes usam e uma lista de todas as pessoas metidas nesta tramóia, com as moradas delas em código. Ó Filipe, mereces uma condecoração! Isto foi uma descoberta sensacional. Vamos poder caçar a quadrilha toda.

Filipe ficou muito contente por ver Jaime assim satisfeito. Jaime levantou-se e foi para o telefone. Fez algumas chamadas curtas e precisas. Filipe ouviu tudo mas não percebeu grande coisa. Só esperava que Jaime não tardasse muito a partir para salvar os outros. Com que ansiedade o deviam esperar.

Por fim Jaime pousou o auscultador.

- Vai o meu avião e mais outro, e vamos doze homens, contando comigo - anunciou ele. - Partimos daqui ao meio-dia.

- Eu também vou, não vou, Jaime? - perguntou Filipe ansiosamente.

- Parece-me que o melhor será ficares para ires ver a tua mãe - respondeu Jaime. - Além de que deve haver um bocado de barulho quando lá chegarmos.

Filipe olhou-o cheio de indignação:

- Jaime! Eles vão lá estar todos, o João e as raparigas, e a mim põe-me de parte? Já não se lembra que fui eu quem veio até cá...

- Pronto, pronto, pequeno - interrompeu Jaime. - Também vens. Sabe-se lá em que aventura te meterias se eu te deixasse cá ficar!

Filipe ficou logo mais animado. Tirou a Tixa da algibeira e apresentou-a a Jaime.

- Dê-me licença que lhe apresente a nossa bicha Tixa - disse ele, e a Tixa correu para um joelho de Jaime.

- Essa parece a didi - respondeu Jaime. - Bicha Tixa! Mas que nome para uma lagartixa.

- Aqui nada há que se coma, pois não? - perguntou Filipe, ansioso por saber se haveria alguma coisa que se pudesse comer numa esquadra da Polícia. - Tenho petiscado uns bocados de chocolate, mas mais nada.

- Eu estava agora mesmo a pensar que tinha de pedir ao nosso bom guarda daqui que nos arranjasse uma boa e rápida refeição - disse Jaime. - Podíamos também ir ao hotel, mas tu, de momento, não estás muito apresentável. Parece que te semearam palha dos pés à cabeça. Por isso comemos aqui um bom almoço e depois vamos ver se conseguimos pôr-te limpo e escovado.      

Enquanto comiam, levantou-se vento. Jaime espreitou para fora da janela e disse:

- Oxalá este vento abrande. Parece que vem aí uma tempestade.

Jaime acertara. Pouco antes da hora marcada para saírem no carro na direcção do aeroporto tocou o telefone. Jaime atendeu. Escutou gravemente a comunicação e depois dirigiu-se a Filipe.

- Está previsto um vendaval. Receio que não possamos ainda partir, Filipe. O tempo está muito mau para onde queremos ir.

- Que aborrecimento! - exclamou Filipe, desolado e inquieto. - Os outros vão ficar muito preocupados por esperarem tanto tempo.

- Pois vão - respondeu Jaime. - Mas o aeroporto não manda avisos destes sem razão. Parece que estão à espera dum daqueles furacões súbitos que obrigam um avião a voar completamente às cegas. Não pode dizer-se que seja muito divertido. Vamos ter de esperar um bocado.

Filipe ficou preocupado. Era horrível se aqueles homens voltassem ao vale primeiro do que ele e se apoderassem dos outros. E, por outro lado, gostava tanto que Jaime os apanhasse em flagrante!... Que entrasse antes deles e esperasse que viessem buscar o resto do tesouro.

- É verdade, Jaime, como sabe para onde há-de ir? - perguntou ele de repente. - Eu não sei que vale era, nem onde ficava. Só sei que é na Áustria. Foi o que disseram a Elsa e o velhinho.

- Está tudo ali indicado naquele lindo livrinho que tu me deste - respondeu Jaime - juntamente com outros lugares onde também poderão encontrar-se tesouros escondidos. Aquele livrinho veio revelar-me muita coisa que eu ansiava por saber, Filipe.

Jaime sacou dum mapa e mostrou a Filipe onde ficava o vale.

- Passou um mau bocado durante a guerra – explicou - e a única passagem que lhe dava acesso foi bombardeada. Ainda não a desobstruíram, que eu saiba. Havia uns planos para que a desobstrução se fizesse este ano. Um homem chamado Julius Muller, aquele a quem te mandaram dirigir, tem estado a tentar obter licença necessária para isso, para depois lá entrar.

- Gostava de saber o que aconteceu ao Otto - disse Filipe.

- O prisioneiro deles, lembra-se?

- A morada dele está também no livro - disse Jaime.

- Já pedi que me dessem notícias. Estou convencido de que não devem tardar.

Acertou. Naquela tarde o telefone tocou e informaram Jaime de que Otto Engler havia sido encontrado inconsciente à entrada dum hospital. Quase morrera com um ataque de coração mas agora estava melhorando lentamente, embora não pudesse ainda falar.

- Aqueles selvagens devem tê-lo torturado e obrigado a contar-lhes onde ficavam exactamente as grutas do tesouro

- esclareceu Filipe. - Depois voltaram a trazê-lo e abandonaram-no na rua, doente e atemorizado.

- É muito possível que fosse assim - concordou Jaime.

- Não iam estar com grandes escrúpulos.

O telefone voltou a tocar e Jaime atendeu novamente.

- O vendaval está a aumentar - disse ele a Filipe. - Temos de adiar a nossa viagem para amanhã. Pena é que a tua mãe esteja tão longe senão podíamos dar lá uma saltada para a ver. Tenho estado a tentar ligar para ela, mas ainda não consegui.

Filipe falou realmente com a mãe naquela tarde, embora por uns escassos três minutos. A Sr.a Mannering ficou tão comovida por lhe ouvir a voz que quase não conseguiu dizer palavra. Contudo Filipe tinha imenso que contar, mas teve de ficar a meio da narrativa porque cortaram a ligação.

O dia seguinte amanheceu belo e quente. O vento quase desaparecera. Parecia ter gasto a energia toda durante a noite que fora realmente tempestuosa e agitada. Filipe acordara uma ou duas vezes e ficara contente por não terem ido de viagem, porque estava uma verdadeira tempestade.

Dormira numa cama confortável, colocada numa cela da esquadra. Foi mais uma experiência nova.

- Foi a primeira vez que eu passei uma noite na prisão - disse ele a Jaime.

- E espero que seja a última - respondeu Jaime. - A prisão não é um lugar agradável, meu filho.

Trouxeram o carro de Jaime até à porta. Era grande, vistoso e rápido. Ele e Filipe entraram. Jaime pôs o motor a trabalhar e lá foram. Vinte, trinta, quarenta, sessenta, oitenta, cem e mais. Filipe estava encantado!

- Isto é que ele anda - comentou. - É engraçado como um carro parece muito mais rápido do que um avião quando se está lá dentro. Sente-se mais a velocidade.

Chegaram finalmente ao aeroporto. Lá estava o avião de Jaime com a hélice rodando rapidamente. Ao lado dele estava outro muito parecido. Onze homens, que esperavam ao pé deles, saudaram Jaime.    

- Entra para o meu avião - disse ele a Filipe. - Tenho de falar aqui com os meus homens.

Disse o que queria e depois entrou. Cinco dos homens entraram no avião de Smugs e seis no outro. Começaram a fazer muito barulho e o avião de Jaime levantou voo, logo seguido do outro. Voaram para o vento, deram uma volta, subiram mais e tomaram o rumo de Leste.

Filipe soltou um suspiro de alívio. Estavam começando a agir.

Em breve veria os companheiros. Que contentes eles iam ficar!

Passado algum tempo, disse Jaime a Filipe:

- Devemos estar a chegar ao vosso vale, Filipe. Espreita e vê se reconheces.

Filipe olhou lá para baixo e exclamou:

- Reconheço, pois. Lá está ele. E, olhe, estão lá em baixo quatro aviões! É ali que temos de aterrar! O melhor será acautelarem-se porque os homens podem estar por ali e disparar.

O avião de Jaime começou a descer. Entrou no vento e aterrou sem novidade. O outro seguiu-o.

Os motores pararam. Silêncio. Jaime esperou para ver se viria alguém a correr. Ninguém. Então, ele e os outros começaram a sair. Filipe seguiu-os.

Parecia não haver alguém por ali. Jaime ordenou aos seus homens que se espalhassem e passassem uma busca antes de irem mais além. Em breve um deles soltou uma exclamação :

- Olhem. Está aqui um, amarradinho, como um frango pronto a ser assado!

Era Firmino, meio morto de fome e de frio. Ficou tão contente por o libertarem que nem se mostrou muito surpreendido ao ver tanta gente estranha. Ajudado por um dos homens, foi cambaleando até Jaime.

- Põe-no na barraca e fecha-o lá à chave - ordenou Jaime.

- Quem o teria amarrado assim, Filipe?

- Não faço ideia - respondeu Filipe, intrigado. - Olhe, Jaime, estão aqui duas das nossas malas que caíram da árvore. É curioso!

- Temos ainda de contar com sete homens - disse Jaime.

- Pois bem, o melhor é dirigirmo-nos às grutas do tesouro. Cuidado, rapazes, pode haver uma emboscada. Não queremos que disparem contra nós sem estarmos prevenidos.

Partiram. Filipe foi indicando o caminho a Jaime. Este ficou muito admirado com o vale, as grandes montanhas, as ruínas queimadas.

Parecia impossível que os quatro pequenos tivessem vagueado por ali envolvidos em aventuras tão emocionantes.

- Está a ouvir a queda de água? - perguntou Filipe ansiosamente, passado um bocado. - Eu já a ouço. Estamos perto.

Os homens ficaram admirados com o barulho da queda de água e boquiabertos ao vê-la. Não disseram grande coisa porque eram homens duros, dificilmente surpreendidos com o que quer que fosse. Mas ficaram um bocado a olhar.

- Agora, cuidado. Estamos a aproximar-nos da entrada da gruta - disse Filipe por fim. - Acha que vá eu à frente? Parece-me que será melhor.

 

         UM FINAL EMOCIONANTE

João, Dina, Maria da Luz, a Didi e o casal dos velhinhos estavam ainda na gruta das estrelas. Tinham precisamente acabado de almoçar e estavam sem saber que fazer. Que pena os velhinhos não quererem sair para a montanha! Estava um dia tão lindo!

- Podíamos bem ir apanhar um bocadinho de Sol - disse Maria da Luz, desejosa de o fazer. - Nada há a recear dos homens. Não conseguem sair dali.

Mal disse isto João agarrou-a por um braço, fazendo-a dar um salto: - Caluda! Ouço vozes!

Puseram-se todos a escutar, cheios de medo. Era verdade. Ouviam-se vozes vindas do túnel que ia da gruta das estalactites até à gruta onde eles estavam.

- Mais homens! Depressa, escondamo-nos! - disse Dina, ardentemente. Tomados de pânico, os pequenos começaram a correr para o outro extremo da gruta, aos tropeções, fazendo ecoar os passos por todo o subterrâneo.

- Alto! - ordenou uma voz firme, e um grande vulto entrou na gruta e parou.

- Quietos! Mãos no ar!

Maria da Luz reconheceu a voz. Era-lhe familiar.

- Jaime! Jaime! - gritou. - Ó Jaime, já pensávamos que

nunca mais vinha!

Atravessou a gruta numa corrida e lançou-se nos braços de Jaime, que ficara muito admirado.

João e Dina seguiram-na, gritando de alegria. Maria da Luz avistou Filipe e lançou-se-lhe também nos braços.

- Ó Filipe! Filipe querido, que conseguiste escapar e ir buscar o Jaime!

Filipe ficou admirado por ver os pequenos e os velhotes ali. Deixara-os nas grutas do tesouro. Como teriam conseguido sair? E onde estariam os homens?

Os velhinhos foram-se aproximando devagar, meio assustados por verem tanta gente à luz de potentes lanternas.

Jaime foi amável com eles.

- Pobres toupeirinhas assustadas - disse ele para Filipe.

- Hão-de ser bem tratados e recompensados. Mas onde estão esses homens?

- Tranquei-os lá dentro - disse João muito orgulhoso.

- Estão presos nas grutas do tesouro.

Isto é que Filipe não sabia, nem tão-pouco Jaime. Interrogaram João ansiosamente e ele contou-lhes como a velhinha lhes mostrara o buraco por trás do quadro e como eles haviam conseguido fugir por ele até à gruta do eco e dali até à do feto. Como João fora depois à cabana dos homens e encontrara Firmino e o amarrara e, finalmente, como tivera aquela ideia brilhante e viera a correr trancar a porta aos homens.

- Estou a ver que trabalhaste bem! - comentou Jaime.

- Mas não vai ser tarefa fácil tirá-los das grutas. Estou a pensar se será possível apanhá-los de surpresa pelas costas. Entrávamos pelo buraco por trás do quadro e pregávamos-lhes um susto.

- Isso! - exclamou João. - É claro que é possível. Deixava aqui um ou dois dos seus polícias ao pé da porta trancada para atrair a atenção dos sete homens e, enquanto eles gritam um para o outro, os restantes podem ir pelo outro lado e apanhá-los de surpresa.

- Parece-me um bom plano - respondeu Jaime, dando logo umas ordens. Depois virou-se para Filipe e disse:

- Vou deixar aqui dois agentes. Daqui a meia hora leva-los até à porta para eles atraírem a atenção dos homens. Tu, João, vens comigo e com os outros mostrar o caminho para a gruta do feto, e depois pela gruta do eco até à passagem que vai dar ao buraco por trás do quadro.

O grupinho partiu. Os dois homens que ficaram esperaram meia hora e, depois, foram com Filipe até à porta trancada, ao fundo das escadas de caracol. Bateram à porta e gritaram.

De dentro respondeu-lhes uma gritaria:

Quem está aí? Deixem-nos sair! Abram a porta!

Os homens do lado de dentro batiam à porta e os de fora faziam o mesmo. Era uma confusão de barulho. Estavam ali todos sete, discutindo, batendo na porta, gritando que os libertassem e, de uma maneira geral, perdendo a cabeça.

Entretanto, Jaime, João e os outros homens tinham ido para a gruta do feto, entrado e descoberto, desolados, que tinham de arrastar-se pelo buraco em forma de cano que ficava lá atrás. Um deles ia ficando encravado.

- Vocês, miúdos, sempre se metem em belos apertos - disse Jaime, vindo a sair na gruta do eco. - Estou cheio de calor!

«Calor, calor, calor, calor!», repetiu o eco imediatamente. Jaime deu um salto.

- Que é isto?

«Isto. Isto!», respondeu o eco, alarmante. João desatou a rir e disse:

- É o eco.

A Didi pôs-se a gritar e depois apitou como um comboio.

O barulho era ensurdecedor.

- A Didi faz sempre isto aqui - afirmou João, indo à frente para mostrar o caminho. «Cala-te, Didi. És má!»

Pouco depois já eles seguiam pela passagem que ia dar à queda de água. Mas antes disso chegaram ao buraco no tecto.

- Traz alguma corda, Jaime? - perguntou João. - Temos de subir por aqui. A minha corda ficou a amarrar o Firmino. Se me puser aos ombros e me ajudar a subir, eu entro pelo buraco, prendo a corda lá em cima e faço-a descer.

Isto depressa se fez. Um após outro, os homens entraram pelo buraco, pensando que nunca na vida tinham trepado e rastejado tanto.

Olharam para João com admiração. Isto é que era um rapaz!

João chegou ao buraco que ficava por trás do quadro e pôs-se à escuta. Nada. Os homens estavam todos ao pé da porta a gritar, a discutir e a dar pontapés.

João empurrou o quadro e este caiu. O quarto estava deserto. O pequeno saltou para dentro do quarto e os outros seguiram-no, um a um.

- - Espero que não haja mais disto - disse um dos homens a Jaime. - O senhor precisa de homens mais magros para tarefas destas.

- Agora era melhor avançarem com cuidado - disse João. - Estamos perto das grutas do tesouro. Atravessamos três grutas e depois chegamos à das imagens, onde fica a porta trancada.

- Caluda, agora - ordenou Jaime e, caminhando silenciosamente com sapatos de sola de borracha, os homens avançaram lentamente de revólveres em punho.

Atravessaram a gruta do ouro, a dos livros e a dos quadros. A certa altura, João pousou a mão no braço de Jaime porque ouvira qualquer coisa.

- São os homens - disse ele. - Escute, pegaram em rochas ou coisa parecida e estão a martelar na porta. Pelo barulho parece-me que vão conseguir arrombá-la.

Jaime saiu do túnel e entrou na gruta das imagens. Apesar de já prevenido por Filipe, não pôde deixar de recuar um pouco ao vê-las àquela ténue luz esverdeada. Os polícias puseram-se atrás.

Ao fundo estavam os sete homens. Tinham encontrado uma grande rocha e estavam tentando deitar a porta abaixo, batendo nela com toda a força.

- É esta a melhor altura - segredou Jaime. - Têm as mãos ocupadas. Não se vê entre eles um único revólver. Vamos!

Os homens avançaram rapidamente por trás de José e dos outros e uma voz áspera e firme ordenou:

- Mãos ao ar! Estão apanhados!

Todos os homens tinham as costas voltadas para Jaime. Ao ouvirem a voz dele deram um salto e puseram imediatamente as mãos na cabeça.

Então, José voltou-se, sempre de mãos na cabeça. Mirou o grupo de homens sisudos que tinha à sua frente e perguntou por entre os dentes:

- Como chegaram vocês aqui? Que outra entrada há para cá? Quem nos trancou?

- Agora nada se responde - ordenou Jaime bruscamente, e gritou para os dois homens que estavam lá fora.

- Eh! Raul! Jorge! Destranquem a porta. Já os apanhámos.

A porta foi destrancada. Abriu-se e apareceram Raul e Jorge muito risonhos.

- Representámos bem - disse Jorge. - Eu ainda me diverti. João também apareceu. As raparigas tinham recebido ordem

de se afastarem até os homens serem capturados. Por isso, estavam na gruta das estrelas com o casal de velhinhos, esperando impacientemente.

Jaime contou os homens.

- Estão aqui os sete. Óptimo. E o oitavo também já nós apanhámos. Raul, leva estes indivíduos para os aviões. Dispara ao menor sinal de tumulto. Eu fico aqui para ver isto. Parece-me muito interessante.

Os homens lá foram, algemados, praguejando e tropeçando pelo caminho. João ficou a vê-los ir, radiante por pensar que fora ele quem tivera a ideia de os trancar. Jaime dera-lhe uma palmada nas costas pelo que ele fizera.

Depois dos homens terem atravessado a gruta das estrelas, as raparigas vieram a correr juntar-se a João, Filipe e Jaime. Mostraram tudo a Jaime, que ficou muito admirado e até soltou um assobio ao ver tantos tesouros.

- Estão aqui fortunas - disse ele. - Não vai ser tarefa fácil descobrir de onde vieram todas estas coisas para as tornar a mandar para lá. Talvez Julius Muller nos ajude.

- E os velhinhos - disse Maria da Luz muito excitada. - Pelo menos sabem a história da maior parte das imagens.

Fizeram com que o velhinho e a mulher se juntassem a eles e fossem também levados para os aviões. Agora já não faziam qualquer objecção para não saírem. Pelos vistos, pensavam que Jaime era um Grande-Homem-a-Quem-se-Devia-Obediência. Curvavam-se perante ele sempre que ele lhes falava.

- Temos de os levar connosco para os interrogarmos - observou Jaime. - Mas, logo que for possível, mandamo-los outra vez para a aldeia onde vive esse bom homem, o Julius Muller. É muito possível que ele se prontifique a tratar deles.

Todos se acomodaram nos aviões, que eram seis ao todo. Em três deles seguiam os oito prisioneiros com os guardas. Em dois outros os pilotos e os velhinhos. No avião de Jaime iam os pequenos.

O avião levantou voo e os pequenos olharam lá para baixo, para aquele estranho vale, pela última vez.

- Olhem bem para ele, olhem - disse Jaime. - Vai aparecer em todos os jornais: o Vale do Tesouro.

- Não, Jaime. A Aventura no Vale! - disse João.-É assim que nós lhe havemos sempre de chamar.

- Ainda bem que nada aconteceu à Marta - disse de repente Maria da Luz. - Gostava tanto dela. Era mesmo simpática.

- Céus! Quem é a Marta! - perguntou Jaime assustado. - Pensei que a senhora se chamava Elsa. Não me digam que a Marta é alguém que nós deixámos lá por esquecimento!

- Não, Jaime. A Marta vai ao colo da Elsa num dos outros aviões. Até é capaz de lá pôr algum ovo – respondeu Maria da Luz.

Jaime ficou ainda mais admirado, mas Maria da Luz explicou:

- É uma galinha. Ficou nas grutas com os homens e nós estávamos com medo que eles a matassem. Mas não. Ela acocorou-se debaixo da mesa e saiu de lá a cacarejar quando nós a fomos buscar.

Nessa altura devia o Jaime estar ocupado a ver o ouro.

- Deve ter-me passado despercebida, deve - respondeu Jaime. - E pensar que ainda não travei conhecimento com uma dama desta emocionante aventura. Que pena!

«Que pena, que pena, que pena!», fez logo a Didi. «Có-có-có-có-có! Lá se vai a Marta por água abaixo!»

 

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

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