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A BANDEIRA DOS BORGIAS / Rafael Sabatine
A BANDEIRA DOS BORGIAS / Rafael Sabatine

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A BANDEIRA DOS BORGIAS

 

Três grandes momentos na vida, ou na história, do intrépido César Borgia. A sua volta fervilham as traições, as emboscadas, os actos bélicos, ou não, para lhe fazerem cair à cabeça. São muitos os amigos, quem sabe, mais os inimigos. Sejam mais próximos, sejam mais afastados; de dentro ou de fora, eles estão atentos, não descansam. Mas, por certo, ao duque toscano não falta engenho.

Mas nem sempre a sua força, a sua astúcia são suficientes para eliminar os perigos. Há, porventura, alguém que consegue opor astúcia igual, engenho mais audaz e perfeito. E, travando este combate: astúcia igual a astúcia, engenho igual a engenho, temos uma mulher.

 

URBINIANO

Na escolha dos ministros para um príncipe, Nicolau Maquiavel vê três categorias na inteligência humana. Pertencem à primeira os que por si próprios compreendem as coisas, graças aos seus dons naturais; à segunda, os que têm, pelo menos, capacidade para discernir o que os outros compreendem e à terceira, os que nem compreendem por si próprios, nem por explicações dos outros. Os primeiros são raros e excelentes, pois que são a classe criadora e produtiva; os segundos têm merecimento, visto que, se não são realmente produtivos, são, pelo menos, reprodutivos; os terceiros são completamente destituídos de valor porque não sendo nem uma coisa nem outra, limitam-se a simples parasitas que para viver fazem dos outros presa.

Há, porém, ainda uma quarta classe que parece ter escapado ao erudito e perspicaz florentino; uma classe que reúne em si os atributos das outras três. Nesta incluiríamos o famoso Corvino Trismegito, o mais estranho misto de força criadora e estupidez, duplicidade e simplicidade, impostura e crueldade, astúcia e inocência, engenho e ingenuidade, como podereis verificar.

Digamos, para começar, que Corvino Trismegito tinha dominado - como o seu próprio nome indica - todos os segredos da Natureza, da Medicina e da Magia; de tal modo que a sua fama se espraiara pela Itália, como as ondulações da água.

Sabia, por exemplo, que o óleo dos escorpiões apanhados ao Sol durante o período em que esse astro se encontra em Escorpião - e esta era uma condição indispensável - se revelava remédio infalível contra a peste. Sabia, mais, que, para curar a dilatação do baço, o processo seguro consistia em agarrar no baço duma cabra, aplicá-lo sobre a parte afectada durante vinte e quatro horas e depois expô-lo ao Sol; o baço do doente contrair-se-ia, curando-se, na medida em que o baço da cabra secava e mirrava. Sabia, finalmente, que as cinzas da pele do lobo não- falhavam como remédio para a calvície, e que para estancar uma hemorragia nasal nada rivalizava com uma infusão de casca de oliveira, desde que esta fosse tirada de uma árvore velha, se o doente fosse velho.

Sabia que serpentes cozidas em vinho e comidas depois curavam um leproso, transmitindo-lhe a sua faculdade de mudar de pele.

Era também profundamente versado em venenos e encantamentos e não fazia segredo, de tal modo era franco e sincero, do seu poder de evocar os espíritos e dar vida aos mortos, quando necessário. Descobrira um elixir de longa vida que o mantinha jovem e vigoroso com a prodigiosa idade de dois mil anos que afirmava ter atingido, e outro elixir chamado «Agua Celeste», destilação muito complexa e subtil, que reduziria de cinquenta anos a idade dum velho, restituindo-lhe a juventude perdida.

Tudo isto e muito mais estava no poder de Corvino Tris-megito, ainda que certas pessoas de pensamento, tenham procurado demonstrar que o seu saber era ilimitado, na medida em que abusava da credulidade dos seus contemporâneos e os lograva. E também afirmaram, embora os seus partidários atribuíssem ao despeito e inveja que os grandes sempre provocam nos que lhes são inferiores, que o seu verdadeiro nome era simplesmente Pedro Corvo, nome herdado da mãe, que tinha uma taberna em Forli e não sabia precisamente quem era o pai dele. E, escarnecendo, acrescentaram que a sua jactância de ter vivido dois mil anos era uma basófia vã, pois ainda estavam vivos muitos dos que o tinham conhecido quando era um garotão sujo e despenteado, chafurdando nos covis da sua terra.

Fosse como fosse, era inegável que, alcançada uma grande e merecida fama, se tornara rico na casa humilde de Urbimo, aquela Atenas italiana, berço da Arte e do Saber. E, enriquecer, é, ao fim de contas, para muitos, o único sinal exterior dum íntimo, a única prova irrefutável do valor- Pelo menos para esses, Corvino tinha valor.

A sua casa ficava por detrás da capela de São Giovanni, numa rua estreita de prédios a cair, por forma que, encostados uns aos outros, bastaria que fossem um pouco mais altos para formarem um arco gótico, não falando na pequena nesga de céu que estava à vista.

Era um bairro da cidade que se harmonizava admiravelmente com um homem de hábitos diligentes de mágico. As ruas mais largas de Urbino tremiam sob a marcha das multidões armadas, no tempo em que César Bórgia, duque de Valentinois e Romagna, era o senhor da cidade, e o pacífico e erudito Duque Guidobaldo um proscrito fugitivo. Jamais os perturbadores da paz desciam àquela acanhada, sórdida e mal pavimentada calçada de prédios imundos. Deste modo, deixavam Corvino Trismegisto prosseguir sossegadamente os seus estudos, preparar os seus pós e destilar os seus maravilhosos elixires. De todas as regiões da Itália vinha gente pedir a sua ajuda e os seus conselhos. Também à sua casa se dirigiu, acompanhada de dois lacaios, Bianca de Fioravanti, às primeiras horas duma deliciosa noite de Junho, aproximadamente uma quinzena após a ocupação de Urbino por César Bórgia. Bianca era filha daquele famoso Fioravanti, senhor de São Leo, a única fortaleza em território de Guidobaldo, que, graças à sua quase inexpugnável situação, ainda denodadamente sustentava a sua causa e continuava desafiando o irresistível duque de Valentinois.

O Céu tinha dotado admiràvelmente a «Madonna» Bianca. Era rica, jovem e possuía um grande nome; era cultta e a sua beleza tinha sido já tema de algumas canções. Porém, apesar de todos estes dons, faltava-lhe ainda qualquer coisa sem o que tudo o resto não possuía o menor valor; qualquer coisa que a obrigou a ir de noite, um pouco a medo, como suplicante, àquela casa horrível de Corvino. Para não se tornar tão notada, foi a pé, com o rosto coberto com uma máscara, e sem outra companhia a não ser a de dois lacaios. Quando entraram na rua estreita, «Madonna» Bianca ordenou a um deles que apagasse a tocha que levava. Depois, na escuridão, caminhando quase às apalpadelas e tropeçando nas pedras toscas chegaram à porta do mágico.

 - Bate Tadeu - ordenou a um dos criados. A estas palavras, operou-se o primeiro daqueles milagres que haviam de convencer «Madonna» Bianca da incontestável faculdade sobrenatural dos poderes de que dispunha Corvino. Precisamente quando o criado dava o primeiro passo em direcção à porta, esta abriu-se de súbito, aparentemente por si só, e apareceu um nubiano ricamente vestido de branco, empunhando uma lanterna. Levantou-a, de maneira que a luz incidiu sobre a «Madonna» e os seus criados. Como se compreende nenhum milagre existe no caso. O milagre consistiu, sim noutra aparição. No pórtico e como se se tivesse repentinamente materializado, surgindo das trevas, via-se um vulto negro, envolto da cabeça até aos pés num manto negro, todo o rosto oculto igualmente por uma máscara negra. O vulto fez uma vénia, e, com um gesto convidou a «Madonna» a entrar. Ela recuou atemorizada. Tinha ido a um local de que contavam maravilhas, e portanto esperava naturalmente encontrar maravilhas, mas de modo algum poderia achar natural aquela aparição, e acreditar que pudesse estar ali mais alguém à procura de Corvino, alguém que viesse à sua frente, e, para quem a porta se tinha aberto e que, sendo um cavalheiro cortês, respeitava o seu sexo e a sua manifesta dignidade. Benzeu-se devotamente e, verificando que aquele gesto não fizera desaparecer o negro fâmulo - assim ela o considerava - concluiu que a sua origem não podia ser demoníaca; ganhou coragem e entrou, sentindo vergar-se-lhe os joelhos ao passar a seu lado.

O suposto fâmulo seguiu atrás dela, e após os lacaios, um pouco intimidados, muito embora fossem homens escolhidos pela sua robustez e ânimo. A escuridão, o misterioso cavalheiro negro, o nubiano, todo ele dentes e olhos, haviam provocado uma Impressão desagradável. O nubiano fechou a porta e trancou-a, sentindo-se o ruído agudo dos gonzos. Depois, fitou-os, inquirindo que e quem pretendiam, Foi a dama que respondeu, tirando a máscara, para falar:

 - Sou Bianca de Fioravanti e procuro o mui sábio senhor Corvino Trismegito.

O nubiano curvou-se silenciosamente numa vénia e, depois de convidar a seguí-lo, encaminhou-se pelo longo corredor de pedra, abanando a lanterna à medida que caminhava, projectando o seu dispo de luz amarela sobre as paredes sujas, dum lado para o outro. Chegaram a uma porta de madeira de carvalho, ornada de pregos de metal reluzente e por ela entraram numa antecâmara vazia. Uma esteira de juncos secos estava estendida no chão, um banco de madeira encostado à parede, e sobre uma pesada mesa de quatro pés via-se uma lamparina cuja chama vacilante, cor de ferrugem, terminando num penacho de fumo negro, dava um pouco de claridade e espalhava mau cheiro.

Com a mão morena o guia indicou o banco, dizendo:

 - Os lacaios podem esperar aqui por Sua Excelência. Bianca assentiu com um movimento de cabeça e fez sinal

aos criados para esperarem. Obedeceram-lhe ainda que com visível relutância. Então o nubiano abriu uma nova porta, no fundo da sala. Puxou para o lado um pesado reposteiro, cujos elos produziram um ruído inesperado ao chocarem entre si, mostrando o que, à primeira vista, não parecia mais que uma brecha escura.

 - O temido Corvino Trismegito pede-vos que entreis - comunicou.

Apesar de toda a sua coragem, «Madonna» Bianca recuou. Depois, como os olhos se habituassem à escuridão começou a distinguir os objectos e os móveis, percebendo que se tratava dum outro aposento. Recobrou, então, o ânimo, recordou-se do grande favor que esperava obter das mãos do mágico, e decidiu-se a atravessar o patamar e entrar na misteriosa câmara.

Atrás dela, seguindo-a bem de perto, sempre silencioso, entrou o cavalheiro da máscara. Julgando-o componente do pessoal do mágico, e que a sua companhia constituía uma condição necessária, não se opôs a que a seguisse; por seu lado o nubiano, supondo pela máscara e riqueza da capa, que pertencia à comitiva da dama, nem sequer pensou em impedir-lhe a entrada. Entraram juntos naquele aposento fracamente iluminado. Novamente os reposteiros foram corridos por detrás deles e a porta fechou-se com um ruído sepulcral. A «Madon-na» olhou à sua volta, com a respiração suspensa e sentindo o coração bater descompassadamente. Uma réstea de luz que atravessava o tecto, vinda de fonte misteriosa, permitia-lhe perceber um pouco o que a rodeava; reparou em três ou quatro caldeiras, amplas e fantasticamente esculpidas; logo à sua frente, uma mesa de madeira lisa encostada à parede, apinhada de estranhos recipientes de vidro e metal que brilhavam batidos pelos reflexos da ténue luz. Não se viam janelas. Do tecto até ao chão pendiam tapeçarias negras; o ambiente era frio e silencioso como um túmulo., não existindo o menor indício da presença do mágico-

O aspecto temeroso que lhe inspirava aquele local aumentava o seu pavor, perturbando-lhe o cérebro e fazendo trabalhar a sua imaginação duma forma mórbida. Sentou-se aguardando a entrada do temível Corvino. E então operou-se o segundo milagre. Olhando, por acaso, em redor, procurando o que ela julgava ser um negro que a acompanhara, descobriu, com grande surpresa, que ele tinha desaparecido. Tão misteriosamente como a princípio tinha tomado forma no pórtico, perante os seus olhos assim se havia agora dissolvido e fundido na escuridão que tudo envolvia.

Cobrou, então, alento e como se fosse preciso mais alguma coisa para dispersar o resto da serenidade que ainda possuía, uma grande coluna de fogo surgiu subitamente no meio do quarto, estonteando-a momentaneamente e arrancando-lhe um grito de medo. Depois, da mesma forma, como surgira, desapareceu, deixando no aposento um pronunciado cheiro a enxofre. Logo, uma voz forte, funda e extraordinariamente calma, soou aos seus ouvidos.

 - Não tenhais medo, Bianca de Fioravanti. Estou aqui.

Que quereis de mim?

A pobre senhora, aterrada, olhou em frente na direcção da voz e presenciou o terceiro milagre, Ali onde só havia escuridão impenetrável, onde, de facto, lhe parecera que a sala terminava numa parede, viu surgir gradualmente, peramte os seus olhos, um homem e um cenário que iam tomando forma. Não lhe ocorreu que essa aparição fosse apenas o resultado do facto dos seus olhos haverem recobrado lentamente o sentido claro da visão e que, portanto, tinha a impressão de estar observando uma materialização gradual. Em breve, porém, viu perfeitamente e com a maior nitidez.

Pôde contemplar uma pequena mesa ou púlpito sobre o qual estava um gigantesco livro aberto, com as folhas amarelecidas pelo tempo, cujos fechos de prata, enormes, brilhavam à luz dos três bicos dum candelabro de bronze, de pé alto, modelo grego, antigo, no qual ardia qualquer óleo aromático. Aos pés do candelabro, uma caveira humana arreganhava horrivelmente os dentes. À direita da mesa estava uma tripeça sustentando um braseiro onde reluzia um montão de lenha com um clarão vermelho. Numa cadeira de espaldar encontrava-se sentado à mesa um homem de toga encarnada, com a cabeça coberta por um chapéu parecido com um pires voltado. Tinha um rosto magro e esquálido, nariz e malares salientes, testa alta e estreita, barba ruiva bifurcada, e os olhos, fixos sobre a visitante, reflectiam centelhas de perspicácia que brilhavam com uma agudeza misteriosa.

Atrás dele, no fundo, estava um crisol e um alambique, e sobre os mesmos, uma fila de prateleiras carregadas de frascos, cofres e retortas; de tudo isto ela teve uma percepção passageira e fraca. Toda a atenção de que podia dispor estava concentrada no homem.

Parecia viver como num sonho, tal a sensação que experimentava pelas maravilhas que vinha presenceando.

 - Falai, «Madonna» - disse-lhe calmamente o mágico. - Estou aqui para realizar os vossos desejos.

Era encorajador, e sê-lo-ia ainda mais se ele tivesse dado qualquer explicação quanto à maneira extraordinária como entrara.

 Ainda dominada pelo medo, disse, finalmente, com voz vacilante:

 - Preciso de vosso auxílio; preciso dele aflitivamente!

 - É vosso, «Madonna», até onde chegar a minha vasta ciência.

 - Sois... sois assim tão sábio? - perguntou"

. - O oceano infinito - afirmou ele modestamente - não é tão vasto nem tão profundo como os meus conhecimentos. De que auxílio necessitais?

Agora, ela esforçava-se por dominar-se, e se ainda vacilava e hesitava era simplesmente porque aquilo que tanto ambicionava não era coisa de que uma donzela falasse abertamente. Por isso, começou gradualmente a referir-se ao assunto.

 - Possuis o segredo de grandes remédios - disse - de elixires que exercem efeito não só no corpo, mas também, quando é necessário, no espírito?

 - «Madonna» - respondeu ele sobriamente - posso impedir a decadência da velhice ou compelir o espírito dos mortos a regressarem ao corpo dando-lhe novamente a vida. E já que é lei da Natureza que o maior contenha o menor, esta minha resposta vos bastará.

 - Mas... podereis?... - Bianca hesitou. Depois, levada pela necessidade, abandonou os seus últimos receios e entrando abertamente no assunto, perguntou, aproximando-se dele. - Podeis mandar no amor? Podeis fazer que os frios se apaixonem e os indiferentes vibrem de desejos? Podeis... podeis fazer isto?

Ele examinou-a demoradamente.

- É então isso que precisais? - inquiriu ele, mal podendo compreender como houvesse alguém que se mostrasse indiferente a uma jovem tão bela. - E é para vós ou para outra pessoa?

 - Para mim - respondeu em voz baixa.

Ele sentou-se e continuou a fitar a pálida beleza de Bianca; a testa baixa, as negras e lustrosas tranças rodeadas por uma rede dourada, os olhos maravilhosos, a boca sedutora, as formas do corpo, majestosa e graciosa.

 - Tenho magia suficiente para conseguir o que quereis - disse lentamente - embora não possuindo o mesmo vate dos dons com que a Natureza vos dotou. Haverá algum homem que resista a tantos encantos? Pode aquele para quem necessitais do meu auxílio resistir aos vossos lábios e aos vossos olhos?

 - Ah! Ele não pensa em tais coisas! O seu pensamento está sempre ocupado na guerra e nos armamentos. A sua única amante é a ambição.

 - O nome dele? - perguntou imperiosamente. - Dizei-me o seu nome e a sua condição.

Ela baixou os olhos. Um leve rubor tingiu-lhe as faces. Hesitou, levada por um receio palpitante. Contudo não ousou negar-lhe o que ele pretendia saber, temendo que, aborrecido pela recusa, lhe negasse o auxílio que precisava.

 - O seu nome - disse por fim - é Lorenzo Castrocaro, um cavaleiro de Urbino, um «condottiere» que luta sob a bandeira do duque de Valentinois.

 - Um «condottiere» que não admira a vossa beleza, os vossos quentes encantos, «Madonna»? - gritou Corvino. - Um ser assim, anómalo, escárnio da natureza, requer um poderoso

remédio.

 - As oportunidades nunca me serviram de alguma coisa - explicou ela, como que a defender-se. - De facto, as circunstâncias estão contra nós. Meu pai é o castelão de San Leo, fiel ao duque Guidobaldo, pelo que é natural que poucas vezes tenhamos ocasião de ver aquele que serve o inimigo, e, por isso, receio que ele parta indiferente, a não ser que eu obtenha aquilo que, através de todos os obstáculos, o prenderá a mim.

Corvino considerou o problema por momentos, depois suspirou.

 - Vejo grandes dificuldades a vencer, comentou o astuto mágico.

 - Mas podeis ajudar-me a vencê-las?

Os seus olhos reluzentes fixaram-se na dama.

 - Há-de ficar caro - replicou.

 - Que importa? Ou pensais que me preocupo com o preço, num caso destes?

O feiticeiro afastou-se, franziu o sobrolho envolvendo-se num ar de importância.

 - Vede se me compreendeis - disse um pouco asperamente - isto não é uma loja onde se comprem e vendam coisas. A minha ciência e a minha magia estão ao serviço da Humanidade, e não as vendo. Dou-as livre e gratuitamente a quem as necessita. Mas se dou muito, se dou tanto, não é de esperar que dê mais. As drogas que reuni, de todos os cantos do Mundo, são, por vezes de alto preço. Esse preço depende de vós, visto que o remédio é para vosso uso.

 - Tem então tal remédio! - exclamou ela batendo as mãos, sentindo subitamente renascer dentro dela a esperança.

Ele assentiu.

 - Filtros de amor são coisa vulgar e em geral de preparação fácil. Qualquer camponesa que se entregue a bruxedos e a enganar os tolos pode fazer um. Mas, no seu caso, havendo tantos obstáculos a transpor, é preciso uma droga, de poder excepcional. Tenho-a, embora em pequena quantidade, pois nada há no Mundo mais difícil de obter. O seu principal componente é um extracto do cérebro duma ave rara avis rarissima - de África.

Com dedos febris, ela tirou do cinto uma pesada bolsa e espalhou sobre a mesa o seu conteúdo. E assim ficaram juntos da caveira os dois grandes senhores da Vida - A Morte e o Ouro.

 - Cinquenta ducados! - exclamou arquejando, excitada. - Chega?

 - Talvez - disse ele desdenhoso. - Se for preciso mais, eu próprio juntarei o que faltar. E afastou a bolsa para o lado, pretendendo demonstrar a sua insignificância para o caso, num gesto de escárnio, em que os dedos traduziam eloquentemente o desprezo pelo lucro.

 - Breve vos remeterei uma quantia maior - disse a dama. Corvino, porém, rejeitou o oferecimento. Ergueu-se, mostrando o largo cinto negro que lhe prendia à cintura a veste vermelha, todo desenhado com os sanais do Zodíaco trabalhados a ouro. Dirigiu-se às prateleiras, e retirou duma um cofre de bronze de certo volume. Voltou com ele, colocou-o sobre a mesa, abriu-o e tirou um pequeno frasco e um pequeno tubo de vidro, tapado e selado.

Não continha mais que um fio de líquido cor de âmbar escuro, doze gotas, quando muito. Levantou-o, colocando-o de forma que a luz, incidindo sobre ele, dava a impressão de conter ouro.

 - Este - explicou - é o meu elixir áureo, o meu elixir de ouro, uma poção rara e subtil, suficiente para aquilo que precisais. Estendeu-lho bruscamente.

Com um pequeno grito de gratidão e alegria, ela estendeu as mãos para agarrar o frasco; mas quando quase o alcançava, ele retirou-o e deteve-a com um gesto.

 - Ouvi - disse fitando-a intensamente. Tendes que juntar a este elixir de ouro, duas gotas do vosso sangue, nem mais nem menos; depois fazei que Lorenzo o beba no vinho; executai isto enquanto a Lua estiver em quarto crescente e à medida que a Lua aumentar e crescer, crescerá a sua paixão e apoderar-se-á dele. E antes que a Lua de novo comece a minguar, esse Lorenzo Castrocaro será vosso, ainda que entre os dois esteja o Mundo inteiro, tornando-se vosso

humilde escravo. A ocasião presente é propícia. Ide e sede

feliz!

Ela pegou no frasco que ele então lhe deu e esboçou uns agradecimentos. Corvino, porém, com um gesto imponente e um olhar soberano conteve as suas expressões de gratidão. Tocou um pequeno gongo que tinha a seu lado.

Ouviu-se o ruído duma porta a abrir-se; os reposteiros afastaram-se obrigando a guinchar os elos. O nubiano vestido de branco apareceu no limiar e, fazendo uma saudação, esperou que a dama se dignasse sair para acompanhá-la.

«Madonna» Biamca fez uma vénia ao grande mágico e partiu intimidada com a sua atitude majestosa. Já tinha atravessado a porta e o nubiano permanecia curvado aguardando o homem que a acompanhara. Mas Corvino, desconhecendo o motivo que levava o seu escravo a permanecer ali, mandou-o rudemente embora; os reposteiros correram e a porta fechou-se.

Achando-se só, o feiticeiro despiu o manto de temível dignidade, descendo das alturas da indiferença inerente a quem é senhor dos tempos, para se interessar humanamente pela bolsa que lhe deixara a «Madonna» Bianca. Abrindo-a, despejou o avultado conteúdo sobre a larga página do seu livro de magia. Espalhou aquela massa brilhante e afagou-a carinhosamente, abafando o riso na barba ruiva. De súbito, porém, ao seu riso respondeu uma gargalhada breve, abrupta, desdenhosa e sinistra.

Soltando uma exclamação de sobressalto Corvino estendeu as mãos sobre o ouro para cobri-lo e protegê-lo, enquanto os olhos se dilatavam de pavor, pavor desmedido, perante o que via! Na sua frente, no meio da casa, estava um homem alto, vestido de preto, face negra, na qual faiscavam dois olhos que o fitavam.

Tremendo com todas as fibras do seu ser, pálido, olhos e boca muito abertos, subjugado por um terror bem superior ao que ele próprio infundira a outros, o mágico olhava o fantasma terrível, pensando, aliás com certa razão, que tinha na sua frente Satanás, reclamando, finalmente, os seus direitos.

Houve um silêncio. Corvino tentou falar para desafiar a aparição, mas faltou-lhe a coragem e o medo fê-lo emudecer.

Então, sem fazer barulho, o vulto avançou, ameaçador; os joelhos do feiticeiro tremeram. Afundou-se na cadeira, gaguejando e ficou à espera da Morte e do Inferno. Sabia, ao menos, aquilo que merecia.

O vulto parou enfim em frente da mesa, à distância de um braço de Corvino, e uma voz quebrou o silêncio, voz infinitamente desdenhosa, embora indubitavelmente humana.

 - Salve, Trismegito! - disse.

Corvino levou alguns minutos a compreender que o visitamte era, no fim de contas, um mortal, e, só passados alguns instamtes, recuperou um ar de autodomínio. Misturava-se nele o medo que tinha tido e aquele que lhe ficara... Finalmente, perguntou:

 - Quem sois?

Com uma voz audaciosa, arrojada e cantante, o homem abriu a capa, revelando uma figura bem vestida de veludo negro, trabalhado a arabescos dourados. Dum cinturão cravado de rubis rutilantes, pendia um longo e pesado punhal, cujos copos e bainha eram de ouro ricamente cinzelado. Das luvas de veludo preto pendiam diamantes que cintilavam como gotas de água, para completar o esplendor do vestuário. Levantara uma das mãos para erguer a máscara e mostrar o rosto jovem, nobre e majestoso de César Bórgia, Duque de Valentinois e Romagna.

Nesse mesmo instante, Corvino reconheceu-o, não sabendo bem se teria sido pior se fosse o diabo, como a princípio supusera. - Meu senhor! - exclamou, pouco à vontade, extremamente surpreendido.

E naquela consternação, pensando em voz alta, fez esta pergunta absurda num homem conhecedor de todos os segredos:

- Como entrastes?

 - Também percebo um pouco de magia - disse o jovem duque de tez trigueira. Na sua voz e no sorriso em que envo veu o mágico havia um ar de mofa.

Pensou que era desnecessário explicar que toda a magia que empregara consistira em entrar como fazendo parte do acompanhamento de «Madomna» Bianca de Fioravanti, esgueirando-se silenciosamente por trás dos negros panos de Arre que Corvino mandara pendurar nas paredes, para provocar a surpresa.

Mas o mágico não se deixou lograr. Quem faz a imagen não lhe presta culto. A verdade da magia era bem conhecida de Corvino e, por isso, ele nem por um momento pôde pensar que o duque tivesse entrado por processos invulgares. Mais tarde interrogaria habilmente o nubiano e, se necessário fosse, usaria o chicote, também com habilidade. A elevada categoria do duque reclamava, porém,, a atenção de Corvino que, conhecedor dos seus próprios pecados, estava longe de se sentir à vontade na presença de tão importante personagem.

Se Nnão estava à vontade, estava, pelo menos, senhor dum potencial de impudência e nela se apoiou para apagar a sua primitiva aflição, sorrindo tão inescrutàvelmente como o duque. Guardou o ouro rapidamente na bolsa desprezando qualquer moeda que caísse no chão. Pôs a bolsa de lado permanecendo sentado, enquanto Sua Alteza se conservava de pé, começou a afagar a sua longa barba.

 - Há ainda uma diferença entre a vossa magia e a minha, Magnificente - disse ele com maliciosa intenção.

 - Se assim não fosse não estaria eu aqui agora - replicou o duque voltando bruscamente ao assunto que o levara lá: - Dizem que descobristes um elixir que faz ressuscitar os mortos.

 - É verdade, meu senhor - respondeu o feiticeiro sem hesitar. Começava a recuperar o domínio de si próprio.

 - Experimentaste-o? - inquiriu César.

- Há dois anos ressuscitei em Chipre um homem que

morrera dois dias antes. Ainda vive e pode ser testemunha.

- Basta-me a vossa palavra - disse o duque com tal

acento de ironia que Corvino ficou a pensar se aquilo era realmente ironia. - É claro, se fosse preciso, experimentá-lo-ieis em vós?

Corvino sentiu um arrepio mortal dos pés à cabeça, mas respondeu com audácia:

 - Fá-lo-ia se fosse preciso!

Valentinois suspirou como quando se está contente e Corvino recobrou ânimo novo.

 - Tendes aí à mão esse elixir?

- O suficiente para ressuscitar um homem, apenas. É um

licor raro e muito precioso, e bastante caro, como deveis supor, Magnificente.

 - Extraído, certamente, do cérebro de qualquer ave rara de África?- perguntou o duque, troçando.

Pelo tom da voz, Corvino percebeu o alcance da pergunta.

 - Não, Magnificente - replicou sem se perturbar - É extraído do...

 - Não importa! -Deixai-mo ver!

O mago ergueu-se, dirigiu-se às suas prateleiras e procurou-o por instantes. Voltou com um frasco contendo um líquido cor de sangue.

 - Aqui está - disse e segurou o pequeno frasco de encontro à luz, fazendo-o brilhar como um rubi.

 - Apartai os dentes do morto e lançai-lhe este líquido na garganta. Ressuscitará dento) de uma hora desde que o corpo tenha sido aquecido ao fogo.

Valentinois tomou lentamente o frasco nas suas mãos enluvadas. Mirou-o e olhou pensativamente o seu conteúdo.

 - Não falha? - perguntou.

 - Não pode falhar, Magnificente - retorquiu o mago.

 - Qualquer que seja a causa da morte?

 - Qualquer, se nenhum dos órgãos vitais tiver sido destruído.

- Poderá vencer a morte por envenenamento?

 - Dissolverá e destruirá o veneno, seja qual for a natureza, tal como uma pérola se funde em vinagre.

 - óptimo! - disse o duque com o seu sorriso frio. - E agora outro assunto, Trismegito. Tacteou pensativamente a barba escura. Corre o boato em Itália, espalhado, sem dúvida por vós, para estenderdes a fama do vosso negócio fraudulento, que o sultão Djem foi envenenado pelo Santo Padre e que o veneno - tão subtil e miraculoso que esteve dentro do turco um mês sem o matar - foi fornecido por vós a Sua Santidade.

O duque fez uma pausa, como se esperasse a resposta e novamente Corvino tremeu de medo, tão frio e sinistro fora o tom de voz empregado pelo Duque.

 - Isso não é verdade, Magnificente; não tive negócios com o Santo Padre, e nunca lhe forneci venenos. Não sei do que morreu o senhor Djem, nem nunca afirmei sabê-lo.

 - Como é que então se espalhou esta história e anda vosso nome ligado a ela?

Corvino apressou-se a explicar. Explicações eram mercadoria de que estava sempre bem fornecido.

 - Deve ter sido assim. Possuo o segredo dum tal veneno e muitos pretenderam arrancar-mo. Daí, sem dúvida, o facto de, sabendo que o tenho e pensando que foi aplicado, o vulgo haver tirado conclusões, como de costume, erradas.

César sorriu.

 - É muito subtil, Trismegito. - E abanou gravemente a cabeça. - E dizeis que tendes esse veneno? De que espécie é?

 - Isso é segredo, Magnificente. - foi a resposta.

 - Não me interessa; desejo sabê-lo. Foi o que vos perguntei.

Nas suas palavras não havia calor nem veemência. Pelo contrário, eram frias, mortalmente frias. Possuíam, porém, mais poder do que cólera. Corvino não titubeou mais; respondeu logo.

- Compõe-se, principalmente, de suco de catapuce e de gema de ovo pulverizada, mas não é fácil de preparar.

 - Tende-lo à mão?

 - Aqui está, Magnificente - replicou o feiticeiro.

E do mesmo cofre de onde retirara o filtro de amor - o elixir de ouro - tirou uma pequena caixa de madeira de cedro e colocou-a na frente do Duque. Continha um fino pó amarelo.

 - Um dracma bastará para matar, trinta dias depois de ter sido ingerido, e dois, em metade do tempo.

César cheirou-o e olhou para o mágico dum modo sardónico.

 - Quero experimentá-lo - disse. - Que quantidade está

aqui?

 - Dois dracmas, Alteza.

O Duque estendeu a caixa a Corvino.

- Engole-o - ordenou calmamente. O mago recuou alarmado.

 - Senhor! - exclamou horrorizado.

 - Engole-O - repetiu César sem levantar a voz. Corvino pestanejou e engole-u.

 - Quereis que eu morra, Senhor?

 - Morrer? Então confessais que sois mortal, Trismegito, vós, o grande Corvino Trismegito, cujos conhecimentos são largos e profundos como o oceano sem fim, vós, que sois tão insensível aos males e à ruína da carne, que já vivestes dois mil anos? Será por acaso este pó tão eficaz que possa matar mesmo os imortais?

Então, por fim, Corvino começava a compreender o significado real da visita de César. É certo que afirmara que o sultão Djem tinha sido envenenado e se vangloriara de haver fornecido aos Bórgias o fabuloso segredo da droga que, após esse período, tinha morto o irmão do Grã-Turco; e, consequentemente, alcançara grande lucro vendendo aquilo que dizia ser o mesmo veneno - um subtil veneno a termine, o denominava - tão eficaz para as mulheres ansiosas por uma transformação nos maridos, como útil para os maridos aborrecidos das mulheres!

Compreendeu, finalmente, que César, informado da mentira infamante que valera ao mágico tão grande lucro, o tinha procurado para o castigar. E o facto é que o próprio Corvino, apesar do seu extraordinário saber, acreditava no poder sobrenatural do pó para matar, após determinado período de tempo! Encontrara a receita num velho volume em manuscrito, com outras prescrições da mesma espécie e acreditava nela com a cega credulidade dos que vinham procurar a sua ajuda.

A mofa sinistra do duque, o seu extraordinário poder de o coagir, a futilidade de tentar resistir-lhe, tudo isto enchia Corvino dum terror abjecto.

 - Alteza, ai de mim! Temo que seja como dizíeis! - exclamou.

 - Mesmo nesse caso, que receais? Vamos, homem, estais a falar levianamente. Não me haveis dito que este elixir restitui a vida aos mortos? Asseguro-vos,, sob a minha palavra de honra, que vo-lo ministrarão, quando morrerdes. Vinde, engoli o pó e fazei por morrer daqui por quinze dias, ou então, pela minha salvação, mandarei que vos enforquem como impostor sem vos dar depois o benefício duma dose de elixir de ressurreição...

 - Senhor, Senhor! - gemeu o infeliz.

 - Entendei-me. Se este pó aqtua, como dizeis, e vos matar no tempo devido, dar-vos-ão o vosso elixir que vos fará ressuscitar. Mas se vos matar antes, ficais morto; e se não vos matar, pois bem, nessa altura, enforcar-vos-ei e divulgarei a verdade de toda a história, para que os homens saibam quão falsa era a causa da morte de Djem, com o que tendes vindo especulando. Pensai em resistir e...

O gesto do duque foi significativo.

Corvino fitou os olhos implacáveis e belos do jovem e pensou que seria inútil tentar demovê-lo do seu propósito. Portanto, era preferível arriscar o pó, a aceitar a corda, como possível antecipação dos tormentos do Inferno. Aliás, Como tinha centos de conhecimentos de química, pensou que um vomitório a tempo podia salvá-lo. Era um recurso que mostrava quanta fé ele tinha no seu elixir de vida. As suas mãos tremiam ao- pegar no pó.

 - Cautela! Não deixes cair uma pitada - avisou César - senão o carrasco terá que vos servir, Trismegito!

 - Senhor! Senhor! - disse, tremendo o velhaco feiticeiro e os seus olhos pareciam saltar das órbitas. - Piedade, eu...

 - O veneno ou o carrasco - repetiu o duque. Desesperado, mas animado pela ideia do vomitório, Corbino aproximou dos lábios o bordo da caixa e despejou-o na boca. Quando acabou, o mágico, empalidecido, deixou-se cair na cadeira.

O duque sorriu, colocou novamente a máscara, e envolvendo-se na sua larga capa, caminhou em direcção ao reposteiro que tapava a porta.

 - Dormi tranquilo, Trismegito - desejou, com infinito desprezo. - Não vos abandonarei.

Vendo-o partir, confiante, sem medo, despreocupado, Corbino foi assaltado pelo ódio e por uma terrível tentação de apagar a luz e resolver o assunto com César, no escuro, chamando em auxílio o nubiano. Foi com esta ideia na mente que tocou o gongo. Mas enquanto o som se perdia no ar, pensou que tão ousado projecto, de nada lhe valeria, se estava envenenado, ao passo que se permitisse a César partir incógnito, assim que ele saísse, ficaria livre para beber o vómito que era a sua única esperança.

Os reposteiros afastaram-se, e o nubiano surgiu. No limiar, César parou e, sempre mofando, atirou esta despedida ao feiticeiro, por cima do ombro: - Adeus, Trismegito! - E saiu a rir. Corvino correu para as prateleiras em busca do vómito, amaldiçoando com fúria o duque de Valentinois e a raça dos Bórgias.

 

CAPÍTULO II

No momento em que o nubiano abriu a porta para deixar passar o duque, sentiu-se agarrado pelo pescoço, preso por um braço que o estrangulava, enquanto aos seus ouvidos ressoava o silvo agudo dum apito.

A rua, até ali silenciosa e deserta, despertou num instante para a vida. Alguns homens acorriam rapidamente à chamada do duque, nas mãos de dois dos quais este entregou o nubiano, que lutava por desembaraçar-se; aos outros deu rápidas ordens.

 - Entrem! - disse, indicando-lhes o caminho com a mão. - Entrem e levem-no.

Em seguida saiu para a rua e afastou-se.

Nesse mesmo dia, mais para a tarde, informaram-no de que na altura em que Corvino fora preso estava a preparar uma droga.

 - O antídoto, com certeza - disse César ao oficial que lhe trouxera a notícia. - Chegaste a tempo de salvar a minha experiência. Um malandro incrédulo e precipitado, esse Corvino. Mantenham-no em profundo isolamento, guardado por homens de confiança, até nova ordem.

Depois César reuniu um conselho formado pelos seus oficiais - o veneziano Corella, Naldo de Forlivese, Ramiro de Lorqua, o seu tenente-general de Romagna, Della Volpe, cego dum olho e Lorenzo Castrocaro.

Era este último um jovem elegante, orgulhoso do seu porte, impecável no vestuário, loiro, belo, com olhos sonhadores, azuis cor de safira. César tinha por ele grande consideração sabendo-o valoroso, Cheio de recursos e ambições. Naquela noite olhava-o com um interesse novo, por causa do que ouvira em casa do mágico.

O duque indicou os lugares aos oficiais, com a mão, e perguntou ansioso a Della Volpe, que estava encarregado das operações de cercos, novas da fortaleza de San Leo.

O rosto tostado do veterano anuviou-se. O seu único olho, pois perdera o outro ao serviço do Duque - evitava o olhar penetrante do seu senhor. Suspirou melancolicamente.

 - Nada feito - confessou. - Nem temos esperanças. Como Sua Magnificência sabe, San Leo não se pode tomar de assalto. Está no cimo da montanha como um monumento sobre um plinto; só tem comunicação por um caminho, que não oferece a menor segurança. E, conquanto digam que apenas está defendido por pouco mais de uma vintena de homens, mil não o conquistarão. No cume, não há espaço para mais de doze homens a pé e, quanto a empregar canhões, seria mais fácil montar um parque de artilharia numa corda de violino.

 - E, não obstante, enquanto San Leo não for mossa, não seremos senhores absolutos de Urbino - disse o Duque--Não podemos deixá-la nas mãos de Fioravanti.

 - Teremos então que bloqueá-los - comentou Della Volpe.

 - Isso levaria, pelo menos, um ano - acrescentou Corella, que tinha colhido informações. - Têm uma grande provisão de trigo, víveres, e a água é-lhes fornecida por uma fonte existente no pátio da fortaleza. Como são poucos, podem resistir interminavelmente.

 - Correu hoje o boato de que Fioravanti está doente e receia-se até que não dure muito - disse Della Volpe.

 - Veneza espalhará que o envenenei - comentou César desdenhoso. - Mas, mesmo que morra, nada ganharemos com isso. Existe o seu castelão, Tolentino, que tomará o seu lugar, E dos dois, Tolentino é ainda mais teimoso, Temos que descobrir um meio de vencê-los. Entretanto, Tadeu, preparai-vos contra qualquer eventualidade. Della Volpe baixou a cabeça.

 - Tomei todas as medidas - afirmou.

Então o jovem Castrocaro moveu-se na cadeira, inclinando-se sobre a mesa.

 - Se me dais licença... e no caso dessas medidas não serem suficientes...

Della Volpe franziu o sobrolho, revirou o olho vivo e tomou um ar ameaçador contra aquele jovem que parecia querer ensinar-lhe a ele, velho capitão experimentado nas guerras, a arte de sitiar.

 - Há outro caminho para San Leo - explicou Castrocaro - chamando a atenção de todos, especialmente do Duque, em cujos olhos brilhava agora um ávido interesse, pouco vulgar na sua pessoa.

Castrocaro respondeu com um sorriso de confiança à atenção, repentina e viva que provocara.

 - Não é um caminho por onde possa ir uma companhia - esclareceu - mas serve para um homem audacioso que esteja habituado a levar mensagens e, se necessário, mesmo víveres, para a fortaleza. Por isso é preciso que o senhor Della Volpe cerque a base do rochedo, se quer estar certo de que ninguém se esgueirará pelas linhas.

 - Tendes a certeza do que dizeis? - perguntou severamente o duque.

 - Absoluta ! - exclamou Castrocaro, sorrindo. O caminho de que vos falo fica situado mais para o sul do rochedo. É perigoso mesmo para uma cabra, ainda que seja transitável para quem o conheça. Quando era pequeno, subi-o mais vezes do que disse a minha mãe. Em busca dum ninho de águias, muitas vezes alcancei o pequeno planalto que fica abaixo da parede da fortaleza, no lado sul. Chegado aí, para atingir o castelo, não é preciso mais que uma corda e um arpão, pois a parede desse lado é extremamente baixa, pouco mais de doze pés de altura.

O duque fitou o jovem oficial durante alguns Instantes numa atitude pensativa.

 - Tenho que pensar ainda no caso - disse por fim. - Entretanto, agradeço a informação. Ouvistes, Della Volpe? Aproveitareis o que Castrocaro nos revelou, cercando completamente a base com as vossas tropas.

Della Volpe curvou-se e a reunião terminou.

Na manhã seguinte, César Bórgia mandou chamar Cas-trocaro à sua presença. Recebeu o jovem condottiere na biblioteca do palácio, vasta sala, em cujo tecto se viam frescos de Mantegna; das paredes pendiam riquíssimos painéis, e as prateleiras forradas a ouro ostentavam um número precioso de volumes tratados em manuscrito, pois, embora a invenção alemã da imprensa se houvesse já espalhado, nunca o duque Guidobaldo teria contaminado a sua querida e maravilhosa colecção com qualquer produto dessa máquina.

Agabito Gherardi, secretário do duque, estava sentado e vestido de negro, perante uma mesa coberta de papelada.

 - Suponho que conheceis a «Madonna» Bianca, filha de Fioiravanti de San Leo? - perguntou César.

Tomado de surpresa, o jovem corou levemente, apesar do seu habitual autodomínio e os seus olhos azuis, evitando os do duque, fitaram um céu de Verão e os jardins do palácio, através duma das janelas abertas junto dolargo balcão de mármore.

 - Até certo ponto, tenho essa honra - retorquiu.

E pelo seu aspecto e pelo tom que empregou, César concluiu que o elixir de ouro do feiticeiro não era tão urgentemente necessário como supunha a «Madonna» Bianca, pois o encanto da sua beleza podia, por si só, ajudar a entontecê-lo, como pensara O mágico.

Sorriu amavelmente, e acrescentou:

 - Podeis fazer progressos nessas relações, se o desejais. O jovem ergueu altivamente a cabeça.

 - Não vos entendo, Senhor.

 - Tendes a minha permissão, para levardes pessoalmente à «Madonna» Bianca a notícia de que seu pai se encontra doente em San Leo.

O jovem mantinha-se orgulhosamente na defensiva, como próprio de todo o apaixonado.

 - Com que fim, Alteza? - perguntou ainda em tom orgulhoso.

 - Simplesmente com um fim cristão - e o duque baixou a voz num ar de confidência, sorrindo impenetrável -

No fim que vos diz respeito. Se não vos /tentar o último, para o primeiro servirá qualquer mensageiro.

Pouco à vontade na sua consciência, um pouco ludibriado, porém, contente, no fundo da alma, o condottiere fez uma vénia.

 - Agradeço a Vossa Alteza! Posso retirar-me?

O duque acenou afirmativamente com a cabeça.

 - Quando regressardes, vireis ter comigo. É possível que tenha outras incumbências para vós.

Uma hora depois, Castrocaro voltou novamente ao palácio, apressado e em grande excitação, para falar com o duque.

- Senhor - disse, tremendo, ansioso. - Levei a vossa mensagem e volto para vos suplicar um favor. A «Madonna» Bianca pediu-me, na sua aflição, uma licença para atrasar as linhas de Della Volpe, a fim de poder juntar-se a seu pai.

- E vós, que lhe respondeste? - gritou asperamente o duque franzindo as sobrancelhas.

O jovem capitão desviou o olhar. Estava visivelmente desanimado e humilhado.

 - Respondi-lhe que não possuía autoridade para conceder-lhe tal licença, mas que viria pedir a Vossa Alteza.

Contei que estava convencido de que vós não havíeis de querer impedir uma filha de tratar do seu pai enfermo.

 - Sabeis demasiado - ripostou o Duque severamente - prometeis bastante. Tende em conta que nunca a precipitação em prometer levou um homem à glória. Pensai nisto.

- Como a vi tão aflita! - desculpou-se Lorenzo.

 - Oh! - exclamou o Duque secamente. - E tratou-vos tão gentilmente, olhou-vos com tanta ternura, deu-vos a beber um vinho tão doce, que não tivestes força para resistir ao seu meigo pedido!

César, observando de perto o seu condottiere, viu que pestanejara quando aludira ao vinho e ficou satisfeito. Mas ficou ainda mais, ao ter a certeza daquilo que procurava.

 - Espionaram-me, então? - perguntou com furor.

César encolheu os ombros com desdém, sem se dignar responder.

 - Podeis ir - disse, numa despedida breve.

Mas Lorenzo estava custoso de obedecer. ,

 - E a licença para «Madonna» Bianca ir ter com O pai? - perguntou Lorenzo, ousadamente.

 - Há motivos para que ninguém possa entrar agora en San Leo - replicou, friamente. Lamento ter que lhe recusar esse pedido. Em tempo de guerra há necessidade de nos mostrarmos inexoráveis.

Desgostoso e abatido, o condottiere saudou e retirou-se. Prometera e sentia-se agora incapaz de cumprir a promessa que lhe fizera sobre a taça de vinho que ela lhe servira com as suas lindas mãos; não se atrevia a aparecer-lhe mais. . Em vez de lá voltar, mandou um pajem com a desagradável notícia da recusa do duque.

Porém, César Borgia mudara de opinião.

Mal tinha Castrocaro acabado de sair, quando se voltou para o seu lívido secretário:

 - Escreva três linhas a Della Volpe - disse - ordenando-lhe que não sejam levantadas dificuldades se a «Madonna» Bianca quiser atravessar as linhas para se dirigir a San Leo. O rosto redondo e pálido de Agapito reflectiu o seu espanto por aquela ordem. César, observando-o, sorriu. Agabito compreendeu, então, que César tinha encetado um daqueles caminhos tortuosos e difíceis, cuja meta ninguém conhecia, antes de ser alcançada. Inclinou a cabeça, começou a escrever com uma pena que rabiscava e esfolava o papel rapidamente.

Logo em seguida, um emissário partiu com a ordem do duque a caminho do campo de Della Volpe.

Naquela mesma noite, a «Madonna» agiu precisamente como o duque esperava. Passou por trás das sentinelas, no escuro, e pela manhã estava em San Leo, façanha que todos ignoravam, excepto César, que fora avisado secretamente por Della Volpe. O seu palácio de Zoceolanti continuava aberto como se «Madonna» Bianca o habitasse, embora a todos que por ela perguntavam se respondesse que estava de cama, doente. E entre estes contava-se Lorenzo Castrocaro, que não tendo sido recebido por esse motivo concluiu que ela estava zangada com ele por não haver cumprido a promessa, o que o deixou silencioso e triste.

Dois dias após a sua fuga, chegaram notícias da morte de Fioravanti na fortaleza que ele defendia, e Castrocaro foi enviado a Cesena, pelo Duque, em missão que bem podia ter sido entregue a um oficial de patente inferior. Só dez dias depois é que foi mandado regressar, e tendo em vista os termos dessa ordem, logo que chegou a Urbino se dirigiu, ainda coberto de pó, à presença do duque, com as missivas que trouxera.

Nessa ocasião estava Valentinois em conselho ao qual assistia também Della Volpe.

 - Voltaste em ocasião oportuna - disse o duque, saudando-o, e pondo de lado, como se não tivessem importância, as mensagens que ele trouxera. - Estamos reunidos para resolver o problema de San Leo, agora defendida por Tolentino, com a mesma firmeza de Fioravanti. É preciso acabar com isto, e vós, Lorenzo, sois a pessoa indicada para o fazer!

 - Eu? - perguntou o jovem soldado.

 - Sentai-vos - ordenou-lhe César e Castrocaro tomou, obedientemente, o seu- lugar à mesa. - Escutai: não se trata precisamente duma ordem porque não tenho por costume expor os meus valentes oficiais a uma morte certa.

Apenas quero mostrar-vos o que preciso de vós, o que poderia ser executado por alguém que tenha os vossos conhecimentos e coragem suficiente para arriscar-se, como o caso exige. O condottiere assentiu, fixando os seus olhos azuis na face calma do duque.

 - Falaste-nos dum caminho perigoso para San Leo que poucos conhecem e vós encontrais-vos nesse número. Dissestes que se um homem conseguisse alcançar o planalto do lado sul do alto do rochedo, poderia entrar por meio duma corda e dum arpão. Agora, se um homem o fizesse pela calada da noite, escolhendo inteligentemente a ocasião para apanhar a sentinela distraída, a apunhalasse e corresse depois aos portões para retirar as trancas, o resto seria fácil. As tropas de Della Volpe teriam trepado pela vereda, entretanto, esperando o sinal para se dirigirem aos portões abertos, e, desta maneira, podia San Leo ser vencida sem perda de vidas.

Lorenzo reflectiu por alguns seigundos; o duque observava-o.

 - Está bem pensado - disse, aprovando, - É fácil e hábil; é provável que sejamos bem sucedidos, desde que o homem que for encarregado dessa missão conheça perfeitamente o rochedo e a fortaleza.

 - Mas, naturalmente - concordou César, fixando firmemente o jovem. Lorenzo sustentou por um momento esse olhar, com o seu natural autodomínio. Então, vincando bem o significado das palavras, disse calmamente:

 - Irei, e se Deus me ajudar, serei bem sucedido.

 - Já pensaste nas consequências dum fracasso? - perguntou César.

 - Não é preciso! São bastante claras. Uma corda e uma viga da parede do castelo, ou um salto do rochedo.

 - Então, visto que aquele que joga deve conhecer não só o que pode, por acaso, perder, mas também a parada que tem a ganhar - disse o duque - deixai-me dizer-vos que se alcançardes êxito vos darei o governo da fortaleza e um suplemento de dez mil ducados.

Lorenzo corou, agradavelmente surpreendido. Os olhos faiscaram e o seu tom reflectia a confiança que a mocidade tem nas suas forças.

- Não falharei - prometeu. - Quando posso partir?

 - Amanhã à noite, já que quereis. Vede se descansais até lá para estares preparado para o esforço de tão elevado empreendimento. E assim, senhores, esperemos ter encontrado, finalmente, solução para aquele quebra-cabeças que é San Leo.

 

CAPÍTULO III

O leitor, que assistiu à conversa que o duque tivera com Corvino Trismegito, compreenderá, certamente, o surpreendente plano por ele imaginado, e verificará, pela escolha feita, o fino tacto que César Bórgia possuía para apreciar o valor dos que o serviam.

Maquiavel, que estudou o duque de perto, e que o considerava a mais perfeita síntese de todas as virtudes que um príncipe deve ter, inspirou-se, sem dúvida, na prudência desse duque, que nunca falhava na escolha dos seus ministros, para dedicar a esse aspecto um capítulo de «O Príncipe».

«A primeira opinião sobre um príncipe e as suas capacidades intelectuais», escreve ele, «deveria basear-se num juízo sobre os homens de quem ele se rodeia, e, no caso de lhe serem fiéis, e o servirem quando é preciso, poderemos considerá-lo sensato, porque os soube escolher e mantê-los fiéis.»

Maquiavel não definiu melhor do que César o poderia ter feito se houvesse deixado uma teoria acerca dos príncipes, em lugar de o ter posto em prática. De facto, é sobre a maneira de ser de César Bórgia - como, em certa altura admite Maquiavel - que o florenitino fundou as suas teorias. Portanto, não será muito exagerado afirmar que, enquanto Maquiavel escrevia «O Príncipe», César Bórgia era o verdadeiro autor, pois lhe pertenciam as concepções e atitudes que Maquiavel converteu em preceitos.

Vimos como ele escolheu para esta missão alguém que, apesar de ser o mais jovem dos capitães, era, sem dúvida alguma, o que estava mais indicado para este caso particular - E observemos as suas superiores capacidades. Até certo ponto tudo dependia do facto casual de Castrocaro conhecer o caminho para atingir San Leo. O que, porém, não há dúvida é que constituía principalmente o resultado da sábia manipulação das circunstâncias, da parte de César.

Se tudo isto ainda não estivesse perfeitamente demonstrado, facilmente se reconheceria antes do final dos acontecimentos. Não se deve, contudo, cair no erro de supor que o que aconteceu foi fruto do acaso. Daqui em diante tudo acontecerá como César tinha planeado. Descobriu certas forças e utilizou-as consoante as necessidades, impulsionando-as duma forma por ele previamente marcada e delineada. Compreendeu que o acaso podia alterar-lhes o curso, e, sensatamente, congregou os elementos, sujeitando-os ao objectivo que lhe interessava.

No dia seguinte, à tarde, completamente tranquilo e descansado, Lorenzo Castrocaro partiu de Urbino, a cavalo, com uma escolta composta por meia dúzia dos seus homens de armas e dirigiu-se ao acampamento de Della Volpe. Chegou, sem novidade, ao cair da noite e tendo ceado com o capitão das forças sitiantes, na sua tenda, fez em seguida os últimos preparativos. Pouco mais ou menos à terceira hora da noite, saiu sozinho para tentar levar a cabo a sua perigosa empresa.

Para diminuir o risco de poder ser visto por qualquer sentinela do castelo, vestira-se completamente de preto, tomando a precaução de envergar sob o gibão uma cota de malha, que, embora resistisse a uma punhalada, era de tão fino fabrico que cabia nas duas mãos postas em concha. Armara-se com uma espada e um punhal e enrolara uma corda ao corpo, à maneira dos bandoleiros, à qual atara um forte arpão de dois dentes, de curvatura larga, envolto em palha. Prendera-o cuidadosa e firmemente às costas, de maneira que não lhe tolhesse os movimentos.

Combinara com Della Volpe para que este, com cinquenta

homens, se fosse aproximando lentamente da fortaleza, através do carreiro existente e que, uma vez chegado ao cume, se escondesse até que ele viesse abrir o portão. Nessa altura deviam entrar rapidamente, dando-se assim o assalto.

Era uma bela noite de Verão, a Lua cheia cavalgava pelos céus, deixando ver o panorama, vários quilómetros em redor. Tudo correu bem na primeira parte do escalamento o que permitiu a Lorenzo calcular que antes da meia-noite, hora em que esperava atingir o cume, já a Lua se teria posto, ficando protegido pela escuridão.

Afastou-se, pois, sozinho e dirigiu-se para o lado sul do monte alto e escarpado em cuja crista, à luz branca do luar, surgia o vulto das torres cinzentas da fortaleza.

A princípio, a subida foi fácil e pôde caminhar rapidamente; em breve, porém, o precipício tornou-se mais abrupto, começou a faltar-lhe o pé, de modo que pouco pôde adiantar, vendo-se obrigado, como medida de segurança, a mover-se com infinitas precauções, reunindo as suas forças para enfrentar as dificuldades da ascenção, cada vez mais árdua.

Não teve quaisquer hesitações ou dúvidas. Tinham decorrido uns bons dez anos desde que escalara aquelas alturas pela última vez, na sua adolescência. As recordações daquela idade persistiam, contudo, tão firmemente, que sentia tanta confiança no caminho que trilhava como se o tivesse feito na véspera. Mesmo antes de as alcançar, já conhecia todas as saliências da rocha, todas as fendas onde podia apoiar o pé, todos os abismos que tinha de transpor.

Ao cabo duma hora ainda não havia percorrido mais do que um terço da subida, e o que faltava ainda era mais difícil. Sentou-se sobre uma saliência coberta de erva, e aí repousou por instantes a cobrar alento.

Observou daí a planície, que a clara luz do luar deixava ver num raio de alguns quilómetros, o mar brilhante espreguiçando-se ao longe, a oriente, os picos dos Apeninos cobertos de neve, reluzindo no Ocaso. Sobre ele erguia-se, altaneiro, o rochedo, abrupto e escarpado, como as próprias paredes da fortaleza que lhe coroavam o cômoro, numa subida que entontecia as cabras e aterrava o mais audacioso alpinista. Olhando tudo com os seus calmos olhos azuis, Lorenzo compreendeu que o maior perigo que tinha de defrontar nessa noite era o daquela subida. Em comparação com ela, escalar o muro do castelo, apunhalar uma ou duas sentinelas, abrir o portão, eram coisas fáceis. Ao contrário ali, um passo falso, uma vertigem que muito bem podia assaltá-lo, atirá-lo-ia no espaço, dando-lhe morte imediata.

Levantou-se, aspirou o perfume daquela noite de Verão, ergueu uma curta prece ao seu santo padroeiro, S. Lourenço, e continuou a andar. Agarrando-se com as mãos e os pés à rocha, avançou pela orla alguns metros, até nova saliência, onde parou novamente para respirar, agradecendo ter conseguido avançar tanto.

Em seguida, a subida foi fácil durante alguns minutos. Um caminho normal, talvez com a largura de um metro, serpenteava pelo rochedo acima; no fim dessa vereda, havia um novo precipício que só podia ser transposto dum salto.

Receando que a espada o fizesse tropeçar, desapertou o cinturão, e lançou-a fora. Fê-lo com desgosto, mas compelido pela ideia de que, se a conservasse, talvez não ficasse com vida para a usar. Depois respirou fundo, ganhou novamente coragem e saltou por sobre a brecha impenetrável agarrando-se a uma árvore enfezada que se erguia naquele muro íngreme. Segurou-Se ao frágil arbusto, com mãos e pés, como um macaco, feito que lhe custaria a vida se tivesse cedido ao peso do seu corpo. Tendo resistido, segurou-se a ele, procurou onde assentar o pé, encontrou e continuou o seu caminho. Chegou a uma fenda na rocha, trepou-a, apoiando-se simplesmente na pressão dos joelhos e braços contra o penhasco e nas pequenas saliências que descobria e que lhe permitiam agarrar-se.

Desta forma, conseguiu subir mais seis metros, até que atingiu, finalmente, a fenda do cume, banhado em suor e

cansado pelo esforço formidável que tinha feito. Sentado, com o peito apoiado ao penhasco, olhou para baixo e para os lados dos terríveis precipícios. Estremeceu de pavor e segurou-se à rocha com as mãos feridas. Só passado algum tempo pôde encetar a segunda parte da subida, pois ainda ia em meio.

Recomeçou a trepar usando os mesmos meios até aí empregados para perigos semelhantes, avançando, avançando sempre.

De um deles escapou por um tris. Quando se agarrava com ambas as mãos à agreste parede do rochedo, num sítio cujo espaço mal excedia cinco centímetros, para pôr o pé, um vulto grande e castanho saltou duma fenda, com um zumbido cortante, mesmo por cima da sua cabeça e continuou a grasnar traçando círculos ao longe, no ar. Ficou tão surpreendido que ia perdendo o equilíbrio, e um suor frio escorreu-lhe pela pele endurecida. Mais tarde, aproximadamente uma hora antes da meia-noite, quando a Lua se ocultou e o deixou em completa escuridão, sentiu-se dominado pelo medo, de tal forma que, durante algum tempo, não se atreveu a mexer-se. À medida, porém, que se ia habituando à escuridão e os seus olhos começavam a desvendar as trevas sentiu voltar-lhe a coragem. A noite estava bela e estrelada e podia-se, de perto, discriminar os objectos, o que não impedia de continuar com O mesmo cuidado para não cometer o erro irreparável de tomar a realidade por sombras, ou de medir mal as distâncias, o que era fácil.

Então, perto da meia-noite, completamente esgotado, as mãos em sangue, a farda rasgada, achou-se por fim no espaçoso terraço que existia no sopé do muro do lado sul do castelo; e nem por todas as riquezas deste mundo acederia voltar para trás pelo caminho que subira duma forma tão milagrosa, pois só por milagre podia agora considerar ter alcançado a meta sem novidade. Deitou-se no chão junto da muralha para repousar um pouco amtes de tentar a escalada. E, enquanto descansava, murmurava uma prece de gratidão por ter escapado com vida, pois era uma alma devota, este  Lorenzo.

Ergueu os olhos para as estrelas cintilantes, para o brilho distante do Adriático, para as aldeias que se apinhavam em cacho na planície, lá em baixo, por onde viera subindo. Por cima da sua cabeça ouvia o passo compassado da sentinela, aproximando-se, afastando*-se, aproximando-se de novo, vigiando as ameias. Três vezes andou o pobre diabo o caminho, antes de Castrocaro se mover; e quando, finalmente, se levantou, os passos perdiam-se ao longe. Sentiu, então certa compaixão pelo soldado cujo espírito ele ia inevitavelmente libertar do seu envoltório térreo, naquela noite.

Desenrolou a corda que levava em volta do corpo, recuou e balançou o arpão por uns momentos, dando-lhe o impulso necessário para o lançar para cima. Assim projectado o arpão passou por sobre a muralha indo cair por trás das ameias e, como tinha previsto, a palha em que o havia envolvido abafou o som do metal.

Puxou cautelosamente a corda, esperando que os ganchos se agarrassem a qualquer saliência duma fenda. Mas nada disso aconteceu. Os ganchos chegaram ao alto da parede e depois escorregaram vindo cair-lhe aos pés. Fez novamente a mesma operação, e o resultado foi o mesmo; mas, à terceira tentativa, os ganchos ficaram presos. Dependurou-se então na corda, para se certificar de que estava firme, verificando, com satisfação, que os ganchos se encontravam fortemente presos.

O regresso da sentinela avisou-o de que o momento não era propício. Pôs-se à espera, escutando atentamente, acocorado junto ao muro, que o ruído dos seus passos se perdesse ao longe. Então começou a subir como os marinheiros, agarrando-se ora com uma das mãos, ora com a outra, com os pés apoiados à muralha para aliviar o esforço dos braços. Assim chegou rapidamente ao alto da muralha, ajoelhando-se entre duas ameias, espreitando-o [pátio escuro. Tudo estava em silêncio. Exceptuando os passos da sentinela que se ouviam no outro ângulo noroeste do baluarte, como Lorenzo calculou, ruído algum perturbava a solidão do local. Arrancou os ganchos da fenda onde estavam presos e lançou-os, juntamente com a corda, para o fundo do precipício, para que nada pudesse indicar como lograra chegar até ali. Então escorregou suavemente pelo parapeito, exultando de viva alegria por ter terminado a sua audaciosa empresa; encontrava-se dentro da fortaleza.

Quase podia considerar terminada a sua missão, pois o resto era fácil. Dentro de momentos, as tropas de Bórgia entrariam em San Leo, e os soldados da guarnição, surpreendidos na cama, pouca resistência poderiam opor. Já nem parecia necessário a Lorenzo matar a sentinela. Bastava escolher prudentemente o momento para destrancar os portões, e tudo se consumaria sem provocar suspeitas, a não ser quando fosse já demasiado tarde. De facto, era a solução que havia a tomar, pois se fosse obrigado a lutar com o soldado, poderia acontecer que ele gritasse e desse alarme antes que pudesse matá-lo.

Tendo tomado esta resolução, avançou depressa, mas cautelosamente, e alcançou um lance de degraus de pedra, duma escada de caracol que dava para o pátio interior do castelo. Desceu por aí e chegou a um quandrângulo. Rodeou-o, ocultando-se nas sombras, até que deu com uma passagem que deitava para o pátio exterior, por detrás do corpo da guarda, de um lado, e da capela, do outro.

Agachou-se nessa passagem e aguardou que a sentinela que vinha a aproximar-se uma vez mais, se retirasse para o lado norte do castelo. Em nenhuma das janelas que deitavam para o pátio se via luz; o local estava envolto em penumbra,

Lorenzo esperou calmamente; as suas pulsações eram normais. Se a porta estivesse fechada, teria que voltar para trás, defrontar-se com a sentinela e dirigir-se aos portões pelas ameias. Mas não era provável que tal sucedesse.

Imediatamente à sua frente, sobre a plataforma, estava a sentinela, caminhando lentamente, de arma ao ombro, um vulto negro recortado toscamente na cúpula celeste, azul forte, salpicada de estrelas. Observou atento, caminhando em redor, sem qualquer suspeita, desaparecendo novamente. Então, de mansinho, Lorenzo experimentou o trinco da grande porta. Cedeu silenciosamente à pressão e um túnel negro se abriu na sua frente, por onde entrou, fechando devagar a porta atrás de si. Depois parou, pensando que se caminhasse em frente e saísse para o pátio que ficava ao norte arriscava-se a chamar a atenção da sentinela que estava nessa ocasião nas ameias do lado Norte, também. Portanto, tinha que esperar que passasse outra vez.

O tempo que teve de esperar pareceu-lhe interminável, desta vez, e, a certa altura, julgou ter ouvido a voz dum homem, vinda do corpo da guarda, à sua direita. O ruído provocou-lhe um aumento de pulsações, que até ali se tinham conservado normais.

Mas como não tornou a ouvir coisa alguma, concluiu que os seus sentidos extenuados com tantas fugas, tanto esperar e tanto ouvir, o tinham enganado. Ouviu por fim o ruído dos passos da sentinela aproximando-se de novo do baluarte. Satisfeito por ter esperado bastante, moveu-se para abrir caminho através da profunda escuridão da passagem. E nessa altura, mesmo quando se voltou, o seu coração estava calmo. Por sobre a porta da capela, pouco mais ou menos a uma altura de três pés, brilhava uma pequena mancha de luz, e um raio brilhante, amarelo, longo e estreito como a lâmina duma espada rastejava ao longo da parede. Compreendeu tudo num momento. A casa da guarda, cujas janelas deitavam para o pátio do lado norte, estava habitada ainda e o que via era a luz que saía pelo buraco da fechadura e por debaixo da porta.

Parou uns instantes, reflectindo. Por fim concluiu que se tinha ido já até tão longe não podia retroceder. Seria arriscar-se muito se voltasse para trás e tornasse a abrir a porta, ao passo que permanecer na passagem agravaria apenas o perigo, já iminente, de ser descoberto. A sua única possibilidade de triunfar consistia em caminhar para a frente, tendo o cuidado de não fazer barulho que pudesse despertar a a atenção. Desta maneira, tudo correria bem, sem dúvida. Com extrema precaução avançou nos bicos dos pés, apoiando as mãos na parede lateral da capela.

Não tinha ainda dado mais de três ou quatro passos quando, de súbito, soou uma imprecação numa voz máscula e forte, seguida das gargalhadas de vários homens. Ouviu, ao mesmo tempo, um arrastar de cadeiras e passos pesados encaminharem-se para a porta. Lorenzo encontrava-se bem em frente da mesma. A rapidez com que tudo sucedeu não lhe permitiu reflectir obrigando-o a praticar a primeira asneira. Se se tivesse arriscado, procurando escapar-se rapidamente, poderia ter alcançado o pátio com segurança. Mas deixou-se ficar, hesitante, os músculos tensos, pensando no que havia de fazer. E esta paragem foi a sua ruína. Compreendeu num instante a situação. Viu que estava apanhado, que, agora, não havia mais esperanças de escapar e que o melhor seria avançar. Por isso, ficou no vão da porta, com os dentes cerrados, e na alma a triste amargura de pensar que depois de ter sido tão bem sucedido falhava precisamente no limiar da vitória. De dentro abriram a porta completamente e uma torrente de luz inundou o local, mostrando Lorenzo, pálido, de olhos esgazeados, com uma das mãos instintivamente colocada no punho do punhal.

Assim o viram os primeiros homens dos cinco que saíram e ao darem com ele todos recuaram, olhando-o fixamente. O que vinha à frente, um homem alto, musculoso, vestido de couro, de barba e sobrancelhas negras, parecia ser em parte superior aos outros quatro. Tratava-se claramente de cinco oficiais.

Este recuou um passo, atónito, espantado pelo aparecimento de Lorenzo. Depois, refeito, mirou-o com um olhar em que brilhava vivo interesse, as mãos postadas nos quadris, as pernas abertas.

- Quem diabo é você? - perguntou.

Lorenzo possuía um espírito muito vivo, e naquela altura," teve uma centelha de inspiração. Deu alguns passos em frente, em resposta àquele desafio e, desse modo, aproximou-se mais da luz.

 - Alegra-me ver que há alguém vivo e acordado em San Leo - disse num tom desdenhoso como de quem tivesse o direito de fazer uma censura.

No rosto dos cinco homens crescia e espalhava-se o espanto. Olhando para a sala, por trás deles, iluminada pelas velas colocadas nos candelabros das paredes, Lorenzo viu o motivo que explicava o silêncio em que estavam. Havia uma mesa e sobre ela encontrava-se ainda espalhado um baralho de cartas gordurosas. Tinham estado a jogar.

 - Corpo de Cristo! - continuou - fazeis uma boa ronda aqui! A soldadesca de Bórgia pode estar junto dos vossos portões. Eu próprio posso entrar, e não há um homem que me impeça, ou me desafie, que pelo menos dê alarme! Pela Hóstia! Se vós fôsseis meus soldados, arranjar-vos-ia emprego na cozinha e espero que daríeis lá melhor conta do recado do que como militares.

 - Mas quem diabo sois, posso saber? - perguntou de novo o guerreiro de sobrancelhas negras, gritando mais fortemente que da primeira vez.

 - E como diabo entrastes? - inquiriu outro, um homem magro, de lábios carnudos, com uma borbulha no nariz, que avançou para observar o intruso mais de perto.

Castrocaro fez-se então altivo.

 - Levai-me ao vosso capitão, ao Senhor Tolentino - pediu. - Ele há-de ver que espécie de vigília é a vossa. Cães! Isto podia ser reduzido a cinzas enquanto estais aqui sentados, roubando-vos uns aos outros, jogando as cartas, com um tipo que parece surdo-mudo lá fora a passear nas muralhas.

O tom de fria autoridade da sua voz produziu efeito. Ficaram completamente vencidos. Parecia-lhes completamente inacreditável, como pareceria, aliás, a qualquer pessoa, que um homem assim os interpelasse, a eles cujo direito a fazê-lo parecia fora de dúvida.

 - O senhor Tolentino está na cama - disse o mais alto

em voz áspera.

Desagradou-lhes a gargalhada com que Lorenzo recebeu a informação. Tinha um timbre antipático.

 - Não me custa a acreditar, a julgar pela vossa ronda - disse, troçando.

 - Bem. Então vão dizer-lhe que se levante para me

receber!

 - Mas afinal, quem é ele, Bernardo? - insistia o dos lábios grossos e os outros resmungavam aprovando uma pergunta que tinha pelo menos a virtude de vir a propósito.

 - Alto - disse Bernardo, o do sobrolho negro. - Ainda não dissestes quem sois.

O seu tom era um misto de rudeza e deferência mal-humorada.

 - Sou um enviado do duque Guidobaldo, o vosso senhor - foi a resposta rápida e pronta; e o jovem condottiere perguntava a si próprio, admirado, onde o conduziria tudo aquilo e que possibilidade haveria ainda de salvar-se.

À medida que naqueles homens crescia o interesse, crescia, também, o respeito.

 - Mas... como entrastes? - insistia um que já tinha feito a mesma pergunta. - Lorenzo afastou-o impacientemente.

 - Que importa isso? Basta que esteja aqui. Vamos perder a noite com perguntas parvas? Não vos disse já que a esta hora podem as tropas de Bórgia estar junto dos vossos portões?

 - Por Baco, podem lá ficar! - disse outro rindo. - Os portões de San Leo são suficientemente fortes, e se Bórgia se atrevesse a bater à porta nós saberíamos responder-lhe.

Enquanto o rapaz falava, Bernardo saíra da sala com uma lanterna, gritando aos companheiros para o acompanharem. Desceram pela passagem em direcção à porta que comunicava com o pátio exterior. Atravessaram-no juntos, cumulando o suposto enviado do duque Guidobaldo com perguntas a que ele respondia de modo lacónico, desgracioso, mostrando-lhes, pelas palavras e gestos, que não estava habituado a lidar com gente como eles.

Chegaram assim à porta da torre principal onde Tolentino tinha os seus aposentos, e quando pararam, Castrocaro não pôde deixar de lançar um olhar amigo para os enormes portões, atrás dos quais Della Volpe esperava com os seus homens. Encontrava-se tão perto deles, que alcançá-los e tirar as trancas seria obra de um momento; não via, porém, como livrar-se daqueles cinco homens que o rodeavam, sem contar com a sentinela que, lá de cima, nas muralhas, pretendia averiguar o que se passava.

O jovem condottiere rogava aos Céus para que Della Volpe, que, sem dúvida, aguardava o aviso, pudesse inteirar-se da delicada situação em que se encontrava, muito embora o auxílio que lhe pudesse prestar fosse quase nulo.Tinha que contar apenas com a sua pessoa, ou, mais propriamente, com a habilidade e audácia que nunca o abandonaram.

Subindo por uma escada de caracol, com as paredes e o tecto adornados de frescos grosseiros, conduziram Lorenzo aos aposentos de Tolentino, que se tornara governador de San Leo depois da morte de Fioravanti, ocorrida dez dias atrás.

Enquanto subia, o jovem Lorenzo recobrou algum ânimo. Até ali, tudo tinha corrido bem. Desempenhara o seu papel com astúcia, e conseguira impor-se de tal modo àqueles homens que eles não sentiam qualquer sombra de suspeita. Se lograsse ser tão bem sucedido com o capitão, como fora com os outros, talvez que a sua missão ainda pudesse ser cumprida.

À medida que caminhava, ia preparando mentalmente a história que contaria, baseando-se no facto de saber que a resistência de Fioravanti a César Bórgia era contrária à vontade do duque Guidobaldo, aquele pacífico e amável erudito que, reconhecendo a inutilidade de qualquer resistência, via na rendição um meio de evitar o sacrifício de inúmeros homens.

A dificuldade principal consistia no facto de Tolentino lhe exigir, certamente, a apresentação de credenciais, e ele não tinha nenhumas.

Teve que esperar na antecâmara todo o tempo que o corpulento Bernardo se demorou a acordar o castelão e a informá-lo de que um enviado do duque Guidobaldo se introduzira no castelo e pretendia falar-lhe.

O castelão despertou imediatamente, lançando um caudal de imprecações, primeiramente incoerentes, depois terrivelmente coerentes; abanou a cabeça metida no barrete de dormir, sentou-se à beira da cama, para receber o mensageiro, ordenando a Bernardo que o mandasse entrar.

Lorenzo, embora se sentisse Intimamente inquieto, mostrava-se altivo e confiante no seu porte exterior. Saudou o capitão com sobranceria.

 - Vindes da parte do duque Guidobaldo? - perguntou Tolentino.

 - Venho - respondeu Castrocaro. - E se pertencesse ao partido de César Bórgia e viesse com uma vintena de homens atrás, poderia ser agora senhor de San Leo, tal é o zelo dos vossos vigias.

A resposta fora habilmente arquitectada, pois era uma afirmação verdadeira, bem calculada para afastar toda a suspeita. Contudo se o tom que ele empregou era muito bom Para os soldados, já o mesmo se não podia dizer para um castelão de tamanha importância e de temperamento tão feroz e intratável como se sabia que era o de Tolentino. Provocou, claro está, a ira do cavalheiro e Lorenzo correu sério risco de ser o primeiro a suportar o embate da sua fúria. Ele não desconhecia o carácter iracundo do castelão, mas arriscaria-se porque sabia que só assim poderia ganhar confiança e porque compreendia que só uma pessoa muito segura de si própria ousaria fazer tal censura.

Tolentino olhou para ele com olhos ferozes, raiados de sangue, revelando um desmedido assombro pela ousadia de Lorenzo, pelo tom que empregara. Era um homem alto, simpático, de nariz comprido, cabelos negros, uma face escanhoada, cor de azeitona, e um queixo comprido, quadrado. Continuou a fitá-lo e por fim, explodiu:

 - Sangue de Deus! - rugiu - eis aqui um galo jovem com um cacarejar ruidoso! Havemos de te tratar disso, antes de te ires embora! - prometeu - Quem és?

 - Um enviado do duque Guidobaldo, como devem ter-vos informado. Quanto a isso do galo e do cacarejo, falaremos depois!

O castelão ergueu-se e procurou tomar uma atitude de dignidade, o que não era fácil para um homem em camisa, coroado com um barrete de dormir.

 - Meu petulante cãozinho de regaço! - bramiu, entre colérico e estupefacto, respirando violentamente, fazendo esforços para encontrar as palavras que exprimissem a fúria que o dominava.

 - Lorenzo Snello - replicou Castrocaro, que já estava preparado para a pergunta. E acrescentou gravemente: - Gosto mais deste do que daquele que acabais de aplicar-me.

 - Por acaso foi para me informares das vossas preferências que viesteis cá? - berrou o castelão. - Não esqueçais, jovem senhor, que aqui sou eu quem manda e que a minha vontade é lei. Posso mandar vergastar-vos, esfolar-vos, ordenar que vos enforquem, sem que disso tenha que dar contas a ninguém. Lembrai-vos disto e...

 - Céus! - gritou Lorenzo por sua vez, acenando desdenhosamente com a mão, dominando o seu interlocutor com o seu tom e os seus modos. - Qualquer que fosse o fim que aqui me trouxe, não foi, certamente, para ouvir as vossas jactâncias. Pensais que vim da planície, que arrisquei o pescoço passando através das linhas de Bórgia, e mais de mil vezes a vida em tão tormentosa escalada, para estar aqui a ouvir-vos berrar aquilo que julgais que podeis fazer-me? Aquilo que podeis fazer já vi com os meus olhos!

 - E que foi então? - perguntou Tolentino manhoso e amável.

 - Que não sabeis guardar um castelo, e nem distinguir um lacaio duma pessoa que é igual a vós, talvez ainda superior...

O castelão sentou-se novamente e começou a esfregar o queixo. Sentia-se dominado pela audácia daquele desconhecido o que, como acontece com todos os tiranos, o fazia perder a calma.

No fundo da câmara, atrás de Lorenzo, estavam alinhados os homens de Tolentino. Guardavam silêncio, embora não pudessem deixar de testemunhar a situação desagradável do seu chefe. Ele compreendeu que tinha a todo o custo que salvar as aparências.

 - Deveis ser portador, sem dúvida, duma importante mensagem que justifique esta insolência e vos salve de serdes açoitado - disse, gravemente.

 - Não preciso de mensagem mais importante que aquela que trago - foi a resposta rude de Castrocaro. - O duque será informado das infâmias a que sujeitais alguém que ele estima e que correu grande perigo ao seu serviço.

A sua altivez, o seu ar de ofendido, eram dominadores.

 - E lembrai-vos, senhor, que isto não são modos de receber um enviado, e se o meu dever para com o duque fosse menos importante do que é, ir-me-ia embora como vim. Se falhei em cortesia, fostes vós que me provocastes. Mas ele saberá da recepção que tive, ficai certo.

Tolentino sentia-se cada vez mais confundido, e começava a sentir-se pouco à vontade.

 - Senhor - gritou, protestando - juro que a culpa é vossa. Dizei-me primeiro quem sois e que direito tendes para me fazer essas censuras? Se transgredi as regras da delicadeza, fostes vós que me provocastes. Acaso, julgais que estou disposto a aturar o escárneo de qualquer peralvilho que pensa que cumpre os seus deveres melhor do que eu? Basta, senhor! - e fez um gesto com a mão, assumindo uma atitude de arrogância.

 - Apresentai a mensagem, que me trazeis - disse, estendendo a mão musculosa.

A mensagem de Lorenzo, porém, não podia ser senão apresentada por via oral.

 - O meu senhor ordenou-me - respondeu ele - que vos trasmita a ordem de vos renderes, com as honras de guerra, que vos serão concedidas, ao duque de Valentinois.

Notando, porém, a surpresa, a dúvida e a suspeita que nesse momento começavam a espelhar-se no rosto de Tolentino, Lorenzo julgou conveniente dar algumas explicações..

 - César Bórgia fez a paz com o duque de Guidobaldo e prometeu-lhe certas regalias se todas as fortalezas dos Seus domínios se rendessem sem mais combate. Aconselhariam o meu senhor a aceitar tais condições, pois se as recusasse nada tinha a ganhar e podia até perder tudo. Compreendendo isto, e sabendo que o prolongamento da resistência de San Leo apenas conseguia adiar a sua inevitável rendição, ocasionando a perda de muitas valiosas vidas, o duque Guidobaldo enviou-me para vos ordenar a capitulação imediata.

Exprimira-se num tom plausível. Era precisamente uma mensagem tal como o duque, que possuía sentimentos humanitários, podia ter mandado, sem contar com as vantagens que a rendição proporcionava. Contudo, o malicioso Tolentino manifestava ainda certa incredulidade, o que num espírito menos desconfiado talvez não tivesse acontecido.

Rugas profundas cavavam-se em volta dos seus olhos negros e penetrantes ao fixá-los atentamente no mensageiro.

 - Tendes quaisquer documentos que confirmem essa ordem?

 - Nenhuns - replicou Lorenzo, dissimulando a sua aflição.

 - Por Baco! Acho bem estranho!

 - De forma alguma, senhor, se considerardes que seria perigoso para mim trazê-los - disse o jovem apressadamente. Se as tropas de Bórgia me apanhassem com eles, eu...

Deteve-se um pouco atabalhoadamente, reparando no erro que acabara de cometer. Tolentino bateu tão fortemente com a palma da mão numa coxa que o ruído ressoou pelo aposento. O seu rosto parecia congestionado. De repente, levantou-se.

 - Senhor, senhor - disse com certo espanto. - É mister que nos entendamos. Dizeis-me que trazeis certas ordens sobre determinado assunto que foi tratado entre Valentinois e o meu senhor, e falais do perigo que haveria para vós se fôsseis encontrado com essas ordens. Tende paciência, mas não entendo nada! - acrescentou Tolentino com acento irónico. - É natural que existindo da parte de Valentinois tal desejo de paz, ele desse ordens às suas tropas para que vos deixassem passar incólume. Podeis explicar-me se existe algum erro nestas minhas conclusões?

Não restava a Lorenzo outra solução senão apresentar a melhor cara possível. Aos seus pés abria-se um precipício. Compreendia claramente que estava perdido.

 - É muito possível que se perguntardes ao meu senhor ele queira dar-vos a explicação que desejais. Quanto a mim não a conheço, nem me atrevi a perdir-lha.

Falava calma e orgulhosamente, embora o coração batesse agora com mais força. As suas últimas palavras continham uma leve censura à atitude de Tolentino.

 - Quando - continuou - eu afirmei que teria sido perigoso dar-me essas cartas, apenas vos dei uma explicação que, de momento, me ocorreu. Nunca tinha pensado nisso. Agora vejo que errei ao formulá-la.

Tolentino fixou-o demoradamente. Com efeito, enquanto Lorenzo falava, os seus olhos não tinham deixado de o observar. Estava convencido de que ele mentia, embora a calma e confiança que demonstrava, o porte altivo que ostentava, fizessem ainda com que duvidasse.

 - Pelo menos deveis trazer qualquer sinal pelo qual eu pudesse reconhecer que sois realmente um enviado do meu senhor?

 - Não trago nenhum. Mandaram-me à pressa. Parece-me que o duque nunca pensou que poderiam duvidar duma mensagem como esta.

 - Não? - perguntou Tolentino num tom escarninho. De súbito fez outra pergunta. Como entrastes na fortaleza?

 - Escalei a parede, vindo da planura do lado sul onde se diz que a rocha é inacessível. - Ao notar o ar de admiração que transparecia no rosto do capitão, explicou: - sou destes sítios; quando era miúdo, muita vez tentei esta subida. Foi por essa razão que o duque Guidobaldo me escolheu.

 - E quando alcançastes a parede, dissestes à sentinela que vos deitasse uma corda?

 - Não. Trouxe comigo uma corda e arpões.

 - Para quê, se sois um mensageiro do duque Guidobaldo? - O castelão voltou-se rudemente para os seus homens. - Onde o haveis encontrado? - inquiriu.

Foi Bernardo que se apressou a responder que o tinham apanhado a espreitar no corredor ao pé do corpo da guarda, quando vinham a sair.

Tolentino riu com feroz aprazimento, soltando uma corrente de blasfémias em tom humorístico.

 - Oh, oh! - chasqueou. - Já tínheis passado sem que a sentinela vos visse, e estáveis no centro da fortaleza, quando de repente fostes descoberto... Vede, sois um mensageiro de Guidobaldo que traz ordem para mandar a fortaleza capitular e tomais aquela atitude quamto à nossa vigília, para encobrir o modo astuto como entrastes. Oh, oh! Foi bem pensado, mas não vos valerá de nada, ainda que seja uma pena ter de torcer o pescoço a um galo tão jovem e esperto - comentou, e tornou a rir.

- Sois um louco - disse Castrocaro por fim. - E raciocinais como um louco!

 - Sério? Então, escutai. Dissestes que tinha sido por conhecerdes um caminho secreto para este castelo, que Guidobaldo vos escolheu para seu enviado. Atentai bem na loucura desta afirmação. Poderíeis ter pensado que Guidobaldo queria que aqui viésseis em segredo, verificando o erro claro dessa hipótese. Mas dizer-me que um mensageiro do duque com a ordem de rendição a César Bórgia precisava de vir aqui por caminhos secretos, arriscando o pescoço!...

Tolentino encolheu os ombros, rindo na cara pálida de Lorenzo.

 - Qual de nós dois é o louco? - perguntou, olhando de soslaio.

Então, com uma brusca mudança de atitude, fez sinal aos homens para que se aproximassem.

 - Prendei-o e revistai-o! - ordenou.

Num momento deitaram-no no chão e começaram a despojá-lo do vestuário. Fizeram uma busca minuciosa, mas nada acharam.

 - Não faz mal - disse Tolentino, indo novamente deitar-se. - Já temos provas de sobra contra ele. Conservai-o a salvo durante a noite. Amanhã de manhã, vai pelo rochedo abaixo e juro-vos que há-de descer mais depressa do que subiu.

E, voltando-se para o outro lado, Tolentino, dispôs-se a continuar o seu sono.

 

CAPÍTULO IV

Fechado na casa da guarda, pois não havia necessidade, para um homem que ia morrer em breve, darem-se ao incómodo de abrir a porta duma masmorra, Lorenzo Castrocaro passou, como se pode imaginar, uma noite bastante atribulada. Era muito jovem e sentia-se muito cheio de vida, de ânimo e de esperança, para que lhe fosse indiferente deixá-la e poder enfrentar a morte com apatia. Tinha visto a morte bastantes vezes no decurso dos dois anos da sua carreira militar. Mas fora sempre dos outros e nunca, até então, se lembrara que a morte era algo a que também estava ligado. Mesmo quando se integrou no destino que lhe estava reservado naquele assunto de San Leo, não admitiu que a morte tivesse marcado o fim da sua permanência na terra. Estava, de facto, naquela fase da juventude e do vigor, em que o homem se julga imortal. E mesmo agora que se encontrava deitado num banco de madeira, às escuras, mal [podia pensar que o seu fim estivesse tão próximo. A catástrofe vencera-o tão rapidamente que não podia convencer-se que a morte era certamente um assunto demasiado sério para se apresentar com tal facilidade e sem ser anunciada.

Suspirou enfastiado e procurou uma posição mais cómoda no seu duro leito. Pensou em muitas coisas. No passado, na infância, na mãe, nos seus companheiros de armas, nas façanhas bélicas que tinha executado. Via-se a si próprio, abrindo brecha na barreira viva que circundava a muralha de Forli, cavalgando ao lado de Valentinois na terrível carga que derrotou Colonna diante de Capua; e teve uma visão extraordinariamente clara dos mortos que vira então e do aspecto que tinham na morte! Assim estaria ele no dia seguinte, dizia-lhe a razão. Mas a imaginação recusava-se a admiti-lo.

Depois os seus pensamentos voltaram-se para a «Madonna» Biamca de Fioravanti, que nunca mais tornaria a ver. Havia meses que vinha sentindo uma grande ternura por ela, uma ternura doce e melancólica, e em segredo tinha-se aventurado a compor versos em sua honra. Na sua curta vida, tinha havido amores mais ardentes; mas a «Madonna» Bianca merecia-lhe um respeito terno, um sentimento mais sagrado do que o que tivera por qualquer das outras mulheres que conhecera. De facto, o contraste era tão profundo, como o que separa o amor puro do profano. Talvez fosse por ela ser tão intangível, tão distante, tão desmedidamente superior a ele, filha dum grande senhor, representando hoje uma importante Casa, enquanto que ele era simplesmente um condottiere, um aventureiro que não tinha por património mais do que o seu talento e a sua espada. Suspirou. Gostaria de vê-la, mais uma vez, antes de morrer, ter-lhe contado a história do seu amor, como um pastor entoa a sua canção da morte. Mas, no fim de contas, não tinha grande importância, reflectiu, pois ela, certamente, não o amava.

O seu exame de consciência, naquela hora suprema, pouco ou nada tinha que ver com a sua estrutura espiritual.

Duvidava que ela viesse a saber do fim que tivera ou que, se viesse a sabê-lo, sentisse um pouco de compaixão ou, mesmo, se lembrasse dele, um dia. Era estranho, pensava, que tivesse aquele fim no castelo que pertencera ao pai da mulher que amara. Ao mesmo tempo, porém, sentia-se feliz por não haver sido condenado à morte por ele.

Cansado fisicamente pelo esforço da escalada, caiu por fim num sono profundo; quando acordou, viu que a luz do Sol entrava já pelas altas janelas da sua cela.

Acordara-o o ruído duma chave na porta e quando se ergueu, dorido e entorpecido, sentando-se sobre a dura cama, a porta abriu-se e Bernardo entrou, seguido por seis soldados armados.

 - Bom dia - disse delicadamente Bernardo, um pouco sem pensar, sabendo o que aquele dia representava para Lorenzo.

O jovem sorriu, enquanto punha os pés no chão.

 - Que ele seja melhor ainda para si! - respondeu, ganhando assim, pelo seu ar agradável e a sua atitude graciosa, a estima do rude oficial.

Lorenzo já se convencera de que, se tinha de morrer, custar-lhe-ia menos a fazê-lo, aceitando a sorte prazenteiramente. As lamentações não lhe valeriam de nada. Portanto, seria o mais jovial possível. Talvez que a morte não fosse tão terrível como a pintam, e quanto àquele inferno em chamas que está aberto para os que beberam da taça do prazer na mocidade, é possível que conseguisse obter um perdão antes de lá chegar.

Levantou-se e passou os dedos pelos cabelos loiros e longos, agora desgrenhados. Depois olhou para as mãos horríveis, esfoladas devido à aventura do dia anterior e pediu a Bernardo que lhe trouxesse água.

As sobrancelhas de Bernardo arquearam com a surpresa daquele pedido. O trabalho de se lavar não lhe parecia coisa razoável numa ocasião daquelas. Lá fora, no pátio, um tambor começava a fazer a chamada. Bernardo estendeu o lábio inferior em ar de dúvida.

 - «Measer» Tolentino está à vossa espera!

 - Bem sei - replicou Castrocaro. Quereis que me apresente assim? Era uma prova de falta de respeito para com o carrasco.

Bernardo encolheu os ombros, e deu a ordem a um dos seus homens. O rapaz colocou a arma a um canto e saiu para voltar com uma bacia de ferro cheia de água. Colocou-a em cima da mesa. Lorenzo agradeceu-lhe despiu o gibão e a camisa, e, nu da cintura para cima, procedeu aos seus preparativos, o melhor que pôde em tão escasso tempo.

Depois de lavado e refrescado, com o vestuário escovado e arranjado, viu que estava pronto. Os homens rodearam-no a uma ordem de Bernardo, e acompanharam-no em marcha para onde, impaciente, o capitão o esperava. Lorenzo entrou no espaçoso pátio interior do castelo, com passo firme, a cabeça erguida, as faces um pouco mais pálidas do que habitualmente. Olhou embevecido para o céu de cobalto, examinando depois a fila de soldados disposta no pátio, com os seus uniformes de aço e couro, tendo por cenário as muralhas cinzentas da fortaleza. Não seriam mais de trinta homens, e era toda a guarnição do castelo.

Um pouco à frente deles, o alto capitão passeava lentamente. Estava todo vestido de negro, de luto pelo seu defunto senhor, o, senhor de Pioravanti, e a mão repousava no punho da sua espada guardada na bainha. Parou ao ver aproximar-se o prisioneiro condenado. Os soldados que o cercavam dispersaram, deixando-o face a face com Tolentino.

O castelão fitou-o severamente por um momento e Lorenzo sustentou esse olhar, respondendo intrepidamente àquele exame solene.

Por fim, o capitão disse:

 - Desconheço a vossa intenção penetrando aqui a noite passada; sei apenas que era traiçoeira, como as vossas mentiras me esclareceram e por isso ides sofrer a morte, como compete a quem é apanhado como vós fostes.

 - Estou preparado para o sacrifício - disse Lorenzo friamente. - Agradeço-vos que me poupeis a tortura das orações fúnebres antes de morrer. A minha coragem não resistirá a tanto, se tiverdes em conta que ainda não almocei!

Tolentino sorriu amargamente, olhando-o.

 - Está muito bem - respondeu. Em seguida acrescentou - Não me direis quem sois e o que procuráveis?

 - Já o disse e parece-me que tendes conveniência em não acreditar no que digo. Por isso, que necessidade há de

falar mais no assunto? Apenas serviria para nos aborrecermos. Vamos então ao enforcamento que, Segundo me parece, é coisa de que percebeis mais.

 - Ah! - exclamou Tolentino.

Do grupo de soldados que se encontravam formados, adiantou-se um que se dirigiu ao capitão, dizendo:

 - Posso esclarecer-vos sobre a identidade dele, meu capitão e senhor!

O capitão voltou-se ràpidamente, fixando o soldado.

 - É Lorenzo Castrocaro.

 - Um dos condottieres de Valentinois? - exclamou Tolentino.

 - Ele mesmo, capitão - assegurou o homem.

 Lorenzo fixou-o e reconheceu nele um homem que servira sob as suas ordens, meses atrás.

Encolheu os ombros com indiferença perante a visível satisfação do capitão.

 - Que há de estranho nisso? - disse. - Para morrer, tanto vale um nome como outro.

 - E como preferis morrer? - concedo-vos o direito de escolher.

 - De velho, naturalmente - respondeu Lorenzo despreocupadamente, e acompanhando com um sorriso as gargalhadas que a sua resposta provocara ante a soldadesca.

Tolentino, porém, franziu a testa, pouco satisfeito.

 - Quero eu dizer, senhor, se preferíeis ser enforcado ou saltar do rochedo por onde subiste a noite passada?

 - Hum! Agora o caso é outro. Limitais a escolha. Bem... concordarei com o suplício que vos proporcionará maior divertimento.

Tolentino fitou-o demoradamente enquanto afagava o queixo comprido e franzindo as sobrancelhas. Sentia uma certa admiração por aquele rapaz que ousava enfrentar a morte com tanto denodo. Como castelão de San Leo, porém, não podia deixar de cumprir o seu dever.

 - Bem - - disse por fim, lentamente. - Sabemos que sois capaz de saltar como um macaco, deixai-nos ver se também sabeis voar como um pássaro. Levem-no para os baluartes, acolá.

 - Um momento! - gritou Castrocaro, lembrando-se de repente dos pecados da juventude e pondo neles uma esperança. - Porventura sois todos pagãos, aqui em São Leo? Onde se viu atirar-se com um cristão para os negros braços da morte? Sem lhe permitir receber o perdão dos seus pecados? Acaso me negareis o auxílio espiritual concedido aos condenados à morte?

Tolentino franziu o nariz, demonstrando a contrariedade que aquela demora lhe ocasionava. Depois, fez um sinal a Bernardo, dizendo-lhe:

 - Vai buscar o padre.

A débil e inteligente esperança que Lorenzo acalentou de que não houvesse no castelo um padre, e que aqueles homens, filhos fiéis da Santa Igreja, não ousassem matar sem confissão um homem que a tinha pedido, desvaneceu-se rapidamente.

Bernardo saiu e chegou à porta da capela precisamente quando se pronunciava o «Ite, missa est», da missa da manhã. No umbral, com a pressa que levava, deu um encontrão numa senhora vestida de negro que vinha a sair, guiada por duas aias. Afastou-se e encostou-se à parede, murmurando desculpas.

 - Porque ides com tanta pressa à capela? - perguntou por lhe parecer estranho tanto fervor religioso num soldado de Tolentino.

 - Precisamos do padre Girolamo - informou. - Um homem que vai morrer deseja confessar-se.

 - Um homem que vai morrer - repetiu, com uma solicitude terna, pensando que um dos da fraca guarnição tivesse sido mortalmente ferido.

 - Sim. Um capitão de Valentinois, um tal Lorenzo Castrocaro que chegou aqui de noite. E acrescentou vangloriando-se: - Fui eu, «Madonna», que o prendi!

Mas Bianca de Fioravanti já não ouviu as últimas palavras; recuou um passo e encostou-se, para não cair, a um dos pequenos pilares do pórtico. As suas faces estavam pálidas como a morte, os olhos fixando tristemente o soldado.

 - Que nome... que nome foi que dissestes?

 - Lorenzo Castrocaro, um capitão de Valentinois - repetiu o soldado.

 - Lorenzo Castrocaro? - repetiu ela por seu turno, se bem que nos seus lábios o nome parecesse outro, tão diferentemente ela o pronunciava!

 - Sim, «Madomna».

De súbito ela agarrou-lhe o braço com tanta força que o magoou.

 - E está ferido... mortalmente? - exclamou com estranha violência.

 - Não, não está ferido. Vai morrer, por ter sido capturado. É tudo. «Messeir» Tolentino vai madá-lo atirar das muralhas. Podeis contemplar o espectáculo das ameias, «Madonna». É...

Ela largou-lhe o braço e retrocedeu horrorizada, interrompendo-lhe a apologia do divertimento que iam ter.

 - Guiai-me até onde se encontra o capitão - ordenou.

 - E o padre? - inquiriu, admirado.

 - Não vos preocupeis com isso. Vamos.

O tom em que lhe falara era tão imperioso que ele não ousou desobedecer-lhe. Fez uma vénia, resmungando por entre dentes, e, voltando-se, desceu pela mesma passagem, e dirigiu-se ao pátio, seguido pela dama e pelas aias.

Os olhos de Bianca cruzaram-se com os de Lorenzo, e ela notou, com satisfação, o repentino abatimento do seu orgulho, o leve rubor que se espalhara nas suas faces pálidas. Para ele, fora uma aparição surpreendente pois, como César Bórgia tinha planeado, ele não sabia, nem sequer suspeitava, da sua presença em San Leo.

Bianca parou por um momento, fixando-o ardentemente, a alma brilhando-lhe no olhar. Depois avançou, tomando a dianteira a Bernardo, sempre seguida das suas aias. Assim chegou junto do capitão da fortaleza, muito pálida, mas com uma expressão resoluta.

Tolentino fez uma vénia profunda, e, em seguida explicou a situação:

 - É um jovem aventureiro que capturámos a noite passada dentro das muralhas - informou, - É um capitão ao serviço de César Bórgia.

Ela fitou novamente o prisioneiro que se mantinha firme na sua frente, e, depois virou-se para o oficial.

 - Como chegou- ele aqui? - perguntou,, demonstrando curiosidade.

 - Escalou o rochedo do lado sul, arriscando a vida - respondeu Tolentino.

 - E que procurava ele?

 - É isso precisamente que nós desconhecemos - disse Tolentino. - Nem ele no-lo dirá. Quando o prendemos a noite passada pretendia ser enviado do duque Guidobaldo, o que não era verdade. Era um subterfúgio para escapar às consequências da sua audácia.

E o capitão explicou, fazendo uma compreensível ostentação da sua esperteza, como tinha imediatamente compreendido que se Lorenzo fosse quem dizia ser não precisava de ter entrado em San Leo secretamente.

 - Nem precisara de arriscar a vida, como dissestes, subindo pelo lado sul, se estivesse ao serviço de César Bórgia - disse a senhora.

 - É uma conclusão precipitada, «Madonna» - respondeu Tolentino. - Só pelo lado sul se pode escalar o muro.

 - Com que objectivo pensais então que ele veio?

 - Com que objectivo? Mas sem dúvida com o de trair-nos, entregando o castelo às tropas de César Bórgia! - exclamou Tolentino, perdendo um pouco a paciência perante perguntas tão supérfluas.

 - Tendes provas disso? - inquiriu ela, levantando a voz.

 - Para o senso comum, aquilo que é óbvio não necessita

de provas - disse ele num ar sentencioso, mostrando certo ressentimento pela interferência feminina em assuntos de homens. - Vamos atirá-lo, pelo caminho por onde veio - concluiu.

Bianca, porém, não lhe prestava a menor atenção.

 - Não o fareis antes de eu estar persuadida de que as suas intenções eram as que supondes - replicou.

O seu tom era, não só tão firme como o dele, como exprimia, embora de um modo velado, que ela era a senhora de San Leo e ele nada mais que um castelão.

Tolentino fitou-a, carrancudo, e encolheu os ombros.

 - Como for de vossa vontade, «Madomna». Comtudo, ousarei dizer-vos que a minha grande experiência permite tratar melhor destes assuntos.

A jovem sustentou audaciosamente o olhar do veterano curtido em tantas guerras.

 - Os conhecimentos, capitão, são certamente mais importantes que a experiência.

 - Por acaso quereis dizer-me... que sabeis o motivo por que ele aqui veio? - tartamudeou ele.

 - É possível!

E voltando as costas ao atónito- capitão, dirigiu-se para o preso que se encontrava mais perplexo ainda.

Avançou delicadamente para Lorenzo, cujos olhos dum tom de safira resplandeciam ao fitá-la, reflectindo o espanto que experimentara ao ouvir as suas palavras. Tinha-as pesado, procurando resolver o enigma que continham - e, confessemo-lo - pensando como havia de resolver a questão em seu proveito nesta hora desesperada.

Receio que vós, leitores, vislumbreis qualquer coisa de malévolo da parte de Lorenzo. E admito que ele se tenha mostrado bem pouco herói de romance ao desejar manobrar o assunto de modo a atrair sobre si o interesse da senhora. Mas se não foi propriamente heróico, foi, inegavelmente humano, e Se vos dei a ideia de que Lorenzo era algo mais que humano,  então, não há dúvida que desempenhei mal a minha missão.

Não era tanto o seu amor por ela, como o amor a si próprio, .amor que a mocidade tem à vida, que lhe mostrava a possibilidade de induzir a jovem a abrir-lhe uma porta por onde ele escapasse ao perigo que o ameaçava. E, contudo, para que o não julgueis pior do que ele merece, lembrai-vos de que Lorenzo há muito erguera os olhos para aquela jovem, embora a considerasse demasiadamente longe do alcance dum aventureiro.

Ela olhou-o em silêncio, por um momento. Depois, com uma calma demasiado profunda para ser natural, disse:

 - Dai-me o braço e conduzi-me às ameias!

As faces de Lorenzo tornaram-se escarlates. Contudo, adiantou-se, e num gesto de galantaria colocou-se ao seu lado.

 - Reflecti, «Madonna»... - interveio Tolentino. Bianca, porém, afastou-o para o lado, com um gesto autoritário. De qualquer forma ela era a dona de San Leo.

Lado a lado, o prisioneiro e a suprema senhora dirigiram-se para a escada que conduzia ao baluarte ornado de ameias. Tolentino resmungava sem cessar, amaldiçoando a sua pouca sorte que o reduzia a ser lacaio duma mulher; mandou embora os homens num acesso de fúria, e sentou-se junto da fonte, no meio do pátio, esperando o fim daquela preciosa entrevista.

Encostada ao muro do baluarte, espalhando a vista, pela vasta planura emiliana, «Madonna» Bianca quebrou o silêncio que reinava entre ela e Castrocaro.

 - Trouxe-vos aqui, «messer» Lorenzo, para que me conteis o verdadeiro objectivo da vossa visita a San Leo.

Os seus olhos tinham-se desviado da face dele, o peito arfava graciosamente, a voz tremia-lhe ao de leve. Ele tossiu, tornando a voz límpida para lhe responder. A sua resolução era agora clara e definitiva.

 - Posso dizer-vos aquilo que não vim fazer, «Madonna» - respondeu num tom quase duro. - Não vim para entregar-vos nas mãos do inimigo. Juro-vo-lo, pela salvação da minha alma. com que conto.

Esta afirmação podia parecer perjúrio, à primeira vista; e, contudo, era verdadeira, conquanto não fosse absolutamente sincera. Como vimos, ele nem sequer sonhava que ela estava em San Leo e, consequentemente, que, entregando o castelo aos homens de Della Volpe, lhes entregaria também, a «Madonna» Bianca. Se soubesse da sua presença ali com certeza não teria aceitado aquela missão. Por isso ele podia jurar como o fizera, e não jurava falso, embora ocultasse uma parte da verdade.

 - Disso tinha eu a certeza - respondeu ela gentilmente. As palavras e o tom, embora o surpreendessem, davam-lhe ousadia para o seu estratagema, incitando-o a continuar o caminho que tinha encetado. Em nenhuma outra ocasião, pensando no que ele era e no que ela era, teria tido a audácia de ir tão longe. Agora, porém, tratava-se da coragem dos desesperados. Ia morrer e nada na vida assusta aqueles que se encontram cara a cara com a morte. Admitiu temeràriamente que à décima primeira hora podia tornar a ganhar o direito à vida.

 - Ah! não me pergunteis porque vim. - implorou-lhe roucamente. - Atrevi-me a tanto, pensando que me arriscava a tudo! Mas agora, aqui, na vossa frente, sob o brilho dos vossos olhos angélicos, sinto que a coragem me abandona. Tornei-me um cobarde, eu que não tive medo quando me foram buscar para me matarem.

Bianca estremeceu ao ouvir estas palavras que tantas promessas revelavam.

 - Vede, «Madonna» - prosseguiu Lorenzo, estendendo as mãos esfoladas, inchadas e feridas. - Todo o meu corpo é uma grande ferida. - Voltou-se. - Olhai para ali! - e apontava para a face escarpada do penhasco. - Foi por aquele caminho que vim, a noite passada, na escuridão, arriscando a vida a cada passo. Vedes aquela fenda onde mal há espaço para pôr o pé. Trepei por ela, para aquele espaço vazio e depois saltei por cima da pequena brecha. Ela tremia, seguindo a sua narração.

 - Subi por aquela greta, rasgando os cotovelos e os joelhos, por ali fora até atingir a plataforma do lado sul, acolá.

 - Como sois valente! - exclamou, não podendo conter-se.

 - Dizei antes, como fui louco! - murmurou. - Digo-vos isto para que possais compreender que coragem a minha então, que indomável impulso me arrastou aqui. Não pensaríeis, «Madonna», que tendo arriscado tanto, pudesse agora hesitar e, todavia... Parou cobrindo o rosto com as mãos.

Ela aproximou-se mais, encoraijando-o, dizendo-lhe docemente, a seu lado:

 - E todavia...

 - Oh! Não me atrevo! Estava louco, louco! - » então, por acaso, da sua boca saíram as palavras perfeitamente adequadas ao seu pensamento. De facto, não sei que espírito de loucura se apoderou de mim!

Ele não sabia! E Bianca estremeceu ao ouvir aquela confissão. Ele não sabia! Mas, ela, sim sabia-o, e por isso interferira para o arrancar das mãos de Tolentino. Se ele tivesse morrido, se o carrasco o houvesse arrojado do alto da muralha, naquele horrível salto da morte, seria às suas mãos que ele teria perecido, pensou, horrorizada.

Pois não fora ela que o enfeitiçara? Não fora ela que lhe dera uma droga num filtro de amor; - o elixir áureo pedido a Corvino Trismegito? Acaso nãorsabia que aquele elixir ardia feroz e indomável nas suas veias, que se apossara dele como a loucura e o arrastara até ali, desprezando todos os perigos, para poder chegar junto dela?

O feiticeiro afirmara-lhe que ele se tornaria seu humilde escravo antes da Lua desaparecer de novo. Ele dissera - lembrava-se com ardente satisfação. - «Ele será vosso ainda que entre os dois se interponha o Mundo inteiro».

A promessa soou-lhe novamente aos ouvidos, e ela já não podia duvidar da sua realização! Como o mágico falara verdade, e como tão bom efeito produziu o seu elixir de ouro!

Assim raciocinava a «Madonna» Bianca, clara e confiadamente. Brilhavam lágrimas nos seus olhos pretos quando voltou a olhar a cabeça inclinada do jovem capitão que tinha a seu lado. Estendeu uma cálida mão sobre a cabeça que parecia ter-se transformado em ouro sob a luz brilhante do Sol.

 - Pobre Lorenzo! - murmurou com ternura. Ele olhou em volta, fitando-a, pálido.

 - Oh! «Madonna»! exclamou - caindo sobre um joelho, aos pés dela. - Descobristes o meu segredo, o meu insondável segredo! Ah, deixai-me partir! Deixai que me atirem do rochedo e acabará assim a minha vilania!

Atingira o máximo da emoção. Sentia que o espectro da morte se sumira completamente. Aguardava, agora, uma meiga compaixão perante uma desgraça que ela certamente pensaria que fora provocada pela sua beleza, e assim esperava uma terna despedida, não pensando sequer que ela jamais consentiria na sua partida.

- Meu querido, que  estais  a dizer?  Não há para vós, então, outra felicidade que não seja morrer assim? Acaso me mostrei eu zangada? Não vos manifestei apenas alegria por ver que, por mim, haveis arriscado tanto?

Nesta altura, pareceu a Lorenzo que o Mundo estava às avessas, ou, então, que o seu pobre cérebro... Quem poderia pensar que tão nobre dama lhe dispensasse alguma vez um olhar favorável? Seria, portanto, lá possível que ela retribuísse o seu amor, amor que ele considerava tão sem esperança, que num momento de aflição não tivera escrúpulos em desvendá-lo com o fim de a enganar, por não ousar mostrar-lho de outro modo!

, Revelou claramente o seu enorme espanto.

- Oh!  é impossível - exclamou, chorando, e desta vez não estava a representar.

- O que é que é impossível? - perguntou ela. - E pondo as mãos sob  os cotovelos  dele,  obrigou-o,  gentilmente, a abandonar aquela posição. - O que é que é impossível? - repetia quando novamente se encontraram em frente um do outro.

E agora o fogo que brilhava nos olhos de Lorenzo não era fingido.

- É impossível que não deprecieis o meu amor? -murmurou.

- Depreciá-lo? Eu? Eu que o fiz despertar, e que o desejei?

- Desejaste-o? - repetiu em voz baixa, quase num murmúrio. - Desejáste-lo?

Permaneceram por um instante olhando-se, depois caíram nos braços um do outro, ela soluçando na sua louca alegria e ele prestes a fazer o mesmo, pois como sabeis, tinha sido uma terrível manhã aquela, para ele.

E foi assim - a senhora de San Leo e o capitão de Bórgia unidos num doce amplexo, sob um céu de Verão - que Tolentino foi dar com eles.

Admirado de tão grande demora, o castelão julgou conveniente ir procurá-los. E o que então observou deixou-o mudo como uma pedra, a boca aberta como um doido.

Os dois jovens separaram-se para não faltar às conveniências e, então, a jovem senhora, confundida e ruborizada., apresentou Lorenzo ao castelão como seu futuro senhor e explicou-lhe confidencialmente -tal como o compreendera, - a verdadeira razão da visita do cavalheiro a San Leo.

Tolentino desaprovou profunda e desdenhosamente toda aquela história, considerando imperdoável que a sua senhora, fiel súbdita do duque de Guidobaldo, dona duma das fortalezas de Urbino, fosse escolher para marido alguém cujo destino estava ligado ao do usurpador Bórgia.

O seu descontentamento era bem visível e se o não manifestou com todo aquele calor de expressão pelo qual se tornara afamado, foi porque ficara mudo  de estupefacção.

A partir daquele momento foram dispensados a Lorenzo os cuidados e considerações que correspondiam a um homem naquela situação. Prepararam-lhe um banho, procuraram-se fatos que lhe servissem, escolhendo-se os mais ricos e adequados; a guarnição perdeu as esperanças da execução e o capitão de Bórgia jantou à mesa da «Madonna». No banquete, foram servidas as melhores carnes que os sitiados dispunham e os mais raros vinhos da adega de Fioravanti.

Lorenzo estava vivo e alegre, e à tarde, encadeado pelos sorrisos encantadores de «Madonna» Bianca, pegou num alaúde que encontrara nos aposentos da mesma e cantou uma daquelas horríveis canções que tinha composto em sua honra. Foi uma experiência perigosa. E o que mais é para admirar é que, embora tivesse muito bom-gosto no que dizia respeito a composições líricas, a «Madonna» Bianca parecia muito satisfeita.

Em toda a Itália não havia naquele momento homem mais feliz que Lorenzo Caistrocaro, o qual, já no limiar da morte, vira-se de repente lançado naquilo que de mais belo e melhor podia ter esperado da vida. A sua felicidade absorvia todo o seu pensamento. E esquecera completamente O resto.

Mas, de súbito, uma repentina recordação assaltou-o deixando-o lívido de terror. Estava no meio da sua canção e a seu lado «Madonna» sorria-lhe desvanecida. Deixou cair o alaúde, a mão começara a tremer-lhe...

Com um grito de espanto, a apaixonada curvou-se sobre ele:

- Enzo!  Que tens?

Ele ergueu-se precipitadamente:

- Não, não, não tenho nada. Mas, oh! Torcia as mãos gemendo.

Ela levantou-se também, cheia de terna solicitude, perguntando o que o afligia. Lorenzo fitou-a, com uma face pálida de desespero.

- Que  fiz  eu?  Que  fiz eu? - gritava,   aumentando  o espanto da jovem.

Ela pensou então que talvez o efeito do filtro do feiticeiro estivesse a desaparecer. Receosa, insistia em saber o que o atormentava e ele, sentindo-se forçado a explicá-lo, parou um instante para achar um meio termo nas palavras, para arranjar expressões que o não traíssem.

- Bem, isto... - disse, com tom de verdadeira  dor na voz e no coração. - Na minha loucura para vir aqui, nunca pensei no que isso me viria a custar. Sou capitão de Bórgia e agora não sou mais que um traidor, um desertor que abandonou os seus serviços para se passar para o inimigo, para me sentar aqui e estar feliz e à vontade no mesmo castelo que o meu duque está cercando.

Ela compreendeu imediatamente a terrível situação em que ele se encontrava.

- Jesus! - gritou. - Não tinha ainda pensado nisso.

- Quando me apanharem, vão certamente enforcar-me como traidor! -exclamou.

E o seu temor era perfeitamente justificado. Toda a noite deixara Della Volpe e os seus homens esperando debalde junto dos portões da fortaleza. Se falhasse na missão de que fora incumbido não havia outra solução que não fosse a morte ou o cativeiro, pois, mais cedo ou mais tarde, viriam a descobrir que se tinha unido a «Madonna» Bianca.

- Céus! Teria sido mil vezes preferível que Tolentino me tivesse morto esta manhã, como desejava. - Mas: logo se interrompeu, voltando-se para Bianca com um ar de penitência.-Oh!  Não!  Não! Eu não queria dizer isto!  Falei sem pensar. Seria um ingrato se o desejasse; um ingrato e um louco pois se ele me tivesse morto não gozaria jamais este dia de felicidade.

- Mas que havemos de fazer?-perguntou ela, torcendo as mãos angustiada. - Que havemos de  fazer, meu Enzo? Deixar-te partir agora, de  nada te valeria!  Oh, deixa-me pensar,  deixa-me pensar! - E, quase imediatamente: - Há uma maneira!-exclamou.

E aquele grito, de alegria, transformou-se logo em tristeza e melancolia.

- Que maneira? - inquiriu ele.

- Receio que seja a única - murmurou, tristemente.

Adivinhando o que ia na mente, ele repudiou a sugestão.

- Ah, isso não! Não devemos pensar nessa solução! Não to permitiria, nem mesmo para me salvares a vida!

O seu olhar, os seus lindos olhos negros brilhando com um entusiasmo encantador, fitavam-no, porém, com tanta languidez amorosa...

- Sim, para salvar a tua vida! É o bastante para justificar a minha acção,. Não o faria por mais nada, Enzo, senão para te salvar, a ti, que eu arrastei a este passo...

- Que estás a dizer, querida?

- Pois bem, que a culpa é minha e eu é que devo sofrer o castigo.

- A culpa?

- Não foi por minha causa que vieste aqui?

Ele corou, pouco à vontade por ver, segundo ele pensava, que a sua mentira se voltava contra ele.

- Ouve----continuou ela. - Deves fazer o que eu te mamdar.

Irás como meu enviado a César Bórgia e em meu nome, propor-lhe-ás a rendição de San Leo, na condição de se respeitarem as honras de guerra e o salvo-conduto da minha guarnição.

- Não,   não - protestou   ele   mais   uma   vez - sinceramente enojado da sua vilania. - Além de que isso não serviria de nada.

- Dir-lhe-ás que sabias dum caminho para aqui chegares e realizares este fim, o que - ajuntou sorrindo - é, na realidade, verdade. O duque ficará demasiado satisfeito para desaprovar os meios que empregaste.

Ele virou a cara.

- Oh! mas isso é vergonhoso!-exclamou.

O verdadeiro significado desta exclamação, porém, não foi compreendido por Bianca.

- De qualquer  das» formas  dentro  de  alguns dias,  de algumas semanas, a rendição tornar-se-á inevitável.., - lembrou ela.-Aliás, que sacrifico eu? Um pouco de orgulho, nada mais. E isto deve pesar mais que a tua vida a meu lado.

É preferível render-me agora que tenho alguma coisa a ganhar com isso, do que depois, quando tivesse tudo a perder.

Ele reflectiu. Com efeito, era a única maneira. E, no fim de contas, ele não lhe roubava nada que não lhe restituísse a seu tempo, nada que não pudesse restituir-lhe em breve, pelo menos, em parte.

Considerando tudo isto e o que o duque lhe tinha prometido expôs-lhe o resultado da sua lucubração, sentindo-se, contudo, Intimamente envergonhado pela bela fraude que praticara.

- Bem; Bianca, seja assim! -disse. - Mas em condições mais generosas que as que propuseste. Não deixarás a tua casa, aqui. Deixa que parta a guarnição, mas tu ficas!

- Como é isso possível? - perguntou ela.

- Há-de sê-lo! - assegurou, cowfiadamente, pensando na promessa do duque.

Naquela noite, com documentos que o acreditavam como seu plenipotenciário, Lorenzo partiu de San Leo a cavalo, dirigindo-se para o vale pelo caminho estreito já mencionado. Chegou junto das sentinelas de Della Volpe, que se recusavam a acreditar que ele fosse Lorenzo Castrocaro e o levaram ao capitão.

Quando Della Volpe olhou para ele, através do seu único olho, exprimiu, ao mesmo tempo, suspeita e satisfação.

- Onde estivestes? - perguntou rudemente.

- Acolá, em San Leo - respondeu, simplesmente, Castrocaro.

Della Volpe lançou uma praga pitoresca.

- Julgávamos que estáveis morto. Os meus homens têm andado à procura do teu corpo no sopé do rochedo.

- Lamento o vosso desapontamento e o trabalho perdido - disse Lorenzo, sorrindo, e Della Volpe praguejou de novo.

- Como se explica que tendo falhado neste caso, conseguisses voltar vivo?

- Não falhei! - foi a resposta. - Vou ter com o duque para apresentar-lhe os termos da capitulação.

Della Volpe recusou-se rudemente a crer até que Lorenzo lhe pôs sob a vista as cartas de «Madonna» Bianca. Ao vê-las, o veterano teve um ar de desdém, pouco satisfeito.

- Por todos os diabos do Inferno!-exclamou. - Julgo compreender tudo. Sempre vos arranjastes bem com mulheres, Lorenzo! Percebo!

- Para quem  tem  tsó  um  olho,   vedes  demais - disse Lorenzo afastando-se. - Voltaremos a falar disso quando eu já estiver casado. Boa-noite!

Já era bastante tarde quando chegou a Urbino. Mas embora tarde, pois já passava muito da meia-noite, o duque ainda não estava deitado- De facto, César Bórgia parecia que nunca dormia. A qualquer hora do dia ou da noite sempre o encontrava a pé quem trouxesse recado de importância.

Sua Alteza estava a trabalhar na biblioteca com Agabito, preparando alguns despachos para Roma, quando Lorenzo se apresentou.

Levantou  os olhos  assim que o jovem capitão entrou.

- Bem - disse. - Trazeis-me notícias da rendição de San Leo?

- Não se trata bem disso, Alteza, mas trago a proposta da capitulação e as suas condições. Se Vossa Alteza as assinar, amanhã tomarei posse de San Leo em vosso nome.

Os olhos brilhantes do duque examinaram atentamente o rosto do confiante jovem. Sorriu calmamente.

- Tomareis posse?

- Como governador, designado por Vossa Alteza - explicou Lorenzo.

Colocou os documentos na frente do Duque que o fitava inteligentemente. Depois de lhes ter passado uma vista de olhos entregou-os a Agabito para que este pudesse estudá-los mais pormenorizadamente.

- Diz-se aqui que a senhora Bianca de Fioravanti ficará em San Leo - observou o secretário admirado.

- Porquê?-inquiriu César a Lorenzo. - Por quê, esta condição?

- As circunstâncias tornaram o caso complexo - explicou o condottiere - nem tudo correu tão facilmente como eu tinha esperado. Pouparei os pormenores a Vossa Alteza, informando, em poucas palavras, que fui apanhado adentro das muralhas do castelo e... e tive que tratar do assunto o melhor que pude, em tal situação.

- Suponho que não as achais desvantajosas para vós? - disse César. - Ser-me-ia penoso que o fossem. Mas nem penso nisso, pois dizem que a «Madonna» Biamca é linda.

Castrocaro corou subitamente confundido. Era a primeira vez que não conseguia dominar-se.

- Estais  já informado  das  circunstâncias...   Alteza? - foi tudo o que conseguiu perguntar.

César teve uma pequena risada, quase desdenhosa.

- Sou uma espécie de profeta - replicou. - Pude prever este fim, ainda mesmo antes de vos ter confiado esta missão. Agistes bem - acrescentou - e o governo da fortaleza é vosso. Preparai isso já, Agabito. «Messer» Lorenzo há-de ter pressa de regressar para junto de «Madonna» Bianca.

Meia-hora depois, após a partida de Castrocaro para San Leo, admirado e feliz, César ergueu-se da secretária, bocejou e sorriu para o secretário, que possuía a sua confiança e amizade.

- E assim, conquistámos San Leo, que podia ter resistido um ano - disse, esfregando as mãos devagar, contente.

- Este Castrocaro julga que foi ele que fez tudo; a dama julga que  foi  ela,  com  a  ajuda do charlatão Trismigito. Não sonham sequer que tudo sucedeu como eu tinha planeado e imaginado.

E começou a filosofar.

- Quem quiser alcançar a glória deve saber, não só lidar com os homens, mas também lidar com eles de tal maneira que não suspeitem de que são simples instrumentos. Se eu não tivesse ouvido por acaso, aquilo que ouvi em casa de Corvino Trismegito, e, sabendo o que sabia, não tivesse colocado em jogo as peças humanas de modo que me trouxessem este resultado, as coisas poderiam ter-se passado diferentemente, e muitas vidas se haveriam perdido antes de San Leo capitular. Compreendi o partido que poderia tirar do elixir de amor do mágico em cujos efeitos a «Madonna» Bianca tanto acredita.

- Havieis previsto isto, Alteza, quando mandastes Castrocaro   em   tão  perigosa   missão? - atreveu-se   Agabito   a perguntar.

- Naturalmente! Onde ia eu encontrar um homem para quem o assunto fosse menos perigoso? Ele desconhecia que «Madonna» Bianca se encontrava ali. Tive a habilidade de lho não revelar. Enviei-o confiante em que, se ele não pudesse abrir os portões a Della Volpe e fosse apanhado, seria suficientemente esperto para não se trair, e a «Madonna» pensaria que tinha sido o seu filtro de amor que o tinha impelido para ela, irresistivelmente. Poderia ela enforcá-lo, sabendo isto? Poderia ela ter procedido doutra maneira?

- De facto, Corvino serviu-vos bem.

- Tão bem que salvou a vida!  O precioso veneno não o matou e estamos no décimo-sexto dia.

O duque riu por uns instantes, metendo os polegares no cinturão da veste que era de tecido dourado forrado de arminho.

- Expedi ordens para que o soltem amanhã, Agabito. Mas recomendai que me guardem a língua dele e a mão direita, como recordações. Assim, já não poderá tornar  a escrever e dizer mentiras.

 

San Leo capitulou na manhã seguinte. Tolentino e os seus homens saíram a cavalo, com a lança em riste. O capitão mostrava-se muito aborrecido com o acontecimento, que considerava difícil de compreender.

Então Lorenzo Castrocaro entrou na fortaleza à cabeça das suas tropas, para colocar a sua chefia aos pés da «Madonna» Bianca.

Casaram nesse mesmo dia na capela do castelo e ainda que levassem alguns anos a contar um ao outro o ardil que ambos tinham posto em prática, certo é que, assim o mostram testemunhas vivos, e embora possa parecer deplorável aos moralistas, nesse espaço de tempo não foram menos felizes.

 

PERUGINO

O secretário de Estado do Senhorio de Florença, Maquiavel, atravessou rapidamente a ponte sobre o Misa, montado num macho, parando no limiar da cidade de Sinigaglia a contemplar o cenário. À sua direita, para Ocidente, o Sol mergulhava ao longe na linha enevoada dos Apeninos, espalhando pelo Céu uma claridade rutilante que, juntamente com os incêndios que se erguiam por sobre a cidade, deslumbrava.

O secretário hesitou. Era naturalmente meigo e quase tímido, como qualquer estudante ou intelectual, contrastando em si mesmo com a implacável objectividade das suas teorias. Perscrutando com olhos observadores o cenário que tinha na frente, perguntava a si próprio, admirado, como teriam corrido as coisas a César Bórgia. O ruído do tumulto chegava aos seus ouvidos, completando o rosário de violências de que já tinha dado conta ao ver as chamas. Os guardas das portas da cidade, que o haviam observado atentamente, desconfiados da sua hesitação, assaltaram-no com perguntas, inquirindo principalmente sobre a sua profissão. Ele declinou a sua identidade, após o que o convidaram, respeitosamente, a entrar, proporcionando-lhe imunidades só reservadas a embaixadores.

Assim venceu nele a hesitação e esporeando o macho entrou no burgo, patinhando a lama e a neve. Passou pelo mercado deserto onde encontrou relativa tranquilidade e dirigiu-se ao palácio, observando que o clamor provinha do bairro oriental da cidade, habitado pelos comerciantes venezianos e judeus ricos. Daí pensar, e muito bem - aliás raciocinava sempre de maneira muito correcta - que tudo tinha terminado já e que a gritaria que ainda se ouvia era da soldadesca ocupada na pilhagem. Sabendo como esta era rigorosamente proibida aos partidários do duque de Valentinois, concluía que, apesar da malícia e engenho de que dispunha, tinha sido derrotado no encontro com os sediciosos «condottiere». Contudo e por muito que os factos parecessem confirmar esta ideia, como conhecia perfeitamente os homens, Maquiavel vacilava em aceitar aquela conclusão. Pressentia qualquer coisa estranha naquele intento de César Bórgia vir a Sinigaglia fazer a paz com os rebeldes e estabelecer condições para o futuro. Sabia que o duque se encontrava prevenido contra aquela traição, e que não tinha feito mais do que fingir caminhar para uma armadilha, tomando primeiro as precauções indispensáveis. Que, apesar disto, as suspeitas tivessem caído sobre ele era uma conclusão em que o secretário não acreditava. Porém, era fora de dúvida, que ali reinava a pilhagem e esta era proibida pelo duque.

Admirado, pois, Maquiavel cavalgou pela rua íngreme até ao palácio. Mas em breve o obrigaram a suspender a marcha pois o caminho estreito estava apinhado de gente e enorme multidão se agitava em frente ao palácio. A um dos balcões, de longe, pôde divisar o vulto dum homem e como ele gesticulava, o secretário concluiu que estava a proferir um discurso.

Maquiavel curvou-se sobre o selim para perguntar a um campónio:

- Que aconteceu?

- O diabo o sabe! - respondeu o homem a quem se dirigira. - Sua Alteza,  o  duque, veio para o palácio há duas horas, com o senhor Vitellozzo e outros. Logo a seguir um dos seus capitães -dizem que era o senhor da Corella - saiu com alguns soldados e dirigiram-se para o burgo, onde, segundo dizem, caíram sobre as tropas do senhor de Fermo, que se encontra também no palácio. E amanhã é dia de ano bom! Virgem Santa, que belo começo de ano este! Estão a queimar,

a pilhar, a combater lá em baixo, até transformarem o burgo em qualquer coisa parecida com o Inferno, e só o diabo sabe o que se está passando no palácio. Jesus Maria! Isto são tempos terríveis, senhor!  Dizem eles...

O campónio interrompeu abruptamente a verbosidade, ao notar o brilho fixo e perturbador dos olhos sombrios e observadores do interpelante. Examinou mais de perto aquele que lhe dirigia a palavra, reparou nas suas vestes negras adornadas de peles como as dos clérigos e, instintivamente, desconfiou daquela face maliciosa, escanhoada, com os malares proeminentes, pensando que era mais prudente não se fazer intérprete dos rumores populares.

- Mas eles dizem tanta coisa por aí, que afinal, não sei o que eles dizem - terminou de repente.

Os finos lábios de Maquiavel apartaram-se num sorriso, à medida que sondava as razões das súbitas reticências do homem. Não pediu mais informações porque, de facto, não precisava de mais nada. Se os homens do duque, sob o comando de Corella, tinham caído sobre as tropas de Oliverotto de Fermo, as suas esperanças haviam-se realizado, e César Bórgia, respondendo à traição com a traição, derrotara os «condottieres» rebeldes.

Um movimento repentino da multidão separou-o do campónio. Um rugido saiu da garganta de toda aquela gente.

- Duca! Duca!

De pé, sobre o estribo, Maquiavel divisava à distância, em frente do palácio, o brilho das armas e o drapejar das bandeirolas ostentando a insígnia do touro, da Casa de Bórgia. As lanças estavam dispostas em duas filas e abriram caminho rompendo aquela barreira humana, descendo rapidamente a rua em direcção ao local onde ele fora obrigado a parar.

A multidão compacta ficou para trás como a água perante o curso veloz dum navio. Os homens empurravam-se uns aos outros, trocando pragas entre si, de tal modo que por momentos reinou um clamor de cólera fervente. Todavia, acima de tudo, ouvia-se gritar:

- Duca! Duca!

Avançaram os ginetes reluzentes, as armas retiniam num ruído estridente, e à sua frente cavalgava, sobre um poderoso e negro cavalo de batalha, um vulto majestoso, revestido de aço dos pés à cabeça. Tinha a viseira levantada, mostrando o rosto jovem, pálido e grave. Os belos olhos, cor de avelã, pareciam não ligar importância às aclamações que ressoavam à sua volta. Porém, aqueles olhos viam tudo, parecendo não ver nada. Viram o orador florentino e, fitando-o, animaram-se subitamente.

Maquiavel tirou o gorro e cumprimentou o conquistador, inclinando-se sobre as espáduas do macho, o rosto jovem e pálido sorriu quase orgulhosamente, pois o duque estava satisfeito por ter sobre ele naquele momento, como de facto tinha, os olhos de Florença postos na sua pessoa. Ao chegar junto do secretário puxou as rédeas e fez o cavalo subir para cima dum pequeno degrau.

- Olá, «messer» Nicolau!

Os lanceiros abriram caminho, fazendo recuar a populaça, deixando passar Maquiavel sobre o seu macho.

- Já está - anunciou o duque. - Não realizei menos do que prometi. Compreendereis agora a minha promessa. Arranjei uma oportunidade e aproveitei-a de tal forma que prendi Vitelli, Oliverotto, Gravina e o bastardo de Giangiordano. Seguir-se-ão Orsino, Gianpaolo, Baglloni e Petrucci. Estendi bem a rede, e pagar-me-ão a traição até o último homem!

Calou-se, esperando ouvir a opinião de Maquiavel, pois as suas palavras reflectiam O acolhimento que a novidade teria em Florença. Mas o secretário era prudente como todos os homens astutos. Não achava necessário expressar uma opinião. O seu rosto permaneceu impassível. Fez uma vénia, em silêncio, como alguém que acolhe uma afirmação com a consciência de que não tem o direito a comentá-la.

Os belos olhos que o fitavam faiscaram:

- Prestei um grande serviço aos vossos senhores, ao Senhorio de Florença - disse, quase num tom de desafio.

- O Senhorio será informado, Magnificente - foi a resposta evasiva do outro. - Espero ter a honra de transmitir a Vossa Alteza as felicitações do Senhorio!

- Faz-me um grande favor!-disse o duque. -Mas há muito mais para fazer, e quem me dirá o que ainda falta?

- Olhava para Maquiavel, parecendo pedir um conselho.

- Pergunta-me, a mim, Vossa Alteza?

- Com certeza!

- Teorias?

O duque fitou-o admirado, depois riu-se e respondeu:

- Sim, teorias; da prática me encarrego eu.

- Quando falo de teoria - explicou Maquiavel baixando os olhos - refiro-me a uma opinião pessoal, minha, e não do secretário florentino.

Aproximou-se mais um pouco.

- Quando um príncipe tem inimigos - disse calmamente

- deve lidar com eles de uma das duas únicas maneiras: ou os transforma em amigos ou os impossibilita de continuarem a ser seus adversários.

O duque teve um ligeiro sorriso e perguntou:

- Onde aprendestes isso?

- Tenho assistido, admirado, ao vosso engrandecimento!

- disse o florentino.

-. Fundistes as minhas acções em máximas que servem o meu Governo!

- Mais ainda, Magnificente. Elas regerão todos os príncipes vindouros.

O  duque   examinou   aquele   rosto  malicioso,   descorado, com os olhos sombrios e os malares salientes.

- Às vezes pergunto a mim próprio se sois cortesão ou filósofo - comentou. - O vosso conselho vem sempre a propósito: - ou transformá-los em amigos, ou impossibilitá-los de continuarem a ser meus adversários, não é assim? Haveis de ver. Por isso...

«Falaremos disso, outra vez, quando eu voltar. As tropas de Corella recuperaram a liberdade, estão a queimar e a pilhar o burgo e eu vou por termo a isso, senão Veneza terá que pegar em armas para recuperar os ducados que lhe roubaram os seus lojistas. Achareis com que passar o tempo no palácio. Se quiserdes, esperai lá por mim.

Fez un sinal aos cavaleiros, deu uma volta e cavalgou veloz a cumprir a sua missão, enquanto Maquiavel se dirigia em direcção oposta, pelo caminho que a multidão abrira mal percebera que ele era um dos que tinham a honra de ter relações com o duque.

O florentino foi para o palácio como lhe tinham ordenado e daí enviou a sua famosa carta ao Senhorio de Florença, na qual lhe participava o que se passava, relatando o processo adoptado por César Bórgia para fazer pagar na mesma moeda os que lhe não tinham sido fiéis e contava como num golpe de mestre resultara a captura de Orsini, Vitellozzo/vitelli e Oliverotto, senhor de Ferino. E concluía com esta opinião: «Tenho as minhas dúvidas sobre se algum deles estará vivo amanhã!» Porém, uma vez mais, apesar de toda a sua argúcia, não tinha sondado até ao fim toda a manha e malícia de César Bórgia. Um observador tão astuto como ele devia ter percebido que torcer o pescoço a Orsini seria espalhar a consternação e o alarme no covil do urso, em Roma, e que, alarmado o poderoso Cardeal Orsini, seu irmão Giulio e o sobrinho Matteo podiam procurar salvação na fuga, e, salvando-se, estabelecer represálias.

O facto de Maquiavel haver falhado na previsão do que César iria fazer era mais uma prova de quanto o duque era mestre do florentino em questões políticas.

Aos senhores de Fermo e Castello sucedeu como Maquiavel esperava: formalmente julgados e acusados de traição contra o chefe foram estrangulados nessa mesma noite - costas com costas, com a mesma corda - no Palácio da Prefeitura de Sinigaglia, após o que os cadáveres foram conduzidos, com todas as cerimónias, para o Hospital da Misericórdia.

Mas os Orsini não partilharam, naquela altura, do destino dos seus companheiros de traição. Concederam-lhes ainda dez dias de vida, até que César recebesse de Roma avisos de que o Cardeal Orsini e o resto da prole dos Orsini haviam sido capturados. Só então, Gravina e Paolo Orsini foram entregues ao carrasco, em Assisi, para onde tinham sido levados.

O duque estendera bem a sua rede, tal como tinha dito a Maquiavel naquela noite em Sinigaglia. Quatro, contudo, haviam escapado às suas malhas: Gianpaolo Baglioni, impedido de esperar pelo duque em Sinigaglia, por uma doença que provou ser menos fatal para ele do que a saúde para os seus cúmplices; Pandolio Petrueci, o déspota de Siena - o único que parece ter tido talento para desconfiar das intenções do duque - e que, bem armado, se refugiara atrás das muralhas da cidade, para ali aguardar os acontecimentos; Fábio Orsini, que acompanhara Petrueci; e Matteo Orsini, primo do último e sobrinho do Cardeal, que se escapara para parte incerta.

O duque encarregou-se da tarefa de disparar sobre os três primeiros cujo paradeiro conhecia. Matteo tinha menos Importância para ele, e podia ser deixado para mais tarde.

- Mas juro-vos perante Deus! - disse César a frei Serafino, o frade menor que desempenhava as funções de secretário na ausência de Agabito, «o cara de Lua». - Juro-vos, que não haverá buraco em Itália onde eu o não procure!

Isto passou-se em Assisi, no próprio dia em que ordenou o enforcamento de Gravina e do bastardo de Giangiordano. Na mesma noite, chegou um dos seus espiões com a notícia de que Matteo Orsini estava escondido em Pievano - no castelo dum parente afastado. Orsini também, muito idoso e inactivo para merecer a atenção do duque. Fora um homem estudioso vivendo quase retirado do Mundo entre os seus livros na companhia duma filha, desprendido de ambições, pedindo somente que o deixassem em paz, a coberto das lutas e sangrias que então atormentavam a Itália.

O duque habitava na «Rocca Maggiore», aquela fortaleza de ameias cinzentas que coroava o monte sobranceiro à cidade, dominando a planície da úmbria do alto das suas   encostas   abruptas.   Recebeu   o   mensageiro   numa câmara nua e fria, de paredes de pedra. Um bom lume crepitava na chaminé, espargindo um clarão alaranjado nos espaços vazios, obrigando as sombras a ocultarem se nas traves do tecto; mas o duque, passeando no vasto aposento, enquanto o mensageiro relatava o que tinha descoberto, envolvera-se, para se aquecer, num manto escarlate, forrado de pele de lince.

Frei Serafino estava sentado a uma escrivaninha de carvalho, perto duma das janelas e afiava uma pena, aparentemente entretido naquela tarefa, sem perder, todavia, uma palavra sequer do que se estava a dizer.

O mensageiro era esperto e fora diligente. Não satisfeito com o facto de ter sabido que Matteo Orsini parecia estar em Pievano, percorrera toda a cidade, procurando ouvir conversas e regressando preparado para a pergunta que o duque estava agora a fazer-lhe, ainda que não directamente.

- Isso é simplesmente tagarelice! -desdenhou César.- Diz-se que Matteo Orsini está em Pievano. Estou saturado desse  «diz-se»  e  de todas  as  suposições. Há  muito que   o conheço e sempre o tive como intrujão.

-. Mas, o que vos digo tem certas probabilidades... - respondeu o mensageiro.

O duque deixou de passear. Parou em frente das achas que ardiam e estendeu a mão saboreando o calor - mão tão delicada e delgada que ninguém suporia que os seus finos dedos tivessem a força capaz de partir uma ferradura. Assim, de pé, em frente ao fogo saltitante, que recortava a sua figura envolvida no manto vermelho, ele próprio parecia de fogo!

Esteve assim uns momentos e depois levantou a cabeça trigueira e altiva e os seus olhos, negros e belos, perderam o ar pensativo e sonhador ao fixarem-se sobre o mensageiro.

- Probabilidades?-perguntou. - Descubra-as. É essa a sua missão!

Mas o enviado preparava-se para bem servir o seu amo.

- O conde Almerico tem uma filha - esclareceu prontamente. - Corre em Pievano a notícia de que essa senhora, «Madonna» Fulvia, se chama ela, e Matteo vão casar. O parentesco, entre eles, não é suficientemente chegado para o impedir. O velho conde aprova, estimando Matteo como filho. Assim, onde estaria ele melhor em Itália do que com aqueles que o amam? Depois, Pievano fica longe, o seu senhor é um homem de livros, não toma parte na vida brilhante e mundana. Por isso, Pievano é, de todos os locais, o último onde se podia pensar em procurar Matteo, portanto, aquele em que ele teria mais possibilidades de se esconder. Eis porque estes factos confirmam o boato da sua presença ali.

O duque olhou o homem em silêncio, como se pesasse aquilo que ele dissera.

- Raciocinais bem - afirmou por fim, e o mensageiro fez dupla reverência, vencido por tanta consideração. - Podeis ir. Dizei-lhes que informem Corella para que me espere.

O homem saudou de novo, dirigiu-se vagarosamente para a porta e desapareceu.

Quando o pesado reposteiro caiu, César dirigiu-se até uma das janelas e observou o panorama gelado que se estendia por algumas milhas, naquela fria noite de Janeiro. Sobre a massa distante dos Apeninos, de cor azul acinzentada, o firmamento, prenhe de borrascas, tinha um rasgão dourado. O rio Chiagi dirigia-se coleante para o Tibre e parecia uma fita de prata sobre a planície verde-escura. César olhava mas não via. Depois, voltou-se, repentinamente, para frei Serafino, que paulatinamente experimentava agora a pena que preparara.

- Que   havemos  de  fazer  para  o   apanhar? - inquiriu. Costumava pedir conselho a todos, seguindo, no entanto,

sempre aquele que queria.

O monge de face esquálida levantou os olhos, quase surpreendido pela súbita pergunta. Conhecia o processo do duque.

- Mandai  dez lanças buscá-lo  a Pievano- respondeu.

- Dez lanças, cinquenta homens?... Hum! E se Pievano levanta as pontes e resiste?

- Mandai mais dez e um canhão - tornou frei Serafino, O duque, ao fitá-lo, teve um leve sorriso.

- Provais-me que nada sabeis de Pievano e ainda menos dos homens, frei Serafino. Pergunto a mim próprio se percebeis alguma coisa de mulheres?!

- Deus me livre! - exclamou o monge, profundamente escandalizado.

- Então não prestais para conselheiro num caso destes, - concluiu o duque. - Esperei que vos pudésseis considerar mulher por um momento - concluiu a sorrir.

- Considerar-me mulher? -perguntou frei Serafino, com os olhos profundos, esgazeados.

- Para me dizerdes que espécie de homem vos poderia iludir. Sim:  Pievano é uma coelheira. Pode lá esconder-se um exército, quanto mais um homem só! E eu não quero alarmar o conde Almerico matando um hóspede que não temos a certeza dele haver albergado. Espero que compreendereis a dificuldade. Para a resolver tenho de arranjar um homem de pouco coração e menos escrúpulos ainda; um velhaco dominado apenas pela ambição, que não cuide senão de se elevar; e é condição indispensável que seja de aspecto tal que agrade a uma mulher e ganhe a sua confiança. Agora, onde vou eu arranjar um exemplar destes?

Frei Serafino não respondeu. Estava perdido, perplexo, ao ver os caminhos subterrâneos e tortuosos que César abrira para alcançar os seus fins. Corelia entrou, de bota alta, barbado, rijo e destemido, o verdadeiro tipo do «condottiere».

O duque voltou-se, e olhou-o por muito tempo, calado. Finalmente, abanou a cabeça.

- Não, não sois o homem! Sois bastante soldado, pouco cortezão, muito espadachim, nada tendes de tocador de alaúde e julgo que sois quase feio. Se fôsseis mulher, frei Serafino, não o acharíeis um homem feio?

- Mas eu não sou mulher, Magnificemte!...

- Isso é evidente - lamentou o duque.

- E não sei o que pensaria, se fosse mulher.

Provàvelmente, não pensaria nada porque não acho que as mulheres pensem...

- Misógino - disse o duque.

- Graças a Deus - respondeu frei Serafino devotamente.

- Não -disse outra vez o duque, voltando a examinar o capitão. - A essência do triunfo é escolhermos os instrumentos apropriados para o trabalho que temos em mãos, e não sois vós o instrumento para isto, Michele. Preciso dum velhaco ambicioso, belo e  sem escrúpulos, que saiba manejar uma espada e fazer um soneto. Onde encontrarei um que se harmonize com esta descrição? Ferrante da Isola seria o nosso homem, mas o pobre Ferrante morreu numa das suas brincadeiras.

- De que se trata, Magnificente? - aventurou Corela.

- Di-lo-ei ao homem que encarregarei de tal, quando o encontrar! Ramirez está cá?-perguntou, de repente.

- Está em Urbino, senhor - respondeu Corelia. - Mas há Pantaleone de Uberti, que parece, de certa maneira, ser o homem que desejais.

O duque reflectiu.

- Mandai-mo cá - disse.

Corelia fez uma vénia e saiu com o recado.

César começou a encaminhar-se lentamente em direcção ao fogão e ficou a aquecer-se até vir Pantaleone, um homem alto, elegante, de finos cabelos e olhos negros em que brilhava a audácia, de semblante e uniforme militar, tendo contudo um ar afectado.

A entrevista foi breve e concludente. Por fim o duque ordenou com galhardia:

- Segundo as informações que recebi, aposto mil ducados contra uma ferradura em como Matteo Orsini está com o tio, em Pievano! Ofereço pela sua cabeça esses mil ducados. Parta e ganhe-os!

Pantaleone estava estupefacto. Os seus belos olhos pestanejaram.

- Que homens devo levar? - perguntou hesitante.

- Os que vos agradarem. Mas olhai que o caso não pode ser resolvido pela força. Assim que aparecerdes, Matteo esconder-se-á como uma toupeira na terra, e não conseguireis descobri-lo. Isto é um assunto de habilidade, não de lanças! Há em Pievano uma mulher que ama Matteo e é por ele amada. Mas vós vereis as oportunidades que tendes e usareis delas. Corella pensa que tendes talento para levar a cabo a missão. Provai-mo e farei a vossa fortuna.

Acenou com a mão despedindo-o. Pantalone abafou um sem número de perguntas que lhe ferviam no pensamento e retirou-se.

Frei Serafino, pensativamente, afagou com a pena o nariz afilado.

- Não confiaria uma mulher a este homem, nem vice-versa - comentou: -Tem uns lábios muito grossos!

- Por isso eu o escolhi! - redarguiu César satisfeito.

- Nas mãos duma mulher tornar-se-á cera... - continuou o frade, maliciosamente.

- Eu enrijo-o com mil ducados - disse o duque.

Mas a resposta não enfraqueceu o pessimismo do frade.

- As artimanhas duma mulher podem fundir o ouro até escorrer... - disse.

- Percebeis muito de mulheres, Frei Serafino - insinuou o duque olhando para ele durante uns minutos.

Perante esta repreensão, o monge secretário encolheu os ombros e ficou silencioso.

 

CAPÍTULO II

Pantanleone de Uberti chegou a Pievano sob uma tempestade de neve. A um par de léguas de distância da pequena cidade, despedira-se dos dez rapazes que o acompanharam desde Assisi, dando-lhes ordens para se dividirem em grupos de dois e três e de o seguirem até Pievano, procurando cada grupo bairros diferentes e fingindo não se conhecerem.

Combinou vários sinais pelos quais, em caso de necessidade, os podia chamar, determinando que um grupo de três homens ficaria abrigado junto da «Osteria dei Toro» e pelo menos um deles devia estar sempre na estalagem para que Pantaleone  pudesse   encontrá-los  em  caso  de  necessidade.

Como vedes, Pantalone era um homem metódico e cuidadoso.

Mandou ainda que se disfarçassem e ele próprio adoptou o mesmo processo que impôs aos seus sequazes. Algumas horas depois passou cambaleando sobre a ponte levadiça, dirigindo-se para o pátio da cidadela, parecendo um homem de pés doridos, com visíveis sinais de profundo cansaço. Recebido por um criado chegou à presença do conde Almerio Orsini e anelante, como que no último suspiro, pediu abrigo.

- Estou perdido, meu senhor - mentiu ele. - Aquele déspota sanguinário do Valentinois exige a minha vida para continuar a sua carnificina!

As mãos brancas do velho senhor de Pievano agarraram-se aos braços de ébano trabalhado da sua cadeira de espaldar.

Seus olhos penetrantes fixaram-se no visitante; sabia bem a que carnificina Pantaleone se referia. Não precisava de lho perguntar; por muito absorto que estivesse nos seus estudos e afastado, em espírito como em corpo, dos tumultos do Mundo, era um Orsini! E não é próprio da condição humana que ficasse indiferente e ignorante ao sangue que os Orsini já haviam derramado. E desde que, segundo parecia, estava ali um homem vindo do campo da luta, tinha que recebê-lo bem, pois certamente trazia notícias intimamente relacionadas com o senhor de Pievano.

Mas não só era próprio do velho Almerico Orsini como raro naquele tempo em que a vida era barata e os infortúnios dos outros pouco interessavam que o seu primeiro pensamento fosse para a condição social do desconhecido. Vendo-o tão desgraçadamente coberto de lama, tão pálido e macilento, cambaleando como um embriagado e respirando com evidente dificuldade, portanto um homem que tinha alcançado os limites do maior sofrimento, Almerico fez um rápido sinal ao criado que o tinha introduzido e este aproximando uma cadeira de verga levou Pantaleone a sentar-se reconhecido. Deitando para o chão o sórdido barrete e desapertando o seu gibão vermelho ficou à vista o vestuário de couro do soldado.

Olhando para Almerico com um sorriso de agradecimento e simulando grande cansaço sob as pálpebras pesadas, fixou a senhora que estava sentada ao lado da cadeira do velho. Era uma rapariga de elegância virginal, trajando com simplicidade um vestido cor de vinho, justo ao colo alvo e apertado na cintura delgada por um cinto de prata com um fecho de berilo. O cabelo negro de reflexos azulados estava apertado ao alto da cabeça, numa rede dourada; os olhos azuis-escuros pareciam negros olhando-o com piedade.

Foi assim que pela primeira vez Pantaleone a viu. E porque gostava de mulheres, de formas bem desenhadas, olhou em volta, examinando a sala, em busca de alguém que ali não estava.

- Porque viestes ter comigo? - perguntou Almerio com simplicidade.

- Por que vim?! -Pantaleone pestanejou como se a estranheza da pergunta o tivesse surpreendido. - Porque sois um Orsini e a minha causa é a cauisa dos Orsini. - Começou a explicar-se. - Paolo Orsini era meu amigo...

- Era? - foi a pergunta rápida da «Madonna» Fulva. Pantaleone teve um suspiro profundo e ficou abatido como

que no maior desânimo.

- Vejo que não sabeis de nada. Contudo pensava que tão más notícias já a esta hora se haviam espalhado por toda a Itália. Paolo foi ontem enforcado em Assisi e com ele o duque de Gravina.

O velho soltou um grito. Levantou-se da cadeira, mal se aguentando, e depois, como se perdesse as forças, sentou-se novamente.

- Que a maldição de Deus caia sobre mim que vos trago más novas - rugiu o manhoso Pantaleone.

Mas o velho, recompondo-se do súbito colapso que lhe provocara a má notícia, censurou as palavras deste, enquanto «Madonna» Fulvia ficava hirta.

Para ela não houvera desgosto sério pois ainda que fossem seus parentes, nunca conhecera aqueles cuja morte o fugitivo anunciava.

- Ainda não é tudo - continuou Pantaleone, como que defendendo-se da censura de Almerico. - De Roma vieram novas de que o Cardeal está numa masmorra em Santo Angelo, que Giangiordano foi apanhado juntamente com Santacroce e não sei que mais...

«Não sabemos se César usará de misericórdia. O Papa e o seu bastardo não descansarão enquanto na Casa de Orsini houver uma pedra de pé!

- Então não descanssarão nunca! -respondeu orgulhosamente «Madonna» Fulvia.

-Peço-vos. «Madonna» peço-vos sinceramente, eu que fui um dos amigos de Paolo Orsini e que com ele servi, para vergonha minha, o tirano Bórgia. Por isso - porque Valentinois sabe que se o servi a ele foi porque servia Orsini, e que me considero da família Orsini - estou agora banido e ando perseguido como cão danado. Se mo apanharem, morrerei como Paolo e Gravina e, como dizem também, Matteo Orsini.

Nunca a astúcia do homem foi tão poderosa como quando apresentou esta afirmação, como experiência. Ao dizer isto, examinava atentamente pai e filha, parecendo fitá-los com respeito e compaixão. Viu o repentino movimento de perplexidade que nenhum deles pôde reprimir. Depois veio a pergunta da rapariga, embuída duma ansiedade súbita que a traía:

- Dizem isso? - gritou com os olhos brilhando e o peito arfante sob a forte excitação nervosa.

- Corre o boato - disse o intrujão, cheio  de  pena.- Peça a Deus e aos Santos que não seja verdade!

- Realmente...-começou a falar Almerico com gravidade, como que para o confirmar. Depois, cauteloso, calou-se de repente.

Embora há muito retirado do Mundo e verdadeiramente não tivesse malícia, havia contudo aquele conhecimento dos homens que dá a idade. O fugitivo inspirava-lhe pouca confiança e despertava nele precauções fora do normal. E obedecendo ao natural instinto de defesa mudou o tom e o curso da frase.

- Agradeço, senhor, a vossa prece...

Mas Pantaleone, fingindo não se aperceber da prevenção do velho Almerico, concluiu que as suspeitas de César Bórgia se confirmavam pois que Matteo Orsini estaria escondido em Pievano ou nos arrabaldes. Raciocinava por silogismos. A mulher que amava Matteo não teria recebido a notícia da sua morte com tanta indiferença se não tivesse a certeza absoluta de que ele estava vivo. Mas esta convicção nada o informava quanto à presença de Matteo em Pievano. A própria ansiedade com que ela acolhera o boato inventado por Pantaleone sobre a sua morte mostrava quão bem recebida seria uma narrativa que abrandasse a perseguição a este proscrito fugitivo.

Usando da sua máscara de desânimo, o coração traiçoeiro de Pantaleone rejubilou perante a certeza de que estava sobre o rasto e que em breve tanto Matteo Orsini como os mil ducados seriam seus.

Mas era indubitável que teria de submeter-se às perguntas do seu hospedeiro, pois a desconfiança deste levava-o a procurar saber mais coisas a seu respeito.

- Sois de Assisi? - inquiriu.

- Dali,  do  campo  de  Valentinois - respondeu  o  falso emissário.

- E fugistes logo que estrangularam Paolo e Gravina?

- Não, - Pantaleone percebeu a armadilha. Em jogos de espírito ele era um problema para estudiosos como o senhor de Pievano. - Isso sucedeu ontem antes de César Bórgia ter tido provas da minha dedicação a Orsini. Se não fosse a minha dedicação, a necessidade de proceder de acordo com a minha consciência eu teria continuado como capitão ao serviço do tirano. Mas sucede que eu sabia perfeitamente dos intentos de Valentinois sobre Petrucci, no Siena. Tentei mandar uma carta a Petrucci, avisando-o. Esta carta foi interceptada e apenas tive tempo para fugir antes que os algozes do carrasco me prendessem. Rebentei o cavalo, tal a correria!... Era minha intenção ir a Siena ter com Petrucci, mas vendo-me sem o cavalo e no perigo iminente de ser apanhado resolvi pedir abrigo aqui. Mas, meu senhor... - parou, dizendo depois com artificial mostra de dor física e dificuldade. - Se pensais que por eu aqui estar, chamo sobre vós a vingança de Valentinois, então... - e embrulhou-se no gibão como se decidisse partir.

- Um momento, senhor, um momento! - disse Almerico, hesitando, e estendendo a mão para deter o oficial.

- Que nos importa Valentinois? - gritou  a jovem e o fulgor brilhava em seus olhos, transformados em safiras de fogo. - Quem o teme? Seríamos vis se vos abandonássemos; vós que aqui viestes, como amigo do nosso parente. Enquanto houver um tecto em Pievano, podeis aqui dormir tranquilamente.

D. Almerico moveu-se na cadeira, resmungando quando ela deu o discurso por terminado. A filha tinha ido muito longe, pensava. Enquanto ele teria tido relutância em deixar sair esse homem que vinha pedir amparo, a «Maddona» Fulvia vencia-o nessa questão da hospitalidade.

Estendeu a mão branca e transparente sobre as achas que ardiam no fogão e com a outra cofiava o queixo escanhoado, meditando. Depois, olhando directamente para o desconhecido, perguntou-lhe sem rodeios:

- Qual o vosso nome, senhor?

- Chamo-me Pantaleone de Uberti - respondeu o aventureiro, que conhecia suficientemente o Mundo para não fazer uso de mentiras quando podia servir-se da verdade.

- Um nome honroso - murmurou  o velho,  assentindo como que para si próprio. - Bem, bem! Deixarei à vossa discrição não permanecerdes em Pievano mais do que o tempo necessário. Não penso em mim.

E encolheu os ombros, sorriu com um sorriso de singular encanto que lhe iluminou o rosto cansado e respeitável como se tivesse recebido uma luz interior.

- Estou demasiado velho para pensar na pouca vida que me resta em relação a um favor que se faz a um homem honrado. Mas há que pensar nesta criança e no risco de vos descobrirem aqui..

Ao ouvir tais palavras ela interrompeu-o sob o impulso da sua generosa mocidade:

- Quem corre grandes perigos pode menosprezar outros menos importantes!...-disse e Pantaleone fez-se todo ouvidos.

- Por amor de Deus! não... - respondeu o pai. - Não nos atrevemos agora a chamar sobre nós a atenção... Vês quê...

Parou, renascendo nele as precauções, e seus olhos reluziram fitando o visitante.

Mas o rosto de Pantaleone estava sombrio e rígido, uma máscara que não deixava ver a satisfação que lhe ia no íntimo. Esperto como era, compreendera facilmente e completara, sem dificuldades, a frase que o senhor de Pievano deixara em meio, verificando que ela vinha confirmar a certeza, que já possuía, da presença de Matteo Orsini ali.

Vendo que estava a ser alvo de desconfiança, escolheu o momento para representar. Cambaleando deu alguns passos vacilantes para o lado, com uma das mãos na testa e a outra procurando apoiar-se; tropeçou numa mesa de bronze que estava perto, a qual deslizou ao longo do pavimento de mármore e, perdendo o equilíbrio, foi cair pesadamente aos pés do velho e ficou estendido no chão.

- Não posso mais! - gemeu.

Correram logo para junto dele, Almerico, a filha e o criado que ao fundo da sala aguardava que ele saísse. E enquanto para o auxiliar o pai se ajoelhava fazendo estalar as articulações doridas, «Madonna» Fulvia dava rápidas ordens ao lacaio boquiaberto.

- Ide buscar Mário, depressa!-mandava ela.-Dizei-lhe que traga vinho, vinagre e ligaduras.

Pantaleone ergueu a cabeça, encostando-a ao joelho de Almerico. Abriu os olhos cansados, murmurando desculpas incoerentes por tê-los incomodado. Esta manifestação de respeito tributada numa ocasião daquelas comoveu-os profundamente e fundiu a desconfiança do velho Almerico como o Sol faz à neve sobre os montes, em Abril. O estado daquele homem era, evidentemente, bem precário, e que poderia tè-lo provocado senão as atribulações que ele relatara?

Mário entrou pouco depois. Era um rapaz baixo e robusto, de rosto cor de argila, enrugado e picado das bexigas, com uma máscara estúpida, grotesco simulacro de expressão humana. De facto era ele o castelão de Pievano, exercia um sem número de coisas, tinha artes de cirurgião, de ferrador e de barbeiro. Era estruturalmente honesto, fiel, bastando-se a si próprio, mas ignorante.

 

CAPÍTULO III

Acompanhavam-no um criado, a aia de «Maddona» Fulvia, Rafael, o  pajem. Traziam  frascos,  garrafas,  ligaduras, uma bacia de prata. Agruparam-se em volta de Pantaleon, enquanto Mário,   ajoelhando-se, lhe   tacteava o  pulço,  tomando uma expressão grave e dogmática.

Isto de tactear o pulso era uma farça que impressionava! Nada mais! Pois quer achasse ou não qualquer irregularidade, a receita não variava!

- Cansaço!  Ah!-diagnosticou.-Uma sangria fá-lo-ia recuperar forças. Tirar-lhe-ei seis onças de sangue e tudo voltará ao normal.

Ergueu-se resoluto.

- Vincenzo! Levemo-lo para a cama. Tu, Rafael, alumias o caminho.

Assim, Mário e o criado levantaram Pantaleone. O pajem pegou num dos candelabros dourados, maior do que ele, { caminhou à frente deles. O cortejo fechava com Virgínia, a camareira e, deste modo, Pantaleone de Uberti foi conduzido para o leito com certa pompa e ficou instalado em Pievano.

Pantaleone acordou na manhã seguinte restabelecido da perda das seis onças de sangue em que tinha insistido o cirurgião Mário, à qual se submeteu para bem poder desempenhar o seu papel.

À pálida luz do sol de Janeiro que inundava o quarto no qual pairava o fragrante perfume, fresco e subtil, da verbena embebida em vinagre, viu Rafael, rapazote gracioso de rosto simpático e impudente de cabelos macios cor de ranúnculos amarelos.

- À falta de quem vos servisse, mandaram-me a mim! - explicou o pajem.

Pantaleone mirou-lhe a figura flexível dentro dum fato verde que se lhe ajustava ao corpo como uma pele.

- E quem és tu, leopardo?

- Alegra-me ver que estais a melhorar. Dizem eles sempre que o descaramento é sinal de saúde.

- E dizem também, por certo, que tens saúde a mais - disse Pantaleone sorrindo numa careta.

- Jesus!-exclamou o rapaz com os olhos erguidos.

- Vou prevenir o meu senhor do vosso rápido restabelecimento.

- Espera aí - interrompeu Pantaleone, desejando que ele lhe explicasse um certo número de coisas. - Já que te mandaram cá para me servires, dá-me primeiro que comer! Sou cristão penitente, visto que estive ao serviço do Papa, mas se acho muito difícil jejuar na Quaresma é impossível fazê-lo noutra ocasião.

Está aí uma tijela a fumegar. Deixa ver...

Rafael pegou na tijela que continha uma medida de caldo aromático, e com ela trouxe um pequeno pão de trigo numa bandeja, e levou-lhe também uma bacia de prata com água e uma toalha. Mas Pantaleone fez-lhe sinal com a mão para se deixar de tantas atenções; tinha vivido em campos de batalha e não em palácios, não simpatizando com a afectação dos petulantes que no seu modo de entender se lavavam de mais.

Sorveu ruidosamente um pouco da sopa, partiu o pão e começou a mastigá-lo e olhando gravemente o pajem começou a fazer um interrogatório, que lhe era muito necessário.

- À falta de  outros  vieste tu? - disse, ponderando.- Como é isto de não haver homens em Pievano? O senhor Almerico é grande e poderoso e não deve ter falta de criados. porque há então falta de homens?

O rapaz sentou-se na borda da cama e perguntou:

- Donde sois, senhor Pantaleone?

- Eu? Sou de Perugia - disse o «condottiere», sorrindo.

- Então não se sabe em Perugia que o senhor Almerico é acima de tudo um homem de paz e de livros? Interessa-se mais por Séneca do que por qualquer tirano de Itália.

- Quem? Quem? - inquiriu Pantaleone com curiosidade.

- Séneca! - repetiu o rapaz com ar petulante.

- Quem é?

- Um filósofo - disse Rafael. - O meu amo gosta de todos os filósofos.

- Então gostará de mim - afirmou Pantaleone, bebendo o resto do caldo. -Mas não respondeste à minha pergunta!

- Respondi, sim! Disse-vos que o meu senhor não tem aqui a comitiva que era natural para uma pessoa da sua condição. Quatro criados bastam-lhe para o serviço.

- Mesmo assim - retorquiu Pantaleone - desses quatro, podia ter-me dedicado um.

- Ah, mas Vicenzo, que ajudou a trazer-vos para a cama é o único criado privativo do meu amo; Gianmone trabalha nos  estábulos   e  Andrea  desceu   ao  burgo  para   fazer  um recado a «Madonna» Fulvia.

- Então são três e disseste que havia quatro!? - volveu com ardilosa voz.

- O quarto é Giuberti;  mas esse desapareceu há uma semana.

Pantaleone, olhando sonhadoramente para o tecto, pensou se o desaparecimento de Giuberti não coincidia com o de Matteo Orsini, perguntando-se a si próprio que elo ligaria as duas personagens.

- Quereis dizer que o despediram? - insinuou.

- Não. Isso é um mistério! Nesse dia houve cá um grande barulho e desde então nunca mais o vi. Mas não o despediram, pois estive no seu quarto e estão lá os fatos. Também não saiu de Pievano, a não ser que tenha ido a pé, pois não falta   nenhum   cavalo   nas   estrebarias.   Pelo   contrário - e aqui está outro mistério que ninguém me explica - na manhã seguinte ao desaparecimento de Giuberti, encontrei lá sete cavalos em vez de seis. Tinha ido lá ver se descobria para onde tinha ido Giuberti, e porque não acredito em milagres não me contento com a explicação de que Giuberti se tenha transformado em cavalo. Se fosse um burro, ainda podia acreditar, pois não precisava de grande metamorfose. Mas o que é certo é que perdemos um bípede e sobra-nos um quadrúpede. Eis um mistério que me faz matutar!...

O rosto de Pantaleone não mostrava o entusiasmo com que ouvia aquela informação indirecta sobre a presença do fugitivo em Pievano. Sorriu preguiçosamente ao rapaz, encorajando-o com adulações, para fazer correr o fio da conversa:

- Por Deus! - aprovou. - Embora não passes dum rapazola, tens pensar de homem feito; és de facto mais esperto do que muitos homens que conheço! Hás-de ir longe!...

O rapaz cruzou as pernas sopre a cama e sorriu reconhecido enquanto Pantaleone continuava a estimulá-lo:

- Não te escapa nada...

- É verdade! - concordou o moço. -E poderia dizer-vos mais!

Por exemplo, sucede também que a mulher de Mário desapareceu. Mário é o nosso castelão e cirurgião, aquele picado das bexigas, que vos trouxe para a cama a noite passada e vos fez a sangria. A mulher de Mário estava a tomar conta da cozinha e fugiu com Giuberti. Isto intriga-me profundamente...

- Intrigar-te-ia menos se fosses mais velho - disse Pantaleone, sugerindo algumas coisas em que  ele próprio não acreditava e simplesmente como medida estratégica.

Rafael endireitou a cabeça e fitou o soldado um tanto desdenhoso:

- Tínheis razão ao dizer que sou mais esperto que muitos homens - disse com um certo ar satírico. - Um homem com certeza erraria perante  este  facto,  tirando  uma conclusão rápida e falsa. Mas, eu sou um rapaz, não sou nenhum querubim de quadro a óleo... Basta ver Colomba, a mulher de Mário, para nos assegurarmos da pureza das suas relações com Giuberti ou outro homem qualquer. Não vistes o lindo rosto de Mário? parece que o Diabo imprimiu nele os cascos e sobre eles uma ferradura ao rubro!... A mulher é ainda pior; o marido pegou-lhe as bexigas e ficaram um par ideal; mais harmonioso ainda do que a princípio...

- Grande   macaco!-chamou-lhe  Pantaleone.- O  teu discurso é uma provocação para os ouvidos dum pobre soldado. Açoitar-te-ia se me pertencesses.

Atirou os lençóis para cima dele, de modo que o rapaz ficou, por momentos, abafado debaixo deles, e ergueu-se para se vestir. Já sabia tudo o que precisava.

- É o mistério disto tudo que me intriga! - murmurou o rapaz sem se desconcertar. - Sabeis descobrir o enigma, senhor Pantaleone?

- Vou tentar - respondeu  Pantaleone,  embaraçado  ao vestir as calças. Mas, apesar da sua esperteza, Rafael não compreendeu a resposta.

Desta maneira, encontrámos o aventureiro na posse de certos factos que lhe pareciam bastante claros: o desaparecimento do criado Giubrti e de Colomba, ocorrido na mesma altura em que reapareceu um cavalo a mais na cavalariça, coincidindo tudo isto com a chegada de Matteo Orsini a Pievano. Tudo parecia indicar, portanto, que os dois criados tivessem sido encarregados de tratar do recém-vindo. Se ele tivesse ficado no castelo isso não seria necessário, mas devia inferir-se que, embora em grande segredo, ele se havia escondido em qualquer parte, ainda que, como confirmava a presença do cavalo, dentro dos limites da cidadela.

Até aí estava Pantaleone certo e já considerava andado meio caminho. O que devia agora fazer era informar-se de quantos alojamentos havia na localidade.

Vestiu-se cuidadosamente, utilizando os fatos que o pajem lhe trouxera da cozinha onde haviam estado a secar. Como não tinha sapatos, teve de calçar as botas e como estava frio e se propunha sair apertou o casaco de couro sobre o gibão cor de pêssego.

Por fim, com a sua longa espada pendente do cinturão e uma pesada adaga sobre a anca direita desceu, meneando-se com um ar arrogante e fanfarrão, no qual mal se reconhecia o fugitivo enlameado, desfalecido, que na noite anterior implorara a protecção ao senhor de Pievano.

Rafael conduziu-o à presença de Almerico e da «Madonna» Fulvia. Receberam-no amigavelmente, exprimindo o seu grande prazer por vê-lo restabelecido. O velho parecia ter abandonado toda a hesitação e desconfiança sobre Pantaleone. Este concluiu que, entretanto, o senhor de Pievano consultara Matteo e que este lhe teria dito - porque de facto ninguém poderia negá-lo - que talvez a sua história fosse verdadeira pois era de prever que Paolo Orsini tivesse amigos, como contara. Daqui, ainda que supèrfluamente, obteve a confirmação da presença de Matteo.

lá a pedir permissão para sair a tomar um pouco de ar, quando Mário interveio com a pomposa autoridade dos seus conselhos de médico:

- Quê, senhor? Sair, no vosso estado? Seria uma loucura!

A noite passada tivestes febre e fiz-vos uma sangria. Deveis descansar até vos curardes ou não me responsabilizarei pela vossa vida.

Pantaleone começou a rir, um riso sonoro e profundo que ele facilmente provocava, pois quando não se ria para as pessoas, ria-se delas! Desdenhou daquela ideia de estar fraco ainda que o ar húmido pudesse fazer-lhe mal. Então não havia Sol? Não estava ele completamente curado?.

Mas nada abalou a oposição de Mário e os seus argumentos foram mais fortes:

 - Já que deveis ao meu saber o facto de vos sentirdes melhor, deixai que o meu saber vos guie, quando vos aviso de que o que sentis é ilusão, um alívio que acompanha sempre a recuperação de sangue que vos tirei. Não deveis sair, para não arriscar tudo o que de bem vos fiz.

E, então, aos conselhos de Mário, juntaram-se os de Orsini e da filha, até que, por fim, vendo que, insistindo, poderia despertar suspeitas adormecidas, Pantaleone acedeu, irritado, mas sempre sorridente. Passou o dia dentro de casa, pensando que o tempo custava muito a passar, apesar dos esforços do dono da casa e da filha para o distrair.

A amabilidade que tinham para com ele, o facto de se sentar à sua mesa, comendo do seu pão, não teve qualquer influência em Pantaleone. A pérfida traição que estava a cometer, a vileza com que se insinuara no seu ânimo e na sua confiança, deixavam-no absolutamente indiferente. Não se importava estar ali a gozar da hospitalidade que se tem para com um amigo verdadeiro e leal. Pantaleone era um homem sem sensibilidade, um egoísta de Ideias prosaicas e práticas, que apenas pensava em subir. A honra, para ele, não era mais que uma das doenças dos homens crédulos. Vergonha era sentimento que nunca conhecera. Maquiavel bem podia tê-lo celebrizado.

Mas saiu na manhã seguinte, não obstante Mário ter-lhe dito ser imprudente fazê-lo. O pajem seria a sua companhia pensando que tal palrador lhe serviria de alguma coisa, mas a excessiva hospitalidade de Almerico modificou-lhe os planos. Não lhe recusavam o desejo de tomar ar, mas a «Madonna» Fulvia seria o seu guia. Bem protestou ele que era incomodarem-se muito por sua pessoa, mas ela insistiu e partiram juntos.

Os jardins de Pievano, cercados por muralhas maciças, cinzentas, com mais de duzentos anos, haviam resistido aos teimosos cercos no passado antes dos tempos de César Bórgia, espalhavam-se por vários terraços sobre as íngremes encostas do monte que ficava atrás do castelo. No Verão, aqueles terraços eram frescas alamedas de limoeiros e acolhedores túneis de vinhas trepadeiras; mas agora tudo estava nu, seco, num entrançado de ramaria que o Sol de Janeiro trespassava. Havia contudo locais de erva verde e, no alto da montanha, brilhavam como esmeraldas as neves que se iam fundindo. Lá em baixo, um pouco para o Norte, estendia-se a superfície espelhada do lago Trasimeno.

Caminharam devagar até ao terraço mais alto - eram seis - de onde se gozava rico panorama para todo o vale. Encontraram um sítio abrigado sob a muralha ocidental onde um assento de granito convidava a repousar, na frente dum tanque que, no Verão, servia para as regas. Num pequeno nicho semicircular, estava uma Virgem de barro, pintada, mas desbotada pelas chuvas e pelo Sol.

Pantaleone tirou dos ombros o casaco vermelho e estendeu-o no assento, para a sua companheira. Ela parou por instantes. Seria prudente sentarem-se? O ar não estaria frio, e não viria ele a transpirar? E a sua terna solicitude traduziu-se em avisos carinhosos...

Mas Pantaleone tranquilizou-a com um fresco sorriso que derrotava qualquer ideia que ela tivesse sobre a fraqueza do seu estado.

E então ficaram, lado a lado, sentados sob a imagem da Virgem-Mãe, à beira do tanque de granito onde a água se quedava como se fosse um espelho de cristal. Era, sem dúvida, lugar muito a propósito para um par de apaixonados, mas se ela não tinha pensamentos de amor sobre o companheiro - porque a outro dera o seu afecto, como já sabemos - ele ainda menos pensava nela. Não que fosse insensível ao prazer de possuir uma linda mulher; aqueles lábios grossos provavam o contrário, como dissera frei Serafino, embora toda a sua preferência fosse para mulheres de ancas largas e de alto colo. Mas naquele momento todo o seu pensamento se concentrava em descobrir o esconderijo de Matteo Orsini.

Daquelas alturas, a vista alongava-se sobre os montes e os vales, o lago e o rio que serpenteava lá em baixo. Pantaleone, porém, não ligava grande importância ao panorama; seus olhos ousados, negros, perscrutavam os arredores do castelo, examinando a disposição dos edifícios anexos à esquerda da roca e também um estranho pavilhão do outro lado, ocupando o centro dum terreno quadrangular, rodeado de muros de modo a formar um hortus inclusus.

Estendeu as pernas e aspirou o ar puro da montanha.

 - Depois, suspirou:

 - Ai! que se pudesse escolher a minha situação nesta vida - disse num suspiro - gostaria de ser o senhor duma propriedade como esta!

 - A ambição é modesta - disse ela.

 - Possuir mais é ter poder para fazer mal, e quem pratica o mal cria inimigos; quem cria inimigos vive torturado e pouco aprecia a alegria duma vida feliz...

 - Meu pai concordaria convosco. É essa a sua filosofia; por pensar assim é que tem vivido sempre aqui, sem se empenhar em obter maiores benefícios.

 - Escolheu a melhor parte, de facto - disse Pantaleone. - Tem o bastante, e quem tem o bastante devia considerar-se feliz.

 - Mas quem há aí que pensa ter o bastante?

 - Vosso pai pensa assim e eu também seria da mesma opinião se fosse senhor de Pievano. Para quem é da vossa condição, com o vosso nome, isto pode parecer medíocre.

Na realidade, comparado com o que podia ser vosso, isto nada é... Mas é aí que está o segredo da vossa felicidade e tranquilidade.

 - Estais certo de que sou feliz! - replicou ela, olhando-o de frente.

Ele também a fitou e, se por momentos, esteve quase tentado a interessar-se pelos seus problemas sentimentais, venceu nele o desejo de colher o maior número de informações.

 - Seria cego se o não visse. Mas não me referia só a vós, mas também a vosso pai. Um nobre senhorio, espaçoso e sólido, no burgo, o povo pagando os tributos e prestando-lhe fidelidade; a roca com todos estes edifícios acessórios juntos sob suas asas maternais - exceptuando, talvez, aquele pavilhão acolá cercado pelo jardim - acrescentou sub-repticiamente, fazendo um sinal com a mão, e falando tão de vagar como um felino avançando aos poucos, desejoso de alcançar o fim que tinha em mente desde que se sentara junto dela.

- Aquilo - continuou, reflectindo - é uma velha construção e não posso conceber com que objectivo a mandaram ali erigir...

Nesta afirmação ia uma pergunta e ela respondeu-lhe imediatamente:

 - É um lazareto.

Admirado, Pantaleone teve um movimento de recuo, sentindo-se pouco à vontade, e agora não havia audácia em seus olhos negros ao fitá-la. Havia sim um eco sinistro naquela palavra que criava horrores perante a imaginação humana:

 - Um lazareto? - repetiu ele boquiaberto.

 - Isto passou-se quando o meu pai pouco mais era que um garoto - explicou ela. - Houve a peste em Florença que se espalhou até aqui ao burgo. Nos fins do Outono as pessoas caíam mortas como moscas. Para as socorrer, meu avô mandou construir aquele pavilhão juntamente com outros que depois foram demolidos, circundando-os com paredes. Houve então um santo frade, frei Cristofero, que veio cuidar dos que haviam escapado, e miraculosamente se salvou da peste.

O rosto de Pantaleone contorceu-se numa expressão de desgosto:

 - E aquilo existe ainda como monumento em honra de tão triste caso? - inquiriu.

 - Oh, não! Havia aqui outras casas, mas, como vos disse, foram demolidas. Foi aquela a única que ficou.

 - Mas por quê? - perguntou ele à surrelfa.

 - Tem a sua utilidade!

Ele fitou-a de sobrancelhas erguidas com um ar incrédulo:

 - Não me ides dizer que é habitada?! - perguntou com um leve tom de mofa.

 - Oh, não, não! - replicou «Madonna» Fulvia.

Mas Pantaleone, alertado, notou que ela respondera muito depressa, e a voz lhe tremera quando os seus olhos puros se desviavam dos seus, sentindo-se naturalmente culpados.

 - Não, não! - repetiu. - Claro, agora não está ocupada! Ele olhou indiferentemente para o local, mas no seu íntimo já estava convencido de que ela mentira.

Contudo queria certificar-se. De repente, levantou-se dum salto com uma exclamação e de rosto virado em direcção ao jardim cercado de muros.

 - O que é? - perguntou ela, sem poder respirar, pousando-lhe a mão sobre o braço.

 - Com certeza... com certeza vos enganais! Está lá gente. Pareceu-me que vi qualquer coisa mover-se na sombra!

 - Oh! não, não! Impossível! Não há ali ninguém! E mostrava-se agitada em cada sílaba que pronunciava.

Mas ele já lhe arrancara a resposta à pergunta que nem sequer havia formulado.

Satisfeito, apressou-se a tranquilizá-la:

 - Ah! não... - e riu-se como de si próprio. - Agora vejo o que é. A sombra daquela oliveira iludiu -me... - e olhou-a com um sorriso nos lábios grossos:

 - Ai! - disse - lembraste-vos por certo do que podia ter sucedido ao fantasma de frei... como se chamava ele?

- Frei Cristofero! - disse ela sorrindo como se lhe tirassem um peso de cima do coração.

«Vinde, senhor; haveis estado aqui durante muito tempo para quem se encontra no vosso estado - e levantou-se.

 - Sim, bastante tempo - concordou Pantaleone mais acertadamente do que ela suspeitava, e ergueu-se, obediente, para se irem embora.

O que ele lhe disse era verdade. Tinha estado ali o tempo suficiente para alcançar os seus fins, e o facto de ela ter sugerido repentinamente que se fossem embora confirmava o que acabara de descobrir. Queria «Madonna» arrancá-lo do local onde, por acaso, podia, de facto, ver aquilo que ele pensava não ter visto.

Partiram, pois, de bom grado.

 

CAPÍTULO IV

Um aventureiro atrevido nunca duvida dos seus juizos e das suas descobertas. Ganha, dum salto, uma conclusão e logo que a obtém, age baseado nela. E é por isso que é aventureiro! Mas o nosso herói, muito astuto, move-se mais vagarosamente, com mais cautela, experimentando o terreno a cada passo, desconfiando das suas deduções, até ter esgotado os meios de as confirmar.

E até se conclui com rapidez, procede, mesmo assim, lentamente, a não ser que a necessidade o obrigue a uma acção imediata.

Era assim Pantaleone. Uniu elo a elo todas as informações que obtivera, até ter nas mãos uma cadeia sólida que lhe dava o direito de admitir que tinha provas positivas de que Matteo Orsini se abrigava em Pievano, embora pudessem ser refutáveis.

Um indivíduo precipitado teria reunido os seus homens e penetrado ali como um furacão. Mas Pantaleone não era desses que trabalham às cegas. Primeiro pensou no que lhe custaria o erro; podia muito bem acontecer que, não obstante todas as indicações, a sua presa não estivesse no Lazareto. E, nesse caso, se assim procedesse, ver-se-ia na posição do jogador que, aventurando tudo numa só jogada, visse os dados passarem às mãos do adversário. Descobririam o que ele era na realidade e passaria pela vergonha de dizer ao seu senhor que falhara.

Por isso, apesar das suas fortes convicções, Pantaleone aguardou e observou, enquanto estava à vontade em Pievano, saboreando a hospitalidade de Almerico. De manhã passeava pelos jardins com a «Madonna» Fulvia e, à noite, consentia que Rafael lhe ensinasse a jogar o xadrez, ensinando-lhe, por sua vez, a manejar a espada e o punhal, com que poderia, de futuro, com meia esgrima, meia travessura, pôr o inimigo às portas da morte. À noite costumava conversar com o dono da casa, quer dizer, costumava ouvir as eruditas considerações sobre a vida que lhe expunha Almerico, extraídas da filosofia de Séneca ou das lições de Epicteto, preservadas nos escritos de Flavius Arrianus.

Devemos confessar que Pantaleone se sentia aborrecido com tais discursos. Um homem de lábios grossos e com todas as qualidades que eles exprimem dificilmente podia achar sentido nas doutrinas da austera filosofia dos estóicos, estando contudo interessado em ver a influência dessas teorias sobre o seu protector e como ele parecia ter modelado a sua vida sobre elas, buscando a tranquilidade, como ensinam os estóicos.

Embora não compreendesse assim a vida, abstinha-se de comentários e fingia concordar, sabendo que estar de acordo com uma pessoa é o caminho mais curto para ganhar a sua admiração e confiança.

Porém, parca recompensa obteve com tal sofrimento. Não depositavam nele a confiança que pretendia. Na sua presença nunca mencionavam o nome de Matteo Orsini e quando, uma vez, ele próprio se lhe referiu, elogiando-o e lamentando a sua morte, responderam-lhe com um silêncio que lhe provou, não obstante a sua amabilidade, que não confiavam nele. Por mais de uma vez, por exemplo, quando entrava no salão, paravam bruscamente a conversa e mergulhavam numa forçada mudez.

Assim se passou uma semana sem ter feito progressos no seu empreendimento, pelo que começava a impacientar-se, sentindo que se aquela inacção durasse mais tempo, bem contra sua vontade, poderia cometer uma leviandade.

Além disso, as suas conclusões não tinham sido confirmadas pois não havia sequer uma pequena indicação de que o Lazareto estivesse habitado. E então, uma noite, quando ia deitar-se, alumiado por Rafael, que se tornara agora o seu criado de quarto, fez, por acaso, uma pequena descoberta.

O quarto dele ficava sobranceiro ao vasto pátio da roca, e não tinha janelas para outro lado. Mas, ao dirigir-se para lá, passando por uma das janelas da galeria que deitava para o Sul, para o hortus inclusus e olhando, indiferentemente, nessa direcção, vislumbrou o brilho duma pequena réstia de luz que se movia na escuridão.

E ficou contente por se ter mostrado insensível à descoberta o que outra pessoa dificilmente haveria feito no seu lugar sem despertar suspeitas. Ficou muito quieto, fitando a luz por uns instantes e chamou então a atenção do pajem:

 - Anda qualquer pessoa a vaguear no jardim a estas horas? - aventou.

Rafael aproximou-se e encostou a cara ao vidro para melhor espiar no escuro.

 - Deve ser Mário - respondeu o rapaz. - Vi-o à porta quando subia.

 - Mas que diabo está ele a fazer no jardim a esta hora? Por certo não poderá andar a apanhar caracóis, nesta altura do ano!?...

 - Com certeza que não! - concordou Rafael, visivelmente Intrigado.

 - Ah! bem - disse Pantaleone vendo que estava a perder tempo, pois Rafael não sabia de nada para lhe contar. E continuando a fingir indiferença, bocejou: - Não é nada connosco; anda, rapaz, senão fico aqui a dormir...

Primeiro pensou em aludir ao assunto, casualmente, na manhã seguinte, observando o efeito em Almerico e na filha. Mas o sono trouxe-lhe melhores conselhos e, de manhã, estava muito calmo. Passeou, como de costume, no jardim com a «Madonna», mas não nos terraços superiores, donde se avistava o Lazareto.

Ela recusara-se a repetir a caminhada até ao alto do jardim, afirmando sempre que a subida era muito fatigante.

Pantaleone costumava trazer uma pequena bola de âmbar, pouco maior que uma cereja, presa ao pescoço por uma minúscula cadeia de ouro. Levava-a como habitualmente, quando naquela manhã saíram para o passeio; mas se a «Madonna» o tivesse observado bem, notaria que, a certa altura do percurso, a bola desaparecera.

Pantaleone, aparentemente, não deu por isso, até à terceira hora da noite, depois da ceia, quando geralmente se retirava para o quarto, na mesma altura em que, na noite anterior, vira a luz misteriosa no jardim. Então, subitamente, levantou-se, dum pulo com uma exclamação de desgosto que provocou a curiosidade.

 - A minha bola de âmbar! - gritou, com o ar dum homem vencido por uma grande fatalidade. - Perdi-a!...

Almerico deixou de preocupar-se e sorriu. Citou os estóicos.

 - Nesta vida, meu amigo, nunca perdemos nada! Às vezes restituímos qualquer coisa. Assim é que é. Por quê, pois, essa aflição por causa duma bola de âmbar, uma bagatela que pode ser substituída por um ducado!?...

 - Eu estaria tão preocupado se isso fosse assim? - perguntou Pantalieone com um leve tom de impaciência perante a filosofia com que Orsini enfrentava aquela perda. - Era o meu talismã, de encanto poderoso contra o mau olhado do demónio, deu-ma a minha santa mãe! Trago-a, por amor dela - e concluiu com ar de fatalidade no rosto. - Preferia perder tudo o que tenho a perdê-la!...

«Como era diferente», pensava a «Madonna» Fulvia, admirando o seu amor filial; e até o pai nada mais teve a dizer.

 - Agora, deixem-me ver; deixem-me pensar - disse Pantaleone, de pé, arrebatado, cofiando a fenda do queixo. - Esta manhã no jardim, trazia-a comigo; pelo menos tinha-a quando saí. Eu... sim! - Bateu com o punho na palma da mão. - Foi no jardim, deve ter sido no jardim que a perdi. - E sem pedir licença, agarrou-se ao criado:

 - Uma lanterna, Rafael!

 - Não seria mais prudente esperar pela manhã? - inquiriu Almerico subtilmente.

 - Senhor, senhor! - gritou Pantaleone rudemente - não poderia descansar, nem dormir, nesta tensão, nesta incerteza... procurarei durante toda a noite, se for preciso!

Tentaram ainda dissuadi-lo, mas perante a sua forte resistência e o ar de indiferença, deixaram-no ir. O velho nobre mal se deu ao trabalho de desdenhar das superstições que se apoderam dos homens. Já que nada o satisfazia senão ir imediatamente, ordenaram a Rafael que o acompanhasse e Pantaleone ficou sem saber se isto era uma amabilidade, se uma medida de precaução.

Saíram os dois, cada um munido da sua lanterna e dirigiram-se directamente ao primeiro terraço. Com as duas luzes podiam examinar todos os troços do muro, mas em vão.

 - Rafael, cinco ducados se a achares! - disse Pantaleone. - Dividamos as nossas forças; e assim a busca será mais breve. Vai para o segundo terraço e procura bem. Cinco ducados se a achares!

 - Cinco ducados! - Rafael mal podia respirar. - Mas se aquilo não vale mais de meio ducado!

 - Mas terás cinco se a achares! Para mim vale mais que esta quantia!

Rafael subiu com a lanterna, deixando Pantaleone que ia voltar para trás, pelo caminho já percorrido. O aventureiro esperou que o som dos passos do rapaz deixasse de ouvir-se e que a luz da sua lanterna se tornasse invisível. Depois dirigiu-se para trás duma sebe de buxos que esconderia a luz que levava, das janelas da casa, e depois, sem mais ruído, apagou-a. Feito isto, atravessou tão rapidamente quanto podia, sem fazer barulho. Parou junto dum grupo de lariços, a doze passos da muralha da vedação, encobrindo-se com as árvores, e aguardou, de ouvido alerta.

Correram alguns momentos de profundo silêncio. Na distância, podia divisar a luz pálida da lanterna de Rafael, movendo-se a passo de caracol, no terceiro terraço do lado do monte. Sabia que Rafael estaria ocupado ainda durante uma hora. A promessa dos cinco ducados mantê-lo-ia paciente, para não falhar. Enquanto que se alguém estivesse em casa a espiar, mais não veria do que uma luz fraca e suporia que Rafael e ele andavam juntos.

Seguro quanto a isto, Pantaleone revestiu-se de paciência e pòs-se à espreita, também não abusaram muito da sua paciência... Aproximadamente dez minutos depois, conseguiu ver o que queria. Sentiu uma porta ranger e da mais pequena da barbacã interior, saiu outra luz, que avançava velozmente para ele, por um caminho junto dos lariços, sentindo-se logo o ruído de passos. Em breve, em meio da escuridão, pôde Pantaleone distinguir o vulto dum homem, levemente embuçado.

Deixou-se ficar imóvel, tapado pelas árvores, invisível, mas vendo tudo. O vulto avançou. Passou tão perto dele que lhe podia ter tocado com o braço. Reconheceu o rosto lívido, picado das bexigas, de Mário e verificou que o homem levava um cesto no braço esquerdo. Viu o brilho frouxo dos guardanapos, sob os quais irrompia o gargalo duma garrafa de vinho.

O homem afastou-se e alcançou a muralha. Havia ali uma porta verde e Pantaleone esperava vê-lo esgueirar-se por ali, disposto a seguí-lo. Porém, em vez disso, o homem parou junto ao muro, a dez passos da porta e Pantaleone ouviu bater suavemente as palmas e uma voz perguntar:

 - Estás aí, Colomba?

Logo detrás do muro soou a resposta numa voz feminina:

 - Estou aqui.

O que se seguiu não foi fácil de ver e Pantaleone só podia deitar-se a adivinhar. Por um lado viu e por outro lado inferiu que Mário tinha pegado numa escada de mão que encostou à parede, subiu e deu o cesto à mulher, lançando-o para dentro da vedação.

E foi tudo. Acabado isto, Mário desceu, deslocou novamente a escada, e voltou para trás desembaraçado e rápido. Pantaleone deu por confirmada a sua suspeita. Como tinha pensado, Colomba e O criado Giuberti estavam ao serviço de Matteo Orsini que se escondera e a comida era-lhe lievada assim, à noite, por Mário, e com certeza, crua, para ser cozinhada pela mulher deste, de tal modo que ninguém em Pievano partilhava daquele segredo.

Tudo isto era claro como a luz do dia! Mas, por outro lado, o assunto tinha o seu quê de misterioso e insondável. Porque tinha Mário empregado uma escada de mão para escalar o muro, se perto havia uma porta?! Era bem estranho, mas o facto obedecia a qualquer precaução, supunha ele.

Além disso, acontecia qualquer coisa que repentinamente lhe prendia a atenção. Mário, em vez de voltar para casa, parara a meio do caminho como que hesitando, e dirigira-se depois para a luz que indicava o local das pesquisas de Rafael. Isto agora era um caso sério para Pantaleone! Se não tivesse cuidado, podia levar à descoberta dos seus verdadeiros fins. Saiu do esconderijo, e começou a seguir Mário devagarinho. Passaram ao segundo terraço. Então, enquanto Mário caminhava, Pantaleone virou rapidamente à direita, voltando ao mesmo sítio onde apagara a lanterna. Chegado ali, voltou e correu para trás gritando:

 - Rafael! Rafael!

Viu a lanterna de Mário parar na caminhada, e um momento depois, a de Rafael brilhava no terraço superior porque o rapaz começara já a aproximar-se ao ouvir chamar.

 - Achei! - gritou Pantaleone, pois de facto tinha-a encontrado, na algibeira onde a tinha guardado. - Encontrei! Encontrei! - repetia num tom ridículo de triunfo, como Colombo anunciara que tinha descoberto o Novo Mundo.

Avançou para o lanço de escadas que subiu, esperando por eles lá em cima.

- Achasteis? - perguntava Rafael desanimado, enquanto Pantaleone a fazia rebolar, pendurada no fio.

 - Olha! - e acrescentou. - Mas receberás um ducado pelo teu trabalho! Portanto, alegra-te!

 - Encontraste-la na escuridão? - era Mário que fazia esta pergunta com voz rouca e Pantaleone notou a desconfiança no seu timbre.

 - Louco! - disse, como é que eu a podia ter achado às escuras? Voltei a lanterna, de entusiasmado que fiquei!...

Mário examinava agora o seu rosto, de perto.

 - É muito estranho - disse - que vindo por este caminho eu não tenha visto a luz!

 - Eu estava ali atrás da sebe, que a deve ter tapado - explicou Pantaleone e não disse mais nada, pois sabia que quem se explica muito acaba por trair-se.

Regressaram juntos a casa; Rafael, mudo de desapontamento; Mário pensativo, suspeitando de tudo aquilo; Pantaleone gaguejando ingenuamente na grande alegria de ter recuperado o precioso amuleto e relatando as circunstâncias em que a mãe lho pusera ao pescoço, com palavras que o aconselhavam a usar sempre e de que perigos o havia defendido - tudo mentiras que saltavam do seu cérebro fértil, como a água brota duma nascente.

Apesar disto tudo, quando finalmente deu as boas-noites a Mário viu a desconfiança estampada nas linhas daquele rosto cor de argila.

Por isso foi para a cama meditabundo. Esteve acordado durante algum tempo pensando naquilo que descobrira e considerando mais importante ainda o que o deixara intrigado. Noutra ocasião, teria adiado a entrada em acção até que tudo se esclarecesse. Mas agora via que deixar passar mais tempo podia tornar-se perigoso. Confessou a si próprio que tinha desvendado o que mais interessava e adormeceu, prometendo a si mesmo que, na manhã seguinte, procederia de acordo com a descoberta, instalando, comodamente aos seus pés, Matteo Orsini.

 

CAPÍTULO V

O processo adoptado por Pantaleone para levar a cabo a missão que lhe fora confiada causa espanto, mas é, todavia, precisamente aquele que empregaria uma pessoa com o seu temperamento.

Pela primeira vez desde que chegara, desceu a Pievano, naquele dia que se seguiu à questão do amuleto. Como pretexto, afirmara precisar de mandar arranjar uma das botas que se havia rasgado durante as pesquisas da noite anterior. Ele mesmo a tinha rompido com o punhal.

Primeiramente, dirigiu-se a um sapateiro onde permaneceu até as botas estarem arranjadas. Saiu daí e foi à «Osteria del Orso», para tomar um refresco, mas, no fundo, com o objectivo de dar ordens aos seus homens através daquele que aí ficara. Destas voltas, resultou o facto de, ao cair da noite, os seus dez «sbirri» vaguearem separados e em plena liberdade sobre a ponte levadiça, entrando no pátio vazio do castelo. Não havia guardas em Pievano, como sabemos, e assim, esta furtiva invasão, consumada a pouco e pouco, não defrontou quaisquer obstáculos e nem sequer foi notada.

Quando se assegurou de que os rapazes estavam à mão, Pantaleone entrou na antecâmara da rocca, o belo aposento onde o haviam recebido tão carinhosamente uma semana antes, de botas e esporas, armado e de boné na mão, envolto no seu largo casaco vermelho, pronto para sair imediatamente. Nessa altura, como então, encontrou Almerico entretido com um grande volume manuscrito e a «Madonna» Fulvia junto do pai.

Levantaram os olhos surpreendidos e inexplicavelmente admirados pelo modo como ele entrara. Dera-se uma clara transformação no seu aspecto. Estava mais arrogante e vaidoso do que nunca; já não era o hóspede com toda a basófia do soldado fanfarrão, mas alguém que parecia revestido de grande autoridade. Não os intrigou por mais tempo.

 - Senhor - anunciou rudemente - tenho um dever a cumprir e lá em baixo estão três valentes rapazes para me ajudarem se for preciso. Quereis mandar chamar o vosso sobrinho Matteo Orsini que está aqui escondido?

Os dois, estupefactos, fitaram-no em silêncio, o tempo preciso para rezar um padre-nosso. Por fim a jovem falou, de sobrancelhas contraídas, os olhos faiscando como jóias escuras na alvura do rosto:

 - Que intenções tendes a respeito de Matteo?

 - As do senhor César Bórgia! - respondeu brutalmente. Deixara cair a máscara da hipocrisia. Desempenhara já o seu papel e não havia qualquer rubor de vergonha naquele rosto.

 - Mandaram-me prender Matteo Orsini - foi a ordem do duque!

Houve nova pausa e aqueles quatro olhos perscrutavam-lhe as feições.

Almerico fechou o livro e um sorriso, fraco mas desdenhoso, desenhou-se no seu rosto envelhecido e sombrio:

 - Então - disse a «Madonna» Fulvia - temos sido enganados. Mentistes!... O vosso desmaio, as perseguições de que tínheis sido vítima, tudo era falso?

A voz dela tinha um tom de incredulidade.

 - A necessidade - lembrou Pantaleone - não conhece leis!...

E embora não estivesse nem envergonhado nem admirado do seu olhar fixo, certo é que isso o importunou.

 - Vamos! - disse asperamente. - Já estais farta de olhar

para mim! Vamos à obra! Mandai chamar o traidor que protegeis.

A «Madonna» Fulvia ergueu-se com um ar de dignidade.

 - Meu Deus! - exclamou. - Judas traiçoeiro, miserável espião! E sentei-vos eu à minha mesa! Abrigámo-vos aqui como se fosseis alguém da nossa condição!

A voz dela elevava-se, subindo num tom de horror e desgosto.

 - Cão vil e mísero! - gritou. - Era esta a vossa missão? Era isto?...

A mão do pai caiu suavemente sobre o seu braço e esta ordem muda obrigou-a a calar-se. Numa ocasião destas, era ainda estóico. Não tinha assimilado em vão as doutrinas dos antigos.

 - Cala-te filha, o respeito próprio proibe-te de te dirigires a um ser tão baixo, mesmo para lhe lançares em rosto a culpa! - a voz estava calma e equilibrada. - Que te importa que ele seja vil e traiçoeiro, um objecto desprezível e vergonhoso? És tu que sofres com Isso e não ele.

Mas ela não era de opinião que o momento fosse para estoicismos. Agarrou-se ao pai, num frémito, de paixão!

 - Ah! se sofro!? Sofro eu e Matteo!

 - Mas achas que isto pode matar um homem? - perguntou Almerico. - Mesmo morto Matteo viverá, enquanto este pobre ser...

 - Vamos a isso? - intimou Pantaleone, quebrando a conversa que parecia querer encaminhar-se para um eloquente discurso sobre a Vida e a Morte, baseado em Séneca. - Mandais chamar Matteo Orsini ou eu digo aos meus homens que o arrastem para fora do lazareto onde se esconde? É vão tentar resistir, é fútil perder mais tempo! Os meus homens cercaram o local e ninguém entra ou sai se eu não quiser.

Viu que a expressão deles era agora outra. Os olhos da jovem abriram-se, de pavor, supunha ele; o velho teve um riso breve, muito breve, um riso estúpido, pensava Pantaleone.

- Bem, senhor, desde que estais tão bem informado, poderíeis sozinho acabar a vossa infame missão!

Pantaleone fitou-o por uns segundos e depois, encolheu os ombros.

 - Seja! - respondeu secamente e rodou sobre os calcanhares.

 - Não, não!

Era a «Maddona» Fulvia que o fazia parar, com este grito, um grito agudo de ansiedade.

 - Esperai, senhor, esperai!

Obedecendo-lhe, estacou, voltando-se. Viu-a de pé, firme, suspensa, com uma das mãos sobre o peito como que para abafar o seu tormento, a outra estendida para ele em gesto de súplica.

 - Dai-me licença para falar a sós com meu pai, antes... antes de nos decidirmos - pediu ofegante.

Pantaleone fungou e ergueu as sobrancelhas:

 - Decidir? - inquiriu. - Que tendes ainda a decidir? Ela torcia as mãos traduzindo o patético tumulto que lhe

ia no coração.

 - Temos... temos uma proposta a fazer-vos, senhor.

 - Uma proposta? - perguntou com um ar ameaçador. - Tentais subornar-me? Por Deus! - disse colérico mas depois calou-se.

A sua ambição inata apareceu-lhe e pôs-se alerta. No fim de contas, aconselhava-lhe, não havia mal algum em ouvir a tal proposta. É louco quem se não importa com qualquer coisa donde possa vir vantagem. Continuou a reflectir. Além disso, excepto ele, ninguém sabia da presença de Matteo Orsini em Pievano e se o preço fosse suficientemente alto - quem sabia? - poderia ser induzido a guardar o segredo para si. Mas o preço tinha que compensar não só a perda dos mil ducados oferecidos pelo Duque, mas também o seu amor-próprio ferido, no caso de ter de confessar que falhara. Vendo-o calado, e pensando que ele hesitava, a «Madonna» renovou o pedido:

- Que mal há se me concederdes isto? - perguntou. - Não nos haveis dito que o lugar está cercado pelos vossos homens? Não sois, pois, senhor da situação?

Pantaleone fez uma vénia.

 - Concedo-vo-lo - disse. - Esperarei na antecâmara. - E ao dizer isto saiu, fazendo ruido com as esporas.

A sós, pai e filha olharam-se demoradamente.

 - Para que o impediste? - perguntou por fim o senhor de Pievano. - Com certeza não fostes levada por qualquer espécie de compaixão por aquele homem?

Os lábios dela enrugaram-se num sorriso desdenhoso.

 - Não podeis pensar nisso, não podeis dizer isso a sério! - disse.

 - Por isso eu o pergunto. Estou admiradíssimo!

 - Pense naquilo que ele, vingando-se, iria fazer, se o tivéssemos deixado ir. Teria chamado os seus homens e destruído a roca até descobrir Matteo.

 - Mas isso é inevitável! Como podemos obstar-lhe? Ela inclinou-se para o pai.

 - Para que estudais tanto a fundo as doutrinas da natureza humana, se na prática não sabeis explorar o abismo fundo e oco que é a alma deste cão?

Ele recuou vacilante, olhando-a, sentindo que a sua filosofía não lhe ensinara coisa alguma que servisse numa ocasião tão melindrosa, e que aquela criança sabia fazer-lhe ver como as coisas deviam ser encaminhadas.

 - Desconheceis, acaso não vem isto em qualquer destas páginas que estais a ler, que aquele que atraiçoa uma vez, torna a fazê-lo? Não vedes que um homem tão vil, que pratica uma patifaria destas, será ainda suficientemente vil para vender o seu senhor, fiel apenas aos seus baixos interesses?

 - Queres dizer com isso que temos de suborná-lo? Ela levantou-se com um pequeno sorriso.

 - Quero dizer que devemos tentar suborná-lo - e passou as mãos pela testa alta. - Tenho como que a visão de qualquer coisa que paira na nossa frente! É como se se tivesse aberto uma porta, lançando-me nas mãos uma arma com que eu posso lutar e vingar dum só golpe a desgraça dos Orsini!

 - Cala-te, estás com febre, filha! Isto não são assuntos para uma rapariga discorrer...

 - Para uma rapariga talvez não! Mas para uma valente!... - interrompeu bruscamente. - é assunto para uma Orsini. Escute. Inclinou-se novamente sobre o pai, baixando instintivamente a voz. Falando rapidamente, expôs todo o plano que tinha surgido de súbito no seu cérebro perspicaz, um plano completo nos seus pormenores, uma cadeia de elos bem ligados.

Ele ouvia, na sua cadeira, e quanto mais ela falava mais ele se curvava, como alguém que inconscientemente se defende dum golpe que há-de vir.

 - Meu Deus! - murmurou quando ela se calou e os seus olhos a fitavam com admiração e desânimo. - Meu Deus! E o teu cérebro de virgem pura concebeu tal horror! Durante todos estes anos nunca te conheci, Fulvia! Pensei que eras uma criança e tu!?...

As palavras iludiram-no. Fez um gesto com as mãos pálidas. Nele, o estóico fora derrotado pelo pai!

Tê-la-ia dissuadido, porque se preocupava muito com ela, a sua filha! Mas ela não era pessoa que se dissuadisse. Continuou a apresentar argumentos, entusiasmando-se cada vez mais à medida que expunha os meios pelos quais, dum só golpe, derrubaria aquele falso traidor e o seu senhor, o duque de Valentinois. Dizia que não havia segurança para ela, para ele e para qualquer Orsini, se a impedissem de dar aquele passo a que estava resolvida. Lembrou-lhe que, enquanto César Bórgia estivesse vivo, nenhum Orsini estaria salvo e terminou anunciando-lhe que supunha que a sua missão era Inspirada por Deus, que ela, uma donzela e a mais fraca Orsini, vingaria as afrontas da sua Casa, impedindo a sua ruína.

Por fim, o espírito dele, abatido, fraco, sentiu o contágio do ardor da jovem, o bastante para que consentisse.

 - Deixe-me tratar com César Bórgia e o seu lacaio e reze pela alma de ambos!

Ao dizer isto, beijou-o e correu ao encontro do impaciente Pantaleone que aguardava na antecâmara escassamente mobilada.

Tinha-se sentado numa alta cadeira junto duma mesa trabalhada, em cima da qual estava um candelabro de prata onde ardiam velas. Levantou-se quando ela entrou, notando a sua palidez e evidente agitação. Mas ficou indiferente à sua fina beleza e ao seu vulto esbelto.

Chegou junto dele e encostando-se à mesa, olhou-o de frente dum modo firme embora toda ela tremesse.

Pantaleone era esperto e matreiro, como sabemos, mas a sua malícia nada era comparada com a dela; a esperteza dele era manha quando em contraste com a agudeza de espírito que a aparência de Fulvia dissimulava.

Ela julgara-o no momento em que ele se revelara tal como era e considerara-o mesquinho e insignificante. E foi neste juízo que ela se baseou para agir.

 - Olhai bem para mim, Pantaleone - convidou ela, com voz calma.

Ele obedeceu, perguntando a si próprio o que desejaria ela da sua personalidade.

 - Dizei-me se me não achais bonita e elegante?

Ele fez uma vénia, com expressão um tanto sardónica.

 - Linda como um anjo, asseguro-vos, «Madonna». A própria irmã do duque, «Donna» Lucrécia, sofreria com a comparação. Mas que tem isso a ver com?...

 - Bem, achais-me apetecível? - continuou.

A esta pergunta, faltou-lhe a respiração, tão atónito ficara! Por um instante não conseguiu arranjar uma resposta e todo o sorriso sardónico se desvaneceu. Sob o olhar dela, as pulsações perderam o ritmo, vencido por aquele seu convite para admirá-la. Olhou para ela com olhos de ver e descobriu mil encantos para os quais tinha sido cego até então. Compreendeu mesmo que aquela fina formosura, tão casta e frágil, tinha um apelo muito mais subtil do que a grosseira beleza feminina a que os seus sentidos habitualmente se prendiam.

 - Apetecível, como o Paraíso! - disse, por fim, baixando a voz.

 - Para isso não contribui apenas esta efémera beleza; tenho bom dote.

 - Uma jóia tão fina tinha de ser esplendidamente decorada. - No espírito dele brilhava agora uma ideia; para onde queria ela levá-lo, o seu coração estava cada vez mais- agitado.

 - Levarei dez mil ducados ao homem que casar comigo! - informou ela. provocando-lhe vertigens ao falar em tão avultada quantia.

 - Dez mil ducados?! - repetia ele devagar e espantado.

 - Para o homem que casar comigo - insistiu a jovem, e acrescentou com toda a calma: - Quereis ser esse homem?

 - Eu?!... - perguntou ele, parando. - Não! Isto era inacreditável! A pergunta tinha-o entontecido! Olhou para ela boquiaberto e o rosto trigueiro empalideceu.

 - Claro, na condição - prosseguiu ela - de abandonares a questão de Matteo Orsini e dizerdes a vosso amo que não o encontrastes.

 - Claro, claro... - murmurou ele. Depois recobrou ânimo e pôs-se a resolver o enigma. Ela estava noiva de Matteo. Amava Matteo. E contudo... Dar-se-ia o caso que o seu amor fosse tão abnegado que entregasse tudo por causa do amado? Essa não podia ele engolir! Não era próprio dele ser crédulo até àquele ponto! Então, ergueu a cabeça; as narinas tremiam. Verificou que estava em perigo. Estavam a estender-lhe uma armadilha. Reconheceu-o, sorrindo suave e escarninhamente.

Mas a resposta dela desarmou a sua última suspeita.

 - Tomai as vossas medidas - convidou serenamente.

- Compreendo o vosso receio. Somos gente honesta e se vos

jurar que Matteo Orsini não importunará mais seja quem for a partir de hoje, assim acontecerá! Contudo, tomai as vossas medidas. Tendes homens e poder. Deixai-os ficar no seu posto cercando o jardim. Fazei-o esta noite e amanhã partiremos os dois a cavalo para Castel della Pieve onde serei vossa esposa.

Ele lambeu os lábios devagar, baixando os olhos, observando-a gulosamente. Mas ainda tinha suspeitas. Ainda não podia acreditar em tanta sorte!

 - Porque em Castel della Pieve? - perguntou desconfiado.

 - Porque quero estar certa de que cumpris a vossa palavra. Castel della Pieve é o sítio que fica mais perto, mas bastante distante para deixar a Matteo uma estrada por onde possa fugir!

 - Compreendo - respondeu ele.

 - Estais de acordo?

Os seus olhos negros, brilhantes, fixaram-se naquela face alva, como se quisessem penetrar até ao fundo da alma, sondando-lhe os segredos. Era inacreditável! A fortuna corria para ele, a fortuna e uma mulher, e que mulher! Aos seus olhos, ela ia-se tornando mais apetecível, de momento a momento! Não tinha frei Sabino avisado o duque de que aquele homem seria cera nas mãos duma mulher?

Acaso podia obter maior lucro prendendo Matteo, continuando fiel a Valentinois? Como vedes, não fez qualquer tentativa para lutar contra a tentação. Nem sequer pensou uma vez naquela Leocádia que tinha uma taberna em Laveno, que lhe dera um filho e com quem prometera casar. Tudo isto acontecera antes de ter alcançado a posição de condottiere e o respeito e confiança de César Bórgia; e na sua nova posição, afastara-se para um cenário mais distante. Agora não lhe importava. Se hesitava era simplesmente porque aquilo que lhe propunham era incrível. Estava perplexo; um nevoeiro envolvia-lhe o pensamento. Por Deus! Como ela devia amar Matteo! Ou seria acaso que ele?...

Aqui estava uma possibilidade que abandonara até então: eis qualquer coisa que podia explicar a atitude dela para com ele. Salvando Matteo cumpria um dever e com ele punha uma barreira entre ela e o apaixonado de quem se fartara... Assim, a vaidade completava o que a sua perspicácia criara e convencia-o quando a razão o não fazia.

 - De acordo? De acordo? Pelos olhos de Deus! Serei um santo de pau ou um míope para o recusar? Vou até pôr imediatamente o selo no contrato. - E de braços abertos caiu sobre ela como um falcão sobre uma pomba e chegou-a a si.

Ela suportou-o, rígida e gelada de medo, reprimindo a sua repulsa. Ele continuava a apertá-la murmurando ternas loucuras.. Então a paixão que nele despertava fundiu-se em carinho e falou-lhe dum futuro no qual ele seria o escravo dos seus mais pequenos caprichos, o seu eterno e dedicado adorador.

Por fim, a jovem libertou-se daqueles braços acolhedores e afastou-se dele, com as faces ruborizadas e a vergonha na alma, e uma sensação de violação a invadir todo o seu ser. Ele olhava-a, um pouco desalentado e cheio de suspeitas.

Mas ao chegar à porta, ela parou e por alguns minutos o gelo fundiu-se. O seu riso ecoou pela sala até onde ele estava.

 - Amanhã! - atirou-lhe, e desapareceu deixando-o aturdido.

 

CAPÍTULO VI

Embora perturbado, Pantaleone tomou precauções contra uma possível traição, apoiando-se nos seus homens que durante a noite vigiaram para se assegurar de que Orsini não escaparia. «Madonna» Fulvia e ele desejariam pôr-se a caminho para casar. Seria a fuga e Pantaleone, tomadas as devidas prevenções, foi deitar-se para sonhar com um futuro cor-de-rosa, adornado com os dez mil ducados.

Em qualquer época e para um aventureiro, os ducados são un sinal de nobreza. Um homem pode empenhar a honra, comprometer o seu nome e vender a alma, que é imortal, para ganhar alguns milhares de ducados num bom negócio! E assim sucedia com Pantaleone. Por mil ducados prometidos pelo duque acedera a representar o papel de Judas. Mas se lhe acenassem com dez mil, estaria pronto a atraiçoar aquele que o contratara; e o pior disto tudo é que se convencia de que procedia inteligentemente. É por isso, leitor, que peço para ele a vossa piedade. Precisa-a agora e no que vai acontecer-lhe muito em breve. Se tivesse compreendido a sua baixeza, seria simplesmente um vilão. Mas longe disso, como a sua dupla baixeza lhe trazia maiores vantagens, considerava-se um homem esperto e merecedor. Era um verdadeiro fruto da sua época, e contudo esta espécie de homens tem existido em todos os tempos!

Enquanto construía castelos no ar, a «Madonna» Fulvia Planeava a sua destruição e a do outro. Preparou uma carta propositadamente enigmática e breve, para excitar a curiosidade e a resposta que desejava. Verteu-a numa linguagem composta de latim curial e expressões populares.

 

Magnificente:

Fostes atraiçoado por alguém que contratastes para uma traição. Dar-vos-ei provas, amanhã, às doze em ponto, em frente da Duomo de Castel della Pieve, se Vossa Ilustre Magnificência quiser estar lá para as receber.

«Servitrix vestra.»

Fulvia Orsini

Da Rocca de Pievano, vinte de Janeiro, de 1503.

 

E, sob a assinatura, acrescentou as palavras «Manu própria», que o respeito por si própria parecia exigir-lhe. Depois, o endereço:

Ao ilustre Príncipe, duque de Valentinois Urgente, urgente, urgente.

Ao sacudir o areeiro sobre a tinta húmida, chamou Rafael que estava sentado num tapete, em frente do fogão. Este deu uma cambalhota e saltou dum pulo, acudindo à chamada.

Fulvia pôs as mãos sobre os seus ombros, olhando aquele rosto gracioso:

 - Quereis fazer-me um favor, como um homem, Rafael? Preciso dum homem e não posso dispensar nenhum dos que estão aqui. Queres ir esta noite a cavalo ao acampamento de César Bórgia com uma carta?

 - Se é necessário só isso para vos provar que sou um homem podeis tê-lo por certo - respondeu ele graciosamente.

 - És um bom rapaz, um bom rapaz! Então, agora, ouve-me. Pode haver espiões à volta do portão e, assim, seria melhor partires daqui. Se puderes escapar-te sem que ninguém te veja melhor ainda! Depois desce ao burgo e vai a casa de Villanelli. Diz-lhe que te empreste um cavalo para meu serviço, mas não lhe digas para onde vais. Sê discreto e rápido.

 - Confiai em mim, «Madonna» - retorquiu o rapazola, escondendo a carta entre o peito e o gibão.

 - Se não o fizesse, não te encarregava disto. Deus te acompanhe! Quando saíres, diz a Mário que venha ter comigo.

Logo após a sua saída, chegou Mário.

 - Como vai Giuberti esta noite? - perguntou ao cirurgião logo que este entrou.

 - Duvido muito que ainda esteja vivo amanhã de manhã - respondeu encolhendo os ombros, desanimado.

O rosto dela tornou-se sombrio e grave; os olhos tomaram uma expressão de tristeza.

 - Pobre homem! - exclamou. - Está assim tão perto o seu fim?!...

 - Um milagre poderia salvá-lo. Só isso. Mas agora já não há milagres!...

A jovem, pensativa, de olhos baixos, deu uns passos vagarosos até ao fogão.

Esteve assim por longo tempo enquanto Mário aguardava.

 - Mário - disse por fim, falando serenamente. - Preciso de si e de Colomba esta noite.

 - Estamos às vossas ordens, «Madonna» - replicou o outro.

Mas, quando ela acabou de lhe explicar do que se tratava, viu-o recuar, horrorizado, com o pavor estampado naquele rosto que as torturas da doença tinham tornado horrível.

Ela começou então a apresentar os seus argumentos com um entusiasmo eloquente, conseguindo que ele concordasse com ela.

 - Bem, «Madonna», já que assim quereis, seja! Escrevestes a carta?

- Ainda não. Voltai daqui a bocado, nessa altura estará pronta.

Mal ele tinha transposto a porta, a «Madonna» sentou-se à escrivaninha. Esteve uns momentos sem poder escrever, de tal modo a mão lhe tremia, devido ao nervosismo de que estava possuída após a entrevista com Mário.

Pouco a pouco, foi retomando a serenidade e, por momentos, reinou o mais profundo silêncio no aposento, ouvindo-se apenas o crepitar das achas no fogão e o ruído da pena sobre o papel.

Mário voltou antes de ela ter acabado de escrever. De pé, esperou com paciência, até que lançando a pena para o lado, levantou-se, estendendo-lhe a missiva.

 - Percebeis?

 - Sim, «Madonna». É simples, terrivelmente simples!

E olhava-a tristemente, e com esse olhar ele queria fazer-lhe ver como lhe parecia estranho que um ser tão jovem e encantador pudesse ter concebido um plano tão diabólico.

 - E informareis cuidadosamente Colomba, para não haver qualquer engano...

 - Não haverá! - afirmou Mário., - Tenho uma cana e vou eu mesmo tratar de tudo. Arranjarei facilmente um espinho.

 - Bem, é preciso que tudo esteja arranjado ao romper do dia. Quando o trouxerdes ao meu quarto, estarei já a pé e pronta para a viagem.

A estas palavras, Mário ficou surpreendido.

 - Mas... não ides vós levá-la!

 - Então quem há-de ir? Poderia eu acaso exigir isso de alguém?

 - Jesus! E o meu amo sabe disto?

 - Sabe qualquer coisa; sabe o suficiente. Nem mais uma palavra. Agora, Mário, ide-vos embora e fazei o que vos peço.

 - Mas pensai, «Madonna», no perigo que ides correr! Pensai, «Madonna», suplico-vos!

 - Já pensei. Sou uma Orsini. Os Orsini foram enforcados em Assisi e há outros ainda que estão presos em Roma.

Aquele monstro, que nunca se farta de vingança, exige a vida de Matteo. Vou lá para o salvar e vingar os outros. E não falharei!

 - Ah! minha «Madonna», mas... - disse ainda Mário, com a voz abafada, as lágrimas prestes a saltarem dos olhos.

 - Nem mais uma palavra, se sois meu amigo! Fazei-me a vontade. Nada poderá demover-me.

O tom de Fulvia era agora diferente, e ele nunca a vira assim! Ela era a senhora e ele, simplesmente, um criado, quase um escravo, devendo-lhe obediência.

Saiu para cumprir o que lhe prometera; a jovem seguiu-o pouco depois, para se deitar, procurando no sono retemperar as forças para levar a cabo a missão em que se empenhara.

 

*            *           *

 

A manhã seguinte encontrou-a pálida, mas tranquila. Desceu para juntar-se ao noivo, no átrio.

O senhor de Pievano ficara no quarto. Apesar de todo o seu estoicismo, não podia vir sentar-se à mesa junto dum homem como Pantaleone, assistindo à humilhação a que a filha ia sujeitar-se. Por muito que acarinhasse o seu projecto - visto que antes de ser filósofo já era um Orsini - detestava os meios, tomando a resolução de lhes recusar a sua presença ou adoptar uma atitude passiva. Porém, e devemos dizê-lo se queremos ser justos para com ele, se soubesse tudo o que esse homem pretendia fazer não procederia assim, com certeza. Mas ela apenas lhe revelara uma parte do plano. Pantaleone, contudo, sentia-se preocupado, entre a vaidade de ver-se subitamente embalado pela fortuna e a incerteza que o assaltava.

E era isto que se reflectia no seu olhar quando foi ao encontro de Fulvia.

Tinha perdido a sua arrogância habitual; parecia fatigado.

Dirigindo-se a ela atravessou o átrio, com um andar afectado, o que, aliás, fazia frequentemente; mas não tinha aquele ar de autoridade natural num homem que se dirige à mulher que vai possuir. Pegou-lhe na mão quase que humildemente, e levou-a aos lábios. «Madonna» correspondeu-lhe com o mesmo desapego gélido com que, na noite anterior, lhe suportara o abraço.

Sentaram-se à mesa para tomarem o pequeno almoço, sem criados a servi-los, excepto Mário, mudo como uma esfinge. Rafael não estava presente e Pantaleone ainda não o tinha visto naquela manhã.

Comentou o facto a Fulvia, não só para quebrar o silêncio que os envolvia, como também movido pela curiosidade de saber o que sucedera ao seu pajem. «Madonna» desculpou o rapaz, dizendo que não se sentia bem e ficara na cama. Verdade é que ele voltara para o quarto, sim, depois de ter regressado de Castel della Pieve e ter entregue a carta.

Passado pouco tempo, os dois agora noivos saíram e tomaram a estrada que passava junto ao pântano, a caminho de Castel della Pieve. Com eles, seguiam os dez homens da escolta de Pantaleone, e Mário, a pedido da «Madonna». Pantaleone antipatizava com ele e desconfiava do silêncio do criado de rosto cor de argila; ter-se-ia visto livre dele com grande satisfação. Todavia, julgava prudente divertir Fulvia, pelo menos até que o padre a tornasse sua.

À medida que avançavam à luz clara do Sol daquela linda manhã de Janeiro, e o castelo ia ficando para trás, Pantaleone reanimava-se e vencia a sua última desconfiança. Não lhe restava qualquer suspeita de estar a ser vítima duma traição. Não se lhe havia ela oferecido? Não estavam eles rodeados pelos seus homens? Os ducados apareceriam e tudo o mais, tão certo como o Sol nascer todos os dias! Nesta convicção, começou a fazer de galã, como compete a um noivo; mas ela estava fria e altiva e quando ele a censurou, afirmando-lhe que não o tratava como se trata um futuro marido, retorquiu-lhe que entre eles apenas existia um pacto.

Isto gelou-o e durante uns segundos cavalgou em silêncio, mal-humorado, de cabeça baixa, sobrolho carregado. Mas o ressentimento passou-lhe logo. O seu humorismo inato não podia manter-se abafado. Deixá-la estar fria agora... pois saberia transformá-la numa mulher ardente! Já transformara tantas, que esperava sair-se bem mais uma vez... Não que lhe importasse muito que ela ficasse indiferente ao seu calor, os ducados consolá-lo-iam pois que com eles podia depois procurar quem retribuísse a ternura que ela lhe rejeitava.

Subiram um pequeno monte, e do cume avistaram os telhados vermelhos de Castel della Pieve, a umas duas léguas de distância. Faltava uma hora ainda e se continuassem naquele passo chegariam cedo demais. Ela começou então a abrandar a marcha, afirmando que estava cansada duma tão árdua cavalgada, que, afinal, se lhe tornava penosa, por não estar habituada. E tudo calculou tão bem que precisamente na hora certa atravessavam o arco da Porta Pia.

 

CAPÍTULO VII

O exército do duque acampara no lado oriental da cidade; Pantaleone não o sabia e só deu conta disso quando entraram na rua principal e viram os soldados aos grupos, conversando aqui e ali, no dialecto pitoresco do centro do país. O papel que desempenhara em Plevano tinha-o isolado do resto do Mundo, perdendo a noção do paradeiro de César Bórgia. Quando verificou que estava perto do duque, teve a sensação de que lhe tinham lançado água fria por cima da cabeça. Evidentemente, na situação em que se encontrava, tinha razão para fugir do duque como o diabo da Cruz!

Puxou as rédeas, olhando desconfiadamente para a «Madonna», pressentindo que estava a cair numa armadilha por ela preparada. Lembrou-se de que toda a vida desconfiara de mulheres magras, sem feminilidade.

 - Se me dais licença, «Madonna» - disse, mal-humorado - mandarei buscar um padre...

 - Para quê? - perguntou ela observando-o desdenhosa.

 - Porque quero! - respondeu ele entre temeroso e altivo. Fulvia teve um sorriso enigmático. Estava calma e segura da situação.

 - Ainda é cedo para me impordes a vossa vontade; melhor será não insistir, senão nunca tereis ocasião de o fazer. É fora de dúvida que ou casarei em Castel della Pieve ou não caso mesmo!

Pantaleone fitou-a, receoso, fazendo estacar o animal.

 - Santo Deus! Nunca encontrei uma mulher magra que não fosse matreira, trazendo sempre um saquinho de partidinhas diabólicas! Afinal, qual é a vossa ideia?

De repente, sobre a multidão, elevou-se uma voz e um homem grisalho, robusto, cego duma vista, avançou, revestido de couro, ostentando cota de malha. Era Taddeo Della Volpe, capitão de Valentinois.

 - Sede bem-vindo, Pantaleone! - exclamou. - Ainda ontem o duque falou de vós, perguntando o que vos teria acontecido?!...

 - A sério? - perguntou o aventureiro, já que tinha que dizer qualquer coisa. Furioso por ver a retirada cortada por um encontro tão pouco oportuno, olhou em volta como se obedecesse a uma ideia de fuga. Della Volpe voltou a cabeça em direcção à «Madonna» Fulvia.

 - Era este o homem que vos mandaram prender? - inquiriu ele.

Pantaleone não sabia se o outro estava a brincar.

 - Ah, mas estou a demorar-vos! - continuou. - Haveis de querer falar com o duque. Eu vou convosco!

Pantaleone previa que estava em apuros e avançou mecanicamente, acompanhando Taddeo. Custava-lhe obedecer mas era impossível escapar-se. Nada pôde dizer à «Madonna» porque Della Volpe não arredava pé.

Chegado ao portal do Duomo, Pantaleone ficou terrificado ao dar de cara com César Bórgia que cavalgava no meio dum grupo de cortesãos, seguido duma fila de homens armados em cujas lanças ondulavam as bandeiras dos Bórgia, com a insígnia do touro vermelho.

Caíra numa armadilha! Deixara-se ludibriar como um parvo e não tinha forças para se libertar. Abatido, fez estacar o cavalo, enquanto a «Madonna» Fulvia erguendo-se na sela e brandindo uma espécie de bastão, clamou:

 - Justiça! Justiça, senhor duque de Valentinois! Houve uma ligeira comoção no grupo que rodeava Sua Alteza, quando dum salto, o cavalo levara Fulvia para junto dele.

O duque ergueu a mão e a escolta parou. Os seus belos olhos envolveram-na, tentando ler-lhe a alma. Fulvia via pela primeira vez o inimigo da sua família, aquele que chegara a considerar um monstro. Estava vestido de negro, à moda dos espanhóis, com um gibão bordado com arabescos dourados e com um barrete de veludo ornado de rubis. Os cabelos caíam-lhe sobre os ombros. A beleza delicada mas máscula daquele rosto fez-lhe, por momentos, esquecer o plano cruel.

Dirigiu-lhe um sorriso amável, bem disposto, e na sua voz havia doçura e melodia:

 - Que justiça pedis, «Madonna»?

Para resistir à sedução daquela voz foi-lhe necessário recordar os primos estrangulados em Assisi, os parentes presos em Roma e o apaixonado Matteo, em perigo de ser apanhado e asassinado. Que fazer, se este homem era um milagre de beleza viril? Era o inimigo da sua estirpe! Exigia a vida de Matteo. Não tinha ele mandado aquele vil cão para prender Matteo? Contudo, Fulvia encorajou-se e estendeu um canudo que trazia oculto:

 - Tudo está aí, nessa petição, Magnificente!

César fez avançar o seu belo cavalo e sem mais delongas, recebeu o que Fulvia lhe apresentava. Mas ficou a pensar com o rol na mão durante alguns segundos. Era uma cana oca, selada em ambos os extremos.

Um breve sorris-o ficou-lhe escondido na barba trigueira:

 - Tantas precauções!? - comentou gentilmente, examinando o rosto dela, mudo, com um olhar perscrutador.

 - Não queria que se sujasse antes de chegar às vossas augustas mãos.

César continuou a sorrir. Inclinou a cabeça, como que aceitando aquela explicação cortês. Depois, fitou os olhos em Pantaleone, que quase se ocultava com ela.

 - Quem é esse homem que está escondido atrás de vós?

Eh! aproxima-te, tu, aí! - e apontou superiormente com ar desdenhoso.

Pantaleone fustigou nervosamente o cavalo fazendo-o avançar. O rosto, cor de bronze, estava agora pálido, não olhava à vontade, sentia-se desassossegado.

César ergueu as sobrancelhas:

 - Oh, senhor Pantaleone! Chegastes mesmo a tempo! Tirai estes selos e lede o pergaminho contido neste canudo.

Houve um sussurro de expectativa na assistência, que redobrou quando Fulvia deu alguns passos em frente.

 - Não, não, Magnificente - disse ansiosamente. - Só vós o podeis ler!

César fitou-a e sob o seu olhar, Fulvia pensou que ia ter um desmaio, tal o terror que ele lhe inspirara. O duque sorriu, com um sorriso amável, mas terrível, e falou-lhe com serenidade:

 - Ao ver-vos, «Madonna», fiquei um pouco atordoado. Tenho que pedir a Pantaleone que leia e idar-me-eil {por feliz podendo dispor dos meus ouvidos.

E voltando-se para ele, ordenou cheio de autoridade:

 - Vamos, senhor! Estamos à espera!

Pantaleone pegou no rolo com as mãos trementes e sem ousar mostrar-se hesitante, arrancou um dos selos. Um cordão de seda saiu do tubo. Puxou-o para tirar o pergaminho, mas logo retirou a mão com um grito agudo, sentindo que qualquer coisa o picara. Olhando aterrado, viu uma mancha de sangue no indicador e no polegar.

Fulvia olhou num relance para Valentinois. Percebeu que o seu ardil falhara por causa de qualquer coisa em que não pensara - César Bórgia, vivendo e movendo-se num ambiente de traições e inimigos, não se deixaria enganar facilmente. Nunca lhe tinha passado pela cabeça que ele designaria Pantaleone para um serviço, afinal, como o que à sua mesa costumava executar, fazendo provar primeiro a comida a outrem.

- Vamos, vamos! Então ficamos aqui ao frio todo o dia à espera? A petição, homem?

Pantaleone puxava o cordão com cuidado para não tocar no espinho que, ou por acaso, ou de propósito, se prendera aos fios da seda. Retirou um cilindro de pergaminho, deitou para o chão a cana que o continha, desenrolou o documento, a tremer e estudou-o durante uns minutos:

 - Então, senhor, ledes ou não?

Pantaleone começou a ler precipitadamente, em voz alta:

 - Magnificente!...

«Peço-vos justiça contra alguém que provou ser tão traiçoeiro para convosco, quão traiçoeira era a missão de que o encarregastes...»

Parou, de súbito, erguendo os olhos, atónito.

 - Isto... isto não é verdade! - protestou. - Eu...

 - Quem vos pediu opinião? - perguntou César. - Ordenei-vos que lêsseis, nada mais! Vamos, adiante.

Perante aquele tom imperioso, Pantaleone fixou novamente os olhos no pergaminho e prosseguiu na leitura:

«Sabendo que Matteo Orsini, que tinha ordem para prender, se encontrava escondido em Pievano, acedeu: a ser cúmplice na sua fuga e atraiçoou a confiança que nele tínheis, na condição de eu casar com ele e entregar-lhe o meu dote.»

Calou-se novamente, cada vez mais aterrado.

 - Por amor de Deus! Isto é tudo mentira! - gritou com um soluço de angústia.

 - Continuai - ordenava César, numa voz terrível. Dominando-se mais uma vez, Pantaleone recomeçou: «Matteo poderá escapar ou não, mas não escapará quem ler esta petição... Temos em Pievano, no lazareto, outro hóspede, a varíola, e este pergaminho esteve durante uma hora sobre o peito dum moribundo...»

Um grito de dor pôs termo à leitura de Pantaleone. O documento caiu-lhe das mãos. Todos os presentes se alarmaram e começaram a recuar para longe vendo o perigo em Que estavam.

Embora completamente desnorteado, Pantaleone pensou que o espinho teria sido posto ali, de propósito, para que a infecção mais depressa penetrasse nas suas veias. Sentiu-se perdido, não lhe restava mais que uma morte horrorosa; não tinha qualquer esperança de salvar-se da doença que acabava de contrair.

Fitava a multidão com o rosto cor de cinza, de olhos fixos na soldadesca e a populaça que continuava na mesma algazarra, até que o duque lhes fez sinal que se calassem. Apenas ele estivera silencioso e inerte até ali. Quando se dirigiu a Fulvia, a «Madonna» pálida que tinha atentado tão ousadamente contra a sua vida, fizera-o amavelmente, envolvendo-a num sorriso doce e sereno.

Num tom grave mas com uma voz suave o duque falou-lhe:

 - Claro, já que Pantaleone cumpriu o seu dever até ao fim, tendes também «Madonna» que cumprir o vosso. Casareis com ele, como havíeis prometido!

Fulvia abriu desmedidamente os lindos olhos, parecendo não compreender que espécie de justiça era a dele.

 - Casar com ele? Mas ele está contagiado, infecto!...

 - Pelo vosso veneno! - respondeu César bruscamente. E prosseguiu, calmo, como se falasse para uma criança caprichosa:

 - Tendes esse dever para com ele e... para convosco própria... Empenhastes a vossa palavra. Ele. coitado, não podia ter previsto tudo... Não lhe tínheis dado uma ideia clara do vosso projecto?...

Fulvia compreendeu- que o duque troçava dela e ficou furiosa ao ver a crueldade com que a tratava. Tinham-lhe dito que na sua alma não havia qualquer espécie de compaixão, mas nunca pensara que fosse tão duro! O ódio que nascia no seu coração dava-lhe coragem, mas não podia ainda articular palavra.

 - Não me haveis pedido justiça, «Madonna»? Estou a ser justo! Parece que sou claro. Espero que fiqueis satisfeita!

O medo e o terror apoderaram-se do espírito de Fulvia:

 - Oh, não, não! Piedade! Piedade! Tende para comigo a misericórdia que gostaríeis que tivessem para convosco, se estivésseis no meu caso - implorou ela.

O duque olhou com um ar sardónico para Pantaleone, que, em cima do cavalo, estava silencioso e entorpecido.

 - A «Madonna» não é lisonjeira para vós!? Parece que não tem grande fraco por ti, Pantaleone. Contudo, fostes louco e acreditastes que ela queria casar convosco. Acreditaste cegamente! Ah! Ah! Que disse de vós frei Serafino? Ah, já sei! Achava-vos com os lábios muito grossos para vos confiar a uma mulher. Frei Serafino conhece o Mundo! O convento é um óptimo ponto de observação! Pronto, sucumbistes às suas promessas, mas confortai-vos! Ela tem que cumpri-las, embora tenha pensado que vos ludibriava. Ha-de apertar-vos contra o seu belo seio, abraçando também a peste que vive no vosso corpo...

 - Meu Deus! - suspirou a «Madonna». - Desejais então que eu case com a morte?

 - Talvez... acheis a morte menos repelente que Pantaleone... Mas vede bem, que nada vos faço que não tenhais tentado fazer-me... - concluiu, raciocinando calmamente.

César começou então a descalçar a luva de pele de búfalo com que pegara no documento.

 - Afinal - recomeçou - se vos custa muito manterdes a vossa palavra, o que é, .aliás, uma característica da vossa família, posso indicar-vos um processo de escapar às suas consequências...

No olhar de Fulvia já não brilhava a esperança.

 - Estais a zombar de mim!? - perguntou.

 - De modo algum! Há um processo, uma saída bastante honrosa... Anulai o contrato que fizestes com ele, e não tereis que desposá-lo...

 - Anular? Mas como posso eu?...

 - Ainda não compreendestes?

Basta que me entregueis Matteo Orsini hoje mesmo e tereis uma bela noite, livre dum casamento que vos é odioso.

Fuvia percebeu num instante quão satânica era a subtileza, daquele homem. Viu que não se tratava duma vingança insignificante e que tinha sido um joguete nas suas mãos. Ele utilizara os sentimentos dela apenas para alcançar o objectivo que sempre tivera em visita: a captura de Matteo Orsini. Isto é que lhe importava e nada que se ligasse com ela. Tinha-a aterrorizado ameaçando-a com aquele horrível casamento simplesmente para a fazer escrava dos seus desejos, pronta a cometer uma traição para fugir a um destino terrível.

 - Entregar-vos Matteo? - perguntou sorrindo amargamente.

 - Haverá coisa mais fácil? - inquiriu o duque. - Não preciso que me digais onde ele está. Não vos peço que o atraiçoeis, nem vos proponho nada que ofenda a vossa sensibilidade de Orsini! - O seu sarcasmo era uma espada de fogo. - Precisais somente de lhe mandar recado, dizendo em que situação vos encontrais, levada pelas habilidades de envenenadora. É tudo. Se ele for um homem virá aqui resgatar -vos. Que venha antes do o Sol se pôr, ou então...

Parou, encolhendo os ombros e lançando as luvas para o lamaçal. Depois, indicando Pantaleone com a cabeça, concluiu:

 - Ou então mantereis o contrato; pagareis o preço da fuga de Matteo e mandarei preparar o banquete de núpcias!...

Fuvia levantou os olhos para ele, fitando-o com um ar perverso, torturada pelo tom de odiosa indiferença que tinham as suas palavras. Subitamente, lembrou-se de que para velhaco, velhaco e meio, e um leve rubor lhe subiu às faces, entusiasmou-se, os olhos adquiriram o brilho da audácia:

 - Seja! Não me deixais escolher... - E, mofando: - Será como quereis. Vou mandar o meu criado a Matteo.

O duque olhou ainda para ela demoradamente, a princípio duvidando, mas por fim, tornando-se desdenhoso. Fez sinal aos cavaleiros.

 - Vamos! Não temos aqui mais nada a fazer!

Debruçou-se sobre o selim para em voz baixa dar ordens a Della Volpe. Depois, chicoteando levemente o cavalo, meteu à praça, seguido da sua comitiva.

Sentia desdém por aquela raça dos Orsini que tão bem conhecia! Eram todos iguais! Geniais nos seus projectos, mas cobardes para executá-los. Tinham ideias, mas faltava-lhes o ânimo.

 

CAPÍTULO VIII

Os olhos de «Madonna» Fulvia seguiam o vulto do duque, perdendo-se na curva do caminho. Ficou silenciosa, muda, confundida, indiferente à multidão ululante que a cercava.

Veio arrancá-la àquele torpor um lacaio vestido de negro, com um touro vermelho bordado no gibão, que se encaminhou para ela, tomando as rédeas, enquanto, ao mesmo tempo, Della Volpe se lhe dirigia, num tom respeitoso, mas de desprezo:

 - «Madonna», peço-vos que me acompanheis. Tenho ordens do meu senhor para vos servir...

Fulvia não evitou um ar de desdém pela maneira como ele lhe recordara que estava prisioneira. Mas havia qualquer coisa na face enrugada de Della Volpe que lhe fez morrer o sorriso sarcástico. Primeiro: parecia-lhe ser um homem honesto; segundo, detestara a sua atitude.

Fulvia ficou perturbada e desviou o olhar:

 - Conduzi-me, então, senhor. O meu eguariço pode acompanhar-me, segundo penso. E indicava Mário que estava junto dela, mudo e angustiado.

 - Certamente, «Madonna», pois ele é o vosso mensageiro! Vamos, Giasone - ordenou.

O lacaio ocupara-se do cavalo; Della Volpe cavalgava ao lado da «Madonna»; Mário seguia-os, entristecido, e assim chegaram ao Palácio da Comuna, para onde César mandara Que a levassem.

Fulvia não tornou a pensar em Pantaleone. Ele fora para ela um instrumento tal como ela fora para o duque. Tinha representado o seu papel, não tão bem como pretendia. Perante a resolução que tomara, não valia a pena importar-se mais com isso. Vira doze besteiros tomarem conta dele; esses homens não mostravam qualquer prazer em prender um homem que, sem mexer um pé, podia espalhar a morte à sua volta. Fizeram um círculo à volta de Pantaleone, armado cada um com a sua flecha, e assim o obrigaram a avançar, ameaçando-o de que disparariam se lhes desobedecesse.

Depois de o terem levado, um homem envergando o uniforme dos Bórgias trouxe um archote, lançando-o sobre o pergaminho; mas mesmo apesar de ter sido reduzido a cinzas a gente de Pievano esteve muitos dias afastada do local.

Entretanto, «Madonna» Fulvia fora conduzida ao palácio onde a instalaram numa sala vasta, de tectos baixos, aposento austero, pois a Cittá della Pieve não acompanhava o luxo dos grandes estados italianos.

Tinha um guarda à porta e outro passeando sob as suas janelas; mas podia andar em liberdade naquela ampla sala e Mário podia falar com ela, porque ia ser enviado junto de Matteo Orsini. O duque achava bem que assim fosse. Mário seria testemunha das cartas que ela escreveria a Matteo, podendo confirmar um facto que podia ser posto de parte, se fosse relatado por outra pessoa.

Vendo-se a sós com a sua jovem ama, a frágil menina! que conhecia desde o berço, o velho criado não pôde conter por mais tempo a sua dor e as lágrimas começaram a brilhar no seu rosto disforme:

 - Minha «Madonna»! Minha «Madonna»! - suspirava, soluçando, estendendo-lhe os braços como que para neles a acarinhar paternalmente,

 - Eu avisei-vos. Disse-vos que isto não eram assuntos para uma menina como vós. Implorei-vos que deixásseis que eu fizesse isto em vosso lugar. Que importa a minha vida? Estou velho e já vivi o suficiente. Uns dias a menos... não me fariam falta. Mas vós.., oh, meu Deus!

- Calma, Mário, calma!

 - Calma? - gritava ele. - Então eu posso ter calma vendo que estais perante esta alternativa: ou a traição ou a morte. E que morte, Jesus! Se eu tivesse ali uma seta teria furado o coração daquele monstro quando pronunciou a vossa sentença! É um verdadeiro demónio!

 - É um belo -demónio! - e em voz baixa segredou: - Mário!

Olhou para a porta, depois afastou-se com ele para junto duma janela que deitava para a praça. Mário seguia-a calado, de olhos abertos, impressionado por aquela atitude misteriosa:

Então, como num murmúrio, Fulvia afirmou:

 - Ainda há uma saída. Não levareis cartas, porque não é preciso. Escutai.

Enquanto ela falava, Mário olhava-a boquiaberto. por fim, protestou, dizendo que aquilo seria a sua ruina, procurando dissuadi-la, lembrando-lhe que por desrespeitar os seus conselhos estava agora naquela situação e pedindo-lhe que não desprezasse os seus avisos. Mas Fulvia não se comovia ante a sua eloquência. Permanecia obstinada no seu propósito. Por fim, conseguiu vencer Mário, como na noite anterior, assegurando-lhe que desta vez, tudo correria bem.

 - E ao meu senhor, que hei-de eu dizer-lhe?

 - O menos possível e nada que o alarme!

 - Então, tenho que mentir?

 - Se for preciso, fá-lo-ás, por caridade!

Durante toda a tarde, Fulvia esteve só no largo aposento que lhe haviam reservado, excepto quando entraram dois criados do duque trazendo-lhe a comida em recipientes de ouro sobre bandejas lavradas. Bebeu um pouco de vinho, mas, embora não tivesse comido ainda, desde que partira de Pievano, a tensão em que vivia impedia-a de se alimentar. Sentou-se perto da janela e, à noitinha, viu o duque regressar ao palácio. Mais tarde, quando o crepúsculo envolvia já toda a cidade, os dois pajens voltaram convidando-a para a ceia que seria servida no andar de baixo. Fuvia recusou. Mas os pajens insistiram amavelmente:

 - É desejo de Sua Alteza - afirmou um deles num tom que significava que nunca se podia recusar aquilo que o duque queria.

Pensando que a sua presença, em baixo, ajudaria o seu plano, ergueu-se e encaminhou-se para a porta. No corredor esperavam-na mais dois criados, tranzendo candelabros. Fuvia foi conduzida cerimoniosamente ao vasto átrio onde se encontravam damas e cavalheiros da corte, perante os quais ela, que era cem por cento mulher elegante, se apresentou com o vestido coberto de pó, sentindo-se portanto pouco à vontade, em meio de tal esplendor e luxo da assistência. O duque, vestido de seda cor de enxofre, adornado com fitas prateadas no pescoço e na cintura, veio recebê-la ao fundo da escadaria, saudando-a com a vénia respeitosa que tributaria a uma princesa. Pela mão, que ela nem sequer pensou em recusar-lhe conduziu-a para um salão interior. Tinham disposto longas mesas sobre um estrado. À cabeça da mesa, sentou-se César e à sua direita a «Madonna» ocupando depois os convivas os lugares que lhes competiam. Era como se a comitiva estivesse à espera daquela honrosa convidada e tal ironia feriu-lhe o coração como um punhal. Porém, esforçou-se por dissimular e conseguiu. Estava pálida, instalada entre Valentinois e o majestoso Capello, orador de Veneza, sustentando olhares que lhe lançavam de todos os lados.

Aquela sala do palácio, outrora nua e triste como um celeiro, fora transformada por César e pelos seus partidários de tal modo que não poderiam reconhecê-la agora. Podeis imaginar-vos numa das salas do Vaticano. Nas paredes, pendiam caríssimos panos de Arras; o chão, de pedra, estava coberto de carpetes de Bizâncio; sobre as mesas, riquíssimas toalhas ricamente bordadas, taças de prata e ouro, cristais preciosos e pesados candelabros, onde ardiam velas de cera colorida e perfumada. Ao banquete assistiam damas e cavalheiros vestidos de sedas e veludos, de tecidos dourados e prateados, enfeitados a arminho, ostentando corpetes com pedras encrustadas e redes no cabelo, onde reluziam jóias. Brilhavam as librés dos criados e dos pajens e «Madonna» Fuvia, que vivera isolada na solidão claustral de Pievano, sentia-se enlevada perante todo aquele esplendor.

Sobre a porta havia uma galeria donde vinha o som dos alaúdes e violas, que por vezes abafava a voz melodiosa e quente do duque:

 - Sinto-me feliz, «Madonna», por não se tratar dum banquete de casamento!

Ao fitá-lo, a jovem tremia.

 - Ser-me-ia muito penoso - continuava, naquele tom suave e terno - ver uma jovem tão bela nos braços dum moribundo. Por isso desejo ardentemente que Matteo Orsini chegue esta noite.

 - Só por isso? - inquiriu Fuvia cheia de altivez, ao mesmo tempo que se sentia vexada por toda aquela hipocrisia.

César sorriu e os seus belos olhos negros fitaram-na quase com carinho.

 - Poderia dizer o outro motivo, mas juro-vos que aquele a que me referi é o mais forte! - Suspirou. - Para vos salvar quero que Orsini venha esta noite.

 - Vem, com certeza! Não tenho dúvidas a esse respeito - respondeu ela.

 - Não faz mais que o seu dever. - Depois reparando - Oh! mas... por que não comeis?

 - Não posso... sinto-me sufocada! Não acha natural?...

 - Bebei, ao menos, uma taça de vinho! - propôs o duque fazendo sinal a um pajem que logo avançou com um jarro de ouro cheio do belo vinho da Apúlia. Vendo que Fuvia recusava, o duque acenou com a mão para que ele se retirasse e mandou a um pajem que se aproximasse: - Um copo de água para a «Madonna» - ordenou.

Os lábios de Fuvia abriram-se num sorriso:

 - Não são necessárias tantas precauções; dizem que esses copos se partem quando neles se deita veneno. Não suspeito, nem receio que me envenenem!

- E eu já o devia saber, porque vos haveis mostrado bem versada em tais assuntos!...

O rosto de Fulvia ruborizou-se, mas logo ficou pálida como cera. As palavras de Valentinois faziam-na compreender que não havia razão para mais preocupações. Tinha sido apanhada em flagrante e era afinal merecedora daquela atitude de fria delicadeza que César adoptara para com ela.

O pajem voltou, trazendo o copo. O duque mandou que o primeiro criado o enchesse, e a «Madonna» bebeu, sem vacilar, para recuperar as forças perdidas. Não tocou porém nas iguarias que a criadagem colocava especialmente para si. Estava indiferente a tudo, mesmo quando o duque se inclinava para, com a sua costumada gentileza, a envolver em olhares de mofa e frases sarcásticas. Os olhos de Fulvia não se despregavam das portas, ao fundo do salão. Fazia-se tarde e começava a sentir-se impaciente. Por que motivo não vinham eles pôr termo àquela terrível tensão em que se mantinha?

Continuavam a entrar criados com bandejas de prata, ânforas e toalhas. Os cavalheiros e as damas lavavam os dedos cheios de gordura dos acepipes e então, sem qualquer aviso, mas obedecendo sem dúvida a ordens de César, abriram-se finalmente as portas donde Fulvia não despregava os olhos e entrou o dedicado Mário, no meio de dois homens armados. «Madonna» observou o seu rosto magro e pálido, macilento e triste.

Suspenderam-se as conversas. O enviado atravessou a fila de mesas e chegou, ainda acompanhado pelos guardas, à presença do duque. Não foi porém a este que Mário se dirigiu, mas à «Madonna»:

 - «Madonna», cumpri o que me ordenastes. Trouxe-vos o senhor Matteo.

Um silêncio pairou por momentos no aposento, quebrado por fim por uma gargalhada de César:

 - Santo Deus! Foi preciso trazê-lo?

 - Sim, meu senhor.

O duque olhou então os nobres convidados:

 - Estais a ouvir? Vedes como são estes Orsini?

Um Orsini precisa de ser aqui trazido para resgatar a sua noiva e parente e salvá-la da situação em que ela se encontra por sua causa!

Voltou-se, depois, para o eguariço:

 - Trazei-o então!

Mário não obedeceu logo. Fixou os olhos, não sobre César, mas sobre Fulvia, como que esperando que ela também o ordenasse. Quando esta lhe fez sinal para que fosse, apressou-se a deixar a sala.

As portas fecharam-se atrás dele, mas o silêncio continuou. Os convidados, excitados, esperavam o desfecho. Na galeria, os menestréis tinham cessado de tocar.

César recostava-se na cadeira dourada, de alto espaldar; os dedos brincavam com as pontas da sua barba cor de ébano e olhava a «Madonna» de soslaio. Achava ó seu comportamento muito estranho. Havia qualquer coisa que o intrigava e desnorteava, ele, tão astuto e perspicaz!

Fulvia, sentada, junto dele, estava pálida como a neve, com os grandes olhos muito abertos. Dir-se-ia que estava ali sentado um cadáver se não fosse o arfar convulsivo do seu seio delicado.

Um súbito ruido de vozes, envolvidas em calorosa altercação, veio despertar os convivas.

 - Não podeis entrar! - gritavam lá de fora. - Não podeis levar!...

E então elevou-se a voz rouca de Mário, vibrante e obstinado:

 - Não ouvistes que o duque me mandou que trouxesse Matteo Orsini? Tenho aqui Matteo Orsini e quero obedecer ás ordens de Sua Alteza. Saí do caminho, vamos!

Dentro de instantes reinava uma balbúrdia incompreensível na antecâmara. Na sala não se percebia o que diziam aqueles homens exaltados.

De repente, César levantou-se colérico:

 - Que é isto? Fazem-me esperar? Abram Já essas portas! Os lacaios correram a cumprir o mandado.

O duque sentou-se então satisfeito. Uma fila de doze homens armados impedia-o de ver o que se passava por detrás deles.

 - Meu senhor - dizia um daqueles, já grisalho.

César não o deixou continuar. Com o punho cerrado, bateu violentamente sobre a mesa.

 - Recuai! Deixai-o passar!

A escolta -obedeceu e Mário parou por alguns momentos no limiar, mostrando aos circunstantes um rosto contristado, uma expressão estudada.

Depois, avançou pelas filas de mesas, sem que alguém nele atentasse. Tinham visto entretanto aquilo que vinha atrás dele e que prendera vivamente a sua atenção.

Seguiam-no quatro irmãos da Misericórdia, com as suas vestes negras e fúnebres; os olhos mal se viam brilhar através dos buracos toscamente recortados da viseira do hábito. Traziam um ataúde adornado de panos de veludo preto debruado de prata. A assistência não pôde conter um grito de pavor. O duque levantou-se dum salto e todos o imitaram: naquela confusão ninguém notou que a «Madonna» abandonara o seu lugar.

Os frades pararam, colocando no chão a terrível carga, Mário afastou-se um pouco para que o duque pudesse ver o esquife.

 - Que é isto? - perguntou com os olhos brilhantes de ira e estupefacção. - Que brincadeira é esta que ousais ter comigo? E olhava para onde a «Madonna» estivera sentada. Encontrando a cadeira vazia, fitava a sala, com os olhos esgazeados, procurando-a. Mas Fulvia estava na sua frente, junto do cadáver.

 - Não é brincadeira, Magnificente!

E dizendo isto, a «Madonna» tinha um sorriso amargo de trágico triunfo.

 - Somos fiéis às vossas ordens, nada mais! Mandastes que Matteo Orsini vos fosse entregue. Se eu o fizesse, desligar-me-ias do compromisso de casar com Pantaleone. Restituo-vos a minha palavra, senhor. Cumpri o meu dever. Matteo Orsini está aqui!

César olhava-a confundido. Baixou os olhos e, fora de si, perdendo a calma habitual, gritou:

 - Aí? Morto?!

Fulvia inclinou-se, levantou o pano de veludo, deixando ver o caixão. Quando tornou a olhar o duque, o mesmo sorriso terrível bailava nos seus lábios.

 - Dizei aos vossos guardas que levantem a tampa para vos certificardes de que é ele. Prometo-vos que, agora, não oferecerá qualquer resistência!

Fulvia sentia-se feliz por ter enfim vencido aquele sorriso de mofa com que o duque sempre se lhe dirigia. César fitava-a furioso; nos seus olhos ardia o fogo da ira e da paixão; tinha as mãos crispadas sobre a mesa.

Os convidados tinham-se encostado às paredes, tão longe quanto possível daquele hórrido espectáculo. Recordavam-se, como César, do que tinha sucedido naquele dia - a carta infecta e a sua entrega ao duque - e começavam a perguntar a si próprios que estaria ainda para acontecer.

A voz de César elevou-se no silêncio em que mergulhara a sala.

 - De que morreu ele?

 - Morreu ontem... de varíola! Levantem a tampa, levan» tem a tampa e levem-no!

As palavras de Fulvia tinham um tom de vitória.

Mas seguiu-se qualquer qoisa de estranho. Homens que se tinham sempre mostrado destemidos no campo de batalha recuavam, agora, com medo. Apinhavam-se junto às janelas, soltando imprecações. Damas desfalecidas olhavam-nas também como único meio de saída e salvação. A presença do duque não bastava para os /tranquilizar, nem tão-pouco César impedia que fugissem. As janelas abriam-se com um ruído agudo de vidros partidos e madeiras rachadas, e por elas se precipitava aquela turba de nobres tomados de pavor, deixando entrar o ar puro de Janeiro, o ar da noite bela e calma. César ficou só, no seu lugar, à luz pálida das velas batidas pelo vento e assim se manteve, horrorizado também, até sair o último lacaio. Junto dele aquela mulher que tinha tido o arrojo de trazer um cadáver empestado, para troçar da sua autoridade e do seu poder, aguentava-lhe o olhar.

 - Então? - inquiriu ela. E àquela pergunta, ele, o homem de ferro, tremeu! - Tendes coragem de defrontar agora Matteo Orsini? Ou falta-vos a coragem, por ele estar morto?

 - Nunca o temi enquanto viveu! - respondeu energicamente.

 - Então não o temeis, agora que está morto! - e voltando-se para o eguariço: - vamos, Mário, tu já tiveste a peste e não a receias. Tira a tampa. Dai espaço a Matteo para que lute, mesmo morto!

Mas o pânico apoderara-se já do Duque. Mais tarde, ele próprio confessou ter sido a única vez que sentiu medo, ele que tantas vezes olhara a morte sem vacilar!

 - Santo Deus! - -gritou, saltando da mesa, ganhando dum pulo a janela por onde se escapou para o jardim. Ouviram-no, lá fora, pedindo que lhe trouxessem o cavalo, e chegou até eles o som de vozes que lhe respondiam.

Dentro de dez minutos, César e a sua esplendorosa comitiva cavalgavam na noite, fugindo de Castell della Pieve e da peste.

Quando sentiu afastar-se o ruído das patas dos cavalos, a «Madonna» Fulvia que ficara muda, junto do caixão, ordenou aos homens que tornassem a levá-lo. «Madonna» e Mário abriam o cortejo. Atravessaram o átrio, abandonando o palácio e à sua passagem, os lacaios fugiam espavoridos. Procuraram cavalos para Fulvia e para Mário; os frades transportariam o ataúde, a pé.

E foi assim que regressaram a Pievano.

Quando estavam já à distância de uma légua ou pouco mais de Castel della Pieve, a jovem disse:

 - Como estava hoje Giuberti?

 - Morreu à noitinha, «Madonna». Deus seja servido! Já não há mais casos de varíola agora e não tornará a havê-los. Tomámos todas as precauções. Foi Colomba que abriu a cova e o enterrou. O lazareto .estava a arder quando deixei Pievano; exterminámos assim a fonte da doença e Colomba viverá numa barraca junto da vedação até passar o perigo de poder contagiar-nos.

 - Tenho que recompensar a boa Colomba. Devemos-lhe muito.

 - É muito dedicada, mas não corria risco, visto que ela, como eu, já estava imune a peste.

 - Isso não diminuirá a minha gratidão - e suspirando: - Pobre Giuberti! Deus tenha a sua alma em paz! Foi sempre leal, serviu-nos mesmo na morte! O Céu deu-nos bons criados, Mário, a começar por vós...

 - Eu? Eu sou um palerma que não tinha confiança em vós! Se tivésseis dependido do meu serviço, estaria tudo estragado e sabe Deus que fatalidade não teria sido o fim desta aventura!

 - Estes pobres homens vão carregados sem necessidade! Não temos que temer uma perseguição e é melhor aliviá-los imediatamente. Basta! - disse aos vultos que seguiam atrás, vergados sob o peso do caixão. - Despejem o esquife!

Obedeceram, colocando-o no chão; tiraram-lhe a "tampa e fizeram rolar o embrulho de terra e pedras que continha. Fulvia teve um riso breve ao ver a manobra dos frades. Mas Mário estremeceu, ao pensar no perigo que ela tinha corrido.

 - Agradeçamos a Deus e a todos os Santos que ele não tenha visto!... Dizem que é muito corajoso e eu cheguei a recear... Meu Deus! que medo eu tive!

 - Não tiveste mais medo do que eu, Mário - confessou Fulvia. - Mas tive sempre fé; e, depois, era a única oportunidade!

 

*           *          *

 

Algumas horas depois, quando chegou a Pievano, a «Madonna» encontrou o pai ansioso e aflito pela sua ausência, e pelo facto de saber que Mário tinha entrado e saído e voltado de novo para consultar Matteo Orsini, longe do esconderijo. Assim que a viu, ficou tranquilo e ao achar-se em casa, toda a coragem abandonou Fulvia que se lançou nos braços do noivo, tremendo e soluçando.

 - Meu querido Matteo, podes agora dormir descansado! Ele pensa que estás morto e tem mais medo de ti, morto, do que quando te sabia vivo!

As suas forças tinham chegado ao fim e o cansaço acabou por fazê-la desmaiar nos seus braços.

Que eu saiba, foi esta a única vez que um homem ou uma mulher venceram a astúcia do duque de Valentinois. Isto, porém, não diminui o conceito que tinha da sua malícia, pois temos de admitir que a sorte lhe não foi favorável e as circunstâncias lhe proporcionaram a derrota, para o que contribuiu igualmente o facto de não ter escolhido o instrumento tão bem como o fazem os príncipes, segundo Maquiavel. Não viu a importância daqueles grossos lábios de Pantaleone e desprezou o conselho que lhe dera frei Serafino.

Quanto a Pantaleone, se ainda vos interessais por ele deixai-me dizer-vos que se saiu melhor do que merecia. Contudo esta opinião varia consoante os pontos de vista, pois como disse o filósofo favorito de Almerico, um homem não pode escolher a sua sorte neste mundo; apenas pode trilhar o caminho que lhe foi destinado.

O duque não se preocupou com ele, ao deixar Cittá della Pieve, e deixaram-no estar na prisão até verem se ele sempr teria que casar. Porém lembrou-se dele e ia ordenar que o enforcassem, quando o informaram de que estava com varíola e tinha sido levado para um lazareto. Diz-se que, ao saber disto, César tremeu pensando que tinha escapado de boa; e ficou satisfeito por poder entregar Pantaleone ao seu destino, certo, aliás, de que não haveria ninguém que quisesse enforcá-lo.

A mocidade sadia de Pantaleone ajudou-o a restabelecer-se em pouco tempo, o que é raro numa doença tão grave. Quando recuperou a liberdade, vinha abatido de corpo e alma e perdera aquele andar afectado, arrogante do capitão que numa noite de Janeiro pedira protecção em Pievano.

Terminada a sua carreira de aventureiro, compreendendo que estava fraco e para nada servia, retirou-se resignadamente para a aldeia de Laveno e numa manhã de Abril, entrou na taberna de Leocádia, para cair de novo nos braços acolhedores da mulher que abandonara quando a sorte o favorecera. E Leocádia era tão generosa e fiel que lhe passou os braços pelo pescoço, chorando silenciosamente a alegria do seu regresso, abençoando a doença que o tornara fraco e feio, mas que o restituía ao seu grande amor.

Não duvido que ele a tenha transformado numa mulher honesta, se tiver visto nisso algum interesse.

 

O VENEZIANO

Aos grandes nunca faltam inimigos: os que lhes são imediatamente inferiores, que vêem as suas ambições frustradas pelos triunfos dos outros e por eles se deixam ofuscar, e aqueles parasitas insignificantes que nada fazem de útil à humanidade, destituídos de habilidade para agir por si próprios e incapazes de executar os planos dos que lhe são superiores. Assim, vão mirrando, conscientes da sua nulidade e lançando o veneno da malícia sobre os que ganharam fama. Seguem simplesmente os impulsos da sua mesquinhez e aquilo que lhes dita a degradante vaidade. A grandeza dos outros fere-os no seu amor-próprio. Começam a difamá-los, pensando que se puderem fazê-los descer no conceito público encurtam as distâncias que os separam. É este o meio por que realizam os seus fins; a mentira é o seu único e indiscutível dom. Fazem alarde das suas façanhas, importância e trabalhos para poderem elevar-se a um nivel superior, mentindo com argúcia, apoucando as obras dos outros, caluniando a sua vida pública e particular, arrastando-lhes a reputação Pelo lodo.

Conhecê-los-eis facilmente. Um louco salienta-se sempre Por excessiva vaidade e hipocrisia. Mas esta, por ser natural duma fraca inteligência, consegue iludir às vezes.

Era assim Paolo Capello, Orador da República, que Veneza escolhera para corporizar o seu ódio a César Bórgia. Veneza Via aumentar os feitos do duque, na Itália, com um desânimo que crescia de dia para dia. Ameaçada por um sério rival na península, que podia vir um dia a eclipsar toda a sua glória, Veneza inquietava-se mesmo que não lhe invadisse o território. Mas a inveja dos venezianos prejudicava o conceito que eles próprios faziam de César, pois permitiam-se julgá-lo e aplicar-lhe os únicos cânones que conheciam, como se os homens de génio pudessem ser julgados pelas leis que regem a vida dos mercadores. Veneza tornara-se, deste modo o inimigo mais hábil e implacável que César tinha em Itália um inimigo em cujas mãos ficava bem qualquer arma, por mais vil que fosse.

Os venezianos teriam de bom-grado pegado em armas contra o duque, tentando esmagar o homem que os perturbava; mas quanto à aliança com a França, embora várias vezes aventada, abstinham-se. Contentavam-se em perturbar as relações com o rei Luís, e, não obtendo o resultado desejado, procuravam estabelecer pactos com outros Estados de que, geralmente, eram adversários, e, se mais uma vez falhavam, por esses serem mais espertos do que eles, recorriam ao assassínio ou à calúnia. Para esta serviam-se dum bom instrumento, o inefável Capello, desprovido de qualquer valor, que fora, porém, Orador do Vaticano durante algum tempo. Para os assassínios dispunham de outra pessoa, de que a, seu tempo, ouvireis falar.

Capello trabalhava na sombra, escavando luras por ond se esgueirava, e nunca dava ao duque razões para tomar medidas extremas para com a sagrada pessoa do embaixador. Nunca se chegou a perceber como é que ele conseguiu escapar dum assassínio nos primeiros dias da sua infame carreira, Julga-se que foi um dos grandes erros de César Bórgia. Numa noite escura, um salteador, contratado para esse fim, podia muito bem, com um punhal, ter exterminado aquela semente de perversidade, tornando o nome de César Bórgia e da família menos odioso aos vindouros.

Quando Giovanni Bórgia, duque de Gândia, foi morto a perseguir um dos seus frívolos amores, não se descobriu criminoso apesar de se terem levantado muitas hipóteses desde o seu irmão Gioífredo até Ascansio Sforza, o cardeal vice-chanceler. Um ano depois, Veneza acusava César de ser o assassino! Quando o camarista do Papa. Pedro Caldes, o «Perrotto», caíu ao Tibre, morrendo afogado, Capello inventou logo que César o tinha apunhalado nos braços do Papa, e, embora ninguém tivesse presenciado a cena, Capello fazia uma descrição pormenorizada, afirmando até que o sangue saltara para a cara de Sua Santidade. Quando o infeliz príncipe turco, o sultão Djem, morreu de cólicas, em Nápoles, Capello descobriu imediatamente que fora envenenado por César e a mesma calúnia lhe serviu para explicar a morte do cardeal Giovanni Bórgia, ocorrida no decurso duma jornada através da Romagna. Se ao menos as mentiras de Capello se ligassem somente com punhais e venenos! Mas havia mais, muito mais e muito pior!

Arranjava histórias de amantes com as conversas que mal ouviu nas antecâmaras da Cúria e, se escolhia o duque para vítima, não poupava também os restantes membros da família, envolvendo-os todos em enredos abomináveis e aventuras abjectas. Muitas delas passaram à História, onde as podeis ler. Duvido, porém, que em todas acrediteis. Não vou tornar menos dignas estas páginas, nem ofender os vossos ouvidos, com o seu relato.

Direi apenas que era assim que Paolo Capello servia a República veneziana. Mas porque o seu cargo não lhe proporcionava ainda aquilo que ambicionava, empregava métodos mais eficientes que a difamação. Os venezianos resolveram agir nos meados de Outubro de 1500 da era cristã, ano oitavo do pontificado de Roderigo Bórgia, Papa Alexandre VI; e estimulou-os o facto de verem Pandolfo Malatesta, que tinha protegido, ser expulso de Rimini, que eles cobiçavam e que passou, por direito de conquista - baseado em certas regalias legais do Papa - para as mãos de César Bórgia, aumentando-lhe mais ainda os seus domínios e poder!

A República decidiu que tinha chegado a hora de tomar mais graves medidas do que as permitidas às invenções ultrajantes do seu Orador. Para essa missão arranjaram um nobre que tinha em alto preço os interesses de Veneza, um homem audaz, resoluto e inteligente e que dedicava a César um ódio quase pessoal. Veneza enviou esse homem - o príncipe Mar-cantónio Sinibaldi - a Rimini, com a categoria de enviado especial, com o firme propósito de felicitar o duque pela sua conquista.

E para salientar o carácter pacífico e amistoso da sua missão, Sinibaldi fez-se acompanhar da princesa, uma dama lindíssima da nobre casa de Alviano. O par entrou em Rimini, cercado de luxuosa e brilhante comitiva, representante da próspera República de Veneza.

A princesa era transportada numa liteira puxada a dois ginetes brancos, cujos arreios, bordados a veludo carmesim, pendiam até tocar no chão. A própria liteira era dourada e pintada como o baú duma noiva, e tinha cortinados de ouro sobre os quais se via o leão alado de S. Marcos. Seguia-se um grupo de pajens, todos de elevada condição social, resplandecentes na libré da República e, entre eles, contavam-se espadachins da Núbia, de aspecto atemorizador. A pé iam uns doze escravos árabes, com os seus turbantes e, por fim, uma companhia de besteiros a cavalo, a guarda de honra do príncipe. Sinibaldi era uma figura elegante e vestia sumptuosamente cavalgando à frente do séquito, composto pelo secretário, pelo oficeal encarregado de «provar a comida, pelo capelão e pelo esmoler que distribuía pela multidão punhados de moedas, incitando deste modo o povo a aclamar o ilustre visitante.

A gente de Rimini, mal refeita ainda da emoção que experimentara pela entrada de César Bórgia na cidade, estava encantada. Capello arranjou as coisas de tal maneira que Sinibaldi foi instalado no palácio de Ranieri, que pertencera ao grupo do banido Malatesta, mas que, contudo, aclamara o conquistador e, num discurso eloquente, chamara a César o libertador de Rimini.

O duque, porém, não se deixara iludir por essas frases. Pelo contrário elas serviram-lhe de aviso, e de então para cá, começou a observar cuidadosamente Malatesta, Também não estava lisonjeado pelas não menos bem soantes palavras de felicitação que lhe dirigira Sinibaldi, por ordem de Capello. Conhecia demasiado os manejos de Veneza, pois ela já lhe tinha dado bastantes provas... Respondeu-lhe com palavras amáveis, mas vazias de sentido. E quando soube que Ranieri ia ceder alguns aposentos a Sinibaldi e que estes dois aduladores iam viver sob o mesmo tecto, César apressou-se a mandar que Agabito tomasse mais precauções quanto à vigilância, que costumava dispensar habitualmente ao palácio. Ranieri, com o seu porte majestoso e aquele rosto jovial onde brilhavam uns olhos dum azul puríssimo, era a antítese do Conspirador vulgar. Para receber Sinibaldi tinha mandado reunir no palácio o velho grupo de que fazia parte Francesco d'Alviano, irmão mais novo do famoso oficial Bartolomeu d'Alviano, o qual fora o maior inimigo do duque, o jovem Galeazzo Sforza de Catignola, irmão bastardo de Giovanni Sforza, que se divorciara da encantadora Lucrécia, irmã de César e a quem o duque tirara o governo de Pesaro, e mais quatro, três nobres de pouca importância, e Pietro Corvo, o célebre espertalhão que, para sua ruína, em tempos se dedicara a práticas de feitiçaria. Não obstante todos os dissabores que sofrera, Corvo não deixava de meter-se na vida dos grandes, tentando dirigir a sorte dos príncipes italianos.

Ninguém melhor que o astuto duque de Valentinois sabia onde estavam os traidores. Não esperava que eles se revelassem pelas suas acções, porque pensava que nessa altura podia ser já demasiado tarde para os liquidar. Preferia desmascarar os seus ardis enquanto estavam em embrião. E de todos os métodos que empregava, o mais eficiente e aquele em que depositava mais confiança, era, certamente, o das armadilhas.

Suspeitando, e tinha razões de peso para o fazer, que lhe tramavam uma traição no palácio de Ranieri, ordenou ao secretário que espalhasse a notícia de que muitos dos mais categorizados oficiais lhe eram infiéis. Dar-se-ia maior relevo à deslealdade dum jovem e hábil capitão de nome Angelo Graziani, que afirmava ter sido injustamente tratado por César, aguardando ocasião propícia para se vingar.

A nova correu com a velocidade com que se divulgam os boatos!

Chegou às tabernas, aos ouvidos dos espiões de Ranieri, que logo foram informar o seu senhor. Ao nome de Graziani juntava-se o de Ramiro de Lorqua, que era, nessa altura, governador de Cesena e por momentos Ranieri e Sinibaldi hesitaram perante os dois. Por fim escolheram Graziani. De Lorqua era mais poderoso e tinha maior influência. Mas eles não precisavam de tanto. Graziani era, agora, temporariamente, comandante da escolta nobre do duque e ajustava-se precisamente aos fins que tinham em vista. Além disso, os boatos acerca de Graziani tinham mais fundamento do que os de De Lorqua. O jovem capitão ignorava que corriam tais boatos e que a sua lealdade a César ia ser posta à prova tão brevemente. Por isso ficou profundamente admirado, quando, no último dia de Outubro, estando a findar a visita de Sinibaldi, Ranieri lhe fez um convite inesperado.

Graziani encontrava-se na antecâmara ducal da Rocca e Ranieri partira após uma breve audiência com sua Alteza.

 - Capitão Graziani - começou Ranieri.

O capitão, um jovem alto, musculoso, cujo uniforme de couro e aço contrastava com as sedas do aposento, curvou-se numa vénia.

 - As vossas ordens, senhor!

 - O príncipe Sinibaldi, que me deu a honra de ser meu hóspede, distinguiu-vos - afirmou, dando à voz um tom confidencial. - Deseja dar-vos a honra de vos conhecer melhor. Ouviu falar da vossa pessoa, e penso que tem uma proposta a fazer-vos muito em breve.

Graziani, tomado de surpresa, corou, envaidecido.

 - Mas eu estou ao serviço do duque! - objectou.

 - Mudareis de opinião ao saberdes do que se trata! - replicou Ranieri. - O príncipe honra-vos, pedindo para vos encontrardes com ele, esta noite em minha casa.

Graziani, embevecido e lisonjeado pelo convite, resolveu aceitar. Ao pensar na proposta, dizia a si próprio que não podia haver ali mal algum pois não se trataria, certamente, de qualquer deslealdade para com o duque. E, no fim de contas mudar de serviço era coisa natural num oficial aventureiro.

 - Obedecerei! - respondeu.

Só mais tarde, quando começou a reflectir sobre o caso, lhe nasceram as primeiras suspeitas e hesitações. Ranieri afirmara que o príncipe o distinguira. Como podia ser isso se ele nunca tinha estado na presença de Sinibaldi? Parecia-lhe bastante estranho. Estava, evidentemente, a par dos negócios políticos do tempo, sabendo bem quais eram os sentimentos dos venezianos para com César Bórgia. Além disso, conhecia suficientemente o Mundo para ver que não se podia ter confiança num homem como Ranieri, que adulava o duque, sabendo que este banira Malatesta, seu protector e confidente.

Graziani começava agora a vacilar e dentro em pouco as suas suspeitas transformaram-se em certezas. A proposta de Sinibaldi cheirava a traição. Se lá fosse, podia cair numa armadilha donde talvez não pudesse sair. Quando os traidores se dão a conhecer não podem, por amor à própria vida, salvar a de alguém que, tendo sido por eles convidado, se recusou a ser seu cúmplice. Graziani via-se já com uma estocada no coração, flutuando nas águas de Marecchia e a casa de Ranieri, lembrou-se, estava esplendidamente situada para quem quisesse tomar essas medidas!

Mas, se estes pressentimentos o levavam a esquecer a promessa que fizera, a ambição segredava-lhe ao ouvido que, afinal, talvez estivesse a dar asas à imaginação. Veneza precisava de «condottieris», a República estava rica e pagava bem; teria mais possibilidades de promoção do que ao serviço de César Bórgia, visto que quase todo o capitão na Itália estava sob a bandeira do duque. É possível que não se tratasse de mais nada do que aquilo que lhe dissera Ranieri. Iria. Só um cobarde recuaria perante perigos infundados. E só um louco deixaria de acautelar-se para fugir a tempo no caso de as suspeitas se confirmarem.

Por este motivo, quando se apresentou nessa noite em casa de Ranieri, Graziani deixara já na rua meia vintena de homens sob o comando do seu fiel Barbo, a quem, ao despedír-se, dera as ordens necessárias.

 - Se estiver em dificuldades ou em perigo, arranjarei as coisas de modo a partir o vidro duma janela. Isto será o sinal; reunirás os homens e assaltarão a casa imediatamente. Um deles pode ir para o lado que deita para o Marecchia e olhará para as janelas, não seja o caso de eu ter que dar daí o sinal.

Tomadas as devidas precauções, Graziani, calmo como nunca, foi ao encontro do enviado de Veneza.

 

CAPÍTULO II

As ordens do «condottieri» fora posto um dos escravos mouros de Sinibaldi pelo lacaio que lhe abrira a porta. Introduzido no vasto aposento da mezanina onde o veneziano o esperava, Graziani tinha uma expressão de calma e o passo firme.

Todavia, a presença do escravo mouro despertara-lhe suspeitas; parecia afirmar-lhe que naquela casa de Ranieri, o príncipe Sinibaldi era mais do que um hóspede, visto que os seus criados, chamavam a si o ofício de escudeiros. E depois, ainda no limiar da porta, pestanejando à luz viva que alumiava a sala e em cheio lhe batera nos olhos e ao ver que, além do príncipe e de Ranieri, se encontravam ali mais seis pessoas, Graziani percebeu claramente que as suas apreensões iam confirmar-se.

A sala prolongava-se até ao fundo da casa e tinha um ar ao mesmo tempo rico e lúgubre; as janelas, dum lado, deitavam para o rio Mareochia, junto da ponte de Augusto; do outro, abriam-se para a rua. Das paredes pendiam maravilhosas tapeçarias; no chão, de mosaicos, as longas carpetes vermelhas, muito escuras, destacavam-se aos olhos do visitante. Embora a mobília fosse pouca, a sala estava adornada com móveis de precioso ébano a que davam um tom mais fúnebre as suas incrustações de mármore. Em cima do fogão, um candeeiro de globo cor de marfim alumiava o amplo salão; seis candelabros de prata brilhavam sobre a mesa à volta da qual estavam reunidos. O tempo apresentava-se ventoso e frio, mas um lume acolhedor tornava o ambiente confortável.

Quando a porta se fechou atrás de Graziani este, que vinha do escuro, procurou adaptar-se à claridade enquanto Ranieri se lhe dirigia afàvélmente dando-lhe as boas-vindas, numa saudação muito cordial dada a diferença de categorias, após o que o conduziu até à mesa. À cabeceira sentava-se um homem alto que majestosamente se ergueu, juntando às palavras de Ranieri frases de grande amabilidade. Vestia de negro, com muita elegância e ostentava no peito um medalhão de diamantes, possível preço do resgate de qualquer nobre. Não precisaram de informar Graziani de que se tratava do príncipe Sinibaldi, o embaixador de Veneza. Com uma vénia em que pôs todo o seu garbo de oficial e certo ar de altivez, cumprimentou-o. Era, de facto, a vénia que qualquer espadachim fazia ao seu adversário antes de começar a luta, embora o seu rosto tivesse um aspecto grave e sério.

Ranieri ofereceu-lhe uma cadeira à mesa e logo os olhares dos outros seis homens presentes se fixaram no capitão. Graziani fixou os presentes um por um, verificando que o único que conhecia era Galeazzo Sforza, da "Catignola, que vira em Pesaro; Galeazzo, em lugar de seu irmão, havia entregue a praça a César Bórgia. Os olhos do capitão fixaram-se depois sobre Pietro Corvo, aquele que, outrora, praticara feitiçaria em Urbino. Estava um pouco separado do grupo, como aliás, de qualquer em que se encontrasse. Tinha um rosto de cadáver, cor de cera, e a pele parecia uma folha de pergaminho esticada, enrugada sobre os malares salientes, caindo em pregas junto ao pescoço. O cabelo tomara a cor da cinza e os lábios eram descorados; apenas os olhos pareciam mover-se, ter vida, brilhando como se tivessem febre. Parecia um ser absolutamente abjecto, indiscritível; não havia uma pessoa, que, ao vê-lo pela primeira vez, pudesse conter um gesto de repulsa. Apenas tinha a mão esquerda, amarela e crispada como a pata duma galinha. A outra ficara em Urbino a fazer companhia à língua, que o Bórgia lhe mandara cortar por tê-lo difamado. O castigo fora bem planeado; impedia-o de continuar a escrever ou a dizer infâmias. Apesar de tudo quase vencia tal dificuldade, pois começava já a escrever com a esquerda...

Ter-lhe ia sido mais proveitoso se se tivesse limitado à prática da magia sob o nome de Corvinus Trismegistus; fizera uma fortuna com o negócio porque era um patife muito esperto e teria continuado a amontoar ouro se não tivesse a loucura de, com as suas vergonhosas calúnias, chamar a atenção do duque de Valentinois.

Agora que não tinha língua para enganar os tolos, nem suficientes poderes sobrenaturais para arranjar outra, estava arruinado e odiava terrivelmente o homem que lhe infligira a derrota, com um ódio tremendo, cada vez mais feroz por não poder expressá-lo.

Os olhos ferozes e brilhantes de Corvo fitaram o jovem oficial quando este se sentou na cadeira que lhe indicaram. Abriu a boca lançando um som cavo que fazia lembrar as rãs em noites de Verão, fazendo gestos ao veneziano, que este nem sequer tentou compreender.

Ranieri sentou-se de novo ao fundo da mesa. O príncipe permanecia de pé, tranquilizando-o com um aceno de quem o havia percebido muito bem. Então tirou do peito um magnífico crucifixo de mármore e ouro, e voltando-se para o «condottieri» com um ar solene, segurando-o entre os dedos finos, disse:

 - Depois de vos informar do motivo por que pretendemos que aqui viésseis esta noite, tereis de decidir se quereis aliar-vos connosco, auxiliando-nos na tarefa que nos propomos. Se não quiserdes fazê-lo por qualquer razão, podereis partir livre como chegastes. Mas primeiro haveis de jurar que, nem por palavras, nem por escrito, nem por actos, divulgareis o que ireis saber sobre os nossos projectos.

O príncipe parou e ficou à espera e Graziani levantando a cabeça ia a soltar uma gargalhada por ver que se haviam confirmado as suspeitas que trazia. Mas, olhando vagarosamente em redor, sentiu que era alvo da atenção de todos, que o observavam despeitados e hostis.

Naquela altura era uma consolação pensar em Barbo e nos rapazes que lá em baixo esperavam o sinal. Se era certo que conhecia bem os homens não tardaria em precisar da sua ajuda.

Sinibaldi inclinou-se e apoiando-se na mesa com a mão esquerda, com a outra colocou gentilmente o crucifixo junto do capitão.

 - Primeiro, sobre o sagrado símbolo do Redentor - disse, ao mesmo tempo que de repente, Graziani fazia recuar a cadeira, levantando-se.

Compreendera o suficiente. Tratava-se, com certeza, duma conspiração contra o Estado ou contra a vida do duque de Valentinois. Não eram precisos mais pormenores para o perceber. Não se considerava espião, mas, se continuasse a ouví-los e se calasse, tornar-se-ia seu cúmplice.

 - Príncipe, há aqui engano! Ignoro o que ides propor-me. Mas sei, porque é bem claro, que não é aquilo que o senhor Ranieri me deu a entender.

O mudo teve um rugido incompreensível, mas os outros ficaram silenciosos, aguardando que o oficial prosseguisse, pois bem viam que não tinha ainda dito tudo.

 - Não costumo atirar-me de cabeça e fazer juramentos sobre aquilo que desconheço. Deixai, pois, que me retire imediatamente. Muito boa-noite, senhores! - concluiu, envolvendo-os numa vénia.

Recuou decidido a sair, mas num instante, todos se levantaram, lançando a mão as espadas. Estavam desesperados, pelo erro que acabavam de Cometer. Tinham que repará-lo pela única maneira possível. Ranieri saiu do seu lugar e pôs-se entre a porta e Graziani, impedindo a passagem. .

O jovem detendo-se, olhou para Sinibaldi em cujo rosto brilhava um sorriso pouco digno de confiança. Lembrou-se, então, que era tempo de dar o sinal a Barbo, mas, na incerteza de poder fazê-lo, apelou para Ranieri que estava na sua frente:

 - Senhor! - disse, firmemente e altivo. - Vim aqui como amigo, ignorando o que me esperava. Confio na vossa honra para partir como entrei, ignorando igualmente o que aqui se preparava.

 - Ignorando? - perguntou este numa gargalhada, enquanto o rosto perdera a sua habitual jovialidade. - Com que então, ignorando?! Mas, certamente, com suspeitas que irei divulgar.

 - Ele que jure! Que jure! - gritava Galeazzo Sforza. - Ele que jure que nada dirá!...

Mas Sinibaldi interrompeu bruscamente o discurso:

 - Não vedes, Galeazzo, que julgámos mal este homem? Não vedes que o seu carácter está bem à vista?

Graziani continuava a olhar para Ranieri.

 - Senhor, depende da vossa honra, que eu saia incólume. Às vossas ordens!...

Mas por trás dele ouviu-se um som estranho. Voltando-se, viu que Pietro Corvo, que se esgueirara surrateiramente, saltava sobre ele, brandindo um punhal. Antes que pudesse esboçar um gesto de defesa, a lâmina descera veloz sobre o seu peito, esbarrando nas malhas da cota que trazia sob o gibão e partindo-se pelo punho. Então Graziani agarrou aquele farrapo humano pela gola do casaco e atirou-o para o meio da casa. O mudo segurou-se a Alviano que estava entre a mesa e uma das janelas. Alviano cambaleou com o choque, dando um encontrão numa coluna de ébano sobre a qual estava um Cupido de mármore. A estatueta saltou no parapeito e foi fazer-se em pedaços sobre a calçada. Acontecera mais do que Graziani planeara, mas não mais do que fora seu desejo. O sinal estava dado. Encheu-se de coragem. Sorriu com amargura, tirou a espada, lançou o casaco sobre o braço esquerdo e caminhou para Ranieri, sem se acautelar com o que pudesse suceder-lhe pelas costas.

Ranieri, que não estava preparado para o ataque, espantado pela rapidez de Graziani, afastou-se, deixando-lhe o campo livre.

Mas Graziani não era tão louco que fosse abrir a porta! Sabia que quando se voltasse para levantar o fecho, lhe enterrariam seis punhais nas costas. Aproximou-se da saída, defrontou o grupo de arma em punho.

Cinco assaltaram-no. Atrás deles estava Sinibaldi, de espada pronta para entrar em acção, preferindo todavia, que o trabalho fosse feito pelos súbditos.

Conquanto fossem cinco contra um, a volta que Graziani dera para os atacar de frente, fizera-os parar. Ganhou ânimo, aproveitando a oportunidade. Tinham-se descuidado, mas não haviam perdido a esperança. Graziani apenas se limitava a desviar os golpes, fazendo tempo até que Barbo e os seus homens viessem ajudá-lo. Mais um minuto e estariam sobre ele sequiosos da sua vida. Fez a melhor defesa que um homem podia opor a um ataque daqueles e que maravilhosa defesa! Havia-se treinado bem em esgrima, como aliás em todos os exercícios físicos. Era leve, de movimentos rápidos, membros compridos e músculos de aço, um verdadeiro atleta.

Defendia-se tanto com o braço que sustinha o casaco, como com a espada, mas não pôde, nem era de grande interesse, tomar a ofensiva. Sabia que uma estocada num deles, mesmo bem sucedida, era dar-lhes uma possibilidade de lhe vibrarem um golpe que o derrotaria antes de poder levantar-se. Iria atacá-los quando Barbo chegasse e então faria com que nenhum daqueles cobardes assassinos, poltrões traiçoeiros, ficasse com vida. Entretanto, contentava-se com a defesa, pedindo a Deus que Barbo se não demorasse.

A fortuna protegeu-o, por alguns minutos, e a cota de malha provou ser o seu mais fiel amigo. Porém, só quando a espada de Alviano reluziu num poderoso golpe no peito de Graziani, é que os adversários perceberam que a sua cabeça era a única parte vulnerável. Foi Sinibaldi quem lho fez notar, gritando-o com fúria, empurrando Alviano agora desarmado e tomando o seu lugar. A morte brilhava no olhar do homem que agora atacava quem tinha oferecido tão desesperada resistência, sem possibilidade de ganhar terreno ou ver diminuído o número dos atacantes.

De repente a espada de Sinibaldi empenhou-se num ataque cerrado e Graziani sentiu o braço subitamente entorpecido. Num momento percebeu o que se passara. Agarrou na espada com a mão esquerda, para poder prosseguir na defensiva, mesmo quando, dando uma volta ao pulso, Sinibaldi num ímpeto o atingiu em cheio na cabeça. Graziani perdeu algum tempo antes de tomar a parada; gastou alguns segundos a passar a espada para a outra mão e o braço não podia mover-se, impedido pelo casaco; tudo isto foi vantajoso para Sinibaldi. A espada de Graziani, embora não viesse a tempo de desviar o adversário, susteve a arma que vinha a descer sobre ele. Não lhe racharam o crânio como pretendiam, mas tinham-lhe feito já uma grande ferida.

O «condottieri» sentiu que o chão lhe tremia debaixo dos pés. Deixou cair a arma e, encostando-se à parede, enquanto os inimigos o observavam parados, Graziani deixou-se escorregar de mansinho e caiu sentado no chão, escorrendo-lhe o sangue pela cara. Sinibaldi avançou decidido a acabar o trabalho, enterrando-lhe um punhal na traqueia. Mas quando estava a tomar balanço, foi interrompido por um grito do mudo que ficara junto à janela, cujo vidro se partira e pelo barulho de murros na porta, acompanhados de vozes -ordenando que a abrissem.

O ruído atemorizou os conspiradores. Fê-los dar-se conta do que estavam a fazer e recordou-lhe a justiça rápida e implacável de César Bórgia, que não poupava ninguém, patrício ou plebeu. E ficaram por momentos parados e perplexos, procurando perceber o que se passava, enquanto os socos se repetiam ameaçadoramente sobre a porta, lá em baixo.

Ranieri praguejava.

 - Fomos apanhados! Fomos atraiçoados!

Seguiu-se um tumulto. Os conjurados olhavam para um outro lado aconselhando-se, fazendo perguntas, sem se im-Portarem já com o adversário vencido, até que o mudo, chamando-lhes a atenção por meio dos seus rugidos, lhes indicou uma saída, atravessando a sala a correr e, ligeiro como um gato, até saltou por cima duma mesa de mármore que estava em frente da janela que deitava para o rio; a casa estremeceu. Nem sequer parou para a abrir. Conhecia tão bem os processos justiceiros de Bórgia que, naquele impulso, atirou-se de encontro à janela fechada e precipitou-se, com enorme estrondo de vidros partidos, nas águas geladas e escuras que corriam em baixo.

O resto da comitiva seguiu-o como carneiros. Saltando por cima da mesa, uns atrás dos outros, todos mergulharam no rio. E nenhum teve a sensatez de parar para pensar na maré. Se tivesse calhado em ocasião de maré viva, teriam sido arrastados para o mar e nunca mais perturbariam os destinos da Itália. Felizmente para eles, porém, era a baixa-mar e assim foram arrastados até à ponte de Augusto, excepto Pietro Corvo que morreu afogado e Sinebaldi que ficara para trás.

Como Graziani, também Sinibaldi usava uma cota de malha por baixo do gibão, como medida de precaução para quem dispunha de métodos tão arriscados para trabalhar na sombra. Menos impetuoso que os outros, antes de saltar parou para calcular as possibilidades que tinha e concluiu que a armadura, certamente, iria fazê-lo ir ao fundo. E deteve-se o bastante para despi-la.

Em vão pediu aos amigos para que esperassem. Ranieri respondera-lhe, já em cima da mesa, pronto para saltar:

 - Esperar? Santo Deus! Estais doido? Então isto é ocasião para esperas? - Mas ainda perdeu algum tempo, explicando o motivo por que deviam apressar-se:

 - Não podemos arriscar-nos a ser presos. Agora mais do que nunca, temos que fazer o que estava combinado, ou estamos todos perdidos! E tem que ser esta noite, como tínhamos planeado. Tantos preparativos iam-nos arruinando! Podíamos ter-nos arranjado muito bem sem aquele traste! - e apontava para Graziani - como eu disse a Vossa Alteza. - E saltou pela janela, lançando-se ao rio atrás dos outros.

Mas a pressa entorpecia os dedos de Sinibaldi que, presos aos botões do gibão, tinham os movimentos presos porque além de tudo metera a espada debaixo do braço.

Mal Ranieri se precipitara na água, sentiu-se um violento ruído e a porta ficou escancarada. Ouviu-se então grande vozearia. Os homens de Graziani afastavam rudemente os criados da casa e subiam velozes pela escada.

Sinibaldi, com os dedos ainda metidos nas casas dos botões, fugiu atordoado para a janela, reflectindo por um momento no perigo de morrer afogado. Quando se preparava para saltar, lembrou-se que o seu cargo o fazia gozar de imunidade. Afinal, como enviado de Veneza, a sua pessoa era privilegiada e não podia ninguém pôr-lhe um dedo em cima, sem provocar o ressentimento da República. Tivera muito medo, mas nada havia a temer, se nada se pudesse provar contra ele! Nem mesmo Graziani podia dizer fosse o que fosse que pusesse em perigo a sagrada pessoa dum embaixador. Meteu a espada na bainha, ajustou o gibão e compôs-se. Dirigiu-se para a porta aberta aos invasores, procurando guiá-los:

 - Por aqui, por aqui!

Entraram em tropel, com o mais velho à cabeça, tão precipitadamente que tropeçavam e empurravam o príncipe.

Barbo fê-los parar no meio da sala e olhou em volta pasmado, até que deu com o capitão ensanguentado caído no chão junto à parede. Perante o triste espectáculo, deu um urro furioso quando os seus homens se aproximavam do veneziano.

Com a dignidade possível num homem naquelas circunstâncias, Sinibaldi tentava detê-los.

 - Se me tocais, arriscais-vos! Sou o príncipe Marcantónio Sinibaldi, enviado de Veneza.

O veterano afastou-se, respondendo, desdenhoso:

 - Mesmo que fôsseis o príncipe Lucifer, enviado dos Inférnos, havíeis de dar contas do que aqui se passou e de como puseram o capitão naquele estado. Segurem-no!

Os soldados obedeceram prontamente porque queriam muito a Graziani. O veneziano praguejava, protestava, em vão, esperneando. Tratavam-no como se jamais tivessem ouvido falar de quanto é preciosa a pessoa dum embaixador. Tiraram-lhe as armas, ataram-lhe as mãos atrás das costas, como um malfeitor vulgar, e arrastaram-no, como de costume, pela escada abaixo sem chapéu nem casaco, para a rua lamacenta e ventosa.

Quatro ficaram lá em cima, por ordem de Barbo, enquanto ele próprio, de joelhos junto do capitão, procurava examinar o seu estado. Graziani dera a perceber que não estava morto quando a porta se fechara sobre os homens.

Sentou-se, encostado a Barbo, limpando com a mão esquerda o sangue que lhe tapara os olhos e fitou tristemente o veterano, radiante por o ver voltar a si.

 - Estou vivo, Barbo! - murmurou em voz débil. - Mas, meu Deus, se tens vindo um minuto mais tarde, teria sido tarde demais para raim, e talvez também para o duque: - sorriu. - Quando vi que o valor não me servia já de nada, recorri a um ardil. Temos que fazer de raposa, quando já não podemos fazer de leão. Com o golpe na cabeça e a cara cheia de sangue, fingi que estava derrotado. Mas estava cônscio e é triste, Barbo, aproveitarmo-nos da morte, sem poder mexer um dedo, com receio de que ela venha mais depressa. Eu... - começou, mas deixou cair a cabeça. As forças faltavam-lhe. Depois, tentou reanimar-se à custa da sua força de vontade. Tinha ainda que dizer qualquer coisa antes que já não valesse a pena.

 - Barbo, vai ter com o duque. Depressa! Diz-lhe que se tramava aqui uma conspiração-•• para esta noite e que será preparada pelos que fugiram! Diz-lhe que se acautele. Apressa-te, homem. Diz-lhe que eu..:

 - Os nomes deles, os nomes deles! - rogava Barbo vendo que o capitão estava prestes a desmaiar.

Graziani levantou a cabeça mais uma vez e abriu lentamente os olhos tristes. Mas não respondeu. Tornou a fechar os olhos e a cabeça caiu sobre o ombro do soldado. Era como se por um esforço sobre-humano tivesse conseguido manter as forças para avisar. Cumprira o seu dever; agora podia enfim descansar tranquilo.

 

CAPÍTULO III

A razão porque aquilo tinha que ser feito naquela noite, como afirmara Ranieri antes de se atirar pela janela, residia no facto de ser a última que o duque passava na cidade de Rimini. Na manhã seguinte partiria com o exército para Faenza.

Os conselheiros e os nobres» de Rimini acharam conveniente demonstrar a sua submissão a César, dando um banquete no Palazzo Pubblico. Reuniam-se na festa todos os vultos mais notáveis e grande número de fidalgos repatriados, os fuorusciti, que, sob diferentes pretextos, o odiado Mala-testa tinha expulso dos seus domínios para enriquecer à custa das terras confiscadas. Vinham agora, felizes, com as esposas, prestar homenagem ao duque que os livrara da escravidão do perverso Pandolfaccio, certos de que a sua justiça iria compensá-los das amarguras que tinham sofrido.

Estavam também presentes os mensageiros e embaixadores de vários domínios italianos para felicitar César Bórgia pela sua última conquista. Em vão o duque olhava para todos os lados em busca de Marcantónio Sinibaldi, o enviado da República de Veneza. Não podia de modo algum estar presente àquela esplendorosa reunião e o duque, a quem nada Passava desapercebido e detestava deixar enigmas por resolver, sobretudo como no caso presente, tratando-se dum Estado Que lhe era hostil, ansiava saber o motivo daquela ausência.

O caso tornava-se mais estranho ainda, Rporquanto a mulher do príncipe Sinibaldi, uma jovem loura e vistosa, que ostentava ao peito as suas preciosíssimas jóias, estava sentada à direita do duque, entre o sóbrio veludo negro do presidente do conselho e a púrpura do simpático cardeal-delegado, ocupando de facto o lugar que lhe estava destinado pela categoria e pelo respeito devido à grande República que seu marido ali representava.

O duque, certamente, devia ter notado também a ausência de Ranieri, que se havia desculpado junto do presidente, pretextando uma- indisposição. Mas Valentinois interessava-se muito mais pelo paradeiro de Sinibaldi. Recostara-se comodamente no cadeirão. Vestido com um gibão dourado, com bandas adornadas de jóias nos punhos e na cintura, era a perfeita encarnação da mocidade e do vigor másculo. Estava bastante pálido e pensativo e brincava distraidamente com as pontas da barba cor de ébano.

Quando o banquete terminou, no grande átrio abriu-se lugar para os artistas que tinham vindo de Mântua, a pedido da bela marquesa Gonzaga, para representarem uma comédia.

Não era porém comédia, mas tragédia, o que lhes estava reservado e o actor que de súbito apareceu para recitar o prólogo, afastando com rudeza os lacaios que queriam impedi-lo de entrar, era Barbo.

 - Senhor! - gritou anelante. - Senhor! - e distribui? socos pelos criados que barravam a passagem. - Fora daqui.

 - Tenho de falar a Sua Alteza! Fora daqui!

A assistência emudecera. Uns estavam admirados com  intruso, outros julgavam que era a abertura da comedi.A voz forte e metálica de César rompeu o silêncio:

 - Deixem-no aproximar!

Os criados respeitaram a ordem, contentes, porque as mãos de Barbo eram pesadas e pródigas, e este encaminhou-se para o duque, saudando rapidamente.

 - Quem sois? - perguntou o duque.

 - Barbo e sou veterano na «condotta» de Angelo Graziani.

- Porque vindes nesse estado? Que vos traz? - tornou

Bórgia.

 - Uma traição, senhor! - exclamou o soldado, fazendo despertar a curiosidade nos convidados.

Só César se mostrou indiferente. Fitou-o com calma. Então Barbo começou a narração que trazia preparada. Falava atabalhoadamente, aos saltos, e na voz brilhava o calor da paixão que não podia dissimular.

 - Graziani, o meu capitão, está sem fala e desmaiado, com a cabeça partida, senão estaria ele agora aqui, com certeza, contando-vos tudo com mais pormenores. Apenas posso dizer-vos o pouco que sei, o pouco que me disse antes de desmaiar.

«Ordenou a mim e aos meus homens que espiássemos certa casa em que entrou esta noite e que devíamos assaltar se ouvíssemos determinado sinal, o que de facto aconteceu.

 - Espera, homem. Vamos lá a saber isso compassada-mente e de modo que eu perceba! Uma certa casa, disseste. Que casa?

 - O palácio de Ranieri! - declarou o soldado. Sentiu-se um murmúrio de curiosidade que começava a dominar os convivas, e da sua direita veio um pequeno grito de alguém que se sentira subitamente aterrado. O grito prendeu a atenção de Bórgia que olhou e descobriu a princesa Sinibaldi caída na cadeira, pálida como uma morta, com os olhos azuis abertos de pavor. Assim que a olhou, recordou-se imediatamente de certos factos, encontrando a possível solução para o enigma que o intrigara: a ausência de Sinibaldi. E pensou que já sabia onde o príncipe havia estado, ainda que tivesse que o procurar. Percebia também de que espécie era a traição de que Barbo falava e à qual, sem dúvida, Sinibaldi estava ligado.

Enquanto tudo isto lhe passava pela mente, Barbo recomeçava a narração interrompida:

 - Ao ouvir o sinal, senhor, nós então arrombámos...

 - Espera! - bradou o duque levantando a mão a impor o silêncio.

Houve uma pausa durante a qual o outro se sentia impaciente por continuar.

O olhar calmo de César passara da princesa para Paolo Capello, o Orador veneziano, sentado à sua esquerda, e notou-lhe a expressão de ansiedade, a preocupação estampada nos olhos e leu nesses sinais a confirmação das suas suspeitas.

Veneza estava, de facto, metida nisto. Aqueles implacáveis comerciantes de Rialto manobravam tudo aquilo em casa de Ranieri onde um dos seus capitães acabara de ser ferido. E Capello, o enviado de Veneza, estaria ansioso por saber o que tinha acontecido ao embaixador para, naturalmente, tomar as suas disposições.

César conhecia as manhas de Veneza e dos seus ministros. Caminhava sobre o lodo das traições e todas as cautelas eram poucas. O facto de o Orador desconhecer o que se passara com Sinibaldi dava coragem a César para desmascarar Veneza.

 - Não estamos aqui à vontade! - disse a Barbo, levantando-se.

Toda a assistência se ergueu, menos a mulher de Sinibaldi. De facto, tentou ainda imitá-los, mas estava tão fraca, que os membros se lhe vergavam e teve de ficar sentada, o que César notou como era natural.

 - Senhoras e senhores - disse ele, com um sorriso enigmático - peço que fiqueis sentados. Não quero que isto vos incomode. - E voltando-se para o presidente do conselho: - Se me permitis retiro-me por uns momentos com este homem!...

 - Certamente, senhor, certamente! - respondeu o presidente, nervoso, confundido pela deferência que o duque ti-: vera para com ele. - Por aqui, Magnificente. Naquela salinha estareis à vontade. - E foi, vacilante, indicar o caminho, seguido pelo duque e por Barbo. Abriu a porta do aposento e afastando-se um pouco, saudou, fazendo uma vénia.

César entrou e atrás dele Barbo. Quando a porta se fechou, chegou até eles o ruído confuso das vozes lá de fora.

Estavam numa sala pequena, mas ricamente mobilada, por certo por ser gabinete muito usado pelo duque. No meio da casa havia uma mesa de madeira trabalhada, em cima da qual estava uma taça de mármore com vários Cupidos; perto, uma cadeira alta, estofada a veludo carmesim. Um candelabro de seis velas alumiava o aposento.

César enterrou-se confortàvelmente na cadeira, voltou-se para Barbo e disse:

 - Conta lá então o que se passou?

Barbo relatou pormenorizadamente o que sucedera no palácio de Ranieri, repetindo fielmente as palavras de Graziani e acabando por dizer que prendera o príncipe Sinibaldi.

 - Espero não ter feito asneira em prendê-lo, senhor? - perguntou, hesitante. - Ouvi dizer que era o embaixador de Veneza!?...

 - O diabo leve Veneza e o embaixador! - exclamou Bórgia numa explosão de ódio, E, depois, contendo-se  Alegra-te! Fizeste bem...

Ergueu-se e voltando as costas ao veterano, dirigiu-se à janela onde permaneceu por momentos, fitando a noite estrelada, e cofiando a barba, com ar pensativo. Depois, voltou devagar, de cabeça baixa e só a ergueu quando estava já na frente de Barbo outra vez.

 - Não tens qualquer ideia da natureza da conspiração? Que será isso que planeavam e que queriam levar a cabo ainda esta noite?

 - Não sei, senhor...

 - E sabes quem são os que escaparam?

 - Só sei que um deles deve ser Ranieri...

 - E os outros? Nem sequer sabes quantos eram? César parou. Lembrara-se da princesa Sinibaldi. Devia

colher da sua boca as informações; pelo menos aquilo que ela soubesse. A sua atitude provava que conhecia qualquer coisa. O duque sorriu e ordenou ao soldado:

 - Vai dizer para que o senhor presidente do conselho venha aqui falar-me com a princesa Sinibaldi. Depois, aguarda as minhas ordens lá fora. E não digas palavra a ninguém.

Barbo retirou-se com o recado. César deu uns passos lentos até à janela, e esperou com a testa encostada à vidraça, meditando até que a porta se abriu e o presidente fez entrar a princesa. Vinha ávido de novidades; mas ia ficar desapontado...

 - Apenas desejava que conduzísseis aqui esta senhora - informou Valentinois. - Se dais licença, ficaremos sós. Precisamos conversar...

O outro desculpou-se e desapareceu. Logo que ficaram sós, o duque olhou a palidez da princesa e viu-lhe o peito a arfar. Descobriu imediatamente que o medo não tardaria a fazê-la falar.

Curvou-se na sua frente, e com um sorriso muito amável ofereceu-lhe a cadeira carmesim. Ela sentou-se, muda e agradecida. Limpou os lábios com um lencinho debruado a ouro, i sem deixar de fitar o duque, como que fascinada pelos olhos.

De pé, junto da cadeira onde ela se sentara, César inclinava-se.

 - Mandei chamar-vos, «Madonna», para vos dar uma  oportunidade ide salvardes o vosso marido das mãos do carrasco...

A notícia era terrível e o tom gentil e doce de César tornava-a ainda mais torturante e tivera o efeito que ele desejara.

 - Meu Deus! - suspirou ela, aflita, levando as mãos ao alvo colo. - Jesus! Eu já o sabia! Disse-mo o coração!

 - Não vos preocupeis, «Madonna», imploro-vos! Não há razão para isso... E o seu tom era agora mais suave do que nunca. - O príncipe está lá em baixo, esperando a minha decisão. Mas para mim, «Madonna», a vossa decisão é que vale. Tendes nas vossas mãos os destinos do vosso esposo. A sua vida] depende de vós...

Ela levantou os olhos examinando aquela bela face de homem na qual brilhavam uns olhos lindos, cor de avelã, que a fitavam calmamente, e ficou cheia de pavor. Não compreendia bem o significado de frases tão ambíguas que ele empregava para se assenhorear da sua vontade, para fazê-la vergar aos seus desejos.

Viu que as suas faces se tinham tingido de rubor e que não podia deixar de o fitar.

 - -Senhor! - respondeu ofegante. - Não compreendo o que dizeis. Vós... - por momentos tomou um ar ousado, um olhar provocante. Mas a voz tremente continuava a traí-la. - O príncipe Sinibaldi é o enviado de Veneza! A sua pessoa é sagrada. Uma ofensa a ele feita é uma ofensa à República que representa e que sabe vingar as afrontas. Não ousareis tocar-lhe, creio bem!

César observava-a ainda, sorrindo.

 - Já o fiz. Não vos disse que está preso lá em baixo, à espera que eu me decida? - e repetia: - Mas, para mim, «Madonna», a vossa decisão é que vale!

 - Não ousareis! Não! Nunca! - respondeu-lhe a bela «Madonna».

O sorriso desapareceu da face do duque e inclinando a cabeça até junto da dela, não sem um ar de mofa, disse:

 - Deixar-vos-ei então ser feliz com essa ideia... - afirmou num tom tão sardónico e sinistro que todo o ânimo a abandonou.

Dirigiu-se para a porta, como se desse por finda uma entrevista Infrutífera. A princesa ficou aterrada. Levantou-se a cambalear, apoiando-se à mesa.

 - Senhor, senhor! Um minuto! Por piedade!

César parou, dando uma volta, com a mão já no fecho da porta.

 - Terei niedade, «Madonna», se me ensinardes a tê-la e se também vos mostrardes piedosa!... - e voltou para junto dela, com uma expressão grave. - O vosso marido foi preso, apanhado numa traição. Se não quereis que seja enforcado esta noite, se quereis apertá-lo ainda vivo e feliz nos braços... É de vós que isso depende! - e olhava-a fixamente e ela suportava aquele olhar, retribuindo-o, em silêncio, sentindo bater o coração desordenadamente. Por fim, cerrou os olhos e baixou a cabeça. Estava cada vez mais pálida:

- Que quereis de mim? - perguntou com voz sumida. Jamais houve um homem tão versado na arte de frases

dúbias. Tinha proferido já algumas para a aterrar, pensando que quando lhe desse a entender o seu real significado, o medo havia de traí-la, O sacrifício que lhe pediria então parecer -lhe-ia insignificante, em comparação com aquilo que a incerteza lhe fizera supor.

Quando ela lhe perguntou ingenuamente o que pretendia, apressou-se a replicar:

 - Tudo o que sabeis da conspiração em que ele tomava parte!

Viu-lhe o brilho dos olhos; o seu ar de surpresa e de alívio; estava rendida. Cambaleou. Ele segurou-a, amparando-a e fazendo-a, gentilmente, sentar-se. Continuou a bater a mesma nota:

 - Vamos, «Madonna», despachai-vos! Não me fazeis perder a paciência nascida de misericórdia! Vede que aquilo que vos exijo e pelo que vos dou tão rica recompensa, podia muito bem arrancar pela tortura ao seu príncipe. Serei franco como os padres o são na Páscoa. É verdade que não quero intrigas com Veneza e procuro atingir os meus fins por meios pacíficos. Mas, por Deus! Se as minhas medidas não vos convencem, então vosso marido será torturado e depois mandado para os carrascos, embora seja um embaixador do Império. Chamo-me César Borgia, bem sabeis que fama tenho em Veneza!

A princesa fitou-o, confusa, explicando então o que a surpreendia:

 - Ofereceis-me a sua vida e a sua liberdade em troca duma informação?

 - Isso mesmo! - replicou Bórgia.

Levou as mãos à cabeça, procurando desvendar o mistério duma oferta que lhe parecia tão contraditória.

 - Mas então... - continuou, parando, sem achar as palavras adequadas.

 - Se quereis certificar-vos, «Madonna», jurar-vos-ei. Juro-vos pela minha honra e pela esperança no Céu, que nem eu nem nenhum dos meus homens tocará num cabelo de Sinibaldi, com a condição de me dizerdes o que se tramava contra mim esta noite, para que eu não caia na armadilha que me preparavam!

A princesa compreendia tudo agora. Ele apenas Lhe oferecia a vida do marido em troca da sua segurança. Pensando em Sinibaldi, hesitava ainda.

 - Mas... ele zangar-se-á comigo... - aventou, fixando o seu terrível interlocutor.

César teve um olhar de triunfo. Inclinou-se para ela, prometendo:

 - Ele não precisará de saber!... - prometeu.

 - Mas... sereis fiel à vossa palavra? - perguntava ela, para se assegurar de que tudo correria bem.

 - Já vos prometi que sim, «Madonna»! - respondeu César, sem poder refrear um tom de aspereza. Tê-lo-ia evitado, se pudesse, porque não perdoava facilmente nem se esquecia de que tinha que deixar partir Sinibaldi sem o castigar. Percebia, contudo, que sem a jura não poderia alcançar os meios para se defender do golpe que podiam vibrar-lhe em qualquer altura.

 - Já vo-lo prometi e não costumo jurar em falso! - repetiu.

 - Quereis dizer que não o deixareis saber que descobristes tudo? Que apenas usareis a informação para vos defenderdes?

 - É isso que pretendo fazer - assegurou, confiando que ia agora ter aquilo que tanto desejava.

E soube finalmente tudo; ela contou o que ouvira, na noite anterior a Ranieri em conversa com Sinibaldi. Ela suspeitava por algum tempo de que o marido planeava qualquer coisa com o partidário de Malatesta. Levada por estas desconfianças, talvez ciumenta por ver que o marido a não fazia sua confidente em tal assunto, tinha-se posto à escuta e ouvira que conspiravam contra a vida de César Bórgia.

 - Ranieri falava do banquete no Palazzo Pubblico e dizia que era uma boa oportunidade. Ranieri foi desleal, foi ele que tentou meu marido, senhor!

 - Sim, sim, sem dúvida! - retorquiu ele impaciente. - Não interessa quem tentou e quem foi tentado; o que eu quero é saber a história!... - insistiu.

 - Ranieri sabia que voltaríeis ao castelo de Segismundo onde passaríeis a noite e tinham decidido escoltar-vos até lá, à luz dos archotes. Em qualquer ponto do caminho, não sei dizer-vos onde, dois archeiros, escondidos, saltariam sobre vós.

Ela, deteve-se, mas César não mostrou quaisquer sinais de surpresa ou perturbação ao ouvi-la; resolveu então prosseguir:

 - Havia contudo uma dificuldade...

«Não que Ranieri a julgasse insuperável, mas claro, tinham que vencê-la! Receava que se junto de vós cavalgassem guardas armados, os archeiros se vissem em apuros para disparar. Não tinham medo de guardas a pé, porque podiam disparar por cima das suas cabeças. Mas era necessário certificarem-se de que só havia guardas a pé próximo de vós, de tal modo que o vosso vulto se distinguisse. Foi para isso que se propuseram seduzir um dos vossos capitães, parece-me que era esse Graziani de quem o homem falou, dizendo-o ferido. Ranieri estava radiante com o facto de não estardes em boas relações com ele e pensava que esse homem os auxiliaria de bom-grado...

Valentinois sorriu, pensativo. Conhecia muito bem como nascera essa ideia sobre as suas relações com Graziani. E à medida que nisso meditava, o seu sorriso tornava-se cruel, reflectindo o que lhe ia na mente.

 - É tudo o que pude ouvir, senhor! - concluiu depois duma pausa.

César estremeceu. Ergueu a cabeça e deu uma gargalhada.

 - O bastante, graças a Deus!

Quando tornou a olhá-lo o aspecto frio tomara o seu rosto e o brilho intenso daqueles grandes olhos escuros encheram-na de medo.

Levantou-se, fazendo-lhe lembrar o juramento que prestara. A expressão de ódio desapareceu da face do duque, dando lugar a um sorriso:

 - Perdei o medo! - disse. - Jurei e hei-de cumprir. Nem eu nem nenhum dos meus homens ofenderá o príncipe Sinibaldi!

A «Madonna» queria expressar a sua gratidão e quanto o achava magnânimo. Mas não atinava com as palavras; antes que tivesse dito alguma coisa, já ele a aconselhava a retirar-se.

 - «Madonna», seria melhor que partísseis já. Estais exausta. Receio ter-vos afligido bastante. E perdoai-me!...

E ela confessou que o seu estado não era realmente normal, afirmando que ficaria muito satisfeita se ele a deixasse voltar para casa.

 - O príncipe seguir-vos-á - prometia César, conduzindo-a até à porta. - Porém, primeiro, temos que entender-nos com ele e espero que sejamos bem sucedidos. Parti sossegada - acrescentou vendo o terror nos seus olhos azuis; a princesa pensava agora como seria que César costumava entender-se com os inimigos. - Tratá-lo-ei com todas as honras. Farei todo o possível por o afastar dos traidores que o seduziram!

 - Isso, isso! - exclamou ela agarrando-se a essa ideia que César formulava acerca do homem que teria feito tudo para o matar. - Não foi ele que teve a ideia. Foram os outros que o enganaram com maus conselhos.

 - Como hei-de eu duvidar disso se sois vós quem o afirmais? - retorquiu com uma ironia tão fina que ela não entendeu.

E deixando-a passar curvou-se numa vénia abrindo a porta.

 

CAPÍTULO IV

Seguiu-a até ao vasto átrio onde se fizera silêncio e todos os olhos o fitavam. Fez um aceno ao presidente do conselho que o esperava e entregou-lhe a princesa, pedindo-lhe que a conduzisse à carruagem.

Saudou-a mais uma vez, apresentando-lhe cumprimentos de boa-viagem, e quando ela atravessava a sala encostada ao presidente, César dirigiu-se à mesa, retomou o lugar e com um breve gesto e um sorriso mandou que voltassem de novo à alegria, como se nada se tivesse passado.

Viu que Capello o observava com um ar duro, imaginando o tumulto que lhe ia no coração, na ignorância da entrevista com a princesa. Capello devia ter tido muito com que ocupar-se, pensava, e quando o presidente regressou depois de ter acompanhado a jovem senhora, César fez com o dedo sinal a Barbo que continuava à espera como lhe havia ordenado.

Este aproximou-se e logo os risos e as conversas pararam.

 - Traz o príncipe Sinibaldi - disse, espalhando a consternação na sala.

O majestoso Capello ficou tão perturbado que se atreveu a levantar-se dirigindo-se ao duque:

 - Magnificente - perguntou a medo - que é isso com o Príncipe Sinibaldi?

 - Esperai e vereis - respondeu o duque lançando-lhe um olhar de desdém por cima do ombro.

- Mas, senhor, imploro que considereis! Veneza...

 - Tende paciência, senhor... - respondeu »César com indiferença. O seu olhar fez recuar o enviado como se lhe desse um soco. Ficou atrás do duque, muito pálido, sem poder respirar. Nestas ocasiões a gordura era-lhe prejudicial. Abriram-se as portas e Barbo tornou a entrar. Seguiam-no quatro homens da escolta de Graziani e no meio deles Sinibaldi, o enviado de Veneza. Tinha o ar dum malfeitor banal. Trazia ainda as mãos atadas atrás das costas; vinha sem casaco e em cabelo; o vestuário estava em completa desordem pelo muito que tinha lutado e no rosto havia uma expressão triste.

Os convidados ficaram ainda mais impressionados do que já estavam e de todos os lados saíam murmúrios.

A um sinal de César, os soldados recuaram, deixando-os face a face.

 - Desliguem-lhe as mãos! - ordenou o duque.

Vendo que toda a gente o olhava, o veneziano recobrou o ânimo. Levantou a cabeça, endireitou-se, tomando uma atitude de altivez e desdém, fitando o rosto impassível de Bórgia. De repente, sem que ninguém lho ordenasse, começou a falar:

 - Fostes vós, duque, que ordenastes estas infâmias feitas à sagrada pessoa dum embaixador?., - inquiriu. - Veneza, que eu represento, não estará disposta a suportar pacientemente tais injúrias!

Ao alcance do duque estava uma laranja que tinha sido injectada com essência de rosas para ser usada como perfume. Tomou-a entre os dedos e levou-a delicadamente ao nariz:

 - Estou confiado - respondeu, naquela voz que sabia tornar penetrante e docemente sinistra - que me engano quando julgo que estais a ameaçar. Não é prudente ameaçar-nos, Excelência, nem mesmo que seja um enviado de Veneza!

E sorria, um sorriso que torturava Sinibaldi e o fazia perder quase toda a arrogância, como sucedera a outros mais ousados ao defrontarem o duque.

Atrás dele, Capello contorcia-se, reprimindo a muito custo um lamento.

 - Nada vos ameaço, senhor... - começou Sinibaldi.

 - É para mim um alívio ouvir-vos dizer isso!

 - Apenas protesto! Apenas protesto contra o tratamento que tenho recebido. Aqueles soldados, esses rufias...

 - Ah! - exclamou o duque cheirando a laranja outra vez. - Os vossos protestos merecer-me-ão a melhor atenção. Não deveis supor-me capaz de esquecer qualquer dos vossos direitos... Continuai, peço-vos! Dai-nos a vossa versão dos acontecimentos desta noite. Tende a bondade de explicar o erro de que fostes vítima e prometo que castigarei os culpados. Castigá-los-ei até com muito prazer porque abomino os disparatados. Dissestes que aqueles soldados... Mas, vamos, continuai...

Sinibaldi não prosseguiu. Em vez de o fazer, começou a contar o que tinha preparado durante o longo período que lhe haviam concedido. E era uma narrativa manhosa, habilmente arquitectada, baseada em factos, como todos os relatos que pretendem ser convincentes. Era de facto o mesmo que Graziani contaria se lá estivesse e como era verdadeiro, não quanto a Sinibaldi, mas quanto a Graziani, resistiria a todas as provas e convenceria todos.

 - Convidaram-me em segredo, senhor, para uma reunião hoje à noite em casa de Ranieri, de quem me parece que fui hóspede desde que cheguei a Rimini. Apressei-me a ir pois me disseram que ia tratar-se dum caso de vida ou de morte que me dizia respeito. Encontrei lá um pequeno grupo, mas antes de me informarem do que ia passar-se, obrigaram-me a jurar que, quer me aliasse a eles ou não, nunca diria uma palavra, nem o nome dos que ali se encontravam. Mas eu não sou parvo, Magnificente...

 - Mas quem disse uma coisa dessas?! - inquiriu César sorrindo velhacamente.

 - Não sou parvo - continuou - e aquilo cheirou-me a deslealdade, como era de esperar. Julgo que eles tinham falsamente conjecturado que eu podia servi-los, assistindo, ouvindo, tornando-me assim conivente. Aí é que se enganaram, foi um erro que me ia custando a vida e originou todas as infâmias de que me queixo. Não vou incomodar-vos, Magnificente, com os meus sentimentos pessoais. Isso não importa. Sou embaixador e cumpro os meus deveres, tal como espero gozar dos meus direitos. Aqueles patifes deviam ter pensado nisto. Mas já que o não fizeram...

 - Deus nos dê paciência! - interrompeu o duque. - Ides começar outra vez? Isso é tudo retórica, senhor. Contai o que interessa, o que interessa realmente!

Sinibaldi inclinou a cabeça com dignidade.

 - Tendes, de facto, razão, Alteza, aliás como sempre! Vou então contar. Onde ia eu? Ah, já sei.

«Quando me pediram que fizesse tal juramento, tive logo desejos de me ir embora. Mas vi que já tinha ido muito longe, cometendo a leviandade de estar presente naquela reunião e que eles não permitiriam que eu saísse e fosse divulgar o que ali se passava. Não ousavam fazê-lo, com risco da própria vida. Isto era claro. Por isso, para salvar a minha, e para me defender, prestei o juramento. Mas logo que o fiz, lhes afirmei que não queria ouvir nem mais uma palavra da conspiração. Avisei-os de que estavam a precipitar-se, metendo-se num caso daqueles e, se, como eu supunha, o seu objectivo era atentarem contra a pessoa de Vossa Alteza, eram ainda mais estultos, porque Vossa Alteza tem tantos olhos como Argus. E depois pedi-lhes que me deixassem partir, visto que já prometera que nada diria. Mas os homens daquela espécie facilmente julgam que estão a ser atraiçoados e não fazem fé em juras. Recusaram-me licença de sair, protestando que eu ia denunciá-los. Das palavras, passámos depois à pancada... Atiraram-se a mim e houve uma luta na qual um deles caiu sobre a minha espada. O alarido que fazíamos chamou a atenção duma patrulha que entrou por ali dentro. Se não fosse isso teria eu, com certeza, lá deixado a vida. Quando os soldados apareceram, os conspiradores saltaram pela janela e lançaram-se à água, mas eu fiquei, visto que nada temia por estar inocente. Foi nessa altura que me prenderam, sem qualquer consideração por aquilo que eu dizia...

Por detrás da cadeira do duque, Capello teve um suspiro de alívio. Deu um passo em frente:

 - Vedes, senhor, vedes!?...

 - Calai-vos, homem! - bradou Bórgia. - Ficai certo duma vez para sempre que tenho olhos para ver, como os outros homens, e não preciso da ajuda da vossa vista, Capello!

 - E voltando-se de novo para Sinibaldi, muito cortês:

- Lamento, senhor, que tenhais sido tão maltratado pelos meus soldados. Mas confio que comprendereis que até esta explicação, as aparências eram contra vós... e desculpar-nos-eis, certamente, de qualquer injúria feita a Veneza. Deixai-me mesmo dizer que se se tratasse de alguém de posição inferior à vossa e que não fosse o representante dum Estado com que me prezo de manter óptimas relações como é Veneza, não me teria dado ao trabalho de ouvir explicações e haveria exigido os nomes dos que estavam implicados na traição.

César falara com um ar de sinceridade; na sua voz não havia sombra de ironia.

 - Já vo-los teria dito, se não tivesse prometido... - respondeu Sinibaldi.

 - Compreendo-vos perfeitamente e assim, por deferência para convosco, e para vos provar a minha estima por vós e pela República de que sois o símbolo, não vos farei uma pergunta à qual teríeis dificuldade em responder. Esqueçamos este desagradável acontecimento...

Ao ouvir isto, o veterano, que era fiel a Graziani como um cão ao dono, não pôde conter-se por mais tempo. Estaria o duque doido para acreditar em tudo aquilo para poder engolir toda aquela tramóia como se fosse um rico doce de ovos?

 - Senhor, se aquilo que ele diz é verdade...

 - Se? - gritou César. - Quem ousa duvidar? Não é ele o príncipe Sinibaldi, enviado de Veneza? Quem se atreve a duvidar das suas palavras?

 - Eu! - respondeu o soldado resolutamente.

- Meu Deus, que audácia! - exclamou Valentinois fingidamente aflito.

 - Senhor, se o que ele diz é verdade, é Graziani um traidor, pois foi ele que ficou ferido nessa luta e ele quis fazer crer que o homem que feriu era um dos conspiradores...

 - Claro que foi isso que o príncipe disse - replicou César.

 - Pois então - e tirava com fúria a manopla de pele de búfalo - digo que quem mente é intrujão, seja lá príncipe de Veneza ou príncipe do Inferno!

E levantava a luva que descalçara, com toda a atitude de quem pretendia lançá-la à cara de Sinibaldi. Mas a voz do duque refreou as suas Intenções:

 - Alto! - disse asperamente, calando-se, fitando-o. - O que fizestes podia ter-vos custado bem caro. Fora da minha vista e levai os vossos homens! Ficai lá fora à espera das minhas ordens. Falaremos ainda esta noite sobre isso ou talvez amanhã, Barbo. Fora!

Gelado pelo tom e pelos olhares de César, Barbo endireitou-se, curvou-se depois e lançando um olhar de ódio a Sinibaldi atravessou o salão pensando que ia ser enforcado pela atitude que tomara perante a calúnia que levantavam ao seu capitão.

O duque olhou para Sinibaldi, sorrindo.

 - Desculpai aquele estúpido. Procedeu assim, levado pela honestidade e pela fidelidade ao amo. Amanhã lhe ensinaremos a portar-se como é devido. Entretanto, Vossa Alteza desculpará. Um lugar para o príncipe, aqui a meu lado. Vinde, senhor, deixai que vos sirva, e vos apresente reparações pelo mal que vos causaram. Nunca devemos censurar o senhor pela estupidez dos criados. O Conselho proporcionou-nos horas de prazer. Eis aqui um vinho que até cura a alma, em cada garrafa brilha o Verão da Toscânia. E vai haver uma comédia que foi adiada por causa do caso. Senhor presidente, então esses artistas de Mântua? Temos que divertir o príncipe Sinibaldi para que esqueça a ofensa!...

O Príncipe estava admirado e aliviado, mal podendo acreditar que se tivesse visto livre daquela situação horrível, perguntando a si próprio se aquilo tudo não seria um sonho. Sentou-se na cadeira que haviam colocado ao lado de César e bebeu o vinho que lhe tinha deitado um dos lacaios fardados de vermelho, à ordem do duque. E ao bebê-lo, quase se engasgou ao pensar no que lhe contara Capello acerca das manhas de César no que tocava a envenenamentos.

Precisamente quando colocava apressadamente o copo sobre a mesa e se voltava, viu que o lacaio vertia o mesmo vinho do mesmo jarro" na taça do oficial que César encarregava de provar as iguarias, e ficou tranquilo. Entraram os artistas e logo a assistência se interessou vivamente pelo argumento da peça que representavam. Sinibaldi, contudo, não estava ali. Estava a pensar em tudo o que lhe sucedera, na sua posição actual, e nas honrarias que o duque lhe dispensava. Era homem de temperamento sanguíneo, e a sua desconfiança foi gradualmente substituída pela convicção de que o duque se comportava assim para com ele, temendo a República que ele representava. E recobrou ânimo, chegando até a sentir certo desprezo por aquele Valentinois de tão terrível fama, convencendo-se de que Ranieri e os outros conseguiriam levar a cabo a sua missão!

Neste espaço de tempo, César sentado com o queixo apoiado na mão, os olhos fixos nos actores, pensava tanto na comédia, como Sinibaldi. Se os convidados não estivessem tão entretidos teriam reparado no rosto do duque. Como o príncipe, também ele reflectia sobre o que ia passar-se naquela noite. Meditava igualmente no papel que Veneza desempenhara ali, e como Sinibaldi era o agente das suas criminosas intenções. Lembrava-se de que, a cada passo da sua carreira, e de todos os modos que tinha ao alcance, Veneza sempre se lhe mostrara hostil. Recordava-se de como por meio de calúnias e intrigas tentara enredos ora com a França ora com a Espanha, e como, em troca de armas e dinheiro, havia aumentado o número dos seus adversários.

Seria Sinibaldi simplesmente um instrumento da República para esse fim? Sem dúvida o era, visto que, pessoalmente, Sinibaldi não tinha motivos para desejar tirar-lhe a vida. Sinibaldi tinha por detrás dele a República. Tinha que dar cabo daquele instrumento, por duas razões: por se haver aliado aos infames traidores e porque, aniquilando-o, César recompensava da melhor maneira os príncipes mercenários.

Todavia, embora visse claramente o que havia a fazer, ignorava os meios a empregar. Tinha que caminhar com cuidado pelo labirinto, para não se perder. Primeiro, tinha empenhado a sua palavra de príncipe de que não tocaria em Sinibaldi. Se fosse possível, cumpriria a promessa; em segundo lugar, destruir Sinibaldi sem exterminar também os seus cúmplices era deixar a traição de pé, e mais, convidar à vingança; neste caso, ficaria em perigo ainda e se o não matassem naquela noite, seria na outra ou dois dias depois. Em terceiro lugar, tinha que agir contra a quadrilha, de modo que Veneza não tivesse razões para queixar-se.

No que tocava propriamente a Sinibaldi, devia recordar-se de que o que ele contara em público só Graziani poderia refutar e Graziani tinha desmaiado e não teria talvez vida para fazê-lo e mesmo que o fizesse, tratava-se da palavra de Graziani, um cavaleiro da fortuna, uma classe pouco conceituada, contra Sinibaldi, um nobre, príncipe de Veneza.

Era este o problema que César tinha que enfrentar e que o prendia no momento em que olhava a mímica dos actores; a solução era suficientemente difícil para explicar o ar absorto e exigir todo o ingegno que Maquiavel, versado nestes assuntos, tanto admirava no duque.

O desfecho da comédia deu-lhe a ideia. Pôs de parte por instantes a máscara de gravidade, brilhando-lhe nos olhos um reflexo de alegria. Recostou-se na cadeira, escutando o epílogo dito pelo chefe da companhia. Manifestou o seu aplauso lançando aos artistas uma bolsa com dinheiro que desatara do cinto. Depois, voltou-se para Sinibaldi para discutirem uma peça a que nem um nem outro dera muita atenção. Riu e gracejou com o veneziano como com um seu igual, dominando-o com o encanto cortez em que ninguém o vencia.

 

CAPÍTULO V

Era meia-noite, a hora a que se combinara que o cortejo, à luz de archotes, sairia do Palazzo Pubblico para escoltar o duque que se retirava para a famosa Rocca de Sigismondo Malatesta, onde residia. Valentinois ergueu-se, dando o sinal para a partida e imediatamente um grupo de criados e pajens se acercou dele à espera de ordens.

Sinibaldi, fitando-o, curvou-se numa vénia de despedida, para ir procurar a mulher que se retirara do banquete, segundo lhe haviam dito, por causa do incidente. Mas César não queria que lhe falassem em sair tão depressa. Agradeceu ao Céu o novo amigo que encontrara naquela noite.

 - Senão fosse o que aconteceu, Excelência, jamais nos teríamos conhecido. Perdoai-me, pois, não o achar de todo lamentável...

Vencido por tantas amabilidades, Sinibaldi apenas pôde saudá-lo mais uma vez, tão humildemente que poucos o teriam ouvido murmurar: Domine non sum dignus! - quase disposto a bater no peito em atitude de submissão. E Capello, ali próximo, como qualquer divindade tutelar, esfregava as mãos grosseiras, aquelas mãos que não preparariam mais obscenidades para difamar o gracioso Valentinois.

 - Vinde, Excelência - prosseguiu o duque. - Partireis comigo a cavalo para a cidadela e aí combinaremos novo encontro que espero seja em breve. E o senhor Capello irá também. Não permito que recusem. Considerarei a vossa recusa um resto de ressentimento pelo que vos aconteceu, sem culpa minha, e para meu pesar! Vinde, príncipe. Esperam-nos. Segui-nos, senhor Capello. Dizendo isto dava o braço a Sinibaldi e foi assim que saíram os dois da sala passando por entre a fila de cortesãos que se tinham reunido para aclamar o duque. Parecia que César queria que Sinibaldi partilhasse dessa honra e Capello, atrás deles, pavoneava-se orgulhoso e satisfeito por ver Bórgia prestando homenagem a Veneza na pessoa do seu embaixador.

Chegaram ao pátio alumiado por cem archotes que pintavam a cor de laranja as velhas paredes do Palazzo. Aglomeravam-se criados e cavaleiros aprontando os cavalos e as senhoras apressavam-se a tomar os lugares nas carruagens.

Dois lacaios do duque aproximaram-se para lhe entregar a capa e o barrete.

A capa de pele de tigre, adornada a ouro e forrada de cetim amarelo, era tão linda como rica e cara. Fora oferecida pelo sultão Bajazet a César. Viera da Turquia e o duque usava-a desde que o tempo esfriara, não só porque era bela, mas também porque o aquecia bastante.

Quando o criado estava na sua frente, César, de súbito, dirigiu-se ao príncipe:

 - Não tendes capa, senhor! E está uma noite muito fria!

 - O criado vai-me buscar uma, Magnificente! - e voltou-se para dizer a Capello que desse ordens nesse sentido.

 - Esperai - disse César, tirando a pele de tigre das mãos do pajem. - Visto que não só foi no meu território, como por serdes leal para comigo, que perdeste a vossa, deixai-me oferecer-vos esta insignificante prova da estima que vos dedico a vós e a Veneza.

Sinibaldi recuou um passo e mais tarde um pajem afirmou que nesse momento tivera uma expressão de terror. Olhou o duque nos olhos e viu neles talvez um leve reflexo da zombaria que as suas amáveis palavras ocultavam.

Mas Sinibaldi era esperto. Basta ver a maneira como adaptou a história de Graziani aos seus interesses, e como sabia concluir rapidamente quando tinha a chave na mão.

Comprendeu logo o que se passava.

O duque nunca se deixara iludir pela história, sabia a verdade; a sua amizade, que ele, louco, por um momento pensara ser devida ao medo que o duque sentia de Veneza, tinha sido uma farsa; brincara com ele ao gato e ao rato; tudo aquilo fora o prelúdio da sua ruína.

Agora percebia tudo; estava apanhado, perdido e tão argutamente o fizera que lhe seria impossível expressar uma só palavra de defesa. Que havia ele de dizer? Confessar? Seria perigoso. Dizer que a capa o colocaria em perigo? Recusar a oferta?

Desesperado, pensou que seria o melhor. Mas os presentes de príncipes como os do duque de Valentinois e Romagna não se recusam sem que os embaixadores ofendam a pessoa que os dá, não só pessoalmente, como no que toca ao Estado que representam.

Não havia solução. E o duque, na sua frente, continuava a sorrir, abrindo a capa que era, para Sinibaldi, a capa da morte.

E como se isto não fosse já bastante, Capello avançou esfregando as mãos, contente ao ver como o duque se humilhava perante Veneza.

 - Um nobre presente, Alteza! Um nobre presente digno de vós! - E, maliciosamente, acrescentava: - E Veneza tomará a homenagem ao príncipe Sinibaldi como uma homenagem a ela própria.

 - É meu desejo homenageá-la como é devido! - afirmou César e só Sinibaldi, que o medo tornara mais arguto, compreendeu o significado do tom sinistro do seu riso. Todo ele tremia, excomungando Capello com todas as forças da sua alma.

Mas já que tinha de submeter-se, encontrou coragem na esperança. Pensou que depois de tudo o que sucedera naquela noite seria muito provável que os conspiradores se abstivessem e adiassem o que queriam fazer para uma ocasião mais oportuna.

Se assim fosse, tudo ficaria em bem e César ficaria confundido.

Agarrou-se ferozmente a esta esperança. Assegurou-se de que tinha ido muito longe nas suas conclusões. Afinal, César não possuía provas positivas. Se as houvesse teria com certeza tomado medidas mais seguras. Era possível, pois, que tudo não passasse de suspeitas e o seu objectivo, agora, era investigar. Se, como esperava Sinibaldi, Ranieri e os amigos se detivessem, César concluiria que as suas suspeitas eram infundadas. Foram estes os pensamentos que lhe fizeram ganhar ânimo, porque desconhecia as manhas de Bórgia e a promessa feita à princesa. De facto, hesitara apenas uns instantes. Retribuindo a hipocrisia com hipocrisia, agradeceu gentilmente, deixou que lhe colocassem a capa nos ombros e o barrete de veludo que pertencia ao duque e que este lhe ofereceu sob o mesmo pretexto.

Depois deixou-se ir na maré dos acontecimentos, como um nadador que, ao ver que a corrente é muito forte, deixa de cansar-se, resistindo-lhe e se lhe entrega na esperança de ir ter a salvo à costa. Montou o cavalo da Barbárie, magnificamente ornado com os arreios do cavalo de César.

Capello não percebia nada. Via apenas o que se passava na sua frente. Lambeu os lábios perante esta nova prova de humildade do duque para Veneza e começou a arquitectar as frases com que iria regalar os corações dos Dez ao descrever tudo aquilo.

O príncipe já estava a cavalo; junto dele, César parecia um vulgar eguariço. Olhou para o veneziano:

 - É um cavalo formidável, senhor, um impulsivo e fogoso filho do deserto. Os meus homens seguir-vos-ão para estarem à mão em caso de necessidade.

E Sinibaldi viu de novo o significado daquela solicitude e como era fútil procurar furtar-se à experiência a que Bórgia ia submetê-lo.

Aceitou o aviso, fez uma vénia e o duque, recuando pegou numa capa negra e num chapéu negro também, que lhe estendia um pajem que os fora buscar a seu mandado.

Depois subiu para o dorso dum cavalo vulgar, tendo a caminhar junto dele um criado.

A esplendorosa comitiva dirigiu-se para a rua, atravessando a cidade ainda apinhada. O povo de Rimini aguardava o espectáculo do desfile, a escolta que levaria o duque novamente para a Rocca de Sigismondo. Para satisfazer o povo, o cortejo ia a passo, e de cada lado seguia uma ala de pajens empunhando archotes.

Choviam aclamações de todos os lados, porque a conquista de Rimini por César Bórgia era uma promessa de libertação do jugo cruel sob o qual o tirano Pandolfaccio Malatesta os tinha oprimido. Conheciam a prudência e liberalidade do seu governo e consideravam-no agora o libertador.

 - Duque! Duque! Valentinois! - era o grito que saía de todas as bocas. Sinibaldi era talvez o único que notava que as aclamações eram dirigidas à sua pessoa, ostentando a capa de César. E era realmente assim. Poucos havia que tivessem verificado que o homem alto com a capa de tigre e o barrete escarlate que cavalgava sobre aquele soberbo ginete não era o duque de Valentinois; e eram menos ainda os que ligavam importância ao homem de capa negra que se encontrava perto dele, uns passos atrás, ao lado do Orador de Veneza, sobre uma azémula vulgar.

Atravessaram assim a vasta praça em frente ao Palazzo Publico, descendo uma rua estreita que deitava para a estrada principal, ligando a Ponte de Augusto com a Porta Romana.

Era tal o barulho dos espectadores que, à esquina da «Via della Rocca», ninguém ouviu o som, duas vezes repetido, duma flecha saltando do arco. De facto o duque notou que surgia aquilo que esperava quando viu o cavaleiro da pele de tigre saltar por cima do pescoço do cavalo. Os criados correram imediatamente a segurar a sela, sustendo o vulto do cavaleiro. Os que seguiam César logo se precipitaram sobre o animal, puxando as rédeas e um silêncio pesado caiu sobre a multidão, quando, não obstante os esforços dos pajens, o homem que supunham ser César Bórgia rolou para os braços dos que o acompanhavam, com a cabeça atravessada por uma seta. Houve um momento de pânico; depois, elevou-se um grito terrível que traduzia o pavor do povo perante a vingança que não tardaria a cair sobre a cidade:

 - Mataram o Duque! Mataram o Duque!

E em resposta ao grito, por qualquer arte mágica, assim pareceu à populaça atónita, o Duque ergueu-se sobre o cavalo, de cabeça nua, o cabelo negro, brilhando, magnífico, à luz dos archotes, com a voz forte dominando a algazarra e

a confusão:

 - Foi crime! - exclamou. - Quem cometeu esta horrível acção?

E com um braço estendido indicava uma casa, na esquina,

à sua direita.

 - Entrai naquela casa! - ordenava aos alabardeiros que se encaminhavam para ele, rompendo por entre a multidão.

 - Entrai, que vos mando eu, e se tendes amor à vida não deixai que algum se escape. Assassinaram o enviado de Veneza e pagarão com o pescoço, quem quer que sejam!

Num instante, os homens de Bórgia cercaram a casa. Arrombaram a porta e os soldados penetraram em tropel para prender os assassinos, enquanto César se dirigia para a praça em frente da cidadela com enorme número de criados, cortesãos e povo, vociferando atrás de si.

César parou precisamente em frente da cidadela. Os alabardeiros abriram alas e com as lanças formaram uma barreira para deter toda aquela gente. Mais soldados desciam a rua, empurrando a populaça que se aglomerava obstinada. Traziam cinco prisioneiros que haviam encontrado na sala onde se planeara a morte do príncipe Sinibaldi.

Arrastaram-nos até junto do duque, por entre as execrações do povo. César aguardava o momento de fazer justiça. A seu lado, montado na mula, pálido, estupefacto, estava Capello que Bórgia retivera por ser o único representante de Veneza e pretender que presenceasse o espectáculo até ao fim. Capello era bastante estúpido; pode muito bem supor-se que ele só terá percebido o que se passava quando olhasse para aqueles cinco velhacos que os alabardeiros traziam agora à presença de Valentinois. Só então compreendeu que tinham tomado Sinibaldi pelo duque e que esse recebera a flecha que estava guardada para César. Mas quando deu por isso, nasceu na sua mente uma suspeita. Teria o duque desejado que isto acontecesse? Teria César Bórgia esperado que houvesse aquele engano? Seria com esse fim que ele dera a capa de pele de tigre a Sinibaldi, o barrete ducal e o ginete?

Estava convencido de que não errava; estava convencido e furioso por ver como haviam sido ludibriados e como César tinha feito Sinibaldi cair na armadilha. Mas esqueciam-se de que havia ainda Veneza. Veneza saberia vingar a morte do seu embaixador; seria terrível o ajuste de contas!

Capello, furibundo, deu uma reviravolta; as ameaças pareciam saltar-lhe dos lábios, e estendia os braços como que a dar-lhes ênfase. Mas antes que abrisse a boca, já César lhe agarrava nos braços e os segurava firmemente como um torno.

 - Olhai - ordenava-lhe. - Olhai, senhor Capello! Vede os prisioneiros. Eis Ranieri, em casa do qual se hospedava o príncipe que se dizia seu amigo; Ranieri o homem que praticou esta crueldade! E aqueles dois também se diziam amigos de Sinibaldi.

Capello olhava-os e o espanto começava a vencer a ira.

 - E vede ainda estes dois - dizia o duque cheio de paixão. - Ambos envergavam a libré do príncipe - os criados em que ele certamente tinha confiança! Os patrícios compraram-nos para serem cúmplices na traição. A que baixeza pode o homem chegar!

Capello fitava o duque com os olhos muito abertos; começava quase a acreditar na sua sinceridade, tal o entusiasmo com que ele falava. Embora fosse muito estúpido, não tinha os olhos tão tapados como César pretendia, querendo que ele apreendesse a verdade e se calasse.

O Orador compreendera, enfim. E agora não se atrevia já a dizer as palavras que tinha estado quase a proferir, receando que elas provassem a culpabilidade de Sinibaldi e que ele próprio chamasse sobre si o ódio dos Dez de Veneza. Viu bem que, gritar aos sete ventos que Sinibaldi fora assassinado em lugar de César, era confessar que havia sido Sinibaldi e assim, provavelmente, Veneza, que planeara o crime, visto que os presos eram todos amigos ou criados do príncipe.

Fitando o duque, compreendeu bem que este estava a zombar dele. E teve que reprimir a fúria e o ódio que cresciam no seu íntimo. Mas não era ainda tudo. Obrigavam-no a fazer de parvo, a fingir que não via nisto mais do que aquilo que César queria que todos vissem; fingir concordar que Sinibaldi fora cobardemente assassinado pelos amigos e criados e... nada mais!

Engolindo toda a sua ira conforme pôde, baixou a cabeça.

 - Senhor! - gritou para que toda a gente o ouvisse - apelo para a vossa justiça contra aqueles criminosos, em nome de Veneza!

Assim, pelos lábios do seu embaixador, Veneza via-se obrigada a repudiar os seus protegidos, Ranieri e os companheiros, e desejar a sua morte, entregando-os nas mãos do homem para cujo assassínio os tinha comprado. Esta trágica ironia apunhalava o Orador. Por um pouco sufocava de raiva, aquela raiva que sempre estaria presente toda a sua vida, quando escrevesse a respeito dos Bórgias.

E César, que não deixava, também de apreciar aquela ironia, sorria terrivelmente, fitando-o bem nos olhos, ao responder:

 - Vingarei a ofensa feita a Veneza com a mesma severidade com que a vingaria se fosse feita à minha pessoa.

Ranieri despertou do estupor em que estivera mergulhado, quando viu que Capello o abandonava.

 - Magnificente! - protestou, tentando libertar-se das mãos que o sustínham, o rosto contorcido de paixão e ódio a Capello e a Veneza. - Há qualquer coisa que ignorais! Escutai! Escutai primeiro!

César fez o cavalo dar dois ou três passos em frente. Inclinando-se sobre o selim, fitou o nobre como fitara Capello:

 - Não preciso de ouvir-vos. Não ides dizer-me nada que eu não saiba. Ide confessar-vos. Mandar-vos-ei o carrasco ao entardecer.

Voltou-se, chamou os cortesãos e as damas, os criados e guardas, e caminhou à frente do cortejo sobre a ponte levadiça, entrando na Cidadela de Sigismondo.

Os primeiros cidadãos que apareceram nas ruas de Rimini, logo pela manhã, viram à luz pálida do dia 2 de Novembro, justamente no dia de finados, cinco corpos pendurados na varanda da casa de onde tinham partido as setas. Era a justiça do duque de Valentinois sobre os assassinos do príncipe Sinibaldi.

O próprio César Bórgia parou por uns instantes para observar os corpos, ao passar por ali com as tropas, deixando Rimini em pé de guerra para se lançar contra os Manfredl de Faenza. Aquela vingança tão subtil agradava-lhe. Tinha qualquer coisa de humorístico que ele saboreava deliciado, pensando na consternação dos Dez quando soubessem do que sucedera, com todos os pormenores que o Orador forneceria.

Mas o melhor ainda não chegara. Uma semana depois, em Forli, o duque deteve-se para tomar posse de Faenza oficialmente.

Capello foi ter com ele, pedindo-lhe audiência por ordem do Conselho dos Dez. Trazia uma carta na qual Veneza lhe apresentava os seus agradecimentos pelas medidas de justiça que tomara por ocasião da morte do seu amado príncipe Sinibaldi.

César gostou muito disto, mesmo por ver que tinha sido fiel à promessa que fizera à mulher de Sinibaldi de que nem ele nem nenhum dos seus homens tocaria no príncipe para vingar a conspiração que ele tramava contra a sua pessoa.

E, de facto, havia nisso um certo humor...

 

                                                                                            Rafael Sabatine

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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