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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BUSCA DE CARLOS MAGNO - P.2 / Steve Berry
A BUSCA DE CARLOS MAGNO - P.2 / Steve Berry

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A BUSCA DE CARLOS MAGNO

Segunda Parte

 

           Charlotte, 17h20

 

Stephanie e Edwin Davis reuniram-se no bosque a 50 metros da casa de Herbert Rowland, que chegara havia 15 minutos e entrara rapida­mente com uma caixa de pizza. Voltara a sair logo em seguida e reti­rara três toras da pilha de lenha. Agora, a fumaça saía de uma chaminé rústica de pedra. Stephanie também gostaria que ela e Davis tivessem uma fogueira.

Eles haviam passado algumas horas da tarde comprando mais roupas de inverno, luvas grossas e toucas de lã. Também haviam feito um estoque de lanches e bebida, depois voltaram e assumiram posi­ção onde poderiam observar a casa em segurança. Davis duvidava que o assassino voltasse antes de escurecer, mas queria estar a postos por precaução.

—        Ele não vai sair mais sussurrou Davis.

Embora as árvores bloqueassem a brisa, o ar seco esfriava mais a cada minuto. A escuridão adensava-se em torno deles em um ritmo len­to e constante. As roupas novas eram todas trajes de caçador, tudo com isolamento de alta tecnologia. Ela nunca havia caçado na vida e se sen­tira estranha ao comprar os produtos numa loja de equipamentos para acampamento, perto de um dos luxuosos shoppings de Charlotte.

Stephanie e Davis se acomodaram na base de uma vigorosa sempre-viva, sobre uma cama de folhas de pinho. Ela comia um Twix doces eram o seu fraco. Uma gaveta de sua mesa em Atlanta fica­va cheia dessas tentações.

Stephanie ainda não tinha certeza de que estavam fazendo a coi­sa certa.

—            Deveríamos ligar para o Serviço Secreto disse ela num sus­surro.

Você é sempre tão negativa?

Você não deveria abandonar a ideia tão rápido.

Essa briga é minha.

Agora parece ser minha também.

—            Herbert Rowland está correndo risco. Ele não acreditaria de jei­to nenhum se batêssemos à sua porta e lhe contássemos isso. O Serviço Secreto também não acreditaria. Não temos prova alguma.

—            Exceto o homem na casa hoje.

Que homem? Quem é ele? Diga-me o que sabemos.

Ela não tinha o que dizer.

Vamos ter de pegá-lo no flagra disse ele.

Porque você acha que ele matou Millicent?

Ele matou.

Que tal você me contar o que realmente está acontecendo aqui? Millicent não tem nada a ver com um almirante morto, Zachary Alexander ou a operação Salto em Altura. Isto é mais do que uma vingança pessoal.

Ramsey é o denominador comum. Você sabe disso.

Na verdade, tudo o que sei é que tenho dois agentes treinados para fazer este tipo de coisa e, no entanto, aqui estou eu, passando um frio do cão com um funcionário carrancudo da Casa Branca.

Ela terminou o chocolate.

—            Você gosta desse troço? perguntou ele.

Isso não vai funcionar.

Porque eu acho horrível. Agora, Baby Ruth. Isso, sim, é chocolate. Stephanie pôs a mão na sacola de compras e pegou um.

Concordo.

Davis arrancou o doce da mão dela.

—            Obrigado, eu aceito.

Ela abriu um sorriso. Davis era irritante e intrigante ao mesmo tempo.

Por que você nunca se casou? — perguntou ela.

Como sabe que não?

É óbvio.

Ele pareceu gostar da percepção da mulher.

—            Nunca foi uma questão relevante.

Ela se perguntou de quem teria sido a culpa.

—            Eu trabalho — disse ele, mastigando o chocolate. — E não que­ria o sofrimento.

Isso Stephanie era capaz de entender. Seu próprio casamento ti­nha sido um desastre, acabando com um longo afastamento, seguido pelo suicídio do marido, 15 anos antes. Muito tempo para estar sozi­nha. Mas Edwin Davis talvez fosse um dos poucos que entendiam o que era isso.

—            Não é só sofrimento — disse ela. — Tem muitas alegrias também.

—            Mas sempre tem sofrimento. Esse é o problema.

Ela se acomodou mais perto da árvore.

—            Depois que Millicent morreu — disse Davis —, fui transferi­do para Londres. Encontrei uma gata um dia. Doente. Grávida. Le­vei-a ao veterinário, que a salvou, mas não os filhotes. Depois, levei-a para casa. Bom animal. Nunca arranhava. Dócil. Amável. Eu gostava de tê-la. Até que um dia ela morreu. Doeu. Muito. Concluí naquele momento que as coisas que eu amo tendem a morrer. Então, para mim, chega.

Parece fatalista.

É mais realista.

O celular dela vibrou contra o peito. Ela verificou o visor liga­ção de Atlanta e atendeu. Após ouvir por um momento, disse:

—            Transfira-o. — Dirigindo-se a Davis, acrescentou: É Cotton. Hora de ele saber o que está acontecendo.

Mas Davis só continuou comendo, olhando para a casa.

Stephanie falou Malone em seu ouvido. Descobriu o que eu preciso saber?

As coisas ficaram complicadas. E, cobrindo a boca, ela lhe con­tou parte do que tinha acontecido. Depois perguntou: O arquivo?

Provavelmente já era.

E o ouviu contar o que acontecera na Alemanha.

O que está fazendo agora? perguntou Malone.

Você não acreditaria se eu contasse.

Considerando as coisas imbecis que fiz nos últimos dois dias, eu poderia acreditar em qualquer coisa.

Ela contou.

Eu diria que não é tão absurdo disse Malone. Eu também estou num frio terrível, do lado de fora de uma igreja carolíngia. Davis está certo. O cara vai voltar.

É disso que tenho medo.

Alguém está interessado demais no Blazek ou NR-1A, seja qual for o nome da droga do submarino. A irritação de Malone pareceu dar lugar à incerteza. Se a Casa Branca disse que a inteligência na­val investigou, isso significa que Ramsey está envolvido. Estamos em rotas paralelas, Stephanie.

Estou com um sujeito aqui mastigando um Baby Ruth que diz a mesma coisa. Ouvi dizer que você dois conversaram.

Sempre que alguém salva a minha pele, fico grato.

Ela se lembrava da Ásia Central também, mas precisava saber:

Qual a direção do seu caminho, Cotton?

Boa pergunta. Respondo depois. Cuidado aí.

Você também.

 

Malone desligou o telefone. Estava no lado do pátio em que ficava o mercado natalino, no ponto alto do declive, perto da prefeitura de Aachen, a uns 100 metros da capela. O prédio coberto de neve emitia um brilho verde fosforescente. A neve ainda caía em silêncio, mas pelo menos não ventava mais.

Olhou o relógio. Quase 23h30.

Todas as barracas estavam bem fechadas, os fluxos de vozes e cor­pos misturados ficariam silenciosos e inertes até o dia seguinte. Ape­nas algumas pessoas perambulavam por direções diversas. Christl não o seguira para fora da capela, e, depois de falar com Stephanie, ele estava ainda mais confuso.

Claridade de Deus.

Tinha de ser um termo relevante no tempo de Eginhardo. Algo com um significado explícito. As palavras ainda possuíam algum sentido? Um jeito fácil de descobrir.

Ele clicou no ícone do safari no iPhone, conectou-se à internet e acessou o Google. Digitou claridade de deus Eginhardo e pressionou

buscar.

A tela oscilou e, em seguida, apresentou os primeiros 25 resultados. O primeiro que aparecia respondeu à sua pergunta.

 

               Quinta-feira, 13 de dezembro

           Charlotte, 0h40

 

Stefhanie ouviu batidas. Não altas, mas constantes o suficiente para que ela soubesse que havia alguém lá. Davis havia adormecido. Ela o deixara dormir. Ele precisava. Estava perturbado, e Stephanie queria ajudar, assim como Malone a ajudara, mas ela continuava se pergun­tando se o que estavam fazendo era inteligente.

Pegou uma arma, tentando distinguir formas na escuridão entre as árvores, até a clareira que cercava a casa de Rovvland. Não houve mo­vimento nas janelas por pelo menos duas horas. Ela ficou atenta aos ruídos da noite e ouviu outro estalo. À direita. Ramos de pinho farfa­lharam. Ela localizou a fonte. Talvez a 50 metros dali.

Pôs a mão sobre a boca de Davis e cutucou seu ombro com a arma. O homem despertou com um sobressalto, e ela apertou a palma da mão com firmeza sobre os lábios dele.

Temos companhia disse ela.

Davis acenou que tinha entendido.

Ela apontou.

Mais um estalo. Depois, movimento; perto da caminhonete de Rowland. Uma sombra escura apareceu e voltou a sumir por entre as árvores, ficou completamente fora de vista por um momento e depois surgiu de novo, seguindo na direção da casa.

 

Charlie Smith aproximou-se da porta da casa. O chalé de Herbert Rowland estivera apagado por tempo suficiente.

Ele passara a tarde no cinema e saboreara o bife que tanto desejava. De modo geral, um dia bastante tranquilo. Lera noticias sobre a morte do almirante David Sylvian e ficara satisfeito com a ausência de indi­cações de crime. Retornara havia duas horas e ficara em vigília no bos­que frio, esperando.

Mas tudo parecia calmo.

Entrou na casa pela porta da frente, a fechadura e o trinco ridicula­mente fáceis de abrir, e foi recebido pelo calor do aquecedor central. Primeiro, foi lentamente até a geladeira e verificou o frasco de insuli­na. O nível estava definitivamente mais baixo. Sabia que cada um con­tinha quatro injeções e estimou que um quarto do soro fisiológico tinha sido retirado. Com as mãos enluvadas, depositou o frasco numa saco­la de plástico.

Examinou uma das garrafas de uísque e notou que uma delas esta­va claramente mais vazia. Parecia que Herbert Rowland tinha realiza­do sua libação de todas as noites. No lixo da cozinha, encontrou uma seringa usada e jogou-a dentro da sacola.

Entrou devagar no quarto.

Rowland estava acomodado sob uma colcha de retalhos, respiran­do esporadicamente. Smith verificou a pulsação dele. Baixa. O relógio da mesa de cabeceira indicava quase 1 hora. Provavelmente, sete horas haviam se passado desde a injeção. O arquivo dizia que Rowland se medicava toda noite antes do noticiário das 18 horas, depois começava a beber. Sem insulina no corpo aquela noite, o álcool agira rápido, induzindo um coma diabético profundo. A morte não estaria muito longe.

Arrastou a cadeira que estava num canto. Teria de ficar ali até Rowland morrer. Mas decidiu não ser insensato. As duas pessoas que vira antes ainda o preocupavam, então voltou à sala e pegou duas das armas de caça que notara antes. Uma delas era uma beleza. Uma Mossberg de repetição rápida. Pente para sete balas, calibre alto, equipada com uma mira telescópica impressionante. A outra era uma Remington calibre 12. Um dos modelos comemorativos da Ducks Unlimited, se Smith não estava enganado. Até ele quase tinha comprado uma. Sob a prateleira das armas, havia um gabinete cheio de cartuchos. Smith carregou as duas e voltou ao seu posto ao lado da cama.

Agora, estava pronto.

 

Stephanie agarrou Davis pelo braço. Ele já estava de pé, pronto para avançar.

O que está fazendo? perguntou ela.

Temos de ir.

E o que vamos fazer quando chegarmos lá?

Impedi-lo. Ele está matando aquele homem neste momento. Ela sabia que Davis estava certo.

—            Eu fico com a porta da frente disse ela. A outra única saí­da é pelas portas de vidro do deque. Você vai por lá. Vamos ver se conseguimos matá-lo de susto e provocar um erro.

Davis seguiu adiante.

Ela foi atrás, perguntando a si mesma se seu aliado já havia enfren­tado uma ameaça como aquela antes. Se não, era um filho da puta dos mais ousados. Se já, era um idiota.

Encontraram a entrada de cascalhos e correram na direção da casa, sem fazer muito barulho. Davis contornou na direção do lago, e Stephanie o viu subir os degraus de madeira na ponta dos pés, até o deque elevado. Ela viu que as cortinas das portas de correr de vidro estavam fechadas. Davis passou com cuidado para o outro lado do deque. Satisfeita por vê-lo posicionado, Stephanie foi até a porta da frente e decidiu por uma abordagem direta.

Bateu com força na porta. Depois saiu da varanda.

 

Smith pulou da cadeira. Alguém havia batido na porta da frente. Em seguida, ele ouviu barulho vindo do deque. Mais batidas, nas por­tas de vidro.

— Vem aqui fora, seu desgraçado — gritou um homem. Herbert Rowland não ouviu nada. Sua respiração permaneceu pe­sada, enquanto seu corpo ia parando de funcionar.

Smith pegou as duas armas e virou-se para a sala.

 

Stephanie ouviu Davis gritar uma provocação.

Mas que diabos?

 

Smith correu para a sala, deixou o fuzil na pia da cozinha e deu dois tiros de escopeta nas cortinas que cobriam as portas de vidro. O ar frio entrou quando o vidro foi destruído. Ele usou o momento de confusão para recuar para a cozinha e agachou-se atrás do balcão.

Tiros vindos da direita, na sala, fizeram com que se jogasse no chão.

 

Stephanie atirou pela janela que ficava ao lado da porta da frente. Deu outro tiro em seguida. Talvez isso fosse suficiente para desviar a atenção do invasor do deque, onde Davis estava desarmado.

Ela tinha ouvido dois tiros de escopeta. Planejara simplesmente surpreender o assassino com o fato de que havia gente do lado de fora e esperar que ele se atrapalhasse.

Davis parecia ter outra idéia.

 

Smith não estava acostumado a se ver encurralado. As mesmas duas pessoas de antes? Tinham que ser. Policiais? Dificilmente. Tinham ba­tido à porta, pelo amor de Deus. Um deles até gritou, chamando para briga. Não, aqueles dois eram outra coisa. Mas a análise poderia ficar para depois. Naquele momento, ele só precisava sumir dali.

O que McGyver faria?

Smith adorava aquela série.

Use o cérebro.

 

Stephanie saiu da varanda e correu na direção do deque, tomando cuidado com as janelas, protegendo-se atrás da caminhonete de Rowland. Manteve a arma apontada para a casa, pronta para atirar. Não havia como saber se era seguro avançar, mas precisava encontrar Davis. A ameaça horrível que tinham revelado havia crescido rapidamente.

Stephanie passou pela casa correndo e chegou à escada que levava ao deque a tempo de ver Edwin Davis arremessar nas portas de vidro o que parecia ser uma cadeira de ferro.

 

Smith ouviu algo bater no vidro que restava e arrancar as cortinas da parede. Apontou a escopeta e deu mais um disparo, depois aproveitou o momento para pegar o fuzil de caça e sair da cozinha, voltando ao quarto. Quem quer que estivesse fora teria de hesitar, e ele precisaria tirar o máximo de vantagem desses poucos segundos.

Herbert Rowland permanecia deitado na cama. Seja não estivesse morto, estava quase. Mas não havia evidência de nenhum crime. O frasco adulterado e a seringa estavam seguros no bolso de Smith. As armas tinham sido usadas, isso era fato, mas não havia nada que pu­desse identificá-lo.

Ele foi até uma das janelas do quarto e ergueu o vidro de baixo. Rastejando, saiu rapidamente. Não parecia haver ninguém daquele lado da casa. Fechou a janela devagar. Ele deveria lidar com quem quer que estivesse ali, mas já correra riscos demais.

Decidiu que a esperteza era a única atitude a ser tomada. Com o fuzil nas mãos, imergiu na floresta.

 

— Você está completamente louco? — Stephanie gritou para Davis do chão.

Seu compatriota permaneceu em cima do deque.

—            Ele foi embora — disse Davis.

Ela subiu as escadas com cautela, sem confiar no que ele dissera.

—            Ouvi uma janela abrir e fechar.

—            Isso não significa que ele foi embora, só que uma janela abriu e fechou.

Davis passou pelas portas de vidro destruídas.

—            Edwin...

Ele desapareceu na escuridão, e ela o seguiu às pressas. Davis esta­va indo para o quarto. Uma luz foi acesa, e ela chegou à porta. Davis estava medindo o pulso de Herbert Rowland.

—            Quase não pulsa. E parece não ter ouvido nada. Está em coma.

Ela ainda estava preocupada com um homem com um fuzil. Davis pegou o telefone, e ela o viu apertar o número do serviço de emergência.

 

           Washington, D.C.

         1h30

 

Ramsey ouviu os sinos da porta da frente. Sorriu. Tinha esperado pacientemente, lendo um thriller de David Morrell, um de seus escri­tores favoritos. Fechou o livro e deixou o visitante noturno sofrer um pouco. Finalmente, levantou-se, foi até o vestíbulo e abriu a porta. O senador Aatos Kane estava lá fora, no frio.

—            Seu filho de uma... disse Kane. Ele deu de ombros.

—            Na verdade, achei minha resposta bem moderada, consideran­do a grosseria demonstrada por seu assistente.

Kane entrou com raiva.

Ramsey não se ofereceu para pegar o casaco do senador. Tudo in­dicava que a agente da loja de mapas já havia realizado o que fora instruída a fazer, enviando uma mensagem pelo assistente de Kane, o mesmo cretino insolente que o coagira no Capital Mali, avisando que ele tinha uma informação a respeito do desaparecimento de uma assis­tente que trabalhara para Kane três anos antes. Aquela mulher havia sido uma ruiva atraente de Michigan que acabara sendo vítima de um assassino em série que assolara a área do D.C. O assassino acabara sendo encontrado, depois de cometer suicídio, fazendo o caso apare­cer em manchetes por todo o país.

Seu desgraçado maldito — gritou Kane. — Você disse que ti­nha acabado.

Vamos nos sentar.

Não quero sentar. Quero quebrar a sua cara.

O que não mudará nada. — Ele adorava revirar a faca enfia­da. — Ainda terei o controle da situação. Então, você tem que se per­guntar. Quer ter uma chance de ser presidente? Ou prefere uma desonra certa?

A raiva de Kane estava acompanhada de uma clara inquietação. A perspectiva do lado de dentro da ratoeira olhando para fora era bem diferente.

Os dois continuaram trocando olhares duros, como dois leões de­cidindo quem deveria comer primeiro. Finalmente, Kane acenou com a cabeça. Ramsey levou o senador até o escritório, onde se sentaram. O cômodo era pequeno, o que forçava uma proximidade constrangedo­ra. Kane parecia desconfortável, como deveria estar.

Eu o procurei ontem à noite, e hoje de manhã, para pedir ajuda — disse Ramsey. — Um pedido sincero feito a quem, eu pen­sava, era um amigo. — Ele fez uma pausa. — Em troca, não recebi nada senão arrogância. Seu assistente foi grosseiro e insuportável. É claro que estava simplesmente seguindo as suas instruções. Daí a minha resposta.

Você é um cretino falso.

E você é um marido infiel que conseguiu esconder seu erro com a morte conveniente de um serial killer. Até conquistou, pelo que me lembro, solidariedade da opinião pública a respeito do trágico faleci­mento de sua assistente ao demonstrar indignação diante do destino dela. O que os seus eleitores e sua família pensariam se soubessem que ela havia abortado recentemente, e que você era o pai?

Não há prova disso.

Mas você certamente entrou em pânico na época.

—            Você sabe que ela poderia ter sido a minha ruína, quer eu fosse o pai ou não. As alegações dela seriam o bastante.

Ramsey estava sentado bem ereto. O almirante Dyals o ensinara a demonstrar claramente quem estava no comando.

—            E sua amante sabia disso disse ele —, motivo pelo qual ela foi capaz de manipulá-lo, o que, mais uma vez, explica por que você ficou tão grato pela minha ajuda.

A lembrança da dificuldade passada pareceu abrandar a raiva de Kane.

Eu não fazia ideia do que você estava planejando. Jamais teria concordado com o que você fez.

É mesmo? Foi a jogada mais inteligente. Matamos a mulher, incriminamos outro assassino, depois o matamos. Pelo que lembro, a imprensa aplaudiu o resultado. O suicídio evitou um julgamento e a execução e rendeu matérias extraordinárias para os jornais. Fez uma pausa. E não me lembro de uma única objeção manifestada por você na época.

Ele sabia que a ameaça mais perigosa que qualquer político pode­ria encarar era a acusação de uma suposta amante. Tantos tinham sido derrubados desse modo tão simples. Não importava se as alegações eram infundadas ou mesmo claramente falsas. Tudo o que importava era que existissem.

Kane recostou-se na cadeira.

—            Não tive muita escolha, depois que vi o que você tinha feito. O que você quer, Ramsey?

Nada de almirante, nem a cortesia de usar o primeiro nome.

—            Quero me certificar de que serei o próximo membro dos chefes do Estado-Maior Conjunto. Achei que tivesse deixado isso claro hoje.

—            Sabe quantos outros querem esse cargo?

—            Vários, tenho certeza. Mas, sabe, Aatos, eu criei essa vaga, então deveria ter direito a ela.

Kane encarou-o com incerteza, digerindo a confissão.

—            Eu devia ter imaginado.

—            Estou lhe contando isso por três motivos. Primeiro, sei que não vai contar a ninguém. Segundo, você precisa entender com quem está lidando. E, terceiro, sei que quer ser presidente. Os espe­cialistas dizem que suas chances são razoáveis. O partido o apoia, seus números nas pesquisas são ótimos, a concorrência é pouco sig­nificativa. Você tem os contatos e os meios para levantar contribui­ções. Fui informado, em particular, de que você tem uma garantia de 30 milhões de dólares em fundos a serem doados por uma varie­dade de fontes.

—            Você não perde tempo — disse Kane, com uma polidez aflita.

Você é razoavelmente jovem, tem boa saúde, sua esposa o apoia em tudo. Seus filhos o adoram. No geral, daria um candidato e tanto.

Exceto pelo fato de que trepei com uma funcionária três anos atrás, ela engravidou, abortou o bebê e depois decidiu que me amava.

Por aí. Infelizmente para ela, acabou sendo vítima de um assas­sino em série que, na crise de insanidade, tirou a própria vida. Por sorte, ele deixou um número considerável de evidências que o liga­vam a todos os crimes, o dela inclusive, de modo que um desastre em potencial para você transformou-se num fator positivo.

E Ramsey fora esperto o bastante para assegurar o seu próprio lado e obter os registros do aborto na clínica do sul do Texas e uma cópia do vídeo da sessão de aconselhamento obrigatória, exigida pela lei do Texas antes da possível realização de qualquer aborto. A funcio­nária, ainda que usando uma identificação falsa, caíra em prantos e contara à terapeuta, sem dar nomes, sobre um caso com o chefe. Sem muitos detalhes, mas o suficiente para ficar interessante no Inside Edi­tion, no Extra ou em The Maury Show e arruinar completamente as chances de Aatos Kane ir para a Casa Branca.

A agente da loja de mapas tinha se saído bem, deixando claro para o chefe de gabinete do senador que ela era aquela terapeuta. Ela queria falar com Kane ou ligaria para a Fox News, que nunca parecia ter nada bom a dizer sobre o político. Reputações. Mais frágeis que cristal fino.

Você matou Sylvian? perguntou Kane.

O que você acha?

Kane o analisou com um desprezo explícito. Mas estava tão an­sioso, tão disposto, tão patético, que sua resistência foi corroída de imediato.

—            OK, acho que posso fazer o encontro acontecer. Daniels precisa de mim.

O rosto de Ramsey relaxou num sorriso reconfortante.

—            Eu sabia que esse seria o caso. Agora, vamos discutir a outra coisa.

Nada de espirituosidade, humor ou simpatia invadiu os olhos do almirante.

—            Que outra coisa?

Eu serei o seu vice.

Kane riu.

Você está louco.

—            Na verdade, não. A próxima corrida presidencial não será difí­cil de prever. Três candidatos, talvez quatro, nenhum do seu nível. Ha­verá alguns combates primários, mas você possui recursos demais e muito poder de fogo para enfrentar qualquer um até o final. Agora, você pode tentar resolver a divisão do partido selecionando o perde­dor mais forte ou o mais inofensivo, mas nenhuma das duas escolhas faria sentido. O primeiro viria com rancor, e o outro é inútil numa bri­ga. Poderia tentar encontrar alguém que atraísse uma parcela específi­ca do eleitorado, mas isso partiria do pressuposto de que os eleitores favorecem o candidato mais forte do partido por causa do que está embaixo, o que a história demonstrou ser bobagem. De modo mais realista, você poderia escolher alguém de um estado do qual o companheiro de chapa traria votos. Mais uma vez, bobagem. John Kerry es­colheu John Edwards em 2004, mas perdeu a Carolina do Norte. Perdeu até mesmo a região natal de Edward. Kane deu um sorriso afetado.

—            A sua maior fraqueza é a falta de experiência em relações ex­teriores. Os senadores acabam não atuando muito nessa área, a me­nos que se intrometam no processo, o que você sabiamente evitou fazer ao longo dos anos. Eu posso ampará-lo nisso. É o meu ponto forte. Enquanto você nunca prestou serviço militar, eu servi por qua­renta anos.

E é negro.

Ramsey sorriu.

Você notou? Você não deixa passar nada. Kane observou-o.

Vice-presidente Langford Ramsey, a um pulo da...

Ele ergueu a mão.

—            Não vamos pensar nisso. Eu simplesmente quero oito anos como vice-presidente.

Kane sorriu.

Os dois mandatos?

É claro.

Fez tudo isso para garantir um emprego?

O que há de errado com isso? Não é esse o seu objetivo? Você, de todas as pessoas, pode entender o que isso significa. Eu jamais po­deria ser eleito presidente. Sou um almirante, sem nenhuma base polí­tica. Mas tenho uma chance na posição número dois. Tudo o que preciso fazer é impressionar uma pessoa. Você.

Ramsey deixou suas palavras serem assimiladas.

—            Com certeza, Aatos, você vê os benefícios deste arranjo. Posso ser um aliado valioso. Ou, se você decidir não honrar nosso acordo, posso me tornar um adversário terrível.

Ele viu Kane avaliar a situação. Conhecia bem aquele homem. Era um hipócrita amoral e sem sentimentos que passara a vida em cargos públicos construindo uma reputação que agora planejava usar para se lançar à presidência.

Nada parecia atrapalhá-lo.

E nada atrapalharia, desde que...

—            Está bem, Langford. Eu lhe darei seu lugar na história. Finalmente, o primeiro nome. Poderiam estar chegando a algum lugar.

—            Também posso oferecer mais uma coisa disse Ramsey. Considere um gesto de boa-fé para demonstrar que não sou o demô­nio que você pensa que sou.

Ele viu desconfiança no olhar observador de Kane.

—            Soube que seu principal adversário, especialmente na disputa interna do partido, será o governador da Carolina do Sul. Vocês não se dão bem, então a briga logo poderia se tornar pessoal. Ele é um proble­ma em potencial, especialmente no Sul. Sejamos francos, ninguém pode ganhar a Casa Branca sem ganhar o Sul. São votos demais para serem ignorados.

—            Me conte algo que eu não saiba.

Posso eliminar a candidatura dele.

Kane ergueu a mão num gesto de proibição.

Não preciso que mais ninguém morra.

—            Acha que sou burro? Não, tenho informações que acabariam com a chance dele antes mesmo de começar.

Ele notou um brilho de interesse na expressão de Kane. Seu inter­locutor aprendia rápido e já estava gostando do acordo. Nenhuma surpresa. No mínimo, Kane era adaptável.

Com ele fora do caminho, o levantamento de fundos seria mui­to mais fácil.

Então, considere isso um presente de um novo aliado. Ele esta­rá fora — Ramsey fez uma pausa — assim que eu prestar o juramento dos chefes do Estado-Maior Conjunto.

 

Ramsey estava vibrando. Tudo havia corrido exatamente conforme previra. Aatos Kane poderia não vir a ser o próximo presidente, mas, se ele conseguisse o feito, o legado de Ramsey estaria garantido. Se Kane não fosse eleito, pelo menos Ramsey seria reformado na Mari­nha como um membro dos chefes do Estado-Maior Conjunto. Definitivamente, era ganhar ou ganhar.

Apagou as luzes e subiu. Algumas horas de sono lhe fariam bem, uma vez que o dia seguinte seria importante. Assim que Kane entras­se em contato com a Casa Branca, a fábrica de boatos seria acionada. Ramsey teria de estar pronto para encarar a imprensa, sem negar ou confirmar coisa alguma. Tratava-se de um cargo na Casa Branca, e ele tinha de parecer admirado diante da mera consideração. Ao fim do dia, manipuladores de informação fariam vazar notícias de sua possível nomeação para testar reações e, para evitar qualquer grande manifestação contrária, no dia seguinte o boato viraria fato.

O telefone que estava no bolso de seu roupão tocou. Estranho àquela hora. Pegou o aparelho e viu que não tinha identificação no visor. Foi dominado pela curiosidade. Parou na escada e atendeu.

Almirante Ramsey, é Isabel Oberhauser.

Ramsey raramente se surpreendia, mas a afirmação impressionou-o genuinamente. Ele escutou a voz velha e rouca, o inglês marca­do pelo sotaque alemão.

É bastante astuta, Frau Oberhauser. Já vem tentando obter in­formações da Marinha há algum tempo e agora conseguiu uma liga­ção direta até mim.

Não foi tão difícil assim. O capitão Wilkerson me deu o núme­ro. Com uma arma carregada e apontada para o crânio, ele foi extre­mamente cooperativo.

Os problemas de Ramsey acabavam de se multiplicar.

Ele me contou muitas coisas, almirante. Queria muito viver e achou que se respondesse às minhas perguntas poderia ter uma chan­ce. Que pena, ele se enganou.

Está morto?

Poupei você do trabalho.

Ramsey não estava disposto a admitir nada.

O que você quer?

Na verdade, liguei para lhe oferecer algo. Mas antes disso, gos­taria de fazer uma pergunta.

Ele subiu a escada e sentou-se na beira da cama.

Faça.

Por que meu marido morreu?

Ramsey notou um tremor momentâneo de emoção no tom predo­minantemente frio e percebeu de imediato qual era a fraqueza da mu­lher. Decidiu que a verdade seria a melhor opção:

Ele se apresentou como voluntário para uma missão perigosa. Uma missão que o pai havia acolhido muito antes. Mas algo aconteceu com o submarino.

Você diz o óbvio e não responde à pergunta.

Não temos ideia de como o submarino naufragou; só sabemos que aconteceu.

Vocês o encontraram?

Ele nunca retornou ao porto.

Mais uma vez, não é resposta.

É irrelevante se foi encontrado ou não. A tripulação continua morta.

Para mim importa, almirante. Eu preferia ter enterrado meu marido. Ele merecia repousar junto aos seus ancestrais.

Agora, Ramsey tinha uma pergunta:

Por que você matou Wilkerson?

Ele não passava de um oportunista. Queria viver da fortuna desta família. Não admito isso. Além disso, era seu espião.

Você parece ser uma mulher perigosa.

Wilkerson disse o mesmo. Ele me disse que você o queria mor­to. Que mentiu para ele. Que o usou. Ele era um homem fraco, almi­rante. Mas me contou o que você disse para a minha filha. Quais foram as palavras? Você nem imagina. Foi a sua resposta quando ela pergun­tou se havia alguma coisa a ser encontrada na Antártida. Então, res­ponda à minha pergunta. Por que meu marido morreu?

Aquela mulher achava que estava no controle da situação, ligando para Ramsey de madrugada, informando-o que seu chefe de estação estava morto. Ousada, certo. Mas estava em desvantagem, pois ele sa­bia muito mais que ela.

—            Antes de ser abordado a respeito da viagem à Antártida, tanto ele quanto o pai foram submetidos a um exame físico completo. O que estimulou nosso interesse foi a obsessão dos nazistas com a pesquisa deles dois. Ah, sim, encontraram coisas lá em 1938, você sabe. Infeliz­mente, os nazistas eram simplórios demais para entender o que ha­viam encontrado. Silenciaram seu sogro. Quando ele finalmente pôde falar, depois da guerra, ninguém estava ouvindo. E seu marido não conseguiu descobrir o que o pai sabia. Então, tudo definhou. Até, é claro, nós chegarmos.

E o que vocês descobriram? Ramsey riu.

Que graça teria se eu lhe contasse isso?

— Como eu disse, liguei para lhe oferecer algo. Você enviou um homem para matar Cotton Malone e minha filha Dorothea. Ele inva­diu minha casa, mas subestimou nossas defesas. Morreu. Não quero minha filha em perigo, e Dorothea não representa ameaça alguma para você. Mas parece que Cotton Malone representa, uma vez que agora está a par das descobertas da Marinha sobre o naufrágio daquele sub­marino. Estou errada?

Estou ouvindo.

Sei exatamente onde ele está, e você não.

Como pode ter tanta certeza?

—            Porque algumas horas atrás, em Aachen, Malone matou dois homens que tinham ido lá para matá-lo. Homens que também foram enviados por você.

Informação nova, uma vez que Ramsey ainda não havia recebido notícias da Alemanha.

—            Sua rede de informantes é boa.

Ja. Quer saber onde Malone está? Ele ficou curioso.

Que jogo está fazendo?

—            Simplesmente quero você fora dos assuntos de nossa família. Você não nos quer em seus assuntos; portanto, vamos nos separar.

Ramsey sentiu, exatamente como Aatos Kane fizera com ele, que aquela mulher poderia ser uma aliada. Então, decidiu oferecer algo:

Eu estava lá, Frau Oberhauser. Na Antártida. Logo depois que o submarino se perdeu. Mergulhei na água. Vi coisas.

Coisas que não podemos imaginar?

Coisas que nunca saíram da minha mente.

No entanto, você as mantém em segredo.

É o meu trabalho.

Quero saber esse segredo. Antes de morrer, quero saber por que meu marido nunca voltou.

Talvez eu possa ajudá-la nisso.

Em troca de saber onde Cotton Malone está neste exato momento?

Não posso prometer nada, mas sou sua melhor aposta.

Motivo pelo qual liguei.

Então, me diga o que quero saber disse ele.

—            Malone está seguindo para a França, para a aldeia de Ossau. Deve chegar lá daqui a quatro horas. Tempo mais que suficiente para que você providencie homens para aguardá-lo.

 

           Charlotte, 3h15

 

Stephanie estava do lado de fora do quarto de Herbert Rowland no hospital, com Edwin Davis ao seu lado. Rowland, quase sem vida, fora levado às pressas ao pronto-socorro, mas os médicos haviam conseguido estabilizar o quadro. Ela ainda estava furiosa com Davis.

Estou ligando para o meu pessoal disse ela.

Já entrei em contato com a Casa Branca.

Davis desaparecera meia hora antes, e Stephanie se perguntava o que ele andara fazendo.

E o que o presidente diz?

Está dormindo. Mas o Serviço Secreto está a caminho.

Já era hora de você começar a pensar.

Eu queria aquele filho da puta.

Temos sorte de que ele não tenha matado você.

Vamos pegá-lo.

Como? Graças a você, ele já sumiu. Poderíamos tê-lo deixado em pânico, encurralado na casa, pelo menos até a polícia chegar. Mas não. Você tinha de jogar uma cadeira pela janela.

Stephanie, eu fiz o que tinha de fazer.

Você está fora de controle, Edwin. Queria minha ajuda, e eu dei. Se quiser acabar morto, ótimo, vá em frente, mas eu não estarei lá para ver.

Se eu não soubesse das coisas, acharia que você realmente se importa.

Charme não ia funcionar.

—            Edwin, você estava certo, tem alguém matando pessoas. Mas não é assim que se faz, meu amigo. Não mesmo. Nem chega perto.

O celular de Davis tocou, e ele verificou o visor.

—            O presidente. — Apertou uma tecla. — Sim, senhor. Stephanie observou enquanto Davis escutava. Em seguida, ele

passou o telefone para ela e disse:

—            Ele quer falar com você.

A mulher pegou o celular e disse:

Seu assessor é doido.

Conte-me o que aconteceu.

Ela passou um breve relato. Depois que acabou, Daniels disse:

Você está certa, preciso que assuma o controle aí. Edwin está emotivo demais. Sei de Millicent. É uma das razões pelas quais concor­dei com essa coisa toda. Ramsey de fato a matou, não tenho dúvidas. Também acredito que ele tenha matado o almirante Sylvian e o coman­dante Alexander. Provar isso, claro, é uma coisa totalmente diferente.

Podemos estar num beco sem saída — disse ela.

Já estivemos assim antes. Vamos encontrar um modo de pros­seguir.

—            Por que eu acabo sempre me metendo nessas coisas? Daniels deu uma risadinha.

—            É um talento seu. Para que você saiba, fui informado de que dois corpos foram encontrados na catedral de Aachen algumas horas atrás. O interior do edifício estava arruinado por tiros. Um dos ho­mens foi atingido por uma bala, e o outro morreu numa queda. Am­bos eram efetivos terceirizados de nossos serviços de inteligência. Os alemães começaram um inquérito oficial conosco para obter mais in­formações. A novidade foi incluída no meu pacote de informes desta manhã. Poderia haver uma conexão aí?

Stephanie decidiu não mentir.

Malone está em Aachen.

Por que eu sabia que você ia dizer isso?

Algo está acontecendo lá, e Cotton acha que está relacionado com o que está acontecendo aqui.

Provavelmente, ele está certo. Preciso que você fique atenta a isso, Stephanie.

Ela encarou Edwin Davis, que estava a poucos metros de distância, escorado na parede revestida.

A porta do quarto de Herbert Rowland abriu, e um homem vestin­do um uniforme verde-oliva de hospital disse:

Ele acordou e quer falar com vocês.

Preciso ir — disse ela a Daniels.

Cuide do meu garoto.

 

Malone conduzia o carro alugado pela subida da estrada. A neve cobria a zona montanhosa dos dois lados do asfalto, mas as autorida­des locais tinham feito um ótimo trabalho na limpeza da rodovia. Ele estava bem dentro dos Pirinéus, no lado francês, perto da fronteira com a Espanha, seguindo para a aldeia de Ossau.

Tinha embarcado cedo num trem em Aachen com destino a Toulouse, depois dirigira para o sudoeste, adentrando o planalto nevado. Quando pesquisara na internet claridade de Deus Eginhardo na noite anterior, soubera de imediato que a frase se referia a um mosteiro do século VIII, localizado nas montanhas francesas. Os romanos que chegaram primei­ro à área construíram uma vasta cidade, uma metrópole dos Pirineus, que acabou se tornando um centro de cultura e comércio. Porém, nas guerras fratricidas dos reis francos durante o século VI, a cidade foi sa­queada, incendiada e destruída. Nenhum habitante foi poupado. Não restou pedra sobre pedra. Nem uma única rocha permaneceu no centro dos campos desertos, criando, como escreveu um cronista da época, "uma solidão de silêncio", que durou até Carlos Magno chegar, duzen­tos anos depois, e ordenar a construção de um mosteiro, que incluía uma igreja, uma casa capitular, um claustro e uma aldeia próxima. O próprio Eginhardo supervisionou a construção, nomeando o primeiro bispo, Bertrand, que se tornaria conhecido tanto por sua bondade quan­to pela administração pública. Bertrand morreu em 820 aos pés do altar e foi enterrado sob o que ele havia denominado igreja de São Lestelle.

A viagem de Toulouse levara Malone por uma variedade de al­deias montanhosas pitorescas. Ele já havia visitado a região diversas vezes, sendo a mais recente no verão passado. Pouco diferia entre as incontáveis localidades, exceto por nomes e datas. Em Ossau, uma fi­leira irregular de casas subia por ruas sinuosas, todas cobertas por pe­dras ásperas e adornadas com brasões e modilhões. Somente o alto dos telhados exibia uma confusão de anjos, como tijolos atirados na neve. As chaminés exalavam fumaça no ar frio do meio-dia. Cerca de mil pessoas viviam ali, e quatro pousadas acomodavam os visitantes.

Malone entrou com o carro no centro da cidade e estacionou. Uma alameda estreita ia dar numa praça aberta. Pessoas agasalhadas, com olhares impenetráveis, entravam e saíam rapidamente das lojas. Seu relógio de pulso indicava 9h40.

Ele passou os olhos pelos telhados, na direção do céu claro da ma­nhã, seguindo a lateral de uma escarpa até onde a torre de uma praça erguia-se a partir de uma escora de pedra. Fragmentos de outras torres dos dois lados da principal pareciam se agarrar a ela.

As ruínas de São Lestelle.

 

Stephanie ficou de pé de um lado da cama de Herbert Rowland, e Davis ficou do outro. Rowland estava grogue, mas desperto.

Vocês salvaram a minha vida? perguntou Rowland com uma voz que não era muito mais que um sussurro.

Sr. Rowland disse Davis. Somos ligados ao governo. Não temos muito tempo. Precisamos lhe fazer algumas perguntas.

—            Vocês salvaram a minha vida?

Ela lançou um olhar para Davis que dizia: Deixe isso comigo.

—            Sr. Rowland, um homem tentou matá-lo esta noite. Não temos certeza de como, mas ele o colocou num coma diabético. Felizmente, estávamos lá. Sente-se disposto a responder perguntas?

Por que ele iria querer me matar?

Lembra o Holden e a Antártida?

Ela observou, enquanto Rowland parecia buscar na memória.

Muito tempo atrás disse Rowland. Stephanie concordou.

Muito. Mas foi por isso que ele tentou matá-lo.

Para quem vocês trabalham?

—            Um serviço de inteligência. Ela apontou para Davis. Ele é da Casa Branca. O capitão de fragata Alexander, que comandou o Holden, foi assassinado ontem à noite. Um dos capitães-tenentes que desembarcaram com você, Nick Sayers, morreu alguns anos atrás. Achamos que você poderia ser o próximo alvo e estávamos certos.

—            Eu não sei de nada.

—            O que encontraram na Antártida? perguntou Davis. Rowland fechou os olhos, e Stephanie se perguntou se ele adorme­cera. Alguns segundos depois, ele abriu os olhos e balançou a cabeça.

—            Recebi ordens para nunca falar disso. Com ninguém. O próprio almirante Dy ais me disse isso pessoalmente.

Ela sabia de Raymond Dyals. Antigo chefe de operações navais.

—            Ele deu ordens para que o NR-1A descesse lá disse Davis.

Isso ela não sabia.

—            Vocês sabem do submarino? — perguntou Rowland. Stephanie assentiu.

Lemos o relatório do naufrágio e conversamos com o coman­dante Alexander antes que ele morresse. Então, conte-nos o que você sabe. — Ela decidiu deixar as condições claras: — Sua vida pode de­pender disso.

Preciso parar de beber — disse Rowland. — O médico disse que a bebida ia acabar me matando. Eu tomo insulina...

—            Tomou ontem à noite?

Ele fez que sim.

Ela estava ficando impaciente.

—            Os médicos nos disseram que você não tinha nenhuma insulina no sangue. Por isso, e por causa do álcool, entrou em choque. Mas isso é irrelevante agora. Precisamos saber o que você encontrou na Antártida.

 

Malone estudou as quatro pousadas de Ossau e concluiu que a UArlequin seria a escolha correta — toda a austeridade das monta­nhas por fora, mas elegante por dentro, decorada para o Natal com pinhas aromáticas, um presépio esculpido e visco sobre as portas. O proprietário chamou a atenção para o livro de hóspedes o qual, explicou, continha o nome de todos os exploradores famosos dos Pi­rineus, além de muitas pessoas notáveis dos séculos XIX e XX. O res­taurante servia uma caçarola de tamboril maravilhosa com presunto em cubos, de modo que ele almoçou cedo e ficou esperando por mais de uma hora, para finalmente saborear um bolo cilíndrico, feito de chocolate e castanhas. Quando o relógio marcou 11 horas, ele pensou que talvez tivesse feito a escolha errada.

O garçom o informara que São Lestelle fechava no inverno e abria apenas de maio a agosto para acomodar os numerosos visitantes que vinham à região para aproveitar o verão no planalto. Não havia muita coisa lá, dissera o homem, só ruínas. Algum trabalho de restauração era feito todo ano, financiado pela sociedade histórica local, com in­centivo da diocese católica. Fora isso, o local permanecia tranquilo.

Malone concluiu que uma visita era necessária. A noite chegaria rápido, certamente lá pelas 17 horas, então ele precisava aproveitar a luz do dia que lhe restava. Saiu da pousada armado, três balas ainda na pistola. Estimou que a temperatura estivesse por volta dos 5 graus negativos. Nenhum gelo, mas muita neve seca, que rangia como ce­real sob suas botas. Ele estava contente por ter comprado as botas em Aachen, sabendo que partiria para terrenos acidentados. Um suéter novo sob o casaco ajudava a aquecer-lhe o peito. Luvas de couro jus­tas cobriam-lhe as mãos.

Ele estava pronto.

Para quê?

Não sabia exatamente.

 

Stephanie esperou Herbert Rowland responder à pergunta sobre o que acontecera em 1971.

—            Não devo nada a esses desgraçados murmurou Rowland. Cumpri meu juramento. Nunca disse nada. Mas ainda assim vêm me matar.

—            Precisamos saber por quê disse ela. Rowland inalou oxigênio.

Foi uma coisa extraordinária. Ramsey foi até a base, chamou a mim e a Sayers e disse que íamos para a Antártida. Éramos todos de operações especiais, acostumados a coisas esquisitas, mas essa foi a mais estranha. Era muito longe de casa. Inspirou mais uma vez. Pegamos um avião até a Argentina, subimos a bordo do Holden e ficamos sozinhos. Recebemos instruções para efetuar uma busca ativa por sonar com emissão, mas não ouvimos nada até que finalmente desembarcamos. Foi quando Ramsey vestiu o equipamento e mergu­lhou na água. Voltou cerca de cinquenta minutos depois.

O que encontrou? perguntou Rowland, ajudando Ramsey a sair do mar gelado, segurando firme no ombro do traje de mergulho, erguendo homem e equipamentos para cima do gelo.

Nick Sayers puxou pelo outro ombro.

—            Tem alguma coisa lá?

Ramsey retirou o visor e o capuz.

Lá embaixo é frio feito a bunda do escavador de uma vala siberiana. Mesmo com este traje. Mas é um mergulho incrível.

Você ficou lá por quase uma hora. Algum problema de profundida­de? perguntou Rowland.

Ramsey balançou a cabeça.

—            Fiquei acima de 30 pés o tempo todo. Ele apontou para a direi­ta. O oceano forma uma grande saliência lá para cima, direto para a montanha.

Ramsey tirou as luvas de mergulho, e Sayers entregou-lhe outras, secas. A pele não podia ficar exposta por mais de um minuto naquele ambiente.

Preciso tirar este traje e vestir minhas roupas.

Tem alguma coisa lá? perguntou Sayers novamente.

Uma água limpa pra caramba. Lugar cheio de cores, como um recife de corais.

Rowland notou que eles estavam sendo ignorados, mas também notou um saco de coleta fechado e preso a cintura de Ramsey. O saco estava vazio cin­quenta minutos antes. Agora continha algo.

O que tem aí dentro? perguntou ele.

Ele não me respondeu sussurrou Rowland. E não deixou que eu ou Sayers tocássemos na sacola.

O que aconteceu depois disso? perguntou ela.

Fomos embora. Ramsey estava no comando. Fizemos mais che­cagens de radiação, não encontramos nada, e então Ramsey ordenou que o Holden seguisse para o norte. Nunca disse uma palavra sobre o que viu naquele mergulho.

Não entendo disse Davis. Como você pode ser uma ameaça?

O homem mais velho molhou os lábios.

—            Provavelmente pelo que aconteceu no caminho de volta.

Rowland e Sayers estavam se arriscando. Ramsey estava na amurada com o comandante Alexander, jogando cartas com alguns dos outros oficiais. En­tão, finalmente decidiram ver o que o compatriota encontrara no mergulho. Nenhum dos dois gostava de ser mantido no escuro.

Tem certeza de que você sabe a combinação? — perguntou Sayers.

O contramestre me contou. Ramsey tem abusado do poder, e esta em­barcação não é dele, então o cara ficou muito feliz em me ajudar.

Havia um pequeno cofre no convés ao lado do porta-bagagem de Ramsey. O que quer que ele tivesse trazido após o mergulho tinha ficado ali dentro durante os três dias em que deixaram o círculo Antártico e atingiram o Atlântico Sul.

—            Fique de olho na porta — disse Rowland a Sayers. Ajoelhou-se e expe­rimentou a combinação que havia recebido.

Três cliques confirmaram que os números haviam funcionado.

Ele abriu o cofre e viu o saco de coleta. Retirou-o e sentiu seus contornos retangulares, cerca de 20 por 25 centímetros, e talvez 3 centímetros de largura. Abriu o zíper na parte de cima, retirou o conteúdo e reconheceu de imedia- to um diário de bordo. Na primeira página, em tinta azul e uma letra fortemente marcada, estava escrito início da missão 17 de outubro de 1971, término                . A segunda data teria sido acrescentada depois que o submarino voltasse ao porto. Mas ele percebeu que o comandante que escrevera aqueles dados não teria essa chance.

Sayers aproximou-se.

—            O que é isso?

A porta da cabine abriu. Ramsey entrou.

Achei que vocês tentariam algo assim.

Vá se ferrar — disse Rowland. — Estamos todos no mesmo nível. Você não é nosso superior.

Um sorriso formou-se nos lábios negros de Ramsey.

—            Na verdade, aqui eu sou. Mas talvez seja melhor que vocês sigam em frente e vejam. Agora vão ver o que está em jogo.

É isso mesmo — disse Sayers. — Fomos voluntários para vir aqui, assim como você, e queremos a recompensa, assim como você.

Acreditem se quiserem — disse Ramsey —, mas eu ia contar para vo­cês antes de chegarmos ao porto. Há coisas a serem feitas, e não posso fazê-las sozinho.

Stephanie queria saber.

Por que era tão importante? Davis pareceu entender.

É óbvio.

Não para mim.

O diário de bordo — disse Rowland — era do NR-1A.

 

Malone subiu o caminho rochoso, que não passava de uma pequena saliência ziguezagueando a cada 30 metros na ladeira arborizada. De um lado, uma via crucis de ferro fundido estendia-se numa procissão solene; do outro, a vista abaixo se transformava cada vez mais num panorama. A luz do sol banhava o vale escarpado, e ele notou, ao longe, desfiladeiros profundos e denteados. Sinos distantes anuncia­ram meio-dia.

Malone se dirigia a um dos recessos circulares entre altos precipí­cios localizados nas áreas montanhosas, acessíveis apenas a pé, uma formação comum nos Pirinéus. Faias sustentavam os declives, atro­fiadas e retorcidas, com os galhos nus cobertos de neve e entrelaça­dos em nós deformados. Ele manteve a atenção no trajeto irregular, mas não notou pegadas, o que não significava muito, considerando o vento e a neve.

Uma curva final semicircular e a entrada do mosteiro, assentado no recesso circular, surgiu adiante. Malone fez uma pausa para respi­rar e apreciou mais uma ampla vista. A neve, refrigerada por rajadas de vento frio, rodopiava ao longe.

Altos muros de alvenaria estendiam-se para a direita e a esquerda. Se o que Malone havia lido estava certo, aquelas pedras tinham teste­munhado os romanos, os visigodos, os sarracenos, os francos e os cru­zados das guerras albigenses. Muitas batalhas haviam sido travadas por aquela posição vantajosa. O silêncio parecia ser uma presença físi­ca, o que conferia ao lugar uma atmosfera solene. Sua história prova­velmente estava enterrada com os mortos o verdadeiro registro de sua glória não estava gravado nem na pedra nem no pergaminho.

Claridade de Deus.

Mais ficção? Ou fatos?

Malone percorreu os 15 metros restantes, aproximou-se de um portão de ferro e avistou uma corrente com um cadeado. Ótimo.

Não havia como escalar os muros.

Ele estendeu a mão, segurou o portão e sentiu o frio penetrar pelas luvas. E agora? Percorrer o perímetro e ver se havia uma passagem? Parecia o único procedimento. Ele estava cansado e conhecia bem aquela fase de exaustão: a mente facilmente se perdia num labirinto de possibilidades, e todas as soluções acabavam num beco sem saída.

Ele balançou o portão, frustrado.

A corrente de ferro deslizou e caiu no chão.

 

           Charlotte

 

Stephanie digeriu exatamente o que Herbert Rowland dissera e perguntou:

—            Está dizendo que o NR-1A estava intato?

Rowland parecia estar ficando cansado, mas aquilo tinha de ser feito.

—            Estou dizendo que no mergulho Ramsey resgatou o diário de bordo.

Davis lançou um olhar para ela.

—            Eu disse que o safado estava até o pescoço nisso.

—            Foi Ramsey quem tentou me matar? perguntou Rowland.

Stephanie não ia responder, mas viu que Davis não pensava da mesma forma.

Ele merece saber disse Davis.

Isto já está fora de controle. Você quer mais? Davis encarou Rowland.

Achamos que ele está por trás disso.

Não sabemos. Ela foi rápida em acrescentar: Mas é uma possibilidade clara.

Ele sempre foi um desgraçado disse Rowland. Depois que voltamos, foi ele quem sugou todos os benefícios. Nem eu, nem Sayers. Claro que conseguimos algumas promoções, mas nunca che­gamos ao que Ramsey conseguiu. Rowland hesitou, claramente fa­tigado. Almirante. Direto para o topo.

—            Talvez devêssemos fazer isto outra hora disse ela.

—            De jeito nenhum disse Rowland. Ninguém vem atrás de mim e sai impune. Se eu não estivesse nesta cama, eu mesmo o mataria.

Stephanie se questionou sobre a ameaça.

—            Esta noite, tomei meu último drinque disse ele. Chega. É sério.

A raiva parecia ser uma droga eficiente. Os olhos de Rowland esta­vam em chamas.

Conte-nos tudo disse ela.

O que sabem sobre a operação Salto em Altura?

Só a declaração oficial disse Davis.

Que é puro lixo.

 

O almirante de esquadra Byrd levou seis aeronaves R4-D para a Antárti­da. Cada uma estava equipada com comeras sofisticadas e magnetômetros de rastreamento. Foram lançadas de um porta-aviões, usando cilindros para pro­pulsão de foguetes para ajudar na decolagem. A aeronave passou mais de du­zentas horas no ar e percorreu 37 mil quilômetros sobre o continente. Num dos últimos voos de mapeamento, o avião de Byrd voltou da missão com três horas de atraso. A explicação oficial foi que ele tinha perdido um motor e retornara com potência reduzida. Mas os registros pessoais de Byrd, devolvidos e revisa­dos pelo então chefe de operações navais, revelavam uma razão diferente.

Byrd sobrevoara o que os alemães chamavam de Neuschwabenland. Ele estava sobre o continente, seguindo para oeste acima de um horizonte branco indistinguível, quando avistou uma área aberta com três lagos separados por massas de pedras marrom-avermelhadas. Os próprios lagos eram coloridos em tons de vermelho, azul e verde. Ele verificou a posição e, no dia seguinte, en­viou para a área uma equipe especial, que descobriu que a água dos lagos era morna e cheia de algas, responsáveis pela pigmentação. A água também era salobra, o que indicava uma ligação com o oceano.

A descoberta animou Byrd. Ele estava a par de informações secretas sobre a expedição alemã de 1938, que relatara observações semelhantes. O almiran­te tinha duvidado das declarações, depois de ter visitado o continente e tomado conhecimento de sua natureza inóspita, mas a equipe de campo especial explo­rou a área nos dias que se seguiram.

—            Eu não sabia que Byrd tinha um diário pessoal — disse Davis.

—            Eu o vi — disse Rowland. — Toda a operação Salto em Altura era confidencial, mas trabalhamos em muitas coisas quando voltamos, e eu tive acesso. Foi somente nos últimos vinte anos que se revelou algo sobre a Salto em Altura. Quase tudo falso, aliás.

Stephanie perguntou:

—            O que foi que você, Sayers e Ramsey fizeram quando volta­ram?

—            Realocamos tudo o que Byrd havia trazido em 1947.

Isso ainda existia?

Rowland assentiu.

Tudo. Caixotes cheios. O governo não joga nada fora.

O que havia dentro dos caixotes?

Não faço idéia. Somente os transportamos, nunca abrimos nada. Aliás, estou preocupado com minha esposa. Ela está na casa da irmã.

Dê-me o endereço — disse Davis —, e pedirei ao Serviço Secre­to que entre em contato. Mas é de você que Ramsey está atrás. E ainda não nos contou por que ele o considera uma ameaça.

Rowland permaneceu imóvel, com os dois braços ligados a bolsas intravenosas.

—            Não acredito que quase morri.

—            O homem que flagramos invadiu sua casa ontem enquanto você passava o dia fora disse Davis.Acho que ele adulterou sua insulina

—            Minha cabeça está latejando.

Stephanie queria pressionar mais, mas sabia que o velho só falaria quando estivesse pronto.

—            Vamos garantir sua segurança a partir de agora. Só precisamos saber por que isso é necessário.

O rosto de Rowland era um caleidoscópio de emoções embaralha­das. Ele estava num dilema. Sua respiração era dissonante, seus olhos úmidos fixos exibiam uma expressão de desdém.

—            A droga do negócio estava completamente seca. Sem uma man­cha de água em nenhuma página.

Ela registrou o que ele disse.

—            O diário de bordo? Rowland assentiu.

—            Ramsey trouxe do oceano no saco. Isso significa que ele não estava molhado antes de ser coletado.

Mãe de Deus murmurou Davis. Ela então entendeu.

O NR-1A estava intato?

Apenas Ramsey sabe disso.

—            É por isso que ele quer que todos morram disse Davis. Quando você liberou aquele arquivo para Malone, ele entrou em pâni­co. Não pode deixar que isso seja revelado. Pode imaginar o que isso causaria à Marinha?

Mas ela não tinha tanta certeza. A história tinha de ser mais do que isso.

Davis encarou Rowland.

Quem mais sabe?

Eu. Sayers, mas ele está morto. O almirante Dyals. Ele sabia. Comandou a coisa toda e nos deu a ordem de silêncio.

Falcão de Inverno. Era assim que a imprensa se referia a Dyals, devido à sua idade e às suas inclinações políticas. Já por muito tempo ele vinha sendo comparado a outro oficial da Marinha idoso e arro­gante, que também acabou tendo de ser afastado. Hyman Rickover.

Ramseytornou-seofavoritodeDyals disseRowland. — Foi transferido para a equipe pessoal do almirante. Ramsey venerava o homem.

O bastante para proteger a reputação dele até agora? — per­guntou ela.

Difícil saber. Mas Ramsey é um sujeito estranho. Não pensa como o resto das pessoas. Fiquei feliz em me livrar dele quando voltamos.

Então, Dyals é o único que resta? — perguntou Davis. Rowland balançou a cabeça.

Mais um sabia.

Stephanie tinha ouvido direito?

Sempre tem um especialista. Era um pesquisador figurão con­tratado pela Marinha. Cara esquisito. Nós o chamávamos de Mágico de Oz. Sabe o cara que fica nos bastidores e ninguém nunca vê? O pró­prio Dyals o recrutou, e ele se reportava apenas a Ramsey e ao almi­rante. Foi ele quem abriu aqueles caixotes, sozinho.

Precisamos do nome — disse Daniels.

Douglas Scofield, ph.D. Sempre gostava de nos lembrar dis­so. Dr. Scofield, era como se referia a si mesmo. Não impressionava a nenhum de nós. Estava tão escondido no colo de Dyals que nunca aparecia.

O que aconteceu com ele? — perguntou ela.

Não faço idéia.

Eles precisavam sair, mas antes havia mais uma coisa:

E esses caixotes da Antártida?

Levamos tudo para um armazém em Fort Lee. Na Virgínia. E deixamos com Scofield. Depois disso, não sei.

 

           OSSAU, FRANÇA

 

MALONE HCOU OLHANDO PARA A CORRENTE DE FERRO CAÍDA NA NEVE. PENSE. TOME cuidado. Algo estava muito errado ali. Especialmente o corte limpo da corrente. Alguém tinha vindo preparado, com um corta-vergalhão.

Ele retirou a arma de debaixo do casaco e empurrou o portão. As dobradiças congeladas guincharam alto. Malone entrou na ruína sobre os pedaços de alvenaria e aproximou-se dos arcos decrescentes de um portal romano. Desceu vários degraus decadentes de pedra até um interior escuro. Apouca luz que existia entrava com o vento através de janelas sem vidro. A espessura das paredes, a inclinação das passagens, o portão de ferro na entrada, tudo indicava os tempos rudimentares nos quais tinham sido criados. Ele olhou ao redor, vendo o que um dia tivera grande importância — metade local de culto, metade cidadela, um local fortificado nas cercanias de um império.

Cada expiração era vaporizada diante de seus olhos.

Malone continuou vasculhando o chão, mas não viu evidências de outras pessoas. Avançou até um labirinto de colunas que sustentavam um teto intato. A sensação de vastidão se estendia para o alto, nas abóbadas sombrias. Caminhou entre as colunas como se estivesse entre árvores altas de uma floresta petrificada. Não tinha certeza do que estava procurando ou do que esperava, e resistiu ao ímpeto de ser absorvido pelo ambiente fantasmagórico.

Pelo que Malone tinha lido na internet, Bertrand, o primeiro bispo, ficara bastante conhecido. Lendas atribuíam muitas maravilhas aos seus poderes miraculosos. Com frequência, líderes espanhóis das redondezas deixavam uma trilha de fogo e sangue pelos Pirinéus, e a população local ficava aterrorizada com eles. Mas diante de Bertrand, entregavam seus prisioneiros e se retiravam, para nunca mais voltar.

E aconteceu o milagre.

Uma mulher havia trazido seu bebê e reclamado que o pai não queria sustentá-los. Quando o homem negou qualquer envolvimento, Bertrand ordenou que um vaso de água fria fosse colocado diante deles e colocou uma pedra dentro. Disse ao homem para pegar a pedra na água e, se estivesse mentindo, Deus daria um sinal. O homem retirou a pedra, mas suas mãos saíram queimadas, como se a água estivesse fervendo. O pai imediatamente admitiu a paternidade e fez as devidas reparações. Por sua devoção, Bertrand acabou adquirindo um apelido — a Claridade de Deus. Supõe-se que ele tenha recusado a descrição, mas permitiu que fosse usada para se referir ao mosteiro, o que aparentemente foi lembrado por Eginhardo décadas depois, quando este redigiu seu testamento.

Malone afastou-se das colunas e passou para o claustro, um trapezóide com telhado irregular, entre arcos, colunas e capitéis. Os madeiramentos do telhado, que pareciam ser novos, davam a impressão de ter sido o foco de restaurações recentes. Dois cômodos iam dar no lado direito do claustro, ambos vazios, um sem telhado, o outro com as paredes desmoronadas. Certamente um dia tinham sido refeitórios de monges e hóspedes, mas agora eram dominados apenas pelos fenômenos atmosféricos e pelos animais.

Ele contornou uma quina e desceu o lado mais curto da galeria, passando por diversos outros espaços em ruínas, todos cobertos de neve que entrava das janelas sem vidro ou dos telhados abertos, com urtigas marrons e ervas daninhas infestando os recessos. Em cima de uma porta, uma imagem esculpida e apagada da Virgem Maria olhava para baixo. Malone espiou para além da passagem e viu um cômodo espaçoso. Provavelmente, a casa capitular em que os monges moravam. Ele olhou para trás, na direção do jardim do claustro, e observou um vaso largo quebrado, com decoração apagada de folhas e nascentes de rios. A neve encobria a base.

Algo atravessou o claustro. Na galeria oposta. Rápido e indistinto, mas lá.

Malone se agachou e se arrastou até um canto. O lado comprido do claustro estendia-se por 15 metros diante dele, terminando numa arcada dupla sem portas. A igreja. Malone supôs que o que quer que pudesse ser encontrado estaria lá, mas isso era um tiro no escuro. Ainda assim, alguém havia cortado a corrente lá fora.

Examinou a parede interna à sua direita. Três portais se abriam entre ele e o fim do claustro. O arcos à sua esquerda, que emolduravam o jardim exposto ao vento, eram todos austeros, quase sem qualquer ornamentação. O tempo e os fenômenos atmosféricos tinham produzido efeito. Malone notou um querubim solitário que havia sobrevivido, portando um escudo heráldico. E ouviu algo à sua esquerda, na galeria longa.

Passos.

Indo na sua direção.

 

RAMSEY SAIU DO CARRO E SEGUIU APRESSADO PELO FRIO ATÉ ENTRAR NO PRINCIPAL prédio administrativo da inteligência naval. Não pediram que ele passasse por nenhum posto de controle de segurança. Em vez disso, um capitão-tenente de sua equipe de assessores aguardava à porta. A caminho do escritório, Ramsey recebeu o informe habitual da manhã.

Hovey estava esperando no escritório,

—            O corpo de Wilkerson foi encontrado.

—            Diga mais.

—            Em Munique, perto do Parque Olímpico. Tiro na cabeça.

—            Você deve estar satisfeito.

—            Já vai tarde.

Mas Ramsey não estava tão animado. A conversa com Isabel Oberhauser ainda pesava em sua mente.

—            Quer autorizar o pagamento do efetivo que realizou a tarefa?

—            Ainda não. — Ele já havia feito uma ligação para o exterior. — Pedi para fazerem mais uma coisa, na França, por enquanto.

 

CHARLIE SMITH ESTAVA SENTADO DENTRO DE UM SHONEY'S, TERMINANDO SUA tigela de aveia. Ele adorava aquilo, especialmente com sal e três colheres de manteiga. Não dormira muito. A noite anterior fora um problema. Aqueles dois tinham ido atrás dele.

Ele fugira da casa e estacionara alguns quilômetros depois, na rodovia. Avistara uma ambulância seguindo às pressas para o local e seguira-a até um hospital nas redondezas de Charlotte. Sentira vontade de entrar, mas decidira que não devia. Em vez disso, voltara ao hotel e tentara dormir.

Teria de ligar para Ramsey em breve. O único relatório aceitável era que os três alvos tinham sido eliminados. Qualquer indicação de problemas e o próprio Smith se tomaria um alvo. Ele zombava de Ramsey, aproveitava-se do fato de que se conheciam havia muito tempo, tirava vantagem de seus êxitos, tudo porque sabia do quanto Ramsey precisava dele.

Mas a situação mudaria num instante se ele falhasse.

Olhou o relógio: 6h15. Tinha de arriscar.

Notou um telefone do lado de fora, então pagou a conta e fez a ligação. Quando as opções do menu do hospital foram recitadas em seu ouvido, selecionou a opção de informações sobre pacientes. Como não sabia o número do quarto, aguardou um dos atendentes.

—            Preciso saber de Herbert Rowland. É meu tio e foi internado ontem à noite.

Pediram que esperasse um momento, e então a mulher retornou.

—            Lamentamos informar que o Sr. Rowland faleceu pouco depois de chegar.

Smith fingiu choque.

—            Isso é horrível.

A mulher deu-lhe os pêsames. Ele agradeceu, desligou e exalou um suspiro aliviado.

Aquela tinha sido por pouco.

Recompôs-se, pegou o celular e discou um número familiar. Quando Ramsey atendeu, Smith disse animado:

—            Três a três. Ainda invicto.

—            Fico muito contente que você tenha orgulho do próprio trabalho.

—            Nosso objetivo é a sua satisfação.

—            Então, me satisfaça mais uma vez. O quarto. Estou dando o sinal verde. Vá em frente.

 

MALONE FICOU ESCUTANDO. TINHA ALGUÉM ATRAS E NA FRENTE DELE. MANTEVE-SE abaixado e correu para um dos cômodos que dava para fora da galeria, um cômodo, ele viu, que tinha paredes e teto. Apoiou rigidamente as costas na parede, ao lado do vão da porta. A escuridão intensificava os cantos sombrios do recinto. Ele estava a 6 metros da entrada da igreja. Mais passos.

Voltando para a galeria, longe da igreja. Malone segurou firme a arma e esperou.

Quem quer que estivesse ali estava se aproximando. Ele tinha sido visto ao entrar? Parecia que não, uma vez que não havia tentativa de disfarçar o som dos passos pela neve. Malone se preparou e levantou a cabeça, usando a visão periférica para vigiar o vão. Agora os passos estavam do outro lado da parede contra a qual ele se apoiava.

Uma forma surgiu, andando na direção da igreja.

Ele girou e agarrou um ombro, virando a arma e lançando-se contra a pessoa que estava do outro lado da parede, a arma pressionada contra costelas.

Viu uma expressão de choque.

Um homem.

 

           CHARLOTTE, 6H27

 

STEPHANIE FEZ UMA LIGAÇÃO PARA A SEDE DO SETOR MAGALHÃES E PEDIU informações sobre o Dr. Douglas Scofield. Ela e Davis estavam sozinhos. Meia hora antes, agentes do Serviço Secreto tinham chegado, trazendo um laptop protegido que Davis requisitara. Os agentes receberam ordens de proteger Herbert Rowland, que estava sendo transferido para um novo quarto e identificado por outro nome. Davis havia falado com a administradora do hospital e obtivera sua cooperação para comunicar que Rowland havia morrido. Com certeza, alguém iria verificar. Conforme o esperado, a atendente do serviço de informação sobre pacientes já havia relatado uma ligação vinte minutos antes — de um homem que se identificou como um sobrinho — indagando sobre o estado de Rowland.

—            Isso vai deixá-lo satisfeito — disse Davis. — Duvido que nosso assassino vá se arriscar a entrar aqui. Para garantir, haverá um obituário no jornal. Mandei os agentes explicarem tudo aos Rowland e pedir a cooperação deles.

—            Um pouco pesado para amigos e parentes — disse Stephanie.

—            Será mais pesado se o sujeito perceber o erro e voltar para terminar o que começou.

O laptop indicou a chegada de um e-mail. Stephanie abriu a mensagem de seu escritório:

 

Douglas Scofield é professor de antropologia na Universidade Estadual do Leste do Tennessee. Esteve associado à Marinha de 1968 a 1972, por meio de contrato, para atividades confidenciais. O acesso é possível, mas deixará rastros, portanto não foi obtido, uma vez que você pediu discrição nessas buscas. Os trabalhos publicados dele são numerosos. Além de periódicos normais de antropologia, escreve para revistas sobre Nova Era e ocultismo. Uma rápida pesquisa na internet revelou assuntos que incluem Atlântida, ovnis, astronautas antigos e eventos paranormais. É o autor de Mapas dos exploradores antigos (1986), um relato conhecido de como a cartografia pode ter sido influenciada por culturas perdidas. Neste momento, ele está num congresso em Asheville, na Carolina do Norte, intitulado Mistérios Antigos Revelados. Acontecendo no Biltmore Estate Inn. Cerca de 150 inscritos. É um dos organizadores e um palestrante de destaque. Parece ser um evento anual, uma vez que está sendo anunciado como o 14° congresso.

—            Ele é o único que falta — disse Davis. Tinha lido por cima do ombro dela. — Asheville não fica longe daqui.

Stephanie sabia o que ele estava pensando.

—            Não está falando sério.

—            Eu vou. Pode vir, se quiser. Ele precisa ser abordado.

—            Então, envie o Serviço Secreto.

—            Stephanie, a última coisa que precisamos é de demonstração de força. Vamos nos limitar a ir até lá e ver no que vai dar.

—            Nosso amigo da noite passada pode estar lá também.

—            Só podemos torcer para que esteja.

Outro tinido sinalizou a resposta da segunda pergunta dela, então Stephanie abriu a mensagem e leu.

 

A Marinha aluga depósitos em Fort Lee, Virgínia. Fazem isso desde a Segunda Guerra Mundial. Atualmente, controlam três prédios. Apenas um é de alta segurança e contém um compartimento refrigerado, instalado em 1972. O acesso é restrito por código numérico e checagem de impressão digital através do Serviço de Inteligência Naval. Consegui ver o registro de visitas armazenado no banco de dados da Marinha. Interessante que não seja confidencial. Apenas uma pessoa de fora do quadro de funcionários de Fort Lee entrou nos últimos 180 dias. O almirante Langford Ramsey, ontem.

 

—            Ainda quer discutir comigo? — perguntou Davis. — Você sabe que eu estou certo.

—            Mais uma razão para pedirmos ajuda.

Davis balançou a cabeça.

—            O presidente não vai nos deixar.

—            Negativo. Você não quer nos deixar.

A expressão de Davis transmitia desafio e submissão.

—            Eu preciso fazer isso. Talvez você também precise agora. Lembre-se, o pai de Malone estava naquele submarino.

—            O que Cotton deveria saber.

—            Antes, vamos conseguir algumas respostas para ele.

—            Edwin, você poderia ter morrido ontem à noite.

—            Mas não morri.

—            Vingança é a forma mais rápida de se conseguir ser morto. Por que não me deixa cuidar disso? Tenho agentes.

Continuavam sozinhos na pequena sala de reuniões que a administradora do hospital havia disponibilizado.

—            Não vai acontecer — disse ele.

Stephanie viu que não adiantaria discutir. Forrest Malone estivera naquele submarino — e Davis estava certo, isso era um incentivo suficiente para ela. Fechou o laptop e se levantou.

—            Eu diria que temos uma viagem de três horas de carro até Asheville.

 

— QUEM É VOCÊ? — PERGUNTOU MALONE AO HOMEM.

—            Você me matou de susto.

—            Responda à minha pergunta.

—            Werner Lindauer. Malone ligou os pontos.

—            Marido de Dorothea?

O homem fez que sim.

—            Meu passaporte está no bolso.

Não havia tempo para isso. Ele retirou a arma e empurrou o prisioneiro para dentro do cômodo lateral, fora da galeria.

—            O que você está fazendo aqui?

—            Dorothea entrou aqui três horas atrás. Vim ver como ela está.

—            Como ela encontrou este lugar?

—            Parece que você não conhece Dorothea tão bem. Ela não dá explicações. Christl também está aqui.

Isso Malone esperava. Tinha aguardado no hotel, acreditando que a mulher ou bem sabia daquele lugar ou o descobriria da mesma maneira que ele.

—            Ela veio para cá antes de Dorothea.

Malone voltou a atenção para o interior do claustro. Hora de ver o que havia dentro da igreja. Fez um sinal com a arma.

—            Você vai na frente. À direita e pelo portal no fim.

—            É prudente?

— Nada nessa história é sensato.

Ele seguiu Werner pela galeria, depois atravessou a arcada dupla ao final e em seguida se escondeu atrás de uma coluna espessa. Uma nave ampla, feita para parecer estreita por mais colunas que se estendiam ao longo de seu comprimento, abria-se diante dele. As colunas formavam um semicírculo atrás do altar, seguindo a curva da abside. As paredes nuas dos dois lados eram altas, e os corredores, largos. Sem decoração ou ornamento em lugar algum, a igreja era mais ruína que construção. A música arrepiante do vento soava através das es¬quadrias de janelas sem vidro, divididas por cruzes de pedra. Malone avistou o altar, um pilar de granito esburacado, mas o que havia à frente dele chamou sua atenção.

Duas pessoas. Amordaçadas.

Uma de cada lado, no chão, os braços amarrados para trás, em volta de uma coluna.

Dorothea e Christl.

 

           WASHINGTON, D.C.

           7H24

 

RAMSEY VOLTOU PARA O ESCRITÓRIO COM PASSOS FIRMES. ESTAVA AGUARDANDO um relatório da França e havia deixado claro para os homens no exterior que só queria ouvir que Cotton Malone estava morto. Depois disso, voltaria a atenção para Isabel Oberhauser, mas ainda não havia decidido como resolver esse problema. Pensara nela durante toda a reunião de informes à qual acabara de comparecer, lembrando-se de algo que ouvira uma vez. Já estive certo e já estive paranóico, e é melhor estar paranóico.

Ele concordava.

Felizmente, sabia muito sobre a velha. Casara-se com Dietz Oberhauser no final dos anos 1950. Ele era filho de uma rica família aristocrata da Baviera; ela, filha de um prefeito local. O pai de Isabel fora associado aos nazistas durante a guerra e fora usado pelos Estados Unidos nos anos seguintes. Ela assumira o controle total da fortuna dos Oberhauser em 1972, após o desaparecimento de Dietz. Com o tempo, conseguira a declaração oficial da morte dele. Isso ativara o testamento, que deixava tudo para ela, em fideicomisso, em favor das filhas do casal. Antes de despachar Wilkerson para fazer contato, Ramsey estudara aquele testamento. Era interessante que a decisão de quando o controle financeiro passaria para as filhas tivesse sido deixada inteiramente a cargo de Isabel. Trinta e oito anos haviam se passado, e ela ainda permanecia no controle. Wilkerson relatara que existia grande animosidade entre as irmãs, o que poderia explicar algumas coisas, mas até hoje a discórdia na família Oberhauser tinha tido pouco significado para Ramsey.

Ele sabia que o interesse de Isabel pelo Blazek era antigo, e ela não fazia segredo quanto ao seu desejo de saber o que acontecera. Contratara advogados que tentaram obter informações por meio de canais oficiais, e quando essas tentativas falharam, discretamente buscara descobrir o máximo possível, por meio de propinas. O pessoal de contraespionagem de Ramsey detectara as tentativas e informara. Foi quando ele assumiu responsabilidade pessoal e passou a missão para Wilkerson.

Agora, seu homem estava morto. Como?

Sabia que Isabel tinha um empregado originário da Alemanha Oriental chamado Ulrich Henn. O histórico de Henn indicava que o avô materno dele comandara um dos campos de recepção de Hitler e supervisionara o depósito de 28 mil ucranianos em um vala comum. No seu julgamento por crimes de guerra, ele não negou nada e declarou com orgulho: Eu estive lá. O que facilitou a tarefa dos Aliados de enforcá-lo.

Henn foi criado por um padrasto que incorporou a família à sociedade comunista. Henn prestou serviço militar na Alemanha Oriental, antiga Stasi, e sua benfeitora atual não era muito diferente dos chefes comunistas, igualmente tomando decisões do modo calculista de um contador, para executá-las em seguida com o remorso resoluto de um déspota.

Isabel era de fato uma mulher formidável. Tinha dinheiro, poder e sangue-frio. Mas sua fraqueza era o marido. Ela queria saber por que ele morrera. Sua obsessão não era nenhuma preocupação real até

Stephanie Nelle obter o arquivo sobre o NR-1A e enviá-lo até o outro lado do Atlântico para Cotton Malone.

Agora, era um problema — que Ramsey esperava que estivesse sendo resolvido, naquele exato momento, na França.

 

MALONE VIU CHRISTL OLHAR PARA ELE E LUTAR CONTRA AS AMARRAS. ELA BALANÇAVA a cabeça e estava com a boca selada por uma fita adesiva.

Dois homens saíram de trás das colunas. O da esquerda era alto, magro e de cabelo escuro; o outro, robusto e de cabelo claro. Malone se perguntou quantos mais estariam à espreita.

—            Viemos atrás de você — disse Moreno — e encontramos estas duas aqui.

Malone ficou atrás da coluna, a arma pronta. Os homens não sabiam que ele estava limitado a três tiros.

—            E por que eu sou tão interessante?

—            Não faço a menor idéia. Só estou contente que seja.

Loiro pôs o cano de uma arma perto do crânio de Dorothea Lindauer.

—            Vamos começar com ela — disse Moreno.

Malone estava pensando, avaliando, percebendo que não houvera nenhuma menção a Werner. Virou-se para ele e sussurrou:

—            Já atirou em alguém?

—            Não.

—            Consegue?

O alemão hesitou.

—            Se eu precisar. Por Dorothea.

—            Consegue atirar?

—            Eu cacei a vida toda.

Ele decidiu aumentar seu currículo cada vez mais extenso de coisas estúpidas e entregou a pistola a Werner.

—            O que você quer que eu faça? — perguntou Werner.

—            Atire em um deles.

—            Qual dos dois?

—            Não importa, só atire, antes que eles atirem em mim. Werner balançou a cabeça, demonstrando compreensão. Malone respirou fundo algumas vezes, concentrou-se e afastou-se da coluna, com as mãos expostas.

—            OK, estou aqui.

Nenhum dos agressores se mexeu. Parecia que tinham sido pegos de surpresa. E era essa a idéia. Loiro tirou a arma da cabeça de Dorothea Lindauer e saiu completamente de detrás da coluna. Era jovem, estava alerta e vigilante, o fuzil automático apontado.

Ouviu-se o estalo de um tiro e o peito de Loiro explodiu com um golpe direto.

Aparentemente, Werner Lindauer conseguia atirar.

Malone mergulhou para a direita, buscando abrigo em outra coluna, sabendo que Moreno demoraria apenas um nanossegundo para se recuperar. Uma rajada veloz de tiros de arma automática, e balas esburacaram a pedra a centímetros de sua cabeça. Olhou para o outro lado da nave e viu que Werner estava seguro atrás de uma coluna.

Moreno murmurou uma sequência de obscenidades, depois gritou:

—            Vou matar estas duas. Agora.

—            Não estou nem aí — respondeu Malone.

—            É mesmo? Tem certeza?

Ele precisava forçar um erro. Fez um sinal para Werner, mostrando que pretendia avançar, pelo transepto, usando as colunas como proteção.

Agora, o verdadeiro teste. Acenou para que Werner lhe jogasse a arma. O homem arremessou a pistola em sua direção. Malone a pegou e fez sinal para que o alemão ficasse parado. Então, virou para a esquerda e correu pelo espaço aberto até a coluna seguinte.

Mais balas acompanharam seu trajeto.

Ele olhou de relance para Dorothea e Christl, ainda amarradas à coluna. Só restavam dois tiros na pistola, então pegou uma pedra do tamanho de uma bola de tênis e a arremessou na direção de Moreno, depois atravessou para outra coluna. O projétil bateu em algo, provocando um baque surdo.

Outras cinco colunas restavam entre Malone e Dorothea Lindauer, que estava amarrada daquele lado da nave.

—            Dê uma olhada — disse Moreno.

Ele arriscou um relance. Christl estava deitada sobre o pavimento áspero. Cordas pendiam de seus pulsos, mas tinham sido cortadas, libertando-a. Moreno manteve-se escondido, mas Malone avistou a ponta do fuzil voltada para baixo.

—            Não se importa? — gritou Moreno. — Quer ver essa mulher morrer?

Um estouro de balas ricocheteou no piso logo atrás de onde Christl estava. O medo fez com que ela se arrastasse para a frente, pelo chão coberto de limo.

—            Pare — gritou Moreno para a mulher.

Christl parou.

—            Mais uma rajada e as pernas dela já eram.

Malone fez uma pausa, sintonizando os sentidos, perguntando-se sobre Werner Lindauer. Onde ele estava?

—            Acho que não dá para discutirmos isso, não é? — perguntou ele.

—            Jogue a arma longe e venha aqui.

Ainda nenhuma menção a Werner. O atirador certamente sabia que tinha mais alguém lá.

—            Como eu disse. Não estou nem aí. Mate-a.

Malone girou para a direita enquanto desafiava o atirador, num ângulo melhor agora que estava mais perto do altar. Sob a luz esverdeada fantasmagórica da tarde que desvanecia, ele viu Moreno sair alguns passos de trás da coluna, buscando melhorar a mira em Christl.

Malone atirou, mas errou. Restou um tiro. Moreno voltou a se esconder.

Malone correu até a coluna seguinte. Avistou uma sombra aproximando-se de Moreno, vindo da fileira de colunas que se estendiam até o fundo da nave. A atenção de Moreno estava voltada para Malone; portanto, a sombra estava livre para ir em frente. A forma e o tamanho confirmaram a identidade. Werner Lindauer era corajoso.

— OK, você tem uma arma — disse Moreno. — Eu atiro nela, você atira em mim. Mas posso pegar a outra irmã sem você me acertar.

Malone ouviu um grunhido e depois um baque de carne e ossos batendo em algo que não cedeu. Espiou por trás da coluna e viu Werner Lindauer em cima de Moreno, um punho erguido. Os dois homens, lutando, rolaram para dentro da nave, e Moreno empurrou Werner, com as duas mãos ainda segurando firme a arma.

Christl tinha ficado de pé.

Moreno começou a se levantar.

Malone mirou.

O estrondo de um fuzil reverberou pelas paredes cavernosas.

Sangue correu pelo pescoço de Moreno. A arma soltou-se de sua mão quando ele percebeu que tinha sido atingido e segurou a garganta, lutando para respirar. Malone ouviu outro estrondo — um segundo tiro —, e o corpo de Moreno enrijeceu e desmoronou, tombando pesadamente de costas no chão.

A igreja foi engolida pelo silêncio.

Werner estava no chão. Christl, de pé. Dorothea, sentada. Malone olhou para a esquerda.

Numa galeria superior, acima do vestíbulo da igreja, onde séculos antes talvez um coro tivesse cantado, Ulrich Henn baixou o fuzil com mira telescópica. Ao lado dele, naquela posição vantajosa, austera e desafiadora, Isabel Oberhauser olhava para baixo.

 

           WASHINGTON, D.C.

 

RAMSEY VIU DIANE MCCOY ABRIR A PORTA DO CARRO E SENTAR-SE NO BANCO do passageiro. Ele havia esperado pela mulher em frente ao prédio da administração. A ligação dela 15 minutos antes sugeria apreensão.

—            Que diabos você fez? — perguntou Diane.

Ele não estava disposto a dizer nada de graça.

—            Daniels ordenou que eu comparecesse ao Salão Oval há uma hora e me deu uma bronca.

—            Posso saber por quê?

—            Não me venha com essa de se fazer de reservado. Você pediu apoio a Aatos Kane, não foi?

—            Eu falei com ele.

—            E ele foi falar com o presidente.

Ramsey permaneceu paciente e calado. Conhecia Diane havia vários anos. Estudara o passado dela. Era cuidadosa e ponderada. A natureza de seu trabalho exigia paciência. No entanto, ali estava, completamente enraivecida. Por quê?

O celular dele, apoiado no painel, acendeu, sinalizando a chegada de uma mensagem.

—            Com licença, não posso ficar indisponível. — Verificou o visor, mas não respondeu. — Pode esperar. O que há de errado, Diane? Simplesmente pedi auxílio ao senador. Está me dizendo que ninguém mais entrou em contato com a Casa Branca tentando a mesma coisa?

—            Estou dizendo que Aatos Kane é uma espécie diferente. O que você fez?

—            Não foi tanta coisa assim. Ele ficou entusiasmado com o fato de eu tê-lo procurado. Disse-me que eu seria um excelente acréscimo ao Estado-Maior Conjunto. Eu respondi que, se ele se sentia assim, eu agradeceria qualquer apoio que pudesse demonstrar.

—            Langford, só estamos eu e você aqui, então corta o discurso. Daniels estava furioso. Não gostou do envolvimento de Kane e me culpou. Disse que eu estava em conluio com você.

Ramsey franziu o rosto com uma expressão de censura.

—            Em conluio para quê?

—            Você é incrível. Você me disse outro dia que ia conseguir o apoio de Kane e conseguiu mesmo. Não quero saber como ou por quê, mas quero, sim, saber como Daniels me relacionou a você. É o meu traseiro que está na reta.

—            Um belo traseiro, aliás.

Ela bufou.

—            De que isso adianta?

—            Não adianta. É só uma observação sincera.

—            Vai oferecer alguma ajuda? Trabalhei muito para chegar onde estou.

—            O que o presidente disse exatamente? — Ramsey precisava saber.

Diane rebateu a pergunta com um gesto da mão:

—            Até parece que vou lhe contar.

—            Por que não? Está me acusando de ter feito algo impróprio; portanto, quero saber o que Daniels tinha a dizer.

—            Atitude extremamente diferente da última vez em que conversamos. — A voz dela tinha baixado.

Ramsey deu de ombros.

—            Pelo que me lembro, você também achava que eu seria uma ótima adição ao Estado-Maior Conjunto. Não é seu dever, como conselheira de segurança nacional, dar boas indicações ao presidente?

—            OK, almirante. Faça o seu papel, seja um bom soldado. O presidente dos Estados Unidos continua louco da vida, assim como o senador Kane.

—            Não consigo imaginar o porquê. Minha conversa com o senador foi das mais agradáveis, e eu nem falei com o presidente; então, não posso entender por que ele está nervoso comigo.

—            Vai ao funeral do almirante Sylvian?

Ele notou a mudança brusca de assunto.

—            É claro. Fui convidado a participar da guarda de honra.

—            Você é atrevido.

Ramsey dirigiu-lhe seu sorriso mais charmoso.

—            Na verdade, o convite me comoveu.

—            Vim porque precisávamos conversar. Estou sentada aqui num carro estacionado, como uma idiota, porque meu envolvimento com você me complicou...

—            Complicou como?

—            Você sabe muito bem como. Na outra noite, você deixou claro que haveria uma vaga no Estado-Maior Conjunto. Uma vaga que não existia naquele momento.

—            Não é o que eu lembro. Era você quem queria falar comigo. Era tarde, mas você insistiu. Foi até a minha casa. Estava preocupada com Daniels e a atitude dele em relação aos militares. Falamos hipoteticamente dos chefes do Estado-Maior Conjunto. Nenhum dos dois tinha consciência de que surgiria alguma vaga. Certamente, não no dia seguinte. É uma tragédia que David Sylvian tenha morrido. Ele era um bom homem, mas não consigo entender como isso pode ter complicado você por envolvimento comigo.

Diane balançou a cabeça, demonstrando descrença.

— Preciso ir.

Ele não a impediu.

— Tenha um bom dia, almirante.

E bateu a porta.

Ele reproduziu rapidamente a conversa em sua mente. Tinha se saído bem, transmitindo seus pensamentos de forma casual. Duas noites antes, quando ele e Diane McCoy conversaram, ela tinha sido uma aliada. Disso ele tinha certeza. Mas as coisas haviam mudado.

A maleta dele estava no banco traseiro. Dentro dela havia um monitor sofisticado para determinar se havia aparelhos eletrônicos por perto, gravando ou fazendo transmissões. Ramsey mantinha um em casa, que foi como soube que não havia ninguém escutando.

Hovey tinha protegido o estacionamento, usando uma série de câmeras de vigilância. A ligação no celular fora uma mensagem de texto. CARRO DELA ESTACIONADO A OESTE. ACESSO OBTIDO. RECEPTOR E GRAVADOR DENTRO. O monitor no banco traseiro também emitira um sinal, de modo que a parte final da mensagem tinha sido clara: ELA ESTÁ COM ESCUTA.

Ramsey saiu do carro e trancou as portas.

Não podia ter sido Kane. O senador tinha ficado interessado demais nos benefícios que receberia e não poderia arriscar sequer a possi¬bilidade de exposição. Sabia que uma traição significava consequências rápidas e devastadoras.

Não.

Isso era Diane McCoy pura.

 

MALONE OBSERVOU ENQUANTO WERNER DESAMARRAVA DOROTHEA DA COLUNA e ela arrancava a fita da boca.

—            O que você estava pensando? — gritou ela. — Está louco?

—            Ele ia atirar em você — disse o marido com calma. — Eu sabia que Herr Malone estava aqui, armado.

Malone estava na nave, a atenção voltada para a galeria superior e Isabel e Ulrich Henn.

—            Estou vendo que você não é tão ingênua quanto queria que eu acreditasse.

—            Esses homens estavam aqui para matá-lo — respondeu a velha.

—            E como você sabia que estariam aqui?

—            Vim para garantir a segurança de minhas filhas.

Não era resposta, então Malone encarou Christl. O olhar dela não dava nenhuma indicação de quais seriam seus pensamentos.

—            Eu fiquei na aldeia esperando você chegar, mas você estava muitos passos à minha frente.

—            Não foi difícil encontrar a relação entre Eginhardo e a Claridade de Deus. — Malone apontou para cima. — Mas isso não explica como ela e sua irmã sabiam.

—            Falei com minha mãe ontem à noite, depois que você saiu. Ele andou na direção de Werner.

—            Concordo com sua esposa. O que você fez foi insensato.

—            Você precisava que a atenção dele fosse distraída. Eu não tinha arma, então fiz o que achei que funcionaria.

—            Ele podia ter atirado em você — disse Dorothea.

—            Isso teria acabado com o problema do nosso casamento.

—            Eu nunca disse que queria que você morresse.

Malone entendia o amor-ódio do casamento. O dele tinha sido do mesmo jeito, mesmo anos depois da separação. Felizmente, ele havia feito as pazes com a ex, embora isso tivesse demandado esforço. Esses dois, no entanto, pareciam estar muito longe de qualquer resolução.

—            Fiz o que tinha de fazer — disse Werner. — E faria de novo.

Malone voltou a olhar para o coro. Henn saiu do posto diante do parapeito e desapareceu atrás de Isabel.

—            Agora podemos encontrar o que quer que haja para ser encontrado? — perguntou Isabel.

Henn reapareceu, e Malone viu o homem sussurrar algo para a patroa.

—            Herr Malone — disse Isabel. — Quatro homens foram enviados. Achamos que os outros dois não seriam problema, mas eles acabaram de entrar pelo portão.

 

           ASHEVILLE, CAROLINA DO NORTE

           10H40

 

CHARLIE SMITH ESTUDOU O ARQUIVO SOBRE DOUGLAS SCOFIELD. ESSE ALVO estava preparado havia mais de um ano, mas, diferentemente dos outros, sempre estivera classificado como opcional. Não estava mais.

Parecia que os planos tinham mudado, então Smith precisava refrescar a memória.

Saíra de Charlotte, seguindo para o norte na US 321 até Hickory, onde desviara para a 1-40 e acelerara para as montanhas Smoky. Checara na internet para ver se a informação no arquivo ainda estava correta. O Dr. Scofield estava agendado para dar uma palestra no simpósio que ele organizava todo inverno, e que este ano seria realizado no terreno do famoso Biltmore Estate. O evento parecia um encontro de gente esquisita. Ufologia, fantasmas, necrologia, abduções alienígenas, criptozoologia. Muitos temas bizarros. Scofield, embora fosse professor de antropologia de uma universidade no Tennessee, era profundamente envolvido em pseudo-ciência, tendo escrito um monte de livros e artigos. Uma vez que Smith não sabia quando ou se receberia ordens para agir em relação a Douglas Scofield, ele não havia pensado muito em como seria o fim do homem.

Agora estava estacionado em frente a um McDonald's, a uns 100 metros da entrada do Biltmore Estate.

Examinou o arquivo com atitude casual. Os interesses de Scofield variavam. Adorava caçar, passando muitos fins de semana do inverno em busca de cervos ou javalis. Como arma, escolhia o arco e flecha, embora tivesse uma coleção impressionante de fuzis de alta potência. Smith ainda estava com o que pegara na casa de Herbert Rowland, guardado no porta-malas, carregado, por precaução. Pescaria e rafting eram outras das paixões de Scofield, mas nesta época do ano havia poucas oportunidades para qualquer uma das duas.

Smith tinha baixado o programa do congresso, tentando digerir qualquer aspecto que parecesse útil. Estava perturbado com a escapada da noite anterior. Aqueles dois não haviam estado lá por acaso. Ainda que saboreasse toda a vaidade que se agitava dentro dele — afinal, autoconfiança era tudo —, não fazia sentido agir com insensatez.

Tinha de estar preparado.

Dois aspectos da programação do congresso chamaram sua atenção, e duas idéias formaram-se. Uma defensiva, outra ofensiva.

Ele odiava trabalhar com pressa, mas não queria sugerir a Ramsey que não poderia dar conta da tarefa.

Pegou o celular e achou o número de Atlanta.

Graças a Deus, a Geórgia era perto dali.

 

MALONE, EM REAÇÃO AO AVISO DE ISABEL, DISSE A ELA:

—            Só me restou uma bala.

Ela falou com Henn, que pôs a mão sob o casaco, retirou uma pistola e jogou-a para baixo. Malone pegou a arma. Dois pentes extras de munição chegaram em seguida.

—            Vocês estão preparados.

—            Sempre — disse Isabel.

Ele pôs os pentes no bolso.

—            Muito ousado de sua parte ter confiado em mim — disse Werner.

—            Como se eu tivesse escolha.

—            Ainda assim.

Malone olhou para Christl e Dorothea.

—            Vocês três, procurem algum lugar protegido. —Apontou para a abside atrás do altar. — Ali parece bom.

Ele os viu correr para lá e então se dirigiu a Isabel.

—            Poderíamos deixar pelo menos um deles vivo? Henn não estava mais lá.

Ela assentiu.

—            Vai depender deles.

Malone ouviu dois tiros do lado de dentro da igreja.

—            Ulrich está enfrentando-os.

Malone correu pela nave, de volta ao vestíbulo, e saiu para o claus¬tro. Avistou um dos homens na outra ponta, correndo entre os arcos. A luz do dia estava fraca. A temperatura caíra de forma perceptível.

Mais tiros.

Vindo de fora da igreja.

 

STEPHANIE SAIU DA 1-40, ENTROU NUMA AVENIDA MOVIMENTADA E ENCONTROU a entrada principal do Biltmore Estate. Já havia visitado o local duas vezes, uma delas, como agora, na época do Natal. A propriedade compreendia milhares de hectares, sendo que a construção central era um château estilo Renascença francesa de 16 mil metros quadrados, a maior residência particular dos Estados Unidos. O que fora originariamente um retiro de campo de George Vanderbilt, construído no final da década de 1880, tornara-se uma atração turística sofisticada, um testemunho ardente da Idade de Ouro perdida dos Estados Unidos.

Um conjunto de casas de tijolo com fachada de pedra, muitas com telhados inclinados, águas-furtadas de madeira e varandas amplas, comprimia-se à esquerda do edifício principal. Calçadas de tijolo ladeavam ruas arborizadas e aconchegantes. Ramos de pinho e adornos natalinos envolviam os postes, e zilhões de luzes brancas iluminavam o fim de tarde nessa época de festas.

—            Biltmore Village — disse ela. — Onde um dia moraram os empregados da propriedade e a criadagem. Vanderbilt construiu uma cidade só para eles.

—            Como algo saído de Dickens.

—            Eles a fizeram à semelhança de uma aldeia rural inglesa. Agora, é tudo lojas e cafés.

—            Você sabe muito sobre este lugar.

—            É um dos meus locais favoritos.

Stephanie notou um McDonald's, de arquitetura compatível com os arredores pitorescos.

—            Preciso de uma parada para ir ao banheiro. — Ela reduziu a velocidade e entrou no estacionamento da lanchonete.

—            Um milk-shake daqui seria uma boa — disse Davis.

—            Sua dieta é estranha. Ele deu de ombros.

—            Qualquer coisa que encha o estômago. Stephanie olhou o relógio: 11h15.

—            Uma parada rápida, depois entramos na propriedade. O hotel fica a pouco mais de 1 quilômetro dos portões.

 

CHARLIE SMITH PEDIU UM BIG MAC SEM MOLHO E SEM CEBOLA, UMA PORÇÃO DE batatas fritas e uma Coca-Cola diet grande. Uma de suas refeições favoritas, e considerando que ele pesava 68 quilos, no máximo, peso nunca foi uma preocupação. Era abençoado com um metabolismo acelerado — isso e um estilo de vida agitado, exercícios três vezes por semana e uma dieta saudável. Até parece. Exercício para ele era discar o número do serviço de quarto ou levar um pacote de comida para viagem até o carro. O trabalho demandava esforço mais do que suficiente.

Smith alugava um apartamento no subúrbio de Washington, D.C., mas raramente ficava lá. Precisava criar raízes. Talvez fosse a hora de comprar sua própria casa — como Bailey Mill. Ele estava mexendo com a cabeça de Ramsey naquele dia, mas quem sabe poderia refor¬mar aquele casarão velho de Maryland e morar ali, no interior. Seria excêntrico. Como os edifícios que o cercavam agora. Até o McDonald's era diferente de tudo o que já vira antes. Parecia uma casa de contos de fadas com um piano mecânico na sala de jantar, ladrilhos de mármore e uma cascata levemente iluminada.

Sentou-se com a.bandeja. Depois de comer, seguiria para o Bilt-more Inn. Já havia reservado um quarto pela internet para as duas noites seguintes. Um lugar elegante e caro também. Mas ele gostava de ter o melhor. Merecia, na verdade. Além disso, Ramsey pagava as despesas; então, por que Smith se importaria com o preço?

O programa do 14° Congresso Anual Mistérios Antigos Revelados, também disponível na internet, informava que Douglas Scofield seria o palestrante principal durante um jantar no dia seguinte, incluído na inscrição. Um coquetel aconteceria antes do evento no saguão do hotel.

Smith tinha ouvido falar de Biltmore Estate, mas nunca o visitara. Talvez desse uma volta pela mansão para ver como era a vida da burguesia naqueles tempos. Pegar algumas ideias de decoração. Afinal, qualidade era algo que ele podia se permitir. Quem disse que matar não compensava? Smith acumulara quase 20 milhões de dólares em remunerações e investimentos. Ele também tinha falado sério com Ramsey no outro dia. Não pretendia fazer aquilo pelo resto da vida, por mais que gostasse do trabalho.

Espremeu um toque de mostarda e um traço de ketchup no Big Mac. Smith não gostava de muito condimento, só o suficiente para dar sabor. Mastigou o sanduíche e ficou olhando as pessoas, a maioria ali para visitar Biltmore no Natal e fazer compras na aldeia.

O lugar todo parecia preparado para receber turistas.

O que era ótimo.

Muitos rostos obscuros entre os quais era possível desaparecer.

 

MALONE TTNHA DOIS PROBLEMAS. PRIMEIRO, ESTAVA PERSEGUINDO UM ATIRADOR desconhecido por um claustro escuro e gelado; e segundo, estava contando com aliados que não eram nem um pouco confiáveis.

Duas coisas tinham servido como dicas. Primeiro, Werner Lindauer. Eu sabia que Herr Malone estava aqui, armado. É mesmo? Considerando que no rápido encontro com o alemão Malone não mencionara sequer uma vez quem era, como Werner sabia? Ninguém na igreja tinha pronunciado seu nome.

E, segundo, o atirador.

Em nenhum momento ele parecera preocupado que houvesse outra pessoa ali, uma pessoa que havia atirado em seu cúmplice. Christl mencionara que tinha contado à mãe sobre Ossau. Também podia ter indicado que Malone viria. Mas isso não explicava a presença de Werner Lindauer nem como este soubera de imediato a identidade dele. E se Christl tivesse dado a informação, o ato mostrava um nível de cooperação entre os Oberhauser que Malone pensava não existir.

E tudo isso significava problema.

Ele parou e ouviu o chiado do vento. Ficou abaixado sob os arcos, sentindo dor nos joelhos. Do outro lado do jardim, através da neve que caía, não avistou movimento algum. O ar frio queimava sua garganta e seus pulmões. Malone não devia tentar satisfazer sua curiosidade, mas não tinha como evitar. Embora suspeitasse o que estava acontecendo, ele precisava saber.

 

DOROTHEA OBSERVAVA WERNER, QUE SEGURAVA COM CONFIANÇA A ARMA que Malone lhe havia oferecido. Durante as últimas 24 horas, ela descobrira muitas coisas sobre aquele homem. Coisas de que jamais suspeitara.

—            Eu vou lá fora — disse Christl.

Ela não pôde resistir.

—            Vi o jeito como você olhou para Malone. Você se preocupa com ele.

—            Ele precisa de ajuda.

—            De você?

Christl balançou a cabeça e saiu.

—            Você está bem? — perguntou Werner.

—            Estarei quando isto acabar. Confiar em Christl ou em minha mãe é um grande erro. Você sabe disso.

O frio tomou conta de Dorothea. Ela cruzou os braços sobre o peito e buscou conforto dentro do casaco de lã. Tinham seguido o conselho de Malone, recuando para a abside, fazendo a parte deles. A condição deteriorada da igreja conferia-lhe uma atmosfera agourenta. O avô delas realmente havia encontrado respostas ali?

Werner segurou o braço da esposa.

—            A gente vai conseguir.

—            A gente não tem escolha — disse ela, ainda descontente com as opções que a mãe havia oferecido.

—            Ou você tira o maior proveito da situação ou resiste a tudo para prejuízo próprio. Não importa para mais ninguém, mas deveria importar bastante para você.

Dorothea notou uma insegurança subjacente nas palavras dele.

—            O atirador estava genuinamente despreparado quando você o atacou.

Ele deu de ombros.

—            Dissemos a ele para esperar uma ou outra surpresa.

—            Dissemos mesmo.

O dia estava indo embora. As sombras internas alongavam-se, e a temperatura caía.

—            Obviamente que ele não chegou a acreditar que ia morrer — dis¬se Werner.

—            Erro dele.

—            E quanto a Malone? Acha que percebeu?

Dorothea hesitou antes de responder, lembrando suas reservas no dia em que o conhecera na abadia.

—            É melhor que tenha percebido.

 

MALONE PERMANECEU EMBAIXO DOS ARCOS E RECUOU NA DIREÇÃO DE UM DOS cômodos que davam para o claustro. Ficou lá dentro, entre neve e escombros, avaliando os recursos de que dispunha. Tinha uma arma e balas, então por que não tentar a mesma tática que tinha dado certo para Werner? Talvez o atirador do outro lado do claustro viesse na direção dele, dirigindo-se para a igreja, e ele pudesse surpreendê-lo.

—            Ele está ali dentro — ouviu um homem gritar.

Olhou para fora pela porta. Agora um segundo atirador estava no claustro, no lado mais estreito, passando pela entrada da igreja, vindo diretamente na direção de Malone. Pelo jeito, Ulrich Henn não tinha conseguido detê-lo.

O homem ergueu a arma e atirou mirando em Malone. Ele abaixou, e a bala acertou a parede.

Outro tiro ricocheteou por perto, atravessando o vão da porta, vindo do segundo atirador, do outro lado do claustro. Seu refúgio não tinha janelas, e as paredes e o telhado estavam intatos. O que parecera uma aposta certa se transformara de repente num problema sério.

Sem saída.

Ele estava encurralado.

 

           ASHEVILLE, 12H15

 

STEPHANIE ADMIRAVA A HOSPEDARIA DE BILTMORE ESTATE, UM PRÉDIO EXTENSO de pedra rústica e estuque no topo de um promontório gramado, diante da famosa adega da propriedade. O acesso para veículos era restrito aos hóspedes, mas ela e Davis tinham parado no portão principal e comprado um passe para passear pelo terreno, o que incluía o hotel.

Ela evitou o movimentado serviço de manobristas e estacionou em uma das vagas da área pavimentada. Em seguida, subiu com Davis por uma rampa ajardinada até a entrada principal, onde porteiros uniformizados os receberam com sorrisos. O interior dava uma idéia do que poderia ter sido uma visita aos Vanderbilt cem anos antes. Paredes iluminadas com acabamento opaco cor de mel, piso de mármore, objetos de arte elegantes e ricas estampas florais nas cortinas e na tapeçaria. Folhagens abundavam em vasos de pedra e animavam a decoração afetada que se estendia até o segundo andar. Seis metros acima do chão, via-se o teto ornamentado com enormes caixotes. As portas e janelas de vidro espelhado, além da varanda mobiliada com cadeiras de balanço, davam vista para a Floresta Nacional de Pisgah e as montanhas Smoky.

Por um momento Stephanie ficou escutando um pianista tocar perto de uma lareira revestida de lajota. Uma escadaria descia até o que soava e cheirava a sala de jantar, e havia uma procissão constante de clientes entrando e saindo. Na recepção, eles foram orientados a cruzar o saguão e passar pelo pianista, até um corredor ladeado por janelas que ia dar em salas de reunião e um centro de conferências, onde encontraram a mesa de inscrições para Mistérios Antigos Revelados.

Davis pegou um folheto de uma pilha e examinou a programação do dia.

—            Scofield não vai falar hoje à tarde.

Uma moça jovial de cabelos negros ouviu-o e disse:

—            O professor vai dar palestra amanhã. Hoje haverá sessões de informação.

—            Sabe onde está o Dr. Scofield? — perguntou Stephanie.

—            Estava por aqui hoje cedo, mas faz um tempo que não o vejo. —A jovem fez uma pausa. — Vocês são da imprensa também?

Stephanie atentou para a última palavra. — Já vieram outros? A mulher assentiu.

—            Pouco tempo atrás. Um homem. Queria falar com Scofield.

—            E o que você disse a ele? — perguntou Davis.

Ela deu de ombros.

—            A mesma coisa. Não faço idéia.

Stephanie decidiu examinar um programa e viu que a sessão seguinte estava agendada para começar às 13 horas. "A Sabedoria Pleidiana para Estes Tempos Desafiadores". Leu o resumo.

 

Suzanne Johnson é uma médium reconhecida mundialmente e autora de diversos best sellers. Junte-se a Suzanne e aos extraordinários pleidianos não físicos viajantes do tempo, à medida que ela os canaliza durante duas horas estimulantes de questões iluminadoras e respostas às vezes duras, mas sempre positivas e enriquecedoras. Os assuntos de interesse dos pleidianos incluem: a aceleração da energia, astrologia, pautas políticas e econômicas secretas, historia planetária oculta, jogos divinos, símbolos, controle da mente, habilidades psíquicas em desenvolvimento, cura da linha do tempo, autopotencialização pessoal e muito mais.

 

O restante da tarde apresentava uma porção de outras esquisitices com foco em marcas feitas em plantações, o fim do mundo iminente, locais sagrados e uma sessão extensa sobre a ascensão e queda da civilização, incluindo movimento binário, alterações em ondas eletromagnéticas e o impacto de eventos catastróficos, com ênfase na precessão dos equinócios.

Stephanie balançou a cabeça. Era como ficar olhando a tinta secar. Que perda de tempo.

Davis agradeceu à mulher e afastou-se da mesa com o folheto ainda em mãos.

—            Ninguém da imprensa está aqui para entrevistá-lo. Ela não tinha tanta certeza.

—            Sei o que está pensando, mas o nosso homem não seria tão óbvio.

—            Ele pode estar com pressa.

—            Ele pode não estar nem perto daqui.

Davis apressou-se na direção do saguão principal.

—            Aonde você está indo? — perguntou ela.

—            É hora do almoço. Vamos ver se Scofield come.

 

RAMSEY APRESSOU-SE EM VOLTAR AO ESCRITÓRIO E ESPEROU FOR HOVEY, QUE chegou alguns minutos depois e informou:

—            McCoy deixou o local imediatamente.

O almirante estava furioso.

—            Quero tudo o que temos sobre ela.

O assessor fez um gesto afirmativo com a cabeça.

—            Aquilo foi um trabalho solo — disse Hovey. — Você sabe disso.

—            Concordo, mas ela acha que precisa me gravar. Isso é um problema.

Hovey estava ciente dos esforços do chefe para assegurar a posição no Estado-Maior Conjunto, apenas não sabia dos pormenores. A relação duradoura de Ramsey com Charlie Smith era algo só dele. O almirante já havia prometido ao assessor que o levaria para o Pentágono consigo — incentivo mais do que suficiente para que Hovey participasse ativamente. Felizmente, todo capitão de mar e guerra queria se tornar almirante.

—            Consiga essa informação sobre ela agora — ordenou mais uma vez.

Hovey saiu do escritório. Ramsey pegou o telefone e discou o nú¬mero de Charlie Smith. Quatro toques, e a ligação foi atendida.

—            Onde você está?

—            Fazendo uma refeição deliciosa.

Ele não queria nenhum detalhe, mas sabia o que estava por vir.

—            A sala de jantar é linda. Uma sala grande com lareira, decorada de forma elegante. Iluminação suave, um convite ao relaxamento. E o atendimento? Soberbo. Meu copo de água não consegue ficar só até a metade e o cesto de pães está sempre cheio. O gerente até passou por aqui há um minuto para garantir que eu estivesse apreciando a refeição.

—            Charlie, cale a boca.

—            Está sensível hoje.

—            Ouça. Presumo que esteja fazendo o que pedi.

—            Como sempre.

—            Preciso que volte para cá amanhã, então seja rápido.

—            Acabaram de trazer uma amostra de sobremesas de creme brülée e musse de chocolate. Você realmente deveria visitar este lugar.

Ele não queria ouvir mais uma palavra.

—            Charlie, faça o que tem de fazer e volte até amanhã à tarde.

 

SMITH DESLIGOU O CELULAR E VOLTOU A ATENÇÃO PARA A SOBREMESA. DO OUTRO lado da sala de jantar principal do Inn on Biltmore Estate, o Dr. Douglas Scofield estava sentado a uma mesa, com outros três, almoçando.

 

STEPHANIE DESCEU A ESCADARIA ACARPETADA, ENTROU NA SALA DE JANTAR espaçosa do hotel e parou diante do balcão da hostess. Em mais uma lareira revestida com lajotas, o fogo crepitava. A maior parte das mesas cobertas com toalhas brancas estava ocupada. Ela notou as porcelanas finas, as taças de cristal, os castiçais de metal e muito tecido castanho, dourado, verde e bege. Cem por cento sulista em aparência e atmosfera. Davis ainda estava segurando o panfleto do congresso, e Stephanie sabia o que ele estava fazendo. Procurando um rosto que batesse com a foto proeminente de Douglas Scofield.

Ela o viu primeiro, a uma mesa perto da janela com três outros. Em seguida, Davis o avistou. Stephanie o agarrou pela manga e balançou a cabeça.

—            Não neste momento. Não podemos fazer uma cena aqui.

—            Não vou fazer.

—            Ele está acompanhado. Vamos pegar uma mesa e esperar até que ele termine, para depois abordá-lo.

—            Não temos tempo para isso.

—            E onde precisamos estar?

—            Não sei quanto a você, mas eu estou ansioso para ver a canalização dos pleidianos às 13 horas.

Ela sorriu.

—            Você não existe.

—            Mas estou conquistando você.

Stephanie decidiu se render e soltou a manga dele. Davis foi seguindo por entre as mesas, e ela foi atrás. Quando se aproximaram da mesa, Davis disse:

—            Dr. Scofield, gostaria de saber se posso trocar umas palavras com o senhor.

Scofield parecia ter 60 e poucos anos, nariz largo, cabeça calva e dentes que pareciam tetos e brancos demais para serem reais. O rosto cheio sugeria uma insolência que os olhos escuros dele confirmaram de imediato.

—            Estou almoçando neste momento.

A expressão de Davis permaneceu cordial.

—            Preciso falar com você. É muito importante.

Scofield repousou o garfo.

—            Como pode ver, estou ocupado com estas pessoas. Entendo que você está aqui no congresso e quer falar comigo, mas tenho de administrar isso com cuidado.

—            E por quê?

Ela não gostou do tom da pergunta. Davis também parecia ter o eu sou importante nas entrelinhas da explicação de Scofield.

O professor suspirou e apontou para o folheto que Davis segurava.

—            Faço isso todo ano, para estar disponível a quem estiver interessado em minhas pesquisas. Entendo que você queira discutir coisas, e isso é ótimo. Depois que eu acabar aqui, talvez possamos conversar no andar de cima, perto do piano?

O tom ainda parecia de irritação. Os três acompanhantes também pareciam incomodados. Um deles disse:

—            Esperamos por este almoço o ano todo.

—            E terão o almoço — Davis disse —, assim que eu terminar.

—            Quem é você? — perguntou Scofield.

—            Meu nome é Raymond Dyals, reformado da Marinha.

Stephanie viu o reconhecimento surgir no rosto de Scofield.

—            OK, Sr. Dyals. Aliás, o senhor deve ter descoberto a fonte da juventude.

—            Vai ficar surpreso com o que descobri.

Os olhos de Scofield tremeram.

—            Então, você e eu definitivamente precisamos conversar.

 

               OSSAU

 

MALONE DECIDIU AGIR. MOVEU A ARMA NUM ARCO E DEU DOIS DISPAROS PARA O outro lado do jardim do claustro. Não tinha ideia da posição do atirador, mas a mensagem estava clara. Ele estava armado.

Uma bala passou no meio do vão da porta e o fez cambalear para trás.

Malone determinou sua origem.

Partira do segundo atirador, do mesmo lado da galeria, à sua direita.

Olhou para o alto. O telhado triangular era sustentado por vigas formadas por toras de madeira bruta que se estendiam pela largura do cômodo. Havia uma confusão de pedras quebradas e escombros pelo chão e empilhada contra uma das paredes deterioradas. Malone enfiou a arma dentro do bolso do casaco e subiu nos fragmentos maiores, o que lhe acrescentou 60 centímetros de altura. Deu um salto, agarrou a viga fria, balançou as pernas para cima e montou na madeira como se fosse um cavalo. Aproximou-se da parede rapidamente e ficou 3 metros acima da porta. Ficou de pé, mantendo-se agachado, e, equilibrando-se sobre a viga, voltou a sacar a arma, os músculos firmes como feixes de cordas amarradas.

Tiros retumbaram do claustro. Vários.

Será que Herm havia entrado na briga?

Ouviu mais um impacto, parecido com aquele que ouvira quando Werner se atracara com Moreno na igreja, além de grunhidos, respiração ofegante e luta. Malone não conseguia ver nada além de pedras no chão abaixo, escuro graças à iluminação fraca.

Uma sombra apareceu. Malone se preparou. Dois tiros foram disparados, e o homem correu para dentro do cômodo.

Malone saltou da viga e caiu em cima do oponente, rolando rápido para o outro lado e se antecipando para a briga.

O homem era corpulento, de ombros largos, o corpo rígido, como se houvesse metal sob a pele. Tinha se recuperado rapidamente do ataque e estava de pé — sem a arma, que escorregara de sua mão.

Malone bateu com a lateral da pistola no rosto do homem, fazendo-o recuar até a parede, atordoado. Mirou a arma e se preparou para fazê-lo prisioneiro, mas um tiro estourou atrás de Malone, e o homem caiu sobre os entulhos.

Virou-se e viu Henn de pé, a arma apontada, na entrada do cômodo.

Christl apareceu.

Desnecessário indagar por que fora preciso atirar. Malone sabia. Mas queria descobrir:

—            O outro?

—            Morto — respondeu Christl, pegando a arma do chão.

—            Importa-se se eu ficar com isso? — perguntou Malone.

Ela tentou eliminar a surpresa do olhar.

—            Você é um tipo desconfiado.

—            Acontece quando as pessoas mentem para mim.

Ela lhe entregou a arma.

STEPHANIE SENTOU-SE COM DAVIS E SCOFIELD NO ANDAR DE CIMA, ONDE O saguão principal desembocava num quarto com uma vista panorâmica, mobiliado com cadeiras estofadas em veludo e estantes de livros embutidas. Havia pessoas examinando os títulos, e ela viu um pequeno aviso dizendo que tudo estava disponível para leitura.

Um garçom foi se aproximando, mas ela fez um sinal para que ele saísse.

—            Como você obviamente não é o almirante Dyals — disse Scofield —, quem são vocês?

—            Casa Branca — disse Davis. — Ela é do Departamento de Justiça. Combatemos o crime.

Scofield pareceu conter um arrepio.

—            Concordei em falar com vocês porque achei que fossem sérios.

—            Como esta bobagem aqui — disse Davis. Scofield corou.

—            Nenhum de nós considera este congresso uma bobagem.

—            É mesmo? O que há aqui? Cem pessoas numa sala neste exato momento, tentando canalizar uma civilização morta. Você é um antropólogo experiente, um homem que foi usado pelo governo em alguma pesquisa altamente confidencial.

—            Isso foi há muito tempo.

—            Você ficaria surpreso em saber quão relevante isso ainda é.

—            Suponho que tenham identificação?

—            Temos.

—            Deixem-me ver.

—            Alguém matou Herbert Rowland ontem à noite — disse Davis. — Na noite anterior, mataram um capitão de fragata reformado da Marinha que estava relacionado a Rowland. Você pode ou não se lembrar de Rowland, mas ele trabalhou com você em Fort Lee, quando você retirou dos caixotes toda aquela porcaria da operação Salto em Altura. Não temos certeza se você é o próximo a morrer, mas a possibilidade é grande. São credenciais suficientes?

Scofield riu.

—            Isso foi 38 anos atrás.

—            O que não parece importar — disse Stephanie.

—            Não posso falar do que aconteceu então. É confidencial.

Ele pronunciou as palavras como se fossem uma espécie de escudo, protegendo-o do perigo.

—            Mais uma vez — disse ela. — Isso também não parece importar. Scofield franziu o cenho.

—            Vocês dois estão me fazendo perder tempo. Tenho muitas pessoas com quem falar.

—            Que tal o seguinte — Stephanie disse. — Conte-nos o que puder. — Ela esperava que quando aquele idiota pretensioso começasse a falar, não parasse mais.

Scofield olhou para o relógio e disse:

—            Escrevi um livro. Mapas dos exploradores antigos. Vocês deveriam lê-lo porque contém muitas explicações. Podem obter um volume na livraria do congresso. — Apontou para a esquerda. — Por ali.

—            Dê-nos uma sinopse — disse Davis.

—            Por quê? Você disse que somos todos doidos. O que importa o que eu penso?

Davis começou a falar, mas Stephanie fez um gesto para que parasse.

—            Convença-nos. Não viajamos até aqui para nada.

Scofield hesitou, aparentemente buscando as palavras certas para expor seu argumento.

—            Conhecem a Navalha de Occam? Ela balançou a cabeça.

—            É um princípio. Entidades não devem se multiplicar sem necessidade. Falando de forma simplificada: não se usam soluções elaboradas quando as simples servem. Isso se aplica a quase tudo, inclusive para as civilizações.

Stephanie se questionou se iria se arrepender por ter perguntado a opinião desse homem.

—            Os primeiros textos sumérios, incluindo o famoso Épico de Gilgamesh, falam repetidamente de um povo alto, semelhante a deuses, que vivia entre eles. Chamavam-nos de Vigilantes. Textos judaicos antigos, incluindo algumas versões da Bíblia, fazem referência a esses Vigilantes sumérios, que são descritos como deuses, anjos e criaturas do paraíso. O Livro de Enoch conta como esse povo singular enviou emissários ao mundo para ensinar novas habilidades aos homens. Uriel, o anjo que ensinou astronomia a Enoch, é descrito como um desses Vigilantes. Oito Vigilantes são mencionados no livro daquele profeta. Supunha-se que eram especialistas em feitiços, botanomancia, astrologia, constelações, clima, geologia e astronomia. Até os Pergaminhos do Mar Morto fazem referência aos Vigilantes, inclusive ao episódio em que o pai de Noé fica preocupado com o fato de o neto ser tão extraordinariamente bonito que chega a achar que a nora poderia ter se deitado com um desses Vigilantes.

—            Isso é absurdo — disse Davis.

Scofield conteve um sorriso.

—            Sabe quantas vezes já ouvi isso? Eis alguns fatos históricos. No México, Quetzalcoatl, o deus loiro, de pele branca e barba, recebeu o crédito de ter ensinado à civilização que precedeu os astecas. Ele veio do mar e usava vestes longas com cruzes bordadas. Quando Cortês chegou, no século XVI, foi confundido com Quetzalcoatl. Os maias tiveram um professor parecido, Kukulcán, que veio do mar onde o sol nasce. Os espanhóis queimaram todos os textos maias no século XVII, mas um bispo registrou uma anotação que sobreviveu. Ela falava de visitantes com mantos longos que vieram repetidas vezes, liderados por alguém chamado Votan. Os incas tinham um deus-professor, Vinacocha, que veio do grande oceano a oeste deles. Esse povo também cometeu o mesmo erro com Pizarro, ao achar que ele fosse o deus retornando. Então, Sr. Casa Branca, quem quer que você seja, acredite, não sabe do que está falando.

Ela estava certa. O homem gostava de falar.

—            Em 1936, um arqueólogo alemão encontrou um vaso de argila com um cilindro de cobre que continha uma vara de ferro, num túmulo parto datado de 250 a.C. Quando suco de fruta era derramado dentro desse vaso, era gerada uma corrente de meio volt, que durava duas semanas. O suficiente para a galvanização, que sabemos que era feita naquela época. Em 1837, foi encontrada na Grande Pirâmide uma placa de ferro que havia sido fundida a mais de mil graus Celsius. Continha níquel, o que é muito incomum, e era datada de 2 mil anos antes da Idade do Ferro. Quando Colombo desembarcou na Costa Rica em 1502, foi recebido com grande respeito e levado para o interior até o túmulo de uma pessoa importante, um tumulo decorado com a proa de um estranho navio. A laje funerária retratava homens bastante parecidos com Colombo e seus homens. Até aquele dia, nenhum europeu havia visitado aquela terra.

"A China é especialmente interessante — continuou Scofield. — Seu grande filósofo Lao-Tsé, assim como Confúcio, falava sobre uns Antigos. Lao os considerava sábios, cultos, poderosos, afetuosos e, o mais importante, humanos. Escreveu sobre eles no século VII a.C. Seus textos sobreviveram. Querem ouvir?"

—            Foi para isso que viemos — Stephanie deixou claro.

—            Os Mestres Antigos eram discretos, misteriosos, profundos, compreensivos. A extensão de seu conhecimento é insondável. Por ser insondável, tudo o que podemos fazer é descrever a aparência deles. Vigilantes como homens na travessia de um córrego no inverno. Alertas como homens conscientes do perigo. Gentis como hóspedes convidados. Dóceis como gelo prestes a derreter. Simples como pedaços de madeira bruta. Palavras interessantes de muito tempo atrás.

Curioso, Stephanie tinha de admitir.

—            Sabem o que mudou o mundo? O que alterou, para sempre, o rumo da existência humana? — Scofield não esperou resposta.—A roda? O fogo? — Ele balançou a cabeça. — Mais do que essas coisas. A escrita. Foi o que alterou tudo. Quando aprendemos a registrar nossos pensamentos, de modo que outros, séculos depois, pudessem conhecê-los, isso mudou o mundo. Sumérios e egípcios deixaram registros escritos de um povo que os visitara e lhes ensinara coisas. Pessoas que pareciam normais e viviam e morriam assim como eles. Não sou eu quem está falando. São fatos históricos. Vocês sabiam que o governo canadense neste exato momento está investigando um local submarino perto das ilhas Queen Charlotte em busca de uma civilização cuja existência nunca foi conhecida antes? É uma espécie de acampamento base que um dia esteve às margens de um lago antigo.

—            De onde vieram esses visitantes? — perguntou ela.

—            Do mar. Navegavam com a precisão de peritos. Recentemente, foram descobertos nas proximidades de Chipre instrumentos marítimos que têm 12 mil anos de idade, alguns dos artefatos mais antigos já encontrados lá. O fato de terem sido encontrados indica que alguém de fato navegou pelo Mediterrâneo e ocupou Chipre 2 mil anos antes do que se acreditava. No Canadá, navegadores teriam sido atraídos por águas ricas em laminárias. É lógico que essas pessoas buscavam locais privilegiados para alimentação e comércio.

—            Como eu disse — disse Davis. — Muita ficção científica.

—            É? Sabia que a combinação de profecias e benfeitores quase divinos constitui uma grande parte da mitologia dos povos nativos da América pré-colombiana? Registros maias falam de Popul Vuh, uma terra onde a luz e a escuridão existiam juntas. Desenhos pré-históricos em cavernas e rochas na África e no Egito mostram um povo marítimo não identificado. Os da França, datados de 10 mil anos atrás, mostram homens e mulheres vestindo roupas confortáveis, não as peles e os ossos geralmente associados às pessoas daquela época. Uma mina de cobre encontrada na Rodésia é datada de 47 mil anos atrás. O local parece ter sido escavado para um propósito específico.

—            Isso é Atlântida? — perguntou Davis.

—            Não existe tal coisa — disse Scofield.

—            Aposto que tem um monte de gente neste hotel que discordaria de você.

—            E estariam erradas. Atlântida é uma fábula. É um tema recorrente em muitas culturas, assim como a Grande Inundação faz parte das religiões do mundo. Trata-se de uma noção romântica, mas a realidade não é tão fantástica. Antigas construções megalíticas submersas foram encontradas no fundo de mares rasos, perto de costas, no mundo todo. Malta, Egito, Grécia, Líbano, Espanha, índia, China, Japão: todos as têm. Foram construídas antes da última Era Glacial, e quando o gelo derreteu por volta de 10.000 a.C., o nível do mar subiu e as con¬sumiu. Essas são as verdadeiras Atlântidas e comprovam a Navalha de Occam. Nenhuma solução elaborada cabe quando as simples são suficientes. Todas as explicações são racionais.

—            E o racional aqui é...? — perguntou Davis.

—            Enquanto os homens das cavernas estavam apenas aprendendo a lavrar a terra com ferramentas de pedra e a viver em aldeias rústicas, existia um povo que construía embarcações próprias para o alto-mar e mapeava o globo com precisão. Esse povo parecia entender seu propósito e tentou nos ensinar coisas. Eles vieram em paz. Não há uma única menção de agressão ou hostilidade. Mas suas mensagens perderam-se com o passar do tempo, especialmente à medida que a humanidade moderna começou a se considerar o auge da conquista intelectual. — Scofield lançou um olhar severo para Davis. — Nossa arrogância será nossa ruína.

—            A insensatez — disse Davis — pode ter o mesmo efeito. Scofield parecia pronto para aquela resposta.

—            Por todo o planeta, esses povos antigos deixaram mensagens, quer na forma de artefatos, mapas ou manuscritos. Essas mensagens não são claras nem diretas, admito, mas são uma forma de comunicação que diz: A sua civilização não é a primeira, nem as culturas que vocês consideram suas raízes são o verdadeiro começo. Milhares de anos atrás, sabíamos o que vocês só vieram a descobrir recentemente. Viajamos por todo o seu jovem mundo quando campos de gelo encobriam o norte e os mares do sul ainda eram navegáveis. Deixamos mapas dos lugares que visitamos. Deixamos conhecimentos do seu mundo e do cosmo, de matemática, ciência e filosofia. Algumas das raças que visitamos retiveram esse conhecimento, o que ajudou vocês a construir seu mundo. Lembrem-se de nós. Davis não pareceu impressionado.

—            O que isso tem a ver com a operação Salto em Altura e Raymond Dyals?

—            Muito. Mas, novamente, é confidencial. Acredite em mim, eu queria que não fosse. Mas não posso mudar isso. Dei minha palavra e a cumpri todos esses anos. Agora, como vocês dois acham que sou doido, o que, aliás, bate com minha opinião sobre vocês, eu vou embora.

Scofield levantou-se. Mas antes de sair andando, hesitou.

—            Uma ideia que vocês poderiam considerar. Um estudo exaus¬tivo foi feito uma década atrás na Universidade de Cambridge, por uma equipe de estudiosos renomados. A conclusão deles? Menos de dez por cento dos registros da antiguidade sobreviveu até hoje. Noventa por cento do conhecimento antigo se perdeu. Então, como saber se alguma coisa é, de fato, um absurdo?

 

         WASHINGTON, D.C.

           13H10

 

RAMSEY CAMINHOU PELO CAPITOL MALL, SEGUINDO PARA O LOCAL ONDE, NO dia anterior, ele se encontrara com o assessor do senador Aatos Kane. O mesmo jovem estava parado com o mesmo sobretudo de lã, remexendo os pés por causa do frio. Desta vez, Ramsey fez o homem esperar 45 minutos.

—            OK, almirante. Entendi. Você venceu — disse o assessor, enquanto Ramsey se aproximava. — Faça-me sofrer.

Ramsey franziu a testa, espantado.

—            Isto não é uma competição.

—            Claro. Eu sacaneei você na outra vez, aí você sacaneou o meu chefe, e agora somos todos amiguinhos. É um jogo, almirante, e você venceu.

Ramsey pegou um pequeno aparelho de plástico, do tamanho de um controle remoto de televisão, e ligou.

—            Peço desculpas.

A unidade confirmou rapidamente que não havia nenhum aparelho de escuta. Hovey estava do outro lado do parque, monitorando para certificar-se de que nenhum dispositivo transmissor estava sendo usado. Mas Ramsey duvidava que isso fosse problema. Aquele subordinado trabalhava para um profissional que entendia que era preciso dar para poder receber.

—            Fale comigo — disse ele.

—            O senador conversou com o presidente hoje de manhã. Disse o que queria. O presidente indagou quanto ao nosso interesse, e o senador disse que admirava você.

Um dos aspectos da performance de Diane McCoy foi confirmado. Ramsey permaneceu parado, as mãos nos bolsos, e continuou escutando.

—            O presidente expressou algumas reservas. Disse que você não era um favorito da equipe. O pessoal da Casa Branca tinha outros nomes em mente. Mas o senador sabia o que o presidente queria.

Ramsey estava curioso quanto a isso.

—            Diga.

—            Está prestes a abrir uma vaga na Suprema Corte. Um pedido de demissão. Ajustiça quer dar o direito de escolha à atual administração. Daniels tem um nome em mente e quer que nós o levemos para confir¬mação do senado.

Interessante.

—            Nós presidimos o Comitê Judiciário. O indicado é bom; então, sem problemas. Podemos fazer a coisa acontecer. — O assessor parecia orgulhoso de fazer parte do time dos favoritos.

—            O presidente demonstrou ter algum problema sério comigo? O assessor permitiu-se um sorriso largo, depois uma risadinha.

—            O que você quer? Um convite gravado numa placa? Presidentes não gostam de ser mandados nem que lhe peçam favores. Gostam de pedir. Daniels, no entanto, pareceu receptivo à coisa toda. Acha que os chefes do Estado-Maior Conjunto não valem porcaria nenhuma mesmo.

—            Sorte nossa que ele só tem menos de três anos no cargo.

—            Não sei até que ponto é sorte nossa. Daniels demonstrou ser um negociador. Sabe dar e receber. Não tivemos nenhum problema para lidar com ele, e ele é popular pra caramba.

—            Melhor um mal conhecido que o que não se conhece?

—            Por aí.

Ramsey precisava extrair o que pudesse da fonte. Tinha de saber quem mais, se é que havia alguém, estava auxiliando Diane McCoy em sua cruzada surpreendente.

—            Estamos interessados em saber quando você fará a investida no governador da Carolina do Sul — disse o assessor.

—            No dia seguinte à minha mudança para o meu novo escritório no Pentágono.

—            E se não conseguir garantir o resultado quanto ao governador?

—            Aí, simplesmente vou destruir seu chefe. — Ramsey permitiu um prazer quase sexual transparecer em seu olhar. — Vamos fazer a coisa do meu jeito. Ficou claro?

—            E qual é o seu jeito?

—            Para começar, quero saber exatamente o que vocês estão fazendo para que a minha nomeação aconteça. Cada detalhe, e não só o que querem me contar. Se minha paciência for testada, acho que vou aceitar a sua sugestão daquele nosso último encontro: vou me aposentar e assistir à ruína da carreira de todos vocês.

O assessor ergueu as mãos, fingindo rendição.

—            Calma, almirante. Não vim aqui para brigar, vim para informá-lo.

—            Então me informe, seu bostinha.

O assessor aceitou a resposta encolhendo os ombros.

—            Daniels aceitou. Disse que será feito. Kane pode conseguir os votos do Comitê Judiciário. Daniels sabe disso. Sua nomeação será amanhã.

—            Antes do funeral de Sylvian?

O assessor fez que sim.

—            Não há por que esperar.

Ramsey concordava. Mas ainda havia Diane McCoy.

—            Alguma objeção do gabinete da conselheira de Segurança Nacional?

—            Daniels não mencionou nada. Mas por que mencionaria?

—            Não acha que devemos saber se há funcionários planejando sa¬botar o que estamos fazendo?

O assessor deu um sorriso melancólico.

—            isso não deveria ser problema. Quando Daniels decide alguma coisa, é isso e pronto. O presidente pode cuidar do pessoal dele. Qual o problema, almirante? Você tem inimigos lá?

Não. Uma mera complicação. Mas estava começando a perceber o limite do alcance dela.

—            Diga ao senador que fico grato pelos esforços e que ele mantenha contato.

—            Estou dispensado?

O silêncio indicou que sim. O assessor pareceu contente que a conversa tivesse terminado e partiu.

Ramsey foi até o mesmo banco que ele havia aquecido antes e sentou-se. Hovey aguardou cinco minutos, depois se aproximou, sentou-se ao lado dele e disse:

— A área está limpa. Ninguém estava ouvindo.

—            Está tudo certo com Kane. É Diane. Ela está fazendo isso sozinha.

—            Talvez ela pense que controlar você é a passagem dela para algo maior e melhor.

Hora de descobrir o quanto seu assessor queria esse maior e melhor.

—            Talvez ela tenha que ser eliminada. Como Wilkerson. O silêncio de Hovey foi mais explícito que palavras.

—            Temos muita informação sobre ela? — perguntou Ramsey ao oficial.

—            Bastante, mas ela é relativamente tediosa. Mora sozinha, não tem relacionamentos, é viciada em trabalho. Os colegas gostam dela, mas Diane não é alguém ao lado de quem todos queiram se sentar em jantares oficiais. Provavelmente ela está usando isso como uma forma de aumentar o próprio valor. Fazia sentido.

O celular de Hovey tocou, abafado pelo casaco de lã. A ligação foi curta e terminou logo.

—            Mais problemas. Ramsey esperou.

—            Diane McCoy acabou de tentar entrar no armazém de Fort Lee.

 

MALONE ENTROU NA IGREJA, COM HENN E CHRISTL À SUA FRENTE. ISABEL HAVIA descido do coro e estava com Dorothea e Werner.

Ele decidiu acabar com o jogo de intrigas e aproximou-se de Henn por trás, apertando a pistola contra a nuca do homem e de-sarmando-o.

Em seguida, deu um passo para trás e apontou o cano para Isabel.

—            Diga para o seu mordomo ficar calmo.

—            E o que você faria, Herr Malone, se eu me recusasse? Atiraria em mim?

Ele baixou a arma.

—            Não há necessidade. Tudo isso aqui foi uma encenação. Aqueles quatro tinham de morrer. Ainda que tenha ficado claro que nenhum deles sabia disso. Você não queria que eu falasse com eles.

—            O que o faz ter tanta certeza? — perguntou Isabel.

—            Eu presto atenção.

—            Está bem. Eu sabia que aqueles homens estariam aqui, e eles de fato pensavam que eram nossos aliados.

—            Então, eram mais idiotas do que eu.

—            Talvez não eles, mas certamente o homem que os enviou. Podemos dispensar o drama, dos dois lados, e conversar?

—            Estou ouvindo.

—            Sei quem está tentando matar você — disse Isabel. — Mas preciso da sua ajuda.

Malone sentiu os primeiros ruídos da noite vindo do lado de fora das janelas sem vidraça, o ar ficando mais frio a cada segundo. Também sentiu o peso das palavras da mulher.

—            Um vai ajudar o outro?

—            Peço desculpas pelo engano, mas parecia a única forma de obter sua cooperação.

—            Deveria simplesmente ter pedido.

—            Tentei em Reichshoffen. Achei que isto funcionaria melhor.

—            O que poderia ter me matado.

—            Ora, Herr Malone, tenho muito mais confiança em suas habili¬ades do que você mesmo parece ter.

Ele não aguentava mais.

—            Vou voltar para o hotel. — E virou-se para ir embora

—            Eu sei para onde Dietz estava indo — Isabel disse.—Aonde seu pai o estava levando na Antártida.

Ela que se danasse.

—            Em algum lugar desta igreja está o que Dietz não tinha. O que ele pretendia encontrar lá.

A impetuosidade de Malone foi substituída pela fome.

—            Vou jantar. — E continuou andando. — Estou disposto a ouvir enquanto como, mas se a informação não for boa pra caramba, vou embora.

—            Eu lhe garanto, Herr Malone, é mais que boa.

 

           ASHEVILLE

 

— VOCÊ PRESSIONOU SCOFIELD DEMAIS — DISSE STEPHANIE A EDWIN DAVIS.

Eles ainda estavam sentados no quarto. Lá fora, uma tarde gloriosa de inverno iluminava as florestas distantes. À esquerda, na direção sudeste, Stephanie avistou o edifício principal a cerca de um quilôme¬tro e meio dali, coroando o promontório que ocupava.

—            Scofield é um imbecil — disse Davis. — Acha que Ramsey se importa com o fato de ele ter ficado de boca fechada todos esses anos.

—            Não sabemos com o que Ramsey se importa.

—            Alguém vai matar Scofield.

Ela não tinha tanta certeza.

—            E o que você propõe que a gente faça?

—            Cole nele.

—            Poderíamos prendê-lo.

—            E perder nossa isca.

—            Se você estiver certo, isso é justo com ele?

—            Ele acha que somos idiotas.

Stephanie também não gostou de Douglas Scofield, mas isso não deveria influenciar as decisões deles. Mas havia mais uma coisa.

—            Percebe que ainda não temos prova de nada?

Davis olhou para o relógio do outro lado do saguão.

—            Tenho de fazer uma ligação.

Ele levantou-se da cadeira e se aproximou das janelas, acomodando-se num sofá florido a uns 3 metros de distância, virado para o outro lado, olhando para fora. Stephanie o observou. Ele era ao mesmo tempo perturbado e complexo. Interessante saber, no entanto, que, como ela, Davis lutava com as próprias emoções. E também não gostava de falar sobre elas.

Ele fez um sinal para que Stephanie se aproximasse. Ela foi até lá e sentou-se ao seu lado.

—            Ele quer falar com você de novo.

A mulher acomodou o celular no ouvido, sabendo exatamente quem estava do outro lado da linha.

—            Stephanie — disse o presidente Daniels —, isto está ficando complexo. Ramsey conseguiu manobrar Aatos Kane. O bom senador quer que eu confira a ele um cargo dentre os chefes do Estado-Maior Conjunto. Isso não vai acontecer de jeito nenhum, mas não deixei que Kane soubesse. Uma vez ouvi um antigo provérbio indiano. Se você mora no rio, tem de ficar amigo dos crocodilos. Parece que Ramsey está praticando esse truísmo.

—            Ou pode ser o contrário.

—            Que é o que de fato torna isto complexo. Esses dois não uniram forças de modo voluntário. Algo aconteceu. Posso ficar enrolando por alguns dias, mas precisamos fazer progressos do seu lado. Como está o meu garoto?

—            Ávido.

Daniels deu uma risadinha.

—            Agora você entende o que tenho de aguentar com vocês dois. Difícil manter as coisas sob controle?

—            Pode-se dizer que sim.

—            Teddy Roosevelt foi quem melhor expressou isso. "Faça o que puder com o que você tiver, onde estiver." Fique assim.

—            Acho que não tenho muita escolha, certo?

—            Não, mas aí vai uma notícia boa. O chefe da estação de Berlim ligado à inteligência naval, um capitão de mar e guerra chamado Sterling Wilkerson, foi encontrado morto em Munique.

—            O que você acredita não ser coincidência.

—            Caramba, claro que não. Ramsey está aprontando algo aqui e lá. Não posso provar, mas intuo. E quanto a Malone?

—            Não tive mais notícias dele.

—            Diga-me a verdade. Acha que esse professor está em perigo?

—            Não sei. Mas acho que deveríamos ficar por aqui até amanhã, para ter certeza.

—            Vou dizer algo que não disse a Edwin. Preciso que você faça cara de paisagem.

Ela sorriu.

—            OK.

—            Tenho minhas dúvidas em relação a Diane McCoy. Aprendi há muito tempo a prestar atenção em meus inimigos, porque eles são os primeiros a saber dos nossos erros. Eu a tenho observado. Edwin sabe disso. O que ele não sabe é que ela saiu daqui hoje e foi de carro para a Virgínia. Neste momento, está em Fort Lee, inspecionando um armazém que o Exército aluga para a inteligência naval. Eu verifiquei. O próprio Ramsey esteve lá ontem.

Algo que Stephanie já sabia, graças à sua equipe.

Davis fez sinal de que ia buscar algo para beber numa mesa perto da lareira e, por meio de gestos, perguntou se ela queria algo. Ela balançou a cabeça.

—            Ele saiu — disse Stephanie ao telefone. — Imagino que você esteja me contando isso por algum motivo.

— Parece que Diane fez amizade com os crocodilos também, mas estou preocupado que ela seja devorada.

—            Não tinha pessoa mais legal para isso acontecer.

—            Acredito que você tenha um traço de crueldade.

—            Tenho um traço realista.

—            Stephanie, você parece preocupada.

—            Por mais que eu possa contestar, tenho a sensação de que nosso homem está aqui.

—            Quer ajuda? — perguntou Daniels.

—            Eu quero, mas Edwin não.

—            Desde quando você dá ouvidos a ele?

—            O show é dele. Está numa missão.

—            O amor é um inferno, mas não deixe que seja a ruína para Edwin. Preciso dele.

 

SMITH APRECIAVA A MUSICA DO PIANO E O FOGO CREPITANTE DA LAREIRA. O almoço tinha sido ótimo. A salada e o antepasto estavam soberbos, e a sopa, deliciosa, mas o cordeiro fresco com legumes da estação tinha sido, de longe, o melhor.

Ele subira depois que o homem e a mulher abordaram Scofield e interromperam sua refeição. Não conseguiu ouvir o que foi dito lá embaixo nem ali. Perguntou a si mesmo se seriam os mesmos dois da noite anterior. Difícil saber.

Durante as últimas horas, Scofield havia sido abordado por uma pessoa atrás da outra. Na verdade, o congresso todo parecia uma festividade voltada para ele. O professor era um dos organizadores originais do evento. Era o palestrante principal da noite seguinte. Também iria conduzir um passeio à luz de velas pela mansão principal nesta noite. A manhã do dia seguinte seria o que o folheto chamava de Aventura Frenética de Scofield. Três horas de caça a javalis com arco e flecha numa floresta próxima, com o próprio professor liderando a atividade. A mulher na mesa de inscrições dissera que a excursão matinal era muito procurada e que cerca de trinta pessoas participavam todo ano.

Mais duas pessoas interessadas no Dr. Douglas Scofield não era necessariamente motivo de alarme. Assim, Smith acalmou a paranóia e não permitiu que ela o dominasse. Não queria admitir, mas estava abalado com a noite anterior.

Viu o homem levantar-se do sofá e seguir até a mesa com toalha verde ao lado da lareira, servindo-se de um copo de água gelada.

Smith levantou-se e andou casualmente até lá, enchendo sua xícara de chá com o conteúdo de uma jarra de prata. Esse serviço era um toque de sofisticação. Bebidas disponíveis o dia todo para os hóspedes. Adicionou um pouco de adoçante — ele odiava açúcar — e misturou.

O homem voltou para o quarto, bebendo sua água, até a mulher que terminava uma ligação no celular. O fogo da lareira estava baixo e quase não crepitava mais. Um dos atendentes abriu uma grade de ferro e acrescentou algumas toras. Smith sabia que poderia seguir aqueles dois para ver aonde aquilo ia dar, mas felizmente havia se decidido por uma conduta mais decisiva.

Algo inovador. Com resultados garantidos. E apropriado para o grande Douglas Scofield.

 

MALONE ENTROU NOVAMENTE NA L’ARLEQUIN E SEGUIU PARA O RESTAURANTE, onde tapetes coloridos cobriam um piso de tábuas de carvalho. Sua comitiva o acompanhou, tirando cada um o próprio casaco. Isabel falou com o homem que estivera à frente da recepção antes. O atendente saiu e fechou as portas do restaurante. Malone tirou o casaco e as luvas e notou que sua camisa estava úmida de transpiração.

— Há apenas oito quartos lá em cima — disse Isabel — e eu reservei todos para esta noite. O dono está preparando uma refeição.

Malone sentou-se em um dos bancos que cercavam duas mesas de carvalho.

—            Ótimo. Estou com fome.

Christl, Dorothea e Werner sentaram-se na frente dele. Herm ficou afastado, segurando uma mochila. Isabel situou-se na cabeceira da mesa.

—            Herr Malone, serei sincera com você.

—            Tenho sérias dúvidas quanto a isso, mas prossiga.

As mãos dela enrijeceram-se, batendo os dedos na mesa com ansiedade.

—            Não sou seu filho — disse ele — e não estou no testamento; então vá direto ao assunto.

—            Sei que Hermann veio aqui duas vezes — disse ela. — Uma antes da guerra, em 1937. A outra, em 1952. Minha sogra contou a mim e a Dietz sobre as viagens pouco antes de ela morrer. Mas a mulher não sabia nada sobre o que Hermann fez aqui. O próprio Dietz veio cerca de um ano antes de desaparecer.

—            Você nunca mencionou isso — disse Christl.

Isabel balançou a cabeça.

—            Nunca percebi a relação entre este local e a busca. Só sabia que os dois homens tinham vindo. Ontem, quando você me falou do lugar, entendi a ligação imediatamente.

A carga de adrenalina da igreja se havia esgotado, e o corpo de Malone parecia pesado com a fadiga. Mas ele precisava se concentrar.

—            Então, Hermann e Dietz estiveram aqui. Isso não ajuaa muito, uma vez que, aparentemente, só Hermann encontrou alguma coisa. E ele não contou a ninguém.

—            O testamento de Eginhardo — disse Christl — deixa claro que se deve esclarecer esta busca por meio do emprego da perfeição do anjo à santificação do soberano. Isso nos traz de Aachen para cá. Depois, apenas os que apreciam o trono de Salomão e a frivolidade romana encontrarão o caminho para os céus.

Dorothea e Werner permaneceram em silêncio. Malone perguntou-se por que eles dois estavam lá. Será que já haviam cumprido seu papel na igreja? Apontou para eles e perguntou:

—            Vocês se beijaram e fizeram as pazes?

—            Isso tem alguma importância? — perguntou Dorothea. Malone deu de ombros.

—            Para mim, tem.

—            Herr Malone — disse Isabel. — Temos de resolver esse desafio.

—            Você viu aquela igreja? É uma ruína. Não há nada lá de 1.200 anos atrás. As paredes mal ficam de pé, e o telhado é novo. O piso está rachado e despedaçado, e o altar, corroído. Como você planeja resolver alguma coisa?

Isabel fez um sinal e Henn entregou-lhe a mochila. Ela desafivelou as tiras de couro e retirou um mapa rasgado, num papel desbotado cor de ferrugem. Com cuidado, desdobrou a folha, que devia ter uns 60 por 45 centímetros, e a estendeu na mesa. Malone viu que não era de nenhum país ou continente, mas a representação de parte de uma costa irregular.

—            Este é o mapa de Hermann, usado durante a expedição nazista de 1938 na Antártida. É o local que ele explorou.

—            Não tem nada escrito — disse ele.

As localizações estavam marcadas com Δs. Xs pareciam indicar montanhas. Um □ identificava algo central, e uma rota para esse ponto era mostrada em sentidos de ida e de volta, mas não havia uma única palavra em lugar algum.

—            Meu marido deixou isto quando navegou para os Estados Unidos em 1971. Levou com ele outro desenho. Mas sei exatamente aonde Dietz estava indo. — Isabel tirou um segundo mapa dobrado da mochila. Mais novo, azul, intitulado Mapa de Viagem Internacional da Antártida, Escala 1:8.000.000. — Essa informação está toda aqui.

Ela pôs a mão na mochila e tirou mais dois objetos, ambos dentro de sacos plásticos. Os livros. Um do túmulo de Carlos Magno, que Dorothea lhe havia mostrado. O outro, da sepultura de Eginhardo, que havia ficado com Christl.

Isabel colocou na mesa o de Christl e ergueu o de Dorothea.

—            Este é a chave, mas não conseguimos lê-lo. A habilidade para fazer isso está aqui, naquele mosteiro. Temo que, apesar de sabermos aonde ir na Antártida, a viagem seria improdutiva a menos que soubéssemos o que está nestas páginas. Precisamos ter, como escreveu Eginhardo, uma compreensão total do céu.

—            Seu marido foi sem essa compreensão.

—            O erro dele — disse Isabel.

—            Podemos comer? — perguntou Malone, cansado de ouvir a mulher.

—            Entendo que você esteja frustrado conosco — disse Isabel. — Mas vim lhe propor um acordo.

—            Não, veio para armar uma para cima de mim. — Ele encarou as irmãs. — De novo.

—            Se descobrirmos como ler este livro — disse Isabel. — Se isso parecer que vale a viagem, e acredito que valerá, devo supor que você irá para a Antártida?

—            Não tinha chegado a pensar nisso ainda.

—            Quero que leve minhas filhas com você, além de Werner e Ulrich.

—            Mais alguma coisa? — perguntou Malone, quase achando graça.

—            Estou falando muito sério. É o preço que se tem de pagar para saber a localização. Sem essa localização, a viagem seria tão fútil quanto a de Dietz.

—            Então, acho que não vou conhecer, porque isso é uma loucura. Não estamos falando de uma folia na neve. É a Antártida. Um dos locais mais inóspitos da Terra.

—            Verifiquei hoje de manhã. A temperatura na base de Halvorsen, que é o ponto de aterrissagem mais próximo do local, era -70C. Não tão ruim. O tempo também estava relativamente calmo.

—            O que pode mudar em dez minutos.

-— Parece que você já esteve lá — disse Werner.

—            Estive. Não é um lugar bom para se dar um passeio.

—            Cotton — disse Christl. — Minha mãe nos explicou isso antes. Eles estavam indo para um local específico. — Ela apontou para o mapa sobre a mesa. — Você percebe que o submarino ainda poderia estar nas águas perto desse local?

A mulher usou a única carta que ele receava. Malone já havia presu¬mido a mesma coisa. O relatório do tribunal de inquérito mencionava a última localização conhecida do NR-1A: 73° S, 15° O, aproximadamente 240 quilômetros ao norte do cabo Norvegia. Isso agora poderia ser comparado com outro ponto de referenda, o que poderia ser o suficiente para permitir a Malone encontrar a embarcação naufragada. Mas para ser capaz de fazer isso, ele teria de cooperar.

—            Suponho que, se eu concordar em levar esses passageiros, não me dirão nada até estarmos no ar.

—            Na verdade, só quando estiver no solo — disse Isabel. — Ulrich foi treinado em navegação pela Stasi. Vai guiá-los, uma vez que vocês estiverem lá.

—            Estou totalmente chocado com a falta de confiança que você tem em mim.

—            Mais ou menos a mesma que você tem em mim.

—            Sabe, não terei a palavra final sobre quem vai. Precisarei da ajuda das Forças Armadas dos Estados Unidos para chegar lá. Eles podem não permitir mais ninguém.

A expressão carregada e sombria de Isabel foi aliviada por um sorriso ligeiro.

—            Ora, Herr Malone, você pode fazer mais que isso. Terá o poder de fazer as coisas acontecerem. Disso, tenho certeza.

Ele encarou os outros sentados do outro lado da mesa.

—            Vocês três têm alguma idéia da situação em que estão se metendo?

—            É o preço que nós temos de pagar — disse Dorothea. Agora, Malone entendeu. O jogo ainda não tinha acabado.

—            Eu consigo dar conta — acrescentou Dorothea. Werner concordou:

—            Eu também.

Malone olhou fixamente para Christl.

—            Quero saber o que aconteceu com eles — disse ela, olhando para baixo.

Ele também queria. Devia estar louco.

—            OK, Frau Oberhauser, se resolvermos a busca, negócio fechado.

 

RAMSEY ABRIU A PORTA E SAIU DO HELICÓPTERO. TINHA IDO DIRETO DE Washington até Fort Lee na aeronave que a inteligência naval mantinha disponível 24 horas por dia na sede administrativa.

Um carro esperava por ele e o levou até onde Diane McCoy estava detida. O almirante ordenara sua retenção no momento em que Hovey o informara da visita dela à base. Manter uma vice-conselheira de segurança nacional sob custódia poderia representar um problema, mas Ramsey garantira ao comandante da base que assumiria total responsabilidade.

Ele duvidava que houvesse qualquer efeito colateral. O passeio tinha sido ideia de Diane, e ela não iria envolver a Casa Branca. Tal conclusão era fortalecida pelo fato de que ela não fizera nenhuma ligação na base.

Ele saiu do carro e entrou no prédio de segurança, onde um oficial subalterno escoltou-o até Diane. Ramsey entrou na sala e fechou a porta. A mulher havia sido deixada à vontade no escritório particular do chefe de segurança.

— Até que enfim — disse ela. — Já faz quase duas horas.

Ramsey desabotoou o sobretudo. Já fora informado de que Diane tinha sido revistada e passado por inspeção eletrônica. Sentou-se numa cadeira ao lado dela.

—            Achei que eu e você tivéssemos um acordo.

—            Não, Langford. Você tinha um acordo para si. Eu não tinha nada.

—            Eu lhe disse que ia garantir sua vaga na próxima administração.

—            Não pode garantir isso.

—            Nada neste mundo é uma certeza, mas posso aumentar as chances. Que é o que estou fazendo, aliás. Mas me gravar? Tentar me fazer admitir coisas? E agora vir aqui? Não é assim que se faz, Diane.

—            O que tem naquele armazém?

Ele precisava saber:

—            Como você ficou sabendo disso?

—            Sou uma vice-conselheira de segurança nacional.

Ramsey decidiu ser parcialmente honesto com ela:

—            Contém artefatos encontrados em 1947 durante a operação Salto em Altura e, novamente, em 1948, durante a operação Moinho de Vento. Artefatos pouco comuns. Também fazem parte do que aconteceu ao NR-lAem 1971. Esse submarino estava em uma missão relacionada a esses artefatos.

—            Edwin Davis falou com o presidente sobre a Salto em Altura e a Moinho de Vento. Eu o ouvi.

—            Diane, você certamente consegue ver o dano que poderia havia caso fosse revelado que a Marinha não procurou um submarino nosso naufragado. Não apenas não procurou como fabricou uma história para encobrir a verdade. Mentiram para famílias, falsificaram relatórios. Naquela época talvez fosse possível sair impune de algo assim. Os tempos eram outros. Hoje em dia, no entanto, não dá. As consequências seriam enormes.

—            E qual é o seu envolvimento nisso?

Interessante. Ela não estava tão bem-informada assim.

—            O almirante Dyals deu a ordem para que não fosse feita a busca pelo NR-1A. Embora a tripulação tivesse concordado com essas condições antes da partida, a reputação dele estaria arruinada se isso fosse divulgado. E eu devo muito a esse homem.

—            Então, por que matar Sylvian?

Ramsey não ia chegar a tanto.

—            Eu não matei ninguém.

Diane começou a falar, mas ele a interrompeu, erguendo a mão:

—            Não nego, no entanto, que quero o cargo dele.

A tensão na sala cresceu, como a atmosfera de uma partida de pôquer silenciosa — algo a que este encontro assemelhava-se, sob muitos aspectos. O almirante encarou-a fixamente.

—            Estou sendo franco com você, na esperança de que você também seja comigo.

Ramsey soubera, pelo assessor de Aatos Kane, que Daniels tinha sido receptivo à ideia da sua nomeação, o que ia na direção contrária ao comportamento de Diane. Era vital que ele mantivesse um par de olhos e ouvidos no Salão Oval. Boas decisões sempre eram baseadas em boas informações. Por mais que Diane fosse um problema, ele precisava dela.

—            Eu sabia que você viria — disse ela. — Interessante que você tenha controle pessoal sobre aquele armazém.

Ramsey deu de ombros.

—            Está sob os cuidados da inteligência naval. Antes que eu dirigisse a agência, outros cuidavam dele. Não é o único depósito que mantemos.

—            Imagino que não. Mas tem muito mais acontecendo aqui do que você quer admitir. E quanto ao seu chefe da estação de Berlim, Wilkerson? Por que ele acabou morto?

Ramsey supôs que essa notícia estivesse no informe diário de todo mundo. Mas não havia necessidade de confirmar nenhuma relação.

—            Já mandei investigarem isso. Mas as motivações podem ser pessoais, pois ele estava envolvido com uma mulher casada. Nossa equipe está cuidando do caso neste momento. Cedo demais para afirmar qualquer coisa sinistra.

—            Quero ver o que há no armazém.

Ele olhou para o rosto da mulher, sem ver hostilidade ou inimizade.

—            De que isso adiantaria?

—            Eu quero saber a razão de tudo isso.

—            Não, não quer.

Ramsey a observou de novo. Tinha os lábios salientes. Os cabelos claros pendiam como cortinas curvas dos dois lados do rosto em forma de coração. Ela era atraente, e ele se perguntou se um pouco de charme iria funcionar.

—            Diane, ouça. Você não precisa fazer isso. Vou honrar nosso acordo. Mas, para ser capaz disso, tenho de fazer as coisas do meu jeito. A sua vinda para cá está pondo tudo em risco.

—            Não estou preparada para deixar minha carreira nas suas mãos.

Ramsey sabia um pouco da história dela. O pai era um político regional de Indiana que ganhara prestígio depois de ser eleito vice-governador e, em seguida, criara inimizades com metade do estado. Será que Ramsey estava testemunhando o mesmo traço de rebeldia? Talvez. Mas ele precisava deixar as coisas claras.

—            Então, infelizmente, você está sozinha.

Ele sentiu que Diane estava começando a compreender a situação.

—            E vou acabar morta?

—            Eu disse isso?

—            Não precisava.

Não, ele não precisava. Mas ainda havia o problema do controle de riscos.

—            Que tal fazermos o seguinte: diremos que houve um desentendimento. Você veio numa missão exploratória, e a Casa Branca e a inteligência naval conseguiram entrar num acordo a partir do qual a informação que você quer será fornecida. Assim, o comandante da base ficará satisfeito e não haverá mais perguntas, além das que já foram levantadas. Saímos felizes e sorridentes.

Ramsey viu a derrota no olhar de Diane.

—            Não tente me sacanear — disse ela.

—            Eu não fiz nada. Foi você quem começou a agir sem pensar antes.

—            Eu juro, Langford, que acabo com você. Não brinque comigo. Ramsey decidiu que a diplomacia era o melhor curso. Pelo menos no momento.

—            Como já disse e repeti, vou manter o meu lado do acordo.

 

MALONE APRECIOU O JANTAR, ESPECIALMENTE PORQUE TINHA COMIDO POUCO O dia todo. Interessante como, quando ele trabalhava na livraria, a fome vinha com uma regularidade previsível. Mas em campo, numa missão, a necessidade parecia desaparecer completamente.

Ele ouvira Isabel e as filhas, junto com Werner Lindauer, falarem de Hermann e Dietz Oberhauser. A tensão entre as irmãs parecia um problema grave. Ulrich Henn também jantara com eles, e Malone o observara com atenção. O alemão ficara em silêncio, sem dar a entender que estivesse sequer ouvindo, mas sem perder uma palavra.

Isabel estava claramente no comando, e Malone notou as variações na emoção dos outros de acordo com o fluxo instável da matriarca. Nenhuma das filhas a desafiou em momento algum. Ou elas concordavam ou não diziam nada. E Werner disse pouco de útil.

Malone dispensara a sobremesa e decidira subir.

No saguão, que parecia uma sala de espera, toras queimavam com um brilho cálido, enchendo o espaço com o odor de resina. Malone parou para sentir o calor e notou três desenhos emoldurados do mosteiro feitos a lápis nas paredes. Um deles era um esboço do exterior das torres, com tudo intato, e Malone notou uma data no canto: 1784. Os outros dois eram imagens do interior. Um representava o claustro, com arcos e colunas ainda com adornos. No desenho, imagens esculpidas surgiam nas pedras com regularidade matemática. No jardim central, a fonte mostrava toda a sua glória, com água fluindo do grande vaso de ferro. Ele imaginou vultos encapuzados passando de um lado para o outro entre os arcos.

O último desenho era do interior da igreja. Uma visão angulosa a partir do fundo do vestíbulo e de frente para o altar, do lado direito, por onde Malone havia avançado de uma coluna para a outra direção do atirador. Não havia ruína alguma. Em vez disso, pedra, madeira e vidro formavam uma união milagrosa — parte gótica, parte romanesca. Obras de arte abundavam nas colunas, mas com uma delicada modéstia, inconspícua, uma grande distância da decadência atual da igreja. Malone notou que uma grade de bronze encerrava o santuário, os arabescos e espirais carolíngios similares aos que ele vira em Aachen. O piso estava intato e era detalhado, tons diversos de cinza e preto denotando o que certamente fora variedade e cor. As datas em cada gravura indicavam 1772.

O proprietário estava ocupado atrás do balcão. Malone perguntou:

—            São originais?

O homem fez que sim.

—            Estão penduradas aí há muito tempo. Nosso mosteiro foi glorioso um dia, mas não é mais.

—            O que aconteceu?

—            Guerra. Negligência. Clima. Tudo devorou o local.

Antes de deixar a mesa de jantar, Malone ouvira Isabel mandar Henn se livrar dos corpos da igreja. O empregado vestiu o casaco e desapareceu na noite.

Malone sentiu uma corrente de ar frio vindo da porta da frente quando o proprietário lhe entregou uma chave e subiu a escada de madeira até o quarto. Não trouxera roupas, e as que vestia precisavam ser lavadas, especialmente a camisa. Dentro do quarto, jogou o casaco e as luvas sobre a cama e tirou a camisa. Entrou no banheiro minúsculo e lavou-a numa pia esmaltada, usando um sabão pequeno, depois a estendeu sobre o aquecedor para secar.

Ficou com a camiseta de baixo e examinou-se no espelho. Usava camiseta por baixo da camisa desde os 6 anos — um hábito adquirido pela insistência. Horrível ficar com o peito à mostra, dizia o pai. Quer que as roupas fiquem com cheiro de suor? Malone nunca questionara o pai, simplesmente o imitava e usava a camiseta por baixo — gola V cavada, pois usar uma camiseta de baixo ê uma coisa, vê-la é outra. Interessante como as lembranças da infância podiam ser resgatadas com tanta facilidade. Eles havia passado muito pouco tempo juntos. Cerca de três anos Malone conseguia se lembrar, dos 7 aos 10. Ainda guardava numa caixa de vidro ao lado da cama a bandeira que tinha sido exibida no funeral do pai. A mãe tinha recusado a lembrança no funeral, dizendo que estava cansada da Marinha. Mas oito anos depois, quando ele dissera que ia se alistar, ela não se opusera. O que mais o menino de Forrest Malone poderia fazer?, ela lhe perguntara.

E ele concordara. O que mais?

Ouviu uma leve batida e saiu do banheiro para abrir a porta. Christl estava lá.

—            Posso? — perguntou ela.

Ele sinalizou o consentimento e fechou a porta devagar depois que a mulher entrou.

—            Quero que você saiba que não gostei do que aconteceu lá em cima hoje. Foi por isso que vim atrás de você. Disse à minha mãe para não o enganar.

—            Ao contrário de você, claro.

—            Sejamos honestos, está bem? Se eu lhe tivesse dito que já havia relacionado o testamento à inscrição, você teria ido a Aachen?

Provavelmente, não. Mas ele não disse nada.

—            Achei que não — disse ela, lendo a expressão dele.

—            Vocês se arriscam demais.

—            Há muito em jogo. Minha mãe queria que eu lhe dissesse algo, sem a presença de Dorothea ou Werner.

Malone vinha se perguntando quando Isabel iria cumprir a promessa de uma informação boa pra caramba.

—            OK, quem está tentando me matar?

—            Um homem chamado Langford Ramsey. Ela chegou a falar com ele. Ramsey enviou os homens que foram atrás de nós em Garmisch, em Reichshoffen e em Aachen. Também enviou os de hoje. Ele quer que você morra. É chefe do seu serviço de inteligência naval. Minha mãe o enganou, fazendo-o pensar que era uma aliada.

—            Agora, tem algo que nunca vi. Pôr minha vida em risco para me salvar.

—            Ela está tentando ajudá-lo.

—            Contando a Ramsey que eu estaria aqui hoje?

Christl fez que sim.

—            Encenamos aquela situação de refém com a cooperação deles para que os dois morressem. Não prevíamos a vinda dos outros dois. Deviam ter ficado do lado de fora. Ulrich acha que os tiros os atraíram. — Ela hesitou. — Cotton, estou contente que você esteja aqui. E seguro. Queria que soubesse disso.

Malone sentiu-se como um homem caminhando para a forca depois de amarrar a corda no próprio pescoço.

—            Onde está sua camisa? — perguntou Christl.

—            Quando mora sozinho, você lava as próprias roupas.

Ela acrescentou um sorriso amigável que suavizou o clima tenso.

—            Morei sozinha durante toda a minha vida adulta.

—            Achei que tivesse se casado uma vez.

—            Nunca chegamos a morar juntos. Um desses erros de julgamento que foi rapidamente retificado. Tivemos alguns ótimos finais de semana, mas foi só isso. Quanto tempo você foi casado?

—            Quase vinte anos.

—            Filhos?

—            Um rapaz.

—            Ele tem o seu nome?

—            O nome dele é Gary.

Uma sensação de paz combinou-se com o silêncio.

Ela usava calça jeans, uma camisa cinza e um cardigã azul-marinho. Malone ainda podia vê-la amarrada à coluna. É claro que mulheres mentirem para ele não era nada de novo. A ex-esposa mentira durante anos sobre a paternidade de Gary. Stephanie mentia continuamente quando necessário. Até sua mãe, uma represa de emoções contidas, uma mulher que raramente demonstrava qualquer sentimento, mentira para ele sobre o pai. Para ela, essa lembrança era perfeita. Mas Malone sabia que não era. Ele queria desesperadamente conhecer o homem. Não um mito, uma lenda ou uma lembrança. Só o homem.

Estava cansado.

—            É hora de ir para a cama.

Christl foi até o abajur aceso ao lado da cama. Ele havia desligado a luz do banheiro antes de atender a porta, então, quando ela puxou a corrente e apagou a lâmpada, o quarto mergulhou na escuridão.

—            Concordo — disse ela.

 

DOROTHEA OBSERVAVA PELA FRESTA DE SUA PORTA LIGEIRAMENTE ABERTA quando a irmã entrou no quarto de Cotton Malone. Tinha visto a mãe falar com Christl depois do jantar e agora estava se perguntando sobre o que fora dito. Vira Ulrich sair e sabia qual tarefa lhe havia sido delegada. Qual papel ela teria de desempenhar? Aparentemente, devia fazer as pazes com o marido, uma vez que tinham recebido um quarto juntos com uma cama pequena. Quando ela perguntara ao proprietário sobre algum outro, ele dissera que não havia mais nenhum.

—            Não é tão ruim — disse-lhe Werner.

—            Depende do que a pessoa entende por ruim.

Na verdade, Dorothea achava a situação divertida. Estavam os dois comportando-se como adolescentes no primeiro encontro. Num sentido, o apuro deles parecia cômico; em outro, trágico. O recinto apertado fazia com que fosse impossível para ela escapar do incômodo familiar da loção pós-barba de Werner, do fumo de seu cachimbo e do barulho do chiclete que Werner adorava mascar. E os odores a faziam lembrar frequentemente que ele não era um dos incontáveis homens que ela desfrutara nos últimos tempos.

—            Isto é demais, Werner. É rápido demais.

—            Acho que você não tem muita escolha.

Ele ficou perto da janela, segurando as mãos atrás do corpo. Dorothea ainda estava perplexa com os atos dele na igreja.

—            Você achou mesmo que aquele homem ia atirar em mim?

—            As coisas mudaram quando atirei no outro. Ele ficou nervoso e poderia ter feito qualquer coisa.

—            Você matou aquele sujeito com tanta facilidade...

Werner balançou a cabeça.

—            Com facilidade não, mas tinha de ser feito. Não muito diferente de abater um cervo.

—            Nunca percebi que você tinha isso dentro de si.

—            Durante os últimos dias, descobri muitas coisas sobre mim mesmo.

—            Aqueles homens na igreja eram ingênuos, pensando apenas em receber o pagamento. — Como a mulher na abadia, pensou Dorothea. — Não havia absolutamente nenhum motivo para confiarem em nós, mas confiaram.

Os lábios de Werner curvaram-se para baixo.

—            Por que você está evitando o óbvio?

—            Não acho que este seja o local ou o momento para debatermos nossa vida pessoal.

Ele ergueu as sobrancelhas com descrença.

—            Não tem momento melhor. Estamos prestes a tomar decisões irreversíveis.

A distância entre ambos nos últimos anos havia embotado a habilidade perfeita que Dorothea tinha de saber com certeza se Werner a estava enganando. Ela o havia ignorado por muito tempo — simplesmente permitindo que fizesse as coisas a seu modo. Agora, amaldiçoava a indiferença que ela própria cultivara.

—            O que você quer, Werner?

—            As mesmas coisas que você. Dinheiro, poder, segurança. Seu direito natural.

—            Isso é meu, não seu.

—            Interessante, seu direito natural. Seu avô era nazista. Um homem que venerava Adolf Hitler.

—            Ele não era nazista — declarou Dorothea.

—            Ele só ajudou o mal a seguir adiante. Facilitou a chacina deles.

—            Isso é um absurdo.

—            Essas teorias ridículas sobre os arianos? Nossa suposta herança? Dizer que éramos uma espécie de raça especial que veio de um lugar especial? Himmler adorava essa baboseira. Alimentava muito bem a propaganda nazista.

Pensamentos perturbadores passaram pela cabeça de Dorothea. Coisas que a mãe lhe dissera, coisas que ouvira quando era criança. As filosofias explicitamente de direita do avô. A recusa dele em falar do Terceiro Reich. A insistência do pai em dizer que a Alemanha não estava melhor após a guerra do que antes, uma Alemanha dividida pior que qualquer coisa que Hitler tivesse feito. Sua mãe estava certa. A história da família Oberhauser precisava permanecer enterrada.

—            Você tem de pisar com cuidado nesse terreno — sussurrou Werner.

Havia algo inquietante no tom de voz dele. O que ele sabia?

—            Talvez alivie sua consciência pensar que sou um tolo — disse ele. — Pode ser que justifique sua rejeição ao nosso casamento e a mim.

Dorothea se preveniu ao lembrar que ele era especialista em atormentá-la com palavras.

—            Mas não sou nenhum tolo.

Ela estava curiosa.

—            O que você sabe de Christl? Werner apontou para a porta.

—            Sei que ela está lá com Malone. Entende o que isso significa?

—            Diga.

—            Está forjando uma aliança. Malone está ligado aos Estados Unidos. Isabel escolheu aliados com cautela. Malone pode fazer as coisas acontecerem quando precisarmos que aconteçam. De que ou¬tro modo poderíamos ir à Antártida? Christl está fazendo o que sua mãe mandou.

Werner estava certo.

—            Diga, Werner, está feliz com a minha possível derrota?

—            Se estivesse, não estaria aqui. Simplesmente a deixaria fracassar.

Algo no tom casual dele acionou um alarme. Werner definitivamente sabia mais do que estava dizendo, e Dorothea odiava o comedimento dele. Conteve um estremecimento repentino diante da percepção de que aquele homem, mais um desconhecido que um marido, a atraía.

—            Quando você matou aquele homem no chalé — perguntou ele — você sentiu alguma coisa?

—            Alívio. —A palavra escapou por entre os dentes cerrados. Ele permaneceu impassível, parecendo considerar a revelação.

—            Temos de levar a melhor, Dorothea. Se isso significa cooperar com sua mãe e com Christl, que seja. Não podemos permitir que sua irmã domine esta busca.

—            Você e minha mãe vêm trabalhando juntos por algum tempo, não?

—            Ela sente tanta falta de Georg quanto nós. Ele era o futuro desta família. Agora, toda a existência dela está em risco. Não há mais ne¬nhum Oberhauser.

Dorothea sentiu algo no tom de voz dele e viu a mesma coisa nos olhos do marido. O que ele realmente queria.

—            Não está falando sério, está? — perguntou ela. Werner aproximou-se e deu um beijo suave no pescoço dela.

—            Você só tem 48 anos. Ainda pode ter filhos. Dorothea deu-lhe um tapa no rosto. Ele riu.

—            Emoção intensa. Violência. Então, você é humana, afinal.

Gotas de suor formaram-se na testa dela, embora o quarto não estivesse quente. Ela não ia mais dar ouvidos a Werner. Partiu para a porta.

Ele avançou com ímpeto, agarrou o braço dela e a girou.

—            Não vai se afastar de mim. Não desta vez.

—            Solte-me. — Mas foi uma ordem fraca. — Você é um babaca desprezível. Olhar para você me enoja.

—            Sua mãe deixou claro que, se concebermos, ela dará tudo a você. — Ele a puxou para mais perto. — Escute-me, mulher. Tudo para você. Christl não tem nenhuma necessidade de filhos ou marido. Mas quem sabe se a mesma oferta foi feita a ela? Onde ela está neste exato momento?

Werner estava perto. No rosto dela.

—            Use o cérebro. Sua mãe lançou vocês duas uma contra a outra para descobrir o que aconteceu com o marido dela. Mas, acima de tudo, Isabel quer que esta família continue existindo. Os Oberhauser têm dinheiro, status e bens. O que falta são herdeiros.

Dorothea se libertou da pressão de Werner. Ele tinha razão. Christl estava com Malone. E sua mãe nunca havia sido confiável. A mesma oferta de um herdeiro tinha sido feita a Christl?

—            Estamos à frente dela — disse ele. — Nosso filho seria legítimo.

Ela sentiu ódio de si mesma. Mas o que o filho da puta estava dizendo fazia sentido.

—            Vamos começar? — perguntou ele.

 

             ASHEVILLE, 17H

 

STEPHANIE ESTAVA UM POUCO DESCONCERTADA. DAVIS HAVIA DECIDIDO QUE passariam a noite lá e reservara um quarto para os dois.

—            Normalmente, não sou esse tipo de mulher — disse ela, quando ele abriu a porta. — Ir para um hotel no primeiro encontro.

—            Não sei. Ouvi dizer que você é fácil.

Ela deu um tapa atrás da cabeça dele.

—            Vai sonhando.

Davis a encarou.

—            Aqui estamos num hotel romântico de quatro estrelas. Ontem à noite, tivemos um ótimo encontro, abraçados num frio congelante, depois levando tiros. Estamos criando vínculos.

Stephanie sorriu.

—            Não me lembre. E, aliás, adorei sua sutileza com Scofield. Deu muito certo. Você o conquistou logo de cara.

—            É um arrogante, um egocêntrico metido a besta.

—            Que estava lá em 1971 e sabe mais do que você e eu.

Ele se estatelou sobre uma colcha de estampa florida. O quarto todo parecia algo saído de uma revista Southern Living. Mobília fina, cortinas elegantes, decoração inspirada em solares ingleses e franceses. Na verdade, Stephanie ficou com vontade de experimentar a banheira funda. Não tomava banho desde a manhã do dia anterior em Atlanta. Era isso o que seus agentes costumavam vivenciar? Ela não deveria estar no comando?

—            Suíte ampla com cama king size — disse Davis. — Era a única que tinham. A diária é muito acima da verba para gastos do governo, mas e daí? Você merece.

Ela se largou em uma das poltronas estofadas e apoiou os pés sobre o banquinho de estampado igual.

—            Se você consegue lidar com toda essa proximidade, eu também consigo. Estou com a sensação de que não vamos conseguir dormir muito mesmo.

—            Ele está aqui — disse Davis. — Sei disso.

Stephanie não tinha tanta certeza, mas não podia negar um mau pressentimento revirando-lhe o estômago.

—            Scofield está na suíte Wharton, no sexto andar. Fica lá todo ano — acrescentou ele.

—            A recepcionista deixou escapar tudo isso?

Davis assentiu.

—            Eia também não gosta de Scofield.

Ele retirou do bolso o folheto do congresso.

—            O sujeito vai guiar um passeio pela Mansão Biltmore daqui a pouco. Depois, amanhã de manhã, vai caçar javalis.

—            Se o nosso homem estiver aqui, há várias oportunidades para que faça alguma coisa, sem contar o tempo no quarto esta noite.

Ela observou o rosto de Davis. Normalmente, as feições dele nunca entregavam nada, mas a máscara tinha desaparecido. O homem estava ansioso. Ela sentiu uma relutância estranha combinada com uma curiosidade intensa; então, perguntou:

—            O que você vai fazer quando o encontrar?

—            Matá-lo.

—            Isso seria assassinato.

—            Talvez, mas duvido que nosso homem desista sem lutar.

—            Você a amava tanto assim?

—            Homens não deveriam bater em mulheres.

Stephanie se perguntou com quem ele estaria falando. Com ela? Com Millicent? Ramsey?

—            Não pude fazer nada antes — disse ele. — Agora, posso. — Seu rosto ficou encoberto mais uma vez, ocultando qualquer emoção. — Agora, diga-me o que o presidente não queria que eu soubesse.

Stephanie estava esperando que ele perguntasse.

—            Era sobre sua colega. — Ela lhe contou aonde Diane McCoy tinha ido. — Ele confia em você, Edwin. Mais do que você pensa. — Viu que ele captou o que ela não tinha dito. Não o decepcione.

—            Não vou decepcioná-lo.

—            Você não pode matar esse homem, Edwin. Precisamos dele vivo, para pegar Ramsey. Caso contrário, o verdadeiro problema sai ileso.

—            Eu sei. — A voz dele estava envolta pela sensação de derrota. Davis se levantou. — Precisamos ir.

Tinham passado pela mesa de inscrição para o congresso antes de subir e se registrado para o restante do evento, obtendo dois ingressos para a excursão à luz de vela.

—            Temos de ficar perto de Scofield — disse ele. — Quer ele goste ou não.

 

CHARLIE SMITH ENTROU NA MANSÃO BILTMORE, SEGUINDO O GRUPO PARTICULAR. Quando se inscrevera no congresso Mistérios Antigos Revelados com um pseudônimo, tinha recebido um ingresso para o evento. Uma rápida leitura na lojinha do hotel informou-o que do início de novembro até o ano-novo a mansão oferecia as chamadas noites mágicas, nas quais os visitantes podiam apreciar o palacete repleto de luzes de vela, lareiras em chamas, decorações de Natal e apresentações musicais ao vivo. Os horários de entrada eram reservados, e o daquela noite era ainda mais especial, uma vez que seria a última visita do dia, aberta apenas para participantes do congresso.

Tinham sido transportados do hotel em dois ônibus de Biltmore — cerca de oitenta pessoas, estimou Smith. Ele estava vestido como os outros, cores de inverno, casaco de lã, sapatos escuros. No caminho, começara uma conversa sobre Jornada nas estrelas com outro participante. Discutiram sobre qual a série que mais gostavam, ele argumentando que Enterprise era muito superior, ainda que seu interlocutor preferisse Voyager.

— Pessoal — Scofield dizia, enquanto o grupo se aglomerava diante das portas principais na noite gélida—, todos me acompanhem. Agradáveis surpresas os aguardam.

O grupo passou por uma grade de ferro elaborada. Smith tinha lido que todos os cômodos estariam decorados para o Natal, como George Vanderbilt fizera a partir de 1885, quando a propriedade foi aberta pela primeira vez.

Smith aguardava ansiosamente os espetáculos.

Tanto o da casa.

Quanto o dele próprio.

 

MALONE DESPERTOU. CHRISTL ESTAVA DORMINDO AO LADO DELE, O CORPO NU encostado ao seu. Olhou para o relógio: 0h35. Outro dia — sexta-feira, 14 de dezembro — havia começado.

Tinha dormido por duas horas.

Uma agradável satisfação fluía por ele.

Não fazia isso havia algum tempo.

Em seguida, o descanso tinha chegado a uma terra sem dono, um estado de semiconsciência em que imagens detalhadas vagavam por sua mente inquieta.

Como a do desenho emoldurado no andar de baixo.

Da igreja, de 1772.

Estranho o modo como uma solução havia se materializado, a resposta projetada na cabeça dele como uma partida de paciência com todas as cartas viradas para cima. Acontecera assim dois anos antes. Na mansão de Cassiopeia Vitt. Malone pensou em Cassiopeia. Suas últimas visitas tinham sido poucas e infrequentes, e ela estava Deus sabia onde. Em Aachen, ele pensara em ligar para a mulher para pedir ajuda, mas decidira que esta briga era só dele. Ficou deitado, imóvel, meditando sobre a miríade de possibilidades que a vida oferecia. A rapidez de sua decisão quanto ao avanço de Christl estava lhe dando nos nervos.

Mas pelo menos isso resultara em mais uma coisa.

A busca de Carlos Magno.

Agora, ele sabia o fim.

 

             ASHEVILLE

 

STEPHANIE E DAVIS SEGUIRAM O GRUPO PELO GRANDE SALÃO DE ENTRADA DE Biltmore Estate, cercado de paredes elevadas e arcos de rocha calcária. À direita, num jardim de inverno com teto de vidro, uma fileira de poinsétias brancas circundava uma fonte de mármore e bronze. O ar momo cheirava a folhagens frescas e canela.

No ônibus, uma mulher dissera-lhes que a excursão à luz de velas era anunciada como um festival de luzes à moda antiga, decorações em estilo de realeza, como se fosse um cartão-postal vitoriano que ganhasse vida. E fazendo jus ao anúncio, um coral cantava hinos natalinos em algum cômodo distante. Como o tour não passou por chapelaria alguma, Stephanie desabotoou o casaco que estava vestindo, ela e Davis permanecendo na parte de trás do grupo, fora do caminho de Scofield, que parecia desfrutar imensamente o papel de anfitrião.

— Temos a casa toda para nós — disse o professor. — Esta é uma tradição do congresso. Duzentos e cinquenta cômodos, 34 quartos, 43 banheiros, 65 lareiras, três cozinhas e uma piscina interna. Impressionante eu conseguir me lembrar de tudo isso. — Ele riu do próprio gracejo. — Vou acompanhá-los e comentar alguns dados interessantes.

Terminaremos de volta aqui, e então estarão livres para perambular por mais uma meia hora antes de os ônibus nos levarem até a pousada. — Fez uma pausa. — Vamos?

Scofield guiou o grupo por uma longa galeria, uns 25 metros de comprimento talvez, cercada de tapeçarias de seda e lã que, explicou ele, tinham sido tecidas na Bélgica por volta de 1530.

Visitaram a deslumbrante biblioteca com seus 23 mil livros e teto veneziano, depois foram à sala de música, que continha uma gravura espetacular de Dürer. Finalmente, entraram num salão de banquete imponente com mais tapeçaria flamenga, um órgão de tubos e uma enorme mesa de jantar de carvalho com lugar para — Stephanie contou — 64 pessoas. Velas, lareiras e enfeites de Natal forneciam toda a iluminação.

—            O maior cômodo da casa — anunciou Scofield no salão de banquete. — Vinte e dois metros de comprimento, 13 de largura, coroado por uma abóbada cilíndrica 21 metros acima.

Um enorme abeto-falso, que se estendia por mais de 10 metros até o teto, estava enfeitado com brinquedos, ornamentos, flores secas, contas douradas, anjos, veludo e renda. Um órgão lançava uma música festiva no salão, preenchendo-o com animação natalina.

Stephanie percebeu Davis recuando na direção da mesa de jantar, então se deslocou na direção dele e sussurrou:

—            O que foi?

Davis apontou para a lareira tripla ladeada por armaduras, como se a estivesse apreciando, e disse:

—            Tem um cara baixo e magro, calça de sarja azul-marinho, camisa de algodão, casaco de lona com gola de veludo cotelê. Atrás de nós.

Ela sabia que não devia se virar e olhar, então se concentrou na lareira e no painel em alto-relevo acima da cornija, que parecia algo saído de um templo grego.

—            Ele tem observado Scofield.

—            Todo mundo está fazendo isso.

—            Ele não falou com ninguém e verificou as janelas duas vezes. Fiz contato visual uma vez, só para ver o que acontecia, e ele virou o rosto. Está irrequieto demais para mim.

Stephanie apontou para outras decorações que adornavam os enormes candelabros de bronze suspensos no alto do salão. Flâmulas pendiam do teto; segundo Scofield, réplicas de bandeiras das 13 colônias originais da Revolução Americana.

—            Você não tem a menor ideia, não é? — perguntou ela.

—            Pode chamar de intuição. Ele está verificando as janelas de novo. As pessoas não vêm para ver a casa?

Não para o que está lá fora.

—            Tudo bem se eu vir com meus próprios olhos?

—            À vontade.

Davis continuou olhando para o salão com cara de bobo, enquanto Stephanie andava casualmente pelo piso de madeira até a árvore de Natal, onde se encontrava o homem magro de calça de sarja perto de um grupo. Ela não notou nada ameaçador, apenas que ele parecia prestar muita atenção em Scofield, embora o anfitrião estivesse entretido numa conversa animada com outras pessoas.

Ela o viu se afastar da árvore aromática e andar casualmente até uma porta, onde jogou algo dentro de uma pequena lixeira e saiu, entrando no cômodo seguinte. Stephanie esperou um momento e o seguiu, espiando em torno do vão da porta.

Calça de Sarja perambulava por uma sala de jogos masculina que lembrava um clube para cavalheiros do século XIX, com painéis trabalhados em madeira de carvalho, teto de gesso ornamental e tapetes orientais de coloração forte. Ele examinava gravuras emolduradas na parede — mas não com tanta atenção, notou Stephanie.

Ela olhou rapidamente para dentro da lata de lixo e viu algo por cima. Abaixou-se, recolheu o objeto e retornou ao salão de banquete.

Examinou o que estava segurando. Fósforos, de um restaurante. De Charlotte, Carolina do Norte.

 

MALONE, SEM CONSEGUIR DORMIR MAIS, A MENTE ACELERADA, SAIU DE DEBAIXO do edredom pesado e levantou-se. Precisava descer e examinar a gravura emoldurada novamente. Christl acordou.

—            Aonde está indo?

Ele pegou a calça do chão.

—            Ver se estou certo.

—            Descobriu alguma coisa? — Ela se sentou e acendeu a luz da cabeceira. — O quê?

A mulher parecia extremamente à vontade sem roupas, e Malone sentia-se extremamente à vontade olhando para ela. Fechou o zíper da calça e vestiu a camisa, sem se preocupar com sapatos.

—            Espere — disse Christl, levantando-se e pegando as próprias roupas.

O andar de baixo estava pouco iluminado por dois abajures e pelas brasas que ainda ardiam na lareira. Ninguém ocupava o balcão da recepção, e Malone não ouviu som algum do restaurante. Encontrou a gravura da parede e acendeu outro abajur.

—            Esta é de 1772. A igreja obviamente estava em melhor estado então. Está vendo alguma coisa?

Ele viu Christl examinar o desenho.

—            As janelas estavam intatas. Vitrais. Estátuas. As grades em torno do altar parecem carolíngias. Como em Aachen.

—            Não é isso.

Ele estava gostando disto: finalmente estar um passo à frente dela. Admirou a cintura fina, os quadris bem desenhados e os pequenos cachos dos longos cabelos loiros da mulher. Ela não tinha colocado a camisa para dentro da calça, então Malone viu a curva de suas costas à mostra quando Christl estendeu um braço e acompanhou o contorno do desenho no vidro.

Ela se virou para ele.

—            O piso.

Seus olhos castanho-claros brilharam.

—            Diga — disse ele.

—            Tem um desenho. É difícil ver, mas está lá.

Ela tinha razão. A gravura era uma visão angular, mais voltada para a grande altura das paredes e dos arcos do que para o chão. Mas ele havia notado antes. Linhas escuras passavam sobre lajes mais claras, um quadrado dentro de outro quadrado, contendo ainda outro, num padrão familiar.

—            É um tabuleiro de Moinho — disse Malone. — Não podemos ter certeza sem ir lá ver, mas acho que é isso o que o piso mostrava no passado.

—            Vai ser difícil determinar — disse Christl. — Eu me arrastei pelo piso. Não tem mais quase nada lá.

—            Parte da sua performance?

—            Idéia da minha mãe, não minha.

—            E não podemos dizer não para a mãe, não é?

Um sorriso ergueu os cantos dos lábios finos dela.

—            Não, não podemos.

—            Mas apenas os que apreciam o trono de Salomão e a frivolidade romana encontrarão o caminho para os céus — disse ele.

—            Um tabuleiro de Moinho no trono de Aachen e outro aqui.

—            Eginhardo construiu essa igreja — disse ele. — Também, anos depois, engendrou a busca, usando a capela de Aachen e esse local como pontos de referência. Parece que, a essa altura, o trono já estava em Aachen. Se seu avô viu a relação, nós também podemos ver. — Malone apontou. — Olhe o canto inferior direito. No chão, perto do centro da nave, em torno do qual o tabuleiro de Moinho se estenderia. O que você vê?

Ela examinou o desenho.

— Tem algo gravado no piso. Difícil distinguir. As linhas estão desfiguradas. Parece uma cruz minúscula com letras. Um R e um I, mas o resto está embaralhado.

Ele viu quando Christl começou a reconhecer algo, ao visualizar por completo o que um dia poderia ter estado lá.

—            É parte da assinatura de Carlos Magno — disse ela.

—            Difícil saber com certeza, mas só há um modo de descobrir.

 

               ASHEVILLE

 

STEPHANIE ENCONTROU DAVIS E MOSTROU-LHE OS FÓSFOROS.

—            São coincidências demais para mim — disse ele. — Ele não faz parte deste congresso. Está analisando o alvo.

O assassino certamente era convencido e confiante. Estar ali, exposto, sem que ninguém soubesse quem ele era certamente agradaria uma personalidade ousada. Afinal, nas últimas 48 horas ele conseguira matar furtivamente pelo menos três pessoas.

Ainda assim.

Davis saiu andando.

-— Edwin.

Ele continuou, seguindo na direção da sala de jogos. O restante do grupo estava espalhado pelo salão de banquete, e Scofield começava a arrebanhá-los na direção de Calça de Sarja.

Stephanie balançou a cabeça e foi atrás do colega.

Davis contornou as mesas de jogo, indo para onde Calça de Sarja estava, perto de uma lareira decorada com guirlandas de pinho e de um tapete de pele de urso sobre o piso de madeira. Algumas pessoas do grupo já estavam na sala. As outras logo chegariam.

—            Com licença — disse Davis. — Você.

Calça de Sarja virou-se, viu quem estava falando e se afastou.

—            Preciso falar com você — disse Davis com a voz firme.

Calça de Sarja partiu para cima e empurrou Davis para fora do caminho. Sua mão direita deslizou para dentro do casaco aberto.

—            Edwin — gritou Stephanie.

Davis pareceu ter visto também e mergulhou para baixo de uma das mesas de bilhar.

A mulher sacou a arma, mirou e gritou:

—            Pare.

As outras pessoas viram a arma dela. Uma mulher gritou. Calça de Sarja fugiu por uma porta aberta. Davis se levantou e correu atrás dele.

 

MALONE E CHRISTL SAÍRAM DO HOTEL. O SILÊNCIO TOMAVA CONTA DO AR FRIO E limpo. Cada estrela no céu brilhava com uma luminosidade improvável, enchendo Ossau de uma luz incolor.

Christl tinha encontrado duas lanternas atrás do balcão da recepção. Embora Malone estivesse imerso numa névoa de exaustão, uma mistura de pensamentos combativos estimulara sua vivacidade. Tinha acabado de fazer amor com uma mulher linda, na qual, por um lado, ele não confiava e à qual, por outro, ele não conseguia resistir.

Christl tinha puxado o cabelo para cima a partir da nuca e prendido os cachos no alto da cabeça, com algumas mechas escapando e emoldurando seu rosto delicado. Sombras dançavam sobre o terreno acidentado da região. O ar seco carregava o cheiro de fumaça. Subiram com passos pesados o caminho irregular e coberto de neve e pararam diante do portão do mosteiro. Ele notou que Henn, que havia limpado a bagunça, recolocara a corrente cortada de modo que o portão parecesse estar trancado.

Malone soltou a corrente e entrou com Christl.

Um silêncio sombrio, imperturbado pela noite ou pelas eras, cercava-os por todos os lados. Eles usavam as lanternas e venceram passagens escuras na travessia do claustro até a igreja. Malone sentiu como se estivesse andando dentro de um freezer, com o ar seco rachando-lhe os lábios.

Não dera muita atenção ao piso antes, mas agora examinava com a lanterna o pavimento coberto de limo. A alvenaria estava áspera, com vãos entre as pedras, muitas delas despedaçadas ou ausentes, deixando exposta a terra congelada e dura como rocha. Malone foi sendo tomado pela apreensão. Tinha levado a arma e os pentes extras, por precaução.

— Veja — disse ele. — Há um padrão. Difícil de ver com o pouco que ainda resta. — Olhou para o coro, onde Isabel e Henn tinham aparecido antes. — Venha.

Alcançou a escadaria e subiu. A visão do alto ajudava. Juntos, observaram que o chão, se estivesse todo ali, teria formado um tabuleiro de Moinho.

Malone parou o facho de luz no que ele suponha que fosse o centro do tabuleiro.

— Eginhardo foi preciso, devo reconhecer. Fica no centro da nave.

—            É emocionante — Christl disse. — Foi exatamente isso o que meu avô fez.

—            Então, vamos voltar lá para baixo e ver se há alguma coisa a se descobrir.

 

— TODOS VOCÊS, OUÇAM O QUE VOU DIZER — DISSE STEPHANIE, TENTANDO retomar o controle. Cabeças viraram e um silêncio imediato tomou conta da sala.

Scofield veio correndo do salão de banquete.

—            O que está acontecendo aqui?

—            Dr. Scofield, leve todas essas pessoas de volta à entrada principal. Lá haverá segurança. A excursão acabou.

Stephanie ainda segurava a arma, o que parecia acrescentar uma aura extra de autoridade à ordem. Mas ela não podia ficar esperando para ver se Scofield iria obedecer; saiu correndo atrás de Davis. Impossível saber o que ele estaria fazendo.

Deixou a sala de jogos e entrou num corredor pouco iluminado. Uma placa informava que ela estava na ala dos homens solteiros. Dois quartos pequenos estavam abertos à sua direita. Uma escadaria descia à esquerda. Nada ornamentado, provavelmente uma passagem para empregados. Stephanie ouviu passos abaixo.

Rápidos.

Ela seguiu o som.

 

MALONE EXAMINOU O PISO NO CENTRO DA NAVE. A MAIOR PARTE DO PAVIMENTO estava lá, as juntas cheias de terra e cobertas de líquen. Eles haviam voltado para o piso inferior, e ele iluminou a pedra central, depois se agachou.

—            Olhe — disse.

Não restara muita coisa, mas viam-se algumas linhas tênues esculpidas na superfície. Um talho aqui e outro ali do que um dia formara um triângulo e traços das letras K e L.

—            O que mais poderia ser senão a marca de Carlos Magno? — perguntou ela.

—            Precisamos de uma pá.

—            Tem um galpão de ferramentas depois do claustro. Encontramos ontem de manhã, quando viemos da primeira vez.

—            Vá ver.

Christl saiu com pressa.

Malone ficou olhando para a pedra embutida na terra congelada, sem conseguir parar de pensar em algo. Se Hermann Oberhauser tinha seguido a mesma trilha, por que ainda haveria alguma coisa ali? Isabel tinha dito que ele fora até lá pela primeira vez no fim dos anos 1930, antes de viajar para a Antártida, e depois retornara no início dos anos 1950. Dietz fora em 1970.

E ainda assim ninguém sabia de nada?

Uma luz dançava do lado de fora da igreja, com intensidade cada vez maior. Christl voltou, pá em mãos.

Malone pegou o cabo, entregou a lanterna à mulher e firmou a lâmina de metal em uma das juntas. Exatamente como ele imaginava, o solo parecia concreto. Ergueu a pá, bateu a ponta com força no chão, manejando a lâmina para a frente e para trás. Depois de alguns golpes, começou a ter progresso, e o piso cedeu. Enfiou a pá na junta mais uma vez e conseguiu colocá-la por baixo, então movimentou o cabo de madeira como uma alavanca e liberou a pedra do abraço da terra.

Retirou a pá e fez o mesmo nos outros lados.

Finalmente, a placa começou a oscilar. Malone a empurrou para cima, inclinando o cabo da ferramenta.

—            Segure a pá — disse a Christl. Ele se agachou e colocou as mãos enluvadas por baixo da pedra, soltando as pontas do chão.

As duas lanternas estavam ao lado dele. Ergueu uma delas e notou que só se via terra.

—            Deixe-me tentar — disse Christl.

Ela friccionou o solo duro com golpes curtos, virando a lâmina, chegando mais fundo. Bateu em algo. Retirou a pá e Malone afastou a terra solta, removendo-a aos punhados até ver o topo do que parecia, à primeira vista, uma rocha, mas então percebeu que era algo plano.

Malone espanou a terra que restara. Esculpida no centro de uma forma retangular, bem definida, estava a assinatura de Carlos Magno. Ele tirou mais terra dos lados e percebeu que estava olhando para um relicário de pedra. Cerca de 40 centímetros de comprimento e 25 de largura. Passou as mãos para baixo dos dois lados e descobriu que tinha cerca de 15 centímetros de altura.

Suspendeu-o para fora.

Christl abaixou-se.

—            É carolíngio. O estilo. O design. Mármore. E, é claro, a assinatura.

—            Quer ter a honra? — perguntou Malone.

Um meio sorriso de felicidade surgiu na boca da mulher, e ela segurou as laterais e ergueu a placa. O relicário se dividia no meio, a parte de baixo emoldurando a forma de algo envolto em pano encerado.

Malone retirou a trouxa coberta e desamarrou as tiras estreitas. Com cuidado, ele abriu o saco, enquanto Christl voltou a luz para dentro.

 

              ASHEVILLE

 

STEPHANIE DESCEU A ESCADA, QUE IA VIRANDO À DIREITA ATÉ CHEGAR AO PORÃO do palacete.

Davis estava esperando embaixo.

—            Demorou bastante. — Ele arrancou a arma da mão dela. — Preciso disso.

—            O que você vai fazer?

—            Como eu disse, matar o bostinha.

—            Edwin, nem sabemos quem ele é.

—            Ele me viu e correu.

Stephanie precisava retomar o controle, conforme Daniels a instruíra.

—            Como ele sabia quem você era? Ninguém nos viu ontem à noite, e nós não o vimos.

—            Não sei, Stephanie, mas ele sabia.

O homem tinha corrido, o que era suspeito, mas ela não estava pronta para ordenar uma sentença de morte.

Passos vieram de trás, e um segurança uniformizado apareceu. Viu a arma no punho de Davis e reagiu, mas ela estava pronta e mostrou a identificação do Setor Magalhães.

—            Somos agentes federais e estamos interessados em alguém que se encontra aqui embaixo. Ele fugiu. Quantas saídas há neste andar?

—            Mais uma escadaria do outro lado. Diversas portas para fora.

—            Pode tomar conta das portas?

O guarda hesitou por um momento, depois pareceu ter decidido que eles eram agentes de verdade e tirou um rádio da cintura para dar instruções a outros sobre o que fazer.

—            Precisamos pegar esse cara, mesmo se ele se jogar de alguma janela. Em qualquer lugar. Entendeu? — perguntou ela. — Coloque homens lá fora.

O homem assentiu, deu mais instruções e disse:

—            O grupo da excursão saiu e está nos ônibus. A casa está vazia a não ser por vocês.

—            E por ele — disse Davis, afastando-se.

O guarda não estava armado. Uma pena. Mas no bolso da camisa dele Stephanie notou um folheto que ela havia visto com outras pessoas da excursão. Apontou e disse:

—            Tem um esboço deste andar aí?

O guarda fez que sim.

—            De todos os quatro andares. — Ele lhe entregou o folheto. — Este é o porão. Recreação, cozinhas, alojamento dos empregados, despensas. Muitos lugares para se esconder.

O que ela não queria ouvir.

—            Chame a polícia local. Faça com que venham até aqui. Depois vigie a escada. Esse homem pode ser perigoso.

—            Não sabem com certeza?

—            Esse é o problema. Não sabemos droga nenhuma.

MALONE VIU UM LTVRO DENTRO DE UM SACO E UM ENVELOPE AZUL-CLARO ENFIADO entre as páginas, perto do centro do volume.

—            Coloque o saco no chão — ele disse e pôs o livro em cima com cuidado, pegando a lanterna em seguida.

Christl puxou o envelope e o abriu, encontrando duas folhas de papel. Desdobrou-as: ambas estavam cheias de uma escrita carregada e masculina — em alemão — em tinta preta.

—            É a letra do meu avô. Eu li os cadernos dele.

 

STEPHANIE CORREU ATRÁS DE DAVIS E ALCANÇOU-O ONDE OS CORREDORES DO porão ofereciam duas alternativas, uma para a esquerda e outra em frente. Portas de vidro pelo caminho adiante davam uma visão do que parecia ser uma despensa. Ela checou o mapa rapidamente. No final do corredor, identificou a cozinha principal.

Ouviu um barulho. Vindo da esquerda. O diagrama no folheto indicava que o trecho adiante ia dar nos quartos dos empregados e não estava ligado a nenhuma outra parte do porão. Um caminho sem saída.

Davis seguiu pelo longo corredor à esquerda, na direção do barulho.

Passaram por uma sala de musculação com barras paralelas, halteres, bolas medicinais e um remador. À direita, encontraram a piscina coberta, tudo, inclusive a abóbada acima, de azulejo branco, sem janelas, apenas uma luz elétrica desagradável. Nada de água na piscina funda e brilhante.

Uma sombra passou pela outra saída do salão da piscina.

Contornaram a passagem ladeada de corrimãos, Davis na frente. Stephanie verificou o mapa.

—            Esta é a única saída dos cômodos adiante. Além da escada principal, mas espero que os seguranças estejam vigiando lá.

—            Então, nós o pegamos. Ele precisa voltar por aqui.

—            Ou ele nos pegou.

Davis deu uma olhada rápida no mapa, depois eles passaram por uma porta e desceram alguns degraus. Ele entregou a arma a Stephanie.

—            Vou esperar. — Apontou para a esquerda.—Aquele corredor dá uma volta completa e termina aqui.

Ela teve uma sensação ruim.

— Edwin, isto é loucura.

—            Só o mande nesta direção. — O olho direito dele tremeu. — Tenho de fazer isso. Faça-o vir para cá.

—            O que você vai fazer?

—            Estarei pronto.

Ela assentiu com a cabeça, buscando as palavras certas, mas entendia o desejo intenso dele.

—            OK.

Davis recuou para a escada de onde tinham vindo. Ela avançou para a esquerda e, na escada principal que levava para o andar superior, avistou outro segurança. O guarda balançou a cabeça, sinalizando que ninguém havia passado por ali. Ela acenou e indicou que ia seguir para a esquerda.

Dois corredores sinuosos sem janelas a levaram a uma sala retan¬gular cheia de objetos históricos e fotografias em preto e branco expostas. As paredes estavam pintadas com uma variedade de imagens coloridas. A Sala de Halloween. Stephanie se lembrou de uma menção no folheto a respeito de quando alguns hóspedes, durante uma festa de Halloween nos anos 1920, pintaram as paredes.

Ela avistou Calça de Sarja do outro lado da sala, passando entre os objetos expostos, avançando para a outra saída.

—            Pare — gritou ela.

Ele continuou andando.

Stephanie mirou e atirou.

Seus ouvidos doeram com o estampido da arma. A bala bateu em uma das placas da exibição. Stephanie não estava tentando acertar o homem, só assustá-lo. Mas Calça de Sarja avançou pela porta e continuou correndo.

Stephanie foi atrás. Tinha visto o homem apenas de relance, então não teve como saber se ele estava armado. Ela passou por uma sala de recreação e entrou em uma área de boliche, duas pistas equipadas com pranchas de madeira, bolas e pinos. Devia ser uma comodidade e tanto no século XIX.

Ela decidiu tentar algo.

—            De que adianta fugir? — gritou ela. — Não tem para onde ir. A casa está fechada.

Silêncio.

Havia pequenos vestiários à esquerda, uma porta seguida de outra. Ela imaginou damas e cavalheiros respeitosos de cem anos antes vestindo trajes de recreação. O corredor à frente terminava onde Davis estava esperando, perto da piscina. Ela já havia feito a volta.

—            Apareça — disse Stephanie. — Você não vai conseguir sair daqui.

Ela sentiu que ele estava perto.

De repente, a 6 metros de distância, algo surgiu de um dos vestiários.

Um pino de boliche, arremessado em sua direção, cortando o ar como um bumerangue.

Stephanie se esquivou. O pino bateu na parede atrás dela e caiu com um estrondo. Calça de Sarja escapou.

A mulher retomou o equilíbrio e saiu adiante em disparada. No fim do corredor, olhou em volta. Ninguém à vista. Foi até os degraus e subiu de volta para a área da piscina. Calça de Sarja estava correndo do outro lado, perto da extremidade rasa da piscina, onde a porta da sala de musculação estava aberta. Ela ergueu a arma e mirou nas pernas do homem, mas, antes que pudesse atirar, Davis pulou pelo vão da porta e o agarrou. Eles bateram no corrimão de madeira que cercava a piscina, que cedeu de imediato, e os dois corpos caíram na parte rasa e vazia, um metro abaixo.

Carne e ossos bateram com violência contra o azulejo duro.

 

Para o meu filho, este talvez seja o meu último ato são. Minha mente está mergulhando rapidamente num estado de extrema confusão. Tentei resistir, sem sucesso. Antes que minhas capacidades mentais me abandonem por completo, tenho de fazer isto. Se você está lendo estas palavras, é porque conseguiu completar a busca de Carlos Magno. Deus o abençoe. Saiba que estou orgulhoso. Também busquei e descobri a herança duradoura de nossos grandes ancestrais arianos. Eu sabia que eles existiam. Disse a meu Führer, tentei convencê-lo de que sua visão do passado estava incorreta, mas ele não quis ouvir. O mais grandioso dos reis, o homem que antes de qualquer outro previu um continente unificado, Carlos Magno conhecia bem nosso destino. Apreciou o que os Sagrados lhe ensinaram. Entendia que eles eram sábios e ouviu seus conselhos. Aqui, nesta terra santa, Eginhardo escondeu a chave para a língua dos céus; ele recebeu ensinamentos do próprio Alto Conselheiro e protegeu o conhecimento com que foi privilegiado. Imagine meu êxtase, mais de mil anos depois, ao ser o primeiro a saber o que Eginhardo sabia, o que Carlos Magno sabia, o que nós, sendo alemães, temos de saber. Mas sequer uma alma reconheceu o que eu tinha descoberto. Em vez disso, fui estigmatizado como um homem perigoso, considerado instável e silenciado para sempre. Após a guerra, ninguém se importava com a nossa herança alemã. Dizer a palavra ariano era evocar lembranças de atrocidades que ninguém queria rememorar. Isso me enojava. Se eles soubessem. Se tivessem visto. Como eu tinha visto.

Meu filho, se você chegou a este ponto, é devido ao que lhe contei sobre a busca de Carlos Magno. Eginhardo deixou claro que nem ele nem os Sagrados têm paciência com a ignorância. Eu também não tenho, meu filho. Você provou que estou certo e provou seu próprio valor. Agora, pode conhecer a língua dos céus. Aprecie-a. Maravilhe-se com o lugar de onde viemos.

 

—            Sua mãe disse que Hermann veio aqui pela segunda vez no início dos anos 1950 — disse Malone. — Seu pai estaria com 30 e poucos anos então?

Christl assentiu.

—            Ele nasceu em 1921. Morreu aos 50.

—            Então, Hermann Oberhauser trouxe aqui o que havia encontrado e o pôs de volta no lugar, para que o filho assumisse a busca.

—            Meu avô era um homem de ideias estranhas. Nos últimos 15 anos da vida, não saiu de Reichshoffen. Não reconhecia nenhum de nós quando morreu. Mal falava comigo.

Malone se lembrou de mais coisas que Isabel lhe dissera.

—            Sua mãe mencionou que Dietz veio para cá depois que Hermann morreu. Mas parece que não encontrou nada, pois o livro ainda está aqui. — Ele percebeu o que isso significava. — Então, ele realmente foi para a Antártida sem saber de nada.

Christl balançou a cabeça.

—            Ele tinha os mapas do meu avô.

—            Eu os vi. Não tinha nada escrito. Como você disse em Aachen, mapas são inúteis sem anotações.

—            Mas ele tinha os cadernos do meu avô. Tem informações lá. Malone apontou para o livro sobre o pano.

—            Seu pai precisava disso para saber o que Hermann sabia.

Ele se perguntou por que a Marinha tinha concordado com uma viagem tão extravagante. O que Dietz Oberhauser havia prometido? O que eles esperavam ganhar?

As orelhas de Malone estavam dormentes por causa do frio. Ele olhou para a capa do livro. O mesmo símbolo do exemplar encontrado no túmulo de Carlos Magno tinha sido gravado na parte da frente.

Malone abriu o tomo antigo. Na forma, no tamanho e na coloração, era quase idêntico aos dois que ele já havia visto. Dentro, a mesma escrita estranha, com acréscimos.

—            Esses rabiscos do outro livro são letras — disse, percebendo que cada página continha uma maneira de converter o alfabeto para o latim. — É uma tradução da língua do céu.

—            Podemos fazer isso — disse Christl.

—            Como assim?

—            Minha mãe mandou escanearem o livro de Carlos Magno. Um ano atrás, contratou alguns linguistas para que tentassem decifrá-lo. Eles fracassaram, claro, uma vez que o texto não está escrito em nenhum idioma conhecido. Eu previ isso, sabendo que o que quer que estivesse aqui tinha de ser uma maneira de traduzir o livro. O que mais poderia ter sido? Ontem, minha mãe me deu as imagens eletrônicas. Tenho um programa de tradução que deve funcionar. Tudo o que teríamos de fazer seria escanear e acrescentar as páginas deste livro aqui.

 

—            Diga que você está com o laptop aí. Ela fez que sim.

—            Minha mãe o trouxe de Reichshoffen. Junto com um scanner. Finalmente, algo tinha dado certo.

STEPHANIE NÃO PODIA FAZER MUITA COISA. DAVIS E CALÇA DE SARJA ROLAVAM para a parte mais funda da piscina vazia, sobre os azulejos brancos escorregadios, até a superfície plana 2,5 metros abaixo dela.

Eles bateram na parte mais baixa de uma escada de madeira, que ia dar numa plataforma que estaria submersa se a piscina estivesse cheia. Outros três degraus iam da plataforma até a borda.

Davis empurrou Calça de Sarja para longe de si e então ficou de pé, movimentando-se de um lado para o outro para bloquear qualquer espaço para fuga. Calça de Sarja pareceu passar por um momento de indecisão, virando a cabeça para a esquerda e para a direita, percebendo que eles estavam encerrados numa arena incomum.

Davis tirou o casaco. Calça de Sarja aceitou o desafio e fez o mesmo.

Stephanie queria interromper aquilo, mas sabia que Davis jamais a perdoaria. Calça de Sarja parecia ter 40 anos, contra os 50 e tantos de Davis, mas a raiva poderia igualar as chances.

Ela ouviu o som de um punho encontrando osso quando Davis acertou Calça de Sarja em cheio no maxilar, fazendo-o rodopiar até os azulejos. O homem se recuperou de imediato e atacou, plantando um pé no estômago de Davis; Stephanie o ouviu perder o fôlego.

Calça de Sarja pulava para a frente e para trás, dando socos rápidos e precisos e terminando com um golpe no esterno de Davis.

Davis, perdendo o equilíbrio, deu um giro. No momento exato em que retomou a coordenação e tentou girar mais uma vez, Calça de Sarja deu o bote e acertou-o no pomo de adão. Davis deu um cruzado de direita que atingiu apenas o ar. Um sorriso debochado e orgulhoso apareceu no rosto de Calça de Sarja.

Davis caiu de joelhos, inclinado para a frente, como se estivesse rezando, com a cabeça baixa e os braços ao lado do corpo. Calça de Sarja estava de pé e pronto. Stephanie ouviu Davis retomar o fôlego e sentiu a boca seca. Calça de Sarja aproximou-se, parecendo determinado a terminar a luta. Mas Davis reuniu toda a energia que ainda lhe restava e se jogou para a frente, atacando o adversário, enfiando a cabeça nas costelas do homem.

Um osso estalou. Calça de Sarja berrou de dor e caiu nos azulejos. Davis começou a socar o homem, fazendo o nariz dele lançar respingos de sangue no chão. Os braços e pernas de Calça de Sarja pararam de se mover e ficaram relaxados. Davis continuou espancando-o com socos fortes e precisos.

—            Edwin — chamou Stephanie.

Ele não pareceu ouvir.

—            Edwin — gritou ela.

Ele parou. Sua respiração estava ofegante, mas ele não se moveu.

—            Acabou — disse ela.

Davis lançou-lhe um olhar mortífero. Por fim, saiu de cima do oponente e se levantou, mas seus joelhos cederam no mesmo instante, e ele voltou a cair. Firmou um braço e apoiou-se, tentando manter-se de pé, mas não conseguiu. Desabou no azulejo.

 

               OSSAU, 3H

 

CHRISTL RETIROU UM LAPTOP DE SUA MALA DE VIAGEM. ELES HAVIAM VOLTADO para a pousada sem ver nem ouvir ninguém. A neve começara a cair lá fora, rodopiando ao vento, formando suaves redemoinhos. Christl li¬gou a máquina, em seguida retirou um scanner portátil e conectou-o a uma das entradas USB.

—            Isso vai demorar um pouco — disse ela. — Não é o scanner mais rápido do mundo.

Malone estava com o livro da igreja nas nãos. Eles tinham folheado todas as páginas, que pareciam uma tradução completa de cada letra da língua do céu para a correspondente latina.

—            Saiba que isso não vai ficar exato — disse Christl. — Algumas das letras podem ter duplo significado. Pode não haver nenhuma letra ou som correspondente em latim. Esse tipo de coisa.

—            Seu avô conseguiu.

Ela o encarou com uma estranha mistura de irritação e gratidão.

—            Também posso verter instantaneamente latim para alemão ou inglês. Eu não sabia o que esperar, na verdade. Nunca cheguei a ter certeza se deveria acreditar em meu avô. Alguns meses atrás, minha mãe me permitiu acesso a alguns dos cadernos dele. Do meu pai também.

Mas extraí pouco daquele material. Obviamente, minha mãe reteve o que considerava importante. Os mapas, por exemplo. Os livros dos túmulos de Eginhardo e de Carlos Magno. Então, sempre havia uma dúvida incômoda de que meu pai teria sido simplesmente um ignorante.

Malone achou interessante a franqueza dela. Reanimadora. Mas ainda suspeita.

—            Você viu todos aqueles objetos nazistas que ele colecionava. Era obcecado. O estranho é que ele foi poupado dos desastres do Terceiro Reich, mas parecia lamentar não ter feito parte da queda. No final, ele estava apenas amargurado. Foi quase uma bênção ter enlouquecido.

—            Mas agora ele tem outra chance de provar que estava certo. A máquina tiniu, sinalizando que estava pronta.

Christl recebeu o livro das mãos de Malone.

—            E pretendo dar a ele toda chance. O que você vai fazer enquanto trabalho?

Malone se recostou na cama.

—            Pretendo dormir. Me acorde quando tiver acabado.

 

RAMSEY CERTIFICARA-SE DE QUE DIANE MCCOY DEIXARA FORT LEE E ENTÃO regressara para Washington. Não voltara ao armazém para não atrair mais atenção e explicara ao comandante da base que o acontecido fora uma pequena disputa de território entre a Casa Branca e a Marinha. A explicação parecera ter liquidado quaisquer questões que pudessem ter sido geradas por tantas visitas de alto nível ao longo dos últimos dias.

Olhou para o relógio: 20h50. Sentou-se à mesa numa pequena trattoria nos arredores da capital. Boa comida italiana, ambiente discreto, excelente adega. Ramsey não estava interessado em nenhuma dessas coisas naquela noite. Ficou bebericando o vinho.

Uma mulher entrou no restaurante. O corpo alto e delgado estava envolto por um jeans vintage escuro e casaco de veludo com costuras aparentes. Um cachecol bege de caxemira cobria-lhe o pescoço. Ela caminhou por entre as mesas e sentou-se à mesa de Ramsey.

A mulher da loja dos mapas.

—            Você se saiu bem com o senador — disse ele. — Acertou em cheio.

Ela agradeceu o elogio com um aceno de cabeça.

—            Onde ela está? — perguntou Ramsey. Ele ordenara que Diane McCoy ficasse sob vigia.

—            Você não vai gostar.

Ele sentiu um novo calafrio percorrer-lhe a espinha.

—            McCoy está com Kane. Neste exato momento.

—            Onde?

—            Caminharam pelo Lincoln Memorial, depois andaram pelo vale até o monumento Washington.

—            Noite fria para um passeio.

—            Nem me fale. Tenho um homem com ela agora. Ela está indo para casa.

Tudo muito perturbador. A única ligação entre Diane e Kane seria ele. Ramsey achara que ela estava aquietada, mas talvez tivesse subestimado a determinação da mulher.

O celular vibrou no bolso dele. Ao olhar a tela, viu o nome de Hovey.

—            Preciso atender — disse Ramsey. — Pode aguardar perto da porta?

Ela entendeu e saiu.

—            O que foi? — disse ele ao telefone.

—            A Casa Branca está na linha. Querem falar com você. Nada incomum.

—            E?

—            É o presidente.

Isso era incomum.

—            Transfira a ligação.

Segundos depois, ele ouviu a voz estrondosa que o mundo todo conhecia.

—            Almirante, espero que esteja tendo uma boa noite.

—            Está frio, senhor presidente.

—            Está certo. E cada vez mais frio. Estou ligando porque Aatos Kane quer você no Estado-Maior Conjunto. Ele disse que você é o homem certo para o cargo.

—            Isso depende da concordância do senhor. — Ramsey manteve a voz baixa, abaixo do nível das conversas indistintas ao seu redor.

—            Concordo. Pensei nisso o dia todo, mas concordo. Gostaria do trabalho?

—            Eu serviria de bom grado onde o senhor quisesse.

—            Você sabe o que penso do Estado-Maior Conjunto, mas sejamos realistas. Nada vai mudar, então preciso de você lá.

—            Fico honrado. Quando isso viria a público?

—            Farei seu nome vazar daqui a uma hora. Você será matéria amanhã de manhã. Esteja pronto, almirante, é um mundo bem diferente da inteligência naval.

—            Estarei pronto, senhor.

—            Fico contente em tê-lo no time.

E Daniels se foi.

Por um momento, o fôlego fugiu a Ramsey. Suas defesas caíram. Seus medos foram abatidos. Ele havia conseguido. O que quer que Diane McCoy estivesse fazendo não importava.

Ele agora era o indicado.

 

DOROTHEA ESTAVA NA CAMA, TREMENDO, NAQUELE ESTADO ENTRE O SONO E O despertar, em que os pensamentos às vezes podiam ser controlados. O que ela fizera ao fazer amor com Werner novamente? Era algo que ela nunca mais achara que fosse possível — uma parte de sua vida que certamente havia terminado. Talvez não.

Duas horas antes, ouvira a porta do quarto de Malone abrir e fechar. Um murmúrio de vozes vazou através das paredes finas, mas nada que Dorothea pudesse decifrar. O que sua irmã fazia no meio da noite?

Werner estava deitado, espremido ao lado dela na cama estreita. Ele tinha razão. Eram casados, e seu herdeiro seria legítimo. Mas ter um filho aos 48 anos? Talvez esse fosse o preço que Dorothea devia pagar. Werner e Isabel pareciam ter forjado uma espécie de aliança, forte o suficiente para que Sterling Wilkerson tivesse de morrer — forte o suficiente para transformar Werner em algo que parecia um homem.

Mais vozes vazaram do quarto ao lado.

Ela saiu da cama e se aproximou da parede que ligava os quartos, mas não conseguiu entender nada. Foi até a janela, pisando de leve o chão acarpetado. Flocos de neve finos caíam em silêncio. Dorothea passara a vida toda nas montanhas e na neve. Aprendera a caçar, atirar e esquiar quando ainda era nova. Não tinha medo de muitas coisas — apenas do fracasso e da mãe. Apoiou o corpo nu contra o peitoril frio da janela, frustrada e pesarosa, e ficou olhando para o marido, aconchegado sob o edredom.

Ela se perguntou se a amargura que sentia em relação a ele não passava da dor pela morte do filho. Por muito tempo depois, os dias e as noites haviam parecido um pesadelo, algo como se ela estivesse correndo sem propósito ou destino à vista.

O frio tomou o quarto, e a coragem de Dorothea.

Ela cruzou os braços sobre os seios nus.

Parecia que a cada ano que passava ela se tornava mais amarga, mais insatisfeita. Sentia a falta de Georg. Mas talvez Werner estivesse certo. Talvez fosse a hora de viver. Amar. Ser amada.

Dorothea esticou as pernas, mantendo-as alongadas por um tempo. O quarto ao lado caíra em silêncio. Virou-se e olhou de novo pela janela, para a escuridão impregnada de neve. Acariciou a barriga lisa. Mais um bebê. Por que não?

 

                 ASHEVILLE, 23H15

 

STEPHANIE E EDWIN DAVIS ENTRARAM NO INN ON BILTMORE ESTATE. DAVIS SE recuperara da briga, arrebatado pela dor, com hematomas no rosto, mas com o ego intato. Calça de Sarja foi preso, ainda que inconsciente num hospital da região, com uma concussão e várias contusões resultantes da surra. A polícia local tinha acompanhado a ambulância e permaneceria lá até a chegada do Serviço Secreto, o que deveria levar menos de uma hora. Os médicos já haviam informado a polícia de que o homem não poderia ser interrogado antes da manhã seguinte. O palacete tinha sido fechado, e mais policiais vasculhavam o interior, vendo se Calça de Sarja havia deixado algo no local. Fitas das câmeras de segurança espalhadas por toda a casa estavam sendo revisadas com atenção, na busca por mais informações.

Davis dissera pouco desde que saíra da piscina. Uma ligação para a Casa Branca confirmara a identidade e as credenciais dos dois; portanto, não haviam sido forçados a responder a perguntas. O que fora ótimo. Stephanie podia ver que Davis não estava disposto a isso.

O chefe de segurança da propriedade, a acompanhara de volta ao hotel. Eles se aproximaram do balcão principal da recepção, e o administrador encontrou o que Davis queria, entregando-lhe um pedaço de papel.

—            O número da suíte de Scofield.

—            Vamos — disse Davis a Stephanie.

Localizaram o quarto no sexto andar, e ele bateu na porta com força.

Scofield atendeu, vestindo um roupão da pousada.

— É tarde e tenho de acordar cedo amanhã. O que será que vocês dois estão querendo agora? Já não causaram confusão suficiente?

Davis empurrou o professor para o lado e entrou na suíte, que continha uma área de estar generosa com sofá e cadeiras, um minibar e janelas que certamente proporcionavam uma vista maravilhosa das montanhas.

—            Eu aguentei a sua babaquice hoje à tarde — disse Davis — porque tinha de aguentar. Você achou que éramos loucos. Mas acabamos de salvar a sua pele e queremos algumas respostas em retribuição.

—            Tinha alguém aqui para me matar?

Davis apontou para os hematomas.

—            Olhe o meu rosto. Ele está no hospital. É hora de você nos contar algumas coisas, professor. Coisas confidenciais.

Scofield pareceu engolir parte da insolência.

—            Está certo. Fui um idiota com vocês hoje, mas eu não sabia...

—            Um homem veio matá-lo — esclareceu Stephanie. — Embora ainda tenhamos de interrogá-lo para ter certeza, parece mesmo que estamos com a pessoa certa.

Scofield assentiu com a cabeça e convidou-os a se sentar.

—            Não consigo imaginar por que eu seria uma ameaça depois de todos esses anos. Cumpri meu juramento. Nunca falei de nada, ainda que eu devesse ter falado. Poderia ter conquistado bastante fama.

Stephanie esperou que ele explicasse.

—            Gastei todo o meu tempo, desde 1972, tentando provar, de outras maneiras, o que sei que é verdadeiro.

Ela havia lido uma breve sinopse do livro de Scofield, a qual a equipe dela enviara por e-mail no dia anterior. Ele sustentava que uma civilização avançada, espalhada pelo mundo, existira milhares de anos antes do Antigo Egito. Como prova, forneda uma reavaliação de mapas havia muito conhecidos entre os especialistas, como o famoso desenho de Piri Reis, todos os quais tinham sido feitos, concluía Scofield, com o uso de mapas mais antigos, hoje perdidos. Ele acreditava que esses cartógrafos ancestrais eram muito mais avançados cientificamente do que as civilizações da Grécia, do Egito, da Babilônia ou até dos europeus posteriores, tendo mapeado todos os continentes, delineado a América do Norte milhares de anos antes de Colombo e demarcado a Antártida quando suas costas ainda não tinham gelo. Nenhum estudo científico sério corroborava qualquer das afirmações de Scofield, mas, como estava observado no e-mail, nenhum havia refutado sua teoria também.

—            Professor — disse Stephanie. — Para que possamos descobrir por que querem matá-lo, precisamos saber o que está em jogo. Você tem de nos falar sobre seu trabalho para a Marinha.

Scofield baixou a cabeça.

—            Aqueles três capitães-tenente trouxeram-me caixotes cheios de rochas. Elas haviam sido coletadas durante a Salto em Altura e a Moinho de Vento nos anos 1940 e foram deixados em um armazém qualquer. Ninguém prestara muita atenção nelas. Dá para imaginar? Provas como aquelas, e ninguém se importava.

"Fui o único a ter permissão para examinar os caixotes, embora Ramsey tivesse liberdade de ir e vir quando quisesse. As rochas estavam marcadas com alguma escrita. Letras singulares, como se fossem arabescos. Nenhuma língua conhecida correspondia a elas. Era ainda mais espetacular o fato de que tivessem vindo da Antártida, um lugar que está debaixo de gelo há milhares de anos. E, ainda assim, nós as encontramos. Ou melhor, os alemães as encontraram. Eles foram para a Antártida em 1938 e acharam os primeiros locais. Voltamos em 1947 e 1948 e as coletamos."

—            E novamente em 1971 — disse Davis.

A descrença encobriu o rosto de Scofield.

—            Voltamos?

Stephanie pôde ver que o homem realmente não sabia, então decidiu fazer um pequeno agrado:

—            Um submarino foi, mas se perdeu. Foi o que começou tudo isso agora. Tem alguma coisa sobre aquela missão que alguém não quer que venha a público.

—            Nunca me disseram isso. Mas não me surpreende: eu não pre¬cisava saber. Fui contratado para analisar a escrita. Para ver se ela podia ser decifrada.

—            E pôde? — perguntou Davis.

Scofield balançou a cabeça.

—            Não me permitiram terminar. O almirante Dyals encerrou o projeto de repente. Tive de jurar sigilo absoluto e fui dispensado. Foi o dia mais triste da minha vida. — A atitude dele combinava com as palavras. — Estava ali. Era a prova de que existira uma primeira civilização. Tínhamos até seu idioma. Se de alguma forma pudéssemos aprender a entendê-la, saberíamos tudo sobre eles. Revelaríamos com certeza se eles haviam sido os antigos reis dos mares. Algo me dizia que sim, mas não me permitiram descobrir.

Ele parecia ao mesmo tempo entusiasmado e triste.

—            Como você teria aprendido a ler aquela língua? — perguntou Davis. — Seria como escrever palavras aleatórias e tentar saber o que significam.

—            É aí que você se engana. Sabe, naquelas rochas também havia letras e palavras que eu reconhecia. Em latim e grego. Até alguns hieróglifos. Não veem? Essa civilização interagiu conosco. Houve contato. Aquela pedras eram mensagens, anúncios, manifestações. Quem sabe? Mas eram passíveis de serem lidas.

A irritação de Stephanie com a própria estupidez mudou para uma estranha incerteza, e ela pensou em Malone e no que estava acontecendo com ele.

—            Já ouviu falar no nome Oberhäuser?

Scofield assentiu.

—            Hermann Oberhauser. Ele foi para a Antártida com os nazistas em 1938. Em parte, ele é a razão pela qual voltamos lá com a Salto em Altura e a Moinho de Vento. O almirante Byrd ficou fascinado com as ideias de Oberhauser a respeito dos arianos e das civilizações perdidas. É claro que, naquela época, pós-Segunda Guerra Mundial, não se podia falar muito alto sobre essas coisas, então Byrd conduziu pesqui¬sas particulares enquanto esteve lá com a Salto em Altura e encontrou as pedras. Como ele deve ter confirmado o que Oberhauser havia teorizado, o governo jogou tudo aquilo para baixo do tapete. Com o tempo, as descobertas dele foram simplesmente esquecidas.

—            Por que alguém ia querer matar por causa disso? — resmungou Davis em voz alta. — É ridículo.

—            Tem um pouco mais — disse Scofield.

 

MALONE DESPERTOU COM UM SOBRESSALTO E OUVIU CHRISTL DIZER:

—            Vamos, acorde.

Ele esfregou os olhos para afastar o sono e checou o relógio. Tinha apagado por duas horas. Quando sua visão se ajustou às luminárias do quarto, viu Christl olhando para ele com uma expressão de triunfo.

—            Consegui.

 

STEPHANIE ESPEROU SCOFIELD TERMINAR.

—            Quando você vê o mundo através de uma lente diferente, as coisas mudam de foco. Medimos localizações com latitude e longitude, mas esses conceitos são relativamente modernos. O meridiano de origem passa por Greenwich, Inglaterra, porque esse foi o ponto arbitrariamente escolhido no fim do século XIX. Meu estudo dos mapas antigos revelou algo bastante contrário e bastante extraordinário.

Scofield levantou-se e pegou um bloco de anotações e uma caneta do hotel. Stephanie observou, enquanto ele esboçava um mapa-múndi, acrescentando marcas de latitude e longitude no perímetro do desenho. Em seguida, riscou uma linha passando pelo centro a partir da posição da longitude de trinta graus a leste.

—            Não está em escala, mas vai servir para vocês verem do que estou falando. Acreditem, aplicado a um mapa em escala, tudo o que estou prestes a lhes mostrar fica claro. Esta linha central, que seria 31 graus, oito minutos leste, passa diretamente pela Grande Pirâmide de Gizé. Se esta aqui se tornar a linha de longitude grau zero, eis o que acontece.

Ele indicou um ponto na América do Sul em que estaria a Bolívia.

—            Tiahuanaco. Construída por volta de 15.000 a.C. A capital de uma civilização pré-incaica desconhecida, perto do lago Titicaca. Dizem que pode ser a cidade mais antiga da Terra. Cem graus a oeste da linha de Gizé.

Scofield apontou para o México.

—            Teotihuacán. Igualmente antiga. A tradução do nome é "local de nascimento dos deuses". Ninguém sabe quem a construiu. Uma cidade sagrada mexicana, 120 graus a oeste da linha de Gizé.

Ele apoiou a ponta da caneta no oceano Pacífico.

—            Ilha de Páscoa. Repleta de monumentos que não conseguimos explicar. Cento e quarenta graus a oeste da linha de Gizé. — Ele avançou para o Pacífico Sul. — O antigo centro polinésio de Raiatea, extraordinariamente sagrado. Cento e oitenta graus a oeste da linha de Gizé.

—            Funciona na direção contrária? — perguntou Stephanie.

—            Claro. — Scofield indicou o Oriente Médio. — Iraque. A cidade bíblica de Ur dos caldeus, o local de nascimento de Abraão. Quinze graus a leste da linha de Gizé. — Ele deslocou a ponta da caneta. — Aqui, Lhasa, a cidade sagrada tibetana, extremamente antiga. Sessenta graus a leste.

"Há muitos outros locais que caem em intervalos definidos a partir da linha de Gizé. Todos sagrados. A maioria construída por povos desconhecidos, envolvendo pirâmides ou alguma forma de estrutura elevada. Não pode ser coincidência que estejam localizados em pontos precisos do globo."

—            E você acha que quem quer que tenha esculpido as escritas nas pedras foi responsável por tudo isso? — perguntou Davis.

—            Lembre-se, todas as explicações são racionais. E quando você leva em consideração a jarda megalítica, a conclusão torna-se inevitável.

Stephanie nunca tinha ouvido o termo.

—            Da década de 1950 até meados dos anos 1980, Alexander Thom, um engenheiro escocês, realizou a análise de 46 círculos de pedra neolíticos e da Idade do Bronze. Com o tempo, ele avaliou mais de trezentos locais e descobriu que havia uma unidade de medida comum usada em todos eles. Chamou-a de jarda megalítica.

—            Como isso é possível — perguntou ela —, considerando as culturas variadas?

—            A idéia fundamental é bastante sensata. Monumentos como o Stonehenge, que existem por todo o planeta, não eram nada além de observatórios antigos. Seus construtores concluíram que se ficassem no centro de um círculo e se voltassem para o nascer do sol, marcando a localização do evento a cada dia, depois de um ano haveria 366 marcas no solo. A distância entre essas marcas era sempre de 41,45 centímetros.

"É claro que esses povos antigos não faziam medições em centímetros — continuou Scofield —, mas esse foi o equivalente moderno ao se reproduzir a técnica. Esses mesmo povos antigos descobriram, então, que uma estrela levava 3,93 minutos para se mover de uma marca até a outra.

"Igualmente, não usavam minutos, mas observaram e anotaram uma unidade constante de tempo. — Scofield fez uma pausa. — Eis a parte interessante: para que um pêndulo oscile 366 vezes durante 3,93 minutos, ele tem de ter exatamente 41,45 centímetros de comprimento. Impressionante, não? E, de modo algum, coincidência. Foi por isso que 41,45 centímetros foi a medida escolhida pelos construtores antigos para a jarda megalítica."

Scofield pareceu notar a descrença de Stephanie e Davis.

—            Não é algo tão raro assim — disse ele. — Um método semelhante chegou a ser proposto como alternativa para determinar o comprimento de um metro padrão. Os franceses acabaram decidindo que seria melhor usar uma divisão do quadrante de um meridiano, pois eles não confiavam nos cronômetros de que dispunham.

—            Como é que povos antigos poderiam saber disso? — perguntou Davis. — Seria preciso uma compreensão sofisticada de matemática e mecânica orbital.

—            Lá vem a arrogância moderna de novo. Esses povos não eram homens das cavernas ignorantes. Eles tinham uma inteligência intuitiva. Eram conscientes do seu mundo. Nós estreitamos nossos sentidos e estudamos coisas pequenas. Eles ampliaram suas percepções e entenderam o cosmo.

—            Existe alguma evidência científica que prove isso? — perguntou Stephanie.

—            Acabei de mostrar a vocês a física e a matemática, o que, aliás, essa sociedade navegadora teria entendido. Alexander Thom pressupôs que varas de medição com uma jarda megalítica feitas de madeira poderiam ter sido usadas para fins de exploração, e que elas devem ter sido produzidas em um lugar central para manter a coerência que ele observou nos locais das construções. Esses povos ensinavam muito bem suas lições a estudantes interessados.

Ela pôde ver que Scofield acreditava em tudo o que estava dizendo.

—            Várias coincidências numéricas com outros sistemas de medida usadas ao longo da história dão algum apoio à idéia da jarda megalítica. Ao estudar a civilização minoica, o arqueólogo J. Walter Graham propôs que o povo de Creta usava uma medida padrão, que ele denominou pé minóico. Há uma correlação. Mil pés minóicos equivalem a exatamente 366 jardas magalíticas. Outra coincidência impressionante, não acham?

"Também há uma relação entre a antiga medida egípcia de cúbito real e a jarda megalítica. Um círculo com meio cúbito real de diâmetro possui uma circunferência igual a uma jarda megalítica. Como uma correlação tão direta seria possível sem um denominador comum? É como se os minóicos e os egípcios tivessem aprendido sobre a jarda megalítica e, em seguida, adaptado a unidade às suas próprias situações.

—            Por que eu nunca ouvi falar em nada disso? — perguntou Davis.

—            A corrente científica predominante não pode confirmar nem negar a jarda megalítica. Argumenta-se que não há provas de que o pêndulo fosse de uso comum naquela época... ou mesmo de que o princípio que o rege fosse conhecido antes de Galileu. Mas é aquela arrogância mais uma vez. De alguma forma, somos sempre os primeiros a perceber qualquer coisa. Os cientistas da corrente predominante também dizem que os povos do neolítico não tinham nenhum sistema de escrita que fosse capaz de registrar informações sobre órbitas e movimentos planetários, mas...

—            As rochas — disse Stephanie. — Elas continham escritas. Scofield sorriu.

—            Exatamente. Escrita antiga numa língua desconhecida. No entanto, até o momento em que puder ser decifrada, ou até que uma vara de medição neolítica realmente seja encontrada, a teoria permanecerá sem comprovações.

Scofield ficou em silêncio. Stephanie ficou esperando por mais.

—            Só tive permissão para trabalhar com as pedras — disse ele. — Tudo era levado a um armazém em Fort Lee. Mas uma seção desse armazém era refrigerada. E ficava trancada. Só o almirante entrava. O conteúdo daquela seção já estava lá quando cheguei. Dyals me disse que, se eu resolvesse o problema da língua, poderia dar uma olhada lá dentro.

—            Nenhuma idéia do que havia ali? — perguntou Davis. Scofield balançou a cabeça.

—            O almirante era obcecado com a questão do sigilo. Sempre deixava aqueles capitães-tenentes no meu pé. Eu nunca ficava sozinho dentro do prédio. Mas tinha a impressão de que os itens importantes estavam guardados naquele freezer.

—            Você chegou a conhecer Ramsey? — perguntou Davis.

—            Ah, sim. Era o favorito de Dyals. Claramente no comando.

—            Ramsey está por trás disto — declarou Davis.

O pesar e a irritação de Scofield pareceram aumentar.

—            Ele faz alguma ideia do que eu poderia ter escrito a respeito daquelas pedras? Elas deviam ter sido mostradas ao mundo. Confirmariam tudo o que pesquisei. Uma cultura até então desconhecida, de navegadores, muito anterior à nossa civilização sequer surgir, capaz de desenvolver uma língua. É revolucionário.

—            Ramsey não está nem aí — disse Davis. — Seu único interesse é ele mesmo.

Stephanie estava curiosa.

—            Como você sabia que essa civilização era de navegadores?

—            Relevos nas pedras. Barcos longos, habilidades sofisticadas de navegação, baleias, icebergs, focas, pinguins, e não dos pequenos. Grandes, do tamanho de um homem. Hoje sabemos que uma espécie como essa existiu na Antártida, mas estão extintos há dezenas de milhares de anos. No entanto, vi imagens deles entalhadas.

—            E o que aconteceu com essa cultura perdida? — perguntou ela. Scofield deu de ombros.

—            Provavelmente, o mesmo que aconteceu com todas as sociedades humanas. Eliminamos a nós mesmos de forma intencional ou por imprudência. De um jeito ou de outro, desaparecemos.

Davis encarou-a.

—            Precisamos ir até Fort Lee para ver se esse material ainda está lá.

—            É tudo confidencial — disse Scofield. — Vocês nunca chegarão nem perto.

Scofield tinha razão. Mas Stephanie viu que não seria possível fazer Davis mudar de ideia.

—            Não tenha tanta certeza disso.

—            Posso ir dormir agora? — disse Scofield. — Tenho de estar de pé daqui a algumas horas para a nossa caçada anual. Javalis e arcos e flechas. Todo ano, levo um grupo do congresso para a floresta.

Davis levantou-se.

—            Claro. Vamos embora daqui pela manhã também. Ela se levantou.

—            Olhe — disse Scofield, em tom de resignação. — Sinto muito pela atitude. Estou grato pelo que fizeram.

—            Você deveria pensar em não ir caçar — disse Stephanie. Ele balançou a cabeça.

—            Não posso decepcionar os participantes. Eles aguardam ansiosamente por isso todo ano.

—            A decisão é sua — disse Davis. — Mas acho que você está seguro. Ramsey seria um tolo se viesse atrás de você de novo... e ele é qualquer coisa menos isso.

 

Baco me conta que eles se comunicaram com muitos povos e respeitam todas as formas de linguagem, por considerarem cada uma delas bela à sua própria maneira. O idioma desta terra cinzenta é uma língua fluida, num alfabeto aperfeiçoado há muito tempo. A respeito da escrita, são controversos. É necessária, mas eles alertam que a escrita incentiva o esquecimento e desencoraja a memória — e estão certos. Eu vago livremente entre as pessoas, sem medo. Crimes são raros e punidos pelo isolamento. Um dia, pediram-me ajuda para colocar a pedra fundamental de uma parede. Baco estava contente com meu envolvimento e insistiu para que eu friccionasse os vasos da terra, pois eles destilam um estranho vinho que cresce sob minhas mãos e encobre todo o céu. Baco diz que deveríamos venerar essa maravilha, pois ela fornece vida. Aqui, o mundo está partido por ventos poderosos e vozes que gritam alto numa língua que os homens mortais não conseguem falar. Ao som dessa alegria elementar, entro na casa de Hator e ofereço cinco jóias sobre um altar. O vento canta alto, tanto que todos os que estão ali parecem hipnotizados, e eu penso que estamos de fato no céu. Diante de uma estátua, ajoelhamo-nos e prestamos adoração. O som de uma flauta preenche o ar. As neves são eternas, e um estranho perfume flui para o alto. Uma noite, Baco de repente iniciou um discurso extremamente longo que eu não pude entender. Pedi que ele me ensinasse os meios para compreendê-lo, e Baco concordou, e eu aceitei de bom grado a língua do céu. Fico feliz que meu rei tenha me permitido vir a esta espantosa terra do sol esvanecente. Essas pessoas vibram e uivam, extravasam loucuras. Durante algum tempo, tive medo de ficar sozinho. Sonhava com pores do sol cálidos, flores de cores vivas e parreiras cheias. Mas não mais. Aqui, a alma fica embriagada. A vida é plena. Destrói e satisfaz, mas nunca desaponta.

 

Notei uma estranha constante. Tudo o que vira, naturalmente o faz para a esquerda. Pessoas perdidas movem-se para a esquerda. A neve rodopia para a esquerda. As trilhas dos animais na neve seguem para a esquerda. As criaturas do mar nadam em círculos inclinados para a esquerda. Bandos de pássaros aproximam-se vindo pela esquerda. O sol no verão movimenta-se o dia todo pelo horizonte, sempre da direita para esquerda. Os jovens são incentivados a conhecer seu ambiente natural. Aprendem a prever uma tempestade ou o perigo iminente, tornam-se adultos perceptivos, em paz consigo mesmos, preparados para a vida. Um dia participei de um passeio. A caminhada é bem-vista, mas é uma atividade perigosa. Um bom senso de direção e pés ágeis são necessários. Notei que, até quando nosso guia virava conscientemente para a direita, a soma de suas diversas voltas resultava sempre na esquerda, de modo que, sem pontos de referência, totalmente ausentes nesta terra, é quase impossível evitar o retorno ao ponto de partida vindo de qualquer direção que não seja a esquerda. Os homens, as aves e as criaturas marinhas estão integrados. Esse mecanismo de virada à esquerda parece inteiramente intrínseco a todos. Nenhum habitante desta terra cinzenta tem qualquer percepção do hábito e, quando faço a observação, eles simplesmente dão de ombros e sorriem.

 

Hoje, Baco e eu visitamos Adonai, que fora informado dos meus interesses por matemática e arquitetura. Ele é professor de habilidades e mostrou-me varas de medição usadas tanto para projetar quanto para construir. Ser consistente é ser preciso, disse-me. Digo a ele que o projeto da capela do rei em Aachen fora enormemente influenciado por seus alunos, e ele ficou satisfeito. Em vez de sermos temerosos, desconfiados ou ignorantes diante do mundo, Adonai insiste em que deveríamos aprender com o que a natureza criou. Os contornos da terra, a localização de calor subterrâneo, o ângulo do sol e o mar são todos fatores considerados para a localização tanto de um prédio como de uma cidade. A sabedoria de Adonai é sólida, e eu lhe agradeço a lição. Ele também me mostra um jardim. Muitas plantas são preservadas, mas muitas outras pereceram. As plantas são cultivadas em lugares fechados num solo rico em cinzas, pedras-pomes, areia e minerais. Plantas também são cultivadas na água, tanto salgada quanto doce. Raramente come-se carne. Dizem-me que esgota a energia do corpo e deixa a pessoa mais suscetível a doenças. Depois de passar por uma dieta constituída principalmente de plantas, com um ou outro prato de peixe, vejo que nunca me senti tão bem.

Que prazer ver o sol novamente. A longa escuridão do inverno terminou. As paredes de cristal ganham vida com um brilho de luz colorida. Um coro canta uma melodia grave, doce e rítmica. O volume aumenta à medida que o sol se ergue num novo céu. Trombetas soam a nota final, e todos abaixam a cabeça em reconhecimento ao poder da vida e da força. A cidade dá as boas-vindas ao verão. As pessoas brincam, vão a palestras, visitam umas às outras e aproveitam o Festival do Ano. Cada vez que o pêndulo central da praça repousa, todos se voltam para o templo e observam um cristal espalhando cor pela cidade. Após o longo inverno, o espetáculo é muito apreciado. Chegou o tempo das uniões, e muitos parecem fazer juramentos de amor e lealdade. Cada um aceita um bracelete de promessa e faz seus votos ao outro. Este momento traz grande alegria. Informam-me de que viver em harmonia é o objetivo. Mas nesta ocasião, três uniões precisavam ser desfeitas. Duas geraram filhos, e os respectivos pais concordaram em dividir responsabilidades, mesmo não permanecendo juntos. A terceira união recusou-se. Nenhum dos pais queria os filhos. Então, outros que desejavam ser pais havia muito tempo receberam a prole e, mais uma vez, houve grande alegria.

 

Fico numa casa onde quatro cômodos circundam um pátio. Nenhuma janela nas paredes, mas os cômodos têm uma iluminação esplêndida, vinda do alto, de um teto de cristal, e eles permanecem sempre cheios de calor e luz. Canos atravessam a cidade e chegam a todas as casas, como raízes rastejando pelo solo, trazendo um calor inesgotável. Apenas duas regras governam a casa. Nenhuma alimentação e nenhum saneamento. Os recintos não podem ser violados pelo gesto de comer, dizem-me. As refeições são feitas com todos nos salões de jantar. Lavagens, banhos e todos os outros métodos de higiene são realizados em outras salas. Pergunto a razão de tais regras, e me dizem que todas as matérias impuras são enviadas instantaneamente dos salões de refeição e de higiene para o fogo que nunca apaga, onde são absorvidas. É o que mantém Tártaras limpa e saudável. As duas regras são os sacrifícios que cada pessoa faz para a pureza da cidade.

 

Esta terra cinzenta é dividida em nove Lotes, cada um com uma cidade que se expande a partir de uma praça central, a qual parece um local de encontro. Um Conselheiro administra cada Lote, escolhido pelas pessoas do Lote por meio de votação, da qual homens e mulheres participam. As leis são promulgadas pelos nove Conselheiros e registradas nas Colunas da Justiça, na praça central de cada cidade, para que todos tenham conhecimento. Acordos solenes são feitos em conformidade com as leis. Os Conselheiros reúnem-se uma vez, durante o Festival do Ano, na praça central de Tártaras, e escolhem um dentre eles para ser o Alto Conselheiro. Uma única regra rege suas leis: tratar a terra e uns aos outros como você gostaria de ser tratado. Os Conselheiros deliberam para o bem de todos sob o símbolo da justiça. No alto está o sol, meio incandescente em sua glória. Depois, a Terra, um círculo simples, e os planetas representados por um ponto dentro do círculo. A cruz remete à terra, enquanto o mar ondula abaixo. Perdoem meu esboço mal-acabado, mas é assim que aparece.

 

               ASHEVILLE

 

STEPHANIE FOI ARRANCADA DO SONO PELO TELEFONE DA CABECEIRA. OLHOU para o relógio digital: 5h10. Davis estava deitado na outra cama queen size, também todo vestido, dormindo. Nenhum dos dois sequer se dera ao trabalho de desfazer a cama antes de se deitar.

Ela pegou o fone, ouviu por um momento, depois se sentou.

—            Diga mais uma vez.

—            O homem preso chama-se Chuck Walters. Verificamos a informação por meio das impressões digitais. Possui ficha, principalmente por coisas pequenas, nada que se relacione com este caso. Mora e trabalha em Arian ta. Verificamos seu álibi. Testemunhas relatam que estava na Geórgia duas noites atrás. Não há dúvidas. Entrevistamos todas e os dados conferem.

Stephanie organizou as idéias.

—            Por que ele fugiu?

—            Disse que um homem partiu para cima dele. Vinha dormindo com uma mulher casada nos últimos meses e achou que o sujeito fosse o marido dela. Checamos com a mulher, e ela confirma o relacionamento. Quando Davis o abordou, ele se apavorou e correu. Quando você atirou na direção dele, o homem apavorou-se de verdade e arremessou o pino de boliche. Não sabia o que estava acontecendo. Depois, Davis o arrebentou. Ele disse que vai processar.

—            Alguma chance de que esteja mentindo?

—            Não é o que parece. Esse cara não é nenhum assassino profissional.

—            O que estava fazendo em Asheville?

—            A esposa expulsou-o de casa dois dias atrás, então ele decidiu vir para cá. Só isso. Nada de ameaçador.

—            E, suponho, a esposa confirmou tudo isso.

—            É para isso que somos pagos. Stephanie balançou a cabeça.

Droga.

—            O que quer que eu faça com ele?

—            Solte-o. O que mais?

Ela desligou o telefone e disse:

—            Não é ele.

Davis estava sentado na beira da cama dele. Os dois se deram conta no mesmo instante. Scofield. E correram para a porta.

 

CHARLIE SMITH TINHA FICADO NO ALTO DA ÁRVORE POR QUASE UMA HORA. O inverno envolvia os troncos com resina aromática, e as folhas do abeto constituíam o esconderijo ideal no meio de um grupo de pinheiros altos. O ar do início da manhã era incrivelmente frio, e a grande umidade só aumentava o desconforto. Felizmente, ele vestira roupas quentes e escolhera o local com cuidado.

O show na casa de Biltmore na noite anterior tinha sido clássico. Smith organizara a farsa com grande estilo e vira a mulher não apenas pegar a isca, mas a linha, a vara, o molinete e o barco todo. Ele precisara saber se estava entrando numa armadilha, então ligara para Atlanta e contatara o agente, que já lhe havia prestado outros traba-lhos antes. Suas instruções tinham sido claras. Fique atento para algum sinal e, em seguida, atraia atenção para si. Smith havia notado o homem e a mulher do saguão quando entraram no ônibus que transportava os turistas até a mansão. Suspeitara que poderiam ser seu problema, mas, dentro da casa, viria a ter certeza. Então, dera o sinal, e seu homem apresentara uma performance digna de um Oscar. Smith ficara do outro lado da enorme árvore de Natal, no salão de banquete, e vira o circo pegar fogo.

As ordens para o agente tinham sido claras. Nada de armas. Não faça nada a não ser correr. Deixe que o peguem, depois alegue desconhecimento. Smith certificou-se de que o homem possuía um álibi convincente para duas noites antes, pois sabia que tudo seria conferido a fundo. O fato de que seu ajudante estivesse de fato passando por problemas conjugais e dormindo com uma mulher casada só ajudara no álibi e fornecera a razão perfeita para a fuga.

De modo geral, o espetáculo tinha funcionado de forma impecável.

Agora, ele viera terminar o trabalho.

 

STEPHANIE BATEU COM FORÇA NA PORTA DA COORDENADORA DO CONGRESSO, E seu chamado finalmente foi atendido. A recepção lhes fornecera o número do quarto.

—            Quem diabo são...

Stephanie mostrou a identificação.

—            Agentes federais. Precisamos saber onde a caçada acontecerá esta manhã.

A mulher hesitou por um segundo, depois disse:

—            É na propriedade, a cerca de vinte minutos daqui.

—            Um mapa — disse Davis. — Faça um, por favor.

 

SMITH OBSERVOU O GRUPO DE CAÇA COM UM BINÓCULO QUE COMPRARA NA tarde do dia anterior numa loja nas redondezas. Estava contente por ter guardado o fuzil de Herbert Rowland. Tinha quatro cartuchos, mais do que suficiente. Na verdade, só precisaria de um.

Caçar javalis certamente não era para qualquer um. Smith conhecia um pouco o esporte. Javalis eram cruéis, desagradáveis e tendiam a habitar apenas áreas de vegetação densa, longe de lugares muito frequentados. O arquivo sobre Scofield dizia que ele adorava caçar javalis. No dia anterior, quando Smith soubera desse evento, sua mente formulara rápido o modo perfeito de eliminar seu alvo.

Olhou à sua volta. O ambiente era ideal. Muitas árvores. Nenhuma casa. Quilômetros de floresta densa. Anéis de névoa envolviam os picos arborizados. Por sorte, Scofield não levara cães — os animais representariam um problema. Fora informado pela equipe do congresso que os participantes sempre se encontravam numa área de preparação a cerca de 5 quilômetros do hotel, perto do rio, e seguiam uma rota bem sinalizada. Sem armas de fogo. Somente arcos e flechas. E eles não voltavam necessariamente com um javali. Era mais tempo de convívio com o professor, conversando sobre o evento e apreciando a manhã de inverno na floresta. Portanto, Smith chegara havia duas horas, bem antes do amanhecer, e descera a trilha, até finalmente escolher o melhor e mais alto lugar, perto do início do passeio, na esperança de encontrar uma oportunidade.

Se não encontrasse, improvisaria.

 

STEPHANIE DIRIGIA, E DAVIS DAVA AS COORDENADAS. ELES HAVIAM SAÍDO ÀS pressas do hotel, no sentido oeste, para o interior dos mais de 3 mil hectares que constituíam o Biltmore Estate. A estrada era estreita, uma via de asfalto sem faixas que acabava atravessando o rio French Broad e entrava na mata fechada. A coordenadora do congresso dissera que a área de preparação da caçada não ficava muito depois do rio e que a trilha floresta adentro seria fácil de seguir.

Stephanie avistou carros adiante. Assim que estacionou numa clareira, ela e Davi saltaram do carro. Um tom pálido de amanhecer manchava o céu. O rosto dela sentiu o frio do ar úmido. Stephanie localizou a trilha e correu.

 

SMITH AVISTOU ALGO LARANJA ENTRE AS FOLHAGENS DE INVERNO, A UNS 400 metros de distância. Ele estava escondido na árvore, sobre um galho, apoiado contra um tronco do pinheiro. Um vento passou uivando sob o que começava a se transformar num céu azul de dezembro, claro e frio.

Pelo binóculo, ele viu Scofield e seu grupo caminharem no sentido norte. Smith tentara adivinhar a possível rota deles, torcendo para que se mantivessem na trilha. Agora, com Scofield à vista, viu que o chute valera a pena.

Ele pendurou o binóculo num galho saliente e apanhou o fuzil, buscando o foco pela mira telescópica. Teria preferido trabalhar de forma mais discreta, usando um silenciador potente, mas não havia trazido um dos seus, e a comercialização desse equipamento era ilegal. Segurou firme a coronha de madeira e esperou a presa se aproximar.

Só mais alguns minutos.

 

STEPHANIE CORREU NA FRENTE, SENTINDO O PÂNICO SE ALASTRAR EM ONDAS intensas. Ela manteve o olhar fixo adiante, em busca de movimento por entre as árvores. Sua respiração rasgava-lhe o peito.

Não estariam todos usando coletes coloridos?

O assassino estava ali?

 

SMITH AVISTOU UM MOVIMENTO ATRÁS DO GRUPO DE CAÇA. PEGOU O BINÓCULO E focalizou os dois da noite anterior, correndo, talvez uns 50 metros atrás do grupo, por uma trilha sinuosa.

Aparentemente, sua artimanha tinha funcionado apenas parcialmente.

Ele previu o que aconteceria depois que Scofield morresse. Um acidente de caça seria a suposição imediata, ainda que as duas almas intrépidas cada vez mais próximas gritassem que havia sido assassinato. Haveria um inquérito do departamento de polícia local e do departamento estadual de recursos naturais. Os investigadores iriam medir, fotografar e fazer buscas, e ângulos e trajetórias seriam anotados. Uma vez que percebessem que a bala viera do alto, as árvores seriam examinadas. Mas, caramba, havia dezenas de milhares por ali.

Quais eles iriam examinar?

Scofield estava a 500 metros de distância, e os dois salvadores aproximavam-se. Eles fariam uma curva pela trilha e avistariam o alvo. Smith voltou a olhar pela mira do fuzil.

Acidentes acontecem o tempo todo. Caçadores confundem outros caçadores com alguma presa. Quatrocentos metros.

Mesmo quando usam coletes laranja fluorescentes. A lente da mira foi preenchida pelo alvo.

O tiro precisava ser no peito. Mas a cabeça eliminaria a necessidade de um segundo disparo. Trezentos metros.

Aqueles dois estarem ali era um problema, mas Ramsey esperava que o Dr. Douglas Scofield morresse hoje.

Smith apertou o gatilho. O estrondo do fuzil atravessou o vale, e a cabeça de Scofield explodiu.

Então, Smith teria de correr o risco.

 

               OSSAU, FRANÇA

               13H20

 

MALONE TINHA OUVIDO O SUFICIENTE DA TRADUÇÃO DE CHRISTL PARA SABER que precisava ir para a Antártida. Se tivesse de levar quatro passageiros, que assim fosse. Era óbvio que Eginhardo tinha passado por uma experiência extraordinária, algo que também encantara Hermann Oberhauser. Infelizmente, o velho alemão sentira a iminência da própria ruína e, na esperança de que seu filho refizesse seus passos, devolvera o livro ao local em que o volume repousara por 1.200 anos. No entanto, Dietz fracassara, e a tripulação do NR-1A partilhara com ele as consequências. Se havia uma mísera chance de encontrar esse submarino naufragado, Malone precisava tentar.

Os dois falaram com Isabel e lhe disseram o que haviam encontrado.

Christl estava completando a tradução, trabalhando com esmero, certificando-se de que as informações de que dispunham estavam corretas.

Então Malone saiu da pousada para uma tarde gélida e caminhou na direção da praça central de Ossau, cada passo na neve fresca soando como um rangido de isopor. Ele levara o celular e, enquanto andava, digitou o número de Stephanie. Ela atendeu no quarto toque e disse:

—            Estava esperando notícias suas.

—            Isso não parece bom.

—            Ser feita de idiota nunca é. — Malone a ouviu contar sobre as últimas 12 horas e o que acontecera em Biltmore Estate. — Eu vi o cérebro do homem estourar.

—            Você tentou dizer para ele não ir, mas ele não quis ouvir. Nenhum sinal do atirador?

—            Muitas árvores entre ele e nós. Sem chances de encontrá-lo. Ele escolheu bem o local.

Malone entendia a frustração de Stephanie, mas observou:

—            Vocês ainda têm uma trilha para chegar a Ramsey.

—            É mais ele que tem uma trilha até nós.

—            Mas vocês sabem a relação. Ele vai ter de cometer um erro em algum momento. E você disse que Daniels contou que Diane McCoy foi a Fort Lee, e Ramsey visitou o local ontem. Pense, Stephanie. O presidente não lhe disse isso à toa.

—            Pensei a mesma coisa.

—            Acho que você sabe qual é o próximo passo.

—            Isso é uma droga, Cotton. Scofield está morto porque eu não estava pensando.

—            Ninguém disse que é justo. As regras são duras, e as consequências, mais ainda. É o que você me diria. Faça o seu trabalho e não sofra com ele, mas não vacile de novo.

—            O aluno ensinando à professora?

—            Algo assim. Agora, preciso de um favor. Grande.

 

STEPHANIE LIGOU PARA A CASA BRANCA. OUVIRA O PEDIDO DE MALONE E dissera para ele aguardar. Ela concordava. Era algo que tinha de ser feito. Também concordava que Danny Daniels estava tramando alguma coisa.

Ela ligou para uma linha privada direta do chefe de gabinete. Quando ele atendeu, ela explicou o que precisava. Momentos depois, o presidente entrou na linha e perguntou:

—            Scofield está morto?

—            E a culpa é nossa.

—            Como está Edwin?

—            Enlouquecido. O que você e Diane McCoy estão fazendo?

—            Nada mal. Eu achava que havia sido discreto com isso.

—            Não, Cotton Malone é que foi esperto. Só fui sensata o bastante para ouvi-lo.

—            É complicado, Stephanie. Mas digamos apenas que não tive tanta confiança na abordagem de Edwin quanto eu gostaria; parece que eu estava certo.

Ela não podia discutir.

—            Cotton precisa de um favor, e está relacionado a isso.

—            Diga.

—            Ele traçou uma relação entre Ramsey, o NR-1A, a Antártida e aquele armazém em Fort Lee. Malone encontrou uma maneira de ler aquelas pedras cobertas com escritas.

—            Eu estava torcendo para que isso acontecesse — disse Daniels.

—            Ele vai enviar um programa de tradução por e-mail. Desconfio que essa seja a razão pela qual o NR-1A foi enviado em 1971, para descobrir mais informações sobre aquelas rochas. Agora Malone precisa ir para a Antártida. Base de Halvorsen. Imediatamente. Com quatro passageiros.

—            Civis?

—            Creio que sim. Mas fazem parte do acordo. Eles têm a localização. Sem eles, nada de localização. Malone vai precisar de transporte aéreo e terrestre e de equipamento. Ele acha que pode ser capaz de resolver o mistério do NR-1A.

—            Devemos essa ao homem. Fechado.

—            De volta à minha pergunta, o que você e Diane McCoy estão fazendo?

—            Sinto muito. Privilégio presidencial. Mas preciso saber, vocês vão para Fort Lee?

—            Podemos usar aquele jato particular que trouxe o Serviço Secreto aqui?

Daniels deu uma risadinha.

—            É de vocês por hoje.

—            Então, sim, nós vamos.

 

MALONE SENTOU-SE NUM BANCO GELADO E VIU GRUPOS DE PESSOAS PASSAREM, todas rindo, cheias de alegria. O que o aguardava na Antártida? Impossível saber. Mas, por algum motivo, ele tinha medo.

Ficou sentado sozinho, suas emoções tão rígidas e frias quanto o ar à sua volta. Ele mal se lembrava do pai, mas nunca passara um dia, desde os 10 anos, em que não pensasse no homem. Quando entrara para a Marinha, conhecera muitos dos contemporâneos do pai e logo descobrira que Forrest Malone tinha sido um oficial altamente respeitado. Cotton nunca sentira pressão alguma para estar à altura — tal¬vez porque nunca tivesse conhecido o modelo —, mas diziam que ele se parecia muito com o pai. Franco, determinado, leal. Sempre considerara isso um elogio, mas como ele queria ter conhecido o homem pessoalmente.

Infelizmente, a morte interviera. E Malone ainda estava furioso com a Marinha por ela ter mentido.

Stephanie e o relatório do tribunal de inquérito tinham explicado algumas das razões para a farsa. O sigilo do NR-1A, a Guerra Fria, a singularidade da missão, o fato de a tripulação ter concordado em não ser resgatada. Mas nada disso era satisfatório. Seu pai tinha morrido numa aventura temerária em busca de um absurdo. No entanto, a Marinha dos Estados Unidos sancionara a loucura e um encobrimento ousado. Por quê?

O celular vibrou em sua mão.

—            O presidente deu sinal verde para tudo — disse Stephanie quando ele atendeu. — Geralmente há muita preparação e procedimentos que têm de ser seguidos antes que qualquer pessoa vá à Antártida, como treinamentos, vacinas, exames médicos; mas Daniels ordenou que fossem suspensos. Um helicóptero está a caminho agora. O presidente desejou boa sorte a você.

—            Enviarei o programa de tradução por e-mail.

—            Cotton, o que você espera encontrar?

Malone inspirou profundamente para acalmar seus nervos agitados.

—            Não tenho certeza, mas alguns de nós aqui têm de fazer essa viagem.

—            Às vezes é melhor deixar os fantasmas em paz.

—            Não me lembro de que você acreditasse nisso alguns anos atrás, quando os fantasmas eram seus.

—            O que você está prestes a fazer é perigoso. Sob mais de um aspecto.

O rosto dele estava voltado para a neve do chão; o telefone ao ouvido.

—            Eu sei.

—            Cuidado com essa, Cotton.

—            Você também.

 

           FORT LEE, VIRGÍNIA

           14H40

 

STEPHANIE DIRIGIA UM CARRO QUE ALUGARA NO AEROPORTO DE RICHMOND, onde o jato do Serviço Secreto havia pousado após a rápida viagem vindo de Asheville. Davis estava sentado ao lado dela, o rosto e o ego ainda machucados. Ele havia sido feito de idiota duas vezes. Uma, alguns anos antes, por Ramsey com Millicent, e outra no dia anterior, por um homem que assassinara Douglas Scofield habilidosamente. A polícia local estava tratando a morte como homicídio, unicamente devido à informação que Stephanie e Edwin haviam fornecido, ainda que nenhum traço do assassino tivesse sido encontrado. Ambos perceberam que o homem sumira muito tempo antes, e a tarefa agora era determinar para onde ele tinha ido. Mas primeiro eles precisavam ver qual era o motivo de toda a confusão.

—            Como você planeja entrar naquele armazém? — perguntou ela a Davis. —- Diane McCoy não conseguiu.

—            Acho que isso não vai ser o problema.

Stephanie sabia a quê, ou melhor, a quem Davis se referia.

O carro aproximou-se do portão principal da base e parou na guarita de segurança. Ela apresentou para o sentinela uniformizado sua identidade e a de Davis e disse:

—            Temos um assunto a tratar com o comandante da base. Confidencial.

O cabo foi para dentro da guarita e voltou logo em seguida, segurando um envelope.

—            Isto é para a senhora.

Stephanie aceitou o pacote, e o sentinela indicou que eles passassem. Ela entregou o envelope a Davis e, enquanto ele o abria, acelerou o carro.

—            É um bilhete — disse ele. — Diz para seguir estas instruções.

Davis foi orientado à medida que Stephanie dirigia pela base, até que eles entraram num complexo repleto de armazéns de metal, dispostos um ao lado do outro e parecidos com pães partidos ao meio.

—            O que está marcado como 12E — disse Davis.

Ela viu um homem esperando do lado de fora. Pele morena, cabelo preto-azeviche curto, feições mais árabes que europeias. Ela estacionou, e os dois saíram do carro.

—            Bem-vindos a Fort Lee — disse o homem. — Sou o coronel William Gross.

Usava calça jeans, botas e uma camisa de lenhador.

—            Ligeiramente à paisana — disse Davis.

—            Eu estava caçando hoje. Fui convocado e solicitado para que viesse como estivesse e fosse discreto. Fui informado de que vocês querem olhar lá dentro.

—- E quem lhe disse isso? — perguntou ela.

—            Na verdade, o presidente dos Estados Unidos. Não posso dizer que um presidente já tinha me ligado antes, mas um me ligou hoje.

 

RAMSEY FITAVA A REPÓRTER DO WASHINGTON POST DO OUTRO LADO DA MESA DE reunião. Era a nona entrevista que ele concedia naquele dia e a primeira presencial. As outras todas tinham sido por telefone, o que se tornara um procedimento padrão para uma imprensa com prazos apertados. Daniels, fiel às suas palavras, anunciara a indicação quatro horas antes.

—            Você deve estar emocionado — disse a mulher. Ela fazia a cobertura dos assuntos militares havia alguns anos e já o entrevistara antes. Não era tão inteligente, mas claramente achava que sim.

—            É um bom posto no qual terminar minha carreira na Marinha. — Ramsey riu. — Convenhamos, sempre foi a última atribuição de qualquer escolhido. Não tem muito mais para onde subir.

—            A Casa Branca.

Ele se perguntou se a repórter estava informada ou simplesmente jogando verde para ele. Certamente, a segunda opção. Então, decidiu se divertir um pouco:

—            Verdade, eu poderia me aposentar e concorrer à presidência. Parece um bom plano.

Ela sorriu.

—            Doze militares já chegaram lá.

Ramsey ergueu as mãos num gesto de rendição.

—            Garanto a você, não tenho nenhum plano para isso. Nenhum mesmo.

—            Várias pessoas com quem falei hoje disseram que você seria um excelente candidato político. Sua carreira foi exemplar. Nenhum traço de escândalo. Suas filosofias políticas são desconhecidas, o que significa que poderiam ser modeladas da maneira que você escolhesse. Nenhuma afiliação a partidos, o que lhe dá opções. E o povo dos Estados Unidos sempre adorou homens de uniforme.

Exatamente o raciocínio de Ramsey. Ele acreditava firmemente que uma pesquisa de opinião revelaria uma aprovação geral dele, tanto como pessoa quanto como líder. Ainda que seu nome não fosse tão conhecido, sua carreira falava por si própria. Ele havia dedicado a vida ao serviço militar, fora enviado para missões no mundo inteiro, servindo em toda área problemática concebível. Recebera 23 comendas. Seus amigos politicos eram numerosos. Alguns, ele cultivara por iniciativa própria, como Dyals Falcão de Inverno e o senador Kane, mas outros gravitavam ao seu redor simplesmente porque ele representava um oficial de alta patente numa posição sensível que poderia ser útil sempre que precisassem.

—            Quer saber, vou deixar essa honra para algum outro militar. Estou simplesmente ansioso para servir no Estado-Maior Conjunto. Será um desafio incrível.

—            Ouvi dizer que o senador Kane é o seu defensor. Alguma verdade nisso?

Aquela mulher estava muito mais informada do que Ramsey supusera.

—            Se o senador falou em meu favor, fico grato. Com a confirmação se aproximando, é sempre bom ter amigos no Senado.

—            Acha que a confirmação será um problema?

Ele deu de ombros.

—            Não presumo nada. Simplesmente espero que o senador me considere digno. Caso contrário, ficarei feliz em terminar minha carreira exatamente onde estou.

—            Parece que não se importa se vai conseguir o cargo ou não.

Um conselho que muitos indicados tinham deixado de considerar era simples e claro. Jamais pareça estar ansioso ou convencido do próprio merecimento.

—            Não foi o que eu disse, e você sabe disso. Qual é o problema aqui? Não há história por trás da indicação, então você está tentando criar uma?

A repórter pareceu não gostar da reprimenda, por mais tácita que tivesse sido.

—            Convenhamos, almirante. O seu nome não é o que a maioria das pessoas teria associado a esta indicação. Rose, do Pentágono, Blackwood, da Otan, esses dois teriam sido naturais. Mas Ramsey? Você saiu do nada. Isso me fascina.

—            E se os dois que você mencionou não estavam interessados?

—            Estavam, eu verifiquei. Mas a Casa Branca foi direto a você, e minhas fontes dizem que foi graças a Aatos Kane.

—            Você precisa fazer essa pergunta a Kane.

—            Eu fiz. O gabinete dele disse que me retornaria com um comentário. Isso foi três horas atrás.

Hora de acalmá-la:

—            Infelizmente, não há nada de sinistro aqui. Pelo menos, não da minha parte. Só um velho da Marinha grato por mais alguns anos de serviço.

 

STEPHANIE SEGUIU O CORONEL GROSS ATÉ O INTERIOR DO ARMAZÉM. ELE OBTEVE acesso com um código numérico e a leitura da digital de seu polegar.

—            Superviso a manutenção desses armazéns pessoalmente — disse Gross. — Minha vinda aqui não levantará suspeitas.

Stephanie pensou que era exatamente esse o motivo pelo qual Daniels contatara o coronel.

—            Você entende o sigilo desta visita? — perguntou Davis.

—            Meu comandante explicou, bem como o presidente.

Entraram numa pequena antessala. O restante da instalação de armazenamento pouco iluminada era visível através de uma janela de vidro espelhado, que revelava séries e mais séries de prateleiras de metal.

—            Devo contar a história a vocês — disse Gross. — Este prédio está alugado para a Marinha desde outubro de 1971.

—            Isso foi antes da partida do NR-1A — comentou Davis.

—            Não sei nada sobre isso — esclareceu Gross. — Mas sei que a Marinha toma conta desta instalação desde então. Está equipada com uma câmara de refrigeração separada — apontou para o outro lado da janela — atrás da última série de prateleiras, que ainda está em uso.

—            O que tem nela? — perguntou Stephanie.

O coronel hesitou.

—            Acho que vocês precisam vê-lo com os próprios olhos.

—            É por isso que estamos aqui? Ele deu de ombros.

—            Não faço idéia. Mas Fort Lee cuidou para que este armazém estivesse em excelente estado nos últimos 38 anos. Eu estive no cargo durante seis desses anos. Ninguém, a não ser o próprio almirante Ramsey, entra aqui sem a minha presença. Acompanho qualquer funcionário de limpeza ou manutenção do começo ao fim. Meus antecessores faziam o mesmo. Os leitores e travas eletrônicas foram instalados há cinco anos. O sistema mantém registros de todos que entram, o qual é fornecido diariamente ao Serviço de Inteligência Naval, que supervisiona e administra diretamente o arrendamento dos armazéns. O que quer que seja visto aqui dentro é confidencial, e todos os funcionários entendem o que isso significa.

—            Quantas vezes Ramsey entrou aqui? — perguntou Davis.

—            Apenas uma nos últimos cinco anos, pelo que os registros indi¬cam. Dois dias atrás. Também entrou no compartimento refrigerado, que também tem uma trava eletrônica.

Stephanie estava ansiosa.

—            Leve-nos.

 

RAMSEY ACOMPANHOU A REPÓRTER DO POST ATÉ A SAÍDA DE SEU ESCRITÓRIO. Hovey já lhe havia informado de outras três entrevistas. Duas para a televisão, uma para o rádio, entrevistas que aconteceriam no andar de baixo, na sala de reuniões, onde as equipes estavam se preparando. Ramsey estava começando a gostar daquilo. Muito diferente de viver nas sombras. Seria um grande chefe de Estado-Maior e, se tudo corresse de acordo com o planejado, um vice-presidente ainda melhor.

Ele nunca conseguira entender por que o cargo constitucional número dois não podia ser mais ativo. Dick Cheney havia demonstrado as possibilidades, modelando políticas discretamente, sem a atenção constante que a presidência atraía. Como vice-presidente, Ramsey poderia se envolver no que quisesse, quando quisesse. E, com a mesma rapidez, deixar de se envolver, uma vez que, como John Nance Garner, primeiro vice-presidente de Franklin Roosevelt, sabiamente observara, a maioria das pessoas acreditava que o cargo não valia "um balde de cuspe morno", embora segundo a lenda a imprensa tivesse adaptado a declaração antes de divulgá-la. Ele sorriu.

Vice-presidente Langford Ramsey. Soava bem.

O celular alertou-o com um toque quase inaudível. Ramsey pegou o aparelho na mesa e checou quem estava ligando. Diane McCoy.

—            Preciso falar com você — disse ela.

—            Acho que não.

—            Sem truques, Langford. Você decide o local.

—            Não tenho tempo.

—            Arrume; do contrário, não haverá indicação nenhuma.

—            Por que você insiste em me ameaçar?

—            Vou ao seu escritório. Certamente você se sente seguro aí. Era verdade, mas ele estava intrigado.

—            Sobre o que quer falar?

—            Um homem chamado Charles C. Smith Jr. É um pseudônimo, mas é assim que você o chama.

Ramsey nunca tinha ouvido alguém dizer aquele nome antes. Hovey cuidava de todos os pagamentos, mas eram emitidos a outro nome num banco estrangeiro, protegido pelo Ato de Segurança Nacional.

No entanto, Diane McCoy sabia.

Ele olhou para o relógio sobre a mesa: 16h05.

—            OK, venha para cá.

 

MALONE ACOMODOU-SE NO LC-130. ELES HAVIAM ACABADO DE SAIR DE UM VÔO de dez horas da França até a Cidade do Cabo, na África do Sul. Um helicóptero militar francês os transportara de Ossau a Cazau, em Teste-de-Buch, a base militar francesa mais próxima, a cerca de 240 quilômetros de distância. De lá, um C-21A, a versão militar do Learjet, os levara à velocidade do som sobre o Mediterrâneo e do norte ao sul do continente africano, com apenas duas paradas rápidas para reabastecer.

Na Cidade do Cabo, um LC-130 Hercules totalmente abastecido, com duas tripulações da 109a Ala Aérea da Guarda Nacional Aérea de Nova York, estava à espera, os motores ligados. Malone percebeu que a viagem no Learjet ia parecer luxuosa perto do que ele e seus acompanhantes estavam prestes a vivenciar nos 4.345 quilômetros até a Antártida, atravessando um oceano agitado por tempestades durante quase todo o percurso, menos nos últimos 1.100 quilômetros, que estariam sobre gelo sólido.

De fato, uma terra de ninguém.

O equipamento deles já estava a bordo. Malone sabia a palavra-chave. Camadas. E sabia o objetivo. Eliminar a umidade do corpo sem deixá-lo congelar. Camisas e calças feitas com material de alta absorção eram vestidas primeiro, para manter a pele seca. Por cima, vinha um longo macacão de lã, que permitia a respiração da pele e também possuía propriedades de absorção de água; depois um conjunto de jaqueta e calça de náilon com forro de lã de carneiro. Finalmente, um anoraque revestido de lã e calças de poliéster apropriadas para clima frio. Tudo vinha numa estampa de camuflagem digital, cortesia do Exército dos Estados Unidos. Luvas e botas, além de dois pares de meias de lã, protegiam as extremidades. Malone havia informado o tamanho de todos de seu grupo horas antes e notou que as botas eram um número maior que o pedido para acomodarem as meias grossas. Uma balaclava de lã preta agasalhou seu rosto e seu pescoço, com abertura apenas para os olhos, que seriam cobertos por óculos escuros de proteção. Era como fazer um passeio espacial, imaginou Malone, o que não era muito distante da realidade. Ele tinha ouvido histórias de que o frio da Antártida fazia obturações dentárias contraírem-se e se soltarem dos dentes.

Cada um havia levado uma mochila com alguns itens de uso pessoal. Malone notou que uma versão para o frio, mais espessa e com melhor isolamento, tinha sido fornecida.

O Hercules partiu ruidoso na direção da pista de decolagem. Malone se virou para os outros, sentados à sua frente em bancos de lona e encosto de tecido. Ninguém havia vestido a balaclava de lã ainda, então todos estavam com o rosto visível.

—            Todo mundo bem?

Christl, que estava sentada ao seu lado, acenou com a cabeça. Ele notou que todos pareciam desconfortáveis com as roupas volumosas.

—            Garanto a vocês que este vôo não vai ser quente e que essas roupas logo se tornarão suas melhores amigas.

—            Isto pode ser excessivo — disse Werner.

—            Esta é a parte fácil — Malone deixou claro. — Mas se você não aguenta, pode ficar na base. Os campos da Antártida são bastante confortáveis.

—            Nunca fiz isto antes — disse Dorothea. — Uma aventura e tanto para mim.

A aventura de uma vida, uma vez que supostamente nenhum humano havia tocado a costa da Antártida até 1820, e só uns poucos iam até lá hoje em dia. Malone sabia que um tratado, assinado por 25 nações, assinalava o continente todo como um lugar de paz, com livre troca de informações científicas, sem reivindicações territoriais, sem atividades militares e nenhuma mineração sem a concordância de todos os membros do tratado. Catorze milhões de quilômetros quadrados, aproximadamente o tamanho dos Estados Unidos e do México juntos, oitenta por cento dos quais estavam envoltos por um manto de mais de 1 quilômetro de gelo — setenta por cento da água doce do mundo —, fazendo do platô de gelo resultante um dos mais altos da Terra, com uma elevação média de mais de 2.400 metros.

A vida só existia nas extremidades, uma vez que no continente chovia menos de 50 milímetros por ano. Seco como um deserto. Sua superfície branca não tinha a capacidade de absorver luz ou calor, refletindo toda radiação e mantendo a temperatura média por volta dos 55 graus abaixo de zero.

Malone também conhecia a política, desde as duas visitas anteriores que fizera quando ainda era do Setor Magalhães. Atualmente, sete nações — Argentina, Grã-Bretanha, Noruega, Chile, Austrália, França e Nova Zelândia — detinham a posse de oito territórios, definidos por graus de longitude que se cruzavam no polo Sul. Ele estavam voando para a porção reivindicada pela Noruega, conhecida como Terra da Rainha Maud, que se estendia de 44° 38' L a 20° O. Um pedaço considerável da porção ocidental — de 20° L a 10° O — tinha sido reivindicado pela Alemanha em 1938 como Neuschwabenland. E ainda que a guerra tivesse encerrado a reivindicação, a região permaneceu uma das menos conhecidas do continente. O destino deles era a base de Halvorsen, administrada pela Austrália na seção norueguesa, situada na costa norte, diante da ponta sul da África.

O grupo havia recebido tampões de ouvido — e Malone notou que todos os colocaram —, mas o barulho ainda estava lá. O cheiro penetrante de combustível do motor envolvia sua cabeça, mas ele sabia, de voos anteriores, que o odor logo deixaria de ser percebido. Estavam sentados na frente, perto da cabine dos pilotos, acessível por uma escada de cinco degraus. Para o longo vôo, duas tripulações tinham sido disponibilizadas. Malone sentara na cabine dos pilotos certa vez, durante um pouso na neve antártica. Uma experiência e tanto. Agora, ali estava ele mais uma vez.

Ulrich Henn não dissera nada durante o voo desde a França e permanecera impassível no assento ao lado de Werner Lindauer. Malone sabia que aquele homem significava problema, mas não podia determinar se o objeto do interesse de Henn era ele próprio ou algum dos outros. Não importava, Henn possuía a informação de que precisariam quando estivessem no chão, e trato era trato.

Christl bateu de leve no braço de Malone e gesticulou com os lábios Obrigada. Ele balançou a cabeça em gratidão.

Os turbopropulsores do Hercules aumentaram a rotação para o máximo, e o avião acelerou pela pista de decolagem. Primeiro devagar, depois mais rápido, depois no ar, subindo acima do oceano aberto.

Era quase meia-noite. E eles estavam a caminho de sabia-se lá o quê.

              FORT LEE, VIRGÍNIA

 

STEPHANIE VIU O CORONEL GROSS LIBERAR A TRAVA ELETRÔNICA E ABRIR A PORTA de aço do compartimento refrigerado. Uma nuvem congelante de ar frio saiu, ao que Gross aguardou alguns segundos até o ar clarear e, então, fez um gesto para o interior.

—            Depois de vocês.

Stephanie entrou primeiro. Davis foi em seguida. O compartimento tinha menos de 1 metro quadrado, duas das paredes de metal estavam vazias, e a terceira, coberta do chão ao teto por uma estante de prateleiras cheias de livros. Cinco fileiras. Uma sobre a outra. Ela calculou uns duzentos.

—            Estão aqui desde 1971 — disse Gross. — Antes disso, não faço ideia de onde ficavam. Mas tinha de ser um lugar frio, pois, como podem ver, estão em ótimo estado.

—            De onde vieram? — perguntou Davis. Gross deu de ombros.

—            Não sei. Mas as rochas dali de fora são todas da operação Salto em Altura em 1947 e da Moinho de Vento em 1948. Então, é razoável presumir que esses livros também sejam dessa época.

Ela se aproximou das prateleiras e examinou os volumes. Eram pequenos, uns 15 por 20 centímetros, encadernação de madeira, presos por cordões apertados, e as páginas, ásperas e espessas.

—            Posso ver um? — perguntou Stephanie a Gross.

—            Recebi ordens para deixá-los fazer o que quisessem.

Com cuidado, ela retirou um volume congelado. Gross tinha razão. Estava perfeitamente preservado. Um termômetro perto da porta indicava uma temperatura de menos 12° C. Stephanie havia lido que, décadas depois das expedições de Amundsen e Scott ao polo Sul, quando os suprimentos de comida dos dois exploradores foram encontrados, o queijo e os legumes ainda estavam comestíveis. Os biscoitos ainda estavam crocantes. Sal, mostarda e temperos permaneciam em perfeitas condições. Até as páginas das revistas estavam como no dia em que foram impressas. A Antártida era um freezer natural. Sem putrefação, ferrugem, fermentação, mofo ou doenças. Sem umidade, poeira ou insetos. Nada que possa deteriorar qualquer lixo orgânico.

Como livros com capas de madeira.

—            Li uma proposta uma vez — disse Davis.—Alguém sugeriu que a Antártica seria o depósito perfeito para uma biblioteca mundial. O clima não afetaria uma única página. Achei a idéia ridícula.

—            Talvez não.

Stephanie apoiou o livro na prateleira. Gravado em relevo na capa bege-claro havia um símbolo irreconhecível.

 

Com cuidado, ela examinou as páginas rígidas, todas repletas de escritos de cima a baixo. Arabescos, espirais, círculos. Uma grafia cursiva estranha — firme e compacta. Desenhos também. Plantas, pessoas, aparelhos. A cada folha que se seguia, o mesmo: tudo em tinta marrom nítida, nenhuma mancha em lugar algum.

Antes de Gross ter aberto o compartimento refrigerado, ele havia mostrado as prateleiras do armazém, que continham incontáveis fragmentos de rocha cobertos com uma escrita semelhante.

— Uma espécie de biblioteca? — perguntou Davis a Stephanie.

Ela deu de ombros.

—            Senhora — disse Gross.

Ela se virou. O coronel estendeu a mão até a prateleira mais alta e retirou um diário com capa de couro envolto por uma tira de tecido.

—            O presidente me disse para lhe dar isto. É o diário pessoal do almirante Byrd.

Stephanie se lembrou no mesmo instante do que Herbert Howland lhes dissera sobre ver aquilo.

—            É considerado confidencial desde 1948 — disse Gross. — Está aqui desde 1971.

Ela notou várias tiras de papel marcando páginas.

—            As partes relevantes foram sinalizadas.

—            Por quem? — perguntou Davis. Gross sorriu.

—            O presidente disse que vocês perguntariam isso.

—            Então, qual a resposta?

—            Levei isto à Casa Branca hoje e esperei enquanto o presidente lia. Ele pediu para dizer-lhe que, ao contrário do que vocês e outros funcionários podem pensar, ele aprendeu a ler há muito tempo.

 

Retorno ao vale seco, Ponto 1.345. Acampamento montado. Tempo claro. Céu sem nuvens. Pouco vento. Assentamento alemão anterior localizado. Revistas, estoques de alimentos, equipamentos, tudo indica exploração de 1938. Barracão de madeira montado na época ainda de pé. Mobília escassa composta de mesas, cadeiras, fogão, rádio. Nada significativo no local. Seguimos 22,5 quilômetros a leste, Ponto 1.356, outro vale seco. Localizadas pedras esculpidas na base da montanha. A maioria grande demais para ser transportada, então reunimos as menores. Helicópteros chamados. Examinei as pedras e retracei.

Em 1938 Oberhauser relatou descobertas semelhantes. Isso representa a confirmação de arquivos de guerra. Alemães claramente aqui. Evidência física inquestionável.

 

Investigada fenda na montanha no Ponto 1.578 que abria para um pequeno recinto escavado na rocha. Escritas e desenhos semelhantes ao Ponto 1.356 encontrados nas paredes. Pessoas, barcos, animais, carroças, o sol, representações do céu, planetas, lua. Fotos tiradas. Observação pessoal: Oberhauser veio em 1938 em busca de arianos perdidos. É evidente que algum tipo de civilização já existiu aqui. Imagens físicas das pessoas são de uma raça alta, musculosa, de cabeleira cheia, com feições caucasianas. Mulheres têm seios fartos e cabelos longos. Fiquei perturbado ao olhar para eles. Quem eram? Antes de hoje, eu achava ridículas as teorias de Oberhauser sobre os arianos. Agora, não sei.

Chegada ao Ponto 1.590. Outra câmara mostrada. Pequena. Mais escrita nas paredes. Poucas imagens. Há 212 volumes encadernados em madeira encontrados no interior, empilhados em mesa de pedra. Fotos tiradas. Mesma escrita desconhecida das pedras dentro dos livros. Tempo curto. Operação termina daqui a 18 dias. Verão terminando. Navios têm de partir antes do retorno das placas de gelo. Ordenado que livros fossem colocados em caixotes e transportados ao navio.

 

Stephanie tirou os olhos do diário de Byrd.

—            Isto é incrível. Olhe o que encontraram... e, no entanto, não fizeram nada com isso.

—            Sinal da época deles — disse Davis com calma. — Estavam ocupados demais, preocupando-se com Stálin e lidando com uma Europa destruída. Civilizações perdidas importavam pouco, especialmente uma civilização que estivesse relacionada com a Alemanha. Byrd estava claramente preocupado com isso. — Davis olhou para Gross. — Fotografias são mencionadas. Podemos vê-las?

—            O presidente tentou. Sumiram. Na verdade, tudo se foi, com a exceção desse diário.

—            E esses livros e rochas — acrescentou Stephanie. Davis folheou o diário e leu outras páginas em voz alta.

—            Byrd visitou muitos locais. Uma pena que não tenhamos um mapa. São identificados apenas por números, sem coordenadas.

Stephanie queria o mesmo, especialmente por Malone. Mas havia uma salvação. O programa de tradução que Malone mencionou. O que Hermann Oberhauser encontrou na França. Ela saiu do freezer, pegou o celular e ligou para Atlanta. Quando seu assistente lhe disse que Malone tinha enviado um e-mail, ela sorriu e desligou.

—            Preciso de um desses livros — disse ela a Gross.

—            Eles têm de ficar congelados. É como são preservados.

—            Então, quero permissão para voltar a entrar aqui. Tenho laptop, mas precisarei de acesso à internet.

—            O presidente disse para eu fazer o que vocês pedissem.

—            Você tem alguma ideia? — perguntou Davis.

—            Acho que sim.

 

               18H30

 

RAMSEY VOLTOU A ENTRAR EM SEU ESCRITÓRIO, APÓS CONCLUIR A ÚLTIMA ENTREVISTA do dia, e fechou a porta. Diane McCoy estava sentada lá dentro, onde ele mandara Hovey pedir que ela esperasse.

—            Bem, o que é tão importante?

Diane havia passado por uma varredura eletrônica e estava livre de aparelhos de escuta. Ramsey sabia que o escritório era seguro; então, sentou-se confiante.

—            Quero mais — disse-lhe ela.

Ela usava um terno de tweed em tons suaves de marrom e carame¬lo, com uma blusa de gola rulê preta. Um visual um tanto casual e caro para uma funcionária da Casa Branca, mas estiloso. O casaco dela estava sobre outra das cadeiras.

—            Mais do quê?

—            Tem um homem que atende pelo nome de Charles C. Smith Jr. Trabalha para você, e já faz muito tempo. Você paga bem a ele, ainda que por uma variedade de nomes falsos e contas numeradas. Ele é o seu matador, o que cuidou do almirante Sylvian e de vários outros.

Ramsey estava pasmo, mas manteve a compostura.

—            Alguma prova?

Diane riu.

—            Até parece que eu contaria. Basta dizer que sei; é isso o que importa. — Ela abriu um grande sorriso. — É bem capaz de você ser a primeira pessoa na história militar americana a ter assassinado para chegar ao topo. Caramba, Langford, você realmente é um ambicioso filho da puta.

Ele precisava saber.

—            O que você quer?

—            Você ganhou a sua indicação. Era o que você queria. Tenho certeza de que não é só isso, mas é tudo por enquanto. Até agora, a reação à sua escolha tem sido boa, então você parece estar encaminhado.

Ramsey concordava. Quaisquer problemas sérios viriam rapidamente à tona uma vez que o público soubesse que ele era a escolha do presidente. Era quando as ligações anônimas para a imprensa começariam e a política da destruição dominaria. Oito horas depois da indicação, nada havia vindo à tona ainda, mas ela estava certa. Ele havia assassinado para chegar ao topo; portanto, graças a Charlie Smith, qualquer um que pudesse ser um problema já estava morto.

O que o fez lembrar. Onde estava Smith? Ramsey estivera tão ocupado com as entrevistas que se esquecera totalmente dele. Mandara o idiota dar um jeito no professor e voltar antes do anoitecer, e o sol estava se pondo agora.

—            Você é uma garota trabalhadora — disse ele.

—            Sou uma garota esperta. Tenho acesso a redes de informação com as quais você só poderia sonhar.

Ramsey não duvidava disso.

—            E planeja me prejudicar?

—            Planejo transformar sua vida num inferno.

—            A menos que o quê?

Uma onda de riso de contentamento passou pelo rosto de Diane. Aquela puta definitivamente estava se divertindo.

—            Isso só depende de você, Langford.

Ele deu de ombros.

—            Quer fazer parte do que acontecer depois de Daniels? Cuidarei disso.

—            Você acha que eu nasci ontem? Ramsey abriu um sorriso.

—            Agora você está falando como Daniels.

—            É porque ele me diz isso pelo menos duas vezes por semana. Geralmente, eu mereço, quando tento manipulá-lo. Ele é esperto, tenho de admitir. Mas não sou nenhuma idiota. Quero muito mais.

Ele precisava escutar o que Diane tinha a dizer, mas uma estranha inquietação veio junto com a paciência forçada.

—            Quero dinheiro.

—            Quanto?

—            Vinte milhões de dólares.

—            Como chegou a essa cifra?

—            Vou poder viver de juros com conforto pelo resto da vida. Já fiz a conta.

Um prazer quase sexual refletiu-se no olhar dela.

—            Suponho que queira isso num paraíso fiscal, numa conta fantasma, acessível apenas a você.

—            Exatamente como Charles C. Smith Jr. Com mais algumas estipulações, mas que podem vir depois.

Ramsey tentou manter a calma.

—            O que provocou isso?

—            Você vai ferrar comigo. Eu sei, e você sabe. Tentei gravá-lo, mas você foi esperto demais. Então, pensei: Coloco as cartas na mesa. Digo a ele o que sei. Faço um acordo. Consigo algo, deforma direta. Considere esse pagamento uma entrada. Um investimento. Assim, vai pensar duas vezes antes de me passar para trás no futuro. Estarei comprada e paga, pronta para uso.

—            E se eu me recusar?

—            Aí vai parar na cadeia ou, melhor ainda, talvez eu encontre Charles C. Smith Jr. e veja o que ele tem a dizer.

Ramsey permaneceu em silêncio.

—            Ou talvez eu me contente em expor você à imprensa.

—            E o que dirá aos repórteres?

—            Começarei com Millicent Senn.

—            E o que sabe sobre ela?

—            Jovem oficial da Marinha, transferida para o seu gabinete em Bruxelas. Você teve um relacionamento com ela. Então, vejam só, ela fica grávida e, algumas semanas depois, morre. Parada cardíaca. Os belgas deram como morte natural. Caso encerrado.

Aquela mulher estava bem-informada. Receando que o silêncio pudesse ser mais explícito que qualquer resposta, Ramsey disse:

—            Ninguém acreditaria nisso.

—            Talvez não agora, mas dá uma ótima matéria. O tipo de coisa que a imprensa adora. Especialmente o Extra e o Inside Edition. Você sabia que o pai de Millicent ainda acredita, até hoje, que ela foi assassinada? Ele ficaria contente em falar para as câmeras. O irmão dela, que, aliás, é advogado, também tem suspeitas. Claro que não sabem nada sobre você e seu relacionamento com ela. Também não sabem que você gostava de espancá-la. O que acha que eles, as autoridades belgas ou a imprensa fariam com tudo isso?

Ramsey estava nas mãos de Diane, e ela sabia disso.

—            Isso não é nenhuma armadilha, Langford. Não se trata de fazer com que você admita nada. Não preciso das suas confissões. Trata-se de cuidar de mim. Eu. Quero. Dinheiro.

—            E, a título de argumento, se eu concordasse, o que impediria você de tentar me derrubar novamente?

—            Absolutamente nada — disse Diane, entre dentes.

Ramsey se permitiu um sorriso largo, depois uma risadinha.

—            Você é do capeta.

Ela devolveu o elogio.

—            Parece que somos perfeitos um para o outro.

Ramsey gostou do tom amigável da voz. Nunca suspeitara que tanta rapinagem corresse pelas veias daquela mulher. Aatos Kane adoraria se livrar do compromisso, e até a insinuação de escândalo seria para o senador a oportunidade perfeita. Estou disposto a preservar o meu lado, diria Kane, é você que está com problemas. E não haveria nada que Ramsey pudesse fazer.

Os repórteres levariam menos de uma hora para verificar que seu período oficial em Bruxelas coincidia com o de Millicent. Edwin Davis também estivera lá, e o idiota romântico tinha uma queda por Millicent. Ramsey sabia disso na época, mas não dava a mínima. Davis era fraco e irrelevante. Porém não era mais. Só Deus sabia onde ele estava agora. Não ouvira falar nada sobre Davis havia dias. Mas a mulher sentada diante de Ramsey era outra questão. Tinha uma arma carregada, apontada diretamente para ele, e ela sabia onde atirar.

—            OK. Eu pago.

Diane pôs a mão no bolso do paletó e retirou uma folha de papel.

—            Aqui estão o banco e o número de identificação. Faça o pagamento, integral, em até uma hora.

Ela jogou o papel sobre a mesa. Ramsey não se moveu. Ela sorriu.

—            Não fique tão abatido.

Ele não disse nada.

—            Veja só — disse Diane. — Para lhe mostrar minha boa-fé e minha disposição de trabalhar com você de modo permanente, assim que o pagamento for confirmado, vou lhe dar mais uma coisa que você quer muito.

Ela se levantou da cadeira.

—            O quê? — perguntou Ramsey.

—            Eu. Serei sua amanhã à noite. Desde que seja paga na próxima hora.

 

               SÁBADO, 15 DE DEZEMBRO

               0H50

 

DOROTHEA NÃO ESTAVA FELIZ. O AVIÃO SACOLEJAVA PELO AR TURBULENTO FEITO um caminhão sobre uma estrada de terra esburacada, o que lhe trouxe lembranças da infância e das viagens ao chalé com o pai. Eles adoravam ficar ao ar livre. Enquanto Christl evitava armas e caça, Dorothea adorava as duas coisas. Era algo que ela compartilhara com o pai. Infelizmente, eles só desfrutaram algumas estações. Dorothea tinha 10 anos quando Dietz morreu. Ou, melhor dizendo, quando ele nunca mais voltou para casa. E esse pensamento triste fez mais uma cratera na boca de seu estômago, aprofundando um vazio que parecia nunca diminuir.

Foi depois do desaparecimento do pai que ela e Christl afastaram-se ainda mais. Diferentes amigos, interesses, gostos. Vidas. Como duas pessoas que cresceram do mesmo óvulo poderiam se distanciar tanto?

Apenas uma explicação fazia sentido.

A mãe delas. Por décadas, Isabel as forçara a competir. E as batalhas deram origem a ressentimentos. A aversão viera em seguida. Daí para o ódio fora apenas um pulo.

Dorothea estava sentada, presa pelo cinto de segurança, embrulhada no equipamento. Malone tivera razão sobre as roupas. Aquele sofrimento não acabaria por pelo menos cinco horas. A tripulação havia distribuído caixas de almoço quando eles embarcaram. Enrolados de queijo, biscoitos, uma barra de chocolate, uma coxa de galinha e uma maçã. Ela estava sem condições de comer. Só de pensar, sentia-se enjoada. Pressionou o anoraque contra as tiras do encosto e tentou ficar confortável. Uma hora antes, Malone havia sumido dentro da cabine dos pilotos. Henn e Werner estavam dormindo, mas Christl parecia bem desperta.

Talvez também estivesse ansiosa.

Aquele era o pior voo da vida de Dorothea, e não apenas pelo desconforto. Estavam rumo ao seu destino. Havia algo lá? Caso houvesse, era bom ou ruim?

Depois de se equiparem, todos prepararam suas respectivas mochilas térmicas. Dorothea tinha levado apenas uma muda de roupas, uma escova de dentes, alguns itens de higiene pessoal e uma pistola automática. Sua mãe lhe entregara a arma discretamente em Ossau. Como aquele vôo não era comercial, não haveria inspeções de segurança. Ainda que Dorothea não gostasse de permitir que a mãe tomasse mais uma decisão por ela, sentia-se melhor com a arma por perto.

Christl virou a cabeça. Seus olhares se encontraram na penumbra. Que ironia amarga estarem ali, apertadas naquele avião. Adiantaria alguma coisa falar com ela? Dorothea decidiu tentar.

Soltou-se do cinto de segurança e se levantou, atravessando o corredor estreito e sentando-se ao lado da irmã.

—            Temos de parar com isso — disse Dorothea acima do barulho.

—            É o que planejo. Uma vez que encontremos o que sei estar lá. — A expressão de Christl era fria como o interior do avião.

Ela tentou mais uma vez:

—            Nada disso importa.

—            Não para você. Nunca importou. Seu único interesse era passar a fortuna para o seu precioso Georg.

As palavras fustigaram Dorothea, e ela quis saber:

—            Por que você se ressentia dele?

—            Ele era tudo o que eu nunca pude dar, irmã querida.

Ela sentiu a amargura enquanto emoções conflitantes colidiam dentro de si. Dorothea tinha chorado sobre o caixão de Georg por dois dias, tentando, com tudo o que tinha, desvencilhar-se da lembrança dele. Christl tinha ido ao funeral, mas saíra rápido. Em nenhum momento a irmã expressara pesar.

Nada.

A morte de Georg representara um ponto crítico na vida de Dorothea. Tudo mudara. Seu casamento, sua família. E, o mais importante, ela mesma. Ela não gostava daquilo em que se transformara, mas aceitara de pronto a raiva e o ressentimento como substitutos para um filho que ela adorara.

—            Você é estéril? — perguntou Dorothea.

—            Você se importa?

—            Nossa mãe sabe que você não pode ter filhos?

—            O que importa isso? Não se trata mais de ter filhos. A questão é o legado dos Oberhauser. Em que esta família acreditava.

Dorothea viu que o esforço era inútil. O abismo entre elas era grande demais para ser preenchido ou superado. Ela começou a se levantar.

Christl bateu com a mão no pulso da irmã.

—            E daí que eu não disse que lamentava quando ele morreu? Pelo menos você sabe o que é ter um filho.

A mesquinhez do comentário deixou Dorothea pasma.

—            Graças a Deus que você não chegou a ter um filho. Nunca poderia ter amado um. Você é incapaz desse tipo de sentimento.

— Parece que você não se saiu tão bem. O seu está morto. Maldita.

Ela cerrou o punho da mão direita e ergueu o braço, golpeando o rosto de Christl.

 

RAMSEY ESTAVA SENTADO À SUA ESCRIVANINHA, PREPARANDO-SE PARA O QUE vinha pela frente. Com certeza, mais entrevistas e atenção da imprensa. O funeral do almirante Sylvian seria no dia seguinte, no Cemitério Nacional de Arlington, e ele se lembrou de mencionar o evento lamentável a todos os entrevistadores. Concentre-se no colega perdido. Demonstre humildade por ter sido escolhido para seguir o caminho dele. Lamente a perda de um oficial-general. O funeral seria um compromisso formal, com honrarias. Os militares certamente sabiam como enterrar os seus. Faziam-no com alguma frequência.

O celular tocou. Número internacional. Alemanha. Já não era sem tempo.

—            Boa-noite, almirante — disse uma voz áspera de mulher.

—            Frau Oberhauser. Estava aguardando sua ligação.

—            E como sabia que eu ia ligar?

—            Porque você é uma velha ansiosa que gosta de estar no controle. Isabel deu uma risadinha.

—            Isso eu sou. Seus homens fizeram um bom trabalho. Malone está morto.

—            Prefiro esperar que eles mesmos me informem o fato.

—            Receio que isso seja impossível. Eles também estão mortos.

—            Então, o problema será seu. Preciso da confirmação.

—            Soube de alguma coisa a respeito de Malone nas últimas 12 horas? Algum relato do que ele poderia estar fazendo.

Não, ele não soubera de nada.

—            Eu o vi morrer.

—            Então, não temos mais nada a dizer.

—            A não ser a resposta que você me deve. Por que meu marido nunca voltou?

Que se dane. Diga a ela.

- Houve uma falha no submarino.

—            E a tripulação? Meu marido?

— Não sobreviveram.

Silêncio.

Finalmente, ela disse:

—            Você viu o submarino e a tripulação?

—            Vi.

—            Conte-me o que viu.

—            Você não vai querer saber.

Mais uma longa pausa, e depois:

—            Por que foi necessário esconder isso?

—            O submarino era altamente confidencial. A missão era secreta. Não havia escolha na época. Não podíamos nos arriscar a deixar os soviéticos encontrarem-no. Apenas 11 homens a bordo, então foi fácil ocultar os fatos.

—            E você os deixou lá?

—            Seu marido concordou com essas condições. Sabia os riscos.

—            E vocês, americanos, dizem que os alemães são insensíveis.

—            Somos práticos, Frau Oberhauser. Nós protegemos o mundo, vocês tentaram conquistá-lo. Seu marido aceitou uma missão perigosa. Ideia dele, na verdade. Não foi o primeiro a fazer essa escolha.

Ramsey esperava não ouvir mais nada dela. Não precisava aguentar o aborrecimento dela.

—            Adeus, almirante. Espero que você apodreça no inferno. Ele notou a emoção na voz dela, mas não deu a mínima.

—            Desejo apenas o mesmo para você.

E desligou. Fez uma anotação mental para mudar o número do celular. Assim, nunca mais teria de falar com a alemã louca novamente.

 

CHARLIE SMITH ADORAVA DESAFIOS. RAMSEY LHE HAVIA DELEGADO UM QUINTO alvo, mas deixara claro que o trabalho tinha de ser feito aquele dia. Absolutamente nada poderia levantar suspeitas. Uma morte limpa, sem marcas. Normalmente, isso não seria problema. Mas ele estava trabalhando sem arquivos, apenas alguns fatos escassos fornecidos por Ramsey e um período propício de 12 horas. Se fosse bem-sucedido, Ramsey prometera um bônus impressionante. Suficiente para pagar por Bailey Mill, com bastante sobra para reformar e mobiliar.

Ele estava de volta de Asheville, em seu apartamento, pela primeira vez em alguns meses. Conseguira dormir por algumas horas e estava pronto para o que vinha pela frente. Ouviu uma suave melodia vindo da mesa da cozinha e verificou o identificador do celular. Não era um número que reconhecesse, embora fosse da área de Washington. Talvez fosse Ramsey ligando de um celular anônimo. Fazia isso às vezes. O homem era dominado pela paranóia.

Smith atendeu.

—            Estou ligando para Charlie Smith. —A voz era de mulher.

O uso desse nome alertou seus sentidos. Só usava esse rótulo com Ramsey.

—            Ligou para o número errado.

—            Não liguei.

—            Infelizmente, sim.

—            Eu não desligaria — disse ela. — O que tenho a dizer poderia salvar ou acabar com a sua vida.

—            Como eu disse, moça, é engano.

—            Você matou Douglas Scofield.

Ele sentiu um arrepio quando começou a entender.

—            Você estava lá com aquele cara?

—            Eu, não. Mas eles trabalham para mim. Sei tudo sobre você, Charlie.

Ele não disse nada, mas ela ter o número dele e saber seu pseudônimo eram grandes problemas. Na verdade, catastróficos.

—            O que você quer?

—            Seu couro.

Smith deu uma risadinha.

—            Mas estou disposta a trocar você por outra pessoa.

—            Deixe-me adivinhar. Ramsey?

—            Você é um cara inteligente.

—            Acho que você não pretende me dizer quem está falando.

—            Claro que sim. Diferentemente de você, não vivo uma vida falsa.

—            Então, quem diabos é você?

—            Diane McCoy. Vice-conselheira de segurança nacional do presidente dos Estados Unidos.

 

MALONE OUVIU ALGUÉM GRITAR. ESTAVA NA CABINE DOS PILOTOS, CONVERSANDO com a tripulação, e correu para a porta de trás, olhando para baixo, para o interior do LC-130. Dorothea estava do outro lado do corredor, ao lado de Christl, que lutava para se soltar do assento, gritando. Sangue escorria do nariz de Christl e manchava seu anoraque. Werner e Henn tinham acordado e também estavam desafivelando seus cintos de segurança.

Com as mãos abertas, Malone desceu deslizando pelos corrimãos da escada e correu na direção da briga. Henn havia conseguido puxar Dorothea para longe.

—            Sua puta louca — gritou Christl. — O que está fazendo? Werner segurou Dorothea. Malone recuou e ficou observando.

—            Ela me deu um soco — disse Christl, esfregando a manga do casaco no nariz.

Malone pegou uma toalha sobre uma das prateleiras de aço e jogou-a para ela.

—            Eu devia matar você — berrou Dorothea. — Você não merece viver.

—            Estão vendo? — gritou Christl. — É disso que estou falando. Ela é doida. Totalmente doida. Louca de pedra.

—            O que você está fazendo? — perguntou Werner à esposa. — O que causou isso?

—            Ela odiava Georg — disse Dorothea, debatendo-se para se soltar de Werner.

Christl levantou-se, encarando a irmã. Werner soltou Dorothea e deixou que as duas leoas se avaliassem, ambas parecendo calcular o propósito oculto da outra. Malone observou as mulheres, vestidas com o mesmo equipamento pesado, de rostos idênticos, mas de mentes tão diferentes.

—            Você nem estava lá quando finalmente o enterramos — disse Dorothea. — Todos ficamos, menos você.

—            Odeio funerais.

—            Odeio você.

Christl voltou-se para Malone, a toalha comprimida contra o nariz. Ele viu a expressão da mulher e logo captou o olhar ameaçador. Antes que ele pudesse reagir, ela largou a toalha, girou e bateu no rosto de Dorothea, fazendo a irmã cair de volta nos braços de Werner. Então, armou o punho, preparando mais um golpe. Malone agarrou seu pulso.

—            Você estava devendo um. Agora, acabou.

Todo o semblante dela ficara sombrio, e o olhar furioso disse a Malone que aquilo não era da sua conta. Christl soltou o braço com um puxão violento e pegou a toalha do chão.

Werner ajudou Dorothea a se sentar. Henn apenas olhava, como sempre, sem dizer palavra.

—            OK, chega de pancadaria — disse Malone. — Sugiro que todos vocês durmam um pouco. Temos menos de cinco horas, e planejo começar com a corda toda quando aterrissarmos. Quem reclamar ou não conseguir acompanhar fica na base.

 

SMITH ESTAVA SENTADO NA COZINHA, OLHANDO PARA O CELULAR SOBRE A MESA. Tinha duvidado da identidade da pessoa que ligara, então ela lhe dera um número de contato, depois desligara. Ele pegou o aparelho e discou o número. Chamou três vezes, e uma voz agradável informou que ele havia ligado para a Casa Branca, perguntando, em seguida, para onde dirigir a ligação.

—            Gabinete da conselheira de segurança nacional — disse ele, com a voz vacilante.

Ela fez a transferência.

—            Demorou bastante, Charlie — disse uma mulher. A mesma voz de antes. — Satisfeito?

—            O que você quer?

—            Contar uma coisa.

— Estou ouvindo.

—            Ramsey pretende terminar a relação dele com você. Tem grandes planos, que não incluem você por perto para, possivelmente, interferir neles.

—            Você está falando com a pessoa errada.

—            É o que eu diria também, Charlie. Mas vou facilitar as coisas para você. Você ouve, eu falo. Assim, se você achar que está sendo gravado, não fará diferença. Parece uma boa ideia?

—            Se você estiver com tempo, vá em frente.

—            É você quem resolve os problemas pessoais de Ramsey. Ele o usa há anos. Paga bem. Os últimos dias têm sido corridos para você. Jacksonville. Charlotte. Asheville. Estou acertando, Charlie? Quer que eu dê nome aos bois?

—            Pode dizer o que quiser.

—            Agora, Ramsey lhe passou uma nova tarefa. — Ela fez uma pausa. — Eu. E deixe-me adivinhar. Tem de ser para hoje. Faz sentido, uma vez que eu o ameacei ontem. Ele lhe contou sobre isso, Charlie?

Smith não respondeu.

—            Não, achei que não. Sabe, Ramsey está fazendo planos, e eles não incluem você. Mas eu não planejo acabar como os outros. É por isso que estamos conversando. Ah, e, aliás, se eu fosse sua inimiga, o

Serviço Secreto estaria à sua porta neste exato momento, e teríamos esta conversa num local privado, só eu, você e alguém grande e forte.

—            Esse pensamento já me ocorreu.

—            Eu sabia que você seria sensato. E só para que você entenda que realmente sei do que estou falando, posso lhe contar sobre três contas suas no exterior, as que Ramsey usa para fazer os depósitos. — Ela seguiu relatando bancos, contas, até senhas, duas das quais Smith havia mudado apenas duas semanas antes. — Nenhuma dessas contas é privada de fato, Charlie. Só é preciso saber onde e como procurar. Infelizmente para você, posso me apropriar dessas contas num instante. Mas para lhe demonstrar minha boa-fé, não toquei nelas.

  1. Ela não estava brincando.

—            O que você quer?

—            Como eu disse, Ramsey decidiu que você tem de cair fora. Ele fez um acordo com um senador, um acordo que não inclui você. Como você está praticamente morto mesmo, ainda mais não tendo identidade, tendo poucas relações e nenhuma família, quão difícil seria desaparecer com você de forma permanente? Ninguém jamais sentiria a sua falta. Isso é triste, Charlie.

Mas verdadeiro.

—            Então, tive uma idéia melhor — disse ela.

 

RAMSEY ESTAVA MUITO PERTO DE SEU OBJETIVO. TUDO TINHA IDO CONFORME O planejado. Restava apenas um obstáculo. Diane McCoy.

Ele ainda estava sentado à sua escrivaninha, um trago de uísque gelado repousando por perto. Pensou no que dissera a Isabel Oberhauser. Sobre o submarino. O que havia trazido do NR-1Ae guardado desde então.

Os registros do comandante Forrest Malone.

Ao longo dos anos, olhara para as páginas do manuscrito algumas vezes, mais por curiosidade mórbida do que por interesse genuíno.

Mas o registro representava uma lembrança da viagem que mudara sua vida profundamente. Ramsey não era sentimental, mas havia momentos que mereciam ser lembrados. Para ele, um desses momentos acontecera sob o gelo da Antártida.

Quando ele seguira a foca.

Para o alto.

 

Ramsey rompeu a superfície e moveu a lanterna para fora da água. Estava numa caverna formada por rocha e gelo. Devia medir um campo de futebol de comprimento e metade disso de largura, estava pouco iluminada num silêncio cinza e roxo. Da sua direita veio o ruído de uma foca, que depois saltou de volta para a água. Ele puxou a máscara até a testa, cuspiu o regulador e sentiu o ar. Depois, viu. Uma vela laranja vivo, de tamanho reduzido, menor do que o normal, um formato característico.

NR-1A.

Nossa Senhora.

Ele andou pela água na direção do navio emerso. Ramsey tinha servido a bordo do NR-1, uma das razões pelas quais ele fora escolhido para aquela missão, portanto estava familiarizado com o design revolucionário do submarino. Longo e fino, a vela para a frente, perto da proa do casco em forma de charuto. Uma superestrutura plana de fibra de vidro no convés permitia à tripulação andar pela extensão do barco. Havia poucas aberturas no casco, para que o risco em mergulhos a grandes profundidades fosse mínimo.

Ramsey nadou para perto da embarcação e passou a mão no metal preto. Nenhum som. Nem movimento. Nada. Apenas água batendo no casco. Ele estava perto da proa, então contornou o navio a bombordo. Uma escada de corda repousava contra o casco — usada, ele sabia, para a entrada e saída em botes infláveis. Ramsey estava intrigado com o fato de que ela havia sido estendida. Segurou e puxou. Firme.

Ramsey tirou os pés de pato e pendurou-os em seu pulso esquerdo. Prendeu a lanterna no cinto, segurou a escada e ergueu-se para fora da água. No alto, caiu no convés e descansou, depois tirou o cinto com pesos e o tanque de ar. Passou a mão no rosto para tirar a água gelada, posicionou-se e pegou novamente a lanterna, depois usou os lemes horizontais na vela como escada e subiu ao topo da torre de controle. A escotilha principal estava aberta.

Ramsey se arrepiou. Por causa do frio? Ou por causa da idéia do que estava abaixo?

Entrou e desceu. Ao fim da escada, viu que as placas do piso tinham sido removidas. Dirigiu o foco da lanterna para o local em que sabia ser o depósito das baterias da embarcação. Tudo parecia chamuscado — o que talvez explicasse o que acontecera. Um incêndio teria sido catastrófico. Pensou no reator do navio, mas, com tudo no mais completo breu, ele provavelmente havia sido desligado.

Ramsey atravessou o compartimento até a sala de controle. As cadeiras estavam vazias, e os instrumentos, desligados. Testou alguns circuitos. Sem energia. Examinou a sala do motor. Nada. O compartimento do reator estava silencioso. Encontrou o canto do comandante — não uma cabine; o NR-1A era pequeno demais para tais luxos; havia apenas um beliche e uma mesa afixada a cabeceira. Encontrou o diário do comandante e o abriu, folheando até chegar ao último registro.

Ramsey lembrava exatamente o registro. Gelo no dedo dele, gelo na cabeça, gelo em seu olhar vidrado. Ah, como Forrest Malone tinha acertado.

Ramsey conduzira aquela busca com perfeição. Qualquer um que pudesse ser um problema hoje estava morto. O legado do almirante Dyals estava seguro, assim como o seu próprio. A Marinha estava igualmente ilesa. Os fantasmas do NR-1A ficariam no lugar deles.

Na Antártida.

Seu celular ganhou vida com luz, mas sem som. Ele o silenciara horas antes. Olhou. Finalmente.

—            Sim, Charlie, o que é?

— Preciso me encontrar com você.

—            Impossível.

—            Dê um jeito. Dentro de duas horas.

—            Porquê?

—            Um problema.

Ele se deu conta de que estavam numa linha aberta, e as palavras tinham de ser escolhidas com cautela.

—            Sério?

—            O suficiente para que eu precise vê-lo.

Ramsey olhou para o relógio.

—            Onde?

—            Você sabe. Esteja lá.

 

               FORT LEE, VIRGÍNIA

              21H30

 

COMPUTADORES NÃO ERAM O FORTE DE STEPHANIE, MAS MALONE HAVIA EXPLICADO no e-mail o procedimento para a tradução. O coronel Gross lhe fornecera um scanner portátil de alta velocidade e uma conexão com a internet. Ela baixara o programa de tradução e fizera o teste com uma página, escaneando a imagem para o computador.

Uma vez aplicado o programa de tradução, o resultado havia sido extraordinário. O estranho conjunto de espirais, voltas e arabescos primeiro virara latim, depois inglês. Imperfeito em alguns trechos. Partes faltando aqui e ali. Mas o suficiente para que ela soubesse que o compartimento refrigerado continha um tesouro precioso de informações ancestrais.

 

Dentro de um pote de vidro, suspenda dois núcleos numa linha fina. Esfregue uma vara de metal lustrosa sobre tecido, fazendo movimentos rápidos. Não haverá sensação alguma, nem formigamento, nem dor. Aproxime a vara do pote, e as duas esferas vão se distanciar, e permanecer afastadas mesmo quando a vara for retirada. A força da vara flui para fora, invisível e imperceptível, mas mesmo assim ela existe — levando os núcleos a se separarem. Após algum tempo, as esferas baixarão, levadas a tanto pela mesma força que impede de permanecer no ar tudo o que nele é atirado.

 

Construa uma roda com uma manivela na parte traseira e prenda pequenas placas de metal na extremidade. Duas varas de metal devem ser fixadas de forma que um ramo de arames partindo de cada uma delas toque de leve as placas de metal. Um arame liga as varas a duas esferas de metal.

Posicione-as a meio comum de distância entre si. Gire a roda pela manivela. Onde as placas de metal fizerem contato com os arames, ocorrerão lampejos. Gire a roda mais rápido, e relâmpagos azuis vão saltar e assobiar nas esferas de metal. Um cheiro estranho ocorrerá, semelhante ao que se percebe após uma tempestade violenta em terras em que chove em abundância. Sinta-o e o relâmpago, pois essa força e a força que distancia os núcleos um do outro são a mesma, apenas geradas de modos diferentes. Tocar as esferas de metal é tão inofensivo quanto tocar as varas esfregadas no tecido.

 

Pedra lunar, chacra da cabeça, cinco seivas da figueira-de-bengala, figo, ímã, mercúrio, mica perolada, óleo de saarasvata e nakha tomados em partes iguais, purificados, devem ser moídos e deixados em repouso até congelarem. Só então misture óleo de bilva e ferva até formar uma resina perfeita. Espalhe o verniz uniformemente sobre uma superfície e deixe secar antes de expô-lo à luz. Para embaçar, acrescente à mistura raiz de pallatory, maatang, búzios, sal alcalino, grafite e areia de granito. Aplique em abundância sobre qualquer superfície para reforçar.

 

A peetha deve ter 3 comuns de largura e meio de altura, quadrada ou redonda. Um eixo é fixado no centro. Em frente, é colocado um vaso de dellium ácido. A oeste fica o espelho para acentuar a escuridão e a leste é fixado o tubo de atração de raios solares. No centro está a roda que faz funcionar os arames e ao sul está a chave ativadora principal. Ao girar a roda para a direção sudeste, o espelho de duas faces fixado ao tubo coletará raios de sol. Ao operar a roda a noroeste, o ácido será ativado. Ao virar a roda para o oeste, o espelho que acentua a escuridão funcionará. Ao virar a roda central, os raios atraídos pelo espelho atingirão o cristal e o envolverão. Depois, a roda principal deve ser revolvida em grande velocidade para produzir um calor envolvente.

 

Areia, cristal e sal de suvarchala, em partes iguais, acumulados em um cadinho, colocados numa fornalha, depois fundidos, produzirão uma cerâmica pura, leve, forte e fria. Tubos feitos com esse material transportarão e irradiarão calor e poderão ser firmemente unidos com argamassa de sal. Pigmentos feitos de ferro, argila, quartzo e calcita são ricos e duradouros e aderem bem após a fundição.

 

Stephanie ficou olhando para Davis.

—            Por um lado, estavam brincando com eletricidade em um estágio inicial, enquanto, por outro, criavam compostos e mecanismos dos quais nunca ouvimos falar. Temos de descobrir de onde vieram esses livros.

—            Vai ser difícil, pois, aparentemente, qualquer registro da Salto em Altura que pudesse nos dizer isso sumiu. — Davis balançou a cabeça. — Que malditos imbecis. Tudo altamente confidencial. Algumas mentes tacanhas tomaram decisões monumentais que afetaram a todos nós. Aqui está um repositório de conhecimento que poderia muito bem mudar o mundo. Também poderia ser lixo, claro. Mas nunca sa-beremos. Você sabe que nas décadas após a descoberta desses livros, camadas e mais camadas de neve acumularam-se lá embaixo. A paisagem é totalmente diferente do que era na época.

Stephanie sabia que a Antártida era um pesadelo para os cartógrafos. Sua costa mudava constantemente à medida que plataformas de gelo apareciam e desapareciam, deslocando-se à vontade. Davis estava certo. Encontrar as localizações de Byrd poderia ser impossível.

—            Vimos apenas um punhado de páginas em alguns volumes dispersos — disse ela. — Nunca se sabe o que poderia haver em tudo isso.

Outra página chamou sua atenção, repleta de texto e um esboço de duas plantas, com raízes e tudo.

Stephanie escaneou essa folha e traduziu-a.

 

A gyra cresce em reentrâncias úmidas e deve ser retirada do solo antes da partida do sol de verão. Suas folhas, prensadas e queimadas, combatem a febre. Mas cuide para que a gyra fique livre de umidade. Folhas molhadas são ineficazes e podem causar doenças. Folhas amareladas, o mesmo. As folhas bem vermelhas ou laranja são preferíveis. Também causam sono e podem ser usadas para abrandar sonhos. Em excesso, podem causar danos; portanto, administre com cuidado.

 

Stephanie imaginou o que um explorador teria sentido ao se ver numa praia virgem, olhando para uma nova terra.

—            Este armazém será lacrado — declarou Davis.

—            Não é uma boa idéia. Isso alertaria Ramsey.

Davis pareceu perceber a sabedoria da observação dela.

—            Faremos tudo por intermédio de Gross. Se alguém se dirigir a este local, ele nos informará e poderemos impedir.

Essa idéia era melhor.

 

Stephanie pensou em Malone. Devia estar se aproximando da Antártida. Será que estava no caminho certo?

Mas ainda havia questões a serem concluídas ali nos Estados Unidos. Encontrar o assassino.

Ela ouviu um abrir e fechar de porta do outro lado do interior cavernoso. O coronel Gross havia ficado de vigília na antessala para que eles dois tivessem privacidade, então Stephanie presumiu que fosse ele. Mas ouviu passos de duas pessoas diferentes ecoando na escuridão. Ela e Davis estavam sentados a um mesa do lado de fora do compartimento refrigerado com apenas duas lâmpadas acesas. Ela levantou o rosto e viu Gross materializar-se na penumbra, seguido por outro homem — alto, de cabeleira cheia, usando uma jaqueta impermeável azul-marinho e calça casual, com o emblema de presidente dos Estados Unidos sobre o lado esquerdo do peito.

Danny Daniels.

 

               Maryland, 22h20

 

Ramsey saiu da estrada escura e entrou com o carro no bosque, na direção da casa-grande de Maryland, onde se encontrara com Charlie Smith alguns dias antes.

Bailey Mill, como Smith a havia chamado.

Ramsey não tinha gostado do tom de Smith. Espertinho, arrogante e irritante — esse era Charlie Smith. Nervoso, exigente, hostil? De jeito nenhum. Algo estava errado.

Ramsey parecia ter conseguido uma nova aliada em Diane McCoy, que lhe custara 20 milhões de dólares. Por sorte, tinha acumulado muito mais que isso em várias contas espalhadas pelo mundo. Dinhei­ro que caíra em seu caminho, vindo de operações que terminaram de forma prematura ou foram canceladas. Felizmente, quando o carimbo de confidencial era colocado num arquivo, não havia muito esforço para a realização de alguma prestação de contas pública. O regula­mento exigia que quaisquer recursos investidos fossem devolvidos, mas nem sempre era assim. Ramsey precisava de fundos para pagar Smith — capital para financiar investigações secretas —, mas sua necessidade estava decaindo. Ainda assim, à medida que essas necessi­dades diminuíam, os riscos apertavam.

Como ali.

Os faróis do carro de Ramsey revelaram a casa, um celeiro e outro carro. Nenhuma luz acesa em lugar algum. Ele estacionou e retirou de dentro do console central a Walther automática, depois saiu no frio.

—            Charlie — chamou. — Não tenho tempo para as suas babaquices. Venha aqui já.

Seus olhos, acostumados à escuridão, registraram um movimento à esquerda. Ele mirou e disparou duas vezes. As balas fizeram um baque surdo na madeira velha. Mais movimento, mas ele viu que não era Smith.

Cães. Saindo da varanda da casa, correndo na direção da floresta. Como da última vez.

Ramsey suspirou.

Smith adorava brincar, então ele decidiu entrar no jogo do sujeito:

É o seguinte, Charlie. Vou furar os quatro pneus do seu carro, e você pode congelar aqui hoje à noite. Ligue para mim amanhã, quan­do estiver pronto para falar.

Você não é nem um pouco divertido, almirante — disse uma voz. — Nem um pouco mesmo.

Smith saiu das sombras.

—            Sorte sua eu não matar você — disse Ramsey. Smith saiu da varanda.

Por que faria isso? Tenho sido um bom garoto. Fiz tudo o que você queria. Todos os quatro mortos, tudo limpo e arrumado. Aí, ouço no rádio que você será promovido ao cargo no Estado-Maior Conjun­to. Subindo na vida, indo para a zona nobre. Para aquele apartamento de luxo lá no alto. Você e George Jefferson.

Isso não tem importância — disse ele. — Não é da sua conta.

Eu sei. Sou apenas um empregado. O que importa é eu ser.

E foi. Duas horas atrás. Integralmente.

Ótimo. Eu estava pensando em tirar umas férias. Em algum lugar quente.

Só depois que resolver sua nova tarefa.

Você pensa grande, almirante. Seu alvo mais recente está bem na Casa Branca.

Pensar grande é a única forma de se conquistar qualquer coisa.

Preciso do dobro do preço de costume para esta, metade como entrada, o restante após a conclusão.

Ramsey não se importava com os custos.

Feito.

E tem mais uma coisa — disse Smith.

Algo tocou as costelas de Ramsey, por cima do casaco, vindo de trás.

—            Calminho, Langford — disse uma voz de mulher. — Ou atiro em você antes de se mover.

Diane McCoy.

 

Malone checou o cronômetro do avião — 7h40 — e olhou pela janela da cabine dos pilotos para o panorama abaixo. Para ele, a Antártida lembrava uma tigela virada para baixo com a borda lascada. Pelo me­nos dois terços da circunferência daquela vasta plataforma de gelo com mais de 3 quilômetros de espessura eram cercados por montanhas denteadas pretas, cobertas de geleiras fendidas que se acumula­vam na direção do mar, e a costa nordeste abaixo não era exceção.

O piloto anunciou que estavam fazendo a aproximação final à base de Halvorsen. Hora de se preparar para a aterrissagem.

—            Isto é raro — disse o piloto a Malone. — O tempo está magnífi­co. Vocês têm sorte. Os ventos estão bons também. — Ele ajustou os controles e segurou o manche. — Quer fazer a descida?

Malone fez um gesto de recusa.

—            Não, obrigado. Muito além da minha capacidade. — Embora ele tivesse pousado caças em porta-aviões jogando, descer com uma aeronave de 45 mil quilos sobre gelo traiçoeiro era uma emoção que ele dispensava.

A briga entre Dorothea e Christl ainda o preocupava. Elas haviam permanecido comportadas nas últimas horas, mas o antagonismo amargo poderia ser problemático.

O avião iniciou uma descida íngreme.

Embora o ataque tivesse servido como alerta, outra coisa que Malone testemunhara causou-lhe ainda mais preocupação. Ulrich Henn tinha sido pego desprevenido. Malone observara uma confu­são momentânea no rosto de Henn antes de a máscara voltar a enri­jecer. Ele claramente não antecipara a atitude de Dorothea.

O avião nivelou, e as turbinas do motor abrandaram.

O Hercules era equipado com esquis de pouso, e Malone ouviu o copiloto confirmar que eles estavam posicionados. Continuaram des­cendo, vendo o solo branco crescer em tamanho e detalhes.

Um solavanco. Depois outro.

E Malone ouviu os esquis raspando na crosta de gelo enquanto o avião deslizava. Não havia como frear. Somente a fricção os desacele­raria. Por sorte, havia muito espaço para correr.

Finalmente, o Hercules parou.

—            Bem-vindos à parte mais baixa do mundo disse o piloto a todos.

 

Stephanie levantou-se da cadeira. Força do hábito. Davis fez o mesmo.

Daniels fez um gesto para que ficassem no lugar.

—            É tarde e estamos todos cansados. Sentem-se. — Ele puxou uma cadeira. Obrigado, coronel. Pode cuidar para que não sejamos interrompidos?

Gross desapareceu na direção da entrada do armazém.

Você estão com uma cara horrível disse Daniels.

É de ter visto a cabeça de um homem explodir respondeu Davis.

Daniels suspirou.

—            Já vi isso uma ou duas vezes. Duas jornadas no Vietnã. Nunca sai da cabeça.

Pouco consolo, pensou Stephanie, antes de perguntar: — Como conseguiu vir aqui?

Dei uma escapada da Casa Branca e vim com o Marine One di­reto para o sul. Bush começou com isso. Voava até o Iraque antes que qualquer um ficasse sabendo. Temos procedimentos estabelecidos para viabilizar isso agora. Estarei de volta na cama antes que qualquer pes­soa dê pela minha ausência. — O olhar de Daniels passou para a porta do refrigerador. — Queria ver o que tem lá dentro. O coronel Gross me contou, mas eu queria ver.

Pode mudar o modo como vemos a civilização — disse ela.

Incrível. — E Stephanie pôde ver que Daniels estava genuina­mente impressionado. — Malone estava certo? Podemos ler os livros?

Ela fez que sim.

—            O suficiente para entender o sentido.

O comportamento normalmente impetuoso do presidente parecia estar em cheque. Ela havia ouvido que Daniels era muito ativo à noite, dormia pouco. Funcionários reclamavam com frequência.

—            Perdemos o assassino — disse Davis.

Stephanie sentiu o tom de derrota na vez dele. Muito diferente da primeira vez que trabalharam juntos, quando ele expusera um otimis­mo contagiante que a fizera ir para a Ásia Central.

—            Edwin — respondeu o presidente — você fez o melhor possí­vel. Achei que você estivesse doido, mas você tinha razão.

O olhar de Davis era o de quem desistira de esperar boas notícias.

Scofield ainda está morto. Millicent ainda está morta.

A questão é: você quer o assassino deles?

Como eu disse, nós o perdemos.

Veja, aí é que está — disse Daniels. — Eu o encontrei.

 

               Maryland

 

Ramsey estava sentado numa cadeira instável de madeira, com as mãos, o peito e os pés presos por fita isolante. Tinha cogitado atacar Diane lá fora, mas se deu conta de que Smith certamente estava armado e Ramsey não poderia se esquivar dos dois. Então, não fizera nada. E torcera por um deslize.

O que talvez não tivesse sido inteligente.

Eles o haviam conduzido para dentro da casa. Smith acendera um pequeno fogareiro de acampamento, que agora fornecia uma iluminação fraca e um calor bem-vindo. Interessante que uma par­te da parede do quarto estivesse aberta, deixando entrever um retângulo completamente escuro do outro lado. Ramsey precisava saber o que aqueles dois queriam, como tinham unido forças e como apaziguá-los.

—            Essa mulher me contou que fui colocado na lista dos dispensá­veis disse Smith.

—            Você não deveria dar ouvidos a pessoas que não conhece.

Diane estava de pé, apoiada no parapeito de uma janela aberta, segurando uma arma.

—            Quem disse que não nos conhecemos?

—            Não é difícil de decifrar respondeu Ramsey. Você está criando uma desavença para proveito próprio. Ela lhe disse, Charlie, que me pressionou para me tirar 20 milhões?

—            Mencionou, sim, algo a respeito. Outro problema.

Ramsey encarou Diane.

Estou impressionado que você tenha identificado Charlie e fei­to contato.

Não foi tão difícil assim. Você acha que ninguém presta aten­ção? Sabe que celulares podem ser monitorados, transferências bancá­rias, rastreadas, e acordos confidenciais entre governos, usados para acessar contas e registros aos quais ninguém mais poderia ter acesso.

—            Nunca imaginei que eu fosse tão interessante para você.

Você queria a minha ajuda. - Estou ajudando.

Ramsey forçou as fitas que o prendiam.

Não era o que eu tinha em mente.

Ofereci metade dos 20 milhões a Charlie.

A serem pagos adiantadamente acrescentou Smith. Ramsey balançou a cabeça.

Você é um idiota ingrato.

Smith deu um salto para a frente e bateu as costas da mão no rosto de Ramsey.

Queria fazer isso há muito tempo.

Charlie, juro que você vai lamentar isso.

Durante 15 anos fiz o que você pedia disse Smith. Você queria as pessoas mortas. Eu fazia as pessoas morrerem. Sei que tem planejado algo. Sempre percebo. Agora, você está de mudança para o Pentágono. Chefe do Estado-Maior Conjunto. O que virá depois? De jeito nenhum você vai ficar satisfeito e se aposentar. Não faz seu gêne­ro. Aí, eu me tornei um problema.

Quem disse isso?

Smith apontou para Diane McCoy.

—            E você acredita nela?

—            As coisas que ela diz fazem sentido. E ela tinha mesmo 20 mi­lhões de dólares, porque agora eu tenho a metade.

—            E nós dois temos você disse Diane.

Nenhum dos dois tem coragem de assassinar um almirante, o chefe da inteligência naval, indicado para o Estado-Maior. Vai ser difí­cil esconder essa.

É mesmo? perguntou Smith. Quantas pessoas matei por você? Cinquenta? Cem? Duzentas? Não consigo nem lembrar. Nenhu­ma delas foi dada como assassinada. Eu diria que esconder a verdade é minha especialidade.

Infelizmente, o safado arrogante estava certo, então Ramsey ten­tou usar a diplomacia:

—            O que posso fazer para lhe dar segurança, Charlie? Estamos juntos há muito tempo. Vou precisar de você nos próximos anos.

Smith não respondeu.

Quantas mulheres ele matou? perguntou Diane.

Ramsey pensou na pergunta.

Isso importa?

Importa para mim.

Então, ele se lembrou de Edwin Davis. Colega dela.

Isso tem a ver com Millicent?

O Sr. Smith a matou?

Ramsey decidiu ser honesto e fez que sim.

Ela estava grávida?

Foi o que me disseram. Mas quem sabe? As mulheres mentem.

Então, você simplesmente a matou?

—            Parecia a forma mais simples de resolver o problema. Charlie estava trabalhando para nós na Europa. Foi quando nos conhecemos. Ele realizou bem a tarefa, e é meu desde então.

Não sou seu — disse Smith, com desprezo na voz. — Trabalho para você. Você me paga.

E há muito mais dinheiro a ganhar — tratou de esclarecer o al­mirante.

Smith andou na direção da divisória aberta na parede.

—            Vai dar num porão oculto. Provavelmente veio a calhar duran­te a Guerra Civil. Ótimo lugar para esconder coisas.

Ramsey entendeu a mensagem. Como um cadáver.

Charlie, me matar seria uma péssima ideia. Smith virou-se e apontou a arma.

Talvez. Mas com toda certeza vou me sentir melhor.

 

Malone deixou a luz do sol e entrou na base de Halvorsen, seguido pelos outros. O anfitrião, que esperava pelo grupo no gelo quando desembarcaram numa rajada de ar gelado, era um australiano moreno e barbado — forte, robusto e com aparência de competente — chama­do Taperell.

A base era formada por um conjunto de prédios de alta tecnologia enterrados na neve densa, abastecidos por um sistema sofisticado de energia solar e eólica. Tecnologia de ponta, segundo Taperell, que acrescentou:

Estão com sorte hoje. Só menos 13 graus Celsius. Quente pra caramba nesta parte do mundo.

O australiano os levou a uma sala espaçosa forrada por painéis de madeira, repleta de mesas e cadeiras, que cheirava a comida sendo preparada. Um termômetro digital na parede do outro lado indicava 19 graus Celsius.

Hambúrgueres, batatas e bebidas vão chegar num instan­te — disse Taperell. — Achei que iam precisar de um grude.

Suponho que isso signifique comida — respondeu Malone.

Taperell sorriu.

Claro, colega.

Podemos partir logo depois de comer?

O anfitrião assentiu.

—            Não se preocupem, foi a ordem que recebi. Estou com um heli­cóptero pronto. Para onde vão?

Malone encarou Henn.

—            Sua vez.

Christl deu um passo à frente.

—            Na verdade, eu tenho o que você precisa.

 

Stephanie viu Davis levantar-se da cadeira e perguntar ao presidente:

Como assim, vocês o encontraram?

Ofereci a vaga no Estado-Maior a Ramsey hoje. Liguei para ele, e ele aceitou.

Suponho que tenha feito isso por uma boa razão disse Davis.

Sabe, Edwin, parece que nossas posições estão invertidas. É como se você fosse o presidente, e eu, o vice-conselheiro de segurança nacional. E digo isso com ênfase especial na palavra vice.

Sei quem é que manda. Você sabe quem é que manda. Só nos diga por que está aqui no meio da noite.

Ela viu que Daniels não se importou com a insolência impetuosa.

—            Quando fui à Grã-Bretanha alguns anos atrás disse o pre­sidente —, convidaram-me a participar de uma caça a raposas. Os britânicos adoram essa porcaria. Todos ficam arrumadinhos de ma­nhã cedo, montam um cavalo fedido, depois partem atrás de um bando de cachorros uivantes. Disseram-me que era fantástico. A não ser, é claro, que você seja a raposa. Aí, é um horror. Como tenho uma alma piedosa, não parava de pensar na raposa, então dispen­sei o convite.

Nós vamos caçar? perguntou Stephanie. Ela viu um brilho nos olhos do presidente.

Ah, sim. Mas o que é ótimo nesse passeio é que as raposas não sabem que estamos chegando.

 

Malone viu Christl abrir um mapa e colocá-lo sobre uma das mesas.

Minha mãe me explicou.

E por que você é tão especial? perguntou Dorothea.

—            Imagino que ela tenha achado que eu fosse agir com sensatez, embora pareça acreditar que eu seja uma sonhadora vingativa decidi­da a arruinar nossa família.

—            E é? perguntou Dorothea.

O olhar de Christl fuzilou a irmã.

Sou uma Oberhauser. A última de uma longa linhagem... e pre­tendo honrar meus ancestrais.

Que tal nos concentrarmos no problema em questão? disse Malone. O tempo está ótimo lá fora. Precisamos tirar vantagem dis­so enquanto podemos.

Christl havia trazido o mapa mais recente da Antártida com o qual Isabel havia tentado Malone em Ossau, aquele que ela não abrira. Agora, ele via que todas as diversas bases continentais estavam indi­cadas, a maioria ao longo da costa, inclusive Halvorsen.

—            Meu avô esteve aqui e aqui disse Christl, apontando para os locais marcados como 1 e 2. — Suas anotações dizem que a maior parte das pedras que ele obteve vem do Sítio 1, embora ele tenha passado bas­tante tempo no Sítio 2. A expedição trouxe uma cabine desmontada para armar em algum lugar e assegurar com firmeza a reivindicação da Ale­manha. Foi decidido construir a cabine no Sítio 2, aqui, perto da costa.

Malone havia pedido a Taperell para ficar. Virou-se para o austra­liano e disse:

Onde é isso?

Eu sei. Cerca de 80 quilômetros a oeste daqui.

Ainda está lá? — perguntou Werner.

Com certeza disse Taperell. Vai estar direitinha... madei­ra não apodrece aqui. Essa coisa deve estar como no dia em que foi construída. Especialmente ali... a região toda é designada como área protegida. Um local de "interesse científico especial" de acordo com o Ato de Conservação da Antártida. Visitas só podem ser feitas com o aval da Noruega.

Por que isso? perguntou Dorothea.

A costa pertence às focas. É uma área de reprodução. Pessoas não são permitidas. A cabine fica em um dos vales secos fora da costa.

Segundo minha mãe, meu pai ia levar os norte-americanos para o Sítio 2 — disse Christl. Meu avô sempre quis voltar e explorar mais, mas nunca lhe permitiram.

Como sabemos se o local é esse? perguntou Malone.

Ele notou a malícia no olhar de Christl. Ela pôs a mão na mochila e retirou um livro fino e colorido com título em alemão. Malone tradu­ziu em silêncio. Uma visita a Neuschwabeland, cinquenta anos depois.

—            Este é um livro ilustrado que foi publicado em 1988. Uma revis­ta alemã enviou uma equipe de filmagem e um fotógrafo. Minha mãe encontrou isso há uns cinco anos. Christl folheou o livro, procuran­do uma página específica. Esta é a cabine. Ela lhes mostrou uma imagem de duas páginas impressionante, colorida, de uma estrutura cinza de madeira disposta no interior de um vale de rocha negra, co­berta por faixas de neve brilhante, parecendo minúscula entre monta­nhas nuas e cinzentas. Christl virou a página. Esta é uma foto da parte de dentro.

Malone examinou a imagem. Não havia muita coisa. Uma mesa coberta com algumas revistas, umas tantas cadeiras, um fogão, um rá­dio e dois beliches, caixotes adaptados para servirem de prateleiras.

O olhar de divertimento de Christl encontrou o de Malone. — Está vendo algo?

Ela estava fazendo com Malone o que ele fizera com ela em Ossau. Então, ele aceitou o desafio e estudou a fotografia com cuidado, assim como os outros também começaram a fazer.

Então Malone viu. No piso. Esculpido em uma das tábuas.

Ele apontou.

—            O mesmo símbolo da capa do livro encontrado no túmulo de Carlos Magno.

Christl sorriu.

Este tem de ser o local. E tem isso. — Ela retirou uma folha de papel dobrada de dentro do livro. Uma página de uma revista velha, amarelada e quebradiça, com uma imagem em preto e branco do inte­rior da cabine.

Isso veio dos registros da Ahnenerbe que obtive — disse Dorothea. — Eu me lembro. Vi em Munique.

Nossa mãe os recuperou — disse Christl — e reparou nesta foto. Olhem no chão. O símbolo é claramente visível. Isto foi publicado na primavera de 1939, um artigo que nosso avô escreveu sobre a expe­dição do ano anterior.

Eu disse a ela que aqueles registros valiam a pena — disse Dorothea.

Malone virou-se para Taperell.

—            Parece que é para onde estamos indo. Taperell apontou para o mapa.

—            Esta área aqui, na costa, é tudo uma plataforma de gelo com água do mar por baixo. Estende-se por cerca de 8 quilômetros no que seria uma baía respeitável, se não estivesse congelada. A cabine fica do outro lado de um sulco longo, a pouco mais de 1 quilômetro da costa, no que seria a praia oeste da baía. Podemos deixá-los lá e pegá-los de volta quando estiverem prontos. Como eu disse, considerem que estão com sorte em relação ao tempo. Está um forno lá fora hoje.

Menos 13°C não era a ideia que Malone tinha de um dia tropical, mas ele entendeu a mensagem.

Vamos precisar de equipamento de emergência, só por precaução.

Já tenho dois trenós prontos. Estávamos esperando vocês.

Você não faz muitas perguntas, não é? questionou Malone. Taperell balançou a cabeça.

Não, colega. Só estou aqui para fazer meu trabalho.

Então, vamos comer o grude e ir andando.

 

               Fort Lee

 

Senhor Presidente Davis disse. Seria possível que o senhor se explicasse? Sem histórias, sem charadas. Está terrivelmente tarde, e não tenho energia para ser paciente e respeitoso.

Edwin, gosto de você. A maioria dos babacas com que lido me diz ou o que acha que quero ouvir ou o que não preciso saber. Você é diferente. Você me diz o que tenho de ouvir. Sem disfarces, apenas sen­do direto. Foi por isso que quando você me falou de Ramsey, eu ouvi. Qualquer outra pessoa, eu teria deixado entrar por um ouvido e sair pelo outro. Mas não você. Sim, eu estava cético, mas você tinha razão.

O que o senhor fez? —- perguntou Davis.

Stephanie também havia sentido algo no tom do presidente.

—            Simplesmente dei a ele o que ele queria. A indicação. Nada emba­la melhor o sono de um homem do que o sucesso. Eu deveria saber, é algo que usaram comigo muitas vezes. Daniels olhou para o compartimen­to refrigerado. Éo que está lá dentro que me fascina. O registro de um povo que nunca conhecemos. Viveram há muito tempo. Fizeram coisas. Pensaram coisas. No entanto, não fazíamos ideia de que existiram.

Daniels pôs a mão no bolso e retirou um pedaço de papel.

—            Vejam isso.

É um petróglifo do templo de Hator em Dendera. Eu o vi al­guns anos atrás. A coisa é enorme, com colunas altíssimas. É razoavel­mente recente, em se tratando de Egito. É do século I antes de Cristo. Esses criados estão segurando o que parece ser uma espécie de lámpa­da, apoiada em pilares; portanto, essas lâmpadas devem ser pesadas e ligadas por um cabo a uma caixa no chão. Vejam a parte de cima das colunas, abaixo das duas lâmpadas. Parece um condensador, não?

Eu não fazia idéia de que se interessava por coisas assim — dis­se Stephanie.

Eu sei. Nós, garotos pobres e ignorantes do interior, não pode­mos apreciar nada.

Não quis dizer isso. É só que...

Relaxe, Stephanie. Guardo isso para mim. Mas adoro. Todas aquelas tumbas encontradas no Egito, e o interior das pirâmides... nem uma única câmara tem danos causados por fumaça. Que raio de proce­dimento eles usavam para conseguir iluminação para trabalhar nesses locais subterrâneos? O fogo era tudo o que tinham, e as lâmpadas quei­mavam óleo fumegante. — Daniels apontou para o desenho. — Talvez tivessem outra coisa. Há uma inscrição encontrada no templo de Hator que diz tudo. Eu a anotei. Ele virou o desenho. O templo foi cons­truído de acordo com um plano redigido em escrita antiga sobre um pergami­nho de pele de cabra da época dos Companheiros de Hórus. Dá para imaginar? Estão dizendo de forma explícita que tiveram ajuda vinda de muito tempo antes.

Não pode acreditar de verdade que os egípcios tinham luz elé­trica — disse Davis.

Não sei em que acreditar. E quem disse que era elétrica? Pode­ria ter sido química. Os militares têm lâmpadas de gás fosforescente de trítio que iluminam por anos sem eletricidade. Não sei em que acre­ditar. Só sei que esse petróglifo é real.

Sim, era.

—            Veja a coisa desta forma disse o presidente. Houve um tempo em que os supostos especialistas pensavam que todos os conti­nentes fossem fixos. Sem dúvida, a terra sempre esteve onde está hoje, fim de papo. Depois, as pessoas começaram a notar que a África e a América do Sul pareciam se encaixar. A América do Norte, a Groen­lândia e a Europa também. Coincidência, foi o que os especialistas dis­seram. Nada mais. Então, encontraram fósseis na Inglaterra e na América do Norte que eram idênticos. Alguns tipos de rocha também. A coincidência cresceu. Então, foram localizadas placas abaixo dos oceanos que se moviam, e os supostos especialistas perceberam que a terra poderia se deslocar nessas placas. Finalmente, nos anos 1960, provou-se que os especialistas estavam enganados. Os continentes es­tiveram todos juntos um dia e, com o tempo, se afastaram. O que um dia foi fantasia hoje é ciência.

Stephanie se lembrou de abril passado, quando tiveram uma con­versa em Haia.

Achei que tivesse dito que não entendia bulhufas de ciência.

Não entendo. Mas isso não significa que eu não leia e não pres­te atenção.

Ela sorriu.

O senhor é uma grande contradição.

Vou entender isso como um elogio. Daniels apontou para a mesa. O programa de tradução funciona?

Parece que sim. E o senhor está certo. Isto é o registro de uma civilização perdida. Que existiu há muito tempo e parece ter interagi­do com pessoas do mundo todo, inclusive, de acordo com Malone, com os europeus do século IX.

Daniels levantou-se da cadeira.

Nós nos consideramos muito espertos. Muito sofisticados. So­mos os primeiros em tudo. Bobagem. Tem uma porrada de coisas por aí que não sabemos.

Pelo que traduzimos até agora disse Stephanie—, parece haver um conhecimento técnico aqui. Coisas estranhas. Vamos preci­sar de tempo para entender. E de algum trabalho de campo.

Malone pode lamentar ter ido até lá murmurou Daniels. Ela precisava saber:

—            Por quê?

Os olhos escuros do presidente a examinaram.

O NR-1A usava urânio como combustível, mas havia vários ga­lões de óleo a bordo para lubrificação. Nem uma gota sequer foi encon­trada. Daniels ficou em silêncio. Os submarinos têm vazamentos quando naufragam. E tem o diário de bordo, como vocês ficaram sa­bendo de Rowland. Seco. Nem sequer uma mancha. Isso significa que o submarino estava intato quando Ramsey o encontrou. E pelo que Ro­wland disse, eles estavam no continente quando Ramsey entrou na água. Perto da costa. Malone está seguindo a trilha de Dietz Oberhau-ser, exatamente como o NR-1A fez. E se os caminhos se cruzam?

Aquele submarino pode não existir mais disse Stephanie.

Por que não? É a Antártida. Daniels hesitou. Fiquei saben­do há meia hora que Malone e sua comitiva estão na base de Halvorsen.

Ela viu que Daniels estava genuinamente preocupado com o que estava acontecendo, tanto ali como no sul.

—            OK, é o seguinte disse Daniels. Pelo que descobri, Ramsey contratou um matador profissional que atende pelo nome de Charles C. Smith Jr.

Davis ficou imóvel na cadeira.

—            Pedi para a CIA verificar tudo sobre Ramsey, e eles identifica­ram esse tal de Smith. Não me perguntem como, mas identificaram. Parece que ele usa muitos nomes, e Ramsey vem lhe pagando rios de dinheiro. Provavelmente foi ele quem matou Sylvian, Alexander e Scofield... e acha que matou Herbert Rowland...

—            E Millicent disse Davis. Daniels assentiu.

Vocês encontraram Smith? perguntou Stephanie, lembrando o que Daniels dissera pouco antes.

Por assim dizer. O presidente hesitou. Vim para ver tudo isto. Eu realmente queria saber. Mas também vim para lhes dizer exa­tamente como podemos acabar com esse circo.

 

Malone estava voltado para a janela do helicóptero, o batimento dos rotores pulsando em seus ouvidos. Estavam voando para o oeste. O brilho do sol entrava pelos óculos escuros de proteção que cobriam seus olhos. Contornaram a costa, onde as focas espreguiçavam-se no gelo como les­mas gigantes e baleias assassinas rompiam a superfície da água, patru­lhando as pontas de gelo em busca de presas incautas. Montanhas surgiam da costa, erguendo-se como lápides sobre um cemitério branco sem fim, seus tons escuros fazendo um contraste radical com a neve brilhante. A aeronave virou para o sul.

—            Estamos entrando na área restrita disse Taperell pelo comu­nicador do capacete de vôo.

O australiano estava no assento dianteiro da direita, enquanto um norueguês pilotava. Todos os outros estavam amontoados num compartimento traseiro sem aquecimento. Tinham se atrasado três horas devido a problemas mecânicos no Huey. Ninguém ficara para trás. Todos pareciam ansiosos para saber o que havia lá. Até Dorothea e Christl se haviam acalmado, ainda que tivessem se sen­tado o mais distante possível uma da outra. Christl agora usava um anoraque diferente, tendo substituído o ensanguentado do avião na base.

Encontraram a baía em forma de ferradura do mapa, uma cerca de icebergs guardando a entrada. Uma luz ofuscante refletia-se do gelo azul dos pedregulhos.

O helicóptero atravessou uma cadeia de montanhas com picos ín­gremes demais para que a neve grudasse. A visibilidade era excelente, e os ventos, fracos, apenas alguns cirros delgados pairando num céu de azul intenso.

Mais adiante, Malone avistou algo diferente. Pouca neve na super­fície. Em vez disso, o solo e as rochas eram coloridos por faixas irregu­lares de dolerito negro, granito cinza, xisto marrom e calcário branco. Pedregulhos de granito de todas as formas e tamanhos espalhavam-se pela paisagem.

Um vale seco disse Taperell. Sem chuva há 2 milhões de anos. Na época, as montanhas erguiam-se antes que as geleiras pudes­sem passar por elas, de modo que o gelo ficou preso do outro lado. Os ventos sopram da plataforma, vindo do sul, e mantêm o solo quase sem gelo e sem neve. Tem muito disso na porção sul do continente. Muito mais do que por aqui.

Este aqui já foi explorado? perguntou Malone.

Alguns caçadores de fósseis vêm aqui. O lugar é uma preciosi­dade para eles. De meteoritos também. Mas as visitas são limitadas pelo tratado.

A cabine surgiu, uma estranha aparição à base de um pico ameaça­dor e intocado. O helicóptero passou acima do terreno rochoso e ima­culado, depois fez a volta para sobrevoar uma área de pouso e descer sobre areia empedrada.

Todos saltaram, e Malone por último, encarregado dos trenós com equipamentos. Taperell piscou para ele ao lhe passar sua mochila, si­nalizando que fizera conforme o solicitado. Rotores barulhentos e ra­jadas de ar congelante investiram contra Malone.

Dois rádios estavam incluídos nos pacotes. Malone já havia combi­nado que retomariam contato com a base dali a seis horas. Taperell dissera-lhes que a cabine ofereceria abrigo, se necessário. Mas o tempo parecia bom para as próximas 10 a 12 horas. A luz do dia não era pro­blema, uma vez que o sol só se iria se pôr em março.

Malone fez um sinal de positivo e o helicóptero decolou. A batida rítmica das pás dos rotores foi diminuindo à medida que a aeronave desaparecia acima da linha da cadeia de montanhas.

Os cinco foram engolidos pelo silêncio. A respiração de cada um deles ardia e sibilava, no ar tão seco quanto um vento do Saara. Mas nenhuma sensação de paz misturava-se à tranquilidade.

A cabine estava a 50 metros dali.

O que fazemos agora? perguntou Dorothea. Malone começou a caminhar.

Eu penso que devemos partir do óbvio.

 

Malone aproximou-se da cabine. Taperell estava certo. Setenta anos de idade, mas as paredes marrom-esbranquiçadas ainda pareciam ter acabado de ser entregues pela serraria. Sequer uma partícula de ferrugem em nenhuma cabeça de prego. Uma corda enrolada pendurada perto da porta parecia nova. Persianas cobriam duas janelas. Ele estimou que a construção tivesse cerca de 6 metros de lado, com beirais salientes e um telhado de estanho revestido de resina e trespassado por uma chaminé de cano. Uma foca acinzen­tada e destripada estava encostada na parede, os olhos sem vida e os bigodes ainda lá, e jazendo como se estivesse apenas dormindo e não congelada.

A porta não tinha trinco, então Malone a empurrou para dentro e ergueu os óculos escuros de proteção. Pedaços da carne da foca e marretas pendiam de vigas de ferro do teto. As mesmas prateleiras das fotos, improvisadas a partir de caixotes, empilhadas contra uma parede manchada de marrom, com os mesmos alimentos en­garrafados e enlatados, os rótulos ainda legíveis. Dois beliches com sacos de dormir de pele, mesa, cadeiras, fogão de ferro e o rádio estavam todos lá. Até as revistas das fotos permaneciam. Parecia que os ocupantes tinham saído no dia anterior e poderiam voltar a qualquer momento.

—            Isto é perturbador — disse Christl.

Malone concordava. Como não havia ácaro ou inseto algum para deteriorar qualquer resíduo orgânico, ele se deu conta de que o suor dos alemães ainda estava no chão, junto com escamas da pele e ex­crescências corpóreas — e essa presença nazista pesava no ar silen­cioso do abrigo.

—            Meu avô esteve aqui — disse Dorothea, aproximando-se da mesa coberta com as revistas. — Estas são publicações da Ahnenerbe.

Malone tentou afastar a sensação desconfortável, foi até onde o símbolo deveria estar gravado no chão e o viu. O mesmo da capa do livro, além de outra gravura mal-acabada.

 

—            É o brasão da nossa família — disse Christl.

—            Parece que o avô de vocês fez valer um direito pessoal — ob­servou Malone.

—            O que quer dizer? — perguntou Werner.

Henn, que estava perto da porta, pareceu entender e pegou uma barra de ferro que estava ao lado do fogão. Nem uma partícula de fer­rugem corrompia a superfície.

—            Estou vendo que você também sabe a reposta — disse Malone.

Henn não respondeu nada. Apenas forçou a extremidade achatada de ferro abaixo das tábuas do assoalho e as alavancou, revelando uma abertura negra no chão e o topo de uma escada de madeira.

—            Como você sabia? — perguntou-lhe Christl.

Esta cabine fica num local estranho. Não faz sentido, a menos que esteja protegendo algo. Quando vi a foto no livro, percebi qual teria de ser a resposta.

Vamos precisar de lanternas disse Werner.

Duas estão no trenó, lá fora. Pedi para Taperell incluí-las no equipamento, além de pilhas extras.

 

Smith acordou. Estava em seu apartamento. Eram 8h20. Tinha consegui-do dormir por apenas três horas, mas como o dia já parecia excelente. Ele estava 10 milhões de dólares mais rico, graças a Diane McCoy, e tinha deixado claro a Langford Ramsey que não era alguém que pu­desse ser subestimado.

Ligou a televisão e achou uma reprise de Charmed. Ele adorava a série. A ideia de três bruxas lindas o atraía. Malcriadas e boas. O que também parecia a melhor descrição de Diane McCoy. Ela se mantivera calma ao lado dele durante seu confronto com Ramsey, claramente uma mulher insatisfeita querendo mais e que parecia saber como consegui-lo.

Smith viu Paige desmaterializar-se em sua casa. Um artifício e tan­to. Desaparecer em um lugar e depois se materializar em outro. Ele era um pouco assim. Entrava na surdina, fazia seu trabalho, depois saía de fininho e com destreza.

O celular vibrou. Ele reconheceu o número.

O que posso fazer por você? perguntou ele a Diane McCoy ao atender.

Mais um pouco de faxina.

O dia parecia ideal para isso.

Os dois de Asheville, que quase alcançaram Scofield. Traba­lham para mim e sabem demais. Seria bom se tivéssemos tempo para sutilezas, mas não temos. Eles têm de ser eliminados.

E você já sabe como?

Sei exatamente como vamos fazer isso.

 

Dorothea viu Cotton Malone descer pela abertura sob a cabine. O que seu avô havia encontrado? Ela estivera apreensiva com a ida ali, tanto pelo risco quanto pelos envolvimentos pessoais indesejados, mas agora estava contente por ter feito a viagem. Sua mochila estava a poucos metros de distância, e a arma lá dentro dava-lhe um conforto renovado. Havia exagerado no avião. Chris­tl sabia como mexer com ela, desequilibrá-la, pisar no calo mais sensível. Dorothea disse a si mesma para parar de cair nas arma­dilhas da irmã.

Werner estava ao lado de Henn, perto da porta da cabana. Christl estava sentada diante da mesa do rádio.

A lanterna de Malone iluminava a escuridão abaixo.

É um túnel — avisou ele. — Estende-se na direção da montanha.

Qual a distância? — perguntou Christl.

Longe pra caramba. Malone subiu a escada.

Preciso ver uma coisa.

Ele saiu do buraco e foi para fora da cabine. Os demais o seguiram.

Eu estava pensando nas faixas de neve e gelo cobrindo o vale. Solo exposto e rochas para todo lado, depois algumas trilhas passando aqui e ali. — Ele apontou na direção da montanha e de um caminho de neve de 7 a 8 metros de largura que ia da cabana à base da monta­nha. — Esse é o trajeto do túnel. O ar lá embaixo é bem mais frio que o solo, por isso a neve permanece.

Como você sabe disso? — perguntou Werner.

Vocês vão ver.

Henn foi o último a descer a escada. Malone viu que todos ficaram perplexos. O túnel estendia-se num caminho reto de cerca de 6 metros de largura, com laterais de rocha vulcânica preta e teto de um azul lumi­noso que lançava um brilho crepuscular no trajeto subterrâneo.

—            Isto é incrível — disse Christl.

—            A cobertura de gelo formou-se há muito tempo. Mas teve uma ajuda. — Malone apontou com a lanterna o que pareciam ser pedras enormes espalhadas pelo chão, mas elas devolviam o reflexo com um brilho faiscante. —Alguma espécie de quartzo. Estão por toda parte. Vejam as formas. Meu palpite é que um dia formaram o teto, acabaram caindo, e o gelo permaneceu como um arco natural.

Dorothea abaixou-se e examinou um dos pedregulhos. Henn segu­rava a outra lanterna, fornecendo iluminação. Ela juntou alguns frag­mentos: eles se encaixavam como peças de um quebra-cabeça.

Você tem razão. Eles se ligam.

Aonde isso vai dar? — perguntou Christl.

É o que estamos prestes a descobrir.

O ar no subsolo era mais frio que o de fora. Malone verificou o termômetro de pulso. Menos vinte graus Celsius. Fez a conversão. Menos quatro Fahrenheit. Frio, mas suportável. Ele estava certo quan­to ao comprimento — o túnel tinha uns 60 metros de comprimento, entulhado de pedaços de quartzo espalhados. Antes de descer, eles haviam arrastado os equipamentos para dentro da cabana, inclusive os dois rádios. Levaram consigo as mochilas, e Malone pegara as pi­lhas extras para as lanternas, mas o brilho fosforescente filtrado pelo teto mostrava o caminho claramente.

O teto brilhante terminava à frente, onde, estimou Malone, eles encontrariam a montanha e um arco elevado — pilares pretos e vermelhos emoldurando as laterais da passagem e sustentando um painel repleto de inscrições semelhantes às dos livros. Ele apontou a lanterna e notou que as colunas quadradas afilavam-se para den­tro, na direção das bases, as superfícies lustrosas cintilando com uma beleza etérea.

—            Parece que estamos no lugar certo disse Christl.

Duas portas, de uns 4 metros de altura, estavam fechadas por gra­des. Malone se aproximou e passou a mão na parte externa.

—            Bronze.

Tiras de espirais contínuas decoravam a superfície lisa. Uma barra de metal se estendia por toda a largura da porta, segura por grampos grossos. Seis dobradiças pesadas eram visíveis.

Malone segurou a barra e ergueu-a. Henn estendeu a mão para a maçaneta de uma das portas e a puxou para fora. Malone pegou a outra, sentindo-se como Dorothy ao entrar em Oz. O outro lado da porta era decorado com as mesmas espirais e grampos de bronze. O portal era amplo o suficiente para que todos eles entrassem ao mes­mo tempo.

O que pela superfície parecia ser uma única montanha coberta de neve era, na verdade, uma estrutura formada por três picos próximos um do outro, as largas fendas entre eles preenchidas de gelo azul translúcido antigo, frio, duro e sem neve. O interior fora um dia revestido por mais blocos de quartzo, como um vitral altíssimo, as jun­ções grossas e denteadas. Uma boa parte da parede interna havia desmoronado, mas ainda havia o suficiente para que Malone visse que a proeza da construção tinha sido impressionante. Mais raios em tons de azul eram despejados através de três junções verticais, como bastões de luz imensos, iluminando o espaço cavernoso de modo sublime.

Diante deles havia uma cidade.

 

Stephanie passara a noite no apartamento de Davis, um imóvel modesto de dois quartos e dois banheiros nas torres Watergate. Paredes in­clinadas, grades que se cruzavam, alturas variadas do teto e mui­tas curvas e círculos davam uma composição cubista aos cômodos. A decoração minimalista e as paredes da cor de peras maduras criavam uma atmosfera pouco comum, mas não desagradável. Da­vis disse a ela que recebera o apartamento mobiliado e que se acos­tumara à sua simplicidade.

Tinham voltado com Daniels a Washington a bordo do Marine One e conseguiram algumas horas de sono. Stephanie tomou uma ducha, e Davis sugeriu que ela comprasse uma muda de roupas em uma das butiques do térreo. Careiras, mas ela não tinha opção. Suas roupas ha­viam chegado ao limite. Ela fora de Atlanta para Charlotte achando que a viagem ia durar um dia, no máximo. Agora, estava entrando no terceiro dia, sem um final à vista. Davis também havia tomado banho, fizera a barba e vestira uma calça azul-marinho de veludo cotelê e uma camisa amarelo-clara de tecido oxford. Seu rosto ainda tinha hemato­mas da briga, mas parecia melhor.

Podemos comer alguma coisa lá embaixo disse ele. Não sei fritar um ovo, então como muito lá.

O presidente é seu amigo Stephanie se viu obrigada a dizer, sabendo que Davis estava pensando na noite anterior. Ele está se arriscando muito por você.

Ele deu um sorriso fraco.

—            Eu sei. E agora é a nossa vez

Stephanie passara a admirar aquele homem. Não era nada do que ela imaginara. Um pouco ousado demais para seu próprio bem, mas determinado.

O telefone da casa tocou, e Davis atendeu. Eles estavam aguardan­do a ligação.

No silêncio pesado do apartamento, ela pôde ouvir cada palavra da pessoa que havia ligado.

Edwin disse Daniels. Tenho o local.

Diga respondeu Davis.

Tem certeza? Última chance. Você pode não voltar dessa.

Só me diga o local.

Stephanie se encolheu diante da impaciência dele, mas Daniels ti­nha razão. Eles poderiam não voltar. Davis fechou os olhos.

Deixe-nos cuidar disso. Ele hesitou. Senhor.

Anote aí.

Davis pegou uma caneta e um bloco na bancada e escreveu rápido, enquanto Daniels passava a informação.

Cuidado, Edwin disse Daniels. Tem muitas incógnitas aí.

E não se pode confiar nas mulheres?

O presidente deu uma risadinha.

Ainda bem que foi você que disse isso, não eu.

Davis desligou e virou-se para Stephanie, um caleidoscópio de emoções nos olhos.

Você precisa ficar aqui.

De jeito nenhum.

Não tem de fazer isso.

A sugestão tranquila dele provocou-lhe uma risada.

Desde quando? Foi você quem me envolveu nisso.

Eu estava enganado.

Stephanie se aproximou e passou a mão suavemente no rosto ma­chucado dele.

—            Você teria matado o homem errado em Asheville se eu não es­tivesse lá.

Davis segurou de leve o pulso dela, com a mão trêmula.

Daniels tem razão. Isto é totalmente imprevisível.

É, Edwin, minha vida toda é assim.

 

Malone tinha visto coisas impressionantes. O tesouro dos Templários. A Biblioteca de Alexandria. O túmulo de Alexandre, o Grande. Mas nada disso se comparava ao que ele via agora.

Uma via processional formada por lajes polidas de formato irregu­lar, cercada de construções compactas de formatos e tamanhos varia­dos, estendia-se adiante. Ruas ziguezagueavam e entrecruzavam-se. O casulo de rocha que envolvia o ambiente estendia-se por centenas de metros no ar, a parede mais distante estando a uns 200 metros de distância. Ainda mais impressionantes eram as faces verticais de ro­chas erguendo-se como monolitos, reluzentes do solo ao teto, cobertas com símbolos, letras e desenhos. A lanterna de Malone revelou na pa­rede mais próxima dele uma combinação de triângulos de arenito amarelo-esbranquiçado, xisto vermelho-esverdeado e dolerito preto. O efeito era semelhante ao provocado por mármore de se estar den­tro de um edifício, e não de uma montanha.

Pilares ladeavam a rua com intervalos definidos e sustentavam mais do quartzo, que brilhava suavemente, como luzes noturnas, per­meando tudo com um mistério indistinto.

—            Meu avô estava certo disse Dorothea. — Isto existe de verdade.

—            Sim, ele estava proclamou Christl, elevando a voz. Certo quanto a tudo.

Malone percebeu o orgulho, sentiu o acesso de entusiasmo dela.

—            Todos vocês achavam que ele fosse um sonhador conti­nuou Christl. Nossa mãe repreendia tanto vovô quanto o nosso pai. Mas eles eram visionários. Estavam certos em relação a tudo.

—            Isto vai mudar tudo disse Dorothea.

Do que você não tem nenhum direito de compartilhar disse Christl. Eu sempre acreditei nas teorias deles. Foi o motivo pelo qual segui aquela linha de estudo. Você ria deles. Ninguém mais vai rir de Hermann Oberhauser.

Que tal fazermos uma pausa nos louvores disse Malone e darmos uma olhada?

Ele conduziu o grupo adiante, examinando as ruas até onde os feixes das lanternas permitiam. Um estranho pressentimento mexeu com ele, mas a curiosidade impeliu-o para a frente. Quase esperava que pessoas saíssem dos prédios e os cumprimentassem, mas apenas os passos deles podiam ser ouvidos.

Os edifícios eram uma mistura de quadrados e retângulos com paredes de pedra cortada, assentadas com firmeza, polidas, unidas sem argamassa. As duas lanternas revelaram fachadas vivas de cor. Ferrugem, marrom, azul, amarelo, branco, dourado. Telhados incli­nados formavam frontões triangulares repletos de desenhos elabo­rados de espirais e mais escritas. Tudo parecia arrumado, prático e bem organizado. O freezer da Antártida preservara tudo, ainda que houvesse evidência de forças geológicas em ação. Muitos dos blocos de quartzo nas compridas fendas de luz haviam caído. Algumas pa­redes tinham desmoronado, e a rua continha deformações.

A via pública escoava numa praça circular com mais construções em torno da circunferência, e uma delas era uma estrutura semelhan­te a um templo de colunas quadradas belamente decoradas. No cen­tro da praça havia o mesmo símbolo singular da capa do livro, um enorme monumento vermelho cercado por fileiras de bancos de pe­dra. A memória fotográfica de Malone o fez lembrar de imediato o que Eginhardo havia escrito.

 

Os Conselheiros estampavam sua aprovação das leis com o símbolo da justiça. Seu formato, esculpido em pedra vermelha, está no centro da cidade e zela pelas deliberações anuais. No alto está o sol, meio incandes­cente em sua glória. Depois, a Terra, um círculo simples, e os planetas, representados por um ponto dentro do círculo. A cruz abaixo deles reme­te à terra, enquanto o mar ondula abaixo.

 

Pilares quadrados espalhavam-se pela praça, com cerca de 3 me­tros de altura. Todos vermelhos e coroados por tranças e ornamentos. Malone contou 18. Mais inscrições tinham sido gravadas nas fachadas deles, em linhas estreitas.

As leis são promulgadas pelos Conselheiros e registradas nas Colunas da Justiça, no centro da cidade para que todos conheçam os dispositivos.

Eginhardo esteve aqui disse Christl. Ela parecia ter notado o mesmo. Isso é como ele descreveu.

Como você não compartilhou conosco o que ele escreveu res­pondeu Dorothea —, fica difícil saber.

Malone viu Christl ignorar a irmã e examinar uma das colunas.

Estavam andando sobre uma colagem de mosaicos. Henn obser­vou o pavimento com a ajuda da lanterna. Animais, pessoas, cenas do cotidiano — tudo cheio de cor. A alguns metros, havia uma saliência de pedra circular, de cerca de 10 metros de diâmetro e pouco mais de 1 metro de altura. Malone andou até lá e olhou. Um buraco preto re­vestido de pedra abria-se na terra.

Os outros se aproximaram.

Malone pegou uma rocha do tamanho de um melão pequeno e atirou-a pela lateral do poço. Dez segundos se passaram. Vinte. Trinta. Quarenta. Um minuto. Sem nenhum som que indicasse o fundo.

—            É um buraco fundo disse ele.

Semelhante ao apuro que ele cavara para si.

Dorothea afastou-se do poço. Werner seguiu-a e sussurrou:

—            Tudo bem?

Ela assentiu, mais uma vez incomodada com a preocupação do marido.

—            Precisamos acabar com isso sussurrou ela. Seguir adiante. Ele concordou.

Malone estava examinando um dos pilares quadrados vermelhos. Dorothea sentia cada respiração ressecar-lhe a boca. Werner disse a Malone:

—            Seria mais rápido se nos dividíssemos em dois grupos para a exploração e depois nos encontrássemos aqui?

Malone virou-se.

—            Não é má ideia. Temos mais cinco horas antes de contatar a base, e a volta pelo túnel é longa. Temos de fazer aquele caminho só uma vez.

Ninguém discordou.

—            Para que não haja brigas em nenhum grupo disse Malone eu fico com Dorothea. Você e Christl vão com Henn.

Dorothea olhou para Ulrich. O olhar dele disse que assim estaria bom. Ela não disse nada.

Malone concluiu que, se fosse para acontecer alguma coisa, aquele era o momento, por isso concordou de imediato com a sugestão de Werner. Es­tava esperando para ver quem ia agir primeiro. Separar as irmãs e os casa­dos parecia um gesto inteligente, e ele percebeu que não houve objeções.

Isso significava que agora tinha de jogar com as cartas que ele mes­mo tinha distribuído.

 

Malone e Dorothea deixaram a praça central e aventuraram-se para dentro do aglomerado de prédios, construções compactadas como dominós den­tro da caixa. Algumas das estruturas eram lojas com um ou dois cômodos, abrindo-se diretamente para a rua sem nenhuma outra função evidente. Outras ficavam recuadas, acessíveis por meio de passagens por entre as lo­jas. Ele não viu cornija, beiral ou calha alguma. A arquitetura parecia refletir um impulso para o uso de ângulos retos, traços diagonais e formas pira­midais curvas apareciam de forma restrita. Canos de cerâmica, unidos por grossas juntas cinzentas, iam de casa em casa e subiam e desciam pare­des pelo lado de fora todas com pinturas deslumbrantes—, fazendo parte da decoração, mas também, supôs Malone, com uma função prática.

Ele e Dorothea investigaram uma das edificações, entrando por uma porta de bronze esculpida. Um pátio central ladrilhado de mosaico era cer­cado por quatro cômodos quadrados, cada um esculpido na pedra com detalhamento e precisão evidentes. Colunas de ônix e topázio pareciam servir mais para decoração do que para suporte. Uma escada levava a um andar superior. Sem janelas. Em vez disso, o teto era composto por mais quartzo, as partes unidas por argamassa, formando um arco. A luz fraca de fora era retratada e ampliada, tornando os cômodos mais resplandecentes.

Estão todos vazios disse Dorothea. Como se as pessoas tivessem recolhido tudo e partido.

—            O que pode ser exatamente o que aconteceu.

As paredes estavam cobertas de imagens. Grupos de mulheres bem-vestidas sentadas dos dois lados de uma mesa, cercadas por mais pessoas. Do outro lado, uma baleia-assassina macho, notou Malone pela grande nadadeira dorsal nadava num mar azul. Icebergs den­teados flutuavam por perto, salpicados de colônias de pinguins. Um barco navegava pela superfície longo, fino, com dois mastros e o símbolo da praça, pintado de vermelho, com velas quadradas. O rea­lismo parecia ser uma preocupação. Tudo era proporcional. A parede refletia o feixe de luz da lanterna, o que impeliu Malone a aproximar-se para sentir a superfície.

Mais canos de cerâmica corriam do chão ao teto em todos os cômo­dos, com o exterior pintado para se misturar às imagens.

Ele os examinou sem esconder a admiração.

—            Deve ser alguma espécie de sistema de aquecimento. Tinham de ter uma forma de manter o calor.

—            A fonte? perguntou ela.

—            Geotérmica. Essas pessoas eram inteligentes, mas não sofistica­das em termos de mecânica. Meu palpite é que aquele poço na praça central é um respiradouro geotérmico que mantinha todo o local aque­cido. Eles canalizavam mais calor por esses tubos e o enviavam para toda a cidade. Malone passou a mão pela superfície brilhante. Mas se a fonte de calor enfraquecesse, eles teriam problemas. A vida aqui devia ser uma batalha diária.

Uma rachadura desfigurava uma das paredes, e Malone a seguiu com a lanterna.

—            Este local passou por alguns terremotos ao longo dos séculos. Impressionante que ainda esteja de pé.

Nenhuma resposta tinha sido dada aos seus dois comentários, en­tão ele se virou. Dorothea Lindauer estava do outro lado do cômodo, uma arma apontada para ele.

 

Stephanie analisou a casa que encontraram após seguir as indicações de Danny Daniels. Velha, dilapidada, isolada no interior de Maryland, cercada por bosques densos e prados. Havia um celeiro nos fundos. Nenhum outro carro à vista. Ela e Davis estavam armados, então saíram do veículo de arma em punho. Nenhum dos dois disse uma palavra.

Aproximaram-se da porta da frente, que estava aberta. A maio­ria das janelas estava totalmente despedaçada. A casa tinha, esti­mou ela, de 180 a 280 metros quadrados, e perdera sua glória havia muito tempo.

Entraram com cautela.

O dia estava claro e frio, e a luz do sol derramava-se pelas jane­las quebradas. Eles pararam num vestíbulo, com salões à direita e à esquerda, e outro corredor à frente. A casa era térrea e de formato irregular, suas partes interligadas por corredores amplos. Os cô­modos estavam cheios de móveis cobertos por panos sujos, os re­vestimentos das paredes, descascando, os assoalhos de madeira, deformados.

Stephanie ouviu um som de algo raspando. Depois, um tum, tum, tum suave. Algo em movimento? Andando? Ela ouviu um rangido e um rosnado. Seus olhos focalizaram um dos corredores. Davis passou por ela e seguiu na frente. Chegaram à porta de um dos quartos. Davis ficou para trás, mas manteve a arma apontada. Stephanie sabia o que ele queria que ela fizesse, então se aproximou do batente devagar, es­piou para dentro e viu dois cães. Um amarelado e branco, o outro, cinza-claro, os dois comendo algo. Os animais eram grandes e fortes. Um deles sentiu a presença de Stephanie e levantou a cabeça. A boca e o focinho estavam manchados de sangue.

O animal rosnou. Seu companheiro sentiu a ameaça e também fi­cou alerta.

Davis aproximou-se por trás de Stephanie.

—            Consegue ver? — perguntou ele.

Conseguia. Abaixo dos cachorros, no chão, estava a refeição. Uma mão humana, cortada pelo pulso, sem três dedos.

 

Malone ficou olhando para a arma de Dorothea.

Pretende atirar em mim?

Você é aliado dela. Eu a vi entrar no seu quarto.

Acho que passar a noite com alguém não significa ser aliado da pessoa.

Ela é má.

Vocês duas são loucas.

Malone deu um passo na direção da mulher. Ela agitou a arma para a frente. Ele parou, perto de uma porta que dava para o cômodo adjacente. Dorothea estava a 3 metros de distância, diante de uma pa­rede de mosaicos brilhantes.

Vocês duas vão destruir uma à outra, a menos que parem — dis­se ele.

Ela não vai ganhar esta

Ganhar o quê?

Eu sou herdeira do meu pai.

Não, não é. Vocês duas são. O problema é que nenhuma das duas é capaz de ver isso.

Você a ouviu. Ela está justificada. Estava certa. Vai ser impossí­vel lidar com ela.

Era verdade, mas Malone não aguentava mais, e aquele não era o momento.

Faça o que tem de fazer, mas eu vou sair daqui.

Vou atirar em você.

Então, atire.

Ele se virou e seguiu na direção da porta.

Estou falando sério, Malone.

Está me fazendo perder tempo. Dorothea apertou o gatilho.

Click.

Malone continuou andando. Ela apertou o gatilho de novo. Mais cliques.

Ele parou e a encarou.

Mandei revistarem suas malas enquanto comíamos na base. Encontrei a arma. — Ele notou o olhar envergonhado de Doro­thea. — Achei que era uma medida prudente, depois do seu acesso de raiva no avião. Mandei tirarem as balas do pente.

Eu estava atirando no chão — disse ela. — Não teria machuca­do você.

Malone estendeu a mão para pegar a arma. Dorothea caminhou até ele e rendeu-se.

—            Odeio Christl com todas as minhas forças.

—            Isso já está estabelecido, mas, no momento, é contraproducen­te. Encontramos o que sua família vinha procurando. O que seu pai e seu avô trabalharam a vida inteira para encontrar. Você não consegue ficar animada com isso?

—            Não é o que estávamos procurando.

Ele notou um dilema, mas decidiu não se intrometer.

E quanto ao que você estava procurando? — perguntou Dorothea.

A mulher tinha razão. Nenhum sinal do NR-1A.

Essa questão ainda está em suspenso.

Este podia ter sido o lugar aonde nossos pais estavam vindo.

Antes que ele pudesse responder à especulação dela, dois estalos interromperam o silêncio do lado de fora, distante. Depois outro.

—            Isso é tiro — disse ele.

E saíram correndo dali.

 

Stephanie notou outra coisa.

—            Olhe mais adiante, à direita.

Uma parte da parede estava aberta, o retângulo adiante mergulha­do em sombras. Ela examinou marcas de patas na terra e na poeira que iam e vinham da abertura.

—            Parece que eles sabem o que tem atrás dessa parede.

Os cães enrijeceram o corpo. Ambos começaram a latir. Stephanie voltou a atenção para os animais.

—            Eles precisam ir.

As armas permaneceram apontadas, os cães defendendo suas po­sições, montando guarda sobre a refeição, então Davis passou para o outro lado da porta.

Um dos cachorros avançou, depois parou de repente.

—            Vou atirar disse ele.

Ele apontou a arma e atirou no chão entre os animais. Ambos gani­ram, depois correram de um lado para o outro, confusos. Davis atirou mais uma vez, e os dois saíram pela porta, rumo ao corredor. Pararam a poucos metros de distância, percebendo que tinham esquecido a co­mida. Stephanie atirou nas tábuas do assoalho, e os animais viraram e correram, desaparecendo pela porta da frente.

Ela expirou. Davis entrou no quarto e ajoelhou-se ao lado da mão decepada.

—            Precisamos ver o que está lá embaixo.

Stephanie não concordava muito para quê? mas sabia que Davis precisava ver. Ela deu um passo na direção do vão. Degraus es­treitos de madeira desciam, depois faziam uma curva fechada direto na escuridão total.

—            Deve ser um porão velho.

Ela começou a descer. Davis a seguiu. Stephanie hesitou antes do segundo lance. Parte da escuridão se desfez à medida que as pupilas dela se ajustaram, e a luz ambiente revelou um recinto de menos de 1 metro quadrado, a parede cortinada entalhada na rocha do solo, o chão de terra empoeirada. Vigas grossas de madeira estendiam-se pelo teto. O ar gelado não era ventilado.

—            Pelo menos não tem mais nenhum cachorro — disse Davis. Então, ela viu.

Um corpo, vestindo sobretudo, de bruços, um braço terminando em um coto. Stephanie reconheceu o rosto de imediato, ainda que uma bala tivesse desfigurado o nariz e um dos olhos.

Langford Ramsey.

—            A dívida está paga — disse ela.

Davis passou por ela e aproximou-se do cadáver.

Só queria que eu tivesse feito isso.

Foi melhor assim.

Um som veio de cima. Passos. O olhar de Stephanie correu na di­reção do piso de madeira acima.

—            Isso não é um cachorro — sussurrou Davis.

 

Malone e Dorothea saíram da casa e chegaram à rua vazia. Outro estalo ressoou. Ele determinou a direção:

Por ali.

Ele se conteve para não sair correndo, mas acelerou o passo na di­reção da praça central, suas roupas volumosas e as mochilas atrapa­lhando seu avanço. Contornaram o poço circular murado e percorreram mais uma calçada ampla. Ali, avançando mais cidade adentro, novas evidências de distúrbios geológicos podiam ser vistas. Diversos pré­dios haviam desmoronado. Paredes estavam rachadas. As ruas esta­vam cheias de pedras. Malone tomou cuidado. Não podiam arriscar as pernas sobre pontos de apoio tão incertos.

Algo chamou sua atenção. Perto de um dos cristais elevados de brilho tênue. Ele parou. Dorothea, também.

Um boné? Ali? Naquele local de domínio antigo e abandonado, aquilo parecia uma estranha intromissão.

Malone se aproximou.

Tecido laranja. Reconhecível.

Ele se abaixou. Acima da aba, estavam bordadas as palavras:

 

                     Marinha dos Estados Unidos

                     NR-1A

 

Mãe de Deus.

Dorothea também leu.

—            Não pode ser.

Malone olhou para a parte de dentro. Escrito em tinta preta, esta­va o nome vaught. Ele se lembrou do relatório do tribunal de inquéri­to. Segundo-sargento Motores Doug Vaught. Membro da tripulação do NR-1A.

—            Malone.

O nome dele foi chamado do outro lado do vasto interior da cidade.

—            Malone.

Era Christl. Sua mente voou de volta à realidade.

Onde você está? ele gritou.

Aqui.

 

Stephanie viu que eles precisavam sair do calabouço. Era o último lugar em que iam querer enfrentar qualquer pessoa.

Passos de uma única pessoa vinham de cima, indo para o outro lado da casa, afastando-se do cômodo no alto da escada. Então, Ste­phanie subiu devagar os degraus de madeira e parou no topo. Com cuidado, espiou ao redor da divisória aberta, não viu ninguém e saiu. Fez um gesto, e Davis parou ao lado de uma porta do corredor, e ela, do outro. Arriscou uma olhada. Nada.

Davis saiu primeiro, sem esperar por Stephanie. Ela o seguiu até o vestíbulo. Ninguém ainda. Então, um movimento do outro lado da sala para a qual ela olhava onde seriam a cozinha e a sala de jantar.

Uma mulher apareceu. Diane McCoy. Exatamente como Daniels dissera.

Stephanie foi direto na direção de Diane. Davis abandonou a posi­ção do outro lado do vestíbulo.

É Werner. Henn o matou.

Malone ouviu Dorothea dizer, chocada:

Por quê?

Pense, querida irmã. Quem é que dá ordens a Ulrich?

Nossa mãe? — perguntou Dorothea em resposta.

Não havia tempo para debates em família.

Onde está Henn?

—            Nós nos separamos. Voltei no momento em que ele atirava em Werner. Peguei minha arma e atirei, mas Henn fugiu.

O que você está fazendo com uma arma? — perguntou Malone.

Eu diria que foi bom tê-la trazido.

Onde está Werner? — Dorothea perguntou. Christl apontou.

Ali dentro.

Dorothea pulou os degraus. Malone a seguiu. Entraram no edifício por uma porta envolta pelo que parecia ser estanho decorativo. No interior, havia um hall longo de teto alto, o chão e as paredes revesti­dos de ladrilhos azuis e dourados. Espalhados pelo chão, um ao lado do outro, vasos com a base calçada por seixos gastos, e uma balaustra­da de pedra corria os dois lados. Janelas sem vidraça, cobertas por grades cruzadas de bronze, e mosaicos cobriam as paredes. Paisagens, animais, homens jovens usando o que parecia ser um kilt e mulheres com saias de babados, algumas pessoas carregando jarros, outras, tige­las, enchendo os vasos. Do lado de fora, Malone havia notado o que parecia ser cobre no alto de frontões e prata adornando as colunas. Agora, avistava caldeirões de bronze e armações de prata. A metalur­gia claramente havia sido uma forma de arte para aquela sociedade. O teto era de quartzo, um arco largo sustentado por uma viga central do mesmo comprimento do retângulo. Ralos nas laterais e nas bases dos vasos confirmavam que estes um dia haviam contido água. Aquilo ha­via sido uma casa de banhos, Malone concluiu.

Werner estava esparramado dentro de um dos vasos. Dorothea correu até ele.

-— Cena comovente, não? disse Christl. A esposa boa e fiel lamentando a perda do marido querido.

—            Dê-me a sua arma exigiu Malone.

Ela lhe lançou um olhar corrosivo, mas entregou a pistola. Ele notou que era da mesma marca e modelo da arma de Dorothea. Isabel parecia ter cuidado para que as filhas estivessem em pé de igualdade. Ele reti­rou o pente e guardou-o junto com a arma no bolso. Aproximou-se de Dorothea e viu que Werner havia levado um único tiro na cabeça.

—            Eu atirei duas vezes em Henn disse Christl. Ela apontou para o fim do corredor, depois de uma plataforma rebaixada, onde havia outra porta. Ele escapou por ali.

Malone tirou a mochila dos ombros, abriu o zíper do comparti­mento central e retirou uma pistola automática 9mm. Quando Taperell revistara os pertences dos outros e encontrara a arma de Dorothea, Malone sabiamente pedira que o australiano colocasse uma arma em sua própria mochila.

As regras são diferentes para você? perguntou Christl. Ele a ignorou. Dorothea levantou-se.

Eu quero Ulrich.

Malone percebeu o ódio.

Por que ele mataria Werner?

—            É a minha mãe. Por que mais? Dorothea gritou, e as palavras ecoaram pela casa de banhos. Ela matou Sterling Wilkerson só para afastá-lo de mim. Agora, matou Werner.

Christl pareceu notar a ignorância de Malone.

—            Wilkerson era um agente americano que o tal de Ramsey en­viou para nos espiar. O mais recente amante de Dorothea. Ulrich ati­rou nele na Alemanha.

Malone concordava: eles precisavam localizar Henn.

—            Eu posso ajudar disse Christl. Dois seria melhor do que um. E conheço Ulrich. Seu modo de pensar.

Malone confiava nessa observação, então recolocou o pente e de­volveu a arma a Christl.

—            Quero a minha também disse Dorothea.

Ela veio armada? perguntou Christl a Malone. Ele fez que sim com a cabeça.

Vocês duas são iguaizinhas.

 

Dorothea sentia-se vulnerável. Christl estava armada, e Malone recusava categoricamente seu pedido por uma arma.

—            Por que dar uma vantagem a ela? perguntou Dorothea. Você é idiota?

Seu marido está morto. — lembrou-a Malone.

Ela olhou para Werner.

Ele não é mais meu marido há muito tempo. Suas palavras estavam cheias de remorso. Tristes. Exatamente como ela se sen­tia. Mas isso não significa que eu quisesse que ele morresse. Do­rothea olhou com raiva para Christl. Não desse jeito.

Esta busca está saindo cara disse Malone. Depois de uma pausa, ele acrescentou: Para vocês duas.

Meu avô estava certo disse Christl. Os livros de história serão reescritos graças aos Oberhauser. É nosso dever cuidar para que isso aconteça. Pela família.

Dorothea imaginou que o pai e o avô talvez tivessem pensado e dito exatamente o mesmo. Mas queria saber:

—            E quanto a Henn?

—            Não há como saber o que nossa mãe o mandou fazer disse Christl. Meu palpite é que vai matar a mim e a Malone. Ela apontou para Dorothea com a arma. Você deveria ser a única sobrevivente.

—            Você é uma mentirosa retrucou Dorothea.

—            Sou? Então onde está Ulrich? Por que ele fugiu quando eu o enfrentei? Por que matar Werner?

Dorothea não podia dar nenhuma resposta.

—            Discutir não adianta disse Malone. Vamos pegá-lo e aca­bar com isso.

Malone passou por uma porta e saiu do hall da casa de banhos. Uma série de cômodos abria-se a partir de um longo corredor, espaços que pareciam ser almoxarifados ou salas de trabalho, uma vez que tinham cores e desenhos menos elaborados e não continham murais. O teto também era de quartzo, sua luz retratada ainda iluminando o cami­nho. Christl avançou com ele, e Dorothea seguiu devagar atrás deles.

Alcançaram uma série de salas minúsculas que poderia ter sido uma espécie de vestiários, e, mais adiante, mais espaço de armazena­gem e de trabalho. Os mesmos canos de cerâmica corriam pelo chão, junto à parede, duplicados como um rodapé.

Chegaram a uma interseção.

Eu vou por ali disse Christl. Malone concordou.

Nós vamos na outra direção.

Christl foi para a direita, depois desapareceu ao virar e entrar na penumbra fria e cinzenta.

Você sabe que ela é uma puta mentirosa sussurrou Dorothea.

Ele manteve a atenção em onde Christl estava indo e disse:

Você acha?

 

Charlie Smith estava no controle da situação. Diane McCoy o informara corretamente, mandando-o esperar no celeiro até os dois visitantes entrarem, para depois assumir posição ali na sala da frente sem fazer barulho. Diane entraria na casa em seguida e anunciaria sua presença, e a partir daí lidariam com o problema.

—            Larguem as armas ordenou ele.

O metal caiu com estrépito no piso de madeira.

Smith queria saber:

—            Vocês eram os dois em Charlotte?

A mulher assentiu. Stephanie Nelle. Setor Magalhães. Departa­mento de Justiça. Diane lhe dissera o nome e o cargo dos dois.

Como sabiam que eu estaria na casa de Rowland? Smith es­tava curioso de verdade.

Você é previsível, Charlie disse Nelle.

Smith duvidava disso. Mas... eles tinham aparecido. Duas vezes.

Sei de você há muito tempo — disse-lhe Edwin Davis. Não o seu nome ou sua aparência, nem onde você morava. Mas sabia que estava por aí, trabalhando para Ramsey.

Gostaram do meu showzinho em Biltmore?

Você é profissional disse Nelle. Ganhou aquele round.

Tenho orgulho do meu trabalho. Infelizmente, estou mudando de emprego, e de empregador, no momento.

Smith andou poucos metros, para dentro do vestíbulo.

—            Você sabe disse Nelle que há pessoas que sabem que esta­mos aqui.

O homem deu uma risadinha.

—            Não foi o que ela me disse. Ele apontou na direção de McCoy. Ela sabe que o presidente desconfia dela. Foi ele que os enviou aqui, para a encurralarem. Daniels mencionou meu nome, por acaso?

Nelle fez uma expressão de surpresa.

Eu achei mesmo que não. Supôs que seriam apenas vocês três. Que resolveriam as coisas na conversa?

Foi isso o que você disse a ele? perguntou Nelle a Diane.

É a verdade. Daniels enviou vocês para me pegarem. O presi­dente não pode deixar que nada disso vá a público. Perguntas demais. É por isso que a porcaria da tropa são só vocês. McCoy fez uma pausa e acrescentou: Como eu disse, o Cavaleiro Solitário e Tonto.

 

Malone não fazia ideia de onde ia dar o labirinto de corredores. Não tinha nenhuma intenção de fazer o que dissera a Christl, então falou para Dorothea:

—            Venha comigo.

Refizeram os próprios passos e voltaram ao hall. Três outras portas davam para as paredes externas. Malone passou a lanterna para a mulher.

—            Veja o que tem naquelas salas.

Dorothea olhou para Malone intrigada, depois ele viu que ela esta­va começando a entender. Ela era esperta, Malone tinha de admitir. O primeiro cômodo não revelou nada, mas na segunda porta, ela fez um gesto para que ele se aproximasse.

Ele foi até lá e viu Ulrich Henn, morto no chão.

—            O quarto tiro disse ele. Embora certamente tenha sido o primeiro que ela deu, uma vez que ele representava a maior ameaça.

Especialmente depois do recado que sua mãe enviou. ChrisÜ imagi­nou que vocês três estavam mancomunados contra ela.

Maldita murmurou Dorothea. Ela matou os dois.

E pretende matar você também.

E você?

Malone deu de ombros.

—            Não consigo imaginar por que me permitiria ir embora.

Ele havia baixado a guarda na noite anterior, deixando-se levar pelo momento. O perigo e a adrenalina tinham esse efeito. O sexo sem­pre tinha sido uma maneira de aplacar seus medos o que lhe causa­ra problemas anos antes, quando ele começara no Setor Magalhães.

Mas não desta vez. Ele se virou para o hall, decidindo o que fazer em seguida. Muita coisa acontecendo rápido. Ele precisava...

Algo bateu com força na sua têmpora. Ele sentiu o choque da dor. O hall sumiu e voltou a aparecer.

Outro golpe. Mais forte.

Seus braços tremeram. Seus punhos se cerraram. Então sua mente perdeu toda a consciência.

 

Stephanie avaliou a situação. Daniels os enviara ali com muito pouca informação. Mas o trabalho na área de inteligência sempre exigia ca­pacidade de improviso. Hora de praticar o que Stephanie pregava:

Ramsey teve sorte de contar com você disse ela. A morte do almirante Sylvian foi uma obra de arte.

Também achei disse Smith.

Zerar a pressão sanguínea dele. Engenhoso...

Foi assim que matou Millicent Senn? interrompeu Davis. Mulher negra. Capitão-tenente da Marinha em Bruxelas. Quin­ze anos atrás.

Smith pareceu buscar na memória.

É. Do mesmo jeito. Mas eram outros tempos, outro continente.

Eu sou o mesmo — disse Davis.

Você estava lá? Davis fez que sim.

O que ela era sua?

Mais importante, o que ela era para Ramsey?

—            Aí você me pegou. Nunca perguntei. Só fiz o que ele me pagou para fazer.

—            Ramsey lhe pagou para matá-lo? — perguntou Stephanie. Smith deu uma risadinha.

—            Se eu não tivesse feito isso, logo estaria morto. O que quer que ele estivesse planejando, não me incluía, então atirei nele. — Apontou com o fuzil. — Está lá no quarto, um belo buraco no meio do cérebro inútil.

Tenho uma surpresinha para você, Charlie — disse Stephanie. Ele lançou-lhe um olhar inquisitivo.

O corpo não está lá.

 

Dorothea bateu com a lanterna pesada de aço na lateral do crânio de Malone uma última vez.

Ele se encolheu no chão.

Ela pegou a arma.

Aquilo ia terminar entre ela e Christl. Agora mesmo.

Stephanie viu que Smith estava perplexo.

O que ele fez? Saiu andando?

Vá ver.

Ele apertou o rosto dela com o fuzil de assalto.

—            Você vai na frente.

Stephanie respirou fundo e controlou os nervos.

—            Um de vocês, pegue essas armas e jogue-as pela janela disse Smith, sem tirar os olhos dela.

Davis fez o que ele mandou. Smith baixou o fuzil.

—            OK, vamos todos dar uma olhada. Vocês três vão na frente.

Seguiram pelo corredor e entraram no quarto. Não havia nada lá além de uma janela sem vidraça, a divisória aberta na parede e uma mão ensanguentada.

Você está sendo enganado disse Stephanie. Por ela. Diane reagiu à acusação.

Eu lhe paguei 10 milhões de dólares. Smith não pareceu dar atenção.

Onde está o maldito corpo?

 

Dorothea apressou-se. Sabia que Christl estava esperando por ela. A vida toda delas tinha sido uma competição. Uma tentando superar a outra. Georg havia sido a única coisa que Dorothea conseguira que Christl nunca havia equiparado.

E Dorothea sempre se perguntara por quê. Agora, ela sabia.

Afastou todos os pensamentos perturbadores e se concentrou na paisagem obscura à sua frente. Já havia caçado à noite, espreitando pre­sas pelas florestas da Baviera sob um luar prateado, aguardando o mo­mento certo para matar. Na melhor das hipóteses, a irmã era a assassina de duas pessoas. Tudo o que sempre Dorothea acreditara a respeito dela estava confirmado. Ninguém a culparia por matar a desgraçada.

O corredor terminava 3 metros adiante.

Duas portas uma à esquerda, outra à direita.

Ela resistiu a um acesso de pânico.

Qual das duas?

 

Malone abriu os olhos e soube o que havia acontecido. Esfregou um galo latejante na lateral da cabeça. Droga. Dorothea não tinha ideia do que estava fazendo.

Ele se ergueu e sentiu uma onda de náusea. Bosta... ela podia ter lhe causado uma fratura no crânio. Ele hesitou e deixou que o ar géli­do lhe clareasse o cérebro.

Pense. Concentre-se. Ele havia armado tudo aquilo. Mas a situa­ção não estava se desenrolando conforme ele planejara, então se li­vrou das especulações indesejadas e pegou a arma de Dorothea no bolso de seu casaco.

Havia confiscado a de Christl, de marca e modelo idênticos. Quan­do a devolvera a ela, no entanto, aproveitara-se da situação para carre­gar o pente vazio que saíra da arma de Dorothea. Encaixou o pente completo na Heckler & Koch USP, forçando a mente nebulosa a se concentrar e os dedos a se moverem.

Então cambaleou até a porta.

 

Stephanie estava improvisando, usando qualquer ideia que tivesse para manter Charlie desorientado. Diane McCoy havia interpretado seu papel com perfeição. Daniels os informara que havia enviado

McCoy a Ramsey para se tornar uma cúmplice — e depois uma ad­versária —, tudo para manter Ramsey ocupado. A abelha não conse­gue picar se estiver voando, o presidente havia observado. Daniels também explicara que, ao ficar sabendo de Millicent Senn e do que acontecera em Bruxelas anos antes, Diane se oferecera de imediato para ajudar. Para que a armadilha tivesse qualquer chance de dar certo, seria necessário alguém do nível dela, uma vez que Ramsey jamais teria lidado com — nem acreditado em — subordinados. As­sim que o presidente soubera da existência de Charlie Smith, Diane também passara a manipular o assassino com facilidade. Smith era uma alma vaidosa e gananciosa, acostumada demais ao sucesso. Daniels os informara que Ramsey estava morto — por um tiro de Smith — e que Smith apareceria, mas infelizmente as informações haviam acabado aí. A parte em que Diane os enfrentava também estava no roteiro. O que aconteceria depois disso, ninguém sabia.

—            De volta à frente da casa — ordenou Smith, acenando com a arma.

Voltaram ao vestíbulo entre as duas salas da frente.

Você está com um problema e tanto — disse Stephanie.

Eu diria que é você quem está com um problema.

—            É mesmo? Vai matar dois vice-conselheiros de segurança nacio­nal e uma agente de alto escalão do Departamento de Justiça? Acho que você não vai gostar do tipo de pressão que isso trará. Atirar em Ramsey? Quem se importa? Nós, com certeza, não. Já foi tarde. Nin­guém vai importunar você por essa. Nós somos uma outra história.

Stephanie viu que sua argumentação surtira efeito.

—            Você sempre foi muito precavido — disse Stephanie. — É a sua marca. Nenhum vestígio. Nenhuma evidência. Atirar em nós estaria totalmente em desacordo com sua personalidade. Além disso, pode­mos querer contratá-lo. Afinal, você é competente.

Smith deu uma risadinha.

—            Sim. Duvido que usariam meus serviços. Vamos deixar as coi­sas claras. Eu vim para ajudá-la ele apontou para Diane a resol­ver um problema. Ela realmente me pagou 10 milhões e me deixou matar Ramsey, então tem direito a um favor. Ela queria que vocês dois desaparecessem. Mas posso ver que isso seria uma má idéia. Acho que o mais prudente para mim é ir embora.

—            Conte-me sobre Millicent disse Davis.

Stephanie estava se perguntando por que Davis estava tão calado.

Por que ela é tão importante? perguntou Smith.

Porque sim. Eu gostaria de saber sobre ela antes de você partir.

 

Dorothea foi lentamente na direção das duas portas. Posicionou-se contra a parede direita do corredor e observou se havia alguma mu­dança nas sombras adiante. Nada.

Chegou perto do vão da porta e deu uma olhada rápida dentro da sala à direita. Talvez uns 3 metros de lado, iluminada pelo alto. Nada ali dentro a não ser um vulto escorado na parede mais afastada.

Um homem enrolado num cobertor, usando um macacão de náilon laranja. Mal iluminado, como uma foto antiga em preto e branco, ele estava sentado de pernas cruzadas, a cabeça inclinada para a esquer­da, e olhava para Dorothea sem piscar.

Ela se sentiu impelida a ir até ele. Era jovem, talvez 20 ou 30 anos, com os cabelos castanhos empoeirados e o rosto magro e anguloso. Havia morrido onde estava, perfeitamente preservado. Dorothea qua­se achou que ele fosse falar. Não usava casacos, mas seu boné laranja era igual ao que haviam encontrado fora do edifício. Marinha dos Es­tados Unidos. NR-1A.

O pai dela, durante o tempo em que caçava, sempre a alertara quanto à ulceração produzida pelo frio. O corpo, dizia ele, sacrifica­va os dedos das mãos e dos pés, o nariz, as orelhas, o queixo e as bochechas para que o sangue continuasse fluindo para os órgãos vi­tais. Mas se o frio persistisse, e não se encontrasse qualquer alívio, os pulmões acabavam sofrendo hemorragia, e o coração parava. A mor­te era lenta, gradual e indolor. Mas a longa luta consciente contra ela era o verdadeiro sofrimento. Especialmente quando nada podia ser feito para evitá-la.

Quem era aquela alma?

Dorothea ouviu um barulho atrás de si.

Virou-se.

Alguém apareceu na sala do outro lado do corredor. A 20 metros dali. Uma forma negra, emoldurada pela outra porta.

— O que está esperando, irmã? — disse Christl de onde estava. — Venha me pegar.

 

Malone voltou aos corredores no fundo do hall e ouviu Christl chamar Dorothea. Virou para a esquerda, que parecia ser a direção de onde tinham vindo as palavras, e seguiu por outro longo corredor que terminava numa sala 12 metros adiante. Ele avançou, atento para por­tas abertas à esquerda e à direita, dando uma olhada rápida em cada uma enquanto passava. Mais espaços para armazenagem e trabalho. Nada de interesse em nenhuma das saletas sombrias.

Na penúltima sala, ele parou.

Havia alguém no chão. Um homem. Malone entrou.

O rosto era de um caucasiano de meia-idade, de cabelo curto, castanho-avermelhado. Estava de bruços, os braços ao lado do corpo, as per­nas esticadas, como uma rocha petrificada em forma humana, deitada sobre um cobertor estendido. Usava o macacão laranja oficial da Marinha com o nome johnson bordado no bolso esquerdo. Sua mente fez a cone­xão. Segundo-sargento Jeff Johnson, eletricista do navio. NR-1A.

O coração de Malone deu um salto repentino.

O homem parecia simplesmente ter deitado e permitido que o frio tomasse conta dele. Malone havia aprendido na Marinha que ninguém morria congelado. Em vez disso, à medida que o ar frio envolvia a pele exposta, os vasos mais superficiais se comprimiam, reduzindo a perda de calor, forçando o sangue a fluir para os órgãos vitais. Mãos frias, co­ração quente era mais do que um clichê. Ele se lembrou dos sinais de alarme. Primeiro, formigamento, ardência, dor fraca, depois um entorpecimento e, finalmente, uma palidez repentina. A morte vinha quando a temperatura central do corpo caía e os órgãos vitais para­vam de funcionar.

Aí você congelava.

Ali, num mundo sem umidade, o corpo deveria ter sido perfeita­mente preservado, mas Johnson não tinha tido tanta sorte. Fragmen­tos pretos de pele morta pendiam das bochechas e do queixo. Crostas amarelas e manchadas endureciam-lhe o rosto, algumas solidificadas, formando uma máscara grotesca. As pálpebras se haviam congelado fechadas, o gelo grudado nos cílios, e as últimas respirações havia sido condensadas na forma de dois pingentes de gelo suspensos do nariz à boca, como as presas de uma morsa.

Sua raiva contra a Marinha dos Estados Unidos cresceu dentro de Malone. Os filhos da puta imprestáveis haviam deixado aqueles ho­mens morrerem.

Sozinhos. Indefesos. Esquecidos.

Ele ouviu passos e voltou para o corredor, olhando para a direita exatamente quando Dorothea apareceu na última sala, depois desapa­receu ao passar por outra porta.

Deixou que ela fosse em frente. Depois a seguiu.

 

Smith olhava para a mulher. Ela estava deitada na cama, imóvel. Ele havia esperado que ela desmaiasse, com os efeitos do álcool funcionando como um sedativo perfeito. Ela havia bebido muito, mais do que o normal, celebrando o que pensava vir a ser o casamento com um capitão de mar e guerra em ascen­são na Marinha dos Estados Unidos. Mas ela havia escolhido o namorado er­rado. O capitão de mar e guerra Langford Ramsey não tinha nenhum desejo de se casar com ela. Em vez disso, queria que ela morresse e pagara generosa­mente para que isso acontecesse.

A mulher era adorável. Cabelos longos, sedosos. Pele morena, macia. Belos traços. Smith puxou o cobertor e examinou o corpo nu de Millicent. Corpo magro e escultural, sem nenhum sinal da gravidez de que ele havia sido informado. Ramsey lhe fornecera a ficha médica da mulher, feita pela Marinha, que indicava uma arritmia cardíaca que exigira dois tratamentos nos últimos seis anos. Hereditária, muito provavelmente. Pressão baixa também era uma preocupação.

Ramsey prometera a Smith mais trabalho caso se saísse bem neste. Gosta­va do fato de estarem na Bélgica, visto que achava os europeus muito menos desconfiados do que os norte-americanos. Mas isso não deveria importar. A causa da morte da mulher seria insondável.

Smith pegou a seringa e decidiu que a axila seria o melhor ponto para a injeção. Deixaria um furo minúsculo, mas que, ele esperava, não seria nota­do — considerando que não fosse feita uma necropsia. Mesmo se a fizessem, não haveria nada no sangue ou no tecido a ser encontrado. Apenas um furi-nho embaixo do braço.

Smith segurou o cotovelo dela suavemente e inseriu a agulha.

Smith lembrava-se exatamente do que acontecera naquela noite em Bruxelas, mas teve a sensatez de não compartilhar nenhum detalhe com o homem que estava a 2 metros dele.

Estou esperando — disse Davis.

Ela morreu.

Você a matou.

Smith estava curioso.

Isso tudo é por causa dela?

É por causa de você.

Ele não gostou do tom amargo na voz de Davis, por isso declarou mais uma vez:

—            Vou embora.

 

Stephanie assistiu a Davis desafiar o sujeito armado. Smith poderia não querer matá-los, mas certamente o faria, se necessário.

—            Ela era uma boa pessoa — disse Davis. — Não precisava morrer.

—            Você deveria ter tido esta conversa com Ramsey. Foi ele quem quis que ela morresse.

Era ele quem a espancava o tempo todo.

Quem sabe ela gostava?

Davis avançou, mas Smith o conteve com o fuzil. Stephanie sa­bia que com um simples movimento no gatilho não sobraria muito de Davis.

—            Você é um sujeito irritado — disse Smith.

Os olhos de Davis estavam cheios de ódio. Ele parecia só estar ou­vindo e vendo Charlie Smith.

Mas ela notou um movimento atrás de Smith, do outro lado da ja­nela sem esquadria, para além da varanda coberta da entrada, onde a luz forte do sol era amenizada pelo frio do inverno.

Uma sombra. Aproximando-se. Então, um rosto surgiu dentro da casa. Coronel William Gross.

Ela notou que Diane também o viu e se perguntou por que Gross simplesmente não atirou em Smith. Com certeza estava armado, e McCoy parecia saber que o coronel estaria lá fora — duas armas vo­ando pela janela certamente haviam passado a mensagem de que pre­cisavam de ajuda.

Então, Stephanie se deu conta. O presidente queria aquele homem vivo.

Não queria necessariamente que a situação atraísse muita aten­ção — daí não haver uma tropa do FBI e do Serviço Secreto ali —, mas queria Charlie Smith inteiro.

Diane fez um leve aceno de cabeça. Smith percebeu o gesto. E vi rou a cabeça.

 

Dorothea saiu do prédio e desceu uma escada estreita até a rua. Estava ao lado da casa de banhos, do outro lado da praça que se estendia à frente, perto do fim da caverna e de um dos muros de rocha polida de centenas de metros de altura. Ela virou para a direita.

Christl estava 30 metros adiante, correndo por uma galeria que al­ternava escuridão e luz, fazendo-a aparecer e desaparecer.

Dorothea a perseguiu. Era como caçar um cervo na floresta. Dê espaço a ele. Deixe-o pensar que está seguro. Então ataque quando ele menos esperar.

Ela passou pela galeria iluminada e entrou em outra praça, seme­lhante em forma e tamanho à outra que vira antes da casa de banhos.

Vazia a não ser por um banco de pedra sobre o qual havia um vulto sentado. Usava um traje branco para clima frio semelhante ao de Do­rothea, com a diferença de que o casaco dele estava com o zíper aberto, os braços estavam expostos, e a parte de cima, enrolada até abaixo da cintura, expondo o peito vestido apenas com um suéter de lã. Os olhos eram cavidades escuras num rosto liso, e as pálpebras estavam fecha­das. O pescoço estava inclinado para um lado, o cabelo escuro roçando a parte de cima das orelhas branco-acinzentadas. A barba cinza-ferro tinha manchas de umidade congelada, e um sorriso feliz dançava nos lábios fechados. As mãos estavam cruzadas serenamente diante dele. O pai de Dorothea.

Os nervos dela caíram em torpor. O coração acelerou. Ela não que­ria olhar, mas não conseguia virar o rosto. Cadáveres deviam ser se­pultados, não ficar sentados em bancos.

—            Sim, é ele disse Christl.

Sua atenção voltou-se para o perigo à sua volta, mas Dorothea não viu a irmã, só a ouviu.

Eu o encontrei antes. Ele estava esperando por nós.

Mostre-se — disse ela.

Uma risada permeou o silêncio.

—            Olhe para ele, Dorothea. Ele abriu o zíper do casaco e se deixou morrer. Consegue imaginar?

Não, ela não conseguia.

—            Foi preciso coragem disse a voz sem corpo. Segundo nos­sa mãe, ele não tinha coragem. Segundo você, era um tolo. Você teria sido capaz de fazer isso, Dorothea?

Ela avistou outro portão alto, emoldurado por colunas quadradas, com as portas de bronze abertas, sem as barras de metal. Do outro lado, degraus levavam para baixo, e Dorothea sentiu uma brisa fria.

Ela voltou a olhar para o homem morto.

—            Nosso pai.

Ela se virou. Christl estava a cerca de 7 metros dela, com uma arma apontada. Dorothea firmou os braços e começou a erguer a pró­pria arma.

—            Não, Dorothea disse Christl. Abaixe as mãos.

Ela não se moveu.

—            Nós o encontramos disse Christl. Concluímos a busca de nossa mãe.

—            Isto não resolve nada entre nós duas.

—            Concordo totalmente. Eu estava certa disse Christl. Sobre todas as coisas. E você estava errada.

—            Por que você matou Henn e Werner?

—            Nossa mãe enviou Henn para me deter. O sempre leal Ulrich. E Werner? Você deveria ficar contente por ele estar morto.

Pretende matar Malone também?

Tenho de ser a única a sair daqui. A sobrevivente solitária.

Você é louca.

—            Olhe para ele, Dorothea. Nosso querido pai. Da última vez que o vimos, tínhamos 10 anos.

Ela não queria olhar. Tinha visto o suficiente. E queria se lembrar dele como o conhecera.

Você duvidou dele disse Christl.

Você também.

Nunca.

Você é uma assassina.

Christl riu.

Até parece que me importo com o que você pensa de mim. Não havia como erguer sua arma e atirar antes de Christl apertar o gatilho. Como já estava morta mesmo, decidiu agir primeiro.

Ela começou a erguer o braço. Christl apertou o gatilho. Doro­thea preparou-se para ser atingida pelo tiro. Mas nada aconteceu. Só um clique.

Christl pareceu chocada. Acionou o gatilho outra vez, sem sucesso.

—            Sem balas — disse Malone, entrando na praça. — Não sou um idiota completo.

Chega.

Dorothea apontou e atirou.

O primeiro disparo atingiu o peito de Christl, perfurando o espes­so traje antártico. A segunda bala, também no peito, desafiou o equilí­brio da irmã. O terceiro tiro, no crânio, causou uma explosão vermelha na testa, mas o frio intenso coagulou o sangue imediatamente.

Mais dois tiros, e Christl Falk desabou no pavimento.

Sem se mover.

Malone aproximou-se.

—            Tinha de ser feito — murmurou Dorothea. — Ela não prestava.

Ela virou a cabeça para o pai. Sentiu como se estivesse saindo do efeito de um anestésico, alguns pensamentos clareando e outros per­manecendo nebulosos e distantes.

—            Eles conseguiram mesmo chegar aqui. Fico feliz que ele tenha encontrado o que estava buscando.

Dorothea encarou Malone e viu que uma redenção assustadora invadia os pensamentos dele também. O portal de saída atraiu a atenção dos dois. Ela não precisava dizer nada. Tinha encontrado o pai. Ele, não.

Ainda não.

 

Stephanie questionou a prudência do alerta de Diane. Smith, inquieto, havia recuado e se virara, tentando manter a atenção neles, enquanto olhava rapidamente para a janela.

Outras sombras moveram-se do lado de fora.

Smith disparou uma rajada curta que destruiu as paredes frágeis, estilhaçando a madeira com feridas irregulares.

Diane avançou na direção dele. Stephanie temeu que ele atirasse nela, mas, em vez disso, Smith girou o fuzil e bateu a culatra com força na barriga dela. Diane se curvou para a frente, tentando respirar, e ele meteu o joelho no queixo dela, arremessando-a ao chão.

Logo em seguida, antes que Stephanie ou Davis pudessem reagir, Smith apontou a arma novamente e alternou a atenção entre eles e a janela, provavelmente tentando decidir qual era a maior ameaça.

Nenhum movimento do lado de fora.

—            Como eu disse, não tinha interesse em matar vocês três disse Smith. Mas acho que isso mudou.

Diane estava deitada no chão, gemendo em posição fetal, seguran­do a barriga.

Posso ver como ela está? perguntou Stephanie.

Ela já é bem grandinha.

Vou ver como ela está.

E sem esperar a permissão, ela se ajoelhou ao lado de Diane.

Você não vai sair daqui disse Davis a Smith.

Palavras corajosas.

Mas Charlie Smith parecia incerto, como se estivesse preso numa jaula, olhando para fora pela primeira vez.

Algo bateu na parede externa, perto da janela. Smith reagiu, viran­do a HK53. Stephanie tentou se levantar, mas ele bateu em cheio no pescoço dela com a coronha de metal.

Ela arfou e foi ao chão. Levou a mão à garganta; ela nunca havia sentido dor como aquela antes. Esforçou-se para respirar, lutando para não engasgar. Rolou para um lado e viu Edwin Davis se lançar contra Charlie Smith.

Stephanie fez o possível para se levantar, tentando respirar e domi­nar a dor latejante na garganta. Smith ainda segurava firme o fuzil de ataque, mas a arma se tornou inútil quando ele e Davis rolaram por entre os móveis surrados, indo parar na parede mais distante. Smith usou as pernas e tentou se libertar, mantendo as mãos na arma.

Onde estava Gross?

Smith perdeu o fuzil, mas o braço direito envolveu Davis, e uma nova arma surgiu uma pequena pistola automática —, pressionada contra o pescoço de Davis.

—            Chega gritou Smith.

Davis parou de se debater. Os dois ficaram de pé, e Smith soltou-o, empurrando Davis para o chão, perto de Diane.

—            Vocês são todos loucos disse Smith. Loucos de pedra.

Stephanie levantou-se devagar, combatendo a dormência no cére­bro, enquanto Smith recuperava o fuzil de assalto. Aquilo havia ficado fora de controle. A única coisa sobre a qual ela e Davis haviam concor­dado no caminho até lá era não agitar Smith.

No entanto, fora exatamente isso o que Edwin fizera. Smith recuou para a janela e olhou rapidamente para fora.

Quem é ele?

Posso olhar? conseguiu dizer Stephanie. Ele fez que sim com a cabeça.

Ela se aproximou devagar e avistou Gross caído na varanda, a per­na direita sangrando de uma ferida de tiro. Parecia consciente, mas com uma dor extrema.

—            Ele trabalha para Diane ela fez com os lábios.

Smith dirigiu o olhar para além da varanda, para o gramado mar­rom e a mata densa.

Que é uma vadia mentirosa. Stephanie retomou as forças.

Mas ela lhe pagou 10 milhões de dólares.

Ficou claro que Smith não gostou do tom leviano.

—            Escolhas difíceis, Charlie? Sempre foi você quem decidiu quan­do matar. Sua escolha. Mas não desta vez.

—            Não tenha tanta certeza. Volte para lá.

Stephanie fez o que ele mandou, mas não conseguiu resistir.

—            E quem tirou Ramsey?

—            Você tem de calar a boca disse Smith, ainda olhando de re­lance pela janela.

—            Não vou deixá-lo ir embora murmurou Davis.

Diane virou-se, ficando deitada de costas, e Stephanie viu o olhar de dor no rosto da colega.

—            Bolso... do casaco disse Diane com os lábios, sem emitir som.

 

Malone desceu os degraus do outro lado do portal, sentindo-se como se estivesse caminhando para a própria execução. Calafrios de medo pouco comuns para ele desciam por sua coluna.

Abaixo, estendia-se uma caverna enorme, a maior parte das pare­des e do teto feita de gelo, lançando a mesma luz azulada sobre a vela laranja de um submarino. O casco era curto, arredondado, com uma superestrutura plana no alto e totalmente preso no gelo. O piso ladri­lhado dava a volta da escada até o outro lado da caverna cerca de 1,50 metro acima do gelo.

Uma espécie de cais, concluiu Malone. Talvez aquele porto tivesse tido uma abertura para o mar um dia.

Cavernas de gelo existiam por toda a Antártida, e aquela se agi­gantava por espaço suficiente para acomodar vários submarinos.

Movidos por um impulso comum, ele e Dorothea seguiram. A mu­lher segurava a arma, e ele também, embora a única ameaça para cada um agora fosse o outro.

A parte de rocha da parede da caverna era polida e adornada de forma semelhante ao interior das montanhas, com símbolos e inscri­ções. Bancos de pedra acompanhavam a base da parede. Em um deles, havia um vulto sentado. Malone fechou os olhos e esperou que fosse apenas uma visão. Mas quando abriu os olhos, a figura espectral ainda estava lá.

Estava sentado com as costas retas, como os outros. Usava uma camisa caqui da Marinha e calça para dentro das botas. O boné laranja estava no banco, ao lado dele.

Malone aproximou-se aos poucos. Estava atordoado. Sua visão fi­cou turva. O rosto era o mesmo da foto em Copenhague, ao lado da caixa de vidro com a bandeira que a Marinha havia entregado à sua mãe na cerimônia fúnebre, a caixa que ela se negara a aceitar. Nariz longo e reto. Maxilar saliente. Sardas. Cabelo à escovinha loiro-grisalho. Olhos abertos, olhando fixamente, como se estivesse em profunda comunhão.

O choque paralisou o corpo de Malone. Sua boca ressecou.

Seu pai? perguntou Dorothea.

Ele fez que sim e foi penetrado pela autocomiseração uma fle­cha afiada que desceu por sua garganta e entrou em sua vísceras, como se ele tivesse sido espetado.

Seus nervos estavam no limite.

—            Simplesmente morreram — disse ela. — Sem casacos. Sem pro­teção. Como se tivessem sentado para receber a morte.

O que, Malone sabia, fora exatamente o que haviam feito. De nada adiantaria prolongar o sofrimento. Notou papéis no colo do pai, a es­crita a lápis tão viva e clara quanto devia ter sido 38 anos antes. A mão direita repousava sobre as folhas, como se para certificar-se de que não se perderiam. Malone estendeu a mão devagar e liberou-as, sentindo-se como se estivesse violando um local sagrado.

Reconheceu a letra carregada do pai. Seu peito inchou-se. O mundo parecia ser, ao mesmo tempo, sonho e realidade. Lutou contra a represa de dor não bloqueada. Ele nunca havia chorado. Nem quando se casara, nem quando Gary nascera, nem quando a família se desintegrara, nem quando ficara sabendo que Gary não era seu filho biológico. Para estancar o impulso crescente, Malone lembrou a si mesmo que as lágrimas congelariam antes de saírem dos olhos.

Ele forçou a mente a se concentrar nas páginas que segurava.

—            Poderia ler em voz alta? — perguntou Dorothea. — Podem ter relação com meu pai também.

 

Smith precisava matar todos os três e sair dau. Estava trabalhando sem nenhuma informação, depois de ter confiado numa mulher na qual ele sabia que não deveria ter confiado. E quem tinha removido o corpo de Ramsey? Ele o deixara no quarto, com a intenção de enterrá-lo em al­gum lugar da propriedade.

Mas alguém o levara para baixo. Smith olhou pela janela e pergun­tou-se se havia mais alguém lá fora. Algo lhe dizia que eles não esta­vam sozinhos.

Só um pressentimento. E ele não tinha escolha senão acatá-lo.

Segurou o fuzil com firmeza e preparou-se para virar e atirar. Eli­minaria os três que estavam ali dentro com uma rajada breve, depois acabaria de matar o sujeito que estava do lado de fora.

Deixaria os malditos corpos. Quem se importava? Ele havia com­prado a propriedade usando nome e documentos falsos, pagando à vista; portanto, não haveria ninguém a ser encontrado. Que o governo se preocupasse com a faxina.

 

Stephanie viu a mão direita de Davis entrar lentamente no bolso do casaco de Diane. Charlie Smith ainda estava posicionado à janela, segu­rando a HK53. Ela não tinha dúvida de que ele pretendia matá-los e estava igualmente preocupada com o fato de que não havia ninguém para ajudá-los. O apoio deles estava sangrando na varanda.

Davis parou. Smith virou a cabeça de repente na direção deles, sa­tisfeito por tudo estar bem, depois voltou a olhar pela janela.

Davis retirou a mão do bolso, segurando uma pistola automáti­ca 9mm. Stephanie pediu aos céus para que ele soubesse usá-la. Davis abaixou a mão com a arma ao lado de Diane e usou o corpo dela para bloquear a visão de Smith. Stephanie podia ver que Edwin sabia que eles tinham poucas opções. Ele precisava atirar em Charlie Smith. Mas pensar no ato e realizá-lo eram duas coisas completamente diferentes. Alguns meses antes, Stephanie matara pela primeira vez. Por sorte, não tinha havido sequer um nanosse-gundo para refletir sobre o ato ela simplesmente tinha sido for­çada a atirar num instante. Davis não teria o mesmo luxo. Ele estava pensando e com certeza queria atirar, mas, ao mesmo tempo, não queria. Matar era coisa séria. Independentemente dos motivos ou das circunstâncias.

Mas um entusiasmo frio pareceu estabilizar os nervos de Davis. Os olhos dele observavam Charlie Smith, seu rosto relaxado e impassível.

O que estaria prestes a lhe dar coragem para matar um homem? A própria sobrevivência? Era possível. Millicent? Certamente.

Smith começou a se virar, os braços girando o cano do fuzil na direção deles. Davis ergueu o braço e atirou. A bala penetrou o peito magro de Smith, fazendo-o cambalear para trás, na direção da parede. Uma das mãos soltou o fuzil quando ele tentou se equilibrar com um braço estendido. Davis manteve a arma apontada, levantou-se e ati­rou mais quatro vezes, as balas rasgando um caminho pelo corpo de Charlie Smith. Davis continuou atirando cada disparo era como uma explosão nos ouvidos dela até o pente estar vazio.

O corpo de Smith contorceu-se, a coluna arqueada retorcendo-se involuntariamente. Finalmente, suas pernas dobraram, e ele tombou para a frente, batendo em cheio no piso, o corpo sem vida rolando até ficar de costas no chão, os olhos arregalados.

 

O incêndio elétrico debaixo d'água destruiu nossas baterias. O reator já havia pifado. Felizmente, o fogo queimou devagar e o radar foi capaz de localizar uma fenda no gelo, e conseguimos subir à superfície pouco antes que o ar se tornasse tóxico. Todos abandonaram o navio rapidamente, e ficamos maravilhados ao encontrarmos uma caverna com paredes lustrosas e cobertas de escritas, semelhantes às que tínhamos observado nos blocos de pedra no solo oceânico. Oberhauser localizou uma escada e portas de bronze travadas pelo nosso lado, que, quando abertas, davam para uma cidade impressionante. Ele explorou durante várias horas, tentando localizar uma saída, enquanto determinávamos a extensão do estrago. Tentamos repetidas vezes reiniciar o reator, violando todos os protocolos de segurança, mas nada funcionou. Dispúnhamos de apenas três conjuntos de trajes para o frio e éramos 11. O frio era entorpecente, impiedoso, insuportável. Queimamos o pouco que tínhamos de papéis e lixo a bordo, mas não era muito e proporcionou apenas algumas horas de alívio. Nada dentro da cidade era inflamável. Tudo era de pedra e metal, e as casas e prédios estavam vazios. Os habitantes pareciam ter levado todos os seus pertences consigo. Três outras saídas foram localizadas, mas estavam trancadas por fora. Não tínhamos nenhum equipamento para arrombar as portas de bronze. Depois de apenas 12 horas, percebemos que a situação era irremediável. Não havia saída do casulo. Ativamos o transponder de emergência, mas duvidamos de que o sinal fosse longe, considerando a rocha, o gelo e os milhares de quilômetros até o navio mais próximo. Oberhauser parecia o mais frustrado. Ele encontrou aquilo que viemos buscar e, no entanto, não viveria para saber toda a sua dimensão. Todos nos demos conta de que íamos morrer. Ninguém viria procurar por nós, uma vez que concordamos com essa condição antes da partida. O submarino está morto, assim como nós. Cada homem decidiu morrer à sua própria maneira. Alguns saíram sozinhos; outros, juntos. Sentei aqui e fiquei vigiando meu navio. Escrevo estas palavras para que todos saibam que minha tripulação morreu com bravura. Todos os homens, inclusive Oberhauser, aceitaram seu destino com coragem. Eu gostaria de ter aprendido mais sobre o povo que construiu este lugar. Oberhauser nos disse que são nossos ancestrais, que nossa cultura originou-se deles. Ontem, eu teria dito que ele estava louco. Interessante como a vida dá as cartas. Recebi o comando do submarino mais sofisticado da Marinha. Minha carreira estava definida. Eu acabaria recebendo as platinas de capitão de mar e guerra. Agora, vou morrer sozinho no frio. Não há dor, apenas fraqueza. Mal consigo escrever. Servi meu país com o máximo da minha capacidade. Minha tripulação fez o mesmo. Senti orgiãho quando cada um deles apertou minha mão efoi embora. Agora, á medida que o mundo começa a desaparecer, eu me vejo pensando em meu filho. A única coisa que lamento é que ele nunca saberá como eu realmente me sentia em relação a ele. Dizer-lhe o que estava em meu coração sempre foi difícil. Embora eu tivesse me ausentado por longos períodos, nem um momento do dia se passava sem que ele estivesse no centro de meus pensamentos. Ele era tudo para mim. Tem apenas 10 anos e certamente não sabe nada do que a vida lhe reserva. Lamento não poder ser parte da formação de quem ele se tornará. Sua mãe é a mulher mais admirável que conheci e vai andar para que ele se torne um homem. Por favor, quem quer que encontre estas palavras, transmita-as para a minha família. Quero que saibam que morri pensando neles. Para minha esposa, saiba que a amo. Nunca foi difícil para mim lhe dizer estas palavras. Mas para meu filho, deixe-me dizer agora o que foi tão difícil para mim. Eu o amo, Cotton.

Forrest Malone, Marinha dos Estados Unidos

17 de novembro de 1971

 

A voz de Malone tremeu ao ler as quatro últimas palavras do pai. Sim, seu pai tinha tido dificuldade para dizê-las. Na verdade, ele não conseguia se lembrar de que algum dia tivessem sido pronunciadas. Mas ele soubera.

Ficou olhando para o cadáver, o rosto congelado no tempo. Trinta e oito anos se haviam passado. Durante esse tempo, Malone tornara-se um homem, entrara para a Marinha, tornara-se um oficial, depois agente do governo norte-americano. E por todo esse tempo o capitão de fragata Forrest Malone estivera sentado ali, num banco de pedra. Esperando.

Dorothea pareceu sentir sua dor e segurou seu braço suavemente. Ele olhou para o rosto dela e pôde ler seus pensamentos.

—            Parece que todos encontramos o que viemos procurar disse ela.

Ele viu nos olhos dela. Resolução. Paz.

—            Não restou nada para mim disse ela. Meu avô era um nazista. Meu pai, um sonhador que viveu em outro tempo e lugar. Veio aqui buscando a verdade e encarou a própria morte com cora­gem. Minha mãe passou as últimas quatro décadas tentando assumir o lugar dele, mas tudo o que conseguiu foi colocar Christl e a mim uma contra a outra. Até mesmo agora. Aqui. Ela tentou nos manter em desacordo e foi tão bem-sucedida que Christl foi morta por causa dela. Dorothea ficou em silêncio, mas seu olhar transmitia submissão. Quando Georg morreu, uma boa parte de mim morreu também. Achei que garantir a fortuna faria com que eu encontrasse a felicidade, mas isso é impossível.

Você é a última Oberhauser.

Somos um bando de seres patéticos.

—            Você poderia mudar as coisas. Dorothea balançou a cabeça.

—            Para isso, eu teria de colocar uma bala na cabeça da minha mãe.

Ela se virou e caminhou na direção dos degraus. Malone a viu afas­tar-se, sentindo uma mistura estranha de respeito e desprezo, sabendo para onde ela estava indo.

—            Isso tudo terá repercussão disse ele. Christl estava certa. A história vai mudar.

Ela continuou andando.

—            Isso não me diz respeito. Todas as coisas têm de chegar ao fim. O comentário dela estava marcado de angústia, a voz, trêmula.

Mas a mulher tinha razão. Chegava uma hora em que as coisas acaba­vam. A carreira militar dele. O serviço no governo. O casamento. A vida na Geórgia. A vida do pai.

Agora, Dorothea Lindauer estava fazendo a própria escolha final.

—            Boa sorte para você gritou ele.

Ela parou, virou-se e deu um sorriso fraco.

—            Bitte, Herr Malone. Soltou um longo suspiro e pareceu jun­tar forças. Preciso fazer isso sozinha. Seus olhos transmitiam súplica.

Malone assentiu.

—            Vou ficar aqui.

Ele a viu subir a escada e atravessar o portal, entrando na cidade. Ficou, então, olhando para o pai, cujos olhos mortos não refletiam luz alguma. Tinha tanto a dizer... Queria contar que tinha sido um bom fi­lho, um bom oficial da Marinha, um bom agente e, acreditava, um bom homem. Seis vezes havia recebido condecorações. Tinha sido uma nega­ção como marido, mas estava se esforçando para ser um pai melhor. Queria fazer parte da vida de Gary, sempre. Durante toda a vida adulta, Malone se perguntara o que teria acontecido com o próprio pai, imagi­nando o pior. Infelizmente, a realidade era pior do que qualquer coisa que ele houvesse concebido. Sua mãe havia sido igualmente atormenta­da. Nunca mais se casara. Em vez disso, sofrera por décadas, apegando-se ao luto, sempre se referindo a si mesma como Sra. Forrest Malone.

Por que o passado parecia não acabar nunca?

Um tiro soou, como uma bexiga estourando sob um cobertor.

Malone imaginou a cena acima. Dorothea Lindauer acabara com a própria vida. Normalmente, o suicídio era considerado o efeito de uma mente doentia ou de um coração abandonado. Ali, era a única maneira de deter uma loucura. Será que Isabel Oberhauser sequer compreendia o que havia forjado? Seu marido, seu neto e suas filhas se foram.

Uma solidão penetrou-lhe os ossos à medida que Malone absorvia o silêncio profundo do túmulo. O Livro dos Provérbios lhe veio à mente.

Uma verdade simples de muito tempo antes.

Aquele que perturba a própria casa herdará o vento.

 

                           Washington, D.C.

                           Sábado, 22 de dezembro

                           16h15

 

Stephanie entrou no Salão Oval. Danny Daniels se levantou e a cumprimentou. Edwin Davis e Diane McCoy já estavam sentados.

—            Feliz Natal disse o presidente.

Stephanie respondeu à saudação. Daniels a havia convocado de Atlanta na tarde anterior, fornecendo o mesmo jato do Serviço Secreto que ela e Davis tinham usado havia mais de uma semana para viaja­rem de Asheville a Fort Lee.

Davis parecia bem. Seu rosto estava recuperado, sem os hemato­mas. Usava terno e gravata e estava sentado com a postura rígida numa cadeira estofada, a máscara de pedra de volta ao lugar. Stephanie con­seguira ter um rápido vislumbre do coração dele e se perguntou se esse privilégio a condenaria a jamais poder conhecê-lo um pouco mais. Ele não parecia ser um homem que gostasse de expor a alma.

Daniels ofereceu-lhe um assento ao lado de Diane.

—            Achei que seria melhor termos todos uma conversa disse o presidente, sentando-se também.As últimas semanas foram difíceis.

            Como está o coronel Gross? — perguntou ela.

Está bem. A perna está se recuperando, mas aquela bala fez al­gum estrago. Ele está um pouco irritado com Diane por ter denuncia­do sua presença, mas grato por Edwin saber atirar.

Eu deveria visitá-lo — disse Diane. — Não tive a intenção de lhe causar nenhum ferimento.

Eu esperaria uma semana ou mais. Estou falando sério quanto à irritação.

O olhar melancólico de Daniels era a personificação da angústia.

Edwin, sei que odeia minhas anedotas, mas ouça mesmo as­sim. Duas luzes na neblina. Numa delas, está um almirante no passa­diço do navio, que transmite uma mensagem por rádio à outra luz, dizendo que está no comando de um encouraçado, e que a luz deve­ria desviar para a direita. A outra luz responde ao almirante que ele deveria desviar para a direita. O almirante, que era um tanto teimoso, como eu, retorna e repete a ordem para o outro navio ir para a direita. Finalmente, a outra luz diz: "Almirante, sou o marinheiro guarnecen­do o farol, e é melhor você ir logo para a direita." Eu me coloquei numa situação vulnerável por você, Edwin. Muito vulnerável. Mas você era o cara do farol, o sensato, e eu escutei. Diane aqui, assim que ficou sabendo de Millicent, embarcou e correu um risco e tanto tam­bém. Stephanie você arrastou consigo, mas ela se manteve firme até o final. E Gross? Levou um tiro.

E sou grato por tudo o que foi feito — disse Davis. — Imen­samente.

Será que Davis nutria algum remorso por ter matado Charlie Smith?, perguntava-se Stephanie. Provavelmente não, mas isso não significa­va que ele esqueceria. Ela olhou para Diane.

—            Você soube quando o presidente ligou para o meu escritório pela primeira vez, procurando por Edwin?

Diane balançou a cabeça.

Depois de desligar, ele me contou. Estava preocupado que as coisas pudessem sair do controle. Achou que talvez fosse necessário um plano de apoio. Então, pediu que eu entrasse em contato com Ramsey. — McCoy hesitou. — E estava certo. Embora vocês tenham feito um ótimo trabalho para mandar Smith na nossa direção.

Mas ainda temos de lidar com alguns efeitos colaterais — disse Daniels.

Stephanie sabia o que ele queria dizer. A morte de Ramsey havia sido explicada como um assassinato por um agente secreto. A morte de Smith simplesmente fora ignorada, uma vez que ninguém sabia que ele sequer existia. Os ferimentos de Gross foram atribuídos a um acidente de caça. O principal assessor de Ramsey, um tal capitão de mar e guerra Hovey, fora interrogado e, sob a ameaça de ir para a cor­te marcial, revelara tudo. Em questão de dias, o Pentágono limpou a casa, designando uma nova equipe administrativa para a inteligência naval, acabando com o reinado de Langford Ramsey e qualquer um ligado a ele.

—            Aatos Kane foi falar comigo — disse Daniels. — Queria que eu soubesse que Ramsey tentara intimidá-lo. É claro que ele foi lá cheio de reclamações e com pouca explicação.

Stephanie viu o presidente piscar o olho.

—            Mostrei a ele um arquivo que encontramos na casa de Ramsey dentro de um cofre. Coisa fascinante. Não é necessário entrar em deta­lhes, digamos apenas que o senador não concorrerá à presidência; e que sua aposentadoria do Congresso entra em vigor a partir de 31 de de­zembro, a fim de que ele possa passar mais tempo com a família. — Um ar de autoridade inconfundível passou pela expressão de Daniels. — O país será poupado da liderança dele. — Daniels balançou a cabeça. — Vocês três fizeram um ótimo trabalho. Assim como Malone.

Eles haviam enterrado Forrest Malone dois dias antes num cemité­rio obscuro no sul da Geórgia, perto de onde morava a viúva. O filho, falando pelo pai, recusara o sepultamento no Cemitério Nacional de Arlington. E Stephanie entendera a relutância de Malone.

Os outros nove tripulantes também tinham sido trazidos de volta, os corpos entregues às famílias, a verdadeira história do NR-1A final­mente contada à imprensa. Dietz Oberhauser fora enviado à Alema­nha, onde a esposa reivindicou os corpos dele e das filhas.

Como está Cotton? perguntou o presidente.

Bravo.

Se é que isso tem alguma importância disse Daniels —, o al­mirante Dyals está recebendo muita pressão da Marinha e da impren­sa. A história do NR-1A alvoroçou a opinião pública.

Tenho certeza de que Cotton gostaria de torcer o pescoço de Dyals disse Stephanie.

E aquele programa de tradução está rendendo uma abundância de informações sobre aquela cidade e as pessoas que viveram lá. Há referências a contatos por todo o globo. De fato, eles interagiram e compartilharam, mas, graças a Deus, não eram arianos. Nenhuma super-raça. Nem mesmo belicosos. Os pesquisadores se depararam com um texto ontem que pode explicar o que aconteceu a eles. Viveram na Antártida dezenas de milhares de anos atrás, quando o continente não era coberto de gelo. Mas à medida que a temperatura foi caindo, eles se retiraram para as montanhas. Por fim, seus respiradouros geotérmi­cos esfriaram. Então, eles partiram. Difícil saber quando. Parece que usavam uma medida de tempo e um calendário diferentes. Assim como ocorre entre nós, nem todos tinham acesso a todo o seu conheci­mento, de modo que não puderam reproduzir sua cultura em outro local. Apenas fragmentos aqui e ali, à medida que se misturavam à nossa civilização. Os mais bem-informados partiram por último e es­creveram textos, deixando-os como um registro. Ao longo do tempo, esses imigrantes foram absorvidos por outras culturas, sua história foi perdida, e nada restou deles, a não ser a lenda.

—            Parece triste — disse Stephanie.

—            Concordo. Mas as ramificações disso podem ser enormes. A Fundação Nacional de Ciência está enviando uma equipe para a An­tártida para trabalhar no local. A Noruega concordou em nos dar o controle da área. O pai de Malone e o restante da tripulação do NR-1A não morreram em vão. Podemos aprender muito sobre nós mesmos graças a eles.

—            Não sei se isso deixaria Cotton e as outras famílias felizes.

—            Se queres prever o futuro, estuda o passadodisse Davis. Con­fúcio. Bom conselho. — Ele parou e acrescentou: — Para nós e para Cotton.

É, acabou — disse Daniels. — Espero que tenha acabado. Davis assentiu.

Para mim, acabou.

Diane concordou.

—            De nada serviria reavivar essa história em público. Ramsey se foi. Smith se foi. Kane se foi. Acabou.

Daniels levantou-se, foi até a escrivaninha e pegou um diário.

Isto veio da casa de Ramsey também. É o diário de bordo do NR-1A. Aquele de que Herbert Rowland lhes falou. O imbecil guar­dou-o durante todos esses anos. — O presidente entregou-o a Stepha­nie. — Achei que Cotton talvez gostasse disso.

Entregarei a ele — disse ela —, quando ele se acalmar.

Verifique a última entrada.

Ela abriu na última página e leu o que Forrest Malone havia escri­to. Gelo no dedo dele, gelo na cabeça, gelo em seu olhar vidrado.

—            É de um poema — explicou o presidente. — Robert Service. Início do século XX. Ele escrevia sobre o Yukon. O pai de Malone ob­viamente era seu fã.

Malone lhe dissera como tinha encontrado o corpo congelado, gelo em seu olhar vidrado.

—            Malone é profissional — disse Daniels. — Conhece as regras, e o pai as conhecia também. É difícil julgar gente de quarenta anos atrás pelos padrões de hoje. Ele precisa superar isso.

— Falar é fácil — disse Stephanie.

A família de Millicent precisa ser informada — disse Davis. — Eles merecem a verdade.

Concordo — disse Daniels. — Suponho que você queira fa­zer isso.

Davis assentiu, e Daniels sorriu.

—            E houve um ponto positivo no meio de tudo isso. — O presi­dente apontou para Stephanie. — Você não foi demitida.

Ela abriu um sorriso.

Pelo que sou eternamente grata.

Eu lhe devo um pedido de desculpas — disse Davis a Diane. — Eu a interpretei mal. Não tenho sido um bom colega. Achei que você fosse uma idiota.

É sempre tão sincero? — perguntou Diane.

Você não tinha que ter feito o que fez. Pôs o seu na reta por algo que, na verdade, não a envolvia.

Eu não diria isso. Ramsey era uma ameaça para a segurança nacional. Isso está na descrição do nosso emprego. E ele matou Milli­cent Senn.

Obrigado.

Diane indicou gratidão com um gesto de cabeça.

—            Isso, sim, é o que eu gosto de ver — disse Daniels. — Todo mundo se dando bem. Estão vendo, muita coisa boa pode resultar de uma luta com cascavéis.

A tensão diminuiu na sala. Daniels remexeu-se na cadeira.

—            Com isso fora do caminho, infelizmente, temos outro proble­ma, que também envolve Cotton Malone quer ele goste ou não.

Malone apagou as luzes do térreo e subiu ao seu apartamento no quarto andar. O movimento na livraria fora grande. Três dias antes do Natal, e parecia que os livros estavam nas listas de presente de Copenhague. Ele contratara três pessoas para cuidarem da loja na sua ausência, pelo que era grato. Tanto que fizera questão de lhes dar generosos bônus de Natal.

Mas ainda estava em conflito quanto ao pai. Eles o enterraram onde estavam os jazigos da família da mãe. Stephanie comparecera. Pam, sua ex-mulher, estava lá. Gary ficara emocionado, vendo o avô oela primeira vez, dentro do caixão. Graças ao frio intenso e a um agente funerário habilidoso, Forrest Malone jazia como se tivesse mor­rido apenas alguns dias antes.

Malone mandara a Marinha para o inferno quando sugeriram uma cerimônia militar com honrarias. Tarde demais para isso. Não impor­tava que ninguém ali tivesse tomado parte na decisão inexplicável de não buscar o NR-1A. Ele estava farto de ordens, deveres e responsabi­lidades. O que havia acontecido com a decência, a honra e a virtude? Essas palavras pareciam sempre esquecidas quando realmente impor­tavam. Como quando 11 homens desapareceram na Antártida, e nin­guém deu a mínima.

Ele chegou ao último andar e acendeu algumas luzes. Estava can­sado. O peso das últimas semanas se fizera sentir, culminando com o momento em que ele vira a mãe em prantos enquanto o caixão descia. Todos permaneceram no cemitério e ficaram vendo os funcionários recolocarem a terra e erguerem a lápide.

— O que você fez foi maravilhoso dissera-lhe sua mãe.Você o trou­xe para casa. Ele teria ficado muito orgulhoso de você, Cotton. Muito orgulhoso.

E essas palavras o fizeram chorar.

Finalmente.

Quase ficou na Geórgia para o Natal, mas decidiu voltar para casa. Estranho como agora considerava a Dinamarca seu lar. Mas considera­va. E não tinha mais dúvida disso.

Foi para o quarto e deitou-se na cama. Quase 23 horas, e ele estava exausto. Tinha de acabar com aquela agitação. Deveria estar aposenta­do. Mas estava contente por ter pedido ajuda a Stephanie.

No dia seguinte, descansaria. Domingo era sempre um dia tran­quilo. As lojas estavam fechadas. Talvez ele pegasse o carro para visi­tar HenrikThorvaldsen no norte. Não via o amigo havia três semanas. Mas talvez, não. Thorvaldsen ia querer saber por onde Malone andara e o que havia acontecido, e ele não estava pronto para reviver aquilo.

Por ora, ele iria dormir.

 

Malone acordou e afastou o sonho da mente. O relógio da cabeceira marcava 2h34. As luzes ainda estavam acesas por todo o apartamento. Havia dormido por três horas.

Mas algo o despertara. Um som. Parte do sonho que estava tendo, mas não exatamente.

Ouviu mais uma vez. Três rangidos numa sequência rápida. O pré­dio era do século XVII e fora completamente reformado havia alguns meses, depois de ter sido incendiado. Depois disso, os novos degraus de madeira do segundo ao terceiro andar sempre se anunciavam de forma precisa, como teclas de um piano.

O que significava que havia alguém lá.

Ele pôs a mão debaixo da cama e encontrou a mochila que sempre deixava pronta um hábito dos tempos do Setor Magalhães. Lá den­tro, a mão direita pegou a Beretta automática, já carregada.

Malone saiu lentamente do quarto.

 

NOTA DO AUTOR

Este livro foi uma viagem pessoal, tanto para Malone quanto para mim. Ele encontrou o pai, eu me casei. Não necessariamente algo novo para mim, mas definitivamente uma aventura. Quanto às viagens, esta his­tória me levou à Alemanha (Aachen e Baviera), aos Pirineus franceses e a Asheville, Carolina do Norte (Biltmore Estate). Muitos lugares frios, com neve.

Agora, é hora de separar a especulação da realidade.

O submarino supersecreto NR-1 (prólogo) é real, assim como sua história e suas explorações. O NR-1 continua até hoje, depois de quase quarenta anos, a servir nossa nação. O NR-1 A é invenção minha. Há poucos e preciosos relatos escritos sobre o NR-1, mas aquele ao qual recorri foi Dark Waters, de Lee Vyborny e Don Davis, que é uma rara observação em primeira mão sobre como era estar a bordo. O relatório do tribunal de inquérito sobre o naufrágio do NR-1A (capítulo 5) é baseado em relatórios de investigação verdadeiros a respeito do nau­frágio do Thresher e do Scorpion.

O Zugspitze e Garmisch são descritos fielmente (capítulo 1), assim como o Posthotel. A época das festas de fim de ano na Baviera é mara­vilhosa, e os mercados natalinos detalhados nos capítulos 13, 33 e 37 são, sem dúvida, parte da atração. O mosteiro de Ettal (capítulo 7) é descrito de modo fiel, exceto pelas salas subterrâneas.

Carlos Magno é, claro, fundamental para a história. Seu contexto histórico, conforme apresentado, é fiel (capítulo 36), assim como sua assinatura (capítulo 10). Ele continua sendo uma das personalidades mais enigmáticas do mundo e ainda mantém o título de Pai da Europa. A autenticidade da história em que Otto III entra no túmulo de Carlos Magno em 1000 D.C. é discutível. A narrativa apresentada no capítulo 10 já foi repetida muitas vezes — embora, é claro, o estranho livro que Otto encontra seja adição minha. Há histórias igualmente fortes que dizem que Carlos Magno foi enterrado deitado, dentro de um sarcófa­go de mármore (capítulo 34). Ninguém sabe ao certo.

A vida de Carlos Magno, de Eginhardo, continua sendo considerada uma das grandes obras do período. Eginhardo era um homem culto, e seu envolvimento com Carlos Magno, conforme descrito, é fiel. Apenas sua ligação com os Sagrados é invenção minha. Os relatos de Eginhar­do citados nos capítulos 21 e 22 são baseados de forma aproximada em partes do Livro de Enoque — um texto antigo e enigmático.

As operações Salto em Altura e Moinho de Vento aconteceram con­forme descritas (capítulo 11). Ambas foram operações militares abran­gentes. Muito sobre elas permaneceu confidencial por décadas e ainda é envolto em mistério. O almirante Richard Byrd foi colíder da Salto em Altura. Minhas descrições dos recursos tecnológicos que Byrd le­vou ao sul consigo (capítulo 53) são fiéis, assim como a narrativa de sua ampla exploração do continente. Seu diário secreto (capítulo 77) é fictício, assim, como suas supostas descobertas de pedras esculpidas e tomos antigos. A expedição alemã de 1938 à Antártida (capítulo 19) aconteceu e é detalhada corretamente — incluindo o lançamento de pequenas suásticas por toda a superfície de gelo. Apenas as explora­ções de Hermann Oberhauser são criações minhas.

A estranha escrita e as páginas manuscritas (capítulos 12 e 81) são reproduzidas do manuscrito Voynich. Esse livro se encontra na biblio­teca Beinecke de Livros Raros e Manuscritos, na Universidade de Yale, e, em geral, é considerada a escrita mais misteriosa do planeta. Nin­guém jamais foi capaz de decifrar seu texto. Um bom compêndio so­bre tal excentricidade é The Voynich Manuscript, de Geny Kennedy e Rob Churchill. O símbolo visto pela primeira vez no capítulo 10 — uma mônada — foi tirado do livro deles, uma representação arquetípica encontrada originalmente num tratado do século XVI. O estranho tim­bre da família Oberhauser (capítulo 25) também é do livro de Kennedy e Churchill e é, na verdade, o escudo de armas da família Voynich, criado pelo próprio Voynich.

A verdadeira explicação do termo ariano (capítulo 12) demonstra como algo tão inócuo pode se tornar tão letal. A Ahnenerbe, é claro, existiu. Somente nos últimos anos os historiadores começaram a reve­lar seu caos pseudocientífico e suas terríveis atrocidades (capítulo 26). Uma das melhores fontes sobre o assunto é The Mas ter Plan, de Heather Pringle. As várias expedições internacionais da Ahnenerbe, detalhadas no capítulo 31, ocorreram e foram amplamente usadas para moldar sua fábula científica. O envolvimento de Hermann Oberhauser com a orga­nização é invenção minha, mas seus esforços e descréditos são basea­dos em experiências de participantes reais.

O conceito de uma primeira civilização (capítulo 22) não é meu. A idéia serviu de base para muitos livros, mas Civilização Um, de Christo­pher Knight e Alan Butler, é excelente. Todos os argumentos que Christl Falk e Douglas Scofield apresentam para a existência dessa primeira ci­vilização pertencem a Knight e Butler. A teoria deles não é tão absurda assim, mas a reação a ela é semelhante ao modo como a ciência predo­minante um dia viu a deriva dos continentes (capítulo 84). É claro que a pergunta mais óbvia permanece. Se tal cultura existiu, por que não há nenhum vestígio?

Mas talvez haja.

As histórias pormenorizadas por Douglas Scofield no capítulo 60 sobre pessoas "semelhantes a deuses" interagindo com culturas pelo mundo são verdadeiras, assim como os inexplicáveis artefatos encon­trados e a história sobre o que foi mostrado a Colombo. Ainda mais impressionantes são a imagem e a inscrição do templo de Hator, no Egito (capítulo 84), que mostram claramente algo extraordinário. Infelizmente, no entanto, a observação de Scofield de que noventa por cen­to do conhecimento do mundo antigo nunca será conhecido pode ser verdadeira. O que significa que talvez jamais tenhamos uma resposta definitiva para esta fascinante indagação.

Situar a primeira civilização na Antártida (capítulos 72,85 e 86) foi ideia minha, assim como o foram o conhecimento e a tecnologia limi­tados dessa civilização (capítulos 72 e 81). Não visitei a Antártida (está definitivamente no topo da minha lista de Coisas que Tenho de Ver), mas sua beleza e seu perigo são apresentados de modo fidedig­no com base em relatos em primeira mão. A base de Harvosen (capí­tulo 62) é fictícia, mas os trajes que Malone e companhia usam são reais (capítulo 76). A política do continente antártico (capítulo 76), com seus vários tratados internacionais e regras de cooperação singu­lares, ainda é complexa. A área que Malone explora (capítulo 84) é de fato controlada pela Noruega, e alguns textos mencionam que é de­signada como zona proibida por supostas razões ambientais. As se­quências subaquáticas com Ramsey são tiradas daqueles que mergulharam naquelas águas cristalinas. Os vales secos (capítulo 84) existem, embora geralmente estejam confinados à parte sul do conti­nente. A preservação e os efeitos destrutivos do frio absoluto no corpo humano são retratados de forma precisa (capítulos 90 e 91). Ice, de Mariana Gosnell, é um relato excelente desse fenômeno.

A catedral de Aachen (capítulos 34, 36, 38 e 42) vale a pena ser vi­sitada. O Livro do Apocalipse teve papel-chave no seu projeto, e a construção é uma das últimas do tempo de Carlos Magno que ainda estão de pé. É claro que minha interposição dos Sagrados em sua his­tória é simplesmente parte desta ficção.

A inscrição em latim dentro da capela (capítulo 38) é do tempo de Carlos Magno e é reproduzida de forma exata. Ao contar as palavras em grupos de 12, descobri que havia apenas três na 12a posição, visto que a última contagem parava na 11a. Então, surpreendentemente, as três palavras formavam uma frase com sentido — Claridade de Deus.

O trono de Carlos Magno tem, de fato, um tabuleiro de Moinho gravado em seu interior (capítulo 38). Como e por que está lá, nin­guém sabe. O jogo era comum nos tempos romanos e carolíngios e ainda é jogado hoje.

A busca de Carlos Magno, com todas as suas diversas pistas, in­cluindo o testamento de Eginhardo, é invenção minha. Ossau, na Fran­ça (capítulo 51), e a abadia (capítulo 54) são inventadas, mas Bertrand é baseado num abade real que viveu naquela região.

Fort Lee (capítulo 45) é real, embora o armazém e o compartimento refrigerado não sejam. Adquiri um iPhone recentemente, então Malo­ne tinha de ter um também. Todas as investigações peculiares condu­zidas pelos governo dos Estados Unidos durante a Guerra Fria sobre fenômenos paranormais e extraterrestres (capítulo 26) aconteceram. Simplesmente adicionei uma.

Biltmore Estate (capítulos 58,59 e 66) é um dos meus locais favori­tos, especialmente na época do Natal. A pousada, a mansão, a aldeia, o hotel e o terreno são retratados fielmente. É claro que o Congresso Mis­térios Antigos Revelados não existe, mas é baseado numa variedade de encontros reais.

O mapa de Piri Reis e outros portulanos (capítulo 41) são reais, e cada um deles levanta inúmeras questões complicadas. Maps of lhe Ancient Sea Kings, de Charles Hapgood, é considerado o trabalho mais conclusivo sobre o assunto. O debate sobre o meridiano de origem ocorreu conforme descrito (capítulo 41), e Greenwich foi escolhido de forma arbitrária. Adotar a pirâmide de Gizé como longitude zero (capí­tulo 71), no entanto, produz algumas conexões fascinantes com locais sagrados ao redor do mundo. A jarda megalítica (capítulo 71) é outro conceito interessante que explica racionalmente semelhanças que os engenheiros notam há muito tempo em locais de construções antigas. Mas até agora a prova de sua existência não foi estabelecida.

Esta história propõe algumas possibilidades interessantes. Não a de uma Atlântida mítica com uma engenharia surreal e tecnologia fantás­tica, mas, em vez disso, a simples ideia de que podemos não ter sido os primeiros a alcançar a consciência intelectual. Talvez tenha havido ou­tros cuja existência nos é simplesmente desconhecida, tendo sua história e seu destino sido apagados, perdidos entre os noventa por cento do conhecimento antigo que podemos não recuperar nunca.

Absurdo? Impossível?

Quantas vezes ficou provado que os supostos especialistas esta­vam errados?

Lao-Tsé, o grande filósofo chinês que viveu há 2.700 anos e ainda é considerado um dos pensadores mais brilhantes da humanidade, deve ter tido conhecimento de causa ao escrever:

Os Mestres Antigos eram sutis, misteriosos, profundos e atentos.

A profundidade de seu conhecimento é insondável. E porque é insondável, só podemos descrever sua aparência. Cautelosos como quem atravessa um córrego no inverno. Prudentes como quem vê o perigo. Gentis como o hóspede. Dóceis como gelo prestes a derreter. Simples como a madeira bruta.

 

                                                                                Steve Berry  

 

                      

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