Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BUSCA / Laura Gallego García
A BUSCA / Laura Gallego García

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Memórias de Idhún

Volume I

A BUSCA

 

Ele guarda o fogo. Ela a força da vida. Jack e Victoria são dois jovens humanos que descobrem pertencer ao exilado povo de Idhún. Com a conjugação dos três sóis e das três luas que giravam em torno do planeta, o poderoso Necromante deixou que as serpentes aladas, os Sheks, tomassem conta de Idhún. A lenda alimenta ainda esperança. Diz-se que o último dos unicórnios, aliado ao fogo do dragão, a todos libertará...Uma fabulosa saga de aventuras, magia e determinação povoada de lendas, seres mitológicos, criaturas fantásticas, guerreiros, espadas mágicas, magos e fadas.

 

 

 

          

                 JACK

Era já de noite, uma noite de fim de Maio, e um rapaz de treze anos subia de bicicleta por uma estrada municipal ladeada por altas coníferas, de regresso a casa, uma quinta junto a um pequeno bosque.

Chamava-se Jack. Há dois anos que vivia com os pais naquela quinta nos arredores de Silkeborg, uma pequena cidade dinamarquesa, e todas as tardes, ao sair da escola, fazia aquele trajecto de bicicleta. Gostava de fazer exercício, e, além disso, o percurso junto ao bosque relaxava-o e afastava a sua mente das preocupações.

Mas, por alguma razão, daquela vez era diferente.

Passara todo o dia com uma intuição estranha relativamente à sua casa e aos seus pais. Não soubera dizer do que se tratava, mas também não pudera evitar telefonar à mãe ao meio-dia, para se assegurar de que todos estavam bem; e estava tudo em ordem. Contudo, apenas uns momentos antes, ao sair do colégio, sentira que aquele pressentimento incómodo que o atormentara durante todo o dia regressava com mais força. Sem nenhum motivo aparente, sentia que a sua família estava em perigo. E sabia que era absurdo, sabia que não tinha uma explicação racional para aquela sensação, mas não podia evitá-lo. Tinha de chegar a casa o quanto antes e comprovar que estava tudo bem.

Quando finalmente chegou à quinta, o coração estava a ponto de estourar com o esforço. Deixou a bicicleta junto ao alpendre, sem se preocupar em arrumá-la, e correu na direcção da entrada.

Deteve-se de imediato, com o coração a bater com força.

Joker, o seu cão, não viera recebê-lo como todos os dias. Também não se ouviam os seus latidos vindos das traseiras da quinta. "Deve ter ido ao bosque", disse Jack para si mesmo, tentando acalmar-se.

No entanto, não pôde evitá-lo. Pôs-se novamente a correr para a porta de casa. Estava entreaberta e entrou.

Algo o fez parar.

Aparentemente, tudo parecia normal. A luz da sala estava acesa, ouvia-se o murmúrio surdo da televisão.

Mas respirava-se um ambiente estranho.

A tremer, entrou na sala. O seu pai estava sentado no sofá, à frente da televisão, de costas para ele. Podia ver a sua cabeça a descansar sobre o encosto.

- Papá...

Não houve resposta. Na televisão estava a dar um programa estúpido de imitações de cantores famosos, e Jack agarrou-se desesperadamente à ideia de que logicamente o seu pai tinha adormecido.

Contornou o sofá e, depois de vacilar por um breve instante, olhou para a cara do pai.

Estava imóvel, pálido, com os olhos muito abertos, desfocados, olhando para parte alguma. No seu corpo não havia qualquer sinal de sangue ou violência.

Mas Jack soube que estava morto.

Algo atingiu a sua consciência com a força de uma pesada moca. Por um momento, o tempo pareceu parar, e com ele o seu coração; mas de imediato o mundo à sua volta oscilou e começou a girar a uma velocidade angustiante. Impeliu-se na direcção do pai e sacudiu-o várias vezes, procurando fazê-lo reagir. No fundo, sabia que era inútil, mas, simplesmente, não queria acreditar.

- Papá! Papá! Por favor, acorda...

A sua voz quebrou-se num soluço aterrorizado. Imediatamente pensou que talvez não fosse demasiado tarde, que tinha de chamar uma ambulância, e quem sabe... correu para o telefone e pegou no auscultador.

Mas não havia linha. Jack desligou o telefone com violência, raiva e desespero; secou as lágrimas com a manga da camisola, deu meia-volta e precipitou-se escada acima.

- Mamã! - gritou. - Mamã, desce depressa, traz o telemóvel! Tropeçou num degrau e caiu, magoando-se nos joelhos, mas isso

não o deteve. Levantou-se novamente e continuou a correr:

- Mamã!!...

Emudeceu de imediato, porque havia alguém ao fundo do corredor. Alguém que não a sua mãe. Engoliu em seco, aturdido. Os dois olharam-se por um momento.

Tratava-se de um homem de olhos cor de avelã e traços delicados, mas de expressão dura e ligeiramente zombeteira. Vestia algo parecido com uma túnica que lhe chegava aos pés, e tinha o cabelo escuro e encrespado.

- Quem... quem é você? - murmurou Jack, confuso e com os olhos ainda cheios de lágrimas.

No entanto, algo chamou a sua atenção. Sobre o parquet, aos pés do indivíduo da túnica, havia um vulto inerte. Jack reconheceu-o e sentiu as pernas a tremer; teve de se apoiar na parede para não cair.

Era a sua mãe, que jazia no chão, pálida, com a cabeça virada na sua direcção e com os olhos abertos.

Jack sentiu que o sangue gelava nas suas veias. Aquilo não podia estar a acontecer.

Mas não havia dúvida. O olhar da mãe era vazio, inexpressivo.

Os seus olhos estavam mortos.

- Mamãããã!!!!!! - gritou o rapaz, fora de si.

Correu na sua direcção, sem se importar minimamente com a presença do homem de cabelo escuro...

Tudo aconteceu muito depressa. O desconhecido gritou umas palavras numa língua que Jack não conhecia (mas que de repente lhe soou estranhamente familiar) e algo bateu no peito do rapaz, deixando-o sem fôlego e atirando-o para trás.

Jack chocou contra a parede e sacudiu a cabeça, aturdido e respirando com dificuldade. Não fazia ideia do que o tinha empurrado com tanta violência; o indivíduo

da túnica ainda estava longe do seu alcance quando o que quer que aquilo fosse o lançara contra a parede.

Mas não parou para pensar nisso. O golpe devolveu-o à realidade.

De u-se conta de que, muito provavelmente, aquele indivíduo extravagante era o responsável pela morte dos seus pais; e uma parte de si mesmo, que estava oculta e adormecida e que apenas despertava em ocasiões pontuais, mas que Jack conhecia muito bem, uivava de dor, ira e sede de vingança.

Por outro lado, sabia que o mais prudente era dar meia-volta e desatar a correr, fugir, avisar a polícia...

Felizmente para ele, conseguiu dominar a sua ira e dar lugar à sensatez. Pôs-se de pé num salto, reagindo mais depressa do que o seu oponente previra. Correu na

direcção das escadas e ouviu-o a gritar nas suas costas, mas não parou. Desceu a correr; na sua precipitação, tropeçou novamente e caiu a rebolar até à sala.

Mas, quando estava quase a levantar-se, sentiu uma presença gélida atrás de si e estremeceu, sem que pudesse evitá-lo. Voltou-se lentamente...

À sua frente estava um rapaz um pouco mais velho do que ele, vestido de preto. Era franzino e musculoso, de feições suaves e cabelo castanho-claro, muito fino e liso, que lhe caía sobre ambos os lados do rosto. Os seus olhos azuis cravaram-se nele, interrogativos.

Era a primeira vez que se encontravam, disso Jack estava certo, mas, por alguma razão, não pôde evitar sentir uma certa repulsa por ele, como se o simples facto de estar perto daquele desconhecido lhe provocasse calafrios.

Reprimiu um estremecimento e olhou-o nos olhos.

De imediato, sentiu algo estranho, uma sacudidela, como se algo se tivesse introduzido dentro de si e estivesse a explorar os seus pensamentos mais secretos e os seus sentimentos mais íntimos.

E outra coisa.

Frio.

Jack ficou paralisado, fascinado pelo olhar do jovem de preto.

"Estava à tua procura", ouviu uma voz na sua mente.

E, naquele mesmo instante, Jack soube, de alguma forma, que ia morrer, como o sabe a mosca que fica presa na teia de aranha, como o sabe o rato que se depara com o olhar de uma serpente.

Mas então algo o puxou e atirou para o lado violentamente, afastando-o do rapaz de preto. Jack caiu no chão, sobre o tapete, sacudiu a cabeça e voltou-se para ver o que estava a acontecer e quem o afastara do olhar da morte.

O seu salvador era um jovem de vinte anos, alto e musculoso, de cabelo castanho curto e expressão grave e severa, que aparecera do nada, interpondo-se entre Jack

e o outro rapaz. Havia algo nele que impunha respeito, apesar das estranhas roupas que vestia. O rapaz de preto olhou-o, impassível, mas adoptou uma postura de serena cautela. E então, diante do olhar atónito de Jack, o recémchegado tirou

uma espada do cinto e mostrou-a ao seu oponente. O rapaz de preto pareceu aceitar o desafio, porque desembainhou a sua própria espada que estava presa às suas costas e aparou o golpe do seu opositor com uma rapidez e uma agilidade quase sobre-humanas. Jack, paralisado de terror, via como aqueles dois desconhecidos iniciavam um duelo na sala da sua própria casa. Viraram a mesa de jantar ao contrário, arrancaram as cortinas, destruíram a televisão com uma estocada que não acertou em lado nenhum. Jack assistia impotente àquela destruição, mas não se atrevia a mover-se. O jovem recém-chegado movia-se com segurança e serenidade, e os golpes que desferia eram mais fortes; mas o rapaz de preto era muito mais rápido, ágil, silencioso e letal. Jack deu-se conta de que, cada vez que as duas espadas se encontravam, brotava dos seus fios uma espécie de brilho sobrenatural.

Aquilo não era real, era um pesadelo, não podia estar a acontecer. Quis gritar, mas alguém o puxou e lhe tapou a boca.

Jack sentiu-se atordoado. O seu primeiro impulso foi procurar soltar-se do abraço, mas não conseguiu. Voltou-se e viu que quem o segurava era um rapaz franzino de dezoito ou dezanove anos, de cabelo negro, grandes olhos escuros, feições agradáveis e atitude séria. Jack quis livrar-se dele, mas o jovem era mais forte. Olhou-o no rosto e disse-lhe que não com a cabeça, e Jack entendeu que era um amigo e que estava ali para o ajudar. Agarrou-o desesperadamente pelos braços.

- Por favor - soluçou -, por favor, ajuda-me... os meus pais...

Mas o jovem sacudiu a cabeça e disse-lhe algo noutra língua, e Jack compreendeu que falavam idiomas diferentes. Voltou-se para indicar o sofá onde jazia o corpo do pai, mas acabou por girar bruscamente a cabeça porque não se atrevia a olhar.

Enquanto isso, os outros dois continuavam com o seu duelo particular de esgrima, e o indivíduo da túnica, o assassino dos pais de Jack, havia assomado ao cimo da escadaria. O rapaz que segurava Jack viu-o. Gritou algo e o seu companheiro assentiu e retrocedeu na sua direcção. O rapaz de preto correu atrás dele e desferiu um golpe de espada sobre eles, justamente quando o seu oponente agarrava no braço do seu amigo.

Jack sentiu uns dedos cravarem-se dolorosamente no seu antebraço e a última coisa que viu antes de tudo começar a andar à roda foram uns gélidos olhos azuis...

Jack deu um grito e abriu os olhos, sobressaltado. Sentou-se na cama, com a respiração entrecortada e sentindo no peito as batidas loucas do seu coração.

"Foi apenas um maldito sonho", pensou, irritado.

Mas ainda tremia. Detestava serpentes, e sonhara com uma, enorme, terrífica, que se erguia sob um estranho céu da cor do sangue. Um céu com seis astros que emitiam um brilho ofuscante.

Tentou acalmar-se. Estava a tremer, e sentia uma estranha angústia que lhe apertava o coração como uma garra de gelo. Respirou fundo. "Foi só um pesadelo", disse

para si. Mas não era a primeira vez que sonhava com aquela cena e perguntou-se novamente se a teria visto em algum filme de ficção científica. Se assim fosse, não se lembrava.

Por outro lado, antes de sonhar com a serpente gigante, tivera um sonho muito mais aterrador; lembrava-se apenas vagamente, mas sabia que tinha a ver com os seus pais e que não era algo de que quisesse lembrar-se.

Passou uma mão pelo seu cabelo loiro, despenteando-o, e deu uma vista de olhos pela sua direita, procurando com o olhar os números fluorescentes do seu despertador digital.

Ficou gelado.

Não estava no seu quarto. Encontrava-se numa cama estranha, num quarto estranho, num lugar estranho. O formato do quarto também não era vulgar: não tinha esquinas nas paredes, curiosamente arredondadas. Era como se estivesse no interior de um iglu gigante. Uma janela, também redonda, abria-se num dos lados do quarto. Mais adiante, via-se uma clara noite estrelada e as copas escuras das árvores. Mas não era a paisagem que ele conhecia.

Jack pestanejou, confuso. Onde diabos estava? Que estava a acontecer?

Levantou-se de um salto, afastando os lençóis extraordináriamente macios. Procurou o interruptor da luz e não o encontrou. Esperou que os seus olhos se habituassem

à escuridão para olhar em seu redor.

Não havia muitos móveis naquele quarto. Uma cadeira e uma mesa de design estranho, um armário do mesmo estilo e algo que parecia uma mistura entre uma estante e uma cómoda. E duas portas.

Uma estava entreaberta e parecia um roupeiro. Jack abriu a outra, puxando uma maçaneta feita de um curioso metal verde-azulado, e deslizou para o exterior.

Encontrou-se num corredor de tecto abobadado, como um túnel, que virava suavemente para a direita, sem esquinas. Estava iluminado por apliques eléctricos, com lâmpadas perfeitamente normais. Jack respirou fundo, atordoado. Aquilo era uma loucura.

Avançou com precaução, procurando não fazer nenhum ruído... e então deparou-se com alguém. Jack estremeceu. Tratava-se de um jovem moreno, franzino e nervoso. Jack vira-o antes... na sala da sua casa, segurando-o, enquanto outros dois mantinham um duelo de espadas.

De repente, lembrou-se de tudo. O caminho até à quinta, o homem da túnica, a luta entre o seu perseguidor e o seu salvador, aqueles olhos azuis desumanos, os seus pais mortos...

Os seus pais, mortos.

Não fora um sonho. Tudo aquilo tinha realmente acontecido.

Jack sufocou um grito de raiva e desespero e, quase sem saber o que fazia, lançou-se contra aquele jovem, furioso, procurando bater-lhe. Apanhou-o de surpresa e ambos caíram no chão. O rapaz exclamou algo naquela língua estranha, mas Jack não queria saber. Bateu com os punhos tentando acertar-lhe, mas logo umas mãos de ferro o agarraram dolorosamente pelos pulsos e uma voz serena, tranquila e autoritária disse algo que ele, para variar, não entendeu. Sentiu que o puxavam para trás para o separar do seu opositor. Resistiu; estava cego de raiva. Voltou-se para ver quem o prendia e viu atrás de si o jovem que lutara com o rapaz de olhos azuis na sua casa. Era sem dúvida muito forte e tinha braços de aço; Jack apercebeu-se de que não estava a ter trabalho nenhum para o manter quieto, apesar de ele lhe resistir com todas as suas forças.

Jack, esgotado, finalmente rendeu-se. Estava preso.

Deixou-se cair, tremendo e soluçando sem poder conter-se.

Foi então que o rapaz moreno que acabara de atacar se inclinou para lhe dizer algo. Jack afastou o rosto, furioso e angustiado ao mesmo tempo. Mas viu, através das lágrimas, que ele o olhava fixamente, sério e preocupado. O jovem disse algo mais, e desta vez Jack ergueu a cabeça. Parecia francês. Mas ele não sabia francês. O outro franziu o sobrolho, pensativo, e então tentou novamente.

Desta vez, Jack compreendeu-o.

- Eh... sim... falo inglês - murmurou, na mesma língua; as suas próprias palavras soavam

estranhas.

Engoliu em seco para aclarar um pouco a garganta. Voltou a cabeça para esfregar a cara com o braço e assim secar as lágrimas, porque ainda o tinham preso pelos pulsos

e não podia usar as mãos.

O outro rapaz olhou-o, pensativo.

- Bem. Na realidade, o meu inglês não é muito bom, tive pouco tempo para aprender - explicou num inglês vacilante, com um sotaque estranho. - Mas creio que nos entenderemos.

Jack assentiu, desgostoso. Falava inglês quase tão bem como a sua língua materna. O seu pai era britânico. Pensar no pai fê-lo lembrar-se dele, sentado no sofá, morto, e fechou os olhos para evitar que voltassem a encher-se de lágrimas. Tudo aquilo mais não era do que um pesadelo...

- Não é uma boa altura para falar, eu sei - prosseguiu o jovem. Só quero que saibas que, aconteça o que acontecer, aqui estarás seguro.

- Seguro! - repetiu Jack com amargura. - Depois do que vocês fizeram aos meus pais!...

- Salvámos-te a vida - corrigiu o outro. - Se tivéssemos chegado a tempo, talvez pudéssemos ter salvo os teus pais também. Mas eles adiantaram-se outra vez.

Havia uma tamanha expressão de raiva e frustração no seu rosto que Jack teve de acreditar nele.

- Os meus pais... - repetiu, sem poder tirar aquela ideia da cabeça.

Procurou recompor aquele quebra-cabeças na sua mente. O que vira em sua casa fora uma luta entre dois grupos distintos. Duas pessoas, o homem da túnica e o rapaz vestido de preto, haviam matado os seus pais. E provavelmente tê-lo-iam matado também, não fora a intervenção daqueles dois jovens com quem estava a falar, os quais, de alguma forma, o tinham tirado de lá. Porque acontecera tudo isso? Quem eram eles? E o que é que os seus pais tinham a ver com aquilo?

- Porquê? - sussurrou, desolado. - Porquê eles?

Desta vez não pôde evitar que uma lágrima corresse pela face e voltou a cabeça com brusquidão, para que não o vissem chorar. O jovem olhou-o com pena.

- Sinto muito, de verdade. A única coisa que posso dizer-te é que vamos proteger-te e que continuaremos a lutar para que não haja mais mortes.

- Mais... mortes? - repetiu Jack, desorientado. O outro suspirou.

- É melhor que não te envolvas nisto. Quanto menos souberes, mais seguro estarás.

Dentro de Jack algo se revoltou.

- Não! - gritou. - Não, nem pensar, preciso de saber que raio é que se passou! Estás a ouvir? E quero voltar para casa! Quem são vocês? Para onde é que me trouxeram?

- Para um lugar seguro - insistiu o outro. - Em relação a quem somos, apenas posso dizer-te os nossos nomes: eu sou Shail e o meu amigo é Alsan. Não fala inglês - acrescentou, com um suspiro resignado -, nem francês, nem nada do género.

Jack voltou-se para Alsan, que permanecia impassível, junto dele. Shail encolheu os ombros e disse-lhe algo na sua própria língua. Alsan soltou Jack, que esfregou os pulsos doridos, ainda sem entender o que estava a acontecer.

- Chamo-me Jack - murmurou.

Deixou-se cair no chão; não tinha forças para se levantar, e por isso ficou ali, sentado no chão, dobrado sobre si mesmo e com a cabeça feita em água, tremendo de medo, dor, angústia, raiva, impotência... eram tantos os sentimentos que se confundiam na sua alma que por um momento acreditou estar no meio de um furacão.

Shail pôs-se de pé e estendeu-lhe uma mão para o ajudar a levantar-se. Jack ergueu a cabeça e olhou-o, ainda desorientado. Pestanejou para conter as lágrimas.

- Queremos ajudar-te - disse o rapaz, muito sério.

Jack titubeou, mas finalmente deu-lhe a mão e levantou-se. Voltou-se para Alsan, desconfiado. O seu rosto continuava a parecer de pedra, mas no seu olhar havia simpatia e comiseração. Jack cambaleou.

- Não estás sozinho - disse Shail, com suavidade.

Jack sentiu que tudo andava à volta. As pernas cederam como se fossem de gelatina. Apenas se deu conta dos braços de Alsan a segurá-lo para que não caísse no chão.

Teve uma vaga consciência de que o levavam para uma divisão mais ampla e que o faziam sentar-se num cadeirão. Quando tudo deixou de dar voltas e pôde olhar em seu redor, encontrava-se numa sala mobilada no mesmo estilo do quarto onde acordara e decorada com uma série de elementos que pareciam não encaixar ali: candeeiros, uma aparelhagem de som, um computador...

- Bem-vindo ao nosso centro de operações - disse a voz de Shail junto dele.

Jack resmungou e voltou-se. Viu o jovem apoiado na ombreira da porta. Sorria amistosamente. Viu que usava uma camisa branca por fora das calças de ganga; parecia um rapaz normal. No entanto, havia algo nele que o tornava diferente. Jack procurou Alsan com o olhar, mas descobriu que se tinha ido embora.

- Ficaste atordoado - continuou Shail. - Estás muito fraco, precisas de comer alguma coisa. Não tens fome?

Jack negou com a cabeça.

- Tenho o estômago às voltas.

- Não me espanta - assentiu Shail, muito sério. - Passaste por uma experiência muito dura.

Jack reprimiu um gesto de dor. Olhou para Shail com dureza.

- Preciso de saber - exigiu.

O jovem lançou-lhe um olhar pensativo.

- bom - disse finalmente. - vou tentar explicar-te algumas coisas. - Sentou-se junto dele. - Suponho que queiras saber quem entrou na outra noite em tua casa e porquê.

Jack assentiu.

- Enfim, é difícil de explicar. Digamos que esse tipos procuram... pessoas muitos especiais. Pessoas que escaparam de um... lugar. Do lugar de onde eles vêm.

Olhava fixamente para Jack, esperando uma reacção da parte dele, mas esta não aconteceu.

- Não... não entendo - murmurou o rapaz, confuso. Shail franziu o sobrolho.

- A sério... não sabes de nada? Não fazes ideia de onde eram os teus pais?

- O meu pai era inglês e a minha mãe dinamarquesa. E a isso que te referes?

Shail cofiou o queixo, pensativo.

- Que esquisito... - murmurou. - Não falas idhunaico e nem tens suspeitas sobre a razão porque os atacaram. Não é possível que os teus pais não te tivessem contado nada. Contudo... Por outro lado, eles... Não, não pode ser, eles não cometem erros...

Jack perdeu a paciência.

- Por favor, conta-me de uma vez. Preciso de saber o que se passou, não entendes?

- Está bem, está bem. Lembras-te do rapaz de preto?

Jack estremeceu involuntariamente. "Andava à tua procura", sussurrou novamente aquela voz num recanto da sua memória.

- Vejo que sim - comentou Shail. - Bem, pois ele... chama-se Kirtash, e é um assassino. Um assassino muito especial; é frio, impiedoso e muito... poderoso.

- Poderoso em que sentido? - perguntou Jack, sentindo um novo calafrio.

- Não posso explicar-te, mas tenho a certeza de que já o notaste. O outro, o feit... quer dizer, o da túnica - rectificou -, chama-se Elrion e está com ele há pouco tempo. Em todo o caso, é esquisito, porque Kirtash actua sempre sozinho. Embora ache que foi Elrion quem...

Calou-se por um momento.

- ... quem atacou os meus pais? - completou Jack em voz baixa; sentiu um nó na garganta e engoliu em seco, procurando evitar que as lágrimas lhe viessem novamente aos olhos.

Shail assentiu, pesaroso.

- Mas quem quereria... - Jack ficou de novo sem voz; fez o pôssível por acabar a pergunta, mas não o conseguiu. Apenas conseguiu articular: - E porquê?

Shail suspirou.

- O lugar de onde vimos, Jack, é governado por uns... chamemos-lhes... indivíduos... que não gostam que se revoltem contra eles. Por isso enviaram Kirtash. Dedica-se

a ir pelo mundo fora à procura de pessoas... como nós. Pessoas... exiladas. Pessoas que fugiram até aqui. Procura-as, encontra-as... e mata-as.

Jack respirou fundo. Imaginou um país dominado por ditadores que governavam com mão de ferro.

- Mas os meus pais... não pertenciam a esse lugar - objectou. Ter-me-iam dito.

- Pode ser que sim, ou pode ser que não, Jack. Talvez tenhas razão e Kirtash e os seus se tenham enganado convosco. Mas acharia isso muito estranho, porque eles nunca cometem erros desse tipo.

Jack não disse nada. Tinha dificuldade em assimilar tanta informação.

-Nós somos... rebeldes - prosseguiu Shail. - Ou renegados, como eles nos chamam. Alsan e eu viemos aqui para cumprir uma missão e demos de caras com Kirtash. Temos tentado impedir que continue a assassinar a nossa gente, mas adianta-se sempre e... - nesse momento foi Shail quem estremeceu - não podemos lutar contra ele. Não temos meios suficientes.

- O quê? Não entendo. É apenas um rapaz, e não deve ser muito mais velho do que eu. bom, talvez um ou dois anos mais velho do que eu, mas... continua a ser um rapaz e, se está sozinho...

Shail lançou-lhe um olhar indecifrável.

- Kirtash não é o que parece. Pelo que sabemos, tem apenas quinze anos, mas assassinou um número incontável de pessoas desde que aqui está.

- Mas isso... não pode ser; é... absurdo.

- Poderá ser ou não absurdo, mas é a verdade. Acredita em mim quando te digo que ninguém que o tenha enfrentado escapou com vida. Ninguém.

A Jack pareceu-lhe que Shail tremia, e não o considerou um bom sinal. Lembrou-se de repente de uma coisa.

- Mas nós escapámos. Kirtash tinha aquela espada, ia... - franziu o sobrolho. - E eu desapareci, e de repente estava aqui...

Shail parecia incomodado.

- Escapámos - disse ambiguamente -, sem o enfrentarmos. Alsan não poderia tê-lo aguentado muito tempo, de modo que... tivemos de fugir.

- Como?

- Ter-nos-ia matado - prosseguiu Shail, fugindo à pergunta. Foi treinado para ser o melhor e o mais impiedoso assassino que alguma vez se viu. É rápido, venenoso e mortal como um escorpião. E muito discreto. Nunca deixa pistas nem rastro da sua passagem. É como a sombra da morte. Como o anjo exterminador da Bíblia.

Jack respirou fundo. A sua cabeça estava outra vez às voltas.

- Tenho de voltar para casa - conseguiu dizer.

- Não, não deves. Se voltares, Kirtash encontra-te e mata-te. Não gosta de deixar as coisas a meio. Aqui estarás em segurança.

Jack levantou a cabeça e fitou-o.

- Em segurança? - repetiu. - Mas se nem sequer sei onde estou. Este é um sítio muito estranho...

Shail esboçou um sorriso.

- Este lugar é Limbhad. Foi construído pelos nossos antepassados há muito, muito tempo. Kirtash e os seus não o conhecem. É um refúgio secreto.

- E como sabes que não vos vão encontrar? Shail levantou-se com uma atitude séria.

- Temos os nossos meios. Não estamos tão indefesos como parecê.

E só que... - Hesitou antes de dizer, em voz baixa: - E que Kirtash supera-nos a todos. Gostaria de saber quem ele é na realidade - acrescentou como que para

si mesmo.

Jack recostou-se no seu assento, um cómodo cadeirão, e fechou os olhos.

- Estás muito pálido - disse Shail. - Deves procurar recuperar forças...

Mas Jack negou com a cabeça.

- Supostamente os meus pais fugiram de um lugar - disse devagar. - Que lugar é esse?

Shail não respondeu. Ficou a olhá-lo, duvidoso.

- Chama-se Idhún - disse por fim Shail, em voz baixa. Jack pestanejou, perplexo.

- Nunca os ouvi falar dele.

Shail não disse nada. Levantou-se e saiu da divisão, em silêncio. Jack quis travá-lo, mas reagiu tarde, e, quando tentou levantar-se, as pernas falharam-lhe. A cambalear, conseguiu novamente chegar ao corredor. Mas Shail já tinha ido embora.

Jack ficou ali parado por um instante. Então, lentamente, deixou-se escorregar até ao chão e ficou ali sentado, com as costas apoiadas na parede. Rodeou os joelhos com os braços, enterrou a cabeça no meio deles, encolhendo-se sobre si mesmo, e começou outra vez a chorar, em silêncio.

Estava cansado, muito cansado. O medo e a tensão pareciam ter-se desvanecido, dando lugar à tristeza e ao desânimo. Não sabia se Shail dissera a verdade nem se realmente estava a salvo naquele lugar, mas era certamente difícil não se acalmar com aquela agradável noite silenciosa e estrelada que se via da janela. Um remanso de paz e tranquilidade. Jack fechou os olhos, querendo descansar, mas o seu coração continuava a sangrar. Em apenas umas horas todo o seu mundo fora virado do avesso. Os seus pais estavam mortos e ele não sabia porquê. Estava preso num lugar desconhecido e também não sabia porquê. E havia algo de estranho em todas aquelas pessoas: os dois indivíduos que tinham irrompido em sua casa... os próprios Alsan e Shail...

Lembrou-se sem querer do momento em que a sua vida fora desfeita em cacos. O homem da túnica, esse tal Elrion, assassinara os seus pais, ou talvez tivesse sido o outro, a quem Shail chamara Kirtash, o rapaz dos... olhos azuis.

Jack estremeceu involuntariamente...

Frio.

Voltou a cabeça com brusquidão. Nunca mais veria os seus pais com vida, e esse pensamento era horrível e angustiante. Ficara órfão. De repente.

Tal era muito difícil de assimilar.

Por um momento achou que não o conseguiria, desejou deixar-se levar pela dor e dormir, dormir para sempre e não acordar nunca mais, para não ter de enfrentar o medo e a dor. Deixou-se arrastar pela onda dos seus sentimentos, e estes estiveram a ponto de afogá-lo. Mas pouco a pouco, lentamente, começou a vir à tona.

Não saberia dizer quanto tempo permanecera ali, de cócoras junto à parede, mas a certa altura levantou a cabeça e apercebeu-se de que continuava naquele estranho lugar a que Shail chamara "Limbhad", sozinho, naquela divisão. Respirou fundo e tentou pensar com um pouco mais de clareza. Decidiu então levantar-se e sair daquela casa, apesar do que Shail lhe dissera. Procuraria um telefone e telefonaria para a polícia, e depois procuraria localizar os seus tios, que viviam em Silkeborg. Certamente estariam preocupados com ele.

Levantou-se, cambaleando, e avançou pelo corredor à procura de uma saída.

Um pouco mais adiante encontrou uma porta entreaberta, da qual saía um brilho alegre. Jack aproximou-se com precaução.

Tinha chegado à cozinha, uma cozinha tão estranha e original como tudo o que havia em Limbhad. Ao fundo ardia um fogo cálido e acolhedor, e a loiça, de estilos diversos, estava colocada numa série de prateleiras de cantos arredondados. À direita, havia também um frigorífico, um forno eléctrico e uma placa de vitrocerâmica. Jack não conseguia habituar-se àquela mistura de coisas exóticas e electrodomésticos tão absolutamente corriqueiros. Era um contraste um pouco gritante.

Estava prestes a ir embora quando tropeçou em algo e ouviu um miado indignado. Uma gata cor de canela afastou-se do seu caminho e olhou-o de forma altiva antes de subir para uma cadeira com um elegante salto, e ali se acomodou, lançando-lhe um último olhar ofendido.

- Desculpa - murmurou Jack.

Ouviu um ruído e voltou-se, quando viu que, num banco encostado à parede, estava sentada uma rapariga com as pernas cruzadas e uma taça de leite entre as mãos. Jack não reparara antes nela: devia ter uns doze anos, tinha o cabelo castanho-claro e uns olhos escuros que pareciam demasiado grandes para a sua cara miúda, morena e de nariz pequeno e arrebitado. Mas aqueles olhos estavam fixos nele, e Jack respirou fundo. Adeus à tentativa de passar despercebido. bom, em todo o caso, aquela rapariga não parecia perigosa.

Ela olhava-o com cautela, e Jack levantou as mãos como que a desculpar-se.

- Olá - disse.

A rapariga não o entendeu. Jack experimentou cumprimentá-la em inglês e no rosto dela desenhou-se um sorriso.

- Olá - respondeu.

- Chamo-me Jack - disse ele.

- Chamo-me Victoria.

O inglês dela não era mau, mas não era tão fluente como o de Jack. Ele percebeu de imediato que não conseguiria sacar-lhe muita informação.

- És amiga de Alsan e Shail? - Ela assentiu. - Então vens de Idhún?

Victoria pensou um pouco antes de responder. A gata saltou para cima da mesa, sobressaltando Jack, e olhou-o com cara de poucos amigos. Ele estendeu a mão e acariciou a sua sedosa pelagem. A gata baixou as orelhas e, momentos depois, já ronronava de barriga para cima. O rapaz sorriu.

- Não sei - disse finalmente a rapariga, cautelosa.

Jack estava a começar a sentir-se frustrado. Shail sabia mais coisas, mas não queria contá-las. Alsan provavelmente também, mas apenas falava a sua estranha língua (idhunaico, dissera Shail?); e Victoria parecia algo mais comunicativa, mas não dominava o inglês o suficiente para se expressar com total clareza.

- Não entendo - disse o rapaz. - Não entendo nada. Quero respostas.

Victoria olhou-o e abriu a boca para dizer algo, mas calou-se. Parecia que não encontrava as palavras. Jack sentou-se num tamborete, triste, e enterrou a cara nas mãos.

Estremeceu quando sentiu que Victoria estava junto dele. Ela levantara-se e estava de pé, ao seu lado, com algo na mão. Jack olhou para o que estava na sua mão. Tratava-se de uma corrente da qual pendia um amuleto de prata em forma de hexágono, com um estranho símbolo gravado no seu interior. A rapariga fazia-lhe gestos indicando-lhe que pusesse a corrente ao pescoço, e Jack obedeceu. Sentiu de imediato uma espécie de abanão, como um formigueiro que o percorria por dentro.

- E agora? - perguntou ela de repente, para surpresa do rapaz. Entendes-me agora?

Jack pestanejou, perplexo, convencido de que não ouvira bem. Victoria não falara inglês nem dinamarquês, mas compreendera-a na perfeição. Se não fosse o facto de isso ser impossível, Jack poderia jurar que ela estava a falar o estranho idioma de Alsan e Shail.

- Ma... mas não entendo... - tartamudeou Jack. Não pôde dizer mais nada; também ele acabara de falar numa língua que não era a sua.

Victoria sorriu.

- E um amuleto de comunicação - explicou. - Se o tiveres posto, podes falar e entender a nossa língua. Não te preocupes, podes ficar com ele. Creio que já domino bem o idhunaico e, se não, de certeza que Shail me arranja outro.

Perplexo, Jack pegou no pendente que Victoria acabara de lhe entregar. Houve uma faísca de luz e o rapaz soltou-o com uma exclamação.

- Ai! Deu-me um choque!

De repente, Victoria olhou-o novamente com aquela expressão cautelosa.

- Reagiu contra ti - disse, a meia-voz. - Não acreditas em magia?

- Em quê?

- Victoria!

Os dois voltaram-se na direcção da porta. Ali estava Shail, olhando-os com ar alarmado.

- O que é que lhe contaste?

- O que é que não lhe contaste, Shail? Não disseste que ias falar com ele?

Shail fez cara de caso.

- E que... sabes, ele não é exactamente como nós. Victoria encarou Jack, surpreendida.

- Então, porque é que o trouxeram?

- Porque Kirtash o atacou.

- Mas se Kirtash o atacou, é porque é um de nós.

Jack abriu a boca para intervir, mas uma voz autoritária interrompeu

a conversa:

- O que é que se passa? Porque estão a gritar?

À porta estava Alsan; parecia ter estado a fazer exercício, porque estava despido da cintura para cima, coberto de suor e com uma toalha ao ombro. Cruzara os braços e olhava-os, carrancudo.

- Mas que...? - disse Jack, perplexo, fitando o recém-chegado. Shail disse-me que não sabias falar a minha língua!

- Jack, ele não está a falar a tua língua - explicou Shail, pacientemente. - Tu estás a falar a nossa.

Victoria suspirou, exasperada. Alsan voltou-se para Shail e encarou-o, exigindo uma explicação. Shail encolheu os ombros.

- Sinto muito - interveio Victoria -, a culpa foi minha. Emprestei-lhe o amuleto de comunicação para me entender com ele, mas não sabia que vocês não lhe tinham

explicado nada...

- Expliquei-lhe algumas coisas - defendeu-se Shail -, mas entende-me, ele nunca ouvira falar de Idhún... ia pensar que eu era maluco.

- Mas é idhunita ou não? - perguntou Alsan, franzindo ainda mais o sobrolho.

- Não sei! É demasiado velho para ser filho de idhunitas exilados. Mas diz que nasceu na Terra. E não me entra na cabeça que Kirtash se tenha enganado com ele. Tudo isto me deixa baralhado...

- bom, já chega! - exclamou Jack, cortando a discussão que estalara entre os dois. - Estão todos chalados! vou para casa agora mesmo.

Afastou-se bruscamente de Victoria e dirigiu-se para a porta da cozinha, mas Alsan não se mexeu. Tinha os braços cruzados, e os seus músculos ressaltavam sob o brilho do suor.

- Deixa-me passar - disse Jack, tremendo de raiva. Alsan não se mexeu. Limitou-se a fitá-lo, pensativo.

- Deixa-me passar - insistiu Jack. - Quero ir-me embora daqui. Alsan pareceu mudar de ideias, porque se afastou para o deixar

passar. Jack seguiu pelo corredor adiante, mas ainda ouviu a recriminação de Victoria:

- Vão ter de lhe explicar, não? Não podem continuar a escondê-lo para sempre.

 

                 LIMBHAD

A casa estava silenciosa e escura. Jack sentia-se fraco, mas queria escapar dali, custasse o que custasse. Agarrou-se a esse pensamento: fugir dali. Se estivesse ocupado a fazer alguma coisa, iria distrair-se e não pensaria em...

O estômago revolveu-se-lhe de novo, recordando o pesadelo que vivera naquela noite. Pestanejou para conter as lágrimas. Não ia voltar a chorar, agora não. Precisava de manter a mente clara.

Descobriu que o edifício tinha uma arquitectura estranha: era formado por um grande corpo central com forma arredondada, coberto por uma cúpula.

À sua volta, havia pequenas divisões que reproduziam a mesma forma de iglu, como meias bolhas rodeando uma meia bolha maior. Encontrou finalmente a porta principal, de forma oval, que conduzia a um pequeno e silencioso jardim. Mas estava fechada.

Jack abanou a maçaneta, furioso e desesperado, e acabou por dar um pontapé na porta. Magoou-se, mas sentiu-se muito melhor. Continuou a explorar a casa, à procura de uma maneira de sair dali.

Conseguiu entrar em várias divisões, mas havia outras fechadas à chave. Depressa descobriu que as janelas estavam fechadas com algo que parecia vidro, mas muito mais flexível, que abaulava se se empurrasse com o dedo. Contudo, não encontrou maneira de as abrir, nem conseguiu rompê-las. Aquela substância parecia goma, mas era tão leve e transparente como o mais fino cristal.

Deparou-se com uma larga escada em caracol que conduzia ao piso de cima, e decidiu subir. A escada desembocava diante de uma enorme porta coberta de estranhos símbolos, também ela fechada. À esquerda, abria-se uma porta mais pequena que ia dar a um amplo terraço em forma de concha, que cobria todo um lado do edifício.

Jack saiu para o exterior e atravessou o terraço para assomar à balaustrada, de formas suaves e ondulantes. Por baixo havia um jardim e, mais adiante, outro edifício mais pequeno que reproduzia a mesma arquitectura da casa principal. Estava, no entanto, coroado por um enorme obelisco que se erguia no seu centro.

Jack pestanejou, surpreendido. Algumas das estruturas que via desafiavam a lógica da arquitectura convencional, parecendo mesmo contradizer a própria lei da gravidade; contudo, ali estavam, elevando-se sobre o solo, orgulhosas, firmes e seguras.

Olhou na direcção do horizonte. Viu um pequeno bosque, mas também distinguiu os picos de uma serra por detrás das árvores. Voltou-se em todas as direcções, esperando vislumbrar a claridade que denotava a proximidade do amanhecer, para de alguma forma se orientar.

Não a encontrou.

- Que esquisito - murmurou para si mesmo. - Porque é que não fica de dia? Quanto tempo passou?

Procurou a Lua no céu, mas também não a viu. Voltou a abeirar-se da balaustrada, perguntando-se se poderia saltar dali; mas finalmente mudou de ideias: era demasiado alto, e a única coisa que conseguiria seria magoar-se. Talvez o melhor fosse voltar ao piso inferior e tentar escapar de outra maneira. Assim, apressou-se a entrar novamente no edifício.

Mas, quando voltou a passar diante da enorme e elegante porta principal, esta abriu-se com uma chiadeira.

Foram apenas alguns centímetros, mas Jack sobressaltou-se. Não havia ninguém por perto. Encolheu os ombros, pensando que se tratara de uma corrente de ar, e não teve mais dúvidas: entrou.

Encontrou-se numa enorme sala circular de paredes altas cobertas por estantes cheias de livros antiquíssimos. No meio da divisão, havia uma grande mesa redonda de madeira, rodeada por seis cadeirões maravilhosamente entalhados. Na sua superfície estavam gravados os mesmos símbolos estranhos, que se entrelaçavam com desenhos de animais mitológicos e criaturas que nunca vira antes. No centro da mesa havia uma fenda circular ligeiramente iluminada. Jack ergueu os olhos e viu que, mesmo por cima, no tecto da divisão, se abria uma clarabóia redonda, por onde entrava a luz suave das estrelas. Nela havia um vitral com o desenho de três sóis e três luas.

Jack retrocedeu instintivamente, aterrorizado sem saber porquê. Deteve-se e obrigou o coração a acalmar-se. O que era aquilo que o alterara daquela maneira?

Avançou novamente e voltou a olhar para cima. O vitral não tinha nada de especial. Três sóis dispostos em forma de triângulo. Três luas colocadas de maneira a fazer a figura de um triângulo invertido. Ambos os triângulos estavam entrelaçados, e as linhas de cristal que uniam os astros entre si formavam... a figura de um hexágono.

Jack resmungou e voltou a pegar no pendente de Victoria, que ainda tinha ao pescoço, para o observar com atenção, mas a escuridão impediu-o de o ver com clareza.

- Era bom se houvesse alguma luz - murmurou para si mesmo, frustrado.

E de imediato ouviu-se um sussurro e um estalido, e uma luz cálida e irisada inundou a divisão. Jack saltou como se o tivessem beliscado e olhou em redor. Havia seis tochas acesas colocadas ao longo da parede circular.

- Quem anda aí? - perguntou, procurando controlar as batidas loucas do seu coração. - És tu, Shail?

Não houve resposta. Nada se mexeu. Apenas a luz fantasmagórica das tochas tremia e agi ta vá-se, produzindo sombras inquietantes na divisão.

Jack franziu o sobrolho e concentrou-se no pendente. Um hexágono como o do tecto. O que significaria aquilo?

Voltou a olhar para a clarabóia. Os seis astros brilhavam enigmaticamente, provocando dentro de si

uma estranha inquietação. Tinha a sensação de que já vira aquilo antes... num céu estranho e terrífico envolto numa luz da cor do sangue.

Jack sobressaltou-se. Agora lembrava-se! Aquele sonho onde surgia a serpente gigante... recortada contra um detestável céu avermelhado. Mas o que significava tudo aquilo? O que é que aquele símbolo tinha a ver com ele, com os seus sonhos, com a morte dos seus pais?

Inclinou-se para a frente a fim de ver melhor as figuras no vidro da clarabóia e, sem se dar conta, apoiou as mãos sobre a mesa.

Subitamente, surgiu da fenda, no centro da mesa, um feixe de luz intensa, um feixe de luz multicolor que se erguia como uma coluna brilhante na direcção da clarabóia dos seis astros. Jack, assustado, deu uns passos para trás, tropeçou e caiu no chão. Ficou sentado sobre o ladrilho, com a boca aberta, enquanto diante dele se desenrolava uma cena assombrosa.

As luzes que saíram da mesa começaram a girar como um redemoinho, misturando-se e entrecruzando-se, originando cores estranhas e surpreendentes. Giraram e giraram até formar uma esfera brilhante verde-azulada.

Jack demorou uns segundos até compreender que estava a ver um planeta. Ao princípio, pensou que era a Terra, mas aí as luzes definiram-se e o holograma ficou mais perfeito, e Jack viu que aquela geografia lhe era completamente desconhecida. Descobriu outras três pequenas esferas girando em volta da maior, e outras três, maiores, que permaneciam imóveis um pouco mais adiante.

"Os sóis e as luas", pensou Jack, engolindo em seco.

Subitamente, as esferas giraram mais depressa, e Jack teve a sensação de que o planeta estava cada vez maior, até o cobrir por completo. Era como se estivesse a aproximar-se dali a toda a velocidade. Fechou os olhos, atordoado, mas logo os abriu.

E de alguma forma viu-se lá.

Não estava sobre a sua superfície, mas era como se a sobrevoasse. Era uma sensação maravilhosa e sentiu-se exultar de felicidade. Desde pequeno que tinha a obsessão de voar, e uma das experiências de vida que recordava com mais carinho era um voo de avioneta com que fora presenteado por um amigo de seu pai, que era piloto, quando viviam em Inglaterra.

Mas ali não havia nenhuma avioneta. Era apenas ele a flutuar no céu, sulcando o firmamento. Decidiu desfrutar do voo e não o estragar perguntando-se o que estava exactamente a acontecer.

Viu prados verdes e colinas suaves, viu estepes frias e cordilheiras altíssimas, viu um deserto um pouco mais adiante (estremeceu, sem saber porquê), viu um mar infinito, viu cidades de arquitecturas estranhas e fantásticas (e algumas recordaram-lhe a casa de Limbhadl, viu correntes impetuosas e lagos belos e calmos... mas, sobretudo, viu os bosques, extensões intermináveis de enormes árvores que pareciam roçar as nuvens.

E viu as criaturas.

Havia animais vulgares, como ovelhas e cavalos, pastando pelos prados, mas também seres que nunca tinha visto antes. Pássaros estranhos de plumagens coloridas vinham ao seu encontro, e animais que ele acreditava que não existiam erguiam a cabeça para o ver das planuras e clareiras dos bosques.

Jack estava cada vez mais confuso. Perguntava-se como poderia despertar daquele sonho surpreendente, quando os viu.

O primeiro passou junto dele e olhou-o, surpreendido, mas com um clarão de sabedoria nos seus olhos dourados. Jack, aterrado, quis retroceder, e a criatura emitiu um grunhido que soou como uma espécie de gargalhada.

Atrás dele apareceram outros três. Parecia que desciam por detrás das nuvens, por isso não os tinha visto até àquele momento. As suas escamas reluziam ao sol como pedras preciosas brilhantes e cintilantes. As suas poderosas asas batiam o ar provocando redemoinhos à sua volta. Das suas goelas escapava, ocasionalmente, uma espiral de fumo.

Dragões.

Enormes, magníficos, aterradores e belos. Animais míticos que apenas existiam nas lendas e na imaginação das pessoas.

Jack sentiu-se imediatamente fascinado por eles. Quis segui-los, mas já estavam muito longe. Permaneceu quieto, vendo como se afastavam em direcção à luz da manhã.

De repente, pareceu-lhe ouvir um rugido e, de alguma maneira, entendeu que se tratava de uma advertência. Viu que os dragões haviam parado um pouco mais adiante. Pressentiu que algo não estava bem.

As quatro extraordinárias criaturas, surpreendidas no ar, contemplavam um espectáculo aterrador: as três luas tinha emergido no horizonte e moviam-se com uma rapidez anormal, elevando-se em direcção ao alto do firmamento, ao encontro dos três sóis. Jack observou, fascinado e aterrorizado ao mesmo tempo, como os seis astros se entrelaçavam numa conjunção assombrosa que, pensou o rapaz, não acontecia com muita frequência. Aguardou, sustendo a respiração, que formasse a figura que sabia que iam desenhar no céu: um hexágono perfeito.

E, de repente, aconteceu algo terrível.

O primeiro sinal foi uma espécie de som estrondoso que sacudiu céu, terra e mar. O segundo sinal foi a tonalidade vermelho-sangue que o firmamento começou a adquirir.

O terceiro sinal foi o terror dos dragões. Jack viu-os dar meia-volta no ar e fugir, desesperados; fugir não importava para onde, para qualquer parte, para qualquer parte...

O primeiro dragão caiu por terra como um projéctil, subitamente envolto em chamas. Não tardou muito até o segundo e o terceiro terem a mesma sorte do seu companheiro. O quarto dragão voltou-se para ver o que acontecera e lançou um grito de dor, impotência e morte.

Bateu as asas, procurando escapar... para um lugar, entendeu Jack, um lugar onde o poder destruidor dos astros não conseguisse alcançá-lo.

Não o conseguiu. Também irrompeu em chamas, tal como os outros.

Jack sufocou um grito e desceu na direcção dele, para o socorrer...

Teve de travar bruscamente a sua descida para não ser engolido pelo fogo do corpo da criatura. Um furacão de vento lê vou-o para longe, longe, dando voltas sobre si mesmo... Quando se deu conta, estava em queda livre sobre o bosque. Bastou-lhe desejar parar, para o conseguir.

Foi aí que algo rápido e sibilante passou como uma flecha junto dele, e Jack estremeceu sem poder evitá-lo. Entreviu um corpo escamoso por entre as nuvens e pensou que se tratava de outro dragão; mas, quando a criatura se ergueu na sua frente, apercebeu-se do quanto se enganara.

Era uma serpente gigantesca. O seu longuíssimo corpo ondulante dava a sensação de estar a rodeá-lo por todo o lado; sustentava-se no ar através de duas enormes asas membranosas, como as dos morcegos, que pareciam cobrir o firmamento. Uns olhos irisados olhavam-no de uma cabeça triangular, na qual o que mais se destacava eram as presas letais e uma língua bifurcada que produzia um sibilar horrível...

A mesma serpente dos seus sonhos.

Jack retrocedeu com um grito e tentou olhar para qualquer outra parte. Foi então que descobriu que todo o céu estava coberto por milhares de serpentes aladas, todo um exército, que se abatiam sobre aquele belo mundo, agora envolto numa luz avermelhada que não augurava nada de bom.

Jack voltou-se e tropeçou novamente na serpente, e, desta vez, não pôde deixar de fixar-se nos seus olhos...

Gritou.

- Jack!

Jack abriu os olhos e levantou-se de um salto, bastante confuso. Diante dele estavam os olhos da serpente... não, os olhos de Victoria, que o fitava preocupada.

- Que... o que aconteceu? - murmurou, aturdido, quando se deu conta de que continuava na sala das tochas.

Victoria retrocedeu um pouco e Jack olhou em volta. Sobre a mesa ainda se erguia aquela estranha esfera de luz, e nela brilhavam ainda os olhos da serpente... Tremendo, Jack viu como aquele olhar se desvanecia lentamente entre as luzes ondulantes.

- Odeio-as - murmurou, estremecendo. - Odeio as serpentes.

- Tu viste - sussurrou Victoria. - Viste o que aconteceu em Idhún. Jack voltou-se para ela.

- Queres dizer que isso que vi era Idhún?

A rapariga assentiu. Baixou-se para pegar na gata, que se escondia atrás dela, inquieta.

- Também eu não acreditava, no princípio. Aconteceu-me como a ti, não me lembrava de nada. Mas, depois de ter visto o que tu viste, tive uma sensação de... familiaridade...

- Não vais dizer-me - interrompeu Jack - que esse lugar, Idhún, é outro... outro mundo. com dragões, e isso.

- E exactamente o que estou a tentar dizer-te - sussurrou Victoria. - A Alma acaba de mostrar-te algo que aconteceu há três anos: como eles utilizaram a magia da conjunção dos três sóis e das três luas para os seus próprios fins e conseguiram que os dragões e os unicórnios morressem,

para assim poderem regressar a Idhún e tomar o poder...

- Eles?

- As serpentes aladas. Os sheks, como se chamam a si mesmos sussurrou Victoria, atemorizada. - Agora o nosso mundo está debaixo da sua tirania. Viste-as, não foi?

Jack tremia violentamente.

- Não pode ser - murmurou. - Não pode ser. Tinha visto essas serpentes antes, vi-as nos meus sonhos... nos meus pesadelos. Mas como é possível?

Victoria desviou o olhar antes de dizer, a meia-voz:

- Alguns feiticeiros idhunitas conseguiram escapar para a Terra logo após a invasão. Mas as serpentes, através de Kirtash, estão a assassiná-los a todos.

Jack apercebeu-se então de que estava a escutá-la com atenção, aturdido, e sacudiu a cabeça.

- Espera... disseste... feiticeiros? Queres dizer... magos? Mas...

- Shail é um feiticeiro - cortou ela. - Tu viste-o aparecer e desaparecer no ar, como do nada. Como é que achas que te salvou de Kirtash? Teletransportou-se contigo mesmo nas barbas dele. Veio de Idhún com Alsan há três anos, mas está tão fascinado com a tecnologia da Terra que procurou aprender tudo o que pôde. Como pensas que funcionam o computador, a luz, os electrodomésticos, se não há instalação eléctrica?

Jack abriu a boca para responder, mas deteve-se, perplexo, lembrando-se de como tinha procurado interruptores por toda a casa e não os encontrara.

- Shail trouxe toda essa tralha, embora Alsan não lhe ache piada. Fá-la funcionar através da magia. Tinha a teoria de que toda a magia é energia canalizada, e já o demonstrou amplamente, como vês.

- Energia canalizada - repetiu Jack, estupefacto. Victoria assentiu.

- Os seres humanos da Terra deixaram morrer a magia, mas em Idhún ela corre nas veias de muitas criaturas. E aqui, em Limbhad, temos o melhor de ambos os mundos.

- O que queres dizer com isso?

- Que agora mesmo não estás no teu mundo. Limbhad, em idhunaico antigo, significa "a casa na fronteira". Fica numa espécie de limbo espácio-temporal entre Idhún e a Terra. E pequeno; é um micromundo que acaba onde terminam essas montanhas que podes ver da janela. Aqui o tempo está parado; é sempre de noite. Apenas alguns feiticeiros idhunitas sabiam como chegar até aqui, por isso é completamente seguro.

Jack ergueu-se, ainda a tremer.

- Isto não pode estar a acontecer. De certeza que tudo isto é um pesadelo, uma alucinação... não é real. Tenho... tenho de voltar para casa.

E, antes que ela pudesse detê-lo, Jack saiu novamente para a varanda, correu até à balaustrada e subiu por ela, decidido.

- Espera, não faças isso, vais magoar-te! - clamou Victoria. Mas ele não lhe ligou. Saltou, sem hesitar, para o jardim.

Foi uma queda dura. Sentiu que torcera o tornozelo e logo rolou pelo chão, ferindo-se dolorosamente no cotovelo. Levantou-se a custo e olhou para cima. Viu Victoria debruçada na balaustrada, olhando-o com preocupação. com um gesto vago, fez-lhe um sinal de despedida.

Estava livre.

Escondeu a cabeça entre as mãos, desolado. Não podia estar a acontecer, não podia ser. Aquilo não era mais do que um pesadelo, pensou pela enésima vez.

Demorara um bom bocado para atravessar o pequeno bosque e chegar a um dos picos rochosos, que também não eram muito altos. Subira até ao cume, esgotado e ferido, mas triunfante, e olhara mais adiante, esperando ver as luzes de alguma povoação ou a forma serpenteante de alguma estrada.

E deparara com algo aterrador.

Nada.

Absolutamente nada.

Não era um nada feito de negrura, nem de sombras, nem de névoa penetrante. Também não era um deserto infinito, nem uma estepe interminável, nem um oceano sem fim.

Era, simplesmente, nada.

Como uma espécie de barreira invisível que não lhe permitia seguir adiante. E se olhasse para um pouco mais longe, via...

Não sabia explicá-lo. Era como um torvelinho que girava lenta e silenciosamente. Limbhad estava no seu centro, imóvel, um pequeno mundo com alguns quilómetros quadrados de extensão, nos quais cabia um bosque, um caminho, uma cordilheira de pequenos picos montanhosos, um planalto, um pedaço de céu estrelado.

Tal como Victoria dissera.

- Sinto muito - disse uma voz junto dele, com suavidade. - compreendo que para ti não seja fácil aceitá-lo, pelo menos de início.

Jack voltou-se e viu Victoria. O rapaz olhou-a como se ela fosse um fantasma.

- Seguiste-me? Ela assentiu. Jack deixou cair o queixo entre as mãos, abatido.

- Estás ferido - disse então Victoria, em voz baixa.

Jack encolheu os ombros. Para ele era indiferente. Por isso deixou que ela lhe pegasse na mão para examinar os arranhões que fizera quando caíra do terraço.

Contudo, não estava preparado para o que aconteceu a seguir. De imediato viu uma suave luz e sentiu um formigueiro na mão, um formigueiro que lhe subiu pelo braço até ao cotovelo ferido.

- Ei! - exclamou Jack, afastando-se bruscamente do contacto com a sua companheira.

Ela sorriu novamente.

- Olha para as tuas mãos.

Jack assim fez e descobriu, atónito, que não tinha um único ferimento.

- Como...? - Olhou-a com incredulidade. - Foste tu que fizeste isto?

Victoria não respondeu, mas voltou a sorrir. Tomou com suavidade o rosto de Jack nas suas mãos e fitou-o nos olhos. O rapaz começava a estar verdadeiramente fascinado. Os olhares dos dois encontraram-se por um instante, os olhos verdes de Jack, os olhos escuros de Victoria, e ambos sentiram algo estranho, uma rara intimidade, como se se conhecessem desde sempre. Victoria afastou os olhos e interrompeu o contacto visual, mas não retirou a mão. Roçou com a ponta dos dedos um arranhão que Jack tinha na face, provocado por um ramo enquanto ele atravessava o bosque. Dos seus dedos brotou algo morno e Jack voltou a sentir aquele formigueiro agradável. Quando ela retirou os dedos, Jack apalpou a ferida e descobriu que já não a tinha. Maravilhado, voltou a prestar atenção a Victoria, que examinava agora o seu tornozelo. Sem precisar de lhe tirar os ténis, repetiu o processo, e a dor retrocedeu.

Jack ficou parado a olhá-la.

- Como sabias que me doía o tornozelo? Ela riu, travessa.

- Vi que coxeavas do pé direito quando andaste na direcção do bosque. Isso, sim, não é nenhum mistério.

Jack sorriu.

- Que mais coisas podes fazer? - perguntou, interessado. Mas Victoria olhou para as mãos, desconsolada.

- A verdade é que não faço muito mais - confessou. - Na maioria das vezes, os meus poderes curativos apenas saram as feridas superficiais. Não posso fazer grandes milagres. Mas estou a tentar aprender. Shail está a ensinar-me.

- Disseste que Shail e Alsan vieram de Idhún - lembrou Jack. E tu?

Victoria demorou um pouco a responder.

- Não conheci os meus pais - disse finalmente. - Fui criada aqui na Terra, num orfanato. Agora vivo com a minha avó, quer dizer, a mulher que me adoptou. Não sei se os meus pais foram ou não idhunitas. - Fitou-o. - Por isso o meu caso é especial. Não há feiticeiros na Terra, sabes? Os poucos que havia vieram de Idhún, e Kirtash está a aniquilá-los, um a um.

Jack sentiu que um calafrio lhe percorria a coluna vertebral.

- Por isso é que Kirtash atacou os meus pais? - perguntou em voz baixa. - Porque pensava que eram... feiticeiros... que fugiram de Idhún?

Victoria olhou-o em silêncio. Jack tinha a cabeça em água, o cabelo revolto, o olhar perdido em algum ponto do chão e um aspecto desconsolado que a comoveu profundamente.

- Shail contou-me - sussurrou. - Sinto muito.

Jack voltou a cabeça para a encarar. Victoria viu que os seus ombros estremeciam ligeiramente e aproximou-se dele, indecisa. Atreveu-se a tocar-lhe no braço.

-Jack, eu... - começou, mas não pôde continuar. O rapaz desatara a chorar e, embora fosse evidente que tinha vergonha de que uma desconhecida o visse naquela situação, também era claro que precisava de desabafar com alguém. Victoria tentou abraçá-lo, desajeitadamente, sem saber muito bem o que fazer. Jack apoiou a cabeça no seu ombro, agradecido, e continuou a chorar durante um bom bocado. A rapariga tentou sussurrar-lhe palavras de consolo, mas qualquer coisa que pudesse dizer parecia-lhe vazia e sem sentido, de modo que limitou-se a estreitá-lo entre os seus braços, perguntando-se se ele se aborreceria que tomasse tanta liberdade. Mas Jack parecia não se importar. Continuou a dar rédea solta à sua dor até que se foi acalmando, pouco a pouco, talvez por já ter desabafado, talvez por já não ter mais lágrimas.

- Quem me dera poder fazer alguma coisa por ti - disse Victoria, entre dentes, mas calou-se de imediato, envergonhada; não deveria ter dito aquilo, era apenas um

pensamento que se lhe escapara sem querer.

Jack ergueu a cabeça e encarou-a. Já parara de chorar, mas tinha os olhos vermelhos.

- Sinto muito - disse, envergonhado, afastando-se dela. - Sinto muito por esta cena.

- Não sintas, é normal - respondeu ela, incomodada. - Passaste por coisas muito más.

Jack sorriu. Victoria devolveu-lhe o sorriso. Houve um breve silêncio, não desses incómodos e vazios, mas sim o tipo de silêncio que se enche com um olhar repleto de significado.

- O pior - disse então Jack - é que eu é que tive a culpa do que aconteceu aos meus pais.

- Não digas isso - protestou Victoria. - Não é verdade.

- Sim, é. Os meus pais eram pessoas normais, entendes? O meu pai era programador informático; a minha mãe, veterinária. Viajámos muito e vivemos em muitos lugares, mas no final instalámo-nos na Dinamarca, em Silkeborg, perto de onde vive a família da minha mãe. Eles nunca fizeram nada de esquisito, nem mencionaram Idhún, nem nada que se pareça. Agora, eu...

Estremeceu, perguntando-se se deveria contá-lo. Por fim decidiu-se a continuar:

- Às vezes acontecem-me coisas. Coisas que têm a ver com o fogo.

- Que tipo de... coisas?

- Provoco incêndios à minha volta. Não é muito frequente, só me aconteceu duas vezes em toda a minha vida, ou talvez três, acho, porque foi quando era pequeno, embora não me lembre: a minha mãe é que me contou. Acontece quando me assusto ou me chateio...-mas na outra noite aconteceu quando estava a dormir. Tive um sonho muito esquisito... um sonho que se repete, é certo, e que se parece muito com o que vi há pouco nessa vossa biblioteca. Dessa vez vi uma dessas serpentes gigantes... de muito perto e com muita clareza. Confesso que sempre tive fobia de serpentes, e por isso para mim foi um pesadelo muito desagradável. Lembro-me de ter gritado em sonhos...

" Quando acordei, o meu quarto estava a arder. Não me aconteceu nada, porque conseguimos apagar o fogo a tempo, mas os meus pais ficaram muito assustados. E o pior é que, embora não soubéssemos o que tinha provocado o incêndio... para mim era óbvio. As chamas tinham formado um anel à minha volta, eu era o centro, entendes? Eu tinha-o provocado.

Victoria inspirou profundamente. Parecia que ia dizer alguma coisa, mas mudou de ideias e permaneceu em silêncio.

- Acho que se chama pirocinética - prosseguiu Jack. - Provocar um incêndio com a mente. Fiz umas investigações.

- Ou talvez seja magia - disse Victoria a meia-voz. - Devias falar com Shail. É o feiticeiro do grupo. Entende destas coisas, e talvez possa explicar-to.

- Depois do incêndio - continuou Jack -, fui para a escola, como todos os dias, mas tive a sensação de que havia alguma coisa em casa que não estava bem. E quando voltei, à tarde... bem, os meus pais... estavam... - Não foi capaz de pronunciar a palavra; pigarreou para desfazer aquele incómodo nó na garganta, e prosseguiu:

- Não sei quanto tempo se passou desde então. Um dia, dois, talvez três. Como se pode saber neste lugar onde o sol nunca nasce? No entanto... parece que passou uma eternidade.

- Sinto muito - repetiu Victoria em voz baixa; Jack ergueu a cabeça para a fitar.

- A culpa foi minha, eu sei. Estava tudo bem até... ter incendiado o meu quarto, e não sei como raio o fiz, nem porquê. - Olhou para as mãos, desconsolado. - Maldição, já quase me tinha esquecido, estava convencido de que podia ter uma vida normal e... de repente voltou a acontecer-me, e horas depois alguém... atacou os meus pais... Não pode ser coincidência. Fui eu, era de mim que andavam à procura. Nunca me perdoarei.

Enterrou o rosto entre as mãos, desolado. Victoria apertou-lhe o braço com suavidade, procurando consolá-lo. Jack levantou novamente a cabeça e olhou-a.

- Achas mesmo que venho de Idhún? Ela titubeou.

- Não tenho a certeza; a tua história é um pouco estranha. Só há três anos é que os sheks tomaram o poder em Idhún e começou o exílio para a Terra. Se tivesses vindo de lá, lembravas-te, não?

- Claro que sim. Nasci na Terra, tenho provas: fotografias, a minha certidão de nascimento... muita gente poderá dizer-te que existo no meu próprio planeta há treze anos. Além disso - acrescentou, em voz baixa -, todos dizem que tenho os olhos do meu pai. Não posso ser...

- ... adoptado? - sugeriu Victoria, baixinho, adivinhando o que ele pensava; Jack assentiu. - O que é que te faz pensar isso, Jack?

- Pois... - titubeou o rapaz - é o facto de não ser como os meus pais. Faço coisas esquisitas, entendes? E já são demasiadas coincidências. Os incêndios, os sonhos, a visão na biblioteca... ninguém podia saber disso, nunca contei esses pesadelos a ninguém. E agora parece que essas coisas esquisitas estão relacionadas... com Idhún, convosco. Mas os meus pais eram pessoas normais. Então, de onde é que eu vim? Quem sou eu? Porque é que sou assim?

-Jack - sussurrou Victoria -, se os teus pais não fossem idhunitas, Kirtash não os teria atacado. Nunca... nunca faz mal a ninguém que não seja um dos seus alvos.

"Andava à tua procura", lembrou-se Jack.

- Não -.disse Jack. - O alvo era eu, não eles, estou convencido disso. Por muito estranho que me pareça, está claro que tenho alguma coisa a ver com Idhún, embora nunca tenha ouvido falar desse lugar. Mas o quê?

- Acontece o mesmo comigo - disse Victoria, a meia-voz. - Tenho doze anos e vivi sempre na Terra. No entanto, também tive esses sonhos, e Shail diz que tenho aptidão para a magia. Além disso, Kirtash também tentou matar-me. - Inspirou profundamente antes de acrescentar: - Shail resgatou-me. Mesmo a tempo. Nem sequer cheguei a olhar para a cara de Kirtash; se o tivesse feito...

Não terminou a frase.

- Sinto muito - murmurou Jack. - Mas como é que Kirtash nos encontrou? Tem algum radar para descobrir... pessoas como nós?

- Algo do género. Detecta a magia. Isso é difícil num mundo como Idhún, que transborda de magia por todos os lados; mas na Terra, onde é tão escassa, qualquer alteração no tecido da realidade produzida pela magia nota-se muitíssimo mais. Kirtash pode perceber isso. Não sabemos como o faz, mas é capaz de chegar ao lugar onde se produziu o fenómeno em momentos. E nós... bem, nós simplesmente detectamos Kirtash. Sempre que ele se move tentamos alcançá-lo para evitar que ele mate mais alguém, mas vamos sempre atrás, entendes? Nem sempre chegamos a tempo.

- Então eu tinha razão - concluiu Jack em voz baixa. - Eu é que tive a culpa. O incêndio do outro dia... Kirtash deve tê-lo detectado.

- Não, Jack. Não tiveste culpa. Não o fizeste de propósito, e quem sabe... talvez Kirtash já estivesse atrás da vossa pista.

- Não, não, não, a culpa foi minha. - Fechou os olhos, destroçado. - Maldição... toda a minha vida ficou virada do avesso por causa de algo que não entendo e que não posso controlar. Se pudesse voltar atrás... se pudesse mudar alguma coisa...

- Mas não podes, Jack. Não te tortures dessa maneira. És como és e pronto, está bem? Se realmente tens poderes mágicos, não vejas isso como uma maldição, mas sim como um dom com o qual poderás fazer grandes coisas... coisas boas.

Jack ficou em silêncio durante um momento, assimilando as suas palavras. Então lembrou-se de algo que ela dissera e olhou-a, inquieto:

- Mas, se é verdade que Kirtash detecta a magia... e tu acabas de a usar... para me curar... isso não nos põe em perigo?

- Estamos em Limbhad - lembrou Victoria, sorrindo. - Aqui não é perigoso usar a magia; Kirtash não pode detectá-la porque nem sequer sabe como chegar até aqui.

- Mas... como se chega a este lugar? Através de magia?

- Sim e não. Já te falei da Alma?

- Referes-te a essa coisa que, segundo o que disseste, me mostrou o que se passou em Idhún?

Victoria sorriu.

- A Alma é o espírito de Limbhad, o seu coração e a sua mente. E a consciência deste... micromundo, e assim os feiticeiros que criaram a Casa na Fronteira asseguraram-se de que estabeleciam um canal de comunicação com ela. Ao situar-se num mundo que se encontra no limite entre outros dois mundos, a Alma bebe a energia de Idhún e a energia da Terra. Por isso pode mostrar-nos coisas a partir daqui, embora não tudo o que queremos.

- E pode levar-vos de um lugar para outro? Victoria assentiu.

- bom, na realidade é necessário possuir alguma magia para contactar a Alma dessa forma. Quero dizer, qualquer um pode comunicar com ela, mas, para que te transporte, é necessário combinar o teu próprio poder mágico com o dela, embora o trabalho seja quase todo da Alma. E o seu poder não é exactamente como o nosso, o que faz com que seja mais difícil que Kirtash nos detecte. Só Shail e eu podemos fazê-lo. Somos nós que nos ocupamos das viagens de Limbhad à Terra, e da Terra a Limbhad. Na verdade, é fácil.

- Então, qualquer um com poder mágico poderia chegar até aqui, não?

- Não. A Alma é um ser inteligente, que actua como guardiã. Conhece os habitantes de Limbhad, e só permite a passagem a eles.

- E como é que o fazes? Recitas algumas palavras mágicas ou alguma coisa do género?

- Não, basta concentrar-me para contactar com a Alma. Chamo-a mentalmente e ela acode, recolhe-me e traz-me até aqui. Venho sempre que posso, todas as noites e também uma ou outra tarde, para aprender a utilizar a minha magia, com Shail.

- Mas porque é que queres desenvolver a tua magia? Pelo que me contaste, se a utilizares fora de Limbhad, Kirtash encontra-te...

Victoria estremeceu novamente.

- Eu sei, mas, se realmente sou originária de Idhún, Kirtash não tardará em encontrar-me de alguma maneira. E, se o fizer, gostaria de ter alguma oportunidade de me defender. - Respirou fundo. Shail disse-me que só o podemos derrotar através da magia.

Jack calou-se por um momento, a pensar.

- E achas que eu poderia aprender magia? - perguntou por fim.

- Depende de possuíres ou não o dom. Primeiro, Shail terá de verificar se o teu poder sobre o fogo tem a ver com a magia... ou se tem uma origem diferente.

- Então era bom se o pudessem verificar logo - disse Jack, entusiasmado -, porque na verdade preciso de saber isso. Preciso de saber se o que aconteceu aos meus pais foi por minha culpa ou...

- com que então estão aqui - disse uma voz por detrás deles.

Os dois jovens voltaram-se e viram Alsan, sério, sereno e majestoso, como uma estátua grega. Olhou para Jack e depois para Victoria. A rapariga entendeu-o à primeira.

- vou deixar-vos a sós - murmurou. - Têm muito que falar. Alsan não disse nada, e Jack também não. O jovem esperou que

Victoria se afastasse para se sentar junto dele.

- Creio que ainda não me apresentei. Chamo-me Alsan, filho do rei Brun, príncipe herdeiro do reino de Vanissar e líder da Resistência de Limbhad.

Jack sorriu.

- Vá lá... És mesmo um príncipe?

Alsan fitou-o, procurando decidir se Jack estava a gozar com ele ou não. Mas o brilho nos olhos de Jack era amistoso, de maneira que o jovem também sorriu. Parecia

que não estava muito acostumado a sorrir.

- Sou um príncipe. Ou, pelo menos, era. Há três anos que deixei o meu mundo, sob a ameaça de uma das mais terríveis invasões que ele sofreu na sua história. Nem sequer sei se o meu pai ainda está vivo. Pode ser que eu já seja rei. Ou pode ser que o meu reino tenha sido arrasado e que já não reste nada dele nem do meu povo.

Falava num tom desapaixonado, mas Jack percebeu na sua voz uma nota de amargura contida.

- Porque é que fugiste, então? - quis saber.

- Para cumprir uma missão. Deveria deter Kirtash a todo o custo, mas... enfim, as coisas estão a complicar-se um pouco. - Fitou-o nos olhos. - Lamento que não tivéssemos chegado a tempo.

Jack respirou fundo. Depois de ter desabafado no ombro de Victoria, sentia-se mais calmo. A dor continuava lá, mas pelo menos podia ver as coisas com um pouco mais de perspectiva.

- Salvaste-me a vida - disse, sacudindo a cabeça. - Esse tal Kirtash olhou-me nos olhos e eu... soube que ia morrer. E então tu chegaste e afastaste-me para o lado e enfrentaste-o. Agora lembro-me. Não deves pedir desculpa. Eu é que tenho de te agradecer.

Alsan aceitou-o, inclinando a cabeça. Permaneceram os dois em silêncio durante um bocado, contemplando o tranquilo torvelinho que envolvia o micromundo de Limbhad.

- E tudo tão... estranho - murmurou Jack.

- Entendo-te - assentiu Alsan. Hesitou antes de acrescentar: Aconteceu-me o mesmo quando cheguei à Terra. É um mundo demasiado diferente do meu. Acho que nunca chegarei a entendê-lo totalmente.

Jack lembrou-se, por sua vez, do quanto Shail se sentia à vontade com a tecnologia, os idiomas e as roupas terrestres, e sentiu-se tentado a sorrir. Mas não o fez, porque pressentia que Alsan era orgulhoso, e que lhe tinha custado confessar que havia alguma situação que não pudesse superar.

- E agora, que vou fazer? - murmurou. - Shail diz que não posso voltar para casa. Kirtash vai atrás de mim e, agora que penso nisso... se for para casa de algum amigo ou familiar, irei pô-los também em perigo. No entanto - sacudiu a cabeça, desalentado -, não posso ficar aqui para sempre.

- O que queres fazer? - perguntou-lhe Alsan. - Lutar?

- Sim. Não. Não sei, só sei que quero fazer alguma coisa, o que quer que seja. Mas... - Lembrou-se daquela sensação de pânico quando o olhar frio de Kirtash o atravessara; mas o pânico misturou-se com o ódio, gerando um sentimento difícil de identificar. Não poderia enfrentá-lo.

- Posso tratar disso - ofereceu Alsan. - Posso ensinar-te a defenderes-te. Para que, pelo menos, se decidires ir por aí fora, tenhas uma oportunidade.

- A defender-me, como? Como tu? com a espada? Alsan assentiu.

- Mas, segundo Shail, apenas a magia pode derrotar Kirtash objectou Jack, confuso.

- Eu não utilizo uma espada qualquer - sorriu Alsan. - O arsenal de Limbhad está cheio de armas mágicas, algumas míticas, que de alguma forma chegaram até aqui nos tempos antigos.

- Armas mágicas? - repetiu Jack. - Essas coisas existem mesmo? Alsan assentiu, mas não entrou em mais pormenores.

- E não seria mais eficaz uma pistola ou algo do género?

- Sei o que são as pistolas, e não me agradam - grunhiu Alsan, repentinamente sério. - Não há nada de nobre nem de valente em matar à distância. Além disso, Kirtash acabaria contigo antes que conseguisses disparar. Por outro lado, as armas míticas conferem uma certa protecção a quem as usa. O próprio Kirtash usa por vezes uma espada mágica.

- Sim, eu vi-o - murmurou Jack, sombrio.

- E até os assassinos como ele devem cumprir as leis que regem esse tipo de armas. A primeira delas é que, se duas espadas míticas se encontram, deve haver um duelo leal entre elas. Embora odeie admiti-lo, Kirtash é um grande lutador, apesar de ser tão jovem. Mas a mim também me treinaram bem. E pode ser que algum dia consiga vencê-lo por essa via.

Jack calou-se. Ficou durante um bocado a observar os limites de Limbhad, pensativo. Alsan olhou-o, à espera de que falasse. Apercebeu-se de que Jack já não tinha aquele aspecto desconcertado e desvalido com que chegara a Limbhad. Franzira o sobrolho e os seus olhos brilhavam, alimentados por uma raiva intensa e uma determinação de ferro.

- bom - disse Jack por fim, lentamente. - Em primeiro lugar, quero saber se posso ou não aprender magia. Também gostaria de descobrir qual é, exactamente, a minha relação com Idhún, porque preciso de saber quem sou, porque sou assim e porque é que... porque é que os meus pais morreram. Mas, em todo o caso... - acrescentou, olhando-o de soslaio -, também gostaria que me ensinasses a lutar com a espada.

Alsan anuiu, satisfeito.

- Então, queres juntar-te à nossa causa? Jack voltou a cabeça e fitou-o, pensativo.

- Vocês ajudam-me a procurar respostas?

- Iremos ajudar-te em tudo o que estiver ao nosso alcance, Jack. O rapaz sorriu. Não era um sorriso de alegria.

- Então contem comigo.

 

               VICTORIA

Era uma tarde fria e desagradável. O Outono chegara em força; uma chuva fina caía sobre Madrid, a humidade penetrava até aos ossos e o vento virava os guarda-chuvas ao contrário. Pessoas, ruído, fumo, pressas... "Este é o meu mundo", pensou Victoria, contemplando a multidão que se apressava pela Gran Via. Estremeceu. Por vezes odiava o seu mundo, ele assustava-a, e sabia que isso não era bom, porque não deveria viver de costas para ele. Mas não podia evitá-lo.

- Victoria - chamaram-na. - Victoria, estás nas nuvens.

Ela voltou à realidade e olhou para as suas duas colegas. As três vestiam ainda o uniforme escolar e tinham ido ao centro da cidade para comprar os materiais de que precisavam para realizar um trabalho. Ainda nem tinha passado uma semana desde o começo das aulas e já tinham deveres para fazer. As outras duas raparigas tinham estado a falar acerca de ir às comprar depois, ou ao cinema, ou simplesmente tomar alguma coisa num café. Victoria escutara-as sem muito entusiasmo. Não eram amigas, e era evidente que lhes era indiferente se Victoria entrava nos planos ou não. Mas ainda assim, por cortesia, disseram-lhe:

- Estávamos a dizer que era melhor irmos ao cinema, não? Que dizes?

- Vão vocês; tenho muito que estudar.

- Mas se não temos aulas amanhã...

- Sim, mas... a sério, não me apetece muito.

As outras duas raparigas cruzaram o olhar e reprimiram um sorriso. Victoria era esquisita, toda a gente o sabia. Não tinha amigas na escola e não parecia necessitar delas. Era silenciosa e passava o dia encerrada no seu próprio mundo. Até parecia que não gostava de companhia.

A escola que as três frequentavam era um colégio privado, feminino, muito caro, situado nos arredores de Madrid. Era um enorme edifício lúgubre e cinzento, de paredes grossas, que parecia de outra época, tanto por fora como por dentro. As alunas queixavam-se frequentemente de que os professores tinham umas ideias muito antiquadas e eram muito severos, e invejavam os rapazes e raparigas que estudavam nas escolas públicas ou, simplesmente, em colégios onde havia mais liberdade. Mas Victoria não se queixava nunca. As normas do colégio não a incomodavam, nem o uniforme, nem a estreiteza de ideias dos seus superiores. Tinha tudo aquilo como adquirido. Até a fazia sentir-se segura, a salvo.

Sabia que Kirtash andava à sua procura. Por isso, aquele colégio, que lhe lembrava uma fortaleza, que vivia de costas para o mundo, era o seu refúgio no meio de toda aquela loucura.

Na realidade, o seu segundo refúgio; o primeiro era Limbhad, a Casa na Fronteira.

Na escola não lhe era difícil tirar boas notas, porque era inteligente e aprendia rápido, mas também não se esforçava tanto quanto podia. Limitava-se a ser cumpridora com os seus trabalhos e a fazer o que se esperava dela. Em troca, pedia apenas tempo, espaço e silêncio para sonhar.

Para sonhar com a magia. com coisas impossíveis. com Idhún.

- Então, vais para casa? - perguntaram elas.

- Acho que sim. Disse à minha avó que não demorava muito. Nova troca de olhares.

Todas tinham ouvido falar de Allegra dAscoli, a "avó" de Victoria, uma excêntrica e endinheirada dama italiana radicada em Espanha, que, apesar da sua idade avançada, decidira por alguma estranha razão adoptar a menina, que era órfã, quando ela tinha sete anos. A mansão que possuía nos arredores de Madrid era enorme e muito elegante. Mas estava quase vazia, pois nela viviam apenas a anciã, a sua neta adoptiva (desde o início pedira a Victoria que lhe chamasse "avó" e não "mãe"), uma cozinheira, uma criada e um mordomo, que também fazia as vezes de jardineiro. A boa senhora era antiquada e talvez por isso escolhera aquele colégio para Victoria, onde, segundo as suas próprias palavras, "aprenderia a ser uma senhorinha". Claro que as colegas de turma de Victoria não sabiam tantos pormenores. Ao fim e ao cabo, apenas falavam com ela e também nunca tinham estado em sua casa. Mas todos os dias viam a mansão do autocarro do colégio, o jardim perfeitamente cuidado, a grande escadaria de mármore, que fazia Victoria parecer extremamente pequena quando subia por ela, e, no fundo, não a invejavam. Devia ser muito aborrecido viver sozinha numa casa tão grande, no meio do nada, tendo por única companhia uma senhora severa e antiquada.

Mas também não tinham pena dela. Victoria não dava mostras de preferir a companhia de pessoas da sua idade, não fazia nada para se integrar na turma e nem parecia incomodar-se com o facto de a sua avó mal a deixar sair. Era impossível ser mais esquisita, tinham concluído as colegas de turma há já algum tempo.

- Bem, pois então vamos - disseram elas. - Até segunda.

- Até segunda - despediu-se Victoria; deu meia-volta e dirigiu -se para a estação de metro mais próxima, sem olhar para trás.

O que aquelas raparigas não sabiam era que a história da avó era uma desculpa. Embora Allegra dAscoli fosse demasiado idosa e severa para se preocupar seriamente com o facto de a rapariga estar a crescer sem fazer amigos, jamais a teria impedido de sair aos fins-de-semana para se divertir com rapazes e raparigas da sua idade ou de os convidar para sua casa.

Não, Victoria não precisava de uma vida fora do colégio e de casa, porque toda a sua vida estava em Limbhad. com Alsan, com Shail e, ultimamente, com Jack. Aqueles eram os seus verdadeiros amigos, mas deveria manter a sua existência em segredo e, portanto, não podia compartilhá-los com ninguém, nem sequer com a avó.

Apressou o passo. Há quatro meses que Jack chegara a Limbhad, e durante todo esse tempo o rapaz não saíra da Casa na Fronteira. Shail, bastante desconcertado, tinha sido incapaz de explicar a origem do seu poder pirocinético, se é que o tinha, e Jack, por sua vez, não conseguira realizar nenhum dos exercícios de magia que lhe tinha proposto. Por outro lado, Alsan prometera fazer dele um autêntico guerreiro, e ambos passavam uma boa parte do dia a praticar esgrima.

Mas, durante o resto do tempo, Jack aborrecia-se no reduzido mundo de Limbhad e, embora Shail tivesse voltado a sua casa para recolher a sua roupa, a guitarra, o bloco de desenho, alguns dos seus CDs e livros, o certo é que o rapaz aguardava com impaciência que Victoria regressasse do colégio. Ajudava-a com os trabalhos e depois conversavam, ou jogavam no computador, ou brincavam com Dama, a gata de Victoria, que vivia em Limbhad simplesmente porque a sua avó não admitia animais em casa. Ambos se davam muito bem e se entendiam na perfeição, e Victoria preferia mil vezes regressar a Limbhad todas as tardes, para continuar a aprender magia com Shail ou para estar com Jack, do que sair com as suas colegas de turma, fosse qual fosse o destino proposto.

Naquela tarde atrasara-se, porque tivera de fazer algumas compras, mas não estava disposta a demorar-se mais.

Ia imersa nos seus pensamentos e atravessou a rua sem se dar conta de que o semáforo dos peões estava vermelho. Houve uma travagem e buzinadelas, e Victoria regressou à realidade. Viu-se a meio da Gran Via, diante de um carro que estivera a ponto de a atropelar e, confusa, tentou retroceder para o passeio. Mas com um segundo carro foi diferente: travou quando a viu, mas era demasiado tarde. Victoria encolheu-se instintivamente e cobriu o rosto com as mãos.

Houve algo parecido com um relâmpago de luz, de seguida um golpe seco, e Victoria sentiu que ficava sem respiração. Mas, quando voltou a abrir os olhos, viu que na verdade nada a atingira. O carro parara bruscamente a escassos milímetros do seu corpo; o motor fumegava e o capo estava amassado, como se tivesse de facto chocado contra alguma coisa. Mas a rapariga estava intacta.

Victoria arquejou, surpreendida, e olhou para as mãos. Aquilo só poderia ter sido magia. Tinha de contá-lo a Shail o quanto antes.

Ignorando o condutor, atónito, e as pessoas que tinham assistido à cena e que a olhavam, boquiabertas, Victoria pôs a mochila ao ombro e saiu disparada em direcção à entrada do metro, com o coração ainda a bater com força. Também sentia nas veias aquele formigueiro que lhe fazia ferver o sangue de cada vez que utilizava magia. Mas foi-se desvanecendo pouco a pouco, e no final foi invadida por um terrível esgotamento, até que os joelhos se dobraram e teve de se apoiar num poste para poder manter-se de pé. Amaldiçoou a sua própria debilidade. Shail era capaz de fazer coisas assombrosas com magia e normalmente só se sentia assim depois de ter gasto muita energia mágica. Por sua vez, a Victoria bastava qualquer feitiço simples para a deixar bastante cansada.

A arrastar os pés, desceu as escadas da estação de metro. Esperava-a um longo trajecto até à sua estação, e, uma vez lá chegada, teria de telefonar a Héctor. o mordomo, para que a fosse buscar de carro. Poderia fazê-lo dali mesmo, mas o homem demoraria no mínimo três quartos de hora até chegar à Gran Via e outro tanto para a levar até casa. Por outro lado, Victoria gostava do metro.

Deixou-se cair num banco do cais, mas não pôde descansar muito, porque o comboio não demorou a chegar. com um suspiro, levantou-se e entrou na carruagem.

E então aconteceu algo.

De repente, ficou com pele de galinha e os pêlos da nuca eriçaram-se-lhe como se tivesse passado uma corrente de ar gelado atrás dela. Conhecia aquela sensação. Só a experimentara uma vez, dois anos antes, mas não a esquecera.

Pelo canto do olho percebeu uma sombra escura, ágil e elegante que subia para a carruagem no último momento. E soube que ele a encontrara.

Levantou-se rapidamente e desatou a correr até à parte da frente do comboio, abrindo caminho entre a multidão, que a olhava com desaprovação. Atrás dela, aquela figura vestida de negro também evitava os passageiros com uma mestria invejável, e Victoria compreendeu, com toda a certeza, que ele a alcançaria.

O comboio parou na estação seguinte. Victoria continuou a avançar e até chocou de propósito contra um jovem para o fazer cair no chão.

- Ei! - protestou o rapaz. - Tem mais cuidado!

Ela não se desculpou. O seu perseguidor tivera de parar, apenas por dois segundos, para saltar por cima do jovem caído no chão, mas foram dois segundos preciosos que Victoria não pensava desperdiçar.

Chegou ao último vagão e, quando as portas estavam a fechar-se, saltou para fora do comboio.

Mas a pessoa que seguia os seus passos antecipara os seus movimentos e descera do vagão pela porta contígua. Olharam-se.

Victoria ficou sem ar.

Era a primeira vez que via Kirtash, o assassino que os seus amigos tanto temiam e odiavam, a pessoa que estivera prestes a matá-la dois anos antes. Na altura não chegara a ver o rosto da morte, mas, naquele momento, no cais da estação de metro, os olhares de ambos encontraram-se por um breve instante, e algo no interior de Victoria se agitou, deixando na sua alma uma marca indelével.

Não era como o imaginara. À primeira vista, parecia um rapaz normal, no entanto, possuía uma elegância quase aristocrática, a segurança de um adulto, a ligeireza de uma pantera e a impassibilidade de um bloco de gelo.

E havia algo nele que a atraía e repelia ao mesmo tempo.

Foi apenas um instante. O instinto de Victoria tomou as rédeas e fê-la dar meia-volta e desatar a correr desesperadamente, correr pela sua vida, para qualquer lado, para longe do assassino. Mas a sua mente conservava ainda as feições daquele rapaz que parecia não ter mais de quinze anos, rodeado por uma aura de magnetismo fascinante, mas de olhar tão frio e imperturbável que parecia desumano. E Victoria soube, de alguma forma, que nunca conseguiria esquecer aquele olhar.

Correu escada acima, evitando as pessoas que desciam para apanhar o metro. Supôs que Kirtash a perseguia, embora não o ouvisse. O rapaz movia-se como uma sombra, como um fantasma, mas não precisava de o ver nem ouvir para sentir na nuca o olhar da morte.

Ofegando, desesperada, Victoria correu pela escadaria e precipitou-se plataforma acima. Estava na estação da Puerta dei Sol, onde confluíam três linhas de metro diferentes. Quando desembocou na intersecção, correu para um lado qualquer, sem se importar com a direcção a tomar. Ouviu o barulho de um comboio a aproximar-se da estação e, quase sem se dar conta do que fazia, escolheu a plataforma de onde chegava o som salvador. Quase tropeçou ao descer as escadas precipitadamente, mas chegou ao cais a tempo de apanhar o comboio. Entrou com um numeroso grupo de pessoas e, ao fazê-lo, agachou-se e andou rapidamente em direcção à porta seguinte, de gatas, para que não a vissem do lado de fora. As pessoas olhavam para ela, mas ninguém disse nada.

Chegou até à porta contígua e voltou-se para ver Kirtash subir para o comboio, uns metros mais à frente. Ele viu-a diante da porta e soube o que ela ia fazer, mas ela já estava com um pé fora da carruagem. Empurrou desesperadamente as pessoas que subiam para o comboio e conseguiu sair, mas com tal impulso que caiu de bruços sobre o cais. Kirtash quis retroceder, mas atrás dele subiam mais pessoas que apertavam o passo e, embora bastasse um olhar para que se afastassem do seu caminho, atemorizadas sem saber muito bem porquê, não chegou a tempo. A porta da carruagem fechou-se diante do jovem assassino. Ele procurou abri-la e quase o conseguiu. Mas o comboio estava já em andamento e abandonou a estação, deixando Victoria no cais.

Os olhares cruzaram-se novamente através do vidro. Kirtash, dentro do comboio, Victoria, no cais, ainda sentada no chão, com o coração a bater com força. Apesar do medo que sentia, a rapariga estava exultante por ter enganado o seu implacável perseguidor; mas, se esperava ver frustração ou raiva no rosto do assassino, sofreu uma decepção. Ele continuava a olhá-la, impassível, e nenhuma emoção- alterara o seu semblante quando o túnel engoliu o comboio e ambos perderam o contacto visual.

Victoria ficou ali por um momento, paralisada, respirando entrecortadamente. Mas sabia que era uma questão de tempo até Kirtash descer na estação seguinte e voltar para a procurar. Tinha de escapar o quanto antes.

Saiu da estação de metro, na Puerta dei Sol, e então apercebeu-se de que deixara o guarda-chuva em algum lugar. Em todo o caso, pensou, molhar-se por causa da chuva era agora a menor das suas preocupações.

Embrenhou-se nas ruas da zona à procura de um táxi.

Victoria entrou em casa e lançou-se nos braços da avó, a tremer de medo.

- Menina! - exclamou ela, surpreendida. - O que se passa contigo?

- No metro... perseguia-me...

- Quem?

Victoria era incapaz de falar. Allegra separou-se dela e olhou-a fixamente.

- Quem, Victoria? - repetiu, muito séria.

Algo no seu olhar acalmou Victoria. A sua avó era severa e forte como uma rocha, e a rapariga sentiu-se a salvo pela primeira vez desde o seu encontro com Kirtash.

- Um... homem - mentiu. - Não sei o que queria, talvez roubar-me... meteu-me muito medo.

Um lampejo de compreensão brilhou nas pupilas da anciã.

- Foi muito longe daqui?

- O quê?

- Se foi muito longe daqui, Victoria. Se poderia descobrir onde moras. Ou ter-te seguido até aqui.

- Não, eu... acho que não, avó. Foi na estação de metro de Sol. Mas...

Não pôde terminar a frase, porque de imediato a avó estreitou-a nos braços, fortemente. A rapariga sentiu-se logo muito melhor.

- Há muita gente esquisita por aí - murmurou. - Não te preocupes, filha. Já passou, está bem? Já estás em casa. Aqui não te vai acontecer nada de mal.

Victoria assentiu, reconfortada. A avó não costumava abraçá-la. Sabia que gostava dela, embora não fosse muito dada a mostrar o seu afecto. Talvez por essa razão, aquele abraço consolara-a profundamente.

Uma vez no seu quarto, Victoria baixou a persiana, tirou os sapatos e tombou sobre a cama, ainda com o uniforme vestido.

Sabia que ninguém a incomodaria. A avó respeitava a sua intimidade. Nunca entrava no seu quarto sem antes bater à porta. Nunca se lembrara de ir vê-la depois do "toque de recolher". Isto acontecia não apenas por a anciã ter as suas normas, mas também, sobretudo, porque confiava nela.

Victoria suspirou, voltou-se de costas para a porta e deixou vaguear os pensamentos.

"Alma", chamou mentalmente.

Aquele formigueiro familiar percorreu-a novamente de cima a baixo. Sentiu algo num recanto dos seus pensamentos, algo semelhante a um assentimento mudo. A Alma escutara-a.

"Leva-me até Limbhad", pediu ela sem palavras.

Mas, quando já sentia a Alma a acolhê-la no seu seio e a envolvê-la como uma mãe a fim de a transportar para o seu refúgio secreto, soaram pancadas na porta.

Victoria hesitou. Geralmente, se batia à porta e ela não respondia, a avó concluía que estava a dormir e não a incomodava. Mas haviam passado menos de cinco minutos desde que se separaram e, além disso, ela estava preocupada. Assim, pediu à Alma que aguardasse um momento e, lentamente, o seu corpo voltou a tomar consistência sobre a cama.

- Sim? - disse, de má vontade. A avó abriu a porta.

- Espero não estar a incomodar. Estavas a dormir?

- Estava quase - sorriu ela. - Não faz mal.

- Estava a pensar... podemos ir à polícia apresentar queixa. Lembras-te de como era esse homem?

A imagem de Kirtash surgiu novamente, nítida, na mente de Victoria. Um jovem ligeiro, rápido e subtil como um felino, vestido de negro, de cabelo castanho-claro, muito liso, que emoldurava um rosto de feições finas mas de expressão impenetrável, e uns olhos frios como um punhal de gelo. Nunca poderia esquecê-lo. Sabia que povoaria os seus piores pesadelos durante muito tempo.

- Não - disse finalmente. - Não me lembro. Foi tudo muito rápido.

Jack lançou uma estocada que não acertou em lado nenhum, mas apressou-se a corrigir o seu erro girando o corpo e baixando os braços para deter o contra-ataque. As espadas chocaram. Jack girou novamente e desferiu um golpe semicircular, mas falhou outra vez. Perdeu o equilíbrio e de seguida sentiu o fio do aço a acariciar-lhe o pescoço.

- Estás morto - escutou junto ao ouvido.

Por um momento não se mexeu. Respirava entrecortadamente e tinha a testa coberta de suor. Então, lentamente, atirou a arma ao chão e levantou as mãos.

- Está bem, ganhas tu outra vez - admitiu, resmungando.

A lâmina da espada afastou-se.

- Não sejas impaciente, miúdo - retorquiu Alsan, sorrindo. Quatro meses de treino não te tornam suficientemente bom a ponto de derrotar um cavaleiro de Nurgon.

Jack reprimiu um esgar. Alsan falara-lhe com orgulho da Ordem de Cavalaria de Nurgon, a comunidade de cavaleiros mais poderosa e influente de Idhún, à qual apenas pertenciam guerreiros da mais alta nobreza e dentro da qual ocupava um posto de destaque, apesar da sua juventude. A honra, o valor e a rectidão eram os três pilares sobre os quais se baseava a ideologia da Ordem, mas os seus cavaleiros também estavam bem treinados e poucos guerreiros conseguiam vencê-los num combate leal.

- Claro - resmungou Jack. - Mas melhorei, não? Admite. No princípio apenas conseguia levantar a espada.

Olhou os braços, orgulhoso da força que se adivinhava neles.

- Vaidoso - troçou Alsan. Jack voltou-se para ele.

- E tu, és o quê? Tens-te em grande conta, mas aviso-te já que não vai tardar muito até te derrotar.

Alsan sorriu.

Nos últimos meses, Jack esforçara-se muito para aprender a manejar a espada, após o fracasso das suas lições de magia com Shail. Na verdade, o rapaz achava que aquilo era muito mais útil e real do que qualquer coisa que o feiticeiro pudesse ensinar-lhe. Não podia deixar de se lembrar que, diante de Kirtash, Alsan dera a cara, enquanto Shail usara o seu poder para fugir.

Durante todo aquele tempo, não conseguira averiguar nada acerca da sua origem ou dos seus supostos "poderes". Abordara a história de Idhún, mas de repente apercebeu-se, para seu desespero, de que tudo era muito estranho e não conseguia encontrar nada que justificasse, ou que no mínimo explicasse, o impiedoso assassinato dos seus pais. com o tempo, a dor e o sentimento de culpa foram-se acalmando ou, pelo menos, convertendo-se noutro tipo de emoção: a raiva e a sede de vingança. Sentia-se vítima de uma injustiça, sentia que lhe haviam roubado a vida sem nenhuma razão, e canalizava todo aquele ódio e frustração para as suas lições de esgrima com Alsan. Algum dia, dizia a si mesmo, estaria preparado para enfrentar os assassinos dos seus pais... e fazê-los pagar.

Mas antes olharia nos seus rostos e perguntaria... porquê.

Porque é que haviam destruído o seu mundo, porque é que tinham tirado a vida aos seus pais e, sobretudo... porque é que ele, Jack, era diferente. Os seus inimigos deviam sabê-lo, e a resposta a esta última pergunta era o motivo pelo qual tinham tentado matá-lo.

Alsan era um guerreiro experiente, sereno e prudente, e, embora entrasse frequentemente em choque com o espírito impulsivo e indomável de Jack, no fundo tinha começado a sentir carinho por ele. Por sua vez, o rapaz via Alsan como um modelo a seguir: forte, valente, seguro de si mesmo e, acima de tudo, líder indiscutível da Resistência. Alsan ganhara o respeito de Jack, que tentava aprender com ele tudo o que podia. Ao príncipe agradava a constância e a tenacidade do seu aluno, mas o certo é que,

no fundo, as suas motivações eram diferentes. Se Alsan era um justiceiro, o coração de Jack estava inflamado de ódio e desejo de vingança.

Por isso, embora Jack tivesse aprendido a admirar Alsan como um herói, a ouvi-lo como se fosse um professor e a gostar dele como de um irmão mais velho, sentia que a impaciência o consumia e tinha a sensação de que precisava de algo mais, de que as lições de esgrima não lhe chegavam.

Recuou a sua espada e olhou-a, pensativo.

- Porque é que não... - começou, mas Alsan interrompeu-o antes que acabasse.

- Não insistas, Jack. Não estás preparado para empunhar uma espada mítica.

Jack estava à espera daquela resposta, mas daquela vez tinha uma réplica preparada:

- Se é que essas espadas existem, porque ainda não as vi. Alsan voltou-se para ele.

- Não me provoques. Sabes perfeitamente que existem. Viste-me lutar com uma delas contra Kirtash.

- Não estava a prestar atenção. Porque é que não me deixas pelo menos vê-las?

Alsan ficou em silêncio por um momento, a meditar.

- Está bem - disse, por fim -, suponho que não há mal nenhum nisso.

Jack dirigiu-se rapidamente ao fundo da sala, não fosse o amigo mudar de opinião, e aguardou à frente de uma pequena porta de ferro adornada com figuras de dragões. Alsan pegou na chave e abriu a câmara onde se guardavam as armas míticas. Jack entrou atrás dele, algo intimidado. Era a primeira vez que passava por aquela porta, a qual exercera sobre ele um misterioso fascínio praticamente desde o primeiro dia.

O que viu no interior da câmara surpreendeu-o.

Era uma divisão circular, como a maior parte das divisões da casa de Limbhad. As paredes estavam cobertas de vitrinas e cavidades que continham todo o tipo de armas brancas: adagas, espadas, lanças, machados... mas não eram armas comuns: os seus cabos estavam cravejados de pedras preciosas e os seus fios reluziam com um brilho misterioso.

- Muitas das armas que estão aqui guardadas foram empunhadas por alguns dos grandes heróis que inscreveram as suas façanhas nas crónicas de Idhún. Não temos a menor ideia de como vieram cá parar. A maioria delas tinha sido dada como perdida.

Jack fixou-se num punhal cujo punho mostrava um rosto talhado, um rosto de olhos rasgados e feições sobre-humanas, que sorria misteriosamente...

-Jack!

Jack voltou à realidade. Junto dele estava Alsan, carrancudo.

- Não olhes para ele, miúdo - advertiu-o. - Está desejoso que o voltem a empunhar; alimenta-se de sangue e está em jejum há vários séculos. E é preciso uma vontade de ferro para o controlar, sabias?

- Estás a brincar - disse Jack, estupefacto.

- Nunca brinco - replicou Alsan, muito sério. - A maior parte das armas míticas tem um espírito, uma alma. Na realidade, não costumo confiar a minha vida a nenhuma arma que pense por si mesma, mas estamos em circunstâncias muito especiais. Não temos outra alternativa.

- E qual é que costumas empunhar?

Alsan deteve-se diante de uma magnífica espada cujo punho tinha a forma de uma águia com as asas estendidas.

- Sumlaris, a Irnbatível - disse respeitosamente. - Foi forjada por e para os cavaleiros da Ordem de Nurgon. Talvez seja por isso que nos entendemos tão bem. Que se saiba, é a única capaz de resistir às estocadas de Haiass, a espada de Kirtash. - Pronunciou o nome da arma do seu inimigo com uma certa repugnância.

- A única? - Jack voltou-se para ele, interessado. Alsan hesitou.

- bom... não exactamente - admitiu o jovem príncipe.

Jack sorriu. Começava a conhecer Alsan e sabia qual o seu ponto fraco. Apesar de parecer evidente que não queria revelar-lhe mais nada, o seu código de honra proibia-o de mentir.

- Há outra?

Alsan franziu o sobrolho, mas guiou-o até uma estátua que representava um homem barbudo imponente que segurava uma espada nas mãos. Jack olhou-o, intimidado.

- É uma imagem de Aldun, deus do Fogo, e, segundo a tradição, pai dos dragões - disse Alsan em voz baixa. - E a espada que segura é Domivat. Há séculos que ninguém a empunha. Diz-se que foi forjada com fogo de dragão.

Jack olhou-a. Era uma arma magnífica. O seu punho, lavrado em ouro, tinha talhada a figura de um dragão de olhos de rubi refulgentes. A lâmina emitia um ligeiro cintilar avermelhado. Parecia que a luz arrancava reflexos flamejantes do metal mágico. Inconscientemente, Jack estendeu a mão.

-Não lhe toques!

Jack retirou a mão.

- Irias queimar-te - explicou Alsan. - Teria de se congelar o punho para que pudesses brandi-la sem te queimares. Talvez Shail possa fazê-lo, mas não acho que seja uma boa ideia.

Jack assentiu, engolindo em seco. Ia perguntar algo mais, mas Alsan virou-lhe as costas e saiu da câmara. Jack seguiu-o, sem vontade de ficar sozinho num lugar onde havia coisas como adagas sedentas de sangue.

Quando voltaram à sala de treino, Jack pegou novamente na espada. Alsan voltou-se para o fitar.

- O que é que queres? Acho que por hoje basta, miúdo.

- Quero continuar.

- Aviso-te já que te vou dar uma tareia. Jack ergueu a sua arma.

- Isso é o que vamos ver.

Todavia, foram interrompidos por um pigarrear. Ambos se voltaram. Shail olhava-os da porta, muito sério.

- Alsan - disse -, temos de falar.

O jovem príncipe pôs de lado a espada de treino e saiu da sala atrás de Shail, sem uma palavra. Jack ficou ali, parado, com a espada na mão e bastante intrigado. Sabia que Alsan, Shail e Victoria falavam frequentemente de coisas que ele não compreendia e que confiavam nele apenas até certo ponto. Até ao momento, aquilo não o havia incomodado, não enquanto a Resistência lhe oferecesse a única coisa que queria naquela altura da sua vida: uma maneira de vencer Kirtash e Elrion, os assassinos dos seus pais, e um refúgio seguro até que estivesse pronto a enfrentá-los. E o resto pouco importava, porque, apesar de tudo, não se sentia parte de Idhún nem partilhava dos ideais da Resistência.

Jack encolheu os ombros e foi tomar um duche frio. Mas quando saiu da casa de banho, com o cabelo molhado, e passou diante de uma porta fechada, ouviu Shail pronunciar o nome de Victoria, e aproximou-se em bicos de pés para encostar o ouvido à porta.

- Então ele encontrou-a - ouviu Alsan murmurar do interior da divisão. - Sabíamos que mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer. E sabes o que deves dizer-lhe: que abandone a sua casa e que venha

viver para aqui, para Limbhad. É a única maneira de estar segura.

- Mas não podemos fazer isso - replicou Shail. - É uma criança, não percebes? Tem doze anos, tem uma casa, uma família, uma vida. Não podemos pedir-lhe que deixe

tudo para trás.

- Kirtash vai matá-la, Shail. Sabes perfeitamente que irá atrás dela. Não é a primeira vez que quase a apanha.

- Da outra vez foi na Suíça. Agora foi em Madrid. Kirtash não tem maneira de saber que é essa a cidade onde vive.

- Por esta altura, não devias ter já aprendido a não o subestimar?

Houve um breve silêncio.

- Perseguiu-a no metro - explicou Shail. - Não a seguiu até sua casa.

- Mas viu-a - fez notar Alsan. - Já sabe como é.

- Sim. Maldição - suspirou Shail. - Kirtash nunca esquece um rosto. Que devemos fazer?

- Estar alerta, talvez - respondeu Alsan após um momento de silêncio. - Pode ser que não se dê ao trabalho de a procurar. No fim de contas, Victoria é apenas uma menina e, como disseste uma vez, o seu poder mágico não é grande coisa. Certamente ela não escaparia com vida se voltassem a encontrar-se, mas para isso teria de a procurar. E sabes que Kirtash não tem tempo para essas coisas porque persegue um objectivo maior.

- Sim. - A voz de Shail soou imediatamente muito aliviada. Sim, é verdade. Por sorte, Kirtash não sabe o que nós sabemos acerca de Victoria: que em algum momento da sua vida se cruzou com Lunnaris. Se o soubesse...

Jack sobressaltou-se. Era a primeira vez que ouvia pronunciar aquele nome, Lunnaris, e escutou com mais atenção.

- ... Se o soubesse, Shail, não tentaria matá-la - lembrou Alsan.

- Iria levá-la consigo para lhe sacar essa informação, e não tenho a menor dúvida de que o conseguiria, apesar de ela não se lembrar. Seja como for, Victoria é a única pista que temos para chegar até Lunnaris. Por isso acho que devíamos protegê-la aqui em Limbhad. Mas, por outro lado... - Calou-se por um momento. - Por outro lado - continuou -, estou a ver Jack aqui fechado todos os dias, sem ver a luz do sol, sem nenhum lugar para onde ir, sem nada para fazer a não ser treinar todo o dia com a espada, e confesso que me sentiria culpado se também condenasse Victoria a uma vida assim. Por mais que ela pareça gostar de estar aqui.

- Agora está muito assustada. Talvez não queira voltar a casa durante algum tempo.

- Não é uma boa ideia. Ou volta antes que alguém dê pela sua falta ou não volta nunca mais. Mas, se demorar a voltar, a avó dela vai ficar preocupada e vai começar a procurá-la, e isso dará pistas a Kirtash e irá levá-lo directamente ao lugar onde ela vive na Terra.

- Então, o que é que propões?

- Deixar que ela decida - disse Alsan, depois de pensar por um momento. - Acho que é a melhor opção. Vai falar com ela e pergunta-lhe.

- Não, agora não - cortou Shail, com firmeza. - De certeza que está com Jack. Precisa de desabafar.

Jack sentiu-se culpado. Há um bom bocado que sabia que Victoria fora atacada por Kirtash e, em vez de ir a correr ver se estava bem ou se precisava de alguma coisa, estava ali, a ouvir atrás da porta. Afastou-se pelo corredor, bastante confuso, e foi procurar Victoria.

Encontrou-a na sala; tinha espalhado os seus trabalhos de Matemática pela mesa, enquanto acariciava distraidamente Dama, a sua gata, que estava acomodada no seu regaço. Jack sentiu uma pontada de nostalgia pela vida que deixara para trás. Algumas horas antes, Victoria vivia ainda num local seguro e podia fazer coisas como ir à escola e estudar Matemática. Jack fechou os olhos e pensou que daria tudo para voltar a estar no seu quarto, a estudar Matemática, para ter uma escola, uma casa onde regressar depois das aulas e uma família que estivesse à espera dele. E perguntou-se se o ataque daquela tarde não teria acabado também com a vida segura e tranquila que Victoria desfrutava para lá de Limbhad. Em todo o caso, parecia evidente que ela se pusera a fazer os trabalhos para ter algo em que pensar e esquecer o quanto antes aquele encontro com Kirtash.

Contemplou-a por um momento, carinhosamente, e pensou em como estivera tão perto de a perder naquela tarde. Só de pensar nisso, estremeceu.

A rapariga levantou a cabeça, ao sentir que ele estava a observá-la.

- A Matemática só dá problemas - sorriu ela.

Jack devolveu-lhe o sorriso.

- Queres que te ajude? - ofereceu.

Sentou-se junto dela e deu uma vista de olhos pelos seus apontamentos. Dama saltou para cima da mesa, para ver o que estavam a fazer, e Jack afastou-a delicadamente. Viu Victoria estremecer, e encarou-a.

- Estás bem? Tens frio?

Cobriu os ombros da rapariga com o seu próprio casaco. Victoria gostava daqueles gestos, gostava da forma como ele cuidava dela sem fazer de "irmão mais velho", como Shail e Alsan, mas sim, simplesmente, tratando-a com o carinho e a confiança de um bom amigo. Olhou-o por um instante e de imediato sentiu-se bastante unida a ele sem saber porquê. Alsan e Shail eram mais velhos do que Victoria, tinham nascido e crescido em Idhún e não podiam compreender o que significara para ela que eles tivessem irrompido na sua vida. Mas Jack sim, porque, além de ter mais ou menos a mesma idade, acabava de passar por uma experiência similar. Entendiam-se bastante bem, no entanto, às vezes parecia que aquela amizade não chegava a consolidar-se porque Jack estava demasiado obcecado com o seu treino como guerreiro.

- Obrigada - disse, e tentou voltar aos exercícios de Matemática. Mas Jack pusera o caderno fora do seu alcance e obrigou-a a olhá-lo novamente.

- Sei o que se passou - sussurrou. - Estás bem? Esse desgraçado fez-te algum mal?

Victoria apercebeu-se de que Jack estava muito sério, extraordinariamente sério, e sentiu um estranho calor por dentro.

- Não - respondeu. - Não chegou a alcançar-me.

Mas estremeceu novamente ao recordá-lo. Jack conhecia essa sensação, esse frio que se sentia depois de se ter visto Kirtash de perto e que não desaparecia simplesmente por se abrigarem ou aproximarem do fogo. Por isso, abraçou-a, procurando transmitir-lhe algum calor.

E funcionou. Victoria fechou os olhos e deixou-se levar pelo seu abraço, sentindo como o calor de Jack derretia a pouco e pouco o gelo que envolvera o seu coração.

- Melhor? - perguntou Jack.

Victoria assentiu, embora não quisesse que Jack se afastasse dela. Mas o rapaz não o fez. Pelo contrário, abraçou-a com mais força.

- Como é que ele conseguiu encontrar-te? Victoria hesitou.

- Fiz... algo. Algo mágico, suponho. Havia um carro que estava quase a atropelar-me, e devo ter criado uma espécie de escudo invisível para me proteger do choque. Nem sequer sei que tipo de feitiço utilizei, porque não me lembro de ter pronunciado as palavras. Contei a Shail e ele disse que se chama a isso "magia instintiva". Mas que sorte a minha; foi a única vez que consegui fazer algo parecido com um feitiço, e tinha de ser na Terra! E nem sequer me lembro de como foi. E, como se já não bastasse, em poucos minutos, Kirtash...

Calou-se de imediato. Parecia que balbuciava.

- Podes contar-mo, se quiseres - animou-a Jack.

Victoria respirou fundo e relatou-lhe tudo o que acontecera naquela tarde; Jack escutava-a, sério e taciturno.

- Porque não vieste directamente para Limbhad? - quis saber, quando Victoria terminou de falar. - Não teria sido mais simples do que desatar a correr?

- Preciso de concentração para contactar com a Alma. Shail pode fazê-lo a toda a hora, mas comigo não funciona.

O seu rosto corou, e baixou a cabeça. Sentia-se muito envergonhada por não estar a cumprir as expectativas de Shail relativamente à aprendizagem de magia. Apesar de o jovem feiticeiro não lhe exigir muito, Victoria odiava decepcioná-lo. No entanto, fazia-o constantemente, todos os dias. Pensava-se que ela possuía o dom da magia, mas havia muitas coisas que o seu poder não conseguia alcançar. Shail esforçava-se por lhe ensinar o que ele considerava feitiços simples, e Victoria esforçava-se por aprendê-los... sem resultado. A sua magia curativa funcionava sem nenhum problema, o seu espírito fundia-se com a Alma de Idhún quando queria... mas era tudo.

"Não consigo", dizia a Shail frequentemente, desanimada. "É como se me escapasse por entre os dedos."

"Não importa", respondia sempre Shail. "Aqui a magia não funciona da mesma maneira que em Idhún."

Mas Victoria importava-se. Queria desesperadamente que Shail tivesse orgulho nela.

Sacudiu a cabeça para evitar pensar nisso, mas, uma vez mais, a lembrança de Kirtash invadiu a sua mente, e isso era ainda pior.

- Desta vez esteve quase a apanhar-me - sussurrou, assustada, e Jack lembrou-se de que Victoria lhe falara uma vez do seu anterior encontro com Kirtash, embora nunca lho tivesse descrito em pormenor, porque não gostava de o recordar.

Mas dava a sensação de que ela precisava de falar, por isso Jack arriscou dizer:

- E o que aconteceu da outra vez? Como te encontrou?

Victoria hesitou por um momento. Na realidade, queria confiar nele, queria contar-lhe todos os pormenores da sua história. Ergueu a cabeça, fitou-o, e viu que os seus olhos verdes estavam fixos nela e que ele estava a prestar-lhe toda a atenção; assim, começou a falar.

Tudo começara cinco anos antes, quando ainda vivia num orfanato dirigido por freiras, perto de Madrid. Ela tinha então apenas sete anos e um menino caiu do alto do escorrega no pátio do recreio. O menino chorava e gritava com o braço numa posição estranha e uma ferida aparatosa na testa, e ela não conseguia suportar mais aqueles gritos...

Quando as freiras chegaram, encontraram o ferido perfeitamente são e muito confuso, olhando para Victoria com desconfiança. À sua volta, formara-se um círculo de órfãos, mantendo-se a uma distância prudente, que os observava num silêncio quase religioso.

Os dias seguintes foram terríveis para a menina. Os seus colegas começaram a tratá-la de maneira diferente; os adultos limitaram-se a tratá-la como se não tivesse acontecido nada, porque se recusavam a acreditar na versão das crianças. Mas Victoria não se importava minimamente com isso. Não, o que na realidade a preocupava era essa sensação... de ter despertado um animal adormecido, de ter aberto a caixa de Pandora, de ter feito com que algo formidável e poderoso se fixasse nela. Tornou-se uma miúda medrosa, quase paranóica; tinha a sensação de que a vigiavam, de que de repente viriam buscá-la, porque relevara a sua verdadeira natureza. Passava as noites acordada, sem conseguir dormir, atenta ao mais pequeno murmúrio, tremendo debaixo dos lençóis, sem se atrever a fechar os olhos, com medo de que viessem buscá-la.

Mas não aconteceu nada... tirando o facto de que, algum tempo depois, alguém a tirou do orfanato. Tratava-se de Allegra dAscoli, que financiava generosamente as obras de caridade das freiras da ordem e que, apesar de não ser propriamente jovem, decidira adoptar a menina.

A mulher começara a sentir afecto por ela quase de imediato. Victoria era calada e silenciosa, mas educada, calma e agradável, perfeitamente moldável. Nunca lhe dera nenhum desgosto. As suas professoras nunca tinham dito nada de mal sobre ela. As notas que tirava eram boas.

Mas continuava a ter medo de algo inexplicável. Vários psicólogos e educadores, primeiro no orfanato e depois no colégio, tinham-se esforçado por explicar-lhe que não havia nada de errado, que ela não tinha poderes especiais, que ninguém andava à sua procura para a matar, porque ela não era uma bruxa e não estavam na Idade Média, mas sim às portas do século XXI.

Victoria acabara por acreditar neles.

Todavia, as dúvidas continuavam a torturá-la, até que por fim aconteceu o inevitável.

Nunca mais iria esquecer aquela clara manhã de Verão, há dois anos. Ela e a avó tinham ido de férias para uma estância suíça. Victoria juntara-se a uma excursão à montanha que o hotel organizara. Desviara-se um pouco da rota ao ouvir um grito e chegara lá antes de qualquer outra pessoa. Descobriu que se tratava de uma mulher inglesa que caíra num precipício. Estava junto a um penhasco, inconsciente, e tinha uma feia ferida na têmpora. Victoria não teve dúvidas. Utilizou o seu poder.

E curou-a.

Depois, aconteceu tudo muito depressa.

Pressentiu que estava em perigo pelo simples facto de ter curado aquela mulher. O seu sexto sentido disse-lhe que atraíra a atenção de alguém muito perigoso. Levantou-se apressadamente e desatou a correr.

Embrenhou-se no bosque. Sentia que alguém a seguia. Pressentia uma respiração gélida a aproximar-se cada vez mais. Sabia que não demoraria a alcançá-la, e então...

Então chegara Shail e levara-a dali.

Para Limbhad.

Desde aquele momento, a sua vida tinha mudado radicalmente. Não chegara a ver o rosto da morte, mas tinha sentido a sua presença demasiado perto. Kirtash não conseguira capturá-la daquela vez.

Depois de Alsan e Shail lhe terem explicado o que estava a acontecer e por que razão não devia voltar a utilizar o seu poder, Victoria regressou ao hotel suíço. Por sorte, a avó estava já a fazer as malas; discutira com o gerente do hotel por um motivo qualquer e decidira, aborrecida e ofendida, dar as férias por terminadas. Victoria agradeceu aquela coincidência, e o facto de a avó ter mudanças de humor tão bruscas. As duas regressaram a Espanha naquele mesmo dia, e a rapariga pôde por fim afastar-se daquele pesadelo.

Mas, a partir daí, nada voltou a ser igual, porque não estava só no mundo. Tinha Shail e Alsan; tinha Limbhad e tinha Idhún. Desde o início, aplicara-se com entusiasmo para descobrir mais coisas sobre Idhún, de onde vinham os seus novos amigos, e o jovem feiticeiro convertera-se no irmão mais velho que ela nunca tivera.

- E é tudo - concluiu Victoria. - Desta vez Kirtash encontrou-me demasiado perto de minha casa. Não sei se deva voltar ou ficar aqui...

- Em relação a isso não posso ajudar-te - respondeu Jack. - Eu, por exemplo, não posso voltar.

Victoria encarou-o por um momento.

- Compreendo - disse.

- Não posso decidir por ti, Victoria, mas quero que tenhas em conta que se optares por ficar aqui e abandonar a tua casa, não poderás voltar nunca mais. Não acho

que seja uma decisão que devas tomar de ânimo leve.

Victoria baixou a cabeça e mordeu o lábio inferior, pensativa.

- Ei! -Jack fê-la erguer os olhos; os seus olhos verdes cravaram-se nos dela, com uma seriedade imprópria para um rapaz da sua idade. - O que quer que decidas, sabes que nós estaremos sempre aqui. E, logo que me deixarem juntar-me às missões de busca, logo que me derem uma espada, poderei também defender-te e lutar ao teu lado. Não vais estar sozinha, está bem? Não te abandonaremos à tua sorte. Já sabes.

Victoria sorriu.

- Obrigada, Jack. Tens razão. Não há motivo para pensar que a minha casa já não é segura. Voltarei para a minha avó. Só terei de ter mais cuidado de agora em diante.

Houve um silêncio entre os dois. Jack lembrou-se então da estranha conversa que ouvira às escondidas:

- Hmmm... Victoria, posso perguntar-te uma coisa?

- Claro.

- Quem... quem é Lunnaris?

De repente, Victoria ficou rígida e afastou-se dele.

- Não sei - respondeu, algo brusca.

- Não queria ser indiscreto - murmurou Jack, confuso. Victoria arrependeu-se imediatamente por ter sido tão seca. Jack

não podia saber...

"Olhei-a nos olhos", dissera Shail quando lhe falara de Lunnaris pela primeira vez. "Olhei-a uma vez nos olhos e nunca pude esquecê-la. Sei que está aqui, em algum lugar. E acho que te cruzaste com ela em determinada altura da tua vida, embora agora não te lembres."

Não, Victoria não se lembrava dela. Mas tinha a certeza de que, se a tivesse visto, não a teria esquecido. E apesar de compreender perfeitamente a importância que Lunnaris tinha para a Resistência, também sabia que para Shail a busca era algo pessoal, muito pessoal. Não podia evitar sentir-se um pouco ciumenta e, inclusivamente, nos seus piores momentos, chegava a suspeitar que Shail a protegia apenas porque ela poderia conduzi-lo de novo até à sua querida Lunnaris, embora, no fundo, soubesse que isso não era verdade.

Mas Jack não podia saber de tudo isso.

- Sinto muito - desculpou-se. - A culpa não é tua. É que hoje... bom, estou muito nervosa. Não sou eu. E dentro em breve terei de voltar para casa porque está na hora de jantar, e estou... assustada, sabes bem.

- Não deves estar - disse Jack. - Não permitirei que Kirtash te faça mal.

Victoria abriu a boca, mas não foi capaz de dizer nada.

- E - acrescentou Jack - estou convencido de que algum dia estarei preparado para lutar contra ele. E nesse dia acabarei com a sua vida, juro-te; para que nem eu, nem tu, nem ninguém volte a ter medo por sua causa.

Victoria sentiu um novo calafrio; mas desta vez não foi devido à lembrança de Kirtash, mas sim à raiva e ao ódio que percebera nas palavras do seu amigo.

 

           "NÃO ESTÁS PREPARADO"

Jack não conseguia dormir. Tinha sincronizado o seu relógio com a hora da cidade de Victoria; assim assegurava-se de estar acordado de tarde, quando ela chegava, e tinha um horário mais ou menos racional na perpétua noite de Limbhad. Alsan e Shail eram mais caóticos nesse sentido. Dormiam quando tinham sono, comiam quando tinham fome. Embora Jack não saísse de Limbhad, aqueles dois atravessavam frequentemente a Porta interdimensional. Explicaram-lhe que a entrada para Idhún tinha sido bloqueada e, portanto, estavam ali presos, mas isso não os impedia de viajar para a

Terra, onde procuravam adiantar-se a Kirtash, quando este empreI endia uma das suas mortíferas expedições, ou seguiam diversas pisI tas que Shail descobria na Internet. Jack pressentia que os seus amigos procuravam algo mais do que feiticeiros idhunitas exilados, mas nunca lhes fizera perguntas a esse respeito. O mais certo era que não lhe respondessem.

As missões de reconhecimento de Alsan e Shail podiam levá-los a qualquer ponto do planeta, onde poderia ser de noite ou de dia, por isso há muito tempo que tinham renunciado a tentar adaptar-se a qualquer espécie de horário.

Por isso, quando Victoria regressou naquela noite, à uma da manhã, hora de Madrid, Jack estava a tentar adormecer; mas Alsan estava na biblioteca, e Shail no escritório a navegar na Internet.

Jack sentiu-se bastante aliviado quando ouviu a voz de Victoria a falar com Shail. Chegara a recear que o seu conselho não tivesse sido adequado; imaginava a amiga a regressar a casa e a encontrar Kirtash, à espera dela... para lhe fazer uma surpresa parecida com aquela que ele mesmo tivera ao voltar a casa, numa noite de Primavera, quatro meses antes.

Voltou-se e enterrou a cara na almofada. Aquela possibilidade era arrepiante. Agora que perdera tudo, apenas lhe restava o que havia na Casa na Fronteira; o seu círculo fora drasticamente reduzido a três pessoas e um gato, e a simples ideia de perder um deles era aterradora. Sabia que Alsan e Shail poderiam cuidar de si sozinhos, mas Victoria...

Imaginou-a, uma vez mais, a correr pelos corredores do metro, fugindo da morte, e os seus punhos crisparam-se quando voltou a ser invadido por aquela sensação de raiva e impotência. O seu ódio a Kirtash ardia mais forte que nunca no seu coração. Ao fim de quatro meses, quase esquecera os traços de Elrion, o feiticeiro; mas, de vez em quando, a frieza dos olhos azuis de Kirtash ainda o perseguia em sonhos.

A casa voltou a ficar em silêncio, e Jack pensou que Victoria tinha ido para o seu quarto. Tinha um quarto só para ela em Limbhad e a maioria das vezes preferia dormir ali do que fazê-lo na mansão da avó, onde se supunha que deveria estar. Jack não podia culpá-la. Em Limbhad, todos se sentiam mais seguros.

com um suspiro, o rapaz levantou-se, com o cabelo despenteado, e dirigiu-se para o quarto de Victoria. Mas deteve-se, indeciso, diante da porta entreaberta, ao aperceber-se de que ela se tinha deitado. Olhou-a por um momento, perguntando-se se já estaria a dormir. Estava estendida na cama, de costas para ele; sob a luz suave que entrava pela janela, Jack pôde ver os seus ombros a agitarem-se num soluço silencioso.

Sentiu um aperto no coração e odiou ainda mais Kirtash por aterrorizar uma miudinha que, fosse ou não fosse idhunita, não podia de maneira nenhuma constituir uma ameaça para ele. E jurou a si mesmo que não descansaria até ver o seu inimigo morto.Resistência esteve em alerta nos dias seguintes, mas Kirtash parecia ter-se esquecido de Victoria, porque não voltou a ser visto em Madrid. De facto, as notícias que tiveram dele procediam de um local bastante mais remoto.

Uma noite, um grito de Shail vindo da biblioteca alertou os habitantes da Casa na Fronteira:

- Alsan!

Jack e Victoria estavam a dormir nos respectivos quartos, mas ouviram-no e acordaram imediatamente. Quando Jack saiu para o corredor, encontrou-se com Shail,que descera a escadaria a toda a velocidade e corria na direcção do estúdio. Alsan viera já ao seu encontro, alerta.

- Onde? - perguntou ao amigo.

- Xingshan, na China - respondeu Shail. Alsan assentiu.

- vou à sala de treino buscar armas. Volta para a biblioteca e vê se consegues analisar um pouco o terreno através da Alma.

Shail disse que sim com a cabeça. Alsan saiu disparado em direcção ao arsenal.

Jack sabia exactamente o que estava a acontecer, porque já passara por isso duas vezes desde a sua chegada a Limbhad. A Alma localizara Kirtash em alguma parte do mundo, e o jovem assassino não se deslocava sem uma boa razão. Normalmente, as suas razões relacionavam-se com a implacável perseguição a que submetia os idhunitas exilados na Terra. Sem dúvida, desta vez descobrira um deles nalguma povoação remota da imensa China. Em todo o caso, a Resistência devia procurar chegar até ele antes que fosse demasiado tarde... como fora para os pais de Jack.

Shail voltou-se para Victoria, que se juntara a Jack no corredor e observava a cena sem intervir.

- São boas notícias para ti, Vic - disse-lhe o feiticeiro. - Kirtash está muito longe de Madrid. Já não anda à tua procura.

Victoria assentiu, respirando fundo. Shail estava pronto para se dirigir à biblioteca, quando a rapariga o segurou pelo braço e o fitou.

- Shail - disse-lhe. - Por tudo o que te é mais sagrado, tem cuidado.

O jovem assentiu, bastante sério.

Jack não aguentou mais. Deu meia-volta e seguiu Alsan em direcção ao arsenal. Encontrou-o na sala de treino, quando já regressava carregando Sumlaris, uma espada curta e um par de adagas.

- Espero que uma dessas seja para mim - disse-lhe Jack, muito sério.

Alsan lançou-lhe um olhar rápido.

- Nem penses, miúdo. Ainda não estás preparado. Jack sentiu que a cólera o invadia.

- E quando é que vou estar? - atirou. - Estou aqui fechado há quatro meses sem ver a luz do dia! Não suporto ficar aqui enquanto vocês os enfrentam, uma vez e outra! Preciso de... fazer alguma coisa!

- Estás a fazer, Jack. Estás a treinar.

- Mas isso não me chega! - exclamou Jack. - Se realmente pertenço à Resistência, deixa-me ir convosco!

- Victoria também não nos acompanha nas missões e está na Resistência há mais tempo do que tu.

- Mas Victoria ainda é uma miúda!

- Só tem menos um ano do que tu.

- É diferente, ela não sabe manejar uma espada, e eu sei.

- Não, Jack. Não estás preparado. É a minha última palavra. - E Alsan afastou-se em direcção à porta.

Jack sentiu que o seu corpo era inundado pela raiva e impotência.

- E porque é que não me dizes o que realmente pensas?- gritou-lhe. - Porque é que não me dizes a verdade na cara, ha? Que sou um fedelho e não vos sirvo para nada?

Alsan voltou-se para ele, com um suspiro exasperado.

- Sabes que isso não é verdade. O rapaz olhou-o, quase com ódio.

- Sim, é. Disseste-me que podia defender-me, mas tens-me aqui fechado e não me deixas demonstrar o que posso fazer. Mentiste-me!

- Falamos disso quando eu voltar. Agora estou com pressa: a vida de alguém pode correr perigo e cada minuto é crucial. Lembra-te de que no teu caso, se tivéssemos

chegado um pouco mais tarde, ter-te-íamos encontrado morto.

- E de que serviu, ha? - exclamou Jack, com raiva. - Salvaste-me a vida para me encerrares nesta tumba. Mais valia estar morto.

Foi muito rápido. A mão de Alsan disparou em direcção ao rosto de Jack, e a bofetada fê-lo cambalear e permanecer quieto por um momento, atónito, sentindo os ouvidos a zunir. Pestanejou para conter as lágrimas e levou uma mão à face dorida.

Alsan olhava-o fixamente, bastante sério. Quando falou, não o fez com fúria, nem sequer com irritação, mas sim com calma e frieza:

- Se queres ser útil à Resistência, Jack, ficas aqui. Morto não nos serves de nada.

Alsan saiu da sala e deixou Jack para trás. O rapaz ficou quieto, tremendo de raiva, sentindo-se humilhado, mas, acima de tudo, atraiçoado. Não demorou muito até sentir aquela espécie de ondulação que sacudia o ar quando alguém abandonava Limbhad, e soube que Alsan e Shail tinham ido sem ele.

Regressou ao quarto, bateu com a porta e estendeu-se na cama.

Estava furioso com Alsan por o tratar como um miúdo, estava

furioso com Shail por o apoiar, estava furioso até com Victoria, por aceitar tão facilmente aquele papel passivo. Estava furioso com Kirtash, simplesmente por existir.

E, sobretudo, estava furioso consigo mesmo.

Ficou ali, no seu quarto, deitado na cama, durante um bom bocado, até sentir novamente aquela ondulação, e soube que Alsan e Shail estavam de volta. Mas não se mexeu, nem sequer quando ouviu os pés descalços de Victoria a correr pelo corredor em direcção à biblioteca. Noutras circunstâncias, também ele se teria apressado ao encontro dos seus amigos, para ver se estavam bem e para saber como correra a missão. Mas naquele momento não tinha vontade.

Não estava preparado para voltar a enfrentar Alsan.

Apenas alguns minutos depois, ouviu os três descerem. Passaram diante da porta do seu quarto, e ouviu um fragmento da sua conversa:

- ... acertou-lhe em cheio no estômago - dizia Alsan. - E uma

queimadura bastante grave.

- Um feitiço de fogo? - perguntou Victoria.

- Talvez, não sei. Não entendo dessas coisas. Poderás curá-lo?

Naquela altura, Shail emitia um queixume de dor, e Jack não

pôde ouvir a resposta de Victoria. Sentiu um nó no estômago ao pensar que Shail ficara ferido e esteve a ponto de se levantar e ir a correr ver como estava. Mas reprimiu o impulso. Certamente que Victoria o curaria. Ela, pelo menos, era útil nesse aspecto, ao menos podia empregar a magia curativa, que vinha sempre a calhar quando não podiam contar com Shail. Por outro lado, Jack não podia fazer nada. Absolutamente nada.

A única coisa que se destacava nele eram aqueles estranhos episódios pirocinéticos. Mas, dado que desconhecia a sua origem e não sabia como os controlar, não lhe serviam para nada. A única coisa que conseguira fora atrair a atenção de Kirtash... com consequências fatais para os seus pais.

Voltou-se na cama, virando as costas para a porta. Estava a aprender a lutar, mas, por muito que se esforçasse, nunca conseguiria superar Alsan e muito menos Kirtash.

Os dois eram superiores a ele. E sê-lo-iam sempre.No quarto de Shail, a Resistência estava a viver uma crise. Victoria fazia o que podia para curar a enorme ferida que Shail apresentava no ventre, mas a sua magia apenas conseguia restaurar as bordas da queimadura. Victoria estava prestes a chorar e as mãos tremiam-lhe. Evitava olhar para o rosto de Shail, mas não precisava de o fazer para saber que estava a sofrer e que a sua vida se apagava a pouco e pouco.

Sentiu a mão de Alsan sobre o ombro.

- Calma - disse-lhe. - Tu consegues fazê-lo.

- Não, Alsan, não consigo. Não tenho magia suficiente. Vai morrer...

- Victoria. - Alsan obrigou-a a olhá-lo. - Ele não vai morrer, está bem? Concentra-te. Ele acredita em ti, e eu também.

Victoria engoliu em seco e assentiu. Respirou fundo, tentando acalmar-se. Voltou-se para o seu amigo e fitou-o. Soube então o que fazer.

- Temos de o levar para o bosque - decidiu. - Lá a minha magia funcionará melhor.

Não sabia porque é que tinha tanta certeza, mas decidiu deixar-se guiar pelo seu instinto, e Alsan não contestou. Ambos pegaram novamente em Shail e tiraram-no do quarto. Levaram-no muito a custo para fora de casa e depois até ao bosque. Victoria depositou-o aos pés de um enorme salgueiro que crescia junto ao ribeiro e respirou fundo. A magia da vida vibrava no ar, podia pressenti-la, e sentiu que todos os seus sentidos reagiam a ela. Um pouco mais calma, colocou as mãos sobre a ferida de Shail e procurou transmitir-lhe toda aquela energia.

Então, lentamente, as queimaduras de Shail começaram a curar-se. O organismo do jovem feiticeiro absorveu a magia que irradiava das mãos de Victoria, apoderou-se dela e utilizou-a para regenerar os tecidos danificados. Pouco a pouco, a ferida começou a fechar.

Por fim, quando Shail respirou profundamente e abriu os olhos, Victoria deixou-se cair ao seu lado, esgotada. O jovem, um pouco aturdido, olhou-a e sorriu.

- Ei - murmurou. - Foste tu que o fizeste? Victoria assentiu, enormemente aliviada.

- Não podias morrer agora - respondeu-lhe, com um sorriso. Ainda tens muito que me ensinar.

O sorriso de Shail alargou-se.

- Claro que sim - sussurrou.

O feiticeiro fechou então os olhos e abandonou-se num sono profundo.

- Está bem - disse Victoria, antes que Alsan fizesse algum comentário. - É mesmo isto o que ele tem de fazer: descansar. Vai dormir uns dois dias e, quando acordar, estará como novo.

Os dois pegaram novamente em Shail para o levar de volta a casa. Victoria apercebeu-se então de que Alsan coxeava e, embora ele não tivesse dito nada a esse respeito, supôs que tivesse feito uma entorse ou uma distensão. Disse a si mesma que também deveria curá-lo quando instalassem Shail no quarto.

- Alsan - disse ao amigo -, diz-me... o que aconteceu ao certo? O rosto do jovem ensombrou-se.

- Voltámos a chegar tarde, Victoria - respondeu.

Jack estava há algum tempo absorto nos seus sombrios pensamentos, quando alguém bateu à porta do seu quarto e, não obtendo resposta, a abriu um pouco. Por um momento, Jack pensou que seria Alsan, que ele tinha vindo pedir-lhe desculpa por lhe ter batido ou, pelo menos, para ver se estava bem.

- Jack? Estás a dormir?

Era a voz de Victoria.

- Não, não estou a dormir.

- Ainda estás chateado?

- Contigo, não.

Ela percebeu pelo seu tom de voz que preferia não falar no assunto e não insistiu.

- Alsan e Shail voltaram da China - informou. - Por pouco não conseguiam, porque tiveram de lutar contra Elrion e Kirtash, e Shail acabou ferido. Estava muito mal e foi a custo que conseguiram regressar...

Interrompeu-se, insegura; não sabia se Jack estava a ouvi-la. O rapaz suspirou e voltou-se para ela.

- E como está agora?

- Consegui curá-lo, mas está fraco. Vai demorar um pouco até recuperar.

Jack sorriu.

- Ainda bem para ti. És melhor feiticeira do que pensas. Victoria sorriu, pouco à vontade.

- Em todo o caso, Alsan está de mau humor - acrescentou. A missão correu mal. Chegaram tarde.

O estômago de Jack revolveu-se. Lembrou-se das palavras que o líder da Resistência lhe dissera um pouco antes: "A vida de alguém pode correr perigo e cada minuto é crucial."

- O que... quem era?

- Feiticeiros celestes. Um grupo de cinco, talvez uma família, não temos a certeza.

Jack sentiu-se ainda pior. Os celestes eram seres parecidos com os humanos, mas mais altos e estilizados, de crânios alongados e carecas, com enormes olhos negros e uma pele fina azul-celeste. Como todos os idhunitas não humanos exilados na Terra, certamente aqueles cinco teriam ocultado a sua identidade sob um feitiço ilusório que os teria feito parecer humanos aos olhos de todos. Mas, quando morriam, o feitiço desaparecia, e os feiticeiros recuperavam a sua verdadeira aparência. Jack sabia poucas coisas acerca dos celestes, mas conhecia o seu traço mais característico: eram criaturas pacíficas que nunca se metiam numa luta. Conceitos como assassinato, violência, guerra ou traição nem sequer existiam na variante de idhunaico que eles falavam. Assassinar um celeste a sangue-frio era quase pior do que matar uma criança.

Em todo o caso, eram feiticeiros e tinham escapado de Idhún. Para os seus inimigos, não deixavam de ser renegados, uma ameaça, no fim de contas; certamente por isso indicaram-nos a Kirtash como alvo.

- Kirtash estava a desfazer-se dos corpos quando eles chegaram

- acrescentou Victoria, adivinhando o seu pensamento. - Provavelmente já estariam mortos quando a Alma os detectou.

Jack apertou os punhos com raiva. Não se podia ser mais impiedoso e maquiavélico do que Kirtash. Era assombroso até onde ele era capaz de chegar, e apenas com quinze anos. Para o bem de todos, era melhor que aquele jovem surpreendente não atingisse a idade adulta.

Como o rapaz não disse nada, Victoria afastou-se da porta e concluiu: - vou ver como está Shail. Deixei-o a dormir, por isso, se quiseres ir vê-lo, é melhor esperares um pouco até que recupere a consciência.

- Está bem. Boa noite.

Victoria foi-se embora e Jack ficou novamente sozinho. Mas desta vez não se sentiu melhor. Descobriu que preferia que Victoria tivesse ficado com ele, pois precisava de falar com alguém. Mas, por outro lado, estava à espera de que Alsan viesse ao seu quarto saber como estava. Depois da sua discussão, era o mínimo que podia fazer.

No entanto, Alsan não foi procurá-lo. Sem se dar conta, Jack adormeceu.

Acordou algumas horas mais tarde. O relógio da mesa-de-cabeceira indicava que eram dez e meia da manhã em Madrid, e calculou que Victoria tivesse ido para casa há algum tempo e que naquela altura estaria na escola... tentando concentrar-se numa aula de Matemática, ou de Inglês, ou do que fosse, quando na realidade a sua mente estava muito longe, em Limbhad... com Shail, a quem tinha deixado a recuperar de uma ferida grave.

Jack levantou-se e espreguiçou-se. Continuava a ser de noite na Casa na Fronteira, como sempre, mas para ele começara um novo dia. Contudo, sentia-se tão mal como na noite anterior. Ainda não fizera as pazes com Alsan. E ainda não o perdoara.

Saiu para o corredor, ainda em pijama, e foi por um momento ao quarto de Shail. Viu-o estendido na cama, mergulhado num sono tranquilo e reparador. Sorriu. Ficaria bom.

Foi à cozinha preparar o pequeno-almoço.

E ali encontrou Alsan, que já estava vestido e a acabar de comer. Abriu a boca para dizer algo, mas ele adiantou-se:

- Ainda estás assim, rapaz? Vais chegar tarde ao treino.

- O quê? - conseguiu Jack dizer, confuso. Alsan encaminhou-se para a porta, dizendo-lhe:

- Estou à tua espera na sala de treino.

- Mas...

- Não demores.

Alsan foi-se sem o deixar acrescentar mais nada. Jack cerrou os punhos, furioso. Esteve quase a não comparecer ao encontro, mas finalmente decidiu que o faria e que mostraria àquele príncipe convencido o que era capaz de fazer. Assim, apressou-se a tomar o pequeno-almoço e a vestir-se. Em quinze minutos estava na sala de treino.

Mal tinha passado a porta, Alsan lançou-lhe a espada de treino, e Jack apanhou-a no ar.

- Em guarda - disse Alsan, bastante sério.

Jack semicerrou os olhos, apertou os dentes e assentiu, com raiva.

Foi o pior treino daqueles quatro meses. Apesar de ter posto todo o seu empenho em fazer as coisas o melhor possível, Alsan desarmava-o uma e outra vez, e Jack compreendeu, desanimado, que, se fosse uma luta a sério, teria sido morto pelo menos quinze vezes naquela sessão. Mas Alsan não fez nenhum comentário a esse respeito. Obrigava-o

a levantar-se vezes sem conta, a apanhar a espada e a continuar a lutar, sem uma palavra. Empenhava-se a fundo, e Jack sentia-se cada vez mais desastrado e ridículo e, inevitavelmente, combatia cada vez pior.

Quando, esgotado, caiu ao chão pela enésima vez, sentiu a ponta pouco afiada da espada de Alsan no seu peito, e ergueu os olhos.

O jovem observava-o com uma expressão severa, mas imperturbável.

- Não estás preparado - disse.

Pegou na espada e saiu da divisão, sem acrescentar mais nada.

Jack ficou ali, sentado no chão, a ferver de cólera e de vergonha. Está bem, Alsan era mais velho do que ele e manejava a espada muito melhor, mas não era preciso humilhálo daquela maneira. Pestanejando para conter as lágrimas, Jack levantou-se e foi tomar um duche. No treino seguinte, disse para si mesmo, iria mostrar-lhe que estava preparado, iria ser muito melhor...

Depois de comer, como Alsan estava ocupado com outras coisas, Jack foi sozinho para a sala de treino e esteve toda a tarde a treinar com a espada todos os movimentos, fintas e ataques que conhecia. Treinou até os braços e os ombros lhe doerem tanto que conseguia apenas segurar na espada. Decidiu então descansar.

No dia seguinte, doía-lhe o corpo todo, mas não pensou em queixar-se. Durante o treino, atacou Alsan com toda a sua raiva, mas ele voltou a desarmá-lo, uma vez e outra, com uma facilidade insultuosa. A camaradagem que reinara até então entre ambos parecia ter-se esfumado. Alsan mostrava-se frio, severo e distante, e Jack era demasiado orgulhoso para reconhecer que se importava com aquilo ou para admitir que o seu amigo tinha razão e que ainda tinha muito que aprender. Assim, levantava-se e apanhava a espada, uma e outra vez, apesar de já não poder nem com a sua alma. Até que Alsan decidiu dar o treino por terminado, e fê-lo sem uma única palavra de ânimo ou apoio. Jack ficou ali, de pé, respirando entrecortadamente, mas não disse nada nem largou a espada. Só quando o seu tutor saiu da sala e o deixou sozinho é que se deixou cair no chão e ficou ali, sentado, exausto, sentindo que seria incapaz de voltar a levantar-se.

Contudo, acabou por fazê-lo. E, apesar disso, depois de comer voltou para a sala para treinar sozinho, como na véspera. Até não aguentar mais.

E assim foi, um dia, e outro, e outro.

Treinava até ao esgotamento. As vezes deixava-se vencer pelo desânimo e dava pontapés nas paredes da sala até se magoar ou desatava a chorar de desespero, mas nunca quando Alsan estava presente, mas sim quando treinava sozinho e sabia que ninguém poderia surpreendê-lo num momento de crise. Enquanto desabafava, pegava novamente

na sua espada e voltava a repetir os movimentos, os ataques, as defesas, as ameaças, uma vez e outra.

Não falava com ninguém, nem sequer com Victoria. Estava tão obcecado com o seu treino que quase não se lembrava de que ela existia. Mas às vezes, quando o cansaço e as dores musculares o impediam de dormir, pensava nela. E desejava contar-lhe tudo o que estava a acontecer, mas decidia-se sempre a não o fazer, para não a preocupar com mais problemas. Por outro lado, tinha vergonha de admitir que não estava a cumprir as expectativas de Alsan, que não merecia pertencer à Resistência, apesar de todo o seu treino.

E no dia seguinte, pontualmente, apresentava-se de novo na sala de treinos, para voltar a enfrentar Alsan, desafiador, para procurar parar os seus golpes, para tentar vencê-lo nem que fosse uma vez, por muito cansado que estivesse.

Até que, a dada altura, não se apresentou ao treino porque adormecera. Quando finalmente acordou e viu as horas no relógio, levantou-se muito a custo e precipitou-se

para a sala de treinos, mas Alsan já lá não estava. Procurou-o por toda a casa e não o encontrou, nem a Shail. Há dois dias que o feiticeiro despertara do seu sono curativo, e Jack supôs que os dois tinham ido numa dessas "missões de reconhecimento" para as quais ele não era convidado. Cerrou os punhos com raiva. Tinha quase a certeza de que, o que quer que estivessem a fazer, não tinha a ver com Kirtash, porque havia agitação em Limbhad de cada vez que a Resistência detectava a sua presença em qualquer parte do mundo. Esta era outra das coisas que aborreciam Jack, porque parecia evidente que aquelas expedições tão misteriosas não apresentavam riscos para eles. Então porque é que continuavam a mante-lo à margem?

Victoria também não estava em Limbhad, e assim Jack tinha toda a casa só para si. Fechou-se no quarto durante várias horas, aborrecido e mal-humorado. Dessa vez nem sequer tinha vontade de treinar. Não podia deixar de pensar no modo como Alsan já lhe demonstrara o quanto era inútil para a Resistência e que seria imediatamente morto se ousasse sair de Limbhad. E Jack podia aceitar que não era bom com a espada, poderia mesmo aceitar ficar em Limbhad o tempo que fosse preciso... mas a fazer algo, qualquer coisa. Pelo menos Victoria tinha poderes curativos, mas ele... que poderia fazer?

Talvez conseguisse ajudar de alguma maneira procurando informações. Levantou-se de um salto. Sim, era isso. Chegavam sempre tarde para salvar as vítimas

de Kirtash porque não podiam estar a toda a hora a observar o mundo através da Alma para ver o que o inimigo fazia. Talvez pudesse ocupar-se dessa parte... se é que ele sabia como o fazer.

Teve dúvidas. Na verdade, nunca tentara, e perguntou-se se a Alma estaria disposta a mostrar-lhe aquilo que ele queria ver. Em todo o caso, não custava tentar.

 

           CARA A CARA

Subiu em silêncio pela grande escadaria em caracol e, uma vez diante da porta da biblioteca, empurrou-a suavemente; esta cedeu sem necessidade de fazer muita força. Entrou.

Era a primeira vez que estava sozinho na biblioteca desde o dia da sua chegada, e estremeceu ao recordar as fantásticas visões que ali contemplara.

Fechou a porta atrás de si e olhou em volta. A divisão estava às escuras e em silêncio. A enorme mesa redonda continuava ainda no centro, rodeada de seis cadeiras e ladeada por centenas de livros velhos escritos em idhunaico antigo e encadernados em pele que repousavam nas altíssimas estantes que cobriam as paredes.

- Luz - murmurou Jack, a meia-voz.

Depois de uma cintilação, as tochas acenderam-se. Jack não pôde evitar um sorriso. Alsan explicara-lhe que, à excepção do pequeno templo no jardim, onde se prestava adoração aos deuses de Idhún, aquela sala era o local mais importante de Limbhad. Por isso não permitira a Shail alterá-la com nenhum artefacto da Terra. Ali a luz acendia-se apenas se se pedisse em voz alta, e o mesmo sistema servia para as janelas da casa, fechadas com aquele estranho material tão flexível, que desaparecia e reaparecia quando lho ordenavam. Jack sorriu novamente, lembrando-se da sua primeira noite ali, e de como tentara abrir as janelas, sem o conseguir. Na altura ainda não acreditava em magia ou, pelo menos, não muito.

Mas desde aquela noite tinham acontecido muitas coisas.

Aproximou-se da mesa, intimidado, e contemplou os estranhos símbolos e gravuras que a adornavam. Graças ao amuleto de comunicação que Victoria lhe dera, podia falar, entender e ler idhunaico. Mas isso não incluía o idhunaico arcano, uma variante da linguagem de Idhún, misteriosa e esotérica, que apenas os feiticeiros conheciam e utilizavam.

Shail falara-lhe da história de Limbhad e daquela biblioteca.

Em tempos remotos, havia-lhe dito, a inimizade entre feiticeiros e sacerdotes atingira o seu ponto mais alto e desencadeara uma grande guerra. Os feiticeiros tinham perdido e, perseguidos e acossados por uma casta sacerdotal que os apresentava ao povo como adoradores de Séptimo, o deus negro, não tiveram outro remédio senão fugir.

- Abriram um portal dimensional até à Terra - contara-lhe Shail -, mas a situação não era melhor: a Inquisição, a caça às bruxas, tudo isso. Alguns refugiaram-se em lugares habitados por povos primitivos que ainda respeitavam a magia, mas outros voltaram para trás e criaram Limbhad, onde se esconderam até que as circunstâncias lhes permitissem voltar. Contudo, de alguma forma, com o passar dos séculos, toda a informação que havia sobre Limbhad perdeu-se. Quando comecei a estudar, este lugar não era mais do que uma lenda.

Agora a história repetia-se. Uma nova geração de feiticeiros escapara de Idhún.

Alsan e Shail tinham-lhe contado que depararam com Limbhad por pura coincidência. Ao cair pelo túnel interdimensional tinham-se desviado ligeiramente da rota prevista e tinham ido parar à Casa na Fronteira, o que favorecia consideravelmente os seus planos.

Infelizmente, agora não lhes era possível contactar com nenhum dos feiticeiros idhunitas exilados na Terra. Quer fossem humanos, feéricos, gigantes, celestes, varu ou yan, as principais raças inteligentes de Idhún, estavam camuflados entre os nativos sob forma humana. E, obviamente, não empregavam a magia; caso contrário, Kirtash localizá-los-ia. A Alma explicara-lhe tudo isto, da mesma forma que mostrara a Jack o que acontecera em Idhún no dia em que os seis astros se haviam aproximado no céu naquela aterradora conjunção.

- Foram os três sóis e as três luas, não foram? - perguntara a Alsan. - Ao juntarem-se no céu provocaram a morte dos dragões. Eu vi-o.- Sim e não – replicara o seu amigo. - O Hexágono que representa o entrelaçar dos seis astros no céu é o símbolo de Idhún. Essa conjunção acontece uma vez em muitos séculos, mas nem sempre implica uma catástrofe. Também pode produzir grandes milagres. Os seis astros movem uma energia imensa... tudo depende de quem utiliza essa energia e para quê.

- Até àquele dia - acrescentara Shail, empalidecendo -, nenhum mortal havia conseguido provocar uma conjunção. Ashran, o Necromante, fê-lo, e empregou o enorme poder do Hexágono para comunicar com os sheks; abriu-lhes a Porta que lhes permitia regressar a Idhún e entregou-lhes o nosso mundo de bandeja.

- As serpentes aladas! - exclamara Jack, fazendo um gesto de repugnância. - Eu vi-as. Centenas delas. Talvez milhares.

- Os sheks - dissera Alsan, lentamente - são as criaturas mais mortíferas de Idhún; os únicos seres que poderiam enfrentar os dragões e sair vitoriosos.

Jack não fizera mais perguntas. Tudo o que Alsan e Shail lhe contavam sobre Idhún interessava-lhe apenas até certo ponto. Nunca lá estivera ou, pelo menos, não se

lembrava. A ideia de que existiam realmente criaturas como serpentes aladas ou dragões continuava a parecer-lhe demasiado fantástica, apesar de tudo o que vira.

Mas Kirtash era muito real. Sentou-se num dos altos cadeirões que rodeavam a mesa redonda e respirou fundo, procurando concentrar-se. Depois, lentamente, colocou as mãos sobre a mesa e chamou em silêncio o espírito de Limbhad.

A presença da Alma invadiu-o de forma quase instantânea. Para não se distrair, evitou abrir os olhos, embora suspeitasse que no centro da mesa começara a produzir-se aquele estranho fenómeno da última vez: uma esfera de luz brilhante que girava sobre si mesma...

"Quero perguntar-te uma coisa", pensou Jack, sentindo-se, no entanto, algo estúpido.

A Alma não respondeu, pelo menos não de forma clara e directa, mas Jack percebeu que estava receptiva e aguardava a sua consulta.

"Queria que me mostrasses uma pessoa que está na Terra."

Desta vez também não teve resposta; Jack sentiu que a Alma tinha as suas reservas, e compreendeu de imediato o que queria dizer: nem sequer o espírito de Limbhad

podia encontrar alguém que não queria deixar-se localizar e que podia utilizar a magia para se esconder do seu olhar... como todos os feiticeiros idhunitas exilados. A camuflagem mágica exigia uma quantidade mínima de energia e, apesar de se tratar de um feitiço, não podia ser detectado com facilidade.

Mas aquele a quem Jack procurava não tinha motivos para se esconder. Estava do lado dos vencedores e, certamente, estava acostumado a que toda a gente fugisse dele, e não o contrário.

"Mostra-me Kirtash", pediu Jack. "Quero ver onde está e o que está a fazer."

A Alma não objectou. Jack abriu os olhos.

A esfera brilhante girava a uma velocidade ainda maior e adquirira um tom azulado. Jack compreendeu que, desta vez, se tratava da Terra.

Viu-se subitamente engolido por aquela representação tridimensional do seu planeta e encontrou-se de imediato a cair por entre as nuvens. O pânico inundou-o, mas obrigou-se a lembrar-se de que aquilo não era real, mas apenas uma visão. Então parou e olhou para baixo.

Flutuava. Aos seus pés, o mundo girava mais depressa do que o normal. Viu ao longe as sombras de uma grande cidade, cujos edifícios mais altos tocavam nas nuvens que cobriam o céu nocturno. No princípio sentiu-se desconcertado. Aquela cidade era-lhe bastante familiar, mas não conseguia identificá-la. Sentiu-se poderosamente atraído até ela e apressou-se a deixar-se levar pelo seu instinto.

Voltou a sentir aquela embriagante sensação ao sobrevoar os telhados dos edifícios, sem se fixar nas luzes deslumbrantes da enorme metrópole. Percebeu que começava a mover-se cada vez mais depressa e pressentiu que estava a aproximar-se do seu objectivo. Os contornos dos edifícios sucediam-se velozmente sob os seus pés, os ruídos mais não eram do que um burburinho confuso onde era impossível distinguir alguma coisa...

De repente, parou.

Olhou em volta. Estava agora numa zona de edifícios antigos e severos, mas que possuíam uma elegante dignidade que evocava o sabor de tempos passados. Um pouco mais adiante, contudo, havia uma apelativa construção pós-moderna, de tijolos vermelhos e telhados cinzentos, cuja estrutura em forma de trapézio era dominada por um grande pátio onde se destacava uma estátua que representava um homem sentado. No entanto, o que lhe chamou a atenção foi a sombra que se erguia sobre um dos terraços, contemplando a cidade que se estendia diante de si. Era quase impossível vê-lo, uma vez que estava vestido de preto e o seu vulto se fundia com o céu nocturno, mas Jack detectou-o de imediato e obrigou-se, ou à sua representação astral, ou lá o que era, a aproximar-se mais. A silhueta alta, esbelta e elegante não inspirava confiança. A sua postura era enganadoramente relaxada; um observador atento teria percebido que, sob aquela calma aparente, os seus músculos estavam tensos, como os de um predador acercando-se da sua presa.

Kirtash.

Jack ficou imóvel apenas por um momento, contendo a respiração. Não se encontrava ali fisicamente, pelo que Kirtash não poderia vê-lo. Ficou quieto, indeciso, até que viu que um segundo vulto assomara ao terraço. Era um homem de cabelo escuro e feições finas e aristocráticas. Jack não o reconheceu de início, pois já não vestia a túnica, mas sim roupa normal, casual, porém, quando se aproximou mais, soube logo quem era.

Elrion, o feiticeiro que matara os seus pais.

Sentiu que a ira o invadia, mas lembrou-se da sua intenção de recolher informação para ser útil à Resistência e esforçou-se por se manter sereno; perguntou-se o que fariam aqueles dois naquele sítio. Viu como o feiticeiro se aproximava de Kirtash e lhe estendia algo. Jack abeirou-se um pouco mais.

Era um livro, um volume muito antigo. Não havia nada escrito na capa de pele gasta, mas Jack viu o símbolo de um hexágono. Kirtash sorriu, satisfeito, quando o feiticeiro abriu o livro e lhe mostrou uma página ao acaso. Jack aproximou-se mais, tentando ler o que lá estava escrito; descobriu que os símbolos eram idhunaicos, mas ainda assim não conseguiu decifrá-lo, pelo que supôs tratar-se da linguagem arcana, e foi invadido pela curiosidade. Onde tinham encontrado aquele livro? Onde estavam exactamente.?

Kirtash pegou no livro e fechou-o de repente. Jack quis afastar-se, mas... sem saber muito bem como, encontrou-se precisamente atrás dele. Embora soubesse que aquilo era apenas uma visão, não pôde evitar sentir-se inquieto.

Foi então que ele se voltou.

Foi um movimento tão rápido que Jack quase não se deu conta. Mas, quando se apercebeu, estava a ser fitado nos olhos.

Os olhos de Kirtash, gélidos, letais.

Jack retrocedeu, sem poder afastar o seu olhar do de Kirtash. Teve novamente aquela sensação horrível.

Frio.

Um enorme arrepio percorreu-o dos pés à cabeça enquanto alguma coisa começava a explorar a sua mente, como daquela vez, em Silkeborg. E soube de novo que aquele olhar podia matá-lo. Não sabia de onde tirara essa ideia, mas estava absolutamente convencido de que, embora parecesse absurda, era verdade. Se continuasse a fitar Kirtash, morreria.

Procurou retroceder um pouco mais, mas estava hipnotizado por aquele olhar.

Quis gritar, mas as palavras gelaram nos seus lábios.

De repente, sentiu que algo o afastava dele, e então tudo começou a dar voltas, e depois ficou tudo escuro.

Acordou na biblioteca de Limbhad. Estava no chão, a respirar entrecortadamente e a tiritar como se sofresse de hipotermia, e Alsan estava diante dele, sacudindo-o, furioso, gritando algo que de início Jack não foi capaz de entender. Enjoado, tentou levantar-se, enquanto as palavras de Alsan começavam a ganhar forma na sua mente:

- ... completamente chanfrado, parece que não aprendeste nada daquilo que te ensinei!! Nunca, nunca tentes enfrentar Kirtash sozinho! Esteve quase a matar-te!

- Co... como? - tartamudeou Jack, ainda aturdido. - Eu não estava lá! O meu corpo...

- Kirtash mata com o olhar, Jack. - Era a voz de Shail; Jack focou um pouco mais a visão e pôde distingui-lo atrás de Alsan. Se alcança a tua mente, estás perdido. Por sorte, conseguimos tirar-te de lá a tempo.

Alsan soltou-o.

- És um inconsciente, miúdo. Ainda não sabes com quem estás a lidar? O nosso inimigo subjugou todo um mundo e aniquilou duas das raças mais poderosas de Idhún num só dia! E tu achas que podes enfrentar sozinho um enviado dele, alguém em quem confiam tanto a ponto de lhe encomendar uma missão como esta?

- Sinto muito - murmurou Jack, algo enfadado. Alsan suspirou, exasperado.

- Está bem, poderia ter sido pior.

- Muito pior - assentiu Shail, examinando os contornos luminosos variáveis da esfera onde a Alma se manifestava. - Não só poderias ter sido morto, como também Kirtash poderia ter chegado até nós através da tua mente, e Limbhad teria deixado de ser um lugar seguro para a Resistência.

Aquela revelação atingiu-o em cheio.

- Não fazia ideia - murmurou, esmagado pelas implicações daquela possibilidade. - Sinto muito, fui um estúpido.

- Nós percebemos - grunhiu Alsan, levantando-se. - Volta para o teu quarto.

- E vê se descansas - acrescentou Shail, para suavizar a dureza das palavras do seu amigo. - Aposto que a esta hora tens uma bela de uma dor de cabeça.

Jack obedeceu, com o coração apertado.

Voltou para o quarto, deixou-se cair sobre a cama e fechou os olhos. De cada vez que o fazia pensava que, ao abri-los, iria descobrir que fora tudo um sonho mau e que continuava na sua quinta, na Dinamarca, com a sua família.

Mas isso nunca acontecia.

Aquela vez não foi diferente. Jack abriu novamente os olhos e viu o tecto arredondado do seu quarto em Limbhad. O lugar era acolhedor, e Jack esforçara-se por personalizá-lo, mas continuava a não ser a sua casa.

Naquele momento em particular, sentia-se mais deprimido do que o habitual. Lamentava muito ter cometido a estupidez de espiar Kirtash através da Alma, e perguntou-se se Alsan o perdoaria por ter posto a missão em perigo por causa da sua precipitação e insensatez. Apercebeu-se de que, apesar da frieza com que o tratara nos últimos dias, na realidade poucas coisas eram para ele mais importantes do que a amizade de Alsan. Talvez fosse por não ter muito mais a manter, a não ser a sua vida e o seu orgulho.

Alguém bateu levemente à porta. Jack pensou que se tratava de Shail ou Victoria; levantou-se e murmurou:

- Entra.

A porta abriu-se, e foi Alsan quem entrou no quarto. Jack olhou-o, entre o surpreendido e o receoso.

- Não preciso que venhas ralhar outra vez - atirou, antes que ele pudesse dizer alguma coisa. - Já pedi desculpa.

Mas Alsan negou com a cabeça e sentou-se perto dele.

- Não se trata disso, rapaz. Temos de falar.

Jack, ainda sentado na cama, cruzou as pernas e apoiou as costas na parede.

- Já sei o que vais dizer-me - murmurou. - Não estou preparado para pertencer à Resistência, não é? E nunca hei-de estar.

Para sua surpresa, Alsan fez um enorme sorriso.

- Nada poderia estar mais longe da realidade, Jack. És o aluno mais prometedor que alguma vez tive.

Jack olhou-o, boquiaberto.

- Estás a gozar comigo?

- Nem pensar. E asseguro-te de que treinei muitos no meu reino, miúdo. Rapazes da tua idade, filhos de nobres que aspiravam a ser um dia capitães do exército do meu pai. Gostava de os pôr à prova pessoalmente para conhecer as virtudes e os defeitos dos meus futuros cavaleiros. Nenhum deles possuía a têmpera e a força de vontade que demonstraste nestes dias. Nenhum deles progrediu tão rapidamente no manejo da espada.

Os olhos de Jack pestanejaram para conter as lágrimas.

- Porque não mo disseste antes? - retorquiu.

- Porque há algo em ti que me desagrada, e é essa raiva e esse ódio que te cegam, esse orgulho que te leva a cometer imprudências que te podem custar a vida. Tive de humilhar-te, tive de consumir-te física e psicologicamente para que pares para pensar e aprendas a ter paciência. Mas reconheço que não esperava que reagisses como reagiste... espiar Kirtash através da Alma.

- Queria ser útil de alguma forma - murmurou Jack.

- E és, Jack. Se te mantenho longe de tudo isto é por dois motivos: em primeiro lugar, porque estás obcecado com Kirtash e, quando se trata dele, não consegues pensar com objectividade. Enquanto continuares a ser assim audacioso, ele terá tudo a ganhar e não lhe custará matar-te no vosso próximo confronto porque, por muito que treines, o teu inimigo continuará a ser mais frio e sereno do que tu. E, em segundo lugar... porque não quero perder antes do tempo o grande guerreiro que sei que vais ser... e o amigo que és para mim. Assim, achei que teria de te afastar de Kirtash até que assimilasses um pouco a morte dos teus pais e fosses capaz de o enfrentar com mais calma e frieza.

Jack não soube o que dizer. Mas Alsan também não acrescentou mais nada, até que por fim o rapaz engoliu em seco e murmurou, abatido:

- Compreendo. Fiz asneira, não foi?

- Todos nos enganamos, rapaz - replicou Alsan, movendo a cabeça. - Isso é o que menos interessa. O que realmente importa é que consigas perceber bem tudo isto. Entendes?

Jack assentiu e fitou-o, agradecido. Toda a raiva e rancor pareciam ter-se esfumado.

- Entendo. Não voltarei a desiludir-te, Alsan. Prometo-te. Alsan sorriu.

- Eu sei, miúdo - respondeu, despenteando-lhe o cabelo, carinhosamente. - Conto contigo e sei que não falharás.

Jack devolveu-lhe o sorriso. Alsan saiu do quarto sem dizer mais nada, mas o rapaz sentia-se muito melhor, como se tivessem tirado um peso enorme de cima dele. Pensou no que acontecera naqueles dias e lembrou-se de Victoria. Levantou-se de um salto. Tinha um assunto pendente com ela.

Saiu do quarto e procurou-a pela casa. Encontrou-a no quarto, a ler, e bateu levemente à porta para anunciar a sua presença.

- Olá - disse, quando ela levantou a cabeça. - Posso falar contigo por um momento?

- Claro - respondeu Victoria, fechando o livro. - Entra. Jack sentou-se numa das cadeiras, junto dela, olhou-a e disse:

- Há vários dias que não falo contigo, praticamente andei a ignorar-te, porque estive demasiado obcecado com o meu treino. Quero que saibas... que não tenho nada contra ti, antes pelo contrário. É que às vezes esqueço-me do que realmente importa. Portei-me como um estúpido e queria pedir-te desculpa.

Victoria ficou sem fala.

- Perdoas-me? - repetiu Jack, com suavidade.

- Claro - conseguiu dizer. - Eu... via-te todo o dia a treinar e estava preocupada contigo, mas não queria intrometer-me porque...

- Dou-te autorização para te intrometeres sempre que quiseres

- cortou Jack, muito sério. - Alsan diz que sou orgulhoso, impulsivo e audaz, e que assim só conseguirei que me matem. E acho que tem razão. Por isso, como tu és muito mais sensata do que eu, é claro que me fará bem que tu me repreendas.

Victoria olhou-o por um momento, perguntando-se se ele estaria a gozar com ela. Mas não, o rapaz estava a falar a sério; a rapariga não pôde reprimir uma gargalhada.

- Está bem, intrometo-me, se é isso que queres. Mas depois não te queixes, OK?

Jack sorriu.

- Obrigado por não me guardares rancor - disse, com simplicidade.

- De nada, Jack. Somos amigos, não?

- Claro que sim. - Pegou-lhe na mão e apertou-a com força, ainda a sorrir. - E não sei se é porque passamos muito tempo juntos, por termos muitas coisas em comum, ou qual é a razão, mas és a melhor amiga que alguma vez tive.

Victoria corou, lisonjeada, e aceitou o cumprimento com uma inclinação da cabeça.

Houve um breve silêncio. Victoria hesitou. Jack olhou-a e soube que queria dizer-lhe alguma coisa.

- O que é?

- Vis te-o, não foi? - perguntou ela, em voz baixa. - Onde estava? O que estava a fazer?

Jack sabia que Victoria se referia a Kirtash. Detectava aquele estranho tom que a voz da amiga adquiria quando falava dele, até mesmo sem pronunciar o seu nome. Franziu o sobrolho. Depois de tudo o que Alsan e Shail lhe tinham dito, quase o esquecera completamente.

- Não tenho a certeza - respondeu. - Talvez não fosse nada de importante, mas, por outro lado... não imagino Kirtash a fazer algo casual.

Contou-lhe tudo o que vira através da Alma; quando terminou, Victoria fez um trejeito de estranheza.

- Um livro de magia idhunita? Que esquisito, não? Onde é que teriam ido buscar uma coisa dessas na Terra?

- Esses dois tramavam algo, aposto - murmurou Jack, pensativo.

- Talvez se... um momento!

LevantouSe da cama num salto e agarrou no bloco de desenho que estava em cima da mesa. Pegou num lápis e sentou-se novamente, mordendo o lábio inferior.

- Era um edifício muito pouco comum - disse. - Acho que poderia desenhá-lo.

Victoria contemplou-o em silêncio enquanto o rapaz deslizava o lápis sobre o papel, com traços suaves mas firmes e seguros, com o sobrolho franzido em sinal de concentração. Esperou pacientemente até que Jack ergueu os olhos e lhe estendeu o bloco.

- Olha, desenhas muito bem! - admirou-se ela. Ele encolheu os ombros.

- Faço-o desde muito pequeno. Diz-me, esse sítio faz-te lembrar alguma coisa?

Victoria observou-o com atenção. Um edifício em forma de trapézio, de tijolos vermelhos e telhados cinzentos de diferentes alturas. Um pátio com enormes ladrilhos brancos e vermelhos. Uma estátua que representava um homem sentado.

- Não - disse finalmente -, mas é realmente um edifício muito peculiar. Além disso, parece importante. Posso levá-lo? vou digitalizá-lo e colocá-lo em alguns fóruns na Internet, para ver se alguém sabe dizer-me o que é.

- Boa ideia. Quando tivermos mais pistas, contaremos a Alsan e a Shail. Na melhor das hipóteses, podemos descobrir algo importante...

Muito longe dali, no terraço do edifício de tijolos vermelhos, sacudido por uma brisa gelada, Kirtash contemplava a cidade que se estendia diante dele. Os seus olhos não revelavam a menor emoção.

No entanto, estava a ferver de raiva por dentro.

Era aquele rapaz que ousara espiá-lo. Kirtash captara imediatamente a sua intrusão e conseguira contactar com ele o tempo suficiente para descobrir uma série de informações vitais.

O rapaz chamava-se Jack e estava com a Resistência. Isso ele sabia. Era a segunda vez que Jack lhe escapava mesmo debaixo do seu nariz, embora sempre graças à intervenção de terceiros.

Não haveria mais ocasiões.

A operação de Silkeborg fora um autêntico fiasco. Jack era o único que deveria ter morrido naquela noite, no entanto, continuava vivo. Elrion precipitara-se, e Kirtash

ainda se perguntava por que razão fora tão benevolente com ele, porque é que lhe poupara a vida. Talvez tivesse sido porque, na altura, não dispunha de outro feiticeiro e não podia dar-se ao luxo de o perder.

Contudo, o que mais preocupava Kirtash era aquela raiva que sentia por dentro. Não estava habituado a alterar-se por nenhuma razão, mas aquele rapaz, Jack, tinha a particularidade de o tirar do sério. Kirtash não sabia porquê e detestava não controlar os seus próprios sentimentos.

- Kirtash? - perguntou Elrion, inseguro.

- Tínhamos companhia - disse o rapaz, com suavidade.

- O quê? - O feiticeiro voltou-se em todas as direcções. - Não senti nada.

"Não me surpreende", murmurou Kirtash para si em voz baixa. Mas disse:

- Não era um ser físico, nem espiritual, mas sim uma consciência. Por isso é que o senti, e tu não. Um membro da Resistência estava a espiar-nos.

- A Resistência! - troçou o feiticeiro. - É apenas um grupo de rapazes. Nunca...

- Não os subestimes - cortou Kirtash. - Também sou jovem.

- Isso é verdade - reconheceu Elrion após um breve silêncio. Achas que descobriu alguma coisa importante?

Kirtash sorriu.

- Espero que sim - disse.

- Porquê? O que queres dizer?

Kirtash não respondeu. Aquele feiticeiro era o melhor que Ashran conseguira encontrar, e sabia-o, embora ainda não se tivesse acostumado a ele. Para o modo de actuar do jovem assassino, Elrion era muito espalhafatoso e chamava muito a atenção. Além disso, nunca seria tão eficaz como ele próprio. Mas não podia negar o facto de que precisava de um feiticeiro.

Elrion interpretou mal o seu silêncio.

- Porque não confias em mim? Ainda estás aborrecido com o que houve em Silkeborg?

Kirtash não disse nada. Elrion respirou fundo. Sim, tudo bem, precipitara-se em relação ao casal; dera cabo deles sem dar a Kirtash a hipótese de os interrogar. Já para não mencionar o facto de o rapaz ter escapado mesmo por debaixo do seu nariz.

- Tens de reconhecer que estou a aprender - acrescentou o feiticeiro. - Até troquei a minha túnica por esta ridícula roupa terrestre, como me disseste.

Kirtash voltou-se para ele, e Elrion retrocedeu um passo, quase instintivamente. Porque é que aquele ranhoso lhe provocava tanto receio? Sabia que estava muito próximo de Ashran, o Necramante, o poderoso aliado das serpentes em Idhún, mas não passava de um fedelho com poderes surpreendentes. Ou não?

Em todo o caso, incomodava-o, incomodava-o muito. Elrion consagrara toda a sua vida à magia, renunciara a muitas coisas e sacrificara muitos anos da sua vida para ser um feiticeiro poderoso. E não lhe caía bem ser superado de forma tão rotunda e evidente por um ranhoso de quinze anos que nem sequer era feiticeiro, apesar da estranha aura de poder que parecia irradiar.

Mas, infelizmente, não podia fazer nada a esse respeito. O seu amo, Ashran, o Necromante, pusera Kirtash a mandar nele e, por muito que isso o irritasse, Elrion devia acatar as suas ordens.

- Tenho os meus próprios planos - disse Kirtash rapidamente -, e não são da tua conta. Desta vez não quero interferências.

Elrion demorou um pouco a responder.

- Está bem - disse, por fim -, mas sabes que não eram essas as ordens de Ashran.

Kirtash não se deu ao trabalho de lhe responder. Voltou-se novamente para a cidade, que fervilhava de actividade aos seus pés, apesar de já ser tarde, e contemplou-a tal como o faria um conquistador que chegasse a um mundo novo e estranho, um mundo repleto de possibilidades infinitas por explorar.

 

      O LIVRO DA TERCEIRA ERA

Jack esquivou-se da estocada de Alsan e contra-atacou à velocidade de um raio. Todavia, o jovem idhunita estava à espera e aparou o golpe. Jack viu-o e moveu a sua

espada mal tocou a de Alsan, que teve de se baixar para suster o golpe. Replicou com um ataque ao flanco desprotegido de Jack. No entanto, para sua surpresa, viu

que a espada do rapaz o esperava. Os aços chocaram e saltaram faíscas. Ambos os combatentes retrocederam um pouco e detiveram-se por um momento, arquejando, observando-se cautelosamente.

- Aprendes depressa - observou Alsan.

Jack sabia que aquilo era um elogio e assentiu, mas não sorriu. Estava a esforçar-se muito para recuperar o apreço de Alsan, embora soubesse que o decepcionara e pressentisse que, apesar de terem feito as pazes, nada voltaria a ser como antes.

Em Idhún, Alsan fora um líder, um herdeiro educado no dever, na disciplina e no esforço. Poucos teriam aguentado como ele a ideia de que o destino da Resistência, bem como o de todo o Idhún, estavam nas suas mãos. Assumira aquela responsabilidade com total naturalidade. Considerara-a um dever. E estava perfeitamente consciente da importância da sua missão. Por isso, para ele, tudo o que se relacionasse com a Resistência e com a segurança de Limbhad era de importância vital.

E Jack estivera a ponto de deitar tudo a perder.

O rapaz sabia que não era culpa de Alsan. O idhunita fora instruído no rigor, na serenidade e no controlo das suas emoções. Fora Jack quem, ignorando todos os seus conselhos, se precipitara, acreditando que estava tudo sob controlo. Fora um convencido e também um inconsciente.

Após descansar dois dias, voltara para as lições com humildade, e parecia que Alsan lhe perdoara, porque tudo voltara à normalidade. Mas havia alguma coisa que não era igual.

O rapaz ergueu a espada. Viu Alsan vir na sua direcção, mas manteve-se na sua posição, firme e sereno, com a cabeça fria. Calculou o momento apropriado e então moveu-se para a direita mas deslocou-se para a esquerda, desconcertando desta forma o seu rival. Alsan desequilibrou-se ligeiramente e, quando se deu conta, a ponta da espada de Jack estava apontada ao seu coração.

- Estás morto - disse Jack, calmamente.

Alsan olhou-o com seriedade. Jack sustentou o seu olhar, imperturbável. Então, lentamente, Alsan sorriu.

- Caramba, miúdo - comentou. - Ainda não te ensinei essa finta.

- Sim, ensinaste - replicou Jack. - Vi-te fazê-la no outro dia. Simplesmente tomei nota dela.

Alsan olhou-o com aprovação.

- Vejo que aprendeste a lição.

Jack sabia que era uma apreciação positiva, mas não pôde deixar de se sentir um pouco ferido. Sim, fora um estúpido inconsciente. Agora sabia que a raiva não o levaria

a lado nenhum. Alsan era um bom guerreiro porque também era um bom estratega e era capaz de manter o sangue-frio sem permitir que a ira cegasse a sua visão objectiva das coisas.

- Por hoje basta - disse Alsan, e Jack assentiu sem discutir. Algum tempo atrás, antes de ter visto Kirtash através da Alma,

ter-se-ia sentido muito orgulhoso por vencer Alsan no treino. No entanto, agora, apesar de se sentir satisfeito, não o considerava importante. "Ainda tenho muito que aprender", disse para si.

Foi directamente para a casa de banho tomar um duche. Quando saiu, mais relaxado, viu Victoria que estava à espera dele. Ainda tinha vestido o uniforme do colégio e parecia impaciente por mostrar-lhe algo. Jack seguiu-a, intrigado, até ao estúdio. Victoria sentou-se em frente ao computador e indicou-lhe a imagem no monitor.

- Olha. Foi isto que viste?

Jack olhou e o seu coração sobressaltou-se. O ecrã mostrava uma fotografia do edifício onde vira Kirtash.

- Encontraste-o - murmurou.

- Não foi difícil. Sabes o que é? A Biblioteca Britânica!

- A British Library! - exclamou Jack. - Ouvi falar dela. Vivi dois anos em Londres, deveria ter reconhecido a cidade quando a vi!

- Não conhecias a biblioteca?

- Não, Londres é uma cidade muito grande, e nunca passei por ali. No entanto, não a imaginava assim. O que faria Kirtash num sítio como esse?

Os dois tiveram a mesma ideia ao mesmo tempo e os seus olhares

cruzaram-se.

- Foi buscar um livro? - sussurrou Victoria, mas Jack negou com a cabeça.

- Um livro de magia idhunita na Biblioteca Britânica? Parece absurdo.

- Talvez não! Pensa, Jack. Um livro escrito num idioma desconhecido. Seria um exemplar muito raro. É lógico que fosse acabar num museu ou numa biblioteca importante,

não? Na melhor das hipóteses, alguém estava a tentar decifrá-lo!

Os dois olharam-se, emocionados com a sua descoberta. Uma estranha sensação de familiaridade invadiu-os então. Jack corou ligeiramente e ela deixou escapar um suspiro quase imperceptível.

Ele pigarreou, incomodado, afastando o olhar.

- Parece-me que deveríamos fazer uma visita à biblioteca, não achas? - disse por fim.

- E o que esperas encontrar ao certo? - perguntou Victoria.

- Não tenho a certeza, mas tenciono descobrir.

- Descobrir o quê? - perguntou uma voz atrás deles.

Jack voltou-se para Shail, que acabava de entrar e os olhava com curiosidade.

- No outro dia - respondeu Jack, algo constrangido -, quando vi Kirtash, ele acabara de conseguir um livro em idhunaico arcano e estava num edifício que, segundo acabámos de descobrir, é o da Biblioteca Britânica em Londres.

- O quê? - exclamou Shail. - E porque não o disseste antes?

- Ninguém me perguntou nada a esse respeito - defendeu-se Jack.

- bom - disse Shail -, não vamos ficar nervosos. vou chamar Alsan. Tens de nos contar isso mais em pormenor.

- De acordo - decidiu Alsan, bastante sério. - Isso tem de ser investigado: Shail, vamos.

- À Biblioteca Britânica?

Alsan assentiu. Jack respirou fundo; esteve quase a pedir-lhe que o deixasse ir com eles, mas, depois de tudo o que acontecera, não se atreveu. Shail olhou-o, adivinhando o que ia na sua mente. Pareceu que ia fazer algum comentário, mas naquele momento ouviu-se a voz de Victoria:

- Vejam isto.

Voltaram-se para ela. Passara um bom bocado a pesquisar na Internet notícias e artigos relacionados com a Biblioteca Britânica, e continuava com os olhos fixos no ecrã do computador.

- O que é, Vic? - perguntou Shail, aproximando-se. - O que encontraste?

Os quatro juntaram-se em volta do monitor. O ecrã mostrava uma notícia de algumas semanas atrás. Jack traduziu o texto inglês em voz alta, para que Alsan pudesse entendê-lo:

- "Chegou à Biblioteca Britânica um livro escrito num idioma desconhecido. O volume, com centenas de anos, foi encontrado no interior de um barril no decorrer de escavações arqueológicas perto de Dingwall, na Escócia."

- E porque não o levaram para um museu? - perguntou Victoria.

- Aqui diz que um investigador, um tal Peter Parrell, tem a certeza de que pode decifrar o que ele diz. Mas não dá muitos pormenores.

- E já não poderá dá-los - disse Alsan -, porque, se ele tinha o livro, a esta altura de certeza que está morto.

Victoria assentiu.

- Vejam esta outra notícia. É de há três dias e fala do desaparecimento do livro... e de Parrell.

- O desaparecimento de Parrell? - repetiu Jack. - Queres dizer que não sabem se está morto?

- Kirtash nunca deixa marcas da sua passagem, e por isso não é de estranhar que não tenham encontrado nenhum corpo. Irão dá-lo como desaparecido, mas nunca poderão provar que morreu.

Jack estremeceu, pensando nos seus pais. Shail dissera-lhe que a polícia não encontrara nada em sua casa. Simplesmente... tinham todos desaparecido, até mesmo o cão. Kirtash matava, mas não deixava corpos atrás de si. Que fazia com eles? O rapaz engoliu em seco ao perguntar-se, uma vez mais, o que fora feito dos seus pais. Ainda era esquisito para ele pensar que tivessem morrido; mas, agora que se acostumava à ideia, inquietava-o não ter um lugar onde ir chorá-los.

- Espera - murmurou Shail, olhando fixamente para o ecrã. Podes ampliar essa imagem?

Antes que Victoria pudesse responder, ele mesmo apoderou-se do rato e clicou sobre a fotografia. A capa do livro misterioso ficou maior, e Shail aproximou-se mais do monitor para tentar decifrar os símbolos que nela apareciam.

- Entendes o que diz?

Após um breve silêncio, o rosto de Shail ensombrou-se.

- Pela Sagrada Irial! - exclamou. - Se o que aí diz está correcto, esse é o Livro da Terceira Era, escrito pelos feiticeiros idhunitas que se exilaram na Terra há séculos. Supostamente é um diário que recolhe as suas experiências neste mundo, novo para eles...

- O que é que isso tem de importante? - cortou Jack.

- Sabes, Jack, esses feiticeiros levaram consigo objectos mágicos de grande valor. Alguns regressaram e outros não. Se esse livro é o que as crónicas dizem que é, certamente poderá dar a quem o ler alguma pista sobre os objectos que se perderam. Parece que já começo a perceber porque é que Kirtash tinha tanto interesse em consegui-lo. Não tenho dúvidas de que está ao corrente do que se passa no mundo. Reconheço que esta notícia me tinha passado ao lado.

- Está claro que temos de ir investigar isto o quanto antes disse Alsan, taciturno.

Jack desviou o olhar. Continuava a não se atrever a pedir que lhe dessem um posto naquela missão.

- Jack - disse então Alsan. - Vai ao teu quarto e traz algo quente para vestir. Tu e a Victoria vêm connosco.

O rapaz ergueu a cabeça, surpreendido. Também Victoria ficara sem fala. Os dois olharam para Alsan e depois para Shail, inseguros. O feiticeiro sorria, mas foi Alsan quem explicou:

- Na realidade, não vamos para lutar, mas sim para investigar. Os vossos conhecimentos serão bons para nós; afinal de contas, é o vosso mundo. E os dois fazem parte da Resistência.

- Além disso - acrescentou Shail -, de certeza que Kirtash já não anda por ali. Deve estar a tentar decifrar o livro.

Jack e Victoria trocaram um olhar de excitação. O rapaz reprimiu um grito de alegria.

Por sorte, o céu de Londres estava coberto por um denso manto de nuvens cinzentas. Jack estava certo de que, se estivesse sol, teria cegado. E ainda assim caminhava a pestanejar, com os olhos baixos, enquanto se acostumava novamente à luz do dia.

Shail parou para olhar para ele.

- Estou bem - disse o rapaz, antes que o feiticeiro fizesse algum comentário.

Shail abanou a cabeça.

- Bem, Alsan, acho que Jack já estava há demasiado tempo fechado em Limbhad - disse ao amigo. - Mais um bocado e ter-se-ia tornado num vampiro.

- Não sei o que é um vampiro - replicou Alsan, que ia à frente, sem se voltar.

Shail suspirou com uma paciência infinita, e Jack sorriu. O jovem feiticeiro estudara entusiasticamente a história, os mitos, a tecnologia e os costumes dos diferentes povos da Terra. Alsan, por sua vez, continuava ancorado ao seu mundo e à sua forma de vida. Embora avançasse através das ruas com o orgulho e a dignidade que o caracterizavam, os restantes podiam perceber que se sentia desconfortável com a roupa terrestre que tivera de vestir para não chamar a atenção na cidade.

A Alma levara-os até ali num instante, mas fizera-os aparecer num lugar um pouco mais afastado, longe dos olhares indiscretos. Contudo, rapidamente chegaram à biblioteca. Atravessaram o pórtico, e, uma vez no pátio, Jack, já acostumado à luz, ergueu a cabeça para contemplar o imponente edifício. Viu o lugar onde a sua consciência se encontrara com Kirtash, noites antes, e foi invadido por uma miscelânea de sentimentos: medo, raiva, ódio, desespero...

Victoria trouxe-o de volta a si, dizendo-lhe com suavidade:

- Vamos, Jack, temos de entrar.

Jack voltou à realidade. Os olhos de Victoria estavam fixos nele e olhavam-no como se na realidade ela pudesse compreendê-lo sem precisar de palavras. Jack sorriu-lhe, agradecido. Cada dia descobria coisas novas e surpreendentes acerca daquela rapariga.

- Claro - limitou-se a dizer, e apressou-se a seguir Alsan e Shail para o interior do edifício.

- bom - disse Victoria em voz baixa, quando se juntaram aos seus amigos no enorme hall da biblioteca. - E agora, que fazemos?

- Há uma sala de leitura de manuscritos e livros raros - informou Jack, estudando uma planta da biblioteca. - Acho que poderíamos começar por aí.

Shail assentiu.

- Gostava de espreitar um pouco as zonas que não estão abertas ao público. Escritórios, gabinetes, essas coisas. Posso utilizar um feitiço de invisibilidade ou de camuflagem.

- Parece-me bem - disse Alsan. -Jack, tu e a Victoria vão a essa sala, ver o que descobrem. Shail e eu iremos juntos.

Combinaram encontrar-se um pouco mais tarde à entrada para comentar o que tinham descoberto. Tinham decidido não perguntar directamente pelo Livro da Terceira Era, para não levantar suspeitas, mas Jack tinha outros meios de conseguir informação.

Os dois amigos dirigiram-se para a sala de leitura de manuscritos e livros raros. Detiveram-se por um momento diante da porta, impressionados com a sua enorme dimensão. Num silêncio absoluto, estudantes, investigadores e bibliófilos em geral estavam absortos no estudo de livros antigos, incunábulos e manuscritos diversos. Victoria sentiu-se intimidada; no fim de contas, eles eram apenas crianças, e aquele lugar era muito sério e formal. Mas Jack não se amedrontou. Dirigiu-se ao balcão, tirou um bloco de notas e uma esferográfica da mochila e esperou pacientemente que alguém o atendesse. Quando a funcionária se aproximou dele para ver o que pretendia, o rapaz perguntou-lhe algo com uma educação exemplar. Ela pareceu aborrecida de início, mas Jack continuou a falar e não demorou até a bibliotecária sorrir abertamente. Victoria contemplou com admiração como Jack ganhava a confiança da mulher com a sua simpatia natural. Sorriu quando viu o amigo a tomar apontamentos freneticamente e quis aproximar-se, mas compreendeu de imediato que, com o seu escasso domínio de inglês, pouco poderia fazer para ajudar. Assim, acomodou-se num assento livre e, simplesmente, esperou.

Pouco depois chegou Jack, com os olhos brilhantes. Victoria supôs imediatamente que descobrira coisas interessantes.

Saíram para a praça e esperaram pelos amigos junto à estátua do homem sentado, que afinal era Newton, de acordo com o que Jack descobrira, ao estudar um folheto que obtivera na entrada.

- bom, conta-me - pressionou Victoria. - De que falaram?

- Perguntei-lhe sobre os livros antigos que chegavam à biblioteca. Disse-me que não estão à disposição do público e que apenas os investigadores e peritos podem consultá-los, e só com uma autorização especial. E sabes o que mais? Pode ser que o século da informática tenha guardado o Livro da Terceira Era, Victoria. É que costumam guardar uma cópia dos livros mais raros em microfilme, ou digitalizam as suas páginas para poderem trabalhar com elas no computador.

- Então talvez possamos recuperar o livro e descobrir o que Kirtash procurava nele!

- Era nisso que estava a pensar. Só que não me atrevi a perguntar pelo nosso livro em particular.

- Mas como conseguiste que te contasse tudo isso? Jack encolheu os ombros.

- Disse-lhe que era para um trabalho da escola. E que quando crescesse queria ser bibliotecário, como ela. E... não sei, mais umas coisas.

- És diabólico, Jack - comentou Victoria, admirada. O rapaz sorriu.

- Eu sei.

Alsan e Shail não demoraram a aparecer. Jack contou-lhes o que descobrira; por sua vez, eles também traziam notícias.

- Infiltrarão-nos na zona dos escritórios - disse o feiticeiro - e ouvimos umas coisas interessantes. Pelo que consegui entender, todos estão possessos porque perderam definitivamente o Livro da Terceira Era. Não só desapareceu o manuscrito, como também todas as cópias que existiam na biblioteca: microfichas, cópias em papel e até páginas digitalizadas nos computadores. Não há dúvida de que Kirtash faz o seu trabalho como deve ser.

- Queres dizer que apagou os documentos do computador? perguntou Jack, incrédulo. - Não é suposto ser idhunita?

- E depois? Eu também sou e aprendi a usar os computadores. Aquele rapaz é endiabradamente esperto. Não me espantaria se conhecesse o teu mundo melhor do que tu.

- Mas tem de haver um limite - murmurou Jack, sacudindo a cabeça. - Só está cá há três anos, não é? Não pode ter aprendido tudo.

- Em todo o caso, atiraram as culpas para Parrell, mas há vários dias que ninguém sabe nada dele.

Jack negou com a cabeça.

- Não, tem de haver cópias em algum lado. É um livro muito valioso. Além disso, uma vez digitalizado, pode-se enviar por correio electrónico para qualquer parte. Parrell deve ter conservado alguma cópia, nem que seja no computador ou num CD.

- Acham que poderíamos revistar a sua casa para ver se encontramos alguma cópia do livro? - perguntou Victoria. - Talvez descubramos algo que a polícia tenha deixado passar.

Alsan assentiu.

- Parece-me uma boa ideia.

- Mas como vamos fazê-lo? - perguntou Jack, preocupado. Nem sequer sabemos onde vive.

- Pois eu vou descobrir - sorriu Shail. - Um feiticeiro tem os seus métodos...

Os "métodos" de Shail consistiam em ver a lista telefónica. Havia vários Peter Parrell em Londres, de modo que passaram o resto do dia a telefonar para procurar descobrir em qual daquelas casas vivia o investigador que procuravam. Em quatro delas ninguém atendeu, e assim tiveram de lá ir pessoalmente.

A sorte sorriu-lhes. Na segunda casa que visitaram, situada num velho edifício na rua Weston, uma vizinha faladora confirmou-lhes que, com efeito, vivia ali o investigador a quem tinham acusado de fugir com um livro de enorme valor.

Os membros da Resistência decidiram aparecer de noite, quando tudo estivesse mais calmo. Já sabiam que Parrell vivia sozinho e que, portanto, não encontrariam ninguém em casa. Subiram as escadas em silêncio, sentindo-se como ladrões. Quando estavam em frente da porta da casa de Parrell, Shail trocou um olhar com os seus amigos e girou a maçaneta. A porta deveria estar fechada à chave, mas abriu-se sem resistência diante do feiticeiro. Os quatro entraram em silêncio.

Não se atreveram a fazer barulho, mas Jack trouxera uma lanterna e, por outro lado, entrava bastante luz pelas janelas. Percorreram a casa até encontrar o escritório; entraram e começaram a vasculhar as estantes e os arquivadores. Shail ligou o computador e começou a examinar os documentos mais recentes.

- Este tipo era muito desorganizado - suspirou Victoria.

- Pode ser que Kirtash tenha deixado tudo assim quando revistou o escritório - opinou Jack.

- Não - replicou Shail, com os olhos fixos no ecrã. - Posso assegurar que deixou o escritório exactamente como o encontrou.

É muito cuidadoso nesse aspecto. Só terá desaparecido com o que não lhe convém que seja descoberto. O resto terá ficado tal e qual.

- Há aí alguma coisa? - perguntou Jack, aproximando-se de Shail.

- Nada - disse finalmente o feiticeiro, abanando a cabeça. É como se este tipo nunca tivesse visto um livro estranho. Kirtash também teria previsto isto.

Victoria rebuscava as estantes. Alsan ficara parado no meio da divisão, inseguro. Jack sorriu. Alsan era um guerreiro e um estratega. Não se sentia bem a entrar em casas às escondidas e a revistar escritórios.

- Se não há nada no computador - disse Jack -, é porque Kirtash, efectivamente, apagou tudo. Mas Parrell teve de trazer a informação para casa, num CD ou algo do género. com um pouco de sorte, esse CD ainda está aqui.

- Achas que Kirtash pensou nisso? - perguntou Victoria.

- Kirtash talvez não, mas a polícia sim - lembrou Shail. - De todas as formas, não custa nada ver.

Todos se juntaram à busca, e Shail foi experimentando no computador, um a um, todos os CDs que encontraram no escritório. Mas foi inútil.

Jack ia dar-se por vencido quando os seus olhos se detiveram na aparelhagem de som que havia sobre uma das estantes. Inclinou a cabeça, pensando numa ideia que acabara

de lhe surgir. Aproximou-se do equipamento e começou a abrir as caixas dos CDs que se empilhavam junto dele. Houve uma que lhe chamou especialmente a atenção por

mostrar o desenho de um dragão na capa. Abriu-a, mas estava vazia. Ia abandonar a sua busca, decepcionado, quando se lembrou onde o disco poderia estar. Ligou o

equipamento de som e premiu o botão de abertura do CD. O aparelho expeliu a bandeja silenciosamente.

Nela havia um único CD regravável, sem nenhuma indicação. Jack teve um pressentimento.

- Experimenta este, Shail - disse ao feiticeiro, estendendo-lho.

- Jack, isso é música - disse Victoria, que estivera a observá-lo.

- Talvez. Ou talvez não.

Shail introduziu o CD no computador. Os quatro inclinaram-se para o ecrã, sustendo a respiração.

Diante dos seus olhos apareceu uma série de documentos de imagem. Shail abriu um deles e...

O ecrã trémulo do computador mostrou-lhes a fotografia de uma página amarelada coberta de linhas de símbolos estranhos, como patas de mosca salpicadas por pequenos triângulos. Shail respirou fundo, surpreendido.

- Então é verdade - murmurou. - É o Livro da Terceira Era. Mas Alsan abanou a cabeça, taciturno.

- Porque é que Kirtash deixaria para trás uma coisa destas? Shail encolheu os ombros.

- Pode ser que Jack tenha razão e simplesmente não saiba tanto como pensamos.

- Tenho a certeza de que, se o disco estivesse à vista - interveio Victoria -, teria dado conta imediatamente do que era e tê-lo-ia levado.

Shail contemplou, pensativo, a capa com a imagem do dragão.

- Porque é que Parrell guardaria uma cópia do livro num lugar como este?

- Estava escondido - murmurou Jack. - Meteu-o na aparelhagem de som para que não o encontrassem.

Os outros olharam para ele.

- Queres dizer... que era idhunita?

- Não pode ser - declarou Shail. - Um idhunita não iria para os meios de comunicação dizer que pode decifrar um livro misterioso. É uma maneira muito estúpida de chamar a atenção...

- A não ser que ele não soubesse nada sobre Kirtash - sugeriu Jack.

- Pode ser, não? Talvez quisesse com isso assegurar que o deixavam ver o livro. Logo... talvez se desse conta de que andava a ser seguido e escondeu uma cópia... esperando que alguém a encontrasse.

- Bem - concluiu Alsan. - Já temos o que viemos buscar. Vamos voltar para casa. Continuaremos a pensar nisso depois.

Shail pegou em algumas das folhas que a impressora cuspia e examinou-as, franzindo o sobrolho. Victoria aproximou-se dele e, pondo-se em bicos de pés, espiou por cima do seu ombro.

- Entendes alguma coisa? - perguntou.

- É uma variante antiga do idhunaico arcano - disse o feiticeiro, aproximando a folha para que ela pudesse vê-la. - Reconheces estes símbolos?

- Alguns são-me familiares - respondeu ela -, mas a maioria são diferentes dos que me ensinaste.

- Não muito. Concentra-te bem.

Os dois sentaram-se e espalharam as folhas por cima da mesa do estúdio. Jack continuou a recolher as folhas que saíam da impressora. Quando as levou a Shail e Victoria, viu-os muito juntos, concentrados no que faziam, com as cabeças quase a roçarem-se. Shail explicava pacientemente o significado de cada um dos símbolos e Victoria escutava-o, depositando toda a sua atenção nele. Jack sorriu, mas sentiu uma pontada de ciúmes. Interrogou-se sobre se Alsan e ele alguma vez se entenderiam tão bem como Shail e Victoria.

- Alguma pista? - perguntou Alsan, entrando na divisão. Shail levantou a cabeça.

- Vamos demorar um pouco a decifrar o livro. Enquanto isso... Mas não terminou a frase. Nem Jack nem Alsan sabiam ler o

idhunaico arcano, como tal não poderiam ajudar.

- vou à biblioteca procurar informação sobre a Terceira Era decidiu Alsan. - Não me fará mal fazer uma revisão dos meus conhecimentos de História.

- vou contigo - disse Jack, contente por ter algo para fazer. Deixou as folhas que faltavam sobre a mesa, perto de Shail, e acrescentou: - Acho que isto é tudo.

Despediu-se dos seus amigos com um "até logo", mas nem Shail nem Victoria pareceram ouvi-lo; estavam embrenhados no trabalho. Alsan saíra da divisão e Jack seguiu-o.

- O que é a Terceira Era? - perguntou, uma vez na biblioteca.

- A chamada Era da Contemplação - explicou Alsan, enquanto passava o dedo pelas lombadas dos livros nas estantes. - Houve uma guerra entre feiticeiros e sacerdotes, uma das muitas; as duas Igrejas venceram e assumiram o poder em Idhún, e a autoridade dos Oráculos sagrados prevaleceu sobre o poder das Torres de feitiçaria. Assim começou a Terceira Era. Os sacerdotes proclamaram que a magia constituía um desafio aos deuses e uma aberração nascida dos desígnios de Séptimo, o deus negro, e perseguiram e executaram um grande número de feiticeiros. Muitos tiveram de fugir... para outros mundos, como a Terra. Esse foi o primeiro êxodo de feiticeiros idhunitas, os primeiros que chegaram até aqui. Eles criaram Limbhad.

Jack assentiu. Lembrava-se de ter ouvido aquela história antes.

- Era o que eu pensava - comentou Alsan, deixando um monte de volumes grossos sobre a mesa. - Pensa nisto: todos estes livros falam da Terceira Era e estão escritos em idhunaico comum, e não arcano.

- O que queres dizer com isso?

- Que foram escritos por feiticeiros que fugiram de Idhún por causa da perseguição dos sacerdotes, e gastaram rios de tinta para falar disso. Aposto o que quiseres que estas páginas estarão cheias de lamentos e maldições contra os sacerdotes e os Oráculos. O Livro da Terceira Era, por sua vez, está escrito em arcano, pelo que pensamos que conta coisas muito mais interessantes e segredos que os feiticeiros não queriam que fossem conhecidos fora da sua ordem.

" O que é certo é que eles nunca são tão loquazes na hora de falar na Era Negra.

- A Era Negra? - repetiu Jack, interessado. - Conta-me.

- A Segunda Era. O chamado Império de Talmannon - explicou Alsan, com um suspiro. - O mais poderoso necromante que alguma vez existiu. Todos os feiticeiros se puseram

do seu lado e graças a eles os sheks apoderaram-se de Idhún pela primeira vez.

- Já o tinham feito antes?

- Oh, sim. A história tende a repetir-se, não achas? A guerra de que te falei antes, a que houve entre as Torres e os Oráculos e a qual foi-finalmente vencida pelos

sacerdotes, foi provocada por Talmannon e os seus aliados feiticeiros. Dessa vez, os dragões venceram os sheks e os sacerdotes venceram os feiticeiros. Logicamente, os feiticeiros caíram em desgraça. Por isso é que os Oráculos tomaram medidas tão severas durante a Era da Contemplação. Claro que os feiticeiros se defendem afirmando que se aliaram a Talmannon por causa de um objecto mágico que este tinha, que comandava as vontades de todos eles e que os obrigou a ficar do seu lado.

- Um objecto mágico?

- Tolices de feiticeiro - replicou Alsan, encolhendo os ombros.

- Shiskatchegg - ouviu-se então a voz de Shail vinda da porta. O Olho da Serpente. Não é nenhuma tolice. Graças aos deuses, esse artefacto maldito perdeu-se para sempre após a queda de Talmannon. A Era Negra não é algo de que os membros da Ordem Mágica se orgulhem, por isso agradecia-te que não brincasses com isso.

Alsan cravou os olhos em Shail, muito sério.

- Tenho cara de quem está a brincar?

- Já chega - interveio Jack; Alsan e Shail eram amigos, mas os cavaleiros de Nurgon, a ordem militar a que Alsan pertencia, nunca tinham confiado nos feiticeiros; de facto, segundo o que Jack sabia, haviam sido sempre o braço armado das duas Igrejas de Idhún, pelo que as suas relações com os sacerdotes eram excelentes. - Sei que os dois têm pontos de vista diferentes em relação a algumas coisas, mas parece-me que este não é o momento de desenterrar velhas diferenças. Ou é? Isso aconteceu há muito tempo; não tem nada a ver connosco.

- Talvez tenha - disse Shail, mas o seu tom de voz deixara de ser desafiador -, porque parece-me que já sei de que é que Kirtash anda à procura: do Báculo de Ayshel.

- Ayshel! - repetiu Alsan, surpreendido. - Referes-te à Donzela de Awa? Pensava que era apenas uma lenda...

- O Livro da Terceira Era inclui um desenho do báculo, por isso temo que seja mais do que uma lenda. Não há dúvida de que os feiticeiros o trouxeram consigo durante o seu exílio e que agora está em alguma parte da Terra. Estou convencido de que o livro nos dirá exactamente onde. Tenho de o decifrar...

- Então apressa-te - incitou Alsan. - Se essa coisa existe, devemos evitar a todo o custo que Kirtash fique com ela.

- Porquê? - interveio Jack. - O que faz exactamente esse bastão?

- Báculo - corrigiu Shail; olhou para Victoria, que acabava de entrar atrás dele. - Sentem-se; tenho uma história para vos contar.

Os três sentaram-se à volta da grande mesa que dominava a biblioteca. Shail, por sua vez, estava tão nervoso que permaneceu de pé.

- Contaram-me esta história quando não era mais do que um aprendiz - começou o jovem feiticeiro. - Todos ouvimos falar da tristemente célebre Segunda Era de Idhún, a Era Negra, quando os sheks invadiram o nosso mundo pela primeira vez, pela mão daquele que se chamou a si mesmo Imperador Talmannon e de todos os feiticeiros da Ordem Mágica.

" Ninguém sabe muito bem como é que Talmannon e os seus foram derrotados daquela vez. Mas as lendas falam da intervenção de uma criatura extraordinária, uma mistura de fada com humano. O seu nome era Ayshel e era uma semifeiticeira.

- O que é um semifeiticeiro? - perguntou Jack.

- Em Idhún, os feiticeiros são-no porque tocaram alguma vez num unicórnio - explicou Victoria em voz baixa.

- Os unicórnios canalizam a energia do mundo e passam-na ao futuro feiticeiro, o "receptor", através do corno - assentiu Shail. - Os semifeiticeiros são aqueles que viram um unicórnio, mas que não chegaram a tocar-lhe. Obtêm então uma certa sensibilidade para a magia e têm alguns poderes curativos, mas não são admitidos na Ordem Mágica.

Victoria baixou a cabeça, e Jack adivinhou o seu pensamento.

Estava a par dos seus problemas com os exercícios de magia e, pela primeira vez, compreendeu que ela receava ser uma semifeiticeira, em vez de uma feiticeira.

- Ayshel era uma semifeiticeira? - perguntou.

- Isso é o que diz a lenda - respondeu Shail -, e tem a sua lógica. A tradição também fala desse objecto que mencionei, Shiskatchegg, o Olho da Serpente. Diz-se que com ele o Imperador Talmannon controlava a vontade de todos os feiticeiros. Um feiticeiro não teria conseguido resistir ao apelo hipnótico do Olho da Serpente.

Mas um semifeiticeiro sim, porque apenas podia escutá-lo.

" Ayshel vivia no bosque de Awa, lugar de magia e mistério, porque se diz que é dali que vêm as fadas. Era uma pessoa anónima e simples até que os deuses a escolheram para enfrentar Talmannon e os sheks.

" Uma tarde, um unicórnio aproximou-se dela. Não lhe permi tiu que lhe tocasse, pois precisava dela como semifeiticeira, e o roçar do seu corno tê-la-ia transformado numa feiticeira autêntica.

Mas revelou-lhe qual era a sua missão na História.

Diz-se que os dois juntos, de maneira misteriosa, criaram o báculo: uma maravilhosa peça de prata, diamante e cristal, mas que também continha luz das três luas, lágrimas de fada e, acima de tudo, o poder do unicórnio. E este último é importante porque, a ser verdade, o báculo funcionaria de forma semelhante ao corno de um unicórnio. Isso quer dizer que não é um objecto que contenha magia em si mesmo, mas que é um canalizador.

- Um canalizador? - repetiu Jack. - Continuo sem entender.

- Posso explicar-te - interveio Victoria. - Imagina uma torradeira, certo? Porque é que a torradeira funciona?

- Porque está ligada à corrente? - arriscou Jack.

- Exacto. Imagina que essa corrente é a magia que está em todo o lado. Mas a torradeira por si só não pode utilizá-la para torrar um pão, não é? O unicórnio é o fio e a tomada. O unicórnio transmite ao feiticeiro o poder necessário para materializar os seus feitiços. com a diferença de que, uma vez recebida essa energia, o canalizador já não é necessário. A torradeira precisa de ser ligada à corrente de cada vez que se quer que funcione. Para se converter num feiticeiro, uma pessoa precisa apenas de ser tocada por um unicórnio uma vez.

- Mas de onde sai a magia, se o próprio unicórnio não a tem?

- Já te expliquei: é a energia que está em toda a parte e que faz girar todo o mundo vivo.

- Em Idhún a magia está no ar numa quantidade maior do que na Terra, apesar de ser um mundo mais pequeno - interveio Shail.

- No princípio, isso intrigava-me, até que descobri a razão: no teu mundo, Jack, a maior parte dessa energia é utilizada para movimentar uma grande quantidade de máquinas e acessórios.

- Então o báculo funciona como um unicórnio - resumiu Alsan, voltando ao tema principal da conversa.

- Não exactamente. - Shail andava para trás e para diante, pensando a toda a velocidade. - Os unicórnios podem transmitir a magia do mundo a um ser vivo, mas não podem utilizá-la de forma ofensiva. Por seu turno, os feiticeiros podem dar forma ao seu poder através da sua vontade e das fórmulas mágicas que empregam. Muitos usam um bastão que concentra a sua própria magia, conferindo assim mais força aos seus feitiços. Se o Báculo de Ayshel é o que penso ser, actuaria como o como de um unicórnio, mas seria quase como um bastão de feiticeiro de poder ilimitado...

- ... porque não empregaria o poder do feiticeiro que o usa, mas canalizaria a magia do mundo... que é inesgotável! - compreendeu Victoria.

- Depende dos locais; um artefacto assim não funcionaria numa selva da mesma forma que funcionaria num deserto. Por isso, os unicórnios vivem em bosques transbordantes de vida. A sua natureza de canalizadores assim o exige; caso contrário, perderiam as forças pouco a pouco e morreriam. E também não acredito que funcione da mesma maneira em Idhún e na Terra, onde o seu poder será menor.

Em todo o caso, e se acreditarmos no que diz a lenda, esse báculo é um objecto de grande valor. Armada com ele, Ayshel e o pequeno exército rebelde que recrutou ao longo da sua viagem foram derrotando um a um todos os lugares-tenentes de Talmannon, até chegar ao próprio Imperador, que venceu após uma dura batalha. Uma vez morto, a Porta fechou-se e os sheks foram novamente desterrados.

Alsan assentiu.

- Há uma lenda que diz que os dragões condenaram os sheks a vaguear pelos limites do mundo por toda a eternidade. Apenas podem regressar se alguém lhes abrir uma entrada. Dependem dessa pessoa, uma espécie de sacerdote, para permanecer em Idhún. Uma vez que essa pessoa morra, se não tiverem encontrado um sucessor, são de novo absorvidos pela sua dimensão.

- É mais do que uma lenda - replicou Shail, sombrio. - Foi o que fez Ashran, o Necramante. É o novo sacerdote dos sheks.

- O que foi feito de Ayshel? - perguntou Victoria.

- Morreu na batalha contra Talmannon - disse Alsan. - com honra. Como uma heroína.

- Mas o que aconteceu ao báculo? - inquiriu Jack. - Se é um objecto tão poderoso, porque é que ninguém o utilizou até agora?

- Porque creio que não pode ser utilizado por qualquer pessoa disse Victoria a meia-voz. - Os unicórnios escolheram uma semifeiticeira de propósito, não foi?

- bom, é evidente que essa coisa deve ter uma afinidade especial com os unicórnios - reconheceu Shail. - E é verdade que talvez não possa ser manejada por qualquer um, caso contrário, os feiticeiros exilados teriam empregue o seu poder em vez de o esconder... onde quer que o tenham escondido. Ambos têm razão; boa observação: provavelmente o báculo só pode ser usado por semifeiticeiros, pessoas próximas da magia por terem visto um unicórnio. Se fosse tocado por um não-iniciado, o báculo não reagiria e, se o fosse por um feiticeiro, absorveria toda a sua magia, em vez de a retirar do ambiente. Tem a sua lógica. Mas, se é assim, não sei o que Kirtash pretende fazer com... - Calou-se de repente e empalideceu. Cruzou o olhar com o de Alsan e este pareceu entender imediatamente o que ele estava a pensar. - Não pode ser.

- Não - disse Alsan em voz baixa. - Não se atreverá.

- Maldição! - exclamou Shail, quase a gritar, dando um murro na mesa. - Claro que o fará!

Jack olhou-o, preocupado. Nunca vira o jovial Shail tão desesperado e chateado. Viu-o lançar-se novamente na leitura do Livro da Terceira Era, a tremer de raiva.

- Se ele lhe puser a mão em cima, mato-o... - sussurrou Shail. Juro que o faço.

- Lunnaris? - perguntou Victoria. - Referes-te a Lunnaris? Jack fitou-os, perguntando-se uma vez mais quem seria aquela Lunnaris que parecia ser tão importante para os seus amigos. Mas viu o rosto desanimado de Shail e não se atreveu a perguntar, porque soube que não devia pôr o dedo na ferida. Era evidente que aquele assunto era muito doloroso para ele.

- Não iremos deixar que isso aconteça - disse Alsan, com ar grave. - Chegaremos antes dele.

Victoria pôs-se atrás do jovem feiticeiro e pousou suavemente as mãos nos seus ombros.

- Não tenhas dúvida. Desta vez não se vai adiantar.

Jack assistia à cena sem compreender o que estava exactamente a acontecer. Parecia que os três sabiam de algo que não lhe tinham contado, algo acerca dos próximos planos de Kirtash, que, por alguma razão, pareciam afectar Shail tão profundamente. Também Alsan e Victoria estavam pálidos; Jack sentiu-se frustrado e traído Frustrado por não entender o que se estava a passar, e traído porque Victoria, a sua melhor amiga, não lhe contara nada a esse respeito.

- Só há uma coisa que podemos fazer - declarou Shail. - Acabar de decifrar o Livro da Terceira Era, descobrir onde os feiticeiros esconderam o Báculo de Ayshel... e tentar chegar lá antes de Kirtash.

- Podemos ajudar-te? - perguntou Victoria.

- Sim: procurem mais informação sobre o báculo e a Segunda Era... para ver se descobrem mais qualquer coisa.

Num instante, a mesa da biblioteca encheu-se de volumes antigos. Alguns deles eram livros de História; outros, tratados sobre objectos mágicos; e um outro, usado por Shail, era um manual para decifrar textos em arcano antigo. Shail ficou tão rapidamente imerso na tradução que Victoria se apercebeu de que já não o podia ajudar. Juntou-se então aos outros na busca de informação sobre o Báculo de Ayshel, consultando os livros em idhunaico antigo que Jack e Alsan não sabiam ler.

Mas nenhum dos três encontrou muito mais dados sobre a Donzela de Awa e o seu prodigioso báculo. Por se tratar de uma personagem mítica, poucos livros de História a mencionavam. Contudo, a sua lenda fora transmitida de geração em geração, até que um jovem aprendiz de feiticeiro a contara aos seus amigos, enquanto bebiam umas cervejas na cantina da Torre de Kazlunn, como um conto de fadas que a sua avó lhe relatara na infância.

Felizmente para a Resistência, Shail sempre apreciara boas histórias e prestara atenção naquela noite.

Ao fim de duas horas a trabalhar freneticamente, sem sequer levantar os olhos daqueles livros poeirentos, o jovem feiticeiro ergueu a cabeça.

- Já está - disse; estava há um bom bocado a examinar um mapa-mundo e a fazer num papel uns estranhos cálculos que apenas ele parecia compreender. -Já sei onde esconderam o Báculo de Ayshel.

Assinalou um ponto no mapa: algures no Norte de África.

 

           PORTADORA DO BÁCULO

O sol abrasador do deserto caía a pique sobre as dunas, arrancando delas reflexos ofuscantes e provocando uma estranha ondulação no ar. Não corria o mais pequeno sopro de brisa naquela caldeira. Jack parou por um momento, um pouco atordoado. A Alma levara-os ali num instante, e o seu corpo acusara o contraste entre a suave noite de Limbhad e a atmosfera ardente e angustiante do deserto. Além disso, tinha uma espada presa ao cinto, e isso fazia-o sentir-se estranho. Voltou-se para Victoria, que o seguia com dificuldade.

- Estás bem?

Ela assentiu, mas não tinha bom aspecto. Jack estendeu-lhe a mão e ela aceitou, agradecida.

Alsan e Shail iam à frente. Partiase do princípio de que era Shail quem sabia para onde se dirigiam, mas não conseguia seguir o ritmo do seu tenaz e resistente companheiro. Jack quis perguntar se ainda faltava muito para chegarem, mas tinha a boca seca.

Pelos vistos, ou a Alma não os levara exactamente ao lugar calculado por Shail, ou este enganara-se em dois quilómetros.

De repente, Alsan parou. Todos viram o que chamara a sua atenção: algumas palmeiras solitárias junto a uma montanha que dava alguma sombra. Entre as rochas distinguia-se aquilo que parecia uma caverna.

- Finalmente - suspirou Victoria.

Shail trocou um olhar com os seus companheiros. O Báculo de Ayshel fora levado para aquele lugar há séculos, mas o feiticeiro estava seguro de que continuava ali. Caso contrário, Kirtash não estaria à procura dele.

Momentos depois descansavam à sombra da montanha, em frente da caverna, que era sem sombra de dúvidas uma casa, a julgar pela cortina de ráfia que tapava a entrada e pelos dois recipientes de barro depositados junto dela. No entanto, não entraram. Alsan decidira que era melhor esperar ali. Quem quer que vivesse na caverna detectaria logo a sua presença.

Assim foi. Tinham apenas bebido alguns goles de água dos cantis quando uma estranha mão envolta em trapos afastou a cortina o suficiente para deixar ver um grande olho, redondo, avermelhado e brilhante. Jack e Victoria retrocederam, mas Alsan e Shail trocaram um olhar e sorriram.

- Que os deuses te protejam! - saudou Alsan em idhunaico. O meu nome é Alsan, filho do rei Brun, e sou o herdeiro do trono de Vanissar.

- Ouvifalardesselugar - assentiu a criatura, no mesmo idioma; falava tão depressa que não separava as palavras umas das outras, e os dois jovens tiveram problemas para o entender. - Entremparafalarmos.

Alsan-entrou atrás da criatura, decidido, e os outros seguiram-no.

Uma vez no interior da caverna, Jack olhou fixamente para o seu anfitrião, mas não viu grande coisa nele. Era pequeno e estava coberto de trapos dos pés à cabeça; os panos andrajosos que tapavam o seu rosto apenas permitiam ver dois olhos redondos e brilhantes como brasas.

- E um yan - sussurrou Shail aos mais jovens.

Victoria assentiu, mas Jack teve de fazer um esforço para se lembrar do que lera sobre aquelas criaturas na biblioteca de Limbhad.

Pelo que sabia, havia em Idhún mais raças inteligentes para além dos humanos, dos dragões, dos unicórnios e dos sheks. As lendas diziam que, no início dos tempos, aquele mundo fora habitado pelos seis povos criados pelos primeiros deuses: em primeiro lugar, os humanos, que povoaram as mesetas e as colinas; em segundo lugar, os feéricos, ou seja, fadas, ninfas, duendes, gnomos e semelhantes, que habitaram os bosques; em terceiro lugar, os gigantes, senhores das altas cordilheiras; depois, os varu, criaturas anfíbias, moradores das profundezas marinhas; seguidamente, os celestes, povo amável que se estabeleceu nas grandes planícies e nos vales; e, por último, os yan, habitantes do deserto.

Por último, diziam os livros. É que "yan", ern idhunaico antigo, significa precisamente "os últimos". Rezavam as lendas que, quando Idhún era jovem, Aldun, deus do Fogo, queimou involuntariamente as terras do sul quando desceu ao mundo. Como castigo, os outros deuses condenaram os seus filhos a habitar aquele deserto que ele criara. Por isso eram chamados de "yan", os últimos, porque, das seis raças, era aquela que menos importava, tanto para os deuses como para os mortais.

- Bemvindosaminhacasa - disse o yan. - Sente-seporfavor. Jack olhou em volta com curiosidade. A casa do yan não era

muito grande e também não tinha muitas coisas. Alguns potes de barro, um catre num canto e uma porta desconchavada que conduzia, quase de certeza, a um armário. Uma abertura na parede, por cima da porta, permitia a entrada de mais alguma luz.

- Não te deixes enganar - sussurrou-lhe Shail ao ouvido. - É um yan; deve ter a caverna cheia de esconderijos secretos.

Jack disse para si que, nesse caso, os esconderijos estavam muito bem escondidos.

Sentaram-se todos no chão, sobre as esteiras que o yan dispusera.

- Aticonheçotepríncipe - disse o yan. - Quemsãoeles?

- Shail, o feiticeiro - respondeu Alsan, indicando o amigo. Jack e Victoria - acrescentou, fazendo um gesto na direcção deles.

- ChamomeKopt - disse o yan.

- Somos a Resistência - declarou Alsan. - Viemos de Idhún para deter Kirtash, o enviado de Ashran e dos sheks, e trazer a paz e a salvação ao nosso mundo.

- Sheks - repetiu a criatura. - Voltar amainvadirldhún?

- Como? - perguntou Shail, surpreendido. - Não sabias?

- Háséculosqueaminhaespéciehabitaestemundo - disse Kopt. OsmeusantepassadosfugiramdeldhúnduranteaTerceiraEra. Algunsvoltarammasoutrosficaram.

- Uma colónia yan na Terra? - Shail não conseguiu conter a sua excitação. - Estão aqui desde os tempos do Primeiro Exílio? Como conseguiram esconder-se dos humanos durante tantos séculos?

- Oshumanosquehabitamestasterrasacharamqueéramodemónios - explicou o yan. - Mantiveram-selonge.Masagorasórestoeu.Eomeutempoestáaacabar.

- Porque é que ficaram? - perguntou Victoria. - Porque é que

não regressaram a Idhún?

- Tínhamosumamissãoacumprir.

- Percebo de missões - assentiu Alsan. - E acho que sei qual era a vossa.

- Vigiar o Báculo de Ayshel - disse Shail em voz baixa. - Mas o Livro da Terceira Era foi encontrado. Kirtash está à procura do báculo e, se o encontrar...

- Hámuitoquesintoalgumacoisanoar - disse Kopt. -

Algumacoisamalignaqueandaaminhaprocura.

- Porque não recorreste a uma camuflagem mágica? - perguntou Shail. - Porque não te escondes atrás de um disfarce humano?

-Porquenãosoufeiticeiro.Osmeusantepassadosforammasmorreram.Enestemundonãohaviaunicórniosparaconsagrarnovosfeiticeiros.

Shail assentiu, mas não disse nada.

- Noentanto - acrescentou o yan -, entendoalinguagemdoventododeserto.Enãometrazboasnotícias.

- Nós temos boas notícias - disse Shail. - Desta vez, chegámos antes de Kirtash. com o báculo que guardas encontraremos Lunnaris.

Jack franziu o sobrolho. Outra vez Lunnaris.

- Ela está perdida neste mundo, tal como os teus antepassados estiveram - prosseguiu Shail; Jack observou que Alsan o deixara falar, talvez por saber que ninguém

falaria do assunto com tanta paixão como o jovem feiticeiro. - E ela e o seu companheiro são a última esperança para Idhún. Se Kirtash os encontrar...

Não terminou a frase, mas o yan assentiu rapidamente.

- Achoqueseidoquesetrata.

- Entrega-nos o báculo - disse Alsan.

- Por favor - acrescentou Shail.

- Porquerazãodeveriaacreditaremvocês

Alsan ia responder, indignado, mas Shail de teve-o.

- Entende-o - disse ao seu amigo. - O seu clã tem estado a guardar o báculo há várias gerações. Não o vai entregar assim ao primeiro estranho que aparecer.

Alsan assentiu.

- Compreendo. Então deixa-nos vê-lo.

-Claro.Dequalquerdasformasemtodosestesséculosninguémconseguiutocarnessebáculo.

- O quê? - perguntou Shail. - Queres dizer que está protegido por um feitiço?

- Venhamvercomosvossosolhos.

O yan levantou-se de um salto. Mexeu-se muito rapidamente e Jack pestanejou, surpreendido; já estava à porta à espera deles.

Voltaram a expor-se ao sol do deserto, e Jack sentiu falta da caverna fresca de Kopt. O yan guiou-os até uma montanha próxima, em cuja base se abria a entrada de uma grande caverna.

Jack mudou o peso de uma perna para a outra, incomodado. Por alguma razão, sentia que não lhe apetecia nada saber o que estava escondido no interior daquela caverna.

Kopt já os aguardava à entrada. Alsan começou novamente a andar sem aviso prévio, e os outros seguiram-no.

Entraram na caverna e percorreram um túnel extenso; ao fundo, a galeria abria-se para dar lugar a uma caverna iluminada por um forte brilho, e Jack soube que era para ali que se dirigiam. Alsan seguia o yan, firme, sereno e orgulhoso, e o rapaz admirou uma vez mais a sua força interior e a sua confiança em si mesmo e nos seus ideais. E lembrar-se-ia durante muito tempo da figura do seu amigo, banhada pela luz que emergia da caverna, porque foi a última imagem que teve do Alsan que conhecera.

- Espera - disse Victoria, segurando Jack pelo braço.

O rapaz voltou-se para ela e apercebeu-se do temor nos seus olhos escuros. Shail também olhou para ela, interrogativo.

- Há alguma coisa má aí dentro - disse ela. - O yan enganou-nos.

- Mas o que...

Jack olhou em volta e não viu Kopt em lado nenhum. Avançou uns passos em direcção à caverna e algo semelhante a uma garra gelada apoderou-se do seu coração. E nesse preciso momento soube, de alguma forma, que Victoria estava a dizer a verdade. Mas então descobriu, com horror, que Alsan já entrara na enorme caverna. E soube com toda a certeza o que ia encontrar no seu interior.

- Alsan! - gritou. - ALSAN! !!!

- Alsan... Alsan... Alsan... - repetiu o eco.

Jack quis correr até ele, mas a mão de Shail impediu-o.

- Pode-se saber o que se passa convosco?

- Não sei se esse báculo está ou não nessa caverna - disse Jack, com a respiração acelerada. - Mas, seja como for, Kirtash chegou primeiro e continua lá dentro.

Victoria sufocou um grito. Shail fitou-os, desconcertado.

- Mas como...?

Jack poderia ter-lhe explicado a sensação de frio, o sentimento repentino de ódio e aversão que o invadira ao aproximar-se da caverna, mas não havia tempo.

- Maldição, Shail, confia em mim! Temos de tirá-lo dali seja como for!

Shail olhou-o durante um momento, com o sobrolho franzido; então voltou-se bruscamente e desatou a correr pelo túnel. Jack e Victoria seguiram-no.

A galeria abriu-se, dando lugar à caverna por onde Alsan desaparecera. Era uma enorme abertura no interior da montanha, iluminada pela luz natural que entrava pela enorme brecha no tecto. Ao fundo, havia um monte de rochas e, cravado nelas como uma lança, estava o Báculo de Ayshel, emitindo um suave brilho sobrenatural.

Mas nenhum dos três se concentrou no extraordinário objecto.

Porque viram diante do báculo o corpo inerte de Alsan, estendido sobre a areia, e junto dele um inconfundível vulto vestido inteiramente de preto até em pleno deserto, que se movimentava com uma agilidade felina.

Kirtash sacudiu a cabeça para afastar o cabelo da frente e fixou neles os seus frios olhos azuis.

Neles, não. Em Jack.

O rapaz respirava entrecortadamente. O calor sufocante que o esmagava até mesmo ali dentro toldava-lhe os sentidos e impedia-o de ver se Alsan estava vivo ou não. Pareceu-lhe que o vira mexer-se e agarrou-se a essa esperança. Mas continuava a sentir o olhar de Kirtash cravado nele e não pôde continuar a evitá-lo.

Estavam a uns vinte metros do jovem assassino, demasiado longe para que ele pudesse fazer-lhes algum mal... ainda. No entanto, nem Jack nem os seus amigos se atreveram a dar um único passo. Kirtash também não se mexeu para avançar até eles.

Atrás dele apareceu outro vulto, Elrion, o feiticeiro que costumava acompanhá-lo. Este parecia ansioso por agir, mas Kirtash mantinha-se sereno e imperturbável.

Victoria inspirou profundamente ao voltar a ver Kirtash pela primeira vez desde o seu encontro no metro. Novamente, uma sensação de atracção e repulsa apoderou-se

do seu coração, e sentiu-se muito confusa.

Kirtash pareceu aperceber-se da presença de Victoria, porque voltou o seu olhar para ela. A rapariga estremeceu dos pés à cabeça e quis afastar os olhos, mas não

foi capaz. Sabia que àquela distância ele não podia alcançar a sua mente; todavia, sentiu-se imediatamente indefesa, como se Kirtash a despisse interiormente para conhecer todos os segredos da sua alma. Quis fugir, quis gritar; mas também se deu conta, surpreendida, de que uma parte dela desejava... aproximar-se dele.

O jovem semicerrou os olhos. Jack poderia jurar que via algum tipo de emoção no seu rosto. Curiosidade, talvez? Interesse? Sim, talvez, mas não por ele.

Por Victoria.

Jack percebeu que Shail respirava fundo e quase entreviu que começava a concentrar-se. Sabia que o jovem feiticeiro poderia fazê-los regressar ao seu esconderijo em Limbhad a qualquer momento. Mas... abandonariam Alsan?

"Não, Shail", pensou, desesperado. "Não o faças."

Shail tinha dúvidas. Kirtash estava a desafiá-los para que se atrevessem a enfrentá-lo a fim de resgatar o seu amigo. O feiticeiro não sabia o que fazer. Se tentasse salvar Alsan, poderiam acabar todos mortos. Mas não se sentia capaz de o abandonar. Quanto a Victoria...

Victoria continuava com o olhar cravado em Kirtash. E, do fundo da caverna, ele também a olhava.

- O que queres? - perguntou Jack, sem poder suportar mais.

Kirtash afastou por fim os olhos de Victoria. Ela suspirou débilmente e apoiou-se em Shail, como se de repente tivesse ficado sem forças. Jack sentiu que os olhos azuis do inimigo se cravavam nos seus, e algo dentro de si rebentou como um vulcão.

- O que pretendes? - repetiu.

Kirtash inclinou-se junto ao corpo caído de Alsan e pousou suavemente a mão direita sobre a sua cabeça. Em nenhuma altura deixou de olhar para Jack. "Está a desafiar-me", pensou o rapaz, com raiva.

Não conseguiu conter-se.

- Tira as mãos de cima dele! - gritou. - Tira-as ou...

Algo o reteve. Apercebeu-se então de que desatara a correr em direcção a Kirtash e de que Shail o agarrara pela camisa quando passara junto dele.

- Está a provocar-te - sussurrou o feiticeiro. - Não caias na conversa dele.

Mas Kirtash puxou Haiass, que trazia às costas numa bainha, e avançou uns passos. O fio da espada brilhou por um momento, tocado por um raio de sol que entrava pelo tecto da caverna.

- Jack, não - murmurou Shail.

O rapaz percebeu então por que razão Kirtash não matara ainda Alsan.

Era um engodo.

Kirtash colocou suavemente, quase com carinho, a espada sobre o pescoço de Alsan. Jack sabia que Shail tinha razão e que ele estava apenas a provocá-lo, mas a ideia de que Alsan ia morrer era para ele tão insuportável que não conseguiu ficar quieto. com um grito de raiva e os olhos cheios de lágrimas, desembainhou a sua própria espada e correu em direcção a Kirtash. Victoria gritou o seu nome e Shail estendeu a mão para o impedir, mas não conseguiu.

Foi tudo muito rápido. Kirtash pareceu receber com satisfação a investida de Jack, mas com apenas um movimento da sua espada atirou para longe a espada do rapaz, que ficou indefeso na frente dele.

- Não! - gritou Victoria. - JACK! !!!

Quis correr até ele, mas Shail impediu-a. Victoria debateu-se nos seus braços, desesperada, gritando o nome do amigo, lutando para ir até ele. Mas Shail não a deixou ir.

A tremer de raiva, ódio e medo, Jack ficou parado diante de Kirtash, sentindo-se humilhado. A ponta de Haiass estava apoiada no seu peito.

Voltara a fazê-lo. Deixara-se arrastar pelas suas emoções, perdera a cabeça e agora ia morrer. E o pior de tudo era que não conseguira nada com isso, não conseguira

ajudar Alsan. "Perdoa-me", pensou. "Voltei a falhar-te. Mas, se vou morrer, não vou baixar os olhos."

Levantou a cabeça e cravou os olhos em Kirtash, desafiador. Mas este parecia... decepcionado?

Se o estava, não disse nada a esse respeito. Sem uma única palavra, Kirtash fez um movimento elegante com a espada. Rápido, certeiro e letal. Jack esperou que o aço frio de Haiass entrasse no seu peito.

E então...

... Então algo deteve a espada de Kirtash, algo claro e resplandecente, como um escudo de luz que rodeou Jack e o afastou do aço que o ia matar. Surpreendido, Kirtash retrocedeu alguns passos, e Jack voltou-se em todas as direcções, sem compreender o que estava a acontecer.

E descobriu que aquela luz não emanava do seu corpo, mas que o envolvia como um manto protector. E vinha do Báculo de Ayshel... que já não estava no seu lugar, cravado entre as rochas, mas nas mãos de uma surpreendida Victoria, que não sabia muito bem como segurar nele. Como chegara até ali era algo que nem Kirtash parecia entender.

- O que está a passar-se aqui? - perguntou Shail, desconcertado, afastando-se de Victoria.

Kirtash reagiu. Brandiu novamente a sua espada, mas deu-se conta de que a luz do báculo ainda envolvia o corpo de Jack. Victoria pareceu compreender que o objecto respondera ao seu desejo de salvar a vida do amigo e finalmente reagiu, segurando-o com mais força e avançando alguns passos. As pernas tremiam-lhe, mas esforçou-se por mostrar uma determinação que, no fundo, estava longe de sentir.

Jack percebeu que tinha uma oportunidade de salvar a sua vida. Lentamente, aproximou-se de Victoria e do báculo protector que ela segurava. Quando ficou junto dela, Jack sentiu-se suficientemente seguro para lançar um olhar desafiador a Kirtash.

- Temos o báculo - disse.

O jovem esboçou um sorriso.

- E eu tenho o vosso príncipe - disse; Victoria achou a sua voz suave e sugestiva, mas fria e sem emoção.

Jack apercebeu-se, com horror, de que o fio de Haiass repousava novamente no pescoço de Alsan.

- Entregas-me esse báculo em troca da sua vida? - perguntou Kirtash.

- Não podes usá-lo - disse Jack, compreendendo-o imediatamente. - Por isso estavas aqui. Não conseguiste tirá-lo das rochas, não foi? Mas o báculo acudiu à chamada de Victoria. Agora pertence-lhe.

- Isso é fácil de resolver. Proponho-te uma troca: a rapariga e o báculo em troca da vida de Alsan.

Jack cerrou os dentes e colocou-se diante de Victoria para a proteger, com o seu corpo e a sua vida, se fosse necessário. Não suportava a ideia de que Kirtash lhe pusesse as mãos em cima.

- Nem penses.

A espada enterrou-se um pouco mais na carne de Alsan. Um fio fino de sangue sulcou o seu pescoço. Jack engoliu em seco.

Apercebeu-se de que Shail se aproximava deles por detrás e sentiu-se um pouco consolado pela sua presença. Mas Kirtash também o detectara.

- Não dês mais um passo, feiticeiro - advertiu -, ou o teu amigo morrerá.

- E se te entregarmos o báculo, Victoria morrerá - disse Jack. Qual é a diferença?

- A diferença é que preciso dela viva - explicou Kirtash, amavelmente - para utilizar o báculo. Por isso decide, Jack. Não tenho o dia todo... e Alsan também não.

Por alguma razão, Jack não se surpreendeu por ele saber os seus nomes. Cerrou os punhos com tanta força que se magoou.

- Basta - disse então Victoria. - Não lhe faças mal: vou contigo.

- O quê? - perguntou Jack. - Não, Victoria. Não vou deixar. Mas tal significava que Alsan morreria. Jack sentiu-se corroído pela angústia. Queria salvar o seu amigo, mas também não ia deixar que Kirtash levasse Victoria. Sabia que não aguentaria vê-la partir, e, além disso, a raiva inundava-o só de pensar nisso. Uma vez jurara a si mesmo que faria o que pudesse para a proteger, e não pensava deixá-la na mão à primeira.

No entanto, ela afastou-se suavemente dele e olhou para Kirtash. E, apesar do medo que sentia, a sua voz soou serena e segura quando disse:

- Tens de jurar pelo que há de mais sagrado para ti que não farás mal aos meus amigos. A nenhum deles. Se cumprires essa condição, vou contigo... sem oferecer resistência.

- Não, Victoria... - começou Jack, mas não pôde continuar, porque os acontecimentos precipitaram-se.

Kirtash desviou a atenção para ela por apenas alguns centésimos de segundo, e algo pareceu estremecer no ar quando os olhares de ambos de cruzaram. Mas Shail já tinha dado um passo em frente e colocado as mãos sobre os ombros de Victoria e de Jack. Então, subitamente, Jack compreendeu o que o feiticeiro ia fazer. Voltou-se para ele, furioso.

-Não, shaii! NÃO!!!!

Tarde de mais. Shail pegara também em Victoria pelo braço e de repente tudo começou às voltas...

- Deixaste-os escapar - disse Elrion. - com o báculo. Kirtash não se moveu. Ficara a olhar para o lugar onde momentos antes estavam os três amigos.

- Devias ter-me deixado intervir - acrescentou o feiticeiro. Kirtash voltou-se para ele. No seu rosto não havia raiva nem

frustração. Pelo contrário: sorria. Elrion olhou-o indeciso. Na hora de entender as coisas, Kirtash estava sempre bastante adiantado em relação a ele. Na verdade, bastante adiantado em relação a qualquer pessoa.

- Porque estás tão contente? Escaparam-nos.

- Sim, mas revelaram-me muitas coisas. Mais do que pensam.

- Mas... mas perdemos o báculo.

- O báculo virá parar-nos às mãos - assegurou Kirtash, calmamente. - Lembra-te de que temos algo que eles querem.

Elrion baixou o olhar para o corpo inconsciente de Alsan.

- Precisavas muito dessa miúda? - perguntou, duvidoso.

- Sim - respondeu simplesmente Kirtash. "Nem imaginas quanto", acrescentou em silêncio.

 

           O DRAGÃO E O UNICÓRNIO

Shail suspirou e olhou para Jack, que se sentara no cadeirão com uma expressão carrancuda e brincava com um cordel, enrolando-o e desenrolando-o em volta dos dedos, procurando de alguma forma libertar-se da tensão. Dama, aproximou-se dele, mas Jack afastou-a, mal-humorado, e o animal, ofendido, foi refugiar-se no colo de Victoria.

O rapaz ainda não dirigira a palavra a Shail desde que tinham regressado daquela desastrosa expedição ao Saara. O feiticeiro não podia censurá-lo.

Entre os dois, Victoria mostrava-se incomodada. Também ela estava preocupada com Alsan e disposta a fazer o que fosse preciso para o resgatar, mas, ao contrário de Jack, compreendia que Shail fizera o que achara melhor. Ainda assim, sentia-se numa situação muito difícil.

O feiticeiro aclarou a garganta.

- Bem, eh... escutem, estamos numa situação delicada. Temos de ir resgatar Alsan. Mas não sei se devemos.

Jack ergueu os olhos para os cravar nele.

- Que queres dizer com isso?

- Quero dizer que Kirtash espera que tentemos resgatar o nosso amigo...

- Isso se ainda resta alguma coisa a resgatar - cortou Jack, com amargura.

- Alsan é um prisioneiro muito valioso, Jack - interveio Victoria. Foi por isso que Kirtash não o matou quando o capturou na caverna. Além disso, sabe... - Hesitou; finalmente concluiu em voz baixa: ... Sabe que o iremos salvar. E está à espera, está à espera de que apareçamos para acabar de uma vez connosco... e recuperar o báculo.

- Penso que não deveríamos ir - assentiu Shail. - Olhem, não sou muito bom a tomar decisões. O meu coração diz-me que deveríamos arriscar tudo para recuperar Alsan. Mas sei que ele preferiria morrer antes de ver a Resistência desaparecer.

- Estou-me nas tintas para a Resistência - replicou Jack, de maus modos. - Eu quero apenas resgatar Alsan; é meu amigo e não merecia que o traíssemos como fizemos ontem.

Shail acusou o golpe. Abriu a boca para dizer algo, mas não foi capaz. Desviou o olhar.

- Jack, isso é injusto - reprovou Victoria.

- O yan traiu-nos - disse Shail com suavidade. - Era uma armadilha. Deveria tê-lo imaginado! Kirtash chegou lá antes de nós... imagino que lhe prometeu algo em troca da ajuda... De qualquer forma, poderia ter sido pior. Poderíamos ter caído todos. Se não tivessem tido essa estranha intuição...

Olhou para os dois jovens com curiosidade, mas nenhum dos dois estava com disposição para pensar nisso. Tinham coisas mais importantes na cabeça.

- Estavam sozinhos, Shail - disse Jack. - Sozinhos, Kirtash, o feiticeiro e esse yan. Poderíamos ter...

- O quê, Jack?

- Poderíamos ter lutado, maldição! Agora, onde quer que Alsan esteja, vai ser muito mais difícil chegar até ele.

- Mas a Resistência...

- A Resistência! - cortou Jack, acidamente. - Olha para nós e sê realista, Shail! Somos só três! Pode-se saber em que pensavam os vossos feiticeiros idhunitas quando enviaram apenas duas pessoas para congregar os feiticeiros exilados? Por amor de Deus, essa missão estava condenada ao fracasso desde o início!

Depois de ter dito aquilo, Jack sentiu-se muito melhor. Aquelas dúvidas andavam a corroe-lo há muito tempo, mas nunca se atrevera a expressá-las em voz alta, porque admirava a fé inabalável de Alsan e chegara a acreditar na sua causa. Agora que ele estava em perigo, compreendia, de repente, o quanto sentiria a sua falta se não voltasse a vê-lo. Naqueles meses, o orgulhoso príncipe idhunita tornara-se não apenas no seu tutor e amigo, mas também num irmão mais velho para Jack.

Mas agora Alsan não estava, e Jack não pudera evitar dizer o que pensava daquela absurda Resistência. Olhou em volta para estudar, cauteloso, o efeito que as suas palavras produziram e surpreendeu-se com o resultado. Victoria olhava para Shail, como se lhe pedisse autorização para falar. O feiticeiro, por sua vez, parecia pensativo e mordia o lábio inferior.

- Bem... - disse, por fim, um pouco incomodado. - A verdade é que não era exactamente essa a nossa missão.

Jack quase saltou da cadeira.

- O que queres dizer?

Shail sentou-se em frente de Jack e fixou o olhar nele.

- Nós não viemos aqui para procurar feiticeiros exilados, Jack. Nem mesmo eles poderiam ter-nos ajudado contra Ashran e os sheks. Mas creio que já o suspeitavas.

Jack franziu o sobrolho. Sim, sabia que havia mais alguma coisa, mas nunca perguntara; ou, se o fizera, fora sempre nos momentos menos oportunos, quando ninguém tinha nem tempo nem vontade de responder.

Sustentou o olhar de Shail sem pestanejar.

- Está bem - disse, vagarosamente. - Dado que decidimos ser sinceros, responde-me: o que fazem realmente aqui? Porque é que Kirtash queria esse báculo? Quem é Lunnaris?

O feiticeiro suspirou e recostou-se na cadeira.

- É uma longa história. Lembras-te do que a Alma te mostrou, no dia em que chegaste?

- Não poderia esquecer.

- Uma vez contámos-te como aquela maldita conjunção astral matou num único dia todos os dragões e unicórnios. Nunca te perguntaste porquê?

- Havia uma razão?

- Claro: a profecia.

- Uma profecia?

Shail assentiu. O seu rosto ensombrou-se.

- Os Oráculos predisseram que os sheks regressariam a Idhún por intermédio de uma ponte mortal, uma espécie de chave que lhes abriria a Porta. E que essa ponte seria um feiticeiro. O certo é que os Oráculos predizem sempre esse tipo de coisas, por isso ninguém lhes prestou muita atenção. O problema não está na fiabilidade das mensagens, mas sim nos sacerdotes que as devem interpretar, entendes? Os feiticeiros e os sacerdotes estiveram sempre uns contra os outros. Não era nada anormal que uma ou duas vezes por ano algum Oráculo predissesse

a chegada de uma nova era negra provocada pelos feiticeiros.

"Quando vimos que a conjunção dos seis astros estava a formar-se várias décadas antes do previsto, começámos a suspeitar de que alguma coisa estava mal. E quando começaram a chegar emissários de todos os cantos de Idhún, dizendo que os dragões e os unicórnios estavam a morrer em massa, soubemos que devia existir alguma verdade naquela profecia.

" Isto porque os Oráculos também anunciaram que apenas a união do fogo de um dragão e da magia de um unicórnio conseguiria destruir a Porta e devolver os sheks à sua dimensão.

- Queres dizer...? - começou Jack, surpreendido, mas não chegou a acabar a pergunta.

- Quero dizer que os sheks acreditaram na profecia e sabiam, de alguma forma, que estava correcta; por isso invocaram o poder dos astros para matar todos os dragões e unicórnios do planeta, antes que fosse tarde. Não sabemos como o conseguiram. Sabemos, sim, o nome do feiticeiro que lhes franqueou a passagem: chama-se Ashran, o Necramante, e foi escolhido pelos senhores dos sheks para se converter no seu aliado, sumo sacerdote e chave da Porta que lhes permitiria regressar a Idhún. É um homem com imenso poder; de certeza que teve muito a ver com a morte dos unicórnios e dos dragões no nosso mundo.

- Então agora ninguém pode derrotá-los - murmurou Jack.

- Eles podem - interveio Victoria. - Eles os dois. Estão aqui, algures. E estamos à procura deles.

Jack ergueu os olhos para Shail, que assentiu.

- Vi-me envolvido no assunto por pura casualidade. Vejam, estava no bosque de Alis Lithban, a renovar a minha magia, quando ouvi o estrondo e vi que os seis astros estavam conjugados... Claro que soube imediatamente que alguma coisa estava mal. E percebi tudo quando comecei a descobrir cadáveres de unicórnios entre a vegetação. Talvez ainda não entendas, Jack, mas em Idhún o unicórnio é a única criatura que pode conceder magia aos mortais. Canalizam a energia do mundo e entregam-na a qualquer ser vivo a quem rocem com a ponta do corno. A morte de todos os unicórnios implica, a longo prazo, a morte de toda a magia. Por isso é que me senti tão aterrado... e depois vi as serpentes no ar... Foi como se tivesse chegado o fim do mundo.

Shail calou-se por um momento, perdido nas suas lembranças, e depois continuou a contar a sua história...

O jovem feiticeiro escondera-se melhor entre as árvores. Uma serpente alada sobrevoava ainda aquela parte do bosque, uma e outra vez, e Shail suspeitava que ela o tinha descoberto.

Até àquele momento, Shail apenas vira os sheks nos livros antigos da biblioteca da Torre de Kazlunn, onde estudara. Aqueles monstros tinham sido expulsos do mundo muito tempo antes, graças aos dragões. Mas os dragões... onde estavam agora? Porque não vinham lutar contra os sheks?

Shail não tinha resposta, porque ainda não sabia o que estava a acontecer nas outras partes de Idhún, onde os dragões estavam a cair do céu, uns atrás do outros. Apenas via aquela aterradora serpente alada no céu. Lera algures que os sheks tinham uma sensibilidade extraordinária para a magia. Suspeitava que, se se atrevesse a usar um feitiço de mimetismo ou de invisibilidade, a criatura iria descobri-lo.

Esperou, contendo a respiração, até que finalmente o shek fez uma última passagem, roçando as copas das árvores, elevou-se no ar e afastou-se dali.

Shail continuou a avançar pelo bosque. Sabia que seria uma presa fácil se saísse para terreno aberto, por isso passara todo o dia no bosque, deambulando de um lado para o outro. Poderia ter tentado teletransportar-se para longe dali, mas alguma coisa o impedia.

Os unicórnios.

Até aí, Shail ainda não ouvira falar da profecia, mas sabia que nada que fosse tão letal para os unicórnios poderia ser bom. Em circunstâncias normais, os unicórnios não se deixavam ver. Ninguém que procurasse um unicórnio conseguiria encontrá-lo, a não ser que a criatura se mostrasse voluntariamente. E apenas os unicórnios sabiam que critério utilizar para escolher os futuros feiticeiros, por que razão entregavam a magia a uns e não a outros. Os estudos que se tinham realizado sobre o tema não chegaram a nenhuma conclusão sobre o assunto. Os unicórnios nem sempre tocavam os mais espertos, os mais fortes ou os mais honrados. A sua escolha parecia ser aleatória.

Em todo o caso, Shail sentia-se afortunado. Quando ainda era um bebé, um unicórnio aproximara-se dele enquanto dormia no seu berço. Ninguém o vira, mas os seus pais aperceberam-se imediatamente de que a criança mudara, e o seu futuro também. Shail não seguiria os passos do seu pai como comerciante na próspera Nanetten. Seria enviado para uma das quatro Torres onde os feiticeiros estudavam a sua arte.

Desde então, Shail nunca mais voltara a ver um unicórnio. Fora a Alis Lithban, onde viviam os unicórnios, porque o bosque respirava magia por todos os lados, e todos os feiticeiros costumavam ir ali de vez em quando, para renovar a sua magia. Embora muito poucos conseguissem ver um unicórnio pela segunda vez.

Shail vira muitos naquele dia, mas desejaria não os ter visto.

Muitos unicórnios, todos mortos. Chegara a ver um que caminhava a cambalear sob a luz dos seis astros. Correra até ele, esperando chegar a tempo de se teletransportar com ele até uma das Torres, onde talvez os feiticeiros mais importantes conseguissem salvar-lhe a vida. Mas o unicórnio tropeçou e caiu, e, quando Shail chegou junto dele, já estava morto.

Andara a vaguear durante toda a manhã, à procura de unicórnios vivos, mas não tivera sorte. E quando já começava a pensar que a sua busca era em vão, aconteceu o milagre.

Foi pouco depois de a serpente alada se ter afastado dele. Viu uma fada que tentava atrair a sua atenção no meio dos arbustos, coisa que também não era comum; se bem que as fadas fossem mais fáceis de surpreender do que os unicórnios, não apreciavam a companhia dos humanos e, em geral, não desejavam proximidade com eles.

Shail seguiu a fada até um esconderijo debaixo dos arbustos.

E então viu-a.

Era uma fêmea de unicórnio, muito jovem, talvez recém-nascida. Escondera-se debaixo da folhagem e tremia. Um grupo de fadas, duendes, gnomos e demais criaturas do bosque reunira-se à volta dela e observava-a, em silêncio.

- Tens de a salvar - disse um gnomo, voltando a sua cabeça cinzenta para Shail.

- Ela é a última - suspirou uma dríade, que contemplava do seu carvalho a cena, pesarosa.

- O último unicórnio - indicou um velho duende. - Se ela morrer, a magia no mundo morrerá.

Shail aproximou-se dela, surpreendido. A criatura abriu os olhos e olhou-o. O jovem feiticeiro soube, no íntimo do seu ser, que nunca iria esquecer aquele olhar.

- Leva-a - disseram as fadas. - Leva-a para longe daqui. Shail envolveu o unicórnio na sua capa. Ela estava tão fraca que

não ofereceu resistência.

- Como vamos sair daqui? - perguntou. - Não posso teletransportar-me para a Torre de Kazlunn, é muito longe; e se tentar de outra forma qualquer não chegaremos a tempo.

As fadas não disseram nada, mas formaram um círculo em. volta dele e começaram a entoar um cântico sem palavras. Shail sentiu que uma torrente de magia feérica percorria o seu ser, unindo-se ao seu próprio poder, e soube que podia consegui-lo.

- Vai, feiticeiro - sussurraram as fadas. - Lê vá-a daqui.

Shail assentiu e concentrou-se na Torre de Kazlunn. A energia proporcionada pelas fadas continuava ali, vibrante, límpida e resplandecente, e não pensava desperdiçá-la.

No último momento, quando o seu corpo e o do pequeno unicórnio começavam a esbater-se, apercebeu-se de uma sombra que se inclinava das alturas na sua direcção, e um vento gélido sacudiu a clareira. As fadas empalideceram, e as mais pequenas gritaram de terror.

- Não te preocupes - sussurrou uma das mais velhas. - Vai-te embora. Põe-na a salvo.

com um nó no estômago, Shail terminou o sortilégio. O shek precipitou-se sobre o círculo de fadas, mas o feiticeiro e o unicórnio já tinham partido.

- Chamei-lhe Lunnaris - recordou Shail. - É um nome um pouco óbvio para um unicórnio, uma vez que significa "Portadora de Magia", e, na realidade, todos os unicórnios o são. Por isso, no fundo, não poderia chamar-se de outra maneira.

Na Torre de Kazlunn, Shail descobriu que se convertera num herói. Os líderes da Ordem Mágica reuniram-se com o Pai da Igreja dos Três Sóis e com a Mãe da Igreja das Três Luas para tentar encontrar uma solução para o gravíssimo problema que ameaçava Idhún. Lembraram-se da profecia. E chegaram à conclusão de que, custasse o que custasse, teriam de salvar pelo menos um dragão e um unicórnio. Fizeram uma convocatória para que todos colaborassem na busca.

E Shail conseguira-o sem saber o que realmente estava em jogo.

As notícias com que fora recebido eram aterradoras.

- Todo o Awinor está a arder em chamas - contaram-lhe. - Os dragões caem do céu, uns atrás dos outros, envoltos em fogo. Os incêndios que estão a provocar são incontroláveis. Não demorará muito até a terra dos dragões morrer com eles.

- Centenas de sheks cobrem os céus de Idhún, e também se diz que um exército de horríveis homens-serpentes invadiu Raheld a partir do norte.

- Não resta um único dragão vivo. Nem um.

Shail escutava tudo isto profundamente preocupado. Sabia que os arquifeiticeiros estavam a preparar um ritual especial, bastante complexo, mas não sabia em que é que consistia.

Então chegou Alsan.

Todos os cavaleiros de Nurgon, juntamente com os nobres, aventureiros, heróis e mercenários de todas as raças e de todos os reinos haviam sido mobilizados na busca de dragões e unicórnios. Os feiticeiros transportaram-nos até Awinor através da magia, mas todos voltavam com as mãos vazias.

Por isso, a chegada de Alsan, príncipe herdeiro de Vanissar, com uma pequena cria de dragão dourado nos braços, causou uma grande agitação.

- Nunca me contou nem como nem onde o encontrou - comentou Shail. - Não o disse a ninguém. Mas o importante é que estavam ali os dois, a minha pequena Lunnaris e o dragãozinho. Não chegámos a descobrir porque é que resistiram mais do que os outros. Talvez fosse por serem tão novos. Mas o facto é que chegaram à Torre de Kazlunn moribundos, e não tínhamos muito tempo.

- Então o que aconteceu? - perguntou Jack. Por alguma razão, a história comovia-o profundamente.

- Devíamos levá-los para um local seguro, onde a luz dos seis astros não chegasse, pelo menos até que a conjunção acabasse. Mas não fazíamos a menor ideia de quanto tempo duraria. E, por outro lado, não havia um lugar como esse em Idhún. Por isso, os feiticeiros pensaram...

-... que podiam enviá-los para cá! - adivinhou Jack, surpreendido.

Shail assentiu.

- Sabemos que há muitos mundos. Mas também sabemos que na Terceira Era os feiticeiros abriram um canal de comunicação com a Terra. Esse canal continuava aberto.

" Em circunstâncias normais, poucos feiticeiros se atreveriam a efectuar a viagem. A maioria não voltara para contar como fora, e os que regressaram contavam coisas aterradoras. Mas não tínhamos outra saída.

" Quando parecia evidente que todos aqueles acontecimentos extraordinários anunciavam a chegada de uma nova Era Negra a Idhún, muitos feiticeiros abriram a Porta por sua conta e fugiram. Mas eles não eram importantes. Não o eram tanto como o nosso dragão e o nosso unicórnio.

" Os feiticeiros mais poderosos da Ordem enviaram-nos através da Porta interdimensional. Quando a conjunção passou e os astros voltaram às suas posições habituais, chegou a hora de os trazer de volta. Alsan e eu oferecemo-nos como voluntários. Não os tínhamos levado para a Torre em vão; além disso, eu começara a gostar de Lunnaris e considerava-me responsável por ela.

Fez uma pausa. Jack esperava, atento.

- A viagem não correu como esperávamos. Quando atravessámos o umbral, de repente, a Porta interdimensional fechou-se atrás de nós.

- O que quer isso dizer?

- Ashran e os sheks descobriram que lhes escapara um dragão e um unicórnio, para não falar de várias dezenas de feiticeiros suficientemente poderosos para viajar

para outro mundo. Pensamos que tomaram o controlo da Porta. Talvez tenham destruído a Torre de Kazlunn e todos os seus moradores. Não sabemos, porque não podemos voltar.

Jack respirou fundo, tentando assimilar toda aquela informação.

- Os problemas não acabaram aí. A Terra é um mundo enorme e, como se isso não bastasse, Ashran enviou Kirtash atrás de nós, para destruir os únicos que poderiam, no futuro, acabar com ele. Há três anos que procuramos na Terra um dragão e um unicórnio. Sabemos que estão vivos, algures, porque Kirtash também está à procura deles... para os matar. A nossa verdadeira missão consiste em encontrá-los e salvar-lhes a vida para que a profecia se possa cumprir. Já o fizemos uma vez... e devemos fazê-lo novamente.

Fez-se um silêncio. Jack meditava sobre toda aquela nova informação. Voltou-se então para Victoria.

- Tu sabias, não é? Ela assentiu.

- Falei-lhe de Lunnaris - disse Shail. - Quem vê um unicórnio, Jack, nunca mais o esquece. Eu não consegui esquecer-me de Lunnaris e farei o que quer que seja para a encontrar antes que Kirtash o faça. Não se trata apenas do facto de ela ser a última esperança para Idhún.

É uma questão pessoal.

- Além disso - acrescentou Victoria -, supostamente devo tê-la visto alguma vez.

- Porquê? - perguntou Jack, confuso.

- Porque sou uma humana nascida na Terra - explicou Victoria -, mas sou também uma semifeiticeira. Isto quer dizer que vi um unicórnio... o pior é que não me lembro.

- Se Lunnaris está neste mundo - assentiu Shail -, pode ser que haja pessoas que a tenham visto. E que, por causa disso, possuam uma certa sensibilidade para a magia. Ou pode ser até que a própria Lunnaris tenha consagrado mais feiticeiros aqui. Na Terra não há feiticeiros, Jack, já to dissemos no primeiro dia. Apenas há os que vieram de Idhún... e aqueles que tiverem tido algum tipo de contacto com o nosso unicórnio perdido. Victoria desviou o olhar.

- E o báculo? - perguntou Jack, para mudar de assunto e evitar que a amiga continuasse a pensar naquilo.

- O báculo foi criado pelos unicórnios - explicou Shail. - Portanto, poderia levar-nos até Lunnaris. Por isso era fundamental que o encontrássemos antes de Kirtash. E, por essa razão, naquele momento era mais importante... pôr o báculo fora do seu alcance do que salvar a vida de Alsan. Se Lunnaris morrer, ou se o dragão que Alsan encontrou morrer... já não haverá esperança para o nosso mundo.

- Compreendo - assentiu Jack, pesaroso.

- Talvez Elrion goste de assassinar feiticeiros, mas para Kirtash isso é secundário. A sua principal missão aqui na Terra é encontrar o dragão e o unicórnio para evitar que se cumpra a profecia.

- Talvez seja por isso que Kirtash quer Alsan vivo - interveio Victoria -, e, provavelmente, também te quer a ti, Shail. Vocês os dois encontraram o dragão e o unicórnio pela primeira vez. Poderiam dar-lhe alguma pista.

- Mas não temos nenhuma pista. Estudei os mitos dos habitantes da Terra. O dragão é comum a todas as culturas. O unicórnio apenas se encontra em algumas delas. Mas, de qualquer maneira, continuam a ser... mitos. - Fitou Jack. - Honestamente, não esperávamos encontrar um mundo como este. Superou todas as nossas previsões. Começávamos a acreditar que nunca os encontraríamos, quando, graças a ti, descobrimos o Livro da Terceira Era e a existência do Báculo de Ayshel.

- Não foi graças a mim - sussurrou Jack. - Kirtash estava à nossa espera, não é? Isso significa que sabia que lá iríamos. Esse CD... não lhe passou ao lado. Parrell não era idhunita. Foi Kirtash quem deixou lá o disco, de propósito, para que o encontrássemos. Sabia que a polícia não prestaria atenção a uma capa com a imagem de um dragão... mas nós sim, porque é do que andamos à procura. E caímos na armadilha. Ou seja... a culpa foi minha.

- Graças a ti - repetiu Shail com firmeza -, Kirtash não tem o báculo e Lunnaris continua a salvo, por enquanto.

Jack não disse nada. Shail olhou-o fixamente e viu que o rapaz estava pálido. A história da profecia impressionara-o mais do que ele alguma vez imaginara.

Shail levantou-se e colocou uma mão sobre o ombro dele.

- Acho que precisas de descansar, Jack. - Fez uma pausa e logo acrescentou: - Na verdade, todos precisamos.

Jack reagiu e ergueu a cabeça para o encarar.

- E em relação a Alsan? Shail negou com a cabeça.

- Preciso de vós a cem por cento, com a mente livre e desperta, ou qualquer plano que tracemos terá grandes probabilidades de correr mal.

- Isso é verdade - admitiu Jack, com um suspiro.

O certo é que se sentia terrivelmente cansado, como se de repente tivesse envelhecido vários anos.

Levantou-se para se dirigir ao seu quarto. Quando passou por Shail, este disse em voz baixa:

- Penso que Kirtash não se enganou em relação a ti. Deve correr algum sangue idhunita nas tuas veias, Jack, porque foste capaz de compreender finalmente a tragédia que Idhún está a viver muito melhor do que qualquer terrestre.

Jack não respondeu.

Quando chegou ao quarto, atirou-se para cima da cama, completamente vestido, e os olhos fecharam-se-lhe sem que se desse conta. Estava esgotado, mas não sabia porquê.

A sua mente abandonou imediatamente a consciência para se afundar num estranho sonho povoado de dragões que caíam do céu envoltos em chamas, sob um estranho céu onde brilhavam três sóis e três luas entrelaçados numa conjunção insólita. Ele avançava a cavalo através de um deserto, por entre ossos carbonizados de dragões...

 

               PLANOS DE RESGATE

Alsan acordou numa grande câmara iluminada por tochas de fogo azul. Quis mexer-se, mas não pôde: estava acorrentado pelos pés e pelas mãos a uma espécie de plataforma vertical. Debateu-se, furioso, mas apenas conseguiu que os elos de ferro se cravassem mais na sua pele.

Ouviu um grunhido e olhou em volta. Junto dele havia uma grande jaula com um lobo lá dentro, um lobo cinzento que lhe mostrava os dentes.

- Vejo que já travaram amizade - disse a voz de Elrion na escuridão.

Alsan voltou a cabeça. O feiticeiro acabara de se materializar na divisão, perto dele.

- O que pretendes?

Elrion aproximou-se dele, sorrindo.

- Um dia vais agradecer-me por te ter escolhido para esta pequena experiência, príncipe - disse. - Porque vou converter-te num dos homens mais poderosos de ambos os mundos.

- Ai sim? E por que razão farias isso por mim?

- Por vários motivos. - Elrion andava para trás e para diante junto de Alsan, pensativo. - Em primeiro lugar, porque se o feitiço correr mal não se perderá grande coisa, já que ias morrer de qualquer maneira. Mas se correr bem... enfim, seria bastante desmoralizador para todos os outros renegados ver que o seu príncipe Alsan, o guia dessa patética Resistência formada por um feiticeiro e dois ranhosos, se junta incondicionalmente às nossas fileiras.

Alsan cerrou os punhos.

- Nunca.

- Elrion?

A voz soou suave e calma, mas havia algo de ameaçador no modo como pronunciou o nome do feiticeiro, e este estremeceu.

- O que aconteceu agora? - perguntou ele, procurando aparentar uma segurança que não sentia.

Kirtash emergiu das sombras. Não respondeu à pergunta de Elrion, mas inclinou a cabeça e olhou-o, e o feiticeiro percebeu que estava à espera de uma explicação.

- Trata-se de uma pequena experiência de necromancia... nada de importante.

Kirtash arqueou uma sobrancelha.

- Utilizas o meu prisioneiro mais valioso como cobaia... e isso não é importante?

Não perdera a calma, mas Elrion sabia que o rapaz estava chateado, e o que isso significava.

- Desta vez vai correr bem, Kirtash - defendeu-se. -Já sei o que falhou da última vez. Apenas tenho de...

Não terminou a frase. Rápido como um raio, Kirtash avançou até ele, com os olhos faiscantes. Intimidado, Elrion retrocedeu até que a sua espada chocou contra a parede. Kirtash parou a escassos centímetros dele e olhou-o fixamente. O feiticeiro quis afastar o olhar, mas não foi capaz.

- Sei o que pretendes - advertiu Kirtash. - Vi os outros. E dá-me a sensação de que não entendes as consequências do que estás a fazer.

- Mas desta vez... vai sair bem - atreveu-se Elrion a repetir; a voz saiu-lhe muito mais fraca e tremida do que pretendera, mas, por alguma razão, Kirtash mudou de atitude e afastou-se dele.

- Não - disse, voltando-lhe as costas; Elrion arquejou, surpreendido por continuar com vida. - Nunca sai bem - acrescentou Kirtash a meia-voz.

Alsan, que seguira a cena com interesse, surpreendeu-se ao perceber na sua voz um certo tom de... tristeza?

- Faz o que quiseres com ele - concluiu Kirtash com um certo cansaço. - Mas se morrer ou fugir por tua causa... vais pagar com a tua vida.

Elrion foi incapaz de replicar. Kirtash aproximou-se de Alsan e fitou-o longamente. O príncipe sentiu os tentáculos da consciência do seu inimigo a explorar a sua mente e procurou resistir, deixar a mente em branco... mas ele não era telepata, e não conseguiu evitar que Kirtash lesse os seus pensamentos mais secretos como se fosse um livro aberto. Quando o rapaz se separou dele, rompendo o contacto visual, Alsan deixou tombar a cabeça para o lado, aturdido. Kirtash voltou-lhe as costas e afastou-se dele sem uma única palavra; mas, antes de sair da sala, virou-se na direcção de Alsan, manietado junto à jaula do lobo, e lançou-lhe um longo olhar pensativo.

- Não gostaria de estar na tua pele - comentou simplesmente.

Não havia vestígios de ironia na sua voz, e isso preocupou mais Alsan do que qualquer outra ameaça que pudesse ter ouvido.

- Bem, escutem - disse Shail. - Têm Alsan numa antiga fortaleza medieval, no centro da Alemanha...

- Como sabes isso?

- A Alma disse-me. Não foi difícil, o que não é de estranhar: eles querem precisamente que os encontremos. Mas, pelos vistos, o castelo está muito vigiado. Ainda que conseguíssemos entrar, não creio que pudéssemos sair.

- Como está vigiado? - perguntou Jack. - Por quem? Só lá estão Kirtash e Elrion...

- Não, há muitos mais... - suspirou Shail. - vou mostrar-vos. Por favor... - pediu, dirigindo-se ao coração invisível de Limbhad.

Sobre a mesa da biblioteca apareceu uma enorme esfera multicolor, a girar sobre si mesma. Jack e Victoria aproximaram-se para ver o que a Alma lhes queria mostrar daquela vez...

E de repente apareceu na esfera, com toda a nitidez, um ser horrível. Jack e Victoria gritaram e retrocederam, sem poder tirar os olhos dele.

Era humanóide, mas tinha a pele coberta de escamas e agitava atrás de si uma longa cauda, a sua cabeça era triangular, de serpente, com olhos malévolos, redondos como botões, e uma língua bifurcada que sobressaía entre quatro presas afiadas.

Subitamente, a criatura desapareceu.

Jack pestanejou, perplexo. O coração ainda lhe batia com força. Sentia as unhas de Victoria cravadas no seu braço, porque ela agarrara-se a ele, assustada.

- Que raio...? - arquejou o rapaz.

- Szish - murmurou Victoria.

Soltara o braço de Jack e olhava para Shail com os olhos muito abertos. O rapaz não conhecia a palavra que ela usara, mas evocava algo de horroroso, algo que não queria de forma alguma conhecer.

- Szish - assentiu o feiticeiro. - Dezenas deles. Não sei o que Kirtash fez para os fazer passar através da Porta, mas eles estão a vigiar a fortaleza e não vai ser fácil enganá-los.

Jack ficou a olhar para ele.

- Queres dizer que essa... coisa... era um...?

- Um szish. As tropas terrestres de Ashran. As lendas contam que os sheks, as serpentes aladas, nasceram da união do deus negro com Shaksiss, a serpente do centro do mundo. Mas sobre a origem dos szish ninguém sabe nada. Seria terrível pensar que cruzou serpentes com humanos ou que tem poder suficiente para criar a sua própria raça.

- Detesto serpentes - murmurou Jack, estremecendo.

- Mas como conseguiu ele trazer essas criaturas para o nosso mundo? - perguntou Victoria. - Um castelo como esse deve ser um monumento importante na região. É impossível que ninguém tenha dado conta.

- Algumas pessoas vêem apenas o que querem ver - murmurou Shail. - Por isso é que a camuflagem mágica funciona tão bem. De todas as maneiras, sabes que Kirtash é muito discreto. Não teria montado ali a sua pequena base se não tivesse a certeza absoluta de que ninguém o incomodaria.

- E, então, como vamos entrar?

- Os szish não são tão temíveis como os sheks, mas são inteligentes, muito inteligentes, e guerreiros hábeis. E isso dá-me uma ideia.

Aproximou-se de Jack e Victoria e olhou-os fixamente.

- Um de nós vai fazer-se passar por szish, através de uma camuflagem mágica, e entrará na fortaleza. Os outros dois fingem que vão entrar por outro lado e, assim, distraem as outras serpentes. Creio que eu...

- Não - atalhou Jack. - Não acho que seja uma boa ideia.

Shail olhou-o.

- Eu sei. Mas...

- Quero dizer que, se pretendemos entreter as serpentes, nada melhor do que um bom número de magia. Por isso creio que tu e Victoria deveriam ocupar-se dessa parte. Eu encarregar-me-ei de entrar ali, disfarçado ou o que for, e resgatar Alsan.

Fez-se um silêncio. Finalmente, Shail disse:

- Não, Jack. Não posso permiti-lo. É muito perigoso.

- Mas, Shail - interveio Victoria -, Kirtash está lá. Se tu ou eu entrarmos no castelo, ele vai descobrir-nos imediatamente. Jack é o único dos três que não é feiticeiro... ou semifeiticeiro - acrescentou a meia-voz.

Shail abriu a boca para contestar, mas não disse nada. Olhou para os jovens, algo confuso.

- Maldição, tens razão. Mas não posso disfarçar-te de serpente e deixar-te entrar ali, sem mais...

- Não - disse Jack. - Creio que chegou a altura de me deixarem usar uma espada mítica.

- O que esperas conseguir com tudo isso? - quis saber Alsan. Elrion estivera a consultar um enorme livro escrito em idhunaico arcano, mas voltou-se para ele e sorriu.

- Queres que te explique? - ofereceu-se. Levantou-se e avançou até ficar junto à jaula do lobo.

- Vês esta criatura? - perguntou. - Bem, tal como todas as outras criaturas, tem um espírito, um espírito que a mantém viva e que a faz ser quem é. As grandes artes da necromancia permitiram êxitos como... poder mudar um espírito de corpo, por exemplo.

Alsan não disse nada. Limitou-se a olhar para o feiticeiro, com uma atitude orgulhosa e desafiadora.

- Obviamente, a tua alma humana não desapareceria sem mais nem menos - continuou Elrion a explicar -, mas ficaria submetida ao espírito do animal... o que tem as suas vantagens. Adquiririas a força do lobo, a sua extraordinária percepção, a ferocidade, a coragem e o instinto selvagem... e tudo isso ficaria ao nosso serviço.

- Não - rebelou-se Alsan. - Não vou permitir...

- E como vais impedir-me?

Jack entrou no arsenal, decidido. Passou o olhar pela colecção de espadas, adagas, machados e armaduras que ali estava guardada. Desde a sua primeira visita, regressara mais duas vezes, com Alsan, e este contara-lhe a história e as propriedades de algumas daquelas armas.

Voltou-se para Shail para comentar algo e viu no seu rosto uma expressão de pena.

- O que foi? - perguntou em voz baixa.

- Estava só a pensar - respondeu o feiticeiro, sacudindo a cabeça - que Alsan iria gostar muito de estar aqui.

Jack abriu a boca para dizer algo, mas as palavras não saíram.

- Sonhava entregar-te ele mesmo a espada - prosseguiu Shail. Até me disse que já sabia qual é que te ia oferecer.

Jack respirou fundo. Muitas vezes fantasiara com a espada que escolheria quando Alsan julgasse que estava preparado, e escolhera mentalmente umas e descartara outras.

Mas naquele momento em particular já sabia qual ia escolher. Suspeitava que não fosse aquela que Alsan reservara para ele, mas não tinha outra saída.

Avançou decididamente até ao lugar onde a vira pela primeira vez e onde sabia que ainda estava. Deteve-se diante da estátua do deus do Fogo e contemplou, sobressaltado, a magnífica espada a que Alsan chamara Domivat.

- Essa não - objectou Shail de imediato.

Jack não respondeu. Sabia por que razão ele o dizia. Lembrou-se de que Alsan lhe contara que aquela espada fora forjada com fogo de dragão e que ninguém podia tocar-lhe sem se queimar.

Mas Alsan também dissera que, exceptuando Sumlaris, aquela era a única espada de Limbhad que podia enfrentar Haiass, a espada de Kirtash.

Cerrou os punhos ao recordar a facilidade com que ele o desarmara no seu último encontro. Quando Haiass e a sua própria espada, uma arma normal, se encontraram, algo semelhante a uma descarga eléctrica percorrera o aço até chegar ao seu braço. Fora um sensação estranha, como se estivesse a segurar um bloco de gelo. E então compreendera que nem o melhor espadachim do mundo podia enfrentar Kirtash em igualdade de circunstâncias, não enquanto ele continuasse a brandir Haiass.

E Sumlaris, a Imbatível, perdera-se com Alsan. Portanto, a única coisa que Jack podia fazer era aprender a usar aquela espada de fogo, custasse o que custasse.

- Ouviste-me? - insistiu Shail. - Se lhe tocares, queimas-te.

- Eu sei - respondeu Jack, suavemente. - Alsan disse-mo. Mas também me disse que podias congelar o punho para que eu a pudesse usar.

- Ele disse isso? - murmurou Shail, incomodado; lançou um olhar inseguro a Domivat, que reluzia misteriosamente, como se fosse iluminada pelo brilho de uma fogueira. - bom, poderia tentar, mas não tenho a certeza de que... Jack?

Jack não o ouvia. Estava a suceder-lhe algo estranho. Tinha a sensação de que Domivat o chamava e não podia tirar os olhos da espada. Uma onda de nostalgia invadiu-o, como se acabasse de se reencontrar com algo perdido e longamente ansiado. E soube, de imediato, que Domivat estivera à sua espera todo aquele tempo. E que podia empunhá-la sem perigo.

Outro no seu lugar teria pensado duas vezes, mas Jack era impetuoso e costumava seguir os seus primeiros impulsos. Antes de Shail ter sequer suspeitado do que ele pretendia fazer, estendera a mão em direcção ao punho da espada.

- Jack, NÃO! - gritou Shail, alarmado.

Tarde de mais. Os dedos de Jack fecharam-se em volta do punho de Domivat, a Espada Ardente, forjada com o fogo dos próprios dragões. Apertou-a com decisão, sabendo de alguma maneira que ela lhe pertencia, que estivera à espera desde tempos imemoriais que ele chegasse para a empunhar.

Sentiu que uma onda de calor subia da mão, através do braço e inundava todo o seu ser, despertando dentro de si algo que permanecera adormecido durante muito tempo. Sentiu-se mais vivo e completo do que nunca; segurou a espada com as duas mãos e fechou os olhos para apreciar aquela sensação.

Quando os abriu, Shail estava diante dele, olhando-o boquiaberto.

- Esta espada agrada-me - comentou Jack, sorrindo.

- É... impossível - balbuciou Shail.

- Impossível ou não, agora tenho a certeza de que não vou fazer má figura diante de Kirtash. Mas primeiro tenho de a experimentar, treinar com ela...

Calou-se, recordando que Alsan já não estava ali para o ensinar, e sentiu um aperto no coração.

Mas também se lembrou de outra coisa.

- Ouve, Shail - disse. - Quando eu não estava... contra quem combatia Alsan para praticar esgrima?

Shail continuava a olhar para ele, assombrado, mas a pergunta de Jack pareceu devolvê-lo à realidade.

- Bem, sim, este... - abanou a cabeça, confuso. - Raios! Devia estar contente por haver finalmente uma pergunta a que sei responder. bom, resolveremos este pequeno mistério mais tarde. Anda comigo, quero mostrar-te uma coisa.

Voltou-se e atravessou a sala. Jack seguiu-o, intrigado. Ainda empunhava Domivat, e, quando o fio da espada roçou acidentalmente numa prateleira de madeira, esta irrompeu em chamas.

- Tem mais cuidado! - ralhou Shail; teve de fazer um feitiço simples de água para apagar o incêndio, e lançou a Jack um olhar preocupado. - Francamente, continuo a achar que não é uma boa ideia.

Jack encolheu os ombros.

- Não temos outra saída - recordou.

- Está bem - suspirou Shail. - Olha, é isto que te queria mostrar. Parara em frente de uma velha armadura negra que empunhava uma longa e poderosa espada. Jack olhou-a, mas não lhe pareceu grande coisa.

- É apenas uma armadura.

- Errado. - Shail sorriu, e traçou um sinal mágico sobre ela. Imediatamente, a armadura ergueu a espada e voltou a cabeça para Shail, como que aguardando instruções. Jack retrocedeu de um salto.

- Ei! Como fazes com que essa coisa se mova?

- É um autómato - explicou Shail. - Não se trata de uma armadura vazia; tem no seu interior uma série de mecanismos que a fazem mover-se e lutar como um autêntico

cavaleiro de Nurgon. Uma maravilhosa obra de engenharia e alquimia. Eu apenas lhe proporciono a energia de que necessita para funcionar.

Jack estava já a relacionar as coisas.

- Queres dizer que Alsan treinava a lutar contra essa coisa?

- Experimenta tu - convidou Shail.

- O que tenho de fazer? - inquiriu Jack, olhando para o autómato com desconfiança.

- Não adivinhas?

- Este... acho que sim. - Brandiu Domivat, olhou fixamente para o cavaleiro mecânico, inspirou fundo e disse: - Em guarda.

- Jack, aqui não! - exclamou Shail, alarmado. - Tens uma sala de treino, esta está cheia de...

Tarde de mais. O autómato ergueu a espada e arremeteu contra Jack. O rapaz conhecia aquele movimento e também a defesa que tinha de empregar. Moveu a sua própria espada para aparar o golpe do autómato, e, quando as duas armas chocaram, Jack percebeu que da sua emanava uma torrente imparável de energia.

Foi num abrir e fechar de olhos. O autómato e a sua espada desfizeram-se em mil pedaços.

Jack, surpreendido, cobriu o rosto com os braços para evitar que os restos do cavaleiro mecânico o atingissem. Quando se atreveu novamente a olhar, viu Shail, completamente pálido, a olhar para os pedaços do autómato que caíam aos seus pés.

- Sinto muito - disse Jack, pesaroso. - Não sabia que isto ia acontecer.

Shail moveu a cabeça, preocupado.

- Parece-me que não se trata de aprenderes a manejá-la - disse -, mas sim de saber controlá-la.

- Como posso fazer isso?

- Alsan ter-to-ia explicado melhor do que eu. É uma questão de autocontrole. A espada responde à tua vontade, e, se te deixas levar pela fúria ou não controlas o teu corpo e a tua mente a todo o instante, libertará toda a sua força.

- Mas isso não é assim tão mau, certo? - retorquiu Jack, imaginando por um momento que Kirtash se desfazia em pedaços, tal como acontecera com o autómato.

- Sim, é. Não entendo de esgrima, mas sei alguma coisa sobre magia: deves sempre utilizá-la na sua medida certa; nunca libertes todo o seu poder, porque depois não poderás controlá-lo. Além disso, o teu inimigo pode aproveitar a tua força a seu favor.

Jack sentiu-se repentinamente muito desanimado. Sempre admirara Alsan pelo seu autocontrole e domínio de si mesmo, mas tinha de admitir que, se alguém superava o seu amigo em relação a nervos de aço, esse alguém era, claramente, Kirtash.

Mas Domivat continuava nas suas mãos, e Jack sentia-a quase como um prolongamento do seu corpo. E soube que conseguiria dominá-la porque, de certa maneira, era já uma parte de si mesmo.

- De acordo - disse, dando meia-volta para sair da sala.

- Espera, onde vais?

- Aprender a controlar esta espada.

Shail seguiu-o até à sala de treinos. Jack posicionara-se ao centro, segurando a espada ao alto com as duas mãos, e respirava profundamente, com o sobrolho franzido em sinal de concentração. Shail distanciou-se um pouco, por precaução. Então, Jack desferiu a sua arma contra um inimigo invisível, executando um movimento que Alsan lhe ensinara. Domivat faiscou no ar e iluminou a sala com um clarão avermelhado. Jack cerrou os dentes e esquivou-se, brandindo a espada num ataque lateral. Desta vez, o aço pareceu libertar menos calor.

-Já compreendo - disse Jack; ergueu os olhos para Shail. - Creio que vou demorar um pouco.

- Leva o tempo que quiseres - replicou o feiticeiro, ainda perplexo. - vou ver Victoria. Tenho de falar com ela.

Jack assentiu, concentrado ainda na espada. Realizou vários outros movimentos, fintas, ataques e defesas, e concentrou-se em manter dominado todo o fogo de Domivat. Compreendera que a espada libertaria apenas um poder proporcional à força que quisesse imprimir ao seu golpe e lembrou-se do quanto Kirtash era ágil e da facilidade com que se esquivara aos ataques de Alsan na noite em que ele salvara a sua vida. Jack podia descarregar todo o seu ódio num golpe mortal, mas, se Kirtash conseguisse evitá-lo, Jack teria desperdiçado a sua força em vão e, provavelmente, seria demasiado tarde para corrigir.

"Controlo", pensou, e recordou tudo o que Alsan lhe ensinara. Executou um último movimento, mais complexo; controlou o poder da espada em todas as fintas e deixou escapar uma parte no golpe final, que desferiu contra o armário onde se guardavam as espadas de treino. O móvel irrompeu em chamas, mas nada mais ficou danificado. Jack assentiu, satisfeito.

- Estou a ir, Alsan - murmurou. - Aguenta.

Alsan gritou novamente, em plena agonia. O seu corpo estava há algum, tempo a sofrer mutações horríveis. O jovem sentira como lhe crescia pêlo por todo o corpo, como a cara se alongava até se converter num focinho, como os seus dentes se tornavam presas afiadas, as suas mãos garras e a voz um grunhido. As mudanças iam e vinham, o pêlo crescia e desaparecia, e o seu rosto, contraído num esgar de dor, mostrava traços humanos ou lupinos.

Shail encontrou Victoria na planície que se estendia entre a casa e o pequeno bosque. Estava de costas para ele, e o feiticeiro perguntou-se o que andaria a fazer. Avançou apenas alguns passos quando se apercebeu, horrorizado, do que ela segurava nas mãos.

- Victoria, não faças isso! - gritou, desatando a correr na direcção dela.

Mas ela não o ouviu. Girou o Báculo de Ayshel, e Shail viu como o objecto se iluminava como um farol a meio da noite. Um jacto de luz brilhante saiu disparado da bola de cristal que rematava o báculo e foi estilhaçar-se contra as árvores mais próximas, que se incendiaram.

Shail deteve-se por um momento, perplexo. Victoria voltou-se para ele, com ar culpado.

- Não sabia que podia fazer isto! - desculpou-se; Shail lembrou-se da forma como, momentos antes, Jack se desculpara por ter destruído o autómato e pensou que os dois tinham muito mais coisas em comum do que aquilo que pensavam. - Da última vez não gerava tanto poder!

- Da última vez estavas em pleno deserto, Vic - recordou-lhe, chegando junto dela. - Este lugar, por seu turno, respira vida por todos os lados. A energia que o báculo pode canalizar não é a mesma. Em todo o caso, o que pretendias fazer exactamente?

- Aprender a usá-lo.

- Agora?

- Claro; vou levá-lo para a Alemanha.

- O quê? - disparou Shail. - Nem penses! Isso é o que Kirtash quer.

Victoria ergueu a cabeça e encarou-o, decidida.

- Eu sei, mas, se não o levar, não vou ser mais do que um fardo para o grupo. E não vais deixar-me para trás, Shail. Não desta vez.

Shail desviou o olhar. O certo era que, embora tivesse contado com ela enquanto elaborava o seu plano de resgate, mudara de ideias e decidira pedir-lhe que ficasse em Limbhad.

- Vic, é muito perigoso. Será melhor que nos esperes aqui, e, entretanto, que tentes ver se o báculo te pode dar alguma pista sobre Lunnaris.

Para Victoria foi como se tivesse acabado de levar uma bofetada.

- Entendo - murmurou, ferida, e virou-lhe as costas para voltar

para casa.

Talvez fosse o seu tom de voz, ou talvez fosse a sua expressão, ou a situação em geral; mas, naquele preciso momento, Shail compreendeu muitas coisas acerca de Victoria. E apercebeu-se pela primeira vez do quanto ela estava só.

- Espera - chamou, segurando-a pelo braço. - Não entendes. É mais do que isso.

- Sim, já sei - disse ela, aborrecida -, Kirtash quer o báculo e devemos impedir a todo o custo que...

- Não - cortou Shail; olhou-a, muito sério. - Kirtash não quer apenas o báculo; também te quer a ti. E não vou deixar que te leve por nada deste mundo. Compreendes?

Victoria fitou-o, sem acreditar no que acabara de ouvir. Shail puxou-a para si e abraçou-a com força.

- Lembras-te do que te disse quando te trouxe a Limbhad pela primeira vez?

- Sim - respondeu ela, em voz baixa. - Disseste que cuidarias de mim.

- Sempre - prometeu Shail. - Por isso não quero pôr-te em perigo. Entendes-me? Fiquei arrepiado quando Kirtash disse que queria trocar-te por Alsan e tu disseste que sim. Não quero voltar a passar por isso outra vez. Não me perdoaria.

Victoria demorou um pouco a responder. Mas, quando o fez, não disse o que Shail esperava ouvir. Afastou-se dele e fitou-o nos olhos, e Shail pensou que parecia mais velha do que era.

- Entendo - disse -, mas não, desta vez não vou ficar em casa. De cada vez que tu e Alsan partiam, tinha medo de que não voltassem mais. Pode ser que já tenhamos perdido Alsan. Não quero perder-vos, a ti e a Jack, também. E pela primeira vez tenho a oportunidade de fazer alguma coisa, de lutar por aquilo em que acredito e por todas as pessoas que me importam. Sei que é arriscado tirar o báculo daqui, mas é uma arma poderosa e creio que devíamos aproveitá-la. Vamos precisar de toda a ajuda possível se quisermos resgatar Alsan com vida.

Shail ficou calado por um momento, a pensar. Logo de seguida assentiu.

- De acordo. vou ver como está Jack a dar-se com a sua nova espada. Estamos quase de partida.

Voltou-se para ir embora.

- Shail.

- O que foi?

- Tentei - disse Victoria em voz baixa.

O feiticeiro não respondeu. Limitou-se a olhá-la e esperou que ela continuasse a falar.

- Procurei Lunnaris através do báculo - prosseguiu ela. - Mas a sua magia não faz nada para a encontrar. E como se ela... não estivesse aqui.

Shail assentiu, gravemente.

- Sinto muito - acrescentou Victoria, baixando a cabeça. - Não sou muito boa com estas coisas.

Shail segurou-a pelos ombros.

- Escuta-me, Vic - disse-lhe. - Tu fazes o que podes, e ponto final. Não sejas tão dura contigo mesma. Estou muito orgulhoso de ti.

Victoria olhou para ele. Shail sorriu.

- E vamos encontrá-los, vais ver. E resgataremos Alsan. Conta com isso.

- Sabes de uma coisa? - disse ela, em voz baixa. - Em minha casa já passa da meia-noite, segundo o meu relógio. E sabes que dia é hoje?

Shail negou com a cabeça.

- Não, Vic, confesso que não sei. Aqui em Limbhad é difícil apercebermo-nos dos dias.

Victoria sorriu.

- Hoje é o meu aniversário - disse suavemente. - Faço hoje

treze anos.

Shail olhou-a e sentiu uma cálida emoção por dentro.

- Minha pequena Vic - disse-lhe, afagando-lhe o cabelo. - Já és uma mulher. Lamento ter-me esquecido do teu aniversário, mas prometo-te que, quando tudo isto passar, vamos comemorá-lo como mereces. Está bem?

- Não é preciso que me trates como se fosse uma criança pequena. Compreendo perfeitamente que isso não é nada importante comparado com o que temos de fazer agora. Mas... queria dizê-lo a alguém.

Sorriu novamente, incomodada e um pouco envergonhada. Shail fitou-a durante alguns instantes e depois tirou um dos muitos amuletos que levava pendurados ao pescoço.

- Olha para isto - disse-lhe. - Sabes o que é?

Victoria olhou. Tratava-se de uma corrente fina de um metal parecido com a prata, mas que sob a luz das estrelas revelava um brilho esbranquiçado. Dela pendia um cristal em forma de lágrima que brilhava misteriosamente.

- É lindo - murmurou ela, fascinada.

- Chamam-lhes Lágrimas de Unicórnio. Estes amuletos são feitos de um cristal muito especial, muito puro, e apenas se fabricam numa pequena povoação perdida entre

a neve, a norte de Raheld, a cidade dos artesãos. São muito populares entre os feiticeiros porque se diz que desenvolvem a magia, a imaginação e a intuição. Este aqui, em particular, foi um presente de um dos meus irmãos mais velhos quando ingressei na Ordem Mágica.

E agora quero que seja teu.

Victoria olhou-o, muda de espanto.

- O quê? - conseguiu finalmente dizer. - Mas Shail, não posso aceitá-lo!

- Por favor, aceita. É o meu presente de aniversário. Para a rapariga do báculo, a dos olhos bonitos, que não quero ver chorar nunca mais.

Victoria ergueu a mão para tocar no amuleto, mas os dedos tremiam-lhe e, sem poder conter-se por mais tempo, lançou os braços ao pescoço de Shail e abraçou-o com todas as suas forças. O jovem feiticeiro sorriu e devolveu-lhe o abraço.

- Feliz aniversário, Vic - disse -, tenho a certeza de que farás grandes coisas. Mas ainda és apenas uma flor que começou a desabrochar. Quando estiveres preparada para mostrar tudo o que vales, espantarás o mundo, estou convencido disso. E espero estar lá para o ver.

- Obrigada, obrigada, obrigada! - sussurrou ela, emocionada. É o melhor presente de aniversário de toda a minha vida. E prometo que não irei decepcionar-te.

Os dois separaram-se, e Shail colocou a corrente com a Lágrima de Unicórnio em volta do pescoço de Victoria. Ela contemplou-o uma vez mais, sorrindo, e sentindo-se muito mais aliviada e segura de si mesma.

- vou ver como Jack está a dar-se com a sua nova espada. Não tarda muito para irmos.

Victoria assentiu, ainda sorridente, e o feiticeiro tentou que ela não notasse o quanto estava preocupado. "Gostaria de saber se faço bem em levar estes dois jovens numa guerra que talvez não seja a sua", pensou. Voltou a olhar Victoria e recordou como o báculo fora parar às suas mãos, e como Jack empunhara Domivat como se tivesse nascido para isso, e uma ideia inquietante desenhou-se na sua mente. Perguntou-se se deveria comentá-la com eles. "Quem me dera que Alsan estivesse aqui", desejou em silêncio. "Ele saberia o que fazer."

Alsan uivou. O seu corpo convulsionou-se novamente, enquanto ele movia a cabeça de um lado para o outro, procurando voltar à sua aparência humana.

Quase o conseguiu.

Ao seu lado, Elrion murmurava desconcertado:

- Não entendo. Não entendo.

Reuniram-se os três na biblioteca. Jack levava Domivat no cinto, e Victoria segurava o Báculo de Ayshel. Os dois estavam assustados, mas esforçavam-se por parecer resolutos. Shail olhou-os carinhosamente e perguntou-se, pela enésima vez, se estava a fazer o que era certo. Suspirou. Devia dizê-lo antes de embarcarem naquela missão suicida. Tinham o direito de o saber.

- Escutem - disse-lhes, com seriedade. - Há uma coisa que devem saber. Algo acerca dessa espada... e desse báculo.

- O quê? - perguntou Jack.

- Chamámos-lhes "armas míticas" por uma boa razão. Foram forjadas para serem empunhadas por heróis verdadeiros. Apenas aqueles destinados a grandes feitos têm direito a usá-las.

Jack e Victoria trocaram um olhar, indecisos.

- Ainda são muito jovens - prosseguiu Shail -, e o vosso vínculo com Idhún não está completamente clarificado. Por isso não deveria permitir que viessem comigo.

" Mas conheço a história e as lendas. E ensinaram-me que, nos momentos mais importantes, aparece sempre alguém que está destinado a ser um herói. Talvez ele não o esperasse, talvez nunca tivesse sonhado que tal responsabilidade lhe cairia sobre os ombros, talvez simplesmente estivesse no lugar errado à hora errada. Mas estas coisas acontecem. Aconteceu a Ayshel e, de alguma maneira, também a mim, quando encontrei Lunnaris por um mero acaso. Talvez Alsan tenha sido educado para ser um herói. Eu não e, portanto, não tenho a certeza de estar a agir correctamente. Por isso quero que saibam porque decidi que deviam ir comigo.

- Porquê? - perguntou Victoria.

O feiticeiro olhou-a fixamente. Depois olhou para Jack com a mesma intensidade.

- Há pouco disse-vos que Alsan e eu devíamos salvar o dragão e o unicórnio pela segunda vez. Talvez não seja assim. Talvez o nosso momento já tenha passado, talvez tenhamos já cumprido a nossa missão quando levámos ambos para a Torre de Kazlunn. Talvez tombemos os dois nesta tarefa, porque talvez sejam vocês o futuro da Resistência. As armas míticas sabem reconhecer os verdadeiros heróis. Talvez vocês os dois estejam destinados a encontrar o dragão e o unicórnio e a lutar pela salvação de Idhún na última batalha. Sei que é muita responsabilidade, e apenas desejo poder estar ao vosso lado se isso chegar a acontecer. Mas, caso contrário...

Shail não pôde continuar a falar. Jack e Victoria pareciam assustados. "Não me surpreende", pensou o feiticeiro. "Mas deviam sabê-lo. Oxalá esteja enganado, mas estas coisas não acontecem por acaso."

- Talvez - disse Jack, após um momento de silêncio -, mas não penso lutar sozinho. Se o fizer, Alsan e tu estarão ao meu lado.

Falou com segurança e determinação, e Shail aplaudiu interiormente a sua coragem. "Bravo, Jack", pensou. "E bravo, Alsan. Converteste um rapazinho assustado num futuro herói de Idhún."

Perguntou-se até que ponto aquilo era bom. Perguntou-se, inclusivamente, se não teria sido melhor para Jack se Kirtash o tivesse assassinado naquela noite. Se tinha razão e aquele era o destino de Jack, caíra sobre os seus ombros uma enorme responsabilidade que mudaria a sua vida para sempre.

A sua vida... e a de Victoria.

Evitou continuar a pensar nisso.

- Então vamos. Alma - pediu ao espírito de Limbhad -, leva-nos por favor até perto do castelo onde Kirtash se encontra.

Momentos antes de a Alma os envolver no seu seio, Victoria procurou a mão de Shail, mas foi a de Jack que encontrou. O rapaz apertou-lha com força, para lhe dar ânimo.

E os três partiram numa missão que, como sabiam muito bem, poderia ser a última.

 

               SERPENTES

- Basta! - exclamou então uma voz clara, fria e firme. -Já te divertiste o suficiente.

De imediato, Alsan sentiu que o espírito do lobo se acalmava um pouco e deixava de lutar contra a sua alma humana. Ouviu a voz de Elrion.

- Porquê? Quase o tinha...

- Nem por sombras, Elrion - respondeu Kirtash. - Sabes que não tens nem um décimo do talento de Ashran, o Necromante, por muito quê te esforces por o imitar. E também sabes que esse sortilégio não está ao alcance de qualquer um.

O rapaz aproximou-se de Alsan e olhou para ele, pensativo. O príncipe baixou as orelhas e grunhiu-lhe, mostrando-lhe as presas. Kirtash nem se mexeu.

- Poderia ter sido pior, acredita - murmurou. - Muito pior.

No meio da sua agonia, Alsan acreditou ter visto um brilho de compaixão nos frios olhos azuis.

- Fecha-o juntamente com os outros - ordenou Kirtash. E certifica-te de que o vigiam bem. - Fez uma pausa e acrescentou:

- A Resistência acaba de chegar.

Jack olhou à sua volta, atordoado. Não conseguia acostumar-se àquelas viagens instantâneas.

Encontravam-se num pequeno bosque sob a luz da lua. Por cima das copas das árvores, sobressaíam os torreões de uma fortaleza centenária, que em tempos remotos servira de defesa aos habitantes da região, mas que agora fora escolhida por Kirtash para esconder o seu pequeno exército.

- Prestem-me atenção por um momento - disse Shail. - Embora tivéssemos utilizado o poder da Alma para chegar até aqui, também usei parte da minha magia, de maneira que o mais certo é que Kirtash se tenha dado conta de que chegámos; estamos demasiado perto dele para lhe ter passado ao lado. Temos de nos apressar. Não demorará a aparecer para recuperar o báculo.

Jack tentou concentrar-se. Shail continuava a falar muito baixinho, mas a ele deu-lhe a sensação de que havia outro som além da sua voz.

- Silêncio - disse. - Não ouvem?

Os três prestaram atenção. E então ouviram-nos.

Cicios.

Jack virou-se. Viu sombras na neblina, sombras humanóides de cabeça estranhamente achatada.

E, de repente, apareceu diante dele um rosto horrível, uma cabeça de serpente, umas presas e uma língua bífida...

Alsan fora parar a uma prisão húmida. Levantou-se por força de reflexos que não acreditava possuir, e lançou-se contra a porta, a grunhir. Esta fechou-se apenas alguns centésimos de segundo antes de chocar contra ela.

Alsan arranhou a porta e grunhiu. Não lhe serviu de nada.

Ouviu então um ruído ao fundo da cela. Ergueu a cabeça e farejou o ar. O cheiro era estranho, confuso. Alsan não podia associá-lo a nada que conhecesse.

- Quem és tu? - grunhiu.

Um outro grunhido respondeu-lhe do meio da escuridão, e algo surgiu das sombras para o observar com atenção.

Alsan estudou-o com cautela.

Era uma mulher.

Ou, melhor dizendo, fora uma mulher. Agora tinha olhos felinos e orelhas arredondadas e peludas, e algumas partes da sua pele estavam cobertas por uma suave pelagem alaranjada, com riscas pretas. Caminhava com o corpo projectado para a frente e as mãos a roçarem o chão. Alsan viu que os seus dedos terminavam em garras e que atrás dela se agitava algo parecido com uma longa cauda.

160A mulher lançou-lhe um sorriso feroz.

- Bem-vindo ao clã - disse.

Jack descarregou a sua espada contra aquela criatura, sentiu que o aço penetrava a sua carne escamosa, ouviu um ciciar furioso quando o fio de Domivat queimou o corpo do seu oponente. Ficou um pouco surpreendido, mas teve de reagir depressa, porque vinham mais. Lembrou-se do que Shail lhes chamara: szish, os homens - serpentes, servos dos sheks e de Ashran, o Necromante, o sacerdote dos novos senhores de Idhún. Suspirou. Poderiam ter sido homens-hienas, homens-ursos ou até mesmo homens-baratas, e tê-lo-ia suportado melhor. Mas detestava serpentes. Sempre as detestara.

De relance, viu que Victoria levantava o seu báculo ao alto. A bola de cristal que o rematava pareceu carregar-se de energia durante um momento, porque se iluminou na noite como um farol latejante; e, finalmente, obedecendo a um movimento da sua dona, o báculo descarregou toda aquela energia em forma de raio contra um dos homens-serpentes, que ficou imediatamente carbonizado.

O rapaz esforçou-se por recordar tudo o que aprendera com Alsan. Pensar nele deu-lhe forças e ergueu Domivat para se defender do ataque de outro dos szish. Foi mais difícil do que imaginava. Aquele ser era hábil e rápido, e Jack teve de empenhar-se a fundo sem deixar que a ira ou o medo o dominassem a ponto de não poder controlar a sua espada. Finalmente, enterrou o aço no corpo do seu adversário e viu-o cair diante de si; foi uma sensação estranha.

Naquela altura, Shail executava um feitiço. Jack viu como, de repente, outros três szish se transformavam em estátuas de gelo. Jack desferiu a sua espada contra eles e destruiu as estátuas, não fosse eles voltarem à vida. Voltou-se mesmo a tempo de evitar ser trespassado pela arma de outro homem-serpente.

Victoria ergueu o báculo e concentrou-se. A bola de cristal retirou novamente a energia do ambiente e acumulou-a no seu interior. Victoria levantou o báculo num movimento brusco e a magia foi libertada em forma de anel luminoso. Jack e Shail agacharam-se a tempo, mas alguns homens-serpentes morreram carbonizados.

Jack olhou para Victoria, impressionado. Shail deu-lhe um ligeiro empurrão e o rapaz voltou a concentrar-se. Por sorte, já não restava mais nenhum.

- Era apenas um grupo de sentinela - murmurou Shail. - Mas a esta altura, de certeza que já toda a gente sabe que estamos aqui.

Jack não disse nada. Acontecera tudo muito depressa, e ele ainda não se habituara à ideia de que estava a lutar pela sua vida e pela dos seus amigos.

- Vamos - disse Victoria, agarrando-o pelo braço. - Temos de resgatar Alsan.

O príncipe sentara-se numa ponta da sala, longe da mulher-tigre. Estava há algum tempo a pensar no que acontecera, e a desejar poder deitar as garras a Elrion e devorá-lo de uma assentada, para o fazer pagar por aquela terrível dor que ainda o corroía por dentro. Aninhado naquele recanto escuro, Alsan grunhia e gemia. Por vezes, o seu corpo mudava novamente, e o jovem tinha convulsões e uivava enquanto os seus traços se tornavam mais lupinos ou mais humanos.

- Um dia isso vai acabar - assegurou a mulher-tigre. - Então não serás nem uma coisa nem outra. Serás uma criatura híbrida, como eu.

Aquela perspectiva não agradou a Alsan. Pensou nos seus amigos, mas isso fazia despertar o seu lado humano, e aí ressurgia no seu interior aquela luta terrível e dolorosa contra o espírito do lobo. Compreendeu então porque é que a mulher-tigre tinha aquele aspecto.

Ela fizera uma trégua, cansada de continuar a sofrer.

- Estás preparado, Jack?

O rapaz assentiu. Shail aproximou-se dele e ergueu as mãos sobre a sua cabeça.

- Pensa num szish e guarda a imagem dele na mente.

Dadas as circunstâncias, não foi muito difícil para Jack. Shail moveu as mãos em círculo sobre a cabeça do rapaz e pronunciou algumas palavras mágicas.

Jack sentiu a magia fluir das mãos de Shail até à sua cabeça, logo descendo para se espalhar por todo o seu corpo...

Quando olhou para as mãos e as viu escamosas e com três dedos, soltou uma exclamação de assombro, mas apenas lhe saiu uma espécie de sibilar.

- Mais vale não te veres ao espelho, Jack - comentou Victoria. Essa cara não te favorece.

Jack piscou-lhe o olho. Isso pelo menos podia fazer.

Agarrou na sua espada e viu que agora ela parecia ser de um aço normal e vulgar. Despediu-se dos amigos com um aceno e deu meia-volta para se ir embora.

- Espera, Jack.

Victoria pegara-lhe no braço. Jack voltou-se para ela e a rapariga estremeceu.

- É estranho pensar que és tu - disse; engoliu em seco e deu um beijo no que devia ser o rosto do seu amigo. - Tem muito cuidado. Quero que voltes vivo.

- Voltarei vivo e com Alsan - ciciou Jack; olhou-a nos olhos. Tem muito cuidado tu também.

Victoria assentiu. Jack separou-se dela e perdeu-se entre a vegetação cerrada.

- bom - disse então Shail. - Preparada para a função?

- Acho que sim.

- Quero que tenhas uma coisa em conta: tens o báculo e sabes como usá-lo. Kirtash virá buscar-te. Temos de estar preparados para resistir tanto quanto for possível, entendes? Enquanto Kirtash estiver por aqui, Jack terá uma oportunidade de entrar no castelo e resgatar Alsan.

- Estão aqui - disse Elrion.

- Eu sei - retorquiu Kirtash. - Perdemos uma das patrulhas. Espero que tenhas Alsan bem vigiado, porque vieram buscá-lo.

- Oh, sim - riu o feiticeiro. - Ainda que tropeçassem nele, não o iam reconhecer facilmente.

Kirtash lançou-lhe um olhar penetrante.

- Continuas a subestimá-los.

- O que vais fazer?

- O que esperam que faça - respondeu Kirtash suavemente. vou buscar Victoria e o báculo.

- Não foram tão parvos a ponto de os trazerem até aqui.

- Claro que sim. É a única oportunidade que têm de sair todos com vida.

Elrion não respondeu. Inclinou-se sobre a superfície de um pequeno tanque cujas águas reflectiam uma imagem do interior do castelo.

- Até que enfim vejo-os! - exclamou, satisfeito. - O feiticeiro e a rapariga. Estão a tentar entrar pela porta de trás.

- A sério? - Kirtash sorriu. - Então vão entrar pela porta da frente. Onde está o outro?

- Pois... - hesitou Elrion.

Kirtash assentiu, como se esperasse essa resposta.

- vou interceptar Jack quando tentar entrar - disse. - Depois de o matar, irei buscar o báculo. Tu ficas aqui e assegura-te de que ninguém consegue chegar até Alsan.

O feiticeiro não respondeu, mas cerrou os punhos. Detestava ter de obedecer a Kirtash, mas sabia que nunca ousaria enfrentá-lo directamente, porque nunca conseguiria vencê-lo.

Jack aproximou-se da porta da frente e esforçou-se por caminhar e mover-se como faziam os outros homens-serpentes. Aproveitou que dois deles voltavam ao castelo para também entrar.

Um dos szish voltou-se e disse-lhe algo com um ciciar irado. A princípio, Jack sentiu-se aterrado, até que se deu conta de que entendera perfeitamente o szish.

Perguntara-lhe:

- Onde pensas que vais?

Inicialmente, Jack não soube o que responder, mas logo teve uma ideia.

- Pedir reforços - respondeu na linguagem do szish, aquela mistura de ciciar e sibilar. - Foram vistos dois intrusos no bosque.

- A sério? - Os szish trocaram um olhar. - Não me informaram. Mas naquele momento chegou um quarto homem-serpente.

- Renegados - ciciou. - Estão a atacar a entrada traseira. O szish que parecia ser o chefe olhou para Jack.

- Está bem - disse. - Vai a correr avisar Sosset.

Jack assentiu e entrou na fortaleza. Não fazia ideia de quem era esse Sosset, e é claro que não tencionava descobrir.

Sentiu de imediato um sopro gélido na alma e colou-se à parede, atrás de um pilar, a tremer.

- O que se passa? - Ouviu a voz de Kirtash a falar a língua dos szish.

- Renegados, íamos...

- Não. Não vão a lado nenhum. Quero que fiquem aqui a vigiar esta porta. Entendido?

Jack deslizou rapidamente, colado à parede. Kirtash estava de costas para ele e bastante longe, mas o rapaz tinha a certeza de que, se olhasse para ele, nem o mais perfeito disfarce de szish o conseguiria enganar.

Devagar, muito lentamente, Jack afastou-se dali.

Kirtash voltou-se. Havia algo que...

Inclinou a cabeça, procurando definir aquela incómoda sensação. Decidira vigiar ele mesmo a porta principal, mas algo lhe dizia que Jack já conseguira entrar no castelo. Kirtash conhecia as suas próprias limitações e sabia que não tinha maneira de detectar a presença de Jack. Ou teria?

A sua intuição nunca falhara.

- Assazer - chamou.

O szish acorreu apressadamente até ele.

- Fiquem aqui e chamem outro destacamento. Se entrarem, irá ser por esta porta.

O homem-serpente inclinou a cabeça e os seus olhos brilharam com inteligência.

- O feiticeiro e a rapariga... são uma manobra de diversão, é isso, senhor?

- É o que parece. Não se fiem em ninguém e, sobretudo, não deixem entrar ninguém. Está claro?

Assazer hesitou.

- Senhor...

Kirtash voltou-se para ele.

-... momentos antes de terdes chegado, entrou alguém. Um szish que dizia que ia avisar Sosset da presença de renegados no bosque.

Os olhos de Kirtash semicerraram-se, mas não disse nada. Esperou que o homem-serpente continuasse a falar. Assazer e o seu companheiro trocaram um olhar.

- Era um szish um tanto estranho, senhor - explicou. - Pareceu-nos que o seu corpo libertava algum calor.

Kirtash não fez nenhum comentário. Silencioso como uma sombra, entrou novamente no castelo, à caça do intruso.

Victoria ergueu o báculo por cima da sua cabeça. Shail lançou um novo feitiço e alguns dos szish retrocederam, temerosos. A rapariga olhou de soslaio para o amigo. O feiticeiro parecia esgotado, e ela desejou que Jack encontrasse Alsan depressa e saísse do castelo de uma vez.

Shail e Victoria estavam a aguentar-se bem no bosque. A vegetação impedia os szish de os atacar todos ao mesmo tempo, pois apenas podiam chegar até eles em pequenos grupos. Mas os dois jovens esquadrinhavam as sombras, nervosos, à espera do inimigo que os levara até ali.

Todavia, Kirtash continuava sem aparecer.

- O que estará a fazer? - perguntou Shail por entre dentes. Porque não vem buscar o báculo?

- Achas que se apercebeu? - sussurrou Victoria.

- Para bem de Jack, espero que não.

Victoria não disse nada, mas recordou os olhos azuis de Kirtash, uns olhos aos quais nada parecia escapar. E compreendeu então que, se Kirtash ainda não aparecera ali, era porque sabia que Jack estava a tentar entrar no castelo. "Não tem pressa de me vir buscar", pensou, "porque sabe que esperaremos por Jack até ao último momento."

Desejando estar enganada, pôs-se novamente em guarda junto a Shail para deter o novo grupo de szish que vinha a caminho.

Jack vagueou pelos corredores do castelo e deparou com alguns guerreiros que o saudavam sem fazer perguntas. Havia humanos e szish, e estes ficavam a olhar para ele com desconfiança. Jack perguntou-se onde estaria a falha no seu disfarce.

Ao fim de algum tempo, chegou a uma grande sala iluminada por tochas de fogo azul. Ao centro havia uma plataforma com correias; parecia uma espécie de instrumento de tortura, e não agradou a Jack. Junto àquele artefacto havia uma jaula que continha o corpo de um lobo morto.

- O que fazes aqui?

Jack sobressaltou-se. A voz de Elrion soara muito próxima. O rapaz deu um passo atrás para se camuflar nas sombras, por precaução. Mas Elrion não pareceu prestar-lhe atenção. Estudava um enorme livro apoiado numa estante em forma de cobra.

- Eu... - tartamudeou Jack. - Andava à procura de Sosset acrescentou, lembrando-se oportunamente do nome do chefe dos homens - serpentes.

- E o que te fez pensar que o encontrarias aqui? - grunhiu o feiticeiro de mau humor. -Volta para a cave para vigiar os prisioneiros!

Jack aproveitou aquela informação e deu meia-volta para ir embora. Quando chegou à porta, voltou-se para olhar para Elrion.

O assassino dos seus pais.

Sentiu que fervia de raiva, mas conseguiu controlar-se. Não era a primeira vez que se encontrava com Elrion desde a morte dos seus pais, mas em todas aquelas vezes Kirtash estivera diante dele e, por alguma razão, era mais fácil para Jack focar o seu ódio nele. Esforçou-se por se lembrar por que razão entrara no castelo. Devia resgatar Alsan.

Inspirou profundamente e conseguiu dominar a sua raiva. "Em breve, Elrion", prometeu em silêncio. "Em breve irei fazer-te pagar."

Saiu da sala sem voltar a olhar para trás.

Elrion suspirou e abanou a cabeça, ainda aborrecido pela interrupção. Os szish eram, regra geral, mais inteligentes do que os humanos, mas aquele em particular parecia ser uma excepção.

Então ergueu a cabeça e compreendeu. com um grito de raiva, fechou os olhos e saiu da sala atrás de Jack.

Victoria inclinou o báculo para o lado para deter uma estocada. O artefacto emitiu um suave brilho cintilante e libertou parte da sua energia, fazendo a espada do szish em pedaços. Quando Victoria desferiu o báculo sobre ele, a criatura lançou um som agudo sibilante... e irrompeu em chamas.

A rapariga arquejou e retrocedeu um pouco. Aquilo parecia ser um pesadelo. Estava a matar seres inteligentes que, embora não tivessem o mesmo aspecto que ela, possuíam uma consciência racional. A única coisa que poderia dizer em sua defesa era que, embora a sua própria vida não corresse perigo - Kirtash precisava dela para utilizar o báculo -, sabia que os szish não se deteriam na hora de matar Shail e Jack.

Jack... porque demorava tanto?

- Kirtash ainda não apareceu, Shail - murmurou. - Terá encontrado Jack?

O feiticeiro abanou a cabeça, mas não disse o que realmente pensava: que, naquela altura, apenas conseguia desejar que Kirtash não aparecesse ali.

Se o fizesse, isso quereria dizer uma coisa: que Jack já estava morto, uma vez que era evidente que ele era o único que impedia o assassino de vir recuperar o báculo.

Uma nova patrulha de szish avançava na direcção deles. Shail arquejou, esgotado; Victoria soube que não aguentaria muito mais tempo.

- Deixa-me fazê-lo eu - disse-lhe. - A energia do báculo não se acaba.

Rodou novamente o Báculo de Ayshel e dirigiu o seu raio mágico para os homens-serpentes. Mas, para sua surpresa, algo deteve o feixe de energia a escassos metros dos seus inimigos. O raio chocou contra uma parede invisível e depois desfez-se.

- O que...?

- Magia - limitou-se a dizer Shail, retrocedendo um pouco. Victoria compreendeu.

- Elrion?

Mas o feiticeiro negou com a cabeça.

- Elrion é um feiticeiro demasiado valioso. Enviaram outro feiticeiro, provavelmente medíocre, já que toda esta gente é carne para canhão. Temos o báculo; Elrion não pode lutar contra ele e sabe disso. O pior é que já não me restam forças, Vic. Terás de lutar sozinha.

Victoria esquadrinhou as sombras, mas não viu o feiticeiro em lado nenhum... até que sentiu uma grande e intensa quantidade de energia não muito longe dali. Quis gritar, avisar Shail, mas ele já se dera conta: um enorme raio mágico avançava para eles, imparável.

Jack deparou-se com uma escada de caracol que descia e decidiu tentar a sua sorte. Desceu e desceu até chegar a um corredor húmido onde se ouviam gemidos, grunhidos e o barulho de correntes. De ambos os lados do corredor, entre tochas de fogo azul, estavam as celas. Satisfeito, avançou pelo corredor adiante, mas de repente estacou e estremeceu.

Voltou-se e deu de caras justamente com a espada de Kirtash sobre ele.

 

               FOGO E GELO

Alsan ergueu a cabeça e franziu o sobrolho. Farejou o ar. Aquele cheiro...

- Não vai conseguir, amigo - sussurrou a mulher-tigre. - Ele já o alcançou.

Alsan grunhiu e levantou-se para assomar ao pequeno postigo gradeado.

- Vamos, rapaz - murmurou. - Tens de sair desta.

Jack rodou para o lado. A espada quase lhe roçou o braço, deixando uma sensação gélida na sua pele. Kirtash voltou a erguê-la sobre ele, mas desta vez Jack interpôs a sua própria espada entre ambos. A mesma camuflagem mágica que convertia Jack num szish fazia-a parecer uma arma normal e vulgar, mas não o era; tratava-se de Domivat, uma espada mítica, e algo antigo e poderoso pareceu sacudir os dois combatentes quando os fios das espadas chocaram.

Kirtash semicerrou os olhos durante um breve instante. Aquela foi a sua única reacção, mas foi suficiente para que Jack o empurrasse para trás, aproveitando para se pôr de pé.

Os dois olharam-se cautelosamente. Jack empunhava Domivat entre ele e Kirtash, mantendo as distâncias. Na penumbra do corredor, também Haiass reluzia com um brilho gélido.

- Voltamos a encontrar-nos - disse Jack.

Kirtash não respondeu. Não tinha nada para dizer. Moveu-se ágil e rapidamente para a direita, mas atacou pela esquerda. Jack deteve o fio da espada do seu inimigo a poucos centímetros do seu corpo e retrocedeu, preocupado. Kirtash continuava a ser demasiado rápido e ligeiro para poder antecipar os seus movimentos. "Mas desta vez não me desarmou ao primeiro golpe", pensou. Lançou-se para a frente e descarregou a sua espada contra ele. Kirtash esquivou-se ao seu ataque com um movimento rápido e deteve Domivat com a sua espada. Uma vez mais, todo o ar pareceu vibrar. Haiass, gelo, e Domivat, fogo, eram a expressão mais clara do espírito dos seus respectivos portadores. Mas, para além do encontro entre duas espadas míticas, Jack pressentiu que havia ali vestígios de uma luta imemorial que, de alguma maneira, se renovava através deles.

Kirtash também pareceu intuí-lo, porque carregou novamente contra ele, rápido e letal. Executou uma série de movimentos tão velozes que o fio de Haiass parecia apenas um relâmpago branco na semi-obscuridade. Sem entender muito bem o que estava a acontecer, Jack defendeu-se como pôde. E teve a sensação de que Domivat o ajudara desta vez, porque tinha a certeza de que nunca teria reagido tão depressa. Aparou todos os golpes de Kirtash com uma precisão e uma eficácia aprendidas nas aulas de Alsan, mas soube quase de imediato que nunca poderia ter-se movido com tanta rapidez se empunhasse outra espada qualquer. Lançou o último golpe um pouco às cegas, e aconteceu o que temia desde o princípio: perdeu a concentração e Domivat libertou parte do seu poder.

Produziu-se uma labareda que fez Kirtash retroceder. Jack arquejou, aliviado por ter um momento para respirar; mas a sua alegria durou pouco. Sentia-se extremamente fraco e vazio, e compreendeu que a força de Domivat abandonara as suas mãos, sem consequências para Kirtash, mas, infelizmente, com efeitos fatais para ele.

Kirtash também pareceu compreendê-lo. com um brilho de triunfo nos olhos, elevou Haiass e arremeteu contra Jack.

O rapaz soube que tinha apenas uma opção.

Deu meia-volta e desatou a correr pelo corredor. Ouviu que Kirtash o perseguia e soube, com toda a certeza, que o alcançaria.

Victoria moveu o báculo como se fosse uma raquete de ténis... e, para sua surpresa, funcionou. A bola de fogo fez ricochete no cristal do báculo e voltou-se contra os homens-serpentes que, sem poder reagir, viram como o projéctil lançado pelo seu feiticeiro se estilhaçava contra eles...

Os szish retrocederam, ciciando aterrorizados. Mas o feiticeiro continuava a não se deixar ver.

- Shail - murmurou Victoria, preocupada. - Olha! Vêm mais!

Dezenas de szish avançavam através do bosque, na sua direcção, cercando-os por todos os lados. Victoria voltou-se em todas as direcções, procurando uma escapatória.

- De onde saem tantos?

Shail, que recuperava forças apoiado contra o tronco de uma árvore, olhou fixamente as sombras dos inimigos que se aproximavam e compreendeu.

- Não são assim tantos. É uma ilusão produzida pelo feiticeiro.

- Queres dizer que não são reais?

- Alguns deles são. Mas não todos. O problema consiste em distinguir os inimigos reais dos falsos.

- Então que fazemos?

- Vamos embora daqui - decidiu Shail, levantando-se.

Victoria negou com a cabeça, cerrando os dentes. Ergueu o báculo e lançou outra onda circular que alcançou a primeira fila de szish. Reais ou ilusões, todos desapareceram.

- Não vou abandonar Jack - declarou.

Continuavam a chegar homens-serpentes. Continuavam a parecer muitos.

- Não vamos fazê-lo - replicou Shail.

Foi então que Victoria compreendeu. Aproximou-se de Shail e procurou fazer o feitiço de teletransporte que ele lhe ensinara há algum tempo.

Nunca conseguira executá-lo, mas naquela ocasião a magia canalizada pelo Báculo de Ayshel complementou a sua própria magia incompleta. Apenas a presença de Shail, que a segurava firmemente, a ajudou a manter a mente suficientemente serena para visualizar o lugar para onde queriam transportar-se.

Jack dobrou uma esquina e chocou com um szish. A força do impacto foi tal que ambos caíram no chão. Jack levantou-se de um salto e continuou a correr.

- Ei! - protestou a criatura, mas não pôde dizer mais. A espada de Kirtash atravessara-o de um lado a outro.

O jovem apercebeu-se de imediato do seu erro, mas era demasiado tarde. O homem-serpente estava morto, e Jack fugia pelo corredor.

Retirou a espada do corpo do szish, sentindo que Jack o tirara do sério e perguntando-se porquê. Como era possível? Como é que aquele rapaz conseguia alterá-lo a ponto de o fazer cometer erros tão estúpidos? Seria devido ao facto de lhe ter escapado já várias vezes? Ao estranho sexto sentido de Jack que, de alguma maneira, o advertia da sua presença? Ou devido a ter tido a ousadia de o enfrentar cara a cara brandindo uma espada mítica, uma espada forjada com fogo de dragão?

Kirtash semicerrou os olhos num esgar de ódio. Sim, devia ser isso. A espada.

Embainhou Haiass novamente e ficou a olhar para o corredor escuro, pensativo. Agora que o sabia, não voltaria a cometer o mesmo erro.

Por vários motivos, nunca matava por matar.

O primeiro deles era a discrição: Kirtash sabia que se movimentaria mais livremente se não chamasse a atenção. O segundo era que não valia a pena dar-se ao trabalho de matar alguém se isso não lhe trouxesse nenhum benefício. E o terceiro... que os mortos não são úteis a ninguém. Apenas os vivos poderiam servir para alguma coisa num dado momento. Por isso Kirtash matava apenas quem devia matar: os alvos que Ashran lhe indicara e aqueles que se interpunham entre ele e o cumprimento da sua missão. E claro que nunca tirara a vida a um szish que não o merecesse. Os homens-serpentes eram uma raça de guerreiros hábeis, inteligentes e muito perigosos para os seus inimigos. Qualquer um deles valia por dez homens.

- Kirtash. - A voz de Elrion atrás de si não o sobressaltou; ninguém podia surpreendê-lo. - Escuta, o rapaz renegado entrou no castelo. Está disfarçado de szish.

Kirtash não pôde evitar esboçar um breve sorriso.

- Não me digas.

Shail e Victoria materializaram-se no lugar onde se tinham despedido de Jack. Não estavam muito longe do grupo dos szish que os atacara, mas já não estavam rodeados por eles. Shail instou Victoria a subir a uma árvore e trepou atrás dela. Quando se acomodaram entre os ramos, Victoria disse:

- Vão encontrar-nos, Shail. Não é um grande esconderijo.

- Agora vai ser - assegurou o feiticeiro.

Pronunciou as palavras de um feitiço e de imediato uma densa névoa começou a formar-se aos seus pés, uma névoa escura que cresceu e cresceu até cobrir todo o bosque que rodeava o castelo.

Jack entrou na sala dos guardas. Havia três szish, dois guerreiros humanos e um yan. Como Jack vira apenas um yan em toda a sua vida, não podia assegurá-lo, mas quase apostava que se tratava do traidor Kopt.

Os guardas ficaram a olhar para ele.

- Eh... - começou Jack, lembrando-se de que a sua camuflagem mágica ainda continuava activa. - Procuro o prisioneiro, o príncipe renegado - disse na língua dos homens-serpentes.

- Para quê? - perguntou um dos szish.

- Porque o feiticeiro Elrion tem... uma coisa para tratar com ele - respondeu Jack.

Para sua surpresa, os guardas sorriram.

- Esse feiticeiro não se dá por vencido - comentou um dos homens-serpentes.

Mas o que parecia ser o líder não se deixou convencer tão facilmente.

- Porque não veio ele mesmo? - exigiu saber.

Jack não tinha uma resposta preparada. Sabia que Kirtash o alcançaria muito rapidamente.

Teria de encontrar Alsan sozinho.

Sem uma palavra, desatou a correr e atravessou a sala dos guardas. Os seis levantaram-se de um salto. -Eh! Mas Jack saiu pela outra porta e perdeu-se pelo corredor.

- Avisa o feiticeiro Zzzosssan - disse o chefe szish a um dos dois guardas humanos; falou-lhe num idhunaico comum tal como os homens-serpentes falavam, cheio de cicios e sibilados. - Diz-lhe que quero essse renegado morto.

- Renegado? - repetiu o guarda, confuso. Os szish olharam-no com desprezo.

- Nós os szissssh não libertamossss calor como oss mamíferossss

- disse um deles. - Esssa criatura não era um de nósss.

O chefe voltou-se para outro dos guardas, um szish.

- Vai procurar Kirtash. Diz-lhe que...

- Não é necessário - disse uma voz fria e serena. - Já estou aqui.

Victoria não deixava de lançar olhares nervosos ao castelo. Provavelmente Jack estava com problemas; senão, porque demorava tanto?

Debaixo da árvore, entre a névoa densa, os szish continuavam à procura deles. O feiticeiro que ia com eles tentava abrir a bruma mágica, mas sem resultado: Shail continuava concentrado a produzir mais e mais névoa. Victoria olhou fixamente para ele e perguntou-se quanto mais tempo poderia aguentar.

Jack parou num corredor, arquejante, e olhou em volta. Celas e mais celas.

- Alsan? - perguntou, hesitante.

Não houve resposta. Jack sabia que ainda havia muita cave para percorrer, mas não pôde evitar pensar que talvez o seu amigo já estivesse morto.

"Não", disse para si mesmo. "Os guardas falavam dele como se estivesse vivo."

A maioria das celas estava vazia. Jack podia imaginar porquê. Kirtash não costumava fazer prisioneiros. Se devia matar alguém, fazia-o. Se o que queria era obter informação, bastava-lhe sondar a sua mente.

Assomou a um pequeno corredor escuro que cheirava fortemente a animal. Não ia entrar, mas ouviu ruídos e entrou nele para se esconder.

Foi uma má ideia. Mal entrou, foi recebido com um coro de grunhidos, e perguntou-se que tipo de animais guardariam ali e para quê.

Pelo corredor principal avançava um guarda humano. Ouviu os grunhidos dos animais e aproximou-se com curiosidade.

Jack colou-se à parede, a tremer, esquecendo-se de que aos olhos da maioria das pessoas ainda parecia um szish. Era difícil lembrá-lo, depois de ter enfrentado Kirtash com a certeza de que ele via para além da camuflagem mágica, e desde o primeiro momento descobrira nele não um temível homem-serpente, mas um rapaz de treze anos assustado.

Então, de repente, algo parecido com uma pata com garras surgiu por entre as traves de uma janelinha e agarrou-lhe a cabeça, tapando-lhe a boca. Jack arquejou e gesticulou, aterrado.

Uma voz que lhe soou ligeiramente familiar disse-lhe ao ouvido, com uma espécie de grunhido animal.

- Silêncio, Jack. Sou eu.

Jack teve medo, mas ficou quieto. O guarda não chegou a vê-lo. Encolheu os ombros e prosseguiu a ronda.

Jack voltou-se lentamente. Sob a luz azul bruxuleante das tochas pôde ver que a garra que o segurara era uma estranha mistura entre uma pata animal e um braço humano. Entreviu por entre as grades uns olhos selvagens e brilhantes.

- Alsan? - perguntou, hesitante.

- Sim, rapaz. Abre a porta.

Jack viu igualmente umas presas afiadas e pôs-se a pensar.

- Alsan, o que te aconteceu?

- Maldição, abre a porta - grunhiu o príncipe. - É suposto teres vindo resgatar-me, não? Porque senão, não sei o que raio estás a fazer numa masmorra, neste ninho de serpentes, disfarçado de víbora.

Jack sorriu, incomodado. Parecia Alsan, embora não soubesse como o reconhecera. Examinou a fechadura e não pensou muito. Desembainhou Domivat e desferiu-a contra a porta. O fogo mágico da espada fez saltar as dobradiças.

Mas então sentiu Kirtash atrás de si, como um sopro de ar frio. Instintivamente, afastou-se.

Foi tudo muito rápido. Jack afastou-se para o lado, Kirtash ergueu a sua espada, Alsan rugiu e lançou-se sobre a porta, que cedeu imediatamente...

Alsan e a mulher-tigre precipitaram-se sobre Kirtash. O rapaz, apanhado de surpresa, demorou um pouco a reagir, mas, quando o fez, foi letal. De um só golpe matou a mulher-tigre. com um empurrão, desembaraçou-se dela e pôs-se de pé num salto.

Mas Alsan e Jack já fugiam em direcção à saída do corredor.

Kirtash olhou para a criatura híbrida que acabara de matar. Elrion materializou-se no corredor, perto dele. Kirtash não precisava de perguntar onde estivera metido durante todo aquele tempo. Sabia muito bem que o feiticeiro dava a cara poucas vezes.

Empurrou com o pé o corpo da mulher-tigre.

- Oh - disse simplesmente Elrion, ao ver a sua criação morta. Kirtash voltou-se para onde Jack e Alsan tinham escapado.

- Vocês também não dão a cara - murmurou.

- Kirtash? - perguntou o feiticeiro, hesitante. O jovem voltou à realidade.

- Chama Assazer e Sosset e certifica-te de que reúnem todos os guerreiros nas saídas do castelo - ordenou. - Há que evitar que escapem daqui.

Elrion assentiu.

Depois de o feiticeiro se ir, Kirtash ficou sozinho no corredor por um momento. Perguntou-se então por que razão adiara tanto a busca do báculo. Por muita vontade que tivesse de acabar com Jack, devia reconhecer que o mais importante continuava a ser a sua missão. Além disso...

De imediato, lembrou-se de Victoria. Sim, havia algo nela que o intrigava...

 

               "VEM COMIGO...

- Eh! - exclamou Victoria. - Estão a ir-se embora!

Efectivamente, os szish retiravam-se e, como se tivessem recebido uma ordem inaudível, voltavam para o castelo. Victoria apoiou um pé num ramo superior e impulsionou-se para o alto para espreitar por cima das folhas da árvore.

- O que vês? - perguntou Shail, em baixo.

- Estão a formar uma espécie de cordão à volta do castelo. Há um pelotão de guerreiros em cada porta.

- Isso é porque sabem que Jack está lá dentro e querem impedir que saia.

- Oh, não!

- São boas notícias; significa que continua vivo e livre. Um momento...

Victoria apercebeu-se do tom preocupado das últimas palavras de Shail e voltou-se para ele.

- O que foi?

- Acho que não se foram todos. vou descer.

- Shail, não...

- Tu ficas aqui. Lembra-te de que, se Kirtash se apoderar do báculo, será o fim para todos nós.

Victoria assentiu, surpreendida. O feiticeiro desceu da árvore de um salto e olhou em volta. Uma sombra ergueu-se diante dele. Shail sorriu.

- Por fim atreves-te a lutar abertamente - disse.

O outro feiticeiro avançou uns passos na sua direcção. A luz da lua iluminou os traços de um szish.

Shail não pôde esconder o seu espanto. Desconhecia que existissem feiticeiros entre os szish. Os unicórnios também entregavam os seus dons aos homens-serpentes?

- Parecesss sssurpreendido, feiticeiro - sibilou o szish. - Vejamosss o que sssabesss fazer.

Shail assentiu e pôs-se em guarda. Não era a primeira vez que enfrentava outro feiticeiro num duelo mágico. Durante a sua época de estudante, os duelos que mantivera eram mais escaramuças de pouca importância contra outros aprendizes. Todavia, desde que estava na Resistência, enfrentara Elrion mais de uma vez. Escapara quase sempre por uma unha negra, porque Elrion era um feiticeiro poderoso e experiente, e Shail não era rival para ele. Mas suspeitava que aquele szish não devia ser grande coisa como feiticeiro; caso contrário, não se teria ocultado atrás de várias filas de guerreiros.

Então, porque decidira tão depressa lutar cara a cara?

O szish preparou o seu ataque mágico. Shail concentrou-se para levantar um escudo invisível e compreendeu então a razão pela qual o outro feiticeiro o atacava agora.

Continuava muito fraco, e a sua magia não tardaria a falhar.

- Sssó quero o báculo e a rapariga - disse o szish.

- Terás de me matar primeiro.

- Que assssim ssseja - ciciou o homem-serpente, sorrindo.

Jack evitou olhar de frente para aquele que fora Alsan, príncipe de Vanissar, e que era agora uma estranha mistura de homem e animal. Limitou-se a correr atrás dele, esforçando-se por acompanhar o seu ritmo e desejando que ele soubesse para onde ia.

Alsan corria pelos corredores da fortaleza. Era uma fúria à solta. Nenhum dos guardas que se cruzavam com ele reagia a tempo de evitar as suas garras e presas. Quando tropeçava em algum guerreiro, quer fosse humano ou szish, gostava realmente de morder a sua carne, mas tinha bom senso suficiente para saber que ainda lhe restava algo de humano e que tinha de sair dali o quanto antes.

Também ele evitava olhar para Jack. O rapaz continuava com o disfarce de szish, mas os sentidos de lobo de Alsan diziam-lhe que sob aquela aparência de réptil ocultava-se um rapaz humano, tenro e mais saboroso do que qualquer frio e escamoso homem-serpente.

Alsan franziu o sobrolho e grunhiu baixinho.

"Continuo a ser Alsan, príncipe de Vanissar, filho do rei Brun", recordou a si mesmo.

Perguntou-se então o que aconteceria quando regressassem a Idhún. Aceitá-lo-iam agora como herdeiro do trono e como soberano quando o seu pai já não existisse?

E compreendeu que não.

Nunca.

Shail não fechou a barreira mágica a tempo. O ataque do feiticeiro szish golpeou o seu corpo em cheio e lançou-o para trás.

- SHAIL! !! - gritou Victoria.

Viu-o chocar contra o tronco de uma árvore, bater com a cabeça e cair no chão, inconsciente. Sem se importar com o que pudesse acontecer-lhe, saltou da árvore para ir acudir o amigo. com alívio, percebeu logo que Shail continuava vivo; por sorte, embora a sua barreira defensiva incompleta não tivesse desfeito o sortilégio do seu inimigo, evitara que golpeasse directamente o seu corpo. O jovem estava apenas inconsciente e apresentava feridas superficiais das quais recuperaria sem problemas.

Mas, enquanto isso, era Victoria quem deveria lutar e aguentar ali até que Jack regressasse... com ou sem Alsan.

Respirando fundo, ergueu-se com o báculo entre as mãos e olhou fixamente para o feiticeiro szish.

- Esssstava à tua esssspera - disse o homem-serpente. Victoria não disse nada, mas preparou-se para se defender. Não tinha consciência de que, entre as sombras, uns olhos azuis a observavam com interesse.

Alsan estacou de repente, e Jack com ele.

Tinham chegado à sala de experiências de Elrion. Ali estava a jaula com o lobo morto, a plataforma com correias e o resto dos instrumentos estranhos que lembravam a Jack uma sala de torturas.

- Porque viemos aqui? - perguntou. - O que esperas encontrar? "Elrion", grunhiu o lobo.

- Sumlaris, a Imbatível - respondeu Alsan.

Descobriu-a num recanto, perto da estante onde Elrion colocara o livro de feitiços. Pegou nela e dirigiu-se novamente para a porta. Parou por um momento junto da jaula e ficou a olhar para o corpo do lobo morto, com uma expressão estranha no seu rosto semianimalesco. Uma parte dele lamentava a morte do animal e sentia falta do corpo que perdera.

Jack assomara à grande janela.

- Têm-nos cercados, Alsan - disse.

Pensou em Shail e Victoria, e desejou que estivessem bem. Especialmente Victoria.

- Espero que tenhas um bom plano para sair daqui - grunhiu Alsan.

- Não, eu...

- Estupendo. - Alsan emitiu uma risada baixa e gutural. - Então vamos abrir umas quantas gargantas escamosas.

Jack não disse nada, mas o plano não lhe agradou muito.

O feiticeiro invocou um raio, que caiu sobre Victoria de um céu subitamente nublado; mas, em vez de alcançar o corpo da rapariga, o raio concentrou-se directamente sobre o Báculo de Ayshel. Victoria aguentou um pouco enquanto a energia do raio crepitava e iluminava o seu rosto, assustado mas decidido.

Então lançou o raio contra o feiticeiro szish.

Este ergueu as suas defesas mágicas, mas nada pôde fazer contra aquela torrente de energia em que se transformara o feitiço que criara momentos antes.

Exausta, Victoria contemplou o corpo do inimigo que se consumia entre as chamas. "Já está", pensou. "Shail está a salvo."

Mas eis que uma sombra avançou para ela saída da escuridão. A sombra movia-se ágil e silenciosa como um felino e brandia uma espada que emitia um suave brilho branco-azulado.

Victoria sentiu que as pernas lhe falhavam. Afinal de contas, Kirtash viera buscá-la. Significaria que acabara com Jack? "Não, não pode ser", pensou. "Não pode estar morto." Sentiu que o coração se despedaçava de dor, só de o pensar. Mas dentro de si ardia uma chama de esperança, de modo que sacudiu a cabeça e procurou concentrar-se no novo perigo que a ameaçava.

Kirtash parou a poucos metros dela.

- Aprendes depressa - comentou, com suavidade. - Só tens o Báculo de Ayshel há um dia e já sabes controlá-lo.

"Esteve a observar-me", pensou Victoria, inquieta.

bom, não pensava render-se sem lutar. Além disso, talvez Kirtash necessitasse dela viva, mas isso não se estendia a Shail. Devia evitar a todo custo que se aproximasse dele.

- Terás de tirar-mo à força - advertiu-o.

Kirtash sorriu, mas aceitou o desafio e pôs-se em guarda.

Obedecendo ao desejo silencioso de Victoria, o báculo começou a absorver energia do ambiente e a concentrá-la na sua extremidade. Kirtash, a uma distância prudente, contemplava-o com interesse, mas sem baixar a guarda. Victoria moveu o báculo para lançar um raio contra o seu oponente. Kirtash evitou-o sem sequer se mover. O raio estilhaçou-se contra uma árvore e partiu-a em duas.

Quando Victoria se deu conta, Kirtash desaparecera.

Voltou-se em todas as direcções, aterrada, e ergueu o báculo instintivamente quando se apercebeu da sombra que caía sobre ela, do meio do nevoeiro.

A espada e o báculo chocaram. Saltaram faíscas.

Kirtash investiu de novo, e Victoria voltou a interpor o báculo entre ambos. Sabia que, estando tão perto, não devia olhar para Kirtash nos olhos, mas era difícil. Sentia que ele a queimava com o olhar... um olhar tão frio como o gelo.

Kirtash retrocedeu uns passos, com Haiass ainda em riste. Não parecia minimamente preocupado. Pelo contrário, agia com tanta tranquilidade como se aquilo fosse um jogo do qual só ele conhecia e ditava as regras... que podia mudar a qualquer momento, a seu bel-prazer.

E Victoria compreendeu logo de seguida que assim era. Na realidade, ele poderia ter vencido aquela luta desde o princípio. Estava apenas a testar Victoria, a avaliar a sua habilidade, a força... e o poder do Báculo de Ayshel.

Kirtash pareceu aperceber-se da hesitação de Victoria, porque decidiu pôr fim ao jogo. Moveu-se novamente com rapidez; Victoria retrocedeu, tropeçou e as suas costas embateram no tronco de uma árvore. Haiass cintilou momentaneamente na penumbra e, antes que a rapariga pudesse entender o que estava a acontecer, o Báculo de Ayshel saiu das suas mãos. Victoria viu-o cair um pouco mais longe, sobre a erva.

Centésimos de segundo depois, o fio da espada de Kirtash roçava o seu pescoço.

Alsan percorria o castelo a uivar. Nada o podia parar. Corria mais depressa, saltava mais alto, golpeava com mais força do que ninguém. Sumlaris parecia-lhe uma pena; a espada absorvia a sua nova força animal e, embora parecesse achá-la estranha à sua própria natureza, forjada no seio da honra, valor e rectidão dos cavaleiros de Nurgon, reconhecia o seu portador e obedecia a todos os seus gestos, partindo os szish em dois como se fossem de manteiga.

Jack ia atrás, a uma distância prudente. Não receava perder Alsan de vista. A única coisa que tinha de fazer era seguir o rasto de cadáveres destroçados que havia em ambos os lados do corredor.

Os olhos azuis de Kirtash cravaram-se nos olhos escuros de Victoria. Ela quis virar a cabeça, mas não pôde. Sentia-se presa pelo seu olhar.

O rapaz franziu o sobrolho, ligeiramente intrigado. Victoria pôde sentir como a mente de Kirtash sondava e explorava a sua, e quis rebelar-se, quis resistir, mas não foi capaz.

Respirou fundo, aterrorizada. A espada de Kirtash ainda roçava a sua pele. O tronco da árvore ainda tocava nas suas costas. Não podia escapar. Não podia fazer nada a não ser esperar pela morte.

Kirtash inclinou a cabeça. Continuava a olhar para Victoria, e ela sentiu-se desesperada. "O que está a fazer? Se me quer viva, porque não me leva com ele para o castelo? E, se não precisa de mim, porque é que ainda não me matou?"

Como se adivinhasse os seus pensamentos, Kirtash disse:

- Tenho de te matar, sabias?

Victoria quis falar, mas tinha a garganta seca. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas de terror.

Então, para sua surpresa, o rapaz ergueu a mão esquerda e acariciou-lhe o rosto com os dedos, suavemente. Victoria estremeceu de alto a baixo. Como poderia haver tanta doçura numas mãos assassinas?

Afastou-lhe uma madeixa de cabelo do rosto. Continuava a olhá-la.

Victoria percebeu algo que brilhava no dedo de Kirtash e viu que era um anel, um anel em forma de serpente com uma pequena pedra redonda, de cor indeterminada. Sacudiu a cabeça para afastar os olhos daquele objecto, mas voltou a encontrar o olhar frio de Kirtash e não pôde evitar que duas lágrimas lhe rolassem pelas faces. Kirtash recolheu-as com a ponta dos dedos.

- Por favor - sussurrou Victoria; a espada continuava ali, muito perto, a arranhar-lhe a pele. - Por favor, mata-me ou deixa-me ir, mas não me faças isto.

Ele não disse nada. Pegou-lhe suavemente no queixo e fê-la erguer a cabeça. Victoria não teve outro remédio senão olhá-lo nos olhos.

Aqueles olhos azuis que queimavam como o gelo.

Victoria sentiu uma mistura de emoções contraditórias. Como se ambos fossem imanes que alternassem em alta velocidade, a rapariga sentia atracção, repulsa, atracção, repulsa...

Então, por fim, Kirtash falou.

- Mas tu não devias morrer - disse.

"vou converter-te num dos homens mais poderosos de ambos os mundos."

A lembrança das palavras de Elrion fez com que Alsan estacasse.

Jack parou também, atordoado.

- O que se passa? - esforçou-se por dizer.

Alsan não respondeu, e Jack sentou-se no muro, sentindo-se muito fraco. Não sabia quanto tempo mais suportaria aquele massacre. Desde que tirara Alsan da cela, os corredores pareciam cenários de um filme de terror.

"Um dos homens mais poderosos de ambos os mundos..." Alsan apoiou-se igualmente contra o muro de pedra e sentou-se no chão. Observou as suas mãos-garras cobertas de sangue. "Pela Sagrada Irial", pensou. "Em que estou a converter-me?" Jack atreveu-se a aproximar-se um pouco dele.

- Estás bem?

Alsan encarou-o pela primeira vez. Viu que, por alguma razão, o seu disfarce de szish desaparecera, e voltava a parecer um rapaz loiro e magro de treze anos.

Mas, acima de tudo, viu o medo e o horror nos seus olhos verdes.

- O que te fizeram? - perguntou Jack.

- Converteram-me num monstro - respondeu ele; e a sua voz soou, uma vez mais, como um grunhido.

- Não deveria surpreender-me - murmurou Kirtash. Continuava a falar para si mesmo, continuava a olhar para

Victoria, continuava a mante-la encurralada com o fio da sua espada.

- Podia deixar-te ir - disse ele.

- Então deixa - sussurrou ela.

- Se continuares na Resistência vais morrer, mais cedo ou mais tarde. O melhor que podes fazer é abandoná-la, Victoria.

Ela não se surpreendeu por ele se lembrar do seu nome. Kirtash nunca esquecia um nome, nem uma cara.

Engoliu em seco e, quase sem se dar conta, murmurou:

- Não o vou fazer.

Nos olhos de Kirtash surgiu um breve brilho de decepção.

- Então não voltes a cruzar o meu caminho, criatura, porque da próxima vez não terei outro remédio que não matar-te.

Victoria inspirou profundamente.

- Embora possa haver uma outra saída - acrescentou ele. Victoria fechou os olhos por um momento, sentindo que não

aguentaria aquela tensão por muito mais tempo.

Quando abriu novamente os olhos, viu que Kirtash lhe estendera a mão e a olhava com seriedade.

- Vem comigo - disse-lhe.

- O quê...

- Vem comigo - repetiu ele. - Ao meu lado, serás a minha imperatriz. Juntos, governaremos Idhún.

Jack colocou uma mão sobre o seu braço peludo, em sinal de amizade e confiança. Aquele gesto deixou Alsan profundamente consolado.

- Shail vai ajudar-te - disse o rapaz.

- Não - replicou Alsan, recordando a conversa que ouvira entre Elrion e Kirtash. - Isto é o resultado de um sortilégio falhado, um sortilégio muito complexo que, pelo que sei, apenas Ashran, o Necromante, pode fazer correctamente.

Fez uma pausa. Jack olhava-o, expectante.

- Apenas Ashran me pode ajudar - concluiu. Jack ficou calado por um momento. Depois disse:

- Vais unir-te a ele e aos sheks? - Alsan olhou-o fixamente, e Jack acrescentou: - Eu não te censuraria, Alsan. Se fores ter com ele...

- Nunca - cortou Alsan com um grunhido.

Victoria olhou cautelosamente para Kirtash, supondo que ele estava a gozar com ela. Mas os seus olhos diziam que falava a sério.

- Não... não entendo.

Estava diante de um assassino sem escrúpulos que nunca duvidara na hora de matar alguém. Estava diante do seu inimigo, e ele dizia-lhe...

Kirtash inclinou a cabeça e não disse nada. A sua mão continuava diante da rapariga, esperando que ela se decidisse a estender-lhe a sua.

- E... absurdo - sussurrou Victoria.

Kirtash continuava a olhar para ela, sem uma palavra. Já dissera o que queria dizer e não tinha mais nada a acrescentar. Victoria sentiu que aquilo não era mais do que um sonho mau, mas voltou a fixar os seus olhos nos dele...

Respirou fundo. Acabava de descobrir que Kirtash exercia um estranho fascínio sobre ela... acima do ódio, do medo e da repulsa.

- Estás a brincar comigo, não é? Ele sorriu.

- E de que me serviria isso?

- Tentas confundir-me - murmurou ela.

- Já estás confusa, Victoria. Mas eu posso ensinar-te muitas coisas...

Não podia afastar o seu olhar do dele. Viu-se a si mesma ao seu lado, a aprender com ele...

Opôs-se à ideia, horrorizada. Não, não era isso que queria. Então, porque é que no fundo desejava estender-lhe a mão e partir com ele?

Tentou afastar o rosto. Deu-se conta então de que a espada já tinha sido retirada há algum tempo. Kirtash não estava a ameaçá-la.

Não pôde evitá-lo. Voltou a olhar para ele.

Atracção, repulsa, atracção, repulsa... os dois imanes giravam a toda a velocidade, mas os olhos de Kirtash continuavam na mesma fascinantes.

- Victoria... - disse ele.

A sua voz era acariciadora, sussurrante. Victoria descobriu-se a si mesma a desejar com todas as suas forças deixar-se levar...

- Porquê? - balbuciou.

Não estava a perguntar porque estava a perdoar-lhe a vida, porque lhe perguntava aquelas coisas, porque estava a brincar com ela. Simplesmente queria saber porque, de repente, sentia que lhe faltava o ar e desejava que ele a tomasse nos seus braços e a levasse consigo... para o lugar de onde viera, fosse qual fosse. Mas Kirtash entendeu.

- Porque tu e eu não somos muito diferentes - disse-lhe. - E não tardarás a percebê-lo.

Victoria pareceu recuperar alguma sensatez. Recordou que aquele rapaz era um assassino impiedoso e soube que não queria ser como ele.

- Não é verdade. Não é verdade. Somos diferentes. Mas Kirtash sorriu.

- Somos as duas faces de uma mesma moeda, Victoria. Somos complementares. Eu existo porque tu existes, e vice-versa.

- Não...

Os olhos azuis de Kirtash continuavam cravados nela. Victoria levantou o olhar para se perder neles, naqueles oceanos de gelo onde, contudo, parecia haver um refúgio cálido reservado para ela, um recanto para uma rapariga de treze anos no coração de um assassino. "Não pode ser verdade", pensou. "Está a mentir."

Mas o seu olhar continuava a ser intenso e sugestivo, e Victoria soube, nesse mesmo momento, que não podia resistir-lhe.

"Vem comigo", dissera ele.

Victoria ergueu uma mão, hesitante.

Os seus dedos roçaram os dele. Sentiu de imediato algo parecido com uma descarga eléctrica, algo que sacudiu completamente o seu interior...

A sensação agradou-lhe, e fechou os olhos por um momento para se deixar levar por ela. Notou que lhe faltava o ar, que uma estranha debilidade percorria o seu corpo como um delicioso calafrio. Voltou a abrir os olhos e deparou-se, novamente, com o olhar magnético de Kirtash, que apertou a sua mão e sorriu.

 

                 PERDA

De imediato, Kirtash ficou tenso e voltou-se, tão depressa que Victoria apenas pôde vislumbrar o seu movimento. Em seguida apercebeu-se do que chamara a atenção do jovem.

Elrion estava ali, olhando-os com uma expressão sombria enquanto sussurrava algo em voz baixa. Victoria reconheceu aquelas palavras: era um sortilégio de ataque.

- Elrion, não! - gritou Kirtash; ergueu os braços e cruzou-os para realizar algum tipo de contrafeitiço.

Tarde de mais. Dos dedos de Elrion brotou um feixe de energia mágica que atravessou a clareira à procura do corpo de Victoria, que continuava encostada à árvore.

Ela gritou e tentou proteger-se com os braços, embora algo no seu interior gritasse que já era tarde, que o feiticeiro os apanhara a ambos de surpresa, que ia morrer...

Subitamente, um grito rasgou o ar.

Victoria nunca conseguiria esquecer o que viu naquele momento.

Um corpo interpusera-se entre ela e Elrion, recebendo em cheio o ataque do feiticeiro e também a magia gerada por Kirtash para tentar detê-lo. Quando as duas correntes chocaram contra o vulto que saíra das sombras para proteger Victoria, produziu-se uma explosão de luz multicolor, horrível e ao mesmo tempo incrivelmente bela; foi como contemplar a morte de uma estrela.

E, ante os olhos horrorizados de Victoria, Shail, o feiticeiro da Resistência, o seu amigo, irmão e professor, desintegrou-se como se nunca tivesse existido.

Alsan ergueu a cabeça e franziu o sobrolho.

- Algo me diz que Shail e Victoria estão com problemas - disse.

- Temos de sair daqui o quanto antes.

- Isso é o que estávamos a tentar fazer, por isso deste cabo de tantos guardas - recordou Jack. - Mas dá-me a sensação de que não fazemos mais nada a não ser dar voltas. Além disso, todas as portas estão vigiadas.

- Tenho uma ideia. Segue-me.

Alsan desatou a correr pelo corredor até chegar a uma estreita escada em caracol. Jack supôs que desceria as escadas, mas, para sua surpresa, tomou o sentido ascendente. O rapaz foi atrás, inquieto.

Pouco depois chegaram ao cimo de um torreão. Jack respirou aliviado o ar fresco da noite. Dali esquadrinhou as sombras do bosque para ver se havia sinais de Victoria ou Shail, mas tudo parecia calmo. Desejou que estivessem bem. Enquanto subiam as escadas, apercebera-se de que a sua camuflagem mágica desaparecera. Esperou que isso não significasse que Shail fora capturado... ou algo pior.

Alsan assomou às ameias. A altura não era nada de se desprezar.

- O que estás a tramar? - perguntou Jack, inquieto.

Alsan não respondeu. Afastou-se das ameias e voltou-se para Jack. Antes que ele pudesse adivinhar quais eram as suas intenções, agarrou-o, levantou-o no ar e carregou-o às costas.

- Eh! - exclamou o rapaz, surpreendido pela força de Alsan, que o levantara como se ele fosse uma pena. - O que é que...?

- Agarra-te bem.

Jack abriu a boca para protestar, mas não chegou a fazê-lo. Alsan tomava balanço e ele não teve outro remédio senão agarrar-se a ele com força.

Alsan correu em direcção às ameias e deu um salto poderoso, com Jack sobre as suas costas. Ambos sentiram como os seus corpos cortavam o ar, como caíam pesadamente no chão...

Alsan aterrou de pé sobre a erva. Um pouco atordoado, e sem acreditar no que acabavam de fazer, Jack desceu das costas dele.

- Alucinante! - murmurou. - Foi quase como voar. O coração acelerou-se-lhe um pouco mais. Voar...

- Não há tempo para sonhar - advertiu-o Alsan. - Não demorarão até nos encontrarem.

Victoria lançou um grito de raiva, dor e impotência. Sentiu que as pernas lhe falhavam e caiu de joelhos sobre a erva, com os olhos inundados de lágrimas.

Um único pensamento martelava-lhe a cabeça: "Shail está morto... Shail está morto... Shail morreu para me salvar..."

Ouviu a voz de Elrion.

- Não sei a que estás a brincar, Kirtash, mas Ashran não vai gostar. Se não te conhecesse, acharia que estás a atraiçoar...

O feiticeiro nunca chegou a terminar a frase. Silencioso e letal, Kirtash deslizara até ele com a espada desembainhada. Quando Elrion descobriu o cintilar da morte nos seus olhos, era demasiado tarde.

Victoria viu o feiticeiro cair no chão, morto, mas isso não a fez sentir-se melhor. Fixou o seu olhar em Kirtash, que se erguia de costas para ela, ainda com a espada na mão.

O feitiço havia sido quebrado. Agora havia apenas lugar para o ódio e para a sede de vingança. com uma ordem silenciosa, Victoria chamou o báculo para a sua mão, e este obedeceu.

Quando Kirtash se voltou, viu Victoria armada diante dele, de pé, com os olhos faiscantes, cheios de raiva e de dor. - vou matar-te - afirmou ela.

com um grito selvagem e os olhos ainda húmidos, Victoria lançou-se contra ele.

Na opinião de Jack, os szish pareciam inquietos, mas apareciam às dezenas para lutar. Alsan e ele tinham conseguido alcançar o pequeno bosque; contudo, tinham os homens-serpentes nos calcanhares.

Alsan parou de repente.

- Vai buscar Shail e Victoria - grunhiu. - Eu entretenho-os.

Jack olhou para ele.

- Não vou deixar-te sozinho outra vez.

- Maldição, miúdo, faz o que te digo. É preciso fazer-lhes frente; é melhor do que lhes virar as costas.

Jack ainda se sentia um pouco reticente, mas não se atreveu a contradizer Alsan, muito menos naquelas circunstâncias. com um nó no estômago, deu meia-volta e embrenhou-se no bosque.

Victoria gritou novamente e descarregou o báculo com todas as suas forças contra Kirtash. O rapaz saltou para o lado com ligeireza e deteve o golpe com a sua espada. Houve um faiscar de luz quando as armas chocaram. O Báculo de Ayshel emitia um suave brilho palpitante, como se fosse um coração a bombardear magia. A espada de Kirtash também brilhava, com uma cor branco-azulada que lhe dava um aspecto gélido.

Victoria golpeou outra vez, e outra. Kirtash movia-se à sua volta, silencioso, ágil, manejando a sua espada com precisão e habilidade. Se Victoria não estivesse tão cega pelo ódio e pela dor, ter-se -ia apercebido de que ele poderia tê-la morto logo, se o quisesse. Mas Kirtash limitava-se a parar os seus golpes, sem se alterar, apesar de certamente saber que Victoria não estava em condições de controlar o báculo, e isso implicava que o artefacto, inflamado de magia, podia ser letal para qualquer um que lhe tocasse, excepto para a sua portadora. No entanto, não parecia importar-se. Talvez porque soubesse que, apesar de todo o empenho de Victoria para o golpear, apesar de todo o seu ódio, nunca conseguiria tocar-lhe se ele não o permitisse.

Victoria estava física e psicologicamente esgotada, mas continuava a tentar alcançar Kirtash com o báculo. Apenas desejava golpear, golpear, golpear... e matar.

Matar Kirtash, que continuava a esquivar-se dela e a defender-

-se sem atacar.

Finalmente, Victoria tropeçou e caiu de joelhos no chão. O báculo resvalou das suas mãos e ela rompeu em soluços.

"Lamento", ouviu uma voz na sua cabeça. "Tentei evitá-lo, sabes disso..."

Victoria levantou a cabeça, surpreendida, e olhou em volta.

Kirtash desaparecera, mas ainda percebeu a sua voz nalgum recanto da sua consciência: "Voltaremos a ver-nos, Victoria..."

- Victoria!

Ela sobressaltou-se e viu, de imediato, que Jack estava junto dela. Os olhos verdes do rapaz estavam cheios de perguntas e o seu rosto mostrava uma expressão profundamente preocupada.

- Pelo menos estás bem - disse, olhando-a com um carinho intenso. - Por momentos temi que...

Jack não chegou a acabar de pronunciar aquela frase. Victoria refugiou-se nos seus braços, chorando com uma amargura infinita. Jack, confuso e desconcertado, abraçou-a desajeitadamente e murmurou algumas palavras de consolo.

Olhou em volta, à procura de respostas, e encontrou apenas o corpo de Elrion estendido sobre a erva.

- Mataram o feiticeiro! - exclamou, surpreendido. Victoria separou-se dele e enxugou as lágrimas.

- Nós... não... - conseguiu dizer. - Foi Kirtash. Jack franziu o sobrolho.

- Kirtash matou o seu próprio feiticeiro? Victoria engoliu em seco.

-Jack, Shail... - sussurrou, e sentiu, uma vez mais, que os olhos se enchiam de lágrimas.

Algo parecido com uma mão gelada apertou o coração de Jack, que por um breve instante se esqueceu de bater.

- O que aconteceu a Shail? - perguntou num murmúrio.

Mas Victoria olhou simplesmente para as mãos, desolada. Não encontrava palavras para explicar o que acontecera. Shail desintegrara-se diante dos seus olhos. Nem sequer restava um corpo que pudessem chorar. Era demasiado horrível para acreditar que fosse verdade, mas era...

- Shail morreu para me salvar - disse finalmente, em voz baixa. Rompeu novamente em soluços, apertando na sua mão direita a Lágrima de Unicórnio que Shail lhe oferecera, enquanto apoiava a cabeça no ombro de Jack.

O rapaz, por sua vez, inspirou profundamente e fechou os olhos, cansado. Não chegara a ter com Shail a confiança que o unia a Alsan, mas sempre estimara o jovem feiticeiro, jovial, agradável e, sobretudo, um bom amigo em que se podia confiar.

Mas para Victoria era muito mais do que isso, compreendia agora Jack. Shail e ela estiveram muito unidos, eram quase como irmãos. Que iria ela fazer sem ele?

Jack sentiu que, de alguma maneira, ele mesmo deveria esforçar-se por preencher aquele vazio no seu coração, sobretudo depois do que acontecera a Alsan. Abraçou a sua amiga com força e deu-se conta de que não teria suportado perdê-la a ela também. Victoria enterrou a cara no seu ombro, sentindo-se um pouco melhor. Jack acariciou o seu cabelo e surpreendeu-se com a sua suavidade.

- Sinto muito, Victoria - disse em voz baixa. - Foi Kirtash, não foi?

- Não - respondeu ela. - Foi Elrion. De facto, Kirtash...

"Kirtash também procurou proteger-me", recordou-se subitamente. A voz da lógica disse-lhe que isso se devia, sem dúvida, ao facto de necessitar dela viva para utilizar o báculo. Ainda que... não dissera que devia matá-la? Mas então, porque a deixara ir?

Sacudiu a cabeça. Não tinha forças para tentar decifrar as razões do estranho comportamento do seu inimigo.

Então ouviu-se um uivo, e ambos ergueram a cabeça, em guarda.

Um enorme vulto peludo precipitou-se pela clareira, correndo na direcção deles. Era perseguido por um grupo de szish armados, que atiravam adagas contra ele.

- Alsan! - exclamou Jack.

- Alsan? - repetiu Victoria.

- Vamos embora daqui! - rugiu Alsan.

Victoria permaneceu quieta. Alsan estava prestes a alcançá-los, e a rapariga achou-o tão aterrorizador que reagiu de imediato e agarrou instintivamente no seu báculo, justamente quando aquele ser, metade homem, metade animal, chegou junto deles...

"Alma!", pediu Victoria, mentalmente. "Alma, tira-nos daqui!"

E, pela primeira vez, conseguiu fazer a invocação de forma instantânea. A última coisa em que pensou, antes de se desvanecer, foi que Shail teria ficado orgulhoso dela.

Os szish precipitaram-se sobre os três jovens, mas o que restava da Resistência já não se encontrava ali.

- Escaparam, senhor - informou Assazer.

Kirtash assentiu, sem uma palavra. Assomara à grande janela e contemplava a paisagem nocturna, de costas para o szish.

- Que fazemos... com o corpo do feiticeiro? - perguntou, hesitante.

- Tragam-no de volta para o castelo - respondeu Kirtash, suavemente.

O szish não acrescentou mais nada, nem fez qualquer comentário. Retirou-se silenciosamente, e Kirtash não pôde reprimir um ligeiro sorriso. Aquelas criaturas obedeciam-lhe incondicionalmente nem que ele as enviasse directamente para uma morte certa.

Porque eles sabiam, e quando olhavam para Kirtash viam mais além do que qualquer ser humano.

- Kirtash.

A voz era fria e profunda, e não admitia ser ignorada. O rapaz voltou-se lentamente.

No centro da sala, surgira uma figura incorpórea, alta e escura, envolta em sombras. Kirtash inclinou a cabeça diante do seu senhor, Ashran, o Necramante.

- O que aconteceu? Onde está Elrion?

- Cometeu o seu enésimo erro e tive de me desfazer dele - murmurou Kirtash.

Ashran cruzou os braços diante do peito.

- Tens consciência do quanto me custa encontrar feiticeiros que cumpram as tuas exigências? - perguntou, e a sua voz tinha um tom perigoso.

- Peço-te perdão, senhor. Mas os humanos não estão à altura das exigências da missão. Movemo-nos num mundo estranho, o que requer não apenas habilidade, mas também capacidade para se adaptar, discrição e... obediência absoluta - acrescentou com suavidade.

- Compreendo. Então o que sugeres?

- Tenho consciência de que as capacidades dos szish como feiticeiros são muito limitadas, uma vez que não tiveram a possibilidade de ingressar na Ordem Mágica para desenvolver a sua arte. Os yan, por sua vez, são imprevisíveis e impulsivos, e os varu não são muito eficazes em missões em terra firme. Talvez alguém do povo feérico...

- Os feéricos opuseram-se em bloco ao império dos sheks. Não contamos com nenhum dos seus feiticeiros nas nossas fileiras. Mas verei o que posso fazer.

Kirtash assentiu, mas não disse nada.

- Esmagaste a Resistência? - quis saber Ashran.

- Pode dizer-se que sim. Ficaram sem feiticeiro e o príncipe Alsan de Vanissar viu-se transformado num híbrido incompleto. Não creio que esteja em condições de liderar nenhum grupo de renegados.

- A sério?

- Elrion decidiu fazer experiências com ele quando o capturámos. O príncipe é um jovem orgulhoso. Quando se der conta de tudo o que implica a sua nova condição, ficará emocionalmente destroçado.

- E os outros?

- Duas crianças, meu senhor.

- Escaparam-te.

- A rapariga tinha o Báculo de Ayshel. Procurei capturá-la com vida, mas Elrion interveio com intenção de a matar. A sua intromissão inoportuna provocou a fuga da rapariga... e a morte do próprio Elrion - acrescentou.

Ashran olhou Kirtash nos olhos. O rapaz susteve o seu olhar. Nada na sua atitude serena traía a verdade que ocultara ao seu senhor: que Elrion tentara matar Victoria porque, certamente, estivera a espiá-los e descobrira sobre ela o mesmo que Kirtash. As últimas palavras de Elrion ecoaram na sua mente. "Não sei a que estás a brincar, Kirtash, mas Ashran não vai gostar. Se não te conhecesse, acharia que estás a atraiçoar..."

Elrion não chegara a acabar de pronunciar a frase, mas Kirtash sabia que não a poderia esquecer.

- Compreendo - disse finalmente Ashran. - O que se passa com o báculo?

- Temo que apenas a rapariga, Victoria, possa utilizá-lo. Poderia capturá-la, mas, se mo permites, meu senhor, acho que é mais prático segui-la para que ela mesma me conduza ao unicórnio. Relativamente ao rapaz, Jack, também irei procurá-lo e matá-lo, se for essa a tua vontade.

O Necromante reflectiu.

- Não - disse por fim. - É mais urgente encontrar o dragão e o unicórnio.

Kirtash assentiu.

- Mas - acrescentou o seu sombrio senhor -, se voltar a cruzar-se no teu caminho...

- Não haverá piedade - murmurou Kirtash.

Fixou na imagem de Ashran uns olhos frios como cristais de gelo.

 

Estavam a salvo.

Limbhad acolhera-os no seu seio como uma mãe, e a sua clara noite estrelada acalmara, em parte, o seu medo, a sua frustração e a sua dor.

Em parte, mas não totalmente.

Nem sequer naquele micromundo silencioso, onde nada parecia mudar, onde o seu inimigo não poderia alcançá-los, onde tudo o que acontecera não parecia ter sido mais do que um sonho mau, podiam deixar de pensar no que tinham perdido.

A Victoria tudo parecia tão irreal que ali mesmo, sentada junto à janela, em camisa de noite, acariciando Dama, contemplava o jardim e esperava inconscientemente que Shail regressasse de um dos seus passeios pelo bosque.

Mas, de vez em quando, um uivo de dor, um grito de raiva ou uns golpes furiosos sacudiam toda a Casa na Fronteira, recordando a Victoria que aquilo era real, muito real, e que Shail não voltaria, porque estava morto.

Jack entrou no quarto, e Victoria voltou-se para ele e olhou-o, interrogativa.

Os dois estavam com muito mau aspecto. Victoria tinha os olhos vermelhos de chorar. Tivera de regressar a casa no dia seguinte à sua desastrosa viagem à Alemanha. A avó olhara para a sua cara e não lhe permitira ir à escola; obrigara-a a meter-se na cama e chamara o médico.

A Victoria não restavam forças para discutir. Estava fraca e sentia-se muito cansada. O médico não soubera dizer o que se passava com ela exactamente, mas aconselhara-lhe repouso, e ela obedecera, sem uma palavra. No entanto, todas as noites voltava a Limbhad para ajudar Jack.

O rapaz estava esgotado, pálido e olheirento porque não dormia há mais de quarenta e oito horas. Tinham fechado Alsan na cave, porque se enfurecia frequentemente e se voltava contra o que estivesse por perto. Ouviam-no a uivar, grunhir, gritar e gemer, e Jack tinha de se conter para não ir ter com ele. Era certo que Alsan estava a sofrer uma terrível agonia enquanto a sua alma humana e o espírito do animal lutavam para tomar posse do seu corpo; mas também era certo que, se abrisse a porta, os mataria aos dois. Assim, por enquanto, Alsan teria de enfrentar a sua batalha completamente só.

- Está pior - murmurou Jack. - Pensei que não demoraria a cair de esgotamento, e então poderia entrar para lhe deixar alguma comida, mas essa coisa que o está a destroçar por dentro não o deixa em paz nem um minuto.

Naquele mesmo instante, ouviram um uivo horrível e um golpe surdo que fez estremecer toda a casa.

- Está a tentar deitar a porta abaixo - disse Victoria. Jack sacudiu a cabeça, fatigado.

- Não te preocupes, reforcei-a bem. Não é a primeira vez que o tenta.

Sentou-se junto dela e enterrou o rosto nas mãos com um suspiro. Victoria olhou-o e teve vontade de o abraçar, de o consolar e de por sua vez sentir-se reconfortada pela sua presença. Quando Jack levantou a cabeça, com ar abatido, Victoria ergueu a mão para afastar da sua testa uma madeixa de cabelo loiro que lhe caía sobre os olhos. Notou que a sua pele estava quente e colocou a mão sobre a sua testa.

- Olha, creio que tens alguma febre. Devias descansar. Jack negou com a cabeça.

- Não tenho febre, sou assim. A minha temperatura corporal é dois graus acima do normal. Sempre foi assim, desde que era pequeno. Talvez seja por isso que nunca fico doente.

- É esquisito - comentou Victoria.

- Sim. Já sabes que há muitas coisas em mim que são esquisitas e para as quais não tenho nenhuma explicação - murmurou Jack, sombrio. - Antes teria dado o que fosse

para compreender quem sou na realidade, mas agora dou-me conta de que, simplesmente, há um preço que não estou disposto a pagar. Perdemos Shail, e Alsan converteu-se em algo... que não posso descrever. E também estive a ponto de te perder a ti e, se isso tivesse acontecido, teria dado em louco - confessou, olhando-a com seriedade.

Victoria baixou a cabeça, sobressaltada, sentindo que o seu coração pulsava com força. Jack sacudiu a cabeça, com um suspiro, e concluiu:

- Teria dado a minha vida para me encontrar a mim mesmo, mas não a dos meus amigos. Infelizmente, compreendi-o demasiado tarde.

- Terias agido de outra forma, se o soubesses? Jack ficou pensativo.

- Não sei - disse por fim. - Pode ser que não tivesse escolha, no fim de contas. Há algo que me impele a lutar, uma e outra vez. É como se... através desta guerra, através da minha espada, através até mesmo de Kirtash... me descobrisse a mim próprio. Tenho a sensação de que mesmo que me mantivesse afastado de tudo isto, acabaria por me encontrar com Kirtash, de uma maneira ou de outra. É como se estivesse... predestinado.

Calou-se, confuso, e franziu o sobrolho. Aqueles pensamentos eram estranhos e não os compreendia totalmente.

- Entendo-te - suspirou Victoria, com um calafrio. - Comigo passa-se algo parecido.

Jack olhou-a fixamente.

- E tu, como estás? Não estás com bom aspecto. Victoria afastou o olhar.

- vou sobreviver - disse, com um optimismo forçado; estava longe de se sentir assim. A perda de Shail fora um golpe do qual, provavelmente, nunca recuperaria completamente.

Outro uivo agonizante de Alsan fez estremecer a casa. Jack ergueu a cabeça, preocupado.

- Jack - disse Victoria. - O que vamos fazer se Alsan não recuperar?

Jack olhou-a quase com ferocidade.

- Vai recuperar - afirmou. - Que nem te passe pela cabeça pensar o contrário.

- Está certo - concedeu Victoria, com suavidade, e hesitou antes de perguntar: - E que podemos fazer para o ajudar?

- Na realidade, não podemos fazer grande coisa - suspirou Jack.

- Parece que o sortilégio a que o submeteram é muito complexo. Alsan disse-me que ouviu Kirtash afirmar que apenas Ashran era capaz de o realizar correctamente.

Victoria perguntou-se então como pensava expulsar o animal do corpo de Alsan, mas não formulou as suas dúvidas em voz alta.

- Embora não o pareça, Victoria - prosseguiu Jack, como se tivesse lido os seus pensamentos -, ele continua a ser Alsan, e sei que lutará até ao fim. Enquanto estiver

connosco, a Resistência continuará a existir.

Victoria abanou a cabeça.

- Jack, perdemos Shail e, por mais que te esforces, não creio que Alsan esteja em condições de...

- Quando estávamos no castelo - interrompeu ele -, disse-lhe que se decidisse unir-se a Ashran para procurar um. remédio para... o que lhe fizeram... disse-lhe que o entenderia, que não lho atiraria à cara. E sabes o que me respondeu? "Nunca." Esse é o espírito da Resistência, o espírito de Alsan, e por isso sei que continua connosco apesar de agora parecer um monstro. No fundo, contínua a ser Alsan.

Victoria baixou a cabeça e escondeu o seu rosto atrás de uma cortina de cabelo, desejando que Jack não visse que estava a arder de vergonha.

Ela, sim, cedera à tentação. Aceitara a mão que Kirtash lhe estendera.

"Oh, Shail", pensou, "era bom que estivesses ao meu lado. Não sei em quem confiar agora."

Jack não acreditara nela quando lhe contara que Kirtash tinha tentado impedir que Elrion os matasse, a ela e a Shail. De qualquer maneira, Victoria não lhe contara a estranha conversa que mantivera com o jovem assassino. Jack continuava a odiar Kirtash e, se descobrisse que Victoria estivera a ponto de partir com ele, sentir-se-ia ferido e atraiçoado.

Porém, Victoria sabia que, se agora ela ainda estava viva e livre, era porque Kirtash quisera que assim fosse. E não só: salvara-a de Elrion.

Mas Shail adiantara-se.

Victoria gemeu interiormente. Era tudo tão confuso...

Shail ficara inconsciente após a sua luta contra o feiticeiro szish, mas logo recuperara os sentidos e se levantara para se interpor entre ela e o raio mágico de Elrion... Há quanto tempo estaria consciente? Teria ouvido a conversa entre ela e Kirtash? Tê-la-ia visto a segurar a mão do assassino?

Estremeceu. "Enganou-me", pensou. "Ele pode controlar toda a gente com os seus poderes telepáticos. Hipnotizou-me..."

Porquê? Para quê?

"Estava a brincar comigo", disse Victoria para si mesma, abatida. "E fui tão tonta que me deixei enganar... porque acreditei ver nos seus olhos..."

O quê? Sinceridade? Interesse? Afecto? Ternura?

Kirtash não tinha sentimentos. Alguém que assassinava como ele o fazia não poderia tê-los.

Sentiu de imediato que Jack punha um braço por cima dos seus ombros.

- Não chores, por favor - disse-lhe, com suavidade, e foi então que Victoria teve consciência de que, de facto, os seus olhos estavam cheios de lágrimas. - Vai correr tudo bem.

- Não - negou ela, levantando-se bruscamente, sentindo-se suja e mesquinha por ter traído a Resistência, porque Shail tinha morrido por sua culpa, porque não tinha coragem para confiar em Jack e também porque não tivera força de vontade suficiente para se opor a Kirtash tal como Alsan, que dissera "nunca". - Nada irá correr bem, Jack, não vês? Digas o que disseres, perdemos. A Resistência morreu.

Assustou-se com o som das próprias palavras. Sem olhar para Jack, saiu do quarto a correr.

Jack encontrou-a no bosque, no seu refúgio secreto. Na realidade não era secreto para ninguém, mas todos sabiam que, quando ela ia para ali, era melhor deixá-la tranquila.

Junto ao ribeiro, crescia um enorme salgueiro-chorão, o mesmo debaixo do qual Victoria curara Shail apenas duas semanas antes, e a rapariga dispusera um monte de mantas entre as suas grandes raízes. Frequentemente, enroscava-se naquela espécie de ninho e dormia ali, sob a luz das estrelas, embalada pelo som do ribeiro. Jack perguntar a-lhe mais de uma vez por que razão fazia isso, mas ela nunca soubera responder. Embora qualquer cama fosse mais cómoda do que o seu estranho "acampamento", a rapariga descobrira que acordava mais desperta se dormisse naquele lugar.

Jack afastou os ramos do salgueiro que caíam como uma cortina entre ele e Victoria, e assomou a cabeça.

- Truz-truz - disse. - Posso?

O vulto enroscado entre as raízes do salgueiro ergueu a cabeça, e Jack pôde ver o rosto da sua amiga à luz das estrelas e dos pirilampos que sobrevoavam o ribeiro. Apesar da palidez e do cansaço, parecia haver nela algo de sobrenatural e mágico, ou talvez isso se devesse ao ambiente que a rodeava.

- Estás à vontade - murmurou Victoria.

Jack escolheu um enorme ramo para se acomodar sobre ele. Inclinou-o, apoiando as costas no tronco da árvore.

- Uma vez, não há muito tempo, trouxe Shail para este mesmo lugar - recordou ela -, para o curar. É estranho para mim pensar que ele já não está, que nunca mais voltarei a vê-lo.

Jack não respondeu. Também ele lamentava profundamente a perda de Shail, mas não encontrava palavras para o expressar. Victoria suspirou e olhou para ele.

- Lamento o que disse antes - disse. Jack negou com a cabeça.

- Não importa. Pode ser que tenhas razão. De qualquer maneira, sempre estivemos em desvantagem nesta luta.

Victoria reparou no tom amargo das suas palavras e encarou-o.

- Enfrentaste Kirtash, não foi? Jack assentiu.

- Lutámos. Tive de sair a correr, mas pelo menos fiz-lhe frente.

- Também lutei contra Kirtash. Mas não tenho mérito. Ele não queria matar-me.

"Tenho de te matar, sabias?", dissera ele. "Mas tu não devias morrer." Victoria sacudiu a cabeça para esquecer aquelas palavras desconcertantes.

- Também não conseguiu levar-te com ele. Deves ter-te defendido como uma leoa.

Victoria encolheu-se sobre si mesma, sentindo-se novamente bastante culpada. Ia confessar a verdade a Jack sobre o que se passara, mas ele continuava a falar:

- Sabes, antes pensava que Kirtash me odiava, tal como o odeio a ele. Mas agora creio... que não pode odiar, simplesmente porque não tem sentimentos.

Victoria estremeceu; também ela pensara nisso momentos antes. Mas aquele brilho nos olhos de gelo de Kirtash... Sacudiu a cabeça. Jack tinha razão. Tinha sido tudo imaginação sua, e isso fê-la sentir-se ainda mais mesquinha.

- Não lutei, Jack - confessou finalmente. - Não tive forças. Kirtash podia ter-me levado consigo se quisesse.

Jack olhou-a com surpresa.

- Não pode ser. Ele precisava de ti para utilizar o Báculo de Ayshel. Não é possível que tenha perdido o interesse assim, de repente. O que o teria feito mudar de opinião?

Victoria não respondeu. Recordou que Kirtash a olhara nos olhos, e reviveu aquela estranha sensação de desprotecção e nudez quando a mente do assassino explorou a sua. Victoria não sabia o que Kirtash vira no seu interior e não desejava sabê-lo. Lembrou-se do que Shail dissera quando Jack utilizara a Alma para espiar Kirtash: que, através da sua mente, ele podia ter alcançado Limbhad. Era isso? Victoria sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. Quantos segredos revelara ao seu inimigo sem querer?

- Estou cansada, Jack - disse ao seu amigo. - Cansada de lutar, de ter medo. Perdi Shail e não quero perder mais ninguém. Sei que parece egoísta, mas... vale realmente a pena continuar com isto? Nunca encontraremos o dragão e o unicórnio. É inútil.

- Talvez - admitiu Jack após um breve silêncio -, mas tenho de o fazer. vou continuar por...

- Pelos teus pais? Jack, Elrion matou os teus pais e matou Shail, e agora está morto. E eles não voltaram à vida. Creio que não vale a pena.

Jack calou-se por um momento. Depois disse:

- Compreendo que queiras desistir e não vou censurar-te. Mas eu tenho de continuar, porque, para onde quer que olhe, não me resta mais nada. Entendes? Kirtash tirou-me tudo. Já não tenho casa, não tenho família, não tenho para onde ir. Limbhad é o meu único refúgio, e Alsan e tu são os dois únicos amigos que me restam.

Victoria olhou-o, com pena.

- Não, Jack, isso não é tudo - disse-lhe. - A minha casa ainda é segura. E é grande. Se falar com a minha avó, se lhe disser que não tens mais ninguém... certamente deixará que fiques. Poderás voltar a viver à luz do dia...

Calou-se de imediato, inquieta, pensando que, dado que Kirtash explorara a sua mente, talvez conhecesse já a localização da mansão de Allegra dAscoli...

Mas Jack não se deu conta da sua perturbação.

- Não, Victoria, não posso fazer isso. Kirtash conhece-me demasiado -bem, está à minha procura. Não quero colocar-vos em perigo. Embora te agradeça... e, agora que me lembro, também tenho de te agradecer por me teres salvado a vida, no outro dia, no deserto.

- Não fui eu, foi o báculo que...

- Obedeceu aos teus desejos, Victoria. Tu querias salvar-me, e o báculo agiu de acordo com a tua vontade. Não tive ocasião de te agradecer.

Victoria levantou a cabeça para responder e viu que Jack estava muito perto dela e que a olhava intensamente. O coração da rapariga acelerou ao sentir o seu amigo tão próximo. "O que está a acontecer-me?", perguntou-se, confusa.

Jack, por sua vez, não podia afastar os olhos dela. Teve um impulso súbito de a abraçar, de a proteger, de lhe dizer que não permitiria que nada de mau lhe acontecesse, mas, inexplicavelmente, ficou paralisado.

Victoria engoliu em seco. Sentia que aquele era um momento muito importante para ambos e não sabia o que devia dizer nem como devia agir.

- Victoria, eu... - começou Jack.

Um estrondo súbito proveniente da casa abafou as suas palavras. Ouviu-se um uivo de raiva, e Jack levantou-se de um salto.

- E Alsan - disse, compreendendo de imediato o que estava a acontecer. - Está a ter outra das suas crises.

Os dois correram para casa e desceram apressadamente as escadas que conduziam à cave. Pararam diante da porta da divisão onde tinham fechado Alsan. Os golpes soaram mais fortes, e os dois jovens viram que, a cada golpe, a porta parecia prestes a rebentar.

- Está a tentar deitar a porta abaixo! - gritou Jack, lançando-se para a frente para a segurar. - Ajuda-me!

Victoria ficara parada junto da escadaria, mas reagiu e correu para junto de Jack. Os dois empurraram a porta com todas as suas forças, mas Alsan continuava a golpeá-la e, com cada choque, as paredes estremeciam.

- Jack, não vamos aguentar muito mais tempo - sussurrou Victoria.

De imediato, os golpes cessaram.

- Victoria? - soou uma voz rouca, que lembrava vagamente a de Alsan. - És tu?

- Alsan? - gritou Jack. - Estás bem?

Todavia, não deixou de segurar a porta e fez um sinal à sua amiga para que fizesse o mesmo.

- Victoria - sussurrou a voz de Alsan atrás da porta, ignorando Jack. - Victoria, tens de me tirar daqui. Sabes que tenho de me ir embora.

- Não, Alsan, não deves sair daqui - interveio Jack. - Para onde vais? O que vais fazer fora de Limbhad?

- Victoria - insistiu Alsan -, tens de me deixar ir. Se não o fizeres, mais cedo ou mais tarde irei matar-vos. A ti... - Fez uma pausa, e acrescentou: - e a Jack.

Victoria fechou os olhos e estremeceu.

- Não, Alsan, não o vamos permitir! - exclamou Jack, com firmeza.

- Sabes que é verdade, Victoria - prosseguiu a voz de Alsan, com um grunhido. - Não posso deter o animal, e vocês também não o podem fazer. Devem deixar-me ir.

Jack não aguentou mais.

- Não vou abandonar-te! - gritou para a porta fechada. - Estás a ouvir? Nem penses!

Alsan não disse mais nada. Também não voltou a tentar derrubar a porta. Fez-se um silêncio tenso.

- Vai dormir - disse então Jack. - Eu fico aqui, com ele.

Victoria olhou-o por um momento, com uma intensidade que o fez sentir-se incomodado.

- Não quero que te faça mal.

- Não vai fazer. É meu amigo, não entendes?

Victoria não disse nada. Afastou-se pela escadaria acima.

Jack sentou-se no chão, junto à porta, e apoiou as costas contra a parede. Fechou os olhos... e, sem se dar conta, o cansaço venceu-o e adormeceu.

Acreditou ter visto nos seus sonhos o vulto de Victoria, que se

aproximava em silêncio e se inclinava sobre ele. Quando, momentos mais tarde, acordou sobressaltado, olhou à volta com desconfiança.

Mas a porta continuava solidamente fechada. Voltou a recostar-se contra a parede, pensando que fora um sonho, mas então viu que alguém o cobrira com uma manta, para que não apanhasse frio, e uma sensação cálida percorreu-o por dentro. Sorriu, censurando-se a si mesmo por ter duvidado da sua amiga, e pôs-se de pé. Como tudo continuava em silêncio - Alsan devia estar a dormir -, Jack decidiu subir para se deitar.

Ao passar em frente do quarto de Victoria, viu que a porta estava entreaberta e não pôde evitar espreitar.

Viu a rapariga deitada sobre a cama, adormecida, com os cabelos escuros espalhados sobre a almofada, o seu rosto pálido iluminado pela luz das estrelas que entrava pela janela, os seus dedos a envolver com força o amuleto que Shail lhe dera antes de morrer, na noite do seu aniversário. Jack abanou a cabeça com tristeza e continuou a avançar em direcção ao seu quarto.

Quando ele se afastou da porta, Victoria abriu os olhos. com o coração a bater com força, aguardou um pouco até ouvir a porta do quarto de Jack fechar-se. Então, levantou-se, em silêncio, pegou no seu báculo e deslizou pelos corredores de Limbhad em direcção à cave.

Jack acordou, sobressaltado, quando um uivo de triunfo soou por toda a casa. Levantou-se de um salto e correu para a cave, e deparou com a porta feita em pedaços e a divisão vazia. O sangue gelou-se-lhe nas veias por um breve instante. Lembrou-se de Victoria adormecida e visualizou, por um momento, a versão animal de Alsan a saltar sobre ela para a devorar.

- Victoria! - gritou, e correu de novo pela escadaria acima, para salvar a sua amiga.

Mas não a encontrou no seu quarto. Desconcertado, perguntou-se se teria saído para o bosque para dormir debaixo do salgueiro, como costumava fazer, quando sentiu um estremecimento, uma espécie de ondulação no ar, e soube o que acabara de acontecer: alguém abandonara Limbhad.

E imaginou em seguida o que se estava a passar.

Correu para a biblioteca, mas, muito antes de chegar, muito antes de abrir a porta, já sabia o que ia encontrar.

Victoria, sozinha, de pé, junto à esfera onde a Alma se manifestava.

E Jack compreendeu que Alsan partira para sofrer sozinho a sua dor e a sua desgraça, e talvez não voltasse a vê-lo nunca mais.

Victoria ficou à porta do quarto, silenciosa, observando como Jack abria e fechava gavetas e armários, pegando na roupa e guardando-a no saco que deixara aberto sobre a cama.

- Não creio que seja uma boa ideia - disse por fim.

Jack voltou-se para a olhar, irritado, e não pôde deixar de falar com dureza:

- Não vou ficar de braços cruzados. Se essa bola mágica não é capaz de encontrar Alsan...

- Mas ele foi-se embora voluntariamente, não entendes? Pediu-nos que o deixássemos ir. E se a Alma não o localiza é porque está muito mudado e já não é o mesmo...

- Para mim é igual - cortou Jack. - Eu mesmo vou procurá-lo.

- Mas Jack, pode estar em qualquer lugar e o mundo é muito grande...

- Não posso ficar aqui e simplesmente esperar.

- Porque não?

Jack voltou-se para a encarar, e sentiu-se incomodado. Algo no olhar da sua amiga lhe suplicava que não fosse, que ficasse ao seu lado. E Jack sentiu um pânico horrível perante a simples ideia de se sentir preso a alguém, àquele lugar triste e vazio, cheio de recordações dos ausentes.

Tinha de fugir, tinha de sair dali fosse como fosse e encontrar Alsan. E Victoria não ia conseguir impedi-lo. - Alsan é meu amigo - disse com frieza -, ensinou-me muitas coisas, salvou-me a vida e devo-lhe muito. Agora, esteja onde estiver, precisa de mim.

- Jack, ele foi-se embora voluntariamente. Quer estar sozinho, quer afastar-se de nós para não nos colocar em perigo... - Mas pensa no que farão com ele no nosso mundo! Já não é totalmente humano, Victoria. Vão matá-lo. Não devias ter deixado que se fosse embora. Não tens ideia do que fizeste. Victoria não disse nada.

Jack guardou Domivat no saco de viagem; a arma tinha uma

bainha feita de um material especial que resistia ao calor libertado pelo seu fio, por isso o rapaz podia ter a certeza de que a sua roupa não se queimaria, apesar de estar em contacto com a Espada Ardente. Fechou o saco e pô-lo ao ombro. Voltou a olhar para a sua amiga e algo se suavizou no seu interior. Não, não a podia deixar assim. Eram demasiadas as coisas que os uniam, os momentos importantes que tinham vivido juntos. Contudo...

- Tens de me compreender - insistiu. - Ele é como um irmão

para mim. Não posso deixá-lo partir assim, sem mais nem menos.

Não posso virar-lhe as costas.

- E a mim, podes virar-me as costas?

Jack respirou fundo.

- Victoria, não me obrigues a escolher. Ele está com problemas, precisa de mim. E tu não. - Olhou-a fixamente. - Ou... precisas?

Victoria hesitou. Que iria dizer-lhe? Que precisava desesperadamente dele? Soube de imediato que, apesar do que sentia, não ia confessá-lo, pelo menos, não naquele momento. A vergonha e o orgulho impediam-na de o olhar nos olhos e dizer a Jack o quanto era importante para ela. Por outro lado, sentia que, ainda que conseguisse convencê-lo a não partir, o rapaz iria arrepender-se mil vezes por ter abandonado Alsan à sua sorte.

Não, Victoria não podia pedir-lhe que ficasse com ela, não podia condená-lo à solidão de Limbhad, ainda para mais tendo em conta que fora ela quem deixara Alsan partir.

Assim, ergueu os olhos e disse:

- Não, tens razão. Não preciso de ti.

Victoria acreditou ter visto nos olhos de Jack uma sombra de dor e decepção; mas a sua voz soou fria e indiferente quando disse:

- Bem. Então não há mais nada a dizer.

Ela sentiu-se imediatamente muito triste. De pé, com a bagagem às costas e aquela expressão decidida no rosto, Jack parecia mais velho do que era. Mas estava disposto a partir, e Victoria soube que perdera a oportunidade de o reter ao seu lado.

O rapaz avançou para a porta e Victoria afastou-se para o deixar passar. Os seus corpos roçaram um no outro e os seus olhares encontraram-se por um breve instante. Os dois hesitaram. O tempo pareceu parar.

"Não devia ir", pensou ele.

"vou suplicar-lhe que fique", disse ela para si mesma.

Mas Jack cruzou a porta e afastou-se de Victoria, e continuou a andar pelo corredor, e ela não o chamou.

Chegou à biblioteca e então apercebeu-se de que precisava da ajuda de Victoria para partir de Limbhad. Voltou-se para a entrada e viu-a ali, silenciosa. Trazia o báculo nas mãos.

- Vai - disse ela. - Decide o teu destino e aproxima-te da esfera. A Alma e eu faremos o resto.

Jack viu então que aparecera misteriosamente sobre a mesa a esfera de cores irisadas que mostrava a Alma de Limbhad. Titubeou. Nunca empreendera aquela viagem sozinho, e também não decidira ainda onde começar a procurar Alsan. Como dissera Victoria, o mundo é grande.

Jack avançou um passo, hesitou e voltou-se para ela.

- Voltarei com Alsan - prometeu. - E a Resistência...

- A Resistência já não existe, Jack - cortou ela. - Habitua-te à ideia.

- Nunca - replicou Jack, carrancudo. - Juro-te que matarei esse Kirtash, nem que seja a última coisa que faça.

- É curioso que te importes mais com os teus inimigos do que com os teus amigos - observou Victoria, com frieza.

- O que queres dizer? - disparou Jack. - Não sou eu quem se esconde aqui, enquanto Alsan vagueia por aí, perdido e sozinho! Não sou eu quem o deixou partir, apesar do estado em que se encontrava! Pelo menos não passo os dias a lamentar-me!

Victoria semicerrou os olhos, e Jack apercebeu-se de que a magoara. Mas estava furioso com a amiga por não o acompanhar, por não o apoiar, por ter deixado Alsan partir e, sobretudo... por não precisar dele como ele precisava dela.

Assim, naquele momento não lamentou ter dito aquilo.

- Vai-te embora - disse Victoria, contendo a ira. - Vai e não voltes a aparecer aqui.

- Não te preocupes - replicou Jack, chateado.

De imediato, ambos se arrependeram das suas palavras, mas nenhum dos dois deu o primeiro passo para a reconciliação. Jack avançou para a mesa e, sem qualquer hesitação, estendeu a mão para a esfera. O brilho tornou-se mais intenso e a luz envolveu Jack, que, atordoado, ainda teve tempo de pensar: "Londres." Antes de deixar para trás Limbhad... e Victoria.

Ela viu-o desaparecer e ficou quieta por um momento. Depois deu meia-volta para voltar ao seu quarto na Casa na Fronteira.

O som de uma campainha soou pelos corredores e salas de aula do colégio.

Na sala de Victoria, a professora indicou os exercícios que deveriam fazer para o dia seguinte antes de as alunas começarem a recolher as suas coisas. Victoria tomou nota e guardou a agenda na mochila.

Ia sair quando a professora a chamou. A rapariga voltou-se para ela, interrogativa, e aproximou-se da sua mesa.

- Estás bem? - perguntou a professora. - Acho-te muito pálida.

- Estive doente - respondeu ela, suavemente.

- Eu sei. Ainda não recuperaste?

Victoria desviou o olhar, mas não disse nada.

- Passa-se mais alguma coisa? - insistiu a professora. - Achei-te muito triste desde que voltaste. É como se estivesses... ausente.

- Estou bem. É que... - hesitou antes de acrescentar - recentemente perdi um amigo muito querido. Um acidente, sabe? Estava no lugar errado à hora errada, como se costuma dizer.

"Como alguns heróis", pensou, recordando o que Shail lhe contara a esse respeito. Tinham passado apenas uns dias desde aquela conversa, mas parecia uma eternidade.

- Oh, Victoria, sinto muito. A tua avó não me disse nada.

- Ela não o conhecia. Em todo o caso... é normal estar triste, não? Mas não vai durar para sempre. Vai passar com o tempo. Não se preocupe.

A professora observou-a com aprovação. Havia dor nos olhos de Victoria, mas mais maturidade e sabedoria.

- Bem - disse finalmente. - Se precisares de ajuda, já sabes onde estou.

Victoria assentiu.

Abandonou a sala e depois o enorme e frio edifício. Já tinha anoitecido; uma brisa fria sacudia os ramos das árvores, que criavam sombras fantasmagóricas sobre os mosaicos do pátio.

Ninguém estava à sua espera no exterior. Victoria era uma rapariga estranha e retraída e não tinha amigas no colégio. Nunca se preocupara com isso, mas naquele momento ansiou ter uma vida como a de qualquer uma das suas colegas de turma. Desejou ardentemente ser uma rapariga normal, não ter ouvido falar de Idhún nem ter conhecido a Resistência...

Perguntou-se se não seria demasiado tarde para recuperar a sua vida...

E esquecer...

Sacudiu a cabeça. A quem queria enganar? Ela não era uma rapariga normal e nunca o seria. Conhecera o medo, a dor, o ódio e o poder. Possuía o dom da cura e era a chave para encontrar Lunnaris, porque apenas ela podia manejar o Báculo de Ayshel. Fosse qual fosse a sua relação com Idhún... era evidente que não desapareceria apenas por sua vontade.

Lunnaris...

Victoria recordou a enorme paixão com que Shail falava daquele pequeno unicórnio. Nunca mais voltaria a vê-la.

"Falhei-te, Shail", pensou. "Não sei o que fazer para encontrar Lunnaris, não sei como utilizar o báculo para que me leve até ela. Mas juro-te que a encontrarei, por ti."

Era uma ideia que andava há dias a rondar-lhe os pensamentos. Concretizar o sonho de Shail. Encontrar Lunnaris por ele. E falar-lhe do jovem feiticeiro que a salvara

uma vez e que consagrara a sua vida e a sua magia a procurá-la num mundo que não era o seu.

"Encontrarei Lunnaris", prometeu. "Ainda que tenha de o fazer sozinha."

A lembrança da sua discussão com Jack regressou de novo à

sua mente, e a dor voltou a consumir-lhe o coração. Sentia falta dele, às vezes até mais do que de Shail, e em ocasiões como aquela procurava recordar, acima de tudo, as palavras duras dele, para reavivar a zanga e procurar desse modo acalmar a dor da separação. Fechou os olhos, mas a lembrança de Jack continuava viva dentro de si, e perguntou-se se conseguiria esquecê-lo e seguir em frente. Perguntou-se se lhe deveria ter dito que precisava dele, que a sua vida seria cinzenta se ele não estivesse nela a pintá-la com o seu sorriso, que naqueles meses se acostumara tanto a tê-lo por perto que agora se sentia vazia e horrivelmente sozinha.

E perguntou-se também, se teria mudado alguma coisa se tivesse confessado tudo aquilo.

"Provavelmente não", pensou. "Ao fim e ao cabo", disse a si mesma com rancor, "Jack desejava ir embora." De facto, tivera tanta pressa em partir que nem parara para pensar que, sem Shail nem Victoria, ele não seria capaz de regressar a Limbhad. Naquele preciso momento, podia estar na outra ponta do planeta. Talvez não voltassem a encontrar-se nunca mais.

"Voltaremos a ver-nos, Victoria...", ecoou então uma lembrança na sua mente. Estremeceu. Por alguma razão, lembrou-se de Kirtash.

Se ia continuar a procurar Lunnaris sozinha, voltaria a encontrar-se com ele, mais cedo ou mais tarde. E agora não teria Shail, Alsan ou Jack para a proteger.

Algo se rebelou dentro de si perante a ideia de ter de depender sempre dos outros. Fora agradável que Alsan e Shail gostassem dela, mas Jack atirara-lhe muitas coisas à cara, e ela queria... precisava de lhe mostrar que estava enganado.

"Não voltes a cruzar o meu caminho, criatura, porque da próxima vez não terei outro remédio que não matar-te", dissera Kirtash.

"Não", corrigiu Victoria. "Se Jack não te matar antes, matar-te -ei eu. Não voltarás a fazer-me sentir assim, tão indefesa, tão à tua mercê. Voltaremos a encontrar-nos e, quando o fizermos... serei eu a brincar contigo antes de te matar."

Perdida nos seus pensamentos sombrios, Victoria atravessou a porta do colégio.

Não se deu conta de que, no alto do muro, havia uma sombra escura encoberta sob os ramos das árvores.

E aquele vulto observava-a com um brilho de interesse calculista nos seus frios olhos azuis.

                                                                     

 

 

                                                                                    Laura Gallego García  

 

 

Leia os outros volumes da série “Memórias de Idhún”

 

 

A REVELAÇÃO

O DESPERTAR

O DESTINO

A HECATOMBE

A GÊNESIS

 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"