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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CABEÇA E O REI / Susan Price
A CABEÇA E O REI / Susan Price

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                       O CAMPO DE BATALHA

No céu, extinguia-se, solene, o último raio de sol. Na terra, frei Dominic mal conseguia enxergar por onde andava. Pisava sobre mãos abertas, tropeçava em pernas.

Escondia a lanterna sob uma dobra do manto, temendo que a luz pudesse ser vista por outros que vagavam pelo campo. Os corvos haviam partido com a luz do dia, saciados de carniça — mas, com a escuridão, apareciam os lobos famintos, atraídos pelo cheiro de carne, olhos vermelhos refletidos contra uma luz qualquer. Havia por ali lobos humanos também: saqueadores que vasculhavam os corpos, tirando-lhes peças de roupa e armadura, cortando-lhes dedos para roubar anéis. Se encontravam alguém vivo, matavam-no.

Vez ou outra, frei Dominic pegava a lanterna e iluminavas os pés. Quase sempre visões de horror materializavam-se sob a luz: cabeças decepadas, corpos mutilados.

— Senhor da Paz — frei Dominic punha-se a rezar —, dai-me coragem para cumprir meu trabalho.

Ele não gostava de estar ali, no escuro, entre os mortos. Mas, ao ouvir os gritos dos feridos — gritos de dor e de terror —, ele perguntava a si mesmo: "Se eu não os ajudar, quem o fará em meu lugar?"

Ele havia reunido um grupo de monges e conduzido-os até o campo de batalha. Por um tempo que lhes parecia uma eternidade, eles tentavam localizar, sob a luz minguante do entardecer, de onde vinham os gritos. A certa altura, tropeçando e procurando apoiar-se com uma das mãos, frei Dominic tocou um cadáver frio e escorregadio, coberto de sangue espesso. Ao encontrar pilhas de corpos humanos, os monges depositavam as lanternas no chão e punham-se a arrastar cadáveres para descobrir os homens que ainda gemiam debaixo deles. Sujos de lama, suor, sangue e restos humanos, os monges prosseguiam diligentemente em seu trabalho. Agora, frei Dominic encontrava-se sozinho, dois a dois, os monges haviam voltado ao acampamento, levando os feridos.

Sentiu-se profundamente só. Ao longe, a luz pálida de uma lanterna ainda titubeava sob a escuridão, mas, do seu lado do campo, parecia não haver mais ninguém. Uma brisa fresca soprava-lhe contra o rosto, e ele tinha a sensação de que ela estava repleta de fantasmas.

— Deus, olhe por mim — disse, fazendo o sinal da cruz e pondo-se repentinamente a chorar.

Seu rosto estava coberto de lágrimas. Havia horas que chorava copiosamente. Era-lhe difícil ver tanta morte e tanta dor em um único lugar. Tantos corpos empilhados, a maioria de meninos e jovens que mal haviam tido tempo de viver antes de virarem comida para corvos e lobos. Ele chorava tão livremente que temia jamais ser capaz de se controlar. Para todos os lados que olhava, carne viva e ossos expostos: mais cadáveres.

De repente, uma voz:

— Socorro! Aqui!

Não era um grito, mas uma voz robusta. Aliviado, frei Dominic virou-se em direção a ela. Trazer mais uma alma para o reino dos vivos seria uma enorme felicidade. Bateu a canela contra um escudo abandonado, caiu no chão, e começou a arrastar-se sobre uma pilha de corpos mudos quando ouviu:

— Aqui!

O monge pegou a lanterna e iluminou o chão. Ali, viu um rosto pálido e um par de olhos azuis olhando para cima e piscando contra a luz repentina. Tufos de cabelos ruivos, sujos de terra e sangue, emolduravam o rosto. Uma barba espessa cobria o queixo.

Então, a lanterna oscilante de frei Dominic espalhou sua luz noutra direção. O monge esperava ver o reflexo de uma cota de malha ou o brilho fosco de uma veste de couro costurada com anéis de ferro. Mas não havia nada além da cabeça.

Um corpo jazia logo ao lado, sob uma cota de malha de anéis de ouro. O braço ainda segurava um escudo, mas a cabeça havia sido decepada. O monge achou então que tinha se enganado, os olhos azuis estavam mortos e apenas pareciam piscar sob a luz da lanterna. Cobrindo a lanterna novamente com sua capa, preparou-se para continuar.

— Ajuda-me!

A voz vinha de seus pés. Apontando a lanterna para baixo, frei Dominic viu mais uma vez a cabeça decepada. Os olhos piscavam e os lábios mexiam.

— Ajuda-me, eu te suplico!

O monge sentiu como se alguém tivesse derramado um balde de água fria sobre sua cabeça. O coração saltava-lhe no peito. A respiração parava-lhe na garganta. Os cabelos pareciam fixos em gelo.

— Ó Pai, Filho e Espírito Santo, protegei-me!

E a cabeça falou novamente:

— Pára de rezar! Não desejo o teu mal e nem posso fazer-te mal algum! Mas preciso de tua ajuda.

Frei Dominic lembrou-se que seu Deus estava sempre por perto e tomou coragem. Inclinando a cabeça, como se estivesse sonhando, perguntou:

-— O que queres de mim?

— Dá-me notícias. Meu rei está vivo?

Mais de um rei tinha lutado naquele dia.

— Diz o nome de teu rei e responderei se souber.

— Rei Penda Wartooth — disse a cabeça.

Frei Dominic agachou-se e disse:

— Segundo ouvi dizer, ele está vivo, mas seriamente ferido. Além disso, está preso. Rei Edgar venceu a batalha.

— Pois então, eu suplico! — continuou a cabeça. — Leva-me até meu rei, leva-me até Penda!

— Isso será difícil — o monge balançava os dedos diante dos olhos fixos da cabeça. — Podes ver?

— Vejo-te suficientemente bem, tuas vestes cristãs, teu crucifixo pendurado no pescoço. Reconheço-te como um homem de Cristo, um homem do rei Edgar!

Frei Dominic meneou a cabeça afirmativamente.

— Tens consciência do que te aconteceu? Sabes que...

— Que eu fui mutilado? Que deceparam-me a cabeça? Eu sei; sei muito bem!

— Mas olhas para mim com olhos que enxergam. E tu falas! Como isso pode ser possível?

— Tenho uma promessa a cumprir — disse a cabeça. — Até que eu a cumpra, não haverá descanso para mim, esteja-me a cabeça sobre o pescoço ou não!

— Só pode haver mágica nisso — disse frei Dominic. — E não é mágica cristã!

— Os cristãos não pregam a ressurreição dos mortos? — perguntou a cabeça.

— Não um pedaço de cada vez. Como posso levar-te até meu acampamento? Como saber os perigos e infortúnios que isso acarretará?

— Não me conheces, portanto não há como confiares em mim. Mas acho que terás ouvido falar de mim quando souberes meu nome. Sou Egil Grimmssen.

— O quê? O poeta? O contador de histórias do rei Penda? Esse Egil Grimmssen?

— Eu sou, ou melhor, fui esse Egil Grimmssen — respondeu a cabeça. — E se já ouviste falar de mim, saberás que, embora não seja cristão e ignore o latim, sou homem de instrução.

— Essa é tua reputação — disse o monge. — Ou era.

— Saberás que sou, e sempre fui, homem de palavra. Juro-te perante todos os meus deuses, pela cabeça de meu pai e pelo coração de minha mãe, que, se tu me carregares até meu rei, não farei mal algum nem a teu rei nem a ninguém de sua gente. Isso posso jurar-te.

— Não creio poder levar-te a teu rei, mas, já que és Egil Grimmssen e me dás tua palavra, levo-te a meu rei. Aliás, sendo tu um milagre, acho que é minha obrigação levar-te a meu rei.

— Isso bastará — disse a cabeça. — Essa língua que ainda me resta sempre soube conquistar o favor dos reis. Leva-me a teu rei e deixa-me expor-lhe minha causa.

Frei Dominic pôs-se de pé e olhou em volta de si. Nenhum resto de luz sobre o horizonte. Nenhum som, nenhum gemido, nenhum grito. Parecia não haver ninguém mais a ser salvo.

— Muito bem — ele disse. — Vou carregar-te até meu rei. — E, abaixando-se, tomou a cabeça gentilmente entre as mãos, depositou-a debaixo de um dos braços e cobriu-a com a capa. Ele já estava suficientemente sujo para preocupar-se com um pouco mais de sangue sobre suas vestes.

Iluminando o chão com a lanterna e observando onde pisava, voltou ao acampamento do rei Edgar.

 

 

 

 

                           A CABEÇA FALA DE SEU PASSADO

Colocada sobre uma mesa, a cabeça equilibrava-se sobre um emaranhado de seus próprios cabelos, avermelhados e dourados sob a luz das velas. Os olhos azuis e arregalados tinham uma aparência vítrea e, quando piscavam, transformavam os cílios em finas lâminas douradas.

Ao vê-los piscando, rei Edgar procurou conter seu assombro e abaixou-se para examinar a cabeça de perto.

— Não é possível — ele disse.

Frei Dominic permaneceu calado, as mãos cruzadas sob as mangas do hábito.

— Tu dizes que ela fala? — perguntou o rei.

— Eu falo — disse a cabeça.

O rei deu um salto para trás.

— Sou Egil Grimmssen, súdito juramentado do rei Penda Wartooth. Venceste a batalha, nobre rei. Conto, pois, com a generosidade dos vencedores e peço-te um pequeno favor. Não se trata de ouro, cavalos ou navios... Falta alguma fariam a tão poderoso rei, mas, a mim, serventia alguma teriam. Não! Gostaria de testar teu valor de outra maneira.

Edgar suspirou e disse:

— O que queres?

— Apenas que me leves até meu rei, Penda.

Edgar aproximou-se da mesa e sentou-se num pequeno banco.

— Por que deveria entregar-te ao inimigo?

— Por que não? Que valor tenho para ti? Não passo de um pedaço de carniça, a ser jogado num fosso de estrume ou enterrado num buraco. Não perderás nada ao me entregar, e Penda nada ganhará.

— Penda ganhará o privilégio de receber o conselho dos mortos — disse Edgar. — Como posso saber o que dirás, as revelações que farás a ele?

— Nada contarei a Penda, a não ser uma história — disse a cabeça. — Ontem à noite, antes da batalha... (Minha nossa, parece que isso foi há cem anos!)... o rei pediu-me que lhe contasse uma história para passar o tempo. Sinto remorso ao lembrar-me do que fiz, mas faltava-me entusiasmo para contar histórias ou cantar. Respondi ao rei com palavras rudes. Um pressentimento abatia-me o espírito e pesava-me sobre as costas; uma nuvem escura pairava-me sobre a cabeça.

Nunca havia desejado lutar com tanto ardor!

— Previste teu próprio destino — emendou o rei Edgar.

— Oh não, senhor! Achei que era a morte de Penda que me subia pelas costas com seus pezinhos frios. Achei que a derrota pairava no ar. "Não me aborreças com pedidos de história agora", eu disse. "Quero dormir." "Essa não era a resposta que eu esperava", disse Penda. "Amanhã, depois da batalha, conto quantas histórias quiseres", retruquei. "Eu juro; tens minha palavra." Dito isso, cobri-me com uma manta e fingi que dormia. Mas, na verdade, não dormi por um instante sequer! Como tampouco posso dormir agora. Preciso cumprir minha promessa. Leva-me até Penda.

— Responde-me uma coisa — disse o rei Edgar. — Por que tanta devoção a esse teu rei?

— Sou, ou melhor, fui súdito juramentado do rei Penda — explicou a cabeça.

—Tenho muitos súditos juramentados. Mas acho que todos supõem que a morte dá cabo dos compromissos que eles têm para comigo. Acho que nenhum deles abriria os olhos ou diria qualquer coisa depois que uma espada lhes separasse a cabeça do pescoço, apenas para cumprir uma promessa feita a mim. E que promessa mais idiota! Uma história!

— Caro rei Edgar, se um construtor de navios quisesse dar-te um presente, faria para ti um maravilhoso navio. Um ourives faria um broche de ouro. Um armeiro faria uma espada. Ora, meu dom é aprender e contar histórias, portanto, meu desejo é contar a meu rei a história que me pediu. Certa vez, Penda deu-me um valiosíssimo presente; em troca, devo-lhe a mais profunda lealdade.

— A meus homens dei muitos presentes — disse Edgar. — Um rei deve ser generoso se quiser manter a lealdade de seus súditos. Dou anéis de ouro, escudos, cavalos...

— Presentes insignificantes — retrucou a cabeça. — Não chegam nem aos pés do que Penda me deu.

— É mesmo? E o que foi que Penda te deu?

— Ora — respondeu a cabeça—, ele me deu amor-perfeito.

Rei Edgar olhou para frei Dominic, sem compreender.

— Trata-se de uma pequena erva — explicou o monge — que dá uma linda flor e que é usada no tratamento de pessoas com o coração fraco. Esse é o nome da erva: amor perfeito.

— Queres ouvir a história? — perguntou a cabeça. — A história de como o rei Penda deu-me amor-perfeito?

Rei Edgar pôs-se de pé novamente, cauteloso.

— Queres lançar um feitiço contra mim?

— Mais um desafio que um feitiço — disse a cabeça. — Se gostares da história, permitirás que me levem até meu rei para que eu possa cumprir minha promessa.

— Estamos todos sob a proteção de Deus — disse frei Dominic, que estava curioso e queria ouvir a história. — Somente a misericórdia do Senhor explica este milagre. Acho que não há risco em ouvirmos.

O rei não queria parecer menos corajoso que um monge. Sentou-se novamente no banco e disse:

— Conta tua história.

— E para o contador, qual será a recompensa? Poderei encontrar com meu rei?

— Não prometo nada — disse Edgar. — Um rei deve ser mais cuidadoso com suas promessas que um contador de histórias. Deixa-me ouvir tua história e depois veremos.

— Pois então abre os ouvidos — disse a cabeça.

"Talvez tenhas ouvido dizer, senhor, que sou estrangeiro. Nasci nas ilhas Orkney, onde meus pais cultivavam a terra, pescavam e tinham uma vida razoavelmente tranqüila. Para encurtar a história, devo dizer que meu pai morreu quando eu era muito menino e dele não tenho lembrança alguma. Minha mãe morreu quando eu tinha onze anos. Sobre eles não direi mais nada, muito embora pudesse tudo dizer.

Meu irmão mais velho e eu assumimos a fazenda e o trabalho desde então. Amávamos um ao outro tanto quanto dois irmãos podem se amar, até que meti na cabeça a idéia de tornar-me poeta e contador de histórias.

Bem, ele caçoava de mim. Nas ilhas Orkney, todos os jovens pensam, mais cedo ou mais tarde, em se tornar poetas e contadores de histórias. Eles costumam andar quilômetros sob a luz do luar para se encontrar em campos úmidos e desprotegidos do vento, apenas para trocar versos e pensamentos bonitos. Gostam de declamar épicos para ninguém ouvir e imaginar que conquistarão as garotas com suas palavras bonitas, ou que serão homenageados nos festivais de outono. Todavia, meu irmão — seu nome é Eirik — não achava que eu tinha vocação para poeta.

— Somos touros, criados para puxar arado — ele dizia — e não cavalos de circo, treinados para divertir os outros. Temos água do mar em nossas veias e cascalho de Orkney em nossas cabeças, mas nada de poesia.

Quando mostrei que ele estava errado, ele não gostou.

Primeiro, tornei-me conhecido entre os jovens do arquipélago. Costumávamos nos encontrar em cavernas, celeiros ou qualquer outro lugar onde pudéssemos ficar longe dos mais velhos. Escolhíamos um assunto qualquer e depois disputávamos para ver quem era capaz de fazer o melhor poema sobre ele. Os meninos costumavam gostar dos meus — o que não era pouco. Cada um tendia a valorizar seus próprios esforços e a menosprezar os dos outros. Devo dizer: desde que saí de Orkney, minha vida tem sido boa. É mais fácil agradar a reis que àqueles garotos de Orkney!

Minha reputação começou a se espalhar, e quando eu era convidado para um casamento ou para uma festa de outono, as pessoas gostavam de me desafiar. Em pouco tempo, passei a ser convidado para todo tipo de reunião. Nos casamentos, costumava dizer:

 

'Para ver seus olhos ardentes,

Levantai o véu de linho —

Jogai o martelo

Sobre o colo dela!'

 

Trata-se do martelo de Thor, meus caros cristãos. O martelo de Thor é colocado sobre o colo das noivas nas cerimônias de casamento. E quanto ao véu e aos olhos ardentes, trata-se de uma alusão à história sobre o dia em que Thor se vestiu de noiva. Bem, deixa estar. Divertia-me muito durante os casamentos em Orkney, mas de um jeito incompreensível para vós.

Também freqüentava funerais:

 

'Na casa escura,

A mesa está posta com pão e cerveja.

A porta está aberta.

Entrai sem olhar para trás.'

 

Antes, eu participava dessas ocasiões apenas pelo prazer de recitar meus poemas, beber alguma coisa e ver as garotas bonitas. Isso me bastava. Mas logo os convites começaram a se acumular e eu não tinha como atender a todos. Às vezes, o trabalho na fazenda impedia que eu comparecesse, ou o local da reunião era longe demais. Aí, então, as pessoas começaram a dizer:

— Venha e nós lhe daremos uma peça de bacon, ou um bocado de peixe seco, ou sacas de farinha suficientes para abastecer tua dispensa.

Ah, senhor, é uma grande honra saber que as pessoas estão dispostas a dar peixe e grãos em troca de poesia! Reis distribuem ouro que não tiraram da terra com as próprias mãos — ouro que não lhes tem valor algum. Mas os amigos de Orkney foram ao mar, pescaram e colocaram os peixes para secar. Os grãos foram semeados em suas próprias terras e cada saca doada é uma saca a menos para alimentar-lhes no inverno. Eles verdadeiramente desejavam ouvir minhas palavras.

Até mesmo meu irmão passou a dar valor a meus poemas depois que as pessoas começaram a pagar por eles. Passou a concordar que eu comparecesse às festas, mesmo que para isso eu tivesse que navegar até outra ilha e ausentar-me durante semanas.

E quando o senhor do Arquipélago — sim, ele mesmo! — convidou-me para participar da festa de Ano Novo em seus salões e depois pediu que eu permanecesse por mais uma semana, tive a certeza de que ficara famoso! Contava-lhe histórias todas as noites — ao senhor e a seus convidados — e compunha novos poemas todos os dias. Recebi como pagamento dois grandes braceletes e uma corrente de ouro. Depois disso, não havia festa ou cerimônia para a qual eu não era convidado. As pessoas pagavam para que eu recitasse meus velhos poemas e pagavam ainda mais para que eu compusesse um poema especialmente para a ocasião. Viajava para todos os lugares e refestelava-me com as melhores comidas. Voltava para casa sobre o cavalo que alguém havia me dado e sempre encontrava Eirik na companhia de nossos escravos e serventes.

Eles se ajuntavam em torno de mim para que eu lhes contasse sobre os lugares que eu havia visitado, os salões enormes que eu havia freqüentado, as comidas e as bebidas que me haviam sido oferecidas, as roupas, as granadas e os âmbares dos convidados. Os olhos dos escravos se arregalavam, redondos como luas, e eles mal tocavam a comida. Recontava-lhes algumas de minhas histórias e poemas, e repetia as palavras das pessoas que se aproximavam para dar presentes e fazer elogios. Os escravos se animavam, batiam palmas e gritavam, dizendo que era como se eles mesmos estivessem lá.

Eirik não se entusiasmava tanto.

— Estás sempre viajando e todo o trabalho fica por minha conta — ele dizia. — Não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo, e os escravos estão ficando relapsos, pois sabem que não tenho tempo para fiscalizar o trabalho deles o tempo todo.

A título de compensação, dei-lhe um anel de ouro, um broche de âmbar e um frasco de vinho. Achei que, depois disso, ele fosse parar de reclamar. Mas não.

— Tudo isso é muito divertido enquanto estás solteiro; mas e quando tu casares? Crianças não comem ouro e mulheres não se vestem com vinho. Terás de encontrar trabalho.

A idéia de casamento realmente passava pela minha cabeça. Há algum tempo, eu cortejava uma garota chamada Oddi, filha de um fazendeiro.

Se fechares os olhos, meu senhor, farei com que Oddi se materialize diante de ti. Ela era pequena, da altura de meus ombros, mas com formas cheias, redondas, robustas, uma pele macia e cor-de-rosa. Parecia um porquinho rechonchudo. Há algo mais suave que as costas de uma mulher?

Cabelos longos e maravilhosos, tão vermelhos e brilhantes quanto o mais precioso rubi. Seu rosto não era exatamente bonito, mas também não era feio. A tez era pálida; as bochechas, rosadas. Mas o que havia de mais cativante em suas feições era um certo ar despudorado, um olhar oblíquo, um sorriso sedutor.

Quase todas as noites, eu andava até a fazenda onde ela morava, muitas vezes debaixo de chuva. Mas eu preferia sentir-me molhado e miserável a deixar de vê-la. Os pais dela nos colocavam na cama e lá ficávamos, juntinhos, sussurrando coisas e trocando beijinhos, e o aroma de verões passados se desprendia dos velhos colchões a cada pequeno movimento! Meu caro rei se lembra dos dias de sua juventude? Não eram eles melhores que tudo aquilo que veio depois?

Bem, os pais de Oddi começaram a sugerir que já era tempo de nos casarmos. Se não fosse esse o meu propósito, que eu lhes liberasse a filha para outro pretendente! Eu queria de fato me casar com Oddi. Podia ver-me construindo uma casa para nós dois, ao lado da casa dos pais dela ou na nossa própria fazenda... Podia ver-nos criando nossos filhos... Eu me tornaria um homem respeitável e Oddi, uma belíssima matrona com colares de âmbar em torno do pescoço, todos presentes meus. Mais cedo ou mais tarde, viriam os netinhos... Não era exatamente uma vida de apuros que eu previa para nós.

— Mas... Mas...

— Ó Deuses, dai-me uma vida longa e pacata como a de meu pai... Mas não agora!

Poderia ter-me casado. O próprio senhor do Arquipélago deu a entender que, se eu viesse a me casar, ele me daria um pedaço de terra. Mas as ilhas Orkney pareciam pedrinhas minúsculas boiando sobre um mar enorme...

Havia outras terras, havia outros senhores. Havia reis e reinos que jamais haviam ouvido falar de mim. E como eles sentiam a minha falta! Certa noite, deitado ao lado de Oddi, perguntei se ela esperaria por mim caso eu decidisse viajar para além do arquipélago.

— Não sei — foi o que ela respondeu. — Por que queres partir?

— Para conquistar a fama!

— Mas já és famoso, Egil.

— Não tão famoso quanto poderia ser se eu fosse para a Dinamarca. Ou para a Inglaterra. Os reis de lá me cobririam de ouro. Teria de comprar navios e mulas de carga para trazer tudo de volta. E quando eu voltasse para Orkney... As pessoas se amontoariam pelas estradas para me ver passar. Eu seria mais importante que o próprio senhor do Arquipélago!

Oddi apoiou-se nos cotovelos para ver-me melhor, seus longos cabelos espalhados pelos ombros. Percebi, então, que ela havia se interessado por minha história.

— Eu traria para ti cortes de seda de todas as cores. Poderias ter um vestido colorido para cada dia do ano. Traria âmbar, granadas...

— É claro que esperarei por ti — ela disse, antes de beijar-me. — Eu te amo. Jamais me casaria com outro homem.

— Serás a mulher do poeta mais famoso do mundo. Voltarei para nos casarmos. Logo em seguida, partiremos para... a Inglaterra! Moraremos na corte de um rei... Gostarias disso, não gostarias?

Quando ela abriu aquele seu sorriso largo c matreiro, compreendi que aquilo era tudo o que ela mais queria. Aí, então, selamos nosso acordo com um beijo.

No dia seguinte, fui até o senhor do Arquipélago e pedi permissão para partir. Ele não ficou feliz ao saber que iria perder-me, segundo suas próprias palavras, mas não deixou de dar sua bênção. Como se isso não bastasse, deu-me ouro para as despesas de viagem e cartas de apresentação para os reis da Inglaterra.

Meu irmão, todavia, negou-me sua benção.

— Vai logo para a Inglaterra e fica por lá — ele disse. — Deixa-me aqui sozinho, uma ovelha sem abrigo, castigada pelo vento.

— Estarei de volta antes que tu esperas — disse-lhe.

— Antes que tu esperas — retrucou Eirik. —Em casa, tudo o que reluz é ouro. No estrangeiro, as pessoas não se deixam enganar tão facilmente, assim verás.

Assim sendo, nossa despedida não foi das mais calorosas.

É mais fácil dizer que fazer. Todavia, para encurtar a história, nada direi sobre meus périplos e minhas andanças pela sombria Inglaterra. Nada direi sobre os reis e lordes que se dispuseram a ouvir minhas palavras e bocejaram. Saltarei tudo e retomarei meu relato no ponto em que cheguei à corte do rei Penda Wartooth.

O rei Penda é um homem extremamente curioso e tinha hábito de questionar todos os viajantes que passavam por sua corte; queria saber de onde eles vinham, para onde iam e qual era o motivo da viagem. Foi assim que aprendeu quase tudo o que sabe sobre as outras partes do mundo. Assim, quando cheguei à sua corte, convocou-me até seus aposentos particulares para me interrogar.

Sejam reis, sejam lordes, os homens são todos iguais. Todos põem o traseiro de fora, agacham no buraco e fazem suas necessidades. Não é mesmo, senhor? Não me deixo intimidar. Muitas vezes tive a oportunidade de falar com o senhor das Ilhas Orkney e qualquer homem nascido naquele arquipélago é um rei sem coroa. Portanto, sentia-me em casa nos salões do rei Penda. Contei-lhe sobre Orkney, sobre minhas viagens, e relatei tudo o que sabia sobre as outras cortes.

Muitos consideram as Ilhas Orkney como um lugar morto, onde nada acontece. Mas navios aportam lá, vindos de toda parte do norte, trazendo notícias. E eu sempre gostei muito de conversar.

— Tens uma opinião sobre tudo! — disse o rei Penda.

E ele é um homem que também gosta de conversar, argumentar e discutir sobre como as coisas deveriam ser.

— Jogas xadrez? — perguntou-me.

Conheço o jogo e logo trouxeram um tabuleiro, mas o rei venceu, devo admitir.

— Não vencerás novamente — eu disse. — Agora conheço tuas táticas.

— Veremos — ele disse. — Volte amanhã à noite e jogaremos de novo.

Foi assim que começou nossa amizade. Logo as pessoas começaram a dizer — à boca miúda, é claro — que eu era o 'favorito do rei', assim, ironicamente, como se eu tivesse usado algum truque para conquistar a amizade dele. A verdade é que tanto ele quanto eu éramos excelentes jogadores de xadrez e gostávamos muito de jogar. E também gostávamos de conversar. Eu era capaz de fazê-lo rir. Eu gostava da companhia dele e ele gostava da minha. Que espécie de truque haveria nisso?

Ele também gostava dos meus poemas e das minhas histórias; ele é um poeta diletante. Não da minha categoria, é claro, mas leva jeito. Conversávamos muito sobre poesia, trocávamos versos e frases elaboradas, assim como eu fazia com a garotada em Orkney. Bebíamos cerveja, e quanto mais bebíamos, mais fluíam os versos! Foram noites maravilhosas. Nunca precisei de artifícios para tornar-me o favorito do rei. Sempre fui autêntico. Talvez tenha sido isso que provocou o ciúme dos bajuladores que, apesar de tantas artimanhas, nunca conseguiram conquistar a predileção do rei.

Não vou negar que a amizade do rei tenha-me trazido muitas vantagens. Certa vez, ele foi visitar-me onde eu estava alojado e disse:

— Precisas de um abrigo melhor.

E qual foi o abrigo que recebi? Uma ala só para mim no palácio real, com cama, cadeiras, quadros e tudo mais. Sentado na cama, eu olhava para os lados e pensava: 'Perto disso, nossa casa na fazenda em Orkney é uma pocilga!'

E, uma vez que me fora dado uma ala, eu precisava de dinheiro para mantê-la. Então o rei estabeleceu para mim uma pensão.

De agora em diante, és o meu poeta — ele disse. — Escreve um ou dois épicos para mim e compra roupas decentes para ti.

Quando Eirik veio visitar-me, eu vivia luxuosamente. Eu havia lhe mandado presentes e uma mensagem, dizendo onde eu estava, mas ele nunca avisou que viria ao meu encontro. Um belo dia, chegou ao palácio. Chamaram-me até os portões para que eu dissesse se o conhecia ou não, antes de deixarem-no entrar. Lá estava ele, embrulhado numa grossa capa de viagem.

— Quem toma conta da fazenda agora? — perguntei.

— Deixei Old Daw no comando.

Old Daw era o mais velho de nossos escravos.

— E o pai de Oddi vai lá de vez em quando para ver como vão as coisas.

— Será que a fazenda ainda estará lá quando tu voltares? —perguntei. — Ou será que, sem nenhum dono por perto, ela afundará mar adentro?

— Alguém tinha de vir até aqui para ver como tu estás.

Bem, eu estava felicíssimo com nosso reencontro. Levei Eirik até os meus aposentos e, quando ele viu o lugar, foi como se eu tivesse dado um tapa na cara.

— O rei deve pensar que as pessoas comem, bebem e arrotam poemas! — foi o que ele conseguiu dizer.

Sentei-o numa cadeira e servi-lhe vinho.

— Cerveja já estaria bom — resmungou.

Quis saber notícias de Oddi. Ela estava bem? Continuava tão linda como sempre? Seu sorriso ainda era tão matreiro quanto antes? Ela falava de mim?

— Diz-lhe que penso nela todos os dias.

— Ela mandou lembranças — disse Eirik — e perguntou quando tu voltas.

— Em breve, diz a ela, em breve. E tu, por quanto tempo pretendes ficar?

— Por alguns meses — respondeu.

— Vamos nos divertir muito enquanto estiveres aqui. Conhecerás o rei ainda hoje.

Essa não foi a melhor das idéias. O rei foi gentil e fez perguntas sobre a fazenda, mas Eirik respondia apenas com grunhidos. Depois de uma hora, o rei olhou de soslaio em minha direção, desesperado, como se quisesse dizer 'não vou suportar isso por muito tempo'. Disse a Eirik que ele devia estar cansado e levei-o de volta para o quarto.

Achei que, com o tempo, ele fosse se sentir mais à vontade, mas isso não aconteceu, nem mesmo depois de tornar-se conhecido de todos.

— Ah és o irmão de Egil Grimmssen — as pessoas lhe diziam. — Ali vai o irmão do contador de histórias — falavam aos outros.

Achei que Eirik se sentiria melhor se ficasse mais parecido com as pessoas da corte; tentei emprestar-lhe algumas de minhas melhores peças de roupa, um broche e um bracelete de ouro.

— Todas as jóias do mundo não me tornarão mais bonito — ele retrucou — e fazendeiros não se vestem de seda — muito embora a roupa que eu havia lhe oferecido fosse de algodão.

Ainda não havia passado um mês quando Eirik disse que queria voltar para Orkney.

— Tão cedo? — perguntei.

— Quanto mais cedo eu voltar, mais cedo Oddi receberá teu recado. Quando ela poderá ver-te novamente?

— Logo.

— Logo quando? Marque uma data. A pobre coitada está ansiosa.

— Ano que vem — eu disse. — Talvez.

— Ano que vem?!

— Não posso abandonar tudo isso agora. Diz a ela que voltarei para buscá-la. Conta-lhe tudo o que a espera por aqui — eu disse, apontando para as coisas ao meu redor. — É bem melhor que uma casa de fazenda em Orkney, não é?

Eirik suspirou.

— Devo dizer-lhe sobre Hildy?

Hildy era uma menina escrava que eu havia adquirido.

— Não será necessário. Hildy apenas cuida de mim.

— Sei — foi só o que ele disse, partindo logo em seguida.

Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer para retê-lo mais um pouco.

Um ano se passou e realmente pensei em voltar para casa, mas alguns embaixadores da Irlanda estavam a caminho e o rei pediu que eu ficasse. Depois disso, comprei um pedaço de terra e alguns assuntos legais exigiam minha presença.

Dezoito meses já haviam se passado desde a partida de Eirik quando finalmente decidi viajar até Orkney.

Quanto mais me aproximava de Orkney, mais eu pensava em Oddi; no seu rosto, no seu corpo, na maciez de seus cabelos, no seu sorriso, em nós dois abraçadinhos na cama, ali no escuro, protegidos do frio, o cheiro da palha dos colchões pairando no ar. Já próximo da costa, eu quase podia sentir o cheiro de Oddi, sentir o seu calor. Eu estava louco de saudades. Tão logo desci do navio, comprei um cavalo e fui direto para a fazenda de Oddi.

Seus país deram-me as boas-vindas.

— Ora, mas quem vem lá! — eles disseram.

Logo em seguida, mandaram criadas trazer comida, bebida e água para que eu pudesse me lavar. Eu olhava por todos os lados.

— Como estás, meu bom rapaz? — disse o pai, batendo com a mão em minhas costas.

— Pareces muitíssimo bem — disse a mãe, tocando o linho de minha túnica. — Estás muito bem vestido.

Onde está ela?

Os dois pareciam surpresos.

— Onde está quem? — perguntou o pai.

— Oddi! Quem mais poderia ser?

Ambos se entreolharam, estupefatos.

— Não ouviste? — perguntou a mãe. — Eirik não mandou avisar-te?

Ah, a dor que senti... Tive de apoiar contra a parede para não cair. Ocorreu-me que Oddi havia morrido e estava lá, em seu túmulo. Juro que a luz que invadia a porta entreaberta naquele momento apagou-se diante de meus olhos.

— O que aconteceu? — perguntei.

Eles olhavam para mim, sem saber ao certo o que dizer.

A mãe mantinha os dedos cruzados sobre o colo.

— Quero saber de tudo — eu disse.

— Eirik disse que iria mandar avisar-te — disse a mãe. — Oddi e Eirik casaram-se no outono passado.

— Pouco tempo depois de visitar-te — disse o pai.

Ao ouvir isso, procurei um banco e sentei-me.

— Casados? Eirik e Oddi? Casados?

A mãe sentou-se ao meu lado.

-— Eles se entenderam muito rapidamente. Eles estão felizes. Têm até um filhinho. Deram a ele o teu nome.

Fiquei estupefato. Tinha de sair dali de qualquer maneira. Acho que não fui muito gentil com os pais de Oddi.

Montei em meu cavalo e parti imediatamente para a fazenda de meu irmão. Mas, em pouco tempo de cavalgada, percebi que seria por demais vergonhoso simplesmente chegar lá e perguntar como eles tinham sido capazes de fazer aquilo comigo. Virei o cavalo e, decidido a voltar para a Inglaterra, tomei a direção do porto até começar a imaginar como seria dada a notícia. 'Egil voltou para Orkney e partiu logo em seguida, sem ao menos cumprimentar o irmão pelo casamento.' Virei novamente o cavalo — o pobrezinho já estava confuso — e voltei pelo mesmo caminho. Mas não me sentia preparado para o encontro. Acabei voltando para a casa dos pais de Oddi e pedi que eles me recebessem ali por alguns dias. Acho que eles perceberam qual era meu problema. Foram corteses e não fizeram muitas perguntas.

Depois de três dias, eu já havia recobrado a calma e o controle sobre meus sentimentos. Sentia-me preparado para encarar meu irmão e parti para a fazenda. Eirik veio até o quintal para cumprimentar-me pessoalmente.

-— Egil, soubemos que estavas em Orkney. Como estou feliz em rever-te!

Eu estava de pé, bem na frente dele. Olhei-o diretamente nos olhos e disse:

— A primeira coisa que devo fazer é cumprimentar-te pelo casamento. Esqueceste, então, de dar a Oddi o meu recado, não é mesmo?

Ele pareceu confuso.

— Recado?

Eu tinha dito a mim mesmo que manteria a dignidade a qualquer preço, mas não resisti. Chegando ainda mais perto, eu disse:

Quando estiveste na Inglaterra e antecipaste tua volta para casa porque não suportavas ver o sucesso de teu irmão, pedi que disseste a Oddi que eu voltaria dali a um ano e que esperasse por mim.

— Não me lembro disso — respondeu, e realmente não se lembrava. Podia ver em seu rosto que não estava mentindo. — Demoraste mais que um ano. Vem, entra, Oddi está em casa.

Entramos. Para ser honesto, meu primeiro pensamento ao ver Oddi foi que ela havia engordado e nem era tão bonita quanto eu lembrava. Mas depois, à medida que conversávamos, vi como ela sorria, como olhava obliquamente para mim através da fumaça do fogão, como carregava o filhinho e gentilmente depositava o queixo sobre sua cabeça. Aí, então percebi que era a mesma Oddi de sempre. Eu estava tão enciumado que senti o estômago revirar, como se gatos brigassem dentro dele. Tudo o que via ali — Eirik abraçando Oddi, a casa aconchegante, o menino — fazia-me pensar: 'Tudo isso deveria ser meu'. E Eirik havia me roubado. Ele voltou da Inglaterra e procurou Oddi imediatamente, pedindo-a em casamento E ela aceitou!

Contei-lhes sobre minha vida na Inglaterra, como conversava com o rei todas as noites, do ouro e das terras que eu possuía, dos meus planos para o futuro...

— Tudo isso é muito bom — disse Oddi. — Conquistaste o sucesso que querias.

— Tudo o que fiz foi por ti — eu disse.

— Por mim?

— Tudo por ti.

— Não — ela retrucou. — Não conte a ti mesmo essa mentira. Se estivesses pensando em mim, terias voltado e casado comigo. Cansei-me da vida de solteira, Egil. Cansei-me de dormir sobre uma cama fria. Hoje tenho o que quero e esperei muito para tê-lo. Não invejo tua intimidade com reis nem tampouco teus anéis de ouro.

— Pois tudo isso darei a outra mulher — eu disse.

Ela arqueou as sobrancelhas, sorriu e disse:

— Que bom para ela.

Ao ouvir isso, levantei-me e fui embora. Voltei para a casa dos pais de Oddi, permaneci lá por mais uma noite e depois tomei a direção da costa. Assim que pude, tomei um navio de volta para a Inglaterra.

Mas não conseguia me acostumar com a vida que levava antes, na Inglaterra. Não gostava mais de multidões, detestava as suas gargalhadas estúpidas. Queria ficar sozinho, quieto em meus aposentos. Não fui imediatamente falar com o rei. Quando ele mandou me chamar, permaneci calado, sem achar nada para dizer. E quando ele me contou tudo o que havia se passado enquanto eu estava fora, eu mal conseguia ouvir. Nada me interessava.

— Egil — ele disse —, estás doente?

Disse-lhe que nunca tinha estado melhor.

— Então, o que aconteceu?

Não queria responder, não queria falar das coisas que haviam se passado. Mas ele insistia e insistia, e acabei cedendo.

— Fui para casa com a intenção de me casar, senhor. Mas a garota que estava em meus planos casou-se com outra pessoa.

— Isso é um infortúnio — ele disse. — Sinto muito por ter atrasado tua partida.

— Ela casou-se com meu irmão. Eu havia pedido a ele que lhe dissesse que eu estaria de volta em um ano, quando então nos casaríamos. Pois ele se aproveitou da minha ausência e casou-se com ela.

— É de fato uma situação delicada — disse o rei — mas talvez ele a ame realmente.

— Tudo o que ele fez foi por despeito! — eu disse. — E ela... ela disse que esperaria por mim... Mas acabou se casando com meu próprio irmão!

— Sinto muito — ele disse. — Decerto sofres muito com tudo isso.

De fato, sofria. Gatos brigavam no meu estômago novamente. Sentia-me irrequieto. Não conseguia ser gentil.

— Senhor— eu disse entre dentes cerrados —, preciso ir.

Ao chegar em meus aposentos, comecei a chutar tudo o que via pela frente.

Alguns dias se passaram até que o rei mandou chamar-me novamente.

— Egil — ele disse —, não suporto mais ver-te assim tão amuado, arrastando-te pela corte como um fantasma. O que posso fazer para ajudar? Talvez possa achar-te outra noiva...

— Não — eu disse.

— Qualquer pessoa, dentro do possível, é claro, de que tu gostares. Olha por aí. Escolhe a garota e falarei com o pai dela para t i.

—- Não. Se não posso ter Oddi como esposa, então não quero esposa alguma.

— Bem, o que queres então? Um título de nobreza? Há herdeiras com as quais poderias te casar e tornar-te lorde.

— Não — disse mais uma vez.

— Terras. É isso o que queres? Há herdeiras com bons pedaços de terra. Distrairias a cabeça cuidando da terra. O que achas?

— Já disse. Não quero esposa, nem terras. Também não quero ser lorde.

— Então talvez queiras viajar — disse o rei. — Ver novos lugares, participar de aventuras. Talvez seja isso o melhor a fazer. Tua companhia me faria falta novamente, mas se voltasses mais bem-humorado...

— Não quero viajar

— Eu poderia mandar preparar um navio para ti e enchê-lo de mercadorias. Partirias para os lugares mais remotos, venderias tudo e farias tua própria fortuna! O que achas disso?

— Não estou em condições de comandar navios e vender mercadorias — respondi. — Tudo o que quero é ficar quieto e não ser importunado.

— Que tal uma pequena fazenda?

— Não.

Não estás cooperando muito, Egil — disse o rei. — Se nada disso é bom para ti, o que queres afinal?

De repente, ocorreu-me exatamente o que eu queria. E não era pouco.

— Senhor — eu disse —, não quero esposa, não quero título de nobreza, não quero terras, não quero navios, nem mercadorias nem ouro nem fazenda. Mas talvez haja uma coisa que poderias me dar.

O rei abriu as mãos e disse:

— Pede.

— Quero falar — eu disse. — E preciso de alguém para escutar.

— Pois eu teria o maior prazer em escutar-te.

— Não sabeis ainda sobre o que quero falar. Quero vir

aqui todas as noites e falar sobre Oddi e Eirik. Seria isso possível?

— É claro que sim.

Os reis nem sempre tomam decisões sábias.

Comecei a falar imediatamente. Havia semanas que não falava nada, mas agora as palavras jorravam de minha boca. Disse-lhe o quanto eu amava Oddi, que estava disposto a fazer qualquer coisa por ela, que Oddi jamais havia deixado meu pensamento durante todo o tempo em que eu estava na corte. 'Trabalhei para ela, comprei terras para ela, tornei-me famoso por ela, mas ela me traiu.' E alertei o rei para o espírito traiçoeiro das mulheres. Contei tudo o que eu havia feito por meu irmão Eirik, que eu seria capaz de lhe dar minha última moeda de prata, e tudo o que recebi em troca foi traição. E alertei o rei para o espírito traiçoeiro dos homens. Disse-lhe que não esperava nada mais do mundo. Não podia confiar mais, nem em homens nem em mulheres. Queria mesmo era cortar minha garganta; se isso não fosse condizente com um homem de coragem, talvez fosse melhor aceitar a oferta do navio e dar voltas pelo mundo à procura de um dragão ou de um inimigo que pudesse dar cabo de mim.

O rei ouviu pacientemente a tudo isso, mantendo meu copo de cerveja sempre cheio. Já tarde da noite, dois homens tiveram de me carregar de volta para o quarto.

Na noite seguinte, disse ao rei que nem sempre Oddi tinha sido traiçoeira. Contei-lhe como eram as coisas quando eu morava em Orkney, das noites que passávamos abraçadinhos, de nossas conversas sob o luar, das festas em que não parávamos de dançar, dos homens que não paravam de admirá-la. A luz que refletia em seus cabelos... E o sorriso, como era especial! Passei mais de uma hora tentando explicar ao rei o quanto aquele sorriso era peculiar. Descrevi suas mãos pequeninas e seus bracinhos rechonchudos. Fiz poemas sobre os seios dela, sobre o quanto eram calorosos e macios, sobre como cabiam perfeitamente em minhas mãos. Lembrava-me de coisas que ela havia dito, coisas inteligentes e coisas engraçadas. Falei sobre ela a noite inteira, e quando o rei tentava me interromper para contar alguma coisa sobre uma garota qualquer de seu passado, eu dizia: 'Sim, mas Oddi... ', e continuava a falar sobre ela. O rei balançava a cabeça, desistia de falar e servia mais vinho. Naquela noite,não fiquei tão bêbado. Pude voltar para o quarto sobre meus próprios pés.

Na noite seguinte àquela, falei sobre meu irmão Eirik. Talvez eu não tenha sido justo com ele. Eirik não era exatamente o pior dos homens. Depois da morte de meus pais, ele acabou de me criar, o que não deve ter sido fácil para um homem jovem e solteiro como ele. Mas o que eu podia fazer, se ele tinha ciúme de mim? Foi por causa desse ciúme que ele se casou com Oddi. Ele não a amava! Era muito velho para ela e não se interessava por nada além de suas terras e plantações! O que foi que Oddi viu nele? Onde ela estava com a cabeça quando aceitou casar-se com ele, mesmo depois de saber que eu... Ou será que não sabia? Será que Eirik não lhe contou sobre o meu retorno simplesmente para conquistá-la? Um irmão traiçoeiro, aproveitando-se de uma garota tão adorável... Eu sentia ódio dele. Sentia, às vezes, que era capaz de matá-lo. Oddi ficaria viúva e livre para se casar comigo. Alguém poderia culpar-me por isso? Meus motivos não eram suficientemente fortes?

Naquela noite, bebi muito e mais uma vez tive de ser carregado para a cama. Na noite seguinte, fui ter com o rei, como de costume. Percebi certa tensão em seu olhar, mas estava tão ansioso por falar que nem me dei ao trabalho de perguntar como ele estava. Achei que talvez lhe tivesse dado uma impressão errada a respeito de Oddi — que ela era uma garota leviana ou sem coração. Comecei a descrevê-la novamente, a falar da beleza de suas feições e do charme de suas maneiras. Queria que o rei compreendesse por que eu havia me apaixonado, antes de descobrir que ela era capaz de traição. Percebi que o rei estava impaciente, pois ele batia com os dedos no braço da cadeira, mas isso não me deteve.

Na noite seguinte, pus-me a falar de Eirik novamente, descrevendo todos os traços da sua personalidade, contando como ele tinha sido generoso comigo na infância, como ele passou a sentir ciúme... Mas, como Oddi tinha sido capaz de se casar com ele? Na noite seguinte, foi a vez de Oddi novamente. E na noite seguinte a esta, perguntei ao rei se ele achava possível que Oddi e eu viéssemos a nos casar algum dia. E se Eirik morresse? Talvez Oddi descubra a verdadeira natureza do marido e acabe com ele. Será, então, que ela se lembrará de mim novamente e mandará notícias? 'Se isso acontecer, volto correndo para os braços dela', eu disse. Teria de engolir meu próprio orgulho, eu sei, mas voltaria. Bastaria apenas que ela me chamasse.

O rei não fazia nada mais que suspirar. Durante um mês inteiro, falei de Oddi e de Eirik. Ah, e de mim mesmo também.

Durante o mês seguinte, falei noite sim e noite não. Por mais um mês, falei apenas uma ou duas vezes por semana.

E depois de algum tempo, não queria mais falar sobre o assunto. Havia me exaurido. Oddi havia se casado com Eirik, e pronto. Ela não gostava de mim. Ela gostava dele. Agora tudo estava claro, e eu estava pronto para encarar a verdade. Certa noite fui até o rei e sugeri que jogássemos uma partida de xadrez.

— Não queres falar mais? — ele perguntou.

— Não. Quero jogar xadrez.

Achei que o rei fosse suspirar novamente, mas ele se conteve e foi buscar o tabuleiro. É um homem educadíssimo, o rei Penda.

Naquela noite, ele ganhou o jogo. Quando levantei para me retirar, eu disse:

'Não me deste terras,

Nem rico casamento.

Nem navio, nem ouro, nem prata.

Amor-perfeito foi o que me deste,

E a ti pertence meu coração.'

Diz, pois, nobre cristão. Terias sido tão corajoso e tão generoso quanto o rei Penda? Terias sido capaz de apoiar um amigo noites a fio, sem nenhuma palavra de impaciência, sem nenhum pretexto para ir embora? Terias suportado tudo isso? Não teria sido mais fácil para o rei tirar um anel de ouro do dedo e mandar-me embora?

É por isso que sou um homem do rei Penda. É por isso que preciso cumprir a promessa que fiz. Imploro-te, leva-me até ele. Cumpre com tua promessa."

— Não fiz promessa alguma — disse o rei Edgar. —Preciso me aconselhar.

A cabeça tomou um aspecto de impaciência, cerrou os olhos e disse:

— Muito bem, senhor, como quiseres.

—- Frei Dominic — disse Edgar —, vês aquela camisa sobre o banco bem atrás de ti? Embrulha a cabeça nela e, por segurança, guarda-a naquele baú logo ali.

O monge fez como o rei pedira. Quando a camisa tampou-lhe a visão, a cabeça ainda teve tempo de dizer:

— Por favor, preciso cumprir minha promessa! Uma vez dentro do baú, ela não tinha como dizer mais nada.

O rei Edgar permaneceu pensativo por alguns instantes e depois perguntou a frei Dominic:

— Pretendes voltar para o mosteiro?

O monge respondeu afirmativamente.

— Ainda levarei algum tempo antes de voltar para casa — disse o rei. — Até lá, a cabeça estará mais segura sob tua proteção. Serias capaz de levá-la para o mosteiro e mantê-la por lá até que eu mande buscá-la?

— Como quiseres, senhor — disse o monge, fazendo uma pequena reverência.

— Pois então que assim seja. Agora vai.

E foi assim que a cabeça do contador de histórias foi parar nas mãos dos monges cristãos.

 

           A CABEÇA CONTA UMA HISTÓRIA AOS MONGES

Os monges estavam reunidos, à noite, na minúscula sala de refeições do mosteiro. Padre Abbot sentava-se na extremidade da mesa, um lugar de honra, e a seu lado sentava-se frei Dominic.

— Essa cabeça, essa cabeça decepada... é verdade mesmo que ela fala? — perguntou o abade. — Sem respirar?

— É um milagre, padre.

— E o rei colocou-a sob nossos cuidados?

— Ela está dentro de um baú, do outro lado da porta — respondeu frei Dominic.

— Então vá buscá-la.

Frei Dominic levantou-se para buscar o baú. Ao voltar, viu que o abade havia permitido que os monges se levantassem e se agrupassem em torno da mesa. Frei Dominic passou por eles e colocou-se diante do abade, que permanecera sentado.

Afastando pratos e talheres, frei Dominic depositou o baú sobre a mesa e levantou a tampa cuidadosamente — até mesmo com certa reverência.

Vários monges se aproximaram para ver melhor, muito embora alguns deles cobrissem os olhos com as mãos e olhassem apenas furtivamente entre os dedos. Outros mantiveram distância e evitaram ver o que estava dentro do baú.

Quanto ao abade, desviou o olhar, contorcendo os músculos da face em sinal de profundo desgosto. Mas, depois, ao ver a cabeça, foi tomado pela curiosidade.

— Uma visão dos infernos — ele disse —, mas parece em bom estado.

— Trata-se de um milagre —- murmurou frei Dominic.

A cabeça suspirou, abriu os olhos e encarou o abade, que não foi capaz de conter o susto. Suas mãos, trêmulas de horror, trepidavam sobre o braço da cadeira.

— Que o Senhor me proteja — disse o padre, colocando uma das mãos sobre o coração. Ao mesmo tempo curiosos e aterrorizados, os monges faziam um alvoroço, aproximando-se da cabeça e fugindo dela logo em seguida.

— Que todos os vossos deuses vos protejam — disse a cabeça, articulando cuidadosamente as palavras. — Mas não deveis ter medo de mim.

Os monges se agitaram novamente. Alguns se afastaram da mesa, ajoelharam-se em um canto e puseram-se a rezar.

Olhando fixamente para o frei Dominic, o abade perguntou:

— Será isso um truque?

— De forma alguma, padre! Como poderia ser?

— Ouvi dizer que algumas pessoas são capazes de fazer truques com a voz e causar a impressão de que um gato, ou até mesmo uma panela, está a falar. Não será esse um truque semelhante? Por acaso trouxeste esse pedaço de carniça imunda até aqui somente para convencer-nos de que milagres acontecem à tua volta?

— Caríssimo senhor — disse a cabeça —, esse pedaço de carniça imunda jamais precisou de alguém que falasse por ele.

— Padre Abbot — emendou frei Dominic —, não sou capaz de fazer truques com a voz. Até mesmo o rei acreditou que a cabeça podia falar!

— O rei é jovem e, além disso, não é muito culto.

A cabeça interveio novamente:

— Pois então, por que não fazes um teste? Por que não convidas a sair da sala o frei Dominic e todos aqueles suspeitos de magia ou bruxaria?

O abade refletiu um pouco e disse:

— Qualquer mágico é capaz de enfrentar testes concebidos por si próprio. Mas faremos uma tentativa mesmo assim. Que saiam da sala frei Dominic e todos os que acompanharam o rei em sua campanha. Ide para a igreja e orai. Que alguém me traga a Bíblia e um frasco de água benta da fonte.

Frei Dominic e os monges que o haviam acompanhado na batalha deixaram a sala imediatamente, e outros foram buscar o que o abade havia pedido. Enquanto esperava, o abade tirou do pescoço um rosário de contas de granada e colocou-o em volta da cabeça. A cabeça suspirou novamente e fechou os olhos. Espalhados em volta da mesa, os monges começaram a cochichar. Será que o rosário cristão havia calado a cabeça mágica para sempre?

Um monge entrou na sala, carregando com os dois braços uma enorme Bíblia ricamente encadernada em couro. Outro vinha logo atrás dele, segurando um pequeno frasco de água benta.

Colocaram a Bíblia sobre a mesa, levantaram a cabeça cuidadosamente e depositaram-na sobre o livro sagrado. O abade abriu o frasco de couro e espargiu água benta sobre ela.

A cabeça abriu os olhos novamente e fez uma careta.

— Estou molhado... Molhado e frio. Sei que é cortês oferecer água a um hóspede para que ele possa se lavar. Mas será preciso encharcá-lo?

— É um truque, é um truque! — metade dos monges murmurava.

— É um milagre, é um milagre! — murmurava a outra metade.

— Ainda precisas de mais provas, meu senhor? — perguntou a cabeça. Nesse instante, virou os olhos de lado a lado, observou os pratos sobre a mesa e disse:

— Vejo que acabastes de comer. Essa é a melhor hora para se contar uma história: depois da refeição da noite. Quereis ouvir uma história?

— Interessa-nos apenas as histórias dos santos cristãos — disse o abade.

— E crês que nada sei sobre os santos cristãos? Achas que nunca tive que entreter cristãos na corte do rei Penda? Sou o contador de histórias de um rei. Conheço centenas de histórias, de todos os tipos. Queres ouvir a história de um santo cristão?

Secamente, o abade respondeu que sim.

— Bem — continuou a cabeça —, com o amigo frei Dominic longe de mim, equilibrando-me sobre uma Bíblia, no centro de um rosário e encharcado de água benta, começo a minha história...

"Decerto tereis ouvido falar do rei Kenulf da Mércia, que governava com justiça e sabedoria — não é assim que governam todos os reis? — até que, em um dia de infortúnio, ele caiu mortinho no chão. Seu filho Kenelm, embora tivesse apenas sete anos de idade, sucedeu-o no trono.

Como todos os reis, o garoto governava com justiça e sabedoria. Todas as manhãs e todas as noites, ele ia à igreja. Conhecia mais orações que cantigas de roda. Depois da igreja, não ia jogar bola com os amiguinhos, mas ia para as reuniões de conselho onde era obrigado a dispor sobre todos os tipos de querela: disputas de terra, disputas de herança e dívidas de trabalho, entre outras coisas.

Nas decisões e nos julgamentos, o pequeno rei contava com o auxílio de Askbert, um tutor que lhe fazia as vezes de pai, e de Quendry, sua linda irmã mais velha — como sabeis, todas as princesas são lindas.

Acontece que esse homem, Askbert, e essa mulher, Quendry, eram amantes. Quando se encontravam no calar da noite, coisas eram ditas a meia voz; coisas que não podiam ser ditas na presença dos outros. Não eram exatamente as juras de amor que poderíamos esperar de dois amantes. Eram coisas como: 'Um reino tão poderoso como Mércia não pode ser governado por uma criança', 'Que pena que o rei Kenulf tenha partido tão cedo, sem dar tempo a Kenelm de crescer', 'Um reino tão esplêndido como Mércia precisa de uma linda rainha para distribuir presentes aos guerreiros que se oferecem para servi-la', ou 'Que pena que nosso queridíssimo Kenelm não tenha idade para se casar'.

Como teria sido melhor para o reino de Mércia se Kenelm tivesse morrido com seu pai — uma idéia vergonhosa, porém verdadeira. Aí, então, sua irmã Quendry teria sido coroada rainha e, quando ela se cassasse com Askbert, Mércia teria o rei que merecia.

Pouco tempo depois, deu-se o seguinte. A ama-seca de Kenelm acabara de colocá-lo para dormir quando alguém bateu à porta dos aposentos reais. Do lado de fora, ouviram-se passos apressados e fugidios. A ama-seca, uma velha galesa chamada Olwen, foi até a porta e abriu-a. Não havia ninguém, mas um pequeno frasco de couro encontrava-se sobre o umbral. Ela abaixou-se para pegá-lo.

— Quem foi que bateu? — perguntou o pequeno rei, debaixo das cobertas.

— Alguém que fugiu logo em seguida — respondeu a ama. — Mas deixaram isto. Olwen mostrou-lhe o frasco de couro ricamente decorado com filigranas de ouro. Em seguida retirou a tampa e cheirou o conteúdo.

— Parece que alguém lhe enviou algo para beber antes de dormir. Sinto o cheiro de mel e de amoras pretas.

— Como sabes que é para mim? — perguntou Kenelm.

— Um frasco tão bonito assim, para mim é que não seria -— respondeu a ama.

— Traz até aqui e deixa-me experimentar.

— De jeito nenhum — disse a ama. Olwen havia passado boa parte de sua vida a serviço da corte e teve de aprender algumas coisas para sobreviver. Sentou-se à beira da cama de Kenelm e disse-lhe:

— Chama teu cachorro até aqui.

O cachorro de Kenelm dormia em um pequeno cesto, em um dos cantos do quarto Kenelm chamou-o e logo ele apareceu, abanando a cauda. Em seguida, Olwen derramou sobre o chão um pouquinho do líquido a base de mel.

O cachorro lambeu tudo, agitado, felicíssimo da vida.

— Agora é só esperar — disse Olwen.

Esperaram algum tempo até que o cachorro começou a se contorcer e a se arrastar pelo chão. Tinha entrado em convulsão. Vomitou e engasgou até morrer.

Kenelm entristeceu-se com a morte do cão e começou a chorar, mas Olwen disse:

— Antes ele que tu. Não foi exatamente um amigo que te deixou essa bebida de presente, Kenelm. Deves ter muito cuidado.

— Estou nas mãos de Deus — disse o pequeno Kenelm. — Entrego-me inteiramente a Ele. Ele tomará conta de mim.

— Que Deus te ouça! — disse a ama. Mas, sábia e experiente como era, Olwen sabia que todos os deuses, o Deus cristão inclusive, são modestos e tímidos, e não gostam de se exibir. Às vezes, é melhor não esperar muito por eles. Olwen decidiu, então, procurar Quendry e o tutor Askbert a fim de contar-lhes sobre a bebida envenenada. Durante todo o relato, prestou muita atenção a ambos.

— Oh, meu Deus! — exclamou Quendry. — Meu irmão está em perigo! Precisamos descobrir imediatamente quem deseja o seu mal! Precisamos dobrar o número de guardas à sua volta!

— Não diga nada a ninguém sobre o que se passou! — disse Askbert. — Será mais fácil capturar o traidor se ele não souber que estamos em seu encalço.

Olwen prometeu ficar calada. Mas ela tinha suas próprias suspeitas e passou a tomar todo o cuidado com as coisas que lhe ofereciam para comer e beber. Não aceitava nada que não viesse de um prato servido a todos durante as refeições. Bebidas ou bolos preparados especialmente para Kenelm estavam proibidos. Provadores de comida eram convocados à mesa para a proteção do pequeno rei.

Poucos dias depois, terminada a reunião do conselho, Askbert disse ao rei:

— Talvez seja melhor não nos reunirmos amanhã. Tua irmã está preocupada; acha que trabalhas demais e que precisas de um pouco de diversão. Ela sugere que partamos, apenas eu e tu para uma caçada. O que achas?

— Ah, sim! Vamos caçar! — disse o pequeno rei. — Será muito divertido!

— Amanhã, então — disse Askbert. — Ao raiar do sol. Teremos o dia inteiro só para nós dois, nas montanhas.

Kenelm correu para seus aposentos e disse a Olwen que precisava acordar bem cedo no dia seguinte porque sairia para uma caçada!

— Eis aí uma boa idéia. Precisas mesmo de um pouco de cor sobre as bochechas — disse a ama. — Fica tranqüilo, amanhã bem cedo estarás de pé e levarás um lanche para comer à noite. Eu mesma cuidarei de tudo. É melhor que durmas logo e tenhas uma boa noite de sono.

Mas o pequeno Kenelm não conseguia dormir de tanta excitação. Além disso, os roncos da ama-seca, que dormia ao seu lado, não ajudavam em nada. Tão logo conseguiu pegar no sono, já era hora de levantar.

— Vamos lá, meu bom menino! Trata de acordar, se quiseres caçar alguma coisa! — disse Olwen.

— Oh, ama! — ele disse. — Tive um sonho tão estranho!

Olwen era uma mulher experiente e sábia, muitas vezes capaz de captar o significado dos sonhos.

— Com o que sonhaste? — quis saber.

— Bem — disse Kenelm —, sonhei que estava nas montanhas caçando com Askbert. Estávamos sozinhos, os dois. Vi uma árvore muito, muito alta, coberta de flores e de lanternas acesas. Era tudo muito lindo. Subi na árvore para ver as montanhas lá de cima, e para estar entre as flores e as lanternas. Subi e subi até chegar nos galhos mais altos. De lá, podia ver todo o meu reino: os rios, as colinas, as florestas. Nunca tinha visto nada tão lindo.

— De repente, uma coisa estranha aconteceu. Um quarto de meu reino levantou-se e fez uma reverência na minha direção. Em seguida, outro quarto levantou-se e também fez uma reverência. O terceiro quarto fez a mesma coisa. Mas o último quarto transformou-se numa enorme mão de madeira e, com um enorme machado, começou a golpear a árvore onde eu estava. A árvore balançava e balançava. Agarrado nos galhos, eu gritava por ajuda, mas ninguém acudia. Dali a pouco, a árvore começou a ceder. Mas, antes que ela caísse, transformei-me em um pássaro branco e comecei a voar... Ama! Porque choras?

A pobre Olwen estava sentada na cama, aos prantos. Cobria o rosto com as mãos, mas as lágrimas escorriam-lhe entre os dedos.

— Oh, meu pequenino — ela disse —, não vás caçar hoje. Fica aqui comigo.

— Mas quero caçar — disse o rei.

— Sou capaz de interpretar os sonhos — ela disse. — A árvore alta significa a glória e o poder que obterás se puderes crescer e tornar-te homem. Por favor, não vás caçar hoje, Kenelm. Os três quartos de teu reino que reverenciaram a ti são pessoas que te amam; mas o ultimo quarto, o que cortou a árvore, são os teus inimigos, as pessoas que desejam o teu mal. E o pássaro branco é tua alma voando para outra vida, em outro lugar. Oh, fica comigo, Kenelm, não saias daqui...

— Mas eu estarei na companhia de Askbert — ponderou o rei. — Ele tomará conta de mim. És muito medrosa, ama. Tenho fé em Deus. Se Ele não quiser que eu seja morto, não serei. Se Ele quiser que eu vá ao Seu encontro, não há nada que eu possa fazer.

O pequeno Kenelm fez suas orações, tomou o café da manhã e partiu para caçar na companhia do tutor. Olwen ainda implorou que ele não fosse, mas nada do que ela dissesse seria capaz de detê-lo.

Um grande grupo, encabeçado por Kenelm, sua irmã, Quendry, e o tutor, Askbert, partiu para caçar nas montanhas de Clent, próximas ao castelo. Durante todo o dia, perseguiam os cervos montanha acima, cruzavam o cume pedregoso e desciam em direção aos vales. A certa hora, durante uma das perseguições, Kenelm e Askbert se distanciaram do resto do grupo.

Eles estavam cavalgando ao longo de uma ampla pradaria, vacas pastando aqui e acolá, quando Kenelm deu-se conta de que estavam sozinhos e quis saber:

— Onde estão os outros? Onde está Quendry?

— Nós estamos muito à frente deles — respondeu Askbert — Somos muito mais rápidos. Eles não conseguem nos acompanhar.

Em pouco tempo fez-se noite e Kenelm disse:

— Está na hora das minhas orações.

Apeou do cavalo e ajoelhou-se. Askbert também apeou, mas não rezou. Silenciosamente, sacou a espada, aproximou-se de Kenelm pelas costas e, de um só golpe, cortou-lhe fora a cabeça.

Em seguida, cavou um pequeno buraco sob um arbusto espinhoso, arrastou o corpo e a cabeça para dentro e cobriu tudo com terra.

De volta ao castelo, ele disse, ainda montado em seu cavalo:

— Perdi o rei de vista enquanto estávamos caçando. Ele apareceu por aqui?

Apavorada, a princesa Quendry correu até o tutor.

— Pensávamos que ele estivesse contigo! Oh, ele está perdido! Meu irmãozinho está perdido na floresta! Devemos procurar por ele! Imediatamente!

Grupos de busca partiram na direção das colinas e da floresta, ao encalço do pequeno rei. Não o encontraram. Não olharam sob o arbusto espinhento.

Mas o governo de um reino não pára, nem mesmo quando o rei está perdido na floresta. Quem iria presidir o conselho em seu lugar? Ora, quem mais, senão Askbert? Afinal, era ele o tutor do rei. Até o aparecimento de Kenelm, seria ele o rei.

Do outro lado do mar, nas distantes terras de Roma, o rei de todos os cristãos pontificava em seu trono. Refiro-me ao papa, é claro. Lá estava ele, cumprindo com seus afazeres, quando de repente, um adorável pássaro branco, segurando um pergaminho entre os bicos, entrou pela janela. Deixou cair o pergaminho diante do papa, pousou sobre o encosto do trono e pôs-se a assobiar uma tristíssima melodia.

O papa pegou o pergaminho, abriu-o e leu:

 

'Sob verdejante e espinhoso arbusto,

Nas campinas onde pasta o gado

Jaz Kenelm, o nosso rei augusto —

Seu corpo ali, e a cabeça ao lado.'

 

Segundo soube, esse poema fora escrito por poderosíssimos espíritos cristãos chamados anjos. Perdoa-me, caro abade, mas o poder desses tais anjos não está exatamente na poesia, não é mesmo? Nossos espíritos pagãos, guerreiros e rudes, são capazes de versos melhores que esses!"

— Fazer versos bonitos — retrucou o abade — não é o máximo a que deve aspirar o espírito humano.

— Tens razão — disse a cabeça. — Continuo com minha história.

"O papa disse:

— Trata-se de um recado de Deus.

Em seguida, convocou um grupo de monges e despachou-os para a Inglaterra com a missão de localizar o tal arbusto espinhoso sobre as tais campinas onde pasta o gado.

O pássaro branco acompanhou-os durante toda a viagem. Quando iam por terra, ele voava sobre eles, luminoso, adejando de árvore em árvore. Quando iam pelo mar, pousava sobre o acordoamento do barco, resplandecente. Uma vez na Inglaterra, guiou os viajantes até Mércia e, mais tarde, até uma pradaria onde pastavam muitas vacas.

Ali, encontraram uma velha senhora, que lentamente tocava a vacada. Os monges tinham sede e fome. Perguntaram à velha senhora se podiam beber um pouco de leite.

— Oh, vinde comigo, irmãos — ela disse. — Aquela malhadinha ali é a mais leiteira de todas. Podeis beber o quanto quiserdes. — Conduziu-os, então, até uma parte mais afastada da campina, onde, ao lado de um arbusto espinhento, encontrava-se a vaquinha malhada.

O pássaro branco pousou sobre o arbusto e pôs-se a cantar a mais doce de todas as melodias.

A velha senhora abaixou-se, colocou o balde sob as tetas da vaca e começou a ordenhar. Agrupados em torno dela, os monges ficaram estupefatos com a quantidade de leite que saía daquelas tetas. Em um piscar de olhos, o balde estava praticamente cheio.

— Há algo de estranho com essa vaquinha, irmãos — disse a velha senhora. — Há várias semanas que ela não sai de perto deste arbusto, nem para comer nem para beber. No entanto, ela nunca esteve tão gorda e tão saudável. E pudestes ver a quantidade de leite que ela acabou de dar!

O pássaro branco ainda cantava sobre um dos galhos do arbusto.

— Eu diria até que é um milagre — continuou a mulher —, se não soubesse que Deus não costuma dar confiança a vassouras velhas assim como eu.

Os enviados do papa se entreolharam por alguns instantes e logo depois começaram a cavoucar a terra em torno do arbusto. Não demoraram muito para encontrar Kenelm. Assim que os monges retiraram o corpinho e a cabeça do rei de debaixo da terra, uma fonte de água imediatamente surgiu no interior da cova.

Com cuidado, os monges colocaram a cabeça sobre o pescoço do menino, e as partes miraculosamente se juntaram, deixando apenas uma linha vermelha como sinal. O corpo de Kenelm ainda não havia apodrecido. Parecia que ele estava dormindo.

Os monges carregaram o corpo até o castelo e colocaram-no diante do trono, onde Askbert estava sentado. Todos sabiam que o tutor tinha sido o último homem a ser visto na companhia do menino-rei, e as pessoas olhavam para ele com desconfiança.

— Ele estava vivo quando eu o vi pela última vez — disse Askbert. — Não tenho nada a ver com essa morte. Trazei-me pão! — Quando chegou o pão, ele tirou um naco e disse:

— Se eu for o culpado pela morte do rei, que este pedaço de pão entale na minha garganta! — Dito isso, colocou o pão na boca, mastigou e engoliu, e morreu engasgado diante de todos. Ninguém se dispôs a acudi-lo.

Em seguida, perguntaram a Quendry se ela tinha alguma coisa a ver com a morte do irmão.

— Nada, eu juro — ela disse. — Eu nada sabia dos planos de Askbert.

Um dos enviados do papa perguntou se ela se dispunha a jurar sobre a Bíblia.

— Trazei uma Bíblia até aqui e vereis — respondeu Quendry.

Buscaram então uma Bíblia. Segurando o livro sagrado com uma das mãos e abrindo-o numa página qualquer com a outra, ela disse:

— Se eu tive alguma coisa a ver com a morte do meu irmão, que meus olhos caiam sobre estas páginas.

E os olhos da princesa caíram — ploft! — sobre as paginas da Bíblia. Ouvi dizer que essa Bíblia, com suas páginas manchadas de sangue, é hoje um dos tesouros de Mércia. Talvez o abade tenha tido oportunidade de vê-la."

— Vi o relicário onde ela se encontra guardada — disse o abade. — O livro propriamente dito não é mostrado a qualquer um. Tua história chegou ao fim?

— Ainda não.

"Um dos monges do papa, um homem piedoso, condoído da desgraça da princesa, tomou Quendry pelas mãos e conduziu-a até a fonte que surgira no interior da cova de Kenelm. Ajudou-a a se ajoelhar e disse a ela que rezasse e pedisse perdão pelos pecados cometidos. Enquanto ela rezava, o monge derramava água sobre o rosto da princesa, nas cavidades ocas onde antes estavam os olhos. E novos olhos ali surgiram! Este, então, fora o primeiro milagre operado pelo pequeno Kenelm: curar a irmã que havia lhe querido mal.

As águas daquela fonte curaram ainda muitas e muitas pessoas. Um pequeno gole fez com que um mudo falasse. Uma gota sobre a orelha fez com que um surdo escutasse. Braços e pernas doentes tornaram-se novamente sãos. Peregrinos passaram a vir de toda parte destas ilhas, e de outras partes também, para banhar-se na fonte do são Kenelm. Talvez seja possível, se me levardes até lá, que um novo corpo nasça-me da cabeça!"

— É isso o que queres de nós? — perguntou o abade.

— Não. Tudo o que quero é que me levem até onde se encontra o meu rei para que eu possa cumprir minha promessa. Meu caro senhor dos cristãos, acabei de contar a história de um santo cristão, apoiando-me sobre o livro sagrado dos cristãos. Crês que represento algum tipo de perigo para alguém? Haverá algum tipo de magia atuando sobre mim? Peço-te mais uma vez: deixa-me ir ter com meu rei.

O abade parecia pensativo.

— Existes apenas por obra e graça de Deus. Não faz sentido que tal graça seja concedida a um pagão. Deves ser um cristão. Um santo.

— Nunca fui cristão — disse Egil, a cabeça. — Sempre fui fiel aos verdadeiros deuses, os deuses de meus antepassados.

— Pois então deves ser cristão, mesmo sem sabê-lo — disse o abade. — Sem sabê-lo, um homem pode ser bruxo e instrumento do diabo. Esse homem anda por aí com a intenção de fazer apenas o bem, mas, por influência do diabo, acaba por fazer sempre o mal. Da mesma forma, um homem pode não saber que é cristão. Pode adorar falsos deuses e, ao mesmo tempo, trazer novos discípulos para o Cristo, pois age sob a influência de Deus. Foi Deus que mandou-te até nós, para atrair peregrinos até nosso mosteiro e ajudar-nos cumprir nossa missão.

— Preciso ver meu rei! — gritou a cabeça.

— Talvez daqui a algum tempo — disse o abade. — Quando aceitares tua própria natureza, poderás ajudar-nos a converter o teu rei. Mas antes, vamos testar minha teoria e teus poderes miraculosos.

Um dos monges que estavam de pé, inclinou-se para sussurrar algo no ouvido do abade.

— De fato — disse o abade. — Lady Osyth.

— Quem é ela? — quis saber a cabeça.

— Uma triste menina. Acometida por uma doença, não do corpo, mas da cabeça. Há três anos que ela não sorri ou dá uma gargalhada. Como sabes, o riso é necessário à saúde. Seu pai pediu-nos diversas vezes que tentássemos curá-la, mas nossas orações e nossos remédios não têm produzido os efeitos desejados. Serias capaz, ó cabeça miraculosa, de fazer com que essa jovem volte a sorrir?

— Minhas histórias geralmente se destinam a ouvidos de homens, não de mulheres; mas conheço algumas que tem feito as pessoas sorrir. E se eu conseguir fazer o que me pedes? Terei permissão para ir ao encontro de meu rei, ou serei trancado numa caixa, aqui, nesta casa de Deus, obrigado a curar cegos e doentes?

Correndo os dedos sobre a mesa de madeira, o abade disse:

— Não irás ao encontro de teu rei se não fizeres essa jovem sorrir.

A cabeça suspirou.

— Em outros tempos — ela disse —, não terias coragem para falar-me assim. Mas, agora, o máximo que posso fazer é cuspir-te sobre a cara. Leva-me até essa pobre criatura, caro cristão, e se eu puder fazê-la rir, ela rirá.

 

               A CABEÇA CONTA UMA HISTÓRIA A LADY OSYTH

-Minha filha não está acostumada a ver esse tipo de monstruosidade — disse o barão Redwald.

— A cabeça poderia permanecer escondida — sugeriu o abade. — Não tenho a intenção de chocar ou ferir a sensibilidade de tua filha.

— Santo Egil? — perguntou Redwald. — Jamais ouvi falar de santo Egil. O único Egil de que ouvi falar era contador de histórias na corte do rei Penda. Ele já morreu?

O abade levou um susto.

— Quem? O contador de histórias?

— Não, o rei Penda. Segundo ouvi dizer, ele foi gravemente ferido.

— Não ouvi notícia alguma de sua morte — disse o abade. — Tenho certeza de que ele recebe o melhor tratamento possível.

— Duvido muito que nosso Edgar derramará uma lágrima sequer se Penda vier a morrer — comentou sarcasticamente o barão.

— Vim até aqui — disse o abade com firmeza — para curar a melancolia de vossa filha, se tal for a vontade de Deus. E conto com a ajuda desta relíquia sagrada. — As mãos do abade se apoiavam sobre um relicário de carvalho.

— Aquele Egil, o contador de histórias — disse o barão Redwald —, era um pagão, um pulha.

— Esta é a cabeça do mesmíssimo Egil — confessou o abade. — Momentos antes de morrer, ele recebeu Cristo e tornou-se cristão. Os céus rejubilam-se mais com a conversão de um pagão que com dez cristãos.

Nesse momento, um grunhido fez-se ouvir de dentro da caixa.

O abade bateu levemente com os dedos na lateral do relicário e disse:

— Um novo santo é sempre uma gloriosa fonte do poder de Deus. Confio que essa graça divina fará por vossa filha o que todos os remédios até agora não foram capazes de fazer.

— Assim espero — disse Redwald, com os braços cruzados. — E depois disso os peregrinos virão aos montes até vosso mosteiro, cobertos de moedas e oferendas. — Um novo barulho produziu-se no interior da caixa, dessa vez mais alto ainda. — Haverá ratos dentro desta caixa?

— Trata-se da cabeça de santo Egil — disse o abade. — Ela está rezando.

Os olhos de Redwald arregalaram-se ainda mais.

— Ela fala? Quero ouvir!

O abade levantou a tampa de carvalho e a voz de Egil propagou-se por toda a sala.

— Seu canalha, ordinário!

O rosto de Redwald transfigurou-se de surpresa e incredulidade tão logo ele se deu conta dos poderes mágicos que a caixa encerrava.

— Depressa! — ele disse. Vamos imediatamente aos aposentos de Lady Osyth!

O quarto de Lady Osyth era pequeno, escuro e quente. Não havia janelas, a porta estava fechada já havia algum tempo e o calor do fogo na lareira era sufocante. O cheiro de cravo e lavanda era tão forte que acabou por provocar dores de cabeça no abade.

Lady Osyth encontrava-se deitada sobre uma grande cama de madeira talhada, cercada de cortinas fechadas. Quando o pai abriu as cortinas, ela levantou levemente a cabeça, olhou por entre um emaranhado de cabelos despenteados e disse:

— O ar deste quarto está seco, meu pai! Acho que foste criado num celeiro!

— Precisas de ar fresco — disse o barão. A filha murmurou qualquer coisa e jogou-se novamente sobre os travesseiros. — Trouxe algumas pessoas para ver-te — completou Redwald.

— De novo, não!

— Osyth! Não sejas malcriada! Está aqui o abade Wilfred.

— Chega de orações! Não suporto mais orações.

— A menina está doente e devemos perdoá-la pelas palavras insensatas — disse o abade. — Desta vez trouxe comigo uma preciosa relíquia de santo Egil, que trará a ti a paz e a cura que tanto desejas. Assim esperamos.

A garota sentou-se novamente na cama, seu rosto escondido pelos cabelos.

— Uma relíquia? — perguntou. — Mas que parte do corpo exatamente? Um dedo? — Olhando para a caixa, viu que era algo maior. — Uma mão? Um joelho?

Segurando a caixa diante de si, o abade disse:

— Temos aqui a mais preciosa das relíquias — a cabeça de um santo.

— Oh! — exclamou Osyth. — Deixa-me ver!

— Osyth — interveio o pai. — É melhor que não vejas nada!

— Não tenho medo — disse Osyth. — Afinal, sou filha de guerreiro, não sou? Um dia, quando eu crescer, talvez tenha de vasculhar os campos de batalha à procura do teu corpo e do corpo de meus irmãos, todos cortados em pedacinhos!

— Rezo para que jamais tenhas de fazer isso — disse o pai.

— Talvez seja preciso. Não há como saber. Preciso estar preparada. Traz a cabeça até aqui e deixa-me ver.

— Não sei... — refletiu Redwald.

— Se não me deixares ver, como ela poderá me ajudar? De qualquer modo, se não me deixares ver, tapo os ouvidos com os dedos, começo a cantar e nenhuma oração será capaz de me ajudar!

O barão suspirou e sentou-se na beira da cama.

— Traz a cabeça até aqui e deixa a menina vê-la — disse ele ao abade. — Se ela tiver pesadelos, bem feito será!

O abade aproximou-se da cama e colocou o relicário sobre as cobertas. Osyth inclinou-se para frente e prendeu os cabelos desgrenhados atrás das orelhas para que pudesse ver alguma coisa.

Depois de abrir a tampa, o abade retirou da caixa um volume envolto num pano de linho. Desfazendo o embrulho, revelou a cabeça.

— Oh! — disse Osyth. Aproximou-se ainda mais e inspecionou todos os cachos da barba, todos os fios dos cílios, todos os poros da pele e todas as rugas dos lábios.

De repente, a cabeça abriu os olhos c gritou:

— Buuu!!!

Osyth levou um susto tão grande que caiu para trás com os braços esticados. Aos prantos, virou-se para o pai e disse:

— Leva isto daqui! Eu não gosto dela!

Redwald abraçou a filha e fitou gravemente o abade.

— Trouxe-vos aqui para fazer minha filha rir, e não para fazê-la chorar! Ela já chora o suficiente.

— Sinto muito. Sinto muitíssimo — disse o abade. Mas Osyth logo virou-se novamente, curiosa para ver a cabeça.

— Filha de um guerreiro, quem diria! — disse a cabeça em voz alta, como se estivesse falando a um exército inteiro. — Choras só porque eu disse "Buuu"!

— Tu me assustaste! — ela disse. — Estás cortada. Não devias falar.

— Ora, sou um santo — gritou a cabeça. — Santo Egil, eis quem sou! Posso falar quando quiser!

Osyth desprendeu-se dos braços do pai e inclinou-se na direção da cabeça.

— Trouxeram-te aqui para fazer-me rir — disse Osyth.

— E achas que não sou capaz disso?

— Ninguém até agora conseguiu fazer-me rir. Sou muito triste. Estou perto do pecado do desespero.

— E o que fizeste para ficares assim?

— Acho que cresci.

A cabeça arqueou as sobrancelhas e disse:

— Isso é de fato muito grave. — Virando o olhar para Redwald, gritou:

— Barão, se eu for capaz de fazer vossa filha rir, o que fareis por mim?

— Farei um donativo ao mosteiro — respondeu Redwald.

— Mas o que fareis por mim? Sois capaz de cumprir vossas promessas? Prometeis levar-me até o rei Penda?

O barão parecia confuso.

— Não está em meu poder prometer isso.

— E quanto a ti, rapariga? — disse a cabeça a Lady Osyth. — Costumas cumprir com tuas promessas? Posso contar-te uma história sobre promessas?

— Ah, sim! Conta-me uma história! Mas não aches que vou rir...

— Faz como quiseres. Agora silêncio. Eis aqui a minha historia.

"Era uma vez um rato. Um ratinho cinzento e minúsculo que vivia correndo pelas mesas à procura de uma migalha de pão aqui, um pedacinho de queijo acolá; até que um dia ele deu com o focinho numa parede, uma torre, bem no centro de uma das mesas. Era um jarro, um enorme jarro de madeira.

'O que será que tem dentro?', disse o ratinho a si mesmo. Pôs-se então a escalar o jarro, fincando as garrinhas sobre a madeira, subindo cada vez mais alto, até chegar ao topo. Lá no alto, inclina-se um pouco para frente para cheirar melhor, o focinho tremendo para todos os lados. 'É cerveja! E das boas!' Mas, curioso como ele só, o ratinho se descuida por um instante e — ploft! — cai dentro do jarro.

O ratinho desaparece na cerveja e reaparece dali a pouco nadando. Começa a nadar em círculos e, de quando em vez tenta escalar as paredes internas do jarro. Mas as paredes eram lisas e estavam molhadas, e nosso ratinho não conseguia sair. Ficava cada vez mais cansado. Suas perninhas começavam a doer. 'Acho que vou morrer afogado', pensou.

Mas, saracoteando pela mesa, aparece um gato. Curioso como todos os gatos, ele enfia a cabeça no topo do jarro. E de lá ele vê o ratinho, debatendo-se na cerveja e tentando fincar as garras nas laterais do jarro.

— Ó gato! — grita o ratinho. — Por favor, salva-me! Enfia tua pata no jarro e tira-me daqui!

— De jeito nenhum — disse o gato. — Minha pata ficará molhada e pegajosa, e eu não gosto nada disso.

— Mas vou morrer afogado! — grita o ratinho.

— E eu com isso? Morrerás afogado e serás encontrado boiando na cerveja. Tu e a cerveja serão jogados fora. Aí então vou comer-te, temperadinho com cerveja, sem molhar a pata e sem o trabalho de pegar-te. Para mim, está tudo bem!

— Pois então, ouve-me — suplica o ratinho. Ele está cada vez mais cansado e em breve não conseguirá mais nadar.

— Empurra o jarro e a cerveja se esparramará pela mesa. Se fores rápido, não te molharás.

— Mas tu sairás correndo — disse o gato — e então não poderei comer-te. Não. Melhor que morras afogado e sejas jogado no lixo.

— Não vou correr! Eu prometo! Se me salvares do afogamento, ficarei quietinho e terás tua refeição.

— E por que farias isso? — perguntou o gato.

— Porque o afogamento é uma morte terrível — respondeu o rato. — É a pobre morte dos tolos e dos covardes. Todavia, morrer entre os dentes de um gato... isso sim é uma boa morte para um rato! Uma morte honrosa!

__ Lá isso é verdade — disse o gato. — Todos os ratos devem morrer na boca de um gato.

— Sei que chegou a minha hora. Este é o dia marcado para mim, e não há nada que eu possa fazer. Mas preferiria mil vezes morrer engolido por um gato a morrer afogado num jarro de cerveja. Por favor, ajuda-me! Empurra o jarro e não me deixes afogar. Depois, faz o que tens a fazer. Não correrei de ti.

— Prometes? — perguntou o gato.

— Por todos os deuses, eu prometo... Quer dizer, pelo Deus único dos cristãos, eu prometo! Dou-te minha palavra de honra. Juro até pelos meus bigodes!

— Muito bem — disse o gato. Apoiando as patas contra o jarro, derruba-o sobre a mesa. A cerveja esparrama-se na direção da borda, e junto vai o ratinho. Cerveja e ratinho caem pelo chão.

De um só pulo, o gato inclina-se sobre a borda da mesa e olha para o chão. E lá estava o ratinho, correndo o mais rápido possível para bem longe dali.

— Volta cá! — gritou o gato. — Prometeste que não correrias! Tu prometeste!

O rato correu até a parede da sala, parou diante do buraco de sua toca, virou para trás e disse:

— Não ouviste dizer? Jamais acredites na palavra de um bebedor de cerveja! — E disparou para dentro do buraco onde estava seguro."

O barão Redwald deu uma boa gargalhada! O abade apenas sorriu, como se não aprovasse a moral da história. Osyth, balançou a cabeça e fez um bico com os lábios.

— Não achei nada engraçado. E além do mais, não entendi.

— Jamais acredites na palavra de um bebedor de cerveja. Não percebes? O ratinho por pouco não se afogou num jarro de cerveja! Deve ter bebido muito até se salvar, o pobrezinho — Assim que viu o rosto circunspecto da filha, Redwald parou de falar.

— É uma história boba — ela disse.

— Concordo — disse a cabeça. — Mas ouve mais um pouco, rapariga. "O gato ficou ali, na borda da mesa, emburrado, como a maioria dos gatos. Ah, ele estava muito desapontado... Decidiu então jamais confiar em ratos novamente; e em gatos tampouco! Aprendera que até as promessas mais solenes podiam ser quebradas."

— Como seria melhor para todos se promessas não fossem quebradas, caríssimos irmãos — continuou a cabeça. Como seria melhor se pudéssemos confiar na palavra de homens e mulheres que prometem coisas! O comércio prosperaria, as amizades floresceriam... Haveria muito menos rancor espalhado pelo mundo...

— Agora estás pregando para mim — disse Osyth. — Achei que querias fazer-me rir. Tinha certeza de que não serias capaz.

— Mas, e se eu te fizesse sorrir? Vem cá, rapariga, chega mais perto. Quero dizer-te algo no ouvido.

Os olhos de Osyth brilharam um pouco, e ela se inclinou em direção à cabeça.

— Essa cabeça não vai... bem, ela não vai dizer... nenhum impropério à minha filha, não é mesmo? — perguntou, constrangido, o barão Redwald.

O abade olhou-o de cima a baixo e disse:

— Trata-se da cabeça de um santo! Não há nada de impuro na cabeça de um santo, isso eu vos asseguro!

— Mais perto, mais perto — disse a cabeça à menina. E Osyth colocou o ouvido o mais perto que pôde da boca de Egil. — Prometes fazer tudo o que puderes para que o velho Egil seja levado até seu rei se ele conseguir fazer-te rir? Valerás de todos os sorrisos, de todas as lágrimas e de todas as manhas para ajudá-lo?

Osyth afastou-se um pouco e olhou para a cabeça com um ar grave. Ficou lisonjeada com o pedido de ajuda de Egil e sentiu-se capaz de ludibriar o abade e manipular o pai.

— Eu prometo — ela disse. — Prometo pela minha honra.

— Prometes por tua beleza? — insistiu a cabeça.

— Por tudo o que é importante para mim. Mas, antes, tens de fazer-me rir.

— Temos tempo suficiente para isso — disse Egil, virando-se em seguida para o pai de Osyth. — Barão Redwald!

— Sim? — respondeu o barão, assustado com o chamado repentino de Egil.

— Sempre ouvi falar de tua pessoa na corte do rei Penda.

— De mim? Acho que não. Talvez outra pessoa.

— És conhecido como um homem ponderado, cujas palavras sempre são dignas de atenção — prosseguiu a cabeça.

— É mesmo? Não, não, não. Eu não.

— Ah, sim. Mas também dizem que és muito afeito às apostas. É verdade?

— És um homem conhecido, papai! —acrescentou Osyth.

— Dizem que, nas corridas de cavalos e nas lutas, não resistes a uma aposta. Ao que parece, apostas em tudo: na primeira folha que cairá de uma árvore, em quem beberá mais que o outro, nos dados, em tudo...

O barão parecia tenso. Olhou nervosamente para o abade e disse:

— Aposto apenas o que minhas posses permitem.

— Também foi isso o que ouvi dizer — disse a cabeça. — Bem, tenho uma aposta para ti.

O barão não conteve o riso.

— Já apostei com homens que perderam a cabeça, mas nunca apostei com uma cabeça que perdeu o corpo!

— Posso dizer qual é a aposta?

— Também nunca apostei com um santo antes — brincou mais uma vez o barão.

— Devo dizer que apostas de fato não condizem com o comportamento de um santo -— emendou o abade.

— E desde quando um mercador de orações pode dizer a um santo o que fazer ou não? — perguntou a cabeça. — Barão, queres ouvir minha aposta afinal?

O barão olhou para o abade. Sentia-se constrangido mas não foi capaz de conter sua curiosidade.

Vai logo, diz!

— É simples. Aposto que posso fazer com que tu me chames de mentiroso.

O barão ficou intrigado.

— Não compreendo.

— Não é difícil — continuou a cabeça. — Contarei um pouco sobre minha vida, dos dias em que eu ainda era jovem. Se, em algum momento, me chamares de mentiroso, serei eu o vencedor da aposta!

O barão cruzou os braços e disse:

— Basta que eu não te chame de mentiroso, à revelia do que disseres, para que seja eu o vencedor. É isso?

— Isso mesmo.

— Fácil demais.

— Ora, facílimo!

Osyth interveio e disse:

— Mas isso poderia durar dias e noites!

— Tens razão, rapariga — disse a cabeça. — O barão por acaso teria uma ampulheta?

— Não. Mas, daqui a pouco, as vacas passarão do lado de fora, a caminho da ordenha. Se eu não tiver te chamado de mentiroso até então, eu ganho. De acordo?

— De acordo — respondeu a cabeça. — E agora, as pagas. Se eu ganhar, o barão fará tudo o que estiver em seu poder para que eu seja levado até o rei Penda. De acordo?

— De acordo — respondeu o barão, certo de sua vitória. — E se eu ganhar?

— Ora, se ganhares, poderás fazer comigo o que quiseres: confinar-me num altar cristão, jogar-me num monte esterco, fincar-me na ponta de uma vara, jogar-me no rio... o que quiseres.

— Não é lá o melhor dos prêmios — disse o barão. — Mas, bem... quantas pessoas poderão dizer que venceram um santo numa aposta, não é mesmo? Estou de acordo.

— Muito bem — disse a cabeça. — Pois então começo...

"Tudo aconteceu à época da Grande Fome — prosseguiu a cabeça."

— Dez anos atrás, portanto — disse Redwald.

— Não, não. No ano passado.

— Ora, ora — disse o barão —, tenho uma memória muito boa e não me lembro de fome alguma no ano passado. Mas tenho certeza de que estás certo, caro amigo. Não o chamarei de mentiroso.

— Melhor assim. Nosso jogo mal começou — retrucou a cabeça.

"Pois bem, à época da Grande Fome, no ano passado, o reino de Penda encontrava-se numa situação muito difícil. Nenhum grão de trigo, centeio ou aveia brotava da terra.O rei poderia ter mandado buscar comida em terras estrangeiras, mas como todos lembram, fomos assolados com tempestades horríveis. Os ventos eram tão fortes que derrubavam árvores e arrancavam o teto das casas..."

— Tua memória é bem melhor que a minha, caríssima cabeça — disse Redwald sorrindo. — Um ano atrás? Não me lembro de nenhuma tempestade de vento.

— Serei eu um mentiroso, então? — perguntou a cabeça.

— Não, não, não. De jeito nenhum. É que estou ficando velho. Devo confessar que minha memória já não é tão boa quanto antes.

"Por causa das ventanias, os navios não podiam zarpar — continuou a cabeça. E o rei Penda desesperava-se ao pensar na sua gente faminta. Mas, certo dia, fui até ele e disse:

— Não te preocupes, meu rei. Dá-me dois dias... Talvez três e estarei de volta com grãos suficientes para encher todos os pratos e todas as despensas do reino uma dúzia de vezes!

— E como farás isso? — quis saber o rei.

— Bem. Subirei até o topo da nossa montanha mais alta, tomarei um impulso bem grande, pularei por sobre o mar e cairei numa terra estrangeira onde abundam os grãos. Depois, é só pular de volta com a comida debaixo dos braços.''

— Um excelente plano — disse Redwald. — Não é mesmo, querida?

— Nunca ouvi nada mais bobo — respondeu Osyth.

— Fico feliz em saber que não me tomas por mentiroso — disse a cabeça.

— É claro que não!

"O rei Penda disse:

— Egil, confiamos em ti.

Pois então parti, determinado a servir ao meu rei. Subi no topo da montanha mais alta, dei uns pulos no ar para me aquecer, tomei uma grande distância, corri e saltei. Saltei por sobre as cidades e, lá do alto, os campos pareciam minúsculos. Sob minhas pernas, vi passar o mar, coberto pelas cristas brancas das ondas. Dali a pouco, pousei... Bem, não sei exatamente onde pousei, mas era um lugar muito quente, quentíssimo. À minha volta, uma enorme plantação de milho. Andei durante algum tempo pelo milharal até encontrar um homem.

— Que lugar é este, irmão? — perguntei.

— É Rooshia — ele respondeu."

— Pois então o homem falava inglês? — perguntou Redwald.

— Tive um pouco de sorte nesse caso — respondeu a cabeça. — Logo descobri que ele era de Orkney. Estava por ali viajando, mas morava em Rooshia já havia algum tempo.

— É. Realmente tiveste sorte.

— Não estás me chamando de mentiroso, não é mesmo?

— Absolutamente. Sei que os homens de Orkney adoram andar pelo mundo afora. Afinal, não há nada que os prenda em casa! — respondeu Redwald ironicamente.

— Fingirei que não ouvi isso — disse a cabeça.

"Meu conterrâneo chamava-se Thorgeir. Conversamos um pouco sobre nossa terra natal e depois perguntei:

— Quem é o dono de todo este milho? Tu achas que ele poderia me dar algum?

— Tudo isso pertence ao rei de Rooshia — respondeu Thorgeir. — Conheço o rei; posso levar-te até ele.

Aí então fomos ao encontro do rei. Contei-lhe sobre a fome que assolava as terras do rei Penda e perguntei se eu poderia levar comigo algumas braças de milho."

— O rei de Rooshia também falava inglês? — perguntou Redwald.

— É claro que não! Mas Thorgeir falava um pouco da língua deles e serviu de intérprete. Pois bem, o resultado da nossa conversa foi o seguinte. O rei permitiu que eu levasse algum milho, mas não muito. Disse que eu podia levar tanto quanto eu fosse capaz de cortar por conta própria, não com uma foice, mas com um pequeno podão. Sabes o que é um podão, Redwald?

— Já trabalhei muito no campo. Sei muito bem o que é um podão — respondeu o barão.

— E tu, rapariga? — disse a cabeça a Osyth.

— Não sei e nem quero saber. Esta história está muito chata.

— Tem um pouco de paciência — disse a cabeça. — Um podão, rapariga, constitui-se de uma lâmina curva, presa a um pequeno cabo de madeira. Com um podão, é preciso ajuntar todas as ramagens antes de cortá-las. É um trabalho lento. O rei sabia que eu não seria capaz de cortar muito milho com um podão. Mas mostrei-lhe do que sou capaz. Cortei quarenta acres de seu melhor milho.

— Quarenta acres! — disse Redwald, incrédulo.

— Em uma hora — acrescentou a cabeça.

— Fizeste em uma hora o trabalho que outro levaria um dia inteiro para fazer!

— Por acaso me chamas de mentiroso?

— De jeito nenhum. Tenho certeza de que nosso querido abade acredita nesta história tanto quanto eu.

— Pois vou contar o que fiz — prosseguiu a cabeça.

"Peguei o podão e fui até o milharal. Estava determinado a cortar a maior quantidade possível de milho, muito embora soubesse que não seria muito. Mal havia começado, quando, de repente, uma enorme lebre parda surgiu por ali. Ora, para mim não há nada melhor que um bom ensopado de lebre. Aí pensei: 'Vou pegá-la e, muito em breve, farei dela um bom jantar'. Parti então atrás da lebre, pois sou muito veloz quando quero, e quase peguei o bicho."

— Quase pegaste uma lebre correndo atrás dela? — perguntou Redwald.

— Sim. Por quê? Não acreditas em mim?

— Acredito em tudo o que dizes.

"Eu estava prestes a pegá-la, quando ela renovou o fôlego, ganhou velocidade e distanciou-se de mim. Aí, então, joguei o podão na direção da pobrezinha. O podão girou pelos ares e o cabo de madeira entrou direto no lugar mais improvável, o...'

— Nada de linguagem chula! — interrompeu o barão, preocupado com a filha.

Osyth disse:

— Isso é muito cruel! E de péssimo gosto!

— E inacreditável também — acrescentou a cabeça.

— Não, não. Acredito em tudo o que dizes, não tenhas dúvida. Prossegue — disse Redwald.

"E a lebre continuou em disparada, dando voltas e mais voltas pelo milharal. E, à medida que corria com o podão, ceifava todos os pés de milho ao lado dos quais ela passava. Para cima e para baixo. Quarenta acres de terra em uma hora"

— Nunca ouvi nada igual — disse Redwald.

— Por acaso me chamas de mentiroso? — perguntou mais uma vez a cabeça.

— Não, não.

"Bem, uma vez que o podão que acertou a lebre tinha sido arremessado por mim, o rei de Rooshia foi obrigado a concordar que, de certa forma, todo aquele milho cortado também era obra minha. Ele disse:

— Como pretendes carregar o milho para casa?

— Não te preocupes — eu disse —, pensarei numa maneira.

Naquele exato momento, senti alguma coisa me morder. Enfiei a mão por dentro da camisa e peguei um carrapato. Aí então, matei o carrapato, tirei-lhe a casca e embrulhei nela todos os milhos que a lebre havia ceifado."

Redwald riu e disse:

— Embrulhaste quarenta acres de milho na casca de um carrapato?

— Mas é claro que sim! Sou ótimo para embrulhar coisas. Por acaso me chamas de mentiroso?

— Não, não. Só queria ter certeza, só isso. Pois então tudo foi embrulhado na casca de um carrapato. E como carregaste o embrulho para casa?

— Ah, foi aí que as coisas se complicaram. Joguei a casca de carrapato sobre as costas e tomei o caminho de casa. Embora eu seja um homem forte, vou contar a verdade...

— Ah sim, contarás a verdade? — perguntou o barão.

— Estás dizendo que sou mentiroso?

— Nunca! Longe de mim tal infâmia! —disse Redwald.

"Para dizer a verdade, achei que o embrulho estava pesado demais para carregar. Tentei o ombro direito, e depois o esquerdo. Carreguei o quanto pude, suando em bicas ao longo do caminho. Quase chorei ao pensar que não seria capaz de servir ao meu rei, que tantas esperanças havia depositado em mim. Mas foi aí que uma a enorme revoada de gansos passou-me sobre a cabeça. O céu escureceu de repente. Em princípio, achei que era uma tempestade; depois, achei que era apenas o anoitecer. Mas, à medida que os gansos baixavam, pude ouvir o som das asas que batiam e os grasnados que emitiam. Foi então que o líder deles gritou para mim:

— Egil Grimmssen! Que bom encontrar-te! Vejo que estás em apuros!"

— O ganso falou contigo? — perguntou Osyth.

— O que há de estranho nisso? Eu estou falando agora contigo, não estou?

— Decerto estás — disse Redwald. — Desculpa mais esta interrupção. O ganso falou contigo. Está muito bem, prossegue.

"Eu disse ao ganso:

— Preciso levar estes milhos de volta para a Inglaterra, para o reino de Penda, nos próximos dois dias. Mas o fardo está pesado demais; não sei o que fazer.

— Não te preocupes — disse o líder dos gansos. — Nós te ajudaremos.

Então todos os gansos pousaram no chão. Encostando-se uns nos outros, fizeram um enorme colchão de plumas.

— Agora sobe em nossas costas. Vamos levar-te para casa!

Arrastei o fardo na direção dos gansos e, com muito custo consegui colocá-lo nas costas dos bichinhos. Sentei-me bem ao lado, as penas eram tão macias e quentinhas que em pouco tempo eu estava dormindo como uma pedra. Acordei algumas horas depois e tudo pareceu-me incrivelmente tranqüilo. O céu azul, o sol quente, a brisa no rosto e, vez ou outra, o grasnar de um ganso. Virei-me de bruços e, cavando um buraco entre as penas, pude ver o que estava lá embaixo. Era como se estivesse olhando pelo buraco de uma fechadura. Vi nuvens escuras e, debaixo delas, o mar agitado pelos ventos fortes, jogando os pequeninos barcos de um lado para o outro. Estávamos sobre o Mar do Norte e a costa da Inglaterra figurava no horizonte. As terras do rei Penda não estavam longe e isso me deixou feliz.

Mas, de repente, os gansos começaram a se agitar e a fazer um barulho infernal. E o líder disse para mim:

— Oh, Egil... Está pesado demais para nós! Não há como continuar! Estamos cansados demais!

Aí, então, os gansos quebraram a formação e voaram cada um para o seu lado. Eu e minha casca de carrapato..."

— Caíram pelos ares — completou Redwald.

— Isso mesmo — disse a cabeça.

— Será que, depois de carregar-te nas costas por tanto tempo, o bando de gansos não teria fôlego para agüentar só mais um pouquinho e deixar-te em casa? — perguntou Redwald.

— Tenho a impressão de que me chamas de mentiroso.

— Esquece, pois não estou.

E Egil continuou com sua história.

"Caímos do céu como um raio: eu e uma infinidade de milhos, pois a casca de carrapato havia se rompido. Um pavoroso estrondo pelos ares. Como uma chuva de granizo. E eu, o maior granizo de todos. Espatifamos na terra pouco tempo depois."

— E não morreste? — perguntou Redwald.

— Por acaso me chamas de mentiroso?

— Fiz uma simples pergunta, só isso.

"Achei que fosse cair na água, mas olhei para baixo e vi que o mar havia ficado para trás. Pude avistar algumas plantações bem macias, próximas ao castelo do rei, e achei que fosse cair sobre elas. Mas, não. Caí sobre uma pedra enorme e duríssima."

— E mesmo assim não morreste? — perguntou mais uma vez o barão.

— Por acaso me chamas de mentiroso?

— Absolutamente.

"Não morri. Mas cravei-me na pedra até a altura do pescoço e não conseguia sair. Tudo o que podia fazer era virar a cabeça para os lados e ver o que estava em meu redor."

— Devias ter então o mesmo aspecto que tens agora.

— Um comentário cruel e desnecessário, meu caro barão, se me permites dizer.

— Sinto muito! — desculpou-se Redwald.

"Eu podia olhar para os lados e ver todo o milho que eu havia trazido de Rooshia — espalhado pelo chão ou formando pilhas de alguns metros de altura. Tudo tinha caído dos céus, como uma neve amarela. E os pássaros começaram a chegar e a comer. Fiquei louco de raiva. Queria sair dali e afugentar os pássaros, mas estava preso na rocha. O que eu podia fazer?"

— Tenho certeza de que irás nos contar—disse Redwald.

"Bem, um homem apareceu pelas redondezas, um dos membros da guarda pessoal do rei, com uma espada a tiracolo. Ele havia sido pego na chuva de milho e tinha espigas por toda parte: no chapéu, nos ombros, em todas as dobras das roupas. Ele estava de passagem, estupefato com todo aquele milho. Gritei para ele:

— Aqui! Aqui!

Ele se aproximou e disse:

— És o contador de histórias do rei!

— Sei muito bem quem sou — respondi.

— O que fazes nesta pedra?

— Caí do céu e agora estou preso aqui. Serás capaz de fazer-me um favor? Saca a tua espada e corta-me a cabeça.

— Posso meter-me numa encrenca danada se fizer isso.

— Pois faz! E faz agora! Anda! Faz logo o que eu digo! — gritei tão alto e fiquei tão vermelho que ele ficou com medo, sacou a espada e decepou-me a cabeça, tal como eu havia mandado."

— Parece um hábito teu, perderes a cabeça! — disse Redwald.

— Por acaso me chamas de mentiroso?

— Foi só um comentário.

"Pois bem, minha cabeça finalmente estava livre. E partiu correndo para o castelo do rei."

— E como exatamente tua cabeça partiu correndo para o castelo do rei?

— Por acaso me chamas de mentiroso?

— De forma alguma.

— Minha cabeça rolou pelo chão até o castelo. Estás satisfeito agora?

"Mas, enquanto minha cabeça rolava entre as espigas, uma raposa se aproximou. Não era uma raposa qualquer; era uma velhaca, uma espertalhona que vinha atacando os galinheiros reais havia mais de um ano. Ela viu minha cabeça e imaginou ter achado um delicioso lanchinho! Aí, então, ela pôs-se a correr atrás de mim! Lá da rocha onde meu corpo estava preso, eu podia ver tudo o que acontecia. Ao ver a raposa se aproximando de minha cabeça, gritei:

— Corre, cabeça, corre!"

— Desculpa-me perguntar — interrompeu Redwald —, como teu corpo podia ver ou gritar alguma coisa ao mesmo tempo que tua cabeça rolava na frente da raposa?

— Por acaso me chamas de mentiroso?

— É evidente que não.

"Bem, a raposa estava chegando cada vez mais perto da minha cabeça, mordiscando no ar os dentinhos afiados. Eu, via tudo da rocha, fiquei tão nervoso que meu sangue chegou a ferver. Meu corpo ficou tão quente, mas tão quente, que a rocha se partiu e eu pulei para fora! Parti em disparada, atrás da raposa, que naquela altura já estava com minha cabeça entre os dentes. Corri o mais rápido que pude e, assim que alcancei a danada, comecei a chutar. E chutei, e chutei, e chutei, até a raposa começar a passar mal. E!a teve uma imensa dor de barriga e começou a defecar roxo, verde, amarelo... "

— E sabes de uma coisa?

— O quê? — quis saber Redwald.

— Toda a merda que saiu daquela raposa vale mais que tu e esse abade amarrados juntos!

— Mentiroso! — gritou Redwald.

— Mentiroso! — secundou o abade.

E Lady Osyth desabou na cama de tanto rir. Ria tanto que por pouco não caiu no chão. Riu até engasgar com o próprio riso.

— E até agora nenhuma vaca passou do lado de fora ou mugiu — disse a cabeça. — Portanto, ganhei a aposta. Que o barão pague o que me deve!

— Não ganhaste nada! — exclamou o barão Redwald.

— Valeste de um artifício!

— Apostas vencidas com o auxílio de artifícios não precisam ser pagas -— emendou o abade. — Além do mais, a relíquia de santo Egil está sob meus cuidados.

— Não a leve embora, padre Abbot! — suplicou Lady Osyth. — Quero ouvi-la contar mais histórias. Ficarei triste de novo se não ouvir mais histórias!

Parecia que Osyth ia começar a chorar, e o barão estava mais desolado ainda.

— Não preciso voltar para o mosteiro hoje — disse o abade.

— Terei de ouvir muitas histórias — disse Osyth ao pai — para que a tristeza não venha de novo! Muitas e muitas histórias!

— Posso ficar até uma semana — concedeu o abade.

— Seria melhor que santo Egil ficasse conosco para sempre — disse Osyth. Não é mesmo, papai? Não é mesmo? Poderíamos muito bem tomar conta dele.

— Veremos — respondeu o barão. — Mas não vamos aborrecer o abade com isso agora, está bem, querida? Podemos falar sobre isso mais tarde.

— Claro, papai! — disse Osyth, piscando para o contador de histórias.

 

                 A CABEÇA FALA DE COISAS EXTRAORDINÁRIAS

-Conta-me uma linda história — disse Osyth, virando-se na cama. — Não precisas fazer-me rir.

Osyth e a cabeça estavam sozinhos nos aposentos da menina. Duas velas queimavam, projetando uma luz difusa e formando sombras cambiantes sobre as paredes e sobre as vigas do teto. A cabeça havia sido colocada sobre uma cômoda de madeira ao lado da cama; os cabelos e a barba ruiva derramavam-se em torno de um prato de estanho.

— Acho, rapariga, que não tens dificuldade alguma para sorrir quando teu pai não está olhando ou ouvindo — disse a cabeça.

Osyth cobriu os lábios com uma das mãos e disse:

— Talvez.

— Sabes muito bem como manipulá-lo, não é mesmo?

— Isso é bom para ele — respondeu Osyth. — Agora conta uma história. Não me faças esperar.

— És tu que me fazes esperar. Quando poderei ver meu rei?

— Se quiseres que eu enrole papai, terás de dar-me tempo. Sei muito bem como fazê-lo, mas não assim, de uma para outra.

A cabeça suspirou.

— Pois bem, vejamos. Uma história que não seja para rir... Que tal uma história sobre uma garota assim como tu?

— Para mim está ótimo.

— Uma garota não exatamente como tu. Esta tinha de trabalhar para sobreviver.

— O que ela fazia? — quis saber Osyth.

— Trabalhava como ajudante numa fazenda. Fazia todas aquelas coisas que reparamos somente quando elas não são feitas... por outra pessoa, é claro. Levantava-se muito cedo, antes mesmo de o sol nascer, para buscar pesadíssimos baldes de água, colocar a lenha no fogão e nas lareiras, ordenhar as cabras e preparar o café da manhã...

— Eu poderia fazer tudo isso — interrompeu Osyth. — Bem, nunca tive de ordenhar uma cabra ou preparar o café da manhã.

— Nem qualquer outra refeição — acrescentou a cabeça. Assim como nunca tiveste de carregar baldes de água, nem acender fogões.

— Mas eu poderia aprender! — insistiu Osyth.

— É claro que poderias, rapariga, mas logo ficarias exausta e começarias a reclamar da sujeira e dos calos nas mãos. E o trabalho da ajudante era ainda muito maior! Tinha de alimentar as aves, arrumar as camas, preparar o jantar, arear as panelas, moer o milho, alimentar os porcos, costurar as roupas e ordenhar novamente as cabras. Se ainda lhe sobrasse algum tempo, tinha de fazer fios de lã. Mas tempo nunca lhe sobrava. Enquanto ela cumpria uma tarefa, outra já estava à sua espera. Ah, mas Thora nunca se cansava! Thora — era esse o seu nome. Conheci-a muito bem...

— Era sua namorada? — Osyth perguntou, rindo ao imaginar uma cabeça (nada mais que uma cabeça!) namorando alguém.

— Ah, outros dias, outros tempos — disse a cabeça. — Conhecia Thora muito bem e é tudo o que direi. Mas o trabalho lhe fazia bem. Os patrões eram muito exigentes, mas alimentavam-na com fartura. Era uma garota corpulenta, vigorosa. Cabelos grossos e ondulados emolduravam-lhe o rosto...

Osyth jogou-se sobre os travesseiros e disse:

— Mas o que aconteceu a ela, a essa tal de Thora?

"Aconteceu que um dia mandaram-na atrás de algumas ovelhas desgarradas. Ela ia alegremente pelos caminhos: ora correndo, ora andando, sempre à procura de alguém com quem conversar, quando então passou em frente ao cemitério. Dois homens cavavam um buraco. Thora aproximou-se para perguntar se não tinham visto as ovelhas. Mas o que ela queria mesmo era saber a quem se destinava aquela cova, jogar conversa fora e flertar."

— Conversar com homens! — espantou-se Osyth.

— Ah, aquela ali nunca perdia uma oportunidade de conversar com homens.

"Ao verem-na se aproximar, os mancebos do cemitério logo se endireitaram e começaram a sorrir, pois conheciam Thora e sabiam o quanto ela era divertida."

— Oferecida, isso sim — disse Osyth.

— Aí é que te enganas. Thora era uma garota gentil, simpática, de bom coração.

"— Procurando por um namorado? — perguntou-lhe um dos coveiros. — Vem ver o que achamos aqui! — disse ele, apontando para um monte de ossos que tinham acabado de desenterrar.

— Um brutamontes, seja lá quem for — disse o outro coveiro, apontando um crânio enorme, muito maior que o de uma pessoa comum. Os ossos da perna eram bem grandes também.

— Ora, ora, mas que pernas mais lindas — disse Thora. Em seguida, pegou o crânio e segurou-o em frente ao rosto. "

— Argh! — resmungou Osyth, enojada. — Ela pegou o crânio? Tu és grotesco, mas ainda tens um rosto!

— Ah, mas não te esqueças, minha sensível rapariga, de que Thora já havia colocado as mãos em coisas muito piores na fazenda: era ela quem matava coelhos e galinhas para as refeições; era ela quem limpava o cocô dos bebezinhos e o vômito dos beberrões. Thora não tinha esse tipo de sensibilidade.

"Ela segurou o crânio bem na frente do rosto e disse:

— Se este aqui ainda andasse sobre o chão, eu juro que lhe tascaria um beijo na boca!

— Eu ainda ando sobre o chão, Thora! — disse um dos coveiros.

— Ah, mas não és um brutamontes; tu não passas de um frangote!

— Mas os melhores artigos vêm nas menores embalagens, não sabias?

O outro coveiro esticou-se todo para mostrar que era um dedo mais alto que o amigo.

— És muito velho para mim; sou ainda muito jovem — disse Thora.

— Lindas melodias também se tocam em gaitas velhas — disse o coveiro.

— Gaitas velhas desafinam! — Thora jogou o crânio no chão e foi embora, saltitante, à procura das ovelhas desgarradas.

Ela encontrou as ovelhas e tocou-as de volta para a fazenda. No caminho, conversou com mais algumas pessoas, colhendo todo tipo de novidades. Nem se lembrava mais de ossos, crânio ou cemitério.

À noite, depois de preparar o jantar e acender as velas de sebo e pavio de junco, Thora costumava divertir os patrões e os outros empregados com as histórias do dia enquanto distribuía os pratos de comida. Na fazenda, todos gostavam muito dela. Depois do jantar, todos iam dormir. Eles trabalhavam arduamente durante o dia, rapariga. Mas não tinham velas de cera para queimar. Nem aposentos individuais. Todos dormiam no mesmo quarto, em volta de uma lareira."

— Parece aconchegante — disse Osyth.

— Sufocante, na verdade — disse a cabeça.

"Thora sempre era a última a se deitar, pois tinha de apagar as velas de sebo e alimentar o fogo para que queimasse até o amanhecer. Naquela noite em que saíra à procura das ovelhas, Thora acabara de se deitar quando ouviu alguém chamar seu nome. Levantou a cabeça e não viu nada. Percebeu que a voz vinha do lado de fora:

— Thora... "

Osyth ajeitou-se na cama, dobrando os joelhos e cruzando os braços sobre o torso.

— Nunca deves responder quando chamam teu nome do lado de fora. Será que Thora não sabia disso? — perguntou.

— Mas é difícil ficar calado quando chamam por ti.

"No interior da casa, ouvia-se apenas o ronco das pessoas. Thora resolveu esquecer o assunto e estava quase dormindo quando, de repente...

— Thora... Thora... Vem até aqui! — disse a voz.

Apoiou-se sobre os cotovelos e ficou parada, tentando ouvir mais alguma coisa do lado de fora. Mas não ouviu nada. Falando baixinho, para não acordar ninguém, ela disse:

— Tem alguém aí?

Ninguém respondeu.

Tentou retomar o sono. Mas, dessa vez, ouviu alguém bater na porta de casa, tão forte que parecia bater diretamente no seu coraçãozinho, disparado de tanto medo.

— Thora... Thora... — Aí, então, ela não se conteve e levantou. "

— Ela não vai sair de casa no escuro, não é mesmo? — antecipou-se Osyth.

— Ela precisava saber o que estava acontecendo — respondeu a cabeça.

"Será que estava sonhando ou alguém realmente chamava por ela? Vestindo apenas uma camisola, tateou pelas paredes mal iluminadas pelo fogo da lareira até encontrar uma vela de sebo para acender. A luz das velas de sebo e pavio de junco, rapariga, é muito mais fraca que a luz das velas de cera de abelha, mas suficiente para dar algum conforto. Thora caminhou até a porta, levantou a trava e abriu-a. A noite estava escura como carvão. Ao sentir o ar frio que vinha do lado de fora, seu corpo tremeu da cabeça aos pés.

Não havia lua no céu e o quintal da fazenda parecia um enorme buraco negro. Em meio a toda essa escuridão, a luz da vela de sebo era quase nada.

— Tem alguém aí? — Thora procurou dar um ar de coragem à sua pergunta, mas a voz custou a sair-lhe da garganta.

Do meio da escuridão, ouviu:

—Thora... Vem até aqui... Thora..."

Apavorada, Osyth disse:

— Ela não vai a lugar algum, não é? No lugar dela, eu correria de volta para a cama e me esconderia debaixo das cobertas!

— Mas aí a voz não pararia de chamar nunca. Nem naquela noite nem nas outras.

"Thora precisava saber quem estava ali e por que estava chamando por ela. Protegeu a chama da vela com uma das mãos e deu o primeiro passo para o lado de fora. A terra úmida e lamacenta do quintal estava fria sob seus pés descalços, mas isso não a deteve.

— Vem, Thora, vem... — disse a voz.

— Quem é você? — perguntou Thora. Mas ninguém respondeu. Deu mais um passo, e depois mais outro. De repente, um vulto grande e escuro bloqueou-lhe o caminho, quase matando a pobrezinha de susto. Ela levou a vela mais à frente e tudo o que pôde ver foi uma túnica rústica, toda suja de lama."

— Oh, não! — gritou Osyth.

"Levantou a vela ainda mais e viu os fios crespos de uma barba: uma barba imunda, com vermes agarrados nela."

— Não! — gritou novamente Osyth.

"Levantou a vela ainda mais e viu um rosto acinzentado: um rosto murcho, viscoso, escuro. Dois olhos sem cor olhavam para ela por entre sulcos profundos e pálpebras caídas.

Thora estava paralisada, nenhuma palavra saía-lhe da boca. Mas o homem disse:

— Ah, minha doce Thora, minha face rosada já não existe mais; a Morte levou-lhe toda a cor. O hálito é podre e os pêlos da cara estão imundos. Mas lembra-te do que disseste, Thora? Que se eu andasse sobre o chão, tu me darias um beijo? Pois bem, aqui estou. — E o cadáver abriu os braços longos, à espera de um beijo de Thora."

Cada vez mais aterrorizada, Osyth cobriu o rosto com as mãos.

— Terias coragem de beijar um cadáver, rapariga?

— Não!

— Beijarias a mim, que tu conheces?

— Jamais!

"Pois Thora ficou na ponta dos pés e disse:

— Abaixa-te um pouco, gigante, abaixa-te um pouco! — E o horrendo morador do cemitério abaixou-se para que ela pudesse alcançá-lo. Thora arrancou-lhe um verme da barba e tascou-lhe um beijo nos lábios frígidos.

— Aí está — ela disse. — Agora deixa-me dormir! — Disse isso e correu para casa, onde lhe esperavam cama e cobertas."

— Beijar um homem morto! — Osyth contorcia-se de tanto nojo. — Mas que horror! Eu jamais seria capaz! Jamais!

— Uma rapariga corajosa, essa Thora — disse a cabeça. — Pagou sua dívida e cumpriu sua promessa. Não foi só tu que quiseste saber como ela tinha sido capaz de beijar um cadáver.

"Quando ela contou aos outros o que tinha acontecido, todos perguntaram a mesma coisa.

— Foi o único homem que beijei — disse ela — que jamais sairá por aí, atrás de outras mulheres. Quem mais coragem de beijá-lo?

E depois desse episódio, a sorte de Thora mudou drasticamente. Tudo o que se metia a fazer, ela fazia bem. Todos os seus planos davam certo. Casou-se com um homem apaixonado por ela, e o casal nunca parou de prosperar. Tiveram cinco filhos saudáveis, que cresceram e conquistaram o respeito de todos. Thora jamais adoeceu e continuou linda, mesmo depois de velha. As pessoas diziam que alguém velava por ela, e muitos acreditavam ser o cadáver que ela havia beijado naquela noite, no quintal da fazenda. Ela morreu repentinamente, na casa de um de seus filhos. Estava sentada, perto da lareira, quando olhou para o alto, sorriu como se estivesse muito feliz, murmurou alguma coisa e morreu logo em seguida. Aqueles que estavam perto dela disseram que suas últimas palavras foram:

— Ora, quem vem lá!"

— O que será que ela viu? — perguntou Osyth.

— Como saber? — disse a cabeça. — Ela estava morta e não tinha como contar. O que tu achas que ela viu?

— O homem morto — respondeu Osyth.

— Pois é isso que muita gente acha — disse a cabeça. — Depois de muitos anos de devoção, o amante morto voltou para buscar a amada e levá-la consigo.

— É esse o fim da história?

— Sim, é esse.

— Bem... — Osyth puxava alguns fios de cabelo para fora das tranças apertadas enquanto pensava. — Foi uma historia romântica... Mas com covas, ossos e vermes! Cruz-credo! Pensando bem, foi uma história horrível. Não gostei nem um pouco.

— Tu disseste que a historia não precisava fazer-te rir.

— Mas também não precisava ser tão asquerosa! Conta-me mais uma. Mas, dessa vez, que seja linda e tenha um final feliz!

— Uma história de amor? É isso o que queres?

— Pode haver amor nela — disse Osyth. — Anda, conta-me uma história bem bonita e eu farei tudo o que puder para que tu sejas levado ao teu rei.

— Bem, contarei a história de uma gente que conheci na minha terra natal — disse a cabeça.

"Havia um fazendeiro que, no início de todos os verões, confinava as ovelhas e o gado num piquete, distante da casa principal da fazenda."

-— Um piquete é um cercado onde os animais pastam durante o verão, não é?

— Isso mesmo. És mais inteligente do que pareces.

— Quando crescer e me casar, terei de cuidar das minhas próprias terras. Preciso saber dessas coisas.

— Ora, ora! Pois então pensas em casamento?

— Anda logo com essa história.

— Vamos lá.

"Todos os verões, o fazendeiro mandava as vacas e as ovelhas para o piquete nas montanhas, onde podiam pastar à vontade e engordar. Junto com os animais iam um pastor, um vaqueiro e uma leiteira para ordenhar o rebanho todos dias e fazer manteiga e queijo. Ao lado do piquete, havia uma choupana onde os empregados se alojavam durante o verão. Bem, esse fazendeiro tinha uma filha que, desde pequenininha, gostava muito de passear na região do piquete. No início, uma mulher a acompanhava, mas ela era tão esperta que, em pouco tempo, tornou-se capaz de ir sozinha. A menina cresceu e tornou-se uma jovem recatada, quieta. Nunca tinha muito a dizer e não se incomodava em ficar sozinha. Gostava de passar os verões na choupana; dizia que os dias longos e tranqüilos das montanhas lhe faziam bem. Era uma jovem muito bonita..."

— Como ela se chamava? — perguntou Osyth.

— Katla.

"Ela era alta, forte, e seus cabelos iam até o joelho. Quando ela os prendia, as tranças ficavam mais grossas que meus braços; quero dizer, mais grossas que os braços que eu tive um dia. Katla era uma garota linda, saudável, habilidosa e frugal; por causa disso, vários mancebos apareciam na fazenda, aparentemente só para conversar com o dono, perguntar por sua saúde e oferecer ajuda no trabalho. Ora, não demorou muito para que o fazendeiro percebesse o que estava acontecendo e, certa noite, conversando com a filha junto à lareira, perguntou se já lhe havia ocorrido a idéia de casamento.

— Sim — ela respondeu.

— E o que pensas sobre o assunto? — quis saber o pai.

Katla sorriu e disse:

— Penso que jamais me casarei.

— Como assim, nunca? O que pretendes fazer?

— Continuarei a fazer o que faço agora — respondeu.

— Mas, filha, as coisas mudam tão depressa quanto mudam as nuvens no céu ou as águas no riacho. Estou ficando velho e logo não estarei mais em condições de cuidar da fazenda tão bem quanto tenho cuidado até agora. Um dia vou morrer e tu ficarás sozinha. E, quando esse dia chegar, melhor seria que tivesses um marido ao teu lado.

— Não é bem assim — disse a filha. — Sabes muito bem que sou capaz de tocar a fazenda sozinha. E não somos tão pobres assim que não possamos contratar um homem para fazer o serviço pesado.

— Todavia, melhor seria que um homem fizesse o trabalho pesado por amor — insistiu o fazendeiro.

— Ou por interesse próprio — disse Katla. — Basta olhar por aí. Hã homens que se casam com garotas como eu, interessados apenas nas terras e nos bens que elas possuem. Depois, gastam todo o dinheiro no jogo, na bebida ou em roupas extravagantes. E, se as mulheres acham ruim, eles acabam batendo nelas. Ou passam a tratá-las tão mal que muitas preferem se afogar.

— Nem todos os homens são assim — argumentou o pai.

— Não, nem todos. Tu, por exemplo, não és assim. Mas, muitas vezes, é difícil para uma mulher saber, antes de se casar, que tipo de homem está a seu lado; depois, já é tarde demais."

— Ah, isso lá é verdade — disse Osyth.

"O fazendeiro continuou:

— Mas querida, assim tu ficarás muito sozinha.

— Estou acostumada com a solidão e gosto da minha própria companhia — disse Katla. — Melhor sozinha e feliz que casada e miserável.

— Mas e os filhos? — perguntou o fazendeiro. — A maioria das mulheres deseja ter filhos.

— Sempre há crianças que precisam de ajuda — disse Katla. — Órfãos e crianças nascidas em famílias muito grandes, sem condições de sustentá-las. Se um dia eu sentir de um filho, posso pegar uma dessas crianças para criar.

Não havia nada que pudesse demover Katla de suas idéias. Os mancebos continuavam a aparecer na fazenda, mas ela os recebia apenas cordialmente. Na maioria das vezes, deixava-os a conversar com o pai, sabendo que não era esse o objetivo da visita deles. Os anos passavam, e Katla insistia em passar os verões na choupana próxima ao piquete. Interessava-se cada vez mais pelos assuntos da fazenda até que, um dia, aprendeu tudo o que havia para aprender.

Era inverno novamente, e a neve fazia com que as pessoas passassem boa parte do tempo amontoadas dentro de casa. Certo dia, o fazendeiro percebeu que a filha estava mais gordinha que de costume. De início, não deu muita atenção ao fato. Mas Katla continuou a engordar e, vez ou outra, o pai a via afrouxando o avental. Também chegou a vê-la passando mal.

— Katla — disse o fazendeiro à filha —, acho que vais ter um bebê."

— E ia mesmo? — perguntou Osyth.

"Katla disse:

— Como podes dizer tal coisa? Logo tu, papai!

— Estás engordando muito...

— Como mais que devo e passo boa parte do dia sentada. Ficarei magra novamente quando o verão chegar e eu puder voltar ao piquete.

— Mas nunca havias ficado doente antes...

— Minha digestão não anda boa. Ficarei melhor quando voltar a comer comidas frescas. Tudo voltará ao normal no verão, tu verás.

— Acho que não deverias passar o próximo verão no piquete. — O pai não acreditara em Katla e achou melhor que ela estivesse em casa quando chegasse a hora de dar à luz. Os vizinhos poderiam ajudar.

— Não vejo a hora de voltar ao piquete. Não ficarei trancada em casa durante todo o verão também.

Katla tinha uma personalidade forte e ficava zangada sempre que o pai falava alguma coisa sobre seu ventre que não parava de crescer ou sobre sua idéia de passar o verão nas montanhas. Com o tempo, o fazendeiro não disse mais nada. Mas, tão logo o verão chegou e o rebanho precisava novamente ser levado para o piquete, ele chamou o vaqueiro e o pastor e disse:

— Quero que fiqueis de olho em minha filha. Ela não deve ficar sozinha nem por um instante. — Os empregados gostavam do fazendeiro, e de Katla também, e concordaram em ajudar.

E lá foi Katla passar o verão nas montanhas, como de costume."

— E ela estava mesmo esperando bebê? — perguntou Osyth.

— Espera o fim da história e verás — disse a cabeça.

"— Katla e os dois empregados partiram em direção ao piquete, tocando as ovelhas e as vacas. Quanto mais se aproximavam, mais Katla se sentia feliz. Assim que chegaram, Katla pôs-se a limpar a choupana, assobiando e cantarolando enquanto trabalhava.

— Há muito não te víamos assim, tão animada, Katla — disse o vaqueiro. Ao que ela respondeu:

— Fico muito feliz em estar aqui novamente, respirando ar puro sob o sol de verão.

Durante os dias que se seguiram, todos cuidaram de suas tarefas, assim como faziam todos os anos."

— O que eles faziam? — perguntou Osyth.

— Nunca cuidaste de um rebanho, rapariga?

"Bem, os homens tocavam os animais, que haviam passado todo o inverno confinados no estábulo, para as melhores pastagens. Também ajudavam no parto dos bezerrinhos e dos cordeirinhos. Muitas vezes, tinham de passar a noite inteira acordados, espantando os gaviões. Ajudavam Katla com a ordenha e, às vezes, também com a feitura da manteiga e do queijo. Fazer manteiga não é fácil, pois não se pode parar de bater um instante sequer. E Katla fervia água e escaldava todo o recipiente, mantendo-o limpo para não estragar a manteiga. Também preparava comida para todos, somente coisas simples, como caldos de aveia que podia deixar cozinhando o dia inteiro. Contudo, durante horas e horas, eles não tinham mais nada a fazer a não ser aproveitar o sol. Os homens saíam para pescar ou preparar armadilhas para coelhos, mas, como tinham prometido ao fazendeiro, um deles sempre ficava perto de Katla. Ela não percebia que estava sendo vigiada, ou se percebia, não se incomodava com isso.

Então, certa manhã, quando o vaqueiro e o pastor acordaram e saíram ainda sonolentos da choupana, viram que o piquete estava vazio. Nenhuma ovelha e nenhuma vaca nas redondezas. Assim, quebrando a promessa que tinham feito ao fazendeiro, o vaqueiro e o pastor foram obrigados a abandonar Katla e sair à procura do rebanho.

Mas o clima estava estranho. Enquanto procuravam pelos animais, uma espessa neblina se formou e os dois empregados se perderam um do outro. Nada lhes restava a fazer senão sentar e esperar a neblina passar, embrulhados em suas longas capas de couro. Pois de uma coisa deves sempre lembrar, rapariga: jamais andes numa montanha quando não enxergares muito bem o que te vai pela frente. Se não tomares cuidado, descerás dela mais depressa que de costume."

— Se algum dia eu estiver sozinha numa montanha coberta de neblina, vou lembrar-me disso — brincou Osyth.

— Não rias! — disse a cabeça. — Nunca sabemos o dia de amanhã. Até mesmo a rapariga mais rica, filha de seu riquíssimo papai, poderá um dia encontrar-se nessa situação.

— Sim, mas o que aconteceu a Katla?

"Bem, Katla ficara sozinha na choupana e procurou manter-se ocupada com alguma coisa. Quando a neblina finalmente se dissipou e os homens retornaram com os animais, ela correu até a porta e gritou:

— Depressa, um caldo quente vos espera sobre o fogão! — E ela começou a rir. Aliás, Katla ria tanto, e sempre das coisas mais bobas, que os empregados quiseram saber se ela se sentia bem.

— Mas é claro que estou bem! —ela disse. — Estou feliz porque a neblina foi embora e porque os animais voltaram em segurança. — E riu mais uma vez. Katla estava estranha, e os homens haviam percebido algo diferente enquanto ela andava de um lado para o outro servindo-lhes a comida..."

— O quê?

— O ventre protuberante de Katla havia desaparecido. Ela estava mais magra que nunca.

— Então ela teve o bebe! — disse Osyth.

— Ah, não. Ela nunca esteve grávida, como sempre afirmara.

— Ou então ela teve o bebê e deu um sumiço nele! — disse Osyth. — E um dia ele poderá vir assombrá-la...

— Não. Isso é outra história — disse a cabeça. — Deixa-me terminar.

"Quando o verão chegou ao fim, os animais foram levados de volta para a fazenda. O fazendeiro sentia tantas saudades da filha, que esperava por ela ao lado da porteira. Tão logo deitou os olhos sobre Katla, viu que estava magra como uma folha de capim. Assim, na primeira oportunidade que teve, foi conversar com o vaqueiro e com o pastor.

— Pedi-vos que jamais deixassem minha filha sozinha. Espero que tenha sido isso o que fizestes.

— Nós tentamos. Mas, um dia, os animais fugiram do piquete e tivemos de sair à procura deles — justificou-se o pastor.

— E uma neblina formou-se do nada -— emendou o vaqueiro.

— Ficamos fora o dia todo. Não havia nada que pudéssemos fazer.

— E quando voltamos, ela estava assim como está agora.

— Pois bem — disse o fazendeiro. Ele parecia tão triste e tão sério que o pastor se atreveu a perguntar qual era o problema.

— Eu acho — respondeu o fazendeiro — que minha filha conhece as montanhas e as coisas que lá vivem muito melhor que tu, vaqueiro, e que tu, pastor. Acho também que devo arranjar um casamento para minha filha o mais breve possível.

— Boa sorte para o senhor! — disse o vaqueiro, provocando o riso do pastor. Ora, os dois tinham olhos para ver. Tinham visto a quantidade de pretendentes que foram até a fazenda e saíram de lá apenas com um sorriso amarelo entre os lábios."

— Mas, como diz a canção — lembrou a cabeça —, "se todas as jovens fossem lebres na montanha, todos os jovens teriam o faro dos cães".

E Osyth emendou:

— "Se todas as jovens fossem peixes no mar, todos os jovens teriam as asas das gaivotas."

— Isso mesmo.

"Assim, não demorou muito até que mais um jovem mancebo aparecesse para visitar o pai de Katla. Perguntou educadamente como andava a saúde do fazendeiro e como andavam os trabalhos na fazenda. Assim que pôde, disse:

— Tu me conheces, e conheces minha família. Sabes que ninguém tem nada contra mim.

— É claro que sim — disse o fazendeiro, que já havia se acostumado àquele tipo de conversa. Entretanto, dessa vez era diferente. Estava disposto a fazer mais que simplesmente ouvir e balançar a cabeça.

— Não sei se sabes, mas perdi meu pai na primavera passada — disse o pretendente.

— Sim, eu sei, e fiquei muito triste ao sabê-lo. Era um homem bom.

— A fazenda agora é minha — continuou o jovem —, e tenho feito um excelente trabalho nela.

— Foi o que ouvi dizer.

— Minha mãe toma conta da casa, mas diz que está ficando velha demais para fazer todo o serviço. Gostaria que eu não tardasse em me casar e lhe desse netos o quanto antes. Que os deuses façam a sua vontade — disse o fazendeiro.

— Portanto, pensei muito e decidi que tua filha seria para mim a melhor das esposas.

— E ela teria de andar muito para encontrar um marido melhor que tu — replicou o fazendeiro. — Estamos, pois, de acordo. Tratemos agora dos termos do casamento.

— Não vais perguntar nada à tua filha?

— Não te preocupes. Farei com que ela não recuse tua oferta como recusou as outras. — Conversaram, então, sobre os termos do casamento e o jovem pretendente foi embora feliz. Depois disso, a missão do fazendeiro era convencer Katla.

Pai e filha brigaram durante dias. Os outros moradores da fazenda nem ousavam levantar os olhos da mesa durante as refeições. Depois de comer, saíam da sala discretamente e corriam em direção ao celeiro à procura de trabalho — qualquer trabalho que os mantivesse longe dos dois.

— Não quero me casar! — disse Katla. — Principalmente com um homem que mal conheço! Não, não me caso!

— E achas, senhorita — perguntou o fazendeiro —, que a história de tua temporada nas montanhas não chegará ao ouvido de todos? O que vamos dizer quando souberem que saíste daqui gorda como uma vaca carregando bezerro e voltaste magra como um palito? Quem se disporá a casar contigo depois disso?

— Mas não quero me casar! — gritou Katla.

— Não queres isso, não queres aquilo... Estou farto de tuas manias e vontades! Antes de morrer, farei o que um pai deve fazer e cuidarei para que tu te cases com um homem bom. E estamos conversados!

— Não me casarei com ninguém! — insistiu a filha.

— Pois, então, vai até a fazenda desse jovem e diz à mãe dele que teu pai é um mentiroso! E explica ao filho o que há de errado com ele, diz por que ele não serve para ti!

-— Cuidaste desse casamento sozinho, sem o meu consentimento. Portanto, vás tu à fazenda dessa gente e diz o que bem quiseres! — retrucou Katla.

O fazendeiro jogou-se num banco qualquer, cruzou os braços e disse:

— Eu não saio daqui.

Ah, foi uma briga terrível. Durou dias e dias. Pai e filha batiam panelas sobre a mesa, jogavam colheres pelos ares... Todos tinham dores de cabeça e já não suportavam mais aquela situação. As coisas pioraram muito quando, certa noite, o pai surpreendeu a filha fugindo de casa com uma trouxa de roupa sob os braços. Ele a trouxe de volta pelos cabelos e chegou até mesmo a bater nela. Isso nunca tinha acontecido antes.

— Não irás a parte alguma! — ele disse. — Ficarás aqui e te casarás com um homem!

Aqueles que ouviram a gritaria estranharam o comentário. O fazendeiro trancou Katla na despensa, o único lugar da casa com uma tranca, colocou vigias na porta e mandou buscar o jovem que ele havia escolhido para desposara filha. Todos se surpreenderam diante da severidade do pai com a filha que ele tanto mimara.

— Deves desposá-la agora — disse o fazendeiro ao jovem que acabara de chegar —, ou jamais a desposará.

— Quero casar-me com uma mulher que queira se casar comigo, e não com alguém que eu tenha de trancar na despensa — disse o jovem.

Então, o velho puxou-o para um canto e contou-lhe no ouvido certas coisas de que suspeitava.

— Serás a salvação de minha filha — disse o fazendeiro. — Se a tratares com gentileza depois do casamento, ela acabará cedendo."

— Salvar a filha do quê? — quis saber Osyth. — De quê suspeitava o fazendeiro?

— Ouve e saberás — disse a cabeça.

"O jovem pretendente não ficou muito satisfeito, mas concordou. Eles tinham testemunhas e tudo o que era preciso para realizar o casamento. Trouxeram Katla da despensa.

— Uma vez que me desposas contra a minha vontade — disse ela —, promete uma coisa.

— O quê?

— Depois que estivermos casados, quando homens vierem até a fazenda à procura de trabalho durante o inverno, não contrate nenhum deles sem antes me consultar. És capaz de prometer-me isso?

— É um pedido estranho — disse o jovem. — Por que te preocupas com isso?

— Prometes?

— Pois bem — acedeu o jovem. — Prometo que nunca contratarei homens no inverno sem antes consultar-te.

— Se quebrares tua promessa, tu te arrependerás amargamente — disse Katla.

O jovem tomou as mãos de Katla nas suas e disse:

— Nunca deixarei de cumprir com minha promessa. — Ele não via motivos para isso.

Deu-se então a festa do casamento: uma festa improvisada, é claro, e Katla foi-se embora com o marido. A sogra deu-lhe as boas-vindas e entregou-lhe todas as chaves, deixando claro que a nora era a nova dona da casa.

— Não quero interferir em nada — ela disse. — Fico feliz em poder descansar um pouco. Mas, se precisares de algum conselho, basta pedir.

Katla cuidara de uma fazenda durante quase toda a sua vida e só precisou perguntar onde ficavam algumas coisas. Assumiu a administração da casa sem a menor dificuldade. Era uma boa dona de casa, mas não estava feliz. Quase nunca sorria e tratava o marido com frieza, muito embora o coitado fizesse de tudo para agradá-la e se oferecesse para fazer todas as tarefas pesadas, sujas ou desagradáveis.

— Posso fazer isso perfeitamente bem — ela dizia, levantando um pesado balde de água ou limpando o esterco da pocilga. — Não preciso de favores, muito obrigada. — Era fria como gelo. Embora compartilhasse uma casa e um quarto de dormir, com um grande número de pessoas, ela procurava manter certa distância.

Quando chegou a primavera, todos acharam que Katla se mudaria para a choupana para cuidar dos animais. Mas ela disse:

— Não quero mais. Que outra pessoa se encarregue disso. — E quando chegou a época de preparar o feno, ela também se recusou a ir para os campos junto com os outros trabalhadores. Preferia permanecer em casa, cozinhando, fiando ou tecendo. A sogra fazia-lhe companhia, pois não tinha muito o que fazer nos campos de feno.

Katla permanecia calada a maior parte do tempo. Certa vez, cansada de tanto silêncio, a sogra começou a contar histórias, apenas para ouvir o som da própria voz e fazer o tempo passar. Falou de pessoas que havia conhecido na juventude, de coisas que tinha feito, e contou histórias que tinha ouvido da mãe ou da avó. Temia que estivesse falando sozinha, mas logo percebeu que a nora escutava a tudo, embora não dissesse nada.

— Minha boca está seca de tanto falar. Contei-te minhas histórias. Por que não me contas as tuas? — disse a sogra, voltando do jardim com um ramo de tomilho nas mãos.

— Não conheço nenhuma — respondeu Katla.

— Ah, pelo menos uma deves conhecer...

— Não. Nenhuma.

— Ora, não é justo que tenhas te divertido com minhas histórias e depois te recuses a contar uma única sequer!

— Se digo que não tenho histórias para contar é porque realmente não tenho — disse Katla. Mas, tão logo disse isso, arrependeu-se de ter sido tão seca. Depois de alguns instantes de silêncio, emendou:

— Bem, na verdade conheço uma só.

— Pois então, conta.

— Não é uma boa história.

— Deixa-me dizer se é boa, ou não, depois de ouvi-la.

— Era uma vez — começou Katla — uma jovem que costumava passar os verões nas montanhas, cuidando dos animais, ordenhando as vacas, fazendo manteiga e queijo. Não muito longe da choupana onde se alojava, havia uns rochedos, e nesses rochedos morava um homem-elfo.

— Um homem-elfo! — exclamou a velha. — Ela chegou a vê-lo?

— Ela o viu muitas vezes.

— E ele era muito feio?

— Ele não era nada feio — disse Katla. — Era alto, forte e bonito.

— Eu achava que elfos fossem pestinhas tortas e horrorosas! — disse a velha.

— Esse era bem diferente.

— Talvez ele tenha se valido de um feitiço para esconder sua feiúra e tornar-se tão bonito quanto dizes.

— Se houve feitiço, ele também serviu para torná-lo afável, gentil e carinhoso. O homem-elfo caminhava ao lado da garota e dizia-lhe o quanto ela era linda. Também dizia estar apaixonado por ela. E ela o amava também. Desculpa. Não sou boa para contar histórias.

— De forma alguma! Continua.

— Bem, o que mais há para contar? Eles se encontravam freqüentemente, e não demorou muito para que a jovem ficasse grávida. Terminado o verão, ela voltou para casa e seu... seu patrão quis saber quem era o pai da criança. Ela disse que não havia criança alguma, e nem pai da criança. Começou a usar roupas largas para esconder a barriga. Na primavera seguinte, ela voltou às montanhas, ansiosa para rever o amante elfo, com quem havia se encontrado apenas em sonho durante todo o inverno. Dessa vez, o patrão orientou os outros trabalhadores para vigiar a jovem leiteira e nunca deixá-la sozinha. Assim, ela não tinha oportunidade para encontrar o amante Mas o elfo também queria se encontrar com ela e cuidou para que as vacas e as ovelhas fugissem do piquete. Os homens foram obrigados a sair à procura dos animais e, de modo a dificultar o trabalho deles, o elfo providenciou que uma forte neblina baixasse sobre as montanhas.

— Protegido pela neblina, o elfo foi ao encontro da garota e ajudou no nascimento do filho. Lavou o bebezinho e embrulhou-o nos mais lindos panos que ele mesmo havia trazido.

— Levarei nosso filho comigo até que possamos estar juntos — ele disse. — Há muitas pessoas que tomarão conta dele com todo carinho. Mas antes de ir-me embora, deverás beber do líquido desta garrafa.

Tirou um frasco do bolso e entregou-o à garota.

— Foi a bebida mais doce e inebriante que eu...

Nesse momento, Katla tossiu e deixou cair o rolo de lã com o qual estava tecendo. Abaixando-se para pegá-lo, continuou:

— ...que ela jamais havia tomado. Em pouco tempo, recuperou-se das dores do parto como se nada tivesse acontecido. Quando os homens voltaram com os animais, passaram a vigiá-la novamente, mas ela nem se importou, pois sabia que reveria o amante elfo e o filho no verão seguinte.

De repente, Katla parou de tecer e permaneceu calada por alguns instantes.

— Mas o que aconteceu com a garota depois disso? — quis saber a sogra.

— Bem, não há muito mais o que dizer. Quando a garota voltou à fazenda, foi obrigada pelo patrão a casar-se com um mortal. Mesmo casando-se a contragosto, disse a si mesma que respeitaria os votos de casamento por toda a vida e que se esforçaria para ser uma boa esposa. E de fato o foi. Mas todos os seus pensamentos estavam voltados para o amante elfo e para o filho. Depois disso tudo, ela nunca teve um dia sequer de felicidade. Essa é a minha história, a única que conheço. Gostaste dela?

— Gostei de tê-la ouvido — respondeu a sogra. — Ela fez-me lembrar de certa garota que se meteu num casamento muito infeliz... — E começou novamente com suas histórias."

— Tudo isso é muito triste — disse Osyth.

"Ouve — disse a cabeça. — Os anos se passaram, e Katla e o marido tiveram um casal de filhinhos. Katla cuidava das crianças, mas parecia não sentir muito afeto por elas. O marido sofria com isso, pois esperava que, quando eles tivessem filhos, a mulher os amaria e, quem sabe, passaria a amá-lo também. Mas isso não aconteceu.

Aí, então, chegou novamente a época de preparar o feno. Katla permanecia em casa, como sempre fazia, mas o marido passava o dia inteiro nos campos, trabalhando e supervisionando as coisas. Certo dia, dois homens apareceram na fazenda e se aproximaram dele enquanto trabalhava. Um deles era alto, certamente um adulto, e o outro, mais baixo e magro, talvez uma criança. Era difícil reconhecê-los, pois, apesar do calor, ambos usavam longas capas pretas com um capuz que lhes cobria o rosto.

— És o patrão aqui? — perguntou o mais alto. Sua voz era bem grave.

— Sou, sim — respondeu o fazendeiro.

— Estamos à procura de trabalho, meu filho e eu — disse o forasteiro. — Por acaso poderias nos empregar durante o inverno?

— Preciso consultar minha mulher antes de dar-te uma resposta — disse o fazendeiro.

— Como? — perguntou o homem.

— Jamais dou trabalho a alguém sem antes consultar minha mulher. Se puderes esperar até que eu fale com ela...

— Mas não disseste que és o patrão?

— Sou eu mesmo o patrão.

— Não pode ser. Um patrão não precisaria da permissão de ninguém para decidir sobre as pequenas coisas, se deve ou não dar trabalho a dois homens durante o inverno.

— Se não gostas de como esta fazenda é governada, poderás procurar emprego em outro lugar — disse o fazendeiro. Na verdade, o próprio fazendeiro achava cansativo e pouco sensato consultar a mulher a toda hora sobre esses assuntos. Havia concordado com o desejo dela quando se casaram, mas, naqueles tempos, ele ainda tinha esperanças de conquistá-la. Mas, depois de tantos anos, ela ainda o tratava com a mesma frieza de sempre. Ele já estava cansado de agradá-la a todo instante e nunca obter o carinho que esperava.

— É longo o caminho até a fazenda mais próxima — disse o homem alto e encapuchado. — Gostaríamos de ficar aqui. Somos bons trabalhadores. Verás que faremos jus â comida que nos deres.

— Pois muito bem, então — disse o fazendeiro. Ele estava cansado e sentia calor; não queria andar todo o caminho até a casa da fazenda. — O trabalho começa já. Os dois estão contratados.

No fim daquele dia, sentaram-se à mesa do jantar dois homens além dos que haviam se sentado no café da manhã. Mesmo à mesa, mantiveram o capuz sobre a cabeça. Ao vê-los, Katla foi até o marido e perguntou:

— Quem são esses dois?

— Eles ficarão conosco durante o inverno — ele disse. — Vieram à procura de trabalho e eu os contratei.

— Sem me consultar?

— Tu estás sempre tão ocupada com os serviços da casa que nem podes ajudar na colheita. Não queria incomodar-te com um assunto bobo como esse.

— Quando nos casamos, prometeste solenemente que jamais contrataria empregados no inverno sem antes me consultar.

— É, prometi, eu sei. Mas quebrei minha promessa.

— Pois quebraste mesmo — disse Katla. — Contudo minha consciência está tranqüila. Sejam lá quais forem as conseqüências disso, a culpa será exclusivamente tua. — Continuou a servir o jantar e não disse mais nada ao marido durante toda a noite. Nem tampouco falou com os forasteiros encapuchados.

O inverno avançava. O empregado novo e seu filho eram de fato bons trabalhadores. Faziam de boa vontade tudo o que lhes era pedido, e faziam bem. Mas não se relacionavam muito com os outros trabalhadores da fazenda; raramente lhes dirigiam a palavra. Na maior parte do tempo, conservavam o capuz sobre a cabeça, o que era bem estranho. Ninguém era capaz de dizer ao certo como era a aparência tanto de um como do outro. Eles não dormiam na casa, junto com os outros. Preferiram instalar-se numa das construções externas da fazenda e dormir sobre alguns baús que lá encontraram. O fazendeiro perguntou-lhes se não sentiam frio, mas eles disseram que estavam suficientemente aquecidos. Em nenhum momento Katla quis saber deles ou falou diretamente com eles. Nem mesmo os servia durante o jantar; mandava uma das criadas fazê-lo em seu lugar. As pessoas achavam que Katla hostilizava os novos empregados porque o marido os havia contratado sem a sua permissão.

O Ano Novo se aproximava e as pessoas penduraram ramos de teixo e azevim por toda a casa. Na passagem do ano, Katla preparou um banquete para todos, uma infinidade de tortas e bolos, muito embora não demonstrasse nem um pouco mais de ânimo que de costume."

— Diz cá uma coisa, rapariga — a cabeça perguntou a Osyth. — Nesta parte do mundo, as pessoas têm o hábito de se beijar umas às outras durante a festa de Ano Novo e pedir perdão pelas faltas cometidas ao longo do ano que passou?

— Mais ou menos — respondeu Osyth. — No Natal, vamos à Igreja para receber a comunhão. Mas, antes, confessamos nossos pecados junto a um padre e beijamo-nos uns aos outros, pedindo perdão por nossas ofensas.

— Então trata-se de um costume cristão? Mas não é muito diferente da tradição pagã, não é mesmo?

"Bem, de qualquer forma, era Ano Novo e todos na fazenda desejavam um novo começo em suas vidas. Katla beijou as criadas e pediu-lhes que a perdoassem caso tivesse sido muito ríspida com elas. E as criadas beijaram Katla e pediram que a patroa as perdoasse caso tivessem sido descuidadas ou relapsas no trabalho. Katla e o marido também se beijaram c prometeram ser mais gentis um com o outro. E assim fizeram todos os presentes na festa. O fazendeiro beijou os empregados e os empregados beijaram o fazendeiro. Depois de tantos beijos, muita comida e muita bebida, todos se sentiam alegres e bem dispostos uns com os outros.

Bem, a noite estava chegando ao fim e o Ano Novo estava prestes a começar quando o fazendeiro disse a Katla:

— E os novos empregados, por acaso beijaste-os e pediste perdão a eles?

— Os homens que jamais deverias ter contratado? — ela disse.

— Ora, ora, Katla. Acabamos de prometer que seríamos mais gentis um com o outro!

— Pois se queres mesmo saber, eu não os beijei.

— Não tens sido muito cordial com eles — disse o fazendeiro. — Creio que deves pedir-lhes perdão. Vai até lá e beija-os. E assim o Ano Novo começará como deve.

— Depois de quebrares tua promessa, ainda queres que eu beije esses homens? — perguntou Katla.

— Serei eu um marido tão ruim assim? Pelo menos uma vez na vida, faz alguma coisa sem contestar, apenas para me agradar.

Katla ficou de pé e disse:

— Muito bem, então. Onde estão esses homens?

— Parece que estão do outro lado do quintal, no celeiro onde se instalaram.

Katla embrulhou-se numa longa capa, pois estava frio do lado de fora, colocou uma vela numa lanterna e tomou a direção da porta. Antes de sair, olhou para o marido e disse:

— Adeus.

As pessoas estranharam a despedida, pois Katla deveria estar de volta apenas alguns minutos mais tarde.

Dentro de casa, as pessoas continuaram a beber, comer, conversar e rir. Alguém tocava uma rabeca. Velas queimavam desnecessariamente, mas ninguém se importava, afinal, era Ano Novo! A certa hora, todavia, algumas pessoas começaram a se retirar da festa, pois estavam cansadas e queriam dormir. Foi então que perceberam que Katla ainda não havia voltado.

— Ela saiu apenas para beijar os homens! — disse uma das criadas, e alguns dos trabalhadores riram maliciosamente. Irritado, o fazendeiro pegou uma lanterna e atravessou o quintal para ver o que havia acontecido com sua mulher. Dali a pouco, as pessoas dentro de casa ouviram-no gritar. Pegaram mais lanternas e saíram ao seu encontro.

Os homens contratados para o inverno e Katla haviam partido. Nenhum sinal deles no celeiro, no curral, em nenhum dos galpões da fazenda.

O fazendeiro não dizia nada, mas todos podiam ver que ele estava furioso.

— Está muito escuro para fazermos uma busca agora — ele disse. — Procuraremos por eles pela manhã.

Ele achava que a mulher tinha fugido com os trabalhadores contratados.

No dia seguinte, percorreram quilômetros em todas as direções, mas não encontraram nenhum vestígio dos desaparecidos. Procuraram nas fazendas vizinhas. Ninguém os havia visto; nenhum latido de cachorro durante a noite.

— Irei até a costa — disse o fazendeiro —, e perguntarei sobre as pessoas que saíram de barco.

Nesse momento, a mãe interveio e disse:

— Filho, mesmo que procures por Katla pelo resto de tua vida, creio que jamais a encontrarás neste mundo.

— O que dizes? — perguntou o fazendeiro, sem entender. Aí, então, a mãe contou ao filho a história que Katla havia lhe contado antes, sobre a jovem que se deixara seduzir pelo homem-elfo.

— Era uma mulher honesta — disse a mãe do fazendeiro. — Quando fez os votos de casamento, tinha a intenção de os cumprir, muito embora não estivesse apaixonada. Ela fez com que tu jurasses jamais contratar homens sem antes consultá-la para evitar que o homem-elfo viesse atrás dela. E mesmo quando ele apareceu por aqui, com o filho que os dois tiveram juntos, e trabalhou e comeu entre nós, ela nem olhou ou sorriu para ele. Mas tu mesmo insististe para que ela fosse beijá-lo.

E tudo o que a mãe dissera era verdade. Katla jamais foi vista em porto algum; não havia tomado nenhum navio. Nenhum fazendeiro a havia acolhido. Ninguém jamais a viu novamente."

As velas no quarto de Osyth haviam se queimado quase por inteiro e as sombras já eram outras. A menina acomodou-se na cama, suspirou e permaneceu calada por algum tempo.

— Foi uma boa história — disse ela afinal.

— Que bom que gostaste — disse a cabeça.

— O fim foi ao mesmo tempo triste e feliz. Foi uma pena que Katla tivesse de sofrer por tanto tempo, mas pelo menos... Tu achas que finalmente ela foi feliz ao lado do homem-elfo?

— Se uma mulher é capaz de ser feliz ao lado de seres sobrenaturais... De largar seu próprio mundo, seus filhos, e ainda assim ser feliz...

— Mas ela estava tão triste naquela fazenda. Fiquei com pena do fazendeiro também. Ele a amava, mas ela não o fazia feliz, não é mesmo?

— É bom lembrar que o amor traz, a um só tempo, dor e felicidade — disse a cabeça.

Osyth virou-se na cama, olhou bem nos olhos da cabeça e disse:

— Então achas melhor não nos apaixonarmos, nem nos casarmos?

— Nem sairmos na chuva para não nos molhar, nem sairmos na neve para não nos resfriar, nem comermos demais para não ter dores de barriga... Rapariga, ouve bem: escolher não amar seria semelhante a um peixe que escolhesse não viver dentro d’água.

— Mas podemos amar sem nos casar...

— Rapariga, o que farás neste mundo se não te casares? Irás, quem sabe, para um convento?

Osyth virou-se de bruços e apoiou o queixo sobre as mãos.

— Sabes no que estou pensando? Acho que pedirei a papai que me leve até a corte.

— Será uma aventura para ti — disse a cabeça.

— E tu irás conosco, caso eu volte a sentir-me mal. Afinal, preciso de ti para fazer-me rir, não é mesmo? E, seja lá onde for essa corte, teu rei Penda não estará muito longe. O que achas?

— Excelente idéia, rapariga! — disse a cabeça. — Excelente idéia.

 

             A CABEÇA FALA DE PRÍNCIPES, GAROTAS E CUCAS

-És uma linda menina — disse a velha rainha, mãe do rei Edgar. — És casada?

— Não, senhora — disse Osyth, fazendo nova reverência. Osyth esforçava-se para manter os olhos abertos. A forte luz do sol que atravessava a janela bem atrás da rainha batia-lhe diretamente no rosto.

— Mas estás prometida a alguém?

— Não, senhora.

— Mas como? — disse a rainha, demonstrando certo mal humor. Olhando por sobre a costura com a qual estava ocupada, concluiu:

— Ah, segundo me disseram, tu és órfã de mãe, não é? Mesmo assim, o que tem feito o teu pai? Precisamos achar-te um marido o quanto antes. Tenho certeza de que foi este o motivo pelo qual teu pai te trouxe até aqui. Finalmente ele se deu conta de suas responsabilidades!

— Sim, senhora.

— O que está naquela caixa que puseste ali?

— Minha cabeça, senhora — respondeu Osyth.

— E o que está sobre teu pescoço, por acaso não é tua cabeça?

As damas de companhia da rainha, sentadas em volta dela, perto da janela, não puderam conter o riso.

— Quero dizer, senhora, que o que está na caixa é a cabeça de Egil Grimmssen, posta sob os meus cuidados.

Uma voz masculina disse:

— Tens a cabeça de Egil Grimmssen?

Assustada, Osyth sombreou os olhos com uma das mãos e viu que havia um homem ao lado da velha rainha. Não o tinha reparado antes por causa da timidez e da forte luz que lhe batia nos olhos.

— Esta cabeça estava sob os cuidados de meus monges — disse o homem. Osyth percebeu, então, que se tratava do rei Edgar.

— Pois então esta cabeça pertence ao meu filho — disse a rainha. — Diz, menina, como foi que ela chegou em tuas mãos? — Sinto muito, senhor — disse Osyth. — Sinto muito, senhora. Eu estava doente; trouxeram-me a cabeça e ela me curou. Desde então, trago-a comigo para que eu não adoeça novamente. Não tinha a intenção de causar problemas. Achei que ninguém se importaria com isso.

— Achaste mesmo, senhorita? — disse a rainha. — Por que a trouxeste aqui?

— Porque Egil não gosta de ficar sozinho, senhora. Ele gosta de companhia. Achei que a senhora gostaria de ouvir algumas histórias enquanto costura.

As damas de companhia da rainha começaram a cochichar. Com o canto dos olhos, olhavam na direção do rei; era ele quem daria permissão para que a cabeça fosse retirada da caixa.

— Eu, de minha parte — disse a rainha —, gostaria muitíssimo de vê-la com meus próprios olhos e ouvi-la com meus próprios ouvidos.

O rei Edgar suspirou e apoiou os cotovelos sobre os joelhos.

— Como te chamas? — perguntou a Osyth. Havia tanta gentileza na voz do rei que as damas de companhia logo se agitaram de novo.

— Osyth, senhor.

— Osyth — repetiu o rei. As damas de companhia não paravam de se remexer e de cochichar. Incomodada com isso, a rainha virou-se para elas e disse: — O que foi agora, gralhas barulhentas?

— Pois então abre a tua caixa, Osyth — disse o rei. — Deixa esta cabeça respirar um pouco.

Osyth havia colocado a caixa ao lado dos pés. Ajoelhou-se, abriu a caixa e retirou a cabeça. Com as mãos espalmadas sobre as bochechas de Egil, levantou-a para que todos pudessem ver. Algumas das damas de companhia preferiram virar o rosto; outras olhavam por entre os dedos. A velha rainha observava calmamente, procurando algum defeito na cabeça.

— Bom dia, Egil! — disse o Rei Edgar. — Como tens passado desde a última vez em que nos encontramos?

A cabeça abriu os olhos. A rainha assustou-se um pouco e algumas de suas acompanhantes reagiram com horror.

— Quietas! — disse a rainha. — Escandalosas!

— Como achas que tenho passado? — retrucou a cabeça.

— Pareces-me tão remoçado quanto as folhagens da primavera — brincou o rei. — Como é a vida nesta caixa?

— Horrível! — respondeu a cabeça. — Fica difícil cavalgar!

— Achei que tinha ficado livre de ti quando te entreguei aos cuidados do abade. Mas, eis-te aqui novamente, na companhia de belas mulheres. — As damas de companhia cobriram a boca com as mãos para conter o riso, e a velha rainha repreendeu o filho com um simples olhar.

— Sim — disse a cabeça —, Osyth e eu viajamos um bom pedaço juntos, e ela me contou todas as novidades que ouviu ao longo do caminho. Ouvi dizer que o rei Penda continua no mesmo estado.

— Um homem não se recupera de suas feridas da noite para o dia — disse o rei Edgar.

— Uma visita minha talvez pudesse animá-lo — arriscou a cabeça.

— Uma visita tua? Duvido muito. Por acaso vieste aqui para me enrolar?

— Vim aqui para contar histórias à rainha e às suas damas de companhia.

— Pois então conta uma — disse a rainha, secamente. — Algo para distrair estas gralhas bobas e mantê-las quietas por alguns instantes.

— Uma história para gralhas bobas... — disse a cabeça. — Bem, acho que conheço uma. Gralhas, silêncio! Eis aqui a minha história...

"Tudo se passa numa terra muito, muito distante; não sei dizer exatamente onde. Um homem poderá sair a pé ou a cavalo em qualquer direção, ou navegar até o fim dos mares, e ainda assim não encontrar esse lugar. Era uma terra muito linda, com densas florestas e rios caudalosos, montanhas altíssimas e campinas verdejantes, grandes cidades e pequenos vilarejos. E essa terra tinha um rei..."

— Ainda bem — disse a rainha.

“...E uma rainha. E essa rainha e esse rei tinham um filho, o príncipe Hart. Ah, meninas, o príncipe era alto, forte e muito vigoroso..."

As acompanhantes da rainha olharam umas para as outras e começaram a rir. Olharam para o rei Edgar e riram ainda mais.

— Ah, não dês confiança a essas tolas — disse a rainha.

"Uma grossa cabeleira, olhos ligeiros e brilhantes — prosseguiu a cabeça. Seu vigor tornava-o imbatível nas corridas e nas lutas. Todos os dias ele saía para caçar; todas as noites ele dançava e se deitava..."

— Contador de histórias! — esbravejou a rainha.

— Eu estava dizendo, senhora, que todas as noites ele se deitava em sua cama forrada de penas de ganso e caía no sono dos jovens e dos exaustos.

— Ainda bem! — disse a rainha.

"Perto do palácio real, havia uma construção bem diferente. Uma pequena cabana de madeira, muito limpinha, porém muito precária."

— E nela, é claro, vivia um paupérrimo lenhador... — adiantou-se a rainha.

"Um couteiro, senhora, com uma enorme família para alimentar e pouca comida na despensa. Sua filha mais velha chamava-se... Bem, ela se chamava Osyth e era uma menina adorável."

— Um nome que lhe caía muito bem, portanto — disse o rei Edgar, sorrindo para Osyth, que estava sentada no chão, com a cabeça de Egil no colo. Osyth enrubesceu e sorriu também, mas logo percebeu o olhar severo da rainha e aquietou-se.

"Ela criava gansos na floresta... — disse a cabeça."

Ao ouvirem isso, as damas de companhia se puseram a rir novamente, tinham dificuldade em imaginar uma garota como Osyth fazendo um trabalho tão servil quanto criar gansos na floresta. Dessa vez, a rainha explodiu:

— Santo Deus! Não quero ouvir mais nem um pio dessas gralhas desmioladas! Se as meninas não quiserem ouvir a história, que procurem trabalho em outro lugar! Sempre há o que fazer!

As acompanhantes se calaram, baixaram a cabeça e continuaram com seus trabalhos manuais.

"Osyth criava gansos na floresta — continuou a cabeça — e muitas vezes via o príncipe Hart a caçar. Da primeira vez que viu, encantou-se imediatamente com os cabelos brilhantes e com as longas pernas do príncipe. Ela estava profundamente enamorada e, a cada vez que o via, seus sentimentos eram ainda mais fortes."

A verdadeira Osyth olhou sorrateiramente para o rei, viu que ele sorria para ela e rapidamente desviou o olhar.

"Mas a jovem sabia que jamais teria o príncipe para si e tudo o que ela podia fazer era espiá-lo quando ele passava para caçar. O príncipe jamais olhava para ela. O coração da pobrezinha penava com seu amor impossível e ela sentia-se cada vez mais triste."

— Tolinha! — exclamou a rainha.

"Certo dia, bem cedo pela manhã, antes mesmo de o sol nascer, o príncipe Hart e seus companheiros saíram para caçar. À noite, todos já haviam voltado ao castelo, exceto o príncipe. No pátio do estábulo, os caçadores perguntavam:

— O príncipe já voltou para o castelo? — O cavalo dele não estava no estábulo. Os caçadores resolveram então procurá-lo no castelo.

— O príncipe já voltou? — Ninguém o havia visto. Por fim, o chefe dos caçadores achou melhor ir até o rei.

— Era meio-dia — ele disse — e o sol brilhava forte, mas uma neblina espessa desceu de repente e nos perdemos de vista. Desmontamos dos cavalos e prosseguimos a pé, gritando o nome dos companheiros, mas nenhum de nós ouviu a voz do príncipe. Achamos que ele pudesse ter achado o caminho de volta para casa antes de todos, mas parece que ele não apareceu por aqui. Por acaso ele procurou o senhor?

O rei não havia visto o filho e ordenou que fizessem uma busca completa pelo castelo. Todos os aposentos e todas as dependências externas foram examinados. Todos os estábulos, todas as pocilgas, todos os galinheiros e todos os pombais. Nenhum sinal do príncipe em nenhum desses lugares.

— Uma noite na floresta não fará mal algum a meu filho — disse o rei. — Amanhã vamos achá-lo, se ele não aparecer por aqui antes...

O príncipe não apareceu e, na manhã seguinte, diferentes grupos saíram em todas as direções à procura dele. Ninguém o encontrou. Ninguém tinha notícias do príncipe.

A busca continuou por mais dois dias. Os grupos de busca foram muito além das imediações do castelo. Atravessaram florestas, reviraram celeiros, vasculharam o fundo dos riachos. Mas o príncipe havia desaparecido. Ninguém o havia visto ou ouvido falar dele."

A rainha largou a costura no colo e disse:

— Mas isso é terrível...

"O rei e a rainha choraram o desaparecimento do filho como se ele tivesse morrido. Espalharam mensageiros por toda parte, com a seguinte notícia: aquele que encontrasse o príncipe e o trouxesse de volta receberia metade do reino como recompensa."

— Bem, isso não foi lá muito sábio — interrompeu a rainha. O rei Edgar balançou a cabeça e riu.

— Por quê? — perguntou a cabeça. — Não darias metade de teu reino para ter um filho desaparecido de volta?

A rainha retomou a costura, hesitou um pouco e disse:

— Bem, eu daria... Daria, sim. Entretanto devo confessar que não viveria o suficiente para me arrepender. Depois que as guerras começassem... Mas continua, continua...

"Havia outra pessoa no reino que chorava profundamente o desaparecimento do príncipe; alguém que não dormia à noite, nem era capaz de comer nada, simplesmente porque não voltaria a vê-lo."

— Osyth — disse o rei Edgar. As damas de companhia não riram dessa vez, mas olharam umas para as outras com uma expressão jocosa no rosto.

— Sim, meu rapaz. Ela mesma, a filha do couteiro.

"Mas, ao ouvir a mensagem do rei, ela tomou um novo fôlego. 'Por que ficar em casa e chorar, em vez de sair à procura do príncipe?' Pediu aos pais um novo par de botas e foi atendida. De um dos irmãos, tomou emprestada uma capa grossa e bem quente. E à avó, pediu uma bisnaga de pão que lhe servisse de lanche.

-— Uma bisnaga pequena com minha bênção, ou uma bisnaga grande com minha maldição? — perguntou a avó."

— Qual teria sido tua resposta, rapariga?

— Uma bisnaga pequena mas abençoada — disse Osyth.

— Boa resposta — disse a cabeça. — A maldição de uma avó pode ser deveras poderosa. Jamais queira saber o que é a maldição de uma avó.

"Bem, vestindo o novo par de botas, embrulhada na capa do irmão e carregando na sacola uma pequena bisnaga de pão, Osyth partiu para sua busca.

Ela andava sem parar. Atravessou charcos e rochedos, riachos e vales, matas e campinas. Nem sou capaz de dizer o tanto que essa jovem andou. Todas as pessoas com as quais falava conheciam o príncipe mas não o tinham visto. Aí, então, no meio de um dia ensolarado, enquanto ela escalava uma trilha estreita pelas montanhas, uma névoa espessa e acinzentada formou-se ao seu redor. Achou melhor sentar-se no chão e mordiscar um pouco do pão preparado pela avó, até que a névoa se dissipasse."

— Porque ninguém jamais deve andar pelas montanhas no meio de uma neblina — disse Osyth, encabulada com sua própria ousadia ao interromper a história.

— Muito bem, rapariga! — disse a cabeça. E o rei emendou:

— Tão sábia quanto linda. Osyth encabulou-se ainda mais, e a rainha assumiu ares de reprovação.

"Quando a névoa finalmente se dissipou, tudo estava exatamente como antes, e Osyth prosseguiu em seu caminho até avistar uma caverna um pouco mais acima. 'Talvez seja um bom lugar para passar a noite', pensou. E apertou o passo para conferir. Mas, ao chegar, constatou que não era simplesmente uma caverna. Dentro, havia uma parede de madeira e uma porta. A porta estava aberta.

Esticou a cabeça para dentro e espiou. Tochas reluziam no interior da caverna, iluminando-a. Sobre as paredes, tapeçarias haviam sido penduradas, e no chão, duas camas haviam sido colocadas lado a lado. Uma delas estava cercada por cortinas bordadas em ouro, e a outra estava cercada com cortinas bordadas em prata.

Não havia ninguém na caverna, e Osyth timidamente resolveu entrar. Pé ante pé, aproximou-se das camas e viu que os esteios de ambas tinham, esculpidos na madeira, cisnes com as asas bem abertas, cisnes banhados em ouro e cisnes banhados em prata. Com apenas um dedo, afastou uma das dobras da cortina de prata e espiou o que havia dentro. A cama de prata estava vazia. Foi até a cama de ouro e afastou a cortina. Ao olhar o que havia dentro, viu o príncipe Hart dormindo.

Oh, como ela ficou feliz! Puxou as cortinas com força, gritou o nome do príncipe, pulou para cima da cama e arrastou-se até a cabeceira para olhar melhor o seu rosto, mas ele não acordou. Beijou-lhe os olhos, beijou-lhe os lábios, puxou as cobertas e..."

— Contador de histórias! — advertiu a rainha.

— Eu estava gostando dessa parte — protestou o rei Edgar, enquanto Osyth sentia com as mãos o calor das bochechas.

— Comporta-te, cabeça, senão acabou-se tua história! — disse a rainha.

— Eu só ia dizer, senhora, que ela puxou as cobertas e sacudiu o príncipe!

"Como eu dizia, ela sacudiu o príncipe mas não foi capaz de acordá-lo. Olhando ao seu redor, através da luz difusa das tochas de fogo, Osyth percebeu que, na cabeceira da cama, havia alguma coisa escrita com o alfabeto rúnico, como se alguém tivesse esculpido aquilo com uma faca."

— Mas quem faria uma coisa dessas com uma cama tão bonita? — perguntou a rainha.

"Osyth não conhecia o alfabeto rúnico e não compreendia o que estava escrito. Achou que pudesse ser um feitiço. Talvez fosse por isso que o príncipe não conseguia acordar. Deu-se conta, então, de que teria de ser esperta e corajosa. Escondendo-se debaixo da cama de ouro, resolveu esperar e vigiar."

— Não é o melhor dos esconderijos — observou a rainha. — Provavelmente ali estava úmido e frio. Além disso, conheço algumas pessoas -— disse, olhando na direção das damas de companhia — que jamais se deitam antes de olhar debaixo da cama para ver se não há lobos ou ursos.

— Onde gostarias que Osyth se escondesse então, senhora? — perguntou a cabeça.

— Não sei. Não havia outros quartos na caverna?

— Era uma caverna, senhora, não um palácio.

— Uma caverna muito bem mobiliada! Não haveria ali um baú de roupas ou um barril onde ela pudesse se esconder?

— O baú estava cheio de roupas, senhora, e o barril, cheio de vinho.

— Ora, ora, ora. Deixa, pois, a menina debaixo da cama anda logo com essa história!

"Osyth permaneceu escondida durante muito tempo e, de fato, sentiu frio e fome. Mas estava determinada e não saiu dali. De repente, ouviu vozes de pessoas que falavam alto do lado de fora. Também ouviu passos secos e pesados pelo chão. Aí, então, eis que entram pela porta dois horríveis seres da caverna."

— Dois o quê? — perguntou a rainha.

— Seres da caverna, senhora.

"Eram duas cucas. Ou gigantas; podes chamá-las como quiseres. Lá em Orkney também as há. São monstrengas horríveis, cujo nariz chega a um metro de comprimento."

— Como a vida deve ser difícil para elas — não pôde deixar de observar a rainha.

— Elas têm rabos na parte de trás, senhora, para manter o equilíbrio.

— Que horror!

"Já dentro da caverna, uma delas puxou um longo trago de ar com o narigão e disse:

— Fá, fé, fi, fó, fum! Sinto cheiro de sangue quente! — Mas a outra cutucou a irmã e disse:

— É o nosso queridinho que tu cheiras, bobona! Sai da frente! — E esta segunda cuca foi até a cama de ouro e ordenou aos cisnes esculpidos:

— Cantai, cantai, lindíssimos cisnes! Que o príncipe acorde com vosso belo cantar!

Os cisnes esculpidos esticaram o longo pescoço, abriram os bicos e cantaram a mais linda melodia. O príncipe acordou e sentou-se na cama de ouro. Debaixo da cama, Osyth podia perceber os movimentos dele.

Ouviu uma das cucas dizer ao príncipe:

— Por acaso estarás com fome?

— Não comerei nada do que me servires.

— Comerás quando estiveres com muita fome — disse a segunda cuca.

— Tu te casarás conosco? — perguntou a primeira.

—Jamais — disse o príncipe.

— Pois então cantai, cantai, lindíssimos cisnes! Que o príncipe adormeça com vosso belo cantar!

E o príncipe ferrou no sono novamente.

Depois disso, as cucas irmãs andaram para cá e para lá na caverna. Prepararam uma refeição, comeram, despiram-se e deitaram na cama de prata. Osyth resolveu espiar o que estava acontecendo. Esticou a cabeça para fora da cama e viu os pés horrorosos das cucas que sobravam por sobre a cama de prata. As unhas pareciam chifres."

— E ela passou a noite toda debaixo da cama? — quis saber a rainha.

— Passou.

"Na manhã seguinte, ela foi acordada com o barulho das cucas descendo da cama de prata.

— Cantai, cantai, lindíssimos cisnes! Que o príncipe acorde com vosso belo cantar! — disse uma delas. Os cisnes cantaram e o príncipe acordou.

— Queres um café da manhã? — perguntou uma delas.

— Não comerei nada do que me servires.

— Tu te casarás conosco?

— Jamais.

— Então, cantai, cantai, lindíssimos cisnes! Que o príncipe adormeça com vosso belo cantar!

O príncipe caiu no sono imediatamente e, logo em seguida, as cucas saíram da caverna.

Tão logo elas saíram, Osyth arrastou-se para fora do esconderijo, enrijecida de tanto frio, e mancou até a porta. Esperou até que as cucas estivessem bem longe, aproximou-se da cama de ouro e disse:

— Cantai, cantai, lindíssimos cisnes! Que o príncipe acorde com vosso belo cantar!

Viu quando os cisnes esculpidos esticaram as asas, alongaram o pescoço, abriram os bicos e cantaram. Assim como antes, o príncipe acordou ao som da linda melodia dos cisnes. Ele jamais havia reparado na filha do couteiro..."

— Talvez porque ela não fosse tão linda quando a nossa Osyth aqui, caso contrário, ele teria reparado, tenho certeza — disse o rei Edgar.

— Edgar— disse a rainha —, esta jovem será mais uma de minhas damas de companhia. Foi entregue aos meus cuidados pelo próprio pai. Ficarei agradecida se guardares teus comentários para ti mesmo.

O rei Edgar sorriu.

A cabeça ficou calada, como fazem os contadores de história quando são interrompidos, até que a rainha disse:

— Continua! Continua!

"O príncipe Hart nunca tinha observado Osyth, a garota que cuidava dos gansos na floresta, mas ali não havia mais ninguém e ele não tinha como não fazê-lo. Osyth era uma linda garota, e tornava-se ainda mais linda quando comparada às duas horrorosas cucas.

— Quem és tu? — perguntou o príncipe.

— Meu nome é Osyth; sou filha do couteiro. Vim buscar-te e levar-te para casa.

— Fico feliz em ver-te, mas acho que nem eu nem tu voltaremos para casa novamente. Estamos longe demais, e sou prisioneiro de duas cucas. Se te pegarem aqui, elas vão te comer!

— Voltaremos para casa se assim realmente quisermos — disse Osyth. — Tive uma noite inteira para pensar e é isto que deverás fazer: quando elas voltarem para a caverna e te oferecerem comida, aceita.

— Impossível — disse o príncipe. — Quem come comida de cuca vira cuca também!

— Pois então finge que comes. Esconde a comida na cama. Se estiveres com fome, tenho comigo um pouco de pão.

Sentados na cama de ouro, os dois mordiscaram um pouco do pão preparado pela avó de Osyth.

— Quando elas perguntarem se queres te casar com elas, responde que sim...

— Casar-me com uma cuca? Jamais!

— Diz que te casarás com elas somente se te disserem o que significam essas runas esculpidas na cama; e somente se te disserem o que elas fazem durante todo o dia. Estarei debaixo da cama, ouvindo tudo. Depois que soubermos o que significam as runas e como elas passam o dia, talvez possamos elaborar um plano.

— Não sei, não — disse o príncipe, hesitante.

— Até agora não conseguiste nada sozinho — disse Osyth. — Agora tenta do meu jeito.

E o príncipe concordou.

Osyth e o príncipe passaram o resto do dia juntos, conversando, e descobriram que tinham muitas afinidades. Quando começou a escurecer, Osyth disse:

— É melhor que eu te faça dormir novamente.

— Não faças isso. É horrível adormecer e não poder lutar contra o sono. Ficarei deitado e fingirei que estou dormindo.

— Talvez isso não funcione. Sabes como são essas coisas mágicas. Se os cisnes podem cantar, será que eles também não podem denunciar às cucas que tu não dormes? Não, o melhor é que tu durmas de verdade para que os cisnes possam te acordar depois.

O príncipe pensou um pouco e concordou. Assim, Osyth ordenou aos cisnes que cantassem e colocassem o príncipe para dormir. Isso feito, correu para a porta da caverna e pôs-se a vigiar. Quando viu as cucas se aproximando, correu para debaixo da cama.

E as duas monstrengas entraram na caverna: nariz balançando na frente, rabo arrastando atrás. Uma delas começou a cozinhar e o cheiro da comida não era nada bom; a outra aproximou-se da cama de ouro e disse:

— Cantai, cantai, lindíssimos cisnes! Que o príncipe acorde com vosso belo cantar!

E tudo se deu como antes: os cisnes esticaram as asas, alongaram o pescoço, cantaram e acordaram o príncipe.

— Queres comer alguma coisa, queridinho? — perguntou a cuca.

— Tenho tanta fome que não posso mais recusar.

As cucas ficaram radiantes e correram para servir-lhe um prato da comida que haviam preparado. O príncipe fingiu que comia alguma coisa, mas jogava os pedaços de comida sob as cobertas, sob a cama ou nos cantos escuros da caverna — ou onde ele pudesse jogar sem ser percebido."

— Mas que porcaria sobre a cama! — disse a rainha.

"Em seguida, as cucas perguntaram:

— E então, queridinho, aceitas casar-te conosco?

— Não posso me casar assim, sem saber nada a vosso respeito — disse o príncipe. — Quando nós mortais nos casamos, sabemos tudo a respeito um do outro."

— Quem dera! -— exclamou a rainha.

"As cucas se entreolharam e logo falaram:

— Pergunta o que quiseres saber e nós te diremos.

— Bem, de que vos ocupais durante todo o dia? — perguntou o príncipe.

— Cortamos lenha para fazer nosso fogo — disse uma delas.

— Pegamos peixe para fazer nosso jantar — disse a outra.

— E, às vezes, homens também!

— Shhhh! — sussurrou a irmã. — Pegamos esquilos, ratos e corujas para o ensopado.

— E não fazei nada além de trabalhar? — quis saber o príncipe. — Nunca há tempo para diversão?

— Ah, às vezes, para nos divertir... — começou uma delas.

— Maninha! — interrompeu a outra.

— ...pegamos nosso ovo-da-vida...

— Maninha!

— Qual é o problema? Pegamos nosso ovo-da-vida e jogamos uma para a outra!

— Ovo-da-vida! — disse o príncipe. — Mas os ovos se quebram tão facilmente. O que aconteceria se um dia ele caísse no chão?

— Ah, isso não interessa — disse a cuca mais esperta.

— Nós morreríamos! — disse a outra. — É por isso que o jogo é tão divertido!

— Sinto que vos conheço bem melhor agora. Há só mais uma coisa que eu realmente gostaria de saber.

— O que é?

— Estas runas esculpidas na cabeceira da cama. O que elas significam?

— Não digas tudo! — a cuca mais esperta advertiu nervosamente a outra.

— Ah, trata-se de um feitiço. Significa: Voa, voa, cama boa e leva-me aonde eu quiser.

Tão logo acabou de falar, a cama de ouro começou a se mover, sobrevoando o chão em direção à porta da caverna.

— Pára, pára! — disse a cuca. — Pára, pára, cama boa, pára bem aqui!

E a cama parou.

— E então, agora aceitas casar-te conosco?

— Certamente. Mas amanhã ou depois — disse o príncipe. — Agora preciso dormir um pouco. Acho que comi demais.

As cucas suspiraram e disseram:

— Muito bem, então. — E ordenaram aos cisnes que fizessem o príncipe dormir."

— Eu espero — disse a rainha — que a menina tenha observado a facilidade com que esse príncipe é capaz de mentir. Talvez precise dessa informação no futuro.

— Como é cínica esta minha velha senhora! — ousou dizer a cabeça.

— Muitíssimo obrigada — retrucou a rainha. — Chama-me de velha ou de sábia, e a lisonja será a mesma!

"Na manhã seguinte — continuou a cabeça —, as cucas acordaram o príncipe como de costume e ofereceram-lhe o café da manhã. Ele aceitou como se estivesse satisfeitíssimo, mas jogou o pão-de-osso e os pedaços de carne semicrua debaixo da cama e dos travesseiros.

— Por que não vens conosco até a mata e nos ajuda a pegar esquilos? — propôs uma das cucas.

— Obrigado, mas parece que vai chover. E depois de um café da manhã tão farto, acho que prefiro tirar uma sonequinha.

E as cucas botaram os cisnes para cantar, o príncipe para dormir, e saíram para caçar.

Tão logo sentiu que as cucas já estavam longe, Osyth saiu de debaixo da cama e ordenou aos cisnes que acordassem o príncipe.

— Estarei dormindo ou acordado — perguntou o príncipe Hart, confuso. — Por acaso serás um sonho?

— Não. Sou bastante real — respondeu Osyth, sentando-se ao seu lado na cama. E disse:

— Voa, voa, cama boa, para onde as cucas estão.

A cama começou a se mover. Inclinou-se para cá e para lá até subir aproximadamente a um palmo do chão. Osyth e o príncipe tiveram de segurar os esteios para não cair. E lá foi a cama, para fora da caverna, em direção à mata.

— Voa, voa, cama boa,... — disse Osyth — ...para onde as cucas brincam com o ovo-da-vida.

A cama fez uma curva acentuada, desviou de alguns galhos de árvore, escondeu-se por um instante atrás de uma moita de urze, ganhou altura e passou por cima de um carvalho.

Osyth e o príncipe Hart ouviram gargalhadas e olharam para baixo, onde havia uma pequena clareira. Lá estavam as irmãs cucas jogando para lá e para cá algo pequeno e brilhante. Elas não paravam de rir. Ás vezes, tinham de pular alto para pegar o ovo; outras vezes, tinham de se jogar no chão. Era aí que elas riam mais.

Osyth observava o jogo cuidadosamente. Esperou até que o ovo estivesse no ar e gritou o mais alto que pôde. A cuca que ia pegar o ovo assustou-se; gritou também e deixou o ovo cair.

— Não!!! — gritou a outra cuca, ao ver o ovo se espatifar no chão.

E as duas irmãs caíram mortinhas no chão.

— Agora chega de cucas! — exclamou Osyth. —Voa, voa, cama boa, e leva-nos de volta à caverna.

E lá foi a cama em direção à caverna. Osyth e o príncipe vasculharam o lugar e acharam vários objetos de valor: broches, espadas, moedas, fivelas de cinto, tudo espalhado entre pedaços de osso. Colocaram as preciosidades sobre a cama, sentaram-se nela e Osyth disse:

— Voa, voa, cama boa, e leva-nos de volta à casa de meu pai.

No caminho, Osyth contou ao príncipe que o rei havia prometido metade do reino a quem trouxesse o filho de volta.

— Pois eu o achei e eu o trouxe de volta; portanto, metade do reino pertence a mim agora.

— Metade do reino seria teu de qualquer maneira, pois serás minha mulher.

A cama atravessou uma nuvem espessa e, pouco depois, aterrizou ao lado do casebre de Osyth. O céu já estava completamente azul.

— Vai até o castelo e conta a teu pai sobre nosso casamento. Eu ficarei aqui até que venhas me buscar."

— Ora, ora, ora — disse a rainha, suspeitando de algo.

"E lá foi o príncipe Hart em direção ao castelo. Todos ficaram surpresos ao vê-lo chegar. Aos montes, criadas e cozinheiros saíram da cozinha e de todas as partes para saudá-lo. Vaqueiros e ajudantes vieram dos estábulos. Senhores e senhoras da nobreza se acotovelavam nas janelas. E o rei e a rainha vieram correndo. Estavam extasiados de tanta felicidade e ordenaram que servissem bebida para comemorar a volta do filho. A festa durou um dia inteiro e o príncipe Hart não teve muita oportunidade para contar o que lhe havia acontecido.

Contudo, quando as coisas se acalmaram, ele disse ao rei:

— Segundo ouvi dizer, ofereceste metade do reino a quem me achasse e me trouxesse de volta para casa.

— Mas voltaste para casa sozinho, meu querido! — disse o rei. — Portanto não devemos nos preocupar com isso.

— Mas há horas que eu estou tentando dizer — continuou o príncipe — que foi Osyth, a filha do couteiro, quem me achou e me resgatou. Jamais teria voltado para casa se não fosse por ela. Além disso, quero casar-me com ela.

— O quê? — espantou-se o rei.

— A filha do couteiro? — espantou-se a rainha. — Não sejas tolo!"

— Isso mesmo — disse a rainha, mãe de Edgar. — É isso mesmo o que eu teria dito!

"O rei, encarando o filho, disse com severidade:

— Teu casamento já foi arranjado. Estás prometido desde que tinhas dois anos de idade. É absolutamente impossível que tu te cases com a filha do couteiro!

— Não seria melhor que eu me casasse com Osyth? Assim, o reino não ficaria dividido — ponderou o príncipe.

— O reino? Dividido? Não achaste realmente que eu daria metade do meu reino à filha de um couteiro, não é mesmo? Recobra os sentidos, filho meu! Daremos a essa garota algumas coisinhas reluzentes, e ela se dará por satisfeita!

— Dá-lhe um belo dote — disse a rainha —, e ela poderá casar-se com um fazendeiro e viver confortavelmente. Será uma recompensa mais que generosa."

— Concordo — disse a mãe de Edgar.

"Energicamente, o príncipe Hart interveio:

— Agora basta! É com Osyth que eu pretendo me casar e não se fala mais no assunto!

— Veremos — disse o rei. E mandou prender o príncipe.

Mandou também que preparassem imediatamente uma grande festa de casamento. Homens montados nos mais rápidos cavalos partiram em busca da princesa a quem Hart estava prometido.

No casebre, Osyth esperava calmamente por notícias do príncipe. Não recebeu notícia alguma, mas percebeu a movimentação nas redondezas do palácio. Carroças iam e vinham, levando comidas e bebidas. Convidados chegavam de toda parte. Logo ficou sabendo que o príncipe se casaria com uma princesa estrangeira."

— Não, não! — disse o rei Edgar, balançando a cabeça. — Ela certamente não era tão linda e tão esperta quanto a nossa Osyth aqui. — Sorriu para a mãe, que franzia a testa em sinal de reprovação.

"Bem, Osyth, a guardiã de gansos, sabia muito bem o que fazer. Montou sobre a cama mágica e disse:

— Voa, voa, cama boa, e leva-me até onde se realizará o casamento do príncipe.

E a cama tremeu um pouco, desprendeu-se do chão e voou em direção ao castelo. Passou por cima dos muros, atravessou uma porta e pousou delicadamente no salão onde o príncipe Hart e a princesa estrangeira estavam prestes a se casar.

Osyth ficou de pé sobre a cama, apoiou as mãos nos quadris e disse em alto e bom tom:

— É esta a garota que viajou quilômetros de distância, atravessou campos e matas, enfrentou chuva e neblina para te achar? Quem te livrou do feitiço das cucas? Quem foi esperta o suficiente para quebrar o ovo delas? Com quem prometeste casar?

O príncipe Hart tinha sido forçado pelos pais a cumprir arranjo de casamento que haviam preparado para ele. Mas quando viu Osyth, não se conteve e gritou para que todos ouvissem:

— É com a filha do couteiro que eu quero me casar! Soltou a mão da princesa estrangeira e pulou em cima da cama encantada.

— Vamos para bem longe daqui! — ele disse.

— Ah, não — disse Osyth. — Metade deste reino é meu.

E prosseguiu com seu plano:

— Cantai, cantai, lindíssimos cisnes! Que todas estas pessoas adormeçam com vosso belo cantar!

Os gansos de ouro esticaram as asas, alongaram o pescoço,

abriram os bicos e começaram a cantar. Todos, exceto Osyth e o príncipe, adormeceram imediatamente. Caíram num longo e profundo sono, e ninguém seria capaz de acordá-los.

Osyth e o príncipe arrastaram todos até o aposento mais próximo e os deixaram lá, a dormir para sempre. Casaram-se logo em seguida e reinaram juntos por muito tempo. E reinaram muito bem. E este é o fim desta história."

O que achaste dela, senhora?

— Não é de todo ruim — disse a rainha. — Mas qual é a moral da história?

— Ora, que um príncipe, ou mesmo um rei, pode fazer um excelente casamento com uma garota que não seja uma princesa.

— Se ela for bem-nascida e tiver recursos para adoçar um pouco as coisas... — sentenciou a rainha. — Osyth, Osyth! Ei, menina! É contigo mesma que eu estou falando! Achaste por acaso que eu falava à filha do couteiro? O que achas de ser uma de minhas damas de companhia?

— Bem — disse Osyth —, eu...

— Sim ou não, garota! Serei eu merecedora de teus favores ou não?

Osyth enrubesceu e disse:

— Mas, claro, senhora! Claro que sim! Fico muito honrada com o convite.

— Pois então busca as tuas coisas e deixa-as em meus aposentos — disse a rainha. — Por segurança, é melhor que esta cabeça fique aqui. — A rainha desviou o olhar da costura e fitou Osyth com uma expressão de ameaça. — Agora, vai!

Apressadamente, Osyth colocou a cabeça de volta na caixa e saiu correndo.

 

             A CABEÇA CONTA UMA HISTÓRIA DURANTE UMA FESTA

O salão de festas do castelo do rei Edgar era comprido e alto, iluminado pelo fogo de velas, tochas e lareiras. As paredes eram cobertas por tapeçarias onde se viam caçadores e guerreiros que, à luz intermitente das tochas, pareciam se mexer. No teto, somente vigas e escuridão. A fumaça que se desprendia das lareiras formava espirais acinzentadas que, lá no alto, dissipavam-se na brisa que corria entre as janelas vazadas.

Ao longo do salão, pessoas se aglomeravam e bebiam em torno das lareiras. O calor sufocante deixava-lhes o rosto vermelho e coberto de suor. O burburinho constante das conversas era interrompido, aqui e ali, por explosões de riso e brindes entusiasmados. As cores vibrantes das túnicas e dos turbantes — escarlates, verdes, azuis — reluziam quando próximas da luz e desbotavam em marrons e cinzas quando distantes dela. Também ao sabor da luz, as granadas oscilavam entre vermelho vivo e roxo opaco. O ouro estava por toda parte: nos broches, nos anéis e nas fivelas dos cintos.

O barão Redwald, pai de Osyth, sentava-se à mesa do rei Edgar, uma honra pela qual jamais havia esperado. Atrás dele, no banco onde assentavam as mulheres, estavam Osyth, a rainha-mãe e as irmãs solteiras do rei. Osyth apertava as próprias mãos e deslumbrava-se com as cores e com o brilho da festa.

Uma andorinha pequenina deixou-se levar pelo vento que soprava forte do lado de fora e entrou por uma das janelas no alto do salão, misturando-se ao calor, à fumaça e ao barulho ensurdecedor da festança real. Confusa, circulou por sobre a cabeça das pessoas sem que ninguém a percebesse ou ouvisse o seu piar delicado. Com sorte, achou outra janela e fugiu em direção à escuridão fria, à procura de um lugar onde pudesse pousar com segurança.

No salão, música, dançarinos e acrobatas. Esses últimos davam cambalhotas sobre o fogo e subiam nos ombros uns dos outros até que o mais alto deles sumisse na fumaça que pairava no alto do salão. Mas, depois de comer e beber até se fartar, os convivas sentiram-se dispostos a outro tipo de entretenimento, algo mais calmo e reflexivo, como uma história ou uma canção.

À cabeceira de uma mesa comprida, o rei encontrava-se em sua cadeira de espaldar alto, esculpida na mais fina madeira e banhada a ouro. Obedecendo às ordens do rei, um lacaio buscou uma grande caixa e colocou-a sobre a mesa, onde todos podiam vê-la. Levantou a tampa, abriu as laterais, e lá estava a cabeça do contador de histórias.

— Agora -— disse o rei Edgar — a diversão ficará por conta do famoso Egil Grimmssen, contador de histórias de nosso prisioneiro, o rei Penda.

Nesse instante, um silêncio profundo instalou-se no salão real; podia-se ouvir o barulho das bolhas de seiva que espocavam no interior das lareiras, dos nacos de cinza que se desprendiam das toras e dos pássaros que dormiam nas vigas do teto. Todos ali já tinham ouvido falar da cabeça milagrosa, mas poucos a tinham visto. Muitos se aproximaram para ver melhor. Um estrondo de surpresa e horror retumbou pelo salão quando a cabeça abriu os olhos e fitou os convivas.

— Um salão de festas — disse a cabeça. — Onde está meu rei? Por acaso ele está aqui?

— Não — disse o rei Edgar —, não está.

— Quando, então, receberei minha recompensa? — perguntou a cabeça. —Tudo o que quero é que me levem até meu rei. Por que não convidaste teu irmão-rei para a festa, Edgar? Ainda tens medo dele?

Os convivas foram tomados de apreensão. O fogo crepitava pelo salão.

— O rei Penda não está aqui porque está doente — disse o rei Edgar.

— Então leva-me até ele! — disse a cabeça.

— Não há motivo para alarme. Ele repousa no melhor dos aposentos e recebe o melhor dos tratamentos. Logo estará bom novamente.

— Quando poderei vê-lo?

— Somente depois que brindares os meus convidados com uma de tuas histórias — disse Edgar ao mesmo tempo que olhava para Osyth, ainda sentada no banco das mulheres. O rosto de Osyth estava vermelho de tanto calor. Os olhos brilhavam e os lábios exibiam um discreto sorriso.

— Que todos os presentes nesta festa sejam testemunhas! — gritou a cabeça. — O pagamento que peço por minha história é que me levem até meu rei! Estás disposto a pagá-lo, Edgar?

— Que todos os presentes sejam testemunhas — disse o rei. — Se não receberes o que me pedes, então nada receberás.

— Diante de palavras tão ardilosas e ambíguas — disse a cabeça —, não me sinto disposto a dar muito em troca. O que queres ouvir? Alguma boa história sobre batalhas e chacinas? De barões e reis, de lealdade e traição? De dragões perseguidos e derrotados? Nada disso. Conto-te uma pequenina história, muito singela. É a história de... Willehad, o criado.

O rei sentou-se em sua cadeira, e todos sentaram-se depois dele, em silêncio, prontos para ouvir o que a cabeça tinha a dizer.

"Muito tempo atrás, numa terra onde as praias eram cobertas por conchinhas de prata, havia um rei que abrigava em seu palácio um grande número de pessoas. Numa noite de inverno, deixando atrás de si pegadas escuras sobre a neve branca, um garoto apareceu nos portões do suntuoso palácio, mendigando por um pouco de comida, um abrigo contra o frio e qualquer tipo de trabalho que pudesse fazer em troca das refeições. Seu nome era Willehad. Deixaram-no entrar, serviram-lhe uma tigela de mingau de ervilhas e deram-lhe um lugar para dormir perto do fogão. No dia seguinte, Willehad prestou-se a todo tipo de serviços na cozinha: carregar, buscar, cortar, lavar, esfregar...

Era um garoto bonito, esguio, porém mais forte do que aparentava. Solícito, fazia sempre mais do que lhe era pedido. Aprendia rapidamente o que lhe ensinavam e, em pouco tempo, não era apenas um quebra-galhos sujo e maltrapilho. Tornou-se oficial de cozinha, responsável pela inspeção e pela triagem dos alimentos trazidos das fazendas. Desincumbiu-se tão bem dessa tarefa que logo foi promovido a oficial de mesa, responsável pela limpeza das toalhas e pela disposição de pratos, talheres e temperos sobre as mesas, antes das refeições. Cuidava para que sempre houvesse um harpista e um malabarista disponíveis, caso o rei desejasse entretenimento. Terminadas as refeições, cuidava para que as mesas fossem limpas o mais rápida e silenciosamente possível.

— Desde que Willehad veio trabalhar conosco, tudo é ordem — gabava-se o rei. — Ele é o mais eficiente dos criados.

O rei estava tão satisfeito com o trabalho de Willehad que nomeou-o inspetor de todo o palácio: das cozinhas, das mesas, das câmaras de dormir, dos estábulos, dos canis, dos jardins e da produção de cerveja e laticínios. A função de Willehad era pôr ordem em tudo. E ordem era o que não faltava naquele palácio.

Mas, numa corte, as paredes têm olhos e ouvidos. Quando o rei sorria para Willehad, todos reparavam. Quando o rei perguntava por Willehad, todos reparavam. Quando o rei seguia com os olhos quando Willehad saía de uma sala, todos reparavam também.

— O rei tem um favorito — era o que diziam.

Quando o rei e Willehad jogavam xadrez juntos, perguntavam:

— Por acaso não haverá na corte um nobre que saiba jogar xadrez, de modo que o rei não tenha de jogar com um criado?

E, logo, as histórias sobre o favorito chegaram aos ouvidos do próprio rei. As pessoas queriam apenas o bem de Willehad; contavam essas histórias porque gostavam dele e se preocupavam com ele. Mas alguma coisa perturbava o favorito do rei. Todas as noites, aqueles que dormiam nas câmaras vizinhas podiam ouvi-lo chorar e gritar. Se o rei ficasse acordado até tarde, também poderia ouvir.

O rei sabia que os autores dessas histórias tinham ciúmes de Willehad. Mas, apesar disso, não pôde deixar de perceber que seu favorito andava pálido e cansado. Quando perguntou ao criado se ele estava doente ou se havia algum problema, o rei ouviu:

— Estou bem. E não há problema algum, juro que não há.

Certa noite, para certificar-se de que tudo estava realmente bem, o rei resolveu dormir numa câmara próxima à de Willehad. Deitou-se e esperou. Mais tarde, no silêncio profundo da noite, quando todos já dormiam, o rei entrou na câmara de Willehad e ficou ali, vigiando. Willehad dormia. O rei, apesar de toda a sua determinação, cochilou um pouco e foi acordado bruscamente com gritos:

— Ladrões! Ladrões!

Num instante, o rei pôs-se de pé e olhou para todos os lados, mas não havia ninguém na câmara, a não ser Willehad. O garoto se contorcia sobre a cama e gritava:

— Sangue, sangue! Oh, Deus! Minha mãe!

Assustado, o rei observava a tudo de pé, próximo à cama. Porém, não demorou muito para que Willehad se aquietasse novamente e parasse de gritar. Consternado e confuso, o rei voltou aos seus aposentos.

No dia seguinte, mandou chamar Willehad e perguntou-lhe:

— Meu fiel servidor, por que sonhas com ladrões e com sangue? O que te atormentas?

Willehad assustou-se com a pergunta do rei e enrubesceu, indicando ao rei que havia de fato um significado para aquele sonho. Mas disse:

— Não sonho com ladrões nem com sangue, senhor.

— Porém, todas as noites, tu gritas durante o sono e os que dormem perto de ti podem ouvir — argumentou o rei. — Sou teu amigo e talvez possa ajudar-te se me contares o que te atormenta.

Willehad disse:

— És gentil e agradeço o carinho que me tens, mas nada me atormenta. É comum que sonhos ruins nos atrapalhem o sono de vez em quando. Por favor, não te agastes por minha causa.

— E se eu, na qualidade de rei, ordenasse a ti, meu fiel servidor, que me contasses o que te atormenta?

— Eu sonho com ladrões e com sangue — respondeu Willehad. — Quando acordo, não me lembro de mais nada. Quais são as ordens do dia, senhor?

— Percebo muito bem que não queres compartilhar o teu problema. Amanhã bem cedo pretendo sair para caçar.

— Muito bem, senhor. Tudo estará pronto.

Na manhã seguinte, o rei e seus companheiros de caça saíram antes do sol raiar, rumo à floresta. Tomaram a direção oeste e depois seguiram para o norte. Ouviam-se o galopar dos cavalos e o soar das trompas. Era meio-dia quando o rei achou que estava tudo muito quieto ao seu redor. Olhou para os lados, mas não viu ninguém. As trilhas pela floresta estavam absolutamente desertas.

— Isso é estranho — disse o rei a si mesmo. — Mas se os deuses me enviaram aventura, então que venha a aventura! — E continuou a cavalgar, olhando para os lados, atento ao que poderia acontecer.

Não muito longe dali, um cervo enorme, branco como o leite, pastava serenamente atrás de um arbusto. O rei jamais tinha visto algo igual. Cutucou os flancos do cavalo com as botas e galopou atrás do animal.

O cervo saltou como se quisesse deixar a terra e voar. Desapareceu em meio aos arbustos, atropelando as sarças, e reapareceu dali a pouco sob a copa verde de um carvalho. O animal era ágil e, mais uma vez, o rei perdeu-o de vista. De repente, ouviu-o bramar atrás de si. Virando o cavalo, avistou a galhada branca e reluzente do cervo que fugia na outra direção. Partiu em disparada atrás dele, abaixando-se sobre a sela para se proteger dos galhos e espinhos das árvores mais baixas.

— Um cervo assim não pode ser deste mundo — gritou o rei, como se o cavalo e os cachorros pudessem compreendê-lo. — A aventura é arriscada, mas não posso desistir agora.

A perseguição exaustiva durou o dia inteiro. O cavalo se desmanchava em suor e tremia sofregamente. O rei ofegava e sentia a pele arder com uma infinidade de cortes e arranhões; os cabelos desalinhados caiam-lhe sobre o rosto, misturados a um emaranhado de folhas. Em nenhum momento perdeu o cervo de vista, pois o animal sempre chamava por ele ou ressurgia em seu caminho. Sabia que era um animal encantado e maravilhava-se com isso. A perseguição terminou somente com o crepúsculo, quando o sol se pôs por detrás das árvores e coloriu o céu de tons extravagantes. No centro de uma clareira, o cervo branco parou de correr. Levantou a cabeça e olhou fixamente para o rei. Ao perceber que o cervo não mais fugia dele, o rei amarrou o cavalo a uma árvore, apeou e sacou a espada.

Entretanto, o cervo não estava mais lá. Desaparecera. E a luz sépia do entardecer lentamente dava lugar à escuridão da noite.

— Estou enfeitiçado — disse o rei —, mas preciso descansar. — E jogou-se sobre a grama macia do descampado.

— Sentia-se muito cansado para observar a paisagem ao seu redor. Depois de algum tempo, recobrou as energias e deu-se conta de que teria de passar a noite na floresta. Fez o que pôde pelo cavalo: desselou-o e esfregou-lhe o pêlo com capim. Ao fazer isso, olhou para um dos lados e viu que, sobre a clareira, encontravam-se as ruínas de uma casa.

Enquanto o cavalo pastava, andou até as ruínas e deduziu que tinha sido uma casa grande e confortável, porém não muito sofisticada. Tinha sido destruída por um incêndio. As pedras e os restos de madeira estavam carbonizados, e o teto de sapé tinha se desmanchado em cinzas.

Perto da casa, havia um monte coberto de grama, muito semelhante a um túmulo, e o rei andou até lá para ver o que era. Achou que nunca tinha estado em lugar mais solitário e silencioso que aquele. O sol poente lançava seus raios vermelhos através das copas das árvores escuras. Dali a pouco, no cair da noite, uma luz branca apareceu do nada. Pairava no ar, iluminando as pedras escurecidas da casa incendiada. Maravilhado, o rei percebeu que, dentro daquela bola de luz, havia uma pomba. Espantou-se mais ainda quando a pomba pôs-se a entoar uma doce e triste canção, que dizia:

 

'Choro ao pensar que um dia amei

O fiel servidor, o favorito do rei.'

 

Surpreso ao ouvir a pomba fazer menção ao seu criado favorito, Willehad, o rei gritou:

— Sei que há mágica por aqui. Aproxima-te mais, pássaro encantado. Se puderes falar, conta sem rodeios o que de fato aconteceu ao meu fiel criado.

A névoa da noite penetrou a clareira, formando espirais em torno das árvores, como se ali houvesse fantasmas. Ainda tomado de espanto, o rei observava a paisagem ao seu redor quando foi interpelado novamente pela pomba.

 

'Foi a mãe a causa de todo o pesar.

Enviou ladrões à luz do luar

Para nossa linda casa incendiar

E ao próprio genro assassinar.'

 

Em meio à névoa densa, a casa parecia queimar novamente. Vultos escuros pareciam brigar, gritar e correr para todos os lados. Trêmulo, o rei assistia a tudo e sentia ganas de correr para ajudar as pessoas atacadas no interior da casa. Mas desistia tão logo se dava conta de que tudo não passava de uma visão.

 

'Cuidaram para não ferir a filha da mandante

Mas mataram o lindo bebê que nos braços trazia,

E nada deixaram para cobrir-lhe o semblante

Senão o sangue que nas veias do menino corria.

 

E nada deixaram para nossa sepultura cavar,

Senão a espada que a mim e ao nosso rebento,

Sem dó, nem remorso, nem sofrimento,

As breves e magras vidas acabara de ceifar.'

 

Através da escuridão, o rei percebeu a figura de uma mulher, ajoelhada e debatendo-se com uma espada para fazer uma cova no chão. Ele ouvia os seus gritos de dor, mas não tinha como ajudá-la.

 

'Não credes ter-lhe cravado o pequeno coração

A dor de enterrar amado e filho com a própria mão?

Não credes ter-lhe rasgado cruelmente o peito

A dor de abandoná-los no eterno leito?

 

Cortou os cabelos, trocou o nome

E partiu para a corte, carregando sua dor.

E a linda Eleanor transformou-se em Willehad,

O favorito do rei, seu fiel servidor

 

E choro, da aurora ao sol poente,

A dureza de meu destino inclemente.

Choro ao pensar que um dia amei

O fiel servidor, o favorito do rei.'

 

A pomba terminou de cantar e desapareceu. O rei estava sozinho na clareira, no escuro, entre o túmulo e a casa em ruínas. Mesmo assim, parecia-lhe que ainda podia ouvir, muito ao longe, o crepitar das chamas e os gritos das pessoas.

Dali a pouco, a escuridão foi invadida lentamente pela luz da manhã. As árvores formavam silhuetas escuras contra a luz rósea do sol que acabava de nascer. As cores revinham aos poucos: o verde da grama, o vermelho das folhas castigadas pelo frio. E o rei, ainda assombrado com os acontecimentos da noite, olhou para as ruínas da casa incendiada e para o túmulo, e nada daquilo pareceu-lhe estranho ou fantasmagórico. Lembrava-se perfeitamente da casa como ela era antes, quando ainda estava perfeita e quando ainda não havia um túmulo ao lado dela.

O rei andou até o cavalo, selou-o e iniciou a longa e cansativa cavalgada de volta para casa. Durante todo o caminho, sua mente ocupou-se de uma única lembrança e de uma única imagem. Ele não conseguia deixar de pensar em seu fiel servidor, o favorito do rei.

A cada passo, sua fúria acirrava-se ainda mais. Não podia aceitar que um crime tão horrendo tivesse acontecido em suas próprias terras e que ele não tivesse sido informado de nada.

Ao atravessar os portões do palácio, foi recebido com surpresa e alegria pelos guardas. Cavalgou até o pátio central, onde uma multidão de homens e mulheres da nobreza, já a par da notícia de que o rei havia voltado de sua noite na floresta, acotovelava-se para dar-lhe as boas-vindas. E, bem na frente de todos e fazendo reverência, lá estava o seu dileto criado e fiel servidor, todo vestido de preto.

Ainda montado, o rei aproximou-se dele, inclinou-se para um dos lados e carregou-o para cima do cavalo. Willehad não entendia nada do que estava acontecendo. Ao verem isso, os nobres não contiveram suas exclamações de surpresa e estranhamento. Mas o burburinho que se formara no pátio logo transformou-se no mais absoluto silêncio quando, diante de todos, o rei beijou os lábios de seu fiel servidor.

Olhando em torno de si, o rei achava graça na expressão de choque no rosto das pessoas. Gritou, então, para que todos pudessem ouvir:

— Curvai-vos todos diante de vossa futura rainha, a formosa Eleanor!

Depois de dizer isso, apeou do cavalo e ajudou Eleanor a desmontar. Criados logo apareceram para cuidar do cavalo. Conduzindo Eleanor pela mão, entrou nas dependências do palácio. Todos os habitantes da corte e todos os criados seguiam o casal, ansiosos por saber exatamente o que acontecia.

O rei assentou-se no trono e fez um sinal para que Eleanor se assentasse na cadeira ao lado.

— Não querias contar-me de teus sonhos — ele disse —, pois agora sou eu quem te contará deles.

— Ladrões! — tu gritavas. — Ladrões! Sangue! Sangue! Esses são os ladrões que, a mando de tua própria mãe, atearam fogo em tua casa e mataram teu homem e teu filho!

Eleanor olhou para o rei, estupefata.

— Como sabes disso?

— Fui até o lugar. Vi as ruínas da casa queimada e o túmulo. Um cervo branco conduziu-me até lá, e uma pomba encantada contou-me toda a história.

Eleanor cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. O rei ajoelhou-se ao lado dela, abraçou-a e procurou consolá-la.

— Diz-me apenas uma coisa — pediu o rei. — Foi realmente tua mãe quem contratou os assassinos?

Soluçando, Eleanor balançou a cabeça e disse que sim.

— Pois então eu partirei novamente para a floresta e não descansarei enquanto não encontrar essa loba e sua matilha. — Sentenciou o rei.

O rei convocou algumas mulheres para que levassem a sua favorita, ou melhor, sua futura esposa, e lhe dessem roupas de rainha. Todos os cuidados necessários deveriam lhe ser dispensados. Ele mesmo não quis descansar, partiu imediatamente com guardas e soldados. Encontraram a mãe de Eleanor em casa, junto com os homens que haviam executado as suas ordens, e levaram-nos ao palácio na condição de prisioneiros.

De volta ao palácio, o rei, que estava exausto, permitiu-se dormir e comer um pouco. Mas, tão logo sentiu-se melhor, recebeu a mulher no salão real. Eleanor estava ao seu lado, já devidamente paramentada como rainha. Não conseguia olhar para a mãe e apertou os braços da cadeira até que os dedos das mãos perdessem a cor.

— És acusada — disse o rei — de mandar homens para atear fogo à casa de tua própria filha e assassinar o homem dela, bem como o filho dos dois. O que tens a dizer?

— Fui eu quem os mandou — disse a mulher. — Fui eu quem deu todas essas ordens. Era meu direito.

— Teu direito? — disse o rei. — Não compreendo tuas palavras.

— Contava entregar minha filha em casamento a um homem que possuísse terras e fortuna, mas ela se rebelou contra mim e me desonrou. Preferiu fugir com um zé-ninguém e morar numa cabana imunda. Era meu direito puni-la.

— Mesmo assim, não tinhas o direito de assassinar um homem.

— Como eu disse, era um zé-ninguém. E ele havia maculado a minha única posse: minha filha. Fez por merecer.

— E teu neto?

— Uma criança que jamais deveria ter nascido.

— Mulher — disse gravemente o rei —, tuas próprias palavras te condenam. Uma fogueira será construída no pátio do palácio e tu serás queimada nela!

Ao ouvir isso, Eleanor saltou da cadeira, jogou-se de joelhos na frente do rei e suplicou:

— Deixe-a viver! Deixe-a viver!

— É uma assassina!

— É minha mãe!

O rei abaixou-se e disse:

— A lei deve ser cumprida em minhas terras. Como posso executar os homens que assassinaram teu amor e teu filho e deixar viver a mulher que lhes ordenou a fazer isso? Ou será que devo deixar viver a todos? As pessoas acharão que em meu reino não há lei e que o assassinato não é crime.

Eleanor apenas deitou a cabeça nos joelhos do rei e disse:

— Ela é a minha mãe...

Ouvindo a tudo, a mãe de Eleanor, uma mulher orgulhosa, disse ao rei:

— Essa ordinária não é minha filha, e eu não sou mãe dela!

O rei virou-se para ela e disse:

— Tua boca é deveras desafortunada. Se não és a mãe de Eleanor, não mereces favor nenhum. Guardas, que essa mulher morra na fogueira!

No dia seguinte, uma fogueira de toras e galhos espinhentos foi construída no pátio do palácio. Amarraram a mãe de Eleanor no topo e atearam fogo à pilha de madeira. As toras ardiam em chamas vermelhas e amarelas, crepitavam e soltavam fumaça. À medida que o fogo se aproximava da mulher, queimava-lhe as roupas, o cabelo e a pele. Os criados assassinos foram enforcados ao lado dela.

Eleanor, anteriormente o fiel servidor e favorito do rei, casou-se pouco tempo depois e teve muitos filhos. E o corpinho do filho assassinado foi transferido de seu túmulo solitário na floresta para o cemitério real.

E essa é a história que hoje eu vos ofereço: que ela tome vida própria, saia por aí, incorpore novas cores e retorne aos meus ouvidos pela boca de outro alguém!"

No salão de festas do rei Edgar, aplausos, vivas e pedaços de pão jogados pelo ar! Sentada no banco das mulheres, atrás da mesa do rei, Osyth ria e aplaudia energicamente, orgulhosa que estava de seu amigo, a cabeça.

— Uma história infeliz — disse a rainha-mãe. — Ao que parece, a culpa sempre recai sobre as mães. O que há de mal, alguém me diz, em querer que os filhos contraiam bons casamentos?

— Mas, mãe — disse uma das filhas da rainha —, ela não amava o homem que a mãe havia escolhido para ela!

— Tolinha! Muita bobagem se diz sobre o amor. Um bom casamento depende de muito mais coisas que amor!

O rei Edgar levantou os braços, projetando sombras sobre as paredes e sobre a mesa. Aos poucos, o barulho no salão de festas cedeu até que o rei pudesse ser ouvido.

— Fiquei feliz — ele disse -— em ouvir uma história que termina em casamento. Porque eu mesmo pretendo me casar!

O alvoroço instalou-se de novo no salão. As pessoas aplaudiam, batiam com os pés no chão e gritavam vivas.

O rei deu as costas ao salão, caminhou até a mesa das mulheres e estendeu a mão a Osyth. Ela virou para o lado e viu a expressão de horror no rosto da rainha e de seu próprio pai. Mas, quando olhou novamente para o rei, viu que a mão ainda esperava por ela. Deixou-se levar e, conduzida por Edgar, caminhou até a mesa principal, de onde podia ver o rosto avermelhado dos convivas, as cores vibrantes das túnicas e o reluzir do ouro e das pedras preciosas.

— Eis aqui — anunciou o rei — vossa futura rainha!

Se antes o salão estava tomado pela algazarra da festa, o estrondo que se formou depois do anúncio do rei quase bastou para jogar-lhe as paredes no chão. Osyth aproveitou a ocasião para aproximar-se do rei e gritar-lhe no ouvido:

— Já sei o que quero como presente de casamento!

Sorrindo, o rei olhou para ela e perguntou:

— O quê?

Levou a boca até o ouvido do rei novamente e gritou:

— Quero que devolvas a cabeça ao seu rei Penda. — Ao ouvir isso, Edgar arregalou os olhos e abriu a boca, como se não acreditasse. Mas só teve tempo de ouvir:

— Isso é tudo o que quero e não aceito nada em troca!

O rei meneou a cabeça e concordou.

 

                     A CABEÇA CUMPRE SUA PROMESSA

Assim, a cabeça de Egil Grimmssen foi levada ao rei Penda, a quem, durante anos, tinha servido como contador de histórias. Levaram-na dentro da caixa até uma câmara parcamente mobiliada. Num dos cantos, um banco de madeira; contra a parede, um grande armário no interior do qual também havia uma cama. Como iluminação, apenas uma vela e o fogo moribundo de uma lareira.

Um dos homens que acompanhavam a cabeça abriu a porta do armário. No interior, apenas escuridão. Pegou a cabeça pelos cabelos e jogou-a dentro.

— Aí está o teu rei — disse o homem. — Diverte-te com ele!

De dentro do armário, a cabeça podia ouvir risos, o fechar da caixa onde havia morado nos últimos dias e os passos dos homens que se retiravam da câmara.

A cabeça havia caído em cima de um travesseiro; ao lado dela, outra cabeça.

— Penda! — chamou a cabeça. — Senhor! — Mas não ouviu nada, nem mesmo o mais leve ruído de respiração. Também não sentiu nenhum movimento. Percebeu então que o rei Penda não resistira aos ferimentos e estava morto.

— Mesmo assim, vou cumprir minha promessa — disse a cabeça. — Pelo menos não serei interrompido!

"È a história de um rei que chegou ao poder muito cedo. Era quase um menino. Sentava-se no trono somente com a ajuda de outros; os pezinhos balançavam no ar, ainda distantes do chão.

— Como posso governar? — dizia ele. — Sou muito jovem. Não sei de nada.

— És rei — respondiam as pessoas ao seu redor. — Deves governar.

— Mas preciso de ajuda. Que me tragam, então, os homens mais sábios do reino!

— Mas quem são os homens mais sábios do reino? Como identificá-los? Como medir a sabedoria deles, com um metro ou com uma xícara de chá? Não obstante, alguns homens que eram considerados sábios foram levados até o jovem rei.

— Preciso de ajuda — ele disse. — Antes de tomar minhas decisões, preciso saber o que aconteceu no mundo antes de mim: o que fizeram as pessoas e qual foram os resultados de suas decisões. Devereis, pois, homens sábios, escrever a história do mundo e nela incluir os feitos de todos os homens que já existiram. Preciso disso para minha orientação.

Os homens sábios se entreolharam, espantados, e um deles disse:

— Senhor, isso levará muitos e muitos anos.

— Que a feitura desse livro não demore muito — disse o rei. — Preciso dele o quanto antes.

Aí, então, os homens sábios retiraram-se para um lugar tranqüilo e puseram-se a trabalhar. Enviaram mensageiros a todas as partes do mundo em busca de conhecimento. Compravam todos os livros de história e filosofia que conseguiam encontrar. Inúmeras velas foram queimadas durante as noites insones em que liam os livros adquiridos. Eles escreviam, questionavam e argumentavam. E escreviam mais, e refletiam mais, e escreviam mais ainda. E os papéis se empilhavam, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Desesperados, alguns dos sábios desistiram da tarefa e fugiram. Outros morreram e foram substituídos. Outros persistiram e envelheceram no trabalho. Por fim, terminaram a história das pessoas do mundo, de suas decisões e do resultado dessas decisões. Levaram trinta anos para concluir a tarefa, e ainda assim parece-me que não se esforçaram tanto quanto deviam.

Mas terminaram. Os preciosos manuscritos foram colocados no lombo de uma tropa de burricos de carga e os sábios acomodaram-se em carroças. E lá foram eles — burricos, manuscritos, sábios, cavalos e carroceiros — em direção ao palácio real. Quando chegaram e pediram permissão para entrar, ninguém sabia quem eles eram ou ouvira dizer de uma história do mundo encomendada pelo rei. Os sábios e os carroceiros tiveram de esperar do lado de fora enquanto o assunto era verificado do lado de dentro. Por fim, um criado muito bem vestido apareceu nos portões e pediu desculpas pelo entrave. O rei lembrava-se deles pessoalmente. Pediu que entrassem imediatamente e fossem levados até os aposentos mais confortáveis. Seriam recebidos assim que o rei terminasse de despachar.

— Então o rei está a despachar, hein? — disse um dos sábios. — Não esperou por nosso livro para começar a tomar decisões.

Quando finalmente os sábios foram levados até a presença do rei, viram — e alguns se surpreenderam — que ele não era mais o menino que se sentava no trono e as perninhas balançavam no ar. Era um homem grande, já perto do fim de sua juventude.

— Completastes meu livro? — perguntou.

— Completamos, senhor.

— Fizemos um apanhado de todos os feitos e de todo o pensamento de todas as pessoas importantes que já existiram: reis, proprietários de terras, mercadores, estudiosos, religiosos, escritores, artistas, músicos, bem como todas as rainhas e todas as mulheres de influência.

— Obra de tamanho vulto jamais existiu!

— Fico feliz em sabê-lo — disse o rei. — Todos os dias senti falta dela. Como sabeis, todos os dias um rei tem decisões a tomar. Deverá permitir a construção de um mercado em tal vila, ou de uma ponte em outra? Deverá revogar tal imposto, ou aumentá-lo? Quem deverá desposar sua herdeira? Será que este homem realmente avançou sobre as terras do vizinho? Será que deveríamos construir mais navios, ou fortificar tal cidade? Digo-vos: o trabalho de um rei sempre está por terminar. Sempre há algo a decidir e sempre cabe a ele decidi-lo. Trazei o meu livro! Sei que tenho muito a aprender com ele.

Os sábios começaram, então, a trazer o livro. Na verdade, não era um livro. Eram pilhas e mais pilhas de um manuscrito sem fim. A medida que os burricos eram descarregados, os papéis se amontoavam no chão. O rei assistia, cada vez mais estupefato, a toda a empreitada.

— Chega! Chega! — ele gritou. — Não posso ler tudo isso!

— Mas, Senhor! Ainda há mais dez burricos para descarregar, e ainda nem começamos com as carroças!

— É demais! Todos os dias sou obrigado a despachar e a ouvir os pleitos, as petições e os depoimentos das pessoas. Leio sempre que posso, mas jamais terei tempo para ler tudo isso!

— Mas, senhor! Pediste a história do mundo!

— Eu era garoto — disse o rei. — Não fazia a menor idéia da idade do mundo, nem do número de pessoas que já viveu nele, e muito menos do que elas fizeram. E, desde então, quase não me tem sobrado tempo para ler ou refletir. O que tendes a fazer é levar tudo isso embora e preparar-me um resumo.

— Um resumo, senhor! — exclamaram os sábios, desolados. Olharam para os lados e viram as torres de manuscritos.

— Sim, um resumo — continuou o rei. — Já fizestes a parte mais difícil. Agora, basta jogar fora a pele, os ossos e as carnes ruins. Trazei-me apenas os melhores e mais suculentos cortes. As pessoas que realmente fizeram alguma diferença, suas melhores decisões e os resultados dessas decisões! É disso que preciso!

Desapontados, os sábios recolheram os manuscritos, carregaram novamente os burricos, voltaram ao seu lugar tranqüilo e retomaram os estudos. Os mais velhos e os mais cansados desistiram; mas outros homens, mais jovens e mais dispostos, ocuparam seus lugares.

Os sábios leram as milhares de páginas que haviam escrito. Discutiram sobre quais tinham sido as pessoas mais inteligentes. E quando finalmente chegaram a um acordo, discutiram sobre quais tinham sido as decisões mais importantes e significativas dessas pessoas inteligentes.

Mais uma vez, queimaram uma infinidade de velas durante as incontáveis noites que passaram a reescrever o manuscrito original. Ao fim de tudo, o manuscrito ficou tão reduzido que pôde ser carregado em apenas cinco burricos. Levaram quinze anos para terminar o trabalho.

Dessa vez, antes de partirem para o palácio, mandaram avisar quem eles eram e qual era o motivo da visita. Foram bem recebidos nos portões do palácio e levados imediatamente à presença do rei.

O rei já era um homem velho, de cabelos e barbas brancas. Quando os manuscritos foram empilhados à sua frente, ele disse:

— Fizerdes um excelente trabalho. Mas preciso pedir-vos mais uma coisa. Estou ficando velho. Não tenho ânimo para trabalhar tanto quanto antes, muito embora minhas responsabilidades sejam as mesmas. O tempo para leitura é cada vez mais curto; não tenho tempo para ler nem isto. Peço-vos então, meus caros, que leveis de volta este excelente trabalho e o transformeis num pequeno livro, um livro suficientemente curto para que eu possa ler nas horas que me sobram quando não estou trabalhando.

— Mas, senhor, um pequeno livro não será mais o que nos pediste; não será mais uma história do mundo...

— Deverá ser uma história do mundo, porém uma história resumida. Dizei quem foram as pessoas mais importantes e onde reside a sabedoria delas. Dizei apenas aquilo que preciso saber na condição de rei. Tudo deverá caber num pequeno livro.

Aí, então, os burricos foram novamente carregados e os sábios partiram. Voltaram para seu lugar tranqüilo, discutiram, refletiram e reescreveram ainda mais. Em apenas dez anos chegaram ao pequeno livro que o rei lhes havia pedido. O livro era tão pequeno que cabia na palma da mão, muito embora contivesse toda a sabedoria do mundo.

Ansiosos, os sábios partiram mais uma vez em direção ao palácio do rei. Ao chegarem, perceberam um silêncio incomum.

— O rei está morrendo — disseram os guardas.

— Vinde depressa — disse o criado que foi recebê-los nos portões do palácio. — O rei está em seu leito de morte e deseja falar convosco.

Os sábios foram apressadamente conduzidos pelos corredores do palácio até os aposentos reais. Lá estava o rei, ofegante, apoiado numa pilha de travesseiros para que pudesse respirar melhor. Os sábios colocaram o pequeno livro sobre as cobertas da cama para que ele pudesse pegá-lo.

— Meus caros — ele disse.

— Fizerdes novamente um excelente trabalho, mas temo não ter tempo suficiente para ler nem mesmo esse pequeno livro. Durante toda minha vida, refleti sobre o que era o melhor a se fazer. Juro que me esforcei.

Batendo lentamente os dedos sobre a capa do livro, suspirou e disse:

— Como teria sido um rei muito melhor se pudesse ter contado com a sabedoria do mundo para me guiar!

— Não foste um mau rei — disse um dos pajens presentes no quarto.

— Juro que me esforcei — disse o rei. — Mesmo agora, mesmo no meu leito de morte, gostaria de saborear um pouco dessa sabedoria. Por acaso podereis me dizer, em poucas palavras, qual é a sabedoria do mundo?

Todos os que estavam ao redor do rei — príncipes, princesas, frades e freiras, pajens e sábios — entreolharam-se. Todos queriam ajudar o rei, mas ninguém sabia o que dizer.

Foi então que uma voz pequenina soou em meio à penumbra e à fumaça das velas espalhadas pelo quarto real:

— Sei tudo o que é necessário saber.

Todos se viraram para ver quem havia dito aquilo. Tiveram de abrir espaço para que passasse uma garotinha segurando um jarro d'água. Era uma das criadas cuja responsabilidade era simplesmente entrar e sair discretamente dos aposentos reais para renovar a água e mantê-la sempre fresca para o rei.

Antes que alguém a mandasse embora, o rei quis saber:

— Diz, o que é realmente necessário saber?

Timidamente, a garotinha olhou em torno de si e viu apenas homens e mulheres importantes. Ficou encabulada e não conseguiu dizer nada. Mas o rei insistiu:

— Diz, diz!

Então ela disse:

— Minha avó uma vez disse que tudo o que precisamos saber se resume a isto: nós nascemos, nós sofremos e nós morremos. Fora isso, não há mais nada a saber.

Ao ouvir isso, o rei deu seu último suspiro e morreu."

— Aí está, pois, meu caro rei Penda, a história do mundo, a sabedoria do mundo. É isso que eu deveria ter-te dito no campo de batalha, antes que eu perdesse o meu corpo e tu perdesses o teu reino. Nós nascemos, nós sofremos e nós morremos. E não há nada mais a dizer.

E a cabeça de Egil Grimmssen fechou os olhos para sempre. 

 

                                                                                Susan Price

 

 

                      

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