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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DA ÁGUIA / Ducan Sprot
A CASA DA ÁGUIA / Ducan Sprot

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Tetralogia dos Ptolomeus / Livro I

 

Na estrada pela qual se entra e sai do Egito, podem surgir subitamente redemoinhos de uma tempestade de areia, das que tornam o mundo amarelo; essa tempestade, o voraz furacão de areia, é também as areias do Tempo. Emergindo da cortina amarela, enfim aparece um rosto escuro, negro como a noite, dourado como o raiar do dia, com as feições de um cão com as orelhas levantadas, nariz úmido, pêlos e baba de um cão de verdade — um cão vivo.

Olhe mais de perto e verá que a cabeça do cão está fixada a um corpo de homem; sim, sob a máscara está um sacerdote do Egito, vestido em seu manto branco — seu manto que outrora foi branco é agora amarelado, como se este fosse um homem feito de areia, com sujeira acumulada de uma viagem, já que ele está há muito tempo na estrada. As suas sandálias foram roubadas. Seus pés descalços estão rachados e sangrando. Ele é pobre. As suas mãos já não têm a maciez da mão dos escribas são ásperas. A mão direita dele se estende para você na posição de quem mendiga, e ele não pede apenas o seu dinheiro, mas também os seus ouvidos — para que você escute o que ele tem a lhe contar.

O Rosto de Cão carrega uma sacola ou um saco de viagem e um cajado, e estão os seus últimos pertences quatro grandes rolos de papiros, de escrita apertada, com a tinta desbotada; livros que ele talvez tenha escrito, ou não, com a sua própria mão. Quem é o Rosto de Cão? Ele é o homem de muitas máscaras, que tem estado há dois mil anos na estrada, e não tem outra ocupação na Terra exceto a de desenrolar seus livros e lê-los para você.

Quem é o Máscara de Cão senão o deus cão dos egípcios, Anúbis, o Cão Potente, o companheiro de Thot. Sim ele é o Senhor do Deserto, que tem Poder de enxergar tanto de dia como de noite. Ele já viu de tudo. Já não possui juventude; no entanto, tem coisas melhores do que a juventude idade,experiência, sabedoria. Ele preside os mistérios da noite.

Simboliza a vitória da vida sobre a morte. Viva como chacal. Ladra como cão. O Rosto do Cão é ele quem guarda a chave deste livro; ele é o guardião dos portões desta escrita, velando tanto pelo seu início quanto pela sua conclusão — Anúbis. Ele parece montar guarda, imperecível, como uma fera a qual nada pode arredar. Ele aguarda que essa sua civilização vire poeira e seja soprada para longe pela tempestade de areia que é o Tempo.

Anúbis é aquele que transmite o Julgamento dos Deuses, para que Thot o registre por escrito. Ele é o Grande Contador de Histórias — as histórias das vidas dos homens. Por ora, no entanto, este Rosto de Cão deve pôr de lado sua máscara de cão e, no lugar dela, usara máscara de um pássaro. Chegou a hora de o Rosto de Cão tornar-se a íbis. Ele é o Mestre de todos os segredos. Ele já está há muito tempo na estrada, procurando por você, para lhe contar esta história.

Ele uiva como um cão, agora, e seu uivo logo se transforma no grito estridente de um pássaro.

Ele o agarra pelo braço já não é mais o cão. A sua mão é áspera, escamosa, afiada, dilacera a carne, como a garra de um pássaro.

Você está sob o meu poder, ele diz.

Salve, Rosto de Cão!, você fala. Salve, Anúbis, Faraó do Mundo dos Mortos!

Deixe a escuridão ir embora, ele responde.

 

 

 

 

                                   Ptolomeu, Filho de Lagos

 

                 Os Dedos de Thot

EI! Forasteiro! EI! Seu ignorante! VOCÊ, que está prestes a chegar há tanto tempo! Você está muitíssimo atrasado! SIM! É com VOCÊ mesmo que estou falando, Leitor. Com VOCÊ. Porque acho que VOCÊ não sabe nada sobre Ptolemaios — Ptolomeu. Sobre Ptolomeu, o grego que foi Faraó do Egito. Tampouco sobre a terrível tragédia de sua Casa. Você não sabe quem foi Ptolomeu, sabe? Nunca ouviu falar dele, ouviu? Você não sabe nem sequer pronunciar o nome dele (não pronuncie pitolomeu, Leitor!). Verdade! O que você merece mesmo, e sem demora, é uma sova no solado dos pés.

Sim, acho que você esqueceu tudo, nada sobrou em sua memória sobre a Terra Negra e sobre a Vermelha, as Duas Terras que eu chamava de K.-;met — a terra que os gregos têm o prazer de chamar Aigyptos, e que você provavelmente conhece como Egito. Você já esqueceu de Rá, o deus do Sol. Esqueceu de Anúbis, o deus com a cabeça de cão, o Faraó do Mundo dos Mortos. Você nem sequer tem noção de quem é Sobek, o deus-crocodilo. A sua ignorância é vergonhosa — vergonhosa! —, e o único Faraó de que já ouviu falar é o débil Tutankhamon! Na verdade, Thot vai ter de ensinar tudo a você. Porém, não se amedronte. Acalme-se, Leitor; podemos deixar a sova para mais tarde. Thot terá prazer de ser seu guia. Pois você já deve saber que eu sou Thot. Entretanto, um idiota como você nem mesmo deve saber quem é Thot, tampouco, não é? Você deve ter esquecido até mesmo Thot, o Grande Mágico. Thot, o deus Cabeça-de-íbis, Thot, o Babuíno Cabeça de Cão Thot o Macaco, aquele que é o Maior dos Escribas, que é a Memória dos Deuses; que toma nota de cada palavra dos deuses.

Thot ele que sabe tudo. Não existe nenhum livro sobre o Egito que Thot não tenha escrito com sua própria mão. Contemple, então, Thot, o Contador de Histórias, pois não há um só homem na Terra que seja capaz de revelar a você toda a terrível história dos Ptolomeus, uma história temida pelos homens, que os homens desejam esquecer por causa dos seus horrores — de fato uma história de acordar os defuntos. No entanto, Thot... Thot não tem a capacidade de esquecer; Thot só pode lembrar.

Para você, contudo, desde que ore a mim e me suplique, Thot contará esta grande história esquecida, sobre como os gregos se tornaram faraós do Egito durante dez gerações. E você chorará, e seus cabelos ficarão em pé, se você tiver cabelo, Leitor, pois esta história goteja sangue do princípio ao fim é como uma cascata de sangue, horrível e maravilhosa ao mesmo tempo.

Portanto, leia, Leitor, e horrorize-se. Leia e divirta-se.

Porém, primeiro, antes que Thot fale de Ptolomeu, deixe-o falar de Thot. Porque você, Leitor, é discípulo-de-Thot. Você é Aquele-Que-Deseja-Saber, e você nada pode saber se não souber quem é e o que é Thot. Sim, eu sou Thot. GRANDE GRANDE GRANDE, TRÊS VEZES GRANDE.

Arrá! Discípulo-de-Thot, fui eu que aprendi a Décima Nona Instrução, o Ensinamento de Fazer a Linguagem Calma. Sou Thot, o da Linguagem Fria. O-Que-Tem-Lábia é o meu nome. Sou Thot, Poderosa Ameaça, que se banha no sangue de seus inimigos. Sou Thot, Grande Assassino, deus dos mortos. Sou Aquele Que Sabe Como Repelir o Mal. Sou o Pacificador.

Arrá! Arrá! Sou o Bicudo, aquele com garras e asas. Eu sou o deus da Lua. Eu sou o Trapaceiro. Eu sou o Ladrão do Tempo. Eu sou Thot.

Saiba que eu sou Thot, aquele que engoliu as Duas Terras, que conhece tudo o que pode ser conhecido sobre o Egito. Eu sou Thot, o Pretensioso; Thot, o Pedante. Thot dos discursos contorcidos.

Saiba que é Thot aquele que dirige súplicas especiais, em favor de todos os homens, aos Juizes da Morte; este é o Thot, que você deve encontrar na Vida Após a Morte, quando eu peso seu coração de homem morto na Balança, contra a Pena de Maat, a Pena da Verdade, e é Thot quem deverá fazer o registro por escrito do Julgamento dos Deuses. Tomara que o seu coração seja leve na Balança, Leitor! Pois é Thot quem pesará SEU coração quando chegar a sua vez. Será que isso é o bastante para fazer você se sentar e escutar?

Sou Thot para os gregos, ou taautos. Para os egípcios, sou Djehuty ou Djedhuti ou Tehuti, autor dos Quarenta e Dois livros que são chamados de os Tehutica, que têm Toda a Sabedoria do Mundo. Alguns contêm as Leis do Egito, das quais Thot é o guardião. Alguns são livros de Mágica, pois Thot é o Grande Mágico, rivalizado apenas por Isis, a Senhora dos Muitos Nomes; e alguns são livros de História, pois os anais de todos os reinos são escritos por Thot. O livro que você está segurando nessas duas mãos, Leitor, é um livro de História, o Quadragésimo Terceiro Livro de Thot. É um livro também que manterá os seus olhos fixos sobre a página até que você termine a leitura. Thot promete isso a você. Todas as suas palavras são verdade. Não há lugar para ficções nos escritos de Thot.

Thot! Algumas vezes eu assumo a forma da íbis, e levanto vôo. Agora, no entanto, tomo a forma do macaco e me acocoro sobre o ombro do escritor. O macaco de Thot fica tagarelando ao ouvido de todos os escribas. O macaco de Thot fixa seus olhos em cada palavra. Todo escriba, diariamente, antes de começar o seu trabalho de escrever, deve despejar sua gota de água no chão, fora do vidro no qual mergulha o seu pincel. É sua libação a Thot, a mim, o Patrono de escribas; a Thot, o maior de todos os escribas.

Thot escuta você, discípulo-de-Thot. Ele escuta até mesmo os seus pensamentos secretos. Você não acredita em uma só palavra do que digo? Então, Thot fica zangado. Posso lembrar-lhe, discípulo-de-Thot, de que sou a Língua de Ptah, o rei da criação, e que Ptah criou todas as coisas. Eu sou o Mestre de Cronologia? Thot, que reinou exatamente 7.726 anos. Acredite-me, sou O-Que-Tudo-Sabe. Sou o Senhor de Khermmenn, o Mais Poderoso Rei. Sou o Coração e a Língua de Rá. Sou o Senhor dos Livros. Sou o criador do Tempo. Posso ler os segredos dos corações dos homens. Tenho o poder de transpor qualquer barreira.

Sou o próprio inventor dos hieróglifos, o inventor da leitura e da escrita. Sou o Senhor das estrelas. Sou o medidor da Terra. Minhas palavras surtem efeito. Sou Poderoso na Oratória. Quando coloco a máscara de Thot sou Thot, sou o deus.

E assim eu começo a escrever. Thot vela por mim. O macaco pesa sobre os meus ombros. Você não me acredita? Escute, discípulo-de-Thot, isto é a verdade.

Thot lhe implora Acredite!

SIM. Thot escreveu estes capítulos com seus próprios dedos.

 

               Ninguém

Thot pergunta, então. Quem era ele, este Ptolomeu, este grego, este macedônio de cabelos amarelos? De que pai era ele filho? De onde veio? E o que queria no Egito?

Ptolomeu não é verdade que ele não era Ninguém — Ninguém, vindo de lugar nenhum? Que se tratava de um homem que não sabia sequer o nome do seu avô?

Ptolemaios, assim o chamavam, e o seu nome significava Guerreiro, e nunca houve um nome que mais se ajustasse a uma Casa do que o nome de Ptolemaios.

Logo de início, houve controvérsias sobre seu parentesco. Alguns diziam que o pai era Lagos, um comandante do exército do Rei Felipe da Macedônia ou, pelo menos, algum soldado dele, e que a mãe era Arsinoê. Lagos, o nome significava Lebre, esta criatura que dorme com os olhos abertos e é, acima de tudo, veloz. Por causa disso, alguns têm sempre chamado a Casa de Ptolomeu de Lagids ou Lagidae.

Quanto a Arsinoê, Thot desconhece o que significa o nome, mas você, Leitor, o deve pronunciar Ar-Si-NÔ-i ou Ar-ZI-nô-i.

Outros juram por Zeus que Ptolomeu era o filho de Arsinoê, mas que seu pai era o próprio Rei Felipe, e Arsinoê, a vítima de um estupro — um privilégio de reis — e Ptolomeu nasceu bastardo.

Quem era ele? Um garoto nobre de nascença? Ou um garoto sem berço? Mesmo Thot encolhe os ombros. E se ele fosse, de fato, um garoto camponês de Eordaia na Macedônia, um pastor de carneiros e cabras, uma categoria só melhor do que a dos bárbaros? Que importância tem isso? Pois o garoto estava destinado a ser rei, e um deus em vida, e a ser chamado Aionobios — O Que Vive Para Sempre, o Filho do Sol.

No momento do parto as mulheres proferiram o grito ritual de alegria, e a parteira fez o exame para verificar se a criança era perfeita, tinha todos os dedos, os dedos dos pés não eram ligados, a abóbada palatina não era fendida, ambos os olhos da mesma cor azuis. Se tais itens estivessem em ordem, os gregos criariam a criança; caso contrário, não o fariam, e se livrariam dela, e os pássaros poderiam picar seus olhos e os cães comeriam sua carne, com ele ainda vivo, sem que ninguém se preocupasse com sua sorte. Tal era o costume dos gregos, que não queriam crianças que não fossem perfeitas, belas como os deuses imortais, todo filho formoso como Apolo e toda filha bela como Afrodite.

Havia muitas histórias sobre a origem de Ptolomeu, e contava-se que, sim, ele fora rejeitado, abandonado sobre a encosta, por causa do estupro de sua mãe. Relata-se que ele foi resgatado por uma águia, e que os pais o trouxeram de volta para casa, pois uma criança alimentada pelas águias deveria tornar-se rei quando crescesse — esta era a profecia dos céus.

Mito, ou história? Thot ri. Os gregos! — eles adoram retratar a si mesmos como melhores, mais grandiosos, mais sábios e mais generosos do que realmente são. Os gregos são presunçosos, atores, amantes de mentiras, e suas histórias estão cheias delas, porque uma história cheia de mentiras é uma história melhor — Thot jura que é assim.

Seja como for, se é verdade que este Ptolomeu era filho de Felipe com uma concubina, então ele teria sido meio-irmão de Alexandre, e seu sangue era nobre. Convinha à Casa de Ptolomeu deixar que o mundo acreditasse que essa era a verdade.

No primeiro dia de sua vida, Lagos e Arsinoêfizeram as oferendas apropriadas para as Parcas pão, sal e dracmas.

No terceiro dia de sua vida, colocaram um bolo de mel ao lado de sua cabeceira, e um espelho de bronze e dracmas de prata debaixo do seu travesseiro — presentes para as Parcas, que deveriam vir naquela noite conceder à criança seu destino na vida.

As Parcas são três mulheres velhas Láquesis, que canta o passado, Cloto, que canta o presente, e Atropos, que canta o futuro. Ptolomeu teria tempo somente para Cloto — somente para o presente —, ou era o que gostava de dizer; já que, quanto ao passado, não gostava de lembrá-lo.

Arsinoê jurava por Pan e todos os deuses que viu as mulheres velhas naquela noite, figuras espectrais a primeira enrolando a sua linha, a segunda fazendo o registro do que estava para acontecer, a terceira brandindo a tesoura que devia cortar o fio de vida de Ptolomeu no dia da sua morte. Porém, toda mãe grega jurava tais coisas.

Mesmo assim, Ptolomeu estava nas mãos do seu destino a partir do momento em que nasceu, e não havia nada que pudesse fazer para alterar isto. O que quer que aconteça a um grego é sempre segundo a vontade de seus deuses.

Thot diz, tolices de gregos, tudo isto. Os únicos deuses são os deuses do Egito; porém os gregos persistirão em sua insensatez.

Arsinoê, por precaução, alimentava a sua criança apenas com o leite dos seus próprios seios, pois amamentar uma criança é prova de devoção materna. É dever de toda boa mulher exercer essa função. Certamente, é cansativo; no entanto isso aumentará a sua afeição pela criança, e afeição é uma coisa que os gregos não possuem em abundância. Uma razão mais importante é que a criança grega sofre a influência do leite que bebe, ou assim acreditam os gregos. Uma criança grega nunca deve ser alimentada com leite de vaca, por conta do medo de beber junto o espírito do animal e de que cresça tímida, obstinada, estúpida, espojando-se com a sua própria imundície.

Para o egípcio, a vaca é sagrada, imbuída do espírito de Hathor, a Dourada, a Vaca Divina, Senhora da Turquesa, um animal ao qual devemos respeito e adoração. Hathor amamenta o próprio Faraó, e o que é bom o bastante para o Faraó é bom o bastante para seu povo. Os egípcios não são adeptos de idéias tão atrasadas e bárbaras sobre o leite de vaca.

Pela mesma razão, os gregos não querem nenhum contato com o leite de carneiro ou de cabra, e assim Ptolomeu amamentou-se nos seios de sua mãe. Não foi sequer entregue a uma ama, que poderia lhe passar um caráter indesejável por meio do seu leite. Não, Arsinoêfez tudo de acordo com o costume dos gregos; se agisse em desacordo, estaria sujeita a atrair a vingança dos deuses.

Mesmo assim, Thot sabe, que viria o tempo em que as mulheres desta família se tornariam tão vãs, tão orgulhosas, tão ricas e, sim, tão estúpidas, que deixariam os filhos aos cuidados da ama, e dariam o leite materno para os cães, porque o leite das mulheres servia para impedir que esses animais se tornassem loucos.

Todo egípcio sabe que fazer tal coisa é tão fatal quanto se banhar na água suja da banheira de sua esposa.

Reflexões de Thot na Casa de Ptolomeu a loucura não estava nos cães, mas nos humanos.

Sabedoria dos egípcios o homem sábio distingue uma ação boa de uma má. A devoção de uma mãe é uma coisa boa.

E eles envolveram essa criança em bandagens, embrulharam-na com ataduras de forma que ficasse firmemente imobilizada, braços e pernas e corpo, e a cabeça também permaneceu assim durante os primeiros quarenta dias de sua vida, depois durante mais vinte, de forma que seus membros cresceram sem deformações.

Ptolomeu uivava, como toda criança grega uiva, aprisionado por aquelas faixas que o prendiam. Era como se estes pais desejassem que seu filho crescesse irritado, o que era, sem dúvida, verdade. Educavam todo filho para derramar sangue, para ser um guerreiro. Nisso, pelo menos, eram bem-sucedidos. Ao final de tudo, sua história—a história de sua Casa—seria salpicada,

manchada e, depois, empapada de sangue, como o papiro do aprendiz de escriba, que inadvertidamente derrama sua tinta vermelha.

Desde seu primeiro dia, Ptolomeu não apenas usou bandagens, mas também o olho direito de uma foca, embrulhado numa tira de pele de veado, para torná-lo desejável. No braço direito, usava a língua de uma foca, para ser vitorioso na guerra. No seu pulso esquerdo, usava o coração e os bigodes de uma foca, para lhe garantir sucesso em todos os seus empreendimentos.

A sorte chegou a Ptolomeu de imediato, já que seus pais penduraram-lhe em volta do pescoço amuletos para protegê-lo contra a má sorte, doenças graves e mau-olhado. Ele usou esses amuletos durante toda a sua vida nunca se desfez deles.

No sexto mês, Arsinoê começou a mastigar alimento sólido na sua própria boca para depois cuspi-lo dentro da boca de Ptolomeu, do jeito que uma mãe-pássaro alimenta de vermes os seus filhotes.

Quando se encerrou o período das bandagens, ela lhe soltou, primeiro, a mão direita, para que ele não crescesse com a desgraça de segurar a espada com a mão esquerda. Um grego deve manejar a espada com a mão direita, o escudo com a esquerda, ou será inútil na falange.

Thot diz este é o primeiro ensinamento sensato desses gregos.

Ptolomeu — este camponês, este ninguém — veste-se com a pele de carneiro para se proteger do frio. A noite, ele se mistura aos animais para se aquecer. Sempre sentirá frio.

Porém ele cresce. Aos seis anos de idade, guarda o rebanho de seu pai nas encostas, não importa o tempo que faça. Seu ouvido é aguçado, seu olho é apurado. Está sempre atento aos lobos, ursos e águias que podem arrebatar seus cordeiros. Ele arremessa pedras nos corvos. É hábil com a funda e está destinado a ser um grande guerreiro.

Aos doze anos, caça um lagarto na necrópole, e passa a usar a perna direita dele atada ao seu antebraço direito, já que isso traz sorte e vitórias sem fim na batalha.

Aos treze anos, prende ao corpo o falo-talismã que o protegerá contra o mau-olhado, e o toca, para ter Sorte, vinte vezes por dia, pelo resto de sua vida.

Sim, ele tem sorte, muita sorte, porque não é da natureza do grego deixar coisas tão importantes para Automateia, deusa do Acaso.

Aos quatorze anos, dirige-se a Pella, capital da Macedônia, e se torna discípulo da Escola de Pages, pois esta é a corte do Rei Felipe, o homem que talvez fosse seu pai, e fazem troça dele porque não sabe dizer o nome do seu avô, por sempre o ter chamado de Pappos.

Este garoto Ptolomeu cheira a leite azedo e ainda tem estrume de carneiro e de cabra na sola das suas sandálias. Alguns chegam a jurar por Zeus que ele não calçava nada em seus pés, que chegou à cidade descalço, e riam dele por isso.

Ptolomeu agora sai para caçar com o Rei e o serve à mesa. Em troca, recebe treinamento nas artes da guerra, aprende o alpha beta e tem o privilégio de ser surrado pela própria mão do Rei e por nenhuma outra.

Quando raspa o rosto pela primeira vez com a navalha de bronze, dedica a lanugem dourada a Hermes, o Thot dos Gregos, seguindo o costume grego em agradecimento por ter sobrevivido por tempo suficiente para atingir a masculinidade.

Em homenagem a Hermes, Ptolomeu agora guarda pendurado seu kausan, ou barrete de feltro, e o raspador que usava no gymnasion para remover a areia e óleo da sua pele, e sua clâmide entranhada de suor, e ainda a bola de couro que nunca se cansava de ficar jogando para todos os lados, e as dá de presente ao deus, como celebração de uma bem conduzida meninice.

Deve-se deixar bem claro que Ptolomeu, filho de Lagos, não se destacou nessa idade como amante dos livros e dos estudos. Nem então, nem nunca, ele foi Thot, seja no que for. De modo algum. Nem se evidenciou como alguém predestinado a ser um líder entre os homens, já que se mostrava mais afeito a obedecer do que a dar ordens. Entretanto, era abençoado por Tykhe, a deusa da sorte. Acima de tudo, Ptolomeu era um homem de sorte. Seguramente, Alexandre também tinha sorte, era famoso por sua sorte, mas, na verdade, Ptolomeu tinha mais sorte ainda.

O que dizer do resto da família? Não havia irmãos ou irmãs? Nem parentes dos quais se pudesse falar? E o que foi feito de Lagos e Arsinoê?

Discípulo-de-Thot, se o deus fosse lhe contar tudo nos mínimos detalhes, você não seria capaz de segurar este livro em suas mãos. É suficiente que você saiba que Ptolomeu tinha um irmão, Menelau era seu nome, que o acompanhou durante toda sua vida. Por vezes, Menelau era útil; noutras ocasiões, não. Menelau, pelo menos, sobreviveu. Dos outros, Thot nada sabe. Não, nenhuma palavra.

E quanto aos pais, nada além de escuridão — escuro, escuro, escuro — se eles viveram para atingir a velhice ou se morreram antes disso, mesmo Thot, que tudo sabe, não dispõe deste conhecimento.

Quando Ptolomeu alcançou 11 ou 12 anos de idade que nasceu Alexandre o filho do Rei Felipe da Macedônia com a Rainha Olímpia; de forma que Ptolomeu talvez fosse meio-irmão desse grande príncipe, ou talvez não fosse.

Alexandre estaria com dois ou três anos de idade quando Ptolomeu pela primeira vez colocou os pés em Pella. Foi aí que Ptolomeu recebeu a missão de cuidar deste príncipe? Foi ele o guarda-costa pessoal de Alexandre? Foi o próprio Ptolomeu que ensinou Alexandre a arte de equitação, os fundamentos de luta corpo a corpo e do boxe? Pode ter sido.

O que Thot sabe realmente é que Ptolomeu logo se tornou o Provador de Alexandre. Era quem provava sua comida e, sim, isto porque a sua língua era sensível, seu estômago, de ferro, e tinha a habilidade de farejar veneno como um cão.

Em todos os episódios, o destino uniu a história de Ptolomeu à de Alexandre, sem o qual Ptolomeu jamais teria sonhado em pôr os olhos no Egito, e o Livro de Thot cujo peso você sustenta em suas mãos nunca teria sido escrito.

O tempo passou. Quando Alexandre completou treze anos, sua educação começou para valer, tendo o famoso Aristóteles como seu tutor. Os gregos costumavam dizer que Ptolomeu sentava-se sempre ao pé de Aristóteles, apesar de ele ser dez anos mais velho do que o seu colega de classe.

Porém, Thot pergunta por que Ptolomeu ainda estava na escola se tinha 23 anos de idade? Será que esse homem ainda não era capaz de recitar Homero de cor, do começo ao fim? Estaria ele tão atrasado que precisasse de aulas extras, lições de geometria, matemática, astronomia e botânica?

Thot estende suas mãos, suas asas, perplexo.

O que Ptolomeu ganhou com isto, entretanto, foi o Teatro da Memória dos gregos, em seus intrincados detalhes, refinado em sua estrutura, com mais de vinte mil assentos de pedra, e sobre cada assento um objeto tal como corvo, águia, leão, antílope, urso... e a seqüência de objetos foi tão insistentemente martelada em seu íntimo que Ptolomeu seria capaz de se lembrar dos episódios mais remotos de seu passado e, no final de sua vida — quando, só para deixar claro, não queria saber de recordações —, ele a escreveria inteira, sua história de Alexandre, exatamente como tudo aconteceu.

Ninguém deve duvidar de suas lembranças sobre o que ocorreu. Ele estava com Alexandre no começo; ele estava com Alexandre no fim. Como Provador de Alexandre, sentava-se ao lado do Rei em todas as refeições. Não havia nada que Ptolomeu não soubesse sobre Alexandre de Macedônia.

Porém, ao mesmo tempo, embora soubesse de tudo, não entendia coisa alguma. Ninguém entendia Alexandre. Nem mesmo Thot. Alexandre permaneceria um mistério para todo o sempre.

 

                     O Passado

Thot ouve você, Seu Impaciente. Claro que você quer a história, claro que quer conhecer o futuro, discípulo-de-Thot; porém, Thot diz você não pode ter o futuro sem primeiro ter o passado.

Thot ouve você, Aquele-Que-Deseja-Saber, dizendo que Ptolomeu só tinha tempo para o presente, que ele não queria nada com o seu passado. Thot ouve você dizendo que quer saber do futuro, para ir mais depressa.

Porém, Thot responde não se afobe. Só para deixar claro, sim, Ptolomeu desejava esquecer o seu passado, mas não o podia esquecer. Thot quer que você conheça o passado de Ptolomeu. Thot é mais interessado no passado. Thot não vai deixar de fora o passado de Ptolomeu. Thot fica zangado. Não se esqueça disso. Thot é Grande em Matança. Poderoso em Pavor. Você não deseja saber o que Ptolomeu fez? Como pode você não querer ardentemente saber da vida pregressa dele? Você não quer saber das perversidades que os gregos praticaram na Ásia, dos seus incontáveis crimes de guerra? Como é possível que você não queira saber do horrível passado de Ptolomeu? Como Pode Thot ignorar a fundação da ilustre e a mais ilustre de todas as cidades, Alexandria? Ou a história de como Ptolomeu foi levado a comer o seu cão?

Chega de tolices, discípulo-de-Thot. O deus faria você saber de tudo. Você deve ser como o próprio Thot e saber de tudo. Vire a página, vire, vire a página. Não esqueça que você tem nas mãos o livro de Thot, escrito pelo trabalho dos próprios dedos do deus, e que esse livro reluz na escuridão, mantendo o leitor prisioneiro até o fim da leitura.

Sim, Ptolomeu gostaria muito de esquecer do seu passado, porém Thot pensa diferente. Thot sabe que o passado é mais importante.

Se um homem pronunciasse a palavra Khaironeia para Ptolomeu, ele cerraria os olhos e contorceria a fisionomia. Ele se lembraria muito bem dessa batalha.

Os gregos dizem que o primeiro homem que se mata é o pior. Ptolomeu ainda sente náuseas quando pensa nisso; a luz por trás da cabeça do homem, e ele é um grego, não tem sequer vinte anos de idade, tem uma esposa, uma família e uma fazenda, e jogou fora seu capacete, e sua morte será a grande transgressão de Ptolomeu.

Ele grita o Alalalalai, o grito de batalha da Macedônia, dirigindo a espada para o alvo, e ele não pára de gritar enquanto impele a espada para dentro da boca do homem, e grita enquanto a retira, arrancando-a dos dentes estilhaçados do homem, e ele é encharcado pelo jato de sangue preto expelido da boca que geme. Ele atravessa com a espada o estômago, depois rasga para cima, de forma que as entranhas do homem saltam sobre seus pés — os pés de Ptolomeu — como uma enfiada de salsichas sangrentas. Ele mete várias vezes a espada no pescoço do homem, que fica varado como se fosse um peso de carne, porque quer ter a certeza de que o homem está morto, e de que não se levantará, cambaleante, matando Ptolomeu.

Ptolomeu vomita o seu desjejum, pois fora a primeira vez que matara um homem e era a sua primeira batalha.

Na calma do momento seguinte, ele examina o homem e decepa suas extremidades — os pés macios, as mãos perfeitas, o rhombos que não gerará mais filhos, as orelhas que a luz não iluminará mais, o nariz que não mais respirará — e os amarra com uma corda ao redor do pescoço do homem morto e sob as suas axilas, porque isso é o que deve fazer para impedir o fantasma de assombrá-lo para sempre.

Tudo em vão, entretanto, pois o fantasma não pararia de persegui-lo.

Sim, ele chorou quando matou pela primeira vez, ele defecou nas pernas como um perfeito covarde, aterrorizado por pensar que assim estava arruinando a primeira morte que praticara. Mas os seus companheiros disseram isso sempre acontece na primeira vez que se mata um homem. Não era vergonha nenhuma sentir-se como Ptolomeu se sentiu, eles disseram. Eles disseram na segunda vez, matar é mais fácil...

E foi verdade depois disso ele nada mais era do que uma máquina de matar homens, e pensava muito pouco no que estava fazendo. Era um soldado da Macedônia. A morte era o seu negócio, ou sua profissão. Sim, odiava fazer isso, mas também sentia-se bem a esse respeito. Era muito bom nisso. Nada como a morte para fazer o coração de um homem bater mais forte; nada como a morte para fazer um homem sentir-se vivo.

Khaironeia. Após a vitória, o Rei Felipe promoveu, como de costume, uma grande festa, e, como de costume, bebeu demais. Depois, procedeu à revista do campo, auxiliado pelos seus oficiais mais graduados, rindo diante dos cadáveres empilhados, e proferindo palavrões e insultos. No entanto, quando se deteve diante da Ala Tebana, o famoso batalhão de amantes, 150 pares deles, caídos mortos em suas fileiras, exatamente onde haviam lutado, Felipe chorou.

Os gregos, apesar dos pesares, não são homens completamente privados de sentimentos. Não têm coração inteiramente duro. E Felipe, o grego de coração mais duro que já viveu, agora erguia um grande leão de pedra para guardar o túmulo desses guerreiros, declarando que ninguém mais bravo do que eles jamais brandiu uma espada.

Ptolomeu — o que ele lembrava? Enquanto os feridos fossem capazes de se mover, os pássaros se manteriam distantes; porém, assim que ficavam imóveis, os corvos vinham arrancar seus olhos. E os abutres investiam violentamente de suas árvores, aos milhares. A última coisa de que um homem tomava consciência era do circundar dos pássaros. A última coisa na vida de um homem era a batida de grandes asas, as garras amarelas, o grande bico amarelo aProximando-se direto sobre ele. Depois, a escuridão, os gritos, e depois o silêncio, e essa era a estrada para Hades, da qual nenhum viajante retorna.

Os garotos, jovens demais para lutar — os pajens da escola de pajens —, ehpe empregou-os para afugentar os pássaros. Porém uma batalha podia atrair até cerca de vinte mil pássaros, e o que poderia espantar tantos pássaros assim?

Ptolomeu vomitou quando assistiu à cena pela primeira vez, porém um homem pode se habituar a qualquer coisa, ou quase, e veio o tempo em que suas entranhas já não se agitavam. E, não, não tinha a menor idéia do papel que o abutre desempenharia em sua vida. Não sabia que a sua Casa deve amar o abutre, que o abutre seria o seu deus.

Se um homem pronunciasse o nome de Felipe diante de Ptolomeu, ele não contorceria o seu rosto com a lembrança; se bem que o divino Rumor dizia que este homem era o pai de Ptolomeu.

No dia em que o Rei Felipe foi assassinado, ocorreu também o casamento de sua filha, Cleópatra, de modo que a festa do casamento tornou-se a festa do funeral de seu pai, e as tochas do casamento serviram para acender a pira funerária de Felipe. Ptolomeu viu tudo o sangue sobre o chão, o sangue sobre as roupas brancas do Rei, a trilha de sangue formada ao arrastarem o corpo sem vida desse grande Rei.

E Ptolomeu nada sentiu.

O adivinho havia declarado que esse seria um Dia Auspicioso, embora, no final das contas, tenha sido um dia auspicioso apenas para Alexandre, que se tornou Rei, e para Olímpia, sua mãe. Alexandre, no entanto, cumpriu o seu dever, e mandou o adivinho para a crucificação, por deixar de prever um Dia Nefasto, e os corvos ficaram com os olhos do adivinho, que fez por merecê-lo.

Ptolomeu percebeu que Olímpia era culpada do assassinato de seu marido — Olímpia, que chegou até mesmo a pôr uma coroa de folhas de carvalho de ouro sobre a cabeça do assassino, onde ele foi pendurado, exposto ao escárnio público. De fato, ela chegou até a dedicar a arma do assassino a Apolo — prova suficiente, sem dúvida, de que era culpada.

No entanto, Alexandre tornou-se Rei, e iria governar juntamente com sua mãe, de modo que Olímpia conservou todo seu poder e influência.

Coisas piores aconteceram, então Olímpia quis punir a nova esposa do homem morto, e seu filho pequeno, meio-irmão de Alexandre; e a história conta que ela ordenou que os dois fossem amarrados numa enorme travessa de bronze, que se acendesse o fogo debaixo dela, e que ambos fossem assados até a morte.

Alexandre começou o seu reinado com o banho de sangue. Seu meio-irmão, Karanos, ele assassinou. Seus outros irmãos e meios-irmãos, também

livrou-se de todos, para poder, sem empecilhos, sentar-se em seu trono.

O único parente deixado vivo foi Arrhidaios, seu irmão louco, que não representava ameaça para ninguém.

Tais eram os costumes civilizados dos gregos.

Quanto a Ptolomeu, Felipe nunca deu a este seu filho nenhuma espécie de tratamento especial. Não lhe foi dada promoção rápida na carreira, mas, tendo-o chamado a Pella, ele o ignorou durante 17 anos, como se não fosse seu verdadeiro pai.

Seria difícil prantear um homem assim.

Na cremação, o vento soprava a fumaça no nariz de todo mundo, de tal forma que eles tossiam, e seus olhos lacrimejavam como se chorassem lágrimas de verdade pelo homem morto que ninguém amou em vida.

A fumaça fazia-os espirrar também, dando até mesmo a aprovação de Zeus ao que tinham feito o assassinato de um rei, um marido, um pai, e um poderoso general da Macedônia.

 

               A Memória da Crueldade

Não, discípulos-de-Thot, não se enganem. Ptolomeu lembra-se de tudo, sejam lembranças boas ou más — porém finge não se lembrar.

No transcorrer da sua marcha ele se lembrará de como foi tudo. Agora, a infantaria pesada mantém a sarissa bem erguida, a seguir baixa-a para o ataque, agita-a da esquerda para a direita, e repete a manobra várias vezes Seguidas, para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita. Então, vem o sinal de Alexandre para toda a falange avançar, virar à esquerda e à direita, dar meia-volta e recuar, e executar o exercício de treinamento de campo, ali mesmo onde estão, agora — na fronteira entre a Macedônia e a Trácia, cercada pelos bárbaros.

Sim, os bárbaros estão espantados, assustados, aterrados até o âmago de seus seres pela perfeita disciplina e perfeita simetria da falange de Alexandre. Ele se move furtivamente a fim de ver melhor o que está acontecendo. Os bárbaros estão enfeitiçados, como um coelho surpreendido por uma lanterna, congelado de tanta surpresa, e então Alexandre grita o sinal, sem avisos, e a falange brada o Alalalalai, o terrível brado da batalha, e eles atacam os bárbaros, cortam-nos em pedaços, abatendo todos eles.

Ptolomeu ri, Ptolomeu sorri seu sorriso mais largo, só de pensar nisso. Pois, sim, era o truque favorito de Alexandre, realizado em silêncio total. Uma coisa que nenhum homem que viu jamais esquece.

Sim, Thot conhece muito bem a crueldade deles, sabe bem como reprimiram a revolta em Tebas. Mal tinha Alexandre chegado diante do Portal de Electra e já as famosas suarentas estátuas de Orfeus haviam começado a gotejar, pondo os cidadãos em pânico, pois este era o pior dos maus augúrios. Então, os tebanos não deixaram Alexandre entrar na cidade, por causa do suor que escorria das estátuas, e além disso recusaram-se a render-se a ele.

O que fez o maravilhoso Alexandre? Ele perdeu a paciência e sitiou Tebas com toda as armas que pôde reunir. Só para deixar claro, os tebanos mereceram, em parte, o castigo, por terem entoado em coro tirano, tirano, tirano para Alexandre, do alto de suas ameias, e não foi direito gritar insultos contra este orgulhoso rei de apenas 21 anos de idade.

Alexandre cortou-os em pedaços. Tebas, ele incendiou. Arrasou todas as casas, deixando vivos apenas os sacerdotes, e apenas a casa do poeta Píndaro, cuja obra apreciava, foi deixada em pé.

Ptolomeu, com 32 anos, saqueou, queimou, estuprou e massacrou tanto quanto todos os demais. O dever de um soldado é obedecer ordens sem questionar. O propósito de um soldado é matar ou ser morto.

As mãos de Ptolomeu estavam, portanto, manchadas de sangue, assim como as mãos de todos os gregos. Ptolomeu não havia se esquecido de Tebas, onde reinara Édipo e onde Tirésias havia feito profecias. Thot sabe, Ptolomeu não esqueceu coisa alguma.

Thot, inventor da matemática, mantém suas contas em dia. Na travessia do Helesponto, que marcou o início da sua Campanha Persa, Alexandre tinha 31 mil soldados de infantaria a seu serviço e 5.100 na cavalaria. Este era o exército que marchava com Alexandre, aproximadamente quarenta mil homens. Eles iriam matar, assassinar, massacrar, estuprar, chacinar, passar a fio de espada, executar e crucificar, nos onze anos do seu selvagem avanço, dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças, pela simples razão de haverem frustrado os caprichos de Alexandre, ousado opor-se a ele, ou contrariado a sua vontade. No final da campanha, ele tinha 120 mil homens sob seu comando.

Thot pergunta quantos homens voltaram para suas casas, na Grécia?

Porém não há resposta. Nenhum grego pode responder a esta pergunta e manter a cabeça erguida. É a grande vergonha da Macedônia. Por um lado, Alexandre é o maior herói, o maior general, desde o legendário Aquiles, desde o começo da história grega, um homem cujos feitos jamais serão superados; todavia, por outro lado, é o homem que conduz à morte a flor de uma geração inteira. Para as milhares de viúvas de guerra, e para as milhares de crianças deixadas órfãs, Alexandre não foi um herói, mas um demônio, que arrebatava maridos e pais, e não os devolvia. A Grécia nunca mais voltaria a ser a mesma.

Quanto ao poderoso Império de Alexandre, nada sobrou dele, depois de sua morte, senão discórdia.

Thot sabe, também, sobre o Cerco de Tiro, sobre o qual Ptolomeu gosta de afirmar que não consegue lembrar.

Mas, sim, Alexandre chegou dizendo que desejava acima de tudo fazer sacrifícios a Melqart, o Hércules de Tiro, o que significava que deveria pôr seus pés no interior da cidade. Porém os tiroanos sabiam muito bem que Alexandre tinha a intenção de subjugá-los e derrotá-los, e recusaram-se a deixá-lo entrar.

O que, então, fez Alexandre? Ele criou terra onde antes era o mar, construindo um grande quebra-mar para que pudesse alcançar a ilha que fora a velha cidade de Tiro, e durante todo esse tempo esteve sob o ataque dos tiroanos.

Os deuses da Grécia enviaram os seus augúrios. Uma onda gigantesca vomitou um enorme monstro marinho no centro da grande obra dos macedônios, onde ficou encalhado, metade na terra, metade no mar, até conseguir se soltar e se afastar nadando — o que os intérpretes dos augúrios disseram significar que Poseidon, efetivamente, ajudaria Alexandre.

Pois sim, Alexandre acreditou que obteria os favores de Poseidon e de fato os obteve, pois embora o cerco de Tiro tenha durado mais ou menos oito meses, ele conseguiu construir a ponte por sobre o canal, afinal, e iniciou seu ataque.

Acuados, os tiroanos aqueceram um grande número de escudos de bronze numa fornalha, encheram-nos de areia quente e excrementos ferventes e lançaram-nos, sem aviso, do topo das muralhas da cidade, sobre os homens de Alexandre. Nada que houvessem feito causou aos gregos medo maior do que isso, porque a areia quente se infiltrou entre o peitoral dos soldados e suas carnes, e não houve como livrar-se dela, e esse artifício abria queimaduras em tudo o que tocasse. Os soldados então jogaram fora suas armas, arrancaram suas armaduras e todas as suas peças de roupa e assim se expuseram aos arqueiros tiroanos.

Entretanto, o que deixou Alexandre mais furioso foi o modo como os tiroanos trataram os prisioneiros, que foram arrastados para as ameias e tiveram as suas gargantas cortadas à plena vista dos macedônios, para depois serem lançados ao mar.

Alexandre infligiu uma terrível carnificina sobre Tiro. Ao final do cerco, o número de tiroanos mortos atingia dez mil; treze mil foram reduzidos a escravos dos macedônios e trinta mil foram vendidos, também como escravos. E Alexandre crucificou dois mil homens, expondo-os ao longo da enorme extensão de praia.

Do que então ele se lembra, Ptolomeu? Dos gritos, dos gritos. Lembra-se de como, aos pés dos homens crucificados, Alexandre ofereceu então um grande sacrifício a Hércules e organizou uma grande parada, com suas tropas desfilando em armadura completa, para celebrar sua vitória, promovendo ainda disputas atléticas, corridas de tocha e competições de ginástica, e realizou um grande banquete, com uma centena de bois, na praia.

Ele se lembra dos corvos. Ele se lembra da voracidade frenética dos abutres. O céu em Tiro escureceu-se de nuvens de pássaros pretos, e o alarido dos pássaros sempre esteve com ele, assim como o mau cheiro.

A seguir, Alexandre marchou rumo ao sul com seus homens, chegando até a fortaleza da Conquista do Soberano, que os sírios chamam de Gaza. Era a última cidade antes do deserto que separava a Fenícia do Egito e ficava à cabeça da Rota das Especiarias. Por essa razão, Gaza era rica. E por essa razão Alexandre não pôde se contentar em simplesmente passar por ela, mas precisou tomar a cidade, dispondo-se a devastá-la e obrigá-la a se render, se necessário.

O governador de Gaza, Batis, um eunuco persa, acreditava que sua cidade era capaz de resistir a qualquer ataque, e se recusou a ceder às exigências dos gregos. No entanto, como todos os homens que se recusaram a cooperar com Alexandre, Batis iria descobrir o que significava levantar a ira da Macedônia.

Os gregos sitiaram a cidade, e Batis resistiu durante sete meses, com uma população de dez mil filistinos e Habitantes das Areias, os Beduínos, lançou sobre os macedônios areia fervente e esterco escaldado, e fez uso de toda espécie de engenho de guerra.

Gaza caiu, finalmente, e Alexandre ordenou que esses bárbaros fossem feitos em pedaços ao som das trombetas. As mulheres e as crianças, ele as vendeu como escravos.

Quanto a Batis, o eunuco, de cuja voz aguda e estridente até Alexandre tinha zombado, foi interrogado pessoalmente pelo Rei; porém se recusou a dizer uma só palavra.

Em diversas ocasiões, Alexandre admirou a coragem de um inimigo, e era conhecido por demonstrar misericórdia, no entanto Batis era um gigante de pele escura, feio, e Alexandre detestava feiúra. Ele preferia os homens bonitos, semelhantes aos deuses e a si próprio. Alexandre era impetuoso, ficou Zangado e mandou perfurar os tornozelos de Batis, para que fossem atravessados por correias de couro, depois ordenou que o homem fosse arrastado Por um carro de guerra, voltas e voltas em torno das muralhas de Gaza, até morrer.

Agindo assim, Alexandre imitava o comportamento de seu herói Aquiles, que arrastou o corpo de Heitor ao redor das muralhas de Tróia. Ptolomeu, entre outros, balançou sua cabeça ao assistir à cena, sabendo que Heitor, pelo menos, já estava morto antes de receber tal tratamento, enquanto Batis ainda estava vivo.

Alguns riram ao ouvir os gritos estridentes de Batis, um homem que estava apenas cumprindo o seu dever para com o Rei Dário, porém muitos não conseguiram olhar para aquilo e censuraram Alexandre por se comportar como um tirano ordinário.

Assim era o grande Rei. Assim era grande o seu espírito.

Ptolomeu lembrava-se desse episódio. Essa não era a maneira como Ptolomeu trataria os seus semelhantes.

E Thot. Nenhum segredo pode ser escondido de Thot, O-Que-Tudo-Sabe.

 

               Demônios Gregos

Para onde quer que Ptolomeu marchasse, os abutres iam atrás dele, como se fossem sua sombra, esperando pela próxima batalha.

Em Gaugamela, no norte da Mesopotâmia, o abutre agitava suas asas sobre toda árvore, pousando até sobre as cargas transportadas pelas carroças, impaciente, mesmo antes que a primeira seta fosse disparada.

Alguns viram Zeus e Hera, sua esposa, nos abutres. Porém, não, em verdade era o instinto prevendo sangue, a promessa de um banquete. Os pássaros percebiam os sinais, assim como reconheciam o gume das armas, as tropas formando suas linhas. O abutre sabe para o que serve um exército, e, sim, a campanha de Alexandre nada mais era do que um banquete prolongado e móvel.

Antes de Gaugamela, Ptolomeu assistiu a um eclipse total da Lua; aterrorizado, como todos os demais por acreditar que os deuses da Grécia os tivessem abandonado, e todos derramaram muitas lágrimas, sentados no chão com seus mantos sobre suas cabeças, proferindo preces como último recurso.

Ptolomeu viu a Lua perder brilho, enquanto a escuridão atravessava, até finalmente tornar-se vermelha. Ele tremia como todos os outros, pois isso significava um terrível augúrio de derramamento de sangue e,como todos os outros homens, ele teve medo de que se tratasse de seu próprio sangue.

Porém, Aristander de Telmessos, o vidente, instou os homens para que permanecessem calmos, assegurando que o sangue que deveria ser derramado era dos persas, e que o eclipse significava uma grande vitória para a Macedônia, e a conquista de toda a Ásia; e Aristander estava certo.

Ptolomeu gostava de esquecer que tinha ficado com medo.

Da batalha em si, lembrava-se apenas da confusão, as grandes nuvens de poeira erguidas pelos pés dos soldados, tão espessas que nenhum homem conseguia enxergar mais do que quatro cúbitos à frente do seu rosto. Ele recordava o Paian da Vitória ecoando na planície, e o que ikdeavam os macedônios, sobre terem matado trinta mil homens. Antes que a noite caísse, os abutres desapareceram de suas árvores, e os homens de Akxaidre, como se fossem eles próprios abutres, despojaram os persas mortos à suas armaduras e valores. Recolheram os seus troféus sangrentos — orelhas, dedos, ouro —, as recompensas de guerra, e pela manhã Alexandre apressou a marcha dos homens sobre a Babilônia, no mínimo para fugir do fedor da morte e da visão de milhares de pássaros empanturrando-se.

Não muito depois de Gaugamela, Dário, o grande inimigo de Alexandre, encontrou o seu fim. Pouco antes, havia desfilado em sua carruagem e recebido homenagens, como se fosse um deus, de seu povo. Mas agora fora feito prisioneiro por seus próprios escravos e era levado numa carroça, coberto com peles imundas. O Grande Rei estava com pés e mãos atados com grilhões de ouro, e seu próprio povo varou-o com suas lanças, espadas e dardos e abandonou-o à morte.

Alexandre viu o rosto de Dário e cobriu-o com o seu manto púrpura, ordenando para ele um sepultamento real. Era dever de um rei nostrar misericórdia, mostrar generosidade para com aqueles que tinha derrotado.

Ptolomeu assistiu, então, à ascensão e à queda de reis. Viu o que significava ser um rei e como se tornar um rei, e desejou, só então, que nada disso estivesse reservado para ele, já que estava contente por ser o que era, um soldado comum.

Porém não esqueceu a morte de Dário. Todos abandonaram o corpo, mas o cachorro de Dário veio se postar ao lado do cadáver do seu dono, uivando e negando-se a abandonar o local.

Para os egípcios, o cão — todo cão — é Anúbis, Faraó do Mundo dos Mortos, uma criatura fiel, mais do que qualquer outra, em vida, e fiel até mesmo além da morte. Anúbis, guia da vida após a morte — é ele que toma o homem morto pela mão e o conduz em sua entrada no desconhecido.

Thot sabe. Logo depois da morte de Dário vieram o julgamento e a execução de Filotas, culpado de conspirar contra Alexandre. Os torturadores primeiro dispuseram os seus instrumentos diante dos olhos desse homem. Depois, vendaram os olhos de Filotas e o despiram. Filotas apelou para os deuses da Grécia e para as leis de humanidade, mas os torturadores taparam os ouvidos com chumàços de papiro e ficaram surdos aos seus gritos. Submeteram Filotas a torturas, usaram o fogo, sovaram-no na sola de seus pés, tudo isso até que ele se confessasse culpado.

Alguns disseram que Filotas foi morto varado de dardos, e outros, que foi executado, segundo o costume na Macedônia, por apedrejamento. Porém Ptolomeu, vendo como Alexandre punia e torturava, prometeu ser misericordioso, se assim pudesse.

Foi o próprio Ptolomeu que capturou Bessos, o assassino de Dário, e enviou esse homem para Alexandre, nu, usando nada mais do que uma coleira de lã em volta do pescoço e arrastado por uma corda, como um animal. A esse homem, Alexandre torturou também, cortando-lhe o nariz e as orelhas, e o pendurou numa cruz. Os bárbaros dispararam nele suas setas e depois o levaram a Ecbatana para execução pública diante dos persas, seus próprios conterrâneos.

Alguns contavam que Alexandre ordenou que Bessos fosse amarrado entre duas árvores arqueadas, que ele então mandou soltar como uma mola — uma barbaridade copiada das lendas gregas. Aqueles que não tinham visto este truque antes e observavam, parados, no lugar errado ficaram salpicados de sangue e entranhas; e aqueles que sabiam o que ia acontecer riram.

E vinha a Ptolomeu o pensamento, vez ou outra, de que Alexandre — até mesmo Alexandre — não passava também de um bárbaro.

Thot, o doutor, observa Ptolomeu. Thot conhece todos os seus pensamentos. Thot é a memória dos deuses.

Nos seus surtos de calor e suores, Ptolomeu sente-se como se estivesse pegando fogo, queimando. Ele pensa então na Babilônia, em Susa, lugar tão quente que nem um lagarto podia atravessar a estrada ao meio-dia sem ser fritado vivo.

Então, recorda a areia abrasadora, a estrada que queima os seus pés, e se perde no passado.

Os gregos, queimados pelo sol, as suas vestes manchadas de sangue, em frangalhos, e eles, abatidos e sujos — os persas chamam-nos os Demônios Com Cabelos Desgrenhados do Dia da Ira. E havia muita ira. Outros comparavam-nos a uma fera, terrível, pavorosa, e extraordinariamente forte, com enormes dentes de ferro; uma fera que reduz tudo a pedaços e tritura os pedaços com os pés. A fera continua a sua marcha, e é imbatível.

Ele pensa agora em Persépolis, cidade dos lírios, onde os macedônios ficaram loucos, permitindo-se uma orgia de saques e carnificina, puxando a espada contra todo homem que encontraram pela frente. E com as mulheres, fizeram tudo que tiveram vontade.

Ele vê os persepolitanos postados nas ameias da cidade, vestidos com as suas melhores roupas. Os homens de mãos dadas com suas esposas e crianças, e eles saltam da beirada das muralhas, voluntariamente, preferindo isso a enfrentar a violência dos gregos. Outros tocam fogo em suas casas e morrem queimados dentro delas.

Entretanto, o que fazia Alexandre, enquanto isso? Ele promovia um festim em Persépolis, dias e noites de banquetes e festas; e já que não havia água em Persépolis, bebiam vinho não diluído — o que era sempre o prelúdio de tragédias.

Nos seus surtos de calor e suores, Ptolomeu vê isso com clareza. Depois da décima taça de vinho, algum desconhecido gritava pedindo o komos, a dança da vitória, em honra de Dionísio, deus do vinho, deus do frenesi, e se forma uma procissão de centenas de homens enfileirados, com gaitas, flautas, tambores e archotes, e eles dançam ao redor da tripla muralha da cidadela. Esses homens tinham bebido em excesso, mesmo para o padrão macedônio, e haviam ultrapassado o limite da sensatez, pois ninguém em seu juízo perfeito teria feito o que fizeram em seguida.

Ptolomeu vê tudo nitidamente é Thaís de Atenas, a prostituta famosa, que é sua propriedade, e ela arremessa a primeira tocha, guinchando, rindo, rindo, e então, um depois do outro, todos os homens arremessam suas tochas, e o Palácio de Persépolis, até mesmo o vasto apadana, o Salão de Audiências de Dário, onde podiam caber dez mil pessoas, em grande parte feito de cedro, arde a noite toda, até nada sobrar senão destroços fumegantes em pedra enegrecida.

Thaís, eles dizem, não sabia o que fazia, possuída por Dionísio, pelo deus. Era bom, às vezes, ter uma mulher a quem culpar pelos erros cometidos. É bom, às vezes, ter outra pessoa qualquer a quem culpar.

Porém Ptolomeu não se lembra disso.

Por qualquer que fosse a razão, esta mulher não apareceria na história de Ptolomeu. Ele não faria menção nenhuma a Thaís. Ele não mencionaria o incêndio de Persépolis. Não diria nada sobre isso.

Thaís era sua grande vergonha, seu maior constrangimento. Thaís, a prostituta de alta classe, a prostituta do espelho de ouro, com sapatos de saltos de ouro e a palavra SIGA-ME escrita com tachas nas solas das suas sandálias. Thaís, que usava uma argola de ouro no nariz, como uma vaca, segundo Alexandre, esse mesmo Alexandre que tinha muitas outras mulheres, e que, na verdade, gostava mais de garotos, e que a tinha dado para Ptolomeu, Thaís, que apontava suas chinelas para as estrelas; que se fazia tão bem de leoa; que montava no seu homem e o cavalgava como se ele fosse um cavalo, e fazia o amphiplix, a cobra enroscada, como nenhuma outra mulher. Ela foi a melhor e a mais cara das prostitutas.

Em algum lugar, contudo, entre Babilônia e Mênfis, Thaís se perdeu.

Nenhum homem sabe qual foi o destino de Thaís de Atenas, nem deus algum, também. Nem mesmo Thot, Grande em Mágica.

Em seus dias de agonia, Ptolomeu pensa em Persépolis e em Thaís, e a lembrança dela lhe causa dor.

Thot fala. Nos seus surtos de agônicos calafrios, quando treme por inteiro, ele se transporta imediatamente para Paraitakene, sob chuva torrencial, e revive as tempestades elétricas, as chuvas de granizo e de gelo, quando dois mil homens congelaram até a morte e outros morreram de pneumonia, sem o luxo de dispor de roupas de inverno. E ele se sente culpado por estar vivo, culpado por ter sobrevivido.

Ele treme de frio, e está novamente naquela cadeia de montanhas chamada Paroparmisos, ou do Kush Índico, na fronteira setentrional da índia, para a qual o louco Alexandre arrastou todo o seu exército, com todos os que acompanhavam o acampamento negociantes, cavalariços, cientistas, burocratas, cozinheiros, condutores de mulas, esposas e prostitutas — cento e vinte mil pessoas, tanta gente que lhes tomavam dez dias para atravessar os desfiladeiros.

Foi loucura tentar a travessia, pois o sol já queimava a pele em volta dos olhos de todos os homens e muitos sofriam ulcerações provocadas pelo frio severo, e a comida havia acabado, pois a montanha era alta demais para a grama crescer, e assim faltava forragem para os animais. Havia abutres empoleirados em todas as saliências dos rochedos. Os lobos e leopardos rondavam as tropas, pressentindo que teriam o que comer,

No entanto, o único alimento disponível para os gregos eram os animais de montaria, e depois os animais de carga, e tinham de comer a carne crua, já que não havia com o que acender as fogueiras.

Lá no alto dessa odiosa montanha, Ptolomeu chegou perto de morrer de fome, juntamente com todo o exército de Alexandre, e não seria a última vez.

No outro lado, no fundo do vale, Alexandre, que tinha empenhado a sua Palavra pela segurança dos soldados mercenários hindus, bem como de suas esposas e filhos, passou sete mil deles pelo fio da espada, porque se recusaram a unir-se a ele para lutar contra os seus próprios conterrâneos.

o quanto vale a palavra deste maravilhoso rei grego.

Ptolomeu prometeu a si mesmo que jamais faria coisa igual.

 

                 Carne de Cachorros

Pensamentos de Thot a pior de todas as suas lembranças é a da índia, onde lutaram contra os elefantes, em Poros, na estação chuvosa, naquela estação do ano quando qualquer coisa de metal — capacete, espada e lança — oxidava-se horas depois do polimento, e em qualquer coisa feita de lona ou tecido brotava um bolor verde repugnante, que a fazia apodrecer em poucas semanas.

Todos os homens foram acometidos pela febre dos pântanos e pela disen-teria, infecções nos pés e erupções causadas pelo calor, e todos eram picados por mosquitos e atormentados por cobras que pareciam varas de bronze, de modo que tinham receio de dormir à noite no chão (que, aliás, não passava de um charco de lama), e preferiam dormir em redes armadas entre as árvores. Ptolomeu, como qualquer outro homem, ansiava voltar para seu lar, na Macedônia, pois estavam marchando havia oito anos, cerca de três mil dias, e estavam exaustos.

A campanha na índia durou três anos; porém, ao final, o exército estava à beira de um motim. Eles odiaram a índia, onde a picada das cobras fazia correr um suor de sangue e causava morte repentina; onde os cães eram quase tigres, com dentes afiados como serras; onde a chuva jamais parou de cair, por setenta dias seguidos.

E nenhum homem odiava mais a índia do que Ptolomeu, que foi ferido ali por uma flecha envenenada e sofreu dores atrozes, dormência dos membros, convulsões e violentos calafrios. Sua pele tornou-se fria e lívida. Ele vomitou bílis. Uma espuma preta exsudava da ferida, e instalou-se a gangrena, que se alastraria rapidamente, dando-lhe uma morte horrível.

Ptolomeu, louvado por seu caráter gentil e generosidade, viu o rosto da morte e se preparou para morrer. Mas contam que Alexandre tivera um sonho, no qual via uma cobra carregando uma planta na boca e mostrando o local onde se devia cavar para achá-la, e o que devia ser feito com ela para curar Ptolomeu do seu ferimento. Quando Alexandre acordou, foi procurar a planta, encontrou-a, moeu-a e emplastrou-a sobre a perna de Ptolomeu. Depois, fez ainda com que Ptolomeu bebesse uma infusão feita com a mesma planta.

ptolomeu se recuperou de imediato, tendo sua saúde perfeitamente restaurada.

Ptolomeu trouxe da índia as suas próprias lembranças elefantes de guerra, o pássaro indiano que falava com voz humana, cães ferozes. Porém, o tormento dos cascos dos cavalos quase inteiramente gastos pela marcha, e a umidade que apodrecia as suas botas e roupas, e a chuva que não tinha fim ele não gostava de relembrar nada disso.

Thot fala sobre essas coisas porque de Ptolomeu não se ouvirá coisa alguma. Ele selara por completo a sua memória dizendo ontem não tem importância. O que importa é hoje; o agora, a sensação do momento que está passando...

Porém, Thot sabe. Foi Ptolomeu que saqueou o litoral de Oreitai, pilhando e queimando, liderando a pilhagem, no distrito antes do deserto de Gedrosia (que alguns chamam de Makran), através do qual, por alguma razão ensandecida só dele, Alexandre estava tão ansioso por marchar.

Uma coluna de oitenta e cinco mil soldados adentrou este deserto, acompanhados de esposas e filhos, de prostitutas e da turba que segue o acampamento, com carroças, vagões, animais de carga, montadas; as botas de todos os homens imediatamente se encheram de areia tórrida, e os vagões afundaram nas dunas que mudavam sem cessar.

Acontecia um desastre depois do outro as mulas comiam folhas de arbustos venenosos, começavam a espumar pela boca e caíam mortas. Muitos dos homens ficaram cegos pelo suco esguichado pelos pepinos espinhentos. Outros morreram sufocados, após empanturrar-se de tâmaras ainda não amadurecidas.

No extremo calor, os homens eram acometidos por insolação, desidratação, hipertermia e exaustão. Os que não conseguiam acompanhar a marcha eram deixados para trás, nas areias, e morriam.

uma violenta tempestade de areia obstruiu os ouvidos dos homens, olhos narinas, e apagou todos os pontos de referência, levando os guias a perderem o sentido de direção; assim, a coluna vagou perdida, incapaz de encontrar o rumo para escapar do deserto.

Suprimentos, equipamentos, carroças, carros de combate, armas — tudo ficou perdido ou abandonado. Quando a comida acabou, devoraram as mulas de carga, depois os asnos e os cavalos.

E quanto a Ptolomeu? O que fez Ptolomeu não querer lembrar? Ele sobreviveu sugando seixos, e graças a sua força de vontade, e às preces a Zeus, e repetindo vezes sem conta que ainda não estava pronto para o Hades.

No deserto de Gedrosia, Ptolomeu comeu tudo o que pôde encontrar urina de cabras, excremento de asnos, carne de abutres, pele largada por cobras, lagartos podres, aranhas, rato, cardos. Ele era Ptolomeu, do estômago de ferro, capaz de comer qualquer coisa. Bebia a própria urina. Comia carne de cachorros. Comeu até mesmo o seu próprio cão.

Não foi surpresa nunca mais querer escutar a palavra Gedrosia.

No final desta expedição, sobraram apenas vinte e cinco mil homens. Sessenta mil vidas foram perdidas. De mil e setecentos soldados de elite, a Companhia de Cavalaria, setecentos sucumbiram, e foi o pior desastre da carreira de Alexandre.

Mas culparam Alexandre por quase tê-los conduzidos para a morte? Não, eles não culparam. Tudo o que acontece é vontade dos deuses. Singelamente, pensaram que haviam feito algo que deixara Zeus zangado. Não, eles amaram Alexandre, esse tirano, ainda mais, por ter conseguido se manter vivo. Alexandre tinha sorte.

Os sobreviventes cantavam para manter o ânimo; a Canção do Corvo, a Canção da Andorinha, o Paian da Vitória para Apolo, e entoavam marchas militares. Se não cantassem teriam chorado, e quando finalmente concluíram a marcha e puderam beber água à vontade, só então choraram.

Depois de Gedrosia, as coisas só podiam melhorar. Devido ao grande número de mortos, os sobreviventes ganharam suas promoções. Ptolomeu foi elevado à patente de strategos, general, e envergou pela primeira vez o manto púrpura, que o distinguia como um dos cortesões prediletos de Alexandre.

Depois da tempestade vem sempre a bonança.

Ao sair daquele deserto, Ptolomeu estava com quarenta anos. Se tivesse perecido, não teria deixado filhos, nem herdeiros. Mas, logo se assegurava que Thaís já não dispunha do preservativo de excremento de crocodilo, e foi logo antes de a barriga dela começar a crescer ostensivamente.

Melhor filhos bastardos, Ptolomeu murmurou, do que filho nenhum.

No devido curso, três filhos nasceram de Thaís de Atenas com Ptolomeu, e foram chamados Lagos, em homenagem ao avô dele, e Leontiskos, que significa Pequeno Leão — dois filhos, portanto, e também uma filha, a quem Ptolomeu, fatigado agora de guerra, deu o nome de Irene, ou Paz.

 

               A Esposa Persa

Quando alcançou Susa, na Pérsia, a cidade fundada pelo primeiro Rei Dário, Alexandre meteu na cabeça que todo grego deveria ter uma esposa persa. Dizia que assim se teriam mais filhos gregos, mais soldados gregos, e a idéia por trás disso era que os homens estavam a milhares de estádios de distância de seus lares, famintos de aphrodisia, fartos de prostitutas e garotos, e precisando de algo novo para afastar suas mentes dos motins.

Mas, no final, conseguiu pôr as mãos em somente dez mil mulheres persas, de modo que apenas um homem em cada dez recebeu sua própria mulher, e aos demais se dizia que deviam aguardar um pouco, ser pacientes. Seja como for, dez mil casamentos foram celebrados, e o próprio Alexandre, embora já tivesse como esposa a famosa e bela Roxane, tomou duas novas esposas, uma das quais era Barsine, a filha de Dário da Pérsia.

Ptolomeu casou-se, em Susa, com a princesa Artacama, filha de Artabazos, o sátrapa de Bactria. Ela era uma mulher de surpreendente beleza e, no calor do momento, Ptolomeu esqueceu de Thaís de Atenas, sua concubina particular.

Os homens passaram a manhã caçando corvos, sem os quais nenhum casamento grego poderia ser realizado, pois era costume tirar o coração do animal, que seria usado como talismã, a fim de garantir o afeto entre o marido e a esposa por toda a vida.

Com sua espada, manchada de negro de tanto sangue dos persas, Ptolomeu cortou em duas metades o pão cerimonial. Ele e Artacama comeram cada qual a sua metade, e esta esposa não fez qualquer objeção a se casar com seu inimigo.

Os gregos cantavam sua Canção do Corvo, em honra da fidelidade do corvo à sua companheira, mas, embora Ptolomeu tenha usado o talismã, ele não funcionava. Não, sua esposa, mesmo sendo uma mulher da nobreza, rechaçava-o com unhas e dentes quando quer que ele tentasse se aproximar dela. Seu corpo ficava rígido, ela cerrava os dentes e golpeava seu marido com os punhos, além de começar a se lamentar em altos brados.

Talvez pior do que isso era que, seguindo o costume das mulheres da Bactria, untava o corpo inteiro com óleo de peixe e gordura rançosa, o que era muito bom para se proteger do frio e melhor ainda para se proteger de Ptolomeu. Pior ainda, ela se fechava toda, embaixo, de maneira que homem algum, muito menos o obsceno grego, conseguiria profaná-la.

O casamento persa de Ptolomeu não foi, portanto, um grande êxito. Artacama, sua noiva de sete noites selvagens, recusou-se a acompanhá-lo por um estádio de distância que fosse em viagem e, afinal de contas, como ele não poderia carregá-la à força, deixou Artacama para trás em Susa, e voltou para o harmatnaxa, e para a carroça de Thaís, que o recebeu com a efusão de antes, com boca aberta e ávidos beijos, já que era a prostituta mais famosa do mundo.

Aqueles que conheciam Thaís melhor do que Ptolomeu, contudo, diziam que essa mulher nunca amaria homem algum, assim como nunca deixaria de fingir esse amor. Mas, naquela ocasião, seguiu na fileira de carroças de carga que ia na retaguarda do exército de Alexandre, juntamente com outras concubinas de primeira classe.

Thaís já não era jovem e sabia que mesmo as mais belas mulheres não duram para sempre; Ptolomeu não iria mais nem sequer olhar para ela, depois que a prostituta fizesse trinta anos. Com o decorrer do tempo, Thaís se miraria cada vez menos em seu espelho de ouro e faria suas orações para a divinizada Helena de Tróia, a deusa da boa aparência, cada vez com mais ardor.

 

                         Galinha Fria

Depois de Susa, avançaram contra o inimigo, apesar de ser a estação mais quente, quando a Estrela do Cão se levanta, e a despeito do calor da própria estrada, que a torna perigosa para um exército em marcha. Alexandre perdeu tantos homens por causa da insolação e das queimaduras nos pés que foi obrigado a mudar seus planos, passando a marchar durante a noite, quando era mais fresco, e deixando os homens dormirem durante o dia.

Em Ecbatana, não muitos estádios para além de Susa, Hefaistion, o grande amigo de Alexandre, que estava se recuperando de uma febre, comeu um frango frio inteiro mais depressa do que devia, regado com vinho em demasia, e foi encontrado morto em sua cama. O resultado foi que Alexandre caiu na mais depressiva tristeza que alguém poderia ver em um homem, chegando ao ponto de chorar como uma mulher, rasgando a pele do rosto com as unhas, arrancando os cabelos pelas raízes, depois tendo que raspá-lo, de maneira que ficou parecendo um escravo. As lágrimas não paravam de rolar em seu rosto; ele uivava feito um cão, e toda Ecbatana silenciou-se, escutando-o. Então, ele rolou o corpo sobre o estrume de gado dos estábulos, recolheu a sujeira com as duas mãos e a passou nos cabelos — comportamento copiado dos seus heróis na Ilíada, de Homero, e nunca visto entre os gregos, nem antes nem depois. Mandou também cortar a crina e a cauda de todos os cavalos, em sinal de luto, e todos os gregos consideraram que esse era o comportamento de um louco.

Alexandre prostrou-se, nu e fedendo, sobre o corpo morto de Hefaistion, este estado, beijando e babando o homem inteiro durante três dias e três noites, até que o cadáver começou a criar vermes por dentro da carne. Quando Hefaistion começou a tornar-se púrpura e a inchar, e a feder tanto que ninguém podia chegar perto, o próprio Ptolomeu arrastou Alexandre para tomar banho, e ordenou ao eunuco Bagoas que o esfregasse até limpá-lo.

Todos os homens com exceção de Alexandre permaneceram de olhos secos durante toda essa vergonhosa exibição, pois, na verdade, embora Hefaistion fosse o mais belo dos homens, era odiado por seu egoísmo, arrogância e natureza possessiva. Além disso, não era de fato um grande soldado.

Ptolomeu deu de ombros. Havia outros homens que também amavam os homens mais do que as mulheres. Não era algo incomum entre os gregos. Alexandre não era o primeiro kinaidos e não seria o último; porém, Ptolomeu gostava mais das mulheres. Sim, Ptolomeu era louco por mulheres.

Para o exército de Macedônia, entretanto, continuar a receber ordens de um comandante que chorava como as mulheres e que se esquecera de quem era, a ponto de lamentar-se, como fariam as mulheres, pela morte de seu amante... isso não podia prosseguir, e os generais preocupavam-se com o que Alexandre seria capaz de fazer dali para a frente. A partir daí, muitos começaram a cochichar, reservadamente, que o melhor seria afastá-lo do comando supremo, já que o homem não se encontrava no seu juízo perfeito, perdera o controle de si mesmo e dos seus comandados, e que dezenas de milhares de vidas dependiam do seu mais leve capricho. Para dizer a verdade, os generais achavam o comportamento de Alexandre repulsivo, e sentiam vergonha dele.

Os excessos deste rei não ficaram por aí, contudo, pois ele ordenou que o médico de Hefaistion fosse crucificado — já que havia deixado seu paciente morrer — e mandou que o Templo de Asclépios, deus da Saúde, em Ecbatana, fosse destruído, porque o deus havia abandonado Hefaistion, a quem Alexandre amava mais do que qualquer outra coisa no mundo.

Alguns insinuaram que a morte do amante não se devera a causas naturais, nem tampouco a morte de Alexandre, quando aconteceu, mas que os dois foram eliminados por um grupo de comandantes veteranos, entre os quais os de nomes Crateros, Perdikkas e Antipatros eram os primeiros a ser mencionados.

No entanto, naquela ocasião, Alexandre vivia e respirava. Ele ordenou que o fogo sagrado permanecesse apagado até que o funeral terminasse, que a maneira como os persas tinham procedido por ocasião de morte do grande Rei, e esta ordem era, em si, um mau augúrio; afirmaram que isso profetizava a morte do próprio Alexandre.

A pira funerária desse Hefaistion custou a Alexandre a inaudita soma de mil talentos, e ninguém havia visto nada semelhante a tal magnificência, em segundo a queixa deles, tanto desperdício de dracmas, porque foi toda feita em madeira folheada a ouro, com as proas douradas de 240 navios de guerra em seu topo; sendo que posteriormente ele dilapidou uma nova fortuna numa sepultura em forma de zigurarte para Hefaistion na Babilônia.

Alexandre, a seguir, enviou mensageiros para o Oráculo de Zeus-Amon, no deserto da Líbia, para perguntar se seria correto e bom homenagear esse homem como um deus; porém o Oráculo não teria permitido tal extravagância, e apenas permitiu que Hefaistion fosse adorado como um herói, e assim devia ser feito, porque o Oráculo se pronunciara.

Portanto, afinal, a carne de Hefaistion, filho de Amyntor, elevou-se num paredão de chamas e numa nuvem de fumaça, como qualquer outro mortal. No Egito, construiriam templos para este assim chamado herói, e tornou-se costume fazer juramentos por Hefaistion, assim como circularam histórias de visões, curas e milagres, até que, por fim, desdenhando o sábio julgamento de Amon, toda a Alexandria passou a adorar este homem, o amante do fundador da cidade, como Deus, Coadjutor e Salvador.

Thot torce o nariz para tal coisa, porém, para os gregos, nunca foi muito difícil transpor a linha divisória entre homens e deuses, e quanto a isso a história da Casa de Ptolomeu prestará testemunha.

O que fez Alexandre a seguir? Deixou intempestivamente Ecbatana com uma divisão do seu exército, totalmente cego, louco de um ódio que sobrevém a um homem que perdeu o seu maior tesouro. Exatamente como o herói de Alexandre, Aquiles, que chacinou jovens troianos sobre o túmulo do seu amado Pátroclos, assim também Alexandre massacrou os cossaianos, matando todos os homens da tribo, e lutou na linha de frente, liderando a matança, golpeando com a sua espada, coberto de sangue e entranhas, e com os olhos estufados, nas órbitas, como se fossem os testículos de Anúbis, e dentes agindo com selvageria, um completo bárbaro.

Assim, matando, amenizou um pouco o seu pesar, e isso significou sangue para o fantasma de Hefaistion. O sangue derramado, contudo, não o pacificou, já que toda vez que Alexandre tentava dormir, o fantasma aproximava-se dele, parecendo em tudo a imagem do homem vivo — no tamanho, na voz e nos adoráveis olhos —, e ficava de pé, junto a ele, sussurrando nos seus ouvidos, de modo que ele não conheceu a paz, mas tornou-se um homem sob possessão.

Ele também jurava que havia visto esse fantasma como um pássaro com uma cabeça humana, cujo rosto era o de Hefaistion, e que o pássaro revoava sobre ele, enquanto dormia. Então, todo pássaro que via tinha o rosto de Hefaistion, e ele não conseguia pronunciar uma única palavra durante horas sem fim; e quando finalmente rompia o silêncio, suas palavras não faziam sentido, de maneira que começaram a temer por ele, e por eles mesmos, e disseram abertamente que ele estava louco.

Um Alexandre louco os generais não tolerariam durante muito tempo, e começaram não apenas a temer por ele, mas a temê-lo, e não se sentiam propensos a testar a sua integridade emocional no calor da batalha. Assim, Alexandre não lutou nenhuma outra grande batalha depois da morte de Hefaistion, e foram os generais que arranjaram tudo para que ele não o fizesse, já que não se encontrava em condições para comandar uma companhia, muito menos a falange inteira de 120 mil homens.

Há muitas razões pelas quais Alexandre pode ter sido vítima de envenenamento, porém a principal era que havia perdido o controle de si mesmo — e para os gregos a perda de todo controle sobre si era a coisa de que tinham mais pavor, mais até do que da derrota na batalha, até mesmo mais do que do Hades.

A noite, os uivos continuavam soando, provenientes da tenda de Alexandre, e ele ficou tão oprimido pela dor que não sabia o que fazer de si, nem tinha como lidar com isso.

Na verdade, não demoraria até que o Destino decidisse por ele.

Tenha sido este homem assassinado, ou tenha ele morrido por causas naturais, sua morte foi a maior das fortunas. Todos os homens chorariam a sua morte, é claro, mas todos também pensaram a mesma coisa que a morte de Alexandre fora o que de mais conveniente poderia ter acontecido.

 

                 Corpo Arco-íris

Alexandre agora voltava o seu rosto para a Babilônia, e os Caldeus, povo há muito versado na arte de predizer o futuro por meio das estrelas, preveniram-no com o mais tenebroso dos avisos ele não deveria entrar na cidade. Porém, Alexandre não gostava de avisos ele era um deus e o filho de um deus, e não iria mais aceitar que um mero mortal lhe dissesse o que fazer.

O povo da Babilônia encheu as ruas para lhe dar as boas-vindas, queimaram incensos e lançaram flores; porém, quando Alexandre atravessava os portões, os corvos, cujos grasnidos guturais sempre fazem os homens pensarem em morte, foram vistos lutando entre si acima das ameias, e embora isso significasse o pior dos augúrios, Alexandre não o percebeu.

Ele se estabeleceu na Babilônia para tentar afogar sua mágoa, bebendo enorme quantidade de vinho não diluído noite após noite. Naquela que viria a ser a última dessas noites de bebedeiras ele encheu uma grande taça dourada, em honra a Herácles, e bebeu-o de um só trago, quando o ouviram emitir um grito agudo, como se tivesse levado um soco violento; e então Alexandre tombou.

Seus amigos o puseram em repouso no Leito de Ouro de Nabucodonosor, até pouco tempo rei da Babilônia. Para Alexandre, isso foi o início do fim e, para Ptolomeu, o início do início.

Mais tarde houve rumores sobre envenenamento, e lollas, filho de Anti-patros, o garoto cujo trabalho era provar as bebidas para Alexandre, foi mencionado como aquele que fora comprado para executar a tarefa, e houve quem cogitasse de um veneno tão poderoso que era guardado no casco de um asno, porque seria o único recipiente que o veneno não destruiria. Pom, o tal lollas não chegou a ser acusado, e nunca foi julgado por qualquer crime.

Uma morte por veneno tornaria a história mais interessante, mas Alexandre não apresentou nenhum dos sintomas característicos—nem espasmos, nem tremores, nem o sorriso inerte ou a fixidez do olhar. Cada qual tinha a sua própria teoria, e, como todos sempre diziam, Todo mundo que escreveu sobre Alexandre preferiu o maravilhoso à verdade (exceto Thot), mas a maior parte era pura ficção.

Thot diz a verdade de tudo isso é que Alexandre morreu por nada mais nada menos que uma febre contraída nos pântanos nos arredores da Babilônia. A febre começou a se manifestar com calafrios, algo que no assustador calor parecia quase impossível. Entretanto, Alexandre sempre fez o impossível. Ele alternava agora fases de calafrios e de muito suor, pirexia e hiperpirexia, e era como se estivesse sendo queimado diante dos olhos de todos, como se estivesse pegando fogo.

Esfregaram-no com esponjas molhadas para refrescar-lhe o corpo; porém ele continuava suando copiosamente, tornava-se cada vez mais debilitado, depois delirante, desmanchando-se em elogios à beleza de Hefaistion, de modo que foi um alívio quando perdeu totalmente o poder da fala.

Todas as histórias relativas aos últimos desejos de Alexandre, suas últimas palavras, sobre ele ter dado o seu anel com sinete para Perdikkas e mais as suas últimas determinações sobre o destino do seu império, são ridículas. Thot diz um homem ardendo em febre não fala nada que tenha sentido. Um homem que perdeu o poder da fala não é capaz de dizer nada.

Ptolomeu esteve ao lado de Alexandre durante toda a sua enfermidade, esperando que a qualquer momento ele se sentasse na cama de ouro, encerrasse a brincadeira e sorrisse aquele sorriso que fazia os joelhos de todos se derreterem, porque, em verdade, ele os possuía a todos e fazia-se amado o bastante para que o seguissem até os confins da Terra. Entretanto, Alexandre estava totalmente exaurido, esgotado até a morte, e caiu num sono tão profundo que entraram em pânico só de pensar em vê-lo morto, aterrorizados e sem saber o que fariam sem ele. Alguém sugeriu o remédio de último recurso para restaurar a consciência de um homem, o que significava pingar urina quente pelas suas narinas, um tratamento que tinha por várias vezes provado a sua eficácia em restabelecimentos de casos desesperadores; porém Alexandre não retornou à vida, e todos permaneceram em volta do leito em silêncio. O único ruído que se ouvia era o do gotejar da urina no chão de ouro.

Então os médicos realizaram quase todos os incontestáveis testes para verificar se um homem está morto ou não, experimentando fazê-lo respirar contra a superfície de um espelho, tentando ver se os olhos dele refletiam alguma imagem, e assim por diante, terminando com o apalpamento dos globos oculares com o dedo, que é o mais seguro de todos os testes para verificar se um homem ainda pertence ou não ao mundo dos vivos.

Não houve qualquer estremecimento. Os olhos dele permaneceram fixos em branco, como os de um homem morto, e os médicos balançaram suas cabeças e disseram, um depois do outro, que ele estava morto, morto, morto, morto.

A morte de Alexandre foi anunciada publicamente no 28 dia de Daisios ao pôr-do-sol. Ele reinara sobre a Macedônia durante apenas 12 anos e sete meses; estava a poucos dias de completar 33 anos de idade. Todos os homens tinham as cabeças baixas, e nenhum entre eles soube como ocultar os olhos marejados de lágrimas, sentindo como se fosse o fim do mundo, o fim de uma era.

Thot pergunta o que fariam com um Alexandre morto? Felipe, seu pai, tinham-no queimado sobre uma pira funerária, conforme manda o costume dos gregos, e lavaram seus ossos frios com vinho doce, embrulharam-nos em macios tecidos púrpura e colocaram-nos numa larnax — uma caixa, de ouro, e esta dentro de um túmulo de pedra, com sua armadura dourada e uma pilha de móveis de ouro e artigos de luxo, destinados ao divertimento e prazer na vida após a morte dos gregos. Em cima do túmulo de Felipe, lançaram um monte de terra, e mandaram plantar um bosque sagrado de árvores ao redor. Alexandre não teria nada disso. Não ele tinha aprendido a grande lição dos egípcios, que destruir o corpo significa um anátema porque, se um corpo não é preservado intacto, não haverá vida para o morto no Campo dos Juncos, ou onde quer que fosse o após a morte. Assim, tinha ordenado que no (improvável) evento da sua morte, não devia ser queimado, mas tratado ao estilo egípcio, e por esta razão uma carroça cheia de embalsamadores o acompanhava em viagem - homens treinados na arte de extrair com um gancho o cérebro de um homem morto através de suas narinas; homens experimentados em arrancar as entranhas de um homem morto através das mais estreitas incisões em seu estômago; homens que embalsamariam Alexandre e o envolveriam em quatro mil cúbitos da melhor bandagem de linho, o que o preservaria para sempre num ataúde antropóide de ouro batido e da pedra azul chamada sappheiros (safira), com a imagem dourada do seu rosto na tampa, como o Faraó do Egito — morto, porém Vivo Para Sempre.

Para os gregos era, sim, chocante que um rei da Macedônia não fosse cremado, pois eles não tinham a tradição do embalsamamento. Mas, da forma como tudo sucedeu, não podiam nem queimar nem embalsamar este homem, já que, embora sua morte tivesse sido amplamente divulgada, ele não se comportou na morte como caberia a um homem morto.

Os dias e as noites iam passando e o morto Alexandre não exalava mau cheiro. Ptolomeu foi verificar de perto. Ele jurou que vira o peito do homem morto mover-se, que suas pálpebras tremeram, que seu cabelo e unhas dos dedos continuavam crescendo, e durante muito tempo a sua aparência era como se estivesse meramente dormindo. Na verdade, Alexandre sempre foi um bom dorminhoco. Sempre tiveram dificuldade de acordá-lo. Mas, dessa vez, ele não acordou.

Ptolomeu não havia praticado matanças ao lado de Alexandre durante mais de dez anos sem respirar o mau cheiro acre-adocicado de carne putrefata. Sim, esse cheiro pairaria às suas costas pelo resto de sua vida, em seus sonhos — o cheiro de fantasmas, a lembrança do sangue manchando seu rosto, um fedor de fazer um homem engasgar, bloqueando sua garganta.

Thot diz um homem morto realmente fede.

Na Babilônia, na metade do verão, é quente o bastante para se fritar um ovo de avestruz sobre o piso de pedra, e um homem morto é capaz de atrair de imediato as zumbidoras moscas-varejeiras. Antes de a lua surgir, mesmo a carne dos cadáveres dos homens mais belos estará impregnada de vermes. Antes do segundo raiar do dia, sua pele ficará azul. Ao terceiro dia, o seu rosto ficará verde como o rosto de Osíris, e será impossível transportar seu cadáver sem que exsudem os líquidos vis.

Thoth diz sim, um homem morto decompõe-se.

O próprio Ptolomeu tentou viver para o hoje, para o momento, porque vira o que significava morrer. Havia visto a morte tantas vezes cara a cara Que resolveu ignorá-la tanto quanto lhe fosse possível. Porém Alexandre, com sua alma já havia seis dias tendo revoado para o Hades, parecia bastante com alguém que ainda estivesse vivo, e o seu rosto bronzeado, seu corpo cheio de cicatrizes de batalha mostrava ainda uma saudável firmeza. Além mais, não havia moscas, nem vermes, e também nenhum mau cheiro, mas sim o velho cheiro de Alexandre — adocicado, como um perfume caro —, como se fosse para anunciar que, sim, ele era em verdade o deus que clamava ser pois um deus não teria — não poderia ter — o odor nas axilas que tornava o soldado comum e o seu general semelhantes — inclusive Ptolomeu, que não era (ainda) um deus — e cheiravam, às vezes, como uma manada de cabras. A história oficial diz que eles não se atreveram a tocar nesse rei, a princípio, porque ele parecia ainda vivo; porém, finalmente, limparam-lhe o corpo. Thot diz a verdade é sempre diferente.

Dez dias depois de morto, Alexandre ainda estava quente; e sim, ele tinha se transformado naquela mais desafortunada, mais inconveniente de todas as coisas, da qual homem nenhum sabia o que fazer um morto-vivo.

O que, então, teria acontecido? Teria o seu espírito saído do seu corpo? Só para deixar claro, ele havia passado longas horas com os sábios da índia, com os sábios da Babilônia, com os sacerdotes de Amon no Egito, desfazendo as suas dúvidas é verdade que um homem pode suspender a sua vida? Será possível a um homem dormir cem anos, ser sepultado debaixo da terra e ainda acordar no final de tudo isso? E os sábios lhe responderam certamente, é possível. Você gostaria de experimentar?

Thot pergunta seria isso que ele estava fazendo? Alguns disseram que Alexandre tinha aprendido muito com esses sábios da índia; que tinha tentado mudar o seu caráter violento; que tinha até escutado uma pregação do homem chamado Buda, e disseram que Alexandre havia alcançado na morte um estado chamado Corpo Arco-íris, no qual a consciência de um homem pode permanecer depois da morte, em absoluta meditação, repousando com grande serenidade.

Ele mostrava, é verdade, todos os sinais. Embora tivesse há muito parado de respirar, havia calor na área do peito, e não havia deterioração, e ele exalava um perfume maravilhoso.

Thot diz o que, então, isso significa? Disseram que ele irradiava a bênção grandiosa do espírito iluminado, como uma grande onda de purificação, enviando igualmente poderosas bênçãos para todo mundo. E ele não foi para nenhum lugar, disseram. Ele está mais vivo ainda, neste momento; ou precisamente tão vivo como sempre esteve. E eles disseram que isto era uma grande felicidade.

Thot diz realmente, isso parece muito improvável. Esse assassino, só para usar os termos corretos, estava precisando, ele próprio, de purificação.

Mesmo assim, afinal, seria proibido sob pena de morte falar desse homem como se ele fosse um homem morto; de modo que se tornou, de fato, Alexandre, o Eternamente Vivo.

 

                   Ladrão de Cadáver

Assim que a notícia da morte — da não-morte — se fez pública, o horrível lamento das mulheres da Babilônia iniciou-se e continuou sem interrupção durante a noite inteira, no dia seguinte, e assim prosseguiu. Todos os homens choraram, é óbvio, porém teria de haver um dia em que o choro e lamento deveriam cessar. Para Ptolomeu e os demais generais de Alexandre, que se tornaram conhecidos como os Diadokhoi, os Sucessores, não era, de fato, o fim de nada, porém o começo.

Primeiro, formaram o Conselho de Estado, a fim de decidir quem deveria ser rei, e sobre a matéria mais importante de como o Império devia ser fatiado e qual general deveria assumir o domínio e controle de cada pedaço — havia doze deles Perdikkas, Antígonos (chamado Monophtalmos, ou Caolho), Antipatros, Seleuco, Leonatos, Menander, Lisímaco, Filotas, Eumenes, Peithon, Arkhon e Ptolomeu.

Doze homens fortes sentados sob suas armas, varando a noite homens com a barba por fazer, rostos desfigurados, suando, devido ao calor, a ponto federem como bodes, discutindo sobre o que fazer e o que não fazer, e o corpo não-fedorento estendido entre eles. Eles tiraram a sorte com gravetos, jogaram dados, barganharam, cortaram o território de Alexandre como se tivessem trinchando um peru, discutindo quem merecia o melhor pedaço, maior porção. Enquanto Alexandre viveu, tinham sido seus subordinados agora que os tinha abandonado, eram todos iguais e lutaram pelas sobras por muitas e muitas horas.

Por fim, as decisões foram tomadas, e Antipatros, que fora Regente da Macedônia enquanto Alexandre estava fora lutando na Ásia, tornou-se o sátrapa da Macedônia.

Caolho — um enorme gigante — foi confirmado como sátrapa da Grande Frígia, incluindo a Líkia e a Panfília; ele foi o pai do famoso Demétrio Poliorketes, então um garoto de treze anos. Caolho tornou-se o mais poderoso da Ásia.

Menander foi confirmado como sátrapa da Lídia. Lisímaco tornou-se sátrapa da Trácia; Filotas, o sátrapa de Kilikia; Eumenes, sátrapa da Capadócia e da Paflagônia; Arkhon seria o sátrapa da Babilônia; Peithon ficou como sátrapa da Media; e Leonatos ficou com a Frígia Helespontina.

Thot diz sim, isto pode ser tedioso, mas é importante. Seja paciente, ó Sábio. Thot garante grande animação para mais tarde. Thot dá a sua palavra. Thot promete.

Nos desdobramentos desse episódio, Seleuco foi colocado à margem. Ele queria a Babilônia, que não estava disponível — embora, posteriormente, ainda fosse colocar as mãos sobre ela. Prevendo problemas futuros, permaneceu com o exército, e foi nomeado braço direito de Perdikkas, no comando da Companhia de Cavalaria, as tropas de elite da Macedônia.

Entre todos esses homens, Ptolomeu era quem sabia o que queria. Ele havia sentido frio na travessia de Paropamisos, muito frio. O Egito era a mais rica de todas as satrapias, a melhor, e a mais fácil de ser defendida. Era também o lugar mais quente, e o menos belicoso. Nenhum dos demais generais queria o Egito, que era quente demais, e estrangeiro demais também, não-grego demais, estranho demais, com seus deuses com cabeças de animais.

Pensavam apenas no calor insuportável, nas cobras venenosas, na picada de escorpiões, nas nuvens de insetos vorazes, no infindável gotejar do suor, nas sempre possíveis tempestades de areia, e se sentiam satisfeitos por não serem obrigados a ir para lá.

Assim, as desavenças começaram e assim continuariam. Esses homens lutariam entre si e iriam à guerra pelo legado de Alexandre durante um total de cinqüenta anos depois de sua morte — para o resto de suas vidas. Nunca haveria paz.

De todos os sucessores, Ptolomeu, filho de Lagos, seria o único a morrer em seu próprio leito, com idade avançada.

Acima de todos os sucessores estaria o novo Rei da Macedônia; porém quem seria rei, sucedendo Alexandre? Era o dever do exército eleger o rei erguendo as mãos, e o exército preferia o louco Arrhidaios, o irmão mais velho de Alexandre, que naquela ocasião tinha cerca de trinta anos.

Ptolomeu anunciou sua objeção a este homem como rei, afirmando que a mãe dele, Filinna, de Larissa, não passava de uma dançarina, algo pouco melhor do que uma prostituta. Porém, houve objeções mais sérias ainda a Arrhidaios, que era por vezes tido por pouco mais do que um idiota, e o medo de Ptolomeu foi que, se Arrhidaios fosse rei, seria dada a Perdikkas a oportunidade de exercer o poder em seu próprio interesse — o que de fato aconteceu.

Ninguém dera muita atenção a esse Arrhidaios, até então; no entanto ele havia marchado ao lado de Alexandre, atravessando metade do mundo. De vez em quando, caía ao chão, espumando pela boca. Sua língua não se encaixava atrás dos dentes. Suas mãos crispavam-se ao redor do rosto, quando tentava falar. Como, Ptolomeu perguntou, poderia um homem que se mostrava incapaz de manter uma conversação sensata ocupar a função de um rei sem ajuda? Seria um absurdo, ele argumentou, colocar um homem desses como rei.

Porém, para as tropas, este homem era filho de Felipe, irmão de Alexandre, dotado do divino sangue de Héracles e Dionísio, e eles ergueram as suas vozes por Arrhidaios, porque, acima de tudo, não havia malícia nesse homem, que nunca demonstrou mau temperamento e, quando não estava num de seus surtos, era só sorrisos e amigo de todos.

O amigo de um idiota, Ptolomeu disse, é um idiota. Todavia os seus pensamentos foram ignorados porque o exército não teria outro rei a não ser este rei louco ou não, ele tinha de governar conjuntamente com o novo Alexandre, Alexandros, o filho nascido de Roxane depois da morte de Alexandre, que ainda não tinha completado trinta dias de vida. O regente para estes dois reis seria Perdikkas — o orgulhoso e agressivo Perdikkas —, e Ptolomeu viu que isso daria problemas, nada mais do que problemas.

Assim, Arrhidaios tornou-se rei, como Felipe Arrhidaios, e Perdikkas cingiu a cabeça deste louco com o diadema, uma faixa de tecido branco que era o símbolo sagrado da monarquia da Macedônia. O exército aclamou-o, e ele foi conduzido nos ombros pela escolta real por todo o acampamento, e Arrhidaios adorou isto, e não parou de arreganhar os dentes nem por um único momento.

O infante Rei Alexandros passou a usar também o diadema sobre os seus cueiros, já que viveu os primeiros meses do seu reinado preso a uma tábua, por bandagens que o envolviam da cabeça aos pés, e os horoscopistas previram que sua vida terminaria da mesma forma como começava, com muitas lágrimas e gritaria.

O novo arranjo pareceu funcionar, a princípio. Perdikkas dizia a Arrhidaios o que fazer, o que dizer, o que pensar, e onde colocar o selo real nos documentos de Estado, e era de fato muito útil, para variar, ter um rei que escutasse conselhos e fizesse aquilo que o mandavam fazer; ele arrastava Arrhidaios consigo para onde quer que fosse, como o personagem pateta de uma peça teatral, e ele ficava quieto olhando por sobre os ombros de Perdikkas, rindo, como se não fosse nada senão a sombra de Perdikkas, o fiel cão de caça de Perdikkas, e a maneira correta de se fazer tudo foi assim invertida.

Thot pergunta qual foi a verdade em relação a Arrhidaios? Sua mãe Olímpia teria lhe dado drogas prejudiciais ao cérebro? Porém, a resposta é não. Aconteceu meramente de o terem deixado adormecer com o luar sobre o seu rosto, e desde então ficou sofrendo de ataques. Não havia cura para lunáticos, mas Olímpia fizera algumas experiências por conta própria e pode ser que suas curas tenham feito mais mal do que bem.

Agora que Arrhidaios se tornara rei, parecia apropriado para Perdikkas que ele devesse se casar, e talvez gerar um filho e herdeiro, e a mulher que Perdikkas escolheu para ele foi sua meia-prima, Adéia-Eurídice, uma neta do Rei Felipe.

Essa moça teve uma educação incomum, já que aprendeu a cavalgar, caçar e lutar com a espada curta, como um homem, e quem lhe ensinou tais coisas foi ninguém menos do que sua mãe, a Princesa Kinane de Ilíria, sobre quem se dizia que tivesse, pessoalmente, matado uma rainha inimiga em combate — e assim foi ela a primeira de uma longa linhagem de mulheres em verdade masculinizadas.

Sobre o seu casamento, essa Adéia-Eurídice tinha apenas quatorze ou quinze anos de idade, na época, porém provou ser da maior utilidade para o seu marido — em certas ocasiões. Pois quando Arrhidaios sofria de seus ataques, seu corpo ficava rígido, curvado para trás como um arco, a ponto de os pés quase tocarem a cabeça. Quando isso acontecia, Adéia-Eurídice o fixava no chão, com os braços dele por trás da cabeça (pois ela era forte), cravava uma maçã entre os dentes dele, para impedi-lo de morder a língua, e confortava-o na sua aflição. Ele havia mordido a língua tantas vezes que a sua fala se tornara incompreensível e era por este motivo que os homens o achavam sem inteligência, o que não era realmente verdade.

Se a enfermidade de Arrhidaios era motivo de preocupação, os seus ataques duravam pouco, e ele mantinha todo o vigor do seu corpo. Geralmente, evitavam-se os possuídos pela Lua, como se vivessem sob o domínio de alguma maldição divina, porém esse homem era tido como alguém prodigioso, como se estivesse em contato com o mundo dos deuses, para o qual o seu irmão havia retornado. Arrhidaios tinha sorte era o talismã vivo da Macedônia, bem como o seu irmão morto seria o talismã de Alexandria. Arrhidaios, assim, poderia ter prosperado; o problema estava em sua esposa.

Ptolomeu contava com freqüência a história de Adéia-Eurídice, a garota que parecia um garoto — que treinava como um soldado, que galopava para a batalha em armas completas, como um homem. Ela olhava com desagrado, dizia Ptolomeu, para o volume crescente de seus seios, e chegou mesmo a consultar sua mãe se não podia cortar um deles, como uma amazona, para melhor poder vergar para trás um arco. No entanto, sua mãe recusou-se a deixá-la fazer isso.

Adéia-Eurídice era forte como nenhuma outra mulher grega, conduzindo sua espada, escudo, lança — metade do peso do próprio corpo —, e corria livremente envergando um peitoral de bronze, gritando o Alalalalai, tal e qual os homens.

Contudo, recusava-se a se esconder no gynaikeuon, nos alojamentos das mulheres, e achava que havia coisas mais úteis em que se ocupar do que tapeçaria. Queria provar que uma mulher poderia ter tanto valor quanto um homem. Lutava corpo a corpo e boxeava, corria e pulava, montava a cavalo e participava de corridas de biga. Adéia-Eurídice era tão semelhante a um homem que comentavam ela deve ter passado debaixo do arco-íris, porque qualquer garota que fizesse isso viraria um homem.

A única desvantagem era, assim diziam, ela ser homem demais para ter filhos de Arrhidaios. Já o ligeiro Rumor, como se fosse uma deusa, dizia que o casal não gerava senão monstros, que eram rejeitados, logo ao nascer, por serem afrontas aos deuses, e seriam um terrível augúrio do que estava para acontecer a ambos.

Na verdade, a respeito do seu casamento, Adéia-Eurídice consultou o Oráculo dos Amantes, o que significava pegar a pétala mais larga de uma papoula na mão esquerda e bater fortemente nela com a direita. Se tudo estivesse destinado a correr bem, a pétala iria emitir um estalo alto. Porém, tudo o que se escutou foi o ruído surdo das palmas das mãos batendo uma na outra, e Adéia-Eurídice soube, então, em seu íntimo, que tudo daria errado para ela, como esposa do Rei Felipe Arrhidaios.

E é o quanto basta em relação ao esfacelamento do Império de Alexandre; é o quanto basta em relação à sucessão ao trono da Macedônia. O que concerne a Thot é o Egito e Ptolomeu, filho de Lagos.

O Egito inteiro, portanto, junto com a parte da África chamada Líbia e parte da Arábia, coube, pelo loteamento, ou pela vontade dos deuses, ou pela razão de não haver outro que o desejasse, a Ptolomeu.

O Egito, ele pensava, o Egito era a melhor coisa depois do Paraíso um lugar onde não chove, onde não há neve, nem frio, nem estação de inverno que assim possa ser chamada; uma terra onde o sol brilha mês após mês e era adorado como o maior dos deuses. O Egito era mais rico do que qualquer homem seria capaz de sonhar — um lugar onde um sátrapa poderia ter tudo o que desejasse, e para onde ele iria o mais cedo que lhe fosse possível.

No entanto, por enquanto, permanecia na Babilônia, esperando para ver o que aconteceria com a monarquia e o que fariam com o corpo de Alexandre (que estava morto porém não estava), que ainda permanecia insepulto.

Como medida temporária, embalsamaram-no em mel, porque o mel que era tão doce para os vivos deveria ser amargo para todas as criaturas do Mundo dos Mortos, onde tudo é invertido o mel servia, portanto, para afugentar os fantasmas, demônios e espíritos malignos de perto deste que era o mais eminente dos cadáveres.

Ptolomeu foi quem supervisionou o embalsamamento; e mandou que enchessem os ouvidos reais do melhor mel de Himetos para afastar as centopéias e besouros. Enfiou além disso tudo o que pôde de mel nas narinas de Alexandre e em seus demais orifícios, para afugentar os bichos-de-conta e para impedir as mariposas e suas larvas de tentarem entrar no corpo; a seguir, colocou Alexandre num caixão de madeira acolchoada com uma tampa, enquanto aguardavam que fossem terminados o caixão de ouro e o maravilhoso carro funerário que devia conduzi-lo para Aigai, na Macedônia, pois dizia a tradição que se ele fosse enterrado em qualquer outro lugar, sua dinastia estaria encerrada.

Ptolomeu nunca mais comeu mel em toda a sua vida.

No trigésimo dia do alongado sono, Aristander, o vidente, anunciou que a palavra dos deuses era que Alexandre fora o rei mais afortunado que já existira, e a terra que receberia seus ossos jamais haveria de temer a invasão de qualquer inimigo, e que seria, ela própria, para sempre afortunada.

Ptolomeu ouviu-o, e desejava, acima de qualquer outra coisa, toda a felicidade do mundo. Assim, enquanto os demais generais argumentavam, ele tomou para si o cadáver e despachou-se para o Egito, e seu irmão Menelau seguiu-o, tornando-se cúmplice nesse crime.

Alguns dizem que, quando Perdikkas descobriu o que acontecera, galopou atrás de Ptolomeu com suas tropas, porque desejava a sorte de Alexandre para si, e que, quando alcançou Ptolomeu, travaram uma sangrenta batalha.

Outros falam de um gigantesco carro funerário com uma cornija dourada, guirlandas festivas e borlas das quais pendiam grandes sinos, com colunas jônicas decoradas em prata e marfim, puxadas por 64 mulas, um par para cada ano de vida do homem morto. A procissão, diziam, era escoltada por um bando de trabalhadores capazes de consertar estradas, mecânicos e soldados, e atraiu multidões de curiosos; mas o fato é que um tal veículo jamais poderia ser arrastado pelo deserto, de Babilônia a Mênfis, não importa quantas mulas o estivessem puxando; a verdade é que o carro do famoso funeral de Alexandre foi invenção dos historiadores, uma ficção. Mesmo assim, muitos homens juraram que essa foi a carruagem que Perdikkas capturou, e que ele fugiu com esse veículo para a Macedônia.

Somente alguns dias depois de Ptolomeu ter partido foi que Perdikkas se deu ao trabalho de olhar dentro do caixão de ouro, e encontrou um Alexandre feito de cera e palha, com um narina de rabanete e tâmaras pegajosas no lugar dos olhos; o Alexandre verdadeiro já tinha sido levado na traseira de uma simples harmamaxa, uma dessas carretas com cobertura, de quatro rodas, nas quais vão as prostitutas como parte do comboio de bagagem, e que viajara não com uma grande escolta, mas quase sem chamar a atenção e com rapidez.

Era época da colheita quando Alexandre deixou a Babilônia pela última vez, e os fazendeiros estavam trazendo o milho para a cidade em carroças, espirrando o tempo todo por causa da poeira, enquanto Ptolomeu apressava-se a passar por eles com o cadáver. Para os gregos, um espirro é um sinal de aprovação do próprio Zeus, o melhor de todos os augúrios. Assim, Ptolomeu teve a certeza de que estava agindo corretamente.

Thot pergunta onde deve a verdade ser encontrada? Thot sabe apenas que disseram que Ptolomeu levou o corpo para o Egito, e que na estrada se depararam com a usual tempestade de areia, de modo que os viventes passaram seus dias de viagem tirando areia dos ouvidos uns dos outros. A verdade foi que o homem morto retornou ao Egito com menos pompa do que qualquer pessoa teria imaginado.

Ptolomeu levou o cadáver até Mênfis, onde repousaria durante alguns anos, até que os sacerdotes daquela cidade se recusaram a lhe dar abrigo por mais tempo, alegando que o corpo de Alexandre não trazia boa mas sim má sorte, e que qualquer lugar onde ficasse passaria a sofrer de má sorte dali em diante.

Já o sátrapa pensava diferente. Tinha plena certeza de que o falecido Alexandre traria êxito a Alexandria, e velaria pela cidade, e a guardaria contra ataques, e seria o seu talismã para sempre; e estando Alexandre, de fato, vivo ou morto, o prostagma seria emitido pelo próprio Ptolomeu Alexandre vive e reina, e era uma ofensa falar deste Rei no tempo passado.

O bom povo de Alexandria nunca parou, por assim dizer, de esperar que Alexandre despertasse, como depois de uma boa noite de sono, e voltasse a ser o Faraó do Egito, Senhor de Coroas, Bem-Amado de Amun, Filho do Sol, Alexandre, o Eternamente Vivo; mas, enquanto isso, a vida normal tinha de prosseguir e, até que o milagre de todos os milagres viesse a acontecer, um novo homem deveria governar o Egito no lugar de Alexandre, e o novo homem era Ptolomeu, o sátrapa.

Ptolomeu roubou não apenas um cadáver, porém também os diários reais, que pretendia usar a fim de escrever a sua própria história de Alexandre — se bem que adiaria o projeto por quase meio século.

Ele se apossou também da espada de Alexandre, e do Verdadeiro Escudo de Aquiles (que Alexandre havia ele próprio roubado quando esteve em Tróia), assim como do elmo emplumado de bronze de Alexandre, suas grevas de ouro, o peitoral dourado, e do seu manuscrito reserva de Homero, guardado numa caixa de ouro, que Alexandre havia roubado do tesouro de Dário, em Persépolis.

Se os diários reais eram uma falsificação, ou se o elmo não fosse de Alexandre, se sua espada não fosse a espada dele, se o escudo não era o dele, e se o seu Homero não era de Homero — tais detalhes não perturbavam Ptolomeu. O que importava era que pensassem que ele dizia a verdade.

Alguns homens até mesmo murmuravam que a carne de Alexandre estava em tal estado de putrefação, por ação do calor da Babilônia, que se tornou impossível embalsamá-lo, e que absolutamente nada restou do grande homem — não muito mais do que um cacho de cabelos.

Seja como for, se Ptolomeu não era um ladrão, era um mentiroso; porém a verdade de tais coisas está além até mesmo da sabedoria de Thot.

Tal, então, era o caráter de Ptolomeu, filho de Lagos. Ele era inconfiável, vil, astucioso. Roubaria tudo o que estivesse ao alcance das suas mãos, e iria se gabar dos seus roubos depois. Porém, mesmo Zeus, o mais poderoso dos deuses da Grécia, tem a reputação de ladrão•

Quanto a Alexandre, alguns adoravam-no como um deus vivo, outros nada mais viam nele do que um tirano, um agressor, um autocrata estrangeiro, que impunha sua vontade por meio da pura violência. Alguns diziam que Alexandre não era um homem, mas apenas um sonho. Outros de nada se queixavam, além de um pesadelo sem fim.

Certamente, todos o tinham amado, porém o tinham também odiado. A despeito da grande aventura, da riqueza além da imaginação, os kudos teriam também apreciado, e totalmente, ter tido a chance de viver em seus lares com suas famílias, terem estado presentes nas núpcias de suas filhas, nos ritos de passagem à idade adulta de seus filhos, ter sepultado os seus pais, ter vivido vidas normais, inverno e verão, semeadura e colheita, em suas próprias fazendas, em vez de terem perambulado por metade do mundo.

O grande crime de Alexandre foi tê-los privado de suas vidas. Ele era um demônio, um monstro, o portador da morte. Seu poder baseava-se em nada senão o medo, e eles tinham medo, todos os homens, do seu poder, medo do seu temperamento tacanho, e, para dizer a verdade, ele ter morrido foi um grande alívio para todos.

Sim, a expedição de Alexandre nada mais foi do que uma inútil perda de tempo e de energia; os gregos podiam perfeitamente ter permanecido em seus lares, considerando todo o benefício que isso lhes teria rendido. Era essa a opinião de Ptolomeu, se bem que raramente a expressasse; mas, quando já havia tomado uma boa taça de vinho, balançava a cabeça e dizia nós poderíamos muito bem ter passado doze anos observando as estrelas,

O que, então, foi a verdade? Alexandre teria trazido má sorte para a Casa de Ptolomeu no Egito, trezentos anos de má sorte? No entanto, bem no começo de tudo, Ptolomeu não via como isso poderia ser possível, e o futuro se estendia diante dele, dourado, todo dourado.

O único homem sensato entre todos os sucessores foi Ptolomeu. Somente ele entendeu por que Alexandre não tinha florescido. O destino fizera de Alexandre um deus, porém os deuses o conduziram a uma armadilha, arrebatando-lhe de volta tudo o que lhe haviam dado. Os deuses da Grécia sentem, em verdade, muito ciúme do sucesso dos mortais.

Ptolomeu não tinha grande desejo de se tornar um rei. Não queria atiçar a inveja dos deuses por gozar de tanta boa fortuna.

Um homem pode se tornar afortunado em excesso, ele dizia. Um homem pode facilmente atrair sobre si a sua própria desgraça.

Afinal de contas, tinha visto isso acontecer a Alexandre.

O sátrapa estabeleceu, mesmo assim, sua residência na Terra dos Faraós, e o dilúvio de riquezas que ele ao mesmo tempo desejava e não desejava começou a cair sobre ele. Ele se sentiu quase como se tornando um Midas a contragosto, como se tudo que ele tocasse se transformasse em ouro. Um homem de menor estatura poderia ter se afogado — porém o primeiro Ptolomeu não se afogou. Flutuou sobre o rio de ouro, sobre a inundação de ouro, a gigantesca maré de ouro que a tudo engolia, e fez isso rindo.

 

                                               O Sátrapa do Egito

 

                   Afortunada Alexandria

Na sua viagem para o Egito, Ptolomeu não pronunciou uma só palavra. Apreciaria muito passar uma esponja no dia de ontem, mas foi educado bem demais na arte de memorizar o passado. Ele olha na direção de Alexandria, e já se passaram oito anos, ou três mil dias, desde a fundação da cidade.

Só para deixar claro, eles contavam com a aprovação do deus para fundála, a oeste do que os gregos gostam de chamar de Delta, como se fosse da sua própria invenção e não uma idéia de Thot, quando lá não havia nada a não ser um porto antigo e a vila de pescadores à qual hoje dão o nome de Rhakotis, ou Canteiro de Obras, que é no que Alexandria tinha se tornado.

Alexandre tinha sacrificado bois com chifres folheados a ouro. Queimou incenso. Dirigira as preces apropriadas aos deuses. Fez tudo de acordo com o costume grego, de forma que a cidade pudesse ser exitosa, ditosa, transbordando de boa fortuna, como a cornucópia da abundância.

Ele fixou os olhos nas vísceras dos bois, e os adivinhos disseram que os augúrios eram bons, e a Alexandre foi permitido demarcar com giz o plano de sua cidade, no formato de um trapézio, na forma de um khlamys, semelhante ao manto militar dos gregos, porque de início era uma cidade grega, sempre grega, e tentou não ser uma cidade egípcia. No entanto, Alexandria era tão grande, ou o suprimento de giz tão pequeno, que não foi o bastante para concluir o circuito das muralhas, e foi acordado, para não se atrair má sorte, que se pegaria emprestada a ração de cevada moída da mochila dos soldados, e assim se terminaria de delinear o restante do plano da cidade com grãos.

Ptolomeu lembra-se bem. No meio desta operação, escutou o bater de muitas asas, tão sonoro que todos os homens voltaram-se para o alto, e deram com os pássaros — milhares de pássaros — caindo sobre a cevada e devorando-a, toda ela. Com os pássaros chegou também o gotejar dos excrementos deles por toda a volta e sobre algumas de suas cabeças, o que em si (ser cagado por um pássaro) supostamente é sinal de sorte, e assim metade do plano de Alexandria foi devorado e, ao mesmo tempo, cagado.

O que isso significava? Alexandre inquiriu os adivinhos, preocupado, pois isso poderia significar um mau augúrio, acontecendo justamente a uma cidade no dia da sua fundação.

A verdade é que estes gregos não se demorariam muito tempo no Egito, em Alexandria, antes que indizíveis episódios acontecessem, os quais horrorizariam as pessoas até o fim dos tempos.

O que isso significa?, ele indagou, receoso, perguntando-se o que teria feito para merecer tal tratamento por parte dos deuses.

Os adivinhos trocaram olhares em silêncio. Não lhe poderiam dizer que os deuses, pessoalmente, haviam cagado sobre Alexandria; que ela seria a cidade mais desafortunada, mais infeliz, mais desditosa que jamais existiu.

Por fim, Aristander falou isto quer dizer, ele anunciou, que Alexandria alimentará o mundo inteiro. O que também veio a ser verdade.

Alexandre respirou aliviado, e os rituais continuaram; a cidade estava fundada, e não havia volta. Os gregos ficaram a noite toda festejando, tentando parar o tempo e fazer com que o dia da fundação da maior cidade de todos os tempos durasse para sempre.

Eles acordaram com dor de cabeça, e acrescentaram vômito aos excrementos dos pássaros que demarcavam o sítio, e isso foi um mau começo.

Thot sabe excrementos de pássaros e vômito eram nada, comparados ao que estava para vir. Alexandria estava fadada a ser manchada com sangue; o que viria a ser seu solo se tornaria uma pasta sanguinolenta, como os campos de batalha nos quais Alexandre tanto regozijou-se. Alexandria seria, acima de tudo, uma cidade de sangue.

Já Alexandre nada sabia sobre isso. Ele ordenou que se construíssem templos e altares para os deuses em todas as ruas.

Os homens podem viver vidas felizes numa cidade nova, ele disse, contanto que primeiro façam os deuses felizes.

Ele encomendou todos os ingredientes para a cidade mais refinada jamais construída, mas era por demais impaciente para esperar e supervisionar todos os detalhes. Tinha pressa demais para se sentar um momento e pensar no que estava fazendo.

Seus consultores lembraram-no das palavras de Platão, que alertou sobre os graves perigos que poderiam sobrevir se uma cidade fosse construída junto ao mar. Alexandre não lhes deu nenhuma atenção. Tinha prazer em ignorar todas as advertências. Contava com a aprovação do deus; não havia necessidade de dar atenção ao conselho de um mero mortal como Platão. Alexandre tinha escolhido o melhor local era onde a cidade tinha de ser construída, e embora o prognóstico dos adivinhos anunciasse que metade desta grande cidade seria inundada pelo mar antes mesmo de decorridos mil anos, não havia como persuadi-lo a lhes dar ouvidos. Na ocasião, todos os homens arreganharam os dentes, sorridentes, e a coluna de homens marchou, deixando para trás o Egito, entoando hinos marciais, rumo à conquista do resto do mundo.

Não, ninguém pensou que o oposto de tudo o que Alexandre desejava poderia acontecer que Alexandria pudesse se transformar numa cidade onde todos seriam infelizes.

Naqueles dias, pouco se dava atenção ao futuro. Nem mesmo Ptolomeu desejava, naquela oportunidade, ver o Egito novamente. Ele passara 180 dias praguejando contra as picadas de moscas. Passara seis meses com o suor escorrendo para os olhos. A sua pele ficara quase negra pela ação do sol. Tinha sofrido os usuais desarranjos intestinais que todo estrangeiro que vem ao Egito tem de sofrer. Não seria um grande exagero dizer que, naquela ocasião, Ptolomeu odiava o Egito.

Thot pergunta o que ficou na sua lembrança? E a resposta é, sim, ele já esteve aqui antes, e os seus pensamentos voltam-se para Alexandre e para o passado.

Porque Alexandre não poderia fundar sua grande Alexandria sem primeiro ouvir os deuses. Era este o local adequado? Era a ocasião adequada para se fundar uma cidade? E, acima de tudo, seria esta cidade uma cidade afortunada? Pois havia pouco sentido em planejar uma cidade que fosse desafortunada.

Assim Alexandre, pessoalmente, penetrara bem fundo no deserto da Líbia, até o oásis onde se achava o Oráculo de Zeus-Amon, milhares de estádios a oeste do rio. A viagem foi difícil, porém o Oráculo era o maior do mundo, depois de Delfos, e famoso por seu pronunciamento resoluto.

Os sacerdotes do Egito haviam prevenido Alexandre quanto aos riscos tempestades, fortes tempestades com trovões e raios, violentas tempestades de areia. Avisaram-no para não esquecer o destino dos cinqüenta mil soldados de Cambises, o Persa, que se perdeu no Grande Oceano de Areia.

Foi a punição dos deuses, disseram; porém Alexandre não lhes deu atenÇão, e disse que iria para prestar homenagens a Amon, não para saqueá-lo. Alexandre não gostava de esperar. Além do mais, ele era invencível. Não poderia ser derrotado por uma tempestade de areia.

Mesmo assim, chegaram bem perto da morte. A água acabou. Tinham perdido o rumo, engolfados pela tempestade de areia, até que um casal de gralhas apareceu, e eles seguiram a rota das gralhas até o Oráculo.

Ptolomeu, que nunca em toda a sua longa vida foi conhecido por dizer uma mentira, a despeito de ser um grego, contou uma história diferente; que a eles foi apontado o caminho por um casal de serpentes falantes.

Os sacerdotes de Amon haviam saudado Alexandre como Filho de Zeus, e era tudo o que Alexandre queria ouvir. O Oráculo o tinha identificado com o Rei-Sol dos egípcios, e Zeus, no formato de uma serpente, era em verdade seu pai.

Ele fizera suas perguntas ao Oráculo e nenhum homem sabia quais eram, pois nunca revelara as respostas a ninguém, dizendo que se tratava de assunto privado que ele transmitiria apenas a sua mãe, Olímpia, quando retornasse para o seu lar. Porém, Alexandre jamais retornou ao seu lar.

Alguns anos mais tarde, Ptolomeu, pessoalmente, custeou um altar no templo de Amon, já que esse deus havia sido bom também para Ptolomeu. Ptolomeu também fez as suas perguntas ao deus, de pé, nu diante dele em seu templo. E, sim, sua carne formigou e, sim, seus cabelos se eriçaram na nuca. E, sim, a estátua do deus mexeu-se para Ptolomeu, o deus com cabeça de carneiro não castrado, cuja imagem estava decorada com a smaragdos, esmeralda, a caríssima pedra verde. Ptolomeu estremeceu, teve um calafrio diante do deus que proferiu para ele conhecimento sobre o futuro. Ptolomeu urinou-se diante do deus e, quando emergiu à luz do sol, estava trêmulo.

Ptolomeu lembrava-se do deserto, o pôr-do-sol cor-de-rosa, as fogueiras de esterco de camelo, os reluzentes lagos de água que não eram água, a jornada feita sob o luar porque a areia estaria quente demais durante o dia. Ele lembrava dos homens cantando, o eco dos gritos, o silêncio do deserto.

Lembrava-se da imagem de Amon no pátio da entrada do templo, carregado no seu barco de ouro sobre os ombros de oito homens, e em resposta às perguntas dos gregos, o barco oscilou, ou rodopiou em círculos, ora para trás, ora para a frente, seguindo a procissão de oitenta sacerdotes de Amon cantando, ao som da música selvagem da concha e do címbalo.

A pergunta em si de Ptolomeu foi respondida, sobre o futuro Ptolomeu, também, será um deus, pronunciou-se o Oráculo.

Thot sabe, foi bem pior do que as histórias sugerem. Faltou pouco para morrerem por falta de água e, quando os céus finalmente se abriram, saíram correndo, gritando feito loucos, tentando recolher a água da chuva com a boca aberta.

No Oásis de Amon, Hefaistion e Alexandre tinham celebrado uma espécie de cerimônia de casamento, macho com macho, marido com marido; isso porque esse era o único lugar no mundo onde tal abominação era permitida. Sem dúvida, essa era a verdadeira razão pela qual Alexandre se dispôs a ir a um local tão remoto, mas este seria um segredo guardado para sempre, um segredo que ele jamais contou à sua mãe.

Já Ptolomeu não havia se unido em casamento com outro homem, mas passava as noites caçando mulheres. Ele fora picado por pulgas e beijado por mulheres por onde quer que passasse. Lembrava-se do brilho das águas acima dos charcos salgados. Lembrava-se das fogueiras acesas durante a noite para afugentar os cães selvagens. Lembrava-se dos uivos dos chacais, dos camelos escorregando sobre a trilha molhada. Se conseguia se lembrar de tais coisas, por que escreveria sobre duas serpentes falantes, quando todos os demais que relataram tal jornada registraram que foram guiados por gralhas falantes?

Thot diz se as serpentes de Ptolomeu falavam, qual a língua que usavam, de modo que Ptolomeu as tivesse podido entender — esse grego que falava um dialeto macedônio? Será que as serpentes da Líbia falavam grego?

De modo algum. Essa foi, sem dúvida, somente a história displicente, sem sentido, contada por um grego e cheia de inverdades, como qualquer outra história de gregos. Por outro lado, talvez as serpentes quisessem dizer alguma coisa.

No Egito, cada palavra é uma figura, um símbolo. No Egito, toda coisa significa alguma outra coisa — Thot jura que sim. Na aparência, as serpentes significam uma coisa; no fundo, uma coisa diferente. Para o inteligente, para o instruído, para os iniciados, luz; para o não-iniciado, ou para o ignorante, escuridão, confusão, mistério.

Por outro lado, os gregos juram que Ptolomeu nunca em sua vida disse uma mentira. Por outro lado, ainda, Thot alerta você, discípulo-de-Thot os gregos gostam de pregar peças.

 

                         As Estradas de Hórus

Ptolomeu penetrou no Egito pela segunda vez passando por Gaza e Rafia, atravessando o deserto, e percorrendo a areia molhada da praia entre Gaza e Pelúsia, pretendendo evitar ser tragado pelas areias movediças; e então seguiu ao longo das Estradas de Hórus, as Estradas de Guerra, até a fortaleza da fronteira, onde foi saudado pelos gregos, os gregos que Alexandre deixou para governar o Egito em seu nome.

Prontamente, sacrificou touros negros retintos a Zeus, Protetor dos Viajantes, e a Poseidon, Senhor do Terremoto, como oferenda de agradecimento por sua viagem em segurança, graças à grande bondade dos deuses.

Ptolomeu trazia consigo, é claro, um destacamento de tropas e, é claro, seu irmão, o fiel Menelau, e os três filhos, ainda pequenos, que tivera com Thaís, os quais mal haviam começado a andar e tinham apenas a ama para cuidar deles, já que a mãe das crianças não se dispôs a acompanhar Ptolomeu ao Egito, assim como Artacama, sua esposa persa, que também não tomaria a estrada para Ecbatana. Assim, Ptolomeu precisava, no momento, de uma mulher ao seu lado. Ele atingira os 44 anos de idade, estava no apogeu da vida, e no máximo da sua capacidade. Porém, estava farto de vagar pelo mundo, e pronto — mais do que pronto — para gozar do conforto da vida de um sátrapa. Já havia tido mais do que seria a sua quota de trabalho árduo e dificuldades, e agora, como Homero colocou, Zeus, filho de Cronos, derramara sobre ele um milagre de riqueza.

Ptolomeu voltou o rosto primeiro para Heliópolis, a Cidade do Sol, onde o sumo sacerdote de Rá o recebeu, envergando os trajes de constelações exclusivos do seu uso, e com palavras que soavam como de boas-vindas mas que podiam ter qualquer outro significado, pois este orgulhoso egípcio se recusava a se dirigir ao grego na língua grega, e o que ele disse era, em verdade, como o gorjeio das andorinhas para Ptolomeu — outra língua bárbara. O intérprete de Ptolomeu fez o melhor que podia, fazendo sinais com as mãos, e os sacerdotes — alguns deles — sorriam os seus sorrisos misteriosos enquanto murmuravam palavras que significavam que um asno copule com a sua mulher e com seus filhos, pois nesta época nem todo sacerdote apreciava ter de se dirigir a estrangeiros com gentileza.

Mesmo então, quando os seus pensamentos podiam ter sido pensamentos egípcios apenas, Ptolomeu preocupou-se também com o fato de não ter filhos legítimos, nem herdeiros legítimos, e refletia dia e noite sobre qual mulher deveria tomar para sua esposa.

No entanto, embora fosse conveniente para Ptolomeu casar-se com uma mulher egípcia, uma princesa egípcia, talvez — alguma parenta de Nektanebo, o último dos faraós nativos —, e alguns já terem dito que foi o que de fato aconteceu, a verdade é que, quando Ptolomeu levantou a questão de uma esposa assim, os sacerdotes do Egito abriram os braços e disseram que não existia tal mulher disponível, já que Nektanebo não deixara nenhuma descendência, ao que se soubesse.

E, embora um casamento com alguma princesa egípcia tivesse propiciado a Ptolomeu uma legitimidade maior para governar o Egito, não era o que ele desejava, de modo algum o que ele queria era uma esposa oriunda do seu próprio povo. Ele era grego, e sempre um grego, e não tinha a intenção de diluir o seu sangue macedônio gerando um filho que fosse meio egípcio.

Ptolomeu seguiu caminho. O corpo de Alexandre viajava com ele, nunca o perdeu de vista, e ele voltou as vistas para Menufer, que os gregos persistiam em chamar de Mênfis, a mais antiga e ilustre das cidades, a capital dos Faraós.

Toda Mênfis saiu às ruas para ver esse Ptolomeu, que iria governá-los no lugar do persa, no lugar de Alexandre, e as boas-vindas para um sátrapa eram apenas um pouco menos entusiasmadas do que as boas-vindas para um rei. Diante do grande Templo de Ptah, o deus criador dos egípcios, estava o sumo sacerdote de Ptah, o sumo sacerdote de Mênfis, cujo título era o Grande Chefe do Martelo, o Mestre de Todos os Artesãos, e envergava a pele pintada de leopardo, referente ao seu alto posto, e sua cabeça era, como usual, toda raspada, com exceção de um cacho lateral de cabelos, cujo uso era seu privilégio exclusivo.

Anemhor — o Velho Anemhor — era o nome desse homem, e ele tinha iniciado o seu aprendizado para ser um escriba aos cinco anos de idade.

Aos 15 anos, no tempo de Nektanebo, tinha entrado para o serviço de Ptah, como sacerdote wab, um sacerdote puro, que era o mais baixo posto do sacerdócio.

Aos 19, tornou-se um Pai do Deus, um sacerdote do segundo posto.

Aos 25, foi promovido a Terceiro Profeta de Ptah.

Aos 30 anos, foi promovido a Segundo Profeta de Ptah.

Aos 35 anos, quando o persa governava as Duas Terras, fora indicado para o posto de Primeiro Profeta, ou Servidor do Deus, como sumo sacerdote de Ptah, sumo sacerdote de Mênfis, e se manteria neste posto até o dia de sua morte. Na ocasião, Anemhor estava com 47 anos e sua sabedoria não tinha similar em nenhum outro homem no Egito.

O sumo sacerdote possuía muitos títulos. Era o Pai do Deus, e o BemAmado do Deus. Ele era profeta não apenas de Ptah mas também de sua esposa, Sekhmet, a deusa-leoa, e do filho deles, Nefertum — o lótus azul do qual o Sol se levanta. Era Profeta da Janelas das Aparições e Mestre dos Segredos. Era Profeta do Ápis Vivo, o Touro Sagrado, e Diretor do Guarda-Roupa. Era o Supervisor dos Profetas de Todos os Deuses em Todo o Baixo e Alto Egito. Era Mestre dos Segredos dos Céus, da Terra e do Mundo dos Mortos, Aquele-Que-Sabe-os-Segredos,Aquele-Que-Enxerga-os-Segredos-dePtah. Não havia um só sacerdote nem escriba em todo o Egito a quem esse homem tivesse de obedecer, pois era o primeiro de todos eles. Sabia tudo do passado e tinha a capacidade de predizer tudo do futuro.

Ficou claro para Ptolomeu, logo nesse dia, que não havia sacerdote mais útil, para ele no Egito do que este homem, pois não havia nada que ele não soubesse. Anemhor era Thot em todos os sentidos.

Ptolomeu chamava esse homem de Pintas de Leopardo, devido ao seu traje cerimonial, o qual tinha até mesmo a cabeça do leopardo, pendurada de cabeça para baixo na altura de sua cintura, com olhos reluzentes e dentes à mostra.

No primeiro encontro, houve certa desconfiança entre os dois, com Ptolomeu se perguntando o que, de fato, o sumo sacerdote desejava dele se era seu propósito ser seu amigo, ou se na verdade desejava que Ptolomeu morresse e sumisse dali. Embora Anemhor falasse grego, havia certa dificuldade de compreensão, porque Ptolomeu falava depressa demais, ou porque Anemhor falasse o grego da forma como era escrito, não como era falado; e ocorreu também certa falta de sorrisos. Para um grego, sorrir é, sim, um sinal de submissão. O pensamento grego é que o rosto de um homem é feito para impressionar, não para encantar, e o sumo sacerdote via no rosto não sorridente de Ptolomeu um sinal de hostilidade, não tendo certeza se era o propósito dele abolir o sacerdócio ou dar-lhe sustentação. Anemhor sabia perfeitamente que, para o grego, sorrir significa também enganar. Ele notou os olhos desconfiados do estrangeiro, sua postura tensa, seu olhar duro, prolongado, inquiridor, e era o olhar de um soldado, o olhar do homem que tem sangue na espada e o assassinato no coração; de um homem que não tinha as mãos limpas, um homem que tinha matado, sim, e gostado de matar.

O sorriso do grego, portanto, deveria ser conquistado.

Ptolomeu — o que ele viu no rosto desse sumo sacerdote? Ele examinou bem aqueles olhos escuros. Perscrutou o rosto trigueiro e não encontrou ali coisa alguma que pudesse compreender. O Mestre dos Segredos não revelava segredos. Ptolomeu percebeu, contudo, a bondade deste homem, deu-se conta do seu olhar firme. Talvez, ele pensou, Anemhor pudesse merecer confiança, afinal de contas.

Anemhor começou então a fazer as suas demandas e a dar as suas instruções; de como Ptolomeu devia proceder, o que ele devia ou não devia fazer, como se o sátrapa não fosse o governador de todo o Egito, mas uma criança que não soubesse de nada. Entretanto, a verdade é que Ptolomeu não sabia nada de nada. Verdadeiramente, comparado ao sumo sacerdote de Mênfis, Ptolomeu não sabia nada. Não, nada mesmo.

Quanto ao fato de o sumo sacerdote não estar sorrindo, ele conhecia muito bem Kleomenes, o enganador; Kleomenes, o ladrão. O que Anemhor pensou foi que Ptolomeu talvez fosse semelhante a Kleomenes, mais propenso a se apoderar de tudo o que pudesse do Egito do que dar qualquer coisa em retribuição. Teria de ser provado a Anemhor que não era esse o caso, antes que se permitisse ostentar aquele sorriso, o meio sorriso costumeiro de todo sacerdote do Egito.

Anemhor esforçou-se para criar dificuldades para Ptolomeu. Por vezes, pôs obstáculos no caminho dele, dizendo você deve fazer isto, ou o povo do Egito se insurgirá contra você. E mesmo no primeiro encontro tais palavras estiveram tão presentes em seus lábios, se o Sátrapa não fizer tal e tal... que Ptolomeu fartou-se de ouvi-lo.

No final de dez dias de perguntas e respostas, dez dias de advertências sobre tudo o que podia dar errado para Ptolomeu no Egito, e de como impedir as coisas de darem errado, o sumo sacerdote esboçou o seu misterioso meio sorriso que significava tudo e nada ao mesmo tempo — o sorriso que, no devido tempo, Ptolomeu copiaria e aprenderia a usar, ele próprio o sorriso do homem que sabia todos os segredos do Universo, os segredos que pertenciam tanto à Terra como aos Céus; o sorriso do homem que viu os deuses do Egito face a face.

Ptolomeu permitiu-se sorrir em retribuição a esse sumo sacerdote, que verificou que não havia nenhuma perfídia nem nenhuma malícia no caráter deste sátrapa, mas, sim, muita bondade, muita generosidade. E Anemhor sentiu em seu íntimo que poderia fazer coisas boas para o Egito, se esse grego estivesse no poder.

Por que, contudo, deveria Ptolomeu ter respeito por esse homem? Porque Anemhor mostrou a Ptolomeu, nestes primeiros dias, que era um homem poderoso, que podia fazer o que bem entendesse.

No primeiro dia de perguntas, Anemhor arremessou seu cetro cerimonial perante Ptolomeu, seguindo a antiga e reverenciada tradição dos sumos sacerdotes do Egito, e seu cetro transformou-se numa serpente, contorcendo-se sobre o chão da residência do sátrapa — uma serpente real que silvava e exibia suas presas. Ptolomeu encolheu-se, como qualquer homem se encolheria, e ficou assombrado, como qualquer outro homem se assombraria. Anemhor recolheu a serpente, dominou-a rapidamente e transformou-a de volta em cetro.

Era, em verdade, o mais velho dos velhos truques, e o mais fácil. Os gregos, só para deixar claro, nada sabiam sobre serpentes por exemplo, que pressionar o polegar logo atrás da cabeça da serpente a força a ficar rígida, como uma vara, ou que quando se solta o polegar a paralisia pára. Por isso Ptolomeu ficou maravilhado, e todos os gregos também, pois jamais viram tal coisa na Grécia, nem em qualquer outro lugar por onde marcharam com Alexandre, nem mesmo na índia.

Numa outra ocasião, Anemhor mostrou o seu poder fazendo as águas do rio virarem sangue, e tratava-se de mais um truque. Ptolomeu não sabia que todos os anos, quando a inundação do Nilo começava, o rio ficava vermelho com a terra vermelha do alto do rio descendo para Mênfis, nem que depois de um dia ou dois o rio voltava a ficar verde.

Acima de tudo Anemhor demonstrou a sua autoridade, já que ele comandava até mesmo os egípcios que serviam Ptolomeu em sua residência, fazendo-os levantarem-se e sentarem-se, todos de uma só vez, e falar com uma voz que agradasse a Ptah, enquanto Ptolomeu não possuía poder sobre aqueles que não falavam o grego, exceto gritando para eles palavras que não entendiam; exceto surrando-os na planta dos pés.

No Egito, costumamos falar do Homem Ideal. Aquele que é feliz mesmo ocupando uma posição humilde na vida. Ele possui poucos pertences. É modesto, e não é vaidoso. É uma pessoa controlada, serena quando fala, bondoso com todo mundo. É humilde diante do deus. Não é perfeito, porque apenas os deuses são perfeitos. A ele faltam todas as características guerreiras e é, antes de tudo, um homem pacífico. Anemhor era um homem assim, embora ocupasse um alto posto e possuísse vastas riquezas.

Verdadeiramente, o Homem Ideal dos egípcios era um homem como Anemhor.

Nestes primeiros dias, Anemhor também se esforçou para mostrar bondade aos filhos pequenos de Thaís, exibindo para eles o melhor dos seus ostentosos truques. Pegou um escorpião morto e largou-o no chão para provar que estava morto, não apenas dormindo. Então ele lambuzou a criatura com heléboro-branco e aquela coisa morta moveu-se, levantou-se sobre as suas quatro pernas, voltou à vida e correu em disparada pela sala, para admiração dos filhos do sátrapa.

Posteriormente, Anemhor, escolhendo o dia apropriado com algum cuidado, anunciou que, usando palavras de poder, poderia fazer chover e, só para deixar claro, isso com um céu azul como safiras, lápis-lazúlis, sem nuvem alguma à vista, e mesmo assim o trovão ecoou e a chuva caiu. Lagos, Leontiskus e Irene presentearam Anemhor com seus sorrisos, e Ptolomeu entendeu que Anemhor tinha poder até mesmo sobre Zeus, Senhor do Trovão.

O sumo sacerdote mostrou aos gregos que era mestre. Mostrou que o poder de um sumo sacerdote era merecedor do mais alto respeito. Se Anemhor podia fazer com que coisas mortas retornassem à vida, não havia, certamente, coisa alguma que este egípcio não pudesse fazer.

Ptolomeu acreditava que Mênfis significava, acima de qualquer outra coisa, mágica, e por esta razão trouxera para aquela cidade o corpo de Alexandre. E também, é claro, porque Alexandria ainda não estava terminada, nem tampouco já seria segura em relação a saqueadores vindos do mar, para os quais seria muito fácil arrebatar de volta o corpo e levá-lo para Perdikkas, de modo que outro lugar qualquer usufruísse da boa sorte de Alexandre.

Sim, em Mênfis parecia haver toda probabilidade de que o sumo sacerdote conseguisse despertar Alexandre, do mesmo modo que despertara o escorpião morto.

Anemhor concordou em empregar as suas habilidades, e pronunciou junto a esse Rei, os encantamentos que o podiam libertar do seu sono. Pronunciou muitas palavras no ouvido de Alexandre, conversando com ele durante horas e horas, dizendo se ele foi enfeitiçado, isto o irá libertar...

E entoou um canto vezes e vezes seguidas. Algumas vezes sussurrando. Outras vezes gritando

Acorde! Acorde! Oh Alexandre! Acorde!

Você já é tão completo quanto qualquer deus...

Sua cabeça é Rã...

O seu rosto é Wepwawet...

O seu nariz é como o chacal...

Seus ouvidos são Isis e Nefth...

Sua língua é Thot...

Não existe um só membro seu em que não haja um deus...

Levante-se, Alexandre!...

Porque, só para deixar claro, não havia nenhum homem dotado de maior prestidigitação de mão ou língua no Egito do que Anemhor. Ele era um grande mágico, como o próprio Thot.

No entanto, ainda que tivesse o poder de ressuscitar escorpiões, e não era ignorado que mortos haviam ressuscitado em Mênfis, Anemhor não conseguiu ressuscitar Alexandre. Que seja dita a verdade nem Ptolomeu ou qualquer dos gregos ali realmente desejavam que ele o conseguisse, já que não havia o que temessem mais do que um homem morto que retornasse ao mundo dos vivos.

Alexandre parecia tão imóvel como se pudesse dormir por toda a eternidade. De qualquer modo, a verdade disto é que a magia para despertar os mortos na vida após a morte não é muito útil para acordar um homem morto aqui na Terra, e essa foi uma tentativa sem esperança.

Mesmo assim, não realizaram para Alexandre nenhuma cerimônia fúnebre no Egito — nenhuma —, simplesmente porque nunca puderam acreditar que esse homem estivesse morto.

 

                 O Construtor de Prisões

Quando Ptolomeu retornou ao Egito como sátrapa, estava no seu quadragésimo quinto ano de vida, e fazia nove anos que Alexandria fora fundada.

”Quando deixara o Egito, depois da conquista de Alexandre, não havia nada a se ver no local de Alexandria senão cabanas de pescadores e os restos de um grande porto do tempo dos primeiros Faraós, que então estava coberto pelo mar.

Kleomenes, de Naukratis, tinha ordens de Alexandre para construir ali uma cidade grega dividida em quatro quadras chamadas Alfa, Beta, Gama e Delta, por conta das primeiras letras do alfabeto, com tudo o que uma cidade grega devesse ter, e para assentar as fundações de uma cidade a ser construída toda de mármore branco e calcário, que cintilaria ao sol do Egito e seria a inveja do mundo inteiro.

Alexandre tinha pedido milhares de colunas coríntias, com as ruas principais guarnecidas com colunatas, de modo que um homem poderia caminhar de um extremo ao outro de Alexandria na sombra, abrigado do calor do sol.

Kleomenes iniciou os magnificentes templos de Zeus, de Apolo, de Artemis, de Poseidon, encomendando vastas quantidades de pilares de mármore para as colunas, que seriam carregados em navios em Paros e trazidos através do Grande Mar. Foi uma das maiores proezas de engenharia jamais empreendidas.

Kleomenes também assumiu o encargo de construir o Heptastadion, uma ponte com sete estádios de comprimento, que atravessaria a baía e ligaria o continente à ilha de Faros. Ele utilizou aqui os mesmos princípios usados em Tito, enterrando pilares no leito do mar, despejando cascalho dentro de barragens reforçadas, mantendo assim a tradição de Alexandre de fazer o que parecia ser impossível ao erguer a construção no próprio mar. Quando o Heptastadion foi terminado, com uma estrada e um canal de água ao longo do seu topo, Kleomenes começou a pensar sobre o Templo de Isis que deveria ornamentar a ilha de Faros. Porém, o grande Faros, ou Farol, era uma maravilha ainda não sonhada.

Enquanto Alexandre prosseguia em sua marcha para conquistar a Ásia e o restante do mundo, Kleomenes ficara encarregado de todas as finanças do Egito. Foi Kleomenes quem fundou a casa da moeda e cunhou a tetradracma de prata com a cabeça de Alexandre, usando os chifres do carneiro de ZeusAmon, seu pai, e Alexandre ficou muito satisfeito com ela e com Kleomenes.

Sem a habilidade de Kleomenes, sua energia, sua devoção ao dever e seu empenho para fazer surgir uma cidade que fosse digna do seu fundador, talvez não houvesse nenhuma Alexandria para se ver e admirar, quando Ptolomeu retornou, como sátrapa. Verdade seja dita, Ptolomeu tinha muito o que agradecer a esse homem, por tudo o que ele tinha feito.

Ptolomeu cavalgou ao lado de Kleomenes ao longo da avenida chamada de Canopus — porque conduzia à cidade de Canopus, que ficava a leste de Alexandria, pela costa, uma cidade devotada ao prazer, à luxúria e à adoração aos deuses — e essa rua tinha um plethron de largura, de modo que podia ser usada para corrida de carros, e era pavimentada com pedras talhadas, e guarnecida de colunatas do Portal do Sol, a oeste, até o Portal da Lua, a leste. Cerca de trinta estádios de comprimento, com um canal de água potável descendo pelo meio, e estátuas de Alexandre e Felipe e de todos os deuses da Grécia de Atenas a Zeus, e uma estátua também do próprio Kleomenes.

Kleomenes mostrou a Ptolomeu a agora, o mercado, com lojas que vendiam toda espécie de peixes do mar e peixes de água doce, pescados do grande lago de nome Mareotis, que fica atrás da cidade, e toda espécie de carne e bebida, e toda espécie de artigos gregos necessários para dar felicidade aos gregos, tais como azeitonas, mel, pão, moussaka e vinho.

Mostrou a Ptolomeu as cisternas subterrâneas de enorme tamanho, que comportavam o suprimento de água fresca, e as fontes de água fresca das quais se podia também fazer jorrar leite e vinho. Exibiu os templos a Zeus e Apolo, Asclépios e Poseidon, o gymnasia grego, os banhos públicos, o hipódromo para corridas de cavalos, o stadion para competições atléticas, o odeion, ou câmara de conselho, o tesouro e a prisão todos os itens da mais perfeita cidade grega, e todas estas construções estavam começadas — algumas pela metade, algumas mal chegando à altura do joelho — porém nenhuma estava terminada, exceto a prisão.

Ptolomeu arreganhou os dentes. Sorriu com seus olhos também, seus olhos azuis, e ordenou que o trabalho em andamento continuasse como antes, exatamente como Alexandre havia planejado. Verificou que tudo o que Kleomenes se incumbira de fazer estava sendo conduzido com grande maestria — que Alexandria seria a mais refinada das cidades — e o seu coração inflamou-se de orgulho.

Ptolomeu agradeceu a Kleomenes por seu laborioso trabalho, por sua cuidadosa atenção a cada detalhe, e não apenas apertou as mãos de Kleomenes como beijou-lhe ambas as faces, como se ele fosse um amigo.

Feito isso, mandou prendê-lo, agrilhoá-lo a ferros e atirá-lo na prisão nova em folha, sob a acusação de diversos crimes contra o Estado, pois ele só se preocupara com o seu enriquecimento pessoal, servindo-se à vontade dos impostos e da receita pública, como se não fosse apenas um hyparkhos e administrador financeiro, mas o próprio monarca.

Ptolomeu escutara histórias da riqueza colossal amealhada por Kleomenes. Escutara que os soldados tinham sido lesados em metade dos seus salários; que, na época da fome, Kleomenes colocara todo o suprimento de cereais sob seu controle, e vendeu-o tirando enorme lucro. Pior de tudo, escutara de Anemhor que Kleomenes tinha ameaçado fechar todos os templos no Egito se os sacerdotes não pagassem o que exigia por sua proteção.

Kleomenes foi conduzido acorrentado à presença do sátrapa para ser interrogado, e Ptolomeu não se absteve de usar o hippos, o cavalo, em seu prisioneiro, para lhe torcer os polegares, e dobrá-lo em dois, até forçá-lo a falar a verdade.

Com sua desonestidade esse homem acumulara uma fortuna de oito mil talentos. O seu desvelo e atenção para com a nova cidade tinham conquistado para ele o seu reconhecimento como sátrapa, em tudo, exceto no nome, e o perdão de Alexandre, também, pelos excessos cometidos durante seu exercício do cargo. Kleomenes estava inteiramente convencido de que seria nomeado sátrapa do Egito.

Entretanto, o acordo da Babilônia tornou Kleomenes um subalterno de Ptolomeu, e Ptolomeu começou por humilhar Kleomenes, por sua soberba, vendo-o como seu rival e inimigo — um homem que devia ser punido.

Afinal de contas, Kleomenes fizera da prática do mal o seu comércio. Era odiado por todos os que tinham negócios no Egito, e confessou a sua culpa, confirmando ser verdade tudo o que Ptolomeu escutara.

A prisão de Alexandria fora construída de acordo com o projeto e as ordens precisas de Kleomenes, com mármore de Paros, colunas de Corinto no lado de fora, e portões de ferro e fechaduras com correntes de ferro por dentro, de modo que homem nenhum, grego ou egípcio, poderia escapar dali. A prisão de Kleomenes era excelente, um belo edifício, e Kleomenes de Naukratis foi o seu primeiro prisioneiro.

No dia designado para a execução de Kleomenes, Ptolomeu deu ordens para que a colossal estátua de granito cor-de-rosa do criminoso fosse posta abaixo de seu pedestal, na Rua Canopus, e reduzida a pequenos fragmentos róseos, dos quais fez Kleomenes engolir o máximo que agüentou.

Kleomenes não residiu por muito tempo na sua prisão, pois Ptolomeu ordenou que ele bebesse cicuta, e Ptolomeu ficou observando o hyparkhos ficar com os membros cada vez mais gelados, enquanto o seu sangue coagulava e ele vomitava o conteúdo do seu estômago, morrendo em horríveis convulsões.

Ptolomeu agora preparava-se para a esperada invasão de Perdikkas, mobilizando toda a sua tropa nas fortalezas da fronteira do Egito. Ele se apossou da riqueza de Kleomenes, de forma que esse mal obtido dinheiro se tornou a base de sua própria fortuna. Perguntado por que simplesmente não tomara o dinheiro de Kleomenes e mandara-o embora para casa, na Macedônia, ou por que simplesmente não o multara, Ptolomeu respondeu que, estivesse onde estivesse, sendo um homem livre, Kleomenes era capaz de se insurgir e tentar vingar-se. Era muito melhor que Kleomenes de Naukratis estivesse morto, ele disse, pois um homem morto não pode causar problemas.-

 

                 Bárbaros

Na chegada de Ptolomeu, Anemhor tinha recebido o sátrapa na sacada de audiências do seu grande Templo de Ptah, em Mênfis, observando a imensa coluna de soldados gregos entrando em marcha em sua cidade. Durante todo aquele dia Anemhor nada ouviu senão a pisada das botas dos soldados, o tinido dos arreios, o rumor das carroças e carros, as ordens gritadas pelos oficiais, a voz dos gregos elevando-se numa única voz, cantando o Paian de Batalha em honra de Apoio, as canções marciais em homenagem a Atenas, deusa da Guerra, Nike, deusa da Vitória, e Zeus, Senhor do Trovão.

Anemhor observava o entardecer e pensava em Rá, o deus-Sol, em Anúbis, Senhor do Mundo Subterrâneo, em Ptah, o deus-criador, e as lágrimas desciam-lhe pelo rosto — lágrimas de alívio, talvez, por não ter o Egito voltado ao poder dos persas; ou lágrimas de ira, por estar o poder do estrangeiro se renovando — como se não tivesse um fim para o domínio estrangeiro, como se os deuses do Egito de fato tivessem abandonado as Duas Terras.

Em Mênfis, Ptolomeu falou mais brandamente com Anemhor, pois a verdade era que esse homem podia falar grego tão naturalmente quanto os porcos grunhem, e embora fosse mais conveniente para ele fingir que não entendia, havia pouca coisa que esse homem não entendesse sobre a linguagem do invasor.

Ptolomeu perguntou muitas coisas, porém mais do que tudo interessou-se sobre o que devia ser feito para conquistar a simpatia do povo, e como o governo do Egito deveria ser mais bem conduzido.

Anemhor disse muito a Ptolomeu — embora não lhe tenha dito tudo. Anemhor preocupava-se com muitas coisas, porém a maior das suas preocupações dizia respeito ao infante Alexandros — Faraó ainda criança, que permanecera na Grécia com Perdikkas — e ao ausente Arrhidaios, que tampouco veio para o Egito. Anemhor preocupava-se porque era a presença do Faraó que garantia coisas tais como a cheia do rio.

Se o rio não enche no tempo devido, alertou a Ptolomeu, haverá escassez de víveres. E se houver fome, haverá também revolta...

Ptolomeu entendeu, então, que a cheia do Nilo e a fertilidade da terra estavam ligadas indissoluvelmente à presença do Faraó, que assim era diretamente responsável pela prosperidade do Egito.

Como, Anemhor perguntou, pode um Faraó ausente fazer os deuses felizes e evitar uma crise no Egito? Como pode o Faraó agir, se ele vive na Grécia? Como pode um rei que é uma criança ser um rei efetivo?

Era pensamento de Anemhor que Ptolomeu teria que fazer todo o possível em nome do Faraó. Era o sátrapa que teria de oferecer sacrifícios ao Touro Sagrado, Ápis, e assim demonstrar a sua boa vontade.

Ptolomeu fez as oferendas apropriadas. Ordenou o reparo dos templos em Waset, a cidade que os gregos chamavam de Diospólis, ou Tebas dos Cem Portões, e se não fez mais do que dar uma olhada em tudo o que precisava ser executado foi porque tinha negócios mais urgentes em Mênfis.

Ginestho, ele disse, faça! — e ele conhecia o poder de um sátrapa, então, e a força impactante do seu poder, pois tudo o que esse homem desejava podia ser realizado instantaneamente, ou assim ele pensava.

Ptolomeu assumiu o papel de visitante, e assim realizou a procissão apropriada ao visitante, para ver os monumentos que os gregos decidiram chamar de Pirâmides, com seu séquito de abanadores de leques, condutores de camelos, muleteiros, e sacerdotes ao seu serviço, os quais responderiam, ou não, todas as suas perguntas. Ptolomeu ficou deslumbrado, como todo homem se deslumbra, com o esplendor do revestimento de pedra branca, além de ofuscado pelo reflexo do sol nas pedras, e assombrado pelo tamanho delas, que eram maiores do que qualquer coisa feita pelo homem que já vira até agora.

Qual a idade delas?, perguntou, como todos perguntam, e o sumo sacerdote abriu os braços, pois esta era uma pergunta impossível de ser respondida, exceto com um murmúrio. Mais antigas do que a memória, Excelência; mais antigas do que o tempo. Afinal, era uma das coisas que Anemhor não desejava contar ao sátrapa, a quem não era permitido conhecer todas as coisas.

Perguntou a seguir sobre a Terceira Pirâmide — seria verdade que o monumento era assombrado por uma bela mulher nua que deixava qualquer homem enlouquecido? Seria verdade? E Anemhor respondeu, sim, Excelência, e Ptolomeu, que se interessava por mulheres, mulheres nuas, porém nenhum interesse tinha em ficar louco, não encontrou motivo para viajar a fim de ver a Terceira Pirâmide depois disso, e os sacerdotes ficaram satisfeitos. Não desejavam que Ptolomeu conhecesse os segredos do Egito. Ele era o estrangeiro, o Cão Grego, visto sob suspeita. Talvez fosse melhor do que os persas, mas não era do Egito. Nunca seria eles se assegurariam disso. E, sem dúvida, havia muitos homens, muitos sacerdotes, que o acolhiam bem, embora fossem ficar satisfeitos — bem mais! — se o vissem pelas costas novamente.

Ptolomeu recebeu, entretanto, o aplauso educado do povo da cidade de Unnu, ou On, que os gregos chamam de Heliópolis, Cidade do Sol, e essas pessoas atiraram flores, conforme as instruções que haviam recebido, e mostraram seus dentes, num sorriso, pelo menos um pouco, e Ptolomeu, tendo visto isso, cavalgou de volta para Mênfis.

O exército de Ptolomeu, nesse meio tempo, marchou rio acima, e no comando de navios rio acima, onde, incapaz de pronunciar qualquer dos nomes dos lugares em egípcio, incapaz de lembrar qual lugar era qual e incapaz de entender o significado de qualquer destes nomes, inventaram, com a permissão de Ptolomeu, nomes por sua própria conta. De modo que cada cidade se tornou uma polis Crocodilópolis, Cidade dos Crocodilos, por exemplo, Heracleópolis, Cidade de Herácles, Kynópolis, Cidade dos Cães, Lykópolis, Cidade do Lobo, Apolonópolis, Cidade de Apolo, Hermópolis, Cidade de Hermes — o Thot dos gregos — e assim por diante. Desse modo, o egípcio tornou-se quase estrangeiro em sua própria terra. Para combater a indignidade de tal coisa, nenhum egípcio se dignava a falar o nome de Alexandria, a cidade dos invasores gregos, e persistiram em sua insubordinação chamando-a de Rhakotis, o Canteiro de Obras, mesmo depois que a cidade foi terminada.

Quanto a Anemhor, ele balançava a cabeça, perguntando a si mesmo como foi que os egípcios se resignaram a não lutar contra os gregos, para expulsálos do Egito; ao invés disso os acolheram como um amado amigo. Anemhor, na verdade, não era um grande amigo dos gregos e criou problemas para eles sempre que pôde.

Sem dúvida, Ptolomeu tornou-se bem-vindo, depois de modelado, porém continuava a ser, para todos os efeitos, um bárbaro aos olhos egípcios, e seu exército, um exército sujo, manchado de sangue, trazendo as marcas do estupro e do assassinato nas suas vestimentas. Contudo, embora muitos dos egípcios tivessem tal esperança, e rezassem aos deuses do Egito por isto, fingindo não entender o que os gregos diziam ou queriam, o grego não ia embora. O grego jamais retornaria para a Grécia, porque preferia o Egito onde se encontrava, como ele gostava de dizer, ouro em pó até mesmo nas ruas, mesmo se a poeira de ouro fosse apenas areia.

Mas não, o grego viera para ficar; e ainda que houvesse coisas que detestava nas Duas Terras, havia mais coisas ainda que amava nelas.

Sim, o soldado Ptolomeu apreciava a maioria das coisas em que punha os olhos. Lá ele viu pela primeira vez um pássaro que chamava de struthion, ou avestruz, criado nas fazendas reais de avestruzes, por causa de suas penas, e ele gostava de montar e disputar corridas montado nesse pássaro, e ninguém levantava um dedo para impedi-lo. Ao soldado grego era permitido gozar a vida. Era mais fácil deixar os homens de Ptolomeu fazerem o que bem entendessem, pois contrariá-los significaria que a espada seria sacada da bainha, e a espada mataria aos milhares, como havia acontecido em Tiro, em Gaza e em centenas de outros lugares. O Egito recebera o seu aviso — o que poderia esperar se não exibisse os dentes para o grego. O Egito sabia muito bem qual seria o preço a pagar caso se negasse a sorrir, ou se não deixasse Ptolomeu e os soldados de Ptolomeu fazerem o que quisessem.

Na verdade, Anemhor pensava que a nova cidade de Alexandria seria algo excelente. Mênfis não era um bom lugar para acomodar dez mil soldados gregos. À parte qualquer outra coisa, os gregos disseminavam a prática da aphrodisia, homem sobre homem, e isso era proibido em Mênfis, como uma impureza nessa cidade mais pura do que a pureza — essa que era a mais pura das cidades puras. Além disso, trazer deuses gregos para a ilustre e a mais ilustre cidade de todas, Mênfis, a antiga capital religiosa do Egito, onde tudo concerne a Ptah, da Face Bela, e à grandeza de Ptah — seria a coisa menos apropriada que poderia acontecer. Ptolomeu deveria ter uma cidade só para si, onde os gregos pudessem fazer o que bem entendessem, uma cidade, se assim o desejassem, que fosse impura, onde tudo fosse permitido, onde nada que um homem pudesse imaginar fazer fosse proibido, e sem que os deuses do Egito se sentissem insultados por cada um dos seus atos.

Sim, Anemhor instava Ptolomeu a pensar em Alexandria como sua capital, que seria uma cidade extremamente moderna, com suprimento apropriado de água potável — em vez de servir-se da água do rio, como todo homem fazia em Mênfis e em todos os demais lugares do Egito —, com seus banhos gregos, quentes e frios, e tudo o mais que fosse apropriado para um grego, sim, uma cidade de que o grego teria orgulho, que não exalasse o cheiro mofado de antigüidade de Mênfis; que não fedesse a valas abertas, imundície e esterco de camelo. Para tirar os gregos de Mênfis, sim, claro, seria excelente, ótimo, e em Mênfis pareceria como se nada houvesse mudado; como se os egípcios ainda estivessem no controle das Duas Terras.

Porém, a ilustre e mais do que ilustre cidade de Alexandria ainda não estava concluída de modo a propiciar satisfação a Ptolomeu, menos ainda pronta para ser uma residência satrapal, e Anemhor podia apenas encorajar, e dar a sua melhor ajuda por meio de trabalhadores egípcios, e ficar orando a Ptah e a todos os deuses do Egito pela chegada do dia em que a coluna dos soldados gregos marcharia para o Norte, deixando Mênfis em paz. Por sua vez, Ptolomeu reclamava o avanço do programa de construção, enviando mensagens diárias de encorajamento para os capatazes dos trabalhadores.

Anemhor perguntava com freqüência como vão as obras? — como se a ele agradasse que Mênfis ficasse livre do sátrapa o mais cedo possível.

Anemhor, o sumo sacerdote de Mênfis, era um homem fraco, um homem de espírito debilitado, e ainda assim era mais forte do que todos os homens; tinha poder ilimitado. Assim se dizia que, como Thot, ele engolira as Duas Terras, pois não havia nada que ignorasse sobre o Egito.

Assim como sensatez e sabedoria, possuía maior riqueza do que qualquer outro homem no Egito, depois do Rei. Tinha sua casa em Mênfis, com jardins, criados e escravos em grande quantidade, carruagens rápidas e cavalos sem igual. Tinha até mesmo dois enormes navios, nos quais costumava subir e descer o rio, no seu ofício sacerdotal.

No passado, este homem teria sido Diretor de Todos os Trabalhos do Rei, se não também o Vizir do Rei, parte do governo do Egito. Teria sido Arquiteto do Faraó, encarregado de todas as construções e dos reparos de todos os templos. Mas os persas cortaram o seu poder pela metade. Anemhor não era Vizir do Egito, e era como se lhe tivessem negado o uso de sua mão direita. Sob as ordens de Alexandre, sob a hiparquia de Kleomenes, Anemhor se resignou a ser a metade de um sumo sacerdote, ser apenas Mestre da Casa de Ouro, supervisionando a fabricação de todos os objetos de ouro e metais preciosos.

Conservou todos os seus títulos sacerdotais. Permaneceu um príncipe e um nobre do Egito. Não deixou de ser Profeta de Hórus da Janela das Aparições. Não deixou de ser Profeta do Ápis Vivo, o Touro Sagrado de Mênfis. Mas a partir de Ptolomeu, Anemhor empenhou-se em reconquistar seus plenos poderes. Ele não estaria à disposição do sátrapa, mas se manteria próximo, procurando dar conselhos a Ptolomeu sobre cada assunto. Ao mesmo tempo, Ptolomeu manteve o governo do Egito nas mãos dos seus próprios ministros — gregos, homens em quem depositava absoluta confiança. Era propósito de Ptolomeu deixar as questões religiosas para os sumos sacerdotes do Egito, e não permitir que eles se imiscuíssem nos negócios do Estado.

Porém, Anemhor não tinha a intenção de deixar que Ptolomeu pudesse sobreviver sem sua ajuda.

Sempre haveria um clima de tensão sobre o poder do sacerdócio, enquanto a Casa de Ptolomeu governasse o Egito Ptolomeu sempre se preocuparia se os sacerdotes em geral, e o sumo sacerdote de Mênfis em particular, estariam tramando derrubá-lo.

Diante disso, a ocupação de Anemhor era com o festival de Mênfis, o festival de Sokar, no qual o barco perfazia o circuito em torno dos muros da cidade, e a visita da estátua de Ptah a Hathor, Senhora dos Sicômoros, Hathor do Sul, quando o deus tomaria o navio e velejaria rio acima. Sim, era sua primeira tarefa salvaguardar os templos; zelar pelo bem-estar dos deuses — todos os deuses.

Assim, Anemhor se certificou de que Ptolomeu estivesse ciente de que tudo que estivesse ligado aos templos — fossem esculturas em pedra, ou móveis, ou vasos de ouro — era guardado pela mais poderosa das magias. E ele disse qualquer homem que levantar as suas mãos para esses objetos, ou contra o próprio Templo, ou contra qualquer dos seus sacerdotes, sucumbirá sob a espada de Amun; sucumbirá pelo fogo de Sekhmet, a deusa-leoa.

Ptolomeu abriu os braços, como que para dizer nunca tive a intenção... nem me passou pela cabeça... Porém, nada disse, pensando, em vez disso, em todas as coisas que devia e não devia fazer, e que afinal o Egito tinha sido um grande prêmio — o grande presente dos deuses da Grécia —, mas como era difícil mantê-lo sob seu domínio...

É verdade, Thot diz, Ptolomeu e a sua Casa não tiveram vida fácil. Se haviam pensado que não fosse tanto o peso de governar o Egito, estavam enganados.

Porém Anemhor pressentia em seu íntimo tudo o que Ptolomeu imaginava fazer. Ele tinha o poder de adivinhar os pensamentos secretos de Ptolomeu. Tinha sempre seus espiões na residência satrapal; seus vigias, na cidade inacabada, relatavam-lhe tudo o que ocorria por lá.

Era este, então, desde o início, o propósito de Anemhor — trabalhar para arruinar a Casa de Ptolomeu? Teria esse homem dado apoio aos gregos apenas para ajudá-los a construir uma casa, uma cidade, um império, que fatalmente ruiria?

Talvez. Talvez, não. Só para deixar claro, a magia de Anemhor era poderosa o bastante para que ele fizesse o que bem entendesse com o destino de Ptolomeu. Portanto, seria mera questão de esperar pelo colapso, vigiar e aguardar, pois o Tempo, para os sacerdotes do Egito, nada significa, absolutamente nada.

A residência de Anemhor em Mênfis era grande, e seus jardins eram plantados com figueiras, tamareiras, sicômoros, videiras e arbustos variados, e havia pequenos lagos com peixes ornamentais. Em toda Mênfis, não havia jardins tão grandes ou tão belos, à exceção dos jardins do próprio Faraó. Anemhor tinha também a sua amada esposa, seus educados filhos, um dos quais seria sumo sacerdote de Ptah tão logo partisse para o seu túmulo no oeste, e suas filhas, todas destinadas a se casar com sacerdotes de alto posto.

O jardim era o paraíso de Anemhor, onde passava suas horas de lazer. Ali ele jogava damas com os seus filhos, ou escutava harpa, alaúde e gaita, tocados pelas mulheres da família. Ali, as assistia praticar as danças que precisavam executar diante do deus em seu templo. Os seus filhos mais jovens corriam por entre as palmeiras ou mergulhavam nos pequenos lagos; filhos que se tornariam sacerdotes, filhas que já tocavam sistro no templo, porque, sim, a família inteira de Anemhor era dedicada ao serviço de Ptah, o deus da Bela Face.

A despeito da sua constante e elaborada preparação para a morte, Anemhor mantinha-se sempre alegre; a despeito de o Egito ter novamente sido entregue nas mãos de estrangeiros, suas risadas não diminuíam, mas ecoavam, ainda, entre as palmeiras e sicômoros do seu jardim.

Anemhor ia tocando seu trabalho, cruzando os braços sob o manto pintado de pele de leopardo. Todos os dias ele se banhava três vezes no Lago Sagrado de Ptah, de forma que estava entre o mais puro dos puros. De três em três dias, tinha o corpo raspado dos pés à cabeça, incluindo as sobrancelhas e o seu tufo de pêlos pubianos. Não havia ódio no coração deste homem. Ele sempre fazia o que era melhor para o Egito, o que era melhor para os deuses. Não tinha nenhuma queixa pessoal contra Ptolomeu, que demonstrava ser um homem bondoso — tão bondoso quanto se poderia encontrar entre os gregos.

Seria possível que esse Anemhor fizesse algo para que a Casa de Ptolomeu destruísse a si mesma, para que o governo dos Faraós nativos fosse restaurado? Ele faria isso, discípulo-de-Thot? Faria?

Alguns pensavam que sim.

Não, o sumo sacerdote de Ptah não se deixava abater pelas circunstâncias. Seu sorriso não diminuía. Pelo contrário, tornava-se mais largo.

 

               A Sabedoria Egípcia

No ano em que Ptolomeu chegou ao Egito como sátrapa, o garoto chamado Anemhor — também Esisout, como também Nesisty, porém mais freqüentemente chamado pelo nome de Eskedi —, o filho mais velho do Velho Anemhor, sumo sacerdote de Mênfis, completava seus 16 anos, e era o fim dos seus dias na Escola de Escribas de Mênfis. Como seu pai, ele também havia começado seus estudos aos cinco anos de idade, e nos últimos meses de estudo fora encarregado dos estábulos de criação de cavalos de Mênfis, pois era um garoto destinado ao mais alto ofício — alguém que, se fosse da vontade dos deuses, devia suceder ao seu pai.

Nos seus primeiros dias na escola de escribas, aprendera a arte da leitura, em meio a uma classe inteira de alunos que liam os papiros em voz alta e em coro.

Ele tinha feito progressos em decorar longas passagens da Sabedoria do Egito, pois seu pai dava grande importância à habilidade da memória. Era mais importante lembrar-se do que formular novos pensamentos. Pensamentos novos não eram necessários aos escribas, pois, no mundo do templo de Ptah, todas as coisas deveriam permanecer como sempre foram. Porque, no Egito, a coisa mais admirável é que nada novo existe; que tudo permanece o mesmo desde o começo do mundo, desde a Primeira Vez, quando os deuses eram jovens.

O velho Anemhor encorajava esse seu filho, dizendo-lhe aprenda a escrever, pois isto trará a você mais benefício do que qualquer outra coisa, Anemhor disse a ele o seu aprendizado vai ficar com você para sempre, como as próprias montanhas.

Eskedi aprendeu. Eskedi guardou na memória. Logo, desenvolveu a habilidade de predizer o dia em que um terremoto aconteceria. Era capaz de predizer o fracasso da colheita e o surto das doenças epidêmicas.

Desde a idade de quatro anos, Eskedi foi encorajado pelo pai a orar a Ápis, o Touro Sagrado de Mênfis, que era a imagem viva de Ptah. E embora não lhe fosse ainda atribuído o título de Guardião do Ápis Vivo, isso logo aconteceria; até lá, visitaria todos os dias o touro, a fim de aprender a arte de predizer o futuro a partir dos movimentos e reações desta assombrosa besta divina.

Se Ápis chicoteasse sua cauda, significava isto e aquilo.

Se Ápis lambesse sua narina esquerda com sua grande língua cinzenta, significaria tal e tal.

Se lambesse as narinas esquerda e direita juntas, significaria outra coisa.

Eskedi era um mestre nos sinais do Ápis. Logo, era nomeado escriba especial com a responsabilidade de alimentar a mãe do Ápis, a qual, ao morrer, tornar-se-ia a vaca ísis.

Eskedi aprendeu a curar os doentes. Aprendeu as propriedades de cada planta medicinal. Aprendeu a arte de fazer chover. Ele se tornaria um escriba da Casa da Vida — um homem a quem o povo do Egito poderia fazer qualquer pergunta que desejasse e teria a certeza de receber dele uma resposta satisfatória.

Agora, com 16 anos, este garoto submeteu-se ao exame que todo jovem escriba destinado ao sacerdócio do Egito deve prestar; o exame era de gramática, escrita de hieróglifos e escrita hierática egípcia, bem como de conhecimento dos deuses, seus títulos, características e história, e das múltiplas complexidades do ritual do templo. Todas essas matérias eram difíceis — muito difíceis —, porém, na verdade, não havia quase nada que Eskedi já não soubesse. Ele saiu-se muito bem, e o Velho Anemhor ficou radiante.

Então, tiraram os trajes desse grande estudioso, e ele foi lavado três vezes no Lago Sagrado de Ptah. Foi raspado com navalhas de bronze da cabeça aos pés, até o último pêlo do corpo. Sua pele foi ungida com perfumes. A seguir, vestiram-no com as roupas cerimoniais do sacerdócio, e então foi admitido no horizonte do Céu pela primeira vez.

Eskedi, fascinado pela reverência, só de pensar na majestade de Ptah, podia agora aproximar-se do próprio deus em seu santuário, pois ele era agora e de imediato um sacerdote wab, um sacerdote iniciado, e não havia palavra para descrever a felicidade do seu coração, nem a felicidade de seu pai e sua mãe.

Eskedi usufruiria de vida livre do trabalho físico. Até o fim de seus dias, teria suas mãos macias e usaria as roupas limpas de um escriba. Ele se banharia no Lago Sagrado três vezes ao dia. Os pensamentos vindos do coração não seriam perturbados por aborrecimentos corporais. Eskedi era um garoto que daria ordens, verificaria resultados, faria anotações e concederia ou negaria sua permissão aos outros; um homem altamente dotado para tomar as decisões mais importantes, relativas aos templos do Egito.

Na Escola de Escribas da Casa da Vida, o jovem Eskedi aprendera a magia que representava parte tão fundamental do conhecimento de todo sacerdote. Vez por outra, esse aluno esquecia que a coisa mais importante para um escriba aprender é a arte de autocontrole — a arte de controlar os sentimentos —, por isso era sempre advertido por seu mestre mantenha-se atento e ouça o que lhe digo, Não esqueça nada do que lhe digo.

E quando Eskedi esquecia novamente, o mestre dizia o garoto que escuta, há de ser amanhã alguém com distinção.

E ele disse um garoto tem ouvidos nas costas. Ele escuta quando é surrado.

Quando Eskedi não escutava, era surrado, e aprendia a sua lição. Ele não era tão mau que precisassem amarrar suas pernas juntas para que não pudesse fugir.

Pela manhã, copiava textos de sabedoria, tais como

Faça o bem e você progredirá

Não faça uso da pena para injuriar um homem...

O macaco mora na Casa de Khnum,

Seus olhos circundam as Duas Terras..,

Quando ele vê alguém que trapaceia com o seu dedo,

Ele carrega embora o seu sustento na enchente.

No frio da noite, Eskedi praticava com seus companheiros a habilidade do crocodilo, montando as costas da Face do Medo no Lago Sagrado — um esporte que não acarreta grande perigo, pois a boca da fera fora amarrada, bem firme, com corda de papiro, antes que a qualquer garoto fosse permitido entrar na água.

Montar o crocodilo era a grande habilidade de Hórus, o deus-falcão. Se um garoto conseguisse fazer isso, não teria medo de nada.

E Eskedi, como seu pai antes dele, era mestre até mesmo do crocodilo.

Na margem do seu papiro este garoto escreveu ew domino todas as artes mágicas. Não existe nada nessas artes que me escape.

Quando ele já tinha dominado a arte até mesmo de traduzir hieróglifos, em escrita hierática, a tarefa mais difícil para todo escriba, escreveu na margem do papiro não há absolutamente nada que Eskedi não saiba,

Ele aprendeu que o homem sábio preferirá o silêncio a uma conversa vazia. Aprendeu a usar o nome secreto de cada deus, de forma a mudar a ordem das coisas.

Pois sim, se Eskedi pronunciasse o nome sagrado de Shu à margem do rio, este secaria completamente. E se ele pronunciasse o nome sagrado de Shu sobre a terra, esta pegaria fogo.

Eskedi tinha tal poder sobre o crocodilo que, se a fera atacasse o mágico, o sul viraria para o norte — sim, o mundo estremeceria.

Fazia muito tempo que havia aprendido a escrever e a proferir automaticamente o voto de praxe dirigido ao Faraó (Longa vida! Prosperidade! Saúde!), toda vez que escrevesse ou pronunciasse a palavra faraó.

Eskedi era na verdade um escriba com dedos limpos. Conhecimento e virtude eram inseparáveis. Nenhum garoto poderia se tornar um escriba sem ambas as coisas, e seu comportamento estava além de qualquer reprovação.

Acima de tudo, Eskedi aprendeu o respeito devido a um parente. Faça libação para seu pai e sua mãe, ele escreveu, que estão repousando no Vale. Não se esqueça dos que estão do outro lado. O seu filho agirá da mesma forma por você.

Porém, no momento, o pai de Eskedi vivia (o velho Anemhor, sumo sacerdote de Ptah, o mais sábio entre todos os sábios do Egito). O velho Anemhor era na verdade Thot, em todos os sentidos, porém Eskedi seu filho não ficava muito atrás dele em sabedoria. Ele escreveu na margem do seu papiro contemplem-me, sou um excelente escriba. Um pouco de fanfarronice é natural na juventude. Porém o que Eskedi escrevia acontecia ser verdadeiro.

 

             A Chuva de Nozes e de Figos

Tendo botado as mãos em cima dos oito mil talentos do Tesouro do Egito, Ptolomeu não via razão por que deveria se conter no que diz respeito a gastos. Começou então a contratar soldados aos milhares por todo o mundo grego afora, de forma a poder resistir ao ataque de Perdikkas, quando acontecesse.

Um imenso número de soldados desertou, deixando para trás seus comandantes e dirigindo-se ao acampamento de Ptolomeu; por um lado, porque ele tinha a reputação de ser um homem justo; por outro, porém, o soldo que oferecia era em muito superior ao que os demais sucessores de Alexandre podiam pagar. Soldados que nunca tinham tido simpatia por Ptolomeu antes tornaram-se grandes simpatizantes de Ptolomeu agora, de forma que Mênfis ficou lotada de homens de aparência rude que nenhuma outra língua falavam senão os dialetos gregos mais toscos, e a cidade ficou tão em falta de mulheres gregas que Ptolomeu se viu obrigado a importar não apenas soldados, mas navios sobrecarregados de prostitutas, a fim de conservar esses homens felizes, e ao mesmo tempo preservar a honra das mulheres egípcias de Mênfis.

Talvez o próprio Ptolomeu devesse sentir-se feliz, nessa época, porque tinha agora, sem nenhuma dúvida, tudo o que um grego poderia desejar. Porém, Ptolomeu não se sentia feliz, pois se preocupava com Perdikkas; preocupava-se com o futuro.

Ptolomeu sabia que não sobreviveria por muito tempo sem aliados; no entanto, naquela época, não tinha nenhum. Precisava de outro governante que o ajudasse a resistir a Perdikkas e a outros iguais a ele. Sua grande necessidade era proteger-se de Antígonos Monophtalmos — O Caolho — que poderia invadir o Egito vindo do Leste. Ptolomeu quis acumular o controle da Síria e da Fenícia para manter abertas as rotas comerciais para o incenso e para o cedro proveniente do Líbano, com o qual ele poderia construir os seus navios de guerra, pois não havia madeira para navio no Egito; na verdade, nenhuma, além das madeiras inúteis da acácia e das tamareiras.

Ptolomeu sempre fazia, em todos os aspectos, exatamente o que pensava que Alexandre teria feito. Ele não toleraria nenhuma resistência, e o mundo teria de saber que Ptolomeu, sátrapa do Egito, teria tudo o que desejasse.

Contudo, nesse momento em especial, ele não tinha o que desejava — ou seja, a paz. A despeito de possuir a Síria e a Fenícia, dormia mal por conta da sua preocupação com Perdikkas, que, como ele sabia, seria capaz de fazer tudo o que pudesse para tomar o Egito pela força. Ptolomeu não apenas carecia de um aliado, mas também de um herdeiro legítimo, e continuava nutrindo o pensamento de que devia fundar a sua dinastia, de modo que o sátrapa fosse sucedido por seu filho, e depois pelo filho de seu filho, e assim tudo permaneceria em família.

Então, Ptolomeu enviou embaixadores para o Velho Antipatros — o homem deixado na Macedônia por Alexandre para exercer a função de regente enquanto ele se encontrasse fora, conquistando o mundo. O Velho Antipatros tinha a fama de ser o mais sábio de todos os governadores do seu tempo um homem que honrava sempre sua palavra, ao contrário de outros governadores, e que nunca tentava enganar os seus amigos.

Os embaixadores sugeriram uma Grande Aliança de verdadeira e eterna amizade, incluindo total cooperação militar, e Antipatros mostrou-se interessado. Ptolomeu sabia também que o Velho Antipatros tinha uma filha chamada Eurídice, que podia ser usada para selar o tratado conforme a praxe da época, tornando-se sua esposa, e encarregou os embaixadores de fazerem algumas perguntas discretas sobre se tal casamento agradaria a ele, e Antipatros pela segunda vez mostrou-se interessado.

No devido tempo, a aliança entre Ptolomeu e Antipatros foi tornada pública, e então oficializada pela troca usual dos luxuosos presentes que constituíam sinais visíveis de amizade. Antipatros enviou tigelas de ouro de Sifnos, e os melhores cavalos para combate da Tessália; em troca Ptolomeu enviou cavalos de corrida de Cirene, carruagens com ornamentos de ébano e marfim, e um animal que era chamado de camelopardo — uma girafa —, cujo pescoço imensamente comprido esticava-se para cima, escapando da jaula na qual foi transportada para a Grécia, o que atraiu bastante atenção dos curiosos.

Antipatros concordou em separar-se de Eurídice, que tinha então quinze anos de idade, e disse aos embaixadores para comunicar a Ptolomeu que os seios dela tinham três dedos de altura, como se fossem brotos de abóboras, que ela tinha cabelos louros e estava madura para se casar. Se Eurídice tinha idéias próprias sobre tal casamento, isso não importava, pois um pai sabia o que era bom para sua filha. Um pai grego, diziam, sempre sabe o que é melhor, e fosse qual fosse o destino que Antipatros decidisse lhe dar, cabia à filha apenas suportá-lo.

Mesmo assim, quando comunicaram a Eurídice o que estava sendo traçado para ela, a garota chorou. Era infantil demais para a sua idade, e preferia permanecer em seu lar, na Macedônia, com suas aias; preferia não ter de renunciar às suas bolas coloridas de couro, ou às suas bonecas de cerâmica com seus braços móveis, presos por arames, e seus longos dias no tear; dizia que morria de medo de viajar sozinha para o Egito.

Antipatros escreveu para Ptolomeu nossa filha não conhece nada da vida. Ela foi educada sob as mais rígidas restrições. Foi acostumada desde a infância a enxergar o menos possível e a não entender coisa alguma. Somente irá fazer o mínimo indispensável de perguntas...

Ptolomeu ficou satisfeito. Não desejava nenhuma mulher sua, metendo o nariz nos seus assuntos de Estado. Ele respondeu a Antipatros Eurídice, sua filha, não vai precisar saber de nada. Terá uma vida fácil e luxuosa... E no devido tempo os dois sátrapas proferiram o juramento com as palavras usuais se eu permanecer fiel ao juramento, que as mulheres dêem à luz crianças que se pareçam com os seus pais. Do contrário, que as mulheres dêem à luz monstros.

Eurídice, então, preparou-se para viajar por mar ao Egito, ainda receosa, pois nunca em sua vida viajara num navio; nunca pusera os pés fora do gynaikeion de Pella. Na sua bagagem, levava tudo de que poderia precisar medicamentos para enjôo no mar, para indigestão, remédios mágicos contra seus inimigos, reais ou imaginários, e vestes de todas as cores do arco-íris.

Eurídice observava os preparativos da viagem com olhos sempre arregalados, e no dia anterior às suas despedidas, a família ficou junto dela durante a noite toda, na tentativa de deter o tempo que é como os gregos costumam despachar uma noiva para seu novo lar. E foi no meio dessa festa de despedida que Eurídice confessou que, na verdade, não desejava viajar para tão longe e não tinha desejo nenhum de se tornar esposa de um homem, fosse quem fosse, e preferia, isso sim, permanecer solteira e morar no seu lar para sempre, e a seguir derramou muitas e muitas lágrimas, temendo o futuro que

a esperava.

A mãe de Eurídice, contudo, falou com firmeza tudo já foi acertado. Você tem que ir para o Egito. É a grande chance da sua vida, e você deve aproveitála se não quiser se arrepender mais tarde e para sempre. Ptolomeu é um homem generoso. Não vai maltratar você...

E o Velho Antipatros disse a sua filha que ela era uma parte muito importante da aliança com o Egito. Ela estaria ajudando a manter a paz. E assim não restou outra alternativa para Eurídice senão aceitar o que lhe era imposto. No casamento, a mulher grega nada mais é do que um objeto de troca entre homens. Ela mais parecia um repolho, ou um asno, foi o que a garota pensou, tendo em vista a consideração que estava recebendo.

No entanto, Eurídice se sairia bem. Não era de todo despida de encantos femininos. Era prendada no tear e na lira e, na maior parte do tempo, de temperamento sereno. Acima de tudo, gozava de boa saúde, e foi enviada com a garantia dada por Antipatros e seu médico de que estava em condições de gerar tantos filhos do sátrapa grego quantos Ptolomeu desejasse fazêla parir.

As lágrimas da futura noiva finalmente cessaram, e ela até mesmo parou de fungar em resposta a uma afiada admoestação de sua mãe. Mesmo assim, Eurídice deixou-os de tal maneira alarmados com o seu nervosismo quanto a ir sozinha até o Egito que mandaram com ela uma mulher mais velha, com mais experiência do mundo, e esta mulher passava por sua tia, ou, como muitos diziam, por sua prima, e o seu nome era Berenice, que significa Portadora da Vitória.

Conta-se que essa assim chamada tia Berenice fora casada quando jovem com um certo Felipe da Macedônia (não o Rei), um homem de família sem grande posição, nem significativa distinção pessoal, sobre quem ninguém conhecia nem comentaria coisa alguma, se era vivo ou morto, na época da viagem, ou se havia simplesmente fugido e abandonado Berenice, ou se era de tal modo monstruoso que ela é que o havia deixado. De qualquer modo, tia Berenice agora estava sozinha no mundo, exceto por dois filhos pequenos — um garoto selvagem chamado Magas, que adorava comer, e uma garota magra e quieta, chamada de Antígona. Ambos os filhos acompanharam a mãe e Eurídice ao Egito.

Alguns se perguntavam se Berenice não passava de uma prostituta que se meteu em alguma trapalhada e a quem Eurídice quis tomar sob sua proteção. Mas, ninguém sabia ao certo. Sem dúvida, no entanto, essa tia poderia estar fugindo de alguém, e alguma coisa teria saído errado na sua vida, pois durante todos os seus anos no Egito não proferiu uma só palavra sobre seu marido ausente. Berenice teve a chance de recomeçar a vida. Ela vivia apenas no e para o presente, e apagou a sua história com tanta habilidade que ninguém podia dizer coisa alguma sobre o assunto, exceto declinar o nome daquele seu marido, que nada a faria mencionar.

Eurídice e Berenice, como se esperava, tomaram o navio para o Egito, e era inverno, estação que nem mesmo era apropriada para viagens por mar, quando o oceano se encapelava; o capitão do trieres ficou olhando de soslaio para a noiva, dizendo eu lhe desejo sorte, Kyria, você está entrando, de fato, num mar de problemas. E ele riu. Não falo do mar da Líbia, nem do mar Egeu, nem ainda dos bancos de areia sicilianos onde três navios, talvez, em trinta podem escapar do naufrágio... Falo do Mar do Casamento. E ele rompeu em gargalhada, como se tivesse bebido. Do matrimônio, ele gritou, não se conhece ainda nenhum sobrevivente.

E ele poderia ter continuado a dizer coisas assim, não tivesse a tia provado o valor de a terem empregado, esbofeteando esse homem; e não havia dúvidas de que ela era uma mulher enérgica, mesmo já tendo sofrido muito, e que o seu próprio casamento, muito provavelmente, não fora nada parecido com velejar por águas tranqüilas.

Berenice era de tal modo enérgica que, quando aportou no Egito, parecia tão assustadora — fosse por causa da nausiasis, a náusea, ou pelo naufrágio de seu próprio casamento, e o afogamento das suas próprias emoções em meio ao episódio — que nenhum homem sequer se disporia a olhá-la mais de uma vez. Berenice não tinha bens, nem um óbolo sequer na bolsa, nem mesmo um espelho de prostituta, e nenhuma roupa a não ser as que estava vestindo. Tia Berenice dependia totalmente de Eurídice, sua sobrinha, e estava claro que precisava de quem tomasse conta dela tanto quanto Eurídice — de modo que essas duas mulheres da Macedônia, reunidas em terra estranha, fizeram o mútuo e solene juramento de que ambas tomariam conta o melhor possível uma da outra no Egito. Eurídice prometeu até mesmo encontrar um novo marido para sustentá-la, um novo pai para as suas crianças; porém, não possuindo a habilidade da profecia, não tinha idéia, até então, de quem poderia ser esse tal homem. Se tivesse previsto quem seria esse novo marido, ora, talvez tivesse mandado Berenice de volta para a Grécia, naquela mesma ocasião, porque nada poderia evitar que chegasse o dia em que Eurídice se amaldiçoaria por ter, no começo da história toda, trazido essa sua tia para o Egito.

Pois a verdade era que, dentre as duas, seria de fato Berenice quem estava destinada a ser a sobrevivente.

Seja como for, o casamento de Ptolomeu com Eurídice foi celebrado na Lua Cheia de Gamelion — um mês sagrado para Hera, rainha dos deuses da Grécia e padroeira do casamento, porque se tratava de um período propício para casamentos, ou assim os gregos acreditavam.

A residência do sátrapa em Mênfis foi decorada para o evento com galhos de louro e oliva, e iluminada com tochas flamejantes. Na véspera do casamento as mulheres da família da noiva deveriam, segundo a tradição, caminhar até a fonte pública para apanhar água destinada ao banho ritual de Eurídice. No entanto, como ela viera para o Egito sem a sua família, coube à tia Berenice o encargo de trazer a água, e ela banhou a sua sobrinha e pronunciou palavras de conforto, a fim de acalmar o seu nervosismo.

Pela manhã, Ptolomeu fez a sua grande entrada, engrinaldado com flores carmins, usando na cabeça uma coroa de flores vermelhas, vestido com um khiton novo, branco, e emplastrado da cabeça aos pés com mirra. Ele devia, segundo a tradição, caminhar acompanhado por sua família e a do seu padrinho até a casa da noiva, naquela tarde, oferecer os sacrifícios de praxe aos deuses e, então, sentar-se à mesa para o banquete nupcial com a família de Eurídice. Porém, a família de Eurídice não se encontrava presente, e ela não tinha casa para onde se encaminhar; assim, os sacrifícios e o banquete foram realizados na casa de Ptolomeu.

A noiva do grego deveria, segundo a tradição, estar rodeada de amigos; porém Eurídice não tinha amigos gregos para dar-lhe apoio, com exceção de Berenice; então elas ficaram sentadas sozinhas — somente as duas, com olhar perdido. Eurídice trajava finas vestimentas, e Berenice tinha o corpo untado de óleos e perfumes caríssimos. Estava coberta por um véu vermelho e exibia uma grinalda de flores carmins na cabeça. As duas mulheres sentaram-se bem afastadas dos amigos de Ptolomeu, que ficaram observando essas mulheres macedônias que não conheciam, comendo azeitonas e disputando sua competição habitual para ver quem conseguia lançar os caroços mais longe sem dizer coisa alguma — apenas trocando gracejos e se divertindo a cada caroço que cuspiam —, de forma que Eurídice, que no início estava sentada lá, muito nervosa, começou a ficar constrangida as mãos lhe tremiam; o corpo inteiro tremia de medo do que estava para lhe acontecer naquela noite.

Desde que descera do navio, em Alexandria, e durante toda a viagem na barcaça, rio acima, até Mênfis, Berenice cuidara de manter Eurídice completamente coberta, de acordo com o costume grego, de modo que ninguém no Egito havia visto o rosto dessa mulher; nem mesmo Ptolomeu vira ainda o rosto de sua noiva, e embora já lhe tivesse dado as boas-vindas, ainda não tivera uma conversa com ela.

No que fosse possível, sim, tudo seria feito conforme o costume grego. No banquete, comeram bolo de sementes de gergelim, prato nupcial grego, símbolo da fertilidade, enquanto um garoto grego nu servia pão aos convidados gregos, e pronunciava as palavras do ritual grego evitei o pior; escolhi o melhor.

No entanto, durante toda a cerimônia do casamento, as mãos de Eurídice ficaram tremendo, e tanto tremiam que foi somente com grande dificuldade que levou o bolo de sementes de gergelim à boca, e só no que pensava era escolhi o pior, escolhi o pior, e tudo o que desejava era retornar ao seu lar, em Pella, ao gynaikeion com sua mãe e suas aias; sentia falta das bonecas que fora forçada a dedicar ao Templo de Artêmis para marcar o término da sua infância e o começo de sua nova vida como esposa e, embora não o desejasse, a perspectiva de em breve se tornar mãe.

No casamento, é claro, houve dança, porque afinal se tratava de um casamento grego. Ptolomeu dançou sua costumeira dança elefantina; todos os gregos dançavam e arreganhavam os dentes; havia muita alegria e assim a festa prosseguiu, até que todos tivessem dançado, com exceção de Eurídice, até que alguém gritou a noiva de Ptolomeu não dançará para nós?

Eurídice, horrorizada, balançou a cabeça, recusando-se.

Porém, gritavam Dança! Dança! Dança! Dança!, até que Eurídice se levantou, sempre tremendo.

Ela sussurrou para Berenice não vou conseguir fazer isso... Mas, Berenice a cutucou de leve, empurrando-a à frente, com o cotovelo, e dizendo é necessário! É o que você deve fazer.

Os gregos assoviavam e rugiam. Haviam passado o dia inteiro bebendo vinho.

Eurídice deu um passo adiante. Ela se concentrou. Levantou os braços acima da cabeça. Rodopiou uma vez, duas. As gaitas e a lira elevaram-se, e os kitharistes dedilharam seus instrumentos, porém a música era muito rápida, rápida demais para Eurídice acompanhar o ritmo, e então ela parou, imobilizada.

Os homens quedaram-se silenciosos, olhando para ela, e agora não mais mostravam os dentes. Então, começou um lento bater de palmas. Eurídice baixou os braços e fugiu em disparada da sala, seguida pelas altas gargalhadas dos homens. A gargalhada não era indelicada, mas o fato é que os gregos riram dela. Até mesmo Ptolomeu riu e, a seguir, mandou Berenice trazer a noiva de volta.

Não se importe, Berenice disse mais tarde. Isso não é nada. Entretanto, Eurídice não podia evitar de dar importância ao episódio. Sentiu-se envergonhada, e sabia que ninguém esqueceria sua falta de jeito. Não era um bom começo.

Ao escurecer sobre Mênfis, o pai da noiva deveria, segundo a tradição, passar sua filha para as mãos do noivo; porém o Velho Antipatros estava distante, na Macedônia; assim sendo, foi Ptolomeu que levantou o véu vermelho do rosto da sua esposa para expô-lo ao moderadamente decepcionante aplauso dos amigos ali reunidos.

O rosto dessa esposa foi descoberto apenas quando os anéis de ouro já haviam sido trocados, e não havia volta para Ptolomeu — se bem que, na verdade, uma troca de sentimentos verdadeiros não fosse possível, pois a aliança tinha tal significação para ele que chegara ao ponto de prometer se casar com aquela mulher sem se dar ao trabalho de se assegurar qual era a sua aparência. - i

Sem dúvida, Ptolomeu não ficou radicalmente deprimido a respeito dos traços fisionômicos de Eurídice, mas se pegou pensando que essa esposa que tinha encomendado, e com quem havia prometido se casar sem nem ao menos tê-la visto previamente, era uma moça sem graça. Sim, faltava-lhe a glamourosa beleza de Thaís de Atenas. Realmente, comparada a Thaís, ele pensou, Eurídice era nada — uma mulher que não teria escolhido, não fosse o Destino e as exigências militares terem tornado aquela união uma necessidade absoluta.

Sua postura era serena, ele pensou, sem se dar conta dos tremores dela. Ela não sorri muito, pensou, e ele percebeu em uma ou duas ocasiões o olhar que vira certa vez numa louca. No entanto, assim mesmo, tomou Eurídice pela sua mão trêmula e ajudou-a a subir na carruagem que a levaria em procissão para a casa do sátrapa. Como já estavam na casa de Ptolomeu, deixaram-se conduzir pelas ruas de Mênfis num círculo, e retornaram ao ponto de partida; e Eurídice permaneceu todo o tempo agarrada à peneira e à grelha de bronze, símbolos das obrigações de dona-de-casa da esposa de todo grego, as quais, como esposa de um sátrapa, ela nunca teria de desempenhar, nem uma única vez sequer, pois seria o destino dessa mulher que fizessem tudo por ela, cuidando até mesmo de suas unhas das mãos e dos pés, e assim passar todo o resto da sua longa vida sem fazer nada.

Não aconteceu a procissão de parentes a cantar, acompanhando-a à luz das tochas, nem o pai do noivo apareceu, usando uma láurea, aguardando para saudar a carruagem, em sua chegada, nem a mãe do noivo segurando uma tocha flamejante — mas não parecia importar que em todas esses aspectos o costume grego fosse mudado, ou ignorado. Foi o próprio Ptolomeu quem deu as boas-vindas à esposa em sua residência, e seus amigos jogaram sobre ela a tradicional chuva de nozes e figos, quando ela cruzou as portas duplas de cedro e ouro, de modo que o seu rosto foi machucado e seus braços apareceram com marcas negras e roxas, e então ela pensou, isto é um mau presságio.

Uma vez ultrapassado o limiar da porta, foram servidos a Eurídice o bolo nupcial de sementes de gergelim, uma tâmara e um marmelo, símbolos de fertilidade. Ptolomeu conduziu-a pela mão ao quarto nupcial e bateu a porta atrás de si. Seu irmão, Menelau, ficou de guarda do lado de fora, e os convidados cantaram hinos nupciais, bem alto, para afugentar as más influências e abafar os gritos da noiva, quando Ptolomeu a jogasse no leito e fizesse o que todo marido deve fazer em sua noite de núpcias.

Já no princípio, Eurídice não gostou da coisa e, como nunca antes praticara tal ato, não tinha a menor idéia do que fazer, e era como se fosse uma das suas bonecas, com membros móveis, sim, porém fria, como uma peça feita de cerâmica, e rígida. Não, Eurídice não excitava Ptolomeu, não como Thaís costumava excitá-lo. Ela não despertou nele nenhuma grande paixão.

Simplesmente, mordeu os lábios e deixou Ptolomeu fazer o que bem entendesse. Manteve os olhos fechados e as mandíbulas se trancaram de modo a não permitir a entrada da língua do seu marido, pois ele cheirava a vinho e a verdade é que ela não queria que o cuspe dele lhe penetrasse na boca; estava um tanto enojada desse homem, que tinha quase a mesma idade do seu pai — 46 anos — enquanto ela era apenas uma garota de 15 anos.

Certamente, Eurídice não era Thaís e não se comportou da mesma maneira que Thaís. Eurídice nunca faria o amphiplix, envolvendo as suas pernas em torno do corpo dele para apertá-lo. Ela jamais montaria em Ptolomeu, na cama, como se ele fosse um cavalo, nem tocaria a língua no seu rhombos. Tais práticas não seriam apropriadas para uma esposa, e de todo modo desfavoráveis à concepção. Eurídice não era a prostituta mais famosa do mundo, e, claro, de uma esposa grega decente não se esperava provocar a excitação do marido grego, nem se permitir acrobacias semelhantes às de uma prostituta no leito nupcial.

Enquanto fazia amor, Eurídice raramente sorria. Nunca emitiria o canto lamuriento do rouxinol, como Thaís fazia. E nunca, em nenhum momento, demonstrava contentamento. Sua única obrigação era parir herdeiros legítimos, filhos que fossem bravos, nobres, filhos de grego, o mais velho dos quais seria, certamente, o sátrapa, sucedendo ao seu pai. O casamento de Eurídice era um ato político, um casamento dinástico, um arranjo comercial, e não tinha nada a ver com Eros, ou com amor, e o coração dela não batia mais rápido quando via Ptolomeu — nem então, nem nunca —, porém, quando muito, mergulhava em desânimo.

Quanto a Ptolomeu, vivia repetindo consigo mesmo uma prostituta é para amar; uma prostituta é para aphrodisia; uma esposa é para gerar filhos. Suas noites com Eurídice seriam sempre submissas e mecânicas. Pouco importava se ela lhe desse prazer, contanto que lhe desse um filho. É certo que Ptolomeu chamava a sua esposa de Pombinha, de Minha Pomba, de Patinho, como todo marido grego deve fazer, como qualquer outro marido grego fazia, mandava-lhe flores no dia do seu aniversário e tudo o mais; no entanto, mantinha as suas prostitutas, suas concubinas, às dúzias, como antes do casamento — seus punhados de mulheres da noite, sobre quem Eurídice não deveria saber, e pastoreadas por Lamia, sua rechonchuda e atraente Lamia, que mantinha uma casa cheia de belas garotas gregas, para as quais Eurídice fazia-se de cega.

De tempos em tempos, Ptolomeu olhava de modo mais pesado para Eurídice, pensando no irmão dela, o amante da paz, Alexarkhos, que fundara uma comunidade junto ao Monte Athos, na Grécia, à qual deu o nome de Ouranópolis, Cidade Paraíso, e para a qual se recolheu, abandonando o que chamou de loucura, o mundo louco das guerras, dos cercos, das intermináveis lutas — este irmão louco dela, Alexarkhos, que tinha renunciado à língua grega e inventara sua própria língua, e, segundo rumores que corriam, tinha se identificado com o Sol e até mesmo com o deus Hélios.

Deixar de falar o grego — bem, era a última coisa, então, que lhe faltava antes de virar um bárbaro. No entanto, Ptolomeu conseguiu afastar Alexarkhos do seu pensamento. Era a Eurídice que ele tinha desposado, não ao seu irmão; e até então a garota não dera demonstração nenhuma de loucura.

Eurídice, contudo, não era de modo algum semelhante a outras garotas. Tinha sido treinada por sua mãe a esconder os aspectos menos atrativos do seu caráter, de modo que Ptolomeu tinha de ignorar, por exemplo, que gostava de comer terra. Ele não sabia que Eurídice podia também falar ouronopolitano, ou que esta era apenas a linguagem infantil das crianças do Velho Antropatros.

Não, a loucura de Eurídice não se revelaria senão mais tarde.

Nesse casamento, então, não houve amor, pois nenhum grego ama sua esposa. O amor, ele o reservava para as suas concubinas. Apaixonar-se era, fosse qual fosse o caso, nada mais do que o último passo antes da loucura, pois significava a perda do autocontrole, e Ptolomeu não desejava, assim como nenhum outro grego, ser atingido pelas flechas de Eros. Essa sua esposa não passava de uma nova aquisição, e seu sentimento para com ela não ia muito além do que poderia sentir na compra de um novo par de sandálias.

Apesar disso tudo, Ptolomeu agiu como todo grego deve agir, ao possuir sua esposa ele usou o encantamento para manter a esposa fiel e, já que estava no Egito, usou também o encantamento similar egípcio, cortesia do sumo sacerdote de Ptah.

Ele atraiu o crocodilo para fora da lama do rio. Colocou a fera num pequeno caixão de chumbo. Gravou o nome de Poder e o nome de sua esposa, Eurídice, na tampa.

O crocodilo, assim, disse o sumo sacerdote, impediria qualquer amante de se aproximar dela e assim Eurídice estava condenada a ser fiel — a este homem que, sem a menor dúvida, não lhe tinha amor, nem então, nem nunca teria.

Quanto a Ptolomeu, este tinha a mesma liberdade de que gozava qualquer grego para ir à caça de outras mulheres, assim como de garotos bonitos, se os quisesse, e este era um comportamento normal para os gregos, embora diferente, bem diferente, da maneira dos egípcios.

O egípcio respeita sua esposa como a mãe dos seus filhos.

Para o egípcio nada há mais importante no mundo do que sua esposa, sua bem-amada, sua flor de lótus.

Eurídice era inocente, intocada e pura. Na verdade, era muito parecida com o animal trazido ao sacrifício, que deve ser perfeito em tudo, sem mácula. Eurídice fazia tudo o que lhe fosse requerido. Falava apenas quando falavam com ela. Suas respostas eram respeitosas. Tinha todos os motivos para vislumbrar a sua nova vida não com alegria, mas com medo, já que Berenice tinha impensadamente lhe contado inúmeras e horríveis histórias sobre os problemas que pode sofrer uma mulher na hora do parto.

Por um lado, Eurídice estava impregnada de certo orgulho por ter se tornado esposa de sátrapa; já por outro lado, sentia a esse respeito também um horrível desânimo. Sofria de freqüentes hesitações. Nunca sabia o que deveria dizer ao marido. E caía no choro constantemente por não estar em seu lar, na Macedônia, junto de sua mãe.

Berenice fazia o que podia, dando-lhe conselhos, e chegou mesmo a contratar um cômico, para tentar extrair um sorriso de Eurídice; mas o cômico declarou que aquele fora o trabalho mais difícil de toda a sua vida, já que Eurídice, de fato, não desejava sorrir, e apenas teve êxito em fazer Berenice e as servas soltarem gritos de alegria, enquanto Eurídice mantinha o rosto impassível. Talvez a verdade fosse que Eurídice não tivesse senso de humor, e sofresse de melancolia crônica.

Eurídice somente poderia contar com tia Berenice, e foi a Berenice que ela recorreu. Nas noites em que Ptolomeu não a procurava e ela acordava no escuro, aterrorizada com escorpiões e aranhas e serpentes venenosas e todas as demais coisas rastejantes que furtivamente atravessavam o assoalho do quarto, ela corria para a cama de Berenice, saltava para o leito junto dela e agarrava-se a ela pedindo proteção, lamentando-se aos soluços pela perda de sua vida sem atropelos, em Pella, na Macedônia.

Na manhã do casamento do sátrapa, o Velho Anemhor apresentou-se a Ptolomeu trajando suas pintas de leopardo, e lhe desejou tudo de bom em seu casamento, presenteando-o com uma taça de alabastro, peça do mais requintado artesanato egípcio, com duas asas e algumas palavras inscritas em hieróglifos egípcios. Ptolomeu perguntou o que os desenhos significavam e o Velho Anemhor respondeu-lhe

Ame a sua esposa ardentemente,

Alimente-a e vista-a.

Ungüentos perfumados são bons para o corpo dela.

Faça-a feliz todos os dias.

Ela é como um campo que traz benefício ao seu dono.

Ptolomeu sorriu o melhor dos seus sorrisos, exibindo os dentes, com os olhos brilhando. Expressou a Anemhor os seus melhores agradecimentos e mostrou a Eurídice a taça de alabastro. Porém, qual foi o pensamento de Ptolomeu? As palavras na taça eram tiradas da sabedoria egípcia, porém fizeram Ptolomeu pensar em arar a terra — algo que havia feito muito em Eordaia, quando garoto, antes mesmo de dirigir-se descalço para Pella. E Ptolomeu somente pensou na aragem em que ele próprio seria o arado, e a terra seria a sua esposa, Eurídice.

Que tristeza! A verdade é que Eurídice não era muito feliz no Egito.

No terceiro ano de satrapia de Ptolomeu, filho de Lagos, o filho do Velho Anemhor, que era chamado Eskedi, ou Jovem com Pintas de Leopardo, pelos gregos, então com a idade de 18 anos, casou-se com uma mulher chamada Neferrenpet, um nome que significa ”Bela é Isis”, e que os gregos, em sua estupidez, insistiam em chamar Rempnofris.

Neferrenpet era de fato uma belíssima jovem, apenas um pouco mais nova do que Eskedi, seu marido. Ela viveria para educar seus filhos e cuidar do lar deste jovem sacerdote, além de executar os seus deveres no Templo de Ptah, como instrumentista e sacerdotisa, como uma das que tocavam o chocalho sagrado, ou sistro, o qual afugentava dos domínios do deus todos os maus espíritos.

Diferente da jovem esposa grega do sátrapa, que era apenas um pouco mais velha, Neferrenpet sorria. Neferrenpet era feliz. Eskedi amava sua esposa ardentemente. Ele a presenteava com toda sorte de óleos perfumados. Ele a vestia e alimentava. Ele a fazia feliz todos os dias. Thot diz como era diferente o casamento deste marido e esposa egípcios do estranho casamento do sátrapa grego, de Ptolomeu e a lacrimosa Eurídice.

O amor de Eskedi por Neferrenpet, sua esposa, era tão verdadeiro e real como tinha sido o amor do Velho Anemhor pela mãe de Eskedi. O egípcio não tem vergonha de declarar amor por sua esposa. Não foge horrorizado do amor, como os gregos. De modo algum.

Assim que Eskedi pôs os olhos em Neferrenpet, desejou imediatamente torná-la sua esposa e implorou a Hathor, a deusa do Amor, que lhe concedesse a garota que escolhera. Sim, ela mesma, Hathor, a Vaca, a Senhora do Amor e da Alegria e Beleza, Hathor, a de puro Ouro.

Neferrenpet, por sua vez, implorou à deusa para escolhê-la como a noiva do seu amado.

Todos os dias, Eskedi enviava à garota flores de lótus, que simbolizam o amor, em sinal do seu amor por ela.

Ele chegou mesmo a postar-se debaixo da janela dela, em Mênfis, e a entoar as canções de amor dos egípcios „,

Teus cabelos são negros, mais negros do que a noite,

mais negros do que abrunbeiros.

Vermelhos são os teus lábios,

mais vermelhos do que contas de jaspe,

mais vermelhos do que tâmaras maduras.

Adoráveis são os teus seios gêmeos...

Havia prazer no coração de Eskedi, o escriba. Os lábios de sua amada ele comparava a um botão de lótus, seus braços a tenros galhos de árvores

O que diz a tomanzeira?

Minhas sementes são como teus dentes;

Minhas frutas são como teus seios.

Verdadeiramente, a felicidade de Eskedi e Neferrenpet não conhecia limites.

Ele chamava essa esposa de Botão de Lótus, e isso demonstrava sua grande afeição por ela. O marido egípcio não tem por hábito viver brigando e discutindo com a sua esposa, como fazem os gregos. De modo algum.

Nem, uma vez casado com ela, deixa de amá-la, mas se dirige a sua esposa falando poeticamente

Eu inalo o doce hálito que sai de tua boca...

E contemplo a tua beleza todos os dias.

É meu desejo ouvir a tua encantadora voz

como o bafejo do vento norte...

De fato, os pensamentos que Eskedi expressa a Neferrenpet não são meras palavras vazias. E, de fato, Ptolomeu não costumava declamar poemas para a sua nova esposa — não, nem sequer uma palavra pertencente a um poema. Ptolomeu era um guerreiro, e os seus pensamentos não se voltavam para o amor, mas para a guerra.

 

                       Febre do Pântano

Toda manhã, o sumo sacerdote Anemhor se apresentava perante Ptolomeu, na residência do sátrapa, envergando a pele de leopardo, com suas pintas, e iniciava o ritual de perguntas e respostas.

Como o sátrapa passou a noite?, perguntava.

Bem!, respondia Ptolomeu.

E a esposa do Sátrapa?

Igualmente bem, Ptolomeu respondia.

E as três crianças do sátrapa?

Igualmente bem, Ptolomeu respondia, como se soubesse a esse respeito.

E Menelau, o irmão?

Como uma serpente, respondia Ptolomeu.

E você viu algo em seus sonhos?, perguntava Anemhor.

E Ptolomeu descreveria seus sonhos, quando conseguia lembrá-los, e Anemhor, sempre de pé, refletiria um pouco, e lhe revelaria então o seu significado e sua importância, pois a interpretação dos sonhos era um dom especial de Anemhor. Assim, Ptolomeu sabia, ou pensava que soubesse, o que podia acontecer, talvez, no dia seguinte, e se capacitava a conhecer o futuro.

O sátrapa e o sumo sacerdote trocavam suas cortesias, mas Anemhor sabia que Ptolomeu não dormira bem. Em todos os aposentos da residência do sátrapa, sobre o chão de barro, sobre esteiras de papiro e sobre camas improvisadas, os gregos passavam a noite deitados semidespertos, imóveis, banhados de suor, ou irrequietos, revirando-se, escutando os exércitos da noite as aranhas e baratas, grilos e formigas, e todo o deslizar de invisíveis criaturas que furtivamente deixavam as fendas das paredes feitas de tijolos de barro e agarravam-se, coçavam, beliscavam e mordiam todos os homens, mulheres e crianças gregos, ao longo das horas de escuridão, incluindo Ptolomeu, de modo que era impossível dormir direito.

Menufert, Menufer, o Bom Lugar, que os gregos costumavam chamar Mênfis porque não podiam pronunciar qualquer palavra na língua dos egípcios. O que Mênfis significava para Ptolomeu?

Mênfis era a balança das Duas Terras, no ápice do Delta. Aqui, nesta que era a mais reverenciada das cidades, o bom deus Ptah e o Olho do Sol, HathorSeckmet, reinavam supremos — porém Ptolomeu nada enxergou disso. Enxergou apenas o lago em frente da cidade, e seu palácio, que ficava num ponto elevado. Enxergou o íbis e a cegonha sobre o Lago Sagrado, e viu o ouro empilhado na sua Casa do Tesouro. O Templo de Ptah, o Templo de Isis, o Templo de Rá — todos esses lugares eram proibidos para ele e não lhe significavam nada. Sobre os deuses do Egito, ele nada entendia. Não, nem uma palavra.

Muito, muito lentamente, Ptolomeu aprenderia a chamar os quarteirões e as ruas da cidade pelos seus nomes. Aprendeu quem é Rá, deus-sol, e quem é Hórus, o Falcão. Aprendeu que ísis, Senhora de Muitos Nomes, é a maior deusa entre todas. Ele mostrou o rosto em diferentes festivais da cidade e exibiu um pouco os dentes. Nunca esqueceria que era um estrangeiro, um usurpador, nem que os costumes do Egito não eram os seus costumes. Tudo ali era muito estranho para ele, no entanto, esse sátrapa era melhor do que o sátrapa dos Persas. Era melhor do que Kleomenes.

Cão Jônico, Anemhor por vezes o chamava, porém não na sua cara, e também não com qualquer sentido de malícia, pois não existia malícia no coração desse sacerdote. Cão grego que fosse para alguns, Ptolomeu tinha um coração generoso. Não se comprazia em ser desagradável.

Havia manhãs em que Anemhor não encontrava Ptolomeu no seu melhor estado de saúde, e ele exteriorizava sua preocupação, sua sincera preocupação pelo bem-estar do sátrapa. Entretanto, nessas manhãs, apesar de o sumo sacerdote se postar de pé diante dele, Ptolomeu não falava coisa alguma e apenas encarava o homem, de sua cadeira, ou de sua cama, embora incapaz de enxergar o rosto dele. Tudo o que via eram as pintas de leopardo rodopiando diante dele.

O primeiro sinal do retorno da febre seria sempre uma sensação de ansiedade que o assaltaria de repente e vinda do nada. Sim, ele pensaria, algum homem lançou essa maldição sobre mim, e a ansiedade era como se um mau espírito entrasse no seu corpo. Sentia então o entorpecimento, a fraqueza nos membros, e os pés pesados como blocos de pedra. Tudo o irritava, mas, acima de tudo, ele odiava a luz, as vozes de outras pessoas e o cheiro de Mênfis, todos os camelos a deterioração e a antigüidade bolorenta agora causavam-lhe repulsa.

Então, começavam os calafrios, e era um frio como o terrível frio penetrante do Paropamisos, e o choque do frio fazia-o engasgar. Ele tremia, debatia-se, e o tremor e as convulsões davam a impressão de estarem prestes a fazê-lo em pedaços. Tentando salvar-se, ele começaria a rezar, pedindo socorro aos deuses, a todos os deuses da Grécia, um após o outro Zeus, Apolo, Asclépios... e em seguida a todos os demais, porque o medo havia tomado conta dele.

De noite, por vezes era acometido de um fortíssimo surto de febre, sem aviso, e então se sentia como se os seus ossos ficassem incandescentes, em fogo, e então ficava deitado numa poça de seu próprio suor, zonzo, com náuseas, exaurido, incapaz de mexer sequer uma mão, nem um pé, sendo impossível para ele dormir; assim permanecia acordado, observando os lagartos verdes que cruzavam as paredes à luz da lanterna, e era como se ele fosse um homem privado de músculos, um homem sem ossos; a seguir ficava sem poder ler despachos por dias e dias, porque as letras viravam borrões, flutuando à deriva sobre os papiros, como se postas a balançar pelas ondas do mar.

O que poderia Anemhor, este grande médico, fazer por Ptolomeu durante seus surtos de febre, de frio, durante essa terrível sudorese e seus calafrios?

Anemhor simplesmente abria os braços, porque não havia, como ele anunciou, nenhum meio de combater esse mal.

E as pintas de leopardo embaçavam-se, rodopiavam e desapareciam, até a vez seguinte.

Quanto aos gregos, limitaram-se a lhe dar talismãs para que os usasse no pescoço e pulsos, ou para segurar na mão, já que remédios tradicionais eram praticamente inúteis em casos como o dele.

Vez por outra, Ptolomeu era induzido a comer coisas como corações de andorinhas com mel.

Comeu também esterco de andorinhas.

Consumiu uma andorinha inteira.

Comeu a pele de uma áspide, em pequenos pedaços, junto a quantidade igual de pimenta, que tinha a fama de curar os homens das tribos pártias. No entanto, essas coisas todas surtiram pouco efeito.

Ptolomeu recusou-se a experimentar apenas uma coisa que os médicos gregos sugeriram. Ele não comeu carne de corvo, porque o fazia sempre lembrar as tantas vezes que vira os olhos de homens mortos serem devorados por esses pássaros. Mesmo nas melhores ocasiões, escutaria o alarido dos corvos, e estremeceria, recordando. O sátrapa ficou para sempre com horror a corvos.

Havia dias em que seus médicos untariam os solados dos pés dele com o fluxo de menstruação de uma mulher, um remédio que, supostamente, funcionaria bem se fosse aplicado pela própria mulher, sem que o paciente tivesse conhecimento. Assim, Eurídice, sua esposa, colaborou no tratamento do marido.

Era mais freqüente untarem o corpo de Ptolomeu com gordura de rãs fervida em óleo onde três estradas se cruzassem, tendo a carne previamente sido jogada fora. Porém, na verdade, nenhum desses tratamentos o fizera melhorar significativamente. Os calafrios sempre voltavam, e a cada vez pareciam piores do que antes.

O que causava a febre de Ptolomeu? Os gregos diriam que era causada pela bile negra, e chamavam o estado de depressão de espírito que a acompanhava de melancolia.

Anemhor era um visitante assíduo. Expressava sua solidariedade ao sátrapa, nos momentos em que os calafrios mais o atormentavam. Havia ocasiões em que enviava os melhores remédios egípcios, que supostamente diminuiriam o tormento da febre; mas repetira vezes sem conta que nenhum homem conhecia a cura para as febres.

Assim, afinal, Anemhor, que, pessoalmente, não sofria daquele mal, simplesmente limitou-se a fazer a observação de que a contrariedade divina poderia se expressar como enfermidade. E então ensinou ao sátrapa um pouco do que ele deveria fazer para receber a aprovação divina. O sátrapa deve construir mais templos, ele disse. Deve fazer mais oferendas aos deuses. Deve oferecer sacrifícios maiores...

Na vez seguinte em que Anemhor apresentou-se, as pintas de leopardo não estavam borradas, porque a febre de Ptolomeu tinha passado, e ele viu que Anemhor carregava nos braços o modelo em gesso de um Pilono de templo, o pátio de entrada. O sumo sacerdote perguntou se Ptolomeu gostaria de fazer uma contribuição para levantar este edifício em Apolónoplis, já que o velho Pilono havia desmoronado nesse último terremoto.

Ptolomeu, com seus membros enfraquecidos, assentiu com a cabeça.

Na vez seguinte, Anemhor levou o modelo de um novo altar para o templo de Hermópolis, Cidade de Thot; e depois o modelo que ele mesmo projetara para uma nova galeria subterrânea para as íbis mumificadas; e ainda o modelo de um novo templo de Hórus inteiro para Apolonópolis, porque o antigo estava desmoronando.

Ptolomeu concordou em contribuir para o Pilono, para as galerias subterrâneas das íbis, mesmo sendo enormes e inacreditavelmente dispendiosas, e para o altar em Hermópolis. Quanto ao novo templo inteiro para Hórus, declarou que iria pensar no assunto e consultar o dioiketes, seu ministro das finanças, já que um novo templo completo era caro demais — dinheiro demais, ele disse, para um mero sátrapa.

Anemhor curvou-se e as pintas de leopardo desapareceram novamente.

É certo que Ptolomeu estava mais interessado no programa de obras de Alexandria, onde seu novo teatro grego, seu novo ginásio grego e sua nova agora grega foram projetados para tornar ainda mais glorioso o nome e Casa de Ptolomeu, filho de Lagos.

Anemhor, contudo, persistiu. Sabia que, ao fim de algum tempo, se continuasse pedindo, receberia o que desejava. Acreditava que não haveria nada que ele não conseguisse convencer este Ptolomeu a fazer por ele, caso perseverasse. Na verdade, Ptolomeu não estava tão seguro assim de sua satrapia que se permitisse dizer não repetidamente ao sumo sacerdote de Ptah em Mênfis — um homem que era o Grande Chefe do Martelo, o controlador de todos os artesãos do Egito; o homem que se gabava de ser capaz de obrigar o próprio Tempo a recuar; esse homem que podia transformar um sátrapa num rei e num faraó e num deus, tudo isso ainda em seu tempo de vida.

 

                         Comida de Crocodilo

Embora Ptolomeu tivesse agora a sua vida privada organizada mais ou menos do jeito que gostaria, também se preocupava com assuntos estrangeiros. Seguramente, Antipatros era seu aliado; porém, ter roubado o cadáver de Alexandre equivalia, de fato, a convidar Perdikkas a invadir o Egito e tomar de volta o caixão, caso se atrevesse a tanto.

E Perdikkas agora marchava para o Egito com o seu exército, porque desejava governar tudo à força, e porque queria ensinar a Ptolomeu uma lição; porém, acima de tudo, seu maior desejo era apossar-se do talismã representado pelo corpo do rei morto, o qual, como todos eles acreditavam, traria sorte a quem quer que o possuísse.

Perdikkas atravessou em marcha toda a Síria até Gaza, e depois cruzou o deserto, seguindo as Estradas de Hórus, penetrando no Egito, movendo-se com rapidez a fim de poupar água e rações, e o aviso dos vigias foi que seu exército era tão grandioso que não poderia ser batido em campo aberto.

Ptolomeu, ainda despreparado para lutar qualquer tipo de batalha, voltou-se, sobressaltado, para o sumo sacerdote de Mênfis, com receio de que precisasse mobilizar a milícia egípcia nativa, sobre a qual sabia apenas que detestavam a guerra, que não eram combatentes muito eficientes e eram bem capazes de dar meia-volta e fugir correndo dos inimigos.

Anemhor sorriu o seu misterioso meio sorriso, seu enfurecedor sorriso, e disse não é nada que mereça nossa preocupação... os deuses do Egito protegerão as Duas Terras e as livrarão do desastre... Tenha fé, ele disse, seja mais caridoso, aumente o volume dos sacrifícios.

Ptolomeu enviou trinta pares de gansos aos deuses, e elevou a contribuição para a construção do templo; sacrificou meia dúzia de bois; mas ainda assim guarneceu melhor os seus fortes na fronteira, equipando-os com todos os tipos de armamentos pesados gregos catapultas mecânicas, arremessadores de pedras, máquinas para impor cercos, entre outras, projetadas para lançar areia quente, imundícies quentes e flechas metálicas com o nome de Ptolomeu gravado na haste.

Perdikkas instalou seu acampamento de tendas de couro na margem oriental do Delta, à vista da fortaleza da fronteira de Pelúsia, e passou a noite em paz. Contudo, os vigias e espiões de Ptolomeu aproveitavam as horas de escuridão para passarem pelos soldados que guardavam o acampamento e oferecer subornos de mais de um talento a cada homem, de modo que muitos dos bravos soldados mercenários de Perdikkas se sentiram tentados a desertar do seu exército.

Esgotado pelo calor, o inimigo a seguir optou por marchar rumo ao sul, durante a noite inteira e a toda pressa, e ergueu novamente as suas tendas do lado oposto ao local chamado Forte de Camelos. No alvorecer, Perdikkas ordenou que sua tropa atravessasse o rio — os elefantes primeiro, depois os que portavam escudos, os carregadores das escadas, infantaria e cavalaria — com a intenção de tomar a fortaleza.

Quando Perdikkas se encontrava na metade da travessia do Nilo, Ptolomeu e seu exército surgiram a distância, com muita gritaria e toques de trombetas, e tomaram uma posição defensiva na fortaleza. Sem se intimidar, Perdikkas ergueu suas escadas de assalto, seus homens enxamearam as muralhas como formigas, e os soldados montados em elefantes puseram abaixo as paliçadas de madeira e arrasaram os parapeitos de tijolos de barro.

Ptolomeu, sozinho, sustentou-se na antefortificação, liderando os seus homens à frente deles, como é o dever de um general grego, e em tudo fazendo como Alexandre teria feito. Ele demonstrou enorme coragem, combatendo ousadamente a torrente de homens armados, muitos dos quais lançou no rio. Ele varou os olhos do elefante líder com a sua sarissa, lacerando a carne do indiano que o montava, com total desapego à sua segurança pessoal.

Quando se tornou escuro demais para se enxergar o que se estava fazendo, Perdikkas desistiu do cerco e retirou-se por aquela noite; porém, na noite seguinte, reuniu suas tropas e dirigiu-se, em marcha forçada, rumo sul, até Mênfis. Ali, o rio dividia-se em dois, formando uma ilha que Perdikkas considerou grande o bastante para lá erguer o seu acampamento, e nesse local planejou instalar o seu quartel-general, pois era seu propósito agora lançar um grande ataque sobre Ptolomeu na planície junto às Pirâmides.

Perdikkas, filho de Orontes, era um soldado hábil e experiente, um destacado general de Alexandre, mas tinha agora cometido um terrível equívoco, pois não havia como atravessar o rio nesse ponto exato, a não ser vadeando-o na parte mais rasa, já que ninguém seria capaz de atravessá-lo a nado envergando sua pesada armadura, nem tampouco carregando todo o equipamento necessário para a batalha. Perdikkas, no entanto, estava sendo castigado pelo calor, e sofria também do costumeiro desarranjo intestinal que vitimava todo aquele que visitava o Egito. Talvez por isso, pareceu ter esquecido todos os inteligentes truques de Alexandre, tais como pôr um exército inteiro para atravessar um rio flutuando sobre tendas de couro com enchimento de palha, ou construir uma ponte de barcos, ou fixar juntas várias balsas. Porém, para fazer justiça a Perdikkas, não havia palha disponível, nem madeira para balsas, e ele não tinha barcos — não, nenhum. Na ausência de idéia melhor, em seguida ele deu a ordem de vadear o rio, que entretanto já atingia a altura do queixo de um homem, e subia rapidamente, pois era época da cheia.

Os homens que iam na frente fizeram a travessia sem problemas, porém os elefantes agitaram tanto a lama do fundo do rio que os soldados que os seguiram não conseguiram mais firmar os pés e, assim, os homens restantes não conseguiram atravessar. O problema agora era que os soldados na margem mais distante não constituíam uma força suficiente, isolados, para enfrentarem Ptolomeu, e os soldados da margem mais próxima não puderam se reunir a eles para ajudá-los.

O que, então, fez Perdikkas?

Lamentavelmente, fez o que não deveria fazer, e foi a decisão mais estúpida de toda a sua vida, já que mudou a sua estratégia e ordenou, com gritos e sinais, aos homens que tinham atravessado o rio que retornassem.

Os nadadores mais fortes conseguiram enfrentar as águas, mas, para tanto, tiveram de descartar todo o seu equipamento. Já os nadadores mais fracos, os que não sabiam nadar e os veteranos ficaram em sérias dificuldades. Perdikkas, postado na margem mais próxima, ficou observando as cabeças de seus homens, centenas e milhares delas, lutando por manter-se à tona; quando ele viu o que estava acontecendo, escondeu o rosto nas mãos e chorou.

Os pobres nadadores foram carregados pela correnteza. Os que não nadavam afundaram e sumiram de vista. Alguns foram atirados na margem errada do rio e assim caíram nas mãos de Ptolomeu, porém mil homens morreram afogados e outros mil tiveram a infelicidade de servir de quitute para os crocodilos.

Os soldados de Ptolomeu, a salvo na margem ocidental, riram, zombaram, fizeram alegre algazarra, e cantaram o Paian da Vitória para Apolo, já que uma batalha ganha sem a necessidade de desferir um golpe sequer era a melhor vitória possível.

Alguns disseram que o sumo sacerdote de Mênfis tivera a presença de espírito de abrir as comportas de um canal mais acima no rio para fazer a água correr com maior abundância e rapidez, mas, qualquer que seja a verdade, o sumo sacerdote tinha motivos de sobra para sorrir, e o crocodilo, já o mais sagrado animal do Egito, viu-se mais cultuado e reverenciado do que nunca, Ptolomeu pescou do Nilo todos os membros decepados que pôde encontrar e lhes deu um sepultamento honroso, o que era dever de todo comandante grego. Por toda aquela noite, o acampamento de Perdikkas ressoou com as lamentações pela perda de tantos bons combatentes, e a raiva daqueles que sobreviveram ressoou também contra a incompetência do seu general. Antes do nascer do sol, na manhã seguinte, os oficiais mais graduados cercaram Perdikkas em sua tenda e o mataram a punhaladas. Depois, jogaram seu cadáver no Nilo para que esse sanguinário compartilhasse o mesmo destino da sua tropa perdida e servisse de desjejum aos crocodilos.

Quando Ptolomeu soube da notícia do assassinato, arreganhou os dentes num sorriso e socou o ar com seus punhos. Ao amanhecer, cruzou o rio na sua barcaça de sátrapa e entrou no acampamento do seu inimigo sob forte proteção. Ele passou em revista as depauperadas fileiras macedônias, cumprimentando muitos velhos amigos com lágrimas nos olhos, e amaldiçoou a perversidade do crocodilo e da insensata guerra de amigo contra amigo, travada apenas para satisfazer a ambição e ganância de um tirano como Perdikkas.

Ptolomeu chorou lágrimas de crocodilo, depois ofereceu para seus inimigos um desjejum grego completo, com mingau, salsicha, pão e vinho não diluído — e essa era a primeira refeição substancial que faziam desde que deixaram Gaza. Quando se fartaram de comer, prometeu dobrar-lhes o soldo se lutassem pelo Egito e por ele. Houve uma pausa, enquanto refletiam a respeito, mas logo as mãos começaram a se levantar, uma a uma, até que a mão do último homem estava erguida, e então ovacionaram o seu novo comandante, jurando fidelidade eterna a Ptolomeu, e todos arremessaram para o ar seus kausia, os elmos de feltro para proteção contra o sol.

Foi assim que a lamentação virou regozijo, e nenhum deles se regozijou tanto quanto Ptolomeu. Diferente do seu inimigo, Ptolomeu gozava da reputação de ser generoso e justo, e seu coração batia mais forte devido ao seu grande êxito.

Quanto a Anemhor, sumo sacerdote de Ptah, Grande Chefe do Martelo, que conhecia tudo do passado e tudo do futuro — o que ele pensou sobre tudo isso? Ele sabia o que ninguém mais sabia que nenhum exército estrangeiro poria os pés de novo em solo egípcio pelos próximos 150 anos.

Anemhor não se permitiu arreganhar os dentes, embora durante todo o tempo sustentasse aquele meio sorriso misterioso do homem que é Thot, em todos os aspectos.

O domínio dos gregos, pensou, seria bom para o Egito. A chegada desse estrangeiro não era o desastre que poderia ter sido. Sendo assim, apertou a mão do sátrapa, olhando-o nos olhos fixamente sem piscar, completamente inescrutável; e Ptolomeu sugeriu, sem que lhe pedissem, que poderia fazer mais um donativo ao Templo de Ptah, agradecendo aos deuses do Egito em geral, por sua ajuda, e a Sobek, o deus-crocodilo, em particular.

Sobek, o sumo sacerdote disse ele é o guardião do rio. Se devora um homem, é somente aquele que bem o merece. Sobek jamais devorará os que nada fizeram para merecer a morte. Um homem bom não precisa ter medo do crocodilo.

Sim, Ptolomeu fez grandes presentes então para o sorridente deus-crocodilo, cujos olhos sempre reluziam.

 

                   O Nascimento de Raio

Na animação pela vitória, Ptolomeu, o marido, voltou os seus pensamentos para a necessidade de gerar um herdeiro, pois embora Lagos, seu primogênito, fosse um bom filho, era opinião do pai que o filho de Thaís de Atenas não deveria sucedê-lo como sátrapa do Egito. Um garoto nascido plebeu não podia ser seu sucessor.

Ele percorreu, então, a obra de Aristóteles, pesquisando qual seria a estação mais apropriada. Perguntou aos seus adivinhos sobre as condições de tempo mais favoráveis. Consultou o Calendário Egípcio sobre os dias Afortunados e os Desafortunados.

Ordenou que Eurídice, sua esposa, comesse vitela assada, e ele próprio comeu folhas de rúcula, afrodisíacas, amarrou seu testículo esquerdo com corda de papiro, segundo o costume dos gregos, para aumentar a possibilidade de gerar um filho homem, e pôs mãos à obra.

Era o que de mais parecido com inverno acontecia no Egito o vento vinha do norte, e todos os augúrios, do vôo das abibes ao alinhamento do Planeta Vermelho nos céus, eram favoráveis, mais do que favoráveis, ou, pelo menos, Ptolomeu assim fora levado a pensar.

Eurídice passou seus nove meses de gravidez numa ansiosa espera, enviando oferendas para o santuário da deificada Helena de Tróia, em Pella, na Macedônia, pois todos os seus pensamentos se concentravam na certeza de que a criança que trazia no útero era abençoada pela deusa da Bela Aparência.

Por medida de segurança, Eurídice colocou-se sob a guarda da virginal Artêmis, deusa da Caça, deusa da Lua, a Senhora das Coisas Selvagens, que era também a protetora das jovens amantes, e lá ficava ela, sentada, dia após dia, contemplando a estátua de Artêmis que ficava no canto do seu quarto de dormir.

Eurídice teve o cuidado de fazer tudo certo, de acordo com os conselhos de tia Berenice. Uma vez por mês, ela comeu testículos de galo novo, para que a criança fosse do sexo masculino. Evitou levantar objetos pesados. Não corria nem pulava. Untava o corpo com óleo de íbis e gordura de ganso, para prevenir o aborto; encarregou Berenice de untar as partes das suas costas onde não podia alcançar, e ela não parava de falar sobre o filho perfeito, todo perfeito, que não parava de dar chutes dentro da sua barriga.

No oitavo mês, considerada a época mais perigosa, ela recolheu-se ao seu leito, sendo servida por eunucos negros, que traziam todos os alimentos que desejava azeitonas pretas, passas de uva, ameixas, tâmaras — todas as frutas pretas. E mantinha junto de si um suprimento de terra negra num saco de pele de gazela.

A criança de Eurídice foi realmente um garoto, um garoto muito bonito, que não podia ser chamado por outro nome que não fosse Ptolomaios. Entretanto, veio ao mundo com os pés à frente, no dia mais desfavorável do calendário, e no meio de uma tempestade, e até mesmo Eurídice sabia que esses eram os piores augúrios possíveis. O novo Ptolomeu logo ganhou um apelido, pois o chamavam de Keraunos, Raio, querendo dizer que era bom presságio ter nascido sob a égide da atividade de Zeus. Sim, era um nome que se ajustava bem, muito bem, ao garoto, porque significava o poder de Zeus.

Pois sim, o sátrapa tinha se decidido, é claro, a reconhecer e criar esse filho, a despeito dos maus augúrios, pois não havia como não fazer isso, segundo o costume dos gregos, em se tratando de um filho legítimo. Ptolomeu não deu importância ao fato de os olhos do filho serem um pouco juntos demais. Ignorou, na ocasião, o fato indubitável de que um bebê que nascera na posição invertida, com os pés à frente, estivesse fadado a uma vida obscura e calamitosa, e estava deliciado com esse seu filho, a não ser por uma coisa que Ptolomeu Keraunos não tivesse os cabelos louros de seu pai, nem tampouco os cabelos louros de sua mãe, porém o cabelo escuro de um estrangeiro.

Como poderiam dois pais de cabelos louros gerarem um filho de cabelos escuros? Era um mistério para todo mundo menos para Berenice, que sabia havia muito que Eurídice comia terra, e que a dieta negra poderia influenciar a cor dos cabelos de uma criança. Mas ela não contou isso a ninguém, nem uma palavra. Assim, teria Berenice vislumbrado tal resultado? Seria esta criança morena o produto da intrusão de Berenice? Alguém, nos dias vindouros, levantaria essa suspeita.

Após o nascimento, Eurídice submeteu-se aos prescritos rituais gregos de purificação. Banhou-se com água do mar trazida de Alexandria. Sujeitou-se a ser lambuzada com o sangue de um leitão. E a residência do sátrapa foi fumegada de cima a baixo por incenso e enxofre.

Antes de Ptolomeu Keraunos, o Raio, completar um mês de idade, o sátrapa pediu ao sumo sacerdote de Mênfis que fizesse o horóscopo da criança, de acordo com as observações dos vigias de estrelas egípcios, pois desejava, como qualquer outro grego, e mais do que qualquer outra coisa, saber o que lhe reservava o futuro.

Entretanto, o horóscopo de Ptolomeu Keraunos foi tão nefando que Anemhor não se atreveu a contar a verdade ao sátrapa que esse garoto nascera não apenas desafortunado, mas três vezes desafortunado; que ele seria vítima de uma morte prematura, numa terra estrangeira; e que era indubitavelmente seu destino ser comida de cães.

A má sorte de Ptolomeu, o Raio, começou imediatamente, já que a mãe não queria nem tocar na criança. Eurídice rejeitava o desconforto de amamentála e o entregava à ama-de-leite, uma grega escolhida por seu bom caráter e pela boa qualidade do seu leite, que tanto Ptolomeu como Eurídice aprovaram, pois ambos o experimentaram.

Keraunos foi então amarrado a uma prancha, com as pernas e os braços presos por ataduras, segundo o costume dos gregos, assim como a cabeça e o corpo; e as bandagens foram apertadas com firmeza para que ele crescesse com os membros retos. Os pais então passaram os sessenta dias seguintes ouvindo, mas não escutando, os seus uivos distantes, e o resultado de tudo isto foi que ele cresceu zangado.

A ama precisou pôr sua marca num contrato de dois anos de amamentação, e ler em voz alta os termos Juro amamentar Ptolomeu com o leite de ambos os meus seios. Juro que não beberei vinho. Juro que não levarei essa criança para o meu leito...

A Keraunos nada era negado. Quando quer que chorasse, a ama o pegava. Quando quer que estivesse com fome, ela enfiaria suas tithos na boca do bebê. Em tudo, ela permitiria à criança fazer o que bem entendesse, pois ele era filho e herdeiro de um sátrapa. Ela não lhe ensinava a diferença entre o Certo e o Errado. Não ensinava a esse garoto nada que se referisse ao que ele deveria ou não fazer. E o resultado foi que comentassem em voz baixa, nos anos futuros, que Ptolomeu Keraunos foi estragado por sua própria ama.

Na prisão de suas bandagens, os gritos dessa criança soavam como nada menos do que os estalos dos pinheiros — o que era estranho, já que não havia pinheiros em Mênfis, nem uma sequer dessas árvores, mas somente as palmeiras do Egito que tartamudeavam ao hálito morno do vento norte, ou se dobravam sob a tempestade de areia que era despejada pelo deserto.

A ama, contudo, não se deixava enganar. Ele tem os pinheiros da Grécia em seu sangue, ela murmurava, vai crescer e se tornar um homem feroz, um grande guerreiro, e, como se para provar que ela tinha razão, a criança pegou o hábito de mordê-la, de modo que ela também deu de gritar.

A medida que Keraunos crescia, mordia mais forte, e ela o beliscava para fazê-lo parar, porém, quando o beliscava, a criança mordia com ainda mais força.

Quando Keraunos cresceu mais, começou a fazer coisas piores do que morder. A ama queixou-se ao sátrapa, mas o sátrapa apenas sorriu, e nada fez a respeito. Ele tinha todos os problemas do Egito ocupando-lhe a cabeça, e não dispunha de tempo para os problemas da família. Em todo caso, ser belicoso era exatamente o que se esperava que um Ptolomeu se tornasse, e ele não desejava que um filho fosse diferente. Não queria que Keraunos crescesse desejando usar as roupas de sua mãe. Não queria que Keraunos se transformasse num outro Alexandre, mas que ele se tornasse um homem de verdade, interessado na guerra, nas artes do cerco a cidades, na prática da espada, na violência, pois Ptolomeu nunca esqueceria os choramingos de Alexandre sobre Hefaistion morto, um espetáculo que foi uma desgraça para a Macedônia.

É certo que a ama também queria que Keraunos fosse um guerreiro, e quando os seus lábios começavam a se enrugar, e a criança parecia prestes a chorar, a ama grega sacudia essa criança sob seus cuidados e lhe dizia Héracles nunca chorou. Então, Keraunos fungava e controlava suas emoções, e seus lábios mantinham-se firmes. Desde muito novo, ele já demonstrava vontade de ser um novo Héracles, um guerreiro e um herói. Tinha vontade de ser um general à altura de um Alexandre. E desde a mais tenra idade, já desejava também ser o sátrapa do Egito, como seu ilustre e muito ilustre pai.

Durante 2.190 dias e noites, Ptolomeu Keraunos sugou o leite impuro e contaminado de sua ama beberrona, e bebeu, junto com esse leite, assim diziam, do seu mau caráter, mas os pais só descobriram isso tarde demais.

Uma prostituta, Ptolomeu acusou-a, quando a flagraram beijando o Capitão da Guarda Residencial. Em nada melhor, ele acrescentou, do que a leitoa que rola sobre seus filhotes, pois a pegaram dormindo por cima dele, quase esmagando-o, assim como encontraram o seu suprimento particular de vinho e de booza, a cerveja dos egípcios.

Eurídice, que nada sabia sobre como educar crianças, raramente punha os pés naquela parte do gynaikeon reservado para a educação das crianças, e Ptolomeu — este se restringia aos espaços privativos dos homens na residência.

Então, expulsaram a ama de Mênfis sem lhe pagar as 170 dracmas de ouro ou os 32 kotylai de óleo que lhe deviam.

Para falar a verdade, faz bem, por vezes muito bem, culpar os outros no lugar de a si mesmo.

Ligeiro propagaram-se os rumores de que a ama repudiada deixara o Egito esbravejando a sua raiva, e que ela amaldiçoara a criança e a todos de sua casa, até a décima segunda geração. Verdade ou mentira, alguns comentariam que a família de Ptolomeu parecia mesmo viver sob as mais terríveis maldições. Outros viam coisas diferentes, e afirmavam que a Casa de Ptolomeu era abençoada pelos deuses da Grécia, cumulada de benefícios, e que riqueza e poder eram tudo o que valia a pena. Porém, certamente, no longo percurso dos acontecimentos, do que a Casa de Ptolomeu carecia era de felicidade. Sim, na verdade parecia que tivessem sido amaldiçoados para o resto da vida com a maldição da infelicidade, porém, na ocasião, nada sabiam a esse respeito.

Ptolomeu Keraunos, logo que aprendeu a ficar de pé, começou a quebrar coisas copos, jarros de cerâmica, cadeiras de ébano e de marfim — objetos egípcios aos quais seus pais não davam o devido valor, e por isso não fizeram nada para discipliná-lo. Talvez não ficasse quebrando coisas de propósito, a princípio; porém, ninguém poderia dizer que o garoto não sentia prazer com o barulho do vidro se partindo no piso de mosaico, ou que estilhaçar uma vasilha não lhe desse satisfação.

Na verdade, Keraunos cresceu tão turbulento que alguns poderiam pensar que ele fosse quase a imagem viva de Seth, o deus egípcio que encarna a desordem e o caos.

Logo que aprendeu a correr, Keraunos começou a arremeter-se por toda a residência com o ímpeto de uma miniatura de centauro, e os amigos de seu pai achavam tudo muito engraçado, porque ele deveria ser o sucessor de Ptolomeu, como sátrapa. Keraunos começou a matar coisas moscas e abelhas, de início; depois, escorpiões e as baratas alaranjadas gigantes que invadiam a residência. Alguns dirigiam elogios a Keraunos por livrar a casa dessas criaturas indesejáveis, tão prejudiciais. Porém, à medida que o garoto crescia, as suas vítimas iam igualmente ficando maiores. Quando Keraunos estrangulou um dos gatos da residência, seu pai bateu nele, vociferando que se um único egípcio tomasse conhecimento do que ele tinha feito, isso provocaria uma revolução nas Duas Terras, pois o gato para os egípcios era o mais sagrado dos animais.

Keraunos já era crescido o bastante para dar de ombros, mas não entendia o significado do Errado. Ninguém se dera ao trabalho de lhe ensinar que o gato era sagrado. Tinha sido criado por gregos e somente por gregos, aprendendo os costumes gregos e sobre deuses gregos, e coisas egípcias não foram trazidas à sua mente.

Foi assim que as sementes dos problemas foram plantadas, e Ptolomeu Keraunos continuaria sendo o que sempre foi, exceto que, à medida que o tempo passava, ia ficando pior. O sátrapa não tinha tempo a perder com filhos — a menos que algum mau procedimento muito grave chegasse aos seus ouvidos, quando, então, puniria, ou surraria, ou ficaria andando de um lado para o outro, no assoalho em mosaico, esbravejando; assim Ptolomeu, o filho, veio a identificar Ptolomeu, o pai, com castigo. O lado bondoso do sátrapa, esse garoto raramente via, de forma que se formou, na verdade, desde o início, uma distância entre o sátrapa e Keraunos que só tenderia a aumentar. Quando a sua educação começou a sério, aos treze anos, Keraunos somente veria seu pai quando tivesse feito alguma coisa errada, ou tivesse se metido em problemas. O pai sempre lhe dizia Faça o possível para ser um bom garoto, e reze para os deuses para ter boa sorte.

Porém Keraunos não queria ser bom. Achava que orações eram perda de tempo.

Aqueles que conheciam Ptolomeu, o Raio, melhor do que o pai olhavam para o garoto, balançavam as cabeças e comentavam que ele se entregaria cada vez mais à maldade.

E, sim, foi isso que os horoscopistas haviam previsto no seu nascimento, e ficaria demonstrado que os horoscopistas estavam corretos em suas previsões.

Quanto a Eurídice, sua mãe, não conhecia o sátrapa muito melhor do que o filho, porque Ptolomeu passava todos os dias da sua vida no Salão de Audiências, conferenciando com os seus ministros, ou com Anemhor, ou lendo os despachos dos seus agentes estrangeiros. Ele jantaria ou promoveria festins com seus generais e almirantes, sempre distante de Eurídice, cujo lugar era o gynaikeion, com suas aias, e ele dormia, quando dormia, no andron, a parte dos homens na residência, ou com alguma de suas numerosas concubinas. Ptolomeu era por demais ocupado com a administração de sua satrapia para dar suficiente atenção às necessidades de sua esposa.

Somente visitava Eurídice para a semeadura de crianças, como se ela não passasse de uma máquina de procriar. E, se bem que não fosse indelicado, era um grego, comportava-se como um grego e tratava a sua mulher como uma esposa grega nenhuma palavra escapava dos seus lábios, apenas grunhidos e suspiros emitidos durante a semeadura. Não, de um grego não se espera que ame sua mulher, ou que se dirija a ela com palavras ternas como faz o egípcio. Por vezes, Ptolomeu lembrava-se de chamar a sua mulher de Pomba ou Pombinha, porém, ele era um soldado, acostumado a passar seus dias com homens. Todos os seus pensamentos e conversas voltavam-se para armamentos, combates, navios de guerra, suprimento de milho, equilíbrio do poder e o balanço de pagamentos, e a força militar e fraquezas dos outros sucessores — coisas de que Eurídice não tinha noção.

Na verdade, Ptolomeu tinha pouco a dizer a qualquer mulher e, por seu lado, Eurídice não sabia o que dizer para o seu homem. Quando a necessidade exigia que eles se falassem, Ptolomeu enviava um mensageiro, e porque Eurídice não sabia nem ler nem escrever, Berenice transmitiria a ela o que Ptolomeu mandara dizer. Em resposta, Eurídice enviaria uma mensagem com Berenice, que assim começou a ter mais contato com o sátrapa do que a sua esposa.

No gynaikeion, Eurídice não se dedicava ao trabalho feminino de mulheres de roca e no tear, embora fosse mais do que habituada a produzir as mais finas tapeçarias e tivesse sido criada para entender a agulha como se fosse isso toda a sua vida. Não, ela era a esposa de um sátrapa, agora, e se julgava acima do trabalho de agulha. Era a sua aia, conduzida por Berenice, que trabalhava no tear e na fabricação de fios, que tecia a lã e costurava as peças de roupas; a dona da casa nada fazia senão olhar e criticar. Não, Eurídice não tinha sequer aprendido o alpha beta. Não podia dedicar o seu tempo à leitura. Conhecia apenas o difícil trabalho de fazer nada, suas mãos eram vazias, trêmulas, e não sabia o que fazer com elas. Vivera uma vida de ociosidade forçada que ela mesma se impôs, por conta de sua vaidade.

É certo que a Eurídice não faltava encanto, mas ela se esquivava quando o seu marido a tocava. Ptolomeu se satisfazia com o meio sorriso que ostentava vez por outra. Agradava-lhe o seu jeito modesto, de olhos abaixados, olhos que se assemelhavam a azeitonas pretas, muito brilhantes. Para dizer a verdade, esse marido e essa esposa não tinham nada a dizer um ao outro. Não, nem sequer uma única palavra.

Aconteceu que o filho mais velho de Eskedi, filho do Velho Anemhor e de Neferrenpet, sua esposa, e Ptolomeu Keraunos nasceram na mesma época, e Mênfis foi tomada de alegria, pois era o primeiro neto do Velho Anemhor.

Quando essa criança nasceu, as mulheres o seguraram de cabeça para baixo pelos tornozelos, segundo o costume, e pronunciaram as sábias palavras das mulheres sobre o seu destino.

Se ele chora ni, viverá Se ele chorar ba, morrerá.

Esta criança chorou ni, e não morreu, e foi amamentada no seio materno, e cresceu em estatura dia após dia; e ninguém teve a idéia de entregar o filho de Neferrenpet a uma ama-de-leite, porque a própria mãe o amamentou, como qualquer outra mãe egípcia.

A esse filho, chamaram de vários diferentes nomes. Algumas vezes o chamavam de Nesqed, outras, de Nesisty, algumas vezes de Esisout, mas o nome que usavam com maior freqüência era Padibastet.

Padibastet ele ficou sendo, e não parou de chorar ni. Quando o pai encomendou o horóscopo de seu filho, soube que o seu destino seria viver 66 anos, quatro meses e cinco dias.

Era tempo bastante, ele pensou. Uma boa vida. Nem muito longa nem muito curta.

 

                   Meio Milhão de íbis

Ptolomeu fazia muitas perguntas sobre os egípcios e, em determinado momento, o governo do Egito pareceu-lhe, sim, estar sob seu controle. Ele dispunha de sensatos homens de confiança em todos os departamentos do governo — para os negócio do Rio, da cidade, negócios externos e também, é claro, para os negócios de guerra.

Querendo saber de seus conselheiros egípcios, os sumos sacerdotes, sobre a frota, indagou quantos navios de guerra? Quantos marinheiros? E deparou-se então com um mar de rostos perplexos, como se os sumos sacerdotes do Egito não tivessem respostas para perguntas daquele teor.

Ptolomeu perguntou novamente, mais alto quantos vasos de guerra? Talvez, pensou ele, não o tivessem entendido direito, ou tivesse sido maltraduzido. Porém, não, os egípcios ficaram imóveis, sentados, ao redor dele. Ptolomeu escutou o alarido dos babuínos, o chilrear de pássaros engaiolados, o grasnido do psittakoi que trouxera da índia.

Finalmente o sumo sacerdote de Heliópolis lhe disse Excelência, não existe nenhuma frota. Não há navios de guerra. Não temos tradição de batalhas no mar.

Ptolomeu coçou a cabeça sob o seu kausia.

Somos péssimos marinheiros, o sumo sacerdote acrescentou. Os egípcios odeiam o mar. Não temos nenhum deus do mar, nenhum equivalente para o seu Poseidon. E o que dizia a Ptolomeu era a verdade os egípcios preferem ficar em casa com suas esposas e filhos, com seus animais no campo, não tendo necessidade de viajar para o estrangeiro a não ser para transações comerciais.

Os egípcios são navegadores do rio, Excelência, disse o sumo sacerdote. Realmente, o Grande Mar — não gostamos de navegar sobre ele...

Ptolomeu franziu o cenho, por falta de palavras, e então desviou a conversa para outros assuntos, mas enviou mensagens para almirantes gregos e para os construtores de navios de guerra gregos com ordem para virem correndo.

Durante algum tempo, posteriormente, a falta de navios de guerra egípcios motivou muitas pilhérias e, para Ptolomeu, dizer Mande a frota! veio a significar Não faça nada. Na residência em Mênfis, Ptolomeu e seus amigos gregos riam às gargalhadas toda vez que se mencionavam os navios de guerra egípcios.

Ptolomeu não fez nada sobre o assunto. Havia herdado a melhor parte da frota de Alexandre, e armou para o Egito uma frota onde antes nenhuma existira. Ele a usaria em todas as batalhas que lutou pelo Egito. Estenderia para longe as fronteiras do Egito em todas as direções. Defenderia a costa marítima do Egito com a selvageria até mesmo de Sekhmet, a deusa-leoa. Ptolomeu jurou que seria assim.

Em verdade, nada havia de bom que Ptolomeu não prometesse fazer em nome do Egito. Em verdade, esse Ptolomeu seria o grande amigo do Egito.

Essa frota de Ptolomeu era, seguramente, naquele momento, da mais alta importância e urgência, já que o seu grande inimigo, Antígonos Monophtalmos, o Caolho, acumulava um conhecimento de primeira classe como homem do mar, e seu filho, Demétrio Poliorketes, o sitiador de cidades, era um brilhante mestre do mar, sem rival nos seus projetos de navios de guerra, os mais modernos do gênero. Esses dois, pai e filho, tinham se juntado para se pôr em pé de igualdade com os navios de Ptolomeu e derrotá-lo. E foi nessa ocasião que se iniciou a grande corrida para se construírem navios cada vez maiores e melhores; gigantes galeras de guerra com três bancos de remos, alguns de dois conveses, porém, sempre, cada vez mais e mais compridos, e com tripulação cada vez maior, até que alguns desses navios chegaram a necessitar de mais de mil homens para navegá-los.

Sim, não foi muito tempo depois de Ptolomeu chegar a Mênfis que o Caolho lançou o seu hepteres, um sete, que era uma referência ao comprimento, não ao número de bancos de remos, já que num navio com sete bancos de remos, um acima outro, seria impossível de se remar.

Nos dez anos seguintes, Demétrio, o filho, construiria um okteres, um oito, assim como o enneres, o dekkeres, e o hendekeres — o nove, o dez e o onze, e logo acrescentaria um triskaidekeres, um treze, a sua frota de navios — navios tão grandes que somente com muita dificuldade podiam ser manobrados na água; porém, a despeito de serem vagarosos, tinham grande poder de combate, munidos com pesados aríetes de ferro nas proas, muito úteis para esmagar em pedaços outros navios...

De tempos em tempos, o Velho Anemhor insistia com Ptolomeu para que ele fizesse uma viagem rio acima, a fim de verificar o progresso da construção do templo que havia financiado, com aplicação das rendas provenientes de impostos, e também para ver o que ainda podia ser feito.

Ptolomeu não apreciava o calor da parte superior do rio, e a possibilidade de enfrentar hostilidades e doenças, mas acabou indo, em um dos seus menores navios a remo, e com ele seguiu um destacamento de soldados, grande o suficiente para protegê-lo de qualquer rebelião, porém não tanto que pudessem causar constrangimento à população nativa.

Em Crocodilópolis, dedicou as oferendas de praxe a Sobek, o deus-crocodilo. Em Heracleopólis, fez sacrifício em honra a Herácles. Em Kynópolis, dedicou oferendas ao Cão Anúbis dos egípcios, e seguiu em frente, com o calor tornando-se cada vez mais intenso.

Em Hermópolis, observou que o íbis batia com as asas e empoleirava-se por todo lugar na cidade, caçando carniça nos açougues, preferindo sempre habitar o lixo e a podridão, deixando a sua marca em todas as ruas. O íbis, que alguns acusam de ser um pássaro sujo e repugnante, que vive na imundície, que adora a imundície, e enfia o seu bico em qualquer coisa, não importa o quanto seja repulsiva. Porém, o íbis é Thot, e é a encarnação de Thot, um pássaro sagrado, o faxineiro das ruas, o comedor de serpentes, e o íbis também recebeu uma oferenda de Ptolomeu.

Anemhor disse-lhe estes pássaros embalsamados têm a capacidade de transmitir as orações dos peregrinos devotos que os trouxeram, que desejam suplicar algo ao deus Thot, ou agradecer-lhe por favores obtidos.

Ptolomeu não pôde evitar a cara de nojo.

O pássaro, Anemhor disse, prove acesso direto ao deus.

Ah, sim, ele fez perguntas sobre os íbis, que vivem no Lago do Faraó em Hermópolis, ao longo do dique da cidade consagrado a Thot, deus dos escribas, o deus da Sabedoria. Ele fez perguntas sobre o íbis quantos? E perguntou por que eles os matam?

E o sumo sacerdote de Thot, cujo título é o Grande dos Cinco, lhe disse vinte e nove íbis por dia; 290 íbis por semana, 870 por mês, 10.440 íbis mumificados por ano.

Ao que Ptolomeu observou são muitos ibises. E perguntou mas porquê?

Oferendas a Thot, o sumo sacerdote respondeu, Thot, o Grande Deus.

No total, considerando todo o tempo de Ptolomeu no Egito, até a sua morte, uns quinhentos mil ibises seriam estrangulados, ou afogados, destripados e embalsamados, enrolados em milhões de estádios de faixas do mais fino linho, e enfiados em potes de louça de cerâmica nas galerias subterrâneas de íbis, em Hermópolis — Cidade de Hermes, Cidade de Thot — que se estendiam por centenas de estádios por baixo da superfície do deserto.

Ptolomeu aprendeu muito sobre o íbis na sua visita a Hermópolis aprendeu que os intestinos de um simples íbis, se esticados, mediriam 96 cúbitos de comprimento.

Kataplektikos, ele disse, Assombroso, e aspirou aquele cheiro, o nauseante fedor de pássaros deteriorados, e passou mal do estômago durante sete dias.

A viagem no navio prosseguiu rumo a Licópolis, Cidade do Lobo, e depois para Coptos, Cidade de Min, o Pan dos gregos, e dali para Dióspolis, a Tebas Egícia, que foi a Cidade de Amun, e para Hieraconpolis, Cidade do Falcão, Hórus.

Em Apolonópolis, lhe disseram que era o costume de todo cidadão comer da carne do crocodilo, e até Ptolomeu comeu bife de crocodilo na cidade de Apolo, deus dos Felizes Desembarques, e fez sacrifícios em honra de Apolo, que sabe quantos são os grãos da areia e quais são as medidas do mar — Apolo, que, graças ao seu divino conhecimento dirá a um homem, quando este estiver inseguro, quando estiver ansioso, o que fazer; Apolo, o deus que conhece as regras dos complexos jogos que os deuses da Grécia jogam com homens; Apolo, o supremo alexikakos, ou obstrutor do demônio.

Porque não, nenhum grego poderia viver sem acreditar nos Oráculos de Apolo, nem mesmo o sátrapa ptolomaico, e ele consultou o deus, ali, e comeu carne de crocodilo em excesso, e ficou doente do estômago por dez dias.

No entanto, prosseguiu em frente, visitando as treze fortalezas que existem entre Elefantine e Semna, no extremo sudeste da Segunda Catarata — seu nome grego — fortalezas com nomes tais como Repelindo as Tribos e Detendo o Deserto, vastas estruturas com grossas muralhas de tijolos de barro.

Ptolomeu fez até mesmo a excursão ao País do Ouro, navegando rio acima, passando pelas tamareiras, pelas mimosas, pelas bananeiras de folhas largas, pelos oleandros e limoeiros, à sombra dos quais corriam os besouros dourados que são a encarnação do deus Khepera, o Besouro de Rá. E no intenso calor, ele adoeceu.

Teve sob seus olhos a ilha de Filai, onde os sacerdotes do Egito planejavam construir grandes templos novos, muitos, muitos templos, mas onde, na época, não havia quase nada construído. Ptolomeu contemplou o lugar, pensou nos custos e disse mais tarde, mais tarde. Então desceu o rio em curtos trajetos, parando para visitar os templos dos egípcios, todos construídos com pedras amarelas, todos com pinturas em cores brilhantes representando os deuses do Egito e, onde quer que se detivesse, somente lhe permitiam ver pouco mais do que as fachadas, e calçar suas sandálias pouco além do Primeiro Pilono, e então deveria parar no local onde o sumo sacerdote o convidava a fazer seus donativos de muitas e muitas dracmas, o que ele fazia, de fato, de modo que o seu navio retornou muito mais leve do que quando tinha partido. Cada coisa ele tinha de fazer como sempre fora feito, foi o que lhe disseram. Deveria seguir o costume, a tradição, pois tudo no Egito deveria continuar sendo exatamente como sempre fora. Como se não houvesse, jamais, mudança alguma.

Ptolomeu aprendeu que a duração total da excursão por toda a extensão do Egito era de 14 dias, seguindo o Rio, sem paradas, e a do Grande Mar, o Mar Interior, o Mar de Osíris até Tebas era de, exatamente, 3686 estádios. Ptolomeu estava sempre aprendendo alguma coisa nova; no entanto nunca lhe permitiam aprender tudo. Foi a maneira como os sumos sacerdotes procuraram manter esse homem, mesmo ele sendo o sátrapa, sob seu controle.

 

                 Falsos Deuses e Serpentes da Sorte

De volta ao seu lar, em Mênfis, Ptolomeu buscou o frescor dos depósitos de sua residência, onde, entre os trastes abandonados dos faraós, encontrou por acaso o grande sarcófago de granito cor-de-rosa de Sirene, o qual, segundo lhe disse o Velho Anemhor, fora feito para aquele Nakhthoreb a quem os gregos chamavam de Nektanebo II, o último faraó dos egípcios, que fora deposto pelo odioso persa. Porém Nektanebo não tinha sido sepultado em seu sarcófago porque não tinha morrido no Egito. Havia fugido do país, ou lhe permitiram que fugisse.

Ptolomeu perguntou a Anemhor, então onde está agora esse Nektanebo?

O sumo sacerdote abriu os braços. Era uma das suas perguntas que não teria resposta.

Ele está morto? Ele está vivo? Ptolomeu indagou, imaginando quando o Faraó deposto poderia reaparecer, e se iria se tornar seu inimigo — mais um inimigo —, e se Anemhor estaria trabalhando para que fosse reempossado.

O sumo sacerdote franziu os lábios e cravou seus olhos nos olhos de Ptolomeu. Ao mesmo tempo ele sabia e não sabia onde estava aquele Rei do Egito, que um dia podia voltar para ocupar o trono de seus ancestrais uma vez mais.

Um sarcófago como esse, Ptolomeu murmurou, serviria bem para Alexandre. O sarcófago de um Faraó poderia servir, de fato, como uma medida provisória...

E Anemhor decidiu consigo mesmo que não tinha motivos para objetar a que Ptolomeu desse repouso a seu amigo nesse féretro de pedra; assim o caixão dourado de Alexandre foi colocado dentro dele.

Thot, que conhece o futuro, sabe que mil anos mais tarde, esse mesmo sarcófago de granito cor-de-rosa seria usado como cocho de água para animais de carga, mesmo sendo todo coberto de hieróglifos, os sagrados símbolos que deviam ter preservado de todo mal na vida após a morte. Porém, onde estava Alexandre? Ah, sim, o sarcófago de fato já teria comido a carne do rei que repousava em seu interior, um féretro destinado para um outro rei.

Tantas vezes passou pela mente desse Ptolomeu o pensamento nada dura... Viva o Presente. Até mesmo o corpo de Alexandre, que era o talismã da sorte da cidade que tinha o seu nome — eles o perderiam.

Naqueles dias Alexandre era afortunado, um homem abençoado por Tykhe, deusa da Fortuna, tão afortunado que todo grego usava a imagem do morto alfinetada no seu manto, e tocava nela para ter boa sorte, dezenas, centenas de vezes por dia, pois os gregos tinham obsessão pela sorte, naquela época, e haviam começado a esquecer os seus velhos deuses, ou pelo menos a pensar neles com menos reverência.

Os gregos já suspeitavam que os deuses do Olimpo não os escutavam; que os deuses estavam cansados de ajudar homens, e realmente não estavam sendo de grande utilidade. Os gregos apreciavam tornar um homem, um herói como Alexandre, em um deus.

Todo ano, ano após ano, Ptolomeu celebrava o aniversário do morto, ou do não inteiramente morto Alexandre, marchando em solene procissão com os gregos até o túmulo na margem do deserto, com os epônimos sacerdotes de Alexandre, e osKanephoroi, ou Portadores das Cestas, com as oferendas de praxe — mel, leite e vinho não diluído.

Apesar de algumas dúvidas dos homens sobre os deuses do Olimpo, Ptolomeu ostentava piedade. Mesmo com toda a sua preocupação de agradar os sacerdotes do Egito, demonstrava que não esquecia a religião dos gregos.

Sempre que dispunha de tempo, dava sua atenção aos projetos do Herõon, em Alexandria, em afetuosa memória de Hefaistion, filho falecido de Amyntor, que o Oráculo tinha proibido que fosse cultuado como deus (porque havia limites), mas permitiu que fosse cultuado como herói.

A estátua de Hefaistion, ele por fim a instalou na agora, e ela o representava, é claro, nu, mais jovem do que era na idade em que morreu, e algo andrógino; e ela ficou ao lado da estátua dourada de Alexandre, também representado despido. Entre os dois, estava a estátua dourada de Tykhe, que tinha privado ambos esses homens da Fortuna de uma vida longa — porém, em troca, lhes garantira fama imortal.

O grego acreditava que era melhor viver uma vida curta, repleta de glória, do que suportar uma velhice miserável. Aqueles que morrem jovens permaneciam para sempre jovens, obtinham a juventude eterna.

Ptolomeu tinha dado a sua palavra. A despeito da sua repugnância por Hefaistion, erigiu a estátua. Ele não estimulava muito o culto a Hefaistion. No entanto o número de visitantes ao seu santuário manteve-se estável, e depois cresceu — como se houvesse se tornado, no final das contas, uma espécie de novo deus. Hefaistion não seria esquecido em Alexandria — ao menos por enquanto.

À memória imortal de Alexandre, Ptolomeu foi mais fiel. Empreendia visitas regularmente ao corpo, mandava que a tampa de pedra fosse retirada de sobre o sarcófago, assim como a tampa do caixão dourado, e examinava com olhar sombrio o comprimento dos cabelos do homem morto e as condições das unhas dos seus dedos. Vezes e vezes seguidas, ele derramou leite e mel, alimento e bebida para a alma do homem morto na Vida Após a Morte dos gregos, ou alimento para os vivos, temendo que ele despertasse durante a noite.

Ptolomeu procedia em relação a esse homem como se ele ainda estivesse vivo, quase com medo de que, fosse o que fosse que fizesse no Egito, pudesse ser submetido ao seu escrutínio, quando ele retornasse ao mundo dos vivos. Nos seus momentos de crise, Ptolomeu sempre se perguntava o que Alexandre faria? A resposta era sempre a mesma Alexandre teria mostrado raiva, violência, sua selvageria de costume. Teria tirado vidas, primeiro, e feito perguntas depois. Não teria mostrado clemência alguma, como sempre.

Ele sempre tentaria ser igual a Alexandre, entretanto, mostrava também sua generosidade, sua gentileza. Não era tirano, mas um homem com sentimentos, que acordava todos os dias ao amanhecer, na hora de enterrar os mortos, com o rosto banhado em lágrimas, lembrando seus companheiros mortos os homens que haviam tombado em Gaugamela, os homens abandonados para morrer no deserto, a quem ele não dissera Até à vista, mesmo que seja na Casa de Hades.

No Egito, eles não deixavam de ser gregos apenas porque viviam num país estrangeiro. De modo algum. Haviam trazido sua natureza grega com eles, mantinham-na viva, e Alexandria, a nova cidade, seria mais grega do que a Grécia.

No entanto, Ptolomeu começou a acreditar que um deus diferente poderia ser uma boa coisa, um deus extra, que seria bom ao mesmo tempo para os gregos e para os egípcios; que podia promover a união dos dois povos, e terminar com os levantes, com as revoltas e com as pedradas. Queria fazer do Egito uma única nação — não duas nações envolvidas em intermináveis hostilidades porque houve um tempo em que os egípcios — mesmo os pacíficos egípcios — arremessavam pedras contra os gregos.

Para acabar com a hostilidade, Ptolomeu teve a idéia de inventar um deus novo, feito de pedaços e fragmentos de outros deuses metade Osíris e metade Zeus, talvez. Um deus salvador, talvez. Um deus da cura, um deus confiável, em que todo homem tivesse fé, porque pelo menos este seria um deus não com uma cabeça de animal, mas inteiramente humano, um homem de verdade, assim como um deus de verdade.

Ele pediu conselhos. Pediu a opinião do sumo sacerdote de Ptah, e a sua idéia ganhou a aprovação de Anemhor, pois o novo deus seria muito semelhante ao Osorápis dos egípcios.

Chamaram o novo deus de Serápis, e os egípcios o chamavam de Osorápis, e ele se parecia muito com o Zeus da Grécia, pois tinha uma barba comprida; mas os egípcios reconheceram nele o seu Osíris.

Posteriormente, esqueceram quem havia criado Serápis, e até mesmo diziam alguns que Serápis fora invenção de Alexandre. Entretanto, a maioria dos homens dizia que a idéia tinha sido de Ptolomeu, trabalhando junto com o sumo sacerdote de Sebbennytos, Manetho, e com o grego conhecido como Hekataios de Abdera, e que foram eles que cunharam esse generoso deus barbado, que usava sobre a cabeça o modios, a alta cesta cilíndrica que era a medida do milho no Egito.

Ptolomeu encomendou então a estátua gigante criselefantina, toda ela de marfim e ouro, a Bryaxis, o mais famoso dos escultores gregos, e lhe deu instruções precisas que os olhos de Serápis deveriam ser de caríssimas gemas preciosas que brilhassem na escuridão do seu sacrário, o imenso templo novo que projetou para Rhakotis, o bairro nativo de Alexandria, a ser construído no topo de uma colina artificial, de forma que o templo de Serápis pudesse ser visto de longe, como o Parthenon em Atenas.

Serápis, então, era um deus falsificado que morava numa colina falsificada — um deus híbrido. Mas, o povo teria fé em Serápis? Era o que Ptolomeu se perguntava. No entanto, gostava de acreditar que sim, porque Serápis era uma ótima invenção, tão boa quanto Zeus, tão boa quanto Osíris, se não melhor, porque estava sob controle humano. Tendo ou não fé, a princípio os gregos acorreram para o Sarapeion de Alexandria, assim como para o templo do deus em Mênfis o doente, o cronicamente doente, o que sofria por amor, o moribundo, as mulheres estéreis, os lunáticos, os aleijados e até mesmo os impostores, que exibiam os seus cotos e feridas supuradas; e em troca de uma pequena esmola, Serápis podia conceder a cura para todos eles.

Era encorajada a prática de se pernoitar no Sarapion, pois era quando supostamente o deus surgiria, pessoalmente, numa visão, para prescrever em meio a um sonho o transcurso do tratamento que deveria ser seguido, e em um entre dois casos a cura estaria concluída ao amanhecer — contanto que o deus se mostrasse indulgente o bastante para inclinar o seu ouvido para o suplicante; ou contanto que o suplicante tivesse fé.

Ptolomeu sorria, porque o seu falso deus parecia quase bom demais para ser verdade.

Serápis parecia ser um sucesso em Alexandria, onde era tratado como um deus grego e tinha um sacerdócio grego. O seu templo era um templo grego, com colunas coríntias e um teto com frontão triangular.

Fora de Alexandria, Serápis não era tão popular. Os egípcios já tinham dois mil deuses. De fato, não tinham necessidade de mais nenhum. Mas, fora do Egito, Serápis saiu-se melhor, e justificaram a indiferença com que foi recebido no Egito, dizendo que era destinado mais à exportação do que ao uso doméstico, e que era o deus padroeiro, embaixador de todo o império de Ptolomeu. Serápis tornou-se, de fato, o deus de mercadores estrangeiros —já em conseqüência do cesto em sua cabeça — e o grande protetor de todos os marinheiros.

Ptolomeu ponderou e ponderou, tentando vislumbrar que outros deuses poderia inventar, e então observou que, mais importante quase até mesmo do que Serápis, havia o culto à pequena serpente fêmea doméstica, que os gregos chamavam de Agathos Daimon, o Bom Espírito, o Espírito da Fortuna, e assim Ptolomeu encontrara uma segunda divindade nova, cujo propósito era manter a cidade de Alexandria livre de qualquer perigo.

Ptolomeu sorriu um pouco mais.

Agathos Daimon apresentou-se, então, em mosaicos e entalhes, enroscada em flores de papoulas, ou na clava de Herácles, ou envolvendo o tronco das palmeiras. Porém, com mais freqüência, mostrava-se enroscada no kerukeion, ou bastão de Hermes, o Thot dos gregos, Senhor dos Livros e Príncipe de Escribas.

A Serpente da Sorte de Alexandria assombrava todas as casas, todas as ruas. Já que os alexandrinos não conseguiam se livrar delas, era muito apropriado que a tornassem uma deusa. No entanto, uma vez isso feito, ninguém queria mais que ela fosse embora, pois a pequena serpente garantia a prosperidade da metrópolis e de todos os seus habitantes. Além disso, Agathos Daimon era uma serpente que não causava nenhum mal. Era a serpente de todas as serpentes, porque, por mais assombroso que fosse relatar isso, ela não era venenosa e nunca picava ninguém.

Por fim, Alexandria passou a amar a Agathos Daimon. Ela penetrou na imaginação da cidade com tal intensidade que construíram um templo só para ela, e lhe conferiram sacerdotisas. Melhor ainda, a Serpente da Sorte correspondia à Shai egípcia, a deusa do Destino, que também assumia a forma de serpente.

As pequenas serpentes eram chamadas de thermouthis, e acreditava-se que fossem mensageiras de ísis, a grande deusa dos egípcios, e Thermouthis era a própria Isis, merecendo as maiores honras e toda adoração, pois era a Serpente da Sorte de Alexandria.

Assim, Egito e Grécia finalmente se entrelaçavam em certas modalidades rituais, semelhantes a serpente e o bastão, uma enroscada no outro.

Fosse ou não verdade, eles acreditavam que Alexandria era a Cidade da Sorte, e a propalada Sorte de Alexandria atraía mais gregos do que nunca para irem morar na cidade, buscando sempre as riquezas que Zeus despejaria sobre a cabeça dos gregos, bastando apenas que ele fosse para o Egito, onde mesmo a poeira das ruas parecia ouro.

Alexandria conseguiu, então, sua população. Ptolomeu permaneceu mais um pouco em Mênfis, cercado de problemas, por guerras e sorrateiros rumores sobre guerras.

 

                         A Guerra Síria

De Triparadeisos, na Síria Superior, chegaram rumores de que a outra Eurídice, Adéia-Eurídice, a esposa e rainha de Felipe Arrhidaios, andava tomando gosto por se intrometer em questões de Estado, e que vinha se empenhando em atrapalhar os belos intentos dos Tutores, que haviam tomado o lugar do falecido Perdikkas, assumindo o controle do que restava do império de Alexandre. Mais do que isso, os macedônios pareciam estar recebendo ordens de Adéia-Eurídice. E a situação piorou tanto que os Tutores chegaram a renunciar ao cargo, por causa dela, e os macedônios elegeram, para substituí-los, o Velho Antipatros, como Tutor com plenos poderes.

Quando Antipatros chegou em Triparadeisos, descobriu que AdéiaEurídice estava, de fato, tentando criar problemas e jogar os macedônios contra ele também. Como resultado, houve uma grande desordem e desassossego no exército.

Antipatros convocou uma assembléia geral e pôs fim à gritaria berrando bem alto para a multidão, e apavorando Adéia-Eurídice, que ainda não atingira os vinte anos de idade.

Ele mandou a moça calar a boca, e ficar quieta, e disse a ela que deixasse os negócios para os homens e que parasse de meter o nariz em coisas das quais não entendia, e continuou a lhe dirigir críticas até que ela prorrompeu em lágrimas e fugiu em disparada da assembléia.

Então, Antipatros distribuiu todas as satrapias novamente, e os detalhes desse aspecto do episódio, Thot os deixará de lado, considerando-os de menor importância. É suficiente dizer que Ptolomeu foi confirmado no que já era seu, até porque, já então, seria impossível desalojá-lo do Egito, que mantinha em virtude de suas façanhas, como se fora um prêmio de guerra.

Quatro anos após a morte de Alexandre, no auge do calor de verão, o Velho Antipatros jazia deitado, coberto de suor, em seu próprio leito de morte. Estava com 88 anos de idade, e, mais do que tudo, lembrava-se de sua árdua luta com Olímpia, mãe de Alexandre, quando ela detinha a próstase, e também do seu embate com Adéia-Eurídice, a cabeça-dura, e ele proferiu seus últimos conselhos aos macedônios, com vistas no futuro, as proféticas últimas palavras de um homem moribundo, e o que disse foi nunca se deve permitir que uma mulher assuma o primeiro posto no reino. Isso porque acreditava que governar não é de fato negócio para mulheres.

E será que os macedônios deram ouvidos ao seu conselho? — Thot pergunta. Prestaram atenção a estas palavras, no Egito? Prestaram? Não.

No mesmo ano da morte de Antipatros, seu sogro, Ptolomeu deixou o Egito com o seu exército, em marcha ao longo das estradas de Hórus, através do deserto de Gaza, e invadiu a Síria, partindo do Líbano rumo ao sul, da região que era chamada de Coele-Síria, o Vazio, ou Vale da Síria, já que nada mais era do que um imenso vale.

Tendo derrotado Perdikkas, Ptolomeu encarava o Egito como seu, por direito; mas ainda se preocupava com a segurança das suas fronteiras. Na verdade, entendia que a Fenícia e a Coele-Síria estivessem em ótimas condições de desfechar um ataque em massa sobre ele, e acreditava, então, que o melhor seria invadir a Síria antes que a Síria o invadisse.

Pouco antes disto, havia tentado comprar a Coele-Síria, ao seu governador grego, Laomedon, de Anfípolis, oferecendo-lhe todo o ouro que ele ousasse pedir. Porém, Laomedon enviou um mensageiro somente para dizer a Ptolomeu que a Síria não estava à venda e que, como ele nem mesmo era o seu dono, não estava em posição de vendê-la.

Impossibilitado de comprar o que queria, então, e não querendo esperar mais, Ptolomeu recorreu a roubar, e intentou tomar a Síria para si. Afinal de contas, ele era um grego, e roubar era o que se esperava que fosse, sempre, o hábito dos gregos. Assim, ordenou a Nicanor, um dos seus melhores generais, que marchasse sobre a Fenícia.

O general Nicanor apressou-se a deixar a Pelúsia, indo direto para Gaza, com a frota navegando junto ao seu exército, como de praxe, transportando água e rações. De Gaza, marchou rumo ao norte para Tiro, e dali para Sidon, e ainda mais adiante rumo ao norte. Fez o sátrapa Laomedon prisioneiro e subjugou a região que lhe fora ordenado subjugar, instalando guarnições egípcias nas cidades da Fenícia e garantindo a lealdade do país a Ptolomeu.

A rápida campanha de Nicanor foi um propalado êxito, e ele marchou com suas tropas de volta para casa, cantando o Paian da Vitória para Apolo, o grande deus, e a cidade de Mênfis saudou-os com grande entusiasmo, a despeito de seu exército ser grego e da sua vitória ser estritamente uma vitória grega. Entretanto, a alegria devia-se à ampliação das fronteiras egípcias.

Ptolomeu promoveu um banquete atrás do outro, nos quais o convidado de honra era o general Nicanor — a quem foram concedidas todas as recompensas possíveis, tais como ingresso gratuito no teatro por toda vida, vastas extensões de terra no Alto Egito, o manto púrpura do Primeiro dos Amigos de Ptolomeu; e o sacrifício de touros reluzentemente negros aos deuses da Grécia durou dias e dias.

Completados cinco anos de governo de Ptolomeu no Egito, e tendo tomado posse do território de Cirene, a oeste, uma revolta irrompeu por lá, contestando o seu domínio. O bom povo de Cirene, a cidade, atacou a fortaleza e estava prestes a desalojar a guarnição de Ptolomeu, quando emissários de Alexandria ordenaram-lhes que se detivessem.

O que fez o povo de Cirene? A resposta que deram foi executar os emissários, e daí prosseguiram seu ataque à fortaleza com renovado vigor.

Tendo sido informado dos acontecimentos, Ptolomeu ficou furioso, como Alexandre teria ficado, e enviou outro dos seus generais, Agis, com um exército terrestre apoiado por uma frota de navios de guerra sob o comando de Epainetos, para esmagar a revolta.

O general Agis tomou Cirene de assalto, e mandou os rebeldes, de mãos e pés amarrados, para serem punidos em Mênfis. De fato, Ptolomeu puniuos, crucificando os seus corpos nas praias de Alexandria, exatamente como Alexandre punira aqueles que o desafiaram no Cerco de Tiro. Mênfis, entretanto, não foi profanada com um banho de sangue, e Cirene foi reintegrada ao governo de Ptolomeu, tendo a paz sido restabelecida.

Foi mais ou menos nessa época que o famoso Seleuco fugiu da Babilônia para o Egito, pedindo asilo a Ptolomeu, pois conhecia a generosidade desse homem (não obstante as crucificações) e o tratamento amistoso que concedia a todos os que buscavam refúgio em Mênfis, sua capital.

Seleuco provou ser de enorme utilidade a Ptolomeu, que o colocou no comando da frota egípcia, e ele se tornou um amigo particular da família de Ptolomeu, especialmente de seu jovem filho e herdeiro, Ptolomeu Keraunos, o famoso Raio, sendo que, esse tempo todo, o sumo sacerdote de Mênfis sabia que o destino de Seleuco era morrer pela mão desse garoto, mas nada disse a ninguém a esse respeito, e fez apenas esperar e observar.

Portanto, Ptolomeu tornou-se o maior amigo de Seleuco, e mais tarde este auxiliaria Ptolomeu, comandando lado a lado as tropas em batalha, obteria por recompensa ser instalado de volta no território que perdera, a Babilônia, tornando-se sátrapa outra vez.

A amizade contudo nem sempre é paga com bondade, e esse Seleuco — embora amigo — ele e sua casa estavam destinados a se tornarem os piores inimigos dos descendentes de Ptolomeu, disputando com eles, em batalhas sem fim, as cobiçadas regiões da Síria e da Palestina.

Qual foi a principal lição aprendida por Ptolomeu, como sátrapa, e transmitida para seus filhos e para os filhos de seus filhos, uma lição que pudesse ser de real utilidade para eles? — Thot pergunta. Foi que um governante não pode confiar em ninguém — nem mesmo nos homens que aparentam ser seus melhores amigos.

Não confie sequer num irmão, Anemhor diria. Não confie em amigo nenhum, ele disse, e tratava-se de antiga sabedoria egípcia. Pois mesmo um sátrapa, e principalmente um sátrapa, tem muitos inimigos.

Pelo menos alguns membros da família de Ptolomeu aprenderam esta lição; outros, não. Seleuco, infelizmente, não.

Quanto a confiar em seu irmão... Menelau, irmão mais jovem de Ptolomeu, ainda residia no Egito, onde se demonstrou razoavelmente útil, na maior parte do tempo, assim como leal e até mesmo confiável, mais do que a maioria dos demais homens.

Menelau fazia sem queixas o que quer que lhe pedissem, e tudo o que fez empenhou-se para fazer o melhor que lhe era possível.

No entanto, Ptolomeu preocupava-se com rivais, com usurpadores, cada vez com maior freqüência, até que chegou a ocasião quando lhe pareceu mais seguro enviar Menelau para longe do Egito, onde ele não pudesse colocar veneno no alimento do seu irmão, ou instigar rebeliões na residência do sátrapa.

Assim, Menelau foi para Chipre, como strategos, governador, lá onde não teria possibilidades de tramar sua deposição. Em Chipre, tinha tudo do melhor, tal como escravos, mulheres, seu palácio, e era-lhe permitido fazer, dentro do direito, mais ou menos o que bem entendesse — pelo menos enquanto Chipre continuasse a suprir o Egito com madeira e cobre, pois esta era a primeira tarefa de Menelau garantir o despacho regular dessas valiosas matérias-primas para o Egito.

Ele coletava as taxas na ilha e enviava navios carregados de dracmas para seu irmão. Um homem menos digno talvez tivesse ficado com esse dinheiro para si, como fizera Kleomenes, mas Menelau sabia muito bem que seu irmão o atacaria, se fizesse isso.

Menelau gostava da vida pacífica e, seguramente, tudo estava indo bem com ele, até que sua ilha foi invadida por Demétrio Poliorketes, quando então Menelau caiu em desgraça. Porém, por enquanto, a confiança entre os irmãos permanecia inalterável. Quanto ao restante do mundo grego, sobre este havia pouca confiança, como pode ser confirmado pelo que aconteceu a seguir na Macedônia.

 

                 Questões Macedônias

Apenas seis anos depois de Felipe Arrhidaios ser proclamado rei da Macedônia e do Egito, ele já estava morto, e estariam cumpridas as profecias de que sua esposa, Adéia-Eurídice, teria um triste fim.

Pois, desafortunadamente, essa Rainha não se satisfazia em simplesmente ser rainha e sentar-se no seu trono sem precisar fazer nada. Essa mulher nunca tinha feito nada. Possuía o espírito de um homem e a necessidade de estar sempre por cima, e fazendo alguma coisa. E então, havia enfiado em sua mente que iria tentar reinar por intermédio de seu domesticado marido, aliando-se a Cassandro, o homem sobre o qual corriam rumores de ter envenenado Alexandre. Adéia-Eurídice não conseguia se conter, no impulso de se intrometer nos assuntos da política, pois, afinal de contas, fora educada para se comportar e atuar dessa maneira.

Adéia-Eurídice julgava-se tão preparada nas questões militares quanto Cassandro, filho de Antipatros. Achava que sabia mais do que Olímpia, mãe de Alexandre, sobre política externa. Achava-se em pé de igualdade com essas pessoas que possuíam anos e anos de experiência de meticuloso governo, de empreendimentos com guerra e conquistas de outros reinos.

Assim, atraiu, como bem poderia ter sido previsto, a ira de Olímpia, que estava inteiramente determinada a garantir que nem essa garota nem o seu marido devessem representar uma ameaça a seu neto, o Rei Alexandros, que então tinha apenas seis anos de idade.

Entrando em desespero, Olímpia declarou guerra ao seu próprio enteado, Felipe Arrhidaios, e contra a esposa, Adéia-Eurídice, e os dois exércitos se enfrentaram num lugar chamado Euia, na Macedônia, onde Adéia-Eurídice apresentou-se, com toda soberba, sobre o dorso do cavalo, vestida com a armadura de ouro completa, exclusiva de um Rei da Macedônia, e ela mesma gritava o Paian da Vitória dedicado a Apolo, e todas as suas tropas faziam eco aos seus brados, gritando também, em estrofe e antiestrofe, no que investiam para o confronto.

Do lado contrário, Olímpia foi para a batalha à frente do seu exército, e ela estava vestida com pele de filhote de corsa, e se fazia acompanhar da batida dos tambores de Dionísio, o deus do frenesi, e estava furiosa, totalmente furiosa.

As duas rainhas, então, bradaram o mesmo grito de guerra, o terrível Alalalalai da Macedônia, e seus cabelos esvoaçavam ao vento, e tivessem elas se aproximado o bastante uma da outra, teriam muito certamente usado dentes e unhas para arrancar os cabelos e os olhos, cada qual, de sua inimiga, pois nunca duas mulheres se odiaram tanto quanto essas duas. Olímpia e Eurídice superavam todo o ódio que já existira.

Contudo, na batalha de Euia, ocorreu um episódio totalmente extraordinário. As tropas da Macedônia assistiram a Olímpia, sua idosa rainha, avançando para a luta. Escutaram o clamor dos seus tambores e trombetas, e ficaram fascinados por sua figura majestosa, que era tão semelhante à majestosa figura de seu filho, Alexandre, e eles se recordaram que ela era, sim, a viúva do Rei Felipe, e todos desertaram de Adéia-Eurídice e se juntaram ao exército de Olímpia, que, assim, se saiu vitoriosa.

Enquanto o Paian da Vitória era entoado aos brados, Olímpia colocava o seu enteado, Felipe Arrhidaios, e Adele-Eurídice, sua esposa, sob forte vigilância, mandava-os acorrentá-los como uma dupla de criminosos e ordenava que fossem confinados num espaço totalmente fechado, que lhes dessem apenas o alimento necessário para mantê-los vivos, através da única e estreita abertura feita na parede.

Ambos foram submetidos a esse tratamento vergonhoso por muito tempo, até que o comportamento de Olímpia tanto escandalizou os macedônios que estes se animaram a expressar a sua piedade em relação ao rei e à rainha. Entretanto, no final das contas, Olímpia ficou cansada de tantos cochiches e de tantas delegações de figuras da corte e pagou a alguns trácios para matarem Felipe Arrhidaios a punhaladas.

Em nenhum momento de todo esse seu penoso castigo, Adéia-Eurídice demonstrou, sequer minimamente, qualquer temor, e agora enviava uma mensagem declarando que ela era a legítima rainha de Macedônia, e não Olímpia.

A título de réplica, Olímpia enviou-lhe três objetos primeiro, um punhal, segundo, uma corda, e terceiro, uma tigela cheia de cicuta, como se para lhe oferecer uma escolha de como se matar, porque chegara para ela também a hora de morrer.

Adéia-Eurídice, por infelicidade, não via nenhuma saída para a sua situação. Nenhum homem tentara resgatá-la. Seus amigos tinham se mantido afastados. Seu marido, o Rei, estava morto. Porém, Adéia-Eurídice era filha de um rei, e estava decidida a ter uma morte nobre. Ela amaldiçoou Olímpia diante do mensageiro que lhe trouxe a ordem para se matar, e rezou para que Olímpia recebesse o mesmo tratamento.

A seguir, Adéia-Eurídice limpou o sangue das feridas de Felipe Arrhidaios e embrulhou o corpo dele numa manta purpúrea. Não se enforcaria com a corda. Nem se daria uma morte covarde bebendo cicuta. Ela retirou a rica faixa da cintura, presente do seu marido, e enforcou-se com ela, sem, assim disseram, nem ao menos derramar uma lágrima por conta de seu triste destino, perpetuando seu inquebrantável orgulho; e tinha na ocasião apenas vinte anos de idade.

Cassandro sepultou os corpos e prestou-lhes homenagem com jogos funerais, e fez isso muito bem.

Quanto a Olímpia, ela teria apenas mais dois anos de vida.

Em Tebas, no Egito, em homenagem ao rei Felipe Arrhidaios, Ptolomeu mandou construir um santuário de granito cor-de-rosa exaltando Amon. Os relevos nas paredes internas mostravam um faraó cujos traços fisionômicos eram bastante simétricos, e cuja língua não se estendia, flácida, para fora da boca, fazendo oferendas ao deus, debaixo de um céu azul cintilando com estrelas douradas.

Nas paredes externas deste santuário, havia relevos que mostravam a coroação desse homem como faraó (um episódio que nunca aconteceu), assim como as boas-vindas de Thot e a deusa Amunet dando de mamar ao jovem rei, embora esse homem tivesse, na época de sua morte, 41 anos de idade.

A proteção dos deuses do Egito não tinha feito muito bem a esse Faraó grego.

Naquele ano, a terceira desastrosa inundação da cidade de Rodes pelo Grande Mar causou enorme perda de vidas e destruição de propriedades. Fortes tempestades de chuva marcaram o início da primavera, e pedras de granizo, pesando muito mais de uma mina, caíram, de modo que muitas casas desabaram sob tal peso.

Coisas como essas sempre foram entendidas como péssimos presságios pelos gregos. Porém, como sempre, havia muitas outras coisas piores do que assassinatos ainda por acontecer; coisas de longe, de bastante longe, muito piores estavam por sobrevir do que pedras de granizo do tamanho dos ovos de avestruz.

 

                         Corrida de Crocodilos

Quanto à outra Eurídice, seu marido Ptolomeu guardou na lembrança as palavras de Homero

Nunca seja exageradamente gentil com a sua esposa,

Nunca permita que sua esposa saiba tudo o que você tem em mente,

Conte-lhe o mínimo que for possível.

As mulheres não são confiáveis,

Numa família grega, a violência não é incomum. Uma mulher pode ter certeza de levar uma surra, caso deixe de fazer tudo o que seu marido mandar, ou por qualquer impertinência. Também uma filha pode ser esbofeteada no rosto por seu pai por conta de uma palavra imprudente. Mas, na verdade, a família de Ptolomeu não era assim. Não, tais coisas não aconteciam em Mênfis.

Na maior parte do tempo, por medo aos estrangeiros, Eurídice não punha os pés fora da residência. A lida do lar e o silêncio eram muito mais adequados a esposas gregas, e a administração doméstica que caberia a Eurídice estava a cargo de sua aia e de um batalhão de criados e escravos; de modo que lhe restava apenas o silêncio. Talvez lhe permitissem que fosse visitar seus parentes, num bairro próximo; só que ela não possuía parente em Mênfis e, na verdade, nem também no resto do Egito, a não ser a sua tia Berenice, que morava sob o mesmo teto. Quanto a passear pelas ruas, ou de carruagem — tais entretenimentos não estavam entre os que convinham a esposas, e apenas prostitutas põem o rosto para fora das janelas.

Assim, Eurídice levava o que os gregos chamavam de vida de tartaruga, presa debaixo de um casco do qual não lhe era possível escapar. A tartaruga era um atributo de Afrodite Ourania, o símbolo da domesticidade; e a vida de Eurídice era de fato fechada, enclausurada, e muito, muito lenta.

Sim, ela achava o Egito o lugar mais calorento que se poderia imaginar. O suor pingava dela o tempo todo — suava descontroladamente, dia e noite. Ou era isso, ou ficar sentada, sentindo arrepios, quando a névoa de Mênfis baixava, assim como durante as tempestades de raios e de areia, que era quando sua tremedeira voltava. O inverno, ela o passava tentando aquecer as suas mãos no braseiro. Claro que Eurídice compartilhava da vida de luxo ilimitado do sátrapa, e o aspecto mais óbvio desse luxo era uma fartura inesgotável de tudo o que houvesse de bom para comer. Entretanto, Eurídice não dava importância à comida. Beliscava seu prato como um passarinho, depois afastava-o dizendo que no Egito faz calor demais para se comer, em conseqüência, ia ficando cada vez mais magra.

Por outro lado, a tia Berenice beneficiava-se enormemente da mesa generosa de Ptolomeu. Adorava comer as tâmaras, as bananas, os figos e os melões que cresciam no Egito; ganhava peso, cada vez mais, e começou a sorrir. Berenice tinha inteira liberdade, como aia, para andar pela cidade de Mênfis e, em nome de sua patroa, sair comprando vestidos, tecidos e qualquer artigo de que a mulher do sátrapa precisasse. Pois, sim, a mulher do sátrapa era importante demais para pôr o pé fora da porta dogynaikeion. Eurídice tinha de viver escondida, exceto em ocasiões oficiais, tais como uma excursão rioacima na barcaça do sátrapa.

Berenice agora começava também a cuidar melhor de sua aparência. Readquiriu o hábito de pintar o rosto com alvaiade e ruge, e a tratar dos seus cabelos, quando antes quase não ligava para isso.

Berenice herdava as peças de roupas descartadas por sua sobrinha. Assim recuperava-se, pouco a pouco, de quaisquer que houvessem sido as más experiências de seu passado. Se tinha antes um rosto desfigurado, uma idade indeterminada, se era ignorada por todos os homens, agora exibia mais carnes sobre os ossos, e florescia outra vez como a bela mulher de antes; parecia, de fato, estar apenas na faixa dos vinte anos. Berenice estava mais atraente, com olhos que cintilavam, e tinha aqueles luxuriantes cabelos louros das mulheres da Trácia. Os olhos dos homens seguiam a sua silhueta, quando passava na residência, e percebiam que Berenice possuía um tom de voz baixo e agradável, que era a tonalidade sussurrada da sua voz. Ela também não era desprovida de educação ou atributos, pois sabia ler e escrever, tinha tanto a habilidade do tear quanto a da lira e a da cozinha. Não levou muito até que Berenice atraísse o olhar do próprio Ptolomeu, que era, não deve ser esquecido, louco por mulheres. Ele começou a enxergar nessa mulher atrativos que sua esposa, Eurídice, realmente não tinha.

Eurídice deu a Ptolomeu um novo filho a cada ano, pelos cinco anos seguintes, de modo que mal havia parido um, e já começava a inchar da gravidez do seguinte deu à luz mais dois filhos, depois de Keraunos, chamados Meleagros e Argaios, e três filhas, às quais deram os nomes de Theoxena, Lysandra e Ptolomais.

Quando o sátrapa entrou nos aposentos dela, após o nascimento da primeira destas filhas, Eurídice baixou os seus olhos, virou o rosto para a parede, de tanta vergonha, e prorrompeu num pranto de uma esposa que tinha fracassado. Ptolomeu queria filhos homens, mais filhos homens, tantos filhos homens quanto fosse possível, e ela tinha lhe dado, sem dúvida, o que ele não queria; porém, mesmo assim, lhe dirigiu palavras de consolo.

Uma filha, ele disse, não é de modo algum inútil. Ela realizará um ótimo casamento. Não devemos enjeitá-la...

Isso porque pensou menos no dispêndio de dinheiro que o pagamento do dote desta garota envolveria do que na brilhante aliança que casá-la — no tempo devido — com algum governador estrangeiro traria, como resultado do que ele poderia, quem sabe, dormir melhor na sua cama, e preocupar-se menos com a eterna ameaça de guerra.

Meleagros, Argaios, Theoxena, Lysandra e Ptolemais eram crianças louras, pois sua mãe tinha abandonado o hábito de comer terra, pelo menos temporariamente. Os filhos cresceriam e se tornariam guerreiros gregos bravos e fortes — generais, talvez, nos exércitos do seu pai, pelo menos até que ele morresse, quando então o futuro deles estaria menos garantido. Quanto às moças, cresceriam silenciosas, plácidas, de olhos arregalados e pálidas, e assim seriam para o resto de suas vidas, pois era vedado a moças de altas posições saírem de casa; e seria inteiramente impensável que se expusessem ao sol do Egito sem estarem cobertas. Podiam, sim, viver a vida de todas as moças gregas da sua classe, da família dos sátrapas, atrás de portas trancadas eguarnecidas com traves, e das janelas com persianas baixadas do gynaikeion, aquele estranho mundo, tão escuro, das mulheres, onde se proibia até mesmo dar uma olhada para a rua lá embaixo. Passariam seus dias sem nada para fazer a não ser fiadura e tapeçaria, já que não estava à altura delas carregar água do poço, e eram bem-nascidas demais para passar uma manhã amaciando um polvo nas pedras, assim como nunca sequer se aproximariam do rio para se banharem. As moças eram prisioneiras, de fato, faltando apenas serem chamadas assim, servidas em todos os seus caprichos por eunucos negros da Terra de Punt — homens com a metade de suas alturas, que andavam gingando com suas pernas curtas — miniaturas de homens que tinham vozes agudas de mulheres.

Mesmo assim, as meninas tinham seus entretenimentos seus mascotes, os micos, os cachorros que vinham sentar-se em seus joelhos; seus pássaros amarelos em gaiolas de papiros. As garotas não tinham uma vida infeliz e, em algumas raras ocasiões, lhes era permitido navegar rio acima com o sátrapa, até Apolonópolis, ou até Crocodilópolis, para presenciar a alimentação dos crocodilos sagrados; daí, ficariam falando nesses passeios por meses seguidos. Mas, por princípio, ninguém punha os olhos nas filhas de Ptolomeu, de modo que um simples relance sobre elas causava nos gregos um frêmito de excitação.

Os filhos legítimos mais jovens de Ptolomeu eram mais tranqüilos do que Ptolomeu Keraunos. Meleagros era um garoto contra quem ninguém tinha o que dizer, que parecia quase ter aprendido a Mágica da Invisibilidade. O seu horóscopo previa que ele seria um rei, mesmo não sendo o filho mais velho do seu pai. Ele nunca seria o sátrapa, a menos que alguma tragédia se abatesse sobre seu irmão, ou a menos que algo inesperado acontecesse e fizesse Keraunos cair em desgraça. Não sendo um louco nem um gênio militar, Meleagros era ignorado. Ele sobreviveria, como Eurídice sua mãe sobreviveu, por permanecer quieto, por não atrair demasiada atenção para si.

Quanto ao irmão mais moço, Argaios — ele era ainda mais tranqüilo e quieto, de modo que, nos anos que se seguiram, ninguém podia dizer uma palavra sobre como havia vivido, ou o que havia feito da sua vida. Existiam, talvez, boas razões para não se saber coisa alguma sobre Argaios. O que aconteceu a este filho do sátrapa, somente Thot lembraria, e Thot choraria.

Havia ainda um quarto filho que era tão quieto que ninguém, nem mesmo Thot, tinha qualquer registro do seu nome; existe até mesmo uma dúvida no coração de Thot sobre a própria existência deste filho, e é possível que o garoto tenha morrido ainda muito novo.

Ptolomeu teve, certamente, de seu sangue, outros filhos e filhas bastardos, assim como os bastardos que teve com Thaís, que viviam, todos eles, e eram alimentados e educados sob o teto do sátrapa. Mas esses eram filhos de segunda categoria, os quais, como possíveis usurpadores do seu sátrapa, necessariamente passariam suas vidas temendo o punhal do assassino, do visitante da madrugada. Precisavam sempre preocupar-se com algum veneno em sua moussaka, ou com a possibilidade de serem assassinados durante o sono, conforme o costume grego pelo qual todo possível candidato a sátrapa deveria morrer para que o próprio sátrapa pudesse viver em paz.

Entretanto, por enquanto, todos os filhos de Ptolomeu brincavam e brigavam juntos, aprendiam o alpha beta aos pés do mesmo tutor, e eram educados para serem mais gregos do que os gregos da Grécia. As moças desenvolviam sua habilidade de fiar, costurar, bordar e fazer tapeçarias no gynaikeion, do qual os garotos eram inflexivelmente retirados ao completarem sete anos de idade, para daí por diante passarem a viver no andron, com os homens, onde aprendiam a ser guerreiros, soldados, hábeis cavaleiros; e no gymnasion, onde começavam a adquirir o tão famoso e perfeito físico grego, e os músculos rijos dos atletas gregos.

Nos aniversários dos filhos e filhas do sátrapa, tanto dos legítimos quanto dos ilegítimos, o sumo sacerdote de Ptah lhes enviaria seu presente um ovo pintado de crocodilo para ser chocado ao sol egípcio. Isso significava, por um lado, um gesto genuíno de boa vontade para com a Casa de Ptolomeu; por outro, sua sincera esperança de desenvolver uma verdadeira devoção a Sobek, o mais que ilustre deus-crocodilo dos egípcios, a quem os gregos, que sempre tentavam mudar todos os nomes egípcios, chamavam de Souchos.

Os noventa dias entre a postura do ovo e o seu rompimento eram contados com impaciência e crescente excitação, até o momento em que as crianças escutavam o toque-toque dentro da casca, que significava que já podiam ajudar o bebê-crocodilo a escapar de sua prisão e entrar no mundo dos viventes.

Theoxena, Lysandra e Ptolemais gostavam de ornar as orelhas dos seus crocodilos com brincos de ouro, e prendiam braceletes de ouro em torno dos quatro tornozelos escamosos, imitando os sacerdotes do crocodilo de Crocodilópolis. As garotas adoravam os dentes tão alvos, as mandíbulas irrequietas e vistosas, assim como os olhos brilhantes do bebê-crocodilo, e os criavam numa grande banheira, e os puxavam, presos a uma coleira, por toda a residência, alimentando-os diariamente com carne crua de porcos e bolos de mel. Todas riam muito diante do terror de Eurídice.

Quanto aos rapazes, improvisavam corridas de crocodilos que percorriam os corredores ecoantes da residência, e passavam as tardes de calor sufocante de Mênfis discutindo sobre qual dos animais era o mais rápido, o mais feroz, ou qual tinha vencido a maioria das corridas.

Apesar de domesticadas, essas feras cresciam, e sempre chegava o dia em que se decretava que haviam ficado grandes demais para habitar qualquer casa, ameaçadoras demais para continuarem a ser mantidas em recintos fechados. Então, teriam de ser enviadas de volta para o Templo de Sobek, para viverem no Lago Sagrado que havia ali; e as garotas ficariam chateadas, e os garotos bateriam portas, até que lhes fosse prometido um novo ovo de crocodilo para o próximo aniversário, pois, em verdade, nenhum crocodilo permaneceu na residência por mais de um ano, já que Eurídice queixava-se sempre de que um crocodilo com mais de um cúbito de comprimento era algo demasiado para o conforto doméstico.

Qual era, entretanto, a verdadeira intenção de Anemhor? Por que esse homem decidira encher o lar do sátrapa de crocodilos? Alguns viram a verdade de seu propósito, dizendo que ele foi o responsável por algo do espírito do crocodilo penetrar nessas crianças, e talvez estivessem certos. Qualquer que fosse a razão, ferocidade e temperamento difícil seriam características que os Ptolomeus das futuras gerações possuiriam em grande medida. Seja como for, bem desejava o sátrapa que seus filhos fossem dotados dos melhores aspectos do caráter de Alexandre, mas não que se tornassem uma praga, uma grande doença, e sim uma força curadora, uma força para o bem. No entanto, o sumo sacerdote, esse mesmo Anemhor — não teria ele semeado o germe da discórdia entre estas crianças? Teria ele feito isso propositalmente? Talvez. Talvez, não. Thot dá de ombros. Por outro lado, todo mundo sabe que crianças gregas nunca precisam de muito estímulo para brigarem entre si.

No mesmo ano em que a filha mais nova de Ptolomeu e Eurídice nasceu, o sátrapa ordenou a fundação de uma nova cidade no Alto Egito, com a intenção de que essa fosse a sua Capital do Sul.

Ptolomeu nessa época acreditava que não seria de fato hybris demais se desse à sua filha o nome de Ptolomais, evocando o seu próprio nome, e que os deuses da Grécia certamente não julgariam soberba demais se desse a essa nova cidade, também, o nome Ptolomais.

Fosse como fosse, dirigiu-se aos deuses para buscar sua aprovação, e o Oráculo de Zeus-Amon não apresentou nenhuma objeção. Assim, a filha recebeu o nome de Ptolomais, e a cidade foi chamada Ptolomais, e a cidade ficava perto de Dióspolis, a Tebas dos egípcios, que era a capital religiosa do Sul, um lugar que fervilhava de sacerdotes egípcios.

Ptolomais, no entanto, seria uma cidade inteiramente grega, como Alexandria, a capital meridional para o comércio com o Alto Egito, com a Terra de Punt, e com o país de especiarias, a Arábia. Seria uma cidade governada por gregos, com templos gregos, uma assembléia grega, teatro grego, agora, hipódromo, e tudo o mais, e habitada por gregos, no coração do país de rosto negro.

Era uma cidade ainda mais sufocante do que Mênfis, um lugar onde as tempestades de areia eram mais turbulentas, mas era para lá que Ptolomeu mandaria os homens de quem desejava se livrar, e onde os gregos se queixariam de serem cozinhados vivos.

O Oráculo prometeu que Ptolomais, a cidade, seria verdadeiramente um lugar feliz, a despeito do calor. Quanto a Ptolomais, a filha do Sátrapa, o Oráculo referiu-se a ela apenas nos termos mais vagos, e os horoscopistas não puderam prover a Ptolomeu de previsões mais definidas para o seu futuro, e fizeram apenas abrir os braços, afirmando que tudo indicava que os deuses não queriam tornar conhecido o destino desta criança.

Apenas Thot sabe, e assim como o destino de Eurídice seria desafortunado, também o destino de sua filha caçula seria igualmente infeliz. Ptolomais, a da má estrela — seu futuro não lhe traria nada senão lágrimas e frustrações, e, nos primeiros 18 anos de sua vida, sua felicidade foi desconhecer totalmente o que os deuses tinham reservado para ela.

 

                 Portadora da Vitória

Quanto a tia Berenice, a viúva macedônia, era tarefa sua escudar Eurídice da atenção de seu marido, quando fosse indesejada. Quando Eurídice tinha dor de cabeça, ou no estômago, ou desarranjo intestinal, ou seu ciclo mensal, era Berenice quem transmitia isso a Ptolomeu, desculpando-se sempre, em nome de Eurídice.

Quando Eurídice já se encontrava pesada por conta de sua sexta gestação, que viria a ser a última gestação, foi Berenice, pessoalmente, a quem o sátrapa chamou para a sua cama. Seguramente, ela era mais velha do que a sua sobrinha, porém não muito mais velha, e tinha, assim ele achava, mais atrativos do que sua esposa, seios maiores, e ele lhe dissera que ela era kallipygous, que ele apreciava acima de tudo a abundância do seu traseiro. Berenice fazia Ptolomeu refletir sobre Thaís, e ele começou a se perguntar se Berenice não seria também uma esposa melhor do que a sobrinha.

Por enquanto, porém, Berenice era sua concubina, e depois de alguns meses de curiosos desaparecimentos de Berenice do gynaikeion, durante as horas mortas da noite, Eurídice notou que Ptolomeu tinha abandonado toda propensão a chamá-la de Sua Pombinha, Sua Patinha, e que ele não a chamava mais de sua Polycharidas, Sua Querida. De fato, ele tinha cessado de usar qualquer termo carinhoso, o que, desde o início, talvez, nunca fora sincero da parte dele.

Eurídice ficava se perguntando, em sua inocência, o que podia ter feito de errado, o que poderia ter feito para merecer tal tratamento. Porém a verdade era que ela não fizera nada de errado. Tinha meramente continuado a ser a mesma pessoa. Tudo o que acontecera foi que Ptolomeu tinha começado a preferir Berenice, e estava começando a esquecer sua esposa.

Havia dias em que Eurídice, entrando em pânico, enviava Berenice à agora para comprar o mais novo modelo de sminduridia, o mais elegante sapato feminino. Ela encomendou também o modelo mais novo de peplos Clitemnestra, de cor escarlate, e dera de erguer a bainha da vestimenta para mostrar os seus tornozelos, quando quer que Ptolomeu estivesse por perto. No entanto, Ptolomeu não notava. Mal olhava para essa que era a sua esposa, e nem sequer percebia que ela estivesse usando alguma coisa diferente.

De tempos em tempos, Eurídice resolvia quebrar as regras que confinavam as mulheres ao gynaikeion, vestindo seu mais elegante traje, perguntando o caminho que levaria do gynaikeion ao Salão de Audiências e ousando até mesmo dirigir-se ao marido a respeito de algum assunto doméstico. Ela tocaria a manga da túnica dele, ou, com o leque, daria uma pancadinha no braço da cadeira dele; mas Ptolomeu parecia surdo ao que ela tinha a lhe dizer sobre escravos, criados da cozinha, eunucos, macacos domésticos, papagaios, ou tamanho dos mascotes crocodilos, e mantinha um olhar vago, com os pensamentos centrados nos problemas egípcios, coisas de importância internacional.

Quando Eurídice dava um puxão mais forte na manga do himation do marido, o olhar dele a atravessava, como se não reconhecesse quem era essa mulher — como se, de fato, ela nada tivesse a ver com ele —, e no que ele batia palmas, fazendo um sinal de cabeça para seus guardas macedônios, Eurídice seria gentilmente levada dali.

Qual era a verdade? Sim, a verdade era que Ptolomeu agora reservara as suas palavras afetuosas para a tia de sua esposa. Era Berenice que ele agora chamava de sua Polycharidas, Sua Querida, Sua Doçura. Era Berenice que ocupava os seus pensamentos, e era Berenice a quem ele mandava chamar no meio da noite quando a pressão dos negócios de Estado pesava tão fortemente no seu espírito que ele não conseguia dormir. E Berenice ia para ele sem nenhuma queixa, sem zanga, apesar de ser tarde da noite. Berenice caminhava ligeira através dos vastos corredores e pátios da fortaleza de tijolos de barro, que era a residência oficial deste homem. Berenice corria, e seus cabelos esvoaçavam atrás dela, e não se detinha nem ao menos para calçar as sandálias.

Já Eurídice, ela não via coisa alguma. Não suspeitava de nada, porque estava adormecida, roncando. Pela manhã, havia vezes em que se surpreendia ao ver a cama de Berenice vazia, mas Berenice com freqüência saía cedo, para percorrer o mercado de Mênfis, comprando todos os tipos de apetecíveis iguarias para tentar Eurídice a comer melhor em seu desjejum. Eurídice não tinha a menor idéia do que estava acontecendo. Não, nem desconfiava.

Eurídice jamais sonhou que Ptolomeu pudesse desejar ter aphrodisia com sua tia, todavia era justamente o que estava acontecendo. Quando Eurídice descobriu, saiu correndo pelo gynaikeion berrando, arrancou os cabelos, golpeou os seios com os punhos, começou a uivar como o lobo do deserto, como se alguém tivesse morrido, e como esse alguém fosse ela própria.

Thot balança a cabeça, desalentado. O que Eurídice fizera ao trazer sua tia para o Egito foi o mesmo que cometer um suicídio lento.

Quanto a Ptolomeu estar apaixonado — isso era contra todo escrúpulo grego, pois os gregos sustentam que se apaixonar é o que mais aproxima alguém da loucura. Porém, já seria impossível ajudar Ptolomeu a se recuperar. As flechas de Eros, o Garoto, fincaram-se profundamente na sua carne; mantinham-no acordado à noite, desviavam-lhe os pensamentos dos negócios durante o dia, porque, em verdade, ele não podia pensar em mais nada a não ser Berenice e nos seios de Berenice, que eram como dois grandes melões rosados, e em suas carnes generosas, e no brilho, no doce brilho dos seus olhos azuis.

Pensava no nome dela — Berenice cujo significado era Portadora da Vitória — e pensava também que Berenice era três vezes afortunada.

Enquanto a estrela de Berenice subia — e mesmo pairava a grande altura — a estrela de Eurídice despencava. Ela disse para si mesma que, sim, estava farta do sátrapa, que ele era velho, que nunca o tinha amado, e veio-lhe à mente o fato de ele ter mais de cinqüenta anos de idade, lembrou-se do seu peso em cima dela, e de que ela não gostava nada dessas coisas. Que Ptolomeu raramente procurasse o leito dela era, em verdade, um alívio. No entanto, ao mesmo tempo Eurídice se importava muito com isso, e havia vezes em que pensava que, sim, talvez, no final das contas, amasse esse homem que era seu marido e o pai de seus seis filhos.

Quando a verdade lhe foi contada — que Ptolomeu estava apaixonado por sua tia Berenice —, Eurídice berrou ainda mais; porém, quando se acalmou, concluiu que esse amor dele não precisava perturbá-la tanto assim, pois que ela agora seria deixada em paz, e o seu filho, Ptolomeu Keraunos, ainda continuaria sendo o herdeiro do pai. Nada mudara. Tudo podia continuar como antes.

Eurídice chegou a sentir o impulso de destruir sua tia com veneno, mas baniu esse pensamento no mesmo instante, pois não poderia seriamente pensar em matar uma tia, sua amada tia, porque um assassinato dentro da família acarreta horríveis, horríveis conseqüências, que ela realmente não tinha o desejo de atrair sobre sua cabeça, tais como o de ser pelo resto da vida perseguida pelo fantasma da mulher morta. E assim, não, ela não poderia, ela não o faria, de jeito nenhum.

Eurídice disse a si mesma que poderia suportar a humilhação de ser ignorada pelo seu marido contanto que mantivesse o título e a posição de Primeira Esposa do Sátrapa. E ela então resolveu fazer-se bela — obter para si a radiante beleza de Berenice —, e ela emplastrou o rosto com alvaiade e com ruge e fez arranjos bizarros nos seus cabelos para atrair a atenção do sátrapa, prendendo-o para cima e tingindo-o de azul ou verde, ou vermelho. Contudo, Eurídice acabou com uma aparência ridícula, e seus esforços aconteciam tarde demais. Berenice possuía a beleza da maturidade. Eurídice fora uma garota sem atrativos, e todos os seus esforços agora com cosméticos não conseguiam mais do que a transformar numa mulher sem atrativos, embora ela não tivesse ainda trinta anos.

Desesperada, Eurídice experimentou comer ervas gregas que tinham a fama de trazer de volta um amor perdido. Chegou mesmo a se aproximar de Ptolomeu, sorrateiramente, enquanto ele dormia, e tocá-lo com a erva mágica de nome anakampseros. Entretanto, a verdade era que Ptolomeu nunca, desde o início, amara sua esposa. Não havia brasas mortas para assoprar, infundindo-lhes a vida de volta a chama do amor, para Eurídice, nunca esteve acesa.

Tudo, no entanto, ainda poderia ter continuado em paz, não fosse por Tia Berenice agora começar a engrossar resolutamente na cintura, e chegou o dia em que finalmente suas roupas largas não puderam mais ocultar o fato de que ela estava enorme de grávida.

Eurídice berrou mais selvagemente do que nunca quando viu o ventre de sua tia e toda a verdade do que vinha acontecendo se abateu sobre ela. Eurídice chorou, sozinha, e repreendeu Berenice, chamando-a de prostituta e concubina, porém, o seu rosto, em público, quando ela teve a chance de mostrá-lo, estava imperturbável. Porque, não, estava fora de dúvida que seu filho, o Raio, jamais perderia seu lugar como filho favorito de Ptolomeu e herdeiro. Já que Berenice não era casada, seu filho seria uma criança bastarda, sem qualquer direito ao supremo posto de seu pai. E se fosse uma garota — bem, sempre podiam enjeitá-la. Sim, Eurídice tranqüilizou-se, a gravidez de tia Berenice não passava de um acidente de percurso, e sua posição estava, como sempre, garantida.

Em verdade, Eurídice não tinha por que temer pelo seu futuro, ou pelo futuro do seu filho, até Ptolomeu trazer a raposa para junto das galinhas, ao lhe comunicar que iria se casar com tia Berenice; e então — então a sensação de segurança de Eurídice foi como se, feita de vidro, caísse num chão de pedra, estilhaçando-se.

Na véspera do casamento de Berenice com Ptolomeu, quando a evidência ainda não lhe penetrara de todo, Eurídice ouviu por acaso uma das suas próprias aias comentando é um verdadeiro casamento por amor; e as palavras a atravessaram como se fosse ela que tivesse sido atingida pelas setas de Eros. Sentiu a respiração lhe faltar, e quando mais tarde naquele mesmo dia as mulheres lhe perguntaram por seu estado de saúde, ela não sabia — realmente não sabia — que desmaiara com o choque.

O que, então, tinha acontecido? O velho Antipatros, pai de Eurídice, havia morrido apenas alguns anos depois do casamento dela, e assim a grande aliança fora paralisada. Não havia agora, de fato, nenhuma boa razão política para Ptolomeu se interessar pelo bem-estar de sua esposa Eurídice, ou dos seus filhos tampouco, além do fato de serem eles seus filhos também. Ainda assim, ele não pensava em se divorciar de Eurídice. Tudo o que pretendia era tomar uma segunda esposa, o que não era nada incomum para um sátrapa dos gregos, pois esses homens tinham tamanho poder e em tão alta conta o seu próprio valor que achavam que podiam fazer o que bem entendessem. Em verdade, nenhum homem sobre a Terra tinha mais poder do que um sátrapa, e não havia ninguém no mundo que pudesse dizer a Ptolomeu o que ele deveria ou não fazer, exceto, talvez, o Rei do Egito, que acontecia ser aquele tal Alexandros que era apenas um garoto, e que, fosse como fosse, morava muito longe, na Grécia.

No período da Lua Cheia, no mês de Gamelion, quando as pupilas dos olhos dos gatos se alargavam bastante, Ptolomeu e Berenice celebraram seu casamento, o que foi feito com grande pompa e cerimônia, de longe excedendo o dele com Eurídice. No banquete de casamento, Ptolomeu cantou a Canção do Corvo dos Gregos, e também a Canção das Andorinhas, e os membros da sua família arremessaram nozes e figos em Berenice quando ela transpôs a porta da residência, mas não com muita força, para não machucar o seu rosto e seus braços, e Berenice não parou um só momento de sorrir.

Nesse banquete os homens convidaram Berenice para dançar — já que em todo casamento grego se convida a noiva para dançar.

Berenice levantou-se imediatamente, e as gaitas, a lira e os kitharistes iniciaram uma melodia lenta, e Berenice movia-se devagar, acompanhando o ritmo, os braços acima da cabeça, os braços lançados para os lados, e os pés movendo-se para cima e para baixo. Enquanto a música ia se tornando cada vez mais rápida, os braços de Berenice começaram a se agitar acima da sua cabeça, as mãos batendo palmas, e ela encetando passos cada vez mais rápidos, também, e a música se acelerando mais ainda, e os homens assoviando, aclamando, e acompanhando o ritmo batendo palmas, e no início Berenice ia bem, porém, no fim, já estava brilhante; os homens gritavam que Berenice era maravilhosa, que ela era certamente a encarnação de Terpsícore; que Berenice seria uma deusa.

Berenice dançava, sorria, as faces coradas, como uma lagosta sobre brasas vivas.

E Berenice seria uma deusa.

Quanto a Eurídice, ela não honrou essa ocasião feliz com sua presença; alegou mais uma vez que estava no período de suas regras e trancou-se num armário de roupas, num lugar remoto do prédio, e ficou uivando em seu ciúme raivoso, tão alto como o chacal do deserto.

Quando se via sozinha, o que acontecia com freqüência, ou quando acreditava não estar sendo escutada, Eurídice começava a falar consigo mesma, de novo, em ouranopolitano, a língua inventada por seu irmão louco, Alexarkhos.

Isto, talvez, fosse inofensivo, porém coincidiu com a ocasião em que Eurídice voltou ao velho hábito de comer terra, e suas aias começaram a ficar preocupadas com o seu estado mental.

Quanto ao novo arranjo, contudo, não devia haver discórdias. Berenice e Eurídice não eram somente parentes, mas verdadeiramente as melhores amigas uma da outra e deve-se fazer justiça às habilidades diplomáticas de Ptolomeu que ele tenha conseguido impedir que essas duas mulheres se tornassem as mais amarguradas inimigas, e, pelo contrário, que vivessem satisfeitas — mais ou menos satisfeitas —, morando debaixo do mesmo teto, no mesmo gynaikeion.

Será que Ptolomeu sentia alguma culpa, por pequena que fosse, pelo que fizera à esposa, a cujo pai ele fizera a solene promessa de cuidar dela, fosse o que fosse que acontecesse, durante toda a sua vida? Talvez. Mas, enfim, ele não a havia mandado embora. Pelo menos, ainda não. Mesmo assim, como se para justificar seus atos, Ptolomeu algumas vezes murmuraria Em verdade, Eurídice era completamente despreparada para suportar o rigoroso calor do verão do Egito. E a verdade era que agora falava de sua primeira esposa no tempo passado, no tempo aoristo, como se ela não mais existisse.

Havia vezes em que ele até poderia dizer que, em verdade, Eurídice era inteiramente incapaz de controlar o odor de suor que exalava de seu corpo dia e noite.

Era uma desculpa. Era uma razão entre muitas razões, porém a principal era o fato verdadeiro do seu amor, o seu grande amor, seu real, verdadeiro e superpoderoso amor por Berenice.

Quando se deitava no seu leito satrapal junto de Berenice, sussurrava-lhe no ouvido em verdade, Eurídice era muito parecida com uma pombinha, totalmente privada de cérebro... E era estranho mas verdadeiro que ele freqüentemente espirrasse no curso de dizer algo do gênero, como se o próprio Zeus confirmasse a verdade do que dizia.

Sim, os espíritos de Eurídice submergiam, porém era a hora de Berenice florescer, e desde o início do seu segundo casamento ela se determinou a conseguir o que desejava, e não mais obedecer a tudo que lhe mandassem fazer, pois acabara de descobrir, se a verdade fosse dita, uma nova e grande determinação.

Berenice conhecia bem as atividades domésticas da residência do sátrapa, e sabia o que fazer para manobrar esse conhecimento em seu próprio proveito. Na parte mais fresca do dia, perambulava por entre os serviçais para se certificar de que tudo estava sendo feito como devia pão, vinho, cerveja, carne, água, varredura, polimento — tudo devia estar na mais perfeita ordem. Berenice tomou a si o encargo de tudo, e os escravos vez por outra estremeciam sob as invectivas de sua irada língua. De repente, Berenice tinha se tornado uma pessoa poderosa, cuja palavra era lei, e suas duas crianças, Magas e Antígona, deixaram de ser crianças de origem desconhecida, porém as enteadas do sátrapa, que deviam ser tratadas com certo respeito.

Se o silêncio tinha sido garantia de Berenice no passado, era pela conversa que ela atingia uma posição totalmente diferente na vida. Enquanto Eurídice permanecia com a língua presa na presença do sátrapa, quase com receio de pronunciar uma palavra sequer, e mordia os lábios sempre que ele ia para a sua cama, ou falava de trivialidades, de vestidos, ou jóias, ou de dinheiro para comprar um novo par de sapatos, a língua de Berenice era, sim, o segredo do seu sucesso, porque ela sabia se afirmar na presença do sátrapa, mostrava-se feliz de conversar com ele por horas seguidas sobre assuntos militares, diferentes modelos de navios de guerra ou de máquinas de cerco e sobre a arte de subjugar uma cidadela inimiga, e conhecia a história inteira de Alexandre. A verdade era que Felipe, seu falecido marido, fora um oficial do exército, de maneira que havia pouco que Berenice ignorasse sobre a guerra. O seu bom-senso em dar conselhos era o que Ptolomeu almejava, e ele até mesmo começou a consultar a sua opinião sobre as mais sérias questões do Estado.

Deste modo, Berenice acabou por fazer-se indispensável para ele. Na verdade, era uma mulher muito esperta, e estava bem consciente do que fazia. Berenice queria o poder. Necessitava portanto ter filhos do sátrapa, a fim de tornar mais forte o seu poder sobre ele. E ela queria também que o seu filho — que ainda não havia nascido — se tornasse o sucessor de Ptolomeu, porque na verdade olhava para os três filhos de Eurídice e os julgava uns inúteis, achando que nenhum deles poderia se tornar num bom governante para o Egito.

Berenice tinha certeza de que o seu filho seria um excelente sátrapa, e por que não, pensava, Faraó do Egito, também? Certamente, ela conseguira se colocar agora na mais vantajosa das posições. Tudo o que precisava fazer era dar à luz uma criança do sexo masculino. Porém, na sua vida à frente, seria exatamente isso o que traria a Berenice as maiores dificuldades.

Enquanto a tia Berenice ficava com a silhueta cada vez mais rotunda, e mais robusta ainda, suas crianças cresciam Magas, um garoto não muitos anos mais velho do que Ptolomeu Keraunos, tornou-se um parceiro de luta livre bastante adequado, um também adequado adversário no jogos de dados e no jogo de ossos, e esse Magas provou ser o que Ptolomeu, o Raio, teria, na vida, de mais próximo a um verdadeiro amigo.

Quanto a Antígona, ela cozia e fiava, agora, junto às filhas do sátrapa, Theoxena, Lysandra e Ptolomais, vivendo a vida de tartaruga do gynaikeion, fazendo o possível para não olhar para fora da janela. Aprendeu a se preservar como a filha de uma mulher que podia, se a asa dourada de Tykhe, deusa da Sorte, não a desertasse, ser Rainha do Egito. Foi ensinada a adotar o comportamento requerido de uma moça que um dia poderia se casar com um importante príncipe, pois, tão ambiciosa quanto em relação a ela mesma, sua mãe acalentava as mais altas ambições também em relação aos seus filhos.

Eurídice estava ainda tranqüila quanto a ser mãe do próximo sátrapa, embora, aos olhos de Ptolomeu, era a sua nova esposa a esposa mais importante. A sua segunda esposa passara a ser a primeira e, agora, a mulher mais poderosa do Egito.

Berenice estava certa disso. O seu horóscopo já lhe revelara o que o futuro reservava para ela. Esposa e Mãe de Reis, assim foi dito, e se tais coisas estavam além dos sonhos de qualquer mulher comum, Berenice não era em absoluto uma mulher comum. Era Berenice, a Portadora da Vitória, e pressentia agora que até o impossível poderia ser realizado.

 

                       A Filha com Garras

Berenice, em sua grande ansiedade de dar à luz os melhores filhos para Ptolomeu — embora sem lhe revelar nada de seus planos secretos — ministrou-se, por trinta dias e trinta noites, doses de estrume de falcão dissolvido em hidromel, segundo o costume dos egípcios. Durante o seu período de fertilidade, Berenice não ansiava a dieta de terra preta, porém aferrava-se aos damascos, limões e bananas, mastigava as cabeças de flores amarelas, além de ter mandado pintar as paredes de seus aposentos como o Sol. Pois sonhava não com um garoto moreno, como Ptolomeu, o Raio, mas com um garoto de cabelos louros, tão belo quanto Apolo, que pudesse ser o Filho do Sol, Faraó do Egito. E na realidade este seu desejo não era uma coisa impossível de acontecer.

Um pouco antes do momento previsto para que entrasse em trabalho de parto, Berenice providenciou para ser transportada numa liteira ao templo do novo deus, Serápis, em Mênfis, onde pernoitaria, de modo a se beneficiar das suas bênçãos e ao mesmo tempo estimular o culto ao deus inventado por seu próprio marido.

E, claro, os cachorros do templo vieram lamber suas partes íntimas, e as serpentes do templo vieram lamber as suas orelhas; porém, embora Berenice se sentisse afortunada e jurasse que tinha tido a visão do deus barbado, nas horas mortas da noite, confessou a Ptolomeu que não vira nada, absolutamente nada — que havia sentido muito frio, dormindo no Templo de Serápis, e que dava muito pouco valor, muito pouco, a um deus que não era capaz sequer de se apresentar para ela em pessoa.

Quando começaram os berros de Berenice, quatro de suas aias passaram a balançá-la para a frente e para trás para fazerem a criança sair, enquanto — como qualquer outra mãe grega — ela proferia suas ofegantes preces para Artêmis e Eileitéia, a deusa das dores de parto, e aspirava pimenta para provocar espirros. Como toda mulher grega na sua situação, mastigou carne de lobo. Ela gritava e urrava; o barulho que fazia era abafado pelas mulheres, que batiam em panelas e frigideiras, e finalmente deu à luz uma criança de olhos azuis de um cúbito de comprimento, cujos cabelos não eram escuros, mas dourados como ouro.

Quando Ptolomeu entrou no quarto de Berenice pela primeira vez depois do parto, ela virou o rosto para a parede, envergonhada, pois aquele filho dela era, em verdade, uma filha — de rosto claro, certamente, mas uma garota, no entanto, e nascida num dia nefasto para nascituros do sexo feminino, muito nefasto.

Por conta disso, Berenice esperava que Ptolomeu sem dúvida fosse lhe dizer que iria enjeitar a criança, e ela caiu no choro, lamentando-se e se desculpando por ter falhado com o seu amo.

No entanto, Ptolomeu pegou ambas as mãos dela. Uma filha, ele disse, é um grande trunfo. Uma garota será muito útil para alguma aliança política no futuro... se bem que a verdade é que ele tinha agora cinco filhas e apenas quatro filhos, e não estava satisfeito, pois o nascimento de meninas nada significava a não ser desgraça e desastre para um grego. Porém, ele trincou os dentes e ordenou que enfaixassem a criança, de forma que ela pelo menos crescesse com os membros perfeitos, disse ela se chamará Arsinoè, em homenagem à nossa mãe.

Amarrada a uma prancha durante os seus primeiros sessenta dias de vida, isso apenas poderia significar que Arsinoè cresceria como uma criança zangada e, sim, ela seria muito feroz, em nada diferente de sua mãe uma garota que fincaria suas garras e dilacelaria como uma leoa, uma garota que não se deteria diante de nada para conseguir o que desejasse, nem mesmo de derramar o sangue de sua própria família. Pois, na verdade, esta era a ilustre e mais ilustre das garotas, que mais tarde se tornaria Arsinoè Beta, a famosa rainha, e não apenas seus cabelos, porém todo o futuro diante dela parecia, então, reluzir como o ouro.

Anemhor, sumo sacerdote de Ptah, ao fazer sua primeira visita a essa filha, insistiu, você deve cuspir-lhe na boca, para conferir-lhe boa sorte, vida longa, e ele sorriu o seu meio sorriso, dirigindo-o aos pais da menina.

Ptolomeu hesitou. Por um lado, qualquer filha necessitava de toda sorte que pudesse conseguir; por outro lado, não era realmente um costume grego cuspir dentro da boca de um bebê, e ele assim disse.

Porém, Anemhor contestou vocês são egípcios, agora. Cuspir é o costume dos egípcios... isso lhe trará muito boa sorte.

Assim, Ptolomeu reuniu sua saliva na boca e cuspiu, pensando, que coisa nojenta!, que dificilmente poderia trazer boa sorte praticar um ato tão grosseiro, e que ele nunca seria um egípcio.

Arsinoè Beta na verdade necessitaria de toda a sorte do mundo, pois o sumo sacerdote já tinha traçado o seu horóscopo, e era péssimo, pior impossível, pois prenunciava que ela nem desfrutaria de uma longa vida, nem de boa fortuna, mas que estava predestinada a uma passagem pela Terra que seria desastrosa e infeliz, que ela faria um casamento desafortunado, com seu próprio irmão; e que conheceria horrores, muitos horrores, o tipo de horrores que fazem o cabelo ficar em pé na cabeça, como chifres.

Já Berenice, ela se preocupava se, afinal de contas, havia agido corretamente. Permitira que suas orelhas fossem lambidas pelas serpentes sagradas, em respeito a Dionísio, deus do Frenesi. Fizera sacrifícios a Agathos Daimon, a deusa-serpente guardiã da cidade do seu novo marido, Alexandria. Havia até mesmo voltado seus olhos para imagens de serpentes, durante toda sua gravidez, achando que isso lhe traria boa sorte.

Tantas cobras, tantas e tantas serpentes — talvez, enfim, fosse de se esperar que alguma coisa da serpente devesse brotar na filha, Arsinoè Beta. Como se a cobra fosse parte de seu espírito.

Pobre Berenice. Havia sofrido muito, no passado; tanto que nem sequer podia falar sobre o assunto. Considerava agora que por toda a sua vida fora gentil demais, e sua esperança era que essa sua nova filha pudesse crescer forte, como Berenice era agora, não uma mulher dócil que se resignaria sempre em fazer o que os outros mandavam. Isso porque não desejava de modo algum que Arsinoê Beta se tornasse outra Eurídice, inútil para qualquer outra coisa a não ser parir crianças. Achava que uma mulher devia fazer mais de sua vida do que isso. E assim Berenice resolveu-se a criar essa filha para acreditar que odiar fosse melhor do que amar.

Acredite-me, ela diria para Arsinoê Beta, e o dizia com freqüência, gentileza demais é o melhor caminho para a destruição. E tendo visto o que a ama-de-leite fizera com Ptolomeu Keraunos, Berenice escandalizava as suas aias amamentando, ela mesma, sua criança, para que não houvesse a menor dúvida sobre como seu caráter iria se moldar.

Logo que Arsinoê Beta começou a ingerir alimentos sólidos, mastigados antes por Berenice e depois cuspidos na boca da menina, como fazem os pássaros, Berenice começou a pensar em seu próximo bebê, e no seu grande desejo de se tornar mãe de um filho seu com o sátrapa. Começou então a teimar com o marido para que ele amarrasse o seu testículo esquerdo de novo com cordões de papiro, e o incitou a pôr-se ao trabalho.

Quando Berenice sofreu o seu primeiro aborto, os médicos gregos culparam as flores, e removeram o gladíolo do seu quarto de dormir, e todas as flores da família dos gladíolos foram arrancadas do jardim da residência e queimadas numa grande fogueira.

Mesmo assim, ao mesmo tempo que Berenice suspeitava que a culpa fora das flores, sabia, no seu íntimo, que a probabilidade maior era que seu problema se devesse a algum feitiço de Eurídice.

Quando Berenice sofreu o segundo aborto, seus médicos gregos culparam os espelhos, e ela mandou remover todos os espelhos do gynaikeion.

Mesmo assim, parte dela desejava pôr a culpa em Eurídice, e ela viu, no olho de sua mente, a sua sobrinha espetando alfinetes numa boneca de cera feita à sua imagem, o que era, afinal, o encantamento que a própria Berenice havia ensinado a Eurídice, a fim de matar o tempo durante as longas horas da viagem delas para o Egito, fazendo-a aprender de cor as palavras de poder que deviam ser proferidas junto à boneca, o que fora parte do treinamento de Eurídice para protegê-la em terra estrangeira.

Seria verdade? Ou Berenice teria imaginado tais coisas? Thot penetra, agora, no espírito desta Eurídice, esta mulher rejeitada pelo seu marido. Não seria ela uma mulher amarga? Não estaria ela, de fato, buscando vingança?

Afinal de contas, Eurídice era uma mulher que não tinha nada para fazer exceto ruminar pensamentos. Passava os dias, todo os dias, sentada em sua cadeira, abanando-se contra o calor sufocante. No entanto, Eurídice, a frágil garota, estava mudando. Havia descoberto a comida, e comia para aliviar seu sofrimento. Chegava mesmo a dizer comer é o único prazer que me resta. Começara sua vida conjugal como qualquer outra garota, mas, agora, ia se tornando mais robusta, e não era a robustez de outra gravidez, pois seu marido não mais se aproximava dela, mas o resultado de comer demais. Começou também a rir, uma risada estranha, que com freqüência irrompia sem nenhuma causa aparente.

É como o riso de um débil mental, Berenice disse ao seu marido, o riso de uma mulher maluca.

Eurídice passava as manhãs sentada em sua cadeira, abanando-se com um leque na mão esquerda, e enfiando uma azeitona atrás da outra na boca com a direita. Ocasionalmente, inclinava-se para a frente, para olhar pela janela, tentando enxergar tudo o que lhe fosse possível da vida na rua abaixo, evitando a vulgaridade de ser vista. Vez por outra, cuspia os caroços pela janela, divertindo-se ao tentar atingir os que passavam lá embaixo, e rindo a sua louca risada.

Por toda a tarde, seus jovens servos núbios arrastavam silenciosamente os pés descalços pelo assoalho, trazendo para Eurídice a bandeja de ouro repleta de doces que a distrairiam até a hora da ceia.

Thot diz o Tédio aguça o apetite, e Eurídice engordava cada vez mais, e ria aquela risada ensandecida com cada vez mais freqüência. Ela não era completamente infeliz. Tinha tudo o que desejava, tudo o que pedisse — tudo exceto o amor e a atenção do homem que era seu marido. Isso porque Ptolomeu raramente visitava a sua primeira esposa, a não ser talvez para reclamar aos gritos contra o incontrolável Ptolomeu Keraunos. Entretanto, Eurídice não sabia o que podia fazer em relação a esse seu filho que raramente via, que após os sete anos de idade fora proibido de entrar nos aposentos das mulheres, e abria os braços, e ria, como querendo dizer que o garoto era incorrigível, e mesmo então sua boca estaria cheia de dúzias de tâmaras, de modo que a sua voz saía abafada.

Ptolomeu gostava de mulheres com as curvas elegantes de uma estátua grega, não as fartas dobras de gordura que Eurídice ostentava agora, que balançavam quando ela andava, como a argurotrophima, a delícia prateada, que comiam em todos os aniversários e que tanto os divertia por estremecer sem cessar sobre a travessa de ouro.

Por conta da morte do Velho Antipatros, seu pai, Eurídice entrou na posse legal de uma grande soma de dinheiro. Possuía, ainda, suas jóias, suas gemas preciosas, e ninguém poderia tomá-las dela. Apreciava fazer comentários quanto ao seu Testamento, como se estivesse planejando partir desta vida, ou como se ela desejasse exercer algum poder relativo a heranças ou legados, porém seus filhos eram novos demais para entender tais coisas, seja a morte, seja o dinheiro, e se ela pretendia fazê-los se comportarem melhor sob a ameaça de deserdá-los, estava equivocada, pois os filhos de Eurídice continuariam brigando como sempre.

Eurídice não se deu conta de que, com a morte de Antipatros, a aliança assinada por ocasião do seu casamento perdera a validade, e que a sua própria importância havia se derretido da noite para o dia, como a neve enviada da Síria para gelar o vinho do seu marido. O tratado de paz estava encerrado, e ela se tornara meramente uma entre muitas mulheres, das quais Berenice era a primeira.

Será que Ptolomeu pensava em divorciar-se de Eurídice? Não, não pensava. Pensaria ele em mandá-la embora de Mênfis? De modo algum. Por enquanto, não faria nada nesse sentido. Era sempre mais fácil não fazer coisa alguma. E Eurídice era ainda a mãe de Ptolomeu Keraunos, o garoto que deveria suceder ao sátrapa, e assim a situação entre as mulheres continuaria

a mesma, por ora.

Já Berenice continuou a ingerir doses diárias de excremento de falcão e hidromel, tentando providenciar para que fosse um filho seu a suceder o sátrapa, no lugar do Keraunos da Eurídice. No entanto, passaria oito longos anos engolindo estrume de falcão e hidromel, antes de conseguir êxito. Sim, o Sátrapa manteve amarrado o cordão de papiro durante 2.920 noites antes que a sorte de Berenice retornasse.

Durante todo esse tempo, Berenice pariu inúmeros meninos, mas todos nasceram mortos ou morreram depois de algumas poucas horas. Berenice sentia-se como tendo fracassado no que pretendia de mais profundo em seu ser, e quando deu à luz a primeira criança deformada, que teria de ser rejeitada, seu marido lembrou as palavras de Aristóteles Crianças sempre se parecem com seus pais. Um genitor anormal sempre terá um filho anormal. E ficou se perguntando o que teriam feito para enraivecer os deuses. Nem ele nem Berenice tinham quaisquer características anormais. Não deveria haver a menor dúvida de que somente teriam crianças perfeitas. Porém, nenhum dos bebês de Berenice sobreviveu. Apenas a filha, Arsinoê Beta, sobreviveu; já o irmão mais novo com o qual estava destinada a se casar, os deuses da Grécia, assim parecia, recusavam-se a permitir que nascesse.

Eurídice expressou sempre o seu pesar e sua preocupação e verteu muitas lágrimas com Berenice por conta dos seus problemas. No entanto, não podia evitar de sentir uma sensação de triunfo por Berenice não ser capaz de dar ao sátrapa um filho vivo, enquanto ela havia dado à luz quatro filhos sadios. Assim, reservadamente, ela se ria, porque sua tia era velha demais para ainda poder parir novos filhos.

Por trás da porta trancada dos seus aposentos particulares, onde ninguém entrava a não ser ela mesma, Eurídice havia de fato despendido toda uma noite modelando com cera a imagem de tia Berenice, e tinha de fato perfurado a boneca da tia com sete cravos de chumbo; um cravo em cada orelha rosada de Berenice; um cravo em cada um dos seus olhos azuis; um cravo em sua bocarra; um cravo em cima de sua cabeça gorda; um cravo entre os seus seios caídos, e um cravo bem enterrado em sua bolha, até o fundo de seu útero estéril.

Quando Berenice se queixava de dores — dores na cabeça, dores nos ouvidos, e de olhos doloridos e dores no peito —, seus médicos, tanto os gregos como os egípcios, diziam que seu problema era causado, sim, por um desequilíbrio dos humores, e receitaram-lhe poções e cataplasmas derivados dos intestinos do crocodilo.

Porém, nenhum remédio surtiu muito efeito sobre a saúde de Berenice não podia haver mudança até que Eurídice arrancasse os cravos de chumbo de sua boneca de cera, libertando Berenice, uma vez que Berenice estava atada, enfeitiçada pelo terrível poder do feitiço de Eurídice.

Claro, Berenice tinha suas suspeitas. Não havia, ela refletia, senão uma pessoa em todo o Egito que se daria ao trabalho de realizar o Feitiço da Possessão. Porém, embora tendo vasculhado os aposentos particulares de sua sobrinha, que foi o que fez, Berenice não encontrou nenhuma boneca de cera, nem qualquer outro sinal de deslealdade de Eurídice em relação a ela, pois a boneca de cera estava enterrada bem fundo na parede de tijolos de barro, onde ninguém, absolutamente ninguém, poderia encontrá-la.

Quanto aos bebês mortos, Berenice enterrou-os, todos, presos a bandagens, não no nascimento, mas na morte, atendendo à sugestão do sumo sacerdote de Ptah, dentro de ferétros de ouro de um cúbito de comprimento, e eles formaram uma fileira de bonecas douradas na necrópole do maravilhoso novo deus Serápis, que a desapontara vezes e vezes seguidas.

Berenice conduziu cada um, ela mesma, em seus próprios braços, até o planalto deserto oposto a Mênfis, e para cada um ela trouxe brinquedos de criança, tais como o crocodilo de madeira com mandíbulas móveis, que ria e tinha olhos pintados, e o leopardo de madeira com cauda abanando, com os quais seus filhos não tiveram vida suficiente para se divertirem; e assim Berenice chorava, ainda que fosse uma mulher forte.

Em público, Eurídice também derramava suas lágrimas; em particular ela ria.

Berenice enviou então as oferendas mais generosas para os templos de todos os deuses e deusas dos gregos, e até para alguns dos deuses egípcios; porém, as maiores oferendas ela reservou para Serápis, o deus inventado por seu marido, em cujos poderes ela ainda não tinha inteira fé, na esperança de um milagre.

Já Ptolomeu, ele não estava muito preocupado; tinha seus quatro filhos, por seu lado. Tinha seu herdeiro para a satrapia não encontrava em Ptolomeu Keraunos defeitos graves o suficiente para impedir que esse seu filho — seu filho legítimo mais velho, a pupila dos seus olhos — se tornasse seu sucessor.

De modo algum Ptolomeu decidira que o Raio daria um bom sátrapa do Egito, e estava preparando-o com todo cuidado, o melhor que podia, para o caminho que ele deveria seguir.

 

               Mais Guerras Sírias

Ao ser perguntado por Anemhor se, algum dia, não gostaria de trocar o título de sátrapa pelo de Faraó, Ptolomeu riu, pois nunca tal coisa lhe passara pela mente. Por um lado, haveria o kudos, o poder, e tal deleite como o de voar para o céu montado no furacão e tornar-se uma das Estrelas Imperecíveis, por ocasião de sua morte; porém, por outro lado, ele pensou sobre a soberba, sobre o orgulho e a presunção. Sim, ele chegou a recordar as palavras de Homero, sobre essa matéria pense, e esquive-se! Nunca se julgue à altura de um deus. Ptolomeu ainda tinha medo o bastante em relação aos deuses da Grécia para se acautelar quanto à loucura que poderiam baixar sobre os homens culpados do pecado da vaidade.

E assim, respondeu a Anemhor a extravagância é perniciosa. A soberba será castigada pelos Céus.

Disse a Anemhor que estava muito feliz sendo sátrapa. Um sátrapa é o suficiente para qualquer homem. Não desejava ser um rei. Nunca pensou em se tornar um deus. E, claro, ter o ausente garoto Alexandros como rei era o bastante.

Mas não era o bastante para Anemhor. O Egito precisava de um faraó que morasse no Egito. Ter apenas um sátrapa não bastava.

Mesmo sem a intenção de provocar os deuses, Ptolomeu passara a gravar sua efígie nas moedas, os dracmas, tetradracmas e octodracmas de bronze e ouro com os quais pagava seus soldados e seus mercenários; e no reverso, estampava a sua insígnia, que era a águia do todo poderoso Zeus.

E por que fazia isso? Porque a águia é o único pássaro que nunca é atingido pelo relâmpago ou morto pelo raio. A águia é o rei dos pássaros, que dorme sobre o cetro de Zeus. Como sempre, Ptolomeu copiava Alexandre, cujo estandarte era uma águia encarapitada num bastão, com uma serpente presa entre as garras.

Águias, raios — tudo isso significava poder. E na luta pela liderança das terras que no passado haviam formado o império de Alexandre, Antígonos Monoftalmos agora começava a despontar como o inimigo comum de todos os demais sucessores, que começavam a forjar alianças especiais uns com os outros, a fim de unir-se contra o Caolho e tomar-lhe o poder.

No oitavo ano da satrapia de Ptolomeu, o Caolho, vindo da Macedônia, investiu com seu exército sobre a Fenícia e a Síria, que eram então possessões de Ptolomeu. Ocorreu que, em vez de enfrentar o Caolho, Ptolomeu achou preferível recuar, porque não estava pronto para essa luta.

No Egito, então, a notícia era que haveria guerra, e oprostagma do sátrapa foi encaminhado às mulheres de Mênfis e de todo o Egito, mandando-as pararem de cortar os cabelos, e deixarem-nos crescer até o comprimento em que pudessem ser torcidos para formar fortes cordas, as cordas que iriam disparar suas catapultas de torsão, bestas e máquinas de cerco, assim como todas as máquinas de guerra, de modo a ajudarem a trazer uma avassaladora vitória para Ptolomeu.

Naquele mesmo ano a guerra foi declarada, e o exército terrestre do Caolho triunfava onde quer lutasse, embora a sua frota de 240 navios de guerra não fosse tão bem-sucedida. O Caolho, assim como Alexandre, achou que deveria subjugar a cidade de Tiro, mas, a despeito das hostilidades deste homem, Ptolomeu não fez esforço algum para resistir ao exército de seu inimigo. Simplesmente reforçou as guarnições das principais cidades. Joppa e Gaza caíram facilmente nas mãos de Antígonos Caolho, porém Tiro resistiu a mais esse cerco. Dessa vez, manteve-se lutando por 45 dias.

Ptolomeu emitiu suspiros ao examinar o papiro com o mapa da Síria e da Palestina, que tinha cravos de bronze fincados para mostrar o que era seu e o que não era, e onde se encontrava o seu exército, e o do Caolho. O coração de Ptolomeu não estava nessa guerra. Ele estava mais interessado em paz, pois já tinha 52 anos de idade, estava cansado de lutar e farto de gastar a receita pública do Egito em infindáveis batalhas.

No entanto, antes do fim desse ano, Ptolomeu foi obrigado a montar em seu cavalo para ir ao encontro de Antígonos em Ecregma, na fronteira entre o Egito e a Palestina, para conversar sobre a troca ou resgate de prisioneiros de guerra. Até pouco tempo atrás, esses dois homens eram camaradas de guerra e bons amigos. Não havia ódio pessoal entre eles. Eles se abraçavam quando se encontravam, mostravam os dentes e falavam dos tempos idos.

No ano seguinte, com a velha amizade já inexistente, o Caolho capturou Tiro, e riu bastante só de pensar no aborrecimento que estava causando ao seu velho amigo.

A Guerra se sucedia à guerra, agora, e, no calor do Egito, Ptolomeu perdeu a calma e vociferou que a luta pela disputa da Síria tinha tudo para durar dez anos. Porque, agora, deveria se atirar não apenas contra Antígonos Caolho, mas também contra seu filho, Demétrio, o garoto que seria chamado de Poliorketes, ou Sitiador de Cidades, e que tinha sob seu comando um enorme exército e quarenta e três elefantes de guerra.

Ptolomeu não tinha um elefante sequer, tendo aprendido com Alexandre a desprezar esse animal, a achá-lo nada confiável, pois embora às vezes fizesse o que lhe era mandado e investisse à frente, era igualmente capaz de dar meia-volta e pisotear os homens do seu próprio exército.

No décimo primeiro ano da sua satrapia, Ptolomeu deixou Mênfis comandando mil e oitocentos soldados e quatro mil cavalos, rumando para Pelúsia e as fronteiras do Egito — macedônios e mercenários de toda a Grécia e Ásia, assim como uma grande quantidade de nativos egípcios, utilizados como vivandeiros e carregadores —, tendo armado suas tendas em Gaza, não muito distante de onde o seu inimigo, Demétrio Poliorketes, se achava estacionado, esperando por ele.

Os amigos de Demétrio o haviam alertado, com severidade, para que não pensasse sequer em enfrentar um general tão formidável como Ptolomeu; porém Demétrio não lhes deu atenção e preparou-se para uma grande batalha, para a qual, inclusive, precipitou-se sem pedir conselhos sobre tática a seu pai, e dispondo tão somente de ordens, as mais vagas, para fazer o que pudesse de modo a manter a Síria sob controle antigônida. Demétrio tinha apenas vinte anos de idade. Embora, evidentemente, tivesse grande potencial, tinha pouca experiência na guerra e nenhuma de alto-comando. Além do mais, agora ia enfrentar Ptolomeu e Seleuco, dois dos maiores generais da época, que tinham acompanhado Alexandre até as lonjuras da índia, e que eram, no momento, imbatíveis.

Demétrio era um belo jovem, de surpreendente estatura — como um jovem deus, eles diziam, um jovem Apolo —, tão belo, de fato, que tanto homens como mulheres o seguiam pelas ruas só para contemplar de perto a sua divina beleza; sua armadura prateada brilhava ao sol e encantava suas tropas, era o que todos comentavam, com reverência; sua polidez e boas maneiras haviam lhe granjeado a devoção geral, fazendo todos lembrarem Alexandre.

Porém, Thot diz a Beleza não ganha grandes batalhas.

Entre os que foram trazidos para assistirem à batalha estava a família inteira e toda a criadagem de Ptolomeu ambas as suas esposas e dez crianças incluídas. Pois era crença de Platão que as crianças devem conhecer a guerra, o trabalho para o qual estavam destinadas, e acolhendo tal idéia em seu coração, Ptolomeu pôs sua família no lombo dos cavalos e, à frente ou atrás deles, cavaleiros experientes, de maneira que, em caso de perigo, pudessem escapar.

Levar crianças para presenciar batalhas, na verdade, não era nenhuma novidade, já que as crianças da família real do Faraó Ramsés II, por exemplo, haviam assistido toda a Batalha de Kadesh, na Síria, muitos séculos antes.

Lá estavam, portanto, Lagos, Leontiskos e Irene, e Ptolomeu Keraunos de nove anos de idade, e suas três irmãs mais novas, Theoxena, Lysandra e PtolomaYs, respectivamente com seis, cinco e quatro anos, todos observando a falange de Ptolomeu em ação. Magas e Antígona estavam presentes, também, assim como Arsinoè Beta de quatro anos de idade — todos ansiosos para ver a vitória do seu poderoso pai.

O fragor da grande batalha cresceu, assim como a gritaria das tropas e o berro das trombetas; e também o entrechoque de sarissa contra sarissa, espada contra espada, indo do amanhecer até a hora de perfumar a boca, quando já havia uma nuvem de poeira suspensa no ar e sangue espalhado por toda planície.

Berenice impelia à frente as tropas de seu marido, gritando palavras de encorajamento. Quanto a Eurídice, ela tremia, e não gritava por Ptolomeu nem pelo Egito. Não parou de tremer um momento sequer, e não conseguia obrigar-se a assistir ao estrépito da guerra; pelo contrário, manteve sempre os olhos bem fechados.

De todos os filhos de Ptolomeu, apenas Keraunos e Arsinoê Beta tiraram melhor proveito dessa excursão para assistir à batalha. Anos mais tarde, Arsinoê Beta assumiria pessoalmente o Ministério de Guerra, porém o seu treinamento em estratégia, tática e diplomacia iniciou-se ali, na Batalha de Gaza. Ela repetia sempre que era a primeira experiência de que se lembraria, e de fato jamais a esqueceu Arsinoê deliciava-se com o barulho, o caos, a violência, e foi a primeira vez em que viu sangue. A guerra, ela diria, é maravilhosa, e não cessaria de falar sobre essa sua guerra durante anos à frente.

O que, então, Arsinoê Beta viu em Gaza? Viu Ptolomeu e Seleuco enfrentarem esse tal Demétrio Poliorketes, um mero rapaz, com seus elefantes de guerra e seus 17.000 soldados enfileirados, prontos para a luta com seus capacetes polidos com o propósito de ofuscar o inimigo. E o que aconteceu? Ptolomeu, como sempre, fez o que Alexandre teria feito, pois os métodos de Alexandre eram os melhores, e era como se o seu espírito estivesse a observá-los.

Era enorme o terror que o barrido dos elefantes de Demétrio suscitava nas tropas de Ptolomeu; no entanto, Ptolomeu arremessou ferrões contra esses animais para lhes deter a investida, e os veteranos, de algum modo, conseguiram incitar os novatos, de maneira que a falange avançou, e em nenhum momento homem algum parou de berrar o Alalalalai; a poeira erguia-se e a areia de Gaza tingia-se de sangue. Muitos homens foram feridos, e muitos morreram, mas, no final, Ptolomeu capturou todos os 43 elefantes de guerra e fez oito mil prisioneiros; tomada de pânico, a cavalaria de Demétrio debandou.

Demétrio não apenas perdeu seus elefantes e sua cavalaria como também sua tenda de couro, seu dinheiro, e seus pertences pessoais — tudo o que possuía. Foi uma terrível derrota para esse garoto, de cujo exército de 17.000 homens, cinco mil morreram no campo de batalha. Três em cada quatro dos prisioneiros de guerra bandearam-se de imediato para o lado dePtolomeu, já que eram mercenários, os quais não lutam por lealdade, mas por dinheiro. Ptolomeu assentou esses homens no Egito com os polegares da mão direita decepados, para que não voltassem a empunhar nem a espada nem o arco contra ele.

Foi assim que a cidade de Gaza caiu nas mãos de Ptolomeu.

Quanto a Demétrio, ele fugiu também, porém Ptolomeu mostrou, nesse episódio, a mais extraordinária generosidade, ao devolver o dinheiro e tudo o que perdera o seu adversário, acompanhados de uma mensagem polida, cumprimentando-o por sua bravura — o que era até então inaudito em uma batalha de grego contra grego. Sim, era um galante desfecho para uma batalha que nada tinha realmente a ver com ódio cego — que não era uma luta de vida e morte, porém uma mera questão de honra e poder, uma batalha que tinha apenas como objetivo resolver uma disputa de fronteiras.

Demétrio ficou satisfeito com o benevolente gesto de Ptolomeu, porém ao mesmo tempo rezava para não permanecer por muito tempo em débito para com o sátrapa do Egito, e fez o mais solene juramento perante os deuses da Grécia, afirmando que teria a sua vingança.

Demétrio não ficou nem um pouco abatido pela derrota. Comportou-se como um general experiente que já vivenciara os reveses e as reviravoltas da sorte. Pôs-se logo a arregimentar novas tropas e a reunir novos suprimentos de armas, e dirigiu sua energia para o treinamento do seu exército para a nova batalha, a qual, assim jurou por Zeus, ele venceria.

Quanto a Ptolomeu, ele marchou para casa à frente de seus exércitos e, quando entraram em Mênfis, em triunfo, cantando o Paian da Vitória para Apolo, a cidade enlouqueceu de alegria mais uma vez.

As doze tenebrosas cestas de vime, repletas de polegares da mão direita, Ptolomeu as dedicou a Sekhmet, a deusa leoa de Mênfis, Senhora do Linho em Vermelho Vivo, que exala fogo contra os inimigos do Egito, e os sacerdotes e sumos sacerdotes do Egito enviaram a Ptolomeu suas sinceras congratulações.

Ptolomeu ficou satisfeito, então, por poder reocupar toda a Palestina e a Síria. Por todo lugar que passava, mostrava-se generoso, polido e afável, justo o oposto de um tirano; pois, acima de todas as coisas, ele desejava ser um senhor do Egito bastante popular. Queria ser um sátrapa popular. Por toda parte, espalhava generosidade e justiça. Era um governante justo, amado por todos que o serviam.

Seleuco, ex-sátrapa de Babilônia, e filho de Antíoco, que fora o seu cocomandante em Gaza, Ptolomeu agora reinstalava-o em sua antiga satrapia, com o apoio integral do Egito. Infelizmente, esse foi um gesto de boa-vontade do qual a Casa de Ptolomeu se arrependeria, já que boa vontade seria algo que a Casa de Seleuco raramente mostraria nos trezentos anos seguintes.

Não muito depois, Ptolomeu enviou Kiles, um dos seus generais, para atravessar o deserto com uma grande força e ordens para expulsar de vez Demétrio Poliorketes da Síria.

Demétrio estava preparado, e lançou um ataque de surpresa, arrasando as tropas de Kiles, apoderando-se do seu acampamento e capturando seus oficiais. Fez sete mil prisioneiros e arrebatou um grande tesouro. Isso, evidentemente, deleitou Demétrio, porém não por causa do que e quem havia capturado, mas pelo que podia agora devolver. E ele reproduziu o gesto de Ptolomeu, cumulando Kiles e seus companheiros de presentes e enviando todos os prisioneiros de volta para casa no Egito, sem decepar os polegares de ninguém.

Havia, então, pouco rancor envolvendo as guerras sírias. Até parecia que esses sátrapas estivessem disputando jogos, uns com os outros, embora a perda de vidas não desse muita margem para gargalhadas. Seja como for, eram tempos em que os negócios de guerra não eram levados tão a sério. Mas a guerra não seria empreendida de maneira tão civilizada mais adiante.

Qual a conseqüência, então, da derrota de Ptolomeu, fora seus exércitos terem marchado de volta para casa, em Mênfis, em silêncio absoluto? Ora, apenas isso; pois tendo conquistado a Síria e a Palestina pela segunda vez, era agora forçado a retirar-se da Síria e da Palestina pela segunda vez, e pela primeira vez em sua vida Ptolomeu conhecera a derrota, e não gostou nada disso.

Ptolomeu sacrificou bois a todos os deuses da Grécia e também a muitos dos deuses do Egito. Derramou lágrimas, porém não em público, nem por um período muito longo. No devido tempo, ele também jurou por Zeus, por Pan, por todos os deuses, eu terei minha vingança.

Mais à frente naquele ano, Ptolomeu fez a paz com Antígonos Caolho e com os demais generais Macedônios — Cassandro, governador da Macedônia, e Lisímaco, governador da Trácia —, e concordou, com o coração oprimido, em abandonar as suas pretensões relativas à Fenícia e à Síria.

No entanto, não fez a paz com Seleuco, da Síria, e não demorou até a guerra começar outra vez, tudo como antes, agora com seu antigo amigo transformado em inimigo.

Ptolomeu concentrou-se em tornar mais forte o seu poder nos mares, encomendando novos navios de guerra, às centenas. Embora tivesse perdido a Síria e a Fenícia, possuía ainda a ilha de Chipre, que era de capital importância em matéria de estratégia.

Embora continuasse a lutar, Ptolomeu confessou, aos suspiros, repetidamente, que estava cansado de guerras, farto da guerra e dos horrores. Nesse ponto, os egípcios concordavam com ele. O egípcio detesta derramamento de sangue. Odeia a destruição da vida familiar pacífica, causada pela batalha.

Ptolomeu já assistira a bastantes batalhas inúteis, e circulava pela residência repetindo aos seus conselheiros as sábias palavras de Bias de Priene Conquiste o seu objetivo não pela força, mas pela persuasão.

Os inimigos de Ptolomeu apreciavam dizer que a sua tendência a recuar, sempre que podia, era evidência de insensatez — da covardia desse homem. Porém, Ptolomeu não era covarde. Para ele, não lutar era o curso mais sábio de ação.

Estava igualmente cansado de lutar contra sua esposa Eurídice, que vinha exigindo dotação de fundos cada vez maiores, e que vinha se tornado estranhamente enfática e confiante sobre o que parecia pensar serem os seus direitos da esposa.

Ele a considerava agora uma Esposa Desafortunada, que parecia não ter trazido para ele senão infelicidade e derrota.

Sim, ele acreditava que Berenice, cujo nome nunca deve ser esquecido, já que significa Portadora da Vitória, podia mudar a sua sorte e trazer-lhe boa fortuna, e foi nessa época que tirou de Eurídice o título de primeira esposa e deu-o a Berenice, tia dela.

E ele estava certo. Berenice na verdade viria a ser sua esposa da sorte.

 

             A Cidade dos Peixes

Ao longo de todos esses anos — esses onze anos no Egito —, Ptolomeu sofreu com o calor. No verão, quando o calor piorava, nomeava mais coletadores de caracóis, e mais trituradores de caracóis, para fabricar sempre mais e mais do remédio contra insolação que continha caracóis triturados e olíbano.

Ptolomeu lera o tratado de Theophrastos, Sobre o suor, e sua continuação, Sobre a tonteira, e buscou novos meios de enfrentar a inundação de transpiração que extravasa de todo grego no Egito, mais particularmente dele.

Encomendava com regularidade óleo de terebintina que anulava ou disfarçava o odor repugnante das axilas, encomendava navios abarrotados de pó de rosa, que se acreditava poder estancar o suor de um homem instantaneamente. Nenhum desses artigos, no entanto, foi de grande valia, de modo que Ptolomeu pensou novamente em fazer de Alexandria o seu quartel-general, pois a cidade parecia ser mais suportável, quanto à temperatura e ao clima, e do norte chegaram notícias de que a nova residência satrapal estava quase pronta para ser habitada.

Ptolomeu estabeleceu os seus planos, e mandou pintar as paredes com cenas retiradas de Homero, cuidando assim dos últimos detalhes da decoração. Enquanto isso, seu exército continuava a se preparar para defender o Egito da invasão dos inimigos de Ptolomeu, exercitando-se na planície arenosa diante de Mênfis, sob o sol abrasador, com ovos de avestruz esfregados no rosto dos soldados para se protegerem das queimaduras do sol, sendo que nenhum dos homens removia sua kausia, ou barrete, exceto para enxugar a testa com ele, ou para acená-lo acima da cabeça quando saudavam o sátrapa no seu caminho descendo ou subindo o rio.

Ptolomeu dormia mal. O intenso calor, o zumbido das moscas que o picavam, o zurro dos macacos, o latido dos chacais, a responsabilidade nas questões de Estado pesando no seu espírito — todas estas coisas privavam-no de um sono apropriado. E quando conseguia efetivamente dormir, tinha pesadelos, acordava gritando, como se os persas estivessem sobre ele, ou era acordado por algum galo trepado no parapeito da sua janela, ou pelo íbis bicando as persianas com o seu bico alongado.

Ptolomeu, então, utilizou-se das mais potentes curas gregas para insônia a alcachofra dos telhados, embrulhada em um pano preto, que colocou por debaixo do seu travesseiro, e carne de rouxinol, comida antes de se deitar para dormir. No entanto, na maior parte das vezes, continuaria insone, preocupando-se não tanto com o presente quanto com o passado, que não conseguia esquecer, e o futuro o que tinha dado errado, e o que poderia dar errado a seguir.

Ptolomeu estava cansado, porém mais do que fisicamente cansado estava cansado de Mênfis depois de dez anos sem um sopro de brisa, exceto a voragem das tempestades de areia, e a ausência de água além da água do Nilo, na qual os nativos se banhavam e lavavam as suas roupas e na qual ele despejava os seus excrementos — sem falar que, na estação mais quente, a água secava, reduzindo-se a um fio.

Como todos os gregos, Ptolomeu preferia morar perto do mar. Além disso, agora desejava ter um controle mais direto sobre o comércio entre o Egito e a Grécia, que floresceria através do Grande Porto de Alexandria.

Mênfis, em verdade, fedia a múmias, assim ele dizia, pois o ar proveniente da necrópole não era puro. Sim, Mênfis era um lugar de morte, que fedia a morte e tinha o gosto da morte — e Ptolomeu estava cheio de mortes.

A residência estava atravancada por três mil anos de trastes faraônicos, refugos feitos de ouro que Ptolomeu considerava inúteis, pois não podia nem jogar fora nem, por mágica, fazer com que desaparecessem de vista salas empilhadas até o teto de móveis de ouro e sarcófagos de ouro, além de caixas cerimoniais de ébano e marfim; coisas que jamais seriam utilizadas novamente, mas que, como parte de uma herança dos Faraós, não poderiam ser descartadas.

Realmente, havia ecos do passado em demasia percorrendo Mênfis. Ptolomeu queria morar em uma casa sem ecos do passado, e assim resolveu mudar-se para o norte.

Já Alexandria, em construção havia vinte anos, não era mais um vilarejo de pescadores, mas uma bela cidade grega da maior magnificência, e Ptolomeu ansiava por morar lá.

A sua nova residência era o grande palácio de mármore branco de Paros, que cintilava ao sol, protegido por altíssimas muralhas, com postos de vigia, ameias, totalmente à prova de assalto, fosse por mar ou por baixo da superfície da terra. O sistema de esgotos era perfeito. Os suprimentos de águas subterrâneas, em gigantes cisternas, nunca permitiriam a escassez. Acima de tudo, a cidade era perfeitamente alinhada ao frescor que o vento noroeste trazia, descendo toda vida a Via Canopus e penetrando pelas janelas abertas da residência do sátrapa.

Ptolomeu fez a mudança, então, levando consigo as melhores peças do mobiliário de ouro de Mênfis, descendo o rio rumo a Alexandria, e enquanto navegava transportando seus bens domésticos na direção do mar, o povo do Egito acenava para ele e cantava, da margem arenosa do Nilo, ou entoando a canção de boas-vindas para o sátrapa.

Com Ptolomeu, seguia também o talismã perfeitamente preservado, ainda dormindo no seu caixão de ouro, por debaixo de uma máscara também de ouro, peça refinada do artesanato egípcio, escoltado por uma multidão que emitia os estridentes lamentos fúnebres em honra do Faraó, isso porque Ptolomeu levava com ele o desaventurado objeto que era o cadáver vivo de Alexandre por todo o percurso Nilo abaixo, eles lançavam os estridentes lamentos pelo rei morto, e isso fazia Ptolomeu, a despeito do calor, ter calafrios.

Alexandre, ele o pôs para descansar no local mais barulhento da cidade, no cruzamento entre a Via Canopus com a Via Soma, ou Corpo, para que as carroças, carretas, veículos de corrida, asnos zurrando e a população, com suas querelas, pudessem, se fosse possível, despertá-lo - uma vez que já dormia, então, havia 3.650 noites de sono. E isso a despeito da interdição grega de se sepultar qualquer cadáver dentro dos limites da cidade.

O principal, dentre todos os motivos para haver deixado Mênfis, era a grande paixão de Ptolomeu por peixe. O problema de Mênfis era que os peixes do mar, até chegarem à cidade, se deterioravam, e peixes salgados não eram substitutos à altura de peixes frescos. Mas Alexandria possuía um ininterrupto suprimento de peixes de água doce e de peixes do mar, e Ptolomeu salivava só de pensar nisto.

Logo acharia, é claro, que em Alexandria tudo parecia ter gosto de peixe. Tudo também tinha cheiro de peixe e o fedor de peixe podre impregnava o ar, ou era trazido da baía, através da Via Canopus, entrando pelas janelas da residência. Para Eurídice, que não se mudou para o norte sem protestos, até os damascos tinham gosto de peixe, a carne de gado tinha gosto de peixe, e os peixes tinham gosto... de Ptolomeu. Já Berenice não fez queixas. O cheiro de peixe não tinha importância comparado ao que ela havia obtido agora — ou seja, poder sobre uma cidade inteira, onde não havia sacerdotes egípcios que deveriam ser agradados. Em Alexandria, ela fazia somente o que queria.

Ptolomeu, então, trocou o mau cheiro de Mênfis pelo mau cheiro de Alexandria. No entanto, havia sempre o consolo de sentir menos calor, e era bem possível que, na nova cidade, pudesse dormir melhor.

Mênfis, ele pensara em deixá-la para os sacerdotes do Egito — se bem que não iria escapar do sumo sacerdote de Ptah tão facilmente, pois em conseqüência de Ptolomeu ter se mudado de casa foi que Anemhor passou o resto da vida navegando pelo rio entre Mênfis e Alexandria, a fim de oferecer seus préstimos e sábios conselhos ao sátrapa, de modo que esse homem parecia nunca estar no lugar certo, na ocasião certa, mas sempre percorrendo o rio.

Apesar de todos os inconvenientes de suas viagens, contudo, o meio sorriso do sumo sacerdote nunca abandonava o seu rosto, pois ali estava um homem com completo controle sobre si mesmo. Um escriba nunca demonstra mau humor. E, fosse qual fosse a situação, desde que fosse para o bem do Egito, nada poderia contrariá-lo.

Ptolomeu e sua família simultaneamente amaram e odiaram Alexandria, assim como tinham tanto amado como odiado a Macedônia, pois se tratava de pessoas que nunca estavam felizes onde quer que estivessem. Era do seu feitio, na verdade, encontrar defeitos em tudo e, onde quer que se encontrassem, desejariam estar em outro lugar. Quando na Grécia, ansiavam por deixar a Grécia; tão logo a deixavam, já sentiam saudades de casa. Tal é o paradoxo dos gregos, tal era o seu eterno descontentamento.

Compare, se você quiser, Leitor, com a família de Anemhor, sumo sacerdote de Ptah, que era feliz onde quer que se encontrasse e no que quer que fizesse; isso porque servir aos deuses do Egito é por si só uma felicidade, e o ofício de um escriba, fonte de contentamento. Thot jura que isso é a verdade.

O próprio Ptolomeu sentiu-se mais à vontade vivendo em Alexandria. Suava um pouco menos, mas, agora, andava menos incomodado pelo calor do que pela umidade, e sentia falta da beleza do inverno egípcio de Mênfis. Entretanto, não tinha jurado jamais pôr de novo os pés em Mênfis iria até lá sempre que os negócios exigissem a sua presença — ele voltaria. Enquanto isso, em Alexandria, em pleno início da primavera, tempestades violentas destroçaram as persianas das janelas do novo palácio e faziam-nas bater ruidosamente durante toda a noite, de modo que Ptolomeu continuava insone, pensando no passado, tentando lembrar como se fazia para esquecer.

Depois de um maravilhoso mês de Pharmouthi, seguiria-se o verão e uma umidade mefítica se elevaria todas as tardes do mar, assentando-se em tudo o que fosse seco, no interior da residência. Ptolomeu passaria a sofrer de calafrios, a espirrar, e isso anunciava uma recaída da febre dos pântanos, que o faria sofrer muitas agonias, até deixá-lo.

As milhares de palmeiras plantadas por Kleomenes no centro da Via Canopus faziam um estardalhaço ao vento, perturbando a tranqüilidade do sono do Sátrapa, e ele ameaçava mandar derrubá-las, dizendo que não poderia, de jeito nenhum, ter árvores do Egito numa cidade grega; porém, Berenice convenceu-o a não fazer isso, e as palmeiras continuaram a chocalhar e chocalhar na brisa fresca do vento norte que vinha para o Egito carregada do cheiro de limão da Grécia — ou assim eles gostariam de fingir que o fosse —, e esse homem permaneceu impossibilitado de dormir desde então.

Quanto ao restante da cidade, Alexandria fervilhava de súditos de todo o mundo grego, que logo se mostraram instáveis, voláteis, dados a rixas, e abalados pelo mais leve dos boatos, movidos pelas causas mais triviais, a começar a berrar sob as janelas do sátrapa contra qualquer agravo imaginário. Nos espetáculos públicos, corridas de cavalo no hipódromo, corridas de atletas no stadion e no grande teatro Grego, com vista para a baía, a multidão enlouquecia. O pior eram as corridas de carruagens, quando a multidão ficava completamente alucinada, rasgando as suas roupas e lançando-as para os cavalos e condutores. Havia gente que até mesmo desembainhava a espada, durante as corridas de asnos.

Thot pergunta qual era a razão para tudo isso? Sim, Alexandria era uma cidade de grande luxúria. Sua população era grega, em sua maior parte, e também formada por sírios, homens de Cirene, imigrantes de Chipre, da Palestina e da Fenícia. Alguns eram criminosos foragidos da prisão e da crucificação inexorável, porém, a sua maioria, contratados como mercenários. Haviam vindo para o Egito provenientes de todo o mundo de fala grega, à procura de prosperidade, de uma vida melhor. Acreditavam ter deixado para trás a pobreza e os tempos árduos. De modo que quando a prosperidade não parecia iminente, nem possível, ou demorava por alguma razão, eles se tornavam violentos.

Desde o princípio, Alexandria fora alardeada pelo próprio Ptolomeu como a cidade onde um homem poderia fazer o que bem entendesse. Era para ser uma cidade sem leis, devotada inteiramente ao prazer uma cidade onde nada que um homem imaginasse fazer lhe seria proibido.

Infelizmente, anunciar tal coisa era, em verdade, pedir encrenca, e só poderia atrair grande número de cidadãos do tipo errado.

Contudo, Alexandria não era, certamente, uma cidade sem leis, e quando esses migrantes e imigrantes descobriram que havia limites para sua famosa liberdade, limites para licenciosidade, sentiram-se ludibiriados. Não deveria ter sido surpresa para ninguém, muito menos para Ptolomeu, que essa gente tivesse demonstrado o seu descontentamento por meio de rebeliões e revoltas, e derrubando as estátuas de seus governantes. Os alexandrinos haviam sido arrancados de suas raízes. Tinham, muitos deles, deixado suas famílias para trás a fim de começar vida nova. Havia homens demais, sem que houvesse mulheres bastantes, de forma que Alexandria se tornou uma cidade com muitas prostitutas, atraídas pelos rumores de altos ganhos. Assim nasceu Alexandria e assim permaneceria. Ninguém, como se dizia, poderia enganar-se tomando-a por um lugar feliz.

Assim Thot procura explicar a natureza volátil dessa cidade, a volubilidade, a desobediência às leis, os ânimos exaltados, o corrompido caráter dos alexandrinos. E, que lamentável, ele balança a cabeça por conta de tudo de terrível que irá acontecer aqui.

 

                         O Beijo de Alças

Enquanto o Sátrapa estava ausente, ocupado com as batalhas na Síria, ou empanturrando-se de peixes, ou navegando rio acima tratando de negócios de Estado, seus filhos foram deixados sob os cuidados e responsabilidade de suas respectivas mães, ou de seus tutores, ou defendendo-se como podiam e, na maior parte do tempo, Ptolomeu manteve-se um tanto distante, dada a pressão do seu posto. Em conseqüência, é claro, foram adquirindo modos de vida sem que o sátrapa vigiasse o que estava acontecendo. Ele não participava das refeições dessas crianças; comia na companhia de seus conselheiros gregos, de seus generais gregos, dos seus almirantes gregos e dos comandantes do seu exército, ou com o sumo sacerdote de Mênfis. Tampouco dormia na mesma parte da nova residência que seus filhos. Não, na verdade, dias e mesmo meses passavam-se sem que essas crianças pusessem os olhos no pai, a não ser um rápido relance no momento em que ele era conduzido de um pátio para outro, em meio a uma procissão de funcionários, ou recebendo embaixadores de algum país estrangeiro.

Você não deve pensar, Leitor, que Ptolomeu fosse relapso na educação dos seus filhos. Ele podia ter sido distante, mas estava sempre recebendo notícias sobre o progresso deles, sabia sempre dos seus bons — e maus — procedimentos, e nunca esquecia os seus aniversários, quer dos filhos legítimos quer dos ilegítimos.

Como presente pelo seu quinto aniversário, o sátrapa enviou para o seu filho Keraunos uma espada de madeira sem corte, como para lhe guiar o caminho que deveria seguir, e Keraunos a utilizou em simulações de combates, de um extremo ao outro da residência, fazendo os soldados de sparrings, aprendendo deles os golpes apropriados de defesa e ataque, como desarmar o seu inimigo, como lançar a espada em rodopio, bem alto, no ar, e apanhála novamente enquanto caía, sem se machucar.

O sátrapa estava contente com os avanços de Keraunos, e tinha toda boa vontade do mundo em relação a esse garoto, a quem considerava seu herdeiro.

Ao mesmo tempo, no entanto, para onde quer que o garoto fosse, havia problemas, quase como se ele fosse a encarnação da Desordem. Keraunos, o Raio — claro, era um dos títulos do próprio Zeus, e o traçado do relâmpago era a sua assinatura pessoal. Keraunos já tinha se tornado muito semelhante ao Raio, e se empenhou por viver de acordo com seu apelido.

Quando Anemhor visitava Alexandria, fazia questão de ver o garoto, com o objetivo de, para dizer de maneira educada, ficar de olho no seu desenvolvimento; isso porque ele seria o sucessor de seu pai, e trazia presentes para Keraunos, quer fosse seu aniversário ou não — cães de caça de raça, os quais Keraunos adorava, ou macacos da Terra de Punt; ou, melhor ainda, um filhote de leopardo cujas pintas eram idênticas às pintas de leopardo da pele oficial de Anemhor, e Keraunos levava esse filhote por toda parte, na residência, preso a uma coleira, ou o carregava nos braços, e o trazia para dormir em sua cama — até que ficou grande demais e isso deixou de ser confortável. Anemhor recordava a crença grega de que, para crianças cujo choro se assemelha ao dos pinheiros, o futuro nada traz a não ser malefícios, e ele balançava a cabeça porque já podia enxergar que ao redor de Keraunos o trovão se tornaria cada vez pior.

Logo que o Raio completou sete anos de idade, foi transferido do gynaikeion, proibido de aparecer lá, e daí por diante passou a morar com os homens. Na mesma época, foi colocado no lombo de um pônei, lhe ensinaram a montar, porque todos os garotos macedônios são feitos para crescerem loucos por cavalos e porque, na verdade, não seria possível começar a montar tão novo.

Keraunos aprendeu a montar e a parar um cavalo. Saltava muros e valas, e com freqüência era arremessado por sobre a cabeça do cavalo. Por fim, lhe foi permitido cavalgar a meio galope e a galopar, e mesmo quando sentia que sua montaria estivesse disparando, com ele em cima, comportava-se como filho do seu pai, ou seja, como se tivesse nascido num lombo de cavalo. Ele se mostrava destemido e amava os cavalos, e o sátrapa orgulhava-se de seus progressos.

Antes de atingir os dez anos de idade, Keraunos já sabia executar todo tipo de manobra com o cavalo partidas rápidas, viradas ligeiras, contornos e desvios, trotar em torno de um ponto, rodopiar. O rodopio é a manobra mais difícil, pois obriga o cavalo a girar prontamente — mais rapidamente do que o olho pode ver —, e isso pode fazer com que o animal perca o equilíbrio. Um rodopio é importante, no entanto, já que um cavalo na batalha deve contra-atacar para todos os lados, e para tanto é necessário um cavaleiro com nervos de aço e um cavalo totalmente obediente. Keraunos tinha, efetivamente, nervos de aço. Para aprender com leituras, ele tinha pouca disposição, mas era muito bom em exercícios físicos, e já diziam que era um guerreiro nato, um cavaleiro nato. Alguns chegavam mesmo a dizer, em suma, que ele era um louco nato.

Todo amanhecer, antes que fizesse muito calor, as tropas de cavalaria de Ptolomeu conduziam os seus cavalos dos estábulos que ficavam contíguos às barracas, perto da residência de Ptolomeu, e galopavam ao longo das praias a este ou oeste de Alexandria, ou ao redor do litoral de Lago Mareotis, ou penetrando no deserto, na direção da Taposiris, cavalgando a tal distância, nas areias, que se o cavalo deixasse seu cavaleiro a pé, ele não conseguiria fazer o caminho de volta e morreria de sede.

Ptolomeu Keraunos, embora tão novo, acompanhava-os, pois o seu futuro dependia do exército macedônio, na batalha, na defesa do Egito e do império egípcio.

Desde muito pequeno, Ptolomeu Keraunos foi encorajado por Berenice a demonstrar a sua afeição por sua meia-irmã mais nova, Arsinoê Beta, a beijála com o beijo khutra dos gregos, no qual seguravam as orelhas um do outro, usando as orelhas como alças. A princípio, tratava-se de um beijo inocente, um genuíno sinal de ternura, e a irmã agarrava as orelhas do irmão, em retribuição, e beijava-o nos lábios com uma doçura que fazia Berenice sorrir — e estaria ela, desde então, prevendo que sua filha pudesse vir a se casar com o seu meio-irmão? Seria esse o plano de Berenice, já nessa época? Estaria ela, tão prematuramente, tramando que sua filha adquirisse poder no Egito? Talvez.

A medida que foram crescendo, contudo, Keraunos beijava a irmã com o mesmo beijo de alça, mas puxava as orelhas dela com tanta força que ela gritava, e chegava mesmo a mordê-la, algumas vezes de brincadeira, outras não, mas com uma truculência que chocava Arsinoê e a levava a esbofeteálo. Keraunos, no entanto, era quatro anos mais velho do que ela, e assim a mordida e a bofetada se transformam numa luta, na qual as mãos de ArsinoêBeta voavam para os cabelos escuros encaracolados de Keraunos e os puxavam com toda a força, e eles gritavam insultos um com o outro — Cara de íbis! e Cara de hipopótamo! — e tinham de ser apartados por qualquer que fosse o parente atrevido o bastante para se interpor entre os dois.

Desta maneira o meio-irmão e a meio-irmã, vez por outra, trocavam o amor fraternal por ódio.

Thot diz, Isso, ai deles!, se tornaria um hábito no futuro.

 

                     Infelizes Mulheres

Na Grécia, enquanto isso, o ódio grassava com a intensidade costumeira, e aquela mulher infeliz, Olímpia, mãe de Alexandre, continuava passando seus inimigos a fio de espada, um atrás do outro. No entanto, quando Cassandro soube do assassinato de Felipe Arrhidaios e do suicídio de Adéia-Eurídice, o seu ódio ultrapassou todos os limites. Ele declarou guerra a Olímpia e estava decidido a não agir com nenhuma piedade em relação a ela.

Quando Olímpia soube do que estava para acontecer, deixou Aristonos, o devotado guarda-costas de Alexandre, comandando suas tropas, e fugiu para Pidna, uma cidade ao nordeste da costa da Grécia, levando consigo não apenas suas servas, como também o jovem Rei Alexandros, seu neto de dez anos de idade, e Deidameia, a jovem que já estava prometida em casamento a ele, e ainda Roxane, a viúva de Alexandre, e assim se entrincheirou no interior da cidadela.

Cassandro sitiou Pidna, bloqueou o porto para cortar todos os suprimentos e preparou-se para subjugar Olímpia pela fome. O cerco de Pidna duraria 270 dias, ao final dos quais os soldados de Olímpia haviam devorado todos os animais existentes entre as muralhas, incluindo cavalos e mulas, e foi até mesmo dito que tinham começado a matar e a comer uns aos outros.

A própria Olímpia ficou reduzida a alimentar os seus elefantes de guerra com serragem; quanto a ela, dizia-se ter comido carne dos elefantes que morriam e, por mais improvável que isso soasse, até mesmo dos cadáveres de suas servas.

Ela resistiu contra Cassandro até não poder mais suportar o mau cheiro da sujeira pestilenta, quando então tentou escapar pelo mar, pois era uma mulher com enorme força de vontade e que nunca admitia ser derrotada.

Entretanto, Cassandro foi alertado por algum desertor sobre o que Olímpia estava tentando fazer e capturou o ligeiro trieres no qual ela planejava fugir. E, assim, finalmente, Olímpia rendeu-se, e Cassandro fez seu mais solene juramento de que garantia sua segurança pessoal e a levaria para enfrentar as acusações dos amigos e parentes daqueles a quem causou a morte, perante a Assembléia Nacional da Macedônia.

Cassandro sabia qual seria o resultado se deixasse Olímpia fazer sua defesa pessoalmente os macedônios certamente se comoveriam até as lágrimas à vista dessa idosa rainha, a mãe do seu grande general, e lhe concederiam o perdão. Assim, Cassandro providenciou para que ela fosse morta.

Primeiro, enviou um destacamento de duzentos soldados para assassinar a Rainha no seu palácio, mas ela os enfrentou com sua majestade de Rainha da Macedônia, de modo que esses homens ficaram envergonhados deles mesmos, fizeram meia-volta e desapareceram dali, murmurando que não poderiam matar a viúva do Rei Felipe, a mãe de Alexandre, fossem quais fossem os erros que ela havia cometido.

A seguir, Cassandro mandou os parentes das pessoas que Olímpia tinha assassinado, e eles não se deixaram comover, nem derramaram lágrimas, diante da presença real, muito menos ficaram fascinados pela lembrança de seu filho morto, nem também se apegaram a sentimentalismos sobre a gloriosa história da Macedônia, e a mataram a punhaladas.

Uma história diferente conta que Olímpia foi apedrejada até a morte, que era a maneira tradicional de executar criminosos na Macedônia.

Ninguém, contudo, questionou que ela tenha sido morta, ou que seu corpo tivesse sido deixado insepulto. Os seus belos olhos foram furados pelos corvos. Os cães carniceiros lamberam os seios que tinham dado de mamar ao senhor da metade do mundo. As moscas de Pidna banquetearam-se com a sua carne.

Tal foi o fim de Olímpia, que era conhecida como uma das mulheres mais venenosas que jamais existiu — pelo menos, até que as mulheres da Casa de Ptolomeu viessem a tomar o seu lugar.

E quanto ao resto da família de Alexandre? A viúva Roxane continuava viva. E ela tinha a fama de ser a mais bela mulher de toda a Ásia, atrás apenas da mulher de Dário, Rei da Pérsia, e ainda era bela, pois tinha apenas 15 anos de idade quando se casou, e agora apenas 35, uma mulher que podia, não tivesse ela se casado com o rei de todos os problemas do mundo, ter vivido até a idade madura em sua Bactria nativa. Mas não fora isso o que as Parcas lhe haviam destinado.

Não, Roxane, Pequena Estrela, não brilharia por muito tempo.

Seu filho, como Rei Alexandros, estava ainda na Grécia com a mãe, e Cassandro, o homem que tinha exterminado quase todo o restante da família de Alexandre, escolheu este momento para dirigir a sua atenção para a própria Roxane.

Cassandro enviou o Rei garoto e a sua mãe como prisioneiros, para a cidadela de Amfípolis, onde os manteve sob vigilância severa. O inverno era gélido, tão gélido que os soldados usavam gorros de pele de raposa, e Roxane e Alexandros tremiam de frio, e eram alimentados com enguias pescadas do rio Strymon e não muito além disso. O frio os fizera adoecer, e Cassandro, segundo todos os relatos, pouco lhes ofereceu em matéria de assistência médica.

O garoto Alexandros nunca conhecera seu grande pai, mas nessa época já tinha idade o bastante para entender por que as coisas aconteciam da maneira como aconteciam. Tinha estudado grego com um tutor, porém em Anfípolis não havia aulas, pois o plano de Cassandro era que os seus prisioneiros logo não teriam necessidade de falar qualquer língua.

A existência deste garoto atrapalhava Cassandro. Ele chegou a considerar mandar matá-lo, tirando-o do seu caminho, assim como a sua mãe; todavia protelou tal providência. Não os torturou nem maltratou, porém os manteve encarcerados, privados da liberdade e de todo o conforto. Pareceu-lhe conveniente poder dizer que tinha sob sua guarda o filho de Alexandre era bom ter o Rei sob seu controle.

Foi nessa ocasião que Roxane ofereceu os últimos de seus bens, um colar e um rhyton, ambos de ouro, para Atená. No entanto, apesar de suas oferendas e de suas preces aos deuses da Grécia, estes se mantiveram surdos a suas súplicas e não se apressaram a salvá-la.

Roxane, é claro, tinha tido seus acessos de ciúme. Ao enviar uma carta forjada, ludibriara Stateira, outra das esposas de Alexandre, convencendo-a a visitá-la, e fora ela que assassinara essa mulher, como também sua irmã, com uma bebida de boas-vindas temperada com cicuta, e contam que teria jogado os corpos num poço, que tapara com terra, e depois dançado em cima do aterro. Agora, o mesmo tratamento que Roxane tinha dado a outros seria dado a ela.

Após terem passado 12 meses na prisão, Cassandro enviou para Roxane uma taça de vinho misturado com cicuta. Roxane desconfiara daquele cheiro de rato, porém não tinha bebido nada naquele dia e estava com muita sede. Assim, a cicuta fez irromperem na mãe e no filho pequenas manchas avermelhadas, gelando seus corpos e coagulando seu sangue, e ambos morreram entre espasmos de vômito e terríveis convulsões.

Cassandro acendeu a pira funerária com as próprias mãos e teve o bom senso de enterrar o Rei e a sua mãe apropriadamente, num túmulo real. Os ossos de Roxane, ele os colocou no larnax de costume, com um espelho de mão de prata, presente do seu falecido marido; os do jovem Alexandros, ele os coroou com o laurel de folhas de carvalho de ouro que deve ser colocado sobre os túmulos de todos os reis da Macedônia. Grande benefício, esses presentes lhes trouxeram...

No Egito, a única recordação desse Faraó que nunca chegou a pôr os pés no seu reino, porém ficou conhecido como Rahaaabsetepenamen, ou Aleksantres, foi uma cabeça colossal de granito de Sirene rosado, usando a Coroa Dupla, que foi encomendada para a cidade de Alexandria, e uma avenida de quarenta esfinges que ladeavam o acesso ao Serapieion, todas com as feições do jovem rei sorrindo. Os hieróglifos descreviam esse Alexandros da maneira tradicional, como Hórus o Jovem, Senhor de Coroas, Senhor do Mundo Inteiro, Rei do Alto e do Baixo Egito, a Delícia do Coração de Amon, Amado do Sol, Alexandros o Eterno.

Porém, Alexandros o Eterno estava morto, e não tinha vivido o bastante sequer para celebrar seus 13 anos de idade.

Dessa maneira, Cassandro, o mais cruel dos filhos do Velho Antipatros, atraiu desgraças sobre a sua família, que então passou a se recusar a ter qualquer relação com ele.

Sua irmã, Eurídice, a esposa de Ptolomeu, devotou-se a partir de então a praticar o bem, a fim de modificar e afastar o mal. Ela se achou com o dever, e apreciando a missão, de defender os inocentes, e auxiliou muitas jovens pobres de Alexandria, que se casaram à sua custa, oferecendo-lhes recursos para seus dotes. Ela não pronunciava o nome do seu irmão Cassandro, mas utilizou o Feitiço do Esquecimento para deixar de sonhar com os atos assustadores que ele praticara.

Cassandro agora tinha nas mãos o sangue da maior parte da família de Alexandre; todavia ainda vivia e não era perseguido por nenhum fantasma. Porém os oráculos previram que ele talvez não tivesse uma morte muito feliz, e diziam que ele incharia de líquidos internos e que os vermes se reproduziriam em sua carne viva. Esse horror não ocorreria antes de vinte anos decorridos, mas um oráculo sempre diz a verdade.

Portanto, não restara nenhum herdeiro homem na família de Alexandre, nenhum rei para governar o Egito, e apenas um membro de sua Casa deixado com vida sua irmã, Cleópatra, no passado esposa do Rei Alessandros de Epeiros, porém agora viúva pela segunda vez.

A vida dessa mulher estava longe de ter sido feliz, pois foi no seu casamento que o seu pai, Felipe da Macedônia, fora assassinado, e ela tinha, então, 18 anos de idade. Agora já não era mais jovem, com 46 anos de idade, quase no final da sua vida fértil.

Desde a morte do seu irmão, contudo, a ex-Rainha Cleópatra tinha atraído muitos pretendentes, todos querendo associar-se à glória de Alexandre, pois ocorria que essa Cleópatra representava a última chance de qualquer homem para a concretização de uma aliança dinástica com o sangue real da Macedônia.

Cleópatra, a primeira de muitas mulheres com este nome — e Thot alerta, Leitor, não confunda esta mulher com a mais famosa das Cleópatras, a sétima Cleópatra, que veio mais tarde, muito mais tarde — recebeu todos os enviados com altivas palavras, e apesar de escutar muitas propostas de casamento, rejeitou todas.

Cleópatra continuou sem se casar, e passou a morar em Sardis, na Lídia, cercada de traições e complôs, e dispondo apenas de sua extraordinária determinação. Por sua vez, todos os Sucessores haviam pedido a sua mão Perdikkas, o Velho Antipatros, Antígonos Caolho — todos tinham desejado casar-se com ela. Até Cassandro tinha apresentado a sua oferta, se bem que ela jamais aceitaria casar-se com o homem que, segundo se suspeitava, havia assassinado o seu irmão.

O atrativo de Cleópatra era o glamour que se fixou no nome do seu irmão, e talvez não mais fossem os seus dotes físicos que faziam os homens procurarem-na com tamanha diligência; porém, foi nessa altura que até mesmo Ptolomeu começou a se imaginar como marido de Cleópatra, e esse noivo cheio de esperanças estava com 55 anos de idade.

Mas nem tudo estava bem com Cleópatra, cujos inimigos fechavam o cerco sobre ela e, temendo por sua segurança, passou a buscar à sua volta por um aliado e um protetor, e a idéia de um casamento seguro parecia ser a resposta para os seus problemas.

Quando Ptolomeu enviou o seu primeiro mensageiro, propondo que Cleópatra se tornasse sua esposa, ela o descartara, sabendo muito bem que ele não a cortejava, mas sim ao kudos que se obteria quem se casasse com a irmã de Alexandre. Porém, quando tomou conhecimento de que Cassandro havia assassinado a sua sobrinha de nove anos de idade, e, logo depois, soube do assassinato do seu meio-irmão mais velho, Herácles, e de sua mãe, Barsine, Cleópatra ficou muito amedrontada. Agora, ela enviava embaixadores a Ptolomeu, para combinar o casamento, pois se lembrava dele como um homem gentil, justo, generoso, sem falar que era também o mais rico dos Sucessores. De todos os sátrapas, Ptolomeu era o homem que Cleópatra queria, e mandou dizer que estava prestes a deixar Sardis e navegar até Alexandria, e Ptolomeu de pronto preparou-se para lhe dar as boas-vindas.

Enquanto as providências eram tomadas, Cleópatra foi subitamente colocada sob prisão domiciliar por ordem de Antígonos Caolho, e foi o Caolho que mandou, certa noite, algumas mulheres visitarem Cleópatra. Tudo o que se soube dela, a seguir, foi a notícia de que um corpo fora encontrado sobre o chão do seu quarto, estendido sobre uma poça de sangue pegajoso.

Durante muitos dias, Ptolomeu andou de um lado para outro no seu Salão de Audiências. Durante horas, ficou parado, de pé, observando o mar, e mantendo vigia atenta sobre a Grande Baía, querendo saber que navios tinham afundado, que navios haviam aportado; porém nenhuma notícia chegou de Sardis, nem navio algum, e afinal não aconteceu nenhuma festa, nem o quarto casamento de Ptolomeu, porque sua noiva estava morta.

As notícias da morte de Cleópatra não provocaram pequeno alívio em Eurídice e Berenice. Na verdade, gritaram de alegria.

Todos os legítimos pretendentes ao trono de Alexandre haviam agora sido exterminados. Parecia não haver mais obstáculo algum no caminho dos Sucessores para se tornarem soberanos independentes. De fato, no período de vinte anos desde a morte de Alexandre, todos os membros de sua Casa foram brutalmente assassinados um total de dez pessoas, a maioria dos quais mulheres e crianças.

Sem rei para governar o Egito, a estrada estava agora livre para Ptolomeu, o sátrapa, tornar-se Rei, se o desejasse. Porém, Ptolomeu era um homem modesto. Não tinha nenhum desejo de atrair a inveja dos deuses sobre sua cabeça. E quando o sumo sacerdote perguntou se lhe agradaria ser um Faraó, Ptolomeu balançou a cabeça e disse não, não, nem consigo pensar em tal coisa.

 

                     Ptolomeu Mikros

Naquele ano de muitas mortes, nele também ocorreu um nascimento notável o segundo filho de Berenice com Ptolomeu, e isso com oito anos de intervalo.

Quantos bebês natimortos Berenice tinha transportado para a necrópole? Ela já havia perdido a conta. Cinco, talvez, ou seis. Entretanto, havia muitas pragas, muitas epidemias no Egito, e não se esperava que ninguém vivesse muito mais do que trinta anos; assim, era sempre considerado quase um milagre sobreviver para além da infância, e ocasião para grandes oferendas aos deuses.

Berenice tinha finalmente recorrido aos tratamentos egípcios sugeridos pelos sacerdotes de Sekhmet, a deusa-leoa de Mênfis, tais como rastejar para frente e para trás sete vezes por debaixo da barriga de um camelo. Noutra oportunidade exigiram que desse sete voltas a pé em torno da Grande Pirâmide de Khufu, ou Queóps, como faziam as mulheres estéreis dos egípcios, certamente na crença de que isso a ajudaria a tornar-se mãe novamente. Porém as caminhadas não surtiram resultado, meramente servindo para deixála cansada e raivosa.

Para um tratamento egípcio dar resultado é, sem dúvida, necessário que a pessoa também tenha fé, e Berenice de fato não acreditava em nada disso. Ela era uma grega, da Grécia, mais grega do que um grego poderia ser, e para falar a verdade odiava as coisas egípcias, as tâmaras e os camelos, as palmeiras e as tempestades de areia, as serpentes e os escorpiões, e sentia desprezo por si mesma por dar atenção a tratamentos egípcios que não funcionavam para ela.

Por fim, no verão do décimo quinto ano da satrapia de Ptolomeu, quando grande parte dos egípcios fugia de Alexandria para as ilhas temperadas do mar Egeu, por causa das cegantes nuvens carregadas de pó de cal nas ruas e do calor crestante, Ptolomeu e Berenice foram para Kos, a ilha dos alfaces, onde o calor era menos feroz, moderado pela brisa refrescante. Isso porque, sim, Kos era melhor para a saúde do que o Egito, e tinha também a mais avançada escola de medicina do mundo grego, e um templo de Asclépios, famoso por curar doenças de mulheres. Em Kos, havia abundância de verde, sossego e médicos gregos que entendiam os problemas de Berenice.

Em Kos, lhe aplicaram decocções de nervos de rim e essência de olíbano misturada ao vinho, para restaurar a fertilidade perdida por conta de bruxaria. Muitos remédios Berenice experimentou, porém só foi curada comendo olhos de hiena com licor e endro, que garantia a concepção dentro de sete noites a quem os engolisse. Já o sátrapa, ele permaneceu com seu testículo esquerdo amarrado com cordão de papiro, na crença absoluta de que com isso poderia tornar-se pai de um novo filho.

No frescor da manhã, Berenice passeava ao longo do terraço do templo para assistir à alimentação das serpentes sagradas. No frescor do entardecer, perambulava pelos bosques sagrados de ciprestes e contemplava o mar, azul como safiras, voltando-se para os lados de Knidos e Halicarnassos, e acreditava que Asclépios, deus da saúde, estava com ela.

Enquanto isso, Ptolomeu buscava a cura para os seus surtos de calor e frio; as febres repentinas que o vinham perturbando desde que havia deixado a Grécia. Ptolomeu também submeteu-se à cura chamada Incubação, no templo de Asclépios, onde foi convencido a comer gordura de leão com óleo de rosa, e deitou-se para dormir no santuário do deus, onde as serpentes sagradas vinham lamber-lhe os ouvidos, e onde, ao fim de tudo, o deus viria tocá-lo, depois que as febres repentinas tivessem cessado. Entretanto, Ptolomeu nunca viu nenhum deus — nunca viu nada. No templo de Asclépios não dormiu melhor do que dormia em Alexandria, e nenhuma das supostas curas que deveriam acontecer em Kos se concretizou no que tocava aos seus calafrios. Mas ele permaneceu por lá algumas semanas, enviando mensagens ao Egito e recebendo-as de lá, governando por delegação, por intermédio de seus Dioiketes e dos oficiais de seu exército, e ninguém sequer suspeitou que o sátrapa não estivesse em sua residência, pois que em Mênfis foram instruídos a dizer que ele se encontrava em Alexandria e, em Alexandria, a dizer que estava em Mênfis.

Finalmente, Ptolomeu tomou o navio de volta ao Egito, deixando Berenice aos cuidados de Asclépios, seus cães e serpentes sagrados, e no mês seguinte, o mês de Phamenoth, quando as papoulas estavam florescendo em Kos, com sua barriga persistindo em crescer, ela experimentou novamente as agonias do parto.

Berenice respirou fundo, como foi instruída, e segurou até o vigésimo dia do mês, que era o melhor dia possível, se bem que em verdade nenhum dia seria desfavorável para o nascimento de um garoto. Porém, o garoto nascido no dia vinte daquele mês, assim disseram, cresceria e conseguiria se tornar um homem sábio. O bebê de Berenice foi realmente um garoto, e ela chorava, dando graças a Artêmis por isso, e pelos seus cabelos louros que eram a marca de um verdadeiro filho da Macedônia, e ela dedicou a Asclépios um par de orelhas confeccionadas em ouro sólido, que eram grandes o suficiente para se dormir dentro delas, como agradecimento ao deus por ter escutado as suas orações.

No décimo dia de vida, esse filho de Ptolomeu, filho de Lagos, recebeu seu nome, de acordo com o que fora conversado pelos pais — ou, de fato, não conversado, porque ele não poderia ter recebido outro nome que não fosse Ptolomaios Guerreiro. Esse foi o Ptolomeu, filho de Ptolomeu, que ficou conhecido na história como Ptolomeu Philadelphos. Aquele Que Ama Sua Irmã, embora tal título não tenha se firmado senão muitos anos mais tarde. No princípio, já que era o último filho, o filho caçula, o metakboiron, o mais novo da prole, eles o chamavam simplesmente de Mikros, o Pequeno, para distingui-lo de todos os outros na família que tinham também esse ilustre e o mais ilustre dos nomes.

Berenice tomou conta pessoalmente de Mikros, levando a sério as sábias palavras de seus médicos gregos não utilizar a ama-de-leite, se possível, porém amamentara criança você mesma, embora fosse a esposa do sátrapa. Isso porque jamais se teria certeza sobre quais seriam as más qualidades que uma ama poderia transmitir para a criança ao se deixar que ela bebesse o leite destinado a outra, que não fosse do nível de um sátrapa, e Berenice não desejava que o seu amado filho se amamentasse do leite produzido para um bebê nascido morto.

Assim, Berenice, uma mulher imbuída de certa determinação para agir à sua maneira, recusou não apenas a ama-de-leite, mas também tudo o que fosse relacionado a bandagens.

Ela disse que não, Ptolomeu Mikros não teria os membros presos a uma prancha durante os primeiros sessenta dias de sua vida. Não queria que o seu filho crescesse com o mau temperamento do seu meio-irmão, Ptolomeu Keraunos, sobre quem freqüentemente se dizia que as bandagens o haviam deixado zangado pelo resto da vida. Seja como for, esse procedimento foi o motivo das pernas tortas de Mikros.

Tampouco Berenice permitiria que Mikros fosse alimentado com camundongos cozidos para curar a incontinência.

Se ele molhar a cama, ela disse, ele molha a cama. Mas o filho do sátrapa não vai comer camundongos cozidos.

Berenice era, na verdade, a mais poderosa das mulheres, com opiniões próprias as mais singulares, que ela não tinha o menor medo de expressar, e se qualquer médico, grego ou egípcio, ousasse dizer que estava errada, sentiria o gume afiado de sua língua.

O sátrapa também nada podia fazer senão reconhecer o poder de sua esposa. Porém, era essa força de convicção o que mais apreciava nela. Ela era uma mulher que sabia o que queria. Não tinha a língua amarrada como Eurídice. Não tinha medo de lhe dizer o que pensava sobre o seu governo no Egito. E ocasionalmente até Ptolomeu acharia que deveria fazer exatamente o que Berenice lhe aconselhava.

No tempo devido, Berenice tomou o navio para o Egito com esse seu novo filho, e no quadragésimo dia do nascimento o sátrapa realizou a celebração grega apropriada em sua residência na Alexandria. Os dias de dúvida e incerteza chegavam ao fim. Ptolomeu Mikros vivia. Ele seria criado, não enjeitado. Ele era um membro da família e tinha os mesmos cabelos louros do seu pai, cabelos dourados como o Sol, e era tão diferente do seu meioirmão, Ptolomeu, o Raio (que, pelo contrário era moreno), quanto se poderia imaginar.

Berenice, que já fora uma mulher sem lar, sem amor, sem amigos, não era na verdade nada mais do que senão uma planejadora — alguém que sabia arquitetar esquemas, que não se deteria por nada para abrir seu próprio caminho. Como, então, ela criou essas suas duas crianças? Quanto à sua filha mais velha com Ptolomeu, Arsinõe Beta, a garota que devia ter sido um garoto, de fato ela tinha sido criada para ser vigorosa como um homem, e não para ser frágil e feminina e até mesmo Berenice desejava que ela fosse capaz de sufocar os seus sentimentos femininos.

É claro que, no começo, Berenice ensinou Arsinõe Beta a fazer todas as coisas comuns a uma garota, como tecer, costurar e bordar, dedilhar a lira — coisas sem as quais nenhuma garota poderia suportar o tédio da vida no gynaikeion, pois era o trabalho que ajudava as mulheres gregas, no confinamento em que viviam; trabalho interminável e conduzido na penumbra daqueles aposentos onde nenhum homem punha os pés, exceto os eunucos, os meio-homens que as guardavam.

Porém, quando Arsinoê Beta atingiu o seu sétimo aniversário, começou também a receber a educação completa de um garoto. Para começar, aprendeu o alpha beta a arte de ler e escrever grego. Aprendeu matemática elementar e geometria, depois matemática complexa. Aprendeu todas as artes da guerra táticas, estratégia, diplomacia, e até mesmo tivera treinamento com armas para que soubesse muito bem como se defender, e tudo como se estivesse destinada a ser uma espécie de amazona daqueles dias, como aquela mal fadada Adéia-Eurídice, a esposa de Felipe Arrhidaios.

Sim, este era exatamente o pensamento de Berenice que sua filha necessitaria de tais habilidades se fosse se tornar a esposa de algum grande soberano. A própria Berenice estava sendo dura, tendo de suprimir os seus sentimentos femininos, calculando seus passos na vida como se fosse semelhante a um homem.

Mais importante de tudo, Arsinoê Beta estava absolutamente proibida de ser educada para ser igual a Eurídice como uma pombinha, cabeça de vento, completamente feminina e inteiramente imprestável para o seu marido, para qualquer propósito que não fosse parir crianças. Isso porque Eurídice fora filha de sátrapa, porém fora criada para contar com escravos e servos para atender a todas as suas exigências. Eurídice era uma mulher que dificilmente podia pôr seu peplos sem ajuda. Mal sabia qual de suas mãos era qual, muito menos como dirigir o lar do seu marido. Não, a pobre Eurídice era incapaz de cuidar de si mesma, quanto mais dos outros. E veja o que acontecera com ela — a esposa rejeitada. Ela era um fracasso insolúvel, e seus filhos, na opinião de Berenice, seriam como ela, uns fracassados sem solução.

Berenice fez Arsinoê Beta prometer, que ela tentaria ter sempre firmeza. Sim, ela tentaria ser como um homem. Sim, faria o melhor que pudesse para ser o filho que Berenice não teve. E, na verdade, na época em que Ptolomeu Mikros nasceu, Arsinoê Beta tinha nove anos de idade, e era tarde demais para voltar a ser feminina o mal já estava feito.

No início, o estratagema de Berenice funcionou. Arsinoê Beta lutava como os seus meios-irmãos com a espada curta, e era mesmo um exemplo para eles, de tanto que se empenhava. Ela saltava com pesos e arremessava discos e dardos tão bem quanto qualquer dos filhos de Eurídice. Entretanto, se Arsinoè Beta esforçava-se para ser como um garoto, para ter um coração de pedra, um coração de ferro, que nada sentia e não tinha o coração dominado pelos seus sentimentos como o das outras mulheres, não obtinha êxito justamente naquilo que mais se empenhava para conseguir.

Isso porque era a sina dessa garota apaixonar-se tão intensamente que perderia a noção do que estava fazendo, e com as mais trágicas conseqüências. Embora fizesse o possível para sufocar a sua natureza feminina, Arsinoè não era mais capaz do que qualquer outra mulher de banir os seus sentimentos femininos. Ela de fato chorava — sem dúvida. Tinha impulsos maternais, pois como poderia ser o contrário, pois como não poderia ter? Ela se preocupava com o que acontecia com suas crianças. É uma pena, mas, embora Arsinoè Beta fosse uma pessoa dura, contrariando a si mesma, não era dura o bastante.

O que o deus da Sabedoria teria a dizer? Thot diz em verdade, não se pode transformar uma mulher num homem. Thot diz em verdade, não se pode impedir uma mulher de amar.

Quanto ao filho, Ptolomeu Mikros — Berenice lhe ensinaria a não ser como Ptolomeu Keraunos, dizendo Não seja tão belicoso. Não esteja sempre querendo brigar, pois é desse modo que os bárbaros se comportam...

Essa mãe encorajaria os tutores do seu filho a lhe ensinarem ciência, drama, poesia — coisas do espírito —, e desdenhava o prazer de exercitar-se com a falange e de aprender a melhor maneira de matar um homem. Keraunos tinha sido criado, assim pensava Berenice, para amar a guerra mais do que seria conveniente para um garoto; portanto, ela tentava equilibrar a balança, ensinando Mikros a se interessar pela paz, como seu pai.

Mikros, então, se tornaria um pouco mais brando; sendo que, fosse como fosse, era sua tendência natural ser preguiçoso, passivo, e de seu instinto natural entregar-se mais à reflexão do que ao uso do corpo e a se comportar de maneira violenta. Foi educado para se voltar mais para a erudição do que o seu meio-irmão, de modo que, efetivamente, tinha pouco o que conversar com os generais e almirantes das forças armadas do seu pai.

Thot pergunta teria Berenice efetivamente planejado tudo dessa maneira? Para que tivesse uma filha que fosse mais semelhante a um homem ativa, guerreira, com mais aptidão para a matemática e as altas finanças, e para a guerra — e um filho que se parecesse mais com uma mulher — passivo, um pensador, mais interessado na paz do que na guerra? Teria sido tudo isso conseqüência dos atos da poderosa Berenice? Mas, no momento, Thot não tem a resposta. Talvez, ele diz, talvez.

Thot guarda sua resposta para mais tarde. O plano de Berenice não atingiria seus propósitos por muitos anos, e ela não viveria para desfrutar disso. Porém, quando o casamento entre esses seus dois filhos ocorreu, cerca de vinte anos ou mais no futuro, sim, o triunfo de tia Berenice sobre Eurídice, a sobrinha, estaria completado.

Seja como for, o futuro surgiu para Anemhor, sumo sacerdote de Ptah, quando ele fixou os olhos na tigela de água, sobre a qual derramara um pouco de óleo, e ele não ficou insatisfeito com o que viu ali — se bem que mal podia acreditar que o que vira se realizaria.

No mesmo ano em que Ptolomeu Mikros nasceu, um exército comandado pelo jovem enteado do sátrapa, Magas, o filho de Berenice, e o misterioso Felipe recuperou para o Egito o território perdido de Cirene.

Ptolomeu arreganhou os dentes, num sorriso, e como recompensa nomeou Magas, que tinha apenas 18 ou 19 anos de idade, governador de Cirene — para onde sua mãe viajava, vez por outra, para visitar o filho, levando de Alexandria camelos carregados de suntuosas iguarias.

A princípio, Magas ficara surpreso por ser enviado para fora do Egito, e perguntou por que não posso passar os meus dias em Alexandria? Por que não posso permanecer como soldado no exército do meu padrasto?

Porém Magas não possuía a habilidade de predizer o futuro, como outros tinham.

O problema era que Magas poderia em algum momento ficar enciumado em relação a Ptolomeu Keraunos, o herdeiro. Já Berenice, sabia muito bem que, no momento em que o seu marido morresse, e a Keraunos fosse dado o poder de um sátrapa no Egito, seu filho Magas seria um homem morto, pois que ele representava uma ameaça à segurança, e era um dos maiores criadores de problemas, em potencial, daqueles que poderiam depor Keraunos e tomar o poder para si.

Talvez fosse algo improvável, já que Keraunos mal tinha completado 14 anos de idade, e Ptolomeu estava próximo dos sessenta. O sátrapa poderia morrer a qualquer momento, e tinha de pensar no futuro, no que podia acontecer quando ele não estivesse mais presente.

Assim, Magas viajou feliz para Cirene. Era um jovem honrado, preocupado em fazer tudo do jeito certo. Não esquecia que vivia no Egito graças ao favor do seu padrasto e que, se desse um passo em falso em Cirene, podia ser banido, mandado de volta para Macedônia, onde não tinha nem amigos nem parentes. Não se esquecia de que, se representasse a menor ameaça para a estabilidade no Egito, seria prontamente assassinado. Em Cirene, Magas podia fazer, dentro do razoável, o que bem entendesse. Contava com a confiança de Ptolomeu e era grato ao apoio de sua mãe.

Magas gostava de comer, e em Cirene, cidade famosa por sua arte culinária, engordaria. Até o momento não se dispusera a se casar. Tinha as concubinas e os garotos de praxe para se distrair. Havia tempo de sobra para pensar em casamento e em gerar um herdeiro. Enquanto isso, ocupava-se com divertir-se e com o governo da sua província.

O horóscopo de Magas previra que ele seria um rei e o pai de uma famosa filha. Na Cirenáica, famosa por seus cavalos, pelo seu peixe fresco e pelas elegantes carruagens, o futuro do jovem Magas prometia ser brilhante.

 

                     O Ladrão de Livros

No final da temporada de navegação daquele ano, quando Ptolomeu Mikros tinha um ano de vida, Ptolomeu, o sátrapa, fez finalmente a paz com Cassandro, irmão de Eurídice, sua esposa, e retirou a frota egípcia para Alexandria, dizendo realmente, ninguém no seu espírito perfeito vai para guerra no inverno. Um ano depois, o famoso Demétrio de Faleron — Thot diz Leitor, não confunda com Demétrio Poliorketes, que é um homem totalmente diferente, um homem de verdade — foi forçado a fugir de Atenas, onde fora uma espécie de governante, e isso por causa da investida de Poliorketes. Demétrio de Faleron pediu então asilo a Ptolomeu, em Alexandria.

Este foi o Demétrio que deu a Ptolomeu a idéia de fundar um grande Mouseion, o Templo das Musas — sendo que a Grande Biblioteca de Alexandria foi também, segundo se supõe, idéia dele. Alguns homens chegam mesmo a dizer que o grande Farol não foi idéia de Alexandre, mas deste Demétrio de Faleron. Seja como for, ele era figura de importância, mesmo antes de pôr os pés no Egito, e Ptolomeu, cortês, justo, homem generoso que era, tomou a si o encargo de acolhê-lo.

Demétrio de Faleron era sagaz, esperto, mais astucioso do que todos os outros homens, e cheio de idéias brilhantes. E Ptolomeu achou que ele lhe poderia ser de muita utilidade; tanta, que concedeu ao exilado, no ato, um aposento na residência, além de escravos, serventes e secretárias, três refeições por dia e até mesmo um salário, por conta das suas idéias tão originais; e ele teria acesso, a qualquer hora do dia ou da noite, ao ouvido do sátrapa, que escutaria o que ele dizia.

Já dez dias depois da sua chegada, Demétrio havia formulado mais de uma dúzia de brilhantes projetos, que propunham tornar Ptolomeu e da Casa de Ptolomeu famosa em todo o mundo grego, e a primeira dessas idéias era uma biblioteca que possuiria uma cópia de todos os livros existentes no mundo. E o que demonstrava a grande maravilha de ser um sátrapa, e o poder de um sátrapa, era que, tão logo a idéia surgiu, foi imediatamente posta em prática. Sim, Ptolomeu concordou com a biblioteca pela manhã e à tarde já os bibliotecários estavam recebendo as suas instruções, os regulamentos para usuários tinham sido formulados, e os prostagma foram enviados, dizendo que todos os livros na cidade deveriam ser encaminhados para Demétrio para serem examinados, tendo em vista adquiri-los para a biblioteca — isso significava que se esperava de todo aquele que possuísse rolos de papiro que os doasse à nova fundação. De modo que, para alguns, pareceu quase como se Ptolomeu iniciasse a sua biblioteca roubando os livros de todos os eruditos do Egito, e o grande achado sobre isso foi que essa biblioteca não custaria a Ptolomeu nem ao menos meio óbolo. Iriam apenas precisar das prateleiras para guardar os rolos de pergaminho, e de um edifício onde ficassem as prateleiras.

O edifício já existia era uma parte sem uso da residência, e assim a Biblioteca estava pronta para funcionar de um momento para outro.

Demétrio de Faleron, tendo estudado no Liceu de Aristóteles, era famoso não apenas por sua inteligência, como também por pintar seus cabelos pretos de louros, e pelo hábito de passar no rosto pomadas cosméticas de mulheres para parecer mais jovem. Gostava não só de mulheres elegantes como de rapazes bonitos, de banquetes, tanto quanto de filosofia; e embora fosse a filosofia o seu principal interesse, gostava também de se embebedar, e bastante, tendo a mesma exagerada sede por vinhos não diluídos que o próprio Ptolomeu.

Outro assunto igualmente importante sob a responsabilidade de Demétrio de Faleron era instar Ptolomeu a dar atenção ao tratado intitulado Sobre a monarquia, e procurar convencê-lo a se tornar rei, pois acreditava que era isso o que Ptolomeu deveria ser.

Sim, foi Demétrio quem plantou as sementes, dizendo não há motivo para que você não se torne rei, e ele compartilhava do pensamento de Anemhor de que um faraó residente poderia manter o Egito em paz, ordeiro e livre de revoltas.

Ptolomeu iniciou então a leitura à noite, incapaz de conciliar o sono, e começou a sonhar um futuro glorioso para os seus descendentes, e tudo isso se deveu à interferência de Demétrio, o da língua versada, esse homem com as faces pintadas de ruge como as de uma mulher, que era servido por jovens nus, e cuja maior realização, a lhe granjear fama, no tempo em que morava em Atenas, foi a invenção de um caracol mecânico gigante, que deixava um rastro de lodo alcoólico rua abaixo.

No tratado de Aristóteles Sobre a monarquia, Ptolomeu leu que uma monarquia era resistente, difícil de ser desgastada, e pouco suscetível a perturbações provenientes de fora. Se um reino desmoronasse, isso aconteceria por uma de duas razões ou porque o rei tivesse tentado controlar mais do que lhe cabia, ou como resultado de desentendimentos entre membros da família.

O mais importante, segundo Aristóteles, era que a família não entrasse em disputas internas, que os filhos não entrassem em disputa entre si, que a Rainha não entrasse em disputa com seus filhos e que o Rei não entrasse em disputa com suas filhas.

Ptolomeu foi tomado de risos, durante a leitura. Como, em nome de Zeus, seria possível impedir que os membros uma família grega brigassem entre si? Isso porque a sua família parecia passar o dia inteiro, e um dia atrás do outro, brigando. Brigavam por tudo e por coisa nenhuma. Brigavam porque eram gregos, porque os gregos amam uma briga e são bons na briga. Brigavam mais do que qualquer outra família no Egito. Durante as refeições, o alarido de vozes iradas era sempre escutado à mesa do sátrapa, já que esses gregos parecem que sempre estão zangados, parecem estar sempre brigando, até mesmo quando não estão.

Os Ptolomeus — o próprio nome da família significa Guerreiro.

Thot sabe disso essa família brigaria entre si por trezentos anos. E, sob esse primeiro Ptolomeu, a briga mal tinha começado. Thot jura brigas, como Aristóteles previu, seriam a ruína deles.

Mesmo assim, Ptolomeu prosseguiu na leitura, e os seus olhos não podiam se despregar das páginas. Terminada a leitura, foi discutir com Demétrio sobre a arte de reinar e sobre como se tornar um rei.

Demétrio deu a Ptolomeu muitos conselhos sábios. Ele o aconselhou a pensar sobre as causas dos possíveis fracassos. O herdeiro do trono, por exemplo, poderia ser um homem que dificilmente conquistaria respeito. Embora detivesse poder real (não o poder de um tirano), poderia ser levado a extrapolar em sua posição.

Nesse caso, o fim da realeza estaria à vista de quem quisesse ver. Demétrio disse quando os súditos de um rei deixam de se submeter, esse rei não mais é um rei; porém, um tirano é ainda um tirano mesmo que seus súditos não o queiram mais. É por razões como essas, Demétrio disse, que as monarquias são destruídas.

O que, então, queria Ptolomeu? Queria que a sua Casa fosse a dos reis do Egito para todo o sempre. Como, então, ele perguntou a Demétrio, isso seria concretizado?

E Demétrio respondeu-lhe que o caminho a seguir estava na educação. Três coisas, ele disse, são de grande importância.

Primeiro, você deve ensinar o herdeiro Como Ser Rei.

Segundo, você deve ensinar o herdeiro Como Não Ser Um Tirano.

Terceiro, você deve ensinar o herdeiro a Arte do Autocontrole.

Ptolomeu prestou-lhe cuidadosa atenção.

O tutor do herdeiro, Demétrio disse, deve ser o homem mais importante da residência, mais importante até mesmo do que o próprio Rei, pois o tutor representa o futuro e a própria sobrevivência da dinastia.

Ptolomeu podia ver que Demétrio pronunciava palavras de grande sabedoria. Porém, viu também que já poderia ser tarde demais para um garoto como Ptolomeu Keraunos aprender tais coisas. Keraunos já tinha o seu modo de ser definido.

Já Demétrio, ele tinha idéias próprias sobre a Casa de Ptolomeu. No seu tratado Sobre Fortuna, Demétrio profetizou que, exatamente como os macedônios — bárbaros quase desconhecidos até há apenas cinqüenta anos — tinham derrubado o Império da Pérsia, assim, no devido tempo, também os macedônios seriam derrotados pela Fortuna, e teriam de entregar a sua predominância a outro poder. Demétrio referia-se, então, ao Reino da Macedônia; porém, intimamente, alimentava os mesmos pensamentos em relação ao domínio dos macedônios no Egito. Ainda bem no início dessa Casa, Demétrio, o mais sábio dos gregos, podia enxergar como ela deveria terminar.

Mas, chegar ao ponto de dizer isso a Ptolomeu seria ousar para além do que valia a sua vida. Assim, Demétrio mordeu a língua, aquela sua língua tão versada, e manteve silêncio sobre o que realmente pensava.

No entanto, durante suas bebedeiras, Demétrio falaria, e falaria a verdade, dizendo a Fortuna meramente emprestou à Casa de Ptolomeu as suas bênçãos; mas isso durará até que ela mude sua decisão.

Quanto a Thot — Thot diz que um homem não precisa ser tão sábio como Demétrio de Faleron para saber que toda coisa deve, algum dia, ter um fim. Exceto, certamente, o próprio Thot, e os deuses do Egito, que são os verdadeiros deuses.

E quanto a Ptolomeu, ele começou a pensar se haveria como fazer o domínio dos gregos no Egito durar para sempre.

 

                       A Batalha de Chipre

Na primavera do ano em que o Egito celebrava os 61 anos de idade de Ptolomeu, filho de Lagos, Antígonos Caolho encarregou seu filho, Demétrio Poliorketes, que tinha então 39 anos de idade e estava no auge do seu poder, de assumir o comando de uma grande campanha contra Ptolomeu, com o propósito de capturar dele a ilha de Chipre, a qual era ainda governada pelo irmão mais novo de Ptolomeu, Menelau, e que alguns não consideravam um strategos muito bom.

Evidentemente, Demétrio teve que obedecer às ordens do pai, embora tivesse preferido continuar fazendo o que já vinha fazendo, ou seja, promover a campanha para libertar a Grécia, partindo da Macedônia, que acreditava ser uma causa nobre. No entanto, Caolho queria pôr um fim à guerra com Ptolomeu, o mais breve possível.

Em primeiro lugar, Demétrio tentou subornar Kleonides, general de Ptolomeu, mas esse homem recusou-se a aceitar sequer um dracma, e assim Demétrio pôs-se ao mar, rumando para Chipre, com os seus 1.500 soldados, quatro mil cavalos e seus 110 triereis ligeiros, seus 53 pesados navios de transporte e ainda as embarcações mercantes que fossem sólidas o bastante para transportar o peso da cavalaria, da infantaria, e das centenas de máquinas de guerra, arremessadores de setas e catapultas que Demétrio necessitava levar onde quer que fosse.

Demétrio desembarcou e ergueu suas tendas na costa nordeste da ilha, depois deslocou suas tropas por terra, de modo a poder atacar a cidade de Salamina, o baluarte de Menelau.

O homem foi tomado de total surpresa pelo ataque, porém, reuniu o maior exército que pôde e marchou com doze mil homens e oitocentos cavalos, saindo de Salamina disposto a dar combate a seu inimigo. Uma curta porém feroz batalha ocorreu, na qual os homens de Menelau foram vencidos por Demétrio e enxotados de volta para dentro das muralhas da cidade.

Menelau entrincheirou-se o melhor que pôde e enviou um chamado urgente para Ptolomeu, no Egito, dando notícia de que mil homens seus haviam sido mortos, e três mil feitos prisioneiros.

Menelau deu muitas justificativas, escrevendo na verdade, não tivemos nem sequer uma hora para nos prepararmos para a batalha... e pediu socorro ao irmão, alertando para o fato de que seus interesses na ilha estavam correndo grave perigo.

Houve quem dissesse que Menelau, de fato, perdera quase a metade do seu exército, e que ele havia se retirado para a cidadela em completa desordem; porém, a seguir demonstrava o quanto valia, carregando todas as máquinas de guerra e tudo o que pudesse ser arremessado contra Demétrio, como projéteis, para o alto das muralhas da cidade. Ele posicionou seus soldados nas ameias e fez o melhor possível para defender Salamina contra o cerco.

Demétrio mobilizou seus homens para a construção de aríetes, e construiu também a famosa torre de cerco chamada Helepolis, ou Destruidora-de-Cidades, que tinha noventa cúbitos de altura e nove andares, totalmente armada de catapultas e outras máquinas de guerra, capazes de arremessar pedras de mais de três talentos de peso e precisava de duzentos homens, em seu interior, apenas para operar a maquinaria.

Demétrio então essa gigantesca arma deslocou para junto das muralhas da cidade, e com ela despejou saraivadas e saraivadas de grandes pedras, de modo que as ameias de Salamina foram destruídas. No entanto, apesar de Demétrio castigar as muralhas, os homens de Menelau resistiram com tal habilidade que, durante alguns dias, a batalha permaneceu indefinida. Ambos os lados sofreram reveses e graves perdas, e quando finalmente pareceu que Salamina seria tomada de assalto, Demétrio ordenou que seus exércitos recuassem até o nascer do sol, pois estava demasiado escuro para que os homens vissem a própria mão diante do rosto.

Menelau permaneceria temeroso que Salamina acabasse caindo, a menos que tomasse uma atitude desesperada; então dirigiu preces aos deuses da Hélade, e teve em retorno a idéia de atirar sobre a Helepolis, nas horas mortas da noite, toda a madeira que pudesse ser encontrada. A seguir, disparou flechas incendiárias nesses pedaços de madeira, e assim Helepolis foi destruída pelas chamas.

Demétrio estava dormindo, enquanto sua maravilhosa máquina era destruída e, mesmo enraivecido, não perdeu o ânimo, pois sabia que Menelau não era o mais brilhante dos comandantes e muito cedo seria batido.

Quando o arauto trouxe a Ptolomeu as notícias, o sátrapa embarcou para Chipre com dez mil soldados de infantaria e sua grande frota de cento e cinqüenta navios de guerra e duzentos transportes. Levou consigo Ptolomeu Keraunos, então com quinze anos de idade, e Arsinoê Beta, de nove anos, além de nove outros filhos e filhas e todas as suas esposas e concubinas, para assistirem à sua grande vitória.

Ele ancorou em Pafos, no extremo de Chipre oposto a Salamina, e depois moveu-se costa abaixo até Kition, de onde enviou uma mensagem Ptolomeu para Demétrio, saudações. Dê o fora de minha ilha senão o esmagarei até transformá-lo em polpa de frutas.

Demétrio respondeu Demétrio para Ptolomeu, saudações. Sou invencível, e será você a ser triturado.

Demétrio então fez uma oferta generosa a Ptolomeu, propondo-lhe que se retirasse de Chipre, entregando as cidades de Sikion e Corintos. No entanto, Ptolomeu recusou-se a retirar-se das terras que eram suas, e disse que não desistiria de nada sem lutar. Não houve escolha, portanto, senão lutar, e a batalha que se seguiu ficou conhecida como a Batalha Marítima de Salamina, em Chipre; era da maior importância para todos os soberanos no mundo grego porque, qualquer que fosse o vencedor, o prêmio seria não apenas Chipre, como também a Síria e a supremacia absoluta sobre todos os seus rivais.

Na noite que precedeu essa batalha, Ptolomeu sonhou que bebia cerveja quente, o que significava perda de propriedades, porém raciocinou que, no Egito, a cerveja estava sempre quente, e não deu atenção ao que os horocopistas lhe disseram. Indagou os seus almirantes, mesmo assim, o que pensavam que deveria ser feito, pois esse sátrapa era um homem acostumado aos movimentos em terra firme e não se sentia absolutamente à vontade a bordo de qualquer navio. Todavia, a seguir, Ptolomeu enviou tropas para Menelau por terra, e ordenou que Menelau deixasse por mar a baía de Salamina, se tal lhe fosse possível, com os sessenta navios de guerra de que dispunha, quando a batalha estivesse no seu ponto culminante, pois seu plano era fazer Menelau atacar a frota de Demétrio pela retaguarda, e deixá-la em pânico, realizando a famosa manobra que os gregos chamam dickplous, ou seja, atravessar a frota inimiga com suas embarcações. Ptolomeu calculava que, se os reforços de Menelau chegassem a tempo, ele certamente venceria a batalha.

De alguma maneira, entretanto, Demétrio foi informado da estratégia de Ptolomeu, e estacionou dez dos seus navios de guerra, e não mais, para bloquear o canal que servia de estreita saída da baía, prendendo, assim, no seu interior, os navios de Menelau. Demétrio então avançou com cento e oitenta triereis, entre eles dez hexeres, ou seis, e sete hepteres, ou setes, que eram embarcações maiores do que qualquer outra já usada em batalha, com arremessadores de projéteis montados sobre suas proas e bestas com capacidade de atirar setas com comprimento acima de três palmos. E Demétrio sorriu porque sabia que derrotaria Ptolomeu e o transformaria em gelatina.

Enquanto Ptolomeu dirigia-se para Salamina a toda velocidade, acobertado pela escuridão, Demétrio manteve-se à sua espera. Ptolomeu acreditava que pudesse assumir a melhor posição antes que seu inimigo estivesse preparado, mas, à primeira luz do dia, avistou Demétrio já muito próximo, ancorado e postado em ordem de batalha, e sofreu um sobressalto.

O que aconteceu a seguir? Demétrio esmagou Ptolomeu, como havia prometido, pois Menelau não conseguiu chegar a tempo de salvá-lo, e Ptolomeu, tendo perdido todos, exceto oito, dos seus navios, viu-se forçado a fugir. Os soldados de Ptolomeu debatiam-se no mar às centenas, assistindo aos seus navios se incendiarem sobre a água. As trombetas de guerra de Demétrio berraram alto; seus homens zombavam, comemoravam e entoavam insultos, tais como fodemos com nosso inimigo, enquanto viam os corpos afundarem, um a um, diante dos seus olhos, indo servir de comida para os peixes e para as inomináveis criaturas das profundezas.

Demétrio tinha obtido a mais brilhante vitória, estraçalhando a frota egípcia. Afundou 62 dos navios de Ptolomeu e capturou 170, fazendo desta a derrota mais humilhante de toda a vida de Ptolomeu. E o pior Ptolomeu havia sido derrotado por um homem com a metade da sua idade.

Ptolomeu isentou a si mesmo, quanto a esse episódio, no que diz respeito a sua raiva, e voltou-a contra o seu inútil irmão, amaldiçoando-o, já que parecia que tudo que Menelau fizera na vida havia se transformado em desastre. A seguir, jogou fora o talismã grego que devia ter lhe propiciado a vitória na batalha, dizendo que era inútil, inútil, tão inútil quanto o seu irmão Menelau.

Quanto a Demétrio, ele perdera apenas vinte navios, e todos puderam ser reparados e postos de volta em serviço quase da noite para o dia. E, sim, a cidade de Salamina e a ilha de Chipre agora pertenciam a Demétrio Poliorketes, Antígonos Caolho e à Macedônia, e não a Ptolomeu e ao Egito.

Quase tão nefasto quanto a perda de Chipre foi o desaparecimento do comboio de acompanhantes de Ptolomeu seus amigos, suas esposas, concubinas e todos os seus filhos, que tinham sido deixados em segurança nos navios de transporte que velejavam atrás da frota, como espectadores. Ptolomeu temia que todos pudessem ou ter caído nas mãos de Demétrio ou afundado no mar; ele todavia não sabia o que lhes tinha acontecido, embora temesse o pior haver perdido absolutamente tudo de seu, inclusive o seu herdeiro e o futuro de sua dinastia.

O costumeiro tratamento grego para os prisioneiros de guerra era a mutilação, fosse cortando-lhes as orelhas e lábios, ou marcando-os com ferro em brasa, para que depois fossem vendidos como escravos por uma boa soma de dinheiro. Porém, Demétrio provou, novamente, ser generoso na vitória. Sepultou com todas as honras os inimigos mortos que puderam ser pescados do mar e pôs os prisioneiros em liberdade sem exigir pagamento de qualquer resgate. Entre eles, estava o jovem Leontiskos, filho de Ptolomeu com Thaís, em serviço ativo pela primeira vez, e muitos dos melhores oficiais de Ptolomeu. Demétrio poderia sem empecilhos ter cortado os polegares da mão direita de todos, ou tê-los vendido para se tornarem escravos eunucos; porém devolveu os seus prisioneiros sem exigir nem sequer uma dracma.

Demétrio devolveu também as esposas e concubinas de Ptolomeu, e entre elas se achava Lamia, a famosa prostituta, cuja inestimável beleza então estava em declínio, e que Ptolomeu achava que pareceria velha demais e de carnes já flácidas demais para atrair um homem jovem como Demétrio, que deveria dispor de todo um lote das mais belas mulheres do mundo; mas, para aquele homem, foi um triunfo pessoal ter mandado Lamia de volta para casa depois de ter feito uso completo de seus serviços.

Afinal de contas, era refrão zombeteiro habitual de Ptolomeu fodemos nosso inimigo, e Demétrio assim tirou sua doce vingança fazendo com Lamia o que os marinheiros de Ptolomeu tinham ameaçado fazer com ele.

Porém, Ptolomeu não teria problemas em chamar Demétrio de kalokagathos, um perfeito cavalheiro, pois ele não tocou um dedo em Berenice, e devolveu-a para ele intacta e com a fabulosa agudeza da sua língua insubordinada, que ela usou então para repreender o próprio Ptolomeu por sua estupidez; e, Thot sabe, talvez ela tivesse lá as suas razões.

Ptolomeu então fez um solene juramento diante dos deuses da Grécia, prometendo que haveria de retomar Chipre, que era uma possessão sua por direito, ainda que fosse a última coisa que fizesse, ainda que o Oráculo de Zeus-Amon na Líbia dissesse que levaria dez anos para conseguir seu intento.

Para Demétrio foi uma surpresa que os soldados de Ptolomeu que foram capturados tenham se recusado a trocar de lado e passado a lutar por ele — algo quase inédito. No entanto, os homens de Ptolomeu tinham boas razões para se manterem leais. Ele tinha assentado esses soldados mercenários em pequenas possessões de terra no distrito do Lago, no Egito, que ficava a pequena distância a barco de Mênfis, rio acima, dando a eles toda a aparência de participação de um pedaço de sua satrapia. Foi assim que se precaveu contra deslealdades. As concessões de terra garantiriam que eles lutariam por Ptolomeu novamente. Pois Ptolomeu era o mais bondoso, o mais generoso, o melhor dos senhores — ele próprio, um kalokagathos.

Quanto aos 11 filhos de Ptolomeu, eles fecharam firmemente suas bocas, não ousando fazer comentários sobre a derrota do pai, mas não se esqueceram de suas aventuras ou da terrificante nausiasis. Arsinoê Beta, de nove anos, permanecera de pé na proa do seu navio vomitando para o lado, mas com os olhos bem abertos, sem perder nada. Era sua primeira naumachia, e a comoção que a possuiu haveria de ser lembrada por todo o resto de sua vida com uma grande lição de como sofrer uma derrota.

Sua irmã, Ptolemaís, de 12 anos, também lembraria desse dia, pois havia avistado a distância um homem de insuperáveis beleza e heroísmo, que desempenharia um importante papel no seu futuro, o homem que o destino reservara para ser o seu marido — ele mesmo, Demétrio Poliorketes.

Quanto à sua meia-irmã, Irene, a única filha de Thaís de Atenas, a filha mais velha de Ptolomeu, foi como resultado da Batalha Naval de Salamina que ela também ganhou um marido e, diferente de Ptolomaís, conseguiu esse marido de forma surpreendentemente rápida.

Depois de Salamina, Demétrio Poliorketes tornou-se o senhor de toda Chipre e aboliu os reis da cidade que tinham reinado ali antes dele; de modo que esses homens foram forçados a debandar. Um deles, Eunostos, filho de Pasikrates, que tinha sido Rei de Soloi, em Chipre, fugiu para o Egito, onde teria a ventura de se casar com Irene, filha de Ptolomeu.

Demétrio celebrou sua grande vitória cunhando tetradracmas que mostravam Nike, a deusa alada da Vitória, de pé sobre o tombadilho do seu navio capitania. Nike tinha sido bondosa, muito bondosa com Demétrio, e ele fez pródigos sacrifícios para ela. Antígonos, seu pai, ficou feliz ao saber do sucesso do filho, e assumiu por conta disso o diadema de um rei, tendo começado a exigir as honras e a chamar a si mesmo pelo título de Basileus, ou Rei, com todo tratamento oficial inerente, e foi o primeiro dos Sucessores de Alexandre a proceder assim.

Já Ptolomeu retornou ao Egito no pior dos estados de ânimo, pensando que a era do poder Ptolomaico sobre o mar estava encerrada, acabada para sempre. Havia lutado durante 16 anos para conservar o domínio sobre a Palestina, a Síria e Chipre, e agora todo o seu grande império se fora. Tudo o que lhe restava para chamar de seu era o Egito, e o território da Cirenaica

a oeste.

Contudo, não se manteve abatido por muitos dias. Havia feito seu juramento solene aos deuses da Grécia e, como sempre, fez o que julgou que Alexandre teria feito nas mesmas circunstâncias reuniu suas forças e preparou-se para a batalha, mais uma vez, pelo que acreditava lhe pertencer por direito.

 

                     O Trabalhador Miraculoso

Quanto ao outro Demétrio — de Faleron —, ele se tornou um pouco mais famoso, por essa época, por obra e graça do deus Serápis, que o povo de Alexandria havia negligenciado ultimamente, pois em verdade o novo deus era um estranho híbrido, quase idêntico a Zeus, que já tinha o seu próprio templo e seu próprio culto em outro local na cidade.

Nesse grande templo novo, em honra a Serápis, em Alexandria, erguia-se a gigantesca imagem de culto do deus barbado, de rosto azulado e expressão benigna, com seus olhos feitos de gemas preciosas cintilando na escuridão. Suas faces eram afáveis, misteriosas, majestosas, apropriada a um deus do Mundo dos Mortos, e sobre a sua cabeça havia a cesta de milho que simbolizava o celeiro que era o Egito.

A estátua e o templo de Serápis eram de fato imponentes, porém até então eram simples maravilhas um deus novo valia o mesmo que nada, pois o povo vinha até ali apenas para embasbacar-se, por curiosidade, depois seguiam o seu caminho. Poucas pessoas paravam para pedir as graças desse deus, já que ele não concedia nenhuma. Ninguém deixava ali nem ao menos um óbolo para Serápis, que não possuía outra fama que não fosse pelo seu enorme tamanho.

O que, então, fez Ptolomeu? Foi falar com Demétrio de Faleron, o mais sábio grego de todo o Egito, e perguntou-lhe o que devia fazer acerca do novo grande deus, que estava começando a ser visto como um grande fiasco.

Pela primeira vez na vida, Demétrio sentiu-se perdido. Tentou falar, mas nenhuma palavra lhe saía da boca, e pôde apenas abrir os braços, sem resposta, e Ptolomeu considerou a possibilidade de lhe tomar os escravos e o salário e mandá-lo de volta para o lugar de onde viera.

Foi enquanto Ptolomeu ainda tentava pensar em alguma maneira de tornar Serápis popular que Demétrio ficou, sem aviso, cego, e foi preciso que seu escravo o conduzisse pelo braço através da ágora até o seu médico.

Demétrio viu escuridão durante o dia por um mês, e foi algo pavoroso de suportar, já que foi levado de um médico para outro pelo seu escravo, buscando curar-se. O seu rosto ficou transfigurado. Muitas quedas ele levaria, e machucaria os membros, de maneira que ficou coberto de cortes e equimoses.

Demétrio procurou todos os médicos na cidade. Aplicaram-lhe uma mistura que se compunha de dois olhos de porco, colírio, zarcão e mel agreste, injetada nos ouvidos, que supostamente curaria de imediato a cegueira. Nada aconteceu.

Experimentou uma loção de mirra seca no leite coalhado.

Tentou o cataplasma de pó de cebola.

Chegou a soluçar melhor para ti seria deixar de viver do que viver cego.

Ptolomeu colocou à sua disposição seu médico particular, que fez Demétrio experimentar até mesmo o abominável ungüento para os olhos feito com excremento de crocodilo. Contudo, Demétrio continuou na completa escuridão, e declarou que estava resignado a viver nas trevas pelo resto da vida.

Então, certo dia, por sua própria conta, resolveu passar a noite no templo de Serápis, onde dirigiu preces ao deus, e fez questão de que todo mundo soubesse que depositava suas esperanças de cura em Serápis.

Pela manhã, ocorreu uma agitação na região nativa, Rhakotis, onde estava o Serapeion, e uma multidão de pessoas encontrou Demétrio de pé nas escadarias do templo, sorrindo, e demonstrando que já podia enxergar perfeitamente bem. E lá ficou ele, gritando na maior altura que sua voz poderia alcançar, que Serápis viera lhe falar durante a noite. Disse que sua vista fora devolvida, e a primeira coisa que ele viu foi a estátua de Serápis inclinando a cabeça para ele. Ele berrou foi o Deus Serápis que me curou da cegueira.

Daquele dia em diante, as multidões não arredaram mais o pé do templo. Os enfermos vinham dormir no santuário de Serápis às centenas e eles dedicaram membros artificiais de ouro e prata em agradecimento pelas suas curas miraculosas, e deixavam oferendas para o deus que fizera deles, novamente, uma pessoa hígida.

Para os alexandrinos, então, o falso deus virou um deus verdadeiro, e os gritos de Milagre! eclodiam toda manhã, descendo as colunatas da Via Canopus, dispersando-se por toda cidade que despertava.

Alguns cochichavam que Demétrio nunca ficara cego, no entanto fora curado da escuridão pelo seu próprio e obscuro truque. Entretanto, Demétrio não via razão por que um falso deus não pudesse realizar um falso milagre. Fora essa a razão de Serápis ter sido inventado para que pudesse existir pelo menos um deus que estivesse sob controle humano.

O velho Anemhor nada sabia sobre a fraude de Demétrio, mas tinha suas suspeitas, até pelo fato de esperar que todo grego fosse um fraudador. Mas o povo de Alexandria acreditou. É da natureza dos gregos acreditar em milagres.

Ptolomeu, contudo, estava perplexo. O que ele não podia entender era que as curas efetuadas por Serápis fossem verdadeiras, e que a fé dos enfermos fosse verdadeira. Foi como se o seu deus inventado por ele tivesse se tornado real, e Ptolomeu começou, quase, a acreditar na veracidade do seu próprio Serápis.

Com freqüência, agora, relatava-se que a estátua fora vista movendo-se, e até mesmo acenando com a cabeça para os seus adoradores, como um deus tão verdadeiro quanto o mais verdadeiro dos deuses, que arrancava lágrimas verdadeiras dos fiéis.

O povo do Egito não sabia que Serápis era uma trapaça, uma fraude, a invenção de Ptolomeu, e que um dos propósitos do seu novo deus era tomar dinheiro deles.

O próprio Ptolomeu sorriu com o êxito do seu deus, esfregando as mãos só em pensar no dinheiro que isso iria render e, na privacidade do seu quarto particular, ria à toa, até que as lágrimas escorressem bochechas abaixo.

No que diz respeito a Thot — Thot sabe que não há mentira como uma mentira grega, nem mentiroso igual a um mentiroso grego.

O milagre seguinte a ocorrer em Alexandria, comentaram alguns, foi o casamento de Irene, a filha de Thaís, que tinha agora mais de 18 anos e estava madura para se tornar a esposa de algum homem.

Foi Eunostos, anteriormente rei de Soloi, em Chipre, o escolhido para ser o marido dessa garota, e também comentado que ele perambulava pela residência de Ptolomeu perguntando com que mulher poderia se casar, e assim, a fim de garantir a lealdade desse homem, Ptolomeu concordou com o seu propósito.

Filha bastarda ou não, Irene não deveria ser privada de um marido. E bem poderia casar-se com um rei, pois era tão merecedora disso quanto qualquer outra moça, e o fato de o seu rei ter sido o rei de menos da metade de uma ilha, e de agora não ser rei de absolutamente coisa nenhuma, não diminuía em nada a sua animação. De modo algum. Irene tinha certeza, assim como Ptolomeu e Eunostos, que em questão de meses Demétrio Poliorketes seria derrotado, que Chipre voltaria a ser propriedade de Ptolomeu, que Eunostos voltaria a ser rei e que Irene seria sua rainha.

Em particular, Ptolomeu disse a Berenice na verdade, uma filha ilegítima tem muita sorte de encontrar um marido, seja quem for, quanto mais um marido que está para se tornar um rei.

Ptolomeu sentia-se feliz em despachar essa filha num casamento, ainda que, por enquanto, devesse continuar morando sob o seu teto. É claro, Irene lembrava a Ptolomeu sua mãe. Ela tinha, sim, a mesma voz rouca de Thaís, a mesma pele olivácea, o mesmo cabelo alourado, a mesma beleza incomparável.

E naquele momento, especialmente, Ptolomeu não desejava que lhe lembrassem Thaís, cujo destino e presente paradeiro ele ignorava completamente, nem mesmo sabendo se ela estava viva ou morta. Ele afastara aquela mulher, e todas as riquezas do Egito, todos os belos palácios, toda a glória de ser um sátrapa, todas as concubinas, até mesmo o amor de Berenice — nada disto reparava a perda de Thaís, a prostituta, e no fundo do coração desse sátrapa, existia um grande vazio, que era o seu anseio de ter de volta o passado que perdera; de reconstituir os seus passos até o ponto em que se desviara para o caminho errado.

No final das contas, ele teria preferido voltar para casa na Macedônia, para sua vida simples nas colinas de Eordaia; para a vida simples de um camponês grego, cuidando do seu rebanho de carneiros e cabras, sem as complicações de governar e as obrigações de guerra; uma vida na qual ele não estivesse sempre sendo forçado a estar pronto para a batalha, ou a dormir com um punhal debaixo do travesseiro por medo de que os seus mais antigos amigos e os parentes mais próximos viessem assassiná-lo nas horas mortas da noite e tomar dele tudo o que possuía, até mesmo a sua satrapia.

Contudo, Ptolomeu escolhera seu modo de vida — ou foi o Destino que o tinha escolhido para ele — e devia tirar o melhor proveito dessa escolha.

Não podia voltar atrás; tinha de seguir em frente, e, por mais impossível que fosse, esforçava-se para esquecer Thaís e o passado, e não pensar no futuro tampouco, ainda que isso também fosse impossível, mas viver o momento atual, pelo prazer do agora.

E Irene? O que aconteceu com Irene e Eunoston? Viveram em Alexandria para sempre? Teriam retornado para Chipre como Rei e Rainha? O casamento de Irene foi o último acontecimento referente a ela que a história registrou.

Thot pergunta teriam também Ptolomeu e sua Casa esquecido Irene? A rainha Irene? Quem, nos anos que se seguiram, poderia dizer uma palavra sobre o que aconteceu a ela? Quais foram o número e os nomes dos seus rebentos? Qual foi o destino e a história dessa mulher tão bela e jovem?

No Egito ninguém sabia nada a respeito. No Egito ninguém tinha muito o que contar sobre ela.

E é tudo sobre a filha ilegítima da mulher mais bela do mundo seu destino foi o mesmo da sua mãe — ser esquecida.

 

                         O Cerco de Rodes

A perda de Chipre foi um terrível golpe para Ptolomeu; porém haveria outros golpes por vir, pois menos de um ano depois, Antígonos Caolho ordenaria a invasão do próprio Egito.

Caolho encarregou-se pessoalmente dessa expedição, e comandou o exército ele próprio, a despeito de estar próximo dos oitenta anos de idade. Levou com ele oitenta mil soldados de infantaria, oitenta mil cavalos e oitenta elefantes. Sua frota de 150 navios de guerra estava sob o comando do seu filho Demétrio, que se gabava de ter esmagado Ptolomeu no mar, e que agora o iria esmagar também em terra.

Enquanto o equipamento estava sendo preparado, um dos amigos de Antígonos teve um sonho no qual ele viu o Caolho participando de uma corrida a pé no estádio com seus oitenta mil soldados, porém, depois da marca da metade do percurso, sentiu-se enfraquecer, ficou muito ofegante e só com dificuldade conseguiu terminá-la.

Embora esse amigo tivesse narrado o sonho ao Caolho, e o Intérprete de Sonhos tenha dito que isso nada podia significar senão um desastre que estivesse por vir, Antígonos afirmou que a previsão do futuro por meio de sonhos era algo ridículo e recusou-se a levá-la em consideração.

Caolho foi prevenido também pelos pilotos — homens que deviam saber do que falavam — que havia turbulências climáticas à frente. No entanto, Antígonos era um homem que, uma vez tendo começado algo, nunca deixaria de terminá-lo, e não gostava de ouvir conselhos. Nisso, não era diferente de Alexandre, mas sentia que essa poderia ser a sua última chance de dar uma lição em Ptolomeu, e moer este seu inimigo até transformá-lo em poeira. E ele disse se puder derrotar Ptolomeu, filho de Lagos, morrerei feliz.

Antígonos Caolho então partiu da cidade de Gaza com um grande comboio de camelos carregados com milho e forragem para os seus animais de carga, com toda esperança de conquistar uma magnífica vitória e tomar o Egito para si, e bazofiar depois que os deuses da Grécia olhavam com benevolência para Antígonos Monoftalmos.

Porém, os deuses da Grécia sempre ouviam palavras de bazófia. Os deuses não gostam da soberba, e tudo o que poderia dar errado para Caolho deu errado dessa vez.

Em primeiro lugar, ele havia reunido toda essa tropa em Gaza, mas ela era tão imensa que nada podia ser feito rapidamente, e nada também, subrepticiamente, de modo que Ptolomeu soube não só que eles estavam a caminho mas também de tudo mais sobre eles. Em seguida, o que é ainda mais sério, Caolho escolhera a estação errada do ano, tendo sido retardado até o ocaso das Plêiades, após o qual as condições do tempo certamente pioravam.

Era plano de Caolho atacar Ptolomeu logo que pudesse, depois da derrota em Salamina, enquanto a frota dele ainda estava sendo consertada e enquanto as tropas do sátrapa do Egito ainda estivessem abatidas, curando suas feridas e tentando recuperar a sua capacidade de luta. Ptolomeu tinha em verdade perdido muitos navios para recuperar sua força integral levaria algum tempo, pois a madeira para construção de navios era adquirida no Líbano, e levaria meses para ser derrubada e transportada, e tudo se tornava mil vezes mais difícil pelo fato de a Palestina não ser mais propriedade sua.

Enquanto isso, Caolho marchava através do deserto, e Demétrio navegava junto a ele, pela costa, com sua frota. Porém, como os sábios disseram, Zeus, que está sempre com o olhar atento, pôs agora na cabeça causar dificuldades a Demétrio, e mandou-lhe um furacão e ondas gigantescas que reduziram os mais pesados tríereis de Demétrio aos pedaços, contra os rochedos da costa em Rafia.

Quando pai e filho por fim chegaram à Boca Pelusíaca do Nilo, descobriram que Ptolomeu bloqueara a entrada com barcos, de modo que seus inimigos não poderiam passar, e as tropas do Caolho foram interceptadas pelo próprio Ptolomeu, ancorado com sua bela barcaça dourada satrapal, oferecendo possessões de terras aos bravos soldados que quisessem trocar de lado e lutar pelo Egito, e a berrar os pormenores do seu suborno através de uma trombeta dourada, afirmando que pagaria a enorme soma de duas minas para os soldados e até um talento a cada oficial que desertasse e viesse para o seu acampamento.

Caolho anunciou aos brados uma contraproposta, dizendo que qualquer soldado seu que se atrevesse a desertar seria punido com a morte sob torturas, teria as orelhas amputadas, as unhas dos dedos arrancadas, e coisas do gênero, e rogou aos deuses que o destino do exército de Perdikkas não lhe estivesse também reservado porque, pelo que pôde ver, Ptolomeu tinha trazido metade dos crocodilos do Egito com ele.

Demétrio avançou com sua frota, ultrapassando a Boca Pelusíaca, procurando algum lugar favorável ao seu desembarque mais para o oeste, mais próximo de Alexandria, mas foi rechaçado pelos homens de Ptolomeu. E então, assim disseram, o próprio Zeus planejou um novo desastre para esse Demétrio, pois uma segunda tempestade no mar, agora, destruiria seus maiores navios de guerra fora de Canopus, de modo que ele foi forçado a voltar e a se juntar ao seu pai no acampamento a oeste de Pelúsia. Caolho, então, recuou para Gaza, envergonhado e derrotado, nada tendo conseguido, não sem antes jurar, por todos os deuses da Grécia, que não tinham levantado um dedo sequer para ajudá-lo, que voltaria.

Ptolomeu pendurou a sua espada e escudo no Templo de Apolo em Alexandria, e disse para os seus filhos que eles teriam de vencer as suas batalhas, por ele, no futuro, pois já estava cansado da guerra e de sua insensatez queria devotar o resto dos seus dias à paz. Providenciou muitas oferendas a Zeus, aos deuses da Grécia, sem se esquecer de Serápis, ou de Thot, e homenageou seus generais e almirantes com suntuosos banquetes de vitória, proporcionando-lhes muitos e muitos presentes em prata e ouro.

Antígonos não voltou pessoalmente ao Egito no ano seguinte, mas mandou Demétrio no seu lugar, para sitiar a ilha neutra de Rodes. Seu propósito era sempre causar o maior dano que pudesse a Ptolomeu, mas dessa vez procurou fazer isso de maneira menos direta, prejudicando ao máximo suas transações comerciais e privando-o das refinadas iguarias provenientes da Grécia, pois sabia que o velho Ptolomeu não poderia viver sem os seus luxos.

O próprio Ptolomeu estava perplexo, sem conseguir entender por que Demétrio tinha se dado a tal trabalho. Porém, a resposta não era difícil de se encontrar. A ilha e a cidade de Rodes eram grandes amigos e aliados de Ptolomeu, e tinham grande história de laços comerciais com o Egito. Foi uma sagaz idéia de Demétrio cortar todo suprimento da Grécia para o seu inimigo, pois viu que, se o grande mercado e os negócios bancários de Rodes fossem bloqueados, todo o comércio do Egito e do Levantino seria pulverizado — uma vez que todas as mercadorias ou atravessavam, ou dependiam de Rodes. Ptolomeu passou a noite acordado, tomado de preocupações. Quando veio o dia, desatou em suores só de pensar no assunto, e não conseguiu parar de pensar a respeito, pois isso significava, para início de conversa, que não haveria mais especiarias no Egito e ocorreria uma escassez de incenso. E, sim, era um pensamento devastador, pois sem incenso nenhum grego poderia adorar os seus deuses, nem tampouco qualquer egípcio.

O sorriso de Demétrio fez-se largo quando recrutou a ajuda dos inimigos de Rodes — os piratas —, e mais largo ainda quando, com um exército de quarenta mil homens e quatrocentos navios de guerra, atacou a cidade de Rodes — uma poderosa fortaleza cercada por triplas muralhas e fossos, com um lado de frente para o mar.

Os rodianos tomaram a precaução de trazer para dentro dessas muralhas tudo o que se encontrava fora, nos campos, tal como milho, gado bovino, carneiros e cabras, e armazenaram carne e bebida prevendo um cerco; fortificaram as muralhas e se prepararam para defender a sua cidade.

Eles também enviaram mensagens com um urgente pedido de socorro a Ptolomeu, o homem que, assim disseram, poderia salvá-los, se algum homem pudesse, pois temiam muitíssimo a reputação de Demétrio Poliorketes, tendo tomado conhecimento da intensidade com que ele atacara a cidade de Salamina.

A princípio, Demétrio tentou tomar de assalto Rodes vindo por terra. No entanto, por alguma curiosa razão, não se preocupou em bloquear a baía, de modo que Ptolomeu pôde enviar suprimentos pelo mar, estando sua frota agora totalmente reparada. Tendo feito a entrega, Ptolomeu serviu-se da carga de mercadorias enviada por uma das esposas de Demétrio ricos mantos purpúreos, bandejas de prata e artigos semelhantes — ou seja, um luxo tal que não poderia ser bem utilizado por ninguém, senão por um sátrapa.

Quando Demétrio decidiu tomar a baía, fracassou, e mudou sua estratégia então para se concentrar mais uma vez num assalto por terra, construindo uma Heliópolis maior e melhor, com cem cúbitos de altura, do qual ele arremessou flechas, pedras e areia quente, e toda sorte de projéteis, os mais terríveis.

A torre avançava sobre quatro grandes rodas de carvalho, e fazia um barulho tão grande que causava medo e deleite ao mesmo tempo em todo indivíduo que a via, pois essa poderosa máquina de guerra era movimentada por

3.400 homens, mil deles empurrando do seu interior.

Demétrio também construiu um aríete que balançava para trás e para frente, numa armação, possibilitando-lhe chocar-se contra as muralhas de Rodes, aríetes de 120 cúbitos de comprimento, revestidos de ferro e montados sobre roladores, impulsionados por mil homens. Entretanto, Rodes provou ser bem capaz de resistir aos assaltos de Demétrio, que, a despeito do seu apelido, não fez muito progresso. Ele disparou rochas maiores do que nunca, óleo escaldado, flechas incendiárias, dejetos humanos e barris de alcatrão fervente, durante os dias e as noites de um ano inteiro, sem cessar; porém, mal deixou marcas nas muralhas dessa grande e orgulhosa Rodes, cujo povo era sagaz o bastante para não permitir que ele entrasse. Não, Demétrio não conseguiu deixar Rodes em chamas, nem os túneis escavados por seus engenheiros conseguiram invadi-la por baixo da terra. Tampouco foi bem sucedido em fazer Rodes render-se pela fome, pois os aliados da cidade, Cassandro e Lisímaco, enviaram dez mil medidas de cevada, quarenta mil medidas de trigo, e enormes quantidades de lentilhas.

Ptolomeu enviou 1.500 soldados e vários navios carregados de alimento tâmaras, figos, melões, pastelões de pombo, assim como trezentas mil medidas de grãos, feijões, ervilhas e lentilhas, e muitas ânforas de cerveja egípcia, chamada de booza.

O rodianos não podiam esconder sua admiração pela colossal escala de dimensão na qual Demétrio trabalhou, ainda que terrível para eles, e engasgavam-se, mas mesmo assim aplaudiam, diante das enormes quantidades de imensas galeras a remo, pentekaidekeres e hekkailekeres, no que as embarcações passaram por eles, cada qual impulsionada por mil remadores, todos cantando a fim de manter o ritmo das remadas. No entanto, eles enfrentaram esse homem, até seu pai enviar um pombo correio com ordens para que ele retornasse para casa na Macedônia. Demétrio estava, então, bastante ansioso para encontrar um meio de abandonar o seu cerco sem perder prestígio, mas o Caolho ordenara-lhe que entrasse num acordo e assinasse um tratado de paz antes de partir, e disse que devia partir imediatamente.

Bastante aliviados, os rodianos assinaram o papiro no ato, e, enquanto a frota de Demétrio zarpava da baía, ficaram enlouquecidos nos parapeitos das muralhas, comemorando, assoviando e entoando palavras bastante rudes sobre Demétrio Poliorketes, o Sitiador de Cidades, cujo famoso cerco de Rodes fora um tão retumbante fracasso.

Essa última expedição de Demétrio foi, portanto, uma grande perda de tempo e de energia para todo mundo. Para Ptolomeu, contudo, o mais importante foi ter restaurado o comércio com o Egito e, mais uma vez, poder contar com especiarias em sua cozinha e com o incenso em seus templos, a fim de agradar as narinas dos deuses, tanto gregos quanto egípcios — porque, acima de tudo, convinha manter os deuses felizes.

 

                      A Apoteose de Ptolomeu

Eram tão calorosos os sentimentos do povo de Rodes para com os sátrapas que o tinha ajudado a resolver os seus problemas que foi unânime a iniciativa de edificar imagens em ouro de Lisímaco e Cassandro na cidade. Porém, acreditavam que mesmo uma estátua de ouro sólido não seria o suficiente para demonstrar a profunda dívida de gratidão a Ptolomeu. Assim, enviaram embaixadores ao Oráculo de Zeus-Amon, na Líbia, a fim de perguntar se, por acaso, seria lícito a eles reverenciar Ptolomeu como se fosse um deus.

A última vez que Zeus-Amon fora consultado sobre tal assunto — relativo a apoteose de Hephaistion —, havia se recusado a responder. Porém dessa vez, para surpresa de todos, inclusive para os rodianos, que tinham, provavelmente, mandado fazer uma pergunta cuja resposta esperada seria Não, e que pretendiam meramente ficar nesse gesto de cortesia, o Oráculo efetivamente concedeu permissão para que Ptolomeu fosse cultuado como um deus; e assim teve de ser feito.

Rodes teve de construir, portanto, o mais suntuoso santuário de mármore para Ptolomeu do Egito, e incluíram no seu interior um recinto sagrado com colunas de mármore de um estádio de comprimento. Chamaram o santuário de Ptolemaieion, e nele ofereciam sacrifícios de sangue diários a Ptolomeu, cantavam hinos a Ptolomeu o deus, e depositavam braços de ouro, orelhas de prata e reproduções de outras partes do corpo fundidos em metais preciosos, na esperança de que o deus Ptolomeu pudesse curá-los de suas doenças, o que ele fazia.

Os rodianos concederam também a Ptolomeu um título grego de muito prestígio, Soter, que significava Salvador, já que ele havia — se bem que não sozinho — salvado a ilha e a cidade de Rodes. Declararam que ele deveria ser chamado por esse título no Egito, e isso foi, segundo Ptolomeu considerou, a maior de todas as honrarias, pois Soter era um título que ele compartilharia com o próprio Zeus, e ele seria Ptolomeu Soter para o resto de sua vida — na verdade, para sempre, pelos tempos afora.

Alguns homens, diante de tal título, sorriam afetadamente, encarando-o com sarcasmo do mais alto grau, refletindo apenas o fato de que Ptolomeu realmente não havia auxiliado tanto assim a Rodes, ou pelo menos não tanto quanto poderia; que na verdade não tinha enviado soldados e víveres o bastante; que tinha mandado para lá a pavorosa booza, o qual fizera todos os homens de Rodes arrotarem durante 15 meses sem parar.

Outros recordam que o título de Soter fora dado a Ptolomeu não por Rodes mas pelos cidadãos de Alexandria, que eram peritos em títulos sarcásticos, para enfatizar o fato de que Ptolomeu nunca, em toda sua vida, salvara quem quer que fosse de coisa alguma, porque realmente ele preferia recuar a atacar, a paz à guerra, ficar em casa a viajar, permanecer sentado a ficar em pé e dormir a ficar acordado, e porque esse homem era de fato melhor em fazer absolutamente nada.

Thot diz em verdade, isso era, talvez, um pouco injusto.

De onde quer que tenha o título se originado, e tenha sido sincero ou não, Ptolomeu aceitou-o com a maior boa vontade. Preocupou-se, é fato, por estar tomando para si um dos títulos de Zeus, o maior deus dos gregos, mas não ficou preocupado por muito tempo. Para ser sincero, continuara a realizar os sacrifícios gregos ao longo de todos esses anos. E, fosse como fosse, não pensava em desertar dos seus deuses enquanto dessem sinais de estarem do seu lado. Agir de outro modo teria sido um convite ao desastre.

Toda noite, portanto, Ptolomeu Soter, Sátrapa do Egito, dedicaria sua terceira taça de vinho a Zeus Soter — Salvador —, como sempre fizera. Beber a terceira taça, dessa maneira, era o símbolo da Boa Sorte, da Boa Fortuna. A terceira taça, a terceira vez, sempre fora a vez da sorte. Agora, a terceira taça parecia envolver também a Casa de Ptolomeu, e, ainda que parecesse estranho, ser chamado de Ptolomeu Soter também o fazia sentir-se afortunado.

Era, ele pensou, em nada diferente de fazer um brinde solene a si mesmo.

Em Rodes, reconstruíram o teatro grego destruído, as muralhas da cidade que foram danificadas e fizeram reparos em tudo o que estava quebrado, de modo que a fama de Rodes como a mais bela cidade do mundo grego (depois de Alexandria) foi restabelecida.

Com o final do cerco, os rodianos pediram polidamente que lhes fossem dadas algumas das máquinas de guerra de Demétrio, como recordação do seu poder, e de sua própria coragem em ter resistido a ele, com a intenção de depositarem essas máquinas nos templos da cidade.

Uma história diferente conta que Demétrio simplesmente deixou sua Heliópolis para trás, considerando-a azarada demais para ser utilizada em qualquer conflito futuro, e muito grande para ser transportada, e que ordenara que as máquinas de guerra fossem vendidas como sucata, e que o lucro fosse aplicado em erigir uma estátua para comemorar o cerco de Rodes. Qualquer que tenha sido a verdade, uma grande estátua de bronze de Hélios, o deus do Sol dos gregos, protetor dessa ilha, fora então erguida e tornou-se o famoso Colosso de Rodes, uma das Sete Maravilhas do Mundo, para todo o sempre. Os rodianos gostavam de gabar-se que o Colosso permaneceria famoso até o final dos tempos e que duraria para sempre. Levaram 12 anos para erguê-lo, e lá ficou ele com as pernas abertas sobre — ou, como alguns disseram, junto — a entrada da baía, reluzindo ao sol, estonteando e ofuscando tanto marinheiros como a população em terra, e absolutamente inútil.

Alguns cínicos escarneciam, dizendo que o Colosso não duraria para sempre, porque nada que é feito pelo homem dura para sempre, e tinham razão, pois o Colosso tombou num terremoto menos de cinqüenta anos depois.

Ptolomeu não deu muito valor a essa estátua, que nada tinha a ver com ele, nem mesmo fisicamente. Por seu lado, já estava planejando um monumento muito mais deslumbrante, o famoso Farol de Alexandria, na ilha de Faros, do qual seu maior orgulho era gabar que, além de ser um monumento, evitaria que os navios se despedaçassem contra os rochedos semi-submersos da entrada da Grande Baía de sua capital. Ptolomeu também gabava-se de que o seu Farol, construído com base em princípios filosóficos e científicos, nunca desmoronaria porque tinha fundações à prova de terremotos. Sua maior bazófia, entretanto, era que, diferente do Colosso de Rodes, o Farol salvaria vidas, e seria, em si, um Soter, e muito útil. Nisso, pelo menos, estava certo.

Quando chegou aos ouvidos de Ptolomeu a notícia de que Antígonos Caolho, assim como o seu filho, Demétrio Poliorketes, tinham concedido a eles mesmos o tratamento oficial e o título de Basileus, ou seja, Rei, Ptolomeu começou a pensar se não seria ocasião de fazer a mesma coisa em relação a si mesmo.

Pouco depois, Lisímaco começou também a se chamar não de sátrapa mas de Rei da Trácia, e então o restante dos sucessores o imitaram, e realmente só o que restou a Ptolomeu foi fazer o mesmo, de modo a não ser deixado fora, ou afastado dessa glória. Claro que se preocupava quanto à soberba, mas Ptolomeu preocupava-se com tudo e, no final emitiu o prostagma, e o ato estava consumado. Ele começou por sentar-se em sua cadeira de uma maneira mais majestática, como Alexandre fazia, e sua cadeira transformou-se num trono, e não diferente de um ator que se veste com o manto de um monarca e imediatamente por causa disso se torna um rei, ele mudou todo seu comportamento — sua maneira de andar, sua voz, e postura.

Berenice, evidentemente, sentia-se no direito de se chamar, em conseqüência, de Basilissa, ou seja, Rainha. E havia aqueles que diziam notar Berenice ficar cada vez mais e mais exagerada, esplendorosa, orgulhosa, mais altiva, mais majestática, em pleno acordo com a nova situação, parecendo mais uma rainha até mesmo do que Olímpia, a mãe de Alexandre; mais até mesmo do que a rainha de Dário, Rei da Pérsia, ultrapassando mesmo a falecida rainha de Naklthoreb, o último faraó nativo, como se estivesse pronta e mesmo esperando para ser efetivamente a mais régia rainha que o Egito jamais teve. Berenice tornou-se tão vaidosa em seu coração que perdeu a reverência para com as deusas. Os cortesãos bajulavam-na, dizendo que Hera e Atená, Artêmis e Afrodite não chegavam aos pés da sua beleza.

Ptolomeu ria-se. Disse a sua esposa que não esquecesse Gerana, Rainha dos Pigmeus, que se tornou tão envaidecida a ponto de se gabar de ser mais bela do que as deusas por isso Hera a transformou numa grua, a mais hedionda das aves.

Certamente, Ptolomeu era um rei para os gregos, todavia não ainda rei e faraó do Egito, embora o sumo sacerdote de Ptah tenha observado com certa satisfação a aparência egípcia do título de Soter, de Ptolomeu, dado a Hórus, o deus-falcão, filho de Osíris e ísis, que era o Harpókrates dos gregos — ele próprio fora um Salvador, um Soter, também. Ajustava-se perfeitamente a Ptolomeu fazer uso de um título como esse, desde que ele apenas concordasse em adotar também os títulos e a distinção do Faraó, e aceitasse se tornar o Hórus Vivo, Hórus, o Salvador, um deus vivo para os egípcios assim como para os gregos.

Se Ptolomeu concordasse com isso, assim lhe disse Anemhor, o vazio terrível no coração da sociedade egípcia, causado pela falta de um faraó, terminaria. Sim, a incerteza quanto às Cheias do Nilo acabaria e a fertilidade das Duas Terras estaria garantida. Bastava que Ptolomeu se tornasse um faraó e tudo o que vinha dando errado no Egito durante todo esse tempo seria corrigido.

Claro que ser chamado de rei e se tornar um deus compensaria, em certa medida, a derrota de Ptolomeu em Salamina, e o ajudaria a parar de pensar nisso; mas, no momento, ele não tinha certeza se desejava ser um faraó.

Somos gregos, ele disse, não egípcios. E ele solicitou tempo a fim de decidir-se sobre um assunto de tal importância.

Ptolomeu andava deprimido. É certo que nunca chamou a derrota de derrota, mas sempre, uma falta de sorte. Porém, achava que Tykhe, a Deusa da Fortuna, estava olhando para o lado errado, durante a Batalha de Salamina, e se perguntava o que tinha feito de mal para merecer tal tratamento da parte dela. Teria sido menos grego do que deveria? Teria deixado de fazer os apropriados sacrifícios gregos? O quanto as coisas poderiam piorar se ele se tornasse um egípcio, um Faraó dos egípcios? A sorte o tinha abandonado, o tinha desprezado na hora em que mais precisava dela, e ele se preocupava com a hybris. Preocupava-se em já ter se comportado com demasiado orgulho.

Deus vivo ou não, como se para provar que as suas dúvidas não eram injustificadas, haveria mais infortúnios no caminho para Ptolomeu. Na Batalha de Kos, fora tão humilhado que o combate sequer fora registrado nos Anais de Thot, e a data desta batalha permaneceu incerta desde então.

Na Batalha Naval de Andros, Ptolomeu foi derrotado novamente e ordenou que qualquer referência a essa naumachia deveria ser eliminada dos diários oficiais da Corte.

A retornar para o seu lar no Egito, depois desses Infortúnios, encontrou Anemhor, sumo sacerdote de Mênfis, esperando por ele no cais, como de costume, para cumprimentá-lo. Lá estava ele envergando o seu traje de pele de leopardo, com a careca brilhando ao sol, e ele cravou os olhos nos olhos de Ptolomeu, como se pudesse ler neles tudo o que havia acontecido; mesmo antes que Ptolomeu pudesse lhe dizer uma só palavra sobre o assunto.

Mas, certamente, o sumo sacerdote sabia de todas as coisas. Ele era hábil em fitar Ptolomeu com os seus olhos escuros, perscrutando-o continuamente, e Ptolomeu, em tal circunstância, não foi capaz de sustentar o seu olhar, mas desviou os olhos envergonhado. E amaldiçoou-se por ter jogado fora o talismã grego.

A desaprovação dos deuses, murmurou Anemhor, pode muitas vezes ser mostrada pelo fracasso em empreitadas militares...

Ptolomeu franziu o cenho e abriu os braços, como se fosse para dizer que, realmente, conhecia muito pouco sobre os deuses do Egito, o que era a verdade.

Fracasso, Anemhor disse serenamente, pode ser um sinal da ira dos deuses...

Ptolomeu franziria os lábios e abanaria seu abanador de couro para afugentar as moscas, e Anemhor pensaria que bastaria o abanador desse homem ostentar as faixas alternadas de ouro e safiras, para que ele conseguisse ganhar suas batalhas, e novamente lhe veio o pensamento de que Egito ainda carecia de um faraó.

Realmente, Anemhor disse, Ptolomeu deve construir mais templos...

Ptolomeu respirou fundo. E soltou a respiração. Ele se sentiu nauseado. Sentiu que estava prestes a dar um murro no sumo sacerdote de Ptah, o Grande Chefe do Martelo, bem no queixo, e Anemhor, que sabia de tudo, soube também desse pensamento de Ptolomeu.

Realmente, Anemhor disse, Ptolomeu está precisando fazer mais oferendas aos deuses do Egito...

Ptolomeu inspirou fundo mais vezes, sabendo o que o homem diria em seguida.

Sim, ele sabia muito bem que, fosse o que fosse que isso significasse, iria lhe custar uma fortuna, outra fortuna, porém o que Anemhor aconselhava era normalmente para o bem. Em seu íntimo, sabia que Anemhor lhe dera sábios conselhos. E foi assim que Ptolomeu acabou concordando em fazer doações para a construção de mais templos egípcios, de arcar com novas obras públicas no Delta, mais ajuda para as cidades egípcias do Alto Nilo, e em fazer de si mesmo um benfeitor ainda mais generoso para o Egito.

Os egípcios, ele pensou, têm mania de enxergar sinais de divindades em tudo. Quer um homem ganhe ou não suas batalhas, tudo era pelas mãos dos deuses. Dessa vez, haviam lhe negado seus favores. Novamente. A solução para as suas dificuldades era perfeitamente óbvia. A única maneira de derrotar os inimigos do Egito era entregar aos deuses do Egito a mais extravagante soma de dinheiro. Isso foi o que Ptolomeu agora concordava em fazer.

Em retribuição, o sumo sacerdote passou a considerar esse homem com ainda maior boa vontade. Ele era já, agora, um rei grego, reinando sobre os gregos no Egito. Com toda certeza, Anemhor pensou, não faltaria muito para ele concordar em ser Rei do Egito.

 

                       Nada em Excesso

Em Mênfis, a grande discussão entre os sacerdotes do Egito era se deviam ou não coroar este sátrapa dos gregos, esse estrangeiro, esse cão grego que não possuía sangue real, esse Ptolomaios, Ptlumis, Ptolomeu, como Faraó.

Alguns indagavam Como podemos coroar um estrangeiro que é rituamente impuro? i

E outros indagavam Como podemos coroar um grego, que é culpado de atos impuros com outros machos?

Porém Anemhor, sumo sacerdote de Ptah, insistia que mesmo um grego, se ele se submetesse ao ritual de purificação apropriado, poderia se tornar tão puro quanto o mais puro dos sacerdotes egípcios. Ele falou repetidamente das coisas boas que Ptolomeu já realizara pelo Egito como sátrapa. Salientou que até mesmo Alexandre tinha sido coroado. Além disso, na sua opinião, Ptolomeu era inocente de ter praticado atos impuros. Ele não é como os outros gregos, ele disse; ele prefere mulheres.

E finalmente os sacerdotes decidiram que apoiariam os propósitos de Anemhor.

Já o próprio Ptolomeu, ele hesitou, preocupando-se com o ensinamento nunca se veja como um semelhante aos deuses.

No entanto, ao mesmo tempo, disse a si mesmo não existe nada que um Ptolomeu não possa alcançar. E pensou nas palavras de Homero os deuses, afinal de contas, podem fazer qualquer coisa.

Quando Anemhor uma vez mais fitou fixamente os seus olhos, ele disse o Faraó é a personificação que liga o mundo dos homens ao mundo dos deuses.

Ptolomeu sustentou-lhe o olhar, pensando que o seu grego não deveria

estar correto.

O Rei, Anemhor disse, é a pedra angular da sociedade egípcia. É quem mantém a sua unidade.

Ptolomeu encarou-o, tentando não piscar, pensando, Deuses de verdade não piscam.

É a obrigação do Rei, Anemhor disse, fazer o mundo funcionar. Ele faz o Sol nascer e o Sol se pôr.

Ptolomeu agitou o manto sobre os ombros, pensando, Como tal coisa seria possível?

Porém, Anemhor prosseguiu, é obrigação do Rei fazer o rio produzira cheia e baixar, a semente crescer nos campos... Todas essas coisas apenas podem ser conseguidas executando-se os rituais no templo.

Uma mosca pousou no nariz do sátrapa, e lá ficou, flexionando as suas patas.

O Egito não deve, Anemhor advertiu, ficar por muito tempo sem um Faraó.

Ptolomeu espantou a mosca.

Sem um Rei, Anenhor disse, o rio não subirá.

Se o rio não subir, haverá rebeliões no Egito.

Sem um Faraó, o caos e a desordem retornarão...

Ptolomeu piscou a contragosto. Ele disse que se sentia satisfeito sendo um sátrapa. Tinha tudo o que desejava. Não tinha necessidade de ser rei dos egípcios. Realmente não desejava subir tão alto, acima dos outros homens, de modo que as suas próprias ações pudessem parecer como uma afronta aos deuses da Grécia. Realmente não queria merecer a punição dos deuses por tornar a si próprio um deus no Egito.

Anemhor suplicou que concordasse em ser Faraó, e Ptolomeu enxergou até mesmo lágrimas em seus olhos negros; contudo ainda não conseguia se resolver. Ficou acordado a noite toda, pensando sobre o que podia significar usar a cauda do touro o tempo todo, pendurada entre as suas nádegas; usar a Coroa Dupla do Alto e do Baixo Egito e tornar-se um Hórus vivo, o Falcão de Ouro.

E ele mandou dizer a Anemhor que ainda não estava pronto; que não tinha certeza; que precisaria de mais tempo para pensar. Berenice, sua esposa, pensava diferente. Berenice sabia exatamente o que queria, sabia exatamente o que Ptolomeu devia fazer, e ela começou a aborrecê-lo sobre as rendas provenientes do Alto Nilo, cujos impostos poderiam ser desviados para a atualização do seu guarda-roupa. Mais do que qualquer outro, era Berenice que insistia para que o seu marido aceitasse as Coroas e se tornasse Faraó. Pensava no ilimitado suprimento de ouro que podia obter se fosse Rainha do Egito, e também no fato de que Eurídice não seria Rainha do Egito.

Que infelicidade! Berenice ansiava ardentemente se tornar a Senhora das Duas Terras era Ptolomeu que hesitava, pensando na responsabilidade e no grande aumento da sobrecarga de trabalho. Já imaginava as infindáveis filas de indivíduos trazendo-lhe petições, com suas queixas, todas as quais ele precisaria passar a escutar, e a todas, igualmente, julgar. E pensava em mais dez anos, em talvez mais vinte anos de nada mais do que petições. Como se ele já não tivesse problemas o bastante.

Tornar-se um monarca, pensava ele, seria o mesmo que colocar correntes de ouro nos pulsos e tornozelos. Era como entrar por sua livre vontade numa cela de prisão com grades de ouro. E não haveria como escapar dessa prisão, senão morrendo.

Berenice sonhava sempre e sempre com a glória. Via-se usando a Tiara do Abutre e os brincos de ouro com pingentes das mais preciosas gemas. Ansiava por se exibir nos trajes de ísis, a Grande Deusa, ou vestir-se como Hathor, Senhora da Turquesa, e usar a tiara dos chifres da vaca. Ela declarou que adoraria ser uma deusa viva. E também estava curiosa para ser aquela que agitava o sistro, o chocalho sagrado, e conhecer o interior dos templos dos egípcios, onde, sendo grega, sempre fora proibida de pôr os pés.

Berenice, embora tão esperta, não entendia o que significavam tais coisas, tão grandiosas e cheias de mistérios; tampouco Ptolomeu. Nenhum desses gregos tinha plena noção do fardo que recai sobre um homem que se torna rei dos egípcios. No entanto, no final das contas, foi a opinião de Berenice que começou a tocar o coração do marido.

Berenice pensava muito no que conseguiria se Ptolomeu se tornasse Faraó e muito pouco nas obrigações com que ele arcaria. Não pensava, portanto, nos meses sem fim de ansiedade que deveriam afligir Ptolomeu quanto qualquer problema acontecesse no Egito — se a cheia do rio não acontecesse, se ocorresse a seca, a fome e depois as revoltas, tudo de uma só vez —, e todas essas coisas, se acontecessem, quando acontecessem, seriam por culpa do Faraó e da responsabilidade do Faraó.

Que fique claro que esse homem e sua esposa não faziam idéia dos encargos que lhes pediam que assumissem, bem como seus filhos, e os filhos dos seus filhos, até a décima geração. Isso porque, em verdade, uma vez que se tornassem reis do Egito, seriam reis para sempre, para todo o sempre. Naquela altura, quando tudo se iniciava, Berenice mostrava-se animadíssima, como uma criança em uma festa, pensando no dinheiro, pensando nas jóias e em todas as maravilhas que poderiam cumular-se sobre suas cabeças como uma chuva de ouro enviada pelo próprio Zeus; e ria só de pensar que Ptolomeu pudesse dizer não a tudo isso, e que talvez tivesse de retornar à Grécia, algum dia, e voltar a ser um cidadão comum.

Berenice não raciocinou sobre o fato de que, quando uma coisa cai sobre a cabeça de um homem, há a possibilidade de feri-lo. Nem que carregar um fardo por um tempo demasiadamente longo possa tornar esse fardo pesado demais. Não, ela pensava que o fardo da monarquia seria leve.

Assim, insistia com Ptolomeu e, à noite, teimava para que ele fizesse o que ela queria, e durante o dia não conseguia falar em nenhuma outra coisa exceto em se tornar rainha, a Grande Esposa Real, e quando acreditava que ninguém a estivesse escutando, gritava, em meio a selvagens risadas, só de pensar que estava para se tornar a Senhora das Duas Terras e da Felicidade.

Em sua visita seguinte, o Velho Anemhor veio conversar com Ptolomeu sobre o importante assunto de aceitar as Coroas, e Ptolomeu expressou mais uma vez suas preocupações.

Ser visto como alguém em pé de igualdade com os deuses, ele disse, é para um grego o crime que mais certamente atrairá a vingança divina.

Anemhor encolheu os seus ombros, como se a dizer, realmente, e daí?

Os gregos chamam a isso de hybris, Ptolomeu disse, soberba, insolência.

Anemhor emitiu um grunhido, como se a dizer, realmente, não há nada com que se preocupar.

Escute o que Findar diz, Ptolomeu falou. Ele diz não se esforce para ser um deus. As coisas dos mortais adequam-se melhor à mortalidade.

E explicou a Anemhor sobre nada em excesso, e sobre moderação em todas as coisas, e nada além da conta, como se Anemhor já não soubesse tudo sobre a chamada sabedoria dos gregos, Anemhor franziu os lábios. Lembrou a Ptolomeu que, no que dizia respeito aos gregos, ele já era um deus. Anemhor lembrou-o que todos os outros sucessores já chamavam a si mesmos de rei Seleuco na Síria, Lisímaco na Trácia, Antígonos na Macedônia. Eram todos Basileus. Até mesmo Ptolomeu se chamava de Basileus, que significava, mais ou menos, rei. Que diferença faria meramente chamar-se também de Rei do Egito?

Pouco a pouco Anemhor e Berenice foram convencendo Ptolomeu. Talvez, no final das contas, ele pensou, devesse despir as vestes gregas e envergar no seu lugar a Dupla Coroa, a Coroa Vermelha e a Coroa Branca do Egito, ou a touca vermelha-e-branca-listrada, a nemes, assim como a cauda de touro e as sandálias de ouro do Faraó.

Sem dúvida, tornar-se um Faraó era a única coisa que lhe faltava alcançar, já que possuía tudo o mais.

Todavia ele não conseguia dar a palavra final.

Thot sabe o que você está pensando, Leitor. Você é impaciente. Você quer que Ptolomeu mude de opinião, de uma vez, e aceite logo ser Faraó. Mas largue de se queixar, Leitor. Thot diz que aceitar uma coroa é uma questão difícil. Você deve dar a Ptolomeu tempo para pensar. Essa decisão afetará totalmente a sua dinastia. Não haverá retorno. Vire uma página após a outra. Nunca se soube de história semelhante antes no Egito.

 

                             Os Deuses Gregos

Para Anemhor, Ptolomeu havia muito dissera minha casa é sua casa. E Anemhor e os sacerdotes de Mênfis tinham, é claro, o privilégio de entrar na residência de Ptolomeu passando à frente de todas as ordens de sacerdotes egípcios de todos os templos do Alto e do Baixo Egito.

Anemhor, como sumo sacerdote de Ptah, não tinha de ficar de pé na fila, mas apenas entrar imediatamente para falar com Ptolomeu a qualquer hora do dia ou da noite. Pois estava Anemhor acima de todos os que tomavam as ordens no sacerdócio do Egito, e eram os sacerdotes que, por sua vez, mantinham o povo calmo e obediente.

Anemhor era muito útil a Ptolomeu. Sem Anemhor, Ptolomeu não saberia o que fazer. Sem este sacerdote, Ptolomeu teria sido tão inútil quanto uma criança presa nas bandagens.

Na região do Alto Nilo, o sumo sacerdote de Tebas não tinha tal amizade a Ptolomeu. Ele não sorria quando em presença do sátrapa, pois não tinha simpatia pelos gregos, tratando-os com frieza, com hostilidade. Tebas sempre fez o que pôde para minar o poder desse estrangeiro.

Anemhor de Mênfis, no entanto, dava-lhe toda a ajuda que podia, apoiando ao máximo o grego. Ele observou que Ptolomeu fazia muitas coisas que eram boas para o Egito; que Ptolomeu era amigo do Egito; que se dispunha a lutar pelo Egito, ainda que nem sempre vencesse.

Todavia, Anemhor teria sua estátua erguida no templo de Ptah com a seguinte inscrição Eu era consultado pelo soberano do Egito, porque ele me amava e conhecia minhas intenções.

Quando Anemhor se postava diante de Ptolomeu, fitando seus olhos azuis, ainda se perguntava que espécie de homem era este. Quando Anemhor morresse, seu filho o substituiria no seu digno ofício, caso fosse essa a vontade do deus, e o filho do seu filho depois disso. Houvera 48 gerações de sumos sacerdotes de Ptah na família desse homem precedendo-o, ou seja, 1.200 anos de sumos sacerdotes de Ptah, e o coração de Anemhor enchia-se de orgulho ao pensar nisso. Todavia, o seu coração também se apertava quando pensava que teria de servir a um Faraó que não fosse egípcio que ele poderia ter de realizar o ritual do templo em honra desse grego, desse cão jônico, este não-circuncidado, o sujo, o Impuro, cujo povo copiava os hábitos de Seth, deitando-se macho sobre macho, do mesmo jeito que um homem se deitava com uma mulher, para a degradação de Mênfis e grave ofensa aos seus deuses.

Algumas vezes até o amistoso Anemhor via os gregos como tifonianos, como seguidores de Seth, que era o inimigo de Hórus e inimigo da Luz — como o demônio feito carne.

Mas nem todos os homens no Egito recebiam os gregos com os dentes cintilando; embora o grego fosse mais bem-vindo do que o persa. Por outro lado, logo que o grego ali chegara, houve quem consultasse os horoscopistas, pedindo previsões de quanto tempo levaria para o grego ser expulso do Egito, e para a soberania de um faraó nativo ser restaurada.

Houve uma profecia escrita nessa época, chamada o Oráculo do Potter, que descrevia os gregos destruindo uns aos outros, pois que eles eram os seguidores de Tifão, seguidores de Seth. E o Oráculo vaticinou que até mesmo o Agathos Daimon abandonaria a cidade de Alexandria e migraria para Mênfis, a cidade sagrada. Alexandria seria abandonada e o estrangeiro desapareceria como as folhas das árvores no outono.

Sim, a profecia dizia que até mesmo a ilustre cidade de Alexandria voltaria a ser um lugar onde os pescadores punham suas redes para secar, exatamente como acontecia antes de chegada de Alexandre.

E, sim, às vezes parecia a Anemhor que ele era o único homem em todo Egito disposto a ajudar Ptolomeu; o único homem que desejava que esse grego se tornasse Faraó.

Por insistência de Berenice, Ptolomeu começou a solicitar explicações a Anemhor a respeito de assuntos relacionados ao Egito dos quais não entendia.

O que é Faraó? ele perguntava.

Anemhor abria os braços. Por onde começar?

O Faraó é aquele que faz as coisas se multiplicarem, ele disse.

Ptolomeu assentiu com a cabeça.

O Faraó é aquele que sabe conceder, ele disse. O Faraó é deus, o Rei dos deuses. Ele é Rã, cuja presença visível é o disco, e que vive para sempre.

Ptolomeu cravou seus olhos nos olhos escuros do sumo sacerdote — olhos que nada revelavam do que Anemhor estava pensando.

Quando o Faraó se senta no trono de Hórus, ele é o filho dos deuses. Sentado em seu trono, com Hórus, o Falcão, postado acima de sua cabeça, o Faraó é Hórus.

Ptolomeu parecia satisfeito. Deu a impressão de que havia entendido. Porém, então, fez mais uma pergunta.

Quais são os deveres do Faraó?

O Faraó, Anemhor respondeu, é responsável pela destruição dos inimigos do Egito.

E então disse Ele deve manter, impor, ou restaurar Maat, e depois fez uma pausa, já sabendo qual seria a próxima pergunta.

O que é Maat? perguntou Ptolomeu, e não pela primeira vez. Não entendia Maat.

Maat, disse Anemhor, significa justiça. Maat é Equilíbrio. Maat é a coisa mais importante. É tarefa do Faraó afastar o oposto de Maat — ou seja, Caos, Desordem.

Ptolomeu assentiu de cabeça, entendendo, e incentivou Anemhor a prosseguir.

O Faraó é o senhor absoluto do Sol. Sob o Sol, ele é o único dono da terra egípcia, legada a ele por Hórus, filho de Osíris.

Ptolomeu remexia, irrequieto, o seu manto.

Por sua vez, o Faraó confia o cuidado da terra aos templos. Ele garante proteção do seu povo por meio da sua relação com os deuses. Em troca, o povo do Egito retribuirá ao Faraó com a sua obediência, com o seu respeito e com o seu trabalho.

O que, então, é um bom Faraó?, Ptolomeu perguntou.

O bom Faraó, Anemhor disse, é aquele que procederá com o seu rebanho como um cuidadoso pastor, com uma mão firme, com uma mão justa. O bom Faraó não tolerará nenhuma insurreição.

E um mau Faraó?, perguntou Ptolomeu.

Um mau Faraó... Anemhor respondeu, é o inimigo dos deuses. Ele é o homem que traz de volta o caos.

Anemhor sabia, e Ptolomeu também sabia, que tipo de Faraó ele poderia vir a ser. Afinal de contas, os sacerdotes do Egito tinham convidado esse homem para ser seu rei e seu deus.

Bem naquele momento, Ptolomeu se viu tentado a dizer sim, sim, sim, sem mais perguntas. Isso porque pensou qual o grego, em toda história da Grécia, à exceção de Alexandre, já se tornou Faraó? Tornar-se Faraó do Egito não seria a maior façanha já realizada por um grego?

 

                         O Touro Sagrado

Enquanto Ptolomeu ainda hesitava sobre se devia aceitar o título de Faraó, e ser coroado, nasceu o derradeiro bebê de Berenice. Ela chorou uma vez mais de vergonha por ter-lhe dado outra garota, queixando-se que os deuses a tivessem abandonado, lastimando-se por ser uma inútil, imprestável, um fracasso, e implorou a Ptolomeu para enjeitar a criança.

Porém, ele lhe disse, uma filha não é nada do que se envergonhar; uma filha vale tanto quanto um filho, e ainda que esta criança fosse desgraciosa e doentia, ainda que os médicos balançassem a cabeça e dissesse que ela não sobreviveria, Ptolomeu não deu ordens para que fosse rejeitada; ao contrário, deu-lhe o nome de Filotera, e disse que, fosse qual fosse sua aparência, a filha de um sátrapa poderia sempre se casar com um elevadíssimo príncipe, e contribuir para alguma aliança que representasse paz para o mundo por algum tempo.

E embora fosse o destino de Filotera, de fato, nunca se casar, era seu destino também ser uma deusa.

Como veio a acontecer, as três filhas de Berenice com Ptolomeu estavam destinadas a serem nomeadas entre as divindades, assim como Berenice.

Na intimidade da residência, as crianças de Ptolomeu chamavam o pai de Pappas, e ele seria mencionado pelo hábito de, vez por outra, entreter-se em algum jogo de bola com os seus filhos, manter uma conversa amistosa entre eles e dar-lhes prova da sua afeição. Nos seus aposentos particulares, Ptolomeu relaxava a sua guarda, era surpreendido dando risadas e voltava a ser o velho Ptolomeu de sempre — bondoso, carinhoso, como qualquer outro pai grego.

Porém, agora, Ptolomeu começara a mudar. O fardo dos negócios públicos já pesava sobre os seus ombros. Fora da residência, ele assumia uma postura severa, e não deixava transparecer os seus sentimentos — exceto a raiva que lhe causavam algumas informações que vinham do estrangeiro. Em público, comportava-se até mesmo para com a sua esposa Berenice com indiferença, e seus filhos, tanto os ilegítimos como os legítimos, ignorava-os completamente.

Em público, as filhas de um sátrapa deveriam caminhar com passos comedidos e os olhos abaixados, e nunca deveriam correr. Apenas na vida particular estas moças poderiam rir e trocar mexericos, brincar de charadas e fazer piadas. Na vida privada, sim, pareciam quase felizes, como qualquer outra família. Porém, a atmosfera de normalidade era possível apenas quando protegida do olhar público. Entre estranhos, essas crianças manteriam uma reserva impenetrável.

O que estava acontecendo com essa família grega, esta família tão comum? Eram pessoas a caminho de se tornarem uma família real, pois, sem dúvida, era apenas questão de tempo, agora, até se tornarem príncipes e princesas do Egito, filhos e filhas de um deus vivo.

Havia dias em que Ptolomeu esquecia dos seus fardos cada vez mais complexos, olhava pela janela e gritava a neve cai pesadamente, e trazia as crianças para virem correndo ver o espetáculo, já que podiam apenas imaginar a maravilha de penas frias de ganso caindo de um céu cinzento.

Quando Ptolomeu se permitia tais brincadeiras, as suas crianças sorriam, às vezes, e davam tapinhas suaves nos ombros do pai por tentar enganá-las.

Os filhos ficavam mais próximos do seu pai em meio às danças gregas, que deviam dançar nos festivais gregos, quando, de acordo com seus costumes, poderiam arreganhar seus dentes, cantar, envolver os braços em torno dos pescoços uns dos outros, e ficar em fila levantando e baixando os pés na dança, como qualquer membro de família grega, errando os passos; o pai mostraria-lhes os passos corretos, eles imitariam a sua dança elefantina, os olhos deles cintilando, e pareceria que tudo estava bem.

Porém, de fato, o sátrapa comportava-se, cada vez mais, como um homem em um sonho. Mesmo na intimidade, cada vez ria e brincava menos. Havia praticamente deixado de ser o feliz Ptolomeu do passado, e recolhera-se dentro de si mesmo, usando muitas vezes o meio sorriso do sumo sacerdote, como se estivesse pensando em se tornar um Faraó. Pois como poderia ele se tornar o Filho do Sol e continuar o mesmo?

Thot fala a verdade Os filhos de Ptolomeu sofriam. O pai raramente falava com eles. Essas crianças passavam mais tempo com aias e guarda-costas do que com o pai e com a mãe, e pior, os pais não notavam o que estava acontecendo. Lentamente, os seus filhos tornavam-se como estranhos entre si, habitando num mundo construído por eles mesmos. Eram crianças que certamente tinham tudo o que desejavam, tudo o que pediam, mas faltava-lhes aquilo de que toda criança egípcia mais desfruta a afeição do pai e da mãe.

Não, as crianças de Ptolomeu não mais levavam vidas normais. Haviam percorrido metade do caminho rumo à realeza, sem tomar conhecimento dela. Crianças perdidas no mundo, que jamais seriam as mesmas novamente.

Enquanto Ptolomeu vivesse e respirasse, todas essas crianças estariam seguras; porém, quanto mais ele avançava na velhice, maior era o perigo para as suas vidas. Quando Ptolomeu morresse, seu herdeiro devia se assegurar de que todos os seus parentes próximos fossem assassinados, de modo que ele se tornasse o único sobrevivente. Enquanto isso, viveriam vidas estranhas, reclusas, distanciadas da realidade gregos num país estranho, crianças mistificadas pelo que estava acontecendo.

Sim, o pai delas estava prestes a se tornar um falcão.

Sim, a mãe delas estava prestes a usar pela primeira vez, sobre a cabeça, a Tiara do Abutre.

Sim, o pai deles, esse grego comum, do povo, iria daqui por diante ser carregado a todo lugar por oito homens, de forma que, como um verdadeiro rei, os seus pés jamais tocassem o chão.

Para Ptolomeu o passado era de pouco interesse. O seu próprio passado, ele o queria esquecer, embora não conseguisse. O que lhe importava, ele repetia sempre, era o presente. No entanto, agora, vez por outra fazia perguntas sobre a história das Duas Terras, e descobriu que ninguém, fosse grego ou egípcio, tinha as respostas. E quando pediu uma história do Egito que pudesse ler em sua própria língua, descobriu, é claro, que não havia tal coisa; nenhum livro sobre esta matéria a não ser os trabalhos de Heródoto de Halikarnassos, o grego que muitos chamam de o Pai da História, embora muitos outros prefiram chamar de o Pai das Mentiras.

Ptolomeu teve então o súbito desejo e vontade de saber os nomes e características dos Faraós do passado. De repente, sentiu vontade de saber mais sobre as Pirâmides, e a Grande Esfinge de Mênfis, e quando tinham sido construídas. Porém, para todas as suas perguntas, os sacerdotes e sumos sacerdotes do Egito, todos eles, abriam os braços, fingindo que ninguém tinha as respostas para tais mistérios.

Assim, Ptolomeu encarregou o sumo sacerdote de Mênfis de procurar o homem, fosse quem fosse, no Egito, que consideraria o mais capacitado de escrever o livro sobre a história do Egito, que ele considerava um livro que tinha de estar em sua Grande Biblioteca de Alexandria. O homem que lhe foi encaminhado era Maneto de Sebenitos, o sumo sacerdote de Heliópolis, que escrevia e falava grego tão bem quanto o melhor dos gregos, e Ptolomeu deu a ordem para que Maneto começasse a escrever.

Não havia ninguém mais versado em matérias históricas do que esse Maneto. Ele tinha à sua disposição, no grande Templo de Rá em Heliópolis os arquivos da Casa da Vida. Na língua egípcia, o nome desse homem era pronunciado Mer-en-Tehuti, Amado de Thot, e o próprio Thot supervisionou o trabalho de escrever esse seu livro de história.

Maneto escrevia com rapidez, porque o sátrapa não gostava de esperar.

Maneto não escrevia, entretanto, tudo o que poderia escrever sobre o Egito. É claro que deu impressão de completa autoridade sobre o assunto. Coletou informações na biblioteca dos sacerdotes de Rá. Nomeou os trezentos Reis do Egito. Porém, ao mesmo tempo que escrevia verdades, encheu seus papiros também com histórias atraentes que, segundo imaginava, fariam Ptolomeu sorrir, e preservou dos gregos toda a verdade sobre as Duas Terras.

Maneto repetiu a história sobre Menes, o primeiro Rei do Egito, que reinou 62 anos e foi comido pelos hipopótamos.

Reproduziu a história do Rei Neferkheres, que governou durante 25 anos, incluindo um período de 11 dias quando o rio transbordou com mel.

Num passado não muito distante, dois gregos, Platão e Eudoxos, haviam passado um total de 13 anos com os sacerdotes de Heliópolis, estudando com eles, pensando subtrair deles seus segredos mais preciosos. No entanto, tiveram pouco êxito, e por fim Platão escrevera os bárbaros escondem a maioria das coisas.

Da verdadeira história do Egito, Maneto, de fato, não revelou muito. Seu propósito era fazer Ptolomeu pensar que sabia tudo o que precisava sobre o seu reinado, porém deixá-lo no escuro sobre os temas de real importância. Assim, os segredos do Egito permaneceram ocultos.

Por exemplo, algumas das guerras egípcias travadas no passado contra usurpadores, pensando já que viria o dia em que o Cão Grego não estaria mais sentado no trono do Hórus Vivo, o Falcão de Ouro. Ptolomeu, eles o viam como nada melhor do que um visitante. Logo, sem dúvida, ele voltaria para seu lar na Grécia. Logo, o Egito seria devolvido ao seu rei legítimo. Logo, eles pensavam, um faraó nativo governará Menufer novamente.

Pensamentos de Thot para os gregos, o passado distante é obscuro, sem importância. A sua história é obscurecida pelo trágico e o monstruoso. Eles contam histórias absurdas de as irmãs de Faeton terem sido transformadas em álamos; em que Dafne se viu transformada numa arvoreta de loureiro.

Sem dúvida, mais da metade de suas histórias é ficção.

O que pensa o egípcio? Pensa que é somente da verdade que o leitor pode obter proveito. Sem a verdade não existe nada a não ser uma história vazia.

Nada é de mais alta importância para os egípcios do que a Verdade de Thot.

Mais pensamentos de Thot, então no Egito, o persa era odiado por diversas razões; principalmente porque o seu rei, Cambises, assassinou o Touro Sagrado, o Ápis de Mênfis. Ah, sim! Esse tal Cambises penetrou no Templo de Ptah e zombou da imagem do deus, dizendo que Ptah nada mais era do que um anão.

Cambises foi responsável por se terem arrombado ataúdes em Mênfis, em busca de jóias de ouro e, por conta disso, sua lembrança era repulsiva a todos os sacerdotes.

Esse Cambises havia dito quando eu fórum homem adulto, revirarei todo o Egito de cabeça para baixo. E ele cumpriu a sua promessa.

Acima de tudo, os egípcios odiavam os persas porque haviam recolhido os mais belos dos jovens egípcios para os transformar em eunucos. Capados, assim eles os chamaram, e se riam da infelicidade dessas criaturas. E as mais belas jovens egípcias foram levadas ao rei Persa para serem suas concubinas.

Em verdade, o persa era mais odiado do que qualquer outro inimigo do Egito — mais do que qualquer outro povo sobre a terra.

Alguns homens entre os egípcios, de fato, também odiavam Ptolomeu; porém a maioria, por onde quer que passasse, recebia-o bem, com educados aplausos, e lhe atiravam flores, como se fosse um herói. Pois, sim, esse sátrapa foi popular entre o exército da Macedônia, e ele acreditava agora que ele era popular também entre o povo do Egito. Ao contrário de Cambises, tomava sempre o cuidado de visitar o touro Ápis, e manifestava claramente a sua reverência a esse deus.

Anemhor disse-lhe muitas vezes Ápis — não existe nada mais importante em todo o Egito.

Por essa época, Anemhor insistiu novamente, em sua conversa com Ptolomeu, que ele devia aceitar as Coroas, e concordar em ser rei e Faraó do Egito, embora Ptolomeu ainda hesitasse, declarando que não tinha certeza.

Anemhor não sabia qual seria a melhor maneira de mudar o coração do sátrapa e obrigá-lo a fazer o que seria, em suma, apenas a melhor coisa para as Duas Terras, quando afinal teve a idéia de sugerir a Ptolomeu porque não pergunta ao Ápis o que ela acha disso?

De forma que Ptolomeu resolveu dirigir a pergunta ao Ápis, dando-lhe o tratamento de oráculo do seu próprio futuro. Por dias seguidos, compareceu ao estábulo do Ápis, que fica na ala mais ao sul do grande Templo de Ptah, a fim de conhecê-lo melhor.

O Ápis tinha envelhecido, e passava a maior parte do tempo deitado, ruminando grama ou como se estivesse dormindo. O Ápis era gordo, com enormes ombros musculosos — a Imagem Viva de Ptah; e Ptolomeu o ficou observando.

Viu a língua de Ápis lamber a sua narina esquerda, depois a direita.

Viu o Ápis levantar sua pata direita traseira para coçar a barriga. Viu como Ápis agitava as orelhas e abanava a cauda para afugentar as moscas. Estava atento para a possibilidade de algum presságio, e perguntou a Anemhor o significado de cada movimento do Ápis, até que Ptolomeu soubesse quase tanto sobre o Touro Sagrado dos egípcios quanto o sumo sacerdote de Mênfis — já que, nessa matéria, Anemhor não escondia nada. Não era certamente necessário que os segredos do Touro Sagrado fossem ocultados do homem que seria o Faraó.

E Anemhor sabia mais sobre o Ápis e a história do Ápis do que qualquer homem no Egito, ou melhor, do que qualquer homem vivo. Anemhor tinha servido e adorado o Ápis desde que era um garoto de cinco anos de idade. Não havia lembrança de algum momento, em toda sua vida, de quando teria deixado de vir conversar com o Ápis. Ah, sim! O velho Anemhor amava o Ápis, o Touro Sagrado, e amor não era uma palavra forte o bastante para exprimir o que ele sentia.

Porém, em nenhuma ocasião durante todas estas visitas de Ptolomeu — e ele visitou o Ápis todos os dias, por dias seguidos — houve algum sinal com respeito a se o sátrapa devia ou não se tornar o rei do Egito; de forma que, finalmente, Ptolomeu foi levado a fazer sua pergunta diretamente ao Ápis, para experimentar o Oráculo do Ápis então aproximou-se do Touro no seu estábulo, dentro da cerca, e falou no seu ouvido peludo.

Ptolomeu preparou-se para tanto seguindo estritamente as recomendações do Velho Anemhor. Ele se banhou sete vezes. Colocou natrão sobre a sua língua até senti-la formigar. Vestiu-se com roupas de linho branco recém-lavado. E a seguir aproximou-se do estábulo de Ápis — em jejum, é claro, desde a véspera — de modo que a sua barriga roncava.

Na escuridão do estábulo, Ptolomeu sussurrou no ouvido do touro, e o Ápis estava de pé; então Ptolomeu sentiu o seu bafo quente, escutou seu suspiro, e o Ápis relanceou os olhos sobre o sátrapa, para logo desviá-los. Ptolomeu segurou os chifres compridos e pousou as mãos sobre o flanco do Ápis, que estava quente, e o seu pêlo era suave ao tato. Ptolomeu respirou o adocicado odor do touro, e mais uma vez fez a pergunta, para dar sorte. Então, tapou os ouvidos com as mãos e encaminhou-se para fora da clausura do touro, na direção da luz do sol.

As primeiras palavras que Ptolomeu escutasse quando tivesse destapado os ouvidos seriam a resposta do deus a sua pergunta, e essas palavras foram as que saíram das bocas das crianças egípcias que brincavam neste lado de Mênfis, ao sul da grande muralha do templo, onde havia uma planície arenosa.

O que foi que Ptolomeu ouviu? Quais teriam sido as palavras que esses garotos gritaram, ele se perguntava, esses garotos que brincavam com uma bola de couro? Com certeza, o que quer que Ptolomeu tivesse escutado, ele não entenderia. Quaisquer que fossem as palavras, teriam de ser traduzidas para ele pelo sumo sacerdote. Porém Anemhor estava com ele exatamente por essa razão.

Ptolomeu postou-se ao sol, já ao ar livre. Então, retirou as mãos dos ouvidos e se pôs a escutar. Escutou o mugido do Ápis atrás de si. Escutou as trombetas de seus próprios soldados, desfilando exercitando-se em ordem unida à distância. Escutou o burburinho dos egípcios no mercado local, o gorjeio dos pombos e a tagarelice dos macacos de Thot; no entanto, não escutou nada que soasse como uma palavra, em qualquer língua que fosse.

Ele olhou para Anemhor, e Anemhor olhava para os garotos egípcios, chutando a sua bola de couro por toda a planície arenosa, e quando a bola ultrapassava a linha entre duas marcas no chão, isso significava um tento assinalado por uma equipe sobre a outra, e justamente então a passagem da bola por entre as marcas que conferia um ponto ocasionou por parte dos jogadores um grito de comemoração tiú, tiú, t-i-i-i-i-i-i-i-u, tiú, tiú, tiú; e para Ptolomeu aquilo soou, em verdade, muito semelhante ao piado de uma andorinha, estridente, como qualquer língua bárbara; mas significava sim!

E o garoto que dera o chute berrava — sem absolutamente saber da presença do sátrapa atrás dele, sem nenhum conhecimento sobre o que dependia de suas palavras Eu sou Rei, eu devo me tornar Rei, ser Rei, ser Rei.

E Anemhor traduziu as palavras para o grego, e ali estava a resposta de Ptolomeu Seja Rei. E assim ele disse que sim, aceitaria as Coroas; sim, seria o Faraó; sim, usaria a touca listrada de vermelho-e-dourado, a nemes, e a cauda do touro, e, sim, ele se sentiria honrado em utilizar-se da carruagem feita de uma liga de prata e ouro, embora sendo grego, e concordaria também com todas as coisas que o sumo sacerdote de Ptah e todos os sacerdotes do Egito queriam que fizesse.

Ele cravou, então, bem fundo, seus olhos nos olhos do Velho Anemhor, e os olhos deste homem brilhavam, e Ptolomeu observou o meio sorriso — o sorriso acanhado, misterioso, do sumo sacerdote — tornar-se cada vez mais aberto, mais e mais, espalhando-se por todo o rosto dele, até que esse homem estivesse ostentando um sorriso maior do que todos os que Ptolomeu já vira em sua face, e tudo porque o Sacerdote Supremo de Ptah, Mestre de Segredos no Lugar Secreto, conseguira finalmente o que desejava o Egito seguro, o Egito salvo, o futuro do Egito garantido, e Ptolomeu, o Grego, completa e inteiramente sob controle egípcio.

Anemhor acompanhou Ptolomeu até sua residência, passando pelo estábulo do Ápis, para agradecer a este deus, cujo odor adocicado o fazia lembrar da sua infância em Eordaia, vivendo com os animais dentro da casa. Eles fizeram uma pausa para olhar mais uma vez o grande touro, que acenou a cabeça, em assentimento, para Ptolomeu, e olhou-o dentro dos olhos, como se quisesse dizer que de fato desejava que Ptolomeu se tornasse Faraó. E o Ápis mugiu três vezes, e pisoteou com o casco esquerdo da frente, e agitou levemente a sua cauda, e mugiu mais três vezes; e foi então que Ptolomeu começou a amar o Ápis, a Imagem Viva de Ptah, o próprio Ptah.

 

                   Comedores de Esmeraldas

No primeiro dia após o prostagma proclamar que Ptolomeu iria se tornar Faraó, e deixar de ser um sátrapa, sua vida mudou para sempre, e tudo que havia se mantido inalterado no passado se transformara em algo diferente.

Quando o sol se levantou, a fila de anões postou-se de pé do lado de fora da porta do seu quarto, esperando, e eram eles os escravos anões que serviram ao último Faraó nativo, aquele Nektanebo II, por cerca de quarenta anos ou, pelo menos, assim se proclamaram, os que eram os filhos e netos dos últimos anões reais — e afirmaram que era seu dever tomar conta do corpo do Faraó, como antes.

E, em verdade, Ptolomeu não teve escolha senão submeter o seu corpo a eles, e ser o Faraó que era agora.

As mãos dos anões o imprensaram sobre sua cadeira. O Guardião da Peruca do Faraó trouxe a peruca, que era de pêlo de girafa, colocou-a sobre a cabeça de Ptolomeu e ajustou-a atrás e dos lados.

O Guardião do pé direito do Faraó massageou o pé direito de Ptolomeu, e seu irmão gêmeo anão idêntico fez o mesmo com o pé esquerdo dele.

O Guardião do Guarda-Roupa do Faraó apresentou a Ptolomeu suas roupas do dia, o saiote chendjyt, ou seja, a tanga do Faraó, e a sua brancura era mais intensamente branca do que qualquer coisa branca que Ptolomeu já vira em toda vida, e as pregas mais retas e perfeitas do que qualquer outra prega no mundo.

O Guardião das Sandálias do Faraó enfiou os pés de Ptolomeu dentro das sandálias de ouro que tinham as imagens dos seus inimigos nas solas, para que ele os reduzisse a poeira a cada passo que desse.

O Guardião das Jóias do Faraó trouxe-lhe, então, a gola de ouro e pedrarias — todas, as mais preciosas: cornalina, safiras e ametistas —, que foram arrumadas no formato da cabeça de abutre, e tinha incrustado também o Olho de Hórus, que ele devia usar naquela manhã, e essa gola era algo que Ptolomeu nem sequer sabia que existia, e jamais lhe tinham deixado pôr os olhos nela; mas, agora que era Faraó, muitas coisas que haviam sido ocultadas eram trazidas à luz.

Anões harpistas e anões cantores tocavam e cantavam a música apropriada que deveria ser tocada enquanto o Faraó era preparado para enfrentar o dia.

E assim a cerimônia prosseguiu. Certamente Ptolomeu teria preferido fazer todas essas coisas sozinho, como sempre tinha feito, mas agora ele era o Faraó e entregou naquela manhã o seu corpo aos criados que cuidavam do seu corpo, como se a sua própria carne não mais lhe pertencesse, como se não fosse mais senhor de si mesmo, mas sim uma espécie de prisioneiro do estado. E então o pensamento atravessou-lhe a mente, como se tivesse entregado também a sua vida a essa nação, e, sim, lhe foi trazido, pelo Guardião do Bracelete, o bracelete de ouro, pesado, todo incrustado das gemas mais preciosas, que ele devia usar nos pulsos durante todo aquele dia, e também durante todos os dias, tão mais pesado do que qualquer coisa que tivesse sido obrigado a usar antes, em toda a sua vida, com a única exceção do peitoral de armas de bronze que usava em batalhas — como se para fazê-lo lembrar a cada instante do dia que havia se tornado o Faraó e jamais deveria esquecer isso.

Um prisioneiro numa gaiola de ouro, assim era ele — e nunca seria libertado.

Assim, o que fez esse homem, agora que ele era o Faraó? Começou imediatamente a emitir uma série de moedas de ouro com valores gregos: dracmas, tetradracmas e octodracmas, além de óbolos e hemióbolos, com sua própria efígie em um dos lados, usando o diadema de um Rei grego, e, no reverso, Alexandre, na sua carruagem puxada por elefantes.

Toda Alexandria perguntava-se se o homem de olhos esbugalhados como os de um percevejo, sobrancelhas caídas como as de um besouro e expressão preocupada, cujo queixo parecia está tentando tocar a sua testa, era o Ptolomeu que conheciam e amavam. Toda Alexandria se perguntava se Alexandre tinha algum dia andado numa carruagem puxada por elefantes, e concluiu que não. No entanto, tais coisas eram de pouca importância. O que importava não era a arte tosca do gravador de moedas, mas o fato de haver agora moedas com o nome de PTOLEMAIOS, que mostravam o rosto de Ptolomeu, com a palavra mágica BASILEUS, Rei. Era tudo o que importava, e embora tivesse assumido ser um rei egípcio, a sua condição de grego também era enfatizada, e não esquecida. O que importava era que o nome de Ptolomeu e o seu rosto estivessem na mão de todos os homens, nos dedos de todos os homens, nos lábios de todos os homens, de maneira que os gregos jamais pudessem esquecer o quanto lhe deviam.

Mas como se comportaria ele, agora que era Rei, um rei de verdade? Ele consultou Demétrio de Faleron, que lhe enviou os rolos de papiros que continham os tratados gregos Sobre a Realeza, para seus estudos mais aprofundados, afirmando que Ptolomeu podia encontrar neles os conselhos que os seus cortesãos não se atreviam a lhe dar cara-a-cara.

Ptolomeu ficou lendo até tarde da noite sob a luz oscilante de um candeeiro.

Um Rei deve ser um Rei, não um Tirano...

Um tirano é a pior coisa em que um Rei pode se tornar...

O objetivo do Tirano é o seu próprio prazer; o do Rei é cumprir com o seu dever...

Um Tirano visa ao dinheiro: um Rei nada mais almeja exceto a honra...

O Exército de um Tirano é formado por mercenários, por estrangeiros; o Exército de um Rei deve ser formado por os seus próprios cidadãos...

Um Tirano não confia nem mesmo no seu próprio povo: toma dele suas armas; maltrata o pobre; não fará nada que não seja para o seu próprio benefício...

O Tirano acha que livros são perigosos, porque eles encorajam a imaginação, e não deseja que o seu povo faça uso de sua imaginação. Não, prefere que o povo faça apenas o que ele manda que faça...

Um Tirano emprega espiões e dissemina desavenças. Ele empobrecerá seus subalternos, mantendo-os ocupados em grandes empreitadas, tais como a construção de monumentos inúteis...

Um Tirano está sempre fazendo a Guerra, de modo que o seu povo nunca esteja desocupado e sempre precise de um líder, que será ele mesmo...

E assim por diante. Ptolomeu preocupou-se um pouco a respeito de seus mercenários. E pensou no Colosso de Rodes, nas Pirâmides... porém, não havia nenhum perigo real de Ptolomeu tornar-se um tirano. Ele fora feito rei devido às suas virtudes superiores, por seus atos de valor. Tudo correria bem no Egito, a menos que surgisse algum Ptolomeu que não fosse um homem bom, sem virtudes superiores, que não praticasse nenhum ato de valor. Então, talvez, pudesse haver problemas no Egito.

Ptolomeu absorveu a grande lição do tratado. Passou-lhe pela cabeça que seu filho Keraunos fosse justamente a espécie de garoto que poderia se tornar um tirano. No entanto, afastou esse pensamento imediatamente. Realmente, era ainda muito cedo para pensar sobre a sucessão.

Depois de tomada a decisão de se tornar Faraó, Anemhor passou a procurar Ptolomeu com ainda maior freqüência para que ele se inteirasse mais sobre as crenças dos egípcios, sobre a vida após a morte, o Campo de Juncos e a pesagem do coração do homem morto na Balança contra a Pena de Maat, a Pena da Verdade. Anemhor fez sua explanação e Ptolomeu fitou-o, perplexo, como se não tivesse entendido uma só palavra do que ouvira, e o sumo sacerdote quase achou que Ptolomeu estivesse inclinado a rir, embora a expressão continuasse inalterada; e ele não acreditaria em um deus de cabeça de íbis mais do que acreditava nos deuses do seu próprio país.

Ptolomeu, Anemhor pensou, não tinha fé nas coisas do coração, nas coisas do espírito; era um guerreiro; o desejo incutido em seu coração era apenas matar.

Porém, em verdade, Anemhor estava equivocado, pois era realmente o desejo mais sincero de Ptolomeu promover a paz.

Quanto a Berenice, ela fez muitas perguntas a Anemhor, agora exercendo seu pleno direito, relacionadas a sua nova vida.

Qual é o vestido apropriado, ela perguntou, para uma deusa na sua vida cotidiana?

E Anemhor disse: uma deusa deve usar vermelho.

Assim, aquela Berenice teria que usar vermelho, a despeito de sua crença, como grega, de que o vermelho era a cor da morte.

A seguir, perguntou ela: Qual é o alimento mais apropriado para uma deusa?

Pois tinha-lhe sido dito, por insidioso diabólico, que os deuses do Egito viviam sob uma dieta de olíbano e de pedrarias, as mais preciosas, e nada mais. Como, ela perguntou, preocupada, posso viver apenas de incenso e perfumes, e de aspirar o suave ar do norte e de usar jóias?

Porém Anemhor tranquilizou-a. Era verdade que um prato de smaragdoi, esmeraldas, podia manter Berenice por tempo considerável; porém, o seu lado humano — o estômago — ficaria muito satisfeito com os mesmos alimentos que ela consumia antes de se tornar uma deusa.

Anemhor disse que ela podia continuar a comer azeitonas e tâmaras, e pão e peixes, e toda espécie de alimento grego.

Uma Rainha, ele disse, tão somente comerá esmeraldas quando ela voar para os céus.

A divindade, então, trazia lá seus percalços. Porém como ser um deus? eles pensaram. Como ser meio-divino? E o que tudo isso representava, se, em verdade, nada significava?

Tal assunto requereu muitas lições de Anemhor e enorme atenção para o detalhe do ritual.

Um deus, Anemhor disse, não deve correr, exceto em seu Festival de Sed, que é o seujubileu, quando deve participar da corrida do Touro Sagrado, o Ápis.

Pois, certamente, um deus não pode se movimentar do mesmo modo como um mortal. De maneira alguma. De modo que Ptolomeu e Berenice, assim como os filhos de Ptolomeu, deveriam agora, todos eles, aprender de novo a andar, e tomar lições com Anemhor, que se divertia, obrigando a família real a andar para cima e para baixo pelo Salão de Audiências vazio, a fim de praticar o modo de andar dos deuses.

Anemhor não sorriu nenhuma vez. Nem mesmo um sutil riso brotou em seu rosto.

A nova residência de Ptolomeu, em Alexandria, transformava-se agora na residência de Faraó, guardada por cães de presas feito serras. As janelas voltavam-se para o norte, a fim de permitir apenas a entrada da luz e do ar necessários. Não havia janelas voltadas para oeste, para que o seu interior não fosse invadido pelas tempestades de areia provenientes do deserto na primavera; porém a areia penetrava assim mesmo, de modo que, de tempos em tempos, todos os objetos dessa residência supostamente à prova de areia ficavam cobertos de uma grossa camada de areia e poeira, e levava meses para os escravos conseguirem removê-las, com suas vassouras, quando então as tempestades vindas do deserto sopravam novamente.

Nenhum homem entrava neste palácio sem o conhecimento de Dioiketes, o Vizir do rei Ptolomeu, e os seus portões estavam decorados com imagens dos inimigos do Egito, ajoelhados e amarrados, com as mãos atadas atrás das costas, de modo que não representassem nenhuma ameaça à estabilidade das Duas Terras.

Ptolomeu dormia agora na cama de madeira folheada a ouro, com seus quatro pés feitos de cascos de touros, já que era agora, o Poderoso Touro, em pessoa. Ele dormia numa cama de Faraó. Sonhava os sonhos de um Faraó. Estava protegido por uma poderosa magia faraônica, e todos os insetos que poderiam picá-lo eram afastados pelos melhores encantamentos egípcios, de modo a manter intocável a sua carne dourada.

A residência era sua Casa dos Milhões de Anos, a despeito de ser um projeto grego, grega no desenho e estar repleta de criados gregos. No entanto, agora também se tornara uma residência egípcia. Ptolomeu estava contente. Tinha os seus filhos, seus herdeiros — frutos do seu próprio sangue. Tinha tudo o que desejava. Não se preocupava com nada. Não, com coisa alguma.

Sempre que podia, e sempre que julgava apropriado, Ptolomeu cuidava de observar os costumes egípcios, e era costume nas residências reais, quando qualquer cão morria, que todo servo raspasse os pêlos do corpo inteiro e ficassem de luto. Jogavam fora então todos os estoques de vinhos finos, todos os grãos, todos os gêneros alimentícios, e a despensa do Rei era suprida novamente.

Ptolomeu amava os seus cachorros: seus cães de guarda, seus cães de caça. Quando o seu próprio cão partiu desta vida, derramou uma lágrima, e fez com que esse animal fosse sepultado com um grande osso rodeado de carne junto ao seu focinho, para que acordasse na Vida Após a Morte dos Cães com aquilo que lhe fosse mais caro. Todos os gregos amavam os seus cachorros. Até Berenice tinha seus cachorrinhos, que se deitavam no seu colo no gynaikeion. Nessa época, tudo desse Faraó grego era perfeito. Contudo, o aspecto desafortunado da vida desses gregos era que, na verdade, tinham dificuldade de se amarem reciprocamente.

 

                                                                                   CONTINUA

 

 

                                Viver Para Sempre

 

A ascensão do Rei Ptolomeu ao trono foi marcada para o amanhecer, de modo que ele surgisse como o nascer do Sol, em sua glória, para o matraquear dos babuínos de Thot; e foi nesse grande dia, o primeiro dia do seu glorioso reinado, que ele assumiu todos os títulos dos Faraós do passado.

Ele era Hórus, o Jovem.

Era Senhor das Coroas.

Era Senhor do Mundo Inteiro.

Era o escolhido de Rá.

Era o Mais Querido de Amun.

Era Rei do Baixo e do Alto Egito.

Era o filho do Sol, o filho de Rá, Ptolomaios, Aquele que Viveria Para Sempre.

 

 

 

 

Para o povo do Egito, que não poderia jamais enrolar a língua com a dificuldade de pronunciar o som correspondente à palavra Ptolomaios, ele era Ptlumis, e proferiam essa corruptela do seu nome numa melodia ritmada, que ressoou por todo o primeiro dia do seu reinado. Iriam entoá-lo onde quer que ele estivesse pelo resto de sua vida, pois, acima de qualquer coisa, Ptolomeu era popular — tão popular que os sacerdotes do Egito ensinaram ao povo que, de fato, ele fora Faraó desde a morte de Alexandre, e que os seus anos de reinado deviam ser recontados de acordo com essa data.

Apesar de se tornar Hórus, o Jovem, Ptolomeu fazia 62 anos de idade naquele ano, e os cabelos, se tivessem deixado que crescessem, bem como o chumaço em seu queixo, estariam brancos.

Berenice, sua rainha, sua Grande Esposa Real, dela diziam que tinha 43 anos de idade, e era seu o nome a ser entoado e enaltecido em todo lugar, pois o nome de Eurídice, a esposa de segunda classe, não era mencionado em nenhum lugar, exceto para se dizer que ela não teria o título de Rainha, nem merecia o privilégio e as atenções de uma rainha, pois não passava de uma outra esposa, pouco mais do que uma concubina, a ser ignorada e esquecida.

Mesmo assim, o Príncipe Ptolomeu Keraunos era tido em todo o Egito como herdeiro do seu pai. Tinha 16 anos e seguia atrás do pai em toda procissão egípcia...

                                                                                    

 

                      

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