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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DA RÚSSIA / John Le Carré
A CASA DA RÚSSIA / John Le Carré

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CASA DA RÚSSIA

Primeira Parte

 

Numa movimentada rua de Moscovo, a menos de duzentos metros da estação de Leninegrado, no último piso de um hotel de arquitectura tão arrebicada quanto medonha, mandado construir por Estaline no estilo que os moscovitas denominam de Império durante a Peste, a primeira feira audio do British Council para o ensino do Inglês e a divulgação da cultura britânica aproximava-se do seu penoso fim. Eram cinco e meia da tarde, e fazia um tempo de Verão instável. Depois de uma série de violentos aguaceiros durante todo o dia, um sol enganador reluzia nos charcos e fazia fumegar os passeios. Quanto aos transeuntes, os mais jovens usavam jeans e ténis, mas os mais velhos aconchegavam-se ainda nos seus abafos.

O salão que o British Council tinha alugado não era caro mas também não era apropriado para o efeito. Tive oportunidade de ver esse salão, não há muito tempo, numa missão inteiramente diferente. Subi nas pontas dos pés a grande escadaria vazia e, com um passaporte diplomático no bolso, deixei-me ficar no meio do salão, naquela obscuridade eterna que envolve todos os velhos salões de baile quando neles cai o adormecimento. Com os seus rotundos pilares castanhos e os espelhos dourados, mais parecia um salão de um navio prestes a naufragar e não propriamente o local ideal para lançar uma grande iniciativa. No tecto, russos ameaçadores, com bonés proletários, erguiam punhos fechados junto a Lenine. O seu vigor contrastava dramaticamente com as prateleiras verdes já lascadas, cheias de cassetes, que ocupavam as paredes de uma ponta à outra, com títulos tão diversos como Wínnie-the-Pooh e Advanced Computer English ín Three Hours. As cabinas de som, revestidas a serapilheira, de fabrico local e sem muitas das qualidades que seriam desejáveis, tinham a tristeza de cadeiras de praia num dia de chuva. Os stands dos exibidores, aglomerados sob uma vasta galeria, pareciam tão blasfemos como lojas de apostas num tabernáculo.

Apesar de tudo decorrera ali uma feira, ainda que de duvidosa qualidade. Os visitantes tinham acorrido, como é habitual entre os moscovitas, desde que tenham os documentos e o estatuto susceptíveis de satisfazerem os rapazes de blusões de cabedal e olhar duro que os esperam à porta. Acorrem porque é de bom tom. Por curiosidade. Porque querem falar com ocidentais. Porque é um acontecimento. E agora, na quinta e última noite da feira, a grande festa de despedida de exibidores e convidados começava a ficar animada. Uma mão cheia de membros pouco importantes da nomenclatura da burocracia cultural soviética agrupava-se sob o candelabro, as mulheres com os seus penteados em forma de colmeia e vestidos com flores estampadas, os homens apertados em fatos reluzentes de produção francesa, o que significava acesso às lojas de roupas especiais. Apenas os anfitriões britânicos, em tons tristemente cinzentos, cumpriam a monotonia de austeridade socialista. O tumulto cresceu quando uma brigada de governantas com aventais começou a distribuir sanduíches de salame em forma de anel e vinho branco quente. Um diplomata britânico de alto nível, que não era propriamente o embaixador, distribuía cumprimentos efusivos e dizia estar encantado.

Entre toda aquela gente, apenas Niki Landau se tinha afastado das celebrações. Curvado sobre a sua mesa no stand vazio, somava as suas últimas encomendas e verificava as cópias dos recibos e as despesas, porque uma das suas máximas era só procurar a diversão depois de concluído o trabalho.

Pelo canto do olho, via uma mulher soviética que deliberadamente ignorava uma mulher que, naquele momento, não passava para ele duma mancha azul e ansiosa. Sarilhos, pensava ele enquanto trabalhava, a evitar.

O ambiente de festa não se tinha propagado a Landau, não obstante o seu temperamento festivo. Uma das razões era que nutria uma aversão indestrutível por todo e qualquer funcionário britânico, sentimento que vinha dos tempos em que o seu pai fora obrigado a regressar à Polónia. Quanto aos britânicos em geral, disse-mo mais tarde, não tinha nada a apontar-lhes. Era um deles por adopção e exibia a reverência formal dos convertidos. Mas os lambe-botas do Foreign Office eram outra coisa. E quanto mais se davam ares superiores, olhando-o do alto com uma cara enjoada e um sorriso afectado, tanto mais ele os odiava, tanto mais ele pensava no pai. Por outro lado, se pudesse dispor de si próprio, nunca teria participado na feira. Ter-se-ia antes refugiado em Brighton, com uma namorada especialmente simpática, chamada Lydia, que conhecera recentemente, num pequeno hotel privado não menos simpático, ideal para levar namoradas.

"É preferível prepararmo-nos para a feira do livro de Moscovo em Setembro", tinha dito Landau aos seus clientes na sede da empresa, na passagem secundária ocidental. "Não sei se estás a ver, Bernard, os russos gostam de livros, mas uma feira audio vai assustá-los, eles ainda não estão preparados para isso. Com a feira do livro, é dinheiro em caixa. Com a feira audio, é morte certa.”

Mas os clientes de Landau eram jovens e ricos e não acreditavam na morte. "Meu rapaz", disse Bernard, abeirando-se dele e pondo-lhe uma mão no ombro, coisa de que Landau não gostava, "no mundo de hoje, temos de exibir bem a bandeira. Somos patriotas, Niki, percebes? Como tu és. É por isso que somos uma companhia internacional. Hoje, com a glasnost, a União Soviética é o Evereste do comércio audiovisual. E tu, Niki, tu vais levar-nos ao topo. Porque se não o fizeres, encontraremos quem o faça. Alguém mais jovem, certo, Niki? Alguém com a energia e a classe necessárias.”

Energia ainda Landau tinha. Mas a classe, como ele era o primeiro a confessar, a classe, era melhor não falar disso. O que ele era, era um pândego, e gostava de o ser. Era um polaco pândego, enérgico e baixinho, e tinha orgulho em ser assim. Era o bom do Niki, o camaradinha malcriado das vendas para o Leste, capaz, como ele gostava de se vangloriar, de vender fotografias porcas a um convento georgiano ou tónico capilar a uma bola de bilhar romena. Ele era Landau, o atleta de quarto raquítico, que usava saltos mais altos que o normal para dar ao seu corpo eslavo a escala inglesa que tanto admirava, e que vestia fatos caros e à moda que não o deixavam passar despercebido. Quando o bom do Niki acabou de montar o seu stand, os seus colegas de negócios garantiram aos nossos anónimos inquiridores que se podia ouvir o tinido do sino no seu carrinho de vendedor ambulante polaco.

E Landau, esperto como era, partilhava a piada com eles, jogava o jogo deles. "Pois é, pessoal, eu sou o polaco em que vocês não tocariam nem com uma barcaça“, declarava ele orgulhosamente depois de pedir mais uma rodada. Era o processo que Landau utilizava para que os outros rissem com ele em vez de se rirem dele. E então, era de esperar que, para demonstrar o que acabava de dizer, Landau sacasse de um pente do bolso de cima do casaco e se baixasse quase como se fosse ajoelhar, após o que, com a ajuda de um quadro pendurado na parede ou uma outra qualquer superfície polida, domaria o seu cabelo muito preto, preparativo essencial para uma conquista fresca, usando as duas mãos pequeninas para dar à cena um ar bem viril. "Mas quem é aquela jovem acabada de chegar que eu estou a ver ali naquele canto?", perguntava ele na sua muito pouco ortodoxa mistura de polaco de gueto com cokney do East End. "Olá, querida! Tão sozinha... Não me diga que vai passar a noite toda a sofrer sozinha?" E uma em cada cinco vezes, Landau tinha sucesso, o que, para a sua contabilidade, constituía uma boa média. O que era preciso era manter a iniciativa.

Mas nessa noite Landau não pensava em sucessos, nem tão pouco em iniciativas. O que ele estava a pensar é que de novo suara as estopinhas toda a semana para ganhar uma ninharia ou, como ele mo disse mais explicitamente, para ganhar um beijo de puta. E pensava ainda que todas as feiras, fossem elas feiras do livro ou feiras audio ou quaisquer outras feiras, lhe estavam a consumir mais energias do que ele gostava de admitir,. tal e qual como acontecia com todas as mulheres. E em troca desse dispêndio de energias pouco recebia. No dia seguinte regressaria a Londres, mas se pudesse apanharia naquele momento o avião. E se aquela ave russa toda de azul não desistisse de se insinuar no horizonte da sua atenção, no preciso momento em que ele tentava fechar as contas e em que se preparava para pôr o sorriso festivo e para se juntar àquela tão exultante multidão, era muito provável que lhe dissesse uma certa palavra da língua russa que ambos lamentariam toda a vida.

“ No original, "I'm the Pole you wouldn't touch with a barge": trata-se dê um triplo trocadilho absolutamente intraduzível. Em primeiro lugar, há um jogo de palavras com a expressão "you wouidn't touch with a barge pole" ("Vocês não querem nada comigo". "Vocês; não me suportam", etc.). Barge pole é o varejão usado para fazer mover as barcaças, mas segundo trocadilho "Pole", com maiúscula, significa "Polaco". Finalmente, e neste caso é importante, "pole", em calão, significa também "pênis", especialmente se em erecção.

 

A observação de Landim aponta portanto para duas zonas de sentido: o tratamento que lhe é infligido pelos colegas de profissão e a sua presumivelmente fogosa sexualidade. (N. do T.)

 

Que ela era russa, não havia dúvida. Só uma russa andaria com uma saca de plástico dependurada no braço, pronta para a compra ocasional que é a alegria da sua vida quotidiana, ainda que na maior parte dos casos não usassem sacas de plástico, mas de corda. Só uma russa seria capaz de se mostrar tão intrometida, ao ponto de poder verificar a aritmética de um homem. E só uma russa prefaciaria a sua interrupção com um daqueles grunhidos insuportáveis que, num homem, lhe faziam lembrar o pai apertando os atacadores dos sapatos e que, numa mulher, Harry, ah, numa mulher, fazem-nos logo pensar em cama.

"Desculpe, sim... o senhor trabalha para a firma Abercrombie & Blair?", perguntou ela.

"Não é aqui, minha querida", retorquiu Landau sem sequer erguer a cabeça. Ela fizera a pergunta em inglês, portanto ele respondera em inglês, como aliás sempre fazia.

"O senhor é Mr. Barley?" "Barley, não, minha querida, Landau." "Mas este é o stand de Mr. Barley." "Não é nada o stand do Barley. Este é o meu stand. Abercrombie & Barley é ao lado." Ainda de cabeça baixa, Landau apontou com o lápis para a esquerda, para o stand vazio do outro lado do tabique, onde um cartaz pintado a verde e dourado anunciava a antiga casa editora de Abercombrie & Blair, NorfoIk Street, Strand.

"Mas esse stand está vazio. Não está lá ninguém", objectou a mulher. "Ontem também estava vazio.”

"Correcto. Correctíssimo", retorquiu Landau, num tom capaz de acabar com qualquer conversa. Então, debruçou-se ainda mais sobre o seu livro de contas, aguardando que a mancha azul desistisse e desaparecesse. Sabia que estava a ser mal-educado, mas quanto mais ela persistisse mais lhe apetecia ser grosseiro.

"Mas onde é que está Scott Blair? Onde é que está o homem a quem chamam Barley? Tenho de falar com ele. É muito urgente.”

Nesse momento Landau odiava-a já com uma ferocidade perfeitamente cega.

"Mr. Scott Blair", disse ele erguendo de chofre a cabeça e olhando-a bem de frente, "Mr. Scott Blair, Barley para os íntimos, está awo]”, minha senhora, o que significa ausente sem permissão. A companhia dele reservou um stand disso não há dúvida. E Mr. Scott Blair é director, presidente, governador-geral e, pelo que sei, ditador vitalício dessa companhia. No entanto, não ocupou o seu stand." Nesse momento, reparando que toda a atenção dela estava concentrada nas suas palavras, Landau começou a perder a embalagem inicial. "Oiça, minha querida, não sei se percebeu, mas acontece que eu trabalho aqui e não para Mr. Barley Scott Blair, por muito que goste dele. “

Dito isto, parou, já que as preocupações cavalheirescas tinham abafado a sua ira momentânea. A mulher estava a tremer. Não só lhe tremiam as mãos que seguravam a saca castanha, mas também o pescoço, e a gola de renda antiga que encimava o seu vestido impecavelmente azul, que Landau via tremer contra uma pele que já estava mais branca do que a renda. No entanto, a boca e os maxilares permaneciam impassíveis, numa atitude de firmeza, e a expressão dela subjugava-o.

"Por favor, preciso de toda a sua simpatia e ajuda", disse ela, como se não houvesse outra hipótese.

Acontece que Landau se orgulhava de conhecer as mulheres. Gabava-se disso, como de outras coisas, até cansar quem o ouvia, mas a verdade é que o seu orgulho tinha algum fundamento. "As mulheres, as mulheres são o meu hobby, Harry, passarei toda a vida a estudá-las, elas são a paixão que me consome", confidenciou-me ele um dia, e a convicção na sua voz era tão solene como o juramento de um mação. Não sabia já quantas mulheres tinha possuído, mas era com grande satisfação que dizia que o total já ia nas centenas e que nenhuma delas tinha motivos para lamentar a experiência. "Jogo com toda a franqueza e escolho acertadamente", garantiu-me ele, batendo com o indicador numa das narinas. "Nada de punhos cortados, nem casamentos desfeitos, nem palavras azedas depois de tudo acabado." Se isto era ou não verdade, ninguém o poderia saber, eu incluído, mas do que não havia dúvida era que os instintos que o tinham guiado nas 

 

A wol ou A. W. O. L. iniciais correspondentes a "absent without leave". (N. do T.)

 

suas aventuras o ajudavam agora a traçar rapidamente o retrato daquela mulher.

Era uma mulher séria. Inteligente. Determinada. Estava assustada, apesar de nos seus olhos escuros haver uma chispa de génio. E possuía ainda essa rara qualidade a que Landau, no seu estilo floreado, gostava de chamar a Classe Que Só A Natureza Pode Dar. Por outras palavras, aquela mulher, para além de brilhante, era forte. E como nos momentos de crise os nossos pensamentos não seguem uma progressão lógica, mas antes nos invadem desordenadamente em ondas, de intuição e experiência, Landau apercebeu-se de todas aquelas características ao mesmo tempo e estava a matutar nelas quando a mulher lhe dirigiu de novo a palavra.

"Um amigo meu, soviético, escreveu uma importante obra literária, muito criativa", disse ela, depois de respirar fundo. "É um romance. Um grande romance. A sua mensagem é importante para toda a humanidade.”

A mulher calou-se repentinamente. Landau apressou-se a manter o fio da conversa. "Um romance", disse. E depois, sem que nunca tivesse percebido bem porquê, perguntou-lhe: "E qual é o título, minha querida?”

Concluiu nesse momento que a força que ela tinha lhe vinha das suas convicções e não de uma falsa coragem ou de qualquer insanidade.

"Então qual é a mensagem, já que não tem título?" "Tem a ver com acções em vez de palavras. Rejeita o gradualismo da perestroika. Pede acção e contesta todas as falsas mudanças.”

"Lindo", disse Landau, impressionado. Ela falava como a minha mãe, Harry: o queixo espetado e bem na nossa cara.

"Apesar da glasnost e do suposto liberalismo das novas directivas, o romance do meu amigo não pode ainda ser publicado na União Soviética", prosseguiu ela, "Mr. Scott Blair comprometeu-se a publicá-lo com discrição.”

"Minha senhora", disse Landau num tom amável, agora de rosto quase colado ao dela. "Se o romance do seu amigo for publicado pela grande Editora Abercombrie & Blair, pode ter a certeza de que o segredo será total.”

Landau disse isto em parte porque não podia resistir a uma piada sobre a Editora, mas também porque os seus instintos lhe diziam que era melhor dar um tom informal à conversa e torná-la menos notada aos olhos de quem quer que fosse. Tivesse ou não percebido a piada, a verdade é que a mulher também sorriu, um sorriso breve e quente de auto-encorajamento, que era como que uma vitória sobre os seus medos.

"Então, Mr. Landau, se o senhor ama a paz, por favor leve este manuscrito consigo para Inglaterra e dê-o logo que chegue a Mr. Scott Blair. Apenas a ele. Confio inteiramente em si.”

O que aconteceu a seguir foi muito rápido, uma transacção de esquina, de vendedor interessado para comprador interessado. A primeira coisa que Landau fez foi olhar para trás dela, para lá do ombro dela. Sabia por experiência própria que, quando os russos queriam fazer das suas, havia sempre gente por perto. Mas a verdade é que o seu canto estava vazio, a área sob a galeria onde se encontravam os stands estava às escuras e a festa atingia agora o auge da animação. Os três rapazes de blusões de couro que se encontravam à porta falavam entre si com um ar enfastiado. Completado o seu exame, Landau leu o nome da rapariga no crachat de plástico que trazia na lapela, coisa que normalmente teria feito antes, caso aqueles olhos castanhos-escuros o não tivessem distraído. Yekaterina Orlova, leu ele. E por baixo da palavra "Outubro", em inglês e russo, o nome de uma das mais pequenas casas editoras estatais, especializada na tradução de livros soviéticos para exportação, sobretudo para outros países socialistas, o que, receio bem, a condenara a uma certa mediocridade.

De seguida, disse-lhe o que ela devia fazer, ou talvez já lho estivesse a dizer no momento em que leu o seu nome. Landau era um rapaz de rua, habituado a todo o tipo de truques. A mulher podia ser a coragem em pessoa e pelo ar dela talvez o fosse. Mas não tinha hábitos de conspiradora. Por isso não hesitou em protegê-la. E ao fazê-lo, falou-lhe como falaria com qualquer mulher que precisasse de conselhos básicos sobre o que haveria de fazer para ir ter com ele ao quarto do hotel ou sobre o que haveria de dizer ao maridinho quando voltasse a casa.

"Tem-no consigo, não tem, minha querida?", perguntou, espreitando o conteúdo da saca e sorrindo como um amigo.

"Tenho." "Está aí dentro, não é?" "Está. “

"Então passe-me a saca com um ar normal", disse Landau, continuando a falar enquanto ela lhe passava a saca. "Isso. Agora dê-me um beijinho russo, de amigos. Género formal. Isso. O que você me trouxe foi um presente de despedida oficial na última noite da feira, não sei se está a ver. Um presente que contribuirá para estreitar as relações anglo-soviéticas e que me vai fazer levar um excesso de peso no avião, a menos que o atire para um caixote do lixo do aeroporto. Uma transacção perfeitamente normal. Hoje já devo ter recebido meia dúzia de presentes como o seu.”

Parte deste discurso disse-o Landau agachado e de costas para ela. Tinha já aberto a saca e retirado num instante o embrulho de papel castanho e estava agora a guardá-lo com a maior habilidade na sua pasta, uma daquelas pastas que mais parecem arquivos domésticos, com um grande aproveitamento do espaço, com compartimentos que se abrem em leque.

"Casada, Katya?”

Teve o silêncio por resposta. Talvez ela não tivesse ouvido. Ou então estava muito ocupada a observá-lo.

"Foi o seu marido que escreveu o romance?", perguntou Landau pouco intimidado com o silêncio dela.

"É perigoso para si", murmurou ela. "Tem de acreditar no que está a fazer. Assim, tudo se torna claro.”

Como se não tivesse ouvido o aviso, Landau seleccionou, de uma pilha de amostras que tinha guardado para distribuir nessa noite, uma embalagem de quatro cassetes com a leitura de A Midsummer Night's Dream especialmente encomendada à Royal Shakespeare Company, que com grande aparato colocou sobre a secretária, escrevendo depois na embalagem de plástico com uma caneta de feltro, "Do Niki para a Katya, Paz", para além da data. Seguidamente, colocou as cassetes na saca com toda a cerimónia, fechou-a e meteu-lha entre as mãos, porque a mulher estava a ficar pálida e ele tinha medo que desmaiasse ou ficasse demasiado perturbada. Só então é que Landau a tranquilizou como ela parecia desejar, enquanto continuava a segurar-lhe na mão, que, segundo ele, estava fria, mas era uma bela mão.

"Todos nós temos de passar por riscos de vez em quando, não é, minha querida?", disse Landau, num tom despreocupado. "Não quer vir dar um pouco de brilho à festa?”

"Não." "E que tal um restaurante simpático?" "Não convém. “

"Quer que a acompanhe até à porta?" "Tanto faz. “

"Acho que é melhor pormos um sorriso, minha querida", disse ele, ainda em inglês, enquanto avançava com ela pelo salão, cavaqueando como o vendedor eficiente que de repente voltara a ser.

Ao chegar ao patamar, cumprimentou-a. "Então vemo-nos na feira do livro? Em Setembro. E obrigado pelo aviso, hem? Não me vou esquecer. Mesmo assim o que importa é que fechámos negócio.

O que é sempre bom. Certo?”

Na mão dele, a mulher pareceu encontrar um pouco mais de coragem, já que voltou a sorrir e o seu sorriso, apesar de desmaiado, era um sorriso grato, e quase irresistivelmente afectuoso.

"O meu amigo fez um gesto importante", explicou ela, afastando uma mecha de cabelo mais rebelde. "É preciso que Mr. Barley tenha consciência disso.”

"Eu digo-lhe. Não se preocupe", retorquiu Landau garbosamente. Ele daria tudo para que a mulher lhe sorrisse uma vez mais, mas a verdade é que ela já não estava interessada na sua pessoa. Pôs-se a procurar na mala um cartão, pormenor de que até esse momento Landau sabia-o não se tinha lembrado. "ORLOVA, Yekaterina Borisovna", dizia o cartão, em cirílico de um lado e em romano do outro, de novo com a palavra "Outubro" nos dois alfabetos. Deu-lhe o cartão e desceu com firmeza a pomposa escadaria, a cabeça erguida e uma mão no largo corrimão de mármore, a outra segurando a saca. Os rapazes de blusões de couro observaram-na até chegar ao hall. E Landau, enquanto metia o cartão no bolso de cima do casaco, ao lado da outra meia dúzia que tinha coleccionado nas últimas duas horas, esperou que ela desaparecesse e depois piscou-lhes o olho. E os rapazes, depois de conveniente reflexão, retribuíram a piscadela, já que também fazia parte da nova abertura dar o devido valor a um bom par de ancas russas. Até um estrangeiro tinha o direito de as apreciar.

Nos cinquenta minutos de folia que lhes restavam, Niki Landau entregou-se de alma e coração à festa. Cantou e dançou para uma bibliotecária escocesa de cara de pau e pérolas ao pescoço. Recitou uma divertida anedota política sobre Mrs. Thatcher para um casal de apagados ouvintes da Agência Editorial do Estado, a VAAP, até que subitamente eles desataram à gargalhada. Cortejou três senhoras das Publicações Progresso e, numa série de ágeis deslocações até à sua pasta, presenteou cada uma com uma recordação da sua estada, já que Landau era de seu natural amigo de dar e lembrava-se sempre de nomes e promessas, tal como de muitas outras coisas, com o desembaraço de uma mente despreocupada. Porém, durante todo esse tempo, não deixou de vigiar” discretamente a pasta e, ainda antes de os convidados terem saído, já ele a segurava com a mão que tinha disponível, enquanto fazia as suas despedidas. E no autocarro privado que levaria os vendedores de volta para o hotel, sentou-se com a pasta sobre os joelhos, enquanto se integrava num harmónico coro que entoava canções de rugby, dirigido, como de costume, por Spikey Morgan.

"Atenção às senhoras", avisou Landau e, levantando-se, ordenou silêncio nas passagens que considerava mais grosseiras. Mas mesmo no papel de grande maestro, não deixou de segurar firmemente na pasta.

No hall do hotel deambulavam os habituais grupos de chulos e dealeis de droga e de moeda, mais os seus guardas do KGB. Mas Landau não viu no comportamento daqueles homens nada de preocupante; de facto, não se mostravam nem demasiado atentos, nem demasiado desinteressados. O velho soldado mutilado que guardava o corredor dos elevadores, pediu-lhe como de costume o passe do hotel. Landau, que já lhe tinha oferecido uma centena de Marlboros, perguntou-lhe em russo, num tom acusatório, por que motivo não tinha ido dar uma volta com a namorada naquela noite. O homem desatou num riso estridente e bateu-lhe no ombro em sinal de camaradagem.

"Se aquilo era uma armadilha para me incriminarem, então teriam de ser rápidos, pois caso contrário arriscavam-se a perder a presa", disse-me ele, pondo-se na posição do caçador, que não era evidentemente a sua. "É que, Harry, quando montamos uma armadilha, temos de agir rapidamente, enquanto as provas se encontram com a vítima", explicou ele, como se tivesse andado toda a vida a montar armadilhas às pessoas.

"Então no Bar do Nacional, às nove", disse-lhe Spikey Morgan, num jeito entediado, ao chegarem ao quarto andar.

"Pode ser que sim, pode ser que não, Spikey", respondeu Landau. "Para dizer a verdade, não me sinto muito bem.”

"Graças a Deus", retorquiu Spikey, com um bocejo, após o que se arrastou até ao seu corredor escuro. A porteira do piso, metida no seu cubículo, seguiu-o atentamente com os seus olhos de bruxa.

Ao chegar à porta do seu quarto, Landau preparou-se para o pior. É agora, pensou. Este é o melhor momento para me apanharem a mim e ao manuscrito. Porém, ao entrar, verificou que o quarto estava vazio e que não havia nele sinal de qualquer perturbação. Sentiu-se um idiota por causa das suas suspeitas. Ainda estou vivo, pensou, e pôs a pasta em cima da cama.

Depois, fechou as cortinas, pouco maiores que lenços, tanto quanto era possível fechá-las, ou seja, até meio, e pendurou o inútil "Do Not Disturb" na porta, fechando-a de seguida à chave. Esvaziou os bolsos do fato, incluindo o bolso onde tinha armazenado os últimos cartões de negócios, tirou o casaco e a gravata, as braçadeiras de metal e, finalmente, a camisa. Do frigorífico tirou uma garrafa de vodka-limão, deitou uma coisa de nada num copo e bebeu um pequeno gole. Landau, ao que me disse, não era propriamente um amigo da bebida, mas, sempre que ia a Moscovo, gostava de acabar o dia com um Copito de vodka-limão. Levou o copo para a casa de banho e, durante uns bons dez minutos, deixou-se ficar em frente do espelho, examinando ansiosamente as raízes do cabelo, à procura de algum vestígio de brancos, retocando os locais em perigo com a ajuda de um novo produto que fazia maravilhas. Satisfeito com o seu trabalho, enrolou a cabeça com um elaborado turbante feito com uma toalha, à maneira de uma touca de banho, e tomou um duche, enquanto cantava "I am the very model of a modern major-general", nada mal por sinal. Depois, esfregou-se com uma toalha, o mais vigorosamente possível para estimular o tónus muscular, e pôs um roupão de banho descaradamente florido. Finalmente, e ainda a cantar, voltou para o quarto.

E fez todas essas coisas em parte porque as fazia sempre e precisava da familiaridade apaziguadora das suas próprias rotinas, mas também porque se sentiu orgulhoso de ter, por uma vez, mandado às urtigas todas as precauções, por não ter encontrado vinte e cinco razões plausíveis para nada fazer, o que, nessa época, não seria de espantar.

Ela era uma senhora, ela tinha medo, ela precisava de ajuda, Harry. Alguma vez tinha negado alguma coisa a uma senhora? E se estava enganado acerca dela, então não havia dúvida que tinha feito um papel de idiota chapado e que o melhor era recolher a escova dos dentes e apresentar-se imediatamente à porta do Lubyanka para ir fazer um estudo dos magníficos graffiti dos russos, durante cinco anos, e sem qualquer possibilidade de escolha. Porque Landau preferiria fazer vinte vezes o papel de idiota chapado a negar o seu auxílio àquela mulher sem qualquer razão. E enquanto dizia isto para si mesmo, obviamente em silêncio, já que o medo dos microfones o impediria de proferir tais afirmações em voz alta, Landau tirou o embrulho da pasta e, com um certo acanhamento lançou-se ao trabalho. Começou a desapertar o cordel, em vez de o cortar, tal como aprendera com a sua santa mãe, cuja fotografia repousava agora, fielmente, na carteira dele. Têm ambas o mesmo brilho, descobriu com prazer, enquanto, pacientemente, ia desfazendo o nó. É a pele eslava. São os olhos eslavos, o sorriso. Duas belas raparigas eslavas. A única diferença era que Katya não tinha acabado os seus dias em Treblinka.

O nó lá acabou por ceder. Landau enrolou o cordel e pô-lo em cima da cama. É assim mesmo, querida, tenho de saber o que isto contém, explicou ele a uma Yekaterina Borisovna só presente na sua cabeça. Não me quero intrometer, aliás o intrometido não sou eu, mas se tiver de fazer alguma fita na alfândega, é melhor saber de antemão por que a faço, sempre ajuda.

Delicadamente, para não o rasgar, usando as duas mãos, Landau retirou o papel castanho. Não se imaginava herói nenhum. Ainda não, pelo menos. Aquilo que era perigoso para uma beleza de Moscovo podia não ser perigoso para ele. Era verdade que tinha tido uma juventude difícil. O East End não tinha sido propriamente uma cura de repouso para um imigrante polaco de dez anos de idade, e Landau tinha tido o seu quinhão de lábios rachados, narizes partidos, socos dados e levados, e fome. Mas se lhe perguntassem, agora ou em qualquer momento nos últimos trinta anos, qual era a sua definição de herói, teria respondido, que um herói era o primeiro a fugir pela porta das traseiras, quando começassem a gritar por voluntários.

Havia uma coisa que ele sabia, enquanto examinava o conteúdo do embrulho de papel castanho: estava com o vício. Porque é que estava com o vício, era uma coisa que poderia investigar mais tarde, quando não tivesse nada de melhor para fazer. Mas se fosse preciso fazer um trabalho arriscado naquela noite, então Niki Landau seria o homem indicado. Porque quando o Niki está com o vício, Harry, não há ninguém que o bata, como todas as raparigas sabem.

A primeira coisa que viu foi o envelope. Reparou que por baixo dele havia três cadernos e que o envelope e os cadernos estavam atados com um elástico grosso, um daqueles elásticos que ele guardava sempre, mas para os quais nunca achava um uso. Mas foi o envelope que mais lhe chamou a atenção, porque a letra era a dela uma caligrafia perfeita que confirmava a imagem de pureza que tinha daquela mulher. Um envelope castanho, quadrado, sujo de cola, e dirigido a "Mr. Bartholomew Scott Blair Pessoal Urgente.”

Landau retirou o envelope e examinou-o à luz, mas era opaco e e não revelava qualquer sombra. Explorou-o com o indicador e o polegar. Dentro, uma folha de papel fino, duas no máximo. Mr. Scott Blair comprometeu-se a publicá-lo com discrição, lembrou-se nesse momento. Mr. Landau, se o senhor ama a paz... dê-o logo que chegue a Mr. Scott Blair. Apenas a ele... Confio inteiramente em si. Ela também confia em mim, pensou ele. Virou o envelope. Nas costas não havia nada escrito.

E como Landau se recusava a ler o correio pessoal fosse de quem fosse e um envelope castanho fechado nada mais podia revelar-lhe, decidiu abrir de novo a pasta, espreitou para o compartimento dos artigos de papelaria, tirou dele um dos seus vulgares envelopes de papel manilha, com as palavras "Do escritório de Mr. Nicholas P. Landau" esteticamente gravadas na parte de trás. Então, introduziu o envelope castanho no de papel manilha, fechou este último, rabiscou nele o nome "Barley" e arquivou-o no compartimento denominado "Social", o qual continha coisas tão singulares como cartões de visita que estranhos o tinham obrigado a aceitar e notas sobre extravagantes encomendas que se tinha comprometido a satisfazer como a daquela Editora que precisava de cargas para a sua Parker ou a do funcionário do Ministério da Cultura que queria uma T-shirt com o Snoopy para o seu sobrinho, ou ainda a daquela mulher da "Outubro", que por mero acaso ia a passar no preciso momento em que ele fechava a loja.

Landau meteu um envelope no outro porque, com a manha de comerciante que nele era instintiva, ou mesmo totalmente inata, sabia que a primeira coisa a fazer era manter o envelope o mais afastado possível dos cadernos. Se os cadernos implicassem sarilhos, seria bom que nenhum pormenor os relacionasse com a carta. E vice-versa. Landau tinha toda a razão. Os nossos mais versáteis e eruditos professores, tingidos em todos os oceanos do folclore do nosso Serviço, não teriam feito de outro modo.

Só então pegou nos três cadernos e tirou o elástico que os prendia, mantendo os ouvidos alerta para qualquer som de passos no corredor. Três cadernos russos e sujos, foi o que pensou ao seleccionar e examinar o de cima. Com uma capa de cartão grosseiramente ilustrada, a lombada de um pano já esfiapada. Duzentas e vinte e quatro páginas de má qualidade, em formato de quarto, de um pautado esbatido, concluiu Landau, recorrendo às recordações da época em que revendera artigos de papelaria, preço soviético à volta dos vinte ks, à venda em qualquer bom retalhista do ramo, desde que a remessa tenha chegado e o comprador se meta na bicha certa no dia certo.

Finalmente, abriu o caderno e examinou a primeira página. É doida, pensou, repelindo o seu desgosto.

Está nas mãos de um louco. Pobrezinha.

Rabiscos sem qualquer significado, feitos por um lunático com uma caneta de aparo fino, a tinta-da-china, a uma velocidade louca, furiosamente angulosos. Nas margens, obliquamente e longitudinalmente, rabiscos cortando diagonalmente rabiscos como a letra de um médico atacado de desordem mental. Tudo isto repetidamente martelado com pontos de exclamação e sublinhados idiotas. Rabiscos em cirílico, rabiscos em inglês. "O Criador cria os criadores", lia-se, em inglês. "Ser. Não ser. Contra-ser. " E a seguir, uma estúpida explosão de francês, acerca da guerra da loucura e da loucura da guerra, que terminava com um emaranhado de arame farpado. Muitíssimo obrigado, pensou, e passou uma página, depois outra, ambas tão cheias daquela caligrafia demente que quase não se via o papel. "Depois de termos passado setenta anos a destruir o poder popular, não podemos esperar que de súbito esse poder se imponha e nos salve", leu então. Uma citação? Um pensamento surgido a meio da noite? Não tinha qualquer possibilidade de o saber. Referências a escritores, russos, latinos, europeus. Coisas sobre Nietzsche, Kafka e outros de quem nunca tinha ouvido falar, quanto mais lido. De novo a guerra, desta feita em inglês: "Os velhos declaram-na, os jovens travam-na, mas hoje os bebés e os velhos também a travam". Virou mais uma página e deparou-se-lhe nada mais nada menos que uma mancha redonda, castanha. Chegou o caderno ao nariz e cheirou. Álcool, pensou com desprezo. Fede que nem uma fábrica de cerveja. Não admira que o tipo seja amigo do Barley Blair. Depois, duas páginas consagradas a uma série de proclamações histéricas.

 

         O NOSSO MAIOR PROGRESSO

         ESTÁ NO NOSSO ATRASO!

         A PARALISIA SOVIÉTICA É

         A MAIS PROGRESSIVA DO MUNDO!

         O NOSSO ATRASO É

         O NOSSO MAIOR SEGREDO MILITAR!

         SE NÃO CONHECEMOS AS NOSSAS

         PRÓPRIAS INTENÇÕES E AS

         NOSSAS PRÓPRIAS  CAPACIDADES,

       COMO PODEREMOS CONHECER AS VOSSAS?

         O VERDADEIRO INIMIGO É

         A NOSSA PRÓPRIA INCOMPETÊNCIA!

 

E na página seguinte, um poema, esmeradamente copiado sabe-se lá de onde:

No caminho ele avança e logo recua. E o povo continua sem saber Se a serpente que ia por esse caminho Ia para sul ou voltava para trás. Landau ergueu-se de um salto e, furioso, correu para a janela, que dava para um quintal triste, cheio de lixo por recolher.

"Um exuberante artista da palavra, Harry. Foi o que eu pensei que ele era. Um génio de cabelos compridos, cheio de droga, um génio unicamente preocupado com a sua pessoa, e ela, ela fez o que todas fazem, ficou eternamente rendida aos encantos dele.”

Felizmente para ela que não havia lista telefónica de Moscovo, pois caso contrário Landau ter-lhe-ia telefonado para lhe dizer que raio de homem lhe tinha cabido em sorte.

Para atiçar a sua raiva, pegou no segundo caderno, molhou a ponta do indicador e começou a folheá-lo com o maior desprezo. Foi assim que chegou aos desenhos. Então, por um momento, ficou como que estonteado de surpresa, como se estivesse a ver um filme e de repente o ecrã ficasse branco, enquanto se amaldiçoava por ser um eslavozinho impetuoso e não um inglês frio e calmo. Sentou-se de novo na cama, mas suavemente, como se lá estivesse alguém a descansar, alguém que ele tivesse magoado com uma condenação prematura.

Porque se Landau desprezava aquilo que amiúde passava por literatura, já em questões técnicas o seu prazer era ilimitado. Mesmo não entendendo nada de nada, era muito capaz de se deleitar a olhar para uma boa página de matemática durante um dia inteiro. E mal olhou para aquelas páginas do caderno, apercebeu-se, tal como lhe acontecera quando vira Katya, que tinha à sua frente algo com qualidade. É certo que não eram desenhos feitos a régua e esquadro. Apenas esboços sem grande precisão, o que só abonava a seu favor. Eram desenhos feitos sem instrumentos por alguém capaz de pensar com um lápis. Tangentes, parábolas, cones. E entre os desenhos, descrições metódicas, como as que os arquitectos e os engenheiros costumam fazer, palavras como "ponto de mira" e "alcance cativo" e "inclinação" e gravidade e trajectória "algumas em inglês, Harry, outras em russo.”

Embora Harry não seja o meu verdadeiro nome. No entanto, quando começou a comparar a caligrafia extremamente bela do segundo caderno com a selva desconexa do primeiro, descobriu, para sua grande surpresa, que havia entre elas similaridades indesmentíveis. Daí a sensação de que tinha à sua frente uma espécie de diário esquizofrénico, em que um dos cadernos era escrito pelo Dr. Jekyll e o outro por Mr. Hyde.

Espreitou para o terceiro caderno, que se revelou tão ordenado e consistente como o segundo, embora organizado como uma espécie de tábua logarítmica, com datas e números e fórmulas, e a palavra "erro" frequentemente repetida, muitas vezes sublinhada ou acompanhada por um ponto de exclamação. Então, de, repente, a sua atenção fixou-se numa página. Não conseguia desviar os olhos daquilo que estava a ler. A obscuridade confortável do jargão técnico tinha acabado da forma mais estrondosa, bem como as divagações filosóficas e os desenhos devidamente anotados. Aquelas palavras destacavam-se com uma clareza impressionante.

"Os estrategos americanos podem dormir sem sobressaltos. Os seus pesadelos não se tornarão realidade. O cavaleiro soviético está a morrer dentro da sua armadura. Como vocês, britânicos, também ele é um poder secundário. Pode iniciar uma guerra, mas não pode continuá-la, nem pode ganhá-la. Acreditem no que vos digo. “

Landau não avançou mais na sua pesquisa. Um sentimento de respeito , misturado com um forte instinto de autopreservação, advertiu-o de que já tinha vasculhado o suficiente. Pegou no elástico, juntou os três cadernos e prendeu-os de novo. É isso, pensou. Não mexo em mais nada e limito-me a cumprir o meu dever. Ou seja, levo o manuscrito para o meu país de adopção e entrego-o logo que chegue a Bartholomew, aliás Barley, Scott Blair.

Barley Blair, quem havia de dizer, pensou, atónito, enquanto abria o roupeiro e tirava a grande mala de alumínio onde guardava as suas amostras. Quem havia de dizer. Quantas vezes nos interrogámos sobre se não haveria um espião entre nós. Agora já sabemos quem é.

Landau garantiu-me que naquele momento a sua calma era total.

O inglês vencera uma vez mais o polaco. "Se o Barley era capaz, então também eu seria, Harry, foi o que disse a mim mesmo". E foi também isso o que me disse quando, por um breve período, me escolheu como seu confessor. É uma coisa que me acontece por vezes, escolherem-me como confessor. As pessoas apercebem-se do meu eu oculto e abrem-se como se falassem com o meu eu real.

Landau pôs a mala em cima da cama, abriu-a e tirou dois conjuntos que os funcionários soviéticos tinham banido da sua exposição uma história pictórica do século XX, com comentários falados, arbitrariamente considerados anti-soviéticos, um manual do corpo humano com fotografias exemplificativas e uma cassete com exercícios de ginástica de manutenção, que os mesmos funcionários consideraram pornográficos, depois de uma demorada apreciação das jovens deusas que, com os seus fatos de ginástica, mostravam ao leitor as posições correctas.

O outro conjunto, o de história, era de muito boa qualidade, e funcionava como um desdobrável, contendo uma série de bolsos interiores para cassetes, textos paralelos, cartões com esclarecimentos sobre o vocabulário e notas para estudantes. Depois de esvaziar os bolsos, Landau tentou meter os cadernos em cada um deles, mas verificou que nenhum era suficientemente largo. Decidiu transformar dois bolsos num só. Tirou uma tesoura de unhas do seu nécessaire e lançou-se ao trabalho com mãos seguras: tinha de arrancar cuidadosamente os agrafos da divisória entre os dois bolsos.

Barley Biair, pensou de novo, enquanto atacava um agrafo com a ponta da tesoura. Devia ter adivinhado que era ele o espião, nem que fosse pelo facto de ele ser o que menos suspeitas levantava. Mr. Bartholomew Scott Blair, derradeiro sobrevivente da Abercombrie & Blair um espião. O primeiro agrafo cedeu. Extraiu-o vagarosamente. Barley Blair, o tal que seria incapaz de vender feno a um cavalo rico para salvar a mãe moribunda no dia do seu aniversário, como nós costumávamos dizer, era afinal o nosso espião. Começou a puxar pelo segundo agrafo. Barley Blair, que só se tinha tornado notado uma vez, na feira do livro de Belgrado, já lá iam dois anos, por ter conseguido embebedar o Spikey Morgan com vodka puro, sem que este se desse conta, e que depois tocara saxofone tenor com o grupo local, e que tocara tão bem que até a polícia aplaudira. Espião. Um senhor espião. Pois bem, aqui vai uma carta da tua dama, como diz aquela canção infantil.

Landau pegou nos cadernos e tentou metê-los no espaço que tinha arranjado. Nada feito. Teria de abrir um terceiro bolso.

O tipo a fingir que estava bêbado, pensou Landau, ainda a propósito de Barley. A fingir de parvo e afinal os parvos éramos nós. Queimando os últimos dinheiros da família, a velha firma, nas suas mãos, foi-se afundando cada vez mais. Cada vez mais. Só que, vá lá saber-se como, acabava sempre por convencer um daqueles muito vigilantes bancos da City a salvá-lo mesmo mesmo no derradeiro instante. Ali, e ele a jogar xadrez, apesar da bebedeira? Essa podia ter sido uma pista, se Landau lhe tivesse dado a devida atenção. Como é que um homem, que se embebeda até dizer chega, consegue bater toda a gente? Só há uma hipótese, Harry, sejamos francos só um espião devidamente treinado aguentaria como ele aguentou.

Os três bolsos tinham-se transformado já num só, os cadernos encaixavam mais ou menos bem lá dentro. "Notas do estudante", lia-se ainda por cima do novo bolso.

Landau imaginou-se de repente a falar com o jovem e inquisitivo funcionário da alfândega do aeroporto de Sheremetyevo. "Notas, não sei se está a perceber, são notas de estudante. É por isso que há aqui um bolso para notas. E essas notas que você está a ver agora são o trabalho de um estudante que está a fazer este curso. É por isso que estão aí, meu rapaz, percebe? São notas exemplificativas. E esses desenhos, têm a ver com ... ”

Com padrões socioeconómicos, sim, é isso mesmo, filho. Com tendências demográficas. Com estatísticas vitais, que é uma coisa que vocês, russos, poucas vezes vêem, não é? Olhe, está a ver este aqui? É um livro sobre o corpo humano.

Um tal discurso podia ou não salvá-lo: tudo dependia da perspicácia do funcionário, do que eles sabiam ou não sabiam, e do que nesse dia sentiam em relação às respectivas mulheres.

Mas Landau tinha ainda uma longa noite à sua frente. E se o assaltassem de madrugada? Arrombavam-lhe a porta com toda a certeza, apontavam-lhe as pistolas, gritavam. "Muito bem, Landau, passa para cá os cadernos!" nesse feliz momento, o conjunto sobre história de nada lhe valeria. "Cadernos? Cadernos? Ali, aquela droga que uma russa lunática me impingiu esta noite na feira? Ali, devem estar ali no cesto dos papéis, se a criada não o despejou, o que me espantaria.”

Landau preparou meticulosamente a cena para esta contingência. Retirou os cadernos do bolso do conjunto de história, colocou-os artisticamente no cesto dos papéis, como se os tivesse atirado para lá com a raiva que sentira ao examiná-los pela primeira vez. Para lhes fazer companhia, atirou também para o cesto os seus excedentes de literatura e brochuras de propaganda, bem como umas prendas perfeitamente inúteis que tinha recebido: o magro volume de mais um poeta russo, um mata-borrão com as costas em estanho. O retoque final foi dado por um par de meias sem qualquer remendo, coisa que só um ocidental rico é capaz de deitar fora.

Este exemplo de engenho em bruto voltou a maravilhar-me, como aliás nos aconteceu mais tarde a todos nós.

Nessa noite, Landau não saiu, disse não à diversão. Suportou o aprisionamento familiar do seu quarto naquele hotel de Moscovo. Da sua janela acompanhou a passagem do demorado crepúsculo até à escuridão da noite, viu as ténues luzes da cidade brilhando relutantemente. Fez chá na sua pequena chaleira de viagem e comeu duas tabletes de chocolate com frutas das suas rações combate. Demorou-se deleitado na evocação da mais gratificante das suas conquistas. As outras, dedicou um sorriso pesaroso. Preparou-se corajosamente para enfrentar a tristeza e a solidão e invocou a sua infância difícil para o ajudar. Vasculhou na sua carteira, na pasta, nos bolsos, e tirou tudo o que fosse especialmente privado, tudo o que não desejaria ter de pôr em cima de uma mesa vazia, e cuja existência teria de explicar detalhadamente caso fosse detido na alfândega uma carta apimentada que uma namorada lhe tinha enviado anos antes e que ainda era capaz de lhe reavivar os apetites, ela era membro de um certo clube de vídeo pelo correio e que ele pertencia. O seu primeiro instinto foi "queimar tudo aquilo, como nos filmes", mas não o fez porque logo se lembrou dos detectores de fumo no tecto, embora tivesse a certeza de que os detectores não funcionavam.

Fez a coisa doutro modo. Reduziu tudo aquilo a papelinhos, meteu-os num saco de papel e atirou o saco para o meio do lixo que havia no quintal. Depois, deitou-se na cama e assistiu calmamente à passagem da noite. Por vezes sentiu-se com coragem, outras vezes sentiu tanto medo que teve de cerrar os punhos até cravar as unhas para se refrear. A certa altura ligou a televisão, à espera de ver jovens e atraentes ginastas, de que tanto gostava. Mas em vez das ginastas, apanhou precisamente com o Imperador, dizendo pela enésima vez à, sua prole confusa que a velha ordem estava tão nua quanto o rei. E quando Spikey Morgan, na melhor das hipóteses já meio bêbado, lhe telefonou do bar do Nacional, Landau não o deixou desligar porque queria companhia. Até que, do outro lado da linha, o bom do Spikey adormeceu.

Uma única vez, quando se sentiu mais atemorizado, lhe ocorreu dirigir-se à embaixada britânica e pedir a assistência da mala diplomática. Esta fraqueza momentânea irritou-o. "O quê? Eu pedir ajuda àqueles lambe-botas?", perguntou a si mesmo com desprezo. "Eu pedir ajuda àqueles que mandaram o meu pai para a Polónia? Nem pensar. A eles, Harry, nem um postal da Torre Eiffel eu lhes confiava.

Além disso, não fora isso que ela lhe pedira. Chegada a manhã, vestiu-se para a sua própria execução, com o seu melhor fato, com a fotografia da mãe por dentro da camisa.

E é assim que eu continuo a ver Niki Landau, sempre que folheio o seu processo, ou quando o recebo para aquilo a que chamamos o balanço semestral, que é o momento em que ele gosta de reviver a sua hora de glória, antes de assinar mais uma declaração prevista na lei dos segredos de Estado. Vejo-o sair garbosamente do hotel com a mala metálica na mão, sem fazer a mínima ideia do que leva consigo, mas decidido a arriscar a sua corajosa cabeça por causa do que lhe pediram que fizesse.

Não me atrevo a imaginar como ele me vê, se é que alguma vez pensa em mim. Hannali, que eu amei mas traí, não teria a mínima dúvida. "Vê-te como um desses inúmeros ingleses com muita esperança no rosto e nenhuma no coração", diria ela, rebentando de raiva. Temo de facto que actualmente ela diga tudo o que lhe vem à cabeça. Hannali perdeu já muita da sua antiga paciência.

 O governo em peso concordou que um caso daqueles não se devia repetir. Os ministros, doutrinados sobre o assunto, ficaram furiosos. Formaram uma comissão de inquérito assustadoramente secreta para descobrir o que tinha funcionado mal, ouvir testemunhas, apurar responsáveis, descortinar escândalos, apontar culpas, isolar lacunas, prevenir recorrências, nomear-me presidente e elaborar um relatório. As conclusões a que a nossa comissão chegou, se é que chegou a algumas, continuam a ser o maior segredo de todo este caso, em particular para aqueles que dela fizeram parte. É que, como todos nós sabemos, a função de tais comissões consiste em dizer umas quantas coisas com a maior gravidade até a tempestade amainar, após o que os seus membros desaparecem completamente de cena. Com os sorrisos amarelos da praxe, a comissão cumpriu devida e desanimadamente essa função, deixando unicamente atrás de si uma carranca assustadoramente secreta, um documento de trabalho provisório, sem qualquer significado, e uma quantidade de anexos secretos nos arquivos do Tesouro.

Para usar a linguagem menos comedida de Ned e dos seus colegas da Casa da Rússia, tudo começou com uma algazarra monumental, entre as cinco e as oito e trinta da tarde de um domingo quente, quando um tal Nikolas P. Landau, caixeiro viajante e contribuinte com os impostos em dia, apesar de origem polaca, sem qualquer cadastro fosse a que nível fosse, se apresentou às portas de nada mais nada menos do que quatro ministérios, pedindo uma entrevista urgente com um funcionário da Secção de Espionagem Britânica, como ele lhe chamava, para em troca ser ridicularizado, posto na rua e, numa das vezes, fisicamente maltratado. Embora não possamos saber com toda a certeza se os dois porteiros do Ministério da Defesa chegaram ao ponto de o agarrar pelos colarinhos e pelo rabo das calças, pondo-o assim no olho da rua, como Landau afirmava, ou se se limitaram a acompanhá-lo até à porta, para usarmos as palavras deles.

Mas por que razão perguntou gravemente a nossa comissão por que razão se sentiram os dois porteiros na obrigação de o acompanharem à porta?

. Landau recusou-se a mostrar o que tinha dentro da pasta. Sim, ele propôs-nos que ficássemos com a pasta enquanto esperava, desde que ficasse ele com a chave. Mas o regulamento não o permite. E depois pôs-se a chocalhar a pasta, a bater nela, a jogá-la de uma mão para a outra como se fosse uma bola, aparentemente para nos mostrar que não havia lá dentro nada de perigoso. Mas os regulamentos mesmo assim impediam-nos de ficar com a pasta. E quando tentámos, sem qualquer violência, libertá-lo da dita pasta, esse senhor de facto, nos testemunhos dos porteiros, Landau passara a ser tratado por senhor, embora um tanto tardiamente resistiu aos nossos esforços e começou a gritar em altos berros, com um sotaque estrangeiro, provocando distúrbios.

Mas que gritou ele?, perguntámos, angustiados com a ideia de que alguém terá gritado em Whitehall, num domingo.

Bom, logo que conseguimos que saísse, ele, excitado como estava, pôs-se a gritar que a pasta continha papéis altamente secretos. Papéis que lhe tinham sido confiados por uma russa, em Moscovo.

Um polacozinho turbulento, é o que ele é, podiam muito bem ter acrescentado os porteiros. Aparecer naquele estado numa tarde de crícket, precisamente quando nós estávamos a ver o jogo dos Pakistanis contra o Botham, na sala do fundo.

Mesmo no Foreign Office, essa sala de visitas gelada da hospitalidade britânica, onde Landau, já desesperado, se apresentou em último recurso e com a maior relutância, só a golpes de elaboradas súplicas e de honestíssimas lágrimas eslavas lhe foi possível fazer chegar a sua voz ao puríssimo ouvido do ilustre Palmer Wellow, autor de uma profunda monografia sobre Liszt.

E se Landau não tivesse usado uma nova táctica, talvez as lágrimas eslavas de nada tivessem servido. É que, desta vez, pôs a pasta aberta em cima do balcão, para que o porteiro, jovem mas céptico, içasse a sua cabeça abrilhantinada até ao vidro à prova de bala recentemente instalado, e inspeccionasse o conteúdo com olhos indolentes e o sobrolho franzido, para concluir que naquela pasta não havia bombas, mas apenas uns cadernos velhos e sujos e um envelope castanho. "Volte na segunda-feira às dez para as cinco", disse o porteiro através do altifalante eléctrico novinho em folha, como se estivesse a dizer o nome de uma estação dos caminhos-de-ferro galesa, após o que mergulhou de novo na escuridão no seu cubículo.

portão estava entreaberto. Landau olhou para o jovem e para dele, para o grande Pórtico construído cem anos antes para amedrontar os príncipes rebeldes da índia. Quando o porteiro deu por isso, já Landau tinha pegado na pasta e, vencendo todas as muralhas aparentemente impenetráveis, erguidas precisamente para prevenirem avanços tão impetuosos quanto o seu, desatou numa corrida desenfreada "até parecia um raio de uma gazela", para citar o porteiro -, atravessando o pátio inexpugnável e subindo a escadaria que conduzia ao enorme hall. E estava com sorte. Palmer Wellow, por muitos defeitos que tivesse, pertencia à facção conciliadora do Foreign Office. E era Palmer quem estava de serviço naquele domingo.

"Olá ... ", murmurou Palmer, descendo as escadas e examinando aquele homem completamente em desalinho, ofegante entre dois robustos guardas. "Você está uma desgraça... O meu nome é Wellow. Sou escriturário efectivo do Foreign Office." Levou o punho esquerdo ao ombro como se detestasse cães. Mas estendeu a mão direita para saudar Landau.

"Eu não quero um escriturário", disse Landau. "Quero, um alto funcionário, senão nada feito.”

"Mas um escriturário já é um funcionário bastante alto", garantiu-lhe, modestamente, Palmer. "Espero que uma questão de palavras não o desencoraje.”

Era da maior justiça referir como fez a nossa comissão que a actuação de Palmer Wellow, até então, tinha sido perfeita. Apesar dos seus gracejos, mostrara-se eficiente. Não houve na sua cortesia nada de errado. Conduziu Landau a um gabinete e, o mais atencioso possível, convidou-o a sentar-se. Pediu um chá para ele, com açúcar por causa do choque, e ofereceu-lhe uma bolacha digestiva. Com uma caneta especialmente cara que lhe tinha sido dada por um amigo, tomou nota do nome e da morada de Landau, bem como dos nomes das companhias para as quais trabalhava. Anotou ainda o número do passaporte britânico de Landau, e a data e o local de nascimento, 1930, em Varsóvia. Insistiu, com uma sinceridade que desarmaria qualquer um, que nada sabia de assuntos de espionagem, mas que se comprometia a entregar o material de Landau às "pessoas competentes" que, sem a mínima dúvida, o analisariam com a devida atenção. E como Landau. voltou a insistir, improvisou um documento em que acusava a recepção dos cadernos e do envelope numa folha azul do Foreign Office, assinou-o e pediu ao porteiro que carimbasse a data e a hora. Disse ainda a Landau que se as autoridades quisessem discutir algo mais com ele, decerto o contactariam, possivelmente pelo telefone.

Só então Landau empurrou hesitantemente a pasta suja e coçada para o outro lado da secretária. Foi com infindo pesar que seguiu a mão lânguida de Palmer abrindo a pasta.

"Porque não dá isto muito simplesmente a Mr. Scott Blair?", perguntou Palmer, depois de ter reparado no nome escrito no envelope.

"Mas, por amor de Deus, eu tentei!", explodiu Landau, exasperado. "Já lhe disse. Telefonei para todo o lado. Fartei-me de telefonar para todo o lado e nada. Não está em casa, não está a trabalhar, não está no clube dele, não está em sítio nenhum", protestou Landau, descuidando a sua gramática inglesa”, de tão desesperado que estava. "Mal cheguei ao aeroporto tentei apanhá-lo. Bem sei que é sábado.”

"Mas é domingo", objectou Palmer com um sorriso condescendente.

"Mas ontem era sábado, não era? Tentei a firma dele. Respondeu-me um uivo electrónico. Procurei na lista telefónica. Há um em Hammersmith. Não tem as iniciais dele mas chama-se Scott Blair. Respondeu-me uma mulher furiosa que me mandou para o inferno. Há um vendedor que eu conheço, o Archie Parr, que faz o West Countryl para o Scott Blair. Perguntei ao Archie: “Archie, por amor de Deus, diz-me uma coisa, preciso de encontrar o Barley com muita urgência, onde é que ele anda?'" "Ele anda fugido, Niki. Fez mais uma das suas asneiras. Há semanas que não aparece na loja." Tento as Informações. Londres, os Home Counties”. Nenhum Bartholomew na lista. Também não admira, se ele é um ... “

"Se ele é um quê?", perguntou Palmer, intrigado. "Bom, repare, ele desapareceu, não desapareceu? E não é a primeira vez que desaparece. Deve haver razões para o seu desaparecimento. Razões que você não conhece porque não as pode conhecer. Pode haver vidas em perigo. E não só a dele. Isto é extremamente urgente. E extremamente secreto. Portanto dê seguimento a isto. Por favor. “

Nessa mesma noite, como não havia nada de especial na frente mundial, exceptuando uma crise medonha no Golfo e um escândalo miserável na televisão a propósito de soldados e dinheiro de Washington, Palmer decidiu ir a uma festa muito razoável, em Montpelier Square, uma festa dada por um grupo de Cambridge, do seu ano todos bacharéis como ele, mas divertidos. Chegou também aos ouvidos da nossa comissão um relato dessa festa.

"A propósito, algum de vocês ouviu falar de um tal Scott Blair?", perguntou-lhes Wellow a uma hora já tardia; é que, de repente, ao tocar alguns compassos de Chopin, lembrara-se de Landau. "Não havia um Scott Blair no nosso ano?", perguntou de novo, pois a primeira pergunta fora abafada pelo barulho.

"Estava uns anos à nossa frente. No Trinity College", respondeu uma voz já tocada do outro lado da sala. "Estudava História. Maluco por jazz. Queria viver do saxofone. O velho dele não foi nisso. Barley Blair. Bêbado que nem um cacho todo o dia.”

Nesse momento Palmer Wellow tocou um acorde atroador que reduziu a um silêncio total o desvario que ia pela sala.

 

"Ouve lá, por Landau diz "He's not at anywhere", em vez de "He's nowhere", (N. do T) Oeste de Inglaterra. Condados à volta de Londres.

 

Acaso o Barley Biair não se terá tornado um sacana dum espião?", arriscou.

"O pai? Já morreu.”

"O filho, burro. O Barley." Como alguém que saísse de trás de um cortinado, o seu informador emergiu daquela multidão de homens jovens e menos jovens e abeirou-se dele, de copo na mão. Para sua grande satisfação, Palmer reconheceu um dos seus muito caros companheiros de quarto do Trinity College, de há cem anos antes.

"Na verdade, não sei se o Barley é ou não um sacana de um espião", disse o camarada de Palmer, com uma aspereza que nele era habitual, enquanto o tumulto do fundo retomava o estrépito inicial. "O que ele é certamente é um fracasso, se é que fracasso qualifica alguém.”

Com a sua curiosidade ainda mais aguçada, Palmer regressou às suas espaçosas instalações do Foreign Office, e aos cadernos e ao envelope de Landau, que havia confiado ao porteiro por uma questão de segurança. E foi a partir desse momento que as suas acções, para usar os termos do nosso documento de trabalho provisório, começaram a seguir um rumo infeliz. Ou, para usar os termos mais rudes de Ned e dos seus colegas da Casa da Rússia, naquele momento, se vivêssemos num país civilizado, P. Wellow teria sido dependurado pelos polegares num ponto alto da cidade e aí deixado em paz, para que pudesse reflectir acerca dos seus feitos.

É que o que Palmer fez a seguir foi divertir-se com os cadernos. Durante duas noites e um dia e meio. Porque os achou muito, mas mesmo muito, divertidos. Não abriu o envelope amarelecido que agora rezava, na letra de Landau, "extremamente confidencial, à atenção de Mr. B. Scott Blair ou de um alto funcionário da Espionagem" porque, tal como Landau, também ele era de uma escola que reprovava que se lesse a correspondência alheia. Fosse como fosse, o envelope estava bem colado e Palmer não era homem para se desenvencilhar de um obstáculo físico. Mas aquele caderno com todos os seus estranhos aforismos e citações, a sua inquebrantável aversão a políticos e militares, as suas múltiplas e certeiras referências a Pushkin, o renascentista puro, e a Kleist, o suicida puro aquele caderno deixara-o fascinado.

Sentiu muito pouca pressa e nenhuma responsabilidade. Era um diplomata e não um Amigo, nome por que eram conhecidos os espiões. E na sua zoologia, Amigos eram gente sem as capacidades intelectuais para serem aquilo que ele, Palmer, era. Naturalmente sentia uma sincera indignação pelo facto de o ortodoxo Foreign Office, a que pertencia, se parecer cada vez mais com uma organização de cobertura às infames actividades dos Amigos. É que Palmer era também um homem de uma erudição impressionante, ainda que de um tipo pouco sistemático. Tinha estudado Árabe na Universidade e obtivera um Muito Bom em História Moderna. Nos tempos livres estudara Russo e Sânscrito. Sabia de tudo, excepto de matemáticas e de senso comum, o que explica o facto de ter ignorado as medonhas páginas com fórmulas algébricas, equações e diagramas, que constituíam os outros dois cadernos, e que, em contraste com as divagações filosóficas, tinham uma aparência fastidiosamente disciplinada. O que explica também embora a comissão tenha dificuldade em aceitar tal explicação que Palmer tenha ignorado os regulamentos dos escriturários efectivos relativamente a Defectores e Ofertas de Informações Secretas, solicitadas ou não, resolvendo actuar por conta própria.

"Ele faz as associações mais fantásticas acerca de tudo, Tig", disse Palmer a um colega muito mais velho do Departamento de Investigação na terça-feira, depois de decidir que era finalmente tempo de partilhar a sua descoberta. "Tens de o ler.”

"Mas como é que sabemos que é um "ele", Palms?" Palmer sentia que só podia ser um homem a escrever aquilo, Tig. Era uma questão de vibrações.

O colega de Palmer deu uma olhadela para o primeiro caderno, depois outra para o segundo, até que se deteve a examinar o terceiro. Depois, regressou aos desenhos do segundo caderno. Finalmente, o seu lado profissional apercebeu-se de que estava perante uma emergência.

"Se fosse a ti, Palms, entregava-lhes isto o mais depressa possível", disse. Porém, depois de pensar bem, Tig pegou nos cadernos e correu a entregá-los, depois de ter telefonado a Ned pela linha verde, pedindo-lhe que esperasse por ele.

Dois dias depois era a confusão total. Às quatro horas da manhã de quarta-feira, as luzes do último piso do quartel-general de Ned, uma pequena fortaleza com paredes de tijolo conhecida como a Casa da Rússia, continuavam bem acesas. Terminava a essa hora a primeira de uma série de reuniões particularmente confusas daquele que, mais tarde, se viria a chamar o grupo da Ave Azul. Cinco horas passadas, e depois de ter participado em mais duas reuniões no quartel-general dos Serviços, um bloco muito alto e novinho em folha junto ao Tamisa, Ned regressava à sua secretária, agora rodeado por vertiginosas pilhas de pastas, como se as raparigas dos Arquivos tivessem decidido erigir uma barricada de rua.

"É possível que os caminhos do Senhor sejam insondáveis", terá dito Ned a Brock, o seu assistente ruivo, numa pausa do expediente, "mas muito mais insondável é o modo como Ele escolhe estes fulanos.

Fulano, em linguagem coloquial, é um ser humano, e um ser humano, em inglês sensato, é um espião. Estaria Ned a referir-se a Landau, quando falou em "fulanos"? A Katya? Ao anónimo autor dos cadernos? Ou estaria já atento aos traços vagos e fluidos desse grande espião britânico chamado Bartholomew Scott Blair? Brock não sabia, nem procurou saber. Nascera em Glasgow, mas era de ascendência lituana e os conceitos abstractos irritavam-no profundamente.

Quanto a mim, só uma semana depois é que Ned decidiu, com alguma relutância, que era tempo de convocar o velho Palfrey. Desde que me lembro que sou o velho Palfrey. Até hoje não consegui entender o que terá acontecido aos meus nomes de baptismo. "Onde é que está o nosso velho Palfrey?", dizem eles. "Onde é que anda o nosso leão das leis? Chamem o nosso velho ilusionista das leis! O melhor é. passarmos isto para o Palfrey!”

A minha apresentação é coisa rápida. Não são precisos grandes rodeios, longas descrições. Horatio Benedict de Palfrey são os meus nomes, mas o leitor pode desde já esquecer os dois primeiros, e, quanto ao "de", nunca ninguém reparou nele. Nos Serviços sou o Harry. Por isso, e como sou uma criatura obediente, acontece-me muitas vezes ser Harry para mim mesmo. Sozinho à noite no meu exíguo apartamento de celibatário, sinto-me deveras inclinado a chamar Harry a mim mesmo, enquanto preparo uma costeleta. Conselheiro legal dos ilegais, é o que eu sou, e em tempos idos sócio mais novo da extinta casa Mackie, Mackie & de Palfrey, Advogados e Notários, em Chancery Lane. Mas isso foi há vinte anos. Há vinte anos que sou o vosso mais humilde criado secreto, pronto, em qualquer altura, a manipular os pratos da balança da mesma deusa cega que o meu coração jovem aprendeu a venerar.

Um palfrey, ao que me dizem, não era cavalo de batalha nem cavalo de caça, mas sim um cavalo de sela próprio para a montaria de senhoras. Bom, só uma senhora, e que senhora, conseguiu montar este Palfrey, mas de tanto o montar quase o matava. Chamava-se Hannali. E foi por causa de Hannali que eu corri à procura de abrigo na cidadela secreta, onde não há lugar para a paixão, onde as paredes são tão grossas, que deixei de ouvi-la batendo os punhos ou implorando em lágrimas que a deixasse enfrentar o escândalo que tanto aterrorizava um advogado no limiar de uma carreira respeitável.

Esperança no meu rosto e nada no meu coração, disse ela. Uma mulher mais sensata talvez tivesse guardado tais observações para si mesma, foi sempre o que eu pensei. Por vezes a verdade não passa de uma máscara para a auto-indulgência. "Porque insistes se eu sou um caso desesperado?", protestava eu. "Se o paciente está morto, porque tentas reanimá-lo?”

Porque ela era uma mulher, parecia ser a resposta. Porque ela acreditava na redenção das almas masculinas. Porque eu não tinha pago o suficiente pelas minhas imperfeições.

Agora já paguei, acreditem. É por causa de Hannali que continuo a percorrer os corredores secretos, chamando dever à minha cobardia e sacrifício à minha fraqueza.

 

“ No original, palfrey, como o apelido do narrador. (N. do T.)

 

É por causa de Hannali que me sento aqui até altas horas da noite, no meu gabinete cinzento de um escritório que diz ASSISTÊNCIA LEGAL, na porta, com pastas dos arquivos e gravações e filmes empilhados à minha volta, como o caso de Jarndyce v. Jarndyce antes da fita cor-de-rosa que o atou e deu por encerrado, enquanto esboço a reabilitação oficial da operação a que chamámos Ave Azul e do seu protagonista, Bartholomew, aliás Barley, Scott Blair.

É também por causa de Hannali que, mesmo enquanto escrevinha a justificação, este velho Palfrey arruma por vezes a caneta, ergue a cabeça e sonha.

O retorno de Niki Landau às cores britânicas, se é que alguma vez as tinha verdadeiramente abandonado, deu-se exactamente quarenta e oito horas depois de os cadernos caírem na secretária de Ned. Desde a sua miserável passagem por Whitehall que Landau sofria de raiva e mortificação. Não tinha ido trabalhar, e tinha mesmo deixado de se preocupar com o seu apartamentozinho de Golders Green, que normalmente polia e alindava como se se tratasse do farol da sua vida. Nem mesmo Lydia conseguira furtá-lo aos braços da melancolia. Eu próprio tinha obtido à pressa a autorização do Ministério do Interior para pôr sob escuta o seu telefone. Quando ela telefonou, ouvimo-lo a dissuadi-la de lhe aparecer em casa. E quando ela fez uma trágica aparição à porta do prédio, dizem os nossos observadores que ele a deixou ficar apenas o tempo de um chá, mandando-a depois embora.

"Não sei o que é que te fiz, mas seja o que for, lamento", ouviram-na dizer tristemente, quando se despediu.

Tinha ela acabado de sair quando Ned ligou. Mais tarde, Landau perguntar-se-ia, com uma boa dose de sagacidade, se teria mesmo sido uma coincidência.

"Niki Landau?", perguntou Ned com voz de poucos amigos. "Parece que sim", retorquiu Landau, endireitando-se. "Chamo-me Ned. Parece que temos um amigo comum. Não vale a pena mencionar nomes. Você fez o favor de lhe entregar uma carta há dias. Aliás, de uma forma inesperada. E um embrulho também.”

Landau gostou imediatamente daquela voz. Eficiente e imperiosa. A voz de um funcionário como deve ser, Harry, não de um cínico.

"Bom, de facto entreguei", disse Landau, mas Ned já estava de novo a falar.

"Não me parece que tenhamos de entrar em grandes pormenores ao telefone, mas acho que precisamos de ter uma longa conversa e que precisamos de o conhecer. Rapidamente. Quando é que pode ser?”

"Quando quiser", disse Landau. E fez um esforço para não acrescentar "sir".

"Em minha opinião, o já é sempre melhor. O que é que acha?" "Acho que me sinto muito melhor, Ned", disse Landau com um toque de ironia na voz.

"Vou mandar-lhe um carro. Não demora nada, por isso fique onde está e espere que a campainha toque. É um Rover verde, matrícula B. O condutor chama-se Sam. Se quiser tranquilizar-se, peça-lhe que lhe mostre o cartão. Se isso não chegar, telefone para o número que está no cartão. Não vai haver problema, pois não?”

"O nosso amigo está bem, não está?", perguntou Landau, incapaz de resistir à pergunta, mas Ned já tinha desligado.

A campainha repicou uns minutos depois. Deixaram o carro à espera à esquina, pensou Landau enquanto descia as escadas, flutuando como num sonho. É isso. Estou nas mãos de profissionais. A casa ficava na zona chique de Belgravia, uma casa com um alpendre recentemente restaurado. A sua fachada, recentemente pintada de branco, resplandecia como um bálsamo ao sol do fim da tarde. Um palácio excelente, um santuário para os poderes secretos que regem as nossas vidas. Uma chapa polida de latão no vão circunscrito por pilares anunciava DEPARTAMENTO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS. A porta já estava aberta quando Landau ia a meio da escadaria. E quando o porteiro, vestido de uniforme, fechou a porta atrás de si, Landau viu um homem elegante e desempenado, com quarenta e poucos anos, avançar na sua direcção através dos raios de sol, primeiro uma silhueta agradável, depois os traços distintamente atraentes e saudáveis, finalmente o cumprimento: leal mas discreto, como uma saudação naval.

"Muito bem, Niki. Venha." As vozes agradáveis nem sempre pertencem a rostos agradáveis, mas esse não era o caso de Ned. Enquanto o seguia até ao estúdio oval, Landau sentiu que lhe poderia dizer fosse o que fosse que Ned estaria sempre do seu lado. De facto, Landau viu em Ned toda uma série de coisas que lhe agradaram de imediato, e que constituíam os talentos mágicos de Ned para atrair os seu semelhante: um encanto estudado, uma aparência contidamente agradável, o poder de comandar serenamente e o "venha". Landau intuiu também o poliglota, porque também o era. Bastava-lhe atirar uma palavra ou uma frase em russo e logo Ned a entenderia e, com um sorriso, responder-lhe-ia com uma frase também em russo. Ele era dos nossos, Harry. Ele era o homem certo para confiarmos um segredo, e não aqueles lambe-botas do Foreign Office.

Só quando começou a falar é que Landau se apercebeu do desespero que sentira por não poder dispor de um confidente. Abriu a boca e nunca mais parou. Tudo o que podia fazer era ouvir-se a si mesmo, e o que ouvia deixava-o espantado, porque não estava a falar apenas de Katya e dos cadernos, e das razões que o tinham levado a ficar com eles, e do modo como os tinha escondido, mas de toda a sua vida, das suas confusões por ser eslavo, do seu amor pela Rússia, apesar de tudo, do facto de se sentir suspenso entre duas culturas. E no entanto Ned não conduzia a conversa, nem tão pouco o interrogava. Ned era um ouvinte nato. Quase não se mexeu, a não ser para tirar algumas esmeradas notas em pequenos cartões, e se interrompeu, foi apenas para esclarecer um ou outro pormenor mais estranho por exemplo, o facto de Landau ter passado pelos controlos do aeroporto de Sheremetyevo sem o mínimo problema, já que nem ele, nem bagagem, tinham sido revistados.

"Mas todo o grupo recebeu esse tratamento ou foi apenas você?" "Todo o grupo. Os guardas acenaram-nos e nós passámos." "Não sentiu que o trataram de uma maneira especial?" "Em que aspecto?" "Não ficou com a impressão de que lhe reservaram um tratamento diferente? De que o trataram melhor do que os outros, por exemplo?”

"Nós passámos pelos controlos como um bando de ovelhas. Um rebanho", corrigiu Landau. "Mostrámos os nossos vistos e pronto.”

"Reparou se outros grupos passaram com a mesma facilidade?" "Os russos pareciam não estar minimanente preocupados. Talvez por ser um sábado de Verão. Ou então foi por causa da glasnost. Escolheram uns quantos para revistarem e deixaram os outros passar. Para dizer a verdade, senti-me um idiota. Não precisava de tomar as precauções que tomei.”

"Não foi nada idiota, bem pelo contrário. Portou-se maravilhosamente", disse Ned, enquanto escrevia, sem qualquer ar de superioridade. "E no avião, lembra-se de quem ficou ao seu lado?”

"Spikey Morgan." "Mais ninguém?" "Não. Eu fiquei à janela." "Qual era o número do seu lugar?" Landau sabia muito bem qual era o número, já que o escolhia sempre que era possível.

"Falaram muito durante o voo?" "De facto falámos imenso." "Sobre quê?" "Mulheres, basicamente. Quando toca a falar de mulheres, o Spikey é como uma bicicleta sem travões a descer numa ravina.”

Ned soltou um riso satisfeito. "E falou dos cadernos ao Spikey? Ficaria mais aliviado. Nas suas circunstâncias, falar do caso a alguém teria sido perfeitamente natural.”

"Nem pensar, Ned. Não o diria a ninguém. Não o disse, nem direi. E contei-lhe a si o que se passou porque o Barley Blair anda desaparecido e você é um funcionário do Governo.”

"E o que me diz de Lydia?" Aquela ofensa à sua dignidade sufocou por momentos a admiração que sentia por Ned, bem como a sua surpresa perante um tão grande conhecimento da sua vida íntima.

"As minhas mulheres, Ned, pouco sabem de mim. É mesmo possível que pensem que sabem mais do que realmente sabem", retorquiu. "Mas não conhecem os meus segredos porque eu não permito.”

Ned continuou a escrever. E, por uma razão qualquer, o movimento ordenado da caneta e a sugestão de que podia ter sido indiscreto, convenceram-no a correr o risco de avançar um pouco mais, porque já tinha reparado que, sempre que falava de Barley, uma espécie de arrepio gelado percorria o rosto descontraidamente tranquilo de Ned.

"E o Barley, está mesmo bem? Não teve nenhum acidente?" Ned pareceu não o ouvir. Pegou noutro cartão e continuou a escrever.

"Suponho que o Barley teria recorrido à Embaixada, não?", disse Landau. "Sendo um profissional como ele é. Se quer que lhe diga, o xadrez é que o trai. Em minha opinião, não devia jogar xadrez. Pelo menos em público.”

Então e só então Ned ergueu a cabeça. E Landau viu uma expressão dura e fria no seu rosto que era mais assustadora que as suas palavras. "Niki, nós nunca mencionamos nomes como esse", disse Ned muito calmamente. "Nem mesmo entre nós. Você não sabia, por isso não fez nada de mal. Mas não repita, por favor.

Depois, apercebendo-se talvez do efeito que as suas palavras tinham tido em Landau, Ned levantou-se, tirou uma garrafa e dois copos de um aparador de pau-cetim e encheu-os de sherry. "Sim, ele está bem", disse.

E assim beberam o sherry, num brinde silencioso a Barley, cujo nome Landau tinha já jurado dez vezes nunca mais voltar a pronunciar.

"Não queremos que vá a Gdansk na próxima semana", disse Ned. "Arranjámos um atestado médico e uma compensação para si. Você está doente. Suspeita-se de úlcera. E entretanto, se não se importa, afaste-se do trabalho.”

"Farei o que mandar", disse Landau. Mas antes de se ir embora, assinou uma declaração prevista pela lei dos segredos de Estado, sob o olhar afável de Ned. Era um documento tortuoso, redigido em termos legais, calculado para impressionar o signatário e mais ninguém. Mas a própria lei não abona a favor dos autores.

Depois disso, Ned desligou os microfones e as câmaras de vídeo ocultas que o décimo segundo andar tinha insistido em pôr, porque achava conveniente.

E quanto ao resto, Ned fez tudo sozinho. Como chefe da Casa da Rússia, tinha esse direito. Os homens que comandam querem-se solitários. Não chamou sequer o velho Palfrey para lhe dizer que parasse. Ainda era cedo.

Se antes dessa tarde Landau se sentira ignorado, o resto do dia seguinte, pelo contrário, viu-se rodeado de atenções. No dia seguinte, manhã cedo, Ned telefonou-lhe, pedindo-lhe com a cortesia habitual que se apresentasse numa determinada morada em Pimlico. Era um bloco de apartamentos dos anos trinta, com janelas com uma armação de aço pintada de verde e uma entrada que mais parecia ser a de um cinema. Na presença de dois homens que não apresentou, Ned fez com Landau uma revisão sumária da sua história, após o que o atirou aos lobos.

O primeiro a falar era um homem distraído, que parecia flutuar nas nuvens, com umas maçãs do rosto tão cor-de-rosa e uns olhos tão límpidos que a sua cara não deixava de invocar a de um bebé. Trazia um casaco de linho que condizia com o cabelo esparso, também cor de linho. A sua voz flutuava também. "Disse um vestido azul, não foi? O meu nome é Walter", acrescentou, como se tal revelação o surpreendesse a ele mesmo.

"Disse, sim, sir." "Tem a certeza?", disse ele num tom esganiçado, meneando a cabeça. Os seus olhos, sob uma testa que parecia seda, examinavam Lanclau com uma ponta de suspeita.

"Certeza absoluta, sir. Um vestido azul com uma saca castanha a tiracolo. A maior parte das sacas são de corda. A dela era de plástico e castanha." "Bom", disse eu com os meus botões, "hoje não é o melhor dia, Niki, mas se por acaso te passou pela cabeça que a havias de engatar, o que não me admira nada, então era boa ideia se lhe levasses uma bela malinha de mão azul, sempre fazia conjunto. "É assim que me lembro dela", continuou Landau. "É essa a imagem que tenho na cabeça, sir.”

Apesar de ter já ouvido várias vezes esta gravação, soa-me sempre estranho que Lanclau tratasse Walter por "sir", já que a Ned chamava muito simplesmente Ned. No entanto, este pormenor de tratamento era menos um sinal de respeito do que o resultado de um certo melindre que Walter inspirava no seu interlocutor. No fim de contas, Landau era um mulherengo e Walter o seu perfeito oposto.

"E o cabelo era preto?", cantou Walter, como se ter cabelo preto fosse uma raridade pouco crível.

"Preto, sír. Preto e sedoso. Quase asa de corvo. Não tenho a mínina dúvida. “

"Não seria pintado?" "Disso percebo eu, sir", retorquiu Landau, tocando na sua própria cabeça. Não era para admirar tal gesto, já que Lanclau estava disposto a confidenciar-lhes tudo, mesmo o segredo da sua eterna juventude.

"Disse ainda que ela era de Leninegrado. Porquê?”

"O porte, sir. -É que nela eu vi classe, vi uma russa de Roma. É como eu a vejo. Uma mulher de Petersburg.”

"Mas porque é que não achou que ela era, por exemplo, arménia? Ou georgiana? Ou judia?”

Landau reflectiu um pouco sobre a última sugestão, mas acabou por rejeitá-la. "Repare, eu próprio sou judeu. Não digo que isso não seja evidente, mas interiormente o facto de ser judeu pouco me diz.”

Um silêncio que podia tê-lo embaraçado, pareceu encorajá-lo a continuar. "Para ser franco, acho que isso de ser judeu é uma coisa requentada. Se é isso que uma pessoa quer ser, tudo bem, não vejo qualquer problema. Mas quem não precisa desse rótulo, por que carga de água há-de andar com ele? Quanto a mim, considero-me primeiro que tudo britânico, depois polaco e tudo o mais vem a seguir. Não me interessa que haja muita gente que prefira inverter essa ordem. O problema é deles.”

"Muito bem dito!", gritou Walter excitado, aplaudindo e soltando um risinho nervoso. "Isso realmente resume muito bem a questão. Mas... você disse que o inglês dela era muito bom. É verdade?”

"Melhor que bom, sir. Clássico. Uma lição para todos nós." "Como se ela fosse professora de inglês, conforme você disse." "Fiquei com essa impressão", disse Landau, " uma professora, talvez universitária. Sentia-se nela o saber, a erudição, o intelecto, a força. “

"Talvez pudesse ser intérprete." "Os bons intérpretes apagam-se a si mesmos, pelo menos é o que eu acho, sir. Pelo contrário, esta mulher impunha-se.”

"Muito bem, parece-me uma boa resposta", disse Walter, mirando num relance os seus punhos cor-de-rosa. "E usava um anel de casada. Uma decisão acertada.”

"Ah, sim, sem dúvida. Um anel de noivado e um anel de casamento. Foi a primeira coisa em que reparei depois de tudo o mais em que é costume reparar-se. E na Rússia não é como em Inglaterra, tem de se olhar para a mão direita porque é na mão direita que elas usam os anéis de casamento. Na Rússia, as solteiras são uma praga e o divórcio alastra. Dêem-me um maridinho como deve ser e umas quantas criancinhas à espera delas em casa todos os dias. Então pode ser que me deixe tentar.”

"A propósito disso. Você acha que ela tinha filhos, não acha?" "Estou convencido disso, sír." "Ora, ora, não pode estar assim tão convencido", disse Walter num tom irritado, com um súbito trejeito dubitativo na boca. "Não me diga que é bruxo!”

"As ancas, sir. As ancas, a sua dignidade mesmo quando estava assustada. Ela não era uma Juno, não era uma sllfide. Era uma mãe.

"E a altura?", guinchou Walter num descante, enquanto as suas sobrancelhas calvas se arregalavam alarmadas. "Poderá dar-nos uma ideia da altura dela? Compare-a consigo. Quando estava a falar com ela, olhava para cima ou para baixo?”

"Uma altura acima do normal. Já tinha dito." "Nesse caso, mais alta que você?" "Sim. " "Um metro e sessenta e cinco? Um metro e setenta?" "Um metro e setenta é mais provável", disse Landau pouco à vontade.

"E a idade? Não deu uma resposta muito clara, ontem." "Se tem mais de trinta e cinco, não parece. Tem uma pele admirável, um aspecto fino, uma mulher distinta na sua plenitude, sobretudo espiritual, sim, respondeu Landau com um arreganho de derrota, porque, para além de achar Walter perfeitamente insípido, cultivava ainda uma fraqueza, que era polaca, por tudo o que era invulgar.

" domingo. Imagine que ela é inglesa. Vê-a na missa?" "Não duvido que ela já examinou esse problema maduramente", disse Landau, para sua grande surpresa, antes de ter tempo para pensar numa resposta. "Pode ter concluído que não há Deus nenhum. Ou que existe um Deus. Mas, ao contrário do que acontece com a maior parte de nós, ela não se permitiria iludir a questão. Enfrentou-a, tomou uma decisão e decerto agiu em conformidade.”

De súbito, todos os singulares processos usados por Walter para o interrogar se transformaram num sorriso longo e mole. "Ah, você é mesmo bom", declarou, num tom invejoso. "Agora diga-me uma coisa, você tem alguns conhecimentos de ciência?", acrescentou com uma voz que de novo planava nas nuvens.

"Alguns, tenho. Mas da ciência da cozinha. Tenho aprendido umas coisas aqui e ali. “

"E de Física?" "Não passei do nível W, sir. Em tempos vendi os livros do curso. Mesmo assim, tenho a impressão de que se fizesse agora o exame, se passasse era mesmo à justa. O problema é que não me permitiram que eu melhorasse, podemos pôr a questão nestes termos.”

"Que significa telemetria?" "Nunca ouvi falar disso." "Nem em inglês, nem em russo?" "Em língua nenhuma, sirTelemetria é coisa que nunca vi." "E ECP?" "O quê?" "Erro circular provável. Francamente, ele fartou-se de escrever sobre isso nestes estranhos cadernos que você nos trouxe. Não me diga

 

O mais baixo dos dois níveis de classificação do exame de acesso à universidade na Grã-Bretanha. (N. do T.)

 

que o ECP não lhe chamou a atenção. “

"Não reparei. Passei por cima." "Até parar naquele ponto em que o cavaleiro soviético morre dentro da armadura. Aí não passou por cima. Porquê?”

"Eu não parei deliberadamente nesse ponto. Aconteceu-me parar aí.”

"Está bem, aconteceu-lhe. E a partir daí fez a sua apreciação, certo? A sua apreciação sobre o que o autor nos queria dizer. Que apreciação?”

"Creio que o autor dos cadernos se referia à incompetência. Os russos não são nada bons nessas coisas, são fraquitos.”

"Fraquitos em quê?" "Nos mísseis. Cometem erros.“

"Que tipo de erros?" "Todo o tipo de erros. Erros magnéticos. Erros de direcção, se é que isso existe. Não sei. Vocês é que sabem dessas coisas, não é?”

Mas o enfado com que Landau se defendia servia apenas para acender as suas virtudes como testemunha. Porque se queria brilhar e não conseguia, o seu fracasso tranquilizava-os, como o comprovava o gesto aéreo de Walter, em sinal de alívio.

"Bom, o que eu penso é que ele se saiu muito bem", disse Walter como se Landau não estivesse presente, erguendo de novo as mãos, desta vez num gesto teatral de conclusão. "Ele diz-nos aquilo de que se lembra. Não inventa coisas para melhorar a história. Você não faria uma coisa dessas, pois não, Niki?", acrescentou, ansioso, descruzando as pernas como se as virilhas lhe picassem.

"Não, sir, pode ficar tranquilo." "Espero que não, quer dizer, mais tarde ou mais cedo acabaríamos por descobrir. Nesse caso, lá se ia todo o brilho das suas declarações.”

"Não, sir. Tudo aconteceu como eu disse. Não acrescentei, nem tirei. “

"Estou certo disso", disse Walter para os colegas, num tom perfeitamente confiante, enquanto se reclinava de novo na cadeira. "A coisa mais difícil no nosso trabalho ou em qualquer outro trabalho, é dizer "eu acredito." O Niki é tão puro como uma fonte, o que é uma coisa tão rara como as galinhas terem dentes. Se houvesse muitos como ele, ninguém precisaria de nós.”

"Apresento-lhe o Johnny", disse Ned, no seu papel de ajudante-de-campo.

Johnny tinha um cabelo ondulado grisalho e uns maxilares largos euma pasta cheia de telegramas que pareciam oficiais. Com o seu relógio com corrente de ouro e o seu fato cor de carvão feito por medida, talvez correspondesse à imagem que as criadas de bar estrangeiras fazem dos ingleses. Mas não era essa a imagem que Landau fazia dos seus compatriotas adoptados.

"Niki, primeiro que tudo, pap, nós temos de lhe agradecer", disse Johnny, com a sua entoação lenta da costa leste americana. Nós, os principais beneficiários, sugeria o seu tom generoso. Nós, os principais accionistas da firma. Receio bem que o Johnny seja assim mesmo. Um bom funcionário, mas incapaz de refrear a sua supremacia americana. Por vezes penso que a diferença entre os espiões americanos e os nossos consiste nisso mesmo. Os americanos, com o seu desfrute sem limites de poder e dinheiro, alardeiam a sua ventura. Falta-lhes o instinto de simulação, que nos britânicos é tão natural.

De qualquer modo, Landau pôs-se em posição de combate num abrir e fechar de olhos.

"Importa-se que lhe faça umas perguntas?", disse Johnny. "Se o Ned está de acordo ... ", retorquiu Landau. "Claro que estou", disse Ned. "Bom, então vamos fazer de conta que estamos na feira, naquela noite. Okay, pal?”

"Bem, Johnny, não foi bem à noite, foi mais ao fim da tarde." "Você acompanha a tal mulher, a tal Yekaterina Orlova, até ao patamar. Que é onde estão os guardas. E despede-se dela.”

"Ela dá-me o braço." "Ela dá-lhe o braço. Ok. Bestial. Em frente dos guardas. Você vê-a descer as escadas. Mas também a vê sair para a rua, pal?”

Nunca tinha ouvido o Johnny tratar ninguém por "pal". Concluí que estava a tentar espicaçar Landau, segundo um processo que os tipos da Agência” aprendem com os psicólogos da casa.

"Correcto", atirou Landau. "Mas viu-a mesmo sair para a rua? Pare um pouco e pense", sugeriu, com a falsa franqueza do advogado.

"Para a rua e para fora da minha vida.

Johnny esperou até ter a certeza de que toda a gente percebia que ele estava à espera, e Landau percebeu-o melhor do que ninguém. "Niki, pal, pusemos gente no cimo dessas escadas nas últimas vinte e quatro horas. Desse patamar ninguém vê a rua.”

O rosto de Landau ficou de súbito vermelho. Não por uma questão de embaraço, mas sim porque estava a ficar seriamente zangado. "Vi-a descer as escadas. Vi-a atravessar o hall em direcção à rua. Ela não voltou para trás. Portanto, a menos que alguém tenha mudado a rua nas últimas vinte e quatro horas, o que, nos tempos de Estaline, teria sido perfeitamente possível ... “

"Vamos continuar, sim?", disse Ned. "Viu alguém ir atrás dela?", perguntou Johnny, irritando ainda mais Landau.

“ "Pal" designa um amigo próximo, um camarada; neste caso, o seu valor visaria uma maior aproximação entre os dois interlocutores.

 

Tal como no caso de "sir", a tradução, por exemplo por "amigo", revelar-se-ia redutora, pelo que se manteve o termo original. (N. do T.)

“C. I. A, Central Intelligence Agency. (N. do T.)

 

"Nas escadas ou quando ela saiu para a rua?" "Nas escadas e quando ela saiu." "Não, não vi. Não a vi sair para a rua, você acabou de me dizer que não vi. Sendo assim, porque é que não responde você que eu faço as perguntas?”

Enquanto Johnny se recostava indolentemente na cadeira, Ned interveio. "Niki, há aqui coisas que têm de ser examinadas com muito cuidado. Há muita coisa em jogo e o Johnny tem ordens a cumprir. “

"Eu também estou em jogo", disse Landau. "É a minha palavra que está em causa e não gosto de ser ridicularizado por um americano que nem sequer é britânico.”

Johnny tinha regressado à pasta. "Niki, é capaz de descrever as disposições de segurança utilizadas na feira, tal e qual como você as viu?”

Landall. respirou tensamente. "Bom", disse, e reatou o seu discurso. "Tínhamos aqueles dois polícias jovens, de uniforme, que andavam às voltas de um lado para o outro no hall do hotel. São os tipos que têm as listas com os nomes de todos os russos que entram e saem, o que é normal. Depois, lá em cima, no salão, tínhamos os trastes. São os tipos à paisana. Os vadios, é como lhes chamam, os toptuny", acrescentou, para que Johnny se pudesse ilustrar. "Ao fim de uns dias, reconhecemos os toptuny à légua. Não compram, não roubam nada dos expositores, não pedem brindes e um deles tem sempre cabelo cor de manteiga, não me perguntem porquê. Nós tivemos três tipos desses, sempre os mesmos toda a semana. Foram eles que a viram descer as escadas.”

"Eram só esses, pal?" "Que eu saiba, eram, mas estou à espera que me corrijam." "Não se deu conta de duas mulheres de idade indeterminada, de cabelo grisalho, que iam todos os dias à feira, chegavam cedo, iam-se embora tarde, também não compravam, não entravam em negociações com nenhum dos exibidores, não pareciam ter nenhum interesse legítimo pela feira?” "Ou me engano muito ou está a falar da Gert e da Daisy." "De quem?" "Eram duas velhas do Conselho das Bibliotecas. Vinham por causa da cerveja. O seu principal prazer era sacar brochuras dos stands e mendigar folhetos grátis. Baptizámo-las de Gert e Daisy, que era o nome dum programa de rádio muito popular nos anos da guerra e depois.”

"Não lhe ocorreu que essas senhoras pudessem exercer também uma função de vigilância?”

A poderosa mão de Ned estava já a postos para refrear Landau, mas era demasiado tarde.

“ Gert and Daisy" eram duas artistas de music-hail, Doris e Elsie Waters, de facto extremamente populares.

 

O seu nome foi dado, durante a Segunda Guerra, a duas vias sujeitas aos bombardeamentos alemães na área de Green Mil, na Turtísia. (N. do T.)

 

"Johmiy", disse Landau,a ferver. "Estamos em Moscovo, certo? Moscovo, Rússia, pal. Se eu parasse para pensar quem é que estava a vigiar quem, então não saía da cama de manhã e não voltava à mesma cama à noite. Que eu saiba até os pássaros das árvores estão sob escuta.”

No entanto, Johnny voltava aos seus telegramas. "Segundo as suas declarações, Yaketarina Borisovna Orlova disse-lhe que o stand vizinho da Abercombrie & Blair tinha estado vazio no dia anterior, correcto?”

"Foi isso mesmo que eu disse." "Mas não a viu no dia anterior, pois não?" "Não. “

"E no entanto você diz que uma mulher bonita não lhe passa despercebida.”

"Digo e espero continuar a dizer." "Não acha que era natural que tivesse dado por ela nesse dia?" "Às vezes, falha-me uma ou outra", confessou Landau, enrubescendo de novo. "Se estou de costas, por exemplo, se estou debruçado sobre uma secretária ou se vou à casa de banho, é muito possível que a minha atenção se disperse por um momento.”

Mas a calma de Johnny começava a impor-se. "Você tem parentes na Polónia, não tem, Mr. Landau?" Era evidente que o tratamento por "pa]" já não era necessário. Ao ouvir a gravação, apercebi-me desse pormenor.

"Tenho." "Não tem uma irmã mais velha altamente colocada na administração polaca?”

"A minha irmã trabalha no Ministério da Saúde polaco, é inspectora dos hospitais. Não está altamente colocada e já passou a idade da reforma.”

"Você alguma vez foi, directa ou indirectamente, alvo consentidor, de pressões ou chantagem de agências de espionagem do bloco comunista ou de terceiros actuando por conta delas?”

Landau virou-se para Ned. "Um alvo quê? Receio bem que o meu inglês não chegue para o entender.”

"Um alvo consciente", disse Ned com um sorriso de aviso. "A par, ciente de que era alvo das pressões ou da chantagem.”

"Não, nunca fui alvo de nada." "Nas suas viagens aos países do bloco de Leste, alguma vez foi íntimo de mulheres desses países?”

"Fui para a cama com algumas. Mas íntimo nunca fui. “

Como um adolescente malandro, Walter soltou um risinho chiado, erguendo incontroladamente os ombros e tapando com a mão os seus horríveis dentes. Mas Johnny avançava obstinadamente: "Mr. Landau, “ No original, "witting", de uso raro, o que explica o espanto, ainda que forçado, de Landau. Ned usa termos mais comuns: "conscious", "aware", "knowing", anteriormente a este caso, alguma vez teve contactos com agências de espionagem de qualquer país, hostil ou amigo?” "Negativo." "Alguma vez vendeu informações a alguma pessoa, fosse qual fosse o seu estatuto ou profissão jornais, agências de informações, polícias, militares -, fosse para que fim fosse, ainda que inócuo?”

"Negativo." "E não é nem nunca foi membro de nenhum partido comunista, ou de uma organização pacifista ou de um grupo próximo dos seus objectivos?”

"Eu sou um cidadão britânico", retorquiu Landau, espetando o seu pequeno queixo polaco.

"E não faz nenhuma ideia, ainda que vaga ou confusa, da mensagem global contida no material que manipulou?”

"Eu não o manipulei. Limitei-me a passá-lo." "Mas entretanto leu-o." "Li o que pude. Li alguma coisa. Depois, desisti. Como lhes disse. “

"Porque é que desistiu?" "Se quer saber, desisti por uma questão de decência. Que é uma coisa que a si não o deve preocupar.”

Mas Johnny, em vez de corar, pôs-se a vasculhar pacientemente na sua pasta. Tirou um envelope e do envelope um monte de fotografias do tamanho de postais, que dispôs sobre a mesa como cartas de jogar. Algumas das fotografias eram muito pouco nítidas, e todas elas granulosas. Umas quantas tinham elementos em primeiro plano que dificultavam a visão do resto. Mostravam mulheres a descer as escadas de um prédio de escritórios perfeitamente gélido, algumas em grupos, outras isoladas. Algumas levavam sacas, algumas iam de cabeça baixa e não levavam nada. E Landau lembrou-se de ouvir dizer que, em Moscovo, era hábito as mulheres saírem durante a hora do almoço para fazerem as compras possíveis. Só que deixavam as malas de mão em cima das secretárias, para que toda a gente pensasse que não passavam do corredor, e se por acaso compravam alguma coisa regressavam ao trabalho de bolsos a abarrotar.

"É esta", disse Landau de súbito, apontando com o indicador. Johnny tinha ensaiado mais um dos seus truques de tribunal. A sua inteligência não o impedia de fazer disparates. Parecia desapontado e extremamente incrédulo. Estava com ar de quem tinha apanhado Landau numa mentira. O vídeo mostra-o a reagir de uma maneira excessiva. "Por amor de Deus, como é que você pode ter tanta certeza? Ainda por cima nunca a viu de sobretudo!”

Vê-se bem no filme que Landau não ficou nada perturbado com essa reacção. "É ela, a Katya", diz firmemente. "Reconhecê-la-ia fosse onde fosse. É a Katya. Tem o cabelo arranjado, mas é ela. A Katya. E é a saca dela, de plástico. " E continua a examinar a fotografia. "O anel de casamento." Por um momento parece esquecer-se de que não está sozinho. "Voltaria a fazer o que fiz por ela amanhã", diz. "E depois de amanhã.”

E assim terminou, satisfatoriamente, o hostil interrogatório de Johnny.

À medida que os dias avançavam e as enigmáticas entrevistas se sucediam, sempre em locais diferentes, sempre com entrevistadores diferentes, à excepção de Ned, Landau sentia, de forma cada vez mais nítida, que as coisas se encaminhavam para um clímax. Num laboratório de som por trás da Portland Place, puseram-no a ouvir vozes de mulheres. Russas falando russo e russas falando inglês. Mas não reconheceu a voz de Katya. Um outro dia foi consagrado ao dinheiro, o que o deixou perfeitamente alarmado. Não se tratava do dinheiro deles, mas sim do seu. Dos seus extractos bancários mas como é que os tipos conseguiram os meus extractos de conta? Das suas declarações de impostos, folhas de salários, poupanças, hipoteca, seguro de vida, enfim, pior do que as Finanças.

"Confie em nós, Niki", disse-lhe Ned mas com um sorriso tão honesto e tranquilizador que Landau ficou com a sensação de que Ned tinha andado a defendê-lo nos bastidores e de que as coisas estavam bem encaminhadas.

Vão propôr-me trabalho, pensou na segunda-feira. Vão fazer de mim um espião como o Barley.

Estão a reapreciar o caso do meu pai vinte anos após a sua morte, pensou Landau na terça-feira.

Na manhã de quarta-feira, Sam, o motorista, tocou na campainha do seu apartamento pela última vez e então tudo se tornou claro.

"Para onde é que vamos hoje, Sam?", perguntou Landau nitidamente bem-disposto. "Para a Bloody Tower?”

"Para a Sing Sing", respondeu Sam, e desataram a rir. Mas Sam não o conduziu à Torre nem a Sing Sing, mas sim pasme-se à entrada secundária de um dos ministérios que, onze dias antes, tinha terminantemente repelido o seu assalto. Brock, o dos olhos cinzentos, conduziu-o por uma escadaria das traseiras e desapareceu. Landau entrou então numa grande sala que dava para o Tamisa. Mesmo à sua frente, três homens sentados a uma mesa, todos do mesmo lado. À esquerda estava Walter, com a gravata perfeitamente alinhada e o cabelo brilhante de gel. Ned estava à direita. Ambos exibiam um ar solene. E entre eles, com as mãos juntas e assentes sobre a mesa e rugas de severidade à volta dum maxilar saliente, encontrava-se um homem novo, distintamente vestido, que Landau concluiu, e com razão, ser o superior hierárquico dos outros dois, e que, como mais tarde afirmou, lhe parecia saído de outro filme. Era um homem de aparência extremamente cuidada e cara de poucos amigos. Parecia estar arranjado para aparecer na televisão. Era rico em dinheiro e não só. Andava à volta dos quarenta, mas o que nele havia de mais terrível era a inocência. Parecia demasiado jovem para ser acusado de crimes de adultos.

"O meu nome é Clive", disse, numa voz sumida. "Entre, Landau. Estamos com um problema sobre o que vamos fazer consigo.”

E atrás de Clive atrás deles todos, de facto -, Niki Landau deu finalmente comigo. O velho Palfrey. Ned reparou que ele me vira, sorriu e, com evidente satisfação, apresentou-nos.

"Ah, Niki, apresento-lhe o Harry", disse, e mentia. Até então ninguém tinha tido direito a uma apresentação profissional, mas Ned tratou de fazer a minha: "O Harry é o árbitro cá da casa. Ele providencia para que toda a gente seja tratada de uma forma justa.”

"óptimo", disse Landau. E foi neste ponto da história que eu fiz a minha modesta entrada em cena, como paquete das leis, agente de vedetas, actor de pontas, executante de favores, e finalmente como cronista; umas vezes Rosecrantz, outras Guildenstern, e só ocasionalmente Palfrey.

E para tomar conta de Landau muito mais do que eu -, havia ainda Reg, que era um homem enorme, ruivo e com um ar tranquilizador. Reg conduziu Landau para uma cadeira no centro da sala e sentou-se ao seu lado. Pareciam dois alunos castigados por não saberem a lição. Landau gostou imediatamente de Reg, o que era previsível, já que Reg era por profissão assistente social e os seus clientes incluíam desertores, líderes depostos e agentes acabados, e outros homens e mulheres cujos laços com a Inglaterra seriam decerto mais frouxos se o bom do Reg Wattle e a sua simpática mulher, Berenice, não tivesse a tarefa de os proteger.

"Você fez um bom trabalho, mas não podemos dizer-lhe porque é que o seu trabalho foi bem feito, não seria seguro", prosseguiu Clive no seu tom árido, quando viu Landau confortavelmente instalado. "Mesmo o pouco que sabe é demasiado. E não podemos deixá-lo andar a passear pela Europa do Leste com os nossos segredos na cabeça. E demasiado perigoso. Para si e para as pessoas envolvidas. Por isso, se é verdade que você realizou um serviço muito válido, não é menos verdade que se transformou num motivo de sérias preocupações. Se estivéssemos em guerra, podíamos prendê-lo num sítio qualquer ou dar-lhe um tiro, uma coisa dessas. Mas não estamos em guerra, pelo menos oficialmente.”

Algures na sua prudente caminhada para o poder, Clive tinha-se treinado na técnica do sorriso. Era uma arma injusta, se usada com pessoas amigas, um pouco como o silêncio ao telefone. Mas Clive nada sabia de injustiças, porque nada sabia do seu oposto. Quanto a paixão, era o que ele usava quando precisava de persuadir as pessoas.

"É que, no fim de contas, você poderia perfeitamente apontar umas quantas pessoas importantes, não é verdade?", prosseguiu Clive, com uma voz tão sumida que toda a gente se mantinha como que paralisada para o poder ouvir. "Sei muito bem que você não faria uma coisa dessas deliberadamente. O problema é que quando uma pessoa é algemada a um radiador, normalmente não tem muitas saídas. E no fim, não tem nenhuma.”

Quando achou que já tinha assustado Landau o suficiente, Clive olhou para mim, fez-me um sinal e seguiu os meus gestos enquanto eu abria a pomposa pasta de cabedal que trouxera comigo e estendia a Landau o longo documento que tinha preparado. Rezava este documento que Landau renunciaria por toda a vida a toda e qualquer viagem para lá da Cortina de Ferro, que nunca deixaria o país sem avisar primeiro Reg, com uma antecedência de um número determinado de dias, sendo os pormenores tratados entre os dois, e que Reg cuidaria do passaporte de Landau, a fim de se prevenir qualquer problema. Rezava ainda que Landau aceitaria irrevogavelmente a intervenção que Reg teria na sua vida. Reg ou qualquer outra pessoa que as autoridades nomeassem em seu lugar intervenção em que desempenharia os papéis de confidente, filósofo e árbitro discreto de todos os seus problemas, incluindo o melindroso problema de como tratar dos impostos sobre o cheque à caixa junto, a levantar numa sucursal em Fulham de um banco britânico especialmente implicativo, no valor de cem mil libras.

E ainda que, para que a Autoridade o pudesse assustar periodicamente, deveria apresentar-se todos os seis meses ao Consultor Legal dos Serviços, Harry, para fazerem o ponto a respeito das questões envolvendo o segredo de Estado Harry, o velho Palfrey, o amante de Hannali noutros tempos, um homem que, de tão vergado pelas coisas da vida, talvez fosse o mais indicado para manter os outros na linha. E que no seguimento e em conformidade e consequentemente ao acima exposto, todo aquele episódio envolvendo uma determinada mulher de nacionalidade russa e o manuscrito literário de um amigo seu, bem como o conteúdo do referido manuscrito fosse qual fosse o entendimento que ele tinha da importância tanto dos textos como das pessoas -, e ainda o papel desempenhado por um certo editor britânico, tudo isso seria, a partir daquele momento, solenemente declarado nulo e sem efeito, morto, enterrado, inexistente, a partir daquele momento e para todo o sempre. Amem.

Deste documento havia uma cópia, que passaria a viver no meu cofre até que o rasgassem ou morresse de morte natural. Landau leu-o por duas vezes, enquanto Reg, por cima do seu ombro, o acompanhava na leitura. Então, Landau refugiou-se por momentos nos seus próprios sonhos, sem se preocupar minimanente com quem o estava a observar ou com quem queria que ele assinasse, para que deixasse de constituir um problema. É que Landau sabia que, neste caso, ele era o comprador e não o vendedor.

Viu-se a si mesmo à janela do seu quarto de hotel, em Moscovo. Lembrou-se do seu desejo de deixar de uma vez por todas aquela Profissão e de começar uma vida menos árdua. E veio-lhe à cabeça a divertida ideia de que talvez o Criador o tivesse tomado rigorosamente à letra, realizando fielmente o seu desejo, o que, para grande embaraço dos presentes, lhe provocou uma breve explosão de riso.

"Bom, Harry, espero que seja o nosso amigo Johnny, o ianque, a pagar a conta", disse ele.

Mas a piada não recebeu o aplauso que merecia, porque era a pura da verdade. Então, Landau pegou na caneta de Reg e assinou, e passou-me o documento e viu-me acrescentar a minha assinatura enquanto testemunha, Horatio B. de Palfrey, assinatura que, ao fim de vinte anos, possui uma tão consistente ilegibilidade, que se eu assinasse Heinzs Tomato Soup, ninguém daria pela diferença. Devidamente assinado, o documento voltou à pasta de cabedal, que eu fechei ainda sob o olhar atento de Landau. Depois, sucederam-se os cumprimentos, trocaram-se compromissos mútuos, e Clive murmurou, "estamos-lhe gratos, Niki", tal e qual como no filme em que Landau periodicamente acreditava participar.

Então, todos cumprimentaram de novo Landau e, depois de o verem cavalgando nobremente rumo ao pôr do Sol ou, mais precisamente, avançando airosamente pelo corredor, em animada conversa com Reg Wattle, que fazia dois dele, esperaram impacientes que ligassem as escutas, para as quais eu já tinha obtido autorização com o infalível argumento dos muito fortes interesses americanos.

Puseram sob escuta os telefones do seu escritório e do apartamento, leram-lhe o correio e colaram-lhe uma lapa electrónica no eixo traseiro do seu tão querido Triumpli.

Seguiram-no nas suas horas de lazer e recrutaram uma dactilógrafa do seu escritório para vigiar aquele "estrangeiro suspeito" durante as últimas semanas em que lá trabalhou.

Mandaram-lhe namoradas potenciais para os bares onde ele costumava fazer os seus engates. No entanto, apesar destas precauções desajeitadas e supérfluas, ditadas pelos mesmos muito fortes interesses americanos, o resultado foi nulo. Nem um sinal de fanfarronice ou indiscrição chegou aos seus ouvidos. Landau nunca se queixou, nunca se vangloriou, nunca tentou tornar o seu caso público. O seu caso acabou por constituir, de facto, uma das poucas histórias rematadas e perfeitamente felizes de toda a nossa história.

Ele foi o prólogo perfeito. Nunca mais pisou o nosso palco. Nunca fez qualquer tentativa para conhecer Barley Scott Blair, esse grande espião britânico. Pode dizer-se que lhe guardou um respeito eterno. Mesmo na grandiosa abertura da sua loja de vídeo, quando o que mais desejava era poder contar com a presença desse verdadeiro herói da espionagem britânica, mesmo nessa altura Landau não infringiu as regras. Talvez o deixasse satisfeito saber que, certa noite, em Moscovo, quando a velha Inglaterra precisara dos seus serviços, também ele se comportara como o verdadeiro gentleman inglês que por vezes ansiara ser. Ou talvez o polaco que havia nele tivesse ficado contente por ter troçado do urso russo. Ou talvez a memória de Ka51

tya tivesse alimentado a sua fidelidade, Katya, a forte, a virtuosa, Katya, a corajosa e bela Katya, que, apesar de todo o seu medo, tinha tido o cuidado de o avisar dos perigos que corria. "Tem. de acreditar naquilo que está a fazer.”

E Landau tinha acreditado. E Landau sentia um orgulho infindo por ter acreditado, como qualquer um de nós sentiria.

Até a sua loja de vídeo floresceu. Era uma verdadeira sensação. Talvez um pouco ousada para alguns espíritos, incluindo a polícia de Golders Green, com a qual fui obrigado a ter uma conversa amistosa. Para outros, porém, era um verdadeiro bálsamo.

Mas o mais importante foi que até mesmo nós acabámos por gostar dele, precisamente porque ele nos via como nós queríamos que toda a gente nos visse, como zeladores omniscientes, capazes e heróicos da saúde subterrânea da nossa grande nação. Essa era uma visão que Barley parecia nunca ter sido capaz de partilhar aliás, tal como Hannali, embora ela não nos conhecesse por dentro, embora para ela isto fosse apenas o lugar para onde nãq me podia seguir, o santuário do supremo envolvimento, e, por isso, aos seus olhos inflexíveis, o santuário do supremo desespero.

"Tenho a certeza de que eles não são a cura, Palfrey", disse-me ela apenas umas semanas antes, quando, por uma razão qualquer de que já não me lembro, eu tentei enaltecer os Serviços. "A mim, pelo contrário, parecem-me muito mais a doença. “

Nós, os mais experientes no ramo, costumamos dizer que não há operação de espionagem que não descambe ocasionalmente em farsa. Quanto maior for a operação, tanto maiores serão as suas potencialidades cómicas, e nos anais dos Serviços são comuns casos como o da caçada secreta movida durante uma semana a Bartholomew, aliás Barley, Scott Blair, a qual provocou um alvoroço, e consequente frustação, que chegavam para uma dúzia de agências de espionagem. Noviços ortodoxos, como Brock da Casa da Rússia, aprenderam a odiar a vida de Barley, mesmo antes de encontrarem o homem.

Ao fim de cinco dias de perseguição, concluíram que sabiam tudo acerca de Barley, excepto onde se encontrava. Conheciam a sua ascendência livre-pensadora e a sua dispendiosa educação, ambas malbaratadas, bem como as histórias pouco edificantes dos seus casamentos, todos eles desfeitos. Conheciam o café em Camden Town, onde ele jogava as suas partidas de xadrez com qualquer espírito dado à preguiça que por lá passasse. Ainda que culpado, Barley seria sempre um cavalheiro, foi o que disseram no café ao nosso agente Wicklow, disfarçado, para o caso, de advogado inquirindo sobre um caso de divórcio. Utilizando os pretextos do costume, desonestos mas eficientes, entrevistaram uma irmã de Barley, em Hove, que já estava farta dele, negociantes de Hampstead que lhe tinham escrito, uma filha casada em Grantham, que o adorava, e um filho, um D. Juan de meia-idade que trabalhava na City, tão concentrado no seu trabalho que parecia ter feito voto de silêncio.

Falaram ainda com membros de uma banda de jazz feita à pressa, onde Barley tinha tocado saxofone ocasionalmente, com um assistente social do hospital onde ele estava registado como visitante e com o vigário da igreja de Kentish Town, onde, para grande surpresa  de todos, cantava as partes de tenor. "Que bela voz, é pena aparecer pouco", disse o vigário, indulgentemente. Mas quando tentaram de novo com a ajuda do velho Palfrey pôr sob escuta o seu telefone, para ouvirem um pouco da sua bela voz, não havia nada para pôr sob escuta porque ele não tinha pago a conta.

Encontraram mesmo vestígios dele nos nossos próprios registos. Ou melhor, quem encontrou esses vestígios foram os americanos, facto que lhes minou ainda mais o moral. Veio a saber-se, com efeito, que no princípio dos anos sessenta, altura em que qualquer inglês que tivesse o infortúnio de possuir um nome unido por hífen corria o risco de ser recrutado pelos Serviços Secretos, o caso de Barley tinha sido enviado para Nova Iorque, a fim de ser submetido a um exame rigoroso, de acordo com um tratado de segurança bilateral só parcialmente observado. Furioso, Brock voltou a investigar junto dos Registos Centrais que, depois de negarem todo e qualquer conhecimento daquela pessoa, desenterraram a sua ficha de uma secção do index que ainda não tinha sido transferida para o computador. E a partir dessa ficha, chegou-se a uma pasta contendo todo o processo original, desde o tal exame completo feito em Nova Iorque a correspondência variada. Brock correu ao gabinete de Ned como se tivesse descoberto a chave para tudo. Idade, 22 anos! Passatempos, teatro e música! Desportos, nada! Razões para considerarem a sua candidatura, um primo chamado Lionel que fazia parte dos Life Guards!

Só faltava o desfecho. O oficial recrutador tinha almoçado com Barley no Athenaeum e carimbado o seu processo com um "Indeferido", dando-se ao trabalho de acrescentar à mão a palavra "definitivamente".

No entanto, este singular episódio, ocorrido mais de vinte anos antes, teve um certo efeito oblíquo na atitude de todos eles em relação a Barley, quando se debruçaram, desconcertados e apreensivos, sobre as ligações de esquerda do velho Salisbury Blair, o pai de Barley. Aos seus olhos, tal facto teria minado a independência de Barley. Não aos olhos de Ned, porque Ned era feito de matéria mais forte. Mas aos olhos dos outros, de Brock e dos mais jovens. Acabaram por sentir que lhes deviam qualquer coisa, nem que fosse por ter sido um aspirante falhado à mística que os animava.

Uma outra frustração consubstanciou-se no carro de Barley, perfeitamente impróprio para consumo, que a polícia encontrou estacionado ilegalmente em Lexham. Gardens, com um pára-lamas amolgado e a carta caducada e uma garrafa de Scotch meio cheia no porta-luvas com um feixe de cartas de amor com a letra de Barley. Os vizinhos andavam a queixar-se do carro ia para semanas.

"Rebocamo-lo, vemo-nos livres dele, multamo-lo ou muito simplesmente reduzimo-lo a pó", sugeriu o amável chefe da Divisão do Trânsito em conversa telefónica com Ned.

"O melhor é esquecê-lo", retorquiu Ned, já exausto. No entanto, ele e Brock apressaram-se a examiná-lo, na vã esperança de encontrarem uma pista. Concluíram que as cartas de amor tinham sido enviadas a uma mulher de Lextiam Gardens, que lhas tinha devolvido. A mulher garantiu-lhes com um ar trágico que seria decerto a última pessoa no mundo a saber onde Barley estaria.

Só na quinta-feira seguinte, quando Ned se pôs a examinar pacientemente o extracto bancário de Barley relativo a esse mês, surgiu a luz que iluminou o caso. Entre as colunas de saldos negativos, Ned deparou com uma ordem de pagamento trimestral a uma sociedade imobiliária, cento e tal libras destinadas a uma Imobiliária Qualquer Coisa Limitada”. Incrédulo, não tirava os olhos daquilo. Então, rogou uma praga, o que não estava nos seus hábitos. Telefonou logo de seguida para a secção de Viagens, pediu-lhes que verificassem listas de vôo de Gatwick e Heathrow já com algum tempo. Quando as Viagens lhe responderam, voltou a rogar pragas. Tinham encontrado. Dias e dias de telefonemas, entrevistas, quase um porta a porta, normas infringidas a todos os níveis, turnos de vigilância, telegramas a serviços amigos em metade das capitais do mundo, a sua tão gabada Secção de Registos humilhada pelos americanos. No entanto, ninguém com quem tinham falado, nem nenhuma das investigações feitas, tinha revelado o único facto crucial, indispensável e perfeitamente estúpido, que eles precisavam de saber: que, dez anos antes, por um qualquer capricho, Barley Blair, depois de ter herdado uns quantos milhares de uma remota tia, comprara uma casinha mais que modesta em Lisboa, onde costumava descansar periodicamente dos trabalhos da sua multifacetada alma. Poderia ter sido na Cornualha, na Provença ou em Tombuctu. Mas acontecera-lhe gostar de Lisboa, daquele sítio perto do rio, junto a um pequeno jardim um tanto mal cuidado, e demasiado perto do mercado do peixe, demasiado perto para as sensibilidades de muitas pessoas.

Com esta descoberta, instalou-se na Casa da Rússia uma calma como a que precede o reatamento dos combates. O rosto de Brock parecia ter empalidecido de raiva.

"Quem é o nosso Irmão em Lisboa actualmente?", perguntou-lhe Ned, de novo leve como uma brisa de Verão. Depois, telefonou para o velho Palfrey, aliás Harry, e ordenou-lhe que ficasse inteiramente à sua disposição para o caso de alguma emergência, o que, como diria Hannali, descrevia perfeitamente a minha situação. Merridew viria a encontrar Barley no bar do hotel. Empoleirado num banco alto, algaraviava um discurso sobre a natureza humana em intenção de um major de artilharia expatriado, completamente encharcado em álcool. Era o major Arthur Winslow Graves, mais tarde referenciado como um contacto de Barley, contacto que constituía a sua única intervenção na história dos homens, sem que ele alguma vez o soubesse. As costas altas e arqueadas de Barley estavam viradas para a porta aberta, e antes desta havia ainda um pátio, pelo que Merridew, que era um jovem de trinta anos, sobre o gordo, pôde armazenar nos pulmões algum do ar de que tanto precisava, antes de entrar em cena. Tinha andado metade do dia atrás de Barley, sem qualquer êxito, e a cada fracasso mais furioso ficava:

No apartamento de Barley, a menos de cinco minutos do horário onde uma mulher inglesa, com um sotaque bastante vulgar, lhe respondera que se fosse lixar, através da ranhura do correio.

Na Biblioteca Britânica, onde a bibliotecária lhe disse que Barley tinha passado lá uma tarde folheando livros, com o que parecia sugerir embora o negasse imediatamente, quando instada a explicar-se que ele passara toda a tarde num estado de estupor alcoólico.

E numa revoltante estalagem ao estilo Tudor, no Estoril, onde Barley e os amigos tinham consumido um jantar particularmente regado sob mosquetes de plástico, e partindo em grande algazarra menos de meia hora antes.

O hotel, que humildemente preferia auto-denominar-se pensão”, era um antigo convento, um daqueles locais que os ingleses adoram. Para lá chegar, Merridew teve de escalar uma escadaria de pedra tapada por videiras e, tendo-a escalado e dado uma primeira olhadela cuidadosa, apressou-se a descê-la para ir dizer a Brock que corresse "mas corre mesmo!" ao café da esquina e ligasse para Ned. Depois, escalou de novo a escadaria, razão por que se sentia tão ofegante e ainda mais maltratado que o costume. Cheiros de terra molhada e café acabado de moer misturavam-se com as fragâncias nocturnas das plantas. Merridew não as sentia. Faltava-lhe o ar.

O soluçar de eléctricos distantes e o grasnar dos barcos eram os únicos sons de fundo para o monólogo de Barley. Merridew não se apercebia desses sons.

"Limitada", no original, em Português (N. do T.)

 

"As crianças cegas não sabem mastigar, meu caro e encantador Gravey", explicava pacientemente Barley, encostando a ponta do seu indicador, muito longo e fino, ao umbigo do major e descansando o cotovelo no balcão, ao lado de uma partida inacabada de xadrez. "É um facto científico, Gravey. As crianças cegas têm de ser ensinadas a mastigar. Ora venha cá. Feche os olhos.”

Barley segurou ternamente a cabeça do major com as duas mãos, aproximou-a de si, abriu-lhe os maxilares frouxos e meteu-lhe na boca dois ou três cajus. "Ora muito bem. Quem é um lindo menino? Quem come a papinha toda? Mastigar, mastigar! Cuidado com a língua! Mastigar de novo.”

Interpretanto aquela fala como a sua deixa, Merridew afivelou o seu sorriso caloroso de encomenda e aventurou-se a entrar no bar, onde, para sua grande surpresa, se lhe depararam duas esculturas em tamanho natural, representando duas mulatas em trajes de côrte, uma de cada lado do vão da porta. Cabelo castanho, olhos verdes, repetiu mentalmente, examinando as peculiaridades sicas de Barley como se de um cavalo se tratasse. Altura, um metro e oitenta e dois, barba sempre feita, bem-falante, físico elegante, dumentária original. Original, uma ova, pensou o atarracado Merridew, ainda resfolegante, enquanto examinava a roupa de Barley: casaco desportivo de linho, calças de flanela cinzenta e sandálias. Mas o que é que aqueles loucos esperavam que ele vestisse numa noite quente em Lisboa? Arminho?

 

'Em português, no original. (N. do T.)

 

"Desculpem, sim?", disse Merridew gentilmente. "É que eu ando à procura de uma pessoa e talvez me possam ajudar.”

"O que prova, meu caro patetinha da sua mama", recordou Barley, depois de ter cuidadosamente reconduzido o major a uma posição erecta, "para citar a famosa canção, que não obstante o facto de o grande feiticeiro nos ter feito de carne, comer pessoas não é uma atitude correcta. “

"Mas,... Desculpe, mas se não me engano o senhor é Bartholomew Scott Blair", disse Merridew. "Não estou enganado, pois não?”

Segurando o major pela lapela do casaco, a fim de prevenir um desastre militar, Barley deu cuidadosamente meia volta e examinou atentamente Merridew, desde os sapatos ao sorriso.

"Chamo-me Merridew e trabalho na Embaixada. Sou o segundo secretário comercial. Lamento imenso, mas recebemos um telegrama muito urgente para si. Seria uma boa ideia se nos acompanhasse e tomasse desde já conhecimento do seu teor.”

Então, imprudentemente, Merridew permitiu-se um maneirismo habitual em funcionários obesos. Ergueu repentinamente um braço, deu à mão a forma de taça e passou zelosamente com ela pela cabeça, como que para confirmar que o cabelo e o chapéu ainda lá estavam. E este gesto largo, produzido por um homem gordo numa sala de paredes baixas, pareceu suscitar em Barley receios que, de outro modo, poderiam ter permanecido adormecidos, fazendo com que, subitamente, ele ficasse desconcertantemente sóbrio.

"Não me diga que morreu alguém, meu velho", disse ele, com um sorriso tão tenso que parecia preparado para o mais trágico gracejo.

"Por amor de Deus. Mr. Blair, não seja tão sóbrio, é um assunto comercial e não consular. Caso contrário, não teria vindo parar às nossas mãos, não acha?" Merridew esboçou um sorriso apaziguador.

Mas Barley não cedera ainda. Nem um milímetro. Continuava a olhar para o vazio, pouco preocupado com o facto de Merridew estar fí t in à espera. "Mas afinal que raio é que aconteceu?", perguntou.

"Nada", retorquiu Merridew, assustado. "É apenas um telegrama urgente. Escusa de dar tanta importância ao caso. Veio por via diplomática.”

"E quem é que tem urgência?”

É "Ninguém. Não posso dar-lhe uma ideia em frente de toda a gente. confidencial. Só nós podemos lê-lo." Esqueceram-se dos óculos, pensou Merridew, retribuindo o olhar atento de Barley. Lentes redondas. Armação preta. Demasiado pequenos para os seus olhos. Caem-lhe até à ponta do nariz quando nos franze o sobrolho. Quando nos fixa e nos mede.

"Nunca vi uma dívida honesta que não pudesse esperar um dia" declarou Barley, virando-se para o major. "Tenha calma, Mr. Merridew. Beba um copo com a ralé.”

Merridew podia não ser o mais elegante ou o mais alto dos homens. Mas era eficiente, astuto e, como muitos gordos, tinha inesperados recursos de indignação, capazes de se transformarem numa torrente sempre que fosse preciso.

"Oiça-me por uma vez, Mr. Blair, eu não tenho nada a ver com os seus problemas, e ainda bem. Não sou nenhum oficial de diligências, não sou nenhum paquete. Sou um diplomata e tenho um cargo razoavelmente importante. Passei metade do dia a andar de um lado para o outro à sua procura, tenho um carro e um funcionário lá fora à espera e tenho o direito de dispor de algum tempo para mim mesmo. Lamento, mas é assim mesmo.”

O dueto poderia ter prosseguido indefinidamente, não tivesse o major ensaiado um inesperado regresso à vida. Atirando para trás os ombros, colou os punhos às bainhas das calças e encarquilhou a boca e o queixo num trejeito de respeito. "Ordens reais, Barley", clamou ele. "A Embaixada é a Buck Housel cá do sítio. Um convite é uma ordem. Não teve insultar Sua Majestade.”

"Ele não é Sua Majestade", objectou pacientemente Barley. "Não traz coroa. “

Merridew pensou se não deveria chamar Brock. Tentou pôr um sorriso cativante, mas Barley já estava a olhar para um recanto na parede, onde um vaso de flores secas ocultava uma grelha de lareira vazia. Tentou despertá-lo com um "então? está pronto?", o que teve o mesmo efeito que as imprecações de um marido apressado perante a demora do jantar. Mas o olhar fixo e desfigurado de Barley não largava as flores. Parecia ver toda a sua vida nas flores, todos os desvios errados, todos os passos em falso. Então, no preciso momento em que Merridew começava a perder as esperanças, Barley pôs-se a meter todas as suas coisas nos bolsos do casaco, ao jeito de um ritual, como se fosse partir para um safari: a carteira dobrada, cheia de cheques de contas sem dinheiro e de cartões de crédito cancelados; o passaporte, manchado de suor e das muitas viagens; o caderno e o lápis que tinha sempre à mão para a produção de pérolas de sabedoria alcoólica, em cuja contemplação se deleitava quando estava sóbrio. E depois de ter feito tudo isso, depôs com um gesto firme uma nota choruda sobre o balcão, como alguém que não fosse precisar de dinheiro durante muito tempo.

"Não se esqueça do táxi para o major, Manuel. Ajude-o a descer as escadas e a entrar para o banco de trás e pague adiantado ao motorista. Pode ficar com o troco. Até breve, Gravey. Obrigado pela boa disposição.”

O orvalho cobria a terra e as plantas. Uma lua jovem repousava entre um orvalho de estrelas. Desceram as escadas, Merridew à frente, interpelando Barley para que tivesse cuidado com os degraus.

O porto estava cheio de luzes errantes. Um sedan preto com matrícula C13 esperava encostado ao passeio. Brock aguardava impaciente ao lado do carro, oculto pela obscuridade. Um outro carro vigiava, despercebido, a uma boa distância.

"Apresento-lhe o Eddie", disse Merridew. "Parece que demorámos, Eddie. Conseguiu fazer a sua chamada?”

"Consegui", disse Brock. "Está tudo bem em casa, espero... Os miúdos já estão na cama? A sua mulher é capaz de estar chateada.”

"Está tudo bem", resmungou Brock, num tom que significava "cale-se já!”

Barley sentou-se no banco da frente, a cabeça colada ao descanso, os olhos cerrados, Merridew conduzia. Brock sentou-se muito quieto no banco de trás. O segundo carro pôs-se em marcha lentamente como fazem os perseguidores experientes.

"É por este caminho que costuma ir para a Embaixada?", perguntou Barley numa aparente modorra.

"Ah, é que o funcionário que estava de serviço levou o telegrama para casa", explicou Merridew generosamente, como se acolhesse de bom grado tal pergunta. "Lamentavelmente, aos fins-de-semana, temos de isolar a Embaixada e deixá-la bem protegida por causa dos irlandeses." Ligou o rádio. Uma mulher de voz sonora soluçava um nutrido queixume. "Fado", disse Merridew. "Adoro fado. Acho que é por causa do fado que estou aqui. Com toda a certeza. Tenho a certeza que incluí o fado na minha candidatura." Pôs-se a conduzir com a mão que tinha livre. "Fado", explicava.

"Por acaso não foram vocês que andaram a chatear a minha filha com uma quantidade de perguntas estúpidas?", perguntou Barley.

"Ah, nós só tratamos de assuntos comerciais", disse Merridew, e continuou a guiar com toda a atenção que lhe era possível. Mas interiormente sentia-se já gravemente perturbado com a pouca inocência de Barley. Antes eles que eu, pensou, sentindo o olhar persistente de Barley no seu rosto. Se é com tipos destes que a sede tem de se haver nos tempos que correm, então Deus me livre de ser colocado em Londres.

Tinham arrendado a casa de Lisboa de um antigo membro dos Serviços, um banqueiro britânico com uma outra casa em Sintra. O velho Palfrey tinha tratado de tudo. Não queriam propriedades oficiais, nada que mais tarde pudesse comprometê-los. Ali, no entanto, o tempo e o lugar impunham-se com uma eloquência muito própria. Um candeeiro de ferro forjado iluminava a entrada abobadada. As lajes de granito tinham sido picadas para que os cavalos não escorregassem. Merridew tocou à campainha. Brock tinha-se abeirado dos dois, para o caso de haver algum acidente.

"Olá, entrem", disse Ned afavelmente, abrindo o portal enorme, encimado de arquivoltas.

"Bom, não precisam de mim, pois não?", disse Merridew. "óptimo, óptimo." Balbuciando disparatados pedidos de fogo protector, correu para o carro antes que alguém o pudesse rebater. Nesse momento passou lentamente o outro carro, como um bom amigo que tivesse visto outro à entrada de casa numa noite perigosa.

Durante um longo momento, enquanto Brock se pôs de lado a observá-los, Ned e Barley mediram-se um ao outro como só dois ingleses da mesma altura, classe e configuração craniana poderiam fazer. E embora Ned fosse, aparentemente, o arquétipo perfeito do britânico calmo, fleumático e equilibrado, e portanto, a muitos níveis, o reverso de Barley Barley, que tinha um físico desconjuntado e ossudo, com um rosto que, mesmo em sossego, parecia determinado a explorar tudo o que havia para além do óbvio -, havia entre eles semelhanças capazes de permitirem uma identificação. Através de uma porta fechada veio o murmúrio de vozes masculinas, mas Ned fez de conta que não o tinha ouvido. Conduziu Barley por um corredor que dava para uma biblioteca, dizendo-lhe, "entre", enquanto Brock ficava no hall.

"Está muito, pouco ou razoavelmente bêbado?", perguntou Ned, baixando a voz e estendendo a Barley um copo de água gelada.

"Não estou bêbado", disse Barley. "Quem é o autor do meu sequestro? O que é que se passa?”

"Chamo-me Ned. Vou explicar-lhe tudo. Não há telegrama nenhum, não há qualquer crise nos seus negócios para além do que é costume. Ninguém foi sequestrado. Eu pertenço aos Serviços Secretos Britânicos. Tal como as pessoas que estão à sua espera para lá da porta. Em tempos você candidatou-se a um lugar nos Serviços. Pois tem agora uma oportunidade de nos ajudar.”

Instalou-se entre eles o silêncio.

Ned tinha exactamente a mesma idade de Barley. Há muitos anos que, de uma maneira ou de outra, revelava a sua identidade de agente secreto britânico a pessoas cuja colaboração prestava, esta era a primeira vez que um cliente seu se mantinha calado, sem pestanejar, sem sorrir, sem recuar, sem exibir o mínimo sinal de surpresa.

"Não sei de nada", disse Barley. "Talvez nós gostássemos que descobrisse uma coisa." "Descubram-na sozinhos." "Não podemos. Sem você, não podemos. É por isso que aqui estamos. “

Barley deu uns passos indecisos e abeirou-se das estantes. Inclinando a cabeça, espreitou por sobre as lentes redondas alguns dos títulos, enquanto ia bebendo a sua água.

"Primeiro eram do sector comercial, agora são espiões", disse ele. "Fale com o Embaixador", sugeriu Ned. "É um idiota. Fomos colegas em Cambridge." Pegou -num livro encadernado e olhou par a o frontispício. "Merda", disse com desprezo. "Deve comprá-los ao quilo. De quem é esta casa?”

"O Embaixador poderá garantir-lhe a minha identidade. Se lhe perguntar se quer ir jogar golfe na quinta-feira, ele responder-lhe-á que só depois das cinco.”

"Não jogo golfe", disse Barley, pegando noutro volume. "Aliás, não jogo nada. Retirei-me de todos os jogos.”

"Excepto o xadrez", sugeriu Ned, estendendo-lhe a lista telefónica aberta. Com um encolher de ombros, Barley marcou o número. Ao ouvir o Embaixador, fez um sorriso que, apesar de trocista, denotava bastante embaraço. "Tubby? Fala Barley Blair. Que me diz a uma partidinha de golfe na quinta-feira? Faz bem ao fígado ... “

Uma voz agreste retorquiu que na quinta-feira só depois das cinco. "Depois das cinco não pode ser", respondeu Barley. "Acabávamos por ter de jogar no escuro a besta desligou", queixou-se, abanando o auscultador, já calado. Então viu a mão de Ned desligando a chamada.

"É pena, mas o caso não é para brincadeiras", disse Ned. "Aliás, é um caso realmente muito sério.”

Perdido uma vez mais nas suas contemplações, Barley colocou lentamente o auscultador sobre o descanso. "É realmente muito ténue a fronteira entre o realmente muito sério e o realmente muito cómico", observou.

"E se passássemos essa fronteira?", propôs Ned. A conversa para lá da porta tinha cessado. Barley abriu-a e entrou. Ned seguiu-o. Brock ficou no hall, de guarda à porta da rua. Tínhamos ouvido tudo através do nosso aparelho de escuta.

Se Barley sentia alguma curiosidade em relação ao que o esperaria naquela sala, nós não sentíamos menos. É um jogo estranho, virar do avesso a vida de um homem sem nunca o ter visto. Barley entrou lentamente. Deu alguns passos e parou, os braços longilíneos caídos e oscilantes, enquanto Ned, a meio caminho da mesa, fazia as apresentações.

"Clive, Walter, aquele ali é o Bob, Harry. Apresento-lhes o Barley.”

Barley fez um aceno indistinto ao ouvir cada um dos nomes. Parecia preferir o testemunho dos seus olhos a tudo o que lhe pudessem dizer.

O mobiliário pomposo e o verdadeiro matagal de plantas de interior atraíram a sua atenção. Tal como a laranjeira. Tocou num fruto, acariciou uma folha, depois cheirou delicadamente o polegar e o indicador como que para confirmar que era uma laranjeira de verdade. Havia nele uma raiva passiva, mais evidente que os motivos que a provocavam. Raiva por o terem perturbado, pensei. Porque o pescaram, porque o isolaram, porque o nomearam uma das coisas que, segundo Hannali, eu mais temia.

Lembro-me também de ter reparado que era um homem elegante. Não por causa do vestuário, pouco cuidado. Longe disso. Eram os gestos que o tornavam elegante, uma cortesia discreta. Uma afabilidade natural, ainda que lhe resistisse.

"Vocês não usam apelidos, pois não?", inquiriu Barley, depois de ter completado a inspecção à sala.

"Receio bem que não", disse Clive. "É que na semana passada um tal Mr. Rigby telefonou à minha filha Anthea. Disse que era inspector das Finanças. Contou uma patranha qualquer sobre impostos que tinham sido mal calculados e que ele queria regularizar. Era um dos vossos palhaços?”

"Pelo que me diz, é muito provável que fosse", disse Clive, com a arrogância de alguém para quem a mentira era um constrangimento que os outros não lhe deveriam impor.

Barley olhou para Clive, que tinha um desses rostos ingleses que parecem ter sido embalsamados no fulgor da juventude, para os seus olhos friamente astutos e impenetráveis, para a coloração cinza da sua pele. Virou-se depois para Walter, tão rotundo, simples e cómico, um Falstaff que, na escola, teria sido o alvo preferido da chacota dos colegas mais ricos. E de Walter os seus olhos passaram para Bob, repararam na sua aparência aristocrática, na idade mais avançada, na tranquilidade altiva, nos castanhos que usava em vez dos cinzentos e dos azuis. Bob estava repousadamente sentado, com as pernas esticadas, um braço caindo senhorialmente sobre a cadeira. Óculos de meia lente com armação dourada espreitavam no bolso superior do casaco. As solas dos seus sapatos cor de mogno, já um tanto gastos, pareciam ferros de engomar.

"Barley, eu sou o excêntrico nesta família", anunciou serenamente Bob, com a entoação lenta dos bostonianos. "Creio que sou também o mais velho e não quero que haja confusões a meu respeito. Tenho cinquenta e oito anos, quanto a isso não há dúvida, trabalho para a Central Intelligence Agency, a qual, como você provavelmente sabe, tem sede em Langley, no estado de Virgínia. Tenho também um apelido, mas não o vou insultar com um inventado." Ergueu uma mão cheia de manchas hepáticas numa saudação vagarosa. "Muito gosto em conhecê-lo. Vamos então divertir-nos um pouco? Espero que tudo corra o melhor possível.”

Barley virou-se para Ned. "Não há dúvida que isto está divertido", disse, embora sem qualquer hostilidade evidente. "Então qual é o nosso objectivo? Nicarágua? Chile? Salvador? Irão? Se querem alguém para matar um líder do Terceiro Mundo, não contem comigo. “

"Não faça teatro", disse calmamente Clive, embora teatro fosse talvez a única coisa que Barley não estava a fazer. "Nós somos tão maus como os homens do Bob e fazemos as mesmas coisas que eles. Também temos uma lei dos segredos de Estado, e eles não, e esperamos que assine o documento previsto nessa lei.”

Clive acenou então na minha direcção, o que levou Barley a aperceber-se da minha existência, um tanto tardiamente, é certo. Em ocasiões deste tipo, procuro manter-me sempre um pouco à parte, e foi isso que fiz naquela noite. Provavelmente são ainda restos de uma fantasia, da fantasia de que o meu lugar é como juiz num tribunal. Barley olhou para mim e, por momentos, senti-me desconcertado com a franqueza animal do seu olhar. Esse era um pormenor que não colava ao retrato mal acabado que tínhamos feito dele. E Barley depois de me ter mirado e de ter visto não sei o quê, entregou-se a um exame mais esmiuçado da sala.

Tudo aquilo tinha um ar opulento. Talvez Barley tivesse pensado que era Clive o proprietário. De facto, o gosto de Clive andava lá por perto, já que a sua identificação com a classe média se resumia ao desconhecimento de que havia um gosto mais refinado. Na sala havia tronos entalhados, sofás de chita, velas eléctricas espalhadas pelas paredes. A mesa a que estávamos sentados, e que poderia perfeitamente ser o cenário de uma cerimónia do Armistício, ficava num recanto elevado da sala, guarnecido de enormes plantas da borracha em rotundos vasos.

"Por que razão não foi a Moscovo?", perguntou Clive, sem esperar que Barley finalmente se instalasse. "Esperava-se que fosse. Alugou um stand, reservou vôo e hotel. Mas não apareceu e não pagou. Em vez de ir para Moscovo, veio para Lisboa com uma mulher. Porquê?”

"Havia de vir com um homem?", perguntou Barley. "Que lhe interessa a si e à CIA que eu tenha vindo com uma mulher ou com um pato americano?”

Puxou uma cadeira e sentou-se, mais por protesto do que por obediência.

Clive acenou-me e eu fiz então o número do costume. Levantei-me, dei a volta à absurda mesa e pus à sua frente o documento relativo aos segredos de Estado. Com um gesto imponente, tirei uma caneta do bolso do colete e ofereci-lha com uma gravidade funérea. Mas os seus olhos fixavam um local algures longe daquela sala. Nessa noite e nos meses seguintes encontrei muitas vezes nele esse olhar, um olhar que ignorava os presentes e se instalava num qualquer território privado e sujeito a perturbação; tal como reparei na forma como de repente desatava em grande alarido, como forma de exorcizar fantasmas que mais ninguém tinha visto; ou como se punha a fazer estalos com os dedos sem qualquer causa aparente, como se quisesse dizer, "Então está tudo resolvido", quando ninguém sabia de resolução nenhuma.

"Vai assinar isso?", perguntou Clive. "Que fazem se eu não assinar?", retorquiu Barley. "Nada. Mas deixe-me dizer-lhe, formalmente e perante testemunhas, que esta reunião e tudo o que se passe entre nós está sujeito a total sigilo. O Harry é advogado.”

"Efectivamente", disse eu. Barley afastou o documento da sua frente. "Pois deixe-me dizer-lhe que se me apetecer publico isto tudo em grandes parangonas", retorquiu Barley com idêntica calma.

Voltei ao meu lugar, levando a minha imponente caneta comigo. "Em Londres, parece que também deixou tudo na maior confusão", observou Clíve, enquanto punha o documento de novo na pasta. "Dívidas por todo o lado. Ninguém sabe para onde é que foi. Umas quantas amantes chorosas. Está a tentar destruir-se a si mesmo ou quê?”

"É que eu herdei uma inclinação romântica", disse Barley. "Mas que raio é que isso significa?", disse Clive, pouco preocupado com a sua própria ignorância. "Está a disfarçar a sujeira com palavras caras?”

"O meu avô conseguiu o monopólio dos romances para criadas. Era no tempo em que havia criadas. O meu pai chamou-lhes “Romances para as Massas” e continuou a tradição.”

Só Bob se sentiu na obrigação de lhe oferecer algum conforto. "Por amor de Deus, Barley", exclamou, "o que é que há de mal na literatura cor-de-rosa? É melhor do que algum do esterco que para aí é publicado. A minha mulher farta-se de ler esses livros e a ela nunca lhe fizeram mal nenhum.”

"Se não gosta dos livros que publica porque não muda de livros?" perguntou Clive, que nunca lia nada a não ser os processos dos Serviços e a imprensa de direita.

"Eu tenho um conselho de administração", replicou Barley agastado, como se estivesse a falar com uma criança inoportuna. "Tenho administradores. Tenho accionistas da família. Tenho tias. Todos eles gostam das receitas antigas. Gostam dos “como fazer". De romances. De best-sellers. De Passarões do Império Britânico." Um olhar para Bob. "Dentro da CIA.”

 

'Tipo de obras de que um dos principais paradigmas é o "Como Fazer Amigos", de Dale Carnegie. (N. do T.)

 

"Por que razão não compareceu na feira audio de Moscovo?", repetiu Clive.

"As tias cancelaram o jogo." "É capaz de me explicar isso?" "Pensei em levar a firma para o ramo das cassetes. A família descobriu e opôs-se. Fim da história.”

"E você desapareceu", disse Clive. "É isso o que você normalmente faz quando o contrariam? Talvez fosse melhor explicar-nos esta carta", sugeriu e, sem olhar para Barley, fê-la deslizar sobre a mesa na direcção de Ned.

Não era o original. Esse estava em Langley, onde era submetido a todos os testes, desde as impressões digitais ao teste da doença dos Legionários, pelas imbatíveis forças da tecnologia. Era um fac-símile, preparado segundo as meticulosas instruções de Ned, dentro do envelope castanho selado, com a indicação "Para, Mr. Bartholomew Scott Blair Pessoal Urgente", na letra de Katya, e aberto com uma faca de papel, para que se visse que a carta já tinha sido lida. Clive estendeu o envelope a Ned. Ned passou-a para Barley. Walter esgaravatava o escalpe com a sua manápula e Bob assistia magnanimamente no papel do tipo porreiro que tinha dado o dinheiro. Barley olhou-me um breve instante, como se se tivesse eleito meu cliente.

O que é que eu faço com isto?, era o que ele perguntava com aquele olhar. Leio ou devolvo? Espero ter ficado impassível nesse momento. Já não tinha clientes. Tinha os Serviços.

"Leia-a lentamente", avisou Ned. "Demore o tempo que for preciso, Barley", disse Bob.

O ror de vezes que lemos aquela carta nessa última semana!, pensei eu, enquanto via Barley examinando o envelope dos dois lados, afastando-o de si, aproximando-o, os óculos redondos erguidos sobre a testa como se fossem óculos de protecção. Quantas opiniões teriam sido ouvidas e rejeitadas? Tinha sido escrita num comboio, concluíram seis peritos em Langley. Na cama, disseram outros três. No banco de trás dum carro. À pressa, por brincadeira, apaixonadamente, aterrorizadamente. Por uma mulher, por um homem.

O autor é canhoto, é destro. É alguém que aprendeu o alfabeto cirílico em criança, o romano, ambos, nenhum deles.

Num derradeiro lance de comédia, tinham mesmo consultado o velho Palfrey. "De acordo com a nossa lei dos direitos de autor, o destinatário possui a carta física mas o autor possui os direitos", disse-lhes eu. "Mas não creio que os tribunais soviéticos nos processem. " Fiquei sem saber se a minha opinião os deixara apreensivos ou aliviados.

"Reconhece ou não a letra?", perguntou Clive a Barley. Metendo os seus longos dedos no envelope, Barley retirou finalmente a carta mas num jeito desdenhoso, como se em parte ainda esperasse que fosse uma conta. Depois parou. E tirou os seus estranhos óculos redondos e pô-los em cima da mesa. Virou a cadeira, 

procurando isolar-se de toda aquela gente. Ao começar a ler, todo o seu rosto se franziu. Acabou a primeira página e espreitou para o fim da carta, à procura da assinatura. Passou para a segunda página e leu o resto da carta até ao fim. Depois leu tudo de novo, de um só fôlego, desde o "Meu querido Barley" até "A tua querida K." Após o que apertou ciosamente a carta contra o colo, com ambas as mãos, e baixou o tronco sobre ela, pelo que, deliberadamente ou não, o seu rosto ficou escondido de toda a gente e a sua madeixa caiu como um gancho e as suas orações privadas, privadas ficaram.

"É maluca", disse, para a escuridão sob os seus olhos. "Não há dúvida, completamente doida. Ela nem sequer lá esteve.”

Ninguém lhe perguntou, quem é ela? ou, lá, onde? Até Clive conhecia o valor de um bom silêncio.

"K é a abreviatura de Katya, que por sua vez é a abreviatura de Yekaterina, parece-me", disse Walter, com a sua voz aflautada, após mais algum tempo de espera. "O patronímico é Borisovna." Walter trazia um lacinho ao pescoço, um tanto torto, amarelo com um motivo castanho e cor de laranja.

"Não conheço nenhuma K, não conheço nenhuma Katya, não conheço nenhuma Yekaterina", disse Barley. "Borisovna idem. Nunca forniquei com nenhuma, nunca namorei com nenhuma, nunca pedi nenhuma em casamento, nunca casei com ninguém com esse nome. Que me lembre, nunca conheci nenhuma mulher com esse nome. Conheci, sim. “

Todos ficaram à espera, eu incluído; e teríamos esperado toda a noite que nem uma cadeira rangeria, nem um pigarro se ouviria, enquanto Barley não recuperasse a recordação dessa mulher chamada Katya.

"A vaca da Aurora", recomeçou Barley. "Tentou impingir-me algumas edições de arte de pintores russos. Não fui na conversa. As tias teriam ficado fulas.”

"Aurora?", perguntou Clive, sem saber se era uma cidade ou uma agência estatal.

"Edíções Aurora." "Lembra-se do outro nome dela?" Barley abanou a cabeça, o rosto ainda oculto. "Barba", disse ele. "Katya da barba. Quarenta graus à sombra.”

A voz sonora de Bob tinha uma qualidade estereofónica, a sua emissão bastava para alterar as coisas. "E se a lesse alto, Barley?", propôs, no tom familiar de um velho camarada escuteiro. "Talvez o facto de a ler em voz alta lhe refresque a memória. Vamos tentar, Barley?”

Barley, Barley, todos seus amigos, excepto Clive, o qual, que me lembre, sempre o tratou por Blair.

"Sim, faça-nos esse favor. Leia-a alto", disse Clive, ou ordenou, e Barley, para minha surpresa, pareceu achar que se tratava de uma boa ideia. Endireitando-se com um movimento rápido das costas, colocou de tal forma o tronco que tanto a carta como o seu rosto ficaram iluminados. De rosto igualmente franzido, começou a ler a carta em voz alta, num tom de mistificação premeditada.

"Meu querido Barley". Inclinou a carta e recomeçou. "Meu querido Barley, lembras-te de uma promessa que me fizeste, certa noite em Peredelkino, no alpendre da dacha dos nossos amigos, depois de termos recitado um ao outro a poesia de um grande místico russo que amava a Inglaterra? Juraste-me que havias de preferir sempre a humanidade às nações e que, quando soasse a hora, agirias como um ser humano decente.”

Barley parara de novo. "Nada disso é verdade?", perguntou Clive. "Já lhe disse. Nunca conheci a megera!" Havia na negação de Barley uma força nova. Estava a tentar iludir qualquer coisa que o ameaçava.

"Por isso te peço agora que cumpras a tua promessa, embora não da forma que talvez tivéssemos imaginado nessa noite em que nos tornámos amantes". "Isto é um disparate completo", murmurou. "Esta estúpida desta vaca só tem confusões na cabeça. "Peço-te que divulgues este livro junto do público inglês, que pensa como nós. Publica-o por mim, usando os argumentos que exprimiste com tanto ardor. Mostra-o aos cientistas e artistas e intelectuais do teu país e diz-lhes que ele é a primeira pedra de uma grande avalanche e que devem ser eles a lançar a próxima pedra. Diz-lhes que, com a nova abertura, nos poderemos movimentar juntos para destruirmos a destruíção e castrarmos o monstro que criámos. Pergunta-lhes o que será mais perigoso para a humanidade: conformarmo-nos como escravos ou resistirmos como homens? Age como um ser humano decente, Barley. Eu amo a Inglaterra de Herzen e amo-te a ti. A tua querida K". "Mas afinal quem é esta mulher? Está louca. Ambos estão.”

Deixando a carta em cima da mesa, Barley encaminhou-se para a parte obscurecida da sala, praguejando em surdina, gesticulando com o punho direito cerrado. "Mas que raio é que esta mulher decidiu tramar?", protestou. "Ela pegou em duas histórias completamente diferentes e misturou-as. Seja como for, onde é que está o livro?" Lembrara-se de nós e enfrentava-nos de novo.

"O livro está seguro", disse Clive, olhando-me pelo canto do olho. "São capazes de me dizer onde é que ele está? Esse livro é meu." "Pensávamos que era do amigo dela", disse Clive. "Fui encarregado de o publicar. Vocês viram o que ele escreveu. Eu sou o editor dele. Não têm qualquer direito sobre o livro.”

Barley estava a entrar precisamente no terreno em que queríamos que não entrasse. Mas Clive depressa o distraiu.

"Ele?", repetiu Clive. "Então Katya é um homem? Porque é que diz ele? Olhe que está a deixar-nos confusos. Mas você deve ser uma pessoa que confunde facilmente os outros.”

 

Dacha, casa de campo russa. (N. do T.)

 

Tinha esperado pela explosão mais cedo. Já me havia apercebido de que a atitude submissa de Barley era uma trégua e não uma vitória. De cada vez que Clive o tentava refrear, Barley aproximava-se muito da revolta. Por isso, quando Barley se abeirou lentamente da mesa, se debruçou sobre ela e ergueu frouxamente as mãos, com as palmas para cima, no que poderia ter sido um dócil gesto de desamparo, não era de esperar que oferecesse a Clive uma resposta agradável. Mas nem mesmo eu esperava uma denotação tão forte.

"Não têm esse direito!", berrou Barley bem na cara de Clive, batendo com as palmas das mãos na mesa com tanta força que os meus papéis saltaram à minha frente. Brock apareceu a correr. Ned mandou-o regressar ao hall. "Esse manuscrito é meu. Foi-me enviado pelo meu autor. Para que eu o apreciasse no meu devido tempo. Não têm o direito de mo roubarem, de o lerem ou de o guardarem. Por isso dêem-me o livro e vão para casa, para a vossa miserável ilha." Apont ou um braço na direcção de Bob. "E levem o vosso brâmane de Boston convosco.”

"Para a nossa ilha", lembrou-lhe Clive. "O livro, como você lhe chama, está longe de ser um livro e nem você nem nós temos qualquer direito sobre ele", prosseguiu, fria e falsamente. "Não me interessa a sua tão preciosa ética editorial. Ninguém aqui se interessa.

O que nós sabemos é que o manuscrito em questão contém segredos militares acerca da União Soviética que, a serem verdadeiros, se revelerão vitais para a defesa do Ocidente. A cujo hemisfério você também pertence de bom grado, ao que julgo. Que faria você no nosso lugar? Ignorava-o? Atirava-o ao mar? Ou tentava descobrir por que razão o destinatário é um editor britânico decadente?”

"Ele quer que o livro seja publicado! E que seja eu a publicá-lo! Não o quer escondido nas vossas caixas-fortes!”

"Precisamente", disse Clive, olhando-me de novo num relance. "O manuscrito encontra-se sob protecção oficial e foi classificado como altamente secreto", disse eu. "Encontra-se sujeito às mesmas restrições que esta reunião. E as outras." O meu velho professor deu certamente nesse momento uma volta no túmulo receio bem que não fosse a primeira vez. Mas é sempre espantoso o que um advogado consegue quando ninguém conhece a lei, Um minuto e catorze segundos foi o tempo que o silêncio demorou na gravação. Ned mediu-o com o cronómetro, já instalado na Casa da Rússia. Esperara com ansiedade por esse momento, mas mesmo assim, chegou a temer que se tratasse de mais uma dessas estranhas avarias que acontecem sempre aos gravadores nos momentos cruciais. Porém, ao ouvir com atenção, apanhou o murmúrio de um carro distante e um breve riso de rapariga. É que Barley, nessa altura, já tinha aberto as cortinas e olhava para a praça em frente. Por um minuto e catorze segundos, estivemos pois a olhar para as costas estranhamente articuladas de Barley, emolduradas pelo pano de fundo da noite de Lisboa. Ouve-se então um estrondo ippressionante, como se várias janelas se tivessem estilhaçado ao mesmo tempo, seguindo-se-lhe um jacto de óleo. Poder-se-ia pensar, ao ouvir a gravação, que Barley tinha ensaiado finalmente uma fuga, levando atrás de si os pratos ornamentais portugueses que estavam nas paredes, para além dos vasos com flores. Mas a verdade é que todo esse estrondo medonho foi apenas o som produzido por Barley ao descobrir a garrafeira e ao deitar três cubos de gelo e uma medida decente de Scotch num copo de cristal, tudo isto a milímetros de um microfone que Brock, com o seu zelo característico, tinha instalado num dos móveis ricamente entalhados.

 Barley tinha assentado arraiais num dos cantos da sala, numa cadeira dura e sem braços, o mais longe de nós que lhe era possível. Sentou-se na cadeira, de lado para nós, de cabeça baixa sobre o copo, que segurava com ambas as mãos, perscrutando-o como se fosse um grande pensador ou, pelo menos, um pensador solitário. Não falava connosco mas apenas consigo mesmo, enfaticamente, severamente, não se mexendo a não ser para sorver o seu whisky ou para comentar com uns quantos movimentos da cabeça alguns pontos da narrativa, mais privados e normalmente isolados. Falava com a mistura de incredulidade e afectação com que as pessoas costumam reconstruir os episódios desastrosos, como uma morte ou um acidente de viação. Portanto, eu estava aquí e você estava alí e o outro sujeito veio de acolá.

"Foi na última feira do livro de Moscovo. No domingo. Não no domingo antes, no domingo depois", disse.

"Em Setembro", sugeriu Ned, ao que Barley respondeu virando a cabeça para ele e murmurando "Obrigado", como se tal estímulo o deixasse sinceramente grato. Depois, franziu o nariz, andou às voltas com os óculos e recomeçou.

"Estávamos desfeitos de cansaço", disse. "A maior parte dos exibidores tinha-se ido embora na sexta-feira. Só tínhamos ficado uns quantos. Aqueles que tinham contratos para ultimar ou que não tinham qualquer razão especial para regressarem com brevidade. “

Além de naquele momento estar num palco, Barley era um homem que sabia atrair as atenções. Era difícil não sentir alguma admiração por aquele homem que para ali estava, sozinho, desamparado, confrontado consigo mesmo. Era difícil não pensar, "boni, vamos lá ver onde é que ele nos leva", tanto mais que nenhum de nós sabia para onde ele nos levaria.

"No sábado à noite embebedámo-nos todos e no domingo fomos a Peredelkino no carro do Jumbo." Uma vez mais pareceu ter de fazer um esforço para se lembrar de que tinha uma audiência. "Peredelkino é a aldeia dos escritores soviéticos", disse, como se nenhum de nós tivesse ouvido falar desse lugar. "Os escritores têm as suas dachas nessa aldeia, pelo menos enquanto se portarem bem. A União dos Escritores tem essa aldeia reservada apenas aos seus membros são eles que decidem quem deve receber uma dacha, quem melhor escreve na prisão, quem não escreve nada.”

"Quem é o Jumbo?", perguntou Ned uma das suas poucas intervenções.

"Jumbo Oliphant. Peter Oliphant. Director da Lupus Books. Em privado, um fascista escocês. Cinturão negro da Maçonaria. Acha que se entende muito bem com os comunas. Cartão dourado." Lembrando-se de Bob, inclinou a cabeça na direcção dele. "Não, não é o American Express. É o cartão dourado da feira do livro de Moscovo, passado pelos organizadores russos, dizendo que ele é um tipo importante. Carro grátis, tradutor grátis, hotel grátis, caviar grátis.

O Jumbo nasceu com um cartão dourado na boca.”

Bob pôs um sorriso arreganhado para lhe mostrar que a piada tinha sido bem aceite. No entanto, Bob era um homem generoso e Barley tinha-se apercebido disso. Barley, ocorreu-me nesse momento, era uma daquelas criaturas perante as quais não é possível ocultar sentimentos generosos, da mesma forma que ele não conseguia ocultar a sua própria acessibilidade.

"De maneira que lá fomos todos", reatou Barley, retornando aos seus devaneios. "O Oliphant da Lupus, o Emery da Bodley Head. E uma rapariga da Penguin, não me lembro do nome dela. Lembro, sim, Magda. Mas como é que eu podia esquecer uma Magda? E o Blair da A & B, claro. “

Uns nababos, parecíamos uns nababos naquela estúpida limousine do Jumbo, disse Barley. Eram frases curtas que ia retirando da sua caixa de memórias como se fossem trapos velhos. Um carro vulgar não servia para o Jumbo, tinha de ser um grande Chaika com cortinas no quarto, sem travões e com um gorila com mau hálito a fazer de motorista. A ideia deles era darem uma vista de olhos à dacha de Pasternak, em relação à qual corria o boato de que ia ser declarada museu, embora corresse outro boato segundo o qual os sacanas iam deitá-la abaixo. Talvez fossem também visitar o túmulo. O Jumbo Olip,hant não sabia quem era o Pasternak, mas a Magda murmurou-lhe ao ouvido, "Jivago", e o Jumbo tinha visto o filme, disse Barley. Não estavam com pressa nenhuma, tudo o que eles queriam era passear um bocado e apanhar ar do campo. Mas o motorista do Jumbo meteu por um caminho especial, reservado a corridas oficiais em Chaikas, de maneira que fizeram a viagem em mais ou menos dez segundos em vez de uma hora, estacionaram num lamaçal e esforçadamente subiram o caminho do cemitério, tremendo ainda de gratidão pelo passeio.

"Um cemitério numa ladeira, no meio de imensas árvores. O motorista fica no carro. Está a chover. Não muito, mas ele não quer molhar o seu fato horroroso. Ou não sairá por qualquer outra razão?" Fez uma pausa, aparentemente para contemplar a enormidade do motorista. "O macaco louco", murmurou.

No entanto, eu tive a sensação de que Barley dirigia aquelas palavras a si mesmo e não ao motorista. Pareceu-me ouvir todo um coro auto-acusatório em Barley, e fiquei sem saber se os outros o estariam a ouvir também. Barley tinha dentro de si criaturas que realmente o punham louco.

A questão é que, segundo Barley, o passeio coincidira com um daqueles dias em que as massas libertadas saem em peso para a rua. Noutros tempos, disse, fora várias vezes ao cemitério e nunca vira já ninguém. Só os túmulos com uma grade à volta e todas aquelas árvores, um cenário de arrepiar. Porém, nesse domingo de Setembro, com os invulgares odores a liberdade que havia no ar, cerca de duzentos admiradores do escritor tinham-se aglomerado à volta do túmulo. E quando se foram embora, eram ainda mais, uma verdadeira multidão. O túmulo tinha uma camada de flores que já dava pelos joelhos, disse Barley. As oferendas não paravam de chegar. As pessoas passavam os bouquets umas às outras até chegarem à primeira fila, até caírem naquele monte impressionante.

A certa altura começaram as leituras. Um sujeito leu poesia. Uma mulher leu prosa. Até que apareceu uma sacana de uma avioneta. Voou tão baixo que ninguém conseguia ouvir nada. Depois, voltou a passar no sentido oposto. E de novo no sentido inicial.

"Vvvum! Vvvum!", gritou Barley, imitando a avioneta, a mão comprida varrendo os ares. "Uiiamm, uiiamm!", ganiu com uma voz anasalada, enojado.

Mas a avioneta não podia sufocar o entusiasmo da multidão que, aliás, já resistira à chuva. Alguém começou a cantar, o pessoal todo pegou no refrão e foi uma festa. Finalmente o avião desapareceu, possivelmente por falta de combustível. Mas não era isso que nós sentíamos, disse Barley. Nem por sombras. O que nós sentíamos era que os cânticos tinham banido dos céus aqueles porcos.

Os cânticos foram-se tornando cada vez mais fortes, profundos e místicos. Barley conhecia três palavras de russo, os outros nenhuma. Isso não os impediu de cantarem. Não obstou a que Magda chorasse perdidamente. Não obstou a que Jumbo Olipliant jurasse por Deus, com a voz trémula, já quando desciam a ladeira, que publicaria tudo o que Pasternak tinha escrito, não apenas o filme mas tudo o mais assim eu possa, dizia ele -, e faria isso unicamente com o seu dinheirinho pessoal, nada a ver com a firma, trataria de tudo logo que voltasse ao seu castelo damasco junto ao rio.

"O Jumbo tem destes acessos súbitos de entusiasmo", explicou  Barley, regressando ao contacto com a audiência. Disse-o com um sorriso malicioso que desarmaria qualquer um. Mas essa observação era dirigida em especial a Ned. "Às vezes tais acessos chegam a durar uns minutos." Depois, fez uma pausa, franziu de novo o sobrolho, tirou os seus óculos redondos, que pareciam ser mais um “ incómodo do que um alívio, e olhou atentamente para todas as caras uma a uma, como que para se lembrar do que estava ali a fazer.

Estavam ainda a descer a ladeira, recomeçou Barley, e ainda muito emocionados, quando o mesmo sujeitinho russo correu para eles, segurando no cigarro ao nível da cara como se fosse uma vela, perguntando em inglês se nós éramos americanos.

Uma vez mais Clíve adiantou-se-nos. A sua cabeça ergueu-se lentamente. Na sua voz arrastada e autoritária havia sinais de nervosismo. "O mesmo? Mas quem é esse sujeitinho russo? É a primeira vez que fala dele ... “

Irritado por Clive lhe ter lembrado que estava ali, Barley contorceu o rosto num novo acesso de desagrado. "Por amor de Deus", disse, "então não vê que era ele quem estava a ler os poemas? O tipo que estava a ler os poemas de Pasternak no cemitério. Ele perguntou se nós éramos americanos e eu respondi, não, graças a Deus somos britânicos.”

Reparei então, e creio que todos reparámos, que fora Barley e não Olipliant ou Emery ou Magda quem se tornara, naquela situação, o porta-voz do grupo.

Barley caíra no diálogo directo. Tinha um ouvido de papagaio. Conseguia imitar o sotaque russo do sujeitinho e a voz ladrada e o acento escocês de Olipliant. O seu mimetismo fluía naturalmente, como se não tivesse consciência dele.

"São escritores?", perguntou o sujeitinho, agora pela voz de “13arley. "Não, infelizmente. Somos só editores", respondeu Barley. "Editores ingleses?" "Viemos cá por causa da feira do livro de Moscovo. Eu tenho uma editorazinha chamada Abercrombie & Blair e este é o director em pessoa da Lupus Books. Um rapaz muito rico. Ainda um dia há-de ser cavaleiro. Cartão dourado e bar. Não é, Jumbo?”

Olipliant protestou que Barley estava a falar demais. Mas o sujeitinho queria mais.

"Se não é indiscrição, posso saber porque vieram visitar o túmulo de Pasternak?", perguntou o sujeitinho.

"Viemos por mero acaso", respondeu Olipliant, interrompendo uma vez mais. "Por mero acaso. Vimos uma multidão, subimos para ver o que é que se estava a passar. Foi um mero acaso. Vamos andando?”

Mas Barley não tinha a mínima intenção de ir andando. Aborreciam-no os modos de Oliphant e não permitiria que um escocês milionário e gordo mandasse um russo subnutrido pastar caracóis.

"Viemos cá fazer o mesmo que toda a gente faz", replicou Barley. "Viemos prestar a nossa homenagem a um grande escritor. E também gostámos dos seus poemas. Foi emocionante. Notável. Impressionante.”

"Gostam de Boris PasternaV", perguntou o sujeitinho. Oliphant, o grande activista dos direitos do homem, respondeu de novo com uma voz áspera e um trejeito no maxilar. "Não temos nenhuma posição no que respeita a Boris Pasternak ou a qualquer outro escritor soviético", disse. "Estamos cá como convidados. Unicamente como convidados. Não temos qualquer opinião acerca dos assuntos internos soviéticos.”

"Achamos que Pasternak é maravilhoso", disse Barley. "De primeira. Uma verdadeira estrela.”

"Mas porquê?", perguntou o sujeitinho, acirrando o conflito. Barley não tinha pressa nenhuma. Pouco lhe importava, disse, que não estivesse totalmente convencido de que Pasternak era o gênio que toda a gente proclamava ser. Pouco lhe importava que, na realidade, achasse que os méritos de Pasternak não justificavam tanta idolatria. Essa era a opinião do editor. Porém, naquela guerra, essa opinião pouco peso tinha.

"Respeitamos o talento e a arte de Pasternak", replicou Barley. "Respeitamos a sua humanidade. Respeitamos a sua família, a sua cultura. E em quinto ou sexto lugar, ou seja em que lugar for, respeitamos a sua capacidade para chegar aos corações do povo russo, apesar de um bando de burocratas ter feito tudo para lhe roubar a notoriedade, provavelmente o mesmo bando de bestas que mandou a avioneta.”

"É capaz de o citar?", perguntou o sujeitinho. Barley tinha uma memória dada a citações, explicou-nos, embaraçado. "Atirei-lhe com os primeiros versos do “Prêmio Nobel”. Achei que era apropriado depois daquela maldita avioneta.”

"Não se importa de os repetir?", disse Clive, como se fosse necessário esquadrinhar tudo.

Barley não disse os versos, murmurou-os. Ocorreu-me nesse momento que talvez fosse afinal um homem muito tímido.

"Como um animal encurralado, eis-me separado Dos meus amigos, da liberdade, do sol. Mas os cães estão a ganhar terreno. Para onde hei-de ir?”

O sujeitinho, disse Barley, olhava com desagrado para a ponta acesa do seu cigarro, enquanto ouvia o poema. Por um momento chegou a pensar se não teriam realmente caído na armadilha de uma provocação, como Oliphant temia.

"Se respeitam tanto Pasternak, porque não vêm conhecer alguns amigos meus?", sugeriu o sujeitinho. "Somos todos escritores. Temos uma dacha. Honrar-nos-ia muito falar com editores britânicos tão distintos. “

A Oliphant bastou-lhe ouvir a primeira metade daquele discurso para ficar com um terrível acesso de cãibras, disse Barley. Jumbo Oliphant sabia muito bem o que significava aceitar convites de desconhecidos russos. Era perito na matéria. Sabia perfeitamente como eles nos enleavam, como nos drogavam, como nos comprometiam com fotografias infames, como nos obrigavam a resignar a todos os cargos de chefia e a desistir do sonho de nos tornarmos cavaleiros do Reino. Além disso, estava metido num ambicioso negócio editorial com a VAAP e a pior coisa que lhe podia acontecer era ser encontrado na companhia de indesejáveis. Oliphant contrapôs todas estas razões de peso aos desígnios de Barley, em jeito de confidência teatral, como se o sujeitinho fosse surdo.

"Seja como for, está a chover", concluiu triunfalmente Oliphant. "O que é que vamos fazer com o carro?”

Oliphant olhou para o relógio. Magda olhava para o chão. Emery olhava para Magda e pensava que talvez houvesse outras coisas a fazer em Moscovo, numa tarde de domingo. Mas Barley, ao que nos disse, atentou com mais cuidado no estranho e decidiu gostar do que via. Não tinha qualquer interesse pela rapariga ou por um título de cavaleiro. Já tinha decidido que preferia ser fotografado todo nu com uma quantidade qualquer de putas russas do que vestido dos pés à cabeça e de braço dado com Jumbo Oliphant. Por isso mandou-os a todos para o carro de Jumbo e arriscou acompanhar o desconhecido.

"Nezhdanov", declarou abruptamente Barley para a sala silenciosa, interrompendo o seu próprio discurso. "Lembrei-me do nome do tipo. Nezhdanov. Dramaturgo. Dirigia uma companhia de teatro experimental, não podia levar à cena as suas próprias peças.”

A voz sonora de Walter veio perturbar a momentânea calmaria. "Meu caro amigo, Vitaly Nezhdanov é um herói recente. Há cinco semanas precisamente que tem três peças em um acto em cena em Moscovo, e toda a gente deposita nele as mais invulgares esperanças. Não que ele seja bom, longe disso. Mas não podemos dizer que ele não presta, porque é um dissidente. É ou era.”

Pela primeira vez desde que o vira, o rosto de Barley ganhou nesse momento uma expressão de sublime felicidade: de imediato senti que aquele era o verdadeiro Barley, aquele que muitas nuvens tinham até então escondido. "Ah, mas isso é realmente óptimo", comentou, com o prazer simples de alguém que tinha a capacidade de apreciar o êxito de outro homem. "Bestial. Era mesmo disso que o Vitaly precisava. Obrigado pela notícia", disse com um ar positivamente rejuvenescido.

Porém as sombras voltaram uma vez mais ao seu rosto. Pôs-se a bebericar o whisky até que murmurou com um ar ausente: "De maneira que lá fomos para a festa. A maior parte deles estavam bêbados. Apresento-lhe o meu primo, dizia um. Tire um folhado de salsicha,  dizia outro". Mas os seus olhos, tal como as suas palavras, estavam já longe, noutras paragens da memória, como se alguma provação se aproximasse.

Espreitei para a mesa. Bob sorria. Bob haveria de sorrir mesmo no leito de morte, embora com uma sinceridade de escuteiro. Clive, de perfil, um rosto aguçado e quase tão penetrante como um machado. Walter não parava quieto. Walter, com a cabeça para trás, uma cabeça que irradiava inteligência, enrolando um cabelo com o indicador esponjoso, enquanto sorria maliciosamente para os ornamentos do tecto, desfigurado e suado. E Ned, o chefe o eficiente Ned, o desenvolto Ned Ned, o linguista e o guerreiro, o executante e o planeador -, sentado como desde o princípio, atento, à espera da ordem para avançar. Para certas pessoas, reflecti, enquanto o observava, a lealdade em excesso pode ser uma terrível maldição. É que pode vir um dia em que não haja mais nada nem.ninguém a quem servir, Uma casa grande, de estranha construção, recitava Barley no estilo telegráfico a que se tinha agarrado. Revestimento exterior a tabuínhas, estilo eduardiano, alpendres ornados com gregas, um jardim sem jardineiro, uma floresta de bétulas. Bancos a cair de podres, carvão a arder, o cheiro de um campo de cricket num dia de chuva, hera. Cerca de trinta pessoas, a maior parte homens, sentados ou passeando pelo jardim, cozinhando, bebendo, ignorando o mau tempo tal e qual como os ingleses. Carros velhos, perfeitamente miseráveis, estacionados ao longo da berma, pareciam os carros que se faziam em Inglaterra antes de os prósperos porcos de Mrs. Iliatcher terem tomado conta do navio. Rostos simpáticos, vozes vivas, nomenclatura muito dada às artes. Surge Nezlidanov conduzindo Barley. Ninguém repara neles.

"A anfitriã era poeta", disse Barley. "Tamara qualquer coisa. Com ar de lésbica, cabelo branco, divertida. O marido era editor de uma das revistas científicas soviéticas. Nezlidanov era cunhado dele. Eram todos cunhados de todos. A cena literária tem influência naquelas paragens. Se uma pessoa tem talento e a deixam usá-lo, pode contar com um público atento.”

Na sua memória arbitrária, Barley dividia agora a história em três partes. Almoço, que começou por volta das duas e meia da tarde, quando a chuva parou. Noite, ou seja, logo a seguir ao almoço. E aquilo a que ele chamou "o fim de tudo", que foi quando aconteceu o que aconteceu, e que, imaginávamos nós, dentro do que nos era possível, teria ocorrido nesse período obscuro que vai das duas às quatro da manhã, quando Barley, para usar os seus próprios termos, vagueava sem dor entre o nirvana e uma ressaca quase terminal.

Antes do almoço, Barley tinha andado de grupo em grupo primeiro com Nezhdanov, depois sozinho. Cavaqueando e bebendo com quem lhe apetecesse cavaquear e beber com ele”.

"Cavaqueando e bebendo?", repetiu Clive com um ar de suspeita, como se tivesse aprendido o nome de um novo vício.

Bob apressou-se a traduzir. "À conversa, Clive", explicou, no seu jeito amistoso. "À conversa e à bebida. Nada de sinistro.”

Porém, continuou Barley, quando soou a hora do almoço, sentaram-se a uma mesa que não passava de uma prancha enorme sobre uma armação, com Barley numa cabeceira e Nezhdanov na outra e garrafas de vinho branco da Geórgia entre eles, e toda a gente a discutir no seu melhor inglês sobre se a verdade era verdade quando não era conveniente para a grande Revolução proletária. Revolução a que juntavam o qualificativo pretensa, e se deveríamos regressar aos valores espirituais dos nossos antepassados, e se a perestroika estava a ter algum efeito positivo na vida do povo, e alguém dizia a meio que a melhor maneira de saber o que estava mal na União Soviética consistia em tentar mandar um frigorífico de Novosibirsk para Leninegrado.

Clive, para minha grande irritação, obviameinte secreta, voltou a interrompê-lo. Como um homem afeito a toda e qualquer irrelevância, Clive queria nomes. Barley bateu com a palma da mão na testa, esquecido da sua hostilidade para com Clive. Nomes. Clive, meu Deus, como é que eu me esqueci? Um tipo que era professor na Universidade Estatal de Moscovo, mas olhe que não consegui apanhar o nome dele. Outro dedicava-se à investigação química, era o meio-irmão de Nezhdanov, chamavam-lhe o Boticário. Um tipo da Academia das Ciências Soviéticas, Gregor, mas olhe que não andei a investigar como é que ele se chamava, e ainda menos quais seriam os seus pontos de vista.

"Havia mulheres à mesa?", perguntou Ned. "Duas, mas não Katya", respondeu Barley, e Ned, tal como eu, ficou visivelmente impressionado com uma tão rápida percepção.

"Mas havia alguém especial, não havia?", sugeriu Ned. Barley inclinou lentamente a cabeça para trás e bebeu. Depois, colocou o copo entre os joelhos e deixou-se ficar de cabeça baixa, o nariz a pouca distância do copo, inalando a sabedoria do álcool.

"Claro, claro, é claro que havia alguém especial", concordou. "Há sempre, não é?", acrescentou, enigmaticamente. "Mas não era Katya. Era outra pessoa.”

A sua voz tinha-se transformado. Não consegui discriminar em que consistia essa transformação. Talvez uma maior concisão. Uma sugestão de pesar ou remorso. Esperei, como esperámos todos. Creio que, apesar de tudo, nesse momento todos sentimos que algo de extraordinário ia surgir no horizonte.

 

No original, Barley usa o termo "shmooze", que tem o significado de "a chat and a dlink", como Bob explica. Por se tratar de um termo de uso raro, Clive não o entende e replica: "Smooze?" (N. do T.)

 

"Um tipo magro, de barba", prosseguiu Barley, fitando a obscuridade como se dela extraísse uma figura humana. "Alto. Fato escuro, gravata preta. Rosto magro, enfiado. Devia ser por isso que usava barba. Mangas demasiado curtas. Cabelo preto: Bêbado.”

"Tinha um nome?", perguntou Ned. Barley fitava ainda a semi-obscuridade, descrevendo aquilo que nenhum de nós podia ver.

"Goethe", disse por fim. "Como o poeta. Chamavam-lhe Goethe. Apresento-lhe o nosso grande escritor, Goethe. Tanto podia ter cinquenta anos como dezoito. Magro que nem um rapazito. Aquelas rosáceas nas faces, muito bêbado. Barba.”

Como Ned observou mais tarde, quando passou a gravação para toda a equipa ouvir, esse foi, de um ponto de vista operacional, o momento em que a Ave Azul abriu as suas asas. Nenhum silêncio insuportável, ninguém respirando fundo. Em vez disso, Barley escolheu esse momento para um violento ataque de espirros, o primeiro dos muitos a que mais tarde assistimos. Começou com uma série de espirros isolados, acelerando depois até culminar numa grande salva. Depois, os espirros foram abrandando lentamente de intensidade, enquanto Barley acudia ao nariz com o lenço e praguejava entre as convulsões.

"Maldita alergia", explicou, em jeito de desculpa.

"Portei-me de uma forma brilhante", prosseguiu Barley. "Não cometi o mínimo deslize.”

Tinha enchido de novo o copo, desta vez com água. Sorvia a água em movimentos lentos e ritmados, como um daqueles pássaros de plástico que havia em todos os tristes bares ingleses antes de aparecer a televisão a substituí-los, aqueles pássaros que punham no meio das miniaturas e que se curvavam num mesura para beber e depois voltavam a posição inicial e de novo se curvavam numa mesura perpétua.

"Eu era o centro de todas as atenções. Estrela do palco e do ecrã. Ocidental, simpático e é por isso que lá vou, não? Os soviéticos são o único povo suficientemente tolo para ouvir as merdas que eu digo. " A madeixa caía-lhe por sobre o copo. "É assim que as coisas se passam lá. Vamos dar um passeio ao campo e acabamos a discutir com um ramalhete de poetas bêbados a questão das intricadas relações entre liberdade e responsabilidade. Vai-se mijar a uma casa de banho pública, normalmente imunda, e de repente há uma cabeça ao lado que se vira para nós e que nos pergunta se existirá vida para além da morte. Muito simplesmente porque somos ocidentais. E nós sabemos que é por isso. E respondemos-lhe. E eles não se esquecem. Não perdem nada do que nós dizemos.”

Nesse momento Barley parecia em perigo de cair num mutismo total.

"Porque é que não se limita a contar o que aconteceu e deixa as críticas para nós?", sugeriu Clive, deixando de certa forma implícito que a posição em que Barley se encontrava não o autorizava a nenhum tipo de crítica.

"O que aconteceu foi que naquele cenário eu fui uma estrela. Foi um dia de ouro para uma criatura petulante como eu. Mas esqueçam. ”

Mas esquecer era precisamente o que nenhum de nós queria, como o sorriso jovial de Bob demonstrava. "Barley, creio que está ser demasiado duro para consigo mesmo. Por amor de Deus, ninguém se deve censurar por ser uma pessoa divertida. Ao que parece, você limitou-se a animar a festa.”

"De que falaram?", perguntou Clive, nada contagiado pela simpatia de Bob.

Barley encolheu os ombros. "Entre o almoço e a hora do chá discutimos a melhor forma de restaurar o Império Russo. Já bem bebidos, discutimos a paz, o progresso e a glasnost. Desarmamento imediato sem opção. “

"Aborda frequentemente esses assuntos?" "Quando estou na Rússia, sim", retorquiu Barley, acirrado uma vez mais pelo tom de Clive, embora a sua irritação nunca durasse muito.

"Podemos saber o que disse?" Mas Barley não estava a contar a sua história a Clive. Estava a contá-la a si mesmo e àquela sala e a quem nela estivesse, aos passageiros que o acompanhavam naquela viagem, ponto por ponto, um inventário da sua loucura. "O desarmamento não era uma questão militar, nem tão pouco política, foi o que eu disse. Era uma questão de vontade dos homens. Tínhamos de decidir se queríamos paz ou se queríamos guerra e preparar-nos em conformidade com a nossa escolha. Porque aquilo para que nos preparássemos seria aquilo que teríamos de futuro." Parou. "Eram umas coisas que eu tinha decorado", explicou, seleccionando novamente Ned. "Argumentos requentados que eu tinha lido dias antes.”

Parecia sentir que precisava de se explicar melhor. Recomeçou. "Por um mero acaso tornei-me, durante essa semana, um verdadeiro perito na matéria. Tinha pensado que talvez a minha editora pudesse comprar os direitos de um livro para publicação rápida. Um agente que apareceu lá na feira queria que eu comprasse os direitos de um livro sobre a glasnost e a crise da paz. Tentativas feitas por falcões do passado e do presente, reapreciação de estratégias. Poderia a paz vencer, apesar de tudo? Pegaram nalguns dos velhos militaristas americanos dos anos sessenta e mostraram como muitos deles mudaram por completo de posição depois de terem deixado as chefias”

Interroguei-me nesse momento sobre as razões que o levariam a justificar-se. Para que nos estaria a preparar? Porque sentia que devia amortecer o choque antecipadamente? Bob, que não era nada parvo, apesar de toda a sua candura, devia estar a pôr a si mesmo as mesmas questões.

"Parece-me uma ideia bastante boa, Barley. Capaz de dar dinheiro. Até pode ser que eu a aproveite", acrescentou, com um risinho malandro.

"Podernos portanto concluir que você ouviu esse arrazoado e que depois o vomitou lá na festa", disse Clive no seu cómico, meio tom. "Foi isso que nos disse, não foi? Eu sei que não é fácil reconstituir devaneios alcoólicos, mas ficamos-lhe muito gratos se der o seu melhor.”

Que teria Clive estudado, se é que alguma vez estudou?, perguntei a mim mesmo. E se estudou, onde é que estudou? Que pais eram os seus? E onde é que os Serviços teriam ido descobrir estas almas penadas suburbanas com todos os seus valores, ou ausência deles, perfeitamente em ordem?

No entanto, Barley mostrou-se condescendente perante um tipo de ataque que já conhecia. "Eu disse-lhes que acreditava em Gorbachev", prosseguiu, sem qualquer reacção aparente, bebendo um pouco mais de água. "Pouco me importava se eles não acreditavam. Eu acreditava. Disse-lhes que a tarefa do Ocidente consistia em descobrir a outra face de Gorbachev, e que a do Leste consistia em reconhecer a importância da face que lhes era oferecida. Disse que se os americanos se tivesse alguma vez preocupado com o desarmamento, tanto como se preocuparam em mandar um pateta qualquer à Lua ou em pôr listas cor-de-rosa nos dentífricos, já há muito que teríamos desarmamento. Disse que o grande erro do Ocidente consistia em acreditar que poderia destruir o sistema soviético, subindo constantemente o lance na corrida aos armamentos, porque,'dessa forma, estávamos a jogar com o destino da humanidade. Disse que, ao brandir os seus sabres, o Ocidente tinha dado aos dirigentes soviéticos a desculpa ideal para manterem os portões fechados e instaurarem um estado militar.”

Walter soltou um riso relinchado e tapou os dentes muito espaçados com uma mão sem pêlos. "Deus do céu! Então nós é que temos a culpa dos problemas da Rússia! É uma ideia espantosamente divertida! Por acaso você nunca pensou, Barley, que a culpa desses problemas é dos próprios russos? Não acha que foram eles que se fecharam na sua própria paranóia? Não, não acha. Já vi que não acha.”

Imperturbável, Barley reatou a sua confissão. "Houve alguém que me perguntou se eu não achava que as armas nucleares tinham garantido a paz durante quarenta anos. Respondi que isso eram patetices jesuíticas. Que, nesse caso, também podíamos dizer que a pólvora tinha garantido a paz entre Waterloo e Sarajevo. Seja como for, acrescentei, o que é afinal a paz? A bomba não obstou a que houvesse uma Coreia, a que houvesse um Vietnam. A bomba não impediu a opressão da Checoslováquia, o bloqueio de Berlim, a construção do muro de Berlim ou a intervenção no Afeganistão. Se isso é paz, porque não tentá-la sem a bomba? Disse que não eram necessárias as experiências no espaço, mas sim as experiências com a natureza humana. As super-potências deveriam policiar o mundo juntos. Nesse momento já eu voava a grande altura.”

"E acredítou nalgum desses disparates?", perguntou Clive. Barley parecia não saber. De repente, pareceu ver-se a si mesmo como uma criatura superficial por definição, e corou como que envergonhado. "Depois falámos de jazz", disse. "Bix Beiderbecke, Lester Yoting. Toquei mesmo um bocado.”

"O quê? Não me diga que eles tinham um saxofone!", exclamou Bob, espontaneamente divertido. "O que é que tinham mais? Bateria? Uma banda de dez? É incrível, Barley, de facto é incrível!”

Ao princípio pensei que Barley ia sair da sala. De súbito endireitou-se e levantou-se energicamente. Por um momento procurou a porta e encaminhou-se embaraçado para ela, o que deixou Ned perfeitamente alarmado, com medo de que Brock o apanhasse. Mas Barley tinha parado a meio da sala, junto a uma mesinha entalhada. Curvado sobre a mesa, começou a bater ligeiramente com as pontas dos dedos na esquina, enquanto cantava "pah-pah-paah, pah-pah-pah-pah", com uma voz nasalada, ao som daquele acompanhamento simulado de pratos, vassourinhas e tambores.

Bob não demorou a aplaudir, tal como Walter. Também eu aplaudi e Ned desatou a rir. Só Clive não achou a cena divertida. Barley bebeu mais um gole abstêmio e voltou a sentar-se.

"Depois perguntaram-me o que poderia a humanidade fazer", disse como se nunca tivesse deixado a cadeira.

"Quem é que perguntou?", disse Clive, com aquela nota exasperante de incredulidade que ele punha na voz.

"Uma das pessoas que estava à mesa. Mas que importância tem isso?”

"Temos de partir do princípio que tudo é importante", retorquiu Clive.

Barley pôs-se de novo a falar com a sua voz russa, atabalhoada e instante. "Muito bem, Barley. Suponhamos que as coisas se passam como você diz. -Nesse caso, quem é que vai conduzir essas experiências com a natureza humana?" Vocês, respondi eu. Ficaram muito surpreendidos. Porquê nós? Porque, disse eu, quando chegar a hora de uma mudança radical, os soviéticos terão mais facilidade em desempenhar esse papel do que os ocidentais. Têm uma pequena classe dirigente e uma intelligentsia tradicionalmente muito influente. Numa democracia ocidental seria muito mais difícil fazer ouvir a nossa voz, já que é toda uma multidão a falar. Eles gostaram do paradoxo. Eu também.”

Nem mesmo este ataque frontal aos grandes valores democráticos conseguiu perturbar a cordial paciência de Bob. "Bom, essa sua apreciação, Barley, é pouco profunda, mas concedo que há nela alguma verdade.”

"Mas você sugeriu realmente o que deveria ser feito?", insistiu Clive.

"O que eu disse foi que só nos restava a Utopia. Disse que aquilo que há vinte anos nos Parecia um sonho perfeitamente irreal, era agora a nossa única esperança, tanto a nível do desarmamento, como da ecologia ou da mera sobrevivência humana. Gorbachev compreendeu isso o Ocidente não quis compreender. Disse que os intelectuais ocidentais tinham de encontrar a sua voz. Disse que o Ocidente devia dar o exemplo, e não segui-lo. Era dever de todos desencadear a avalanche.”

"Ou seja, desarmamento unilateral", disse Clive, emaranhando as mãos. "pois é. Tudo se reduz a isso. Sim. É isso mesmo." Com a diferença de que não disse "siiim", o que acontecia sempre que queria dizer "não”

Mas Bob estava impressionado. "E chegou a essa eloquência só por ter lido umas coisas sobre o assunto?", disse. "Acho extraordinário, Barley. Sentir-me-ia orgulhoso se conseguisse assimilar as coisas tão bem como vocêTalvez demasiado extraordinário, sugeria o seu tom, embora Barley não se apercebesse evidentemente das implicações dessa sugestão.

"E enquanto Você tratava de nos salvar dos nossos piores instintos, o que é que o tal Goethe fazia?", perguntou Clive.

"Nada. os outros participavam na conversa. Ele não." "Mas escutava o que diziam? De olhos arregalados, certamente." "Passado um bocado, estávamos a refazer o mapa do mundo. Volta-se sempre a Ialta, por mais voltas que se dê. Toda a gente falava ao mesmo tempo. Excepto Goethe. Não comia. Não falava. Eu não parava de lhe atirar com sugestões, simplesmente porque ele não participava. Tudo o que fazia era ficar cada vez mais pálido e beber cada vez mais vinho. De maneira que acabei por desistir. “

E Goethe nunca falou, prosseguiu Barley, no mesmo tom de confusa auto-recriminaÇão. Nem uma palavrinha durante toda a tarde, acrescentou. Goethe ouvia, enquanto fitava, de olhar absorto, uma bola de cristal invisível. Ria-se por vezes, mas não era do teor da conversa. Ou levantava-se e seguia em linha recta até à mesa das bebidas, para se servir de mais vodka numa altura em que toda a gente estava a beber vinho, após o que regressava com o copo cheio, que despejava com uns quantos golos sempre que alguém propunha um brinde. Mas ele, nunca propôs um brinde, disse Barley. Era uma daquelas pessoas que exercem uma influência moral com o seu silêncio, acrescentou, e nós ficamos sem saber se todo aquele silêncio é porque estão a morrer de uma doença misteriosa ou se muito simplesmente porque todo o seu pensamento está concentrado numa grande obra.

Quando Nezhdanov conduziu o grupo para dentro, para ouvirem discos de Cotint Basie, Goethe seguiu-os obedientemente. Ia já a  noite alta quando Barley, que já desistira de pensar nele, o ouviu finalmente falar.

Uma vez mais Ned permitiu-se pôr-lhe uma questão muito especial. "Como se comportavam os outros em relação a Goethe?”

"Respeitavam-no. Goethe era a mascote deles. "Vejamos o que Goethe pensa acerca disto", dizia um deles. E Goethe erguia o copo e brindava a todos eles e desatava tudo a rir, excepto Goethe.”

"As mulheres também?" "Todos. Para eles, as opiniões dele é que contavam. Quase abriam alas para ele passar. Atenção, afastem-se que vem aí o grande Goethe. “

"E ninguém lhe disse onde ele vivia ou trabalhava?" "Disseram-me que estava de férias de um sítio onde não podia beber. Quer dizer, eram umas férias alcoólicas. E toda a gente brindava às férias alcoólicas de Goethe. Ele era irmão não sei de quem. Talvez de Tamara, não sei. Talvez fosse primo. Não consegui apanhar isso.”

"Acha que o protegiam?", disse Clive. As pausas de Barley são únicas, pensei nesse momento. Procura pensar as questões, dominá-las, à sua maneira, ainda que fragilmente. Asua mente deixa a sala e nós ficamos na maior expectativa até que ela regresse.

"Sim", disse Barley subitamente, aparentemente surpreendido com a sua própria resposta. "Sim, protegiam-no. Sem dúvida. Eram uma espécie de associação de defesa do Goethe, claro que eram.”

"Protegiam-no de quê?" Outra pausa. "Talvez o protegessem de ter de se explicar. Não pensei nisso na altura. Mas agora parece-me que era isso mesmo. Sim, era isso mesmo.”

"E porque é que ele não havia de se explicar? É capaz de sugerir uma razão, sem inventar nada?", perguntou Clive, aparentemente determinado em provocar a irritação de Barley.

Mas Barley não se irritou. "Eu não invento", disse, e creio que todos achávamos que era verdade. Uma nova pausa: de novo a sua mente deixava aquela sala. "Ele era um homem muito forte, uma personalidade intensa. Sentia-se isso nele", prosseguiu, regressando à realidade.

"Que significa isso?" "O silêncio eloquente. Tudo o que se ouve, a mais de cem à hora, é a pulsação do cérebro.”

"Mas não houve ninguém que lhe dissesse que ele era um gênio, ou uma coisa parecida?”

"Ninguém me disse isso. Não era preciso." Barley olhou de relance para Ned, à procura de um sinal de compreensão. Chefe operacional da cabeça aos pés, ainda que necessariamente metido entre quatro paredes. Ned sabia desviar-se bruscamente de uma pessoa, quando ainda se pensava que estaria a tentar apanhá-la.

Bob tinha outra pergunta. "Ninguém por acaso o levou para um canto isolado e lhe explicou porque é que Goethe tinha um problema de alcoolismo, Barley?”

Barley desatou a rir alto e bom som. As suas momentâneas liberdades eram um tanto ou quanto assustadoras. "Mas, por amor de Deus, na Rússia não se tem de ter uma razão para se beber! Diga-me, se é capaz, o nome de um só russo digno de respeito que consiga enfrentar os problemas do seu país sóbrio!”

De novo caiu num silêncio profundo, fazendo trejeitos para as sombras. Franziu os olhos e murmurou uma imprecação qualquer, pareceu-me que contra si mesmo. Depois, repentinamente, voltou à sala. "Acordei sobressaltado por volta da meia-noite", disse a rir, "Mas onde é que eu estou?" Deitado numa espreguiçadeira, neste maldito alpendre, com este maldito cobertor em cima! Ao princípio pensei que estava nos Estados Unidos. Num daqueles alpendres de New England, protegidos com mosquiteiros de gaze e o jardim em frente. Não conseguia pensar por que carga de água tinha ido parar tão rapidamente à América, depois de um almoço tão agradável em Peredelkino. Então lembrei-me de que a certa altura eles tinham deixado de falar comigo e que eu acabara por me chatear por não ter ninguém com quem falar. Não foi nada de pessoal. Eles estavam bêbados e cansados de estarem bêbados numa língua estrangeira. De maneira que eu instalei-me no alpendre, com uma garrafa de Scotch ao lado. Houve alguém que me atirou um cobertor, por causa do orvalho. Deve ter sido a lua que me acordou, pensei. Uma lua cheia enorme. Vermelha e vibrante. Foi então que ouvi um tipo a falar comigo. Um tipo com um ar muito grave. Falava um inglês imaculado. Não me digam que apareceram mais convidados a esta hora, pensei eu. "Há males que são necessários", diz ele, citando-me. Eu tinha dito aquilo ao almoço, durante a minha tão importante conferência sobre a paz. Não sei quem é que eu próprio tinha citado. Depois olho com mais atenção à minha volta e dou com aquele vulto barbado com dois metros e meio de altura pairando lá em cima, segurando numa garrafa de vodka, o cabelo adejando ao sabor da brisa. Num instante ele estava agachado ao meu lado, com os joelhos quase à altura da cara, enchendo o seu copo. "Olá, Goethe", digo eu. "Pensava que já tinha morrido. É agradável vê-lo de volta. “

Fosse o que fosse que lhe tinha solto, a língua, reduzia-o agora de novo ao silêncio, ao temor de falar, e o seu rosto voltava a ensombrar-se.

Então ele atira-me com uma outra pérola que eu tinha dito ao almoço. "Todas as vítimas são iguais. Não há vítimas mais iguais do que outras. “

Desato a rir. Mas não demasiado. Acho que me sinto embaraçado. Constrangido. Sinto que me estiveram a espiar. O tipo passa o almoço todo a beber, não come nada, não diz uma palavra. E de repente, dez horas depois, cita-me como se fosse um gravador. Convenhamos que não é agradável.

"Quem é você, Goethe?", pergunto eu. "Que faz você na vida quando não bebe e não se põe à escuta do que os outros dizem?”

"Eu sou um pária moral", diz ele. "Negoceio em teorias impuras. " "É sempre agradável conhecer um escritor", digo eu. "O que é que tem escrito ultimamente?”

"Tudo,", diz ele. "História, comédia, mentiras, romances. " E então desata-me a falar de uma idiotice que ele escreveu acerca de um bocado de manteiga que se derretia ao sol porque lhe faltava uma perspectiva consistente. Só que ele não falava como um escritor. Demasiado tímido. Ria de si mesmo e dei-me conta que também ria de mim. Não que ele não tivesse o direito de se rir de mim, bem pelo contrário, mas é evidente que era desagradável.”

Uma vez mais ficámos à espera, de olhos postos na silhueta de Barley. Éramos nós que estávamos tensos, ou ele? Sorveu um pouco mais de água do seu copo. Girou com a cabeça e murmurou qualquer coisa como "nada bem" ou possivelmente "para o inferno." Nem a audiência, nem os microfones, conseguiram perceber o que ele disse. Ouvimos a cadeira dele ranger como lenha húmida. Na gravação parece o barulho de um ataque armado.

"Nesse momento ele vira-se para mim e diz. "Vá lá, Mr. Barley, você é editor, não é? Não me pergunta onde é que eu vou buscar as minhas ideias?" E eu pensei, ouve lá, olha que não é isso o que os editores costumam perguntar, mas está bem, que se lixe. "Está bem, Goethe", digo eu. "Onde é que vai buscar as suas ideias?”

"Mr. Barley. As minhas ideias vou buscá-las a primeiro" e começa a enumerar.

Também Barley estendeu os seus dedos longilíneos e começou a contar, usando um ligeiríssimo sotaque russo. E uma vez mais fiquei impressionado com a delicadeza da sua memória musical. Essa delicadeza não decorria apenas de uma mera repetição de palavras; Barley parecia ir buscar as palavras a uma tremenda câmara de ressonância onde nada escapava ao seu ouvido.

"As minhas ideias vêm primeiro, das toalhas de mesa de papel dos cafés de Berlim dos anos trinta. " Nesse momento pára e bebe um suspiro de vodka e um trago enorme e ruidoso de ar nocturno ao mesmo tempo. Chia. Não sei se estão a ver, aqueles tipos que têm um peito que parece burburinhar. "Segundo", diz ele, "das publicações dos meus competidores mais dotados. Terceiro, das obscenas fantasias dos generais e políticos de todas as nações. Quarto, dos intelectos libertados dos cientistas nazis recrutados à força.

 

'No original, "not: weh" e "to heu", o que explica a confusão dos seus ouvintes. (N. do T.)

 

Quinto, do grande povo soviético, cujos desejos democráticos são todos filtrados pelo poder através de consultas a todos os níveis, e depois atirados ao Neva. E sexto, e muito ocasionalmente, de um distinto intelectual ocidental que acaba de aparecer na minha vida." Aparentemente o intelectual sou eu, porque ele cola o seu olhar na minha pessoa para ver como eu reajo. Fita-me, fita-me com os olhos de uma criança precoce. Transmitindo-me sinais de importância vital. Então, subitamente, dá-se uma mudança nele. Põe um ar de suspeita. É uma coisa que acontece muitas vezes com os russos. "Você deu um belo espectáculo ao almoço", diz ele. "Como conseguiu convencer o Nezhdanov a convidá-lo?" Está a gozar comigo. A dizer-me que não acredita em mim.

"Eu não o convenci", digo eu. "A ideia foi dele. O que é que você está a tentar insinuar a meu respeito?”

"Não existe propriedade de ideias", diz ele. "Você pôs essa ideia na cabeça dele. Você é um tipo esperto. Olhe que foi um bom trabalho. Parabéns.”

"Então, em vez de continuar a provocar-me com observações maliciosas, agarra-se aos meus ombros como se fosse afundar-se. Não sei se se sentiu mal ou se perdeu o equilíbrio. Tenho a desagradável impressão de que quer fazer o papel de doente. Tento ajudá-lo, mas não sei como. Está incrivelmente quente, todo ele é suor. Caem-me gotas de suor em cima. Tem o cabelo todo molhado. Uns olhos selvagens, de Criança. Penso desapertar-lhe o colarinho. Nesse momento apanho com a voz dele em cima, com a boca e o hálito quente, a sua voz entranha-se-me nos ouvidos. De início não consigo ouvi-lo, está demasiado perto de mim. Recuo, mas ele cola-se a mim de novo.

"Acredito em tudo o que você me disse", segreda. "Você falou-me ao coração. Prometa-me que não é um espião britânico, que eu faço-lhe uma promessa em troca.”

"Foram exactamente estas as suas palavras", disse Barley, como se sentisse envergonhado delas. "Lembrava-se de tudo o que eu tinha dito. E eu lembro-me de tudo o que ele disse. “

Não era a primeira vez que Barley falava de memória como se a memória fosse sinónimo de angústia, e talvez por isso eu tenha dado comigo, como tantas vezes me acontece, a pensar em Harinali.

"Pobre Palfrey", atirara-me ela num dos seus acessos de crueldade, enquanto examinava o corpo nu no espelho, sorvendo o vodka tónico e preparando-se para regressar ao marido. "Com uma memória como a tua, como é que vais conseguir esquecer-te de uma mulher como eu?”

Teria Barley esse mesmo efeito em toda a gente?, perguntei a mim mesmo enquanto ele falava seria também ele capaz de, inconscientemente, tocar no nervo central das pessoas, levando-as automaticamente a embrenharem-se nos seus mais íntimos pensamentos? Talvez Barley tivesse tido precisamente esse efeito em Goethe.

A passagem que se seguiu nunca foi parafraseada, condensada ou "reconstituída". Os iniciados, ou ouviram a gravação sem qualquer montagem ou então leram a transcrição integral. Para os não-iniciados, tal passagem nunca existiu. Foi o ponto crucial de tudo o que se seguiu e chamaram-lhe, com deliberada ofuscação, "A Investigação de Lisboa". Quando chegou a vez dos alquimistas e teólogos e utentes internos de ambos os lados do Atlântico, foi esta a passagem que escolheram e que meteram nas suas caixas mágicas para justificarem os argumentos previamente seleccionados que caracterizavam as suas ardilosas posições.

"Não, de facto não sou nenhum espião, meu caro Goethe. Não sou, nunca fui, nem serei. Talvez seja uma coisa vulgar no seu país, mas não no meu. E se falássemos antes de xadrez? Gosta de xadrez? Falemos de xadrez.”

"Ele parecia não ouvir. "E não é espião dos americanos? Não é espião de ninguém, nem sequer nosso?”

"Oiça-me, Goethe", digo eu. "Para ser sincero, estou a ficar um bocado chateado com esta história toda. Eu não sou espião de ninguém. Eu sou eu. Por isso proponho-lhe que falemos de xadrez ou, caso contrário, você vai bater a outra porta, certo?" Pensei que depois desta resposta ele se calasse, mas a verdade é que não se calou. Sabia tudo de xadrez, disse ele. No xadrez, um tipo tem uma estratégia, e se o outro não a descobre ou abranda a sua vigilância, é mais certo que perde. No xadrez, a teoria é a realidade. Mas na vida, em certos tipos de vida, podem surgir situações em que um jogador tem fantasias tão grotescas acerca do outro que acaba por ver nele o inimigo de que precisa. Não concorda? Concordo totalmente, Goethe. Então, de repente, deixamos de falar de xadrez e ele começa a contar a sua vida, como os russos costumam fazer quando estão bêbados. Porque é que está neste mundo. Isto só comigo. Diz que nasceu com duas almas, tal como o Fausto, e é por isso que lhe chamam Goethe. Diz que a mãe era pintora, mas pintava o que via, tão naturalmente que não lhe permitiam exibir as suas obras nem comprar materiais. Porque tudo o que vemos são segredos de Estado. Ainda que seja ilusão, é segredo de Estado. Mesmo que não funcione e nunca venha a funcionar, é segredo de Estado. E se é mentira do princípio ao fim, então esse é que é o maior segredo de todos. Diz que o pai esteve doze anos nos campos e morreu de um excesso de capacidade intelectual. Diz que o problema do pai é que era um mártir. As vítimas só por si já são más, os santos são piores, diz ele, mas os mártires são os piores de todos. Não concorda?

Concordo. Não sei por que razão concordo, mas acontece que sou uma criatura civilizada e quando se me agarra à cabeça e me diz que o pai fez doze anos de campo e depois morreu, não me vou pôr a discutir com ele ainda que esteja bêbado.

Pergunto-lhe o seu nome verdadeiro. Diz que não tem. Que o pai o levou com ele. Diz que em qualquer sociedade decente matam o ignorante, mas que na Rússia é ao contrário, e por isso lhe mataram o pai, porque, ao contrário da mãe, ele se recusou a morrer de desespero. Diz que me quer fazer a promessa de que falou. Diz que ama o povo inglês. Os ingleses são os chefes morais da Europa, são os garantes secretos, os unificadores do grande ideal europeu. Diz que os ingleses compreendem a relação que existe entre palavras e acção, ao passo que na Rússia ninguém acredita já na acção, e por isso as palavras tornaram-se um substituto da acção, em todas as camadas, um substituto para a verdade que ninguém quer ouvir porque ninguém pode mudar a situação, se a quiserem mudar perdem o emprego, ou talvez não saibam, muito simplesmente, como mudar a situação. Diz que a desventura dos russos é que anseiam por se tornarem europeus mas o seu destino é tornarem-se americanos, e que os americanos envenenaram o mundo com a lógica materialista. Se o meu vizinho tem um carro, então eu tenho de ter dois. Se o meu vizinho tem uma pistola, então eu tenho de ter duas. Se o meu vizinho tem uma bomba, eu tenho de ter muitas bombas e mais potentes, pouco importa que essas bombas não possam alcançar os seus alvos. De maneira que tudo o que eu tenho a fazer é imaginar a pistola do meu vizinho e arranjar duas delas e aí encontro a justificação para tudo o que'queira fabricar. Não concorda?”

Foi um milagre que ninguém tivesse interrompido aqui, nem mesmo Walter. Mas a verdade é que ele não interrompeu, refreou a língua, como todos os outros. Não se ouviu sequer uma cadeira ranger antes de Barley prosseguir.

"Claro que concordo. Sim, Goethe, concordo inteiramente consigo. Tudo é preferível a que me perguntem se sou um espião britânico. Então começa a falar do grande poeta e místico do século XIX, Piturin.”

"Pecherin", diz numa voz muito aguda, Walter que já não podia mais: transbordava.

"Isso Pecherin", concorda Barley. "VIadimir Pecherin. Pecherin queria sacrificar-se pela humanidade, morrer na cruz com a mãe aos seus pés. Se eu alguma vez ouvi falar dele? Não nunca ouvi falar. Pecherin foi para a Irlanda, tornou-se monge, diz ele. Mas Goethe não pode fazer isso porque não lhe dão um visto e, além do mais, não gosta de Deus. Pecherin gostava de Deus e não gostava da ciência, a menos que a ciência se debruçasse sobre a alma humana. Pergunto-lhe que idade tem, Goethe, claro, e não Pecherin. Neste momento ele está com cara de quem tem sete anos e vai fazer cem. Diz que está mais perto da morte do que da vida. Que tem cinquenta anos mas que acaba de nascer.”

Walter interrompe nesse momento, mas silenciosamente, como se estivesse numa igreja. Nem parece a sua voz, habitualmente muito semelhante a um guincho. "Porque é que lhe perguntou a idade? Podia ter-lhe feito tantas perguntas... Que interesse é que tinha saber a idade?”

"Porque aparentemente a sua idade era indefinível. Só quando franzia o sobrolho é que as rugas apareciam.”

"E ele disse “ciência”? Não falou em física? Só em ciência?" "Ciência. E depois começa a recitar Pecherin. E vai traduzindo ao mesmo tempo. Primeiro diz em russo, depois em inglês. Quão doce é odiar a terra natal e aguardar avidamente a sua ruína... e na sua ruína discernir a alvorada do renascimento universal. É possível que eu não tenha entendido tudo mas a ideia é esta. Pecherin compreendeu que era possível uma pessoa amar o seu país e ao mesmo tempo odiar o sistema vigente, diz ele. Pecherin era louco pela Inglaterra, tal e qual como Goethe. A Inglaterra como a pátria da justiça, da verdade e da liberdade. Pecherin mostrou que não havia nada de desleal na traição, desde que se traia o que se odeia e se lute pelo que se ama. Agora suponhamos que Pecherin possuía grandes segredos acerca da alma russa. Que faria ele com esses segredos? A resposta é óbvia. Confiá-los-ia ao povo inglês.”

"Enquanto ele diz isto, só penso numa coisa: em despegar-lhe as mãos do meu cabelo. Estou a ficar em pânico. Mas ele não me larga. É cara contra cara. Chia e range como uma máquina a vapor. O coração salta-lhe do peito. Os olhos castanhos, enormes, parecem sair-lhe das órbitas. "O que é que você esteve a beber?", pergunto eu. "Cortisona?”

"Sabe outra coisa que você disse ao almoço?", pergunta ele. "Eu não disse nada", respondo eu. "Eu nem estive no almoço. Foram dois outros tipos que lá estiveram, deram-me uma carga de pancada e tomaram o meu lugar. " De novo não me ouve.

"Você disse, “hoje, temos de pensar como heróis se queremos comportar-mo-nos como seres humanos meramente decentes”.”

"Isso não é meu", digo eu. "Nada do que eu disse é original. Foram coisas que eu li. Não são da minha autoria. Agora faça-me um favor, esqueça tudo o que eu disse e volte para os seus." Não me ouve. Agarra-me pelo braço. Tem umas mãos de rapariga, mas fortes como aço.

"Prometa-me que se eu alguma vez tiver coragem para pensar como um herói, você se comportará como um ser humano meramente decente.”

"Oiça, Goethe", digo eu. "Acabemos com isto e vamos comer qualquer coisa. Deve haver sopa lá dentro, cheira-me a sopa. Gosta de sopa? Gosta de sopa?”

Não creio que ele esteja a chorar, mas tem o rosto completamente encharcado. O suor cobre-lhe a pele branca, como se uma dor o percorresse. Agarra-se ao meu pulso como se eu fosse o seu padre. "Prometa-me", diz ele.

"Por amor de Deus, Goethe, o que é que eu lhe prometo?" "Prometa-me que se porta como um gentleman.”

"Mas eu não sou um gentleman, sou um editor." Desata a rir. É a primeira vez que se ri. Um riso sem fim, com algo de estranho, de insondável. "Você não pode imaginar a confiança que a sua rejeição me inspira", diz ele.

"Nesse momento levanto-me. Devagar, calmamente, para não o alarmar. Mesmo assim não me larga.”

"Eu cometo o pecado da ciência todos os dias", diz ele. "Transformo relhas de arado em espadas. Engano os nossos mestres. Engano os vossos. Perpetuo a mentira. Todos os dias mato a humanidade em mim mesmo. Escuto o que eu lhe digo.”

"Agora tenho de ir, meu caro Goethe. As porteiras do meu hotel, como você sabe, são muitíssimo simpáticas e, coitadas, devem estar preocupadíssimas comigo. Largue-me o braço, quase que mo parte. “

Abraça-me. com força. Puxa-me contra ele. Faz-me sentir gordo ele que é tão magro. Tem a barba molhada, o cabelo molhado, todo ele arde.

"Prometa-me", diz ele. Quer forçar-me à promessa, extraí-la da minha boca. Com um fervor louco. Nunca vi nada assim. "Prometa! Prometa!”

"Está bem", digo eu. "Se você alguma vez conseguir ser um herói, eu portar-me-ei como um ser humano decente. Está combinado. Está bem? Agora seja bonzinho e deixe-me ir embora.”

"Prometa", diz ele. “Prometo", digo eu e afasto-o de mim. Nesse momento Walter desata aos gritos. Nenhum dos nossos avisos, nenhum dos olhares furiosos de Ned, de Clive ou de mim mesmo, o conseguiram suster. "Mas você acreditou nele, Barley? Ele não estava a trapaceá-lo? Você lá no fundo é um tipo esperto. O que é que você sentiu?”

Silêncio. Silêncio e mais silêncio. E finalmente: "Ele estava bêbado. Em toda a minha vida terei estado duas vezes tão bêbado como ele estava naquela noite. Enfim, três vezes. Tinha estado todo o dia a beber vodka e continuava a bebê-la como se fosse água. Mas não há dúvida que ele conseguiu fascinar-me. Acreditei nele. Não se pode deixar de, acreditar nele.”

De novo Walter, furioso. "Mas acreditou em quê? De que acha que ele estava a falar? Que acha que ele fez? Toda essa conversa acerca de coisas que não atingem os alvos, de mentir aos mestres dele e aos nossos, de xadrez que não é xadrez, mas outra coisa qualquer! Você sabe somar, não sabe? Por que razão não veio ter connosco? Eu sei porquê! Não veio ter connosco porque meteu a cabeça debaixo da areia. “Não sei porque não quero saber”. Foi tudo o que você pensou.”

O som que se ouve a seguir na gravação é a voz de Barley, praguejando contra si mesmo enquanto anda às voltas pela sala batendo com os pés. "Merda, merda, merda", murmura. Não pára de praguejar. Até que a voz de Clive se junta à dele. Se um dia calhar a Clive ordenar a destruição do universo, creio que o tom da sua voz será igualmente árido e frio.

"Lamento muito mas creio que vamos precisar imenso da sua ajuda", diz ele.

Ironicamente, creio que Clive de facto lamentava. Clive era um homem da tecnologia, pouco à vontade sempre que as fontes eram seres humanos, um espiocrata suburbano da escola moderna. Acreditava que os factos eram o único tipo de informação possível e desprezava todos aqueles que os factos não explicavam. Se gostava de alguma coisa na vida, para além das suas promoções ou do Mercedes prateado que não saía da garagem se tivesse um arranhão, então era decerto de computadores e de americanos poderosos, por esta ordem. Para Clive brilhar, a Ave Azul teria de ser um código decifrado, um satélite ou uma comissão inter-agências. Nesse caso, Barley nunca deveria ter nascido.

Ned era o seu reverso, e por isso mesmo corria mais riscos. Ele era, por temperamento e por treino, um chefe de agentes e um comandante de homens. Os seres humanos eram o seu elemento e, dentro dos limites que lhe eram próprios, a sua paixão. Desprezava as lutas intestinas em torno das políticas de espionagem, de bom grado deixava tudo isso aos cuidados de Clive, tal como deixava as análises a Walter. Nesse sentido, Ned era o inabalável primitivo, como têm de ser as pessoas que lidam com a natureza humana, ao passo que Clive, para quem a natureza humana não passava de um lodaçal repugnante, gozava de reputação de modernista.

Passámos para a biblioteca onde Ned e Barley tinham começado. Brock tinha instalado um ecrã e um projector. Colocara as cadeiras em ferradura e, na sua imaginação, ordenara já a distribuição das pessoas: a cada cadeira corresponderia uma pessoa e só essa pessoa. De facto, Brock, tal como outros espíritos violentos, tinha um apetite exagerado por trabalhos servis. Ouvira a entrevista nos nossos aparelhos de escuta e, apesar das sinistras suspeitas que nutria em relação a Barley, um fulgor de excitação ardia nos seus pálidos olhos bálticos. Barley, refugiado nos seus pensamentos, recostou-se numa das cadeiras da fila da frente entre Bob e Clive, como um convidado privilegiado, ainda que um tanto distraído, de uma projecção privada. Reparei nos movimentos da sua cabeça, uma silhueta na semiobscuridade, quando Brock ligou o projector: primeiro caída, em contemplação, depois erguida e atenta mal o primeiro diapositivo apareceu no ecrã. Ned sentou-se ao meu lado. Não disse uma palavra, mas eu sentia a intensidade disciplinada da sua excitação. Vinte rostos de homens passaram no ecrã, a maior parte dos quais de cientistas soviéticos que, numa primeira e apressada investigação, foram considerados como potenciais conhecedores das informações contidas no processo Ave Azul. Alguns apareceram mais do que uma vez: primeiro de barba e depois sem. Outros apareceram com menos vinte anos, porque eram essas as fotografias que os arquivos possuíam.

"Não é nenhum deles", anunciou Barley quando o desfile acabou, levando subitamente a mão à cabeça como se algum bicho o tivesse picado.

Bob achava tal resposta simplesmente inacreditável. Era tão encantador na incredulidade como na credulidade. "Nem um talvez, Barley? Para quem estava tão bebido quando viu o homem, você  parece-me excessivamente seguro. Francamente, Barley, olhe que eu já estíve em certas festas em que nem do meu nome me consigo lembrar . “

"Nem um talvez nem um nada, meu caro amigo. Nada", disse Barley, regressando de imediato aos seus pensamentos.

Agora era a vez de Katya, embora Barley não o pudesse saber, Bob avançou cautelosamente, como um bom professional de Langley mostrando as suas habilidades.

"Barley, estes são alguns dos homens e mulheres em evidência na cena editorial de Moscovo", disse ele o mais casualmente possível quando Brock começou a passar os diapositivos. "Pessoas com quem talvez você se tenha cruzado durante as suas estadas na Rússia, em recepções, em feiras do livro, enfim pessoas do meio. Se vir alguém que conheça, apite.”

"Valha-me Deus, aquela é a Leonora!", interrompeu Barley com evidente agrado. No ecrã tinha aparecido uma mulher esplêndida, corpulenta, com umas nádegas que pareciam um campo de futebol, caminhando ao longo de uma pista de aeroporto. "A Leni é a manda-chuva da SK", acrescentou Barley.

"SK?", repetiu Clive, como se tivesse desenterrado uma sociedade secreta.

"Soyuzkniga. A SK encomenda e distribui livros estrangeiros destinados a todo o território da União Soviética. Se os livros chegam ou não chegam aos sítios, isso já é outro assunto. Mas a Leni é um espanto!”

"Conhece o outro nome dela?" "Zinovieva." Confirmado, disse o sorriso de Bob para aqueles que já conheciam o nome.

Mostraram-lhe mais caras e Barley escolheu sempre aquelas que eles sabiam que ele conhecia, mas quando lhe mostraram a fotografia de Katya, a mesma que Landau tinha visto Katya de sobretudo, com o cabelo arranjado, descendo umas escadas com a saca de plástico a tiracolo -, Barley murmurou, "podem passar", como tinha feito em relação a todas as caras que não conhecia.

Porém Bob estava deliciosamente inquieto. "Espere aí, Brock, por favor", disse ele, mas de uma forma tão desastrada que mesmo uma criança de colo teria percebido que aquela fotografia possuía uma. importância óbvia.

E Brock esperou, tal como todos nós: de respiração suspensa. "Barley, esta senhora de cabelo escuro e olhos enormes trabalha nas Edições Outubro, em Moscovo. Fala um óptimo inglês, tão clássico como o seu ou como o de Goethe. Ao que sabemos, é redaktor da Outubro, encomenda e aprova traduções inglesas de obras soviéticas. Não lhe diz nada?”

"Infelizmente, não", disse Barley. Após o que Clive mo deixou nas minhas mãos. Com uma ligeira 

inclinação da cabeça. Pode ficar com ele. Palfrey. A testemunha é sua. Assuste-a.

Nas minhas sessões de doutrinamento ponho sempre uma voz especial. Em princípio, deverá ser uma voz capaz de instilar o terror do juramento matrimonial e eu odeio-a porque é a voz que Hannali odeia. Se a minha profissão tivesse um lado de falso enfermeiro, esse seria o momento em que eu administro a injecção fatal. Porém, nessa noite, mal me vi a sós com ele, optei por um tom mais protector. De súbito fiquei outro, um Palfrey rejuvenescido, aquele que Hannali costumava dizer que venceria. Dirigi-me a Barley não como se ele fosse um delinquente dos piores, mas como se fosse um amigo à procura de um conselho.

O negócio é este,,comecei eu, usando o jargão menos jurídico que era possível. Esta é a corda que lhe querem pôr ao pescoço. Cuidado. Pense bem.

Aos outros ,faço-os sentar. Mas a Barley, deixei-o vaguear, porque tinha percebido que se sentia mais à vontade quando podia andar de um lado para o outro, quando podia dar largas à sua irrequietude, quando podia afastar os braços todos para trás numa exuberante espreguiçadela. A empatia é uma praga mesmo quando efémera, e nem a mais terrível das leis inglesas conseguiria proteger-me dela.

E à medida que me ia aproximando dele, à medida que me ia interessando de facto por aquela pessoa que tinha à minha frente, fui reparando numa série de coisas que me tinham passado despercebidas quando havia mais gente à nossa volta. Reparei na forma como o seu corpo se afastava de mim, como se quisesse proteger-se de um profundo desejo de se dar à primeira pessoa que o solicitasse. Reparei como os seus braços, apesar de uma luta tremenda, permaneciam desassossegados, sobretudo ao nível dos cotovelos, os quais, semelhantes a renegados, pareciam querer libertar-se do uniforme em que estavam metidos.

E reparei na frustração que senti por não o poder observar tão de perto como queria: atento, o meu olhar procurou mesmo o seu rosto nos espelhos dourados, quando passava por eles e se mirava de relance. Até hoje, a sua imagem sempre me surgiu longe, muito longe de mim.

E reparei no seu ar pensativo quando mergulhava na minha homilia ou simplesmente a ignorava, reflectindo sobre determinado ponto e virando-me logo de seguida as costas para o digerir bem digerido, de tal modo que, a todo o momento, tinha à minha frente umas costas enormes e poderosas, tão fugidias como o mais fugidio dos rostos.

E reparei ainda que, ao virar-se para mim, os seus olhos não exibiam a subserviência que encontrara noutros destinatários das minhas sábias palavras, essa subserviência que tão frequentemente me deixava nauseado. Barley não estava assustado. Não estava sequer perturbado. No entanto os seus olhos incomodavam-me, como sucedera da primeira vez que os vira avaliarem-me. Eram olhos demasiado sinceros, demasiado límpidos, demasiado sem defesas. Afinal, nenhum dos seus torturados gestos conseguia protegê-lo. Senti que eu ou qualquer outra pessoa podia avançar pelo mar daqueles olhos e reclamar a posse daquela criatura, e esse sentimento assustou-me como se de uma ameaça se tratasse. Fez-me temer pela minha própria segurança.

Lembrei-me do seu processo. Tantas quedas ao comprido, tantos actos aparentemente autodestrutivos, tão pouca prudência. Uma ficha escolar de meter medo. Cenas de pugilato, em busca de uns míseros louros: acabou no sanatório da escola com o maxilar partido. Expulso por estar bêbedo quando lia a Epístola da Eucaristia cantada. "A bebedeira vinha da noite anterior, sir. Não foi intencional". Açoitado e expulso.

Teria sido muito mais fácil pensei -, tanto para mim como para ele, se houvesse no seu passado um grande crime, um acto qualquer de covardia ou omissão. Mas Ned tinha-me mostrado toda a sua vida, incluindo a secreta, a sua história médica, dinheiro, mulheres, esposas, filhos. E tudo era comezinho. Não havia em toda a sua vida um único incidente invulgar, uma explosão, um grande crime. Nada de extraordinário, de invulgar, de grande talvez este dado fosse a chave para entender Barley. Teria sido por ansiar um mar mais vasto que encalhara sucessivamente em pequenos rochedos, desafiando o Criador a que lhe proporcionasse algo de mais grandioso, pois caso contrário seria melhor que o deixasse de chatear? Mostrar-se-ia tão temerário se confrontado com outras circunstâncias, com circunstâncias menos vulgares, mais grandiosas?

Então, de súbito e antes que me dê conta disso, os nossos papéis invertem-se. Barley está de pé, ao meu lado, espreitando para o papel que tenho nas mãos. A equipa continua à espera na biblioteca, oiço os sons da sua agitação. A declaração está à minha frente, sobre a mesa. Mas sou eu quem ele está a ler, não a declaração.

"Tem algumas questões a pôr?", pergunto eu olhando-o de baixo, consciente da sua altura. "Qualquer coisa que queira saber antes de assinar?" No fim de contas estou a usar a minha voz especial. Por uma questão de autoprotecção.

De início vejo-o confuso, depois divertido. "Porquê? Há mais respostas que me queiram dar?”

"O negócio é desleal", aviso-o num tom grave. "Aconteceu que lhe confiaram um grande segredo. Você não fez nada por isso, mas a verdade é que não pode ignorar tal facto. O que você sabe chega para enforcar um homem e provavelmente uma mulher. Isso coloca-o numa determinada categoria. Traz-lhe obrigações a que não se pode furtar.”

E, valha-me Deus, dou comigo a pensar novamente em Hannali.

Ele acordou em mim a dor que Hannali me deixou, como se ela fosse uma ferida acabada de abrir.

Ele encolhe os ombros, desprezando a responsabilidade. "Eu não sei o que sei", diz.

Batem à porta. "A questão é que talvez eles queiram dizer-lhe mais qualquer coisa", digo eu, de novo num tom brando, tentando levá-lo a perceber que me interesso por ele. "O que você já sabe pode ser apenas o preâmbulo daquilo que eles querem que você descubra.”

Assina. Sem ler. E um cliente de pesadelo. Podia estar a assinar a sua sentença de morte; pouco lhe importava. Estão a bater à porta mas tenho ainda de assinar como testemunha.

"Obrigado", diz ele. "Obrigado porquê?" Guardo a caneta. Já cá canta, penso eu, triunfante mas gélido, quando Clive e os outros entram na sala. Um rato, este freguês, mas assinou.

Mas a minha outra metade sente vergonha e um misterioso alarme. Sinto que acendi um fogo no nosso próprio campo, e ninguém sabe como alastrará nem quem o irá apagar.

A brevidade foi o único mérito do acto seguinte. Fiquei com pena de Bob. Ele não era um homem dissimulado, e muito “ menos um fanático. Era uma criatura transparente, mas isso não chega a ser um crime, mesmo neste mundo secreto. Era um homem mais da têmpera de Ned do que da de Clive, e mais próximo dos processos dos Serviços do que dos de Langley. Tempos houve em que Langley tinha muitos homens como Bob. Melhores tempos.

"Barley, você tem alguma ideia da natureza do material que a fonte a que chama Goethe nos forneceu até agora? Tem alguma ideia, digamos, da sua mensagem global?", perguntou Bob, embaraçado, pondo o seu sorriso franco.

Johnny tinha feito o mesmo tipo de pergunta a Landau, lembrei-me nesse momento. E tinha-se queimado.

"Como é que eu posso ter alguma ideia?", retorqui Barley. "Nem sequer vi esse material, vocês não me deixam.”

"Tem a certeza de que Goethe não lhe deu qualquer indicação, qualquer indício? Uma confidência de autor para editor, uma sugestão daquilo que ele poderia vir a fornecer-nos um dia, se ambos cumprissem as respectivas promessas? Para além daquilo que já nos contou para além de toda aquela conversa muito genérica sobre armamentos e inimigos irreais?”

"Contei-lhes tudo o que me lembro", disse Barley, abanando a cabeça, confuso.

Tal como Johnny, também Bob se pôs a olhar de soslaio para a pasta que segurava sob a mesa. Só que Bob o fazia com genuino embaraço. "Barley, nas seis visitas que fez à União Soviética nos últimos sete anos, manteve algum contacto, ainda que breve, com pacifistas, dissidentes ou outros grupos não oficiais dessa natureza?”

"Isso é um crime?" Clive interveio de imediato. "Responda à questão, sim?" Espantosamente, Barley obedeceu. Por vezes Clive era simplesmente demasiado insignificante para o poder impressionar. "Conhece-se todo o tipo de pessoas, Bob. Gente do jazz, gente dos livros, intelectuais, jornalistas, artistas a sua questão não tem resposta possível. Lamento.”

"Então talvez eu possa dar uma volta a essa questão e perguntar-lhe se nunca se deu com pacifistas em Inglaterra.”

"Não faço ideia." "Barley, por acaso não tem ideia de que dois membros de um certo grupo de blues em que você tocou, entre 1977 e 1980, estiveram ligados à campanha a favor do desarmamento nuclear, para além de participarem noutras iniciativas pacifistas?”

Barley pareceu surpreendido, embora um tanto ou quanto deliciado. "A sério? E quem são eles?”

"Ficaria surpreendido se eu lhe dissesse que se trata de Maxi Burris e Bert Wunderley?”

Barley desatou num riso jovial, o que deixou toda a gente divertida, à excepção de Clive. "Por amor de Deus, Bob! Não lhes chame pacifistas. O Maxi era comuna de cabeça aos pés. Se alguma vez tivesse tido uma bomba nas mãos, pode crer que a atirava para as Câmaras do Parlamento. E o Bert apoiaria.”

"É verdade que eram homossexuais?", perguntou Bob, com um sorríso de raposa velha.

"O mais possível", concordou Barley com um ar satisfeito. Após o que, com alívio evidente, Bob guardou a sua folha e olhou de soslaio para Clive para significar que tinha acabado, e Ned propôs a Barley que fossem apanhar ar. Walter, em jeito de convite, encaminhou-se para a porta e abriu-a. Ned devia querê-lo no papel de antagonista, pois de outro modo Walter não se teria atrevido a acompanhá-los. Barley hesitou por um momento, depois pegou numa garrafa de Scotch e num copo e enfiou-os nos bolsos, num gesto com que talvez pretendesse chocar-nos. Assim equipado, seguiu-os num passo lento, deixando-nos sozinhos e em silêncio.

"As perguntas que lhe fez eram de Russel Sheriton?", perguntei a Bob, num tom manifestamente amistoso.

"O Russel é demasiado brilhante para as porcarias que agora acontecem, Harry"-, retorquiu Bob com evidente desagrado. "Isto não são coisas para ele.”

As lutas pelo poder em Langley constituíam um mistério mesmo para aqueles que nelas estavam envolvidos, e obviamente por muito que pretendessemos o contrário para os nossos barões do décimo segundo andar. Mas quando as águas andavam mais agitadas e as intrigas ferviam, o nome de Sheriton aparecia frequentemente como o que tinha mais possibilidades de ficar no topo da pirâmide.

"Então quem é que as autorizou, Bob?", perguntei, ainda a propósito das questões que ele pusera a Barley. "Quem é que as escolheu?”

"Talvez o Russell." "Você acabou de dizer que o Russell era demasiado brilhante para se meter nestas coisas!”

"Talvez ele precise de manter os seus boiardos calmos", retorquiu Bob, incomodado, acendendo o cachimbo e apagando o fósforo.

Acabada a conversa, preparámo-nos para a longa espera.

Era uma árvore enorme, pela sua sombra a mais procurada daquele jardim público perto do rio. Estive por várias vezes sob essa árvore, sentado ou não, admirando o nascer do sol sobre o porto, com a gabardina cinzenta cheia de lágrimas de orvalho. Por vezes, durante o dia, pude ouvir, sem nada compreender, os discursos de um velho místico com rosto de santo que aí gosta de receber os seus discípulos. Discípulos de todas as idades. Chamam-lhe o Professor. O banco foi construído à volta do tronco e braços de ferro dividem-no em vários assentos. Barley sentou-se no centro, entre Walter e Ned. Tinham já estado num bar frequentado por marinheiros sonolentos e depois num miradouro, isto segundo Barley, já que Ned, vá lá saber-se porquê, se recusa a lembrar_ -se do miradouro. Agora tinha regressado ao vale para a conversa final. Brock ficara no carro alugado, de onde podia vê-los perfeitamente, já que só um relvado o separava deles. Dos armazéns no outro lado da rua vinham gemidos de gruas, um arfar de camiões, gritos de pescadores. Eram cinco da manhã mas o porto estava acordado desde as três. As primeiras nuvens da aurora ganhavam forma e irrompiam nos céus como se fosse o primeiro dia da criação.

"Arranjem outro", disse Barley. Já o tinha dito antes várias vezes, usando outras palavras. "Eu não sou o homem de que vocês precisam.”

"Não fomos nós'que o escolhemos", disse Ned. "Quem o escolheu foi Goethe. Seria uma maravilha se conhecessemos outro processo de entrar em contacto com ele sem a sua ajuda. O problema é que ele gostou de si. Provavelmente esteve uma quantidade de anos à espera que aparecesse alguém como você.”

"Ele escolheu-me porque eu não era um espião", disse Barley. "Escolheu-me porque me ouviu cantar aquela maldita ária e gostou. “

"Mas você não se vai transformar num espião", disse Ned. "Vai continuar a ser um editor. O editor dele. Não vai fazer outra coisa senão colaborar com o seu autor e connosco ao mesmo tempo. Que há de errado nisso?”

"Você é um tipo que sabe prender as pessoas, Barley, para além de ser inteligente", disse Walter. "Não admira que beba. Há vinte anos que está subaproveitado. Esta é a sua grande oportunidade de brilhar. Teve sorte.”

"Brilhar, já,brilhei em Perdelkino. Sempre que brilho, os fusíveis rebentam, fica tudo às escuras.”

"Inclusivamente poderá pagar as suas dívidas", disse Ned. "Três semanas de preparação em Londres enquanto espera pelo visto, uma bela semana em Moscovo e acabam-se todos os problemas.”

Com a prudência que nele era inata. Ned evitara a palavra "treino.”

Mas Walter intervém novamente, misturando chicotadas e ditos lisonjeiros, sempre excessivo; no entanto, Ned deixa-o falar. "Ora, não acredito que o Barley atribua assim tanta importância ao dinheiro, ele está demasiado acima dessas coisas! O que interessa é que é uma acção importante para o seu país. Quantas pessoas não gostariam de estar no seu lugar! Sonham com uma oportunidade destas, anseiam por ela toda a vida. Em vão. E afinal, quando você acabar o trabalho, volta para o seu país e pode gozar calmamente os benefícios de ser um cidadão britânico, sabendo que os merece ainda que deles escarneça, e que a eles tem direito, e que são algo por que temos de lutar como tudo o mais. “

E Ned tinha feito bem em deixá-lo falar. Barley desatou a rir e disse a Walter qualquer coisa como "acabe-me lá com isso.”

"E se pensar bem verá que é também uma acção importante para o seu autor", interveio Ned, mais terra-a-terra. "Está nas suas mãos protegê-lo, salvá-lo. Se ele está decidido a divulgar segredos de Estado, o mínimo que você pode fazer por ele é pô-lo em contacto com as pessoas competentes. Você é um homem de Harrow, não é?", acrescentou, como se tivesse acabado de se lembrar desse pormenor. "Creio que li algures que você andou em Harrow.”

"Em Harrow limitei-me a ir à escola", disse Barley e Walter soltou mais um dos seus risos piados, a que Barley se associou por uma questão de cortesia.

"Diga-me, Barley, por que razão é que você se candidatou aos Serviços, já lá vai uma quantidade de anos? Lembra-se dos motivos que o levaram a candidatar-se?", perguntou Ned. "Terá sido por sentido do dever?”

"Queria afastar-me da firma do meu pai. O meu professor” aconselhou -me a leccionar numa escola preparatória”. O primo Lionel disse-me para ir para a espionagem. E vocês rejeitaram-me.”

"Pois é. Creio que não podemos fazer-lhe esse favor uma segunda vez", disse Ned.

Como velhos camaradas, os três homens perscrutaram em silêncio

 

“ Neste caso, trata-se do "tutor", professor que, nas universidades britânicas, dirige os estudos de um certo número de alunos, com os quais se reúne separadamente. (N. do T. )

Escola privada para alunos com idades até aos 14 anos, destinada à preparação para a frequência das escolas secundárias. (N. do T.)

 

a paisagem do rio. Um grupo de navios de guerra cavalgava a foz, os cordames visíveis na escuridão, como se fossem colares de luzes.

"Olhe que sempre pensei que isto viria a acontecer, sempre sonhei que um deles escaparia à norma", atirou subitamente Walter, falando para o mar. "Sou de alma e coração um homem de Deus, disso não tenho dúvida. Ou então serei um marxista falhado. Sempre acreditei que mais tarde ou mais cedo a história deles acabaria por produzir um dos nossos. Que sabe você de ciência? Nada. Claro. Você é daquela geração... das últimas virgens das artes. Se lhe perguntasse o que são intensidades de fogo, era capaz de pensar que eu estava a falar da confecção de bolos.”

"Provavelmente", concordou Barley, rindo de novo, involuntariamente.

"E ECP? Não faz ideia do que é?" "Infelizmente não gosto de inciais." "Erro circular provável. Diz-lhe alguma coisa?" "Sou um perfeito analfabeto nessas coisas", retrucou Barley, num dos seus imprevisíveis acessos de mau-humor.

"E recalibrar? Quem ou que coisa recalibramos, e com quê?" Barley nem se incomodou a responder. "Muito bem. Agora díga-me o que é o Grande Filho da Puta, vulgarmente conhecido nos meios como o GFP. Espero que esta linguagem não ofenda os seus ouvidos. É inglês do melhor ... “

Barley encolheu os ombros. "O GFP era o super-míssil soviético SS9", explicou Walter. "Apareceu ao público numa parada do Primeiro de Maio, nos anos negros da Guerra Fria. As suas dimensões eram impressionantes e mais tarde foi creditado como uma pegada notável. Também não lhe diz nada, pegada? Não interessa, há-de dizer. A pegada, neste caso, eram três enormes buracos nos desertos da Rússia, buracos que se assemelhavam à configuração do grupo de silos Minuteman com o seu centro de comando. A questão estava em saber se os super-mísseis possuíam ogivas susceptíveis de serem disparadas independentemente e se, dessa forma, os soviéticos poderiam atingir três silos americanos ao mesmo tempo. Aqueles que não quiseram acreditar nessa eventualidade, concluíram que as pegadas não passavam de um mero acaso. Aqueles que quiseram acreditar subiram a parada e disseram que as ogivas eram para destruir cidades e não silos. Os crentes venceram e logo obtiveram luz verde para o programa ABM. Pouco importa que a teoria deles tenha sido desacreditada três anos depois. A teoria passou mas eles ficaram. Estou a ver que não me consegue seguir.”

"Desde o princípio", disse Barley. "Não faz mal, tenho a certeza que ele aprende depressa", garantiu satisfeito Walter, virando-se para Ned. "Os editores pescam de tudo com facilidade. “

"Mas haverá algum mal em conhecer, Barley?", queixou-se Ned no tom de um homem simples farto de conversas complicadas. "É isso que eu não consigo compreender. Não lhe estamos a pedir que construa os malditos mísseis nem que carregue no botão. Pedimos-lhe apenas que nos ajude a melhorar o conhecimento que temos do inimigo. Se não gosta do nuclear, tanto melhor. E se o inimigo se revela um amigo, qual é o problema?”

"Pensava que a Guerra Fria estava acabada", disse Barley. "Acabada?! Por amor de Deus, Barley!", exclamou Ned quase sussurrando, num alarme aparentemente sincero.

Walter, em contrapartida, não se mostrou tão comedido. Walter queria vincar a sua indignação, e é possível que estivesse mesmo indignado. Ele era capaz de pôr fosse que cara fosse em qualquer momento e até de pôr várias caras ao mesmo tempo. "Isso não passa de teatrice política e da barata, são tudo falsas amizades!", bufou ele. "Estamos nós metidos na maior querela ideológica de toda a história e você vem-me dizer que a guerra fria acabou, só porque uma mão cheia de homens de estado acha conveniente cumprimentar-se em público e desfazer-se de meia dúzia de brinquedos obsoletos. Ah, pois, diz-se que o império do mal está de rastos, não é? Que a economia deles está uma calamidade, que puseram a ideologia no prego, que os quintais deles lhes estão a explodir na cara. Mas não me venham dizer que isso é uma razão para desactivarmos as nossas armas, porque não acredito. É uma razão sim para os espiarmos bem espiados vinte e cinco horas ao dia e para lhes darmos um valente pontapé nos tomates sempre que eles tentem levantar a cabeça. Deus sabe quem eles não pensarão que são daqui a dez anos!”

"Suponho que percebe que, se desistir de Goethe, estará a deixá-lo nas mãos dos americanos", disse Ned, numa atitude informativa meramente prática. "O Bob não o deixará escapar, por que razão haveria de fazer tal coisa? Não se deixou enganar por aqueles modos à Yale, espero. Como é que você vai conseguir viver consigo mesmo, sabendo o que acontecerá nesse caso?”

"Eu não quero viver comigo mesmo", disse Barley. "Sou decerto a pior criatura com quem poderia viver.”

Uma nuvem cor de ardósia trespassada pelos raios vermelhos do sol deslizou pelo céu, antes de se dispersar em fragmentos.

"A questão resume-se a isto", disse Ned. "Sei que é rude e pouco inglês da minha parte, mas mesmo assim vou dizer-lho. Você quer ser um participante passivo ou activo na defesa do seu país?”

Barley estava ainda a preparar uma resposta quando Walter lha forneceu, e num jeito tão conclusivo que qualquer contestação estaria votada ao fracasso. "Você pertence a uma sociedade livre. Não tem escolha possível", disse.

A azáfama do porto crescia com o dia, Barley levantou-se lentamente e levou as mãos às costas. Parecia ter uma dor permanente mesmo acima da cintura. Talvez daí lhe viesse o jeito inclinado das costas.

"Qualquer igreja decente já vos teria condenado à fogueira há muitos, muitos anos", comentou, exausto. Virou-se para Ned, espreitando-o por sobre os seus óculos demasiado pequenos. "Eu sou o homem errado", avisou-o. "E vocês são loucos se recorrem a mim".

"Não é só você que é o homem errado. Todos somos", retorquiu Ned. "Lidamos com coisas erradas.”

Barley atravessou o relvado, tacteando os bolsos à procura das chaves. Meteu por uma rua secundária. Ned e Walter deixaram de o ver, mas Brock seguiu-o lentamente e sem dar nas vistas. A casa tinha forma de cunha, estreita na fachada, larga nas traseiras. Barley abriu a porta da rua e fechou-a atrás de si. Acertou o relógio e começou a subir as escadas, mantendo um passo sereno porque tinha ainda um longo caminho à sua frente.

Era uma boa mulher, não tinha culpa de nada. Todas eram boas mulheres. Eram mulheres para quem ele significava uma missão, o mesmo que eu em tempos signifiquei para Hannali a missão de salvá-lo, de o aliviarem de todas as preocupações, de porem a funcionar todos os seus muitos, imensos talentos, de o ajudarem a recomeçar tudo de novo e a esquecer-se de todos os recomeços que já tinha feito na vida. E Barley tinha-a encorajado, tal como tinha encorajado todas as outras. Tinha ficado ao lado delas, como se estivesse à cabeceira do paciente, como se o paciente não fosse ele mesmo, como se ele fosse afinal um membro da equipa médica. "Então o que é que vamos fazer a este desgraçado para o pormos de pé e a funcionar?”

A única diferença é que ele nunca acreditara no remédio, tal como eu, aliás.

Ela estava deitada, de rosto colado à almofada, exausta e possivelmente a dormir. Tinha limpo o apartamento. Como os prisioneiros limpam as celas, como todos cuidados da campa de um ente querido recentemente falecido, tinha posto a brilhar a superfície de um mundo que não podia alterar. Era possível que outras pessoas dissessem a Barley que ele era demasiado duro para consigo mesmo. As mulheres, porém, diziam-lho frequentemente. Que ele não devia sentir-se responsável pelas duas metades de cada relação que se malograva. Mas Barley é que sabia. Conhecia a distância entre si mesmo e tudo o mais. Nesses tempos ele era ainda o grande especialista da sua própria incurabilidade.

Tocou-lhe no ombro mas ela não se mexeu. Concluiu que estava acordada.

"Tive de ir à Embaixada", disse. "Há gente em Londres que não me quer deixar em paz. Tenho de voltar e dar a cara, caso contrário confiscam-me o passaporte.”

Retirou uma mala que estava debaixo da cama e começou a enchê-la com as camisas que ela tinha passado a ferro.

"Disseste que desta vez não voltavas", acusou ela. "Que já tinhas servido a pátria o bastante. Que já tinhas cumprido a sentença toda. Foi isso o que disseste.”

"Marcaram-me lugar no primeiro voo. Não posso fazer nada. Daqui a pouco tenho aí um carro à porta para me levar ao aeroporto". Foi à casa de banho buscar a escova dos dentes e o estojo da barba. "Caiu-me tudo em cima", gritou. "Não posso fazer nada.”

"E eu volto para o meu marido", disse ela. "Fica aqui. Aproveita o apartamento. E tudo o mais. Eu só demoro umas semanas. Depois, acabou-se.”

"Se não me tivesses dito aquilo tudo, não havia problemas. Não me sentiria infeliz se se tratasse apenas de uma relação passageira. Devias ler as tuas cartas. Devias ouvir-te a ti mesmo.”

Barley não olhou para ela. Estava curvado sobre a mala. "Não faças a mais ninguém o que me fizeste", disse ela. Era o máximo que a calma dela permitia. Começou a soluçar e a soluçar ficou quando ele fechou a porta, e continuava a soluçar na manhã seguinte, quando lhe expliquei vagamente o que se passava e lhe pus uma declaração debaixo do nariz e lhe perguntei o que ele lhe tinha dito. Não lhe tinha dito nada. Contou a história toda mas defendeu-o com unhas e dentes. Defendê-lo-ia até à morte. Hannali teria feito o mesmo. Fá-lo ainda, cumpre ainda uma lealdade excessiva, apesar de as suas ilusões terem morrido.

Ned e a sua gente tinham apenas três semanas para porem Barley em forma. Três fins-de-semana e quinze dias que só começavam às cinco da tarde, quando Barley se escapulia do escritório da editora.

Mas Ned fez o trabalho como só ele poderia fazer. Ned era capaz de manter os instrutores acordados toda a noite e de ficar ele acordado toda a noite e todo o dia. E Barley, com a inconstância que nele era inata, começou por reagir mal a todas as dificuldades que lhe foram aparecendo, até que acalmou, até que ganhou uma expressão compenetrada, que se foi tornando notoriamente grave à medida que o dia da partida se aproximava. Frequentemente, parecia adoptar sem qualquer objecção toda a ética da nossa actividade. No fim de contas, declarou certa vez a Walter, ser não é sempre parecer? Mas é isso mesmo!, exclamou Walter, deliciado e isso não se aplica apenas à nossa profissão! E a identidade do homem não será sempre um disfarce?, insistia Barley; e o único mundo que vale a pena não será precisamente o mundo secreto de cada um? Walter garantia-lhe que assim era e aconselhava-o a arranjar residência permanente antes que os preços subissem.

Barley tinha gostado de Walter desde o início, tinha gostado da sua fragilidade e, vejo-o agora, da sua transitoriedade. Parecia saber desde o princípio que estava a cumprimentar um homem em permanente risco de infracção e, por isso, a um passo da exclusão. Mas havia momentos em que o rosto de Barley se tornava tão vazio como um túmulo aberto. De qualquer modo, Barley era uma criatura pendular e só assim era igual a si mesmo.

Mas o mais importante foi que gostou decididamente da atmosfera familiar com que Ned, dotado de um instinto muito apurado para o apoio a hesitantes, o brindava assiduamente as ceias com as suas intermináveis conversas, a noção de partilha e de comunidade, o facto de ser a estrela da família, as partidas de xadrez com o velho Palfrey, para quem Ned astuciosamente empurrava Barley, de molde a contrabalançar a influência inquietantemente efémera de Walter.

"Apareça sempre que lhe apetecer", disse-me Nied com uma palmadinha amigável.

E assim passei a ser o velho Harry também para Barley. Harry, meu velho, vamos a uma partidinha de xadrez? Harry, meu velho, porque é que não fica para a ceia? Harry, meu velho, onde é que está o raio do seu copo?

Ned convidava Bob moderadamente, mas nunca convidou Clive. Aquele era o seu filme e Barley era o seu actor. E ele sabia como seduzir Barley.

Para instalar a fortaleza, Ned tinha escolhido uma bela casa de campo eduardiana em Knightsbridge, uma área de Londres onde Barley não tinha quaisquer amigos ou conhecidos. Clive não gostou do preço, mas como eram os americanos a pagar as suas reticências não faziam sentido. A casa ficava num beco, a menos de cinco minutos dos Harrods. Fui eu que a aluguei, em nome do Grupo de Investigação e Acção Ética, uma associação caritativa que registara anos antes e que entretanto suspendera as suas actividades à espera de melhores dias. Uma governanta dos Serviços especialmente simpática, Miss Coad, ficou à frente da casa depois de ter cumprido todas as formalidades relacionadas com a operação Ave Azul. O piso de cima, constituído pelo quarto das crianças, foi convertido numa modesta sala de conferências e, tal como todas as outras divisões, confortáveis e bem mobiladas, ficou recheado de microfones.

"Esta será a sua casa enquanto isto durar", disse Ned a Barley, enquanto lha mostrávamos. "Aqui é o seu quarto, para o caso de precisar, esta é a sua chave. Utilize o telefone à vontade mas olhe que nós vamos ouvir as conversas. Por isso, se for algum assunto privado, recorra à cabina no outro lado da rua.”

Por precaução, tinha pedido também autorização ao Ministério do Interior para pôr sob escuta a cabina telefónica. Com a justificação de sempre: interesses americanos muito fortes.

Como não éramos grandes amantes de dormir, Barley e eu ficávamos a jogar xadrez depois de todos os outros se terem ido deitar. Ele era um adversário impulsivo e frequentemente brilhante, mas faltava-lhe a minha veia calculista e, por outro lado, eu sabia muito mais das suas fraquezas do que ele das minhas. Afinal eu tinha lido o seu processo. Mas mesmo assim lembro-me de alguns jogos em que ele num ápice percebeu tudo e com três ou quatro jogadas e um berro de gozo me forçou a resignar.

"Apanhei-o, Harry! Peça já desculpa! Que vergonha!" Mas quando recomeçávamos, era visível que ficava impaciente. Começava a andar de um lado para o outro e a dar estalos com os dedos enquanto a sua mente se ausentava para mais uma das suas viagens.

"É casado, Harry?" "Sou, mas não pareço", retorqui. "O que é que isso quer dizer?" "Tenho uma mulher no campo e vivo na cidade." "Há muito tempo?" "Há uma eternidade", disse eu descuidadamente, de imediato arrependido por não ter dado outra resposta.

"Ama-la?" "Meu caro amigo! ", repliquei eu. No entanto o seu olhar fixo significava que queria uma resposta. "Creio que sim. À distância. Sim, amo-a", acrescentei, relutante.

"E ela, retribui?" "Estou convencido disso. Há muito tempo que não lho pergunto. " "Criancinhas?" "Um rapaz. Já vai nos trinta." "Vê-o regularmente?" "Recebo um postal de boas-festas pelo Natal, vejo-o em funerais e casamentos. À nossa maneira somos bons amigos.”

"O que é que ele faz?" "Em tempos andou de namoro com as leis, agora faz dinheiro." "E é feliz?" Estava a ficar irritado, coisa que já não me acontecia há muito tempo. Ele não tinha nada a ver com as minhas definições de felicidade e amor. Não passava de um caloiro. Eu é que tinha o direito de indagar, de o enlear, o contrário não estava previsto. Mas o mais invulgar de tudo era que eu deixava transpareçer a minha irritação. Mas a verdade é que deixava, pois dei com ele fitando-me inquieto, pensando decerto que tinha mexido sem querer em alguma tragédia familiar. Depois, corou e afastou-se, procurando um outro tema capaz de nos distrair, de salvar uma situação para ambos difícil.

"Ele não rejeita o seu papel, é o que eu acho, sir", disse a Ned um tal Mr. Candyman, especialista na última novidade em microfones. "Não digo que tenha o temperamento certo para a função, mas a verdade é que escuta com toda a atenção e quanto à memória, ali, a memória é uma maravilha, não se esquece de nada." "É um cavalheiro, Mr. Ned, é do que eu gosto nele", comentou uma informadora, encarregada de ensinar a Barley os rudimentos das artes da rua. "É inteligente e tem imenso sentido de humor, o que, como eu costumo dizer, já é meio caminho andado para aprender a ter olho. “

Mais tarde, viria a confessar que tinha rejeitado as suas propostas amorosas, de acordo com as regras dos Serviços, mas que, graças a ele, se tornara uma devotada leitora de Scott Fitzgerald.

"Isto é só passes de mágica", declarou Barley, enfastiado, no final de uma extenuante sessão sobre as técnicas da escrita secreta. Mas mesmo assim via-se que tinha gostado.

E com a aproximação do dia fatal, a sua submissão foi-se tornando absoluta. Mesmo quando mandei chamar o guarda-livros dos Serviços, um verdadeiro estafermo chamado Christopher, que tinha consagrado cinco dias a uma aterradora inspecção dos livros da Abercrombie & Blair, Barley, ao contrário do que eu esperava, não se mostrou especialmente revoltado.

"Mas, Chris, não há editor que não esteja falido!", protestou, vagueando pela acolhedora sala de estar ao ritmo da sua própria agitação, agarrando com firmeza o copo de whísky, embora os seus joelhos fraquejassem quando dava passos mais longos. Os tubarões como o Jumbo comem as folhas e nós roemos a casca." E,imitando os alemães: "Vocês têm os vossos métodos, nós temos os nossos.”

Mas tanto eu como Ned ficámos preocupados. E Chris também. A operação tinha de correr bem e tínhamos medo que Barley abrisse falência a meio dos acontecimentos. Um medo de pesadelo.

"Mas, para que é que eu hei-de querer o raio de um editor?!", exclamou Barley, gesticulando com os martirizados óculos. "Eu não posso pagar o raio de um editor. As minhas santas tias de Ely põem no prego as jarreteira1 se eu contratar o raio de um editor!”

Mas nessa altura já eu tinha sondado e convencido as santas tias. De facto, durante um almoço em Rules, conseguira vencer todas aç resistências de Lady Pandora Weir-Scott, a quem Barley chamava a Vaca Sagrada, por causa do seu fervor pela High Church1. Investido do papel de Pontífice do Foreígn Office, expliquei-lhe, com os maiores segredos, que a Abercombrie & Blair ia receber, por debaixo da mesa, uma doação RockfelIer destinada à promoção das relações culturais anglo-soviéticas. Mas ela que não dissesse uma palavra, pois caso contrário lá ia o dinheiro parar a uma editora que o merecesse.

"Bom, a mim quer-me parecer que eu mereço esse dinheiro mais do que qualquer pessoa", asseverou Lady Pandora, espetando os cotovelos para extrair o que ainda restava da sua lagosta. "Esperimente governar Ammerford com trinta mil por ano e vai ver se eu não mereço.”

 

Ordem da Jarreteira, a mais elevada das condecorações inglesas. High Church, grupo conservador e ritualista da Igreja Anglicana que mais se aproxima dos católicos apostólicos romanos. (N. do T.)

No original, o termo é "on que, aos ouvidos puristas de Barley, soa evidentemente mal. Em português não há uma equivalência que resulte tão bem como o original, com todas as implicações do original. "Constante", "contínuo" ou mesmo "continuado" são termos que não suscitariam a irritação de um purista. (N. do T.)

 

Maliciosamente, perguntei-lhe se podia abordar o sobrinho com total segurança.

"Nem pense nisso! Deixe-o comigo. Ele não distingue dinheiro de esterco e além disso não consegue mentir, seja em que circunstância for. “

A necessidade de providenciar um zelador para o escritório de Barley parecia de súbito mais urgente. "Você pôs um anúncio no jornal pedindo um funcionário", explicou Ned, mostrando a Barley um pequeno anúncio publicado na imprensa cultural dos últimos dias. Editora britânica com nome firmado procura leitor de russo qualificado tendo em vista promoção a editor, 25 a 45 anos, ficção e temas técnicos, curriculum vitae.

E no dia seguinte, Leonard Cari Wikclow apresentou-se para a entrevista nas muito hipotecadas instalações da Abercrombie & Blair, NorfoIk Street, Strand.

"Está aqui um anjo e é para si, Mr. Barley", ribombou a voz encharcada em gin de Mrs. Duribar, através do velho intercomunicador. "Digo-lhe que vá já?”

Um anjo com clipes de ciclista e mochila às costas. Um rosto perfeitamente angélico, sem um único sinal de preocupação, caracóis angelicamente louros. Olhos azuis de anjo, de que toda a maldade estava ausente. Um, nariz angélico, tão misteriosamente torto que apetecia dar-lhe um abanão e pô-lo direito. Ned tinha pedido a Barley que o entrevistasse da forma mais normal possível. Leonard Carl Wicklow, nascido em Brigliton, em 1964, diplomado com distinção. Estudos Eslavos e Leste-Europeus. Universidade de Londres.

"Ah, é você, entre. óptimo. Sente-se", rosnou Barley. "Diga-me uma coisa... o que é que o atrai nesta profissão? Olhe que a edição é um negócio absolutamente nojento ... ". Barley tinha almoçado com a mais estridente das suas romancistas e ainda estava a digerir a experiência.

"Bom, na realidade, sir, tenho pela edição um interesse continuado. Desde há muito tempo", disse Wicklow com um sorriso de angélico entusiasmo.

"Bom, se ficar a trabalhar connosco certamente deixará de ter um interesse continuado”, avisou Barley, irritado com aquele inopinado atropelo à língua inglesa. "É provável que persista. Pode ser que resísta. Até pode acontecer que triunfe. Mas pode estar certo que, enquanto eu estiver ao leme, não terá pela edição um interesse continuado.”

"Ainda não percebi se aquele maladrim ladra ou ronrona", resmungou Barley em conversa com Ned, nessa mesma noite, em Knightsbridge, enquanto subíamos os três as estreitas escadas da casa de campo para a reunião diária com Walter.

"Olhe que faz ambas as coisas muito bem", retorquiu Ned. Os seminários de Walter deixavam Barley perfeitamente subjugado. Era um êxito todos os dias. Barley gostava de pessoas frágeis, de pessoas cuja atitude perante a vida revelasse sempre insegurança, e Walter tinha o ar de quem se ia despenhar da ponta do mundo sempre que se levantava da cadeira. Falavam das artes do ofício, de teologia nuclear, da aterradora história da ciência soviética de que a Ave Azul fosse ela quem fosse era inevitavalmente herdeira. Walter era demasiado bom professor para revelar sobre que assunto dissertava, e Barley era um aluno demasiado interessado para se permitir perguntar-lho.

"Controlo?", gritava-lhe indignado Walter, o ás dos falcões. "Diga-me sinceramente se há distinção possível entre controlo e desarmamento, seu pateta! Minorar a crise mundial?! Foi isso o que eu ouvi? Mas onde é que leu esse disparate? No Guardian? Os nossos dirigentes adoram as crises. Festejam as crises. Os nossos dirigentes passam o tempo às voltas pelo mundo à procura de crises, pois só assim conseguem excitar as suas gemebúndas!”

E Barley, longe de ficar ofendido, esticava-se todo na cadeira, atento e deliciado, gemia e aplaudia e chorava por mais. Por vezes rebatia Walter. Saltava da cadeira e com um passo pesado percorria a sala, gritando "Mas espera aí, que raio! -Há um mas. " Tinha a memória e a capacidade necessárias, como Walter previra. E a sua virgindade científica não resistira ao primeiro assalto, quando Walter fez a sua conferência introdutória acerca do equilíbrio do terror, conseguindo transformá-lo num inventário de todas as loucuras da humanidade.

"Não há saída possível", anunciou, certo dia, com um ar perfeitamente satisfeito. "E não são os sonhos e as fantasias que vão produzir essa saída, O demónio não voltará ao seu frasco, a confrontação será para todo o sempre, o abraço estreita-se cada vez mais e de geração em geração os brinquedos vão-se tornando cada vez mais engenhosos e nenhum dos dois lados terá alguma vez segurança que baste. Nem os manda chuvas, nem os sacaninhas dos recém-chegados ao clube que todos os anos arrecadam mais uma bombazinha. Estamos cansados de acreditar nisso, porque somos humanos. Podemos até cair na ilusão de que a ameaça acabou. Nunca acabará. Nunca, nunca, nunca.”

"Então quem é que nos salva, Walt?", perguntou Barley. "Você e o Nedsky?”

"Se alguma coisa nos salvar será decerto a vaidade, mas duvido que

haja salvação", retorquiu Walter. "Nenhum dirigente quer ficar na história como a besta que destruiu o seu país numa tarde. E medo também, suponho. A maior parte dos nossos garbosos políticos opõem de facto uma objecção narcisista ao suicídio, e graças a Deus que assim é.”

 

“ Ned, com a terminação "sky", referência usual em nomes russos (também adoptada em "Russki" ou "Russky", termo coloquial para "Russo"). (N. do T.)

 

"Tirando a vaidade e o medo, não há qualquer esperança?" "Para o homem, não", retorquiu satisfeito Walter, e a resposta não era surpreendente, vinda de um homem que por mais de uma vez tinha considerado a hipótese de receber ordens sacras em vez das dos Serviços.

"Então qual é o objectivo de Goethe?", perguntou Barley noutra altura, num tom exasperado.

"Ah, salvar o mundo, sem dúvida. Todos nós gostaríamos de salvar o mundo.”

"Salvá-lo, como? Qual é a mensagem dele?" "Isso cabe-lhe a si descobrir, não?" "Mas o que é que ele nos disse até agora? Porque é que eu não posso saber?”

"Meu caro amigo, não seja tão infantil", exclamou Walter com um ar arrogante, mas Ned interveio rapidamente.

"Você sabe tudo o que precisa de saber", disse ele com uma autoridade calma. "Você é o mensageiro. É para isso que você está equipado, é isso que ele quer que você seja. Ele disse-nos que há muitas coisas que não funcionam no lado soviético. Pintou um quadro de fracassos a todos os níveis inexactidões, incompetência, uma administração deficiente e, a juntar-se a tudo isso, resultados falsificados de testes enviados para Moscovo. Pode ser verdade mas também pode ser que ele tenha inventado tudo. Ou talvez alguém o tenha inventado por ele. De qualquer modo trata-se de uma história muito estranha.”

"E nós achamos que é verdade?", persistiu teimosamente Barley. "Isso você não pode saber." "Porque não?" "Porque debaixo de interrogatório toda a gente fala. Os heróis já acabaram. Você fala, eu falo. Walter fala. Goethe fala, ela fala. Por isso, se lhe dizemos o que sabemos acerca deles, arriscamo-nos a comprometer a nossa capacidade de os espiarmos. Conhecemos algum segredo deles? Se a resposta é não, então eles ficam a saber que nos falta o software, ou o mecanismo, ou a fórmula, ou a estação subterrânea supersecreta que nos permitiria conhecê-lo. Mas se a resposta é sim, então eles reagem de forma evasiva, para que nós não continuemos a observá-los e a escutá-los utilizando esse método.”

Barley e eu estávamos a jogar xadrez enquanto a conversa decorria.

"Então acha que o casamento só funciona havendo alguma distância entre os dois envolvidos?", perguntou-me, reatando a nossa conversa como se nunca a tivéssemos abandonado.

"O casamento não sei, mas o amor, de certeza", retorqui com um estremecimento exagerado e mudei rapidamente para assuntos menos íntimos.

Na noite antes da partida, Miss Coad preparou uma truta salmonada e poliu a baixela de prata. Bob foi convidado e apareceu com um belíssimo whisky e duas garrafas de Sancerre. Mas às nossas festividades reagiu Barley com a mesma disposição introspectiva, até que o animado Sermão Final de Walter o salvou das garras da melancolia.

"A questão é porquê", trilou subitamente Walter, a sua excêntrica voz enchendo toda a sala, enquanto se servia do meu copo de Sancerre. "É isso que nós queremos saber. O porquê. Não a substância, mas o motivo. Porquê? Se acreditamos no motivo, acreditamos no homem. E então acreditaremos no seu material. No princípio não foi o verbo, não foi o acto, não foi a estúpida da serpente. No princípio foi porquê? Porque é que ela colheu a maçã? Estava chateada? Curiosa? Pagaram-lhe para isso? Foi Adão que a incitou? Se não foi ele, quem foi então? O Diabo é sempre a capa, o disfarce de qualquer mulher. Ignoremo-lo. Será que ela serviu de fachada a alguém? Não basta dizer, "porque a maçã estava ali". Essa resposta pode servir para o Evereste. Pode servir para o Paraíso. Mas não serve para o caso de Goethe e não serve para nós e decerto não servirá para os nossos garbosos aliados americanos, não é verdade, Bobby?”

E quando todos nós desatámos a rir, Walter cerrou os olhos e a sua voz soou ainda mais estridente.

"Pegue-se no caso da encantadora Katya! Porque é que Goethe a escolheu precisamente a ela? Por que motivo a levou a arriscar a sua vida? E porque é que ela lho permitiu? Não sabemos. Mas temos de saber. Temos de saber tudo o que pudermos acerca dela porque, na nossa profissão, os correios são a mensagem. Se Goethe é sincero, então a cabeça dela corre perigo. Disso não há dúvida. Se ele não é sincero, que poderemos então concluir acerca dela? Que inventou toda esta história? Será que ela está realmente em contacto com ele? Estará em contacto com outra pessoa e, sendo assim, com quem?" Espetou um indicador flácido na direcção de Barley. "É aqui que você entra. Goethe pensará que você é um espião? Ter-lhe-ão dito os outros que você era um espião? O que você tem de ser é um hamster. Armazene tudo o que puder. Deus o ajude a si e a todos os que, simbolicamente, vão consigo.”

Discretamente, enchi outro copo e bebemos. Lembro-me do profundo silêncio que então se fez. Ouviam-se perfeitamente os sinos do Big Ben flutuando por sobre o rio desde Westminster.

Só às primeiras horas da manhã, quando a partida de Barley já pouco demorava, é que lhe permitimos dar uma vista de olhos pelos documentos que com tanto empenho exigira em Lisboa os cadernos de Goethe, recriados em fac-símile por Langley, em draconianas condições de sigilo, incluindo as grossas lombadas de cartão russas e as gravuras das capas mostrando crianças soviéticas encaminhando-se alegremente para a escola.

Recebendo silenciosamente os cadernos com ambas as mãos, Barley voltou nesse momento a ser o editor enquanto nós assistíamos curiosos à sua transformação. Abriu o primeiro caderno, espreitou para dentro, sentiu-lhe o peso e fez correr apressadamente as folhas, como se estivesse a calcular quanto tempo demoraria a lê-lo. Pegou depois no segundo, abriu-o numa página ao acaso, e vendo as linhas muito juntas pôs uma cara queixosa, certamente porque o texto, além de manuscrito, usava só um espaço e não dois.

Depois vagueou pelos três cadernos, saltando de ilustração para texto e de texto para efusão literária, com a cabeça rigidamente inclinada para trás e para o lado, como se estivesse determinado a reservar a sua opinião.

Porém, quando ergueu a cabeça, reparei que os seus olhos não estavam ali, e que fitavam talvez uma longínqua montanha que só ele poderia ver.

Uma busca de rotina ao apartamento de Barley em Hampstead, conduzida por Ned e Brock após a sua partida, não revelou qualquer pista importante relativamente ao seu estado de espírito. Encontraram um caderno velho em que ele costumava tomar notas, sobre a sua secretária, no meio de uma impressionante confusão de papéis. As últimas notas pareciam recentes, e a mais significativa talvez fosse um dístico retirado da última obra de Stevie Smith.

"Tenho menos medo da noite escura Do que dos amigos que não conheço." Escrupulosamente, Ned incluiu a citação no processo, mas recusou-se a concluir fosse o que fosse. Talvez Barley fosse muito simplesmente um tipo que não ficava minimamente nervoso na véspera da sua primeira aventura.

E nas costas de uma conta velha que estava no cesto dos papéis, Brock descobriu uma citação que mais tarde descobriu ser de Roethke, e que, por obscuras razões do seu foro íntimo, só mencionara algumas semanas depois.

"É caminhando que aprendo o rumo do meu caminho.”

 Katya acordou sobressaltada e, como depois se convenceu, com a imediata consciência de que aquele era o dia aprazado. Era uma soviética emancipada, mas de superstição não conseguia livrar-se.

"Estava marcado", disse para si mesma, mais tarde. Pelas cortinas coçadas passava um sol pálido, espreitando por entre os quartéis de cimento daquele subúrbio a norte de Moscovo. À sua volta, os blocos de apartamentos com fachadas de tijolo, cheios de roupa a secar, erguiam-se para um céu vazio como gigantes cor-de-rosa vestidos de andrajos.

É segunda-feira, pensou. Estou na minha cama e não na rua. A rua era no sonho.

Por um momento deixou-se ficar quieta, perscrutando o seu mundo secreto e tentando libertar a mente dos maus pensamentos. Vendo que os seus esforços não resultavam, saltou da cama e, impulsivamente, como fazia com quase tudo, avançou com extrema perícia entre a roupa pendurada e os acessórios arruinados da casa de banho, entrou na banheira e tomou um duche.

Landau tinha razão, Katya era de facto uma bela mulher. O seu corpo alto era cheio mas sem sombra de gordura, com uma cintura pronunciada e pernas fortes. Tinha um cabelo preto luxuriante, de uma beleza selvagem quando não lhe apetecia arranjá-lo. O rosto era travesso e ao mesmo tempo inteligente e parecia animar tudo à sua volta. Vestida ou nua, todos os seus gestos primavam pela graciosidade.

Terminado o duche, fechou as torneiras tanto quanto era possível. Para que a água não ficasse a pingar, deu-lhes uma martelada com um martelo de madeira em cuja cabeça estava escrito "Toma lá esta!". Cantarolando para si mesma, pegou num pequeno espelho e voltou ao quarto para se vestir. De novo a rua: onde ficava aquela  rua? Leninegrado? Moscovo? O duche não tinha apagado o sonho.

O quarto era muito pequeno, a mais pequena das três divisões que constituíam o seu reduzido apartamento, uma alcova com um armário e uma cama. Mas Katya estava habituada àqueles limites e os movimentos rápidos com que penteava o cabelo, com que o enrolava e prendia, possuíam uma elegância cuja sensualidade não tinha nada de estudado. Claro que o apartamento seria muito mais pequeno se Katya não tivesse direito a vinte metros extra por causa do seu trabalho. O tio Matvey valia mais nove metros; os gêmeos e o engenho dela tinham feito o resto. Não podia queixar-se.

Talvez fosse uma rua de Kiev pensou, lembrando-se de uma recente visita a essa cidade. Não. As ruas de Kiev são largas, a minha era estreita.

Enquanto se vestia, o prédio começou a acordar e Katya distraiu-se de bom grado a identificar os rituais do mundo normal. O primeiro som veio do apartamento ao lado: o despertador dos Goglidzes soando as seis e meia, seguido dos latidos dos doidos dos borzop pedindo rua. Coitados dos Goglidzes, pensou, tenho de lhes dar uma prenda. No mês anterior, Natasha tinha perdido a mãe e na sexta-feira o pai de Otar tinha ido à pressa para o hospital com um tumor no cérebro. Vou-lhes dar um frasco de mel, pensou e nesse mesmo instante pôs um sorriso irónico para um antigo amante, um pintor dissidente que, contra todas as leis da Natureza, tinha decidido manter um enxame de abelhas no telhado da sua casa, numa zona para lá do Arbat. Garantiam os amigos que esse pintor a tinha tratado o pior possível. Mas Katya, interiormente, sempre o defendera. No fim de contas ele era um artista, talvez um gênio. Era um belíssimo amante e, entre os seus acessos de fúria fora capaz de fazê-la rir. Acima de tudo, Katya amara-o porque ele conseguira o impossível.

Depois dos ruídos dos Goglidzes veio o choro da filha dos Volkhovs, que tinha os dentes a rebentar. Um segundo depois, através do soalho, ressoava a batida da aparelhagem japonesa, acabada de comprar, e que despejava o último rock americano. Como é que eles arranjavam dinheiro para aquilo?, pensou Katya, reincidindo na empatia Elizabeth andava sempre grávida e Sasha ganhava cento e sessenta mensais: como era possível? Depois dos Volkhovs, surgiram os barulhos dos Karpovs, os antipáticos Karpovs, para eles só a Rádio Moscovo. Uma semana antes, a varanda deles ruíra, matando um polícia e um cão. Os brincalhões do prédio tinham proposto que se fizesse uma colecta para o cão.

Mas nesse momento ela era já Katya, a abastecedora. Às segundas-feiras era possível obter galinhas e legumes frescos, vindos do campo, por vias privadas, durante o fim-de-semana. A sua amiga Tanya tinha um primo que funcionava informalmente como intermediário de pequenos agricultores. Tenho de telefonar à Tanya.

 

“ Galgos russos (N. do T.)

 

Enquanto pensava nisto, lembrou-se dos bilhetes para o concerto. Já tinha tomado uma decisão. Logo que chegasse ao escritório perguntaria pelos dois bilhetes para o concerto da Filarmónica, que o editor Barzin lhe tinha prometido como indemnização para as propostas desonestas que lhe fizera, completamente “bêbedo, na festa do Primeiro de Maio. Katya nunca tinha reparado sequer nos avanços dele, mas Barzin andava sempre a torturar-se fosse com o que fosse, e quem era ela para poder mitigar a sua culpabilidade em especial se esta assumia a forma de dois bilhetes para um concerto?

À hora do almoço, depois das compras, negociaria os bilhetes com Morozov, o porteiro, que lhe tinha prometido vinte e quatro sabonetes importados, embrulhados em papel ornamental. Com os sabonetes compraria a peça de tecido verde axadrezado, de pura lã virgem, que o gerente da loja de tecidos guardava para ela no armazém. Katya recusava-se terminantemente a pensar nas razões que o levariam a guardar-lhe a peça. Nessa tarde, depois da recepção húngara, passaria o tecido a Olga Stanislavsky, a qual, em troca de favores a serem negociados, faria duas camisas à cowboy na máquina de costura leste-alemã que trocara recentemente pela antiga Singer da família. As camisas eram para o aniversário dos gêmeos. E talvez sobrasse tecido suficiente para pagar umas consultas privadas no dentista. Os gêmeos bem precisavam.

Portanto, adeus ao concerto. Estava decidido.

O telefone estava na sala de estar, onde dormia o tio Matvey. Um telefone que era uma preciosidade, vermelho, fabricado na Polónia. Volodya surripiara-o da fábrica e tinha tido a generosidade de não o levar quando dera a escapada final. Nos bicos dos pés, para não acordar Matvey e lançando-lhe um olhar terno, já que Matvey fora o irmão favorito do pai dela -, Katya pegou no telefone e encaminhou-se para o corredor. Chegada ao quarto, sentou-se na cama e começou a ligar ainda sem ter decidido com quem falaria em primeiro lugar.

Durante vinte minutos fez a ronda dos amigos, trocando sobretudo mexericos acerca dos sítios onde era possível fazer as compras, mas falando também de coisas mais íntimas. Por duas vezes o telefone tocou logo a seguir a tê-lo desligado. Aquele realizador de cinema checo de quem tanto se fala agora tinha estado no Zoya a noite anterior. Um homem devastador, dissera Alexandra, tinha de tomar uma decisão quanto à sua vida, tinha de lhe telefonar, mas que pretexto poderia usar? Katya matutou e deu-lhe uma ideia. Três escultores de vanguarda, até então banidos, iam expor na União dos Trabalhadores Ferroviários. Porque não convidá-lo para a acompanhar à exposição? Alexandra ficara encantada. Era Katya quem tinha sempre as melhores ideias.

O mercado negro dos bifes era todas as quintas feiras à noite, nas traseiras de um camião-frigorífico que esperava os compradores  na estrada para Sheremetyevo, anunciou Lyuba; pergunta por um tártaro chamado Jan, mas não o deixes aproximar-se de ti! Havia ananás de Cuba numa loja atrás da rua Kropotkin, disse Olga; diz que vais da parte do Dimitri e paga o dobro do que eles pedirem.

Ao desligar, Katya descobriu que já estava farta do livro americano sobre desarmamento que Nasayan lhe tinha emprestado. Nasayan era o novo editor da secção de ensaios e outros da Outubro. Ninguém gostava dele, ninguém compreendia como tinha ficado com aquele cargo. Mas toda a gente notara que era ele quem ficava com a chave de uma copiadora, o que desde logo o catalogava como membro das mais negras hostes da burocracia. Katya tinha a estante no corredor, a abarrotar de livros desde o soalho ao tecto. Não foi fácil encontrá-lo. Aquele livro era um cavalo de Tróia. Queria-o fora de casa, e com o livro ia Nasayan.

"Vai alguém traduzi-lo?", perguntara-lhe Katya com um ar sério enquanto ele vagueava pelo gabinete dela, espreitando-lhe para as cartas, bisbilhotando a pilha de manuscritos que ela ainda não lera. "É por isso que quer que leia?”

"Achei que talvez lhe interessasse", replicou ele. "Você é mãe. E uma liberal, seja qual for o significado dessa palavra. Você deu nas vistas por causa de Chernobyl, e dos rios, e também dos arménios. Se não o quiser levar, não leve.”

Depois de descobrir finalmente o imprestável livro, entalado entre Hugh Walpole e Thomas Hardy, Katya embrulhou-o em papel de jornal e meteu-o na saca, que pendurou logo de seguida na maçaneta da porta, porque ultimamente lembrava-se e esquecia-se de tudo com a mesma facilidade.

A maçaneta que nós comprámos juntos na feira da ladra!, pensou, num acesso de compaixão. Volodya, meu pobre querido, meu intolerável marido, reduzido a acalentar a sua nostalgia histórica num apartamento comunal com mais cinco divorciados mal-cheirosos como ele!

Feitos todos os telefonemas, regou apressadamente as plantas e foi acordar os gêmeos. Estavam a dormir na diagonal numa cama que só dava para um. Fitou-os com enlevo, por um momento sem coragem para lhes tocar. Pôs então um sorriso, para que eles, ao acordarem, a vissem sorrir.

Durante a hora seguinte, Katya entregava-se-lhes totalmente: era assim que queria que fosse todos os dias. Fazia-lhes a kacha, descascava-lhes as laranjas e cantava canções meio             tontas com eles, acabando com a "Marcha dos Entusiastas", a favorita dos três, que rosnavam em uníssono, de cabeças baixas, como heróis da Revolução sem que as crianças soubessem que a melodia pertencia a uma marcha nazi. Depois de beberem o chá, Katya fazia-lhes a merenda, pão branco para Sergey, pão escuro para Anna, com uma almôndega dentro. Depois disso, abotoava os colarinhos de Sergey, ajeitava o lenço vermelho de Anna e dava-lhes um beijo, e nunca se esquecia de os pentear porque o director da escola era um pan-eslavista que pregava que a limpeza era um acto de homenagem ao Estado.

 

“ Kacha: papas de cereais. (N. do T.)

 

Finalmente agachou-se e abraçou os gêmeos, como fizera todas as segundas-feiras nas últimas quatro semanas.

"Então digam-me lá o que é que vocês fazem se a mamã não voltar a casa uma noite, se por exemplo tiver de ir a correr para uma conferência ou de ir visitar alguém doente?", perguntou Katya com um ar bem-disposto.

"Telefonamos ao papá e dizemos-lhe para vir ficar connosco", respondeu Sergey, libertando-se do abraço.

"E eu trato do tio Matvey", disse Anna. "E se o papá não estiver, o que é que fazem?" Começaram aos risinhos, Sergey porque a ideia o perturbava e Anna porque a excitava a perspectiva de uma calamidade.

"Vamos para a tia Olga!", exclamou Anna. "E depois mexemos no canário do relógio da tia! E pomo-lo a cantar!”

"E qual é o número de telefone da tia? És capaz de mo cantar?" Cantaram-no os três, perdidos de riso. Os gêmeos iam ainda a rir enquanto desciam as escadas fedorentas à frente da mãe. As escadas serviam de ninho de amor para os adolescentes e de bar para os alcoólicos e de casa de banho aparentemente para toda a gente, excepto para eles. De mãos dadas, avançaram pelo parque em direcção à escola. Katya no meio.

"E qual é o objectivo da tua vida, camarada ?", perguntou Katya a Sergey com uma ironia feroz, enquanto lhe apertava o colarinho uma vez mais.

"Servir o povo e o Partido com todas as minhas forças." "E?" "Não deixar que o Vitaly Rogov me roube o almoço!" E foi ainda a rir que os gêmeos se afastaram dela e subiram as escadas de pedra da escola. Katya acenou-lhes até eles desaparecerem.

No metro dedicou-se a observar tudo e toda a gente e os seus olhos pareciam perscrutar aquela paisagem com uma extrema clareza e como que ao longe. Reparou que os passageiros tinham todos um ar taciturno, como se ela própria não fosse um deles; parecia, por outro lado, que todos liam jornais de Moscovo, coisa que um ano antes teria sido impensável, pois um ano antes os jornais serviam apenas para substituir o papel higiénico e vedar correntes de ar. Noutro dia qualquer talvez Katya lesse também um jornal durante a viagem; e se não fosse um jornal, talvez um livro ou um manuscrito da sua mesa de trabalho. Mas naquele dia, apesar dos seus esforços para se libertar daquele estúpido sonho, Katya vivia demasiadas vidas ao mesmo tempo. Cozinhava sopa de peixe para o pai, como castigo da sua teimosia. Suportava uma lição de piano em casa da velha Tatyana, Sergey evna, que não deixava de censurar a sua pouca aplicação. Corria pela rua, incapaz de acordar. Ou então era a rua que corria atrás dela. Talvez por isso quase se tivesse esquecido de mudar de comboio.

Ao chegar aos escritórios, um prédio friamente moderno com a madeira lascada e o cimento húmido que, na sua opinião, mais parecia abrigar uma piscina pública do que uma editora estatal -, ficou surpreendida com a presença de trabalhadores martelando e serrando no hall, e por um segundo permitiu-se a terrível fantasia de que estavam a construir um cadafalso para a sua execução pública.

"A verba já é nossa", disse-lhe, ofegante, o velho Morozov, que tinha sempre uma palavra para ela. "O dinheiro foi-nos atribuído há seis anos. Finalmente agora houve um burocrata qualquer que fez o favor de assinar o despacho.”

O elevador estava em reparação, como era costume. Na Rússia, pensou Katya, os elevadores e as igrejas estão sempre em reparação. Subiu as escadas rapidamente, sem saber porque ia tão depressa, saudando alegremente todos os que precisavam de uma saudação alegre. Mais tarde, ao pensar na pressa com que subira as escadas, interrogou-se sobre se, inconscientemente, não teria adivinhado o toque do seu telefone. De facto, ao entrar no seu gabinete, lá estava o telefone a berrar, à espera de uma mão que o acalmasse.

Pegou no auscultador e ainda ofegante respondeu com um "Ta", mas era evidente que a resposta não deveria ter sido em russo, já que a primeira coisa que ouviu foi uma voz perguntando em inglês por Madame Orlova.

"Sou eu", disse, também em inglês. "Madame Yekaterina Orlova?" "Quem fala?", perguntou com um sorriso. "Lord Peter Winisey?" Algum idiota dos meus amigos que resolveu brincar comigo. Deve ser o marido de Lyuba outra vez. Quer sair comigo, não me larga. Mas não era. De repente sentiu a boca seca.

"Bom, claro que você não me conhece. Chamo-me Scott Blair. Barley Scott Blair, da Abercrombie & Blair de Londres, editores, estou aqui em viagem de negócios. Ao que parece, Niki Landau. é nosso amigo comum. Niki fartou-se de insistir para que eu lhe telefonasse. Como tem passado?”

"E o senhor, como tem passado?", disse Katya, ouvindo-se a si mesma, sentindo uma nuvem de calor percorrendo-a de alto a baixo e uma dor no meio do estômago mesmo abaixo da caixa torácica. Nesse mesmo momento Nasayan entrou no gabinete, de mãos nos bolsos e com a barba por fazer, que era a sua maneira de mostrar profundidade intelectual. Ao ver que ela estava a falar, curvou os ombros e fitou-a com uma expressão de amuo e ressentimento, desejoso de que Katya, desligasse.

"Bonjour, Katya Borisovna", disse num tom sarcástico. Mas a voz ao telefone voltava a falar, decidida a não a largar. Era uma voz forte, o que a levou a pensar que se tratava de um homem alto. Era uma voz confiante, por isso devia pertencer a um homem arrogante, um daqueles ingleses que usam fatos caros, que não têm qualquer cultura e que andam sempre com as mãos atrás das costas.

"Bom, vou dizer-lhe porque é que decidi telefonar-lhe", dizia a voz do outro lado. "Parece que o Niki lhe prometeu procurar umas edições antigas de Jane Austen com os desenhos originais. É isso, não é?" Não lhe deu tempo de responder. "Acontece que eu trouxe alguns desses livros por acaso são uma maravilha e gostaria de saber se poderíamos marcar um encontro num local que conviesse aos dois. “

Cansado da sua carranca, Nasayan pôs-se a mexer nos papéis que estavam sobre a secretária, como era aliás seu hábito.

"É muito simpático da sua parte", disse ela de boca colada ao bocal, falando o mais baixo possível. No seu rosto não havia qualquer expressão, era um rosto sem vida, um rosto oficial. Era o rosto para Nasayan. À sua mente ninguém teria acesso. Só ela.

"Niki mandou-lhe também uma tonelada de chá Jackson's", prosseguiu a voz.

"Uma tonelada?", disse Katya. "De que está a falar?" "Para ser sincero, eu nem sabia que ainda havia chá Jackson's. Eles tinham uma loja óptima em Piccadilly, a pouca distância do Hatchard's. Mas voltando ao que interessa, trouxe-lhe três tipos de chá diferentes que, aliás, estão mesmo aqui à minha frente.”

Nesse momento a voz desapareceu. Prenderam-no, pensou ela. Ele núnca telefonou. Estou outra vez no sonho. Meu Deus, que faço eu a seguir?

" ... Assam, Darjeeling e Orange Pekoe. Mas que raio será um peco”? A mim parece-me o nome de um pássaro exótico.”

"Não sei. Suspeito que seja uma planta." "Suspeito que tem razão. Bom, mas a questão é, como é que lhe vou dar isto? Vou ter consigo a algum sítio? Ou será que você pode passar pelo hotel para bebermos um copo e fazermos uma apresentação formal?”

Katya começava a apreciar a prolixidade de Barley. Estava a dar-lhe tempo para se acalmar. Passou com os dedos pelo cabelo, descobrindo, para sua surpresa, que ainda o tinha em ordem.

"Não me disse em que hotel estava", objectou com voz severa. Nasayan abanava a cabeça em sinal de reprovação. "Calcule só! É perfeitamente ridículo, tanto tempo a falar e esqueci-me do hotel. Estou no Odessa, conhece? Fica ao cimo da rua dos antigos balneários públicos. Gosto muito deste hotel. Sempre que venho a Moscovo, procuro marcar quarto no Odessa, mas nem sempre é possível. Durante o dia tenho o tempo muito ocupado com reuniões é sempre assim nestas viagens a correr mas as noites neste momento estão relativamente livres, se para si estiver bem. Que tal hoje à noite? Assim não deixamos para amanhã o que podemos fazer hoje. Está de acordo?”

 

Pekoe, variedade de chá. (N. do T.)

 

Nasayan acendeu um dos seus imundos cigarros, embora no escritório toda a gente soubesse que ela odiava o tabaco. Depois de o acender, suspendeu-o no ar e sorveu o fumo com os seus lábios femininos. Katya fez-lhe um trejeito de repulsa, mas ele ignorou-a.

"Perfeitamente de acordo", disse Katya no tom mais militar que lhe era possível. "Esta noite tenho de ir a uma recepção oficial nessa zona. É uma recepção em honra de uma importante delegação da Hungria", acrescentou, sem saber ao certo quem pretendia impressionar. "Há muitas semanas que a estamos a preparar.”

"óptimo. Maravilhoso. Sugira uma hora. Seis? Oito? Qual é a melhor hora para si?”

"A recepção é às seis horas. Talvez possa aparecer às oito e um quarto.“

"Pois fica oito e um quarto. Não se esqueceu do nome, não? Scott Blair. Scott como o Antárctico, Blair como uma trompete. Sou alto e feio, tenho à volta de duzentos anos, com óculos que não me deixam ver nada. Mas Niki disse-me que você era a réplica soviética da Vênus de Milo, de maneira que deve ser fácil reconhecê-la.”

"Isso é perfeitamente ridículo!", exclamou ela, rindo apesar de tudo o que sentia.

"Então eu espero por si no hall do hotel. Mas também lhe podia dar o número de telefone do meu quarto para o caso de haver qualquer desencontro. Tem um lápis à mão?”

Quando desligou, foi a explosão. Não podia mais conter os sentimentos contraditórios que se acumulavam desde que Nasayan entrara. Olhou-o com uns olhos chamejantes.

"Grigory Tigranovich. Seja qual for a sua posição aqui, não tem o direito de andar a rondar o meu gabinete, de andar a vasculhar na minha correspondência, nem de ouvir as minhas conversas telefónicas. Tem aqui o seu livro, leve-o. Se tem alguma coisa a dizer-me, diga-mo mais tarde.”

Depois pegou numa pilha de folhas, uma tradução de um livro sobre as realizações das cooperativas agrícolas cubanas. Com as mãos frias, começou a passar as folhas como se estivesse a contá-las. Só uma hora depois telefonou a Nasayan.

"Desculpe a minha irritação", disse ela. "Um grande amigo meu morreu este fim-de-semana. Não estava em mim.”

À hora do almoço, já tinha mudado de planos. Morozov podia esperar pelos bilhetes, o gerente da loja pelos sabonetes, Olga Stanislavsky pelo tecido. Andou a pé um bom bocado, apanhou depois um autocarro, e não um táxi. Saiu do autocarro, de novo caminhou, passando pátios e mais pátios, até que encontrou o forte arruinado de que andava à procura, bem como a álea em frente. "É aí que me pode contactar quando precisar de mim", tinha ele dito. "O porteiro é meu amigo. Não saberá sequer quem fez o sinal. “

Tem de acreditar no que está a fazer, lembrou-se Katya. Acredito. Se acredito. Levava o postal ilustrado na mão, um Rembrandt do Hermitage de Leninegrado. "Amor para todos vós", dizia a mensagem, assinada "Alina", com um coração por baixo.

Tinha encontrado a rua. Parou. Era a rua do pesadelo. Tocou à campainha, três vezes, depois meteu o postal por debaixo da porta.

Uma manhã de Moscovo perfeita, cheia de luz e vida, um ar lavado, um dia capaz de apagar todos os pecados. Feita a chamada, Barley dirigiu-se para a rua. Chegado ao passeio, que o sol já aquecera, descontraiu punhos e ombros, olhou à sua volta e decidiu deixar vaguear a sua mente, deixar que a cidade afogasse os seus medos com todo aquele emaranhado de cheiros e vozes. O fedor da gasolina russa, do tabaco, dos perfumes baratos e das águas do rio eu te saúdo, maravilhoso fedor! Daqui a dois dias já não dou por ti. As cargas de cavalaria esporádicas dos autocarros eu vos saúdo, magníficas arremetidas! Os camiões castanhos, com o seu ruído de arrotos, ribombando sobre os buracos das ruas, ao despique uns com os outros. O lúgubre vazio que ficava entre cada leva de camiões. As límousines com as janelas de vidros esfumados, os prédios todos iguais, decadentes antés do tempo será um bloco de escritórios, um quartel ou uma escola? Rapazes de tez pálida fumando a esta ou àquela porta, esperando. Motoristas lendo jornais, encostados aos carros nos parques de estacionamento, esperando. O grupo silencioso de homens solenes, de chapéu todos, de olhos fixos numa porta fechada, esperando.

Porque é que isto sempre me atraiu?, perguntou para si mesmo, contemplando a sua vida no pretérito, o que nele era um hábito recente. Porque voltei sempre a esta terra? Sentia-se exultante, radiante, não podia deixar de se sentir assim. Não estava habituado ao medo.

Era porque eles sabiam enfrentar aquela vida, decidiu. Porque aguentavam a dureza da vida melhor do que nós. Porque amavam a anarquia e temiam o caos. Por causa da tensão que sentia existir entre esses dois sentimentos.

Porque Deus sempre encontrou desculpas para não os visitar. Por causa da sua ignorância universal e do fulgor que dela irrompe. Por causa do seu sentido de humor, tão bom como o nosso e melhor.

Porque eles são a última grande fronteira num mundo excessivamente descoberto. Porque eles desejam tanto ser como nós e quase do nada começam.

Por causa do coração infindo que bate nos infindos campos de batalha. Porque o campo de batalha é o meu próprio campo de batalha.

Talvez às oito e um quarto, dissera ela. Que ouvira ele naquela voz? Protecção? Mas protecção em relação a quem? A ela própria? A ele? A mim? Na nossa profissão, os correios são a mensagem.

A rua, o mundo, olhar a rua, o mundo, disse Barley para si mesmo. Só aqui na rua posso, devo estar.

Do metro saíam, com passos rápidos e decididos, raparigas com saias de algodão e rapazes com blusões de ganga, a caminho do trabalho ou da escola, de expressões taciturnas que, a uma palavra, se desfaziam em risos. Ao darem pelo estrangeiro, estudavam-no com olhares breves e frios os óculos redondos com lentes muito grossas, os sapatos feitos à mão já bastante gastos, aquele fato imperialista. Pelo menos em Moscovo, Barley Blair observava a etiqueta burguesa no vestir.

Juntando-se à multidão deixou que ela o conduzisse, pouco preocupado com o caminho que seguia. Em contraste com a sua disposição decididamente exuberante, as filas para comprar comida tinham um ar triste e irrequieto. Os heróis do trabalho e veteranos de guerra, vestidos com severidade, o peito cheio de medalhas retinindo ao sol, chegariam decerto atrasados, fossem para onde fossem. Mesmo a sua indolência parecia ter um tom de contestação. Na nova atmosfera que se vivia, não fazer nada era por si só um acto de oposição. Porque se não fizermos nada, não mudamos nada. E não mudando nada, agarramo-nos àquilo que entendemos, ainda que o que entendamos sejam as grades do nosso cárcere.

Talvez às oito e um quarto. Ao chegar ao largo rio, Barley voltou ao ritmo de passeio. Do outro lado, as cúpulas do Kremlin, dignas de contos de fadas, erguiam-se para um céu sem nuvens. Uma Jerusalém com a língua arrancada, pensou. Tantas torres e quase nenhum sino. Tantas igrejas e não se ouve uma oração.

Ao ouvir uma voz mesmo ao seu lado, virou-se subitamente e descobriu um velho casal, trajando a sua melhor roupa, que queria saber o caminho para um sítio qualquer. Mas Barley, o da memória perfeita, poucas palavras russas conhecia. Era uma música que ouvira já muitas vezes, mas cujos mistérios não conseguira ainda penetrar.

Riu-se e pôs um ar de desculpa. "Desculpe, meu amigo, mas não falo russo. Sou uma hiena imperialista. Inglês, calcule!”

O velho agarrou-lhe o pulso em sinal de amizade. Em todas as cidades estrangeiras que já visitara, era costume ser abordado por naturais que lhe perguntavam o caminho para sítios que não conhecia, em línguas que não compreendia. Só em Moscovo lhe agradeciam a ignorância.

Começou então a fazer o caminho de volta, parando frente a montras de vidros sujos, simulando examinar o que elas ofereciam ao olhar dos transeuntes. Bonecas de madeira pintadas. Para quem? Latas de fruta cheias de pó, ou seriam conservas de peixe? Pacotes amolgados pendurados de uma corda vermelha, um mistério o conteúdo, talvez pecos. Frascos com amostras médicas sortidas, iluminados por lâmpadas de dez watts. Estava de novo perto do hotel. Uma aldeã com olhos de bêbeda abordou-o, propondo-lhe um ramalhete de túlipas agonizantes, embrulhadas em papel de jornal.

"É tremendamente simpático da sua parte", exclamou e, vasculhando nos bolsos, pescou uma nota de um rublo.

Um Lada verde encontrava-se estacionado frente à entrada do hotel, com o radiador esmagado. Um cartão no pára-brisa tinha as iniciais VAAP, escritas à mão. O motorista, debruçado sobre o capô, retirava os limpadores, não fossem roubá-los.

"Scott Blair?", perguntou-lhe Barley. "Anda à minha procura?”

O motorista não lhe prestou a mínima atenção, continuando empenhado no seu trabalho. "Blair?", disse Barley. "Scott?”

"São para mim, querido?", perguntou-lhe Wicklow, atrás de si. "Está a portar-se bem", acrescentou calmamente. "Nada a apontar. “

Wicklow protegê-lo-á, tinha dito Ned. Wicklow será o primeiro a saber se alguém o segue. Mas haverá segundos?, perguntava-se Barley. Na noite anterior, logo depois de chegarem ao hotel, Wicklow tinha desaparecido e só voltara depois da meia-noite. Barley, antes de ir para a cama, assomou à janela e viu-o na rua a falar com dois jovens de jeans.

Entraram para o carro. Barley atirou as túlipas para a prateleira de trás. Wicklow sentou-se no banco da frente, e, num russo impecável, desatou numa alegre galhofa com o motorista, que não parava de rir. Wicklow ria também.

"Não me quer contar a anedota?",perguntou Barley. Wicklow não se fez rogado. "Perguntei-lhe se ele gostaria de conduzir a Rainha quando ela vier cá para a visita de estado. É que na Rússia há um ditado que diz, se roubares, rouba um milhão, e se fornicares, fornica uma rainha.”

Barley baixou a janela e com os dedos tocou uma melodia no peitoril. A vida era uma anedota até às talvez-oito-e-uni-quarto.

"Barley! Bem-vindo à Barbária, amigo. Por amor de Deus, homem, não me cumprimente aqui na entrada, já temos problemas que cheguem! Mas você está com um aspecto óptimo", queixou-se com algum alarme Alik Zapadny, quando tiveram tempo para se examinarem um ao outro. "Porque é que você não tem sinais de ressaca, 

Barley? Está apaixonado? Voltou a divorciar-se? O que é que você tem andado a tramar que precise de confessar-me?”

O rosto cansado de Zapadny examinava-o com uma inteligência desesperada, as sombras da reclusão estampadas para sempre nas suas faces encovadas. Quando Barley o conheceu, era Zapadny um tradutor duvidoso que caíra em desgraça e tinha de trabalhar sob pseudónimo. Agora era um duvidoso herói da reconstrução, com uma camisa branca e um fato preto demasiado grandes para o seu físico.

"Eu ouvi a Voz, Alik", explicou Barley, num acesso afectuoso enquanto lhe entregava uma pilha de números antigos do The Times embrulhados em papel castanho. "Vou para a cama às dez todas as noites, com um bom livro. Apresento-lhe Len Wicklow, o nosso especialista das coisas russas. Sabe mais acerca de si do que voce mesmo, não é verdade, Leonard Carl?”

"Bom, graças a Deus que há alguém que sabe mais de mim do que eu mesmo!", protestou Zapadny, tendo o cuidado de não desembrulhar a prenda. "Estamos a ficar muito inseguros, agora que o nosso grande mistério russo começa a ser desvendado em público. A propósito, Mr. Wicklow, sabe muito acerca do nosso novo patrão? Ouviu falar, por exemplo, da forma como ele resolveu reeducar os nossos trabalhadores? Pois. Acontece que ele tinha uma visão muito poética dos nossos cem milhões de trabalhadores subeducados que desejariam promover a sua cultura durante os tempos livres. Queria-lhes vender uma quantidade impressionante de títulos, que iam desde o ensino do Grego à trigonometria, passando por conselhos básicos sobre a lida da casa. Tivemos de lhe explicar que o homem da rua soviético se considera uma criatura finita e que, nos seus tempos livres, se dedica à bebedeira. Sabe o que é que acabámos por lhe comprar para ele não ficar triste? Um livro sobre golfe! Você não faz ideia da quantidade de valorosos cidadãos soviéticos que se sentem agora fascinados pelo vosso golfe capitalista." E à socapa, uma piada ainda perigosa "Não que haja muitos capitalistas por aqui. Ali, não, de modo nenhum.”

Eram dez, sentados a uma mesa amarela, sob um ícone de Lenine feito com madeira compensada, Zapadny falava, os outros ouviam e fumavam. Nenhum deles, ao que Barley sabia, tinha competência para assinar um contrato ou aprovar um negócio.

"Mas vamos lá ver, Barley, que disparate é esse que você anda para aí a espalhar de que veio cá para comprar livros soviéticos?", perguntou Zapadny em jeito de troca de galhardetes, erguendo as sobrancelhas arqueadas e juntando as pontas dos dedos à maneira de Sherlock Holmes. "Vocês, britânicos, nunca compram os nossos livros. Em contrapartida, fazem-nos comprar os vossos. Além disso, você está falido, pelo menos é o que dizem os seus amigos de Londres. A A. & B. vive do ar e do whisky escocês, é o que eles dizem. Pessoalmente acho uma dieta excelente. Mas por que razão veio? Em minha opinião, o que você quis foi um pretexto para nos visitar outra vez. “

O tempo passava. A mesa amarela flutuava sob os raios de sol. Uma nuvem de fumo de cigarro flutuava sobre a mesa. Pela cabeça de Barley flutuavam fotografias de Katya a preto e branco. O Diabo é a capa, o disfarce de qualquer mulher. Beberam chá em belas chávenas de Leninegrado. Zapadny formulava os avisos do costume contra os negócios directos com os editores soviéticos, seleccionando Wicklow como audiência: a velha guerra entre a VAAP e o resto do mundo continuava bem acesa. Dois homens pálidos aproximaram-se para ouvir e logo se foram embora. Wicklow, entretanto, ganhava simpatias distribuindo Gauloises azuis.

"Tivémos uma injecção de capital, Alik", disse Barley, desatento, longe dali. "Os tempos mudaram. A Rússia hoje é o que está a dar. Basta-me dizer aos rapazes do dinheiro que estou a fazer um catálogo de autores russos e desatam todos a correr atrás de mim, tanto quando podem com aquelas perninhas gordas e pequeninas que eles costumam ter. “

"Mas, Barley, essesrapazes, como você lhe chama, podem transformar-se em homens num instante", avisou Zapadny, o grande apreciador de sofismas, com um riso fresco e dócil. "Sobretudo quando estão a pensar no reembolso, quer-me parecer.”

"A coisa é como eu descrevi no meu telex, Alik. Talvez não tivesse tido tempo de o ler", disse Barley, mostrando alguma severidade. "Se tudo correr como planeámos, a A. & B. lançará ainda este ano uma colecção novinha em folha inteiramente consagrada às coisas russas. Ficção, não-ficção, poesia, literatura juvenil, ciências. Temos uma colecção nova de medicina popular, tudo em livro de bolso. Os temas viajam, bem como as reputações dos autores. Gostaríamos de contar com o contributo de médicos e cientistas soviéticos. Claro que não queremos livros sobre a criação de ovelhas na Mongólia Exterior ou viveiros de peixe no Círculo Polar Árctico, mas se vocês quiserem sugerir assuntos interessantes cá estamos nós para vos ouvir. Anunciaremos o nosso catálogo na próxima feira do livro de Moscovo e, se as coisas correrem bem, publicaremos os nossos primeiros seis títulos na próxima Primavera.”

"Desculpe, Barley, mas diga-me uma coisa, vocês têm actualmente peso no mercado ou estão à espera da intervenção divina como sempre aconteceu?", perguntou Zapadny com a sua aparatosa delicadeza.

Resistindo à tentação de dizer a Zapadny que tivesse mais cuidado com os seus modos, Barley porfiou. "Estamos a negociar um contrato de distribuição com vários editores importantes e em breve anunciaremos essa ideia. Exceptuando a ficção. Para a ficção, usaremos apenas a nossa extensa rede", disse, incapaz de se lembrar por que razão tinham negociado contrato tão bizarro ou mesmo se o tinham negociado.

"A ficção, sir, continua a ser a nau almirante da frota da A. & B.", explicou devotadamente Wicklow, evitando mais apuros a Barley.

"A ficção devia ser sempre a nau almirante de todas as frotas", corrigiu Zapadny. "Diria mesmo que o romance é a mais grandiosa de todas as maratonas. Claro que é uma opinião estritamente pessoal. É a forma de arte mais elevada, o romance. Mais elevada que a poesia, mais elevada que o conto. Mas agradeço-lhes que não me citem.”

"Bom, sir, digamos que para nós a ficção é a super-potência literária", comentou Wicklow, insinuante.

Sentindo-se especialmente gratificado, Zapadny virou-se para Barley. "No que toca à ficção, gostaríamos, neste caso especial, de fornecer o nosso próprio tradutor e de cobrar cinco por cento extra de direitos pela tradução", disse.

"Isso não é problema", disse Barley cordialmente, como que anestesiado. "Actualmente o orçamento da A. & B. comporta isso perfeitamente.”

Mas para grande surpresa de Barley, Wicklow interveio bruscamente. "Desculpe, sir, mas há de facto um problema: é que isso significa o dobro dos direitos. Não me parece que possamos aguentar tal proposta. Não deve ter prestado atenção ao que Mr. Zapadny disse. “

"Ah, sim, claro, tem toda a razão", disse Barley, endireitando-se muito na cadeira. "Claro, como é que nós podíamos pagar mais cinco por cento?”

Sentindo-se como um conspirador prestes a cometer mais uma falcatrua, Barley tirou uma pasta da sua mala e espalhou depois meia dúzia de prospectos lustrosos na parte da mesa onde o sol batia. "As nossas ligações americanas encontram-se descritas na página dois", anunciou. "A Potomac Boston participa connosco no projecto, a A. & B. paga todos os direitos pela publicação em inglês de qualquer obra soviética, e vende-os à Potomac para a publicação na América do Norte. Eles têm uma companhia gêmea em Toronto, portanto venderemos também no Canadá. Certo, Wickers?”

"Claro, sir." Mas como é que o Wicklow conseguiu aprender esta droga toda tão depressa?, pensou Barley nesse momento.

Zapadny estava ainda a estudar o prospecto, virando lentamente as páginas novinhas em folha. "Foi você que fez esta merda, Barley?", perguntou cortesmente Zapadny.

"Foi a Potornac", disse Barley. "Mas o rio Potomac fica tão longe da cidade de Boston", objectou Zapadny, exibindo os seus conhecimentos de geografia americana para os poucos que os partilham. "A menos que o tenham mudado de sítio recentemente, o rio Potomac fica em Washington. Pergunto a mim mesmo que atracção mútua poderá haver entre a cidade de Boston e esse rio? Trata-se de uma companhia antiga, Barley, ou de uma nova?”

"É nova neste campo. Mas antiga nos negócios. São comerciantes, tiveram sede em Washington, têm-na agora em Boston.'Gostam de arriscar capital. Têm uma pasta diversificada. Produção de filmes, parques de estacionamento, slot machines, caffigíris1 e cocaína. O costume, enfim. A edição é apenas uma das suas ocupações.”

Mas enquanto os outros desatavam a rir, era Ned que Barley ouvia. "Parabéns, Barley. Bob encontrou um ricaço de Boston que está disposto a ser seu parceiro. Tudo o que você tem a fazer é gastar o dinheiro dele.”

E Bob, com os seus pés de ferro de engomar e o casaco de tweed, sorriu-lhe com um sorriso de comprador.

Onze e meia. Oito horas e quarenta e cinco minutos até às talvez-oito-e-um-quarto.

"O motorista quer saber como é a Rainha, para não ter nenhuma surpresa quando ela chegar", gritava excitadamente Wicklow para o banco de trás do carro. "Está a ficar interessadíssimo. Quer saber se ela aceita subornos. E se manda executar pessoas por pequenas ofensas. E que tal é viver num país dirigido por duas mulheres de ferro. “

"Diga-lhe que é esgotante mas que nós estamos à altura da situação", disse Barley com um bocejo enorme.

Depois de se refrescar com um gole de whisky que trazia no frasco de bolso, encostou a cabeça e ao acordar viu-se seguindo Wicklow no corredor de uma prisão. Só que em vez dos gritos dos presos, o que ouvia era o assobio de uma chaleira e o clique de um ábaco ecoando na escuridão. Um momento depois, Wicklow e Barley encontravam-se nos escritórios de uma companhia de caminhos-de-ferro britânica, safra de 1935. Lâmpadas salpicadas de lêndeas de mosca e ventoinhas arruinadas dançam penduradas nos caibros de ferro fundido. Amazonas com lenços na cabeça martelando em máquinas de escrever antiquadas com alfabeto cirílico, enormes como fornos. As prateleiras cheias de pó estão a abarrotar de livros-razão. Pilhas de caixas de sapatos cheias de folhetos brilhantes e lustrosos erguem-se desde o soalho até aos peitoris das janelas.

"Barley! Jesus! Bem-vindo a Prometeu Libertado! Dizem-me que finalmente conseguiu algum dinheiro. Quem lho deu?", grita uma figura de meia-idade com uniforme de guerra à Fidel Castro, que corre para eles no meio de toda aquela confusão. "Negociamos directamente, há? Estamo-nos nas tintas para aquelas bestas da VAAP, certo?”

"Yuri, que bom encontrá-lo aqui! Apresento-lhe Len Wicklow, o nosso editor do catálogo russo.”

"Você é um espião?”

 

Prostitutas que marcam encontros por telefone. (N. do T.)

 

"Só nos tempos livres, sír." "Jesus! É um tipo porreiro! Faz-me lembrar o meu irmão mais novo.”

Estão na Madison Avenue. Venezianas, gráficos nas paredes, poltronas, Yuri é gordo, exuberante e judeu. Barley trouxe-lhe uma garrafa de Black Label e collants para a sua nova mulher, que é uma verdadeira beldade. Yuri tira a tampa da garrafa e insiste em deitar uns golinhos nas chávenas de chá. Pairam no éter russo. Falam de Bulgakov, Platonov, Akhmatova. Solzhenitsyn virá a ser permitido? E Brodsky? Falam de uma série de escritores britânicos contemporâneos, todos eles menores, que arbitrariamente dispuseram de favores oficiais e que consequentemente se tornaram famosos na Rússia. Barley não conhece alguns deles, abomina os outros. Gargalhadas, brindes, notícias dos amigos ingleses, morte aos filhos da mãe da VAAP. A Rússia está a mudar, não sei se o amigo Barley já se deu conta. Viu aquele artigo no Noticías de Moscovo de quinta-feira acerca daqueles fanáticos neo-fascistas de Pamyat? É uma gente de um nacionalismo exacerbado, anti-semita, são contra tudo excepto contra eles mesmos. E aquele artigo no Ogonyok sobre Sigmund Freud? E a defesa que a Novy Mir fez do Nabokov? Editores, desenhadores, tradutores, proliferam em quantidades espantosas, como é habitual, mas quanto a Katyas, Katyas, é que não há. Está tudo bêbedo, mesmo os que declinaram o convite ao álcool. Há alguém que, apresenta um grande escritor, de seu nome Misha, que se senta num lugar onde toda a audiência o pode ver.

"Misha ainda não esteve na prisão", explica Yuri num tom escusatório, e toda a gente desata a rir. "Mas se ele tiver sorte, pode ser que o prendam antes que seja tarde, que é para o publicarem no Ocidente!”

Falam das últimas obras-primas da ficção soviética. Yuri escolheu não mais que oito da sua própria lista todas elas best-sellers garantidos, Barley. Publique-as que logo terá meios para abrir uma conta num banco suíço para mim. Uma caça a sacas de compras de plástico antes de Wicklow se apoderar de cópias a papel carbono de oito manuscritos impublicáveis, porque este é um mundo em que a fotocopiadora e a máquina de escrever eléctrica ainda são instrumentos de sedição e, como tal, proibidos.

Falam de teatro e do Afeganistão. Em breve nos encontraremos em Londres!, grita Yuri, como um jogador louco que resolveu apostar tudo. "Mando-lhe o meu filho, está bem? E você manda-me o seu? Oiça, trocamos reféns, que assim eles já não se bombardeiam uns aos outros!”

Todos se calam enquanto Barley fala, todos se calam quando Misha fala. Wicklow traduz, enquanto Yuri e três outros criticam a tradução de Wicklow. Mísha critica as críticas. As coisas começam a correr mal.

Alguém pergunta porque é que a Grã-Bretanha continua a ser governada por um partido fascista como o Conservador. Porque é que o proletariado ainda não correu com esses filhos da mãe? Barley oferece-lhes uma resposta muito pouco original, diz que a democracia é o pior dos sistemas excepto para os outros. Ninguém acha graça. Talvez já tenham ouvido a piada, talvez não gostem dela. O melhor é aproveitar enquanto eles ainda estão sob o efeito do whísky e sair rapidamente. Sair antes que os sorrisos se esbatam por completo. Como é que os ingleses podem pregar os direitos humanos, pergunta alguém com ar de poucos amigos, se escravizam os escoceses e os irlandeses? Porque é que vocês apoiam o nojento governo da África do Sul?, grita uma loura de noventa anos, de vestido de baile. Eu não apoio, diz Barley, acreditem que não apoio.

"Oiça", diz Yuri à porta. "Afaste-se do sacana do Zapadny, certo? Não digo que ele seja do KGB. Mas acho que ele precisou de uns grandes amigos para o porem de novo em circulação. Você é um tipo porreiro. Percebe onde quero chegar?”

Nesse momento já se tinham abraçado uma série de vezes. "Yuri", diz Barley. "A minha velha mãe ensinou-me que vocês todos eram do KGB.”

"Eu também?" "Você especialmente. Disse-me ela que você era o pior de todos. “

"Adoro-o. Não se esqueça, mande-me o seu filho. Como é que ele se chama?”

Uma e meia e estão atrasados uma hora para a próxima caminhada na acidentada estrada que leva até um sítio chamado talvez-oito-e-um-quarto. Madeiras escuras, uma comida esplêndida, empregados atenciosos, a atmosfera de um pavilhão de caça senhorial. Estão sentados à longa mesa sob a sacada na União dos Escritores, Alik Zapadny preside de novo. Vários escritores jovens e prometedores já nos sessenta anos vagueiam junto à mesa, ouvem e desaparecem, levando consigo os seus grandes e profundos pensamentos. Zapadny aponta aqueles que foram recentemente libertados da prisão e os que, espera ele, os hão-de substituir em breve. Burocratas literários puxam de cadeiras e exercitam o seu inglês. Wicklow é o intérprete, Barley brilha, é do sumo de frutas e dos resíduos de Black Label. O mundo vai melhorar, assegura Barley e Zapadny, como se fosse um especialista na matéria chamada mundo.

Ousa citar Zinoviev. "Quando é que tudo acabará?" Quando as pessoas deixarem de fazer bicha para verem o túmulo?" uma referência ao mausoléu de Lenine.

O aplauso, desta feita, não é tão ensurdecedor. Às duas da tarde, em conformidade com as novas leis do consumo de bebidas alcoólicas, e as duas da tarde neste caso são a hora H, o empregado traz uma garrafa de vinho e Zapadny, em honra de Barley, extrai uma garrafa de pepper-vodka da sua pasta carunchosa.

"O Yuri disse-lhe que eu era do KGB?", pergunta com um ar pesaroso.

"Claro que não", replica vigorosamente Barley. "Não se considere caso único. Ele diz isso a todos os ocidentais. Na realidade, o Yuri às vezes chateia-me um bocado. É um tipo simpático mas toda a gente sabe que como editor não presta. Por isso, como é que um judeu como ele consegue chegar à posição que tem? o filho mais novo dele foi baptizado em Zagorsk a semana passada. Como é que explica uma coisa destas?”

"Esse é um problema que não me diz respeito, Alik. Eu vivo e deixo viver. Nem mais, nem menos." E à parte: "Wickers, tire-me daqui, estou a ficar sóbrio.”

Pelas seis, depois de mais duas reuniões extraordinariamente eloquentes, e depois de ter miraculosamente conseguido declinar meia dúzia de convites para essa noite, Barley regressa ao quarto do hotel e luta com o chuveiro para ver se recobra a sobriedade, enquanto Wicklow lhe grita umas quantas frases à porta todas elas sobre questões editoriais, em intenção dos microfones. Que Wicklow tem ordens de Ned para ficar com Barley até ao pano cair, não vá o homem ficar nervoso ou enganar-se no texto.

 O Hotel Odessa, nesse terceiro ano da Grande Reconstrução Soviética, não era propriamente a pérola do tosco comércio turístico moscovita, embora também não fosse a mais vulgar das suas pedras. Era um hotel dilapidado, vítima de desmazelos vários, selectivo nos seus favores. Dependendo do rublo mais do que do dólar, faltavam-lhe certos requintes, como os bares abertos a moedas estrangeiras ou os grupos de americanos do Minnesota, saturados de viagens, chorando pelas bagagens desaparecidas. Encontrava-se tão mal iluminado que os candeeiros de latão e os empregados e a sala de jantar instalada numa galeria, evocavam mais um passado terrível já muito perto do seu colapso do que a fénix socialista renascendo das cinzas. E quando saíamos de um elevador que não parava de tremer durante a breve viagem, e enfrentávamos corajosamente a carranca da porteira do piso, acocorada no seu cubículo e rodeada por todos os lados de chaves de quartos enegrecidas e telefones quase musguentos de tão húmidos, então é que não podíamos deixar de ter a sensação de havermos regressado, por um momento, às mais vis instituições da nossa juventude.

Mas nessa altura a Reconstrução não era ainda um medium visual. Encontrava-se ainda na fase audio.

No entanto, para quem achasse tal pormenor importante, o Odessa, nesses tempos, era um hotel do qual se podia dizer que tinha alma, que tinha um espírito só seu, e felizmente que ainda o tem. As senhoras da recepção, sempre atenciosas, escondem corações de ouro por detrás de uns olhos normalmente duros; dos porteiros, diz-se que fazem vista grossa quando passamos e não nos pedem o passe do hotel cinco vezes ao dia. O chefe-de-mesa, depois de adequadamente encorajado, conduz-nos simpaticamente ao nosso recanto e, em troca,  pede apenas um sorriso cortês. E ao princípio da noite, entre as seis e as nove, o hall do hotel transforma-se num cortejo improvisado das cem nações do Império. Administradores elegantemente vestidos vindos de Tashkent, professores da Estónia, de pele e cabelos cor-de-linho, funcionários do Partido acabados de chegar da Turquernénia e da Geórgia, todos eles de olhar chamejante, directores de fábricas de Kiev, engenheiros navais de Archangel isto para não falar nos cubanos, afegãos, polacos, romenos e do pelotão habitual de alemães de Leste, deselegantemente arrogantes -, toda essa gente sai em corropios dos autocarros do aeroporto e da luz da rua transplanta-se para a esmagadora escuridão do hafi, a fim de prestar a sua homenagem a Roma e arrastar por fases a bagagem até à recepção.

Nessa noite, também Barley, ele próprio um relutante emissário de um outro império, encontrou o seu lugar no meio daquela multidão de emissários.

A primeira coisa que fez foi sentar-se, mas logo uma senhora de vetusta idade lhe tocou no ombro, pedindo-lhe o lugar. Depois, em passos flutuantes, dirigiu-se para um recanto perto do elevador, onde se manteve até que uma muralha de malas de cartão e embrulhos de papel castanho quase o emparedava. Finalmente, retirou-se para a protecção de um pilar central e aí ficou, pedindo desculpa a toda a gente, fitando os movimentos da porta de vidro, afastando-se desajeitadamente das pessoas que passavam, mas interpondo-se logo de seguida no seu caminho, enquanto brandia a Emma de Jane Austen à altura do peito e, na outra mão, um medonho saco de plástico do aeroporto de Heathrow.

Só Katya o salvaria e Katya não demorou. Não havia naquele encontro nada de secreto, não havia no comportamento de ambos nenhuma dissimulação. Olharam um para o outro ao mesmo tempo, enquanto Katya rompia entre o fluxo que entrava ou que saía. Barley ergueu num repente um braço, acenando com Jane Austen.

"Olá, sou eu, Blair! Ainda bem que chegou!", gritou. Katya desapareceu por um momento e logo reapareceu vitoriosa. Barley não sabia se ela o tinha ouvido, mas viu-a sorrir e erguer os olhos para o Céu, como num filme mudo, pedindo desculpa pelo seu atraso. Katya afastou uma madeixa de cabelo negro e Barley pôde ver os anéis de casamento e noivado de que Landau falara.

"Não imagina a dificuldade que tive para me despachar daquilo", gesticulava ela no meio das cabeças. Ou talvez os seus gestos significassem: "Foi o cabo dos trabalhos para arranjar um táxi.”

"Não faz mal", gesticulava Barley. Nesse momento Katya virou-lhe as costas e, de sobrolho carregado, pôs-se a vasculhar na malinha de mão, à procura de um qualquer cartão de identidade para mostrar ao polícia à paisana, cuja agradável tarefa, nessa noite, consistia em vigiar todas as mulheres atraentes que entrassem no hotel. Katya mostrou-lhe um cartão vermelho. Barley pôde concluir que se tratava do cartão da União dos Escritores.

Porém, também Barley foi perturbado pelas perguntas de um palestiniano de elevada estatura, a quem teve de explicar, no seu sofrível francês, que de facto não era membro da Associação Para a Paz, e que também não era o gerente do hotel, e que duvidava mesmo que houvesse algum gerente.

Wicklow, que observava estas manobras a meio das escadas, diria mais tarde que nunca vira um encontro público tão bem encenado.

Como actores, Barley e Katya estavam vestidos para peças diferentes: Katya parecia uma personagem de um drama sério, com o seu vestido azul e a sua gola de renda antiga que tanto tinham atraído Landau; e Barley estava equipado para uma baixa-comédia inglesa, com um fato escuro às riscas brancas, um fato que pertencera ao seu pai e que lhe estava curto nas mangas, e um par de botas de camurça da Ducker's de Oxford, já muito gastas, que decerto fariam as delícias de um coleccionador de velharias.

Quando finalmente se encontraram, a surpresa foi mútua. Afinal eram ainda uns estranhos, menos próximos um do outro do que das forças que ali os juntavam. Resistindo ao impulso de lhe dar um beijinho formal no rosto, Barley atentou espantado nos olhos dela, que eram não só muito escuros e ao mesmo tempo cheios de luminosidade, mas também dotados de pestanas muito densas, dando quase a impressão de serem postiças.

E como Barley, pelo seu lado, apresentava aquela expressão indefinivelmente pateta que certos homens ingleses põem na presença de qualquer bela mulher, Katya teve razões para suspeitar que os seus pressentimentos estavam certos e que, de facto, estava perante um indivíduo arrogante.

Entretanto já estavam suficientemente próximos para poderem sentir o calor dos corpos um do outro e para Barley poder aperceber-se do cheiro da maquilhagem dela. A Babel de línguas estrangeiras continuava a pairar à sua volta.

"Você é Mr. Barley, creio", disse-lhe ela ofegante, passando-lhe com a mão pelo antebraço, como se procurasse assegurar-se de que aquele homem era real.

"Sim, claro, sou eu mesmo “ olá, muito bem, e você é Katya Orlova, a amiga do Niki, não é verdade? Ainda bem que conseguiu vir. Chegou mesmo a tempo. Como tem passado?".

As fotografias não mentem mas também não dizem a verdade, pensava Barley enquanto observava o peito dela subindo e descendo com a respiração. As fotografias não captam a paixão de uma mulher que parece ter acabado de testemunhar um milagre e que nos escolhe a nós como seu primeiro confidente.

A multidão, que não parava de cirandar pelo hall, fê-lo voltar à realidade. No meio daquele tumulto, nenhum casal, por mais resistência que oferecesse, poderia dedicar muito tempo a uma troca serena de galanteios.

"Olhe, Katya", disse ele, como se de repente tivesse tido uma ideia brilhante. "Convido-a para um bolo. O Niki disse que você merecia todos os mimos. Conheceram-se na feira, não foi? Foi o que ele me disse. Ah, o Niki. Um tipo incrível. Um coração de ouro", prosseguiu jovialmente, conduzindo-a pela escada, na direcção de uma porta que dizia "Bufete." "É um bom tipo. Um bocado desagràdável às vezes, mas quem o não é?”

"Ah, Mr. Landau é um homem muito bom", comentou ela, falando, tal como Barley, para uma audiência indefinida, embora houvesse nas suas palavras um tom especialmente persuasivo.

"E digno de confiança", considerou aprovativamente Barley ao chegarem ao patamar do primeiro piso. Fosse pelo que fosse, também Barley estava agora ofegante. "Se pedirmos ao Niki que faça qualquer coisa, é certo e sabido que ele a faz. À sua maneira, é verdade, mas faz. Faz e guarda os seus pensamentos para si mesmo. Sempre achei que um bom amigo é isso que faz. Não acha?”

"Eu diria que sem discrição não pode haver amizade", replicou ela como se citasse um texto da celebração do casamento. "A verdadeira amizade tem de basear-se na confiança mútua.”

E Barley, embora aceitando afectuosamente a profundidade daqueles conceitos, não pôde deixar de reconhecer a similaridade que havia entre as cadências daquele discurso e o tom com que Goethe lhe falara.

Numa área protegida por cortinas situava-se um balcão de nove metros de comprido onde o único alimento à vista eram uns biscoitos espalhados sobre uma bandeja. Atrás do balcão, três mulheres corpulentas, vestidas com uniformes brancos e uma espécie de capacetes de plástico transparente, montavam guarda a um samovar enorme enquanto travavam renhida discussão.

"Mas o velho Niki, à sua maneira, claro, é também um bom conhecedor de livros", observou Barley, esticando o tema da conversa enquanto se sentavam nos bancos frente à cerca de corda do balcão. "Bête intelectuelle, como dizem os franceses. Queríamos chá, por favor. óptimo.”

As mulheres continuaram a arengar entre si. Katya fitava-as sem qualquer expressão no rosto. De súbito, para grande surpresa de Barley, tirou da mala o passe vermelho e rosnou para as mulheres rosnar era a palavra exacta -, do que resultou que uma delas se afastou das companheiras o tempo suficiente para poder arrancar duas chávenas de uma grade, instalando-as depois em dois pires, mas tão violentamente que mais parecia estar a carregar uma velha espingarda. Furiosa ainda, encheu de água uma chaleira enorme. E tendo desenterrado dum bolso, com novos sinais de raiva, uma caixa de fósforos acabada de estrear, abriu o gás e atirou com a chaleira para cima do bico, após o que retomou apressadamente a discussão.

"Que tal um biscoito?", sugeriu Barley. "Ou fois gras." "Obrigada. Já comi bolo na recepção." "Não me diga. E era bom, o bolo?" "Nem por isso." "E os húngaros, simpáticos?" "Os discursos não foram propriamente significativos. Diria antes que foram banais. Não posso deixar de criticar o nosso lado por causa disso. Não nos descontraímos o suficiente perante os estrangeiros, mesmo quando os estrangeiros vêm de países socialistas.”

Por um momento ficaram ambos sem saber o que dizer. Barley lembrou-se de uma rapariga que tinha conhecido na Universidade, a filha de um general, com uma pele que parecia pétalas de rosa e que dedicou todas as suas energias à luta pelos direitos dos animais até que casou à pressa com um caçador local. Katya fitava melancolicamente o outro extremo da sala, onde havia uma dúzia de mesas dispostas segundo um alinhamento rigoroso. Numa delas encontrava-se Leonard Wicklow, que ria de uma piada qualquer com um jovem da sua idade. Noutra, um velho Rittmcísteil, calçando botas de montar, bebia limonada com uma jovem de jeans, e abria muito os braços, como se estivesse a descrever as propriedades que perdera.

"Não percebo porque é que não a convidei para jantar", disse Barley, reencontrando de novo os olhos dela com a sensação de que mergulhava de cabeça neles. "Talvez por não querer avançar demasiado depressa. A menos que não haja qualquer problema.”

"Não teria sido conveniente", replicou ela, franzindo o sobrolho. A chaleira começou a assobiar a toda a força mas as guerreiras do bufete não lhe prestaram qualquer atenção.

"É sempre tão difícil falar ao telefone, não acha?", disse Barley para matar o silêncio. "Quer dizer, é como falar com uma espécie de flor de plástico, em vez de um rosto humano. Pessoalmente, acho o telefone uma coisa muito desagradável, não acha?”

"Desculpe. O que é que acha desagradável?" "O telefone. O facto de se falar à distância." A chaleira começou a cuspir vapor para cima do bico. "Quando não podemos ver as pessoas, fazemos delas as ideias mais disparatadas.”

Atira-te agora, pensou Barley. Já. "Ainda outro dia disse isso mesmo a um amigo meu, editor também", prosseguiu Barley no mesmo tom descontraído. "Estávamos a discutir acerca de um romance que me enviaram recentemente. Mostrei-lho, com toda a confidencialidade necessária, e posso-lhe dizer que ele ficou perfeitamente deslumbrado. Disse que era a melhor coisa que via desde há muito tempo. Que era dinamite." Os olhos dela não despegavam dos dele e eram assustadoramente directos. "Mas é tão estranho uma pessoa não possuir sequer uma fotografia do escritor", prosseguiu Barley num tom perfeitamente casual.

 

“ Em alemão no original: capitão de cavalaria. (N. do T.)

 

"É que nem sei o nome do homem. Isto para não falar de outros pormenores, por exemplo, onde é que ele vai buscar toda a sua informação, onde é que aprendeu a sua arte, etc., etc. Não sei se me faço entender. É como ouvir uma peça musical e não se ter a certeza se é Bratinis ou Cole Porter.”

Katya franziu o sobrolho e encolheu os lábios como se estivesse a humedecê-los dentro da boca. "Essas questões pessoais não me parecem relevantes para um artista. Há escritores que só podem trabalhar na obscuridade. E talento é talento. Não precisa de qualquer explicação. “

"Bom, repare que eu não estava a falar propriamente de explicação, mas sim de autenticidade", explicou Barley. Uma ligeira penumbra sublinhava-lhe o osso malar mas, ao contrário do cabelo, era cor de ouro. "Quer dizer, você conhece os meandros da edição. Se um tipo escreve um romance acerca das tribos selvagens do norte da Birmânia, por exemplo, temos todo o direito de lhe perguntar se alguma vez desceu a sul de Minsk. Sobretudo se o romance é realmente importante, o que é o caso. Segundo o meu amigo, é mesmo um número potencial em qualquer top. Num caso destes, creio que há o direito de pedir ao escritor que se apresente e declare as suas qualificações. “

Mais audaciosa que as outras, a mais velha das três mulheres estava a deitar água quente no samovar. Uma outra abria a enorme caixa registadora. A terceira deitava rações de chá numa balança manual. Barley, entretanto, pôs-se a vasculhar nos bolsos e acabou por tirar uma nota de três rublos. Ao ver a nota, a mulher da caixa registadora desatou numa firada desesperada.

"Parece-me que quer dinheiro trocado”, não é?", disse Barley estupidamente. "Não é o que todos queremos?”

Nesse instante viu que Katya tinha já posto trinta kopeks sobre o balcão e que fazia duas covinhas mínimas quando sorria. Pegou nos livros e na mala. Ele seguiu-o com as chávenas numa bandeja. Porém, ao chegarem à mesa, ela dirigiu-se-lhe com uma expressão de desafio.

"Se um autor é obrigado a provar que o que diz é a verdade, então também o seu editor o tem de provar", disse ela.

"Ah, mas quanto a isso eu defendo a honestidade para ambas as partes. Quanto mais pusermos na mesa, tanto melhor nos sentiremos todos. “

"Ao que sei, o autor foi inspirado por um poeta russo. “

"Pecherin", replicou Barley. "Investiguei-o. Nasceu em 1807, em Dymerka, província de Kiev.”

Os lábios dela abeiravam-se da chávena, os olhos quedavam-se baixos. E embora pela sua cabeça passasse um sem número de outros pensamentos, Barley reparou que a orelha direita dela, ressaltando entre o cabelo, se tinha tornado transparente à luz do fim da tarde que se escoava pela janela.

 

No original, trocadilho entre "change", "dinheiro trocado", e "change", "mudança". (N. do T.)

 

"O autor também foi inspirado por certas opiniões de um inglês a respeito da paz mundial", disse ela com a maior severidade.

"Acha que ele gostaria de se encontrar de novo com esse inglês?" "Isso pode ser estudado. Não se sabe se é possível." "Bom, é que o inglês em questão gostaria de se encontrar com ele", disse Barley. "Têm imensas coisas para dizer um ao outro. Onde é que você vive?”

"Com os meus filhos." "E onde vivem os seus filhos?" Uma pausa enquanto Barley voltava a ter uma desconfortável sensação de ter infringido alguma ética desconhecida.

"Vivemos perto da estação de metro do Aeroporto. Mas já não há nenhum aeroporto na zona. Só há apartamentos. Quanto tempo vai ficar em Moscovo, Mr. Barley?”

"Uma semana. E a sua morada?" "Não é conveniente. E vai ficar toda a semana aqui no hotel Odessa?”

"A menos que corram comigo. Que faz o seu marido?" "Isso não interessa." "Trabalha na edição?" "Não." "É escritor?" "Não." "Então que faz ele? É compositor? Guarda fronteiriço? Cozinheiro? Como pode ele assegurar-lhe o estilo de vida a que está habituada?”

Katya voltou a rir-se, o que pareceu agradar-lhe tanto a ela como a ele. "O meu marido era director de uma empresa de madeiras", disse ela.

"E de que é director agora?" "A fábrica dele faz casas pré-fabricadas para áreas rurais. Estamos divorciados, aliás como toda a gente em Moscovo.”

"E os seus filhos? São rapazes? Raparigas? Que idade têm?" Tais perguntas puseram termo ao riso bem disposto de Katya. Por um momento Barley pensou que ela lhe ia voltar as costas e desaparecer. A cabeça ergueu-se, determinada, o rosto cerrou-se-lhe por completo e um fogo de raiva chispava-lhe nos olhos. "Tenho um rapaz e uma rapariga. São gêmeos, têm oito anos. Mas isto não interessa.”

"Você fala muito bem inglês. Melhor do que eu. Tão puro como água da nascente.”

"Obrigada. Tenho uma aptidão natural para as línguas estrangeiras. “

"Não, não é só isso, é mais do que isso. É um inglês de um outro mundo. É como se a língua inglesa tivesse parado em Jane Austen. Onde é que o aprendeu?”

"Em Leninegrado. Andei na escola em Leninegrado. A língua inglesa é também a minha paixão.”

"Em que universidade andou?" "Na de Leninegrado também." "Quando veio para Moscovo?" "Quando me casei." "Como é que conheceu o seu marido?" "Conhecíamo-nos desde crianças. Quando andávamos na escola, íamos juntos para os acampamentos de Verão.”

"E pescavam?" "Pescávamos e caçávamos coelhos", disse ela enquanto o seu sorriso iluminava de novo toda a sala. "O Volodya é da Sibéria. É um homem que sabe dormir na neve, que sabe esfolar um coelho e pescar peixe através do gelo. Na altura em que casei com ele, estava a passar por uma fase em que rejeitava os valores intelectuais. Achava que esfolar um coelho era a coisa mais importante que um homem podia saber fazer. “

"Na realidade, o que me interessava saber era como tinha conhecido o autor", explicou Barley.

Viu-a então lutando no tumulto da sua indecisão, reparou como os seus olhos logo reflectiram a volubilidade das suas emoções, ora perto dele, ora longe dele. Até que a perdeu de uma vez por todas, quando ela se baixou para pegar na malinha de mão, afastando depois o cabelo rebelde. "Por favor, dê os meus agradecimentos a Mr. Landau pelos livros e pelo chá", disse ela. "Eu própria lhe agradecerei. da próxima vez que ele vier a Moscovo.”

"Não se vá embora. Por favor. Preciso da sua opinião." Barley baixou a voz e de repente ficou muito sério. "Preciso das suas instruções sobre o que hei-de fazer com aquele louco manuscrito. Sozinho não vou lá. Quem o escreveu? Quem é Goethe?”

"Infelizmente tenho de voltar para casa, os meus filhos esperam-me. “

"Não há ninguém que cuide deles?" "Naturalmente que há." "Telefone-lhes. Diga que está atrasada. Diga que encontrou um homem fascinante que quer falar de literatura consigo toda a noite. É demasiado breve, este encontro. Preciso de tempo. Tenho montes de perguntas para lhe fazer.”

Depois de pegar nos volumes de Jane Austen, Katya encaminhou-se para a porta. Como um vendedor persistente, Barley acompanhou-a aos tropeções.

"Por favor", disse. "Olhe. Eu sou um editor inglês perfeitamente desprezível, mas que quer discutir cerca de dez mil coisas extremamente sérias com uma bela mulher russa. Eu não mordo, não minto. Jante comigo.”

"Não é conveniente." "E outra noite, será conveniente? Que hei-de eu fazer?

Queimo  incenso? Ponho uma vela à janela? Foi por si que eu vim. Ajude-me a ajudá-la.”

Aquele apelo deixava-a confusa. "Posso ficar com o seu número de telefone?", insistiu ele. "Não é conveniente", murmurou ela. Desciam já a vasta escadaria. Olhando num relance para o mar de cabeças no hall do hotel, Barley viu Wicklow e o amigo no meio delas. Agarrou Katya pelo braço, sem violência mas com a firmeza bastante para que ela parasse.

"Quando?", perguntou ele. Continuando a segurar-lhe no braço à altura do bíceps, imediatamente abaixo da axila, onde a carne era mais firme e mais cheia.

"Talvez lhe telefone mais para o fim da noite", replicou ela, compadecendo-se.

"Talvez, não." "Telefono." Barley deixou-se ficar nas escadas e viu-a aproximar-se da multidão e aparentemente respirar fundo antes de abrir caminho com os braços. Suava. Parecia ter um xaile molhado sobre as costas e os ombros. Precisava de um copo, de uma bebida. Acima de tudo queria libertar-se do microfone. Queria esmagá-lo e calcá-lo com toda a força e mandar depois para Ned os bocadinhos, em encomenda pessoal e registada.

Wicklow, com o seu nariz torto, subiu os degraus dois a dois na direcção de Barley e, sorrindo como um ladrão, disse-lhe um disparate acerca de uma biografia soviética de Bernard Shaw.

Katya avançou rapidamente pela rua. Procurava um táxi mas ao mesmo tempo precisava de movimento. As nuvens acumulavam-se no céu e não se via uma estrela, apenas as ruas largas e o brilho dos candeeiros de Petrovka. Katya precisava de distância. Distância dele e de si mesma. Ameaçava apoderar-se dela um pânico que não advinha do medo, mas sim de uma violenta aversão. Ele não devia ter mencionado os gêmeos. Não tinha o direito de abater as paredes de papel que separavam uma vida da outra. Não tinha o direito de a importunar com questões burocráticas. Tinha confiado nele: porque não confiava ele nela?

Passou uma esquina e continuou a andar. É um imperialista típico, falso, impertinente, indigno de confiança. Um táxi passou, mas não lhe prestou qualquer atenção. Um segundo abrandou o suficiente para ouvi-la gritar para onde ia e logo acelerou à procura de um serviço mais lucrativo prostitutas que queriam ir para a outra margem, móveis a transportar, legumes, carne e vodka do mercado negro que alguém queria distribuir, turistas que era fácil enganar. A chuva começava a cair, uma bátega imparável.

Que humor tão grosseiro o dele. E a impertinência com que me interrogava! Nunca mais me aproximo dele. Katya devia apanhar o metro, mas sentia medo dos espaços fechados. Atraente, claro, como muitos ingleses. Encantador na sua falta de jeito. Espirituoso, sem dúvida sensível. Não lhe tinha passado pela cabeça que ele pudesse aproximar-se tão intimamente dela. Ou talvez tivesse sido ela quem se aproximou demasiado dele.

Continuou a andar, tentando acalmar-se, procurando um táxi. A chuva caía agora mais forte. Tirou um pequeno guarda-chuva de mala e abriu-o. Era um guarda-chuva da R. D. A., um presente de um amante efémero de que nunca se orgulhara. Ao chegar a um cruzamento, e quando se preparava para atravessar a rua, um rapaz num Lada azul parou mesmo ao pé dela. Katya não o tinha chamado.

"Quer ir para algum lado?" Seria um taxi ou um impostor? Katya entrou e disse-lhe para onde queria ir. O rapaz começou a discutir. A chuva martelava na capota.

"É urgente", disse ela, dando-lhe duas notas de três rublos. " urgente", repetiu, olhando para o relógio e pensando ao mesmo tempo se as pessoas costumavam ver as horas quando estavam com pressa em chegar ao hospital.

O rapaz parecia ter tomado a peito a causa dela. Conduzia e falava a uma velocidade louca, enquanto a chuva ia entrando pela sua janela aberta. Contava que a mãe, que vivia em Novgorod, tinha desmaiado quando andava a apanhar maçãs e, como estava no cimo de uma escada, tinha dado uma queda horrível e acordado com ambas as pernas metidas em gesso. O pára-brisas era uma torrente sem fim. Ele nem parara para enganchar os limpadores.

"Como está ela agora?", perguntou Katya, pondo um lenço na cabeça. Uma mulher com urgência em chegar a um hospital não se põe à conversa a propósito das desgraças dos outros, pensou.

"É aqui", disse o rapaz, fazendo um gesto de lhe devolver as notas de três rublos. "Paga para a próxima, está bem? Como é que se chama? Quer fruta fresca, café, vodka?”

"Fique com o dinheiro", retorquiu ela, rejeitando as notas. Os portões estavam abertos. O hospital passava perfeitamente por um bloco de escritórios, com algumas luzes brilhando tenuemente” Um lanço de escadas de pedra, meio cobertas de lama e lixo, conduzia a um caminho superior que, por sua vez, levava a uma pequena estrada. Olhando para baixo, Katya viu umas quantas ambulâncias estacionadas, com as suas luzes azuis rodando indolentemente, um grupo de motoristas e maqueiros fumando. Aos seus pés, uma mulher jazia numa maca, o rosto esmagado torcido para o lado, como se pretendesse escapar a um segundo embate.

Ele preocupou-se comigo, pensou Katya, regressando por um momento a Barley.

Correu para o bloco cinzento que se erguia à sua frente. Uma clínica projectada por Dante e construída por Franz Kafka, recordou. Os funcionários estão sobretudo interessados em roubar remédios para os venderem depois no mercado negro; os médicos têm todos dois empregos porque é a única maneira de alimentarem as famílias, recordou ainda. É um sítio para a gentalha, para a ralé do nosso império, para os proletários sem sorte que não acedem às influências nem às relações da minoria. A voz que perpassava pela sua ccabeça tinha um ritmo que era o ritmo da sua marcha. Passou confiadamente a porta dupla. Uma mulher chamou-lhe a atenção e Katya, em vez de lhe mostrar o cartão, deu-lhe um rublo. O hall ecoava como uma piscina. Atrás de um balcão de mármore, umas quantas mulheres ignoravam toda a gente. Só não se ignoravam umas às outras. Um velho de uniforme azul dormitava numa cadeira, os olhos abertos pareciam fitar uma televisão apagada. Passou por ele com um passo rápido e entrou num corredor cheio de camas com doentes. Da última vez não havia camas no corredor. Tinham-nas tirado talvez porque esperassem alguém importante. Um estagiário perfeitamente exausto estava a dar sangue a uma velha, assistido por uma enfermeira de macacão aberto e jeans. Ninguém gemia, ninguém se queixava. Ninguém perguntava porque é que tinha de morrer num corredor. Num sinal luminoso brilhavam apenas as primeiras letras da palavra "Urgência". Seguiu nessa direcção. Faz de conta que aquilo é teu, tinha avisado ele da primeira vez. E resultara. Resultava ainda.

A sala de espera era uma sala de conferências fora de uso, tão pouco iluminada como uma enfermaria à noite. No estrado, uma matrona com cara de santa, sentada numa cadeira, encabeçava uma fila de candidatos, tão longa como um exército em retirada. No auditório, os infelizes e miseráveis resmungavam e murmuravam na penumbra, embalavam os filhos. Homens com ferimentos meio tratados aguardavam em bancos. Bêbados refastelados nas cadeiras praguejavam. O ar tresandava a anti-séptico, a vinho e a sangue velho.

Dez minutos de espera. De novo os seus pensamentos corriam para Barley. Os olhos, tão directos e íntimos, o seu ar de coragem sem esperança. Porque não lhe dei o meu número de telefone? Por que razão não lho pude dar? A mão dele no seu braço, como se lá estivesse desde sempre. "Foi por si que eu vim. " Escolheu um banco quase a cair, perto da porta dos fundos, com um letreiro que dizia "Casas, de Banho". Sentou-se e pôs-se a examinar aquela fila de gente doente. Uma pessoa morre ali e ninguém lhe pergunta o nome, dissera ele. A porta é ali, acolá é o bengaleiro, ensaiou. Depois são as casas de banho. O telefone está no bengaleiro, mas nunca é usado porque ninguém sabe que lá está. No hospital não há qualquer linha directa, mas esta linha foi instalada para um manda-chuva, um médico que queria falar sem problemas com os seus doentes particulares e a amante, até que acabou transferido. Um idiota qualquer pôs o telefone onde ninguém o via, atrás de um pilar. E nunca o tiraram de lá.

Mas como é que tu conheces esses sítios todos?, perguntara-lhe  ela. Há uma entrada assim, uma ala assado, o telefone fica no sítio tal, sentas-te e esperas. Como é que conheces isto tudo?

Ando a pé, foi o que ele respondeu. E ela imaginou-o a caminhar apressado pelas ruas de Moscovo, sem dormir, sem comer, e imaginou-se a si mesma, a caminhar, a caminhar. Eu sou o Não-Judeu Errante, dissera-lhe ele. Caminho para estar com a minha mente, bebo para fugir dela. Quando caminho, estás a meu lado; vejo o teu rosto junto do meu ombro.

Caminhará até cair, pensou. E eu cairei com ele. No banco ao lado dela, uma camponesa com um lenço de cabeça cor de açafrão começara a rezar em ucraniano. Agarrava um pequeno ícone com ambas as mãos e sobre ele curvava a cabeça, cada vez mais baixo, até espetar a testa na figura estanhada. Crescia um brilho intenso nos seus olhos e, quando os cerrou, Katya viu lágrimas correndo entre as pálpebras. Num instante ficarei como tu, pensou.

Lembrou-se do que ele lhe contara sobre uma visita a uma casa mortuária na Sibéria, uma fábrica para os mortos, situada numa das cidades-fantasma onde ele trabalhava. Os corpos desciam por uma rampa e passavam depois por um carrossel, homens e mulheres misturados, onde eram etiquetados e onde, pela calada da noite, as velhas os despojavam de todo o ouro. A morte é um segredo como qualquer outro, dissera-lhe ele; um segredo é uma coisa que é revelada a uma pessoa num momento determinado.

Porque procuras sempre ensinar-me o significado da morte?, perguntara ela, angustiada. Porque tu me ensinaste o significado da vida, replicara ele.

Esse telefone é o mais seguro em toda a Rússia, dissera ele. Nem mesmo os maiores lunáticos dos nossos órgãos de Segurança pensariam em pôr sob escuta um telefone sem uso de um hospital de urgências.

Lembrou-se da última vez que se encontrara com ele em Moscovo, no pino do Inverno. Ele apanhara um comboio dos mais lentos numa estação ignorada, um sítio sem nome situado nenhures. Não comprara bilhete e viajara em terceira classe, depositando dez rublos na mão do cobrador, como toda a gente fazia. Os nossos mundanos órgãos competentes andam tão burgueses que já nem sabem misturar-se com os trabalhadores, dissera ainda. Katya imaginara-o como uma criança perdida, dormindo na semi-escuridão do beliche de cima reservado para as bagagens, só com a grossa roupa de baixo vestida, escutando a tosse dos fumadores e os roncos dos bêbados, sufocando com o fedor das criaturas humanas e o calor do aquecedor de água sempre gotejante, enquanto contemplava as coisas aterradoras que conhecia e de que nunca falava. Que inferno será esse, quando se sabe que o auge absoluto da nossa carreira significa a calamidade absoluta para a humanidade?

Reviu-se à espera dele, acampada entre milhares de criaturas já desesperadas, na estação de Kazansky, sob as baças lâmpadas fluorescentes. O comboio está atrasado, foi cancelado, descarrilou, diziam os boatos. Tem caído muita neve no caminho para Moscovo.

O comboio está a chegar, não houve nada, não precisavam de ter dito tantas mentiras. Os funcionários da estação tinham deitado formol nas casas de banho e toda a estação tresandava a formol. Katya trazia o gorro de pele de Volodya porque lhe ocultava melhor o rosto.

O cachecol de angorá cobria-lhe o queixo, o casaco de cabedal cobria o resto. Nunca sentira um desejo tão forte por ninguém. Sob a pele do vestuário corriam um calor e uma fome ao mesmo tempo.

Quando ele desceu do comboio e se encaminhou para ela através da neve já derretida e suja, Katya sentiu o seu corpo tenso e embaraçado, como o de um rapazinho. Ao lado dele, no metro cheio de gente, quase gritava no silêncio ao sentir o corpo dele colado ao seu. Tinha pedido a Alexandra que lhe emprestasse o apartamento. Alexandra tinha ido para a Ucrânia com o marido. Abriu a porta da rua e disse-lhe para ir à frente. Por vezes, ele parecia não saber onde estava ou então pouco ligava a todos os preparativos que ela providenciava. Por vezes Katya tinha medo de lhe tocar, de tão frágil que ele era. Mas não nesse dia. Nesse dia correu para ele, agarrou-o com toda a sua força, colou-o a ela sem jeito nem ternura, castigando-o por tantos meses e noites de saudades infrutíferas.

E ele? Ele abraçava-a como o pai dela costumava fazer, mantendo as mãos longe e os ombros firmes. E quando ela se afastou dele, sabia já que nunca mais o seu corpo bastaria para adormecer os tormentos daquele homem.

És a minha única religião, murmurou ele, beijando-lhe o rosto com os lábios cerrados. Ouve-me, Katya, ouve o que eu decidi fazer.

A camponesa ajoelhava no chão, adorando o seu ícone, comprimindo-o contra o peito e os lábios. Katya levantou-se e foi obrigada a passar por cima dela, para depois meter pelo corredor. Um jovem pálido com um casaco de cabedal tinha-se sentado na ponta do banco. Tinha um braço enfiado na camisa, devia ter o pulso partido. Como estava de cabeça baixa, só ao passar por ele Katya reparou que também tinha o nariz partido, ainda que cicatrizado.

O bengaleiro estava às escuras. Uma lâmpada fundida dançava inutilmente. Um balcão de madeira enorme barrava-lhe o caminho. Tentou erguer a aba do balcão, mas era demasiado pesada. Serpeou por debaixo dela. Num segundo viu-se no meio de cabides, ganchos e chapéus que ninguém fora buscar. O pilar ficava a um metro de distância. Um cartaz escrito à mão dizia NAO TEMOS TROCOS. Leu-o à luz de uma porta que constantemente abria e fechava. O telefone estava no sítio habitual, no outro lado, mas quando se abeirou dele quase não o conseguia ver na escuridão.

Não despegava os olhos do telefone, desejosa de que tocasse. Acabara o pânico. Recuperara toda a sua força. Onde estás?, perguntava a si mesma. Num dos teus números postais ou num dos teus refúgios longínquos? No Kazakistão? No Médio Volga? Nos Urais? Ele andava por  todos esses sítios, ela sabia que andava. Noutros tempos, podia adivinhar, pela cor da sua pele, se ele tinha andado a trabalhar ao ar livre. Noutras alturas, parecia ter estado debaixo de terra durante meses. Onde estás tu com a tua terrível culpa?, perguntava ela. Onde estás tu com a tua aterradora decisão? Num sítio às escuras como este? Nos telégrafos de uma pequena cidade, abertos todo o dia? Imaginou-o preso, era assim que por vezes o via nos sonhos, amarrado e lívido, a um canto de uma cabana, preso a um cavalo de pau, quase prostado, à mercê de golpes que nunca paravam. O telefone estava a tocar. Ergueu o auscultador e ouviu uma voz baixa.

"Fala Pyotr", disse ele, usando o código com que se protegiam um ao outro se estiver nas mãos deles e me forçarem a telefonar, dar-lhes-ei um nome diferente para que tu te possas esconder.

"Daqui fala Alina", replicou ela, espantada por conseguir falar. Nada mais a preocupava. Ele está vivo. Não foi preso. Não lhe estão a bater. Não o prenderam a um cavalo de pau. Sentiu-se indolente, cansada. Ele estava vivo, falava com ela. Factos, apenas, nenhuma emoção na voz, uma voz de início remota e apenas semi-familiar. De uma ponta à outra, apenas factos. Faz isto. Ele disse isto. Eu disse isto. Diz-lhe que lhe agradeço por ter vindo a Moscovo. Diz-lhe que ele está a portar-se como um ser humano razoável. Eu estou bem. E tu?

Nesse momento, Katya desligou, incapaz de falar mais. Voltou para a sala de conferências e sentou-se num banco ao lado dos outros todos, a respiração opressa, sabendo que ninguém se preocuparia com ela.

O rapaz do casaco de cabedal continuava sentado no banco. Reparou uma vez mais no seu nariz torto, perfeito apesar de estranho. De novo se lembrou de Barley e sentiu-se grata por existir um homem como ele.

Barley estava deitado na cama em mangas de camisa. O quarto era um caixote sem ventilação, filho de um outro quarto enorme, retalhado numa série de caixotes, todos eles atormentados pelo verdadeiro coro de águas que é da praxe em qualquer hotel russo, a fungadela constante das torneiras, o pingo da cisterna da minúscula casa de banho, os arrancos súbitos do enorme radiador preto, o gemido do frigorífico sempre que se lança nas suas convulsões periódicas. Bebia de um copo dos dentes, fazia de conta que lia à luz perfeitamente incipeente da mesa-de-cabeceira. Mesmo ao seu lado estava o telefone, e ao lado do telefone o caderno em que anotava mensagens e grandes pensamentos. Os telefones podem ser criaturas vivas, avisara Ned, tudo depende de estarem ou não desligados. Não é o caso deste, pensou Barley. Este só vive quando ela telefonar. Tentava ler o magnífico Márquez mas a letra parecia-lhe arame farpado; desconcentrava-se a todo o momento e tinha de voltar atrás.

Um carro passou na rua, a seguir um transeunte. Depois foi a vez da chuva, estoirando como tiros abafados contra os vidros da janela. Sem um clamor, sem um riso, sem um grito de raiva, Moscovo devolvera-se aos grandes espaços.

Aqueles olhos. Que viram em mim? Uma relíquia, decidiu. Vestido com o fato do meu pai. Um mau actor oculto pela sua própria representação. Atrás da maquilhagem, nada. Ela procurava em mim a convicção e em vez disso o que viu foi a bancarrota moral da minha classe e deste tempo inglês. Procurava uma esperança futura e encontrou vestígios de uma história acabada. Procurava o contacto e encontrou em mim um cartaz que dizia "reservado". Por isso um breve olhar lhe bastou, e fugiu.

Reservado para quem? Para que grande dia ou paixão me reservei? Tentou imaginar o corpo dela. Mas com um rosto daqueles, quem precisa de um corpo?

Bebeu. Ela é coragem. Ela é inquietação. Bebeu de novo. Katya, se é isso que tu és, é para ti que eu estou reservado.

Se. Que faltaria saber sobre Katya? Nada, a não ser a verdade. Houvera uma época, há muito esquecida, em que confundira beleza e inteligência, mas Katya era tão obviamente inteligente que, desta feita, não era possível confundir as duas qualidades. Outra época houvera, e Deus era testemunha, em que confundira beleza e virtude. Mas em Katya tinha pressentido virtude tão sublime que, se naquele momento ela espreitasse por aquela porta e lhe dissesse que acabara de matar os filhos, encontraria instantaneamente seis maneiras de a convencer da sua inocência.

Se. Bebeu mais um gole de Scotch e com um arrepio lembrou-se de Andy.

Andy Macready, trompetista, deitado numa cama de hospital com a cabeça cortada. Tiróide, explicou vagamente a mulher. Quando descobriram, Andy recusou a cirurgia. Preferia dar um último mergulho e não voltar, dizia. Por isso embebedaram-se os dois e planearam uma viagem a Capri, uma última grande comezaina, rios de vinho tinto e o derradeiro mergulho rumo aos confins de terra nenhuma no imundo Mediterrâneo. Mas quando a tiróide começou realmente a afectá-lo, Andy descobriu que preferia a vida à morte, pelo que votou na cirurgia em vez de Capri. E separaram-lhe a cabeça do corpo, só as vértebras ficaram a ligá-la ao corpo, e com tubos fizeram-no sobreviver. E ali estava Andy, na cama do hospital, ainda uma criatura vivente, sem razão nenhuma para viver, sem razão nenhuma que o fizesse morrer, amaldiçoando o dia em que recusou Capri, e tentando encontrar um significado para si mesmo que fosse mais forte do que a morte.

Vou telefonar à mulher do Andy, pensou. Pergunto-lhe como é que está o velho. Viu as horas, calculou que horas seriam no mundo  real ou irreal de Mrs. Macready. Estendeu a mão para o auscultador mas não o levantou. Podia tocar.

Pensou em Anthea, a sua filha. Querida Ant. Pensou no filho, Hal, imaginou-o na City. Desculpa lá ter-te estragado a vida, Hal, mas deixa lá que ainda tens algum tempo para a endireitar.

Pensou no apartamento de Lisboa e naquela mulher debulhada em lágrimas. Com um estremecimento, pensou no que lhe poderia ter acontecido. Pensou nas suas outras mulheres, mas a sua culpabilidade estava abaixo do nível usual, assunto que também lhe proporcionou algumas cogitações. Pensou de novo em Katya e percebeu que era nela que tinha estado a pensar o tempo todo.

Uma batida na porta. É ela, veio ter comigo. Traz apenas um roupão, está nua por baixo. Barley, querido, murmura ela. Ainda me ama depois do que aconteceu?

Não, não é o gênero dela. É uma mulher sem precedentes nem sequelas. Não tem nada a ver com todas as prostitutas decadentes que conheci.

Era Wickow, o anjo da guarda, preocupado com o seu protegido. "Entre, Wickers. Vai um golinho?" Wicklow ergueu as sobrancelhas, o que equivalia a perguntar se ela tinha telefonado. Vestia um casaco de cabedal em que eram visíveis algumas gotas de chuva. Barley abanou a cabeça. Wicklow encheu um copo com água mineral.

"Estive a dar uma vista de olhos por alguns dos livros que eles nos propuseram hoje", disse ele, no tom extravagante que ambos tinham adoptado por causa dos microfones. "Pensei que talvez lhe interessasse saber a minha opinião acerca de alguns dos títulos dos ensaios e manuais.”

"Pois opine à sua vontade, Wicklow", disse Barley hospitaleiramente, espreguiçando-se na cama uma vez mais, enquanto Wicklow pegava na cadeira.

"Bom, dos títulos que eles apresentaram há apenas um que me parece interessante. um manual de saúde física, com dietas e exercícios. Creio que poderemos considerá-lo como um dos nossos grandes lançamentos, neste esquema de co-produção. Talvez pudéssemos contratar um dos melhores ilustradores russos, sempre aumentava o impacte da obra.”

"Aumente à vontade. O céu é o bmite." "Teremos, de perguntar primeiro ao Yuri." "Pergunte. “

Um hiato. Continuemos com a mesma conversa, propôs mentalmente Barley.

"Ah, a propósito, sir, tinha-me perguntado porque é tão frequente os russos usarem a palavra “conveniente”.”

"Sim, de facto perguntei", disse Barley, que nunca lhe tinha feito tal pergunta.

"Quando dizem “conveniente”, o termo russo em que estão a pensar é udobno. Significa conveniente, mas também próprio, o que, por vezes, pode causar alguma confusão. Quer dizer, uma coisa é não ser conveniente, outra não ser próprio.”

"Sem. dúvida, sem dúvida", concordou Barley, depois de ter pensado demoradamente no assunto, enquanto sorvia o seu Scotch.

Depois deve ter dormitado, já que, sem perceber porquê, se viu sentado e muito direito, com o auscultador colado ao ouvido e Wicklow de pé junto a ele. Estamos na Rússia, foi por isso que ela não disse o nome.

"Apareça", convidou ele. "Desculpe telefonar-lhe tão tarde. Incomodo?" "Incomodar não, perturbar sim. Perturbar, perturba sempre. Foi óptimo aquele chá. Pena que tivesse durado tão pouco. Onde está?”

"Convidou-me para jantar amanhã, segundo me parece." "Barley pôs-se à procura do caderno. Wicklow passou-lho de imediato.

"Almoço, lanche, jantar, tudo", disse ele. "Para que morada mando ir o coche de cristal?" Escrevinhou uma morada. "A propósito, qual é o seu número de telefone, para o caso de um de nós se perder?" Katya deu-lhe também o número de telefone, relutantemente, era um desvio às regras, mas mesmo assim deu-lho. Wicklow esperou que ele escrevesse o número e, lentamente, retirou-se do quarto.

Nunca se sabe, pensou Barley, acalmando-se com mais um longo gole de Scotch depois de ter desligado. Quando uma mulher é bela, inteligente e virtuosa, nunca se sabe para que lado vai cair. Gostará de mim ou não passarei para ela de um rosto na multidão?

Então, subitamente, o medo moscovita apossou-se dele num abrir e fechar de olhos. Atacou-o no momento em que menos o esperava, depois de o ter combatido todo o dia. Os terrores ocultos da cidade atroavam-lhe nos ouvidos e depois deles era a voz aflautada de Walter que zunia na sua cabeça.

"Será que ela está realmente em contacto com ele? Ou terá inventado esta história sozinha? -Ou estará em contacto com outra pessoa, e sendo assim, com quem?”

 Na sala de controlo, situada nas caves da Casa da Rússia, parecia viver-se a atmosfera tensa de um ataque aéreo capaz de durar toda a noite. Ned estava sentado à secretária de comando, atrás de uma muralha de telefones. Por vezes, um dos telefones piscava o sinal vermelho e Ned atirava para o bocal uns quantos monossilabos, num estilo o mais conciso possível. Duas assistentes de gestos doces iam depositando os telegramas em cima da secretária e despejando os cinzeiros. Dois relógios dos Correios, um com a hora de Londres, outro com a de Moscovo, brilhavam sob uma luz forte como duas luas gêmeas encostadas à parede do fundo. Em Moscovo era meia-noite, em Londres nove horas. Ned quase não levantou a cabeça quando o seu segurança-chefe me abriu a porta.

Não me fora possível chegar mais cedo. Tinha passado a manhã com os procuradores do Tesouro e a tarde com os advogados de Cheitenham. A ceia serviria para entreter uma delegação de espiocratas da Suécia, após o que os despacharia para o espectáculo musical da praxe.

Walter e Bob debruçavam-se sobre um mapa das ruas de Moscovo. Brock falava “com a sala de códigos através do telefone interno. Ned mergulhava no que parecia ser um extenso inventário. Fez-me sinal para me sentar e atirou-me uma remessa de mensagens da frente, copiadas à pressa e em forma de entradas.

 

09h54 Barley conseguiu telefonar para Katya, na Outubro. Marcaram encontro para esta noite às 20h15 no Odessa. Segue.

13h20 irregulares seguiram Katya até ao número 14 da rua tal. Deixou uma carta numa casa que parece estar vazia. Fotos seguem breve pela mala. Segue.

20h18 Katya chegou ao Hotel Odessa. Barley e Katya falam no bufete. Wicklow e um irregular observam. Segue.

21h05 Katya deixa o Odessa. Resumo da conversa segue. Gravações seguem breve pela mala. Segue.

22h00 provisório. Katya prometeu telefonar a Barley esta noite. Segue.

22h50 Katya é seguida até ao hospital tal. Wicklow e um irregular cobrem. Segue.

23h25 Katya recebe chamada num telefone sem uso do hospital. Fala três minutos e vinte segundos.

 

Segue.

E de súbito nada mais.

O acto de espiar é a normalidade levada a extremos. Espiar é esperar.

"O Clive Sem índia recebe esta noite?", perguntou Ned, como se a minha presença o tivesse feito lembrar-se de alguma coisa.

Respondi que Clive estaria na sua suite toda a noite. Tinha estado metido na Embaixada Americana todo o dia e dissera-me que devia estar disponível à noite.

Seguimos no meu carro para a sede. "Já viu esta porcaria?", perguntou-me, batendo com as pontas dos dedos num documento que trazia no colo.

"Que porcaria?" "A lista de nomes a quem foram distribuídos os documentos da Ave Azul. Os que os leram mais os seus sátrapas.”

À cautela, decidi não comentar. Era lendário o mau gênio de Ned a meio das operações. Na porta do gabinete de Clive a luz estava verde, o que significava "entrem se se atrevem". A chapa de bronze anunciava "Delegado" em letras cujo brilho eclipsaria a própria Casa da Moeda.

"É capaz de me explicar, Clive, por que raio não foi respeitada a confidencialidade do assunto?", perguntou-lhe Ned, mal entrámos, acenando-lhe com a lista. "Damos aos tipos de Langley um lote de material altamente sensível e cuja fonte não conhecemos e da noite para o dia eles recrutam um exército inteiro! Como é que isto é possível? Onde é que estamos? Em Hollywood? Nós temos um tipo lá, em carne e osso. E temos um dissidente que nunca vimos".

Clive deu a volta à carpete dourada. Quando discutia com Ned tinha o hábito de se virar de súbito para ele, como se fosse uma carta de jogar. E nesse momento fê-lo uma vez mais.

"Então você acha que a lista de conhecedores da Ave Azul é demasiado longa?", perguntou, no tom de quem ouve um testemunho.

"Acho e você também devia achar. E Russel Sheriton também. É capaz de me explicar que raio é esta coisa que dá pelo nome de Conselho de Apoio Científico do Pentágono? E esta Comissão de Conselheiros Acadêmicos da Casa Branca, que raio de comissão é esta?”

"Preferia que seguisse um procedimento mais restritivo e que insistisse para que eles limitassem o conhecimento do caso à Comissão 

Inter-Agências? Que só os chefes soubessem do assunto, sem qualquer apoio de comissões, equipas ou assistentes? É isso que quer dizer?”

"Se acha que consegue voltar a meter a pasta de dentes no tubo, então a resposta é sim. “

Clive pôs um ar de quem estaria a meditar nos méritos da sugestão. Mas eu sabia, tal como Ned, que Clive não meditava nos méritos de nada. Para ele só interessava saber quem era a favor e quem era contra fosse o que fosse. Depois de o saber, dedicava-se apenas a descobrir qual era o melhor aliado.

"Em primeiro lugar, nem um só desses distintos cavalheiros a que me referi é capaz de entender seja o que for do material da Ave Azul, se não contar com o apoio de peritos", prosseguiu Clive na sua voz perfeitamente fria. "Portanto, ou os deixamos chapinhar na mais total ignorância ou então admitimos os seus apêndices e aceitamos o preço. E isto aplica-se também à Comissão de Espionagem da Defesa e a todos os conselheiros da Marinha, do Exército, da Força Aérea e da Casa Branca.”

"Quem é que eu estou a ouvir? Estou a ouvir a sua voz ou a de Russell Sheriton?", perguntou Ned.

"Como podemos pedir-lhes que não consultem as suas equipas científicas, quando simultaneamente lhes estamos a dar um material que é extremamente complexo?", persistiu Clíve, ignorando nitidamente a questão de Ned. "Se a Ave Azul for verdadeira, então precisarão com certeza de toda a ajuda possível.”

"Se", repetiu Ned, enfurecido. "Se for verdadeira. Meu Deus, Clive, você ainda é pior do que eles. Há duzentos e quarenta nomes nessa lista e todos eles têm uma mulher, uma amante e quinze amigos do peito.”

"Em segundo lugar, prosseguiu Clive, numa altura em que já nos tínhamos esquecido de que houvera um primeiro, "não é à nossa espionagem que compete decidir, mas sim à de Langley". Virara-se para mim antes de Ned ter tempo de lhe responder. "Palfrey, confirme, por favor. No nosso tratado de cooperação com os americanos, não demos a Langley direitos de primazia sobre todo e qualquer material estratégico?”

"Em assuntos estratégicos a nossa dependência de Langley é total", concedi. "Eles dizem-nos o que querem que nós saibamos. Em troca, somos obrigados a comunicar-lhes tudo o que descobrimos. Nunca descobrimos muita coisa, mas de facto o acordo é assim.”

Clive escutou-me atentamente e com um ar aprovativo. A sua frieza ganhara uma ferocidade desusada, o que obviamente me deixava intrigado. Se ele possuísse uma consciência, diria que essa frieza era causada por um possível constrangimento. Que tinha ele estado a fazer naEmbaixada todo o dia? Que ofertas tinha feito, e a quem, e a troco de quê?

"É comum nestes Serviços concluir-se erradamente que nós e os americanos estamos no mesmo barco", continuou Clive, agora falando unicamente para Ned. "Mas não estamos. Não estamos quando se trata de estratégia. Não temos no nosso país um especialista de defesa capaz de ombrear com um americano em matéria de estratégia. No que toca a estratégia, nós, os britânicos, não passamos de uma jangada minúscula e perfeitamente ignorante do seu rumo, ao passo que eles são o Queen Elizabeth. Não cabe à jangada dizer ao transatlântico como deve navegar.”

Estávamos ainda maravilhados com o vigor desta declaração quando o telefone vermelho de Clive começou a tocar. Sofregamente, correu para o auscultador, porque uma coisa que Clive adorava era atender chamadas naquele telefone em frente dos seus subordinados. Pouca sorte a sua. Era Brock. Queria falar com Ned.

Katya tinha acabado de telefonar a Barley, e tinham combinado encontrar-se na noite seguinte, disse Brock. A equipa de Moscovo precisava da aprovação urgente de Ned para as suas propostas de operação relativamente a esse encontro. Ned saiu imediatamente.

"Que anda você a tramar com os americanos?", perguntei a Clive, que não se deu ao incómodo de me responder.

Passei o dia seguinte à conversa com os meus suecos. Na Casa da Rússia, a vida continuava morna. Espiar é esperar. Por volta das quatro escapuli-me para o meu gabinete e telefonei a Hannali. É uma coisa que faço às vezes. Pelas quatro regressa ela do Instituto de Oncologia, onde trabalha em part-time, e o marido nunca volta a casa antes das sete. Contou-me como lhe tinha corrido o dia, quase não liguei ao que ela disse. Falei-lhe do meu filho, Alan, que estava apaixonado por uma enfermeira de Birmingham, uma rapariga sem dúvida simpática mas que realmente não tinha a classe do Alan.

"Pode ser que telefone mais tarde", disse ela. Às vezes dizia isso, mas nunca telefonava.

Barley seguia ao lado de Katya. Os passos dela pareciam um eco dos seus, embora mais firme. Uma penumbra doentia banhava as casas velhas e esburacadas daquela paisagem dickensiana. O primeiro pátio era sombrio, o segundo tenebroso. No meio do lixo, uns quantos gatos pararam a fitá-los. Dois rapazes de cabelos compridos que podiam passar por estudantes jogavam ténis com uma fila de caixotes de cartão a servir de rede. Um terceiro observava encostado à parede. Um pouco mais à frente, uma porta borrada de grafitti e com um quarto crescente pintado a vermelho. "Atenção às marcas vermelhas", avisara Wicklow. Ela estava pálida e Barley pôs-se a pensar se não estaria também pálido, seria um milagre se não estivesse. Há homens que nunca serão heróis e heróis que nunca serão homens, pensou, com urgentes agradecimentos a Joseph Conrad. E Barley Blair nunca será nem uma coisa nem outra. Levou a mão à maçaneta da porta e tentou rodá-la. Katya mantinha-se um pouco  afastada. Trazia uma gabardina e à cabeça um lenço. A maçaneta girava mas a porta não cedia. Empurrou a porta com ambas as mãos, primeiro ligeiramente, depois com toda a força. Os jogadores de ténis desataram a gritar-lhe em russo. Barley ficou como que paralisado, sentindo fogo pelas costas.

"Eles estão a dizer que a porta só abre ao pontapé", disse Katya, e, para seu grande espanto, Barley reparou que ela sorria.

"Se num momento destes você consegue sorrir", disse ele, "então imagino que cara não terá quando se sente feliz.”

Mas deve tê-lo dito para si mesmo, já que ela não respondeu. Com um pontapé, a porta cedeu de facto, gemendo sobre a areia que se acumulava debaixo dela. Os rapazes, rindo da cena, regressaram ao jogo. Barley avançou na escuridão e Katya seguiu-o. Carregou num botão mas não havia luz, A porta fechou-se com estrondo atrás deles e quando, às apalpadelas, procurou a maçaneta não conseguiu encontrá-la. Por um momento pararam naquela profunda escuridão, sentindo os cheiros a gato, cebolas e fritos e escutando rádios e discussões que pertenciam a outras vidas. Acendeu um fósforo. Apareceram três degraus, depois meia bicicleta, a seguir um patamar e um elevador imundo. E nada mais porque o lume lhe chegara aos dedos. Vai para o quarto andar, dissera Wicklow. Atenção às pinturas a vermelho. Mas como é que vou ver coisas pintadas a vermelho no meio desta escuridão? Deus respondeu-lhe com uma luz pálida vinda do piso superior.

"Quer dizer-me onde estamos?", perguntou ela afavelmente. "É o apartamento de um amigo meu", respondeu ele. "Um pintor. “

Barley abriu a porta do elevador, depois a grelha. Disse "faz favor", mas Katya já estava lá dentro, olhando para cima, ansiosa por que aquilo subisse.

"Ele está fora por uns dias. Sempre é um bom sítio para falarmos", disse.

Reparou de novo nas pestanas dela, na humidade daqueles olhos. Gostaria de consolá-la mas ela não estava suficientemente triste.

"É pintor", repetiu, como se isso legitimasse um amigo. "Oficial?" "Não. Não me parece. Não sei." Porque não lhe dissera Wicklow que raio de pintor era o homem? Ia a carregar no botão quando uma rapariguinha com óculos de aros de tartaruga entrou a correr no elevador abraçando um urso de plástico. A criança gritou uma saudação e o rosto de Katya iluminou-se ao responder-lhe. O elevador lá foi subindo aos arrancos; em cada piso os botões davam um estalido que mais parecia de pistola. No terceiro andar, a criança, muito educadamente, disse-lhes adeus e Barley e Katya responderam-lhe em uníssono. No quarto, o elevador parou com um sobressalto, como se tivesse batido no tecto e talvez tivesse mesmo batido. Barley deixou-a passar para terra firme e, com um salto ligeiro, saiu também. À sua frente, havia um corredor que tresandava a bebé, talvez a muitos bebés. Ao fim do corredor, naquilo que parecia ser uma parede sem portas, uma seta vermelha apontava à esquerda, para uma estreita escada de madeira. No primeiro degrau estava Wicklow, agachado como um duende, lendo um livro enorme à luz de uma pilha. Não ergueu a cabeça quando eles passaram, mas Barley reparou que Katya o observava atentamente.

"O que é? Viu algum fantasma?", perguntou-lhe. Tê-lo-ia ouvido? E ele, ter-se-ia ouvido a si mesmo? Teria sequer falado? Estavam já num extenso sótão. Frestas de céu trespassavam o telhado, os caibros dos telhados estavam manchados de dejectos de morcegos. Sobre as vigas do soalho havia um caminho feito de pranchas de andaimes. Barley segurou na mão dela. Uma mão larga e forte e seca. A nudez daquela mão contra a nudez da sua própria mão, era como a dádiva de todo um corpo.

Avançou cautelosamente, entre cheiros de terebentina e linhaça e o sopro de um vento inesperado. Com alguma dificuldade passou entre um par de cisternas de ferro e viu uma gaivota de papel em tamanho natural voando pendurada numa trave, dançando em volta do fio que a segurava. Barley avançou, conduzindo Katya. Para lá da gaivota, pendia uma cortina listrada presa a um varão de chuveiro. Se não há gaivota, então não há encontro, dissera Wicklow. Ausência de gaivota significa aborto. Ora aí está o meu epitáfio, pensou Barley. "Não havia gaivota, por isso ele abortou." Puxou a cortina e entrou num estúdio de pintor, conduzindo-a sempre pela mão. No centro do estúdio encontrava-se um cavalete e um cubo de madeira estofado onde decerto se sentaria o modelo. Um velho sofá de espaldar alto assentava no chão sobre o seu estofo. É uma casa antiga, dissera Wicklow. Como eu, Wickers, como eu. Uma clarabóia improvisada rompia o declive do telhado. Também a clarabóia tinha uma marca vermelha pintada. Os russos não confiam nas paredes, explicara Wicklow, ela há-de falar melhor ao ar livre.

Barley abriu a clarabóia, para grande consternação de uma colónia de pardais e pombos. Fez um sinal a Katya para subir primeiro, e reparou no jeito fácil com que o seu corpo longilíneo trepou ao telhado. Seguiu-a, mas com tão pouco jeito que bateu com a espinha na borda do telhado, o que o levou a soltar um previsível "Chiça!". Ficaram de pé entre duas empenas, num vale coberto de chapa de chumbo, tão pouco extenso, que caso se sentassem, nem os pés poderiam estender. De ruas que não podiam ver chegava-lhes a palpitação do trânsito. Katya olhava-o e de muito perto. E se ficássemos aqui, para sempre?", pensou ele. Os teus olhos, eu, o céu. Esfregava as costas, semicerrando os olhos por causa da dor.

"Dói-lhe?" "É só uma espinha fracturada." "Quem é aquele homem que está nas escadas?", perguntou ela.

"Trabalha para mim, é o meu editor. Fica de vigia enquanto conversamos.”

"Ontem à noite estava no hospital." "Que hospital?" "A noite passada, depois de ter estado consigo, tive de ir a um certo hospital.”

"Está doente? Porque foi ao hospital?", perguntou Barley, deixando de esfregar as costas.

"Não interessa. Ele estava lá. Dava a impressão que tinha um braço partido. “

"Não, não pode lá ter estado", retorquiu Barley, sem acreditar no que dizia. "Depois de você se ter ido embora ele esteve sempre comigo. Discutimos uma quantas coisas sobre os livros russos.”

Barley viu a suspeita abandonar lentamente os olhos dela. "Estou cansada. Desculpe.”

"Deixe-me dizer-lhe o que eu resolvi, se não estiver de acordo, diga. Conversamos e depois levo-a a jantar. Se os guardiões do Povo ouviram a nossa conversa a noite passada, estão com certeza à espera que vamos jantar. O estúdio pertence a um amigo meu, pintor e louco por jazz como eu. Nunca lhe disse o nome dele porque não consigo lembrar-me e talvez nunca o tenha sabido. Pensei em trazer-lhe uma garrafa e depois dávamos uma espreitadela aos quadros dele, só que o homem não apareceu. A seguir, fomos jantar e conversámos acerca de literatura e da paz mundial. Apesar da minha reputação, não lhe fiz qualquer proposta amorosa. Passei o tempo a contemplar a sua beleza, a qual me infunde um respeito excessivo. Que tal?”

"É conveniente." Barley agachou-se num repente, tirou uma meia garrafa de Scotch do bolso e abriu-a. "Bebe disto?”

"Não." "Eu também não. " Barley esperava que ela se sentasse ao seu lado, mas Katya permaneceu de pé. Deitou um fio de whisky na tampa e pôs a garrafa aos seus pés.

"Como se chama ele?", perguntou. "O autor. Goethe. Quem é ele?" "Isso não interessa." "Em que unidade é que ele está? Em que firma? Qual é o número da sua caixa postal? Está num ministério? Num laboratório? Onde é que ele trabalha? Não podemos desperdiçar o pouco tempo que temos.”

"Não sei. “

"Onde é que ele pára? Também não me vai dizer isso?" "Pára em muitos sítios. Trabalha em muitos sítios." "Como é que o conheceu?" "Não sei. Não sei que lhe possa dizer. “

"O que é que ele lhe disse para me dizer a mim?" Katya vacilou, como se ele a tivesse apanhado em falta. Com um ar pensativo, respondeu-lhe. "Disse-me o que era necessário. Que eu 

devia confiar em si. Foi generoso. É por natureza um homem generoso. “

"Então o que é que a detém?" Nada. "Porque julga que vim a Moscovo?" Nada. "Acha que me agrada brincar aos polícias e ladrões em Moscovo?”

"Não sei." "Porque me mandou o livro se não confia em mim?" "Foi por ele que o mandei. Não fui eu que o escolhi a si. Foi ele", retorquiu Katya com um ar melancólico.

"Onde é que ele está agora? No hospital? Como é que falou com ele?" Barley fitou-a, à espera da resposta. "Porque não começa muito simplesmente a falar e depois logo se vê?", sugeriu. "Quem é ele, quem é você, em que trabalha ele. “

"Não sei. “

"Quem é que esteve no alpendre às três da manhã na noite do crime" Nada, só o silêncio. "Diga-me porque é que me arrastou para isto, Katya. Foi você quem começou, não eu. Katya? Está a ouvir-me Sou eu, Barley Blair. Blair, Barley Blair, faço umas habilidades, imito pássaros, bebo. Sou um amigo.”

Barley adorava aqueles silêncios graves enquanto a olhava naqueles olhos que não paravam de o fitar. Adorava senti-la a escutar com os olhos. Adorava aquele retorno a uma proximidade quase íntima sempre que ela falava.

"Não houve crime nenhum", disse ela. "Ele é meu amigo. O seu nome e ocupação não interessam.”

Barley sorveu um pouco mais de whisky enquanto pensava naquela resposta. "Então é isto que você habitualmente faz pelos seus amigos? Passa clandestinamente para o Ocidente os manuscritos ilícitos que eles produzem?" Ela também pensa com os olhos, pensou. "Ele não lhe disse por acaso sobre que incidia o manuscrito?”

"Claro que não. Não me faria correr riscos sem o meu consentimento.”

Barley reparou no tom de defesa que havia na voz dela e isso melindrou-o. "Que lhe disse ele que havia no manuscrito?", perguntou.

"O manuscrito descreve o envolvimento do meu país na preparação de armas anti-humanitárias de destruição maciça durante muitos anos. Mostra-nos até que ponto a corrupção e a incompetência grassam em todos os campos da nossa indústria de defesa. Fala-nos ainda de uma administração que, de tão deficiente, se torna criminosa, bem como de vários atropelos éticos.”

"Mas que grande tirada, Katya!", retorquiu Barley. "O que eu gostaria de saber era se tem conhecimento de outros pormenores, para além do que me acaba de dizer. “

"Não estou familiarizada com assuntos militares." "Então posso concluir que ele é um militar." "Não, não é.”

"Então se não é militar, o que é que ele é?" Silêncio. "Mas diga-me uma coisa, Katya. Você aprova o que ele faz? Aprova a sua decisão de passar as informações para o Ocidente?”

"Ele não as passou para o Ocidente, nem para qualquer bloco. É verdade que respeita os britânicos, mas isso não é importante.

O que é importante é que o seu gesto garantirá uma verdadeira abertura entre os cientistas de todas as nações. Contribuirá para destruir a corrida aos armamentos. " Ela ainda não tinha cedido por completo. Falava monocordicamente como se tivesse aprendido o texto de cor. "Ele acredita que não temos tempo a perder. Temos de destruir o abuso que se faz da ciência e os sistemas políticos responsáveis por esse abuso. Quando ele fala de Filosofia, é em inglês que fala", acrescentou.

E você ouve, pensou Barley. Ouve com os olhos. Em inglês. E entretanto magica se há-de ou não confiar em mim.

"É um cientista?" "É. É um cientista." "Odeio-os a todos. De que ramo é ele? Física?" "Talvez. Não sei." "Mas as informações do manuscrito são muito variadas. Fala de precisão, alvos, comando e controlo, motores de mísseis. O nosso cientista trabalhará por acaso acompanhado? Quem é que lhe fornece o material? Como é que ele sabe tanta coisa?”

"Não sei. O que sei é que está sozinho. Isso é óbvio. Não tenho assim tantos amigos. Ele não é um grupo. É possível que dirija o trabalho de outras pessoas. Não sei.”

"É um homem altamente colocado? Um chefe? Trabalha aqui em Moscovo? É um dirigente? O que é que ele é, afinal?”

Katya abanou a cabeça a cada pergunta. "Não trabalha em Moscovo. De qualquer modo, nunca lhe perguntei onde trabalha e ele também não mo diz. “

"Faz testes?" "Não sei. Só sei que tem trabalhado em muitos sítios. Por toda a União Soviética. Às vezes vê-se que esteve a trabalhar ao sol, outras vezes que passou muito frio, outras ainda muito sol e muito frio. Não sei.”

"E nunca mencionou a unidade em que trabalha?" "Não." "E números postais, não tem? Nomes de chefes? O nome de um colega ou de um subordinado, talvez ... “

"Ele não está interessado em dizer-me tais coisas." E Barley acreditava nela. Enquanto estivesse com ela, acreditaria que o norte era o sul e que as crianças nascem em jacarandás.

Katya fitava-o, à espera da próxima pergunta. "Será que ele compreende as consequências da divulgação do manuscrito?", perguntou-lhe Barley. "Quer dizer, as consequências que 

essa divulgação terá para ele? Será que ele sabe com que fogo está a brincar?”

"Ele diz que há momentos em que as nossas acções têm de vir primeiro e que só devemos pensar nas consequências quando elas ocorrerem." Katya parecia estar à espera de que ele dissesse qualquer coisa, mas Barley aprendera já a abrandar a sua velocidade de reacção. "Se à nossa frente se desenha claramente um objectivo, então podemos avançar um passo. Se nos dedicamos a todos os objectivos ao mesmo tempo, então não avançaremos nada.”

"E você? Terá ele pensado nas consequências que isso poderá ter para si, se alguma vez se vier a saber?”

"Ele já se resignou." "E você?" "Também, naturalmente. A decisão também foi minha. Se não, porque o apoiaria?”

"E os seus fílhos?", perguntou ele. "Tudo o que estamos a fazer é para eles e para a sua geração", retorquiu ela com uma determinação que raiava a cólera.

"E as consequências para a Mãe Rússia?" "Nós consideramos a destruição da Rússia preferível à destruição de toda a humanidade. O nosso maior fardo é o passado. De todas as nações, não apenas da Rússia. Consideramo-nos como os executores do passado. Ele diz que se não conseguirmos executar o nosso passado, nunca conseguiremos construir o futuro. Só poderemos construir um novo mundo quando nos libertarmos das mentalidades do velho. Para dizermos a verdade, temos de estar preparados para ser os apóstolos da negação. Ele cita Turgenev. Núlista é aquele que não reconhece nenhum princípio como certo, por muito que esse princípio seja venerado.”

"E você, é uma nulista ?" "Não. Sou uma humanista. Se nos é dada a oportunidade de desempenharmos um papel na construção do futuro, então não a poderemos enjeitar.”

Barley procurava naquela voz uma réstea de dúvida. Nem réstea, nem sinal. O seu tom era perfeito, perfeitamente seguro.

"Há quanto tempo é que ele diz coisas destas? Desde sempre? Ou só recentemente?”

"Ele sempre foi um idealista. É essa a sua natureza. Sempre foi uma criatura extremamente crítica, num sentido construtivo. Houve uma época em que conseguiu convencer-se de que as armas de aniquilação eram tão terríveis que teriam decerto o efeito de abolir a guerra. Acreditou que essas armas produziriam uma alteração nas mentalidades dos sistemas militares. Admitia convictamente o paradoxo de que quanto mais poderosas fossem as armas, maior seria a sua capacidade para implantar a paz. Por isso era um entusiasta das posições estratégicas americanas.”

Katya começava a abrir-se. Barley sentia claramente que ela já não podia mais, que a contenção era já impossível. Katya despertava e aproximava-se dele. Sob os céus de Moscovo, ela repelia todas as suas suspeitas, porque excessiva fora a sua solidão, porque excessivo fora o seu abandono.

"E que facto ou factos contribuíram para a sua mudança de opinião?”

"Há muito que ele conhece a incompetência e a arrogância das nossas organizações militares e burocráticas. Há muito que sabe que é essa incompetência e essa arrogância que minam as raízes do progresso, como ele diz. Inspiram-no a perestroika e a perspectiva da paz mundial. Mas não é um utópico, não é uma criatura passiva. Sabe muito bem que nada surgirá por si. Sabe que o nosso povo está iludido e que lhe falta poder colectivo. A nova revolução tem de ser imposta de cima. Pelos intelectuais. Pelos artistas. Pelos administradores. Pelos cientistas. O que ele pretende é dar o seu próprio contributo, um contributo irreversível, para essa mudança, de acordo com as exortações da nossa liderança. Por isso cita um provérbio russo que diz: “Se o gelo está fino, temos de andar depressa”. Diz que vivemos há demasiado tempo numa era de que já não precisamos.

O progresso só será um facto quando essa era tiver acabado.”

"E você está de acordo?" "Estou, tal como você!" Uma exclamação inflamada. Fogo nos olhos. Um inglês demasiado perfeito, aprendido no convento, nos clássicos autorizados do passado. "Ele diz que o ouviu criticar o seu país nos mesmíssimos termos!”

"Diga-me uma coisa, Katya, ele não tem por acaso interesses vulgares como toda a gente?", perguntou Barley. "Por exemplo, gosta de cinema? De que marca é o carro dele?”

Katya afastara-se dele. Barley atentou no perfil dela, recortado contra o céu vazio de nuvens. Depois, bebeu mais um gole de Scotch.

"Você disse que ele talvez fosse um físico", lembrou-lhe. "Fez estudos de Física. Creio que também é especialista competente em certos campos da Engenharia. No campo em que trabalha, julgo que tais distinções nem sempre são rigorosamente observadas,”

"Onde é que ele estudou?" "Na escola consideravam-no já um prodígio. Aos catorze anos venceu uma Olimpíada de Matemática. O seu êxito foi divulgado pelos jornais de Leninegrado. Depois foi para o Litmo, mais tarde fez estudos de pós-graduação. É um indivíduo brilhante.”

"Eram precisamente esses indivíduos que eu odiava quando andava na escola", retorquiu Barley, verificando, com algum alarme, que ela não gostara da sua observação.

"Mas não odiou Goethe. Aliás, inspirou-o mesmo. Goethe cita muitas vezes o seu amigo Scott Blair. “Se queremos que haja esperança, teremos todos de trair os nossos países.” Foi mesmo você que disse isto?”

"O que é um Litmo?", perguntou Barley. "Litmo é o Instituto de Ciência Mecânica e óptica de Leninegrado. Depois da Universidade, Goethe foi para Novosibirsk, onde estudou na cidade científica. de Akademgorodok. Licenciou-se em Ciências, doutorou-se em Ciências. Fez tudo.”

Barley gostaria de insistir com ela acerca daquele "tudo", mas receava assustá-la. Por isso, deixou-a falar sobre si mesma. "E como é que você aparece na vida dele?”

"Desde criança." "Criança de que idade?" Barley sentiu de novo reticências na expressão dela, reticências que se dissolveram passado um momento. Era como se ela precisasse de se lembrar de que estava em boa companhia ou em tão má companhia que pouca diferença faria comprometer-se ainda mais.

"Nos anos sessenta foi um intelectual importante", disse ela com um sorriso grave.

"Que idade tinha o prodígio?" "Trinta." "De que ano estamos a falar?" "1968. Nessa altura ainda ele era um idealista na defesa da paz. Dizia que os nossos dirigentes nunca seriam capazes de mandar os tanques. “Os checos são nossos amigos”, dizia ele. São como os sérvios, e os búlgaros. Se fosse em Varsóvia, talvez mandassem os tanques. Mas contra os checos, contra os nossos amigos checos, nem pensar”.”

Katya estava agora de costas para ele. Ela era um sem número de mulheres ao mesmo tempo. De costas para ele falava para o céu. No entanto, fazia-o penetrar na sua vida e escolhia-o como confidente.

Foi no mês de Agosto, em Leninegrado, disse ela, tinha dezasseis anos, estudava Francês e Alemão, era o último ano de escola. Era uma aluna-modelo, sonhava com a paz e tinha uma visão revolucionária o mais romântica possível. Não era ainda uma mulher feita e julgava-se já uma mulher madura. Era com ironia que Katya ia falando de si. Aos dezasseis anos, tinha já lido Erich Fromin e Ortega y Gasset e Kafka, vira mesmo o Dr. Strangelovel. Considerava Sakharov como um homem correcto no seu pensamento, mas errado no método. Preocupava-se com os judeus russos, mas partilhava a opinião do pai de que tinham sido os próprios judeus os causadores dos seus problemas. O pai era professor de Humanidades na Universidade, e a escola onde ela andava era para filhos e filhas da nomenclatura de Leninegrado. Tudo isto se passava em Agosto de 1968, mas Katya e os seus amigos ainda eram capazes de viver em esperança política. Barley tentou lembrar-se se alguma vez tinha vivido em esperança política e concluiu que não lhe parecia. Ela falava como se nunca mais a pudessem impedir de falar. Nesse momento Barley gostaria de lhe ter pegado na mão, como tinha feito nas escadas. Gostaria de lhe ter pegado em qualquer parte do corpo, de preferência a cara, gostaria de a ter podido beijar em vez de estar para ali a ouvi-la desfiar a história dos seus amores.

 

Filme de Stanley Kubnck, com Peter Selers, uma sátira em tom da que n. (N do T)

 

"Nós acreditávamos que o Leste e o Ocidente estavam a aproximar-se", disse. "Quando os estudantes americanos se manifestavam contra a guerra do Vietnam, nós sentíamo-nos orgulhosos deles e víamo-los como nossos camaradas de luta. Quando os estudantes de Paris se revoltaram, o nosso desejo era estar ao lado deles nas barricadas, vestindo roupas iguais às deles, claro, boas roupas francesas a que nós não tínhamos acesso.”

Olhou num relance para ele e sorriu. Um quarto crescente tinha aparecido entre as estrelas e Barley tinha uma vaga ideia, seguramente literária, de que quarto crescente era um mau agouro. Um bando de gaivotas tinha-se instalado num telhado do outro lado da rua. Não te deixarei nunca, pensou.

"Havia um homem no nosso prédio que tinha estado ausente durante nove anos", continuou ela. "Voltou certa manhã, fazendo de conta que nunca tinha estado fora. O meu pai convidou-o para jantar e durante toda a noite passou discos para ele ouvir. Creio que nunca tinha encontrado uma pessoa acabada de sair de um campo. Por isso, esperava que ele falasse de todos os horrores por que tinha passado. Nada disso. O homem não queria outra coisa senão ouvir Shostakovich. Nessa altura não entendia ainda que há sofrimentos que não podem ser descritos. Sabíamos que na Checoslováquia estavam a ocorrer reformas extraordinárias. Acreditávamos que estas reformas chegariam em breve à União Soviética, que em breve teríamos uma moeda forte e poderíamos viajar livremente.”

"E a sua mãe, onde estava?" "A minha mãe já tinha morrido." "De que morreu?" "De tuberculose. Já estava doente quando eu nasci. A 20 de Agosto havia uma projecção de um filme de Godard no Clube dos Cientistas. Só para convidados, claro." Involuntariamente a sua voz tinha-se tornado severa. "Os convites eram para duas pessoas.

O meu pai tinha indagado acerca do conteúdo moral do filme e mostrava-se relutante em levar-me. Eu insisti e ele acabou por aceder, com o argumento de que eu andava a estudar francês e portanto devia ver filmes franceses. Conhece o Clube dos Cientistas de Leninegrado?".

"Não posso dizer que conheça", respondeu ele, recostando-se. "Alguma vez viu o filme A bout de soufflc?'" "Entrava nele", respondeu Barley, e Katya desatou a rir enquanto ele sorvia o whísky.

 

Filme de Jean-Luc Godard, com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, um dos títulos básicos da "nouvelle vague" francesa, (N. do T.)

 

"Então há-de lembrar-se que era um filme muito tenso. Lembra-se?”

"Lembro." "Foi o filme mais forte, mais poderoso que alguma vez vi. Toda a gente ficou muito impressionada, mas para mim foi um verdadeiro choque. O Clube dos Cientistas fica junto do rio Neva. É um edifício muito antigo, magnífico, com escadarias de mármore e, sofás muito baixos, onde é difícil uma mulher sentar-se com uma saia apertada. “

Katya olhava de novo à sua frente. Barley fitava de novo o seu perfil. "Há um belíssimo jardim de Inverno e uma sala que parece uma mesquita, com imponentes cortinados e carpetes luxuosas. O meu pai gostava muito de mim, mas preocupava-se comigo e por isso mostrava-se severo. Quando o filme acabou, fomos para uma sala de jantar com painéis de madeira nas paredes. Uma sala lindíssima. Sentámo-nos a uma mesa muito longa, como todas as outras, e foi aí que eu conheci Yakov. Foi o meu pai quem nos apresentou. “Apresento-te um novo gênio no mundo da Física”, disse-me ele. O meu pai cometia por vezes o erro de ser sarcástico com os jovens. Yakov era muito belo. Tinha já ouvido falar dele, mas ninguém me tinha dito que era tão vulnerável, parecia mais um artista do que um cientista. Perguntei-lhe em que estava a trabalhar naquele momento e ele respondeu-me que tinha voltado para Leninegrado a fim de recuperar a sua inocência. Desatei a rir e dei-lhe uma resposta que, numa rapariga de dezasseis anos, seria no mínimo inesperada. Disse-lhe que achava estranho que um cientista andasse à procura da sua inocência, quando havia tanta gente que não se preocupava nada com isso e que, pelo contrário, deveria preocupar-se. Ele explicou-me que em Akadenigorodok tinha realizado estudos extremamente brilhantes em certos campos e que por isso os militares não o largavam. Em Física, ao que parece, a distinção entre investigação pacífica e investigação militar é frequentemente muito ténue. Os militares ofereciam-lhe tudo privilégios, dinheiro para o seu trabalho -, mas ele recusava porque queria canalizar as suas energias para objectivos pacíficos. Isso irritava os militares porque normalmente recrutam a nata dos nossos cientistas e não estão à espera de uma recusa. Por isso Yakov voltara à sua velha Universidade, na esperança de reencontrar a inocência perdida. De início pensara estudar Física Teórica e procurara para tal o apoio de gente influente. No entanto, todos se mostravam relutantes precisamente por causa da sua atitude. Além disso, não tinha autorização para residir em Leninegrado. Falava com toda a liberdade, como acontece normalmente com os nossos cientistas. E sentia um entusiasmo incrível por tudo o que se passava em Gorodok. Falava dos estrangeiros que passavam por lá, dos jovens e brilhantes cientistas americanos vindos de Stanford e do MIT, sem esquecer os ingleses. Falava dos pintores que eram proibidos em Moscovo mas que podiam expôr em Gorodok. Os seminários, a intensidade daquela vida, a livre troca de ideias e, disso estava certo, a livre troca de amor. “Em que outro país, senão na Rússia, teriam os cientistas um concerto especialmente realizado para eles, com Richter e Rostropovich, e Okudzhava a cantar, e Voznesensky a ler os seus poemas?! Este é o mundo que nós cientistas, devemos construir para os outros!” Ele brincava e dizia as suas piadas e eu ria-me como uma mulher madura. Nesses tempos ele era um homem extremamente espirituoso, mas também muito vulnerável, como hoje. Há nele uma parte que se recusa a crescer. É o artista que há nele, mas é também o perfeccionista. Já naquela época criticava sem rodeios a incompetência das autoridades. Dizia que havia tantos ovos e tantas salsichas no super-mercado de Godorok que iam lá autocarros com gente de Novosibirsk ie pelas dez da manhã já não havia nada nas prateleiras. Porque é que tinham que ser as pessoas a fazer a viagem e não os ovos?, perguntava ele. Seria muito melhor se os ovos fossem ter com as pessoas! Ninguém apanhava o lixo, acrescentava ele, e a electricidade era cortada dia sim dia sim. Por vezes, nas ruas, havia lixo que dava pelos joelhos. E chamavam àquilo um Paraíso científico! Nesse momento fiz outro comentário precioso. “Mas esse é o problema do Paraíso”, disse eu. “Não há ninguém para recolher o lixo”. Toda a gente se riu imenso. Para mim aquela noite estava a ser um sucesso. Depois ele falou da velha guarda, que tentava opor-se às ideias dos novos e logo debandava abanando a cabeça, como velhos camponeses que vissem pela primeira vez um tractor. Pouco importam as tentativas da velha guarda, acrescentou. O progresso acaba sempre por vencer. O comboio blindado da Revolução que Estaline tinha feito descarrilar disse ele ainda seguia de novo em frente e a próxima paragem seria Marte. Foi então que o meu pai o interrompeu com uma das suas opiniões cínicas. O meu pai achava que Yakov fazia demasiado barulho com as suas ideias. “Mas diga-me uma coisa, Yakov Yefremovich”, disse o meu pai, “Marte não era o deus da guerra?”. Num instante a expressão de Yakov ganhou um ar intensamente reflexivo. Nunca pensei que um homem pudesse mudar tão depressa: num momento, audacioso, no momento seguinte, solitário e angustiado. Intimamente censurava o meu pai. Estava furiosa com ele. Yakov tentava recuperar do choque, mas o meu pai deixara-o definitivamente desesperado. Yakov não lhe falou por acaso do pai dele?”

Katya estava sentada do outro lado daquele vale de telhas, com as suas longas pernas estiradas, o vestido cingido ao corpo. O céu escurecia, a lua e as estrelas cresciam no negrume da noite.

"Disse-me que o pai tinha morrido de uma overdose de inteligência", replicou Barley.

"O pai dele participou num motim de prisioneiros de um campo. Foi o desespero que o levou à revolta. Yakov não soube da morte do pai durante muitos anos. Certo dia apareceu-lhe um velho em casa, dizendo que tinha morto o pai dele. Tinha sido guarda do campo em que o pai de Yakov estivera preso e participara na execução dos rebeldes. Cumprira ordens superiores, claro. Os amotinados tinham sido mortos às dúzias pelas metralhadoras dos guardas, perto do terminal dos caminhos de ferro em Vorkuta. O guarda soluçava ao contar isto. Yakov tinha apenas catorze anos mas perdoou ao velho e ofereceu-lhe vodka.”

Não posso fazer isto, pensou Barley. Não tenho nada a ver com esta dimensão, não estou à altura desta gente.

"Em que ano foi morto o pai dele?", perguntou. O que você tem de ser é um hamster. É praticamente a única coisa que você pode fazer, comportar-se como um hamster.

"Acho que foi na Primavera de 1952. Enquanto Yakov permanecia silencioso, toda a gente na mesa começou a falar com a maior veemência da Checoslováquia", prosseguiu ela no seu inglês perfeito e arqueológico. "Diziam alguns que o bando dirigente iria mandar os tanques. O meu pai tinha a certeza de que assim seria. Outros diziam que havia razões para que mandassem os tanques. O meu pai contrapunha que os nossos dirigentes enviariam os tanques, tivessem ou não razão. Os czares vermelhos, acrescentou, fariam o que muito bem lhes apetecesse, tal e qual como os mares brancos tinham feito.

O sistema venceria porque o sistema sempre vencera e o sistema era precisamente a nossa maldição. Esta a convicção do meu pai, como mais tarde viria a ser a de Yakov. Mas nessa altura ainda Yakov estava decidido a acreditar na Revolução. Gostaria que a morte do pai tivesse valido a pena. Depois de escutar atentamente o meu pai, tornou-se agressivo. “Nunca mandarão os tanquesP, disse. “A Revolução há-de sobreviver!”, acrescentou, batendo com o punho na mesa. Reparou nas mãos dele? São como as mãos dum pianista, muito brancas, muito magras. Nesse momento, tinha já bebido demais.

O meu pai também e por isso reagiu com alguma irritação aos comentários de Yakov. Queria que o deixassem em paz com o seu pessimismo. Um humanista distinto como o meu pai não poderia gostar que um jovem cientista como Yakov o contestasse, tanto mais que o considerava um indivíduo arrogante e presunçoso. Talvez o meu pai também sentisse ciúmes, porque, enquanto discutiam, senti que me estava a apaixonar por Yakov.”

Barley bebeu mais um golinho de whisky. "Não o choca?", perguntou ela, indignadamente, de novo com um sorriso nos lábios. "Não o choca que uma rapariga de dezasseis anos se apaixone por um homem experiente, já na casa dos trinta?”

Barley não se sentia muito perspicaz, mas ela parecia necessitar de uma resposta tranquilizadora. "Não sei que lhe diga, mas, vendo a questão globalmente, diria que foram ambos muito felizes.”

"Quando a recepção acabou, pedi ao meu pai três rublos para ir ao Café Sever comer gelados com as minhas amigas. Havia várias filhas de académicos na recepção, algumas delas eram minhas colegas de escola. Convidei também Yakov para vir connosco. A caminho do café, perguntei-lhe onde é que vivia. Respondeu-me que vivia na rua do Professor Popov. Depois perguntou-me: “Quem foi Popov? Desatei a rir.

Toda a gente sabe quem foi Popov, disse. Popov foi o grande inventor russo da rádio, o homem que emitiu um sinal rádio ainda antes de Marconi. Yakov não estava assim tão certo. “Talvez Popov nunca tenha existido”, replicou. “Talvez o Partido o tenha inventado para satisfazer a nossa obsessão de que somos os primeiros a inventar tudo”. Com esta resposta fiquei a saber que, lá no fundo, ele ainda tinha dúvidas sobre o que os nossos dirigentes fariam na Checoslováquia".

Barley acenou-lhe sensatamente com a cabeça, apesar de não sentir sensatez nenhuma.

"Perguntei-lhe se o apartamento dele era partilhado ou só dele. Respondeu-me que era um quarto que partilhava com um antigo conhecido do Litmo que trabalhava à noite num laboratório muito especial e que por isso raramente se encontravam. “Então mostre-me onde vive”, disse-lhe eu. “Quero saber se vive confortavelmente.” Foi ele o meu primeiro amante", disse ela com a maior simplicidade. "Foi extremamente delicado, como eu esperava, mas foi também um homem apaixonado. “

"Bravo", disse Barley, mas tão baixo que duvidava que ela o tivesse ouvido.

"Fiquei com ele três horas e apanhei o último metro. O meu pai estava à minha espera. Falei com ele como se fosse uma estranha de visita àquela casa. Não preguei olho, essa noite. No dia seguinte as notícias da BBC. Os tanques tinham invadido Praga. O meu pai, que tinha previsto a invasão, estava desesperado. Mas nesse momento não era o meu pai que me preocupava. Em vez de ir para a escola, fui à procura de Yakov. O seu companheiro de quarto disse-me que o encontraria no Saigão, nome por que era conhecido um café na Nevsky Prospekt, um café frequentado por poetas, traficantes de droga e especuladores, nunca por filhas de professores universitários. Yakov estava a beber café, mas via-se perfeitamente que estava bêbado. Não parara de beber vodka desde que ouvira as notícias. “O teu pai tem razão”, disse ele. “O sistema vence sempre. Falamos nós de liberdade e afinal somos nós os opressores.” Três meses depois regressou a Novosibirsk. Apesar de toda a sua amargura, regressou. “Tenho de escolher entre morrer de obscuridade e morrer de compromisso”, disse-me. “Como é uma escolha entre uma morte e outra, o melhor é optar pela alternativa mais confortável. “

"E como é que você ficou?", perguntou Barley. "Com vergonha dele. Disse-lhe que ele era o meu ideal e que me sentia decepcionada. Tinha acabado de ler os romances de Stendlial, por isso falei-lhe no tom de uma grande heroína francesa. Mesmo assim acreditava que ele tinha tomado uma decisão imoral. Dizia uma coisa e fazia outra. Na União Soviética, disse-lhe eu, há demasiada gente a fazer isso mesmo. Disse-lhe ainda que nunca mais falaria com ele enquanto não corrigisse devidamente aquela escolha imoral. Lembrei-lhe o caso de E. M. Forster, que ambos admirávamos. Disse-lhe que ele tinha de ser um homem de um só rosto. Que os seus pensamentos e acções tinham de ser uma e a mesma coisa. Claro que passado pouco tempo compadeci-me dele e reatámos, mas já não era a mesma coisa, a nossa relação tinha perdido todo o romantismo inicial. De Novosibirsk enviava-me cartas frias. Sentia vergonha dele. Talvez de mim mesma, também.”

"De maneira que acabou por se casar com Volodya", disse Barley. "Exacto." "E manteve a sua relação com Yakov?", sugeriu Barley, como se fosse a coisa mais natural deste mundo.

Katya corou, enquanto o olhava com severidade. "Sim, é verdade, durante algum tempo eu e Yakov mantivémos uma relação clandestina. Não nos encontrávamos muitas vezes, de vez em quando apenas. Ele dizia que nós éramos um romance que não tinha sido acabado. Precisávamos um do outro para completar o destino de cada um. Ele tinha razão, mas eu não me tinha apercebido do poder da sua influência sobre mim, ou do poder que eu tinha sobre ele. Pensei que se nos víssemos mais vezes talvez nos conseguíssemos libertar um do outro. Quando concluí que não era isso que acontecia, deixei de o ver. Amava-o mas recusava-me a vê-lo. E além disso estava grávida de Volodya.”

"Quando voltaram a encontrar-se?" "Depois da última feira do livro de Moscovo. Foi você o catalizador de que Yakov estava à espera. Ele tinha passado as férias a beber. Escrevera inúmeros documentos internos e apresentara muitas queixas oficiais. Nenhuma delas tinha perturbado minimamente o sistema, embora me pareça que ele conseguira incomodar as autoridades. Mas você apareceu e falou-lhe ao coração. O que você fez foi transformar os pensamentos dele em palavras num momento crucial da sua vida, e além disso você ligava as palavras à acção, coisa que Yakov não considera fácil. No dia seguinte, telefonou-me para o meu escritório usando um pretexto. Disse-me que um amigo lhe tinha emprestado o apartamento. A minha relação com Volodya estava já a desintegrar-se nessa altura, embora vivêssemos ainda juntos porque Volodya estava à espera de arranjar casa. Fui ter com ele ao apartamento. Foi aí que ele me falou de si pela primeira vez. E muito disse. Disse-me que você tinha feito com que tudo se tornasse claro para ele. “Aquele inglês deu-me a solução. A partir de agora, temos de dedicar-nos apenas à acção, e acção significa sacrifício”, disse ele. “As palavras são a maldição da sociedade russa. São um sucedâneo para a acção.” Yakov sabia que eu tinha contactos com editores ocidentais, por isso pediu-me que procurasse o seu nome nas nossas listas de visitantes estrangeiros. Lançou-se de imediato ao trabalho. Queria que eu lhe desse o manuscrito a si. Andava a beber imenso. Apavorava-me que bebesse tanto. “Como podes escrever bêbado?”, perguntei-lhe uma vez. Respondeu-me que bebia para sobreviver.”

Barley bebeu mais um trago de whisky. "Contou ao seu marido que tinha voltado a ver Yakov?”

"Não." "E Volodya não descobriu?" "Não." "Então quem é que sabe?" Katya respondeu prontamente, como se já se tivesse feito a mesma pergunta por várias vezes.

"Yakov nada diz aos seus amigos. Disso não tenho dúvida. Quando sou eu a pedir um apartamento emprestado, digo apenas que é por uma razão privada. Na Rússia temos palavras para segredo e solidão, mas não temos palavra nenhuma para privacidade.”

"E as suas amigas? Não perceberam nada?" "Não somos propriamente anjos. Se lhes peço certos favores, elas tiram determinadas conclusões. Por vezes sou eu que faço os favores. Nada mais. “

"E ninguém ajudou Yakov a elaborar o manuscrito?" "Não." "Nenhum dos seus amigos dos copos?" "Não." "Como pode estar tão certa?" "Porque tenho a certeza de que ele está completamente sozinho com os seus pensamentos.”

"É feliz com ele?" "Como?" "Gosta dele? Ama-o? Ele diverte-a?" "Penso que Yakov é um grande homem, e também um homem muito vulnerável que não pode sobreviver sem mim. Ser um perfeccionista equivale a ser uma criança. Equivale também a uma ausência total de sensatez, a uma incapacidade para aceitar o lado prático da vida. Creio que sem mim ele não se aguentaria.”

"E neste momento, ainda aguenta?" "Yakov responder-lhe-ia com esta pergunta: destes dois homens, qual é o são: aquele que planeia o extermínio da humanidade, ou aquele que dá os passos necessários para o evitar?”

"E aquele que faz ambas as coisas?" Katya não respondeu. Sabia que ele estava a provocá-la. Barley sentia ciúmes, queria desgastar os alicerces daquela profunda fidelidade.

"Ele é casado?", perguntou. Uma expressão furiosa varreu o rosto de Katya. "Não creio que ele seja casado. Mas isso não interessa.”

"Tem filhos?" "Essas perguntas são ridículas." "A situação é ridícula." "Ele diz que os seres humanos são as únicas criaturas que fazem dos filhos vítimas. Yakov está decidido a não fazer vítimas.”

Excepto as vítimas de Katya, pensou Barley, mas conseguiu não o dizer.

"Portanto você seguiu a carreira dele com interesse", sugeriu ele secamente, procurando de novo situar Goethe.

"À distância e sem conhecer pormenores." "E durante todo esse tempo nunca soube em que é que ele trabalhava? É isso que me tem estado a dizer?”

"O que eu consegui saber, deduzi-o das nossas discussões sobre questões éticas. “Que porção da humanidade teremos de exterminar se quisermos preservar a humanidade? Como podemos falar de luta pela paz se planeamos guerras terríveis? Como podemos falar de alvos selectivos se não possuímos os mecanismos de precisão necessários para os atingirmos? Quando discutimos assuntos como estes, tenho naturalmente consciência do seu envolvimento. Quando ele me diz que o maior perigo para a humanidade não é a realidade do poder soviético mas sim a sua ilusão, eu não o questiono. Encorajo-o. Incito-o a ser um homem coerente e se necessário corajoso. Mas não o questiono. “

"Rogov? Nunca lhe falou de um Rogov? Do Professor Arkady Rogov?”

"Já lhe disse que ele não fala dos colegas. “

"Quem lhe disse que Rogov era colega dele?" "Pela sua pergunta concluí que era", retorquiu Katya furiosa, e de novo Barley acreditou nela.

"De que modo comunica com ele?", perguntou Barley, retomando o seu tom afável.

"Isso não interessa. Um certo amigo dele recebe uma determinada mensagem, informa-o e Yakov telefona-me depois.”

"E esse certo amigo sabe quem envia essa determinada mensagem?”

"Nada indica que saiba. Sabe que é uma mulher. Nada mais." "Yakov tem medo?" "Fala muito de coragem, portanto posso concluir que tem medo. Cita Nietzche. “O bem supremo é não ter medo.” Cita Pasternak. “A raiz da beleza...'“

"E você?" Katya desviou os olhos. Nas casas próximas acendiam-se as primeiras luzes.

"Não posso pensar apenas nos meus filhos. Tenho de pensar nos filhos de todos", disse ela, e Barley reparou em duas lágrimas que jaziam esquecidas no seu rosto. Bebeu um gole mais de whísky e cantarolou alguns compassos de Basie. Quando voltou a olhar para ela, já as lágrimas tinham desaparecido.

"Ele fala da grande mentira", disse ela, como se se tivesse lembrado disso nesse preciso momento.

"Que grande mentira?" "Tudo faz parte da mesma grande mentira, tudo, até a mais ínfima peça sobressalente da arma mais insignificante. Até os resultados que são enviados para Moscovo fazem parte da grande mentira. “

"Resultados? Que resultados? Resultados de quê?" "Não sei. “

"De testes?" Katya pareceu esquecer-se da sua negativa inicial. "Sim, talvez de testes. Creio que o que ele quer dizer é que os resultados dus testes são deliberadamente distorcidos, de molde a satisfazer as ordens dos generais e as exigências de produção oficiais dos burocratas. Talvez seja ele próprio quem os distorce. Yakov é um homem muito complicado. Por vezes fala dos seus muitos privilégios, que muito o envergonham.”

A lista das compras, como Walter lhe tinha chamado. Com um sentido do dever já muito embotado, Barley atacou os últimos artigos da lista.

"Ele não mencionou nenhum projecto em particular" "Não. “

"Nunca referiu nenhuma participação sua em sistemas de comando? Nunca lhe disse como é controlado o comando operacional?”

"Não." "Nunca lhe disse que passos é necessário dar para prevenir ataques lançados por engano?”

"Não." "Nunca, sugeriu que podia estar envolvido no processamento de dados?”

Katya estava cansada. "Não." "E promoções? Não é promovido de vez em quando? Medalhas? Festas de arromba sempre que sobe um degrau da escada?”

"Só fala de promoções para dizer que a corrupção alastra. Já lhe disse que ele talvez tenha feito críticas ao sistema demasiado abertamente. Não sei.”

Katya tinha-se afastado dele. A cortina do cabelo ocultava-lhe o rosto.

"O melhor será você fazer-lhe as perguntas directamente", disse ela, no tom de alguém que se preparava para sair, "Ele quer encontrar-se consigo em Leninegrado, na sexta-feira. Vai assistir a uma importante conferência numa das instituições científicas militares.”

Primeiro os céus agitaram-se, depois Barley apercebeu-se da friagem da noite. Parecia estar encerrado numa nuvem de gelo, embora o céu escurecesse e clareasse a todo o momento e a lua nova, logo que o movimento incessante das nuvens lho permitiu, irradiasse uma luz cálida.

"Yakov propôs três sítios e três horas", prosseguiu Katya no mesmo tom monocórdico. "Pede-lhe que compareça em qualquer desses locais às horas marcadas. Ele estará presente num deles caso 

possa. Pediu-me ainda para lhe mandar as suas saudações e agradecimentos. Yakov tem por si muito apreço.”

Katya ditou-lhe três moradas e observou-o atentamente enquanto ele as escrevia no caderno, usando o seu arremedo de código. Para saírem tiveram ainda de esperar algum tempo, já que Barley teve mais um dos seus acessos de espirros. Pacientemente, Katya aguardou que os espirros passassem, enquanto Barley arquejava e amaldiçoava o Criador.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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