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A CASA DA RÚSSIA - P.2 / John Le Carré
A CASA DA RÚSSIA - P.2 / John Le Carré

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CASA DA RÚSSIA

Segunda Parte

 

Jantaram como dois amantes exaustos numa adega com um velho cão cinzento e uma cigana que cantava blues acompanhada à guitarra. Quem era o proprietário da adega, quem permitia que aquele local existisse ou porquê, eram mistérios que Barley nunca se tinha dado ao trabalho de deslindar. Tudo o que sabia era que numa encarnação qualquer, numa já longínqua feira do livro, tinha aterrado naquela adega já completamente bêbado, com um grupo de editores polacos completamente doidos, acabando a noite a tocar "Bless This House" com um saxofone caído do céu.

Durante o jantar o diálogo entre os dois não ultrapassou o nível da mera formalidade. Enquanto falavam o abismo que os separava não parou de aumentar. Parecia a Barley que esse abismo se resumia afinal a toda a insignificância da sua pessoa. Fitava-a atentamente e sentia que não tinha nada para lhe oferecer que ela não tivesse em quantidade e qualidade muito superiores. Se as coisas tivessem tomado o rumo que nele era normal, ter-lhe-ia feito uma apaixonada declaração de amor. O recurso intempestivo à expressão de sentimentos puros e absolutos ter-lhe-ia sido essencial para acabar com a tensão natural numa relação recente. Porém, na presença de Katya, não encontrava sentimentos que fossem tão puros e absolutos como os dela. Sentiu que a sua vida não passava de uma série de ressurreições inúteis, um fracasso que o fracasso seguinte suplantava sempre. Horrorizado, concluía que pertencia a uma sociedade inteiramente materialista, a uma sociedade que quase não ligava importância aos grandes temas do Homem. Mas isso eram coisas que não podia dizer a Katya. Se lhas dissesse, arriscar-se-ia a destruir a imagem que ela tinha dele, e, caída essa máscara, não teria rigorosamente nada para lhe oferecer.

Enquanto falavam de livros, Barley assistia ao progressivo afastamento daquela mulher. O rosto dela parecia ausente, a voz prosaica. Tentou reencontrá-la, cantou e dançou para ela, mas Katya estava definitivamente longe. No fundo, limitava-se a repetir as declarações formais e sem brilho que Barley tinha ouvido durante todo o dia, enquanto aguardava ansiosamente a hora do seu encontro. Não tarda nada, pensou, estou a falar-lhe da Potomac Boston e a explicar-lhe que o rio e a cidade não têm nada a ver um com o outro. E Deus sabe que passado um momento era isso mesmo que estava a fazer.

Só pelas onze horas, depois de a gerência do restaurante ter apagado as luzes e quando a acompanhava já pelas ruas desertas até à estação de metro, é que Barley se deu conta apesar de a ideia ser no mínimo pouco razoável de que talvez tivesse causado nela uma impressão que, embora a um nível modesto, podia ser comparada com o deslumbramento que ela provocara nele. Katya agarrava-lhe no braço. Os seus longos dedos colavam-se ao antebraço dele. Para acompanhar o ritmo de Barley, a sua passada era agora mais larga. A boca branca do elevador abriu-se para a receber. Os lustres reluziam por cima das suas cabeças como árvores de Natal invertidas, quando se despediram com o tradicional beijo russo: primeiro na face esquerda, depois na face direita, finalmente na face esquerda. E um "boa-noite" depois dos três beijos.

"Mr. Blair! Bem me parecia que era o senhor! Mas que coincidência! Venha, nós levamo-lo a casa!”

Barley entrou para o carro e Wicklow, com a sua agilidade de acrobata, afundou-se no banco de trás e lançou-se ao trabalho de retirar o gravador do fundo das costas de Barley.

Deixaram-no no Odessa. Tinham ainda bastante trabalho para fazer. O hall do hotel parecia um terminal de aeroporto num dia de persistente nevoeiro. Em todos os sofás e poltronas, convidados muito pouco oficiais mas que tinham pago a taxa corrente, dormitavam na escuridão. Barley examinou-os benignamente, franzindo o nariz. Alguns traziam fatos de treino. Outros estavam mais formalmente vestidos.

"Alguém alinha num copo?", perguntou em voz bem alta. Respondeu-lhe o silêncio. "Não me digam que não partilham comigo um copinho de whisky!", acrescentou, retirando a garrafa, ainda dois terços cheia, do bolso de dentro da gabardina. Bebeu um longo gole para dar o exemplo, e passou a garrafa para o vizinho do lado.

E foi assim que Wicklow o encontrou duas horas depois no hall do hotel, amistosamente acampado no meio de um grupo de gratas almas noctívagas, deliciando-se com um último whisky antes de recolher ao quarto.

 "Quem são estes americanos que o Clive foi desencantar?", murmurei para Ned, enquanto nos reuníamos como devotos madrugadores à volta do gravador de Brock na sala de controlo.

O relógio de Londres marcava as seis. O estrépido matinal de Victoria Street não se fazia ainda sentir. A chiadeira da bobina do gravador parecia um coro de estorninhos no meio de tão profundo silêncio. A fita chegara pelo correio meia hora antes, depois de ter viajado por terra até Helsínquia e num avião especial até Northolt, sempre na mala diplomática, como era óbvio. Se Ned houvesse cedido à diabólica tentação tecnológica, teríamos evitado processo tão dispendioso. E a tentação, neste caso, era um novo aparelho, fervorosamente recomendado pelos feiticeiros de Langley, e que, segundo eles, transmitia o mais seguramente possível a palavra falada. Mas Ned era Ned e Ned preferia os seus próprios métodos, cuja eficácia a experiência confirmava.

Sentado à sua secretária, Ned assinava um documento, ocultando-o ao mesmo tempo com a mão esquerda. Dobrou o papel depois e meteu-o num envelope, que fechou e entregou a Emma, uma das suas assistentes, uma mulher de uma altura exorbitante. Claro que nesse momento já não estava à espera de uma resposta, pelo que a sua veemência não deixou de me surpreender.

"Não passam de uns miseráveis oportunistas", retorquiu ele. "De Langley?" "Da Segurança de quem?", insisti. Ned abanou a cabeça, demasiado furioso para poder responder. Fora o documento que acabara de assinar que o deixara assim, ou a presença dos intrusos americanos? Eram dois. Quem os escoltava era Johnny, o homem deles de Londres. Vestiam blazers azuis-marinhos e usavam o cabelo cortado à escovinha. Exibiam um asseio, um aprumo dignos de mórmons, o que não deixava de me repugnar. Entre os dois sentara-se Clive, mas Bob tinha-se sentado ostensivamente a um canto da sala, ao lado de Walter, que estava com um ar perfeitamente abatido talvez por causa da hora, pensei. Mesmo Johnny parecia incomodado com a presença dos dois estranhos, e incomodado foi como eu me senti de imediato. Aqueles rostos obtusos e desconhecidos não tinham lugar possível na nossa operação e para mais num momento tão crucial. Faziam-me lembrar duas carpideiras à espera de uma morte qualquer. Da morte de quem? Olhei de novo para Walter e a minha inquietação adensou-se.

Examinei uma vez mais os dois americanos, caídos sabe-se lá de onde, tão insignificantes, tão certinhos, tão sem carácter. Segurança, tinha dito Ned. Mas porquê? E porquê agora? Porque olhavam eles para toda a gente, excepto para Walter? Porque olhava Walter para todos os presentes, excepto para eles? E porque é que Bob se tinha sentado longe deles? E por que razão Johnny não fazia outra coisa senão olhar para as mãos? Felizmente nesse momento a gravação interrompeu os meus pensamentos.

Ouvimos o estrondo de passos nas escadas de madeira. Depois, um som que parecia ser de pancadas e a imprecação de Barley ao bater com as costas na clarabóia. Finalmente, o som de pés arrastados: era o momento em que subiam ao telhado.

É uma sessão, pensei, quando começámos a ouvir aquele diálogo num telhado de Moscovo. Barley e Katya falavam-nos do além. Num instante esqueci os dois intrusos e os seus rostos inexpressivos de carrascos.

Ned era o único de nós com auscultadores. Só mais tarde, quando os experimentei, é que percebi a diferença. Com os auscultadores, ouviam-se os pombos de Moscovo esvoaçando no frontão e a respiração rápida que transparece na voz de Katya. E o bater do coração do nosso homem, nitidamente captado pelos microfones que ele tinha no corpo.

Brock passou toda a cena do telhado até que Ned ordenou uma pausa. Apenas os dois intrusos pareciam ter ficado impassíveis. Os seus olhos castanhos varriam-nos a todos nós e não atentavam em ninguém. Walter corara.

Brock passou depois a cena do jantar. Ninguém se mexia: não se ouvia um suspiro, o ranger de uma cadeira, um estalo de dedos. Nem mesmo quando a gravação acabou e Brock desbobinou a fita. Silêncio total. Ned tirou os auscultadores e deu início à sua intervenção.

"Yakov Yefremovich, último apelido desconhecido, físico, trinta anos em 1968, portanto nascido em 1938", anunciou, pegando num formulário cor-de-rosa e escrevinhando nele. "Walter, ofertas?”

Walter tratou de recobrar ânimo. Parecia agitado, e na sua voz já não havia sinais da habitual frivolidade. "Yefrem, cientista soviético, 

outros nomes desconhecidos, pai de Yakov Yefremovich, acima referido, morto em Vorkuta depois de um motim, na Primavera de " Yefrem declarou, sem olhar para o seu bloco. "Não pode haver muitos 4. artistas chamados Yefrem executados por overdose de inteligência, nem mesmo nos tempos do simpático Estaline", acrescentou num tom perfeitamente patético.

A ideia era absurda, mas nesse momento pareceu-me ver lágrimas nos seus olhos. Talvez tenha mesmo morrido alguém, pensei, olhando uma vez mais para os dois mórmons.

"Johnny?", disse Ned, continuando a escrever. "Creio que ficaremos com Boris, outros nomes desconhecidos, viúvo, professor de Humanidades, Universidade de Leninegrado, fins dos anos sessenta, uma filha, Yekaterina", disse Johnny, que continuava a olhar para as mãos.

Ned pegou noutro formulário, preencheu-o e atirou-o para o seu arquivador de plástico, como se fosse dinheiro que lhe agradasse deitar fora.

"Palfrey, quer jogar?" "Se não vê inconveniente, ficaria com os jornais de Leninegrado", disse eu no tom mais ligeiro possível, dado que os americanos de Clive tinham os olhos castanhos pespegados em mim. "Gostaria de saber quem foram os corredores, os juízes de partida e chegada e os vencedores das Olimpíadas de Matemática de 1.952", acrescentei, acompanhado por alguns risos. "E por uma questão de segurança talvez não fosse mau ver também as de 51 e 53. E já agora, podíamos incluir as suas medalhas acadêmicas. Pode ser? “Ele licenciou-se em Ciências, doutorou-se em Ciências. Fez tudo”, disse ela. Poderei investigar “tudo” o que ele fez? Obrigado.”

Feitos os lances, Ned olhou à sua volta à procura de Emma e pediu-lhe que levasse os formulários para os Arquivos. Mas isso não agradou a Walter, subitamente decidido a que não o ignorassem. Num ápice levantou-se e correu para a secretária de Ned, metro e meio de insignificância, os punhos pequeninos esvoaçando à sua frente.

"Eu faço a pesquisa sozinho", anunciou num tom excessivamente dramático, apertando o feixe de papéis cor-de-rosa contra o peito. "Esta guerra é demasiado importante para que a ponhamos nas mãos dos nossos generais reformados dos Arquivos, por muito irresistíveis que eles sejam.”

E lembro-me de ter reparado no olhar com que os mórmons seguiram Walter até ele sair da sala, e no olhar que lançaram um ao outro enquanto ouvíamos o passinho apressado e compassado de Walter ao longo do corredor. E não é por hoje saber o que sei que lhes digo que, naquele momento, o meu sangue gelou de inquietação por Walter, sem que eu chegasse a perceber porquê.

"Vamos apanhar um bocado de ar do campo", disse-me Ned pelo  telefone interno, uma hora depois, tinha eu acabado de regressar à minha secretária na sede. "Diga ao Clive que preciso de si.”

"Então o melhor é ir, não?", retorquiu Clive, ainda trancado no seu gabinete com os dois mórmons.

Tínhamos pedido emprestado um Ford bastante rápido a um dos nossos colegas. Enquanto conduzia, Ned procurou evitar as minhas poucas tentativas de diálogo. Em vez de falar, deu-me o processo para ler. Chegados aos campos de Berkshire, Ned continuava em silêncio. E quando atendeu o telefone do carro, para responder a Brock que precisava de uma confirmação qualquer, limitou-se a resmungar um elíptico "então diga-lhe", regressando imediatamente às suas cogitações.

Estávamos a quarenta milhas de Londres, no mais fétido planeta até hoje produzido pelo homem. Estávamos nos bairros-da-lata da ciência moderna, que são sítios onde a relva está sempre bem aparada. Os pilares do portão, já umas relíquias, tinham a encimá-los dois leões de grés que a erosão corroera. Um homem de modos educados, com um casaco desportivo castanho, abriu a porta a Ned. O seu colega explorou imediatamente debaixo do chassis com um detector. Depois, muito educadamente, apalparam-nos de alto a baixo.

"Os senhores vão levar a pasta?" "Vamos", retorquiu Ned. "Importa-se que a abra, sir" "É melhor não abrir." "Então, não se importam que a passemos pela caixa? Não tem negativos lá dentro, pois não, sir?”

"Faça o favor", disse eu. "Passe-a pela caixa." Ficámos a vê-los enquanto passavam com a pasta por um objecto verde que mais parecia um balde de carvão. Acabada a operação, restituiram-nos a pasta.

"Obrigado", disse eu, recebendo-a de volta. "Não tem de quê, sir, foi um prazer.”

O furgão azul à nossa frente dizia SIGAM-ME. Um lobo da Alsácia olhava-nos com um ar feroz atrás da janela gradeada do furgão. Os portões abriram-se electronicamente, revelando montículos de relva aparada que mais pareciam campas cobertas de vegetação. Dunas verde-azeitona estendiam-se a perder de vista. Naquele local uma nuvem em forma de cogumelo teria parecido uma coisa perfeitamente natural.Estávamos a entrar no parque. Dois busardos volteavam no céu sem nuvens. Uma vedação alta de arame farpado cercava os campos de feno. Edifícios de tijolo irrepreensivelmente limpos aninhavam-se em engenhosas cavidades. Um cartaz chamava a atenção para a necessidade de se vestir roupa protectora nas zonas D a K. Uma caveira com dois ossos cruzados dizia "Você Foi Avisado".

O furgão à nossa frente seguia a uma velocidade de funeral. Arrastadamente, passámos uma curva. À nossa frente, courts de ténis vazios e torres de alumínio. Caminhos de argila colorida iam ficando lentamente 

para trás, guiando-nos até um cacho de abrigos verdes. No meio deles, sobre uma colina, encontrava-se o último vestígio da era pré-nuclear, uma típica mansão rural de Berkshire, de tijolo e pedra, com a palavra "Administrador" gravada a stencil no portão. Um homem corpulento descia agilmente o caminho irregularmente empedrado. Trazia um blazer verde e uma gravata com um desenho de raquetes de squash douradas, e um lenço metido na virola do punho.

"Vêm da Firma, não é verdade? Muito bem. Eu sou o O'Mara. E os senhores são ... ? Eu disse ao nosso homem para esperar no laboratório até que o chamássemos.”

"Muito bem", disse Ned. O'Mara tinha um cabelo louro com invasões de grisalho e uma voz brusca de militar, que o álcool minara de dissonâncias. O pescoço era rotundo e nos seus dedos de atleta eram nítidas as manchas cor-de-mogno provocadas por muitos anos de nicotina. "O'Mara é o tipo que controla os nossos cientistas", dissera-me Ned, num dos raros diálogos durante a viagem. "Em parte pertence ao pessoal, mas também pertence à segurança, enfim pertence a esta merda toda.”

A sala de estar parecia ter sido limpa e arranjada por prisioneiros de guerra napoleónicos. Até os tijolos da lareira tinham sido encerados e as Unhas de estuque entre eles haviam sido realçadas com uma primorosa pintura a cal. Sentámo-nos em poltronas de um padrão cor-de-rosa, bebendo gin-tónico com imenso gelo. Ferraduras de cavalo cintilavam nas traves negras do tecto, igualmente brilhantes do muito polimento.

"Acabo de regressar dos Estados-Unidos", lembrou O'Mara, como que explicando a nossa recente separação. Ergueu o seu copo e atacou-o como se estivesse sequioso. "Vocês vão lá muitas vezes?”

"Uma vez por outra", disse Ned. "De vez em quando", disse eu. "Sempre que o dever chama." "Nós, por acaso, mandamos bastante pessoal para lá. Só por uns tempos, claro. São empréstimos que fazemos. Alguns vão para o Oklahoma, outros para o Nevada, outros ainda para o Utah. A maior parte gosta daquilo. Mas há sempre uns quantos que ficam apanhados e querem logo voltar para casa." Bebeu mais um gole e demorou ainda um tempo a engolir. "Visitei o laboratório de armamentos deles, em Livermore, na Califórnia. Um belo local. E tratam muito bem as visitas. Nada-se em dinheiro por lá. Convidaram-nos para assistirmos a um seminário sobre a morte. Claro que era um tema incrivelmente macabro, mas os psiquiatras, ao que parece, acreditavam que discutir a morte faria bem a toda a gente, e além disso os vinhos eram extraordinários. Quer dizer, quando se planeia atirar grandes quantidades de criaturas humanas para a fogueira é natural que se queira saber como é que a coisa funciona." Bebeu uma vez mais, bebia constantemente. A colina, àquela hora, era um local particularmente sossegado. "É surpreendente, mas a verdade é que havia imensa gente que quase nunca tinha pensado no assunto.

Especialmente os jovens. Os mais velhos mostravam um pouco mais de respeito. Ainda se lembravam da idade da inocência, se é que alguma vez existiu uma idade de inocência. Há dois tipos de calamidades, a versão brutal e a versão suave. Na primeira, é morte imediata, na segunda é morte lenta. Nunca tinha pensado nisso. Acho que dá um novo significado à importância de estarmos no centro das coisas. Seja como for, a verdade é que já chegámos à quarta geração. Sempre é uma consolação. Vocês por acaso jogam golfe?”

"Não", disse Ned. "Eu também não", respondi. "Nunca tive grande queda para o golfe. Andei a aprender mas não me serviu de nada.”

"Aqui temos um campo óptimo para o golfe, a chatice é que nos obrigam a usar equipamento protegido, senão ainda morremos de alguma tacada." Voltou a beber, seguindo o mesmo ritual lento. "O Winfle é um excêntrico", explicou depois de engolir. "São todos uns excêntricos mas o Winfle é dos maiores. Primeiro foi socialista, depois dedicou-se ao Cristo. Agora está na contemplação e no Tai Chi. Graças a Deus que é casado. Fez a Grammar schooF mas sabe falar. Reforma-se daqui a três anos.”

"Disse-lhe muito ou pouco?", perguntou-lhe Ned. "Eles acham sempre que estão sob suspeita. Disse-lhe que ele não estava e disse-lhe ainda que não podia abrir a sua estúpida boca acerca da conversa que teria convosco.”

"E acha que ele abre?", perguntei. O'Mara abanou a cabeça. "Não sei que hei-de achar, a maior parte só nos dão problemas, por muito que a gente ande em cima deles. “

Bateram à porta e Winfle entrou, um eterno estudante de cinquenta e sete anos. Era um homem alto, mas com as costas arqueadas, com um cabelo grisalho encaracolado que esvoaçava para o lado, e uma réstea de um fulgor passado. Vestia um pullover Fair Isle sem mangas, calças muito largas e mocassins. Sentou-se com os joelhos juntos, segurando no copo de sherry bem longe de si, como se o copo fosse uma retorta química que não inspirava confiança.

Ned voltara a ser o profissional. Tinha abafado toda a sua raiva. "Andamos a ver se conseguimos localizar alguns cientistas soviéticos", disse, procurando um tom suficientemente vago. "Temos seguido os meandros do sistema de defesa deles. Não é um assunto propriamente excitante.”

"Ah, então são da Espionagem", disse Winfle. "Foi o que eu pensei, mas não disse nada.”

Ocorreu-me nesse momento que aquele era sem dúvida um homem muito solitário.

"A si não lhe interessa nada o que eles são", avisou O'Mara num tom perfeitamente afável. "São ingleses e estão a fazer o trabalho deles, como você faz o seu.”

 

Grammar Schooi escola secundária britânica. Aqui trata-se de uma referência pejorativw o que está em causa é o facto de Winfle ter frequentado a escola estatal e não uma escola privada, o que denuncia a sua proveniência social. (N. do T.)

 

Ned retirou umas quantas páginas dactilografadas de uma pasta e estendeu-as a Winde, que só pegou nelas depois de ter arrumado o copo em cima da mesa. Nas suas mãos as falanges dobravam-se e os dedos encrespavam-se, como se fossem as mãos de um homem pedindo que o libertassem.

"Estamos a tentar maximalizar algum do nosso velho material a que entretanto não prestámos a devida atenção", disse Ned, caindo num jargão que, noutras circunstâncias, teria evitado. "O que aí tem é uma descrição do seu interrogatório quando voltou de uma visita a Akademgorodok, em Agosto de 1963. Lembra-se de um major Vauxhali? Não é propriamente uma obra-prima da arte literária mas o que interessa é que,você menciona dois ou três cientistas soviéticos cuja história gostaríamos de pôr em dia, caso ainda vivam e você ainda se lembre deles.”

Winfle puxou de um par de óculos perfeitamente pavorosos com uma armação metálica, como se estivesse a proteger-se de um bombardeamento de gases.

"Se bem me lembro, o major Vauxhall deu-me a sua palavra de honra de que tudo o que eu dissesse seria inteiramente voluntário e confidencial", declarou, acentuando didacticamente certas palavras. "Portanto, surpreende-me muito que o meu nome e as minhas palavras apareçam agora em arquivos ministeriais a que muita gente pode ter acesso, vinte e cinco anos depois do sucedido.”

"Olhe que sempre é uma maneira de você se tornar imortal, por isso o melhor é não protestar", avisou O'Mara.

Decidi interpor-me entre os dois como alguém que separasse beligerantes numa discussão familiar, Sugeri a Winfle que talvez ele pudesse completar o relatório do major, que era parco em pormenores. Podia talvez dizer qualquer coisa acerca de um ou dois dos cientistas soviéticos cujos nomes estavam na última página, ou talvez dar-nos uma ideia da equipa de Cambridge em que estivera integrado. Enfim, não se importaria certamente de responder a uma ou duas perguntas que, para o caso em questão, eram realmente importantes.

"'Equipa” não é a palavra exacta no contexto em causa", retorquiu Winfle, agarrando-se à palavra como um predador esfomeado. "Pelo menos do lado britânico, não é. Equipa sugere um objectivo comum.

O que nós éramos era um grupo de Cambridge, isso sim. Uma equipa, nunca. Alguns foram por causa da viagem, outros por uma questão de auto-promoção. Estou-me a referir em particular ao professor Callow, que tinha uma opinião muito exagerada acerca do seu trabalho sobre aceleradores, opinião entretanto refutada". O seu sotaque de Birmingham começava a sobressair. "Claro que uma minoria muito limitada ia por motivos ideológicos. Eram homens que acreditavam na ciência sem fronteiras. Na livre troca de conhecimentos para o bem comum da humanidade.”

"Uns panhonhas", explicou solícito O'Mara. "Havia os franceses, imensos americanos, os suecos, holandeses, até um ou dois alemães", prosseguiu Winfle, sem ligar aos comentários de O'Mara. "Em minha opinião, todos eles tinham esperança e os russos tinham-na aos montes. Nós, os britânicos, é que não tínhamos nada de nada, só empatávamos. E continuamos a empatar.”

O'Mara resmungou qualquer coisa e bebeu mais um gole de gin para recuperar forças. Porém o sorriso afável de Ned, apesar de um pouco esbatido, encorajou Winde a prosseguir.

"Estávamos no auge da era Khrushchev, como sem dúvida estão lembrados. Era o Kennedy deste lado, o Khrushchev do lado de lá. Diziam alguns que estávamos no limiar de uma época de ouro. As pessoas nesses tempos falavam de Khrushchev tanto como se fala de Gorbachev agora, disso estou certo. Embora deva dizer que, em minha opinião, o nosso entusiasmo nessa altura era mais genuíno e espontâneo do que o pretenso entusiasmo de agora.”

O'Mara bocejou e fitou-me desconcertantemente com os seus olhos papudos.

"Nós dissemos-lhe tudo o que sabíamos. E eles fizeram o mesmo", continuou Winfle, agora num tom mais confiante. "Nós, líamos os nossos papéis. Eles, liam os deles. O Callow, disso não tenho dúvida, foi um fracasso. Eles perceberam logo quem ele era. Mas nós não tínhamos só o Callow, tínhamos o Panson na cibernética e ele de facto saiu-se muito bem, e tínhamos ainda este vosso criado. A minha modesta conferência foi um verdadeiro êxito, apesar de ser eu a dizê-lo. Para ser franco, nunca mais ouvi aplausos como aqueles. Não me surpreenderia que ainda falassem de mim lá por aquelas bandas.

O que eu posso dizer é que as barricadas caíram tão rapidamente que era possível ouvi-las a desabarem, mas literalmente a desabarem, no anfiteatro. “Circulação, sim, demarcação, não”, era a nossa palavra de ordem. “Circulação” também não era a palavra adequada para o caso, pelo menos para quem viu a quantidade de vodka que “circulou” ao fim da noite. Ou as mulheres. Ou para quem ouviu as conversas que “circulavam”. Claro que o KGB ouviu. Todos sabíamos isso. Antes de partirmos tínhamos tido uma conversa preparatória, embora muitos não estivessem de acordo. Eu não pus nenhuma objecção, sou um patriota. A questão é que nem o KG13 deles nem o nosso poderiam ter feito alguma coisa para impedir tanta “circulação”. Era evidente que tinha entrado num tema que lhe agradava, pois nesse momento endireitou-se na cadeira para proferir um discurso há muito preparado. "Gostaria de acrescentar que o KGB deles, en, minha opinião, é visto de maneira muito incorrecta. Sei de fonte limpa que o KGB soviético tem protegido muito frequentemente alguns dos mais tolerantes elementos da intelligentsía soviética.”

"Por amor de Deus, Winfle, não me diga que o nosso KGB não tem feito o mesmo", disse O'Mara.

"Além disso, não tenho a mínima dúvida de que as autoridades 

soviéticas têm toda a razão quando dizem que em qualquer troca de conhecimentos científicos com o Ocidente, a União Soviética tem mais a ganhar do que a perder. " A sua cabeça, sempre inclinada, ia saltitando na minha direcção e na de Ned como se fosse um sinal dos caminhos-de-ferro, e a sua mão retorcida nas falanges descansava sobre a coxa num jeito angustiado. "E, além do mais, eles tinham a cultura. As nossas Letras, Artes e Ciências não são nada ao pé das deles. Eles tinham o sonho renascentista do homem completo, e têm-no ainda. Eu próprio não tenho muita cultura. Falta-me o tempo para isso. Mas lá, estava tudo preparado para quem sentisse interesse. E, ao que sei, não saía muito caro. Havia mesmo coisas gratuitas. “

Nesse instante Winde precisou de se assoar. E para se assoar, precisou em primeiro lugar de abrir o lenço sobre o joelho, agarrando depois nele com dedos operacionais. Ned aproveitou aquela pausa imposta pelas circunstâncias.

"Bom, talvez pudéssemos agora passar a alguns dos cientistas soviéticos cujos nomes fez o favor de comunicar ao major Vauxhall", sugeriu, pegando no molho de papéis que eu lhe estendera.

Tínhamos finalmente chegado à questão que nos levara lá. De nós quatro, pareceu-me, só Winfle ainda não se tinha apercebido disso, já que os olhos amarelados de O'Mara pousavam agora no rosto de Ned, estudando-o com uma perspicácia dispéptica.

Ned começou pelos nomes que tinha posto de parte, como eu teria feito. Tinha-os marcado a verde. Dois, sabia-se que tinham já morrido, um terceiro caíra em desgraça. Era um teste à memória de Winde, em ensaio para o nome que interessava. "Sergey?", disse Winde. "Ah, claro, Sergey! Mas qual era o apelido dele? Popov? Popovich? É isso, Protopopov! Sergey Protopopov, engenheiro especializado em combustíveis!”

Num jeito persuasivo e paciente, Ned disse-lhe mais três nomes, um quarto nome, guiando a memória dele, exercitando-a: "Bom mas pense um segundo antes de dizer não outra vez. Já pensou? mesmo não? Está bem. Outro nome. Que me diz a Savelyev?”

"Importa-se de repetir?" A memória de Winfle, reparei, tinha os problemas habituais dos ingleses, com os apelidos russos. Preferia nomes próprios que podia anglicizar.

"Savelyev", repetiu Ned. Olhei nesse momento para O'Mara: continuava a examinar Ned. Este pôs-se a olhar para o relatório que tinha nas mãos, talvez com um ar excessivamente descontraído. "É esse o nome. Savelyev". Soletrou-o. "Jovem, idealista, falador, descrevia-se como um indivíduo humanitário. Trabalha em partículas, criado em Leninegrado." Estas foram as suas palavras, de acordo com o major Vauxhall, já lá vão muitos anos. Há alguma coisa que gostaria de acrescentar? Por exemplo, não se manteve em contacto com ele? Com o Savelyev?”

Winfle sorria de espanto. "Então era esse o seu nome? Savelyev? Estou deveras surpreendido. Está a ver? Tinha-me esquecido por completo. Para mim ele continua a ser o Yakov.”

“Óptimo, Yakov Savelyev. Lembra-se do patronímico" Winde,abanou a cabeça, sorrindo ainda. "Tem alguma coisa a acrescentar à sua discrição original?" Tivemos de esperar. Winde tinha um sentido do tempo completamente diferente do nosso. E, a avaliar pelo seu sorriso postiço, um sentido de humor igualmente diferente.

"Um tipo muito sensível, o Yakov. Não se atrevia a pôr-nos questões durante as conferências. Esperava pelo fim, puxava-nos pela manga do casaco e só então é que fazia as perguntas. “Desculpe, qual é a sua opinião acerca do seguinte problema...” Tudo questões importantes. Era também um homem muito culto, à sua maneira, segundo ouvi dizer. Parece que deu muito nas vistas nas sessões de poesia. E nas exposições de arte.”

A voz de Winde sumiu-se nesse instante e receei que o silêncio lhe servisse para inventar alguma história, coisa que as pessoas fazem frequentemente quando não têm mais informações para dar, mas querem manter a sua ascendência. No entanto, para meu grande alívio, Winde estava apenas a vasculhar no seu armazém de memórias ou talvez a colhê-las do ar com os seus dedos esticados.

"Andava sempre de grupo em grupo, o Yakov", disse finalmente Winfle, com o mesmo irritante sorriso de superioridade. "Punha-se sempre a um canto, muito sério, sempre à margem das discussões. Empoleirado na borda de uma cadeira. Havia um mistério qualquer com o pai dele, nunca cheguei a saber o que era. Ouvi dizer que também era cientista, mas que fora executado. Não foi só ele, muitos outros cientistas foram também executados. Matavam-nos como moscas, segundo li. Se não os matavam, mantinham-nos na prisão. Tupolev, Petliakov, Korolev algumas da maiores estrelas da tecnologia aeronáutica conceberam as suas melhores coisas na prisão. Ramân. inventou na prisão uma nova caldeira para máquinas térmicas. A primeira unidade soviética de investigação de balística de foguetes foi montada numa prisão. Foi Korolev quem a dirigiu.”

"Muito bem montada, meu velho", interrompeu O'Mara, de novo num tom irritado.

"Deu-me uma rocha", prosseguiu Winfle. A mão dele, de novo assente sobre o joelho e com a palma virada para cima, abriu-se e fechou-se agarrando a pretida imaginária.

"Rocha?", retorquiu Ned. "Música ou uma amostra geológica?'" "Quando nós, os Ocidentais, deixámos Akadem", recomeçou Winfle, como que lançando-se numa história inteiramente nova, "despojámo-nos por completo de tudo o que tínhamos. Ficámos literalmente depenados. Se tivessem visto o nosso grupo no último dia, não teriam acreditado. Os nossos hospedeiros russos choravam baba e ranho, eram só abraços e beijos, o autocarro cheio de flores, até o Callow teve um acesso de choro, é incrível mas é verdade. E nós, os Ocidentais, desfizemo-nos de tudo o que tínhamos: livros, jornais, canetas, relógios, lâminas de barbear, pasta dentífrica, nem as escovas de dentes escaparam. Discos também, se os havia. Roupa interior, gravatas, sapatos, camisas, meias, tudo. Tudo, a não ser o mínimo de que precisávamos para chegarmos decentemente a casa. Não tínhamos concordado com tal distribuição. Nem sequer a tínhamos discutido. Foi uma coisa que aconteceu espontaneamente. Alguns deram mais coisas que outros, claro. Sobretudo os americanos, fartaram-se de dar coisas, impulsivos como são. Ouvi dizer que um tipo tinha oferecido um casamento de conveniência a uma rapariga que estava desesperada para sair da URSS. Isso não fiz. Nunca faria. Sou um patriota.”

 

“ No original, rock, daí a confusão entre música e rocha. (N. do T.)

 

"Mas deu algumas das suas coisas a Yakov", sugeriu Ned, enquanto fingia que escrevia esmeradamente numa agenda.

"Ainda dei algumas, sim. Foi um bocado como dar comida aos pássaros no parque. Vamos atrás do pombo que tem mais dificuldade em apanhar o milho e não pensamos noutra coisa senão em engordá-lo, coitado. Além disso, eu gostava do jovem Yakov, era impossível não gostar dele, uma alma tão nobre.”

A mão tinha ficado paralisada no jeito de agarrar a rocha inexistente, as pontas dos dedos esforçando-se por se unirem. A outra mão elevava-se agora à altura da cara e beliscava um bom bocado de carne.

"Aqui tem, Yakov", disse eu. "Não seja lento na sua caminhada. A sua timidez só lhe faz mal." Eu, nessa altura, usava uma máquina de barbear eléctrica. Com bateria, transformador, tudo metido num belo. estojo. Mas ele deu-me a impressão de que não tinha ligado muito à oferta. Se bem me lembro, pôs o estojo de parte e começou a andar de um lado para o outro, lentamente, arrastando os pés. Foi então que percebi que queria dar-me qualquer coisa. Era a rocha, embrulhada em_papel de jornal. Eles não tinham papel de fantasia, naturalmente. "E um bocado do meu país", disse ele. "Para lhe agradecer a sua conferência", acrescentou. Queria que eu amasse sempre tudo o que de bom havia no país dele, por muito mau que ele pudesse parecer do exterior. Olhem que ele falava muito bem inglês, melhor do que metade de nós. Para dizer a verdade, sentia-me um bocado embaraçado. Fiquei com a rocha durante muitos anos, muitos anos mesmo. Até que a minha mulher, numas das suas grandes limpezas da Primavera a atirou para o lixo. Ainda pensei escrever-lhe, mas nunca o fiz. é preciso dizer que ele também era um tipo arrogante, à sua maneira, mas era. Bom, muitos deles eram arrogantes. Atrevo-me a dizer que nós também o éramos, à nossa maneira, claro. Todos nós pensávamos que a ciência conseguiria um dia governar o mundo.

Bom, creio que agora governa, mas não do modo que nós tínhamos idealizado, disso estou certo.”

"E ele escreveu-lhe?", perguntou Ned. Winde, por um momento, reflectiu sobre a questão. "Nunca se sabe” não é? Se ele escreveu, não podemos saber se as cartas terão sido apreendidas. Nem quem é que as terá apreendido.”

Tirei da pasta as fotografias e passei-as a Ned. Ned entregou-as a Winde enquanto O'Mara observava a cena. Winde começou miná-las e, de repente, soltou um grito.

"É ele! É ele! Yakov! O homem que me deu a rocha", disse, devolvendo a fotografia a Ned. "Veja com os seus olhos! Repare-me nos olhos dele! Diga-me ]o se não são os olhos de um sonhador!”

Era uma fotografia extraída do vespertino de Leninegrado com a data de 5 de Janeiro de 1954 e reconstituída pela Secção Fotográfica, mostrando Yakov Yefremovich Savelyev enquanto jovem gênio.

Havia mais alguns nomes e Ned interrogou laboriosamente Winde a propósito de cada um deles, lançando pistas falsas, apagando indício sobre indício, até ter a certeza de que na cabeça de Winde, Savelyev não significava mais do que tudo o resto.

"Foi muito inteligente da sua parte ter escondido o trunfo na mão", observou O'Mara enquanto, de copo na mão, nos acompanhava até ao carro. "A última vez que ouvi falar de Savelyev estava ele a dirigir os testes com os mísseis nos confins do Cazaquistão, congeminando novas maneiras de ler a telemetria deles de forma a que mais ninguém a conseguisse ler. Que é feito dele? Fechou a loja e vende o recheio?”

É muito raro o meu trabalho proporcionar-me prazer, mas aquele encontro, aquele lugar, e, acima de tudo, aquele O'Mara, estavam a pôr-me literalmente doente. É muito raro eu agarrar alguém pelo braço, e quando o faço logo me arrependo e desisto a tempo. Não foi isso que aconteceu com O'Mara.

"Creio que já assinou o documento relativo aos segredos de Estado, não é verdade?", perguntei-lhe num tom rigorosamente calmo.

"Assinar? Pois se eu quase que escrevi a minuta?!", retorquiu O'Mara, extremamente surpreendido.

"Então deve estar informado de que tudo o que você possa saber por via oficial e todas as especulações baseadas nesse conhecimento constituem propriedade perpétua da Coroa". Mais uma das minhas distorções da lei, mas pouco importava para o caso. Só nesse momento lhe libertei o braço. "Portanto, se gosta do seu trabalho aqui e está à espera de promoção, e se anseia pela sua pensão, sugiro-lhe que não volte a pensar neste encontro nem em qualquer nome a ele associado. Obrigadíssimo pelo gin. Adeus".

Na viagem de regresso, com a identificação da Ave Azul confirmada e logo comunicada telefonicamente à Casa da Rússia, Ned 

permaneceu calado, refugiado nos seus pensamentos. No entanto, quando chegámos a Victoria Street, mostrou-se subitamente determinado a não me deixar partir. "Fique por perto", ordenou-me e desceu à minha frente os degraus da cave.

À primeira vista, a cena da sala de controlo era uma verdadeira festa. O centro das atenções era Walter, flutuante como um pintor frente a uma tela, embora a tela fosse, desta feita, um quadro branco tão grande como ele, no qual ia escrevendo, a giz colorido, alguns dados sobre a vida de Savelyev. Se estivesse de chapéu de aba larga e bata de pintor, não teria decerto parecido mais boémio. Só ao fim de um instante me lembrei da sinistra apreensão que sentira de manhã.

À volta dele ou melhor, atrás dele, já que o quadro branco estava encostado à parede, debaixo dos relógios encontravam-se Brock e Bob, bem como Jack, o nosso descodificador, Emma, a assistente de Ned, e Pat, uma mulher mais velha que Emma e uma das principais funcionárias dos Arquivos Soviéticos. Todos eles seguravam copos de champanhe e cada um tinha um sorriso diferente, embora o sorriso de Bob fosse mais um esgar de quem acabara de ter uma dor.

"Um homem que tem de tomar decisões sozinho", declamou epicamente Walter. Ao ouvir-nos entrar parou por um momento, mas não virou a cabeça. "Depois de muitos êxitos, um homem chega aos cinquenta anos e faz um balanço da sua vida. Atenta na sua mortal condição e na vida que desperdiçou. Como todos nós, não é?”

Recuou um pouco. Depois, num arranco, escreveu uma data. Fez então uma pausa para beber um gole de champanhe. E nesse momento senti que havia algo de brutal e assustador na sua figura, como se, no seu rosto, uma maquilhagem pesada estivesse agora a desfazer-se.

"Viveu, toda a sua vida adulta no seio daquele mundo secreto", prosseguiu num tom animado. "Mas de boca calada. Tomando as suas próprias decisões, sozinho, sem que mais ninguém soubesse, honra lhe seja feita. Vingando-se da história, que o quer aniquilar, e provavelmente há-de mesmo aniquilá-lo". Outra data e a palavra OUMPIADAS. "É o ano crucial. Se fosse mais novo, faziam-lhe uma lavagem ao cérebro. Se fosse mais velho, disputaria a sinecura a um qualquer velho imbecil.”

Bebeu uma vez, mais, ainda de costas para nós. Olhei para Bob à procura de um sinal esclarecedor, mas Bob não despegava os olhos do chão. Olhei para Ned. Observava atentamente Walter, mas do seu rosto estava ausente qualquer expressão.

Olhei de novo para Walter e reparei que havia algo de estranho na sua respiração, como se uma qualquer revolta o deixasse arquejante. "Inventei-o, inventei este homem, tenho a certeza de que o inventei", declarou Walter, aparentemente ignorante da estupefacção dos presentes. "Há anos que previa o seu aparecimento." Escreveu as palavras PAI EXECUTADO. "Mesmo depois de o terem recrutado, este pobre cordeiro, fez tudo para continuar a ser um cordeiro.

Não havia nele falsidade. Não guardava ressentimentos. Tinha as suas dúvidas, mas, como todos os cientistas, era um bom soldado. Até que um dia bingo! Desperta finalmente e descobre que à sua volta só há lixo e que desperdiçou o seu gênio com um bando de gangsters incompetentes e que, além disso, empurrara ainda mais o mundo para o abismo da ruína." Walter escrevia com violência e raiva, o suor escorria-lhe pelas têmporas:

 

       TRABALHOU SOB A DIRECÇÃO DE ROGOV

         NO CAMPO DE TESTES NO CAZAQUISTAO.

 

"Ele não o sabe, mas acaba de integrar-se na grande revolução andropáusica russa dos anos oitenta. Passou por todas as mentiras, passou por Estaline, pela breve luz khrushcheviana, pela longa escuridão dos tempos de Brejnev. Mas tem ainda um derradeiro trunfo, uma última hipótese andropáusica de que o mundo retenha a sua memória. E as novas palavras de ordem ressoam-lhe nos ouvidos: revolução a partir de cima, abertura, paz, mudança, coragem, reconstrução. Encorajam-no mesmo a revoltar-se.”

Walter escrevia agora mais depressa do que nunca, apesar de arquejante: TELEMETRIA, PRECISÃO. "Onde aterrarão?", perguntou retoricamente, com a voz entrecortada. "Até que ponto se aproximarão dos alvos? De quantos alvos? E quantos serão disparados? E quando? Qual é a expansão e a temperatura superficial?

O que tem a ver a gravidade com isto tudo? Questões cruciais de que a Ave Azul sabe as respostas. E sabe-as porque está encarregado de fazer os mísseis falar sem que os americanos os oiçam, pois nisso está a sua arte. Porque ele inventou os sistemas crípticos que os super-ouvidos americanos na Turquia e no continente chinês não conseguem entender. Ele vê claramente todas as respostas, antes que o camarada Rogov as açambarque para os seus donos e senhores de Moscovo. Essa é, segundo a Ave Azul, a especialidade de Rogov. "O professor Vitaly Rogov é um lambe-botas", diz-nos ele no segundo caderno. Douta opinião. É isso mesmo que Vitaly Rogov é, um lambe-botas. Um lambe-botas óbvio, inteiramente realizado, completamente invertebrado, uma máquina de cumprir normas e de ganhar medalhas e privilégios. Faz-nos lembrar alguém, este professor Rogov? Ninguém. Nunca o nosso tão caro Clive. Mas voli Ave Azul. Eis que a panela de pressão rebenta. A nossa ave confessa a sua agonia a Katya e Katya diz-lhe, "Chorar não basta, faz qualquer coisa". E ele, Deus seja louvado!, segue tão corajosas palavras. Dá-nos tudo, rigorosamente tudo a que pode ter acesso. As Jóias da Coroa a dobrar, a re-dobrar. A decifração dos sistemas crípticos. A telemetria en claíi. Chaves de código para nos ajudar a entendê-la. A verdade frontal e sem desvios, antes que a enfeitem para consumo de Moscovo. Claro, claro que ele é louco. Mas quem o não é? Quem é melhor que ele?" Bebeu um último gole de champanhe. Reparei nesse instante que o seu rosto era uma massa rubra de dor e

'No original, enifrancês: "a nu".

constrangimento e indignação. "A vida é uma borrada", explicou, entregando-me o seu copo ao passar por mim.

Num segundo Walter desapareceu da sala e subiu as escadas. Ouvimos uma sucessão de portas de aço abrindo e fechando até ele sair para a rua.

"O Walter era um risco", explicou lapidarmente Clive na manhã seguinte, perante a minha insistência. "Para nós talvez ele não passasse de um sujeito excêntrico. Mas para os outros..." Nunca tinha ouvido da boca de Clive uma referência tão pouco encoberta ao sexo. Mas num instante a sua auto-censura prevaleceu. "Mandei-o para a secção de treino de agentes", prosseguiu, regressando ao seu tom normal, que era absolutamente impessoal. "Houve demasiado alarme do outro lado.”

Do outro lado do Atlântico, queria ele dizer.

E assim desaparecia de cena Walter, o magnífico Walter. Não me tinha enganado: nunca mais voltámos a ver os mórmons, nunca mais Clive se referiu a eles. Se eram mensageiros de Langley ou se muito simplesmente chegaram, julgaram e puniram, nunca o podemos saber. Ou talvez não fossem de Langley, talvez pertencessem a um daqueles grupos com nomes resumidos a iniciais que Ned tanto contestara. Ou seriam dois representantes daquela classe de gente que constituía o ódio de Ned a classe dos psiquiatras mansos?

Fossem eles quem fossem, o certo é que o seu efeito foi sentido em toda a Casa da Rússia e a ausência de Walter deixou em nós um vazio só comparável aos portentosos buracos produzidos pelas armas do nosso melhor aliado. Bob apercebeu-se disso e lia-se-lhe no rosto a vergonha que-sentia. Até Johnny, o duro, se mostrava constrangido.

"Vou querê-lo mais metido nisto", disse-me Ned. Fraca consolação para a ausência de Walter.

"Andas outra vez nervoso", disse-me Hannali enquanto caminhávamos.

Tínhamo-nos encontrado uma vez mais à hora do almoço. O Instituto de Oncologia ficava perto de Regent's Park. Por vezes, nos dias de calor, encontrávamo-nos uma meia-hora, o tempo de uma sanduíche. Outras vezes, tínhamos mesmo tempo para ir até ao Jardim Zoológico. De vez em quando, Hannali metia folga e acabávamos na cama.

Perguntei-lhe pelo marido, Derek. Era um dos nossos poucos temas comuns. Tinha-se portado mal outra vez? Tinha-lhe batido? Nos tempos em que éramos amantes em full-time, cheguei a pensar que Derek contribuía decisivamente para a nossa união. Mas agora Hannali já não queria falar dele. Queria saber apenas por que estava eu nervoso.

"Mandaram embora um homem de quem gostava muito",  respondi. "Bom, mandar embora, não mandaram. Atiraram-no para o caixote do lixo.”

"Que mal é que ele fez?" "Mal nenhum. Decidiram muito simplesmente vê-lo com outros olhos.”

"Porquê?" "Porque lhes convinha. Deixaram de tolerá-lo porque isso satisfazia determinadas exigências.”

Hannali pensou um pouco naquela explicação. "Por outras palavras, homens de convenção convenção se tornam", sugeriu. Como tu, dizia ela nas entrelinhas. Como nós.

Porque continuo a vê-la?, pensei. É como voltar à cena do crime? É para pedir, pela milésima vez, a sua absolvição? Ou volto para ela do mesmo modo que se visita a escola da nossa juventude, para se tentar entender o que terá acontecido a essa porção da nossa vida?

Harinali continua uma bela mulher, o que é uma consolação. O grisalho dos cabelos e a deformação do corpo não espreitam ainda. Quando à meia luz entrevejo o seu rosto e vislumbro o seu sorriso corajoso e vulnerável, é a Hannali de há vinte anos que estou a ver. E, numa confidência de que sou o único destinatário, murmuro que, apesar de tudo, não a destruí. "Que bem que ela está", digo para mim mesmo. "Repara-me bem nela. Sorri. Ei-la sorridente e incólume. É Derek quem a fere, não tu.”

Mas tais confidências nunca me convencem. Longe disso.

A bandeira inglesa que tanto irritava o ditador Estaline quando a via das fortificações do Kremlin, ondulava desalentadamente no seu mastro do átrio da Embaixada Britânica. O palácio creme assemelhava-se a um velho bolo de casamento à espera que, o cortassem e as águas oleosas do rio corriam dóceis, apesar do aguaceiro matinal que as fustigava. Nos portões de ferro, dois polícias russos estudavam criteriosamente o passaporte de Barley. A chuva borrava já a tinta.

O mais novo tomou nota do nome. O mais velho comparou, com um ar dubitativo, os traços marcados do rosto que tinha à sua frente com o que vinha na fotografia. Barley trazia um impermeável castanho que escorria água. O cabelo lembrava gesso colado à cabeça. E parecia um pouco mais baixo.

"Francamente! Que dia este!", exclamou a simpática jovem da saia de xadrez plissada que o aguardava no hall. "Olá, chamo-me Felicity.

O senhor é quem eu penso, não é? Enfim, um tanto ou quanto molhado, mas é Scott Blair, não é verdade? Entre, o Conselheiro Económico está à sua espera.”

"Pensava que os “económicos” eram no outro edifício." "Ah, não, esses são os do Comercial. É outra coisa." Barley seguiu o traseiro ondulante da jovem pela ancestral escadaria acima. Sentia-se deslocado sempre que entrava numa missão britânica. Porém, naquela manhã, sentia-se perfeitamente noutro sítio. Parecia-lhe ouvir o assobio desafinado do seu ardina em Hampstead. O ruído arquejante da enceradora fez-lhe lembrar o barulho da carrinha do leite. Eram oito da manhã, e o Reino Unido oficial não estava ainda oficialmente acordado. O Conselheiro Económico era um escocês atarracado de cabelo cor-de-prata. Chamava-se Craig.

"Mr. Blair! Como está? Faça o favor de se sentar! Bebe chá ou café? Receio que saibam ao mesmo, mas estamos a fazer progressos. Gradualmente, havemos de conseguir fazer chá com sabor a chá e café com sabor a café. “

De imediato pegou na capa de Barley e empalou-a num cabide do Ministério das Obras Públicas. Por sobre a secretária, uma fotografia emoldurada mostrava a Rainha em fato de montar. Um aviso ao lado da fotografia indicava que não era seguro falar naquela sala. Felicity trouxe chá e biscoitos Garibaldi. Craig falava num tom vigoroso, como se não pudesse esperar muito tempo para revelar as suas notícias. O seu rosto vermelho brilhava de escanhoado.

"Então, Mr. Barley, segundo ouvi dizer, os bandidos da VAAP não atam nem desatam... Disseram-me que você está farto de ouvir respostas evasivas! Diga-me uma coisa, acha que essa gente da VAAP bate bem da bola? Alguém lhe deu uma resposta concreta? Ou me engano muito ou só lhe têm dado música moscovita... Sabe, aqui é tudo fogo de vista, incluindo naturalmente o trabalho. Transacções, contratos, são coisas raras, muito raras mesmo. O apetite pelo lucro, a diligência nos negócios são termos que não existem no vocabulário deles. Isto aqui resume-se a duas coisas: contos de fadas e coça-tomates. Sempre achei que era uma combinação impossível. Calcule! Uma ociosidade incurável atrelada a visões inatingíveis. O Embaixador usou esta minha frase recentemente num despacho. Nenhum crédito dado, nenhum pedido. Diga-me lá como é que eles podem aguentar uma economia assente na indolência, no tribalismo e no desemprego oculto? Resposta: não aguentam! Será que alguma vez se vão libertar disso? E que sucederá se se libertarem? Resposta: só Deus sabe. Na minha opinião, o mundo dos livros não passa de um microcosmos em que se repercute todo o dilema desta terra, está a ver? Um microcosmos apenas “Craíg continuou a berrar até que, aparentemente, decidiu que Barley e os microfones já tinham a sua conta. "Olhe, acredite que apreciei imenso a nossa conversinha. Devo dizer-lhe que me deu imenso material para as minhas reflexões. Sabe, na nossa profissão corremos sempre o risco de estarmos desligados das bases, o que não interessa. Importa-se que lhe mostre a Embaixada e o apresente ao resto do pessoal? Eles não me perdoariam se eu me esquecesse.”

Com um gesto de comando, Craig avançou por um corredor que terminava numa porta metálica com um ralo ameaçador. A porta abriu-se mal eles se aproximaram e fechou-se logo que Barley entrou.

Craig é o seu contacto, dissera Ned. É um tipo incrível, mas é ele que o há-de levar ao seu chefe.

A primeira impressão de Barley foi de que estava numa enfermaria às escuras, a segunda de que a enfermaria afinal era uma sauna, porque a única luz em toda aquela divisão vinha de um canto, rente ao chão, e também por causa do cheiro a resina. Até que concluiu que era uma sauna suspensa, pois apercebeu-se de que o soalho balançava.

Ao sentar-se com todo o cuidado numa cadeira discerniu duas figuras atrás de uma secretária. Por sobre a primeira havia um poster com um Beofeatei” defendendo a ponte de Londres. Por cima da segunda figura, o lago Wíndermere enlanguescia ao pôr-do-sol,num anúncio dos Caminhos-de-Ferro Britânicos.

"Bravo, Barley", exclamou uma vigorosa voz inglesa, não muito diferente da de Ned, sob o Beefeater. Chamo-me Paddy, ou Patrick, como queira, e este cavalheiro aqui é o Cy. É americano.”

"Olá, Barley", disse Cy. "Nós somos apenas os moços de recados cá do sítio", explicou Paddy. "Naturalmente a nossa acção é extremamente limitada. A nossa principal tarefa é fornecer os camelos e as refeições quentes. Ned manda-lhe calorosas saudações. Clive também. Se eles não estivessem tão mal vistos, também estariam cá a roer as unhas connosco. Riscos da profissão. Calha a todos.”

Enquanto falava, a pouca luz da sala ia-lhe revelando os traços. Era um homem rude mas gracioso, com as feições marcadas e os olhos sonhadores de um explorador. Cy tinha um ar polido e citadino, e era uma dúzia de anos mais novo que Paddy. Tinham as mãos sobre um mapa das ruas de Leninegrado. Paddy tinha os punhos da camisa puídos. A camisa de Cy era das que não precisam de ferro.

"Queria perguntar-lhe se quer continuar", disse Paddy, como se tal pergunta fosse uma piada infalível. "Se você quiser sair da coisa está no seu direito e não guardamos ressentimentos. Quer sair? Que me diz?”

"Zapadny mata-me", murmurou Barley. "Porquê?" "Sou convidado dele. É ele quem me paga as contas, que fixa os meus programas". Barley levou a mão à testa e esfregou-a como que procurando reavivar a comunicação com o seu cérebro. "Que lhe hei-de dizer? Não posso sem mais nem menos pegar na trouxa e dizer adeus, até já, agora vou para Leninegrado. Ele ficava a pensar que eu sou maluco. “

"Foi Leninegrado que disse e não Londres?", persistiu Paddy num tom perfeitamente simpático.

 

“ Menibro da guarda real inglesa, guarda da Torre de Londres (N. do T.)

 

"Não tenho visto. O visto só dá para Moscovo, não dá para Leninegrado.”

"Mas suponhamos que pode ir a Leninegrado." Outra longa pausa. "Preciso de falar com ele", disse Barley, como se isso fosse uma explicação.

"Com Zapadny?." "Com Goethe. Tenho de falar com ele." Depois de, num gesto que nele era habitual, ter roçado com o pulso direito pela boca, Barley ficou a olhar para o pulso como se estivesse à espera de ver sangue. "A Goethe não posso mentir", murmurou.

"Essa é uma hipótese que não se põe. O que Ned quer é uma parceria, não uma decepção.”

"Tal como nós", disse Cy. "Não vou usar de subterfúgios ou de artimanhas com ele. Ou falo com ele com todas as cartas na mesa ou então o melhor é não falar. “

"É exactamente isso que Ned quer", disse Paddy. "Queremos dar-lhe tudo o que ele precisa.”

"Nós também", disse Cy. "Potomac Boston, Incorporated, o nosso novo parceiro comercial americano", propôs Paddy com uma voz fresca, olhando para um papel à sua frente. "O chefe da operação editorial deles é um tal Mr. Henziger, não é verdade?”

"J. P.", disse Barley. "Alguma vez o viu?" Barley abanou a cabeça e deu um estremeção ao corpo. "Só o nome no contrato", disse.

"É tudo o que sabe dele?" "Falámos ao telefone umas quantas vezes. Ned achou que era bom que nos ouvissem na linha transatlântica. Por uma questão de precaução”

"Mas você não faz qualquer retrato mental dele?", persistiu Paddy, no jeito que tinha de procurar respostas claras, ainda que isso fizesse dele um pedante. "Ele não constitui para si uma personagem de contornos mais ou menos definidos?”

"Para. mim ele não passa de um nome com dinheiro e escritórios em Boston e de uma voz ao telefone. Nada mais.”

"E nas suas conversas com terceiros locais com Zapadny, para sermos mais precisos -, você não apresentou por acaso J. P. Henziger como uma espécie de figura tenebrosa? Não lhe pôs uma barba falsa ou uma perna de pau, não lhe atribuiu uma vida sexual sinistra? Nada que tenhamos de levar em conta para o caso de fazermos dele uma personagem de carne e osso, por assim dizer?”

Barley pôs-se a pensar mas parecia longe. "Não?", perguntou Paddy. "Não", disse Barley e de novo abanou a cabeça escusadamente.

"Então nesse caso podemos considerar a seguinte situação", prosseguiu Paddy. "Mr. J. P. Henziger da Potomac Boston, jovem, dinâmico, agressivo, encontra-se actualmente de férias na Europa com a mulher. Estamos na época das férias. Neste momento estão, digamos, no Hotel Marski em Heisínquia. Conhece o Marski?”

"Já lá bebi um copo", disse Barley, como se esse facto o envergonhasse.

"E como são impulsivos como todos os americanos, meteu-se-lhes na cabeça que podiam fazer uma viagem-relâmpago a Leninegrado. É a sua vez, Cy, creio. “

Cy pôs o seu sorriso e agradeceu. Tinha uma expressão arguta quando o seu rosto ganhava vida e um modo de falar inteligente, ainda que mal-humorado.

"Os Henziger fazem uma excursão guiada de três dias, Barley. Vistos na fronteira filandesa, o guia, o autocarro, tudo em ordem. São gente honesta, gente decente. É a primeira vez que visitam a Rússia. Em Boston a glasnost está na berra. Ele investiu dinheiro em si. Sabe que você está em Moscovo a gastá-lo, por isso pede-lhe que largue tudo e que vá num instante a Leninegrado, pegar-lhe nas malas e relatar-lhe os progressos. É a prática normal, típica de um jovem capitalista. Vê alguma falha nisto? Há algo que para si não funcione?”

Tudo se tornava claro na sua cabeça e na sua visão. "Não. Funciona perfeitamente. Se para si funciona, para mim também há-de funcionar.”

"Primeiro, hoje de manhã, hora britânica, J. P. telefona do Marski para o seu escritório em Londres, responde-lhe o gravador", prosseguiu Cy. "J. P. não gosta de falar para gravadores. Daqui a uma hora manda-lhe um telex, ao cuidado de Zapadny, VAAP, com cópia para Craig, Embaixada Britânica, Moscovo, pedindo-lhe que vá ter com ele na sexta-feira ao Hotel Evi-opeiskaya, aliás Europa, Leninegrado, que é onde fica o grupo de turistas. Zapadny ficará furioso, talvez dê um grito de dor. Mas como você anda a gastar o dinheiro de J. P., prevemos que Zapadny não tenha outra hipótese senão submeter-se à lógica das forças do mercado. Está a seguir-me?”

"Estou", disse Barley. Paddy pegou então na história. "Se ele tiver juízo, ajuda-o a alterar o visto. Se amuar, Wicklow leva rapidamente o visto ao OVIRI, que o altera num instante. Em nossa opinião, é melhór você não falar muito do caso ao Zapadny. Não se rebaixe, não lhe peça desculpa. Seria errado. Chamaria as atenções. Diga muito simplesmente que é assim que as coisas se passam no mundo moderno: a grande velocidade.”

 

“Departamento de vistos não turísticos para soviéticos, pertencente ao Ministério do Interior. (N. do T.)

 

 "J. P. Henziger é família", disse Cy. "É um óptimo funcionário. E a mulher dele também.”

Parou abruptamente. Como um árbitro que tivesse acabado de assistir a uma infracção, Barley disparara um braço a apontava-o ao peito de Paddy.

"Esperem aí, vocês os dois! Um momento! Nada de pressas, se fazem favor! De que me vão servir esses dois, por muito bons que eles sejam, se vão passar o tempo metidos numa porcaria de um autocarro turístico?”

Paddy demorou um instante a recuperar daquela inesperada investida. "Diga-lhe, Cy", pediu.

"Barley, na quinta-feira à noite, quando eles chegarem ao Hotel Europa, Mrs. Henziger será acometida de violentas dores de barriga leninegradenses. J. P. ficará sem vontade de ir ver as vistas, estando a sua amada dama às voltas com diarreia. Recolher-se-á por isso ao quarto do hotel. Como vê, não há problema nenhum.”

Paddy aproximou o candeeiro e a bateria do mapa de Leninegrado. As trêsmoradas de Katya estavam marcadas com um círculo a vermelho.

Só ao fim da tarde é que Barley lhe telefonou, à hora em que ela deveria estar a dar uma arrumação final na sua secretária. Dormira uma sesta e para se pôr operacional bebera uns quantos whiskies. Mas quando começou a falar, reparou que a sua voz saía demasiado estridente. Não podia ser, tinha de baixar a voz.

"Ah. Olá! Chegou bem a casa?", disse, com a sensação de que não conhecia aquele que estava a falar. "O comboio não se transformou numa abóbora ou numa coisa parecida?”

"Obrigada, cheguei sem problemas." "óptimo. Bom, eu telefonei só para saber como estava. Pois. E para lhe agradecer a noite de ontem, foi uma noite maravilhosa. Hum... E para lhe dizer adeus, até breve.”

"Também eu lhe agradeço. Foi uma noite muito produtiva." "Pensava que teríamos outra hipótese de nos vermos. O problema é que tenho de ir a Leninegrado. Negócios... Uma chatice. Bom, a verdade é que tive de alterar os meus planos.”

Um silêncio prolongado. "Então o melhor é sentar-se", disse ela. Barley não sabia qual dos dois tinha enlouquecido. "Sentar-me porquê?

Porque é um uso nosso. Antes de uma longa viagem, costumamos sentar-nos um pouco. Está sentado?”

Barley sentia-lhe a felicidade na voz e por isso sentia-se também feliz.

"Não, na realidade estou deitado. Serve?" "Nunca ouvi dizer. O hábito é uma pessoa sentar-se em cima da 

bagagem ou num banco, suspirar um pouco e benzer-se depois. Mas espero que estar deitado tenha o mesmo efeito.”

"Tem." Depois de.Leninegrado, volta para Moscovo?" "Bem, nesta viagem não. Creio que voltamos directos para a escola.”

"Escola?" "Inglaterra. É uma estúpida expressão minha." "E que significa escola nesse contexto?" "Obrigações. Imaturidade. Ignorância. Os habituais vícios ingleses. “

"Tem muitas obrigações?" "Malas delas. Mas estou a aprender a destrinçá-las. Por acaso ontem até consegui dizer que não e surpreendi toda a gente.”

"Porque é que tem de dizer que não? Porque não dizer que sim? Talvez tivessem ficado ainda mais surpreendidos.”

"Bom, esse foi o problema de ontem à noite, não foi? Nunca consigo falar de mim mesmo. Falámos de si, dos grandes poetas de todas as épocas, do senhor Gorbachev, de edições. Mas pusemos de parte o principal tema. Eu. Tenho de fazer uma viagem especial só para a chatear com a minha pessoa.”

"Tenho a certeza de que não me chateia." "Quer que lhe traga alguma coisa?" "Como?" "Da próxima vez. Quer alguma coisa em especial. Uma escova para os dentes eléctrica? Papelotes? Mais Jane Austen?”

Uma pausa longa e deliciosa. "Desejo-lhe uma boa viagem, Barley", disse ela.

O último almoço com Zapadny foi um velório sem cadáver. Eram catorze sentados à mesa, todos homens, os únicos comensais do enorme restaurante de um hotel ainda inacabado. Os criados traziam a comida e desapareciam logo de seguida para longínquos subúrbios. Zadapny tinha de mandar patrulhas à sua procura. Ninguém bebia e só Barley e Zapadny se entregavam à amena cavaqueira própria de um repasto. O som de fundo era de uma música enlatada dos anos cinquenta. Para além de muitas marteladas.

"Mas nós preparámos uma grande festa para si, Barley", protestou Zapadny. "O Vassily traz a bateria, o Victor empresta-lhe o saxofone, um amigo meu que tem uma destilaria só dele prometeu-nos seis garrafas, e não faltarão os pintores e os escritores o mais loucos possível. Enfim, temos todos os ingredientes para a produção de uma noite intensamente indecente e você tem todo o fim-de-semana para recuperar. Diga a esse sacana desse americano da Potomac que se vá lixar. Não gostamos de o ver tão sério.”

"Os nossos capitalistas, Alik, são como os vossos burocratas. Se os ignoramos corremos riscos. Como você corre.”

O sorriso de Zapadny não era caloroso nem condescendente. "Chegámos mesmo a pensar que você estava de coração amarrado a uma das nossas afamadas belezas moscovitas. A deliciosa Katya não o convence a ficar?”

"Qual Katya?", ouviu-se Barley responder, enquanto pensava, intrigado, que, com tanta martelada, o tecto já deveria ter caído.

Um zumbido de animação percorreu a'mesa. "Estamos em Moscovo, Barley", lembrou-lhe Zapadny, muito divertido consigo mesmo. "Em Moscovo tudo levanta ondas. A íntelligentsia é pequena, estamos todos falidos e as chamadas telefónicas locais são grátis. Se você janta com Katya Orlova num restaurante íntimo e especialmente louco, na manhã seguinte há pelo menos quinze dos nossos que sabem desse jantar.”

"Foi um encontro puramente comercial", disse Barley. "Então porque é que não levou Mr. Wicklow consigo?" "Porque ele é demasiado jovem", retorquiu Barley, provocando mais um coro de gargalhadas russas.

O comboio da noite para Leninegrado deixa Moscovo alguns minutos antes da meia-noite, segundo consta para que os inúmeros burocratas russos possam pedir ajudas de custo para dois dias. O compartimento tinha quatro beliches, e Wicklow e Barley tinham o par de baixo antes de aparecer uma peso-pesado loura que só se calou quando Barley trocou de beliche com ela. A quarta cama era ocupada por um homem pacato e aparçntemente abastado que falava um.inglês elegante e exibia um ar pesaroso. Trazia vestido um fato escuro, típico de advogado, e para dormir pôs um pijama furiosamente listrado que teria ficado bem num palhaço, mas nem por isso os seus modos se avivaram. Houve novo período de negociações quando a loura se recusou a despir nem que fosse o chapéu enquanto os três homens não desandassem para o corredor. A harmonia voltou ao compartimento quando ela os chamou e, enfiada num fato de treino cor-de-rosa com pompons nos ombros, lhes ofereceu bolinhos caseiros em sinal de gratidão pelo cavalheirismo demonstrado. E ficou tão impressionada quando Barley lhe ofereceu whisky que os obrigou a partilharem também do seu chouriço, insistindo mais do que uma vez para que bebessem à saúde de Mrs. Thatcher.

"De onde são os senhores?", perguntou o passageiro melancólico a Barley quando se deitavam.

"De Londres." "Londres, Inglaterra. Não vêm da lua, nem das estrelas, mas de Londres, Inglaterra", confirmou o melancólico e, ao contrário de Barley, pareceu cair rapidamente no sono. Porém, horas depois, ao pararem numa estação, acordou e reatou a conversa. "Que estação é esta?", perguntou sem se preocupar em saber se Barley estaria ou não acordado.

"Não faço ideia." "Se Anna Karenina viesse connosco esta noite e encontrasse em si a presença de espírito necessária, seria este o local em que abandonaria o pouco satisfatório Vronsky.”

"Não me diga", retorquiu Barley, perfeitamente aturdido. O whisky tinha acabado mas o homem triste tinha brandy da Geórgia.

"Foi em tempos um pântano, pântano continua a ser", disse o sempre-triste. "Se quiser entender a doença russa, terá de viver no pântano russo.”

Estava a falar de Leninegrado.

Um céu baixo, povoado de nuvens que lembravam algodão, parecia roçar os palácios importados, dando-lhes um ar lúgubre apesar dos seus vestidos de fantasia. Nos parques tocava-se uma música estival, mas o Verão ocultara-se por detrás das nuvens, deixando uma névoa nórdica muito branca serpeando e tremulando sobre os canais venezianos. Como lhe acontecia sempre que visitava Leninegrado, Barley tinha a sensação de que era noutras cidades que estava, por vezes Praga, outras vezes Viena, Paris ou Londres. Das cidades que conhecia, nenhuma outra escondia a sua ignomínia atrás de tantas fachadas harmoniosas, nenhuma outra punha questões tão terríveis com um mero sorriso. Que crentes se encontravam naquelas igrejas fechadas e irreais? E que Deus veneravam? Quantos corpos tinham atulhado aqueles graciosos canais ou flutuado gelados rumo ao mar? Em que outra cidade poderia a mais terrível das barbáries ter produzido tão belos monumentos? Até as pessoas na rua, tão lentas no falar, tão cheias de decoro e discrição, pareciam ligadas por uma monstruosa e generalizada dissimulação. E Barley, enquanto caminhava vagarosamente e apreciava os monumentos como qualquer turista e contava os minutos como qualquer espião -, Barley sentia-se a partilhar dessa duplicidade.

Tinha cumprimentado um capitalista americano que não era capitalista, e lamentado a doença da mulher dele que não estava doente e que provavelmente não era sua mulher.

Tinha instruído um seu subordinado, que não era subordinado, para que o socorresse numa emergência que nunca ocorreria.

Ia encontrar-se com um escritor que não era escritor, mas que procurava o martírio numa cidade onde o martírio era oferecido grátis, fizessemos ou não bicha para o comprar.

O medo paralisava-o e tinha uma ressaca de quatro dias. Era finalmente um cidadão de Leninegrado. Ao dar consigo na Nevsky Prospekt apercebeu-se de que andava à procura de um café a que chamavam "Saigão", um local frequentado por poetas, traficantes de droga e especuladores e nunca por filhas de professores universitários. "O seu pai tem razão", ouviu-o dizer. "O sistema acaba sempre por vencer.”

Tinha um mapa das ruas da cidade, oferecido por Paddy um mapa alemão com um texto traduzido para várias línguas. Cy tinha-lhe dado um exemplar de Ciúme e Castigo, uma edição da Pengum com uma tradução capaz de o desesperar. Tinha metido o mapa e o livro num saco de plástico. Wicklow tinha insistido nesse ponto. Não podia ser um saco qualquer, tinha de ser aquele saco, anunciando uma porcaria de um cigarro qualquer, naturalmente americano, e reconhecível a quinhentos metros de distância. Agora a sua única missão na vida era seguir o rasto de RaskoInikov na sua caminhada fatal para assassinar a velha senhora, e era por isso que nesse momento andava à procura de um pátio que ficava em frente do Canal Griboyedev. Era um pátio com portões de ferro e uma árvore enorme que espalhava uma sombra consoladora. Entrou, avançou lentamente e lentamente começou a vaguear por ali, espreitando para o seu Crime e Castigo e examinando depois cautelosamente as janelas sujas de pó, como se esperasse que o sangue da velha agiota começasse a escorrer sob os batentes amarelecidos. Só ocasionalmente permitiu que o seu olhar passeasse por essa indistinta meia distância que é a preferida das classes altas inglesas, e que compreende objectos tão irrelevantes como transeuntes ou não transeuntes imobilizados numa espera qualquer; ou o portão que dava para a Rua Plekhanova, portão que, segundo Paddy, só era conhecido por pessoas intimamente relacionadas com aquele local, por exemplo cientistas que, na sua juventude, tivessem estudado no Litmo, situado muito perto, mas que, pelo movimento que Barley vinha investigando com o ar mais normal possível, não davam sinais de vida.

Faltava-lhe o ar. Uma bolha de náusea cravara-se-lhe no peito como se estivesse a passar por um poço de ar. Tinha chegado ao portão. Abriu-o. Atravessou uma sala de entrada. Subiu os poucos degraus que davam para a rua. Olhou para todos os lados e com grande alarde fez de conta que estava a apreciar as suas descobertas, enquanto as tão amaldiçoadas correias dos microfones lhe iam serrando as costas. Deu meia-volta e, sempre no mesmo jeito de passeio, voltou ao pátio, passou a árvore enorme e retomou o caminho do canal. Sentou-se num banco e desdobrou o mapa das ruas. Dez minutos, dissera Paddy, dando-lhe um cronómetro que haveria de substituir o seu relógio de herança, demasiado falível. Cinco minutos antes, cinco minutos depois, e não espera mais.

"Perdeu-se?", perguntou um homem pálido que parecia demasiado velho para poder dedicar-se a vendas ilícitas. Usava óculos italianos à corredor de automóveis e ténis Nike. O seu inglês de russo tinha um acento americano.

"Obrigado, meu velho, mas perdido ando eu sempre", retorquiu afavelmente Barley. "É assim que eu gosto.”

"Quer vender-me alguma coisa? Cigarros? Scotch? Canetas de tinta permanente? Quer negociar em drogas ou moeda ou qualquer coisa do género?”

"Obrigadíssimo, mas estou muito bem assim", replicou Barley, aliviado por ter ouvido o homem falar normalmente. "Mas ficaria ainda melhor se se desviasse um pouco do Sol.”

"Deseja conhecer um grupo internacional de pessoas, incluindo algumas raparigas? Posso levá-lo a conhecer a verdadeira Rússia, aquela que nunca ninguém consegue ver.”

"Para ser o mais honesto possível, meu velho, não creio que você conhecesse a verdadeira Rússia se ela se levantasse e lhe desse um pontapé nos tomates", disse Barley, retomando o estudo do mapa.

O homem zarpou imediatamente.

Às sextas-feiras até os grandes cientistas fazem o que toda a gente faz, dissera Paddy. Dão por encerrada a semana e embebedam-se. Dão início aos seus três dias de folia, comunicam uns aos outros as respectivas proezas e pesquisas. Os seus anfitriões de Leninegrado enchem-nos com um copioso almoço, mas deixam-lhes tempo suficiente para se irem abastecer nas lojas antes de regressarem aos seus números postais. A corrida às lojas constituirá para o seu amigo a primeira hipótese de escapar ao grupo. Se escapar. Se decidir realmente comparecer ao encontro.

O meu amigo. O meu amigo, o meu RaskoInikov. E não o amigo dele. Meu. Para o caso de isto fracassar.

Um encontro falhou, mais dois para tentar. Barley levantou-se, esfregou as costas e, como tinha tempo, prosseguiu o seu passeio literário por Leninegrado. Atravessando de novo a Nevsky Prospekt, contemplou as faces curtidas dos vendedores e, num acesso de empatia, pediu que o aceitassem no seu seio: "Eu sou um de vós! Partilho as vossas confusões! Aceitem-me! Escondam-me! Ignorem-me!" Acalmou-se. Olhou à sua volta. Achou-se um idiota. Um idiota de boca aberta.

Para trás ficava a Catedral Kazan. À sua frente, a Casa do Livro. Como bom editor que era, Barley decidiu entrar, olhando de soslaio para as janelas e para a torre baixa e larga com o seu odioso globo. Mas não ficou muito tempo, pois corria o risco de ser reconhecido por algum funcionário do departamento editorial. Meteu pela rua Zhelyabova, na direcção de um dos grandes armazéns de Leninegrado, com as suas modas inglesas dos tempos da Segunda Guerra Mundial e chapéus de pele fora de estação distribuídos pelas montras. Postou-se conspicuamente na entrada principal, segurando no saco com o dedo do meio e desdobrando o mapa para disfarçar.

Aqui não, pediu. Por amor de Deus, aqui não. Por favor, Goethe, um pouco de privacidade. Aqui não pode ser.

"Se ele escolher a loja é porque pretende um encontro à vista de toda a gente", dissera Paàdy. "Quando ele o vir, há-de abrir muito os braços e gritar bem alto, “Scott Blair, é mesmo você? Não é possível!”.”

Nos dez minutos seguintes Barley não pensou em nada. Primeiro estudou o mapa, depois ergueu a cabeça e pôs-se a apreciar os edifícios. Depois dos edifícios, apreciou as mulheres e, nesse dia de Verão em Leninegrado, as mulheres retribuíam a apreciação. Mas isso não era o bastante para o tranquilizar. Enfronhou-se de novo no estudo do mapa. O suor escorria-lhe como berlindes pelo peito. Passou-lhe pela cabeça a fantasia de que os microfones entrariam em curto-circuito. Por duas vezes pigarreou, porque tinha medo de não conseguir falar. Mas quando procurou humedecer os lábios descobriu que tinha a língua seca.

Os dez minutos tinham passado já. Decidiu esperar mais dois porque os mereciam: ele, Katya, Goethe. Dobrou o mapa, mal, como sempre acontecia. Meteu-o no berrante saco de plástico. Deixou-se levar pela multidão e descobriu que, afinal, até sabia andar como toda a gente, não fazia paragens ou desvios súbitos nem se estatelava estrondosamente ao comprido.

Lentamente voltou à Nevsky e tomou a direcção da Ponte Anichkov. Procurava o eléctrico que ia para Smolny, para a sua terceira e última aparição frente ao congresso dos espiões de Leninegrado.

Esperou na bicha, entre dois jovens de jeans e três babushkas”.

O eléctrico parou e os jovens saltaram para dentro. Barley seguiu-os. Os dois rapazes desataram numa conversa ruidosa. Um velho levantou-se, oferecendo o lugar a uma das babushkas. Fazemos uma multidão simpática, pensou Barley em mais um acesso de empatia com uma multidão de que afinal não fazia parte; fiquemos juntos o dia todo, vamos divertir-nos. Um miúdo fazia-lhe caretas, perguntava-lhe qualquer coisa. Numa súbita inspiração, Barley subiu a manga e mostrou-lhe o relógio metálico de Paddy. O rapaz examinou-o demoradamente e soltou uma vaia ruidosa. Com um clangor de. chapa o eléctrico parou.

Teve medo e não veio, pensou aliviado Barley ao entrar no parque.

O sol rebentou por entre as nuvens. Tem medo: quem o pode censurar?

Mas nesse momento mesmo, viu-o. Goethe, exactamente como fora anunciado. Goethe, o grande amante e pensador, sentado no terceiro banco à esquerda do caminho de cascalho, um rifilista que não reconhece nenhum princípio.

 

“ Avós, velhas, no original em russo. (N. do T.)

 

Goethe. Lendo o jornal. Sóbrio, com metade da sua estatura original, obviamente vestido de preto, mas mais parecendo o irmão mais velho e mais baixo. O coração de Barley esmoreceu e logo palpitou perante visão tão vulgar. A imagem do grande poeta extinguira-se. Rugas sulcavam uma pele outrora macia. Não havia nada de sublime naquele russo barbado com ar de escriturário, apanhando o ar da tarde num banco do parque.

Mas o certo é que era ele, Goethe, e sentado no meio de um sem número de relíquias russas que lhe eram antagónicas: mas nenhum tiro de pistola vinha das belicosas estátuas de Marx, EngeIs e Lenine, que o cercavam com as suas carrancas de bronze em plintos estranhamente separados; nenhum tiro de mosquete vinha da sagrada Sala 67, onde Lenine tinha instalado o seu quartel-general revolucionário, num internato para filhas da melhor classe de São Petersburgo; nenhuma marcha fúnebre saía da catedral azul barroca de Rastrelli, construída para suavizar os anos de declínio de uma imperatriz; nenhuns olhos vendados saíam do quartel-general do Partido com o seus polícias enormes olhando ameaçadoramente as massas libertadas.

Smola significa marinheiro, lembrou-se estupidamente Barley naquele instante eterno de monstruosa normalidade. Em Smolny, Pedro, o Grande, reuniu os seus marinheiros para a primeira Armada russa.

As pessoas que estavam perto de Goethe eram tão normais quanto ele.

O dia tinha começado cinzento, mas o sol recente produzira milagres e os cidadãos cumpridores começavam a despir camisas, como se pressionados por uma urgência comum. Rapazes nus da cintura para cima, raparigas como flores murchas, mulheres rotundas com soutiens de cetim deitadas aos pés de Goethe, com rádios ao lado, mastigando sanduíches e discutindo assuntos insondáveis, mas que as faziam passar dos esgares à reflexão e da reflexão ao riso numa sucessão rápida.

Um caminho de pedrinhas passava junto ao banco. Barley avançou decididamente, estudando as Informatíonen nas costas do mapa dobrado. No campo, dissera Ned numa sessão inteiramente devotada a uma coisa macabramente rotulada de manhas do ofício, a fonte é a estrela e a estrela é que decide se o encontro vai para a frente ou se aborta.

Menos de cinquenta metros separavam Barley da sua estrela, mas o caminho unia-os como uma linha recta. Estaria a andar demasiado depressa ou demasiado devagar? Num momento quase chocava com o casal que ia à sua frente, no momento seguinte era empurrado por alguém que ia com pressa. Se ele o ignorar, espere cinco minutos e passe segunda vez, dissera Paddy. De olhos postos no mapa, Barley viu o rosto de Goethe erguer-se como se tivesse farejado a sua presença. Viu a palidez das suas faces e as covas escuras dos seus olhos. E depois a palidez do jornal, que Goethe dobrava como se fosse um lençol de acampamento. Viu que havia um jeito angular e muito pouco harmónico nos seus movimentos, de tal modo que, na mente vertiginosa de Barley, ele se assemelhou nesse momento a uma figura de um relógio ultra-preciso de uma cidade suíça: agora ergo o meu rosto pálido, agora marco as doze com a minha bandeira branca, agora levanto-me e desapareço. Dobrado o jornal, Goethe meteu-o no bolso do casaco e deu uma pedagógica vista de olhos ao seu relógio. Depois, com o mesmo ar mecânico de quem era uma invenção alheia, tomou o seu lugar no exército de pedestres e, com passos longos, encaminhou-se na direcção do rio.

 

Informações, em alemão no original. (N. do T.)

 

Barley já sabia agora a que ritmo caminhava, já que o seu passo era o passo de Goethe. A sua presa metera pelo caminho que ia dar a uma fila de carros estacionados. De olhos e cérebro operacionais, Barley seguiu-o e, ao chegar aos carros, viu-o junto ao apressado Neva, o casaco inchado pela brisa do rio. Um barco de recreio passou, mas não havia nos passageiros qualquer sinal de recreação. Um navio carvoeiro avançava lentamente, sarapintado de zarcão, e era belo de ver o fumo escuro que saía da sua chaminé à luz volúvel do rio. Goethe estava encostado à balaustrada, perscrutando a corrente como se quisesse calcular a sua velocidade. Barley avançou na direcção dele sem reparar onde punha os pés, já que toda a sua atenção estava concentrada no mapa. Mesmo quando ouviu Goethe dirigir-se-lhe, no seu inglês imaculado que o tinha acordado no alpendre em Peredelkino, Barley não lhe respondeu imediatamente.

"O senhor queira desculpar, mas quer-me parecer que nos conhecemos. “

Mas Barley de início recusou-se a ouvir. A voz saíra demasiado nervosa, demasiado titubeante. Continuou embrenhado nas Informatíonen. Deve ser mais um vendedor, disse para si mesmo. Ou é um dealer ou é chulo.

"Desculpe, creio que o conheço", repetiu Goethe, como se ele próprio já não estivesse muito seguro.

Só então, convencido pela insistência do estranho, Barley ergueu relutantemente a cabeça.

"Se não estou enganado, o senhor é Scott Blair, o distinto editor inglês.”

Perante o que Barley decidiu persuadir-se a reconhecer o homem que lhe tinha dirigido a palavra, primeiro com um ar dubitativo, depois, ao estender-lhe. a mão, com um prazer sincero mas mudo, "Estou espantado", comentou calmamente. "Meu Deus. Quem havia de dizer, o grande Goethe. Conhecemo-nos naquela vergonhosa festa literária. Se bem me lembro, éramos as únicas pessoas sóbrias. Como tem passado?”

"Ah, muito bem", retorquiu Goethe com uma voz já mais decidida. Porém, quando o cumprimentou, Barley reparou que as mãos dele escorregavam com o suor. "Não poderia estar melhor neste momento.

Bem-vindo a Leninegrado, Mr. Barley. É pena eu ter um compromisso esta tarde. Mas podíamos passear um pouco, não? Trocar algumas ideias?" A voz baixara de tom. "É mais seguro do que ficar aqui parado", explicou.

Tinha agarrado no braço de Barley e ia-o empurrando decididamente ao longo da margem. Tamanha pressa tinha anulado todas as veleidades tácticas de Barley. Olhou de relance para aquela figura curvada, para a palidez do seu rosto atormentado, para os sulcos de dor ou medo ou inquietação que o percorriam. Reparou naqueles olhos de acossado, pestanejando nervosos sempre que passava alguém. Naquele momento, todos os sentimentos de Barley se resumiam a um só: protegê-lo. Para o bem dele e para o bem de Katya.

"Se pudéssemos caminhar uma meia hora, veríamos o navio de guerra Aurora aquele que deu o sinal para a Revolução. Mas a próxima revolução começará com alguns sauves compassos de Bach. É tempo de começar. Não concorda?”

"E sem maestro", disse Barley com um sorriso franco. "Ou talvez com uma peça do jazz que você tão bem toca. É isso! É isso mesmo! Você anunciará a nossa revolução tocando Lester Yoting com o seu saxofone. Leu o último livro de Rybakov? Proibido durante vinte anos e por esse motivo uma obra-prima russa. É abusar do tempo, parece-me.”

"Ainda não foi publicado em inglês." "E o meu, leu?" A mão magra de Goethe apertava-lhe o braço. A voz aflita volvera um murmúrio.

"Sim, li aquilo que consegui entender." "E que acha?" "É corajoso." "só?" "É sensacional. Aquilo que eu entendi. Notável." "Nessa noite nós encontrámos-nos, reconhecemo-nos. Foi uma noite mágica. Conhece um ditado russo que diz, um pescador conhece sempre outro à distância”? Nós somos pescadores. Alimentaremos o mundo com a nossa verdade.”

"Talvez façamos isso", disse Barley num tom dubitativo e sentiu a cabeça macilenta virar-se num giro para ele. "Tenho de discutir o seu livro consigo um bocado, Goethe. Temos um ou dois problemas.”

"Foi por isso que você veio. Eu também. Obrigado por ter vindo a Leninegrado. Quando o publica? Tem de ser rápido. Aqui, os escritores esperam três, cinco anos para ver um livro publicado, ainda que não sejam Rybakovs. Eu não posso esperar tanto tempo. A Rússia não tem tempo a perder. E eu também não.”

Uma fila de rebocadores passava nesse momento, um barco com dois remadores balançou fortemente na sua esteira. Um casal abraçava-se encostado à balaustrada. E à sombra da catedral uma jovem abanava um carrinho de bebé enquanto lia um livro que segurava com a outra mão.

"Como eu não apareci na feira audio de Moscovo, Katya entregou o manuscrito a um colega meu", disse cautelosamente Barley.

"Eu sei. Tinha de correr o risco." "O que você não sabe é que esse colega não me conseguiu localizar em Inglaterra e por isso deu o manuscrito às autoridades. Gente discreta. Peritos.”

Alarmado, Goethe virou-se de súbito para Barley e uma sombra de terror espalhou-se rapidamente sobre o seu rosto angustiado. "Eu não gosto de peritos", disse. "Os peritos são os nossos carcereiros. Não há ninguém que eu mais odeie na terra.”

"Mas você também é um perito, não é, Goethe?" "Por isso mesmo sei o que digo! Os peritos não passam de uns viciados. Não resolvem nada! São os lacaios de qualquer sistema que os contrate. Perpetuam esse sistema. Quando somos torturados, são peritos que nos torturam. Quando somos enforcados, são peritos que nos enforcam. Não leu o que escrevi? Quando o mundo for destruído, não serão loucos a destruí-lo, mas sim peritos perfeitamente sãos e burocratas perfeitamente ignorantes. Você traiu-me.”

"Ninguém o traiu", retorquiu irritado Barley. "O manuscrito, muito simplesmente, extraviou-se. Os nossos burocratas não são os vossos burocratas. Leram-no, admiram-no, mas precisam de saber algo mais acerca de si. Só podem acreditar na mensagem se acreditarem na fonte. “

"Mas querem publicá-lo?" "Primeiro que tudo precisam de ter a certeza de que você não é uma fraude, e a melhor forma de chegarem a essa certeza é falarem consigo. “

Goethe ia a caminhar demasiado depressa, levando Barley atrás de si. Olhava fixamente para ponto nenhum à sua frente. O suor corria-lhe pelas fontes.

"Eu sou um homem de letras, Goethe", disse ofegante Barley para um rosto que parecia longe dele. "Tudo o que sei de Física resume-se a donjuanices, mulheres e cerveja quente. Isto são coisas que me excedem, Goethe. E que excedem também Katya. Se é este o caminho que quer seguir, então permita aos peritos que o acompanhem e deixe-nos a nós de fora. Era isto que eu lhe queria dizer. “

Passaram um caminho e avançaram por mais um segmento de relva. Um grupo de crianças da escola abriu alas para eles passarem.

"Então foi para isso que veio? Para me dizer que se recusa a publicar-me?”

"Mas como é que eu posso publicá-lo?", retorquiu Barley, cuja exasperação crescia com o desespero de Goethe. "Mesmo que pudéssemos pôr aquele material em condições de ser publicado, que aconteceria a Katya? Ela é o seu correio, não sei se está lembrado. Foi ela quem passou segredos de defesa soviéticos para uma potência estrangeira. Isso aqui não é brincadeira nenhuma. Se alguma vez descobrem o que vocês fizeram. Katya pode encomendar a sua alma no dia em que o primeiro exemplar chegue aos escaparates. Qual é o papel do editor no meio disto tudo? Acha bem que vá para Londres, que me sente calmamente à minha secretária e que carregue no botão que vos há-de eliminar aos dois?”

Goethe arfava, mas os seus olhos tinham deixado de varrer as multidões e viravam-se agora para Barley.

"Oiça-me com atenção, Goethe", pediu Barley. "Espere um instante só. Eu entendo-o. Creio sinceramente que o entendo. Você tinha um talento e esse talento foi usado para fins indignos. Você conhece todos os podres do sistema e pretende limpar a sua alma. Mas você não é Cristo nem Pecherin. Não é o seu caso que importa. Se quer matar-se, mate-se, o problema é seu. Mas não se esqueça de que a matará também a ela. E se não o inquieta matá-la, por que razão haveria de preocupar-se em salvar pessoas?”

Seguiam na direcção de um parque de piqueniques, com cadeiras e mesas feitas de toros. Sentaram-se lado a lado e Barley desdobrou o mapa. Debruçaram-se sobre as ruas de Leninegrado, fingindo que as examinavam. Goethe pensava ainda nas palavras de Barley, confrontando-as com os seus objectivos.

"Só o agora existe", explicou por fim, numa voz que não excedia o murmúrio. "Não há outra dimensão a não ser o agora. No passado, fizémos, tudo mal porque queríamos salvar o futuro. Agora temos de fazer tudo bem para salvarmos o presente. Perder tempo é perder tudo. A história da Rússia nunca deu segundas hipóteses. Quando saltamos sobre um abismo, o salto tem de ser perfeito e definitivo: nos abismos da história russa nunca há nada onde nos possamos agarrar. E quando falhamos, ela dá-nos o que merecemos: outro Estabne, outro Brejnev, outra purga, outra era glacial de aterradora monotonia. Se a evolução presente se mantém, então terei estado na vanguarda. Se pára ou regride, então não passarei de um número das estatísticas da nossa história pós-revolucionária.”

"Tal como Katya", disse Barley.

O dedo de Goethe, incapaz de estar parado, viajava pelo mapa. Olhou à sua volta e prosseguiu. "Estamos em Leninegrado, Barley, o berço da nossa grande revolução. Ninguém triunfa aqui sem sacrifício. Você disse que precisávamos de uma experiência com a natureza humana. Porque está então tão chocado quando são precisamente as suas palavras que eu quero pôr em prática?”

"Você enganou-se a meu respeito nesse dia. Eu não sou o homem que você imaginou. Náo sou um fala-barato, sou o fala-barato. Por um mero acaso você conheceu-me num dia em que o vento soprava na direcção certa.”

Controlando desesperadamente a sua ira, Goethe abriu as mãos e espetou-as em cima do mapa. "Você não precisa de me lembrar que o homem não é a mesma coisa que a sua retórica", disse. "Os nossos novos chefes falam de abertura, de desarmamento, de paz. Pois deixemo-los ter a abertura de que falam. E o desarmamento. E a paz.

Enfrentemos o embate e demos-lhes o que eles pedem. E façamos com que desta feita eles não possam voltar atrás." Estava já de pé, incapaz de suportar o espaço limitado da mesa.

Barley levantou-se também. "Goethe, por amor de Deus! Tenha calma. “

"Ao diabo a calma! É,a calma que mata!" Começou de novo a andar no seu passo enérgico. "Não é passando os nossos segredos de mão em mão, como se fôssemos ladrões, que vamos acabar com a praga do secretismo! Eu tenho vivido desde sempre na mentira! E vem você dizer-me para manter secreta essa mentira! Porque é que a mentira sobrevive? Porque o segredo a alimenta. Porque é que a nossa visão grandiosa se esfarelou por completo até dar nessa medeinha confusão? Por causa do segredo. Como é que vocês conseguem manter o vosso povo na ignorância da insanidade dos vossos planos de guerra? Através do secretismo. Impedindo que se faça luz. Mostre o meu trabalho aos seus espiões, se é que isso que tem de fazer. Mas publique-me: também. Foi isso que você me prometeu e eu acredito na sua promessa. Deixei cair um caderno no seu saco, nesse caderno encontrará novos capítulos da minha obra. Não tenho dúvidas de que ele responde a muitas das questões que esses idiotas querem pôr-me.”

A brisa do rio refrescava o rosto afogueado de Barley enquanto caminhavam. Olhando de relance para o rosto de Goethe, que o suor tornara brilhante, pareceu-lhe vislumbrar sinais de uma inocência ferida que, aparentemente, era a razão do seu ultraje.

"Para o meu livro quero uma capa só com letras", anunciou. "Nada de desenhos, por favor, nada de coisas que dêem nas vistas. Está a ouvir-me?”

"Mas se ainda nem tem um título!", objectou Barley. "Agradecia que usasse o meu próprio nome. Nada de fugas. Não quero pseudónimos. Usar um pseudónimo é inventar mais um segredo.”

"Mas eu nem seí o seu nome, Goethe." "Eles hão-de sabê-lo. Depois do que Katya lhe disse, e com os novos capítulos, não terão o mínimo problema para me identificarem. Faça as suas contas correctamente. E todos os seis meses mande o dinheiro para uma causa que o mereça. Ninguém poderá dizer que faço isto a pensar no meu lucro.”

Através das árvores próximas, acordes de música marcial competiam com o chocalhar de eléctricos invisíveis.

"Goethe", disse Barley. "Qual é o problema? Tem medo?" "Venha para Inglaterra. Eles fazem-no sair clandestinamente. Eles conhecem as manhas do ofício. Em Inglaterra você poderá dizer ao mundo tudo o que quiser. Alugamos o Albert Hall para si. Levamo-lo à televisão, à radio onde você quiser. E quando a sua missão  estiver cumprida, dão-lhe um passaporte e dinheiro e você poderá passar o resto da sua vida tranquilo e feliz na Austrália.”

Tinham parado outra vez. Tê-lo-ia Goethe ouvido? Teria compreendido? Nos seus olhos paralisados não havia qualquer expressão. Tinha os olhos fixos em Barley como se ele fosse um local distante nos confins de um vasto horizonte.

"Eu não sou um desertor, Barley. Sou um russo, e o meu futuro é aqui, ainda que seja um futuro curto. Publica-me ou não? Preciso de saber. “

Para ganhar tempo, Barley meteu a mão no bolso do casaco e tirou o livro já muito surrado que Cy lhe dera. "Pediram-me que lhe entregasse isto", disse. "Uma recordação do nosso encontro. As questões que eles lhe querem pôr encontra-las-á no próprio texto, juntamente com uma morada na Finlândia para onde poderá escrever e um número de telefone em Moscovo com instruções sobre o que deve dizer quando telefonar. Se você os contactar directamente, poderão dar-lhe toda uma série de engenhosos brinquedos que tornarão muito mais fácil a comunicação". Pôs o livro na mão de Goethe e o livro aí ficou.

"Publica-me? Sim ou não." "Como é que eles podem entrar em contacto consigo? É uma coisa que eles têm de saber. “

"Diga-lhes que podem entrar em contacto comigo através do meu editor.”

"Tire Katya desta embrulhada. Mantenha-se com os espiões e afaste-se dela.”

O olhar de Goethe tinha descido até ao fato de Barley e assim se manteve, como se o fato o tivesse perturbado. O seu sorriso triste era como um último dia de férias.

"Hoje está de cinzento, Barley. O meu pai foi atirado para a prisão por homens cinzentos. Foi morto por um velho que usava um uniforme cinzento. Foram os homens cinzentos que destruíram a minha bela profissão. Tenha cuidado ou um dia destes destroem também a sua. Jura que publica a minha obra ou tenho de procurar de novo um ser humano decente?”

Por um momento Barley não foi capaz de responder. Já não sabia como escapar à pergunta.

"Se conseguir ter acesso ao material e se conseguir pô-lo em forma de livro, publico-o", replicou.

"Perguntei-lhe se sim ou não." Prometa-lhe tudo o que ele queira, desde que dentro de limites razoáveis, dissera Paddy. Mas o que eram limites razoáveis? "Está bem", retorquiu. "Sim.”

Goethe devolveu-lhe o livro e Barley, espantado com o gesto, meteu-o de novo no seu bolso. Abraçaram-se e Barley sentiu o cheiro a suor e a fumo de muitos cigarros fumados e encontrou de novo naquele abraço a força desesperada da despedida em Peredelkino. Tão abruptamente como o abraçara, Goethe separou-se dele e, depois de olhar nervosamente à sua volta uma vez mais, encaminhou-se rapidamente para a paragem do eléctrico. Ao vê-lo afastar-se, Barley reparou num velho casal que, numa esplanada, seguia a cena, oculto pelas sombras de árvores azuis-escuras.

Barley espirrou uma vez e depois começou a espirrar seriamente. Já não podia evitar a crise. Voltou para o parque, a cara enfiada no lenço, enquanto sacudia os ombros e espirrava e sacudia de novo os ombros.

"Scott! Ora viva! ", exclamou J. P. Henziger, com o entusiasmo excessivo de um homem ocupado, obrigado a esperar, abrindo rapidamente a porta do maior quarto do Hotel Europa. "Scott, este é um daqueles dias em que descobrimos quem são os nossos verdadeiros amigos. Faça o favor de entrar. O que o fez demorar tanto? Venha falar à Maisie.”

Era um homem na casa dos quarenta, musculoso e ágil, mas tinha o tipo de rosto feio e amistoso com que Barley costumava simpatizar à primeira vista. Usava um cabelo de elefante num dos pulsos e uma Diamete de ouro no outro. Meias-luas de suor manchavam-lhe a camisa de algodão, nas axilas. Wicklow apareceu por trás dele e num ápice fechou a porta.

Camas separadas, com cobertas verde azeitona, dominavam o centro do quarto. Numa delas estava deitada a supostamente debilitada Mrs. Henziger, uma gatinha de trinta e cinco anos, sem maquilhagem, os cabelos soltos caindo tragicamente sobre os ombros sardentos. Um homem de fato preto rondava pouco à vontade a cabeceira da paciente. Tinha óculos castanhos-escuros. Uma mala de médico esperava aberta sobre a cama. Henziger prosseguiu o seu improviso para os microfones.

"Scott, quero apresentar-lhe o Dr. Pete Bernstorf do Consulado Geral Americano aqui em Leninegrado, um óptimo médico. Sem ele não sei o que faríamos. A Maisie está muito melhor. Ali, e Mr. Wicklow foi inexcedível. Leonard arranjou o hotel, o passeio guiado, a farmácia, tratou de tudo. Como é que lhe correu o dia?”

"Lindamente! Correu-me desesperadamente bem!", atirou-lhe Barley e, por um momento, o guião improvisado ameaçou descambar em catástrofe.

Barley atirou com o saco de plástico e o livro de bolso para cima da cama. Com as mãos trémulas despiu o casaco, desprendeu as correias dos microfones e atirou-as para cima do saco e do livro. Levou uma mão atrás das costas e, recusando a oferta de ajuda de Wicklow, extraiu o pequeno gravador cinzento, atirando-o também para cima da cama, de tal modo que Maisie foi obrigada a desviar as pernas, acompanhando o acto com um "Merda!" abafado. Liberto de todos os seus adereços, Barley enfiou-se na casa-de-banho. Deitou todo o whísky do seu frasco de bolso num copo dos dentes, abraçando com o outro braço o peito como se tivesse levado um tiro. Bebeu e voltou a beber, perfeitamente indiferente à expedita manobra que entretanto se desenrolava no quarto.

Henziger, leve que nem um gato apesar do corpanzil, pegou no saco, tirou o caderno e passou-o a Bernstorf que o meteu de imediato na sua mala de médico entre frascos de remédios e instrumentos vários, onde desapareceu por artes mágicas. Henziger passou-lhe depois o livro, que também desapareceu. Wicklow, por sua vez, passou-lhe o gravador e as correias dos microfones, que logo entraram na mala. Enquanto fechava a mala, Berristorf deu as suas últimas instruções à paciente: nada de sólidos durante quarenta e oito horas, chá, uma fatia de pão de centeio, mas se puder evitar, melhor, e tome o antibiótico até ao fim mesmo que se sinta melhor. Henziger não o deixou acabar.

"Doutor, se por acaso passar por Boston, e precisar de alguma coisa, seja o que for, há?, já sabe. Aqui tem o meu cartão, garanto-lhe que será bem recebido e ... “

De copo na mão, Barley permanecia encostado ao lavatório, olhando furiosamente para o espelho, enquanto a mala do Bom Samaritano se encaminhava para a porta.

De todas as noites que Barley passou na Rússia e, vendo bem, de todas as noites de toda a sua vida, aquela foi sem dúvida a pior.

Henziger ouvira dizer que um restaurante funcionando em regime de cooperativa tinha acabado de abrir em Leninegrado, o que significava, de acordo com o último código, que se tratava de um restaurante privado. Wicklow foi espreitar o local mas veio com más notícias estava a abarrotar de gente. A golpes de simpáticos telefonemas e de ainda mais simpáticas gorjetas, conseguiram uma mesa extra, a um metro de distância da mais terrível e barulhenta ópera cigana que Barley alguma vez esperara ouvir.

E ali estavam eles sentados à mesa do restaurante cooperativo, celebrando a miraculosa recuperação de Mrs. Henziger. Os miados dos cantores eram amplificados por megafones electrónicos. Não havia pausas entre os números.

E à volta deles estava sentada a Rússia que o puritano adormecido em Barley odiava desde há muito, mas nunca vira: os nem-por-isso-muito-secretos czares do capitalismo, os novos-ricos da indústria e exibicionistas do consumo, os ricaços que financiavam o Partido e os exploradores do mercado negro, com as mulheres ao lado, cobertas de jóias e tresandando a perfumes ocidentais e desodorizantes russos, e com os empregados sempre ao lado, sempre babados à volta das mesas dos mais ricos. As vozes medonhas dos cantores elevaram-se, a música, à disputa, conseguiu abafá-las, mas as vozes voltaram a impor-se num chinfrim extraordinário que só a voz de Henziger conseguiu vencer.

"Scott, há uma coisa que você tem de saber", berrou ele para Barley, debruçando-se excitadamente sobre a mesa. "Isto por aqui está a dar a volta. Cheira-me a esperança por estas bandas, cheira-me a mudança, cheira-me a comércio. E nós na Potornac estamos a participar nessa mudança. Sinto-me orgulhoso do nosso papel. " Nesse momento já o grupo de cantores tinha abafado os seus berros. "Orgulhoso", repetiram os seus lábios, que um milhão de decibéis ciganos tinham reduzido à mudez.

Para Barley, o problema estava em que Henziger não deixava de ser um tipo simpático e Maisie era decididamente uma boa camarada, o que piorava ainda mais as coisas. A agonia arrastava-se e Barley chegava finalmente ao abençoado estado da surdez. Foi no meio da cacofonia que encontrou afinal o seu refúgio. Através das pequenas aberturas das janelas, o seu eu secreto mergulhava na noite de Leninegrado. Para onde foste, Goethe?, perguntava. Quem a substitui quando ela não está? Quem cerze as tuas meias pretas e cozinha as tuas sopas deslavadas, enquanto tu a arrastas pelos cabelos ao longo do teu muito nobre e altruístico caminho, que te há-de conduzir à auto-destruição?

Sem saber exactamente como, viu-se no hotel. De facto, ao acordar, deu consigo pendurado no braço de Wicklow, no meio de uma chusma de alcoólicos finlandeses que, envergonhados, vagueavam aos tropeções pelo hall.

"Grande festa!", comunicou a quem o ouvisse. "Um conjunto esplêndido. Obrigado por terem escolhido Leninegrado.”

Porém, enquanto Wicklow o rebocava para a cama, Barley que resistira à bebedeira espreitou para baixo, na direcção da escada vazia. E, na escuridão que circundava a entrada, viu Katya, sentada, de pernas cruzadas, a saca no colo. Trazia um casaco preto cintado e um lenço de seda branco preso sob o queixo e os seus olhos seg'uiam-no com insistência e o seu sorriso era o sorriso de sempre, tenso, triste e cheio de esperança, um convite ao amor.

Porém, quando a turvação se extinguiu nos seus olhos, viu-a dizer pelo canto da boca qualquer coisa de picante para o porteiro do hotel, e só então compreendeu que aquela mulher não passava de mais uma prostituta de Leninegrado à procura de cliente.

E no dia seguinte, para grande fanfarra dos mais discretos clarins britânicos, o nosso herói regressou à pátria.

Ned não queria qualquer aparato, não queria americanos e obviamente não queria que Clive estivesse presente, mas estava decidido a marcar o acontecimento com um gesto qualquer. Por isso seguimos para Gatwick e, depois de termos deixado Brock nas Chegadas com um cartaz que dizia "Potomac", instalámo-nos numa sala de espera que os Serviços partilhavam com o Foreign Office com algum constrangimento e discussões intermináveis sobre quem teria bebido o gin.

Esperámos alguns minutos, o avião estava atrasado. Clive telefonou de Grosvenor Square para perguntar, "Já chegou, Palfrey?", como se em parte esperasse que Barley tivesse ficado na Rússia.

Passou mais meia hora e Clive voltou a telefonar, mas dessa feita foi Ned quem atendeu. Tinha acabado de desligar quando a porta se abriu e Wicklow entrou com um sorriso arreganhado de menino de coro, mas conseguindo ao mesmo tempo lançar sérios avisos com o olhar.

Segundos depois entrou Barley, com o mesmo ar que tinha nas fotografias do processo, excepto que estava lívido. "Os sacanas gostaram!", exclamou, ainda antes de Brock ter podido fechar a porta. "Aquele comandante todo não-me-toques que falava à moda de Surrey! Um dia mato-o, àquele porco!”

Enquanto Barley barafustava, Wicklow explicou discretamente a causa de tanta agitação. O avião tinha sido ocupado por uma delegação de jovens homens de negócios britânicos, que Barley tinha desde logo rotulado de yuppies da pior espécie, e que, pelos vistos, o eram. Vários deles estavam já bêbedos quando entraram no avião e os outros depressa os acompanharam. Estavam há apenas alguns minutos no ar quando o comandante, na opinião de Barley o verdadeiro provocador do incidente, anunciou que o avião tinha deixado o espaço aéreo soviético. Ouviu-se um estrondo de vivas e as hospedeiras irromperam pelo avião distribuindo pressurosamente champanhe. De copo na mão, todos, yuppies, hospedeiras e restante tripulação, desataram então a cantar “o "Rule, Britannia!”

"A partir de agorisó vou na Aerofiot!", protestava Barley perante os nossos rostos impassíveis. "Vou escrever à companhia que nos transportou. Vou ... " 1 "Não vai nada", interrompeu-o afavelmente Ned. "Vai é deixar-nos fazer-lhe uma festa. Depois pode barafustar.”

Dito isto, cumprimentou-o e só lhe largou a mão quando Barley esboçou um sorriso.

"Onde é que está o Walt?", perguntou, espreitando à sua volta. "Não está, está atratar de outros assuntos", disse Ned, mas nesse momento Barley já estava a pensar noutra coisa. A sua mão tremia violentamente enquanto bebia. Chorou mesmo um pouco. Acontece com novatos sempre que regressam de uma operação, garantiu-me Ned.

Tudo o que sucedeu nos três dias seguintes foi mais tarde examinado minuciosamente como se dos destroços de um avião se tratasse. Não podíamos deixar passar nenhum erro técnico. Poucos encontrámos.

Depois da explosão no aeroporto. Barley passou à fase animada, perdendo-se em sorrisos que só ele entendia durante a viagem de carro, saudando paisagens familiares no seu jeito timidamente afectuoso. Ainda no carro teve um ataque de espirros.

Mal chegámos à casa de Knightsbridge, onde Ned o obrigava a passar a noite antes de regressar ao seu apartamento, Barley depositou a bagagem à entrada, correu a abraçar Miss Coad e, declarando-lhe amor eterno, presenteou-a com um explêndido chapéu de pele de lince, que nem Wicklow o vira comprar.

Nesse momento abandonei-os. Clive tinha-me chamado ao décimo segundo andar para aquilo que designava por "discussão crucial", embora não pretendesse outra coisa senão tirar nabos da púcara. Então, como estava ele? Nervoso? Eufórico? Como é que ele estava, Palfrey? Johnny estava presente. Escutava, mas quase não falava. Bob, disse, tinha sido chamado a Langley para consultas. Contei-lhes o que tinha visto, sem tirar e certamente sem pôr. Ambos ficaram espantados com as lágrimas de Barley.

"Quer dizer então que ele disse que ia voltar?, sublinhou Clive. Nessa mesma noite, Ned jantou com Barley. Ainda não era o interrogatório sobre a missão. Era apenas o regresso à terra. As gravações revelam um Barley falando com desenvoltura e um tom acima do usual. Quando me juntei a eles para beber o café, estava a falar de Goethe, mas com uma objectividade artificial.

Estava mais velho, tinha perdido toda a sua vitalidade. Estava uma ruína. Uma verdadeira ruína.

Parecia que tinha deixado de beber. Agora a droga era outra. "Havia de ter visto as mãos dele, Harry, não paravam de tremer em cima do mapa.”

Havia de ter visto as suas, pensei eu, quando estava a beber champanhe no aeroporto.

Nessa noite referiu-se a Katya apenas uma vez, e também de um modo deliberadamente desprendido. Creio que estava decidido a mostrar-nos que não nutria sentimentos diferentes dos nossos, sentimentos que exigissem da sua parte um controlo particular. Em Barley isso não constituía uma desonestidade. Com excepção dos que lhe tínhamos ensinado, Barley era incapaz de embustes. O que o motivava era o seu medo de até onde poderiam levar os sentimentos que ocultava, se perdesse o pano de fundo que nós éramos. Katya estava mais assustada por causa dos filhos do que por causa de si mesma, disse, de novo com um desapego ensaiado. Como a maior parte das mães, não acham?, acrescentou. Por outro lado, os seus filhos eram a chave para o mundo que ela queria salvar. Portanto, num certo sentido, o que ela estava a fazer era uma versão absoluta do amor maternal, não está de acordo, Nedsky?

Ned concordou. Mas olhe que com os próprios filhos, será mais dura das experiências, acrescentou.

Uma rapariga maravilhosa, insistiu Barley, agora num tom paternalista. Um tanto ou quanto demasiado enérgica para o seu gosto, mas para quem gostava de mulheres com a fibra moral de Joana d'Arc “Katya era decerto a indicada. E além disso era uma bela mulher. Sem a mínima dúvida. Traços talvez demasiado fortes para ser clássica, não sei se estão a perceber, mas inegavelmente atraente.

Não lhe podíamos dizer que andávamos há uma semana a admirar fotografias de Katya, de maneira que limitámo-nos a receber a informação sem mais comentários.

Às onze horas, queixando-se da diferença horária, Barley caía de sono e cansaço. Ficámos na entrada a vê-lo arrastar-se pelas escadas acima a caminho do quarto.

"Seja como for, o material é bom, não é?", perguntou, agarrado ao corrimão, lançando-nos um olhar sorridente de malícia através dos seus óculos redondos e minúsculos. "Deve ser de primeira o caderno que ele nos deu. Já o viram, suponho.”

"Os cientistas estão a queimar as pestanas com esse caderno", replicou, Ned. Foi melhor não lhe ter dito que disputavam o caderno que nem trinta cães a um osso.

"Peritos são viciados", comentou Barley, de novo maliciosamente sorridente.

"Uma coisa só, Nedsky. Talvez não fosse má ideia melhorar a instalação dos microfones. Tenho as costas em ferida. É melhor arranjarem umas correias menos duras para o próximo tipo que mandarem. A propósito, onde é que pára o tio Bob?”

"Mandou-lhe abraços", disse Ned. "Por enquanto anda numa grande efervescência, mas espera estar consigo em breve.”

"Não andará à caça com o Walt?" "Mesmo, que soubesse, não lho diria", retorquiu Ned, e desatámos os três a rir.

Nessa noite, lembro-me que recebi um telefonema perfeitamente irrelevante da minha mulher, Margaret, acerca de uma multa por estacionamento proibido que lhe tinham aplicado em Basingstoke uma multa injusta, segundo ela.

"Aquele espaço era meu, tinha acabado de fazer sinal quando se meteu à minha frente aquele sacaninha num Jaguar novinho em folha, um Jaguar branco, com cabelo preto cheio de gel ... “Inadvertidamente comecei a rir e sugeri-lhe que os Jaguares com cabelo preto cheio de gel também precisavam de estacionar. O humor nunca foi o ponto forte de Margaret.

Na manhã seguinte, era um domingo, Clive voltou a chamar-me, primeiro porque queria informações sobre a noite anterior, e depois porque queria que eu falasse abertamente com Johnny acerca de questões tão esotéricas como as possibilidades legais de considerar Barley funcionário dos Serviços. Mas Clive queria saber mais. Queria saber se, no caso afirmativo, Barley tinha renunciado a certos direitos o seu direito a representação legal na eventualidade uma disputa connosco, por exemplo. Respondi-lhe com alguma ambiguidade, o que não deixou de o aborrecer, mas o que lhe disse resumia-se basicamente a um "sim". Sim, ele tinha renunciado a tais direitos. Ou mais exactamente, sim, podíamos levá-lo a pensar que tinha renunciado, qualquer que fosse o teor da lei.

Johnny, creio que ainda não o referi, tinha-se diplomado em Direito, em Harvard, pelo que, ao contrário do que era habitual, Langley não se vira na necessidade de enviar um batalhão de conselheiros legais.

De tarde, e visto que Barley não estava com disposição para ficar metido em casa e o dia permanecia ensolarado, fomos de carro até Maidenhead e passeámos depois pelas margens do Tamisa. No regresso, pareceu-me adivinhar que Barley tinha já sido interrogado; assim sendo, e não tendo os nossos analistas mais questões a pôr-lhe, e estando todos os seus encontros operacionais cobertos pelos necessários meios técnicos, pouco mais haveria a vasculhar na sua missão.

Sentir-se-ia Barley abalado pelas nossas preocupações? Aparentávamos uma disposição o mais jovial possível, mas não pude deixar de pensar que a atmosfera de estagnação que ameaçava a operação começava também a contaminá-lo. Ou talvez os seus sentimentos andassem num tremendo turbilhão de confusões e decepções em que nós não passávamos de um entre muitos factores.

Na noite de domingo ceámos os três em Knigthsbridge e Barley estava tão apaziguado e calmo que Ned decidiu como eu teria feito que seria seguro mandá-lo para Hampstead.

O seu apartamento ficava num edifício victoriano perto da East Heath Road e o posto de vigilância estático situava-se no piso de baixo, dirigido por um jovem e prometedor casal dos Serviços. Os inquilinos desse apartamento tinham sido temporariamente instalados noutro local. Por volta das onze, o nosso casal referiu que Barley estava sozinho no seu apartamento e que não parava de andar de um lado para o outro. Ouviam-no mas não o viam. Ned tinha-se oposto ao vídeo. Fartava-se de falar consigo mesmo, acrescentou o casal, e quando abriu o correio, a sua voz encheu os monitores de imprecações.

Ned não ficou inquieto com esta última informação. Tinha já lido o correio de Barley e sabia que ele não continha horrores maiores que os do costume.

Por volta da uma da manhã, Barley telefonou à sua filha Anthea, que vivia em Grantham.

"O que é um ig?" "A casa dum esquimó sem o lo. Que tal estava Moscovo?" "O que é que obtemos se cruzarmos o Atlântico com o Titanic" "Meio Atlântico aproximadamente. Que tal estava Moscovo?" "E que obtemos se cruzarmos uma ovelha com canguru?" "Perguntei que tal estava Moscovo." "Um saltador de lã. Que tal está o chato do teu marido?" "A dormir ou a tentar dormir. O que é que aconteceu ao torrãozinho de açúcar que levaste para Lisboa?”

"Foi-se." "Pensei que era permanente." "Ela é. Eu não. “

De seguida Barley telefonou a duas mulheres, a primeira uma ex-mulher em relação à qual mantinha direitos de visita, a segunda, alguém que não tínhamos ainda na nossa lista. Nenhuma delas o poderia receber assim sem mais nem menos, tanto mais que tinham os maridos ao lado na cama.

À uma e quarenta, o casal informou que as luzes do quarto de Barley, estavam apagadas. Ned foi de bom grado deitar-se, mas eu estava já no meu pequeno apartamento o dormir era a última coisa que naquele momento conseguiria fazer. Recordações de Hannali formigavam-me na cabeça, misturadas com imagens de Barley na casa de Knightsbridge. Lembrei-me da forma falsamente despren'dida como ele falava de Katya e dos seus filhos e não podia deixar de

Nesta e na pergunta seguinte há um jogo entre dois sentidos do verbo lo crou", "atravessar", no primeiro caso, "fazer cruzamentos", no segundo. Em ambos os casos a preposição usada é "with", daí o "com o

 

Titanic" da primeira pergunta, quando deveria ser "no Titanic". (N. do T.)

“ Neste caso, o jogo é entre os sentidos de "jumper", "Saltador" como o canguru e "camisola de lã com capuz". (N. do T.)

 

compará-lo com a insistência com que eu negava o meu amor por Hannali, nos tempos em que esse amor constituía para mim um sinónimo de perigo. A Hannali anda um bocado em baixo, dizia-me uma voz inocente de cinco em cinco minutos. Deve ser o marido que anda a chateá-la, pensava eu, e sorria. Aposto que ele gosta de bater-lhe, dizia eu, exactamente com o mesmo tom superior de desprendimento que ouvira em Barley, enquanto os fogossecretos que ardiam dentro de mim me iam roendo o coração com as suas labaredas cancerosas.

Na manhã seguinte Barley voltou ao seu escritório, mas tinha ficado combinado que passaria pela casa de Knightsbridge depois do trabalho, caso houvesse pontos a esclarecer. Esta combinação não era propriamente formal ou irrelevante, já que Ned acabou fechado no décimo segundo andar travando renhida batalha e era muito provável que, ao fim do dia, tivesse de ceder terreno ou, caso contrário, de aguentar uma guerra sem quartel com os mandarins.

Mas por essa altura já Barley tinha desaparecido.

Segundo os informadores comandados por Brock, Barley deixou o seu escritório da NorfoIk Street alguns minutos antes do previsto, precisamente às quatro e quarenta e três, levando consigo o saxofone. Wicklow, que se encontrava nesse momento nas traseiras da Abercrombie & Blair passando à máquina um relatório da viagem a Moscovo, não deu pela sua partida. Mas alguns dos rapazes de Brock, todos eles de jeans vestidos, seguiam Barley num passeio pelo Strand e, quando ele mudou de ideias, acompanharam-no até ao Soho, onde o viram enfiar-se num bebedouro vespertino frequentado por editores e agentes. Passou vinte minutos no bar, emergiu dele ainda com o saxofone e com um ar perfeitamente sóbrio. Chamou um táxi e um dos rapazes estava suficientemente perto dele para poder ouvir a morada do nosso abrigo. O mesmo rapaz avisou Brock, que telefonou para Knightsbridge e pediu a Ned que esperasse, pois o convidado ia a caminho. Eu não estava em cena nesse momento, andava a travar outras guerras.

Até então nada de especial, só que nenhum dos rapazes de Brock se lembrou de anotar a matrícula do táxi, um esquecimento que mais tarde lhes custaria caro. Era a hora de ponta. Uma viagem desde o Strand até Knighstbridge podia demorar séculos. Só às sete e trinta Ned desistiu de esperar e, inquieto mas ainda não alarmado, regressou à Casa da Rússia.

Pelas nove horas e visto que ninguém conseguia sugerir saídas para o caso, Ned declarou relutantemente um alerta interno, o qual, por definição, excluía os americanos. Como de costume, Ned mostrou-se friamente operacional. Talvez inconscientemente se tivesse defendido em relação àquela situação de crise, já que, segundo Broc: optara por seguir um esquema rotineiro, normalmente aplicado em casos idênticos. Não informou Clive. Explicou-me mais tarde que, numa atmosfera tão envenenada como a que se vivia nesse momento, informar Clive equivaleria a enviar um telegrama circunstaciado aos homens de Langley.

Ned seguiu em primeiro lugar para Bloonisbury, onde os serviços de escutas dispunham de uma série de caves sob a Russell Square. Usou um dos carros dos Serviços e deve ter sido mais rápido que o vento. A chefe das escutas era Mary, uma bulimia de quarenta anos “ de faces rosadas e decididamente solteirona. Os únicos amores que lhe conhecíamos eram vozes longínquas. Ned mostrou-lhe uma lista dos contactos de Barley, compilada pelo saudoso Walter a partir de intercepções e relatórios de informadores. Seria possível cobri-los imediatamente? Já?

Claro que Mary não podia fazer uma coisa daquelas. "Esticar os regulamentos até onde é possível é uma coisa, Ned. Uma dúzia de escutas ilegais é outra coisa. É completamente diferente. Será que você não percebe, Ned?”

Ned poderia ter argumentado que os telefones em questão estavam abrangidos pela autorização do Ministério do Interior, mas não se quis dar ao trabalho. Telefonou-me para Pinifico, no preciso momento em que eu abria a garrafa de Borgonha com que tencionava consolar-me depois de um dia miserável. Como o meu apartamento é minúsculo, tinha a janela aberta para que saísse o cheiro a fritos. Lembro-me de que fechei a janela enquanto falávamos.

As autorizações para escutas, teoricamente são assinadas pelo secretário do Interior ou, na sua ausência, pelo ministro. Só que há um truque para escapar a este esquema. De facto, o secretário do Interior delega automaticamente a sua autoridade no Conselheiro Legal em casos de emergência, devendo o mesmo Conselheiro apresentar no prazo de vinte e quatro horas um relatório escrito acerca do uso que fez dessa autoridade. Por isso, num ápice, escrevinhei a minha autorização, assineia-a, desliguei o gás as couves de Bruxelas ainda estavam ao lume -, meti-me num táxi e vinte minutos depois estava a entregar o documento a Mary. Menos de uma hora depois já os doze contactos de Barley estavam sob escuta.

Em que pensava eu enquanto procedia a todas estas operações? Terei pensado que Barley se suicidara? Não, isso não pensei. Barley estava preocupado, mas com os vivos. A última coisa que faria seria abandoná-los ao seu destino.

No entanto, considerei a possibilidade de se ter escapado, e suponho que a pior das minhas fantasias foi aquela em que Barley desatava a aplaudir quando o piloto da Aeroflot anunciava que o avião com destino a Moscovo tinha entrado em espaço aéreo soviético.

Entretanto, por ordem de Ned, Brock tinha convencido a polícia a divulgar um aviso urgente, em que era procurado um motorista de táxi londrino que tinha transportado um homem alto com um saxofone desde a esquina da Old Compton Street, por volta das cinco e trinta, destino inicial Knightsbridge, provavelmente alterado durante a viagem. Sim, um saxofone tenor um saxofone barítono tinha o dobro do tamanho. Pelas dez, estava encontrado o motorista. O táxi tinha seguido rumo a Knightsbridge, mas por alturas da Trafalgar Square, Barley mudara de facto de ideias e pedira ao motorista que o levasse à Harley Street. A viagem custara três libras. Barley dera-lhe cinco e dissera-lhe que guardasse o troco.

Por um repentino milagre de associação de ideias, e também por obra e graça do trabalho do saudoso Walter, Ned ligou o instrumento jazzístico ao elo que faltava Andrew George Macready, aliás Andy, antigo trompetista de jazz e referido como contacto de Barley, tinha sido admitido no Hospital das Irmãs da Caridade, Harley Street, há três semanas, ,ide rascunho de carta a lápis de Mrs. Macready para Hampstead, número de série 47A, e o comentário lapidar de Walter nas anotações: Macready é o guru de Barley no que respeita à condição mortal do ser humano.

Lembro-me ainda que me agarrei com as duas mãos à alça do passageiro mal Ned arrancou. No hospital, disseram-nos que Macready estava sob sedação. Barley estava. com ele há uma hora e tinham conseguido trocar algumas palavras. A enfermeira-chefe da noite, que tinha acabado de entrar para o seu turno, levara a Barley uma chávena de chá sem leite nem açúcar. Barley deitara no chá um pouco de whisky do frasquinho de bolso. Oferecera um gole à enfermeira, mas esta recusara. Tinha-lhe pedido que o deixasse "tocar para o Andy alguns dos seus números favoritos". A enfermeira deixou-o tocar mas apenas durante dez minutos e muito, muito baixinho. Algumas das freiras tinham-se juntado no corredor para ouvir, e uma delas reconheceu mesmo o tema: era o Blue and Sentimental de Cotint Basie. Finalmente Barley deixou o seu número de telefone e um cheque de cem libras "para o croupier" num pratinho de bronze que havia à entrada. A enfermeira-chefe disse-lhe que podia voltar sempre que quisesse.

"Os senhores não são da polícia, pois não?", perguntou-me ela com um ar triste quando íamos a caminho da porta.

"Graças a Deus que não. Porque havíamos de ser?" A enfermeira-chefe abanou a cabeça e não respondeu, mas pareceu-me entender o que ela tinha visto nele. Um homem em fuga, um homem que se escondia das suas próprias acções.

No regresso à Casa da Rússia, tão vertiginoso como a ida ao hospital, Ned telefonou do carro para Brock e ordenou-lhe que fizesse uma lista de todos os clubes, salas de concerto e bares da área de Londres onde houvesse espectáculos de jazz nessa noite. Brock teria de distribuir o maior número possível de informadores por esses locais.

Por precaução meti a colherada legal. Nem Brock nem nenhum dos seus vigilantes poderiam, fosse em que circunstância fosse, coarctar os movimentos de Barley ou entrar em qualquer tipo de confronto físico com ele. Barley podia ter renunciado a muitos direitos, mas não tinha certamente renunciado ao direito de se defender e além disso era um homem possante.

Estávamos a preparar-nos para uma longa espera quando Mary, a chefe das escutas, nos telefonou, desta feita toda doçuras. "Ned, acho que era melhor passar por cá. Não demore muito. Algumas das suas galinhas já puseram ovo.”

A toda a velocidade seguimos para Russell Square, com Ned a fazer curvas apertadas a cem à hora.

Mary recebeu-nos na sua toca, com o sorriso babado que ela reservava para momentos desastrosos. Uma sua assistente, a quem chamavam Pepsi, estava também presente, vestida com um macacão verde. Na secretária rodava a fita de um gravador.

"Mas quem é que se atreve a telefonar-me a esta hora?", perguntou uma voz estentórica que identifiquei imediatamente como a voz da magnífica Pandora, a tia de Barley, a Vaca Sagrada com quem tivera um almoço de negócios. Uma pequena pausa enquanto caíam moedas na máquina. E a seguir a voz cortês de Barley.

"Creio sinceramente que já tenho a minha dose, Pan. Vou mesmo deixar a firma.”

"Não diga asneiras", retorquiu a tia Pandora. "Ou me engano muito ou anda novamente alguma tonta à sua volta.”

"Estou a falar-lhe a sério, Pan. Desta vez é mesmo verdade, tinha de lho dizer. “

"Mas você fala sempre a sério! É por isso que se sai tão mal quando pretende mostrar-se frívolo.”

"Amanhã de manhã vou falar com o Guy." Guy Solomons, soficitador da família, referido como contacto de Barley. "Wicklow, o novo editor, tem todas as qualidades para tomar conta do barco. É um rapaz decidido e aprende depressa.”

"Localizou a cabina?", perguntou Ned a Mary quando Barley desligou.

"Não me deu tempo", disse orgulhosamente Mary. Do gravador veio entretanto o som de mais um telefone a tocar. Era Barley outra vez. "Reggie? Vou tocar esta noite. Não quer vir?”

Mary passou-nos um cartão em que tinha escrito Cónego Reginald Cowan, baterísta e sacerdote.

"Não posso", respondeu Reggie. "Tenho crisma." "Descarte-se", disse Barley. "Não posso. Os tipos já cá estão." "Precisamos de si, Reggie. O nosso velho Andy está a morrer." "Estamos todos. Estamos todos a morrer aos poucos." Com a gravação a terminar, ouviu-se um outro telefonema, desta vez ao vivo e da Casa da Rússia. Era Brock que queria falar urgentemente com Ned. Segundo os seus vigilantes, Barley tinha passado pelo seu bar do Soho uma hora antes, bebera cinco whiskies e seguira depois para o Noah's Arch em King's Cross.

Noah's Arch? Deve ser Arca”." "Arch. É um arco sob a linha do caminho-de-ferro. O Noali é um antilhano com mais de um metro e oitenta. O Barley está a tocar.”

"Sozinho?" "Por enquanto." "Que gênero de sítio é esse, o Noah's Arch?" "Comidas e bebidas, sobretudo bebidas. Sessenta mesas, palco, paredes de tijolo, putas, o costume.”

Brock achava que todas as raparigas bonitas eram putas. "Está muito cheio?", perguntou Ned. "Dois-terços, mas ameaça encher mais." "O que é que ele está a tocar" "'Lover Man”. Ramirez, David e Serman." "Quantas saídas?" "Uma." "Ponha três homens numa mesa junto à porta. Se ele sair, detenha-o, mas não lhe toque. Telefone para os Recursos e diga-lhes que quero que o Ben Lugg vá imediatamente com o seu táxi para o Noah's Arch e que espere lá com o sinal de ocupado. Ele sabe o que há-de fazer. " Lugg era o taxista dos Serviços. "Há telefones públicos no bar?”

"Dois." "Ocupem-nos até eu chegar. Ele não o viu a si?" "Não." "Não deixe que ele o veja. Que há do outro lado da rua?" "Uma lavandaria." "Está aberta?" "Não." "Espere por mim junto à lavandaria". Virou-se para Mary, que continuava a sorrir. "Há dois telefones no Noah's Arch, King's Cross", disse ele, muito lentamente. "Ponha-os sob escuta já. Se a gerência tiver um telefone, ponha-o também sob escuta. Já. Não me interessa que haja poucos engenheiros, o que me interessa é que os telefones fiquem controlados e já. Se houver cabinas na rua, ponha-as também sob escuta. Já.”

Abandonámos o carro dos Serviços e chamámos um táxi. Brock estava à espera à porta da lavandaria, como lhe tinha sido ordenado. Ben Lugg estacionara na berma. Pagámos cinco libras e noventa e cinco pence para entrarmos. Sem olhar para a mesa dos vigilantes, Ned abriu caminho até às mesas da frente.

Ninguém estava a dançar. A primeira linha da banda fazia uma pausa. Barley encontrava-se no centro do palco frente a uma cadeira dourada, tocando saxofone com o suave pano-de-fundo do contrabaixo e da bateria. Por cima dele um arco de tijolo servia-lhe de câmara de som. Trazia ainda o seu fato de editor e parecia ter-se esquecido de tirar o casaco. Luzes coloridas rotativas volteavam por cima dele, incidindo por vezes sobre a sua cara que escorria suor. Tinha uma expressão sossegada e ausente.

 

Noahs Arch, o Arco de Noé, em vez de Noahs-Ark, a Arca de Noé. (N. do T.)

 

Prolongava as notas e eu sabia que essas notas eram um requiem por Andy e-sabe-se lá por quem mais, por uma quantidade de rostos que povoavam a sua cabeça cercada de confusão. Duas raparigas tinham-se sentado na mesa reservada à banda e olhavam-no fixamente. Uma rodada de cerveja esperava-o. Ao lado dele, com os braços cruzados contra o peito, o imenso Noah escutava-o de cabeça baixa. A peça terminou. Deliberadamente com gestos temos, como se estivesse a tratar da ferida de um amigo, Barley limpou o saxofone e meteu-o no estojo. Noah não permitia aplausos, mas o público não deixou de manifestar o seu agrado dado estalos com os dedos. Houve ainda alguns gritos de "encore", mas Barley não lhes ligou. Bebeu umas quantas cervejas, despediu-se com um aceno e delicadamente abriu caminho até à porta. Seguimo-lo imediatamente e, ao chegarmos à rua, passava Ben Lugg com o sinal de "fivre" no táxi.

"Para o bar Mo's", ordenou Barley enfiando-se no banco de trás e abrindo logo de seguida um frasco de bolso que nunca lhe tinha visto. "Olá, Harry. Que tal vai o amor à distância?”

"óptimo e recomenda-se, obrigado." "Em que raio de sítio é que fica o Mo's?", perguntou Ned enquanto se instalava ao lado dele e eu me sentava no banco da frente.

"Tufnell Park. Descendo Falmouth Arms." "A música é boa?", perguntou Ned. "A melhor." Mas não foi a falsa jovialidade de Barley que me alarmou. Foi o seu ar longínquo. Foram os seus olhos mortos, o facto de se ter limitado ao reduto da sua cortesia inglesa.

Mo era uma loura de cinquenta anos. Passou um bocado aos beijos a Barley e só depois se lembrou de nós, deixando-nos sentar à sua mesa. Barley tocou blues e Mo queria que ele ficasse mais tempo, que passasse talvez a noite com ela, mas Barley não conseguia ficar muito tempo em sítio nenhum, pelo que dali fomos para uma pizzaria em lslington que também tinha música ao vivo. Barley tocou mais um solo e Ben Lugg entrou connosco para beber um chá e apreciar o espectáculo. Ben fora pugilista no seu tempo e ainda dava cartas na arte. Deixámos lslington, passámos o rio e fomos até ao Elephant ouvir um grupo negro tocar sou] numa garagem de autocarros. Eram quatro e um quarto, mas Barley não mostrava sinal de sono; preferiu juntar-se aos músicos e partilhar com eles cacau com um cheirinho a álcool em canecas de louça de meio-litro. Quando por fim o acompanhámos ao táxi de Ben, as duas raparigas de Noah's Arch irromperam vindas não se sabe donde e sentaram-se ao lado dele no banco de trás.

"Então, meninas, o que é isso?", perguntou-lhes Ben, enquanto Ned e eu esperávamos no passeio. "Desamparem o táxi.”

"Fiquem onde estão, se fazem favor", advertiu-as Barley.

"Este táxi não é vosso, minhas queridas, é daquele senhor", disse Ben, apontando para Ned. "Vá, tenham juízo e ponham-se a andar.”

Barley ensaiou um murro na direcção da cabeça de Ben, que estava adornada com um chapéu de feltro, mas Ben aparou o golpe como se estivesse a afastar uma teia de aranha e, com o mesmo movimento. puxou cuidadosamente Barley para fora do carro e entregou-o a Ned, que o recebeu com um abraço igualmente cuidadoso.

Ainda de chapéu, Ben desapareceu no banco de trás do táxi e saiu com as duas raparigas pela mão.

"Que tal se apanhássemos um bocado de ar fresco?", sugeriu Ned, enquanto Ben dava dez libras a cada uma das raparigas como paga para os deixarem em paz.

"Boa ideia", disse Barley. Atravessámos o rio em lenta procissão, com os vigilantes de Brock na rectaguarda e o táxi de Ben Lugg avançando lentamente ao pé de nós. O dia raiava escuro e fuliginoso por sobre os cais.

"Lamento o sucedido", disse Barley ao fim de um bocado. "Não há problema, pois não Nedsky?”

"Que eu saiba, não", respondeu Ned. "Esteja a pau", avisou Barley. "O País Precisa de Gente Que Estejá a Pau. Não é, Nedsky? Acontece que me apetecia tocar um bocado mais", explicou, virando-se para mim. "Você é um homem musical, Harry? Um amigo meu costumava tocar ao telefone para a namorada. Mas tocava piano e não saxofone. De qualquer modo ele dizia que resultava. Não quer experimentar com a sua patroa?”

"Amanhã partimos para a América", informou Ned. Barley reagiu à notícia como se nela não houvesse nada de inesperado. "Vai ser óptimo para si, Ned. Nesta altura faz um tempo muito agradável na América. Diria mesmo que é nesta altura que a América se apresenta mais radiante.”

"Mas olhe que para si também vai ser bbm", retorquiu Ned. "Achámos que era melhor levá-lo connosco.”

"Mas diga-me uma coisa, Ned, que roupa hei-de levar?", perguntou Barley. "Género desportivo, férias? Ou será melhor meter na mala um smoking para o caso de ser preciso?”

Chegámos à ilha ao fim do dia, num pequeno avião que pertencia a uma grande empresa americana. Ninguém nos disse a quem pertencia a ilha. Era um bocado de terra estreito e cheio de árvores, com uma cova ao centro e as extremidades elevadas, encimadas por picos cónicos. Vista do ar, fazia lembrar uma tenda de beduíno desdobrando-se no meio do Atlântico. Calculei que teria pouco mais de três quilómetros de comprimento. Vimos uma mansão típica da Nova Inglaterra com os seus terrenos numa das extremidades e um cais minúsculo numa outra. Vim a saber mais tarde que à mansão chamavam casa de Verão, porque no Inverno ninguém lá estava. Tinha sido construída na viragem do século por um abastado bostoniano, nos tempos em que tal gente se intitulava rústica. Sentimos as asas do avião a abanar e um cheiro a sal que entrava pelas janelas da cabina, as quais tinham chocalhado durante toda a viagem. Vimos résteas de sol adejando sobre as ondas como holofotes num toque de recolher, e alcatrazes guerreando ao vento. Vimos um farol ao longe, a oeste, no continente. Pelo meu relógio, há cinquenta e oito minutos que seguíamos a costa do Maine. As árvores apareceram então a rodear-nos, o céu evaporou-se e, de repente, demos connosco aos saltos e às voltas enquanto o avião aterrava numa avenida de relva, no fim da qual nos esperava um jipe com Randy e os seus homens. Randy tinha um aspecto tão saudável como só os americanos privilegiados podem ter. Vinha de anoraque e gravata. Parecia-me conhecê-lo há muito.

"Bem-vindos à ilha, meus senhores. Vou ser o vosso anfitrião enquanto desejarem aqui ficar". Cumprimentou Barley em primeiro lugar. Deviam ter-lhe mostrado fotografias. "Mr. Brown, honra-me muito conhecê-lo. Ned? Harry?”

"É muito simpático da sua parte", retorquiu Barley.

Enquanto descíamos a colina, os pinheiros perfilavam-se num pano de fundo negro contra o mar. Os homens de Randy seguiam-nos num outro carro.

"Com que então voam britânico, há? Não há dúvida que Mrs. Thatcher deu a volta à vossa linha aérea!", disse Randy.

"Não admira", retorquiu Barley. "Há muito que ela afundou o navio.”

Randy riu-se como se o riso fosse uma coisa que tivesse aprendido no curso. Brown era o nome de guerra de Barley enquanto durasse a viagem. Até o seu passaporte, que Ned levava, dizia que ele era Brown.

Finalmente metemos por um caminho elevado e acidentado que conduzia à portaria. Os portões abriram-se e logo se fecharam atrás de nós. Estávamos num promontório, no nosso promontório. No ponto mais alto ficava a mansão, iluminada por lâmpadas de arco voltaico escondidas no mato. Extensas zonas de relva e arbustos queimados pelo vento rodeavam a casa. Os pilares de um quebra-mar destruído enfrentavam precariamente as ondas. Randy estacionou o jipe e, pegando na bagagem de Barley, conduziu-nos ao longo de um caminho iluminado e orlado de hortênsias, até chegarmos a uma casa de marinheiro. Na viagem para Boston, Barley dormitara e bebera e resmungara contra o filme. De Boston até à ilha, protestara contra a paisagem da Nova Inglaterra como se a sua beleza o perturbasse. Mas logo que aterrámos pareceu reentrar no seu próprio mundo.

"Mr. Brown, as ordens que tenho são para o acomodar na suite nupcial", disse Randy.

"São certamente os melhores aposentos, velho rapaz'", retorquiu polidamente Barley.

"Há um contra-senso nessa expressão, Mr. Brown. Não faz sentído dizer-se velho rapaz.”

Randy conduziu-nos através de uma sala de entrada com chão de tijoleira até uma cabina de capitão. O estilo era rural. A um canto, uma réplica de uma cama de ferro antiga, junto à janela uma escrivaninha feita com madeira de segunda e nas paredes duvidosos apetrechos marítimos. No recanto onde fora instalada uma cozinha tipicamente americana, Barley identificou de imediato o frigorífico, abriu-o e examinou o seu conteúdo, animado da maior expectativa.

"Mr. Brown gosta de uma garrafa de Scotch todas as noites no seu quarto, Randy. Ficar-lhe-ia muito grato se lhe trouxesse umas quantas do seu paiol. “

A casa de Verão era um museu de infâncias douradas. No alpendre, maços de croquetI cor-de-mel jaziam encostados a um carrinho de jardinagem coberto de pó e cheio de covos lagosteiros trazidos da praia. Havia no ar cheiros a cera e a couro. Na sala de entrada, as paredes estavam cheias de retratos de jovens de ambos os sexos, todos eles com chapéus de aba larga na cabeça, lado a lado com pinturas primitivas representado baleeiros. Old boy, no original: tratamento informal com o sigrifficado de "amigo", "meu velho", etc.

 

Traduziu-se literalmente por causa da observação seguinte de Randy. (N. do T.)

Croquet, jogo disputado em relvado e no qual os jogadores tentam fazer pasar bolas de madeira através de pequenos arcos metálicos, usando para isso maços de madeira com cabos compridos. (N. do T.)

 

Subimos com Randy uma vasta escadaria primorosamente encerada. Barley arrastava-se atrás de nós. Em cada patamar, janelas arqueadas debruadas com vitrais abriam-se para o mar como que engrinaldadas por jóias. Avançámos por um corredor de quartos azuis. O maior fora reservado para Clive. Das nossas varandas via-se a casa de marinheiro para lá dos jardins e o continente, para lá do mar. O crepúsculo volvia já noite.

Numa sala de jantar com as vigas do tecto brancas, uma vestal de Langley esforçava-se por não olhar para nós enquanto servia lagosta do Maine e vinho branco.

Enquanto comíamos, Randy explicou as normas da casa. "Em primeiro lugar, meus senhores, nada de confraternizações com a equipa, apenas bom-dia e olá. Se precisarem de lhes dizer qualquer coisa, informem-me, eu falo com eles. Em segundo lugar, os guardas são para vossa conveniência e segurança, mas gostaríamos que permanecessem nos limites da propriedade. Obrigado.”

Terminados o jantar e os discursos, Randy levou Ned à sala de comunicações e eu acompanhei Barley até à casa que lhe tinha sido destinada. Um vento forte varria o jardim. Sob os cones de luz que iluminavam o jardim, Barley parecia sorrir abertamente. Guardas com walkie-twkies observavam-nos.

"Que tal uma partidinha de xadrez?", perguntei-lhe ao chegarmos à porta.

Naquele momento gostaria de ter entendido melhor a sua expressão, mas já não ia a tempo, como já não ia a tempo de adivinhar a sua disposição. Senti uma palmadinha no braço enquanto ele me desejava boa-noite. A porta abriu-se e fechou-se num segundo, o tempo de eu ver na escuridão a figura espectral de uma sentinela a menos de dois metros de nós.

"Um brilhante advogado, um óptimo funcionário", assim me anunciou Russel Sheriton na manhã seguinte, num murmúrio reverente, sabendo perfeitamente que eu não era nem uma coisa nem outra, enquanto as suas palmas fortes e cheias envolviam literalmente a minha mão. "Um dos grandes, dos verdadeiros grandes, Harry, como tem passado?”

Pouco mudara o seu aspecto desde a última viagem de trabalho que o levara a Londres: os anéis sob os olhos estavam agora um pouco mais inchados, um pouco mais tristes, o fato azul um ou dois tamanhos acima, a mesma barriga sob a camisa branca. O mesmo after-shave de agente funerário, seis anos depois, ungia o mais recente chefe das operações soviéticas da Agência.

Um grupo dos seus rapazes mantinha-se respeitosamente a alguma distância dele, carregando as malas com um ar de passageiros encalhados num aeroporto. Clive e Bob tinham-se instalado ao seu lado como se fossem cúmplices. Bob parecia ter envelhecido dez anos. Um sorriso contrito tinha substituído a antiga segurança à americana. Saudou-nos de forma demasiado efusiva, como se o tivessem avisado de que devia afastar-se de nós.

A Conferência da Ilha, como eufemisticamente se tornou conhecida, estava prestes a começar.

Ao descrever os acontecimentos dos dias seguintes, corro o risco de esquecer a amenidade que aparentemente caracterizou as relações entre toda aquela gente, a atmosfera de reunião de homens honestos e esforçados tratando dos seus negócios.

É esse lado "simpático" do encontro na ilha que mais me repugna descrever. No entanto foi o próprio Barley que me levou a dar-lhe algum relevo, já que nunca o vi ir contra os nossos anfitriões de facto, nunca os censurou por nada do que lhe aconteceu, nesses dias na ilha ou mais tarde. É certo que Barley contestava os americanos em geral. Porém, bastavam-lhe os contactos individuais com cidadãos americanos para os considerar a todos criaturas perfeitamente decentes. Não havia entre os americanos presentes na ilha um único com quem não desejasse partilhar uns copos numa noite qualquer, num qualquer local local de que obviamente não dispunhamos naquelas circunstâncias. E, como seria de esperar, Barley entendeu sempre a justeza das críticas que lhe foram feitas, tal como sempre se sentiu extremamente impressionado com o carácter diligente e zeloso dos americanos.

E que diligentes e zelosos eles eram! Se os números, o dinheiro e o mero empenho bastassem para produzir inteligência, a Agência tê-la-ia às carradas só que, para mal dos seus pecados, a cabeça humana não se resume, longe disso, a tal terceto, além do que não produz apenas inteligência, mas também o seu contrário.

E com que ansiedade desejavam o amor dos outros! e Barley percebia perfeitamente esse desejo e tratava de o satisfazer. Mesmo quando o massacravam com palavras, era amor que pediam. E também o amor de Barley! Tal como sempre precisaram e continuam a precisar de ser amados por todos os complots que tramaram, por toda a desestabilização que provocaram, por todas as aventuras em que se lançaram contra o terrível Inimigo Externo.

No entanto, foi precisamente este mistério de corações bondosos que não deixavam de ter o seu reverso que explicou o terror que também se viveu subterraneamente, como tudo o mais naquela semana na ilha.

Há alguns anos, falei com um homem que tinha sido chicoteado, um mercenário inglês que nos fazia alguns favores em África e que queríamos recompensar. Do que ele melhor se lembrava, não era das chicotadas, mas sim do sumo de laranja que lhe deram depois da tortura. Lembrava-se de que o tinham ajudado a regressar à sua cabana, de que o tinham deitado de costas sobre a palha. Mas aquilo de que realmente se lembrava bem era do copo de sumo de laranja acabado de espremer que um guarda lhe pôs a um palmo da cara, o mesmo guarda que depois se agachou ao seu lado, esperando pacientemente até que ele tivesse forças bastantes para beber um pouco. E no entanto fora esse mesmo guarda que o tinha açoitado.

Também nós tivêmos os nossos sumos de laranja. E tivêmos também guardas decentes, ainda que disfarçados com walkie-talkíes e uma animosidade superficial que depressa se derreteu ao calor das efusões de Barley. Um dia depois da nossa chegada, já esses guardas com quem estávamos proibidos de confraternizar andavam num corropio a caminho da casa de Barley, subtraindo coca-cola e whísky do seu frigorífico e regressando depois apressadamente aos seus postos. Os guardas tinham pressentido que Barley era o tipo de homem com quem podiam dar-se ao luxo de uma tal proximidade. E, como bons americanos que eram, tinha ficado fascinados com a sua celebridade.

Havia um velho guarda chamado Edgar, um antigo Maribe, que se revelou um óptimo xadrezista, capaz de ombrear com Barley. Vim a saber mais tarde que Barley, contrariando todas as regras, ficara com o seu nome e morada, para que pudessem disputar um torneio pelo correio "quando aquilo acabasse.”

Mas estes fenómenos não se passaram apenas com os guardas. No coro de jovens de Sheriton, e no próprio Sheriton, havia uma moderação que marcava como que um ritmo regular de sanidade, em oposição aos altos e baixos histéricos daqueles a quem o próprio Sheritou atribuía o epíteto de egomaníacos.

Mas tudo o que acabo de expor é, segundo creio, a tragédia das grandes nações. Tanto talento ansiando por se manifestar, tanta generosidade à espera de um destinatário. E no entanto tudo isso era tão miseravelmente expresso que por vezes nem parecia que era a América, a grande, a enorme América, que estava a falar connosco.

Mas era mesmo a América. O chicote era verdade.

Os interrogatórios decorreram na sala de bilhar. O soalho tinha sido pintado de vermelho escuro porque a sala era agora para bailes e em vez da mesa de bilhar havia um anel de cadeiras. Mas na parede havia ainda um marcador de marfim e uma série de estojos com tacos de bilhar marcados com iniciais, e a luz era a mesma que noutros tempos incidia sobre a mesa de bilhar. Era no centro dessa luz que Barley tinha de sentar-se. Ned fora buscá-lo à casa onde estava instalado.

"Mr. Brown, é com orgulho que o cumprimento. Acabo de decidir que, enquanto durar o nosso relacionamento, o meu nome será Haggerty", declarou Sheriton. "Mal olhei para si, senti-me irlandês, não me pergunte porquê. " Sheriton conduzia Barley pela sala num passo decidido. "Em primeiro lugar, quero felicitá-lo. Você tem todas as virtudes: memória, observação, a determinação britânica, o saxofone. “

Tudo isto disse-o Sheriton de um só fôlego, exibindo uma fluência perfeitamente hipnótica, enquanto Barley arreganhava um sorriso tímido e deixava que o instalassem no lugar de honra.

Nesse momento já Ned estava sentado, com um ar rígido, os braços cruzados contra o peito, e Clive, apesar de pertencer ao círculo, tinha conseguido ficar fora da fotografia. Sentara-se entre os jovens de Shenton e puxara a sua cadeira para trás, de maneira a ficar escondido.

Sheriton ficou de pé em frente a Barley. Dirigia-se apenas a ele, mesmo quando as suas palavras visavam outras pessoas presentes. "Clive, permite-me que bombardeie Mr. Brown com algumas questões impertinentes? Ned, importa-se de dizer a Mr. Brown que está nos Estados Unidos da América e que se não responder a alguma coisa, o seu silêncio será considerado como uma prova evidente da sua culpa?”

"Mr. Brown é capaz de tratar de si mesmo", retorquiu Barley, mas ainda com um sorriso estranho, como se não conseguisse acreditar naquela tensão.

"É capaz, Mr. Brown? óptimo! Fazemos votos para que saiba tratar de si nos próximos dias.”

Sheriton foi até ao aparador, serviu-se de café e regressou com a chávena. A sua voz tinha agora o tom mais calmo do senso comum. "Mr. Brown, estamos a comprar um Picasso, certo? Toda a gente que aqui está pretende comprar o mesmo Picasso. Azul, sangrento, um grande trabalho, enfim, um Picasso. Há talvez umas três pessoas em todo o mundo que o entendem. Porém, depois do quadro bem estudado, há uma questão que se levanta. Foi mesmo Picasso que o pintou, ou terá sido um qualquer J. P. Pateta Jr. de South Bend, Indiana, ou de Omsk, Rússia, que fez muito simplesmente um pastiche de Picasso no seu armazém de batatas? Porque, Mr. Brown, não se esqueça de uma coisa. " Sheriton batia com uma mão no peito enquanto segurava na chávena com a outra. "Nada de enganos. Isto aqui não é Londres. É Washington. E, para Washington, a inteligência tem de ser uma coisa útil, e isso quer dizer que tem de ser usada, e não contemplada com socrático desprendimento. " Baixou a voz num tom de reverente comiseração. "E você, Mr. Brown, você é o indivíduo que nos está a vender o Picasso. Quer queira quer não, o senhor é aquele que nos aproxima da fonte, até ao dia em que consigamos convencer o homem a que chama Goethe a mudar de processos e a falar connosco directamente. Se é que alguma vez vamos conseguir. É duvidoso. Muito, muito duvidoso.”

Sheriton virou-lhe as costas e foi até à ponta do anel. "Você é a cavilha essencial em todo este mecanismo, Mr. Brown. Você é o homem. É isso que você é. Mas até que ponto? Que quantidade? Um pouco apenas? Metade? Ou tudo? É o argumentista, o actor, o produtor e o realizador do filme? Ou o seu papel é apenas uma ponta, como diz que é? Será você apenas o espectador inocente que proclama ser, mas que não convence nenhum de nós?”

Sheriton suspirou, como se tanta dureza fosse demais para um homem da sua sensibilidade. "Mr. Brown, diga-me uma coisa, você tem por acaso uma namorada regular ou anda aos caídos?”

Ned já estava meio-levantado, mas Barley antecipou-se-lhe e respondeu. No entanto, a sua voz não mostrava qualquer irritação ou hostilidade. Era como se não quisesse perturbar a atmosfera simpática de que todos desfrutávamos.

"E você, meu caro, como é que tem passado? Mrs. Haggarty ainda está para isso ou obriga-o a recorrer a práticas da nossa juventude?”

Sheriton pareceu não o ouvir sequer. "Mr. Brown, é o seu Picasso e não o meu que queremos comprar. Washington não gosta que os seus peões andem ao engate em bares para solteiros. Temos de jogar este jogo de uma maneira muito franca, muito honesta. Nada de reticências inglesas, nada de conversas de chacha à moda antiga. Já nos aconteceu cairmos nessa esparrela e nunca mais, nunca mais voltaremos a cair.”

Esta observação pareceu-me dirigida a Bob, uma vez mais de cabeça baixa, fitando as mãos.

"Mr. Brown não anda ao engate em bares para solteiros", interrompeu Ned furioso. "E o material não é dele. É de Goethe. Não me parece que a sua vida privada seja para aqui chamada.”

Guarde para si os seus pensamentos, dissera-me Clive. Era essa a mensagem que os seus olhos transmitiam a Ned naquele momento.

"Ora, Ned, francamente!", protestou Sheriton. "Da forma como está Washington actualmente, até para se entrar no raio de um autocarro é preciso uma pessoa casar e nascer de novo. O que o leva a visitar a Rússia tão frequentemente, Mr. Brown? Anda a comprar propriedades por lá?”

Barley continuava a sorrir, mas já sem muito agrado. Sheriton estava a minar-lhe as defesas, e era precisamente isso que Sheriton queria.

"Para lhe dizer a verdade, meu velho, esse é um papel que me coube de herança. O meu pai sempre preferiu a União Soviética aos Estados Unidos, e teve de enfrentar muitos problemas por publicar livros soviéticos. O meu pai era um Fabiano”. Uma espécie de New Dealerl. Se fosse americano, iria parar à lista negra.”

"Se fosse americano, o seu pai teria sido denunciado, emboscado, frito e imortalizado. Li o processo dele. É horrível. Conte-nos mais qualquer coisa acerca dele, Mr. Brown. Que mais herdou dele?”

 

Membro da Sociedade Fabian, movimento socialista criado em fins do século passado. (N do T.)

Adepto da New Deal, acção política de Franidirt D. Roosevelt na década de 30. (N. do T.)

 

"Mas que raio é que isso interessa?", perguntou Ned. E tinha razão. A questão da excentricidade do pai de Barley fora já há muito tempo considerada irrelevante pelo décimo segundo andar. Mas tal não acontecia com a Agência, pelo menos aparentemente. Ou já não acontecia.

"E nos anos trinta, como sem dúvida também sabe", continuou Barley no seu tom perfeitamente sereno, "o meu pai lançou um Clube do Livro Russo. Não durou muito tempo mas teve algum êxito. E durante a guerra, sempre que arranjava papel, publicava propaganda pró-soviética, a maior parte da qual glorificando Estaline.”

"E depois da guerra o que é que ele fez? Foi ajudá-los a construir o muro de Berlim aos fins-de-semana?”

"Ao princípio ainda teve esperanças, depois perdeu-as", replicou Barley após breve reflexão. A sua parte contemplativa começava a dominá-lo. "Podia ter perdoado aos russos muitas coisas, mas nunca o Terror, nunca os campos e as deportações. Despedaçaram-lhe o coração.”

"Se os soviéticos tivessem usado métodos menos musculados, o coração do seu pai teria sido igualmente despedaçado?”

"Não me parece. Creio que teria morrido feliz." Sheriton limpou as palmas das mãos a um lenço e, como um Oliver Twist demasiado pesado, segurou com ambas as mãos a sua chávena de café até chegar ao aparador, onde, depois de ter aberto o termo e de ter espreitado pesarosamente para o seu conteúdo, encheu de novo a chávena.

"Bolotas", queixou-se. "Juntam a bolota, moem-na e sai café. É assim que se faz café por estas bandas." Havia uma cadeira vazia ao lado de Bob. Sheriton sentou-se com um suspiro. "Mr, Brown, permite-me que seja eu a contar a história? Já não há nas nossas vidas tempo e espaço para julgarmos cada humilde membro da família humana pelas suas qualidades, certo? De maneira que toda a gente que é alguém tem a sua vida discriminada num processo. Vou resumir-lhe o seu. O seu pai foi um simpatizante comunista, posteriormente desiludido. Nos oito anos que passaram após a sua morte, você fez nada mais nada menos do que seis visitas à União Soviética. Vendeu-lhes exactamente quatro livros execráveis do seu catálogo e comprou-lhes exactamente três. Dois romances modernos horrorosos que não venderam nada, uma porcaria sobre acupunctura que vendeu dezoito cópias na edição comercial. Embora esteja a um passo da bancarrota, calculamos que tenha gasto com essas viagens doze mil libras e que tenha tido uma receita de mil e novecentas libras. É divorciado, não assume compromissos, estudou numa Public Schooll. Bebe como se estivesse a regar o deserto sozinho e escolhe amigos do jazz que fazem o Benedict Arnold parecer uma Shirley Temple. Visto de Washington, você é um extravagante. Visto daqui, não há dúvida que é uma criatura simpática, mas diga-me como hei-de explicar isso à próxima sub-comissão do Congresso cujos membros, uns macacos doidos pela verdade e nada mais que a verdade, meteram na cabeça que hão-de condenar à forca o material de Goethe porque põe em perigo a Fortaleza América?” "Porque é que acham isso?", perguntou Barley. Creio que todos ficámos surpreendidos com a sua calma.

 

“Escolas privadas em regime de internato na Grã-Bretanha. (N. do T.)

 

Sheriton ficou sem dúvida espantado. Até então tinha olhado de alto para Barley, pondo um ar ligeiramente desdenhoso enquanto lhe explicava o seu dilema. Agora, porém, olhava-o de frente, muito direito, num jeito alarmado e trocista.

"Desculpe, Mr. Brown?" _"Porque é que o material de Goethe lhes mete medo? Se os russos não conseguem acertar no alvo, a Fortaleza América devia estar a dar pulos de contente.”

"Mas, estamos, Mr. Brown, estamos a dar pulos de contentes. Estamos perfeitamente extasiados. Pouco importa que todo o poder militar americano assente na crença de que os armamentos soviéticos são de uma precisão extraordinária. Pouco importa que a nossa percepção da capacidade de precisão soviética seja tudo neste jogo. Pouco importa que, com armamentos de grande precisão, seja possível atacar furtivamente o inimigo enquanto ele está calmamente a jogar uma partidinha de golfe, que seja possível destruir os seus ICBM num abrir e fechar de olhos e deixá-lo absolutamente incapaz de dar uma resposta à altura. Ao passo que, sem essa precisão, o melhor é nem tentar, porque o inimigo dá meia-volta e num instante reduz a cinzas as vinte cidades favoritas do agressor. Pouco importa que milhões de dólares dos contribuintes e toneladas de esterco de retórica política tenham sido esbanjados no tão acalentado pesadelo de um primeiro ataque soviético e da barreira de vulnerabilidade americana. Pouco importa que ainda hoje a ideia da supremacia soviética continue a ser o principal argumento a favor da Guerra das Estrelas e o principal tema das piadas sobre estratégia que se ouvem nos cocktails de Washington. “

Para minha surpresa, Sheriton. mudou repentinamente de sotaque: era agora um perfeito camponês do mais profundo Sul. "É tempo de a gente rebentar com esses sacanas antes que eles nos façam o mesmo, Mr. Brown. É que o nosso velho planeta é demasiado pequeno para albergar duas super-potências, Mr. Brown. Qual das duas vai você apoiar, Mr. Brown, quando a coisa der para o torto?”

Nesse momento fez uma pausa, enquanto o seu rosto bochechudo retomava a contemplação das muitas injustiças da vida.

"E eu acredíto em Goethe", prosseguiu de súbito. "É público e notório que eu acreditei inteiramente em Goethe desde o dia em que ele decidiu dar um ar da sua graça. Nem uma dúvida me passou pela cabeça. Em minha opinião, Goethe é uma fonte que brotou no momento certo. E sabe você o que isto me leva a pensar? Leva-me a pensar que tenho também de acreditar neste Mr. Brown que está aqui à minha frente e que Mr. Brown tem de ser muito franco comigo, pois caso contrário sou um homem morto." Num jeito reverente, levou uma mão ao peito esquerdo. "Eu acredito em Mr. Brown, acredito em Goethe, acredito no material. Portanto estou à rasca.”

Há pessoas que mudam de ideias, pensava eu nesse instante. Outras mudam de amores. A Russell Sheriton dá-lhe para anunciar que viu a luz ao fundo do túnel. Ned fitava-o com um ar rigorosamente descrente. Clive preferia admirar os estojos dos tacos de bilhar. Mas Sheriton continuava a olhar amuado para o café, reflectindo acerca da sua pouca sorte. Dos seus jovens, um examinava a ponta do seu sapato Harvard, com o queixo assente no punho fechado. Outro espreitava para o mar através da janela como se a verdade estivesse ao largo.

Mas ninguém olhava para Barley, parecia que ninguém tinha a coragem de olhar para ele. Estava calmo, quieto, com um ar mais jovem. Tinhamo-lo prevenido, mas não o suficiente. E sobretudo não lhe tínhamos dito que o material da Ave Azul tinha já posto à bulha as diversas facções da indústria militar e provocado berros de ultraje por parte dos lobbies de Washington menos comedidos.

Foi então que o velho Palfrey falou pela primeira vez. Enquanto falava, tive a sensação de estar a fazer uma qualquer cena do teatro do absurdo. Era como se o mundo real se estivesse esvaindo sob os nossos pés.

"O que Haggarty lhe está a perguntar é o seguinte", disse eu. "Submete-se voluntariamente a um interrogatório feito pelos americanos para que eles possam ter uma ideia exacta da fonte de uma vez por todas? Pode recusar-se. A escolha é sua. Não é assim, Clive?”

Clive não gostou que eu lhe fizesse tal pergunta, mas lá acabou por dar o seu assentimento antes de desaparecer uma vez mais de cena.

Os rostos à volta do anel tinham-se virado para Barley como flores sedentas de sol.

"Qual é a sua resposta?", perguntei-lhe. Por um momento Barley manteve-se em silêncio. Espreguiçowse, passou com as costas do pulso pela boca, parecia vagamente embaraçado. Encolheu os ombros. Olhou para Ned mas não encontrou os seus olhos, por isso virou-se para mim, com um ar absolutamente desorientado. Em que pensava, se é que pensava nalguma coisa? Pensaria que dizer "não" equivaleria a dizer adeus a Goethe para sempre? A Goethe ou a Katya? A sua percepção teria chegado assim tão longe? Não consegui até hoje perceber o que se passaria na sua cabeça. Limitava-se a um sorriso estranho, aparentemente confuso.

"E que é que você acha, Harry? Vamos até ao fim? Que diz o meu porta-voz?”

"O que está em causa é sobretudo o que o cliente diz", respondi-lhe brilhantemente, retribuindo-lhe o sorriso.

"Sem experimentarmos é que não sabemos, não é?" "Parece que sim", retorqui. A sua aceitação resumiu-se àquela pergunta. Não o ouvimos dizer "aceito" ou "concordo" ou "está bem", mas apenas: "Sem expenmentarmos é que não sabemos, não é?”

"Yale é que tem essas sociedades secretas, não sei se está a ver, Harry", explicou-me Bob. "Quer dizer, está mesmo enxameada delas. Se você ouvir falar dos Scull and Bones e dos Scroll and Key, então só ouviu falar da ponta do icebergue. E estas sociedades servem para dar relevo à ideia de equipa. Quando a Harvard, é completamente diferente. Harvard põe o acento no brilhantismo individual. É por isso que a Agência, quando procura recrutas nessas águas, manda os de Yale para trabalhos de equipa e os de Harvard para as operações individuais. Claro que não vou ao ponto de dizer que qualquer homem de Harvard é uma prima donna ou que qualquer homem de Yale segue cegamente a causa. Mas de uma maneira geral é essa a tradição. Você é um homem de Yale, Mr. Quinn?”

"De West Point", respondeu Quinn. Era o fim do dia e a primeira delegação tinha acabado de entrar. Sentámo-nos na mesma sala, a sala do soalho vermelho com a luz do bilhar, à espera de Barley. Quinn sentou-se na cabeceira, Todd e Larry foram sentar-se depois a seu lado. Todd e Larry eram os homens de Quinn. Eram dois homens perfeitos, de físico bem proporcionado, e, para um homem da minha idade, absurdamente jovens.

"O Quinn vem de cima", dissera-nos Sheriton. "Fala com a Defesa, com as grandes empresas, fala com Deus.”

"Mas quem é que o contrata?", perguntara Ned. Sheriton pareceu sinceramente espantado com a questão. Sorriu-lhe como que perdoando um solecismo num estrangeiro.

"Ora, ora, Ned. Parece que o contratamos todos", retorquiu. Quinn tinha um metro e oitenta e cinco de altura, ombros largos e orelhas enormes. Usava o seu fato como se fosse uma armadura. Não ostentava medalhas nem distintivos de posto. O seu posto lia-se-lhe no rosto, no rictus inflexível, nos olhos vazios e sombrios, e no sorriso de enraivecida inferioridade que se apossava dele sempre que estava na presença de civis.

Ned entrou em primeiro lugar, só depois veio Barley. Ninguém se levantou. Do seu lugar deliberadamente humilde no meio dos americanos, Sheriton fez mansamente as apresentações.

Quinn gosta deles brutos e estúpidos, avisara Sheriton. Digam ao vosso homem que não se arme em inteligente. Sheriton estava a seguir o seu próprio conselho.

Era de esperar que fosse Larry a abrir o interrogatório já que era ele o mais extrovertido. Todd tinha um ar virginal, longínquo. Larry, em contrapartida, usava um enorme anel de casamento e uma gravata berrante e ria pelos dois.

"Mr. Brown, vamos ver toda esta história doponto de vista dos seus detractores", explicou com estudada insinceridade. "Para. nós, há dois tipos de espionagem: a verificada e a não-verificada. Gostaríamos de verificar a sua espionagem. É esse o nosso trabalho, é para isso que nos pagam. Por favor não pense que existe qualquer suspeita da nossa parte. Mr. Brown. A análise é uma ciência que nada tem a ver com suspeitas. Temos de respeitar as leis.”

"Temos de imaginar que estamos perante uma amálgama organizada", interrompeu beligerantemente Todd do outro lado. "Fumo.”

Uma pausa divertida, até que Larry, ainda a rir, explicou a Barley que Todd não lhe tinha oferecido um cigarro”: "fumo" era o jargão que usavam para fraude.

"Diga-me uma coisa, Mr. Brown, de quem partiu a ideia de irem a Peredelkino naquele dia de Outono, há dois anos?", perguntou Larry.

"De mim, provavelmente." "Tem a certeza?" "Estávamos bêbedos quando decidimos ir a Peredelkino, mas tenho a certeza absoluta de que a proposta foi minha.”

"O senhor bebe muito, não bebe, Mr. Brown?", disse Larry. As mãos enormes de Quinn agarravam num lápis como se o quisessem estrangular.

"Razoavelmente." "E a bebida fá-lo esquecer coisas?" "Por vezes. “

"Outras vezes não. No fim de contas, até dispomos de longas descrições dos seus diálogos com Goethe e estavam ambos completamente embriagados. Já tinha estado em Peredelkino antes desse dia?”

"já." "Quantas vezes?" "Duas ou três vezes. Talvez quatro." "Visitou amigos dessas vezes?" "Sim, visitei amigos", retorquiu Barley, apoucando automaticamente o americanismo "Amigos soviéticos?" "Claro." Larry fez uma pausa tão longa que "amigos soviéticos" quase soou a confissão.

 

“ No original, "Smoke" tanto pode ser simplesmente o substantivo "Fumo" como um convite para fumar. (N. do T.)

“ O americanismo de Larry. De facto, Larry usa a forma "visit with" e Barley corrige-o: "I visited friends, yes." (N. do T.)

 

"Importa-se de identificar esses amigos?" Barley identificou os amigos. Um escritor. Uma poetisa. Um burocrata da literatura. Larry tomou nota dos nomes, movendo lentamente o lápis para impressionar. Sorrindo enquanto escrevia, enquanto os olhos sombrios de Quinn continuavam a fitar fixamente Barley do outro lado da mesa.

"Portanto, no dia do seu passeio a Peredelkino", recomeçou Larry, "nesse Dia Um, como lhe podemos chamar, não lhe ocorreu tocar às campainhas de alguns dos seus velhos conhecidos, ver se estavam ou não estavam, cumprimentá-los?", perguntou Larry.

Barley parecia não saber se isso lhe tinha ou não ocorrido. Encolheu os ombros, cedeu ao tique de passar com as costas da mão pela boca, enfim, gestos que normalmente indiciariam uma testemunha insincera.

"Não queria sobrecarregá-los com o Jumbo, creio. Éramos demais. Realmente não me ocorreu.”

"Certo", disse Larry. Três explicações, lamentei. Três, onde uma teria bastado. Olhei para Ned e verifiquei que estava a pensar o mesmo que eu. Sheriton estava ocupado em não pensar nada. Bob estava ocupado com o seu papel de assistente de Sheriton. Todd murmurava qualquer coisa ao ouvido de Quinn.

"Então também foi sua a ideia de visitar o túmulo de Pasternak, Mr. Brown?", inquiriu Lárry, como se fosse uma ideia capaz de orgulhar qualquer um.

"Campa", corrigiu-o Barley irritado. "Sim, foi minha. Não creio que os outros soubessem onde estava sepultado Pastemak.”

"E a ideia de visitar a dacha de Pasternak também foi sua, creio." Larry consultou as suas notas. "Se os sacanas ainda não a deitaram abaixo”. " Deu à palavras sacanas um acento especialmente ofensivo.

"É verdade, também fui eu que me lembrei da dacha." "Mas não visitaram a dacha, pois não? Nem sequer viram se a dacha ainda existia. A dacha de Pasternak desapareceu por completo do programa. “

"Estava a chover", disse Barley. "Mas tinham carro. E motorista, Mr. Brown. Ainda que um tanto mal-cheiroso.”

Larry sorriu de novo e abriu a boca o suficiente para que a ponta da língua acariciasse o lábio superior. Depois fechou a boca e permitiu-se uma nova pausa para pensamentos decerto perturbantes.

"Portanto, Mr. Brown, foi você que organizou a festa, foi você que definiu os objectivos da jornada", prosseguiu Larry num tom comicamente triste. "Conduziu a viagem, conduziu o grupo até ao túmulo. Campa, desculpe. Foi consigo, e não com qualquer outro, que Mr. Nezhdanov falou quando desciam a colina. Perguntou-lhe se era americano. Você respondeu-lhe, "Não, graças a Deus sou britânico".

Ninguém se riu. Nem Larry sorriu sequer. Quinn tinha um ar de quem estava a dissimular um ferimento abdominal.

"Foi também você, Mr. Brown, que, por mero acaso, foi capaz de citar o poeta e de falar por todos os outros durante uma discussão sobre os seus méritos e que, quase por mágica, se isolou dos seus companheiros e se viu sentado durante o almoço ao lado do homem a quem chamamos Goethe. "Apresentamos-lhe Goethe, o nosso distinto escritor." Mr. Brown, temos um relatório de campo proveniente de Londres, envolvendo a funcionária dos Penguin Books, Magda. Sabemos que foi obtido discretamente, em circunstâncias sociais não-suspeitas, por um terceiro não-americano. Magda ficou com a impressão de que você quis ficar com Nezhdanov só para si. É capaz de nos explicar isso?”

Barley desaparecera uma vez mais. Não da sala mas da minha compreensão. Deixara as suspeitas para quem as quisesse imaginar e entrara nos seus próprios domínios da realidade. Foi Ned, e não Barley, que, incapaz de se conter perante a revelação daquela velhacaria da Agência, produziu a desejada explosão.

"Ora vejamos, Larry, ela não ia dizer ao seu informador que estava desejosa de passar a tarde com o namorado na cama, pois não?”

De novo essa resposta bastaria se Barley não tivesse acrescentado a sua. "Talvez eu os tivesse mesmo despachado", concedeu Barley numa voz longínqua, mas perfeitamente amistosa. "Ao fim de uma semana de feira do livro, qualquer criatura normal fica farta de editores para toda a vida.”

No sorriso de Larry havia uma inclinação de dúvida. "Muito bem, muito bem", disse, e abanou a sua bonita cabeça antes de passar a testemunha a Todd.

Ainda não, visto que foi Quinn quem usou da palavra. Não falava para Barley, nem para Sheriton, nem tão pouco para Clive. De facto não falava para ninguém. Falava. A boquinha até então subjugada pelo silêncio contorcia-se agora como enguia presa ao anzol.

"Este homem foi à batedeira?" "Temos problemas de protocolo, sip>, explicou Larry, olhando de relance para mim.

Ao princípio, e muito honestamente, não compreendi. Larry tinha de explicar.

"É aquilo a que costumávamos chamar detector de mentiras. Um polígrafo. Batedeira no nosso jargão. Creio que vocês não usam essas máquinas.”

"Usamos em certos casos", emendou Clive afavelmente atrás de mim, antes de eu ter tempo de responder. "Em casos em que é absolutamente necessário. Estão a tornar-se moda.”

Só então é que o perturbado e introspectivo Todd deu início à sua intervenção. Todd não era um homem prolixo; à primeira vista, aliás, não era coisa nenhuma. Mas eu já tinha conhecido uns quantos advogados como ele: homens que fazem uma cruzada da sua falta de charme e que aprendem a usar a inabilidade verbal como um autêntico cacete.

"Descreva a sua relação com Niki Landau, Mr. Brown." "Não tenho relação nenhuma com ele", retorquiu Barley. "Fomos declarados dois estranhos até ao dia do Juízo Final. Tive de assinar um papel dizendo que nunca falaria com ele. Pergunte ao Harry.”

"Antes desse papel". "Partilhávamos uns jarros." "Partilhavam o quê?" "Bebíamos uns copos juntos. Ele é um tipo simpático." "Mas não é da sua classe social, pois não? Não esteve em Cambridge e Harrow, quer-me parecer.”

"E que diferença é que isso faz?" "Reprova a estrutura social britânica, Mr. Brown?" "Sempre me-pareceu, meu velho, que a estrutura social britânica era um dos desastres mais gritantes do mundo moderno.”

"Ele é um tipo simpático. Isso significa que gosta dele?" "Sim, o Niki é um camaradinha particularmente irritante, mas mesmo assim gosto dele. Ainda gosto.”

"Nunca fez negócios com ele? Qualquer negócio?" "Ele trabalhava para outras casas, eu era patrão de mim mesmo. Que negócios poderíamos fazer?”

"Nunca lhe comprou nada?" "Porque haveria de comprar?" "Gostaria de saber, por favor, de que falavam você e Niki Landau nas ocasiões em que se encontravam sozinhos, frequentemente em capitais comunistas. “

"Ele vangloriava-se das suas conquistas. Gostava de boa música. Clássica.”

"E nunca lhe falou da irmã dele? Da innã que ainda vive na Polónia?”

"Não". "E nas vossas conversas, ele nunca manifestou o seu ressentimento em relação à forma alegadamente errada como as autoridades britânicas trataram o pai dele?”

"Não. “

"Quando foi a sua última conversa íntima com Niki Landau, por favor?”

Barley permitiu-se finalmente exprimir uma certa irritação. "Quem, o ouvir, há-de dizer que eu e Nffi somos um casal de bichas", queixou-se.

O rosto de Quinn permaneceu impassível. Provavelmente tinha concluído o mesmo antes de Barley.

"A questão foi quando, Mr. Brown", disse Todd, num tom que sugeria que já não dispunha de muita paciência.

"Frankfurt, creio. O ano passado. Com umas raparigas no Hessischer Hof.”

"Isso foi na feira do livro de Frankfurt?" "Meu velho, a gente não vai a Frankfurt para se divertir." "Desde então não falou com jLandau?" "Que me lembre, não." "Não terá falado com ele por acaso na feira do livro de Londres na Primavera passada?”

Barley pareceu mergulhar em profunda reflexão. "Ah, pois claro! Stella! Tem razão!”

"Como?" "O Niki tinha conhecido uma rapariga que trabalhava para mim a Stella. Decidiu que gostava dela. Na realidade ele gostava de todas. Gostava de mostrar que era um garanhão. E queria que eu os apresentasse.”

"E você apresentou-os?" "Tentei." "Quer dizer, você engatou para ele. É como se fosse o chulo de Stella, não é verdade?”

"Precisamente, meu velho." "E em que é que isso deu?" "Eu convidei-a para um copo no Roebuck às seis horas. O Roebuck é um bar que fica a dois passos do escritório. O Niki apareceu, ela não.”

"De maneira que você ficou sozinho com o Landau, não é? Frente a frente?”

"Exacto. Frente a frente." "De que falaram?" "Da Stella, creio. Do tempo. De tudo e de nada, suponho." "Mr. Brown, tem ou teve algum relacionamento com antigos cidadãos soviéticos que se encontrem no Reino Unido?”

"Encontro-me com o adido cultural de vez em quando. Quando ele se dá ao luxo de responder, o que não sucede muitas vezes. E se algum escritor soviético nos visita e a Embaixada dá uma festa, normalmente apareço. “

"Sabemos que gosta de jogar xadrez num certo café da zona de Cainden Town, Londres.”

"E então?" "Esse café não é frequentado por exilados russos, Mr. Brown?" Barley levantou a voz mas manteve-se calmo. "Ora, conheço o Leo, que é um tipo que gosta sempre de partir de uma posição fraca. No xadrez, claro. E o Josef, que é o contrário do Leo, pois ataca tudo o que mexa. Não vou para a cama com eles e não negoceio segredos com eles.”

"Você tem uma memória muito selectiva, não tem, Mr. Brown? Tendo em conta as descrições extremamente pormenorizadas de outros episódios e pessoas, parece que tem.”

Barley não reagiu logo, o que tornou a sua resposta ainda mais devastadora. Por um momento pareceu mesmo que nem ia responder; a tolerância de que estava agora tão profundamente animado parecia dizer-lhe que era melhor não se dar ao incómodo de uma reacção. Mas tal não aconteceu.

"Meu velho, eu lembro-me do que é importante para mim. Se não tenho uma cabeça tão porca como a sua, o problema é seu. “

Todd corou. E continuou corado por muito tempo. O sorriso de Larry abriu-se, ia quase de uma orelha à outra. Quinn tinha posto uma carranca de sentinela. Clive não tinha ouvido nada.

Mas Ned gozava que nem um preto e mesmo Russel Sheriton, mergulhado num sono de crocodilo, parecia estar a lembrar-se naquele momento de algo vagamente belo, no meio de tantos desapontamentos.

Nessa mesma noite, enquanto passeava pela praia, dei com Barley e dois dos seus guardas, longe dos olhos da mansão, atirando seixos para ver qual deles conseguia dar mais saltos sobre as águas...

"Ganhei! Ganhei!", ouvi-o gritar, endireitando-se e lançando os braços para as nuvens.

"Os mulás acham que anda heresia no ar", declarou Sheriton, oferecendo-nos o último ponto da situação. Barley não estava presente: alegara uma dor de cabeça e pedira que lhe levassem uma omeleta. "A maior parte destes tipos apostaram e muito na necessidade de uma margem de segurança. Isso implica um aumento das despesas militares e o desenvolvimento de um qualquer novo sistema, por muito louco que ele seja, de maneira a que a indústria de armamentos possa viver em paz e prosperidade nos próximos cinquenta anos. Se eles não dormem com os fabricantes de armas, pelo menos comem à mesma mesa, disso não tenho dúvida. A Ave Azul veio contar-lhes uma história muito triste.”

"E se essa história for a verdade?", perguntei. Sheriton, com um ar pesaroso, serviu-se de mais uma porção de tarte de noz-pecã. "A verdade? Que os soviéticos não estão à altura? Que eles estão fartos de cortar nos custos e que os bufões em Moscovo não sabem metade das más notícias porque os cientistas bufões os enganam para ganharem os seus relógios de ouro e terem caviar de graça? Acha que é essa a verdade?" Meteu à boca um bocado enorme de tarte que não lhe alterou minimamente a forma do rosto. "Acha que não têm sido feitas comparações desagradáveis?" Serviu-se do café e prosseguiu. "Sabe qual é a pior coisa para os nossos neanderthais democraticamente eleitos? A pior de todas? São as implicações que tudo isto tem contra nós. Moribundo do lado soviético significa moribundo do nosso lado. Os mulás odeiam isso. E os fabricantes também." Abanou a cabeça num jeito reprovativo. "Claro que não gostam de ouvir dizer que os soviéticos não sabem fazer fuel sólido a partir de merda, que os motores dos seus mísseis não funcionam: que os erros de aviso rápido dos soviéticos são piores do que os nossos, ou que a sua artilharia pesada nem consegue sair do canil, ou que os cálculos da nossa espionagem são ridiculamente exagerados. Tudo isso são para os nossos mulás vibrações muito negativas.” Por um momento, pareceu reflectir acerca da inconstância dos mulás. "Como é que podemos vencer a corrida aos armamentos, se o único sacana que a disputa somos nós mesmos? A Ave Azul significa uma ameaça permanente. Imensos privilegiados extremamente bem pagos correm o sério risco de ficar sem o seu ganha-pão e tudo por causa da Ave Azul. Você quer a verdade, pois a verdade é esta.”

"Então porquê arriscar?", objectei. "Se a coisa não é popular, porquê insistir nela?”

E de repente fiquei sem saber onde me meter. Não, é muito frequente o velho Palfrey conseguir parar uma conversa e levar todas as cabeças a virarem-se para ele espantadas. E não era essa a minha intenção nesse momento. No entanto, Ned e Bob e Clive fitavam-me como se eu tivesse perdido a razão, e os jovens de Sheriton eram dois, se bem me lembro puseram os garfos no prato e começaram a limpar os dedos aos guardanapos, sem se darem conta de que estavam a fazer exactamente os mesmos gestos.

Apenas Sheriton parecia não ter ouvido. Tinha decidido que, no fim de contas, uma pequena dose de queijo não lhe faria mal. Puxara o carrinho para si e examinava atentamente os produtos em exposição. Mas nenhum de nós acreditou que era no queijo que estava a pensar. Para mim, era evidente que estava a ganhar tempo enquanto pensava se me havia de responder e como.

"Harry", começou com todo o cuidado, dirigindo-se não a mim mas a uma dose de Danish Blue. "Harry, juro-lhe por Deus que tem à sua frente um homem que ama a paz e a fraternidade. Com isto quero dizer que a minha grande ambição é malhar nos falcões do Pentágono tanto e tão pouco que eles nunca mais possam dizer ao Presidente dos Estados-Unidos que vinte coelhos fazem um tigre ou que qualquer pescador de sardinha a três milhas do seu porto é um submarino nuclear soviético disfarçado. Também não me apetece ouvir mais conversa de chacha acerca de cavarmos buraquinhos no chão para sobrevivermos à guerra nuclear. Eu sou um adepto da glasnost, Harry. Fiz algumas descobertas acerca de mim mesmo. Nasci adepto da glasnost, os meus pais são glasnósticos há muito tempo. Para mim, o glasnosticismo é uma forma de vida. Eu quero que os meus filhos vivam. Cite-me e que lhe faça bom proveito.”

"Não sabia que tinha filhos", disse Ned. "Em sentido figurado", retorquiu Sheriton. Mas não havia dúvida que, lá no fundo, Sheriton estava mesmo a contar-nos uma versão verdadeira do seu novo eu. Ned apercebeu-se disso, eu também. E se Clive não se apercebeu, era apenas porque abreviava deliberadamente o seu poder de percepção. Era uma verdade que não residia tanto nas suas palavras, que por vezes escondiam mais do que expressavam os seus sentimentos, mas sobretudo numa nova e irreprimível humildade que não existia no homem desapiedado que conhecêramos em Londres. Aos cinquenta anos, após um quarto de século de defesa da Guerra Fria, Russel Sheriton, para usar a expressão de Walter, fazia o balanço de meia vida e punha-a em causa. Nunca me tinha passado pela cabeça que poderia gostar daquele homem, mas a verdade é que nessa noite comecei a gostar dele.

"O Brady é muito bom", avisou-nos Sheriton com um bocejo ao retirar-se para o seu quarto. "Até a relva a crescer ele é capaz de ouvir. “

E Brady era de facto muito bom, era de facto brilhante a todos os níveis.

Isso notava-se imediatamente no seu rosto inteligente, na imobilidade tranquila de um corpo habituado à cortesia. O antigo casaco desportivo que trazia vestido era mais velho do que ele. Quando o vi entrar na sala, percebi que lhe dava muito prazer não ser uma criatura espectacular. O seu jovem assistente usava também um casaco desportivo e, tal como o mestre, exibia um desalinho verdadeiramente chique.

"Parece que você fez um bom trabalho, Barley", disse afavelmente Brady numa cadência sulista, colocando a sua pasta sobre a mesa. "A propósito, já alguém lhe agradeceu? Mas deixe-me apresentar primeiro. Chamo-me Brady e já sou demasiado velho para andar a inventar nomes. Apresento-lhe o Skelton, o meu assistente. Obrigado, Barley.”

Estávamos de novo na sala de bilhar, mas sem a mesa e as cadeiras de costas muito direitas de Quinn. Em vez disso, pudemos sentar-nos comodamente em fofas almofadas. Havia no ar ameaças de tempestade. As vestais de Randy tinham baixado os estores e acendido as luzes. O vento começou a soprar mais forte e a mansão desatou a tilintar como garrafas tremendo numa prateleira. Brady abriu a sua pasta, uma jóia dos tempos em que as pastas eram pastas. Como professor universitário que ocasionalmente era, usava uma gravata azul às pintinhas.

"Barley, terei lido algures, ou terei sonhado, que você em tempos tocou saxofone na banda do grande Ray Noble?”

"Era um rapaz imberbe nesses tempos, Brady." "O Ray não foi mesmo o homem mais simpático e terno que você alguma vez conheceu? E a melhor música de todos os tempos não foi a dele?, perguntou Brady como só os sulistas sabem.

"O Ray era um princípe", retorquiu Barley, cantorolando depois alguns compassos de "Cherokee.”

"Pena ter aquelas ideias políticas", disse Brady, sorrindo. "Tentámos todos tirar-lhes aqueles disparates da cabeça, mas o Ray seguia sempre em frente. Alguma vez jogou xadrez com ele?”

 "Sim, na realidade joguei." "Quem ganhou?" "Ganhei eu, creio. Não tenho a certeza. Sim, fui eu." Brady sorriu. "Eu também lhe ganhei." Skelton sorriu também. Puseram-se depois a falar de Londres e da parte de Hampstead onde Barley vivia. "Barley, eu adoro essa zona. Hampstead corresponde perfeitamente à minha ideia de civilização." Depois, falaram dos grupos em que Barley tinha tocado. "Meu Deus, não me diga que esse tipo ainda mexe! Se eu tivesse a idade dele, nem me atrevia a comprar bananas verdes!" Falaram por fim de política britânica e Brady tinha imensa curiosidade em saber o que é que Barley achava de tão mau em Mrs.

Barley parecia ter de reflectir sobre o assunto e de início não foi capaz de sugerir fosse o que fosse. Talvez tivesse reparado nos olhos de Ned, que o avisavam claramente.

"Ora, Barley, não é culpa dela que a oposição não preste, ou é?" "Essa mulher é uma maldita duma Vermelha", rosnou Barley, para grande, e naturalmente secreto, alarme do lado britânico.

Brady não se riu, apenas ergueu as sobrancelhas e aguardou, como todos nós.

"É uma ditadura aprovada por eleições", prosseguiu Barley, reunindo calmamente forças. "Mil pernas é bom, duas pernas não presta. Deus abençoe a grande empresa e que se lixe o indivíduo.”

Barley parecia estar com vontade de dissertar sobre esta tese, mas de repente mudou de ideias e, para nosso alívio, refreou-se.

No entanto aquele era um começo perfeitamente agradável e, ao fim de dez minutos, Barley devia sentir-se completamente à vontade. Até que, no seu jeito lânguido, Brady decidiu abordar "esta coisa em que você se meteu, Barley" e propôs-lhe que contasse com as suas próprias palavras tudo o que se passara, "mas concentrando-se especialmente naquele histórico face-a-face que vocês os dois tiveram em Leninegrado.”

Barley fez o que Brady lhe pediu, e embora me pareça que o ouvi tão atentamente como Brady, a verdade é que não encontrei na narrativa nada de contraditório ou de particularmente revelador em relação ao que tinha sido gravado.

E, à primeira vista, Brady pareceu também não ter ouvido nada de surpreendente, já que quando Barley acabou, lhe retorquiu com um sorriso tranquilizador e um "muito bem, Barley, obrigado", numa voz de aparente aprovação. Os seus dedos magros puseram-se então a vasculhar nos papéis da pasta. "A pior coisa que há no trabalho de espião sempre me pareceu que era a espera, o fazer tempo, as voltas que se tem de dar para fazer tempo. Deve ser um bocado como o que acontece com os pilotos de aviões na guerra", disse, seleccionando uma folha e examinando-a. "Num momento estamos muito sossegados em casa a comer a galinha do jantar e no momento seguinte temos de enfrentar todos os medos do mundo a oitocentas milhas à hora. E logo a seguir voltamos a casa mesmo mesmo a tempo de lavar a louça." Parecia ter encontrado o que procurava. "Foi assim que você se sentiu, Barley, perdido e abandonado na enorme Moscóvia?”

"Em parte. " "Às voltas à espera de Katya? Às voltas à espera de Goethe? Parece que você se fartou de dar voltas depois da sua mini-conferência com Goethe.”

Empoleirando os óculos na ponta do nariz, Brady estudou o papel antes de o passar a Skelton. Sabia que a pausa era propositada, mas mesmo assim assustei-me, e creio que Ned também se assustou, já que deu uma olhadela para as bandas de Sheriton e depois lançou um olhar ansioso para Barley. "De acordo com os nossos relatórios obtidos in loco, você e Goethe separaram-se por volta das catorze horas e trinta e três minutos, hora de Leninegrado. Já viu a fotografia? Skelton, mostre-lhe a fotografia, se faz favor.”

Todos nós a tínhamos visto. Todos, excepto Barley. Mostrava os dois homens no jardim de Smolny logo após a despedida. Goethe estava de costas. As mãos de Barley surgiam ainda suspensas depois do abraço de despedida. No canto superior podia ler-se a hora electronicamente determinada: catorze horas, trinta e três minutos e vinte segundos.

"Lembra-se das últimas palavras que lhe disse?, perguntou Brady, com ar de quem evocava doces recordações.

"Disse-lhe que o publicava." "Lembra-se das últimas palavras que ele lhe disse?" "Goethe queria saber se deveria procurar um outro ser humano decente. “

"Que raio de despedida", comentou Brady tranquilamente, enquanto Barley continuava a olhar para a fotografia, e Brady e Skelton para ele. "Que fez depois disso, Barley?”

"Regressei ao Europa. Para entregar o material." "Por que ruas seguiu? Lembra-se? "Segui pelo mesmo caminho. Apanhei o eléctrico para a cidade, depois andei um bocado.”

"Esperou muito tempo pelo eléctrico?", perguntou Brady, enquanto o seu acento sulista, pelo menos aos meus ouvidos, se transformava em algo que se aparentava mais com uma imitação do que com um desvio linguístico regional.

"Que me lembre, não." "Quanto tempo?" "Cinco minutos. Talvez mais." Parecia ser a primeira vez que Barley alegava deficiências de memória.

"Estava muita gente à espera do eléctrico?" "Nem por isso. Algumas. Não as contei." "Há eléctricos de dez em dez minutos. A viagem até à cidade demora outros dez. A caminhada até ao Europa, no seu passo, demora outros dez. O nosso pessoal fez e cronometrou todas essas viagens. Dez é o número. Porém, de acordo com Mr. e Mrs. Henziger, você só apareceu no hotel às quinze e cinquenta e cinco. Pelo meio fica um grande buraco, Barley, um buraco no tempo. É capaz de me dizer como vamos preencher esse buraco? Espero que não tenha ido para nenhuma farra. A mercadoria que transportava era demasiado valiosa. Era de esperar que quisesse ver-se livre dela o mais depressa possível. “

Barley estava a ficar desconfiado e Brady deve ter percebido isso, porque o seu hospitaleiro sorriso sulista oferecia-lhe agora um novo tipo de encorajamento, um tipo de encorajamento que dizia "desembuche. “

Quanto a Ned, estava perfeitamente paralisado, com os dois pés colados ao chão, e os olhos fixos no rosto conturbado de Barley.

Apenas Clive e Sheriton pareciam ter jurado que não exibiriam qualquer emoção.

"O que é que andou a fazer esse tempo todo, Barley?", disse Brady.

"Vagueei", respondeu Barley, mentindo muito mal. "Com o caderno de Goethe no saco? O caderno que ele lhe tinha confiado com a sua vida? Vagueou? Mas que raio de tarde que você escolheu para vaguear, Barley. Onde é que foi.”

"Voltei para trás, dei um passeio junto ao rio, onde nós tínhamos estado. Paddy tinha-me dito que não me apressasse, que fizesse horas. Que não fosse a correr para o hotel, que andasse a um ritmo de turista.”

"É verdade", murmurou Ned. "Foram essas as minhas instruções. comunicadas pelos nossos homens em Moscovo.”

"E demorou cinquenta minutos?", teimou Brady, ignorando a intervenção de Ned.

"Não sei quanto tempo demorei. Não olhei para o relógio. Disseram-me para eu não me apressar e eu não me apressei. “

"E não lhe passou pela cabeça que, com um gravador e uma bateria nas calças, e um caderno cheio de material secreto provavelmente de um valor inestimável metido no saco de plástico, a distância mais curta entre os dois pontos só poderia ser uma recta?”

Barley estava a ficar perigosamente irritado mas só ele corria perigo. Se nesse momento tivesse olhado para Ned, e creio que para mim também, teria percebido isso mesmo.

"Brady, você não me está a ouvir, pois não?", retorquiu rudemente. "Já lhe disse. Paddy aconselhou-me a não ter pressa. Foi para isso que me treinaram em Londres, quando andei a dar aquelas voltinhas estúpidas ao quarteirão. Vá devagar, faça horas. Se levar alguma coisa consigo, não se apresse, nunca se apresse. Pelo contrário, faça um esforço para ir devagar.”

Uma vez mais o corajoso Ned fez o que lhe era possível. "Foi isso que lhe ensinaram, de facto", comentou.

Mas enquanto falava era para Barley que continuava a olhar. Brady olhava também para Barley. "De maneira que você andou a vaguear desde a paragem do eléctrico, na direcção da sede do Partido Comunista no Instituto Smolny isto para não falar do Komsomol e de uma série de outros santuários do Partido e com o caderno de Goethe no saco? Porque é que fez uma coisa dessas, Barley? Há pessoal operacional que faz as coisas mais estranhas, eu sei muito bem que é assim, mas o que você fez surpreende-me, parece-me perfeitamente suicida.”

"Mas eu estava a obedecer-a ordens, Brady! Que raio! Estava a fazer tempo! Quantas vezes tenho de lho dizer?”

Esta súbita explosão fez-me concluir que Barley se debatia mais com um dilema do que com uma mentira. Havia demasiada honestidade no seu apelo, demasiada solidão nos seus olhos acossados. E Brady, honra lhe seja feita, pareceu entender isso mesmo, já que não exibia qualquer sinal de triunfo face ao desânimo de Barley, preferindo ajudá-lo a espicaçá-lo.

"Barley, pense um pouco. Repare que um buraco destes levanta imensas suspeitas na cabeça de muita gente", disse Brady. "Começam. logo a vê-lo no gabinete ou no carro de alguém, e depois imaginam que esse alguém fotografou o caderno de Goethe e lhe deu ordens. Fez alguma coisa dessas? Parece que este é o momento adequado para você responder, caso tenha feito uma coisa dessas realmente. É o melhor momento que se pode arranjar, não haverá outro tão bom. “

"Não. “

"Não, como? Não vai responder?" "Não foi isso que aconteceu." "Então sempre aconteceu qualquer coisa. Lembra-se do que é que lhe passou pela cabeça enquanto vagueava?”

"Goethe. Pensava na hipótese de o publicar. Deitar abaixo o templo, já que ele tinha de o deitar abaixo.”

"Que templo, mais exactamente? Deixemos a metafísica de lado um pouco, está bem?”

"Katya. Os filhos dela. Se ele fosse apanhado, arrastá-los-ia com ele. Não sei se alguém tem o direito de fazer uma coisa dessas. Não encontro uma resposta." Portanto enquanto vagueava tentava encontrar uma resposta.”

Talvez Barley tivesse mesmo vagueado pelas ruas de Leninegrado, talvez não tivesse mesmo vagueado nada. Naquele momento estava fechado que nem uma concha.

"Não teria sido mais normal entregar o caderno primeiro e tentar encontrar uma resposta para essas questões éticas mais tarde? Surpreende-me que tenha sido capaz de raciocinar claramente, quando levava uma bomba no saco. Não quero sugerir que as pessoas se comportem 

muito logicamente nessas situações, mas mesmo segundo as leis do ilógico, parece-me que a sua opção o condenava a uma situação extremamente desconfortável. Quer-me parecer que, para além de vaguear, fez mais qualquer coisa. E quer-me parecer que a si também lhe parece.”

"Comprei um chapéu." "Que gênero de chapéu?" "Um chapéu de pele. De mulher." "Para quem?" "Para Miss Coad." "É sua namorada?" "É a governanta do nosso refúgio em Knightsbridge", interrompeu Ned antes que Barley pudesse responder.

"Onde é que o comprou?" "No caminho entre a paragem dos eléctricos e o hotel. Não sei onde é que foi. Numa loja.” "Não comprou mais nada?" "Só o chapéu. Um chapéu." "Quanto tempo demorou nas compras?" "Tive de ir para a bicha. “

"Durante quanto tempo?" "Não sei. “

,"E que mais fez você?" "Nada mais. Comprei só o chapéu." "Está a mentir, Barley. Não é uma mentira grave, mas é uma mentira. Que mais fez, além de comprar o chapéu?”

"Telefonei-lhe." "A Miss Coad?" "A Katya." "De onde?" "De um posto dos Correios." "Qual?" Ned tinha encostado uma mão à testa como se quisesse proteger os olhos do sol. Mas a tempestade estava para durar e para lá da janela tanto o mar como o céu eram um negrume.

"Não sei. Era um sítio grande. Com cabines telefónicas debaixo de uma espécie de galeria em ferro.”

"Telefonou-lhe para o escritório ou para casa?" "Para o escritório. Àquela hora ainda ela estava a trabalhar." "E porque é que não ouvimos esse episódio nas gravações?" "Porque eu desliguei o gravador." "Qual foi o objectivo da chamada?" "Quis certificar-me de que ela estava bem." "Como é que foi a conversa?" "Eu disse está, ela respondeu. Disse-lhe que estava em Leninegrado, que me tinha encontrado com o meu contacto, que os negócios 

estavam a correr bem. Quem ouvisse pensaria que eu estava a falar de Henziger. Katya sabia que eu estava a falar de Goethe.”

"Sim, isso faz sentido", retorquiu Brady com um sorriso de perdão. "Depois eu disse, então adeus, até à próxima feira do livro de Moscovo. Cuide de si, acrescentei. Ela respondeu que sim, que iria cuidar de si. E disse-lhe adeus.”

"Nada mais?" "Disse-lhe também que deitasse for as obras de Jane Austen que eu lhe tinha dado. Expliquei que não era a edição que ela queria. Depois levava-lhe a edição correcta.”

"Porque é que fez isso?" "Os livros tinham perguntas destinadas a Goethe impressas no texto. Questões idênticas às do livro que ele recusou. A Jane Austen era para o caso de eu não me encontrar com ele. Para ela era um perigo. Como ele de qualquer modo não ia responder a essas perguntas, era preferível que ela não ficasse com os livros em casa.”

Nada mexia na sala. Ouvia-se apenas o vento que vinha do mar assolando as persianas e bufando nos beirais.

"Quanto tempo demorou a sua chamada, Barley?" "Não sei." "Quanto pagou?" "Não sei. Paguei no guichet. Dois rublos e qualquer coisa. Falei muito da feira do livro e ela também. Queria ouvir a voz dela.”

Desta feita era Brady quem se calava. "Tinha a sensação de que enquanto falasse tudo estaria normal. De que ela estaria bem.”

Brady fez uma pausa e depois, contra todas as expectativas, deu por encerrado o espectáculo: "portanto foi uma conversa sem importância", sugeriu, enquanto ia devolvendo os seus papéis à pasta do avô.

"Foi isso mesmo", concordou Barley. "Uma conversa sem importância. Ninharias.”

"Como uma conversa entre amigos", sugeriu Brady, fechando a pasta. "Obrigado, Barley. Pode crer que o admiro.”

Sentámo-nos na enorme sala de estar, com Brady no meio, depois de Barley nos ter deixado.

"Trate de se ver livre dele, Clive", aconselhou Brady, numa voz ainda impregnada de cortesia. "É um tipo fraco, pode ser um perigo. E além disso pensa demais. A Ave Azul está a fazer umas ondas que você nem acredita. Os senhores feudais estão em pé de guerra, os generais da Força Aérea estão com um ataque de nervos, a Defesa diz que com ele ainda damos a loja de graça, o Pentágono acusa a Agência de promover mercadoria falsificada. A vossa única esperança é verem-se livres deste homem e arranjarem um profissional, um dos nossos.”

"A Ave Azul não quererá contactos com um profissional", replicou Ned. A raiva fervia-lhe na voz, prestes a transbordar.

Skelton também tinha uma sugestão a fazer. Era a primeira vez que o ouvia falar, e tive de fazer um esforço para entender o seu culto discurso.

"Que se lixe a Ave Azul", disse. "A Ave. Azul não tem de querer ou deixar de querer. É um traidor e além disso é um maluco atacado de culpabilidade e sabe-se lá o que ele é mais! Ponham-no entre a espada e a parede. Digam-lhe que se ele deixar de produzir, o vendemos à gente dele e que a rapariga vai atrás.”

"Se ele se portar bem, de certeza que ganha o jackpot, prometeu Brady. "Um milhão não é problema. Dez milhões é melhor. Se o assustarem o suficiente e lhe pagarem o suficiente, pode ser que os neanderthais acreditem que ele é um homem honesto. Russell, os meus cumprimentos. Clive, foi um prazer. Harry. Ned.”

Com Skelton ao lado, encaminhou-se para a porta. Mas Ned não se tinha ainda despedido. Não ergueu a voz nem deu um murro na mesa. Mas também não calou o brilho soturno nos seus olhos, nem o ultraje na sua voz.

"Brady!" "Teve alguma ideia, Ned?" "A Ave Azul não pode ser maltratada. Nem por eles, nem por vocês. A chantagem até pode parecer uma coisa engraçada nas vossas discussões de gabinete, mas no terreno não vai resultar. Escutem as gravações se não acreditam no que eu digo. O que a Ave Azul busca é o martírio. Não se ameaçam mártires.”

"Então que havemos de fazer com mártires, Ned?" "Barley mentiu-lhe?" "Só dentro do normal." "O Barley é um tipo recto, um tipo honesto. Este caso é meramente de honestidade, de sinceridade, que é uma coisa de que nós estamos arredados. Enquanto você se embrenha em meandros, a Ave Azul corre directa para o seu objectivo. E escolheu'Barley como companheiro de aventura. Barley é a única hipótese de que dispomos.”

"Ele está apaixonado pela rapariga", disse Brady. "É um tipo complicado. É um risco.”

"Ele está apaixonado por centenas de raparigas. Faz propostas a todas. Ele é assim mesmo. Não é ele que pensa demais, vocês é que pensam demais.”

Brady mostrava-se interessado. Não nas suas convicções, se é que as tinha, mas nas de Ned.

"Já me passaram casos de todo o gênero pelas mãos", prosseguiu Ned. "Pelas suas também. Há casos que nunca são claros, mesmo depois de acabarem. Este é um caso límpido desde o primeiro dia, e se alguém o está a ensombrar, somos nós." Nunca o tinha ouvido falar com tanto fervor. Nem Sheriton, que olhava a cena petrificado. Talvez por isso Clive se tenha sentido na obrigação de se interpor com uma charanga de despedida, num linguajar próprio de funcionário público. "Bom, parece que temos matéria para ampla reflexão, Brady. RusselI, temos de discutir isto. Talvez haja um meio-termo. Sinceramente acho que deve haver. Porque não analisamos melhor o caso? Podíamos rever todo o processo, discuti-lo uma vez mais.”

Mas ninguém se tinha ido embora. Brady, apesar de todas as trivialidades que Clive dissera em jeito de despedida, tinha ficado exactamente como estava, e detectei nos seus traços uma generosidade pura que era como que o seu rosto real por detrás da máscara.

"Ninguém nos contratou pelo nosso amor à humanidade, Ned. Não é por isso que nós, os fantasmas”, cá andamos. Sabíamos que era assim quando nos contrataram." Sorriu e prosseguiu. "Suponho que se a decência pura e simples fosse a regra do jogo, era você que dirigia a coisa em vez do Chefe Clive.”

Clive não gostou desta sugestão, mas isso não o impediu de escoltar Brady até ao jipe.

Por um momento pensei que estava sozinho com Ned e Sheriton, até que vi Randy, o nosso anfitrião, parado à porta, com uma expressão de sobranceira incredulidade. "Mas aquele era mesmo o Brady?", perguntou, ofegante. "O Brady que gostava de tudo?”

"Não, era a Greta Garbo", retorquiu Sheriton. "Vá-se embora, Randy. Por favor.”

Poderia descrever-vos o ramerrão de conversas que se seguiu, todas elas idênticas às anteriores, numa espécie de prelúdio ao novo acto marcado para o dia seguinte, enquanto os jovens de Sheriton pegavam de novo em Barley para irem dar um passeio à,praia, e após muita conversa e anedotas e piadas lhe apresentavam o mapa de Leninegrado, e após muitos esforços localizavam a loja onde o chapéu de Miss Coat fora comprado, e descobriam quanto é que ele teria gasto e discutiam onde é que o recibo teria ido parar se é que houvera algum recibo, e se Barley tinha ou não declarado o chapéu na alfândega em Gatwick, e finalmente identificavam o posto dos Correios onde tinha telefonado a Katya.

Poderia descrever-vos o ramerrão das horas que Ned e eu passámos na casa da pesca, tentando ingloriamente encontrar formas de o furtar aos impulsos introspectivos.

Mas não era esse ramerrão de incidentes menores que importava.

O facto essencial era que o afastamento de Barley em relação a nós, senti-o mesmo naquelas circunstâncias não parava de se acentuar desde o momento em que concordara com os interrogatórios. Tinha-se tornado um peregrino solitário. Mas qual era o seu destino? E de onde vinha? E a quem dedicava a peregrinação?

Mas passemos ao acto seguinte, à manhã seguinte uma manhã radiante de sol, creio que terá sido na quinta-feira -, ao preciso momento em que o pequeno avião vindo do aeroporto de Logan nos trouxe Merv e Stafiley, mesmo mesmo a tempo de deglutirem o seu pequeno-almoço favorito: panquecas mais bacon mais xarope puro de bordo.

 

“ No original, spooks", literalmente fantasma, espectro; na gíria da espionagem, significa "espião". (N. do T.)

 

A cozinha de Randy conhecia perfeitamente os seus gostos.

Eram homens rudes, afáveis homens do campo, com rostos de pedra-pomes e mãos enormes, e à chegada mais pareciam um duo de vaudeville, com os seus chapéus de feltro escuros e as suas malas de caixeiros-viajantes que nem a comer largavam e que depois instalaram com todo o cuidado no soalho pintado de vermelho da sala de bilhar.

A profissão tinha dado aos seus rostos os traços da estupidez, mas eram homens do tipo que os nossos próprios Serviços preferiam e preferem soldados rasos francos e directos, leais, sem complicações na cabeça, com um trabalho para cumprir e filhos para alimentar, que amavam o país sem alardes nem rebuliços.

O cabelo de Merv estava reduzido a uma penugem cor de algodão. Stanley tinha as pernas arqueadas e na lapela usava uma espécie de distintivo de lealdade ao país.

"Tanto faz que você seja Jesus Cristo ou uma dactilógrafa com um salário mensal de mil e quinhentos dólares, Mr. Brown", dissera Sheriton enquanto esperávamos na casa de Barley, concluindo assim um rosário de súplicas matreiras. "Pode ser que aquilo seja vodu, ou alquimia, ou coisa de mediums ou leitura de folhas de chá. O que eu sei é que se você não aceita, está feito.”

Clive falou a seguir. Ele conseguia achar razões fosse para o que fosse. "Se ele não tem nada a esconder qual é o problema?", argumentou. "Aquilo é a versão deles da nossa lei dos Segredos de Estado. “

"O que é que o Ned acha?", perguntou Barley. Ned já não era Nedsky. Já só era Ned. Havia um tom de derrota na resposta e nos olhos de Ned que nunca poderei esquecer. O interrogatório de Brady tinha abalado a sua confiança em si mesmo, bem como no seu recruta.

"É a si que cabe escolher", retorquiu sem convicção. E, como se falasse consigo mesmo, acrescentou. "É uma escolha muito, mas mesmo muito desagradável, se quer saber o que eu acho.”

Barley virou-se para mim, exactamente como tinha feito quando lhe perguntei se aceitava os interrogatórios dos americanos.

"Harry? O que é que eu faço?" Porque insistia ele na minha opinião? Não era justo. Creio que o meu ar se assemelhava ao do Ned em constrangimento. Foi o que eu senti naquele momento, embora conseguisse produzir um despreocupado encolher de ombros. "Ou lhes faz a  vontade e vai para a frente ou então manda-os para o diabo que os carregue. A escolha é sua", respondi eu, quase como da primeira vez.

Ou seja, cumpria o eterno papel de advogado. De novo o silêncio de Barley. A sua indecisão transformando-se lentamente em resignação. Longe de nós enquanto olha pela janela à procura do mar. "Bom, façamos votos para que não me apanhem a dizer a verdade", diz.

Levanta-se e abana os pulsos, relaxando os ombros, enquanto nós, feitos mordomos, confirmamos com olhares e acenos furtivos que o patrão aceitou.

Em funções, Merv e Stanley exibiam a presteza respeitosa dos algozes. À hora certa apareceram com um trono que no lado esquerdo tinha um braço ornado com recortes: ou o tinham trazido com eles ou então o trono encontrava-se permanentemente na ilha à sua disposição. Merv instalou-o perto da tomada enquanto Stanley falava com Barley como se fosse seu avô.

"Mr. Brown, numa situação com esta não deve recear qualquer tipo de hostilidade. É nosso desejo que o nosso relacionamento consigo não o perturbe. O examinador não é um adversário, é um funcionário imparcial. Quem faz o trabalho é a máquina. Agradecia agora que tirasse o seu casaco, não precisa de subir as mangas nem de desabotoar a camisa. Obrigado. Prontinho, agora esteja calmo, relaxe-se, isso. “

Entretanto, com a maior delicadeza possível, Merv enfiou no braço esquerdo de Barley uma faixa para a medição da tensão, ajustando-a cuidadosamente à veia. Depois, encheu de ar a faixa até o mostrador marcar cinquenta milímetros, enquanto Stanley, com a devoção de um subalterno diligente, ajustou ao peito de Barley um tubo revestido de borracha com uma polegada de diâmetro, tendo o cuidado de evitar os mamilos para não provocar atrito. De seguida, Stanley colocou-lhe um segundo tubo à volta do abdômen, enquanto Merv enfiou uma dedeira dupla nos dois dedos do meio da mão esquerda de Barley, dedeira com um eléctrodo dentro para determinar o funcionamento das glândulas sudoríferas e a resposta galavanizada da pele e as mudanças da temperatura da pele, sobre as quais um indivíduo, desde que tenha consciência, não tem qualquer controlo pelo menos era isto que pregavam os adeptos da máquina, e o que me pregou antecipadamente Stanley, e assim fiquei elucidado, depois de muitos rogos meus, como se eu fosse um familiar chegado desejoso de saber os pormenores da operação a que um ente querido ia ser submetido. Alguns poligrafistas, Harry, gostam de pôr uma faixa suplementar à volta da cabeça, como se fosse um encefalógrafo. Não é o caso de Stanley. Alguns poligrafistas gostam de gritar e barafustar com as pessoas. O Stanley, não. Stanley reconhecia que muitas pessoas ficavam perturbadas com questões acusatórias, fossem ou não culpadas.

"Mr. Brown, agradecíamos que não fizesse nenhum movimento, rápido ou lento", disse Merv. "Se fizer algum movimento, é possível que todo o sistema se ressinta fortemente, o que implicará a realização de novos testes e a repetição das questões. Obrigado. Em primeiro lugar, gostaríamos de estabelecer uma norma. Por norma entendemos um nível de voz, um nível de resposta física, imagine um sismógrafo, você é a terra, é você que faz tremer a agulha. Obrigado. Responda apenas ou "sim" ou "não", e, por favor, responda sempre a verdade. Paramos sempre ao fim de oito questões, a fim de esvaziarmos um pouco a faixa da tensão arterial, que provoca algum desconforto. Enquanto esvaziamos a faixa, poderemos ter uma conversa normal, mas, por favor, sem graças nem excitações exageradas, sejam de que tipo forem. O seu nome é Brown?”

"Não." "Tem um nome diferente daquele que usa?" "Sim." "É britânico por nascimento, Mr. Brown?" "Sim." "Foi de avião que veio para a ilha, Mr. Brown?" "Sim." "Veio para a ilha de barco, Mr. Brown?" "Não." "Respondeu com a verdade às perguntas que até agora lhe fiz, Mr. Brown?”

"Sim." "Tenciona responder com a verdade a todas as perguntas que restam, Mr. Brown?”

"Sim." "Obrigado", disse Merv, com um sorriso afável, enquanto Stanley esvaziava a faixa. "Estas são as perguntas que consideramos irrelevantes. Casado?”

"Actualmente não. " "Filhos?" "De facto tenho dois." "Rapazes ou raparigas?" "Um rapaz e uma rapariga." "Enfim, um homem sensato. Tudo bem?" Começou a encher de novo a faixa. "Agora vamos passar às relevantes. Esteja calmo. Isso. Isso mesmo.”

Na mala aberta, as quatro garras metálicas espectrais descreviam os seus quatro perfis cor de malva ao longo do papel milimétrico, enquanto as quatro agulhas pretas se agitavam dentro dos seus mostradores. Merv pegara numa pilha de cartões com perguntas e instalara-se a uma mesinha ao lado de Barley. Nem Russel Sheriton tinha sido autorizado a ler as perguntas que inquisidores sem rosto tinham seleccionado em Langley. Nada de intromissões. Os companheiros de aventura de Barley não estavam autorizados a perturbar os poderes místicos da máquina.

Merv falava sem qualquer inflexão. Estou certo de que se orgulhava da imparcialidade da sua voz. Ele era a Marcha do Tempo. Ele era o Controlo de Houston.

"Estou conscientemente envolvido numa conspiração para fornecer informações falsas aos serviços de espionagem da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos da América. Sim, estou envolvido. Não, não estou envolvido.”

"Não." "O meu objectivo é promover a paz entre as nações. Sim ou não?" "Não." "Actuo em conluio com a espionagem soviética." "Não." "Orgulho-me da minha missão a favor do comunismo internacional.”

"Não." "Actuo em conluio com Niki Landau." "Não." "Niki Landau. é meu amante." "Não." "Foi meu amante." "Não." "Sou homossexual. " "Não." Uma pausa, enquanto Stanley esvaziava uma vez mais a faixa. "Que tal vai isso, Mr. Brown? Não lhe faz doer?”

"Nunca dói o bastante, meu velho. Estou-me a dar bem." Reparei que durante as pausas não olhávamos para ele. Olhávamos para o chão e para as nossas mãos, ou então para as árvores que lá fora o vento agitava. Agora era a vez de Stanley. Um tom mais simpático, mas a mesma insipidez mecânica.

"Actuo em conluio com Katya Orlova e o amante dela." "Não." "Tenho conhecimento de que o homem a quem chamo Goethe é um espião soviético.”

"Não." "O material que ele me passou foi preparado pela espionagem soviética.”

"Não." "Sou vítima de uma armadilha sexual." "Não." "Sou vítima de chantagem." "Não." "Sou vítima de coacção.”

"Sim." "Coacção soviética?" "Não." "Ameaçam-me de ruína financeira se não colaborar com os soviéticos. “

"Não." Nova pausa. Era o terceiro assalto e era a vez de Merv. "Menti quando disse que tinha telefonado a Katya Orlova de Leninegrado.”

"Não." "De Leninegrado telefonei ao meu controlador soviético e contei-lhe a minha discussão com Goethe.”

"Não." "Sou amante de Katya Orlova." "Não." "Já fui amante de Katya Orlova." "Não." "Estou a ser vítima de chantagem em consequência da minha relação com Katya Orlova.”

"Não." "Até agora respondi sempre a verdade." "Sim." "Sou um inimigo dos Estados Unidos da América." "Não." "O meu objectivo é minar a capacidade de resposta militar dos Estados Unidos.”

"Importa-se de me repetir essa, meu velho?" "Pára", disse Merv, e Stanley, de serviço à mala, parou, enquanto Merv anotava qualquer coisa a lápis'no papel milimétrico. "Não quebre o ritmo, Mr. Brown, por favor. Há pessoas que fazem isso de propósito quando querem evitar uma pergunta que não lhes agrada. “

Quarto assalto, de novo Stanley. As perguntas sucediam-se monótonas e era evidente que só acabariam quando atingissem o nadir da vulgaridade. Os "nãos" de Barley tinham-se tornado um ramerrão de fundo, tinham ganho uma passividade escarninha. Barley continuava sentado na mesma posição em que o tinham colocado. Nunca o vira tão quieto durante tanto tempo.

Fizeram nova pausa mas Barley já não descansava entre os assaltos. A sua calma estava a tornar-se insuportável. Tinha o queixo erguido, os olhos fechados e parecia sorrir, só Deus sabia de quê. Por vezes o seu "não" não deixava acabar a pergunta. Por vezes aguardava tanto tempo que os dois homens paravam e olhavam para ele, um junto dos mostradores, o outro de cartões na mão; parecia-me que, nesses momentos, o que eles sentiam era a ansiedade do torturador, o medo de que tivessem abusado da vítima. Até que o "não" voltava a cair, nem mais alto nem mais baixo que os outros, apenas uma carta que se atrasara nos correios.

De onde lhe vem o estoicismo? Não, não, não a tudo. Porque se senta ali como um homem que se prepara para suportar as indignidades da velhice, mansamente repetindo "não"? Que significa essa mansidão, não, sim, não, não, até à hora do almoço, quando o tirarem da máquina?

Intimamente, numa outra zona de mim mesmo, creio que conhecia a resposta a estas perguntas, ainda que naquele momento não a conseguisse traduzir em palavras. E a resposta era que Barley não estava pura e simplesmente lá. O seu cenário não era a máquina: eram outras paragens.

Espiar é esperar. Esperámos três dias, tantas horas quantos os meus cabelos brancos. Tínhamo-nos distribuído de acordo com as nossas posições hierárquicas: Sheriton fora com Bob e Clive para Langley; Ned ficara com o seu homem na ilha, e Palfrey permaneceria com eles, à espera não se sabia do quê, excepto que era um mistério. Nessa altura já eu odiava a ilha e suspeitava que Ned e Barley também a odiavam, embora Ned estivesse já tão esquivo quanto Barley. Ganhara uma expressão ausente, um ar abatido. Algo mexera com o seu orgulho.

Portanto, esperámos. E jogámos xadrez sem convicção, raro foi o jogo que concluímos. E escutámos as dissertações de Randy acerca do seu iate. E ansiámos pelo toque do telefone. E escutámos os gritos dos pássaros e a pulsação do mar.

Foi um tempo de loucos este tempo de espera e toda a estranheza daquele local isolado, com os seus céus furiosos e as suas tempestades e os seus recantos de idílica beleza, contribuiu ainda mais para a loucura desses dias. Uma "masmorra, de nevoeiro", como Randy lhe chamava, caiu sobre a ilha e com ela um medo irracional de que de facto fosse uma masmorra, de que nunca mais conseguíssemos sair dali. O nevoeiro levantou mas nós continuámos na ilha. A intimidade a que éramos obrigados deveria ter-nos aproximado, mas tanto Ned como Barley se refugiavam nos seus reinos: Ned, no seu quarto, Barley, fora de casa. Mesmo que chovesse a cântaros sobre a ilha, era certo que, se chegasse à janela, o veria às voltas no penhasco, com o impermeável vestido, levantando os joelhos como que em luta com sapatos demasiado desconfortáveis. Certa vez dei com ele jogando um cricket solitário na praia, com Edgar, o guarda. O taco era um bocado de madeira que dera à costa, a bola era uma bola de ténis. Quando fazia sol, punha um velho boné azul de marinheiro, um boné que tinha encontrado num baú da casa. Usava-o com uma expressão severa, os olhos sonhando colónias por conquistar. Certa vez, Edgar apareceu com um velho cão rafeiro que tinha descoberto não sei onde e o cão serviu-lhes de parceiro em correrias. Num outro dia disputava-se uma regata junto à costa: ao longe, um anel de um sem número de barcos à vela fazia lembrar uma dentadura minúscula e muito  branca. Barley não desprendia os olhos dos barcos, aparentemente deliciado com aquela festa branca, enquanto Edgar, a pouca distância, o observava.

Está a pensar em Hannali, pensei. Está à espera que a vida lhe traga o momento da escolha. Só muito mais tarde me ocorreu que há pessoas que seguem vias completamente diferentes para tomar uma decisão.

A minha última imagem da ilha tem os traços distorcidos de um sonho. Tinha falado ao telefone com Clive apenas duas vezes, e duas vezes, para ele, eram praticamente nada. Numa dessas vezes, quis saber "como é que os seus amigos se estão a portar"; soube depois que tinha feito exactamente a mesma pergunta a Ned. Da outra vez, pediu-me que lhe descrevesse os arranjos a que tinha chegado tendo em vista a indemnização a pagar a Barley, incluindo o cheque a pagar à editora. Queria saber ainda se o dinheiro viria dos nossos próprios fundos ou se seria necessário recorrer a verbas extra-orçamento. Como tinha algumas notas comigo, pude esclarecê-lo convenientemente.

É meio-dia e o New York Times e o Washington Pôst acabam de chegar à mesa do jardim de Inverno. Enquanto os leio, oiço Randy aos gritos, pedindo aos guardas que vão avisar Ned porque há uma chamada para ele. Viro-me e vejo Ned entrando pela porta do jardim e correndo pela sala de entrada na direcção da sala das comunicações. Olho para o patamar do primeiro andar e vejo Barley, uma silhueta sem vida. Há nesse patamar algumas estantes velhas e ele acabara de persuadir Randy a abri-las, pois queria dar uma vista de olhos pelos livros. É o patamar com a janela semi-circular, aquela que dá para as hortênsias e para o mar.

Está de pé, de costas, um livro caindo de uma longa mão, perscruta o Atlântico. Tem os pés afastados, a outra mão erguida nele, um gesto habitual a um palmo da cabeça, como que protegendo-se de um possível ataque. Deve ter ouvido tudo os gritos de Randy, os passos apressados de Ned, o estrondo da porta da sala de comunicações a fechar-se. O patamar é de tijoleira e nele os passos ressoam como sinos da igreja rangendo de velhos. Oiço-os agora e vejo Ned sair da sala de comunicações, dar alguns passos e parar.

"Harry! O Barley onde está?" "Aqui", responde calmamente Barley, agarrado ao corrimão "Está aprovado, Barley!", grita Ned, com o júbilo de uma criança. "Pedem desculpa. Falei com o Bob, com o Clive, com o Haggarty. Goethe é o caso mais importante com que eles deparam desde há muitos anos. Oficial. Apostam nele a cem por cento. Já não se olha mais para trás. Você venceu todo o aparato deles.”

Ned já estava habituado às reacções impassíveis de Barley, e por isso não deve ter ficado surpreendido perante a aparente apatia daquele a quem anunciara as boas novas. Barley continuava a mirar o Atlântico. Julgaria ver algum barco minúsculo a afundar-se? Toda a gente vê, toda a gente crê ver. Basta olhar para os mares do Maine 

durante algum tempo e logo os vemos por todo o lado, uma vela, um casco, um grão no horizonte que é afinal a cabeça ou a mão de um sobrevivente, e que logo se esbate sob as ondas para nunca mais emergir. Só ao fim de muito tempo nos damos conta de que os barquinhos,longínquos são afinal águias-pescadoras e alcatrazes na sua rapina rotineira.

Mas quando as emoções o envolvem, Ned é um homem tão susceptível como qualquer outro. É capaz de se sentir magoado. É um daqueles raros momentos em que o profissional deixa cair a máscara e revela o homem precário.

"Vai voltar a Moscovo, Barley! Não era isso o que queria? Voltar?”

E Barley apercebe-se finalmente de que magoou Ned e apieda-se. Dá meia-volta para que Ned possa ver o seu sorriso. "Pois era, meu velho. Claro que era. Era precisamente isso que eu queria.” Entretanto é a minha vez de entrar na sala de comunicações. Randy acena-me para que entre.

"Palfrey? É você?" Sou eu, Palfrey. "Langley vai tomar conta do caso", diz Clive, como se essa fosse a outra parte das boas novas. "Consideram-no como um caso que exige inteira disponibilidade. É o máximo que poderiam fazer", acrescenta num tom definitivo.

"Ah, sim? Parabéns", digo eu e, afastando o auscultador do ouvido, ponho-me a olhar incrédulo para aquele objecto, enquanto a fala arrastada de Clive continua a gotejar os seus sons, como uma torneira que nada nem ninguém consegue fechar. "Quero que elabore imediatamente o texto de um acordo e que prepare um documento global para cobrir as contingências habituais. Consegui--mos domesticá-los, portanto mostre-se firme. Firme mas justo. Estamos a lidar com gente muito realista, Palfrey. Gente pragmática.”

O pingo continua a cair. Não pára. Não parará. Langley compromete-se a pagar a pensão e todos os reajustamentos que Barley terá de introduzir na sua vida, como penhor do seu controlo total sobre as operações. Langley partilhará a exploração da fonte, mas terá direito a voto de qualidade em caso de divergência.

"Eles estão a preparar uma lista de compras enorme. Palfrey, uma jogada em grande. Vão apresentá-la ao Departamento de Estado, à Defesa, ao Pentágono e aos organismos científicos. Vão debater todas as grandes questões do momento e elaborar uma lista a que a Ave Azul deverá responder. Sabem que há riscos mas isso não os detém. Quem não arrisca, não petisca, é isso que eles pensam. É uma posição que exige coragem.”

É a sua voz de burocrata-chefe. Clive tem finalmente a sua índia. "No grande equilíbrio ataque-defesa, Palfrey, nada existe num vácuo", explica arrogante, _citando, disso não tenho dúvida, algo que ouviu uma hora antes. "É um assunto extremamente sensível. Qualquer questão é tão importante como qualquer resposta. Eles sabem isso. Sabem-no muito claramente. O maior tributo que poderiam prestar à fonte reside precisamente no facto de terem elaborado um questionário que não envolve qualquer coacção. É uma coisa que eles não fazem há muitos, muitos anos. Estão a abrir um precedente. Pelo menos em relação aos últimos tempos.”

"O Ned sabe disso?", perguntei-lhe quando consegui falar. "Não pode saber. Nenhum de nós pode. Trata-se de assuntos da maior importância estratégica.”

"O que eu perguntei foi se o Ned sabia que você lhes deu de presente precisamente o homem dele.”

"Quero que venha imediatamente para Langley, a fim de negociar as nossas condições com os seus colegas americanos. O Randy trata do transporte. Palfrey?”

"O Ned sabe?", repito. Clive faz um dos seus silêncios telefónicos, silêncios durante os quais o interlocutor é implicitamente convidado a descobrir todos os erros que terá cometido.

"Ned ficará ao corrente de tudo quando regressar a Londres.

O que não demorará muito. Até lá espero que não lhe diga nada.

O papel da Casa da Rússia será respeitado. Sheriton reconhece o nosso valor. A nossa posição será mesmo reforçada a certos niveis, talvez permanentemente. O Ned só pode ficar grato.”

A imprensa económica britânica foi a que recebeu a novidade com maior júbilo. Casamento com Futuro, intitulava a Booknews algumas semanas depois, num artigo acerca da Feira do Livro de Moscovo. Confirma-se finalmente o acordo entre a Abercrombie & Blair da Norfolk Strect, Strand, e a Potomac Traders, Inc. of Boston, Mass.! Jack Henziger, um empresário de peso, associou-se finalmente a Barley Scott Blair da A. & B., formando uma nova sociedade anónima, a Potomac & Blair, que projecta lançar uma campanha agressiva nos mercados do bloco de Leste, cada vez mais receptivos. "A Potomac & Blair é uma janela virada para o futuro", declara confiantemente Henziger. Muita atenção, pois, à Feira do Livro de Moscovo!

A notícia era acompanhada por uma fotografia enternecedora de Barley e Jack Heriziger cumprimentando-se frente a uma jarra de flores. A fotografia fora tirada pelo fotógrafo dos Serviços no nosso refúgio de Knigtsbridge. Flores de Miss Coad.

Encontrei-me com Hannali um dia depois do meu regresso da ilha. Imaginei que faríamos amor. Parecia-me alta e radiante: é assim que os meus olhos a vêem sempre que passo algum tempo longe dela. Era uma quinta-feira, e por isso ia levar o filho a um charlatão qualquer  com consultório nas traseiras da Harley Street. Nunca gostei muito de Giles, talvez por saber que ele fora concebido no rescaldo do nosso fracasso, logo a seguir a Hannali ter voltado para Derek. Sentámo-nos no maldito café do costume, bebendo um chá bafiento, enquanto ela esperava que a consulta acabasse, e fumava, coisa que odeio. Mas desejava-a e ela sabia.

"Em que local da América?", perguntou ela, como se isso interessasse.

"Não sei. Numa ilha qualquer, cheia de águias-pescadoras e mau tempo.”

"Aposto que não eram águias-pescadoras." "Eram, de facto eram. São muito comuns naquelas paragens." Pela tensão que lhe li nos olhos, soube que também me desejava. "Bom, acontece que tenho de levar o Giles à casa", disse ela, depois de termos lido e relido os pensamentos um do outro.

"Mete-o num táxi", sugeri. Nesse momento começava mais uma das nossas discussões e, com ela, o mútuo esmorecimento.

Katya passaria às dez da manhã de domingo pelo imenso Mezhdunarodnaya, o hotel onde Henziger tinha insistido para que ficassem. Barley esperá-la-ia na rua, junto à entrada. Tanto Wicklow como Henziger, sentados no hall disparatadamente grande do "Mezh", como lhe chamavam os ocidentais, tencionavam assistir ao feliz encontro e à partida para o passeio.

Estava um belo dia e no ar pairavam aromas pronunciadamente outonais. Barley fora para a entrada do hotel demasiado cedo. Enquanto esperava, deambulou no meio das inexpugnáveis limousínes que a todo o momento carregavam e descarregavam líderes do Terceiro Mundo. Até que surgiu o Lada vermelho de Katya, uma explosão de alegria no meio de todo aquele funeral. A mãozinha branca de Anna ondeava à janela como um lenço. Sergey, sentado ao lado da irmã, mais direito que um comissário, segurava na sua rede de pesca.

Para Barley era importante que reparasse nas crianças em primeiro lugar. Tinha pensado nesse pormenor e concluíra que era isso que tinha a fazer, porque já não havia pormenores insignificantes, nada podia ser deixado ao acaso. Só depois de ter saudado entusiasticamente as crianças e de ter feito uma careta a Anna, se permitiu espreitar para os bancos da frente, para o tio Matvey, afundado no assento, com o seu rosto trigueiro reluzente que nem uma castanha e os olhos de marinheiro cintilando sob a pala do boné axadrezado. Fizesse sol ou a maior tempestade, Matvey vestiria sempre as suas melhores roupas porque era preciso honrar aquela visita, aquele distinto inglês: por isso trazia o casaco de sarja e o lacinho e evidentemente as suas melhores botas. Na sua lapela, um alfinete exibia os símbolos da Revolução. Matvey baixou a janela, Barley curvou-se e cumprimentou-o, repetindo incontáveis "olás". Só então se aventurou a olhar para Katya. E nesse momento houve uma espécie de hiato na sua actuação, como se já não soubesse qual era a sua fala ou em que peça estava, ou se de repente se tivesse lembrado de que ela era de facto muito bela. Só ao fim de um momento conseguiu fabricar um sorriso.

Katya, no momento, não mostrou tais reticências. Num ápice saiu do carro. Trazia umas calças largas que, apesar de mal cortadas, lhe ficavam lindamente. Num passo rápido deu a volta ao carro, radiante de felicidade e confiança. "Barley!", exclamou, de braços tão abertos que o seu corpo logo se entregou alegre e despreocupadamente ao abraço dele abraço que, como qualquer rapariga russa bem-comportada, logo tratou de refrear, afastando-se um pouco, mas continuando agarrada a ele, examinando o rosto, o cabelo, o velho traje de passeio de Barley, enquanto tagarelava sem cessar, numa torrente de espontânea camaradagem.

"Que bom. Barley! Que bom vê-lo de novo!", exclamou. "Bem-Vindo à feira do livro, bem-vindo a Moscovo outra vez. Matvey nem queria acreditar no seu telefonema de Londres? "Os ingleses sempre foram nossos amigos", dizia ele. "Ensinaram o Pedro a navegar, e se não fosse isso hoje não teríamos Marinha". O Pedro de que ele fala é Pedro, o Grande. Matvey vive ainda em Leninegrado. Não gosta do belo carro de Volodya? Ainda bem que ele se voltou a apaixonar.

Katya libertou-o e Barley, com ar de idiota feliz que tinha nesse momento, soltou uma exclamação inesperada: "Meu Deus! Quase me esquecia!". Era aos sacos que se referia. Tinha-os deixado encostados a uma parede, junto à porta de entrada. No instante em que reapareceu com os sacos, Matvey fazia um esforço desesperado para sair do carro, pois era sua intenção dar o lugar da frente a Barley. Este, no entanto, não o permitiria.

"Não, não e não! Eu fico perfeitamente bem com os gêmeos! Mesmo assim muito obrigado, Matvey". Dito isto, enfiou-se no carro e moldou o seu longo corpo ao banco de trás, como se estivesse a estacionar um camião articulado, enquanto distribuía as suas prendas e os gêmeos olhavam para ele trocando risinhos temerosos: este gigante vindo do Ocidente, com um corpo tão grande que nem cabe aqui dentro, que nos trouxe chocolates ingleses, e lápis de cera suiços, e livros para colorir, um para cada, e as obras de Beatrix Potter em inglês para os dois, e um belíssimo cachimbo para o tio Matvey que, diz Katya, vai ficar louco de contente, e uma bolsa de tabaco inglês.

E para Katya, tudo aquilo que ela poderia desejar para o resto da sua vida bâtons; e um pullover e perfumes e uma écharpe de seda francesa, demasiado bela para ser usada.

Entretanto, Katya tinha deixado as cercanias do hotel e metera por uma estrada cheia de buracos. Enquanto conversava sobre a feira do livro que abriria no dia seguinte, avançava sem grande destreza entre as crateras alagadas.

Dirigiam-se vagamente para leste, sob um sol dourado, o sol acolhedor de Setembro que conseguia mesmo pôr alguma beleza nos subúrbios da capital. Entraram na triste planície das cercanias de Moscovo, com os seus campos sem dono, igrejas desoladas e transformadores de electricidade com muros à volta. Ao longo da estrada, espalhavam-se cachos de velhas dachas que se assemelhavam a antigas cabanas de praia. Ao ver as suas empenas esculpidas e os pequenos jardins separados por cercas, Barley lembrava-se sempre das estações ferroviárias inglesas de província que tinham povoado a sua juventude. Matvey entretanto envenenava-os a todos com o cachimbo e proclamava o seu êxtase no meio das nuvens de fumo. Mas estava demasiado ocupada com as funções de guia para poder prestar atenção ao tio.

"Para lá daquele monte fica a fundição de tal-e-tal, Barley. Aquele edifício de cimento arruinado à esquerda é de uma quinta colectiva." "Sim senhor!", disse Barley. "Sensacional! Apesar de tudo, temos um belo dia à nossa frente!”

Anna tinha espalhado os lápis pelo colo e descobrira já que se molhasse as pontas eles deixavam rastos húmidos de tinta. Sergey ordenava-lhe que metesse os lápis na lata e Barley procurava instaurar a paz desenhando animais para ela colorir, mas a verdade é que as estradas de Moscovo não são nada generosas para com os artistas.

" Verde? Verde, não, sua patetinha", disse-lhe Barley. "Alguma vez se viu uma vaca verde? Katya, por amor de Deus, a sua filha pensa que as vacas são verdes.”

"Ah, a Anna é a pessoa menos prática que eu conheço!", gritou Katya, rindo-se. Depois virou-se e traduziu para Anna, que se pôs a olhar e a rir para Barley.

E tudo isto tinha de ser ouvido com o pano de fundo constituído pelo monólogo constante de Matvey, pela inesgotável hilariedade de Anna e pelas interjeições nervosas de Sergey, isto para não falar do ribombar angustiado do pequeno motor, até que cada um deixou de ouvir fosse o que fosse a não ser a sua própria voz. De repente saíram da estrada e meteram por um campo relvado, após o que começaram a subir uma colina onde não existia qualquer caminho, o que acicatou ainda mais as gargalhadas das crianças e as de Katya também, enquanto Matvey segurava o chapéu com uma mão e o cachimbo com a outra.

"Está a ver?", perguntou Katya a Barley, vencendo por uma vez a algazarra, como se tivesse encerrado a seu favor uma antiga teima entre amantes, "Na Rússia podemos perfeitamente ir para onde a nossa imaginação nos leva, desde que não invadamos as propriedades dos nossos milionários ou dos funcionários governamentais. “

Subiram a colina com gargalhadas ainda mais turbulentas e mergulharam depois numa cova cheia de relva, após o que subiram uma vez mais, como um barquito corajoso enfrentando as ondas, até chegarem a um caminho que acompanhava um riacho. O riacho passava por um bosque de bétulas e aí o caminho desviava-se um pouco do riacho, rodeando o bosque. Katya conseguiu travar então o carro, manobrando o travão de mão como se estivesse a parar um trenó. Estavam sozinhos no Paraíso com o riacho para brincarem aos diques e um belo local para fazerem o piquenique, e muito espaço para jogarem lapta com o bastão e a bola de Sergey que vinha no porta-bagagens, e o lapta exigia muito espaço porque era preciso que todos ficassem numa grande roda e depois um deles atirava a bola e outro apanhava-a e disparava-a com o bastão. Depressa se verificou que Anna não tinha grande empenho em jogar lapta. A sua ambição era divertir-se o mais possível com o jogo e depois instalar-se na relva para almoçar e namoriscar com Barley. Mas Sergey, o soldado, era um adepto, e Matvey, o marinheiro, um entusiasta. Enquanto preparava o piquenique, Katya explicou a Barley a sublime importância que o lapta teve na evolução da cultura ocidental.

"Matvey garante que o lapta está na origem do basebol americano e do cricket inglês. Crê que emigrantes russos o levaram para Inglaterra. Estou certa de que também acha que foi Pedro, o Grande, quem inventou o lapta.”

"Se isso é verdade, é a morte do Império", comentou Barley com um ar muito sério. Deitado sobre a relva, Matvey continua a tagarelar enquanto fuma com o seu novo cachimbo. Os generosos olhos azuis, devolvidos ao seu glorioso passado em Lenigrado, enchem-se de uma luz heróica. Mas Katya ouve-o como se ouvisse um rádio que não se pode desligar. Apanha uma ou outra coisa, as mais invulgares, mas está surda para tudo o mais. Caminha pela relva, entra no carro, fecha a porta e reaparece de calções, com um saco de oleado na mão, no saco vêm as sanduíches, embrulhadas em papel de jornal. Preparou kotletí frias e galinha fria e pastéis de carne. Salgou pepino e ovos cozidos. Trouxe garrafas de cerveja Zhiguli, Barley trouxe Scotch, com o qual Matvey brinda fervorosamente a algum monarca ausente, talvez o próprio Pedro.

Sergey fica na margem, esquadrinhando as águas com a sua rede.

O sonho dele, explica Katya, é apanhar um peixe e cozinhá-lo para todos os que deles dependem. Anna desenha. Num jeito ostensivo, afasta-se do seu trabalho para que os outros possam admirá-lo. Quer dar a Barley um auto-retrato. Para que ele o pendure no seu quarto em Londres.

"Ela quer saber se você é casado", diz Katya, rendendo-se às perguntas importunas da filha.

"Não, actualmente não, mas sou sempre um homem disponível." Anna faz outra pergunta, mas Katya cora e repreende-a. Cumpridos os seus deveres de lealdade, Matvey descansa sobre a relva, o boné sobre os olhos, tagarelando sabe-se lá o quê, excepto que, seja o que for, para ele é a delícia das delícias.

"Daqui a pouco está a descrever o cerco de Leninegrado", diz Katya com um sorriso terno.

Uma pausa. Olha para Barley. "Agora podemos falar", é o que os seus olhos dizem.

O camião cinzento foi-se embora. A festa tinha acabado. Durante uns bons minutos Barley espreitou inquieto para o camião sem que Katya se apercebesse, fazendo votos -para que fosse um camião amigo, mas desejando de todo o coração que os deixasse sozinhos. As janelas da cabina estavam pretas de pó. Foi com alívio que o viu arrastar-se pesadamente na direcção da estrada e desaparecer depois de vista e da sua cabeça.

"Ah, ele está muito bem", dizia Katya. "Escreveu-me uma carta enorme. Tudo lhe corre o melhor possível. Esteve doente mas já está completamente recuperado, disso estou certa. Tem imensos assuntos para discutir e por isso vai fazer uma visita especial a Moscovo durante a feira, a fim de se encontrar consigo. Quer saber como é que está o livro. Gostaria mesmo de ver o manuscrito já preparado, talvez apenas uma página. Em minha opinião isso seria perigoso, mas o problema é que ele está extremamente impaciente. Quer propostas quanto ao título, quanto às traduções, talvez mesmo quanto a ilustrações. Parece-me que se está a transformar no típico escritor ditatorial. Confirmará tudo muito em breve e arranjará também um apartamento onde se poderão encontrar. Veja lá que quer ser só ele a tratar de todos os pormenores. Parece-me que você tem representado para ele uma influência muito positiva.”

Katya procurava qualquer coisa na mala. Um carro vermelho estacionara do outro lado do bosque de bétulas, mas ela parecia ignorar tudo excepto a sua boa disposição. "Pessoalmente, acho que este trabalho será considerado redundante dentro de algum tempo. Com as conversações sobre desarmamento a avançarem tão rapidamente e a nova atmosfera de cooperação internacional, todas estas coisas terriveis em breve pertencerão ao passado. Claro que os americanos suspeitam de nós, tal como nós suspeitamos deles. Mas quando juntarmos as nossas forças, poderemos chegar ao desarmamento total prevenir todos os conflitos no mundo." Esta era a sua voz didáctica, avessa a qualquer contestação.

"Como poderemos prevenir todos os conflitos do mundo se não tivermos armas para os prevenir?", objectou Barley e a sua temeridade valeu-lhe um olhar friamente agressivo.

"Barley, quer-me parecer que essa é uma resposta tipicamente ocidental e negativa", retorquiu ela, retirando o envelope da mala. "Foi você, não eu, quem disse a Yakov que aquilo de que precisávamos eram experiências com a natureza humana.”

Não tinha selo, reparou Barley. Nem carimbo dos correios. Apenas "Katya" em Cirílico. Parecia a letra de Goethe, mas como sabê-lo?

De repente sentiu como que um calor na cabeça e nos ombros, como uma peçonha, ou uma alergia que começava a atacar.

"De que está ele a recuperar?", perguntou. "Ele estava nervoso quando se encontraram em Lenirregrado?" "Estávamos os dois. Era do tempo", replicou Barley, esperando ainda por uma resposta. Sentia-se também ligeiramente bêbado. Devia ser qualquer coisa que tinha comido.

"Ele estava nervoso porque estava doente. Muito pouco tempo depois do vosso encontro, teve um colapso, tão súbito e grave que nem os seus colegas sabiam onde é que ele se tinha metido. Chegaram a termer o pior. Um amigo de confiança disse-me que chegaram a pensar que tinha morrido.”

"Não sabia que ele tinha amigos de confiança para além de você." "Ele escolheu-me para o representar junto de si. Mas claro que tem outros amigos para outras coisas." Retirou a carta do envelope mas não lha deu.

"Não foi isso que você me disse. Bem pelo contrário", disse Barley com uma voz débil, enquanto continuava às voltas com os seus múltiplos sintomas dedesconfiança.

Katya não ficou nada perturbada com a objecção dele. "Porque havemos de dizer tudo num primeiro encontro? Uma pessoa tem de proteger-se. É normal.”

"Sim, creio que sim", concordou Barley. Anna tinha acabado o auto-retrato e queria que o apreciassem imediatamente. Era uma Anna apanhando flores num telhado.

"Magnífico!", exclamou Barley. "Diga-lhe que vou pô-lo por cima da lareira. Sei exactamente o sítio onde o vou pôr. Há uma fotografia de Anthea esquiando, dum lado, e uma de Hal num navio, do outro. A Anna fica no meio. “

"Ela quer saber que idade tem o Hal", disse Katya. Uma pergunta daquelas obrigava-o a uma série de cálculos. Primeiro teve de se lembrar em que ano nascera Hal, depois em que ano estava; finalmente, procedeu à difícil subtracção entre as duas datas, enquanto lutava com um zumbido que não lhe largava os ouvidos. "Pronto, já está. Tem vinte e quatro anos. Mas receio bem que tenha feito um casamento perfeitamente disparatado.”

Anna estava desapontada. Pôs-se a olhá-los com um ar acusador enquanto Katya reatava a conversa.

"Logo que soube que ele tinha desaparecido, tentei contactá-lo pelos meios habituais, mas sem êxito. Fiquei extremamente deprimida. " Passou-lhe finalmente a carta; nos seus olhos havia uma luz de prazer e alívio. Ao receber a carta, Barley pousou distraidamente a sua mão sobre a dela. Katya não afastou a mão. "Então, há oito dias, fez ontem, sábado, uma semana, ou seja, dois dias depois de você me ter telefonado de Londres, Igor ligou-me para casa. "Tenho uns remédios para si. Venha beber um café comigo que eu dou-lhos." Remédios é o nosso código para carta. Era uma carta de Yakov. Fiquei espantada e muito feliz. Há anos e anos que Yakov não me mandava uma carta. E que carta!”

"Quem é o Igor?", perguntou Barley, falando muito alto para abafar o tumulto que lhe ia na cabeça.

A carta eram cinco folhas de um bom e difícil de obter papel branco, escritas numa letra bonita e regular. Barley não tinha imaginado Goethe capaz de produzir um documento aparentemente tão convencional: Katya só então afastou a mão, mas suavemente.

"O Igor é um amigo do Yakov, de Leninegrado. Estudaram juntos. “

"Muito bem. E que faz ele agora?" Katya ficou irritada com a pergunta e estava impaciente por ouvir a reacção dele à carta, ainda que ele não percebesse nada do que estava escrito. "Ele é um cientista, não sei de que ramo, trabalha para um ministério. Que lhe interessa a si saber o que faz o Igor? Quer que eu traduza a carta ou não?”

"Qual é o apelido dele?" Katya disse-lhe o apelido e Barley, no meio da sua confusão, sentiu-se feliz com a irritação dela. Devíamos ter anos e não apenas horas, pensou. Devíamos ter puxado o cabelo um ao outro em miúdos. Devíamos ter feito tudo o que nunca fizemos, pois em breve será demasiado tarde. Barley segurou na carta para que Katya lesse e ela ajoelhou-se despreocupadamente atrás dele, pondo uma mão em cima do seu ombro para se equilibrar, enquanto com a outra ia apontando as linhas à medida que traduzia. Barley sentia os seios dela roçando-lhe nas costas. Sentia o seu mundo íntimo caindo numa calma profunda, e a monstruosidade das suas primeiras suspeitas dava lugar a sentimentos mais racionais.

"Isto é a morada, apenas um número postal, o que é normal", disse ela, apontando para o canto superior direito. "Encontra-se num hospital especial, talvez numa cidade especial. Escreveu a carta na cama está a ver que bem que ele escreve quando está sóbrio? -, deu-a a um amigo que seguia para Moscovo. O amigo deu-a a Igor. É normal. “Minha querida Katya” não é exactamente assim que ele começa, quer dizer, a palavra não é bem “querida”, mas isso não interessa. “Fui subitamente acometido de uma variedade de hepatite, mas a doença é um estado muito instrutivo e além disso estou vivo”. Isto é mesmo típico dele, tira uma conclusão moral logo à primeira. " Katya apontava novamente para o texto. "Esta palavra torna a hepatite pior. É “irritada”.”

"Agravada", emendou calmamente Barley. A mão que tinha sobre o ombro deu-lhe um beliscão reprovador. "Que importância tem a palavra exacta? Quer que vá buscar um dicionário? “Tive febre alta e muitas fantasias...'“

"Alucinações", emendou Barley. "A palavra é gaflutsinatüya ... ", retorquiu ela, furiosa. "Está bem, prossigamos.” ... mas agora já me sinto bem e dentro de dois dias vou para uma unidade de convalescença junto ao mar, vou lá ficar uma semana”. Ele não diz de que mar se trata, mas porque haveria de dizer? Toderei voltar a todas as minhas actividades excepto beber vodka, mas essa é uma limitação burocrática que, como bom cientista que sou, depressa ignorarei.” Aqui está outra coisa típica dele. Vencida a hepatite, pensa logo em vodka.”

"Inteiramente de acordo", disse Barley, sorrindo para lhe ser agradável e talvez também para se tranquilizar.

As linhas apresentavam-se tão direitas que pareciam ter sido escritas em papel pautado. Não havia uma única emenda.

"Se todos os russos pudessem ter hospitais como este, que nação saudável que nós éramos.” Mesmo doente, permanece um idealista. “As enfermeiras são tão bonitas e os médicos tão jovens e bem parecidos que isto mais parece uma casa de amor do que uma casa de doenças.” Ele diz isto para me fazer ciúmes. Mas sabe uma coisa? É extremamente raro ele fazer comentários felizes. Yakov é um trágico. É mesmo um céptico. Creio que, além da hepatite, também lhe curaram o mau humor. “Ontem fiz exercício pela primeira vez, mas depressa me senti tão cansado como uma criança. Depois fui descansar para a varanda e apanhei um bom banho de sol antes de dormir que nem um anjo, sem nada na minha consciência a não ser o facto de te ter tratado muito mal, de te ter sempre explorado.” Agora é conversa de namorados, não traduzo.”

"Isso é frequente nele?" Katya riu-se. "Já lhe disse. Nem sequer é normal ele escrever-me, e há muitos meses, ou mesmo anos, que ele não me fala do nosso amor, que é agora inteiramente espiritual. Creio que a doença o deixou um tanto ou quanto sentimental, por isso o melhor é perdoarmos-lhe." Virou a página e as suas mãos voltaram a encontrar-se, mas a mão de Barley estava mais fria que um dia de Inverno. Para sua surpresa, Katya não comentou esse facto. "Bom, agora passamos para Mr. Barley. Você mesmo. Claro que ele se mostra muito cauteloso. Não menciona o seu nome. A doença pelo menos não lhe afectou a discrição. “Diz por favor ao nosso bom amigo que vou fazer o possível por me encontrar com ele durante a sua visita. O que é preciso é que a recuperação prossiga. Ele que traga o seu material, eu vou tentar fazer o mesmo. Durante essa semana tenho uma conferência em Saratov'o Igor diz que é na Academia Militar, o Yakov dá sempre uma conferência na Academia Militar, em Setembro, as coisas que ficamos a saber quando uma pessoa está doente “e de Saratov seguirei para Moscovo logo que possa. Se falares com ele antes de mim, diz-lhe por favor o seguinte. Diz-lhe que me traga todas as questões que me querem pôr, porque, depois disto, não quero responder a mais nenhuma pergunta dos homens cinzentos. Diz-lhe que a lista de questões terá de ser exaustiva e definitiva”.”

Barley escutou em silêncio as instruções de Goethe, tão enfáticas como as que lhe ouvira em Leninegrado. E enquanto as escutava, as sombras negras da sua desconfiança transformaram-se num secreto temor, e a náusea voltou a incomodá-lo.

Uma página da tradução, uma página ao acaso, mas impressa,por favor, a letra impressa é incomparavelmente mais reveladora, Ízia Goethe, pela voz dela.

Gostaria que o livro tivesse uma introdução do Professor Killian de Estocolmo, contacte-o por favor logo que possível, lia ela.

Houve novas reacções por parte da vossa intelligentsia? Se as houve, agradecia que me avisasse.

Datas de publicação. Goethe tinha ouvido dizer que o Outono era a melhor época, mas será mesmo preciso esperar um ano inteiro?, perguntava ela, em representação do seu amante.

De novo o título. Que tal A Maior Mentira do Mundo? Quanto à publicidade, agradecia que me mostrasse um rascunho. E logo que o livro esteja pronto, mande por favor um exemplar ao Dr. Dagmar Qualquer-Coisa em Stanford e ao Professor Herman Qualquer-Coisa do MIT...

Barley escreveu esmeradamente tudo no seu caderno, numa página a que pusera o título de FEIRA DO LIVRO.

"Que diz o resto da carta?", perguntou. Mas Katya já estava a metê-la no envelope. "Já lhe disse. Conversa de namorados. Ele está bem consigo mesmo e deseja reatar uma relação plena.”

"Consigo." Uma pausa enquanto os olhos dela o estudavam. "Barley, acho que está a ser um bocadinho infantil.”

"Portanto serão amantes?", insistiu Barley. "Viverão felizes para o resto da vida. É isso, não é?”

"No passado, Yakov teve medo da responsabilidade. Agora já não tem. É isso que ele escreve, só que naturalmente a questão já não se põe. O que passou, passou. Não se pode voltar atrás.”

"Então por que razão lhe escreve ele essas coisas?", teimou Barley. "Não sei. “

"Acredita no que ele lhe diz?" Katya ameaçava ficar seriamente irritada quando detectou algo na expressão dele que não era ciúme nem hostilidade, mas sim uma inquietação intensa, quase assustadora, em relação à segurança dela.

"Estar doente não é razão para ele lhe fazer propostas, pois não? Ele não é pessoa para brincar com as emoções dos outros, pois não? Goethe orgulha-se de dizef a verdade, apenas a verdade.”

Nem mesmo o olhar penetrante de Barley conseguiria demovê-la ou alterar o sentido da carta.

"Ele está sozinho", respondeu ela, numa atitude protectora. "Ele tem saudades minhas, é por isso que exagera. É normal. Barley, acho que está a ser um bocadinho ... “

Ou não encontrara a palavra ou reconsiderara e decidira não a pronunciar. Mas Barley disse-a por ela. "Ciumento" era a palavra. E então fez aquilo que sabia que ela queria: sorriu-lhe, pôs um sorriso bom, um sorriso sincero de amizade desinteressada e apertou-lhe a mão e com algum esforço levantou-se. "Ele parece estar óptimo", disse. "Estou muito contente por ele. Pela sua recuperação.”

E estava a ser sincero. Inteiramente sincero. Era com convicção que o dizia, o tom da sua voz não podia ser mais verdadeiro. Mas nesse momento já os seus olhos procuravam o carro vermelho estacionado para lá das bétulas.

Então, para satisfação de todos, Barley entrega-se decididamente ao papel de pai de fim-de-semana, um papel para que a sua muito agitada vida o preparou convenientemente. Sergey quer que ele tente a sua sorte nas pescarias. Anna quer saber porque é que ele não trouxe o calção de banho. Matvey, esse, dorme, dorme com um sorriso que é um produto tanto do whisky como das suas recordações. Katya entrou na água à procura de pedras. Parece-lhe mais bela e longínqua do que nunca. Mesmo a apanhar pedras para construir uma represa, Katya é a mais bela mulher que ele alguma vez viu.

No entanto ninguém trabalhou mais do que Barley na construção daquela represa, ninguém tinha uma ideia tão clara como ele de como as águas deviam ser contidas. Puxa até dos joelhos as suas estúpidas calças de flanela cinzentas e molha-as até às virilhas. Recolhe paus e pedras até ficar exausto, enquanto Anna, às suas cavalitas, dirige as operações. Encanta Sergey com as suas visões práticas de comerciante e Katya com floreios românticos. Um carro branco substitui o vermelho. Há lá dentro um casal, têm as portas abertas, comem. Barley sugere às crianças que vão até ao cimo da colina dizer adeus ao casal. As crianças vão, mas o casal não lhes responde.

A noite aproxima-se e um cheiro penetrante a queimadas de Outono irrompe entre as folhas amarelecidas das bétulas. Moscovo volta a ser uma cidade de casas de madeira, e arde. Enquanto arrumam as coisas no porta-bagagens, um par de gansos selvagens sobrevoa o riacho, são os dois últimos gansos no mundo.

No regresso ao hotel, Anna adormece ao colo de Barley, enquanto Matvey papagueia e Sergey folheia desconfiado as páginas do Squirrel Nutkin, como se se tratasse do Manifesto do Partido.

"Quando volta a falar com ele?", pergunta Barley. "Já está combinado", diz ela, enigmaticamente. "Foi Igor que tratou disso?" "O Igor não trata de nada. Ele é o mensageiro. " "O novo mensageiro", emenda ele. "Igor é um velho amigo e um novo mensageiro. Porque não?" Katya olha para ele e percebe as suas intenções. "Você não pode ir ao hospital comigo, Barley. Não é seguro para si.”

"Para si também não é propriamente um divertimento", responde ele.

Ela sabe, pensou Barley nesse momento. Ela sabe, mas não sabe que sabe. Tem os sintomas, uma parte dela fez o diagnóstico. Mas a outra parte recusa-se a admitir que há qualquer coisa que não bate certo.

A sala de controlo anglo-americana já não se situava numa miserável cave em Victoria, mas sim nas radiantes águas-furtadas de um arranha-céus novinho em folha perto de Grosvenor Square. Auto-denominava-se Grupo de Conciliação Inter-Aliado e era guardada por turnos de marines americanos perfeitamente conciliadores, trajados à paisana militar. Uma atmosfera de excitada conspiração impregnava a sala quando todos aqueles jovens irrepreensivelmente vestidos esvoaçavam entre secretárias irrepreensivelmente limpas, respondiam a telefones que não paravam de piscar luzinhas, falavam com Langley usando linhas absolutamente seguras, passavam papéis uns aos outros, batiam documentos em teclados rigorosamente silenciosos ou recostavam-se em poses nervosamente descontraídas em frente dos múltiplos monitores de televisão que tinham substituído os relógios gêmeos da velha Casa da Rússia.

Era um convés de dois pisos, e Ned e Sheriton estavam sentados lado a lado na ponte coberta, enquanto no piso de baixo, do outro lado do vidro à prova de som, as respectivas tripulações, tão pouco parecidas entre si, cumpriam os respectivos deveres. Brock e Emma tinham uma divisória, Bob, Johnny e os seus homens tinham a outra mais a galeria central. Mas todos viajavam na mesma direcção. Todos exibiam as mesmas expressões obedientemente diligentes, todos atentavam nas mesmas filas de ecrãs que rolavam e tremulavam como quadros das cotações da Bolsa, à medida que a descodificação automática ia chegando.

"O camião regressou sem problemas à doca", disse Sheriton quando os ecrãs dispararam subitamente a palavra de código BARCAÇA.

Aquele camião era um milagre de penetração.

O nosso camião! Em Moscovo! E fomos nós que o pusemos lá! Em inglês deveríamos chamar-lhe Iony, mas, por deferência para com o proprietário americano, chamávamos-lhe truck1. Uma operação enorme, separada de tudo o mais, envolvera a sua aquisição e a viagem. Era um Karnaz, gigantesco e negro de sujo, um dos muitos camiões da frota da SOVTRANSAVTO, cuja abreviatura, em letras romanas, surgia pintada ou antes, borrada nos fiancos imundos. Tinha sido recrutado, e com ele o motorista, pela enorme sucursal da Agência em Munique, durante uma das suas muitas incursões à Alemanha Ocidental, destinadas à compra de artigos de luxo para os raros privilegiados moscovitas que tinham acesso a uma rede de distribuição especial. Uma imensidão de coisas desde sapatos ocidentais, a tampões ocidentais, passando por peças sobressalentes para carros ocidentais passara já pelas suas entranhas.

 

“ Lony e truck, variantes inglesa e americana para "camião". (N. do T.)

 

Quanto ao motorista, era um dos Caçadores de Longa Distância, nome por que são conhecidas essas infelizes criaturas na União Soviética empregados do Estado, miseravelmente pagos, sem seguro médico ou contra” acidentes que os proteja de qualquer infortúnio no Ocidente, e que, mesmo no pino do Inverno, aguentam estoicamente nos seus abrigos, devorando salsichas antes de partilharem mais uma noite de sono em cabinas sem nenhum conforto mas que, em contrapartida, aproveitam as viagens ao Ocidente para fazerem fortunas que, no contexto da Rússia, são mais que razoáveis.

E agora, em troca de uma recompensa ihcomparavelmente mais atraente, este Caçador de Longa Distância, tinha concordado em "emprestar" o seu camião a um "comerciante ocidental", após negociações realizadas no coração de Moscovo. E este mesmo comerciante, que era um dos toptuny de Cy, emprestou-o a Cy, o qual, por sua vez, o encheu de todo o tipo de equipamento audio e de vigilância, todo ele engenhosamente portátil, equipamento que recolheria às suas bases antes de o camião retornar ao seu condutor legal, naturalmente através de intermediários.

Era a primeira vez que uma coisa destas sucedia. Dispunhamos pela primeiríssima vez de uma fortaleza móvel dentro da própria cidade de Moscovo!

Só Ned achou a ideia temerária. Os Caçadores de Longa Distância trabalhavam aos pares, como Ned sabia melhor do que ninguém. Por ordens do KG13, estes pares eram deliberadamente incompatíveis, e, em muitos casos, cada homem era responsável perante o outro. Mas quando Ned quis ler o processo relativo a esta operação, isso foi-lhe negado. E para justificar tal recusa, foram invocadas precisamente as leis de segurança que ele próprio tanto valorizava.

No entanto, a peça mais impressionante do novo arsenal de Langley estava ainda para vir e, uma vez mais, a força de Ned não chegou para a combater. A partir desse momento, as fitas dos gravadores em Moscovo seriam submetidas a uma codificação aleatória e transmitidas através de impulsos digitais, demorando esta transmissão um milésimo do tempo que gastaríamos a ouvir as gravações normais. No entanto, insistiam os feiticeiros de Langley, quando os impulsos digitais eram transformados em som pela estação receptora, nem se sonhava que as fitas tinham passado por tantas aventuras.

A palavra ESPERAR ia formando lindas pirâmides. Espiar é esperar.

A palavra SOM substituiu-a. Espiar é escutar. Ned e Sheriton puseram os auscultadores e Clive e eu fizémos o mesmo, depois de nos sentarmos nas cadeiras vagas que havia atrás deles.

Katya estava sentada na cama. Com um ar pensativo olhava para o telefone: não queria que ele voltasse a tocar.

Porque revela você o seu nome se nenhum de nós o faz?, perguntava-lhe ela mentalmente.

E porque revela o meu? Está? Katya? Como vai? Fala Igor. É para lhe dizer que não tive mais nenhuma notícia dele.

Então porque me telefona? Para não me dizer nada? À hora do costume, certo? O sítio do costume. Não há problema.

O mesmo de sempre.

Porque repete você aquilo que não precisa de ser repetido, depois de eu lhe ter dito que estaria no hospital à hora combinada?

Nessa altura já ele sabe qual é a sua situação, que avião pode apanhar, tudo. Portanto, não se preocupe, certo? Então, e o editor? Sempre apareceu?

"Igor, não sei a que editor se refere. “

E desligou antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. Estou a ser ingrata, pensou Katya. Quando estamos doentes é normal que os velhos amigos nos ajudem. E se, de um dia para o outro, se promovem de conhecidos a velhos amigos, e se de repente nos rodeiam de atenções após anos e anos em que quase não nos falaram, isso pode, mesmo assim, ser um sinal de lealdade, não há nada de sinistro numa história dessas, ainda que há apenas seis meses Yakov tenha declarado Igor um caso irrecuperável "Igor prossegue no caminho que eu já deixei", comentara Yakov depois de um encontro casual na rua. "Ele faz demasiadas perguntas.”

E, no entanto, aqui tínhamos Igor agindo como o amigo mais chegado de Yakov, correndo riscos por ele, prestando-lhe uma ajuda inestimável. "Se quer mandar alguma carta para o Yakov, basta dar-ma. Estabeleci uma excelente linha de comunicação'com o sanatório. Conheço alguém que lá vai quase todas as semanas", dissera-lhe Igor no seu último encontro.

"Sanatório?", exclamara ela inquieta. "Então é aí que ele está? Onde é que fica esse sanatório?”

Mas era como se Igor ainda não tivesse pensado na resposta a dar a essa pergunta, já que se limitou a franzir a testa e a argumentar com o segredo de Estado com um ar particularmente constrangido. Segredos de Estado?! Mas se nós próprios andamos a espalhá-los! Não faz sentido.

Estou a ser injusta com ele, pensou Katya. Começo a ver falsidade por todo o lado. Em Igor, até mesmo em Barley.

Barley. Fez uma cara de poucos amigos. Não tinha nada que criticar a declaração amorosa de Yakov, não era da sua conta. Quem pensa ele que é, esse ocidental de modos afectuosos e suspeitas cínicas? Envolvendo-se comigo tanto e tão depressa, armando-se em benfeitor com Matvey e os meus filhos?

Nunca confiarei num homem que foi educado sem um dogma, disse severamente para si mesma.

Posso amar um crente, posso amar um herético, mas não posso amar um inglês.

Ligou o rádio portátil e pôs-se a percorrer a onda curta, depois de ter posto o receptor no ouvido, pois não queria perturbar o sono dos gêmeos. Mas enquanto escutava as diferentes vozes que clamavam pela sua alma a Deutsche Welle, a Voice of America, Radio Liberty, Voice of Israel, mais a Voz só Deus sabia de quem, todas elas tão simpáticas, tão superiores, tão atraentes -, uma revolta confusa ia crescendo nela. Mas eu sou russa!, era o que lhes queria gritar, àquelas vozes todas. Mesmo no meio da tragédia, sonho com um mundo melhor do que o vosso!

Mas que tragédia?

O telefone estava a tocar. Katya pegou no auscultador. Mas era apenas Nasayan, que nos últimos dias parecia outro, confirmando os planos para o dia seguinte.

"Oiça, eu telefonei para confirmar se realmente quer ir para o stand da Outubro amanhã. Acontece que temos de começar muito cedo, não sei se está a ver. Se você tem de levar os seus filhos à escola ou qualquer outra coisa do gênero, não há problema em dizer à Yelizavyeta Alexeyevna para a substituir. Apenas tem de me dizer se quer ou não.”

"É muito simpático da sua parte, Grigory Tigranovich, e agradeço-lhe a chamada. Mas passei a maior parte da semana passada a ajudar a montar a exposição, de maneira que gostaria de estar presente na abertura oficial. O Matvey leva as crianças para a escola, não há qualquer problema. “

Com um ar absorto, Katya pôs o auscultador no descanso. Nasayan, meu Deus porque falamos um com o outro como se fôssemos personagens num palco? Quem pensamos nós que nos está a ouvir? Por causa de quem vigiamos tanto as nossas palavras? Se posso falar com um estrangeiro, com um inglês, como se ele fosse meu amante, porque não posso falar normalmente com um arménio que é meu colega?

O telefone tocou de novo e ela soube nesse mesmo instante que era aquela a chamada por que esperava há já algum tempo, porque foi com um sorriso que atendeu. Ao contrário de Igor, ele não disse o seu nome nem o dela.

"Fuja comigo", disse ele. "Esta noite?" "Os cavalos estão arreados, temos comida para três dias." "Mas você está suficientemente sóbrio para fugir?”

"É espantoso, mas estou." Uma pausa. "Não é que não tenha tentado, mas a verdade é que não bebi um único copo. Deve ser da idade.”

E de facto parecia sóbrio. Sóbrio e íntimo. "Então e a feira do livro? Vai abandoná-la como fez com a feira áudio?”

"Que se lixe a feira do livro. Temos de o fazer agora ou nunca. Depois estarei demasiado cansado. Como é que você está?”

"Ah, estou furiosa consigo. Você enfeitiçou por completo a minha família, e agora não páram de me perguntar quando é que volta com mais tabaco e mais lápis.”

Outra pausa. Ele não costumava mostrar-se tão pensativo quando gracejava.

"É isso o que eu faço. Enfeitiço as pessoas e a partir desse momento deixo de sentir seja o que for em relação a elas.”

"Mas isso é horrível!", exclamou ela, profundamente chocada. "Barley, que história é essa?”

"Limito-me a repetir as sábias palavras de uma ex-mulher minha. Ela dizia que eu tinha impulsos mas que não tinha sentimentos e que não devia usar uma canadiana em Londres. Se alguém nos diz uma coisa destas, uma pessoa fica a acreditar para toda a vida. Desde então nunca mais voltei a vestir uma canadiana.”

"Barley, essa mulher... Barley, essa mulher disse-lhe uma coisa perfeitamente cruel e irresponsável. Lamento, mas ela está completamente enganada. Tenho a certeza que disse isso no meio de uma discussão. Mas a verdade é que está enganada.”

"Está? Está mesmo enganada? Então, o que é que eu sinto? Esclareça-me.”

Katya desatou a rir, percebendo que tinha caído redondamente na armadilha.

"Barley, você é mesmo muito mau. Não quero nada consigo." "Porquê? Porque não sinto nada?" "Uma das razões é porque você protege as pessoas. Todos nós reparámos nisso hoje, e estamos-lhe gratos.”

"Mais." "Outra é porque você tem um sentimento de honra intacto, digamos assim. Claro que você é uma criatura decadente, não admira , sendo ocidental. É normal. Mas a honra, esse sentimento de honra, redime-o.”

"Ainda há pastéis de carne?" "Não me diga que também sente fome?!" "Quero ir a sua casa comer os que restam. " "Agora?" "Agora." "Mas isso é completamente impossível! Já estamos todos na cama, é quase meia-noite.”

"Amanhã." "Barley, isto é perfeitamente ridículo. Estamos prestes a começar a feira do livro, qualquer um de nós tem pelo menos uma dúzia de convites.”

"A que horas?" Um belo silêncio instalou-se entre os dois. "Pode vir por volta das sete e meia." "Sou capaz de chegar antes." Durante um longo momento nenhum deles falou. Mas o silêncio aproximou-os mais do que as palavras alguma vez poderiam ter feito. Nesse longo momento de silêncio, Katya e Barley transformaram-se repentinamente em duas cabeças numa única almofada, ouvido contra ouvido. E quando ele desligou, não foram as suas piadas nem o seu discurso auto-irónico que ela guardou, mas o tom de sinceridade, uma sinceridade feliz sinceridade ou mesmo solenidade, hesitava Katya que ele não fora capaz de refrear na sua voz.

Barley cantava. Dentro da sua cabeça, e fora também. No seu coração e por todo o seu corpo, Barley Blair finalmente cantava.

Estava no seu quarto enorme e cinzento do sombrio Mezh, na véspera da feira do livro de Moscovo, e cantava. Cantava "Bless This House", ao jeito inconfundível de Malialia Jackson, enquanto dançava piruetas à volta do quarto com um copo de água mineral na mão, espreitando para a sua imagem reflectida no enorme ecrã de televisão que constituía a única glória daquele quarto.

Sóbrio. Completamente sóbrio. Barley Blair. Sozinho. Não tinha bebido nada. Durante o interrogatório no camião, e apesar de ter suado que nem um cavalo, não bebera nada. Nem um copo de água bebera, enquanto regalava Paddy e Cy com uma versão adocicada e despreocupada do seu dia.

Na festa dos editores franceses, no Rossiya, com Wicklow, onde averbou uma actuação brilhante, irradiando confiança: aí também nada bebeu.

Na festa dos suecos no Nacional, com Henziger, onde brilhou ainda mais do que na outra, tinha pegado num copo de shampanskoyc da Geórgia, só porque Zapadny estava arreiampado por não o ver beber. Mas conseguira não beber nada, deixando o copo atrás de um vaso de flores. Portanto: nada.

E na festa conjunta, no Ukraina, de novo com Henziger, agora brilhando quase tanto como a Estrela do Norte, agarrara-se a um copo de água mineral com uma rodela de limão flutuando lá dentro para dar a impressão de que era gin-tónico.

De maneira que nada. Nem um só copo. Mas a sua abstinência não adivinha de qualquer reviravolta nos seus princípios. Barley não estava curado, graças a Deus. Não tinha prometido abstinência nenhuma, não tinha virado página nenhuma na sua vida. Não bebia, muito simplesmente porque não queria que coisa alguma perturbasse o êxtase lúcido e racional que a pouco e pouco se ia apoderando dele, esse sentimento tão estranho de quem corre um risco terrível e sabe que é capaz de o enfrentar, e sabe que está preparado seja para o que for que aconteça, e se nada acontecer também está preparado para isso, porque essa sua preparação é um círculo de defesa girando em torno de uma certeza sagrada.

Agora sou uma daquelas poucas pessoas que sabem o que farão em primeiro lugar se o navio se incendiar a meio da noite, pensou; e o que farão em último lugar, se é que farão alguma coisa. Fizera uma lista pormenorizada do que valia a pena salvar e do que para ele não tinha qualquer importância. E de tudo o que era preciso afastar, ignorar ou dar como perdido.

A sua cabeça tinha levado uma limpeza geral, compreendendo tanto pormenores perfeitamente modestos como grandes temas. Porque, como Barley observara recentemente, o facto de os grandes temas provocarem a sua própria destruição era também um pormenor perfeitamente modesto.

A clareza da sua visão surpreendia-o. Examinava tudo à sua volta, dava uma volta ou duas, cantava uns quantos compassos. Regressava ao ponto de partida, e sabia que nada tinha sido esquecido.

Não tinha esquecido o momentâneo tom de incerteza na voz dela. Ou a sombra de uma dúvida pairando no poço escuro dos seus olhos. Ou a caligrafia perfeita de Goethe, em vez dos rabiscos indecifráveis. Ou as piadas de Goethe, tão desajeitadas e tão pouco típicas dele, acerca de burocratas e de vodka. Ou a choradeira culpabilizada de Goethe acerca da forma como a tinha tratado, quando há vinte anos que a tratava como muito bem entendia, e a usava de todas as maneiras e feitios, incluindo como paquete para usar e deitar fora. Ou a imatura promessa de Goethe de que a recompensaria no futuro, desde que ela não abandonasse o jogo, quando é um artigo da fé de Goethe que o futuro já não lhe interessa, que a sua única obsessão é com o momento presente. "Só o agora existe!”

No entanto, a partir destas teorias pouco consistentes que, provavelmente, não eram outra coisa senão teorias, a mente de Barley voava sem qualquer esforço para o principal galardão da sua percepção recém-clarificada: a saber, que no contexto da ideia que Goethe tinha do que estava a realizar, Goethe estava certo, e que, durante a maior parte da sua vida, Goethe se tinha mantido num dos lados de uma equação corrupta e anacrónica, ao passo que Barley, na sua ignorância, se tinha mantido no outro.

E que se Barley alguma vez tivesse de escolher, escolheria certamente o caminho de Goethe e não o de Ned ou de qualquer outro, porque a sua presença seria urgentemente atraída pelo extremo país central de que se elegera cidadão.

E que tudo o que acontecera a Barley desde Peredeikino tinha provado isso mesmo. Os velhos ismos estamos mortos, a competição entre o comunismo e o capitalismo tinha acabado numa lamúria sentimentalóide. A retórica dessa competição ficara enterrada nas câmaras secretas dos homens cinzentos, que continuavam a dançar apesar de a música ter acabado há muito.

Quanto à lealdade ao seu país, Barley resumia-a à questão de saber que Inglaterra escolher servir. Estavam mortos os elos que ainda o poderiam ligar à fantasia imperial. Revoltava-o o rufar de tambores chauvinista. Preferia que a marcha dos tambores o atropelasse a seguir com ela. Conhecia uma Inglaterra decididamente melhor, uma Inglaterra que estava dentro de si.

Deixou-se ficar quieto na cama, à espera que o medo se apoderasse dele. Mas o medo não veio. Em vez disso, deu consigo a jogar uma espécie de xadrez mental, porque o xadrez era um jogo sobre probabilidades, e parecia-lhe melhor contemplá-las tranquilamente do que ordená-las e separá-las quando o tecto lhe estivesse a cair em cima.

Porque se Armagedão não atacasse, nada se perdia. Mas se Armagedão atacasse, havia muito a salvar.

E assim Barley começou a pensar. E começou a fazer os seus preparativos com a cabeça fria, exactamente como Ned o teria aconselhado, se Ned segurasse ainda as rédeas da operação.

Pensou até às primeiras horas da manhã e dormitou um pouco e quando acordou continuou a pensar, e na altura em que alegremente se encaminhou para a sala dos pequenos-almoços, com os olhos já atentos às diversões da feira, havia toda uma parte da sua cabeça que se dedicava por completo à tarefa de pensar aquilo que os loucos que o fazem descrevem como o impensável.

"Francamente, Ned", disse despreocupadamente Clive, ainda alvoroçado com a magia da transmissão. "Não é a primeira vez que a Ave Azul está doente. Já esteve doente uma série de vezes.”

"Eu sei", retorquiu Ned com um ar ausente. "Eu sei. " De repente, virou-se para Clive e acrescentou: "Mas não é o facto de ele estar doente que me preocupa. O que me preocupa é que ele tenha escrito.”

Sheriton escutava a conversa de queixo na mão, a mesma posição em que ouvira a gravação. Entre Ned e Sheriton tinha-se desenvolvido uma afinidade que só poderia ser benéfica para a operação. Estavam a reagir à transferência de poderes como se ela tivesse acontecido há muito.

"Mas, meu caro Ned, é precisamente isso o que todos nós fazemos quando estamos doentes", exclamou Clive, exibindo um falso entendimento de natureza humana. "Quando estamos doentes, escrevemos para toda a gente!”

Nunca me tinha ocorrido que Clive fosse uma criatura susceptível de contrair doenças, ou que tivesse amigos a quem escrever.

"Preocupa-me que ele passe cartas tão reveladoras a intermediários misteriosos. E preocupa-me que ele diga que vai tentar trazer mais material para Barley", disse Ned. "Sabemos que normalmente ele não escreve a Katya. Sabemos também que tem um cuidado extremo no que toca à segurança. E agora, sem mais nem menos, adoece e escreve-lhe uma carta de amor perfeitamente arrebatada com cinco páginas, cinco, e manda-a através de uma criatura chamada Igor. Igor quê? E quando lhe deu a carta? E como lha deu?”

"Ele devia ter fotografado a carta", disse Clive, censurando Barley. "Ou então tinha ficado com ela. Uma coisa ou outra.”

Ned estava demasiado concentrado nos seus pensamentos para contemplar tal sugestão com o desdém que ela merecia.

"Como é que ele podia? Katya conhece-o como editor. É tudo o que ela sabe dele.”

"A menos que a Ave Azul lhe tenha contado", disse Clive. "Não contou", retorquiu Ned, e logo retornou aos seus pensamentos. "Havia um carro", disse. "Um carro vermelho e depois um carro branco. Vocês viram o relatório dos informadores. O carro vermelho apareceu primeiro, depois o carro branco substituiu-o.”

"Isso é pura especulação. Num domingo quente, toda a cidade de Moscovo vai para o campo", disse Clive com um ar de entendido.

Por um momento Clive aguardou uma reacção, mas em vão, pelo que retornou ao assunto da carta. "Katya não teve qualquer problema com a carta", objectou. "Katya não desatou a chorar, pelo contrário, deu saltos de contente. Se ela não viu tramóia nenhuma naquilo tudo, se Scott Blair também não viu, por que carga de água havíamos nós de nos preocuparmos por eles, nós que, afinal, estamos aqui em Londres e não no terreno de operações?”

"Ele pede a lista das compras", disse Ned, como se ainda estivesse a ouvir música distante. "Uma lista de questões exaustivas e definitiva. Porquê? Por que razão?”

Sheriton tinha-se finalmente mexido. Com a sua mão enorme acenava a Ned para que se acalmasse. "Ned, Ned, Ned, Ned. Bom, estamos outra vez a voltar ao Dia Um, não admira que estejamos nervosos. Vamos dormir um pouco.”

Levantou-se, tal como eu e Clive. Mas Clive ficou teimosamente quieto no seu lugar, as mãos juntas sobre a secretária.

Sheriton insistiu. Com afecto, mas também com determinação. "Ned, é capaz de me ouvir só por um momento? Ned?”

"Eu não sou surdo." "Não é surdo, mas está cansado. Ned, se começamos a dizer mal e a desconfiar desta operação, então é que ela não se endireita. Esta é uma operação realizada pelo vosso homem, aquele que vocês levaram à ilha com o intuito de nos convencerem. Movemos céu e terra para chegarmos a este ponto. Temos a fonte. Temos a verba. Temos a audiência influente. Estamos a um passo de obter informações que nenhuma máquina sofisticada, que nenhuma criatura electrónica, que nenhum jesuíta do Pentágono poderia obter nos séculos mais próximos. Se nos mantivermos calmos, nós, Barley e a Ave Azul, ficaremos com uma mina que ultrapassará em muito os sonhos dos mais consumados fantasistas. Mas para isso precisamos de manter-nos calmos.”

Mas Sheriton estava a falar com demasiada convicção e o seu rosto, apesar de indecifrável, de tão rechonchudo que era, traía uma insegurança quase desesperada.

"Ned?" "Estou a ouvi-lo, Russel. Estou a ouvi-lo perfeitamente. “

"Ned, por amor de Deus, isto já não é uma empresa familiar. Apostámos, investimos forte, portanto agora temos de pensar nos mesmos termos. Não era possível conseguir melhor. As decisões presidenciais não são um convite para que duvidemos dos nossos próprios pontos de vista. Decisões presidenciais são ordens. Ned, francamente acho que devia ir dormir.”

"Não acho que esteja cansado", retorquiu Ned. "Pois eu acho que está. Acho que qualquer pessoa dirá o mesmo que eu. E talvez digam mesmo que Ned deixou de apostar em cheio nesta operação a partir do momento em que o lobo mau americano lhe levou o seu homem. Então, de repente, a Ave Azul passou a ser uma fonte muito problemática. Acho que as pessoas vão dizer que você está mesmo muito cansado.”

Nesse momento olhei.para Clive. Clive fitava também Ned, mas nos seus olhos havia tamanha frieza que não pude deixar de ficar inquieto. É tempo de correr contigo, era o que os seus olhos diziam. É tempo de te dar o pontapé.

Nesse dia, tanto Henziger como Wicklow acompanharam atentamente Barley e enviaram informações frequentes acerca dos seus movimentos. Henziger via Cy, através de meios que só eles conheciam. Wicklow via Paddy, através de um irregular. Ambos referiram a sua boa disposição, os seus modos descontraídos e, usando linguagens diversas, a sua independência. Ambos descreveram como ele soube encantar um casal de editores finlandeses que se mostravam interessados no projecto do Caminho-de-Ferro Transiberiano.

"Ele dominou-os por completo", disse Wicklow, fornecendo uma imagem inconscientemente cómica” daquele pequeno-almoço, mas a verdade é que no Mezh tudo era possível.

Ambos se referiram divertidamente à determinação de Barley em actuar como guia turístico dos dois antes de chegarem à feira, e o facto de ele ter obrigado o táxi a deixá-los no fim da grande avenida, para que pudessem fazer o caminho a pé, quais peregrinos acabando de deixar o mundo do capitalismo.

Assim, os dois espiões profissionais deram um alegre passeio, sob um húmido sol de Outono, com os casacos pelas costas, com o seu homem, o novato Barley, no meio. Barley que os obsequiava com uma excêntrica ou muito sua viagem guiada, exaltando a arquitectura do "último período Essoldo" e os jardins "revolucionários rococós". Fez depois o elogio do imenso tanque ornamental, com os seus peixes dourados vomitando jactos de água para os rabos de quinze ninfas nuas e igualmente douradas, cada uma das quais representando uma das quinze repúblicas socialistas. Insistiu para que parassem um pouco frente aos retiros do amor, aos templos das delícias com os seus enormes pilares brancos, e cujos portais eram dedicados não a Vénus nem a Baco, mas sim às precárias deusas da economia soviética o carvão, o aço e até a energia atómica, vejam só! "Estava bem-humorado, espirituoso, mas não estava bêbedo", referiu Henziger, que já em Leninegrado tinha ficado a gostar de Barley. "Foi divertidíssimo.”

 

“ No original, a frase "they were cating out of his hand" (literalmente, "eles iam-lhe comer a mão", em sentido figurado, "ele dominou-os por completo"), explica o cómico da imagem. (N. do T.)

 

E depois dos templos, Barley conduziu-os pela triunfal avenida, o Passeio do Imperador, talvez uma milha de comprimento e sabe-se lá quanto de largura, celebrando as Realizações do Povo ao Serviço da Humanidade. Decerto nunca a visão do poder popular deu origem a imagens tão despóticas como estas!, proclamou. Decerto nenhuma Revolução acabou por venerar tanto como esta tudo o que tinha demolido! Mas nesse momento já Barley tinha de berrar as suas irreverências por causa do alarido dos altifalantes, que despejavam durante todo o dia torrentes de mensagens autocongratulatórias para cima das cabeças das multidões ignorantes.

Até que chegaram e alguma vez tinham de chegar aos dois pavilhões que albergavam a feira.

"À minha direita, os editores da Paz, do Progresso e da Boa-Vontade", anunciou Barley, fazendo o papel de árbitro num combate de boxe. "À minha esquerda, os distribuidores das mentiras fascistas e imperialistas, os pornógrafos, os envenenadores da verdade. Saiam os treinadores. Podem começar!”

Mostraram os passes e entraram.

O stand da muito recente e geograficamente confusa Potomac & Blair constituía a sensação da feira, uma pequena sensação, é certo, mas inteiramente satisfatória. O símbolo P & B, que Langley, com tanto amor, criara, resplandecia entre as exposições desmazeladas da Astral Press e da Purbeck Media. A concepção e a decoração do interior do stand, sem grande aparato mas denotando um bom gosto incontestável, segundo as palavras dos arquitectos de Langley, eram de molde a provocar um impacte imediato. Os objectos expostos muitos deles, como era costume, réplicas de livros que ainda não tinham entrado na linha de produção haviam sido tratados com toda a atenção ao pormenor que os serviços de espionagem tradicionalmente concedem às falsificações. Além disso, o único café em condições da feira borbulhava numa engenhosa máquina, no cubículo das traseiras da P & B. E lá estava Mary Lou, directamente vinda de Langley, para o servir. Para os poucos privilegiados, havia mesmo um cheirinho proibido de Scotch para os ajudar na labuta diária proibido, evidentemente, por especial decreto da organização, para a qual até a reconstrução literária deveria ser obra de homens sóbrios.

E Mary Lou, com o seu sorriso simples de rapariguinha e a sua saia de balão de tweed, era um verdadeiro produto natural da parte mais simpática da Madison Avenue. Ninguém adivinharia, por certo, que também ela tinha um flozinho de Langley debaixo da saia.

E Wicklow, com a sua conversa, tão polida quanto fiada, passava perfeitamente por um daqueles jovens editores de olho rápido e ascensão ainda mais rápida que agora há aos centos.

Quanto ao honesto Jack Henziger, ele era o arquétipo do aventureiro instalado do moderno negócio do livro americano. Não escondia os seus antecedentes, longe disso. Oleodutos no Médio Oriente, humanidade no Afeganistão, feijão vermelho para as tribos do ópio na Tailândia tudo isso Henziger vendera; só faltava saber o que vendera, em nome de Langley, nas suas horas vagas. Mas o seu coração estava com os livros, e ali estava ele para o provar.

E Barley parecia divertir-se com o artifício. Entregou-se-lhe de alma e coração, como se o artifício fosse para ele uma realidade há muito perdida, trocando cumprimentos, recebendo os parabéns de competidores e colegas, até que, por volta das onze, se confessou impaciente e propôs a Wicklow que desse uma volta às trincheiras para confortarem as tropas.

E assim fizeram. Barley levava consigo um maço de envelopes brancos, que ia distribuindo por mãos antecipadamente seleccionadas, enquanto gritava saudações e abria alas por entre o engarrafamento de visitantes e expositores.

"Macacos me mordam se não é o sacana do Barley Blair!", exclamou uma voz familiar no meio de uma exposição multilingue de Bíblias ilustradas. "Lembra-se de mim? Eu era o terceiro a contar da esquerda com o calção de Wson, mas está claro que tudo isso se passou quando éramos todos pobrezinhos ... “

"Spikey! Com que então deixaram-no entrar outra vez!", comentou Barley com evidente satisfação, e entregou-lhe o respectivo envelope.

"O que me preocupa não é se me deixam entrar, mas sim se me deixam sair. Não me apresenta o seu paizinho?”

Barley apresentou-lhe o distinto editor Wicklow, e Spikey Morgan de imediato lhe concedeu a sua bênção sacerdotal com uns dedos manchados de nicotina.

Seguiram em frente mas logo tropeçaram em Dan Zeppelin. Dan não falava. Dan conspirava num murmúrio de coveiro, debruçado sobre o balcão com os braços cruzados.

"Diga-me uma coisa, Barley, só uma coisa. O que é que nós somos, somos pioneiros ou os estupores das irmãs MitfÓrd? Quer dizer, há uns quantos livros que não eram livros mas que são livros este ano. Há uns quantos escritores que não eram escritores que saíram da prisão. Enfim, um grande negócio. Mas hoje de manhã entro eu no meu stand e não é que dou com um sacana qualquer a tirar-me livros das minhas estantes? Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?”, disse-lhe eu. “Que raio é que você está aí a fazer com os meus livros?” “São ordens”, respondeu ele. Seis livros, confiscou-me seis livros. Mary G. Ambleside, A Consciência  Negra nas Canções e nas Palavras. Ordens! Quer dizer, mas afinal quem somos nós, Barley? E quem são eles? O que é que eles pensam que estão a reestruturar, quando nunca houve sequer uma estrutura? Como é que se reestrutura um cadáver?”

Na Lupus Books, mandaram-nos para o café, onde o nosso Presidente em pessoa, o recentíssimo cavaleiro Sir Peter Olipliant, tinha reservado uma mesa, conseguindo desviar para si muitas das atenções em princípio reservadas para os russos. Um aviso bilingue escrito à mão confirmava o seu triunfo. As bandeiras da Grã-Bretanha e da União Soviética tiravam qualquer dúvida aos cépticos. Rodeado de intérpretes e altos funcionários, Sír Peterperorava sobre as muitas vantagens que os soviéticos teriam, se subsidiassem as generosas compras que pretendia fazer-lhes.

"Mas é o Conde!", exclamou Barley, entregando-lhe um envelope. "Só lhe falta o diadema!”

Quase sem pestanejar, o grande homem continuou a sua dissertação. No stand israelita reinava uma paz armada. Algumas pessoas faziam bicha, soturnas, ordenadas e mudas. Rapazes de jeans e ténis esperavam encostados à parede. Lev Abramovitz era um homem de cabelo totalmente branco e extremamente alto. Tinha servido nos Msh Guards.

"Lev. Que tal vai o Sião?" "Talvez estejamos a vencer, talvez seja o princípio dum fim feliz", retorquiu Lev, metendo no bolso o envelope de Barley.

Vencida a etapa israelita, e com Barley conduzindo as operações a meio-galope, abriram caminho entre a multidão que se acumulava no átrio, e entraram no Pavilhão da Paz, do Progresso e da Boa-Vontade, onde já não podia haver dúvidas de que se estava a assistir a uma gigantesca reviravolta histórica. Sobre quem eram os seus autores, também já não estava qualquer dúvida.

Todas as bandeirolas e todos os bocadinhos de parede berravam o novo Evangelho. Em todos os stands de todas as Repúblicas, os pensamentos e os escritos do novo profeta que já não era assim tão novo, com o sinal de nascença censurado e um sorriso de orelha a orelha, surgiam engalanados ao lado dos do seu descolorido mestre, Lenine. No Stand da VAAP, onde Barley e Wicklow apertaram umas quantas mãos e Barley derramou uma fornada de envelopes, os discursos do Chefe, embrulhados em capas brilhantes e traduzidos para inglês, francês, espanhol e alemão, produziam um apelo perfeitamente resistível.

"Quanta mais merda desta teremos de engolir, Barley?", perguntou-lhe no caminho, em voz quase sumida, um editor de Moscovo, muito louro e branco. "Quando é que eles começam a reprimir-nos outra vez para nós ficarmos sossegados? Se o nosso passado é uma mentira, quem é que nos garante que o nosso futuro não será também uma mentira?”

Prosseguiram a sua caminhada ao longo dos stands. Barley sempre à frente, Barley saudando, Wicklow seguindo-o.

"Joseph! É um prazer voltar a vê-lo! Aqui tem um envelope para si. Não o coma todo já.”

"Barley! Meu amigo! Não lhe deram a minha mensagem? Se calhar não deixei mensagem nenhuma.”

"Yuri, como está? Que bom que é voltar a vê-lo! Aqui tem o seu envelope.”

"Apareça esta noite para bebermos uns copos, Barley! Vem o Sasha e a Rosa. O Rudi dá um concerto amanhã, por isso quer ficar sóbrio. Ouviu falar dos escritores que eles libertaram? Oiça, isto são coisas da aldeia Potenikin. Deixam-nos sair, dão-lhes umas quantas refeições, mostram-nos ao público e metem-nos outra vez dentro até ao próximo ano. Venha cá, tenho de lhe vender uns livros para chatear o Zapadny.”

De início, Wicklow nem se apercebeu de que tinham chegado ao seu destino. Viu um estandarte romano coberto com umas quantas bandeiras desbotadas e umas letras douradas cosidas numa estamenha vermelha. Ouviu Barley gritando, "Katya, onde é que você está?" Mas nada indicava de quem era o stand e provavelmente aquilo queele via era apenas parte da exposição, pois o resto ainda não teria chegado. Viu os livros do costume, absolutamente ilegíveis, acerca do desenvolvimento agrícola na Ucrânia e das danças tradicionais da Geórgia, expirando nas prateleiras dos muitos maus tratos das anteriores exposições e feiras. Viu a habitual meia dúzia de mulheres de ancas largas às voltas por ali como se estivessem à espera de um comboio, e um tipo pequenino com a barba por fazer agarrando no cigarro como se fosse uma vara mágica, olhando com cara de poucos amigos para o distintivo de Barley.

Nasayan, leu Wicklow, Grigory Tigranovich. Primeiro Editor, Publicações Outubro.

"Está à procura de Miss Katya Orlova, não é verdade?", perguntou Nasayan a Barley em inglês, segurando ainda mais alto o cigarro, como se quisesse iluminar o outro para o ver melhor.

"Quer-me parecer que sim!", retorquiu bem disposto Barley, e duas das mulheres sorriram.

Um aterrador esgar de cortesia colara-se ao rosto de Nasayan. Dando ao cigarro um movimento floreado, Nasayan afastou-se e Wicklow logo reconheceu Katya pelas costas. Estava a falar com dois asiáticos de muito baixa estatura, que lhe pareceram birmaneses. Então, instintivamente, Katya virou-se e viu Barley primeiro, depois Wicklow, e de novo olhou para Barley, com um sorriso esplêndido que lhe iluminava todo o rosto.

"Katya! Bestial", disse Barley timidamente. "Como estão os miúdos? Sobreviveram?”

"Ah, obrigado, estão muito bem!" Sob os olhares de Nasayan e das suas damas, bem como de Wicklow, Barley entregou-lhe um convite para a grande e glasnóstica festa da Potomac & Blair.

"Ah, a propósito, é muito possível que eu tenha de esquivar-me a algumas das festanças desta noite", observou Barley, no caminho de regresso ao pavilhão ocidental. "Você e o Jack e a Mary Lou terão de se aguentar sozinhos. Vou jantar com uma bela dama.”

"É alguém que conhecemos?", perguntou Wicklow e ambos desataram a rir. Era um dia de sol radiante.

Ela está bem, pensava satisfeito Barley. Se alguma coisa está a acontecer, ainda não a atingiu a ela.

Não sei até que ponto algum de nós entendeu ou adivinhou os sentimentos de Barley em relação a Katya. Num caso tão escrupulosamente dirigido e controlado, a questão do amor era muito simplesmente desvalorizada.

Wicklow, conhecido por levar uma vida activamente promíscua, adoptava em relação a Barley uma atitude puritana. Talvez o facto de ser um jovem o impedisse de levar muito a sério uma paixão serôdia. Para Wicklow, aquele episódio não passava de mais um desvario entre os inúmeros desvarios da vida de Barley. Para ele, as pessoas com a idade de Barleynão se apaixonavam.

Henziger, que não andava longe da idade de Barley, considerava o sexo como uma prerrogativa da vida secreta, tão vulgar quanto inofensiva. Para ele, era óbvio que uma pessoa honesta e leal como Barley saberia acomodar o corpo ao dever. Tal como Wicklow, embora por razões diferentes, não via nada de excepcional nos ternos sentimentos de Barley em relação a Katya e operacionalmente achava-os mesmo muito recomendáveis.

E em Londres? Em Londres não havia um ponto de vista único, um ponto de vista rigorosamente definido. Na ilha, Brady tinha dito tudo o que era preciso dizer sobre o caso, mas a sua intervenção fora rejeitada e, com ela, a sua opinião de que Barley estava apaixonado.

E Ned? Ned tinha uma esposa com uma mente tão de caserna quanto a dele, e igualmente pouco atenta aos meandros do amor. Mostrem-me um só tipo que seja que, num país hostil, não fique de amores com uma cara bonita, se ela estiver do seu lado contra o mundo costumava ele dizer com um sorriso pesaroso.

E Bob, Sheriton e Johnny pareciam todos ter concluído, por diferentes vias, que a vida privada e os apetites de Barley eram de uma complexidade tão decadente, que o melhor seria ignorá-los pura e simplesmente.

E que pensava Palfrey, o velho Palfrey, que a todo o momento corria para Grosvenor Square e que, se não podia lá ir, telefonava para Ned a perguntar "pelo nosso homem"?

Palfrey pensava em Hannali. A Hannali que amara e continua a amar, como só os cobardes sabem amar. A Hannali cujo sorriso fora em tempos tão quente e intenso quanto o de Katya. "És um bom tipo, Palfrey", diz ela, controlando-se a todo o custo, nos dias em que tenta entender-me. "Hás-de achar um caminho. Talvez não agora, mas um dia, um dia hás-de achar." E Palfrey encontrou de facto um caminho! Alegou a norma essa norma tão conveniente que diz que um jovem advogado apanhado em flagrante delito de adultério fica ipso facto sem saída possível. Alegou os filhos, dela e dele é uma questão que envolve tanta gente, minha querida. Alegou o casamento, o grande sacana como é que eles se vão ver sem nós, minha querida, o Derek nem cozer um ovo sabe. Alegou a sociedade, e quando a sociedade se dissolveu, enterrou a sua estúpida cabeça nas areias do deserto secreto, onde nenhuma Hannali conseguiria voltar a encontrá-lo. E teve mesmo a desfaçatez de alegar o dever mas, minha querida, os Serviços nunca me perdoariam um divórcio sujo não, nunca aceitariam que o seu conselheiro legal fizesse uma coisa dessas.

Pensava também na ilha. Na noite em que eu e Barley demos uma volta pela praia dos seixos e ficámos a ver o banco de nevoeiro avançando na nossa direcção por sobre as ondas cinzentas do Atlântico.

"Nunca a deixariam sair, pois não?", perguntou Barley. "Quer dizer, se as coisas correrem mal, é evidente que não deixam.”

Não respondi e não creio que Barley esperasse uma resposta minha, mas não havia dúvida que ele tinha razão. Ela era uma cidadã cem por cento soviética e cometera um crime cem por cento soviético. Não havia para o seu caso qualquer possibilidade de negociação.

"De qualquer modo, ela nunca deixaria os filhos", disse ele, confirmando as suas próprias dúvidas.

Por um momento contemplou o mar, os seus olhos fitando Katya, os meus fitando Hannali, Hannali que também nunca deixaria os seus filhos, mas que queria trazê-los com ela, e que queria transformar num homem honesto um advogado rotineiro e obcecado com a carreira, que ia para a cama com a mulher do seu sócio mais velho.

"Raymond ChandIer!", gritou o tio Matvey da sua cadeira, vencendo o clamor das televisões dos vizinhos.

"Bestial", disse Barley. "Agatha Christie!" "Ah, pois, Agatha." "Dashiel Hammett! Dorothy Sayers. Josephine Tey." Barley sentou-se no sofá para onde Katya o conduzira. A sala de estar era minúscula. Os seus braços abertos quase a abarcariam. Um armário de canto com portas de vidro continha os tesouros da família. Katya tinha-os já apresentado ao visitante. As canecas de cerâmica, feitas por um amigo quando ela se casara, com medalhões retratando o noivo e a noiva. O serviço de café de Leninegrado, a que já faltavam peças e que tinha pertencido à senhora da fotografia emoldurada da prateleira de cima. A velha fotografia sépia de um casal toIstoiano, o homem, de barba, um rosto resoluto sobre os colarinhos brancos engomados, a jovem com o seu gorro e o seu regalo de pele.

"O Matvey adora policiais ingleses", gritou Katya da cozinha, onde ainda tinha algumas coisas a fazer.

"Também eu", retorquiu Barley, ainda que mentisse. "Ele está a dizer que os policiais não eram permitidos no tempo dos czares. Nunca teriam tolerado uma tal intromissão no seu sistema policial. Já se serviu de vodka? Não dê mais ao Matvey, por favor. Mas tem de comer qualquer coisa. Nós não somos alcoólicos como vocês, ocidentais. Não bebemos sem comer.”

Sob o pretexto de examinar os livros dela, Barley instalou-se no estreito corredor, de onde podia vê-la perfeitamente. Jack London, Hemingway e Joyce, Dreiser e John FowIes. Heine, Remarque e Rilke. Os gêmeos estavam na casa de banho, em alegre conversa. Observou-a através da porta aberta da cozinha. Havia nos seus gestos uma demora deliberada, um jeito esquivo a qualquer pressa. Voltou a ser a Katya russa, pensou. Quando as coisas funcionam, ainda bem. Quando não funcionam, é a vida, que se há-de fazer. Na sala de estar, Matvey continuava a tagarelar alegremente.

"Que diz ele agora?", perguntou Barley. "Está a falar do cerco. " "Amo-a." "Os habitantes de Leninegrado recusaram-se a aceitar a derrota". Katya estava a preparar croquetes de fígado com arroz. As suas mãos pararam por um momento, após o que regressaram ao trabalho. "Shostakovich continuou a compor apesar de a tinta gelar no seu tinteiro. Os romancistas continuaram a escrever, bastava ir às celas certas para se ouvir todas as semanas um capítulo de um novo romance".

"Amo-a", repetiu. "Todos os meus fracassos foram apenas etapas para chegar a si. É um facto. Indiscutível.”

Katya soltou um suspiro profundo e ambos ficaram em silêncio, surdos por um momento ao animado monólogo de Matvey e ao ruído de pés chapinhando que vinhada casa de banho.

"O que é que ele está a dizer agora?", perguntou Barley. "Barley ... ", protestou ela. "Por favor. Traduza o que ele está a dizer." "Os alemães estavam a quatro quilómetros da cidade, na parte sul. Cobriram os arredores com fogo de metralhadora e bombardearam o centro com artilharia." Katya passou-lhe as toalhas de mesa individuais e as facas e os garfos e seguiu-o até à sala de estar. "Duzentos e cinquenta gramas de pão para um operário, para os outros cento e vinte e cinco. Barley você está mesmo fascinado pelo Matvey, ou o seu interesse é motivado apenas pela cortesia, como é costume?”

"É um amor maduro, um amor absoluto, arrebatador, um amor de 

que todo o egoísmo está ausente. Nunca senti nada que se assemelhasse a isto. Achei que você devia ser a primeira a sabê-lo.”

Matvey sorria radiante para Barley, numa expressão de pura adoração. O seu novo cachimbo inglês brilhava no bolso de cima. Katya olhou para Barley, por um momento suportou o seu olhar fixo, depois desatou a rir e abanou a cabeça, não porque quisesse negar fosse o que fosse, mas porque se sentia aturdida. Os gêmeos irromperam pela sala numa correria, já com os roupões vestidos e Barley pegou neles, fazendo-os baloiçar nas suas mãos. Katya conduziu-os para a mesa e pediu a Matvey que se sentasse à cabeceira. Barley sentou-se ao lado dela, enquanto ela servia a sopa de couves. Com um prodigiosa exibição de força, Sergey tirou a rolha de uma garrafa de vinho, mas Katya beberia apenas meio copo e a Matvey só era permitida a vodka. Anna levantou-se para ir buscar um desenho que tinha feito depois de uma visita à Academia Timiryasev: cavalos, um trigal de verdade, plantas que sobreviviam à neve. Matvey contava a história do velho da oficina em frente, e uma vez mais Barley insistiu em não perder palavra.

"Era um velho que o Matvey conhecia, um amigo do meu pai", disse Katya. "Tinha uma oficina. Passou tanta fome e estava tão fraco que decidiu atar-se a uma máquina para não cair. Foi assim que Matvey e o meu pai o encontraram, mas já estava morto. Atado à máquina. Gelado. Matvey também quer que você saiba que usava um distintivo luminoso no casaco" e Matvey indicava com orgulho o sítio onde usava o distintivo "para não chocar com os seus amigos na escuridão, quando iam com um balde buscar água ao Neva. Pronto. Já chega de Leninegrado", disse ela firmemente. "Tem-se mostrado muito generoso, Barley, aliás como é seu hábito. Espero que, além de generoso, seja sincero".

"Nunca. fui tão sincero em toda a minha vida." Barley ia a meio de um brinde à saúde de Matvey quando o telefone começou a tocar ao lado do sofá. Katya ergueu-se num ápice, mas Sergey adiantou-se-lhe. Levantou o auscultador, escutou, mas logo de seguida desligou, abanando a cabeça.

"Há sempre imensos enganos", disse Katya, e começou a distribuir os pratos para os croquetes.

Havia apenas o quarto dela. Havia apenas a cama dela. As crianças tinham ido para a cama e Barley podia ouvir a sua respiração ruidosa. Matvey deitara-se no seu saco-cama do exército na sala de estar, e sonhava já com Leninegrado. Katya estava sentada numa cadeira, muito direita, e Barley, ao seu lado, segurava-lhe na mão, enquanto fitava o seu rosto emoldurado pela janela sem cortinados.

"Também amo o Matvey", disse ele.

Katya aquiesceu e soltou um risinho. Ele encostou os nós dos dedos ao seu rosto e descobriu que ela estava a chorar.

"Claro que não gosto dele da mesma maneira que gosto de si", explicou. "Gosto de crianças, de tios, de gatos, de cães e de músicos. A Arca, toda a Arca, é inteiramente da minha responsabilidade. Mas a si amo-a tão profundamente que tenho mesmo vergonha de lho dizer. Ficaria muito grato se encontrássemos um processo qualquer capaz de me silenciar. Olho para si e fico perfeitamente nauseado com o som da minha voz. Quer que lhe escreva?”

Então, com ambas as mãos, Barley virou o rosto dela para si e beijou-a. Depois, conduziu-a até à cabeceira da cama, pôs-lhe a cabeça sobre a almofada e beijou-a de novo, primeiro nos lábios e depois nos olhos fechados e molhados, enquanto os braços dela lhe prendiam as costas e o colavam a ela. Então, de repente, ela afastou-o, saltou da cama e num instante correu ao quarto dos gêmeos. Num instante voltou e, lentamente, fechou a porta à chave.

"Se as crianças aparecerem, você veste-se e pomos o ar mais sério do mundo", avisou ela, beijando-o.

"Posso dizer-lhes que a amo?" "Pode, mas eu não traduzo." "E a si, posso dizer?" "Muito baixinho." "Assim. já traduz?" Ela não chorava já, já não sorria. Olhos negros, determinados, procurando, prescrutando como os dele. Um abraço sem reservas, nenhuma cláusula escondida, nenhum aditamento em letra miúda ao acordo que se firmava.

Nunca vira Ned naquela disposição. Tinha-se transformado no Jonas da sua própria operação e o seu severo estoicismo tornava ainda mais insuportáveis os maus presságios que resolvera propalar. Na sala de controlo, sentava-se à sua secretária como se estivesse a presidir a um tribunal marcial, enquanto Sheriton se refastelava na cadeira ao lado como um ursinho de pelúcia inteligente. E quando eu saía com ele para jantar no Connaught, onde por vezes levava Hannali, e o acompanhava rua abaixo à velocidade louca do seu passo e lhe proporcionava um jantar magnífico, capaz de compensar qualquer espera, a sua máscara ausente permanecia impenetrável.

A verdade é que o seu pessimismo estava a afectar seriamente a minha própria disposição. Sentia-me num balancê. Clive e Sheriton estavam numa das pontas. Ned era o contrapeso. E como eu não sou propriamente um especialista em tomar decisões, mais perturbado ficava ao ver um homem normalmente tão incisivo resignar-se por completo ao ostracismo.

"Você está a ver fantasmas, Ned", disse-lhe eu com um pouco da convicção de Sheriton. "Você meteu-se a pensar em coisas que não passaram pela cabeça de mais ninguém. Está bem, pronto, o caso já não é seu, já não se trata do seu caso. Mas isso não significa que estejamos perante um malogro. Bom, e entretanto a sua credibilidade vai, digamos, decaindo." "Uma lista definitiva e exaustiva", repetiu Ned, como se um hipnotizador lhe tivesse metido a frase na cabeça. "Definitiva porquê? Exaustiva porquê? São capazes de me responder? Quando eles se encontraram em Leninegrado, Goethe nem o nosso questionário preliminar aceitou. Atirou-o positivamente à cara de Barley. Agora, pelo contrário, pede a lista de compras toda e de uma só vez. E ele que pede. A lista definitiva. As vazas todas. E temos de ter a lista pronta no fim-de-semana. Depois disso a Ave Azul não responde a mais nenhuma pergunta dos homens cinzentos. “Esta é a vossa última oportunidade”: é isso que ele nos está a dizer. Porquê?”

"Tente ver o caso com os olhos dele por um minuto", supliquei-lhe eu num murmúrio desesperado, depois de o criado dos vinhos nos ter trazido uma segunda garrafa de um clarete tão notável que nenhum dinheiro o pagaria. "Muito bem. Os soviéticos deram-lhe a volta. Ele agora está do lado errado. Os soviéticos controlam-no. Mas se o controlam, por que carga de água é que vão encerrar o caso precisamente agora? Porque não aguentam e aproveitam para nos trapacearem? Você não pararia neste momento se estivesse no lugar deles. Não nos poria um ultimato, não nos imporia prazos. Ou estou enganado?”

A resposta dele arruinou por completo o melhor e mais caro jantar que eu alguma vez oferecera a um camarada de ofício.

"Talvez me visse obrigado a fazer tudo isso", disse ele. "Se fosse russo".

"Porquê?”

O brutal desapêgo da sua voz tornou ainda mais gélidas as suas palavras.

"Porque é muito possível que ele já não esteja em condições de se mostrar seja a quem for. Porque talvez já não esteja em condições de falar. Ou de pegar no talher. Ou de pôr sal no frango. É muito possível que tenha feito algumas declarações voluntárias acerca da sua encantadora amada de Moscovo, a qual não fazia ideia nenhuma, mas rigorosamente nenhuma, da gravidade dos seus actos. É muito possivel que ... “

Voltámos a pé para Grosvenor Square. Barley tinha deixado o apartamento de Katya à meia-noite, hora de Moscovo, e regressara aos Mezh, onde Henziger esperara por ele sentado no hall, lendo ostensivamente um manuscrito.

Barley estava extremamente bem disposto mas não trazia qualquer novidade. Tinha passado uma noite em família, uma simples noite em família, mas apesar de tudo divertida foi isso o que disse a Henziger. E a visita ao hospital continuava de pé, acrescentou.

No dia seguinte, nada. Um espaço em branco. Espiar é esperar.

Espiar é a angústia de assistir ao declínio de Ned. Espiar é levar Hannali para o meu apartamento em Pinifico entre as quatro e as seis, as duas horas de uma suposta lição de alemão, embora não faça sentido nenhum que ela tenha lições de alemão. Espiar é imitar o amor, e estar atento às horas, não vá ela chegar atrasada para dar o jantar ao seu querido Derek.

15 Iam no carro de Volodya. Ela pedira-o emprestado para a noite. Barley tinha de esperar por ela à saída do metro do Aeroporto, às nove horas, e às nove em ponto o Lada encostou precariamente para ele entrar.

"Você não devia ter insistido", disse ela. Os blocos de torres reluziam nas alturas, mas nas ruas caía já a atmosfera ameaçadora do despovoamento. Odores de Outono percorriam o ar húmido da noite. Uma meia-lua, envolta num manto de névoa, acompanhava-os na viagem. De vez em quando as suas mãos tocavam-se. De vez em quando as suas mãos prendiam-se num abraço violento. Barley olhava atentamente para o retrovisor. Estava partido e faltavam alguns bocadinhos, mas mesmo assim conseguia ver os carros que os seguiam sempre a alguma distância. Katya virou à esquerda, mas nenhum dos carros os ultrapassou.

Katya não falava, Barley imitava-a. Como sabia ela onde era ou não era seguro falar?, interrogava-se Barley. Onde teria aprendido as regras do ofício? Na escola? As raparigas mais velhas ensinariam as mais novas? Ou teria sido o médico da família, naquela conversazinha muito séria por volta do segundo ano de puberdade? "Minha filha, chegou a hora de aprenderes que os carros e as paredes também têm ouvidos. Tal e qual como as pessoas ... “

Meteram depois por uma estrada secundária cheia de buracos, até estacionarem num parque inacabado.

"Faça de conta que é um médico", avisou ela por cima do tejadilho. "Tem de parecer exactamente um médico.”

"Eu sou um médico", retorquiu Barley. Nenhum deles brincava. Avançaram por um labirinto de charcos que a lua iluminava, até chegarem a uma entrada coberta com um toldo de amianto, a qual  conduzia às portas duplas e a um balcão de recepção vazio. Barley sentiu os primeiros cheiros a hospital, os odores penetrantes de qualquer hospital: desinfectante, cera do chão, fluidos cirúrgicos. Com um passo firme, Katya, conduziu-o por uma entrada circular de cimento sarapintado e por um corredor revestido a linóleo. Passaram depois um balcão de mármore, à guarda de umas quantas mulheres de ar taciturno. Um relógio marcava as dez e vinte e cinco. Com o ar intencionalmente compenetrado de quem tinha responsabilidades, Barley comparou-o com o seu relógio. O do hospital estava atrasado dez minutos. O corredor seguinte estava cheio de vultos afundados em cadeiras de cozinha.

A sala de espera era uma catacumba sombria suportada por rotundos pilares, com um estrado numa das extremidades. Na outra, portas giratórias davam para os lavabos. Alguém tinha improvisado uma luz temporária para indicar o caminho. A essa luz ténue, Barley conseguiu descortinar uns quantos cabides atrás de um balcão de madeira, macas da sala de operações estacionadas e, encostado ao pilar mais próximo, um telefone antigo. Junto à parede, havia um banco. Katya, sentou-se nele, Barley sentou-se ao lado dela.

"Ele faz sempre por ser pontual. Às vezes atrasa-se por causa da ligação", disse ela.

"Posso falar com ele?" "Ele ficaria furioso." "Porquê?" "Se eles ouvem falar inglês numa chamada interurbana, é óbvio que ficam logo alerta.”

Junto às portas giratórias um homem com a cabeça ligada, fazendo lembrar um soldado cego acabado de chegar da frente, encaminhava-se para os lavabos das senhoras no momento em que duas mulheres saíam. As mulheres agarraram-no pelos braços e conduziram-no à porta certa. Katya abriu a mala de mão e tirou um caderno e uma caneta.

Ele vai tentar às dez e quarenta, dissera ela. Às dez e quarenta tentará a primeira ligação. Não falará muito tempo, dissera ela. É imprudente falar demasiado tempo, mesmo quando os telefones são seguros.

Katya, levantou-se e encaminhou-se para o telefone, afocinhando, como um soldado, sob o balcão do bengaleiro.

Talvez ele lhe diga que a ama, pensou Barley. "Amo-te tanto que arrisco a tua vida por mim." Talvez lhe diga isso. Ou limitar-se-á à conversa fiada da carta? Ou dir-lhe-á que ela é um preço aceitável para lavar a sua alma inquieta?

Katya estava de lado para ele, fitando atentamente as portas giratórias. Teria entrevisto algum perigo? Teria ouvido alguma coisa? Ou a sua mente estava já longe, com Yakov?

É assim que ela fica quando está à espera dele, pensou Barley como alguém que está pronto a esperar o dia inteiro.

O telefone soltou um toque rouco, como se tivesse poeira na laringe. Um sexto sentido tinha-a já guiado na direcção ao telefone, que por isso não grasnou segunda vez. Barley estava perto, mas mal situado para poder ouvir a voz dela no meio do tumulto de fundo do hospital. Katya tinha-lhe virado as costas, provavelmente por um desejo de privacidade, e tapava o ouvido esquerdo para ouvir melhor o amante. Barley só conseguia ouvi-la dizer "sim", "sim", "sim", subinissamente.

Deixe-a em paz!, pensou furioso. Já lho disse e vou voltar a dizer-lho este fim-de-semana. Deixe-a em paz, não a meta nisto. Trate disto com os homens cinzentos ou comigo!

O caderno aguardava aberto em cima de uma prateleira precária pregada ao pilar. Em cima do caderno, a caneta. Katya não tinha tocado em nenhum deles. Sim. Sim. Sim. Era isso que eu respondia na ilha. Sim. Sím. Sim. Viu os ombros dela erguerem-se e o pescoço afundar-se entre os ombros e assim permanecer e as costas esticarem-se como se ela tivesse respirado muito fundo ou como se um fio de prazer lhe tivesse abalado o corpo. O cotovelo ergueu-se para que a mão colasse ainda mais o auscultador ao ouvido, para que o som penetrasse mais fundo na sua cabeça. Sim. Sim. E que tal um não, para variar? Não, eu não me vou imolar por ti!

A mão que estava livre tinha encontrado o pilar e Barley viu os dedos separarem-se e retesarem-se e enclavinharem-se no estuque escuro. Viu a mão muito branca e perfeitamente imóvel e de repente aquela mão alarmou-o. Tinha encontrado um ponto de apoio e colava-se-lhe como se ele fosse o último elo que a ligava à vida. Katya colava-se à face do penhasco e o estuque do pilar era tudo o que a prendia entre o amante e o abismo.

Voltou-se, o auscultador ainda pegado ao ouvido, e Barley viu-lhe finalmente o rosto. Quem era aquela mulher? Em que se tinha tornado? Pela primeira vez via aquele rosto sem expressão nenhuma, e o telefone esmagado contra a têmpora era o revólver que alguém lhe apontava, ali, naquele instante.

O seu olhar era o olhar de um refém. Então o seu corpo começou a deslizar pelo pilar abaixo como se nada mais pudesse mantê-lo direito. De início foram apenas os joelhos que cederam, mas a cintura logo se esvaiu. Porém, nesse momento, já Barley a agarrava. Com um braço prendeu-a pela cintura, com o outro arrancou-lhe o telefone. Encostou-o ao ouvido e gritou "Goethe!", mas nada mais ouviu senão o sinal e desligou.

Era estranho, mas a verdade é que Barley se tinha esquecido até esse momento de que era afinal um homem possante. Começaram a andar, mas de súbito Katya tentou libertar-se, convulsionada por uma violenta revolta contra aquele homem que a prendia. Silenciosamente, disparou o punho fechado contra o maxilar de Barley, com tanta força que, por um momento, ele não viu outra coisa à sua frente senão uma luz estonteante. A reacção de Barley foi rápida. Prendeu-lhe as mãos junto ao corpo e puxou-a por debaixo do balcão e assim a conduziu ao longo do hospital e do parque de estacionamento. "É uma doente perturbada", explicava para si mesmo. "Uma doente perturbada ao cuidado do seu médico.”

Agarrando-a ainda, Barley despejou o conteúdo da malinha de mão sobre o tejadilho do carro, encontrou a chave, abriu a porta do lado do passageiro e empurrou-a para dentro. Depois, num ápice, deu a volta ao carro, abriu a outra porta e sentou-se no lugar do motorista, não fosse ela tentar de novo a fuga e arrancar subitamente.

"Quero ir para casa", disse ela. "Não sei o caminho." "Leve-me para casa", repetiu ela. "Mas eu não sei o caminho, Katya! Vai ter de me dizer por onde devo ir! Katya, está a ouvir-me?" Agarrou-a pelos ombros. "Sente-se direita. Deixe de olhar para a janela. Onde é que esta porcaria tem a marcha atrás?”

Barley começou a experimentar as mudanças mas ela interrompeu-o. Pegou na alavanca e brutalmente pô-la na marcha atrás, fazendo a caixa de mudanças guinchar.

"As luzes", disse ele. Barley já as tinha localizado, mas mesmo assim obrigou-a a ligá-las, na esperança de que a sua raiva a fizesse reagir. Avançou pelo macadame esburacado do parque, mas a meio teve de desviar-se subitamente para evitar uma ambulância que seguia a toda a velocidade. Lama e água saltaram para o pára-brisas, mas não havia limpadores porque não estava a chover. Parou novamente o carro, saiu num instante, pegou no lenço e procedeu a uma limpeza rápida que deixou o pára-brisas embaçado. Voltou para o carro.

"Esquerda", ordenou ela. "Mas rápido, por favor." "Não foi por aí que viemos, foi pela estrada à direita." "Essa só tem um sentido. Acelere." A voz dela era um murmúrio longínquo, mas ele nada podia fazer para a devolver à vida. Ofereceu-lhe o frasco de whisky. Ela repeliu-o. Barley avançava lentamente, ignorando os apelos dela. Faróis dianteiros reluziam no espelho, sempre à mesma distância. É Wicklow, pensou. É Paddy, Cy, Henziger, Zapadny, o batalhão todo. Os candeeiros de sódio iluminavam intermitentemente o rosto dela, mas era um rosto sem vida. Os olhos dela perdiam-se nas imagens aterradoras que lhe passavam pela cabeça. O punho fechado procurara a boca. Os dentes cravavam-se nas juntas dos dedos.

"Viro aqui?", perguntou ele asperamente. Mas teve de lhe gritar uma vez mais. "Tenho de virar aqui, Katya?”

Ela respondeu-lhe primeiro em russo, depois em inglês. "Agora. À direita. Vá mais depressa.”

Aquele era para ele um território absolutamente desconhecido. Cada rua vazia era igual à rua seguinte e à rua anterior.

"Vire agora. " "Esquerda ou direita?" "Esquerda!" Katya gritou a palavra com toda a força que tinha, uma, duas vezes. Depois do grito vieram as lágrimas, lágrimas como um rio, entre soluços desesperados, sufocantes. Então, gradualmente, os soluços foram-se esbatendo e, quando chegaram ao prédio onde ela morava, já tinham cessado. Barley puxou o travão de mão mas estava partido. Katya não esperou que o carro parasse para abrir a porta. Ele ainda tentou detê-la mas não foi a tempo. Numa corrida, Katya atravessou o passeio e o átrio do prédio, vasculhando na mala à procura das chaves. Encostado à porta, um rapaz com um blusão de cabedal parecia querer barrar-lhe o caminho. Mas nesse momento já Barley a tinha alcançado e o rapaz desviou-se num ápice para que eles passassem. Katya não esperou pelo elevador ou talvez se tivesse esquecido de que havia um elevador no prédio. Subiu as escadas a correr, seguida de perto por Barley. Passaram por um casal que se abraçava no escuro. No primeiro andar, sentado a um canto, estava um velho completamente embriagado. Subiram mais um lanço, e outro, e outro. Agora era uma velha que estava bêbeda, depois um rapaz. Subiram tantos lanços que Barley chegou a temer que ela se tivesse esquecido do andar em que morava. Até que, de súbito, a viu abrir a porta. Mal entraram, Katya correu para o quarto dos gêmeos, ajoelhou-se junto à cama com a cabeça pairando inquisitiva sobre os filhos, arquejante como um nadador desesperado, um braço arremessado sobre os dois corpos que dormiam.

Uma vez mais só havia o quarto dela. Barley conduziu-a até lá, porque nem mesmo ali, naquele espaço minúsculo, ela sabia o caminho. Katya sentou-se na cama a medo, como se não soubesse a altura que a cama tinha. Barley sentou-se ao lado dela, fitando o seu rosto apático, os olhos fechados que por um momento se entreabriram para logo se voltarem a fechar, não se aventurando a tocar-lhe porque aquele era um corpo rígido, um corpo em pânico, um corpo longe ele. Katya agarrava um pulso como se ele estivesse partido. Suspirou, um suspiro profundo. Barley pronunciou o nome dela, mas Katya pareceu não o ouvir; depois, pôs-se a pesquisar o quarto, minuciosamente. Fixa a uma das paredes havia uma bancada minúscula que fazia as vezes de toucador e de escrivaninha. No meio de um monte de cartas velhas via-se um caderno idêntico aos que Goethe usava. Uma reprodução de Renoir emoldurada por cima da cama. Barley tirou-a da parede e pô-la sobre o seu colo. O espião experiente rasgou uma folha do caderno, colocou-a sobre o vidro do quadro, tirou uma caneta do bolso e escreveu:

Conte-me. Barley pôs o papel à frente dela, ela leu-o com indiferença, sem largar o pulso. Encolheu os ombros, sem força. O ombro dela apoiava-se no dele, mas Katya não se dava conta disso. Tinha a blusa aberta e o abundante cabelo negro ficara desgrenhado por causa da corrida. Barley escreveu de novo Conte-me, depois agarrou-a pelos ombros enquanto os seus olhos lhe imploravam com um amor desesperado. Bateu com o indicador na folha. Pegou no quadro e comprimiu-o contra o colo dela para que ela respondesse. Ela fitou o papel e aquele Conte-me, soltou um longo e terrível suspiro e deixou cair a cabeça, de tal modo que Barley deixou de lhe ver o rosto, inteiramente coberto pela caótica cortina do seu cabelo.

Apanharam o Yâkov, escreveu ela. Barley pegou na caneta. Quem lhe disse? Yâkov, retorquiu ela. Que lhe disse ele exactamente? Vem a Moscovo na sexta-feira. Encontra-se consigo no apartamento de Igor às vinte e três horas. Traz-lhe mais material e responderá às suas perguntas. Leve uma lista com questões precisas. Será a última vez. Deve levar-lhe notícias sobre a publicação, datas, pormenores. E leve um bom whisky. Ele ama-me.

Barley pegou de novo na caneta. Foi Yâkov que falou? Ela acenou que sim. Porque é que diz que o apanharam? Porque ele usou o outro nome. Que outro nome? Damil. Era o combinado. Iliotr, se ele estivesse bem. Damil, se o apanhassem.

A caneta passava apressadamente de uma mão para a outra. Agora só Barley a usava, escrevendo pergunta atrás de pergunta. Ele cometeu algum erro escreveu.

Katya abanou a cabeça. Ele esteve doente. Esqueceu-se do código, escreveu Barley. Katya abanou uma vez mais a cabeça. Ele nunca se enganou? Katya abanou a cabeça, pegou na caneta e escreveu furiosamente: Ele chamou-me Mariya. Perguntou, está? Mariya? Mariya é o meu nome para o caso de haver. Se não há, o meu nome é Alina.

Escreva exactamente o que ele disse. Fala Damil. Está? Mariya? A minha conferência foi o maior sucesso de toda a minha carreira. Era mentira.

Porquê? Ele costuma dizer, na Rússia o único sucesso é não vencer. É uma piada que nós costumamos dizer. O que ele disse opõe-se deliberadamente a essa piada. O que ele me estava a dizer é que estamos perdidos.

Barley foi até à janela e olhou para o átrio do prédio e para a rua lá em baixo. Sombras negras povoavam o seu mundo interior, sombras negras e um profundo silêncio. Nada mexia, nada respirava. Mas ele estava preparado. Toda a sua vida o preparara para aquilo, ainda que nunca se tivesse apercebido disso. Ela era a mulher de Goethe, portanto se Goethe estava perdido, também ela o estava. Ainda não estava, porque até esse momento Goethe a tinha protegido com o último grão de coragem que lhe restava. Mas era apenas uma questão de tempo: bastava-lhe que eles estendessem o seu longo, enorme braço para a colherem da árvore.

Durante cerca de uma hora, Barley permaneceu à janela antes de voltar para a cama. Katya estava deitada, com os olhos abertos e os joelhos erguidos. Barley abraçou-a e puxou-a para si e sentiu aquele corpo frio esvair-se entre os seus braços, um corpo que começou a soluçar em ondas silenciosas e convulsivas, como se tivesse medo de que houvesse microfones a captarem o seu choro.

Barley pegou de novo na caneta e escreveu, em letras maiúsculas, nítidas e decididas: PRESTE ATENÇÃO AO QUE EULHE VOU DIZER.

As notícias iam passando nos ecrãs com poucos minutos de intervalo. Barley deixou o Mezh. Segue. Chegaram à estação de metro. Segue. Abandonaram o hospital, Katya apoiada em Barley. Segue. Os homens mentem mas o computador é infalível. Segue.

"Mas porque carga de água é que ele vai a conduzir?", perguntou alarmado Ned quando apareceu essa informação.

Sheriton estava demasiado concentrado nas suas coisas para lhe poder responder, mas Bob, que se encontrava de pé atrás de Ned, ouviu a pergunta e tratou de dar a sua opinião.

"Os homens gostam de conduzir as mulheres, Ned. Ainda estamos na era machista.”

"Obrigado", retorquiu educadamente Ned. Clive exibia um sorriso de aprovação. Intervalo. A sequência pára enquanto Anastasia acompanha o desenrolar dos acontecimentos. Anastasia é uma sexagenária tempestuosa, nascida na Lituânia, que está na Casa da Rússia vai para vinte anos. Anastasia tinha forçosamente de ser a escolhida para vigiar a sala de espera.

Eis o que diz a lenda: Anastasia passou duas vezes frente ao bengaleiro; a primeira vez, quando foi aos lavabos, a segunda, quando voltou para a sala de espera.

Quando passou pela primeira vez, Barley e Katya estavam sentados num banco à espera do telefonema.

Quando passou pela segunda vez, Barley e Katya estavam de pé, junto ao telefone, e pareciam abraçar-se. Uma das mãos de Barley 

tocava o rosto de Katya, esta tinha também uma mão erguida, a outra caía-lhe colada ao corpo.

Nesse momento já teriam atendido a chamada? Anastasia não sabia. Embora se tivesse metido num cubículo dos lavabos e tivesse tentado escutar tudo o que se passara no bengaleiro, a verdade é que não ouvira o telefone tocar. Por isso, ou a chamada não se tinha efectuado ou então já tinha terminado quando ela passou pela segunda vez frente ao bengaleiro.

"Mas por que raio é que ele a estava a abraçar?", perguntou Ned. "Talvez ela tivesse poeira nos olhos", retorquiu azedamente Sheriton, de olhos postos no ecrã.

"Foi ele quem conduziu", insistiu Ned. "Ele não pode conduzir carro nenhum em Moscovo, mas a verdade é que quem guiou foi ele. Quem guiou o carro no passeio ao campo foi ela. Foi ela quem conduziu o carro até ao hospital. E de repente, sem mais nem menos, é ele que se senta ao volante. Porquê?”

Sheriton pôs o lápis em cima da secretária e com o indicador tentou folgar um pouco o colarinho. "Então o que é que arrisca, Ned?A Ave Azul fez ou não fez a chamada? Vá, diga lá qual é a sua aposta.”

Apesar de tudo, Ned teve a decência de encarar seriamente a pergunta. "Possivelmente fez. Se não tivesse feito, eles teriam continuado à espera. “

"Talvez ela tivesse ouvido alguma coisa de que não gostou. Más notícias, por exemplo", sugeriu Sheriton.

Os ecrãs tinham-se apagado, deixando a sala envolta numa luz pálida.

Sheriton tinha um gabinete à parte, feito de pau-rosa e improviso. Mudámos para lá o nosso acampamento, servimo-nos de café, esperámos.

"Que raio é que ele está a fazer no apartamento dela durante tanto tempo?", perguntou-me Ned, num aparte. "Tudo o que ele tem a fazer é obter a informação sobre a hora e. o local do encontro. Já deve ter essa informação há duas horas.”

"Talvez tenham feito uma pausa para o amor", disse eu. "Quem me dera que assim fosse." "Se calhar foi comprar outro chapéu", comentou rispidamente Johnny, que nos tinha ouvido apesar de estarmos a falar muito baixo.

"Ao ataque!", disse Sheriton ao ouvir a campainha, e todo o grupo se encaminhou para a sala de controlo.

Um mapa iluminado das ruas da cidade mostrava-nos o apartamento de Katya assinalado com uma luzinha vermelha. O local de encontro ficava trezentos metros a leste do apartamento, na esquina sueste de duas ruas principais assinaladas a verde. Barley devia estar nesse momento a avançar.pelo passeio sul, caminhando junto à berma. Ao chegar ao ponto de encontro, devia abrandar o passo como se estivesse à procura de um táxi. O nosso carro passaria nesse momento. Barley tinha sido instruído para dizer ao condutor o nome do hotel em voz bem alta e negociar o preço através de gestos.

Chegando ao segundo largo, o carro meteria por uma rua lateral e entraria num terreno onde estavam a ser construídos prédios. Nesse terreno encontrava-se o nosso camião, com as luzes apagadas; o motorista parecia dormitar na sua cabina. Se a antena estivesse puxada, o carro faria um círculo no sentido da direita e voltaria para junto do camião.

Caso contrário, o plano abortaria.

O relatório de Paddy chegou aos ecrãs à uma da manhã, tempo de Londres. Menos de uma hora depois já nós tínhamos acesso ao conteúdo das gravações, disparado pelas antenas da embaixada americana. O relatório seria mais tarde arrasado e despedaçado de todas as maneiras e feitios. Para mim, essas páginas de Paddy permanecem um modelo do relatório de campo factual.

Naturalmente que o escritor precisa de ser conhecido, já que não há criador neste mundo que não tenha as suas limitações. Paddy não era propriamente um brilhante psicólogo, mas era uma infinidade de outras coisas, um antigo gurkhal posteriormente membro das forças especiais e finalmente oficial dos serviços de espionagem, um linguista, um planeador e um improvisador bem ao gênero de Ned.

Para a sua personagem moscovita, tinha escolhido uma aparência tão ridiculamente inglesa que os não-iniciados o elegiam como tema favorito das suas piadas: os shorts pelo joelho que usava no Verão quando dava longos passeios pelos bosques de Moscovo; as suas longas viagens no Inverno, quando enchia o seu Volvo com esquis velhos e bâtons de bambu e provisões e finalmente com a sua incrível pessoa, equipada com um gorro de pele que parecia ter vindo directamente dos comboios do Árctico. Mas só um homem inteligente sabe fazer de parvo e suportar um tal papel durante muito tempo, e Paddy era um homem inteligente, ainda que mais tarde se tivesse tornado cómodo levar as suas excentricidades à letra.

No que toca ao controlo da sua heteróclita colecção de pseudo-estudantes de línguas, agentes de viagens, pequenos negociantes e cidadãos de outros países, Paddy era excelente. O próprio Ned não o poderia superar. Velava por eles como um dedicado pároco de aldeia e todos eles, quando entregues aos seus trabalhos solitários, se revelavam à altura das expectativas do mestre. Não era culpa sua que as qualidades que faziam dele um condutor de homens o tornassem também vulnerável ao logro.

Mas voltemos ao relatório de Paddy. Em primeiro lugar, Paddy ficou surpeendido com a precisão da descrição de Barley; a gravação corrobora indubitavelmente a sua surpresa. A voz de Barley denota uma segurança que não encontrámos em qualquer outra gravação. Paddy ficou impressionado com a determinação de Barley e com a sua devoção à missão de que estava incumbido. Comparou o Barley que teve à sua frente no camião com o Barley que tinha interrogado antes da viagem a Leninegrado e a evolução registada não deixou de o entusiasmar. E tinha razão. Barley era outro homem, um homem que evoluíra muito.

 

“ Soldado nepalês do exército britânico. (N. do T.)

 

A descrição de Barley, por outro lado, condizia com todos os factos verificáveis à disposição de Paddy, desde o encontro à saída do metro e da viagem ao hospital, até à espera no banco e ao inaudível toque do telefone. Katya estava ao pé do telefone quando ele tocou, disse Barley. Ele quase não o ouvira tocar. Não admirava que Anãstasia não tivesse ouvido nada, concluiu Paddy. Katya devia ter-se literalmente atirado ao telefone mal o ouviu tocar.

A conversa entre Katya e a Ave Azul tinha sido curta, dois minutos no máximo, disse Barley. O que também encaixava perfeitamente. Sabia-se que Goethe tinha medo das conversas longas ao telefone.

Dispondo de tantas garantias e da certeza de que Barley estava a cumprir bem a sua função, era natural que Paddy não tivesse pensado em levar imediatamente Barley para a embaixada e em mandá-lo de volta para Londres, preso e amordaçado no entanto foi isto mesmo que algumas vozes defenderam mais tarde. E no meio deste coro, tínhamos obviamente a voz de Clive.

Por essa altura também não faziam muito sentido os três mistérios que apoquentavam Ned o abraço, a viagem de volta com Barley ao volante, as duas horas que passaram juntos no apartamento. De facto, tínhamos forçosamente de entender as respostas de Barley como Paddy as entendeu, curvado sobre a luz baixa que incidia sobre a mesa no interior do camião, o rosto reluzindo do calor. Há o ruído de fundo do ar condicionado. Ambos têm auscultadores, entre eles encontra-se um microfone em circuito fechado. Barley murmura a sua história, em parte para o microfone, em parte para o seu chefe local. Paddy não teria decerto encontrado uma atmosfera tão dramática em todas as noites de aventura que passou na Fronteira Noroeste.

Oculto, Cy ouve a conversa com um terceiro par de auscultadores.

O camião é de Cy, mas ele tem ordens para deixar Paddy fazer as honras da casa.

"Foi nesse momento que eu reparei que ela estava toda tremeliques", diz Barley, emprestando ao interrogatório um tom de conversa de homens que, evidentemente, faz sorrir Paddy. "Não admira, andou excitada toda a semana com esta chamada e de repente a chamada está feita e ela vai-se abaixo. Provavelmente não a ajudou nada, eu estar ali com ela. Se eu não estivesse com ela, creio que ela se a uentaria até chegar a casa. “

"É provável", concordou Paddy, compreensivo. "Aquilo foi de mais para ela. Ouvir a voz dele, saber que ele estará em Moscovo dentro de dias, as preocupações que ela tem por causa 

dos filhos e por causa dele, e dela também -, tudo isso foi de mais para ela. “

Paddy compreendeu perfeitamente. Nos seus tempos conhecera umas quantas mulheres dadas a explosões sentimentais e era um homem traquejado no sortido de razões que as levavam ao pranto.

A partir daí tudo fluiu naturalmente. O logro volveu sinfonia. Barley tinha feito tudo o que lhe era possível para a confortar, mas ela estava tão mal que se viu obrigado a abraçá-la e a arrastá-la para o carro e a guiar o carro.

No carro ela continuou a chorar mas quando chegaram a casa ficou melhor. Barley fez-lhe um chá e afagou-lhe as mãos e só se foi embora quando a achou em condições de digerir o sucedido.

"Bem feito, sim senhor", disse Paddy. E se, ao dizer isto, Paddy faz lembrar um oficial do Exército Indiano do século XIX felicitando os seus homens depois de uma carga de cavalaria absolutamente inútil, é unicamente porque ficou impressionado com o relato e porque a sua boca está demasiado perto do microfone.

Há por fim a pergunta de Barley, e é aí que Cy entra. Ouvida agora, e passadas que foram muitas águas, não há dúvida que tal pergunta trai óbvios intentos ilícitos. Mas não foi assim que Cy a ouviu, nem tão-pouco Paddy. E em Londres só uma pessoa a ouviu com ouvidos desconfiados Ned, cuja impotência desaguava agora num profundo desalento. Ned estava a transformar-se no pária da sala de controlo.

"Ah... já me esquecia... então e a lista das compras? Já está pronta?", diz Barley ao despedir-se. A questão não surge isoladamente, mas integrada numa série de pequenas preocupações administrativas. "Quando é que me passam a lista das compras para as mãos? Já estou a ficar impaciente ... ", diz ele, num tom de rotina.

"Porquê?", diz Cy, uma voz nas sombras. "Bom, não sei, mas não era melhor eu estudá-la um pouco antes de a passar a Goethe?”

"Não há nada para estudar", diz Cy. "São questões escritas, respostas de sim ou não, e é da maior importância que você não conheça nenhuma das perguntas. Obrigado pelo interesse, mas nada feito.”

"Então quando é que ma passam?" "A lista das compras é um assunto a tratar o mais tarde possível", diz Cy.

Quanto à opinião de Cy sobre o estado de espírito de Barley, há uma pepita que ficou. Ao que consta, foi este o seu comentário: "Bom, seja como for, com os britânicos, todo o cuidado é pouco. Nunca se sabe o que se passa naquelas cabeças.”

Pelo menos nessa noite, Cy tinha alguma razão do seu lado.

"Nem uma má notícia", insistia Ned, enquanto Brock passava a gravação pela terceira vez ou pela trigésima vez.

Estávamos de novo na nossa Casa da Rússia. Era o nosso refúgio temporário. Era como se tivéssemos voltado ao princípio. Anunciava-se a manhã, mas estávamos demasiado despertos para pensar em dormir.

"Nem uma má notícia", repetiu Ned. "Só boas notícias. “Estou bem. Em segurança. Dei uma grande conferência. Vou apanhar o avião. Até sexta-feira. Amo-te.” E então ela desata a chorar.”

"Por que não?" retorqui eu, contra a corrente dos meus pensamentos. "Ned, você nunca chorou de felicidade?”

"Ela chora tanto ou tão pouco que ele se vê obrigado a arrastá-la pelos corredores do hospital. Ela chora tanto ou tão pouco que nem consegue guiar. Quando chegam ao apartamento, ela desata a correr à frente dele como se ele não existisse, porque ela está imensamente feliz, pois a Ave Azul já não demora. E Barley conforta-a. Conforta-a por causa de todas as boas notícias que ela acaba de receber." A voz gravada de Barley tinha-se intrometido de novo. “E ele está calmo. Perfeitamente calmo. Naquela cabeça não há a mínima inquietação. Está tudo a andar sobre rodas, Paddy. Tudo a correr bem. É por isso que ela chora.” Claro, é por isso mesmo que ela chora. “

Ned recostou-se e fechou os olhos, enquanto a fidedigna voz de Barley continuava a entrar-lhe pelos ouvidos, via gravador.

"Aquele homem já não nos pertence", disse Ned. "Zarpou." Tal como Ned tinha zarpado, embora num sentido diferente. Ned tinha desencadeado uma grande operação. Agora julgava-se condenado a assistir ao seu inapelável desmoronamento. Nunca vi em toda a minha vida um homem tão isolado, exceptuando talvez eu mesmo.

Espiar é esperar. Espiar é inquietação. Espiar é sermos nós mesmos, ainda mais nós mesmos. As palavras mágicas do extinto Walter e do vivente Ned ressoavam aos ouvidos de Barley. O aprendiz herdara os feitiços dos mestres, mas a sua magia era agora mais poderosa do que a deles alguma vez tinha sido.

Barley chegara a alturas a que nenhum deles ascendera. Barley tinha um objectivo definido, os meios para o atingir e aquilo a que Clive teria chamado a motivação, ou determinação, se traduzido por vozes mais brandas. Tudo o que eles lhe tinham ensinado estava agora a dar os seus frutos, agora que Barley se encaminhava calmamente para uma batalha em que os enganaria. No entanto, não era a eles que intrujava, se é que intrujava alguém.

As bandeiras deles nada significavam para ele. Eram bandeiras que podiam flutuar a qualquer vento. Mas não eram elas que traía, se é que traía alguém. Ele não era a causa por que ia lutar. Sabia que batalha tinha de vencer e por quem a tinha de vencer. Sabia que sacrifício ia fazer, e estava preparado. Não eram eles que traía. Barley limitava-se a ser ele mesmo.

Não precisava das tíbias etiquetas e dos débeis sistemas a que eles recorriam. Era um homem sozinho, mas maior, mais grandioso que a soma de todos aqueles que tinham pensado poder controlá-lo. Todos aqueles que, para ele, eram a pior de todas as armas destruidoras, porque a sua existência justificava os alvos que escolhiam.

Brandamente, ou talvez não tão brandamente como isso, Barley descobrira a revolta. E a revolta era um fogo. Sentia já o cheiro dos gravetos, ouvia já os galhos crepitando.

Só o agora existia. Goethe tinha razão. Não havia amanhã, porque amanhã era a desculpa. Ou agora ou nada, e Goethe, ainda que transformado em nada, continuava a ter razão. Temos de abater os homens cinzentos que existem dentro de nós, temos de queimar os nossos fatos cinzentos e libertar tudo o que há de bom nos nossos corações, e esse é o sonho de qualquer alma decente, e mesmo por muito estranho que pareça de alguns homens cinzentos. Mas como, com quê?

Goethe tinha razão e não era por culpa sua ou de Barley que, por um mero acaso, os dois tivessem acabado por formar uma engrenagem perfeita. Com o fulgor que crescia no seu espírito, Barley sentia que o ligava àquele improvável amigo uma afinidade extraordinária. Transbordava de dedicação ao sonho desvairado que Goethe acalentava, aquele sonho que libertava de todas as amarras as forças da sanidade e que punha a nu todas as imundícies que o mundo escondia.

Mas Barley pouco discorria sobre a agonia de Goethe. Goethe estava no inferno e era muito provável que Barley fosse ter com ele em breve. Hei-de chorá-lo quando tiver tempo, pensava. Até lá, tinha de cuidar dos vivos a que Goethe, tão indignamente, tinha feito correr riscos e que, num derradeiro gesto de coragem, tinha conseguido proteger.

Para as tarefas mais próximas, Barley tem de usar os estratagemas dos homens cinzentos. Tem de ser ele mesmo, ainda mais ele mesmo do que alguma vez foi. Tem de esperar. Tem de enfrentar a sua inquietação. Tem de ser um homem de duas caras, interiormente reconciliado, exteriormente um arremedo de si mesmo. Secretamente, interiormente, tem de caminhar nas pontas dos pés, tem de ser um gato vigilante, um gato pronto a assanhar-se; no palco dos outros, tem de interpretar o Barley Blair que eles querem ver, tem de ser rigorosamente a criatura que eles criaram.

Entretanto, o jogador de xadrez estuda os seus lances. O negociador adormecido, sem que ninguém se dê conta, começa a despertar.

O editor está prestes a realizar o que nunca realizara, está prestes a tornar-se o sereno e frio intermediário entre a necessidade e o sonho.

Katya sabe, pensa ele. Ela sabe que Goethe foi apanhado. Mas eles não sabem que ela sabe, porque ela não se desmanchou ao telefone.

 

E eles não sabem que eu sei que Katya sabe. Em todo o mundo sou eu a única pessoa, exceptuando Katya e Goethe, que sabe que Katya sabe.

Katya continua livre. Porquê? Porque não lhe levaram os filhos, porque não lhe revistaram o apartamento, porque não puseram Martvey no manicómio, porque não a brindaram com nenhum dos tão corteses tratamentos tradicionalmente reservados a senhoras russas que servem de mensageiro a físicos da defesa soviética decididos a confiarem os segredos da nação a um editor ocidental arruinado.

Porquê? Também eu por enquanto estou livre. Não prenderam o meu pescoço a nenhuma parede.

Porquê? Porque eles não sabem que nós sabemos que eles sabem. Por isso eles querem mais. Querem-nos a nós, mas mais do que nós. Podem esperar por nós, porque querem mais. Mas o que é esse "mais"? Até onde vai a paciência deles? Como sabê-lo? Toda a gente fala, dissera Ned: não havia hipótese, era mesmo assim. Com os métodos de hoje toda a gente fala. Com isto queria dizer a Barley que não resistisse caso fosse apanhado. Mas Barley já não estava a pensar em si. Pensava em Katya.

Em cada noite, em cada dia que se seguiu, Barley foi encaixando as peças do puzzIe na sua cabeça, limando arestas ao seu plano enquanto aguardava, como todos nós, o prometido encontro com a Ave Azul, o encontro marcado para sexta-feira.

Ao pequeno-almoço, Barley comparecia pontualmente à parada, editor e espião modelo. E todos os dias, todo o dia, era ele a vida e a alma da feira.

Goethe, não posso fazer nada por ti. Nenhum poder na terra te arrancará às garras deles.

Katya, Katya ainda pode ser salva. Os filhos dela ainda podem ser salvos. Ainda que toda a gente fale, ainda que Goethe não consiga ser excepção.

Quanto a mim, nunca tive grandes possibilidades de salvação. Goethe deu-me a coragem, pensava, enquanto o seu secreto propósito ia ganhando forma dentro dele, e Katya deu-me o amor.

Não. Foi Katya quem me deu a coragem e o amor. E continua a dar-mos.

E a sexta-feira decorre tão calma como os dias anteriores. Nos ecrãs são raras as informações, e Barley vai-se preparando metodicamente para a grande Festa de Lançamento da Potomac & Blair no Espírito de Boa-Vontade e Glasnost, como rezam os nossos arrebicados 

convites, em forma de tríptico e com papel não cortado, impressos há menos de duas semanas pela tipografia dos Serviços.

E intermitentemente, com uma casualidade aparente, Barley certifica-se de que Katya continua bem. Telefona-lhe sempre que pode. Conversa com ela e fá-la usar a palavra "conveniente" com o um sinal de segurança. Em troca, inclui a palavra "francamente" na sua descontraída contribuição para aquelas conversas informais. Não discutem nada de pesado; não falam de amor, nem de morte, nem de grandes poetas alemães. Apenas:

Que tal vai isso? Diga-me francamente, Katya, a feira não a tem esgotado? Que tal vão os gémeos? E o Matvey? Continua a deleitar-se com o cachimbo?

O que, traduzido, significa amo-te, amo-te, amo-te, amo-te francamente.

Para se certificar melhor da segurança dela, Barley manda Wicklow espreitá-la no pavilhão socialista. "Ela está bem", informa Wicklow com um sorriso, indulgente com o nervosismo de Barley. "Perfeitamente normal.”

"Obrigado, meu velho", diz Barley. "Agradeço-lhe imenso a maçada.”

Da segunda vez, de novo por ordem de Barley, é o próprio Henziger quem vai vê-la. Talvez Barley se esteja a poupar para a noite. Ou talvez não confie nas suas próprias emoções. Mas ela ainda lá está, ainda está viva, ainda respira, e já vestiu mesmo o vestido para a festa.

No entanto, durante todo o tempo, mesmo quando regressa mais cedo que o costume ao hotel a fim de se antecipar aos seus convidados, Barley não pára de convocar o seu exército privado de factos alteráveis e inalteráveis, com uma lucidez que faria inveja ao mais experiente e comprometido dos advogados.

 "Gyorgy! Que maravilha! É fantástico! Onde está Varenka?" "Barley, meu amigo, salve-nos, pelo amor de Deus! Nós não gostamos mais do século xx do que vocês, ingleses. Vamos fugir dele juntos! Partimos hoje à noite, está bem? Compra você os bilhetes?”

"Yuri. Meu Deus, esta é a sua nova esposa? Deixe-o. Ele é um monstro.”

"Barley! Ouça! Tudo está a correr bem! Já não temos problemas! Dantes só podíamos suspeitar que era tudo uma grande bagunça! Agora basta-nos olhar para os jornais para o confirmarmos!”

"Misha! Como é que vai o seu trabalho? Melhor que bem?" "É a guerra, meu Deus, a guerra sem quartel, Barley. Primeiro temos de enforcar a velha guarda, depois temos de travar outra Estalinegrado!”

"Leo! Que bom voltar a vê-lo! Como está a Sonya?" "Barley, preste atenção! O comunismo não é uma ameaça! É uma indústria parasita que vive à custa dos erros que as bestas do Ocidente cometem!”

A recepção era na sala de espelhos ao cimo das escadas de um velho hotel do centro da cidade. Havia guardas à paisana fora do edifício, no passeio e mais alguns pairavam no hall e na escadaria e à entrada da sala.

Uma centena de pessoas tinha sido convidada pela Potomac & Biair. Oito tinham aceite, ninguém tinha recusado, mas já ali havia cerca de cento e cinquenta. Contudo, Barley preferiu ficar junto à entrada até Katya chegar.

Um bando de raparigas ocidentais irrompeu, escoltado pelos habituais e duvidosos intérpretes oficiais, todos homens. Um corpulento filósofo, também clarinetista, entrou de seguida, acompanhado pelo seu mais recente namorado.

"Alexander! É fantástico! Que maravilha!" Um siberiano solitário de nome Andrey, já bastante bebido, precisou de falar a Barley sobre um assunto de natureza vital. "O socialismo de partido único é um desastre, Barley. Destroçou-nos os corações. Mantenham o vosso pluralismo britânico. Vai publicar o meu romance?”

"Bem, eu não sei nada sobre esse assunto, Andrey", replicou cautelosamente Barley, dando uma olhadela para a entrada. "O nosso editor russo aprecia o seu trabalho, mas não crê que o mercado inglês esteja muito receptivo. Mas estamos a pensar no seu caso.”

"Sabe porque é que eu estou aqui hoje?", perguntou Andrey. "Diga lá." Outro divertido grupo entrou nesse momento, sem que Katya dele constasse.

"Eu vim para vos exibir a minha melhor roupa. Nós, russos, conhecemos demasiado bem os truques uns dos outros. Precisamos do vosso espelho ocidental. Vocês chegam, passam aqui uns dias, vão-se embora levando gravada a nossa melhor imagem, e isso faz-nos sentir importantes. Se publicaram o meu primeiro romance, a lógica seria publicarem o segundo. “

"Não, Andrey, essa não é a lógica, se o primeiro não tiver dado lucro", retorquiu Barley com uma firmeza pouco comum, no exacto momento em que Wicklow, para seu grande alívio, atravessou a sala na direcção dos dois.

"Já sabem que Anatoly morreu em Dezembro, na prisão, após uma greve de fome? Dois anos depois da fundação desta Grande Nova Rússia de que hoje desfrutamos?", prosseguiu Andrey, servindo-se de mais uma enorme dose de whisky, fornecido por cortesia da embaixada americana, em sinal de apoio a uma rússia mais sóbria.

"É claro que já ouvimos falar disso", atalhou Wicklow apaziaguadoramente. "Foi horrível.”

"Então porque é que não publica o meu romance?" Abandonando Wicklow à sua sorte, Barley estendeu os braços e correu, radiante, para a entrada. Natalie, uma soberba sexagenária de discreta beleza, acabava de chegar. Caíram nos braços um do outro.

"Então qual há-de ser hoje o nosso assunto de conversa, Barley? James Joyce ou Adrian Mole? O que é que lhe aconteceu para ter ficado subitamente com esse ar tão inteligente? Ah, já sei, é por se ter transformado num capitalista.”

Houve então uma debandada de metade dos presentes para o canto mais longínquo da sala, o que levou os guardas alarmados a assomarem à porta de entrada. O tumulto das conversas esbateu-se por momentos, mas logo se voltou a impor. O bar acabara de abrir.

Mas não havia ainda sinais de Katya.

"Hoje, sob a perestroika, tudo é muito mais fácil", dizia Natalie, com o seu irresistível sorriso. "As viagens ao estrangeiro já não são problema. A única declaração que temos de fazer aos nossos burocratas resume-se a uma descrição daquilo que pensamos de nós próprios. Para ir à Bulgária, por exemplo: os búlgaros, como é natural, precisam de nos conhecer antes da nossa chegada. Devem estar avisados do que os espera. Precisam de saber se somos pessoas inteligentes, medianas ou simplesmente normais. Os búlgaros precisam de se preparar com antecedência, e mesmo de ter tempo para pequenos aperfeiçoamentos. Precisam de saber se somos calmos ou excitáveis, pouco ou muito imaginativos. Depois de respondermos a estas questões simples e a mais um milhar de outras do mesmo gênero, passamos a assuntos mais importantes, tais como o endereço e o nome completo da nossa avó materna, a data do seu falecimento, o número da sua certidão de óbito e, caso eles achem conveniente, o nome do médico que a passou. Como vê, os nossos burocratas estão a fazer todos os possíveis para introduzir, rapidamente, uma regulamentação nova e moderada, para nos mandarem a todos, mais aos nossos filhos, de férias para o estrangeiro. Barley, de quem é que você anda à procura de cabeça no ar? Será que eu perdi o meu bom aspecto, ou já está aborrecido com a minha conversa?”

Barley deu uma gargalhada e, esforçando-se por manter os olhos nela, perguntou: "E o que é que você lhes respondeu?”

"Bem, disse-lhes que era muito inteligente, calma, discreta mas divertida e que os búlgaros ficariam encantados comigo. O que os burocratas querem é testar a nossa determinação. A esperança deles é que o facto de termos de enfrentar tantos departamentos nos esfrie a coragem e nos decida a ficar por cá. Mas as coisas estão a melhorar. Aliás, tudo está a melhorar um pouco. Talvez você não acredite, mas a perestroika funciona para nós, não é apenas fachada para estrangeiro ver. “

"Como está o seu cão, Barley?", murmurou uma voz masculina e triste junto a Barley. Era Arkady, imi escultor não oficial, acompanhado por uma bela namorada não oficial.

"Eu não tenho nenhum cão, Arkady. Porque é que pergunta?" "Porque a partir deste momento é mais seguro falarmos do nosso cão do que dos nossos amigos, se é que me faço entender.”

Barley virou a cabeça para seguir o trajecto do olhar de Arkady e deu com Alik Zapadny, no extremo oposto da sala, conversando com Katya. Pelo ar dos dois, devia ser conversa séria.

"Nós, os moscovitas, falamos hoje de uma maneira demasiado pengosa", continuou Arkady, de olhos fixos em Zapadny. "A nossa excitação tornou-nos imprudentes. Os informadores vão ter uma boa colheita no próximo Outono, mesmo que mais ninguém a tenha. Pergunte-lhe. Dir-se-ia que ele está no auge da carreira.”

"Alik, seu velho malandro, com que histórias está a massacrar esta pobre rapariga?", perguntou Barley, enquanto abraçava Katya, e, logo a seguir, Zapadny. "Eu de lá do fundo até a vi enrubescer. Cuidado com ele, Katya. O inglês dele é quase tão bom como o seu, mas muito mais fluente. Como está você, Katya?”

"Ah, obrigada", respondeu calmamente Katya. "Estou muíto bem".

Ela trazia o mesmo vestido que tinha usado no encontro no Odessa. Estava retraída, mas segura de si, embora o seu rosto revelasse a ansiedade torturada da perda. Dan Zeppelin e Mary Lou também estavam no grupo.

"Na realidade, estávamos a ter uma conversa particularmente interessante acerca de direitos humanos, Barley", explicou Zapadny, fazendo um gesto circular com o copo, como se estivesse a fazer uma colecta. "Não é verdade, Mr. Zeppelin? Nós ficamos sempre imensamente agradecidos aos ocidentais, quando eles nos ensinam como devemos comportar-nos com os criminosos, não sei se está a ver! Mas então qual é a diferença, pergunto eu, entre os países que encarceram algumas ovelhas ranhosas e aqueles que deixam à solta os seus gangsters? Na verdade, penso que acabei de encontrar uma boa base de negociação para os líderes soviéticos. Amanhã de manhã, vamos anunciar ao chamado Comité de Vigilância de Helsínquia que não queremos mais nada com eles, enquanto a Mafia americana não estíver atrás das grades. Que acha, Mr. Zeppelin? Nós soltamos os nossos, vocês prendem os vossos. É um pacto leal, parece-me.”

"Quer uma resposta educada ou uma resposta verdadeira?", atirou Dan, sobre o ombro de Mary Lou.

Outro grupo poliglota de convidados irrompeu pelo hotel, seguido, após breve pausa teatral, por nada mais nada menos do que o grande Sir Peter Oliphant em pessoa, rodeado por um séquito de carregadores russos e ingleses. O barulho cresceu, a sala encheu-se. Três correspondentes ingleses com um ar adoentado, inspeccionaram o bar desfalcado e desandaram. Alguém abriu o piano e começou a tocar uma canção da Ucrânia. Havia uma mulher que cantava bem e algumas outras juntaram-se-lhe num coro.

"Não, Barley, eu não sei o que o aterroriza", estava a responder Katya, ante a surpresa de Barley, que julgava não ter perguntado coisa nenhuma. "Estou. certa de que você é muito corajoso, como, aliás, todos os ingleses.”

No calor daquela sala e no turbilhão do momento, a excitação de Barley tinha-se bruscamente voltado contra ele. Sentia-se embriagado, mas não de álcool, porque durante toda a noite não fizera senão embalar um único whisky no copo, esquecendo-se de beber aquela coisa já requentada.

"Talvez não haja afinal revelação nenhuma", arriscou, falando, não só para Katya, como também para uma série de caras desconhecidas. "Talvez não haja afinal nenhum talento no fundo dos baús." Toda a gente ficou à espera, Barley também. Tentava olhar para todos eles, mas os seus olhos só viam Katya. O que é que ele tinha estado a dizer? O que é que eles tinham estado a ouvir? Todos aqueles rostos continuavam a fitá-lo, mas não havia neles qualquer luz, nem mesmo no de Katya; o que neles havia era apenas interesse. Prosseguiu. "Todos nós, durante anos e anos, imaginámos que havia grandes artistas russos à espera de serem descobertos". Vacilou. "É verdade, não é? Todos nós imaginámos grandes romances épicos, grandes peças de teatro. Grandes pintores, banidos, trabalhando em ateliers secretos. Sótãos abarrotando de coisas belíssimas, naturalmente ilegais. E com os músicos, o mesmo, não é verdade? Quer dizer, durante anos e anos, fartámo-nos de falar sobre isso. De falar e de sonhar. O prolongamento secreto do século xix. “E quando o degelo vier, eles surgirão de sob o gelo para nosso deslumbramento”, dizíamos nós uns aos outros. Pois então, onde diabo estão todos esses gênios? Terão morrido enregelados? Talvez a repressão tenha afinal resultado. É tudo quanto tenho a dizer.”

Seguiu-se um silêncio de estupefacção antes que Katya viesse em seu auxílio. "O talento russo existe e sempre existiu, Barley, mesmo nas piores crises. É indestrutível", disse ela como uma réstea da sua antiga firmeza. "Talvez tenha de adequar-se primeiro às novas circunstâncias, mas em breve acabará por se exprimir de forma brilhante. Estou certa de que era isto que você queria dizer.”

Henziger entretanto faz o seu discurso. É uma obra-prima de hipocrisia inconsciente. "Que a experiência pioneira da Potornac & Blair constitua um modesto contributo para a nova grande era do entendimento Leste-Oeste!", declara, inchado de convicção. A sua voz eleva-se e com ela o seu copo. Ele é o comerciante honesto, ele é todos os americanos decentes com o coração no sítio certo. E não há dúvida que ele é precisamente aquilo que pensa que é, porque o mau actor que há nele é uma capa facilmente detectável. "Contribuamos para a nossa mútua riqueza!", grita ele, erguendo o copo ainda mais alto. "Libertemo-nos uns aos outros! Façamos juntos os nossos negócios, conversemos e bebamos juntos, tomemos este mundo um lugar melhor. Senhoras e senhores à vossa saúde, à saúde da Potomac & Blair, à saúde do nosso proveito comum e à saúde da perestroika! Amen!”

Gritam por Barley. Spikey Morgan começa, Yuri e Alik Zapadny apoiam, e todos os velhos habitués, obviamente dentro da jogada, desatam a gritar, "Barley! Barley!" Num instante o salão inteiro está a gritar por Barley, alguns nem sabem porquê mas gritam, e por um momento ninguém sabe onde Barley se encontra. Mas, de repente, ei-lo que sobe para cima da mesa do bar, empunhando um saxofone emprestado. Começa a tocar "My Furiny Valentine", o tema que sempre tocara em todas as feiras do livro de Moscovo, enquanto Jack Henziger o acompanha ao piano, no seu estilo inconfundível de Fats Waller.

Os guardas que estavam à porta da sala e os do lia]] instalam-se nas escadas, enquanto as primeiras notas do canto de cisne de Barley procuram o caminho do mais puro som e ganham depois um vigor magnífico.

"Pelo amor de Deus, Barley, vamos comer ao novo restaurante indiano", protesta Henziger, já na rua, sob o olhar enfastiado dos toptuny. "Traga a Katya consigo! Reservámos uma mesa!”

"Não posso, Jack. Já estamos comprometidos. Temos um encontro marcado há já muito tempo”

Henziger está só a fazer teatro. "Ela precisa de assistência", acaba de lhe confiar Barley. "Vou levá-la daqui e convidá-la para uma ceia sossegada num sítio qualquer".

Mas Barley não levou Katya a cear na noite de despedida, como o confirmaram os irregulares antes de serem dispensados. E desta feita foi Katya, e não Barley, quem tomou a iniciativa. Levou-o ao local que todos os rapazes e raparigas das cidades russas conhecem e que fica situado precisamente no topo de qualquer bloco de apartamentos de qualquer dessas metrópoles. Não há nenhum russo da geração de Katya que não inclua esse cenário nas memórias dos seus primeiros amores. E um tal sítio existia também ao cimo das escadas do prédio de Katya, entre o último lanço e as águas furtadas, embora fosse mais procurado no Inverno do que no Verão, porque incluía o infecto e ressumante depósito das águas quentes bem como as fumegantes canalizações, consertadas a golpes de fita adesiva preta.

Mas antes de subirem, ela teve de ir inspeccionar Matvey e os gémeos e certificar-se de que estavam bem e em segurança, enquanto Barley esperava no patamar. Então, conduziu-o pela mão ao longo dos diversos lanços de escada até chegarem ao último, que era de madeira. Ela tinha uma chave que servia na porta enferrujada, a qual ordenava a todos os transgressores que não caíssem na tentação. E depois de ter aberto a porta e tornado a fechá-la, conduziu-o por entre as vigas até à pequena clareira de chão duro onde tinha preparado uma cama improvisada, com uma vaga vista para as estrelas através de uma clarabóia imunda e os gorgolejos das canalizações e o fedor de roupa a secar por companhia.

"A carta que você deu a Landau foi desviada", disse ele. "Acabou nas mãos dos nossos agentes. Foram eles que me mandaram vir ter consigo. Lamento imenso que tenha sido assim.”

Mas já não havia tempo para nenhum deles ficar chocado fosse com o que fosse. Ele pouco lhe tinha contado sobre o seu plano e nada acrescentou. Ficou entendido entre os dois que ela já sabia até demais. E, além disso, eles tinham assuntos mais importantes a tratar, pois foi também nessa noite que Katya contou a Barley tudo quanto, mais tarde, restou do conhecimento que ele pôde ter dela.

E ela confessou o seu amor por ele em termos suficientemente simples para que Barley suportasse a separação que ambos sabiam certa e imediata.

No entanto Barley não abusou da hospitalidade dela. Não queria semear a ansiedade entre os homens da frente, nem entre os que estavam em Londres. Regressou ao Mezh por volta da meia-noite, a tempo de tomar uma última bebida com os rapazes.

"Ah, Jack, o Alik Zapadny convocou-me para a tradicional despedida formal aos velhadas. É amanhã à tarde", confidenciou a Henziger enquanto saboreava o último whisky dessa noite no bar do primeiro andar.

"Quer que eu vá consigo?", perguntou Henziger. É que, tal e qual como os russos, Henziger não alimentava ilusões acerca das lamentáveis ligações de Zapadny.

Barley sorriu tristemente. "Você anda nisto há pouco tempo, Jack. A despedida é só para as velhas glórias, os que sobram dos dias em que não havia esperança.”

"E a que horas é isso?", perguntou Wicklow, sempre prático. "Acho que ele disse que era às quatro. Mas é uma hora muito estranha para beber um copo. Não, foi mesmo às quatro que ele disse. “

Então, desejou a todos uma noite santa e subiu para o céu no elevador, o qual, no Mezh, é uma gaiola de vidro que lentamente escorrega ao longo de um cabo de aço, para secreta inquietação de muitas almas honestas que o esperam cá em baixo.

Era a hora do almoço e, depois de tantas noites em claro e de tantos alvoreceres em sono, era de certo modo indecente que a bomba caísse em cheio na hora do almoço. Mas não havia dúvida: era mesmo uma bomba. Uma bomba entregue por mão própria. Uma bomba dentro de um envelope amarelo dentro de uma pasta metálica fechada à chave. O esquelético Johnny, da sucursal da Agência em Londres, irrompeu pela sala de controlo com a pasta. Desde a Embaixada, que ficava do outro lado da praça, até às nossas instalações, Johnny viera acompanhado por guardas. Atravessou a correr o primeiro piso e a correr subiu a pequena escada que conduzia ao gabinete de comando. Só quando lá chegou se apercebeu de que estávamos todos no salão em pau-rosa de Sheriton a comer sanduíches e a beber café.

Entregou a pasta a Sheriton e, cumprindo o seu papel de mensageiro, adoptou uma atitude de teatral expectativa, debruçando-se sobre Sheriton enquanto este lia em primeiro lugar a nota explicativa, que logo meteu no bolso, e depois a mensagem propriamente dita.

Depois, debruçou-se sobre Ned enquanto Ned lia a mensagem. Só quando Ned me passou a carta é que Johnny pareceu decidir que já a tinha lido o suficiente: era uma intercepção de um texto em código,  transmitido pelo Exército Soviético a partir de Leninegrado, interceptado na Finlândia pelos americanos e descodificado na Virgínia por um banco de computadores tão poderoso que seria capaz de iluminar Londres durante um ano inteiro.

De Leninegrado para Moscovo, cópia para Saratov.

O professor Yàkov Savelycv está autorizado a passar um fim-de-semana de descanso em Moscovo, na sequência da sua conferência na Academia Militar de Saratov, a realizar na sexta-feira. É favor tratar dos transportes e de outras formalidades.

"Pois muito obrigado, senhor funcionário da administração de Leninegrado", mumurou Sheriton.

Ned pegara uma vez mais na mensagem e relia-a. De todos nós, parecia ser o único que não tinha ficado impressionado.

"E foi só isto que eles apanharam?", perguntou. "Não sei, Ned", retorquiu Johnny, pouco preocupado em esconder a sua hostilidade.

"Aqui diz “um sobre um”. O que é que isto quer dizer? Pergunte se há mais algumas coisa. Se há, talvez não fosse má ideia você descobrir o que é que eles pescaram mais, se é que vale a pena". Esperou até Johnny ter abandonado o gabinete. "Perfeito", comentou acidamente. "Que banalidade, meu Deus, até parece que estamos a tratar com os alemães.”

E para ali ficámos à espera, debicando com um ar ausente as nossas sanduíches. Sheriton tinha enfiado as mãos nos bolsos e, de costas para nós, observava o trânsito silencioso para lá da janela de vidros fumados. Vestia um casaco preto de lã grossa. Através da vidraça interior, podíamos observar Johnny falando para um dos telefones supostamente seguros. Desligou e vimo-lo atravessar a sala, de regresso ao gabinete de Sheriton.

"Zero", anunciou. "O que é isso de zero?", perguntou Ned. "'Um sobre um” significa um sobre um. É um solo. Um solo sem acompanhamento. “

"Nesse caso trata-se de um bambúrrio, não é verdade?", sugeriu Ned.

"Dum solo", repetiu obstinadamente Johnny. Ned contornou Sheriton, que continuava de costas para nós. "RusselI, tente ver o que está por trás disto. Esta intercepção surge completamente isolada sem que se perceba porquê. Caiu do céu sem mais nem menos. Francamente, não me cheira a boa coisa. O que eles estão a ver é se nós mordemos a isca.”

Agora era a vez de Sheriton proceder a um segundo exame da folha. Quando finalmente falou, pôs um ar profundamente enfastiado: era evidente que atingira os limites da paciência.

"Ned, os criptógrafos deram-me todas as garantias de que a intercepção proveio de um monte de merda militar de qualidade muito inferior, produzido numa cagadeira do exército, colheita 1921. Ned, já ninguém trapaceia ninguém dessa maneira. Já ninguém procede assim. Não é a Ave Azul que se está a despistar, você é que está. “

"Talvez seja por isso mesmo que eles recorreram a esse processo! Não era precisamente isso que você e eu provavelmente faríamos? Atacar de maneira que ninguém espera?”

"Pois, talvez fizéssemos isso", concedeu Sheriton, como se o assunto lhe interessasse muito pouco. "Você meteu por esse caminho, não é agora que vai mudar de ideias.”

Clive no seu pior. "Ned, nós não vamos pedir ao Sheriton que suspenda a operação com o argumento de que está tudo a correr bem", disse ele com uma vozinha açucarada.

"Com o argumento de que no meio disto tudo há uns duendes a pregarem-nos partidas", corrigiu-o Sheriton, cada vez mais irritado, ao regressar ao gabinete num jeito lento e taciturno. "Com o argumento de que tudo o que nos corre bem esconde uma conjura do Krernlin, e de que sempre que lixamos tudo estamos a provar a nossa integridade. Ned, a minha Agência esteve quase às portas da morte por causa dessa doença. E vocês também. Não é por aí que nós vãmos hoje. Esta operação é minha e quem se lixa sou eu.”

"A operação é sua, mas o homem é meu", retorquiu Ned, "Perdemo-lo. Tal como perdemos a Ave Azul.”

"Claro, claro", disse Sheriton com uma afabilidade gelada. "Sem dúvida.”

Olhou sem a mínima simpatia para Clive. "Então, chefe, o que é que o senhor acha?”

Clive tinha os seus próprios processos para dar uma no cravo e outra na ferradura, todos eles já devidamente testados. "Russell se me permite que o trate assim -, Ned. Parece-me que ambos estão a ser um tanto ou quanto egotistas. Não se esqueçam que nós somos um serviço. Cada um de nós está integrado numa organização que nos transcende. Foram os nossos chefes e não nós próprios isoladamente que deram a benção a esta operação. Há nisto tudo um poder, uma vontade inerentes à organização, que são mais fortes do que qualquer um de nós.”

Uma vez mais te enganas, pensei eu. Esse poder, essa vontade, são menos fortes do que todos nós. O que Clive acabava de dizer era um insulto às capacidades de cada um de nós, excepto talvez de Clive que, por isso mesmo, precisava de dizer aquilo.

Sheriton voltou à carga, mas mantendo um tom razoavalmente cordial. "Ned, você faz alguma ideia do que acontecerá em Washington e em Langley se eu fizer abortar a operação agora? É capaz de imaginar o coro de risadinhas de hiena que vai ressoar do outro lado do Atlântico, na Defesa, no Pentágono, e entre os neanderthais, se eu fizer uma coisa dessas? É capaz de imaginar com que olhos tem sido visto até agora o material da Ave Azul?" Aparentemente sem qualquer rancor, apontou para Johnny que, sentado numa cadeira, distribuía o seu olhar esbugalhado pelos dois contentores . "É capaz de imaginar o relatório que este tipo, este Judas, teria de fazer? Nós temos andado a pregar a moderação, Ned, não sei se se deu conta. E depois de tanto pregarmos a moderação é que você me vem dizer para atirar. a Ave Azul aos chacais?! “

"O que eu quero dizer, Sheriton, é que não lhe dê a lista das compras.”

Sheriton inclinou o ouvido como se fosse ligeiramente surdo. "A quem é que não dou a lista, Ned? A Barley ou ao à Ave Azul?”

"A nenhum deles. Aborte." Só nesse momento Sheriton ficou realmente fora de si. Tinha estado a preparar-se para um tal momento e ei-lo que chegava. Postou-se frente a Ned, a pouco mais de meio metro dele, e, repentinamente, abriu furiosamente os braços, levando atrás deles as abas do fofo casaco de lã, com tanta ou tão pouca força que, por um momento, me fez lembrar um morcego demasiado gordo acometido de uma ira maligna.

"Pois muito bem, Ned! Vejamos qual poderia ser o nosso pior cenário, cozinhado à sua moda. Certo? Muito bem. Suponhamos que mostramos a lista das compras a Ave Azul e que ele afinal é o trunfo deles e não o nosso. Será que eu considerei essa possibilidade? Ned, fartei-me de considerar essa possibilidade. Se a Ave Azul é deles e não nossa, se Barley é deles, se a rapariga é deles, se todos ou algum dos jogadores falhar, o máximo que pode acontecer é a lista das compras mostrar muito bem mostrado tudo o que se passa no orifício anal dos Estados Unidos da América." Pôs-se a andar de um lado para o outro. "Mostrará aos soviéticos aquilo que nos foi oferecido pelo homem deles. Portanto, eles ficarão a saber o que é que nós sabemos.

O que já é mau. Os soviéticos ficarão também a saber o que é que nós não sabemos, e os porquês de não o sabermos. O que também é mau, mas ainda há pior. Inteligentemente analisada, a lista das compras pode revelar-lhes as lacunas da nossa máquina de obtenção de informações; se a análise for ínvulgarmente inteligente, revelará as lacunas do nosso arsenal, um arsenal grotesco, miseravelmente ridículo, incompetente e caricatamente excedentário. Porquê? Porque finalmente nós concentramo-nos naquilo de que temos medo, e isso é o que nós não podemos fazer e eles podem. Este é o lado desagradável desta coisa toda. Ned, eu sei perfeitamente quais são os saldos possíveis. Sei quais são os riscos. Sei o que podemos ganhar com a Ave Azul e o que ele nos pode custar se isto der para o torto. Se perco, é uma desilusão. Sei que posso perder. Não me impressiona. Se estamos errados, é uma merda completa. Já sabíamos que assim era quando nos encontrámos na Ilha Fantasma e agora sabemo-lo melhor porque agora é que a guerra começou. Mas este não é o momento para começarmos a hostilizar-nos uns aos outros, a menos que tenhamos uma razão muito, muito forte!” Abeirou-se uma vez mais de Ned. A "Ave Azul é sincera, Ned! Lembra-se? As palavras são suas. Essas palavras fizeram-me gostar de si!

E continuam a fazer-me gostar de si!-A Ave Azul conta-nos a verdade impoluta, a verdade tal e qual como ela a conhece. E os míopes dos meus chefes vão levar com ela no cu ainda que isso lhes custe os tomates. Está a ouvir-me, Ned? Ou será que já o pus a dormir?”

Mas Ned não se deixava influenciar pela sanha de Sheriton. "Não lhe dê a lista, Russell. Nós perdemo-lo. Se lhe der alguma coisa, dê-lhe fumo. “ "Fumo? O que é que quer dizer com isso? Pôr o Barley à defesa? Admitir que a Ave Azul não presta? Está a brincar comigo? Dê-me a prova, Ned! Não me venha com palpítes! Dê-me a merda da prova! Toda a gente em Washington me diz que a Ave Azul é a Bíblia Sagrada, o Taimude e o Corão! E agora vem-me você dizer para lhe dar fumo! Foi você que nos meteu nisto, Ned! Agora não fuja do tigre ao primeiro arranhão!”

Ned reflectiu por um momento no que Sheriton acabava de lhe dizer. Enquanto isso, Clive reflectia sobre o caso de Ned. Finalmente, Ned encolheu os ombros como que para dizer, talvez, que tanto fazia. Depois, regressou à sua secretária, sentou-se e para ali ficou sozinho, aparentemente lendo papéis. De repente pensei se ele também não teria uma Hannali, ele ou todos nós, que o mantém agarrado ao leme.

Talvez fosse verdade que a VAAP não tinha salas pequenas ou talvez Alik Zapadny, depois de tantos anos na prisão, tivesse uma compreensível aversão a tudo o que fosse divisões minúsculas.

Fosse como fosse, a sala que ele tinha escolhido para o embate parecia a Barley capaz de albergar o baile de um regimento, e a única coisa pequena que nela havia era o próprio Zapadny, agachado na extremidade de uma longa mesa como um rato no meio de uma jangada, disparando olhares dardejantes para o seu visitante, enquanto este avançava pelo soalho de tacos na sua direcção, os braços enormes balançando junto ao corpo, os cotovelos um pouco erguidos, e uma expressão no rosto que nem Zapadny, nem talvez qualquer outra pessoa, lhe tinha visto alguma vez: uma expressão que não era contrita, nem obscura, nem intencionalmente tola, mas que revelava uma firmeza de intenções quase ameaçadora.

Zapadny tinha disposto uns quantos papéis à sua frente, e uma pilha de livros ao lado dos papéis e um jarro de água e dois copos. E era evidente que queria dar a impressão de que o visitante o tinha apanhado no cumprimento dos seus afazeres; assim, não teria de o enfrentar a sangue-frio, sem adereços ou a protecção dos seus inúmeros assistentes.

"Barley, meu caro amigo, olhe que é muito simpático da sua parte passar por cá para despedir-se, deve estar tão ocupado como eu, faço ideia", começou Zapadny, falando a uma velocidade incrível. "Quer-me parecer que se a nossa indústria editorial continua a expandir-se assim, não temos outra hipótese senão empregar mais uma centena de pessoas e muito provavelmente ver-nos-emos na obrigação de procurar escritórios maiores." Com não pouco espalhafato continuou a mexer a remexer nos seus papéis, tendo mesmo assim tempo de puxar uma cadeira para Barley, num gesto que, para ele, seria representativo da antiga cortesia europeia. Mas Barley, como de costume, preferiu ficar de pé. "É para mim uma honra incalculável poder oferecer-lhe uma bebida nas nossas instalações, a uma hora em que o sol ainda nem chegou ao lais da verga, como nós dizemos, mas sente-se, Barley, sente-se, conversemos descontraidamente por uns momentos" ergueu as sobrancelhas e consultou o relógio -, "meu, Deus, devíamos ter um mês disto, e não apenas cinco dias! Então que tal vai o Caminho-de-Ferro Transiberiano? Quer dizer, não vejo nenhum problema básico nessa história, desde que a nossa posição seja respeitada, e as regras do jogo integralmente observadas por todas as partes contraentes. Que tal os finlandeses? Demasiado gananciosos? Ou o ganancioso é o seu Mr. Henziger? O que não há dúvida é que ele é uma criatura obstinada.”

Deu de novo com o olhar de Barley e o seu desconforto aumentou. Debruçado sobre ele, Barley não tinha nada o ar de quem queria discutir o Caminho-de-Ferro Transiberiano.

"Para lhe dizer a verdade, Barley, parece-me um tanto ou quanto estranho que tenha insistido tão peremptoriamente em encontrar-se comigo rigorosamente a sós", prosseguiu Zapadny cada vez mais desesperado. "Afinal este assunto foi já encaminhado sem quaisquer problemas para Mrs. Korneyeva. Ela e a equipa dela são directamente responsáveis pelo fotógrafo e por todos os arranjos práticos.”

Mas Barley tinha também um discurso preparado, com a diferença de que o nervosismo de Zapadny não o tinha contagiado. "Alik", disse ele, continuando a rejeitar o convite para se sentar, "esse telefone funciona?”

"Claro que funciona." "Oiça. Preciso de trair o meu país e estou com pressa. E o que eu quero é que você me ponha em contacto com as autoridades competentes, porque há determinadas coisas que têm de ser analisadas e combinadas previamente. E não me venha dizer que não sabe a quem é que tem de recorrer. Limite-se a fazer o que lhe peço, ou ainda fica muito mal visto pelos porcos que pensam que são os seus donos".

A tarde ia a meio, mas uma obscuridade invernosa pairava sobre Londres. Uma luz crepuscular banhava o pequeno escritório de Ned na Casa da Rússia. Estava recostado na sua cadeira, com os pés em cima da secretária, os olhos fechados e um sombrio whísky ao alcance  da mão e era fácil de ver que aquele não era o primeiro whísky do dia, longe disso.

"Então? O Clive Sem índia ainda está enclausurado com os nobres de Whitehall", perguntou-me com uma frivolidade cansada.

"Está na Embaixada Americana a tratar da lista das compras." "Pensei que nenhum britânico estava autorizado a cheirar essa lista.”

"Por enquanto estão a discutir questões gerais. Sheriton tem de assinar uma declaração nomeando Barley cidadão honorário americano. E Clive tem de acrescentar uma menção da sua lavra.”

"Dizendo o quê?" "Que Barley é um homem honrado, uma pessoa idónea e decente.”

"Foi você que lhe fez o rascunho?" "Claro." "Que parvo que você é", disse Ned num tom vagamente reprovador. "Acabam por enforcã-lo." Recostou-se de novo e fechou os olhos.

"A lista das compras vale assim tanto?", perguntei. Por uma vez, tinha a sensação de encarar alguma coisa com uma visão mais prática do que a de Ned.

"Oh, a lista das compras vale tudo o que há no mundo", respondeu Ned, indiferente à questão. "Se há nisto tudo algo que valha alguma coisa, só pode ser essa lista.”

"Importa-se de me dizer porquê?" Eu não tinha sido autorizado a partilhar dos segredos mais profundos do material a Ave Azul, mas sabia que se os tivesse partilhado não entenderia rigorosamente nada. Porém, Ned, o conscencioso Ned, tinha feito aulas extra. Tinha procurado as explicações dos nossos mestres, tinha almoçado com os nossos maiores cientistas da defesa no Athenaeum, a fim de com eles dissecar bem o caso.

"A confusão total", retorquiu com um ar de desdém. "A confusão mutuamente garantida. Nós espiamos os brinquedos deles. Eles espiam os nossos. Vigiamos as provas de pontaria uns dos outros, mas nenhuma das partes sabe para que alvos a outra aponta. Se eles apontam para Londres, será que vão acertar em Londres ou acabarão por atingir Birmingham? O que é o erro? O que é que é e não é deliberado? Quem é que está mais perto da probabilidade zero?" Nesse momento, Ned apercebeu-se do meu espanto, o que o deixou perfeitamente inchado. "Nós vigiámos os ensaios que eles fizeram com os ICBM, na península de Kamchatka. Aí os ICBM acertavam no alvo. Mas conseguirão eles acertar num silo Minuteman? Nós não sabemos, eles também não. Muito simplesmente porque os armamentos mais poderosos tanto os de um lado, como os do outro nunca foram testados em condições de guerra. As trajectórias dos testes não são as que eles hão-de usar quando a festa começar. A terra, Deus a abençoe, não é um globo perfeito. Aliás, com a idade que ela tem,  como poderia sê-lo? A densidade da velhota é variável. Tal como a sua força de gravitação quando as coisas voam por cima dela, como mísseis e ogivas. Por isso é preciso levar em conta os desvios. Os nossos especialistas em balística tentam compensá-los nas suas calibragens. Goethe também tentou. Os nossos têm aproveitado os dados dos satélites de observação da terra e talvez tenham mais êxito do que Goethe. Ou talvez não. Só ficaremos a saber quando o abençoado balão for pelos ares, tal como eles, donde resulta que ninguém ficará a saber, porque só se pode fazer a experiência uma vez." Espreguiçou-se com um prazer óbvio. O assunto parecia agradar-lhe. "De maneira que os campos dividem-se. Os falcões gritam, “Os soviéticos atingiram uma precisão extrema! Conseguem enrabar uma mosca a dez mil milhas de distância!” E as pombas respondem, “Nós não sabemos o que os soviéticos são capazes de fazer, e os soviéticos não sabem o que eles próprios são capazes de fazer. E quem não sabe se a sua espingarda funciona, não vai certamente disparar primeiro. É por causa desta incerteza que nós nos portamos bem”, dizem as pombas. Mas este não é um argumento capaz de satisfazer a mentalidade prosaica dos americanos, porque a mentalidade prosaica dos americanos é completamente avessa a conceitos obscuros ou visões grandiosas. E ainda menos ao nível das muito prosaicas coisas militares. Ora acontece que, o que Goethe diz, constitui uma heresia ainda maior. O que ele diz é que não há outra coisa senão incerteza. E eu concordo inteiramente com ele. Por isso, os falcões odiaram-no e as pombas ficaram tão contentes que, no meio da festa, até se penduraram dos cadelabros." Bebeu uma vez mais. "Se ao menos Goethe tivesse ajudado o pessoal da balística... Nesse caso, tudo teria corrido melhor", disse ele num tom de censura.

"E a lista das compras?", repeti. Com um ar bizarro, Ned inspeccionou o conteúdo do copo. "Meu caro Palfrey, nós estudamos os alvos e a maneira de os atingir, baseando-nos naquilo que cremos saber acerca do outro lado. E vice-versa. Ad infinítum. Consolidamos a protecção dos nossos silos? Que interessa isso, se o inimigo não consegue atingi-los? Transformamo-los em fortalezas inexpugnáveis se é que sabemos como ao preço de biliões? E na realidade já estamos a fazer isso, ainda que pouco se fale no assunto. Ou protegemo-los de uma forma imperfeita com a SDI, a um preço ainda mais alto? A resposta depende de quais são os nossos preconceitos e de quem assina os nossos cheques. A resposta variará conforme formos fabricantes ou meros cidadãos com os impostos para pagar. Pomos os nossos mísseis em comboios e ou em auto-estradas ou estacionamo-los em veredas no meio do campo, que é a última moda? Ou defendemos que isso é tudo merda e que o melhor é mandá-los para o inferno?”

"Então estamos no fim ou no princípio?", indaguei. Ned encolheu os ombros. "Mas alguma vez estivemos no fim? Se você ligar a televisão, o que é que vê? Os líderes dos dois lados  trocando abraços muito afectuosos. Até choram! Estão cada vez mais parecidos uns com os outros. Hurra, acabou o pesadelo! Tudo tretas. Veja a coisa por dentro que logo se apercebe de que o quadro nem retocado foi. “

"E se eu desligar a televisão? O que é que vejo?" Ned já não sorria. Longe disso. O seu rosto bondoso estava mais sério do que nunca, embora a sua raiva se é que era raiva parecesse dirigir-se unicamente contra si. "Se desligar a televisão, vê-nos a nós. Escondidos atrás das nossas máscaras cinzentas. Dizendo uns aos outros que estamos a defender a paz".

A nebulosa verdade de que Ned falava foi-se desenhando lentamente e através de uma série de imagens distorcidas, como geralmente acontece no nosso supramundo secreto.

Avisavam repetidamente os nossos ecrãs que às seis horas da tarde Barley fora visto a sair dos escritórios da VAAP. Uma rajada de inquietação varreu a sala de controlo, já que era muito possível que Barley estivesse bêbedo, tanto mais que Zapadny era um aficionado dos copos e quem bebia uns vodkas de despedida com ele, arriscava-se a despedir-se para sempre de toda a vodka do mundo. Barley apareceu à porta da rua e com ele Zapadny. Abraçaram-se com uma afectuosidade teatral na soleira da porta, Zapadny muito afogueado e um tanto ou quanto nervoso nos seus movimentos e Barley bastante rígido, o que explica o receio dos informadores de que Barley estivesse bêbedo e a decisão um tanto ou quanto estranha de o fotografarem como se, congelando aquele momento, pudessem por artes mágicas devolvê-lo à sobriedade. E como esta é a última fotografia do seu processo, bem pode o leitor imaginar com que atenção ela foi esquadrinhada. Barley tem Zapadny nos seus braços e há uma força nítida no abraço que os une, pelo menos da parte de Barley. Na minha imaginação e talvez só na minha é como se Barley estivesse a manter de pé o pobre coitado, para lhe dar coragem para cumprir a sua metade do contrato; é como se Barley estivesse literalmente a insuflar-lhe coragem. E o cor-de-rosa faz um efeito estranhíssimo. A sede da VAAP fica numa antiga escola da Rua Bolshaya Bronnaya, no centro de Moscovo. A escola, creio eu, foi construída na viragem do século, com janelas enormes e fachada de estuque. E esta fachada foi recentemente pintada num tom de rosa claro que, na fotografia, se transformou num laranja flamejante, possivelmente devido aos últimos raios de um sol de fogo. Os dois homens enlaçados surgem por isso envoltos por uma medonha auréola escarlate, como se um clarao vermelho os tivesse iluminado naquele momento. Um dos informadores conseguiu mesmo entrar no hall do edifício, sob o pretexto de que queria ir ao café, e tentou fotografá-lo do lado oposto. No entanto, entre ele e o par enlaçado, interpôs-se um indivíduo de elevada estatura que assistia à cena no passeio. Junto à banca dos jornais, um segundo homem, tão alto quanto o primeiro, bebia qualquer coisa de uma caneca, mas sem muita convicção, já que os seus olhos estavam também postos nas duas figuras que se abraçavam no passeio.

Os informadores não tomaram nota da quantidade de pessoas que entraram ou saíram da VAAP durante as duas horas em que Barley lá esteve, mas como poderiam tê-lo feito? Não faziam a mínima ideia se os visitantes iam negociar direitos de autor ou segredos de Estado.

Barley regressou ao seu hotel, onde bebeu um copo com um grupo de camaradas ligados ao negócio dos livros, entre os quais Henziger, que, para grande alívio de Londres, pôde confirmar que Barley não estava bêbedo bem pelo contrário, o homem estava perfeitamente calmo e concentrado.

Barley mencionou de passagem que estava à espera de um telefonema de um dos assistentes de Zapadny. "Estamos a dar os últimos retoques naquela história do Transiberiano", disse ele a Henziger. E por volta das sete, confessou-se subitamente faminto, de modo que Henziger e Wicklow decidiram levá-lo ao restaurante japonês, convidando para a função duas animadas jovens da Simon & Schuster, segundo Wicklow um verdadeiro antídoto para qualquer tensão, e portanto as companheiras ideais para quem, como Barley, ia ter um encontro muito sério.

Durante o jantar, Barley teve um desempenho tão fulgurante que as jovens tentaram convencê-lo a voltar com elas para o Nacional, onde um grupo de editores americanos oferecia uma festa. Barley respondeu que tinha um encontro, mas que talvez ainda fosse à festa, caso o encontro não demorasse muito.

Às oito horas em ponto, segundo o relógio de Wicklow, Barley foi chamado ao telefone e recebeu a chamada no restaurante, a menos de cinco metros da mesa onde o grupo estava. Por uma questão de rotina, Wicklow e Henziger apuraram o ouvido para ver se apanhavam as suas palavras. Wicklow lembra-se de ter ouvido "Só isso me importa". Henziger crê ter ouvido "Negócio feito", mas admite que pudesse ser "nada feito" ou mesmo "ainda não é uma realidade".

Fosse como fosse, Barley veio mal-humorado do telefone e queixou-se a Henziger de que os sacanas continuavam a exigir demasiado dinheiro. Henziger atribuiu aquele mau-humor ao cansaço e à tensão, mais do que a qualquer interesse pelo projecto transiberiano.

Um quarto de hora depois, o telefone voltou a tocar e Barley, dessa feita, regressou sorridente. "Conseguimos!", disse radiante, para Henziger. "Está selado, assinado e em marcha! Eles nunca voltam atrás com a palavra dada." Perante o que Wicklow desatou a bater palmas e Henziger assinalou que "precisávamos de mais uns quantos assim em Moscovo.

 

” No original, respectivamente "we've got a deal", "not a deal" e "not yet real", e daí a confusão de Henziger. (N. do T.)

 

Parece não ter ocorrido a nenhum deles que Barley nunca mostrara um entusiasmo tão fulgurante perante um acordo editorial. Mas nessa altura Wicklow e Henziger não pensavam noutra coisa senão no grande golpe da noite.

As conversas de Barley ao jantar foram mais tarde reconstituídas com todo o cuidado, mas sem qualquer resultado. Falou muito mas não estava nervoso. O grande tema foi o jazz, o seu ídolo Slim Gaillard. Os grandes eram sempre proscritos, defendeu. O que era o jazz senão uma forma de protesto? O jazz tinha regras acentuou mas mesmo essas regras acabavam por ser infringidas pelos improvisadores dignos desse nome.

E toda a gente concordou com ele, claro, claro, viva a diferença, viva a dissidência! viva o indivíduo, abaixo os homens cinzentos! Toda a gente concordou, mas ninguém entendeu o verdadeiro significado daquelas palavras. Mas, uma vez mais, porque haveriam de entender?

Às nove e dez, com quase duas horas à sua frente, Barley anunciou que ia descansar um bocado para o seu quarto, e além disso tinha cartas para escrever e uns assuntos para estudar. Tanto Wicklow como Henziger se ofereceram para o ajudarem, já que tinham ordens para não o deixarem sozinho, sempre que uma tal possibilidade se apresentasse. Mas Barley declinou as suas ofertas e nenhum se atreveu a insistir.

De maneira que Henziger ocupou o seu posto no quarto ao lado e Wicklow instalou-se no hall, enquanto Barley descansava, embora, na realidade, não lhe tenha sido possível descansar um segundo que fosse, pois os trabalhos a que se dedicou raiam o heróico.

Num breve espaço de tempo, terá escrito nada mais nada menos do que cinco cartas, isto para não falar de dois telefonemas para Inglaterra, um para cada um dos seus filhos, ambos escutados em território britânico e comunicados depois a Grosvenor Square, ambos sem consequências operacionais. Barley estava unicamente interessado em saber notícias da família e em perguntar pela neta, que tinha quatro anos. Insistiu para que ela fosse ao telefone, mas a criança ou era demasiado tímida ou estava demasiado cansada para poder falar com ele. Quando Anthea, a filha, lhe perguntou como estava a sua vida amorosa, Barley respondeu "preenchida", resposta que foi considerada invulgar, mas a verdade é que, naquele momento, as circunstâncias também eram invulgares.

Só Ned reparou que Barley nada dissera quanto ao seu regresso a Londres no dia seguinte, mas Ned já era nessa altura uma voz no deserto, e Clive punha seriamente a hipótese de o afastar por completo do caso.

Barley escreveu também duas cartas mais breves, uma para Henziger  e outra para Wicklow. E como ninguém as abriu sequer (pelo menos foi isso o que os laboratórios mais tarde concluíram) e o que é ainda mais de realçar no hotel as deixou nos quartos certos às oito horas em ponto da manhã seguinte, presumiu-se que tais cartas constituíam de algum modo parte do pacote que Barley negociara na VAAP.

As cartas notificavam os dois homens de que, se deixassem calmamente o país nesse mesmo dia, levando Mary Lou consigo, nada de mal lhes aconteceria. Para além do aviso, Barley tinha uma palavra de conforto para ambos.

"Wickers, há em si um verdadeiro editor. Não o perca de vista!" E para Henziger, "Jack, espero que isto não signifique para si uma reforma prematura em Salt Lake City. Diga-lhes que a verdade é que nunca teve muita confiança em mim. Se eu próprio não confio em mim, como poderia você confiar?”

Nada de homilias, nada de citações a propósito retiradas do seu vasto e desordenado reportório. Aparentemente, Barley estava a aguentar-se muito bem sem a assistência da sabedoria alheia.

Às dez horas, deixou o hotel acompanhado unicamente por Henziger, e passados minutos estavam nos arrabaldes a norte da cidade, onde Cy e Paddy aguardavam uma vez mais no nosso camião. Desta feita, era Paddy que conduzia. Henziger sentou-se ao seu lado e Barley foi para as traseiras com Cy, despiu o casaco e deixou que Cy lhe colocasse as correias com os microfones e lhe comunicasse as últimas informações relativas à operação: a saber, que o avião de Goethe, proveniente de Saratov, tinha chegado a Moscovo à hora prevista; e que uma pessoa correspondendo à descrição de Goethe fora vista a entrar no prédio de Igor quarenta minutos antes.

Pouco depois, as luzes tinham-se acendido no apartamento em questão.

Cy entregou-lhe então dois livros, o primeiro um paperback de From Here to Eternity, que continha a lista das compras, o segundo, um volume mais gordo, encadernado a couro, o qual dissimulava um sonoflector, activado sempre que se abria a capa do suposto livro. Barley tinha ensaiado com um destes aparelhos em Londres e mostrava-se exímio na sua utilização. Os microfones que levava consigo estavam sintonizados de molde a anularem os impulsos do aparelho, ao contrário do que sucedia com os habituais microfones da parede. Barley também conhecia os inconvenientes do sonoflector. A sua presença na sala era fácil de detectar. Se o apartamento de Igor estivesse sob escuta, quem ouvisse a conversa aperceber-se-ia imediatamente de que pelo meio havia um sonoflector. Tanto Londres como Langley tinham considerado este risco aceitável.

O outro risco não tinha sido considerado, e o outro risco era que o aparelho podia cair nas mãos dos adversários. Encontrava-se ainda no estado de protótipo e tinha custado já uma pequena fortuna e vários anos de investigação.

Às dez e cinquenta e quatro dessa mesma noite, no momento em que abandonava o camião, Barley entregou um envelope a Paddy, dizendo-lhe: "Isto é uma carta pessoal para o Ned, para o caso de me acontecer alguma coisa." Paddy guardou o envelope no bolso interior do blusão. Reparou que o recheio era volumoso e, embora o ambiente de penumbra do camião não o ajudasse muito, apercebeu-se de que não estava endereçado.

A descrição mais viva da caminhada de Barley até à porta do bloco de apartamentos não a encontrámos nos relatórios militares de Paddy, e ainda menos no depoimento de Cy perante Haig, mas sim no tom áspero do seu bom amigo Jack Henziger, que o escoltou até ao local. Barley não abria a boca, disse ele. Jack também não. Não lhes dava jeito nenhum que os identificassem como estrangeiros.

"Íamos lado a lado mas custava-me acompanhá-lo", disse Henziger. "O Barley tem uma passada larga, ao contrário da minha que é curta. Chateava-me que não conseguíssemos acertar o passo. O prédio era um daqueles monstros de tijolo que eles constroem com uma milha de concreto à volta, de maneira que nos fartámos de andar sem irmos ter a lado nenhum. Bom, pensei eu, isto parece é um daqueles sonhos em que um tipo se farta de correr e vai a ver e não passou do mesmo sítio. E ainda por cima estava um ar muito quente. Abrasador. Eu suei imenso, o Barley, não, estava fresquíssimo. Estava perfeitamente calmo, disso não há dúvida. Estava com um ar porreiro. Finalmente, olhou-me bem nos olhos e desejou-me muita, muita sorte. Estava bem consigo mesmo. Sentia-se que estava.”

No entanto, quando lhe apertou a mão, Henziger teve por um momento a sensação de que Barley estava zangado por qualquer razão. Talvez estivesse zangado com ele., pois, na semi-obscuridade da entrada, parecia determinado a evitar o olhar de Henziger.

"Mas depois pensei, se calhar ele está é chateado com a Ave Azul por o tipo o ter metido nisto. E pensei ainda, se calhar o tipo está chateado com nós todos, só não o diz porque é demasiado educado para o fazer. Quer dizer, o que parecia é que ele estava a comportar-se bem à inglesa, muito nas calmas, muito contido, guardando tudo para si mesmo.”

Noventa segundos depois e quando se preparavam para partir, Cy e Paddy viram uma silhueta à janela de Igor. Concluíram que se tratava de Barley. A mão direita compunha o cortinado, e esse era o sinal combinado para dizer que tudo estava bem. Foram-se então embora no camião, deixando a vigilância do apartamento aos irregulares, que se revezaram por turnos durante toda a noite, mas a luz no apartamento manteve-se acesa e Barley não saiu.

Uma teoria entre centenas diz que Barley nunca subiu ao apartamento, e que o levaram imediatamente até às traseiras do edifício, por onde saiu, e que a figura à janela era um dos homens deles, por exemplo um dos calmeirões que aparecem na fotografia tirada essa tarde no foyer da VAAP. Nunca me pareceu que estas teorias explicativas tivessem algum interesse, ao contrário do que pensavam os peritos, e lá teriam as suas razões. Quando um problema ameaça afogar-nos, não há nada como os pormenores irrelevantes para nos manterem à superfície.

As especulações acerca do desaparecimento de Barley começaram lentamente e foram ganhando forma ao longo da noite. Os optimistas como Bob, e durante algum tempo Sheriton, porfiaram até nascer o dia e mesmo depois. Barley e a Ave Azul tinham-se embebedado outra vez, insistiam teimosamente a fim de se animarem uns aos outros. Era a repetição de PeredeIkino, sem dúvida, um verdadeiro remake, confiavam-se mutuamente.

Depois, inventaram uma história de rapto que não durou muito tempo, já que pouco depois das cinco e meia da manhã graças à diferença horária Henziger e Wicklow receberam as suas cartas e Wicklow, sem excessivo espalhafato, apanhou um táxi para a Embaixada Britânica, onde os guardas soviéticos o deixaram passar sem quaisquer problemas. Paddy enviou imediatamente um flash em código para Ned, que o leitor facilmente decifrará. Entretanto, Cy enviava idêntica mensagem para Langley, Sheriton e toda a gente que ainda quisesse ouvir um homem cuja estada em Moscovo corria o risco de acabar muito em breve.

Sheriton encarou as notícias com a sua fleuma habitual. Leu o telegrama de Cy, olhou à sua volta e apercebeu-se de que toda a equipa tinha os olhos nele as meninas elegantes, os rapazes engravatados, Bob, o, leal Bob, o ambicioso Johnny com os seus olhos de pistoleiro. E no campo britânico, Ned, eu próprio e Brock, já que Clive, à cautela, descobrira que tinha assuntos urgentes a tratar longe dali. Havia muito de actor em Sheriton, tal como aliás em Henziger, e foi com o actor que nos confrontámos nesse momento. Levantou-se, compôs a cintura, massajou o rosto como que suspeitando que precisava de barbear-se.

"Muito bem, rapazes. É melhor arrumarmos a loja até à próxima. " Depois, encaminhou-se na direcção de Ned, que continuava sentado à sua secretária, estudando o telegrama de Paddy, e pôs-lhe uma mão sobre o ombro.

"Ned, um dia destes convido-o para jantar", disse. Seguiu então na direcção da porta, tirou do cabide a sua gabardine nova, vestiu-a, abotoou-a e saiu, seguido pouco depois por Bob e Johnny.

Outros houve que não se retiraram com tamanha elegância. Especialmente os barões do décimo segundo andar.

Uma vez mais foi nomeada uma comissão de inquérito. Apontar responsáveis. Nenhum nome poupado. Há cabeças que vão rolar.

A Presidente, o Chefe, a Secretária, este vosso Palfrey. Um outro propósito destas comissões, descobri entretanto, consiste em conferir uma aparência de solenidade a eventos que nunca tiveram nenhuma. E que solenes que nós ficámos.

Os primeiros a ser ouvidos, como de costume, foram os teóricos da conspiração, rapidamente recrutados no Foreign Office, no Ministério da Defesa e num organismo especialmente antipático denominado Consultores Informais, formado por cientistas ligados à indústria e às universidades, que se imaginavam espiões de fim-de-semana. Estes espiocratas amadores dispunham de enorme influência nos bazares de Whitehali, e a comissão presenteou-os com uma atenção desmedida. Um professor de Edimburgo, durante o seu depoimento, retribuiu-nos a atenção enchendo por cinco vezes o seu cachimbo e quase nos gaseando a todos, mas ninguém foi capaz de lhe pedir para apagar a chaminé.

A primeira grande questão consistia em saber o que aconteceria a seguir. Haveria expulsões, um escândalo? Que sucederia à nossa sucursal em Moscovo? Tinha havido problemas com os irregulares?

O camião reservado às transmissões, embora propriedade soviética, era um problema americano, e o seu súbito desaparecimento lançou uma inquietação silenciosa entre as hostes que tinham defendido o seu uso, A questão de saber quem é expulso e a troco de quê nunca é uma questão simples, já que os chefes de posto em Moscovo, Washington e Londres são actualmente declarados aos respectivos países anfitriões. Ninguém no Kremlin tinha quaisquer ilusões acerca das actividades de Paddy ou de Cy. As suas actividades de fachada visavam protegê-los, não do adversário, mas sim da curiosidade do mundo real.

Fosse como fosse, a verdade é que nenhum deles foi expulso. Ninguém foi expulso. Ninguém foi preso. Quanto aos irregulares, cujos serviços foram suspensos indefinidamente, continuaram tranquilamente nos seus empregos oficiais.

Os panditas ocidentais apressaram-se a considerar como extremamente significativa a ausência de qualquer gesto retaliatório.

Um lance conciliatório em tempo de glasnot? Um sinal muito claro de que a Ave Azul era um gambito que tinha por único fim obter a lista das compras americana?

Ou um sinal menos claro de que o material Ave Azul acertava no alvo, mas era demasiado embaraçador para que o reconhecessem?

As linhas da batalha estavam definidas. Pombas e falcões de ambos os lados do Atlântico reocupavam com o maior júbilo as suas trincheiras, separadas pela fronteira que Ned definira.

Se os soviéticos nos mandam um sinal de que o material é bom, então é evidente que o material não presta, diziam os falcões. e vice-versa, diziam as pombas. e vice-versa outra vez, diziam os falcões. Papéis escritos, guerras travadas. Promoções, exonerações, pensões, medalhas, transferências vexatórias, baixas de posto. Mas quanto a consenso, nada. Apenas o costumeiro triunfo dos mais fortes, sob o disfarce da dedução racional.

Na nossa comissão só Ned recusou o jogo. Parecia alegremente decidido a aceitar a crítica. "A Ave Azul foi sincera, Barley foi sincero", não se cansava de repetir, sem nunca perder o bom-humor "Ninguém enganou ninguém. Nós é que nos enganámos a nós mesmos. Nós é que fomos desonestos. Não a Ave Azul".

Poucos dias depois de ter proferido esta opinião, acordou-se que Ned sofria de esgotamento e a sua presença passou a ser menos solicitada.

Ah, e foi tomada nota. Na passiva, já que na activa os verbos têm a desagradável particularidade de traírem o sujeito. Nota muito séria. E foi tomada por toda a gente.

Foi tomada nota de que Ned não cumprira o dever de avisar o décimo segundo andar da fuga bêbada de Barley após o seu regresso de Leninegrado.

Foi tornada nota de que Ned tinha requisitado toda a sorte de recursos nessa mesma noite, requisição que nunca explicara, e entre os requisitados figuravam Ben Lugg e os serviços da chefe das escutas, Mary, que conseguiu reduzir a pó a sua lealdade a um camarada para oferecer à comissão uma sinistra descrição do despotismo de Ned. Então não é que pediu escutas ilegais! Imaginem só! Infracções nas escutas! Que desplante!

Mary foi aposentada pouco tempo depois e vive agora em Malta, para sempre enraivecida. Teme-se que esteja a escrever as memórias.

Foi também tomada nota, ainda que com um "lamentamos" atrás, da discutível conduta do nosso Conselheiro Legal de Palfrey repare-se que me devolveram o de -, que se tinha eximido a justificar o uso que fizera da autoridade delegada do Secretário do Interior, embora sabendo que isso estava previsto nas Normas Regulamentadoras das Actividads dos Serviços após as alterações aprovadas por etcetera e no parágrafo não sei quantos de um contestável protocolo do Ministério do Interior.

No meu caso, porém, encontraram uma atenuante: o calor da batalha. O Conselheiro Legal não foi aposentado, tão pouco procurou refúgio em Malta. Mas também não foi exonerado. Na melhor das hipóteses, tratava-se de um perdão parcial. Um Conselheiro Legal não devia estar tão envolvido numa operação. Um uso inadequado das atribuições do Conselheiro Legal. A palavra imprudente andou de boca em boca.

Foi também tomada nota, e igualmente com a devida lamentação,  que o mesmo Conselheiro Legal redigira, para que Clive assinasse, um documento atestando que Barley era a melhor das criaturas em todo o universo, menos de quarenta e oito horas antes do desaparecimento de Barley, documento que permitiu que Barley ficasse com a lista das compras, embora presumilvelmente por pouco tempo.

Nas minhas horas livres, redigi os termos da exoneração de Ned e imaginei com inquietação o que me aconteceria se fosse exonerado. A vida nos Serviços pode ter as suas limitações, mas só a ideia de uma outra vida, lá fora, sem os Serviços, deixava-me positivamente aterrado.

A notícia do passamento da Ave Azul constituiu um contratempo temporário nas deliberações da nossa comissão, a qual, no entanto, não tardou a recuperar. A desagradável notícia ocupava seis linhas no Pravda, e fora cuidadosamente elaborada para não parecer nem demasiado grande nem demasiado pequena. Referia a morte após doença do distinto físico professor Yakov Savelyev, de Leninegrado, e enumerava as suas várias condecorações. Tinha morrido de causa natural garantia o comunicado pouco tempo depois de ter pronunciado uma importante conferência na Academia Militar de Saratov.

Ned meteu folga mal soube da notícia, e a folga transformou-se em três dias e numa gripe ligeira. Mas os teóricos da conspiração gozaram que se fartaram.

Savelyev não tinha morrido. Já estava morto há muito tempo e a versão com que nós tínhamos negociado era muito simplesmente um impostor.

Savelyev continuava a fazer aquilo que sempre fizera: dirigia a Secção de Desinformação Científica do KGB.

Estava provado que o material era verdadeiro, não estava nada provado.

Não valia nada. Era ouro puro. Era fumo. Era uma sincera mensagem de paz que nos fora enviada pelos moderados no seio das classes dirigentes soviéticas, apesar dos tremendos riscos que isso representava. O seu objectivo era mostrar-nos que a espada nuclear soviética enferrujara na bainha e que o escudo nuclear soviético tinham mais buracos do que uma peneira.

Era um plano diabólico para convencer os americanos mais timoratos a largarem o gatilho nuclear.

Em suma, o bolo chegava para todos os dentes.

E como na relação simbiótica que existe entre estados beligerantes, tudo o que ocorre num deles desencadeia no outro uma reacção automática e inteiramente dependente do facto que a provocava, depressa  se desenvolveu uma contra-indústria, que reescreveu a história da participação americana no caso Ave Azul.

Langley sempre soube que a Ave Azul não prestava, dizia a contra-indústria.

Ou que Barley não prestava. Ou que nenhum deles prestava. Sheriton e Brady tinham jogado um jogo duplamente duplo, dizia a contra-indústria. O seu único objectivo era espalhar o fumo convicentemente e ganhar mais uns quantos pontos aos russos na interminável luta pela Margem de Segurança.

Sheriton era um gênio. Brady era um gênio. Todos eles eram uns gênios. Todos! Sheriton tinha dado um golpe notável. Brady também. A Agência estava a abarrotar de estrategas brilhantes, completamente diferentes dos seus homónimos do mundo público, que não passavam de umas personagens apagadas. Que Deus proteja a Agêncía. Que seria de nós sem ela?

Como se isto não bastasse, novas fiadas de hipóteses vieram juntar-se às antigas. Passou a constar, por exemplo, que Sheriton fora um instrumento involuntário do Pentágono e da Defesa. Estes é que tinham preparado a lista das compras, que não passava de uma falsificação, e tanto o primeiro como a segunda sabiam desde o princípio que a Ave Azul era um espião.

E cada novo boato tinha de ser sucessivamente levado a sério, ainda que o único mistério digno desse nome consistisse em saber quem o tinha fabricado ou porquê. A resposta, em muitos casos, parecia ser Russel Sheriton, que naturalmente tratava de defender a sua pele, Quanto à Ave Azul, se não tinha morrido de causa natural, decerto estava a morrer agora de causa natural.

Só Ned, regressado da sua vigília auto-imposta, cometeu de novo o erro crasso de dizer a verdade provável. "A Ave Azul era um homem sincero e nós matámo-lo", disse ele sem rodeios, na primeira reunião em que participou. Para a seguinte já não foi convidado.

Entretanto as nossas buscas prosseguiam sem afrouxar. Procurávamos Barley por todo o lado, ainda que alguns de nós ficassem contentes por não o encontrarmos. Sorrateiramente aproximámo-nos dele, sorrateiramente andávamos à volta dele, demasiadas vezes estivémos longe dele. Mas nós éramos homens honrados. Homens que nunca afrouxavam. Que nunca deixavam cair os braços.

Mas que teria Barley negociado? E a troco de quê? Que quereriam os russos comprar a um homem que, até então, precisara apenas de um almoço dispendioso, pago muito provavelmente do seu próprio bolso, para se convencer de uma perda irreversível?

É que afinal ele estava literalmente feito! Feito e desfeito, desfeito e em cacos. Já estava feito no momento em que fora ter com eles! E ele sabia-o.

Que tinha ele para lhes oferecer que eles não pudessem obter? É que havia sempre a hipótese de o torturarem, de o submeterem às práticas mais abomináveis, a todo um catálogo de agonias, das quais por vezes se regressa, mas para um inferno inimaginável. Os russos podiam estar a retocar a sua imagem, mas ninguém acreditava que fossem abandonar, de um dia para o outro, métodos que lhes tinham sido tão úteis durante milénios.

A primeira e a mais óbvia das respostas era a lista das compras. Barley podia dizer muito simplesmente aos russos que só conseguiria obter a lista das compras depois de dispor das necessárias garantias. E que preferia passar o resto da vida numa panela com azeite a ferver a dar-lhes de mão beijada a lista das compras.

E eles acreditaram nele. Perceberam que ficariam sem a lista das compras se não jogassem o jogo dele. E porque os homens cinzentos, de ambos os lados, ficam tão assustados com a abnegação como com o amor, os frágeis sábios do KGB preferiram negociar com o Barley que entendiam, em vez de se confrontarem com o Barley que não podiam compreender.

Sabiam que ele tinha o poder de lhes dizer que não. "Não, não vendo a lista das compras. "Não, não vou ao apartamento de Igor enquanto não me tiverem dado a vossa mais que solene palavra de honra.”

Ao ouvi-lo, eles sabiam que era ele quem tinha o poder. E tal como nós, isso deixava-os um tanto ou quanto embaraçados.

E Barley como ele próprio dissera a Henziger e a Wicklow durante o jantar nunca tinha encontrado um russo que não cumprisse com a palavra dada. Claro que nesse momento ele não estava a falar de política, mas apenas de negócios. E em troca? Que comprou Barley com o que vendeu?

Katya. Matvey. Os gêmeos. Não foi mau negócio. Pessoas reais em troca de argumentos irreais, E para ele? Para ele, nada. Nada que pudesse perturbar a força da sua reivindicação. Nada para ele, porque quem estava em causa eram as pessoas que tomara à sua protecção.

E, a pouco e pouco, foi-se tornando claro que Barley, por uma vez na vida, tinha arrancado um contrato de primeira. Se a Ave Azul era uma causa perdida, Katya e os filhos exibiam todos os sinais de serem uma causa salva. Katya permaneceu na Outubro, foi vista ocasionalmente em recepções, era a voz dela que atendia o telefone de casa e do escritório. Os gêmeos continuaram a ir para a escola e a cantar as mesmas canções malucas, E Malvey continuou a entregar-se às suas felizes divagações, Não admira que entretanto uma nova e notável teoria viesse juntar-se às demais. "Os soviéticos lançaram uma operação de encobrimento para consumo interno", constava. "Não querem que se espalhem as revelações de a Ave Azul acerca da incompetência generalizada. " De maneira que, durante algum tempo, o disco mudou e o material da Ave Azul foi considerado genuíno. Mas não por muito tempo.

"Isso é o que eles querem que nós pensemos", gritou uma voz poderosa.

De maneira que voltámos rapidamente ao disco antigo, porque ninguém queria passar por parvo.

Mas o negócio de Barley estava a dar os seus frutos. Katya não perdeu os privilégios que tinha, o cartão vermelho, o apartamento, o emprego. Nem mesmo o seu belo rosto pareceu muito afectado. De início, é certo, os relatórios falavam da palidez da viúva, de uma aparência descuidada, de longas ausências do trabalho. E além disso é óbvio que ninguém prometera a Barley que ela seria dispensada de fazer uma declaração voluntária acerca do seu relacionamento com a falecida Ave Azul.

Porém., gradualmente e após um apropriado período de recolhimento, Katya regressou aos seus antigos cenários com o mesmo entusiasmo de sempre.

E quanto a Barley? Que foi feito dele? Quente, primeiro, frio, depois, muito, muito frio, por fim: assim evoluíram as nossas buscas.

Poucos dias depois da feira do livro, as tias receberam uma carta formal de resignação, carimbo dos correios de Lisboa, carta com todos os traços habituais do estilo de Barley estava cansado dos livros, a indústria tornara-se demasiado grande, era tempo de ele se dedicar a outras coisas enquanto tinha uns anos à sua frente.

Quanto aos planos imediatos, propunha-se "extraviar-se durante algum tempo" e explorar locais invulgares. Era portanto óbvio que já não se encontrava na Rússia.

Quer dizer, aparentemente óbvio. No fim de contas, foi isto mesmo que ele pensou: aparentemente óbvio. E o que pensou a bonita empregada da Agência de Viagens Barry Martin, que tem os seus escritórios no Mezhdunarodnaya. Mr. Scott Blair decidira seguir para Lisboa, em vez de regressar a Londres, disse ela. Um estafeta da VAAP comprou-lhe o bilhete. A empregada fez as necessárias alterações e marcou-lhe lugar no vôo directo da Aerolflot, que partiria às 11 h20 de segunda-feira, chegada a Lisboa às 15 h30, paragem em Praga.

E alguém usou esse bilhete. Um homem alto, não falava com ninguém,  igualzinho a Barley, ou quase. Talvez tão alto como os homens que assistiram à cena à porta da VAAP. De qualquer modo, demo-nos ao trabalho de o controlar. E controlámo-lo em toda a linha, e a linha só parou quando chegou a Tina, a mulher que tratava da casa de Barley em Lisboa. Sim, sim, tivera notícias dele, disse ela a Merridew um bonito postal de Moscovo dizendo que viriam passar umas férias a Lisboa, ele e uma amiga que conhecera recentemente.

Merridew ficou profundamente aliviado ao saber que afinal Barley ainda não tinha regressado à sua zona.

Ao longo dos meses seguintes, foi-se esboçando uma imagem da vida do desaparecido, imagem que não demorou muito tempo a diluir-se.

Um traficante de droga alemão ocidental, que fora preso na URSS, ouviu dizer que um homem correspondendo à descrição de Barley se encontrava numa prisão perto de Kiev, sob interrogatório. Era um tipo bem-disposto, disse o alemão. Benquisto entre os reclusos. Um tipo livre. Até os guardas lhe sorriam, de má vontade mas sorriam.

Um casal francês dado a aventuras, que regressava ao seu país, foi ajudado por um "inglês alto e muito simpático", quando o seu carro chocou com uma limousine soviética, devido a uma colisão em cadela perto de Smolensk. Ninguém ficou ferido. Um metro e oitenta, cabelo castanho farto, muito educado, com um riso franco, e vigiado por uns russos enormes.

E certo dia, perto do Natal, pouco depois de Ned ter abandonado formalmente a Casa da Rússia, veio uma mensagem de Havana, citando uma fonte cubana segundo a qual havia um inglês em regime de detenção especial numa prisão para presos políticos perto de Minsk. Um inglês que se fartava de cantar.

Cantava?, perguntámos nós, indignados. Cantava o quê? Cantava Satchmo, retorquiu Havana. A nossa fonte era um fanático do jazz, como o inglês.

E o texto da carta para Ned? Não deixa de ser um mistério o facto de a carta nunca ter ido parar ao processo, e na história oficial do caso Ave Azul não encontramos nenhuma referência à sua existência. Creio que Ned a conservou muito simplesmente em seu poder. Atribuía-lhe demasiada importância para a passar para outras mãos, para lhe dar o destino dos arquivos.

Bom, este deveria ser o fim da história, ou melhor, a história não deveria ter fim nenhum. Diziam os entendidos que Barley tinha todas as condições para se juntar aos outros espectros que assombram os atalhos mais negros da sociedade soviética os esmagados e apagados desertores e espiões, os negociados e os indignos de qualquer confiança, com as suas patéticas esposas e os seus emaciados 

zeladores, partilhando rações minguantes de delícias ocidentais e memórias ocidentais.

Era este de facto o ritual que julgávamos esperar Barley, quando subitamente um telegrama urgente do sucessor de Paddy nos informou de que um inglês alto, de cabelo castanho-alourado, tinha sido visto e não só visto como também ouvido a tocar saxofone num bar da cidade velha que acabara de abrir, um ano exacto após o seu desaparecimento.

Clive foi arrancado ao sono, mensagens voaram entre Londres e Langley, pediu-se ao Foreign Office que desse a sua opinião. De facto deu. Uma opinião por uma vez inequívoca não temos nada a ver com isso e vocês também não. Parece que achavam que os russos estavam melhor equipados do que nós para açaimarem Barley. Afinal os russos já tinham dado boas provas.

No dia seguinte chegou um segundo telegrama, desta feita proveniente de Lisboa, do gordo Merridew. A empregada de Barley, Tina, com quem Merridew tinha mantido um relacionamento relutante, recebera instruções para preparar o apartamento para a chegada do patrão.

Mas como é que recebeu instruções?, perguntou Merridew. Pelo telefone, respondeu ela, o Senhor” Barley tinha-lhe telefonado.

Mas telefonou-lhe donde, sua parva? Tina não perguntara e Barley não dissera. Por que haveria ela de perguntar onde é que ele estava, se ele chegaria a Lisboa dentro de dias?

Merridew ficou estupefacto. E não foi o único. Avisámos os americanos, mas Langley fora acometida de amnésia colectiva. Só faltava perguntarem, quem? Barley quê? Generalizou-se entre o público a ideia de que Serviços como o nosso infligem violentas represálias a todos aqueles que traem os seus segredos. Bom, por vezes isso corresponde à verdade, mas raramente os visados são pessoas da classe de Barley. Neste caso, porém, ficou imediatamente claro que ninguém e ainda menos Langley tinha o mínimo desejo de transformar num farol cintilante uma pessoa que dariam tudo para esquecer. O melhor será suborná-lo, concordaram todos ah, e não metam os americanos nisso.

Subi a escada apreensivo. Declinara a protecção de Brock e a tíbia oferta de ajuda de Merridew. As escadas eram escuras, íngremes e inóspitas e desagradavelmente silenciosas. Caía a noite mas nós sabíamos que ele estava em casa. Toquei à campainha mas como não a ouvi tocar, bati à porta. Era uma porta pequena e maciça, com almofadas compactas. Fez-me lembrar a casa do marinheiro na ilha. Ouvi passos lá dentro e recuei imediatamente, ainda hoje não sei bem porquê, mas suponho que era como que uma espécie de medo de animais.

 

“ Em português, no original. (N. do T.)

 

Como é que ele estaria? Violento, irado ou extremamente efusivo? Atirar-me-ia pelas escadas abaixo ou dar-me-ia um abraço afectuoso? Trazia comigo uma pasta e lembro-me de a ter mudado para a mão esquerda, como se estivesse a preparar-me para me defender. Embora, e Deus é testemunha, eu não seja propriamente um homem dado a lutas. Cheirou-me a pintura recente. A porta não tinha ralo e caía rente ao dintel de ferro. Ele não tinha qualquer hipótese de saber quem batia à porta antes de a abrir. Ouvi o trinco a deslizar na fechadura. A porta abriu-se.

"Olá, Harry", disse ele. "Olá, Barley", respondi eu. O fato que eu trazia era escuro e leve, mas azul, pois antes azul que cinzento. Disse, "Olá, Barley", e fiquei à espera do seu sorriso.

Estava mais magro e tinha um ar mais vigoroso e desempenado, de onde resultava que parecia muito mais alto e a verdade é que eu dava-lhe pelo ombro. Você é um viajante cansado, lembro-me de ter pensado enquanto esperava. A expressão era de Hannali. Teremos de aprender a ser viajantes cansados quando chegar a hora, dizia ela noutros tempos. Os velhos gestos espontâneos e soltos tinham-no abandonado. A disciplina dos pequenos espaços produzira os seus efeitos. Era agora uma criatura contida, alinhada. Vestia uns jeans e uma camisa de cricket com as mangas arregaçadas até ao cotovelo. Tinha salpicos de tinta branca nos antebraços. A testa também não escapara, pois estava besuntada de tinta. Vi um escadote atrás dele e uma parede meio-pintada de branco, e no meio da sala pilhas de livros e discos parcialmente protegidos por um pano branco.

"Então, Harry, veio jogar uma partidinha de xadrez?", perguntou ele, ainda sem sorrir.

"Só queria falar consigo, se me deixasse", disse eu, como poderia ter dito a Hannali ou a qualquer outra pessoa a quem quisesse propor a paz das meias tintas.

"Oficialmente?" "Bom ... “

Ele estudava-me como se não me tivesse ouvido, abertamente e sem pressas, já que tempo era coisa que não lhe devia faltar e estudava-me como, creio eu, se estudam os companheiros de cela ou os interrogadores num mundo em que as mais vulgares cortesias tendem a ser ignoradas.

Mas não havia no seu olhar atento nenhum abatimento ou vergonha, nenhuma arrogância ou manha. Pelo contrário, parecia ainda mais límpido do que noutros tempos, como se se tivesse instalado para sempre nas regiões por onde ocasionalmente vagueara.

"Tenho ali uma zurrapa no frigorífico, não sei se vai gostar", disse ele, e recuou para me deixar passar, sem tirar os olhos de mim. Depois, fechou a porta.

Mas continuava sem sorrir. O seu estado de espírito constituía um mistério para mim. Senti que não entenderia minimamente aquele homem, a menos que ele decidisse abrir-se. Por outras palavras, compreendia tudo o que estava dentro do meu alcance compreender.

O resto, era uma infinidade.

Havia também panos brancos sobre as cadeiras, mas ele retirou-os e dobrou-os como se fossem os seus lençóis. As pessoas que alguma vez foram presas concluí ao longo de anos e anos de experiência demoram muito tempo a libertar-se do seu orgulho.

"Diga-me então o que pretende", disse ele, servindo vinho de garrafão.

"Pediram-me para pôr tudo a limpo", disse eu. "O que eles querem é uma quantas respostas suas. “Em troca, dão-lhe as garantias necessárias." Já me sentia perdido. "Queremos saber se podemos ajudar com alguma coisa", acrescentei. "Se precisa de alguma coisa. Se podemos chegar a um acordo quanto ao futuro, etc., etc.”

"Tenho todas as garantias de que preciso, obrigado", retorquiu ele afavelmente, pegando na única palavra que parecia ter captado o seu interesse. "Não precisam de acompanhamento. Prometi que não abriria a boca." Finalmente um sorriso. "Segui o seu conselho, Harry. Agora sou um amante à distância, como você.”

"Estive em Moscovo", disse eu, tentando desesperadamente orientar o nosso diálogo. "Visitei os locais. Estive com as pessoas. E usei o meu próprio nome.”

"E qual é esse nome?", perguntou-me com a mesma urbanidade. "O seu nome. Qual é?”

"Palfrey", retorqui, omitindo o de. Sorriu uma vez mais, um sorriso compreensivo ou agradecido. "Os Serviços mandaram-me à Rússia para ver o que era feito de si. Não foi uma visita oficial, embora ao mesmo tempo o fosse, digamos assim. Perguntei aos russos por si. Tentei esclarecer as coisas. Pensámos que era tempo de sabermos o que lhe tinha acontecido. De sabermos se o poderíamos ajudar.”

E de sabermos se eles estavam a cumprir com as regras, podia ter acrescentado. De termos a garantia de que ninguém em Moscovo ia entornar o caldo. E entornar o caldo significava fugas de informações mais ou menos idiotas ou golpes publicitários mais ou menos conseguidos.

"Já lhes contei o que me aconteceu", disse ele. "Nas cartas que mandou? Nas cartas para Wicklow, para Henziger e para os outros?”

"Sim." "Bom, claro que nós sabíamos que as cartas tinham sido escritas sob coacção, se é que foi você que as escreveu, Pense por exemplo naquela carta do desgraçado do Goethe.”

"Tretas", retorquiu. "Escreví-as em inteira liberdade.”

Aproximei-me um pouco mais do cerne da minha mensagem. E da mala, que estava no chão ao meu lado.

"Em nossa opinião, você comportou-se de forma muito honrosa", disse, retirando da mala um processo e abrindo-o no meu colo. "Toda a gente fala sob coacção e você não podia ser excepção. Estamos-lhe gratos pelo que fez por nós e temos consciência do preço que teve de pagar. Profissionalmente e pessoalmente. Sentimo-nos na obrigação de lhe proporcionar uma compensação inteiramente justa. Com condições, claro. Poderá ser uma soma avultada.”

Onde tinha ele aprendido a observar-me assim? A fechar-se com tanta firmeza? A inculcar tensão nos outros, tensão a que ele parecia imune?

Li-lhe as condições, que pareciam o inverso exacto das de Landau. Viveria fora do Reino Unido e só entraria no país com o nosso consentimento prévio. E para um acordo completo e definitivo, a condição mais importante o seu silêncio perpétuo expressa abundante cautela e segundo meia dúzia de fórmulas diferentes. E imenso dinheiro, basta assinar aqui, desde que condição sine qua non não abra a boca.

No entanto, Barley não assinou. Já estava farto. Limitou-se a afastar a minha arrogante caneta.

"A propósito, o que é que vocês fizeram ao Walt? Trouxe um chapéu para ele. Parece um abafador de bule com listras de pele de tigre. Mas ainda não conseguir encontrar o raio do chapéu.”

"Se mo mandar, farei com que lho entreguem", disse eu. Barley entendeu-me nas entrelinhas e lançou-me um sorriso triste. "Coitado do Walt. Correram com ele, não foi?”

"Na nossa profissão chega-se depressa ao topo", retorqui, sem conseguir olhá-lo nos olhos. Mudei rapidamente de assunto. "Creio que já sabe que as suas tias venderam a editora à Lupus Books.”

Desatou a rir não era o mesmo riso desenfreado de outros tempos, é certo, mas apesar de tudo era o riso de um homem livre. "Jumbo! Grande sacana! Conseguiu embarretar a Vaca Sagrada! Quem se fia nele está bem arranjado!”

Mas Barley aceitou bem a ideia. A decisão parecia agradar-lhe sinceramente, já que era uma decisão correcta. Como toda a gente do meu ofício, assustam-me as pessoas de bons instintos. Mas fui capaz de entender a sua tranquilidade. Barley parecia ter desenvolvido uma tolerância absoluta.

Ela há-de vir um dia, disse-me enquanto contemplava o porto. Prometeram-me que um dia virá.

Não será para já, depende deles, não de mim, acrescentou. Mas há-de vir, disso não tinha dúvidas. Talvez este ano, ou para o próximo, disse. Mas o montanhoso ventre dos burocratas russos acabaria por inchar e dar à luz um rato de compaixão. Barley não duvidava. Seria um movimento gradual, mas o rato acabaria por nascer. Tinham-lhe prometido.

"Eles não faltam ao prometido", garantiu-me e, perante tão arreigada confiança, seria grosseria contradizê-lo. Mas havia algo mais que me impedia de exprimir o meu costumeiro cepticismo. Era Hannali, novamente. Senti que ela me implorava que o deixasse viver com a sua humanidade, ainda que eu tivesse destruído a dela. "Tu achas que as pessoas nunca mudam porque tu nunca mudas", disse-me ela um dia. "Só te sentes seguro, quando desiludido.”

Convidei-o para jantar, mas ele pareceu não me ouvir. Continuava à janela, fitando as luzes do porto enquanto eu fitava as suas costas. A mesma pose em que ele se pusera quando o entrevistámos pela primeira vez em Lisboa. O mesmo braço segurando o copo. A mesma pose da ilha, quando Ned lhe disse que tinha ganho. Mas mais firme. Falava de novo comigo? Apercebi-me que sim. Estava a ver o navio deles chegando de Leninegrado, disse ele. Estava a vê-la descendo à pressa o passadiço, correndo para ele com os filhos ao lado. Imaginava-se sentado com o tio Matvey sob a árvore enorme do parque em frente, no mesmo banco onde se tinha sentado com Ned e Walter nos tempos em que ainda não era um homem. Ouvia Katya traduzindo as heróicas histórias de resignação que Matvey contava. Acreditava em todas as esperanças que enterrei comigo quando escolhi o bastião seguro da infinita descrença em vez do perigoso caminho do amor.

Consegui convencê-lo a jantar comigo e teve a amabilidade de me deixar pagar. Mas nada mais arranquei dele. Não assinou, não aceitou nada, não quis nada, não cedeu nada, não se comprometeu a nada. E mandou-nos a todos nós, sem qualquer raiva, para o Diabo.

Mas a sua tranquilidade era magnífica. A sua voz, tudo nele ignorava a estridência. Mostrou-se atento aos meus sentimentos, ainda que fosse demasiado educado para inquirir sobre eles. Nunca lhe falei de Hannali, e sabia que nunca poderia fazê-lo, porque o novo Barley não teria paciência para me ouvir falar de uma situação que nunca mudava.

Quanto ao resto, pareceu interessado em oferecer-me a sua história, a fim de que eu pudesse levar alguma coisa para os meus amigos. Conduziu-me de volta ao seu apartamento e insistiu para que bebessemos um último copo e repetiu que eu não tinha culpa de nada.

E falou. Para mim. Para ele mesmo. Falou. Uma infinidade de palavras. Contou-me a história tal e qual como eu tentei contá-la aqui, do seu ponto de vista mas também do nosso. Falou até o dia nascer e quando me fui embora, às cinco da manhã, disse-me que talvez fosse acabar de pintar a parede antes de se deitar. Há muita coisa a tratar, explicou. Carpetes. Cortinas. Estantes.

"Vai tudo correr bem, Harry", assegurou-me enquanto me acompanhava à porta. "Diga-lhes isso mesmo.”

Espiar é esperar.

 

                                                                                John Le Carré  

 

                      

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