Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DAS SETE MULHERES 2 / Letícia Wierzchowski
A CASA DAS SETE MULHERES 2 / Letícia Wierzchowski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CASA DAS SETE MULHERES

Segunda Parte

 

O jantar foi servido às quatro horas da tarde: churrasco, aipim co­zido na manteiga, saladas, sobremesas. A casa estava aberta e en­feitada de flores. D. Ana, num vestido escuro por todos os lutos da família, recebia os convidados — alguns vizinhos, umas poucas fa­mílias que tinham vindo de Camaquã. Os empregados da fazenda também estavam lá, usando suas boas roupas, felizes com a festa. Bento Gonçalves e Caetana recebiam a cortesia de todos, e não se falava na guerra.

Garibaldi, John Griggs, o italiano Luigi Carniglia e mais meia dú­zia de marinheiros chegaram por volta das cinco, todos com seus me­lhores trajes. D. Ana recebeu o italiano com carinho, enquanto, de longe, Manuela corava de alegria. E Mariana também: Ignácio Bilbao viera para o baile, e sua camisa vermelha cintilava entre os convivas, aproximando-se vagarosamente dela.

— Señorita... Hoje não se fala em barcos, si? — A voz dele sibilava como um instrumento afinado. — Hoje baila-se.

Mariana viu que a mãe fitava-a de longe, mas não fez caso.

 

Rosário chegou tarde ao baile, com os olhos inchados de choro. Steban não aparecera, como sempre sucedia quando Bento Gonçalves estava na estância. A beleza loura e delicada de Rosário chamou a atenção de uns quantos homens ali presentes, e especialmente de François, um francês alto, de cabelos fulvos e olhos de um verde muito aguado, que desde os doze anos estava no mar, e que tinha se engajado na causa farroupilha como companheiro de Garibaldi. Mas Rosário não se ape­tecia por aqueles tipos exóticos, nem mesmo pelo francês — que tinha um cicatriz a lhe riscar o sobrolho direito. Sentou numa cadeira e pôs-se a observar, com certa inveja, a alegria das duas irmãs.

 

As danças começaram após o jantar. Bento Gonçalves e Caetana for­maram o primeiro par da noite, e circulavam pelo salão dançando com gosto uma polca. O presidente era um pé-de-valsa conhecido em to­dos os bailes. Caetana acompanhava-o com garbo.

Aos poucos, os casais aumentavam em número, rodopiavam, for­mavam e desformavam pares conforme a música e a coreografia. Mariana atreveu-se a dançar com Ignácio Bilbao. Espantou-se com os galantes modos do espanhol, que tinha desenvoltura para aquelas dan­ças que decerto nunca conhecera.

Giuseppe Garibaldi não sabia bailar a meia-cancha. Enquanto um dançarino de lenço colorado na mão fazia sinal para sua senhorita, o italiano aproximou-se sorrindo de Manuela.

— Vosmecê há de se desencantar comigo questa notte... Io não tenho jeito para danças. O único balanço que me sustenta é o do mar — e seus olhos se derramaram nos olhos verdes de Manuela de Paula Ferreira.

— Prefiro estar ao lado de vosmecê, aqui, do que dançando com qualquer outro, Giuseppe.

O italiano sorriu. Ambos foram até a varanda. A noitinha vinha lentamente, e as últimas sombras douradas morriam no pampa. Senta­ram-se num balanço ao canto, muito perto um do outro, cada um sa­boreando o calor que vinha daquela outra carne, cada um sonhando horas de solidão e felicidade pura.

Um quero-quero cantou no capão, logo outros pássaros fizeram coro. O ar de final de verão tinha um cheiro doce de flores.

— Questo lugar é molto bello. Os pássaros, o campo, a luz de questo sole... — Giuseppe fitou longamente a moça ao seu lado. Tinha um perfil bem talhado, o nariz curto, delicado, a boca rosada como uma fruta bem madura. Ele sentiu um calor morno invadir seu peito. — Ou talvez seja apenas a vostra presença, Manuela.

Manuela fitou-o. Havia um brilho agudo nos seus olhos.

— Vosmecê é que faz tudo isso especial, Giuseppe. Giuseppe Garibaldi segurou a pequena mãozinha branca entre as

suas. Sentiu os olhos úmidos. Da casa, vinha agora o som de uma chimarrita.

— Io te amo, Manuela. Precisava dizer isso... Io te amo.

Manuela olhou as primeiras estrelas que nasciam no céu ainda cin­zento. "Nunca mais hei de esquecer este exato instante", pensou. Quan­do voltou seus olhos outra vez para Giuseppe Maria Garibaldi, era já uma mulher que encontrara seu caminho e sua certeza.

— Eu também le amo. Com todo o meu coração e toda a minha alma.

Giuseppe nunca tinha pensado que encontraria o amor em para­gens tão distantes. Apertou ainda mais a mãozinha delicada entre as suas.

— Io sono pobre, Manuela... De mio, tenho apenas meus sonhos, minha coragem e minha vontade. Mas se vosmecê assim me quiser, per Dio, falo ainda hoje com seu tio, o general Bento Gonçalves, e fi­camos noivos.

Manuela pensou no tio, e pensou em Joaquim. Seu peito estava leve feito uma nuvem num céu de verão.

— Sim, eu quero, Giuseppe. Eu quero muito. Casar com vosmecê é tudo o que quero nesta minha vida.

 

Bento Gonçalves viu os últimos convidados subirem nas suas seges. Sorvia um mate, distraído. A noite ia alta, com uma lua crescente es­petada no meio do céu repleto de estrelas. De onde estava, meio es­condido pelas trepadeiras floridas que se erguiam pelo pilar da varanda, ouviu a voz de Garibaldi. O italiano despedia-se de D. Ana, com poli­dez e simpatia.

Bento acabou o mate e foi falar com Garibaldi.

— Procurei vosmecê durante o baile, mas, haja vista que estava ocupado, não le incomodei.

Garibaldi abriu um sorriso. Caminhava em direção ao seu cavalo. Também ele queria falar com o general, um assunto muito sério, pessoal.

— Buenas. Vosmecê espera um minutito, que vou mandar o Congo me selar um cavalo. Vou com usted até o estaleiro, e conversamos no caminho.

 

Seguiam pela estradinha deserta e silenciosa. De quando em vez, a luz da lua se infiltrava pelas ramagens. Os outros marinheiros tinham par­tido mais cedo, porque havia muito trabalho no dia seguinte. Garibaldi restara por último, na esperança de pedir a mão de Manuela a Bento Gonçalves. Agora seguiam ambos calados, os animais trotando man­samente.

Foi Bento quem cortou o silêncio:

— Estive no estaleiro hoje cedo, le procurando.

— Io estava trabalhando, general. Atacamos hoje a estância de um caramuru, a umas quinze léguas daqui. Pouca cosa... Uns sacos de farinha, madeira, alguns cavalos. Está tudo lá, general. Mais una vol­ta, enganamos os barcos imperiais.

Bento acendeu um palheiro. Segurava as rédeas com uma única mão.

— Vosmecê tem feito um bom trabalho, tenente-capitão Garibaldi. Mas tenho que le dizer uma cosa: dentro em breve vou le dar missão maior do que esta. Não há muito mais o que fazer por aqui, e precisa­mos dos seus barcos para cosa más importante.

Garibaldi sentiu no peito um misto de emoção e de angústia. A aventura de uma nova missão o chamava com sua voz sedutora, mas isso o afastaria de Manuela. Ele achou que era hora de falar com Ben­to Gonçalves. Contar-lhe seus sentimentos.

— General, io preciso pedir una cosa. Como le disse, é cosa pessoal. O caminho serpenteava para a beira do rio. Uma bruma suave co­bria as águas. Bento Gonçalves olhou o italiano de soslaio.

— Eu também tenho a le pedir algo, tenente-coronel Garibaldi. É um assunto delicado, espero que vosmecê compreenda.

A sombra da charqueada desabitada que servia de acomodação a Garibaldi e seus homens surgiu como um fantasma sob a luz das estre­las. Garibaldi saltou do cavalo, acarinhou as costas do animal e ficou olhando o rosto impenetrável de Bento Gonçalves da Silva, presiden­te da República Rio-grandense, o grande proprietário de terras, o ho­mem que respondia por todo aquele sonho.

— Vou falar primeiro, amigo Garibaldi. Vosmecê há de me enten­der... É sobre minha sobrinha Manuela. — Fez-se um silêncio pesado. E prosseguiu: — Sei que vosmecê está enamorado da menina, mas le peço como um cavalheiro que não le faça mais a corte. Manuela está prometida para meu filho Joaquim. E Joaquim está na guerra. E cosa acertada faz muito tempo. Además, não hei de quebrar a promessa que fiz ao meu falecido cunhado. Ele apreciava muito esse casamento.

Garibaldi sentiu a garganta seca.

— Io amo la vostra sobrinha, general.

A voz de Bento Gonçalves derramava-se na noite. Tinha um tim­bre duro, decidido.

— Os amores vem e vão, amigo Garibaldi. Um homem que já va­rou o mundo como vosmecê deve saber disso mui bien. Só a honra é que vale. E sei que vosmecê é um homem mui honrado. Además, como le disse, logo seu tempo e sua alma estarão ocupados com uma missão más importante. Dela talvez dependa a nossa república. — Garibaldi nada disse. O cavalo de Bento Gonçalves arreliava-se. O general to­mou postura na montaria. — Buenas. Está na hora de eu voltar. Hay ainda esse caminho pela frente, e estou mui cansado. Buenas noches, amigo Garibaldi.

— Buona notte, general Bento Gonçalves.

 

Abril é um mês bonito nos pampas, quando vem o outono, com suas luzes de âmbar que alongam a silhueta dos animais no pasto, e que derramam suas cores sobre os campos como um véu muito tênue. Outono, com sua brisa já fresca, fria à noite, apetitosa para o aconche­go das lareiras. O outono no sul tem qualquer coisa de mágico, de len­to, que faz bem para a alma. Que fazia bem para a alma de Giuseppe Garibaldi, e que lhe dava uma vaga saudade da sua terra natal.

A manhã daquele dia dezessete estava límpida. No galpão da charqueada onde dormiam os sessenta homens de Garibaldi, acorda­va-se cedo, com as primeiras luzes da alvorada. O cozinheiro já prepa­rava a farta refeição da manhã, enquanto os homens tomavam tino da vida, vestiam-se, sorviam aquele mate amargo e quente que era o cos­tume da região e que espantava o sono com tanta galhardia.

Garibaldi estava sentado num banco à beira do galpão, e calçava as botas quando Zé Pedra, o negro de confiança de D. Ana, apareceu por ali num alvoroço.

— Senhor Garibaldi! Venho avisar vosmecê que o coronel Mo ringue, aquele diabo dos imperiais, foi visto a duas léguas daqui.

Garibaldi ergueu-se de um pulo, os cordões desamarrados das bo­tas arrastando pelo chão. O coronel Francisco Pedro de Abreu, apeli­dado de Moringue por causa da sua cabeça descomunal e das orelhas de abano, era tão feio quanto excelente nas artes da guerra. Temia-se muito a sua fama e a sua audácia nas expedições de surpresa. Garibaldi olhou atônito para o negro.

— Quem le disse questo, Zé Pedra?

— Um vaqueano foi avisar lá na Barra. Contou que o Moringue desembarcou aqui por perto com uns setenta homens de cavalaria, mais um oitenta de infantaria. D. Ana mandou que eu viesse correndo le dar o aviso. Estou levando comigo a senhora D. Antônia, para o causo de qualquer surpresa.

— Bene — respondeu Garibaldi. — Vou tomar as providências necessárias. — Virou-se para o galpão. — Carniglia, Bilbao, Matru! Venham até aqui. La buona fortuna vai sorrir para nós hoje! Teremos festa, meus amigos!

Zé Pedra ficou olhando o italiano sem compreender.

Eram cento e cinqüenta contra sessenta, mas Giuseppe Garibaldi confiava nos seus homens. E tinham a vantagem de estarem bem atocaiados. O estaleiro era de difícil acesso.

Garibaldi reuniu os homens em frente ao galpão e contou a novi­dade. Decidiu enviar exploradores em todas as direções, para que se colocassem a par da posição das tropas de Moringue. Dez homens montaram a cavalo e se espalharam. Os outros cinqüenta foram para o galpão da charqueada.

— Carreguem todos os rifles — ordenou Giuseppe. — O Moringue não vai nos pegar de surpresa.

Os rastreadores voltaram no meio da manhã.

— Não há sinal de ninguém — disse Carniglia.

Os outros confirmaram a informação: tinham vasculhado por todo o canto, e nada. A calmaria reinava nos arredores. Era impossível que Moringue e sua tropa estivessem por perto.

Garibaldi ficou pensativo. Seria um falso alarme? Sabia que Moringue era astucioso. Mas onde teria escondido cento e cinqüenta ho­mens? Resolveu confiar na intuição. Sempre soubera que quando algum estrangeiro estava por perto, os animais, ao farejarem o perigo, tornavam-se inquietos e arredios. Deu umas voltas pelo terreno. A calmaria reinante era prova de que os imperiais não andavam por aque­las bandas. Garibaldi tranqüilizou-se. Melhor era almoçarem e retor­narem logo ao trabalho, pois os lanchões precisavam de reparos urgentes, e faltava lenha no galpão. Ademais, estavam construindo dois novos barcos, e o serviço ia atrasado. Os fuzis, carregados, ficaram dispostos na charqueada, esperando ocasião oportuna. Logo, o cozi­nheiro chamou, avisando que a sopa estava pronta, e os homens reu­niram-se para satisfazer a fome daquela longa manhã.

Garibaldi pôs-se a apreciar o almoço e o dia bonito, pensando que, à tardinha, podia ir até a casa de D. Ana e falar com Manuela. Haviam combinado que ficariam noivos, escondidos se preciso fosse, em oca­sião oportuna. E os dias iam passando para os dois, lentos, ardorosos, consumidos naquele amor de silêncios e de anseios.

Garibaldi acabou de comer. Imaginou que Manuela devia estar nervosa com a notícia de que as tropas de Moringue estavam a rondar o estaleiro. Sim, era necessário ir ter com ela no fim do dia.

Os sessenta homens estavam sentados pelos cantos, em pequenos bancos, comendo em mesas improvisadas. Ao final da refeição, Gari­baldi ordenou que todos voltassem ao trabalho.

— Com esta calmaria, decerto o inimigo está molto distante da­qui. Questo tutto foi um alarme falso.

Os homens foram cuidar das suas obrigações. Uns trinta marinhei­ros tomaram o rumo ribeirinho, para tratar dos reparos nos lanchões; outros se dividiram entre a forja e a busca da lenha nas matas ao re­dor. John Griggs tinha ido até Piratini no começo da semana. Na charqueada, restaram apenas Garibaldi e o cozinheiro, que recolhia a panelada do almoço, assobiando uma milonga.

 

Garibaldi toma seu mate quando ouve a fuzilada atrás de si como o ronco furioso de um trovão. Ergue-se num salto, bem a tempo de ver o seu poncho perfurado por uma lança.

— Dio! E essa agora! — Corre para o abrigo do galpão, chamando o cozinheiro. — Luís, o Moringue está aqui. Vai para dentro e pega os fuzis.

 

O tenente Francisco Pedro de Abreu está lá com seus cento e cinqüenta homens. É impossível saber como se escondeu durante a manhã inteira, como aquietou os animais da redondeza. Mas ele está lá, a duzen­tos, trezentos metros, gritando ordens com sua cara feia e disforme, babando ira pela boca arreganhada.

Garibaldi, da janela do galpão, vê que infantaria e cavalaria inves­tem a galope contra o galpão, como que surgidos do nada. Não pensa por mais tempo. É impossível pensar. Tem que agir, fazer qualquer coisa o mais rápido possível. Se Moringue chegar mais perto, ele, Garibaldi, estará morto. São dois homens contra cento e cinqüenta — os outros estão embrenhados na mata, ou no rio — quanto tempo de­morarão para se aperceberem daquela emboscada?

Os sessenta fuzis carregados estão encostados a uma parede. Ga­ribaldi toma o primeiro e descarrega-o contra os inimigos. E um segun­do e um terceiro fuzil cospem sua carga contra a horda imperial. Garibaldi age como um autômato. Sem pensar, sem pensar. Aperta o gatilho com os dedos firmes. Joga ao chão o fuzil descarregado, recebe outro das mãos do cozinheiro. Vê três soldados caírem por terra. A massa humana é tamanha, que nenhum tiro seu se perde, indo sempre perfurar alguma carne, decepar um braço, ferir o dorso de um cavalo. E Giuseppe Garibaldi atira furiosamente. Pensa em Manuela e redobra sua ira con­tra os soldados inimigos: mais três caem sem vida. Não quer Moringue perto da Estância da Barra, perto de Manuela. Não quer Moringue com vida, o desgraçado. Ordena que o cozinheiro recarregue as armas o mais depressa possível. Não há um segundo a perder. A artilharia imperial avança com mais zelo. O tiroteio que vem do galpão é cerrado. Os olhos de Garibaldi saltam para fora das órbitas, como os olhos de um louco. Mas ele não pára de atirar, não perde o ritmo.

O barulho na mata é terrível, e o passaredo foge assustado. Os homens que recolhiam a madeira já se deram conta do sucedido e co­meçam a voltar para o estaleiro. Os marinheiros que consertavam os barcos também tentam retornar. Ouve-se o barulho dos tiros como um ribombar distante. Dois ou três homens que estavam num galpão ali perto, trabalhando na construção de dois novos lanchões, foram feri­dos quando tentavam fazer o caminho de volta ao estaleiro (mas o pequeno galpão permaneceu incólume, guardando seus dois tesouros). Uma parte das tropas de Moringue está no meio da mata. Os homens de Garibaldi estão cercados. Não podem voltar. É preciso fugir pelos caminhos, esconder-se.

Alguns têm êxito e logram chegar ao galpão. Garibaldi os recebe com seus olhos injetados, o rosto já escuro de pólvora e poeira. Os recém-chegados, em número de onze, tomam das armas, abrem espa­ço nas janelas, nas frestas de madeira, em qualquer buraco ou parede que lhes dê guarida. Eduardo Mutru, Carniglia, Bilbao, o mulato Rafael Nascimento e o negro Procópio se põem ao lado de Garibaldi, fazendo carga cerrada. O cozinheiro recarrega os fuzis desesperadamente. E sua em bicas, e reza todas as orações que consegue recordar. Lá fora, o mundo parece estar acabando em gritos e estrondos e tiros.

Se Moringue souber que existem, ao todo, treze homens nesse galpão de charqueada, tudo estará perdido. Mas os marinheiros de Garibaldi lutam com tanta faina e atiram com tamanha mestria, que o astuto Moringue se imagina guerreando contra uma grande tropa e não ousa avançar mais.

A fumaça negra dos tiros espalha-se pelas matas ao derredor e sobe para o céu, nublando pouco a pouco o azul da tarde outonal. Os cava­los já se embrenharam na mata, os cães tomaram o rumo da estrada. Na Estância da Barra, atrás das janelas fechadas, as mulheres rezam e acendem velas. Receiam por elas mesmas e pelos homens do estaleiro. Moringue é temido em todo o Rio Grande. Mas D. Ana não deixa que chorem, que se desesperem. É preciso que se mantenha a calma, que a vida prossiga atrás das janelas cerradas, enquanto Manuel e Zé Pedra ficam de tocaia, armados, para qualquer surpresa. Mariana soluça baixinho, num canto da sala, o rosário entre as mãos trêmulas, pen­sando em seu Ignácio Bilbao. D. Ana a repreende. É preciso dar o exemplo para as meninas pequenas. É preciso ser forte. Manuela tem os olhos secos, e está pálida. Nenhum arroubo de oração lhe escapa dos lábios murchos. Suas mãos dormentes estão esquecidas no colo. D. Antônia preocupa-se com a sobrinha, mas não larga o bordado. É preciso ocupar a mente. Logo tudo passará, logo abrirão outra vez a casa, apagarão as velas, sorrirão desse medo. É pedindo isso que ela reza. Borda e reza, silenciosamente. Na cozinha, as negras de casa, ajoelhadas no chão de ladrilhos, choram silenciosamente.

 

A batalha no estaleiro durou exatas cinco horas. Garibaldi e seus doze companheiros resistiram bravamente aos cento e cinqüenta soldados de Moringue. O telhado do galpão já apresentava buracos enormes, por onde os soldados imperiais tentavam entrar, sendo na mesma hora liquidados por Carniglia, que só assim matou dois. Uma das paredes laterais era apenas um punhado de lenha ardente, que o cozinheiro tentava apagar com paneladas de água, mas a construção resistia bem ao ataque imperial. E no meio disso tudo estava Garibaldi. Dando or­dens, atirando, gritando pela república, destilando seu ódio aos impé­rios, cuspindo fogo pelos olhos de trigo.

Pelas três horas da tarde, o negro Procópio, que era atirador dos mais guapos, calculou bem e acertou o braço e o peito do coronel Moringue. Imediatamente, a tropa imperial deu sinal de retirada e embrenhou-se pelo meio das matas, debandando.

Liderados por Garibaldi, Eduardo Matru, Carniglia e Procópio ainda perseguem os inimigos por alguns metros, disparando. A exu­berância da tarde começa enfim a ceder, o sol amaina, quando eles retornam para a charqueada e constatam que o estaleiro ficou quase completamente destruído. Porém, no cais, os dois lanchões permane­cem intactos, prontos para a navegação. E, ali perto, os outros dois barcos ainda em construção também estão a salvo da fúria imperial.

Garibaldi limpa o suor do rosto coberto de fuligem. Sua camisa está rasgada; ele tem um corte na mão direita. Caminha entre os destroços fumegantes, entre panelas reviradas, corpos de imperiais destroçados, e vai contando os feridos e os mortos. Seus olhos agora estão apazi­guados. Sobreviveu. Nunca há de esquecer essa batalha, das mais encarniçadas que já conheceu. Contabiliza dez cadáveres inimigos. O corpo do genovês Lorenzo é trazido por Rafael Nascimento e Eduardo Matru. Tem um tiro bem no meio da testa, e seus olhos azuis ainda estão abertos, fitos num pavor congelado no tempo. Lorenzo tinha vinte e seis anos, e uma noiva em Gênova.

Garibaldi abaixa os olhos para o companheiro morto.

— Diavolo. Que Moringue queime no inferno. Depositam o corpo do genovês num colchão.

Ignácio Bilbao foi atingido na perna. Outros cinco homens tam­bém foram feridos. O mais ferido deles, um peão das redondezas, tem uma lança atravessada na coxa esquerda e um tiro que lhe penetrou pelas costelas. Quando começa a cuspir sangue, Carniglia diz:

— Pegou o pulmão. Não há muito o que fazer. Garibaldi examina o moribundo.

— Vamos buscar ajuda com D. Ana.

— Não dá tempo.

O homem regurgita sangue. A noite vai descendo de mansinho, enquanto o passaredo volta para os seus lugares. Uma poeira negra paira no ar. E um silêncio pesado cobre tudo.

— Procópio — ordena Garibaldi —, vosmecê pegue um cavalo e vá até a Barra. Leve a notícia de que expulsamos o desgraçado. E peça ajuda e remédios. E preciso tentar fazer alguma coisa por questo uomo.

O negro desaparece para trás do galpão. O peão que cospe sangue está cada vez mais pálido, acinzentado.

Garibaldi reúne os companheiros em frente ao galpão. Os homens embrenhados na mata agora começam a chegar.

— Hoje tivemos aqui una vera batalha. Mas vencemos. E isso prova que um uomo libero é para doze cativos. — Os homens urram, erguem os braços no ar. Ignácio Bilbao equilibra-se na perna sadia e bate pal­mas, gritando. Garibaldi recomeça: — Tutto o que fizemos foi pela nostra república. Pela República Rio-grandense. E vocês foram bra­vos. Que Dio esteja sempre com voi!

Depois, é o trabalho de recolher armas, arreios e outros instrumen­tos deixados pelos inimigos durante a brusca retirada. É preciso dar-se utilidade a tudo aquilo. Enquanto recolhe um fuzil caído em meio à lama, Garibaldi vê que a mata ao redor ficou destroçada. "Sucedeu aqui um pesadelo", constata. Silenciosamente, a um canto do galpão, o peão ferido pára de cuspir sangue e morre de olhos abertos, pensando numa longínqua tarde no pampa, quando pescava com os irmãos na ribeira do Camaquã.

 

Procópio chegou à estância de D. Ana no meio da noite. A casa estava com as janelas fechadas, mergulhada no silêncio.

Ele apeou e foi bater à porta. Vieram lá de dentro ruídos e vozes abafadas. Demorou um pouco, mas Zé Pedra apareceu numa fresta da porta, segurando uma pistola.

— É vosmecê, Procópio! Que arreliação! As senhorinhas ficaram com medo que fosse algum maldito imperial.

As mulheres apareceram num canto da sala, quando Zé Pedra abriu a porta e Procópio entrou, tirando o chapéu perfurado de balas. No fun­do da casa, um cachorro ladrava sem parar. D. Antônia adiantou-se:

— Conta logo o que sucedeu, pelo amor de Deus! Passamos o dia todo numa aflição.

Manuela tinha o coração nos olhos. Caetana segurava a mão de Perpétua e pedia que a filha ficasse calma, por causa do bebê. Procópio pigarreou um pouco e começou a falar:

— O tenente-coronel Garibaldi está bem e mandou avisar que o Moringue e seus homens bateram em retirada lá pelo meio da tarde. Foi uma luta braba. Eles nos pegaram de surpresa: treze homens con­tra cento e cinqüenta.

  1. Ana fez o sinal-da-cruz. No corredor, apareceu a cabeça de Milú, que vinha espiar a notícia.

— Foi feia a cosa? — quis saber D. Ana.

— Morreu um dos nossos, e temos mais seis feridos. Um peão aqui das redondezas está malzito, no más. Vim pedir uns remédios e algum ajutório. Lá, só temos água para lavar os ferimentos dos soldados.

Tinha morrido um. Manuela estava com os joelhos bambos: seu Garibaldi estava bem, graças a Deus e à Virgem! Aos poucos, um sorriso leve avivou seu rosto. Mariana sentou numa poltrona. Com voz muito fraca, quis saber:

— Quem morreu, Procópio?

— O Lorenzo. Um italiano.

Mariana sentiu o peso abandonar seus ombros. Mas não teve co­ragem de perguntar por Ignácio Bilbao. D. Antônia e D. Ana chama­ram as negras e mandaram que reunissem ataduras, álcool, compressas e remédios para levar ao estaleiro. E algumas garrafas de canha. Num canto da sala, Maria Manuela assistia a tudo como se estivesse no meio de um pesadelo. Rosário foi providenciar um chá. Cogitava se o seu Steban tinha morrido numa batalha como aquela.

— Procópio, vou mandar a Milú com vosmecê — atalhou D. Ana. — Ela tem jeito com curativos. E amanhã o Zé Pedra vai buscá-la.

Procópio assentiu.

Caetano, que acabava de acordar com os ganidos do cachorro, apa­receu na sala e quis saber detalhes da batalha. Seus olhos brilhavam de excitação. E a voz do negro Procópio, monocórdia, foi contando aos trancos um pouco do inferno que o estaleiro vivera. Todos na casa permaneceram muito quietos, escutando.

 

                   Cadernos de Manuela

                   Estância da Barra, 30 de junho de 1839.

Muitas coisas sucederam aqui na estância nos últimos tempos. Des­de que Moringue veio atacar o estaleiro, todas nós nos tornamos mais temerosas, pois nos descobrimos vulneráveis aos ataques imperiais. Parece impressionante, mas eu nunca antes tinha pensado na guerra como uma coisa palpável, como uma coisa real. Era como se vivêsse­mos numa redoma, apartadas do mundo, e nada mais. Nem quando vi meu tio morrer em sua cama, tomado pela gangrena, nem quando me avisaram da emboscada que levou a vida do meu pai, eu jamais pensei na guerra como uma coisa de sangue e de músculos, como um bicho cruel e faminto.

As horas daquele dia dezessete de abril foram terríveis para mim. Ah, contar os instantes como se fossem as moedas de um resgate, e segurar o pranto para que eu mesma não morresse antes de ter qual­quer notícia dele. E pensar, a cada momento, que ele poderia estar morto, que talvez seu olhos não iluminassem mais este mundo, que meu Giuseppe estaria jazendo em algum pedaço de chão com uma lança atravessando seu peito. E o silêncio que nos impusemos... Sim, D. Ana e D. Antônia, sempre elas a zelarem pela casa e por nós, incansáveis e decididas — tanto que nem Caetana nunca ousou contrariá-las, estan­do sempre obediente às suas ordens e sugestões —, D. Ana e D. Antônia nos tinham proibido de chorar, nem por amor, nem por medo. E com tal faina, e com tal zelo, que quando Mariana deixou escapar um pou­co do seu pranto, foi mandada à cozinha preparar um bolo para o chá que tomamos na sala fechada, em silêncio, como numa missa onde se cultua a angústia. E a todas nós foi dada uma tarefa a ser cumprida, para que não desandássemos pelos despenhadeiros do pavor que nos consumia. Eu mesma me vi bordando um pano qualquer, que cores tinha, nem me recordo, e a cada ponto engolia uma lágrima, até que minha garganta e minha alma ficaram salgadas de choro acumulado. E foi assim que aquele dia terrível passou. Demorou muito para que o sol se pusesse no horizonte: era como se ele risse de nós, risse de mim, que só queria saber qualquer coisa do meu Giuseppe. Quando a noite chegou, tudo foi mais tenebroso ainda. O escuro guarda os piores re­ceios. O escuro é como uma arca repleta de velhas coisas empoeiradas. Não se pode abri-la, nem esquecê-la. A arca está no meio da sala, e a cada instante se tropeça nela.

Naquela noite, jantamos sem fome.

Somente muito tarde foi que bateram à nossa porta, e então meu coração acelerou como um cavalo em disparada pelas coxilhas, e nun­ca senti tanto medo em minha vida, porque, depois que abrissem aquela porta, tudo estaria irremediavelmente perdido ou irremediavelmente salvo. Era o negro Procópio; soubemos então da batalha, e que meu Giuseppe estava vivo e mandava notícias. Renasci com aquelas pala­vras. E odiei aquele dia com cada átomo de mim mesma, e tanto, que para sempre hei de recordá-lo negro e viscoso como um morcego em minhas lembranças. Mas pude, enfim, mesmo com medo dos imperi­ais que talvez estivessem por perto, dormir em paz. Garibaldi estava vivo, este mundo ainda nos abrigava a ambos, e isso era tudo que me bastava para ser feliz.

Na manhã seguinte, Zé Pedra encontrou um imperial morto na en­trada da fazenda. Trouxe-o arrastado até os fundos da casa. Era um jovem das redondezas que outrora eu vira cavalgando por perto, não devia ter então mais do que dezenove anos. Fora morto com dois tiros. Seu rosto cinzento e barbudo me trouxe pena e nojo. Morrera por que, afinal? E, estando vivo, não teria ele matado meu Giuseppe sem qual­quer consideração, se fosse capaz de tanto? Por que se lutava e por que se morria? Nunca hei de sabê-lo. E nenhum regime sob o céu me haverá de justificar esta guerra. Talvez por um sonho. Por liberdade. Por ela é que se luta. Como Giuseppe Garibaldi. Ele tem esse sonho e o persegue pela vida, mesmo muito longe deste Rio Grande, em outras terras ainda mais distantes da sua pátria, Giuseppe sempre lutou por seu sonho.

E eu sempre sonhei com ele.

Mas luto pouco, porque não tenho armas.

 

Dias depois do ataque de Moringue, Giuseppe veio até nossa casa. Estava mais magro, mas teve para mim o mesmo sorriso único que sem­pre me ofertava, um sorriso de amor. Estávamos proibidos de casar, assim dissera minha mãe, assim me avisara D. Ana, com algum dó no fundo dos olhos escuros. Bento Gonçalves proibira nossa união. Tal­vez por Joaquim, talvez porque imaginasse em Garibaldi nada mais do que um forasteiro sem pouso, um aventureiro dos mares, um so­nhador. E Giuseppe é um sonhador. Não um descendente dos continentinos, como meu tio e toda a nossa família, não um proprietário de terras, com escravos e ouro e influências políticas, mas um homem capaz de virar os mundos em busca de um sonho. E foi por isso que o amei. Desde o primeiro instante. E antes ainda.

Giuseppe contou-nos tudo que sucedera no dia da batalha, e como foram corajosos os homens do estaleiro, vencendo um número tão su­perior de inimigos apenas com sua coragem e garra. Estávamos todas reunidas na sala, ouvindo-o. Eu tremia de felicidade em vê-lo mais uma vez, e vivo, perto de mim. Não foi possível que ficássemos a sós, pois as tias e minha mãe faziam muito zelo em nossa presença. Mas houve um momento, quando íamos à mesa para o almoço, em que Garibaldi pôde colocar um bilhetinho entre meus dedos.

"Carina, Manuela, del mio cuore

 

Io ainda te amo, e muito. Vosmecê não pense que il suo tio pôde apagar esse amor del mio peito. Haverá um momento oportuno para nós. Quando tutto questo passar. E io ainda penso em falar com o ge­neral mais uma vez, pedindo por nosso noivado e casamento. Por ora, fui chamado a Porto Alegre, onde os republicanos estão fazendo o cerco. Receberei una nuova missão, mas io ritorno para estar com vosmecê brevemente.

Sempre suo, Giuseppe."

 

Giuseppe partiu no começo de maio.

Foram dias de um vazio cruel para mim. A proibição do nosso noivado me trouxe doenças e uma fraqueza que assustou minha mãe. D. Antônia preparou chás e compressas; eu não melhorava por tei­mosia. Não era justo que me obrigassem a casar com um primo que eu não amava, enquanto Giuseppe tanto ardia em estar comigo. D. Antônia falou-me francamente que tinha pena daquele malogro amo­roso, mas que era ò único caminho e que um dia eu agradeceria a decisão de meu tio e de minha mãe. Para a tia, havia o certo e o errado, nada fora disso. Respondi-lhe que ela mesma tinha conhecido a feli­cidade mui brevemente, e que dela se havia esquecido havia tempos, portanto eu a perdoava, mas que nunca mais seria feliz. E nem me casaria com outro que não fosse o meu Giuseppe. D. Antônia fitou-me com os olhos rasos dágua e não disse mais nada, restou em silên­cio, aplicando compressas em minha testa febril. Muito depois, quando saía do quarto, sussurrou: "Um dia, isso tudo passa, filha. Vosmecê vai ver."

Sei que não passará.

Fui talhada para ser de um único homem, e serei dele eternamente. Mesmo que nunca nos casemos, mesmo que a guerra ou o destino o leve para longe de mim, permanecerei esperando-o até quando for ne­cessário, até a eternidade.

Meu primo José chegou no final de maio, de passagem, rumo a Santa Vitória. Dormiu um par de dias na estância e partiu outra vez. Mas dei­xou-me com o coração despedaçado. Segundo ele, Garibaldi ainda vol­taria para a Estância do Brejo, porém por pouco tempo. Soubemos por José os planos que tinham afastado Giuseppe de nós, embora o estalei­ro continuasse em franca agitação, sob o comando de John Griggs. Agora os republicanos queriam conquistar a cidade de Laguna, em Santa Catarina. E Giuseppe Garibaldi e seus marinheiros seguiriam com eles.

A República Rio-grandense precisava de um porto. Os imperiais ainda dominavam a barra do Rio Grande, fechando assim o acesso para o Atlântico. Ademais, ainda era deles o controle das águas interiores. As manobras de Garibaldi na lagoa tinham rendido bons frutos, mas aquela política de guerrilha lacustre não tinha mais serventia para a revolução. Era preciso uma atitude enérgica para abrir espaço. E ha­via a cidade de Lages, em Santa Catarina, que proclamara a Repúbli­ca e agora queria incorporar-se aos rio-grandenses. Em tudo isso andava pensando Bento Gonçalves. Era preciso um porto, e esse por­to era Laguna, já que no Rio Grande os imperiais dominavam todo o acesso ao mar. Garibaldi teria aí a sua missão: os barcos precisavam, de algum modo, chegar até Laguna e garantir a tomada da cidade.

José contou isso com os olhos ardentes de euforia. Também ele se jun­taria, quando fosse o momento, às tropas que tomariam Laguna. Estava indo para a fronteira, reunir-se à gente de lá. E toda essa operação seria comandada por um coronel chamado Davi Canabarro. Para Laguna, par­tiriam Giuseppe e os homens do estaleiro, e então nossa vida continuaria a mesma de antes, triste e pacata, vida de esperas. E a mim, tudo o que restava era rezar por Giuseppe e para o seu retorno. Rezar e rezar, é tudo o que faço ainda agora, e Giuseppe nem partiu com seus barcos.

 

Ficamos sabendo que o comandante da Marinha imperial voltava a ser o inglês Greenfell. E, em princípios de junho, os navios imperiais retornaram à lagoa, agora decididos a exterminar os corsários repu­blicanos. Criou-se em mim uma dúvida: como Garibaldi partiria com seus barcos? Por onde iriam eles sem que os navios inimigos os perse­guissem, sem que houvesse mais batalha e destruição?

Eu não tenho respostas. Ninguém em nossa casa tem respostas. A guerra agora sucede tão perto, e estamos como espectadoras de tudo isso. Mariana, no auge de seu amor por Ignácio Bilbao, agora some a cada entardecer, sempre com alguma desculpa ou com a ajuda minha ou de Rosário, e vai encontrar-se com o espanhol perto do capão. Lá, juram seu amor. Eu penso em todos os planos que tinha feito para mim e Giuseppe, e temo que o romance de Mariana tenha o mesmo destino que o meu. Falamos muito em fugir, mas a verdade é que não temos para onde ir. O pampa está convulsionado pela guerra, e os homens querem a batalha como querem o pão diário. A nós duas, só resta esperar.

Zé Pedra nos trouxe a notícia da volta de Garibaldi, logo confirmada por D. Antônia. Com ele, veio também Davi Canabarro. Soubemos que acontecem reuniões intermináveis no galpão do estaleiro, onde John Griggs, Giuseppe Garibaldi, Luigi Carniglia e Davi Canabarro ficam ho­ras fazendo planos e traçando passos para a expedição a Santa Catarina.

 

Meu Giuseppe veio ver-nos no início desta semana. Na sala de nossa casa, tomando um mate à beira do fogo, ele contou que Canabarro já partira. Para tomar providências. Mais não disse, nem ousamos per­guntar. Apenas eu fiquei ali, como que em transe, fitando o perfil da­quele homem que me é tudo, e que eu já sentia se afastar de mim. Ah, ele me olhava como antes... Com os olhos cheios de fome e de adora­ção. Mas havia algo em seus sorrisos, uma dor que era uma espécie de adeus. Sim, ele vai embora, eu sei. É um soldado da República e por ela lutará até a última gota do seu sangue. O amor precisa esperar pela guerra. Era isso que me diziam seus olhos de mel, quando ele derra­mava em mim seus olhares lentos.

Giuseppe jantou conosco naquela noite. Lá fora, soprava o minuano, com sua fúria triste. Giuseppe estava mui interessado naquele vento perigoso que poderia pôr a pique os seus navios, e D. Ana então con­tou-lhe histórias antigas sobre o minuano e seus três dias de ânsia. Ao final do jantar, quando D. Ana mandou que as negras trouxessem o doce de pêssego, Giuseppe chegou perto de mim e sussurrou:

— Io sinto molto la vostra falta, Manuela.

E outra vez conseguiu entregar-me um bilhete escrito num papelote azul que eu guardei num dos bolsos de minha saia, com o rosto em brasa.

Era quase meia-noite quando Giuseppe Garibaldi vestiu seu capo­te de lã e se preparou para enfrentar a noite ventosa até o estaleiro. Despediu-se de mim com o mais doce olhar que um homem já deitou a uma mulher, depois sumiu na noite como se nunca tivesse existido, como se fosse um sonho que sonhei numa das muitas madrugadas desta guerra, como se fosse um anjo ou um demônio, qualquer ser, do céu ou do inferno, que tivesse vindo a mim para me roubar a alma. Depois sumiu, como um sopro. Uma onda. Como uma lenda.

 

                 "Carina Manuela mia,

Logo, io parto para Santa Catarina, onde dobbiamo fare Ia Repú­blica. Vou por amor à liberdade dos povos, Manuela. E somente per questo. Ma io juro que ritorno per voi, que pensarei em voi a cada notte, e que sonharei com vostro rosto a cada sonho. Não peço que me espe­re, mas io juro que um dia voltarei, quando questa guerra acabar, e que ficaremos juntos, para sempre então.

Saiba, Manuela mia, que questo amor é verdadeiro e imenso como il mare, e que io sono vostro per sempre.

Giuseppe Garibaldi"

 

Guardei aquela carta no abrigo dos meus seios por dias, e era como se um pouco de meu Giuseppe andasse sempre comigo. Depois, com medo de perder papel tão precioso, acomodei-o em meio às páginas do meu diário. Melhor lugar para o nosso amor. Onde eu espero por ele, e com ele sonho. Nestas linhas em que o relembro.

Manuela.

 

Perpétua olha a tarde cinzenta pela janela, e um arrepio percorre seu corpo. O céu está pesado, parece que vai desmaiar sobre as coxilhas. Ela se aconchega mais ao xale de lã. Os pés metidos nas chi­nelas agora estão inchados, a barriga salienta-se sob o vestido largo, de tecido azul.

Ela sente saudades do marido. Durante toda a gravidez, Inácio vi­era vê-la umas cinco vezes. Ficara pouco com ela, mas sempre estivera amoroso, e tão feliz ao ver que o filho crescia em seu ventre como uma fruta amadurece num galho de árvore. Mas era a guerra, difícil para todos. Agora mesmo, Perpétua não pode precisar o paradeiro de Inácio. De seu, tem apenas essa criança inquieta que se remexe dentro dela como um peixe num aquário pequeno demais.

A mãe está bordando ali perto, e ensina Maria Angélica, que agora está com nove anos, a dar seus primeiros pontos. Maria Angélica es­peta o dedo na agulha constantemente. Se Perpétua tiver uma menina, logo repetirá esse ritual.

— Está cansada, hija?

Caetana envelheceu nesses últimos tempos. O tom esmeralda de seus olhos perdeu alguma coisa do brilho.

— Estou bem, mãe. Mas me doem as costas.

Passa o resto da tarde sem acomodar-se, nem consegue dormir. Não come o bolo que Zefina lhe traz. Um peso cada vez maior empurra seu ventre para baixo. E lá fora o mundo parece mais cinzento e escuro.

Antes do jantar, resolve caminhar pela casa. Fica andando como um fantasma sem rumo, de uma peça a outra, cruzando com as negras, com as primas que agora andam tão cabisbaixas, entrando e saindo da sala onde o fogo crepita na grande lareira de pedras, arrastando as chinelas como dizem que fazia sua avó paterna, de quem herdou o nome e alguma coisa em seu olhar.

Passa das nove horas quando a dor a invade sem nenhum aviso, como uma faca que penetra sua carne. Perpétua grita. Sente que um rio se solta e desce por suas pernas, alagando as saias do vestido e for­mando uma poça no chão de ladrilhos.

  1. Ana acode, vinda da cozinha.

— Que foi, menina? — E quando vê a sobrinha, já sabe. Mas está calma. Pôs dois meninos no mundo, e mais um terceiro que morreu pequetito. Segura as mãos de Perpétua. — Tenha calma... Essa dor passa rápido. Pense que o seu filho vai nascer...Vou chamar a Rosa. As negras acodem, juntamente com Caetana, que ajuda a filha a ir até o quarto. Mandam buscar D. Rosa, que está na sua casinha lá no fundo, bordando. D. Rosa entende de ervas e de trazer crianças ao mundo. Entende de fogão e de boitatá. D. Rosa tem os olhos casta» nhos, meio baços, e um sorriso discreto no rosto.

Logo o quarto está repleto de coisas: bacias com água fervente, fral­das, lençóis, a tesoura recém-esterilizada, comprida, que D. Rosa tem desde que aprendeu a trazer inocentes para esta vida. Perpétua grita de dor. Do lado de fora da alcova, Mariana, Manuela e Rosário se angustiam e sussurram. D. Ana aparece por uma fresta da porta.

— Vosmecês vão lá para a sala. Aqui não ajudam nada com esses falatórios. — As sobrinhas têm os olhos arregalados de pavor. Perpé­tua solta um grito agudo. — Toda mulher passa por isso, é assim mes­mo. Se aquietem lá para dentro, que vai dar tudo certo.

E D. Ana fecha a porta lentamente.

 

A primeira hora da madrugada fria do dia primeiro de julho de 1839, nasceu Teresa da Silva de Oliveira Guimarães. Depois dos trabalhos do parto, depois de ver o corpinho perfeito da menina e de contar-lhe os dedinhos dos pés e das mãos, Perpétua Justa olhou a mãe e sussurrou:

— Queria tanto que o Inácio estivesse aqui.

E mergulhou num sono exausto.

Caetana, com a neta nos braços e os olhos úmidos de lágrimas, sor­riu docemente. A vida seguia seu rumo. D. Ana baixou as mangas do vestido que arregaçara na faina de ajudar Rosa, e foi se chegando para ver o rostinho da menina.

— Vai ter alguma coisa da nossa gente — disse com orgulho. — Nasceu gritando para todo mundo ouvir.

Caetana enrolou mais a menina no xale de lã e apertou-a contra o peito. Lá fora, começava a cair uma chuvinha miúda e fria.

 

Acordaram muito cedo naquela manhã. O estaleiro estava em polvorosa. Era chegado, finalmente, o dia de partir. Garibaldi olhou o céu in-vernal. Estava pálido e sem nuvens. O mês de julho começaria com muito frio. Era bom que não chovesse naquele dia, mas era muito mais impor­tante que não chovesse depois. Ele tinha uma grande tarefa pela frente. E iria cumpri-la molto bene. Fora idéia sua, e ele sabia que daria certo. Outros já tinham feito travessia igual à que imaginara; venezianos mui­to antigos e Marco Antônio, o romano, tinham usado de artifício igual. E agora era chegada a vez dele, Giuseppe Garibaldi, fazer a sua mágica. Deu ordens para que os homens recolhessem tudo, deixassem o estaleiro em ordem. Não queria que D. Antônia ficasse com más re­cordações da sua pessoa. Porque iria voltar. Sim, voltaria, quando ti­vesse cumprido a sua missão, para buscar Manuela.

— Carreguem o Farroupilha. Il mare nos espera, homens! Havia muita expectativa no ar. Ignácio Bilbao e Carniglia levavam alguns víveres e cordas para o barco. Iam cantando. Era um dia com cheiro de novidade.

O plano tinha sido meticulosamente tramado por ele e por Davi Canabarro. Garibaldi precisava levar os seus barcos para o mar. Do estaleiro, pela Lagoa, navegariam até o Rio Capivari, cuja foz era coberta por uma brenha cerrada. Era um riozinho estreito e raso, mas Garibaldi tinha os seus "patos". A segunda parte do plano era a mais corajosa e difícil (mas os romanos já a haviam provado possível). Le­variam por terra os barcos até a Lagoa Tomás José, em Tramandaí. Dali, chegariam ao oceano e tomariam o rumo de Laguna.

Giuseppe Garibaldi sabia que Greenfell o esperava ali perto, na Lagoa dos Patos. Mas já enganara o inglês muitas vezes, e faria tudo de novo. Até gostava daqueles jogos de gato e rato — era um rato esper­to. A travessia por terra era mais ousada e necessitava de calma. Para isso, Davi Canabarro já estava em Tramandaí, limpando a região, amealhando cavalos, madeira, e organizando os homens.

 

Ganharam as águas da Lagoa sob o céu azul e frio do inverno gaúcho. Logo, os barcos de Greenfell os perseguiam. Mas os lanchões farrou­pilhas eram mais ágeis e leves. Garibaldi ia no Farroupilha, e John Griggs comandava o Seival. Os barcos pequenos, os novos, iam atrás e tinham outros caminhos a percorrer.

O vento frio zunia em seus ouvidos. Garibaldi exultava. A água se abria em leques azulados, dando passagem ao imenso animal que des­lizava sobre ela. Logo, Garibaldi avistou a barra do Rio Capivari, com seus matagais densos e misteriosos. O Farroupilha foi enveredando pelo meio da vegetação, como um pássaro que busca o ninho. Griggs fez a mesma manobra com o Seival. Rapidamente, ambos os barcos sumi­ram entre as ramagens, como se nunca tivessem passado por ali, como se nunca tivessem existido. Garibaldi abriu um sorriso de satisfação. Sabia que Greenfell iria esperá-los do outro lado. Esperariam para sempre. Os lanchões farroupilhas não sairiam do Capivari pela água.

Quando escolheu um bom lugar, Giuseppe mandou que camuflas­sem os mastros dos barcos com ramagens e folhas, e os homens se jo­garam no serviço. Já anoitecia.

 

Duzentos bois foram requisitados em segredo pelos soldados de Davi Canabarro. A madeira necessária foi recolhida das matas e forjada em fogueiras, onde, depois, se assava a carne. Garibaldi mandou construir duas grandes carretas, cada uma com quatro rodas, que tinham mais de três metros de altura e quarenta centímetros de largura. Canabarro e Garibaldi acompanhavam o trabalho atentamente.

Numa tarde cinzenta e fria, começou a tarefa de colocar os barcos sobre as carretas. Garibaldi mandou que a primeira carreta fosse submersa num pequeno arroio, depois os homens suspenderam o pri­meiro lanchão até a quilha e o fizeram repousar sobre o duplo eixo da carreta, sempre deslizando-o nas águas geladas do rio. Apesar do frio terrível, os marinheiros tiveram êxito na tarefa: depois de muitas ho­ras, quando a noite já vinha, pesada, o Seival e o Farroupilha repousa­vam sobre as duas carretas, prontos para viajar pelo pampa.

Com a ajuda de muitas parelhas de bois, no dia seguinte as carre­tas submergiram com sua carga impressionante. Os homens urraram de alegria. Davi Canabarro olhou tudo sem demonstrar emoção. Garibaldi pensou no sorriso que Manuela daria se visse aquele estra­nho espetáculo.

Começava, naquele gélido princípio de julho de 1839, a travessia por terra dos barcos republicanos.

Choveu muito naqueles dias. As carretas atolavam constantemen­te, mas sempre havia parelhas de bois descansados, e sempre havia a crua energia de Giuseppe Garibaldi, incansável na sua tarefa. Foram oitenta e seis quilômetros de travessia pelo pampa coberto de relva, aqui e ali empoçado de água, mas o pequeno exército seguiu firme, e por onde passava era aplaudido pelo povo. Nunca se havia visto no pampa uma cena igual.

Na Estância da Barra, Manuela passava os dias à janela, olhando a chuva miúda pingar do céu, os olhos baços, o apetite pouco, sempre um arrepio nas costas e aquela vontade de chorar. D. Ana fez-lhe chás, tocou músicas ao piano, tentou alegrar a menina de todas as maneiras. Mas por fim cedeu também ela à tristeza: tinha ficado amiga de Giuseppe Garibaldi, aquele italiano engraçado e contador de causos, e agora ele fazia falta nos dias cinzentos do final de inverno. Maria Manuela acendia velas à santa, agradecendo a bênção de sua filha mais moça estar livre dos encantos daquele corsário de olhos dourados.

Quando chegou à Estância a notícia do grande feito de Giuseppe Garibaldi, D. Ana deixou escapar um sorriso disfarçado. D. Antônia, que estava visitando as irmãs naquele dia, permaneceu séria, atenta à sobrinha, vigiando duramente aquele afeto que crescia no seu peito a cada vez que pensava no italiano.

— Giuseppe Garibaldi é um herói — comentou Mariana, impres­sionada com a façanha do corsário que levara os seus barcos através dos campos.

Maria Manuela mirou a filha com um brilho de fúria nos olhos cansados.

— Um herói para pouco serve quando uma guerra acaba, Mariana. Não se olvide disso. — Virou o rosto para Manuela, que remexia pensativamente no seu cesto de bordados. — E você principalmente, Manuela de Paula Ferreira, lembre do que eu disse e não me cometa nenhum desatino. Eu não suportaria mais um sofrimento.

Manuela sustentou firmemente o olhar duro da mãe. Por um mo­mento, sentiu pena daquela mulher que, havia pouco, lhe parecia tão bela e doce, e agora era apenas uma figura triste, pálida e sem forças. A perda do marido tinha roubado um quinhão da sua vida. Manuela baixou os olhos outra vez.

— Giuseppe está longe demais daqui, mãe, para que vosmecê se apoquente por ele.

E sua voz soou lúgubre.

 

Rosário entra no quarto que cheira a alguma coisa doce, leitosa, que não consegue precisar. Uma luz tênue atravessa as cortinas levemente arriadas, uma luz fraca de entardecer invernal. Num canto da peça, sobre a larga cama, Perpétua dorme. A filha está ao seu lado, uma coisinha rosada, um pequeno embrulho de mantas e laços de fita, cuja cabecinha de penugens douradas mal se salienta entre tantos agasa­lhos. Teresa mexe o rostinho durante o sono, emite suaves grunhidos, como os de um animalzinho mui pequeno, como os dos cãezinhos que uma cadela da casa pariu faz alguns dias, e que Rosário às vezes vai espiar lá no galpão. Teresa é uma menina bonita, e Rosário sente amor pela menininha. Mas sente também estranheza. Perpétua casou, está feliz, ama o marido. Agora tem essa filha. E ela, Rosário, nada tem. Faz muito tempo que Steban deixou de vir vê-la... Steban, com seus brios, com seus ares translúcidos e sua beleza fluida que muitas vezes a exaspera, quando desperta alagada em suores e sente que ele a está vigiando no escuro, como um gato, como um fantasma. Mas Steban é um fantasma, é preciso acostumar-se com isso.

Rosário caminha suavemente, para não acordar a prima e a crian­ça. Num canto perto da janela está a arca de madeira. Sabe que ali está o que procura. Abre a arca com cuidado e pega o pacote envolto em linhos. Um cheiro de alfazema exala do pacote bem-feito.

 

Rosário tem o mesmo corpo que a prima, exatamente a mesma cintura fina, exata, o mesmo colo alto, bem-feito, mas sua pele é mais clara, confunde-se com o pano perolado do vestido, parece outra seda, mais suave ainda, mais frágil ainda. A saia desce bem pelos seus quadris, macia e delicada. Rosário toca as rendas com cuidado; a perfeição dos trabalhos, dos bordados de pérolas, deixa-a estupefata. Um vestido muito caro, aquele. Sabe que o tecido veio de longe, que foi encomen­dado por Caetana, e Caetana entende de modas, é fina e elegante.

Rosário prende sozinha os cabelos claros num coque no alto da cabeça. Faz isso sem muito jeito, sempre uma das negras está por per­to para ajudá-la, mas agora não quer ninguém. Esse momento é só seu. Ajeita entre os cabelos a grinalda de flores. São minúsculas florezinhas de seda, com seus miolos bordados de pedraria. Ela se ergue e vai para a frente do espelho. Afasta-se um pouco para mirar-se melhor. E não acredita no que vê. Está tão linda... Ah, como está linda! A mais bela das mulheres, a mais suave e perfeita criatura. Nem parece ser deste mundo. Talvez, vestida assim desse modo, Steban volte para buscá-la. É justo que ela, Rosário, não pertença a esta terra dura, gélida, cruel.

Ela se mira com tanta emoção, que de seus olhos escorrem lágrimas grossas. Mas são lágrimas de felicidade. Agora sabe, agora tem certe­za. Steban não irá abandoná-la, não a ela, que mais parece um anjo.

Pensando assim, num passo elegante, como se entrasse num salão de baile, Rosário sai do seu quarto e segue andando pelo corredor. Está vazio o corredor, mas é como se mil olhos a fitassem, é como se dois mil pares de mãos estivessem aplaudindo a sua passagem, e ela abre um sorriso emocionado. Um sorriso lindo, digno de uma rainha. "De una reina", pensa ela.

 

"Minha querida prima Manuela,

Vosmecê deve ter estranhado que tanto tempo se passou sem que eu le mandasse uma carta, embora a saudade muito me corroesse aqui den­tro do peito. Mas é que andei por este pampa de um lado a outro, no más, e tantas foram as tarefas e refregas e feridos, que tive de esperar para escrever a vosmecê. Agora estou com meu pai em Piratini, onde restarei por alguns dias. Ainda ontem, encontrei com Antônio, seu irmão, e ele le mandou lembranças e carinhos, e também à sua mãe e às primas.

Mas é do meu afeto que desejo le dizer, Manuela. Do meu afeto que solamente cresce por vosmecê, e que me faz desejar o final desta guerra, para que eu possa regressar à estância e estar junto de vosmecê por todo o tempo. Às vezes penso, no entanto, se esse meu afeto tem morada em seu peito, porque em todos esses meses solamente um pequeno bilhete seu me chegou às mãos. Bilhete que guardei em minha guaiaca como um tesouro que me alegra e me protege, Manuela. Mas sei que vosmecê está longe, que as comunicações são difíceis e que as cartas se perdem nestas estradas cheias de más surpresas. No entanto, almejo que vosmecê não me olvide, e que esse silêncio seja apenas saudade. E que vosmecê tam­bém tenha por mim o carinho imenso que le tenho.

Aproveito esta carta para mandar notícias da guerra às tias e às pri­mas também. Como se sabe, estamos agora tentando abrir frentes em Santa Catarina. Vosmecê deve mesmo ter conhecido o italiano Garibaldi, que tão perto da estância esteve hospedado para construir os lanchões

da República Rio-grandense. Este italiano, a quem todos elogiam a co­ragem e a habilidade na navegação, causou muito espanto no pampa quando transportou seus barcos por terra, sendo eles puxados por pare-lhas de bois. Sei que vosmecês devem saber disso e com isso terem muito se alegrado. Sei que D. Ana e D. Antônia gostaram de Garibaldi por demás, e então aproveito para contar do infortúnio que sucedeu a esse italiano quando ele saía com os barcos pela barra do Rio Tramandaí.

Um grande naufrágio colheu os barcos republicanos nesse dia de tra­gédia. Parece mesmo que um vento sul mui forte açoitou o mar, tornan­do-o perigosíssimo. Não sei como tudo sucedeu exatamente, porque as notícias sempre vêm desfalcadas de um ou outro fato, mas sei decerto que dezesseis homens morreram nessa desdita, dentre eles os italianos Matru e Carniglia, e até um certo espanhol de sobrenome Bilbao, de quem muito se palreava da sua coragem. O comandante Garibaldi não foi en­golido pelas águas, para sua sorte e sorte das nossas tropas, mas poucos companheiros conseguiu salvar, devido ao mau tempo e à violência do mar. O barco menor, comandado pelo americano John Griggs, que vosmecês também devem conhecer, esteve quase à deriva, mas conseguiu se salvar por ser menor e mais leve, e pôde ancorar numa barra conhecida como do Camacho, onde después foi encontrado intacto e com toda a tripulação.

De resto, Manuela, há também a notícia de que o tocaio de meu pai, o Bento Manuel, desligou-se das tropas farroupilhas e diz ter ido viver em suas terras, por estar cansado da guerra e sentindo-se mal considerado pelo nosso governo. Pois vosmecê deve saber que esse outro Bento é um traidor que mui trapaças já nos fez, mas mesmo assim vi meu pai sentir a perda da sua pessoa, pois se diz dele que é um bom comandante de armas.

Por favor, conte todas essas novidades para as tias e para minha mãe. Mande meus carinhos para Perpétua, e le diga que estou mui contento pelo nascimento de Teresa, e que logo, assim que for possível, estarei uns dias com vosmecês para dar conta dessa saudade que me aflige.

E vosmecê, Manuela, não esqueça o muito que le estimo e sinto a sua falta,

com carinho, Joaquim.

Piratini, 20 de julho de 1839."

 

  1. Antônia desceu da sege em frente à casa. Fazia um frio seco, o céu estava muito azul. Soprava um vento leve, gelado. D. Ana, parada à varanda, esperou que a irmã galgasse a pequena escada.

— Vamos lá para dentro, Antônia. Tem um mate pronto, e a larei­ra está uma beleza. Esse frio está me corroendo os ossos.

A sala estava vazia, apenas se ouvia o ruído da lenha crepitando. O tricô de D. Ana estava sobre uma banqueta, perto do fogo. D. Antônia quis saber onde estavam as outras parentas.

— Lá para os quartos. Perpétua e Caetana estão com a menina. As outras, nem sei. — D. Ana suspirou lentamente, e buscou lugar na cadeira de balanço. — Isto aqui está uma tristeza desde a carta do Joaquim. Manuela anda calada feito um túmulo, me faz lembrar a mãe. Mariana, nem se fala; quando soube do infortúnio do tal marinheiro, chorou dois dias seguidos. Nem chá, nem as rezas de Rosa le acalma­ram os nervos. Agora, mal sai do quarto. E eu que nunca notei a pai­xão da guria...

  1. Antônia sacudiu pesarosamente a cabeça.

— Isso passa. Era um amor de divertimento, Ana. Que futuro te­ria a Mariana com o tal espanhol?

  1. Ana sorriu tristemente.

— Vosmecê sabe como é a juventude... Agora que o moço está morto, o amor dela deve ter aumentado. E sempre assim.

— A galinha do vizinho é mais gorda.

— A gente solamente quer o que não pode mais ter...

  1. Antônia sentiu um arrepio no peito. Tinha recebido a notícia do naufrágio por Zé Pedra. Sentira muita pena dos homens que tinham morrido; de alguns, lembrava até o rosto. Eram valentes soldados, todos eles. Achegou-se numa poltrona e ficou uns instantes olhando o fogo.

— Cadê esse mate? — perguntou por fim, para dissipar a angús­tia que lhe ia na alma.

A irmã tocou uma sineta. Uma negrinha miúda apareceu com a chaleira e a cuia preparada. D. Ana esperou que D. Antônia tomasse a primeira cuia e disse:

— Vosmecê soube de Rosário? Não. Ela não tinha sabido.

  1. Ana contou então que tinham encontrado a sobrinha vagando pelo capão, usando o vestido de noiva de Perpétua. E já era noite, noi­te iria. Rosário estava roxa de frio, e chamava um nome. Aquele nome de homem que ela sempre teimava em repetir.
  2. Antônia ficou muito séria.

— Essa menina está com algum problema de cabeça. Era bom procurar um médico entendido dessas cosas.

— Nós chamamos um doutor de Camaquã. Vosmecê tinha que ver a tristeza da Maria Manuela quando viu a filha daquele jeito. Parecia que ia morrer a qualquer minuto. E quando o médico veio e olhou a Rosário, Maria só dizia: minha filha não é louca, minha filha não é lou­ca, não. Mas o médico ficou achando tudo mui estranho. Disse que a Rosário tinha tido um surto.

— A nossa família não é de surtos.

— Nem eu lembro de ter havido um louco, a menos que me tives­sem escondido o causo.

  1. Antônia serviu o mate e passou a cuia para D. Ana.

— É de pôr olho em Rosário. Essa guerra está mui longa... Sabe-se lá o que pode suceder com a menina, já meio doente, tanto tempo nesta estância. — Tirou do bolso do vestido uma carta. Abriu-a e es­piou um pouco seu conteúdo. — E de Bento, Ana. Parece que eles tomaram Laguna. Que foram recebidos com festa. Bento está mui con­tento com os rumos da coisa lá em Laguna. Um porto é do que eles mais precisam.

— Quem sabe assim essa guerra acaba, no más. Eu já nem sei o que fazer com essas gurias.

— Nós não fazemos, nós esperamos, Ana. E é preciso que se man­tenha a ordem da casa. Senão tudo se vai, tudo se vai. Não deixe que elas fiquem à toa, esmigalhando tristezas. Assim é até pior.

  1. Ana olhou a irmã mais velha sombriamente e nada disse. O fogo levantava-se em altas labaredas. Lá fora, começava a ventar. Na va­randa, Regente, o cão vira-lata que Manuela havia adotado, começou a ganir. D. Ana pensou nas histórias de minuano que tinha contado a Garibaldi, e sentiu vontade de que o italiano estivesse por ali.

 

                   Cadernos de Manuela

                   Pelotas, 20 de dezembro de 1880.

A carta de Joaquim caiu sobre minha alma com o peso de uma mon­tanha. Ah, os pesares que meu pobre Giuseppe enfrentara! E tantos homens mortos, homens com os quais eu proseara muitas vezes aqui em casa; Luigi Carniglia, sempre tão gentil, a quem Giuseppe dedica­va tanto afeto, a ponto de le chamar "irmão"; e Matru, o outro italiano, amigo de Giuseppe desde a infância em Nizza... E Ignácio Bilbao, por quem Mariana chorou tanto tempo. Sim, pois Mariana gostava do es­panhol, e dele falava sempre com os olhos ardentes de afeto. Sabê-lo morto, sepultado sob as águas sem nem uma bênção, sem cruz ou flor sobre seus ossos, deixou-a em estado lastimável. Todos os seus sonhos se tinham afogado junto com Ignácio. E dele guardara, segundo me confidenciou naquele tempo, o gosto de um único beijo.

Naqueles dias invernais e escuros, eu só fazia pensar nas angústias do meu Giuseppe, que agora devia se sentir mui solito nesta terra, pois seus maiores amigos e mais fiéis companheiros haviam todos perecido no naufrágio. E o Farroupilha, o barco que ele construíra com tanto empenho, do qual se orgulhava como um pai, era outro dos defuntos engolidos por aquele mar bravio. Dos sonhos de Giuseppe, havia res­tado muito pouco. E tanto esforço, e a proeza de cruzar este pampa com os barcos sobre carroções, tudo isso se tinha perdido... Deus não teria qualquer piedade daqueles homens que tanto faziam por um sonho? Não haveria qualquer clemência em seus atos, ou estavam sendo castigados por uma guerra que já ensangüentava todos os quadrantes deste Rio Grande? Impossível que eu tivesse essas respostas... E nem sobre isso eu podia conversar com minha mãe ou com as tias. O que se tinha sucedido de ruim morria para nossas bocas. Era a lei da casa, e somente no silêncio dos nossos quartos era possível que se pranteasse um amor morto, que se duvidasse de Deus ou que se tivesse medo do futuro.

Muitas vezes imaginei se Giuseppe pensava em mim naquela terra de Santa Catarina, se, nas noites tristes que se seguiram ao naufrágio, teria ele ansiado por meus abraços, por meu carinho e por meu conso­lo. Sonhava com ele todas as noites, seus olhos de âmbar, seu rosto bonito, seus cabelos de ouro puro... Vinha sua imagem sempre aque­cer minhas noites gélidas, espantando o medo de sob os meus lençóis, fazendo sossegar o vento que assobiava lá fora como um morto inse­pulto. Eu vivia, então, para pensar nele, enchendo páginas e páginas do meu diário, cobrindo cadernos inteiros com frases de saudade e juras de um amor que nunca se veria realizado. Eu ainda não sabia... Mal abandonava o quarto na horas das refeições, ou quando D. Ana exigia de mim o cumprimento de alguma tarefa caseira. Ficava à beira da ja­nela, olhando o campo nu e corroído pelo inverno, vendo a chuva cair de um céu pesado e cinzento, anúncio de maus presságios que sempre me traziam pânico. Ia, às vezes, brincar com a pequenina filha de Per­pétua, mas a alegria sossegada da prima me causava remorsos, e temia maculá-la com minhas tristezas. Ficava pouco em sua companhia, e nenhuma das suas doces frases de incentivo chegou sequer a amainar a angústia que me corroía.

 

No princípio de setembro, chegaram mais notícias sobre Laguna e sobre os republicanos. Tinham eles entrado na vila sob a escolta alegre do povo. Os sinos repicaram nas igrejas. Davi Canabarro, Teixeira Nunes e Giuseppe Garibaldi foram recebidos como heróis. Haviam feito mais de setenta prisioneiros, matado dezessete soldados imperiais e tomado quatro escunas da Marinha, quatorze veleiros, quinze canhões e mais de quatrocentas carabinas. Todo o esforço tinha valido a pena: Lagu­na agora era republicana, e iniciava-se então o governo sob o coman­do de Canabarro, condecorado general.

Comemoramos a boa nova com uma ceia quase alegre — tínhamos discretas alegrias naquele tempo. D. Antônia, Caetana e D. Ana esta­vam jubilosas: Laguna seria fundamental para os planos republicanos, com seu porto de mar e sua localização estratégica. Falaram muito naquela noite, e vi o velho piano de minha tia ressuscitar suas valsas, que não se ouviam na casa desde o baile em homenagem a Bento Gon­çalves. Mas minha mãe pouco ou nada disse, presa de seu eterno esta­do de tristeza. Para ela, a guerra tinha pouca importância, a não ser por ter Antônio entre suas fileiras; andava, então, sofrendo por Rosá­rio, que se tornara cabisbaixa e cheia de segredos, e que, desde a noite em que fora encontrada vestida de noiva, mal se sentava à mesa conosco. Naquela noite, ceou em nossa companhia, e pude ver seu rosto abati­do, as manchas arroxeadas que volitavam sob o azul dos seus olhos outrora tão vividos. Não falou da Corte nem dos antigos bailes que tanto adorava. Estava mais magra e muito alheia, sorvendo sua sopa com os olhos presos no prato, sorrindo às vezes para ninguém, ou fitando ca­deiras vazias como se ali visse a sombra de uma pessoa só dela, que nossos olhos não podiam perceber.

Mariana tinha melhorado então do seu luto, mas não via graças em comemorar uma vitória que lhe trouxera tamanho pesar; pouco comeu, e nada disse. Eu estava feliz por meu Giuseppe, recebido como herói, um salvador de povos (de quê tinham eles salvado aquela gente de Laguna, eu nem saberia dizer), um homem que merecia o afeto das multidões, o dobrar dos sinos nas igrejas, as palmas das damas nas varandas. Quisera eu estar ao seu lado naquele momento, e dividir com ele tamanha glória.

Ah, eu não sabia então que meu Giuseppe estava a um passo de conhecê-la, a outra, a que o acompanhou e o seguiu e viveu com ele todos os sonhos que teci para nós. Aquela que se chamava Anita... Sim, dentre a multidão que o aplaudira em Laguna naquele dia de vitória, decerto estava ela, olhando-o de longe, já ansiando o momento de fa­lar-lhe, de fazer-se sua como enfim se fez.

Mas tinha eu dezenove anos, idade pouca o suficiente para crer que meu frágil amor era um robusto castelo, que Giuseppe se guardaria para mim, para mim que lhe era proibida, para mim que estava pro­metida ao filho do presidente da República pela qual ele lutava... Ah, como fui tola, hoje sei. Não tola por crer que Giuseppe tivera amor por mim — pois ele amou-me com toda a sua alma —, mas apenas tola por acreditar que esse amor teria um dia o seu sossego. Nosso noivado secreto, feito de juras e de beijos, o quão estava distante daquela reali­dade lagunense... Giuseppe não era mais o mesmo, então. E nem me­lhor, nem pior (tinha aquela fímbria que Deus deu a uns poucos, tinha honra), mas era apenas um homem longe de sua pátria, que vira mor­rer seus amigos, e que muito ainda teria que lutar. Um homem que vivia dia após dia, por pura necessidade de enfrentar a vida assim, e que por essa causa tinha um peito amplo e um coração valoroso, mui capaz de vivenciar o amor. E o amor lhe vinha. E o amor outra vez o perseguia naquelas terras lagunenses, e ele ainda nem desconfiava.

Manuela.

 

A casa tinha recuperado uma certa paz, já não se via Mariana cho­rando pelos cantos, nem Maria Manuela a rezar no oratório por tardes inteiras: fazia tempo que não se ouviam notícias do corsário ita­liano, e também Rosário melhorara um tanto, mesmo imersa num si­lêncio inexpugnável, agora já sentava à mesa todos os dias e voltara até mesmo aos bordados.

A primavera tinha sido boa também para os exércitos republi­canos. Vitórias e expansão, a tomada de Laguna, a mudança da capital para a cidade de Caçapava, tudo contribuía para aumentar o ânimo das gentes partidárias de Bento Gonçalves e seus generais. Recentemente, Caetana tinha ido encontrar o esposo em Caçapava, onde participara de um faustoso baile, e voltara para a estância im­pressionada com o progresso da cidade. D. Ana não visitava Caça­pava fazia muito tempo, e se espantou com as descrições da cunhada: Caçapava tinha hospital, imprensa, quartéis, um governo com mi­nistros, uma igreja faustosa e edifícios elegantes que provavam que a República podia ser muito rica se os ventos continuassem a so­prar a seu favor.

Não esperava, portanto, naquela manhã fresca e ensolarada, que uma carta por si só tão almejada — fazia muito que não tinha notícias de José — fosse lhe trazer tamanho quinhão de angústias, e ainda sor­via seu mate com toda a calma, quando Zé Pedra veio anunciar a pre­sença de um soldado que desejava prosear com a patroa.

  1. Ana recebeu o jovem republicano na varanda, e seus olhos bri­lharam quando ela reconheceu a letra que cingia o envelope que lhe foi entregue. Mandou que dessem comida e bebida para o soldado, e que lhe alcançassem também um pala novo (o dele estava em tiras), coisa que o jovem agradeceu com um sorriso aliviado e orgulhoso ao mesmo tempo.
  2. Ana correu para o quarto e abriu o envelope já meio enxovalha­do. Sentia o peito batendo forte: fazia muito que José não vinha vê-la, e agora, estando em Laguna, era impossível que não temesse por ele. Até quando soprariam os ventos da boa sorte para os republicanos de Santa Catarina? Os imperiais não deixariam a vitória republicana im­pune. Lá, os rebeldes estavam longe do grosso dos seus exércitos, sus­tentavam solitos aquela revolta, apenas com o fio de suas adagas e a força de sua coragem. E o seu filho estava em Laguna lutando ao lado da gente de Canabarro... O filho tão parecido com Paulo, o filho que ela ensinara a ler, que vira crescer e virar homem feito, de barba es­pessa e voz grossa que ela amava tanto, tanto.

 

               "Minha querida mãe,

Escrevo de meu quarto aqui na vila de Laguna, pois sei que amanhã o italiano Rosseti despachará correio ao Rio Grande, e guardo que esta car­ta siga junto até as mãos da senhora. Sei que deve estar pensando em mim e em como estou aqui nesta nova República, e le digo que esteja tranqüila quanto à minha saúde, que vai mui bien, e ao meu estado, que aqui tenho de tudo o que fazer e estou com as tropas do nosso valoroso Teixeira Nunes.

O mesmo, minha mãe, não le digo desta nossa república recém-instaurada. Tudo aqui parece estar desandando mui rapidamente, e só Davi Canabarro — ocupado em exercer seus desmandos e seu poder — parece não notar que as coisas estão malparadas. De tudo já sucedeu. Davi Canabarro busca apenas livrar-se dos que considera subversivos, nada fazendo para ser benquisto por este povo, que já começa mesmo a desprezá-lo. Há aqui um padre com grandes influências, chamado Vilella, e até com esse homem da Igreja o general já se desentendeu amarga­mente. Mandou prender mais de setenta pessoas, isso numa vila pequetita como é esta Laguna. É um desmando total, mãe, e fico imaginando o quanto não seria bom que Bento Gonçalves chegasse por aqui, com sua palavra única e seu modo sereno e guapo de tomar decisões. Mas Bento não vem, e o pobre Rossetti não consegue mais contornar as atitudes des-póticas de Canabarro.

Para que a senhora saiba como vai tudo, ouça que até mesmo o ita­liano Giuseppe Garibaldi, tão honroso soldado, e a quem tanto nós deve­mos, cometeu a sua falta, tendo se apaixonado e tomado para si uma moça da vila que era casada, e cujo marido está na guerra junto com as tropas inimigas. Pois o nosso valoroso Garibaldi, que furou o bloqueio imperial aqui na barra de maneira tão engenhosa quanto corajosa, levou em seu barco a tal moça de nome Anita e rumou para o litoral de São Paulo, com o intento de fazer capturas nas águas. Esta vila está mui ofendida com esse amor impudico assim consumado em plena luz do dia, e mais ainda com os desmandos de Davi Canabarro, sendo que o povo daqui já não é mais o mesmo que tomou as ruas para nos receber, é bem outro, arisco e fugidio."

 

  1. Ana parou de ler a carta para assimilar bem as notícias. As co­sas pareciam tão certas, tudo tão engalanado. Às vezes, afigurava-lhe, no entanto, que estavam construindo castelos sobre a areia. Num so­pro de brisa, tudo desandava sem solução. Mas seu irmão não era hombre de construir castelos sobre areia, isso não era, ela sabia mui bien. Bento deveria estar a par das escaramuças em Laguna. Bento faria alguma cosa para conter as fúrias daquele tal Canabarro. Já ouvira falar do homem algumas vezes, um tipo guasca, tosco, mas um bom soldado cheio de valentia. O irmão, decerto, tinha um plano para se­gurar a coisa toda, para domar o Canabarro.

Deitou os olhos para o papel uma outra vez, mas não prosseguiu a leitura. Veio em sua mente a imagem de Giuseppe Garibaldi. Ficou pensando no italiano, no sangue quente do italiano, e ficou pensando na sobrinha. Na casa, liam todas as cartas em voz alta, ao jantar — era uma combinação que tinham desde o começo daquela espera. Ela leria a carta de José, mas não antes de chamar Manuela até seu quarto, de fazê-la ver o que se tinha sucedido, de ajudá-la a entender que, mesmo antes de Garibaldi ter tomado para si mulher casada, aquele amor que eles tinham vivido na estância já estava fadado ao fracasso. Não que­ria que Manuela tivesse desilusão maior do que a necessária, não era bom que uma mulher odiasse demais um homem, ódio e amor eram sentimentos por demais semelhantes. E o ódio de uma mulher poderia ser mais duradouro do que uma guerra. Sim, era preciso falar a sós com Manuela. E falar com zelo, cuidadosamente.

  1. Ana suspirou. Eram tantas coisas. O dia estava lindo lá fora, e o mundo parecia muito sereno. Mas não. José, seu filho, estava agora mesmo no meio de um palheiro prestes a incendiar. E Bento Gonçal­ves estava em Caçapava.

Ela retornou à leitura.

 

"Hay outras cosas que preciso le contar, mãe. Mas serei breve, pois já não tenho tempo.

Ontem, a expedição de Garibaldi retornou, e estavam mui destroça­dos os barcos, e cansados os homens. Apesar de terem se safado de inimi­go mui superior, pois a expedição cruzou com o navio imperial Andorinha, mesmo assim não tiveram qualquer bom fruto com a campanha. Tinham aprisionado dois barcos do Império, mas os largaram no afã da luta com o Andorinha, tendo então voltado a esta Laguna de mãos vazias. Parece que a tal Ana Maria — a quem Garibaldi chama de Anita — retornou também, e que muito lutou, tão bravamente como um homem. Já se fala nas ruas da sua coragem excepcional. Mas se a senhora a visse: é uma moça franzina, de rosto delicado e gestos corteses, simples e até mesmo bonita. Impossí­vel imaginar criatura semelhante em meio a uma batalha cruenta.

Tropas imperiais numerosas rumam para cá. E a freguesia de Imaruí, que fica mais ao norte de Laguna, já se bandeou para o lado dos cativos. Ontem, logo após a chegada do italiano, Davi Canabarro reuniu a todos e ordenou que fossem tomadas medidas cruéis contra o povo de Imaruí, para dar o exemplo. Garibaldi e seus homens foram designados para atacar a vila. Vi, nos olhos do italiano, o pesar por tão terrível ordem, mas ele não pode desacatar um superior seu, e amanhã os barcos partem para seu duro destino.

Además, mãe, estamos vivendo e lutando. Não se preocupe a senho­ra com este seu filho, que sou mui capaz de seguir em frente e de lutar em quantas batalhas seja a minha espada necessária. Agora findo esta carta. Meus carinhos e saudades para a senhora, e para as tias e primas,

seu filho querido,

José.

Vila de Laguna, 6 de novembro de 1839."

 

Manuela bateu de leve na porta.

— Entre — respondeu D. Ana, sentada na cadeira de balanço perto da janela.

Manuela usava um vestido simples, rosado, e tinha os cabelos mui­to negros presos numa longa trança. D. Ana apreciou a beleza vigoro­sa da menina.

— Vim le dizer que tia Antônia está aí. Vai pousar aqui esta noite.

— Buenas — disse D. Ana, sorrindo. — Já vamos lá ver a Antônia. Antes eu preciso falar uma cosa com vosmecê. — Manuela estava em pé, no meio do quarto. — Sente aqui, do meu lado.

Manuela acomodou-se na cadeira de palhinha e ficou esperando.

— Recebi uma carta hoje, Manuela. — A voz de D. Ana era doce e serena. — Uma carta de José. Uma carta que fala no italiano Garibaldi. — Os olhos verdes de Manuela se acenderam de inte­resse. D. Ana desdobrou cuidadosamente as duas folhas de papel. — Não são cosas boas, Manuela. Mas também não são cosas más. Vosmecê vai entender o que le digo, depois de ler a carta... São cosas desta vida, Manuela.

Entregou a carta para a sobrinha. O rosto de Manuela empalideceu um tanto, e foi se tornando mais e mais descorado à medida que seus olhos percorriam a narrativa derramada naquelas duas folhas de papel ordinário.

Quando acabou a leitura, seus olhos estavam encharcados. Seu lábio superior tremia, mas Manuela fazia uma força atroz para segurar o pranto e manter-se digna na frente da tia.

  1. Ana sentiu a aflição inquietar seu peito. Que pena sentia da menina... Mas era a vida. Nem boa, nem má. Apenas a vida. Como ela tinha dito havia pouco.

— Isso é mentira. — A voz de Manuela tremia um pouco. — É mentira, tia Ana... Eu sei que é mentira.

— Para que seu primo ia mentir, Manuela?

— Isso é um mal-entendido, tia. Essas notícias todas, de boca em boca, vão sendo distorcidas, a senhora sabe. Giuseppe me ama. Jura­mos amor um ao outro. Vamos casar, tia... Quando essa guerra toda se acabar, vamos casar. Combinamos isso, em segredo. Ninguém sabe, a não ser nós dois, e a senhora. Mas não diga nada para ninguém, tia, por favor. Ele deve apenas ter ajudado essa moça. Quem sabe ela que­ria partir de Laguna, fugir. Giuseppe deve ter sentido pena dela e a ajudou, tia. Mas ele me ama.

  1. Ana segurou a mão fria da sobrinha entre as suas.

— Não se apoquente... Vosmecê precisa ficar calma, Manuela. Por isso le chamei aqui, para le contar essas cosas todas. Não quero que Maria fique le fazendo sofrer mais... Isso é um segredo nosso, está bem? Vou ler a carta hoje para as outras, mas pulo esta parte. Só eu e vosmecê saberemos desse causo. Assim vai ser melhor para todo mundo. Deixe Giuseppe para lá, ao menos por enquanto. Hay cosas demás suceden­do nesta vida, filha.

— Giuseppe não ama essa tal Anita, eu sei. Vi nos olhos dele o quanto me amava. É um homem de honra, tia. Não iria fazer isso co­migo, não iria...

Uma lágrima grossa escorreu pela face de Manuela. Ela parecia perdida como uma criança que vê seu melhor brinquedo quebrado.

— Giuseppe tem honra sim, Manuela. Mas é um corsário, um aven­tureiro. Ele le amou, mas o amor dele é instável como o seu paradeiro. Isso não o torna uma má pessoa, Manuela, vosmecê veja bem: ele é diferente de nós, só isso. Não le queira mal, por favor. Vá lá se saber o que sucedeu entre ele e essa tal moça... — Acarinhou as melenas ne­gras da menina. — Ele nunca iria voltar, Manuela. Não é homem do tipo que pisa duas vezes a mesma terra. E vosmecê iria ficar esperan­do por ele para sempre... Foi por isso que le mostrei essa carta. Seu primo contou tudo o que sabe, e não mentiu, filha. Mas foi bom. Ago­ra vosmecê pode esquecer Giuseppe e seguir a vida em frente. Não le tenha ódio, mas também não le tenha amor. Vosmecê tem uma vida cheia de coisas bonitas para viver... Vosmecê tem Joaquim, Manuela. Manuela fitou D. Ana com os olhos vazios.

— Vou amar Giuseppe para sempre. — Deu um abraço na tia. Ergueu-se, muito ereta. — Muito obrigada por me mostrar essa carta, tia. Le agradeço do fundo do meu coração.

— Esqueça tudo isso, Manuela. É o conselho que le dou.

— Impossível, tia.

Pediu licença e saiu do quarto.

 

A noitinha derramou seus brilhos, tornando rubro o céu sem nuvens. Achavam-se reunidas na sala ampla as irmãs de Bento Gonçalves. Mariana e Perpétua tinham se acomodado a um canto, uma com a fi­lha no colo, a outra lendo distraidamente um romance. E Caetana en­sinava em voz baixa a filha mais moça a casear um pequeno trapo de cambraia branca. As janelas estavam abertas para o campo e pairava em tudo o cheiro das flores e da relva. Ao longe, ouvia-se uma cantoria castelhana, uma milonga triste e cheia de saudade.

Faltava pouco para o jantar. D. Antônia examinava os papéis da venda de uma ponta de gado. Estava séria. A guerra ia empobrecen­do-os lentamente, as coisas já não eram como antes. Agora trabalha­vam para manter as terras, quase nada sobrava, e, às vezes, chegava mesmo a faltar. Mas sempre dava-se um jeito.

  1. Ana arrematava um bordado. Tinha no bolso a carta de José, que leria antes da refeição para as parentas. Estava triste, e aquela cantoria lá fora não ajudava. Manuela tinha ido para o quarto, nem saíra mais de lá. Mandara dizer que estava com dor de cabeça. D. Ana não teve coragem de ir incomodar a sobrinha, mas sabia mui bien que não era a cabeça que lhe doía, e sim o coração. Maria tinha mandado um chá para a filha, mas a bandeja voltara intacta. Agora bordava à sua frente, parecia calma. Andava tão desatenta da vida, angustiada com Rosário. Nem le passava pelas ventas o sofrimento da filha mais moça, pensou D. Ana.

— A cosa anda feia — deixou escapar D. Antônia, ajuntando a papelada da estância.

Mariana, Perpétua e Caetana fitaram-na em silêncio. Não havia nada a dizer. A pequena Teresa começou a choramingar no colo da mãe. D. Antônia, como sempre, arrependeu-se de ter falado demais.

— Cadê a Manuela? — indagou.

— Está no quarto, com dor de cabeça — respondeu Mariana. — Não quer jantar hoje.

— Deve ser uma gripe — resmungou Maria Manuela. — Después le levo um chá de limão bem forte. Ontem, a noite foi bem friazinha, ela deve ter apanhado sereno.

  1. Ana ficou olhando a irmã mais moça. Maria Manuela estava se desligando do mundo, suavemente. Era isso. A vida era dura demais para ela. Desde pequena, a vida sempre le pesara demais.

 

Manuela solta os cabelos, que caem pelos seus ombros, em cascatas negras, até a altura da cintura. São fios sedosos, brilhantes e elásticos, que cá e lá se enrodilham em cachos pesados e bem-feitos. Sempre teve cabelos bonitos, desde menina. A mãe contava que tinha nascido ca­beluda e que logo pudera lhe ataviar as melenas.

Olha a imagem que o espelho lhe devolve. O rosto delgado, claro, bem-feito. Os olhos muito verdes, agora ardidos de choro, inchados, sempre foram a predileção do pai. "Essa menina tem esmeraldas em vez de pupilas", dizia sempre. "Vosmecê tem una selva dentro dos olhos", falara Giuseppe, certa vez. Manuela sente as lágrimas quentes descendo pelo rosto. No espelho, parece uma estranha. Uma estranha que chora. Uma estranha com olhos de esmeralda. Pensar em seu Giuseppe e não chorar é impossível.

Pelas cortinas entreabertas entram as últimas claridades do dia. O quarto todo parece imerso numa luz de sonho, rosada e vivida. Manuela fita-se no espelho alto, de cristal. Essa luz lhe dá ares de morta. É como um fantasma. Ela toca nos cabelos, deixando a mão deslizar até o peito e ali aquietar-se, segurando o coração aflito para que ele não exploda de dor sob o peitilho do vestido. Num canto do toucador está o diário que vem escrevendo desde que veio para a estância. Aquele é seu me­lhor caderno, o mais feliz, o caderno em que fala de Giuseppe. Pega o diário, folheia-o quase com ira, joga-o longe. Sorri. É tola e burra como qualquer outra moça. Tão tola quanto Rosário, que ama um homem que não existe. E sempre se achou diversa, mais esperta, mais terrena do que as outras, que só fazem sonhar... No entanto, cometeu também o seu erro: amou um Giuseppe diferente, um príncipe, um herói, um homem bom e delicado e romântico que lhe dissera galanteios e jurara coisas lindas para um futuro que agora está morto.

Abre a segunda das três gavetinhas do toucador. Vasculha entre os pentes, presilhas e grampos e puxa lá do fundo a tesoura negra, pesada. É uma tesoura velha, pertenceu à sua avó paterna. Ela acari­cia a lâmina afiada e escura. Passa a tesoura pelo rosto com cuidado, sentindo a frieza do metal.

Não quer mais viver, se for para estar longe dele. Para quê? Agüen­tar uma lenta sucessão de dias iguais, fingir-se interessada pela guer­ra, pelas vitórias, pelo sangue derramado, por aquela república... Ver outros verões, suar outras tantas tardes até que chegue um inverno, e mais outro e mais outro, até que o minuano estoure em seus tímpanos, corroa sua alma, até que envelheça numa cadeira de balanço, olhando o pampa, feito um fóssil.

A tesoura pesa entre os seus dedos.

A tesoura espera uma decisão.

Mas, e se morrer antes da hora? E se Giuseppe voltar, arrependi­do, dizendo que tudo não passou de uma aventura? E se Giuseppe vier, com sua voz morna, com seu cheiro de mar, dizendo coisas be­las e doces? Carina. Carina mia. Giuseppe pode voltar a qualquer momento. A guerra é imprevisível. Manuela não quer decepcioná-lo. E se ele encontrar dela apenas um sepulcro? Ele, que tem tanta coragem. Ele que varou o mundo, rasgou os mares. Lutou contra todos os homens.

A tesoura é negra como as palavras que José escreveu naquela carta. Anita. Anita. Anita. José disse que Anita tem coragem. Não quer ser Manuela-sem-coragem. A mulher que seguir Giuseppe Garibaldi pe­los caminhos desta vida há de ter coragem.

— Não. Eu não sou covarde.

A voz ecoa pelo quarto vazio. Lá fora, a noite se instalou pelo pampa. Apenas uma réstia de luz entra pelas janelas. Alguém acendeu um lam­pião por perto. Ou são as estrelas. Num canto do quarto, os olhos ne­gros de Regente brilham de curiosidade. O cão gane. Sente a sua tristeza como uma presença.

Ela já não vê seu reflexo no espelho. Assim é melhor. Aperta bem a tesoura com a mão direita. Com a esquerda, num gesto ágil, enrodilha os cabelos. A tesoura faz pouco esforço para cortar os fios. É como se partisse ao meio o corpo de um animal. Sente as mechas se derraman­do pelo chão, libertas, mortas, perdidas de si. Joga a tesoura sobre a cama. Seu coração bate forte, mas ela não tem medo.

— Sou corajosa como Anita. Não é a falta de coragem que vai decidir nossa vida.

Leva as mãos ao pescoço. A pele nua arrepia-se. Manuela sente uma liberdade estranha, masculina, quase animal.

 

Alguém bate à porta.

Manuela, no escuro, hesita. Mas é preciso ter coragem.

— Entre.

A porta se abre e derrama para dentro do quarto a luz de um cas­tiçal. D. Antônia adentra a peça, acostumando os olhos ao escuro.

— Vosmecê melhorou?

Sua voz é desconfiada. Ela ergue o castiçal de cinco velas e vê a sobrinha sentada em frente ao toucador, calma, plácida, com os cabe­los espalhados pelo chão numa massa difusa. Vê seu pescoço esguio, muito branco, e vê seus olhos secos e duros.

  1. Antônia fecha a porta e põe o ferrolho.

— Por Deus, menina, o que vosmecê fez?

  1. Antônia é uma mulher dura, calejada pela vida. Sabe bem que é preciso ser forte. Os fracos ficam pelo meio do caminho. Mas, ao ajoe­lhar-se no chão, juntando os cabelos de Manuela, alguma coisa se sol­ta em seu íntimo, uma comporta se abre. Ela chora.

— O que vosmecê fez?

Segura os cabelos entre as mãos com delicadeza, como quem car­rega o corpo frágil de uma criança morta.

— Giuseppe encontrou outra mulher, tia.

A voz de Manuela treme, desliza pelo ar, derrama-se no chão. Giuseppe a levou em seu navio, vão viver um sonho de liberdade. E a mulher é corajosa. Abandonou tudo por ele.

— Quem le disse essas cosas?

Tinha sido José. Ou melhor, tinha sido D. Ana. D. Ana mostrara-lhe a carta, ela mesma lera tudo. Era verdade. A moça chamava-se Anita, e pelejava como um homem. Ela não, ela ficara esperando, como todas as outras. E Giuseppe não queria uma mulher como as outras, queria uma mulher especial.

Manuela agora chora aos borbotões. Parece uma criança, com os cabelos cortados. D. Antônia ajeita os longos fios soltos numa trança cuidadosa. Suas mãos ágeis trabalham com destreza.

— Não foi culpa sua, Manuela — vai dizendo, enquanto trabalha. — Garibaldi é um aventureiro, um homem sem pouso. Quando ele seguiu para Laguna, era para não voltar mais, minha filha.

— Não... Ele ia voltar, tinha me prometido. — Abre uma gaveta do toucador, tira dali uma latinha repleta de cartas. — Ele me escre­veu nestas cartas, tia, tantas vezes. Ele me amava... Talvez ainda me ame.

— Talvez, Manuela. — D. Antônia pensou na conversa que tive­ra com Bento. — Talvez não. Garibaldi é um pássaro. Gosta de liber­dade. E luta pelo que deseja.

— Essa tal de Anita é casada.

  1. Antônia deposita a trança sobre o toucador. Sorri tristemente. As velas derramam uma luz pálida e inquieta.

— Bento pediu que ele fosse embora. Que esquecesse vosmecê, minha filha. Por causa do Joaquim, que le ama. E porque vocês não servem um para o outro. Eu sabia de tudo, e concordei com ele.

— Então foi isso...

— Não, não foi só isso, minha filha. Giuseppe não disse nada. Não lutou por vosmecê. E ele é um lutador.

Lágrimas descem pelo rosto de Manuela. D. Antônia segura a tris­teza dentro do peito, com gana.

— Ele pode voltar, um dia. E lutar por mim.

— É preciso esperar para ver, filha. Esperar o tempo certo. — Segura a trança. — Por que vosmecê fez isso?

— Porque não tive coragem de me matar.

— Vosmecê tem vida demais para uma loucura dessas, Manuela. Tem força. Eu confio em vosmecê. Nós somos parecidas. — Suspira. — Vamos dizer o quê para as outras?

Manuela dá de ombros.

— Diga a verdade, tia.

— Elas não iam entender, Manuela. E a cosa ficaria feia por demás. Não precisamos de mais um problema nesta casa.

— Não me importo. Tudo o que desejo eu já perdi. Não me im­porto com a mãe, ou com os outros.

— Sua mãe está confusa, por causa da Rosário. Vamos deixar isso entre nós. E vamos esperar.

— Esperar para quê?

  1. Antônia fita a sobrinha nos olhos.

— É preciso ter coragem para esperar com dignidade, Manuela. E vosmecê é corajosa, eu sei.

  1. Antônia pega um punhado de grampos. Vai prendendo os ca­belos de Manuela na altura da nuca, vai acomodando os fios. Depois pega a trança. Com duas presilhas, ata-a à cabeça da sobrinha como um aplique, disfarçando o trabalho dos grampos. Quando era moça, tinha jeito para os penteados. Manuela mostra um sorriso triste.

— Está quase tão bom como era antes, tia. D. Antônia acaricia seu rosto.

— O que eu quero que fique bom como antes é esse coração, vosmecê não me descuide dele. Quanto aos cabelos, vou ajudá-la a prendê-los como deve ser. Com o tempo você pega o jeito. — Suspira. — Isso vai ser um segredo nosso, Manuela. E agora vamos jantar, antes que as outras desconfiem.

 

                     "Mãe,

Después da última notícia que le mandei, muitas cosas sucederam em Santa Catarina. Como guardo que meu tio, general Bento, esteja por demás ocupado com esta guerra, e temendo que a senhora não tenha recebido notícias do que sucedeu em Laguna, le escrevo estas linhas. A senhora, ao ler esta carta, não se preocupe com este seu filho, que sou toruno, como a senhora mesma sempre disse, e me escapo do que for necessário.

Buenas, no dia 15 de novembro as cosas desandaram na vila de Lagu­na, sendo que o almirante Mariah, comandante da esquadra imperial, colocou vinte e dois navios na boca da barra, cosa que muito assustou nossa gente, embora se confiasse que a barra era intransponível para embarcações de peso, e também que estávamos muito bem armados no forte que protegia a entrada da baía. As gentes de Laguna, ao verem o combate iminente, fugiram. As ruas tornaram-se um caos de pânico e de lutas. Poucos lagunenses ficaram conosco, e por mais que se tentasse, e muito Garibaldi e Teixeira o tentaram, era impossível organizar uma defe­sa terrestre. Apesar das dificuldades, montamos uma linha com cento e cinqüenta atiradores do melhor calão, e seis canhões estavam protegendo a entrada, sendo que os nossos seis barcos foram postos por Garibaldi em semicírculo, para atacar qualquer navio que entrasse na barra de Laguna.

Passava do meio-dia quando tivemos a notícia: os barcos de Mariah estavam forçando a entrada da barra. Era assustador. Por causa das marés, a frota imperial conseguiu lograr o canal e então começou a batalha. A nossa artilharia respondeu com tudo, tentando pôr os barcos inimigos a pique. A troca de fogos foi terrível, pois estávamos muito perto uns dos outros, e por todo o lado o que se via eram navios incendiados e corpos mutilados e gritos. A maioria bélica imperial logo começou a sobressair, apesar dos esforços de Garibaldi, que comandava seus marinheiros com toda a galhardia que já vi num homem sob este céu.

O fim do mundo não teria imagens tão cruéis, mãe. Aquele america­no que a senhora conheceu, o John Griggs, foi partido ao meio por um canhonaço, e em toda parte o que se via era morte e sangue, e de meus olhos, já tão acostumados às misérias dessa guerra, até umas lágrimas escorreram, e foi de pena por tantos sacrifícios. A moça que agora vive com Garibaldi, a Anita, lutou como um homem, transportando gentes e salvando os feridos num pequeno barco, e a víamos do alto do forte, pequenina em meio ao fogo cruzado, indo de um lado a outro, incólume e corajosa.

A batalha destruiu os barcos da nossa república, e o que deles restou conheceu o fogo, pois Garibaldi incendiou-os antes de partir para que não caíssem nas mãos sediciosas dos inimigos. Dos nossos, morreram sessenta e nove homens que foi possível contar. Ainda na tarde desse terrível dia, a esquadra de Mariah ancorava no porto de Laguna, enquanto nossas tro­pas abandonavam a vila e tomavam o rumo de Torres — de onde le escrevo hoje esta carta. Davi Canabarro seguiu conosco, sendo que eu acompa­nho o destacamento do coronel Teixeira Nunes, e com eles partirei breve­mente para Lages. Giuseppe Garibaldi, Anita, Rosseti e o que restou de seus homens vão conosco.

Mãe, não preciso le dizer o quanto foi triste ver nossos esforços assim alquebrados, e ver tanta matança e a perda de tão corajosos soldados. Mas le digo que muitas barbaridades também foram cometidas pelos nos­sos, para o que contribuiu a fúria desse general Canabarro, a meu ver ruim como carne de pá, e que mandou matar o padre Villela a punhaladas, e ainda ordenou que le arrancassem os olhos por ser um traidor, deixando seu cadáver no meio de uma rua, ao alcance dos imperiais, como um presente pela derrota que nos impuseram. Outras atrocidades ele também cometeu, mas não ouso contá-las aqui. Tudo isto muito me faz sofrer, mais ainda do que a fome e a crueza desta andança sem finalmentes. Por suerte, não fui ferido nessas batalhas, e é isso que me deixa em paz. Temos um caminho mui longo para ser vencido por homens feridos, e se eu assim estivesse, talvez a senhora recebesse notícias ainda mais tristes. Mas as suas orações têm feito por mim, mãe.

Imagino o quanto Bento Gonçalves desaprovará essas coisas todas, mãe. Mas a senhora guarde esta carta consigo e não a mostre para nin­guém, pois estes meus desabafos são somente para os seus ouvidos.

E tenha fé que logo estarei com a senhora uma outra vez. Antes disso, tento ainda brios para seguir com o coronel Joaquim Teixeira Nunes rumo à Serra, pois as cosas ainda não estão acabadas em Santa Catarina. Además, não almejo seguir com Canabarro para Torres, que é o destino que ele escolheu.

Seu filho, José.

Camacho, 26 de novembro de 1839."

 

A mesa tinha recebido uma toalha alva e rendada que somente se usava em dias de festa. Os candelabros de prata haviam voltado aos seus postos, por sobre os consoles, nas mesinhas, no centro da grande mesa de jantar, e despejavam sua luz tênue, dourada, pela sala. Fazia um calor ameno naquela noite estrelada de vinte e quatro de dezem­bro. As janelas estavam abertas para receber a brisa que vinha do cam­po, a sala estava toda enfeitada de flores — coisa da qual D. Ana havia feito questão: mesmo que fosse um Natal triste, de solidão, ainda as­sim era Natal, e a casa tinha que estar bem engalanada, bonita.

Num canto da sala, as meninas brincavam. Maria Angélica, alta para os seus nove anos, cantava para que Ana Joaquina dançasse (diziam que Ana Joaquina tinha puxado aos pais como pé-de-valsa), e, de seu bercinho rendado, a pequena Teresa parecia apreciar tudo, silenciosa. Perpétua zelava a filha e pensava no marido: Inácio tinha prometido voltar para o Natal, mas a última carta que recebera dele dava conta de estar em Cima da Serra. Sabia que havia batalha por lá, que José, o ita­liano Garibaldi e até mesmo seu marido estavam lutando sob o coman­do do coronel Teixeira. Sentiu um aperto no peito. Fez o sinal-da-cruz. Que Jesus zelasse por Inácio, que lhe desse ao menos um Natal de paz, um pouco de sossego e boa comida. Ela tinha tanto a lhe dar; acumula­va-se em seu peito um amor que até ardia, amor guardado havia meses, amor de moça nova, apaixonada, que contava os minutos daquela espe­ra infinda. Mas ela nada podia fazer. Olhou as outras. D. Ana orientava as negras na disposição das iguarias. Tinham trabalhado havia dias para servir os doces mais apetitosos, as carnes assadas, o ponche, os pêssegos em calda. D. Ana fazia questão daquela ceia. Perpétua suspirou. A tia tinha razão, afinal. Melhor do que se entregar, como Maria Manuela e Rosário — que agora estava cada dia mais calada, alheia —, era ser for­te, viver o dia. Não estavam todas sãs? Teresa não era uma menininha saudável e bonita? E seus irmãos e primos, mesmo na guerra, não ti­nham coragem de manter a fé? Então, era também tarefa delas seguir o prumo das coisas. Viver, de algum modo.

  1. Antônia entrou na sala, trazendo uma bandeja de bem-casados. Manuela vinha atrás. Ultimamente, ambas estavam muito apega­das. Manuela ajudou a tia a acomodar os doces na mesa. Usava um vestido claro, simples, e os cabelos estavam presos num coque à altura da nuca. Manuela tinha emagrecido um pouco nos últimos tempos, mas até a suave palescência de sua pele a deixava mais bonita e delicada.

— Está posta a mesa — disse D. Antônia, com satisfação, olhando a luz do candelabro iluminar a calda âmbar na compoteira de cristal. — Parece uma ceia feita pela mãe.

  1. Ana entrou na sala.

— Sua memória foi longe, Antônia — disse, sorrindo. Depois mudou de tom. — Não vamos resvalar em nenhuma tristeza. É preci­so alegrar esta casa. Hoje é noite de festa — caminhou até o piano: — Vou tocar alguma cosa bonita.

Leão lia um velho jornal, tendo Regente aos seus pés. Agora não mais brincava de guerrilhas, estava virando homem, a voz titubeante, os primeiros pêlos de barba a escurecer seu rosto. Aos quinze anos, queria ir para a guerra como os outros. Queria ir para guerra junta­mente com Caetano, que só pensava nisso, e que se tinha decidido em partir no começo do ano.

— Mas que horas são, tia Ana? Já é Natal?

— Falta pouco para as onze, Leão. Logo é Natal. E eu tenho um presente para cada um de vocês. Cosa pouca, mas presente, mesmo assim.

— Faz tempo que não ganho nenhum agrado. Só por isso se deve comemorar — disse Manuela num arremedo de alegria.

Caetana surgiu dos lados da cozinha. Avisou que a carne estava quase pronta, no ponto. Logo serviriam a comida.

— Tinha comigo a esperança de que o Bento viria — disse ela. — Mas a hora passou, no más.

— Ele vem — garantiu D. Antônia. — Se não hoje, outro dia. Ser presidente é cosa cheia de compromissos. Mas ser pai é importante para ele. Decerto vem para o Ano Novo, estar com vosmecê e com os filhos dele.

Caetana sorriu tristemente. Ver o marido era quase um sonho, ain­da mais com as coisas tão confusas na Serra, e com a perda de Laguna.

Ouviram um barulho na rua. Os cães ladraram. Caetano, que esta­va para os lados da varanda, entrou correndo na sala e anunciou: dois cavaleiros acabavam de cruzar a porteira e subiam para os lados da casa. Um deles era o pai. Tinha-o reconhecido, mesmo de longe, mes­mo na escuridão da noite.

Pouco depois, a figura alta de Bento Gonçalves da Silva ocupou por um instante o vão da porta. Fez-se um silêncio espantado. Leão, ao ver o pai, jogou o jornal para o alto. Marco Antônio chegava na sala nesse momento, e a visão repentina do pai general o deixou assustado. Era um rapazito quieto e avesso às guerras.

— Urra! O pai veio! — gritou Leão, e correu a abraçar a figura barbuda que adentrava a sala, no uniforme vermelho e azul.

Bento Gonçalves derramou sua risada.

— A esperança é a última que morre. Não é assim que se diz? Además, o Cristo só nasceu à meia-noite, e pelo que sei ainda não estamos adelante. — Entrou na sala, e o ar pareceu sumir, sugado por seus pul­mões. Estava mais magro, sujo de poeira, mas havia nele uma força que se derramava pelo chão, sobre os sofás, pelos cantos dos móveis, e ia trazendo sorrisos aos rostos das mulheres. — Vem cá, Caetana. Vosmecê precisa me dar um afago. Já estou mui velho para ficar tanto tempo solito.

Caetana jogou-se nos braços do marido. Respirou aquele cheiro de homem misturado com pó e com sereno.

— Rezei tanto, Bento. Pedi a Dios que usted viesse. Pedi tanto. Os filhos viam a cena enternecidos.

— E eu vim. Estava saudoso como um cusco abandonado. E tam­bém queria conhecer minha neta.

Perpétua pegou a filha no colo e levou-a até Bento Gonçalves.

— Esta é a Teresa, pai. — A menina pareceu sorrir, como se reco­nhecesse alguma coisa naquele homem barbudo, de olhos profundos. — Pena que Inácio não esteja aqui para dividir este momento conosco.

Bento afagou a cabecinha da neta.

— Inácio não pôde vir, Perpétua. Está servindo à nossa causa como bom soldado que é. Mas eu trouxe outro comigo. O Joaquim.

Um rubor ardido manchou as faces de Manuela, que estava senta­da num banco a um canto da sala. As mãos magras subiram até a nuca, ajeitaram bem o coque, como D. Antônia lhe havia ensinado. Ela pro­curou os olhos da tia, que a fitava cheia de serenidade. Tinham um segredo dividido. Não queria magoar o primo, não queria chocar a família. Alas preferia que Bento Gonçalves tivesse trazido outro acom­panhante. Ainda estava muito magoada com tudo que havia sucedido.

Joaquim entrou na sala, desculpando-se pelas botas embarradas, abraçando a mãe com carinho, beijando as irmãs. Como uma brisa de primavera, espalhou sua graça entre todos, tomou no colo a pequena Teresa, roubou um bem-casado da bandeja de prata. A guerra o tor­nara mais enxuto de carnes, a pele curtida pelo sol, e uma pequena cicatriz marcava sutilmente o alto da sua testa.

Tirando o dólmã, num canto da sala, Joaquim derramou seus olhos para a prima. E aquele olhar, lento, sereno, cheio de alegria no reencon­tro, era a sua prova de amor. Manuela retribuiu-o com um sorriso tími­do. E sentiu uma raiva surda corroê-la: por que não podia amar àquele primo bonito, jovem, tão seu conhecido, mas tinha que sofrer as penas todas que sofria? Por que aquele coração rebelde a latejar em seu peito? Os outros cercavam Bento, querendo notícias das batalhas, de José, Antônio, Bentinho e Pedro. Joaquim chegou-se mais perto.

— Vosmecê está mui hermosa, Manuela. Mais do que eu me lem­brava.

Ela sorriu. Um sorriso morno. E segurou as lágrimas que lhe vie­ram aos olhos. Segurou-as com garra, como quem doma um animal xucro que corcoveia no pasto. Era gentileza do primo dizer aquilo. Nem estava de roupa nova, pois não esperavam companhia para a ceia.

Joaquim bebeu a voz dela com a sede dos muitos meses de separa­do. Vestidos não embelezam ninguém, respondeu ele. Además, era preciso que a moça tivesse beleza própria, como ela.

Manuela agradeceu o elogio. Convidou o primo a tomar algo, um copo de ponche, um vinho, até um mate, se le agradasse. Tentava pa­recer alegre, feliz por revê-lo. Joaquim ficou algum tempo de prosas com a prima, mas, apesar da aparente tranqüilidade que ela demons­trava, não deixou de perceber uma vaga tristeza naqueles olhos ver­des, um vazio de coisas perdidas, de sonhos despedaçados. Uma solidão de poço sem fundo.

 

Amanhecia.

Manuela tinha dormido pouco e mal, mas por fim conseguira en­tregar-se a um sono sem sonhos, brumoso e inquieto. Quando a pri­meira pedrinha bateu no vidro da sua janela, abriu os olhos assustada. Outra e outra pedrinha vieram, estalando. E um sussurro. Seu nome.

Ergueu-se da cama e enrolou-se no xale leve. Ia abrir a janela, quan­do recordou dos cabelos. Estavam soltos, curtos. Sobre o toucador, a trança de fios negros esperava. Colou o rosto ao postigo.

— Quem é? — perguntou baixinho.

— Sou eu, Joaquim. Preciso hablar com vosmecê.

O coração deu um pulo dentro do peito. O que dizer? Da rua, o primo a chamava outra vez. Podia ver que uma claridade rosada e fresca se derramava lá fora.

— Só um minuto, Joaquim. Tenho de me ajeitar.

Prendeu os cabelos com pressa. Lavou o rosto. Em sua cama, Mariana dormia profundamente, tinha o sono pesado. Manuela saiu do quarto na ponta dos pés, trazendo nas mãos as chinelinhas.

Na rua, o ar fresco do alvorecer arrancou-lhe os resquícios do sono. Joaquim estava já uniformizado, barbeado, sentado num degrau da varanda. Seus olhos estavam cheios de promessas. Ela achou o primo bonito, de uma beleza sem erros, sem viço até. Giuseppe inundou seu pensamento, arrebatador, um vendaval.

Joaquim sorriu ao vê-la.

— Preciso muito le falar. Desculpe se acordei vosmecê, mas va­mos partir ainda bem cedo.

— Para onde vosmecê vai?

— Caçapava. Caetano vai conosco.

Manuela sentou ao lado dele no degrau da varanda. Sentia-se uma criança cometendo uma traves sura, assim como, quando pequena, ia roubar doces à cozinha e depois fugia para o capão. Agora, estava de mãos vazias. E tinha um gosto amargo na boca.

— Mais um que se vai.

— Manuela... — Joaquim segurou suas mãos. Ela deixou-se ficar. — Manuela, queria le dizer uma coisa antes de partir. E queria le fazer urn pedido... Só assim irei em paz. — Encheu o peito de coragem: — Vosmecê sabe o quanto le quero.

Manuela olhou para os próprios pés. A pele branca dos tornoze­los. A renda que arrematava a camisola de algodão. E olhou o chão, a terra úmida, um canteiro de flores mais adiante.

Por fim, respondeu:

— Vosmecê não devia ter me chamado aqui, Joaquim.

— Porquê?

— Eu não mereço a sua consideração. Por isso.

Ele apertou ainda mais as palmas alvas entre as suas. Manuela sentiu que ele tremia.

— Eu não le considero, Manuela. Eu amo vosmecê. E amor é mui diverso de consideração. Amor perdoa. E entende. — Suspirou pro­fundamente. — Eu sei de tudo, Manuela.

Olharam-se nos olhos.

— Quem le contou?

— Meu pai, D. Ana, minha mãe. Essas cosas a gente fica sabendo, não é preciso que se pergunte a ninguém.

Eu amo o Giuseppe. Joaquim pareceu sentir dor.

— Não diga isso, Manuela. Vosmecê ficou encantada com o ita­liano, coisa passageira. Eu entendo... A guerra faz isso. Também já me encantei com outras moças neste pampa afora. E até na Corte. Mas amar não. Amar, eu amo só vosmecê.

Ela fitou-o. A angústia varria o verde dos olhos dela.

— Eu sei o que é amor, Joaquim. Eu sei aqui no meu peito, como um punhal. Um punhal cravado para sempre.

Ele sorriu, um riso triste.

— Amor não é ferida, Manuela. Não precisa ser... Olha, eu vou voltar para a guerra, ainda leva um tempo toda essa batalha. Vosmecê fica aqui, esquecendo, curando essa dor. Eu volto, le juro. E aí nos casamos. Sei que vosmecê vai me amar. Sei desde piazito. Já sonhei com isso tantas vezes... Vamos viver numa estância e criar os nossos filhos. Até lá a guerra já acabou, e seremos felizes. Vosmecê nem vai lembrar daquele italiano.

Manuela ergueu-se.

— Não diga isso. — A voz dela soou tensa. — Não diga isso outra vez. Vosmecê não pode julgar meus sentimentos. — Tocou de leve no peito: — Aqui eu os sinto. Aqui eles me doem. Não le pedi amor, nem desdém.

Joaquim pareceu confuso.

— Me desculpe, Manuela. Eu não queria le magoar. — Ergueu-se também. Segurou a prima pelos ombros, viu os olhos verdes úmi­dos de lágrimas. Agarrou no osso a vontade de beijá-la ali mesmo, naquele momento, ele de uniforme, ela de camisola. — Me desculpe... Sei que vosmecê está sofrendo, e le proponho um tempo. Después, quando for a hora, conversaremos.

Ela deu um passo atrás.

— Sinto muito, Joaquim. Nunca mais haverá o que conversarmos. Não sobre esse tipo de amor do qual vosmecê fala. Se for para viver desse jeito, não me casarei com vosmecê nem com mais ninguém. Fi­carei esperando Giuseppe.

Joaquim pareceu subitamente exausto.

— O italiano não vai voltar, Manuela.

— Vamos a ver.

Ela virou-se e foi entrando na casa. Parecia pequenina e frágil con­tra o vulto da grande construção branca.

— Manuela!

Manuela parou no alto da varanda, um instante.

— Sim?

Ele estava parado no fim da escada, segurava o dólmã. Seus olhos brilhavam tristemente.

— Eu amo vosmecê. Vou esperar o tempo necessário... Não pre­cisa dizer nada. Eu le espero.

Manuela entrou e sumiu, engolida pela casa. Joaquim olhou o pampa suave, dourado pelo sol que nascia. Tinha vontade de chorar. Mas um homem de verdade chorava? Iria esperar aquele tempo. Por ela. Por eles. Saiu andando em direção ao galpão, o dólmã pesava so­bre o seu braço como se fosse feito de madeira. O rosto do italiano, que ele vira de relance uma única vez, surgiu ante seus olhos, sorri­dente. Engraçado, não sentia raiva dele. O italiano não tinha culpas naquilo tudo. Sentia raiva da vida, e daquela engrenagem invisível que alguns chamavam destino.

 

                     1840

  1. Antônia serviu o mate e alcançou-o para Inácio. Fazia pouco que ele tinha apeado. Enquanto uma das negras preparava a água, ele lhe dissera que estava de partida. Viera vê-la na passagem, para não sumir assim, no más, sem nem ter le feito uma visita que fos­se. A estada na Barra fora mui curta, mal tivera tempo de matar as saudades da esposa e da filha.

Como todos que voltavam das batalhas, também Inácio estava mais magro, o rosto ossudo, os olhos presos nas órbitas cavadas nas maçãs do rosto. Mas o sorriso era o mesmo, luminoso. Tinha chegado havia dois dias; já precisava partir. O cavalo estava mais ao longe, sob a som­bra de uma figueira, carregado com suas coisas, uma marmita para a estrada, o poncho, um bom cobertor e um livro, e pastava preguiçosa­mente.

— Me vou para Caçapava, D. Antônia. Mas não queria partir as­sim, no más, sem nem le fazer uma honra. Nestes dois dias, mal pude descansar e aproveitar a menina... Vai crescer esses primeiros tempos longe do pai, a pobrezita.

A tardinha de verão ia se acabando feito uma vela num altar. Ao longe, era possível ouvir o barulho do rio. A Estância do Brejo estava silenciosa e calma. Alguns peões voltavam da lida.

  1. Antônia respirou fundo o ar que cheirava a madressilvas.

— Desde que o estaleiro foi desfeito, isto aqui está uma paz que só vendo — disse ela. — Uma paz meio triste.

— Pois la aproveite, D. Antônia. Por aí afora as cosas vão difíceis, le digo. Só me sinto mais tranqüilo porque sei que Perpétua e a meni­na ficam com vosmecês.

  1. Antônia baixou os olhos.

— Essa guerra não termina, Inácio.

— Está mais encarniçada do que nunca. De onde eu venho, para os lados de São Francisco de Cima da Serra e de Vacaria, as cosas andaram sucedendo feias, D. Antônia. É justo que acabaram bem. Hay coragem em nossos soldados, mas le digo que perdemos muitos hom­bres. — Deixou o olhar vagar pelo pampa. — Do jeito que as cosas vão, D. Antônia, gastaremos muito tempo e muitas vidas, talvez sem um bom proveito.

— Quantos homens vosmecês perderam nessa peleja? Inácio baixou os olhos.

— Em Curitibanos, para os lados do Rio Marombas, caímos numa emboscada feita pelos imperiais. Gasta uma hora, perdemos quatro­centas almas. O coronel Teixeira Nunes foi valente, é um hombre raro; mesmo assim, a cavalaria se viu cercada pelas tropas de Melo Manso. Foi uma mortandade sem tamanho.

  1. Antônia empalideceu. As mãos longas, finas, cruzam-se no colo, como para segurar aquela angústia. Quatrocentos homens. Quatrocen­tos pais, filhos, jovens do Continente,

— Que cosa más horrível — sussurrou. E depois pareceu recor­dar: — Vosmecê contou isso para a Ana? Me parece que o José estava na tropa desse coronel Teixeira. E o italiano, o Giuseppe também.

— José estava lá. Foi ferido, cosa pouca. Não se apoquente, D. Antônia. Contei para D. Ana sobre o rapaz, e le disse que já estava bonzito quando saí para estas bandas, até já cavalgava- A guerra en­durece as carnes da gente, não é qualquer espetada de lança que arruina um soldado. E o italiano foi mui corajoso. E um hombre... A tal moça que se amasiou com ele, a Anita, essa sim teve mau destino: foi presa.

— Presa? E morreu? Inácio deu de ombros.

— Pouco sei dessa cristã. Quando vim de partida, a moça ainda não tinha aparecido. Vai ver que virou china de soldado. Se bem que era mui corajosa, só a senhora vendo. Acho que os imperiais, sabendo quem ela era, devem ter le dado um tratamento más justo.

Ficaram um tempo em silêncio. Os primeiros grilos já cantavam a noitinha. D. Antônia oferece um outro mate, mas Inácio recusa.

— Já me vou, no más. Tenho muita terra pela frente, D. Antônia. E quero aproveitar a noite.

Ergueu-se. Era um homem alto. D. Antônia ficou pequenina ao seu lado. Mas tão pequenina que chegou a se perguntar se a idade já esta­va encolhendo seus ossos.

— Vá com Dios, meu filho. E vá em paz. Cuidaremos da sua espo­sa e da sua filha.

Inácio sorriu.

— É por isso que fico descansado, D. Antônia. — Enfiou o cha­péu de barbicacho na cabeça. — Adiós.

Foi seguindo para os lados onde estava o zaino negro. As primei­ras estrelas brilhavam no céu. O cavalo relinchou de ansiedade.

  1. Antônia ficou em pé, na varanda, vendo-o montar no animal e seguir num trote lento, até sumir pelo pampa, como uma assombra­ção. Permaneceu ali, tomando um último mate e pensando no destino daquela moça, a Anita. Que Deus zelasse pela pobrezita.

 

A noite sufoca como um abraço muito apertado. Das janelas abertas, vem um silêncio repleto de sereno. O quarto está quase às escuras, apenas um lampião derrama sua luz fraca sobre a cama onde Rosário dorme. Faz algum tempo, Rosário teme o escuro. Mais ainda agora, que dorme sozinha, a cama de Perpétua está vazia desde o casamento. Agora ela ocupa um outro quarto no final do corredor, junto com a filha pequena.

Rosário tem tido pesadelos.

Remexe-se sob a colcha, inquieta. Os cabelos lisos, dourados de um ouro pálido, estão espalhados sobre o travesseiro.

Um homem cavalga em sua direção, corta o pampa num cavalo branco. Rosário sorri. Sabe bem quem é o cavaleiro. Ajeita o vestido de rendas, segura o maço de flores que colheu para lhe ofertar. Um riso límpido ilumina seu rosto. O cavalo branco avança, sobe e desce uma coxilha. O sol é morno. Ao longe, ela sabe, há a guerra, mas não ali, naquele campo florido, não ali, onde o único movimento que se vê é a dança desse cavalo delgado e do seu cavaleiro.

Ele vem chegando. Rosário não se cansa de apreciar seu porte fi­dalgo, a beleza morena de seus cabelos que o vento agita, o garbo de sua farda. Não é uma farda republicana.

Steban pára. Seus olhos brilham de euforia pela cavalgada, brilham por ela. Ele salta do cavalo. Está parado à sua frente, o rosto bonito, a boca carnuda que sorri, a testa sem cicatrizes, sem ataduras.

— Vosmecê está curado, Steban.

Ela se atira nos seus braços, sentindo o calor daquele peito, o per­fume de homem. O sol é morno sobre eles. As flores caem ao chão, outra vez terão de ser colhidas, mas Rosário não se importa. Steban está curado. Não há sangue nas suas vestes, nem palidez no seu rosto, nem cicatrizes, nem ataduras.

Rosário sorri. Nunca esteve tão feliz como nesse momento. Segura o rosto de Steban com as duas mãos, acarinha seus cabelos revoltos. Ele retribui seu sorriso por um momento, belo feito um príncipe. E então seus olhos vazam lágrimas de sangue, e seu rosto adquire a palescência translúcida da lua.

— No estoy curado, Rosário. Estoy muerto. Muerto, muerto... Aqui me ves, muerto. — A voz dele ecoa pelo pampa, corta o dia boni­to de sol. — Muerto e frio e descarnado. Estoy muerto e no tiengo cova, no tiengo nadie... Quédate cerca de mi.

E então seus olhos saltam das órbitas, e todo o seu rosto bonito adquire ares cavernosos, um cheiro de carniça se eleva no ar, e logo ele nada mais é do que uma pilha de ossos decrépitos que Rosário se­gura entre as mãos.

Rosário grita.

Grita. Grita.

Abre os olhos, senta-se na cama. Está ensopada de suor. Da janela, ainda vem o mesmo silêncio. O lampião ilumina o quarto vazio. A voz dela vai morrendo dentro da garganta, vai enveredando pelas suas entranhas, vai se afogando num pavor mudo.

Maria Manuela e D. Ana entram no quarto, ambas de camisolas, descalças, assustadas. Maria Manuela senta ao lado da filha, toma-lhe as mãos frias, úmidas.

— Que sucedeu, Rosário? Vosmecê teve um sonho ruim, minha filha. Se acalme agora, já passou.

A voz lhe sai trêmula, quase um sopro:

— Não foi sonho, mãe. Ele está morto. Morto. Steban está morto. Como essa guerra, como nós. D. Ana seca os olhos úmidos.

— Vou mandar a Milú preparar um chá de camomila — diz. — Para nós três. Bem forte.

 

Não se comentou o assunto ao café, mas D. Ana e Maria Manuela passaram boa parte da manhã conversando, de portas fechadas, no escritório. Haviam tomado uma decisão. Rosário estava doente, doen­ça grave, traiçoeira.

— Essa guerra pode durar por demás, Maria. E melhor fazermos alguma coisa logo pela menina. Después pode ser tarde.

  1. Ana estava sentada na cadeira que fora do marido, os olhos negros sérios, compenetrados. Não viviam coisa fácil de resolver, mas tinham de tomar uma atitude. Rosário piorava a olhos vistos.

Maria Manuela secou as lágrimas com o lenço branco. Nos últi­mos tempos, envelhecera, o rosto outrora viçoso adquirira ares gastos, a pele se enrugava ao redor dos olhos e da boca. Ela acomodou as mãos trêmulas no regaço.

— Cinco anos aqui — disse ela, balançando tristemente a cabeça. — É demais para a menina, é muito sofrimento. E ainda a morte do pai...

— Todas nós estamos sofrendo. Mariana e Manuela também per­deram o Anselmo... Mas hay que ser forte. A guerra é dura para nós, tanto mais para os nossos homens, Maria. Eu e vosmecê ficamos viú­vas. Muita cosa sucedeu. Mas não estamos por aí, vendo fantasmas, falando com mortos, emagrecendo em pesadelos. — Suspirou. — É preciso fazer algo, irmã. E rápido.

Maria Manuela aquiesceu, tristemente. Ergueu-se, foi até a janela. Lá fora, um céu cinzento e pesado estendia-se sobre o pampa.

— Vai chover hoje — disse. Espiou em volta. — Era aqui neste escritório que ela o via, não é, o fantasma? — D. Ana concordou. — Está bien. Vou escrever ao Antônio, consultá-lo. Depois da morte do pai, ele ficou sendo o homem da família. Vamos esperar a resposta dele, então a gente escreve para Caçapava.

— Como vosmecê quiser.

 

Manuela lia, sentada na varanda. Desde a conversa com Joaquim, tira­ra um peso do peito. Não se casaria com o primo para agradar sua fa­mília, não poria a vida fora por uma promessa, por um sonho que nunca tinha sonhado. Esperaria Giuseppe, porque não tinha outro caminho. Era daquelas mulheres com um destino e nada mais.

Folheou o livro, distraidamente. Ainda não contara para D. Antônia a sua decisão. Imaginou o rosto da tia, impenetrável, e aquele brilho nos olhos, de aprovação e de pena.

— Manuela!

Ergueu o rosto. Marco Antônio vinha correndo. Era um guri alto, magriço, moreno como a mãe.

— O que foi, Marquito? Ele parou, ofegante.

— Vem, vem comigo, Manuela. Eu descobri uma coisa horrível! Uma coisa horrível, perto da charqueada.

Manuela jogou de lado o livro e saiu com o primo. Contornaram a casa e seguiram pelo caminhozinho que levava à construção onde se curtia o charque da estância. Iam num passo rápido e ansioso. Passaram por uns peões, pela negra Zefina, que carregava uma tina de rou­pas para lavar no rio e ia cantando uma velha modinha.

Chegaram. O cheiro forte do lugar invadiu suas narinas.

— Onde?

— Atrás do galpão — respondeu Marco Antônio, e segurou a mão da prima.

Deram a volta, pisando macio a relva. Regente estava caído sobre um amontoado de tábuas. A garganta aberta num único talho. Os olhinhos negros, escancarados de susto, fitavam o céu carregado da­quele final de verão. Era um cachorrinho miúdo, de pelagem rala e macia.

— Cruz em credo! — gemeu Manuela, e começou a chorar. Ti­nha criado aquele cão desde pequenino, tinha lhe dado leite e carinho, e em seu quarto havia sempre um cobertor velho para servir-lhe de cama. Quantas noites acordara com Regente a espiá-la, no escuro? Ajoelhou-se. As lágrimas escorreram dos seus olhos. — Quem faria isso, uma maldade dessas? O Regente nunca fez mal para ninguém...

Marco Antônio acomodou-se ao lado da prima. Uma mosca pou­sou no focinho de Regente e ficou ali, parada.

— Tem muita maldade neste mundo, Manuela... Pode até ter sido um peão, ou alguém de fora. Foi esta noite, isso é certo. Mas não chora mais, vosmecê não pode remediar isso. Não chora.

— Coitadinho. Bem que eu estranhei, ele não foi lá no quarto hoje de manhã. Ele sempre ia, sempre.

— Vou chamar o Zé Pedra para recolher o Regente... Vamos fa­zer um cova para ele, está bem?

Manuela aquiesceu.

— Está bem. Mas não conte para as meninas, elas vão ficar mui tristes... A Maria Angélica adorava esse bichinho.

— Vamos dizer que ele fugiu. O Regente sempre foi um cachorro danado mesmo. Vamos dizer que ganhou o pampa.

Marco Antônio saiu correndo para os lados da casa. Manuela fi­cou ali, chorando. Tinha muita maldade no mundo mesmo. Ali naquela estância também... Quem teria feito uma coisa daquelas com o cão, quem teria?

 

Caetano olhava tudo com os olhos cheios de curiosidade. A cidade fer­vilhava como uma coisa viva, inquieta e voraz. Homens andavam pe­las ruas, com seus uniformes, entravam nos prédios elegantes, tomavam o mate. Carroças passavam de um lado a outro. Negros descalços, mas com o dólmã da República, reuniam-se nas esquinas, falavam da guer­ra, seguiam para seus destinos. Uma bodega vendia pinga e coisas de comer. Estava cheia de soldados.

Joaquim abria caminho pelas gentes, Caetano seguia-o. Achara o irmão cabisbaixo desde a saída da estância. Pouco falara, assuntos de guerra, com o pai, nada mais. Bento Gonçalves parecia respeitar o silên­cio do filho mais velho. Tinham feito a longa viagem quase calados. Jo­aquim com os olhos perdidos no horizonte, mirando o campo e as estrelas. Caetano, ao contrário, quisera conversas, saber das batalhas. Tinha ân­sia naquela guerra, em rever Bentinho, em matar seu primeiro caramuru, dar a sua contribuição à República, causar orgulho ao pai.

— Adelante, Caetano. O pai nos espera no Palácio do Governo. — Joaquim puxou o irmão pelo braço. — Vosmecê vai ter tempo para olhar tudo mais tarde. Agora, nos vamos.

Numa esquina, um grupo de mulheres mal vestidas ria para alguns soldados, diziam troça, mostravam sorrisos desfalcados de dentes.

— Quem são elas?

— São chinas que acompanham as tropas.

Caetano foi seguindo o irmão. Entraram no prédio, passaram por guardas, por criados de uniforme. Havia abundância ali. Caetano pen­sou nos negros descalços que vira na rua.

Bento Gonçalves despachava com mais dois ministros. Ergueu o rosto, de bigodes encerados, quando percebeu a chegada dos dois fi­lhos. Tirou uma carta lacrada de uma gaveta, entregou-a a Joaquim.

— Vosmecê me escolha um mensageiro de boa perna. Isto é ur­gente. Teixeira, Garibaldi e as tropas estão em Lages. Vosmecê sabe que perderam feio para a gente do Melo Manso. Morreram mais de quatrocentos soldados, e eles chegaram em Lages estropiados, sob chuva, sem cavalos e famintos. A mala suerte caiu com tudo sobre a tropa. — Bento Gonçalves fez uma pausa. Sentia um aperto no peito, uma dor profunda nas costas. Respirou fundo, esperou a dor passar e prosseguiu: — Agora, estão lá, estão aguardando reforços. Esta carta é para dizer que não esperem, não haverá qualquer reforço. É preciso que deixem a serra o más rápido possível e rumem para os lados do Rio Taquari. O coronel Joaquim Pedro está lá, com dois mil homens. Que se juntem ao coronel e esperem por lá.

Joaquim guardou a carta no bolso do dólmã.

— E después?

— Después vosmecês me vão até Porto Alegre, encontrar o gene­ral Netto. É preciso suspender o cerco. Precisamos dele. Le diga que amanhã mesmo eu parto para Viamão e que vou reunir os meus ho­mens. Quero o Netto em Viamão o quanto antes. Precisamos traçar um plano de ataque, um plano fundamental para a guerra.

Caetano bebeu as palavras do pai. Ficou imaginando todos os exér­citos juntos, e sentiu um formigamento no rosto, uma emoção nova, quente e boa. Ficou sonhando com Taquari.

Os dois jovens saíram da sala. Um dos ministros ainda aguardava, calado, a um canto. Bento Gonçalves tornou a olhar a papelada sobre a mesa. De novo lhe veio a dor no peito. Tinha começado fazia alguns meses, lenta, discreta. Amainara com o verão. As chuvas de outono a tinham despertado outra vez. Já não era mais um moço, e aquela guerra o envelhe­cera. Envelhecera sua carne, envelhecera sua alma. Ele fez as contas men­talmente: estava com cinqüenta anos. E vinha pela frente mais um inverno.

— Vosmecê está bem, presidente? — O homem olhou-o com cer­to estranhamento.

Bento Gonçalves recostou-se na cadeira.

— Tanto quanto qualquer criatura que acaba de noticiar a morte de quatrocentos soldados numa batalha. — Deglutiu suas palavras tristemente. — Mas vamos adelante. Se essa manobra tiver acerto, será decisiva para a República. E a República precisa mais do que nunca de uma vitória. Está começando a agonizar.

Das janelas, abafada pela cortina, vinha a balbúrdia da vida lá fora.

 

Maria Manuela fechou-se em seu quarto e acendeu o lampião sobre o criado-mudo. O sol morria entre as nuvens, lá longe, em alguma coxilha. Maria Manuela não apreciava mais o sol ou a chuva; fazia muito que seu coração andava cinzento, nebuloso como uma tarde fria de inverno.

Olhou bem a carta antes de soltar o lacre. Era carta do filho. Sabia bem do que se tratava. E tinha medo de lê-la. Temia tanto a aquiescên­cia como a discordância de Antônio. Temia aquela carta em suas mãos, porque depois de lê-la precisaria tomar uma atitude. E tudo o que gos­taria era de não pensar em nada, nunca mais.

Suspirou fundo, rasgou o envelope. A letra de Antônio era irregu­lar e apressada. Ela leu as primeiras palavras, e era como se a voz do filho as sussurrasse em seus ouvidos. Seus olhos se encheram subita­mente de lágrimas.

 

         "Estimada senhora minha mãe,

Recebi sua carta ainda esta manhã e achei algum tempo para le respon­der, pois a gravidade desse assunto me deixou mui abalado. Estou aquarte­lado em Viamão, junto com o resto das tropas de Bento Gonçalves, mas para cá rumam também os outros generais e caudilhos da República, visto que todos se reunirão ainda amanhã mui temprano, para que seja traçada a nova ação das tropas. Vai haver grande batalha. Eu, mãe, parto junto com meu tio, mas ainda não le digo para donde, pois é este um assunto mui secreto, e posso apenas le adiantar que preparamos uma grande ofensiva.

Sucederam muitas cosas, mãe, e le conto que um coronel imperial de nome Loureiro avançou sobre Caçapava, poucas horas depois de o vice-presidente Mariano de Mattos abandoná-la às pressas, visto que seria ata­cada, levando os documentos da República numa carreta, e rumando também para cá. Desde esse dia, Viamão voltou a ser a nossa capital.

Pois, a despeito de todas essas manobras políticas e bélicas, a vida anda aí para fora, e o quanto me espanto com as suas palavras, mãe, que me dizem estar Rosário adoentada, e adoentada de doença misteriosa que le atacou as idéias e os nervos. Faz já tempo demás que não vou de visita, e o último recuerdo que tenho da mana é tão bom, estava ela tão bonita e sadia, que essas cosas todas me deixam profundamente triste e espanta­do. Mas a senhora mesma me diz que Rosário tem visto um fantasma uru­guaio, ou a alma de um desencarnado qualquer, e que ela jura amar essa aparição e diz até que pretendem casamento. E a senhora diz também que ela acorda em pesadelos a cada madrugada, e que pouco fala, emagreceu e chora por demás. É triste ver os estragos que esta guerra faz, na carne e na alma da nossa gente. Pois creio, mãe, no mais profundo do meu peito, que é a guerra que envenena os pensamentos de Rosário, e que o repou­so em lugar acertado, e a reza e a paz hão de dar-lhe novo viço. Somente assim, quando estas batalhas findarem, a mana poderá outra vez viver feliz.

Por isso tudo, mãe, e por estar eu mesmo imbuído das decisões que antes cabiam ao pai, le digo que a sua idéia está mui certa. Sobre ela, proseei tam­bém com Bento Gonçalves, e o tio a considerou justa. É bom que Rosário vá viver num lugar apartado da revolução e perto de Deus Nosso Senhor, um lugar onde possa a sua alma respirar em paz e recuperar o bom raciocínio, onde seus olhos não vejam fantasmas, nem seu sono seja tumultuado por pesadelos e medos. Se a senhora tem em mente já um convento digno de cuidá-la como ela merece, peço-lhe mesmo que o faça sem tardança.

De resto, mãe, a senhora receba meu carinho tão saudoso, e dê lem­branças minhas às manas, especialmente a Rosário.

Seu Antônio,

Viamão, 23 de março de 1840."

 

O mês de abril tinha começado com chuvas, depois de um março ensolarado e quente. Na Estância da Barra, as mulheres ansiavam pelo bom sucesso das manobras republicanas. Sabiam, por intermédio de alguns informantes e pelas cartas que recebiam, que Bento Gonçalves e os outros chefes armavam uma grande batalha que reuniria todo o seu contingente. De resto, imaginavam o que estava por vir. Recea­vam, rezavam. Era sempre assim: a mesma angústia da notícia incompleta, e o medo, o medo sempre, de um emissário no meio da noite. O medo da derrota e da morte. E aquela espera que já durava cinco anos.

Caetana agora estava sempre com um rosário à mão, acendia velas para a Virgem, orava com as cunhadas. Se houvesse uma vitória, se as manobras imaginadas por Bento Gonçalves fossem frutíferas, talvez a guerra estivesse então nos seus estertores. Era nisso que ela cria. Na volta da paz. No reencontro com os filhos, com o marido. Os últimos dias tinham sido tristes, com a preparação da viagem de Rosário, as malas poucas, os choros de Maria Manuela, que não se conformava com o estado da filha mais velha. O fim da guerra seria uma bênção para todas, para o Continente, que não suportava mais sorver tanto sangue, receber tantos mortos sob o seu solo.

Caetana acendeu a vela e fez o sinal-da-cruz. Do fundo do corre­dor, vinha o chorinho miúdo da neta. Caetana sorriu com carinho. Estava assim ajoelhada, quando D. Antônia entrou.

— Me desculpe, não sabia que vosmecê estava rezando agora, no meio da manhã.

Caetana sorriu.

— A graça que eu peço merece todas as orações, cunhada. E esse oratório és mi lugar, como a batalha és el lugar de Bento.

  1. Antônia tocou-lhe o ombro. Tinha a mão quente.

— O lugar de Bento deveria ser aqui, perto de nós. — Suspirou. Lembrou do que viera dizer: — A madre chegou. Veio buscar Rosário.

Caetana ergueu-se. As duas seguiram juntas até a sala.

Pelas janelas entrava a claridade baça do dia chuvoso, bem como um ar fresco que tinha algo de cortante, de invernal. Maria Manuela e D. Ana estavam sentadas em frente à madre Lúcia, e falavam baixo. Maria Manuela tinha o rosto convulso. Temia que a filha, longe de seus cuida­dos, piorasse ainda mais. A madre abriu um sorriso amigável e plácido.

— Conosco, a sua filha ficará bem. Na casa de Deus, Maria Manuela, as almas só encontram a paz.

  1. Ana concordou. Beata entrou na sala, trazendo uma bandeja com o chá. A madre aceitou sua xícara e tomou um gole pequenino.

— Assim que a guerra findar, madre, quando pudermos retornar a Pelotas, mando buscar Rosário.

— Ela pode ficar conosco o tempo que for necessário — disse a madre. — As visitas são semanais, porém les aconselho que nesses primeiros tempos a deixem conosco, sem visitas. Ela precisa de sosse­go e de solidão. Deus fará por ela.

Maria Manuela aquiesceu.

Caetana e D. Antônia tomaram lugar num sofá,

— Como estão as coisas em Camaquã, después da chegada dos imperiais? — perguntou D. Antônia. — O convento fica nos arredo­res da cidade, não?

— Deus não é imperial nem republicano, D. Antônia, mas zela por todos os seus filhos. Pouco sabemos das coisas que sucedem na vila de Camaquã, mas na nossa casa a paz persevera. A senhora pode estar tranqüila, não há outro lugar tão bom para a sua sobrinha.

— Ela é uma moça mui delicada.

— Saberemos tratar de Rosário — garantiu a freira. Maria Manuela ergueu-se.

— Rosário está lá dentro, com as irmãs e com Perpétua. Vou buscá-la. A senhora já deve estar atrasada.

— É uma longa viagem, minha filha. E estas estradas são de ninguém. Maria Manuela sumiu pelos caminhos da casa. Voltou alguns mi­nutos mais tarde, os olhos ardidos. Trazia Rosário pela mão.

Rosário usava um vestido escuro, um xale lhe cingia os ombros. Os cabelos muito loiros, soltos pelas costas, davam-lhe um ar de fragilidade e doçura. Ela fitou a madre com seus grandes e úmidos olhos azuis.

— Madre...

A freira ergueu-se. Deu um leve abraço na moça. Rosário sentiu seu cheiro de sabão e de incenso.

— Não tenha medo de vir comigo, minha filha. Deus está le espe­rando, e vai confortá-la.

Rosário fitou a mãe. Sorriu timidamente.

— Não tenho medo. Mas será que Steban vai saber onde me en­contrar? O convento fica bem distante daqui.

A freira baixou os olhos. Maria Manuela secou uma lágrima. D. Ana aproximou-se da sobrinha e segurou-a docemente pelos ombros.

— Vá, menina. E não se preocupe com nada. Steban vai achá-la, tenho certeza.

Rosário sorriu, agradecida.

Manuela veio de dentro, trazendo a mala da irmã.

— Deixe essa mala na varanda, Manuela. Zé Pedra vai acomodar as coisas na charrete — disse D. Antônia.

A madre despediu-se das três irmãs de Bento Gonçalves. Por últi­mo, apertou levemente as mãos de Caetana.

— Tenha fé, filha. Essa guerra vai acabar logo. Caetana sorriu.

Ganharam a varanda. Caía uma chuvinha fina. O campo úmido parecia triste. Rosário lançou um último olhar para a casa. Sentiu um aperto no peito, e um descanso, um sopro de satisfação.

— Faz cinco anos que estou aqui... — disse, baixinho. — E pare­ce que cheguei ontem.

Maria Manuela abraçou-a com força, segurando o choro. Perpé­tua e Mariana também surgiram na varanda, para as despedidas.

Foi tudo muito rápido. A madre tomou a mão pálida de Rosário e conduziu-a à charrete, onde um indiozinho charrua aguardava, aco­modado na boléia.

— Vamos, minha filha. Temos muito chão pela frente.

Rosário subiu no veículo, a freira acomodou-se ao seu lado. O char­rua fez um muxoxo e a parelha de cavalos começou a trotar lentamen­te. Rosário ainda derramou um último olhar para a janelinha discreta, num canto do casarão. A janela do escritório. Ela achou ter visto o vulto de Steban, escondido sob a renda das cortinas. Suspirou aliviada. "Ele sabe para onde vou."

Maria Manuela ficou chorando, postada na varanda, ancorada ao abraço de D. Ana. E a chuva continuou caindo, dolente, do céu.

 

                   Cadernos de Manuela

                   Pelotas, 4 de junho de 1900.

Rosário partiu da estância naquela manhã de outono, e era como se, na verdade, já tivesse ido embora havia muito tempo, desde que mergulhara em seu túnel de silêncios, desde que achara para si aquele amor de outro mundo. Era minha irmã, e, no entanto, eu soube tão pouco dela, tão pouco... Tínhamos crescido juntas, brincado com as mesmas bonecas e, tantas vezes, sonhado sonhos idênticos de amor. Mas havíamos sido talhadas de diferentes matérias, e essa diversidade nos foi intransponível. Sob o teto da mesma casa, durante aquela guerra, nossas vidas se distanciaram até a encruzilhada final — ela partiu rumo ao silêncio que havia de recompor o frágil equilíbrio de sua alma, eu permaneci na estância, ao sabor daqueles dias de incerteza, vivendo do mesmo amor e sofrendo idênticas angústias até o fim da revolução.

Nunca mais a vi.

Ainda hoje a recordo com seu vestido de viagem, os cabelos soltos pelas costas, olhando-nos com seus olhos azuis, escurecidos pelo adeus. Ainda hoje recordo o suave movimento de suas saias, quando ela su­biu na charrete que a levaria embora de casa, e a calma vazia com que se persignou àquele destino, calma somente digna de um espírito per­dido num labirinto de medos.

Rosário morreu no convento, no último ano da revolução. Não pude ir visitá-la, assim como não compareci ao seu enterro. A mãe esteve com ela umas poucas vezes, e sempre voltou com os olhos embaçados, silenciosa e triste. Sabia decerto que a filha tomara caminho sem volta, e que a cada dia estava mais inalcançável e etérea. (Para as mulheres do pampa, nada é mais incompreensível do que aquilo que não se pode tocar ou mensurar, e tudo o que é volátil assusta e desorienta. A doen­ça de minha irmã, portanto, foi o último castigo que minha mãe logrou suportar. Aquele verme invisível, quase mágico, que lhe envenenava a filha mais velha, diligentemente, mais e mais, a cada dia.)

  1. Antônia disse que Rosário tinha enlouquecido de solidão, que algumas mulheres, mesmo as continentinas, não tinham brios para a espera, e que os anos as corroíam até que cedessem sua dor para a eter­nidade. Disse também que fora necessário que a levassem da casa, pois a loucura, como a gripe, era contagiosa. Talvez D. Antônia não espe­rasse a morte da sobrinha, talvez imaginasse que a distância e as novenas do convento haveriam de recuperá-la para o mundo, não sei... Não falamos mais sobre Rosário, e, depois da guerra, vi poucas vezes a tia. Ela se trancou na Estância do Brejo e lá ficou. Restaram dela aqueles olhares duros, que aprendi a imitar por força de sobreviver também eu aos meus fantasmas, restou dela aquela serenidade calcu­lada quando todos estavam à beira do desespero, serenidade na qual me agarrei muitas vezes quando estive a ponto de me afogar na minha própria desilusão, como um náufrago em um mar revolto que tenha de seu somente uma tábua na qual apoiar sua fé.

De Rosário, minha irmã mais velha, pouco restou. Lembro que sem­pre foi bela, de uma beleza cremosa e dourada, quase frágil, e que ti­nha anseios de viver na Corte. A pobre Rosário faleceu com a República que ela mesma tantas vezes reprovou.

Mas essas recordações, ah, elas se adiantam a tantas coisas... Quan­do Rosário nos deixou, rumo ao convento, a guerra estava ainda pela metade, naquele abril de 1840.

Meus cabelos começavam lentamente a crescer outra vez, como cresciam em meu peito a saudade de Giuseppe e a esperança de que ele me enviasse uma carta, um sinal qualquer, um aceno que trouxesse brilho aos meus dias. Anita, a mulher que ele escolhera para dividir a guerra e a vida no Continente, depois de ter sido capturada pelos im­periais, conseguiu fugir e encontrou-o outra vez. Quando Manuel, o caseiro, que tinha voltado de viagem recente a Viamão, acabou de nar­rar essa façanha, meu peito se encheu de sentimentos contraditórios. Eu tinha desejado que morresse, tinha ansiado ouvir da sua morte com detalhes escabrosos, para que pudesse dar meu amor e meu consolo a Giuseppe; e ele então voltaria para mim, arrependido de tal aventura, certificado de que estávamos mesmo unidos, pelo amor e pelo destino. Mas Anita ainda não tivera seu encontro com a morte — encontro esse que não tardou, para o peso de minha consciência —, estava de volta aos braços de Giuseppe, e grávida dele.

Essa notícia me feriu como uma lança, e corri para o meu quarto. Pouco me interessava tudo o mais naquela guerra desgraçada... Pe­guei meus cadernos de memórias e rasguei muitas páginas do meu di­ário. Não tinha então mais cabelos para cortar, mas apenas estes pulsos finos, de sangue e de seiva, que quase de nada valiam e que não ousei profanar... A semente de Giuseppe se perpetuava em outro ventre. E eu, o que tinha dele? Um punhado de escritos e meia dúzia de cader­nos repletos de sonhos e divagações, em que seu nome se multiplicava pelas linhas e pelas páginas... Lembro que era uma tarde de outono, ensolarada, a despeito da minha dor, e lembro que caminhei até a co­zinha, onde as negras trabalhavam sob a supervisão de Rosa. Em frente ao fogão, arranquei páginas e páginas de um caderno, e vi-as arder sob as chamas com os olhos secos de lágrimas.

— Queime, desgraçado — foi o que eu disse.

A quem se refere uma moça insana de paixão, quando assim fala? A Giuseppe, ou ao amor que me adoentava, me acorrentava a ele? Ao passado, com suas esperanças e erros e desilusões?

Mariana acudiu, ao ouvir os gritos de espanto de Rosa. Mariana, que havia pouco tinha visto Rosário ser recolhida ao convento, então me tomava nos braços, com carinho, e pedia numa voz mansa que lhe devolvesse os cadernos, que os deixasse longe do fogo.

— Um dia você vai querer lê-los, Manuela. Eles são a sua vida nesta estância.

— Nunca mais.

— Então deixe-os comigo, por favor.

E levou os cadernos consigo. Depois, voltou à cozinha. Eu estava parada à beira do fogo, sem saber o que fazer. Fitei minha irmã:

— Giuseppe vai ter um Filho.

Ela sorriu tristemente. Tomou-me pela mão.

— Vamos lá para dentro. Um dia, quando você quiser e essa má­goa tiver passado, le devolverei os cadernos. Deixe Giuseppe ter seu filho.

A mágoa ressecou meu peito, mas, por fim, serenou sem alvoroços. Algum tempo depois, recomecei a escrever, porque não sabia mais le­var os dias sem derramar meus pensamentos no papel, e as silenciosas tardes na estância pediam a companhia das palavras. Quando a guer­ra findou, Mariana me entregou uma caixa de madeira. Lá dentro es­tavam meus velhos cadernos. Foi lendo-os que cheguei até aqui. Passou-se muito tempo, depois daquilo tudo, e tanta gente morreu, quase todos morreram... Restei eu, como um fantasma, para narrar uma história de heróis, de morte e de amor, numa terra que sempre vivera de heróis, morte e amor. Numa terra de silêncios, onde o brilho das adagas cintilava nas noites de fogueiras. Onde as mulheres teciam seus panos como quem tecia a própria vida.

Ah, mas isso tudo levou muito tempo, tempo demás... Naqueles dias, meus cabelos ainda estavam crescendo. Naquele tempo, ainda tínha­mos muitos sonhos.

Manuela.

 

Tinham saído de Viamão no dia vinte e dois de abril e marchado durante dois dias inteiros, sem comer nem beber. Bento Gonçal­ves liderava mais de dois mil homens sob a fina chuva. Canabarro, Lucas de Oliveira e Corte Real seguiam junto. Havia quatro batalhões de infantaria, artilharia, cavalaria e uma companhia de marinheiros co­mandados por Giuseppe Garibaldi. Por onde passavam, só viam ter­ras abandonadas, estâncias saqueadas e desilusão. Os homens iam de cabeça baixa, segurando a inquietude das tripas, pensando naquela ba­talha que deveria ser a decisiva. Seria o maior encontro de tropas de toda a história do Continente.

Atravessaram o Rio Caí numa noite sem estrelas. Não encontra­ram muita dificuldade por parte das tropas imperiais: ali havia um pequeno destacamento que foi rapidamente desbaratado. Acamparam no morro da Fortaleza. Bento Gonçalves mandou um mensageiro avi­sar Netto de que tinham transposto o Caí. Era a hora do encontro.

Encontraram-se no último dia daquele abril. Netto vadeou o Caí com dois mil e quinhentos soldados. De todos os lados chegavam re­forços, homens com seus cavalos,, a lança em riste, o lenço vermelho no pescoço, e homens a pé, descalços, o pala esfarrapado, mas com a mesma gana de lutar ao lado dos seus generais. Adagas brilhavam na luz das fogueiras. Risos e abraços de reencontros. Houve festa, carrea­ram bois para matar a fome do exército, enquanto na barraca de Bento Gonçalves reuniam-se todos os chefes farroupilhas. Lucas de Oliveira, Corte Real, João Antônio, Netto, Teixeira, Canabarro, Crescêncio, estavam todos lá.

A planície amanheceu repleta sob um sol tímido que tentava dissi­par o frio da madrugada outonal. Eram seis mil homens reunidos, os olhos se perdiam na contemplação de todo aquele exército. Uma ener­gia latente pairava no ar, sobre as cabeças de todos, como um grande pássaro de asas abertas.

Bento Gonçalves levantou com a aurora. Tinha dormido mal, os pulmões andavam frágeis, mas acordara com rara disposição. Era um dia especial para a República. Quando calçava as botas, João Congo entrou na tenda trazendo o mate.

— Congo, mande o Joaquim reunir todos os chefes aqui. João Congo saiu rapidamente.

Pouco depois, estavam todos lá. Garibaldi foi o último a chegar. Desculpou-se, Anita tinha passado uma noite difícil.

— A guerra não é lugar para uma mulher que vai dar à luz — dis­se Bento Gonçalves sem qualquer emoção.

Garibaldi sustentou o seu olhar. Tinham se encarado assim uma única vez, havia tempo, no estaleiro. Garibaldi recordou Manuela. Agora o general gaúcho não tinha qualquer poder sobre a sua vida.

— Anita prefere estar al mio lado, general, a estar em qualquer outra parte de questo Rio Grande.

Bento Gonçalves abriu um sorriso de compreensão. O italiano ti­nha fogo nos olhos.

— Sabemos que Anita é uma mulher de coragem, capitão. Agora vamos ao que importa — disse ele, percorrendo os rostos ali reuni­dos. — Os imperiais estão perto do Rio Taquari, a poucas léguas do nosso acampamento. Conseguimos nos unir sob as barbas de­les, mas agora já sabem onde nos encontramos. — Fez uma pausa. — Isso tem pouca valia. Porque nós vamos atacá-los ao alvorecer, amanhã.

— O Manoel Jorge tem o dobro da nossa infantaria e uma arti­lharia muito forte — disse Corte Real.

— Está bueno. Mas nós vamos atacar antes e estamos melhor posicionados. Vamos vencer esta guerra de uma vez por todas.

 

Caetano andou uns metros e acomodou-se sob uma árvore. A noite infiltrava-se no acampamento, lentamente. A luz âmbar do outono ia esmorecendo, lançando seus últimos reflexos sobre o pano desbotado das tendas. Os homens movimentavam-se num ritmo próprio, caden­ciado, os rostos curtidos pelo sol e pela intempérie, as mãos nodosas, a barba de muitos dias de cavalgada. Índios, mestiços, castelhanos, continentinos e negros, todos formando uma única coisa, uma coisa viva e pulsante e cheia de fúria acumulada, como um bicho quieto que aguarda a hora do bote.

Os primeiros braseiros começaram a lumiar. Caetano sentiu o frio baixando do céu, aconchegou-se mais ao pala de lã. Seus olhos esta­vam bêbados daquilo tudo. Ele queria enfarar-se daquela cena, banhar-se na energia que sentia vibrar sob o capim, que subia pelas patas dos cavalos, que exalava das fogueiras como uma espécie de luz misteriosa.

— É a guerra... Ela também tem seu brilho.

A voz de Joaquim surgiu do nada. O irmão estava parado a cerca de um metro, com um sorriso estranho no seu rosto bonito.

— Hay uma grandeza em tudo isso, Quincas, uma coisa que nun­ca vi antes. Sinto um formigamento pelo corpo. Uma excitação.

— Amanhã, após a batalha, não haverá mais essa beleza toda. Vai ser um confronto feio. A guerra é dura... — Olhou o acampamento ao redor. Um cheiro de carne assada tomou-o de soco, e ele descobriu que estava faminto. — O pai quer falar com usted. Está lá na barraca dele, com o Bentinho.

— Buenas.

Caetano seguiu para os lados da barraca de Bento Gonçalves. Joa­quim olhou o chão. Amanhã, o brilho dos olhos de Caetano seria enco­berto pelas primeiras nuvens. Era impossível passar imune ao horror da batalha. E Caetano tinha apenas dezoito anos. Mas, no pampa, de­zoito anos era idade de homem feito.

Joaquim ouviu a batucada que vinha do rancho. Eram os Lanceiros Negros, se preparando para o entrevero do dia seguinte. Netto, decer­to, estaria entre eles. Ele ficou pensando como um único homem pode­ria ter tantas facetas quanto o general Antônio de Souza Netto. Alguns homens nasciam com algo de especial, essa era a verdade, uma força que arrastava multidões consigo. Como Netto, como o seu pai.

 

Às oito horas e doze minutos do dia três de maio de 1840, começou a batalha. Os imperiais haviam decidido esquivar-se, cobrindo-se com o Rio Taquari, e já tinham passado metade da cavalaria, quando Bento Gonçalves atacou, à frente das tropas, com o brilho seco dentro nos olhos negros, como uma estrela. Netto comandava a ala direita, e Canabarro, a esquerda.

 

O clarim retumba nos céus, e a massa humana avança sob um único passo. Começa o entrevero humano. Os cavalos imperiais estão na água, atropelam-se, agitam-se. Recuam. As tropas republicanas avançam, perdem o corpo, alas ficam desprotegidas. Caetano, montado no zaino negro, recebeu ordens do pai: é preciso que fique colado em Bentinho, que o siga, seja como for. Bentinho ataca, investe com a lança em riste, enfia a lâmina sob a costela de um infante imperial. Caetano também ergue a sua lança. Está na margem do rio. É difícil dominar o cavalo ali, o chão arenoso escorrega, dificulta os movimentos. Um soldado imperial galopa em sua direção. Grita. Caetano grita também, grita pela República, avança como pode. As lanças se encontram, barulho de metal retinindo. Os olhos se encontram, cheios de uma determinação semelhante ao ódio. Caetano sente a bile em sua boca. A lança imperial executa uma dança no ar. O ferro é frio e duro e cruel quando penetra a sua carne. Um véu nebuloso desce das suas retinas. O rosto da mãe, bordando na varanda da estância de D. Ana, é a última coisa de que ele se recorda quando cai.

As tropas imperiais começam a se retirar. O terreno agora já não favorece o avanço republicano. Mas não há outra saída. É tudo ou nada.

Os homens querem a luta, não é possível reverter a engrenagem posta a girar. Giuseppe Garibaldi está à frente dos seus soldados. Quer ata­car. Netto quer atacar. É preciso correr riscos. Bento Gonçalves orde­na o recuo. Republicanos recolhem os seus feridos, imperiais realizam a mesma manobra. Os dois imensos exércitos ficam frente a frente, sem qualquer ação.

 

Caetano não morreu. Está no acampamento. Abre os olhos e vê Joa­quim, com seu olhar doce, com suas mãos hábeis. O ferimento é pro­fundo, e a febre já resseca a sua boca.

— Vosmecê vai ficar bem, guasca. Mas tomou uma lança entre as costelas. Foi bem fundo. Sorte que não le pegou o pulmão. — Caetano faz menção de falar. — Psiu, fique bem quieto. Quando estiver são outra vez, agradeça ao Bentinho. Foi ele que le recolheu do rio.

Joaquim ergue-se, lava as mãos num balde. Agora vai lá para fora. Os homens estão reunidos em conselho.

O comandante das tropas imperiais, Manoel Jorge, quer evitar a batalha e atravessar o Rio Taquari com todos os seus homens. E Greenfell, com seus barcos, dá cobertura à retirada das tropas.

— O negócio é impedir o movimento deles. Vamos mandar um des­tacamento para cuidar da coisa. Ficar de olho neles. E amanhã atacamos.

A noite vai caindo outra vez sobre o pampa. A cerração fria reco­bre o acampamento. Já faltam comida e água para os homens. Ouve-se o som triste de uma viola que lamenta aquela espera. Na sua pequena barraca, Caetano arde em febres.

Quando já amanhece é que um batedor traz a notícia: o exército imperial desapareceu durante a noite. Sete mil homens evaporaram-se como num sonho. Como num pesadelo. Bento Gonçalves atira longe a cuia do mate.

— Malditos! Mas eles não nos escapam!

 

A segunda brigada de infantaria iniciou o ataque, mas a superioridade numérica dos imperiais obrigou-os a retroceder. A Marinha imperial dava tiros de canhão. A artilharia republicana e os homens de Giuseppe também atacaram. O combate era encarniçado e terrível. Corpos se espalhavam pelo chão, pela água. Na parte mais densa, onde havia o mato, retumbavam os tiros e os gritos. As árvores eram arrasadas pelo avanço furioso das tropas. As águas do Taquari arrastavam consigo os corpos do soldados mortos, e um tom avermelhado de sangue tingiu o rio.

O fogo cerrado continuou; mesmo assim os imperiais forçaram a passagem do Taquari e avançaram. Os republicanos lutaram com gar­ra, com a alma, mas foi impossível conter a travessia imperial. E o dia se escoou, enfim.

Ao amanhecer, contaram os mortos. Mais de quinhentos. Bento Gonçalves tem o rosto contraído, respira com dificuldade, não sabe ao certo se é de ira, ou se é a nova surpresa que o corpo vem lhe pregan­do. Sabe que não dormiu durante a noite, que apostou tudo num fra­casso. Que, ainda há pouco, suas mãos tremiam a ponto de não poder segurar a cuia do mate. Não houve vitória. Os imperiais também tive­ram muitos mortos e feridos. Mas isso não é um consolo. Ao longe, Netto prepara um palheiro. Tem a boca vincada, dura. Era para terem vencido. Era. Estava escrito em algum lugar. Mas onde?

Dois dias depois, as tropas recolheram acampamento. Era hora de voltar, voltar de mãos vazias. Retomar o cerco a Porto Alegre. Voltar a Viamão.

 

Giuseppe Garibaldi ajuda Anita a subir na carroça. Está cansado e magro, com fome. Deu parte da minguada ração para a mulher, que precisa comer melhor. O parto se aproxima agora. Garibaldi pensa na batalha. Sente algo ambíguo para com Bento Gonçalves... Não sabe definir esse sentimento. Bento Gonçalves é um grande general, um homem íntegro e justo. Mas não tem sorte.

— É preciso la fortuna para vencer una guerra.

— Vosmecê disse alguma coisa? A voz de Anita é doce e cansada.

— Niente. Scusa, estava pensando alto. — Fica uns segundos era silêncio. — Espera un puó. Vou resolver una cosa.

Garibaldi se afasta da carroça. Tem uma carta no bolso da calça. A carta queima sua pele como um braseiro. Ainda recorda os olhos dela, olhos de floresta. Mas agora encontrou Anita. E a vida não tem volta.

Joaquim está ajudando Caetano a se acomodar no cavalo. A febre já cedeu, mas ele ainda está pálido e fraco. Vai ser árdua a viagem até Viamão.

 

— Scusa, io poderia falar com vosmecê?

Joaquim olha o italiano. Está mal vestido, cansado, magro. Mas ele mesmo também não se sente em boa forma, o pala foi rasgado e está sujo de sangue. Joaquim sorri.

— Algum problema com a sua mulher? Chegou a hora?

— No, Anita está bene. Io quero le pedir una cosa. — Tira a carta do bolso. O nome de Manuela está escrito em letras graúdas no enve­lope pardo. — Io sei que vosmecê a ama. Por isso é que le peço questa gentileza. É una carta de adio para Manuela... Io le devo questo.

— Compreendo.

Garibaldi entrega a carta a Joaquim.

— Io amei Manuela... Mas adesso la vita me trouxe outra mulher. Una que pode me acompanhar por questo mondo. Ma io a amei. Adesso, le desejo que seja felice com Manuela. A ragazza merece um bom homem.

— E usted quer dizer que este homem sou eu?

Garibaldi derrama seus olhos sobre o jovem oficial. Uma força emana do italiano. Ele abre um sorriso sutil.

— Questo é vosmecê quem sabe. Io peço apenas o favor de enviar questa carta a ela. Junto com as outras que vosmecê enviar para a vostra casa.

Joaquim dobra a carta e a guarda no bolso do dólmã. Vira-se para Caetano e pergunta se quer um pelego, uma cuia de mate. Garibaldi tem os olhos úmidos. Não é o vento frio que o incomoda. Sai andando para os lados onde Anita o espera. Um peso a mais cinge o seu peito na manhã nublada e triste do retorno.

 

Os cavalos avançam pelo caminho, lentamente. São poucos. A maio­ria dos homens seguem a pé, escondidos sob os palas, para se proteger do vento frio. O inverno chegou sem avisos, gélido. Mas o céu é um manto de estrelas. O Cruzeiro do Sul brilha sobre a cabeça de Joa­quim, brilha como uma jóia sob o veludo negro.

A carta está guardada no bolso do dólmã, junto com outra, que pretende enviar à mãe assim que chegarem a Viamão. Na carta da mãe, fala de Caetano, que foi ferido, mas passa bem, melhorou, a febre está cedendo. Quando chegarem à cidade, onde existem mais recursos e ele poderá ter uma cama e lençóis limpos, tem certeza que Caetano fi­cará bom. Pronto para outra. E outra, e mais outra. A guerra parece que não findará nunca. E conseguiram muito pouco, a República está outra vez sem saída, sem porto, sem caminho.

Joaquim acaricia o volume no bolso. Esquece a República e seus fracassos. Manuela é o que importa. E aquela carta que o italiano le entregou. Maldito. A sinceridade do italiano irritou-o. Ele pensou muitas vezes em jogar fora a carta. Manuela ficaria para sempre espe­rando uma palavra, uma explicação, um consolo. E somente teria o silêncio. Talvez fosse melhor. O italiano não voltaria, e Manuela aca­baria esquecendo tudo aquilo. Odiou-se por ter aquele brio que o im­pelia a enviar a carta para a prima. Era um adeus, ele sabia. Mas que palavras mais teria escrito Garibaldi, que esperanças teria ele semea­do naquelas páginas, que promessas teria feito para Manuela? O amor podia ser vendaval na alma de uma mulher; talvez um punhado de palavras despejadas numa folha de papel não fosse suficiente para dis­suadir a férrea Manuela de esperar o italiano, de esperá-lo para sem­pre, como uma Penélope que aguarda o seu Ulisses.

Giuseppe Garibaldi tinha le dado aquela carta porque o conhecia. Todos os médicos da tropa eram conhecidos pelo nome. Salvavam poucas vidas, por causa da penúria, da falta de remédios, da chuva e do frio, mas eram respeitados. Garibaldi confiara nele quando le en­tregou aquele envelope. E Joaquim ia fazer jus àquela confiança. Mas uma parte de si tinha vergonha, vergonha de ser tão honesto, inocente até. Qualquer outro, no seu lugar, jogaria aquela carta no primeiro barranco, poria fogo naquele envelope sem pensar duas vezes, menos ele. Menos ele.

Foi seguindo a tropa. O cavalo ia num trote manso pela estrada ilu­minada de lua. Os homens avançavam em silêncio, famintos. Joaquim pensou na mulher que ia lá atrás, na carroça, com um filho maduro em seu ventre. Enviaria aquela carta. Garibaldi agora seria pai. E, um dia, quando fosse o tempo, quando a revolução acabasse, ele casaria com Manuela. E tudo voltaria a ser como antes, como tinha sonhado desde que era um guri.

 

  1. Antônia aconchegou-se mais ao xale de lã. Um frio subia por suas pernas, nascia na planta dos seus pés, a despeito das botinas e das meias, e ia avançando por todo o seu corpo, e ia se concentrando no seu pei­to, fazendo doer as costas a cada vez que ela tentava encher de ar os pulmões. Olhou para fora e viu o vento varrendo a campina, sacudin­do as folhas da mangueira, espantando os guaipecas que corriam pelo quintal. As negras trabalhavam na cozinha, um cheiro de sopa pairava no ar, como um conforto. D. Antônia atravessou o corredor vazio, sen­tindo aquela dor no peito, aquela angústia que era mais do que molés­tia, era um incômodo, um aviso. O vento zunia.

A cadeira de balanço rangeu sob o seu corpo quando ela se acomo­dou, tapando as pernas com a colcha de lã. Havia dias em que se sentia uma velha. Fez as contas. Estava para completar cinqüenta e quatro anos. A mãe tinha morrido para lá dos setenta, morrera calada, como ela mesma morreria um dia, talvez numa tarde primaveril, onde um céu azul brilhasse no pampa. Que Deus a livrasse de morrer num dia de vento, quando todas as coisas no mundo pareciam gemer uma cantilena triste, quando as folhas voavam pelo campo feito fantasmas sem rumo. A verdade é que acordara com o peito oprimido, e aquele vento... Sonhara com o irmão. Um sonho ruim, marcado de sangue, de escuridão e de angústia. Ela sentiu a febre lamber-lhe o corpo como um cão misterioso, o arrepio correu pela sua espinha, arrepiou-lhe os pêlos da nuca, enregelou o seu coração. Não queria ficar sozinha na estância, com as negras, com os peões, com aquele vento maldito e aqueles sonhos que atazanavam suas noites.

Tocou a sineta.

Uma mulata miúda entrou na sala.

— Mande chamar o Nettinho — disse D. Antônia, e espantou-se com a fraqueza da sua voz. — Quero ir para a casa da Ana. Estou doente.

— A senhora quer um remédio, um chá forte?

— Não, menina. Só quero a charrete pronta bem rápido. E um pelego. Estou congelada por dentro.

 

Zé Pedra abriu a porteira ao reconhecer a charrete. Nettinho acenou, enrolado no pala. O céu cinzento derramava-se sobre tudo e parecia morrer para os lados do Rio Camaquã, pesadamente, como se quises­se se afogar em suas águas. A charrete subiu o pequeno caminho. Um cão seguiu-a ladrando, fazendo alarido.

A porta abriu-se, e o rosto de D. Rosa surgiu por uma fresta. A casa branca era uma coisa sólida no meio do campo raso, um refúgio. D. Ana logo apareceu na varanda, envolta numa manta pesada, os cabelos soltos, roupa caseira de lã. Nettinho ajudou a patroa a descer do carro.

— Usted aqui, irmã? Não pensei que viesse hoje, com esse frio. — Observou o rosto marcado e pálido. — Aconteceu alguma cosa?

  1. Antônia abriu um sorriso cansado.

— Estou doente, com febre. Deve ser uma gripe braba, um incô­modo do peito. — Suspirou. — E esse vento diabólico. Fica entrando pelos meus ouvidos como um choro... Não quis ficar sozinha na es­tância.

— Fez bem — segurou o braço da irmã mais velha. — Almoçamos faz pouco. Vou mandar preparar alguma coisa para vosmecê comer.

Dentro da casa, um fogo ardia na lareira. D. Antônia acomodou-se numa poltrona, mexeu os pés gelados, puxou o pelego sobre o corpo.

— Vosmecê está abatida, Antônia.

— Tive uma noite de cachorro. Sonhei com o Bento, um sonho ruim. Não consigo me olvidar dele.

  1. Ana acomodou-se ao lado da irmã.

— Esta guerra está mal parada, Antônia. Joaquim mandou carta, Pedro também. Rio Pardo foi um fracasso.

— O tempo está se gastando demás. Meu gado já se reduziu à metade. Se essa guerra durar muito, nem sei como vai ser. — Tossiu. A dor no peito veio como uma lâmina. — Mas hoje nem quero falar disso, que me vou mais para lá do que para cá...

— Vira essa boca, Antônia!

  1. Rosa entrou na sala com uma bandeja.,

— Le trouxe uma canja, D. Antônia. Está bem quentinha. Vai le fazer bem.

  1. Antônia agradeceu. O fogo crepitava na lareira, deixando exalar um cheiro bom de pinho. D. Antônia recordou o rosto que vira em so­nhos. Escaveirado, pálido, barbudo. O rosto do irmão, do irmão cansado, sofrido, triste, derrotado, o rosto do irmão presidente. Ele perdeu os olhos no fogo. Tentou acalmar sua alma. Um dia, Bento voltaria para casa e re­começariam tudo de novo, do exato ponto onde haviam parado de viver.

 

Manuela guardou a carta no corpete do vestido. Enrolou-se no xale outra vez, e não disse nada. Caetana, que tinha lhe dado o envelope — ele viera junto com a correspondência da casa —, também nada lhe perguntou. Ainda tinha uma carta a entregar para Perpétua, carta de Inácio. Caetana saiu da sala com seu passo firme, ereta e elegante como se andasse num salão de bailes. E deixou Manuela com seus fantasmas. Manuela foi para o quarto, que estava vazio. Agradeceu que Mariana tivesse ido até o Brejo, buscar uns pertences de D. Antônia junto com Zé Pedra. Precisava de solidão. A carta era como uma brasa em suas mãos. Ela depositou-a sobre a cama e ficou olhando-a por um bom tempo, o coração batendo forte, um frio na boca do estômago. Aquele pedaço de papel poderia mudar sua vida.

— Meu Deus, meu Deus.

Ele tinha escrito. Depois de tanto tempo... Mais de um ano. Um lon­go ano em que esperara uma palavra, uma notícia que fosse. Um longo ano em que contara instantes, dias e meses, e que se arrastara com o peso de um século inteiro. E agora aquela carta, com seus mistérios e espe­ranças, com seus segredos e verdades, vinda sabe-se lá de que campo de batalha, de que vila, de que lonjura daquele continente sem fim. Ergueu os olhos e, sem querer, mirou-se no espelho do toucador. Espantou-se com a própria palidez e com o brilho angustioso que se derramava das suas retinas. Os cabelos cresciam rápido, agora estavam à altura dos ombros, mas ela ainda usava a trança falsa. Nunca ninguém desconfiara de nada. Somente D. Antônia e Mariana, com quem divida o quarto, sabiam o que havia feito por amor. E faria muito mais. Por Giuseppe.

Rasgou o envelope manchado e sujo. Com os dedos hesitantes, pescou a folha branca, protegida da viagem, das mãos dos estafetas, do barro, do sangue e do suor. A letra graúda e derramada de Giuseppe surgiu. Seus olhos se encheram de lágrimas.

Quando começou a ler, era como se a voz morna e melodiosa dele cantasse em seus ouvidos. Era como o barulho das ondas que nunca tinha visto, mas que imaginava semelhante ao riso de Giuseppe.

 

                   "Carina Manuela,

Faz molto tempo que almejo le escrever, mas questa guerra tem sido dura e dificile, e por conta de questo o tempo passa sem que eu le diga as palavras que preciso le dizer, Manuela. É sempre com muita saudade que recordo esse lugar querido e vosmecê, que formoseou meus dias como nenhuma outra dama o soube fazer. Ao vostro lado, eu fui felice, e dividi um amor puro que muito me acalmou a alma. Mas a vida, as exigências superiores e o destino me levaram para longe de vosmecê. Nem sempre, Manuela, a vida nos dá aquilo que almejamos, mas nos dá outras e novas cosas com as quais aprendemos a viver. Questo sucedeu comigo. E hoje me sinto contento, mesmo que recorde aqueles dias com um sorriso saudoso.

Ma io parti. E, longe de questa estância que a acolhe e abriga, conheci outras cosas e personas. E conheci Anita, que hoje é mia companheira e amorosa esposa. Anita, que atravessa comigo as batalhas e os sofrimen­tos, e que deixou tutto para estar ao mio lado. Non le digo questo sem dor em mio peito, Manuela, porque sono um suo apaissonato para sempre, mas a vida me trouxe uma companheira mais capaz de seguir-me, uma que não conheceu nunca a riqueza e a paz da propriedade, e que pode ir comigo per questo mondo sem levar saudades de qualquer rincão. Sei que vosmecê me tinha dito que seguiria ai mio lado per sempre, e sei que fa­lava Ia veritá. Mas a vida é molto diversa, e não almejei ver vosmecê infelice ai mio lado, em terras distantes deste continente, passando por privações e trabalhos, onde la vostra mãe e le vostre companheiras não estivessem. A vida ai mio lado é molto dificile, Manuela. Sou um homem que tem a cabeça a prêmio na Europa, e aqui, in questa terra, também não tenho nada de mio, a não ser a coragem e o sonho de ver a República forte, o sonho de ver a liberdade de Ia gente.

Tomei assim a decisão que me cabia. La vita traz um igual para todos, Manuela, e io encontrei Ia mia. Pensa, per favore, que assim será melhor per noi. Vosmecê há de encontrar um homem que le agrade e que seja igual ao seu mondo, um homem que a entenda e a faça felice, que le dê conforto e amore. Io sono um homem diverso, sem pouso. E non poderia fazer vosmecê felice como merece ser.

Adesso, deixo aqui il mio afeto, que será suo per sempre, Manuela. E es­pero que um dia Ia vita nos aproxime una altra vez. E fique com il mio amore per sempre, pois per sempre io pensarei em vosmecê como una cosa bela e delicada que alegrou Ia mia vita. De um altro modo, serei sempre vostro.

Com carinho,

Giuseppe Garibaldí.

Viamão, 25 de abril de 1840."

 

Manuela deixou a carta cair sobre o assoalho. A folha pousou man­samente no chão de madeira, como uma pomba morta. Um grito rou­co brotou do seu peito como se lhe houvessem aberto uma chaga. Manuela atirou-se na cama. Começou a chorar.

O vento sacudia o mundo lá fora com sua insistência de alma pe­nada. Começava a escurecer. As primeiras sombras surgiram no quar­to. Manuela estava deitada de olhos fechados. As lágrimas corriam silenciosamente pelo seu rosto. Ela recordou a primeira vez em que o vira, parado à frente da casa, empoeirado da viagem, os cabelos loiros ao sol, o brilho que lhe tinha nascido nos olhos quando ele a fitara. Recordou a última vez, quando ele partia com os barcos pelo Camaquã, para depois levá-los por terra até o Rio Tramandaí. Nun­ca o tinha achado tão belo como naquela última vez, com o riso repleto de sonhos de quem venceria grandes batalhas. E ele tinha prometido voltar...

As lágrimas vinham direto da sua alma, eram pedaços da sua alma que se desfaziam sobre a colcha colorida que recobria o colchão. Ela soluçava forte. Desejou com todas as forças que anoitecesse rapida­mente e que não amanhecesse nunca mais, nunca mais. Que todo o Continente de São Pedro do Rio Grande virasse uma única e imensa treva, um nada, que haveria de engolir para sempre tudo aquilo, todos eles, como se nada jamais tivesse existido sobre aquele pampa.

 

Rosário levantou junto com as outras. A capela, iluminada pelos casti­çais, tinha um silêncio de coisa santa. Era uma capela austera, os ban­cos de madeira rústica, as paredes quase nuas, com pinturas simples representando o Martírio. No altar, um Cristo de olhos tristes, preso eternamente em sua cruz, derramava lágrimas de sangue. As freiras começaram a sair lentamente, uma atrás da outra, todas de cabeça baixa, tão humildes em sua paz, tão cheias de oração ao cair daquela tarde fria e anuviada de inverno. Rosário esperou que as noviças começas­sem a se retirar e seguiu com elas. As vésperas ainda ecoavam em seus ouvidos como uma cantilena triste.

Ela seguiu pelo corredor até o seu próprio quarto. Era uma peça simples, com uma cama de madeira, um pequeno armário e um cruci­fixo preso à parede. Ela sentou na cama. Soltou os cabelos dourados, que estavam presos numa trança bem-feita. Era proibido andar com os cabelos soltos pelo convento. Deus não parecia gostar de qualquer rastro de vaidade, assim a madre lhe dissera.

— Steban... —chamou em voz baixa. — Steban, estou de volta — repetiu sorrindo.

Ele a tinha seguido pelos caminhos do pampa até o convento. E parecia mais feliz, menos pálido e doente ali, entre aquelas paredes grossas de silêncio, que cheiravam a incenso e pureza e proteção.

Rosário pegou uma pequena Bíblia que estava sob o travesseiro, abriu em uma página, leu um trecho. Esperava. Nem sempre Steban aparecia rapidamente. Às vezes, levava horas até que seu vulto esbel­to, seu sorriso de salteador, seu rosto galante surgissem na semi-escuridão do pequeno quarto. Mas a madre tinha lhe ensinado a ter calma. Era preciso ter calma. Cultivar o silêncio, a paz do espírito, a serenida­de. Era preciso ser mansa e pacata como o próprio pampa.

Rosário lembrou as muitas horas de angústia que vivera na estân­cia, os minutos suados, que se escoavam lentamente, fatalmente, pelas frestas do assoalho. Os pesadelos e o medo. Ali no convento, experi­mentava uma paz tão grande, que poderia até se dizer feliz. E Steban tinha vindo com ela. Naqueles corredores inóspitos, ambos se amavam sem pressa ou perigo. Pela primeira vez em muitos anos, podia sentir-se longe daquela guerra e de tudo que ela representava. Nunca tinha contado à madre sobre Steban, sobre como ele a tinha achado numa noite de tempestade, ali naquele quarto minúsculo, depois de ter vara­do coxilhas e descampados atrás dela. A madre, decerto, não permiti­ria aquele amor cheio de mistérios. Era verdade que Deus não tolerava mistérios que não fossem os d'Ele. E Steban tinha pedido que ela fi­zesse segredo.

Ela ouviu um ruído distante. Quase um ganido de um cão ao lon­ge. O quarto estava agora imerso na escuridão morna das primeiras horas da noite. Rosário acendeu o lampião. Logo a chamariam para o jantar, para as rezas. Havia sempre as rezas. Era uma boa forma de viver, sem esperar nada, nada almejar, somente aqueles dias iguais, divididos de orações, apartados do mundo lá fora e da guerra. Outra vez o ganido. Rosário ergueu-se, segurando o lampião, e foi até a jane­la estreita que dava vista para a horta do convento. Um vulto estava parado em meio à noite ventosa e lúgubre. Parecia flutuar com o vento.

— Steban!

Rosário enrolou-se no xale negro, prendeu rapidamente os cabe­los. Tinha pouco tempo para estar com Steban. Era quase hora do jan­tar, e a madre não tolerava atrasos. Deus gostava das coisas nas horas certas, dizia a madre, sempre.

 

  1. Ana arregaçou as mangas do vestido e prendeu o avental à cintura. Podia ouvir a lenha estalando. Um calor morno abraçava toda a cozi­nha. Ela começou a mexer o tacho com força.

— Vosmecê cortou as goiabas em pedaços mui grandes, Milú. Isso vai demorar no cozimento.

Milú desculpou-se, foi separar os potes de vidro.

  1. Ana gostava de ficar à beira do fogão. Quando estava angustia­da com qualquer coisa, então, era um santo remédio. Mexer e remexer o tacho. Deixar a cabeça varar pelos pensamentos, sem pouso ou ques­tão. Tudo o que importava era a cor do doce, o ponto, o gosto. O pra­zer de vê-lo dourar e ganhar cor e consistência. A mão executando o movimento ideal, nem mexendo mui rápido, nem lento demais. Como a mãe le tinha ensinado quando era ainda uma meninota de meias curtas.

Sabia que Antônia gostava de goiabada, gostava de comer o doce no pão quente, de mastigar devagar, saboreando bem. E Antônia não tinha lá muitas predileções, além da goiabada. Moderada, sempre co­mera de tudo, mui pouco, nunca dissera não gostar de qualquer coisa. Ela queria agradar Antônia. A irmã mais velha estava com febre havia dias, atacada dos pulmões. Tinham mandado chamar o médico, mas ele estava longe, na guerra. Rosa então pusera-se a cuidá-la, com un­güentos e chás; Rosa tinha boa mão para essas coisas de ervas e plan­tas, mas o caso é que Antônia não melhorava, estava magra e pálida. Tinha ido ver a irmã fazia pouco, lá no quarto; ela ressonava, chamava baixinho o nome de Bento Gonçalves.

  1. Ana enrolou um pano na mão. O vapor que subia do tacho co­meçava a machucar de leve a sua pele. Ela mexeu com força, puxando do fundo da panela. Os dois irmãos sempre haviam tido uma espécie de simbiose, de união misteriosa, como se um fío invisível ligasse um ao outro. Bento contava a Antônia os seus medos — teria Bento me­dos que ousasse declarar? —, contava os planos, as manobras daquela guerra. Sempre os tinha visto pelos cantos da casa, desde pequenos, um ajudando o outro, fazendo confidências. Agora Antônia estava doente e chamava por Bento em seus sonhos. Angustiava-se por ele. Alguma coisa teria sucedido ao irmão general? Algo que ainda nin­guém soubesse? Uma tocaia? D. Ana secou com um paninho o suor que porejava em sua testa. O doce começava a adquirir uma cor avermelhada, de madeira boa, de terra viva, uma cor quente e bonita e uniforme.

— Milú, coloque os potes na pia. Gosto de guardar o doce quan­do ainda está quente. Vou separar uma parte e fazer goiabada também.

A negra arrumou diligentemente os potes um ao lado do outro.

  1. Ana pensou em mandar um pouco do doce até Viamão, para os filhos, para os sobrinhos e para Bento. Precisava mesmo que Manuel fosse lá, sondar Bento sobre uma venda de gado, e comprar uns man­timentos que estavam mui difíceis de serem encontrados. A guerra complicava tudo. Ela pensou em escrever um bilhete contando que Antônia estava acamada, coisa dos pulmões. Depois mudou de idéia. Não era bom preocupar Bento com coisas assim, que ele devia estar com a cabeça cheia de assuntos e problemas. Además, Antônia não gostaria. Antônia era muito reservada em tudo na vida, até em assun­tos de saúde. D. Ana mandaria o doce e pronto. Um pote bem cheio, o maior de todos.

Bento Gonçalves leu a mensagem que Garibaldi lhe mandara de Mostardas, onde estava trabalhando na construção de duas novas embarcações. Os barcos não ficariam prontos a tempo de serem usa­dos em São José do Norte. Mas a República não podia esperar mais. Teriam de atacar a vila sem os barcos, não havia outro jeito.

Estava cansado.

Cansado da guerra, daquela batalha sem fim, de ver tanto sangue, tantos mortos, tantos sonhos desperdiçados. Taquari fora demais para os seus brios. Eles precisavam daquela vitória, e haviam perdido. E, no entanto, poderiam ter vencido, poderiam ter derrubado o exército imperial, mesmo mais armado, maior, porque tinham fibra e tinham coragem. Aqueles homens lutavam até o fim, lutavam quando ouviam a sua voz, a voz de Netto, quando viam o estandarte da República er­guido sob o céu daquele Rio Grande que amavam como uma religião. Mas nada disso valia. Morriam os homens com sua coragem e sua crença, e tudo o que faziam era seguir em frente, por sobre os cadáveres, para a próxima última batalha da revolução. E vinham outros conse­lhos, outros planos, outros mortos. Gritos de dor e o desespero da fe­bre, da carne queimada, rasgada, podre. E outro silêncio de retirada sob o frio ou sob a chuva, e aquela fome cruel, aquela fome de comida, de calor e de paz.

Logo os outros chegarão. Netto, Lucas, Canabarro, Teixeira, Onofre. Logo as vozes altear-se-ão em discórdias, em planos diversos e vontades tão distantes quanto a noite e o dia, e ele terá de acalmar os ânimos, de silenciar as controvérsias, de serenar o tumulto daqueles gigantes feridos, feridos como ele. E pensar nos que ficaram para trás. Em João Manoel. E em Corte Real, que morreu faz duas semanas. A pior das mortes. A morte longe do campo de batalha, dos canhonaços, da luta. Ele morreu em missão, cercado por imperiais, dentro de um casebre de madeira, com um tiro no meio da testa. Afonso Corte Real tinha trinta anos. Bento pensara em casar Rosário com ele, certa vez. Ambos jovens, belos, ardentes. Mas isso fora antes da guerra. Agora Rosário estava louca, Corte Real estava morto. E ele, Bento Gonçalves da Silva, estava ali, naquela sala, sentindo a pontada de febre em sua testa como um agulha fina e cruel, sentindo a dor nas costas que já o acompanhava fazia algum tempo, como um presságio, e olhando suas mãos trêmulas e envelhecidas, tortas de tanto empunhar a espada. Enquanto tudo desaba ao redor de si, e Caetana envelhece na estân­cia, enquanto as filhas crescem e os filhos sangram na guerra, e o mun­do vai se descompondo lentamente, como uma aquarela sob a chuva.

 

                   Cadernos de Manuela

                   Pelotas, 14 de abril de 1900.

Mil cavaleiros marchando oito dias sob a chuva. O frio desse con­tinente lhes entra sob a pele como agulhas de gelo, o vento gruda no corpo os andrajos ensopados. A maioria tem os pés descalços, pisa na terra gélida que engole seus dedos como a boca ávida de um morto. O frio entrando pelas solas dos pés não é nada. Há uma força nesses ho­mens. Há uma centelha de coragem que arde no peito de mui poucas criaturas sob esse céu. Que ânima os move? Por qual sonho morreram tantos, nessa manobra e em outras da guerra? Qual o assombro que mantém viva a chama em seus olhos cansados, molhados de chuva, em sua carne faminta e emagrecida e mutilada?

Há alguma coisa nesses homens.

Algo de sobre-humano, de celeste, de bestial. Algo para além das fronteiras dessa carne. Vem do chão, viva energia que os alimenta a cada légua, que insufla em seus corpos a força para prosseguir contra todas as tempestades, a despeito do mais rigoroso dos invernos, esque­cendo todas as derrotas.

Os farroupilhas.

Faz muitos anos que esse sonho pereceu... Dos grandes heróis que conduziram aquela guerra, restam hoje jazigos e ossos, e, para muitos, restam o nada e solamente ele. Os que feneceram em meio à batalha, os mortos de espada, de adaga e de frio. Os generais engolidos pela noite, pelos tiros no escuro. Alguns tiveram um chão de seu, e orações e homenagens póstumas que, decerto, haveriam de recusar. Mas to­dos partiram. Até meu Giuseppe, tão longe, cansou de esperar por mim e se foi. Somente resto eu desse tempo, com estas memórias, com esse horror e todos esses mortos e essa chuva que fustiga meu rosto como se também eu houvesse estado lá.

Em São José do Norte.

Mil cavaleiros marchando oito dias sob a chuva. O mês de julho despejando sua fúria invernal sobre o pampa. A água caindo do céu como uma chibata, derreando a aba dos chapéus, e muito mais do que isso, vergando ombros e almas e esperanças, penetrando fundo naqueles corpos que avançam em silêncio de oração. Não se pode gastar ener­gia. Há muito chão pela frente. Barro, vento e frio. E há a fome que se enrodilha nas tripas como um gato velho e folgado. Mas não se pode reclamar da fome. Todos os que vão ali sabem das dificuldades que encontrarão pelo caminho. Precisam ser invulneráveis. Há a glória no final desse universo úmido e cruel e dilacerante. Há o mar. Em São José do Norte. E tudo o que eles precisam é do mar, de um porto. Por isso seguem em frente. Silenciosos como velhos fantasmas, sem recor­dar os homens que morreram na caminhada, de frio e de fome, ou que apenas desistiram para sempre dessa luta e desse pampa. Morreram brancos e gélidos e molhados. Não receberam cova. Esse chão de bar­ro que cospe os corpos e os devolve à luz baça desse mundo aquoso não os acolheu. Apenas ficaram para trás. Estão na memória dos com­panheiros, mas não receberam adeus. Não se pode desperdiçar energia.

Os dois canhões atolam constantemente. Os homens puxam, numa organização muda e exata, as únicas bocas de fogo que possuem para atacar a cidade. E seguem em frente. Por pouco tempo. Logo os ca­nhões ficarão outra vez presos na lama. Outra vez a massa humana ao redor deles, numa luta sem trégua contra o mundo aquoso e mineral. A chuva esconde o além como um manto de sonho. Os cavalos puxam, os homens gritam, a energia se consome, bem precioso, e os canhões permanecem inertes no atoleiro. Aquele homem alto e forte e de grandes silêncios e de palavras medidas que foi meu tio Bento Gonçalves da Silva dá a única ordem possível: enterrar os canhões. Atacarão São José do Norte sem as duas bocas de fogo. Os homens obedecem. E eles seguem pelos charcos. O Continente de São Pedro do Rio Gran­de é agora um imenso charco por onde avança o exército. Avança em direção a um sonho, mil homens que não existem mais e que sequer voltarão a existir algum dia. Feitos de outra cepa. Madeira extinta. Mil homens do ontem. E da glória. E da coragem.

Surgem as primeiras dunas. O mundo começa a ter um odor sali­no. Lá longe, em algum lugar, está o mar. Giuseppe Garibaldi não contém um sorriso (imagino seu rosto, onde a alegria se anuncia como um sol), chegará enfim ao seu elemento, verá as ondas, a fúria das ondas no mar revolto pelos ventos do inverno, verá o seu berço e passaporte: o mar.

A praia deserta parece congelada no tempo por aquele ar frio. O mar é uma massa cinzenta e furiosa que ruge e se desfaz na areia escu­ra, e cresce e diminui e torna a crescer num ritmo próprio que encanta e atormenta a maioria daqueles homens. São da terra. O pampa é o seu mar. Aquele volume de água misteriosa é cruel aos seus olhos de coxilhas de vastos horizontes de chão. Mas Giuseppe sorri. E seu sorri­so se perde na noite que desce do céu.

São José do Norte brilha sutilmente, ao longe. É uma guarnição bem defendida. E espera. Qual uma presa, ou, quem sabe, um caçador experiente. Bento Gonçalves comanda o avanço. O exército segue pela praia deserta. A vila, ao longe, ressona na noite invernal. Quase qui­nhentas casas onde se janta em frente ao fogo. E mil estômagos naque­la chuva, sem comida, quarenta quilômetros trilhados por dia.

Do lado oposto, entre a Lagoa e o mar, está Rio Grande, repleta de imperiais, com seus barcos bem equipados, seus canhões, com seus ho­mens alimentados e descansados. O exército farroupilha não tem bo­cas de fogo, está ensopado, exausto, faminto. Precisa contar com a surpresa do ataque. Com o mar revolto que impedirá a ajuda vinda de Rio Grande. O exército farroupilha precisa contar com a centelha que arde em cada um dos novecentos e noventa e sete homens (três morre­ram de frio no caminho) que ali, parados naquela praia, espreitam as muralhas de São José do Norte.

São José do Norte é provida de uma linha de trincheiras ao longo da qual se dispõem pequenos fortes, denominados baterias. Bento Gon­çalves da Silva e Antônio Netto reúnem os homens ao longo da praia. A muralha que protege a vila tem três metros de altura e precisará ser escalada. Os soldados seguram as adagas na boca, vão subindo pela muralha em completo silêncio, misturados com a noite, com o frio da noite, com a areia. Uns ajudam os outros, uma escada humana; dois, três, vinte farroupilhas pulam para o interior do grande pátio. São como gatos, como espectros. Um sentinela é degolado. Morre em silêncio, sem saber o que lhe sucedeu. Entre as baterias dois e três, outros sen­tinelas são colhidos no escuro. As adagas fazem seu laborioso traba­lho. O sangue, no chão de pedras, perde-se na negra madrugada salina.

Os portões são abertos.

Imagino Giuseppe, alto e forte, maltrapilho, talvez, depois da lon­ga jornada, com sua adaga entre os lábios, empurrando os portões por onde a cavalaria republicana avançará. Um animal de rapina, repleto daquela energia que lhe entra pelos pulmões e que o alimenta de mar. Aquela será uma grande vitória, pensa ele. Um presente para Anita, e para seu filho que vai nascer. Quinze gargantas degoladas, todo aque­le silêncio de perigos, e uma saída para o mar.

Bento Gonçalves arroja-se com sua cavalaria. Dirige-se ao largo da igreja. Garibaldi e seus homens conquistam a segunda bateria. Os farroupilhas começam a fazer fogo sobre o quartel do segundo bata­lhão dos caçadores de linha. A chuva recomeça com força redobrada, aguçando as ondas e fazendo resvalar as patas dos cavalos que avan­çam pela cidade.

A cavalaria toma as ruas, sacudindo suas lanças, gritando palavras que são engolidas pelo vento. Crescêncio, Teixeira, Netto e Bento Gonçalves são como baluartes, o vento não os verga, a chuva não os atinge, míticos centauros desse pampa. As luzes se apagam nas casas.

E os homens famintos, cansados, enregelados, rebentam as portas. Só querem comida. Um pedaço de pão, um caneco de vinho, um naco de carne. Não desejam usar de violência, mas são como aparições maltra­pilhas e assustadoras. A vila de São José do Norte se enche de pavor. Para além das muralhas, no mar, os navios imperiais aguardam.

Na terceira bateria, completamente tomada, alguém atiça o fogo na lareira. Lá fora, a chuva despenca do céu. Bento Gonçalves entra. A água escorre das suas vestes, desfaz seus cabelos e seu bigode, mas ele ainda é um gigante, calmo e decidido, e seus olhos ardem a mesma chama de convicção.

— O comandante Soares de Paiva e seus imperiais estão em uma casa da vila, todos reunidos. Lá, resistem. É preciso que se rendam.

Um dos homens sai outra vez para a noite chuvosa. O estômago vazio reclama, os pés estão enregelados dentro das botas arruinadas. Ele vai falar com o comandante das tropas imperiais. São José do Norte foi tomada. Graças ao temporal ou a despeito dele. Graças à coragem daqueles mil homens.

Soares de Paiva está gravemente ferido, mas não se rende. A cora­gem habita dos dois lados daquela guerra. O homem volta pelo mes­mo caminho. As ruas desertas são varridas pelo vento. Há cadáveres nas esquinas. O mar brame, lambendo com ânsia as paredes da gran­de muralha já tomada pelos republicanos.

E então o mundo é envolto num único e terrível rugido. Línguas de fogo se alçam para o céu, provocando a chuva e o vento e os raios. O terceiro forte explode como uma bomba gigantesca. Lá estavam as munições imperiais, lá agora arde o inferno. Ouvem-se gritos. Soldados farroupilhas são destroçados na explosão, outros arrastam, sob a chuva, seus corpos mutilados e queimados. A noite de repen­te se ilumina de chamas e de horror. Com essa imprevista mano­bra, os homens do Império conseguem grande estrago nas ordes farroupilhas.

Os chefes republicanos admiram a terrível fogueira. Há espanto e descrença no rosto de todos. Agora os imperiais encontram tempo para a reação. Da bateria número 4, a artilharia começa a sua carga. Alguns corpos caem nas ruas de pedra, caem sobre as poças, silenciosamente. É preciso esquecer o fortim e reagir. Esquecer os mortos, os mutila­dos, o cheiro de carne chamusqueada.

E então a chuva parece ceder. Há um momento de medo entre os republicanos. Se a chuva amainar, os navios do império que estão em Rio Grande poderão chegar ao porto e retomar a vila. Seria sangrenta e inútil batalha, e, depois, a derrota. Bento Gonçalves manda Giuseppe Garibaldi reorganizar a defesa das muralhas. É preciso estar prepara­do para o desembarque inimigo.

São duas e meia da madrugada. Do mar revolto, começam a che­gar os reforços imperiais. Rio Grande decide vencer a chuva e o ven­to. Os farroupilhas atiram das muralhas, mas os imperiais avançam sob o fogo cerrado. A luta recomeça, no forte, nas ruas de pedras, nos desvãos da muralha. Homem contra homem. Adagas e lanças. Alguns imperiais se entrincheiram nos quartéis. E a noite segue seu caminho de coisa violenta e cabal.

o dia amanhece num ritmo mui lento, quase temeroso, e uma luz baça e tristonha vence as nuvens negras que cobrem o céu. Ainda chove. As tropas vindas de Rio Grande começam a desembarcar em massa, venceram o canal que leva ao porto da vila. Os republicanos lutam nas muralhas, tentando impedir o acesso inimigo. E a luz do dia descortina esses rostos insones, fatigados, sujos e famintos. A batalha dura sete horas. E já não há muito a fazer. Perderam mais de duzentos soldados, estão exaustos da viagem e da luta, enquanto os imperiais descarregam centenas de homens na praia. Impossível detê-los por muito tempo.

Alguém diz que a única saída é pôr fogo na vila. Matar os soldados aquartelados. Destruir a cidade e garantir a sua posse. Bento Gonçal­ves engole o silêncio do amanhecer úmido como um gole de sanidade. Seu peito arde, o rosto está convulso, a tosse insiste em provocá-lo com sua persistência cruel. Ele reúne seus homens. Tem um rígido código de honra. Nem pela guerra, nem pela República, haverá de matar inocentes e civis. Destruir tantas casas, uma cidade inteira. Mesmo tendo viajado tantos dias sob a chuva e o frio, mesmo tendo visto seus ho­mens morrerem de fome, voarem na explosão do fortim, caírem na­quele mar de águas cinzentas. Não fez uma revolução para chegar a esse ponto.

Sob as ordens do grande general, os republicanos organizam sua retirada. Há coisas impossíveis de serem feitas por determinados ho­mens. Meu tio fizera uma guerra pela liberdade e pelos direitos dos estancieiros. Aceitara lutar contra um imperador que, na verdade, nunca chegara a odiar. Tinha feito muitas coisas que nunca ousara imaginar. Mas não mataria civis. Mesmo que perdesse aquela cidade, aquela batalha, a República inteira.

Há um descontentamento palpável no ar, que escorre como as go­tas de chuva que caem do céu, mas os homens se organizam para par­tir. Alguns não se conformam em desistir. Trilhar a longa volta. Mais famintos, mais cansados. Trazendo feridos e prisioneiros. E um aperto na alma.

 

Não há mais um porto para a República Rio-grandense. O dia exi­be suas luzes pálidas, enquanto o exército bate em retirada, trazendo os seus feridos. Os imperiais ainda os perseguem, mas eles avançam pelas dunas, pisam na areia endurecida pela chuva, respondem ao fogo e seguem pelo mesmo caminho da vinda. A chuva não desistiu de estorvá-los, vai molhando os rostos acabrunhados, vai dificultando ainda mais a retirada. Bento Gonçalves segue em seu cavalo. Está feri­do, e um filete de sangue escorre da sua testa alta, dilui-se sob a chuva. Seu rosto é uma máscara de pedra. Impossível perceber a febre que lhe varre as entranhas.

Talvez tenha sido a última grande derrota republicana, e seu últi­mo grande assalto. Durante muitos anos ainda se falou daquela noite fatídica, cataclísmica, onde a vitória transformou-se em derrota como num sopro, onde um homem fez uma escolha e pagou por ela com seus sonhos.

Mais de duzentos feridos agonizaram muitos dias sob a chuva e sob o frio daquele julho indizível; a maioria pereceu. Os que retornaram para Viamão e para São Simão trouxeram nos olhos uma amarga e eterna desilusão, e, na carne, a marca de muitos ferimentos e a magreza da fome.

Manuela.

 

  1. Antônia tomava a sopa que Maria Manuela ia lhe dando às colheradas. Não tinha fome, mas a irmã insistira. No entanto, sabia que a sua fraqueza precisava do calor daquele caldo; então fechara os olhos e recordara o tempo em que seu corpo tivera apetites, muitos anos antes, quando era uma moça, e a vida era apenas um caminho de sol a ser trilhado. Assim lograra a tarefa, deixando Maria Manuela mui satisfeita. Además, não era mentir que tivesse sentido um calorzito bom nas tripas, um aquentamento que lhe dera um certo prazer.

— Vosmecê quer mais alguma coisa?

— Não, Maria. Le agradeço. — A voz ainda titubeava um pouco. Maria Manuela sorriu.

— Entonces vou deixar que usted durma um pouco. — E saiu do quarto.

  1. Antônia recostou-se no travesseiro. Podia ver um sol fraco lá fora, um sol que secava a terra depois do inverno chuvoso. Chegara a pensar que seria o seu último. A pneumonia avassalara seu corpo, apa­gara a clareza de sua mente ágil, e tudo o que ela podia recordar da­queles últimos meses eram imagens baças e perdidas de horas inquietas em que a febre a fazia falar sandices, nas quais via os rostos das parentas e os rostos dos seus mortos com igual nitidez. Num desses momen­tos, Bento Gonçalves lhe surgira à cabeceira, mas tão pálido e tão magriço de carnes, com o olhar tristonho e tão fugidio, que ela não soubera reconhecer nele um vivente, e chegara a pensá-lo defunto.

Nesse dia, acordara aos gritos, e nem a insistência de Ana — que lhe garantia que Bento estava são, tinha perdido uma batalha, era verda­de, mas estava mui bem de saúde e mandara carta a Caetana — chega­ra a acalmar seus pavores.

Muitas coisas tinham sucedido desde o começo daquele inverno até ali, quando já a primavera floria os caminhos da estância, e era possí­vel enfeitar a casa com vasos de jasmins. Quem lhe dava as notícias da guerra era Ana, que sentava horas à sua cabeceira e, enquanto borda­va ou tricotava infatigavelmente, ia lhe contando as novidades das quais tinha ciência. Assim, D. Antônia ficara sabendo que o Império anis­tiara Bento Manuel, o tocaio de seu irmão, o traidor do Rio Grande, que agora estava em sua estância, no Alegrete, decerto mui contente da vida, tomando seu mate e calculando o lucro que obtivera com suas pilhagens, enquanto Bento Gonçalves ainda tentava erguer o fantas­ma da República Rio-grandense, a custo talvez das suas últimas forças.

Fora a irmã também quem lhe contara do nascimento do filho de Giuseppe Garibaldi, em setembro, um menino de nome Menotti, que Anita dera à luz na vila de São José das Mostardas. Ana dissera que o menino tinha nascido com uma cicatriz na fronte, talvez fruto de uma queda que a mãe sofrera numa das muitas batalhas das quais partici­para. D. Antônia pensou em Manuela, no peso que aquela notícia lhe traria. A sobrinha sofria em silêncio, fiel ao código das mulheres do pampa: ali não se choravam lágrimas vãs, não se lanhava o rosto; ali, vencia-se a vida dia após dia, com dignidade, fé e trabalho. Nunca mais Manuela tivera qualquer gesto tresloucado, como da vez em que cor­tara os cabelos à altura da nuca e ficara parecendo um menino um pouco crescido demais, nunca mais D. Antônia a vira pronunciar o nome do italiano, embora soubesse, com uma certeza tão inabalável que a febre não podia demover, o quanto a sobrinha ainda amava Garibaldi.

— Manuela ficou sabendo disso?

  1. Ana aquiesceu.

— Eu mesma le contei. Ela não derramou uma lágrima.

  1. Antônia recostou-se nos travesseiros e suspirou. Era bom que Manuela tivesse chorado em seu quarto por umas horas. A tristeza, quando bem administrada, era um bálsamo. Ela temia que Manuela endurecesse por dentro, cedo demais, como ela mesma. Força e dure­za eram coisas mui diversas.

—Manuela sofreu muito. É preciso que seja feliz mui logo, senão vai desacostumar-se com a alegria.

  1. Ana largou o bordado no colo.

— Todas nós sofremos muito, Antônia. Manuela vai esquecer tudo isso. É moça e bonita, vai casar, ter filhos e um bom marido.

— Talvez não case nunca. É teimosa o suficiente para amar o ita­liano pela vida inteira.

Disse isso e fechou os olhos. A noite entrava pela janela como um sopro fresco e silencioso. D. Antônia imaginou que em algum lugar, não muito longe dali, farrapos e caramurus matavam-se mutuamente. Sentiu um cheiro de sangue no ar, e um cheiro de cera de velas e de saudades mui antigas. Será que algum dia provaria outra vez daquele aroma de campo, livre de tristezas e horror, mas somente cheio de vento e de caminhos e de horizontes, aquele aroma que ela gostava de reter nos pulmões até o último instante?

 

Perpétua pegou a menina do chão, limpou suas mãozinhas rechonchu­das, beijou o seu rosto redondo, de pele mateada, os olhinhos escuros. Teresa lhe sorriu, e o seu sorriso formou duas covinhas na face bonita.

— Agora usted vai tomar um banho, minha filha. Seu vestido está escuro de sujeira.

Entregou a menina a Xica. A negra pegou Teresa nos braços e saiu para o quarto de banho cantarolando baixinho.

Perpétua sentou na cama de casal. A filha estava ficando parecida com Inácio, embora tivesse os mesmos olhos seus, e aquela pele tri­gueira, herança da família de sua mãe. Levou a mão ao ventre liso. Se fechasse os olhos por um instante, se buscasse em si a concentração total, talvez sentisse aquele átimo de vida que já se havia instalado em suas carnes. A semente. Era muito tênue ainda aquele sopro, mas toda a nova leveza do seu corpo, a languidez dos seus gestos, o sono que lhe surgia agora nas horas mais estranhas, não tendo descido o sangue do seu refúgio, tudo isso lhe dizia que sim, que ela trazia um outro filho de Inácio dentro de si.

O marido tinha estado na estância havia coisa de dois meses, no final do inverno, logo depois que seu pai retornara a Viamão, e que o general Netto havia retomado o cerco a Porto Alegre. Inácio viera fra­co, cansado da luta, da viagem que empreendera a São José do Norte junto com os outros. Viera desiludido da derrota; mas, ainda assim, depois de alguns dias de descanso, pudera estar com ela em seus bra­ços, e fora o amante terno e doce que sempre adorara. Por um par de dias, haviam revivido o casamento e seus prazeres. Nem a mãe nem as tias os incomodavam nos longos serões no quarto, enquanto as últi­mas chuvas do inverno aguavam o mundo lá fora. Depois, Inácio par­tira para São Gabriel. Perpétua ainda pudera guardar o seu cheiro e o seu gosto por muitos dias, como uma recordação vaga, até que tudo se perdeu na sucessão de tempo da estância, e a vida voltou a ser preen­chida pelos bordados, pelos livros, por Teresa, e pela espera.

Mas agora tinha dele aquele outro filho. Quando Inácio voltasse, teria a grande notícia. Ou, quem sabe, lhe escreveria uma carta con­tando sobre a criança. Ainda não se tinha decidido.

Saiu do quarto. Da cozinha, ao fundo, vinha o cheiro do bolo de milho no forno. Sentiu fome, uma fome urgente e nova. Sim, o filho em seu ven­tre já tinha seus anseios. Encontrou a mãe na saleta de leitura. A luz do sol entrava em cheio pelas janelas abertas. Caetana folheava um livro, desa­tentamente. Perpétua percebeu, pela sua fisionomia inquieta, que a mãe pensava naquela guerra, em alguma coisa que lhe afligia a alma.

Caetana notou a sua chegada.

— Perpétua, sente aqui, hija. Vamos hablar um pouco.

Caetana Joana Francisca Garcia da Silva tinha envelhecido naque­les anos. Os cabelos muito negros já não tinham o brilho de outrora, embora penteados com igual elegância, e pequenas rugas nasciam ao redor da sua boca bem desenhada. Havia um cansaço novo em toda a sua figura, um cansaço feito de silêncios e de orações sussurradas, e o riso perdera alguma coisa da sua mágica de cascata; agora ela ria man­samente, quase envergonhada das pequenas alegrias.

Perpétua sentou, segurou as mãos de Caetana. Eram um pouco frias, mãos de longos dedos de unhas bem-feitas.

— Não fique amuada, minha mãe. Tenho uma boa notícia... Vosmecê lembra de quando Inácio esteve aqui, na última vez?

— Dois meses atrás. No final de agosto. Ele me trouxe carta do seu pai.

Perpétua sorriu.

— Pois, quando partiu, Inácio me deixou esperando um filho. Faz uns dias que me faltam as regras. Mas solamente hoje, quando acordei com enjôos e tive vontades de comer laranja verde, foi que tive certeza.

Caetana abraçou a filha. Tinha os olhos úmidos.

— A vida segue, Perpétua. Usted traz a vida no seu ventre... — Beijou a testa da filha mais velha. — Por Dios, estoy mui contenta.

— Eu também, mãe. Eu também. Vai ser bom para todos nós. E para Teresa, que vai ganhar um irmãozito.

Ficaram as duas de mãos dadas. E era como se vissem, pelos corredores da casa, aquela nova criança a correr, espalhando alegria e esperança. Uma nova vida. Morriam muitos na guerra, mas a vida pros­seguia seu rumo. Caetana levou a mão ao ventre da filha.

— Aqui está o futuro, hija. O futuro de todos nós. Perpétua sentiu um nó na garganta.

— Inácio vai ficar feliz.

— E usted terá um motivo para esperar, Perpétua... Na gravidez, os dias têm uma doçura toda nova, e não importa que sejam longos. Además, se hay que se espere aqui todos esses anos, ao menos para usted a vida tem sido boa. Usted já tem um marido, tem Teresa, e ago­ra terá essa outra criança.

Perpétua deitou a cabeça no peito da mãe. Um calor morno e bom aqueceu-a. Era verdade. A despeito de toda aquela guerra, era uma mulher feliz.

— Vou acender uma vela em agradecimento para a Virgem — disse.

Caetana afagou-lhe os cabelos espessos e negros. Em silêncio, re­zou a sua própria oração. Aquela criança era uma bênção de Deus. Um aviso de que as coisas iriam melhorar. De que Bento e os seus fi­lhos voltariam logo para a casa.

 

Giuseppe Garibaldi entra na pequena casa de madeira, e seus passos deixam um rastro de água no chão. Há uma sala minúscula, com uma mesa, duas cadeiras, um candeeiro. Ele atravessa a sala e adentra o pequeno e silencioso quarto. Anita está sentada na cama, segurando Menotti em seus braços. Lá fora, no campo, cai uma chuvinha mansa de verão que entristece o final de tarde e que levanta do chão um chei­ro quente de terra.

Giuseppe Garibaldi senta na beirada da cama. Suas vestes estão rasgadas e sujas, as botas têm uma camada de barro a recobri-las. Ele deposita um embrulho aos pés da mulher.

Anita nota a umidade naqueles olhos de mel que sempre luzem uma alegria cheia de viço. Aperta mais o filho nos braços.

— O que sucedeu, Giuseppe?

Duas lágrimas descem pelo rosto do italiano, imiscuem-se na bar­ba fulva, mal aparada.

— Aqui estão as roupas para il nostro Menotti.

— Mas o que sucedeu com vosmecê durante a viagem? E essas lágrimas?

Giuseppe desvia os olhos para a pequena janela. Aprecia a chuva por alguns instantes.

— Encontrei tropas imperiais no caminho. Mas não sucedeu niente... Desviei por uma picada, tomei un altro camino, Anita. Con­segui comprar tutto que precisávamos.

A mulher acaricia os cabelos espessos, enroscando os dedos pelos cachos claros, empoeirados. Sente um aperto no peito ao ver a tristeza do seu homem. — Vou acender uma vela em agradecimento para a Virgem — disse.

Caetana afagou-lhe os cabelos espessos e negros. Em silêncio, re­zou a sua própria oração. Aquela criança era uma bênção de Deus. Um aviso de que as coisas iriam melhorar. De que Bento e os seus fi­lhos voltariam logo para a casa.

 

Giuseppe Garibaldi entra na pequena casa de madeira, e seus passos deixam um rastro de água no chão. Há uma sala minúscula, com uma mesa, duas cadeiras, um candeeiro. Ele atravessa a sala e adentra o pequeno e silencioso quarto. Anita está sentada na cama, segurando Menotti em seus braços. Lá fora, no campo, cai uma chuvinha mansa de verão que entristece o final de tarde e que levanta do chão um chei­ro quente de terra.

Giuseppe Garibaldi senta na beirada da cama. Suas vestes estão rasgadas e sujas, as botas têm uma camada de barro a recobri-las. Ele deposita um embrulho aos pés da mulher.

Anita nota a umidade naqueles olhos de mel que sempre luzem uma alegria cheia de viço. Aperta mais o filho nos braços.

— O que sucedeu, Giuseppe?

Duas lágrimas descem pelo rosto do italiano, imiscuem-se na bar­ba fulva, mal aparada.

— Aqui estão as roupas para il nostro Menotti.

— Mas o que sucedeu com vosmecê durante a viagem? E essas lágrimas?

Giuseppe desvia os olhos para a pequena janela. Aprecia a chuva por alguns instantes.

— Encontrei tropas imperiais no caminho. Mas não sucedeu niente... Desviei por uma picada, tomei un altro camino, Anita. Con­segui comprar tutto que precisávamos.

A mulher acaricia os cabelos espessos, enroscando os dedos pelos cachos claros, empoeirados. Sente um aperto no peito ao ver a tristeza do seu homem.

— Por que vosmecê chora?

Ele ergue os olhos. Há uma dor inexprimível naquelas retinas.

— Mataram Luigi Rossetti.

Anita é pega de surpresa. Sempre gostou do italiano sério e come­dido. Giuseppe dizia que Rosseti tinha abandonado o seminário, que quase se tornara padre.

— Não acredito...

— É verdade. Il mio amigo Rosseti morreu... Em Viamão. A cida­de foi atacada por Moringue. Rosseti comandou a defesa. O general Bento Gonçalves e os outros já tinham partido. Luigi foi ferido, per Dio, não quis se render. Moringue matou-o na hora. — Ficou em si­lêncio por um instante. Anita depositou Menotti no berço e voltou para o lado do marido. — Luigi foi o mais bravo homem que io conosci in questa vita, Anita. La Itália deveria ter orgulho dele per sempre.

— Quando isso aconteceu?

— Faz uns cinco dias.

Menotti geme em seu bercinho. É um menino claro, de olhos azuis, um pouco franzino. Anita vai até o berço e sossega o filho.

— E agora, Giuseppe?

— Questa república perdeu o seu brilho per me. Carniglia mor­reu afogado, Rosseti morreu com uma bala na cabeça. Só io estou vivo. Já é hora de partirmos para una altra vita, para longe di questo pampa. Não há niente que io possa fazer por aqui adesso, agora tutto é uma questão de política... Io já fiz tutto que podia, Anita.

Anita segura as mãos grandes, calosas, de pele clara, entre as suas. Estão trêmulas como duas pombas assustadas. Ela as leva aos lábios e beija aquelas palmas que conhece de cor. Aspira o cheiro daquele ho­mem que tanto ama. Nunca viu esse sofrimento nos olhos vivazes de Giuseppe, nunca viu essa angústia nos lábios crispados, de sorrisos amplos e palavras buliçosas.

Ficam ambos ali, à beira da cama, até que anoitece lá fora, até que o mundo não é mais do que uma mancha escura e silenciosa. A chuva fina continua caindo, mansamente. O ar vai impregnado de uma tristeza úmida e pegajosa que se cola à pele. Giuseppe perdeu o seu gran­de amigo. Não existem palavras bastantes para que ele possa expres­sar a sua dor. E não existem mais lágrimas. Giuseppe Garibaldi nunca soube chorar.

 

Em fins de novembro de 1840, o deputado Álvarez Machado é nomeado pelo Império o novo presidente da Província do Continente de São Pedro do Rio Grande. E o general João Paulo dos Santos Barreto re­cebe o cargo de comandante de armas do Exército imperial.

Incumbido de negociar a paz na província, Álvarez Machado es­creve ao general Bento Gonçalves, quer "chamar ao governo da pá­tria, e pelos meios de brandura, os brasileiros dissidentes". O Império oferece a paz mediante algumas condições: anistia para todos os en­volvidos no movimento; os empregados públicos permanecem em seus antigos cargos; os escravos não recebem a liberdade, mas serão com­prados pelo Exército imperial.

Bento Gonçalves reúne-se com os demais chefes políticos da Re­pública. As propostas do Imperador são consideradas infames pela maioria dos caudilhos gaúchos. A quebra da promessa de liberdade aos escravos é um acinte para o general Antônio Netto e outros abolicionistas como Teixeira Nunes e Lucas de Oliveira. Os ânimos se exaltam, as vozes se alteram. Não se chega a nenhum acordo sobre as propostas do Império.

Quando os homens se retiram do seu gabinete, já ao cair da noite e após acirradas discussões políticas, Bento Gonçalves toma da pena e escreve longa missiva a Álvarez Machado.

 

"Vossa Excia. se lembrará haver-lhe eu dito que ambicionava de cora­ção a paz, queria por isso mesmo que ela fosse sólida e durável; que para ser sólida e durável era mister que conviesse nisso a vontade geral dos meus concidadãos; que do contrário eu não era capaz de entrar em arran­jo algum; porque a minha defecção, e daqueles que por aqui existem, sem haver uma combinação geral, diminuiria a força numérica, mas não acabaria a luta, se alguns chefes de prestígio quisessem tenazes continuá-la; e então a conseqüência natural deste mau passo seria fazer-me eu vítima do ódio e do desprezo de ambos os partidos com pouca ou nenhuma uti­lidade de nossa pátria, porque a guerra se prolongaria como dantes.

Tudo o quanto acabo de responder é nascido do coração; não desejo ganhar tempo, porque estou firmemente resolvido a fazer a paz debaixo das bases que verbalmente indiquei a Vossa Excia. nas nossas anteriores conferências; nada peço que seja desonroso ou indigno do trono impe­rial. Somente pedimos o pagamento da nossa dívida pública, a liberdade dos escravos que estão a nosso serviço, a promessa de não serem recruta­dos para a primeira linha, nem constrangidos a servir na guarda nacional, senão nos postos que ora têm, os oficiais do nosso exército; eis as princi­pais concessões que tenho a exigir: elas são justas e razoáveis."

 

Bento Gonçalves acaba de escrever a carta, sela-a. Manda chamar um estafeta. Que a leve com urgência até as mãos do representante do Imperador.

 

A resposta de Álvarez Machado não tarda. Chega no dia seguinte. Bento Gonçalves lê a carta sem exibir qualquer expressão. O silêncio vai se gastando na sala como éter que evapora, enquanto o general farroupilha mastiga as palavras do seu opositor. Sentado na sua cadei­ra, ereto, os olhos negros turvos de sentimentos, sob o calor pasmante do começo da tarde, Bento Gonçalves da Silva deposita a carta sobre a mesa.

 

"O imperador do Brasil, que nunca aceitará condições de nação algu­ma, por mais rica e poderosa que seja, muito menos as receberá de uma parte dos seus súditos desviados da estrada da lei."

 

Essas últimas palavras ficam latejando por muitas horas na sua cabeça. Não haverá a paz. Ainda morrerão muitos, ainda se derrama­rá sangue, embora o povo já esteja cansado de tantas pelejas. Bento Gonçalves da Silva sente o cansaço como uma coisa palpável, há um mundo sobre suas costas exaustas, um mundo ensangüentado e hostil. A febre lhe vem outra vez, grácil como uma cobra, esquiva, devasta­dora. E ele sente saudades de casa, do abraço morno de Caetana, das longas e silenciosas tardes de inverno da estância.

 

                   1841

Mariana escuta o silêncio da casa. São duas horas da tarde de um janeiro abrasador. Lá fora, o sol inclemente castiga o pampa e faz os animais procurarem uma sombra que seja; aqui dentro, há essa temperatura amena e esse suave murmúrio de sono.

Estão todos recolhidos em seus quartos. Manuela dorme, estendi­da na cama, usando apenas a roupa branca, que quase se mistura à palescência morna da sua própria pele. Mariana levanta-se sem fazer ruído — já aprendeu essa arte de mover-se como sombra —, põe o vestido com gestos rápidos, calça as botinas. Sai do quarto mansamente.

Não há ninguém no corredor. Mariana sabe que D. Rosa não dorme a sesta, mas está na cozinha ajeitando alguma coisa, bordando, prepa­rando o bolo da tarde. D. Rosa sempre em movimento, com seus gestos ágeis e sua fala pouca. Mariana passa longe da cozinha e dos olhos aten­tos da governanta. Atravessa a sala. Os bordados esperam em seus ces­tos, os vasos de flores dormitam, há em tudo uma expectativa de que o dia prossiga, de que o calor diminua e a vida tome seu rumo outra vez.

Na rua, o ar abafado a envolve, umedece sua pele. Ela pouco se importa. Contorna a casa, vai pela sombra, quando sombra há, e se­gue para o galpão da charqueada. Sabe que agora os peões também descansam, aqui e acolá/sob a sombra das árvores, no quintal, no galpão dos animais, no curral. Essa não é a hora do trabalho nesse pampa assolado pelo verão. Há uma única pessoa na charqueada, e essa pes­soa é João.

Mariana conheceu João faz pouco mais de um mês. João não está na guerra, não é caramuru nem farrapo, é peão de estância e bom violeiro. Foi Manuel quem o trouxe. E D. Ana precisava de braços para o trabalho, pois muitos peões foram para a Campanha, estão lutando com os republicanos, estão morrendo por essas coxilhas afora. João tem vinte e três anos e é muito moço para morrer. Doma bem um ca­valo, é bom de prosas, o pessoal da estância tomou-se de afeto por ele. A noite, ele canta na beira do fogo. E é um homem bonito, alto, de olhos castanhos e cabelos negros. Há alguma coisa de índio nos seus olhos oblíquos, e ele sorri como um gato. Esse sorriso foi a primeira coisa que Mariana viu. A segunda foi o toque morno daqueles dedos rudes. Sim, João logo a abraçou, assim que se cruzaram numa tarde perto da sanga, quando Mariana tinha ido levar Ana Joaquina, a filhinha de Caetana, para tomar banho por lá. Ana Joaquina ficou brincando, quietinha, enquanto João e Mariana se abraçaram e se tocaram e se beijaram e venceram aquela fronteira misteriosa e escarpada. A meni­na não perguntou dos cabelos desgrenhados da prima, nem daquele rubor em seu rosto, nem reparou os botões mal arranjados do seu ves­tido um pouco sujo de terra.

Depois daquela tarde, viram-se amiúde. Na sanga, na charqueada, no capão. Mariana achou nos dias uma graça toda nova, e na solidão daquela estância, o terreno perfeito para ver florescer seu amor. Com­binavam seus encontros com a minúcia da paixão, esquivavam-se dos outros, mentiam, faziam render esses minutos roubados ao dia com uma ânsia semelhante à adoração. Mariana ganhou outro viço, encheu-se de alegrias, mas não contou desses amores a ninguém, nem à irmã, nem à prima.

A porta do galpão range levemente quando ela entra. Os braços de João surgem das sombras e contornam sua cintura. O sol penetra pe­las frestas da madeira, desenha arabescos no chão. Ela sorri, enquanto aquelas mãos famintas sobem para o seu colo, para o pescoço, para o rosto, e contornam sua boca, e desmancham as tranças do seu cabelo negro. Beijos salgados e urgentes.

— Ai, Mariana, que não faço mais nada... Solamente penso em usted. Minha Mariana.

A voz dele é um sussurro doce.

Faz calor. Ele ri seu sorriso de gato, a pele morena de sol os olhos cintilando aquele ardor de coisa jovem, de animal no cio. Mariana lambe o pescoço úmido, sente o gosto daquele homem com quem sonha toda noite, por quem espera, e anseia e arde. Não existe mais nada, lá fora, nem guerra, nem a casa, nem as tias, a mãe, as negras. Não existe nada e ela fará o que deseja, fará o que pede seu corpo trêmulo. Seguirá aquele instinto que lhe nasce das entranhas, que nunca esteve em ne­nhum livro de oração nem na boca de nenhuma mulher de respeito, mas que vibra, pede, ordena. A vida corre em suas veias como um rio caudaloso que busca o mar.

Deitam no chão. Há um cobertor velho estendido, ali se acomo­dam. As mãos de João são hábeis com os pequenos botões do vestido claro. A pele branca e perfumada dela vai surgindo como uma pétala, macia como uma pétala de flor mui formosa, e João se perde naquele caminho alvo, quase místico. Ele é feito de arestas, como ela é feita de maciez. Ambos buscam-se e desvendam-se e mergulham naquele ocea­no de toques e sensações. Lá fora, sob o sol do verão, o mundo dorme. Em sua cama fresca, sob o lençol que cheira a alfazema, Maria Manuela ressona tranqüilamente. Rezou antes da sesta, pediu pelas filhas, por Antônio, pelo fim da guerra que já dura tantos anos. Agora dorme. Talvez não sonhe, está num limbo leitoso e morno e aconchegante.

No galpão da charqueada, sob o corpo de João, Mariana solta seu primeiro grito de mulher. Depois fecha os olhos Desaguou no mar e está em paz.

 

As cartas chegavam em dias misteriosos, conforme o tempo e o favorecimento do exército republicano. Vinham pelas mãos de soldados, estafetas, ou de gente amiga que calhava estar com alguns dos homens da família, e depois atravessavam léguas com os envelopes bem guar­dados nas guaiacas. As cartas para a Estância da Barra continham tanto coisas pessoais e narrativas cotidianas, como planos e segredos de guer­ra, era preciso levá-las em segredo para que não caíssem em poder de nenhum caramuru.

A carta de Joaquim chegou pelas mãos de um negrinho da estân­cia de D. Antônia que tinha encontrado um oficial da República num bolicho de caminho. Todo mundo nas redondezas sabia que Nettinho era cria de casa da irmã do presidente. Por isso lhe deram a carta, e ele estava ali, todo cheio de si, naquela manhã azul de verão, para falar com a senhorita Manuela.

  1. Antônia, que fazia meses não voltava para a casa, quis ver o negrinho, perguntou como iam as cosas na estância, como estava a gente da cozinha, a peonada. Guardou ela mesma a carta e entregou-a para Manuela naquela mesma tarde, quando a sobrinha veio trazer a sua merenda.

— Joaquim tem paciência, minha filha — disse D. Antônia ao lhe estender o envelope amarfanhado. — Vosmecê devia levar isso em consideração. Paciência é coisa rara num homem.

Manuela sorriu e nada disse. Serviu a tia com carinho, elogiou sua melhora. Ficou ali algum tempo, lendo os jornais que tinham vindo da cidade, falando amenidades sobre o calor daquele verão e sobre os animais da estância.

Somente à noite, antes de se deitar, foi que abriu o envelope.

 

                 "Querida Manuela,

Escrevo esta carta recém-chegado a São Gabriel, onde viemos dar de­pois de penosa marcha por essa Campanha, passando trabalhos que nem ouso le contar nestas linhas. Faz cerca de um mês, levantamos o cerco a Porto Alegre, por ser ele insuficiente, já que a cidade vinha sendo abastecida por vias lacustres, a despeito de todos os nossos esforços. Durou quatro anos, este cerco, e imagino que agora tenha chegado ao seu verdadeiro final.

Muitas coisas mudaram nestes últimos tempos para a República, e decidido ficou que deveríamos nos deslocar de Viamão rumo a Cruz Alta, pois é na Campanha que estamos fortes e temos mais efetivos. A capital também foi transferida aqui para São Gabriel, onde cheguei ontem em companhia de meu pai e de algumas tropas. Para alcançar a Campanha, tivemos necessidade de atravessar a Serra e de cruzar com a coluna impe­rial de Labatut. Por sorte, escapamos dessa peleja que decerto nos seria mui desfavorável, devido às más condições de nossa artilharia e cavalaria. Choveu por boa parte do caminho nessa travessia de nove dias. Lucas de Oliveira seguiu à frente com suas tropas, logo depois veio Canabarro com o grosso dos nossos homens, depois viemos nós e o general Netto. Pelo caminho, devido às dificuldades e ao temor de que Labatut atacasse, muitos soldados desertaram, mas finalmente chegamos a vinte e sete de janeiro na cidade de Cruz Alta, onde foi possível alimentar os soldados e fabricar alguns novos uniformes, visto que os antigos estavam em mui desonroso estado e que alguns homens vinham nus da cintura para cima. Também nos foi possível tratar da cavalhada e engrossá-la um tanto.

De Cruz Alta, a maioria das tropas seguiu para Santa Maria, enquanto acompanhei meu pai e seus efetivos para esta vila de São Gabriel, donde le escrevo. Vosmecê deve perceber que mui agitada e difícil tem sido esta vida, a República enfrenta problemas financeiros e de moral, as tropas estão desenganadas, a guerra dura tempo por demás, e já o povo não suporta tanto sofrimento. Eu, como médico, passo dias tratando de feridos que quase nunca logram sobreviver, pois nossos remédios são escassos e tudo o mais nos falta, por vezes até a comida. Vejo em meu pai já o despedir de suas forças, e isso muito me faz sofrer. Não é mais o general Bento Gon­çalves aquele homem enérgico e sereno, mas um soldado alquebrado, ferido pelo tempo e pelas privações, enfraquecido por males de pulmão e por repetidos fracassos e pressões de todos os lados. Fico pensando o quanto ele ainda suportará em nome da causa e das gentes deste Rio Gran­de, pois sei que é apenas por eles que prossegue a luta. Amanhã, meu pai reassumirá a presidência desta república, que estava sendo exercida pelo vice-presidente, José Mariano de Matos. Rezo para que tenha forças sufi­cientes para esta tarefa, pois, às vezes, a política pode ser mais extenuan­te e cruel do que a batalha.

Quanto a mim, cara Manuela, vou cumprindo com o que de mim es­peram, ajudando meu pai e lutando nesta guerra, e a única coisa que me anima é pensar em vosmecê. Sei que o mesmo tempo que me alquebra também a faz sarar, e esse é o meu consolo. Todos esses meses que não nos vimos, desde aquela mui triste manhã em que vosmecê jurou seu amor eterno a Garibaldi, devem ter abrandado em sua alma esse sentimento. É por isso que rezo, para que vosmecê tenha visto sanar o seu magoado coração, e nele encontre espaço para querer bem a este seu fiel adorador.

Esteja em paz e pense com carinho no nosso futuro,

seu Joaquim.

São Gabriel, 13 de março de 1841."

 

Manuela deitou-se e ficou pensando nas palavras do primo. De que tinham valido todos aqueles anos? O Continente estava empobrecido, tantos dos seus tinham morrido, outros pereciam à mingua, e a guerra permanecia como uma nuvem de tempestade sobre a cabeça de todos.

E havia Giuseppe. Ela não tivera mais notícias dele. Ainda estaria no Rio Grande? E havia Joaquim. Aquela doçura e aquela atenção. A beleza morna e outonal que pouco podia com seu coração agreste. A carta não tinha lhe tocado a alma, nem feito tremer suas mãos, nem trazido lágrimas aos seus olhos. Não havia o vendaval que conhecera com Giuseppe. E ela seguiria pela estrada daqueles anos, tinha certe­za, tão sozinha como então, porque, depois de haver provado o sabor mundano do vento, não tinha mais como contentar-se com a brisa ou a calmaria.

 

  1. Antônia voltou para casa no final do mês de março. Encontrou a estância um pouco mais empobrecida do que a tinha deixado. Tropas da República haviam confiscado algumas cabeças de gado e uma par­te da cavalhada. Mas ela teve prazer em passear pelo laranjal florido. Haveria muita fruta no inverno, e ela sempre considerara isso um bom presságio para sua vida pessoal. Gostava de deixar as cascas de laran­ja queimando perto da lareira ou no fogão, gostava daquele cheiro cítrico e limpo espalhado pela casa, cheiro da sua infância.

Na convalescença, caminhou muitas tardes pelo laranjal. Era lá que pensava, entre as suas árvores. Já não tinha grandes esperanças em relação àquela guerra. Eram cinco anos de sofrimento. Tinham ganho muito pouco com aquilo tudo, mas ela sabia que por um sonho se ar­riscava muito. Gostava de pagar o preço. Mas agora, andando ali pela sua terra, solita, cansada e fraca da doença, descobria uma nova ver­dade. Tinham sofrido em vão. As contas da estância estavam difíceis, todo o Rio Grande havia empobrecido, e nas casas das pessoas era raro ver-se um jovem que fosse — os moços haviam ido para a batalha. E muitos sequer voltavam.

— A peleja é para os jovens — divagou. — Mas, e a morte?

Falava sozinha agora mais do que antes. Como a mãe. Mas falava verdades. Não havia qualquer prazer na velhice inquieta de uma guerra. Já não era mais moça... E nem Bento. Preocupava-se cada vez mais com Bento, sonhava com ele. Sonhos dúbios, dificultosos, tristes e opacos. Sabia que aqueles anos lhe tinham pesado mais do que a nin­guém. Os mortos não tinham sentido aquele tempo, estavam além dele; apenas os vivos, os que pelejavam nas coxilhas, que cavalgavam sob a chuva, seguravam a bandeira e a agonia da República, esses sim eram credores daquele sonho frustrado.

Tinha recebido carta de Bento. Lera-a junto com as outras, na noi­te anterior, antes de voltar para o Brejo. O irmão derramara palavras amargas no papel. Almejava a paz, mais do que nunca, pois aquela guerra não seria vencida. Estavam enfraquecidos, pobres e cansados. Bento estava cansado. Mas a paz não se acertava. Os acordos mor­riam sempre em conflitos por cláusulas e idéias e detalhes onde não se podia ceder pela honra ou pela palavra empenhada, ou ainda pelo or­gulho. Todos os negros do exército esperavam a liberdade. Mereciam sua liberdade, tinham pelejado e morrido por ela. Mas a liberdade não vinha.

  1. Antônia tomou o rumo da casa. O horizonte começava a tingir-se de rubro sobre as coxilhas ao longe. O rosto do irmão, assim como o vira num sonho, tomava sua mente. Estava magro, pálido, a barba embranquecida e a pele gasta. Bento Gonçalves, um escravo daquilo tudo. Ela pensou em voltar para a casa e ir direto ao escritório escre­ver a Bento. Que abandonasse a guerra. Fosse para o Uruguai, onde tinha terras, voltasse para Caetana, cedesse seu cargo para outro mais jovem, sedento de vitórias e de percalços. Mas D. Antônia não iria escrever aquela carta. Bento a queimaria como reles ofensa. E tinham aprendido, desde sempre, com a mãe, com o pai, com todas as histórias que ouviram desde pequenitos, que a honra era ir até o fim.

Entrou na cozinha. Uma das negras sovava um pão sobre a mesa de madeira gasta, marcada de facas.

— Preciso de um mate bem quente.

A negra abriu um sorriso alquebrado. As mãos brancas de farinha contrastavam com sua pele escura. Ela limpou-as no avental, foi aque­cer a água.

Lá fora, a tarde morria numa beleza de doer na alma. D. Antônia ten­tou imaginar de qual janela, de qual coxilha, campo, solidão ou tenda Bento Gonçalves apreciava aquele terrível e fantástico pôr-do-sol cor de sangue.

Maria Manuela despediu-se de D. Ana com um abraço. Usava um vestido escuro de viagem, os cabelos presos no alto da cabeça. Iria vi­sitar Rosário. Depois de tantos meses, veria a filha. A madre tinha es­crito autorizando a primeira visita da família. Mariana iria com ela. Estava um pouco amuada por deixar a estância durante três dias, mas havia se despedido de João naquela madrugada, e o gosto dos seus beijos ainda temperava sua boca.

  1. Ana recomendou que fossem pelas estradas maiores, que tives­sem cuidado e voltassem logo. Manuel as levaria até o arredores de Caçapava, onde ficava o convento. Manuel conhecia os caminhos e os códigos daquele pampa convulsionado pela guerra. Subiram na charrete. Fazia um dia bonito. Tinha chovido durante a noite, a estrada estaria menos poeirenta. Acenaram. Manuel incitou os dois cavalos, a carruagem começou a mover-se. Maria Manuela rezou uma breve ora­ção. Não sabia bem pelo quê.

A viagem foi tranqüila. No caminho, cruzaram com um piquete imperial, mas não foram incomodados e puderam seguir em frente. O outono começava a dar mostras da sua vinda, espalhando flores pelo campo, refrescando o ar. Mariana animou-se com a paisagem que se descortinava ante seus olhos. Fazia anos que não abandonava os arredores da estância, no máximo indo visitar D. Antônia. Come­çou a gostar da viagem. Maria Manuela ia quieta, pensando em Ro­sário.

— Como será que ela está?

— Quem? — perguntou Maria Manuela.

— A irmã. Será que sente solidão?

— Espero que esteja em paz. Solidão é coisa que todas nós senti­mos. Eu sinto solidão. Ana sente solidão. Caetana sente solidão. — Fitou a filha nos olhos: — Vosmecê se sente solita também?

Mariana pensou em negar. Já tinha sentido muita solidão durante aquela guerra. Um vazio dentro da alma, um vácuo. Mas agora não. Agora tinha João.

— Sinto — mentiu. Era bem melhor assim. — Mas aprendi a ma­nejá-la.

— Vosmecê é jovem, filha. Na mocidade, aprende-se a lidar com tudo. Por isso que tenho fé: Rosário há de estar bem. Há de ter passa­do aquele delírio.

Seguiram pela estrada até quase o anoitecer.

 

O convento era um prédio escuro, enclausurado entre altos muros, cercado de um jardim florido, tendo ao fundo uma horta grande e, ao longe, um capão onde os pássaros iam se esconder. A madre recebeu-as à porta com um solene aperto de mãos e poucas palavras. Mal en­traram no convento, Mariana pareceu sentir frio. Havia ali uma tristeza encruada de silêncios e de incenso. Ela pensou na irmã alegre, que sempre adorara os saraus e bailes. Teve pena. Podia fenecer ali, como uma rosa sob a geada. A mãe e a freira seguiam na frente, trilhando os corredores cheios de sombra, falando em Deus. Algumas noviças cruzaram por elas, de cabeça baixa, os pés mal tocando o chão. Qualquer ruído parecia ser uma espécie de pecado.

— Este é o quarto de Rosário — disse a madre. — Ela está na capela, mas já vem. Vosmecês entrem e esperem um instante.

Vinha uma brisa agradável pela janela. Era uma peça severa, sem adornos. Mariana olhou o Cristo preso à parede, ele tinha olhos de sofrimento. A madre retirou-se, avisando que ia buscar Rosário.

— Aqui é triste — disse Mariana. A mãe olhou-a com estranheza.

— É que já anoitece. Mas me pareceu um bom lugar. Aqui há paz. A guerra está mui longe destas paredes.

— A guerra e a vida, mãe. O tempo não passa por aqui.

Maria Manuela sentou na única cadeira do quarto. Tirou o chapéu de viagem.

— O tempo só traz mazelas, um dia vosmecê há de aprender isso, minha filha. E bom viver apartada dele.

Ficaram ambas em silêncio. Mariana pensou no quanto a mãe ti­nha mudado nos últimos anos, principalmente desde a morte do pai.

Rosário chegou logo depois. Usava um vestido escuro, os cabelos presos, parecia bem mais velha do que era. Os olhos brilharam de ale­gria quando ela viu as parentas, mas tinham agora um azul desbotado e fraco. Maria Manuela abraçou a filha e chorou.

— Vosmecê está bem? — Espiou o rosto bonito e bem-feito. — Está, logo se vê. Deus tem cuidado bem de vosmecê.

— Estou bem — respondeu Rosário. — Tenho rezado muito.

— A reza é um bálsamo — disse a madre, séria.

Mariana beijou e abraçou a irmã. Notou-lhe as mãos frias, mas nada disse. Ficaram todas ali por algum tempo, até que a madre convidasse Maria Manuela a ver o quarto que lhes tinha preparado por pousada. As duas mulheres mais velhas ganharam o corredor.

Mariana sentou na cama e chamou Rosário para o seu lado.

— Vosmecê está bem? Quero saber a verdade.

— Hay que se estar, Mariana. Aqui eu fico em paz.

— Mas não se sente só? Rosário abriu um sorriso.

— Não. Tenho Steban. — Chegou-se mais perto do rosto da irmã e sussurrou: — Ele veio comigo. Nos vemos toda noite... Vamos nos casar.

Mariana sentiu os olhos úmidos de lágrimas. Abraçou Rosário, que sorria de felicidade.

— Era bom que vosmecê voltasse para casa, Rosário. Sentimos a sua falta por lá. Poderíamos passear, andar de charrete, cantar... Tia Ana tocaria piano, faríamos um baile, quem sabe? — Acarinhou seus cabelos dourados. — Se vosmecê pedisse para a mãe e não falasse no Steban, ela a levaria de volta.

— Mas eu não quero voltar, Mariana. O Steban não gosta da es­tância. Ele tem medo do tio Bento... Desde o Uruguai, ele tem medo do tio. Aqui estamos melhor.

Mariana segurou as mãos da irmã entre as suas. Sentiu uma an­gústia no peito e uma vontade louca de voltar correndo para a casa e jogar-se no abraço morno de João.

 

O mês de maio trouxera as chuvas. Desde o amanhecer até a noite, o céu permanecia pesado e denso, recoberto de nuvens escuras e tristes. À noite, chovia invariavelmente.

Bento Gonçalves e os filhos estavam instalados numa casa baixa, com um pátio onde dormia uma grande figueira. As janelas dos quar­tos eram viradas para o poente, a sala era ampla e quase desprovida de móveis. João Congo e uma negrinha cuidavam de tudo. Os dias eram repletos de reuniões e planos e tentativas de desafogar os exércitos, de acabar com aquele impasse de tropas na Campanha. Precisavam de uma grande vitória, nem que fosse para regatear com o Império um acordo mais justo para a paz.

Na tardinha nublada e úmida, Bento tomava seu mate em frente ao fogo. Ultimamente, tossia muito. Joaquim se preocupava, mas ele di­zia não ser nada. Não contava das febres intermitentes, nem das noites maldormidas e cheias de sufocantes pesadelos. Joaquim acompanha­va o pai com certa angústia. Temia, mais do que a tosse, aquele olhar triste que se perdia no horizonte por muito tempo, aqueles olhos baços, sem sombra da energia de antigamente.

Bento Gonçalves remexeu as brasas na lareira. João Congo meteu a cara na porta.

— Hay uma visita para o senhor — disse o negro.

— Quem é?

— O italiano Garibaldi.

Bento Gonçalves acabou o mate. O italiano vinha palavrear com ele. Bento imaginava bem sobre o quê. Olhou o fogo crepitando na lareira, lembrou de quando Garibaldi quisera noivar com Manuela. Fora acertado dizer-lhe não. E, no entanto, mesmo agora, como acu­sar o italiano de qualquer atitude insensata? Ele mesmo, preso àquela guerra por todas as fibras do seu ser, o quanto não daria por um qui­nhão de paz?

— Manda ele entrar, Congo. E aqueça mais água.

Giuseppe Garibaldi podia ser imenso e delgado ao mesmo tempo. Havia uma força inerente nos seus gestos, no seu rosto, no brilho in­tenso dos seus olhos de âmbar. Bento Gonçalves apertou-lhe a mão calejada. Convidou-o a sentar perto do fogo. Fazia frio lá fora. Exami­nou o italiano, encontrando sinais de cansaço nele também. Estava mais magro, um tanto abatido. Talvez não fosse mais o leão de antigamente, do começo. Bento lembrou da travessia com os barcos pelo pampa. Aquele era um homem ímpar. No entanto, havia algo nele que o inco­modava, aquele ar de pássaro, talvez.

— Vim le dizer una cosa, senhor presidente. — Garibaldi falava baixo e pausadamente. — Una cosa irremediável.

— Pois diga, senhor Garibaldi.

— Io quero partir do Rio Grande. — Fez-se silêncio. Bento Gon­çalves encheu novamente a cuia, fez menção de passá-la ao italiano, que negou o mate. — Io quero ir para Montevidéu, cominciare una nuova vita. Com Anita e com il mio figlio. — Esperou algum comentário do homem moreno e sério, do maior general daquele Continente. Nada. Bento Gonçalves parecia aguardar o resto da sua confissão, do seu pedido, da sua renúncia, da sua deserção. Fosse o que fosse aqui­lo, Bento Gonçalves esperava. Então prosseguiu. — Io estou aqui há três anos. Fiz tutto por questa república. Agora o tempo é finito. A República Rio-grandense não precisa mais de mim, senhor presidente. Bento Gonçalves atiçou o fogo na lareira. Lá fora, a noite descia brandamente, com os primeiros pingos de chuva que cantavam no te­lhado. Ele se recostou na cadeira. O rosto do italiano tingia-se de co­res por causa das chamas da lareira.

— O senhor tem todo o direito de ir embora. Seguir sua vida. Já fez muito pelo Rio Grande.

— Desde que Rosseti morreu... — A voz do italiano faltou.

— Rosseti foi um grande homem, um homem sábio. E corajoso. A sala estava embebida naquela luz inconstante. Garibaldi ergueu-se. Parecia mais abatido do que na chegada.

— Preciso dar uma vida ai mio figlio, senhor presidente.

— Todos nós precisamos de uma vida, senhor Garibaldi. — Ergueu-se também. Estendeu-lhe a mão. — Vosmecê pode partir em paz. Le seremos gratos para sempre. Vosmecê fez muito pela nossa república.

O italiano aquiesceu com imensa tristeza. Era duro partir daquele sonho. Despediu-se. Avisou que seguiria para Montevidéu em uma semana. Tencionava viver uns tempos por lá. Bento Gonçalves acom­panhou-o até a porta.

— Vosmecê é credor da República Rio-grandense, senhor Garibaldi. Le peço que me encontre em dois dias. Temos algo a le dar. Decerto, é menos do que o merecido, mas é tudo o que podemos le oferecer.

Giuseppe Garibaldi saiu para a chuva rala. O cavalo esperava-o, amarrado sob a figueira. Bento Gonçalves voltou para dentro da casa. Acomodou-se em frente ao fogo outra vez. O corpo lhe doía. Não era mais o mesmo homem que fugira do Forte de São Marcelo a nado. Muita coisa havia mudado, coisas que iam além daquele corpo alque­brado pelas pelejas, coisas mais profundas, coisas que viviam na sua alma. A noite invernal derramava um desalento silencioso pelo pampa. Bento Gonçalves perdeu seus olhos nas chamas inquietas da lareira.

 

As seiscentas cabeças malhadas formavam um único corpo cheio de viço e energia sob o sol manso do inverno. Dois vaqueanos seguiriam com ele até a fronteira, onde começaria vida nova. Era uma manhã límpida de maio. O ar ainda estava impregnado da chuva noturna.

Garibaldi, em seu cavalo, passou em revista as reses. Tinha-se des­pedido havia pouco de Bento Gonçalves, que lhe desejara boa viagem e sorte. Bento Gonçalves era um homem sem sorte. Ao deixá-lo, Giuseppe encomendara-se aos seus próprios deuses, pedindo uma tra­vessia boa e uma chegada pacífica ao Uruguai. Venderia algumas ca­beças no caminho, negociaria em Montevidéu o restante da boiada. E então, Anita teria uma casa, Menotti teria um berço, ele teria a sua paz.

Os soldados despediram-se dele com emoção. Tinham lutado jun­tos, sofrido juntos, passado fome juntos. Garibaldi era respeitado e amado. Não aquele respeito frio, quase cruel, que se derramava dos olhos do presidente; um outro tipo de sentimento, nascido na irman­dade, unia-o àqueles homens.

Um vaqueano aproximou-se.

— Está tudo arreglado, Garibaldi. — Bene. Vamos partir.

Começaram a tocar a boiada. Garibaldi cavalgou até onde estava a carroça em que viajariam Anita e o filho. Anita lhe sorriu, e, como sem­pre, aquele sorriso doce, confiante, encheu-o de calma.

— Vamos embora, Anita?

Vamos — respondeu ela, com o filho no colo.

Ele saiu a galope. Havia um grupo de oficiais admirando a cena. Um deles acenou-lhe. Era Teixeira Nunes. Ele nunca esqueceria o capitão Teixeira Nunes e seus lanceiros negros. Dirigiu-se até eles. Teixeira cofiava os longos bigodes. Um sorriso insinuava-se em seu rosto moreno. Ao lado dele estava Joaquim.

— Buena suerte, Garibaldi.

— Adio, capitão Teixeira.

Os olhares dos dois homens se cruzaram por um momento. Garibaldi lembrou de Curitibanos e sorriu de todo aquele horror. Virou o cavalo. Antes de sair a galope, fitou Joaquim. O filho mais velho de Bento Gon­çalves olhava-o serenamente. Era um jovem bonito, garboso, com um rosto franco. Talvez estivesse um pouco pálido, magro demais. Giuseppe che­gou-se mais perto. Lembrou então da bela mulher castelhana que vivia na casa de D. Ana. Joaquim tinha algo da beleza da mãe.

— Cuide de Manuela... — pediu.

Joaquim pareceu surpreso, um instante. Depois aquiesceu.

Giuseppe Garibaldi sorriu tristemente. Esporeou o cavalo e saiu pelo campo. Deixava para trás aquele pampa misterioso, com seu ven­to de inverno e seus verões sufocantes, aquele pampa de homens cora­josos e de sonhos de liberdade. Deixava para trás alguns anos da sua vida, os melhores amigos e um amor tão delicado que nunca haveria de sobreviver sob o céu.

Respirou fundo. O ar frio entrou em seus pulmões como um bálsa­mo. Ele não olhou mais para trás. Os vaqueanos iam gritando, tangen­do a boiada. Giuseppe Garibaldi experimentou um sorriso de satisfação. Lançava seu barco ao mar, mais uma vez.

— Adio, Rio Grande, adio. Nunca se esqueceria do Continente.

 

Um sopro de luz muito pálida alcançou seus olhos. No sonho, abria uma janela. A luz foi invadindo o sonho, aumentando, a janela trans­formou-se em porta, em fogueira. Abriu os olhos, assustada. Sentiu o calor dele enroscado ao seu corpo, o braço forte sobre a sua cintura. O pelego envolvia a ambos como um abraço.

Mariana viu que amanhecia lá fora. Uma luz baça descia do céu muito claro. Pelas frestas da madeira, a luz entrava no galpão. Que horas seriam? O dia começava mui cedo na estância, e ela temeu ser vista ali, naquele pelego, enrolada ao abraço de João, de camisola, despenteada e pecado­ra. A mãe a mandaria ao convento, aquele lugar lúgubre, silencioso e morto.

— Ai, meu Deus! — Deu um pulo. Ao seu lado, João abriu os olhos, confuso. — João, já é dia! Preciso voltar para o meu quarto.

Ele sorriu ao vê-la, tio bonita, os cabelos negros soltos pelas cos­tas, o rosto corado. Tinham se encontrado ali no meio da madrugada. Ela chegara enrolada no xale, usando um poncho grosso sobre a cami­sola branca e delicada. Quando tocara em seu rosto, sentira-o frio e úmido do sereno. Um grande desejo de acalentá-la o envolvera. Pas­saram o resto daquela noite sob o pelego, mais felizes do que no céu.

— Vosmecê vai congelar aí, com essa roupa fina — disse ele, sor­rindo. — Devia pôr uma roupa.

Mariana obedeceu.

João também se vestiu. Colocou o pala por sobre o dorso nu, es­condendo a musculatura bem-feita. O olho negro dele grudou-se nela. Ele sorriu. O sorriso felino e sensual.

— Vou embora, João. Después nos falamos. Minha mãe deve es­tar acordando, e Manuela também.

— Usted devia contar tudo para ela. E sua irmã... Mais dia, me­nos dia, ela descobre mesmo. Usted quase nem dorme naquele quarto.

Mariana beijou-o. A boca úmida de saliva tinha um gosto de fruta, de coisa silvestre. Doía voltar para a casa. Tomar o café com as tias, rezar, bordar, folhear um livro por horas, enquanto só fazia pensar nele, nos momentos que tinham repartido, nos deliciosos pecados cometidos,

— Ainda não, João. — Enrolou-se no xale. — Minha mãe anda mui estranha. Se souber de nós, se desconfiar, há de trancar-me num convento até que esta maldita guerra finde. Vosmecê não é exatamen­te o marido que ela imagina para mim... Precisamos de tempo para contar a ela, quando estiver mais calma, mais serena. E eu não quero ir para um convento. Fui visitar Rosário, ela está definhando aos pou­cos. E vosmecê sabe, não gosto de rezas e ladainhas.

— Usted gosta é de mim. Dos meus carinhos.

Ele afagou-lhe os cabelos. Amava-a. Desde o primeiro momento, quando chegara na estância, trazido por Manuel, soubera que ali, na­quela terra, havia algo esperando por ele. Soubera como num sonho.

Na primeira noite, tirara a viola do saco e fizera uma música de amor. Ficara horas sob as estrelas, olhando o pampa silencioso, e pensando no amor. Nunca tinha amado antes. Tinha conhecido umas chinas, uma donzela mui hermosa, uma castelhana viúva, mas tudo coisa passagei­ra. Do amor mesmo, nunca vira a sombra. No dia seguinte, temprano, tinha cruzado com Mariana na sanga. Não haveria de esquecer o ar­dor que lhe varara o peito, as carnes, a alma inteira. Depois daquele dia, ansiava estar com ela por todos os minutos.

Mariana saiu. Ele olhou-a da pequena janela. Logo, Mariana esta­ria em seu quarto de moça rica, com as negras para servi-la, e a mãe a lamuriar-se por isto ou aquilo. Para ele, João Gutierrez, cabia a lida. O dia inteiro na faina, na labuta, trabalhando na estância, domando os potros. Sabia bem o seu lugar. Mas tinha se apaixonado pela moça rica, e viveria aquele amor, ali ou em qualquer outro pago. Sabia que D. Ana, que era boa e gentil com toda a peonada, se soubesse daqueles encon­tros, correria com ele da estância. Decerto, mandavam meter-lhe uma bala nas guampas para silenciar o causo. Depois voltariam às missas, aos bordados. Ele sabia. Mariana era sobrinha do general Bento Gon­çalves da Silva, o homem mais importante do Continente. E ele, ele não era nada. Filho de uma índia charrua com um uruguaio qualquer, criado naquele pampa, para cima e para baixo, sem teto nem família. Era bom com a cavalhada, conhecia o chão como a sua palma, mas não era estancieiro, nem fidalgo, nem cosa alguma que o valesse.

Acabou de vestir-se rapidamente. Um cusco começou a ganir ao lon­ge. Na rua, o ar frio despertou-o por completo. Ele foi para o galpão. To­maria o mate com os outros, depois iria ver os cavalos. Pensava em Mariana, na sua pele alva, na luz dos seus olhos negros de longas pestanas. Amava-a. Se quisessem separá-los, faria qualquer coisa. Um desatino. Mariana era sua mulher. Deus tinha decidido aquilo. E ele acreditava em Deus.

 

Pedro completou vinte e seis anos fazia dois dias. A mãe contava que tinha nascido numa noite fria de junho, primeira noite de junho, e que chorara até ficar roxo. Depois tinha conhecido o peito morno e cheio, e logo sossegara, acalentado. Apesar de ter sempre sido um menino sereno, aquele choro de fúria, o primeiro da sua vida, havia sido um aviso. Pedro era calmo por fora, mas que não cressem tanto na sua malacia; por dentro, habitava-o uma fúria inquieta e sutil.

 

Vai cavalgando na frente da coluna. Está indo encontrar Netto e seus homens, que estão acampados ao sul do Jacuí. A manhã é límpida e muito fria. O minuano soprou por três dias, agora o pampa está sere­no, apaziguado. Pedro sente a fome corroendo suas tripas com aquela ânsia discreta de sempre. Pensa nas saborosas mesas que D. Ana ser­ve em casa. Sente saudades da estância, de Pelotas, dos almoços inter­mináveis regados a bom vinho. Nunca foi um glutão. Mas agora, nessa estrada, enquanto avança, sofre por não ter comido todos os manjares, todos os churrascos, as pessegadas, os carreteiros que viu servirem na sua vida. A fome é um inseto cruel e insistente. A fome é como uma mosca.

Netto espera-o com novecentos homens. Traz consigo duzentos praças. Juntos, sob a ordem de Netto, vão atacar João Paulo, o gene­ral imperial. A Campanha é território farroupilha, ali se sentem con­fiantes. Talvez Canabarro una-se a eles, Pedro não sabe. Apenas foi designado para aquela manobra. Teixeira e seus lanceiros também rumam ao encontro de Netto. Pedro vai seguindo com seus homens. A coxilha se estende com todo o seu verdume, silenciosa e suave. A coxilha é como um peito de mulher, morno sob o sol invernal, bonito e fresco. Um acalanto. Pedro aspira o ar. Vai juntar-se a Netto. Tem vinte e seis anos. Quando nasceu, chorou muito; a mãe, D. Ana Joaquina da Sil­va Santos, sempre contou esse causo.

 

  1. Ana pega a vela entre as palmas das mãos como quem segura uma espada que vai lhe salvar a vida. Fecha os olhos e reza. Tem intimidades com a Virgem. Todos os dias, por três vezes, encosta-se ao oratório com sua vela na mão, faz os mesmos pedidos, põe o mesmo fervor nas suas antigas palavras. A Virgem já a conhece de muito tempo. Viu-a chorar a morte de Paulo, amparou-a quando o baixaram à cova. Ajudou-a a adormecer na primeira noite da sua viuvez. A Virgem com­preende os percalços daquela revolução, os sofrimentos femininos, a angústia costurada com a linha de bordados, a cruel sina daquela es­pera.
  2. Ana acomoda a vela no oratório. A chama se eleva por um mo­mento, altaneira e inquieta. "Tem uma corrente de vento por aqui", pensa. Procura por janelas abertas, está tudo bem fechado. Faz frio lá fora, e as negras têm ordem de manter a casa aquecida. As crianças facilmente ficam resfriadas nesses invernos úmidos do pampa gaúcho. A vela continua a subir e descer a sua chama. Será que a Virgem a ouve? Tem algo a dizer-lhe? Será? Mas a vela não está firme, bem assentada. Parece que vai se apagar a qualquer momento, cair do al­tar, desgostar a Virgem com seu tombo de vela inquieta. D. Ana segu­ra-a. Talvez seja o caso de derreter mais cera, prendê-la melhor, mais ao canto, pertinho da santa.

— Vou acomodar bem tudo isto, minha Virgem.

  1. Ana segura a vela acesa com a mão esquerda. Com a direita, faz outra vez o sinal-da-cruz. Uma porta bate em algum lugar da casa. Um grito de mulher. D. Ana toma um susto, a vela cai das suas mãos, vai estatelar-se sobre o tapete. D. Ana não acredita. Em dois segundos, ante seus olhos, o tapete pega fogo, vai surgindo um buraco na trama de lã, as chamas se alteiam num vermelho mais intenso. Agora é D. Ana quem grita. Grita desesperadamente, tapa o rosto. Treme. Não quer ver o que está dentro daquelas chamas.

Zefina e Caetana acodem. D. Ana está ajoelhada no chão, o tapete ardendo aos seus pés, exalando um cheiro forte de fumaça e de lã chamusqueada.

— Cruz em credo!

Zefina traz uma vassoura, bate meia dúzia de vezes no tapete, até que o fogo cesse. Fica um cheiro acre no ar. D. Ana está chorando baixinho. A Virgem parece olhá-la com certa pena; dos seus olhos estáticos vem um brilho baço de tinta antiga. Caetana ajoelha-se ao lado da cunhada.

— O que sucedeu com vosmecê?

  1. Ana tem os olhos esbugalhados de horror.

— Um susto. Ouvi o grito e então... Caetana afaga-lhe as costas rígidas.

— O grito? Não foi nada, Ana. Milú derrubou uma panela de charque no chão da cozinha. Vosmecê sabe que é uma negra mui assustadiça, a Milú.

  1. Ana fita Caetana nos olhos. Está pálida.

— Quando a vela caiu, eu vi. Eu vi muito bem visto, como se fosse aqui na minha frente, Caetana.

— Viu o quê?

— O Pedro. — As lágrimas escorrem pelo seu rosto. — Com uma lança atravessada no meio do corpo.

Caetana segura as mãos da cunhada entre as suas. Estão úmidas. Não sabe o que lhe dizer. Zefina está recolhendo o tapete queimado, e dentro dos seus olhos brilha a chama do medo. D. Ana começa a chorar baixi­nho, como se fosse uma menininha assustada pega em alguma falta terrível.

 

Quando a notícia chegou na Estância da Barra, D. Antônia também estava lá. Tinha ido ver a irmã, muito combalida e nervosa depois do tal susto, da premonição. D. Antônia não acreditava em muitas coisas; para ela, a vida era uma sucessão de acontecimentos previsíveis e mun­danos —, bastava manter a calma e a ordem, que a maioria das coisas voltava aos seus eixos. Mas tinha medo de noites ventosas e acredita­va em premonições de mãe.

  1. Antônia estava ao lado da cama de D. Ana, lendo para ela um trecho de um romance qualquer, apenas para encher o tempo e dis­traí-la daquele pânico, quando ouviram o galope de um animal che­gando perto da casa. A voz de Zé Pedra cumprimentou o cavaleiro, que falava baixo. D. Antônia ouviu o negro responder, solícito:

— O senhor aguarde. Vou buscar uma das patroas.

  1. Antônia ergueu-se rapidamente. Os olhos de Ana estavam pre­sos nela, assustados.

— Vosmecê fique aí, que eu já venho — disse.

Na sala, aquecido pelo fogo, o homem contou sua história. D. Antônia ouviu cada palavra como uma punhalada em sua carne. Mais ao longe, perto da porta, Caetana chorava mansamente. Pedro tinha sido morto para os lados do Jacuí, num entrevero com um piquete imperial. O cor­po fora levado para o general Netto, que lhe tinha dado uma cova digna. O homem acabou de narrar o sucedido, estava triste e acabrunhado. Não gostava de ser mensageiro de mortes, não era coisa de bom agouro. Aca­bou de falar, entregou para D. Antônia um embrulho.

— São as coisas dele — disse.

  1. Antônia segurou o pacote junto ao peito. Seus olhos estavam secos.

— Como ele morreu?

O homem abaixou o rosto. Era a sua obrigação informar a família. O general Antônio Netto tinha dado ordens expressas.

— Varado por uma lança.

 

Manuela entra no quarto. Faz pouco que lhe deram a notícia da morte do primo. Não chora, tudo o que sente é um vazio dentro da alma, uma sensação de estar vivendo num mundo à parte, como que submersa num aquário aonde tudo chega abafado e disforme, onde a falta de nitidez é quase um consolo que ameniza todas as dores. Viu D. Ana chorando, desgrenhada, abraçada à sua mãe. Não achou coragem de olhar a tia nos olhos.

Mariana dorme, embora ainda não seja a hora do jantar. Ultima­mente, Mariana tem dormido demais. Manuela sabe o motivo dessa sonolência. Já viu em seus próprios olhos aquele brilho, aquela lumines­cência de alegria mal disfarçada, já surpreendeu Mariana sorrindo de misteriosas lembranças, lembranças que ela acalenta como quem abre um baú de preciosidades e fica a admirar seu tesouro. Manuela sabe que tudo isso é o amor. E já viu João, com seus olhos indiáticos, se­guir os passos de Mariana, bebendo as suas súbitas aparições. Mas Manuela não dirá nada. Nunca contou à irmã das vezes em que, desperta no meio da madrugada por causa dos seus sonhos com Giuseppe, o coração aos saltos dentro do peito, procurara o consolo da presença de Mariana e encontrara somente a sua cama vazia.

— Mariana — chama baixinho.

A luz do candelabro aumenta a sombra das coisas. Mariana abre os olhos. Estranha a fisionomia da outra, senta na cama.

— Aconteceu alguma coisa? — Há tensão na sua voz.

Agora sempre é aquele medo. Medo de que descubram seu amor, medo de que a tenham visto, numa noite qualquer, fazer o caminho que a leva até João.

— Aconteceu. Uma coisa horrível. — Manuela senta ao seu lado na cama. A fala é doce, quando diz: — Mataram o Pedro. Lá para os lados do Jacuí.

— Ai, meu Deus... — Mariana sente as lágrimas saltando-lhe dos olhos. Sempre brincou com Pedro, desde pequetita. Gostavam de fu­gir para o laranjal da tia Antônia, ficavam lá até se enfararem de chu­par laranjas. Depois, juntos, reclamavam da dor de barriga, tomavam chá de losna, fazendo caretas e morrendo de rir. — Ai, meu Deus... Quando foi isso?

— Acho que foi ontem. O general Netto mandou avisar, parece que estavam juntos ou coisa parecida. Tia Ana está um trapo de gente, dá pena de se ver.

Mariana salta da cama, anda pelo quarto. A noite lá fora não tem a luz das estrelas. Seu corpo lateja de dor e de angústia. É como se estivesse subitamente doente de alguma coisa incurável... Aquela guerra está indo longe demais, e por quê? O primo, tão moço, boni­to, morreu por quê? É um pesadelo que nunca cessa. Um dia, teme que João também vá para a guerra. Todos eles vão, mais cedo ou mais tarde. A irmã está sentada na cama, olhando o nada. Já não tem mais lágrimas para chorar. Mas ela ainda as tem, um manancial den­tro do peito. Não vai derramá-las todas, porém. Vai tomar um ba­nho, mandar que uma negra encha a banheira, esfregue suas costas, tire da sua pele aquele sangue invisível, aquele cheiro de morte. Vai jantar qualquer coisa, deitar na cama e esperar uma nova madruga­da. Quer sentir-se viva outra vez.

 

Naquela noite, D. Ana ergueu-se da cama e foi até o corredor. Seus olhos estavam inchados do choro. O que mais impressionava era o tre­mor das suas mãos. Era como se tivesse envelhecido muitos anos nas últimas horas. D. Antônia dormira no seu quarto, ao lado da sua cama, para atendê-la em qualquer coisa, mas não tinha percebido a sua saí­da. D. Ana sabia pisar como um fantasma.

A casa estava às escuras. Ela caminhou até o oratório. Duas velas ardiam em frente à Virgem. Uma raiva surda crescia em seu peito. Queria alimentar aquela raiva, queria que a raiva a consumisse intei­ra, a levasse daquela vida, daquela dor sem remédio, daquele pesadelo onde lhe tinham furtado o seu menino, o seu Pedrinho.

  1. Ana tocou a imagem, sentindo a frieza da porcelana na ponta dos seus dedos.

— A Senhora foi mãe. Não podia ter feito isso comigo. Não é jus­to... — As lágrimas escorriam pelo seu rosto. Ela falava baixo. — A Senhora também perdeu um filho.

Sem pensar, agarrou a santa e jogou-a ao chão. A peça de porcela­na quebrou em muitos pedaços. D. Ana ficou olhando, subitamente apavorada. Um caco cortou-lhe o pé, de onde começou a escorrer um filete de sangue. D. Antônia apareceu no corredor, enrolada no xale. Seu rosto estava sem expressão.

— Ela não podia ter feito isso comigo — gemeu D. Ana, olhando para a irmã. — Pedro tinha completado vinte e seis anos. Eu tricotei um poncho para ele. Nem tive tempo de le mandar. Ele devia estar sentindo frio, pobrezito...

 

                   Cadernos de Manuela

                   Pelotas, 14 de maio de 1848.

A morte de Pedro marcou o inverno de 1841. D. Ana passou mui­tos dias sem sair do leito, acamada de pesar, só melhorou com a chega­da de José, em princípio do mês de julho. José chegou barbudo e esquálido, mancando um pouco da perna direita, e cheio de silêncios contemplativos. Entrou na casa, encontrou a mãe em sua cama, caiu aos pés dela e chorou como um menino. Vendo aquela fraqueza no fi­lho mais velho, alguma coisa ressuscitou em D. Ana, a fibra de uma força mui antiga reacendeu a chama da sua essência maternal, e ela então sentou, tomou a cabeça de José em seu colo e, buscando forças que já considerava extintas, sussurrou-lhe segredos por muito tempo, ora sorrindo, ora chorando junto com ele, mas sempre exortando-o a prosseguir a vida. Depois disso, ergueu-se da cama pela primeira vez em muitos dias, mandou que lhe preparassem um banho, e foi ela mes­ma para a cozinha fazer uma buena refeição para o primogênito que voltava da guerra.

Mas D. Ana nunca mais foi a mesma. Seus momentos de força pas­saram a ser intercalados por dias de profunda tristeza, quando as ru­gas do seu rosto se acentuavam como num sopro, e toda ela assumia ares alquebrados, as costas curvas, as mãos trêmulas, a pele amarela­da como as folhas de um antigo caderno. A verdade é que envelhecía­mos por dentro e por fora, cada uma de nós saboreando suas dores e tristezas e vazios. O Rio Grande envelhecia. Já não se viam os moços cavalgando pelas estradas, já não havia fandangos, churrascos, festas, quermesses. Batizavam-se as crianças mui discretamente, e quando alguém casava, era sob a sombra do medo de que a viuvez viesse ceifar aquele amor; a verdade é que não se vivia mais como antes.

Mas, apesar dessa tristeza toda, a engrenagem das coisas continuava girando. Por vezes, éramos quase felizes, felizes de pequenas alegrias, de minúsculas e sutis emoções... Noutras raras ocasiões, havia a gran­de felicidade. Tentávamos apreciá-la como a uma fina iguaria, disten­dendo-a até o limite do possível, dilatando-a até que se evaporasse como um perfume. Foi assim quando nasceu a segunda filha de Perpétua, em fins de julho. Inácio estava conosco então. E aquele nascimento renovava-nos, purgava a casa da morte de Pedro.

Perpétua Inácia de Oliveira Guimarães veio ao mundo numa ma­nhãzinha tímida de inverno, pesando quatro quilos, e com um choro de tal monta que a todos nós ocorreu: a menina tinha herdado a força dos Gonçalves da Silva. Recebeu o mesmo nome da mãe e da bisavó, porque desde sempre assim tinha desejado minha prima. Inácio tomou a filhinha nos braços assim que a parteira o permitiu, e havia em seu rosto de pai tanta luz, que era como se a vida ainda tivesse uma chance, e aquilo tudo pudesse enfim terminar para nós todos. Como se pudés­semos retroceder no tempo, apagando todas as perdas, ficando apenas com as alegrias, como a chegada da pequena Perpétua.

Porém, aquele inverno ainda me reservava surpresas. Certa tarde, encontrando-me à beira do fogo a tricotar, Inácio sentou ao meu lado e começou a entabular um assunto. A esposa e a filha dormiam no quarto, tecendo juntas a fina renda daqueles primeiros dias de exis­tência em comum, o resto das mulheres da casa estava na cozinha, onde agora ficavam freqüentemente, aquecidas pelo calor do fogão a lenha, como se esperassem a chegada dos seus homens a qualquer momento, para o jantar, com a mesa posta. Eu apreciava Inácio, um homem sere­no e gentil, culto. Por vezes, falávamos de livros que já tínhamos lido, falávamos da guerra e dos seus rumos. Naquela tarde, ele trazia consigo um romance. Acomodou-se na cadeira ao meu lado, folheou um pouco as páginas do volume de capa escura, e por fim me disse:

— Tenho algo a le contar, Manuela. Apesar de tudo, acho justo que vosmecê saiba.

Ergui meus olhos do trabalho.

— Sucedeu alguma coisa?

— Giuseppe Garibaldi foi embora.

Ah, ainda aquela dor sabia me ferir como na primeira das vezes. Adaga mui afiada que penetrava minha carne até me varar a alma. Senti o fogo invadir meu rosto, acossar-me com sua fome de predador. Não que me envergonhasse daquele amor (quem, algum dia, se envergo­nharia do verdadeiro amor?), mas a agudeza daquele abandono sem adeus me desconcertava. Não que eu esperasse outra coisa de Giuseppe: partira exatamente como me chegara, sem avisos nem razões. Era um homem de marés, e solamente assim devia ser compreendido.

Inácio observava as chamas na lareira, gentilmente, não querendo compartir da minha tristeza e da minha confusão.

— Giuseppe foi embora como? Para onde?

— Partiu em maio, Manuela. Com a mulher e o filho pequeno. Para o Uruguai. Abandonou a revolução. — Suspirou. — Não o condeno. Fez muito pelo Rio Grande. E as coisas mudaram por aqui. Já não lutamos mais por ideais, mas apenas por uma paz honrosa. E o italiano tinha ideais.

Giuseppe partira. Seguia a viagem da sua vida. Meu sonho, enfim, morria também. Giuseppe Garibaldi não mais pisava o solo do Rio Grande. Tinha regressado ao mundo. Batera asas. Deixara de ser meu para sempre. Transcendera. Evolara-se. Havia ainda um mundo intei­ro esperando por ele, embora, nesse tempo, nenhum de nós pudesse saber disso.

E o silêncio das tardes daquele inverno de adeuses nunca mais me abandonou.

Manuela.

 

O frio da noite açoitou-a quando ela abriu o reposteiro e fitou a escuridão de agosto. A chuva caía pesada e ritmadamente do céu. O convento estava silencioso, mergulhado naquela hora morta, antes das matinas. Rosário procurou-o com seus olhos treinados. Da janela, mal podia divisar a pequena cerca que delimitava a horta. Forçou os olhos. Ao longe, a cruz de madeira do cemitério brilhava parcamente. Um bri­lho perolado. Steban estava lá, tinha certeza. A premência de vê-lo asso­lou-a com a fúria de sempre. Steban gostava das lápides simples das religiosas, com suas inscrições em latim, com as imagens dos seus san­tos, com sua pobreza austera. Rosário não se atentou à chuva nem ao frio da noite invernal. Steban era tudo o que importava. Como daquela vez, na estância, quando despertara no meio da madrugada, sabendo que ele a esperava perto do curral. Correra para estar com ele, e Regente, o cão de Manuela, a seguira com os olhos arregalados. Regente latira muito ao ver Steban, ganira para a noite. E Steban sentira tanta tristeza com a incompreensão do animal ante a sua frágil existência de criatura já fin­da, sem carne, sem corpo, que se pusera a chorar. Rosário lembrava-se bem da raiva que sentira. Gostava do cão. Brincara com ele muitas ve­zes; mas por Steban, para vingá-lo, é que tomara da pequena adaga que trazia num bolso da capa e degolara-o. Nunca havia feito semelhante coisa em sua vida, e surpreendentemente agira de modo exato, o corte perfeito, a mão firme. O cão morrera em silêncio. Depois de tudo acaba­do, o pobre Regente estirado no chão, sentira pena outra vez. Talvez tivesse sido desnecessário tal ato. Mas Steban sorrira. Steban lhe agra­decera. Steban apreciava a arte da degola. E ela se apaziguara.

Deixou para trás as lembranças, vestiu a capa de lã, calçou as botinas. Precisava apressar-se. Abriu a porta do quarto, o corredor estava deserto. Saiu pisando leve, como se fosse ela mesma o fantasma lá de fora, tão semelhantes eram ambos. Trilhou os caminhos estrei­tos, passou pela capela, pelas salas de trabalho, entrou na cozinha ampla, silenciosa, ainda cheirando a sopa. Destravou a tranca de ferro e saiu para a noite. A chuva era fria e tinha gosto de coisas antigas. Seus pés chapinhavam na terra ensopada, enquanto ela seguia, con­tornando os canteiros da horta, até chegar ao pequeno cemitério. A cruz de madeira agora já não brilhava, era apenas madeira quase ne­gra, rústica, cravada ao chão, elevando-se ao céu. Mas Steban estava ali. Sorrindo. Steban com seu uniforme bem composto, a bandagem em torno da testa, a ferida eterna que agora quase não sangrava mais.

— Steban...

Ele avançou um passo. Rosário viu seu rosto bonito, os olhos ar­dentes daquela febre, talvez de amor.

— Abrázame, Rosário.

Encostou-se nele. Sentiu aquele toque frio, mágico e gelatinoso, A chuva continuava a cair.

— Steban, quando ficaremos juntos de verdade? Quando nos ca­saremos? Não suporto mais essa espera. Ao chegar aqui, no convento, achei que teria alguma paz. Mas não... Só tenho paz ao seu lado.

Ele sorriu. Um riso opaco. Ele se afastou um pouco. Agora sua tes­ta sangrava outra vez.

— Hay tiempo. La hora llegará, Rosário...

E foi se esfumando por entre os pingos de chuva, até que desapa­receu completamente. Rosário ficou sozinha na noite, enquanto o frio penetrava pelas fibras da sua capa de lã e alcançava sua carne.

 

A primavera chegou em meados de setembro, com as primeiras flores. As noites ainda eram frias, mas durante o dia o sol começava a tornar agradável os passeios pela estância. Manuela e Mariana saíam a cavalo por horas, apreciavam aquele azul lavado do céu pampeano, aquelas campinas extensas, rasas e verdejantes, que acordavam do inverno com uma beleza renovada. A guerra prosseguia. Um piquete imperial estive­ra muito perto dali, mas respeitara as terras do general republicano, de modo que seguira para a Campanha sem causar transtornos à estância nem confiscar animais ou homens. Na Estância da Barra, os vaqueanos estavam armados e prontos para a peleja, caso algum imperial ou desertor aparecesse por ali disposto a causar confusão. Por isso, as mulheres se sentiam seguras. Por isso, Mariana e Manuela jamais abandonavam os limites da propriedade desacompanhadas. Tinham ouvido muitas histó­rias de mulheres desonradas por soldados, grupos deles, que acabavam loucas ou iam viver em algum convento, imprestáveis para a vida.

Antônio chegou em casa num final de tarde avermelhado e fresco. Vinha montando um zaino negro, usava um pala gasto e tinha os cabe­los compridos até quase a altura dos ombros. Uma pequena cicatriz marcava seu rosto na altura da sobrancelha esquerda. Ele estava mais magro e mais soturno, ansiava dormir uns dias numa cama macia, de lençóis limpos, e comer numa mesa com iguarias fartas. Fazia muitos meses que estava na Campanha com as tropas de Canabarro. Fazia muitos meses que dormia numa barraca minúscula, sentindo a umida­de subir do chão e corroer sua carne, comendo do charque do acam­pamento, vivendo sob a chuva do inverno.

Encontrou as mulheres na sala. Já o fogo na lareira estava aceso. Havia um silêncio cansado na casa, um silêncio de falta de assunto. Caetana e Perpétua bordavam, D. Ana lia um livro, Maria Manuela olha­va o fogo, as mãos cruzadas no colo; talvez pensasse no filho. D. Antônia tinha voltado para a Estância do Brejo.

— Buenas — disse ele, pisando na sala com sua bota gasta.

As mulheres tiveram um sobressalto ao ouvirem aquela voz mas­culina, assim sem aviso. Antônio tinha encontrado Manuel, que lhe abrira a porteira. Os cuscos não latiram, tinham-no reconhecido pelo cheiro. Maria Manuela abriu um sorriso que havia muito não usava.

— Meu filho! — Jogou-se nos braços de Antônio. — Vosmecê aqui, pela graça de Deus!

Ele beijou o rosto cansado da mãe. Tinha perdido a frescura que recordava haver nela. Estava mais gasta, os cabelos esbranquiçados aqui e ali. Maria Manuela também notou as mudanças do filho. A ci­catriz. A nova dureza nos olhos verdes, os cabelos sujos e compridos, o rosto emagrecido. Nenhum dos dois disse nada. Antônio sabia o quanto o sofrimento podia envelhecer uma mulher; Maria Manuela agradecia apenas por ver o filho vivo, por recostar-se no seu peito e sentir seu calor.

— Viajei por cinco dias — disse ele. — Hay imperiais por todo o caminho. Eles querem nos cercar na Campanha, mas não hão de con­seguir seu intento. Vim com dois cavalos, um deles morreu aqui perto.

  1. Ana quis saber como estavam as coisas. Antônio sentou perto do fogo, tirou o pala, pensou um pouco.

— A República tem enfrentado muitos problemas, tia. Falta de dinheiro nas coletorias, desavenças políticas. — As mulheres ouviam com atenção. — Estamos fortes apenas na Campanha, pois lá temos cavalos descansados, conhecemos o terreno, somos invulneráveis. Mas isso não segura uma república. As cosas vão complicadas... E o povo está cansado dessa peleja.

— Ninguém suporta contar tantos mortos, Antônio — D. Ana pensava em Pedro. A voz esmoreceu de repente. — De que nos adian­ta tudo isso?

— As cosas não são fáceis, tia. As facções estão se formando. Gran­des fazendeiros, com interesses próprios, de um lado. De outro, ho­mens com ideais republicanos mui arraigados. Um impasse. Enquanto isso, a guerra prossegue. E o imperador nos ataca com mais e mais força.

— Como isso tudo vai acabar?

Maria Manuela segurou a mão do filho, mão calejada, de unhas sujas. Ele precisava de um banho longo, bem quente. Ela lhe esfrega­ria as costas, apararia seu cabelo.

Antônio sorriu.

— Isso vai acabar mais cedo ou mais tarde, mãe. Mas talvez não como tínhamos sonhado. — Suspirou. — Não sei. Adelante veremos. Agora, tudo o que eu quero é um banho, roupas limpas e um prato de comida.

Maria Manuela entrou com o filho. D. Ana permaneceu na sala. Nunca mais Pedro chegaria em casa, da guerra ou da lida. Nunca mais alimentá-lo, dar-lhe um agrado, um doce, um mate. Pedro gostava de tomar um copo de leite antes de dormir. Dizia que o leite chamava o sono. Nunca mais um copo de leite antes de dormir. Nunca mais Pedro. Suspirou fundo.

Caetana largou o bordado e foi sentar ao lado da cunhada. A voz era doce, quando ela disse:

— Vosmecê não devia se martirizar com lembranças, Ana.

 

O corpo dele é quente e vigoroso e bem talhado. O dorso moreno, ilu­minado pela luz fraca do lampião, cresce ante seus olhos, vai e vem, muito perto, até que o suor de ambos se misture, até que as peles se toquem e dividam o calor; depois afasta-se, lentamente, naquela dança sensual e inquietante. O corpo de João entre as suas pernas. Dentro dela.

Ela geme. O cobertor roça nas suas costas, excita-a. João em seu ou­vido, com sua voz rouca, falando coisas desconexas. João capturando sua boca para um beijo, aspirando o cheiro da sua pele, dizendo que a ama.

— Más que tudo, Mariana... Más que tudo.

Ela então fecha os olhos. Entrega-se. É como uma explosão. Átomo por átomo, célula por célula, todo o seu corpo se une nesse momento, alça-se, rebenta em mil fragmentos de luz. Agora, é feita de puro algodão.

João em cima dela. Os olhos negros dele fitos nos seus. Ela se vê em suas retinas como num espelho. Ele descansa em seu peito, entre os seios, onde gosta de estar, onde vive o perfume dela, como ele diz.

A alvorada mal desdobra suas primeiras nuances. Ainda é quase noite, uma hora indefinida e mágica, e o mundo lá fora é puro silêncio.

— Meu irmão chegou hoje — fala baixinho. João escorrega para o lado.

— Eu o vi.

Ela acarinha os cabelos negros e lisos, o rosto anguloso. Roça seus dedos na face sem barba. Ele é tão bonito...

— Pensei em falar com ele, João. Falar de nós.

João ri. Não um riso de alegria, mas de descrença. Um riso curto, talvez triste. As moças ricas não conhecem o mundo. Ele conhece o mundo. Antônio tem a alma voltada para a guerra. Uma guerra onde os negros serão libertos. Uma república igualitária. Mas Antônio não há de querer a irmã casada com um indiático, um guasca. Existem barreiras intransponíveis nesta vida.

— Usted vai perder tempo, Mariana.

— Mas Antônio pode resolver tudo, falar com a mãe. Arranjar nos­so casamento.

— E que cosa usted le dirá? Que nos deitamos juntos já faz tem­po? Que me ama? Acha que isso será o suficiente? Usted disse que não contaria nada a ninguém por enquanto. Que tinha medo... — Bei­ja a testa alta e bem desenhada. — Pois preze esse medo, Mariana. Seu irmão não vai gostar de saber sobre nós.

Ela sente os olhos úmidos. Está cansada de fugir à noite. De viver um amor de segredos. Ultimamente, tem medo de morrer dormindo, longe de João. Tem medo de tudo.

— Mas o que faremos, João? Até quando ficaremos assim?

— Vou pensar em alguma coisa, Mariana. Le prometo. As cosas terão bom termo, por Dios. Mas hay que ter calma.

Deitam-se no cobertor. Lá fora, as primeiras luzes de uma alvora­da clareiam o mundo. Um galo canta ao longe. Mariana sente a angús­tia em seu peito como um presságio.

— Tenho medo, João. Ele a abraça.

— Não hay o que temer, mi amor... Vai dar tudo certo.

 

Caetana Joana Francisca Garcia Gonçalves da Silva mirou-se no es­pelho de cristal. O que via ali era a imagem de uma mulher cansada. Tinha quarenta e dois anos e ainda era bonita. Mas a solidão começava a fazer seus estragos naquele rosto que outrora encantara tantos homens. Na sua juventude, fora a mais bela mulher de Cerro Largo. Os pretendentes cortejavam-na, disputavam um olhar seu durante a missa, uma dança, por mais curta que fosse. Sim, muitos homens ha­viam se apaixonado por ela. E, um dia, quando tinha quinze anos, co­nhecera Bento Gonçalves da Silva. Bento era um jovem moreno, cheio de energia e de sonhos. Fazia negócios de gado com seu pai. Certa fei­ta, num baile, os dois se encontraram e dançaram juntos. Caetana nunca mais fora a mesma após esse encontro. Casaram logo depois, com uma grande festa. Ela ainda recordava a textura do cetim do seu vestido de noiva.

As rugas começavam a amarfanhar a pele em torno dos olhos ver­des, rugas finas, longas. A boca ainda era cheia, embora não mais ti­vesse o frescor de outrora. Também quase não sorria mais. Sentia uma falta terrível de Bento, da sua presença serena e forte, do seu calor de homem esquentando os lençóis e o seu corpo. Tivera muitos sofrimen­tos com o marido, coisas das quais nenhum longo casamento escapa­va; mas sempre soubera fazer vista grossa às sestas de Bento nos quartos dos fundos, aos sorrisos das criadas moças que vinham cuidar da rou­pa, que coravam ao vê-lo entrar na cozinha. Fora superior a tudo isso porque o amava. Mais do que tudo. E sabia que era amada. Bento Gonçalves era um homem como outro qualquer, sujeito aos mesmos vendavais da carne, escravo dos instintos, passível de erros. Depois das escapadelas com as criadas, ele voltava para o quarto e sabia ser ainda mais carinhoso; mostrar, enfim, o quanto a queria.

Caetana pegou a carta que estava sobre o toucador, carta tantas vezes lida desde a manhã, quando Zé Pedra a entregara, dizendo que um estafeta viera trazê-la ainda durante a madrugada. O papel tinha o timbre da República, e a letra de Bento enchia as folhas, talvez um pouco trêmula, quando outrora era forte e decidida, mas ainda assim uma letra graúda, masculina. Ele abriu novamente a carta e começou a relê-la.

 

           "Minha querida Caetana,

Le escrevo sabendo que vosmecê lerá estas linhas com saudades, e somente esse pensamento é que me deixa mais feliz. Faz alguns dias, dei­xei Alegrete e rumei para Bagé, onde muitas decisões desagradáveis e problemas pendentes aguardavam uma solução que, mala suerte, depen­dem da minha pessoa. A República tem enfrentado muitas dificuldades financeiras, a ponto de ser preciso mais um decreto para cobranças de impostos. Tudo isso me deixa mui desgostoso, pois o povo já não suporta mais tantas privações, e um ato destes é tudo o que a nossa oposição al­meja para nos caluniar ainda más. Sinto dizer que estas calúnias das quais le falo desabarão todas sobre a minha pessoa, este seu esposo já mui can­sado de pelejas e disputas, que aqui está como presidente desta Repúbli­ca. Peço assim que vosmecê reze por mim, pois le digo que já me faltam forças para tão penosa tarefa, e tudo o que eu mais almejava era me des­ligar deste cargo que já me traz tantos dissabores e nenhuma satisfação. A não ser pelo amor à pátria e à liberdade, le confesso que já teria partido, Caetana. Mas tenho uma promessa a cumprir que aqui me segura, mes­mo estando eu alquebrado e com a saúde fortemente abalada. Não quero que vosmecê, no entanto, tenha preocupações ainda maiores com a mi­nha pessoa, pois Joaquim tem estado sempre ao meu lado, dando seu apoio de filho e oferecendo-me seus cuidados como médico, de modo que vou me tratando bem e fazendo muitas compressas para a dor que me aflige o peito e que me causa tosses e febre. Bento e Caetano também estão co­migo e gozam de boa saúde, quanto a isso vosmecê pode ficar descansada.

Querida esposa, tirante essas queixas que le faço como modo de ali­viar meu coração e meu peito, tenho a le contar que em breve fundare­mos uma cidade. A primeira cidade republicana, que será edificada perto da fronteira com o Uruguai, num posto hoje conhecido como Capão do Tigre. Queremos uma cidade mui bela e bem traçada, com ruas e praças que façam gozo à nossa causa, e até mesmo ela já tem nome escolhido: irá chamar-se Uruguaiana."

 

Caetana terminou a carta com lágrimas nos olhos. Bento ainda perguntava pelas netas e queria notícias dos negócios e de Terêncio, o capataz, que cuidava da Estância do Cristal. A guerra tinha consumi­do uma boa parte do patrimônio, mas ainda restava muito o que gerir, e Terêncio era quem cuidava da venda do gado e do charque. Bento Gonçalves da Silva tinha labutado muito para acumular seus bens. Quantas vezes Caetana vira o marido desaparecer em invernadas pe­nosas, viajando por meses inteiros a negócios. Quantas guerras e pele­jas... E agora, agora que começava a se achar fraco e doente, nem mesmo usufruir dos seus confortos ele podia.

Secou as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Ultimamente, cho­rava muito. Pensava muito em Bento. Pressentia que a energia do marido se eclipsava a cada dia. Esvaía-se naquela batalha sem fim. Ao menos, Quincas cuidava do pai, ministrava-lhe remédios e dava-lhe afeto.

Caetana guardou a carta numa caixa de madeira talhada, junto com todas as outras cartas que tinha recebido de Bento durante aquela guerra. Ergueu-se, ajeitou os cabelos. Ia ver Perpétua e as meninas. Ia mandar que preparassem a sopa das filhas, e ia procurar Marco Antô­nio, que devia andar atrás da peonada, como fazia sempre, o matreiro. Não podia dedicar seu tempo inteiro àquela tristeza. Um dia, quando a guerra acabasse, Bento voltaria para a família, e cabia a ela, Caetana, manter as coisas em perfeita ordem. De certa forma, era uma espécie de general sem divisas nem tropas que enfrentava dezenas de peque­nas pelejas por dia.

 

— Novembro é uma época bonita por aqui.

Caminhavam pelo capão, de mãos dadas. O sol da primavera res­plandecia o pampa. A passarada cantava. Sentaram à sombra de uma árvore. Mariana recostou-se naquele peito que cheirava a cítricos, cor­reu os dedos pela camisa de tecido rústico, subiu para o rosto moreno, de pele muito lisa, percorreu a boca ampla, carnuda.

João sorriu.

— Usted está quieta hoje, Mariana.

— Alguma coisa vai sucedendo comigo...

Ele fitou-a; estava tão bonita no vestido claro, rendado. Os cabelos presos numa trança estavam enfeitados com uma fita branca. Os olhos amendoados tinham um brilho de coisa saudável, um viço luminoso e doce. Ele segurou as mãozinhas pálidas, de dedos finos. Um anel de ouro enfeitava-lhe o anular direito.

— Usted está triste?

Ela abaixou os olhos. Sob a grama, viu uma formiga avançando em seu minúsculo trajeto. Gastou um instante observando o pequeno in­seto. Sua cabeça fervilhava de coisas.

— Estou com medo, João.

— Miedo? Mas de quê?

Ela segurou o ar dentro dos pulmões. De repente, já não havia nada em torno deles, nem as árvores, nem as flores rasteiras, nem aquele sol amarelo e vivido que se derramava por tudo. Havia só o sentimento. E aquela certeza- Sempre a imaginara, fantasiara o dia em que se desco­brisse assim, a textura das coisas, o prazer de sorrir, de respirar, de viver simplesmente. E agora tinha medo. Era um medo fino que per­corria sua pele como uma exalação. Tinha infringido a maior de todas as regras e seria punida por isso, tinha certeza.

João esperava uma resposta. As palavras ressecavam sua boca.

— Tienes miedo de quê, Mariana? — insistiu ele.

— Medo do que está acontecendo. — E então as palavras vieram, cheias de sumo, maduras, prementes como a respiração e a fome. — Estou grávida, João.

Ele não disse nada, nem sorriu. O súbito espanto acendeu um bri­lho nos seus olhos negros e tornou-o ainda mais bonito. Foi com voz calma que perguntou:

— Usted tienes certeza?

— Tenho. — Levou a mão ao ventre. — Já posso senti-lo, este serzinho que cresce dentro de mim. Sinto-o como um sopro, João.

— E la sua madre, Mariana? O que ela vai dizer? Usted já le contou? Abaixou os olhos. Aquela era a pior parte.

— Ainda não. Nem sei como fazer isso... A mãe não vai aceitar, João.

Ele tocou no seu ventre como quem demarca terreno. Sua mão era quente e imperativa.

— Este hijo também é meu. A sua madre não pode fazer nada so­bre isso. Vamos nos casar, Mariana. Se usted quiser...

Ela beijou-o. Queria, queria muito. Era tudo o que queria. Casar com ele, em qualquer lugar, sob qualquer bênção. E então criariam juntos aquele filho.

O sorriso dele foi cheio de satisfação. Ele nunca acalentara um so­nho tão doce. Uma mulher e um filho, um rancho pequeno, algumas cabeças de gado, a viola à noite, sob a luz da estrelas. Se fosse um menino, gostaria de chamá-lo Matias. A mãe contara que aquele era o nome do seu pai. Matias ficara sendo para ele um nome de coisa mági­ca e misteriosa. Ele acarinhou de novo o ventre de Mariana. Olhou para o céu azul e achou novembro ainda mais bonito e viçoso.

— Entonces está bien, mi Mariana. Vamos casar.

— Deixa que eu falo com a minha mãe. Quando for a hora.

— A barriga vai crescer, Mariana. Ela derramou-se num olhar.

— Falo até o Natal, le prometo.

Ergueram-se em silêncio. Mariana precisava voltar, era já quase a hora do almoço, e D. Ana não perdoava atrasos à mesa. Seguiram ca­minhando pela trilha que levava à grande casa branca. Mariana sentia uma fome nova acossando suas tripas e sorriu. Então era assim que tudo começava... João imaginou um menino moreno correndo pelo campo, teria um sorriso bonito e olhos negros como os deles. Matias. Matias Ferreira Gutierrez. Quando crescesse, lhe daria uma viola e um cavalo bem manso. Quando crescesse, lhe contaria da avó índia, da boiguaçu, do Cruzeiro do Sul, das grandes guerras na fronteira. Quando crescesse, tomariam banho de sanga juntos num dia bonito como aquele.

 

Eram oito horas da manhã quando Maria Manuela da Silva Ferreira atravessou a cozinha onde as negras descascavam o aipim para o almoço e sovavam a massa do pão. Tomou um cesto. Ia colher pêsse­gos para um doce, um doce que outrora fazia para o marido. Acorda­ra naquela manhã com um relativo bom humor. Em uma semana, voltaria ao convento para ver Rosário; esperava encontrar a filha ain­da mais calma do que na última visita. Rezava todos os dias, não ape­nas por Rosário, mas pelos outros filhos. Para Antônio, pedia saúde e proteção naquela peleja. Sabia que Antônio era um homem sensa­to, que tinha boa estrela. Quando a guerra acabasse, voltaria são para a casa. Ela rezava também pelas meninas. A vida na estância, duran­te todos aqueles anos, a convivência diária e estreita uma tarefa nada fácil. A solidão embrenhava-se pelas frestas das coisas, gelava o pei­to. E havia sempre aquele medo. Medo das notícias, da morte imi­nente, dos ataques de caramurus. Por isso, Maria Manuela rezava pelas filhas. Rosário tinha sucumbido àquele pânico; mas as outras estavam salvas. No começo, ela temera por Manuela. A caçula fora enamorar-se do navegador italiano. Uma desgraça. Mas agora esta­va tudo arreglado: Garibaldi tinha partido do Rio Grande, com mu­lher e com filho. Decerto, nunca mais poria seus pés na província. E Manuela parecia tê-lo esquecido. Quando a guerra acabasse, have­ria de casar com Joaquim. Já Mariana era calma, talvez a mais sen­sata das três filhas. Tivera uns amores de sonho, chegara a trocar carta com o marinheiro espanhol que morrera no ataque à Laguna. De­pois se aquietara de vez.

Maria Manuela atravessou o pátio de pedras. Beata lavava a roupa das crianças num tanque. A negra cantarolava com sua voz modulada. Maria Manuela sorriu. O sol brilhava no céu de verão, soprava uma brisa agradável. O pessegueiro exibia as primeiras frutas maduras. Maria Manuela arrancou um pêssego graúdo, rosado e tenro. Tinha um cheiro bom e fresco. Foi escolhendo os melhores, até encher o cestinho de palha. Depois retornou pelo mesmo caminho.

Percebeu que a janela do quarto das filhas estava aberta. A última da longa esteira de janelas azuis que davam para o pátio. Ela iria dar-lhes bom-dia. Nenhuma das duas tinha estado ao café da manhã. Agora acordavam mais tarde, ficavam de conversas até noite alta. Que dormissem um pouco mais, havia tão pouco a fazer por ali.

Maria Manuela espiou por entre o reposteiro corrido. A princípio, não viu ninguém. Sobre a cama de Manuela, a roupa branca espalha­va-se em desordem. A penteadeira repleta de escovas e apetrechos tam­bém estava revolvida: a filha tinha feito a toalete, agora devia estar à mesa. Maria Manuela também não viu Mariana. Ia voltar, levar os pêssegos para a cozinha, pedir a uma das negras que os cavasse e cor­tasse em cubos, quando ouviu um ruído. Voltou a cabeça para dentro do quarto. Ao pé da cama de Mariana, havia uma bacia. Ouviu como que um estertor, depois aquela ânsia, a voz feminil rouca e sofrida. A voz de Mariana.

Deixou o cesto cair ao chão. Debruçou-se sobre a janela o mais que pôde, e foi então que a viu, arrastando-se detrás do corpo da cama, ainda de camisola, pálida e desgrenhada. Viu-a agarrar-se à bacia e deitar fora um jato de bile. Viu-a gemer e limpar o rosto na barra da camisola alva. Lembrou exatamente da sensação que agora incomoda­va a filha. O coração deu um salto dentro do peito. Lembrou porque, nas suas quatro gestações, acordara sempre assim, enjoada, com vô­mitos, destroçada por um garfo invisível que revolvia suas tripas sem qualquer misericórdia. Ficou pálida como a morte.

Saiu correndo, deu a volta na casa, atravessou a cozinha sem olhar para as negras, ganhou o corredor e postou-se à porta do quarto de Mariana. Estava trancada a ferrolho. Bateu. Uma, duas, três vezes. Bateu com urgência. Cada segundo aguçava ainda mais a sua certeza. "Mas como?", pensava. "E com quem?" Nunca vira nada, nenhum in­dício ou vestígio. Apenas Mariana com seu sorriso calmo, suas leitu­ras e bordados, os passeios a cavalo. Bateu mais uma vez. De dentro do quarto, veio a voz alquebrada da filha. Maria Manuela falou:

— Abra, Mariana. Sou eu.

Ouviu o ruído metálico da bacia sendo arrastada. Instantes depois, Mariana apareceu numa fresta da porta. Estava pálida.

— Não passei bem esta noite — disse.

Maria Manuela olhou-a, procurando a certeza em seu rosto, nos seus olhos escuros, na figura esbelta sob a camisola ampla. Tocou-lhe a fronte, estava fresca. Foi até a cama. Sua garganta queimava de ânsia.

— Vosmecê estava vomitando?

— Comi alguma coisa ao jantar, não sei...

Maria Manuela fitou a filha dentro dos olhos. E viu ali, naquelas retinas, acuada como um bichinho, a sombra do medo.

— Vosmecê não minta para mim. — A voz saiu rouca, impaciente. Mariana empalideceu ainda mais. — Fique em pé. Erga essa camisola, quero ver uma coisa.

Mariana obedeceu. Os pés brancos pisando o tapete pareciam dois anjos tristes. Maria Manuela subiu a camisola da filha até a altura dos seios.

— A cintura aumentou? — A voz latejava. Correu os dedos por ali, como que procurando a palpitação, a presença daquela vida ainda invisível e minúscula. — A sua cintura aumentou, Mariana. — Ergueu-se. Seu rosto parecia de pedra. — Deixa eu ver os seus peitos.

— Mãe!

— Adelante, Mariana! Não estou aqui para brincadeiras. Mariana subiu a camisola até o pescoço. Maria Manuela examinou-a com cuidado, sopesando, espiando aqui e ah em busca dos indícios que procurava. Por fim, mandou que a filha baixasse de vez a roupa.

— Desde quando não le vêm as regras?

Mariana estava trêmula. O estômago ainda dava voltas. Ela se jo­gou na cama.

— Está tudo bem, mãe. Já le disse, acordei enjoada. Maria Manuela caminhava pelo quarto.

— Eu devia imaginar alguma cosa, eu devia... Vosmecê tão calma e ponderada, logo vosmecê! Hay que sofrer uma madre nesse causo, meu Deus, ainda mais do que eu já sofri com seu pai e com as suas irmãs? Vosmecê não pensou em nada, nem em mim? Não pensou nas conseqüências da sua sem-vergonhice quando se deitou com um qual­quer por aí, Mariana? E agora, e agora? — Estacou no meio da peça.

Os olhos flamejavam um brilho úmido de lágrimas. — Vosmecê me diga: com quem se deitou? Quem é o pai dessa criança? Mariana sentou na cama. A voz saiu decidida e clara:

— O homem que eu amo.

Maria Manuela sentiu-se possuída por um vendaval. Não perce­beu sequer o impulso que a jogou para a frente, a mão erguida, o rosto duro, até que o tapa estalou na fronte da filha e reverberou e ficou la­tejando entre elas como uma coisa viva, como um bicho.

Mariana soltou um grito.

— Vadia! Infeliz, desgraçada! Maria Manuela gritava alto.

Mariana acabrunhou-se num canto. Seu rosto ardia, o peito ardia, o ventre, quente de vida, latejava. Ela nunca vira a mãe naquele estado de insanidade. Os cabelos se tinham soltado do coque, o rosto estava trans­tornado e rígido. As mãos balançavam no ar como dois pássaros loucos.

— Diga o nome desse desinfeliz, Mariana! Ela respirou fundo.

— Não é desinfeliz. E o homem que eu amo, o pai do meu filho. — Mirou dentro dos olhos de Maria Manuela. — É o João Gutierrez.

  1. Ana, Caetana, Perpétua e Manuela apareceram na porta do quarto no justo momento em que Maria Manuela avançava novamen­te sobre a filha.

— Por Deus, Maria! — Caetana segurou a cunhada, que ficou arfando entre seus braços, os olhos saltados das órbitas, lágrimas de ódio correndo pelo rosto descorado.

Mariana desatou a chorar.

 

Bento Gonçalves da Silva olhou os três filhos sentados do outro lado da mesa onde travessas vazias se espalhavam. A negrinha que cuidava da casa pediu licença, começou a recolher a louça. O prato de Bento voltou à cozinha quase cheio.

— Pai, o senhor não comeu nada.

Bento Gonçalves tirou um palheiro já enrolado da guaiaca, fitou Caetano com um olhar cansado e afável, acendeu o crioulo e, depois da primeira baforada, disse:

— Se vosmecê estivesse lidando com as pressões que eu enfrento, meu filho, queria ver se o seu apetite seria o mesmo de hoje.

A negra trouxe o mate. Joaquim encheu a cuia de água e passou-a ao pai. Fazia um dia bonito em Alegrete, um dia de verão com céu quase sem nuvens e uma brisa mansa que lambia as folhas das árvores no quintal. Apesar do calor, Bento Gonçalves da Silva usava um pala leve. Ultimamente, andava sentindo muito frio, um frio inquebrantável que lhe chegava aos ossos e lhe roubava o sono durante as madrugadas.

— Sucedeu mais alguma coisa, pai? — Joaquim estava preocu­pado. Bento emagrecia, tinha acessos de tosse. Ainda na noite passada lhe aplicara umas compressas quentes de erva-de-passarinho. Naque­le dia, o pai até acordara mais disposto.

Bento Gonçalves mediu as palavras:

— O Domingos de Almeida entregou o cargo. Precisamos de ou­tro ministro da Fazenda.

— Mas logo agora, com tantas pendências? — Bento Filho deu um soco na mesa.

— Logo agora, Bento. E tem mais, indicou para o seu lugar o Vicente da Fontoura.

— O Vicente, delegado de Rio Pardo? Mas o senhor não gosta dele. Quase ninguém gosta dele. É um hombre perigoso.

— Eu sei. O Vicente é uma cobra. — Suspirou. — Ando mui can­sado de tudo isso. E pensei numa cosa: vou até a estância ficar uns dias por lá, passar o Natal por lá, amansar minhas carnes. — Seus olhos se perderam por um momento, ele fitou o teto da sala. Talvez pensasse em antigos Natais, sem aquele frio a rondá-lo, os filhos pequetitos, to­dos reunidos, Caetana moça e viçosa, com seus olhos de floresta. — Vou ver Caetana, e conhecer a filhinha de Perpétua, a minha netita. Nada sucede mesmo nesta época. — Olhou Caetano. — Vosmecê vem comigo, filho. Vocês dois ficam por aqui, de olho nas coisas. Qualquer novidade, mandem alguém me avisar imediatamente.

Bento e Joaquim aquiesceram.

Bento Gonçalves ficou olhando a cuia vazia entre as suas mãos. Vicente da Fontoura seria mais um problema. Mas agora ele não tinha energias para pensar nisso. Queria uns dias de paz, o regaço morno de Caetana, queria uma tarde de sesta e uma noite de música, olhando as mulheres com seus bordados, na calma santa de uma casa familiar. Fazia tempo por demás que não era ele mesmo, apenas um homem, com apetites e pequenos sonhos de miudezas, como qualquer outra criatura.

 

O zaino foi subindo pelo caminho que já conhecia. O sol punha-se galhardamente, exímio em seu espetáculo, escondendo-se entre as coxilhas ao longe e derramando sua luz âmbar sobre tudo, sobre a casa branca e baixa, ao fundo, sobre o campo silencioso, sobre as árvores e as flores que circundavam a varanda. Um cusco veio recebê-lo, latin­do. Ele saiu a galope até a frente da casa, o cusco veio atrás.

Sentada na varanda, como se o esperasse, estava Caetana, com seu vestido branco, os cabelos presos à nuca, a pele trigueira. Tinha no colo uma menina enrolada em mantas. Ao vê-la, Bento Gonçalves sen­tiu no peito uma saudade que havia muito não sentia. Ainda amava aquela mulher, apesar dos anos, apesar das outras, apesar daquela fe­bre que o consumia como lenha.

— Caetana!

Ela ergueu os olhos, surpresa. Não tinha se atentado ao cavaleiro que chegava, achando que fosse Manuel ou qualquer dos peões. Quan­do reconheceu o marido, o coração se acelerou em seu peito.

— Bento!

Ele apeou. Apesar da nova magreza e do cansaço que se derrama­va da sua face, havia alegria nos seus olhos negros.

— Essa é minha neta?

Caetana apressou-se em levar a pequena até ele.

— É a sua neta, Bento. O nome dela é Perpétua, como da nossa filha.

— Como o da minha mãe — completou ele.

E ficaram ambos dividindo o mesmo sorriso e aquele lento, doce, dourado minuto de paz. O cão deitou num degrau da varanda e fe­chou os olhos preguiçosamente. O sol escondeu-se de vez entre as coxilhas ao longe, encerrando, enfim, aquele dia vinte de dezembro do ano de 1841.

Bento Gonçalves circundou num abraço os ombros da esposa. Ambos entraram juntos na casa silenciosa e fresca.

 

                   1842

Nos primeiros dias de janeiro, Bento Gonçalves da Silva partiu de volta a Alegrete. Precisava estar na cidade com urgência; tinha compromisso marcado. Vicente da Fontoura iria tomar posse do car­go de ministro. Bento partiu sem saber que Mariana estava grávida, decisão tomada em conjunto por D. Ana e Maria Manuela, que não queriam perturbar o irmão, já tão incomodado, com assuntos daquela ordem.

Quando o tio presidente atravessou a porteira e ganhou o pampa, teve início o suplício de Mariana da Silva Ferreira. Trancada no quar­to, sem ver ninguém, passou os primeiros dias daquele ano chorando a sua desdita. Zefina levava-lhe a comida, e as notícias de fora vinham todas pela boca de Manuela. Mariana não pôde mais ver João. Deses­perada, batia na porta pedindo que a soltassem, mas as negras, por ordem de Maria Manuela, faziam ouvidos moucos quando circulavam pelo corredor. Nem seus gritos, que vararam por duas tardes a casa, reverberando pelos cantos e pondo em polvorosa as crianças, ameni­zaram o coração de Maria Manuela.

Mariana passou dias chorando, comendo pouco e tendo pesadelos. Imaginava seus anos sem João, temia pelo futuro da criança que tra­zia no ventre. Será que a mandariam embora, para um convento ou clausura pior? E o que seria feito do filho? As janelas do quarto ha­viam sido trancadas por fora. Somente Manuela vinha vê-la, pois ain­da dormiam juntas, e tentava em vão acalmá-la em seus horrores. Não era possível que a ira da mãe perdurasse por muito, até as tias estavam descontentes com aquilo tudo, dizia Manuela. Era tempo de esperar, de não zangar ainda mais a mãe, que dentro em breve se tomaria de arrependimentos.

Mas Maria Manuela parecia irredutível. Descobrira em si uma dureza irredutível, seu coração cheio de mágoa por tantas desgraças náo podia se apiedar da filha. Mariana tinha lhe trazido o infortúnio e a vergonha. Viúva, ainda precisava se deparar com aquele horror, to­mar atitudes que antes Anselmo tomaria, decidir um futuro para o bastardo que vinha no ventre de Mariana. Envolta nesses funestos pensamentos, Maria Manuela passava os dias a bordar numa poltrona, quase sem palrear com as parentas, deitando mui cedo e despertando ao alvorecer, maturando suas dores e cruzes sem saber exatamente o que fazer com a filha trancafiada no quarto. Escrever a Antônio de nada ajudaria; o filho estava na guerra, não poderia voltar a casa tão cedo. E nem poderia desfazer aqueles erros, apagá-los, devolver a Mariana a sua pureza e o seu futuro destroçado.

Assim pensava ela, naquela tarde, sentada com o bordado ao colo, o rosto sério, duro, despido da beleza de outros tempos. D. Ana, ao seu lado, fiava e desfiava a lã, desencantada de qualquer serviço ma­nual. A situação na casa estava insustentável. Fazia mais de uma se­mana que a sobrinha estava presa no quarto, e ela já começava a temer pela sua sanidade. Ainda tinha muito vivida em sua mente a imagem de Rosário transtornada, chorando amores por um fantasma.

— É preciso tomar alguma atitude — disse D. Ana, quebrando um silêncio que já durava muito tempo. — João Gutierrez ainda está por aí. Mandei o Zé Pedra le dar serviços para longe, consertar as cercas do lado norte. Mas ele ainda está na estância.

Maria Manuela deu de ombros.

— Por mim, levava uma bala nos cornos — fez o sinal-da-cruz. — Que Deus me perdoe a má palavra, mas é um desgraçado. Merecia bem a morte.

  1. Ana suspirou.

— Chega de sangue derramado nesta terra. Matar o desinfeliz não vai resolver as coisas. Amanhã o Manuel vai mandá-lo embora, já está decidido. Se ele tiver uma lasca de bom senso, nunca mais há de pisar nesta estância.

Caetana bordava a um canto da sala. Sentia pena da sobrinha, pena daquele amor que murchava assim. Decerto, aquele não fora um bom começo, mas numa época de tantos sofrimentos e perdas, qualquer amor merecia respeito e ajutório. Tinham perdido tanta gente na família, era certo, pois, que aceitassem de braços abertos aquela criança que Mariana gerava. Para Caetana, aquilo tudo era um grande pecado que talvez ainda acarretasse uma desgraça maior... ela decidiu que falaria com D. Antônia, que era dura, por certo, tão reta e escrupulosa como o próprio Bento, mas talvez pudesse ameni­zar com sua influência aquele cruel castigo. A menina não podia pas­sar os nove meses da gestação trancafiada no quarto. Precisava de sol, de ar puro, de alegrias — dentro em breve, poria uma criança no mundo.

— E quanto a Mariana? — atreveu-se a perguntar Caetana. Maria Manuela olhou-a quase com mágoa. Caetana tinha a filha bem casada, por isso aquela calma, aquela mansidão.

— Mariana fica no quarto — disse. — Estamos na guerra, é ver­dade, mas não é por isso que se perdeu a vergonha nesta família. Uma moça solteira, de barriga! Se Anselmo estivesse vivo, a mandaria para um convento de clausura, tenho certeza. — Agarrou quase com raiva o crochê que estava numa cestinha. Laceou o primeiro ponto. — Quan­do essa criança nascer, vou dá-la de cria para alguém. Bem longe da­qui. Hay tanta gente que perdeu filhos nessa peleja. Alguma criatura há de querer o rebento.

  1. Ana sentiu os olhos úmidos. A voz soou rouca:

— Eu perdi um filho nessa peleja, Maria Manuela. Vosmecê tome tento do que diz. Essa criança vai ser seu neto, quer vosmecê queira, quer não. Vai ter o nosso sangue, vosmecê precisa lembrar disso.

— Nunca vou pôr os olhos nela, Ana. Le juro.

  1. Ana saiu da sala. Sabia quando silenciar. Ademais, o tempo se encarregaria de amaciar aquele coração ferido. Melhor era falar com Manuel, mandá-lo fazer as contas de João Gutierrez. E que Manuel visitasse as estâncias vizinhas, inventasse algum pretexto para que nenhum estancieiro quisesse contratar o homem. Não era bom que João permanecesse pelos lados do Camaquã.

Quando atravessou o corredor rumo à cozinha, ouviu o choro fino e triste de Mariana. Um fio de dó enrolou-se no seu peito como um velho gato. Ela teve ganas de ir ver a menina, de dar-lhe algum conso­lo, alguma esperança que fosse. As mulheres ficavam frágeis durante os primeiros meses da gravidez. "Fazer o quê? Não é filha minha." As chinelas leves iam reverberando pelo chão limpo. Ela lembrou do ros­to moreno e indiático de João Gutierrez. Engraçado, quando o vira pela primeira vez, sentira mesmo que ele era diverso, cheio de vida, quase como um potro. Havia um brilho agudo naquelas retinas negras. Devia ter atentado a esse pensamento. Se fosse moça de vinte anos presa numa estância por tanto tempo, solita, quem sabe nem ela mesma re­sistisse àqueles olhos rasgados e àquele sorriso de dentes alvos.

 

Manuela guardou a carta no abrigo dos seios. Se a mãe soubesse, de­certo lhe daria uma sova. A mãe andava intratável nos últimos tempos. Não falava com ninguém na casa, sequer perguntava por Mariana, por sua saúde, pelo bebê. Levaria a carta de qualquer jeito. Sabia bem o que era amar. E Mariana amava, ah, como amava.

O sol abrasava o campo. O céu estava de um azul límpido e inten­so. Manuela saiu pelos fundos da casa. Ninguém na cozinha lhe per­guntou aonde ia, andavam todos acabrunhados com o castigo de Mariana. D. Rosa fazia uma novena pela rapariga, uma novena para Santa Rita. Ajoelhada de costas para a porta, a governanta nem perce­beu a passagem de Manuela.

Manuela atravessou o quintal, deu a volta na casa, tomou o rumo dos alojamentos dos peões, depois da charqueada. O calor umedecia sua pele. O sol era uma bola incandescente no alto do céu. As cigarras cantavam. Ela pensou na irmã, trancafiada naquele quarto. Sentiu um nó na garganta. Se tivesse em seu ventre um filho de Giuseppe, faria qualquer coisa. Mas Giuseppe estava longe, estava em Montevidéu. E Giuseppe já tinha um filho. Sua chance se perdera na poeira daqueles anos. Mas não a chance de Mariana. Por isso levava a carta para João, carta onde Mariana contava do castigo, da prisão, e falava de amor. Quando a guerra acabasse, ficariam juntos. Partiriam para longe, cria­riam o filho em algum rancho e seriam felizes. A mãe podia complicar aquele amor, mas não evitá-lo. Ninguém nesta vida tinha força para evitar um amor destinado a viver. E aquele amor já vivia no refúgio do ventre de Mariana.

Manuela bateu à porta. Dentro da casinhota, os ruídos cessaram. Um instante depois, o rosto moreno e bonito de João apareceu.

— Buenas — disse ele secamente. — Quase que vosmecê não me encontra. Estou de partida.

Havia revolta naqueles olhos negros? Havia dor? Manuela sorriu tristemente.

— Preciso entrar, João. Se me pegam aqui...

Ele cedeu espaço. Manuela entrou no quartinho fresco, quase des­provido de mobiliário. Por sobre a cama de campanha, um saco de viagem e a viola aguardavam um destino. Manuela entregou-lhe a car­ta da irmã.

— Mariana escreveu ontem à noite — disse. — Já sabe que vosmecê vai embora.

Os olhos oblíquos de João Gutierrez ganharam um brilho úmido.

— Como está mi Mariana?

— Triste, mas bem. Vosmecê fique tranqüilo, ela vai ter a criança.

— Meu filho.

— Seu filho — repetiu ela. — E vou le avisar quando nascer. — Olhou ao redor, constrangida com aquela intimidade. — Esta guerra vai acabar mais cedo ou mais tarde, e vocês ficarão juntos.

— Mui bien. Vosmecê cuida dela para mim? Manuela aquiesceu.

— Vosmecê vai para onde?

— Vou me alistar. Se essa guerra precisa terminar, que seja logo. Entonces, quando isso suceder, volto e busco mi Mariana.

O silêncio pesou entre eles.

— Quando quiser mandar notícias, faça com que elas cheguem até mim — disse, despedindo-se. João Gutierrez fez um gesto afirmativo com a cabeça. — Adeus. Boa sorte, João.

— Gracias.

Os dentes brancos dele apareceram num meio sorriso.

Manuela saiu outra vez para o calor do campo. A porta fechou-se silenciosamente às suas costas. João Gutierrez ia para a guerra. Mariana teria aquele filho às escondidas. Pelo menos, para eles, ainda havia algum arremedo de futuro.

 

                   Cadernos de Manuela

                   Estância da Barra, 15 de março de 1842.

O verão arrasta-se lentamente. Os dias são como fios que vão se enovelando num ritmo vagaroso e cansado, modorrento. Faz um calor seco e duro, que assola o gado e esfarela o chão. Aqui em casa, o verão mutou-se em época de silêncios e de tristezas, e muito já anseio pela chegada deste outono. Quero ver as folhas secas pelo chão. Quero o vento úmido e as nuvens pesadas, e a chuva que há de lavar tudo isso. Quero que tudo que é cinzento abandone minha alma e se instale no céu e desabe sobre o campo...

E impossível não se contaminar dessa angústia que se alastra pelos cantos da casa. Mariana ainda está trancada no quarto, a pobre, mes­mo que já estejamos entrados em março. A mãe ainda não esmoreceu em seus rancores. E quem diria que seu peito era um fosso tão profun­do... Mas, a despeito dessa vileza, dessa falta de amor ou de coragem de amar o novo que minha mãe tem nos demonstrado, a barriga de Mariana começou a crescer. Já seus antigos vestidos não lhe servem, porque os últimos botões não encontram mais a sua casa. A criança em seu ventre, protegida desse calor e dessa apatia, vive e palpita e quer nascer. Caetana e Perpétua remendaram velhos vestidos, alargan­do-lhes a cintura, para que Mariana tenha o que vestir nesses tempos de gestação. Minha mãe surpreendeu-as várias vezes nesses afazeres, mas nunca nada disse e nem questionou. Apenas proíbe que a filha saia do quarto e não demonstra ânsias de vê-la. D. Ana mandou para lá uma tina de banhos, e toda tarde Zefina ajuda Mariana nas suas toale­tes. Sou eu quem lhe leva os livros, os bordados ou o que mais ela de­seje para ocupar suas horas de claustro. E D. Rosa encarregou-se das refeições, nas quais depõe um zelo de mãe, preparando quitutes e do­ces e pães que agradem ao paladar de Mariana.

É um episódio triste, decerto. Talvez mais triste do que tantos ou­tros que vivemos aqui nesta estância durante este anos. Tivemos mor­tes. Tivemos malogros de amor. Eu mesma perdi meu Giuseppe. O único homem dos meus anos, tenho certeza. Tivemos a loucura de Rosário, cuja vida ceifou-se no auge dos seus anos, e que agora se gas­ta naquele convento, nem mais longe dos seus desatinos, nem mais perto de Deus do que quando estava aqui entre nós. Mas, de tudo isso, o que mais me dói é esse amor de Mariana. Porque retribuído e intenso. Porque fazedor de uma nova vida. Estamos carentes de vida, e essa que nos chega encontrou poucos braços abertos, rostos tristes, silên­cios pesados. Não há festa para recebê-la, e talvez o destino nos casti­gue por isso. Somos como coxos que renegam novas pernas, preferindo andar com velhas e gastas muletas. Porque foi assim que nos ensina­ram desde que o mundo é mundo, e a maioria de nós valoriza mais a honra do que a vida.

João Gutierrez foi para a guerra lutar com os republicanos. Tal­vez a sua lança possa mesmo encurtar o tempo dessas pelejas; porém, o mais certo é que será apenas um a mais a sofrer de sede, de calor ou frio, conforme os caprichos deste pampa. Terá de pelejar com a morte todos os dias, quase sempre em desvantagem. Mariana reza por ele, enquanto espera o filho. Mas vejo nos seus olhos a sombra da angús­tia. O fio de uma espada inimiga há de ser muito mais cruel do que a ira de nossa mãe, caso assim decida o destino. João Gutierrez pode não pisar nunca mais este chão, seu filho quem sabe será órfão, e nun­ca mais dele teremos qualquer notícia, nem virá um mensageiro nos avisar da sua morte para que Mariana tenha esse último consolo, esse momento cabal onde as lágrimas são o único modo de adeus.

Pensamentos funestos... E um sol de ouro brilhando lá fora pela campina, iluminando o pampa. Estou contaminada de dores. E ainda sonho todas as noites com Giuseppe. Ainda rezo e almejo que volte ao pampa, se não hoje, algum dia. Que seja muito longe esse dia, mas que me encontre com vida, um sopro que seja, e eu juro: Seguirei com ele para a pior desdita, para o paraíso ou para o desconhecido. Terei essa força. Lutarei por meu amor.

Às vezes, olhando Mariana com seu ventre enfunado e orgulhoso, lamento que Giuseppe não tenha feito um filho em minha carne. Dele, fui apenas noiva, uma noiva eterna. Nosso amor disso não evoluiu, e, no entanto, havia tanto mar para nós... Teria sido bom um filho dele, mesmo que também eu fosse obrigada ao castigo e à solidão de um quarto. Seria paga pouca para tê-lo eternamente marcado nos meus dias. Minha carne e a dele, unidas num outro corpo... Um sonho ape­nas.

Digo isso para Mariana. Que ela se console. Nunca mais há de ser solita nesta vida, depois que seu filho nascer. E eu, o que tenho pela frente, além desta solidão de muitos anos? Talvez o conforto de uma casa bela, de peças vazias, o calor de um abraço ocasional, a chama de uma lembrança cheia de saudade e nada mais. Mas tudo isso é muito pouco para preencher uma vida. Tudo isso é como esse sol que brilha lá fora, na espera derradeira de mais um inverno. Tudo isso é tão pas­sageiro que até dói.

Manuela.

 

João Gutierrez encosta-se à barranca, sentindo no estômago a angústia da primeira morte. Olha a adaga tinta de sangue. O im­perial está caído no chão, degolado com perícia, os olhos de um casta­nho claro fitam o céu com um assombro estático e pasmado. Assombro de quem viu a cara da morte.

A trombeta soa ao longe. O mundo é tomado pelo barulho do tro­pel. A um sinal, a cavalaria farroupilha avança em direção ao inimigo. O choque das duas tropas levanta uma nuvem de poeira, de gritos e de relinchos. João precisa de um cavalo, é exímio cavaleiro, mas está na infantaria. Há falta de animais. João salta para o outro lado da barranca. Ali a luta é travada com fúria. O corpo-a-corpo forma uma estranha coreografia pela campina onde o sol desmaia suas primeiras luzes.

João Gutierrez corre, desfere golpes, grita. Tem os olhos cheios de poeira. É a sua primeira batalha. Tinham encontrado aquela divisão imperial perto do rincão de São Vicente. A batalha é dura. Os imperiais estão em vantagem numérica e têm uma boca-de-fogo. João tem a sua adaga, a boleadeira, e aquela raiva dentro da alma que precisa ser desa­fogada, que é como um rio em época de cheia. Matou hoje seu primeiro homem. Avançando no meio do campo de batalha, pisando corpos, pen­sa mais uma vez na garganta aberta, no sangue grosso, vermelho e vivi­do, que foi bebido pela terra. Sente um arrepio pelo corpo, um arrepio quente, igual ao de um copo de canha quando bate no estômago vazio. Sente um gosto amargo na boca, sente uma potência no corpo. Tirou uma vida, a vida daquele imperial que agora jaz caído no chão poeiren­to. Fez uma vida, ela agora pulsa no ventre de Mariana. Sente júbilo, a saliva tem gosto de vinho em sua boca espantada. Mudou destinos e ainda é o mesmo João de antes, porém mais vigoroso, um semideus. Há al­gum poder nessas mãos morenas, nessa alma de índio e de cantador.

Um imperial avança a cavalo, adaga em riste. João Gutierrez faz um movimento de corpo, desvia da lâmina afiada. Num segundo, pren­de a adaga na boca e joga a boleadeira, girando-a no alto da cabeça. Desde pequeno sabe manejar a boleadeira. As bolas de ferro dançam no ar como pássaros furiosos, um instante, e voam em direção ao im­perial. O homem cai do cavalo. João Gutierrez pega a adaga, crava-a no pescoço com um único e certeiro golpe. A lâmina adentra aquela carne. Há um estertor, o imperial arregala os olhos, abre a boca sem palavras. Agora o mundo todo é um único silêncio, nada mais importa senão aquela adaga e aquela morte.

João Gutierrez pula para cima do cavalo. Agora não está mais a pé. Agora olha de cima a batalha e os rostos inimigos. Tem vontade de gritar o nome de Mariana. É por ela que está ali, é por ela que mata, que corre, que peleja. Vai degolar uma centena de imperiais. Não pela República, mas por Mariana. Vai ganhar uma medalha, por Mariana. E quando tudo isso acabar, há de limpar sua adaga de todo o sangue, lavar sua alma de todo o sangue, e voltar para a mulher que o espera.

Violenta explosão arranca-o dos seus devaneios. O inimigo come­çou a canhoada. Uma bala cai por perto, destroçando homens, enchen­do de pólvora o ar. Os soldados correm em pânico. João Gutierrez instiga o cavalo. Sai galopando pela campina. O sol agora ilumina tudo, descortinando sem piedade aquela paisagem de horror e de morte. Os olhos indiáticos de João Gutierrez estão mais negros do que nunca.

— Tudo isso é por usted, Mariana — grita ele, para o vento que cheira a pólvora e sangue. — Tudo por usted!

 

  1. Antônia desceu da sege e subiu para a varanda. Desde a pneumo­nia estava mais seca de carnes, os olhos escuros e decididos salientavam-se no rosto fino. Sorriu levemente para Manuela, que estava len­do, sentada sob o alpendre.

— Buenas, Manuela. Onde está a sua mãe?

O rosto era sério como de costume. D. Antônia não gastava sorri­sos. Manuela baixou o livro, sorriu para a tia preferida. A mãe estava no quarto, a fazer nada, talvez rezando.

— Vosmecê sabe, tia, a mãe anda cada vez mais calada. É por cau­sa de Mariana.

  1. Antônia sentou numa cadeira. Perdeu os olhos, um instante, na tardinha que definhava docemente.

— Sua mãe anda muito confusa, Manuela. Aconteceram coisas demás, e ela sempre foi frágil, desde pequena. A mais frágil de nós. — Suspirou. — Mas nada explica o que ela está fazendo com Mariana. Essa menina está trancada no quarto há quase três meses.

— A mãe nunca mais falou com ela,

— Eu sei. Por isso vim aqui. Hay que resolver essa crueldade. — Bateu as mãos nos joelhos. A voz ganhou outro tom. — Vá chamar Maria Manuela para mim. Diga que vim vê-la. — Ergueu-se. — Vou esperar no escritório.

 

Maria Manuela achou na expressão facial da irmã mais velha a lembrança vivida da falecida mãe. Mas a mãe não a olharia com aqueles olhos frios e negros, tão secos. Não, a mãe sempre tinha protegido a filha caçula. Para D. Perpétua, Maria Manuela precisava de atenções especiais, de cuidados excessivos. Não tinha nascido com a fibra dos outros filhos. Seu mingau era mais doce; suas tarefas, as mais suaves. Assim fora criada; quando casou, Anselmo continuou protegendo-a do mundo.

— Vosmecê mandou me chamar?

— Mandei sim.

— Sucedeu alguma cosa?

  1. Antônia olhou-a gravemente. Os mesmos olhos de Bento. A mesma ânsia de corrigir, a mesma responsabilidade sobre tudo, sobre todos.

— Sucedeu, vosmecê sabe mui bien. Sucedeu que a sua filha está grávida de um peão. Sucedeu que está trancada num quarto faz três meses, trancada como um bicho.

Maria Manuela desabou numa cadeira.

— Eu não queria que isso tivesse acontecido. — Suas mãos tre­miam levemente.

— As coisas não acontecem à mercê da nossa vontade, Maria. A vida é assim, já é tempo de vosmecê saber disso. Mas é preciso cuidar dessa menina... — Olhou-a nos olhos. — Vosmecê não quer que ela fique como Rosário, quer?

Maria Manuela espantou-se:

— Rosário não tem nada. Uma perturbação passageira. Quando voltarmos para casa, quando a guerra acabar, ela estará boa.

— Rosário não fica mais boa... Vosmecê sabe disso. O que ela tem é para sempre.

— E o que ela tem? — titubeou.

— Rosário está louca.

As lágrimas começaram a correr suavemente pelo rosto de Maria Manuela. D. Antônia sentiu também o pranto a rondá-la, mas ficou firme, olhos secos. Era o esteio daquela gente, sabia disso. Sabia que Bento esperava isso dela, onde quer que estivesse. Ela não tivera fi­lhos, mas tinha aquelas irmãs, as sobrinhas, a cunhada e os meninos. Precisava cuidar deles.

— Não diga isso, por favor, Antônia... D. Antônia pareceu subitamente triste.

— Estou sendo sincera. Rosário está perdida para esta vida. Mas não Mariana. Ela ainda tem futuro. Decerto, não um futuro que tivés­semos escolhido, mas um futuro que ela escolheu. — Fez uma pausa. — Mariana vai ter um filho. Precisa de cuidados.

— Não posso fazer nada, eu juro. Não tenho forças. Rezei, rezei muito, mas não tenho forças.

  1. Antônia amaciou sua voz:

— Vosmecê não precisa cuidar dela. Deixe que eu cuido. Vou le­var Mariana comigo para a Estância do Brejo.

 

Bento Gonçalves saboreou cuidadosamente a notícia. Um sopro na­quele deserto de intrigas e de problemas. Lucas de Oliveira, à sua frente, sorriu largamente. Haviam rebentado revoluções em São Paulo e em Minas Gerais. O Império se enfraquecia visivelmente, e tudo isso só podia confabular com a República Rio-grandense.

— E um bom momento — disse Lucas. — Precisamos utilizá-lo. São Paulo e Minas Gerais podem ser aliados. Formaremos uma fede­ração, Bento.

Lucas de Oliveira ainda era um homem bonito. A guerra tinha arra­nhado de leve as suas feições, mas permanecia latente em seus olhos aquele brilho orgulhoso.

— Vamos convocar o congresso. — Bento Gonçalves recostou-se na cadeira. — Vamos votar a nossa Constituição. Já decidi uma coisa: vou dirigir o leme do governo e passar o comando das tropas para o Netto. Este é o momento de ordenar a República.

— É preciso avisar o Netto, na fronteira.

— Vou mandar o Bento, meu filho, avisá-lo sem tardança. Lucas de Oliveira sorriu, satisfeito. As coisas tomavam bom rumo, e já não era sem tempo.

Bento Gonçalves fitou o outro, o júbilo nos seus olhos era excessi­vo. Ou era ele que já não tinha mais força? Sentia-se cansado outra vez, e doente, e velho.

— Vosmecê tenha cuidado, Lucas. Essas duas revoltas nos favo­recem, buenas. Mas temos problemas maiores, problemas internos. Estamos divididos, Lucas. E é impossível dividir e somar ao mesmo tempo. Precisamos agir com moderação.

Virou-se para a janela. Lá fora, a manhã pesada derramava suas luzes baças sobre a cidade. Fazia um frio úmido. Soldados atravessa­vam a rua em rebuliço. Uma carroça carregada de mantimentos pas­sou, fazendo barulho. Um cusco latiu. Faltava brilho naquilo tudo, ou eram seus olhos que não sabiam mais ver? Ele suspirou fundo. Lucas de Oliveira pediu licença e saiu do escritório. Bento Gonçalves pegou da pena. Precisava escrever um manifesto. Colocou a data: treze de junho de 1842. A mão parecia cansada e sonolenta. Tinha manchas escuras no dorso, ele sabia que eram manchas de velhice. Seria bom entregar o comando das tropas para Netto.

 

Joaquim aproximava-se lentamente da fazenda. Podia sentir o ar gélido agulhando sua pele, vencendo a lã do pala com persistência, enrege­lando seus braços. As meias e as botas não aqueciam seus pés. Fazia um frio cruel. E amanhecia. A névoa dava um ar irreal à paisagem si­lenciosa. Joaquim atiçou o zaino, mas o cavalo continuou seu trote lento, também ele envolto naquela mística bruma, quase como se flu­tuasse por sobre a estrada deserta.

Tinha a cabeça cheia de pensamentos, de planos. E de dúvidas. Um redemoinho de angústias rodopiava ante seus olhos. Ele veria Manuela. Depois de tanto tempo, veria Manuela. Os olhos verdes, aquosos, o rosto bonito, claro, sóbrio, misteriosamente sutil. O último encontro tinha sido dolorido. Ainda lembrava do seu olhar, aquele olhar amo­roso, cheio de um amor que não era seu. Será que a prima pensava no italiano, ou a partida dele teria arrefecido seus ardores? Do pouco que conhecia das entranhas do sentimento de Manuela, podia adivinhar que ela ainda teimava em amar Garibaldi. Sim, teimava. Garibaldi agora era casado e tinha um filho. Sabe-se lá em que recanto andava desde que partira rumo a Montevidéu com as cabeças de gado que recebera. Joaquim enfiou a mão por sob o pala, procurando o bolso do dólmã. Sentiu o peso e o volume do broche. Tinha ganhado aquela jóia de sua avó materna. As pequenas pedras de esmeralda exibiam a mesma cor dos olhos de Manuela. Ao dar-lhe o broche, a avó dissera, no seu espa­nhol rouco: "É para su mujer." Quando encontrasse uma. Fazia mui­tos anos, desde a adolescência, que tinha aquela jóia guardada. Mesmo com a negação de Manuela, com sua insistência, não pudera esquecê-la. Em cada batalha, em cada noite fria, estrelada, chuvosa ou negra, pensara nela. Ao cuidar dos feridos, ao ouvir o pai falar das suas dúvi­das, dos planos da República, em cada palavra, suspiro ou olhar seus, havia um pouco da saudade que sentia de Manuela. Havia-se decidido a fazer a derradeira tentativa. E então o pai pedira que fosse até Camaquã. Tão perto da Estância da Barra, tão perto dos olhos verdes de Manuela.

O cavalo pareceu reconhecer o caminho. A bruma lutava com os primeiros raios de um sol tênue. Joaquim ouviu os murmúrios do Rio Camaquã. Lembrou dos banhos com os irmãos. Fazia tanto tem­po. Tudo fazia tanto tempo. Agora quase não vivia mais. Era apenas aquele sangue, aquela angústia, as disputas, a doença do pai, a espe­ra pelo sim de Manuela. Viu, ao longe, a porteira da fazenda. Um súbito calor tomou seu corpo. Decerto, as tias e a mãe já estariam à mesa do café... Logo, mui logo, veria o rosto da prima, o rosto fresco, ainda sonado de Manuela, e o brilho muito verde, puro, úmido do orvalho noturno, daqueles olhos com os quais sonhava nas suas noi­tes de acampamento.

 

  1. Antônia entrou com a bandeja. A sala recebia as luzes inquietas que vinham da lareira, um lampião ardia por sobre a mesa. Mariana estava sentada à beira do fogo, um cobertor sobre as pernas. O rosto moreno exibia contornos mais delicados e cheios. Toda ela tinha agora os ares lânguidos do final da gravidez, e o ventre proeminente salientava-se por sob o vestido escuro. D. Antônia aproximou-se devagar. Os olhos da sobrinha estavam fechados. Talvez ela dormisse, mas D. Antônia imaginou que não, que apenas se escondia do mundo, num lugar só dela, onde podia pensar em João Gutierrez com calma e liberdade. Fechar os olhos era como trancar uma porta. Muitas vezes, ela mesma buscara esse refúgio, quando queria recordar o marido morto sem deixar transparecer aquela imensa tristeza que ainda a habitava, mes­mo depois de todos aqueles anos.

— Mariana — sussurrou. A moça abriu os olhos lentamente. — Trouxe uma sopa para vosmecê. Sopa de legumes. Desde cedo que vosmecê não come nada, e precisa se alimentar. Esse bebê necessita de comida, minha filha.

Mariana sorriu. Ergueu o corpo, acomodando-se melhor na pol­trona.

— A senhora está sendo muito boa, tia.

  1. Antônia sentiu os olhos úmidos. Ajeitou a bandeja no colo da sobrinha. Depois sentou ao seu lado e esperou que ela comesse. O si­lêncio da sala, onde o fogo crepitava, era reconfortante. Podiam ouvir o vento invernal zunindo lá fora.

Mariana acabou de comer.

— Sei que vosmecê está sofrendo por demás, Mariana. — A voz de D. Antônia era suave. — Sua mãe não ajudou nas coisas, e pôr um filho neste mundo é tarefa dura. Eu nunca tive um filho, mas sei bem.

— Esse meu filho vai sofrer mais ainda depois de nascido, tia. Vai sofrer mais do que eu. Será um filho sem pai. Quem vai gostar dele, tia?

  1. Antônia recolheu a bandeja e depositou-a no chão. Tomou a mão da sobrinha, a mão morna e inchada da sobrinha.

— Não diga isso, minha filha. Esse seu filho tem pai. Talvez não o pai que sua mãe desejasse, ou que eu mesma desejasse, mas tem pai. Ele se chama João Gutierrez e é um soldado da República.

Mariana perdeu os olhos no fogo.

— Talvez João já esteja morto...

— Vosmecê sente isso? Nesses meses, sentiu, em algum momen­to, esse aviso? Como se o seu coração parasse de bater por um longo instante, como se o seu sangue gelasse nas veias, sentiu, Mariana?

Mariana fitou a tia. Havia uma doçura nova naqueles olhos escu­ros. Nunca vira D. Antônia assim, materna, quente, acolhedora.

— Não, não senti.

— Então ele está vivo, Mariana, acredite. — D. Antônia fechou os olhos um momento. — No maldito dia em que meu Joaquim caiu daquele cavalo, eu senti. Foi como se o minuano soprasse dentro de mim... Quando o capataz veio me avisar do sucedido, eu já sabia. — Virou o rosto para o fogo.

Mariana apertou as mãos da mulher mais velha.

— Tenho medo, tia.

— De quê, minha filha?

— De morrer no parto. Do meu filho ficar solito neste mundo. Minha mãe decerto não há de querê-lo.

— Vosmecê não vai morrer no parto, Mariana. Mas fique sosse­gada. Se qualquer coisa acontecer, eu cuido do seu filho. E mando procurar o João por todo esse Rio Grande, le juro. Falo com Bento, ele acha o pai do seu menino onde ele estiver. — Afagou os cabelos negros e espessos da sobrinha. — Mas nada disso vai acontecer, mi­nha filha. Você vai ter essa criança, o João vai voltar quando essa pe­leja acabar. Vosmecê creia nisso que le digo.

— É um menino — sussurrou Mariana.

— O quê?

— Esse filho que estou esperando, tia. É um menino. Eu sonhei com ele.

  1. Antônia sorriu.

— Nesse causo, vosmecê já escolheu o nome?

— Matias. Vai se chamar Matias.

— É um nome hermoso.

Mariana fechou os olhos. D. Antônia ajeitou melhor o cobertor por sobre o corpo da sobrinha. Ela estava inchada e lenta, cada dia mais. Faltava pouco para o parto, tinha certeza. Era melhor deixar Rosa de sobreaviso. Matias ia nascer logo, talvez ainda naquela semana.

 

Manuela aguardou o dia inteiro que Joaquim viesse ter com ela. Aguar­dou com angústia. Durante o último ano, muitas vezes se pegara a pensar num casamento com o primo. E sempre aquele mesmo senti­mento de pasmaceira a tomava, como se estivesse semimorta, um fan­tasma sem alma por sob a pele. Era isso que sentia quando se via como esposa de Joaquim. Por diversas vezes, chorara. Aquele amor por Giuseppe era como uma doença letal. Não tinha cura ou paliativo. Agora ela estava decidida: diria ao primo o seu último não. Sabia que ele viera vê-la, vira nos seus olhos aquele ardor ainda intocado. E ti­nha pena daquele amor não correspondido, tinha muita pena. Se pu­desse, de bom grado arrancaria do peito a paixão por Giuseppe, mas não podia. Era uma espécie de fado. Um destino. A vida de cada um vinha escrita como as páginas de um caderno, como as páginas do diário que ela mesma traçava todas as noites. Não se casaria nunca mais. A não ser que Giuseppe voltasse. Porque esperaria por ele, a cada minu­to, a cada dia, durante todos os anos, até que a velhice lhe roubasse o tino e o sentimento. Tinha pouco para dizer a Joaquim. Apenas que sentia muito. Sentia por ambos. Decerto Joaquim encontraria outra pessoa, mas ela não. Ela seguiria sozinha, esperando, para sempre.

O sol invernal aquecia docemente o jardim naquela tardinha de céu azul. Manuela atravessou o quintal, seguindo para o pomar. Ia buscar umas laranjas. Joaquim devia estar com os cavalos, ou proseando com a mãe. Não se demoraria muito na estância, pois tinha dito que Bento Gonçalves esperava por ele no Alegrete. Manuela caminhou com pres­sa. Viu Zé Pedra ao longe, capinando. Acenou para o negro alto e espadaúdo. Ele sorriu, os dentes brancos brilhando no rosto muito escuro.

As laranjas tinham um cheiro bom, de infância. Ela foi enchendo o cesto de palha. A mãe queria fazer um doce. Milagre, a mãe demons­trar alguma vontade. Ultimamente, passava os dias trancada no quar­to, dormindo e rezando. Mas, desde que Mariana fora para o Brejo com D. Antônia, Maria Manuela melhorara seus humores. A filha grá­vida era como um espinho cravado na sua pele. Manuela pensou na irmã. Agora, graças a Deus, recebia cuidados. Perpétua tinha feito as contas e dissera que a hora de Mariana estava mui perto. Ela precisa­va ir vê-la, ver se queria alguma coisa... Notícias de João, não tinha. Mas pediria para que Joaquim o descobrisse e avisasse que o seu filho estava para nascer.

— Vosmecê está pensando em quê?

A voz de Joaquim surgiu do meio das árvores. Ele apareceu um segundo depois, sorrindo. Usava um uniforme limpo e bem engomado.

— Estava pensando em Mariana e no João Gutierrez.

— Tudo isso foi uma surpresa mui grande para mim.

— A vida é cheia de surpresas, Joaquim.

— E nem todas boas, não le parece? Manuela arrancou mais uma laranja do pé.

— Sim, vosmecê tem razão. Mas le digo que Mariana não é de todo infeliz. Vai ter um filho. E João Gutierrez pode voltar.

— É verdade. Ouvi dizer que se juntou aos homens do Netto. — Joaquim começou a colher laranjas também. — E o Netto é um gran­de guerreiro. Quem está com ele está mui bien.

— Você poderia avisá-lo que a criança de Mariana vai nascer? Joaquim pestanejou.

— Não sei, Manuela. Mas vou fazer o possível. Ele está em algum lugar da fronteira, vou ver se o descubro.

— Já está bom — disse Manuela, indicando o cesto cheio de fru­tas até a metade.

Joaquim tomou o cesto. Seguiram lado a lado. Um cheiro bom pairava no ar frio.

— Manuela... — A voz de Joaquim era suave. — Manuela, vim le perguntar pela última vez se vosmecê pensou em mim, no meu pedido de casamento. Le juro que depois de hoje nunca mais toco no assunto, Manuela. — Enfiou a mão no bolso do dólmã. — Le trouxe isto. — O broche cintilou. — Foi da minha avó, mãe da minha mãe. Ela me deu para que eu presenteasse minha esposa. Vosmecê não é minha esposa ainda, Manuela, nem sei se será. Mas fique com ele. Se não for seu, não será de mais ninguém nesta vida.

Manuela segurou o broche.

— É muito bonito, Joaquim. Mas não posso aceitar. Joaquim andava ao seu lado, levando o cesto de laranjas. Parou um instante.

— Isso é uma resposta, Manuela?

— É sim. Me desculpe... Eu pensei muito, le juro. O rosto dele perdeu todo o viço.

— Está certo. Como vosmecê disse, a vida é cheia de surpresas. Mas talvez isso não seja surpresa para mim, Manuela. Eu já sabia que vosmecê não iria mudar sua decisão. Mesmo assim, fique com o bro­che. Combina com seus olhos.

Joaquim pediu licença e saiu andando em passos largos rumo à cozinha. Manuela seguiu mais atrás. O broche de esmeraldas queima­va em sua mão.

 

  1. Ana entrou na sala com o envelope na mão direita. Perpétua nina­va a filha menor num canto da sala. Caetana tricotava um par de meias para Bento — Joaquim contara-lhe que ele andava um pouco fraco dos pulmões. Queria mandar aquelas meias pelo filho que partiria no dia seguinte.

— Carta para vosmecê, Perpétua. Um peão trouxe.

  1. Ana falou com certo receio na voz. Tanto temiam quanto aguar­davam aqueles telegramas. A vida e a morte vinham estampadas na­quelas linhas. Perpétua pareceu espantada um instante. Entregou a menina para Xica, mandando que a levasse para o berço. Foi pegar a carta que a tia lhe estendia, as mãos um pouco trêmulas.
  2. Ana sentiu pena.

— Vosmecê fique calma. Se fosse coisa séria, teria sido entregue por um soldado.

Caetana parou o trabalho por alguns minutos e ficou esperando que a filha abrisse o telegrama.

Perpétua leu as parcas linhas em pé, no meio da sala, tendo as duas mulheres fitas em seu rosto.

— Inácio foi eleito deputado para a Assembléia Constituinte da República — disse, sorrindo.

— Isto sucede quando? — perguntou D. Ana. — Essa tal as­sembléia?

— Em dezembro, tia. Na cidade de Alegrete. Vão votar a consti­tuição da República.

  1. Ana sentou na sua cadeira de balanço.

— Buenas. Mas fico me perguntando para que valem as leis, en­quanto esta província se mata pelas coxilhas afora.

Caetana baixou os olhos, retomando o trabalho. Não entendia de leis. Tudo o que lhe importava agora era aquele tricô, era a certeza de que seu Bento não passaria frio, de que ela mesma não receberia um telegrama semelhante àquele — o telegrama nefasto que temia desde o começo daquela revolução.

— Eles sabem o que fazem, tia. — Perpétua guardou o telegrama no bolso do vestido. — Vamos esperar para ver.

— E temos feito outra cosa nesta vida? — D. Ana tomou também do seu bordado. Desde que Pedro morrera, tão longe dela, como num sonho, desacreditara daquilo tudo. Só o que desejava era paz, era ter José na estância, cuidando do gado e da venda do charque. Tudo o que desejava era um passado que já não voltaria mais. Seus três ho­mens em casa. De certa forma, ainda tinha Paulo, enterrado sob a fi­gueira; mas Pedro, seu Pedrinho, esse estava perdido para sempre, embaixo de algum pedaço de chão do Continente, sem uma vela ou uma ramo de flor.

 

Mariana tinha acordado com um peso estranho nos quadris. Um can­saço agudo que a deixara na cama até quase o fim da manhã. Sob as cobertas, pensava em João. A barriga muito saliente e distendida era como um coxilha. Ficou imaginando o bebê que estava ali dentro, es­perando para sair. Queria que fosse parecido com o pai, os mesmos olhos oblíquos. Queria tê-lo em seus braços, sentir seu peso e seu cheiro, o gosto da sua pele, o tato dos seus cabelos. Sempre desejara aquele filho, mesmo quando a mãe a tinha posto presa no quarto, sozinha, sem contato com o mundo lá fora. Ainda assim acalentara aquela criança como o melhor dos seus sonhos. Agora estava mui perto da sua chegada.

 

  1. Antônia apareceu pelas onze horas. Fitou longamente a sobrinha, perguntou se tinha dores, se tinha fome. Ela respondeu que estava apenas cansada. D. Antônia sorriu. Disse que voltava mais tarde. Ao sair do quarto, mandou chamar Nettinho. Que ele fosse até a Estância da Barra, buscar D. Rosa. Era coisa urgente.

— O bebê de Mariana nasce ainda hoje.

O negrinho saiu chispando pela manhã nebulosa.

 

Agora a dor começou. Vai e vem. Nunca viu o mar, mas recorda a descrição que o italiano Garibaldi fez dele certa vez. Essa dor deve ser como a maré. Vem em ondas. Mas aumenta cada vez mais. Uma dor quente. Ela sente que o corpo abre passagem para o filho, que os ossos se deslocam, que uma força interna empurra tudo para baixo. Não consegue manter as pernas fechadas. Não consegue pensar. Talvez apenas recorde o rosto de João. O rosto de João flutuando naquele mar de dor. E a vontade de ver o seu filho. A vontade atroz de segurá-lo, de libertá-lo daquele ninho de carne. Ela sua muito, o suor escorre pelo seu rosto em gotas graúdas. D. Antônia, muito ca­lada e serena, seca seu rosto com uma toalha. E diz coisas bonitas. Que vai ter um filho saudável. Agora falta pouco. Muito pouco.

— O pior já passou, Mariana.

O pior foram aqueles meses de claustro. D. Rosa entra no quarto com uma pilha de toalhas, um balde de água. Atrás dela vem uma ne­gra trazendo uma pesada tesoura. Sabe que ferveram a tesoura, e que ela cortará o cordão umbilical. Quer perguntar alguma coisa, mas a dor vem outra vez, com mais fúria, dilacerando.

— Respire fundo — diz D. Rosa. — Não pare de respirar.

Ela obedece. Enche os pulmões e solta o ar. Briga com a dor, dan­ça com ela, dão-se as mãos. D. Rosa diz que não deve evitar aquela dor, será ela que lhe trará o filho. E a tia repete que falta pouco. Falta muito pouco. A negrinha parada num canto tem os olhos arregalados de pavor.

O tempo passa e congela-se. Tudo agora é perene. A luz que entra pela janela solidificou-se ao redor de si, a voz da tia repete sempre a mesma interminável palavra. E aquela dor. Muito mais forte. Sente que o mundo se abre, que as pernas estão longe, escancaradas por aquele túnel por onde jorra a vida. D. Rosa debruça-se sobre ela, sorrindo. A dor da vida.

Mariana faz força. Empurra como se quisesse se virar do avesso. A voz da tia instiga-a a continuar. A negrinha fugiu para um canto. Não sabe que grita, que chama por João. Não sabe nada, é um caminho a ser trilhado e nada mais, nada mais. Um caminho. A luz derrama-se sobre ela como um halo dourado.

Um choro novo ganha o quarto.

O coração de Mariana explode de uma emoção maior que o mundo.

— Faz força mais uma vez, menina!

E então tudo se rasga, tudo se despetala- Entre suas pernas está aquele ser úmido e vermelho e latente, gritando de espanto e de medo. D. Antônia chora. Ela chora, o bebê chora. A negrinha aproxima-se com cautela e alcança a tesoura. Com um movimento ágil, D. Rosa corta o cordão umbi­lical. Pega a criança no colo, deposita-a sobre o peito de Mariana.

— E um menino, minha filha. — A voz de D. Antônia está embar­gada.

— Um menino — repete, bêbada de emoção. — Vai se chamar Matias.

  1. Rosa faz força sobre seu ventre.

— Agora é só tirar a placenta — diz.

Deitado no regaço da mãe, Matias pára de chorar.

 

A noite no acampamento é gélida, apenas iluminada pela luz das estre­las e por uma fogueira ou outra. As barracas espalham-se pelo descam­pado, barracas esfarrapadas, qual animais feridos e encolhidos de frio. Mas a maioria dos homens não têm barraca, dormem sob o pala, enro­lados nos velhos ponchos de lã puída, perto do fogo, sob os carroções. O cansaço espanta os sonhos. Uma coruja pia ao longe. Aqueles que não têm sono pitam seus palheiros, proseiam em voz baixa, economi­zando calor, uns perto dos outros.

João Gutierrez dorme perto de uma fogueira. A viola, ao lado do seu corpo, é como uma mulher amorosa. Faz pouco, tocou uma milonga, pensou em Mariana, ficou esperando o sono chegar. E o sono veio. Faz tempo que João Gutierrez não sonha. Logo que entrou para a peleja, sonhava com degolas e sangue e canhonaços; depois parou de sonhar. As noites são curtas e exaustas demais para o luxo dos sonhos que pedem lençóis limpos. O sono da guerra é negro e silencioso e pesado. O sono da guerra é vazio.

Mas hoje João Gutierrez sonha. Está num quarto muito alvo que cheira a hortelã e coisas feminis. Pisa com calma, o chão é macio feito espuma, as paredes muito altas não deixam ver o teto. Ele avança com um sorriso nos lábios, está muito feliz. Vai tateando por aquele quarto de nuvens, estreito e comprido como um corredor, vai pisando manso, afundando os pés na massa gelatinosa que cobre o chão. No fundo do quarto há um berço; debruçado sobre ele, um vulto de mulher. João avança mais rápido. Paira no ar uma melodia mui antiga, talvez de outras eras, uma música arcaica que tantas vezes a mãe lhe cantou. João chega perto do berço. A mulher levanta o rosto para ele, é Mariana. Dentro do berço, enrolado numa velha manta que sua mãe teceu certa vez, está o menino.

João Gutierrez abre os olhos para o frio da noite. Dois soldados conversam ali perto, as vozes morosas perdem-se no ar. Ele teve um sonho bom. Não lembra exatamente desse sonho, ficou apenas aquele resto de alegria em sua alma, aquela sensação jubilosa que não pode vir desse pampa varado pelo ar frio do inverno, dessa cama improvisa­da com velhos cobertores úmidos de orvalho. João faz força para re­cordar o sonho, busca nas entranhas do seu espírito uma imagem, um som, um sopro qualquer. E então vê o rosto do menino deitado em seu bercinho. É uma criança morena, de pele azeitonada. Seu filho. Tem certeza disso.

A cabeça anuviada faz força para contar as luas desde que Mariana lhe deu a notícia. Agora tem certeza: já é bem o tempo de o filho nas­cer. Lá na estância, em algum cômodo daquela casa branca e esparra­mada, o menino nasceu. Nasceu de Mariana, ainda nessa noite. Ele nunca tivera um sonho tão vivido em toda a sua vida. Sim, seu filho nasceu. Ele procura lembrar em que dia estavam. Era madrugada, logo amanheceria. Outro dia de inverno, um inverno que tinha aberto seus braços nebulosos para receber seu filho. Era vinte e oito de julho, e Matias tinha vindo dar as caras ao mundo. João Gutierrez sente uma lágrima escorrendo pelo seu rosto. No meio do acampamento farrapo, ele chora. Chora de felicidade, pela primeira vem em toda a sua vida.

 

Rosário está sentada no pátio, tomando o sol da primavera. Algumas flores crescem no jardim do convento, depois do longo inverno pam­peano. As noviças estão por ali, bordando, fazendo roupas para os órfãos, costurando. Aproveitam o sábado bonito antes que chegue a hora das vésperas. A madre gosta que apanhem sol, que apreciem as benesses de Deus. Do outro lado dos altos muros, a guerra continua, mas ali, naquele jardim, tudo é paz e consolação.

As noviças falam pouco com Rosário. Seus longos e misteriosos silêncios incomodam as outras, sua beleza as fere. A beleza de Rosário tornou-se mais etérea com o claustro, sua pele mais translúcida e lisa, o azul dos olhos mais suave, celestial. Toda ela é uma figura mística, quase uma aparição que parece se desvanecer a cada passo, a cada sorriso. E como se ainda outro amanhecer não pudesse surpreendê-la, como se cada noite trouxesse o fim da sua imagem cristalina. As outras moças, perto dela, são toscas e tristes e terrenas demais. Rosário quase não precisa rezar para estar perto de Deus. É como uma das imagens da capela. A madre sente-se incomodada com isso. Tanta beleza só pode ser pecado. A madre proíbe Rosário de usar os cabelos soltos e as ves­tes claras que trouxe de casa, mas tudo isso parece deixá-la ainda mais bela e frágil. As noviças comentam que Rosário, a sobrinha do gene­ral-presidente, é louca. Que ama um fantasma. Já passaram muitas noites à espreita pelos corredores, tentando cruzar seus olhos com a figura do belo fantasma uruguaio que enfeitiçara a alma de Rosário de Paula Ferreira. Nunca o enxergaram com certeza. Uma delas achou tê-lo visto, certa noite, perto do pequeno cemitério. Um facho de luz que descortinou por breves momentos a imagem de um jovem soldado. Mas logo tudo se desvaneceu, restando apenas a noite e o vento frio, e a noviça assustada correu de volta à sua cela para esquecer no sono aquela imagem terrível.

Rosário vai arrancando as pétalas de uma flor minúscula que co­lheu entre os chumaços de capim. A mãe veio vê-la faz poucos dias, falou pouco, contou de Manuela, das tias e da morte de Pedro. Nada disse sobre Mariana. A mãe partiu com os olhos tristes e um peso na alma que ela soube reconhecer. Foi por isso que não a avisou. Sim, porque já sabe. Steban anunciou que vão, enfim, casar. Rosário sabe mui bien o que isso significa. Mas está preparada. Ama Steban mais que a tudo, mais que à mãe, às irmãs, à casa em Pelotas, que há tanto tempo não vê. Ama Steban muito mais do que ama seu irmão Antônio. E quer livrar-se daqueles muros, das horas mortas de oração, do eter­no badalar dos sinos, do gosto das hóstias e do cheiro de incenso. Sabe que ao lado de Steban vai ganhar o mundo, não este mundo de árvo­res, coxilhas e de sangue; mas outro, muito maior e mais bonito, onde só haverá paz e aquele amor imenso que os une. Um mundo só deles, onde ambos viverão para sempre.

 

O Barão de Caxias assumiu as funções de presidente da província e comandante de armas do Império no dia nove de novembro de 1842 em Porto Alegre. Tinha um plano bem entabulado para vencer as for­ças rebeldes. Enquanto o efetivo farroupilha era de 3.500 homens, ele contava com um exército de mais de 11.500 praças; porém, os solda­dos farrapos eram todos de cavalaria, enquanto o exército imperial contava apenas com 2.500 cavaleiros. Além disso, na Campanha, os revolucionários dominavam todo o território e estavam de posse das cavalhadas. Era nisso que se baseava o plano do Barão de Caxias: con­seguir cavalos para dar batalha aos revoltosos em seu próprio espaço. Em Porto Alegre, reuniu seus homens e expôs seu projeto de guerra. Seguiriam para a Campanha com as tropas articuladas numa só colu­na, precedida de uma vanguarda. Dela, destacaria as divisões que fos­sem necessárias, as quais sempre operariam de acordo com a coluna principal. E não arregimentariam mais forças em locais onde os rebel­des tinham deixado de agir. Mandaria embarcados, de Porto Alegre para a linha de São Gonçalo, onde comandava o coronel Silva Tavares, o 3º batalhão de fuzileiros e o 5º de cavalaria da Guarda Nacional, e ele mesmo dirigir-se-ia-se com seus homens para lá. De São Gonçalo, abalariam todos juntos para São Lourenço, e de lá para a Campanha. Esperava assim iludir os revolucionários sob o comando do general Netto, que imaginariam uma junção com o Exército em Piratini. Na Campanha, daria batalha campal aos farrapos e esperava esmagar a revolução.

 

Depois de duas sessões preparatórias, realizadas a vinte e nove e trin­ta de novembro, a Assembléia Constituinte farroupilha foi solenemen­te instalada no dia primeiro de dezembro de 1842. Na noite anterior, a cidade de Alegrete iluminara-se como para uma festa.

Bento Gonçalves da Silva adentrou o salão com passos decididos. Havia passado uma madrugada abafada e difícil. Respirara mal e tive­ra febres. Joaquim, que estava na Assembléia como suplente de depu­tado, mais uma vez aplicara-lhe compressas. Porém, como sempre, depois dessas longas noites de vigília ele se erguia da cama com as mesmas feições controladas e ia tomar tento dos seus afazeres. Agora estava ali, em frente aos vinte e dois deputados eleitos. Sabia que o plenário estava faccionado em duas correntes, uma chefiada por Do­mingos José de Almeida, e outra por Antônio Vicente da Fontoura. Respirou fundo e começou seu discurso.

— "Senhores, se não me é dado anunciar-vos o solene reconheci­mento da nossa independência política, gozo ao menos a satisfação de poder afiançar-vos que não só as repúblicas vizinhas como grande parte dos brasileiros simpatizam com a nossa causa. Mui doloroso me é ter de manifestar-vos que o governo imperial nutre ainda a pertinaz pre­tensão de reduzir-nos pela força; porém meu profundo pesar diminui com a grata recordação de que a tirania acintosa exercida por ele nas outras províncias tem despertado o inato brio dos brasileiros, que já fizeram retumbar o grito de resistência em alguns pontos do Império. E assim que seu poder se debilita e que se aproxima o dia em que, banida a realeza da terra de Santa Cruz, nos havemos de reunir para estreitar os laços federais à magnânima nação brasileira, a cujo grêmio nos chamam a natureza e nossos mais caros interesses. Todavia, de­vem inspirar-nos mais confiança, devem convencer-nos de que alfim triunfarão nossos princípios políticos o valor e a constância de nossos compatriotas, a resolução em que se acham de sustentar a todo o custo a independência do país. De baixo de tão lisonjeiros auspícios come­çam vossos trabalhos; cessa desde já o poder discricionário de que fui investido pelas atas de minha nomeação; cumprindo, pois, as condi­ções com que fui eleito, eu o deponho em vossas mãos."

 

A Assembléia realizou algumas sessões, sempre numa atmosfera de discórdia e desconfiança, legislando apenas sobre a maneira de pro­mulgação das leis e a suspensão das garantias individuais. Bento Gon­çalves desconfiava de um plano secreto para assassiná-lo; os deputados de oposição não aceitavam a suspensão das garantias, os ânimos se acirravam mais e mais.

Na terceira reunião, os deputados oposicionistas retiraram-se. Nos dias seguintes, não houve quórum para a votação de nenhum projeto de lei. No decorrer desses dias, demitiram-se três ministros, Fontoura, Padre Chagas e Pedroso. Bento Gonçalves da Silva começou a sofrer com mais intensidade os sintomas da sua doença. Não dormia mais, nem comia direito. A casa alugada no Alegrete pesava com o clima difícil que se instaurara na Assembléia. Bento Gonçalves sentia-se pressio­nado por todos os lados, acuado, furioso. Onofre Pires, seu primo, comandava a oposição. Joaquim via o estado nervoso do pai sem nada poder fazer. E o calor de dezembro sufocava tudo, gentes e coisas, dis­córdias e trapaças.

 

                      1843

                     Cadernos de Manuela

                     Pelotas, 12 de janeiro de 1860.

Aquela guerra teve muitos e longos verões. Alguns foram bons e românticos, como o que passei em companhia de meu Giuseppe, e outros, não tão felizes, mas igualmente doces, feitos de um tempo vo­látil, separado do mundo lá fora, um tempo só nosso, das mulheres que viviam naquela casa e nas adjacências, e que teciam seus traba­lhos como quem tece a própria vida, sem tolas ansiedades nem vãs esperanças.

Porém, o princípio do ano de 1843 foi assustador. No começo da­quele mês de janeiro, Manuel, o capataz, irrompeu na sala num final de tarde, muito alarmado. Trazia a notícia de que o Barão de Caxias com seu exército e imensa cavalhada vinha rumo a Camaquã. Ninguém sabia dos seus planos, nem imaginávamos que tramava um meio de ilu­dir os revoltosos, atravessando o rio e rumando pela margem direita da Lagoa dos Patos, onde não poderia mais ser alcançado pelas tropas farroupilhas. Tínhamos notícia de que o general Netto estava em seu encalço, mas não ali, pelas nossas bandas, onde o general sequer tinha passado ou mandado algum aviso de sua presença.

A voz profunda e lenta de Manuel foi derramando aquelas pala­vras, e o medo cresceu entre nós como uma sombra. D. Ana quis saber se era possível ter uma idéia do tamanho da tropa imperial que se apro­ximava, ao que Manuel respondeu:

— Parece que são quase dois mil homens. Uns vaqueanos viram a tropa atravessando a barra do São Gonçalo.

Minha mãe começou a chorar. Perpétua correu ao quarto para es­tar com as filhas, como se já houvesse algum perigo em deixar as duas crianças solitas, como se um soldado imperial estivesse desembainhando a espada bem no meio da nossa sala. E Leão, meu primo, que havia muito ansiava por entrar na guerra, deu um salto da sua cadeira, ju­rando que nos protegeria daquele perigo, que arregimentaria a peonada e que cuidariam da estância.

Dois mil homens se aproximavam! Com raiva, com ira, com von­tade de vencer e de esmagar a República e seus partidários. E estáva­mos nós ali, protegidas somente por um adolescente cheio de coragens, trinta peões e um altar tomado de velas.

— O Barão não seria capaz de invadir a estância. Isso não seria cosa de cavalheiro — disse D. Ana, pensativa.

Caetana olhou a cunhada com olhos espantados. E a voz rouca e quente perguntou: "Desde quando essa guerra é coisa de cavalheiros?" Fazia muito que essas elegâncias se tinham perdido entre degolas e matanças sem fim. Caetana era de opinião que corríamos perigo. Se o Barão invadisse a estância, pouco ou nada restaria. E a vingança seria grande. Éramos a família do presidente. Decerto, não nos haveria de matar, mas sofreríamos arreliações de toda espécie, sujeitas ao humor de dois mil homens dispostos a tudo.

  1. Ana decidiu que fecharíamos a casa pelos próximos dias. E os peões fizeram guarda, revezando-se por dias e noites. O mesmo fez D. Antônia, que abrigava Mariana e o pequeno Matias em sua estân­cia. Passamos assim aqueles dias abafados... Falávamos baixo, comía­mos pouco. Qualquer ruído nos alarmava até as dobras da alma, as negras andavam assustadiças, cheias de rezas. E dormíamos cedo, oran­do para que a noite escorresse rapidamente. O escuro sempre vinha habitado pelo medo.

Quando o Barão fez a sua travessia, naqueles dias ensolarados de janeiro, ouvimos o rumor longínquo das tropas e da cavalhada, um rumor como que animal, como se um imenso bicho se avizinhasse, cer­cando sua presa com calma e prudência. Nesse longo dia, nada fize­mos a não ser esperar. A noite veio e finalmente transformou-se em alvorada. Passamos a madrugada juntas, sentadas na sala, nós, as crian­ças, os meninos e as negras, esperando a sentença que o destino nos escrevia. Mas o Barão de Caxias atravessou o Rio Camaquã com seus homens sem nos incomodar. Tinha planos diversos. Ia para os campos de D. Rita ao encontro de outras tropas para seguir rumo à Campa­nha. Na manhã seguinte, D. Ana mandou reabrir a casa. Daquele pe­rigo estávamos salvas. Mas que ninguém andasse sozinha pelo campo, nem fosse à sanga, sempre poderia haver algum soldado imperial per­dido pelo caminho, e era bom que nos precavêssemos de tudo.

Noites de vigília como a que narrei me marcaram a vida... A minha mocidade latejava de medo e ânsia. E eu imaginava um batalhão de soldados invadindo nossa casa, com seus apetites de tudo, suas adagas afiadas, sua vontade de vingar aquela rebelião que lhes custava tantos trabalhos. Nessas esperas, os minutos escoavam com lerdeza, eram den­sos, teimosos e imprecisos. Envelhecia-se assim. Quando a calma se restabelecia, todas nós estávamos mais gastas, mais sofridas, mais frá­geis. Aprendia-se assim. Aprendia-se que as mulheres do pampa tinham essa sina, de sofrer e de temer, mas sempre com coragem, tomando chá à beira do fogo, enquanto soldados inimigos rondavam a casa. Nunca altear a voz, nunca pôr em palavras um medo ou uma angústia: era assim que se enlouquecia. Não queríamos terminar como Rosário.

 

Quando o perigo cessou, fui conhecer o filho de Mariana. Um me­nino corado e moreno, com os olhos mesmos do pai, como minha irmã tanto almejava.

Mariana estava bem, apaziguada, atendida em todos os desejos por D. Antônia, a quem nunca vira tão doce, despida de seu manto de se­riedade, tocada por aquele amor maternal, pela doçura e fragilidade daquela criança que tinha decidido proteger. D. Antônia estava feliz. Tinha agora alguém para amar sem restrições, cuidava de Mariana, dizia que João iria voltar para conhecer o filho, era uma certeza que ela tinha. Anos depois, quando morreu, deixou a sua estância para Matias. O sobrinho-neto, renegado pela avó, fora o último grande amor da sua vida. Mariana, João Gutierrez e o menino foram viver na Es­tância do Brejo e lá tiveram existência calma e feliz.

Manuela.

 

A tropa avançava pela noite. Agora iam sem pressa. Lá na frente, o chapéu enfiado até a metade da testa alta, o general Netto caval­gava, pensativo. Reformulava planos.

João Gutierrez começava a reconhecer o terreno, a estrada, os cam­pos à sua frente. Era como se já sentisse o perfume de Mariana, como se pudesse percorrer sua pele tenra, como se aquele chão que pisava fosse um pouco dela. Estavam mui perto da estância. Atravessariam o rio ao amanhecer. João achou que poderia desvencilhar-se um pouco da tropa. Deixaria uma carta com Manuela, voltaria antes de a traves­sia se completar. Já tinha escrito o bilhete. Não sabia ao certo se Mariana ainda estava na Barra, mas, se estivesse por ali, faria de um tudo para vê-la. E para ver o seu filho. O filho que ele sabia que tinha nascido.

Galopou até o tenente Soares. Disse dos seus planos. Era cosa rápida, assunto pessoal. Estaria de volta sem tardança. O tenente ouviu-o cofiando os bigodes, depois aquiesceu. Mas que não se demo­rasse, pois a tropa não esperaria por ele. Se faltasse, seria considerado um desertor. O tenente Soares já tinha visto João Gutierrez na peleja, furioso, degolando imperiais. Falou aquilo debaixo de um sorriso fino: sabia que João nunca desertaria. Tinha coisas para acertar. Tinha uma raiva para esgotar. Raiva que agora não transparecia no brilho negro dos seus olhos de gato.

João atiçou o cavalo e sumiu numa curva do caminho. O coração batia forte dentro do peito. Ele respirou fundo aquele ar morno de verão, e mais uma vez provou do perfume silvestre de Mariana.

 

                     Rio Pardo, 5 de fevereiro de 1843.

"Ao ministro da guerra, conselheiro José Clemente Pereira,

Saiba V. Exª. que atravessei o Rio São Gonçalo no passo da Barra com uma coluna ligeira composta de 1.800 homens, tendo 1.000 homens de infantaria e 800 de cavalaria, a fim de conduzir 5.000 cavalos, que me foi possível reunir no rincão dos Touros. Este movimento, que todos os práti­cos da província julgavam arriscado, se levou a efeito sem que o inimigo o pressentisse senão quando a coluna já havia atravessado o Camaquã, até onde poderia ser atacada por ele com alguma vantagem, pois que de en­tão para cá a marcha fora coberta à esquerda pela serra do Herval e à di­reita pela Lagoa dos Patos.

O inimigo foi completamente iludido com as aparências que apresen­tei, de passar o São Gonçalo nos Canudos e seguir na direção de Piratini, para fazer junção com o Exército, que aparentou se mover nesse sentido e por isso fez levantar todas as cavalhadas que existiam desse lado e An­tônio Netto me esperou naquelas imediações, conservando-se Davi Canabarro de observação ao grosso do exército.

A nossa coluna chegou aos campos de D. Rita, que são fronteiras a Porto Alegre, a vinte e dois de janeiro, e, reunindo-se aí com os corpos de cavalaria de G. N. dos tenentes-coronéis Juca Ouribe e Rodrigo, e com o 12º batalhão de fuzileiros, marchou para São Lourenço deixando, na Ca­pital apenas o 1º batalhão de caçadores, que foi depois estacionar-se em Rio Grande.

Em Porto Alegre, além do batalhão de depósito, deixei um batalhão de caçadores, o casco do corpo de artilharia a cavalo, o corpo policial da província e 300 cavaleiros divididos em partidas, a fim de percorrerem os distritos de Santo Antônio da Patrulha, Taquari, Santo Amaro, Capela de Viamão e Belém.

Em São José do Norte existe um destacamento de 100 infantes, e um outro de cavalaria do corpo policial, que chega até Mostardas; o fim prin­cipal dessas forças é perseguir os desertores, tanto do nosso exército como do dos rebeldes, que em crescido número infestam os matos desses distri­tos, praticando toda sorte de insulto, e obstar qualquer reunião que os rebeldes possam intentar fazer por aqueles lados.

O plano de operações que projeto seguir pouco variará do que já co­muniquei a V. Exª. logo depois da minha chegada a esta província, e con­siste em aproximar-se da fronteira com o exército, tentando um golpe violento sobre o grosso dos rebeldes, de acordo com os partidários de Bento Manuel, que muito prometeu fazer no município de Alegrete, logo que eu dali me aproxime.

 

                                     Barão de Caxias"

Bento Gonçalves declarara expressamente que considerava Paulino da Fontoura, vice-presidente da República, um traidor. No clima de animosidades que se instaurara em Alegrete, era apenas mais uma desconfiança a pairar no ar já tão saturado de intrigas. Mas Bento ti­nha suas provas.

A primeiro de fevereiro, depois de várias sessões conturbadas, a Assembléia Constituinte se dissolveu. A maioria dos deputados, des­contentes com a situação, não comparecia mais às sessões.

Na noite de treze de fevereiro, quando Bento Gonçalves se prepa­rava para dormir, bateram à porta da casa que ele alugava. Foi Joa­quim quem atendeu. Um correligionário estava parado no alpendre, nervoso.

— Atiraram no Paulino — disse o homem. — Dois tiros à quei­ma-roupa. O Paulino está num morre-não-morre.

Joaquim foi até o quarto do pai e deu-lhe a notícia. Na alcova par­camente iluminada pela luz do lampião, Bento Gonçalves ficou imó­vel, sentado na cama, o semblante muito pensativo, cansado.

Paulino da Fontoura morreu dias depois. Poucas pessoas compa­receram ao funeral, Onofre Pires entre elas. Das salas da sua casa, Bento Gonçalves recebeu as notícias do enterro, e continuou pensati­vo, os olhos negros sem expressão. Pensava no primo. Tinham sido muito amigos, desde guris. E agora aquilo, estavam em lados opostos da coisa, eram quase inimigos.

 

João Gutierrez conhecia bem a janela do quarto das duas irmãs, muitas vezes estivera ali a esperar Mariana, nas tórridas madruga­das do começo daquele amor. Contornou a casa sem fazer qualquer ruído, como uma sombra dentre as tantas da noite. Uma luz tênue vinha de dentro da alcova. Ele bateu palmas muito de leve. Um ins­tante depois, o postigo foi corrido e apareceu o rosto de Manuela. A moça não se espantou em vê-lo ali, tanto tempo passado, no meio da madrugada, trajando um uniforme republicano quase em frangalhos.

— E Mariana? — Sua voz saiu úmida de ansiedade. Manuela debruçou-se mais na janela. Falava baixo: — Está na casa da tia Antônia.

João sobressaltou-se:

— Sucedeu alguma cosa?

— O seu filho nasceu, João. Um menino. Chama-se Matias. Já tem sete meses, está mui crescido. Mariana está vivendo lá. — Viu os olhos indiáticos brilharem de emoção. Acrescentou depressa: — Pode ir até o Brejo, a tia vai recebê-lo, tenho certeza.

João Gutierrez agradeceu com um sorriso. Depois sumiu na noite. Precisava ser muito rápido, ir até a estância, ver Mariana e o filho, depois costear o Rio Camaquã até a altura em que sabia que Netto faria atravessar as tropas. Montou no cavalo e saiu galopando.

 

Abriu a porteira sem dificuldade. Encontrou um vaqueano de vigia, mas o sono ferrado do homem deixou-o passar livremente sem dar explicações. Cavalgou até os fundos da casa silenciosa. Ali, não conhecia nada. Procurou desvendar a construção, até que descobriu uma porta que parecia ser a da cozinha. Testou o trinco, estava aberto.

Imergiu numa peça morna, ainda cheirando a doce de abóbora e sopa. Num canto, o grande fogão a lenha derramava seu calor. Acos­tumou os olhos à cozinha, foi procurando um caminho, sem saber bem aonde queria ir.

— Usted demorou.

A voz de D. Antônia ecoou no escuro, uma voz tépida e baixa, se­gura.

João Gutierrez assustou-se como se encontrasse pela frente o ini­migo de espada em punho. Parou, teso. D. Antônia caminhou até o fogão, onde ainda brilhavam algumas brasas, acendeu uma vela. João viu que ela sorria.

— Desculpe entrar assim — disse ele —, más no tengo tiempo. Vim com as tropas do general Netto.

— Sonhei com vosmecê chegando... Levantei e vim esperá-lo.— Sorriu mansamente. — Ainda tenho meus velhos pressentimentos. Mariana está no quarto com o menino. Venha, ela quer muito vê-lo.

João Gutierrez seguiu a mulher pelo corredor às escuras. Pararam em frente a uma porta. D. Antônia virou-se para ele:

— Mariana está aqui. — Girou a maçaneta com cuidado. Antes de abrir a porta, fitou João. — Noutros tempos, eu desaprovaria isso tudo. Mas sei o que é sofrer por amor. Además, essa guerra mudou muitas das coisas em que eu acreditava... Minha sobrinha ama vosmecê, espero que esse sentimento seja recíproco.

— Sempre amei Mariana. Desde a primeira vez que a vi. Eu não a abandonei, D. Antônia, a senhora sabe. Eu fui expulso. E quando essa maldita guerra acabar, volto para buscar Mariana e o meu filho.

— Então esteja sossegado. Vou cuidar deles para vosmecê. — E abriu a porta.

 

Um lampião iluminava o quarto. João viu Mariana deitada na cama, o corpo parcialmente coberto pelos lençóis alvos, os cabelos negros es­parramados. Foi atingido pela mesma onda morna que sempre o engolfava. Deixou-se levar por aquela sensação, quase tonto, lento, realizado. Foi pisando devagar, como se andasse sobre algodão, os olhos úmidos daquela saudade tão acalentada, que o tinha segurado vivo tantas vezes, livrando-o do Fio da navalha inimiga.

Chegou bem perto da cama. Como se pressentisse a sua presença, Mariana abriu os olhos. Muito negros, luzidios.

— João! — Moderou a voz, recordando do filho que dormia. — Não acredito...

— Mas é verdade. Usted não está sonhando. — Sentou na cama e abraçou-a. Sentiu o perfume doce. A voz se perdeu entre os cabelos sedosos. — Vim ver vosmecês. Conhecer o meu filho. Sua irmã Ma­nuela me disse que ele é mui hermoso.

Ela olhou-o bem nos olhos. Chorava mansamente. Aquele tempo, a gestação, tudo, até a saudade, tinham-na deixado mais bonita.

— Ele é lindo sim. Parecido com o pai. E se chama Matias — indi­cou o canto do quarto, onde estava o berço, coberto pelo mosquiteiro branco, como um pequeno barco ancorado no seu porto. — Vá vê-lo, João.

O coração pulava dentro do peito, sob o uniforme velho. João che­gou bem perto do berço, puxou o tule com a mão trêmula, como se descortinasse um tesouro. O rosto do menino surgiu inteiro, doce, se­reno. Ele ressonava mansamente, a boquinha aberta, rosada, as mão­zinhas unidas, tenras, perfeitas. De repente, João Gutierrez percebeu que o mundo se resumia naquele serzinho delicado e morno, envolto em panos bordados, cujos sonhos por vezes provocavam sorrisos no rostinho angelical.

— Ele é tão lindo, Mariana.

— Parecido com vosmecê. Tem os seus olhos, João.

Ela abraçou-se a ele. Ficaram longos instantes observando o meni­no dormir. João inclinou-se e beijou sua testa, com cuidado.

— Não quero acordá-lo, não ainda. Después teremos todo o tem­po deste mundo. Más hoje tenho que voltar para a guerra. Vim com o general Netto. Vamos atravessar o Camaquã, atrás dos homens do Barão de Caxias. Preciso fazer a travessia do rio com o resto das tropas.

Voltaram para a cama de Mariana.

— Tive muito medo de não vê-lo nunca mais, João. Tive medo que vosmecê morresse numa peleja.

Ele beijou-a na boca, sentindo aquele gosto, provando os lábios mornos.

— Usted devia saber que eu voltaria. Eu le disse. Não morro nes­sa guerra. Fui pelejar por usted. Quando tudo acabar, volto para fi­carmos juntos, para sempre. Como uma família.

— Minha mãe não fala mais comigo, nem conheceu o menino. Os olhos felinos turvaram-se por um momento.

— Esqueça sua mãe. D. Antônia cuidará de vocês até tudo aca­bar. Ela prometeu... Agora preciso ir, mi Mariana. Le juro que volto em breve. — Olhou para o berço. — Nosso filho é mui hermoso. Cui­de bem dele. E me espere, está bien?

Mariana viu-o atravessar o umbral da porta e perder-se na escuri­dão do corredor silencioso. Ficou muito tempo sentada na cama, pen­sando. Era como se tudo não tivesse passado de um sonho, um sonho bom. João lhe surgira do nada, para o nada tornara a partir outra vez. Mas prometera-lhe que viveria, que nenhum soldado inimigo trespas­saria o seu corpo com uma lança, que ficariam os três juntos quando a revolução finalmente acabasse. Tinha falado com a tia Antônia, e co­nhecido Matias, o doce Matias. Mariana suspirou de uma felicidade cansada.

Já amanhecia quando seus olhos se fecharam e ela voltou a dormir.

 

Cai uma chuva mansa lá fora, uma chuva persistente que começou ao alvorecer e que varou o dia. Agora a tardinha tem esse ar de úmida tristeza. Um manto nebuloso cobre o campo, torna tudo impreciso. Maria Manuela espia, parada à porta da cozinha, silenciosa como um fantasma. Na casa, acostumaram-se a esses seus silêncios, acostuma­ram-se ao silêncio sobre o neto e a filha; ninguém mais lhe pergunta nada, e nem Caetana, nem D. Ana tornaram a convidá-la para ir ao Brejo visitar a criança.

Maria Manuela fecha a porta. Atravessa a cozinha e segue pelo corredor rumo ao oratório. Os pés vão sozinhos. Todo dia, a essa mes­ma hora, ela reza e acende uma vela para a Virgem. Todo dia. Mas hoje a tristeza lhe pesa mais, como uma pedra. Deve ser essa chuva, esse começo mui tenro de outono, essa nuvem cinzenta que cobriu o pampa e que está apressando a chegada da noite.

Ela abre a gavetinha onde ficam as velas de oração. Escolhe uma grossa. Outras velas, já gastas, ardem para a Virgem. Velas das cu­nhadas. Sempre há alguma coisa a pedir nessa guerra. Os mesmos anseios repetidos diariamente. Uma vela para cada vida, para cada amor. Maria Manuela agora não reza mais por Mariana. Acaba suas orações um minuto mais cedo, encurtou sua prece. Mas sai sempre com os olhos úmidos das palavras que não disse.

Acende a vela na chama de outra. O pavio balança um pouco até exibir sua própria chama, comprida e alta, uma chama bonita. Maria Manuela aprecia a chama, as nuances do fogo que sobe. Há alguma coisa de hipnótico no fogo, talvez seja por isso que ele encante tanto as crianças. Sim, as crianças gostam do fogo. Lembra uma vez em que Mariana se queimou brincando perto da lareira. A mãozinha chamusqueada, os olhos cheios de lágrimas e de medo, as compressas, a vigília de tantas noites. Mariana, uma menininha morena, de tranças compridas e de pernas roliças. Depois cresceu a cicatriz da queima­dura, foi subindo, subindo, até desaparecer por algum milagre, jun­to com aquela infância toda que se perdeu nos novos traços de mocinha.

Ela olha a chama fixamente. Faz tempo que não recorda Mariana em criança. Pensar nela dói. E aquela maldita chuva lá fora, pingando sobre tudo, com seu jeito de eternidade.

Maria Manuela inclina a vela, deixando a cera derretida pingar sobre o aparador. Depois prende a vela ali. A Virgem, serena, olha o nada, a chuva lá de fora. A chama alteia-se mais uma vez. Mariana pequenina, enfiando a mãozinha nas chamas da lareira. Mariana cho­rando em seu colo, chamando-a de mamãezinha. Ela ergue o braço. A mão que sai da manga rendada é branca e magra e tem unhas longas, e é triste feito um pássaro morto e seco. A grossa aliança brilha no dedo anular, solitária. A mão caminha no ar, flutua sem vontade nem medo, até pairar sobre a chama, a palma aberta, oferecendo-se ao fogo, ar­dendo, ardendo, ardendo. Os dedos crispados de dor. E um sorriso no rosto, um sorriso torto e triste e envelhecido de solidão e de angústia.

Ela solta um grito.

  1. Ana surge de dentro do seu quarto, os cabelos úmidos do ba­nho recente.

— Maria!

Maria Manuela tira a mão de cima da chama. Um leve cheiro de carne chamusqueada paira no ar. A palma intumescida, vermelha, co­meça a formar bolhas. Maria Manuela fita a irmã com uns olhos sem expressão.

— Não sei por que fiz isso.

  1. Ana examina a palma ferida.

— Vosmecê está sofrendo, Maria. Está se punindo.

Ajuda-a a erguer-se. Zefina aparece, vinda da cozinha, e olha tudo com os olhos apavorados.

— Me punindo, de quê? Foi essa chuva. Está chovendo desde mui cedo, está um dia triste. E me deu uma coisa ruim no peito.

  1. Ana abraça a irmã.

— Vosmecê não sabe perdoar, Maria. Ê por isso que sofre. Mas a vida ensina a gente, às vezes dói mais, às vezes dói menos... Vamos até a cozinha. D. Rosa tem um ungüento para queimaduras.

 

Bento Gonçalves cavalga à frente da tropa de mil soldados. A manhã de abril é luminosa e agradável, mesmo assim aquele incômodo persis­te, dificultando sua respiração, causando dores na cabeça. As febres vêm sempre à noite, quando desperta ensopado no próprio suor, os lençóis pegajosos, aquele gosto de medo na boca. Agora está mais magro, mas a aparência ainda é a mesma, garbosa e forte, um pouco arranhada pelas madrugadas insones e difíceis.

Rumam para Cangussú. As tropas de Caxias se espalham rapida­mente pela Campanha, é preciso reorganizar-se, pensar num modo de retomar o terreno. Por precaução, ele mandou as cavalhadas para os lados de Jaguarão, lá elas estarão mais protegidas. Sente-se cansado, desde o fim da Assembléia, em Alegrete, das desavenças, das discus­sões com o primo Onofre, uma parte vital das suas forças esvaiu-se; sabe que é impossível recuperá-la, já não tem mais o ânimo, e nem a crença. Pensa em Caetana, em longas tardes silenciosas, num pedaço de bolo de milho, num churrasco de domingo, nos pequenos prazeres que ficaram longe da sua vida e que agora lhe parecem tão preciosos. E vai cavalgando. O outono embeleza o pampa. Sua cabeça fervilha. Ele queria um pouco de paz, sem dúvidas, nem planos, sem pensamen­tos. Mas é impossível. Mil homens marcham com ele. Vão encontrar Netto, vão encontrar João Antônio, vão encontrar Canabarro. Vão perseguir o traidor que ousou voltar.

Bento Filho emparelha o zaino ao seu lado.

— Em que o senhor está pensando, pai?

O general olha o jovem e sorri. Há rugas ao redor da sua boca.

— Estou pensando na vida, filho.

— A vida é engraçada.

Bento Gonçalves da Silva perde os olhos pela campina.

— És verdad. Há algum humor nesta vida que me escapa. Agora Bento Manuel voltou para a guerra outra vez. Mais uma vez. Está co­mandando a 2ª divisão imperial. A primeira está sob as ordens do Caxias.

— É por isso que vamos unir nossas tropas?

— Si. Cairemos de rebenque em cima desse cusco. Cairemos com tudo. Esta é uma rixa mui antiga, meu filho. Quem sabe esteja chegan­do ao seu fim. Ele anda atrás de um coronel nosso, o Guedes. Dei or­dem para o Guedes entretê-lo, até que nós chegássemos. Estão para os lados de Ponche Verde. Vamos ver, vamos ver.

Esporeou o cavalo e afastou-se. A tosse começava a espreitá-lo novamente, e ele não queria tossir na frente do filho. Não queria mos­trar fraqueza. Não queria mostrar aquele cansaço que só fazia aumentar. Teria um encontro com Bento Manuel. Se a sorte ajudasse, ao menos dessa vez. Tinha muitas contas a acertar com o tocaio, contas demais para uma única existência.

 

Manuela bate de leve na porta. A voz rouca de Caetana vem de den­tro, convidando a entrar. Manuela abre a porta e vê a alcova ilumina­da pelos castiçais, a tia sentada na cadeira perto da mesa, com papel e pena à mão. As folhas estão em branco. Apenas o nome de Bento Gon­çalves encabeça uma das páginas. Caetana sorri.

— Quero escrever ao Bento. Mas não consigo. Nada me vem. Solamente uma tristeza, uma coisa ruim no peito...

— É saudade, tia.

— És más, Manuela. És soledad.

Manuela se aproxima. O rosto de Caetana, sob a luz inquieta das velas, ainda é muito bonito, misterioso. Os grandes olhos verdes, a boca graúda, a pele trigueira que vai perdendo seu frescor.

Manuela puxa uma cadeira.

— Queria falar com a senhora. E sobre Joaquim.

Caetana sorri tristemente. Joaquim partiu sofrendo. Amava Ma­nuela, desde pequetito, amava aquela prima que lhe fora prometida. Amava-a não de um amor encomendado pela conveniência, mas de um amor puro, espontâneo e farto. Partira ferido pela certeza de que nun­ca Manuela seria dele.

— Vosmecê pode falar, Manuela, embora eu saiba o que vai dizer. Manuela abaixa os olhos.

— Eu queria amar o Joaquim, tia, eu queria muito. Desde antes de conhecer o Giuseppe, eu já sabia. Havia algo que faltava. Com o Giuseppe, eu conheci o amor verdadeiro, um amor que vai durar por toda a minha vida.

— Está bien, Manuela. Eu sei o que é o amor, e o que é sofrer por ele. Vosmecê lembre que sou casada com o Bento... Não é fácil ser casada com o general Bento Gonçalves.

Manuela depõe sobre a mesa um pequeno estojo de veludo.

— Joaquim me deu isto. Não posso aceitar. Queria que a senhora devolvesse para ele. Mais tarde, quando for a hora.

Caetana abre o estojo. Conhece o broche que está ali.

— Eu devolvo para ele, Manuela. Mas le digo uma cosa: tenho pena de vosmecê. Soledad, Manuela. La soledad é uma sina mui triste...

Manuela ergue-se lentamente. Beija Caetana no rosto, sentindo seu perfume de rosas. Não há mais nada a dizer. Ela sai do quarto silencio­samente, fecha a porta atrás de si sem fazer o menor ruído. Caetana volta a concentrar-se nas suas folhas em branco, A pena em sua mão está seca.

 

Bento Manuel Ribeiro atravessa com suas tropas o banhado de Ponche Verde. Tem consigo dois batalhões de infantaria e três corpos de cava­laria, num total de mil e quatrocentos soldados. Está atrás do coronel Guedes. Não desconfia que, do outro lado, na coxilha varada pelo vento frio daquele começo de inverno, a tropa farroupilha o espera. Bento Gonçalves, Canabarro, Netto, João Antônio e o próprio Guedes — sua presa — esperam por ele. Dois mil e quinhentos homens esperam por ele. Têm sede de vitória, sede do seu sangue.

A tropa imperial alcança o alto da coxilha. O céu de maio é límpido. Desce um frio pelo campo, a manhã inicia-se com suas luzes baças, o sol mal despontando, querendo aquecer aquele mundo si­lencioso e infindo, aquele mar verde que vai até onde os olhos não podem ver.

Quando Bento Manuel chega ao alto da elevação é que tem cons­ciência de que está cercado. Os rebeldes preparam uma emboscada. Ele vê pela frente a infantaria e a cavalaria de Canabarro, na retaguar­da estão os outros, mil e quinhentos homens. Bento Gonçalves entre eles, talvez com um sorriso no rosto extenuado. Bento Manuel prepa­ra-se para a peleja: dispõe no centro os dois batalhões, enquadrando as carroças e a bagagem; nos flancos espalha-se a cavalaria, a infanta­ria começa a atirar.

Bento Gonçalves da Silva dá o sinal, e os rebeldes atacam com ener­gia. Na frente vão os poucos infantes, na maioria negros. A cavalaria, muito mais numerosa do que a imperial, acomete a linha inimiga, fa­zendo esforço principal para desbaratar a ala direita das tropas de Bento Manuel. A peleja torna-se furiosa. Na manhã ainda incipiente, os gri­tos alcançam o céu, a poeira nubla a visão. O ruído dos metais que se chocam retine nos ouvidos de Bento Gonçalves, sua cabeça dói, mas há uma emoção no ar, e é a certeza de que terá aniquilado o seu inimigo, o homem que ousou rir dele, traí-lo, não uma, mas várias vezes. Bento Gonçalves comanda a cavalaria. Sua voz se perde naquele mundo de sangue e violência e coragem.

Ao fundo, o banhado de Ponche Verde ressona. Bento Manuel luta com fúria. Foi pego de surpresa, mas não vai perder a batalha. Não vai perder para Bento Gonçalves. As tropas rebeldes forçam a sua forma­ção, mas ela resiste, rígida e decidida. Homens caem e são substituídos por outros. O sangue jorra por todos os lados. Sangue demais para uma manhã tão tenra.

A batalha já dura uma hora e meia, rija, nervosa, violenta.

As cargas sucedem-se. A fúria aumenta nos rostos dos homens. Bento Gonçalves não sente mais a tosse, nem o peso na cabeça, o can­saço — todo ele agora é apenas desejo de matar, de afiar sua lâmina nos ossos de Bento Manuel, não sem antes deixá-lo humilhado, humi­lhado pela derradeira vez.

Os rebeldes abrem uma brecha na formação imperial, aproximam-se de Bento Manuel, que retrocede um pouco. Está entre dois fogos, perdeu o controle da coisa. Algo aconteceu: agora os republicanos têm a força. Em algum lugar do imenso turbilhão de sons, ele ouve a voz grave de Bento Gonçalves, voz de general incitando seus exércitos. Sente um gosto acre na boca. Eles estão cada vez mais perto.

Um cavaleiro avança no meio da peleja. Saca da sua arma. O ines­perado acontece: o cavaleiro acerta dois tiros no peito de Bento Manuel. As balas alcançam o lado esquerdo do peito, ensopando o uniforme de sangue. Um grande estupor varre as tropas imperiais. Bento Manuel arregala os olhos. Não era para suceder assim. O ruído infernal do entrevero vai se tornando mais e mais baixo, até quase desaparecer por completo, quando ele desaba no chão.

No começo da tarde, as tropas imperiais recuam para os lados do banhado de Ponche Verde, sem que o exército republicano possa evi­tar a manobra. Bento Manuel vai ferido, inconsciente. Deixam para trás a bagagem e a cavalhada, das quais os republicanos logo se apo­deram. O chão está tinto de sangue. Começa a soprar um vento que espalha pelo ar o cheiro vivido da morte.

 

Bento Gonçalves da Silva entra a galope no acampamento. Alguns negros abrem covas para enterrar os mortos.

— São quantos? — pergunta Bento Gonçalves, olhando a pilha de cadáveres.

— Sessenta e cinco mortos, general. Trinta são soldados inimigos. Bento Gonçalves desvia os olhos por um momento. Sente um arre­pio varar a pele das suas costas.

— Enterrem todos.

Sai galopando para ver os feridos, cuidados por Joaquim. São mais de cem homens alquebrados Há um cheiro de iodo e de sangue no ar. Joaquim anda de um lado a outro, a roupa amarfanhada, o rosto ain­da sujo de suor e salpicado de barro e de sangue. Alguns soldados ge­mem. Bento Gonçalves, montado em seu cavalo, pergunta-se onde estará Bento Manuel a uma hora dessas, se entre os mortos ou os feri­dos. É cedo para saber. Aparta-se também da enfermaria. Há uma angústia em seu peito. Ele não conseguiu acabar com o inimigo. Mais uma vez. Mala suerte. Houve um dia em que o italiano Garibaldi lhe disse que bons soldados eram feitos de coragem, razão e sorte. Ele não tem sorte. Não nessa guerra. Não com Bento Manuel.

Ao longe, está Netto, fumando um palheiro. Bento Gonçalves ruma para lá. Outra vez, sente aquela dor no peito, a cabeça latejando. A noite começa a descer pelo mundo. E com ela, as febres que martirizam sua carne. Netto vê e reconhece o brilho úmido nos seus olhos negros, mas nada diz nem questiona. O negro João Congo aparece, trazendo o mate. O silêncio da noitinha recém-nascida agora domina toda a coxilha.

Bento Manuel Ribeiro ergue-se da cama de campanha com difi­culdade. Uma larga faixa já meio tinta de sangue cobre seu peito. Ele sente dores terríveis. Ao lado, está o ajudante-de-ordens. Bento Ma­nuel testa a voz, que lhe sai límpida, embora mais fraca. Manda que o ajudante pegue papel e pena. Quer ditar uma carta.

Enquanto o homem vai em busca do material, ele senta na cama, segurando o grito de dor. Não perdeu aquela batalha. Mesmo os repu­blicanos tendo ficado com parte da sua carga e cavalos, não perdeu aquela batalha. Deixou-lhes trinta e cinco mortos e o dobro de feridos. Vai contar as coisas ao Barão, mas ao seu modo. O peito lhe dói, ele cospe no chão. Maldito Bento Gonçalves, maldito.

O ajudante-de-ordens retorna. Bento Manuel começa a ditar a carta.

 

"Ilmo. Exmo. Snr.

Hoje, duma batalha bem parecida com a que houve no Passo do Rosá­rio no ano de 1827 em que fui carregado por terra à força inimiga de Bento Gonçalves, Netto, Davi, dirijo a V. Exa. esta para dizer-lhe que fiquei senhor do campo e que tudo quanto poderia dizer minuciosamente a V. Exa., o fará o seu ajudante-de-ordens que aqui servia de major de divisão, Pedro Meireles, o qual, além de conduzir-se com honra e o mais decidido denodo, ainda fez o sacrifício de ir a esse Exército por entre os maiores perigos.

Toda a força que entrou no combate se conduziu além da compreen­são humana, e eu, que menos fiz, fui passado por duas balas no peito es­querdo.

Deus guarde a V. Exa.

Quartel-General na Estância do Pedruca, 26 de maio de 1843.

Ilmo. e Exmo. Snr. Barão de Caxias.

Bento Manuel Ribeiro."

 

  1. Antônia pegou o menino no colo e foi para dentro da casa. O vento frio começava a soprar, carregando o céu invernal de nuvens pesadas. O menino reclamou um pouco, gostava da rua, de passear com a "avó" pelos caminhos da estância e ver os cavalos e as galinhas. D. Antônia chamou uma das negras, mandou que fosse aquecer a ma­madeira de Matias. O menino saiu engatinhando pela sala, atravessando os tapetes, mexendo nos brinquedos espalhados pelo chão.

Mariana entrou na sala.

— Tia, vocês demoraram.

  1. Antônia sorriu. Havia uma nova luz naqueles olhos escuros.

— Vosmecê saiba que se não fosse esse vento, teríamos passeado ainda mais. Matias queria ir aos estábulos. Ele gosta muito dos cava­los, Mariana. — Sentou na cadeira, tomou o bordado esquecido. — Como seu tio Bento... Desde pequetito, Bento amava os cavalos.

— Vou mandar acender a lareira.

— Hay que fazer isso. Esse vento que vem aí é o minuano. Tere­mos muito frio.

Mariana sentou ao lado da tia, enquanto olhava as brincadeiras do filho.

— Tia... Faz tempo, quase seis meses, que não tenho notícias do João. — Seus olhos nublaram-se. — Ontem sonhei com ele, acho que um sonho triste. Acordei chorando.

— Vosmecê fique sossegada, menina. O pai do seu filho está mui bien. Sei disso. — Recostou-se na cadeira, suspirou. — E volta logo, Mariana. Essa guerra não vai mais tão longe.

— Como a senhora sabe, tia? Estamos nisso há quase oito anos. Quando tudo começou, eu tinha dezoito anos. Estou quase com vinte e cinco. Às vezes acho que essa guerra não termina nunca mais, le juro.

  1. Antônia tirou um envelope do bolso da saia cinzenta.

— Recebi carta do seu tio Bento. Aqui ele diz que vai renunciar ao cargo de presidente. É triste, Mariana, mas acho que as cosas vão rumando para o seu final. Um final doloroso. De cierto que Bento não pelejou oito anos para isso.

— A guerra é dolorosa para todos, tia.

— Eu sei, menina. Mas eu conheço o Bento. Ele não vai resistir a essa derrota. Ele perdeu muito, Mariana. Mais do que todos nós.

Sentado no tapete da sala, Matias começou a chorar.

— Esse menino está com fome — disse Mariana. — Vou lá dentro buscar a mamadeira dele.

  1. Antônia ficou olhando o envelope amarfanhado em seu colo. Tinha um aperto no peito. Depois olhou o sobrinho-neto, e um brilho alegre tingiu outra vez seu olhar. Ali estava o futuro, nos olhos oblí­quos de Matias.

 

Caía uma chuva grossa lá fora, grossa e fria. O mês de agosto estava chuvoso e cinzento. Coberto com o pala de lã, ainda assim Bento Gon­çalves sentia um frio intenso. Em cima da mesa, estava a carta. Não era longa. Ele pensara mil vezes antes de escrevê-la, nenhuma palavra lhe parecia adequada, nada podia expressar o que lhe ia pela alma.

Bento e Joaquim entraram no escritório. Vinham sérios, tristonhos. Bento atiçou o fogo na lareira.

— Está feito — disse Bento Gonçalves. A voz soou rouca. — Vosmecês podem mandar essa carta para os outros. Agora a presidên­cia é do Gomes Jardim.

— E o Netto, pai?

Bento Gonçalves olhou a chuva que se derramava lá fora, alagan­do o campo, tirando os contornos de tudo, imergindo a estância num mundo úmido, silencioso e dorido.

— O Netto vai renunciar também. Ao que me parece, o chefe do exército vai ser o Canabarro. De uma certa forma, eles venceram. O Onofre e os outros.

— As cosas estão mudando — disse Joaquim.

Bento Gonçalves sorriu tristemente. Estava envelhecido e fraco e pálido. Joaquim conhecia suficientemente bem o pai para saber que aquela nova palidez não vinha da doença — que continuava a perse­gui-lo —, mas da derrota, da tristeza daquilo tudo. Bento Gonçalves não era homem de renúncias. Aquilo só sucedia porque as coisas ti­nham chegado a um nível insuportável para ele. Joaquim viu o pai empurrar a carta para a ponta oposta da escrivaninha, como se a te­messe.

— As cosas mudam sempre, Joaquim. As cosas envelhecem, como eu. Os sonhos envelhecem e caducam. Como agora, meu filho.

Um trovão retumbou na coxilha. Bento Gonçalves encolheu-se instintivamente dentro do pala. Joaquim voltou a atiçar o fogo na la­reira. Sentia-se inquieto como um bicho acuado. E aquela chuva pro­longada lhe doía na alma.

 

Leão entrou na sala aquecida pela lareira. D. Ana bordava num can­to, absorta sabe-se lá em que pensamentos, as pernas cobertas pela manta de lã, os cabelos embranquecidos nas têmporas. Na poltrona situada do lado oposto da lareira, estava Caetana. Leão fitou a mãe do alto do seu l,76m de altura. Era um jovem longilíneo, parecido com o pai. Das brincadeiras de guerra da infância, ficara-lhe uma ânsia de pelejas verdadeiras; dos muitos anos na estância com as mulheres, uma hombridade que se salientava nos menores gestos, no mais curto dos olhares.

Oito anos. Oito longos anos crescendo entre rendas e tecelagens e medos e angústias feminis. Nesse longo tempo, vira o pai oito, dez ve­zes, no máximo, e sempre em momentos roubados aos assuntos im­portantes, à venda de gado da estância, às decisões e segredos daquela guerra sem fim. O pai era um general, o homem mais importante da­quela república. Era isso que sabia de Bento Gonçalves da Silva, e também que tinha uns olhos negros semelhantes aos seus, olhos pro­fundos, cheios de silêncio.

Tirou o pala pesado que usara na campina, ajudando os peões com a cavalhada. A noite caía lá fora, um manto escuro e sem estrelas, prometedor de muito frio. Ele se postou ao lado da mãe. Caetana lia um pesado romance de páginas amareladas, escrito em espanhol.

— Madre, preciso falar com vosmecê.

Caetana ergueu os olhos do livro. Encontrou aquele filho feito ho­mem, tão alto, tão distante, tão solitário. Espantou-se, como sempre se espantava, com o aspecto varonil de Leão. Durante aquela guerra, o tempo como que havia congelado; ela pensava sempre em Leão como o menino de pernas magriças que um dia fugira com o irmão menor, rumo a pelejas que desconhecia.

— Si, aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu que estou decidido, madre. O pai abandonou a pre­sidência. Agora vai pelejar. Vou acompanhá-lo, antes que seja tarde demás. Quero ser soldado ao lado dele.

Caetana desviou os olhos para o fogo. Mais um filho tornava-se homem. Fazia seu batismo de sangue naquelas coxilhas, deixando-a ansiosa, aumentando a cota de suas orações para a Virgem. Mais um filho pelo qual sofrer. Já não lhe bastavam os três que já tinham parti­do. Mas Leão agora era também um homem. Faria dezoito anos em novembro. Ela não podia mais segurá-lo na estância.

— Se vosmecê decidiu isso, hijo, nada posso fazer. Mas espere seu aniversário, é um favor que le peço.

— Está bem, madre. Partirei no dia seguinte aos meus anos.

Saiu da sala de cabeça baixa. Faltavam ainda três meses. E esse tempo parecia uma eternidade.

  1. Ana viu o sobrinho desaparecer pelo corredor. Sorriu para a cunhada, um sorriso fraco. Sabia mui bien o que Caetana estava sen­tindo naquele momento.

— Esteja calma, Caetana. Hay um momento para tudo nesta vida. Isso não se pode evitar, e o momento do Leão chegou. Ele sempre quis ir para a peleja. Não como meu Pedro, pobrezito, que nunca falou em guerras e acabou morrendo numa delas...

Caetana segurou as lágrimas.

— Vosmecê está certa, Ana. Alguns nascem para a peleja. E os peixes não morrem afogados... Talvez ele seja como o pai.

— Bento vai cuidar dele. Tem zelado mui bien pelos outros, Caetana. Vosmecê devia acreditar nisso.

Caetana suspirou.

— Vou acreditar, Ana. Vou acreditar.

 

Estavam acampados nas imediações de Piratini quando a tropa de Xico Pedro, o Moringue, chegou. Era um amanhecer de primavera, com o céu azul muito lavado e uma brisa que cheirava a flores. Não uma ma­nhã de guerras, mas uma manhã de violas e de milongas, uma boa manhã para gastar sem fazer nada, deitado à beira de uma sanga a pensar em Mariana e no filho.

João Gutierrez lavava o rosto na água ainda fria da noite, quando um soldado chegou à beira do riacho e avisou:

— O Moringue está perto. O general Netto mandou reunir a tropa.

João Gutierrez viu sua milonga desfazer-se na água transparente e ir desaparecendo entre os pedregulhos. Correu de volta ao acampamento. Vestiu o uniforme, calçou as botas, guardou a adaga na cintura, pegou a lança e a boleadeira. O céu continuava azul como em dia de quermesse ou de festa santa. Uma manhã linda, que não tinha sido feita para o sofrimento,

 

Moringue é feio como o diabo.

É só isso que lhe ocupa a mente febril. O rosto disforme de Moringue, os olhos de fogo, as grandes orelhas. Talvez tenha sido a sua lan­ça que lhe varou a carne, talvez tenha sido qualquer outra, menos notável; mas mortal, tão mortal quanto qualquer outra lamina.

A carne rasgada palpita, derrama seu sangue pelo colchão imun­do. Ele abre os olhos por um instante. Está ao relento, junto com tan­tos outros. Gemidos se espalham pelo ar, e o céu azul da manhã agora é vermelho, rajado de nuvens, um céu de entardecer tão triste e tão pesado como a sua alma.

A febre resseca sua boca. Quer pensar em Mariana, mas é somente a cara de Moringue que lhe vem, como uma assombração que não o entrega à sua dor, que quer levá-lo consigo pelos caminhos daquela feiúra mítica. E tudo o que ele deseja é dormir um instante, sonhar com Mariana, com uma milonga melancólica que lhe embale o sono exausto.

Vê vultos. Um deles se aproxima, chega bem perto do seu rosto. Ele sente seu hálito e pode ver seu semblante fatigado. Luta com as sombras que o rondam para emergir daquela névoa. A voz que sai da sua boca é rouca e titubeante:

— A batalha acabou?

O homem sorri de mansinho. Segura um cutelo cuja lâmina está suja de sangue. O homem pega seu braço direito, examina-o com aten­ção rápida.

— Si, a batalha acabou. — Outro vulto aparece, trazendo uma garrafa de canha e alguns pedaços de pano. — Vai doer um pouco, João.

Ele não compreende. Vai doer o quê? O céu vermelho quer desa­bar sobre a sua cabeça.

— Vosmecê disse?

O doutor sente pena. João Gutierrez sempre foi um bom soldado, valente, destemido. Um grande violeiro. Deixará silenciosas as noites do acampamento.

— Vai doer a operação, João. Vosmecê recebeu três cutiladas na mão direita. Vamos ter de amputá-la. — Pegou a garrafa de canha, foi lhe metendo o gargalo pela goela. Propositadamente, para não ouvir resposta. — Bebe isso. Bebe bastante. Vai ajudar.

Depois o mundo partiu-se em dois e veio o breu de um sono muito pesado que durou um dia e meio. Ele acordou com dores, numa cama enxovalhada, mas dessa vez sob um teto. Pela janela da barraca, pôde ver o céu azul lavado, o mesmo céu da manhã de sua desdita.

 

O braço direito termina abruptamente, enrolado nas gazes úmidas de sangue. Ficou triste e frágil esse braço sem o consolo de uma mão. Como uma cela sem rédeas. Ficou grotesco.

João Gutierrez pensa na viola, muda para sempre. Vai dá-la ao fi­lho, algum dia, se o menino gostar de música. Pensa em Mariana, no toque macio da sua pele, no contorno dos seus lábios que ele gostava tanto de desenhar muito de leve, com a ponta dos dedos a lhe fazer cócegas. Pensa em tudo isso, e pensa no filho que viu apenas uma vez. No filho que nunca segurou no colo. Então começa a chorar.

 

Steban está parado ao pé da sua cama. Vestido com uniforme de gala Lindo, lindo como no melhor dos seus sonhos.

Rosário sente vergonha da camisola de linho, dos cabelos desgrenhados. Queria estar também vestida para festa, mas seus trajes fica­ram todos em Pelotas, na casa fechada havia tantos anos. Existem poucos bailes numa guerra, e no convento também não se dança.

— Vosmecê me assustou! Não sabia que vinha.

Steban sorri no escuro.

A eterna bandagem ao redor da testa está alva e seca. Vê-se que ele se preparou com esmero para encontrá-la no meio daquela madruga­da de primavera. Rosário sente orgulho. Nenhuma das noviças tem um amor como Steban. Sim, e ele a quer muito. Está nos seus olhos, nos seus olhos verdes e rajados de sangue.

Steban se aproxima mais e mais da cama morna do calor de Rosá­rio. Ela sente um frêmito de emoção. Os dois sozinhos ali naquele quar­to, a cama desfeita, o silêncio religioso da noite. Tudo é tão romântico.

Ele se debruça sobre ela, suavemente. Não tem perfume. Talvez cheire a brisa, talvez. A boca carnuda sussurra em seu ouvido um se­gredo sem palavras. Rosário sorri. Faz muito tempo que almeja esse momento.

 

                           Cadernos de Manuela

                           Pelotas, 25 de junho de 1890.

A renúncia de meu tio marcou o começo do fim de muitas coisas. Como a ponta de um longo fio num labirinto, aquele gesto nos guiava a todos pelo penoso trajeto que haveríamos de percorrer dali para adian­te. De algum modo, para nós era o estertor da revolução, da revolução como a havíamos sonhado — ou como nos tinham ensinado a sonhar —, nunca mais a glória, nunca mais a euforia da renovação que, se sequer podíamos compreender, ainda assim nos alegrava. Nós, que éramos servidas por escravas em todos os momentos, que, para vestir um espartilho ou prender os cabelos, necessitávamos daquelas mãos negras a nos auxiliar, tanto vibramos com a ambição republicana so­bre a abolição da escravatura. E, no fim, até mesmo esse disparatado sonho se liquefazia; não haveria liberdade para os negros, não haveria independência, nem um futuro de grandes cidades de homens liber­tos da tirania de um imperador onipotente. Os caudilhos gaúchos viam seu orgulho ferido de morte. Agora, era questão de tempo para que tudo se acabasse, não como um sonho cheio de júbilo, mas como um longo pesadelo que nos alucina uma noite inteira e, ao raiar do dia, deixa apenas um rastro de suor e de medo em nosso corpo exaurido.

Tudo tão engraçado... Havia-se lutado por conquistas que muitos não almejavam, e mesmo assim — talvez ainda mais por isso — aquela derrota doía tanto. O meu tio, Bento Gonçalves da Silva, por exemplo, nunca viveu sem escravos e sempre quis bem ao imperador. Gas­tou os últimos anos da sua vida naquela briga por uma república que não planejou, e para a qual foi eleito "chefe". De uma certa forma, no momento da renúncia, Bento Gonçalves da Silva voltava ao princípio de tudo; porém, agora um pária, um homem a prêmio, uma criatura revoltada, descontente, cansada e enferma. Um perdedor. Sim, sabía­mos que a longa guerra lhe tinha desbaratado a saúde, sabíamos das suas febres, do mal pulmonar que o acometia, das longas noites inso­nes. Mas imaginávamos que tudo seria passageiro: com o fim da pele­ja, que decerto estava próximo, meu tio recuperaria a saúde. Era consenso na família que Bento Gonçalves tinha algo de imortal, por­tanto não o imaginávamos à mercê de qualquer doença, fosse ela gra­ve ou passageira. Meu tio sobreviveria a tudo, até mesmo àquela derrota. Vã ilusão. Algum tempo depois daquele verão de 1843, des­cobriríamos que estávamos enganadas também quanto a isso. Bento Gonçalves da Silva não era perene, não era um deus e nem possuía qualquer arremedo de divindade — era, como nós, mortal, sofredor, um iludido com a vida.

Bento Gonçalves morreu exatamente como qualquer outra criatu­ra sob o céu. Num dia qualquer, deixou de aspirar o oxigênio, e o seu coração parou de bater. Tenho para mim que a pleurisia foi apenas uma desculpa que arranjou para explicar o seu fim. Morreu foi de desgosto por tudo aquilo, pelas coisas que vira e patrocinara, e pelas coisas que não lograra conseguir. Sua morte teve um matiz de fracasso, e ele deve ter levado essa dor eterna para o túmulo. Foi um gigante. E sua queda final teve a proporção da grande altura que ostentou em vida.

Mas a iminência do término da revolução não era um mau pressa­gio para todas nós. Mesmo que esse fim viesse enlameado pela derro­ta. D. Ana já não mais suportava a guerra. Não queria mais estar apartada de José, seu filho, o único que lhe restara da família de ou­trora. Queria-o em casa, ao seu lado, tomando outra vez o prumo dos negócios, da boiada, das coisas da estância, que iam de mal a pior após tantos anos conturbados, quando imperiais e republicanos confiscavam cavalos e bois, e as vendas de charque estavam difíceis e mal pa­radas. D. Ana chorou pelo irmão, pela derrota pessoal daquele homem que sempre soubera admirar e louvar; mas logo depois seus olhos adquiriram novo brilho: se a guerra estava rumo ao seu fim, talvez José voltasse inteiro, são, e não aleijado, doente ou morto, como o marido e o filho caçula.

Também Mariana ansiava o fim da peleja. Nesse dia, João Gutierrez tomaria o rumo da volta. Agora já bem instalada com D. Antônia, Mariana nem mais pensava na mãe, na nossa casa de Pelotas, na vida de bailes que levara anteriormente. Com o fim da guerra, não retornaria à cidade, mas ficaria na Estância do Brejo, com o marido, o filho e a tia. D. Antônia tinha lhe dito: quando voltasse, João poderia administrar a propriedade, pois ela já andava velha e cansada para os assuntos do char­que e da cavalhada. Precisava de um homem para manejar os negócios. E queria a sobrinha e Matias vivendo com ela. A longa guerra deixara-a sentimental. Não sobreviveria mais à solidão das salas vazias, das noi­tes de minuano. Matias trouxera-lhe um novo gosto pelas coisas da vida.

 

Quanto a mim, naquele tempo, já não almejava mais nada. O futu­ro era um espelho embaçado no qual eu não mais desejava me mirar. Estar na estância ou em Pelotas, tudo me reservava a mesma solidão. Eu sofria pelo fim tão negro que se nos apresentava: dez anos de pele­jas e de sangue gastos em vão; mas a verdade é que eu tinha deixado de me interessar pela revolução no dia mesmo em que Giuseppe Garibaldi transpôs a fronteira para o Uruguai.

Depois que seu filho nasceu, Mariana me enviou os cadernos que um dia tinha protegido da minha fúria. Não todos ao mesmo tempo, mas um a um, escolhendo-os conforme a data em que haviam sido es­critos. O último chegou poucos dias antes da assinatura do tratado de paz que deu fim à revolução. Eu os lia como se não tivessem saído das minhas mãos, linhas traçadas por outra mulher, uma que acreditava no amor, no futuro. Não eu, moça sem horizontes, inundada de sauda­des que nunca haveriam de se aplacar.

Apesar de tudo, a revolução fora um tempo feliz na minha vida. O que veio depois, pouca ou nenhuma importância teve. Longos anos es­téreis, gastos na contemplação das alegrias alheias, enquanto a beleza que um dia tive esvaía-se, mutando-se em gastura, em flacidez e em rugas. Envelheci esperando Giuseppe. E ele nunca veio. No entanto, jamais perdi minhas esperanças. Jamais vacilei no meu amor, na mi­nha adoração. Nítidas, todas as lembranças dele em minha alma, o tom exato dos seus olhos de mel, o ouro dos seus cabelos, a veludeza alegre da sua voz, o calor dos seus abraços, a pimenta dos seus beijos. Hoje, sou velha, velha o bastante para contar da Revolução Farroupilha para quem não a viveu e pouco sabe daquele tempo. Hoje sou feita de lem­branças. As pessoas me apontam na rua, sou como uma lenda, uma coisa entre o grotesco e o misterioso: a "noiva" de Garibaldi. O quase. Sou aquela que não se concretizou.

Ainda não morri. A vida me reservou um grande quinhão dos seus favores. Tempo que gastei esperando por Garibaldi. Vivi o suficiente para saber de seu falecimento, oito anos atrás. E, o mais impressionan­te, essa notícia não doeu em mim. Fui-me despedindo dele dia a dia, durante quarenta e três anos — da última vez em que o vi até o dia da sua morte. Agora que abandonou seu corpo, somente agora sei onde se encontra, que mares navega. Logo, irei ter com ele. Agora apenas espero...

Hoje, penso muito em Bento Gonçalves. E experimento, de leve, o gosto amargo que deve ter sentido meu tio, o gosto da desilusão de quem não conseguiu realizar sua tarefa, sua sina. O gosto de quem busca a morte como última oportunidade para ser feliz.

Manuela.

 

De longe, cruzando a coxilha sob o sol ardente de dezem­bro, João Gutierrez parece apenas mais um soldado que aban­donou a peleja. Vem devagarito, dividido entre a saudade e o receio. Vem assobiando uma velha milonga que antes gostava de tocar na viola.

Conhece o caminho, trilhou-o vezes sem conta durante os últimos tempos. Pesou palavras e gestos, preparou o sorriso perfeito, o tom de voz adequado. Mas nunca pôde domar aquele medo em seu coração. Vê a porteira, lá na frente. Acelera o trote. Sob a camisa, o peito an­siado também acelera o seu ritmo.

O peão o conhece e permite a sua entrada. Foi avisado, faz tempo, pela patroa. Quando o homem indiático, o Gutierrez, volvesse, pode­ria deixá-lo entrar no Brejo. Agora ele era da família. O peão abriu a porteira com um gesto largo, acenou. Não notou a falta de nada no cavaleiro ereto e magro, de rosto liso e olhos muito negros.

Matias brinca na varanda com seus soldadinhos de chumbo. O menino cresceu nos últimos tempos, logo completará dois anos. É longilíneo, os mesmos cabelos pretos do pai, a pele de Mariana. Há uma negrinha com ele. João Gutierrez apeia. A negra e o menino fi­cam observando a sua chegada. A negra o reconhece das longas des­crições de Mariana. Matias pergunta:

— Quem é, Tita?

A negrinha não sabe o que dizer ao menino.

— Uma visita — desconversa.

João Gutierrez sente um frio na boca do estômago. O filho não o conhece. João tem o braço direito escondido atrás do corpo, como quem protege uma surpresa dos olhares curiosos.

— Vosmecê me chame a senhorita Mariana. — A voz saiu firme, apesar de tudo.

A negrinha ergue-se num pulo.

— Sim senhor. A senhorita está lá para dentro. — Fita o menino. — Vosmecê vem comigo, Matias?

— Não, Tita.

Matias está sentado no chão da varanda. Os soldadinhos espalha­dos ao seu redor perderam a graça. Há um magnetismo naquele ho­mem à sua frente. Ele sente vontade de rir, de contar do cavalo que vó Antônia mandou comprar só para ele, mas sabe que não deve falar com estranhos. A mãe sempre lhe disse isso.

 

Os olhares se cruzam. Entre eles, está Matias. Mariana manda a ne­grinha levar o filho para dentro, e os dois somem no interior ensom­breado da casa.

— Quero abraçar vosmecê, João.

Ele sorri. O sorriso tantas vezes ensaiado sai diverso, mais amplo, emocionado.

— Yo también, mi Mariana.

Ela se joga nos braços dele. Sente seu cheiro, beija a pele daquele rosto que vasculhou em sua memória por madrugadas sem fim. João beija-a. O mesmo gosto orvalhado. Tê-la em seus braços é coisa deli­cada e tênue, é como alçar-se ao céu.

— Esperei tanto. Vosmecê voltou de vez? Abandonou a peleja ou somente veio nos ver, de passagem?

— Vim para ficar, mi Mariana.

A voz dele tem vestígios de coisas guardadas, tem um sentimento sutil, uma fraqueza, uma entrega que ela nunca tinha percebido antes. Seus olhos oblíquos estão úmidos, os longos cílios negros, inquietos.

— Sucedeu alguma coisa, João?

Ela se afasta um pouco para contemplá-lo, como em busca de al­gum ferimento, alguma falha em sua figura bem-feita.

João ergue devagarinho o braço direito. O punho da camisa, desabotoado, balança no ar. Mariana arregala os olhos.

— Foi a gente do Moringue — explica tristemente, mostrando o braço aleijado. Depois mastiga o silêncio, o seu e o dela. — Usted ain­da me quer, Mariana? Usted quer um hombre sem una mano, mas com la alma intacta?

Mariana abraça-o. Não vai chorar. João não merece. E está vivo. Vivo e seu, para sempre. A guerra acabou para eles, e João voltou. De que vale uma mão, apenas cinco dedos, quando tanto mais estava em jogo?

— Claro que le quero, meu amor. Vosmecê está vivo, graças a Deus. Graças a Deus. Rezei pela sua volta todos os dias, João.

Ela pega o braço e beija a carne costurada, ainda avermelhada, a pele cheia de marcas onde antes estava a mão que dedilhava a viola nas noites mornas de verão. Claro que o queria, como antes. Ainda mais.

— Pensei em não voltar, Mariana. Pensei em rumar para o Uru­guai. Mas precisava saber se usted me queria, mesmo assim. Um alei­jado.

Mariana sorri. A dor nos seus olhos se desvanece. Agora desbrilham incólumes, como o céu azul da manhã de verão.

— Vem, João. Vamos lá para dentro. Finalmente, vosmecê vai conhecer o seu filho. Ele sabe tudo sobre o pai. Nesse tempo todo, contei nossa história. — Beija o rosto moreno. — Matias vai ficar mui feliz. O pai voltou da guerra, finalmente.

 

                         1844

                       "Várzea de Santana, 24 de fevereiro de 1844.

                        Querida Caetana,

Escrevo para dizer-lhe que minha saúde melhorou. Com o verão e o tempo seco, meus pulmões têm estado mais dóceis e pacientes comigo, o que me permitiu voltar à frente dos meus homens, depois do penoso in­verno que amarguei. Saiba vosmecê que agora estamos acampados jun­tamente com outros generais, e que fazia muitos dias não parávamos, mas percorríamos a Campanha de sol a sol, dormindo ora aqui, ora acolá, evi­tando assim que os homens de Caxias pudessem nos cercar numa madru­gada malfazeja qualquer.

Este ano que passou foi mui difícil para a República e para os nos­sos exércitos. Tivemos uma infinidade de pequenas batalhas, a maioria delas com saldo negativo para as nossas tropas. Tudo isso vosmecê deve ter ouvido de Caetano, que faz pouco esteve le visitando. Mas le repi­to essas tristezas para que vosmecê saiba que ainda tenho forças para brigar com o inimigo, e que, enquanto Deus assim me mantiver, esta­rei aqui, em frente ao meu exército, pelejando por essas coxilhas. Não sou mais presidente da República, mas ainda — e sempre — um solda­do incansável.

Aqui no acampamento, as cosas vão malparadas. Não somos mais os mesmos homens, estamos divididos. Não reconheço Lucas, nem Onofre, meu primo, que anda abertamente me caluniando. Quanto a isso, vosmecê sabe que preciso fazer alguma cosa. Pensarei em algo nos pró­ximos dias. E vosmecê terá mais notícias minhas. Com todo o meu afeto,

Bento Gonçalves da Silva."

 

Um calor seco pairava por tudo. Ao fundo, se ele afinasse o ouvi­do, podia ouvir os murmúrios do rio. O acampamento estava silencio­so. A madrugada ia alta, estrelada e fresca. Insetos voavam pela noite, cigarras cantavam, os angicos pareciam também dormir sob o sereno, mansamente.

Bento Gonçalves da Silva ergueu-se do tamborete onde estava sentado e saiu a caminhar por entre as barracas. A angústia consu­mia-o inteiro. Ele viu a sombra de Congo a mirá-lo, de longe. Fez um gesto indicando que não precisava de nada, o negro desapare­ceu dentro da barraca. Na verdade, tinha muita precisão de algo: falar com Onofre. Tinha crescido com o primo, cavalgado com o primo, tomaram banho de sanga juntos, lutaram no Uruguai, con­fabularam juntos, e juntos iniciaram aquela revolta. Agora eram inimigos.

Pisava o chão ressecado. Um cavalo resfolegou ao longe. Seu or­gulho não podia admitir as atitudes de Onofre Pires. Já tinha sido achincalhado por demás. Precisava dar um basta, a qualquer custo. Por isso lhe escrevera aquela carta. Tinha querido abrir um processo contra o coronel Onofre. Impossível, devido à sua condição de depu­tado. Então precisava saber do próprio se era verdade o que se andava a dizer por ali, que várias vezes Onofre tinha ofendido a sua honra, que o chamara de ladrão. Passava da meia-noite. Onofre já devia ter lido a sua carta. Ao longe, no outro acampamento, talvez estivesse es­crevendo uma resposta.

Bento Gonçalves aspirou o ar da noite. A tosse insinuou-se, sutil­mente, como um cachorro velho que busca o calor da lareira. Ele rechaçou-a com cuidado. Queria esquecer a doença. Queria esquecer Onofre. Olhou o céu pontilhado de estrelas, tentando descobrir o que lhe reservava o dia seguinte.

 

O soldado entregou a carta e bateu continência, depois sumiu, engoli­do pela claridade atroz que se derramava do céu de verão. Bento Gon­çalves entrou na barraca. Abriu a carta e leu-a em pé mesmo.

 

"Cidadão Bento Gonçalves da Silva.

Prezado Senhor.

Ladrão da fortuna, ladrão da vida, ladrão da honra e ladrão da liber­dade é o brado ingente que contra vós levanta a nação rio-grandense, ao qual já sabeis que junto a minha convicção, não pela geral execração de que sois credor, o que lamento, mas sim pelos documentos justificativos que conservo. Não deveis, senhor General, ter em dúvida a conversa que a respeito tive, e da qual vos informou tão prontamente esse correio tão vosso... Deixai de afligir-vos por haverdes esgotado os meios legais em desafronta dessa honra, como dizeis: minha posição não tolhe que façais a escolha do mais conveniente, para o que sempre me encontrareis.

Fica assim contestada a vossa carta de ontem.

Campo, 27 de fevereiro de 1844.

O vosso admirador Onofre Pires da Silveira Canto."

 

  1. Antônia recebeu a notícia do duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires numa tarde mormacenta do princípio de março. A carta, escrita por Joaquim, numa letra dura, apressada, pedia também que ela fosse até a Estância da Barra dar a notícia a Caetana. D. Antônia custou a acreditar no que Ha. Bento e o primo tinham duelado fazia alguns dias. Bento contestava a sua honra, Onofre o teria chamado de ladrão por várias vezes. D. Antônia recordou cenas da infância: o ir­mão e o primo cavalgando pelos campos, subindo nas árvores em bus­ca de frutas maduras, namorando as negrinhas da cozinha, sob os olhares disfarçados de D. Perpétua, que fingia não notar nada... Agora aquilo. Era o princípio de algo, de uma coisa impalpável e cruel, úmida de maldade e de horror. Era um mau presságio. Ela sentiu um arrepio correr pelo seu corpo, como se uma língua frígida, imensa, lam­besse suas costas e braços. Dobrou a carta e guardou-a na gaveta da escrivaninha.

Na manhã seguinte, rumou para a casa da irmã levando o telegra­ma de Joaquim bem guardado no bolso do vestido.

 

Quatro dias depois, outra carta. Onofre morrera. A cutilada no braço infeccionara, depois gangrenara. Esse fora o fim do gigante de bigo­des. Onofre Pires da Silveira Canto. Quando pequenos, ele e Bento Gonçalves brincavam na beira da sanga. Depois tinham feito aquela revolução.

Com o telegrama sobre o colo, os olhos úmidos de tristeza, talvez por Onofre, talvez por Bento, D. Antônia ficou tentando imaginar os caminhos que tinham levado os dois primos até aquele extremo, até o fim. Mas sua alma vagou por muito tempo — até que a tardinha caísse e o céu se tornasse alaranjado —, ela e não chegou a conclusão nenhu­ma. Só sentia aquela tristeza, aquela tristeza pesada e dura e mordaz.

Anoitecia quando Mariana entrou na grande sala deserta. D. Antônia estava sentada na cadeira de balanço, os olhos fitando o nada.

— Tia?

  1. Antônia virou o rosto para a sobrinha. Era uma máscara sem sentimentos.

— Onofre morreu.

Mariana baixou os olhos, tristemente.

— Onofre morreu — repetiu D. Antônia, e sua voz perdeu-se nos estertores do dia.

 

Maria Manuela chama Zé Pedra e pede que lhe prepare a sege. Vai dar um passeio.

— Veja um negrinho qualquer para me levar.

— A senhora vai para onde?

— Vou visitar minha irmã.

Zé Pedra aquiesce. Sabe muito bem, como todos na estância, que Maria Manuela não pisa no Brejo faz muito tempo, desde que a filha se mudou para lá.

 

A sege vai avançando pela estradinha, sob o sol morno do comecinho do outono. Maria Manuela não vê o dia bonito, o céu azul muito inten­so, sem nuvens, que se perde pelas coxilhas como um manto bem es­tendido. Faz muito que planeja isso. Talvez não desça do carro, quer apenas espiar de longe o menino. Vai completar dois anos no inverno, sabe mui bien. Quando ele nasceu, trancada no quarto, rezou uma oração. Pela filha, pelo menino, por seu orgulho imenso e frívolo.

A brisa sopra em seu rosto.

A única coisa que não quer é ver o vaqueano, o tal Gutierrez. Esse foi castigado. Arrancaram-lhe a mão na falta de coisa melhor. Quando Ana lhe contou o causo, ela sorriu disfarçadamente. Imaginou aquele ferimento como obra divina. Não era a guerra, era Deus. Nunca pen­sou que seu marido morrera na peleja. Se fosse assim, que cruel sen­tença Anselmo cumpria? Nunca pensou.

De longe, vê a casa. Já atravessaram a porteira. O campo verdejante se estende muito além de onde pode ver. Ela sente no ar o cheiro do rio.

Aqui também viveu Garibaldi. Neste chão. Aqui também amou. Uma das minhas filhas. A vida dá suas voltas, agora é Mariana quem realiza aqui sua paixão. Mas eu continuo sofrendo.

— Pare mais adelante. Embaixo daquele angico. Daqui em fren­te, vou caminhando. E não me demoro.

O negrinho obedeceu.

Maria Manuela desce da sege. A casa vai ganhando vulto ante seus olhos. Um peão cavalga ao longe. Dois negrinhos consertam uma cer­ca. As janelas da casa são azuis, de um tom muito claro, como o céu. Agora já vê a varanda, a porta que dá na sala. Imagina que Antônia está lá dentro, lendo, ou no escritório, cuidando dos negócios da es­tância.

Sentado na escada que dá na varanda, está o menino. Ela vê que ele tem os cabelos muito escuros, a pele alva. Ele arranca capins do chão, devagarinho, como se obedecesse a algum ritual. Maria Manuela sente um nó na garganta; trinta metros à sua frente, está o neto, carne da sua carne. Ele tem alguma coisa de Antônio, o formato do rosto, os gestos lentos e calmos. Mas ele tem muito do pai. João Gutierrez der­rama-se do rosto do menino, e ela sente um princípio de raiva ao ver sua família misturada com o vaqueano; porém, a raiva logo se desfaz. É amor essa coisa boa latejando em seu peito.

Avança mais um pouco, nervosa, atrapalhando-se com as saias. Não há ninguém por perto. Matias levanta os olhos e vê a mulher na sua frente. Sorri.

— Bom dia.

A voz de Maria Manuela soa trêmula. O menino responde qual­quer coisa. Ela aprecia aquelas palavrinhas suaves, derramadas. Matias tem um rosto bonito, delicado. Os mesmos olhos esgaçados do pai, olhos de gato.

— Sua mãe está em casa?

O menino larga no chão um chumaço de capim.

— Lá dentro — responde.

— Será que vosmecê podia chamá-la?

— Posso sim.

Matias ergue-se. Maria Manuela vê como ele é alto, longilíneo. Ele sobe pela escada e vai correndo, atravessa a varanda, adentra a casa. A voz dele ecoa, chamando por Mariana.

Maria Manuela vê o mundo sob o limo das suas lágrimas. A filha chegará em poucos segundos. Matias é um menino bonito, tão doce. Ela tem vontade de abraçá-lo, de sentir seu calor, a morneza dos seus beijos. Tem vontade de chamá-lo de neto.

Ouve a voz de Mariana, vinda de algum canto da casa. Mariana, que chorou pedindo perdão. Mariana, trancada no quarto durante tan­tos meses, por ordem sua. Mariana, que partiu sem dizer adeus, um manto de lã a cobrir-lhe a barriga proeminente.

Ela sai correndo pelo campo, rumo à sege onde o negrinho a espe­ra. Vai tropeçando nos guanxumas, sem fôlego, desesperada. Mariana surge na varanda.

— Não tem ninguém aqui, Matias. O menino encolhe os ombros.

— Mas tinha, mãe. Le juro. Era uma mulher.

 

Bento Filho chegou no dia vinte de abril, trazido por dois homens. Vi­nha mancando, o braço numa tipóia, um riso gasto no rosto emagrecido. As mulheres da casa acorreram todas, Caetana chorando, beijando o fi­lho, querendo saber se estava bem, se tinha febre, e como fora ferido.

  1. Ana recebeu os soldados e ouviu-lhes a narrativa. Bentinho ti­nha sido atingido no ataque de Cerro da Palma. Uma cutilada no bra­ço, uma bala na coxa esquerda. Fora salvo pelo irmão mais novo, Leão. Agora, passava bem, não corria mais riscos de infecção. O general ti­nha mandado que viesse descansar em casa. As coisas nos acampamen­tos farroupilhas iam muito conturbadas. Era melhor que Bento se recuperasse na estância, aos cuidados da mãe. D. Ana agradeceu aos dois soldados, depois mandou que Zefina os levasse até a cozinha, onde teriam boa comida e uma bebida fresca.

Caetana acomodou o filho na cama de lençóis limpos.

— Leão me salvou a vida, mãe. É mui corajoso. Merece o nome que tem. Parece que vai ser promovido de posto.

— Desde pequetito, Leão sonha com a guerra. — Ela recordou o jovem austero, tão parecido com o esposo. — E seu pai, como está?

— O pai vai mui mal desde a morte do Onofre, mãe. Aquilo le pesou no peito. Mas foi um acerto de contas. Onofre tinha chamado o pai de ladrão para quem quisesse ouvir.

— Tudo isso é mui doloroso, meu filho.

Caetana lembrava bem de Onofre. Era madrinha de um dos seus filhos. Tinham passado muitos domingos juntos, em churrascos e fes­tas familiares. Pensou em Bento. Aquela morte era um fardo muito pesado para o marido.

— O pai não queria matar o Onofre, mãe. A senhora precisava ver a dor nos olhos dele no dia do enterro. Ele não foi, claro. Mas ficou na sua tenda, calado, o dia todo. Aquele silêncio que a senhora conhece. — Bento acomodou-se melhor na cama. Uma criada entrou com a bandeja onde fumegava um prato de sopa. Bento esperou que ela saís­se. — A guerra vai mal, mãe. Estamos praticamente andando pela Campanha, sem pouso. Estamos acuados. Faz alguns dias, o Moringue entrou em Bagé e aprisionou o Domingos de Almeida. O pai gostava muito dele, ficou abatido. O Mariano de Mattos também foi preso.

Caetana começou a dar a sopa na boca do filho. Lá fora, a tarde caía mansamente. Começava a soprar uma brisa fria, outonal. Caetana estava melancólica. Queria o marido de volta, em casa, aos seus cuida­dos, antes que fosse tarde demais para ele. Tarde demais para ambos.

 

Em maio, Inácio de Oliveira Guimarães veio buscar Perpétua e as duas filhas. Iriam todos para o Boqueirão. Inácio voltava para a Estância do Salso, para cuidar do gado e da cavalhada. Não havia mais necessi­dade de um chefe de polícia numa república andante. Os farroupilhas, perdendo terreno, quase não tinham mais cidades sob o seu controle.

Perpétua esperou-o sentada na sala, usando um vestido novo, com as duas meninas aos seus pés. Tinha recebido o telegrama dois dias antes. As malas, todas prontas, estavam enfileiradas na varanda. Ela se sentia um pouco nervosa. Desde o casamento, podia contar nos dedos os dias passados com Inácio. De um certo modo, acostumara-se àque­la vida coletiva e feminina. Mas amava o marido. Tinha vivido na alma o arrepio que a presença de Inácio lhe provocava.

Caetana chorou um pouco, fechada no quarto. Na tarde passada, Bentinho tinha retornado à peleja. Agora Perpétua partia. Ficavam com ela apenas Marco Antônio, Maria Angélica e Ana Joaquina. Ela temia que Marco Antônio logo quisesse se unir às tropas farroupilhas. Já contava dezessete anos, em breve poderia encilhar um cavalo e ganhar o pampa como os outros. As meninas não. Maria Angélica era já uma moça. Pouco se recordava da vida anterior àquela guerra. Ana Joaquina crescera ouvindo falar da revolução e tinha medo do pai, quase um estranho para ela.

Inácio chegou para buscar a esposa ao meio-dia. Almoçaram todos juntos na grande mesa da sala de jantar. Perpétua comeu pouco, tinha um nó no peito, misto de excitamento e de angústia. Caetana parecia envelhecida à mesa, os olhos verdes exibiam um brilho cansado.

Partiram no meio da tarde, sob o sol morno de maio. As meninas ficaram acenando do carro, risonhas. Caetana apoiou-se em D. Ana para não desmaiar. Estava fraca. Naquela noite, teve uma febre inex­plicável.

 

Bento Gonçalves vai montado no cavalo negro, elegante; vai ereto, usando um uniforme novo e escovado, o rosto exibindo seus ares mais orgulhosos. Há apenas uma ponta de angústia no brilho dos seus olhos escuros, mas é coisa pouca, somente os mais íntimos poderiam percebê-la. Joaquim nota o incômodo do pai. Cavalga ao seu lado sem dizer nada. O Barão de Caxias os espera. Depois de nove anos de carnifici­na e de sonhos frustrados, vão negociar a paz. Joaquim sabe que a paz será difícil, que seu pai tem sérias divergências com Canabarro, com Vicente, com Lucas. Mas Bento Gonçalves cavalga rumo ao encontro, mesmo assim. Foi eleito negociador. Talvez sua última tarefa para com essa república agonizante.

O sol de agosto é tênue e se esconde entre as nuvens. Sopra um vento frio. A estância onde o Barão marcou o encontro fica nas ime­diações de Santa Maria. Mais quatro cavaleiros seguem com eles, um pequeno séquito silencioso e austero.

 

O Barão de Caxias tem quarenta anos, olhos cinzentos e voz bem modulada. Recebe Bento Gonçalves com um aperto de mão, na varanda da casa. Bento Gonçalves aperta a mão do Barão com força, o sorriso medido, os olhos ardentes.

No escritório, os dois homens começam a conversar. Bento Gon­çalves levanta a idéia de uma federação, dizendo que Rivera também está disposto a federar o Estado Oriental ao Império, assim como Mardaríaga o Estado Correntino. O Barão recosta-se na sua cadeira. Cofiando o bigode, responde que a federação é impossível. Não está autorizado pelo Império a tratar de tal assunto. Se Bento Gonçalves se dispuser a fazer com que os rebeldes da Província deponham as ar­mas, sujeitando-se ao imperador, poderá garantir que todos sejam anis­tiados. Bento Gonçalves fala na dívida interna e externa da República. Também quer que todos os soldados sejam reconhecidos nos postos que alcançaram durante a revolução.

Duas horas são gastas em longas negociações que não levam a nada. Joaquim percebe o nervosismo mascarado nos gestos contidos do pai.

Ao cair da tarde, o Barão encerra o encontro dizendo que não pode se comprometer com a dívida rebelde, mas que levará esse e outros assuntos para a apreciação de Sua Majestade o Imperador. Enquanto isso, o exér­cito rebelde pode passar a fronteira e esperar lá a decisão de Sua Majestade.

Bento Gonçalves retira-se, alegando que levará para Canabarro um resumo do encontro. Quando monta outra vez em seu cavalo negro, já o sol sumiu por trás da última coxilha, e o vento frio que anuncia a noite começa a soprar pelo pampa. Bento Gonçalves da Silva vai tos­sindo por boa parte do caminho, calado, casmurro, escondido sob o véu da sua doença.

 

Os chefes revolucionários não chegaram a um consenso. Almejavam a paz. A República não tinha mais cidades nem exércitos. Porém, o gru­po comandado por Vicente, Lucas e Canabarro criou empecilhos para a negociação. Não queriam que o general Bento Gonçalves levasse os louros pelo acordo de pacificação.

 

Caetano apeou o zaino em frente à casa de Tião da Silva. Tinha ido levar mensagem do pai a Netto. Tião da Silva era compadre do gene­ral, que tinha batizado sua filha caçula. Um negrinho miúdo apareceu para recebê-lo, dizendo que o patrão e o general Netto estavam para os lados da charqueada.

— O senhor pode esperar na sala. O patrão volta logo. Caetano entrou na sala ensolarada. Grandes janelas abriam-se para o campo. Era uma peça clara, com piano e livros, uma sala feminina. Do corredor, vinham vozes. Caetano sentou numa cadeira e ficou aguardando. A carta do pai queimava no bolso do seu dólmã.

As vozes do corredor tornaram-se mais nítidas. Uma moça loira, alta, de cabelos lisos, entrou na sala, acompanhada de uma negra. Cae­tano ergueu-se. Era um jovem elegante, de carnes enxutas, pele tri­gueira e olhos negros como os de Bento. A moça assustou-se com a presença inesperada daquele homem bem no meio da sua sala.

— Buenos dias, senhorita — disse Caetano.

Ela tinha olhos azuis, reparou. Olhos de um azul primaveril. — Buenos dias — retrucou a moça.

— Sou filho do general Bento Gonçalves. Vim à procura do gene­ral Antônio Netto. Me informaram que estava aqui, na casa do senhor Tião da Silva.

— E verdade. O general veio prosear com meu pai — disse a moça. Sua voz tinha um timbre veludoso. — Sou a filha do senhor Tião, Clara.

Caetano sentiu os olhos arderem. O pai o tinha mandado até ali para entregar uma carta. Era uma carta de suma importância. Era quase um adeus. A revolução agonizava. O pai agonizava. Então, por que sentia aquele júbilo, aquele gosto de fruta na boca, aquela alegria re­pentina e atroz?

Clara Soares da Silva abriu um sorriso. Tinha dentes perfeitos e alvos, emparelhados dentro de uma boca de lábios cheios, rosados. Ela convidou Caetano a sentar novamente. Uma das criadas lhe traria um mate. Caetano aquiesceu. Pelas janelas entrava a claridade aguda do dia. Os dois jovens nada disseram. Ficaram apenas sentados um de frente para o outro, mastigando aquele silêncio repleto de emoções. De repente, mais nada importava, só aquela proximidade morna, aqueles olhares longos, famintos, disfarçados de outra coisa. De repente, os dois já sabiam. Era uma coisa que se sabia, que ardia dentro do peito, que palpitava.

 

             "Ilmo. Senhor Barão de Caxias

               Campo, 13 de outubro de 1844.

               Prezado Senhor

Venho por meio desta devolver o salvo-conduto que me foi oferecido para participar de conferência com V. Sa. porque, apesar do meu empenho, e dos meus amigos, de levar a efeito uma conciliação que ponha termo aos males que afligem este belo país, não poderia fazer uso do mesmo nos ter­mos em que está redigido, já que não satisfaz plenamente os meus desejos. Ardentemente ambiciono o termo da guerra civil, porém jamais me desviarei dos princípios que, segundo minha opinião individual, a V. Excia verbalmente manifestei; e posto não fossem então aceitos por parte de meus companheiros, com que se neutralizam meus esforços, tenho hoje dados positivos para acreditar que são adotados. Se, Exmo. Sr., escusado por meus amigos, ouso afirmar a V. Excia. que, se ainda, como espero, está penetrado dos desejos que me manifestou e da resolução de conce­der as vantagens que ultimamente lembrei para salvar a dignidade do Rio Grande do Sul, a paz entre nós vai ser selada, a despeito da má vontade de um ou de outro exaltado. Pelo portador, espero que V. Excia. se digne mandar-me uma resposta categórica, para ulteriores passos que devo dar. Se, como espero, for afirmativa, muito pronto estará com V. Excia. pessoa devidamente habilitada para regular as bases da conciliação. Acredite V. Excia. que não há um instante a perder-se, à vista da atitude imponente do Tirano Rosas, de quem será presa o Continente se continuam a dilace­rar-se os seus filhos, destruindo os poucos elementos que restam para dis­putar o passo ao Déspota audaz que nos ameaça com aguerridas hostes; esta consideração que sobre mim pesa deve convencer V. Excia. da urgen­te necessidade de levar a efeito o que proponho, no que fará transcen­dente serviço ao país que o viu nascer, desviando-o dos males que lhe acarreta a prolongação dessa luta, e mais que tudo impondo respeito ao feroz inimigo que nos ameaça, para o que, apesar de velho e cansado, prestarei gostoso meus débeis serviços à paz dos meus irmãos brasileiros.

De V. Excia. Antigo Camarada, Amigo e Criado.

Bento Gonçalves da Silva."

 

Acabou de redigir a carta. Sentia um cansaço no corpo, como se todas as suas forças tivessem se esgotado naquele último e cabal esfor­ço. Agora estava tudo terminado.

Joaquim estava ao seu lado, o rosto sombrio, os olhos tingidos por uma espécie de dor.

— E agora, pai?

— Agora é recomeçar a vida, Joaquim — suspirou. — Juntar os cacos.

Joaquim pensou em tocar a mão do pai. Mão marcada, calosa, envelhecida. Mas não o fez.

— Já mandei avisar a mãe. O Congo partiu faz pouco.

— E o Terêncio? Avisaram a ele que vou chegar na estância amanhã?

— O Leão mandou um mensageiro. Vão estar todos le esperando, pai. Todo mundo no Cristal.

Bento Gonçalves ergueu-se e caminhou até a porta da barraca. O sol da primavera inundava o acampamento. Era um acampamento pobre, com poucas barracas, cavalhada magra.

— Mala suerte. Tudo findar como findou. Mas já não tinha mais jeito, Joaquim. Eu não confio em quase ninguém. Só em vocês, no Netto, no Teixeira. Impossível continuar assim.

Joaquim postou-se ao seu lado.

— Esquece, pai.

— Quase dez anos, meu filho. Não dá para esquecer. — Caminhou de volta à mesa. Selou a carta. — Mande um estafeta entregar isso ao Barão.

 

                           Cadernos de Manuela

                           Pelotas, 30 de agosto de 1890.

Na madrugada do dia quatorze de novembro de 1844, Moringue e seus homens caíram por sobre o acampamento de Canabarro, onde os soldados dormiam, desprevenidos de tudo. Houve pânico e uma fuga desabalada, os homens fugindo a pé ou a cavalo, uniformizados ou desnudos. O Corpo de Lanceiros Negros, sob as ordens do bravo coronel Teixeira Nunes, não fugiu. Ao contrário, lutaram sua última e gloriosa batalha como que iluminados por algum deus. Lutaram no escuro, as lanças dançando sob a luz da lua que prateava o pampa. Lutaram como heróis, por uma liberdade que mal chegaram a roçar... A maioria deles morreu ali mesmo, naquela noite. Morreram banha­dos de luar.

Teixeira Nunes morreu dias depois, trespassado por uma lança im­perial num encontro surpresa com as tropas inimigas.

A batalha de Porongos foi a última grande tragédia daquela guer­ra. Não recordo se chorei por essa notícia. Havia já então um adorme­cimento em minha alma, tantas as tristezas que havíamos passado. Mas lembro que Zefina, criada de D. Ana, sentou no quintal e se lanhou e gritou por um dia inteiro. Tinha um irmão lutando com o coronel Teixeira. Um irmão moço, de dezenove anos, que lutava pela sua li­berdade. Morreu em Porongos. Não recebeu nem um punhado de ter­ra sobre a cabeça.

Porongos foi o derradeiro suspiro. Depois, só restava um acerto com o Império, um tratado que trouxesse ao Rio Grande a mínima honra. Estávamos, então, banhados em sangue.

Na Estância, o clima era de tristeza plena. Perdia-se a guerra de maneira cruel. Longos anos. As filhas de Caetana tinham chegado pequetitas, Maria Angélica saía de lá uma moça — tinha então a mi­nha idade no começo da revolução. Tendo recebido a carta que João Congo lhe trouxera em meados de outubro, Caetana preparava-se para partir com os filhos. Bento Gonçalves esperava-a no Cristal. Perpétua já tinha ido embora. Eu e minha mãe ainda ficaríamos alguns meses — a mãe temia a viagem até Pelotas, pois a paz, a despeito de tudo, ainda não estava selada, e os caminhos do Continente iam cheios de desertores famintos e esfarrapados.

A casa de minha tia ia se esvaziando aos poucos, enchendo-se de sombras e de silêncios. Para sempre marcada por aqueles anos, a grande casa acabrunhava-se na sua nova solidão, envelhecia. Ficavam para trás as longas horas de espera, os bailes com os republicanos, o medo nas noites de inverno. Ficavam para trás as minhas tardes com Giuseppe, o casamento da prima Perpétua, os banhos de sanga, as músi­cas de D. Ana ao piano... Tudo de bom e tudo de ruim ficava para trás. As vozes, os cheiros, as lembranças, tudo se ia perdendo no limbo do tempo que passava. Havíamos vivido a História, e seu gosto era amar­go, no final.

Manuela.

 

                       1845

Caetana amarrou a fita do chapéu em torno do pescoço. Olhou-se uma última vez ao espelho. Tinha-se mirado naquele espelho de cristal nos últimos nove anos, todos os dias. Envelhecera sobre aquela superfície.

Virou o rosto. Deu uma olhada geral no quarto. Pela janela aberta, entrava o sol quente de janeiro. A cama larga repousava no meio da peça, com sua colcha amarela, os travesseiros de pena. Quantas noites dormira ali? Quantas lágrimas derramara sobre aqueles travesseiros após ler as cartas de Bento, as poucas notícias que tinha recebido da prisão, em Salvador, e as outras cartas, as últimas, quando a guerra já se perdia e Bento começava a sofrer com a doença, a desgastar-se, a amargurar-se, quantas lágrimas?

Pegou a maletinha sobre a cama. Zefina já tinha levado as outras malas para a carroça onde Congo estava acomodando os pertences da família. Bateram de leve à porta.

— Entre.

Era Marco Antônio.

— Está tudo arreglado, madre. Vamos?

Caetana olhou o filho pelo espelho. Estava um homem. Dezenove anos, parecido com ela. Lembrou da vez em que fugira com Leão, e da febre que o pusera de cama por muito tempo. A guerra estava apenas começando, então. Suspirou. O filho estava postado sob o batente da porta. Os olhos verdes presos nela.

— Vamos, Marco Antônio. — Deu uma última olhada para o quar­to. — Adiós.

Saiu rapidamente, braço dado com o filho.

Na sala, D. Ana, Maria Manuela, D. Antônia e Manuela a espera­vam. Paradas uma ao lado da outra, sorriam. Havia lágrimas nos olhos de D. Ana. Foi a primeira a abraçá-la.

— Cuide-se, cunhada. — Beijou-lhe o rosto. — Vosmecê diga para o Bento que logo vou vê-lo. E façam boa viagem.

Maria Manuela despediu-se com poucas palavras. Quando a guer­ra findasse de vez, voltaria para Pelotas com Manuela. E mandaria buscar Rosário no convento.

— Esteja com Deus, Caetana. Rezarei por vosmecê.

— Gracias, Maria.

  1. Antônia entregou-lhe um envelope azul. Para Bento. E uma folha dobrada em quatro.

— É um desenho, Caetana. Foi Matias quem le fez.

Ao ouvir o nome do neto, Maria Manuela teve um espasmo. Manuela beijou a tia e abraçou-a.

— Adiós, Manuela.

— Adeus, tia. Quando nos veremos outra vez?

Caetana fitou-a com seus grandes olhos verdes alagados de luz.

— Hay tiempo, Manuela. A vida continua a partir de hoje.

Saiu para a varanda. Marco Antônio e as duas filhas a esperavam. João Congo e Zefina estavam postados ao lado dos dois coches; atrás, um negrinho miúdo cuidava da carroça carregada de bagagens.

Caetana aspirou o ar que cheirava a jasmins. Eram pouco mais do que oito horas da manhã. Ainda havia alguma frescura no ar. O céu estava azul.

Subiu no coche, ajudada por Congo. Ajeitou melhor o chapéu de palhinha. Da varanda, as parentas olhavam, solenes. Sentiu que algu­ma coisa se alterava no mundo. Um relógio parado havia muito come­çava lentamente a trabalhar outra vez. A vida continuava, como tinha dito a Manuela.

Acenou mais uma vez para as cunhadas. A mão dançou no ar como um pássaro liberto da sua gaiola. Ana Joaquina, nove anos, com um vestido rosa pálido e os cabelos presos em duas tranças, lhe sorriu.

— Vamos para casa, madre?

— Sí, Ana.

Ana Joaquina não se lembrava da Estância do Cristal, onde tinha nascido. Quando a guerra estourara, tinha apenas um ano.

— Papai vai estar nos esperando?

— Sí, hija. Papai vai estar nos esperando.

— Ele fica com a gente quanto tempo, desta vez, madre? Caetana afagou a mão da menina.

— Para siempre, hija. Desta vez, para siempre.

João Congo atiçou os cavalos. O coche começou lentamente a mover-se.

 

Rosário acordou ensopada de suor. Na escuridão viscosa do quarto, ouviu a voz dele.

— Steban?

Ergueu-se rapidamente. A camisola pegada no corpo atrapalhava seus movimentos. Ela procurou uma vela, acendeu-a. A pequena cha­ma era alaranjada e inquieta. Difícil ver alguma coisa.

Mas o viu.

Estava parado ao lado da porta. Vestido com uniforme de gala. O rosto bonito, os cabelos cortados. Ele sorriu para ela. Usava a espada na cintura, e não estava com a bandagem na testa. Na pele alva, ne­nhum sinal do ferimento que sempre o incomodara. Tinha cicatrizado.

Rosário soube que aquilo significava algo. A ferida estava curada, finalmente. E ele ali, no meio daquela madrugada quente.

— El tiempo es mi lugar. El tiempo es tu lugar, Rosário.

A voz sabia um pouco a cravo, uma voz temperada e doce, volátil.

Steban abriu a porta. O silêncio do corredor penetrou no quarto. E ela entendeu, então. Entendeu tudo o que sempre a inquietara e consumira. Steban estendeu-lhe a mão, e era morna e macia, e o seu toque era veludoso. Agora a vida toda fazia sentido, havia muito mais além daquelas paredes, daqueles muros de pedra. Ela mesma não sig­nificava nada, a pele, o sangue, os cabelos louros, os pés finos e bran­cos que iam pisando as lajotas do chão. Tudo era pouco. Eles, juntos, eram muito mais do que o mundo. Por isso nada fizera sentido até aquele momento. A infância rica, as bonecas de porcelana, o colo do pai, os jovens enamorados, os livros, as sedas, nada fizera sentido. E nem a guerra. Apenas o silêncio. Havia sido no silêncio que o encon­trara pela primeira vez, quando uma fresta do mundo se abrira para eles. E tinha sido sempre tão pouco, tão pouco... Agora seria para sem­pre. Agora, que tudo fazia sentido.

De mãos dadas, atravessaram o corredor, desceram as escadas, percorreram a cozinha ampla e úmida, e saíram para o jardim do con­vento. Os pés de Rosário pisavam a grama, enterravam-se no chão fofo onde, na manhã seguinte, as noviças semeariam rosas. Caminharam até perto do muro.

Steban fitou-a. Seus olhos verdes ardiam. O céu estava cerrado de estrelas. Soprava uma brisa morna, com cheiro de flores.

Rosário sabia bem o que devia ser feito. Devagarinho, abriu um a um os botões da camisola. O pano desceu sobre sua pele e foi acomo­dar-se no chão. Tirou também a roupa de baixo. Nua, a aragem arre­piou-a de prazer. Steban sorriu. Beijou-a de leve na testa, um beijo morno.

Steban soltou a espada da cinta. Era uma espada pesada, com cabo de prata. Entregou-a a Rosário.

Rosário sentiu sua pele ardente. Tinha febre, uma excitação boa, como se tivesse bebido vinho, muitas taças de vinho. Ergueu os olhos para o céu e viu o Cruzeiro do Sul como a jóia sobre o veludo negro da noite. Aspirou o ar uma última vez. Cravou os pés na terra. A espada pesava bastante. Ergueu-a com as duas mãos, bem na altura do peito. Steban sorria ao seu lado. Agora faltava pouco, faltava muito pouco para que estivessem juntos para sempre.

— Rosário...

A voz dele foi como um impulso.

O metal entrou na sua carne sem dificuldade. Não sabia possuir tanta força. Arregalou os olhos de dor. Viu mais uma vez o Cruzeiro do Sul, luzindo sobre sua cabeça. As cinco estrelas explodiram de luz. Rosário desabou sobre a terra úmida.

 

A madre superiora chegou na Estância ao cair da tarde. A surpresa da sua presença era em si um mau presságio. Milú foi chamar Maria Manuela, que descansava em seu quarto. Ela apareceu na sala desca­belada e descalça. Tinha tido um pesadelo.

— Madre!

A freira estava pálida e alvoroçada. Segurava um rosário entre as mãos ossudas, de dedos longos.

— Sucedeu uma tragédia, Maria Manuela. — Lágrimas correram dos seus olhos castanhos. — Uma coisa horrível, diabólica...

  1. Ana adentrou a sala nesse momento. Milú a tinha avisado sobre a chegada da madre superiora. D. Ana entendeu que alguma coisa havia acontecido. Encontrou as duas mulheres em pé, uma de frente para a outra. A freira brandia o rosário de contas brancas, chorava, sem co­ragem de falar.

— Vamos, madre, sente. — D. Ana empurrou docemente a freira de volta para a poltrona. Puxou uma cadeira para Maria Manuela. — Vosmecê, também, Maria.

Maria Manuela demorava a encontrar forças para formular a derradeira pergunta. Seus olhos estavam baços, o corpo trêmulo. Foi D. Ana quem falou:

— Aconteceu alguma coisa com Rosário?

— Sim — a madre fez o sinal-da-cruz. — Rosário morreu. Se matou. Ontem à noite... Uma das freiras encontrou-a hoje mui cedo, quando amanhecia. Ela estava caída perto do jardim, nua... Com uma espada cravada no peito. Uma espada velha. Não sei de onde surgiu... Vosmecês sabem que no convento nós não guardamos armas.

Maria Manuela tapou o rosto com as mãos, abafando seu choro. A voz da madre ia se tornando distante e difusa. D. Ana apoiou-se na parede para não cair. Sempre temera por Rosário, tinha um pressenti­mento. Mas aquilo?

— Madre, como foi? A senhora tem certeza de que Rosário se matou? Não entrou alguém no convento, um desertor? Esses caminhos estão cheios deles, a senhora sabe...

A freira sacudiu a cabeça.

— Não, D. Ana... Le garanto. O convento fica fechado a cadeado. Ninguém entra nem sai de lá a não ser pela porta principal. E os mu­ros são altos, mais de quatro metros... Ademais, nenhuma das noviças viu nem ouviu nada. Rosário não gritou. E a espada... A espada é an­tiga, não se lavram espadas como aquela hoje em dia. Mandei chamar o padre Vado, ele entende dessas cosas. Padre Vado disse que a espa­da não é daqui, uruguaia talvez. E mui velha, como le disse...

— E Rosário?

Maria Manuela descobriu o rosto. Seus olhos estavam injetados.

— Vim imediatamente. Rosário está na sua cela, com uma noviça. — Abaixou o tom de voz. — A senhora precisa ir buscá-la... Não pode ser enterrada lá, a senhora sabe, os suicidas...

Maria Manuela começou a gritar. D. Ana correu a segurá-la. A madre tinha os olhos arregalados de pavor e de susto. Manuela surgiu na sala, seguida de Milú.

— Manuela, leve sua mãe para o quarto, eu já vou lá — pediu D.Ana.

Manuela obedeceu sem questionar.

  1. Ana virou-se para a freira outra vez.

— Madre, a senhora não pode fazer isso. A menina precisa de um enterro cristão. Lembre-se, madre, Rosário é sobrinha do general Bento Gonçalves.

— Deus não faz distinções, D. Ana. Mas já falei com padre Vado. Foi tudo muito discreto, D. Ana. Ninguém sabe o que sucedeu direito. Eu disse que a menina morreu de uma síncope. Para essas cosas, o si­lêncio vale muito... E o talho foi coberto com uma camisa. Padre Vado vai enterrá-la, mas não no convento, não no convento.

— Onde?

— Aqui perto, em Camaquã. Num pequeno cemitério. D. Ana suspirou.

— Está bien. Vou mandar Zé Pedra preparar o coche. Maria Manuela e eu vamos buscar o corpo de Rosário.

  1. Ana sumiu pelo corredor. A madre superiora caminhou até a janela. Entardecia divinamente lá fora.

 

Fazia sol naquele vinte e cinco de fevereiro, ano de 1845. Foi no alto da coxilha abrasada que os chefes da revolução se encontraram. O pequeno acampamento estava silencioso, cheio de estranha pompa. O presidente da República, José Gomes de Vasconcelos Jardim, doente, não pôde com­parecer; Lucas de Oliveira, seu ministro, representou-o. O general Bento Gonçalves da Silva também não foi, mandou carta onde alegava moléstia e onde dava o seu voto. Sua opinião seria aquela que adotasse a maioria "dos seus irmãos de armas, sempre que estivesse nas raias do justo e do honesto, e ainda mesmo quando no caso vertente esses sagrados objetos deixassem de ser observados, nem por isso seria capaz de a ela opor-se, tendo outros meios em semelhante caso para deixar ilesas a sua honra e consciência. A paz é indispensável fazer-se", escreveu ele.

Eram mais de setenta oficiais. Os termos da proposta de paz — doze no total — foram lidos. Procedeu-se à votação. Silenciosamente, os oficiais que eram favoráveis à paz foram erguendo suas mãos para o céu. Mãos calosas, limpas, acabrunhadas. O tratado de paz foi apro­vado por unanimidade.

O general Canabarro mandou que se fizesse a escritura da ata da reunião. O céu azul de verão nublava-se lentamente, não soprava ven­to algum. Havia um silêncio profundo no pampa desolado.

 

Maria Manuela espiava pela janela do coche. Os olhos salientavam-se no rosto emagrecido, os cabelos escuros estavam presos num coque. Havia um certo rebuliço na cidade. Pelotas, como o resto do Rio Grande, estava satisfeita com a paz. Maria Manuela tinha ouvido dizer que o Barão de Caxias havia sido ovacionado na Capital, onde haviam lhe oferecido grandes festas.

Manuela estava sentada ao seu lado, silenciosa e ereta. Observava a cidade com olhos desinteressados. Maria Manuela tocou sua mão e sorriu. Um riso meio triste, que era para ser comemorativo. Havia rugas finas ao redor dos seus lábios. Voltavam para a casa, enfim. Sabia que Antônio esperava por elas. Antônio, seu filho predileto. Sim, somente agora podia assumir isso, agora que tinha sofrido tanto. Sempre ama­ra mais a Antônio, sempre, desde pequetito. Era por ele que seu peito fremia. Depois da morte de Anselmo, passara a adorar Antônio ainda mais. Das três filhas, restara-lhe apenas uma. Rosário tinha morrido, morte cruel, vergonhosa, indecente até. Mariana ficara na estância com Antônia, o filho e o vaqueano. Nunca mais tinham se falado. Duvida­va que se veriam novamente. Pensava no menino, às vezes. Quem sabe um dia...

— Estamos chegando, filha. Olha lá a casa.

Manuela viu a casa branca, plantada na esquina. Tinha uma cama­rinha. Antes da guerra, ela gostava de sentar-se sozinha, lá em cima, para ler seus romances. Agora as paredes estavam descascadas, uma das venezianas, rebentada, pendurava-se como um enforcado prestes a derrear. A casa da sua infância mostrava também as misérias que a revolução lhe tinha imposto.

O coche parou em frente à casa. A pesada porta abriu-se, Antônio surgiu na calçada, sorrindo. Usava barba. Vestia-se com trajes civis e estava mais magro e delgado. Ao ver a mãe e a irmã caçula, seus olhos encheram-se de lágrimas.

Maria Manuela nem esperou o criado abrir-lhe a porta. Precipi­tou-se para fora, caiu nos braços do filho. O calor morno daquele cor­po a acalmou como um bálsamo. Ela fechou os olhos e agradeceu a Deus porque ele ainda estava vivo.

 

João Gutierrez encilhou o petiço. (Adquirira destreza com a única mão que lhe sobrara). O cavalo tinha um pêlo castanho e macio. A crina era mais clara, espessa. Ele sentiu-lhe a textura, o calor do corpo do animal. Era um petiço muito manso. Matias olhava a cena encantado. Os olhinhos negros, luzidios, enchiam-se com a imagem do cavalo que o pai lhe trouxera.

João Gutierrez agachou-se para estar na altura do filho.

— Quando usted crescer, vamos montar juntos, hijo. Vamos ca­valgar por esse pampa afora.

Mariana pegou o menino no colo. Acomodou-o na sela. Matias riu alto, feliz. De cima do lombo do cavalo, o mundo tinha outro gosto.

— Esse menino vai ser vaqueano — disse Mariana.

— Como o padre.

— Sí, João. Como o padre dele. Os dois sorriram.

Matias procurou a casa, ao longe, e viu a figura da avó Antônia sentada em sua cadeira de balanço. Sabia que ela o mirava, contente de vê-lo com o petiço. Acenou-lhe. Viu a mão magra, branca, erguer-se, retribuindo-lhe o aceno.

Na varanda, D. Antônia sorria, os olhos úmidos de lágrimas. O sol de março ia escorregando lentamente pelo céu. Ao fundo, no horizon­te, uma leve camada de nuvens cinzentas prometia chuva para o dia seguinte.

 

Em 1846, na cidade de Bagé, nasceu o primeiro filho de Caetano e de Clara Soares da Silva. O menino recebeu o nome do avô general.

Joaquim casou somente em 1857, cansado de esperar por Manuela. Faleceu com mais de noventa anos.

Bento Gonçalves da Silva morreu dois anos após o tér­mino da guerra, vítima de pleurisia, em julho de 1847, con­finado na Estância do Cristal.

Manuela de Paula Ferreira morreu solteira, em Pelotas, no ano de 1904, aos oitenta e quatro anos. Ficou eterna­mente conhecida como a "noiva de Garibaldi".

 

                                                                                Letícia Wierzchowski  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"