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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA DO CORSÁRIO / Alix André
A CASA DO CORSÁRIO / Alix André

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

"Eu vou. Quando o Sol for iluminar outros mundos, tomarei o caminho da floresta. Mas no minuto presente já o meu coração e o meu desejo transpõem o limiar da casa onde reinará o nosso amor..."

 

 

 

 

O conde Renaud de Mombrun parou bruscamente o carro junto do valado ; o companheiro assustou-se.

- Que é isso, Ralph? Que fizeste da tão falada impassibilidade britânica? - inquiriu o condutor com um sorriso irónico nos lábios.

Lorde Murray abanou a cabeça.

- Tive a impressão de que ias enfiar-te pêlo bosque.

O amigo não lhe respondeu. Saltou para o chão, descalçou as luvas e examinou a estrada, larga, de bom piso, embora semeada de montes de pedra, aqui e ali.

Pacientemente, Murray aguardou que ele lhe explicasse o motivo da paragem. Desde que conhecia Renaud - e esse conhecimento datava de Oxford - não se recordava de o ter visto fazer um gesto ou realizar qualquer acto que não tivesse o seu sentido. A contemplação e os devaneios estavam, embora por motivo diferente, tão irremediavelmente banidos do temperamento do conde, como as estradas vulgares do caminho das aves de arribação.

- Não gostarias, Ralph - perguntou por fim Mombrun, atirando com as luvas para cima das almofadas do carro - de desenferrujar um pouco as pernas?

Como, pelo gesto de saltar do carro, o amigo tivesse dado resposta afirmativa, Renaud de Mombrun dirigiu-se ao ocupante do banco do fundo, o motorista:

- Prossegue sozinho, Vicente - ordenou em voz breve, não tendo o hábito de dar explicações sobre o seu procedimento.

Logo que o automóvel arrancou e partiu rápido, Renaud voltou-se para lorde Murray:

- Suponho que não te desagradará entrar em Pierreclose por forma discreta e... democrática?

Murray sorriu. Talvez pensasse ser demasiado tarde para lhe pedir opinião, mas a fisionomia prazenteira não exprimiu contrariedade.

Alcançou Renaud, que, sem aguardar resposta, saltara o talude, e seguiu-o.

Pelo atalho, muito estreito para poderem seguir a par, os dois homens caminharam em silêncio. Luminoso e quente, o Verão fazia-se sentir, mas o seu ardor não ultrapassava a abóbada dos ramos entrelaçados. Apenas alguns raios ardentes conseguiam filtrar por entre eles e salpicar o solo de pontos doirados.

Em volta reinava um silêncio quase total. No entanto, ao longe, um pássaro modulava não um canto, mas uma espécie de apelo regular e melancólico, pelo qual os dois homens ritmavam o passo. Por instantes, partindo de ignorado túnel de frescura, uma brisa leve trazia consigo um aroma estranho, misto de flores silvestres e de musgo, além de outro mais forte e mais acre, o do mar, muito próximo, mas ainda invisível.

Precedendo alguns passos o amigo, Renaud de Mombrun, com a cabeça descoberta, avançava com aparente despreocupação e com o olhar perdido nas profundezas do bosque.

Levava na mão uma bengala, com a qual afastava os ramos desordenados que lhe impediam a passagem. Lorde Ralph não podia deixar de recordar com saudade outros passeios recentes, em florestas igualmente sombrias e agrestes, durante os quais a mesma bengala de junco, aparentemente inofensiva, quebrara a espinha a um puma ou esmagara a cabeça de perigoso réptil.

Quanto a Renaud de Mombrun, parecia não ter preocupações nem recordações. Alto, robusto mas elegante, avançava com o andar ágil e ao mesmo tempo firme dos que estão habituados a pisar caminhos difíceis. O rosto, bronzeado pelo sol, era digno de nota, não só pela harmonia das feições, mas, principalmente, pelo ardor que o animava.

A testa alta apresentava a curva acentuada que revela todos os dons do espírito. Os olhos azuis podiam com desconcertante rapidez passar da claridade luminosa do mar ao brilho glacial do aço. O queixo, acentuado e forte, indicava uma força de vontade talvez muito para temer. Daquele rosto de um homem novo, mas já marcado pela vida, daquele corpo esbelto e robusto emanava uma força ardente, poderosa e cega como a dos elementos.

Ao lado de tanta perfeição física, a pessoa de lorde Ralph apagava-se, facto pouco justo, porque Murray era muito atraente. O corpo de pessoa habituada a todos os desportos, o rosto comprido, os olhos claros, os cabelos loiros constituíam um conjunto de atractivos que, reunidos a uma impassibilidade por vezes temperada de humorismo e a excelência de um carácter ameno e sorridente, mereciam um êxito pessoal.

Mas como atrair os olhares que desde o primeiro instante iam para Renaud? Ralph não sabia como, nem mesmo procurava saber. Contentava-se em gracejar às vezes sobre a situação insignificante para a qual, involuntariamente, o conde o empurrava, não alimentando sentimentos de inveja ou despeito, porque ele próprio dedicava a Renaud amizade e admiração.

Naquele momento, aquele amigo, digno de ser comparado a Pylade, observava com atenção a forma como Mombrun manejava a bengala.

Essa bengala que, de princípio, se contentara em afastar silvas e ramos que lhe impediam o caminho, tornava-se, de minuto a minuto, mais agressiva, remexendo as moitas, lacerando as folhas das árvores, decapitando plantas e flores.

Como um belo feto, delicadamente arrendado, com a haste revestida de leve penugem branca, acabasse de ser derrubado, lorde Ralph observou com calma:

- Se estivesse no teu lugar, Renaud, não perderia o domínio dos nervos.

Renaud de Mombrun soltou uma exclamação sufocada e, em vez de aceitar o conselho do amigo, assestou violentas vergastadas numa moita. Em seguida, evidentemente aliviado com o gesto, parou a meio do atalho e esperou que Ralph se aproximasse.

Quando este chegou junto dele, perguntou-lhe, como se prosseguisse uma conversa jà encetada:

- Iremos encontrar muita gente em Pierre-close?

Lorde Ralph não se mostrou admirado. O amigo causara-lhe surpresas muito maiores do que o facto de o interrogar sobre uma eventualidade sobre a qual devia estar bem elucidado, visto tratar-se da sua própria casa.

- Pelo que sei dos hábitos do teu irmão, receio que sim. Além disso - continuou, decorridos instantes - estamos em Setembro e não é caso para admirar ter o Olivier reunido alguns amigos para bater os bosques!

O conde Renaud franziu a testa e os olhos azuis ensombraram-se, tomando um brilho metálico.

- Não me faltava mais nada! - murmurou entre dentes.

Lorde Ralph deixou passar a nuvem. Segundos depois, Renaud de novo se lhe dirigiu.

- Com efeito - concordou em tom frio e desdenhoso - devemos contar com a presença dos tais... Sainclair. Estás disposto a suportá-los?

Murray abrandou o passo.

- Verifico, Renaud - observou sem responder directamente à pergunta - que não leste bem a carta de teu irmão ou esqueceste-a em parte. Visto teres tido a complacência

de ma leres, recordo-te o seguinte: Sainclair e a filha não são teus hóspedes, mas sim de uma tal madame de Kergoêl, sua parente, que vive numa espécie de pavilhão de caça, perto de Pierreclose.

- Conheço-o bem - declarou Renaud - Uma barraca inconfortável, arruinada, situada na floresta e com corujas em todos os andares. Parece impossível, um nababo como Sainclair viver naquele pardieiro! Digamos de passagem que esse nababo vendeu amendoim no Cairo, limpou os matadoiros de Chicago, foi carregador nos cais de Nova Iorque...

- E fèz fortuna em Paris - concluiu sossegadamente Ralph - o que é mais extraordinário.

O conde de Mombrun relanceou ao amigo um olhar carregado.

- Tens a ironia fácil - replicou com amargura.

A censura levou Ralph a pensamentos mais sérios. Tomou o braço do amigo, num gesto carinhoso, e pediu:

- Perdoa-me, Renaud. Mas - acrescentou - pensas ter motivo para alarmes?

- Visto teres lido, a meu pedido, a carta de meu irmão, a carta que, se não a tivéssemos recebido, ainda a esta hora estaríamos a caçar lobos na Coreia, deves recordar-te de que me comunicava não os projectos, mas o noivado resolvido e talvez jà oficial com essa tal mademoiselle Sain-clair.

- Recordo-me bem. Mas talvez chegues a tempo de impedir...

Renaud ergueu a cabeça num gesto brusco.

- Assim é preciso - declarou, como se não fosse possível admitir qualquer outra hipótese - impõe-se que meu irmão renuncie a esse casamento odioso e ridículo, Só essa convicção me trouxe aqui.

Pensativo, Murray abanou a cabeça. Estava longe de possuir a segurança do amigo e não o ocultou.

- Olivier é o mais velho - murmurou como explicação para as suas dúvidas - e apenas teu meio irmão.

- Sei muito bem isso - volveu Renaud com ligeira irritação e como se não desse importância ao facto - Com efeito, Olivier nasceu do primeiro casamento de minha mãe. Mas o pai era um Mombrun, de um ramo diferente e parente afastado dos Pierreclose, mas um Mombrum em todo o caso, e usamos o mesmo apelido. É isso o importante, o que me trouxe aqui e me leva a tentar o impossível e a obrigà-lo, seja como for, a renunciar.

- Deve ser muito difícil. Não falando nos amendoins, há muito esquecidos, podes acreditar, nada temos a censurar ao Sainclair. Como homem é irrepreensível e como financeiro perfeitamente honesto... Um pouco atrevido, temerário ao máximo, mas, enquanto essa temeridade caminhar a par com a honestidade, pode considerar-se uma qualidade. Sainclair não seria tão rico se não a possuísse.

Renaud de Mombrun não se dignou responder e Murray, dando a verdadeira significação ao seu mutismo, não insistiu.

Os dois homens prosseguiram o passeio, embora apressassem o passo. Dir-se-ia que a despeito da certeza do êxito, que afirmava aos outros e a si mesmo, Renaud de Mombrun ainda tinha dúvidas sobre o resultado e ansiava por dissipá-las.

Quanto a lorde Ralph, apesar da sua fleuma habitual, parecia pensativo e foi ele quem recomeçou a conversa:

- Talvez mademoiselle de Sainclair seja muito bonita - murmurou como se falasse consigo mesmo.

Sem voltar a cabeça, o conde respondeu com dureza:

- Conto que assim seja. Seria grande humilhação se pensasse que o Olivier fora atraído apenas pelos milhões, esquecendo o passado do pai.

- E talvez - prosseguiu Murray, que parecia em maré de generosidade - talvez ela goste de teu irmão?

Renaud parou e soltou uma gargalhada.

- Gostar do Olivier!... E, vendo bem, porque não? - continuou quase logo, recomeçando a andar - É bonito rapaz, conversador brilhante, homem de sociedade... e possivelmente - não me admiraria muito - mais qualquer coisa no fim destes quatro anos em que não nos vemos!

Depois destas palavras, o silêncio voltou a recair entre os dois homens. De resto, o passeio estava a acabar. Em breve abandonariam a floresta para percorrer uma charneca coberta de juncos e veriam então surgir no fim do caminho, erguido no alto da penedia, o vulto pesado do castelo.

O ardor que pouco antes iluminava o semblante do conde parecia extinto e no seu rosto calmo em vão se procurariam vestígios da emoção que havia acompanhado as suas declarações apaixonadas.

Esse domínio próprio, quase desconcertante, era uma das facetas do seu carácter pouco banal. Murray conhecia-o melhor do que ninguém e sabia que, tal como num vulcão temível, a alma de Renaud podia estar em chamas e o seu aspecto ser sereno.

Bruscamente, numa volta do caminho, o conde de Mombrun parou e Ralph, surpreendido, depois de ter fixado o amigo, seguiu a direcção do seu olhar.

Por um rasgão na espessura do bosque, o castelo de Pierreclose acabava de aparecer. Erguia-se, muito distante ainda, mas com perfeita nitidez, escuro, com as paredes revestidas de hera, o telhado de ardósia, oferecendo ao sol a dupla fileira de janelas guarnecidas de granito, encimadas por frontões e, emoldurada pela forma pura de um arco, a porta de carvalho esculpido, precedida de um degrau. Uma única torre, à esquerda, flanqueava o edifício. Resto do antigo castelo destruído, testemunhava pela delicada cornija, pela renda das ameias e pêlos cachorros brasonados, a beleza primitiva do castelo.

Tal como se encontrava, Pierrecclose tinha um ar majestoso e sombrio. No entanto, os habitantes da região davam-lhe, não o nome de castelo, mas, como recordação do primeiro Mombrun que o habitara, o nome de "Casa do Corsário".

Com um gesto rápido, Renaud de Mombrun apoderou-se do binóculo que lorde Ralph trazia a tiracolo, companheiro inseparável de todas as expedições e alvo dos sarcasmos do amigo.

- Desta vez sempre nos serve para alguma coisa - murmurou.

Murray deixou-o proceder sem protestar. Não precisava de lentes para ter notado, ao primeiro olhar relanceado ao castelo, que as janelas estavam fechadas, o terraço ermo e que em volta tudo parecia mergulhado no silêncio das casas abandonadas.

Com propositada lentidão, Renaud deixou cair o braço e, ao restituir o binóculo ao amigo, inquiriu:

- Que pensas disto, Ralph?

Murray sorriu.

- O médico de teu irmão talvez lhe aconselhasse os ares de Paris... salvo se estamos ambos a sonhar. Em todo o caso, fiquei deliciosamente surpreendido.

O semblante de Renaud ensombrou-se.

- Permite-me que reserve esse "delicioso" para mais tarde - replicou, sem parecer ter notado o bom humor do companheiro - Embora temesse encontrar-me no meio de caçadas, danças e namoricos ao luar, conquanto as primeiras se desenrolassem com o concurso da minha própria matilha, as segundas se exibissem nos meus salões e os terceiros tivessem lugar debaixo das minhas árvores, esta tranquilidade tão diferente afigura-se-me demasiado bela, para não dizer estranha. Custa-me a acreditar que meu irmão se fizesse ermitão. Vamos - concluiu, recomeçando a andar - em breve ficaremos elucidados.

De comum acordo e sem dar maiores indícios de surpresa, os dois homens apressaram o passo e, apesar da subida bastante íngreme, depressa alcançaram o castelo.

Em volta estava tudo tão silencioso e deserto como de longe lhes parecera. Parado no meio da rotunda ensaibrada, o automóvel, que havia precedido o conde e Murray, assemelhava-se a um barco naufragado.

Sem parar, Renaud, seguido por lorde Ralph, subiu a escadaria do terraço e entrou no vestíbulo, iluminado por magníficos vitrais, aos quais o sol doirado dava vida, e foi esbarrar com um criado de idade que acorria solícito.

O homem recuou, murmurando desculpas, perfilado diante do conde numa atitude reveladora de intensa alegria. As faces, sulcadas de rugas adquiridas ao serviço dos Mombrun, estavam afogueadas pela comoção e os lábios tremiam-lhe.

O descontentamento expresso no semblante do conde desvaneceu-se quando o reconheceu.

- Que significa esta recepção, Alberto? - perguntou quase alegremente - Quase encontro a porta fechada. Estás sozinho no castelo? O resto do pessoal? E meu irmão?

Enquanto falava, Renaud atravessou o vestíbulo e, com um gesto firme e tranquilo de dono da casa, empurrou uma porta e entrou em enorme sala, cujas paredes, guarnecidas de estantes cheias de livros, indicavam ser a biblioteca do castelo.

Alberto correu a abrir as portas de madeira e depois voltou-se para o conde e explicou:

- O senhor Olivier partiu há dez dias para Paris, senhor conde, e desde então ainda não tivemos notícias dele. Mandei fechar os aposentos que ocupava e...

Renaud atalhou:

- Não sabes dizer-me por que motivo meu irmão abreviou a sua estadia em minha casa? Nada de desagradável, suponho?

Sob a aparente despreocupação da voz adivinhava-se uma espécie de nervosismo, o esforço feito pelo conde ao interrogar um serviçal, fosse ele uma espécie de intendente, sobre o procedimento de uma pessoa de família.

Alberto hesitou ligeiramente. O olhar fixou alguns jornais colocados em cima da enorme secretária. Mas desviou-o logo e respondeu:

- Ignoro os motivos que obrigaram o senhor Olivier a partir, senhor conde. Com efeito, tinha recebido ordens para uma permanência mais demorada. Mas o senhor Olivier, quando decidiu ir-se embora e mandou descer as malas, não deu explicações.

- Havia muitos convidados no castelo, nessa altura?

- Nenhuns, senhor conde.

- Nenhuns... quando estamos na época da caça!

- Ninguém estranho a Pierreclose. Contudo, o senhor Olivier ia muitas vezes à caça com mademoiselle Sainclair e o pai, primos de madame de Kergoêl.

Mademoiselle Dorah acompanhava-os, com certeza?

- Não me recordo de a ter visto pegar na espingarda, nesta época.

Um frémito, prenúncio de tempestade, percorreu o semblante de Mombrun. Nunca apreciara muito os enigmas e o que resultava do estranho procedimento do irmão impacientava-o.

Dominou-se e tornou a perguntar:

- Rosanne está aqui, não é assim?

- Nesta ocasião, não está. Também se encontra em Paris.

- E mademoiselle Dorah?

- Seguiu o pai.

Renaud ocultou a irritação com aparente tranquilidade.

- Há muito tempo que abandonaram Pierreclose?

- Partiram com o senhor Olivier e na mesma carruagem - respondeu o interpelado, baixando os olhos.

Renaud largou em cima da mesa o livro lindamente encadernado que folheava havia instantes. Foi essa a única manifestação de impaciência.

- Muito bem - murmurou com indiferença - Fazes o favor de mandar preparar o quarto de lorde Ralph e o meu. Passaremos duas ou três noites no castelo. Vê se tudo está em ordem. Conheces bem os nossos hábitos.

Com rapidez de admirar numa pessoa da sua idade, o velho criado desapareceu. Quando a porta se fechou, Renaud de Mombrun cruzou os braços e voltou-se para o amigo.

- Que dizes a este mistério? Não achas isto tudo muito divertido? O senhor meu irmão desaparece como o próprio Júpiter. Ter-se-ia metamorfoseado em chuva de oiro para conquistar Sainclair? Não era preciso. Sainclair não tem necessidade de oiro. Possui muito mais do que o suficiente para comprar o Olivier! E Rosanne? Qual é o papel de Rosanne no meio disto tudo? Não pensemos mais nisso e limitemo-nos a classificar o caso como muito divertido. Por mim, estou disposto a rir às gargalhadas.

E tu?

O olhar cintilante do conde, assim como a inflexão da voz, desmentiam a afirmação.

Antes de formular a sua opinião, lorde Ralph, com gestos vagarosos, libertou-se do binóculo e colocou-o em cima da secretária, junto dos jornais. Com este movimento, um deles deslocou-se e deixou ver um título que chamou a atenção de Murray.

No mesmo instante, fugiu-lhe dos lábios uma exclamação reveladora de tão grande surpresa que Renaud se aproximou logo.

Sem fazer perguntas, de Mombrun espalhou os jornais com a mão fina e nervosa de forma a pôr os títulos em evidência. Depois curvou-se sobre a secretária e começou a ler.

Segundos depois, ergueu para o amigo um rosto lívido. Lorde Murray parecia muito interessado no voo de um besoiro que batia na vidraça. Em toda a evidência, o impassível Inglês teria dado boa parte da sua fortuna para se encontrar longe dali.

Não podia, no entanto, mostrar-se indiferente por muito tempo. E quando os lábios contraídos de Renaud deixaram fugir a palavra: "Cobarde!", tomou o partido de se voltar para o amigo.

- Meu caro Renaud - observou - talvez estejas sendo demasiado severo para com teu irmão... Não quero tomar a sua defesa, mas far-te-ei notar que a sua... concepção de honra soluciona a situação segundo os teus desejos, melhor do que os teus mais convincentes argumentos.

O conde esboçou um sorriso de amargura.

- Conheces esses argumentos, Ralph? Não? Então não os menciones. Eram sólidos e bem soantes. Tencionava, se fosse preciso e para que Olivier não ridicularizasse o nosso nome, abandonar-lhe parte da minha fortuna. Sabes que a esse respeito foi pouco favorecido. O pai apenas lhe deixou dívidas... que o meu pagou.

Calou-se e começou a passear de um lado para o outro no aposento. Após alguns instantes de passeio, voltou-se para Murray e, designando os jornais, pediu:

- Queres fazer-me o favor de reler isso? Apenas os títulos. Estou a ouvir-te.

Após breve hesitação, lorde Murray pegou nos jornais, dispô-los por ordem de data e quando concluiu, começou a ler:

"Terça-feira, 1 de Setembro

"Pânico na bolsa. As acções dos terrenos auríferos da Geórgia desceram de 3.000 a 1.250."

"Quarta-feira, 2 de Setembro

"Numerosos especuladores arruinados pela queda das acções das minas georgianas. O grande financeiro Sainclair perde uma fortuna. As outras secções da Bolsa não foram atingidas".

"Sexta-feira, 4 de Setembro

"O desastre na Bolsa acentua-se.

"George Sainclair na agonia.

"Na sua casa de campo, para onde se retirou, aquele que foi um dos príncipes da finança acaba de ser fulminado por uma crise cardíaca."

Murray ergueu a cabeça.

- Os outros jornais ainda não foram abertos - murmurou.

- Claro! - replicou Renaud com violência - Não foram lidos porque o Olivier fugiu. Sim, fugiu, Ralph - continuou, num tom onde se adivinhavam pronúncios de tempestade.

- Fugiu vergonhosamente perante a ruína que destruiu todas as suas esperanças, deixando-lhe apenas a possibilidade de ser um homem de honra.

De si para si, Murray não podia evitar melancólica ironia. Era muito parecido com Renaud para desconhecer a ferida cruel causada no seu orgulho pelo deplorável procedimento do irmão. No entanto, não podia esquecer que, para chegar a resultado idêntico, para o obrigar a abandonar a noiva rica, o conde acorrera de muito longe, pronto para todos os sacrifícios. E esta espécie de zombaria da sorte, que realizava os desejos de Renaud, preservando o seu nome de uma aliança desigual, mas por meio de um procedimento desonroso, despertava, embora ele tentasse evitá-lo, o seu humorismo.

Esquecendo que pouco antes tacitamente concordara com os receios do amigo, tentou acalmá-lo com simulado optimismo.

- Talvez - objectou após alguns momentos de silêncio - estejamos ambos enganados por falsas aparências. Não pensas, como eu, que seria melhor aguardar para formar uma opinião? A ausência do teu irmão pode ser momentânea e não ter qualquer relação com a ruína do banqueiro. Olivier abandonou Pierreclose precipitadamente, concordo.

Mas seria por não se sentir bem nas vizinhanças da casa onde Sainclair se encontrava?... Por querer pôr entre ele e aqueles infelizes o irreparável, ou, pelo contrário, e não é hipótese para desprezar - para tentar remediar o desastre na medida das suas forças?

Um sorriso desdenhoso entreabriu os lábios de Renaud, enquanto a expressão era cada vez mais sombria.

- Sempre és muito ingénuo! - exclamou - Abençoado filantropo que julga os outros pelo seu próprio coração! Desde o primeiro instante da nossa chegada que pressenti qualquer coisa de vergonhoso, pesando sobre estas velhas pedras. Bastava a atitude do velho Alberto para me garantir a infâmia de Olivier, melhor do que as linhas desses jornais.

Ralph não encontrou resposta para estas objecções que concordavam com o seu próprio pensamento. Mais uma vez se sentiu dominado por irónica tristeza.

- Vamos a Paris procurar teu irmão - murmurou - e tentar demovê-lo da sua resolução. Ainda está a tempo.

Renaud olhou para o amigo bem a direito.

- Um gesto inesperado, não achas, Ralph? Perseguir meu irmão para o obrigar a casar com essa rapariga, quando cheguei aqui com ideias completamente opostas. Que bela ocasião para zombares da nossa inconsequência, da fantasia do nosso carácter e do que tu classificas como a encantadora versatilidade francesa!... No entanto - concluiu com súbita gravidade - faria essa tentativa se não tivesse a certeza da sua inutilidade.

- E os argumentos a que há pouco te referiste?

- Inúteis nesta circunstância. Olivier já não pode ser comprado e coisa alguma o faria voltar atrás. De resto, a sua desaparição anulou todas as possibilidades.

Renaud de Mombrun proferiu estas palavras de dentes cerrados. Depois deu alguns passos, parou diante da janela aberta e não voltou a falar.

Murray respeitou o seu silêncio durante algum tempo, receando exacerbar a irritação do amigo com alguma observação inoportuna. Observava aquele rosto atormentado, de linhas duras, a fronte sulcada de profundas rugas como resultado dos pensamentos tumultuosos e, de si para si, confessou que nunca tinha visto o conde tão preocupado.

Como, porém, o tempo passasse e Renaud conservasse a imobilidade, com os braços cruzados, testa franzida e o olhar perdido no espaço, lorde Ralph considerou ser melhor tentar dar novo curso aos pensamentos do amigo. De súbito, perguntou:

- Quando partimos, Renaud?

O conde não se moveu, mas sobressaltou-se, sinal evidente de atenção, o que encorajou lorde Murray. Com decisão, prosseguiu:

- Consideras irrevogável o que aconteceu, não é verdade?

Sem se voltar, Renaud concordou:

- Absolutamente.

- Não supões possível tentar qualquer coisa para remediar a situação?

- Com efeito, no que diz respeito a Olivier, não hâ nada a tentar.

- Muito bem! - aprovou lorde Ralph, sem notar a restrição - Encanta-me que estejamos de acordo. Portanto, permite-me que, em nome da nossa velha amizade, te dê a minha opinião. Ei-la. Partamos, Renaud. Abandonemos quanto antes este país onde coisa alguma te prende, este castelo onde, faças o que fizeres, a tua probidade conservará sempre uma nódoa, pelo menos pela recordação. Voltemos às nossas empolgantes aventuras, empreendamos novas viagens... As nossas carabinas mal arrefeceram e talvez que ainda fumegue a fogueira do nosso último acampamento. Não queres partir? A estepa é vasta e na Coreia abundam os ursos e os lobos! Achas que o Inverno está demasiado próximo para nos aventurarmos nessas regiões? De facto, em Hoang-Hai não tardará a cair neve. Não importa. Existem, graças a Deus, muitos países quentes e não menos abundantes de caça. Por onde começaremos? Pelos tigres da índia? Pelos búfalos do Quénia? Pela gazela do deserto?...

Calou-se, porque Renaud acabava de abandonar o vão da janela. Avançou para o amigo, poisou-lhe as mãos nos ombros e, patenteando-lhe o olhar calmo e frio no qual podia ler-se irrevogável resolução, articulou lentamente:

- Voltaremos a partir, Ralph, mas mais tarde, porque nunca um Mombrun deixou atrás de si uma dívida por pagar! Queres acompanhar-me ao pavilhão?

 

Nas janelas incendiadas pelo Sol no ocaso, os cortinados floridos foram cuidadosamente corridos. Nem o mais pequeno raio de luz atravessava o tecido jà puído, talvez mais por carinhoso cuidado do que para poupar os ramos desbotados da pouco eficaz defesa.

A noite aproximava-se. Sabina Sainclair, de pé no vão da janela, sabia que ela cairia de súbito, como um véu corrido sobre a floresta, sobre a charneca e sobre os campos; e aguardou-a com uma espécie de impaciência.

Não porque contasse com algumas horas de repouso.

Havia muitos dias já que conhecia as tempestades de pensamentos obsidiantes e dolorosos nas longas horas das trágicas vigílias. Mas tinha a impressão de que durante essas horas a vida suspendia o seu curso e a adversidade em marcha se detinha.

No entanto, naquela noite, Sabina em vão tentava refugiar-se nesse consolador pensamento e a inutilidade dos seus esforços foi tão evidente que um lamento sufocado lhe fugiu dos lábios:

"Meu Deus, meu Deus, ampara-me!"

Receando ter falado demasiado alto, calou-se bruscamente e escutou... No quarto continuava tudo em sossego. Nem mesmo precisava de arredar o cortinado que fechava o vão da janela para se assegurar de que o pai estava a dormir.

Com os olhos fechados, a testa encostada à vidraça, Sabina evocava as duas imagens de Sainclair: a de homem enérgico, robusto, ombros de lutador, gestos calmos e firmes... e o corpo estendido na cama, com a respiração opressa e sibilante, feições transtornadas, tragicamente contraídas no último esforço do vencido que não abdica.

Mais uma vez, com a mesma sensação dilacerante, Sabina reviveu os minutos tremendos, os da rajada violenta e loucamente destruidora que derrubara aquele homem invulnerável.

Viu o papelinho azul do telegrama trazido pelo rapazito da vila. Depois de o ler, o pai caiu desmaiado e quando voltou a si tinha o lado direito paralisado.

Se o financeiro tivesse podido partir para Paris à primeira alerta - como ele próprio afirmava com raiva impotente e dolorosa - o desastre, embora importante, teria sido limitado. Mas a baixa fulminante de certas acções altamente cotadas com as quais o banqueiro jogara, como homem audacioso, certo da sua boa fortuna, não havia

sido mais do que uma amostra. A obra consumada por alguns a quem a riqueza de Sainclair fazia sombra, fora completa. E, enquanto que naquela casa rústica, isolado de todos, sem instalação telefónica que lhe permitisse dirigir a batalha e talvez ganhá-la, o financeiro se via tão impotente como uma fera enjaulada, os acontecimentos precipitavam-se. E nem mesmo a dedicação daqueles a quem chamava os seus "capitães", o ardor e fidelidade do seu procurador, que andava num vaivém entre a casa de campo e Paris, tinham conseguido evitar o total desastre.

E agora tudo estava acabado. O que restaria depois da venda das propriedades, dos automóveis e do iate?... Desse iate que já estava a ser decorado com estofos claros, móveis novos, com todo o uxo que costuma rodear um casal novo e favorecido pela fortuna, na sua viagem de núpcias?

Os lábios de Sabina contraíram-se e a fisionomia tomou uma expressão dura como se desafiasse um ente invisível.

Decorreram alguns minutos antes que o seu rosto serenasse e o olhar, mais calmo, vagueasse pelo aposento e depois se perdesse para lá da janela.

Em volta do pavilhão, a floresta cerrava-se, silenciosa. Situada no fundo de estreito vale, rodeada de encostas cobertas de árvores frondosas e altas, a casa estava muito isolada. Um caminho íngreme e mau ligava-a ao mundo, subindo pelos flancos da colina; quando atingia o cimo, seguia directamente para o castelo de Pierreclose, situado a dois quilómetros e cujo vulto sombrio, com os telhados de ardósia, dominava a terra e o mar.

Essa proximidade das duas casas de aspectos tão diferentes decidira a sorte de Sabina.

Encravado no domínio do conde de Mombrun, o pavilhão pertencia à família de Kergoêl, cujo último representante, um bretão que possuía todos os defeitos da sua raça e nem uma só das suas qualidades, morrera quatro anos atrás.

A jovem madame de Kergoél, mulher admirável, que amara apaixonadamente o marido e lhe perdoara não poucas traições, vivia nessa casa dez meses por ano. Os outros dois meses, em geral os mais frios do Inverno, passava-os em Paris, em casa de Sainclair, de quem era sobrinha afastada.

Em compensação, o banqueiro, quando podia abandonar os seus negócios por um tempo mais ou menos longo, refugiava-se naquela casa simples, quase pobre, deliciosamente solitária, onde podia repousar.

Não tão solitária que não existissem as naturais relações de vizinhança entre o pavilhão e o castelo e, graças a elas, se realizara o noivado de Olivier de Mombrun com Sabina Sainclair, havia pouco mais de um ano. E naquela mesma casa decorriam os dias que precederiam um dos mais brilhantes casamentos parisienses, cuja data estava marcada para 1 de Outubro.

Como pode verificar-se, o futuro marido de Sabina não pecara por excesso de solicitude, ao prevenir o único irmão, separado dele por milhares de léguas, apenas sessenta dias antes da cerimónia.

O olhar de Sabina continuava perdido no espaço. O Sol declinava, abrasando o cimo das árvores com clarões de incêndio. Esses lampejos, porém, em breve se apagaram e sobre a floresta pesou um manto de tristeza. Em baixo, o pequeno jardim pouco cuidado, com os bancos esverdeados de musgo, roseiras exuberantes, que na sua maior parte se haviam tornado bravas, privado da claridade do Sol, que lhe emprestava agreste e suave encanto, assemelhava-se a um cemitério abandonado.

Sabina estremeceu. Por cima da casa duas grandes gaivotas voavam, lentas e pesadas, soltando gritos lamentosos. Fechou os olhos, oprimida por uma lassidão desesperada.

Quando ergueu as pálpebras, decorridos minutos, mudou instantaneamente de expressão. As feições revelavam surpresa, interesse e uma espécie de curiosidade ardente.

Após instintivo recuo, aproximou-se de novo da janela. A cortina de tule que se apressara a deixar cair, tornava-a invisível de fora, e em compensação ela não perdia uma parcela do que se passava no exterior.

Pelo estreito e áspero caminho que atravessava a floresta, a clareira e terminava junto da porta do jardim, na branda claridade do crepúsculo, viu dois homens que se aproximavam. Chegaram à orla do bosque e dirigiram-se para a casa, sem pressa, mas não como dois passeantes.

Usavam trajo de viagem e deviam ser estranhos à terra, porque os seus rostos, pelo menos o que podia ver na sombra projectada pelos chapéus de grandes abas, estavam bronzeados pelo sol. No entanto, coisa alguma, nas suas pessoas, despertou em Sabina qualquer recordação.

Os dois desconhecidos aproximavam-se em silêncio. Mas, no momento em que atingiram o portão do jardim, um deles parou, poisou a mão no braço do companheiro e pronunciou algumas palavras. Como é de supor, Sabina não adivinhou o sentido. No entanto, teve a impressão de ser uma espécie de súplica, uma adjuração que dirigia ao outro.

O interpelado não atendia as razões que o outro lhe dava, antes as escutava com uma espécie de ironia. Passou então, pelo que Sabina podia supor, às palavras mais vivas, mais firmes, acolhidas com a mesma atitude de paciência afectada e trocista. Dessa disposição tinha Sabina a certeza" porque o grande chapéu, por instantes levantado, deixou ver um rosto sombrio e zombeteiro, uns lábios vincados num ricto de troça.

O colóquio terminou. Num gesto desolado de impotência, o sensato conselheiro encolheu os ombros e decidiu-se a seguir o amigo, que recomeçara a andar. O portão de ferro enferrujado rangeu, ao mesmo tempo que o som agudo da sineta se fazia ouvir. Resolutamente, os dois viajantes transpuseram a pequena distância que os separava da porta de entrada. Esta, de resto, já estava entreaberta e do interior da casa, mesmo antes da criada, surgiu o lindo gronelandês de Sabina: pelagem negra e brilhante como asa de corvo, cabeça esguia e inteligente. Ao ver os desconhecidos, precipitou-se para eles, ladrando. Estes não se amedrontaram e o desconhecido de sorriso trocista chegou a estender a mão para afagar o animal, proferindo algumas palavras.

O barulho despertou Sainclair. Endireitou-se na poltrona onde adormecera e perguntou:

- O que hà, Sabina? Temos visitas?

A filha abandonara o seu posto de observação. Por segundos, imobilizou-se, surpreendida com a voz trémula de ansiedade com que o banqueiro fez a pergunta.

Havia ainda muito pouco tempo que a doença e a adversidade o tinham prostrado, pelo que esse homem, habituado a triunfar, perdera por completo a confiança na vida.

Após os ataques de ira de Golias encarcerado, dos sobressaltos do lutador fora de combate, mas que ainda se crê forte, nunca a resignação aparecia.

Sabina adivinhava a esperança à qual se agarrava ainda. Mais do que numa reviravolta da fortuna, Sainclair acreditava... acreditava num regresso.

Para ele, cuja vida de árduo trabalho e de luta representara um acto de adoração pela filha, o abandono de Olivier de Mombrun não podia admitir-se. E se, durante a fuga das horas e do pesado silêncio que envolvia o pavilhão, a sua obstinada confiança se desvanecia pouco a pouco, ainda não o abandonara de todo. Sabina acabava de ter uma prova disso ao ver o breve lampejo que atravessara as pupilas do banqueiro e ao escutar a sua voz trémula.

Mais uma vez, o desespero se apoderou da pobre rapariga. Sem ilusões sobre a fuga do noivo e sobre as causas que a tinham provocado, receava o terrível choque que a revelação causaria a Sainclair. Tão grande cegueira afigurava-se-lhe, a ela, impossível de conceber. No entanto, apesar de temer o momento em que ela cessaria, agradecia a Deus por existir, pois inspirava ao pai alguma força e coragem.

Quando o pai perguntou: - "Temos visitas?, fez um gesto vago e o doente soube logo que a sua tenaz esperança mais uma vez fora desiludida. Recaiu sobre as almofadas, enquanto Sabina dizia com simulada despreocupação:

- São dois desconhecidos. Vêm talvez falar com a Odília.

- Maçadores, com certeza - murmurou Sainclair em voz baixa e cansada.

A filha não lhe respondeu. Curvou-se, arranjou-lhe as almofadas e, enquanto velava assim pelo bem-estar do pai, fixava-lhe o rosto, onde a doença dia a dia imprimia a sua garra, causando novas e aterradoras mudanças.

Entretanto, os visitantes já deviam ter entrado na saleta de madame de Kergoêl e esta com certeza se encontrava junto deles. Através dos tectos pouco espessos - pois a casa fora construída para pavilhão de caça - chegava-lhe o ruído confuso das vozes. Sainclair não lhe prestava atenção. Pegara num livro que se encontrava no braço da poltrona e absorvia-se na leitura. Sabina, porém, a despeito da sua vontade, ouvia. Não palavras distintas, mas um rumor confuso, mais ou menos forte, onde se destacavam como notas breves algumas frases proferidas de maneira directa, autoritária e precisa. E, sem bem saber porquê, Sabina, nesses momentos, evocava o rosto bronzeado pelo sol, duro, irónico, que, num breve momento, entrevira.

Decorridos instantes, na sala em baixo o silêncio reinou. Os visitantes teriam saído?

No entanto, Sabina não dera pela sua partida. Entretanto, a porta da saleta abriu-se, passos leves subiram a escada e depois de se ter anunciado com leves pancadas na porta, madame de Kergoêl apareceu.

Era baixa e tão franzina que à primeira vista se tomaria por uma rapariga. O rosto, emoldurado nos cabelos loiros, com os olhos azuis, conservava também certa frescura e uma serenidade que os desgostos não tinham podido alterar. Sem ser bonita, possuía essa espécie de irradiação que deixa adivinhar uma alma nobre. Uma grande sensação de paz emanava daquela mulher tão experimentada pela vida. Sabina Sainclair chamava-lhe por brincadeira "o meu calmante." Às vezes também dizia "a minha sensatez", de tão grande equilíbrio e sensatez dava provas madame de Kergoêl. E, na afeição dedicada à prima por Sabina, havia a aspiração obscura de equilíbrio, a certeza de que a moderação de uma temperaria os impulsos da outra, a sua calma doçura o ardor de um temperamento apaixonado.

Odília de Kergoêl deu alguns passos no quarto.

- Preciso da tua presença, Sabina... Queres vir comigo?

Sem uma palavra, a prima afastou-se do pai. Este mal ergueu os olhos do livro, tão banal era o pedido de madame de Kergoêl.

Antes de mergulhar de novo na leitura, perguntou:

- As visitas eram para ti, Odília?

- Eram, sim, tio.

Com certeza, a indiferença de Sainclair teria cedido perante a mudança que, instantes depois, se operou no semblante e na atitude da jovem viúva. Mas a porta fechada tornou a conversa das duas mulheres secreta e o banqueiro não pôde descobrir o mistério.

Odília de Kergoêl levou a prima para a extremidade do corredor, para diante da porta envidraçada que abria para uma varanda de madeira meio arruinada. Dessa forma, estavam afastadas do quarto e da saleta onde se encontravam os -visitantes, e podiam conversar à vontade.

- Sabina - murmurou madame de Kergoêl, sem tentar dissimular a sua agitação - Sabina, o tempo urge. Perdoa-me por te revelar tão bruscamente o nome da pessoa que se encontra na sala.

Assim avisada, Sabina limitou-se a fazer um gesto de aquiescência. Madame de Kergoêl hesitou e em seguida, muito depressa, como se quisesse libertar-se de um encargo custoso, mas necessário, revelou:

- É o conde Renaud de Mombrun.

Dos lábios de Sabina fugiu surda exclamação. Com um gesto brusco, ergueu a cabeça.

- Recebeste-o?

- Não tinha razões para lhe fechar a minha porta.

Sabina ficou calada, mas a testa franzida e as feições contraídas revelavam quanta dificuldade tinha em aceitar as palavras de madame de Kergoêl e como era grande a sua perturbação.

No entanto, quase logo perguntou:

- O conde de Mombrun não veio sozinho?

- Acompanha-o lorde Murray, seu amigo e companheiro de viagem.

Numa breve passagem, Sabina voltou a ver os dois desconhecidos, quando se encaminhavam para o pavilhão e não podia dizer donde lhe vinha a certeza de que o visitante de rosto sombrio e irónico era o conde de Mombrun.

Com dureza, inquiriu:

- Que pretendem eles de nós? Já não temos nada de comum com os Mombrun.

- O conde chegou de uma grande viagem. Ainda há duas horas ignorava todas as modificações que...

- Que obrigaram o irmão a tomar uma resolução cheia de coragem, elegância e... Mas - interrompeu de repente - vejo que o conde de Mombrun nos faz uma visita de cortesia. Que grande honra!

A emoção de Odilia de Kergoêl transformara-se numa vaga de desânimo.

- Sabina, peço-te...

Não concluiu. A prima adivinhou que a súplica fazia apelo à sua calma.

- Muito bem! - inquiriu - Que deseja o conde de Mombrun? Testemunhar-nos a sua simpatia e compaixão?... Salvo se é o intérprete das desculpas do irmão por não ter cumprido a sua palavra?

A despeito de todos os seus esforços, Sabina não conseguia modificar o tom de ironia. Odilia abanou a cabeça.

- Não creio que o conde venha como emissário de outra pessoa.

- Que deseja então?

- Solicita com empenho alguns minutos de conversa com o teu pai.

- Nem meu pai nem eu necessitamos de compaixão ou de ser confortados.

- Não é para isso que o nosso vizinho está aqui, tenho a certeza.

- Então para quê, santo Deus?

- Ignoro-o, mas suplico-te que não deixes de recebê-lo.

Sabina dispunha-se a interromper a prima. Com vivacidade, esta continuou:

- Se te revelei a visita do conde antes de o acompanhar ao quarto de teu pai, não foi por temer que dessa visita resultasse qualquer sofrimento para nós. Não. Mas não queria tomar a responsabilidade, deves concordar, do abalo que o nome de Mombrun poderia causar ao doente e menos ainda da agitação que a conversa deve provocar.

- Mesmo assim, aconselhas-me a receber o conde de Mombrun?

- Não só aconselho como te suplico, Sabina, com a certeza de que o agravamento do nosso infortúnio não pode partir dele.

Sabina voltou um pouco a cabeça para a janela aberta sobre a clareira. Madame de Kergoêl era a única pessoa do mundo cujos conselhos escutava. E dessa vez ainda, disposta a uma recusa formal, reflectia e dominava-se com esforço antes de a pronunciar.

Calada, Odilia de Kergoêl, pela expressão da prima, acompanhava todas as fases do combate cuja violência avaliava. Não podia intervir, com receio de que a demasiada insistência levasse Sabina a recusar. Pela mesma razão, dissimulou a alegria que a resposta lhe causou:

- Aceito a entrevista, mas...

- Mas...

- Desejo eu própria informar o conde de que meu pai consente em recebê-lo.

Numa atitude decidida, abandonou o corredor e dirigiu-se para a escada. Odilia reteve-a docemente pelo braço.

- Não seria preferivel ficares fora de tudo isto? É muito doloroso para ti...

- Encontrar-me com o irmão de Olivier? - interrompeu Sabina em voz breve - Fica descansada, Odilia. Coisa alguma revelará a emoção que eu possa sentir.

Madame de Kergoêl suspirou. Conhecia, de facto, o domínio completo dos nervos e do coração que Sabina possuía. Em consequência, temia menos uma exteriorização de emoção do que um ímpeto de orgulho quando defrontasse o conde.

Não era, justamente, com o intuito de demonstrar ao visitante a altiva condescendência com que acediam ao seu pedido, que Sabina se propunha recebê-lo? Ora de Mombrun, fora essa a impressão de Odilia, não era homem para suportar assomos de altivez. O que resultaria do choque de dois orgulhos iguais?

E insistiu:

- Não seria melhor preparares o teu pai para a visita?

- Não. Encarrega-te tu disso. Desempenhar-te-ás da missão com mais doçura e habilidade do que eu.

Foi com apreensão e receio que Odília viu a prima afastar-se. Não a acompanhou. No estado em que se encontravam as coisas, uma apresentação seria mera formalidade e a discrição exigia que deixasse Sabina entender-se sozinha com o conde.

Os degraus da velha escada rangeram, um passo firme martelou o mosaico do vestíbulo e a porta da sala abriu-se devagar. Sabina Sainclair imobilizou-se no limiar:

- Pediu para falar a meu pai?

Dirigiu-se ao conde sem hesitação. Os dois visitantes levantaram-se ao mesmo tempo e de Mombrun inclinou-se profundamente, enquanto Murray, não tão directamente em causa, menos hábil para dissimular as suas impressões, dirigia a Sabina um olhar de profunda admiração.

Lembrava-se de ter tentado acalmar o impetuoso amigo, irritado com a ideia do casamento desigual do irmão, com esta frase: "Mademoiselle de Sainclair é talvez muito bonita." Pronunciara essas palavras ao acaso, sem poder supor que correspondiam perfeitamente à realidade!

Totalmente indiferente à impressão que poderia produzir nos visitantes, Sabina avançou. Um grande espelho Luís XV, ornado de esculturas e doirados, reflectia-lhe a imagem: corpo esbelto, habituado a todos os desportos, mas conservando, no entanto, o seu aspecto feminil e elegância, rosto mate, feições palpitantes de vida, mas de expressão grave. Os olhos enormes, um pouco oblíquos, desmentiam a calma do semblante, pois neles brilhava uma chama sombria e ardente. O mesmo ardor palpitava nos lábios carnudos, bem desenhados e rubros, e na fronte luminosa.

A espessa cabeleira era de um negro brilhante, estranhamente atravessada por uma madeixa de um castanho cor de cobre, o que dava ao lindo rosto uma beleza estranha e deslumbrante.

O conde de Mombrun aprumou-se.

- Peço-lhe, mademoiselle, para perdoar a intrusão de dois viajantes, cuja única desculpa é que, chegando dos confins da terra, não conhecem bem os usos da sociedade...

Sabina limitou-se a responder com um gesto vago. Depois murmurou:

- O pavilhão está aberto para todos os que venham visitar madame de Kergoêl, que nunca fechou a sua porta, nem mesmo aos mais humildes.

A resposta era banal, o que irritou Renaud de Mombrun. Não que esperasse de Sabina acolhimento diferente, mas porque, se continuassem naquela troca de frases insignificantes, nunca mais se aproximaria do alvo que o trouxera ali.

Com decisão, replicou:

- Para sua felicidade, mademoiselle, esta casa acolhedora nunca deveria ter recebido certas pessoas.

Sabina franziu as sobrancelhas e tomou tal expressão de altivez que de Mombrun não se atreveu a continuar.

Sabina olhou para lorde Murray e depois voltou-se para o conde.

- Receio que aluda a uma pessoa que lhe toca muito de perto para podermos falar a seu respeito diante de testemunhas.

Estas palavras, seguindo-se ao olhar, indicavam claramente o constrangimento que a presença de Murray impunha. Pela segunda vez, o conde não pôde deixar de sentir-se envergonhado. Mas não o deixou adivinhar e até sorriu. Voltou-se e, designando o amigo, apresentou:

- Lorde Murray, meu companheiro em todas as viagens, que me salvou duas vezes a vida e substitui o irmão que eu desejaria ter.

A frase era bem clara. Mais do que uma apresentação, era para Ralph uma afirmação de afecto e confiança. Em compensação, tornava bem patente a pouca intimidade existente entre Renaud de Mombrun e Olivier.

Sabina inclinou-se em silêncio. A perfeita correcção do conde e também, sem ela dar por isso, a estranha sedução da bela voz de inflexões profundas, dissiparam a sua primitiva hostilidade.

Renaud de Mombrun prosseguiu:

- Pedi a lorde Murray para me acompanhar, porque não podia apresentar-me sozinho ao senhor Sainclair. O nome dos Murray é garantia da minha lealdade. Basta, para provar que não sou solidário com um procedimento odioso.

Mombrun não podia exprimir com maior delicadeza a desaprovação que o procedimento do irmão lhe inspirava. No entanto, quem o conhecesse melhor, por certo teria notado uma espécie de irritação nas suas palavras por ser obrigado a exprimir-se assim.

Esta alusão directa a Olivier de Mombrun atingiu Sabina como uma pedrada, embora o seu rosto sereno e calmo não o revelasse. Em pé, diante dos dois homens, a quem não pedira para se sentarem, parecia esperar. Madame de Kergoél não lhe tinha dito que os visitantes desejavam falar com o pai?

O nome do banqueiro, pronunciado pelo conde, foi pretexto para repetir a pergunta, que ficara sem resposta. Mais uma vez inquiriu:

- Pediu para falar com meu pai, não é verdade?

Uma frase tão clara indicava bem o pouco desejo de Sabina de prolongar a conversa. De Mombrun assim o entendeu. Antes de responder afirmativamente, hesitou, como se desejasse acrescentar alguma coisa às precedentes palavras. Mas, sem lhe deixar tempo, Sabina prosseguiu:

- Meu pai está muito doente e o médico recomendou-nos para tomar com ele as maiores precauções. Isto quer dizer que madame de Kergoél, tanto como eu, nos esforçamos por lhe evitar fadigas ou emoções. No entanto, como não proibiu formalmente que recebesse visitas, demonstraria má vontade se não consentisse que o recebesse.

Renaud de Mombrun murmurou:

- Agradeço-lhe, mademoiselle.

- Quer fazer-me o obséquio de me acompanhar? Meu pai não está de cama, mas não deve sair do quarto. Ele próprio lhe apresentará as suas desculpas.

De si para si, tanto Renaud como Murray se admiraram da forma simples como se desenrolavam os acontecimentos. O primeiro, por ter receado não ser recebido pelo banqueiro, devia sentir-se satisfeito, embora coisa alguma o demonstrasse na sua atitude. Murray, pelo contrário, parecia desapontado. E, enquanto atrás de Sabina subiam a

escada que os conduzia aos aposentos de Sainclair, tentava, com desesperada insistência, encontrar o olhar do amigo, para uma muda e última súplica.

Pouco depois, Odília de Kergoél e a prima encontravam-se na saleta, que o crepúsculo enchia de sombras. Como a dona da casa se dirigisse ao interruptor eléctrico,

Sabina indicou-lhe um dos candeeiros pequenos, que se encontravam em cima do mármore do fogão. Instantes depois, uma claridade branda, filtrada pelo quebra-luz, alastrava pelo tapete de tons esbatidos, iluminava o aposento, o alto espelho Luís XV, a cómoda Império colocada entre duas janelas, a mesa de pés torneados, o sofá e algumas poltronas Restauração, agrupadas em volta.

Os retratos pendurados nas paredes, de magistrados com enormes cabeleiras e togas guarnecidas de arminho, recordavam à jovem viúva que nem todos os Kergoêl tinham sido ociosos como o marido. Reunidos ali depois de desterros sucessivos, alegravam a modesta saleta e conferiam-lhe dignidade, retribuindo à sua maneira a quem não era uma Kergoêl a delicadeza e compaixão que demonstrara ao último dos seus descendentes.

Sentada junto do fogão, hábito adquirido no Inverno, madame de Kergoêl seguia com a vista o vaivém agitado de Sabina, que passeava de uma extremidade à outra da saleta.

Nenhuma delas falava. Limitavam-se a fazer o que Sabina fizera antes no quarto do pai. Escutavam o ruído das vozes, que, desta vez, partia do andar de cima. E, sem que o confessassem, dominava-as uma angústia, o receio de que nova desventura tivesse batido à porta do pavilhão.

- Sabina - suplicou de súbito a viúva - vem para junto de mim. Acalma-te, senta-te aqui.

A filha do financeiro suspendeu o passeio e voltou-se para a prima.

- Estou calma, Odilia - afirmou com ar sombrio - Mas penso no meu pai e temo o mal que lhe possa fazer a presença destes dois desconhecidos. Lamento tê-los deixado subir e falar com ele. Imagino... eu sei lá o que imagino! - concluiu com uma espécie de violência - Nada temos a perder, jà!

Madame de Kergoêl tentou tranquilizá-la, garantindo-lhe que Sainclair ouvira o nome dos visitantes com absoluta calma e consentira em recebê-los. Mentia um pouco, mas não recuava perante tão inocente mentira, visto a tranquilidade momentânea de Sabina estar em jogo.

Com desânimo, Sabina obedeceu e sentou-se perto da janela, junto da prima. Maquinalmente, afastou os cortinados de seda verde, desbotados e puídos no sítio das pregas, e olhou para o jardim, mas estava muito escuro, porque a noite caíra.

Na sala de jantar contígua à saleta, que se avistava através da porta envidraçada, o lustre acendeu-se. Catarina, a velha criada bretã de madame de Kergoêl, punha a mesa para a refeição da noite.

O facto chamou a atenção das duas senhoras para os pensamentos que tentavam afastar.

- Oito horas - murmurou Sabina - Há mais de uma hora que estão junto de meu pai.

Não concluiu. No mesmo instante, como se os visitantes também tivessem reparado no tempo decorrido, ouviu-se no quarto do doente um arrastar de cadeiras e, minutos depois, três vozes de homem se confundiram, uma porta abriu-se e fechou-se e os passos dos dois rapazes soaram na escada.

Madame de Kergoêl levantou-se para se dirigir ao corredor no intuito de os acompanhar à porta. Num gesto impulsivo, Sabina agarrou-lhe o braço.

- Não! - protestou.

E, fazendo alusão à ignorância em que se encontravam do alvo da visita, acrescentou:

- Não sabemos se têm direito a atenções.

O portão do jardim rangeu quando os dois homens saíram e Wolf, que se encontrava na cozinha, ladrou com fúria. Depois o pavilhão mergulhou no silêncio. Só o tinir dos talheres de prata que Catarina dispunha sobre a toalha, o leve entrechocar dos pratos de porcelana, chegou aos ouvidos das duas senhoras.

Sabina largou o braço da prima.

- Podemos subir agora - disse, sorrindo, como se zombasse de si mesma e dos seus terrores.

Sem trocarem uma palavra, abandonaram a saleta e pouco depois entravam no quarto de Sain-clair.

Não fora sem fundamento que Sabina receara para o pai o abalo provocado pela visita dos dois homens. Mas nunca poderia supor que essa emoção fosse tão forte e, acima de tudo, estava longe de lhe adivinhar a causa. Por isso, parou interdita ao primeiro olhar relanceado ao financeiro.

Uma agitação feliz, assim a classificou a julgar pelas aparências. O rosto de Sainclair perdera a palidez e colorira-se ao de leve. Os olhos brilhavam-lhe. Tudo

na sua atitude, uma hora antes desanimada e abatida, revelava uma espécie de ressurreição.

Quando ouviu Sabina entrar, estremeceu e uma sombra de hesitação passou-lhe pela fisionomia expressiva. Depois viu madame de Kergoêl atrás da filha e essa presença pareceu restituir-lhe a alegre firmeza.

- Odilia - murmurou, estendendo-lhe a mão - vem cá. Preciso dos teus sensatos conselhos e da tua aliança.

Madame de Kergoêl aproximou-se da poltrona do doente, enquanto Sabina, imóvel a poucos passos, tentava sorrir.

- Aliança contra mim, meu pai?

- Aliança para a tua felicidade, Sabina, e para a minha tranquilidade sobre o teu futuro. Aliança para a solução inesperada de uma situação trágica, para a continuação da vida... Aliança para a paz e dignidade da tua situação.

Cada palavra do pai aumentava o peso da angústia que oprimia Sabina. Enquanto Sainclair falava, surgia uma apreensão, pequena de princípio, mas que aumentava de minuto a minuto. E tornou-se tão intolerável que Sabina, com uma rudeza que não estava nos seus hábitos, interrompeu o pai.

- Em resumo, os dois homens trouxeram-lhe boas notícias?... Que pretendiam eles?

As palavras trouxeram-lhe à mente a imagem nítida e rápida de um rosto de expressão irónica e olhar imperioso. Tentou afastá-la com cólera e interrogou o pai com o olhar.

O financeiro endireitara-se na poltrona. Apertou nas suas, numa a mão de Sabina e na outra a de Odilia. O semblante queria exprimir certeza e alegria, mas, na realidade, só reflectia ansiedade.

- O conde de Mombrun trouxe-me mais do que uma boa notícia, Sabina.

Calou-se, hesitou um instante e depois, numa voz mais baixa, prosseguiu:

- Conhece os nossos reveses, e... o procedimento do irmão que reprova. Pede que o deixes resgatar essa dívida de honra, consentindo em ser sua mulher.

Uma tarde magnífica de Setembro envolvia Pierreclose na sua tepidez suave, iluminando as velhas pedras do castelo, escurecidas pelo tempo e pelas intempéries, crestadas pelo vento do mar. Não se sabia se recebiam a claridade do céu se do mar, do Sol baixo e rubro que ia mergulhar no abismo ou dos reflexos doirados projectados pelas vagas.

Fim do dia de uma beleza rara naquela época do ano, tão próxima do brumoso Outono, rara numa costa mais habituada aos ataques do vento e das tempestades do que à doce serenidade da Natureza.

O castelo de Pierreclose erguia-se na margem, sobre alta penedia. Dominava uma das regiões mais agrestes da Bretanha, charneca e florestas de um lado, e do outro uma costa atormentada, recortada, semeada de escolhos, e o mar sombrio e por vezes furioso. Construído pelos romanos, sempre hábeis para aproveitar os pontos estratégicos, fora, na sua origem, uma fortaleza de difícil acesso. Quando os romanos desapareceram, a fortaleza ruiu. Reconstruído no século IV, ao mesmo tempo do que o castelo de Dinan, o novo castelo tinha ainda uma aparência temível, cingido por muralhas e flanqueado por torres. Mais tarde, destruído em parte pelo fogo, sofreu tão grandes transformações que pouco ou nada subsistia do seu primitivo aspecto. O pequeno torreão arruinado e as torres desmanteladas não foram reconstruídos, com excepção de uma delas. As grandes salas: a sala do duque, a sala de armas e da guarda, desapareceram.

Com a sua única torre e a nova estrutura dada pelos seus proprietários, devido às amputações causadas pelo incêndio, tinha mais a aparência de uma habitação sólida do que a de um castelo feudal. Foi esta casa que, por aliança, caiu nas mãos do primeiro Mombrun, Gil de Mom-brun, corsário do rei, cuja vida oferecia real interesse.

Os cronistas do tempo, nas narrativas referentes a Gil de Mombrun, faziam-lhe rasgados elogios, dando-o como um homem belo, valente, generoso e, como se isso não fosse suficiente para que o seu nome ficasse na memória das gerações, aureolaram-no com um grande amor.

Dizia a história que, adorando sua mulher, vivia dilacerado pela necessidade de cumprir o seu dever, que o obrigava a prolongadas e cruéis separações.

Gil adiava essas separações o mais que podia. Quando chegava a Pierreclose a ordem de aparelhar o seu navio, não dizia nada e passava as sua" últimas horas no lar, demonstrando o mesmo ardor e alegria, como se não tivesse o coração amarfanhado pela dor. Após uma noite que só ele sabia ser a última passada no castelo, que talvez abandonasse para sempre, erguia-se do leito sem fazer barulho, saía do quarto onde sua mulher dormia e, na madrugada fria, partia para o mar.

Um caminho áspero, talhado na rocha, rasgado mesmo debaixo das janelas do quarto, conduzia de pequena plataforma à enseada onde se encontrava amarrada uma barca.

Instantes depois, o ruído ligeiro dos remos, cortando a água, sumia-se na bruma da manhã. Mais uma vez, desesperado, mas resoluto, Gil de Mombrun subia para o Corsário, que, ancorado perto, o aguardava.

O fim desse homem, guerreiro destemido e coração apaixonado, foi belo e digno da sua vida. Abandonara Pierreclose havia seis meses e infligia terríveis perdas ao inimigo quando recebeu a dupla notícia do nascimento de um filho e da morte da mulher. Dominado pelo desespero, de Mombrun continuou o seu "corso", entrando na luta com a cabeça perdida e procurando a morte com sombrio furor.

Noite e dia, sem conceder, tanto aos seus homens como a si, o mais pequeno repouso, perseguia navios inimigos, atacava-os e só abandonava o combate quando os metia a pique. A passagem do Corsário era assinalada no oceano por um rasto de fogo, por naufrágios, destroços e a morte.

Estabeleceu-se a paz, mas o grande Corsário, arvorando a bandeira real, nunca mais voltou ao porto e ninguém soube como desaparecera. Morto depois de tão grandes proezas, a fama da sua glória nunca morreu. A lenda não quis que ele repousasse no meio de destroços, junto dos vencidos, mas afirmava que uma tarde, à hora em que o Sol em fogo mergulha no mar, ele se deixara ir docemente para o fundo.

A poesia de tão grande amor parecia impregnar ainda, decorridos tantos anos, as paredes de Pierreclose. Sabina sentira-a ao ajoelhar nessa manhã na capela do castelo para se unir para toda a vida a Renaud de Mombrun. Mas, longe de lhe acalmarem o coração revoltado, essas impressões mais exacerbaram a sua dor.

Com a cabeça apoiada nas mãos e os olhos fechados, tentou rezar. Mas os esforços para se concentrar foram vãos. E mesmo quando erguia a cabeça e olhava para o altar, não o via, nem a ele nem ao sacerdote, mas apenas as pessoas que a rodeavam.

De pé, ao lado de sua mulher, Renaud de Mombrun parecia calmo e atento. No rosto de expressão grave, porém, em vão se procuraria indício de sentimentos profundos.

Ao lado dos recèm-casados, na capela, apenas se encontravam duas pessoas: madame de Kergoêl e lorde Murray, que assistiam à cerimónia como testemunhas. A doença de Sainclair não lhe permitira abandonar o pavilhão e de Mombrun não se preocupara em participar um casamento realizado em tão estranhas circunstâncias às pessoas que normalmente deviam assistir.

No entanto, foi durante a hora que esteve ajoelhada na capela que Sabina mais cruelmente sentiu o peso do seu destino. A fim de afastar todas as preocupações dos últimos dias do pai - as declarações do médico não lhe deixavam ter ilusões sobre o avanço do mal - unira a sua vida à de um desconhecido. E esse homem, com quem não pudera familiarizar-se nos poucos dias do breve noivado, esse estranho ao seu passado e às suas esperanças, esse homem de quem tudo ignorava era o seu senhor e teria sobre ela todos os direitos.

Esta ameaçadora realidade estivera sempre no seu espírito, durante as noites de insónia, desde que Renaud de Mombrun entrara na sua vida, havia um mês. Mas nunca como naquele minuto, quando o irreparável se realizava, quando as palavras do sacerdote a encadeavam. Não, nunca sentira tão grande angústia.

Com terror, estudava o próprio coração. Que esperava ela, depois de ter consentido naquela espécie de negócio, de se ter comprometido? Que esperava ao prolongar o tempo de noivado com tanta obstinação como Renaud empregava para o abreviar?

A vida de Sainclair apagava-se como fogueira ardente que subisse muito alto e ardesse intensamente. Talvez que, mesmo antes de Sabina trocar o seu nome pelo nome duplamente detestado dos Mombrun, essa fogueira lançasse o seu último lampejo... Quando tais pensamentos a assaltavam, Sabina estremecia de horror. E, no entanto, perante Deus podia jurar que só a inquietação provocada pelo estado do pai a levara a ceder.

Não antes de muitos combates, sem uma resistência desesperada e, de princípio, uma recusa categórica. Mas Sainclair, com a obstinação dos doentes, ou antes, de um homem condenado que se agarra a uma última esperança na terra, não deixara de importunar Sabina com as suas súplicas. O abandono de Olivier de Mombrun, o terror de saber a filha condenada à pobreza, cuja crueldade ele conhecia, a certeza da incapacidade de Sabina para ganhar a vida, impeliam-no a uma insistência teimosa e persistente.

Aquela luta entre dois entes que se adoravam era dilacerante. A energia do homem abatido ressurgira tão violenta e poderosa como nos tempos da sua mocidade. E a sua fraqueza, quando, vencido pela doença, sucumbia momentaneamente, tornava-se uma arma mais eficaz do que qualquer outra, contra Sabina. Tinha sido ela que abalara a resistência da rapariga e a tinha levado a ceder, ao ver com terror que, a cada passagem da exaltação da esperança à desilusão do desaire, a vida do banqueiro vacilava.

A certeza de um futuro de segurança para a filha, dir-se-ia ter restituído a Sainclair as forças perdidas. O médico, esse, não alimentava ilusões.

Mas a filha, menos prática e mais optimista, pôde acreditar numa verdadeira ressurreição e os últimos dias passados no pavilhão foram mais tranquilos.

No entanto, não foi possível a Sainclair assistir ao casamento e Sabina por muito tempo recordou as despedidas comoventes, feitas nessa manhã no quarto do financeiro.

De pé, encostado a uma bengala, Sainclair murmurou com voz pouco firme:

- Prometes, Sabina, aconteça o que acontecer, prometes nunca encarar a possibilidade de tomar caminho diferente daquele em que hoje entras, cuja dignidade e felicidade foram garantidas pela lealdade de Mombrun, pela sua concepção de honra?

Promessas... promessas que Sabina fez sem custo, visto serem a natural consequência do seu sacrifício.

No entanto, não podia deixar de recordá-las naquela hora em que, pelo braço do desconhecido que era seu marido, ia entrar no castelo para dar começo a uma vida nova.

Desde o instante em que lhe dera o seu consentimento e durante o breve período do estranho noivado, de Mombrun dera provas de extrema delicadeza. Depois de trocadas as palavras necessárias, nem Renaud nem Sabina voltaram a pronunciar o nome de Olivier de Mombrun. E a frieza do conde, a sua altiva reserva, a raridade das suas visitas ao pavilhão podiam ser tomadas por tacto, pela delicadeza de um homem que não quer impor-se. Mas essa situação de elegante indiferença ia acabar. Era esse o pensamento de Sabina enquanto examinava o aposento que lhe fora destinado, no segundo andar de Pierreclose.

- Ficará instalada no "quarto do Corsário", se não lhe parece mal - dissera Renaud alguns dias antes da cerimónia - É o mais bonito do castelo, o mais curioso e dele se abrange o infinito.

Dizia a verdade. Das duas janelas quase unidas, a vista estendia-se, sem qualquer obstáculo, até aos confins do horizonte. Em frente do castelo, erguido no seu pedestal de granito, o mar estendia-se, cinzento, ondulante, belo e triste e muitas vezes furioso nos seus assaltos. Em volta de Pierreclose, a costa recortada, agreste, semeada de escolhos, revelava o lento trabalho das vagas, o seu poder destrutivo. Nos recifes, as ondas quebravam com um ruido surdo, por vezes doce e monótono, outras atroador e mais ensurdecedor do que o ribombar do trovão.

Os barcos, mesmo os dos pescadores mais familiarizados com o mar, fugiam daquelas paragens. E os que por vezes se avistavam, afastavam-se para o largo, mantendo-se longe dos perigosos bancos de rocha.

A penedia sobre a qual se erguia Pierreclose caía quase a pique sobre o mar e a pequena praia onde outrora embarcara o corsário devia ter sido levada pelas águas.

De resto, entre o castelo e a praia jà não existia comunicação. A escada que os ligava, que partia de pequena varanda, ameaçava ruina e por tal forma que Rosanne, a quem competia velar pelo castelo na ausência de Renaud, tomara a iniciativa de murar a porta para essa escada, e assim a varanda não tinha outra saída senão para a galeria que a rematava. Nunca ninguém tentara descer ou subir a escada, evitando assim perigosos acidentes.

Renaud deu todas estas explicações a Sabina quando lhe descreveu o aspecto desse lado do castelo e a boa situação dos seus futuros aposentos.

A filha de Sainclair fora muitas vezes a Pierreclose durante o seu noivado com Olivier de Mombrun, mas do castelo conhecia apenas as salas do rés-do-chão, isto é, o vestíbulo com belos vitrais, a biblioteca de soalho em quadrados de nogueira e carvalho e cercadura de mogno, a sala de jantar, os dois salões Luís XIII e a sala em rotunda, situada na torre.

No dia do casamento subiu pela primeira vez a grande escadaria com balaustrada de mármore, para alcançar o "quarto do Corsário", situado no segundo andar.

Sabia que o quarto de Renaud ficava no primeiro andar, com janela na fachada principal, voltada para a floresta. Olivier e Dorah estavam alojados em aposentos próximos, o primeiro com janela também na fachada principal, enquanto a filha de Rosanne, cujo sono não era prejudicado pelo ruído das vagas, ocupava o último quarto da galeria, perto da escada de serviço, cujas janelas dominavam o mar.

A bela escadaria de pedra era interrompida, ao nível da galeria, por forte porta de carvalho cravejada de pregos, que isolava completamente o segundo andar do resto do castelo. Sabina, porém, não era medrosa e, além disso, o aposento do preceptor ficava em frente do seu.

Qualquer outra mulher teria pensado que Renaud a exilava para bem longe de si naquele Pierreclose onde tantos aposentos do primeiro andar, com tanto conforto e vantagens como os seus, poderiam convir-lhe. Mas este pensamento nem sequer lhe ocorreu quando entrou no "quarto do Corsário". Dominou-a apenas uma sensação de deslumbramento.

Aquele quarto que, pelo nome, poderia supor-se de aspecto rude e severo, revelava, pelo contrário, ao primeiro olhar, surpreendente delicadeza. As tapeçarias penduradas nas paredes representavam combates navais e abordagens e por certo tinham sido tecidas de propósito para ornamentarem aquele aposento e recordarem um passado belicoso.

A cama de colunas exibia personagens e flores sobre um fundo verde pálido, as cadeiras, a cómoda e um sofá estofado de seda eram de estilo veneziano de notável beleza.

O dossel de damasco rosa-velho, que o tempo havia, não desbotado, mas apenas esbatido, assim como os cortinados do mesmo tecido, pareciam exalar leve perfume. Aqui e além viam-se objectos preciosos e raros; um grande cofre de madeira das ilhas, uma Virgem bizantina, taças de oiro puro provenientes de qualquer tesoiro revelavam a sua origem de presa tomada ao vencido.

Sabina tentou idealizar a mulher muito amada e feliz, apesar das forçadas separações, que vivera naquele ambiente. Teria sido ali que nascera o filho? E que a mãe morrera sem ter visto pela última vez o seu corsário? Da meiga imagem feminina o seu pensamento saltou para outra, a do homem rude e terno, cujo coração se despedaçava sempre que era obrigado a partir. Como seria ele?... Tão belo como valente, apaixonado e generoso na sua rudeza de homem do mar. De todas estas qualidades, que Sabina lhe atribuía, teria transmitido alguma aos seus descendentes?

Impaciente, abanou a cabeça. Que lhe importavam todas as belezas físicas e morais de que Renaud pudesse ser dotado! Indiferença, eis o único sentimento que devia inspirar-lhe, uma indiferença profunda e rancor pela violência que os acontecimentos haviam exercido sobre ela, impondo-lhe aquele casamento.

De pé, diante da janela, com a testa franzida, Sabina deixava vaguear o olhar pelo mar sem fim, que parecia de prata em fusão, tingido pelos reflexos do Sol no ocaso.

Pequenas ondas vinham lamber a praia e desfaziam-se em volta das ilhotas escuras. O ruído da ressaca chegava até à janela de Sabina com esse cheiro característico

do mar, que a entontecia como vinho generoso.

Pouco antes, deixara, com madame de Kergoél, o pavilhão onde Renaud de Mombrun e lorde Murray tinham vindo com ela passar o resto da tarde com Sainclair. Os dois homens regressaram a Pierreclose de carro, enquanto Sabina preferira seguir a pé pela floresta e pela charneca, acompanhada até meio caminho por Odília.

Quando chegaram perto da "Casa do Corsário, as duas senhoras, antes de se separarem, abraçaram-se. Depois, Sabina, arrancando-se dos braços da prima, fugira sem olhar para trás.

Chegou ao castelo, atravessou o vestíbulo, subiu a correr a escadaria e só parou no quarto depois de ter fechado a porta atrás de si. No decorrer daquele interminável dia pensara que a hora de se encontrar finalmente sozinha nunca chegaria.

Sozinha?... Mal acabava de invocar a paz com que tanto sonhara quando um ruído de vozes lhe chegou aos ouvidos. Dominando a contrariedade, debruçou-se um pouco na janela e logo recuou com precipitação como se os dois homens, cuja voz subia até ali, pudessem vê-la.

De pé, na varanda que, justamente por baixo do quarto de Sabina, dominava o mar, Renaud de Mombrun e lorde Murray fumavam um cigarro e conversavam.

O jovem inglês contava seguir nessa mesma tarde para Paris, onde desejava encontrar-se no dia seguinte, tanto que, ao sair do pavilhão, apresentara as suas despedidas a Sabina. Além disso, as primeiras palavras ouvidas por ela indicavam iminente partida.

- Nesse caso, viajarás parte da noite? - perguntou Renaud.

- Conto com isso. Com este tempo, é agradável e bem sabes como passo facilmente sem dormir.

Breve silêncio e a voz de Murray elevou-se mais uma vez.

- Obrigado por tudo, Renaud. Mas, a despeito da nossa amizade, seria indiscreto prolongar a minha visita. Casaste e de futuro essa mudança...

Uma exclamação irónica do amigo obrigou-o a calar:

- Casado!... Tão-pouco!

Ralph não teve tempo para responder, porque de Mombrun prosseguiu logo:

- Na verdade, acreditaste que eu ia modificar a minha vida?

- Serás obrigado a fazê-lo, Renaud.

Murray falava num tom convincente, quase grave. O conde, pelo contrário, adoptara um tom despreocupado, quase trocista. E o fraco ruído da ressaca não impedia que as vozes chegassem bem nítidas aos ouvidos de Sabina.

A réplica de lorde Ralph irritou Renaud, que protestou:

- Que imaginas tu, meu sentimental? Que vou pegar na guitarra e fazer serenatas apaixonadas debaixo da janela da condessa?... Que daremos passeios ao luar, de braço dado, que vou consagrar-lhe todas as horas dos meus dias e das minhas noites?

- Nada disso. Nem por segundos admiti essa hipótese. Pensei, no entanto, que uma vida normal...

Interrompeu-o uma gargalhada.

- Normal! Há alguma coisa de normal em tudo isto, pergunto eu?

O silêncio seguiu-se a esta pergunta do conde, pois Murray não pensou em responder.

- Vamos, Ralph - continuou Renaud, com a mesma ironia - conheces-me bem para saber que não sou um catavento, dócil a todas as influências, mesmo a de uma mulher.

Recordas-te da nossa chegada aqui, há poucos dias, do que eu vinha tentar?

- Não o esqueci. Pretendias empregar toda a tua influência para impedir o casamento...

- Um casamento odioso... ridículo.

- De facto, foram essas as tuas palavras.

- Não as renego.

- Supunha que essa espécie de aversão e de desprezo, que Sainclair e a filha te inspiravam antes de os conhecer, tivessem dado lugar a outros sentimentos - murmurou Ralph, em voz baixa e hesitante.

- Não. Não vejo razão para os ter modificado. A desventura de Sainclair apaga a sua mocidade no cais do Cairo ou nos matadouros de Chicago? E, quando à condessa de Mombrun, será menos venal e ambiciosa pelo facto de ter casado comigo?

O conde falava com ardor, com voz seca e desdenhosa, e cada uma das suas palavras atingia Sabina como uma bofetada.

Encostada à parede, junto da janela aberta, com as mãos enclavinhadas com tal violência que a magoava, a condessa, lívida e trémula, suportava os minutos mais cruéis de toda a sua vida.

Ao casar com Mombrum sabia, infelizmente, sem ilusão possível, que ia enveredar por um caminho árido e sem felicidade. Mas a atitude cavalheiresca do conde, oferecendo-se para resgatar a cobardia do irmão, afigurava-se-lhe ser garantia de um coração nobre e leal. Mas só naquele momento, quando o mal era irreparável, avaliava o orgulho insolente, desmedido, cruel, que inspirara o procedimento de Renaud.

Mais atenuados talvez, os mesmos sentimentos dominavam lorde Murray, porque mais uma vez a sua voz se elevou, triste e severa.

- Não compreendo como, sendo os teus sentimentos os mesmos que me revelaste quando tiveste conhecimento do próximo casamento do teu irmão, desposaste essa rapariga?

- Com efeito, parece inexplicável, mas não para ti, Ralph. Sim, fiquei transtornado com esse projecto de casamento e percorri milhares de quilómetros, suportei fadigas para alcançar rapidamente o continente europeu, tudo na esperança de chegar a tempo de obrigar Olivier a renunciar a ele. Não o ignoras, Ralph. No entanto, por estranha reviravolta da vida, pelo desenrolar dos acontecimentos, fui eu quem contraiu essa união que lança uma mancha sobre o nome de Mombrun. Fui eu quem se aliou com um antigo carregador, quem cometeu voluntariamente o erro que me revoltou contra meu irmão!

A voz de Renaud tornou-se mais surda e alterada, indicando assim o esforço que fazia para responder ao amigo.

- Apesar disso, tu bem sabes, Ralph, que não podia proceder doutra forma. A honra não admite tergiversações. Uma obrigação imperiosa tem de ceder perante outra, mais imperiosa ainda. Um homem de honra não pode deixar certas dívidas por pagar. O cobarde procedimento de Olivier deixou em aberto uma dessas dívidas. Pouco importava que os credores fossem Sainclair e sua filha.

Com as mãos apertadas contra o peito, o coração batendo como se quisesse despedaçá-lo, Sabina empregava todos os seus esforços para não desmaiar. Decerto, ao casar, não podia supor, nem mesmo desejar, que entre ela e o desconhecido que se tornara seu marido, houvesse, de futuro, grande intimidade. Mas a revelação de tão grande orgulho e do desprezo que a visava, deixava-a esmagada.

Caiu a noite. Se tivesse ido à janela e debruçado no parapeito, Sabina não poderia distinguir o vulto dos dois homens. Mas não o fez nem pensou em abandonar o quarto.

Quase nem deu pelo farol que nos recifes, à esquerda, acabava de acender-se.

Em baixo, na loggia reinava o silêncio. Depois da anterior conversa, cada um dos dois amigos se entregava aos seus pensamentos.

Lorde Murray foi o primeiro a falar.

- É tarde, Renaud. Tenho de te deixar. Tua mulher já deve ter regressado. O caminho do pavilhão a Pierreclose não é longo.

- Minha mulher! - repetiu o conde, com ironia. O tom era sardónico e a tal ponto que lorde Murray, prestes a retirar-se, como o indicava o ruído dos passos, parou.

- Renaud, perdoa-me e não me respondas se pensares que não deves fazê-lo. Que contas ser para ela?

- Nada!

A palavra soou, fustigante e clara, sobressaindo ao manso marulhar das ondas. Mas Sabina teve a impressão de que, mesmo no tumulto da mais violenta tempestade, não deixaria de a ouvir.

- Nada! - repetiu o conde - A condessa de Mombrun usará o meu nome e viverá na minha casa, eis tudo. Espero que saberá manter uma atitude digna desse nome, mas não desejo ser testemunha da sua boa vontade nem do êxito dos seus esforços. Vamos, Ralph - prosseguiu noutro tom - pensa nas nossas futuras aventuras e não naquelas que foram, confesso, tão desagradàvelmente interrompidas. Olhas para mim admirado? Supunhas que ia apodrecer neste cantinho pacífico e calmo onde tudo me aborrece?

Não e não! Portanto, até breve, meu amigo. Separamo-nos por pouco tempo, fica sabendo, apenas o necessário para organizar a vida de madame de Mombrun e de preparar a nossa próxima viagem. Cabe-me agora a vez de proferir as palavras com que, ainda há pouco tempo, tentavas desviar-me da Bretanha: "Abandonemos este país, Ralph.

As nossas carabinas mal arrefeceram e talvez ainda fumegue a fogueira do nosso último acampamento. A estepe é vasta e na savana abundam as jibóias e as feras. "Voltemos às nossas empolgantes aventuras. Encontraremos de novo..."

Sabina não ouviu o resto da frase, porque os dois homens abandonaram a varanda e entraram em casa.

Durante alguns instantes, manteve-se imóvel no mesmo lugar. Com intervalos regulares, o farol iluminava o quarto. Mas, como estava longe, a claridade não dissipava as trevas por completo. O mar continuava a bater nas rochas com um ruído surdo e monótono.

Por fim, afastou-se da janela, atravessou o aposento com passo rápido e, pegando no casaco que atirara para as costas de uma cadeira, lançou-o pelos ombros. Em seguida, sempre com atitude resoluta, sem relancear em volta um olhar, abandonou o quarto do Corsário.

Não encontrou ninguém ao descer a escadaria. No vestíbulo brilhantemente iluminado, parou hesitante. A porta da biblioteca entreaberta indicou-lhe a presença do conde. Empurrou-a e penetrou na sala.

Renaud encontrava-se ali, com efeito. Devia ter passado na biblioteca os últimos instantes com Ralph, tal como indicavam os copos sujos e as caixas de charutos abertas em cima da mesa. Em seguida acompanhara lorde Murray até ao carro e acabava de regressar quando Sabina entrou. Mostrou-se surpreendido com a sua presença, mas aproximou-se solícito.

- Acredita, Sabina, que lorde Murray não quis por forma alguma ficar para jantar no castelo? Mas já são horas e, se não vê inconveniente, vou chamar o Alberto e mandar servir.

E dirigiu-se para a campainha eléctrica. Com um gesto, Sabina deteve-o.

- É inútil chamar - declarou.

Estava muito calma, mas a sua voz soava com inflexões tão glaciais que de Mombrun franziu a testa.

- Porquê? - inquiriu.

- Porque não tenciono ficar no castelo, nem mais uma hora.

Se procurasse surpreender o conde com a sua resolução, teria ficado desapontada, porque de Mombrun nem sequer se sobressaltou. Apenas os lábios se lhe vincaram numa expressão irónica.

- Estou às suas ordens para a acompanhar onde desejar. No entanto, gostaria que me revelasse as causas que tornam Pierreclose tão pouco hospitaleiro.

Simularia não compreender ou atribuía a atitude de sua mulher a qualquer capricho? Sabina não perdeu tempo a tentar descobri-lo.

- Talvez me explicasse mal - declarou - Falo de uma partida definitiva e da quebra dos laços que hoje nos prenderam um ao outro.

A expressão irónica do conde acentuou-se.

- Está fatigada, Sabina, não vejo que outro motivo possa ter inspirado essa decisão a esta hora.

Apesar de todas as resoluções de calma, tomadas pouco antes, Sabina irritou-se. Aquela frieza cortês, irrepreensível e senhora de si transtornava-a.

- Está enganado, conde - prosseguiu, no entanto, com voz segura - A fadiga não influi na minha decisão de voltar para a casa onde se encontra meu pai.

- Perdoe-me, mas não posso deixar de me sentir surpreendido. O conhecimento que tenho de si não me deixou adivinhar essa predisposição para actos insensatos e...

Sabina interrompeu-o.

- E o conhecimento que tenho de si não me deixou adivinhar o desprezo de que eu e meu pai somos vítimas, a aversão que o nosso nome lhe inspira e a vida que me reserva.

Renaud mordeu os lábios com força. Estava aborrecido e talvez um pouco envergonhado por Sabina ter assim adivinhado os seus intuitos. No entanto, não podia suspeitar que sua mulher estivesse tanto ao facto dos seus sentimentos, nem que o acaso lhos tivesse revelado.

- Como concebeu pensamentos tão loucos? Quem lhe...

- O senhor!

Renaud ia protestar, mas um olhar frio e directo impediu-o de o fazer. Então, como um traço de luz, surgiu na sua mente a recordação da conversa tida pouco antes com Ralph.

Talvez pela primeira vez na sua vida, ficou atrapalhado. Considerou-se ridículo como garoto apanhado em falta e amaldiçoou a ideia de ter ido com lorde Murray para uma varanda tão mal colocada. Depois, todos estes pensamentos foram sobrelevados pelo desagrado causado pela imprevista complicação. Com súbita irritação, voltou-se para sua mulher.

- Que conta então fazer, Sabina?

- Não passar uma noite, sequer, nesta casa.

- Que mais?

- Voltar para o pavilhão.

- Irá sozinha a estas horas da noite?

- Sem a mais pequena hesitação.

- Já pensou no escândalo?

- Ninguém se preocupará com uma rapariga pobre, abandonada pelo marido. O escândalo atingirá apenas o nome de Mombrun, que eu odeio.

Renaud empalideceu. Sob as sobrancelhas contraídas, os olhos, não azuis, mas de um cinzento tempestuoso, cintilavam.

Sabina sustentou esse olhar com firmeza. O conde encontrava-se a poucos passos, com a sua alta estatura, muito elegante no fato de corte irrepreensível e com os braços cruzados.

Entre aqueles dois entes tão novos, mas já inimigos, o silêncio caiu pesadamente. Por fim, Renaud perguntou:

- Que dirá o seu pai?

A voz de Sabina tornou-se mais surda.

- Aprovará a minha decisão quando souber o desprezo que me atingiu enquanto estive nesta casa.

- No entanto, foi por ele, como confessou, para lhe poupar as preocupações que agravavam o seu estado, que consentiu... Não receia o golpe que vai vibrar-lhe?

Uma expressão dolorosa contraiu as feições da jovem condessa.

- Saberei convencê-lo que seria infeliz se ficasse.

- E a sua promessa?

- Da promessa feita a Deus, estou desligada, porque Deus também a exigia de si e os seus sentimentos mais íntimos nunca a fizeram.

Calou-se. A voz tremia-lhe. A seguir, não reparando que respondia mais aos seus próprios pensamentos do que a Renaud, continuou:

- Quanto à promessa feita a meu pai...

Calou-se mais uma vez. Sim, prometera não procurar caminho diferente daquele que aceitara de manhã e onde, assim o supunha Sainclair, mais tarde ou mais cedo encontraria a felicidade.

Num relâmpago, Sabina viu o rosto ansioso de Sainclair inclinado para ela, sentiu a pressão das mãos do pai nas suas e, insistente, ouviu a sua voz fraca:

" - Prometes recordar, Sabina?

Aquele desejo egoísta! A vontade do doente à qual cedera! Só o pai podia libertá-la. Não deixaria de o fazer quando conhecesse os sentimentos profundos daquele a quem a tinha entregue!

E com esta certeza replicou:

- Meu pai não deixará de me desligar da promessa.

O primitivo embaraço do conde transformara-se em irritação. No entanto, consciente da sua culpa, dominou-se e replicou, sorrindo:

- Reflicta, Sabina. Este passeio nocturno é absolutamente melodramático. Cobrir-nos-á de ridículo, a si e a mim. Aguarde ao menos que nasça o dia. Amanhã, mais calma, escutar-me-á sem prevenções e estou certo de que...

- Não!

- Recusas?

Em silêncio, Sabina curvou a cabeça, um tanto assustada com a expressão de cólera que incendiou as pupilas de Renaud. Mesmo assim, não cedeu, nem quando ele estendeu a mão num gesto imperioso.

- Eu...

Deu um passo para a frente, mas deteve-se, passou a mão pela fronte lívida, mas logo a deixou cair. Aguardou alguns segundos, como para recuperar a calma e, por fim, declarou em voz surda:

- Faze o que entenderes. Tentei tudo, excepto a violência, para te chamar à razão.

Voltou-lhe as costas. Sabina não perdeu um minuto e abandonou a sala. Instantes depois, descia a escadaria exterior e desaparecia na escuridão da floresta.

No céu de veludo a Lua brilhava, velada por ligeiras névoas. Mesmo assim, a claridade era bastante para Sabina ver o caminho e dirigir-se para o pavilhão.

A frescura da noite e talvez mais ainda a ideia de que abandonara Pierreclose para sempre, acalmavam-lhe a febre. Alguns minutos mais e encontrar-se-ia nos braços do pai. Com todos os cuidados, revelar-lhe-ia o que se passava e estava certa de que, convencido com as suas razões, ele concordaria em a desligar da promessa, último laço que a prendia àquele detestado casamento.

Quando seguia pelo bosque, chegou-lhe aos ouvidos prolongado uivo. Parou e sorriu. Preso no pavilhão, Wolf jà tinha dado pela sua aproximação.

Apressou o passo, mas antes de atingir a clareira, o uivo repetiu-se, mais prolongado e mais lúgubre.

Dominou-a um sentimento de angústia, irreflectido, mas dllacerante. As árvores rareavam e o caminho, batido pelo luar, tornava-se mais fácil. Sabina começou a correr.

Atravessou a clareira, atingiu e empurrou o portão enferrujado e, como a porta não estivesse fechada, entrou no pavilhão. As lâmpadas do corredor e da escada estavam acesas. Tremula, começou a subir.

Ao ruído dos seus passos, no alto, no patamar apareceu a touca branca de Catarina, que logo desapareceu precipitadamente. Um murmúrio de vozes sufocadas chegou-lhe aos ouvidos.

Nunca soube como conseguira atingir o patamar e chegar à porta do quarto do pai. No limiar, Odilia de Kergoêl abria-lhe os braços.

- Sabina! - murmurou - Sabina...

Não foram precisas mais explicações. Antes de ver o corpo estendido na cama, Sabina soube que a morte ganhara a corrida.

 

Mesmo na ausência do conde, a "Casa do Corsário" era habitada todo o ano. Um erudito, amigo da família de Mombrun, Rosanne, instalara-se no castelo e velava pelos interesses do conde como se fossem seus.

Muito ligado com o primeiro marido de madame de Mombrun, um cavalheiro pouco recomendável que só deixou saudades nas casas de jogo, depois da sua morte passou a ser o conselheiro da viúva. Mais tarde, serviu de preceptor aos dois filhos, a Olivier primeiro e depois a Renaud, nascido do segundo casamento também com um Mombrun, mas com maior fortuna e nobreza. Essa particularidade fazia com que Olivier e Renaud, sendo irmãos apenas por parte da mãe, usassem o mesmo apelido. Rosanne continuou, portanto, em casa da família dos Mombrun. Depois do seu casamento, logo destruído pela morte, o preceptor passou a viver com os seus pupilos, ao mesmo tempo que a filha, educada num pensionato, encontrava, durante as férias, um lar em Pierreclose ou no palacete que os Mombrun possuíam em Paris.

Todavia, nos últimos anos, Rosanne dera a sua preferência à "Casa do Corsário". Muito instruído, estudioso, sábio, dedicava-se a fundo às civilizações latinas e iniciara uma obra vasta sobre esse assunto. Para levar a cabo a realização dessa obra, encontrava na biblioteca de Pierreclose elementos tão preciosos que nunca se afastava do castelo sem pena.

Renaud não ignorava esta predilecção do preceptor pelo castelo e admirava-se com a ausência prolongada. Não comunicara para Paris os acontecimentos desenrolados com o seu regresso e tanto Olivier como Rosanne os ignoravam. Talvez se regozijasse intimamente com o espanto que deveriam sentir os dois homens quando voltassem a Pierreclose e tivessem, ao mesmo tempo, conhecimento do seu regresso e do seu casamento.

Sabina tentava desviar o pensamento desta circunstância que durante os últimos quinze dias se lhe apresentara como interrogação para a qual ainda não conseguira encontrar resposta.

Quanto a interrogar Renaud, nem por sombras pensava fazê-lo, pois sempre evitava falar com ele em assuntos que saíssem da banalidade.

Nos dias que acabavam de decorrer, o conde fazia muitas viagens a Paris. As suas permanências no castelo, muito breves, de resto, tornavam-se necessárias pela morte rápida de Sainclair, pela liquidação dos seus negócios, coisas nas quais Mombrun, pela sua aliança com o financeiro, era forçado a interferir. Mas Sabina ignorava se o marido, que em Paris se instalava em casa de lorde Murray, fora ao palacete onde se encontrava o irmão. Mombrun, quando regressava, também não lho dizia.

Aquela tarde de Outono, que a condessa passava sozinha na sala em rotunda, estava muito escura. A chuva, uma chuva fina e persistente, envolvia Pierreclose num véu de tristeza. Junto do castelo e tão longe quanto a vista podia alcançar, o mar cobria-se de nevoeiro e o seu surdo marulhar dava a Sabina uma impressionante sensação de angústia e a melancolia das presenças invisíveis.

Renaud partira para Paris havia dois dias. Com a sua ausência, sua mulher experimentava sempre uma impressão de alívio. Era como se o ar que respirava na "Casa do Corsário" se tornasse mais leve e as paredes do castelo deixassem de lhe oprimir o coração. Aquele dia, porém, tão triste e sombrio causava-lhe tanta angústia que, pela primeira vez, Sabina não encontrava a paz na solidão.

Abandonou a poltrona onde se instalara e aproximou-se da janela. Mas o nevoeiro opaco, em vez do espectáculo do mar sempre em movimento dos dias anteriores, gelou-a.

Voltou a sentar-se e, desesperada, olhou em volta de si.

A sala, pequena e circular, era acolhedora com o banco redondo, estofado, as velhas poltronas Luis XV de madeira acetinada, a mesa de mogno e o minúsculo fogão com tampo de mármore cinzento, encimado por grande espelho.

No entanto, naquele instante, o ambiente tornou-se odioso para Sabina, sem que ela soubesse dizer porquê. E, mais ainda, não soube explicar o desejo imperioso de fugir que bruscamente a dominou. O tempo muito mau não lhe permitira sair para ir ao pavilhão, como costumava fazer quase todos os dias. Custou-lhe ver-se privada dessa alegria que lhe retemperava as forças e pressentiu de antemão, a aridez dos dias próximos, quando os nevoeiros e as tempestades de Inverno a aprisionassem no castelo.

Longe, um relógio bateu as cinco horas. Wolf, o cão de Sabina e seu constante companheiro, levantou a cabeça e, sonolento, voltou a colocá-la entre as patas estendidas no tapete...

Sobre a mesa encontrava-se o tabuleiro, ali colocado havia uma hora por Denise, a criada de quarto que, tendo vindo de Paris para o pavilhão na ideia de pequena permanência, não se recusara a seguir Sabina para Pierreclose.

O chá, já frio, devia estar detestável e Sabina não pensou bebê-lo. Tirou uma torrada e deu-a a Wolf. Mas o animal pôs-se de pé de repente e começou a ladrar. Quando a dona tentava acalmá-lo, a porta da sala abriu-se e o criado que desempenhava as funções de intendente de Pierreclose apareceu.

- A senhora condessa perdoe-me, mas não podia deixar de lhe comunicar...

O velhote parecia comovido e calou-se.

- O que há? - perguntou Sabina.

- Acabo de receber uma carta do senhor Rosanne, comunicando-me que chega esta noite com o senhor Olivier. Na ausência do senhor conde, dirigiu-se a mim para...

- É natural - interrompeu Sabina, enquanto pensava, com ironia, que a resposta tão desejada lhe era dada por um criado: Olivier ignorava o regresso do irmão e o novo estado de coisas que ia encontrar em Pierreclose. Como, naquele minuto, o prazer da vingança seria doce para uma alma mesquinha! Mas Sabina experimentou apenas profundo desânimo e, pela primeira vez, talvez, o pesar de Renaud estar ausente do castelo.

Apoiou a mão trémula nas costas da poltrona que abandonara pouco antes. Mas, na presença daquele homem que, durante todo o Verão, vira nela a noiva de Olivier, conseguiu dominar-se e aparentar calma.

- Está bem, Alberto. Faça como de costume. Prepare os quartos...

O intendente baixou os olhos.

- Por tão ínfimos pormenores não teria vindo incomodar a senhora condessa - murmurou - Quis simplesmente avisâ-la de que esses senhores já chegaram...

- E então?

Alberto continuou, com desespero:

- Mal tinha acabado de ler a carta vi aparecer o automóvel do senhor Olivier no sopé da colina e...

- Ignorava se eu queria recebê-los, não é verdade?

O criado mostrou-se encantado por lhe terem facilitado a missão. Antes das palavras, a expressão confirmou.

- Recebê-los-ei - continuou a condessa, sem aguardar a resposta - Pode acolhê-los e conduza-os para esta sala.

Quando Alberto saiu, Sabina, mais uma vez, maquinalmente, dirigiu-se para a janela. Repetiu o gesto e ergueu a cortina, mas mais tarde não saberia dizer se o mar continuava a mostrar-se tempestuoso, para là do véu de bruma, ou se o nevoeiro levantara.

O coração palpitava-lhe com tanta força que receou, por momentos, que os recèm-chegados o oouvissem. Mas quando na sala vizinha soou o ruido de passos, instantaneamente conseguiu recuperar o sangue-frio. A iminência do encontro, que temia, acalmou-a. Voltou para o meio da sala e, com a mão poisada na cabeça de Wolf, que a seguira, respondeu com voz firme e clara às pancadas que soaram na porta.

Quando esta se abriu, Sabina ainda continuava a perguntar de si para si se o intendente teria posto Olivier de Mombrun e os companheiros ao facto das mudanças ocorridas em Pierreclose. Mas quando Rosanne, o primeiro a aparecer, se imobilizou no limiar da porta, Sabina jà sabia a resposta.

O preceptor devia ter sessenta anos, mas não aparentava mais de cinquenta. De estatura média, rosto pálido e belo, sob a cabeleira salpicada de prata, trajava com elegância. Contrariamente ao que se poderia esperar de um sábio, toda a sua pessoa indicava minuciosos cuidados dedicados ao aspecto exterior. As mãos eram finas e brancas e a barba, ainda escura, curta e bem tratada.

Ao ver Sabina, Rosanne estremeceu e os lábios delgados contraíram-se. Envolveu a jovem condessa num olhar estranho, pareceu hesitar.

- Seja benvindo, senhor Rosanne.

Indeciso, o preceptor não respondeu logo, mas fez um movimento, descobrindo o vulto feminino que vinha atrás.

- E a Dorah também - acrescentou a condessa.

Não demonstrou ter visto Olivier de Mombrun, que, ao lado de Dorah Rosanne, entrava na sala. Curvada para Wolf, cuja cabeça fina acariciava, aguardou, calma na aparência, que os viajantes respondessem às suas palavras de boas-vindas.

Neste grupo, imobilizado pelo espanto, o primeiro a recuperar o sangue-frio foi o preceptor. Aproximou-se de Sabina e, com um gesto discreto, designou o vestido preto e disse:

- Soubemos do golpe cruel que sofreu, mademoiselle. Contávamos ir amanhã ao pavilhão apresentar-lhe as nossas condolências.

Durante alguns segundos, Sabina lutou contra a dor que estas palavras reavivavam. E a voz revestiu-se de inflexões tanto mais glaciais quanto maior era a comoção; os soluços estavam prestes a sufocá-la.

- Sensibiliza-me infinitamente a sua solicitude, senhor Rosanne.

Continuava a dirigir-se ao preceptor. Por sua vez, Olivier de Mombrun deu alguns passos para ela. Sem dúvida, considerava não poder eximir-se ao mais simples gesto de cortesia.

- Sabina - murmurou - quero afirmar-lhe quanto me senti penalizado ao pensar no desgosto que devia ter sofrido. Creia que, se tivesse podido adivinhar, me teria encontrado junto de si para...

Calou-se, atrapalhado, receando por certo dizer demasiado ou muito pouco, desejando manifestar a Sabina a maior simpatia, mas desenganando-a ao mesmo tempo sobre a persistência de uma afeição que já não tinha razão para existir.

O olhar frio e pesado de Sabina voltou-se para Olivier. Sem uma palavra, examinou durante algum tempo o rosto miúdo, de feições duras, o fino bigode loiro e, pela primeira vez, notou as rugas que sulcavam a fronte, vincavam as pálpebras e lançavam sobre aquele rosto de homem novo e vigoroso a sombra de uma maturidade precoce e sem beleza.

- Agradeço-lhe - murmurou por fim.

Se o mar não batesse surdamente contra os rochedos de Pierreclose, talvez os ocupantes da sala tivessem ouvido um automóvel subir a encosta, parar e pouco depois um passo atravessar a sala contígua e deter-se junto da porta, que, de resto, estava entreaberta. Mas os recêm-chegados estavam de costas voltadas e os seus corpos ocultavam-na a Sabina.

O silêncio, que a todos parecia interminável, prolongava-se. Dorah Rosanne fora a única que não pronunciara uma palavra, facto que não causava espanto a Sabina, pois sempre adivinhara a sua hostilidade.

Madame de Mombrun encostara-se ao fogão. Um dos braços descaía ao longo do corpo e a mão esquerda, em cujo anular brilhava a aliança de oiro, estava oculta pelas pregas do vestido preto. Imóvel, aguardava com perfeita tranquilidade.

Esta calma soberana levou Olivier a perder a sua, ou então foi o receio das explicações devidas à ex-noiva que o levaram a tomar a iniciativa. Aproximou-se mais de Sabina e com voz pouco firme declarou:

- Irei amanhã ao pavilhão, Sabina. Peço-lhe me conceda uns minutos de atenção.

Um sorriso, cujo profundo desprezo só ela podia avaliar, descerrou os lábios da juvenil senhora.

- Ao pavilhão?... Para quê?... Posso muito bem escutá-lo aqui e esta mesma noite, se o desejar, meu caro senhor.

O rapaz estremeceu. A palavra "senhor" atingiu-o como uma bofetada e o seu espanto aumentou perante tanta firmeza. No entanto, como se não tivesse ouvido a resposta, insistiu:

- Deseja que o meu motorista a vá levar a Casa?

Sabina abanou a cabeça, mantendo a expressão irónica e dura. Os olhos de Rosanne fixavam-na com insistência e, como voltasse a cabeça, pôde ler nesse olhar uma espécie de admiração.

- Seremos nós quem se retira, mademoiselle - murmurou o preceptor.

Sabina não respondeu.

- Poderá então regressar ao pavilhão quando e como quiser.

Ela voltou a sorrir e olhou para a janela.

- Não conto sair esta noite. O tempo está péssimo.

O silêncio voltou a reinar na sala. Tão longe da verdade quanto podiam estar, Olivier e Rosanne olhavam-na com espanto. Quanto a Dorah, pegara numa ilustração que estava sobre a mesa do centro e folheava-a com ar aborrecido.

O irmão de Renaud tomou a resolução de pôr termo à conversa. Perante a atitude firme daquela que havia sido sua noiva, a espécie de pudor e constrangimento sentidos ao princípio deram lugar à impaciência.

- Sabina... - murmurou.

- Que deseja? - inquiriu ela, olhando-o com altivez.

- Sabina, suplico-lhe que mantenha a calma e não faça escândalo, pelo menos aqui.

O termo era pesado. Sabina empalideceu. No entanto, conseguiu dominar-se mais uma vez, mas a sua voz soou com extraordinária dureza:

- Escândalo, meu caro senhor! Com efeito, poderia provocá-lo, mandando-o expulsar. Se não o fiz, foi por respeito pelo nome que uso.

Abandonara a posição indolente e mantinha-se muito direita, de cabeça levantada. Fez um esforço para se dominar e, dirigindo-se aos dois homens ao mesmo tempo, prosseguiu:

- Podem tomar posse dos vossos aposentos. Avisaram-me do vosso regresso demasiado tarde. Arriscam-se a que não estejam preparados para os receber, do que lhes peço desculpa. Alberto, no entanto, assegurou-me ter conseguido reparar a desordem causada por... uma partida demasiado precipitada.

Olivier tornou-se lívido com o novo e não equívoco insulto.

- Atreve-se... - balbuciou.

- Minha mulher pode atrever-se a tudo, Olivier, mesmo a provocar uma questão contigo por motivos fúteis, pois suponho que entre ti e ela se trata de uma discussão sem importância. Seja como for, ela sabe que para mim tem sempre razão.

Renaud de Mombrun, de mão estendida, entrou na sala. Envergava o trajo de viagem. Libertara-se apenas do sobretudo e apresentava um rosto calmo e sorridente.

Se o céu tivesse caído a seus pés, a comoção provocada em Olivier e Rosanne pela aparição de Renaud não teria sido maior. Ver diante de si um homem que supunham a milhares de quilómetros, a caçar tigres ou crocodilos, que nem sequer sabiam se estava vivo ou não, era facto para causar profunda surpresa. Mas as condições desse regresso e principalmente as palavras que essa espécie de fantasma acabava de proferir, ainda os surpreendiam mais do que a presença do conde.

Desta vez foi Dorah Rosanne quem acolheu Renaud. Depois dela, o preceptor dirigiu-lhe os cumprimentos que se impunham e manifestou a sua feliz surpresa. Olivier, o menos senhor de si ou talvez menos hábil, esteve longe de demonstrar o mesmo sangue-frio. Mas o conde simulou não dar por isso.

Beijou a mão de Sabina, acariciou distraida-mente Wolf e, após alguns instantes de uma conversa banal, pediu a sua mulher informações sobre os acontecimentos ocorridos em Pierreclose durante a sua ausência. Em seguida, voltou-se de novo para os seus hóspedes.

- Meu caro Rosanne, pode subir para o seu quarto... Digo o mesmo a Dorah e ao Olivier. Sabina gosta da pontualidade e costumamos jantar âs oito.

Era uma despedida. Aqueles a quem era dirigida compreenderam-no e não tardou que o conde e Sabina se encontrassem sozinhos na sala.

Quando Olivier saiu e a porta se fechou, Renaud de Mombrun voltou-se para sua mulher e estendeu-lhe a mão.

- Felicito-a, Sabina.

Respondeu como devia. Ela dirigiu-lhe um olhar glacial e não correspondeu ao gesto.

- Estava então... a escutar à porta?

O conde corou Intensamente e as palavras violentas estiveram prestes a fugir-lhe dos lábios. Conteve-se e contentou-se em responder.

- Não estava a escutar à porta, mas no limiar desta, e não pude deixar de assistir à conversa. No momento próprio entrei em cena, deve fazer-me justiça.

Deixou cair a mão desdenhada e o brilho que momentos antes lhe animara o olhar extinguiu-se.

- Faço apenas justiça à sua habilidade - murmurou Sabina - A que consiste em fazer recair sobre os outros a responsabilidade dos seus actos.

- Confesso que não compreendo.

Sob a inflexão glacial adivinhava-se violenta irritação. Sabina não se impressionou.

- Vou explicar-me melhor - respondeu - Deixar-me sozinha receber a sua família, quando esta ignorava a minha presença e o lugar que ocupo em Pierreclose, foi expor-me voluntariamente a... palavras lamentáveis. Acima de tudo, foi expor-me a uma humilhação que, como ouviu, não deixou de me ferir.

Enquanto falava, animava-se e, pela segunda vez, Renaud lhe notou uma expressão diferente e apaixonada. Experimentou com isso desagradável surpresa. O incidente ocorrido entre os dois no dia do casamento estava ainda muito recente na sua lembrança para poder esquecer o mais pequeno pormenor. Mas se via ainda o olhar sombrio de sua mulher, o gesto desdenhoso dos lábios ao proferir as palavras definitivas, se ouvia ainda a sua voz trémula, considerara tudo isso como filho de uma perturbação excepcional. Afigurava-se-lhe impossível que a filha de Sainclair, antigo moço de matadoiro, antigo descarregador, se permitisse ter, ou antes, ser "um carácter".

A revolta, a oposição e energia, tão contrárias ao que havia esperado de humildade e indiferente submissão à sua vontade, desnorteavam-no. Por seu lado, Sabina, muito agitada com os próprios sentimentos para se preocupar com os do marido, não deu por essa admiração.

Às últimas palavras de sua mulher, Renaud respondeu com calma:

- Não participei o nosso casamento a Rosanne e a Olivier por uma razão muito simples, Sabina. Hà muitos anos que não dou satisfação dos meus actos seja a quem for.

Nesta circunstância... especial, não me pareceu necessário proceder doutra maneira. Quanto a deixá-la sozinha receber os. nossos hóspedes, ignorando eles o seu lugar e os-seus direitos em Pierreclose, declino a responsabilidade. Rosanne é um homem metódico, que sempre comunicou o seu regresso com antecedência. Não podia calcular que desta vez procedesse por forma diferente.

Calou-se e tirou da algibeira interior do casaco-uma cigarreira de oiro gravado. Ofereceu-a aberta a Sabina, que fez um gesto de recusa. Então o conde acendeu o cigarro, após ter pedido licença a sua mulher, e voltou a metê-la na algibeira.

Depois prosseguiu:

- Estava tão certo de saber com antecedência a data do regresso de meu irmão que não dei qualquer ordem a esse respeito ao Alberto. Como-conseguiu ele trazê-los até aqui sem lhes dizer qualquer palavra que lhes indicasse estar Pierreclose habitado?... Causar-me-ia espanto, se não conhecesse bem o meu intendente, o seu tacto e cortesia, tudo quanto pôde aprender nos cinquenta anos que serve os Mombrun.

Calou-se. A referência ao criado pareceu ter desviado a conversa do assunto principal. Uma pergunta de Sabina reconduziu o conde à discussão.

- Posso saber quanto tempo se demorarão aqui, Rosanne... e seu irmão?

O conde olhou-a com espanto.

- Quer dizer o tempo que ficarão em Pierreclose?

- Isso mesmo.

- O que lhes apetecer. Ilimitado para Rosanne, que tem grande preferência pelo castelo e que, durante as minhas ausências, vela pelos meus interesses.

- E seu irmão?

Renaud encolheu os ombros num gesto de ignorância. Atirou para o ar uma fumaça e acrescentou com indiferença:

- Nunca pergunto ao Olivier, quando se instala em minha casa, quantos dias conta demorar-se.

Alguns minutos de silêncio se seguiram à declaração do conde e este poderia supor que ele indicava o final da conversa, quando, de facto, Sabina estava adquirindo novas forças para a continuar.

- Nesse caso, obriga-me... - murmurou com voz trémula.

Renaud ergueu para a mulher um olhar espantado, mas cuja expressão era um tanto dura.

- Quem lhe fala em obrigar?...

- Não exige o contacto diário com um homem a quem desprezo?

O conde não respondeu à pergunta.

- Nunca lhe deixei acreditar que, ao casar consigo, cortaria relações com o único membro da minha família. E visto falar de obrigação, permita-me, minha querida Sabina, recordar-lhe que nunca a obriguei a coisa alguma. Aceitou partilhar a minha vida. No dia do casamento, supondo-se ofendida por palavras mais ou menos exactas, fugiu teatralmente de Pierreclose, para voltar dias depois, sem que eu exercesse qualquer pressão sobre si, tudo sem constrangimento da minha parte.

Calou-se e Sabina não lhe respondeu logo, certa de que não conseguiria proferir uma palavra, tão indignada se sentia. Por fim, os lábios, convulsivamente cerrados, entreabriram-se.

- Tem razão - confirmou com voz trémula - Não exigiu de mim coisa alguma, só as circunstâncias me foram adversas. Essa obrigação, não foi o conde que ma impôs, mas sim o ente a quem mais queria no mundo: meu pai. Para não o desesperar, a ele, cuja ternura não tinha limites e tremia ao pensar que me deixava sozinha e pobre, consenti em ser sua mulher. O nosso sacrifício, o seu, que eu não deixo de avaliar, e o meu, tinha certa nobreza, pelo menos assim o supunha. O conde era vítima de seu irmão e da sua concepção de honra; eu, do meu reconhecimento e amor filial. No caminho árido que ambos teríamos de percorrer lado a lado, essa semelhança e a voluntária aceitação do dever podiam, assim o esperava, permitir-nos viver sem rancores.

A última palavra fez estremecer o conde. Como para protestar, fez um gesto, ao qual Sabina não deu atenção. Continuou:

- Por acaso, conheci os seus pensamentos e o seu carácter. Nessa altura, como lamentei ter casado consigo. Desprezava-nos, desprezava a vida de luta e de trabalho de meu pai, os seus magníficos esforços e a sua ascensão; desprezava-nos a todos os respeitos e mais ainda, talvez, pela nossa ruína. Conhecendo estes sentimentos, não haveria uma mulher, excepto se fosse muito vil, que continuasse a viver junto de si! Precipitadamente, com o terror que devemos sentir perante um perigo mortal, fugi desta casa, fugi de si!

Desta vez a voz de Sabina desfaleceu. A evocação da cena que se lhe deparara no dia da fuga, dilacerava-a.

Imóvel e mudo, diante de sua mulher, Renaud não tentava interrompê-la.

- Voltei - murmurou Sabina, decorridos alguns instantes - Voltei porque não podia renegar a promessa feita a meu pai, os meus juramentos. Se ele estivesse vivo, ter-me-ia desligado. Sem custo, ter-lhe-ia feito compreender que a pobreza é cem vezes preferível a uma vida de humilhação... Mas, quando cheguei ao pavilhão, meu pai já não podia fazer qualquer coisa por mim... E, no instante em que perdia a única afeição deste mundo, senti que nunca teria coragem para faltar à palavra dada àquele que já não poderia exigir o seu cumprimento e que ficaria presa toda a vida ao nome de Mombrun.

Estava tudo dito. Sabina levantou-se na intenção de sair da sala. Um gesto do marido deteve-a.

A espécie de vergonha que Renaud a princípio sentira, dissipara-se. A sua atitude era agora a de sempre, de fria indiferença.

- Um instante, Sabina - pediu - À sua franqueza devo responder com palavras que a tranquilizem. Além disso, creio ser preferível abordarmos pela última vez o assunto do nosso casamento, a fim de nunca mais falarmos nele. Eis o que pretendo dizer-lhe: Nunca tencionei interromper as minhas viagens, modificar esta vida errante que me agrada, numa palavra, fixar-me em Pierreclose ou em qualquer outro ponto... Vou partir de novo. Não terá, portanto, de suportar a vida em comum que parece temer.

As curtas visitas que farei à minha pátria serão... acidentais e muito raras e não entravarão por forma alguma a sua liberdade.

A Sabina será dona absoluta em minha casa, de todos os meus domínios e bens e poderá viver como lhe apetecer.

Calou-se um instante e continuou:

- Tem de concordar que isto em nada se parece com a opressão que supunha encontrar.

Sabina não respondeu a esta observação feita com leve ironia e Renaud devia considerar a conversa terminada, porque acrescentou:

- Agora, podemos ir jantar, se não vê inconveniente.

Sem aguardar a resposta, de Mombrun dirigiu-se para a porta e dispunha-se a afastar-se para o lado a fim de sua mulher passar. A voz desta deteve-o.

- Os seus hóspedes talvez ainda não descessem do quarto.

Renaud fez um gesto de impaciência, logo seguido por um sorriso. Decididamente, tanto pelo seu ardor como pela calma, Sabina não deixava de lhe causar surpresa.

- Tem razão - concordou - Esquecia-me da sua presença.

E, inclinando-se, acrescentou:

- Agradeço-lhe por mo ter recordado. Naquela noite, deitada na larga cama de madeira, Sabina custou-lhe adormecer.

A lâmpada acesa em cima da mesa de cabeceira mal iluminava o quarto do Corsário, os belos móveis, as tapeçarias. Lá fora, o mar batia contra os rochedos. Menos embravecido do que durante o dia, continuava, no entanto, agitado, e o seu rumor abafado envolvia o castelo.

Todavia, no assalto das vagas havia momentos de acalmia. E foi num desses momentos que Sabina ouviu nitidamente o ruído irregular de remos batendo a água.

Ficou à escuta durante algum tempo, surpreendida por um barco se ter aventurado, numa noite tão escura, a navegar por entre os perigosos recifes. Supôs ter ouvido mal e prestou mais atenção. Com efeito, não ouviu mais nada, excepto o mar.

Passou muito tempo e, por fim, Sabina apagou a luz. Só o farol distante varria o quarto com a pincelada amortecida dos seus raios.

 

Em Novembro, os rigores do Inverno fizeram-se sentir na Bretanha, um Inverno húmido e frio, sob um céu carregado de nuvens e o peso de sombrios nevoeiros.

Os dias luminosos ou apenas claros tornaram-se raros, e aconteceu muitas vezes que a "Casa do Corsário", envolta em brumas, ficou completamente isolada do mundo.

De todos os habitantes de Pierreclose, Renaud parecia ser o mais afectado pela forçada reclusão. Embora soubesse não ter de suportá-la por muito tempo, era homem muito activo para poder aceitá-la com serenidade. Os preparativos da próxima partida, que o ocupavam e minoravam a espectativa, nem sempre conseguiam acalmar-lhe a impaciência e o desejo de evasão que o dominava.

Aproveitava a mais pequena acalmia do tempo para montar a cavalo e correr os campos. Possuía a poucos quilómetros do castelo uma criação de cavalos, que lhe servia de pretexto para as saídas repetidas e nem sempre prudentes. Os animais, tendo abandonado os pastos, estavam agora abrigados em confortáveis alojamentos. E o conde demorava-se com prazer na coudelaria, uma das primeiras da Bretanha, apesar das suas prolongadas ausências.

Também dedicava grande parte do tempo a pôr em ordem os seus negócios, precaução indispensável para um afastamento de quatro anos. A sua confiança absoluta em Rosanne simplificava as coisas e a dedicação do benévolo administrador aplanava todas as dificuldades. De Mombrun conferia ao preceptor todos os poderes, deixava-lhe todas as iniciativas e, conforme este próprio pedia, passava dias inteiros debruçado sobre as contas, tomando disposições exigidas pela prolongada ausência.

- Palavra de honra, Rosanne! Dir-se-ia que tem o maior interesse na minha partida, por tal forma me sobrecarrega com contas e relatórios.

Sorridente e calmo, o preceptor respondeu:

- Sabe bem que não é assim. Só o cuidado pelos seus interesses e a plena consciência de tão pesada responsabilidade me levam a aproveitar os últimos dias que passa connosco... A propósito, quando tenciona partir?

- O mais breve possível, Rosanne.

- Não antes das festas do fim do ano, suponho?

- Muito antes. O Natal também é alegre tanto na pampa como nas margens de qualquer rio sagrado, povoado de crocodilos ou de selvagens apreciadores de carne de branco no espeto. Só espero por notícias de lorde Murray, que se encontra em Inglaterra de visita à família, e galera ao mar a todo o pano.

Essa galera estava prestes a fazer-se ao mar, quando numa tarde de Novembro Sabina percorreu o corredor do primeiro andar.

Grandes malas de coiro viam-se alinhadas junto à parede, devendo nessa mesma manhã ter sido trazidas do sótão, pois na véspera não as vira aí.

Ficou transportada de alegria. Embora não encontrasse o marido senão às horas das refeições e as suas relações com ele nunca ultrapassassem os limites da mais simples banalidade, bastava a sua presença em Pierreclose para a oprimir. Abençoaria o dia a partir do qual pudesse ir e vir, respirar e viver, sem aquela sensação de constrangimento, pela qual se censurava, mas que não podia evitar.

- Uma boa notícia para dar à Odília - murmurou, enquanto descia a escada de serviço, que terminava num vestiário onde sabia encontrar-se um casaco seu.

Pô-lo no braço e dirigiu-se ao hall, recordando-se de que se impunha ir à biblioteca buscar um livro para madame de Kergoêl.

Quando empurrou a porta, deteve-se, surpreendida, no limiar. Sentado diante da enorme secretária, colocada em frente da janela, um homem escrevia. No grande fogão de tijolos ardia um belo lume.

À entrada de Sabina, o preceptor levantou a cabeça e abandonou imediatamente o seu lugar, aproximando-se dela.

- Sinto-me desolado por vir incomodá-lo. Em geral, não encontro aqui ninguém.

- Com efeito, a minha presença hoje é excepcional. Costumo trabalhar nos meus aposentos ou no pequeno gabinete contíguo ao quarto de Renaud. Hoje, no entanto, tive de consultar alguns documentos que se encontravam na biblioteca. Mas, por favor, não me peça desculpa. Fiquei mais satisfeito do que pode supor com esta interrupção.

Aproximou do fogão uma das grandes poltronas Luís XIII, forradas de tapeçaria. Sabina, cujo primeiro impulso foi recusar, arrependeu-se e sentou-se.

Rosanne procedia com ela com perfeita correção. No ambiente, por vezes carregado de constrangimento, que constituía a atmosfera habitual do castelo, o preceptor não demonstrava qualquer embaraço e agia com a natural e calma segurança de uma consciência tranquila, um espírito lúcido, ponderado e imparcial. E se Olivier, sempre retraído, procurava evitá-la, se Dorah não se despojara da sua reserva, onde, por vezes, se manifestava antipatia, Sabina não podia deixar de fazer ao preceptor a justiça de reconhecer que este não pautara a sua atitude pela de um ou de outro, nem tão-pouco pela indiferença cortês de Renaud.

Para reprimir o movimento de contrariedade que a demora lhe causava, Sabina foi forçada a recordar-se da cortesia e discreta simpatia de Rosanne. Mas, sem dúvida, não conseguiu disfarçar a expressão, porque o preceptor sorriu.

- Madame de Kergoêl não vai, com certeza, queixar-se, se a sua visita demorar um pouco - murmurou - Embora habite a alguns quilómetros de distância de Pierreclose, goza o privilégio de a ver com mais frequência do que nós.

Sabina franziu ligeiramente a testa.

- Eu e minha prima sempre fomos amigas - replicou.

Rosanne abanou a cabeça.

- O isolamento do pavilhão deve ser muito difícil de suportar e é preciso muita coragem para viver ali a maior parte do ano. Portanto, calculo com que ansiedade ela aguarda a partida para Paris... e a sua.

Rosanne falava com o rosto voltado para o fogão e, como se o clarão das chamas lhe ferisse o olhar, apoiara o cotovelo no braço da poltrona e abrigava os olhos com a mão.

- Com efeito, a coragem de minha prima é muito grande. Nem mesmo foi abalada pela perspectiva de passar o Inverno nessa solidão.

- Como?... Então madame de Kergoél não a acompanha?

Rosanne acariciava a barba e a pergunta fora feita no tom do mais profundo espanto. Sabina sorriu ao de leve.

- O palacete de meu pai foi vendido e, portanto, não poderei instalar-me ali nem receber minha prima.

- Mas os de Mombrun possuem...

- Eu sei, mas, com excepção de Pierreclose, não conto utilizar as residências dos de Mombrun.

Tão categórica resposta pareceu impressionar o preceptor. Dir-se-ia até que lhe proporcionava certo prazer. Retirou a mão dos olhos, relanceou rápida olhadela a Sabina e depois volveu-os para o lume. Por momentos, guardou silêncio.

- Passar um inverno em Pierreclose deve ser superior às suas forças, madame. É preciso não conhecer esta região, a monotonia dos seus dias cinzentos, dos pesados nevoeiros sem fim; é preciso, acima de tudo, não ter ouvido nunca os rugidos do mar contra as rochas para tomar semelhante decisão. Além disso...

Com espanto, Sabina olhou para Dorah, que, encostada ao espaldar da poltrona do pai, acabava de pronunciar estas palavras. Não dera pela sua aproximação, nem sequer pela sua entrada no aposento. Devia encontrar-se ali havia algum tempo, e, sem dúvida, o ajudava nos seus trabalhos, pois trazia muitos livros debaixo do braço.

A intervenção contrariou Rosanne, que ergueu para a filha um olhar irritado. Sabina, desvanecida a surpresa, repetiu calmamente:

- Além disso?...

Dorah hesitou, mas logo replicou:

- Agradam-lhe os aposentos que o Renaud lhe destinou?

- Muitíssimo, Dorah. De princípio, achei-os curiosos, depois agradáveis e agora o seu encanto conquistou-me por completo.

- Seria então mal acolhida se lhe sugerisse abandoná-los?

Tanto Sabina como Rosanne manifestaram o maior espanto. Sabina exteriorizou-o em palavras:

- Abandonar o quarto do Corsário! Mas porquê, santo Deus?

- Por causa da sua má reputação.

Sabina ficou interdita, enquanto o preceptor encolhia os ombros com irritação.

- Deixa madame de Mombrun em paz com as tuas tolices - murmurou.

Com um gesto, Sabina interrompeu-o e, voltando-se para Dorah, insistiu:

- O quê, Dorah? Refere-se a fantasmas e almas do outro mundo... pois é esses hóspedes indesejáveis que pretende mencionar, creio eu. Talvez o Corsário visite de vez em quando os sítios onde foi feliz?

- Não está longe da verdade, com efeito. Seria preciso nunca ter vindo a Pierreclose para ignorar esses boatos que os criados, para não me referir a outras pessoas, propagam fielmente. Deve saber que Gilles de Mombrun não admite profanos no quarto que abrigou a sua felicidade. Esse quarto conservou-se desabitado e ermo durante muito tempo e nada de anormal aconteceu. Mas quando alguém o ocupa, então ouvem-se queixas e lamentos. Uma voz murmura com o vento e chora junto do leito onde a condessa de Mombrun morreu ao dar à luz o filho. Por fim, ordena e ameaça. A alma, desolada e indignada por terem violado a paz daquele asilo, expulsa o intruso e profere anátemas.

Calou-se. Enquanto ela falava, o olhar de Rosanne exprimia uma cólera sempre crescente. A mão do preceptor, apoiada no braço da poltrona, tremia ligeiramente.

- Comigo, nada disso se deu - declarou Sabina, a rir -, daí concluo que o Corsário se conformou com a minha presença.

- Com certeza - aprovou Rosanne - Vamos, Dorah, deixa de assustar madame de Mombrun. É muito inteligente para acreditar em fantasmas e para abandonar, por causa de lendas sem fundamento, um quarto que lhe agrada.

Dorah respondeu, não ao pai, mas a Sabina, como se as últimas palavras tivessem sido pronunciadas por ela.

- Compreendo-a, madame. Com efeito, é muito inteligente para acreditar em fantasmas. Eu também não acredito. No entanto, aquela parte do castelo tem péssima reputação.

E, se me permitisse a liberdade de lhe dar um conselho, dir-lhe-ia que mudasse de quarto.

- E eu - declarou Rosanne, sem tentar desta vez ocultar o desagrado e mesmo a irritação causados pela insistência de Dorah - peço-lhe que não dê importância a uma fábula ridícula e sem fundamento. "Visto gostar do quarto do Corsário, conserve-o e durma ali em paz. Nada lhe acontecerá de desagradável, com certeza. Permite-me, não é verdade, que lho garanta com a convicção de um amigo sincero e verdadeiro. Sentir-me-ia imensamente feliz se me desse a honra de me considerar como tal.

Rosanne não pôde saber qual o acolhimento que Sabina faria às suas palavras porque, no momento em que acabava de as pronunciar, a porta abriu-se e Renaud entrou.

De princípio, imobilizado pelo espanto provocado pela presença de Sabina, logo se dominou e avançou para ela.

- Se os meus ouvidos não me enganaram, eis a confissão de uma simpatia que Rosanne não costuma prodigalizar a todos. Espero que a aprecie em todo o seu valor.

A observação não pedia resposta, mas o tom irónico feriu a condessa. Levantou-se, enquanto o preceptor, imitando-a, se encostava ao espaldar da poltrona com ar aborrecido.

- Vai-se embora por minha causa? - perguntou Renaud, vendo Sabina encaminhar-se para a cadeira nas costas da qual deixara o casaco.

- Por forma alguma, mas não posso demorar-me se quero ir ao pavilhão. De resto, creio que têm de trabalhar.

- Hoje não estou disposto para isso, Rosanne - declarou Renaud, voltando-se para o preceptor.

Instalou-se numa poltrona e, dirigindo-se de novo a sua mulher, declarou:

- Gostaria que servissem o chá, Sabina. Quer ter a bondade de tratar disso? Este lume acolhedor convida aos prazeres de Inverno.

A condessa não podia recusar. De má vontade, tocou para chamar o criado, deu as suas ordens e em seguida voltou para junto do fogão. Dorah saíra sem uma palavra.

De Mombrun conversava com o preceptor. Parecia mal disposto e causava espanto como a aproximação da partida, que ele tanto desejava, e a materialização dos seus projectos, indicada pela presença das malas, não lhe proporcionava melhor disposição.

Sabina depressa conheceu o motivo da irritação do marido. Respondendo a uma pergunta de Rosanne, que não ouvira, o conde encolheu os ombros e respondeu de mau humor:

- Não, nada nos apressa.

Tratava-se, sem dúvida, de algumas medidas a tomar pelos dois homens para a partida de Renaud.

- Não tinha decidido pôr-se a caminho no princípio da semana?... O Alberto disse-me que jà começara a tratar das suas bagagens.

- Com efeito, contava abandonar Pierreclose daqui a cinco ou seis dias.

- Surgiu alguma dificuldade que o impeça? Se depende só de mim...

Sabina não tomava parte na conversa, mas não podia deixar de notar as expressões tão diferentes das vozes. Na aparência indiferente, a de Rosanne deixava adivinhar certa curiosidade. Quanto à do conde, vibrava de irritação.

- Não, não é nada consigo - murmurou.

E, de súbito, dando largas à sua impaciência, declarou:

- Chega a parecer impossível, mas há oito dias que espero o acordo de lorde Murray. Não só o acordo como notícias dele. Não sei onde se encontra.

Leve sorriso distendeu os delgados lábios do preceptor.

- Se é só isso...

- "Isso tem uma grande importância, visto o Ralph e eu partirmos juntos.

- Mande-lhe uma intimação.

- Para onde?

- Onde calcule que ele se encontre. Em Paris ou em Londres... em casa de uma das irmãs, que têm moradias dispersas por todos os cantos da Mancha, se não me engano.

Para todas as casas de amigos onde possa encontrar-se.

- Jào fiz.

- Sem resultado? Não obteve resposta?

- Nenhuma. Os parentes e os amigos de lorde Murray supõem-no em casa uns dos outros.

- É curioso, com efeito - murmurou Rosanne - Mas em breve terá a explicação desse desaparecimento. Lorde Murray quer fazer-lhe uma surpresa.

- Assim o espero.

Calou-se e aceitou da mão de Sabina a chávena de chá que havia solicitado. Bebeu-a devagar, trocando com Rosanne e com sua mulher palavras sem importância.

Logo que colocou as chávenas vazias em cima da mesa rolante e empurrou esta para um canto da sala, Sabina pela segunda vez pegou no casaco.

O olhar sombrio de Renaud não perdera um só dos seus gestos.

- Aconselho-a a não voltar muito tarde - murmurou com indiferença - O nevoeiro vindo do mar torna-se sempre mais pesado com a aproximação da noite.

- Obrigada. Conheço bem o caminho.

- Bem sei. Julgo que não lhe seria impossível fazê-lo com os olhos fechados.

Falava sem que fosse possível depreender-se se as palavras ocultavam uma censura às frequentes visitas feitas a madame de Kergoél ou uma alusão às relações estabelecidas entre Pierreclose e o pavilhão na altura do primeiro noivado de Sabina. Esta corou, mas não respondeu. Dirigiu-se para a porta e saiu calmamente da biblioteca, mas não sem ter captado o olhar estranho e hostil que Rosanne relanceava ao conde.

Mal saiu, Sabina sentiu atrás de si o galope de Wolf e, mesmo antes de se voltar, o animal precipitou-se para ela com grandes demonstrações de alegria.

Tanto como a dona, apreciava os passeios ao pavilhão, onde se sentia bem. Não gostava do castelo. Os seus habitantes não lhe manifestavam amizade. Conservava-se no quarto de Sabina ou andava solto e livre em volta do castelo, cujas portas encontrava sempre fechadas, porque Sabina não gostava de o ver nas salas.

- Basta, Wolf, basta! - murmurou, acariciando o animal para o sossegar - Onde vais tu a correr? Vem aqui.

O cão afastava-se aos saltos. Voltou a chamá-lo. Tempo perdido. Indócil e tonto de liberdade, o cão desapareceu.

Sabina, aborrecida, deu alguns passos na direcção tomada pelo desobediente. À direita, a trinta metros de Pierreclose, junto da penedia, erguiam-se os restos do antigo castelo. Reduziam-se a três bocados de parede, revestidos de plantas trepadeiras, rasgadas por aberturas onde se adivinhava ainda a forma de janelas ogivais.

De longe, admirava-se esse elemento pitoresco da paisagem, mas receava-se, e com razão, a queda das pedras soltas, que a ruína abandonara respeitosamente ao seu isolamento. A própria Sabina nunca tivera a curiosidade de as visitar.

Naquela altura, porém, como lhe parecesse ter visto o cão meter-se por entre os pedregulhos que juncavam o solo, dirigiu-se para elas. Mas, quando penetrou no recinto, isto é, na espécie de pátio formado pelas três paredes decrépitas, não viu Wolf.

Contudo, estivera ali, como as ervas pisadas o provavam. Durante alguns segundos ficou perplexa. Tornou a chamar. Respondeu-lhe um ladrido próximo. Aguardou e, de repente, abrindo passagem através das silvas, Wolf apareceu.

Sabina troçou de si mesma. Como não tinha pensado que uma abertura rasgava a muralha? Essa abertura existia, com efeito, mas completa-mente oculta pelos ramos que tombavam de uma cornija e formavam como que uma cortina natural. Afastando esta com a mão, Sabina teve a surpresa de encontrar, não a penedia inacessível como imaginava, mas uma rocha em cujos flancos se rasgava uma espécie de atalho, bastante íngreme e perigoso. Esse atalho conduzia ao mar.

Sabina recordou o "caminho do Corsário", no qual ouvira falar, mas logo calculou que não fosse aquele. O "caminho do Corsário" abria-se mesmo junto do castelo e fora condenado pela transformação em varanda da pequena esplanada donde partiam os primeiros degraus.

- Em todo o caso - murmurou a condessa, a quem esta descoberta encantava - eis uma passagem muito cómoda para chegar ao mar.

E, de si para si, prometeu utilizá-la quando chegasse o Verão.

Depois, receando ter-se atrasado, abandonou as ruínas e, afastando-se rapidamente de Pierreclose, tomou o caminho do pavilhão.

Quando atingiu o portão do jardim, o nevoeiro começava a invadir tudo. Dir-se-ia que o céu tocava o cimo das árvores e aquele véu opaco que, pouco a pouco, a envolvia causou a Sabina uma impressão de angústia e de aniquilamento.

Pendurou o casaco no vestíbulo e depois de ter batido ao de leve na porta, empurrou-a. No limiar ficou muda de surpresa.

Ali, como em Pierreclose, o fogão estava aceso. Simplesmente, enquanto no castelo o aquecimento central mantinha havia mais de um mês um ambiente agradável, a pobreza de madame de Kergoêl não lhe permitia acender o fogão senão quando o frio apertava!

Troncos de pinheiro ardiam e estalavam alegremente no fogão de mármore branco, aos lados do qual se viam duas poltronas. Numa estava instalada madame de Kergoêl.

Na outra, confortàvelmente enterrado, com as pernas estendidas, encontrava-se lorde Murray.

Mal viu a condessa, pôs-se de pé e cumprimentou-a, mas algum tempo devia decorrer antes de Sabina conhecer o motivo da sua inesperada presença.

Instalou-se no sítio habitual, uma cadeira baixa, à direita do fogão e, distraidamente, estendeu as mãos para o lume. Wolf, sem hesitação, estendeu-se no tapete com a cabeça entre as patas.

- Falava-se a seu respeito em Pierreclose, ainda não há uma hora - murmurou Sabina, erguendo para Ralph os belos olhos negros.

- Sentir-me-ia feliz se o meu nome tivesse sido pronunciado por si.

A condessa abanou a cabeça. Murray olhava-a com a respeitosa admiração sentida desde o primeiro dia em que encontrara Sabina Sainclair. Não voltara a vê-la desde o dia que, sucedendo-se logo ao do casamento, o banqueiro abandonara para sempre o pavilhão. De si para si, lorde Murray pensava que a beleza de madame de Mombrun, com a dolorosa provação, como que desabrochara.

Com pálido sorriso - raras vezes sorria agora - Sabina desiludiu-o:

- Peço-lhe me desculpe, mas foi...

Hesitou imperceptivelmente, por ser a primeira vez que pronunciava a palavra.

- Como deve supor, foi meu marido. Deplorava o silêncio e a ignorância em que o deixava sobre os seus projectos. Vai ficar agradavelmente surpreendido quando o vir.

Sabina teve a impressão de que o rapaz hesitava antes de lhe responder. Ralph voltou-se, trocou um olhar com madame de Kergoêl e por fim declarou:

- Não tenciono ficar em Pierreclose, madame.

- Sim, eu sei que a iminente partida na companhia de Renaud, não lhe dá tempo para se demorar, mas...

Lorde Murray parecia tão embaraçado que Sabina se calou e mudou de tom ao perguntar:

- Tencionava ir a Pierreclose esta noite, não é verdade? A sua presença no pavilhão não passa de breve paragem?

Lorde Ralph agitou-se na poltrona e voltou-se para a dona da casa como a pedir auxílio. Por fim, respondeu:

- Para falar com franqueza, não tinha essa tenção, madame. E, se quer saber toda a verdade, estou aqui hà... muitos dias.

Sabina ficou tão espantada que nem pôde exclamar "... muitos dias!" Instalara-se no pavilhão havia muitos dias, assim o afirmava Ralph. Mas porquê, santo Deusl E como teria isso sido possível se visitava madame de Kergoêl com frequência?

Reconsiderando, teve de reconhecer que, por causa do tempo, não transpusera a porta do pavilhão havia mais de uma semana.

Tal como havia pouco o fizera lorde Murray, interrogou madame de Kergoêl com o olhar. E fê-lo com uma expressão tão ansiosa e perplexa que Odilia estendeu-lhe a mão.

- Minha pobre Sabina - murmurou com leve tristeza - como estamos já longe uma da outra, visto eu ter podido ocultar-te qualquer coisa!

Sabina apertou-lhe a mão com ternura.

- Não temo coisa alguma da "minha sensatez".

- Tem razão, madame - aprovou Ralph - Madame de Kergoêl é uma destas mulheres que não sabem ocultar o seu grande coração.

E a fim de obstar ao protesto de Odilia, perguntou-lhe:

- Posso pôr madame de Mombrun ao facto do que me trouxe e prendeu aqui?

- O segredo é seu, lorde Murray. Mas aprovo plenamente a sua confiança.

Ralph inclinou a cabeça. Numa ansiosa espec-tativa, Sabina aguardava.

- Trata-se de um assunto muito grave - declarou lorde Murray, voltando-se para ela.

Na sala, a escuridão tornara-se mais profunda, sem que os seus ocupantes pensassem em acender a luz. No entanto, o clarão do lume bastava para fazer sobressair os rostos. O próprio silêncio era palpitante e múltiplo, porque os três continuavam a trocar mudos, mas intensos pensamentos.

Sabina de Mombrun foi a primeira a recuperar o sangue-frio. Levantou-se, dirigiu-se ao interruptor, acendeu os candeeiros que se encontravam em cima do fogão e consultou o relógio de pulso.

- Tenho de me ir embora, Odilia.

Sem lhe responder, madame de Kergoêl abandonou o seu lugar e, atravessando a sala, saiu para o vestíbulo, donde voltou com o casaco de Sabina.

Auxiliou-a a vestir o quente abafo guarnecido de pele e ela própria cerrou a gola com cuidado.

Murray acariciava Wolf, que, pressentindo ter chegado a hora da partida, se levantara.

- Permite-me que a acompanhe?

- Obrigada. Seria imprudente, visto que a sua presença deve ser ignorada.

Lorde Murray cedeu perante o argumento. Sabina perguntou:

- Quando parte?

- Amanhã. Não posso prolongar esta viagem que para todos representa misteriosa desaparição.

- Conseguiu saber alguma coisa?

- Nada. Tivemos pouca sorte, visto o mau tempo não nos deixar sair para o mar.

- Voltará breve?

- Depende dos acontecimentos. Se o julgar necessário, voltarei imediatamente. Caso contrário, sò quando os rigores do Inverno abrandarem. Além disso, com um pouco de sorte, posso ser tão útil em Inglaterra como aqui. Conto, como lhe disse, instalar-me em casa de um dos meus cunhados, bastante original para preferir viver o tempo frio na sua velha casa perto da Mancha a passá-lo em Londres.

- Mas... como conseguirá convencer o Renaud a adiar a viagem?

- Com muita dificuldade, concordo. Alegarei a necessidade de consagrar certo tempo a pôr os meus negócios em ordem, antes de me ausentar por prazo tão longo. Nem todos têm a sorte de ter um Rosanne...

Devagar, atravessaram a sala e a seguir o vestíbulo. Antes de abrir a porta para o jardim, Sabina parou.

- Lorde Murray - interrogou de súbito - está certo de que os acontecimentos que acabou de me referir se relacionam de facto com Pierreclose?

- Não tenho a mais pequena dúvida, madame. O plano encontrado em poder do comparsa de que há pouco lhe falei é de uma precisão absoluta. Está em meu poder, enquanto o comparsa em questão, preso como caçador furtivo - o delito que cometia nas propriedades de lorde Duncan, meu cunhado - está seguro por muitos meses antes de poder retomar as suas actividades e, principalmente, dar alarme.

- Persiste na resolução de não pôr Renaud ao corrente do que soube?

- Mais do que nunca, madame. A esse respeito, conceda-me o favor de confiar em mim. Conheço Renaud, o seu carácter impetuoso, sucedendo-se a muitos dias, até a meses de imperturbável calma. Com ele, receio o pior: a mais desastrosa falta de tacto, a cólera mais terrível, mesmo se o nome de Mombrun tivesse de sofrer com isso. Mais tarde, quando obtiver certezas, não haverá, segundo espero, motivos para o conservar na ignorância.

- Supõe que existem em Pierreclose cumplicidades, mais ou menos surpreendentes?

A resposta não foi imediata. Por fim, lorde Ralph declarou em voz surda:

- As minhas suspeitas não visam qualquer pessoa em particular.

Seguiu-se o silêncio e depois, da parte de Sabina, nova hesitação. Por fim, com os olhos fitos nos de Ralph e em voz baixa, perguntou:

- Dá-me a sua palavra de que não me oculta coisa alguma, lorde Murray... qualquer coisa que possa atingir-me directamente?

Calou-se, passou a mão pela testa e logo soltou uma gargalhada estridente.

- Não me responda - pediu - Esta pergunta é ridícula. Se as suas suspeitas caíssem sobre Renaud, não seria a madame de Kergoêl, nem a mim que viria pedir auxílio.

Beijou a prima e estendeu a mão ao Inglês. Abriu a porta e no limiar voltou-se.

- Lorde Murray, recorda-se da conversa tida com Renaud na loggia que domina o mar, no dia em que se celebrou em Pierreclose um casamento muito estranho?

Lorde Murray não conseguiu reprimir um movimento de surpresa. Com amargo sorriso, Sabina prosseguiu:

- Eu estava perto e ouvi tudo.

Calou-se e respirou fundo, como se as palavras que se dispunha a pronunciar a fizessem sofrer.

- No entanto, pode ficar descansado. Se aquilo que nenhum de nós se atreve a supor fosse uma realidade, a vingança não me causaria maior alegria do que saber de Mombrun perdido e, porque o desprezo, salvá-lo.

 

Depois de ter durado uns poucos de dias, o temporal amainou de repente. Em volta de Pierreclose a charneca recaíra no seu silêncio monótona e a floresta voltara à sua rígida imobilidade. Só o mar rugia surdamente. Mas as vagas furiosas que sem descanso assaltavam os rochedos, numa loucura destruidora, eram agora mais espaçadas, mais largas. Dissipado o seu frenesi, deixavam apenas na margem leve franja de espuma.

Sabina via com ansiedade decrescer de hora para hora a sua fúria. Lá fora reinava a escuridão, cortada pelas luzes que brilhavam nas janelas da saleta onde se encontrava a condessa. Mas, se não podia ver coisa alguma para o exterior, podia, escutando com atenção, certificar-se de que o vento amainara.

"Esta noite teremos calma - murmurou.

E dizia-o da mesma forma como demonstraria receio pelo mau tempo.

Atrás dela uma voz murmurou:

- Aprecia particularmente a tempestade, Sabina?

A condessa estremeceu. Mas dominou-se logo e nem mesmo voltou a cabeça para o recém-chegado.

- Aprecio tudo quanto tem grandeza - respondeu com secura - Os elementos cegos, ao desencadearem a sua força poderosa, assustam-me menos do que os sentimentos mesquinhos, a pérfida tranquilidade, o raciocínio frio, calculador e reflectido.

Calou-se e continuou a fazer o esboço de Wolf que havia momentos havia começado.

Olivier de Mombrun aproximou-se dela a passos lentos. Tornava-se impossível ignorar o sentido injurioso das palavras de Sabina. As faces tingiram-se-lhe de vivo rubor. No entanto, esforçou-se por sorrir.

- É dura - comentou.

Sabina não lhe respondeu e absorveu-se mais no seu trabalho. Embora não tivesse sido convidado, Olivier sentou-se no banco que corria em volta da sala, estofado de cetim, e conservou-se calado durante alguns instantes.

Sem dar importância à importuna presença, Sabina continuou a desenhar. Sentada numa cadeira baixa, segurava, inclinada, uma pasta que suportava uma folha de papel branco jà com alguns traços. Toda a sua atenção estava concentrada em Wolf, estendido a pouca distância, batido pela luz directa de um candeeiro de porcelana.

Tão grande indiferença desorientou Olivier e roubou-lhe o sangue-frio. Abandonou o banco e aproximou-se de Sabina.

Pela primeira vez, ela ergueu os olhos e fez tão brusco movimento de recuo que o irmão de Olivier parou admirado.

- Tem tão grande aversão por mim, Sabina? - perguntou em voz surda.

A resposta foi breve e fustigante:

- Tenho.

Olivier empalideceu. Fez um gesto de desânimo e pareceu hesitar em recomeçar a conversa. Olhou para aquela linda mulher que teria podido ser sua e, pela primeira vez, os remorsos esmagaram-no ao mesmo tempo que as recordações.

- Desde que... vivemos debaixo do mesmo tecto - prosseguiu por fim em voz baixa - nunca nos encontrámos sozinhos como hoje, Sabina. Nunca pude explicar-lhe...

- Não tem explicações a dar-me nem eu as ouvirei.

- No entanto, é preciso, tenho de dizer como receei a pobreza por sua causa. Não tinha fortuna para lhe oferecer, e unir as nossas vidas, nestas condições, seria caminhar para a mais terrível das decepções...

- Enquanto que afastar-se de uma rapariga com quem estava comprometido, precisamente na altura em que a adversidade a feriu, poupou-lhe essa decepção, não é verdade?

As palavras foram proferidas com um tom e um sorriso tão desprezador que Olivier corou intensamente. Depois olhou-a com tristeza.

- Não quer compreender-me.

Quando acabava de pronunciar esta frase, abanando a cabeça com ar desolado, Dorah Rosanne entrou na sala. Era alta, delgada, com um rosto de expressão fria, iluminado por belos olhos verdes. Os cabelos castanhos, cortados curtos, deitados para trás, acentuavam a dureza das feições.

Apesar da ausência de sedução, não podia dizer-se que não fosse bela. Mas havia flagrante contradição naquela máscara e o corpo de Valquíria com a indolência de todos os seus movimentos.

Além disso, conservava-se afastada da vida de Pierreclose. Estava dias inteiros sem sair do quarto e semanas sem transpor a porta do castelo. Sabina não lhe conhecia ocupações além da leitura.

Quando a viu entrar, a condessa não conseguiu reprimir um franzir de testa.

Desagradava-lhe que a filha de Rosanne, cuja hostilidade conhecia, tivesse surpreendido a sua conversa com Olivier.

O rapaz emudecera com a sua presença. Sabina, pelo contrário, correspondeu às boas-noites de Dorah e, a fim de vincar bem que não se constrangia perante aquela testemunha do seu primeiro noivado, prosseguiu:

- Não, não compreendo e será inútil tentar convencer-me de que a sua atitude foi cavalheiresca! Mas, de uma vez para sempre, fique em paz. Não lhe quero mal. Sou mulher do Renaud, tão nobre quanto o Olivier foi cobarde, e é ao seu abandono que o devo. Não se passa um dia em que não agradeça a Deus, cuja misericórdia me poupou à desgraça de partilhar a sua vida.

Poisou o papel e o lápis em cima da mesa e levantou-se. Nem por um segundo perdera a sua absoluta calma. Pelo contrário, Olivier, à medida que ela falava, tremia com a afronta. Quanto a Dorah, de pé, a poucos passos dos dois, olhos baixos, estava tão imóvel e insensível como uma estátua. Mas quem observasse com atenção, notaria a profunda alteração das feições.

No instante em que Sabina abriu a porta, tocou a sineta e ela dirigiu-se para a sala de jantar. Renaud e o preceptor já ali se encontravam. A refeição foi silenciosa.

O conde estava de muito mau humor. Olivier e Dorah mal falavam. Só Rosanne procurava animar a conversa com a sua inteligente erudição.

De ordinário, era com Renaud, conversador brilhante nas suas horas, que o preceptor falava. Mas, depois de algum tempo, o mutismo frequente do conde ou os seus bruscos silêncios faziam com que Rosanne se dirigisse de preferência a Sabina. E ela muitas vezes sentia o olhar penetrante de Renaud fixá-la com espanto, como se fosse inacreditável que sua mulher tivesse sobre os seres, os acontecimentos e as coisas, uma visão clara, uma opinião pessoal, e a exprimisse com clareza, bom senso e subtil autoridade.

O ambiente da grande sala de jantar não favorecia, de resto, a expansão dos convivas nem a sua alegria. Com os tectos muito altos, iluminada por janelas esguias com vitrais como as do vestíbulo, estava revestida até três quartas partes da sua altura por um lambril de carvalho escuro.

Apenas alguns objectos colocados na cornija que rematava o lambril alegravam o tom sombrio das paredes: salvas e taças de prata, cristais de Veneza, pratos de estanho gravado e porcelanas antigas. Os móveis, as arcas da época Luís XIII e a imensa mesa do centro com os pés torneados, condiziam com a austeridade do ambiente.

Sabina estava sempre ansiosa por abandonar a sala de jantar para passar à sala contígua, onde, de ordinário, se instalavam depois das refeições. Naquela noite, mais do que nunca se sentiu bem na sala brilhantemente iluminada, onde o criado acabava de servir o café. Fartos cortinados de seda verde pálido, guarnecidos com sanefas de tapeçaria de desenhos multicores, velavam as janelas. As poltronas estilo Luís XIII, de pés e braços esculpidos, estavam forradas com a mesma tapeçaria. Encostados às paredes, alguns móveis antigos, mas sem austeridade, e como ornamento, magníficos tecidos bordados com flores e pássaros, tecidos raros trazidos por de Mombrun das suas viagens.

Sabina serviu o café e voltou para o seu lugar. Muito calada, agitava a colher de prata na finíssima chávena de porcelana. Renaud voltou-se para ela, muito espantado.

- Toma café à noite, Sabina? Não é costume. Não receia a insónia?

A dona da casa abanou a cabeça e corou como se o conde tivesse adivinhado que, justamente, nessa noite, desejava afugentar o sono.

- A tempestade é muito mais terrível do que os nefastos efeitos desta chávena de café - respondeu evasivamente - No entanto, dormi.

- Prova irrefutável de uma consciência tranquila! - comentou o conde com um misto de ironia e de inveja - Confesso não ter suportado tão bem os efeitos dos tremendos rugidos do vento. Todavia, o meu quarto fica do lado oposto ao seu, portanto, com janela para o campo. Quanto a si, Sabina, excepto quando dorme, não deve perder uma nota do infernal concerto.

- Com efeito, no quarto do Corsário ouve-se qualquer barulho que venha do mar - confirmou devagar.

Ao mesmo tempo, relanceava rápido olhar aos três homens que estavam na sala.

Absorvido na leitura do jornal, Rosanne não demonstrou ouvi-la. Olivier, distraído, jogava as cartas e continuava a baralhar e a partir com perfeita calma. O conde foi o único a fixar sua mulher com olhar admirado. Contudo, devia ter pensado que a frase não encerrava nenhum segundo sentido, porque não fez mais perguntas.

Sabina puxou a poltrona para o meio da sala, mais sob a luz directa e recomeçou a desenhar, de memória, o retrato de Wolf. Mas, a despeito dos esforços feitos para se absorver no trabalho, não conseguia dedicar-lhe grande interesse. Muitas vezes, o seu olhar se desviava dele e às furtadelas examinava Renaud, o rosto um pouco transtornado de Olivier e o belo rosto calmo de Rosanne.

Entre os três homens reunidos naquela sala, um, qual não podia ainda dizer, estava fora da lei, era uma espécie de moderno corsário, pelo menos um aventureiro. E desejava, com todo o ardor do seu espírito desorientado, encontrar a interrogação, a cilada e a prova que o desmascarasse.

Dorah, num gesto brusco, calou o rádio colocado em cima de uma arca antiga. Depois das sonatas de Beethoven, tocadas em surdina, sucedera-se o boletim meteorológico, e a rapariga, não tendo conseguido, por certo, encontrar um programa interessante, abandonou o aparelho. O brusco silêncio desviou Sabina dos seus pensamentos.

- Anunciam-nos bom tempo por alguns dias - comentou Olivier com satisfação - Na costa, a tempestade amainou. Permita Deus que nos dê umas tréguas, pelo menos durante as festas do Natal.

- Que tencionas passar aqui e não em Paris? - perguntou Renaud com incredulidade.

- Decerto - confirmou o irmão com um sorriso constrangido.

- Sinto-me encantado com a notícia.

O tom significava exactamente o contrário. Olivier não lhe respondeu e Sabina pensou que o rapaz devia ter razões imperiosas para ficar em Pierreclose, percebendo que a sua presença não era desejada.

Dorah Rosanne retirara-se e Olivier imitou-a quase logo. O conde não parecia muito disposto a recolher aos seus aposentos. Folheava nervosamente uma revista desportiva, fumando cigarros, que esmagava, meio consumidos, na borda do cinzeiro.

No fogão de mármore verde dois troncos ruiram. Sabina levantou-se para compor o fogo, mas não voltou a tomar o seu lugar e aproximou-se do conde para lhe dar as boas-noites.

Rosanne, solícito, abandonou a poltrona. Como os seus aposentos se encontravam próximo dos de Sabina, tomara o hábito de a acompanhar até à porta do quarto.

Uma espécie de irritação transpareceu no olhar de Renaud. Apertou a mão ao preceptor e em seguida, dirigindo-se a sua mulher, pediu:

- Pode conceder-me alguns instantes, Sabina?

Como o tom não era de súplica, ela não teve outro recurso senão aceder.

Leve hesitação demorou por instantes a saída de Rosanne. Voltou para trás como se lhe tivesse esquecido qualquer coisa, mexeu nos livros que se encontravam em cima da mesa e, por fim, depois de ter perguntado a Renaud se desejava fazer-lhe qualquer recomendação particular, como este respondesse negativamente, abandonou a sala.

Quando a porta se fechou nas suas costas, o conde encolheu os ombros.

- Rosanne é amigo fiel e precioso - murmurou - mas por vezes falta-lhe tacto. Julgo-o um pouco ciumento e exclusivo no interesse que tem pelos Mombrun.

Sabina não lhe respondeu. Rosanne não lhe dava aquela impressão de ciumenta amizade. Não pôde deixar de pensar que Renaud alimentava grandes ilusões com respeito ao antigo preceptor.

- Tem grande dedicação pelo Olivier e por mim - prosseguiu ele - A sua honestidade e o sentido rigoroso do dever foram um exemplo para nós. E se meu irmão nem sempre aproveitou as suas lições...

Calou-se bruscamente. Os seus olhos encontraram os de Sabina e, sem dúvida, Interpretou a sua expressão com uma censura, porque se perturbou e não prosseguiu.

Com uma espécie de nervosismo, levantou-se e dirigiu-se para a janela. Durante uma dezena de segundos não se mexeu, pensativo, com a cabeça baixa. Depois levantou-a e numa interrogação brusca, destinada a não deixar tempo a sua mulher para a mais pequena reflexão, interrogou:

- Sabina, ama meu irmão?

A condessa empalideceu, mas não se perturbou. A pedido de Renaud havia retomado o seu lugar na poltrona abandonada pouco antes. Sem hesitação, levantou-se.

- Considero-o a única pessoa que não tem direito a fazer-me semelhante pergunta.

Depois acrescentou:

- Se a conversa que deseja ter comigo tem por alvo esse assunto, não vejo necessidade de a prolongar.

Dispunha-se a sair. Renaud fez um esforço para se dominar.

- Perdoe-me - prosseguiu em voz pouco firme - não era minha intenção ofendê-la. Afigura-se-me por vezes necessário ver claro nas almas... principalmente na sua. Eis a razão pela qual, na situação em que nos encontramos, a franqueza é permitida e mesmo necessária.

Com um gesto vago, concluiu:

- Lamento que não perfilhe a minha opinião.

Calou-se e reflectiu durante alguns instantes.

Estava encostado ao fogão e a brilhante luz do lustre de cristal batia-lhe em cheio na cara. E Sabina notou que o belo e orgulhoso rosto estava velado por uma espécie de cansaço imperceptível, por uma expressão de abatimento.

Tentou reprimir surda emoção. Que lhe importavam as preocupações e os ocultos desgostos do marido! O carácter altivo que lhe conhecia permitiria, de resto, que sentisse desgostos ou sofrimento? Sabina, em toda a consciência, não o admitia. E, no mais íntimo da sua alma, censurou-se sem indulgência por esse inexplicável sentimento de compaixão.

Enquanto estas reflexões acudiam à mente de Sabina, o olhar de Renaud errava ao acaso pela sala e deteve-se, por instantes, na pasta onde se encontrava o desenho de Wolf. Então murmurou:

- Tem muito talento, Sabina. Há pouco, quando servia o café, fui examinar o seu trabalho e faço-lhe os meus mais calorosos cumprimentos. Poucos artistas possuem o domínio na expressão nervosa e real da vida e da semelhança do modelo.

Sabina não manifestou o profundo espanto que os elogios do marido lhe causavam.

- É um talento, ou antes, uma habilidade muito vulgar entre o povo - respondeu a condessa com amargo sorriso - Desenhar animais implica uma simplicidade, uma espécie de estado bruto, do qual, julgo eu, muitos séculos de educação e de requintes privaram os seres de origem superior. Acrescento, para justificar a sua opinião demasiado favorável, que meu pai me deu um dos melhores professores de Paris.

Durante esta longa explicação, dada com toda a calma, de Mombrun empalidecera. Quanto fizesse ou dissesse, fossem quais fossem os esforços para conseguir melhor entendimento entre ele e sua mulher, tudo seria inútil. Nunca Sabina deixaria de ver nele o homem orgulhoso e desdenhoso que tão cruelmente a humilhara no dia do casamento.

Quando Sabina se calou, murmurou:

- Julgo inútil protestar, Sabina. É dotada, pude verificà-lo, de uma obstinação temível e absoluta. A sua opinião está firmada de uma vez para sempre. Mas não se trata disso.

Falava depressa e em voz surda. Profunda ruga lhe vincava a testa.

Após breve interrupção, prosseguiu:

- Contudo, o assunto não está esgotado e a revelação do seu talento sugeriu-me uma ideia que vou submeter-lhe. Conto começar em breve a narrativa das minhas viagens, conforme o combinado com um editor desde o meu regresso. De todos os apontamentos tomados ao acaso no meu livro de notas, pode, segundo afirma, tirar narrativas interessantes e com certo interesse para muitos. Quer colaborar comigo nesse trabalho e encarregar-se das ilustrações?

Desde o instante em que o conde lhe pedira para ficar na sala, entre muitos outros sentimentos contraditórios, Sabina experimentava principalmente o da impaciência.

Impaciência por sair dali e correr para o seu quarto e, na sombra e na imobilidade, escutar os rumores que vinham do mar.

À medida que o tempo passava, o seu nervosismo aumentava. Cada minuto podia ser o "minuto" perdido sem remédio. E, ao mesmo tempo, estranha contradição, a presença de Renaud a seu lado, na sala, tranquilizava-a.

No entanto, a proposta do marido provocou-lhe tão grande espanto que qualquer outra preocupação passou a segundo plano.

- Como posso eu encarregar-me de desenhar animais que nunca vi? - interrogou - Não é isso o que pretende?

- Exactamente, mas é muito simples. Pode guiar-se pelas fotografias que trouxe, bastante nítidas e elucidativas.

- Visto ter essas fotografias, devem bastar-lhe para ornamentação do livro.

- Trata-se de um livro de luxo para o qual as fotografias seriam demasiado simples.

E como Sabina se conservasse calada, insistiu:

- Aceita?

- Não.

A palavra foi dita sem hesitação. Revelava que no espírito da juvenil senhora a recusa existira sempre.

- Posso conhecer as suas razões?

- Com certeza. Não desejo que novos laços, mesmo os laços efémeros que unem dois colaboradores, existam entre nós.

- Nada mais?

- Não é tudo. A segunda razão, mais imperiosa do que esta, liga-se com a frase pronunciada por si, não quero recordar-lhe quando nem em que sítio... Afirmava a um dos seus amigos que a aversão e o desprezo que sentira pela noiva de seu irmão se estendiam à condessa de Mombrun. Acrescentou que não considerava esta última menos venal e menos ambiciosa por ter consentido em casar consigo. Por certo, admite sem custo que uma mulher acusada de ambição não possa aceitar essa proposta e as suas vantagens sem confirmar a sua opinião.

Se estivesse menos confundido, Renaud não deixaria de notar o tom amargo e doloroso com que sua mulher pronunciava estas palavras. Contentou-se em levantar a mão num protesto.

- Por acaso as minhas recordações estarão erradas? - perguntou Sabina.

- Não - replicou o conde em voz surda - A sua memória é cruel e implacàvelmente fiel.

Pela primeira vez, sem dúvida, de Mombrun media a extensão da humilhação infligida a sua mulher. E seria permitido afirmar, perante a alteração das suas feições, que daria fosse o que fosse para apagar certos minutos da sua vida.

Abandonou o fogão, ao qual estava encostado, e deu alguns passos pela sala. O espesso tapete abafava-lhe o ruído dos passos. E, mais uma vez, Sabina, de ouvido à escuta, embora estivesse muito afastada para poder ouvir, tentou descobrir se algum ruído insólito, vindo do mar ou de terra, alterava a calma da noite.

Como Renaud prosseguisse o seu silencioso vaivém, abandonou a poltrona.

- Não tem mais nada a dizer-me? Posso recolher ao meu quarto?...

O conde parou e fixou-a com uma espécie de cólera.

- Ainda não comecei, Sabina - declarou, respondendo à primeira pergunta de sua mulher - Todas as palavras que trocámos não têm qualquer relação com o que desejava dizer-lhe.

- Prosseguiremos a conversa amanhã - murmurou Sabina, dirigindo-se para a porta - É muito tarde e eu...

- E quem lhe diz que não perco também um tempo precioso? - disse o conde com crescente irritação.

Calou-se um instante como para evitar dizer mais alguma coisa.

- Deve ser muito tarde, com efeito. No entanto...

Outra pausa. Renaud relanceou os olhos para o relógio e soltou uma exclamação:

- Quase meia-noite. Tem razão. São horas de acabar esta conversa.

Aproximou-se da janela e abriu-a como se quisesse inteirar-se do estado do tempo e, por instantes, ficou imóvel, perscrutando a noite.

Uma corrente gelada penetrou na sala. Sabina estremeceu, mas não poderia afirmar que fosse de frio.

O rumor do mar chegava até ali, surdo, calmo e distante. Sem conseguir evitá-lo, Sabina começou a tremer. Renaud fechou a janela, correu o fecho e voltou para junto dela. Parecia satisfeito.

- Bela noite, calma e clara - murmurou como se falasse consigo mesmo.

Depois, notando a palidez de sua mulher, calou-se bruscamente.

- Com efeito, parece fatigada, Sabina - murmurou, enganado sobre as causas da alteração. E, com voz indiferente, acrescentou - Não podemos prolongar esta conversa.

Mostrava-se ansioso por se libertar.

- Eis o que pretendia dizer-lhe: recebi hoje uma carta de lorde Murray, comunicando-me que não pode resolver os seus negócios tão depressa como desejava.

Calou-se, aguardando talvez uma resposta. Mas Sabina ficou calada, silêncio que o conde tomou por manifestação de contrariedade.

- Por consequência, a minha partida tem de ser adiada. Devo-lhe, penso eu, desculpas, visto ter sido tacitamente combinado entre nós que a minha ausência lhe restituiria a liberdade.

Sabina esboçou um gesto vago ao qual seria difícil dar interpretação. Depois murmurou com banal delicadeza:

- Por minha causa, não se preocupe com o atraso. Sinto-me apenas desolada por si, a quem ele muito deve contrariar.

A expressão de Renaud foi de melancólica ironia.

- Muito menos, em todo o caso, do que alguns meses atrás - respondeu - Talvez não acredite, mas este velho Pierreclose prendeu-me à Europa e dia a dia lhe descubro novos motivos de interesse. Conto, especialmente, dedicar-me a certas experiências, para as quais esta ilha deserta que é a "Casa do Corsário", isolada pelo mar e pelo Inverno, se me afigura o laboratório ideal... A cobaia está encontrada. Não sei se, quando chegar a altura de reunir e unir de novo os fragmentos dispersos, ela poderá retomar as suas explorações e viagens. Mas... isso faz parte do futuro... e o futuro pertence a Deus. Boa noite, Sabina - concluiu, abandonando o tom enigmático.

Sem responder uma única palavra às estranhas e incompreensíveis palavras, Sabina deu as boas-noites a seu marido.

Daí a momentos, encontrava-se sozinha no quarto do Corsário, mas não pensou em deitar-se. Sentada na borda da cama, com um livro nas mãos que não a interessava, uma lâmpada pequena acesa na mesa de cabeceira, aguardou a lenta passagem das horas.

Pouco depois de ter dado uma hora, o ruído com que contava surgiu. Estremeceu, saltou para o chão, atravessou o quarto e abriu a janela com as maiores precauções.

Mais nítido, o embate das ondas chegou-lhe aos ouvidos e também um rumor surdo que pouco sobressaía e só um ouvido desconfiado podia apreender. Em breve, de resto, este diminuiu e se apagou ao longe. O nocturno triste, cantado pelas vagas, não foi perturbado. Continuou, grave, poderoso e soberano...

Sabina fechou a janela e conservou-se durante algum tempo imóvel, com a mão poisada no fecho.

"Desta vez foi um barco a motor" - murmurou.

Começou a despir-se, lamentando ter ficado no quarto, onde não podia descobrir, sobre a oculta actividade, qualquer coisa de preciso. Pensar nas noites próximas em que a sua vigilância poderia exercer-se melhor e mais de perto, apaziguou-a. As certezas obtidas naquela noite não seriam suficientes?

Da sua conversa com Renaud chegara à conclusão de que este - desconhecia as razões - estava preocupado com a hora e com o estado do tempo. Acima de tudo, sabia que durante as noites calmas um barco a motor ou uma canoa abandonava a praia donde noutros tempos o Corsário partia para o mar.

 

Pela estrada nacional, ladeada de choupos brancos e rígidos como velas, Sabina e madame de Kergoêl caminhavam com passo apressado.

Como a neve caíra em abundância naqueles últimos dias, a comunicação entre Pierreclose e o pavilhão, utilizando o atalho da floresta, tornara-se impossível. Portanto, para visitar a prima, a condessa de nombrum era forçada a ir pela estrada.

Naquele dia pouco se demorou em casa de madame de Kergoél e esta manifestou o desejo de a acompanhar parte do caminho. Aquele passeio através dos campos, entorpecidos pelo frio, substituía a amena conversa junto do fogão.

Abafada com grosso capote de montanhês, os loiros cabelos cobertos pelo capuz, Odília de Kergoêl caminhava ao lado de Sabina, embrulhada na pelica guarnecida de petis-gris, mas de cabeça descoberta. O vento animava-lhe o rosto e fazia esvoaçar os belos cabelos escuros, tão estranhamente cortados pela madeixa clara.

O ar estava glacial e a paisagem nua, triste e desolada. Sob os passos das duas senhoras a neve estalava. De quando em quando, ao longe, o céu era cortado pelo voo pesado de enormes aves. Um bando de patos bravos passou, voando baixo, e os seus grasnidos discordantes animaram com notas agudas e estridentes a atmosfera calma.

As duas passeantes pararam e o próprio Wolf, que seguia atrás delas, parou com o nariz no ar.

- Se eu tivesse a minha espingarda... - murmurou Sabina, recomeçando a andar.

Odília imitou-a.

- Bom dia para caçar - comentou.

- Os guardas foram ao palácio, esta manhã, comunicar a passagem de numerosos bandos de patos.

- E tu resistes ao prazer de os caçar?

- Com facilidade. Mas o Olivier e Dorah calçaram logo as botas e envergaram as canadianas.

Odília de Kergoél ficou calada. Adivinhava a razão pela qual Sabina se privara do desporto que muito apreciava.

- Minha pobre Sabina! - murmurou - Tens então de renunciar a todos os prazeres de outrora.

A condessa sorriu com amargura.

- A companhia de Olivier roubar-me-ia todo o prazer.

Madame de Kergoêl ergueu os olhos para a prima e esteve prestes a fazer-lhe uma pergunta. Apesar da sua intimidade com Sabina, jamais conseguira saber até que ponto a afectara o abandono do noivo e com ele se ressentira.

- E a Dorah? - limitou-se a perguntar.

- A Dorah odeia-me.

- Talvez estejas enganada. Que motivo despertaria esses sentimentos a teu respeito?

Sabina encolheu os ombros com desânimo.

- Ignoro-o, mas não tem importância. Contudo, essa aversão é bem real. Há olhares que não enganam.

Pela estrada, desobstruída pelo quebra-neve, as duas caminharam durante algum tempo sem falar. Depois, exteriorizando os pensamentos que naqueles minutos a tinham assaltado, madame de Kergoêl prosseguiu:

- O Renaud devia libertar-se daqueles Rosanne.

- Não tem motivo para o fazer e a administração dos seus bens, da qual o preceptor se encarrega com zelo e dedicação extraordinários, segundo parece, pelo contrário, transformam o Renaud em seu devedor. É assim que, pelo menos, pensa meu marido, que, voluntariamente, ignora todas as vantagens que o viver em Pierreclose proporciona a Rosanne. Julgo que seria inútil abrir-lhe os olhos sobre certas... imperfeições de um homem sempre considerado por ele como modelo vivo de rectidão, de sensatez e de virtude.

Tudo isto fora dito num tom de tão profunda amargura e quase de ressentimento, que madame de Kergoêl, surpreendida, parou e olhou-a numa interrogação muda. Sabina não demonstrou ter dado por isso e a prima aguardou em vão afirmações mais elucidativas.

Não as pediu. Nos últimos tempos, sentia a impressão de se encontrar em presença de uma nova Sabina, retraída e secreta. E coisa alguma poderia obrigá-la a solicitar confidências de um coração que lhe fugia.

Chegaram a uma encruzilhada de caminhos, um dos quais conduzia a Pierreclose. À esquerda erguia-se um calvário antigo, de granito, toscamente esculpido, que muitas vezes haviam tomado por alvo dos seus passeios.

Madame de Kergoél persignou-se, Quanto a Sabina, parou e, num gesto inesperado, rodeou a cruz com os braços e encostou a testa à pedra tosca, cerrando os olhos.

Decorridos alguns segundos, Odília poisou-lhe docemente a mão no ombro.

- Sabina, que é feito da tua coragem?

Bruscamente, a condessa ergueu-se.

- Como vês, peço-a a Deus. Há tantos dias que se esgotou!

E a voz sumiu-se-lhe.

- Não podes saber - prosseguiu com desesperada veemência - não podes saber o que é a minha vida, o que sempre será, implacàvelmente, sem esperança de melhores horas, mais doces ou apenas menos cruéis... Não podes avaliar o ambiente que me rodeia e oprime: o ódio de uma mulher, a indiferença desdenhosa de um homem e, da parte dos outros seres com quem partilho a minha vida, talvez pior!... O Olivier não me poupa a vergonha de tentar aproximar-se de mim, e Rosanne...

Calou-se.

- Rosanne? - repetiu madame de Kergoêl. Sabina, com os olhos baixos, parecia hesitar.

Por fim, respondeu:

- Nada... nada tenho a censurar-lhe... sei apenas que a sua presença me causa um medo irreflectido.

Recomeçou a andar devagar ao lado de madame de Kergoêl. Esta murmurou:

- Que podes recear, estando em casa de teu marido?

- Na casa onde meu marido nunca está, podes dizer - replicou Sabina com uma risada breve - a casa que abandonará por muitos anos!

Calou-se bruscamente. Talvez, mal tivesse acabado de proferir estas palavras, reconhecesse e descobrisse os estranhos e contraditórios sentimentos que as haviam ditado.

Leve rubor lhe coloriu as faces e voltou a cabeça para o ocultar, chamando Wolf, que acabava de entrar no pátio de uma herdade.

Logo que o animal se lhes reuniu, Sabina dirigiu a sua prima pálido sorriso.

- Perdoa-me, Odília, por não saber esconder melhor as minhas tristezas e desânimos. Que péssima opinião farás de mim, tu, a mulher forte, a "minha sensatez"! Tu, que vives só, mas com o espírito tranquilo!

Dolorosa ironia ensombrou os belos olhos de madame de Kergoêl e o seu rosto calmo e sereno contraiu-se-lhe ligeiramente.

- Um espírito nunca vive tranquilo, Sabina!

Se estivesse menos preocupada com os seus problemas, a condessa de Mombrun não teria deixado de notar a anormal amargura da voz. Recordar-se-ia que muitas vezes, naqueles últimos tempos, a corajosa Odília lhe parecera vergar ao peso da vida. Teria enfim descoberto, recordando as horas passadas no pavilhão, muitos pormenores que revelavam o extremo desânimo da isolada.

Mas, voluntariamente, com certeza, madame de Kergoêl não deu a Sabina tempo para reflectir na espécie de queixa que lhe fugira dos lábios. Recomeçando logo a conversa, interrogou:

- Falas de ausência. O Renaud não se encontra em Pierreclose?

- Não. Foi para Paris há mais de uma semana.

- Conta com o seu regresso hoje à noite. Com certeza não quer estar longe de casa no dia primeiro de Janeiro.

Sabina não lhe respondeu e o seu olhar traduziu glacial indiferença.

Com o olhar velado de tristeza, madame de Kergoêl concluiu em voz baixa:

- Amanhã será o primeiro dia do ano. Deus nos conceda, durante todos os dias que o compõem, a calma e a resignação.

Durante alguns minutos caminharam em silêncio, entregues aos seus pensamentos. Odilia foi a primeira a erguer a cabeça, que conservara inclinada para o peito. Pela estrada direita e silenciosa, um homem avançava. Usava quèpi, capa azul e a tiracolo a sacola das cartas e pequenas encomendas.

Madame de Kergoêl parou para receber a correspondência que lhe era destinada.

- Assim, não terá de ir ao pavilhão.

O factor agradeceu e retomou o seu caminho, enquanto ela metia na algibeira o jornal que recebera.

Deu alguns passos ao lado de Sabina e depois disse:

- É tarde, Sabina. Tenho de voltar para casa.

Sabina parou. Exteriorizando o pensamento que havia um instante a preocupava, interrogou:

- Tens tido notícias de Inglaterra?

Odília corou levemente.

- Não.

- Há muito tempo?

- Hà uma semana, creio.

- A última carta de lorde Murray mencionava alguma coisa de especial?

- Nada! Calma absoluta do lado da Mancha.

Madame de Kergoêl simulava uma jovialidade e uma despreocupação que não sentia. De resto, tanto uma como outra evitaram falar no assunto que não lhes diria nada de novo.

- E do teu lado, Sabina?

A condessa abanou a cabeça.

- Nada. Falei-te quando ocorreram aquelas... viagens nocturnas. Espero que se repitam para tentar descobrir fora do castelo qualquer coisa de positivo.

- Tem cuidado! - aconselhou madame de Kergoêl, um tanto assustada - É perigoso. Já quando lorde Murray demora muito a escrever, tremo, receando que cometa alguma imprudência... Pensa bem - concluiu vivamente - Coisa alguma o obriga a expor-se e, talvez por isso, ele fà-lo com imprudência. Não querem dar-me ouvidos e informar o Renaud?

Sabina fez um gesto de categórica recusa.

- Renaud será o último a saber.

Voltou-se para a prima e o olhar de ambas confundiu-se durante algum tempo. Como para melhor observar o rosto de Sabina e a sua atitude, ou talvez apenas num movimento de espanto, madame de Kergoêl recuou.

- Não pensas que teu marido?... - balbuciou ela.

- Não penso coisa alguma! Quero apenas "saber". Suponho que lorde Murray e eu temos motivos diferentes para manter o Renaud fora do assunto. Ralph teme a violência do carácter do amigo, a impetuosidade que o levará a lançar-se de cabeça baixa no desconhecido, embora possa perder tudo. Quanto a mim, confesso que os meus receios são doutra espécie. Mas não achei necessário revelá-los a lorde Murray.

Durante algum tempo, a prima observou-a com atenção. O pálido rosto de Sabina estava contraído numa expressão ardente e obstinada. Sob as delgadas sobrancelhas, os olhos brilhavam-lhe com dureza.

- Dir-se-ia que desejas "isso"?

Todos os maus ímpetos de Sabina se desvaneceram.

- Eu sei lá o que desejo! - exclamou, apertando a cabeça com as duas mãos.

Subitamente desanimada, madame de Kergoêl curvou a cabeça. Pela primeira vez naqueles últimos meses, Odilia encontrava a Sabina doutros tempos, com a sua alma ardente e apaixonada.

Aquele grito, quebrando a indiferença, a frieza e o rancor, era uma espécie de confissão... E persuadida de que a própria condessa de Mombrun ignorava a dor que acabava de exteriorizar, Odilia pressentiu para ela a angústia dos dias futuros.

- Renaud não é o único a viver em Pierreclose - murmurou, incapaz de encontrar de momento outras palavras que pudessem animar Sabina.

- Eu sei. Também lá vive o Olivier com a sua ânsia de dinheiro, a sua feroz avidez.

- E Rosanne.

- Rosanne, sim. Penso muitas vezes que esse fiel Rosanne, tão dedicado a Pierreclose... Mas para que estamos a torturar-nos para descobrir esse desconhecido! - exclamou de súbito - A hora das certezas chegará e talvez demasiado cedo... Entretanto - concluiu com ironia - não julgo necessário distrair o espírito de meu marido das duas únicas coisas capazes de o interessar: no futuro, as suas viagens, e no presente a criação de cavalos, à qual consagra a maior parte do seu tempo.

Calou-se, voltou-se para a prima e, mudando de tom, concordou:

- Tens razão, temos de regressar. Está a anoitecer e eu, egoistamente, arrastei-te para muito longe do pavilhão. Boa noite, Odilia - prosseguiu, abraçando madame de Kergoêl - Boa noite, minha conselheira, minha sabedoria. Peço-te perdão pela intranquilidade que, durante este último ano, causei na tua vida. Vai... e esquece tudo... Boa noite, querida. A ti, a ti, a única pessoa de quem estarei longe amanhã, digo-te agora: "Um novo ano feliz, minha amiga."

Madame de Kergoêl sorriu, comovida, e repetiu como um eco:

- Um novo ano feliz, Sabina.

Minutos depois, cada uma delas seguia sozinha pela estrada, cujo silêncio era apenas perturbado pelo ruído dos seus passos.

Sabina seguia apressada. O frio era glacial e os campos, desertos e nus, de desoladora tristeza. Por vezes, à beira do caminho, surgia uma herdade, encerrada entre sebes que serviriam, quando chegasse o Verão, para conter o gado. Nas janelas brilhava fraca claridade. Reunida na sala comum, a família saboreava, sem talvez a avaliar em todo o seu valor, a doçura do lar. E a juvenil senhora apressava o passo, perseguida por vezes pelo ladrar de um cão, fechado no estábulo, enfurecido pela passagem de Wolf.

Quando se encontrava diante de uma dessas herdades, a porta abriu-se e no limiar apareceu um homem acompanhado pelo dono da casa. Sabina reconheceu Rosanne e como não desejava a sua companhia para o resto do trajecto, andou mais depressa. O preceptor, porém, também a reconheceu e o seu desejo devia ser exactamente oposto ao dela, porque se despediu do homem e em passo rápido foi atrás de Sabina.

Instantes depois, alcançava-a e, tirando respeitosamente o chapéu, pediu licença para a acompanhar.

De princípio, ofegante com a marcha precipitada, não falou. Sempre ligeiro, a despeito da idade, não tivera dificuldades em a apanhar. Sabina não abrandou o passo e ele acompanhou-a.

Ao vê-lo, Sabina supôs que se reunira a Olivier e Dorah para caçar. Mas, ao verificar a ausência de espingarda e do cão, mudou de ideias. O preceptor estava, como habitualmente, elegantemente trajado e, na escuridão da noite, o seu vulto parecia o de um homem novo e robusto. As feições ainda belas, mas de uma inquietante imobilidade, eram sombreadas por um chapéu de largas abas que lhe ocultava também os cabelos grisalhos.

- Agradeço a Deus ter-me permitido acompanhá-la, madame - murmurou, depois de percorrerem umas centenas de metros em silêncio - Pouco participa da vida de Pierreclose e os seus amigos não têm o prazer de gozar a sua presença.

- Organizei a minha própria vida e os poucos prazeres que me proporciona bastam-me - respondeu secamente.

Rosanne mostrou-se pesaroso.

- Eu sei e lamento que não procure remédio o e lenitivo para a sua solidão.

O tom era tão respeitoso que Sabina não podia mostrar-se ofendida; no entanto, a sua antipatia pelo preceptor assumia as proporções de repulsa.

- O Renaud é muito culpado para consigo - prosseguiu ele com voz branda e calma - É, sim - insistiu ao ver que Sabina tentava interrompê-lo - Sou muito amigo do Renaud e desculpo-o muitas vezes. Mas isso não me impede de reconhecer e deplorar o seu egoísmo total e absoluto.

Calou-se. Sabina ergueu a cabeça e declarou:

- Entre mim e o conde de Mombrun existem... acordos que nos concedem, a cada um de nós, a mais absoluta liberdade.

À palavra acordo, Rosanne estremeceu ligeiramente.

- Sem dúvida - murmurou - Mas uma senhora nova não nasceu para a reclusão em que vive. Um Inverno em Pierreclose, um só, representa terrível provação. Que dizer, se essa provação se renova durante alguns anos! Receio, madame, e é a minha amizade que me leva a fazer-lhe este aviso, receio que confie demasiado nas suas forças.

Elas, tanto como a sua coragem, não são inesgotáveis. Encontra-se abandonada num ambiente estranho. O conde vai e vem sem se preocupar consigo. Está em Paris há mais de uma semana... em Paris, onde as festas do fim do ano são, com certeza, muito mais animadas do que em Pierreclose. Supus que quisesse passar o dia de amanhã no castelo. Como vê, enganei-me...

Sabina escutava-o com espanto cada vez maior. Até ali, Rosanne manifestara-lhe um interesse que lhe desagradava, embora não lhe desse motivo para se alarmar.

Mas aquela súbita e singular insistência em acusar Renaud de uma realidade cuja tristeza ela por de mais conhecia, ultrapassava a sua compreensão e provocava-lhe mal-estar e até medo. Dir-se-ia que, aproveitando a ocasião que poderia não voltar a repetir-se, Rosanne empreendia uma tarefa e caminhava para um fim que só ele conhecia.

No entanto, ocultou o que sentia e, voltando-se para ele, perguntou com calma:

- E... em sua opinião, como deveria eu orientar a minha vida?

Esta pergunta directa não surpreendeu Rosanne. Relanceou rápido olhar a Sabina, feliz por ter sabido avaliar tão brilhante inteligência.

- Em primeiro lugar - respondeu com vivacidade - poderia e devia viajar. Não me refiro a essas expedições espectaculares, através das florestas virgens, montanhas inacessíveis e desertos. Não! Mas existem por esse mundo fora tantos países maravilhosos, cidades encantadoras, voluptuosas, curiosas, ou magníficas, onde poderia passar alguns meses de encantamento!

Calou-se e olhou de novo para Sabina, cujo rosto conservava uma impassibilidade de mármore.

Animado por esta tácita aquiescência numa voz mais baixa continuou:

- Não gostaria de visitar, enquanto o conde de Mombrun caça renas ou tigres, Bruges, "Veneza, Granada ou o Cairo, junto de um companheiro instruído e solícito que lhe revelaria as suas belezas e lhas daria a conhecer?

Iludido com a impassibilidade de Sabina, Rosanne, tão senhor de si de ordinário, animava-se, deixava-se arrastar, desmascarava-se. E a sua voz surda tornava-se ardente.

Desta vez, Sabina compreendeu. Sob o influxo da cólera e da vergonha, as faces tingiram-se-lhe de vivo rubor. Num movimento brusco, afastou-se e, parando a meio da estrada, perguntou:

- Serei eu uma mulher tão abandonada, sem apoio, para que se atreva a falar-me assim, quase na minha casa? - perguntou em voz trémula.

Rápido lampejo de cólera cintilou nas pupilas de Rosanne.

- Santo Deus, como é bela! - balbuciou.

No mesmo instante, porém, semicerrou as pálpebras e fez enorme esforço para recuperar a calma. Ergueu a mão num gesto de protesto.

- Madame, conceda-me a graça de me perdoar - murmurou - e não se iluda sobre o sentido das minhas palavras. Ficaria desesperado, se persistisse na ideia de que tentei ofendê-la ou mesmo desagradar-lhe.

Em toda a sua vida, nunca Sabina defrontara tão hábil comediante. Quase chegou a duvidar dos seus próprios ouvidos. A instintiva repulsa que sentia por aquele homem não a deixou acreditar nos seus protestos. Secamente, replicou:

- Basta, senhor. Peço-lhe que me deixe seguir o meu caminho sozinha.

Com vivacidade, o preceptor afastou-se para o lado, envolvendo-a ao mesmo tempo num olhar doloroso. Sabina, porém, não deu um passo, de súbito atenta ao ruido apenas perceptível que lhe chegara aos ouvidos.

Esse ruido aumentou, precisou-se, a luz de dois faróis inundou a estrada e a charneca cintilante de geada, e o automóvel do conde parou junto dos dois passeantes.

- Quer subir, Sabina? - perguntou Renaud como se tivesse deixado sua mulher algumas horas antes - E você, Rosanne?... Boa noite... Jà é muito tarde e está muito frio para andarem a passear pelos campos.

Abandonou o seu lugar e a pessoa que o acompanhava imitou-o.

Instantes depois, o automóvel, com dois novos passageiros, sem contar Wolf, deslizava com rapidez. Sabina sentara-se junto do marido. Atrás, lorde Murray, pois era ele, partilhava o banco do fundo com o preceptor.

- Que faziam os dois, quase noite fechada, na charneca deserta? - perguntou o conde, a rir.

Parecia muito alegre e quando, pouco antes, saltara do carro, pelo que pôde depreender pela sua expressão, por causa da escuridão da noite, Sabina mais confirmou esta opinião.

- Madame de Mombrun regressava do pavilhão, creio eu - explicou Rosanne - Quanto a mim, fui chamado por causa de reparações urgentes a fazer numa das suas herdades.

Encontràmo-nos no caminho.

Falava devagar e com calma, conforme seu hábito. Contudo, Sabina julgou perceber que o fazia com esforço.

Satisfeito, Renaud abanou a cabeça. Muito bem!

Tudo estava em ordem em Pierreclose e a alegria que o conde experimentava ao encontrar-se em sua casa confundia-se com uma impressão de segurança e de paz, cuja doçura saboreava com prazer.

- Visita madame de Kergoêl todos os dias? - perguntou, dirigindo-se a sua mulher.

- Sempre que o tempo o permite - respondeu Sabina, a quem, de facto, este pensamento ocorrera depois de deixar Odilia - E preparava-me para passar no pavilhão o dia de amanhã.

Sobre o volante, as mãos enluvadas de Renaud tremeram ligeiramente.

- Amanhã? - repetiu, voltando-se para sua mulher - Amanhã o seu dia pertence-me.

- Ignorava que tencionava regressar hoje...

- É muito simples. Irei eu próprio pedir a sua prima que aceite a hospitalidade de Pierreclose.

Sabina não lhe respondeu. Na extremidade da alameda, a "Casa do Corsário" acabava de aparecer e todas as suas janelas estavam iluminadas.

O carro parou. Renaud foi o primeiro a descer e depois Sabina, que dispensou o seu auxílio. Ambos se dirigiram para a porta aberta e da qual partiam jorros de luz.

Estupefacta, Sabina parou no limiar. Como jà tinha notado de fora, o vestíbulo estava brilhantemente iluminado. E, além desta desusada iluminação, estava decorado.

Ao longo das paredes e das colunas que sustentavam a abóbada, em volta das janelas com vitrais, estavam dispostos ramos de agàrico ou, conforme o sítio que ornamentavam, grinaldas ou uma espécie de cortinas. Mas, fosse como fosse, a sua exuberante verdura, constelada de bagos brancos, enchia o hall com uma doçura viva, palpitante e alegre.

O velho Alberto acorrera para receber o conde e para lhe dar as boas-vindas. Renaud perguntou-lhe:

- Há muito tempo que não enfeitavas as salas do castelo para acolher o novo ano.

- Com efeito, há muito tempo. Só quando o senhor conde era pequeno.

Renaud voltou-se para Sabina.

- É um uso encantador dos tempos passados, este de decorar as casas com a planta sagrada da Bretanha. Alcança-se, segundo se diz, felicidade para todo o ano. Considerei que o prémio valia bem uma experiência e disse ao Alberto para mobilizar todo o pessoal do castelo, a fim de colher agàrico e ornamentar a casa esta tarde.

Enquanto falava, despia o sobretudo, tirava as luvas e o lenço do pescoço. Lorde Ralph imitou-o. Sabina, assombrada, ainda não se mexera e foi o marido quem a libertou da pelica. Rosanne, imóvel, com o chapéu enterrado na cabeça, não deixara de fixar Renaud com um olhar de espanto.

- Então, meu caro Rosanne - interrogou de Mombrun - que sucedeu? Está aborrecido por tudo isto ter sido feito sem o seu conhecimento? Mas tem de admitir que não se incomoda um sábio por coisa de tão pouca importância.

O preceptor sorriu, afirmou que estava de acordo, mas as suas feições conservavam-se extraordinariamente alteradas.

Depois retirou-se para ir mudar de fato antes do jantar.

- Temos de imitar o Rosanne, não é verdade, Ralph? Mas não já. Sabina, podemos passar uns instantes em sua casa?

A condessa adivinhou que, com esse termo, Renaud se referia à sala em rotunda que adoptara para seu uso e dirigiu-se para ela, seguida pelos dois homens. Quando se dispunha a transpor o limiar da porta, o marido poisou-lhe a mão no braço.

- Espere, Sabina.

Surpreendida, ela parou e ergueu os olhos para o marido. Renaud designou-lhe, pendurado por cima da porta, o ramo de agàrico, ladeado por duas grinaldas que pendiam de um e outro lado. De Mombrun voltou-se para Ralph:

- No teu país existe um lindo costume, não é verdade, meu amigo?

- Very, very pleasant, very ancient.

Sabina corou intensamente. Conhecia também a tradição inglesa que exige, quando um casal passe por baixo do agàrico, se beije.

Renaud olhou-a e concluiu sorrindo:

- Não quer desejar-me um ano feliz quando transpuser esta porta? Amanhã será demasiado tarde. Tem de exprimir os seus votos, mas, acima de tudo, formulá-los do fundo do coração quando passar debaixo do agàrico pela primeira vez.

Sabina satisfez-lhe o pedido de boa vontade e, de si para si, admirou-se por lhe ter sido tão fácil.

Quando entraram na sala aconchegada e aquecida, Renaud lembrou-se de lorde Ralph.

- Pobre Ralph - murmurou, comovido, envolvendo o amigo num olhar onde brilhava afectuosa zombaria - Pobre Ralph, para quem o ano que vai começar deve ser mau, pois não tem aqui quem lhe deseje firmemente um ano feliz!

Assim lamentado, o inglês sorriu.

- Descansa, Renaud. Há intenções e desejos que, por serem formulados longe, não são menos eficazes. Também espero com confiança a minha parte de felicidade nos dias que hão-de vir.

No fogão de mármore, as labaredas dançavam, alegres e doiradas. Os cortinados, corridos diante das janelas, transformavam a sala num refúgio aconchegado. Em cima da mesa de mogno, o candeeiro com velador de renda espalhava uma claridade doce, assim como a dos dois candelabros de cristal de Veneza, acesos de um e outro lado do tremo. Os desenhos do tapete pareciam mais vivos com o reflexo das chamas e a banqueta de cetim castanho adquiria com esse reflexo tonalidades ardentes de Outono.

O ambiente respirava paz e proporcionava um bem-estar suave e entorpecedor.

Sabina saíra para dar as suas ordens para o jantar. Desejava vigiar a preparação de um ponche, que, depois do frio e da fadiga causada pela longa viagem, reconfortaria os viajantes.

Bruscamente, Renaud voltou-se para o amigo e no silêncio da sala, apenas perturbado pelo desmoronar dos troncos, murmurou:

- Podes rir, Ralph! Que esperas para zombar de um homem que, por desmedido orgulho, dispôs da sua vida, repeliu os seus dons mais preciosos e desprezou as mais maravilhosas alegrias? Podes rir, porque a sua força não era mais do que presunção, a sua inteligência pura ignorância e a sua superioridade um erro... Ri, porque esse homem, tão seguro da sua infalibilidade, como da inviolabilidade do seu coração, lutou, mas agora, impelido pelo destino, abandona-se. Ri, porque depois de ter negado o amor, treme, espera e receia, como poderia tremer, esperar e recear o mais humilde e indigno dos apaixonados. Ri, meu amigo, ri, porque apesar de tudo isto, da minha abdicação e da minha derrota, juro-te que sou feliz.

 

A três de Fevereiro, os guardas do domínio reapareceram em Pierreclose e fizeram o seu relatório a Renaud. O frio persistia e os patos bravos continuavam a surgir junto do ribeiro que corria a dois ou três quilómetros do castelo. Algumas cercetas também frequentavam as mesmas paragens. Podiam contar com uma boa caçada se a

dirigissem para esses lados. Poucos dias antes, Olivier e Dorah haviam voltado ao castelo com as bolsas bem guarnecidas.

O conde pediu opinião a Ralph, que devia partir para Paris e Londres no dia seguinte.

Com efeito, o Inglês fazia agora breves paragens em Pierreclose. Não vendo necessidade de informar Renaud da sua intenção de passar as festas com ele, chegara de surpresa a Paris e aparecera no palácio de Mombrun, onde sabia encontrar o amigo, pela última carta recebida do conde. Mas, ignorando se este resolvera passar o dia primeiro do ano na capital, contava convencê-lo a passá-lo em Pierreclose.

Ficou agradavelmente surpreendido quando verificou não ser preciso insistir para levar Renaud ao bom caminho.

- Gostarias de caçar patos? - perguntou-lhe Renaud - Tenho a impressão de que começas a estar aborrecido. Vi-te esta manhã errar à volta de Pierreclose como uma alma penada.

Apesar da sua impassibilidade, lorde Ralph estremeceu. Só Sabina conhecia o fim do passeio a que de Mombrun se referia e Ralph não queria que os outros habitantes do castelo o conhecessem.

Num relance de olhos, observou as pessoas que o rodeavam, para descobrir qualquer indício de contrariedade ou mesmo de interesse. Em vão. Olivier, que fora ter com a condessa junto de uma janela, nem mesmo ouvira.

Dorah Rosanne entrou nesse instante e Renaud voltou-se para ela.

- Queres vir connosco, Dorah? Vamos caçar patos bravos.

Dorah teve breve hesitação. Desde a sua entrada na sala não deixara de observar Olivier e Sabina e parecia lutar com profunda emoção.

- Vão já? - perguntou para dizer alguma coisa.

- Vamos. Pouco passa da uma e temos diante de nós algumas horas de dia. Sabina, também vem, não é verdade?

A condessa teve desejo de recusar. Mas como ainda não tinha podido ter com Ralph uma conversa particular, cedeu e abandonou a janela, logo seguida por Olivier.

A dupla aceitação arrastou a de Dorah, que se dirigiu imediatamente para a porta.

- Vou-me vestir - declarou.

- Sim, vamos todos... todos excepto teu pai, que às nossas turbulentas distracções prefere a leitura de um bom livro e uma tarde pacata passada junto do fogão.

Um lampejo de cólera, logo extinto, perpassou nas pupilas de Rosanne.

- Continua, Renaud - disse com amargura - Podes acrescentar que o prazer da leitura é mais próprio para a minha idade.

Levantou-se e aproximou-se do fogão, enquanto de Mombrun o observava com espanto. Rosanne voltou-se para ele e murmurou:

- Estou a brincar, Renaud.

E, sempre amável, prosseguiu:

- No entanto, enganaste-te. Enquanto vocês vão despovoar a região de patos, eu vou trabalhar.

Ao mesmo tempo do que os outros, saiu da sala e recolheu ao quarto, mas não o abandonou pouco depois como eles. Contentou-se em afastar com a mão uma das cortinas de tule que velavam as janelas e, com o rosto transtornado, os lábios trémulos, seguiu com o olhar, onde brilhava um ódio intenso, o grupo que se afastava.

Todos eles, envergando fato próprio para a caça, com a correia da espingarda passada pelo ombro, caminhavam sem pressa, respirando o ar glacial, mas puro, daquela tarde de Inverno. Caso raro, o céu estava descoberto e nem o mais leve nevoeiro se estendia pelos campos. Embora a neve não estivesse ainda derretida, os caminhos apresentavam-se praticáveis por causa dos carros dos camponeses, que neles haviam cavado profundos sulcos.

Durante algum tempo, através dos ramos, que pareciam feitos de cristal cintilante, o mar surgiu, calmo como um espelho, sem vaga.

- Esta noite teremos bom tempo, propício... - murmurou lorde Ralph, que havia momentos caminhava ao lado de Sabina.

Esta sobressaltou-se, mas replicou logo, com calma:

- Esta noite? Parece-lhe? - interrogou.

- Tenho a certeza. Não ouviu nada a noite passada?

- Ouvi. A canoa veio, seriam duas horas.

- Passava das duas alguns minutos, sim.

- Voltarão hoje?

- Tenho a certeza. Jà deve ter notado que a canoa está muitos dias sem sair para o mar, mas depois volta dois dias seguidos... salvo se o mau tempo o impede. Nesse caso, aguarda que regresse a calma e, quando esta vem, não tarda a partir. Não é assim que as coisas se passam?

Sabina confirmou com a cabeça, olhando Ralph com surpresa.

- Como pôde notar isso tudo, permanecendo tão pouco tempo em Pierreclose?

- Não me certifiquei, mas calculo, madame, graças a uma descoberta feita ontem à noite. Outra coisa... O ruído que ouve é sempre igual?

- Não. Dir-se-ia que uma vez se trata de um barco a remos e outras de uma canoa com motor.

- É exacto. A embarcação varia segundo o estado do mar, o peso suportado e a origem. Por exemplo, ontem utilizaram a canoa a motor, sem dúvida possível. Tenho a sorte, eu também, do meu quarto em Pierreclose ter janela para o mar e ouvi perfeitamente o ruído do motor.

Calou-se um instante e depois prosseguiu:

- O mar tem-se conservado calmo. Portanto, afirmo-lhe, madame, que esta noite haverá, junto do castelo, certo movimento. E acrescento que eu também là estarei.

- Irei ter consigo, lorde Ralph - murmurou Sabina - Podemos encontrar-nos do lado da loggia.

- Que noutros tempos era o terraço donde partia a escada condenada há pouco tempo por Rosanne?

- Exactamente. A escada do Corsário. O sítio parece-me bem escolhido, pois não é utilizado. Madame de Kergoêl afirmou-me que sentiu grande prazer com a sua visita, ontem - continuou em voz alta - Tem por si profunda simpatia e ficou sensibilizada por, apesar da sua breve permanência em Pierreclose e na véspera se terem encontrado, não deixar de ir ao pavilhão.

Olivier aproximava-se dos dois.

- É verdade - respondeu lorde Murray, um tanto perturbado - ontem de manhã fiz uma visita a madame de Kergoêl. Foi proceder com muita liberdade, mas sei que as tardes lhe estão reservadas a si.

- Nem todas - murmurou Sabina, achando graça ao embaraço do Inglês - Como vê, esta tarde não fui ao pavilhão. Apesar deste caminho seguir até lá, em breve o abandonaremos para descer até ao ribeiro.

Só então pareceu dar pela presença de Olivier. Ralph afastou-se e alcançou o conde, que, um pouco à frente, seguia sozinho. Dorah Rossane ficara para trás a fim de chamar um dos cães, um sabujo da Bretanha que manifestava a sua alegria por se ver à solta, correndo para todos os lados.

- Sinto-me feliz por me encontrar junto de si com a espingarda ao ombro, como no Outono - murmurou Olivier - Tenho a impressão de que estes meses foram abolidos e que não se passou nada do que tanto nos fez sofrer aos dois.

Falava em voz baixa, rouca e fervorosa ao mesmo tempo. Surda irritação se apoderou de Sabina e também profunda lassidão. Como todos deviam considerar pequeno ou nulo o seu lugar na vida do conde para que dois homens, Rosanne e Olivier, se atrevessem a persegui-la com atenções e a dirigir-se-lhe naqueles termos! E como devia

ser vil e baixo o carácter de Olivier para não desistir depois da última humilhação!

Envolveu o ex-noivo num olhar de desprezo.

- Proíbo-o de evocar recordações que se me tornaram odiosas - murmurou.

O rapaz empalideceu, mas não perdeu o sangue-frio.

- Pelo menos, são recordações, Sabina; enquanto que o seu louco casamento com meu irmão nem mesmo isso lhe proporciona.

Sempre, sempre e para todos aquela certeza que lhe lançavam em rosto, do seu papel negativo em Pierreclose, do nada absoluto que representava a sua vida!

Aproveitando-se da sua perturbação, Olivier prosseguiu:

- Não é feliz, Sabina, e essa certeza tortura-me. Queria...

- Consolar-me?

E soltou uma gargalhada estridente que fez voltar de Mombrun e lorde Ralph. Dorah Rosanne, que ficara para trás, apressou o passo.

Olivier ficou descontente com a atenção geral. Mas quando o interesse se desviou, continuou:

- Não, queria afirmar-lhe apenas toda a minha dedicação, o meu pesar por vê-la trilhar uma estrada difícil e sem felicidade, obter enfim o perdão que solicito em vão há muitos meses.

- Se continua, chamo meu marido - proferiu Sabina quase em voz alta.

Olivier não deu um passo para se afastar, mas, durante alguns instantes, manteve-se em silêncio. Quando teve a certeza de que a réplica não tinha despertado atenções, concordou:

- Tem razão. Não é este o local mais próprio para termos uma conversa, Sabina. Prossegui-la-emos um pouco mais tarde, quando estivermos sozinhos.

A cunhada não teve tempo para lhe responder. Para evitar que o fizesse, Olivier afastou-se dela rapidamente e foi ter com Renaud e lorde Ralph.

Em poucas passadas alcançou-os e entabulou conversa com eles.

Pelo contrário, Sabina, palpitante de indignação, abrandou o passo. Em geral, quando se afastava do ex-noivo atenuava-se o mal-estar que sempre sentia quando estava junto dele. Naquela ocasião, porém, a escaramuça havia sido muito violenta e o ataque de Olivier muito claro, para poder reconquistar imediatamente a calma. Tinha a impressão de ouvir ainda as palavras de insinuante e insultante compaixão.

O que teria sentido então se tivesse podido ver o olhar sombrio e ardente que seguira todos os seus gestos e os de Olivier? O que teria suspeitado e receado ao ver o rosto convulso e doloroso, ao escutar o gemido surdo que acolhera as últimas palavras do rapaz?

Mas Sabina nem sequer se lembrava da presença de Dorah Rosanne, poucos metros atrás, e ficou sinceramente admirada quando a viu surgir a seu lado.

- Recorda-se do que dissemos um dia a respeito do quarto do Corsário, madame? - perguntou a filha do preceptor, regulando o passo pelo de Sabina.

Surpreendida com a inesperada pergunta, a condessa de Mombrun sorriu:

- Gosto muito de lendas e não podia ter esquecido essa, Dorah. E esse Corsário, preso, depois de morto, aos sítios onde foi feliz, é uma personagem cuja lembrança evocamos com prazer.

- É também uma personagem temível, madame, já lho disse... e cuja irritação provoca a infelicidade.

- Não tem motivo para se irritar comigo. Como pode verificar, ainda não me aconteceu qualquer coisa de desagradável.

Sabina falava num tom irónico e despreocupado que contrastava com a voz alterada de Dorah. O facto provocou-lhe uma irritação a custo dominada.

- Faz mal em não dar importância aos meus avisos, madame. Inteligências mais esclarecidas do que a sua inclinaram-se perante este mistério em vez de zombarem dele.

- Eu não zombo, Dorah. Deus me defenda! Não. Simplesmente, imagine, sou curiosa e gostaria de saber o que vai acontecer.

Sempre a mesma ironia, que, pouco a pouco, desnorteava a filha de Rosanne! Como se Sabina não tivesse respondido, continuou:

- E não é só o quarto do Corsário que é nefasto às mulheres de Pierreclose. É todo o castelo. São numerosas as que lá morreram.

- Isso prova que consideraram a residência agradável e aqui se conservaram até à velhice.

- Algumas delas eram novas, belas e amavam a vida.

- Devia ter medo, por si, Dorah.

- Não sou uma de Mombrun.

- Parece lamentá-lo.

As réplicas trocavam-se rápidas. Sabina falava com calma, enquanto Dorah ia perdendo o sangue-frio de minuto para minuto.

Ao escutar as últimas palavras da condessa, Dorah soltou uma gargalhada forçada.

- Não vai supor que alimento pelo Renaud...

- Pelo Renaud? Não. Pelo irmão!

Dorah Rosanne tornou-se lívida, enquanto nova gargalhada se lhe estrangulava na garganta.

Os caçadores haviam-se distanciado e as duas caminhavam sozinhas pelo atalho da floresta.

- Vamos - continuou Sabina, sem deixar à outra tempo para lhe responder e desta vez com voz firme e dura - acabemos com este jogo. Nem a Dorah nem eu jogamos com convicção. Diga-me com franqueza: o que pretende? Essas histórias de fantasmas são infantis e tentar assustar-me, tornar impossível a minha permanência em Pierreclose, ainda mais.

Calou-se, fixando Dorah bem a direito e esta, após breve hesitação, aceitou a luta.

- Pois bem... seja - murmurou - O que pretendo? Obter a certeza de que abandonará Pierreclose.

- Lamento não poder dar-lha. Fixei aqui a minha vida.

- O mesmo não acontece com o Renaud. Só pensa em partir. É nova, saudável e, segundo creio, tem espírito aventuroso. Não seria melhor ir com seu marido?

Sabina ocultou o espanto sob um sorriso. Aquela Dorah, que a incitava a abandonar o lar, mediria bem a singularidade da sugestão?

- Exilar-me com meu marido? - perguntou - Não. E embora eu não tenha necessidade de lhe dar explicações a este respeito, declaro-lhe o seguinte: não me interessam essas expedições e nunca as farei.

A declaração foi feita com tal firmeza que não deixava margem para ilusões. O semblante de Dorah tomou uma expressão dura e os maxilares apertaram-se um contra o outro.

- Os de Mombrun têm muitas moradias além de Pierreclose - murmurou - Seria para si muito agradável e mais sensato adoptar uma delas e deixar a "Casa do Corsário" para aqueles que sempre aqui viveram.

A inconsciência e a impertinência de Dorah não podiam ser maiores. Sabina aprumou-se e, mudando de tom, decidiu:

- Acabemos com a conversa, Dorah, seria inútil continuá-la. Sei, desde o primeiro dia, quanto a minha presença lhe é desagradável e importuna. Sei que dedica ao Olivier um amor ao qual me considera nefasta. Noiva, descobri a sua aversão. Esposa, mas esposa de outro e, por consequência, fora de toda a suspeita, continua a odiar-me. Que receia? Que supõe? Desprezo o Olivier como um homem sem dignidade nem honra. Se deseja conhecer todo o meu pensamento, afirmo-lhe que a sua pessoa me é odiosa. Não será bastante para tranquilizar o seu coração inquieto pelo que possa existir entre nós? E agora, ponto num assunto que, como estranha a Pierreclose, a Dorah deveria ter evitado. Lamento ter de lho dizer, mas se a minha presença lhe desagrada, existe para si um só meio de não a suportar.

Estas palavras não precisavam de explicação. Eram claras, quase brutais. Dorah não podia ignorar-lhes o sentido. Mandavam-na embora. O seu rosto transtornado contraiu-se ainda mais.

- Está então resolvido? - perguntou com voz trémula - Não partirá?

- Não, Dorah, não. Mas, em compensação, a Dorah pode ir ocultar a violência do seu amor num sítio que lhe pareça mais propício. O conde de Mombrun tem por seu pai tão grande reconhecimento e amizade que não deixará de pôr à sua disposição uma das moradias que ainda hà pouco me recomendava.

Lívida com a fustigante ironia, Dorah exclamou:

- Tenha cuidado!

Sabina não a ouviu. Proferidas as últimas palavras, voltou-lhe as costas e avançou pelo atalho em seguimento dos caçadores, que levavam tão grande avanço que jà não se avistavam.

Quando os alcançou, os três homens acabavam de parar na orla da floresta. Diante deles estendia-se, verdejante, cortado pela linha sinuosa do ribeiro, correndo entre penedos e silvas, o pequeno vale, ao fundo do qual se erguia a casa de madame de Kergoêl. Renaud, que conhecia bem o terreno, deu algumas instruções ao companheiro.

Depois o grupo dispersou. O conde, Olivier e Dorah, ultrapassado o pavilhão, deviam explorar a margem direita do ribeiro, enquanto Sabina e lorde Ralph seguiriam pela outra margem em direcção à casa. Desta forma, cada um teria a sua oportunidade de caçar, e os patos, se conseguissem escapar aos tiros dos primeiros, não fugiriam aos dos segundos, visto caminharem ao encontro uns dos outros.

Pouco depois, lorde Murray e Sabina alcançavam o pequeno curso de água e perdiam de vista os companheiros.

Apesar de ser Inverno, as margens do ribeiro não estavam desprovidas de vegetação. Algumas plantas de folhagem perene e a hera enroscavam-se nas árvores, unindo-as umas às outras. Alguns penedos e moitas emaranhadas formavam verdadeiros muros e tornavam difícil a visibilidade.

Murray, que gostava de caçar feras, não tinha grande entusiasmo pelos patos bravos. Talvez também o frio lhe tornasse mais apetecível uma tarde passada na sala de madame de Kergoél, porque soltou leve suspiro ao ver desaparecer o telhado, coberto de neve, do pavilhão. Mas, é justo dizer-se, não manifestou o seu desagrado e dedicou-se a caçar com consciência.

Naquela altura, apesar de terem possibilidade de o fazer, lorde Murray e Sabina não falavam. Minutos antes haviam dito tudo quanto os interessava sobre o assunto.

E o encontro combinado para essa noite assumira bastante importância para lhes preocupar o espírito, sem que essa actividade do pensamento se manifestasse em palavras.

Não tiveram sorte. Sob os seus passos não se levantou qualquer ave e o próprio leito do ribeiro, que lorde Ralph explorou, não ocultava patos bravos ou cercetas.

Alguns tiros soaram ao longe. Os companheiros de caça deviam ter sido mais felizes. Nem Sabina nem Ralph ficaram despeitados com o facto e continuaram a avançar, trocando algumas palavras a meia voz. A neve amortecia o ruido dos seus passos.

Durante algum tempo, não tiveram indício da presença próxima ou longínqua dos outros caçadores. O céu ia escurecendo e os contornos dos objectos esbatiam-se. O crepúsculo não tardaria a cair sobre a charneca e lorde Murray notou-o.

Parou desanimado, perguntando a si próprio a que distância se encontrariam os companheiros. Sabina, parada a poucos passos, experimentava a mesma incerteza e desapontamento.

De súbito, como resposta à interrogação que nenhum deles formulara em palavras, a condessa avistou na outra margem do ribeiro, apenas visível através do arvoredo, a canadiana clara de Renaud ao lado do casaco escuro de Dorah.

E o que se passou em seguida foi muito rápido para poder ser traduzido no ritmo das palavras. Sabina ouviu a voz do marido chamar por ela e por Ralph e dizer para a companheira:

- Estarão ainda muito longe, Dorah? Não os vê?

A margem do ribeiro formava daquele lado, na direcção do castelo de Mombrun, uma espécie de elevação, sobre a qual se encontrava a filha de Rosanne.

E Sabina recebeu em pleno rosto um olhar de ódio. Não teve tempo, nem tão-pouco Ralph, para denunciar a sua presença. Dorah, com certeza, respondeu com um gesto negativo e gritou para o conde:

- Atire!

No leito do rio sentiu-se grande tumulto. Um voo elevou-se súbito, enquanto um tiro soava, seguido pela queda da ave e por um grito de Sabina.

Afastando os ramos, Renaud apareceu, lívido, de ar alucinado. Atirou fora a espingarda e saltou para o ribeiro, que atravessou sem mesmo procurar passar pelas pedras.

Agarrando-se às árvores e aos troncos da margem oposta, precipitou-se para junto de sua mulher e de lorde Ralph.

- Sabina! - gritou - Sabina está ferida?

Ela tentou sorrir e murmurou:

- Não foi nada, Renaud... nada!

Mas a voz sumiu-se-lhe.

- Onde?... Pelo amor de Deus, diga-me onde? - perguntou Renaud.

O olhar, exprimindo intensa angústia, examinou as feições transtornadas, com desespero.

- Num ombro, suponho - murmurou rapidamente lorde Ralph - Devias ter...

Não concluiu.

Renaud precipitou-se para Sabina e recebeu-a nos braços. Como se não pesasse mais do que uma criança, ergueu-a do chão e, dirigindo-se ao amigo, ordenou:

- Depressa, para o pavilhão!

E correu pelo caminho, seguido por lorde Ralph.

Em poucos minutos, atingiram o pavilhão. Madame de Kergoêl acolheu-os sem gritos nem exclamações. Calma, após algumas perguntas, guiou Renaud para a sala, auxiliou-o a desembaraçar Sabina do casaco e a estendê-la no sofá. Esta reabriu os olhos. Endireitou-se como se tivesse vergonha da sua fraqueza e dirigiu pálido sorriso aos rostos ansiosos inclinados para ela.

- Não foi nada - repetiu como momentos antes.

Com autoridade, Odília de Kergoêl obrigou-a a deitar-se.

- Nada de importância, com efeito, Sabina - afirmou, sorrindo - No entanto, deves conservar-te imóvel e deitada até à chegada do médico. Lorde Murray, utilizando a minha bicicleta, foi buscá-lo à vila.

E saiu da saleta a fim de preparar o que supunha necessário quando o médico chegasse. A poucos passos do sofá, Renaud, com as feições transtornadas, não desviava os olhos de sua mulher.

Aproximou-se dela e em voz baixa e trémula perguntou:

- Sofre, Sabina?

A condessa passou a mão pelo ombro.

- Não - respondeu - Alguns grãos de chumbo não podem ter feito um ferimento grave.

Com efeito, não sofria muito e o desmaio fora mais devido ao nervosismo crescente, até ali dominado, do que à dor.

Apesar da afirmação, a expressão do conde não se desanuviou.

- É muito generosa - murmurou - Mas a carga de chumbo podia tê-la atingido no rosto.

Estremeceu e voltou a cabeça como se desejasse ocultar a sua mulher a intensidade da sua emoção. Depois, olhando-a de novo, perguntou:

- Poderá perdoar-me, Sabina?

A inflexão angustiosa perturbou-a.

- Não se pede perdão para uma falta involuntária - replicou com vivacidade.

Pálido sorriso entreabriu os lábios do conde.

- Não me referia apenas ao desastre - murmurou - mas à sucessão de circunstâncias que a levaram a Pierreclose, à vida que tem sido a sua e à minha responsabilidade em tudo isso.

Falava em voz baixa, trémula, sem se atrever a olhar para Sabina. A dor e a ansiedade ainda lhe vincavam o rosto.

Como não recebesse resposta, aguardou alguns instantes e depois voltou lentamente a cabeça para sua mulher.

- É justo - concordou com amargura - É justo que não me responda e me deixe com todo o peso das minhas dúvidas e remorsos. Com certeza, não avalia a que ponto se tornaram intoleráveis, acrescidos pelo tormento de a ter ferido.

Calou-se, passou a mão pela testa e voltou-se quando madame de Kergoêl abria a porta.

Silenciosa e hábil, Odilia, em poucos instantes, pôs a casa em ordem e dispôs tudo quanto lhe parecia ser preciso ao médico.

Quando vira entrar os dois homens com a ferida, achou que o mais urgente seria estender Sabina e por isso não guiou Renaud para um dos quartos do primeiro andar.

Além disso, a saleta, com um belo lume aceso no fogão, gozava de temperatura mais suave do que os aposentos não aquecidos do andar superior. De resto, o médico, quando chegou, momentos depois, acompanhado de Murray e com a maleta debaixo do braço, considerou que tudo estava muito bem. Imediatamente o levaram para junto da ferida, ao lado de quem se encontravam Renaud e madame de Kergoêl.

 

Pela estrada lisa, entre charnecas acinzentadas, o automóvel do conde de Mombrun rolava devagar, conduzindo Sabina para o castelo.

Com grande surpresa de Renaud, a condessa não tinha querido ficar no pavilhão. Até se opusera a que madame de Kergoél a acompanhasse a Pierreclose e se instalasse à sua cabeceira durante alguns dias. Murray ficou assim sabendo, ao vê-la resistir à branda, mas firme, autoridade de Odília, cuja presença poderia servir-lhe de estorvo, que Sabina, apesar do ferimento, não modificara os seus projectos.

Com os olhos cerrados, a ferida abandonava-se a uma espécie de inconsciência, devida, sem dúvida, à leve anestesia que o médico lhe ministrara. Não sofria, graças à compressa embebida em clorofórmio respirada pouco antes, e não sofrera enquanto o médico extraía os chumbos da ferida.

- Não é grave - afirmara este a Renaud - Madame de Mombrun ficará apenas privada do uso do braço durante alguns dias.

Dir-se-ia que o conde mal podia acreditar na afirmação, por tal forma o seu rosto continuava transtornado e contraído.

Enquanto durou a intervenção conservou-se de pé, junto de Sabina. E madame de Kergoêl, cujo olhar por vezes se erguia para ele, supôs que fosse desfalecer.

Naquela altura, sentado ao lado de sua mulher, no automóvel do médico, que se oferecera para reconduzir a condessa a Pierreclose, de Mombrun parecia ter retomado um pouco o domínio próprio.

No entanto, as feições alteradas revelavam quanto o desastre de que fora o involuntário autor o transtornava.

O carro parou diante de Pierreclose. O conde auxiliou Sabina a descer e pediu-lhe que se encostasse ao seu braço para alcançar o quarto. Ela rejeitou com brandura, afirmando-lhe não estar tão mal como supunha. Despediu-se do médico depois de lhe ter agradecido e, enquanto ele trocava algumas palavras com lorde Ralph, entrou no castelo, seguida pelo marido.

Com ar sombrio, Renaud subiu a escada atrás de sua mulher. Avisada logo que o carro chegara, Denise, a criada de quarto, já ali se encontrava quando os dois esposos entraram.

Como se dirigisse para o leito a fim de o preparar, Sabina deteve-a e designou-lhe a chaise-longue, que mandou colocar perto da janela. De Mombrun protestou:

- Não se deita, Sabina?

- Não tenho essa ideia.

Irritado, o conde ergueu a voz:

- Não tem o direito de brincar com a saúde, Sabina. Está muito abatida para ficar numa chaise-longue...

Com efeito, Sabina acabava de se deitar, auxiliada por Denise. Fez um gesto vago.

- Estou muito bem assim - murmurou.

A voz alterada chamou Renaud à razão. Corou e balbuciou:

- Desculpe-me. Sou um bruto por a importunar com as minhas exigências.

Sabina não lhe respondeu e durante alguns instantes o silêncio reinou no aposento. O conde, com a testa franzida, seguia todos os movimentos de Denise, que dispunha as almofadas nas costas de Sabina e a instalava confortàvelmente. Depois o olhar desviou-se da criada e percorreu o quarto.

- Transformou este quarto num aposento encantador.

- Não modifiquei coisa alguma e os poucos objectos pessoais que trouxe são muito menos preciosos e raros do que os outros que se encontravam aqui antes de o ocupar.

- Então trata-se apenas do ambiente - murmurou de Mombrun, sorrindo - Muitas vezes, basta a presença de um ente para valorizar as coisas.

Enquanto falava, aproximou-se da janela e ficou alguns instantes calado, com o olhar perdido no mar.

- Nunca reparei, também, como o horizonte é vasto aqui. É muito belo, mas durante o Inverno suponho que este espectáculo e o ruído das vagas, quebrando na rocha, seja deprimente. Talvez gostasse de mudar de quarto, pelo menos durante algum tempo?

- Não. Gosto muito deste e não desejo deixà-lo.

Como se não a tivesse ouvido, o conde continuava a admirar o mar. Dir-se-ia que só naquela altura o descobria e em voz alta indicou o nome dos escolhos e dos rochedos.

Tendo acabado o seu serviço, Denise retirara-se discretamente.

- Quanto mais penso, mais receio por sua causa a tristeza esmagadora que emana de tudo isto - e com um gesto largo indicou o horizonte - e os terríveis clamores das noites de tempestade. Além disso, neste andar, o aquecimento é menos regular do que noutros pontos do castelo. Peço-lhe, como um favor, que me deixe instalá-la melhor.

Esta insistência, que despertava no espírito de Sabina as desconfianças que tanto desejava afastar e a perseguiam, levaram-na a protestar, com leve rubor nas faces:

- Ficar-lhe-ia reconhecida se não insistisse, Renaud. Deu-me este quarto, conservo-o. Nenhum outro me conviria melhor. Se me obrigar a abandoná-lo, no dia seguinte à sua partida voltarei a instalar-me aqui.

A resposta foi dada com tanta vivacidade que o conde a olhou com espanto. Depois, recordando a frase que devia ter feito luz no seu espírito, principalmente as últimas palavras, protestou com impaciência e com o olhar ensombrado:

- A minha partida!... Por muito que eu faça ou projecte, evoca-a sempre com uma espécie de complacência e, por certo, com o desejo de que ela se realize. A minha partida! Sinto-a agarrada a essa esperança, ansiando por ela com todas as forças da sua alma, agora ansiosa com a espectativa. A minha partida! Quem lhe diz que

não mudei de ideias e que não partirei?

Animara-se ao falar. A sua voz retomara o tom metálico e ressoava agressiva e dura.

Sabina não pôde deixar de envolver o quarto do Corsário num olhar de tristeza e ironia. Aquelas paredes, habituadas aos murmúrios de ternura e palavras meigas, teriam algum dia ouvido as estridências de tão grande irritação?

Dirigindo-se ao marido, protestou com ar calmo:

- Penso na sua ausência, porque o Renaud não se cansa de falar na sua viagem e de orientar toda a sua vida nesse sentido.

- Não agora... - protestou Renaud com impaciência.

- Quer dizer que já não lhe interessa a viagem?

- Isso mesmo.

- Que pensa... adiâ-la ou mesmo desistir?

- Compreendeu muito bem - aprovou Renaud com forçada ironia - e isso deve afigurar-se-lhe inconsequente.

Sabina não lhe respondeu. Um sentimento, misto de espanto, apreensão e medo, e ainda outras impressões menos dolorosas e contraditórias, dominavam-na.

- É verdade - prosseguiu o conde, com esforço - Essa viagem, tão ardentemente desejada, que representava para mim a evasão e, se não a felicidade, pelo menos uma vida activa, essa viagem para a qual tendiam, ainda há poucas semanas, todos os meus desejos, não se realizará. Penso, de resto - concluiu em voz baixa - que, se a começasse, não iria muito longe e voltaria para trás.

Calou-se, com o olhar perdido no espaço. Sabina, com a cabeça recostada nas almofadas, examinava com espanto o rosto moreno, de feições acentuadas, que naquele momento se impregnavam de estranha e triste doçura.

- Que dirá lorde Murray? - perguntou.

Não quis fazer mais perguntas e na sua perturbação não encontrou outra que fosse ao mesmo tempo desprovida de interesse e precisa.

No princípio da sua conversa com Renaud, Sabina desejou que esta não se realizasse. O ombro voltava a doer-lhe e a fadiga, até ali dominada com coragem, esmagava-a.

Só ansiava por ficar sozinha para repousar o espírito e o corpo.

Mas, naqueles últimos instantes, o abatimento dissipara-se e fora substituído por uma espécie de agitação. E se as dores no ombro continuavam a apoquentá-la, deixou de lhes dar importância, tanto a excitação do seu espírito dominava a dor física.

Recusara o roupão oferecido por Denise, primeiro por causa da presença de Renaud e também porque, ao recordar o encontro marcado com lorde Murray, preferiu ficar vestida. Calçando as botas de caça, envergando as calças castanhas, não abandonara ainda o casaco de veludo que Odília lhe deitara pelos ombros ao sair do pavilhão.

Uma parte da blusa branca fora cortada pelo doutor e não tinha senão uma manga que envolvia o braço válido. Para ocultar esta desordem, ao recusar o roupão, consentira que Denise a cobrisse com um xaile da Índia, vermelho e negro. E este, com a sua cor viva, mais fazia sobressair a palidez e a alteração do semblante.

Na sombra que invadia o aposento, Renaud ainda não dera pelo contraste. De súbito, dirigiu-se para o interruptor e o lustre de Veneza iluminou-se. Sabina fechou os olhos. Quando os reabriu, Renaud estava na sua frente e fixava-a com expressão aterrada. Contudo, não exteriorizou as suas impressões, porque ela não lhe deu tempo para isso. Esforçando-se por manter calma frieza, repetiu a pergunta à qual o conde não tinha respondido.

- Como aceitará lorde Murray o abandono dos projectos, aos quais, segundo parece, dedicava grande interesse?

- Lorde Murray? - repetiu Renaud com ar ausente.

Depois curvou a cabeça, reflectiu um instante e, por fim, olhou para Sabina.

- Não ficará aborrecido - murmurou lentamente - Também não fazia grande empenho em abandonar a Europa.

E depois de breve hesitação" concluiu:

- Ralph gosta da sua prima Odília.

Apesar do seu habitual sangue-frio, a condessa não conseguiu reprimir uma exclamação:

- Odilia! Ele gosta da Odilia!

Quase agressivo, de Mombrun replicou:

- Acha isso impossível ou surpreendente?

Sabina não lhe respondeu e, tal como havia feito antes, cerrou as pálpebras como se a ferisse uma luz intensa.

E não era, de facto, uma luz intensa que a inundava?... Odilia, a sensata, calma e reflectida Odilia, demonstrava nos últimos tempos uma tristeza desusada, desânimos até ali desconhecidos para a sua coragem e contra os quais sempre resistia. Era então isso! Era então "isso"! Um amor que a avassalara sem saber se era partilhado e contra o qual lutava com todas as suas forças. Profundo espanto dominou Sabina, ao mesmo tempo que o receio de possíveis sofrimentos para a prima a incitava, num desejo injusto, a humilhar Renaud. Voltou-se para ele com aspecto duro.

- Madame de Kergoêl amou demasiado o marido, embora ele fosse indigno disso, para o esquecer - disse -, O amor não se avilta assim. Pode viver e alimentar-se de recordações e contentar-se com esse quinhão passivo, sem procurar outro sonho de renovação.

Como se o tivessem esbofeteado, Renaud estremeceu violentamente. Empalideceu e volveu a sua mulher um olhar de doloroso assombro. Depois voltou a cabeça.

Tarde de mais. Sabina compreendeu a que falsa interpretação podiam dar lugar as suas palavras e como pareciam aplicar-se a Olivier.

Depois de breves momentos de reflexão, o conde começou:

- Fiz-lhe um dia uma pergunta, Sabina, à qual recusou responder-me. Não a censuro por isso. Com efeito, eu não tinha direito de lhe pedir essa certeza. No entanto, e embora de si para mim nada tivesse mudado, estou decidido a correr o risco de a repetir para obter uma resposta. Desejaria ter escolhido momento mais propício.

As palavras que acaba de proferir, referindo-se a madame de Kergoêl, e a persistência, num coração puro e luminoso, de um amor mal empregado, decidem-me a falar.

Sabina, perdoe-me, mas tenho de saber. Pela segunda vez lhe pergunto: ama meu irmão?

Sabina nunca pôde saber de que regiões misteriosas do seu ser a resposta brotou espontânea e formal:

- Não, não o amo, nunca o amei.

E para atenuar a ardente vivacidade desta confissão, para obstar a mais perguntas, concluiu:

- Esse casamento era para mim um casamento de conveniência, no qual supunha existir também afeição e afinidades. Iludi-me com a sinceridade do Olivier. Além disso, nunca o meu coração sentiu amor... Então aceitei.

Calou-se. Renaud não deixara de a fixar. Quando ouviu as últimas palavras, aprumou-se. A expressão tempestuosa desvanecera-se e as pupilas brilhavam, azuis como um lago.

- Deus seja louvado! Nunca amou!

Ficou uns momentos calado, como se a custo contivesse a vaga de pensamentos que o assaltava e estivesse muito comovido para examinar e escolher aquele que devia exteriorizar.

Depois desta declaração, Sabina voltara a cerrar as pálpebras. Mas o tumulto interior que a agitava não se desvanecia. Pelo contrário, de instante para instante, as palpitações loucas do coração aumentavam.

Renaud afastara-se alguns passos. Caminhava com os olhos postos no chão. Maquinalmente, ergueu a cortina, deixou-a cair e voltou para junto de sua mulher.

- Sabina - murmurou - disse-lhe há pouco que não tinha escolhido o dia nem a hora para saber o que ardentemente desejava. Teria preferido esperar, esperar cobardemente, tanto receava este minuto... esperar para poder talvez ler melhor o que se passava consigo. O destino decidiu doutra forma. Ao evocar o amor de Ralph por madame de Kergoél fui demasiado longe. Nas palavras que disse, nos receios que deixei adivinhar, exteriorizei um ardor depois do qual o silêncio se torna impossível. Devo-lhe explicações.

Calou-se um instante. Continuava de pé, atrás da chaise-longue na qual sua mulher estava estendida e Sabina sentia o tremor das suas mãos poisadas no espaldar. Em voz baixa, murmurou:

- Por piedade, Renaud!

O conde adivinhou que ela tentava evitá-lo e ficou hesitante. Mas quase logo prosseguiu:

- Peço-lhe perdão. Mas sei que, se me retirar agora, não encontrará repouso, como eu não o encontrarei também. Não exijo... ou antes não solicito mais nada. Escute-me.

Aguardarei depois a resposta com a mais resignada paciência.

Sabina não fez um gesto, não proferiu palavra. Para encorajar o marido ou, pelo contrário, para o desanimar? De resto, dir-se-ia que, mesmo que o desejasse, não o poderia fazer.

Sem o perceber, Renaud continuou:

- Recorda-se do nosso primeiro encontro?

A condessa respondeu-lhe apenas com um gesto afirmativo da cabeça. Como poderia ter esquecido a aparição do conde de Mombrun no pavilhão?

- Como sabe, vinha de muito longe. Atravessara parte da Europa para me opor, por todos os meios ao meu alcance, ao casamento de meu irmão. E julgo que, naquela altura, todos os sacrifícios teriam parecido fáceis ao meu insensato orgulho. Aconteceu, porém, que, por um jogo cruel do acaso, os meus receios eram vãos. Olivier, afastado pela adversidade que a feriu, não pensava em casar consigo. E fui eu, Sabina, eu quem, esmagado pela vergonha da sua cobardia, fui oferecer-lhe esse nome de Mombrun que, pouco antes, estava decidido a disputar-lhe.

Renaud calou-se e respirou profundamente antes de prosseguir:

- Sem a conhecer, nascera em mim uma aversão que, pensava eu, me era imposta pelos acontecimentos. Vi-a... e nesse instante... Sim - afirmou com voz trémula - nesse instante, juro-o, passei a detestà-la apenas por uma coisa: por ter amado Olivier! Não preciso de recordar-lhe o que foi o nosso noivado. Mas só na tarde do dia do nosso casamento a separação me pareceu irremediável. Arrebatado pela dor de a supor presa a outro para sempre, ocultei de todos, mesmo do meu amigo mais querido, o que a Sabina já representava para mim. E exaltei-me a ponto de proferir as loucas e mentirosas palavras que, infelizmente, ouviu por acaso.

Ao evocar aquelas horas dolorosas, a voz quente e profunda de Renaud desfaleceu. Após breve paragem, continuou:

- Creio... não, tenho a certeza, Sabina, de que se a morte de seu pai e o respeito pela palavra dada não a tivessem reconduzido até mim, iria buscá-la à força ao pavilhão. E a vida continuou, ou antes, começou para si, triste e monótona. Admirava a sua coragem, a sua altivez, mas continuava a lutar contra a abdicação de todo o meu ser. Desejava com ardor o exílio que devia, calculava, restituir-me o domínio do coração, essa espécie de indiferença egoísta e soberana que me isolava. Embriagava-me com projectos, iludia-me com o desejo de novos horizontes, quando, afinal, ao avistar Pierreclose, no regresso, depois de breves demoras em Paris, experimentava uma alegria sem nome! Apressava os preparativos para a viagem quando o pensamento da separação me dilacerava. Os atrasos sucessivos levaram-me a uma resolução inabalável.

Não irei viajar, Sabina!

Calou-se de novo, esperando talvez algumas palavras de sua mulher, depois desta confissão. Sabina, porém, sempre com a cabeça recostada nas almofadas e o corpo estendido, parecia morta. Só a mão direita, que segurava o xaile cruzado no peito, tremia ligeiramente.

O conde envolveu-a num olhar doloroso. Com esforço, continuou:

- Não lhe peço para avaliar o meu tormento, Sabina, nem tento revelar-lhe a vergonha e o desespero de um homem a quem um orgulho desmedido e injustos desdéns afastaram de uma mulher... a mulher a quem ama para sempre... da "sua" mulher! Creio que o arrependimento deste infeliz, as suas angústias e desespero, constituem expiação desproporcionada à gravidade da falta e, no entanto, coisa alguma me parece demasiada para a resgatar.

E, em voz mais baixa, declarou:

- Farei tudo o que entender, Sabina, aceitarei as provações que desejar impor-me, mas suplico-lhe que não duvide de mim.

Pela primeira vez, depois daqueles longos minutos, os lábios lívidos da condessa descerraram-se.

- Não está na nossa mão ter confiança, tanto como amor - comentou com amargura - Cheguei a um estado de espírito em que nenhum ser me pode inspirar uma ou outro, tanto o meu coração se endureceu em contacto com a vida.

Renaud deu alguns passos para se aproximar de sua mulher e cravou nela um olhar aterrado.

- Seria horrível se falasse verdade, Sabina - murmurou.

Curvou a cabeça, desolado com aquela indiferença que era obra sua e, decorrido algum tempo, declarou:

- Não lhe peço para me comunicar uma resolução que seria tomada com precipitação e inspirada por um movimento de cego rancor.

- Não tenho resoluções a tomar! - afirmou Sabina - Não pensarei nem procederei amanhã por forma diferente do que tenho pensado e procedido até hoje.

Renaud não respondeu a esta declaração, feita com tanta firmeza. Dirigiu-se para a porta com passo apressado, como se com a retirada quisesse evitar palavras irremediáveis.

Já com a mão no puxador da porta, voltou-se.

- Deixo-a, Sabina. Precisa de calma e de repouso depois deste acidente cuja recordação me atormenta. Não tema ser perturbada. Prometo-lhe nunca mais lhe falar no meu amor. Esperarei... esperarei o tempo que entender, esperarei pelo dia ardentemente desejado...

Calou-se, tão perturbado pela visão que ia evocar que a voz lhe faltou. Depois concluiu:

- ...o dia em que vier ter comigo para me dizer: "Renaud, esqueci tudo. Vou tentar amar-te!"

Quando a porta se fechou nas costas do marido, Sabina endireitou-se, mas logo recaiu nas almofadas, soltando um gemido. Em volta dela havia como uma espécie de ondulação, as paredes do quarto pareciam inclinar-se e os móveis oscilar por forma estranha. Fechou os olhos. A dolorosa impressão de não ser mais do que uma palha, arrastada pelo vento, não se dissipou. Pelo contrário. No centro da concentração de todo o seu ser, a dor física, por momentos atenuada, aumentou.

A febre martelava-lhe as têmporas, o sangue corria agitado nas artérias. Era a dor, com certeza, a autora desse turbilhão horrivel de pensamentos e de sensações contraditórias, nas quais Sabina não sabia entender e separar, para exprimir em amargura ou contentamento, o que era alegria ou dor.

Denise bateu ao de leve na porta. Por ordem de Renaud, vinha saber notícias da patroa. O conde ordenara-lhe que se instalasse junto de Sabina até esta adormecer.

A condessa, porém, depois de ter aceitado uma bebida fresca, mandou-a embora. Mais do que de cuidados, precisava de solidão e por isso explicou à desolada criada de quarto que a sua presença a impediria de gozar repouso absoluto.

Quando ficou sozinha, tentou, com efeito, dormir. Tinha tempo antes de que a noite avançasse e e soasse a hora de ir ter com lorde Ralph.

Sem dúvida, este não contava com a presença de Sabina. No entanto, a condessa estava tão decidida a fazer essa expedição nocturna como antes do acidente. E por causa

desse projecto não consentira que Denise a auxiliasse a despir-se e voltou a recusar quando, pelas dez horas, esta apareceu para a ajudar a meter-se na cama.

Embora profundamente admirada com a obstinação, que muito se assemelhava a um capricho, a criada de quarto retirou-se, depois de ter arrumado o quarto. O conde, segundo afirmou, desejava que a criada se deitasse mais tarde e só depois de se ter assegurado de que Sabina dormia. Esta, porém, pelo contrário, exigiu que Denise não se preocupasse mais com ela e pediu-lhe para não a incomodar até ao dia seguinte.

A noite decorreu lentamente. Sabina sentia-se melhor. A aproximação do perigo galvanizava-a? Não poderia dizê-lo. Mas a prostração que se seguira à saída de Renaud desvanecia-se pouco a pouco e Sabina recuperou a coragem e a energia que em breve lhe seriam muito necessárias.

No entanto, no cérebro febril surgia a recordação dos acontecimentos ocorridos durante o dia. Os protestos de Olivier, as exigências de Dorah e, acima de tudo, o semblante convulsionado da rapariga quando, tendo a certeza absoluta da sua presença, guiara o braço de Renaud para lhe atingir o rosto. Tudo isso revivia, impressões visuais e auditivas confundidas num mal-estar indefinido, em intensa angústia. Mas, sobressaindo a tudo, a confissão de Renaud, como numa sinfonia predomina o motivo principal A sua voz profunda e trémula, as feições transtornadas obsidiavam-na. E, se tentou afastá-las com dolorosa perseverança, mas, infelizmente, sem resultado, foi apenas para não enfraquecer as forças e a lucidez que tão precisas lhe seriam daí a momentos.

Pouco a pouco, o castelo mergulhava no sono. Através das espessas paredes, os ruídos deixavam de se ouvir. E Sabina imaginava, mais do que realmente podia verificá-lo, o torpor das coisas e dos seres e, por fim, o naufrágio no repouso absoluto.

O relógio que se encontrava na galeria do segundo andar bateu a uma hora. Essa badalada única, lenta, acompanhada por estranhas vibrações metálicas e com prolongada repercussão no silêncio da noite era esperada por Sabina com ansiedade. Pôs-se de pé. Conservava o xaile e sobre ele lançou comprida capa, semelhante à de madame de Kergoél, que a cobria da cabeça aos pés. Saiu para o corredor e, acendendo a lâmpada eléctrica de algibeira, começou a descer a escada.

Sem incidente, chegou ao vestíbulo e dirigiu-se à porta de entrada. Lorde Ralph aconselhara-a a sair de Pierreclose por essa porta, que sem dúvida ninguém pensaria em utilizar por ser a principal.

Com efeito, Sabina encontrou o batente apenas encostado. Lorde Ralph jà saíra. Apagou a lâmpada, deslizou para fora e, sempre com extremas precauções, seguiu encostada à parede, na direcção da loggia.

 

Lorde Ralph encontrava-se no ponto combinado. Abrigado por um recanto da muralha, protegido pela sombra, soltou uma exclamação de espanto quando viu chegar Sabina.

- God!... Não contava consigo, madame! Esta saída foi uma loucura!

Se pudesse ver o rosto de Sabina teria ficado muito mais assustado. Mas não viu e ela tranquilizou-o, indo colocar-se-lhe ao lado.

- Está bem abrigada? - inquiriu - Esta espera pode durar muitas horas.

Bem embrulhada na capa, Sabina não tinha frio e foi isso o que disse ao Inglês. De resto, a noite não era uma dessas noites glaciais de Inverno, claras e brilhantes como as pupilas de um gato, que, iluminadas pelo luar, tornam os contornos dos objectos perfeitamente nítidos. Pelo contrário, o céu estava velado e os dois só distinguiam as coisas que os rodeavam porque as conheciam bem.

No ponto onde se encontravam, Sabina e Murray viam uma parte do pátio, a que era limitada pela falésia caída a pique sobre o mar, à beira da qual se erguiam as ruínas da antiga torre.

- Seja por onde for que saiam, têm de passar por ali - segredou Ralph - Vai ver. Aquelas ruínas, das quais todos se afastam por causa do perigo que representam, defendem, por assim dizer, a praia do Corsário, isto é, o campo de acção escolhido. Só esta manhã, quando errava em volta do castelo, descobri a passagem e daria o mais belo diamante dos Murray para poder descer antes da visita... que esperamos. Mas de dia, com a visibilidade absoluta do castelo, seria uma tentativa irrealizável.

- Conheço a passagem a que alude - murmurou Sabina -, Há poucos dias fui arrastada para ela pelo cão e vi que, oculto pelas paredes arruinadas, existe um atalho abrupto, mas praticável, que desce a falésia.

Calou-se, escutando, supondo ter ouvido qualquer ruído. Mas não. Em baixo, naquele ponto da costa que a penedia dominava e que não podiam ver porque a rocha avançava, formando uma espécie de plataforma por cima das vagas, coisa alguma quebrava o silêncio. Apenas o barulho da ressaca subia até ao ponto onde se encontravam.

- Noutros tempos, esta comunicação entre o castelo e o mar tornava-se muito cómoda - prosseguiu lorde Ralph, designando a loggia que sobressaía na fachada - Mas a escada talhada na muralha de Pierreclose e na rocha podia servir para qualquer pessoa. Rosanne achou mais prudente condená-la. Este caminho, que ambos descobrimos por acaso, constitui um segredo e só um conjunto de circunstâncias excepcionais poderia levar alguém a descobri-lo e a utilizà-lo.

- Rosanne? - inquiriu Sabina - Supõe que Rosanne?... Não me disse hà pouco tempo que não suspeitava de ninguém?

- Disse, pois não queria partir de uma opinião jà feita, o que mais facilmente nos induz em erro. Mas depois reflecti. Quem, a não ser Rosanne, poderia...

Calou-se e pôs-se à escuta. Uma onda mais forte quebrou contra as rochas e depois o mar voltou à sua monotonia.

- Talvez que - prosseguiu num tom vibrante de hostilidade que não lhe era habitual - posto ao facto de certas evidências, Renaud consinta em libertar-se dessa família... nefasta! Percebeu, não é verdade, madame - prosseguiu após breve hesitação - que essa Dorah tentou desfigurá-la? Não directamente, é muito cobarde e prudente para se arriscar, mas por intermédio de Renaud.

Na sombra, Sabina inclinou a cabeça.

- O Renaud não deu por coisa alguma - continuou lorde Ralph - e eu vi-o muito acabrunhado para lhe abrir os olhos. Conto fazê-lo quando tiver a certeza da indignidade do pai, como temos da diabólica e criminosa perfídia da filha.

A indignação transtornava a voz de Murray, de ordinário calma e alegre. Sabina, porém, não perdeu uma só das suas palavras, embora ele falasse baixo.

- O nosso homem demora-se - impacientou-se Ralph, após demorado silêncio, erguendo a manga para ver as horas no relógio de pulso.

- Talvez tivesse saído do castelo antes de nós!

- É possível. Nesse caso, teremos de esperar o seu regresso.

- Que conta fazer?

- Identificà-lo. Adquirir a certeza que procuramos.

- Não o desmascara, não é assim?

- Se o fizesse, correríamos um perigo inútil. O homem pode estar armado. Depois de o reconhecermos, o Renaud se encarregará do resto. Poderá...

Calou-se de repente e agarrou o braço de Sabina.

- Olhe - ordenou - quase na nossa frente. Para o lado do farol, não. O farol fica mais à esquerda.

Com efeito, sobre o mar brilhou uma luz vermelha. Apagou e acendeu três vezes, com um minuto de intervalo. Depois tudo recaiu na escuridão, apenas cortada pelo intermitente foco do farol.

- Atenção - murmurou Ralph como num sopro - aí vem a barca.

Com efeito, ainda não tinham decorrido vinte minutos quando o barulho do motor chegou aos ouvidos dos dois. Aproximou-se, por vezes abafado pelo ruído das ondas e outras vezes tão distinto que admirava como não o ouvissem em Pierreclose.

Quando a embarcação, invisível do ponto onde Sabina e Ralph se encontravam, atingiu a costa, pararam o motor. Tudo recaiu em silêncio e em volta do castelo reinou a mais absoluta calma. Esse silêncio, porém, era um silêncio pesado, hostil, activo e ameaçador, povoado de invisíveis presenças, quebrado, por vezes, por um baque surdo ou um arrastar, perceptível entre o quebrar das ondas.

No seu canto de sombra, Sabina e Murray mantinham-se na mais completa imobilidade. Não falavam e quase não respiravam como se tivessem medo de perder o mais pequeno ruído que viesse da praia.

Não puderam avaliar quanto tempo decorreu nesta espectativa. Nem mesmo a certeza de que a canoa se afastava, dada pelo ruído do motor, os sossegou. O momento mais angustioso daquela espera aproximava-se.

Sempre invisível, a embarcação sumiu-se ao longe. Dir-se-ia que ia mais depressa e talvez mais leve.

Depois, mais uma vez, tudo recaiu na imobilidade e no silêncio. E, de súbito, sem falar, lorde Murray agarrou e apertou a mão válida da companheira.

Sabina estremeceu. Não eram necessárias as explicações, porque os seus olhos, fixos no mesmo ponto, como que se dilatavam, à força de tentar penetrar a sombra.

Na torre em ruínas um vulto apareceu, o de um homem, delgado, calçando botas ferradas, envergando uma canadiana com a gola levantada e com um chapéu enterrado na cabeça.

A escuridão não permitia ver-lhe as feições e os pormenores também não se tornavam distintos. No entanto, aquela estatura elevada, o corpo esbelto... Muito tempo depois do homem ter desaparecido e entrado no castelo, sem dúvida por uma porta de serviço, Sabina murmurou em voz baixa:

- Não era o Rosanne.

Falara maquinalmente e o som da própria voz, embora baixo, assustou-a.

- Não - murmurou Ralph com o mesmo espanto - não era o Rosanne.

Dir-se-ia que hesitava em pronunciar as palavras. Demoraram-se ainda bastante, a fim de dar tempo ao desconhecido para alcançar o seu quarto e deitar-se. Ralph lutava com uma comoção que não passou despercebida a Sabina.

- Vamos para casa, madame - disse por fim - Nada mais temos a fazer aqui e já esteve muito tempo exposta ao frio.

A condessa afastou-se da parede à qual estava encostada e seguiu lorde Ralph, caminhando ambos rente a esta.

Mas, antes de transporem a porta, Sabina parou e voltou-se bruscamente para o Inglês.

- Era o Olivier, lorde Ralph? - inquiriu, ansiosa.

- Viu-o tão bem como eu - respondeu ele numa voz surda - e como estava escuro não posso afirmar que fosse ou não Olivier.

- Que conta fazer agora? - insistiu Sabina.

Assim directamente interrogado, ele não hesitou. Durante o longo período de mutismo uma resolução fora tomada.

- Voltar amanhã para Inglaterra, como tinha decidido - respondeu.

Sabina soltou uma exclamação de espanto.

- Partir! Abandonar Pierreclose! - murmurou num tom de censura.

Murray inclinou-se para ela como se, mais do que todas as outras, as palavras que ia proferir constituíssem um segredo.

- Para todos, partirei. Depois de ter deplorado que os meus negócios não me permitam uma longa ausência, seria anormal para os habitantes de Pierreclose que prolongasse a minha estadia.

E, ainda mais baixo, acrescentou:

- Se precisar de mim, encontrar-me-à em casa de madame de Kergoêl.

Sem trocarem mais impressões, os dois entraram em Pierreclose. Com a aproximação da madrugada a noite tornara-se mais fria e Sabina experimentou uma espécie de vertigem quando passou do frio exterior para a suave temperatura do castelo. Reagiu e continuou a seguir lorde Ralph, que, com a lâmpada na mão, fechava a porta de entrada com infinitas precauções, atravessava o vestíbulo e subia a escada," onde a espessura da passadeira abafava o ruído dos passos.

No patamar do primeiro andar separaram-se, sempre em silêncio. Sabina viu-o entrar no quarto. Acendeu a própria lâmpada, empurrou e depois fechou atrás dela a pesada porta de carvalho que separava os dois andares, e continuou a subir a escada.

Tudo dormia no castelo. Com certeza, o misterioso e nocturno passeante também se entregava jà às doçuras do sono. E Sabina evocava com prazer a larga cama do Corsário onde poderia estender-se, esmagada pela fadiga e emoções, e encontrar talvez momentâneo esquecimento.

Atingiu a galeria e em poucos passos a porta do seu quarto. Dispunha-se a abri-la com infinitas precauções quando, de súbito, suspendeu o gesto, reprimindo a custo o grito de terror que lhe subira aos lábios.

Junto dela acabava de se projectar um filete de luz. Esse fiozinho aumentou pouco a pouco e em breve se recortou, na sombra do corredor, o rectângulo de uma porta.

Apoiando-se com uma das mãos à parede, a fim de não cair, Sabina voltou-se. E o seu olhar cruzou com outro olhar. Imóvel no limiar do quarto, Rosanne fixava-a em silêncio.

O preceptor também não se deitara, mas coisa alguma na sua atitude traduzia fadiga. Trocara o casaco do fato por outro de veludo preto com alamares de seda. Sempre elegante nesse trajo caseiro, mostrava-se muito senhor de si.

- Queira desculpar o susto que lhe causei, madame - murmurou em voz baixa e traduzindo pesar.

Sabina não lhe respondeu. Nem o poderia fazer. Não estava nas suas forças dissimular a sua perturbação.

- Santo Deus! - exclamou Rosanne - Como está transtornada. Não me recuse o favor de entrar por momentos no meu quarto a fim de se recompor.

O preceptor falava como num sopro, mas Sabina teve a impressão de que a sua voz adquirira tremenda sonoridade. Separava-os apenas a largura do corredor e, para lhe satisfazer o desejo, Sabina devia de dar poucos passos. No entanto, foi um movimento de recuo que fez.

Rosanne olhou-a com tristeza.

- Sempre essa desconfiança e essa repulsa por mim, porquê? Não sabe que lhe sou infinitamente dedicado?

- Não são estes o lugar e a hora mais próprios para uma conversa desse género - conseguiu responder Sabina.

Dispunha-se a entrar no quarto e a fechar a porta. Em voz sempre baixa, mas desta vez singularmente imperiosa, Rosanne retorquiu:

- Faz mal se não aceder em conceder-me alguns instantes de atenção. Amanhã... dirá. Mas quem sabe se amanhã não será demasiado tarde?

Sabina sobressaltou-se. Teria de ceder à exigência?

Por segundos hesitou. Mas a espécie de ameaça oculta na frase e no tom decidiu-a. Avançou para Rosanne. Este afastou-se para o lado e logo que ela entrou no quarto fechou a porta e o corredor mergulhou outra vez nas trevas.

Não era um quarto de cama onde a condessa se encontrava, mas um pequeno gabinete, bem mobilado, que devia precedê-lo. Sabina sabia que o preceptor ocupava, do lado oposto ao seu quarto, diversas salas bastante agradáveis, cujas Janelas, na fachada principal, abriam para o lado da charneca e da floresta.

Solícito, Rosanne ofereceu-lhe uma poltrona. Recusou-a e recusou também o seu auxílio para tirar a capa impregnada de humidade.

De pé, apoiada à pequena secretária Luís XV com tampo de marroquim, aguardava, com impaciência, as explicações do preceptor.

Rosanne não notou logo essa atitude. O olhar ia do rosto transtornado de Sabina ao ombro direito, ligeiramente mais alto por causa das ligaduras.

- "Ele" podia tê-la desfigurado para sempre! - murmurou, dominado pela mais profunda emoção.

À condessa dirigiu-lhe um olhar glacial.

- Considero esse "ele" muito injusto - replicou.

Rosanne olhou-a com espanto.

- Não foi o Renaud quem a feriu?

- Com efeito, meu marido foi o involuntário causador do desastre. Mas nem mesmo podemos acusá-lo de imprudência, pois calculava que ninguém se encontrasse ao alcance de tiro.

Pelo ar admirado de Rosanne, Sabina compreendeu que ele ignorava a versão exacta do acidente. Com a amargura, prosseguiu:

- No entanto, alguém conhecia a minha presença naquele ponto. E não foi o acaso que dirigiu a espingarda do Renaud para mim, antes de ter tempo de sair da moita atrás da qual eu e lorde Ralph nos havíamos escondido.

No entanto, estas explicações eram insuficientes para que Rosanne pudesse reconstituir a cena. Talvez por isso, não acreditou e abanou a cabeça.

- É muito generosa para desculpar assim a falta de cuidado de seu marido, madame. Permita-me que tenha opinião diversa.

Visivelmente, o preceptor empenhava-se em sobrecarregar Renaud e pouco faltava para o acusar mais gravemente.

Sabina aprumou-se. Não considerava necessário revelar a Rosanne o nome da filha, mas não ocultava a sua irritação.

- Foi para me manifestar tanta simpatia por causa deste insignificante ferimento que me pediu para entrar aqui a esta hora avançada?

O preceptor não lhe respondeu logo. O capuz da condessa caíra e a luz da lâmpada batia-lhe em cheio no rosto belo e puro, apesar da sua alteração, na moldura dos cabelos negros um pouco despenteados.

Como ela voltasse a cabeça, incomodada com a insistência do olhar e com a sua expressão, Rosanne pareceu cair em si e respondeu:

- Com efeito, madame, foi pelo desejo de a ver e certificar-me de que o ferimento não tinha gravidade que lhe pedi para me conceder estes minutos de conversa. Como não podia ir visitá-la ao seu quarto, como é natural, sofria com a perspectiva de estar talvez muitos dias privado da sua presença.

- Essa presença que obteve espiando-me, quase ameaçando-me.

- Santo Deus! Não, madame. Não a espiava. Velava apenas por si.

- Dispenso-o disso. Não corro perigo.

Rosanne esboçou um sorriso desolado, como os que se dirigem a uma criança teimosa, e abanou a cabeça. Havia instantes que, de olhos no chão, cofiava a barba bem cuidada no gesto que lhe era familiar e indicava sempre intensidade de reflexão.

Sabina afastou-se da secretária.

- Boa noite, senhor Rosanne - despediu-se bruscamente.

O preceptor ergueu a cabeça e, como para a deter, estendeu a mão.

- Concebo a sua fadiga e o seu desejo de ir repousar. Sinto-me desolado por ser cruel, pedindo-lhe que me conceda mais alguns momentos.

Calou-se, voltou a acariciar a barba bem tratada, e murmurou:

- Sinto-me muitas vezes estupefacto e inquieto com a sua temeridade, madame.

Sabina parou. Embora não tivesse adivinhado ainda aonde ele queria chegar, pressentia que não podia desprezá-lo, nem à força desconhecida, mas sem dúvida temível, que ele representava. Voltou a cabeça e, com altivez, interrogou-o com o olhar.

Talvez ele tivesse preferido responder a perguntas directas, porque tanta calma desnorteou-o. Após alguns minutos de reflexão, prosseguiu:

- Não sabia que ia expor a sua vida, hoje?

Sabina a custo conseguiu reprimir o sobressalto que teria atraiçoado a sua emoção e teve a presença de espírito para fingir que se enganava na significação da pergunta.

- Quando vamos caçar, nunca pensamos nisso.

- Não me referia à caçada, sabe-o muito bem.

- Então a quê?

- À expedição que acaba de fazer.

- Fantasia de doente que não podia dormir.

- Não. Curiosidade de mulher cujo espírito a impele para o desconhecido.

Calou-se e no aposento o silêncio caiu pesadamente. De pé, diante de Rosanne, Sabina aparentava indiferença. Pelo contrário, o preceptor parecia preocupado e pensativo.

E cada um deles, a despeito desta diferença de disposição, aparente ou real, estudava o outro, pronto para aproveitar uma palavra ou um gesto que o favorecesse.

- Conseguiu penetrar nesse desconhecido? - inquiriu Rosanne decorridos momentos.

- Talvez mais do que o senhor - replicou Sabina ao acaso.

Rosanne soltou leve risadinha.

- Há muito tempo que o descobri, acredite.

A condessa ficou calada e, pela sua atitude firme, o preceptor devia ter adivinhado que não poderia valer-se de qualquer palavra ou gesto irreflectido, porque se decidiu a queimar os últimos cartuchos. Para não perder a mínima reacção da sua interlocutora, proferiu lentamente, sem a desfitar:

- Sei que Pierreclose é o centro de vasta organização de contrabando - declarou - Sei que a comprida praia, principalmente a célebre praia do Corsário, separada do resto da costa e só acessível pelo mar, é o ponto ideal para depósito das mercadorias, onde elas chegam e partem... Sei que, quando o mar está calmo, barcas carregadas

até aos bordos acostam e descarregam a preciosa carga na areia, que, cercada por rochedos, forma uma espécie de gruta muito cómoda para a guardar e escondê-la...

Sei que, logo no dia seguinte, outros barcos vazios vêm buscar o contrabando para navios ancorados ao largo, que seguem rumo a Inglaterra... Sei, enfim, que um homem, o conde Renaud de Mombrun, é o chefe desta organização de aventureiros!

Muito pálida, apoiada às costas da poltrona que Rosanne lhe oferecera, Sabina tentava, num esforço da vontade, dominar a tremura que se apoderara dela.

- E o que pode parecer-lhe quase impossível - concluiu o preceptor -, é que sei tudo isto por dedução, sem ter uma só noite posto o pé fora do castelo!

A condessa tinha conseguido dominar a sua emoção. Encolheu os ombros.

- Uma história muito engraçada, semelhante às que Dorah gosta de contar sobre o quarto do Corsário - respondeu - Apenas, neste caso, os protagonistas são pessoas vivas.

- Vivas e activas!... Conduzem barcos, vigiam carregamentos e fazem sinais luminosos durante a noite.

Como poderia Rosanne ter descoberto aquela actividade que, só por acaso, pela captura do caçador furtivo preso na propriedade onde se encontrava Murray, na costa inglesa, levara lorde Ralph a descobri-la? Sabina não tentou sabê-lo. Mas, perante a categórica afirmativa, um protesto involuntário lhe subiu aos lábios:

- Não me interesso pelas suas descobertas e não consigo perceber que tem o meu marido com isso!

Rosanne olhou-a com espanto e por fim sorriu.

- Quem poderia então ser o chefe?

Calou-se um instante e continuou:

- Eu talvez... Sim aposto que pensou logo em mim...

- Pensei imediatamente na ordem dada para inutilizar a escada que conduz à praia do Corsário.

Rosanne começou a rir.

- Com efeito, involuntariamente, servi os interesses de certas pessoas. No entanto, a minha única preocupação, ao ordenar essa transformação, foi a de evitar possíveis acidentes.

Sabina adivinhou que ele falava verdade. Por puro acaso, aquela modificação parecia ter sido feita de propósito para isolar a praia e dar-lhe o máximo de segurança.

Rosanne prosseguiu:

- Lamento desiludi-la, mas não tenho temperamento para essas aventuras. Além disso, supunha que um homem da minha idade, a quem um homem rico como o conde de Mombrun deixou durante muitos anos a direcção dos seus negócios, fosse bastante... imprevidente para se encontrar tão falto de recursos que se visse obrigado a correr semelhantes riscos? Não há quatro anos apenas que administro os negócios do conde de Mombrun, mas há mais de trinta anos!

Rosanne abandonara o tom comedido e grave que lhe era habitual para adoptar o de calmo cinismo. E Sabina pensou que ele devia considerar-se muito seguro do êxito dos seus projectos, fossem eles quais fossem, para falar assim.

- E Renaud, perguntará madame - continuou Rosanne - que necessidade inexplicável tem de se envolver nesse género de aventuras? A isso responder-lhe-ei por hipóteses, das quais escolherá a melhor: amor ao perigo ou ao ganho, porque não?... Estranha fanfarronada ou atavismo, porque nem todos os de Mombrun foram corsários do rei,

mas apenas corsários. Enfim, por orgulho, orgulho de mandar homens, sejam eles ladrões, e pôr-se com eles à margem da lei.

Calou-se. Traçara o retrato do conde com uma paixão feroz que assustou Sabina. Nem Renaud suspeitava da existência de tão grande inimigo em sua casa.

- Esquece uma coisa - objectou friamente -, Renaud, há mais de quatro anos ausente e prestes a iniciar novas viagens, não pode dedicar-se a um... negócio que exige a sua presença assídua e a cooperação eficaz no local escolhido.

- A iniciação do conde no que chama negócio pode, de facto, ser de data recente. Quanto ao futuro, parece-me que Renaud não o orienta para novas viagens. Os seus projectos foram sendo adiados e depois abandonados. Instalou-se na "Casa do Corsário" como se tencionasse não a abandonar nunca mais...

Por instantes, Sabina recordou a cena desenrolada no seu quarto poucas horas antes. Ouviu, tão claramente como então, a voz irritada protestar: "A minha partida!

Quem lhe diz que não mudei de ideias e não partirei?"

Mas com todas as suas forças arrancou-se às recordações a fim de permanecer forte e lúcida em face de Rosanne.

Com este se propunha falar, ela atalhou:

- Terei de lhe lembrar que outro de Mombrun vive em Pierreclose, de cuja honestidade podemos suspeitar?

Rosanne soltou uma gargalhada.

- Olivier? Acredita, na verdade, numa coisa dessas? Não tem envergadura para aventureiro.

Rosanne exteriorizava assim, exactamente, o pensamento de Sabina, pelo que esta não teve forças para protestar. No entanto, aprumou-se com altivez e dirigiu ao seu interlocutor um olhar de gelo, pois estava ansiosa por terminar aquela conversa.

- Era tudo quanto queria dizer-me e por isso espreitou o meu regresso pela porta entreaberta?

As feições do preceptor contrairam-se.

- Queria, antes de mais nada, certificar-me de que estava sã e salva - murmurou - e depois suplicar-lhe para reflectir com calma, mas quanto antes, a fim de orientar a sua vida por forma mais feliz.

- A minha vida está fixada. Creio ter-lho dito já.

- Aqui... ao lado de um aventureiro... que não a ama, a quem não a prende qualquer laço e cuja sorte compartilharia se ela lhe fosse adversa? Isso é uma loucura!

Enquanto falava, aproximou-se de Sabina e continuou ardentemente:

- É nova e é bela, madame, tão bela que só uma cegueira absoluta como a de Mombrun poderia não dar por isso. O destino que a trouxe para aqui foi cruel e injusto.

Deve-lhe a desforra e conceder-lha-à se a desejar!

Calou-se e respirou profundamente. A paixão reflectia-se-lhe no semblante.

- Imagine por instantes - prosseguiu com voz surda - o que poderia ser a sua vida longe de Pierreclose. Sem igualar a do conde, existem fortunas que permitem proporcionar à mulher amada tudo quanto constitui o encanto e o valor da vida. No país que escolhesse, seria a mais bela, a mais brilhante, a mais amada. Nem precisaria de exprimir os seus desejos... com alegria e reconhecimento eu os adivinharia e satisfaria! Tem de compreender.

A mocidade preocupa-se muito consigo mesma para dar felicidade aos outros. Só na minha idade se sabe amar... E, juro-lhe, mulher alguma no mundo será objecto de tão grande adoração, de culto tão fervoroso e exaltado.

Rosanne animara-se por tal forma que, arrebatado pelo seu ardor, não dera pela atitude de Sabina. Em consequência, sobressaltou-se quando a condessa estendeu a mão e num gesto imperioso ordenou:

- Basta!

Calou-se e durante alguns segundos ficou mudo, fixando-a com olhar brilhante.

- Recusa? - balbuciou por fim - Recusa trocar a dependência, a humilhação e o tédio pela vida que lhe proponho?

- Recuso antes de mais nada compreender o sentido das palavras que dirigiu à condessa de Mombrun, à mulher de Renaud...

- A mulher de Renaud!... Tão pouco.

O tom era agressivo e irónico. Sabina estremeceu. Eram as mesmas que de Mombrun pronunciara quando falava com Ralph na tarde do seu casamento!

- Não é nada para Renaud - afirmou a voz surda - Eu sei!

Afastou-se alguns passos. Os ombros descaídos e as feições cavadas acusavam bem a sua idade. Os cabelos grisalhos e abundantes, em geral penteados com grande cuidado, estavam emaranhados pelo constante movimento da mão que, num gesto maquinal, levava à cabeça.

- Quantas noites de insónia para obter essa certeza! - prosseguiu - Mas que importa! Não as regateei nem as lamento. E aquela louca da Dorah - continuou numa súbita explosão de cólera - que, não sei por que capricho, pretendia obrigà-la a abandonar este quarto, que tão facilmente eu vigio! Como se lhe importasse que a alma do Corsário a importunasse! Quantas vezes, durante a noite, com esta porta entreaberta, eu escutei durante horas, aguardando o ruído de passos, espreitando um clarão de uma vela! Estamos separados do primeiro andar e daí coisa alguma podia vir sem eu a ver, qualquer presença nos seus aposentos não me escaparia. Muitas vezes passeei pelo corredor, para cà e para lá, diante da sua porta, dessa porta que Renaud nunca transpôs.

Sabina estava assustada com a sombria exaltação de Rosanne. Mas a sua atitude não o deixava adivinhar e o preceptor, que não deixava de fitar o lindo rosto de expressão desdenhosa, não suspeitou que a sua interlocutora, esmagada pela fadiga e pela comoção, estava prestes a desmaiar.

- E foi assim que descobri a actividade que muito me surpreendeu, confesso - prosseguiu Rosanne com feroz alegria - Os meus aposentos não têm janela para o mar e se ali me conservasse não teria provavelmente descoberto a que ocupações ilegais... e remuneradoras, o conde de Mombrun se entregava. Em compensação, da janela do corredor vê-se toda a costa. E depois de ter avistado os sinais luminosos, certa noite, quando por acaso me encontrava diante da janela, não me custou adivinhar a sua significação. Desde esse momento, que me proporcionou, confesso, uma das mais fortes emoções da minha vida, diversos incidentes, como a chegada das embarcações, quando o tempo estava calmo, confirmaram a minha convicção. Talvez se admire por eu não ter tentado ver mais de perto as arrojadas manobras de Renaud? Para quê?

Os contrabandistas são gente terrível e eu tenho muito amor à vida... e a si, para me expor inutilmente. De resto, soube o bastante. E veja, madame, veja como tenho em si total confiança, pois lhe revelo o resultado das minhas descobertas, sem hesitação e sem restrições. Até hoje, ignorava que estivesse tão bem informada como eu - concluiu - Agradeço a Deus porque isso simplifica muito as coisas. Com certeza, não teima em ficar numa barca ameaçada.

As últimas palavras foram proferidas num tom que fez estremecer Sabina. A despeito da instintiva repulsa que sentia por aquele homem, nunca imaginara que fosse tanto para temer. Quase a despeito da sua vontade, murmurou:

- Que ódio tão grande pelas pessoas que habitam esta casa!

Um lampejo de maldade perpassou pelas pupilas de Rosanne.

- Sim, odeio os de Mombrun, todos eles... E todos estes anos vividos à sua sombra fortificaram e tornaram potente este sentimento. Não data de ontem, mas sim do dia em que a mãe de Olivier casou com o conde de Mombrun. Tem de fazer justiça à minha sinceridade. Não lhe afirmo que nunca amei... mas como a amo a si, com este ardor, esta violência, esta obsessão exclusiva e ciumenta, juro que é a primeira vez. E admira-se por eu odiar os de Mombrun!

A frase terminou num riso cruel. Sabina abandonara havia instantes o apoio das costas da poltrona. Instintivamente, recuou. Rosanne notou-o e protestou, desolado:

- Não tema o meu amor, madame. É feito de respeito, submissão e o desejo de não lhe desagradar.

- Que espera então de mim?

A pergunta a custo passou pelos lábios trémulos, mas o preceptor não deu por isso.

- Que abandone a barca antes dela se afundar - murmurou - A minha vida pertence-lhe, já lho afirmei. Se quiser, essa vida será uma sequência de horas consagradas a adorá-la, a tornar a sua feliz e radiosa. Não calcula o que dois entes como eu e madame podemos realizar! Não imagina que aventura maravilhosa será a nossa união, a sua beleza e mocidade unidas à minha força, ao meu conhecimento dos seres e das coisas! Não avalia quanto, se deixar o Renaud, pode encontrar a meu lado!

- Miserável!

Havia muito tempo que esta palavra queimava os lábios de Sabina para que pudesse continuar a calá-la. Não o lamentou, apesar do sobressalto de Rosanne e da violência que, de súbito, lhe transtornou o semblante.

- Recusa? - inquiriu com voz surda.

- Seria uma humilhação para mim, se tivesse suposto que, mesmo por um instante, eu hesitava.

O som da própria voz restituiu-lhe a coragem e firmeza e afigurava-se-lhe que as palavras que do mais fundo do coração lhe subiam aos lábios purificavam a atmosfera da sala, impregnada de ódio e de traição.

Rosanne, talvez pela primeira vez, avaliou os sentimentos da condessa a seu respeito, pois soltou uma exclamação abafada.

- Defende aquele homem que casou consigo sem amor, que a tem humilhado, abandonado à solidão, e cujo desdém e indiferença são cada dia mais evidentes?

Sabina não proferiu uma palavra, mas o olhar que sustentava o de Rosanne foi para este suficiente resposta.

Levou a mão aos olhos, enquanto se amparava com a outra à pedra do fogão. Dir-se-ia que, de súbito, o cegava uma claridade ofuscante, cujo brilho não podia suportar.

Por fim endireitou-se e declarou com esforço:

- Não aceito a sua recusa, madame. Concedo-lhe até amanhã para reflectir e sem dúvida revogá-la.

Calma, a despeito da mal disfarçada ameaça, a condessa respondeu:

- O tempo e a reflexão, durem quanto tempo durarem, não podem inspirar-me outra resolução. Pode considerar a minha resposta como difinitiva.

Ele sorriu.

- Seria pena - murmurou - principalmente para o Renaud.

Depois de dizer estas palavras, afastou-se do fogão e dirigiu-se para a porta. Prestes a abri-la, voltou-se para Sabina:

- Estou desolado por tê-la demorado tanto tempo nos meus aposentos, sem atender à sua fadiga e ao seu estado. Mas, esta... troca de impressões impunha-se, tornava-se imprescindível. Tenho esperança de que não fosse inútil. No entanto, não poderíamos prolongar a conversa, porque o dia está a romper. Desejo-lhe algumas horas de repouso absoluto, madame.

Com infinita precaução, entreabriu o batente da porta e quando Sabina, com a cabeça altivamente levantada, passou junto dele, murmurou:

- Não esqueça, madame. Aguardarei a sua decisão... digamos... até ao meio-dia!

Instantes depois, Sabina, tendo atravessado o corredor e entrado no seu quarto, apoiou-se desfalecida contra a porta fechada. As forças atraiçoavam-na. Ficou assim por muito tempo com os olhos fechados e a cabeça pendida para o peito. Depois, apoiando-se à parede, seguiu cambaleante, estendeu os braços e caiu em cima da cama.

 

Quando, de manhã muito cedo, Denise entrou no quarto da condessa de Mombrun, encontrou-a a dormir. Tudo estava em ordem, os vestidos dobrados nas costas de uma cadeira.

Coisa alguma revelava o que se passara na noite anterior.

Por entre os cortinados corridos, filtravam-se as primeiras claridades do dia, pálidas e frias como a lâmina de uma espada. Os móveis e outros objectos destacavam-se batidos pela luz da lâmpada de cabeceira, que ficara acesa, pois o sono devia ter abatido de improviso Sabina, tanto que junto dela ainda se viam o copo e o frasco das gotas que deveria ter utilizado para encontrar repouso.

Denise saiu na ponta dos pés.

No gabinete contíguo ao seu quarto, Renaud aguardava ansioso. Lorde Ralph, que se encontrava junto dele, afastou-se discretamente quando a criada de quarto entrou.

O conde escutou-a de pé, junto da janela, com o olhar perdido no horizonte e quando esta se calou, ordenou-lhe:

- Não deixe a senhora, Denise. Desejo que, sentada num canto do seu quarto, aguarde o despertar. Acima de tudo, quero que ninguém a incomode e a perturbe. O médico só virá perto do meio-dia.

Quando a rapariga se retirou, de Mombrun voltou para o amigo o rosto transtornado pela cólera e pela angústia.

- O que me revelaste sobre a tentativa criminosa de que a Sabina foi vítima, assusta-me a um ponto que receio tudo... Não posso suportar a ideia de que minha mulher fique sozinha à mercê de uma miserável...

Fez um gesto de desânimo e de impotência e concluiu:

- E não posso ser eu o seu protector! Ralph, como pago caro um momento de loucura!

Lorde Murray não lhe respondeu, mas, na sinceridade de uma sólida e sincera amizade, lamentava Renaud, cujo desespero avaliava.

- Não posso ser-te útil em qualquer coisa? - perguntou decorridos alguns instantes, enquanto o conde, com a cabeça pendida para o peito, se entregava a dolorosos pensamentos.

- Não, meu amigo, não podes. Não modifiques os teus projectos e, visto teres determinado partir, não te atrases. Dei ordem para aprontarem um dos carros.

- Obrigado. Mais uma coisa. Terás bastante força em ti para que ninguém suspeite...

Renaud soltou ligeira gargalhada.

- Podes ir sossegado. Sei muito bem ocultar os meus verdadeiros sentimentos. Desafio Dorah Rosanne a descobrir mais alguma coisa do que aquilo que me apetecer deixar-lhe perceber.

Juntos, desceram à sala de jantar, onde tomaram o pequeno almoço em silêncio. Mais tarde, Alberto veio dizer que já tinha levado a bagagem de lorde Ralph para o carro. No vestíbulo, o conde auxiliou-o a vestir o sobretudo e acompanhou-o até ao automóvel, que o motorista trouxera para junto da escadaria. Pouco depois, o ruído do motor desvanecia-se ao longe e Renaud, imóvel no limiar da porta, não ouviu mais do que o marulhar das ondas, monótono e regular.

Não estava frio, mas apenas húmido, esse tempo que na Bretanha chamam "tempo branco". Contudo, perto do meio-dia, o Sol conseguiu romper as nuvens e envolveu Pierreclose com a sua pálida claridade, dando um ar mais alegre às velhas paredes enegrecidas.

A condessa havia despertado pouco antes. Através dos cortinados de damasco, um raio de sol suave e doirado batia numa das tapeçarias da parede, fazendo sobressair os contornos de um barco pirata e a sombria figura de proa, sobre o fundo azul profundo do céu. Foi este pormenor que, brutalmente, chamou Sabina à realidade e às recordações do dia anterior.

Quando a ouviu mexer, Denise aproximou-se. A condessa olhou-a admirada, mas não protestou quando a criada lhe deu a conhecer a ordem dada por Renaud de se conservar no quarto até ela acordar.

A criada auxiliou-a a levantar-se. Momentos depois, tendo terminado a toilette, Sabina, envergando elegante roupão, estendeu-se na chaise-longue que ocupara na véspera à tarde.

De novo, os pensamentos obsidiantes e dolorosos se lhe atropelaram no cérebro como um enxame de borboletas assustadas. Tentou expulsá-los, mas tudo, até os mais vulgares ruidos da vida do castelo, a mergulhavam de novo na sua angústia.

Por fim, decidiu-se a perguntar à criada, que ainda se encontrava no quarto:

- Lorde Ralph ainda está no castelo, Denise?

- Não, madame. Lorde Murray já abandonou Pierreclose.

Sabina estremeceu e soergueu-se nas almofadas.

- Então já é muito tarde?

- Quase dez horas, madame.

Sabina apertou os lábios com violência para reter uma exclamação. Dez horas... e Rosanne concedera-lhe até ao meio-dia para reflectir na sua proposta vergonhosa.

Não porque hesitasse. Não, a sua resolução estava, desde a véspera, firmemente tomada. Nunca mais, tentasse ele o que tentasse, fosse qual fosse a ameaça indirecta de que se servisse, Sabina se encontraria na presença daquele homem ou, pelo menos, se exporia a escutar da sua boca protestos de uma paixão odiosa. Mas a revelação do ódio implacável que perseguia Renaud assustava-a.

Que faria Rosanne? Com que actos positivos traduziria as suas intimações? O que iria tentar?

Sabina teve um calafrio de medo. Sabia que o preceptor era implacável e estava friamente decidido a vibrar rude golpe ao nome de Mombrun, que odiava, um golpe inesperado e decisivo. Pressentia-o prestes a esmagar Renaud para satisfazer sobre ele a execração votada a todos os outros de Mombrun, um ódio que, por muito tempo reprimido, agora se manifestava com triunfante violência.

Rosanne estava ao facto das actividades nocturnas desenroladas em Pierreclose!

Pelas onze horas, o médico pediu para ser recebido por Sabina. Entrou no quarto acompanhado por Renaud. A condessa ficou aterrada com a sua palidez e alteração das feições.

Com esforço, o conde inquiriu do seu estado, fixando-a com ardente atenção, como se duvidasse das palavras tranquilizadoras que Sabina lhe dizia.

Pouco depois, de resto, o médico, por sua vez acalmou as inquietações do conde. Examinou o ombro da condessa e achou-o no caminho da cicatrização. Talvez, de si para si, a encontrasse demasiado fatigada para tão benigno ferimento, mas o mal era fácil de remediar. Prescreveu-lhe absoluto repouso por alguns dias, poucos ou muitos, conforme ela avaliasse as suas próprias forças.

- Madame de Mombrun pode descer à sala de jantar? - inquiriu Renaud.

- Com certeza... se ela quiser - respondeu o médico, a rir - Salvo se Pierreclose tiver muitos hóspedes que a fatiguem com conversas, durante as refeições.

- Só aqui nos encontramos mademoiselle Rosanne e eu - declarou Renaud - Lorde Murray abandonou o castelo e Rosanne, que conta sair ao meio-dia para ir a X... almoçará no quarto, conforme me comunicou.

- Sendo assim, madame de Mombrun com certeza terá muito prazer em os acompanhar. Vou dar estas boas notícias a madame de Kergoêl, a quem prometi passar pelo pavilhão, no regresso do castelo.

Quando o médico saiu com Renaud, Sabina levantou-se muito agitada. Das frases que acabavam de ser pronunciadas, algumas palavras se destacavam, inscrevendo-se com traços fulgurantes de luz nas trevas em que o seu espírito se debatia.

Rosanne partia para X... para quê? Por que razões? Com que intenções?

Começou a passear de um lado para o outro no quarto. Estava certa de que a viagem do preceptor estava relacionada com as suas ameaças. Mas como?

Em vão, enquanto continuava no seu passeio febril, tentava desvendar o mistério terrível, descobrir razões para temer, cuja revelação seria cem vezes preferível à incerteza e ansiedade que a dominavam.

O relógio do corredor, que, desde a primeira noite passada em Pierreclose, media a sua vida, pelo menos era essa a sua impressão, bateu as doze badaladas do meio-dia.

Sabina estremeceu. Depois sentiu-se como que aliviada. Nunca tivera tenção de ceder e a consciência do irreparável trazia-lhe como uma espécie de alívio.

Mas essa impressão não durou muito. Pouco depois, a entrada de Denise dissipou-a. A criada de quarto vinha avisar Sabina de que o conde a aguardava na sala de jantar.

A condessa abanou a cabeça.

- Não vou almoçar, Denise.

E, para justificar esta recusa sem despertar inquietações ao marido, concluiu.

- Sinto-me bem, mas não poderia vestir-me correctamente e não quero apresentar-me assim...

Ao mesmo tempo, relanceou um olhar ao roupão e sorriu para a criada. Esta limitou-se a concordar:

- Está bem, madame.

Quando ela ia a sair, Sabina perguntou:

- O senhor Rosanne está ausente do castelo, não é verdade?

- Apenas esta tarde, madame. Quando atravessava o vestíbulo, há pouco, encontrei-o e ele pediu-me notícias da senhora condessa. Quando soube que eu vinha ao seu quarto, declarou que aguardaria o meu regresso e notícias da senhora, antes de sair.

Sabina não lhe respondeu e desviou o rosto para não deixar ver à criada a sua perturbação.

Rosanne ainda esperava e aquele momento de espera era a última oportunidade que lhe concedia!

Rapidamente, ordenou a Denise que saísse, concordando com tudo que esta lhe propunha para o almoço.

Pouco depois, tendo tentado em vão tomar algum alimento, parou diante de uma das janelas. Sob o céu carregado de nuvens, o mar cinzento ondulava, movediço e calmo.

As ilhotas escuras, semelhantes ao dorso de enormes cetáceos brincando na água, imergiam por vezes da espuma de neve, deixando ver, de longe em longe, todas as suas perigosas arestas. Por vezes, pálido raio de sol atravessava as nuvens, sem, contudo, se reflectir no mar. Nunca o ambiente que rodeava Pierreclose parecera a Sabina tão calmo, em contraste com a própria agitação.

Almoçou em pequena mesa, colocada por Denise perto do fogão. Em seguida começaram a desenrolar-se as intermináveis horas da tarde...

Depois anoiteceu. As lâmpadas acesas espalharam pelo quarto uma claridade brilhante, mas não conseguiram dissipar a angústia de Sabina. Ainda admitiu a hipótese de ir ao pavilhão avisar lorde Ralph.

Mas avisá-lo de quê? Das ameaças proferidas por Rosanne? Eram demasiado pessoais para que Sabina as revelasse. No entanto, não teria hesitado em fazê-lo se essa confissão fosse útil para a segurança de Renaud.

Murray jà devia saber que o preceptor surpreendera as estranhas actividades que ele, Sabina e madame de Kergoêl não ignoravam. Mas era demasiado tarde para o avisar e, além disso, Sabina sentiu que abandonar o quarto, sair e percorrer a pé a distância que a separava do pavilhão seria verdadeira loucura.

Ralph encontrava-se em casa de madame de Kergoêl, onde tencionava demorar-se muitos dias, conforme lhe dissera. Logo que se considerasse com forças para o fazer, iria visitá-lo e pô-lo-ia ao facto de tudo. Renaud não estava ameaçado por qualquer perigo, pelo menos um perigo próximo.

Desde que formulou esta certeza, não deixou de a repetir mentalmente para se tranquilizar. Nem mesmo tentou interessar-se pela leitura do livro que, durante toda a tarde, abrira e fechara muitas vezes. Nas páginas onde dançavam os pequenos caracteres pretos, outras palavras se inscreviam que transtornavam, apagavam e dominavam tudo: "O Renaud não está em perigo. Não está "ainda" em perigo..."

Apesar de todas as tentativas, não fez honra ao jantar que Denise lhe levou pelas oito horas. Um pouco mais tarde, a criada levou para a cozinha as travessas quase intactas.

Sabina ignorava se Rosanne já havia regressado. Do seu quarto, não podia ouvir o ruido do carro de regresso a Pierreclose e Denise, interrogada como por acaso, não soube informá-la.

"O Renaud não está em perigo, não está "ainda" em perigo..."

Como teria Rosanne empregado o seu tempo em X... e o que fora lá fazer, ele que não gostava de se afastar do castelo? X... era uma cidade sem importância, onde o preceptor não tinha conhecimentos e que não apresentava, segundo Sabina supunha, qualquer interesse especial. Não, nada de especial, nada... excepto...

Violenta comoção abalou a condessa: "Excepto um posto alfandegário!"

Comprimiu o peito com as mãos. Afigurava-se -lhe ter apanhado, de súbito, violenta pancada. Um posto alfandegário! Como não lhe ocorrera que a vingança mais segura e rápida de Rosanne consistiria em denunciar o tráfico ilegal ao qual Pierreclose servia de teatro?

Abandonou a chaise-longue e começou a passear com agitação no quarto. Não tentou afastar o obsidiante pensamento ou pôr em dúvida a verosimilhança da suspeita. Mais do que suspeita, era uma certeza. Sentia mesmo uma espécie de irritação contra si própria, por não a ter tido mais cedo.

"Felizmente - pensou, mais aliviada com a súbita ideia - Felizmente, lorde Ralph poderá tomar providências antes das barcas chegarem.

Supôs que o preceptor ia sugerir a preparação de uma espera para apanhar ao mesmo tempo o chefe da organização e os seus cúmplices. Estava certa de que a partir dessa noite o castelo ia ser vigiado.

Avisar Murray, como primeiro pensara, não lhe pareceu possível. A sua saída não passaria despercebida. Seria seguida.

No fundo, não temia qualquer coisa por si mesma, mas achava pouco hábil atrair a atenção para Pierreclose, quando podia muito bem no dia seguinte, sem que achassem isso estranho, ir visitar o pavilhão.

Naquela noite não tentariam coisa alguma e não devia proceder com precipitação, visto o perigo não ser iminente.

A canoa com o contrabando viera atracar à praia do Corsário na noite da antevéspera e a que o levara, na noite anterior. Portanto, devia decorrer uma semana, pelo menos, antes de empreender outra excursão.

Mas, de repente, quando se preparava para se estender de novo na chaise-longue, uma ideia lhe ocorreu que a fez pôr de pé com o coração palpitando a ponto de quase a sufocar.

Era verdade que as canoas chegavam duas noites seguidas e, de ordinário, depois da dupla viagem, durante oito dias reinava a calma em volta do castelo. Mas, durante a velada que fizera com lorde Ralph, não haviam ambos notado que a canoa parecia mais leve e mais ligeira quando partira e suposto, sem ligarem grande importância ao pormenor, que essa canoa viera descarregar mercadoria na praia do Corsário, em vez de a levar?

Se esta suposição estava certa, tornava-se evidente que no dia seguinte um barco maior do que o habitual viria buscá-la. E esse dia seguinte era, justamente, naquele em que se encontravam. Já anoitecera e a noite alta depressa chegaria.

Que horas poderiam ser? Havia muito tempo já, parecia-lhe, que Renaud mandara Denise saber como estava e que esta se retirara, dando-lhe as boas-noites. Sabina consultou o relógio colocado sobre a mesa de cabeceira. Os ponteiros indicavam onze horas.

Sem hesitar um segundo, levantou-se, dirigiu-se ao toucador, compôs a toilette e penteou-se com gestos febris. No momento de se embrulhar de novo no roupão, voltou a hesitar. Deixou cair os braços e ficou, durante alguns instantes, mirando com olhar ardente o rosto lívido reflectido no espelho, como se pensasse melhor ao contemplar a sua própria imagem. Mas nessa hesitação foi breve. Apertou o cordão de seda em volta da cintura e, depois de apagar a luz, saiu do quarto.

Devagar, percorreu a galeria e passou diante do quarto de Rosanne. Ele estaria à espreita? Se assim era, coisa alguma o atraiçoou.

Dois ou três minutos depois, parou diante da porta do quarto de Renaud e de novo hesitou antes de a abrir. Mais uma vez perguntava de si para si se devia avisar o marido e comunicar-lhe o seu receio de que a partir dessa noite Pierreclose estivesse vigiado. Se de Mombrun decidira descer à porta do Corsário e presidir, como sempre, ao carregamento das mercadorias, não conseguiria dissuadi-lo apenas com palavras. Pelo contrário, ele tentaria o impossível para avisar os seus homens e cometeria imprudências que se impunha evitar, fosse por que preço fosse. Antes de mais nada, era preciso que o conde não descesse à praia. As canoas, por certo, só se aproximariam depois de terem recebido resposta ao sinal luminoso que faziam do mar. Se não recebessem essa resposta, os contrabandistas não acostariam.

Este raciocínio varreu as últimas hesitações da condessa. Bateu ao de leve na porta e quase imediatamente se encontrou em presença de Renaud. O conde ficou imóvel, pálido de espanto e quase de terror.

- Sabina, que tem? Está pior? - conseguiu por fim perguntar.

Ela tranquilizou-o com algumas palavras e penetrou no aposento.

Era a primeira vez que ali entrava. A despeito da sua perturbação, percorreu com o olhar o quarto guarnecido com belos móveis escuros, de linhas simples, que faziam sobressair os cortinados de seda exótica. Uma profusão de objectos raros e curiosos, trazidos pelo conde das suas viagens, estava espalhada por todos os lados. No chão, peles de animais, mortos sem dúvida por Renaud.

Ao fundo, numa alcova, a enorme cama de madeira esculpida, coberta com uma manta feita de peles fulvas de raposa, não estava aberta. Segundo as aparências, Renaud não tencionava ainda deitar-se.

Por momentos, Sabina olhou-o e notou que tinha trocado o fato que trouxera durante o dia por um trajo de caça e calçara sapatos fortes e abotinados. A canadiana e o chapéu encontrava-se em cima de uma cadeira, ao alcance da mão.

- Vai sair? - balbuciou ela.

O conde hesitou antes de responder.

- Vou - disse por fim.

Logo a seguir, fosse para distrair a atenção de sua mulher ou por verdadeira ternura e inquietação, pegou-lhe nas mãos e levou-a para debaixo do lustre a fim de lhe ver melhor o rosto.

- Como está pálida! - murmurou com voz desolada, decorridos alguns instantes - Minha pobre Sabina! Se soubesse como os remorsos me torturam, por ter sido eu o causador do acidente!

Ela sorriu-lhe com coragem.

- Tudo isso passou - murmurou - pertence ao "passado".

- Mas não esquecerei - afirmou Renaud com amargura - a dor, o pesar; nunca mais se desvanecerá o pensamento obsidiante de que lhe atirei um tiro.

Calou-se de repente. O tom em que sua mulher pronunciara as últimas palavras voltou-lhe à memória e só então notou que dissera "o passado"! E em que voz. Com que firmeza, intencional sem dúvida, que parecia repelir para bem longe e enterrar no esquecimento tudo quanto ficava para trás!

Olhou-a com atenção. Sabina estava diante dele, ainda abatida sem dúvida, com olhar brilhante e agitada por leve tremor.

- Que deseja, Sabina? - inquiriu com voz alterada - Não veio aqui sem um motivo...

A condessa confirmou com a cabeça, mas não conseguiu falar e Renaud notou que tremia.

- Sente-se - pediu ele, recuperando o domínio próprio - aqui, neste divã. Tenta reagir, mas vê-se que está extenuada. Suplico-lhe me permita que a acompanhe ao quarto.

Sabina não lhe obedeceu. Afastou-o brandamente com a mão e ficou algum tempo com os olhos baixos e o coração palpitando com tanta força que receava o ouvisse o marido.

Por fim, levantou a cabeça e com as faces ruborizadas respondeu:

- Não vim aqui para me retirar tão depressa, Renaud.

Ele olhou-a com espanto, não sabendo qual o sentido a atribuir a estas palavras.

- Sente-se pior, Sabina? - inquiriu - Não quer estar só? É isso?

Sem aguardar a resposta, iludindo-se com a estranha expressão de sua mulher, continuou:

- Não tenha vergonha de confessar essa fraqueza. Resulta do seu estado de nervos e sou eu o responsável por isso, como por todo o resto. Antecipou-se às minhas intenções, manifestando o desejo de uma companhia. Já ontem quis que a Denise passasse a noite junto de si. Pode passar a de hoje instalada na sua chaise-longue.

Ao mesmo tempo, dirigiu-se para a porta. Sabina, porém, não o seguiu. O conde parou, manifestando a maior surpresa. Discretamente, consultou o relógio de pulso e pareceu inquieto. No entanto, voltou para junto de sua mulher e, meigo e paciente, indagou:

- Não adivinhei o seu desejo? Há mais alguma coisa, Sabina?

Com súbita resolução, ela afirmou:

- Sim, hà mais alguma coisa.

- Então diga... Não adivinha a minha ansiedade, o meu desejo de saber?

Estranho sorriso perpassou pelos lábios da condessa. A ansiedade não seria antes por estar livre e sair do castelo?

Renaud estava a seu lado e no belo rosto moreno que se inclinava para ela, nos olhos claros, reflectia-se quase angústia.

Mais alguns segundos de silêncio decorreram.

Por fim, Sabina declarou numa voz surda:

- Renaud, ontem assegurou-me que um dia eu me deixaria comover pelos seus remorsos e corresponderia ao seu amor. Esse dia chegou. Não quero demorar por mais tempo as palavras que deseja ouvir: "Renaud, creio em si, tenho confiança e vou tentar amá-lo!"

A última frase foi pronunciada quase num sopro. No entanto, Renaud não perdeu uma única palavra. Deu um passo atrás e, desvanecida a primeira impressão de espanto, radiosa alegria lhe iluminou o semblante.

- Sabina! - exclamou em voz surda - Sabina, falou verdade?

- Falei - respondeu ela, sempre no mesmo tom.

O conde estava muito comovido para notar o esforço que sua mulher fazia para falar. Aproximou-se dela, tomou-a nos braços e poisou nos dela os seus lábios ardentes, num beijo prolongado.

Mas, quando a observou melhor, ficou aterrado com a sua palidez. Teve mesmo a impressão de que, ao afrouxar o abraço, sua mulher cambaleava. De novo a apertou contra o coração.

- Meu amor - murmurou - que aconteceu?

Depois afastou-a um pouco de si para melhor a observar.

Sabina tentou sorrir, mas o conde não se deixou iludir.

- Estás esmagada pela fadiga, meu amor. Permite-me, conforme hà pouco te propunha, que te acompanhe ao quarto. Amanhã será o mais belo dia que esta casa conheceu hà muitos anos, a casa onde poderemos construir o nosso futuro na paz e na alegria.

Com o braço direito envolveu os ombros de Sabina para a levar até à porta, mas sentiu-a resistir e ela, antes que pudesse admirar-se, libertou-se.

Apenas desejava uma coisa. Ganhar tempo! Santo Deus, ganhar tempo!

Maquinalmente, Renaud voltou a consultar o relógio e o brilho das pupilas claras, a sua doçura luminosa obscureceu-se. Esforçando-se por conservar a calma, insistiu:

- Vem, Sabina.

- Mais tarde.

O conde parou, hesitante, a poucos passos do divã.

Sabina dirigiu ao marido um olhar suplicante.

- Deixa-me ficar ainda alguns instantes, Renaud - murmurou.

O conde estremeceu e a sua fraqueza exteriorizou-se numa espécie de lamento.

- Deixar-te ficar? - repetiu - Não posso.

Um lampejo mais vivo atravessou as pupilas de Sabina. Depois cerrou as pálpebras, perturbada por esta confissão. Então era verdade, coisa alguma poderia impedir

Renaud de sair naquela noite!

Além disso, devia estar na hora. Sabina encontrava-se ali no quarto havia muito tempo e o sinal luminoso jà devia ter sido feito.

As rápidas visões suscitadas por este pensamento fortaleceram-lhe a coragem. Excitada, dominou o pejo que a fazia corar até à raiz dos cabelos e estendeu as duas mãos ao marido.

- Que importa o que te chama esta noite!... Nada pode ser mais importante do que eu e tu...

- Por amor de Deus, Sabina! - suplicou Renaud - Não me roubes a coragem. Se soubesses quanta me é precisa para te deixar!

Desprendeu-se-lhe das mãos e deu um passo para a poltrona, nas costas da qual estava a canadiana. Num gesto irreflectido, ela correu para ele e, encostando a cabeça ao peito robusto, suplicou em voz trémula e surda:

- Renaud, Renaud... suplico-te, peço-te. Não penses noutra coisa senão em nós e no nosso amor, esta noite. Que importam os outros cuja vida não é a nossa, cujo coração não palpita como o nosso?... Amanhã, dizes tu?... O que será o amanhã?... Não será uma loucura deixar passar esta hora sem a aproveitarmos?

Havia momentos jà que Sabina deixara de lutar contra outra vontade que desejava vencer. Arrastada pelos próprios sentimentos, não era mais do que uma mulher apaixonada e o seu ardor, pouco a pouco, contagiava Renaud.

Jà não a afastava de si. Pelo contrário, apertava-a contra o peito, apoiava a face aos lindos cabelos negros e o rosto, de olhos cerrados, revestira-se de intensa palidez.

- De facto, que importa? - repetiu com voz mudada.

E, como se de repente só uma coisa contasse para ele, continuou:

- Que importam as descobertas do Ralph, as suas suspeitas e os seus receios! Que importa tudo quanto se agita em volta de Pierreclose e o encontro ao qual não devia faltar! Que importa a pessoa que dirige tudo isto, que se oculta por trás deste mistério! Todas essas coisas têm menos importância para mim do que um só beijo da tua boca, Sabina! E só há poucas horas as conheço, quando te amo e espero há muitos meses!

A tremer, a condessa escutara as frases entrecortadas e ardentes. Essas frases... a confissão da sua culpabilidade que sem querer ele deixava fugir.

Mas não! As últimas palavras fizeram-na estremecer e o conde sentiu-a retraída nos seus braços

- O que foi? - perguntou com ternura.

Sabina aprumou-se, afastou a madeixa ruiva que lhe tombara para a testa e interrogou, com uma espécie de violência:

- Hà algumas horas, disseste?... Que soubeste apenas hà algumas horas?

Renaud passou a mão pela testa como se tentasse coordenar ideias. Apesar das palavras que acabava de proferir, o seu coração e o seu espírito não se afastavam de Sabina e não consentiam que ela lhe fugisse.

- Tudo quando poderia dizer-te é muito obscuro e não se me afigura ser agora o momento mais próprio.

Em toda a evidência, estava longe de calcular que sua mulher sabia, mas ela insistiu.

Então, resumidamente, disse-lhe que Murray, depois de muitas hesitações, nessa mesma manhã o pusera ao facto das actividades fraudulentas de que Pierreclose era o centro. Iludindo-se com o silêncio de Sabina, que tomou como espanto e talvez incredulidade, prosseguiu:

- Ralph teve conhecimento dessa organização de contrabando por acaso. Uma tarde prenderam em flagrante delito um caçador furtivo, que caçava nas propriedades de lorde Duncan, seu cunhado, e essa captura sem importância lançou Murray sobre uma pista inesperada. O homem foi preso por caçar, portanto, nenhum dos seus cúmplices podia desconfiar. Revistando-lhe os papéis antes que a polícia chegasse, lorde Murray ficou muito surpreendido por encontrar uma planta de Pierreclose. Sem que eu soubesse, veio à Bretanha para tentar descobrir quem fazia o contrabando, ou antes, "quem" dirigia a organização, mas não o conseguiu. Receava a minha violência e as minhas reacções. Não quis alarmar-me sem provas e não me avisou logo. Somente ontem, depois de ter assistido a uma fase da operação e adquirido a certeza de que alguém, vivendo no castelo, tomava parte nela, tomou a resolução de me prevenir. Murray disse-me também que outra expedição deveria realizar-se esta noite e sugeriu-me que fosse ter com ele para tentar identificar quem...

Calou-se um instante e explicou em voz ainda mais baixa:

- Antes de meter a polícia no assunto, importa ter a certeza de que o nome de Mombrun não está envolvido nisto. Eis a razão por que lutei tanto contra ti e contra mim, Sabina. A promessa feita ao Ralph, a quem não quero deixar sozinho, a preocupação de salvar a honra do meu nome e muitas outras apreensões dolorosas chamam-me à praia do Corsário. Mas os teus braços prenderam-me e eu estive quase a ceder à tentação!

Mas as palavras que acabava de pronunciar, tudo quanto contara, afastavam todas as tentações. No rosto reflectiu-se-lhe a mais firme resolução. Impunha-se sair.

Sabina adivinhou que perdera a partida.

Sentia-se desvairar. A alegria que experimentara ao escutar a narrativa de Renaud extinguira-se. A dúvida persistia. Santo Deus! Como desejava saber! Saber se a ignorância de Renaud era real ou se, ao afirmar ter de se reunir a lorde Murray, não fazia jogo duplo.

Consciente do tempo perdido, o conde vestiu a canadiana. Num desespero, Sabina tentava descobrir o meio de o prender.

Quando se voltou, o conde viu Sabina diante da porta. Como parasse surpreendido, ela murmurou com os dentes cerrados.

- Não sairás.

Renaud observou-a com atenção. Depois, arrebatado por um impulso de cólera, as pupilas quase negras, exclamou:

- Dir-se-ia que defendes alguém?

- Talvez.

A estas palavras seguiu-se profundo silêncio. E, de súbito, o conde encaminhou-se para sua mulher, agarrou-a pelos ombros e inclinou-se para o rosto pálido e transtornado.

- Quem? - interrogou com voz surda - Quem?

Sabina não conseguiu reprimir surdo gemido, porque Renaud esquecera o ferimento, na ânsia louca de saber. Mas ela, no desejo firme de ganhar tempo, não se mexera.

Foi ele quem, muito pálido, recuou.

- Peço-te perdão...

Durante alguns instantes fixou-a com olhar doloroso, o semblante contraído pela dor.

- E dizer - murmurou surdamente - que não vi coisa alguma, de nada desconfiei I Pensar que nas minhas saídas à noite, quando ia à coudelaria, nunca...

Não terminou, porque Sabina o olhava com espanto.

- As tuas saídas? - interrogou ansiosa - Ias à coudelaria?

- Ia. Parece-te estranho?... Declarou-se ali uma epidemia muito grave que necessitava tratamentos de dia e de noite. Muitas vezes fui assistir a uns e a outros.

Vivíamos muito separados - continuou com amargura - e tu punhas entre nós tão grande barreira de indiferença que ignorávamos os mais simples pormenores da nossa mútua vida.

Calou-se de súbito, e depois soltou uma exclamação abafada. Acabava de adivinhar, como se repentino relâmpago lhe tivesse rasgado o espírito, os pensamentos e suspeitas de sua mulher.

- Pudeste supor, Sabina, pudeste supor...

A condessa não teve tempo para lhe responder. Là fora, longe, um tiro soou, depois outro e, mais precipitados, outros dois.

Com súbita ansiedade, os dois esposos entreolharam-se. Depois Renaud correu para a janela e abriu-a. Sabina seguiu-o. Juntos, debruçaram-se, tentaram perscrutar as trevas.

Em baixo, junto do castelo, agitavam-se vultos, mas com a escuridão tornava-se impossível reconhecê-los.

- Meu Deus! - murmurou de Mombrun - contanto que não tenha acontecido nada ao Ralph.

Atravessou o quarto a correr e, sem que dessa vez Sabina tentasse impedi-lo, abriu a porta, percorreu o corredor e desceu para o hall.

Debruçada no corrimão, Sabina, meio desfalecida, viu a grande porta de entrada abrir-se e estranho cortejo entrar no castelo. A frente vinha Murray. Atrás dele dois homens transportavam um corpo imóvel e, por fim, três desconhecidos fechavam o cortejo. E Sabina viu então que os seus receios eram fundados. Rosanne fizera uma denúncia aos serviços alfandegários. O grupo parou um instante.

- Uma desgraça - murmurou Ralph para o amigo.

E um dos homens interveio para se desculpar a ele e aos companheiros:

- Como não respondesse à nossa intimação, atirámos. Primeiro para o ar como aviso e depois, como tentasse fugir...

Não concluiu. De resto, Renaud nem o ouvia. Aproximou-se do corpo, debruçou-se para ele e voltou a erguer-se, soltando abafada exclamação.

- Está morta, Ralph? - perguntou.

Lorde Murray abanou a cabeça.

- Apenas ferida, mas, por certo, com gravidade.

- Vamos! - ordenou Renaud com concisão.

Carregados com o seu fardo, os homens dirigiram-se para a escada. E, enquanto subiam, Sabina ia distinguindo melhor o corpo delgado, envergando um trajo masculino, a canadiana com a gola levantada, o rosto de feições duras, agora lívido, com os olhos fechados.

Silencioso, o grupo passou pela sua frente. Então Sabina fez um esforço e, arrancando-se à sua prostração, seguiu-o a fim de prestar os primeiros cuidados a Dorah Rosanne.

 

Condessa de Mombrun ao conde Renaud de Mombrun

Pavilhão, 24 de Abril

"Renaud, Renaud vem buscar-me! Não, não venhas. Serei eu quem irá ter contigo. Por muito tempo consegui iludir este desejo louco de te ver, mas agora muitos meses passaram e não consigo estar mais tempo longe de ti, assim como não consegue dominar-se a força ardente e cega da Primavera.

"O meu coração dilata-se à medida que surgem os novos rebentos e bate loucamente ao ritmo das fontes. Estremece e magoa-me o peito como a planta magoa a terra que rebenta quando pretende brotar do solo.

"Esqueci tudo, Renaud. Tudo e todos. Todos os seres nefastos que viveram junto de nós e a quem, por fim, afastaste. Todos aqueles que abandonaram para sempre a nossa casa, aqueles cujos olhos carnais nunca mais verão a vida. E em Pierreclose só existe agora uma imagem, a tua. É para ela, para que se transforme numa magnífica realidade, ardente e viva, é para ela, meu amor, que eu estendo os braços. Não sofremos jà bastante, Renaud, não esperámos demasiado? Assim o creio. Sabes que, durante as noites solitárias que vivi, ouvi muitas vezes o teu coração chorar por mim, como choram as árvores durante a tempestade?... E queres saber ainda? Sem revolta, curvei a cabeça, ansiosa, mas decidida a suportar este noviciado de horas cruéis, durante as quais os nossos corações dilacerados se preparavam para receber a felicidade!

"Mas já passaram muitos dias desde aquele em que me conduziste ao pavilhão, me confiaste a Odília e me arrancaste a promessa de viver afastada de Pierreclose, sem tentar ver-te! Não disseste quando terminaria a provação. "Quando estiveres segura dos teus sentimentos, Sabina..." afirmaste. Segura de mim! Santo Deus! Segura de mim! Quando a porta do pavilhão se fechou atrás de ti, quando, segundo a segundo, os teus passos se desvaneceram no caminho, eu jà estava tão segura de mim e do meu sofrimento que suplicava misericórdia, chorando!

"Como foi duro este Inverno para a minha solidão, só Deus o pode saber! Por vezes, nos dias mais tristes, lançava a capa sobre os ombros, abandonava o pavilhão e seguia pelos caminhos que tanta vez percorreste. Não desejava encontrar-te, visto mo teres proibido, nem tão-pouco ir ter contigo, pois temia pensasses que ainda não chegara a hora, mas apenas ver a casa que te abrigava. Muitas vezes acompanhei lorde Ralph, quando, depois de nos visitar, se ia embora. E pode ser que alguma vez te dissesse com que esforço eu me afastava e voltava para trás.

"Meu amor, daqui a pouco abandonarei o pavilhão e desta vez será para sempre. Disse-o à Odília e ela aprova-me. Vi nos seus olhos uma chama de íntima alegria, porque a nossa felicidade permitirá que realize a sua, da qual nem ela nem lorde Ralph se atreviam a falar.

"Eu vou. A tempestade passou sobre a nossa casa, a nossa casa que me espera como nós purificada e como nós sem ódio por aqueles cuja recordação se espalhou ao vento da charneca e do mar. Dorah - pobre Dorah cuja alma ardente poderia ter-se voltado para tão belos ideais! Pobre Dorah que, sozinha, se arriscou a tão temível aventura, na ânsia de alcançar a riqueza para conquistar o teu irmão - Rosanne... Olivier. Pela última vez pronuncio estes nomes, mas faço-o com a serena generosidade do perdão.

Que a vida possa perdoar-lhes também, lhes seja clemente e lhes dê a paz, mesmo se nenhum deles se recordar que a tua bondade lhes perdoou.

"Eu vou. Quando o Sol for iluminar outros mundos, tomarei o caminho da floresta. Mas no minuto presente já o meu coração e o meu desejo transpõem o limiar da casa onde reinará o nosso amor..."

Renaud releu a carta pela vigésima vez. Abandonou a poltrona onde estava instalado - a poltrona habitual de Sabina - atravessou a sala e aproximou-se da janela.

Lá fora, o crepúsculo começava a espalhar as suas sombras.

"À hora em que o Sol partir para outros mundos..." - murmurou ardentemente.

Depois deixou cair a cortina de tule e nas sombras do dia que morria, aguardou... 

 

                                                                  Alix André

 

 

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