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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASCATA RUBRA / Rochis Rouges
A CASCATA RUBRA / Rochis Rouges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

 

 

A chuva, em gotas muito pequenas, açoitava os vidros da carruagem, a paisagem esbatia-se no denso nevoeiro..., e a Hermínia, encolhida no seu lugar, tiritava de frio apesar da grossa capa que a Madre Superiora lhe dera para a viagem nocturna.

Não era apenas o frio e a umidade da pardacenta alvorada que era responsável pelo tremor que agitava a jovem. Para uma alma de dezoito anos, impressionável e delicada, o desconhecido apresenta-se sempre aterrador... E a Hermínia dirigia-se para o desconhecido.

Ontem, o querido convento e as boas freiras... Hoje, pessoas estranhas.

Estremeceu, e aconchegou melhor a capa em volta do corpo.

Na sua frente a companheira de viagem, uma boa senhora a quem a Superiora a tinha confiado, ressonava estrondosamente, aliás como o fizera durante toda a noite, que tão comprida parecera a Hermínia. Passara toda a noite muito excitada e agora sentia-se esgotada.

Queria repousar o espírito..., mas apesar disso, de novo se desenrolou no seu espírito toda a sua vida.

Uma juventude muito tranquila, toda passada no convento, em Paris, onde entrara ainda tão pequena que já se não lembrava desses primeiros tempos. Mesmo durante as férias não saía de lá. Com o coração um pouco triste via partir as companheiras com os pais, felizes como aves em liberdade. Por mais amiga que fosse de todos, por maior que fosse a amizade que dedicava às freiras que a tinham educado, o seu espírito infantil sentia necessidade de novos horizontes. As conversas das outras alunas faziam-lhe entrever as doces alegrias de família, que jamais conheceria... Ninguém a vinha ver, ninguém lhe escrevia nem a levava a passear. Era órfã, não tinha parentes, nem mesmo afastados respondera-lhe um dia a Madre Superiora com terna compaixão, quando ansiosamente a interrogara a esse respeito.

Hermínia ficara durante alguns dias triste e pensativa, mas por fim a sua alegria natural afastara aquelas mágoas. Todavia, tinha momentos de melancolia, principalmente nos dias de visita, que dificilmente se desvaneciam, apesar de toda a ternura com que a rodeavam as freiras, de quem era a menina querida.

Aos doze anos, e quando acabava de renovar com angélico fervor a sua primeira comunhão, uma companheira, invejosa dos seus sucessos no estudo e talvez até do seu encanto natural que lhe atraía a afeição de todos, professoras e companheiras, disse-lhe:

Tu?... Tu não passas duma rapariga enjeitada!

Hermínia, muito pálida, correu para uma religiosa e perguntou-lhe desvairadamente:

É verdade, Madre?... É verdade que sou uma rapariga enjeitada?

Meu Deus! fora necessário dizer à criança a triste verdade! Docemente, com precauções de mãe, a Superiora contou a Hermínia que tinha sido encontrada numa noite de Outubro à entrada do castelo das Rochas-Vermelhas, no Jura. O barão de Vaumeyran, proprietário do castelo, tinha recolhido a criança e, depois de vãs investigações para encontrar os pais, resolvera encarregar-se da sua educação e sustento. Fora depois amamentada por uma camponesa de Bresse, indicada pelo cura da aldeia a que pertencia o castelo. Mais tarde, os benfeitores tinham-na enviado para aquele convento, em Paris.

Nunca os vi; todos os trimestres enviam-me a tua pensão e uma certa quantia para te entregaracrescentou a Superiora. Ao mesmo tempo que o dinheiro, enviam-me um lacónico bilhete assinado por Clarisse ou Sabina de Vaumeyran suponho que são as filhas do barão recomendando-me sempre que não descure a tua instrução e a tua saúde.

E assim a Hermínia ficara a saber que não tinha direito algum ao nome de Vaumeyran, pelo qual sempre a tinham tratado.

Tinha sido um profundo desgosto para a criança, já em idade de compreender e reflectir sobre a amargura da sua situação. Desde esse dia tornara-se mais grave, mais interessada em aproveitar a instrução que recebia. Na sua alma delicada desenvolvera-se naturalmente o reconhecimento... Mas tinha sofrido muito ao constatar que os misteriosos benfeitores se ocultavam, pareciam querer manter-se sempre desconhecidos. As cartas que lhes escrevera todos os anos, a partir do dia em que a Superiora lhe contara a sua história, tinham ficado sempre sem resposta... Desprezariam assim a criança que um sentimento de caridade os levara a subtrair à miséria?

Hermínia chegara, entretanto, aos dezoito anos aproximadamente, pois ignorava-se a data do seu nascimento tornando-se cada dia mais encantadora, mas perdendo, sob o efeito duma pertinaz anemia, a boa saúde da sua infância... E no princípio desse mesmo ano, a comunidade recebeu uma ordem oficial para acabar com todos os cursos até à Páscoa, e dissolver-se depois.

Minha pobre filha, temos de nos separar! disse a Superiora a Hermínia, depois de a ter mandado chamar para lhe dar a triste notícia.

Oh! não, não, minha Madre, deixe-me ficar consigo!..., deixe-me ficar consigo! exclamou a rapariga, apertando as mãos.

Mas..., minha pobre filha, é impossível! Vamos separar-nos, umas para cada lado; as que têm família e se a família as quiser receber procurarão aí um abrigo, as outras viverão como puderem, talvez a morrer de fome! Só tenho primos muito afastados e indiferentes; vou tentar dar algumas lições... Mas tu estás protegida, minha pequena Hermínia. Vou escrever agora mesmo ao barão de Vaumeyran.

Oh! Madre, a esses estranhos! suspirou dolorosamente a Hermínia. Porque não tenho mais saúde? Iria trabalhar de bom grado, em vez de recorrer uma vez mais à generosidade deles!

Não fales assim, minha filha; ainda precisas de muitos cuidados. Hoje mesmo vou escrever ao teu tutor.

Alguns dias mais tarde tinha chegado uma carta assinada por Sabina de Vaumeyran. O barão, por intermédio da filha, mandava dizer que, em virtude das circunstâncias imprevistas que tinham surgido e do delicado estado de saúde de Hermínia, pensara em acolher provisoriamente a rapariga em sua casa.

Durante o verão este clima é excelente acrescentava a senhora de Vaumeyran e trataremos o melhor que pudermos a doente, tentando assegurar-lhe o futuro o mais depressa possível, pois a Rochas-Vermelhas é uma moradia austera demais para uma rapariga, e durante o inverno este clima é muito agreste... Peço à Madre Superiora o favor de tomar as medidas necessárias para acompanharem a Hermínia até Besançon, onde a esperarei na estação.

Que quererá dizer com o ”assegurar o meu futuro”? perguntou a Hermínia, quando a Superiora acabou de lhe ler a carta.

Provavelmente casar-te, minha filha.

Oh! mas eu não quero casar com o primeiro que me aparecer! exclamou admirada a Hermínia.

Ora vamos, não penses nisso agora! disse a Superiora, afagando a loira cabeleira da Hermínia. Espero que o tutor conheça a tua opinião, pois em caso contrário podes faltar à submissão que lhe deves.

Não me parece que desejem conservar-me durante muito tempo em sua casa! concluiu a pobre Hermínia com um doloroso suspiro.

Nos princípios de Maio, disse adeus às companheiras e às professoras. Uma velha conhecida da Superiora, comerciante das redondezas, ia para casa da família, em Besançon, e aceitou levar a rapariga como companheira de viagem... E a boa Superiora, depois de ter beijado uma vez mais a face pálida e encovada da Hermínia, multiplicou os seus pedidos à senhora Ruau a favor da ”sua pequena, que estava muito fraca e facilmente se fatigava”.

A excelente mulher prometera sinceramente... Mas a viagem tinha sido de noite e a senhora Ruau bem depressa sucumbira às investidas de Orfeu, de modo que a Hermínia, comovida pelas despedidas e pela perspectiva do incógnito a que se dirigia, fatigada pelos solavancos do comboio a que não estava habituada, tiritou de febre durante toda a viagem sem que a sua companheira disso se apercebesse.

Por fim a senhora Ruau acordou. As pálpebras inchadas pelo sono entreabriam-se lentamente, mostrando um olhar mortiço...

Oh! ainda a chuva!... Que acolhimento encantador!... Dormiu bem, menina?

Não consegui ainda fechar os olhos, minha senhora.

Sim!... Pobre pequena... E parece-me que está com frio. Felizmente dentro de meia hora chegamos... Mas, tome esta manta... Sim, sim, não me serve de nada

Só ouvir alguém falar-lhe, interessar-se por ela, reconfortou um pouco a Hermínia. Tentou engolir um bolo, mas não o conseguiu, pois formara-se-lhe um nó na garganta. Sentia-se invadir por uma penosa apreensão, à medida que se aproximava o momento em que conheceria aqueles estranhos, os seus benfeitores.

Dentro de cinco minutos estaremos em Besançon... Este nevoeiro cerrado não nos deixa ver a cidade! disse a senhora Ruau, que estava a arrumar o saco de viagem.

Cinco minutos... Hermínia endireitou-se, alisou com as mãos os cabelos deliciosamente loiros, ondeados do seu natural, que emolduravam a delicada fisionomia, descorada pela fadiga. Colocou o modesto chapéu de estudante, calçou as luvas, preparou a pequena bagagem... E quando acabou, o comboio entrava na estação de Besançon.

Felizmente que a senhora Ruau a acompanhava, pois estava tão profundamente enfraquecida que não teria forças para descer sozinha da carruagem. Já no cais, sentiu uma leve tontura...

É a menina Hermínia de Vaumeyran?

ouviu dizer a seu lado uma voz feminina. Hermínia voltou-se. Viu então uma senhora ainda nova, cujo rosto, um pouco pálido e de traços regulares, indicava os efeitos da varíola.

Sim, sou a Hermínia... balbuciou a rapariga.

Eu sou Sabina de Vaumeyran... Sente-se muito fatigada?

Enquanto falava, estendera a mão a Hermínia num gesto um pouco hesitante, e os seus grandes olhos azuis, tristes e frios, envolveram a rapariga.

Oh! sinto-me de facto muito cansada

murmurou a Hermínia, que se sentia a esvair.

Julgo que a pequena não se aguenta de pé! disse a senhora Ruau com compaixão. E está tão fria... Oh! Senhor!

Hermínia, muito pálida, tinha fechado os olhos e desequilibrara-se, dominada pela fraqueza.

As senhoras de Vaumeyran e Ruau mal tiveram tempo para a agarrar...

O que há?... Está alguém doente? interrogou um homem que nesse momento passara por ali e parara perto do grupo.

A senhora de Vaumeyran levantou os olhos e o seu olhar teve uma expressão de alívio...

Ah! senhor doutor, chegou em momento oportuno!... Esta pequena acaba de perder os sentidos.

É preciso transportá-la imediatamente para a sala de espera...

E com os braços vigorosos levantou a rapariga facilmente. Seguido pelas duas senhoras, dirigiu-se para a sala de espera da primeira classe, onde deitou a Hermínia numa poltrona. Quase logo a seguir a rapariga abriu os olhos...

Isto não é nada disse o jovem médico, que lhe tomara o pulso. Esta menina deve sofrer duma profunda anemia, e além disso parece ter experimentado uma forte emoção...

Sem dúvida notara a expressão de angústia que por vezes reflectiam os seus olhos cor-de-avelã, muito grandes na fisionomia descarnada, quando se dirigiam para a senhora de Vaumeyran, em pé a seu lado.

Sente frio, não, menina? Precisa de tomar qualquer coisa bem quente.

Vou pedir uma sopa disse imediatamente a senhora de Vaumeyran, cuja fisionomia exprimia uma certa inquietação. Senhor doutor, acha que podemos sem inconveniente seguir para Bourg-d’Eylan?

Julgo que sim, minha senhora. É uma fraqueza passageira... Mas permita-me que vá buscar a sopa. Não terá assim que se afastar.

Perante a resposta afirmativa da senhora de Vaumeyran, afastou-se em passo apressado.

Despeço-me, menina Hermínia, pois estão à minha espera na saída disse a senhora Ruau.

Hermínia estendeu a mão à companheira de viagem, agradecendo-lhe em voz comovida; viu-a afastar com tristeza. Aquela mulher, ainda ontem uma desconhecida e que certamente nunca mais veria, era o único elo de ligação com o seu querido convento. Deste momento em diante ficaria apenas rodeada de pessoas estranhas.

A senhora de Vaumeyran tinha se sentado a seu lado e interrogava-a sobre o tratamento médico que fizera em Paris. Parecia demonstrar um certo interesse por esse assunto, e no entanto a Hermínia julgou entrever o esforço que fazia para dominar uma profunda frieza talvez até um sentimento de repulsa, se admitíssemos que a senhora de Vaumeyran o pudesse sentir a respeito da Hermínia, a protegida do pai.

Temos de a confiar aos bons cuidados do doutor Dalney concluiu Sabina, quando a rapariga lhe disse que nenhum dos tratamentos efectuados tinha dado resultados apreciáveis.

Dalney,.. Este nome acordou uma recordação no espírito da Hermínia. Na véspera, ao despedir-se da sua melhor amiga, Susana d’Orbes, esta dissera-lhe entre soluços:

A minha mãe tem em Bourg-d’Eylan uma prima, cujo filho é médico. O nome de família é Dalney. A irmã do primo Feliciano é da tua idade, e muito boa rapariga. A mãe vai-lhes escrever para falarem ti, e espero que te permitam ir visitá-los.

Este doutor Dalney, de que lhe falava a senhora de Vaumeyran, era sem dúvida o parente de Susana... Mas a timidez impediu a Hermínia de interrogar Sabina sobre este assunto.

O jovem médico voltou daí a pouco, trazendo um caldo bem quente. Enquanto a Hermínia o bebia lentamente, entreteve-se a conversar com a senhora de Vaumeyran. E quando esta lhe falava, os olhos do doutor uns olhos cinzentos, sérios e profundos, que realçavam notavelmente a fisionomia de traços enérgicos e de cor morena não se afastavam da fisionomia fatigada da rapariga.

Os dois aproximaram-se da Hermínia, e a senhora de Vaumeyran disse-lhe com fria tranquilidade:

Acabo de pedir ao senhor doutor para a ir ver por um destes dias, pois é preciso saber o que é possível fazer-se pela sua saúde.

Era, na verdade, o doutor Dalney?... Uma impressão de contentamento invadiu a Hermínia. Sentiu um certo conforto só em examinar a sua simpática e leal fisionomia.

Espero que se fortaleça depressa disse ele com um sorriso. O ar admiravelmente puro e salutar que se respira nas Rochas-Vermelhas ajudar-nos-á muito. Vai admirar, menina, um dos mais soberbos recantos do nosso Jura... Mas talvez já o conheça?

Não, é a primeira vez que venho às Rochas-Vermelhas.

Julgo que o nosso comboio não demorará muito a chegar interrompeu Sabina, que tinha consultado o relógio. Temos de ir para o outro cais... Sente-se com forças para andar, Hermínia?

Oh! certamente, minha senhora! Já me sinto um pouco mais forte.

Dê-me o braço... O senhor doutor também vem neste comboio?

Vou sim, minha senhora, e se me permite, vou acompanhá-las até à carruagem.

Apesar dos protestos de Sabina, agarrou na bagagem da Hermínia e dirigiu-se para o cais, onde alguns minutos mais tarde, chegou o comboio. Escolheu um compartimento, ajudou as duas senhoras a subir para o comboio, e saudando-as, afastou-se para se instalar na carruagem vizinha.

Durante o trajecto as viajantes falaram pouco. A menina de Vaumeyran parecia ser um pouco taciturna; de vez em quando, e com certo esforço, perguntava a Hermínia como se sentia, ou indicava-lhe qualquer paisagem particularmente curiosa... E a rapariga, muito cansada, respondia por monossílabos e olhava por delicadeza.

Mudaram uma vez de comboio. O doutor Dalney apareceu para as ajudar a instalarem-se de novo, e tudo isto com uma cortesia discreta e simples, que denunciava um homem bem educado.

A partir desta estação o comboio começou a andar com uma lentidão desesperante. Hermínia, fatigada pela noite perdida, tentou em vão lutar contra a sonolência que a invadia; mas por fim e quase inconscientemente, adormeceu.

 

Hermínia, acorde..., chegámos!

A rapariga estremeceu levemente, abriu os olhos, e fechou-os logo em seguida. Um raio de sol batera-lhe no rosto.

Oh! o sol, enfim! murmurou num tom alegre.

Os raios doirados tinham conseguido romper as nuvens e iluminavam a bela e severa paisagem dos arredores de Bourg-d’Eylan... Surgiu depois a pequena estação, muito branca e acolhedora...

No momento em que o comboio parour um homem alto, delgado, ainda novo, vestido correctamente mas com um fato já antigo, apareceu no cais quase deserto e dirigiu-se para a carruagem onde estavam as duas senhoras.

O meu irmão disse Sabina.

O senhor de Vaumeyran abriu a porta e ajudou-as a descer... Hermínia encontrou o olhar frio de dois olhos azuis, ainda parecidos com os de Sabina, aliás com quem o recém-vindo se parecia duma maneira notável.

Fez boa viagem, menina? perguntou ele, inclinando-se para a cumprimentar.

Nem por isso, pois infelizmente sinto-me muito fatigada... E estou desolada por ter já dado tanto trabalho à senhora de Vaumeyran! disse a Hermínia com um tímido sorriso.

Sabina encolheu levemente os ombros.

Não pense nisso, criança... Albano, este é o bilhete das bagagens. Logo que tudo esteja pronto, partimos, pois a Hermínia tem necessidade de repouso.

O senhor de Vaumeyran afastou-se, enquanto as viajantes, mais devagar, se dirigiam para a saída. De passagem o doutor Dalney saudou-as...

Até um destes dias, não é, senhor doutor? disse-lhe Sabina.

Irei lá antes do fim da semana, minha senhora respondeu ele.

Em frente da estação estavam dois carros: um elegante trem, atrelado a um lindo cavalo cinzento..., e uma velha vitória, condizente com a égua branca, de idade venerável.

Foi para esta última que a senhora de Vaumeyran e a Hermínia se encaminharam, enquanto o doutor, sentando-se na boleia do trem, agarrava as rédeas e afastava-se ao rápido trote do seu cavalo.

Hermínia, suba disse Sabina. Albano teve a boa ideia de trazer cobertores; agasalhe-se bem, pois o ar forte lá de cima surpreendê-la-á.

Pouco depois apareceu o senhor de Vaumeyran, precedendo um carregador com a mala da Hermínia. A velha vitória afastou-se

imediatamente, seguida pelos olhares curiosos do chefe da estação e de dois ou três viajantes que ali se encontravam.

Hem! já os mochos saem à luz do dia! disse com um sorriso brincalhão um carroceiro, de enorme arcaboiço.

A estação era bastante afastada de Bourgd’Eylan. A estrada subia, e a pouco e pouco as árvores de diferentes espécies cediam lugar aos pinheiros, verdadeiros naturais daquelas regiões, emprestando à paisagem um tom de severa altivez. Já no fim do inverno, a natureza expandia-se, os campos verdejavam, a terra, aquecida pelo sol de Maio, acordava do longo descanso sob a neve..., mas eles, os sombrios pinheiros, mantinham-se fiéis nos bons e nos maus dias.

Bourg-d’Eylan apareceu pouco depois, espraiando na base duma abrupta encosta coberta de pinheiros, as suas casas sólidas, de enormes chaminés previstas para resistirem aopeso da neve. Com as janelas abertas e guarnecidas de flores, com a recente verdura dos seus jardins e o sol alegre banhando-a de luz, Bourg-d’Eylan tinha um aspecto acolhedor e familiar que muito agradou a Hermínia.

O carro, conduzido pelo senhor de Vaumeyran, contornou a aldeia para tomar um caminho vicinal extremamente sinuoso que torneava um vale estreito, de aspecto severo. Pinheiros, sempre pinheiros... Hermínia, na idade dos devaneios e ilusões, admirava em silêncio a soberba austeridade daquelas sombrias avalanches que cobriam todos os elevados declives, o encanto apaziguador dos grandes prados onde caminhava lentamente o gado..., e aquele ar delicioso, perfumado, incomparavelmente reanimador! E o sol tão suave que acariciava a pele e espalhava até ao fundo dos estreitos vales um pouco da sua luz doirada, ao passo que no cimo deslizava triunfante entre os densos maciços de pinheiros

O sol veio dar-lhe as boas-vindas, Hermínia observou a senhora de Vaumeyran. Há quinze dias que já o não víamos. As Rochas-Vermelhas parecer-lhe-ão assim menos sombrias.

Chegaremos em breve, minha senhora? perguntou a Hermínia, cujo coração estremecia por vezes de apreensão.

Dentro de cinco minutos.

Os pinheiros adensavam-se, cada vez mais numerosos, nos vales sombrios e nos altos cumes abruptos; formavam de frente uma espécie de cortina... E foi depois de a ter transposto que a Hermínia viu aparecer na sua frente, ao fundo dum pátio cercado duma grade, um grande edifício antigo de muros enegrecidos, com uma enorme torre quadrangular.

Esta casa, ainda rodeada pelos fossos sem água, de janelas estreitas e na sua maior parte gradeadas, dava uma impressão sombria, apesar do sol que a envolvia nos seus clarões... A senhora de Vaumeyran, que observava sem o mostrar a expressiva fisionomia da Hermínia, disse num tom hesitante:

Tenho receio que se vá aborrecer muito aqui. Desejaria que chegássemos a uma conclusão...

Interrompeu-se, e debruçou-se para ver quem abria o portão.

Ah! É a Blandina!

Voltou-se então para a Hermínia... Uma névoa de intensa tristeza parecia por vezes atravessar-lhe os olhos.

Julgo preferível preveni-la, Hermínia, de que a nossa pobre irmã Blandina tem o cérebro um pouco fraco disse numa voz um tanto trémula. Isto explicar-lhe-á algumas das suas excentricidades e até as suas frequentes ausências.

O carro acabava de atravessar o portão. Hermínia entreviu, parada ao lado, uma mulher ainda jovem, pequena e fraca, de fisionomia delicada envolta por uma cabeleira branca.

Um olhar muito meigo, mas um pouco vago, como que abstracto, envolveu a Hermínia...

Que pena!.., Pobre senhora! murmurou a rapariga com compaixão.

A voz de Sabina, um pouco áspera, murmurou:

Na verdade, será digna de lástima?... Assim talvez esqueça melhor.

Perante o olhar surpreendido da rapariga, Sabina desviou o seu. Continuou depois, num tom de voz um pouco mais tranquilo:

A nossa irmã mais velha, Clarisse de Vaumeyran.

A velha vitória parou em frente da pequena ponte de pedra que transpunha o fosso. À entrada do castelo aparecera uma mulher de porte elevado e cheio. A fisionomia, de traços irregulares e quase masculinos, tinha uma singular expressão de voluntariosa e orgulhosa segurança, ainda mais acentuada pelo olhar dominador... Perante esta majestática aparição toda vestida de negro, a pobre Hermínia sentiu um ligeiro calafrio.

Desceu do carro e, atrás da companheira, dirigiu-se para a porta.

Esta criança vem muito fatigada, Clarisse! disse Sabina.

Clarisse estendeu a Hermínia, que timidamente inclinara a cabeça, a sua mão elegante e morena.

Vai já repousar... Seja bem-vinda às Rochas-Vermelhas, Hermínia.

A voz tinha entoações breves, quase duras, que confrangeram um pouco o coração da rapariga.

Albano, sem ter pronunciado qualquer palavra, afastou-se, dirigindo o carro para a cavalariça, que ficava do lado esquerdo do edifício... Sabina voltou-se para Blandina, que chegara nesse instante no seu passo miúdo e apressado, com as mãos nos grandes bolsos do avental.

Está tudo pronto, Blandina?

Sim, Sabina respondeu-lhe uma voz suave.

Entre, Hermínia disse-lhe Clarisse. Vamos mostrar-lhe o seu quarto. Escolhemos-lhe o aposento mais claro, para que tenha muito sol.

O sol!... Conseguiria na verdade entrar naquela casa tão sombria? O vestíbulo enorme, com as paredes em grandes pedras enegrecidas, estava quase escuro àquela hora da tarde... E a escadaria, tão larga, tão imponente, e os grandes corredores do primeiro andar, tinham a mesma iluminação...

Por isso a Hermínia teve de fechar os olhos por um instante, ao entrar no quarto indicado por Clarisse. Aquele aposento, muito grande, estava literalmente inundado pelo sol, que entrava livremente por duas grandes janelas.

Ah! Que lindo quarto! exclamou a rapariga.

Os seus olhos, já habituados à luz intensa, admiraram uma velha mobília Luís XV, muito bem conservada, os tapetes de seda ornamentados com flores, um pouco desbotadas mas ainda lindas, as jarras de Sèvres da chaminé, um encantador espelho oval sobre uma pequena mesa...

Este quarto agrada-lhe, na verdade? perguntou Sabina.

Oh! decerto!... Agradeço-lhes! São muito boas, minhas senhoras!

Os lábios descorados de Sabina contraíram-se um pouco. Voltou-se para mudar uma cadeira, enquanto a mais velha dizia em voz seca:

Godard, o criado, há-de vir trazer-lhe a mala... E como está tão fatigada, com certeza hoje, prefere comer aqui no seu quarto?

Oh! Minha senhora, eu não queria dar-lhes tanto incómodo! Venho causar-lhes tantos aborrecimentos!

Não diga isso, criança! interrompeu um pouco bruscamente Sabina. Fazemos apenas o que está na nossa obrigação...

Esta noite vêm-lhe trazer aqui o jantar. Se tiver necessidade de mais alguma coisa, não hesite em pedi-la. O meu quarto é aqui ao lado, e tem aqui uma campainha...

Obrigado, minha senhora.,. Mas que ruído é este que se ouve?

Desde que entrara no quarto, a Hermínia ouvia um ruído surdo, ininterrupto, como o duma queda de água longínqua.

É a cascata rubra disse rapidamente Sabina Vamos deixá-la sozinha, Hermínia. Descanse bem, ou então deite-se já, se o prefere...

E considere esta casa como se fosse sua completou Clarisse.

Mal as duas irmãs saíram, a Hermínia observou de novo todo o quarto. Viu por cima da cama um crucifixo de bronze... Correu a ajoelhar-se e, de mãos postas, abriu o coração numa oração fervente.

Qual seria a sua vida no seio desta família? Pareciam recebê-la com bondade, e já a senhora D. Sabina se lhe tornara simpática apesar da frieza qual a razão por que a palavra repulsa surgia sempre no espírito da Hermínia? que mostrava, e até mesmo o irmão e a irmã, se bem que em menor grau. Talvez fosse um pouco de orgulho. Hermínia tinha de se conduzir com muito tacto nas relações com os seus benfeitores; não devia esquecer a sua situação, abusando da sua bondade.

Uma criança enjeitada! exclamou melancolicamente. Como foram caritativos e generosos! Gostava de ver o barão de Vaumeyran para lhe agradecer.

Mas nem a Sabina, nem a irmã mais velha tinham feito qualquer alusão ao pai, nem manifestaram a intenção de lhe apresentar a pupila... E a Hermínia não ousara tocar nesse assunto.

Um estremecimento percorreu o corpo da rapariga. Começou a sentir invadi-la uma grande tristeza, e tão cansada se sentiu que se deixou cair numa cadeira, encostando a cabeça enfraquecida.

 

Logo no dia seguinte, e não alguns dias mais tarde como ficara combinado, o doutor Dalney veio às Rochas-Vermelhas, chamado pelas senhoras de Vaumeyran. Durante toda a noite a Hermínia tivera um ataque de febre muito alta, que a deixara num estado de fraqueza extrema.

Sabina começou logo a desempenhar o lugar de sua enfermeira: rodeou a rapariga de cuidados e atenções, deu-lhe os remédios prescritos pelo médico, e tudo isto com uma calma e metódica solicitude que deixava a Hermínia um pouco perplexa.

Clarisse, de tempos a tempos, vinha informar-se do estado da doente; com uns modos onde procurava mostrar interesse, criticava, sem o parecer, a maneira como a irmã se desempenhava e, em seguida, afastava-se majestosamente, com secreto contentamento da Hermínia.

Algumas vezes também, ao trazer um prato de sopa ou umas achas para o fogão, aparecia uma velha criada, já um pouco curvada pela idade, de faces encarquilhadas e austeras. Os olhos, muito negros e ainda vivos, envolviam a Hermínia num olhar grave, onde a rapariga julgava ler um pouco de compaixão.

O doutor voltou nos dias seguintes. Era extremamente cuidadoso, inteligente e bom, como se observava pelas suas maneiras, mas apesar de muito sério, era dotado duma agradável alegria.

Eh! Isso vai cada vez melhor! disse ele ao terceiro dia, num tom satisfeito. Hoje já pode levantar-se um pouco, menina, e amanhã autorizo-a a dar um passeio pelo jardim. Depois, pode fazer todos os dias um moderado exercício, a ver se perde essa cor que trazia de Paris.

Sabina abanou lentamente a cabeça.

Pobre pequena, não terá aqui uma vida muito alegre, sem amigas da sua idade.

O doutor observou a pálida fisionomia da Hermínia e disse, sorrindo:

Por falar em amigas, parece que a minha prima Susana simpatiza muito consigo, Hermínia! A minha mãe recebeu esta manhã uma carta da senhora d’Orbes, em que a Susana escreveu umas palavras. As duas falam de si e da afeição que lhe tinham.

As faces da Hermínia enrubesceram um pouco.

Eu também sou muito sua amiga! A senhora d’Orbes é tão boa! Quantas vezes me levou a passear, a jantar em sua casa... Fui lá sempre muito feliz, salvo em raros momentos de tristeza...

De tristeza? interrogou o jovem médico com interesse.

Hermínia murmurou, com voz um pouco trémula.

Sim; ao ver a Susana tão amimada pelos pais, pensava mais na infelicidade de ser órfã.

Sabina voltou-se tão bruscamente que empurrou a mesinha onde estavam os medicamentos. Tudo caiu no soalho.

Deixe isso, senhor doutor, vou já chamar a criada disse ela, num tom que reflectia uma alteração singular.

Tornara-se extremamente pálida e aprofundaram-se os traços da sua fisionomia.

Não me tinha dito, Hermínia, que conhecia os parentes do senhor doutor! disse ela com algum esforço.

Esperava falar-lhe nisso por um destes dias, minha senhora...

Parece-me tímida demais, minha filha disse Sabina com um sorriso triste. Não deve ter medo de falar, de perguntar... Só desejamos uma coisa: que seja feliz cá em casa. Respirou com esforço e continuou, dirigindo-se ao médico:

Já que a sua prima lhe falou na nossa pupila, a Hermínia irá fazer uma visita à senhora Dalney e à menina Marcelina.

A minha mãe e a minha irmã ficarão encantadas! disse o jovem médico com alegria. Se a azougada da Marcelina agradar à Hermínia, encontrará nela uma boa companheira para passear, muito alegre e grande andarilha.

Seria muito bom, com efeito disse Sabina com satisfação. A sua irmã é encantadora, senhor doutor, e a Hermínia terá assim a alegria que lhe falta aqui. Assim que estiver boa, vamos a Bourg-d’Eylan.

Quando o doutor se foi embora, Sabina sentou-se ao lado da cama da Hermínia e observou-a durante alguns instantes.

Na verdade, hoje parece-me que está muito melhor. Espero que dentro em pouco já se possa pôr a pé. Bom ar e distracções é o que lhe falta... Sinto-me muito satisfeita por a Hermínia travar relações com a irmã do senhor doutor. A família Dalney é muito boa, sob todos os pontos de vista. O doutor é um homem de grande valor, e a sua mãe uma senhora muito séria e boa. Outrora, a pequena Marcelina era muito gentil, e parece que é simples e simpática, pelo menos no que pude observar nas duas ou três vezes que a encontrei na floresta.

Não os vê muitas vezes, minha senhora?

Nunca vemos ninguém respondeu

a senhora de Vaumeyran em tom sacudido. Por sua causa vou romper com um hábito de dezasseis anos, ao visitar a senhora Dalney.

- Oh! muito obrigada, minha senhora - exclamou espontaneamente a Hermínia.

Sabina estremeceu; as mãos, que tremiam um pouco, agarraram a mão da rapariga, e os seus lábios trémulos murmuraram:

Hermínia, se me quer ser agradável..., se deseja agradar a todos nós, nunca nos agradeça..., nunca!

No dia seguinte a Hermínia desceu pela primeira vez à sala de jantar. Sentia-se um pouco constrangida, pois sem dúvida ia ver desta vez o barão de Vaumeyran. A pobre Hermínia sentia-se de antemão receosa e apreensiva, por mais pequena que fosse a semelhança do pai com a austeridade e imponência da filha mais velha.

Sabina passou pelo seu quarto, e as duas desceram lentamente as escadas. No vestíbulo encontraram-se com Blandina, que estendeu a mão a Hermínia, num gesto hesitante... Sabina abriu uma porta e fez entrar a jovem numa grande sala, mal iluminada por altas janelas, mas guarnecida com soberbos móveis e com lindas obras de ourivesaria.

Albano, em pé num dos grandes vãos das janelas, conversava com a irmã mais velha. Adiantou-se e inclinou-se levemente diante da Hermínia, informando-se do seu estado de saúde com fria delicadeza... Em seguida, a convite de Clarisse, a jovem sentou-se entre Sabina e o irmão.

Do barão, nada... Em frente da mais velha, o lugar do dono de casa conservava-se vazio.

Sabina observou, sem dúvida, o olhar surpreso que a Hermínia dirigiu para aquele lugar, pois disse-lhe num tom tranquilo:

Não se admire com a ausência do pai, Hermínia. Há muitos anos que não sai dos seus aposentos e não quer ver ninguém, excepto os filhos.

Durante o almoço, a Hermínia viu-se rodeada por discreta solicitude. Blandina trouxe-lhe a sopa, Albano serviu-a dos melhores bocados do frango. Sabina obrigou-a a aceitar um delicioso creme, feito de propósito para ela por Celeste, a velha criada, ao passo que os castelães se contentaram com uma modesta fatia de queijo e algumas frutas. Aliás, pareciam não ter apetite, e tinham o aspecto de quem se desempenha dum obrigatório, mas insuportável dever, ao tomar qualquer alimento.

O serviço era feito pelo velho Oodard, o marido da Celeste. No entanto, as senhoras levantavam-se frequentemente para o ajudarem... Quando a Hermínia as quis imitar, Sabina disse-lhe em tom peremptório:

Fique sentada, Hermínia; não queremos que se incomode com isto.

Mas, minha senhora, não admito que me sirvam! exclamou Hermínia.

É preciso que se habitue replicou ela serenamente. Não queremos aumentar o pessoal, pois temos horror às caras estranhas, e preferimos trabalhar mais. Mas não consentiremos que sofra os efeitos desta... mania.

Esta explicação deixou um pouco perplexa a Hermínia. A razão exposta pela senhora de Vaumeyran não tentaria esconder algumas dificuldades financeiras que os castelães, por uma extrema delicadeza, não queriam dar a conhecer àquela que tudo lhes devia? Talvez representasse um pesado encargo no seu orçamento; mas, já que o tinham assumido, queriam suportá-lo até ao fim, com admirável generosidade.

”Tenho de me informar junto dos Dalney, pensou a Hermínia. Se assim for, reivindicarei claramente parte do trabalho, e logo que me seja possível tenho de procurar um meio de ganhar a vida”.

A conversa afrouxou,.. Blandina não falava, e os outros pareciam um pouco taciturnos. Falou-se nas belezas da região, e também nos Dalney...

Feliciano é um homem dotado de notável inteligência disse o senhor de Vaumeyran. Admirou-me que não tivesse procurado exercer clínica num meio de maiores possibilidades.

Gosta apaixonadamente do seu Jura e não quis deixá-lo replicou Sabina. Tem aqui uma boa posição e como os Dalney têm fortuna...

Por fim a refeição acabou, com secreto contentamento da Hermínia. Clarisse, ao levantar-se da mesa, disse-lhe na sua voz compassada:

Aproveite este sol para dar um pequeno passeio no parque, como disse o médico. Mas vá buscar um casaco e a sombrinha.

Espere aqui; vou buscar-lhos disse Sabina.

Voltou dentro em pouco, trazendo um xaile que colocou sobre os ombros da Hermínia e uma sombrinha que lhe entregou. Levou-a então para a sala vizinha, um grande aposento mobilado com austeridade, mas iluminado por quatro grandes portas envidraçadas, que deixavam entrar os quentes raios do sol.

Pode sair por aqui disse-lhe ela, designando uma das portas. Vou já ter consigo, mas entretanto queria dar um recado à Celeste.

Afastou-se depois, enquanto a Hermínia atravessava a porta.

Não havia jardim; o parque começava junto ao castelo. Clareiras cheias de sol, canteiros naturais cercados por freixos e abetos, alternavam com maciços de pinheiros. A atmosfera estava admiravelmente pura; o ar, muito vivo, lembrava ainda um pouco a frescura gelada das neves acabadas de derreter, e vinha perfumado do sadio aroma dos pinheiros que rodeavam as Rochas-Vermelhas, como uma sombria e magnífica muralha.

Hermínia respirou fundo; parecia-lhe que uma vida nova se infiltrava nela. Caminhou sempre em frente, atraída pelo ruído da queda de água, que aumentava de intensidade à medida que se aproximava. Tornou-se tão intenso que duas pessoas, mesmo a falar muito alto, não se ouviriam...

Hermínia parou de repente... Acabava de ultrapassar a orla dos pinheiros e encontrou-se subitamente em frente dum varandim de pedra escurecida, coberta de musgo. Um fino nevoeiro salpicou-lhe a cara e o vestido...

Deu alguns passos e debruçou-se...

O varandim assentava numa enorme rocha cortada a pique, de cor-de-sangue, na base da qual surgia, por uma abertura provocada sem dúvida pela erosão, uma volumosa massa de água tingida de vermelho-pálido e que se precipitava furiosamente logo em seguida num abismo cavado em baixo. Desaparecia assim a torrente subterrânea, que ia alimentar misteriosamente algum grande rio ou, através das entranhas da terra, ia despenhar-se no mar.

Primitivamente, a espumante água devia correr pelo leito que se estendia sob os olhos maravilhados da Hermínia, profunda depressão salpicada de rochas da mesma cor vermelho-escuro, e que constituía um soberbo rasto entre as duas falésias rochosas, cujos cimos estavam cobertos de pinheiros. Ao longe, rochedos disformes e pinheiros, sempre pinheiros, destacavam-se em massa sombria no horizonte azul daquela tarde primaveril.

Hermínia encostara-se ao varandim, apesar das finas gotas de água que a molhavam, e contemplava com admiração aquele lugar de surpreendente e selvática beleza, a estranha massa de água avermelhada que se escoava em sanguinolentos redemoinhos, esplendidamente coloridos pelo sol, e os bosques, lá ao longe, onde os raios dourados pareciam dançar entre os pinheiros...

Duas figuras brancas, de cabeça coberta por um capuz também branco, segundo lhe parecia, estavam na borda da falésia do lado esquerdo. Os seus movimentos assemelhavam-se aos dos cortadores de lenha...

Hermínia inclinou-se um pouco mais para melhor admirar a água espumante. Viu então três pequenas janelas, gradeadas, um pouco mais abaixo, cortadas na rocha vermelha, e quase a meia altura entre o varandim e a abertura por onde saía a torrente.

Teve um ligeiro sobressalto ao sentir uma mão tocar-lhe no braço e um hálito quente bafejar-lhe o rosto... Ao voltar a cabeça viu Sabina, pálida, quase lívida, com as feições transtornadas...

Venha..., não fique aqui...

Com o rugido da corrente a Hermínia mal percebeu aquelas palavras. Mas deixou-se levar por Sabina, que lhe dera o braço.

Como é imprudente! disse a senhora de Vaumeyran quando se encontraram suficientemente afastadas para se poderem entender. Está toda molhada!

- Oh era tão lindo, minha senhora! Se não tivesse vindo, creio que me esqueceria do tempo... Mas quem eram aquelas pessoas vestidas de branco, que estavam do outro lado? Pareciam religiosos...

Na verdade, há ali um priorado de Cistersienses disse Sabina, num tom sacudido.

Aquele barulho atordoa um pouco, quando se não está habituada continuou a Hermínia, levando a mão ao ouvido. É espantosa e magnífica aquela enorme massa de água... Mas o que são aquelas janelas abertas na rocha, minha senhora?

Sabina largou o braço da Hermínia e voltou a cabeça, enquanto com os dedos quebrava um ramo, que lhe batera na face, num gesto nervoso.

São as janelas dos subterrâneos que se estendem sob o parque. Outrora, quando havia guerras, serviam, conforme os casos, de refúgio ou de prisão.

Que profunda alteração sofrera de repente a sua voz!...

Quando chegaram perto de casa, apareceu-lhes a elevada estatura de Albano, numa volta dum canteiro. O senhor de Vaumeyran fumava, ao passear perto do castelo com aquele garbo altaneiro e um pouco cansado que tão bem se coadunava com a sua fria reserva e delicadeza ligeiramente altiva. Parou perto das duas senhoras e olhou surpreso para o xaile todo molhado da Hermínia.

Foi ver a corrente vermelha disse secamente Sabina.

A fisionomia contraiu-se-lhe, os lábios comprimiram-se nervosamente. Mas não disse nada, e afastou-se num passo tranquilo.

Hermínia julgou perceber nesta atitude uma reprovação muda e, um pouco perplexa, perguntou a si própria qual o motivo de ser particularmente repreensível a sua atitude.

 

No dia seguinte, a carruagem das Rochas-Vermelhas conduziu a Hermínia a Bourg-d’Eylan para assistir à missa dominical. Na sua frente sentava-se a Celeste... As castelãs talvez tivessem ido a uma missa mais cedo, pensou. No caminho, a Hermínia interrogou a criada a esse respeito.

Celeste respondeu lacònicamente:

As meninas nunca vêm à missa. Do castelo, só eu é que venho.

Ah! murmurou a Hermínia.

Esta notícia foi-lhe extremamente penosa. O facto dos Vaumeyran lhe terem dado uma educação cristã, não a tinha preparado para encontrar em sua casa a ausência total da prática religiosa.

Quando a rapariga e a Celeste entraram na velha igreja, estava quase cheia. Hermínia, um pouco intimidada pelos olhares curiosos, seguiu a criada, que se dirigiu para o banco dos castelões das Rochas-Vermelhas. Absorveu-se então profundamente nas suas orações... Quando levantou a cabeça, os seus olhos dirigiram-se para o banco colocado do outro lado da coxia. Viu o doutor Dalney, ajoelhado a orar, e ao lado dele uma senhora e uma jovem muito morena.

Sentiu por isso um vivo contentamento. Pelo menos, estes eram crentes; saberiam compreendê-la e aconselhá-la.

Hermínia e a criada foram das últimas a sair. Em frente da igreja tinham-se formado vários grupos. Olhavam muito para a Hermínia... O seu coração confrangeu-se, ao pensar na solidão moral em que se encontrava.

Mas viu encaminhar-se na sua direcção uma pessoa... O doutor Dalney inclinou-se na sua frente, dizendo-lhe na sua voz bela e vibrante:

Permita-me que lhe apresente a minha mãe e a minha irmã?

Atrás dele, sorridentes, encontravam-se a senhora e a menina Dalney.

Oh! da melhor vontade! disse a Hermínia numa voz tímida, que a tornava particularmente sedutora. Desejo-o tanto!

E nós também, asseguro-lhe, minha filha disse a senhora Dalney, estendendo-lhe a mão. Susana fez muitos elogios a seu respeito; parece simpatizar muito consigo...

E Susana não entrega indistintamente a sua amizade acrescentou a menina Dalney, agarrando na outra mão da Hermínia. Por outro lado o meu irmão disse-nos que devia ter nas Rochas-Vermelhas uma existência pouco alegre, muito recolhida. E assim, por si e para agradar à querida Susana, sentir-nos-emos felizes se lhe pudermos ser agradáveis.

E a Marcelina acentuou estas cordiais palavras com um lindo sorriso, que emprestou grande encanto à sua fisionomia, bastante irregular mas duma expressão extremamente alegre e espirituosa.

Como é boa! disse com emoção a Hermínia. É verdade que me sinto lá em casa um pouco isolada, apesar da excessiva bondade das senhoras. Até pensei já que era uma ingratidão sentir assim tão sombrios aqueles muros espessos...

Socegue a consciência, minha filha disse a senhora Dalney, cujos olhos cinzentos, tão parecidos com os do filho, fitavam a rapariga com simpatia. Assim tão nova, e depois de ter saído do convento onde tinha as companheiras e as amigas, esse sentimento não é de estranhar..., e principalmente com a vida que levam os castelões das Rochas-Vermelhas. Talvez venha ainda a ser, naquela existência tão austera e recolhida, um pequeno raio de sol, um motivo de alegria...

Hermínia abanou a cabeça.

Nunca ousarei ser alegre lá em casa!

Mas porquê? disse o doutor. Pelo contrário, deve fazer o possível para modificar a bizarra existência dos pobres Vaumeyran, a quem já chamam ”mochos”, cá na aldeia.

Que coisa singular! Sempre foram assim?

Oh! não! Eram muito orgulhosos, principalmente o barão e a filha mais velha; mas o castelo abria-se muitas vezes para receber todos os que possuíam um nome, ou usufruíam uma posição de destaque nesta região. Apesar do Albano ser um pouco mais velho que eu, passamos momentos muito agradáveis. Era um rapaz encantador, estudioso e alegre, a quem apenas se podia reprovar um grande orgulho pelo seu nome. Chegou até a dizer-me:

”Fica a saber, Feliciano, que para proteger o brazão dos Vaumeyran de qualquer mancha, dávamos mais que a própria vida, se fosse preciso!

Mas a baronesa, que tinha uma saúde muito delicada, morreu quase de súbito, duma doença que o pai, que sempre a tratou, julgara prolongar-se por muito tempo sem apresentar uma gravidade real. Desde então há uns dezasseis anos tudo se modificou nas Rochas-Vermelhas. Os castelões romperam com todas as suas relações e fecharam-se em casa; nunca mais os viram, por assim dizer; nunca mais foram à igreja, onde aliás nunca tinham sido muito assíduos. Parece que a morte da baronesa, que era ardentemente amada pelo marido e pelos filhos, lhes perturbou um pouco o cérebro tanto mais que a loucura de Sabina data dessa época. Todavia apesar da estranha mania da solidão, parece-me que os outros já não falo no barão, que está sempre invisível têm o espírito perfeitamente lúcido.

Oh! na verdade Não, eles não são doidos!... Oh! esqueci-me das horas, e a Celeste vai impacientar-se. Até breve, assim o espero, minhas senhoras.

Apertou as mãos que lhe estenderam e subiu para a velha vitória, com a ajuda do médico. Esta afastou-se logo, levando uma Hermínia feliz, com a alma cheia de alegria, pois pressentia a simpatia daquelas senhoras, e reconfortada com o sorriso encorajador do doutor Dalney.

- A amiga da Susana é encantadora - disse a Marcelina Dalney, enquanto tomava o caminho de casa entre a mãe e o irmão. É triste ver este pintassilgo obrigado a viver na companhia daquelas aves nocturnas, lá em cima!

Evidentemente que não deve ser uma vida muito alegre, pobre pequena! replicou pensativamente o médico. Mas as senhoras parecem tratá-la com todos os cuidados... E devemos pensar que, se os Vaumeyran não a tivessem recolhido com tanta generosidade, teria ido parar às Crianças-Abandonadas.

Marcelina ficou silenciosa por momentos, parecendo reflectir.

Não acham singular que os Vaumeyran, que nunca se preocuparam com nada, com pessoa alguma, tivessem tido a ideia de se encarregarem da educação da pequenita?

E isso precisamente na época daquele grande desgosto, pois a criança foi encontrada poucos dias antes da morte da baronesa acrescentou a senhora Dalney. É estranho que nunca desvendassem o mistério que envolve esta pequena!... Susana não exagerou, é de facto muito linda e distinta.

Vai ser uma das minhas melhores amigas, estou certa disso exclamou alegremente a Marcelina. Vais ver, Feliciano, que a hei-de curar bem mais depressa que tu, com as tuas pílulas e elixires!

O doutor começou a rir, e respondeu:

Não ponho dúvidas, Marcelina, porque na verdade o que mais precisa é alegria e afeição, e creio que te desempenharás muito bem do teu papel.

...Quando a Hermínia, de volta às Rochas-Vermelhas,

contou às senhoras de Vaumeyran o encontro que tivera com os Dalney, Sabina disse, depois dum momento de reflexão:

Julgo que poderemos ir, esta tarde, a Bourg-d’Eylan fazer a visita à senhora Dalney. Vou dizer ao Oodard que prepare a vitória para as duas horas.

E, ao notar a alegria que se reflectiu nos olhos da Hermínia, acrescentou, com o leve sorriso que, por vezes, lhe sulcava os lábios:

Agrada-lhe, minha filha? Então tanto melhor!

Às duas horas, a velha carruagem retomou o caminho de Bourg-d’Eylan. Sabina levava um vestido castanho de lã, já fora de moda, e na cabeça um chapéu de palha preto, de feitio austero, o mesmo que pusera no dia da chegada da Hermínia. A questão do vestuário parecia não existir para as castelãs, além do estritamente necessário.

Mas, em relação a Hermínia, já não lhes parecia de tão pouca importância, pois Sabina, depois de ter observado o vestido muito simples que a Superiora lhe mandara fazer para a viagem, disse:

Tenho que examinar o seu guarda-roupa, Hermínia, para vermos o que lhe falta. Seria até bom que se informasse junto da senhora Dalney sobre uma boa costureira... porque nós, sempre aqui metidos, não conhecemos ninguém.

Oh! minha senhora, não é preciso!... Não me falta nada! protestou a Hermínia.

Desde que conviva com a menina Dalney e com as outras raparigas de Bourg-d’Eylan, não queremos que haja diferença nenhuma declarou peremptoriamente Sabina.

Hermínia teve vontade de lhe dizer: ”Não quero que se privem de nada, por minha causa!”. Mas não ousou responder perante a calma decisão da sua companheira.

Os Dalney habitavam uma velha casa atrás da igreja, que já vira nascer muitas gerações da sua família. Hermínia, que se havia impressionado um pouco com a fachada cinzenta e um tanto severa, sentiu-se encantada logo à entrada do grande vestíbulo, bem iluminado por uma janela alta, muito alegre, com o soalho de mármore, preto e branco, as paredes pintadas de vermelho-escuro e embelezadas com agradáveis paisagens, as cadeiras rústicas e pitorescas, os grandes jarrões de velha faiança, com elegantes palmeiras...

Oh! minhas senhoras, que boa surpresa!

Era a Marcelina que se lhes dirigia com as mãos estendidas... E, atrás dela, apareceram o médico e a mãe.

Como pessoas delicadas, não disseram uma palavra à senhora de Vaumeyram sobre o longo intervalo das suas relações... E Sabina, que se mostrara um pouco cerimoniosa para dissimular um evidente embaraço, readquiriu quase logo a sua atitude habitual perante este acolhimento tão cordial e simples.

As visitas foram introduzidas num grande salão, mobilado com confortável bom gosto e hospitaleira elegância. Uma senhora, pequena e magra, de cabelos brancos, que se entretinha a ler perto duma janela aberta, levantou-se e dirigiu-se para Sabina.

Na verdade, minha senhora, parece-me uma alma do outro mundo! disse ela num tom de amável censura e estendendo-lhe a mão. Não ousei acreditar na exclamação que a Marcelina soltou, quando estava perto da janela: ”Mãe, vem aí a senhora de Vaumeyran!”

Sabina franziu levemente as sobrancelhas, mas respondeu tranquilamente:

Com efeito, só a necessidade de dar um pouco de ar à nossa pupila é que me levou a romper com os velhos hábitos.

Oh! velhos?... Nunca é tarde para mudar, e agora que o primeiro passo está dado, espero que teremos o prazer de a ver mais vezes.

A senhora Dalney interrompeu, numa voz levemente impaciente:

Minha mãe, a menina Hermínia de Vaumeyran... Menina, a senhora Dalney, minha sogra.

Hermínia viu voltar-se uma fisionomia magra e cansada, de expressão dura e lábios desdenhosos. A relativa amabilidade que tinha mostrado quando se dirigia a Sabina, desaparecera completamente. Estendeu a mão a Hermínia num gesto condescendente, dirigiu-lhe uma frase lacónica e sentou-se perto da senhora de Vaumeyran e da senhora Dalney, enquanto os jovens formavam um grupo um pouco afastado, e entabolavam conversa, animada pela alegria do doutor e da Marcelina, e até mesmo da Hermínia.

Mas, se à Hermínia parecia que os minutos corriam rapidamente, o mesmo já não acontecia com Sabina. A conversa entre as senhoras tornara-se custosa, pois a castelã das Rochas-Vermelhas não estava ao corrente dos factos que se tinham dado durante a clausura da sua família. Por isso, um quarto de hora mais tarde, a senhora de Vaumeyran levantou-se para se retirar.

Oh! já! murmurou a Marcelina.

E o olhar da Hermínia reflectia o mesmo pensamento.

E se nos deixasse a menina Hermínia? propôs a senhora Dalney. Dávamos um passeio na floresta, e à volta levá-la-íamos às Rochas-Vermelhas.

Sabina aquiesceu sem dificuldade, e até com certa alegria. Ao contrário, a fisionomia da senhora Dalney, mãe, tornou-se carrancuda, e quando a nora voltou para a sala, depois de ter acompanhado a senhora de Vaumeyran até à porta, disse-lhe algumas palavras em voz baixa, com ar contrariado.

A senhora Dalney franziu um pouco as sobrancelhas e replicou em voz baixa:

Na verdade, não tenho esses preconceitos, minha mãe! A pequena é encantadora, bem educada, e a calorosa recomendação da prima d’Orbes é para mim garantia suficiente.

A sogra enrugou os lábios, e murmurou:

Não gosto de receber em minha casa pessoas saídas não se sabe donde...

Vem connosco, avó? perguntou o médico, que entrara nessa altura no salão, depois de ter acompanhado a senhora de Vaumeyran até ao carro.

Não, obrigado, volto para casa respondeu secamente, pegando no chapéu que estava em cima dum móvel.

Vinte minutos mais tarde, os Dalney e a Hermínia afastavam-se de Bourg-d’Eylan no trem guiado pelo doutor, que não tinha nada que fazer nessa tarde. O carro dirigiu-se para a montanhosa estrada que atravessava a floresta. Feliciano, meio voltado no banco, participava muitas vezes da conversa das senhoras.

Hermínia inebriava-se com as simpatias que a rodeavam, o aroma suave dos pinheiros, o ar forte e saudável e o sol, que se filtrava em estreitas faixas luminosas através das copas emaranhadas das árvores.

Ora ainda bem! O seu rosto já está um pouco corado! notou alegremente a Marcelina. Há-de ver que o nosso Jura vai fazer maravilhas! O inverno é duro, mas sadio...

Hermínia sorriu-se com melancolia.

Oh! talvez já cá não esteja no inverno!

E porque não, menina? perguntou vivamente o doutor.

Parece-me que os Vaumeyran querem casar-me o mais depressa possível. Compreendo bem que os incomodo bastante...

A voz tremia-lhe um pouco... As fisionomias da senhora Dalney e dos filhos revelaram o mesmo interesse.

Mas espero que não a casem com um qualquer! exclamou a Marcelina.

Julgo que os Vaumeyran são pessoas bastante conscienciosas para que a Hermínia possa recear semelhante coisa replicou a senhora Dalney. Mas, na realidade, isso seria para si, minha filha, a solução melhor, no caso de se apresentar um bom partido, principalmente sob o ponto de vista moral.

Ainda não queria casar-me... Sou tão nova! murmurou pensativamente a Hermínia.

Com efeito, não é urgente... Vamos, não pense mais nisso, minha filha, e admire antes a nossa bela região... Mas não se pode comparar isto com o que se admira das Rochas-Vermelhas. Outrora, quando a porta do castelo se abria facilmente, os viajantes não faltavam a pedir licença para poderem ir admirar a cascata rubra.

Agora, tudo isso se acabou! Acrescentou a Marcelina. Para a admirar, é preciso trepar por atalhos muito incómodos até à falésia oposta à do priorado dos Três-Santos. Fui lá uma vez, e a excursão foi muito fatigante porque os atalhos são terrivelmente escorregadios... No entanto, como gostava de me encontrar lá na noite de São Cristóvão ou na da Epifania!

Porquê? perguntou a Hermínia.

A torrente deixa de correr, durante uma hora, nessas noites. É um fenómeno natural que não sabem explicar... E deve ser impressionante ouvir de repente o barulho das águas diminuir, diminuir rapidamente..., e depois o silêncio completo!

É, na verdade, muito impressionante disse o médico. Outrora, o Albano levou-me lá. Foi cerca de um mês antes da morte da mãe... Os Vaumeyran mostraram-se sempre muito orgulhosos da sua cascata rubra. Todavia tem uma reputação bastante má, aqui na região. Já lhe contaram a lenda, Hermínia?... Ou talvez a história verdadeira, sabe-se lá

Após a resposta negativa da Hermínia, continuou:

Conta-se que no tempo em que o condado estava sob a suserania do bom duque Filipe, o Audacioso, o barão Luís de Vaumeyran atraiu traiçoeiramente um parente, cuja herança cobiçava, e, com a ajuda do filho mais velho, lançou-o do alto do terraço do parque ao abismo onde se perde a corrente vermelha. A mulher da vítima e o filho, ainda muito novo, foram encerrados nos subterrâneos, onde morreram loucos, devido ao enfraquecimento cerebral provocado pelo incessante ruído daquela massa de água muito próxima. Na noite de São Cristóvão, um pastor, que se demorara na falésia fronteira, ouviu os gemidos deles...

Oh! é horrível!... Mas não passa duma lenda, não é assim, senhor doutor?

Assim o creio, Hermínia. Verdade seja que, nesse tempo, as aventuras desta espécie eram muito mais vulgares que actualmente... Foi o filho mais novo desse terrível barão Luís, Sabino de Vaumeyran, que fundou o priorado dos Três-Santos. Dizem, naturalmente, que foi para expiar o crime, de que não tinha sido autor, mas apenas espectador impotente. Vestiu o hábito nesse Mosteiro e morreu cheio de virtudes.

Presentemente, é um primo co-irmão da castelão das Rochas-Vermelhas, que é o prior dos Três-Santos acrescentou a Marcelina.

Mas os Vaumeyran, parecem tão indiferentes sob o ponto de vista religioso!

observou a Hermínia.

O barão foi sempre um céptico irredutível. A mulher deixou-se arrastar pouco a pouco por ele, e a educação dos filhos ressentiu-se desse desmazelo replicou a senhora Dalney. Contudo, a Sabina e a Blandina cumpriam regularmente os seus deveres religiosos; o próprio Albano nunca faltou à missa do domingo, até aos dezasseis anos. Mas a morte da mãe produziu naquela família uma incompreensível perturbação.

Chegamos à Valine! anunciou Feliciano.

O trem desembocara numa imensa clareira, no meio da qual se erguia uma grande casa de campo, muito elegante, com uma varanda de madeira clara lindamente trabalhada, esbeltas empenas e uma escada exterior, com uma leve balaustrada. Um grande canteiro de erva estendia-se na sua frente, e por entre os troncos dos pinheiros, um pouco mais raros aqui, brilhava uma grande superfície de água.

O lago da Valine, onde vimos patinar no inverno disse a Marcelina. Pertence, como a casa, ao conde de Sorelles, que foi noivo de Blandina de Vaumeyran.

A senhora D. Blandina esteve noiva? perguntou a Hermínia, com surpresa.

Há dezasseis anos respondeu a senhora Dalney. Era elegante e muito linda, vestida sempre com gosto, muito graciosa, mas um pouco fraca e indolente. Estavam apaixonados um pelo outro, e o casamento parecia reunir todas as vantagens que uma família deseja, pois, além de elevadas qualidades morais e de velha nobreza, o senhor de Sorelles possuía uma fortuna muito grande. E este facto era bastante apreciável para uma rapariga que tinha um dote relativamente pequeno...

Os Vaumeyran não têm fortuna, não é verdade? murmurou a Hermínia.

Outrora não tinham; mas há cerca de doze anos herdaram dum tio muito rico. Nessa época, dizia-se que a Blandina realizava um belo sonho... Por este motivo pode calcular a estupefacção que provocou a notícia de que tinham rompido com o casamento, após a morte da baronesa.

O senhor de Sorelles talvez tivesse notado algum desequilíbrio no espírito da noiva!?

Pensou-se nisso... No entanto, todas as pessoas que conviviam então com Blandina não tinham notado absolutamente nada de anormal. O senhor de Sorelles nunca deu uma explicação sobre o motivo do rompimento. Fechou a Valine e foi viajar para o estrangeiro. Voltou, mais tarde, casado com uma espanhola, e passou esse tempo ora no país da esposa, ora aqui, no seu querido Jura. A jovem condessa morreu seis anos depois do casamento, deixando-lhe uma menina que já tem agora dez anos. Desde então, o senhor de Sorelles instalou-se definitivamente aqui. Não voltou a casar, e vive nesta casa com a filha e uma irmã, entretendo-se com alguns estudos históricos, e praticando o bem à sua volta, pois é um grande coração e um excelente cristão.

Nunca mais tornou a ver os Vaumeyran?

Não, nunca mais... Aliás, eles não visitam ninguém, desde a morte da baronesa.

Que vento estranho soprou sobre essa família? disse pensativamente a Hermínia. E o barão continua obstinadamente invisível... Nunca foi chamado para o tratar, senhor doutor?

Nunca, Hermínia. Nestes últimos dezasseis anos, fui lá a primeira vez no ano passado para tratar de Sabina de Vaumeyran, que tinha a varíola.

O médico calou-se, ao ver surgir na estrada um elegante tílburi, dirigido por um homem com perto de quarenta anos, de bom aspecto e fisionomia simpática.

Olhe, aí vem o senhor de Sorelles, Hermínia murmurou a Marcelina.

O conde parou o carro perto do do doutor; tirou o chapéu e disse cortesmente:

- Minhas senhoras, permitam-me que as cumprimente. Vêm visitar a minha irmã?

Ao pronunciar estas palavras, olhou para a Hermínia levemente surpreso.

Não, hoje não, senhor respondeu a senhora Dalney. Temos que subir ainda às Rochas-Vermelhas para levar... Mas é preciso que os apresente... Menina, o conde de Sorelles... A menina de Vaumeyran.

De Vaumeyran? murmurou o conde. O seu olhar interrogou discretamente o doutor Dalney. Foi a Hermínia quem respondeu resolutamente:

Sou a pupila do barão de Vaumeyran. Um rápido clarão atravessou o olhar do senhor de Sorelles; as mãos enluvadas, que seguravam as rédeas, estremeceram um pouco...

Ah sim!... Muito bem! Como acha o nosso Jura, menina?

O seu à-vontade de homem de sociedade rapidamente fez desaparecer o embaraço que todos eles, como os outros sentiram por um momento...

Mas, enquanto lhe respondia, a Hermínia tinha a impressão de ser observada por um olhar grave e profundo.

Tanto melhor, se já gosta desta região. Isso prova que é uma rapariga de bom senso. E a companhia da Marcelina há-de distraí-la... Espero que a acompanhe, quando vier visitar a minha irmã. Ficará muito contente por conhecê-la, pois tem uma verdadeira adoração pela juventude, e a minha querida Joanita não se lamentará por ter mais uma amiga crescida.

Se mo permite, terei a maior satisfação! disse a Hermínia, interiormente encantada com esta benevolência.

O senhor de Sorelles replicou tranquilamente:

Por que não havia de lho permitir?... Até breve, assim o espero, minhas senhoras.

Inclinou-se, e alargou a rédea ao cavalo, que seguiu a alameda que contornava o canteiro, em direcção a casa.

E agora, a caminho das Rochas-Vermelhas, Feliciano, disse a senhora Dalney. Não devemos levar muito tarde a Hermínia, logo da primeira vez... Este ar tão forte não a fatiga muito, minha filha?

Atordoa-me um pouco confessou a Hermínia. Mas apesar disso, sinto-me mais fortalecida.

Dentro de poucos dias já está acostumada disse o doutor a sorrir. Espero que em breve se torne uma intrépida andarilha como a Marcelina, e então havemos de dar uns passeios pelos arredores. Mostrar-lhe-emos, pouco a pouco e em detalhe, esta linda região, e creio que se deixará conquistar pelo seu austero encanto.

Hermínia entrou nas Rochas-Vermelhas com as faces rosadas, e com os olhos a brilhar de alegria sob as grandes pestanas castanhas. O olhar parecia guardar ainda um pouco do sol que banhava os pinheiros, e o vestido exalava um leve cheiro a resina e a ar puro, quando entrou na biblioteca, um grande aposento mal iluminado, onde se reunia a família.

Albano, que estava a ler num dos grandes vãos duma porta envidraçada, levantou a cabeça e envolveu-a com o olhar impenetrável, Sabina pousou a pena perto do tinteiro, e a mais velha das irmãs interrompeu o bordado que estava a fazer, apesar de ser domingo.

Então, que tal esse passeio, Hermínia?

Encantador, minha senhora! Foram todos muito bons, muito amáveis!... E convidaram-me a ir visitá-los mais vezes.

Clarisse meneou a cabeça com ar satisfeito.

Tanto melhor! É preciso aproveitar bem esse convite, Hermínia. Terá assim alguma convivência. Essas senhoras são muito conhecidas, e apresentar-lhe-ão novos conhecimentos.

Hermínia aproveitou logo a ocasião para dizer:

Já hoje me apresentaram um, minha senhora disse ela com timidez. Encontrámos o conde de Sorelles, que me convidou a ir visitar a sua irmã.

Num movimento simultâneo, Clarisse e Sabina voltaram a cabeça para o canto da biblioteca onde Blandina costumava passar uma parte do dia, a bordar.

Mas não estava lá ninguém como, de resto, o verificara a Hermínia antes de pronunciar o nome do dono da Valine.

Ah! encontrou o senhor de Sorelles! murmurou Sabina.

Desviou os olhos, enquanto que as mãos folheavam o caderno aberto na sua frente.

Na fronte muito alta de Clarisse formou-se uma ruga profunda; o seu olhar, ao envolver a Hermínia, teve uma expressão indefinível...

Ah! convidou-a?... disse ela lentamente. Não sei se se divertirá muito na Valine. A senhora de Sorelles é uma pessoa original...

Mas muito bondosa, muito amável, segundo me disseram as senhoras Dalney, que a visitam muitas vezes. E a pequena Joanita é uma criança encantadora... Além disso, estreitando as relações com os Dalney, terei certamente ocasião de encontrar muitas vezes essa família.

A fisionomia de Clarisse revelou a contrariedade que dificilmente reprimia.

Não sabia que havia tanta intimidade entre eles... Enfim, vá visitar a senhora de Sorelles quando quiser... Mas tenha o cuidado de nunca pronunciar esse nome diante da Blandina. Pode trazer-lhe penosas recordações acrescentou com esforço.

Minha senhora, se isso lhe desagrada, creia que renunciarei sem hesitar a conhecer essa família! disse com vivacidade a Hermínia.

Sabina voltou bruscamente a cabeça para a rapariga. Os olhos estavam encovados, e cercados por olheiras escuras.

- Não! disse ela, num tom sacudido. Não há nenhum motivo para que se prive da distracção que encontraria na Valine... Nenhuma, tu bem o sabes, Clarisse disse ela, dirigindo-se à irmã, numa voz estranha.

Clarisse crispou levemente os lábios, e murmurou, num tom contrariado:

De facto, sei que é um perfeito cavalheiro.

Irá pois à Valine, minha filha, quantas vezes quiser continuou Sabina com calma decisão. Acompanhá-la-ei até da primeira vez, pois é indispensável. Depois confiá-la-ei aos bons cuidados da senhora Dalney.

Calou-se em seguida, pois Blandina entrava nesse momento no salão com o seu eterno bordado, e com os olhos azuis perdidos num vago sonho.

Hermínia subiu ao quarto; mudou de vestido, e veio encostar-se à janela. Os olhos distraídos vaguearam-lhe pelos pinheiros e silvedos do parque, por entre os quais o sol tentava, não sem êxito, afastar a sombra misteriosa...

Menos misteriosa, contudo, que as circunstâncias que tinham perturbado a vida da família de Vaumeyran. Na realidade, não era admissível que a morte da baronesa representasse para eles uma catástrofe tão irremediável que todos se tivessem condenado a uma inacção, a uma clausura de dezasseis anos!... Sim, todos eles, até mesmo Sabina, que devia ter sido tão linda; até o próprio Albano, cujo olhar e conversa revelavam grande inteligência, cuja aparência e modos eram os dum verdadeiro cavalheiro. Como explicar aquele singular recolhimento, aquela tristeza sombria, pesada, que parecia envolvê-los?

Seguindo, com o olhar pensativo, as pequenas nuvens que corriam no céu azul-pálido, a Hermínia pensava: ”Certamente que uma grande desgraça os atingiu. Mas na idade em que estavam, reage-se bem, parece-me; não nos deixamos abater assim... Pobres criaturas, se eu pudesse, em troca dos seus benefícios, dar-lhes um pouco de felicidade!”.

 

No caminho que se dirigia à Valine, a Marcelina e a Hermínia caminhavam sem pressa, conversando alegremente, aspirando o aroma dos pinhais arrastado pela brisa tépida que lhes acariciava as faces, sob os raios do sol.

Hermínia já não era a rapariga fraca que, numa manhã de Maio, chegara à estação de Besançon. Há um mês que já estava nas Rochas-Vermelhas, onde se fortificara rapidamente. Se o ar sadio e puro não lhe faltava ali, também é preciso não esquecer os incessantes cuidados de Sabina e a amizade cada vez mais profunda que unia a Hermínia à família Dalney. Quase se não passava um dia sem que a Marcelina e a Hermínia se encontrassem, quer em casa da senhora Dalney, quer na Valine. As senhoras de Vaumeyran favoreciam o mais possível estas relações.

Sabina, apesar das desagradáveis recordações que lhe podia evocar essa visita, tinha acompanhado a pupila do pai a casa da senhora de Sorelles. Tinham sido recebidas amavelmente, com a cordealidade um pouco brusca que caracterizava aquela senhora. O conde não tinha aparecido; o criado que a irmã tinha mandado a prevenir o conde da visita das duas senhoras, voltou a dizer que o amo tinha saído... No entanto, a Hermínia, ao chegar, julgara avistá-lo numa das janelas da casa... Fosse como fosse, a resposta do criado tivera o condão de afastar do olhar de Sabina a angústia que nele se reflectia, desde que tinham saído das Rochas-Vermelhas.

Mas não devia ter sido a ela, Hermínia, que o senhor de Sorelies tinha assim evitado admitindo que, na realidade, não tinha saído, pois todas as vezes que tinha acompanhado as senhoras Dalney à Valine, ele viera à sala de visitas da irmã, e sempre lhe mostrara a mesma amável benevolência que no dia em que o tinha visto pela primeira vez. Instintivamente, sentia nele uma simpatia profunda, um interesse que não sabia explicar, mas que lhe inspirava singular confiança.

Apesar do carácter reservado, da constante tristeza dos seus benfeitores, e da incerteza do futuro, a Hermínia era feliz nas Rochas-Vermelhas. A aparência delicada e a natureza impressionável da rapariga escondiam uma alma corajosa, já conhecedora de que a vida apresenta grandes dificuldades, e muitas desilusões. A gravidade da anemia de que padecera, diminuíra-lhe momentaneamente a habitual energia; mas, com a saúde, voltara-lhe de novo essa coragem, feita de terna piedade, perseverante dedicação ao dever e tranquilo abandono à Providência, da qual a Superiora dissera já, ao falar da aluna querida:

A pequena Hermínia, assim o espero, há-de tornar-se numa verdadeira e confiante mulher.

Assim, encarava agora o futuro com menos receio. Mais forte, moral e fisicamente, esperava agora poder aliviar o encargo que representava para os seus benfeitores... Mas não havia pensado no casamento. Tinha uma alma delicada demais e um coração muito sensível para aceitar um casamento qualquer, e, agora que conhecia melhor os Vaumeyran, estava certa de que, pelo menos Sabina, se oporia a qualquer tentativa de imposição dum casamento que não fosse do seu agrado. Além disso, era pouco provável que houvesse alguém que pedisse a mão duma rapariga pobre e de pais desconhecidos. Só o trabalho restava a Hermínia como grande recurso moral e material, e pensava nisso muito a sério. Alguns dias antes falara nesse assunto ao doutor Dalney, que encontrava frequentemente em casa da mãe, e cuja natureza leal, delicada bondade e inteligência, lhe inspiravam absoluta confiança.

Observara-a com olhar comovido e grave, e dissera-lhe:

Espere que a sua saúde se restabeleça completamente, Hermínia, e depois pense nisso. Tenho a certeza que não incomoda nada os Vaumeyran, antes pelo contrário.

Abanara a cabeça, murmurando:

E eu creio que sim!

E de facto, sob a fria cortesia de Albano, a solicitude incansável de Sabina e o condescendente interesse da mais velha, a Hermínia sentia qualquer coisa, um sentimento que não sabia definir, mas que constituía uma barreira entre ela e os seus benfeitores.

... Naquele dia, as duas raparigas iam ”tomar a verbena” à Valine... Este dito era da autoria da Marcelina, e circulava agora em todas as relações da senhora de Sorelles. Atribuía ao chá todos os males da humanidade, e como não se importava que a chamassem excêntrica, servia aos seus convidados uma infusão de verbena. A inovação fora bem acolhida, e agora era uma loucura pela bebida tão deliciosamente perfumada que conquistara todos os salões dos arredores... E a senhora de Sorelles esfregava as mãos de contente, predizendo o rápido destronamento do odiado chá

À porta de casa, a Joanita esperava as amigas. Correu para elas e saltou ao pescoço da Hermínia, ”a sua preferida”, como dizia a Marcelina, sem ciúme nenhum.

Era uma criança encantadora, muito morena, forte, que tinha os traços do pai e os olhos negros da mãe, a espanhola.

Venham cá depressa, quero mostrar-lhes as lindas gravuras que o paizinho me trouxe de Paris! disse ela, depois de ter beijado a Marcelina.

Passou para o meio das duas raparigas, agarrou-lhes as mãos, e arrastou-as para o interior de casa.

A sala de visitas de Clementina de Sorelles revelava bem a originalidade do seu carácter, e o seu horror ao convencional. Era um grande aposento completamente guarnecido, de alto a baixo, com obras de talha em carvalho claro. Quatro trabalhos em bronze cinzelado, os retratos do pai e da mãe, um em frente do outro, assinados por um mestre afamado, uma cabeça de veado e dois alfanjes, com os punhos cravejados de pedras preciosas, formavam a ornamentação das duas paredes principais. No soalho de mármore, aos quadrados vermelhos, estavam algumas peles de cabra, de cor levemente acinzentada, em vez de tapetes... Alguns móveis antigos, sólidos e bons, entre eles uma mesinha de laca vermelha, cadeiras confortáveis mas todas diferentes, cortinados de renda, e flores, muitas flores, em todos os sítios onde as tinham podido colocar...

Tudo isto formava um conjunto que não deixava de ter o seu encanto, antes pelo contrário... E a dona da casa harmonizava-se com este ambiente. Apesar de muito alta e forte, à primeira vista um pouco masculina, com um rosto vincado e um buço que lhe cobria os lábios, os gestos bruscos e a voz sonora, sabia atrair e reter a amizade, pela bondade real, pela cordialidade nunca desmentida. Dizia-se que era um pouco atabalhoada; a franqueza e a originalidade do seu espírito levavam-na, por vezes, um pouco longe demais; em certos momentos, comportava-se até como uma terrível criança, principalmente para quem lhe caía em desagrado. Mas tudo isso tinha pouco interesse para a Hermínia, que se sentira conquistada pela sua amabilidade, e se divertia imenso com as suas extravagâncias.

Vamos lá, apressem-se, minhas filhas fazem esperar a verbena..., e o meu irmão

disse ela, ao ver entrar as duas raparigas e a Joanita.

O senhor de Sorelles, que folheava distraidamente uma revista, levantou-se para cumprimentar as duas raparigas.

Deixaram-se prender pelo profundo encanto das nossas florestas, não, meninas?

disse ele, sorrindo.

Na verdade, chegamos um pouco atrasadas! exclamou a Marcelina, olhando para o relógio de ónix que estava em cima da mesa de trabalho da senhora de Sorelles. Apresentamos todas as nossas desculpas à sua verbena, minha senhora..., e naturalmente, também ao senhor conde.

Vamos, sente-se depressa, menina maliciosa! disse a senhora de Sorelles, com um modo encantador. Perdoo-lhes por esta vez... Mas que fisionomia tão fresca, menina Hermínia! Ora vejam como o ar dos nossos pinhais faz maravilhas! No dia em que aqui veio com a senhora de Vaumeyran, fez-me compaixão. Não sei qual das duas estava mais pálida e mais magra.

A saúde da senhora D. Sabina não me parece boa disse a Hermínia, abanando a cabeça. Dá-me a impressão que é uma pessoa minada por secreto sofrimento moral.

Antigamente, eram fortes e vigorosas... A própria Blandina nunca tinha estado doente, apesar daquele aspecto tão delicado.

Hermínia olhou discretamente para o conde. Mas o nome da ex-noiva, dito assim no decorrer da conversa, não parecia ter impressionado o conde. Abanava com os óculos, seguindo com os olhos os movimentos da filha, entretida a reunir as gravuras.

Mas nunca bebia chá e adorava a verbena! continuou Clementina, num tom triunfante, pegando na chaleira com mão firme. Era muito sensata e sedutora. Não posso compreender como enlouqueceu. Jamais o menor indício nos fizera prever o que aconteceria... Então, Luciano, vais-te embora?

Vou mandar deitar ao correio uma carta que deixei no escritório respondeu, secamente.

Eu vou consigo, paizinho! exclamou a Joanita, agarrando a mão do pai.

Mal a porta se tinha fechado, a senhora de Sorelles pousou a chaleira e disse um pouco atrapalhada:

Ai! fiz mais uma tolice!... Contudo, já lá vão dezasseis anos! Mas nunca pôde suportar que lhe falassem na loucura da sua antiga noiva.

Devia ter sido muito linda! disse, pensativamente, a Hermínia. O seu rosto ainda agora é encantador!

Oh, arrebatador!... E tão amável, tão espirituosa. E a que estado chegou!... Uma tarde, Luciano despedira-se da noiva, deixando-a mais feliz, mais encantadora ainda, se isso fosse possível. Todos os Vaumeyran pareciam satisfeitos, não se notava nenhuma nuvem que pudesse vir a toldar a sua felicidade. O meu irmão partiu, no dia seguinte, para Paris, onde ia escolher a mobília para a futura casa. Nesse mesmo dia, soubemos que os castelães das Rochas-Vermelhas tinham encontrado, à porta de casa, uma criança desconhecida... Fui logo lá saber o que tinha acontecido. Foi Clarisse que me recebeu. Mostrou-me a criança, que parecia ter dois anos, e disse-me que a mãe estava muito doente. Não vi mais ninguém lá de casa nesse dia, e a porta do castelo fechou-se para todos, salvo para o doutor Dalney o pai de Feliciano que tinha sido chamado para tratar da baronesa. No dia seguinte, ela morreu. O meu irmão, que eu tinha chamado por um telegrama, chegou no dia seguinte; foi logo ao castelo... Quando voltou, dei um grito ao ver a sua fisionomia completamente transtornada.

”Luciano, o que aconteceu?” ”Respondeu-me, numa voz que mal se ouvia:

”O casamento já se não realiza... Em nome do nosso afecto de irmãos, nunca mais me fales nisto, Clementina!”

”Assim o fiz; mas, como não me tinha proibido de colher informações, fui até às Rochas-Vermelhas. Lá, no castelo, o Oodard recusou introduzir-me, dizendo-me que as senhoras não podiam receber, tal o seu estado de fadiga e desgosto.

”Vi-as no dia seguinte, no enterro isto é, apenas a Clarisse, a Sabina e o Albano. A Blandina e o pai tinham ficado no castelo. Mas não era durante a cerimónia que podia tentar saber alguma coisa. Por isso, voltei no outro dia ao castelo; fui então recebida pela Clarisse. Manteve-se impenetrável durante toda a conversa, e contentou-se apenas em responder:

”O senhor de Sorelles e a Blandina reconheceram que o mais razoável era não levar a cabo esse projecto.

”Ainda quis ver a Sabina, mas foi impossível; não saía de ao pé da Blandina, que estava doente, segundo parecia, e não queria ver ninguém. Saí então do castelo, depois de ter observado uma vez mais a criança encontrada, que a Celeste embalava docemente nos braços.

”Alguns dias mais tarde, começou a espalhar-se o boato de que a Blandina tinha enlouquecido. Fui de novo pedir informações a Clarisse a única pessoa da família que se mantinha visível e recebi uma resposta confirmativa.

Desde então, têm vivido sempre como podem hoje observar. Apenas o Albano viajava de vez em quando; mas, até mesmo esse, há dois anos para cá, nunca mais saiu daqui. Romperam com todas as relações, e levam lá em cima uma existência de mochos. Dizem que é durante a noite que passeiam.

Herlou, o guarda-florestal, encontrou, numa noite, já quase de madrugada, o Albano e a Sabina”.

E tudo isso começou no dia em que me recolheram murmurou a Hermínia. Pode-se até pensar que fui eu que lhes trouxe a desgraça!

- Oh! minha querida, não diga isso - exclamou a Marcelina, apertando a mão da amiga.

Clementina inclinou-se um pouco e deu uma amigável sapatada no rosto da Hermínia.

Olha que ideia! Como se da prática dum acto de caridade pudesse resultar a desgraça!... E muito menos quando se trata de um anjo como a Hermínia. Que linda boneca que era!... Tão pequenina, tão branca! Como todas as pesquisas foram inúteis, não se sabia o nome que se lhe havia de dar. Por outro lado, como não se sabia se já tinha sido baptizada, o senhor cura ministrou-lhe o baptismo, prevendo o caso de já ter recebido esse sacramento. Quando a viu nos braços da Celeste, que a levara à igreja, murmurou: ”Pobre pequenina, é tão branca como um arminho!...” Então, o irmão da Celeste, um relojoeiro que aceitara, juntamente com a Clarisse, ser o seu padrinho, disse:

”Vamos-lhe dar então o nome de Maria Hermínia, se a senhora de Vaumeyran não achar inconveniente”.

O olhar da Hermínia, sonhador e melancólico, perdeu-se, durante uns instantes, entre os pinheiros que a janela aberta deixava entrever, iluminados pelo sol doirado.

Nunca encontraram qualquer indício? murmurou ela.

A senhora de Sorelles abanou a cabeça, agarrando de novo na chaleira.

Não, nunca souberam nada! Os empregados da estação de Bourg-d’Eylan asseveraram que tinham visto chegar, quase ao cair da noite, um homem alto e uma mulher, que trazia uma criança nos braços. Mas as duas pobres criaturas nunca foram encontradas... Visto ter-se desencadeado nessa noite uma violenta tempestade de neve, teriam desaparecido nalgum desses desfiladeiros? Não era impossível, infelizmente!

Começou a deitar lentamente a infusão perfumada nas chávenas de velha porcelana do Japão, enquanto a Marcelina apertava a mão da Hermínia, murmurando-lhe afectuosamente:

Ficou tão triste, minha amiga! Não pense mais nesse misterioso passado!

É tão cruel não sabermos nada, perguntarem-nos quem somos e não sabermos responder! disse a Hermínia, com um pouco de amargura.

Vamos, vamos, deixe isso, minha filha! disse Clementina de Sorelles. Fiz mal em falar-lhe nestas coisas; a culpa será minha se esses lindos olhos azuis se entristecerem agora... Tenho por vezes a língua comprida demais, deixo-me arrastar pelas velhas recordações...

O senhor de Sorelles entrou, seguido da Joanita. A pequena arrastou a Hermínia para a mesa onde estavam espalhadas as gravuras, e a sua tagarelice, a conversa interessante do conde e a alegria da Marcelina, expulsaram pouco a pouco a tristeza que tinha invadido a Hermínia, ao ouvir contar o seu passado.

A convite do senhor de Sorelles, as duas raparigas, antes de saírem da Valine, foram à estufa, onde lhes queria mostrar uma das espécies da begónia, particularmente bela. A estufa, que se estendia a todo o comprimento do rés-do-chão de uma das fachadas da casa, estava muito bem cuidada e continha muitas colecções de plantas raras.

As jovens admiraram muito a enorme flor da begónia, de um tom de rosa suave, com uma cercadura de amarelo esmaecido, e receberam algumas das mais lindas rosas das roseiras que cresciam junto às paredes da estufa.

Então a Joanita levou consigo a Marcelina para lhe mostrar uma planta exótica, notável mais pela extravagância, do que pela beleza. A Hermínia ficou no interior da estufa, um pouco inclinada sobre as rosas que tinha nas mãos... Não longe dela, o senhor de Sorelles, com a tesoura na mão, procurava cortar um botão de rosa ainda mal desabrochado.

Voltou-se para ela e disse em voz baixa:

Por que razão estava tão triste, quando há pouco entrei na sala, menina Hermínia?

A rapariga levantou a cabeça e respondeu-lhe, numa voz um tanto melancólica:

Falávamos dos Vaumeyran... e da maneira como entrei naquela família.

Ah! disse ele.

Voltou-se em seguida, curvou-se um pouco e manobrou a tesoura. O botão de rosa caiu; pegou nele e ofereceu-o à Hermínia.

Oh, como é lindo!... O senhor conde devasta a sua estufa por nossa causa!

Ainda aqui ficam muitas flores... A minha irmã cometeu, então, a leviandade de despertar velhas recordações...

A voz tinha-se alterado um pouco, e uma ruga formara-se-lhe na fronte pálida...

Oh! Penso muitas vezes nisso disse, lentamente, a Hermínia. Mas, apesar da tristeza que sinto sempre, quando se fala nisso, não posso zangar-me por saber certos detalhes..., como por exemplo, que tinha sido visto um homem e uma mulher, com uma criança nos braços, desconhecidos na região, no mesmo dia em que me encontraram nas Rochas-Vermelhas. Talvez um dia..., talvez...

O conde voltou um pouco a cabeça. A luz que atravessava os vidros, um pouco encobertos pela folhagem, emprestava-lhe, sem dúvida, ao rosto aquela palidez singular...

Tenha esperança.. Sim, deve-se sempre ter esperança - murmurou ele.

A Marcelina voltou com a amiga; as duas raparigas despediram-se do senhor de Sorelles e saíram da Valine.

A Marcelina conversava com a sua animação habitual, mas a Hermínia mal lhe respondia. A narrativa da senhora de Sorelles havia-a emocionado profundamente e despertara-lhe a imaginação.

Ao saírem dum atalho, as raparigas viram, parados alguns passos à frente, o doutor Dalney e dois religiosos com hábitos brancos.

O prior dos Três-Santos murmurou a Marcelina ao ouvido da amiga.

O mais velho dos dois religiosos tinha voltado a cabeça na sua direcção. A Hermínia observou então a sua fisionomia, de traços finos, expressão grave e um pouco fria.

Ah! Aí vêm a minha irmã e a menina de Vaumeyran! disse, com vivacidade, o médico.

Um estremecimento percorreu a fisionomia do religioso.

A menina de Vaumeyran? disse ele, num tom de interrogativa admiração, inclinando a cabeça para responder ao respeitoso cumprimento das duas raparigas.

Sim, a pupila do barão, a pequena que...

Eu recordo-me interrompeu-o o prior, numa voz subitamente trémula.

O seu olhar envolveu a Hermínia... Os olhos, dum azul carregado, suavizavam dum modo singular a fisionomia austera; exprimiam grande bondade e benévola firmeza. Nesse momento, deixaram entrever um clarão de sofrimento.

Que Deus a abençoe, minha filha disse ele, com certa perturbação.

As mãos, ligeiramente trémulas, mergulharam nas largas mangas, e continuou, dirigindo-se ao médico:

Espero-o, então, amanhã, Feliciano, para observar o irmão Bruno. Que a paz do Senhor seja convosco!

Inclinou a cabeça e afastou-se, seguido pelo companheiro.

A Marcelina dependurou-se, então, no braço do irmão.

Que sorte tivemos em encontrar-te! Vais para casa?

Não, vou ver a Marielle Daulieu. E se as duas me acompanhassem?

Vou contigo!... E a Hermínia?

Quem é Marielle Daulieu? perguntou a Hermínia, cujo olhar pensativo seguia os vultos brancos dos religiosos, que se afastavam por entre os pinheiros.

Uma rapariga doente, mas muito interessante respondeu o Feliciano. Sofre de coxalgia, e creio que incurável. O pai dela, Anatólio Daulieu, fabrica peças para relógios. É um homem egoísta e muito extravagante, e no tugúrio isolado onde vivem, a pobre rapariga aborrece-se imenso. A Marcelina vai visitá-la de vez em quando... Mas parece-me que a desprezaste um pouco este mês, não?

Na verdade Ixclamou a Marcelina, num tom pesaroso. Pobre Marielle!... Quer vir visitá-la, Hermínia?

Também vou! disse, com interesse, a rapariga.

Puseram-se os três a caminho. Hermínia ia pensativa: o encontro com o prior dos Três-Santos tinha-a impressionado um pouco. Parecia ver ainda o seu olhar grave e quase doloroso... O conde de Sorelles tinha-a observado com um olhar semelhante, quando a encontrara pela primeira vez.

Vai tão calada, Hermínia! notou o médico, sorrindo.

Respondeu, num tom grave:

Estava a pensar... Aquele religioso é o primo do barão de Vaumeyran, não é?

Sim, o padre Benedito-Maria..., uma natureza privilegiada, uma alma de verdadeiro” religioso.

Mantém relações com os Vaumeyran?

Antigamente ainda os ia visitar, apesar da divergência das suas opiniões. Existia até uma sólida amizade entre ele e o barão. Mas creio que nunca mais se viram, desde a morte da senhora de Vaumeyran.

Sempre!... Sempre esse ponto de partida, em tudo! murmurou a Hermínia.

Ali está a casa do senhor Anatólio Daulieu disse a Marcelina.

Na frente dos três surgira uma velha casinha, de telhado alto e muito inclinado. Na soleira da porta, que estava aberta, via-se um homem de pé, a fumar num pequeno cachimbo. Um feixe de luz incidia nele, iluminando-lhe o rosto largo e descorado, de expressão pacífica e concentrada.

Boa tarde, Anatólio! disse, cordialmente, o médico.

O homem tirou o cachimbo da boca e deu alguns passos para os visitantes.

Boa tarde, senhor doutor; boa tarde, meninas disse em voz arrastada. Vêm ver a minha filha?

Vimos sim, senhor Daulieu respondeu a Marcelina. Como tem passado?

Sempre na mesma, menina... Façam o favor de entrar...

Penetraram numa pequena sala, com móveis de madeira tosca. Uma rapariga, sentada numa velha cadeira de palha, voltou a cabeça para os três, mostrando um rosto fatigado, excessivamente pálido, emoldurado por uma cabeleira opulenta, dum ruivo intenso. Fez um gesto para agarrar nas muletas que estavam ao seu lado...

Não, não se mexa, Marielle! exclamou, rapidamente, a Marcelina. A menina de Vaumeyran e eu, acompanhamos o senhor doutor, para ver se a distraímos um pouco...

Como é boa, menina Marcelina disse a doente com emoção, suavizando-se a expressão um pouco amarga dos lábios e a fria tristeza dos olhos castanhos. Sentem-se, peço-lhes...

Anatólio Daulieu aproximou as cadeiras, e o doutor e as duas raparigas sentaram-se perto da Marielle, ao passo que o dono da casa se sentava perto da banca onde estavam as ferramentas e as peças dos relógios, em que trabalhava para uma fábrica de Saint-Cloude.

Hermínia conhecia já a bondade do doutor Dalney; mas pôde admirar então a maneira delicada e alegre como sabia encorajar os doentes, e o interesse que por eles tomava.

A fisionomia fatigada e um pouco revoltada da Marielle desanuviou-se, um sorriso apareceu-lhe até nos lábios descorados, e começou a falar quase alegremente.

Não nos demoremos mais, Hermínia, porque podiam inquietar-se lá em sua casa disse o Feliciano, levantando-se em seguida.

Hermínia inclinou-se para a doente e pousou-lhe a mão no braço.

Gostaria que viesse vê-la algumas vezes, menina Marielle?

O olhar da Marielle envolveu rapidamente o lindo e encantador rosto da Hermínia.

Oh! muito, menina! respondeu, gravemente.

Está bem! hei-de voltar... Não é muito longe daqui às Rochas-Vermelhas, pois não, senhor doutor?

Nem por isso, Hermínia. Ficarei muito satisfeito se vier visitar a minha doente acrescentou ele, comovido, o que fez corar um pouco a Hermínia, sem que soubesse dizer bem porquê.

Anatólio mantivera-se afastado da conversa. Com o cachimbo entre os dedos, tinha ouvido, um pouco distraído, o que se dizia, olhando de tempos a tempos para a Hermínia com a expressão de quem procura a solução dum problema.

Quando os visitantes se levantaram, imitou-os.

Depois de se terem despedido da Marielle, acompanhou-os até fora de casa.

Até à vista, Anatólio disse o médico, ao estender-lhe a mão. Voltarei cá, em breve... Mas a sua filha não está assim tão mal como julga, asseguro-lho.

Anatólio abanou a cabeça, murmurando:

Vai como o irmão, nunca mais se curará!... Em todo o caso, muito obrigado, senhor doutor..., e obrigado também, minhas senhoras.

Os olhos pequenos e escuros, quase ocultos pela gordura do rosto, fixaram-se em Hermínia...

É das Rochas-Vermelhas, minha senhora? interrogou ele.

Hermínia respondeu afirmativamente e, tendo cumprimentado de novo, afastou-se com a Marcelina.

Com um gesto, Anatólio reteve o médico.

Diga-me..., aquela senhora chama-se Vaumeyran?

Porque me pergunta isso? disse o doutor, surpreendido.

Para saber respondeu Anatólio tranquilamente. Não se parece nada com as outras... E como recolheram uma menina...

Que é precisamente a menina Hermínia... Adeus, Anatólio.

Anatólio seguiu-os com os olhos e depois entrou em casa, onde a Marielle, pensativa, fitava o feixe de luz que atravessava os vidros da pequena janela.

Era a menina que os Vaumeyran recolheram disse ele, sem preâmbulos.

Ah! exclamou a Marielle, num tom de tranquila surpresa.

Curvou a cabeça e começou a acariciar lentamente um gatito cinzento que se lhe aninhara no regaço.

Anatólio recomeçou a trabalhar... Passados alguns instantes, a rapariga murmurou:

Talvez tivesse sido da sua obrigação ter falado, pai...

Anatólio encolheu os ombros e curvou-se mais sobre a banca, replicando:

Nunca me intrometi na vida dos outros!

 

Nessa tarde, era grande a animação em casa dos Dalney. A Marcelina fazia vinte anos e a senhora Dalney preparara, em sua honra, uma pequena festa. A rainha do dia, tão rosada como o vestido, ia e vinha, muito alegre, mais sorridente do que nunca, respondendo com espirito aos parabéns e cumprimentos dos que chegavam. Feliciano, também muito bem disposto, ajudava a mãe e a irmã, como um perfeito dono de casa. Mas, sempre que chegava um novo grupo de pessoas, as sobrancelhas franziam-se-lhe, como as duma pessoa desapontada.

O olhar iluminou-se-lhe de repente. À entrada do salão aparecera uma rapariga desenvolta, vestida de branco, para a qual já a Marcelina se dirigia.

Hermínia, até que enfim Já receava que não aparecesse!

A senhora D. Sabina reteve-me um pouco, pois queria que eu trouxesse uma pulseira, e não se recordava onde estava guardada.

E a Hermínia levantou o pulso para mostrar uma pulseira de ouro, cravejada de pedras preciosas.

- Mas é magnífica... e como está encantadora, Hermínia... Não é verdade, Feliciano, que nunca esteve tão bonita? disse a Marcelina, voltando-se para o irmão, que se tinha aproximado do grupo.

Feliciano, inclinando-se em frente da Hermínia, toda corada, respondeu, com um leve sorriso:

Não me atrevo a apoiar a tua observação, porque receio que a Hermínia não goste de elogios...

Tem razão, senhor doutor! disse ela, com vivacidade. A Marcelina é uma lisonjeira... Mas, onde está a sua mãe, Marcelina?

Ali, ao pé da avó. Vá cumprimentá-la, minha querida, que eu vou já ter consigo.

Hermínia dirigiu-se para o fundo do salão. Cumprimentou a senhora Dalney, e em seguida a sogra, altiva e desdenhosa, como sempre que a jovem se lhe dirigia.

A senhora de Vaumeyran não a acompanhou, menina? interrogou a senhora Bruenne, a esposa do notário, uma senhora muito gorda, alegre e benevolente, que mostrava pela Hermínia uma grande simpatia.

Oh! não, minha senhora, nenhuma das senhoras de Vaumeyran frequenta a sociedade!

É curioso! disse a senhora Dalney, mãe, em tom desdenhoso. Admiro-me que a deixem frequentar a mesma sociedade que elas, nobres, ricas e fisicamente encantadoras, abandonaram em plena mocidade!

- Isso só prova que não são egoístas disse a senhora Bruenne. Há tantas pessoas que obrigam os que delas dependem a seguir-lhes o exemplo!... Mas os Vaumeyran foram sempre considerados como pessoas de bom senso e de grande prova de moral.

- Ah! Falaremos nisso daqui a pouco. Mostram, na verdade, o seu bom senso - murmurou a senhora Dalney, mãe.

E quando a Hermínia se afastou, disse em voz baixa ao ouvido da companheira:

Acha que deviam educar como uma princesa esta pobre rapariga enjeitada? Já observou o seu vestido? Na sua simplicidade, vale muito mais que os de muitas meninas que estão aqui... Notou a pulseira que trazia no pulso? Não a tinha, com certeza, no dia em que a encontraram na neve, à porta das Rochas-Vermelhas... Consta também que lhe deram o melhor quarto do castelo, o que outrora era ocupado pela senhora de Vaumeyran. A minha cozinheira disse-me que agora a Celeste compra o que aparece de melhor, e que mandam vir muitas coisas de Paris..., e tudo isto para esta rapariga enjeitada!... E ainda me vem falar, com tal exagero, em bom senso!

A senhora Bruenne esfregou o queixo com a mão flácida, e respondeu com bonomia:

Não sei se será bom senso; mas, em qualquer caso, representa uma bondade notável.

Fraqueza!..., estúpida fraqueza! replicou a senhora Dalney, com um encolher de ombros.

Hermínia tinha ido juntar-se ao grupo das raparigas. Alguns olhares invejosos a acolheram, quatro ou cinco bocas tiveram um trejeito desdenhoso... Sentou-se entre as duas meninas Bruenne, amáveis raparigas que lhe testemunhavam sempre uma grande amizade.

Alguns rapazes voltejavam junto do grupo. Entre eles estava Pedro Bruenne, um rapaz loiro, todo desempenado, que devia continuar com a casa do pai, e que dissimulava muito mal o seu desejo de ser o marido da Marcelina Dalney.

O médico veio quase em seguida juntar-se-lhes. Uma rapariga morena, com um nariz muito comprido e lábios delgados, exclamou:

Feliciano, ainda demora muito o início do baile?

Penso que não, Matilde. Esperamos apenas alguns convidados, que se atrazaram...

Aí vem a família Sorelles! disse a Hermínia.

Feliciano Dalney foi cumprimentá-los, e voltou depois a acompanhar a senhora de Sorelles, que gostava de ficar entre as raparigas, não porque tivesse a pretensão de ainda o ser, mas sim porque gostava da alegria e do entusiasmo.

Boa tarde, minhas filhas! disse ela, numa voz sonora, estendendo sucessivamente a mão às raparigas. Está hoje muito bem penteada, Clara!... E, desta vez, escolheste uma bela cor para o teu vestido, Matilde... Céus! que linda flor que vejo acolá! Hermínia de Vaumeyran, nunca mereceu tanto o seu nome como agora!

Hermínia corou um pouco sob os olhares que nela se fixaram. Os olhos de Feliciano exprimiam discreta admiração...

Não é verdade que está deliciosa, minha senhora? exclamou a Marcelina, que se aproximara nessa altura do grupo. Como gostava de ter uma pele como a sua, Hermínia, e os seus cabelos, dum loiro tão lindo!

Pedro Bruenne protestou:

Oh! Marcelina, não julgue... Marcelina voltou-se de repente para ele:

Não me diga que tenho a pele branca os cabelos cor-de-ouro! Apesar da sua habilidade para dizer elogios, não me fará acreditar neste, Pedro

Todos se riram com gosto, enquanto o futuro notário se inclinou com gravidade cómica,

Acredite, Marcelina, que tenho uma opinião demasiado elevada da sua inteligência e do seu bom senso, para me arriscar a fazer tal afirmação. E não seria preciso, aliás. Pode ainda sentir-se orgulhosa e feliz, assim como Deus a fez.

E sinto-me, Pedro! disse ela, com um sorriso, mostrando uns dentes muito lindos. E sinto-me, na verdade...

E não tem nada que invejar à Hermínia disse a Matilde Saulan, a rapariga morena, lançando um olhar desdenhoso à pupila dos Vaumeyran.

Hermínia empalideceu um pouco e os lábios contraíram-se-lhe... Não, oh, não! Nenhuma daquelas raparigas, amparadas pela família, tinham nada a invejar da sorte da criança enjeitada, educada por caridade!

 

Ao erguer os olhos, encontrou o olhar do doutor Dalney. Exprimia um encorajamento tão profundo, tão ardente, que a alma da Hermínia se tranquilizou de súbito, reconfortada.

Uma senhora dirigiu-se para o piano e os cavalheiros precipitaram-se para as raparigas... Feliciano inclinou-se diante da Hermínia.

Não sou um grande bailarino, Hermínia; mas, enfim, ainda ouso solicitar-lhe esta polca...

Oh! também danço muito pouco! disse a Hermínia com um lindo sorriso, levantando-se e pousando a mão no braço do médico.

Não tenho essa impressão. Deve ter a leveza duma ave disse ele, envolvendo com um olhar encantado a delicada fisionomia.

A senhora Dalney, mãe, levantou-se bruscamente e foi murmurar ao ouvido da nora:

- Que ideia foi a do Feliciano de convidar para a primeira dança a pequena das Rochas-Vermelhas? disse ela, irritada.

A senhora Dalney olhou para a sogra com surpresa.

Mas, ela ou qualquer outra, minha mãe!...

Como, ela ou outra qualquer!... Coloca no mesmo pé de igualdade essa rapariga e as outras amigas da sua filha?

Mãe, na verdade, não vejo...

A senhora Dalney, mãe, enrugou ”bruscamente as sobrancelhas.

Não sei onde tem o espírito, Julieta! Acreditar-se-ia facilmente que se esqueceu que esta rapariga é, na realidade..., uma criança vinda não sabe donde, e educada por caridade pelos castelães lá de cima...

É uma rapariga encantadora, uma alma corajosa e muito boa! interrompeu a senhora Dalney, em tom firme. Mais uma razão para que a rapariga, que se encontra nessa situação, se veja cercada de atenções... E o Feliciano, que tem uma alma tão delicada, compreendeu-o logo.

A velha senhora enrugou os lábios e entreabriu a boca para responder; mas não disse nada, porque o senhor de Sorelles se aproximou da dona da casa.

Hermínia dançava de modo delicioso e o médico tinha sido modesto, pois todos foram unânimes em concordar que ninguém os tinha igualado. Quando o Feliciano trouxe o par ao seu lugar, a senhora de Sorelles exclamou, apertando as mãos à rapariga:

Minha linda, é perfeita!... Também foi no convento que aprendeu a dançar?

Um pouco, minha senhora; mas fiz muitos progressos nas últimas férias. Passei um mês com a senhora d’Orbes e a filha, em Villers-sur-Mer, e dançávamos quase todas as noites, em casa das famílias conhecidas.

Ah! Então já se explica que tenha tanto à-vontade, tanto encanto... Nunca vi ninguém dançar assim tão bem, a não ser, talvez, Blandina de Vaumeyran. Era uma delícia vê-la rodopiar num salão I E talvez por isso, o pobre Luciano, que nesse ponto igualava a Blandina, nunca mais quis dançar desde que rompeu o noivado.

O médico ainda se demorou alguns instantes a conversar alegremente com a Hermínia e a senhora de Sorelles. Mas, quando a nova dança começou, retirou-se discretamente, ao passo que Pedro Bruenne convidava a jovem.

O senhor de Sorelles, que não se interessava pela mesa do jogo, à volta da qual se tinham instalado os três ou quatro cavalheiros que tinham acompanhado as esposas e as filhas, sentou-se ao lado da irmã e começou distraidamente a observar as evoluções dos dançarinos. A seu lado, Clementina conversava com três raparigas que tinham sido obrigadas a ficar sentadas, por falta de rapazes em número suficiente. Voltou-se de repente para o irmão e disse-lhe em voz baixa:

Já viste a pulseira que a Hermínia traz no pulso, Luciano? É a que Sabina recebeu da madrinha..., uma jóia valiosa, de que tanto gostava, pois era bem conhecido o seu bom gosto. Não consigo explicar o motivo por que amimam tanto a pequena, que, apesar de tudo, lhes é uma estranha!

Sem dúvida que têm as suas razões respondeu, com secura, o conde.

É um erro, na minha opinião continuou a senhora de Sorelles, abanando a cabeça. Estão a incutir hábitos de luxo à rapariga e que... A não ser que lhe dêm um grande dote, pois todos eles parecem ficar solteiros.

Não seria impossível disse o senhor de Sorelles, no mesmo tom lacónico.

A fortuna que o tal primo Bolangy lhes deixou, foi avaliada, no mínimo, em dois milhões. Não gastam quase nada e não parecem ter desejos de o fazer. Na verdade, nada impede que a Hermínia seja a sua herdeira.

Não, absolutamente nada disse ainda o conde, que olhava pensativamente para o lindo par formado por Hermínia e Pedro Bruenne

E isso há-de ter muita influência no casamento da Hermínia... porque não se pode negar, Luciano, que o mistério que envolve a sua origem é um grande obstáculo para muitos rapazes!

É verdade! murmurou o senhor de Sorelles.

Começou a cofiar lentamente a barba castanha. O seu olhar tinha uma expressão de tristeza profunda.

Hermínia voltou para o seu lugar acompanhada por Pedro Bruenne, que se afastou logo em seguida para responder a uma pergunta da Marcelina, muito atarefada com os preparativos dum pequeno acto de variedades.

O senhor de Sorelles aproximou a sua cadeira da de Hermínia, e disse-lhe, sorrindo:

Até que enfim que a vejo alegre e animada, Hermínia! A dança não a fatiga muito?

Um pouco; ainda não estou completamente restabelecida. Para obedecer ao doutor Dalney, só aceitarei mais uma ou duas danças.

Estou certo de que é uma doente muito dócil, e o doutor deve ter pouco trabalho em conseguir que cumpra as suas prescriçõesr não?

Oh! É tão bondoso e tão dedicado! disse ela, num impulso.

O conde envolveu-a num olhar rápido e ficou silencioso por uns momentos, seguindo com os olhos os movimentos das raparigas que se preparavam para a representação.

Não faz parte do grupo de artistas, Hermínia? perguntou.

A jovem abanou a cabeça.

- Oh! não; não tenho habilidade suficiente. A Marcelina queria que eu entrasse num quadro vivo, representando a linda pintura que a senhora Bruenne possui, e que se chama As fadas da Aurora. Eu devia ser uma das fadas. Mas a menina Saulan dissuadiu a Marcelina de escolher esse quadro... Julgo que não queria que eu desempenhasse qualquer papel acrescentou a Hermínia, num tom pensativo, mas sem amargura. Não sei por que motivo algumas senhoras e raparigas me mostram o seu desagrado.

Um clarão de triste compaixão atravessou o olhar do senhor de Sorelles.

É impressão da Hermínia disse ele, constrangido.

Oh! não é! replicou gravemente a rapariga. Têm o ar de quem me recebe por condescendência... Mas serão elas mais que os Dalney e os Bruenne, mais que a senhora de Sorelles e o senhor, que me acolhem todos com tanta benevolência!

O senhor de Sorelles observou o rosto um pouco alterado da Hermínia, com um olhar profundo, cheio de doçura.

Escondem no fundo do coração sentimentos ignorados por todos os que acaba de indicar, Hermínia: não só a inveja, mas ainda um orgulho baixo e estúpido.

Inveja!? repetiu a Hermínia, abrindo muito os olhos. Invejam-me, a mim?... E porquê?

O conde escondeu, sob o bigode, um leve sorriso, e respondeu com imperceptível ironia:

Sei lá!... Hoje, talvez porque traz essa pulseira tão linda!

E indicou a pulseira que envolvia o pulso da rapariga.

Foi a senhora D. Sabina que me obrigou a trazê-la. Não pode imaginar como é boa e generosa!... E proíbe-me sempre que lhe agradeça, o que, confesso, me custa muito. São, de facto, duma extrema delicadeza, não é verdade, senhor?

O conde respondeu por um monossílabo e pareceu interessar-se pelo espectáculo que ofereciam as raparigas, já vestidas para a representação. Mas a Hermínia arranjou logo outro interlocutor em Feliciano, que viera sentar-se a seu lado e começara uma conversa, simultaneamente alegre e inteligente, que tanto agradava ao espírito culto e delicado da Hermínia. As suas opiniões concordavam tão bem. Encontravam-se tantas vezes na mesma admiração pelo belo e pelo bem, e na mesma repulsa pelo mal!

No fim do acto de variedades, a Marcelina veio sentar-se ao lado do irmão.

- Uff! estou cansada!... O Pedro vai recitar um monólogo; vai ver como é divertido, Hermínia.

Se escolhesse o São Cristóvão, era oportuno! disse o doutor, sorrindo.

É verdade!... É esta noite, Hermínia, que a cascata rubra deixa de correr durante uma hora Ah!... Vou pedir para ir ao terraço do parque nesse momento! disse a Hermínia.

O senhor de Sorelles disfarçou um movimento brusco voltando-se para a jovem, com as feições um pouco contraídas.

- É pouco provável que lho permitam disse, num tom calmo, mas onde perpassava um pequeno tremor.

Mas porquê?,.. As noites já estão quentes e não há nada a temer... Por que supõe isso, senhor conde?

Não suponho, tenho a certeza! disse ele, com tranquila segurança.

Oh! Oh! O senhor conde conhece então, de antemão, a vontade dos castelães das Rochas-Vermelhas? exclamou Feliciano, a rir.

Precisamente! respondeu ele, mas numa voz que a Hermínia, surpresa e perplexa, não soube se era a gracejar, ou se era seriamente.

Já passava das sete horas quando a Hermínia se sentou na carruagem que a devia levar às Rochas-Vermelhas. O médico veio ajudá-la a subir... Ao sentar-se nas almofadas da velha vitória dos Vaumeyran, a Hermínia lançou um involuntário e melancólico olhar sobre os grupos que se afastavam, famílias e amigos, enquanto ela ia só. Feliciano notou esse olhar triste, e murmurou, numa voz grave e comovida:

Não esqueça que ainda tem, aqui, amigos fiéis, Hermínia!

Respondeu-lhe com um olhar agradecido e o carro afastou-se, seguido pelo olhar do médico, que ficara imóvel.

Receia que o cocheiro das Rochas-Vermelhas se engane no caminho, Feliciano? -disse, a seu lado, uma voz zombeteira.

Voltou-se então e viu atrás de si a prima, Matilde Saulan.

Porque diz isso? perguntou, com secura.

Ora, porque a observa com tanta atenção!...

Julgar-se-ia, ao vê-lo, que não podia desviar os olhos!

Feliciano encolheu os ombros e replicou:

A sua imaginação é muito fértil, Matilde... Pensava apenas como deve ser triste a situação da menina de Vaumeyran, sempre sozinha no meio de todos nós, rodeados de família.

Matilde abanou impetuosamente a fronte morena.

Oh! meu amigo, guarde a compaixão para outras raparigas!... Por mim, não lamento a Hermínia; nem percebo bem, Feliciano, porque lhe dão o nome de Vaumeyran, que não lhe pertence.

É lógico atribuir-lhe esse, visto que não tem outro! disse, bruscamente, o médico.

Sim? Chamem-lhe apenas Hermínia!... Mas, como ia dizendo, não a lamento porque tem muitas compensações, como, por exemplo, o bem estar e o luxo, ridículo em meu entender, de que a rodeiam essas senhoras...

Seriam talvez compensações para si; mas uma alma tão delicada como a da Hermínia só vê nisso mais um motivo de tristeza replicou Feliciano, num tom glacial. Não temos as mesmas ideias, Matilde; nunca nos poderemos entender.

Matilde, vens? chamou a senhora Saulan, que se encontrava já a uma certa distância.

Boa noite - disse a Matilde com secura, sem estender a mão ao primo. Não sonhe tanto com essa Hermínia, encontrada, uma noite, na neve.

Sublinhou a frase com um rizinho escarninho e afastou-se, ao passo que o Feliciano, com a testa franzida, entrou em casa.

... Os Vaumeyran já estavam à espera da jovem para jantar. Desculpando-se de voltar assim tão tarde, tirou, no vestíbulo, a capa que tinha sobre os ombros e entrou, com Sabina, na sala de jantar, onde Albano passeava a todo o comprimento.

Parou bruscamente e envolveu num rápido olhar a encantadora aparição, vestida de branco, aureolada pelos cabelos loiros. Um clarão indefinível atravessou os olhos azuis do senhor de Vaumeyran, e a habitual frieza da sua fisionomia pareceu atenuar-se um pouco.

Durante a refeição a Hermínia contou as peripécias da tarde. Todas as pessoas em quem falava eram conhecidas dos Vaumeyran. Clarisse, em frases concisas, definia-as...

A senhora de Saulan é muito espevitada e, outrora, tingia de preto os cabelos loiros... A filha, Matilde, prometia ser uma insolente de primeira categoria. Que tal lhe parecem, Hermínia?

Mas..., não sei..., sim, talvez um pouco, creio eu disse a Hermínia, muito embaraçada, pois temia deixar-se influenciar pelo desgosto que lhe causara a atitude das senhoras Saulan.

Um ligeiro sorriso arqueou o bigode loiro de Albano.

Deixa-a, Clarisse; embaraça-la com as tuas perguntas! Não quer dizer, por caridade, que a menina de Saulan, de quem me recordo quando era criança, é uma rapariga insuportável.

O riso fresco da Hermínia ecoou pela primeira vez na austera sala de jantar.

Se ela o ouvia, senhor. Ficar-lhe-ia com rancor eterno, pois a Marcelina disse-me, um destes dias, que as senhoras Saulan jamais esquecem uma injúria.

Encantador carácter! disse Sabina. Felizmente que os Dalney não têm esse feitio.

Oh! não, não, felizmente repetiu a Hermínia, com vivacidade. São tão benevolentes, tão amáveis!... Oh, não, não seriam eles que me lembrariam a tristeza da minha situação.

Sabina e Albano tiveram um movimento brusco.

Deram-lhe a entender?... Ofenderam-na?... disse a primeira, numa voz estranha.

Algumas pessoas..., as Saulan, a sogra da senhora Dalney. Mas, talvez, eu seja muito susceptível, muito orgulhosa... disse ela, em tom humilde.

Albano baixara os olhos e, com as mãos, atormentava nervosamente o cabo da faca. Sabina, um pouco mais pálida que o costume, olhava fixamente para uma antiga e deteriorada pintura, pendurada na sua frente, na parede...

Sim, talvez seja um pouco de imaginação da sua parte disse a voz compassada de Clarisse. Elas devem ser naturalmente desagradáveis... E a Hermínia é uma sensitiva!

É verdade! murmurou a Hermínia, com suavidade.

Fez-se silêncio na sala de jantar. Rapidamente, Albano e as irmãs acabaram de comer a fatia de queijo que tinham nos pratos. Hermínia não tinha apetite, pois comera muitas gulodices durante a tarde.

Quando se levantaram da mesa, agarrou o braço de Sabina e disse-lhe:

Quer dar-me um grande prazer, minha senhora?

Mas, minha filha, não desejo outra coisa! De que se trata?

Dê-me licença de ir assistir, do varandim do parque, à interrupção da cascata rubra!

Sabina teve uma comoção violenta... E, atrás da Hermínia, qualquer coisa tombou. O senhor de Vaumeyran tinha recuado tão bruscamente que a pesada cadeira de espaldar trabalhado tinha caído.

Ir ao fundo do parque? disse Sabina, numa voz estrangulada. Que ideia, Hermínia!...

Estava lívida..., e até no rosto, sempre impassível, de Clarissa, se notava uma emoção singular.

Sim, que ideia! repetiu Clarisse, tentando disfarçar a agitação que sentia. Estará muito melhor na sua cama, criança; não há nada de interessante para ver no fundo do parque!

O tom era peremptório; Hermínia compreendeu que era inútil insistir... Deu as boas noites aos três irmãos. A mão que Sabina lhe estendeu tremia visivelmente.

Albano tinha-se voltado um pouco; a sua fisionomia estava, por isso, fora do círculo de luz espalhado pelo enorme candeeiro de bronze cinzelado, suspenso do tecto...

Boa noite, senhor disse-lhe a Hermínia.

Boa noite, menina respondeu, sem a olhar.

Que entoação estranha tinha a sua voz!... Teria a Hermínia, com o seu inocente pedido, ferido a susceptibilidade de Albano, de todos eles, que ainda não conhecia? Mas, na verdade, não compreendia... A sua curiosidade parecia-lhe tão natural!

Já no quarto, arranjou os cabelos para dormir, e foi encostar-se à janela.

A noite estava linda! No céu limpo, as estrelas brilhavam. A aragem quente e perfumada acariciou-lhe o rosto. Ouvia-se distintamente, lá ao longe, o ruído surdo e ininterrupto da cascata rubra...

No entanto, pareceu-lhe de repente que se enfraquecia... Sim, já não havia dúvida... Agora, era apenas um murmúrio...

E, de súbito, estabeleceu-se um silêncio completo.

Silêncio impressionante, comparável à morte quando se apodera rapidamente dum ser cheio de vida... Hermínia, já habituada àquele ruído, que tanto a incomodara nos primeiros dias, sentia agora uma sensação estranha...

Retirou-se, daí a pouco da janela, rezou as orações e deitou-se. Adormeceu quase logo, sonhou que a cascata gorgolejava ondas de sangue que tingiam as pedras em volta. Ouviam-se, ao mesmo tempo, gritos de desespero...

Acordou, angustiada, e pôs-se à escuta...

Mas só se ouvia o ruído da cascata rubra, que retomara o seu curso normal.

 

Uma grande alegria estava reservada a Hermínia, nesse verão. As senhoras d’Orbes vieram passar um mês a casa dos Dalney, e quase todos os dias a Hermínia passava as tardes com a Susana.

As famílias de Bourg-d’Eylan e dos arredores organizaram reuniões, festas campestres, passeios. Hermínia passava agora grande parte do dia fora das Rochas-Vermelhas. As senhoras de Vaumeyran favoreciam visivelmente este estado de coisas. Seria o contentamento de ver a Hermínia distrair-se e tornar-se, dia a dia, cada vez mais alegre e mais linda?... Ou então, apesar da sua incontestável dedicação, teriam algum interesse em afastá-la, o mais possível, de casa?... Hermínia, feliz e ocupada, não pensava nesse momento em resolver esta questão. Gozava simplesmente o verão, tão belo e tão curto naquela região, a presença temporária da amiga, a afeição cada vez mais profunda da Marcelína, a discreta solicitude do doutor Dalney, e a convivência, sincera e cristã, dos Dalney.

As senhoras d’Orbes tinham ido fazer uma visita às castelãs das Rochas-Vermelhas. Foram recebidas com toda a delicadeza, sem frieza, mas sem cordialidade. Sabina e Clarisse, alguns dias depois, tinham ido agradecer a visita a casa dos Dalney. Era a primeira vez que, ao fim de dezasseis anos, Clarisse aparecia em Bourg-d’Eylan.

Mas foi esta a única excepção que as duas irmãs fizeram ao seu estranho gosto pela solidão. Apenas a Marcelina e a Susana vinham, de vez em quando, perturbar a sua tranquilidade, e bem pouco aliás, porque se contentavam em perguntar pela Hermínia e geralmente recusavam entrar para a sala de visitas.

Não vale a pena incomodar as senhoras, o que muito desagradaria à Hermínia dizia a prudente Susana.

Hermínia, por seu turno, procedia com toda a discrição; evitava com escrupuloso cuidado por vezes excessivo tudo o que pudesse causar o mínimo enfado aos seus benfeitores. Mas encontrava sempre da parte deles em Sabina, sobretudo uma solicitude, uma generosidade que a confundiam um pouco. Às vezes tentava protestar, mas sempre em vão, pois Sabina interrompia-a com a estranha frase:

Cale-se, minha filha; nunca faremos o bastante por si. Feliciano Dalney, a quem a Hermínia contara, alguns dias mais tarde, a singular resposta, pareceu ficar menos surpreendido que a jovem.

Talvez quisesse dizer que nada seria demais para a afeição que lhes inspirou

Hermínia respondeu, abanando a cabeça:

Quando vim para aqui, ainda não podiam sentir nenhuma afeição por mim, pois não me conheciam; e, no entanto, logo me cumularam de atenções incríveis... De resto, sinto bem que sou totalmente indiferente ao senhor de Vaumeyran e à senhora D. Clarisse. Ambos me demonstram um interesse forçado... Não, não consigo compreender

E, por isso, perante os encantadores vestidos encomendados por Sabina e os acepipes que o velho Oodard lhe servia, não sabia que fazer, de tão perplexa e confundida que ficava.

Não se atrevia a emitir uma ideia que tivesse a aparência dum desejo, pois já percebera que Sabina não perdia ocasião de lhe dar a mais ligeira satisfação.

Um dia, ao jantar, falou na Marielle Daulieu, que visitava muitas vezes, quer sozinha, quer com a Marcelina, e em duas outras famílias, muito pobres e doentes.

Precisavam de tanta coisa!... Como deve ser bom poder proporcionar alguma alegria a essas pobres criaturas! disse ela, pensativamente.

Não se deve eximir de o fazer, Hermínia; estamos prontos a fornecer-lhe os meios! disse imediatamente Sabina.

- Oh muito obrigado, minha senhora - disse a Hermínia, corando. Tomarei, então, a liberdade de gastar desse modo parte da quantia que me dão...

Isso é para si, Hermínia, para a sua despesa pessoal - interrompeu Sabina. Não a deve gastar com os seus pobres. Para as esmolas, vai receber uma mesada especial.

E, no dia seguinte, a Hermínia encontrou na sua pequena secretária um envelope com muitas notas de banco e com a seguinte indicação: ”Para os pobres de Hermínia”.

Muito contente, projectou ir logo a casa da Marielle. A doente fazia rendas muito lindas, e a Hermínia, sabendo que ela não aceitaria uma esmola, queria comprar-lhas por um preço elevado, afim de ajudar um pouco o orçamento doméstico, muito desfalcado pelo original procedimento de Anatólio, que trabalhava dois dias e preguiçava oito, a fumar de manhã à tarde e a olhar beatíficamente para a mancha sombria dos pinheiros.

Como estava combinado ir almoçar a casa dos Dalney, vestiu uma elegante camisola cor-de-rosa pálido, e pôs na cabeça uma boina bordada; depois, tendo prevenido Sabina, que encontrara ao sair do quarto, desceu a larga escadaria.

Quando chegou ao vestíbulo, a porta da biblioteca abriu-se e Albano apareceu com um maço de livros, grossos e veneráveis.

Inclinou se para cumprimentar a rapariga e disse-lhe, com o leve sorriso que às vezes lhe entreabria os lábios na presença da Hermínia:

Vai à procura do grande cíclame, Hermínia?

E ao ver o olhar surpreso que a jovem lhe dirigia, continuou:

Os seus amigos Dalney ainda lhe não falaram da lenda que corre nesta região? Existe, num recanto desconhecido da floresta, um cíclame maravilhoso, único, que ninguém ainda viu, nem poderá ver, a não ser uma fada loira, de vestido cor-de-rosa.

Hermínia começou a rir, com alegria.

Se ninguém o viu, como sabem que existe, senhor?... Não, ainda não conhecia essa lenda. O senhor Albano, que lê essas velhas crónicas, deve conhecer muitas!

Conheço algumas, de facto. Se isso a interessar, contar-lhas-ei de boa vontade.

Oh, e eu que gostava tanto!... E gostaria muito, também, de conhecer a história da região!

Pois sim, havemos de satisfazer esse seu desejo. Por estes dias, combinaremos isso... Até logo, Hermínia, e trate de encontrar o grande cíclame.

Oh! não sou assim tão exigente, contentar-me-ia em encontrar os mais pequenos! respondeu ela, a sorrir. Gosto tanto dessa flor!... É tão bonita!

Nós também gostamos dela, a bela flor sagrada dos nossos bosques! Gostamos dela fervorosamente, mas nunca a colhemos. Quando eu e a Sabina a encontramos, admiramo-la demoradamente, aspiramos o seu perfume e afastamo-nos, deixando-as na sua mística sombra.

Nesse caso, chamar-me-ia verdadeira vândala, se colhesse algum cíclame? disse ela, com um sorriso.

Oh! A Hermínia não tem motivo para ter os mesmos escrúpulos! Não foi criada nos nossos pinhais...

Quem sabe? murmurou a Hermínia.

O senhor de Vaumeyran fez um movimento sacudido; os grossos alfarrábios caíram no soalho.

Não se incomode! disse, bruscamente, ao ver a Hermínia abaixar-se para os apanhar. Queria trazê-los todos duma só vez, e isto não podia deixar de acontecer.

Hermínia saiu do castelo a pensar, perplexa, no motivo por que a fisionomia do senhor de Vaumeyran se desfigurara tanto, como se tivesse envelhecido.

Na verdade, eram todos eles, por vezes, duma originalidade desconcertante! Todavia tinha que admitir que Albano parecia, há algum tempo para cá, menos indiferente. Quando entrava na biblioteca, depois de ter passado toda a tarde fora de casa, já não ficava obstinadamente inclinado sobre os pergaminhos e os velhos livros que estudava, como fazia nos primeiros tempos da sua estada naquela casa. O olhar, geralmente triste e sombrio, iluminava-se um pouco, quase se suavizava, e parecia ouvir com interesse a narrativa que a Hermínia fazia dos acontecimentos do dia... Mas a rapariga também já notara que muitas vezes um nada, o mais pequeno incidente, uma palavra, que lhe parecia insignificante, produzia nos Vaumeyran uma impressão estranha e completamente inexplicável.

Em pouco tempo, a Hermínia chegou à casa da Marielle. Sentado à porta, Anatólio fumava com o sossego dum homem que descansa, depois de ter cumprido bem o seu dever...

Bom dia, menina disse ele, levantando-se. Faça o favor de entrar..., o senhor doutor está cá... Entre, entre, isso não tem importância - acrescentou, ao ver o movimento de hesitação da rapariga.

Logo em seguida empurrou a porta e anunciou:

A menina Hermínia!

O médico, sentado perto da doente, levantou-se de repente e dirigiu-se para a jovem.

Que boa surpresa, Hermínia! Chegou em momento oportuno; estava precisamente a preparar-me para ralhar à Marielle, pois vim encontrá-la nervosa e sombria como um dia de inverno. É preciso que me ajude a censurá-la.

O rosto pálido da doente estava contraído; os olhos, profundamente encovados, tinham uma expressão de tristeza concentrada, que indicava a crise de louco desespero em que se encontrava.

Hermínia sentou-se a seu lado e começou a falar com meiguice. Sentia-se atraída para aquela rapariga da sua idade, que um mal implacável reduzira à impotência, e à qual a sua alma, singularmente ardente sob aquela aparência de indiferença, não se podia resignar. Marielle tinha um carácter fora do vulgar, que a Hermínia ainda não tivera ocasião de conhecer completamente. Mostrava pela menina de Vaumeyran uma simpatia delicada, mas muito reservada, e comportava-se para com ela, como para com todos, com orgulhosa deferência.

A voz persuasiva da Hermínia acalmou rapidamente a crise moral da doente. Começou a conversar com o doutor e a Hermínia, que falavam sobre a beleza da floresta, assunto inesgotável para ambos, pois a rapariga, apesar de não ter nascido naquela região, apreciava já a simples, severa e inebriante beleza dos pinhais.

Senhor doutor, onde poderei encontrar o misterioso e grande cíclame da lenda? perguntou alegremente a Hermínia, quando Feliciano se levantou, depois de ter olhado para o relógio e ter verificado o seu grande atraso.

Sei lá, Hermínia!... Mas, na falta desse, conheço um sombrio recanto onde crescem alguns, mais modestos, mas não menos encantadores. Hei-de trazer-lhe alguns.

Oh! senhor doutor, não faça isso! disse a Marielle, com vivacidade. Não colha os cíclames da floresta. Bem sabe que se não deve...

O médico começou a rir e pousou a mão na da doente.

Não tenha receio! Sou admirador respeitoso da linda flor das nossas florestas, ameaçada de desaparecer, como tantas outras; mas, em certas ocasiões, não hesito em tirar algumas à ciumenta sombra que as protege.

É menos intransigente que o senhor de Vaumeyran, senhor doutor observou a Hermínia. Pelo que me disse há pouco, compreendi que considera quase sacrílega uma tal acção.

Sim, os Vaumeyran adoram-na. Contudo, há um caso em que desaparece essa intransigência, como diz o ditado que o Albano, outrora, me ensinou: ”Colhe o cíclame uma vez na vida, para aquela que amarás até à morte”.

Marielle disse, lentamente, erguendo o olhar pensativo para os pinheiros que se avistavam pela abertura da porta:

Sim, é isso mesmo... A flor deixa-se colher uma vez, sem murmurar, por aquele que ama intensamente, profundamente. Apenas uma vez se deixa oferecer com alegria à noiva, à eleita... Mas é apenas essa vez. Não devemos tratá-la com indiferença, profaná-la...

Ora vamos, Marielle, não me censure! disse o médico, a sorrir. Eu ainda não colhi nenhuma... Até já, Hermínia..., creio que vai jantar a minha casa, não é verdade?... Talvez chegue um pouco atrasado, pois tenho que ir fazer uma visita bastante longe. Pode dizer à minha mãe que não espere por mim, sim?

Cumprimentou a Hermínia, apertou a mão esguia da Marielle e afastou-se, depois de ter dito um cordial ”até à vista” a Anatólio, que continuava sentado à porta.

Hermínia tratou então da compra das rendas, e conseguiu levar a cabo o que desejava, sem melindrar a feroz altivez da Marielle. Em seguida despediu-se e encaminhou-se apressadamente para a casa dos Dalney, pois estava, como o Feliciano, um pouco atrasada.

No entanto, como teria gostado de passear pelos atalhos da floresta, todos enfeitados com flores campestres, suavemente iluminados pelo sol, cujo ardor era atenuado pelo ar fresco da montanha!

Hermínia respirava com delícia... Era, talvez, a essa viração agradável que se devia atribuir o íntimo bem-estar que sentia, a ventura indefinível que alegrava o seu coração.

Ao chegar a casa dos Dalney, encontrou-se outra vez com o médico, que caminhava rapidamente.

Como vê, consegui chegar a tempo! disse ele, alegremente. Chegamos os dois atrasados e teremos de arrostar, logo à entrada, com as ruidosas censuras da Amélia, que terá assim a oportunidade de apresentar algum prato esturrado.

Entraram no vestíbulo a rir, e encontraram-se então com a senhora Dalney, mãe. Ah! Bom dia, avó - disse Feliciano. Hermínia, de cujos lábios desaparecera quase instantaneamente o riso, inclinou-se para a cumprimentar. A senhora Dalney, mais altiva do que nunca, murmurou um seco: ”Bom dia, menina”.

Almoça connosco, avó? perguntou o médico, pousando o chapéu no bengaleiro. Respondeu afirmativamente, seguindo com o olhar a Hermínia, que entrava na sala onde estavam a trabalhar a senhora Dalney e a Marcelina.

Disse então, em voz baixa e num tom irritado:

Donde vinhas com esta rapariga? Feliciano olhou-a, surpreendido:

Donde vinha? Encontrámo-nos aqui à porta, muito simplesmente.

Ah - disse, com secura. Mesmo assim, se a rapariga fosse bem educada, não se ria deste modo na companhia dum rapaz.

Um clarão de zombeteira impaciência atravessou o olhar do médico.

A pobre rapariga teria, então, de se retrair? A alegria não é um defeito, mesmo junto dum rapaz, desde que se mantenha a necessária reserva. Ora a menina de Vaumeyran possui essa qualidade em grau elevado, o que até poderia ser motivo de inveja para muitas raparigas a quem a avó não pensa sequer em dirigir a mais leve censura... Mas há bastante tempo já percebi que a Hermínia lhe é antipática. Que razões tem para isso, avó?

Tenho-as, e isso te basta - disse num tom seco, voltando-lhe as costas, para entrar na sala.

Feliciano teve um gesto de contrariedade, as sobrancelhas carregaram-se-lhe, e demorou-se uns instantes no vestíbulo antes de entrar, sem dúvida para deixar acalmar a irritação que sentia.

O almoço, devido à presença da senhora Dalney, mãe, decorreu sem a animação usual. O médico tornara-se taciturno e distraído, e mostrava uma frieza desacostumada à avó, mais altiva e mais seca do que nunca. Hermínia sentia-se constrangida, como sempre que estava na sua presença, pela latente hostilidade que adivinhava na velha senhora, sem conseguir explicar o motivo. A senhora Dalney e a senhora d’Orbes, a Susana e a Marcelina, eram as únicas a conversar, tentando, sem o conseguir, dar à refeição um pouco da alegria habitual.

Hermínia reteve um suspiro de alívio quando se levantou da mesa, e principalmente quando viu sair a senhora Dalney, mãe. O médico saiu também quase em seguida, para ir fazer as visitas da tarde, e as duas senhoras com as raparigas dirigiram-se para a casa da família Bruenne, onde iam passar o resto da tarde.

Estavam lá as senhoras Saulan, que se mostraram para com a Hermínia mais surdamente hostis do que nunca, e não lhe pouparam insinuações dissimuladas e humilhações disfarçadas. Decididamente, o dia, que principiara tão bem, trazia-lhe agora grandes amarguras.

Eu e a Susana vamos acompanhá-la até meio do caminho das Rochas-Vermelhas, Hermínia disse a Marcelina, à saída da casa dos Bruenne.

Tendo-se despedido das duas senhoras, que iam para casa, as três raparigas tomaram um atalho que ia dar à estrada que subia até ao castelo.

A Susana e a Marcelina conversavam alegremente, mas a Hermínia pouco lhes respondia. Ficara profundamente triste com a animosidade latente, o orgulhoso desdém que davam a perceber, sob o tom mais polido, a avó do médico, as Saulan e mais algumas pessoas das suas relações, já notara que essas pessoas nunca a tratavam por menina de Vaumeyran. Para elas não passava da rapariga enjeitada, encontrada numa noite de inverno pelos Vaumeyran, e educada por caridade: uma rapariga sem nome

E como aquele entardecer estava agradável! Como podiam os homens ser maus, apesar da grande e pura magnificência da bondade divina?

À direita, nos prados encastoados nos pinhais, pastavam lindas vacas brancas, fazendo tilintar os chocalhos de timbre claro... E atrás das raparigas outros guizos começaram a ouvir-se, aproximando-se de minuto a minuto. É um carro disse a Marcelina Se fosse o Feliciano, iria connosco às Rochas-Vermelhas.

Pararam à espera, e viram aparecer quase logo, na curva da estrada, o pequeno trem do médico.

Até que enfim as apanho! exclamou, tirando o chapéu. Vinham a andar depressa, contava agarrá-las mais cedo.

Vinha à nossa procura, Feliciano? interrogou Susana d’Orbes.

Vinha, sim, pois queria entregar uma coisa a Hermínia... A mãe, que encontrei já perto de casa, disse-me que tinham vindo as três até cá acima...

Mesmo a falar, saltara do carro e, dirigindo-se ao fundo do trem, inclinou-se para procurar qualquer coisa no seu interior...

Embora tenha de incorrer na maldição da Marielle Daulieu, cometi o sacrilégio de violar o retiro dos cíclames e trago-lhos aqui, Hermínia...

Voltou-se, e um aroma delicioso, um pouco inebriante, chegou às três raparigas. As mãos de Feliciano seguravam as flores aveludadas, de cor violeta rosado, cercadas pela folhagem mimosa.

Oh! como são lindas!... E como o senhor é amável, Feliciâno! exclamou a Hermínia, cujos olhos brilhavam de alegria. Mas não são todas para mim... A Susana, a Marcelina...

Não, não, minha querida, guarde-as - disse a Susana, com vivacidade. Feliciâno colheu-as para si..., só para si... Não é verdade, primo? acrescentou, com um sorriso malicioso.

Ele replicou, alegremente:

Tem razão, Susana; quis fazer à menina de Vaumeyran, nova entre nós, as honras da nossa flor... E, agora, querem dar-me o prazer de as levar?...

Momentos depois, o cavalo ágil, abanando alegremente os guizos, começou a subir a ladeira, parecendo não ter notado o aumento da carga. Hermínia, cujo olhar, tão melancólico ainda há pouco, estava iluminado por uma alegria intensa, contemplava os cíclames, cuidadosamente pousados no seu regaço. O médico, meio voltado no assento, conversava alegremente, e os seus olhos cinzentos dirigiam-se frequentemente para o seu rosto delicado, cujo tom rosado sobressaía sob o chapéu de abas largas.

Em frente das Rochas-Vermelhas, a Hermínia despediu-se das amigas e do Feliciano, e desceu. Celeste abriu-lhe a porta, e o seu olhar surpreso observou as flores que a rapariga segurava, quase religiosamente.

Ah! Também as encontrou? resmungou ela. Há muito tempo que não entravam cá em casa...

Hermínia subiu rapidamente ao quarto; abriu a porta e ficou uns instantes imóvel. No quarto sentia-se o cheiro agradável, subtil, um pouco perturbador, que aspirava desde que Feliciano Dalney lhe entregara as flores que colhera para ela.

Sobre a pequena mesa, numa cesta de vime, estava um braçado de cíclames, e havia ainda outros no peitoril da janela.

”Foi a senhora D. Sabina que me fez esta surpresa... Disse-lhe, há dias, quanto gostava de ter estas flores pensou a rapariga. Como é boa! Que poderei fazer para lhe agradecer, visto que não quer que lhe manifeste o meu reconhecimento?”.

Depois de ter mudado o vestido, Hermínia começou a arranjar as flores. Por um sentimento instintivo que não procurou interpretar, não misturou as flores do doutor Dalney com as outras. Dispostas numa linda jarra de cristal, colocou-as diante da estatueta da Virgem, que estava assente num pedestal de carvalho, no lugar de honra. Guardou apenas uma que pôs ao peito.

Quando a rapariga estava a acabar, Sabina apareceu e exclamou:

Mas que perfume! Não se esqueça de as tirar do quarto durante a noite, Hermínia!... Não sei o que teve o Albano para assim despojar a floresta?

Ah! foi o senhor de Vaumeyran? disse a Hermínia, com intensa surpresa.

Pareceu-me compreender que considerava quase um sacrilégio colher estas flores!

De facto, era assim que ele pensava. E por isso fiquei surpreendida ao vê-lo entrar, há pouco, com este braçado... Já está pronta? Então vamos para baixo; o jantar vai ser servido.

No vestíbulo encontraram Albano que saía da biblioteca. Hermínia dirigiu-se-lhe e, timidamente, disse:

Como lhe agradeço, senhor, o ter... Interrompeu-a com um gesto um tanto impaciente.

Não me agradeça, peço-lhe!... Considere isto como as boas vindas dos nossos pinhais... porque o cíclame só se deve colher uma vez na vida.

Só então o seu olhar notou a flor violeta carregado que embelezava o corpete do vestido da Hermínia. Uma doçura intensa transpareceu, por instantes, nos olhos azuis, tão frios habitualmente e a Hermínia reparou então, pela primeira vez, que tinha o olhar e a fisionomia do prior dos Três-Santos.

Foi, de resto, apenas um relâmpago. Durante o jantar mostrou-se taciturno e sombrio, e, terminada a refeição, dirigiu-se logo para o parque, de cigarro nos lábios.

Hermínia, um pouco fatigada, foi cedo para o quarto. Antes de se despir, encostou-se por momentos à janela, para recordar os acontecimentos desse dia...

Pouco a pouco, a reflexão tornou-se num devaneio. Seria o perfume inebriante dos cíclames, flutuando ainda no quarto, que a predispunha para essa desacostumada meditação, que em geral reprimia severamente, segundo o conselho da Superiora, que ainda era o seu guia e confidente?

Tirou a flor do vestido e observou-a demoradamente, murmurando:

”Colhe o cíclame uma vez na tua vida para aquela que amarás até à morte!”

Feliciano colhera-o pela primeira vez... E para ela.

Um ruído de passos no exterior da casa despertou-a do sonho. Era, com certeza, o senhor de Vaumeyran que entrava em casa. Anoitecera já, mas a Hermínia ainda não tinha acendido a luz. Lá fora estava escuro e apenas se distinguia um vulto...

Outra sombra apareceu, de repente, ao lado da anterior; uma voz baixa, que a Hermínia não conhecia, murmurou:

Passeias, Albano?

Sim, meu pai... Tento esquecer...,

esquecer que não posso ser feliz!

Um desgosto profundo vibrava na voz de Albano.

A outra voz, sempre baixa, mas um pouco áspera e dura, replicou:

- Porque assim o queres... Nada te impede de lançares um véu sobre o passado, de ires para longe, de nos deixares a cumprir a nossa penitência.

A voz de Albano, surda e despedaçada, interrompeu bruscamente:

Sabe muito bem que não posso! Sabe-o muito bem!

Restabeleceu-se o silêncio e os passos afastaram-se.

Hermínia continuou imóvel... Sem dúvida que a pessoa que falara, tinha sido o barão de Vaumeyran. Albano dissera até: Meu pai”. Que pessoa estranha seria então esse homem, para sair apenas de noite e passar a vida enclausurado na torre, completamente afastado da convivência dos seus?

Os filhos nunca falavam nele, e a Hermínia quase se esquecera que vivia ali a seu lado, tão perto.

Mas ouvira-o nessa noite... E a convicção de que ele tinha o cérebro um pouco transtornado, como Blandina, parecia confirmar-se pelas singulares palavras que dissera ao filho.

Mas que sofrimento profundo não revelava o tom de voz de Albano.

Adormeceu muito tarde, e teve um sono agitado, cheio de pesadelos. Via-se coberta de cíclames, o seu aroma perturbador subia-lhe ao cérebro e uma voz doce e profunda murmurava: ”Colhe o cíclame uma vez na tua vida, para aquela que amarás até à morte.

Mas não era a voz de Feliciano Dalney... Era a de Albano de Vaumeyran.

 

                                                                                Rochis Rouges 

 

 

                      

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