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A CAVERNA DOS ANTIGOS / Lobsang Rampa
A CAVERNA DOS ANTIGOS / Lobsang Rampa

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CAVERNA DOS ANTIGOS

 

Este é um livro que trata do Oculto e dos poderes do Homem. É livro simples, no sentido de que nele não há "pala­vras estrangeiras", palavras em sânscrito, nem coisa alguma de línguas mortas. A pessoa média quer SABER as coisas, e não ficar a adivinhar palavras que o autor médio tampouco compreende! Se um autor sabe trabalhar, pode escrever, sem ter de disfarçar sua falta de conhecimento com o emprego de uma língua estrangeira.

Um número demasiado de pessoas deixa-se envolver pela confusão. As leis da Vida são realmente simples; não há neces­sidade alguma de revesti-las de cultos místicos ou pseudo-religiões. Tampouco existe qualquer necessidade de que alguém afirme ter tido "revelações divinas". QUALQUER PESSOA pode obter as mesmas "revelações", se se esforçar por elas.

Nenhuma religião tem em si as Chaves do Céu, nem pessoa alguma será condenada para sempre, por ter entrado em uma igreja com o chapéu na cabeça, ao invés de tirar os sapatos. À entrada das lamaserias tibetanas, lê-se a inscrição: "Mil monges, mil religiões". Qualquer que seja nossa crença, se ela englobar o "faze ao próximo o que queres que te seja feito", teremos êxito, quando soar o Chamamento final.

Alguns dizem que o Conhecimento Interior só pode ser obtido ingressando-se neste ou naquele culto, ao mesmo tempo em que se faça o pagamento de uma contribuição substancial. As Leis da Vida dizem: "Procura e encontrarás".

Este livro é o fruto de toda uma vida, de ensinamentos obtidos nas grandes lamaserias do Tibete e de poderes conquistados por uma observância rigorosa das Leis. Trata-se de conhecimento transmitido pelos Antigos, e se acha inscrito nas Pirâmides do Egito, nos Altos Templos dos Andes e no maior de todos os repositorios de conhecimentos ocultos do mundo, o Planalto do Tibete.

T. Lobsang Rampa

 

 

A noite era quente, deliciosa, invulgarmente quente para aquela época do ano. Erguendo-se com suavidade no ar onde não soprava vento algum, o odor doce do incenso trazia tranqüilidade a nosso espírito. Muito longe, o sol se punha, em um resplendor de glória, por trás dos cumes altos dos Himalaias, conferindo às montanhas de cimos nevados a coloração de vermelho-sangue, como a prevenir que o solo tibetano se impregnaria de sangue, em dias futuros.

Sombras que se alongavam morosamente rastejavam em direção à cidade de Lhasa, vindas dos picos gêmeos da Potala e de nosso próprio Chakpori. Abaixo de nós, à direita, uma caravana retardada de viajantes vindos da índia serpen­teava em direção ao Pargo Kaling, ou Portão Ocidental. Os piedosos peregrinos que haviam ficado para trás seguiam desajeitadamente apressados em seu circuito da Estrada Lingkor, como a recear serem apanhados pela escuridão aveludada da noite, que se aproximava com rapidez.

O Kyi Chu, o Rio Feliz, corria alegremente em sua intér­mina jornada até o mar, apresentando clarões brilhantes de luz, como homenagem ao dia que findava. A cidade de Lhasa refulgia com o brilho dourado das lâmpadas de manteiga. Da Potala próxima, uma trombeta soou, ao Jinal do dia, suas notas estendendo-se pelo Vale, repercutindo nas superfícies rochosas e regressando a nós, com o timbre modificado.

Olhei para o cenário conhecido, fitei a Potala, as centenas de janelas iluminadas, enquanto os monges de todos os graus tratavam de suas atividades, ao encerramento do dia. Por cima do edifício imenso, próxima aos Túmulos Dourados, uma figura solitária, distante e sozinha, estava em vigilância. Quando os últimos raios do sol desapareceram abaixo das cordilheiras, voltou a soar uma trombeta e um canto profundo ergueu-se do Templo, lá embaixo. Com rapidez, os últimos vestígios de luz se desvaneceram e as estrelas no céu formaram um esplendor de pedraria contra um pano de fundo purpúreo. Um meteoro rebrilhou no céu, explodindo em glória chamejante, antes de cair na Terra como poeira fumegante.

Uma bela noite, Lobsang! disse a voz que eu tanto amava.

Uma bela noite, não há dúvida, respondi, enquanto me punha rapidamente em pé, para poder fazer reverência ao Lama Mingyar Dondup.

Ele sentou-se ao lado de uma muralha e me fez um gesto para que o imitasse. Apontando para cima, disse:

            Você percebe que gente, você e eu, podemos ter um aspecto como aquele?

Eu o fitei espantado, sem saber tomo poderia eu ter o aspecto de estrelas no céu noturno. O lama era um homem grande, de belo aspecto, a cabeça de aparência nobre. Ainda assim, não se parecia com uma coleção de estrelas! Ele riu-se de minha expressão intrigada.

            Literal como sempre, Lobsang, literal como sempre, comentou, sorrindo. Eu queria dar a entender que as coisas não são sempre o que parecem. Se você escrevesse "Om! mani pab-me Hum", e com letras tão grandes que preenchessem todo o Vale de Lhasa, as pessoas não o conseguiriam ler, pois seria grande demais para ver.

Èle se deteve na explicação, observando-me para verificar se eu a acompanhava, e depois prosseguiu:

            Do mesmo modo, as estrelas são "tão grandes" que não podemos determinar o que realmente formam.

Olhei para ele, como se o meu guia houvesse enlouque­cido. As estrelas, formando alguma coisa? As estrelas eram bem estrelas! Depois, pensei em uma escrita tão grande que enchesse o Vale e que assim se tornava ilegível, devido a tais dimensões. A voz gentil prosseguiu:

            Pense em você encolhendo, encolhendo, tornando-se tão pequeno quanto um grão de areia. Qual seria meu aspecto para você, então? Suponha que se torne ainda menor, tão pequeno que o grão de areia passe a ser tão grande quanto um mundo, para você. Nesse caso, o que seria de mim? perguntou, detendo-se e passando a me fitar com um olhar pene­trante. Bem? perguntou. O que você veria?

Eu continuei sentado, boquiaberto, o cérebro paralisado com o pensamento, a boca aberta como se fosse um peixe que haviam acabado de atirar à terra.

            Você veria, Lobsang — disse o Lama —, um grupo de mundos amplamente espaçados, flutuando nas trevas. De­vido a seu tamanho minúsculo, você veria as moléculas de meu corpo, como mundos separados, com espaço imenso entre elas. Você veria mundos girando ao redor de mundos, você veria "sóis", que seriam as moléculas de certos centros psíquicos, você veria um universo!

Meu cérebro rangia, eu era capaz de jurar que a "maqui­naria" acima de minhas sobrancelhas tinha um estremecimento convulsivo, com o esforço que eu despendia a fim de acompanhar todo aquele conhecimento estranho e emocionante.

O meu guia, o Lama Mingyar Dondup, estendeu a mão à frente, e com gentileza ergueu meu queixo.

            Lobsang! — disse, com uma risadinha. — Os seus olhos estão ficando vesgos, no esforço por me acompanhar.

Voltou a sentar-se, rindo, e deu-me alguns momentos para que eu me pudesse recuperar um pouco. Em seguida, exclamou:

            Olhe o tecido de seu manto. Apalpe-o!

Obedeci, sentindo-me notavelmente aparvalhado enquanto fitava o traje velho e esfarrapado que eu usava. O Lama observou:

            É tecido, algo liso ao tato. Você não pode ver através dele, mas imagine que o examina por um vidro de aumento, que amplie dez vezes a visão. Pense nos fios grossos de lã iaque, cada qual, dez vezes mais grosso do que você está vendo, agora. Conseguiria perceber a luz entre os fios, mas amplie os mesmos um milhão de vezes, e conseguirá passar entre dois a cavalo, a não ser que cada fio se tornasse grande demais para escalar!

Eu compreendia, agora que me era mostrado. Permaneci sentado, pensando, assentindo, enquanto o Lama dizia:

Como uma mulher velha e decrépita!

Senhor! — exclamei, finalmente. — Nesse caso, toda a vida é uma porção de espaço, salpicado de mundos.

Não é tão simples assim — respondeu ele — mas sente-se de modo mais confortável, e eu falarei de um pouco do Conhecimento que descobrimos na Caverna dos Antigos

A Caverna dos Antigos! — exclamei, cheio de curio­sidade ávida. — O senhor ia falar-me sobre isso, e sobre a Expedição!

Sim! — disse ele, para me acalmar. — E vou falar, mas antes examinemos o Homem e a Vida, como os Antigos, nos dias da Atlântida, os concebiam.

Em segredo, eu estava muito mais interessado na Caverna dos Antigos, que uma expedição de altos lamas descobrira, e que continha repositórios fabulosos de conhecimento e artefatos, de uma Era em que a Terra era muito jovem. Conhecendo tão bem o meu guia, sabia que de nada adiantaria esperar que ele me contasse tal história enquanto não estivesse pronto para fazê-lo, e que tal momento ainda não chegara. Acima de nós, as estrelas brilhavam com todo seu esplendor, sem sofrerem quase diminuição alguma da luz, graças ao ar rarefeito e puro do Tibete. Nos Templos e Lamaserias, as luzes se apagavam, uma por uma. De muito longe, trazido pelo ar da noite, veio o lamento de um cachorro, e os latidos de resposta dos que se achavam na Aldeia de Shö, abaixo de nós. A noite era calma, até mesmo plácida, e nenhuma nuvem encobria a face da Lua, que se erguera fazia pouco. As bandeiras de oração pendiam inertes e sem vida, nos mastros. De algum lugar, veio o estralejar débil de uma Roda de orações, enquanto algum monge piedoso, envolto na superstição e sem perceber a Realidade, fazia a Roda girar, na esperança inútil de conquistar a graça dos Deuses.

O Lama, meu guia, sorriu ao ouvir aquele som, e disse:

            A cada qual segundo sua crença, a cada qual de acordo com sua necessidade. Os aparatos externos da religião ceri­monial são um consolo para muitos, e não devemos condenar aqueles que ainda não percorreram uma distância suficiente, na Trilha, e não conseguem ficar em pé sem tais muletas. Vou-lhe falar, Lobsang, da natureza do Homem.

Eu me sentia muito achegado a esse Homem, o único que demonstrara consideração e amor por mim. Ouvia com atenção, a fim de corresponder à confiança que ele tinha em mim. Pelo menos, foi assim que comecei a ouvir, mas logo descobri que o assunto era fascinante, e que eu ouvia com interesse completo e indisfarçado.

            Todo o mundo é feito de vibrações, toda a Vida, tudo que é inanimado consiste de vibrações. Até mesmo os pode­rosos Himalaias — disse o Lama — são apenas uma massa de partículas suspensas, na qual nenhuma delas pode tocar a outra. O mundo, o Universo, consiste de partículas diminutas de ma­téria, ao redor das quais outras partículas de matéria rodopiam. Assim como o nosso Sol tem mundos a circular em torno de si, mantendo sempre a distância, sem se tocarem em momento algum, também tudo quanto existe é composto de mundos em rodopios.

Ele parou, fitando-me, como a querer saber se tudo aquilo estaria além de minha capacidade de compreensão, mas eu estava compreendendo tudo, com facilidade.

Ele prosseguiu:

Os fantasmas que nós, os clarividentes, vemos no Tem­plo, são pessoas, pessoas vivas, que deixaram este mundo e entraram em um estado no qual suas moléculas se acham tão amplamente dispersas que o "fantasma" pode atravessar a parede mais densa, sem tocar uma só molécula da mesma.

Honrado Mestre disse eu por que sentimos uni formigamento, quando um "fantasma" passa perto de nós?

Cada molécula, cada pequenino sistema de "sol e pla­neta" está cercado por uma carga elétrica, não o tipo de eletri­cidade que o Homem gera com máquinas, mas de um tipo mais refinado. A eletricidade que vemos brilhando no céu, em algu­mas noites. Assim como a Terra tem as Luzes Austrais, ou Aurora Boreal, brilhando nos pólos, também a partícula mais insignificante de matéria possui suas "Luzes Austrais". Um "fantasma" que se aproxima demasiadamente de nós causa um choque suave à nossa aura, e é por isso que ficamos com esse formigamento.

Ao redor de nós, a noite estava calma, sem um só sopro de vento perturbando a tranqüilidade; reinava um silêncio que só se conhece em países como o Tibete.

            A aura, então, que nós vemos, é uma carga elétrica?

            perguntei.

            Sim! — respondeu meu guia, o Lama Mingyar Dondup.

            Em países fora do Tibete, onde os fios carregam uma corrente elétrica em voltagens elevadas, estendidos sobre a terra, observa-se um "efeito de corona", que é reconhecido pelos engenheiros elétricos. Nesse "efeito de corona" os fios parecem estar cercados por uma corona ou aura de luz azulada. Obser­va-se principalmente em noites escuras e nubladas, mas, natu­ralmente, está presente todo o tempo, para aqueles que podem ver.

Dito isso, fitou-me com uma expressão reflexiva.

Quando você for a Chungking, para estudar medicina, utilizará um instrumento que registra as ondas elétricas do cérebro. Toda a Vida, tudo que existe, é eletricidade e vibração.

Agora, estou perplexo! — respondi. — E como pode a Vida ser vibração e eletricidade? Eu entendo uma, mas não ambas.

Mas, meu caro Lobsang, — disse o Lama, rindo — não pode haver eletricidade sem vibração, sem movimento! É o movimento que gera a eletricidade e, portanto, os dois se acham intimamente relacionados.

Notou que eu franzia a testa, espantado, e com seu poder telepático leu meus pensamentos.

            Não! — disse, então. — Não é qualquer vibração que serve! Vou-lhe explicar o seguinte: Imagine um teclado musical realmente vasto, que se estenda daqui ao infinito. As vibrações, que consideramos como corpos sólidos, estarão representadas por uma nota nesse teclado. A seguinte pode representar o som, e a outra, a visão. Outras notas indicarão as sensações, os sentidos, os intuitos, dos quais não temos compreensão algu­ma, enquanto nos achamos nesta Terra. Um cão pode ouvir notas mais altas do que o ser humano, e este pode ouvir notas mais baixas do que um cachorro. Palavras poderiam ser ditas ao cachorro em tons altos que ele ouviria, sem que o humano sequer o percebesse. Do mesmo modo, as pessoas do chamado Mundo Espiritual se comunicam com aquelas ainda nesta Terra, quando o ser terreno tem o dom especial da audição especial.

O Lama fez uma pausa, e riu de leve.

            Não o estou deixando dormir, Lobsang, mas você terá a manhã de folga, para descontar isso — declarou, e fez um movimento com a mão, em direção às estrelas que brilhavam com tanta clareza no ar puríssimo. — Desde que visitei a Caverna dos Antigos e experimentei os instrumentos maravilhosos de lá, instrumentos que ficaram intactos desde os dias da Atlântida, muitas vezes me diverti com um capricho. Gosto de pensar em duas pequenas criaturas sencientes, menores do que o menor dos vírus. Não importa que forma tenham, basta concordar que sejam inteligentes e disponham de instrumentos super poderosos. Imagine as mesmas, de pé sobre um espaço aberto em seu próprio mundo infinitesimal (exatamente como estamos agora!) "Puxa! É uma bela noite!", exclama A, fitan­do o céu com atenção. "Sim", responde B, "faz a gente ficar pensando no propósito da Vida, no que somos, para onde vamos." A se cala, pensativo, fitando as estrelas que se estendem nos céus, em número infinito. "Mundos sem limite, milhões, bilhões deles. Quantos serão habitados?" "Bobagens! Sacrilégio! Ridí­culo”! Gagueja B, "você sabe que não há vida senão em nosso mundo, pois os Sacerdotes não afirmam que somos feitos à Imagem de Deus? E como pode haver outra vida, senão exata­mente igual à nossa? Não, é impossível, você está ficando doi­do!" A murmura para si próprio, com raiva, enquanto se afasta: "Eles podem estar errados, você sabe, eles podem estar errados!" O Lama Mingyar Dondup sorriu para mim, dizendo:

            Sei, até mesmo, de uma seqüência para isso! Ei-la: em algum laboratório distante, dispondo de uma ciência com a qual nem sequer sonhamos, e onde existiam microscópios de poder fantástico, dois cientistas estavam trabalhando. Um, sen­tado num banco, os olhos colados ao super-super microscópio pelo qual espiava. De repente, teve um sobressalto, empurrando o banco para trás, fazendo ruído e riscando o soalho luzidio. "Olhe, Chan!" gritou para seu ajudante. "Venha ver isto!" Chan se levantou, foi ter com o Superior agitado, sentando-se diante do microscópio. "Estou com a milionésima parte de um grão de sulfato de chumbo na lâmina", disse o Superior. "Olhe só!" Chan ajustou os controles e assoviou com surpresa completa. "Puxa!" exclamou. "É como olhar o Universo, por um telescó­pio. Um sol brilhando, planetas em órbita...!" O Superior falou, em tom sôfrego: "Será que teremos uma ampliação suficiente para ver um desses mundos individuais, será que existe vida ali?" "Bobagens!" disse Chan, com brusquidão. "Naturalmente que não existe vida senciente. Não pode haver, pois os Sacer­dotes não afirmam que somos feitos à Imagem de Deus? Assim sendo, como é possível haver vida inteligente ali?"

Sobre nós, as estrelas seguiam em seu curso, infinitas, eternas. Sorrindo, o Lama Mingyar Dondup enfiou a mão no manto e dali retirou uma caixa de fósforos, tesouro trazido da longínqua Índia. Devagar, retirou um palito de fósforo e o suspendeu.

            Vou mostrar-lhe a Criação, Lobsang! — disse, em tom alegre.

Com gestos deliberados, passou o fósforo pela superfície áspera da caixa e, enquanto o mesmo irrompia em fogo, ele o segurava. Em seguida, soprou, apagando-o!

            A Criação e a dissolução — declarou. — O fósforo aceso emitiu milhares de partículas, cada qual a separar-se das demais, em explosão. Cada uma delas era um mundo separado, o conjunto era um Universo. E o Universo morreu, quando a chama se extinguiu. Você pode afirmar que não havia vidas nesses mundos?

Eu o olhei com ar de dúvida, sem saber o que dizer.

            Se eles eram mundos, Lobsang, e se tinham vida em si, para essa Vida os mundos teriam durado milhões de anos. E nós, seremos apenas um fósforo aceso? Estaremos nós vi­vendo aqui, com nossas alegrias e pesares... na maior parte pesares!... pensando que este é um mundo sem fim ? Pense, e conversaremos amanhã mais um pouco.

Dito isso, ficou em pé e desapareceu.

Eu segui com passos pesados pelo telhado, tateando às cegas, para o patamar da escada que dava para lá. Nossas escadas eram diferentes das usadas no mundo ocidental, e consistiam de postes com entalhes. Encontrei o primeiro entalhe, o segun­do, o terceiro, e logo meu pé escorregou onde alguém derra­mara manteiga de uma lâmpada. Eu caí estrepitosamente, che­gando ao pé da escada de qualquer maneira, vendo mais "estre­las" do que havia no céu par cima, e fazendo surgir muitos protestos dos monges que dormiam. Uma mão surgiu, na escuri­dão, aplicando-me um cachação que fez minha cabeça retinir. Com rapidez, pus-me em pé e saí correndo para a segurança da escuridão ao redor. Tão silenciosamente quanto possível, descobri um lugar onde dormir, envolto no manto e abando­nando o controle da consciência. Nem mesmo o arrastar de pés rápidos me incomodava, nem as conchas e sinetas de prata interromperam meus sonhos.

A manhã já ia alta, quando fui despertado por alguém que, com grande entusiasmo, me dava pontapés. Os olhos pesados, fitei o rosto de um cheia imenso.

            Acorda! Acorda! Pela Adaga Sagrada, tu és um lorpa preguiçoso!

Ato contínuo, deu-me novos pontapés — e com força. Estendi a mão, apanhei-lhe o pé e o torci. Com um estrondo de quebrar ossos, ele caiu ao chão, gritando.

—            O Senhor Abade! O Senhor Abade! Ele quer falar contigo, imbecil!

Desferindo-lhe um bom pontapé, para compensar os muitos que ele me dera, endireitei o manto e segui apressadamente.

"Não comi... não fiz desjejum!" resmungava para mim mes­mo. "Por que motivo todo mundo quer falar comigo, quando está na hora de comer?" Seguindo às pressas pelos corredores sem fim, passando de carreira pelas esquinas, quase causei ataque cardíaco a alguns monges velhos que caminhavam por ali, tropegamente, mas cheguei à sala do Senhor Abade sem perder tempo. Entrando com afobação, caí de joelhos e fiz minhas mesuras demonstrativas de respeito.

O Senhor Abade examinava meu Registro, e em certo momento ouvi que ele conseguia abafar, às pressas, o riso.

            Ah! — disse ele. — O rapaz rebelde, que cai nos penhascos, passa graxa nas andas e provoca mais agitação do que qualquer outro daqui!

Fez uma pausa, fitando-me com severidade, e prosseguiu:

            Mas você estudou bem, extraordinariamente bem. Suas capacidades metafísicas são de tal natureza, e você se adiantou tanto no estudo, que vou mandá-lo estudar, de modo especial e individual, com o Grande Lama Mingyar Dondup. Você recebe uma oportunidade sem precedentes, pela ordem expressa de Sua Santidade. Agora, apresente-se ao Lama, seu guia.

Mandando-me embora, com um aceno da mão, o Senhor Abade voltou-se novamente para seus documentos. Aliviado pelo fato de que nenhum dos meus numerosos "pecados" fora descoberto, saí à toda pressa. O meu guia, o Lama Mingyar Dondup, estava sentado e à minha espera. Fitando-me com atenção, quando entrei, ele disse:

Já quebrou o seu jejum?

Não, Senhor — respondi —, o Reverendo Senhor Abade mandou-me chamar, enquanto eu ainda dormia... eu estou com fome!

Ele riu e disse:

            Ah! Notei que você tinha um ar acabrunhado, como o de quem sofreu algo. Vá saindo, faça seu desjejum e volte para cá.

Não foi preciso ordenar duas vezes — eu estava com fome, e isso não me agradava. Pouco sabia, naquela ocasião, embora houvesse sido predito, que a fome me acompanharia por muitos anos de minha vida.

Retemperado por um bom desjejum, mas abatido em espí­rito pelo pensamento de mais trabalho duro à frente, voltei a ter com o Lama Mingyar Dondup. Ele se pôs em pé quando entrei.

Venha! disse. Vamos passar uma semana na Potala.

Seguindo à frente, saiu do Salão, até um local onde um monge-palafreneiro esperava, com dois cavalos. Cheio de pres­ságios, examinei o animal que me era destinado. Com aspecto ainda mais agourento, o animal me fitou, demonstrando a meu respeito opinião menos lisonjeira do que a que eu tinha dele. Tomado do pressentimento de desastre iminente, montei e se­gurei-me na sela. Os cavalos eram criaturas terríveis, inse­guras, temperamentais e não tinham freios. Andar a cavalo era uma de minhas habilitações menos destacadas.

Seguimos aos trancos pela trilha montanhosa que parte de Chakpori. Atravessando a estrada Mani Lakhang, tendo o Pargo Kaling à nossa direita, logo entramos na Aldeia de Shö onde meu guia fez uma parada rápida, e depois subi­mos penosamente os degraus íngremes da Potala. Montar em cavalo que sobe degraus íngremes é uma experiência desagradável, e minha preocupação principal era não cair da sela! Monges, lamas e visitantes, numa procissão incessante, subiam e desciam os degraus, alguns parando para admirar a vista, enquanto outros, que tinham sido recebidos pelo próprio Dalai Lama, só pensavam nessa entrevista. No fim dos degraus, nós paramos, e eu desmontei do cavalo, cheio de satisfação, porém absolutamente sem estilo. Ele, pobre coitado, deu um relincho de desagrado e voltou as costas para mim!

Prosseguimos caminhando, subindo escada após escada, até chegarmos ao nível alto da Potala, onde o Lama Mingyar Dondup tinha aposentos permanentes, próximos à Sala das Ciências. Dispositivos estranhos, vindos de países de todo o muado, encontravam-se ali, mas os mais estranhos de todos eram aqueles que tinham vindo do passado mais distante. Assim, chegamos finalmente a nosso destino, e eu me instalei por algum tempo no que era agora o meu quarto.

Da minha janela, bem alta, na Potala, apenas um andar abaixo do Dalai Lama, eu podia examinar Lhasa, no Vale. Bem ao longe, podia ver a grande Catedral (Jo Kang), seu telhado dourado a refulgir. A Estrada Circular, ou Língkor, estendia-se a distância, fazendo um circuito completo da Cidade de Lhasa. Peregrinos piedosos a congestionavam, todos eles vindos para prostrar-se diante do maior centro mundial de conhecimentos ocultos. Fiquei maravilhado por minha boa sorte, em ter um guia tão maravilhoso quanto o Lama Mingyar Dondup; sem ele, eu seria um cheia comum, vivendo num dor­mitório escuro, ao invés de estar quase no ponto mais alta do mundo. De repente, e tão de súbito que emiti um grito de surpresa, braços fortes agarraram os meus, erguendo-me no ar. Uma voz penetrante disse:

- Então! Tudo que pensa, sobre o seu guia, é que ele o traz para cima, na Potala, e que lhe dá aqueles confeitos enjoativamente doces, que vêm da Índia? — perguntou, rebatendo meus protestos com risadas, e eu estava cego ou confuso demais para compreender que ele sabia o que eu pensava a seu res­peito!

Finalmente, ele disse:

            Nós estamos em rapport, nós nos conhecemos muito bem em uma vida anterior. Você já tem todo o conhecimento dessa vida passada, e só precisa ser lembrado. Agora, é pre­ciso trabalhar. Venha a meu quarto.

Endireitei o manto, recoloquei no mesmo minha tigela, que caíra quando eu fora erguido no ar, e segui apressadamente para o quarto de meu guia. Ele, com um gesto da mão, mandou-me sentar e, após eu o ter feito, disse:

            E já pensou sobre a questão da Vida, em nossa con­versa de ontem à noite?

Baixei a cabeça, um tanto desalentado, enquanto respondia.

            Senhor, eu tive de dormir, depois o Senhor Abade quis falar comigo, em seguida o senhor quis falar comigo, e eu precisei comer, e depois o senhor quis falar comigo outra vez. Não tive tempo de pensar em coisa alguma hoje!

Havia um sorriso no rosto dele, enquanto dizia:

            Nós vamos falar mais tarde sobre os efeitos da comida, mas antes disso voltemos a falar sobre a Vida.

Fez silêncio, estendendo a mão para um livro que estava escrito em alguma língua estrangeira exótica. Hoje sei que essa língua era o inglês.

Passando as páginas, ele encontrou finalmente aquela que procurava. Entregando-me o livro, aberto de modo a ver uma ilustração, ele perguntou:

            Você sabe o que é isto?

Examinei a ilustração, e notei que era tão comum que examinei também as palavras estranhas escritas por baixo da mesma. Aquilo não significava coisa alguma para mim. Devolvendo o livro, eu disse, em tom recriminador:

O senhor sabe que eu não posso lê-lo, Honrado Lama!

Mas você reconheceu o desenho? — persistiu ele.

Bem, sim, é só um Espírito da Natureza, sem diferença das coisas daqui.

Eu me tornava cada vez mais perplexo. De que se tratava, afinal de contas? O Lama abriu novamente o livro e disse:

            Em um país distante, no outro lado do mar, a capa­cidade geral de ver os Espíritos da Natureza foi perdida. Se alguém, por lá, vir um Espírito assim, passa a ser assunto de galhofa, e o vidente é literalmente acusado de "estar vendo coi­sas que não existem". Os ocidentais não acreditam senão nas coisas que possam ser retalhadas e examinadas, ou seguras com as mãos, ou postas em uma gaiola. Um Espírito da Natureza recebe, por lá, o nome de Duende... e eles não acreditam nas histórias de Duendes.

Isso me deixou bastante espantado. Eu via Espíritos à todo momento, e os considerava inteiramente naturais. Sacudi a cabeça, procurando clarear as idéias.

O Lama Mingyar Dondup voltou a falar:

            Toda a Vida, como eu lhe disse ontem à noite, consiste de Matéria em vibração rápida, gerando uma carga elétrica, a eletricidade é a Vida da Matéria. Como na música, existem diversas oitavas. O Homem comum vibra em certa oitava, e um Espírito Natural e um Fantasma vibram numa oitava acima. Devido ao fato de que o Homem Comum vive, pensa e crê em apenas uma oitava, os seres das demais oitavas lhes são invisíveis!

Remexi em meu manto, pensando no caso: aquilo não fazia sentido para mim. Eu conseguia ver fantasmas e espí­ritos naturais e, portando, qualquer um deveria poder vê-los também. O Lama, lendo meus pensamentos, respondeu:

Você vê a aura dos seres humanos. A maioria dos outros seres humanos não a vê. Você vê os espíritos naturais e os fantasmas. A maioria dos outros seres humanos não os vê. Todas as crianças muito novas podem ver essas coisas, porque os infantes são mais receptivos. E depois, à medida que a criança se torna mais velha, as ocupações da vida embru­tecem suas percepções. No Ocidente, as crianças que dizem aos pais que brincaram com Espírito são castigadas por estarem mentindo, ou se vêem ridicularizadas por sua "imaginação vívida". A criança não gosta de tal tratamento e, após algum tempo, convence-se a si mesma de que tudo foi imaginação! Você, devido à sua criação especial, vê fantasmas e espíritos naturais, e os verá sempre... assim como verá sempre a aura humana.

Quer dizer que até os espíritos naturais que tratam das flores são o mesmo que nós? — perguntei.

Sim — respondeu ele —, o mesmo que nós, a não ser que vibram mais depressa, e que suas partículas de ma­téria são mais difusas. É por isso que você pode atravessá-los com a mão, assim como pode atravessar com a mão um raio de sol.

O senhor já tocou... o senhor sabe, segurou... um fantasma? — indaguei.

Sim, toquei! — respondeu ele. — Isso pode ser feito, quando se eleva a velocidade das vibrações. Eu lhe falarei a respeito.

Meu guia tocou a sineta de prata, presente dado por um Alto Abade de uma das Lamaserias mais conhecidas do Tibete. O monge-criado, conhecendo-nos bem, trouxe, não o tsampa, mas chá de plantas indianas e aqueles bolinhos doces que eram trazidos pelas cordilheiras, especialmente para Sua Santidade, o Dalai Lama, e dos quais eu, um simples cheia, gostava tanto. "Recompensa pelos esforços especiais no estudo", como Sua Santidade dissera muitas vezes. O Lama Mingyar Dondup percorrera o mundo, tanto no plano físico quanto no astral. Uma de suas pouquíssimas fraquezas era a prefe­rência pelo chá indiano, fraqueza essa que eu endossava com o maior gosto! Nós nos sentamos a cômodo, e assim que eu terminei os meus bolinhos, o meu guia e amigo falou:

            Há muitos anos, quando eu era jovem, passei correndo por uma esquina, aqui, na Potala... exatamente como você, Lobsang! Estava atrasado para o Serviço, e para meu horror vi um abade enorme, impedindo a passagem. Também ele estava com pressa! Não havia tempo para desviar-me; eu ensaiava minhas desculpas, quando colidimos, com toda a força. Ele ficou tão alarmado quanto eu, mas eu estava tão estupidificado, que continuei correndo, e assim não cheguei atrasado, ou atrasado demais, afinal de contas.

Eu ri, pensando no digno Lama Mingyar Dondup, cor­rendo! Ele sorriu, prosseguindo:

            Bem tarde, aquela noite, pensei no assunto. E pensei: "Por que eu não posso tocar em um fantasma?" Quanto mais pensava, tanto mais me decidi a tocar um deles. Preparei os planos com cuidado, li todas as Escrituras antigas que tratam dessas questões. Consultei também um homem muito sábio, que vivia em uma caverna bem alta, nas montanhas. Ele me contou muita coisa, pôs-me no caminho certo, e eu vou contar como foi, porque leva diretamente ao tema de tocar um fan­tasma.

Serviu-se de mais chá e sorveu-o durante algum tempo, antes de prosseguir.

            A Vida, como lhe disse, consiste em uma massa de partículas, pequeninos mundos circulando ao redor de pequenos sóis. O movimento gera uma substância que, por falta de expressão melhor, chamaremos "eletricidade". Se comermos de modo sensato, poderemos aumentar nossa cadência de vi­brações. Uma dieta sensata, que nada tem a ver com aquelas idéias de certos cultos extravagantes, aumenta a saúde da pessoa, e aumenta a cadência básica de vibração. Assim, aproximamo-nos mais da cadência de vibração do fantasma.

Ele se deteve, acendendo um novo bastão de incenso. Satisfeito ao ver que a extremidade do mesmo brilhava de modo satisfatório, voltou a dedicar-me sua atenção.

            O fito único do incenso é aumentar a cadência de vi­brações do lugar onde é queimado, e a cadência daqueles que se encontram nesse lugar. Utilizando-se o incenso correto, pois todos são preparados para uma certa vibração, podemos atingir determinados resultados. Por uma semana, eu me ative a uma dieta rígida, que aumentou minha vibração ou "freqüência". Também durante essa semana, queimei constantemente o incenso apropriado, em meu quarto. Ao final desse período, estava quase "fora" de mim mesmo; achava que flutuava, ao invés de andar, sentia dificuldade em manter minha forma astral dentro da forma física.

Olhou para mim, sorrindo, enquanto prosseguia:

            Você não teria gostado de uma dieta tão rigorosa! "Não", eu estava pensando, "prefiro uma boa refeição só­lida a qualquer fantasma!"

            Ao fim da semana — disse o Lama, meu Guia — desci para o Santuário Interno e queimei mais incenso, enquanto implorava que um fantasma viesse e me tocasse. De repente, senti o calor de uma mão amiga no ombro. Voltando-me para ver quem perturbava minha meditação, quase caí de costas, ao ver que estava sendo tocado pelo espírito de um que "morrera" mais de um ano antes.

O Lama Mingyar Dondup parou abruptamente, e depois riu alto, ao recordar a experiência de antes.

Lobsang! — exclamou, finalmente. — O velho Lama "morto" riu para mim, e perguntou por que motivo eu me dera a todo aquele trabalho, quando tudo que tinha a fazer era entrar no plano astral! Confesso que fiquei mortificadíssimo em pensar que uma solução tão óbvia me escapara. Ora, como você sabe muito bem, nós passamos ao astral para conversar com os fantasmas e os seres da natureza.

Naturalmente, o senhor falava por telepatia — obser­vei —, e eu não conheço qualquer explicação para a telepatia. Eu a uso, mas como a uso?

Você faz as perguntas mais difíceis, Lobsang! — disse meu guia, rindo. — As coisas mais simples são as mais difí­ceis de explicar. Diga-me, como explicaria o processo da respi­ração? Você respira, todos respiram, mas como se explica esse processo?

Eu assenti, carrancudo. Sabia que eu estava sempre fa­zendo perguntas, mas esse era o único meio de aprender as coisas. A maioria dos demais cheias não se interessava, desde que recebesse comida e o trabalho não fosse muito pesado, com o que se dava por satisfeita. Eu queria mais, eu queria saber.

            O cérebro — disse o Lama — é como um aparelho de rádio, como o dispositivo que esse homem Marconi está usando para mandar mensagens através dos oceanos. A coleção de partículas e cargas elétricas que constitui um ser humano tem o dispositivo elétrico, ou rádio, do cérebro, para lhe dizer o que fazer. Quando uma pessoa pensa em mover um órgão, correntes elétricas percorrem os nervos apropriados para galva­nizar os músculos, levando-os à ação desejada. Do mesmo modo, quando uma pessoa pensa, ondas de rádio ou elétricas...na verdade, elas vêm da parte superior do espectro de rádio... são irradiadas do cérebro. Certos instrumentos podem regis­trar as radiações e até marcá-las no que os médicos ocidentais chamam "linhas alfa, beta, delta e gama".

Eu assenti, com movimentos lentos da cabeça. Já ouvira falar nessas coisas, junto aos Lamas Médicos.

Pois bem meu guia prosseguiu as pessoas sen­síveis também podem perceber essas radiações, e compreendê-­las. Eu leio seus pensamentos, e quando você o tentar, poderá ler os meus. Quanto mais duas pessoas estejam em simpatia, em harmonia, uma com a outra, tanto mais fácil será para elas ler essas radiações cerebrais que são os pensamentos. Assim é que temos a telepatia. Os gêmeos, muitas vezes, são inteiramente telepáticos um quanto ao outro. Os gêmeos idên­ticos, onde o cérebro de um é a cópia fiel do outro, são tão tele­páticos entre si que muitas vezes se torna realmente difícil deter­minar qual dos dois deu origem a um pensamento.

Respeitável Senhor disse eu como sabe, posso ler a maioria das mentes. Por que é assim? Existem muitos outros com essa capacidade?

Você, Lobsang respondeu meu guia tem dons especiais, e recebe treinamento especial. Os seus poderes estão sendo aumentados por todos os métodos de que dispomos, por­que tem à frente uma tarefa difícil a desempenhar na Vida.

Dito isso, sacudiu a cabeça, com ar solene, acrescentando:

            Uma tarefa difícil, sem dúvida. Nos Dias Antigos, Lobsang, a humanidade vivia em comunhão telepática com o mundo animal. Nos anos vindouros, após a Humanidade ter percebido a loucura das guerras, tal capacidade será recuperada; mais uma vez o Homem e o Animal viverão juntos, em paz, sem qualquer desejo de um causar mal ao outro.

Lá embaixo um gongo soou repetidamente. Houve o clan­gor de trombetas e o Lama Mingyar Dondup se pos em pé num salto, dizendo:

            Temos de apressar-nos, Lobsang, o Serviço do Templo vai começar, e Sua Santidade estará presente.

Eu me ergui depressa, arrumei o manto e saí atrás de meu guia, já na extremidade do corredor e quase desaparecendo.

 

O grande Templo parecia um ser vivo. De onde eu me encontrava, bem alto no telhado, podia olhar para baixo e ver toda a extensão do lugar. Em ocasião anterior do dia, o meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e eu havíamos viajado para aquele lugar, em missão especial. O Lama, agora, se achava a portas fechadas com um alto dignitário e eu que tinha liber­dade de movimentos encontrara aquele posto de obser­vação dos sacerdotes, entre as vigas poderosas que sustentavam o telhado. Rondando pela passagem do telhado, descobrira a porta e, audaciosamente, a abrira. Nenhum grito de ira veio assinalar meu ato, e eu espiei para o interior. O lugar se achava vazio, de modo que entrei e me encontrei em pequena sala de pedra, como cela embutida na pedra da muralha do templo. Por trás de mim, estava a pequena porta de madeira, degraus de pedra em ambos os lados, e à minha frente um ressalto de pedra, com uns três palmos de altura. Em silên­cio, adiantei-me e me ajoelhei, de modo que apenas minha cabeça ficasse acima do ressalto. Sentia-me como um Deus nos Céus, fitando lá embaixo os mesquinhos mortais, examinando a obscuridade do chão do Templo, bem mais abaixo. Do lado de fora do Templo, o crepúsculo purpúreo cedia lugar à escuridão. Os últimos raios do Sol poente esmaeciam por trás dos picos cobertos de neve, mandando chuveiros iridiscentes de luz pela espuma perpétua de neve que voava das cordilheiras mais altas.

A escuridão do Templo era atenuada, e em alguns lugares intensificada, por centenas de tremelicantes lâmpadas de man­teiga. Eram lâmpadas que brilhavam como pontos dourados de luz, mas que ainda assim difundiam a radiação ao redor. Pare­cia que estrelas estavam a meus pés, ao invés de se acharem por cima da cabeça. Sombras fantásticas deslizavam em silên­cio por colunas poderosas; sombras ora finas e compridas, ora curtas e atarracadas, mas sempre grotescas e bizarras, com a iluminação cruzada fazendo com que o comum se tornasse fan­tástico e este ultrapassasse qualquer descrição.

Eu contemplava aquilo, olhando para baixo, sentindo-me como em um semi-mundo, incerto do que via e do que imaginava. Entre mim e o soalho flutuavam nuvens de incenso azul, a fumaça erguendo-se camada após camada, fazendo-me recordar ainda mais a posição de um Deus a olhar para baixo, em meio às nuvens da Terra. Nuvens de incenso, subindo com suavidade, rodopiavam, espessas, dos Turíbulos que, em vaivém, pendiam dos braços de jovens cheias piedosos. Eles seguiam de um para outro lado, com passos silentes e faces imóveis. Ao se voltarem repetidas vezes, um milhão de pontos luminosos se refletiam nos Turíbulos dourados, emitindo feixes estonteantes de luz. De onde eu me encontrava, podia ver o incenso vermelho em brasa que, soprado pela brisa, às vezes quase prorrompia em chamas, emitindo chuveiros de fagulhas vermelhas, que logo se apagavam. Recebendo vida nova, a fumaça de incenso se erguia em colunas ainda mais espessas, azuis, formanc trilhas acima e por trás dos cheias. Erguendo-se mais alto, a fumaça formava uma outra nuvem, dentro do Templo. As contorções e movi­mentos das leves correntes de ar, causadas pelos monges em movimento, davam a impressão de uma coisa viva, como uma criatura, entrevista na penumbra, respirando e voltando-se no leito em que dormia. Por algum tempo observei, tornando-me quase hipnotizado com a fantasia de que me achava dentro de uma criatura viva, observando o soerguimento e o pulsar de seus órgãos, ouvindo os sons do corpo, da própria Vida.

Em meio à penumbra e às nuvens de fumaça de incenso, eu via as fileiras cerradas de lamas, trapas e cheias. Sentados de pernas cruzadas sobre o chão, estendiam-se em fileiras sem fim, até se tornarem invisíveis nos recantos mais distantes do Templo. Todos envergavam seus Mantos da Ordem, parecendo formar um retalho vivo e ondulante de cores conhecidas. Dou­rado, açafrão, vermelho, castanho, e um borrifo muito leve de cinzento, as cores pareciam viver e fundir-se umas nas outras, quando os monges se moviam. No ponto mais alto do Templo estava sentado Sua Santidade, O Mais Precioso, a Décima-Terceira Encarnação do Dalai Lama, a Figura mais reveren­ciada em todo o mundo budista.

Observei por algum tempo, ouvi o canto dos lamas de voz profunda, acentuado pela voz alta dos pequenos cheias. Observei as nuvens de incenso que vibravam em sintonia com as vibrações mais profundas. As luzes tremulavam na escuridão e eram substituídas, o incenso se queimava e era substituído por novos bastões, em meio a um chuveiro de fagulhas verme­lhas. Eu via as sombras a dançar, crescendo e morrendo sobre as muralhas, observava os minúsculos pontos refulgentes de luz, até não saber mais onde me encontrava, nem o que fazia.

Um lama idoso, curvado sob o peso dos anos muito além da duração normal, seguia devagar entre seus Irmãos da Ordem. Ao redor, havia trapas atentos, com bastões de incenso e uma luz à mão. Inclinando-se para O Mais Precioso, e voltando-se devagar em mesura para cada um dos Quatro Cantos da Terra, ele finalmente se pos no meio da assembléia de monges, dentro do Templo. Com voz surpreendentemente forte para cria­tura tão idosa, entoou:

            Ouçam as Vozes de nossas Almas. Este é o Mundo de Ilusão. À Vida sobre a Terra é apenas um sonho, pois no tempo da Vida Eterna ela não passa de um piscar de olhos. Ouçam as Vozes de nossas Almas, todos os que estão muito abatidos. Esta vida de Sombra e Tristeza terminará, e a Gló­ria da Vida Eterna brilhará sobre os justos. O primeiro bastão de incenso é aceso, para que uma Alma Perturbada possa ser guiada.

Um trapa adiantou-se, fez uma mesura para O Mais Pre­cioso, antes de se voltar devagar e reverenciar, a seu turno, os Quatro Cantos da Terra. Acendendo um bastão de incenso, voltou-se novamente e apontou com ele para os Quatro Cantos. O cantar, em vozes profundas, ergueu-se novamente e morreu, sendo acompanhado pela voz alta dos jovens cheias. Um lama corpulento recitou certas passagens, pontuando-as com o toque de sua Sineta de Prata, com um vigor que era motivado apenas pela presença de O Mais Precioso. Voltando ao silên­cio, olhou disfarçadamente ao redor, para ver se seu desem­penho merecera a devida aprovação.

O lama idoso adiantou-se mais uma vez, fez uma mesura para O Mais Precioso e para as Estações. Outro trapa se apresentava, atento, aflito na Presença do Chefe do Estado e da Religião. O lama idoso entoou:

            Ouçam as Vozes de nossas Almas. Este é o Mundo de Ilusão. A Vida sobre a Terra é a Prova, para que nos possa­mos purificar das impurezas e subir sempre. Ouçam as Vozes de nossas Almas, todos os que estão em dúvida. Logo a recordação da vida na Terra passará, e haverá Paz e libertação quanto ao Sofrimento. O segundo bastão de incenso é aceso, para que uma Alma em dúvida possa ser guiada.

Lá embaixo, o canto dos monges aumentou e tomou vulto novamente, enquanto o trapa acendia o segundo bastão e executava o ritual de inclinação para O Mais Sagrado, apontando o incenso para cada Canto a seu turno. As muralhas do Templo pareciam respirar, oscilar em uníssono com o canto. Ao redor do lama idoso, formas fantasmagóricas se reuniam: eram os que haviam recentemente passado desta vida sem estarem pre­parados, e agora vagavam sem orientação, sozinhos.

As sombras trêmulas pareciam saltar e contorcer-se como almas em tormento; minha própria consciência, minhas percepções, até mesmo meus olhos, tremularam entre dois mundos. Em um, eu fitava com atenção extasiada a marcha do culto, lá embaixo. Em outro, via o "entre-mundos", onde as almas recém-partidas tremiam de medo, diante da estranheza do Des­conhecido. Almas isoladas, envoltas em escuridão úmida e pega­josa, choravam em seu terror e solidão. Separadas umas das outras, separadas de todos os demais devido à sua falta de crença, eram tão imóveis como um iaque atolado num pântano das montanhas. Na escuridão viscosa do "entre-mundos", que era aliviada apenas pela débil luz azul vinda daquelas formas fantasmagóricas, penetrava o canto, o Convite, do lama idoso:

Ouçam as Vozes de nossas Almas. Este é o Mundo de Ilusão. Assim como o Homem morreu na Realidade Maior para poder nascer na Terra, também tem de morrer na Terra para poder renascer na Realidade Maior. Não há Morte, apenas o Nascimento. As dores da Morte são as dores do Nasci­mento. O terceiro bastão de incenso é aceso, para que uma Alma em Tormento possa ser guiada.

À minha consciência veio uma ordem telepática: "Lobsang! Onde está? Venha ter comigo, agora!" Com um solavanco, voltando a este mundo mediante grande esforço, cambaleei, pon-do-me sobre os pés entorpecidos, e segui pela pequena porta. "Já vou, Respeitável Senhor!" pensei, para meu guia. Esfre­gando os olhos, que marejavam ao ar frio da noite, após o calor e fumaça do incenso no Templo, segui trôpego e apalpei o ca­minho acima do chão, até onde meu guia esperava, numa sala bem por cima da porta principal. Éle sorriu ao me ver.

            Ora, Lobsang! — exclamou. — Está com o aspecto de quem viu um fantasma!

            Senhor! — respondi. — Vi diversos.

            Esta noite, Lobsang, ficaremos aqui — disse o Lama. — Amanhã, iremos visitar o Oráculo do Estado. Você vai achar a experiência interessante, mas agora é o momento de comer, primeiramente, e depois dormir...

Enquanto comíamos, eu me achava preocupado, pensando no que vira no teto, imaginando como este podia ser "o Mundo de Ilusão". Terminei rapidamente o jantar, seguindo para o quarto que me fora destinado. Envolvendo-me no manto, deitei-me e logo dormi. Sonhos, pesadelos e impressões estranhas me atormentaram durante toda a noite.

Sonhei que estava sentado, inteiramente desperto, e que grandes globos de alguma coisa vinham ter comigo, como a poeira de uma tempestade. Eu estava sentado, e de grande distância pequenos fragmentos surgiam, tornando-se cada vez maiores, até eu poder ver que os globos, que já eram então, exibiam todas as cores. Tornando-se do tamanho da cabeça de um homem, vinham rapidamente em minha direção e logo se afastavam. Em meu sonho — se era mesmo sonho! — não conseguia voltar a cabeça a fim de ver para onde tinham ido; havia, apenas, aqueles globos sem fim, vindos de algum lugar desconhecido, passando perto de mim, seguindo para — para onde?

Fiquei imensamente espantado com o fato de que nenhum deles colidisse comigo. Pareciam sólidos, mas ainda assim não tinham substância. Com subtaneidade tão horrível que me pôs inteiramente desperto, uma voz se fez ouvir, por trás:

            Assim como um fantasma vê as paredes grossas e só­lidas do Templo, você também está vendo agora!

Estremeci de apreensão; estaria morto! Teria morrido du­rante a noite? Mas por que motivo me preocupava com a "morte"? Sabia que a chamada morte era apenas o renasci­mento. Continuei deitado e, com o tempo, adormeci, outra vez.

Todo mundo estremeceu, rangendo e desmoronando, de modo louco. Eu me sentei, com grande alarme, julgando que o Templo caía ao redor de mim. A noite era escura, tendo apenas a radiação fantasmagórica das estrelas no céu a apresentar levíssimos pontos de luz. Olhando diretamente à frente, senti que os cabelos se me punham em pé, tamanho o susto. Fiquei paralisado, não conseguia mover um só dedo e, pior ainda, aquele mundo se tornava cada vez maior. A pedra lisa das muralhas fazia-se mais bruta, transformava-se em rocha porosa parecida com a dos vulcões extintos. Os buracos na parede aumentavam sempre, e eu vi que eram povoados por criaturas de pesadelo, que eu observara mediante o bom microscópio alemão do Lama Mingyar Dondup.

O mundo crescia sem parar, criaturas assustadoras adqui­riam dimensões imensas, tornando-se tão vastas que, com a passagem do tempo, eu podia ver-lhes os poros! O mundo crescia sempre, e então compreendi que me tornava cada vez menor. Percebi que uma tempestade de poeira estava soprando. De algum lugar atrás de mim os grãos de poeira vinham estru­gindo, mas nenhum deles me tocava. Com rapidez, tornavam-se cada vez maiores. Alguns eram tão grandes quanto a cabeça de um homem, outros tão grandes quanto os Himalaias. Ainda assim, nenhum deles me tocava. Tornavam-se ainda maiores, até que perdi toda a noção de tempo. Em meu sonho, parecia estar deitado entre as estrelas, frio e imóvel, enquanto uma galáxia após outra passava, cintilante, e desaparecia na distân­cia. Não sei por quanto tempo fiquei assim. Pareceu-me que ali permaneci deitado por toda uma eternidade. Finalmente, toda uma galáxia, toda uma série de Universos, veio direta­mente em minha direção. "Isto é o fim!" Pensei, de modo vago, quando aquela multidão de mundos colidiu comigo.

            Lobsang! Você foi para os Campos Celestiais? per­guntou a Voz, retumbante e ecoando em todo o Universo, reverberando nos mundos...e voltando a ecoar nas paredes de minha câmara de pedra.

Com um esforço penoso, abri os olhos e procurei focalizá-los. Acima de mim havia uma constelação de estrelas brilhantes, que de algum modo pareciam conhecidas. Estrelas que desapareceram devagar, sendo substituídas pelo semblante benigno do Lama Mingyar Dondup. Ele, com gentileza, me sacudia. A luz clara do sol iluminava o quarto. Um feixe de luz solar iluminava fragmentos de poeira que rebrilhavam com todas as cores do arco-íris.

            Lobsang! A manhã já vai alta. Eu o deixei dormir, mas chegou o momento de comer e em seguida partiremos.

Fatigado, pus-me em pé. Estava "escangalhado" aquela manhã; a cabeça parecia grande demais, o espírito ainda se achava nos "sonhos" da noite. Reunindo os poucos pertences na parte dianteira do manto, deixei o quarto à procura de tsampa, nosso alimento básico. Desci pela escada de nós, bem seguro, com medo de cair. Desci até onde os monges-cozinheiros se encontravam.

            Vim buscar comida, — anunciei, com humildade.

            Comida? A esta hora da manhã? Vá dando o fora! - berrou o monge-cozinheiro-chefe.

Estendendo o braço, estava prestes a me desferir um golpe, quando outro monge cochichou, em voz roufenha:

            Ele está com o Lama Mingyar Dondup!

O monge-cozinheiro-chefe deu um salto, como se houvesse sido mordido por um marimbondo, e em seguida berrou para o ajudante:

            E então? O que esperas? Dá ao jovem cavalheiro o desjejum dele!

Em condições normais, eu devia ter cevada suficiente na bolsa de couro que todos os monges carregam consigo, mas como estávamos fazendo visitas, tal suprimento se esgotara. Todos os monges, quer sejam chelas, trapas ou lama, carregam a bolsa de couro com cevada, bem como uma tigela na qual comê-la. O tsampa era misturado com chá amanteigado, propor­cionando assim o alimento principal do Tibete. Se as lamase­rias tibetanas imprimissem cardápios, haveria apenas uma pa­lavra a ser impressa nos mesmos: tsampa!

Um tanto retemperado apos a refeição, fui ter com o Lama Mingyar Dondup e partimos a cavalo para a Lamaseria do Orá­culo do Estado. Não conversamos durante a viagem, e meu cavalo tinha um movimento singular a requerer toda minha aten­ção, se eu quisesse continuar montado. Enquanto seguíamos pela Estrada de Lingkor os peregrinos, vendo a alta patente do manto de meu guia, pediam-lhe a bênção. Recebendo-a, reto­mavam seu Circuito Sagrado, com o aspecto de quem já esti­vesse a meio caminho da salvação. Logo entrávamos a cavalo pelo Bosque de Salgueiros, chegando à trilha de pedra que dava para o Lar do Oráculo. No pátio, monges-criados ficaram com nossos cavalos, enquanto eu, finalmente, e cheio de satisfação, deslizava para o chão.

O lugar estava cheio de gente. Os lamas de categoria mais elevada haviam vindo de todos os pontos do país para estarem presentes. O Oráculo ia entrar em comunicação com os Poderes que governavam o mundo. Eu, mediante arranjo especial, por ordem especial de O Mais Precioso, deveria estar presente.

Mostraram-nos onde dormir, eu ao lado do Lama Mingyar Dondup e não em dormitórios com muitos outros cheias. Ao passarmos por um pequeno templo, dentro do edifício principal, ouvi: "Ouçam as Vozes de nossas Almas. Este é o Mundo de Ilusão".

            Senhor! — disse eu a meu guia, quando estávamos a sós. — Como é este o "Mundo de Ilusão"?

Ele me olhou, sorrindo.

Bem — respondeu —, o que é verdadeiro? Você toca esta muralha, e seu dedo é detido pela pedra. Assim sendo, você raciocina que a muralha existe como sólido, que nada pode penetrar. Para além das janelas, as cordilheiras dos Himalaias se apresentam firmes, como se fossem a coluna dorsal da Terra. Um fantasma, entretanto, ou você, no plano astral, pode mover-se tão livremente em meio à pedra das montanhas quanto o pode pelo ar.

Mas como é essa "ilusão"? — perguntei. — Ontem à noite tive um sonho, que realmente foi ilusão; empalideço, em pensar nele!

Meu guia, com infinita paciência, ouviu enquanto eu lhe narrava o sonho, e assim que terminei ele, disse:

            Terei de falar-lhe sobre o Mundo de Ilusão. Não neste momento, porém, porque precisamos visitar o Oráculo.

O Oráculo do Estado era um homem surpreendentemente jovem, magro, de aparência muito doentia. Fui-lhe apresentado, e seus olhos escaldantes me perfuraram, fazendo comi­chões de pavor percorrer minha espinha.

            Sim! É você, eu o reconheço bem, — afirmou. — Você tem o poder interno; terá também o conhecimento. Mais tarde conversaremos.

O Lama Mingyar Dondup, meu amado amigo, pareceu mui­to satisfeito comigo.

            Você passa por todas as provas, Lobsang, todas as vezes! — comentou. — Agora, venha, vamos retirar-nos para o Santuário dos Deuses e conversar.

Sorria para mim, enquanto tomávamos aquele caminho.

            Conversar, Lobsang, — observou — a respeito do Mun­do de Ilusão.

O Santuário se achava deserto, como meu guia já sabia antecipadamente. Lâmpadas tremeluziam diante das Imagens Sagradas, fazendo com que suas sombras dessem saltos e se movessem, como em alguma dança exótica. A fumaça do incenso fazia espirais, subindo, formando uma nuvem baixa acima de nós. Juntos nós nos sentamos ao lado do Atril do qual o Leitor fazia a leitura dos Livros Sagrados. Ficamos sentados, na atitude de contemplação, as pernas cruzadas, os dedos entrelaçados.

            Este é o Mundo de Ilusão — disse meu guia. — Por conseqüência, chamamos as Almas para que nos escutem, por que apenas elas se encontram no Mundo de Realidade. Nós dizemos, como você bem sabe, "ouçam as Vozes de nossas Almas", e não dizemos "ouçam nossas Vozes físicas". Escute, e não interrompa, porque esta é a base de nossa Crença Inter­na. Como explicarei depois, as pessoas que não se acham suficientemente evoluídas precisam, de início, ter uma crença que as sustenha, fazendo-as sentir que um Pai ou Mãe benevolente as vigia e protege. Somente quando se chegou à etapa apro­priada é que se pode aceitar o que vou dizer agora.

Olhei para meu guia, achando que ele era todo o mundo para mim, desejando que pudéssemos estar sempre juntos.

Nós somos criaturas do Espírito — afirmou ele —, somos como cargas elétricas dotadas de inteligência. Este mun­do, esta vida, é o Inferno, o lugar de provas, onde nosso Espí­rito se purifica, pelo sofrimento de aprender a controlar nosso grosseiro corpo carnal. Assim como um fantoche é controlado por cordéis manipulados pelo Senhor dos Fantoches, também nosso corpo carnal é controlado por cordões de força elétrica de nosso Eu Maior, nosso Espírito. Um bom Senhor de Fantoches pode criar a ilusão de que os bonecos de madeira são dotados de vida, que podem agir por vontade própria. Do mesmo modo, nós, enquanto não aprendemos mais, achamos que nosso corpo carnal é a coisa única que importa. Na atmosfera sufocante para o espírito, a da Terra, esquecemos que temos a Alma que realmente nos controla, julgamos estar fazendo as coisas por nossa própria vontade livre, e que somos responsá­veis apenas perante nossa "consciência". Assim, Lobsang, temos a primeira ilusão, a ilusão de que o fantoche, o corpo carnal, é o que importa. Ele se deteve, notando minha expressão de perplexidade.

Bem? — perguntou. O que o perturba?

Senhor! — disse eu. — Onde estão meus cordéis de força elétrica? Não posso ver coisa alguma a ligar-me com meu Eu Maior?

Ele ria, ao responder:

            Você pode ver o ar, Lobsang? Não pode, enquanto estiver no corpo carnal.

Inclinando-se à frente, apanhou meu manto, e quase me matou de susto, enquanto eu lhe fitava os olhos penetrantes.

            Lobsang! — disse ele com severidade. — O seu cérebro se evaporou todo? Você é realmente feito de osso, do pescoço para cima? Esqueceu-se do Cordão de Prata, aquela coleção de linhas de força elétrica, que o ligam... aqui... à sua alma? Francamente, Lobsang, você está no Mundo de Ilusão!

Senti que o meu rosto se punha escarlate. Eu, natural­mente, tinha conhecimento do Cordão de Prata, esse fio de luz azulada que liga o corpo físico ao espiritual. Muitas vezes, quando viajando no plano astral, eu observava o Cordão bruxu­leando e pulsando com luz e vida. Era como o cordão umbilical que liga a mãe e a criança recém-nascida, só que a "criança" que é o corpo físico não poderia existir um só momento, se o Cordão de Prata fosse cortado.

Ergui o olhar, e meu guia estava pronto para prosseguir, após minha interrupção.

            Quando estamos no mundo físico, inclinamo-nos a pen­sar que somente o mundo físico importa. Esse é um dos dispositivos de segurança do Eu Maior; se recordássemos o Mundo Espiritual com sua felicidade, somente conseguiríamos continuar aqui mediante um grande esforço de vontade. Se nos recor­dássemos de vidas anteriores, quando, talvez, fomos mais impor­tantes do que nesta vida, não teríamos a humildade necessária. Vamos mandar trazer chá, e eu lhe mostrarei, ou lhe contarei, a vida de um chinês, desde sua morte ao renascimento e à morte e chegada ao Mundo Seguinte.

O lama estendeu a mão, para tocar a pequena sineta de prata no Santuário, e logo se deteve, ao observar minha ex­pressão.

Bem? — perguntou. — Qual é sua pergunta?

Senhor! — respondi. — Por que um chinês? Por que não um tibetano?

Porque — respondeu ele — se eu disser "um tibetano" você procurará ligar o nome a alguém que conhece... e obterá resultados incorretos.

Dito isso, tocou a campainha e um monge-criado trouxe chá para nós. Meu guia fitou-me, com a expressão pensativa.

            Você compreende que ao tomar este chá estamos engo­lindo milhões de mundos? — perguntou. — Os fluidos possuem um teor molecular mais esparso. Se pudéssemos ampliar as moléculas deste chá, você verificaria que elas rolam como as areias, ao largo de um lago turbulento. Até mesmo um gás, ou o próprio ar, se compõe de moléculas, de partículas diminutas. Entretanto, isso é uma digressão, e íamos falar sobre a morte e vida de um chinês, — disse, dando fim ao chá e esperando, enquanto eu terminava o meu.

            Seng era um velho mandarim, — disse meu guia. — Sua vida fora afortunada e agora, ao anoitecer dessa vida, sentia grande contentamento. A família era grande, as concubi­nas e escravos numerosos. O próprio Imperador da China o tinha em seu favor. Ao fitar com olhos idosos e míopes a janela do quarto, mal conseguia discernir os belos jardins com o canto dos pássaros que regressavam às árvores, ao encerramento do dia. Seng deitou-se, apoiado nas almofadas. Dentro de si, sentia os dedos da Morte, afrouxando seus laços com a vida. Devagar, o sol de vermelho cor de sangue se punha, por trás do pagode antigo. Devagar, o velho Seng inclinou-se nas almo­fadas, a respiração difícil e ruidosa passando entre os dentes. A luz do sol esmaeceu, as pequenas lâmpadas no quarto foram acesas, mas o velho Seng já se fora — já se fora com os últimos raios do sol.

Meu guia olhou para mim, para ter certeza de que eu prestava atenção, e depois prosseguiu:

            O velho Seng estava caído em meio às almofadas, com os sons corporais rangendo e arquejando, chegando ao silêncio. O sangue já não percorria as artérias e veias, os fluidos do corpo já não gorgolejavam. O corpo do velho Seng estava morto, encerrado, sem mais serventia. Mas um clarividente, se estivesse presente, teria visto uma luz azul e difusa formar-se ao redor do corpo do velho Seng. Formar-se, e depois erguer-se acima do corpo, flutuando horizontalmente por cima, ligada pelo Cordão de Prata que se afinava. Gradualmente, o Cordão de Prata tornou-se fino e se separou. A Alma, que já fora o velho Seng, flutuou, afastando-se, derivando como uma nuvem de fumaça de incenso, desaparecendo sem esforço pelas paredes.

O lama encheu novamente a chávena, verificou se eu tam­bém tinha chá, e prosseguiu:

            A Alma seguiu vagando por reinos, por dimensões que a mente materialista não pode compreender. Finalmente, alcan­çou um jardim maravilhoso, pontilhado de edifícios imensos, em um dos quais se deteve, e ali a Alma que já fora o velho Seng entrou e seguiu para um andar refulgente. Uma alma, Lobsang, em seu próprio ambiente, é tão sólida quanto você, neste mundo. A alma, no mundo da alma, pode ser confinada por paredes, e andar sobre o chão. Ali, a alma tem capacidades e talentos diferentes daqueles que conhecemos na Terra. Essa Alma prosseguiu andando, e finalmente entrou em pequeno cubículo. Sentando-se, fitou a parede à frente. De repente, a parede pareceu sumir, e em seu lugar viu cenas, as cenas de sua vida. Viu aquilo a que chamamos o Registro Akáshico, isto é, o Registro de tudo que já aconteceu, e que pode ser visto prontamente por aqueles que se acham capacitados. Também é visto por todos que passam da vida terrena à vida do Além, pois o homem vê o Registro de seus próprios êxitos e fra­cassos. O homem vê o seu passado, e julga a si mesmo! Não existe juiz mais severo do que o próprio Homem. Nós não nos sentamos tremendo diante de um Deus; sentamo-nos, e vemos tudo que fizemos e tudo quanto já tivemos a intenção de fazer.

Eu estava sentado, em silêncio, achando que tudo aquilo era de grande interesse, e poderia ficar ouvindo horas seguidas — era muito melhor do que o trabalho tedioso com as lições!

            A Alma que fora o velho Seng, o mandarim chinês, sentou-se e viu novamente a vida que ele, sobre a Terra, jul­gara tão bem sucedida — prosseguiu meu guia. — Viu, e teve o pesar de ver suas muitas faltas, e depois se levantou e deixou o cubículo, seguindo rapidamente para uma sala maior, onde homens e mulheres do Mundo 'das Almas o aguardavam. Em silêncio, sorrindo com compaixão e compreensão, eles esperavam sua aproximação, seu pedido para que o guiassem. Sentado em sua companhia, narrou-lhes suas faltas, as coisas que tentara fazer, quisera fazer, e não conseguira.

Mas eu pensei que o senhor disse que ele não foi julga­do, que se julgou a si próprio! — observei, depressa.

É assim, Lobsang — respondeu meu guia. — Tendo visto seu passado e seus enganos, ele se aproximava agora da­queles Conselheiros, a fim de receber-lhes as sugestões... Mas não interrompa, escute e deixe suas perguntas para depois.

Como estava dizendo — continuou o lama —, a Alma sentou-se com os Conselheiros, narrando-lhes seus fracassos, falando-lhes das qualidades que ele tinha de "criar" em sua Alma, antes de poder evoluir mais. Em primeiro lugar, viria o regresso para ver seu corpo, e depois um período de des­canso ... anos ou séculos... e então seria auxiliado a encon­trar condições tais como as que se mostravam essenciais para seu progresso maior. A Alma que fora o velho Seng voltou à Terra, para fitar seu corpo morto, já pronto para o sepultamento. E então, não sendo mais a Alma do velho Seng, porém uma Alma pronta para o descanso, ele regressou à Terra do Além. Por período indeterminado, descansou e se recuperou, estudando as lições das vidas anteriores, preparando-se para a vida que viria. Aqui, nesta vida além da morte, os artigos e substâncias eram tão sólidos à seu tato quanto haviam sido sobre a Terra. Ele repousou, até ficarem preparados o tempo e as condições.

            Eu gosto disso! — exclamei. — Acho de grande interesse.

Meu guia sorriu para mim, antes de prosseguir:

            Em algum tempo predeterminado, a Alma que Espera foi chamada e levada para o Mundo da Humanidade por alguém cuja tarefa era a execução desse serviço. Eles se detiveram, invisíveis aos olhos dos que tinham corpos carnais, observando os que iam ser os pais, examinando a casa, avaliando as proba­bilidades que aquela casa proporcionaria aos recursos desejados para aprender lições que tinham de ser aprendidas dessa feita. Satisfeitos, eles se retiraram. Meses depois, a Futura Mãe sentiu algo em seu corpo, quando a Alma ingressou, e a criança passou a viver. Com o tempo, a Criança nasceu para o Mundo do Homem. A alma que já animara o corpo do velho Seng lutava agora, outra vez, com os nervos e cérebro relutantes da criança Lee Wong, vivendo num ambiente humilde, em uma aldeia de pescadores da China. Mais uma vez as vibrações ele­vadas de uma Alma foram convertidas para as vibrações de uma oitava inferior de um corpo carnal.

Eu permanecia sentado, pensando. Depois, pensei mais. Finalmente, disse:

Honrado Lama, se é assim, por que motivo as pessoas receiam a morte, que é apenas uma libertação quanto aos problemas da terra?

Aí temos uma pergunta sensata, Lobsang, — respondeu meu guia. — Se nós sequer nos lembrássemos das alegrias do Outro Mundo, muitos de nós não conseguiriam tolerar as vicis­situdes aqui, em conseqüência das quais temos, implantado em nós, o medo à morte.

Dedicando-me um olhar de esguelha e trocista, ele obser­vou:

Alguns de nós não gostam da escola, não gostam da disciplina que é tão necessária na escola. Entretanto, quando a gente cresce e se torna adulta, os benefícios da escola tornam-se evidentes. Não daria certo fugir da escola e esperar progre­dir no estudo; tampouco se aconselha dar fim à vida, antes do tempo destinado a cada um.

Fiquei pensando sobre isso, porque poucos dias antes um velho monge, analfabeto e doente, se atirara de um alto eremi­tério. Homem velho e azedo que fora, sempre recusara todas as ofertas de ajuda. Sim, o velho Jigme estava melhor, tendo-se retirado, pensava eu. Melhor para si mesmo, melhor para os outros.

            Senhor! — disse eu. — Nesse caso o monge Jigme errou, quando deu fim à própria vida?

Sim, Lobsang, errou muito, — respondeu meu guia. — Um homem ou mulher tem certo tempo sobre a Terra. Se der fim à vida antes desse momento, terá de regressar quase imediatamente. Assim, temos o espetáculo de uma criança que nasce para viver apenas alguns meses. Será a alma de um sui­cida, que regressa para apoderar-se do corpo, e assim viver o resto do tempo que deveria ter sido vivido antes. O suicídio nunca se justifica; constitui uma ofensa grave contra a própria pessoa, contra o Eu Maior da pessoa.

Mas, senhor — disse eu —, que diz do japonês de alto nascimento, que comete suicídio cerimonial a fim de expiar a vergonha da família? Ele, por certo, é um homem corajoso, ao

fazer isso.

            Não, Lobsang — disse meu guia, do modo mais enfá­tico. — Não é assim. A bravura não está em morrer, mas em viver, diante da vicissitude, diante do sofrimento. Morrer é fácil. viver... isso é um ato de coragem! Nem mesmo a demonstração teatral de orgulho, o "Suicídio Cerimonial", pode cegar alguém quanto ao erro do mesmo. Estamos aqui para aprender, e só podemos aprender vivendo o tempo que nos foi dado. O suicídio nunca se justifica!

Voltei a pensar no velho Jigme. Era uma criatura muito idosa, quando se matara, de modo que quando voltasse, ao que eu pensava, seria apenas para uma estada curta.

            Honrado Lama — perguntei —, qual é o objetivo do medo? Por que temos de sofrer tanto, pelo medo? Eu já des­cobri que as coisas que mais temo jamais acontecem, mas ainda assim eu as temo!

O lama riu, e disse:

— Isso acontece com todos nós. Nós receamos o Desconhecido. No entanto, o medo é necessário. É ele que nos acicata a prosseguir, quando, de outra forma, seríamos preguiçosos. O medo confere vigor adicional, com o qual evitamos os acidentes. O medo é um propulsor que nos confere mais poder, mais incentivo, e faz com que sobrepujemos nossa pró­pria inclinação à preguiça. Você não estudaria nem faria seus trabalhos escolares, se não tivesse medo do professor, ou medo de parecer estúpido, diante dos colegas.

Os monges entravam no Santuário; cheias corriam de um lado para outro, acendendo mais lâmpadas de manteiga, mais incenso. Nós nos pusemos em pé e seguimos para o frescor da noite, onde uma brisa leve brincava com as folhas dos salgueiros. As grandes trombetas soavam, na Potala tão distante, e muito fracos os ecos vinham pelas muralhas da Lamaseria do Oráculo do Estado.

 

A Lamaseria do Oráculo do Estado era pequena, compacta e muito isolada. Uns poucos chelas pequenos brincavam com toda liberdade. Nenhum grupo de trapas permanecia indolentemente no pátio banhado de sol, passando a hora do meio-dia em conversa ociosa. Velhos — velhos lamas, também! — encontravam-se em maioria, naquele lugar. Homens idosos, cabelos brancos e curvados sob o peso dos anos, eles andavam devagar, cuidando da vida. Aquele era o Lar dos Videntes. Aos lamas idosos, de modo geral, e ao próprio Oráculo, fora confiada a tarefa da Profecia, das Predições. Nenhum visitante entrava ali sem convite, nenhum viajante perdido batia à porta procurando descanso ou comida. Tratava-se de lugar receado por muitos e proibido a todos, a não ser àqueles especialmente convidados. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, era a ex­ceção: a qualquer momento, podia entrar e verificar que era realmente um visitante bem-vindo.

Um bosque gracioso de árvores conferia à Lamaseria a solidão e a reserva com relação a olhares curiosos. Muralhas fortes de pedra proporcionavam aos edifícios a proteção quanto aos super curiosos, se surgisse algum que com sua curiosidade ociosa se arriscasse a incorrer na ira do poderoso Lama Oracular. Salas cuidadosamente mantidas eram reservadas para Sua Santidade, O Mais Precioso, que com tanta freqüência visitava aquele Templo do Conhecimento. A atmosfera era calma, a impressão geral de quietude, de homens que cuidavam placidamente de suas tarefas importantes.

Tampouco havia qualquer oportunidade para brigas, para a admissão de intrusos ruidosos. O Lugar era patrulhado pelos poderosos Homens de Kham, os homens enormes, muitos dos quais com dois metros de altura, e nenhum deles pesando menos do que cento e dez quilos, empregados em todo o Tibete como monges-policiais, encarregados da manutenção da ordem nas comunidades monásticas, que às vezes eram compostas de mi­lhares de monges. O monge-policial andava por ali, constan­temente alerta, constantemente em guarda. Portando cacetes poderosos, constituíam certamente uma visão assustadora para os donos de consciências culpadas. O manto de um monge não encobre necessariamente um homem religioso; há transgres­sores e preguiçosos em todas as comunidades, de modo que os Homens de Kham se mantinham ocupados.

Os edifícios da Lamaseria também estavam à altura de seu fito. Não se viam edifícios altos ali, nenhum poste com­prido e com entalhes para escalar; aquilo era para homens idosos, homens que haviam perdido a elasticidade da juventude, homens cujos ossos eram fracos. Os corredores apresentavam acesso fácil, e os de idade mais avançada residiam no pavimento térreo. O próprio Oráculo do Estado também vivia no térreo, ao lado do Templo de Adivinhação. Ao redor, alojavam-se os homens mais idosos, os mais sábios. E o monge-policial-chefe dos Homens de Kham.

            Vamos ver o Oráculo, Lobsang, — disse meu guia. — ele demonstrou grande interesse por você, e está preparado a dedicar-lhe grande parte de seu tempo.

O convite — ou ordem — veio encher-me da maior tristeza; qualquer visita a um astrólogo ou "vidente", no passado, somen­te me trouxera más notícias, mais sofrimento, mais confirmação de dificuldades no futuro. De um modo geral, igualmente, eu tinha de usar o meu melhor manto, e sentar-me como um pato empalhado, enquanto ouvia algum velho tagarela; balindo uma série de coisas conhecidas, que eu preferia não ter de escutar. Olhei para ele, com ar desconfiado; o Lama se esforçava por esconder um sorriso, ao retribuir o olhar. Como era óbvio, pensei com azedume, ele estivera lendo meus pensamentos! Prorrompeu em risada, ao dizer:

            Vá como está, o Oráculo não se deixa absolutamente impressionar pelo estado do manto da pessoa. Ele sabe mais a seu respeito do que você mesmo!

Ouvindo isso, minha tristeza aumentou, e eu me pus a imaginar o que ia ouvir em seguida.

Seguimos pelo corredor, saindo para o pátio interno. Olhei as cordilheiras imensas, sentindo-me como alguém que ia ser executado. Um monge-policial, carrancudo, aproximou-se de nós, e a mim se parecia mais uma montanha em movimento. Reconhecendo meu guia, prorrompeu em sorrisos de acolhimento, com mesuras profundas.

            Prostrações à teus Pés de Lotos, Santo Lama, — disse. — Honra-me, permitindo que te leve à Sua Reverência, o Oráculo do Estado.

Acertou o passo a nosso lado, e tenho a certeza de que o chão estremecia à sua marcha pesada.

Dois lamas estavam ao lado da porta, lamas e não monges-guardas comuns, e à nossa aproximação puseram-se de lado, para que pudéssemos entrar.

O Santo os aguarda, — disse um deles, sorrindo para meu guia.

Ele anseia por tua visita, Senhor Mingyar, — disse o outro.

Entramos, e nos encontramos num aposento de iluminação um tanto fraca. Por alguns segundos, pude distinguir apenas poucas coisas; meus olhos haviam sido ofuscados pela luz brilhante do sol, no pátio. Gradualmente, enquanto minha visão voltava ao normal, percebi uma sala vazia, tendo apenas dois tapetes nas paredes e um pequeno turíbulo, que fumegava a um canto. No centro da sala, sobre uma almofada simples, estava sentado um homem muito jovem. Parecia magro e frágil, e fiquei realmente espantado ao compreender que aquele era o Oráculo do Estado do Tibete. Tinha olhos um tanto esbu­galhados, olhava para mim e via meu íntimo. Eu tinha a im­pressão de que ele via minha alma, e não meu corpo carnal.

Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e eu prostramo-nos no cumprimento tradicional e prescrito, e depois nos pusemos em pé, assim permanecendo. Finalmente, quando o silêncio se tornava decididamente incômodo, o Oráculo falou.

            Bem-vindo, Senhor Mingyar, bem-vindo, Lobsang! — disse.

Sua voz era um tanto alta, e não se mostrava forte, em absoluto; dava a impressão de vir de grande distância. Por alguns momentos, meu guia e o Oráculo falaram sobre questões de interesse comum; em seguida, porém, o Lama Mingyar Dondup fez uma mesura, voltou-se e deixou a sala. O Oráculo ficou a olhar-me, e disse, finalmente:

            Traga uma almofada, e sente-se perto de mim, Lobsang.

Estendi a mão para uma das almofadas quadradas, encos­tadas em uma parede distante, e a coloquei de modo a poder sentar-me diante dele. Por algum tempo, fitou-me em silêncio um tanto soturno, mas, finalmente, quando eu já estava inquieto sob seu escrutínio, falou:

Com que, então, você é Terça-Feira Lobsang Rampa! Nós nos conhecemos bem, em outra fase da existência. Agora, por ordem de O Mais Precioso, tenho de falar-lhe de vicis­situdes que virão, dificuldades a vencer.

Oh, Senhor! — exclamei. — Eu devo ter feito coisas horríveis nas vidas anteriores, para ter de sofrer assim na de agora. O meu carma, o meu Destino predestinado, parece ser mais duro do que o de qualquer outra pessoa.

Não é assim — replicou ele —, e acontece um engano muito comum, quando as pessoas pensam que, devido a terem dificuldades nesta vida, estão obrigatoriamente sofrendo pelos passados de vidas anteriores. Se você aquecer o metal em uma fornalha, faz isso porque o metal errou e tem de ser punido, ou o faz para melhorar as qualidades do material?

Fitou-me, com dureza, e acrescentou:

            Entretanto, o seu guia, o Lama Mingyar Dondup, falará sobre isso com você. Tenho de falar-lhe apenas do futuro.

O Oráculo tocou uma sineta de prata, e um criado entrou, em silêncio. Seguindo até nós, colocou uma mesa muito baixa entre mim e o Oráculo do Estado e sobre a mesa depositou uma tigela ornamental de prata forrada, ao que parecia, por um tipo de porcelana. Dentro da tigela, brilhavam brasas de carvão, que emitiam um vermelho vivo, enquanto o monge-criado a fazia balançar no ar, antes de colocá-la diante do Oráculo. Com uma palavra murmurada, cujo significado não percebi, ele colocou uma caixa de madeira com muitos entalhes à direita da tigela, e partiu tão silenciosamente como viera. Permaneci imóvel, pouco à vontade, imaginando o motivo pelo qual tudo isso tinha de acontecer comigo. Todos me diziam que eu ia levar uma vida difícil; e pareciam deleitar-se com isso. Agruras eram agruras, embora aparentemente eu não estivesse tendo de pagar pelos pecados de alguma vida anterior. Devagar, o Oráculo estendeu a mão à frente, abrindo a caixa. Com uma pequena colher de ouro, tirou um pó fino, que espargiu sobre as brasas vivas.

A sala encheu-se de um nevoeiro azul e fino; notei que meus sentidos fraquejavam, a visão escurecia. De uma distân­cia incomensurável, pareceu-me ouvir o bimbalhar de um grande sino. O som se aproximou mais, a intensidade aumentou até que julguei que minha cabeça ia estourar. A visão clareou, eu observei atentamente, enquanto uma coluna de fumaça se erguia da tigela, ininterrupta. Dentro da fumaça, vi movimentos, movimentos que se aproximavam e me engoliam, de modo que passei a fazer parte deles. De alguma parte, para além de minha compreensão, a voz do Oráculo do Estado chegou a meus ouvidos, falando em tom monótono. Mas eu não neces­sitava de sua voz. Estava vendo o futuro, vendo-o de modo tão vívido quanto ele. Em certo ponto do Tempo, afastei-me e observei os acontecimentos de minha vida, que se desenrolavam diante de mim como se registrados em uma película de movi­mento constante. Minha infância, os fatos de minha vida, o caráter feroz de meu pai — tudo surgia à minha frente. Mais uma vez eu me achava sentado diante da grande Lamaseria em Chakpori. Mais uma vez senti as rodas duras da Montanha de Ferro, enquanto o vento me atirava do telhado da Lama­seria, com força capaz de quebrar ossos, pela encosta da mon­tanha. A fumaça rodopiou e os quadros, o que chamamos "o Registro Akáshico", prosseguiram. Voltei a ver minha inicia­ção, cerimônias secretas envoltas em fumaça, quando eu ainda não fora iniciado. Nos quadros, vi quando partia na trilha com­prida e solitária, para Chungking, na China.

Uma estranha máquina girava e se sacudia no ar, levantando-se e caindo sobre os penhascos íngremes de Chungking. E eu... eu... estava nos controles da mesma! Mais tarde, vi revoadas de máquinas assim, com o Sol Crescente do Japão nas asas. Das máquinas caíam manchas negras, que iam ter à terra e explodiam em chamas e fumaça. Corpos estraçalhados eram atirados ao ar, e por algum tempo chovia sangue e fragmentos humanos do céu. Senti-me de coração pesado, aturdido, enquanto os quadros se moviam e me mostravam a mim mesmo, sendo torturado pelos japoneses. Vi minha vida, vi as difi­culdades, a amargura. Mas o maior pesar de todos foi a traição e o mal de algumas pessoas no mundo ocidental que, como percebia, se dedicavam a destruir o trabalho pelo bem, tendo a única explicação de sua inveja. Os quadros continuavam a se mover, e eu vi o curso provável de minha vida, antes de vivê-la.

Como bem sabia, as probabilidades podem ser previstas do modo mais preciso. Apenas os detalhes de menor importância são diferentes, às vezes. As configurações astrológicas da pessoa determinam o limite do que se pode ser, e se pode suportar, assim como o controlador de um motor pode determinar suas velocidades mínima e máxima. "É uma vida dura para mim, não há dúvida!" pensei. Depois, saltei de tal modo que quase caí da almofada; u'a mão fora posta em meu ombro. Ao me voltar, vi o rosto do Oráculo do Estado, que agora estava sen­tado atrás de mim. Sua expressão era da maior compaixão, de pesar pelo caminho difícil que eu tinha à frente.

Você é muito psíquico, Lobsang, disse. Normalmente, tenho de descrever esses quadros para que sejam apreendidos. O Mais Precioso, como seria de esperar, está inteiramente certo.

Tudo que desejo respondi é permanecer aqui, em paz. Por que motivo haveria de querer ir para o mundo ocidental, onde eles pregam tão ardorosamente a religião...e cortam a garganta da pessoa, pelas costas?

Há uma Tarefa, meu amigo, disse o Oráculo tarefa que precisa ser cumprida. Você pode cumpri-la, a despeito de todas as oposições. Daí o preparo especial e difícil que está recebendo.

Isso me encheu da maior tristeza, toda essa conversa sobre dificuldades e Tarefas. Tudo quanto eu queria era paz e tranqüilidade, e alguma diversão inofensiva, de vez em quando.

            Agora disse o Oráculo chegou o momento de regressar ao seu guia, pois ele tem muito a lhe dizer, e o está esperando.

Pus-me em pé, e fiz u'a mesura, antes de me voltar e deixar a sala. Lá fora, o enorme monge-policial esperava para levar-me ao Lama Mingyar Dondup. Juntos seguimos, lado a lado, e eu pensei em um livro de ilustrações que vira, no qual um elefante e uma formiga seguiam pela trilha do mato, lado a lado...

            Bem, Lobsang! disse o lama, quando entrei em sua sala. Espero que não esteja abatido demais com tudo que viu.

Sorria, fazendo-me um gesto para que me sentasse.

            Alimento para o corpo, primeiro, Lobsang, e depois alimento para a Alma, exclamou, rindo, enquanto tocava a sineta de prata para que o monge-criado trouxesse nosso chá.

Evidentemente, eu chegara a tempo! As regras das lamaserias determinavam que ninguém devia olhar ao redor enquanto comia e que os olhos da pessoa não se deviam desviar, dedicando toda a atenção à Voz do Leitor. Ali, na sala do Lama Mingyar

Dondup, não havia Leitor empoleirado lá em cima, lendo em voz alta os Livros Sagrados, a fim de afastar nossos pensamentos de coisas comuns tais como comida. Tampouco havia Inspetores severos, prontos a saltar sobre nós pela menor infração às regras. Espiei pela janela, vendo os Himalaias que se esten­diam sem fim à minha frente, pensando que breve chegaria a época em que eu não mais os poderia fitar. Eu recebera vis­lumbres do futuro — o meu futuro — e receava as coisas que vira claramente, mas que haviam estado, em parte, veladas na fumaça.

Lobsang! — disse meu guia. — Você viu muito, mas muito mais ficou oculto. Se achar que não pode enfrentar o futuro planejado, nesse caso aceitaremos o fato... embora com tristeza... e você poderá permanecer no Tibete.

Senhor! — respondi. — Certa feita me dissestes que o homem que parte para uma das Trilhas da Vida, mas que fraqueja e volta, não é um homem. Eu irei à frente, mesmo sabendo das dificuldades que encontrarei.

Ele sorriu, assentindo com aprovação.

            Como esperava — afirmou —, você terá êxito, no fim.

            Senhor! — perguntei. — por que motivo as pessoas não vêm a este mundo com um conhecimento do que foram, nas vidas passadas, e o que deverão fazer, nesta vida? Por que deve haver o que chama "Conhecimento Oculto"? Por que não podemos nós todos saber tudo?

O Lama Mingyar Dondup ergueu as sobrancelhas e riu.

            Você, por certo, quer saber muita coisa! — comentou. — E sua memória está falhando, também, porque recentemente eu lhe disse que nós, de modo normal, não nos lembramos das vidas passadas, porque isso seria aumentar nosso encargo neste mundo. Como dizemos, "a Roda da Vida gira, trazendo ri­queza a um e pobreza a outro. O mendigo de hoje é o príncipe de amanhã". Se não tivermos conhecimento de nossas vidas passadas, começamos tudo de novo, sem procurar tira- partido do que fomos em nossa última encarnação.

            Mas — perguntei — e o Conhecimento Oculto? Se todas as pessoas tivessem esse conhecimento, todas estariam melhor, progrediriam mais depressa.

O meu guia sorriu, compadecido.

            Não é tão simples assim! — respondeu.

Por momentos, permaneceu sentado, silente, e depois voltou a falar.

            Existem poderes dentro de nós, dentro do controle de nosso Eu Maior, imensuravelmente maiores do que tudo que o Homem já conseguiu fazer no mundo material, no mundo físico. O Homem Ocidental, de modo particular, viria a abusar de tais Poderes, como os que podemos controlar, pois tudo com que ele se importa é o dinheiro. O Homem Ocidental só sabe fazer duas perguntas: você pode provar? e... o que ganho com isso?

Ele riu, com ar bastante juvenil, e acrescentou:

            Eu sempre me divirto muito, quando penso na vasta quantidade de mecanismo e aparelhagem que o Homem usa para enviar uma mensagem "sem fio" pelos oceanos. "Sem fios" é a última expressão que eles deviam usar, pois a aparelhagem consiste de muitas milhas de fios. Mas aqui, no Tibete, nossos lamas enviam mensagens telepáticas, sem qualquer apa­relhagem. Entramos no plano astral e viajamos no espaço e no tempo, visitando outras partes do mundo, e outros mundos. Podemos levitar... erguer cargas imensas, pela aplicação de poderes que de um modo geral não são conhecidos. Nem todos os homens são puros, Lobsang, e tampouco o manto de um monge sempre encobre um homem santo. Pode haver um homem mau em uma lamaseria assim como um santo pode ser encon­trado na prisão.

Eu o fitei com certa perplexidade.

            Mas se todos os homens soubessem disso, por certo todos seriam bons, não é? — perguntei.

O lama olhou para mim com pesar, ao responder:

            Nós mantemos o Conhecimento Secreto, para que ele continue secreto, a fim de que a Humanidade seja salvaguardada. Muitos homens, em especial os do Ocidente, pensam apenas em dinheiro e no poder sobre os demais. Como foi previsto pelo Oráculo e outros, esta nossa terra será mais tarde invadida e fisicamente conquistada por um culto estranho, um culto que não dedica qualquer pensamento ao homem comum, mas existe unicamente para aumentar o poder de ditadores, ditadores que escravizarão metade do mundo. Houve altos lamas que foram torturados até a morte pelos russos, porque não divulgavam conhecimentos proibidos. O homem comum, Lob­sang, que tivesse repentinamente acesso ao conhecimento proi­bido, reagiria da seguinte maneira: em primeiro lugar, recearia o poder que adquirira. Depois, ocorrer-lhe-ia que tinha o meio de tornar-se mais rico, mais do que em seus sonhos mais alouca­dos. Faria experiências, e o dinheiro lhe viria. Com poder e dinheiro cada vez maior, desejaria ainda mais dinheiro e poder. Um milionário jamais se satisfaz com um milhão, mas quer mui­tos milhões a mais! É dito que, nos não-evoluídos, o poder abso­luto corrompe. O Conhecimento Oculto confere poder absoluto.

Uma grande luz se fez para mim; eu sabia como o Tibete podia ser salvo! Saltando, agitado, exclamei:

            Nesse caso, o Tibete está salvo! O Conhecimento Oculto nos salvará da invasão!

Meu guia fitava-me com compaixão.

            Não, Lobsang, — respondeu, com tristeza — nós não usamos os Poderes para coisas assim. O Tibete será perseguido, quase aniquilado, mas nos anos vindouros ele se levan­tará outra vez, tornando-se maior, mais puro. O país será purificado da escória, na fornalha da guerra, exatamente como, mais tarde, todo o mundo o será.

Dito isso, dirigiu-me um olhar de esguelha.

            Tem de haver guerra, você sabe, Lobsang! — disse, falando baixo. — Se não houvesse guerras, a população do mundo tornar-se-ia grande demais. Se não houvesse guerras, não haveria pragas. As guerras e a doença regulam a popu­lação do mundo, e proporcionam oportunidades ao povo da Terra... e de outros mundos... para fazer o bem aos outros. Sempre haverá guerras, até que a população do mundo possa ser controlada de algum outro modo.

Os gongos nos chamavam para o serviço noturno. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, pôs-se em pé.

            Venha, Lobsang, — disse — somos hóspedes aqui, e devemos demonstrar respeito aos nossos anfitriões, comparecendo ao serviço.

Saímos da sala, passando ao pátio. Os gongos chamavam com insistência — e soavam por mais tempo do que teria ocor­rido em Chakpori. Seguimos por nosso caminho, surpreendentemente devagar até o Templo. Eu estava pensando na len­tidão de nossos passos, e ao olhar ao redor vi homens muito idosos, e os enfermos, andando com dificuldade pelo pátio, atrás de nós. Meu guia sussurrou-me:

            Seria uma cortesia, Lobsang, se você fosse para lá e se sentasse com aqueles chelas.

Assentindo, dei a volta pelas paredes internas do Templo, até chegar ao ponto onde os cheias da Lamaseria do Oráculo do Estado estavam sentados. Eles me olharam com curiosidade, quando me sentei ao lado deles. De modo quase imperceptível, quando os Inspetores não estavam olhando, eles se aproxima­ram, até me cercarem.

            De onde vens? perguntou um rapaz, que parecia ser o chefe.

            Chakpori, respondi, em cochicho.

Você é o camarada mandado por O Mais Precioso? sussurrou outro.

Sim cochichei, em resposta —, fui mandado ver o Oráculo, ele me disse...

SILÊNCIO! berrou uma voz, por trás de mim. Nem um som mais de vocês!

Vi que o homenzarrão se afastava.

            Bolas! disse o menino. Não dê atenção a ele, o latido que tem é pior do que a mordida.

Nesse exato instante o Oráculo do Estado e um Abade apareceram, por pequena porta lateral, e o serviço começou.

Logo estávamos seguindo outra vez para fora. Em com­panhia dos outros, fui à cozinha, para encher novamente minha bolsa de couro com cevada, e obter chá. Não houve oportunidade para conversar; monges de todos os graus estavam ali, travando uma discussão final, antes de se recolherem para dormir. Segui para o quarto que me fora destinado, envolvi-me no manto e me deitei para dormir. O sono não veio depressa, porém. Fitei a escuridão purpúrea, pontilhada pelas lâmpadas de manteiga, de cor dourada. Lá ao longe, os Himalaias eternos estendiam dedos rochosos para o céu, como em súplica aos Deuses do Mundo. Raios brancos e vívidos de luar rebrilha­vam em meio às falhas das montanhas, desaparecendo e rebri­lhando novamente, à medida que a lua subia no céu. Não havia qualquer brisa aquela noite, as bandeiras de oração pendiam inertes dos mastros. Uma nuvem pequena, quase um farrapo, flutuava brilhantemente sobre a Cidade de Lhasa. Eu me voltei, e imergi num sono sem sonhos.

Às primeiras horas da manhã, despertei com um sobressalto de susto; dormira demais, e estaria atrasado para o serviço matutino. Pondo-me em pé com um salto, enverguei apressada­mente o manto e parti para a porta. Em disparada pelo corredor deserto, cheguei ao pátio e fui ter diretamente aos braços de um dos Homens de Kham.

            Aonde vais? sussurrou ele, com ferocidade, enquan­to me segurava com mãos de ferro.

            Ao serviço matutino, — respondi. — Devo ter dormido demais.

Ele riu e me soltou.

Oh! — disse. — Tu és um visitante. Aqui não existe serviço matutino. Volta, e vai dormir outra vez.

Não há serviço matutino? — gritei. — Ora, todos têm serviço religioso de manhã!

O monge-policial devia estar de bom humor, pois deu-me uma resposta educada:

            Nós temos homens idosos aqui, alguns que se acham enfermos, e por esse motivo dispensamos o serviço matutino. Vai e descansa um pouco em paz.

Deu-me um tapa na cabeça, em gesto que para ele era gentil, e que a mim pareceu o ribombo e estremecimento de um trovão, empurrando-me de volta para o corredor. Voltando-se, retomou a caminhada pelo pátio, as passadas pesadas fazendo "bonk! bonk!", o cacete pesado fazendo "thunk! thunk!" quan­do batia no chão, a cada dois passos. Segui em disparada pelo corredor, e em questão de minutos dormia outra vez.

Mais tarde, naquele dia, fui apresentado ao Abade e a dois dos lamas superiores. Eles me interrogaram com atenção, fa­zendo perguntas a respeito de minha vida no lar, ou o que recordava de vidas anteriores, minha relação com meu guia, o Lama Mingyar Dondup. Finalmente, os três se puseram em pé, com esforço, seguindo rumo à porta.

            Venha — disse o último, voltando para mim o dedo dobrado.

Espantado, andando como alguém ofuscado, segui com humildade. Eles prosseguiram lentamente, saindo pela porta, e andando com passos letárgicos pelo corredor. Eu os acompanhava, quase tropeçando em meus próprios pés, no esforço por andar devagar. Assim nos arrastamos, passando por quar­tos abertos onde trapas e cheias fitavam com curiosidade nossa passagem lenta. Senti as faces arderem de embaraço, por estar na "cauda" dessa procissão; à sua cabeça, o Abade seguia de­vagar, com a ajuda de dois bastões. Em seguida, vinham dois velhos lamas, tão decrépitos e encarquilhados que mal conse­guiam acompanhar o Abade. E eu, fechando a retaguarda, quase não conseguia andar na mesma lentidão.

Finalmente, chegamos a um pequeno umbral, em muralha distante. Paramos, enquanto o Abade procurava uma chave e resmungava baixinho. Um dos lamas adiantou-se para ajudá-lo, e com o tempo uma porta foi aberta, com rangido de dobradiças em protesto. O Abade entrou, acompanhado pelo primeiro lama e depois o outro. Ninguém me disse coisa alguma, de modo que entrei também. Um velho lama fechou a porta, após eu ter en­trado. À minha frente, havia uma mesa bastante comprida, cheia de objetos velhos e cobertos de poeira. Mantos antigos, antigas Rodas de Oração, velhas tigelas e fieiras variadas de Miçangas de Oração. Espalhadas sobre a mesa estavam algumas Caixas de Encanto, diversos outros objetos que, à primeira vista, eu não conseguia identificar.

            Hmmmm. Hmmmm. Venha cá, meu menino! — orde­nou o Abade.

Segui com relutância, e ele agarrou meu braço esquerdo, com a mão ossuda. A sensação que tive era como se houvesse sido agarrado por um esqueleto!

-— Hmmmm. Hmmmm. Menino! Hmmmm. Qual destes objetos e artigos esteve em sua posse, durante uma vida passada, se é que há algum?

Fez-me percorrer o comprimento da mesa, depois me voltou para o outro lado e disse:

            Hmmmm. Mmmmm. Se você acha que algum artigo foi seu, Hmmmm, apanhe-o e Hmmmm, traga-o a mim.

Sentou-se com esforço, parecendo não se interessar mais por minhas atividades. Os dois lamas sentaram-se com ele, e não disseram mais uma só palavra.

"Bem!" eu estava pensando. "Se os três velhos querem brincar assim... está bem, vou fazer o que desejam!" A psicometria, naturalmente, é a coisa mais simples de todas. Segui devagar, com a mão esquerda estendida de palma para baixo, sobre os diversos artigos. Com certos objetos, experimentei uma forma de comichão no centro da palma, e um leve estremeci­mento ou tremor que se estendia pelo braço. Apanhei uma Roda de Oração, uma tigela velha e surrada, e uma fieira de miçan­gas. Depois, repeti a viagem pelo lado da mesa comprida. Ape­nas um outro artigo fez com que a palma de minha mão comichasse e meu braço formigasse; um velho manto esfarrapado, na última etapa de deterioração. Era um manto açafrão de alto dignitário, a cor quase desfeita pela idade, o material apodre­cido e transformando-se em pó ao contato. Com cuidado, eu o recolhi, receando que se desintegrasse entre minhas mãos cuida­dosas. Cautelosamente, levei-o ao velho Abade, depositando-o a seus pés e regressando para apanhar a Roda de Oração, a tigela em mau estado e a fieira de miçangas. Sem uma palavra, o Aba­de e os dois lamas examinaram os artigos e compararam certos sinais, ou marcas secretas, com os de um livro velho e negro que "o Abade tirara do manto. Por algum tempo, eles permaneceram sentados, olhando uns para os outros, as cabeças assentindo so­bre pescoços encarquilhados, os cérebros antigos quase rangendo com o esforço por pensar.

            Harrumph! Arrrf! — resmungou o Abade, resfolegando como um iaque esgotado pelo trabalho. — Mmmmmnnn. É real­mente ele. Hmmmn. Um feito notável. Mmmmm. Vá ao seu guia, o Lama Mingyar Dondup, meu rapaz, e Hmmm, diga a ele que ficaríamos honrados com sua presença. Você, meu filho, não precisa voltar. Harrumph! Arrrf!

Eu me voltei e saí correndo da sala, satisfeito por estar livre daquelas múmias vivas, cuja presença ressecada estava tão distante da humanidade cálida do Lama Mingyar Dondup. Em disparada, ao passar por uma esquina, consegui deter-me a poucos centímetros de meu guia. Ele riu e disse:

            Oh! Não fique tão surpreso, eu também recebi a men­sagem. .

Dando-me um tapa amigo nas costas, apressou-se rumo à sala onde estavam o Abade e os dois velhos lamas. Eu segui para o pátio, e ali chutei uma ou duas pedras, ociosamente.

            Tu és o camarada cuja Encarnação está sendo Reco­nhecida? — perguntou uma voz, atrás de mim.

Voltei-me e vi um chela que me fitava com atenção.

            Eu não sei o que eles estão fazendo — respondi. — Tudo que sei é que fui levado pelos corredores, para poder apa­nhar algumas de minhas coisas antigas. Qualquer um pode fazer isso!

O menino riu, bonachão.

            Vocês, os homens do Chakpori, sabem o que fazem — disse —, ou não estariam naquela Lamaseria. Ouvi dizer que você foi alguém grande, em vida passada. Você deve ter sido, para que o próprio Oráculo lhe dedicasse meio dia.

Deu de ombros, fingindo horror, e observou:

            É melhor ter cuidado. Antes de saber o que está acontecendo, eles o terão Reconhecido, e feito de você um Abade. Depois, você não poderá brincar mais com outros homens de Chakpori.

De uma porta na extremidade distante do pátio surgiu a forma de meu guia. Com rapidez, veio em nossa direção. O chela com quem eu estivera conversando fez mesura profunda, em saudação humilde. O lama sorriu para ele e falou com bondade, como sempre:

            Temos de seguir, Lobsang! — disse para mim. — Logo a noite cairá, e não queremos viajar pela escuridão.

Juntos, seguimos para os estábulos, onde um monge-palafreneiro estava à espera, com nossos cavalos; Com relutância, montei e acompanhei meu guia na trilha pelos salgueiros. Saco­lejávamos em silêncio, pois eu jamais conseguiria conversar de modo inteligente quando montado, uma vez que todas as mi­nhas energias eram dedicadas a permanecer na sela. Para meu espanto, não voltamos para Chakpori, mas prosseguimos rumo à Potala. Devagar, os cavalos subiram a Estrada de Degraus. Por baixo de nós, o Vale já submergia nas sombras da noite. Com satisfação, desmontei, seguindo com pressa para a Potala, já minha conhecida, à procura de comida.

Meu guia esperava por mim, quando fui para meu quarto após o jantar.

            Entre comigo, Lobsang, — ordenou.

Entrei e, à convite dele, sentei-me.

Bem! — disse ele. — Você deve estar imaginando o que se passou.

Oh! Conto ser Reconhecido como uma Encarnação! — respondi, desembaraçadamente. — Um dos homens e eu estivemos falando sobre isso, na Lamaseria do Oráculo do Estado, quando o senhor me chamou!

Bem, isso é ótimo para você, — disse o Lama Mingyar Dondup. — Agora, precisamos de algum tempo para examinar as coisas. Você não precisa ir ao serviço desta noite. Sente-se de modo mais confortável e ouça, e não continue a me inter­romper. A maioria das pessoas vem a este mundo a fim de apren­der as coisas — começou meu guia. — Outras vêm para que possam ajudar aos que necessitam, ou completar alguma tarefa altamente importante.

Dedicou-me um olhar severo, para ter certeza de que eu prestava atenção, e prosseguiu:

            Muitas religiões falam de um Inferno, o lugar de cas­tigo, ou de expiação pelos pecados da pessoa. O inferno é aqui, neste mundo. Nossa vida verdadeira é no Outro Mundo. Vimos aqui para aprender, pagar pelos erros que cometemos em vidas anteriores ou... como já disse... tentar a realização de alguma tarefa de alta importância. Você está aqui para executar uma tarefa relacionada com a aura humana. As suas "ferramentas" serão uma percepção psíquica excepcionalmente sensível, uma capacidade grandemente intensificada de ver a aura humana, e todo o conhecimento que lhe pudermos dar, com referência a todas as artes ocultas. O Mais Precioso decretou que todos os meios possíveis sejam usados para aumentar suas capacidades e talentos. O ensino direto, as experiências verdadeiras, o hipno­tismo, vamos usar tudo para que você obtenha o máximo de conhecimento dentro do menor tempo possível.

            É o inferno, não há dúvida! exclamei, tomado de tristeza.

O lama riu de minha expressão.

            Mas este Inferno é apenas o degrau para uma vida mui­to melhor, respondeu. Aqui, conseguimos livrar-nos de algumas das faltas mais desprezíveis. Aqui, com alguns anos de vida na Terra, livramo-nos de faltas que poderão ter-nos per­seguido no Outro Mundo, por faixas ilimitadas de tempo. Toda a vida neste mundo não passa de um piscar de olhos, em com­paração à do Outro Mundo. A maioria das pessoas no Ocidente prosseguiu pensa que quando alguém "morre" pode ficar sentado em uma nuvem, tocando harpa. Outras julgam que quando alguém deixa este mundo, passando ao próximo, adqui­re um estado místico de inconsciência, e gostam da idéia.

Ele riu, e prosseguiu:

            Se conseguíssemos fazê-los comprender, ao menos, que a vida após a morte é mais verdadeira do que qualquer coisa na Terra! Tudo, neste mundo, consiste de vibrações, as vibrações

de todo o mundo... e tudo dentro do mundo... pode ser comparado a uma oitava de uma escala musical. Quando passamos ao Outro Lado da Morte, a "oitava" sobe mais na escala.

Meu guia parou, tomou-me a mão e esfregou os nós de meus dedos no soalho.

            Isto, Lobsang, disse é pedra, as vibrações às quais chamamos pedra.

Voltou a tomar minha mão e esfregou meus dedos em meu manto.

            Isto — exclamou é a vibração que indica a lã. Se subirmos com tudo a escala de vibrações, ainda assim mantemos os graus relativos de dureza e maciez. Assim, na Vida após a Morte, a verdadeira Vida, podemos possuir coisas, exatamente como neste mundo. Você compreendeu isso com clareza? — Perguntou.

Era tudo obviamente claro, eu sabia essas coisas há muito tempo. O lama interrompeu meus pensamentos.

            Sim, sei que tudo isto é conhecimento comum aqui, mas se vocalizarmos esses "pensamentos impronunciados" poderemos torná-los mais claros em sua mente. Mais tarde — asseve­rou — você vai viajar para as terras do mundo ocidental. Lá, encontrará muitas dificuldades, provenientes das religiões oci­dentais.

Ele sorriu com certa tristeza, e observou:

            Os cristãos nos chamam pagãos. Em sua Bíblia, está escrito que "Cristo vagueou pelo deserto". Em nossos registros, está revelado que Cristo peregrinou pela Índia, estudando as religiões indianas, e depois veio a Lhasa, estudando no Jo Kang, sob a direção dos nossos sacerdotes mais destacados da época. Cristo formulou uma boa religião, mas o cristianismo praticado hoje não é a religião ensinada por Cristo.

Meu guia fitou-me com ar um tanto severo, afirmando:

            Eu sei que você fica um pouco entediado com isso, pensando que eu falo só por falar, mas eu viajei por todo o mundo ocidental, e é meu dever adverti-lo quanto ao que vai enfrentar. O melhor meio de fazer isso é falar com você sobre as religiões deles, pois sei que você tem uma memória eidética.

Não pude deixar de corar, pois estivera realmente pensan­do: "Palavras em demasia!".

Lá fora, nos corredores, os monges seguiam em direção ao Templo, para o serviço noturno. Sobre o telhado os trombeteiros fitavam o Vale e emitiam as últimas notas do dia que ter­minava. Ali, à minha frente, meu guia, o Lama Mingyar Dondup, prosseguiu em sua preleção:

            Existem duas religiões básicas no Ocidente, porém são inúmeras as subdivisões. A religião judaica é antiga e tolerante. Você não encontrará problemas, não terá dificuldades causadas pelos judeus. Há séculos eles vêm sendo perseguidos, e têm grande simpatia e compreensão pelos outros. Os cristãos não se mostram tão tolerantes, a não ser nos domingos. Não vou dizer coisa alguma sobre as crenças individuais, porque você lerá sobre elas, mas vou-lhe dizer como as religiões começaram.

"Nos primeiros dias de vida sobre a Terra — disse o lama — as pessoas se achavam, inicialmente, em grupos pequenos, tribos muito pequenas. Não havia leis, nenhum código de comportamento. A força era a lei única; uma tribo mais forte e feroz fazia a guerra contra as mais fracas. Ao correr do tempo, surgiu um homem mais forte e mais sábio. Ele compreendeu que sua tribo seria a mais forte, se fosse organizada. Fundou uma religião e um código de conduta. "Crescei e multiplicai-vos", ordenou, sabendo que quanto mais crianças nascessem, tanto mais forte sua tribo se tornaria. "Honrai vosso pai e vossa mãe", ordenou, sabendo que se desse autoridade aos pais sobre os filhos, teria autoridade sobre os primeiros. Sabendo, também, que se conseguisse convencer os filhos de suas obrigações para com os pais, seria mais fácil impor a disciplina. "Não comete­reis adultério", trovejou o Profeta dessa época. Sua ordem verdadeira era que a tribo não devia ser "adulterada" com o sangue do membro de outra tribo, pois em casos assim as fidelidades ficariam divididas. Com o correr do tempo, os sacerdotes ha­viam descoberto que havia alguns que nem sempre obedeciam aos ensinamentos religiosos. Depois de muito pensar, depois de muita discussão, esses sacerdotes prepararam um plano de re­compensa e castigo. "Céu", "Paraíso", "Valhala"... podemos dar o nome que quisermos... para aqueles que obedeciam aos sacerdotes. O fogo do inferno e a condenação, com torturas infi­nitas, para quem desobedecesse.

Quer dizer que o senhor se opõe às religiões organiza­das no Ocidente? — perguntei.

Não, certamente que não, — respondeu meu guia. — Há muitos que se sentem perdidos, a menos que possam sentir ou imaginar um Pai onisciente que os vigia, tendo um Anjo- Secretário pronto a anotar qualquer ato bom, bem como os atos maus! Nós somos Deus para as criaturas microscópicas que habitam em nossos corpos, e as criaturas ainda menores que habitam as moléculas dela! Quando à oração, Lobsang, você ouve com freqüência as orações das criaturas que existem em suas moléculas?

Mas o senhor disse que a oração era eficaz! — retor­qui, com algum espanto.

Sim, Lobsang, a oração é muito eficaz, se orarmos para nosso próprio Eu Maior, a parte verdadeira de nós que está em outro mundo, a parte que controla nossos "cordões de fanto­che". A oração é muito eficaz, se obedecermos às regras simples e naturais que a tornam eficaz.

Sorriu para mim, ao prosseguir.

O homem é um simples fragmento minúsculo, em um inundo conturbado. O homem só está a cômodo quando se sente seguro, em alguma forma de "Abraço Materno". Para aqueles no Ocidente, sem preparo na arte de morrer, o último pensa­mento, o último grito, é "Mamãe!" Um homem inseguro de si mesmo, embora procure dar uma aparência de confiança, suga um charuto ou cigarro, exatamente como um bebê sugará uma chupeta. Os psicólogos concordam em que o hábito de fumar é apenas uma reversão aos traços da infância inicial, onde a crian­cinha extraia a nutrição e a confiança de sua mãe. A religião é um fator de reconforto. O conhecimento da verdade da vida... e da morte... é de reconforto ainda maior. Somos como a água, quando sobre a Terra; como o vapor, quando passamos pela "morte"; e voltamos a condensar-nos, formando água, quando renascemos mais uma vez neste mundo.

Senhor! — exclamei. — Acha que os filhos não devem honrar os pais?

Meu guia fitou-me, com certa surpresa.

            Ora, essa, Lobsang! Os filhos, naturalmente, devem respeitar os pais... enquanto os pais o merecerem. Os pais demasiadamente dominadores não devem ter licença de arruinar os filhos, porém, e um "filho" adulto certamente tem a primei­ra responsabilidade para com o cônjuge. Aos pais não deve ser permitido tiranizar e impor vontade aos filhos adultos. Permi­tir que os pais ajam assim é prejudicar tanto os mesmos quanto a si próprio. Isso cria uma dívida que os pais terão de pagar, em alguma outra vida.

Pensei nos meus. Meu pai severo e áspero, um pai que jamais tinha sido um "pai" para mim. Minha mãe, cujo pen­samento principal era a vida social. Depois, pensei no Lama Mingyar Dondup, que era mais do que mãe e pai para mim, a única pessoa que me demonstrara bondade e amor, em todos os momentos.

Um monge-mensageiro entrou apressadamente, fazendo profunda reverência.

            Honrado Senhor Mingyar, — disse, com respeito. — Recebi ordens de transmitir os respeitos e cumprimentos de O Mais Precioso e pedir que tenha a bondade de ir ter com Ele. Posso levá-lo a Ele, Senhor?

Meu guia pôs-se em pé e acompanhou o mensageiro. Eu saí, subindo ao telhado da Potala. Pouco mais alta, a Lamaseria Médica de Chakpori se apresentava na escuridão da noite. A meu lado, uma Bandeira de Oração tremulava débil­mente em seu mastro. De pé, numa janela próxima, vi um velho monge, ocupado em fazer girar sua Roda de Orações, cujo estrépito era um som alto no silêncio da noite. As estrelas se estendiam por cima, em procissão infinita, e eu fiquei ima­ginando se nós parecíamos assim aos olhos de alguma outra criatura, em alguma parte.

 

Estávamos no tempo de Logsar, o Ano Novo Tibetano. Nós, cheias — e também os trapas —, tínhamos estado ocupados por algum tempo, preparando imagens de manteiga. No ano anterior não nos tínhamos dado a esse trabalho, e isso ocasionara certo mal-estar; outras lamaserias haviam declarado (e corretamente!) que nós, de Chakpori, não tínhamos o tempo ou o interesse para tais atividades infantis. Aquele ano, então, por ordem de O Mais Precioso, tivemos de fazer imagens de manteiga e entrar no torneio. Nosso esforço foi modesto, com­parado ao de algumas lamaserias. Sobre uma estrutura de madeira, com perto de vinte palmos de altura, por trinta de comprimento, nós modelávamos em manteiga colorida diversas cenas tiradas dos Livros Sagrados. Nossas figuras eram intei­ramente tridimensionais, e contávamos que, quando vistas à luz bruxuleante das lâmpadas de manteiga, apresentariam uma ilu­são de movimento.

Sua Santidade em pessoa, bem como todos os lamas de maior graduação, examinavam as exposições todos os anos, e muito louvor era dado aos vitoriosos. Após a época de Logsar, a manteiga era derretida e utilizada nas lâmpadas, durante o ano. Enquanto eu trabalhava — ainda tinha alguma habilidade na modelagem — pensava em tudo que aprendera nos últi­mos meses. Certas coisas a respeito da religião ainda me intri­gavam, e decidi falar com meu guia, o Lama Mingyar Dondup, a respeito das mesmas, na primeira oportunidade que tivesse, mas, agora, a escultura em manteiga era a ocupação! Eu me, abaixei e raspei uma carga nova de manteiga colorida, subindo cuidadosamente no tapume, de modo a poder modelar a orelha em proporções de Buda. À minha direita, dois jovens chelas travavam uma guerra de manteiga, apanhando punhados da mesma, modelando-os mais ou menos em forma de bola, e depois atirando o projétil pegajoso sobre o "inimigo". Divertiam-se à grande, mas por azar um monge-inspetor surgiu, por trás de uma coluna de pedra, para ver qual era a causa de tanto alarido. Sem pronunciar uma só palavra, ergueu ambos os me­ninos, um com a mão direita e o outro com a esquerda, atirando-os dentro de uma dorna com manteiga quente!

Eu me voltei, e prossegui trabalhando. A manteiga mistu­rada com fuligem de lâmpada formava sobrancelhas muito apropriadas. A ilusão de vida já estava presente na figura. "Este é o Mundo de Ilusão, afinal de contas", estava pensando. Desci, seguindo pelo chão para poder olhar melhor o trabalho. O Mestre de Artes sorriu para mim; talvez eu fosse seu aluno favorito, pois gostava de modelar e pintar, e me esforçava real­mente por aprender com ele.

            Estamos indo bem, Lobsang, disse êle, em tom agradável. Os Deuses parecem vivos.

Afastou-se também, para poder ordenar modificações em outra parte do cenário, e eu pensei: "Os Deuses parecem vivos! Existem Deuses? Por que nos ensinam a respeito deles, se não existe um só? Preciso perguntar a meu guia".

Imerso em pensamentos, raspei a manteiga das mãos. Ao canto, os dois cheias que haviam sido jogados na dorna de manteiga quente procuravam limpar-se, esfregando os corpos com areia escura e fina, e tinham um aspecto muito embaraçado, enquanto o faziam. Eu dei uma risada, e me voltei para ir em­bora. Um cheia atarracado andava a meu lado e observou:

            Até os Deuses devem ter rido disso!

"Até os Deuses...Até os Deuses...Até os Deuses", e esse refrão se repetia em meu espírito, sincronizado com mi­nhas passadas. Os Deuses, existiam Deuses! Desci para o templo e me instalei, à espera de que começasse o serviço reli­gioso conhecido.

            Ouçam as Vozes de nossas Almas, todos vocês que vagueiam. Este é o Mundo de Ilusão. A Vida é apenas um sonho. Todos os que nascem têm de morrer.

A voz do sacerdote prosseguia em sua récita, nas palavras conhecidas, palavras que agora despertavam minha curiosidade.

            O terceiro bastão de incenso é aceso, para chamar um fantasma errante, para que possa ser guiado.

"Não é ajudado pelos Deuses", eu pensava, "mas guiado por seus semelhantes, por que não pelos Deuses? Qual o mo­tivo pelo qual orávamos ao nosso Eu Maior e não a um Deus?" O resto do serviço não tinha qualquer atrativo, nenhum significado para mim. Fui despertado de meus pensamentos por um cotovelo que me cutucava violentamente as costelas.

            Lobsang! Lobsang! O que houve com você, está morto? Levante-se, o serviço acabou!

Levantei-me desajeitadamente, acompanhando os demais que se retiravam do Templo.

            Senhor! — disse a meu guia, o Lama Mingyar Dondup, algumas horas depois. — Senhor! Existe um Deus? Ou Deuses?

Ele olhou para mim, e respondeu:

            Vamos sentar-nos no telhado, Lobsang. Quase não se pode conversar aqui, neste lugar cheio de gente.

Voltou, seguindo à frente pelo corredor, passando pelos alojamentos dos lamas, subindo o poste entalhado e assim chega­mos ao telhado. Por momentos, permanecemos na contemplação da cena amada, as cordilheiras imensas, a água brilhante do Kyi Qiu, e do Kaling Chu orlado de juncos. Por baixo de nós, o Norbu Linga, o Parque das Jóias, parecia uma massa de verde vivo. Meu guia acenou com a mão.

            Você acha que tudo isto seja ocasional, Lobsang? Naturalmente existe um Deus!

Dito isto, passamos à parte mais alta do telhado, sentando-nos ali.

            Você está confuso em seus pensamentos, Lobsang — afirmou meu guia. — Existe um Deus; existem Deuses. Enquanto estamos nesta Terra, não nos encontramos em condições de perceber a Forma e a Natureza de Deus. Vivemos no que pode ser chamado um mundo tridimensional. Deus vive em um mundo tão distante, que o cérebro humano, enquanto estiver na Terra, não pode abarcar o conceito necessário de Deus, e desse modo os homens tendem a racionalizar as coisas. "Deus" é tomado como algo humano, super-humano, se preferir esse termo, mas o Homem, em sua presunção, acredita ter sido feito à Imagem de Deus! O Homem também acredita que não haja vida em outros mundos. Se o Homem é feito à Ima­gem de Deus, e os povos de outros mundos são de imagem dife­rente... o que aconteceria a nosso conceito de que o Homem, somente ele é feito à Imagem de Deus?

O lama fitou-me com atenção, para ter a certeza de que eu lhe acompanhava as observações. Isso era fora de dúvida, pois tudo aquilo parecia evidente por si mesmo.

            Todos os mundos, todos os países de todos os mundos, têm seu Deus, ou Anjo Guardião. Nós chamamos ao Deus encarregado do mundo de Manu. É um Espírito altamente evoluído, um ser humano que mediante encarnações sucessivas expurgou a escória de si, deixando apenas o que é puro. Existe um grupo de Grandes Seres que, nos momentos de neces­sidade, vêm a esta Terra, e podem estabelecer um exemplo pelo qual os mortais comuns conseguem erguer-se do atoleiro dos desejos mundanos.

Eu assenti, pois sabia a esse respeito, sabia que Buda, Moisés, Cristo e muitos outros pertenciam àquela Ordem. Sa­bia também de Maitreya que, como se acha nas Escrituras Budistas, virá ao mundo 5.656 milhões de anos após a passagem de Buda ou Gautama, como Ele deveria ser chamado com mais precisão. Tudo isso, e mais, fazia parte de nossos ensina­mentos religiosos comuns, bem como o conhecimento de que qualquer boa pessoa tem uma oportunidade igual, qualquer que seja o nome ostentado por sua própria crença religiosa. Nunca acreditamos que apenas uma seita religiosa "fosse para o Céu", e que todas as outras caíssem no Inferno, para o diver­timento de amigos sanguinários de todo o tipo. O meu guia, porém, estava pronto a prosseguir.

Nós temos o Manu do mundo, o Grande Ser Evoluído, que controla o destino do mundo. Existem Manus menores, que controlam o destino de um país. Em anos infinitos, o Manu Mundial partirá, e o seguinte, na escala de valores, a essa altura bem preparado, evoluirá, tomará conta da Terra.

Ah! — exclamei, com certo ar triunfal. — Nesse caso, nem todos os Manus são bons! O Manu da Rússia está dei­xando que os russos ajam contra o nosso bem. O Manu da China permite aos chineses invadir nossas fronteiras e matar nossa gente.

Você se esquece, Lobsang, — replicou — de que este mundo é o Inferno, que vimos aqui para aprender lições. Vimos para sofrer, a fim de que nosso espírito possa evoluir. As difi­culdades ensinam, a dor ensina, a bondade e a consideração não ensinam. Existem guerras, para que os homens possam demonstrar coragem nos campos de batalha e... como o miné­rio de ferro na fornalha... se temperem e fortaleçam, pelo fogo da batalha. O corpo carnal não importa, Lobsang, ele é apenas um fantoche temporário. A Alma, o Espírito, o Eu Maior (chame como quiser) é tudo quanto deve ser levado em conta. Na Terra, em nossa cegueira, achamos que apenas o corpo importa. O medo de que o corpo possa sofrer obnubila nossa visão, deforma nosso juízo. Temos de agir pelo bem de nossos próprios Eus Maiores, enquanto continuamos ajudando os outros. Aqueles que seguem cegamente os ditames de pais tirânicos aduzem uma carga aos pais, bem como a si próprios. Os que seguem cegamente os ditames de alguma crença reli­giosa estereotipada também impedem sua evolução.

Honrado Lama! — protestei. — Posso aduzir dois comentários ?

Sim, pode — respondeu meu guia.

— O senhor disse que aprendemos mais depressa se as condições forem duras. Eu preferiria um pouco mais de bondade. Eu conseguiria aprender desse modo.

Ele me fitou, pensativo.

            Poderia? — perguntou. — Você aprenderia o que está nos Livros Sagrados, mesmo que não receasse os professores? Faria sua parte de trabalho nas cozinhas, se não temesse o castigo caso ficasse com preguiça? Você faria isso?

Eu baixei a cabeça, reconhecendo a razão, pois trabalhava nas cozinhas quando recebia ordens para isso. Estudava os Li­vros Sagrados porque receava o resultado de não o fazer.

E qual é sua outra pergunta? — indagou o lama.

Bem, Senhor, como é que uma religião estereotipada prejudica a evolução da pessoa?

Eu lhe darei dois exemplos, — respondeu mei1 guia. — Os chineses acreditavam que não importava o quefaziam nesta vida, uma vez que podiam pagar os pecados e faltas quando voltassem outra vez. Assim, adotaram a política da preguiça mental. Sua religião tornou-se um elemento de entorpecimento, levando-os à preguiça espiritual; eles viviam apenas para a vida seguinte, de modo que suas artes e habilidades caíram em desuso. A China assim se tornou uma potência de terceira classe, na qual os chefes de bandoleiros deram início a um reinado de terror e pilhagem.

Eu observava que os chineses em Lhasa pareciam desnecessariamente brutais e de todo fatalistas. A morte, para eles, não representava outra coisa senão a passagem para um outro aposento! Eu não receava a morte de modo algum, mas queria executar minha tarefa em um período de vida, ao invés de re­laxar, e ter de voltar a este Mundo, repetidas vezes. O pro­cesso de nascer, ser criança indefesa, ter de freqüentar a escola, tudo isso era dificuldade para mim. Esperava que esta vida fosse a última que eu passava sobre a Terra. Os chineses tinham tido invenções maravilhosas, obras de arte igualmente maravilhosas, uma cultura admirável. Ora, por ter aderido a uma crença religiosa de modo demasiadamente servil, o povo chinês se tornara decadente, presa fácil para o comunismo. Em certa época, o conhecimento e a idade haviam merecido respeito profundo na China, como deveria acontecer, mas, agora os sábios não recebiam mais honras que lhes eram devi­das ; tudo que importava, agora, era a violência, o ganho pessoal e o egoísmo.

            Lobsang! e a voz de meu guia interrompeu meus pensamentos. Vimos uma religião que ensinava a inatividade, ensinava que não se deve, de modo algum, influenciar outra pessoa, para que não se aumentasse o carma próprio... A dívida que passa de uma vida para a outra.

Ele fitou a cidade de Lhasa, vendo nosso Vale Pacífico, e voltou-se novamente para mim.

As religiões do Ocidente tendem a ser muito militantes. As pessoas, por lá, não se contentam em acreditar o que eles querem crer, mas estão prontas a matar outras para fazê-las acreditar também.

Eu não percebo como matar uma pessoa possa ser boa prática religiosa, observei.

Não, Lobsang respondeu o lama —, mas ao tempo da Inquisição espanhola, um ramo dos cristãos torturava outro ramo para que os seus componentes pudessem ser "convertidos e salvos". As pessoas eram postas em ecúleos ou queimadas, para se persuadirem a mudar de crença! Ainda hoje essa gente envia missionários, que procuram, por quase todos os meios, obter convertidos. Parecem estar tão inseguros de sua crença que têm de fazer com que os demais exprimam aprovação e acordo com sua religião...raciocinando, presumivelmente, que a segurança reside nos grandes números!

Senhor! disse eu. Acha que as pessoas devam seguir uma religião?

Ora, por certo, se assim o desejarem, respondeu o Lama Mingyar Dondup. Se as pessoas ainda não atingiram a etapa na qual podem aceitar o Eu Maior e o Manu do Mundo, nesse caso sentir-se-ão reconfortadas em aderir a algum sistema formal de religião. Trata-se de uma disciplina mental e espiri­tual, fazendo algumas pessoas sentirem que pertencem a um grupo familiar, tendo um Pai benevolente a vigiá-las e uma Mãe compadecida sempre pronta a interceder em seu favor junto ao Pai. Sim, para esses, em certa etapa da evolução, tal reli­gião é boa. Mas quanto mais cedo essas pessoas compreenderem que devem orar a seu Eu Maior, tanto mais depressa evo­luirão. Às vezes perguntam-nos o motivo pelo qual temos Ima­gens Sagradas em nossos Templos, ou pelo qual temos Templos, afinal de contas. A isso podemos responder que tais Imagens são lembrete de que também podemos evoluir e, com o tempo, tornar-nos altos Seres Espirituais. Quanto a nossos Templos, são lugares onde as pessoas de pensamento semelhante podem reunir-se, a fim de conferir força mútua na tarefa de chegar ao Eu Maior de cada um. Pela oração, ainda que ela não esteja corretamente dirigida, consegue-se alcançar uma cadência maior de vibrações. A meditação e a contemplação dentro de um Templo, de uma Sinagoga, ou uma Igreja, é benéfica.

Fiquei pensando sobre aquilo que acabara de ouvir. Lá embaixo, o Kaling Chu tilintava e corria mais depressa, ao estreitar-se sob a Ponte da Estrada de Lingkor. Para o sul, divisei um grupo de homens à espera do Barqueiro do Kyi Chu. Os comerciantes haviam chegado mais cedo aquele dia, trazendo jornais e revistas para o meu guia. Jornais da Índia e de países estranhos do mundo. O Lama Mingyar Dondup viajara para muito longe e numerosas vezes, mantendo-se em contato atento com as questões do mundo fora do Tibete - Jornais, re­vistas. Um pensamento seguia sub-repticiamente em meu espí­rito. Alge que tinha a ver com aquela palestra. Jornais? De repente, dei um salto, como se fora mordido. Não os jornais, mas uma revista! Algo que eu vira, e o que era, mesmo? Já sabia! Tudo se esclarecia para mim; eu percorrera algumas páginas, sem compreender uma só palavra das línguas estran­geiras, mas procurando as ilustrações. Uma dessas páginas fi­cara parada, sob meu polegar investigador. O quadro de um ser alado, pairando nas nuvens, adejando acima de um campo sangrento de batalha. O meu guia, a quem eu mostrara a ilus­tração, lera e traduzira a legenda para mim.

— Honrado Lama! — exclamei agitado. — Ainda hoje o senhor me falou daquela Figura.... e a chamou o anjo de Mons... que muitos homens afirmam ver acima dos campos de batalha. É um Deus?

— Não, Lobsang — respondeu meu guia —, inúmeros homens, na hora de seu desespero, ansiaram por ver a figura de um Santo ou, como o chamam, um Anjo. Sua necessidade urgente e as emoções fortes inerentes a uma batalha deram vigor a seus pensamentos, aos seus desejos e às suas orações. Assim, do modo como lhe mostrei, criaram uma forma de pen­samento, de acordo com suas próprias especificações. Quando o primeiro esboço fantasmagórico de uma figura se apresentou, as orações e pensamentos dos homens que o causavam se inten­sificaram, e a figura adquiriu vigor e solidez, perdurando por bastante tempo. Nós fazemos a mesma coisa aqui, quando "criamos formas de pensamento" no Templo Interno. Mas ve­nha, Lobsang, o dia já se adiantou, e as Cerimônias de Logsár ainda não foram concluídas.

Seguimos pelo corredor, descendo para o cenário de movimentação, o torvelinho que era a vida cotidiana dentro de uma lamaseria, durante uma Estação de Comemoração. O Mestre de Artes veio à minha procura, querendo um menino pequeno e leve para subir no tapume e fazer algumas alterações na cabeça de uma figura lá em cima. Seguindo atrás dele, fui ter em passos rápidos pela trilha escorregadia até a Sala de Man­teiga. Enverguei um manto antigo, que estava liberalmente coberto de manteiga colorida, e atei uma corda leve ao redor da cintura, para poder suspender o material, após o que subi no tapume. Era como o Mestre calculara, parte da cabeça se partira, soltando-se dos sarrafos de madeira. Gritando para baixo o que eu queria, fiz oscilar minha corda e suspendi um balde de manteiga. Trabalhei por algumas horas, retorcendo fragmentos de madeira fina ao redor das escoras, modelando mais uma vez a manteiga para recolocar a cabeça no lugar. Finalmente, o Mestre de Artes, observando com ar crítico lá do chão, indicou que estava satisfeito. Devagar, entorpecido, desemaranhei-me do tapume e desci lentamente para o chão. Satisfeito, mudei de manto e saí apressadamente.

No dia seguinte, eu e muitos outros cheias estávamos na planície de Lhasa, ao pé da Potala, na Aldeia de Shö. Em teoria, observávamos as procissões, os jogos, as corridas. Na verdade, estávamo-nos exibindo diante dos peregrinos humildes que congestionavam as trilhas montanhosas, para chegarem a Lhasa a tempo para o Logsar. Eles vinham de todo o mundo budista, para ali, a Meca do Budismo. Homens velhos, estro­piados pela idade, mulheres novas, carregando crianças ao colo, todos vinham na crença de que, completando o Circuito Santo da Cidade da Potala, estavam expiando os pecados passados e assegurando um bom renascimento na vida próxima sobre a Terra. Ledores da sorte congestionavam a Estrada de Lingkor, mendigos antigos choramingavam, pedindo óbulos, e vendedo­res com as mercadorias suspensas sobre os ombros abriam ca­minho em meio à multidão, procurando fregueses. Logo me cansei daquela cena movimentada, cansei-me da multidão boquiaberta e de suas perguntas sem fim e idiotas. Afastei-me de meus companheiros e, devagar, subi a trilha da montanha para meu lar na lamaseria.

Sobre o telhado, em meu ponto favorito, tudo estava cal­mo. O sol proporcionava um calor suave. Lá embaixo, agora fora de minha visão, surgiu um murmúrio confuso, vindo da multidão, murmúrio esse que em seu caráter indistinto vinha tranqüilizar-me, tornar-me sonolento ao sol do meio-dia. Uma figura de sombra materializou-se quase no limite extremo de minha visão. Sonolento, sacudi a cabeça, pisquei os olhos. Quan­do voltei a abri-los, a figura ainda estava lá, agora mais clara, tornando-se mais densa. Meus cabelos ficaram em pé, tamanho o susto.

            Você não é um fantasma! — exclamei. — Quem é?

A Figura sorriu de leve, e respondeu:

            Não, meu filho, não sou um fantasma. Também já es­tudei aqui, em Chakpori, e estive neste telhado, descansando, como você o faz agora. Depois, desejei, acima de tudo, acelerar minha libertação quanto aos desejos terrenos. Fiz-me fechar dentro das muralhas daquele eremitério, — indicou, apontando para cima, e eu me voltei para acompanhar a direção de seu braço estendido. — Agora — prosseguiu ele, telepaticamente —, neste décimo primeiro Logsar, desde aquela data, eu consegui o que procurava; liberdade para vagar à vontade, enquanto deixo meu corpo seguro, dentro da cela do eremitério. Minha pri­meira jornada é para cá, para poder mais uma vez olhar a multidão, para poder visitar de novo este lugar de que me lembro tão bem. Liberdade, menino, eu atingi a liberdade.

Diante de meu olhar, ele desapareceu como uma nuvem de incenso dispersa pelo vento noturno.

Os eremitérios! Nós, cheias, havíamos ouvido falar tanto sobre eles... Como seriam, por dentro? Muitas vezes, procurá­vamos imaginar. Por que motivo os homens se encarceravam dentro daquelas câmaras de pedra, precariamente suspensas à beira da montanha? Também pensávamos sobre isso! Resolvi perguntar a meu amado guia. Depois, recordei-me de que um velho monge chinês vivia a pouca distância de onde eu estava. O velho Wu Hsi levava uma vida interessante; durante alguns anos fora monge adido ao Palácio dos Imperadores em Pequim. Cansado dessa vida, viajou para o Tibete, à procura de escla­recimento. Com o tempo, chegara ao Chakpori e fora aceito. Cansado disso, após alguns anos, fora para um eremitério e por sete anos levara a vida solitária. Agora, porém, encontrava-se de volta em Chakpori, esperando a morte. Eu me voltei e segui apressadamente para o corredor lá embaixo. Fui ter a uma pequena cela, e chamei o velho.

            Entre! Entre! — disse ele, em voz alta e fraquejante.

Entrei em sua cela, e pela primeira vez vi Wu Hsi, o mon­ge chinês. Estava sentado, as pernas cruzadas, e, a despeito dc sua idade, as costas se mantinham tão eretas quanto um bambu novo. Tinha malares salientes e pele muito amarela, apergaminhada. Os olhos eram inteiramente negros e enviesados. Alguns poucos fios de cabelo apresentavam-se no queixo e do lábio superior pendia uma dúzia, mais ou menos, de pelos de seu bigode comprido. As mãos eram amarelo-castanhas, sarapin­tadas devido à idade avançada, enquanto as veias se apresenta­vam como os ramos de uma árvore. Ao seguir para ele, fitou cegamente em minha direção, sentindo mais do que vendo.

Hmmn, hmmn — fez — um menino, um menino bem novo, pelo modo de andar. O que quer, menino?

Senhor! — respondi. — Vivestes por muito tempo em um eremitério. Tereis, Santo Senhor, a bondade de me falar sobre isso?

Ele resmungou, mastigou as pontas do bigode, e depois disse:

            Sente-se, menino, faz muito tempo desde que falei so­bre o passado, embora pense constantemente nele, agora. Quando eu era menino — prosseguiu — viajei muito e fui ter à Índia. Ali, vi os eremitas fechados dentro de suas cavernas, e alguns deles pareciam ter atingido o esclarecimento.

Dito isso, sacudiu a cabeça, e continuou:

            As pessoas comuns eram muito preguiçosas, passavam os dias sob as árvores. Ah! Era uma visão deplorável!

Santo Senhor! interrompi. Eu preferiria muitís­simo ouvir falar dos eremitérios do Tibete.

Hem? O que foi isso? perguntou ele, em tom débil. Oh, sim, os eremitérios do Tibete. Regressei da Índia, e fui para minha Pequim natal. A vida ali me entediava, pois eu não estava aprendendo. Tomei novamente o cajado, a tigela, e rumei, durante muitos meses, para as fronteiras do Tibete.

Suspirei para mim mesmo, começando a ficar exasperado, e o velho prosseguiu:

            Com o correr do tempo, depois de ter permanecido em uma lamaseria depois de outra, sempre à procura de esclarecimento, cheguei a Chakpori. O Abade permitiu que eu ficasse ali, uma vez que eu fora médico na China. Minha especialidade era a acupuntura. Por alguns anos fiquei contente e depois senti um grande desejo de entrar para um eremitério.

A essa altura, eu estava quase saltitando de impaciência. Se o velho levasse muito mais tempo, eu chegaria atrasado e não poderia perder o serviço religioso da noite! Já quando pensava nisso, ouvia o primeiro toque dos gongos. Com relutância, ergui-me e disse:

            Respeitado Senhor, tenho de ir agora.

O velho deu uma risadinha.

            Não, menino, respondeu. Pode ficar, pois você não está aqui recebendo instrução de um Irmão Mais Velho. Fique, e está dispensado do serviço noturno.

Voltei a sentar-me, sabendo que ele dissera a verdade: embora ainda fosse um trapa, e não um lama, ainda assim era considerado um Mais Velho, devido à idade, suas viagens, e experiência.

            Menino do chá, chá! exclamou ele. Vamos tomar chá, pois a carne é frágil, e o peso dos anos é muito em mim. Chá, para o jovem e para o velho.

Em resposta a seu chamamento, um Monge Auxiliar dos Idosos trouxe-nos chá e cevada. Preparamos o nosso tsampa, e nos acomodamos, ele para falar, eu para ouvir.

            O Senhor Abade deu-me permissão para deixar Chakpo­ri e entrar em um eremitério. Com um monge-ajudante, parti deste lugar, e subi para as montanhas. Após cinco dias de viagem, chegamos a um lugar que pode ser visto do telhado daqui.

Eu assenti, pois conhecia o lugar, um edifício solitário bem alto nos Himalaias. O velho prosseguiu:

            O lugar estava vazio, pois o ocupante anterior morrera recentemente. O Ajudante e eu limpamos tudo, e depois eu me pus a fitar o vale de Lhasa pela última vez. Olhei a Potala e Chakpori, depois me voltei e segui para a câmara interna. O Ajudante levantou uma parede na porta, fechando-a com firmeza, e eu fiquei só.

            Mas, Senhor! Como é o interior? — perguntei.

O velho Wu Hsi esfregou a cabeça, antes de responder.

            É um edifício de pedra — respondeu, devagar. — Um edifício com paredes muito grossas. Não há portas, pois uma vez que se esteja lá dentro da câmara interna, a porta é fechada, levantando-se outra parede firme. Nessa porta há uma pas­sagem, inteiramente à prova de luz, pela qual o eremita recebe comida. Um túnel escuro liga a câmara interna àquela onde vive o Ajudante. Eu fui emparedado. A escuridão era tão espessa que eu quase a podia apalpar. Nem um só vislumbre de luz entrava, nenhum som podia ser ouvido. Sentei-me no soalho e comecei minha meditação. De início, sofri com aluci­nações, imaginando ver faixas de luz. Depois, senti que a escuri­dão me estrangulava, como se eu estivesse coberto por lama macia e seca. O tempo deixou de existir. Logo ouvi, com a imaginação, sinos e gongos e o som de homens cantando. Mais tarde bati nas paredes de minha cela, procurando em meu frenesi descobrir uma saída. Não conhecia a diferença entre o dia e a noite, pois ali tudo era tão negro e silencioso quanto o túmulo. Depois de algum tempo, tornei-me calmo, meu pânico desapareceu.

Continuei sentado, visualizando a cena, o velho Wu Hsi — o jovem Wu Hsi, então! — na escuridão quase viva, dentro do silêncio total.

A cada dois dias — disse o ancião —, o ajudante vinha e depositava um pouco de tsampa na parte externa da fresta. Vinha tão silenciosamente que nunca o consegui ouvir. Da primeira vez, apalpando cegamente minha comida na escuridão, eu a derrubei, e não a consegui alcançar. Chamei e gritei, mas nenhum som saía de minha cela; era preciso esperar outros dois dias.

Senhor! — perguntei. — O que acontece, se um eremita adoece ou morre?

Meu menino — disse o velho Wu Hsi —, se um eremita adoecer... ele morre. O ajudante deposita comida, a cada dois dias, por quatorze dias. Depois desse tempo, se a comida continua intata, vêm oshomens, derrubam a parede, e tiram de lá o corpo do eremita.

O Velho Wu Hsi fora eremita por sete anos.

O que acontece em caso como o seu, quando permaneceu lá o tempo escolhido?

Permaneci por dois anos, e depois por mais sete. Quando já estava próximo o momento de sair, foi feito o menor buraco possível no teto, de modo que por ali entrasse um feixe diminutíssimo de luz. Após alguns dias, o buraco era aumentado, permitindo que entrasse mais luz. Finalmente, eu conse­guia suportar toda a luz do dia. Se o eremita for repentina­mente trazido para a luz ficará no mesmo instante cego, pois os olhos se dilataram por tanto tempo na escuridão que já não mais conseguirão contrair-se. Quando saí, estava branco, des­corado, os cabelos tão brancos quanto a neve das montanhas. Recebi massagens, fiz exercícios, pois meus músculos estavam quase inutilizados, devido ao desuso. Gradualmente, recuperei minhas forças até que, afinal, consegui, com meu ajudante, descer a montanha para residir novamente em Chakpori.

Sopesei suas palavras, pensando nos anos infinitos de escuridão, silêncio absoluto, voltado a seus próprios recursos, e ainda tinha perguntas.

O que aprendeu com isso, Senhor? — perguntei, finalmente. — Valeu à pena?

Sim, menino, sim, valeu à pena! — disse o velho monge. — Aprendi a natureza da vida. Aprendi qual o fito do cérebro. Tornei-me livre do corpo, e podia mandar o espírito a lugares distantes, exatamente como você o faz agora, no plano astral.

Mas como sabe que não foi sua imaginação? Como sabe que estava lúcido? Por que não viajava no astral, como eu faço?

Wu Hsi riu até que lágrimas rolassem por suas faces encarquilhadas.

            Perguntas... perguntas... perguntas, menino, exata­mente como eu costumava fazer! — respondeu.

"A princípio, fui tomado pelo pânico. Amaldiçoei o dia em que me tornara monge, amaldiçoei o dia em que entrara naquela cela. Gradualmente, consegui acompanhar os modelos de respi­ração, e meditar. De início, tive alucinações, imaginações vãs. Depois, certo dia, soltei-me de meu corpo e a escuridão já não era mais escura para mim. Vi meu corpo sentado, na atitude de meditação. Vi meus olhos que não enxergavam, fitando a escuridão, arregalados. Vi a palidez da minha pele, a magreza do meu corpo. Erguendo-me, passei pelo teto da cela e vi, lá embaixo, o vale de Lhasa. Notei certas alterações, vi pessoas que eu conhecia e, passando pelo Templo, pude conversar com um lama telepático que confirmou, para mim, minha libertação. Vaguei por bem longe, além das fronteiras deste país. A cada dois dias, regressava e entrava novamente no corpo, reanimando-o para que pudesse comer e nutrir-se.

Mas por que não conseguia fazer a viagem astral sem todos esses preparativos? — Voltei a perguntar.

Alguns de nós são mortais muito comuns. Poucos de nós possuem a capacidade especial que a você é dada por causa da tarefa que tem de empreender. Também você viajou muito no astral. Outros, como eu, têm de suportar a solidão e a vicissitude, antes que seu espírito possa libertar-se da carne. Você, menino, é um dos afortunados, um dos muito afortunados!

O ancião suspirou, e prosseguiu:

            Vá-se embora! Preciso descansar, falei muito. Volte a, verme, será um visitante bem-vindo, a despeito das perguntas que faz.

Voltou-se para outro lado e, com um murmúrio de agradecimento, eu me pus em pé, fiz reverência, e saí silenciosa­mente do quarto. Estava tão ocupado, tomado por pensamentos, que bati diretamente na muralha oposta, e quase arranquei o espírito de meu corpo. Esfregando a cabeça que doía, caminhei com calma pelo corredor, até chegar à minha própria cela.

O serviço da meia-noite estava quase findo. Os monges se remexiam de leve, prontos a partirem com pressa para algumas horas mais de sono, antes de voltarem. O velho Leitor, no pódio, Inseriu cuidadosamente u'a marca entre as páginas do Livro e voltou-se, pronto a descer de lá. Inspetores de olhar atento, sempre alerta à procura de qualquer perturbação, ou querendo descobrir os meninos desatentos, afrouxaram em sua vigilância. O serviço estava quase encerrado. Pequenos chelas faziam osci­lar os turíbulos para o último passe, e se ouvia o murmúrio mal reprimido de um grande número de pessoas que se preparam para mover-se. De repente, houve um grito penetrante, e uma figura selvagem saltou sobre as cabeças dos monges sentados, procurando agarrar um jovem trapa que segurava dois bastões de incenso. Nós nos pusemos em pé com um salto, tomados de choque. Diante de nós, a figura selvagem rodopiava e girava, a espuma escorrendo de seus lábios enrugados, gritos, horríveis emitidos de sua garganta torturada. Por alguns mo­mentos, o mundo pareceu parar; os monges-policiais ficaram imóveis de surpresa, os sacerdotes oficiantes estavam de braços erguidos. E depois, com violência, os inspetores entraram em ação. Convergindo sobre a figura enlouquecida, logo a domi­naram, passando o manto ao redor de sua cabeça, para silen­ciar as pragas que vinham em torrente de sua boca. Com efi­ciência e rapidez, ele foi levantado e retirado do Templo. O serviço terminou. Pusemo-nos em pé e nos apressamos a sair, ansiosos por estarmos além das dependências do Templo, para que pudéssemos falar sobre o que tínhamos acabado de ver.

Esse é Kenji Tekeuchi disse um jovem trapa perto de mim. É um monge japonês que tem feito visitas a toda a parte.

Procurando a Verdade, e esperando que lhe entreguem, ao invés de trabalhar para consegui-la, informou um terceiro.

Eu me afastei, um tanto perturbado. Por que a Busca pela Verdade faria um homem enlouquecer? O quarto estava frio, e eu tiritei de leve, ao deitar-me para dormir. Parecia que nenhum tempo decorrera, até que os gongos voltassem a soar, para o serviço religioso seguinte. Olhando pela janela, vi os primeiros raios do sol surgindo sobre as montanhas, raios de luz que pareciam dedos gigantescos a apalpar o céu, estendendo-se para as estrelas. Suspirei, e segui apressadamente pelo corredor, aflito por não ser o último a entrar no Templo, com o que viria a merecer a ira dos Inspetores.

            Está com aspecto pensativo, Lobsang, observou meu guia, o Lama Mingyar Doridup, quando o vi mais tarde, após o serviço do meio-dia.

Fez-me sinal para que me sentasse.

            Você viu o monge japonês, Kenji Tekeuchi, quando ele entrou no Templo. Quero falar-lhe a respeito dele, porque mais tarde o conhecerá.

Acomodei-me melhor, pois aquela não ia ser uma sessão rápida. Eu fora "apanhado" pelo resto do dia! O Lama sorriu, ao ver minha expressão fisionômica.

            Talvez devamos tomar chá da Índia..e bolinhos indianos...para dourar a pílula, Lobsang, hem?

Fiquei um pouco mais satisfeito, e ele deu uma risadinha, dizendo:

            O ajudante já o está trazendo, porque eu esperava por você!

"Sim", eu pensava, enquanto o monge-criado entrava, "onde mais eu poderia ter um tal Mestre?"

Os bolinhos da Índia eram meus favoritos, e os olhos do próprio lama às vezes se esbugalhavam de espanto, diante da quantidade dos mesmos que eu conseguia "eliminar"!

Kenji Tekeuchi — disse meu guia — é... foi... um homem muito versátil. Viajou muito, e por toda a vida (está agora com mais de setenta anos) vagou pelo mundo, à procura do que ele chama Verdade. A Verdade está dentro dele, mas não sabe disso. Ao invés, andou por aí, voltou a andar. Sempre estudou as crenças religiosas, sempre leu os livros de muitas terras, prosseguindo nessa procura, nessa obsessão. Agora, finalmente, foi-nos mandado. Leu tanta coisa de natureza oposta, que ficou com a aura contaminada. Leu tanto, e compreendeu tão pouco, que na maior parte do tempo é demente. Transfor­mou-se em verdadeira esponja humana, absorvendo todos os conhecimentos e digerindo pouquíssimo.

Então, Senhor! — exclamei. — O senhor se opõe ao estudo pelos livros?

De modo nenhum, Lobsang! — respondeu o lama. — Eu me oponho, como todos os homens que pensam, àqueles que obtêm as brochuras, os panfletos e os livros escritos acerca de cultos estranhos, tratando do chamado ocultismo. Essa gente envenena a sua própria alma, torna impossível o progresso maior para si mesma enquanto não tenham deixado de lado todos os conhecimentos falsos e não se tenham tornado igual a uma criança pequena.

Honrado Lama — perguntei —, como alguém fica demente? Como a leitura errada leva à confusão, em alguns casos?

Trata-se de urna história muito comprida, — respondeu o Lama Mingyar Dondup. — Primeiramente, temos de examinar alguns fundamentos. Tenha paciência, e escute! Na Terra, somos como fantoches, fantoches feitos de moléculas em vi­bração, cercadas por uma carga elétrica. Nosso Eu Maior vibra em cadência muito mais elevada, e possui carga elétrica muito mais alta. Existe uma relação definida entre nossa cadên­cia de vibrações e aquela de nosso Eu Maior. Pode-se compa­rar o processo de comunicação entre cada um de nós, nesta Terra, e nosso Eu Maior em outras partes, a um processo que é novo neste mundo, um processo pelo qual as ondas de rádio são enviadas através dos continentes e mares, permitindo assim a uma pessoa, em um país, comunicar-se com outra,, em terra bem distante. Nossos cérebros são semelhantes à receptores de rádio, no sentido de que recebam as mensagens de "alta fre­qüência", bem como ordens e instruções, do Eu Maior e as transformam em impulsos de baixa freqüência, que controlam nossas ações. O cérebro é o dispositivo eletromecanicoquímico que nos torna úteis na Terra. As reações químicas levam nosso cérebro a funcionar de modo defeituoso, talvez bloqueando parte da mensagem, porque raramente, na Terra, recebemos a men­sagem exata "irradiada" pelo Eu Maior. A Mente é capaz de ação limitada, sem referência ao Eu Maior. A Mente é capaz de aceitar certas responsabilidades, formar certas opiniões, e procura preencher a lacuna entre as condições "ideais" do Eu Maior e as condições difíceis sobre a Terra.

Mas a gente ocidental aceita a teoria da eletricidade ao cérebro? — perguntei.

Sim, — respondeu meu guia. — Em certos hospitais, as ondas cerebrais dos pacientes são registradas, tendo sido verificado que certas desordens mentais apresentam um feitio característico de onda cerebral. Assim, com base nas ondas cerebrais, podemos afirmar se uma pessoa sofre ou não de alguma doença ou enfermidade mental. Muitas vezes, uma doença do corpo mandará certas substâncias químicas ao cérebro, contaminando sua forma de onda e apresentando, desse modo, os sintomas de insanidade.

O japonês está muito doido? — perguntei.

Venha. Vamos vê-lo agora, pois está em um de seus momentos lúcidos.

O Lama Mingyar Dondup pôs-se em pé e saiu apressada­mente do quarto. Fiz o mesmo, correndo atrás dele. Ele seguiu à frente pelo corredor, até outro nível, indo ter a uma enfermaria distante, onde ficavam alojados os que recebiam trata­mento médico. Em pequena alcova, com visão para o Khati Linga, o monge japonês estava sentado, olhando para fora, com expressão carrancuda. À aproximação do Lama Mingyar Don­dup, apertou as próprias mãos e fez uma mesura profunda.

            Sente-se, — disse meu guia. — Trouxe um jovem para ouvir suas próprias palavras. Ele está recebendo instrução espe­cial, por ordem de Sua Santidade.

O lama fez uma mesura, voltou-sé e deixou a alcova. Por momentos, o japonês me fitou, e depois fez sinal para que me sentasse. Obedeci, a uma distância conveniente, pois não sabia se ele se tornaria violento!

Não encha a cabeça com tudo de ocultismo que lê, menino! disse o monge japonês. É matéria indigerível, que impedirá seu progresso espiritual. Estudei todas as reli­giões. Estudei todos os cultos metafísicos que pude encontrar. Isso me envenenou, escureceu-me a visão, levou-me a crer que era um Escolhido Especial. Agora, tenho o cérebro prejudicado, e às vezes perco o controle de mim mesmo...fujo das ordens de meu Eu Maior...

Mas, Senhor! exclamei. Como se pode aprender, sem ler? Que mal possível pode vir da palavra escrita?

Menino! disse o monge japonês. Certamente se pode ler, mas é preciso escolher com cuidado o que se lê, e ter a certeza de que se entende completamente o que está escrito. Não há perigo na palavra escrita, mas há perigo nos pensamentos que ela pode causar. Não se deve comer tudo, mistu­rando o compatível com o incompatível; tampouco devemos ler coisas que se contradizem, que se opõem umas às outras. Nem se devem ler coisas que prometem poderes ocultos. É muito fácil criar uma Forma de Pensamento, que não se pode controlar, como eu fiz, e em seguida a Forma nos prejudica.

O senhor já esteve em todos os países do mundo? indaguei.

O japonês me fitou e um brilho leve surgiu em seus olhos.

            Nasci em pequena aldeia japonesa disse e quando tinha idade suficiente entrei para o Serviço Sagrado. Durante anos seguidos, estudei religiões e práticas ocultas. Depois, meu Superior me ordenou que partisse e viajasse para países muito além dos oceanos. Há cinqüenta anos, venho viajando de um a outro país, de um a outro continente, sempre estudando. Com meus pensamentos, criei Poderes que não sabia controlar. Poderes que vivem no mundo astral e que, em alguns momentos, afetam meu Cordão de Prata. Mais tarde, talvez, terei permissão para contar-lhe mais. Por enquanto, ainda estou enfraquecido pelo último ataque, e preciso descansar. Com permissão de seu guia, pode visitar-me em outro dia.

Fiz minhas reverências e o deixei na alcova. Um monge médico, vendo que eu partia, apressou-se a ir ter com ele. Com curiosidade, olhei ao redor, espiei os velhos monges deitados naquela parte do Chakpori. E depois, em resposta a um cha­mamento telepático urgente, apressei-me a ir ao encontro de meu guia, o Lama Mingyar Dondup.

 

Segui às pressas pelos corredores, fazendo as curvas a correr, para perigo daqueles que se achassem à minha frente. Um velho monge agarrou-me ao passar, sacudiu-me e disse:

            Não é direito andar com tanta pressa, menino! Não é assim que faz o verdadeiro budista!

Depois, fitou minha face e reconheceu-me como pupilo do Lama Mingyar Dondup. Emitindo um som semi-engasgado, que se assemelhava a um "Ulp!", deixou-me cair como se fosse uma batata quente e saiu correndo, a seu turno. Segui calmamente o meu próprio rumo. À entrada da sala de meu guia, detive-me com tal solavanco que quase caí. Com ele, encon­travam-se dois Abades de alta graduação. Minha consciência doía de modo horrível. O que eu fizera, dessa vez? Pior ainda: qual de meus numerosos "pecados" fora descoberto? Os Abades mais graduados não' esperavam pelos meninos, a menos que se tratasse de notícias muito más para os mesmos. As pernas se tornaram patente e incomodamente fracas, e vasculhei a memória para ver se fizera algo que pudesse causar minha ex­pulsão de Chakpori. Um dos Abades olhou para mim, e sorriu com tanto calor quanto um velho iceberg. O outro me fitou com um semblante que parecia esculpido em alguma rocha dos Himalaias. Meu guia riu.

            Você, por certo, tem uma consciência culpada, Lobsang. Ah! Estes Reverendos Irmãos Abades também são lamas telepáticos, — aduziu, com uma risadinha.

O mais patibular dos dois Abades fitou-me com dureza e, em voz que fazia lembrar rochas rolando pelas montanhas, disse:

            Terça-Feira Lobsang Rampa, O Mais Precioso deter­minou investigações pelos quais ficou decidido que você seja Reconhecido como a Encarnação atual de...

Minha cabeça rodopiava, e eu mal conseguia acompanhar o que ele dizia, e quase não ouvi suas observações finais.

           ... e o estilo, patente e título de Senhor Abade lhe sejam conferidos, por esse motivo, em cerimônia cujo local e hora serão determinados posteriormente.

Os dois Abades fizeram mesuras solenes para o Lama Mingyar Dondup, e depois para mim, com o mesmo ar de sole­nidade. Apanhando um livro, saíram, e gradualmente o som de seus passos desapareceu. Permaneci ali, como aturdido, olhando o corredor por onde tinham ido. Uma gargalhada es­trondosa e o aperto de uma mão em meu ombro trouxeram-me de volta à realidade.

            Agora, você sabe qual é o motivo de toda a correria. As provas serviram apenas para confirmar o que sabíamos por todo o tempo. É necessária uma comemoração especial entre você e eu, e depois tenho algumas notícias interessantes para lhe dar.

Levou-me a outra sala, e ali havia uma verdadeira refeição indiana. É desnecessário dizer que não foi preciso encorajar-me a fazê-la. "Ataquei-a" logo em seguida!

Mais tarde, quando já não mais podia comer coisa alguma, quando a simples visão da comida restante fazia com que eu passasse mal, meu guia ergueu-se e seguiu à frente para a outra sala.

            O Mais Precioso deu-me permissão para lhe falar sobre a Caverna dos Antigos — disse, aduzindo imediatamente: — Ou melhor, O Mais Precioso sugeriu que eu lhe fale sobre isso.

Dedicou-me um olhar de esguelha e em seguida, quase em sussurro, observou:

            Vamos mandar uma expedição lá, dentro de poucos dias.

Senti a animação irromper em mim e tive a impressão impossível de que talvez estivesse indo "para casa", para um lugar que conhecera antes. Meu guia me observava com muita atenção, muitíssima mesmo. Quando o fitei, sob a intensidade de seu olhar, ele assentiu.

            Como você, Lobsang, eu recebi preparo especial, oportunidades especiais. O meu Mestre foi um homem que há muito passou desta vida, e cujo Invólucro vazio se acha, neste mo­mento, no Salão de Imagens Douradas. Com ele, viajei muito por todo o mundo. Você, Lobsang, terá de viajar sozinho.

Agora, fique quieto e sentado, pois vou falar sobre a descoberta da Caverna dos Antigos.

Umedeci os lábios, pois era aquilo o que eu desejava ouvir, havia já algum tempo. Na Lamaseria, como em qualquer comu­nidade, espalhavam-se com freqüência boatos, em recantos dis­cretos. Alguns eram boatos mesmo, logo à primeira vista, e nada mais do que isso. Aquilo, entretanto, era diferente, e de algum modo eu acreditava no que ouvira.

— Eu era um lama muito jovem, Lobsang — principiou meu guia. — Com o meu Mestre e três lamas jovens, está­vamos explorando algumas das cordilheiras mais distantes. Se­manas antes, tinha ocorrido um estrondo extraordinariamente alto, acompanhado por grande queda de rochas. Partimos para investigar o que ocorrera. Durante dias, rondamos ao redor da base de enorme pináculo de rocha. Ao amanhecer do quinto dia, meu Mestre acordou, mas não estava desperto; parecia encontrar-se aturdido. Falamos com ele, sem obtermos resposta. Fiquei preocupadíssimo, julgando que ele adoecera, e imaginando como o levaríamos por aquele caminho extensíssimo até um lugar seguro. Entorpecido, como se tomado por algum poder estranho, ele se pôs em pé, caiu e finalmente ficou em pé, ereto. Cambaleando, sacudindo-se e movendo-se como um homem em transe, seguiu à frente. Nós o acompanhamos, cheios de medo e tremores. Subimos a superfície íngreme da rocha, com chuveiros de pedras pequenas a tombarem sobre nós. Finalmente, chegamos à beira aguçada do cimo da cordi­lheira, e ali ficamos a olhar. Tive uma sensação de desapon­tamento profundo. Diante de nós estava um pequeno vale, a essa altura quase cheio de pedras enormes. Ali, evidentemente, tivera origem a queda de rochas. Algum defeito na rocha se apresentara, ou ocorrera algum tremor da terra, deslocando parte da encosta da montanha. Grandes falhas de rocha recém-exposta nos fitavam, à luz brilhante do sol. O musgo e o líquen pendiam, desconsolados, privados agora de qualquer apoio. Voltei-me para o outro lado, cheio de desgosto. Nada havia ali para atrair-me a atenção, nada, senão um grande desabamento de rochas. Voltei-me, para começar a descer, mas fui imediatamente detido por um "Mingyar!" murmurado. Um de meus companheiros estava apontando. Meu Mestre, tomado ainda por alguma estranha compulsão, descia pela encosta da montanha.

Eu permanecia sentado e fascinado, meu guia parou de falar por momentos, tomou um gole de água, após o que prosseguiu:

            Nós o observávamos, com algum desespero. Devagar, ele desceu pelo lado da rocha, dirigindo-se ao chão coberto de outras, no pequeno vale. Acompanhamo-lo com relutância, con­tando que a qualquer momento íamos escorregar naquele lugar perigoso. Chegado ao fundo, meu Mestre não hesitou, e tomou cuidadosamente por um caminho em meio às pedras imensas, até chegar ao outro lado do vale. Para nosso horror, começou a subir com as mãos e pés, que nos eram invisíveis, embora estivéssemos poucos metros atrás. Nós o acompanhamos, relu­tando ainda. Não podíamos tomar outro rumo, não podíamos regressar e dizer que nosso superior se afastara de nós, subindo, e que havíamos tido medo de acompanhá-lo... por mais peri­gosa que fosse a escalada. Subi primeiro, escolhendo o caminho com muito cuidado. Era rocha dura, o ar era rarefeito. Logo a respiração arquejava-me na garganta e meus pulmões estavam tomados por uma dor seca e aguda. Em um beiral estreito, a uns cento e cinqüenta metros do vale, fiquei estendido, resfo­legando. Ao olhar para cima, antes de retomar a escalada, vi o manto amarelo de meu Mestre desaparecer sobre o outro beiral, lá em cima. Com decisão implacável, prendi-me à face da montanha, arrastando-me sempre para cima. Meus compa­nheiros, tão relutantes quanto eu, vinham atrás. A essa altura, estávamos fora do abrigo proporcionado pelo pequeno vale e o vento forte fazia nossos mantos esvoaçarem. Pequenas pedras choviam, lá de cima, e a escalada era bem difícil.

Meu guia fez uma pausa momentânea, para tomar outro gole de água e verificar se eu estava ouvindo. Estava, naturalmente!

            Afinal — prosseguiu ele — encontrei um beiral em nível com os dedos. Firmando-me bem, e dizendo aos outros que tínhamos chegado a um lugar onde se podia descansar, eu me alcei para lá. Havia um socalco, em declive suave para a parte ide trás, de modo que era inteiramente invisível do outro lado da cordilheira. De início, aquele ressalto parecia ter uns três metros de largura. Não parei para ver mais, mas me ajoelhei, de modo à poder ajudar os outros a subir, um por um. Logo estávamos juntos, tremendo no vento, após todo aquele esforço. Era patente que o desabamento de rochas descobrira aquele ressalto e... quando olhei melhor, havia uma fenda estreita na muralha da montanha. Havia, mesmo? De onde nos encontrá­vamos, podia ser uma sombra ou a mancha de liquens escuros. Tomados pelo mesmo impulso, seguimos à frente. Era real­mente uma fenda, com pouco mais de dois palmos de largura e uns cinco de altura. Não havia qualquer sinal de meu Mestre.

Eu conseguia visualizar bem a cena, mas aquele não era o momento adequado para introspecção. Não queria perder uma só palavra!

            Voltei atrás, para ver se meu Mestre subira mais alto prosseguiu meu guia —, mas não havia qualquer sinal dele. Temeroso, espiei a fenda. Era tão escura quanto um túmulo. Centímetro por centímetro, encurvado de modo doloroso, eu entrei. A uns quinze palmos além, fiz uma volta bastante aguda, outra, e depois outra. Se não estivesse paralisado de medo, teria gritado de surpresa; ali havia luz, uma luz prateada e macia, mais brilhante do que o luar que mais brilhasse. Luz que eu nunca vira antes. A caverna em que me encontrava era espaçosa, o teto invisível na escuridão lá em cima. Um dos companheiros me empurrou, fazendo-me sair da frente, e foi por sua vez empurrado por outro. E logo nós quatro estávamos silenciosos e assustados, tendo diante de nós aquela visão fan­tástica. Uma visão que teria feito qualquer um de nós pensar que enlouquecera. A caverna era como uma sala imensa, esten­dendo-se a distância, como se a própria montanha fosse oca. A luz se achava por toda a parte, iluminando-nos de um número de globos que pareciam suspensos na escuridão do teto. Má­quinas estranhas estavam ali, em profusão, máquinas como ja­mais poderíamos ter imaginado; Até mesmo do teto alto pen­diam aparelhos e mecanismos. Alguns, notei com grande espan­to, estavam cobertos com o que parecia ser o mais puro vidro.

Meus olhos deviam estar arregalados, pois o lama sorriu para mim, antes de retomar a narrativa.

            A essa altura, tínhamos esquecido inteiramente o meu Mestre, quando ele apareceu de repente, e nós demos um salto, de susto! Ele riu de nossos olhares e semblantes assustados. Agora, como víamos, não mais estava tomado por aquela com­pulsão estranha e irresistível. Juntos, andamos por ali, exami­nando aquelas máquinas estranhas. Para nós, não tinham qual­quer significado, eram apenas conjuntos de metal e estruturas de forma estranha e exótica. Meu Mestre seguiu à frente, para um painel negro bastante grande, aparentemente escavado em uma das paredes da caverna. Quando estava a ponto de apalpar-­lhe a superfície, o mesmo se abriu. Já estávamos quase no ponto de acreditar que todo o lugar era enfeitiçado, ou que tínhamos caído sob o poder de alguma força alucinatória. Meu Mestre deu um salto para trás, com algum alarme. O painel negro se fechou. Com grande audácia, um de meus companheiros esten­deu a mão e o painel se abriu de novo. Uma força à qual não podíamos resistir impelia-nos à frente. Lutando em vão contra cada passo que dávamos, éramos... de algum modo... obriga­dos a entrar pela porta do painel. Lá dentro estava escuro, tanto quanto uma cela de eremita. Ainda movidos pela mesma compulsão irresistível, seguimos por boa distância e nos senta­mos no chão. Minutos inteiros ficamos ali sentados, tremendo de medo. Como nada acontecesse, recuperamos certa calma, e ouvimos então uma série de estalidos, como se houvesse metal batendo e arranhando metal.

Involuntariamente, estremeci. Achava que eu, em lugar deles, teria morrido de medo! Meu guia prosseguiu:

            Devagar, de modo quase imperceptível, uma incandescência embaciada se formou na escuridão à frente. De início, era apenas uma leve indicação de luz azul-roxa, quase como se um fantasma se estivesse materializando diante de nossos olhos. A luz embaciada se estendeu, fazendo-se mais brilhante, de modo que podíamos ver os esboços de máquinas inacredi­táveis que enchiam aquele salão grande, a não ser o centro onde nos encontrávamos sentados. A luz parecia fortalecer a si pró­pria, girando, esmaecendo, tornando-se mais brilhante, e depois adotou uma forma esférica, que reteve. Tive a impressão estra­nha e inexplicável de maquinaria antiquíssima, que começava devagar a ranger, entrando em movimento, após milhões de anos. Nós cinco estávamos juntos, no chão, literalmente fasci­nados. E logo veio uma sondagem, dentro de meu cérebro, como se lamas telepáticos dementes estivessem brincando, mas essa impressão se tornou tão clara quanto a fala.

Meu guia pigarreou e estendeu novamente a mão para be­ber água, fazendo-a pairar em meio do caminho.

            Vamos tomar chá, Lobsang, — disse, e tocou a sineta de prata.

O monge-ajudante sabia, obviamente, o que queríamos, pois entrou trazendo chá — e bolinhos!

— Dentro da esfera de luz víamos imagens, — disse o Lama Mingyar Dondup. — Nebulosas de início, mas logo se clareavam e deixavam de ser imagens. Ao invés disso, estávamos realmente vendo os acontecimentos.

Eu já não me podia conter mais:

            Mas, Honrado Lama, o que viram? perguntei, em impaciência febril.

O lama estendeu o braço e serviu-se de mais chá. Ocorreu-me, então, que jamais o vira comendo aqueles bolinhos da Índia. O chá, sim, ele tomava muito chá, mas jamais o vi comer alguma coisa senão o alimento mais parcimonioso e sim­ples. Os gongos soaram para o serviço do templo, mas o lama não se moveu. Quando o último dos monges já passara por ali, apressadamente, ele suspirou fundo, e disse:

            Agora, prosseguirei.

            Foi isto o que vimos e ouvimos, e que você verá e ouvi­rá, no futuro não muito distante. Muitos milhares de anos antes, houve uma alta civilização neste mundo. Os homens podiam voar no ar, com máquinas que desafiavam a gravidade. Conseguiram fazer máquinas que imprimiam pensamentos no espírito de outros...pensamentos que se apresentariam como imagens... Dispunham da fissão nuclear, e finalmente detonaram uma bomba que só faltou arruinar o mundo, fazendo com que continentes mergulhassem nos oceanos e outros surgissem à tona. O mundo foi dizimado e assim, por meio das religiões desta terra, temos a história do Dilúvio.

Essa última parte não me impressionou.

Senhor! exclamei. Podemos ver imagens assim, no Registro Akáshico. Para que escalar montanhas perigosas, só para ver o que podemos examinar com mais facilidade aqui?

Lobsang disse meu guia, com ar grave-podemos ver tudo no astral e no Registro Akáshico, pois este último contém o registro de tudo quanto aconteceu. Podemos ver, mas não podemos tocar. Na viagem astral, podemos ir a lugares diversos e regressar, mas não podemos tocar em coisa alguma do mundo. Não podemos disse ele, com um largo sorriso levar sequer um manto de reserva, nem trazer de lá uma flor. O mesmo acontece com o Registro Akáshico. Podemos ver tudo, mas não examinar pormenorizadamente aquelas má­quinas estranhas, guardadas nos salões das montanhas. Vamos às montanhas, e vamos examinar as máquinas.

Que estranho observei que essas máquinas viessem a existir apenas em nosso país, havendo tantos outros lugares no mundo!

Oh! Mas você está errado! explicou meu guia. Há uma câmara semelhante em certo lugar do Egito. Existe outra câmara, com máquinas idênticas, num lugar chamado América do Sul. Eu as vi, sei onde estão. Essas câmaras secretas foram ocultas pelos povos antigos, de modo que seus artefatos fossem encontrados por uma geração posterior, quando chegasse o momento propicio. Esse desabamento repentino de rochas barrou, por acidente, a entrada da câmara no Tibete e, uma vez lá dentro, tomamos conhecimento das demais câmaras. Mas o dia já vai longe. Logo, sete de nós... e isso inclui você...partiremos em jornada mais uma vez para a Caverna dos Antigos.

Durante dias seguidos, minha animação deixou-me febril. Tinha de guardar tal conhecimento sem o transmitir aos demais. Os outros saberiam que íamos partir para as montanhas, em expedição destinada a colher ervas. Até mesmo num lugar tão isolado quanto Lhasa havia quem se mantivesse em vigia cons­tante, procurando o ganho financeiro. Os representantes de outros países, tais como a China, a Rússia e a Inglaterra, alguns missionários, e os comerciantes que vinham da índia, todos esta­vam prontos a ouvir novidades sobre onde guardávamos nosso ouro e jóias, sempre prontos a explorar qualquer coisa que lhes prometesse lucro. Assim, mantivemos em grande segredo a verdadeira natureza de nossa expedição.

Mais ou menos duas semanas depois dessa conversa covn o Lama Mingyar Dondup, estávamos prontos para partir, prontos para a escalada prolongada, muito prolongada das montanhas, passando por ravinas pouco conhecidas e trilhas escarpadas. Os comunistas estão hoje no Tibete, de modo que a localização da Caverna dos Antigos é deliberadamente oculta, pois se trata de um lugar verdadeiro, sem a menor dúvida, e a posse dos artefa­tos ali existentes facultaria aos comunistas a conquista do mundo. Tudo isto, tudo isto que escrevo, é verdade, a não ser o modo exato de chegar àquela Caverna. Em um lugar secreto, o ponto preciso, completo com referências e desenhos, foi anotado em papel, de modo que quando chegar o momento as forças da liberdade possam encontrá-lo.

Devagar, escalamos a trilha da Lamaseria de Chakpori, seguindo para o Kashya Linga, passando por aquele Parque enquanto tomávamos a estrada que leva à barca, onde o barqueiro se achava à nossa espera, com sua embarcação de couro de iaque cheio de ar, à margem da corrente. Éramos sete, eu incluído, e a travessia do rio, o Kyi Chu, levou algum tempo. Finalmente, reunimo-nos outra vez na outra margem. Pondo aos ombros nossas cargas, comida, cordas, um manto de reserva para cada um e algumas ferramentas de metal, partimos em direção ao sudoeste. Caminhamos até que o sol poente e as sombras cada vez mais compridas tornassem difícil a nós ver o caminho, em meio à trilha pedregosa. Depois, na escuridão que se formava, fizemos uma refeição modesta com tsampa, antes de nos deitarmos para dormir, no lado abrigado do vento, em meio a grandes pedras. Adormeci quase no mesmo instante em que apoiei a cabeça no manto de reserva. Muitos monges tibetanos, com o grau de lama, dormem sentados, como determinam os regulamentos. Eu, como muitos outros mais, dormia deitado, mas tinha de seguir a regra de que só poderíamos dormir dei­tados sobre o lado direito. Minha última visão, antes de ador­mecer, foi a do Lama Mingyar Dondup, sentado como uma estátua esculpida, em silhueta contra o céu escuro da noite.

À primeira luz do amanhecer, despertamos e fizemos uma refeição muito frugal. Em seguida, retomando as cargas, prosseguimos a marcha. Andamos por todo aquele dia, e mais o seguinte. Passamos pelos contrafortes e chegamos às cordilheiras realmente montanhosas. Logo éramos reduzidos à neces­sidade de nos amarrarmos por cordas e mandar o homem mais leve era eu! — atravessar fendas perigosas em primeiro lugar, para que as cordas pudessem ser amarradas em pináculos de rocha e, assim, permitir passagem segura aos mais pesados. Assim é que prosseguimos, escalando as montanhas. Final­mente, quando estávamos ao pé de uma enorme fachada rochosa, quase destituída de lugares onde apoiar mãos e pés, meu guia, o Lama Mingyar Dondup, disse:

Passaremos por esta laje, desceremos pelo outro lado, e depois de atravessarmos o vale pequenino que vamos encontrar, estaremos ao pé da Cavirna.

Sondamos ao redor da base da laje, procurando onde se­gurar com as mãos. Aparentemente, outros desabamentos ro­chosos, ao correr dos anos, haviam obliterado as pequenas reentrâncias e rachaduras. Depois de perdermos quase todo um dia encontramos uma "chaminé" de rocha, pela qual subimos, utilizando as mãos e pés, e apoiados com as costas no outro lado da "chaminé". Ofegantes, resfolegando naquele ar rarefeito, subimos ao alto, e dali espiamos. Estava à nossa frente o vale, finalmente.

Fitando com atenção a muralha ao longe, não podíamos perceber caverna alguma, nem qualquer rachadura na superfície lisa da rocha. O vale, lá embaixo, estava coberto de grandes pedras e o que era pior havia um córrego volumoso, um desses cursos de água de montanha, passando pelo centro.

Com cautela, descemos para o vale e seguimos até a mar­gem daquele riacho rápido, chegando a um ponto onde pedras grandes propocionavam uma paisagem difícil àqueles que tinham habilidade para saltar de uma pedra para outra. Eu, que era o menor de todos, não tinha pernas suficientemente compridas para os saltos, de modo que fui ignominiosamente puxado em meio à corrente de água gelada, atado a uma extre­midade de corda. Outro infeliz, lama pequeno e um tanto ro­tundo, errou um salto e também foi puxado na ponta de uma corda. Na margem oposta, torcemos os mantos enchar­cados e voltamos a vesti-los. A água em borrifo nos molhou até a pele. Seguido cautelosamente sobre as pedras, atra­vessamos o vale e nos aproximamos da barreira final, a laje de rocha. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, apontou para uma cicatriz nova na superfície da mesma.

Olhei disse. Um outro desabamento de rochas acabou com o primeiro degrau pelo qual nós subimos.

Recuamos bastante, procurando ter a visão completa da ascensão a empreender. O primeiro degrau estava a uns doze palmos acima do chão, e não havia outro caminho. O lama mais alto e rijo ficou com os braços estendidos, comprimindo-se à face da rocha, e depois o mais leve dos lamas subiu em seus ombros e se colocou igualmente. Finalmente, fui erguido, de •modo a poder subir aos ombros do homem de cima. Tendo uma corda atada à cintura, cheguei ao degrau.

Lá embaixo, os monges davam ordens enquanto, devagar, quase morrendo de medo, eu subia mais, até poder atar a extre­midade da corda a um pináculo da pedra. Acocorei-me ao lado da laje enquanto, um após outro, os seis lamas subiram pela corda passada por mim e continuaram em sua ascensão. O último desatou a corda, atou-a ao redor da cintura e acompanhou os demais. Logo a extremidade pendia diante de mini e um grito me dizia que fizesse um laço ao redor de mim mesmo, para que eu pudesse ser suspenso. Minha altura não bastava para alcançar todos os degraus sem auxílio. Descansei de novo, em etapa bem mais elevada, e a corda foi levada para cima.  Finalmente, vi-me puxado até o degrau mais alto de todos, onde os demais componentes da expedição me esperavam. Sendo homens bondosos e dotados de consideração, haviam aguardado por mim, de modo que pudéssemos entrar todos, juntos, na Caverna, e confesso que meu coração se aqueceu, diante dessa atitude.

Agora, que já suspendemos o Mascote, podemos con­tinuar, resmungou um deles.

Sim repliquei —, mas o menor de todos teve de subir primeiro, do contrário vocês não estariam aqui!

Eles riram e se voltaram para uma fenda bem oculta na rocha.

Eu olhava, imensamente espantado. De início, não con­seguia ver a entrada. Tudo que divisava era uma sombra escura, que se assemelhava ao curso seco de um rio, à mancha de liquens diminutos. E então, ao atravessarmos o ressalto, vi que realmente havia uma fenda na superfície da rocha. Um lama enorme agarrou-me pelos ombros e me empurrou para a entra­da, dizendo em tom bonachão:

            Você, entre primeiro para espantar todos os demônios da rocha, protegendo-nos.

Assim é que eu, o menor e menos importante da comitiva, fui o primeiro a entrar na Caverna dos Antigos. Arrastei-me para fazê-lo, esfregando-me nos cantos de pedra. Atrás de mim, ouvia o arrastar de pés, enquanto os homens mais cor­pulentos apalpavam o caminho. De repente, a luz explodiu sobre mim, e por alguns momentos quase me paralisou de pavor. Permaneci imóvel, agarrado à muralha de rocha, fitando a cena fantástica no interior. A Caverna parecia mais ou menos duas vezes o interior da Grande Catedral de Lhasa. Diversamente daquela Catedral, sempre envolta no crepúsculo que as lâmpadas de manteiga tentavam dissipar sem o conseguir, ali havia clari­dade, muito mais intensa do que a lua cheia em noite sem nuvens Não, era muito mais brilhante do que isso; a qualidade da luz deve ter-me dado a impressão de luar. Olhei para cima. para os globos dos quais vinha a iluminação. Os lamas reu­niam-se a meu lado e, como eu, fitavam primeiramente a fonte de luz. Meu guia disse:

            Os registros antigos indicam que a iluminação aqui já foi muito mais brilhante, que estas lâmpadas estão-se gastando, com a passagem de centenas de séculos.

Por um espaço de tempo prolongado, permanecemos imó­veis, silenciosos, como receando despertar aqueles que dormiam há tantos e tantos anos. E então, movidos por impulso comum, caminhamos pelo chão sólido de pedra até a primeira máquina que se apresentava adormecida à nossa frente. Rodeamo-la, temendo tocá-la, mas muito curiosos quanto ao que podia ser. Estava embotada pela idade, mas ainda assim parecia pronta para uso instantâneo — se alguém soubesse o que era, e como pô-la em funcionamento. Outros dispositivos também atraíram nossa atenção, sem resultado. Aquelas máquinas eram dema­siadamente avançadas para nós. Segui até onde uma pequena plataforma quadrada, com uns três palmos de largura e cor­rimões ao redor, se achava no chão. O que parecia ser um tubo metálico dobrado e comprido estendia-se de uma máquina próxima, e a plataforma estava ligada à outra extremidade do tubo. Ociosamente, pisei no quadrado de corrimões, imagi­nando o que podia ser. No momento seguinte, quase morri de choque. A plataforma teve um pequeno estremecimento e come­çou a erguer-se no ar. Fiquei tão desesperado, que me agarrei aos corrimões.

Lá embaixo, os seis lamas me olhavam, consternados. O tubo se desdobrara, e fazia a plataforma oscilar, levando-a a uma das esferas de luz. Em desespero, olhei para os lados. Já estava a uns dez metros no ar, e continuava subindo. Meu receio era que a fonte de luz me queimasse inteiramente, como uma mariposa à chama de uma lâmpada de manteiga. Houve um estalido e a plataforma se deteve. A poucos centímetros de meu rosto, a luz brilhava. Timidamente, estendi a mão — e toda a esfera, ao que notei, era fria como gelo. A essa altura, já recuperara um pouco da compostura, e olhei ao redor. Nisso, um pensamento assustador me ocorreu: como ia descer dali? Saltei de um lado para outro, procurando o modo de escapar, mas não parecia haver. Tentei alcançar o tubo comprido, contando escorregar por ele, mas estava longe demais. Exatamente quando começava a desesperar, houve outro estremeci­mento e a plataforma começou a descer. Quase sem esperar que ela tocasse o chão, eu saltei! Não ia arriscar-me a subir novamente naquela coisa.

Encostada a uma parede distante, achava-se uma grande estátua, cuja visão me causou um calafrio. Era a de um gato com cabeça e ombros de mulher. Os olhos pareciam estar vivos; o rosto exibia uma expressão entre zombeteira e intrigada, que me assustou bastante. Um dos lamas estava de joelhos no chão, fitando com atenção certas marcas estranhas.

Olhem! exclamou. Esta escrita por imagens mostra homens e gatos conversando, mostra o que é obviamente a alma deixando o corpo e vagando pelos mundos inferiores.

Ele estava absorvido pelo zelo científico, examinando as imagens no chão. "Hieróglifos", foi como os chamou, e contava que todos os demais ficassem igualmente entusiasmados. Aquele lama era um homem de alto preparo, que aprendera as línguas antigas sem qualquer dificuldade. Os demais examinavam as máquinas estranhas, procurando descobrir para que serviam. Um grito repentino fez-nos voltar, com algum alarma. O lama alto e magro estava na parede distante, e parecia ter o rosto enfiado em uma caixa metálica sem brilho. Ali estava ele, a cabeça inclinada, e todo o semblante oculto. Dois homens foram ao seu encontro e o arrastaram do perigo. Ele emitiu um ru­gido de ira e recuou com pressa!

"É estranho!" eu estava pensando. "Até mesmo os lamas calmos e sábios estão ficando loucos, neste lugar!" Em seguida, o lama alto e magro se afastou para o lado, e outro tomou seu lugar. Até onde eu podia perceber, estavam vendo máquinas em movimento naquela caixa. Finalmente, meu guia, o Lama Mingyar Dondup, apiedou-se de mim e me suspendeu até o que, aparentemente, eram "oculares". Quando fui suspenso, e pus as mãos em uma empunhadura, como ele mandava, espiei dentro da caixa e vi homens e as máquinas que se achavam naquele salão. Os homens faziam as máquinas funcionar. Vi que a pla­taforma sobre a qual eu subira até a esfera de luz podia ser controlada, e era um tipo de "escada" móvel, ou melhor, um dispositivo que dispensava as escadas. A maioria das máquinas ali, ao que observei, eram modelos reais que funcionavam, tais como as que, em anos posteriores, eu veria nos Museus Cientí­ficos do mundo.

Passamos ao painel sobre o qual o Lama Mingyar Dondup me falara anteriormente, e à nossa aproximação ele se abriu com rangido, tão alto no silêncio do lugar que creio termos todos dado um salto de susto. Lá dentro havia a escuridão, profunda, quase como se tivéssemos nuvens de negrume rodo­piando em volta. Nossos pés eram guiados por sulcos rasos no chão. Seguimos por ali, e quando os sulcos terminaram, sentamo-nos. Ao fazê-lo, houve uma série de estalidos, como o de metal raspando em metal, e de modo quase imperceptível a luz surgia na escuridão, afastando-a. Olhamos ao redor, e vimos mais máquinas, máquinas escas estranhas. Ali havia estátuas e quadros esculpidos em metal. Mas tínhamos tido tempo de relancear os olhos, e a luz pareceu aumentar, formando um globo incandescente no centro do salão. As cores tremulavam, e faixas de luz, sem significado aparente, giravam ao redor do globo. Formaram-se quadros, de início difusos e indistintos, depois tornando-se vívidos e verdadeiros, com efeito tridimen­sional. Observamos, com grande atenção...

Aquele era o mundo de Época Muito Remota. Quando o mundo era muito novo. As montanhas se apresentavam onde, agora, havia mares, e agradáveis balneários à beira-mar são, hoje, cimos de montanhas. O clima era mais quente, e criaturas estranhas corriam pelo chão. Tratava-se de um mundo de pro­gresso cientifico. Máquinas estranhas passavam por ali, voando a alguma distância da superfície da terra, ou a quilômetros de altura; grandes Templos erguiam os pináculos para o céu, como em desafio às nuvens; os animais e o Homem conversavam telepáticamente entre si. Mas nem tudo era ventura. Políticos lutavam contra políticos, e o mundo se tornou um campo divi­dido, no qual cada lado cobiçava a terra do outro. A descon­fiança e o medo eram as nuvens sob as quais viviam os homens comuns. Os sacerdotes da ambos os lados proclamavam que somente eles eram os favoritos dos deuses. Nas imagens que tínhamos à frente, víamos sacerdotes em arenga, como hoje apresentando seu próprio caminho de salvação. Com um preço, porém! Os sacerdotes de cada seita ensinavam que era "dever sagrado" matar o inimigo. Quase ao mesmo tempo, diziam que a Humanidade, em todo o mundo, era composta de irmãos. O caráter ilógico do fratricídio não lhes passava pela mente.

Vimos grandes guerras sendo travadas, com a maioria das baixas entre os civis. As forças armadas, protegidas por sua blindagem, desfrutavam segurança, em sua maior parte. Os idosos, as mulheres e crianças, aqueles que não lutavam, eram os que mais sofriam. Vimos, em relance, cientistas trabalhando em laboratórios, trabalhando para produzirem armas ainda mais mortíferas, trabalhando para produzirem insetos nocivos, maiores e melhores, para jogarem sobre o inimigo. Uma se­qüência de quadros revelava um grupo de homens meditativos, planejando o que chamavam uma "Cápsula do Tempo" (o que nós chamávamos a Caverna dos Antigos), onde pudessem pre­servar para as gerações posteriores os modelos de suas máqui­nas e um registro pictorial completo de sua cultura e falta de cultura. Máquinas imensas escavaram a rocha viva. Hordas de homens instalaram os modelos e as máquinas. Vimos as esferas de luz fria sendo postas no lugar, substâncias radioativas inertes emitindo luz por milhões de anos. Inertes, por não poderem prejudicar os seres humanos, ativas no sentido de que a luz continuaria, quase até o fim do próprio Tempo.

Verificamos que podíamos compreender a língua, e depois foi dada a explicação de que estávamos obtendo telepaticamente a "preleção". Câmaras como aquela, ou "Cápsulas de Tempo", achavam-se ocultas sob as areias do Egito, sob uma pirâmide na América do Sul, e em certo lugar da Sibéria. Cada lugar era marcado pelo símbolo da época: a Esfinge. Vimos as grandes estátuas da Esfinge, que não se originaram no Egito, e recebemos a explicação de sua forma. O Homem e os animais conversavam e trabalhavam juntos, naqueles dias distantes. O gato era o animal mais perfeito, no que tangia a poder e inteligência. O próprio Homem é um animal, de modo que os Antigos ha­viam feito uma figura de um grande gato, para indicar o poder e a resistência, e sobre esse corpo tinham posto os seios e ca­beça de uma mulher. A cabeça servia para indicar a inteligência humana, enquanto os seios indicavam que o Homem e o animal poderiam extrair alimento espiritual e mental um do outro. Esse símbolo fora tão comum, na época, quanto as Estátuas de Buda, ou a Estrela de Davi, ou o Crucifixo de nossos dias.

Vimos oceanos com grandes cidades flutuantes, que se moviam de uma terra a outra. No céu, pairavam aeronaves igual­mente grandes, que se moviam sem fazer ruído. Elas podiam pairar, e quase no mesmo instante adquirir velocidade estu­penda. Sobre a superfície da terra, veículos se moviam a alguns centímetros acima do chão, apoiados no ar por algum método que não podíamos precisar. Pontes se estendiam sobre as cida­des, transportando em cabos finos o que pareciam ser estradas. Enquanto observávamos, vimos um clarão vívido no céu, e uma das maiores pontes caiu, em emaranhado de cabos e vigas. Outro clarão, e a maior parte da cidade desapareceu, transformada em gás incandescente. Por cima das ruínas, pairava uma nuvem vermelha, de aspecto estranho e mau, com a forma aproximada de um cogumelo com quilômetros de altura.

Os quadros se desfizeram, e voltamos a ver o grupo de homens que havia planejado as "Cápsulas". Haviam decidido ter chegado o momento de fechá-las. Findas as cerimônias, vimos que as "recordações armazenadas" estavam sendo postas na máquina. Ouvimos o discurso de despedida, que nos dizia: "Ao Povo do Futuro, se houver algum!" — dizendo também que a humanidade estava a ponto de se destruir, ou isso parecia pro­vável, "e dentro desses cofres estão guardados os registros de nossas realizações e loucuras, para servirem de benefício àqueles de uma raça futura, que tenham a inteligência de descobri-los e, tendo-os descoberto, consigam compreendê-los". A voz telepá­tica terminou, a tela de imagens enegreceu-se. Ficamos sentados, em silêncio, estupefatos pelo que havíamos visto. Mais tarde, enquanto permanecíamos sentados, a luz voltou e vimos que, na verdade, vinha das paredes daquele aposento. Erguemo-nos e olhamos ao redor. Aquele Salão também estava cheio de máquinas, havendo muitos modelos de cidades e pontes, todos for­mados de algum tipo de pedra, ou algum tipo de metal, cuja natureza não conseguimos determinar. Alguns dos objetos ex­postos estavam protegidos por certo material inteiramente trans­parente, que nos causava perplexidade. Não era vidro; simples­mente não sabíamos o que era, percebendo apenas que o mesmo nos impedia, de modo eficaz, de tocar alguns dos modelos. De repente, todos nós demos um salto; um olho vermelho e malé­fico nos observava, piscando para nós. Eu estava a ponto de sair correndo dali, quando meu guia, o Lama Mingyar Dondup, encaminhou-se para a máquina que ostentava aquele olho ver­melho. Fitou-o, tocando os punhos que ali havia. O olho verme­lho desapareceu e, ao invés dele, sobre tela pequena, vimos uma imagem de outra sala, mais além do Salão Principal. Em nossos cérebros, chegou u'a mensagem: "Ao saírem, vão à sala (???) onde encontrarão os materiais com que fechar qualquer abertura pela qual tenham entrado. Se não atingiram a etapa de evolu­ção em que saibam operar nossas máquinas, fechem este lugar e deixem-no intacto para aqueles que vierem mais tarde".

Em silêncio, passamos para o terceiro aposento, cuja porta se abriu à nossa aproximação. Continha muitos vasilhames, cui­dadosamente fechados, e uma máquina de "pensamento por ima­gem", que descreveu para nós como podíamos abrir os vasi­lhames e fechar a entrada da caverna. Sentamo-nos no chão, falando sobre o que tínhamos visto e assistido.

            Maravilhoso! Maravilhoso! disse um lama.

            Não vejo coisa alguma maravilhosa nisso, disse eu, atrevidamente. Todos nós podíamos ter visto tudo isto, examinando o Registro Akáshico.  Por que não examinamos aqueles quadros da corrente do tempo, para ver o que aconteceu, depois de este lugar ser fechado?

Os demais se voltaram, com ar indagador, para o compo­nente mais graduado da expedição, o Lama Mingyar Dondup... e assentiu de leve e observou:

Às vezes, o nosso Lobsang dá sinais de inteligência! Vamos compor-nos e ver o que aconteceu, pois estou tão curio­so quanto vocês.

Sentamo-nos em posição aproximada à de um círculo, todos de frente para o seu interior, tendo os dedos entrelaçados na forma correta. Meu guia deu início ao ritmo respiratório neces­sário, e todos acompanhamos sua direção. Devagar, perdemos nossas identidades terrenas, tarnando-nos um só, a flutuar no Mar do Tempo. Tudo quanto já aconteceu pode ser visto por quem tenha a capacidade de entrar conscientemente no plano astral, e regressar consciente com o conhecimento assim obtido. Qualquer cena da história, por mais tempo que tenha passado, pode ser vista como se a pessoa realmente estivesse presente.

Lembro-me da primeira vez que experimentei o "Registro Akáshico". Meu guia estivera falando comigo sobre essas coisas, e eu respondera: "Sim, mas o que é ele? Como funciona? Como se pode entrar em contato com coisas que já passaram, que acabaram?" "Lobsang!" ele respondera, "você concordará em que tem uma memória. Consegue lembrar-se do que aconte­ceu ontem, e no dia anterior, e no anterior àquele. Com algum preparo, poderá lembrar-se de tudo que aconteceu em sua vida. Pode lembrar, com preparo, até mesmo do processo de nascer. Pode ter o que chamamos "recordação total" e isso levará sua memória mais além, a um período anterior ao de seu nascimen­to. O Registro Akáshico é apenas a "memória" do mundo inteiro. Tudo quanto já aconteceu nesta terra pode ser "rememorado" do mesmo modo como você pode lembrar-se dos acontecimentos passados de sua vida. Não há mágica nenhuma nisso, mas vamos examinar esse assunto, e o hipnotismo... matéria muito relacionada a ele...em data posterior".

Com nosso preparo, foi realmente fácil localizar o ponto em que a Máquina deixou de apresentar imagens. Vimos a procissão de homens e mulheres, notabilidades da época, sem a menor dúvida, saírem em fila da Caverna. Máquinas com braços enor­mes fizeram deslizar o que parecia ser metade da montanha, cobrindo a entrada. As rachaduras e fendas onde as superfí­cies se encontravam foram cuidadosamente fechadas, e o grupo de pessoas e os trabalhadores se retiraram. As máquinas rola­ram para a distância e, por algum tempo, alguns meses, o cená­rio foi tranqüilo. Depois, vimos um sumo sacerdote de pé nos degraus de uma Pirâmide imensa, exortando seus ouvintes à guerra. As imagens impressas sobre os Pergaminhos do Tempo prosseguiam, mudavam, e vimos o campo oposto. Ali, os diri­gentes faziam arengas, incitavam o povo. O tempo avançava. Vimos faixas de vapor branco no azul do céu, e logo elas se transformavam em vermelho. Todo o mundo estremecia e se sacudia. Observávamos, sentindo vertigem. A escuridão da noite tombou sobre o mundo. Nuvens negras, permeadas de chamas vívidas, circulavam ao redor de todo o globo. As cidades quei­mavam por instantes e desapareciam.

Pela terra encapelavam-se os mares em fúria. Varrendo tudo à frente, uma onda gigantesca, maior do que o mais alto edifício que existira, estrugiu sobre a terra, sua crista carregan­do os detritos e ruínas de uma civilização que morria. A Terra sacudiu-se e trovejou em agonia, grandes abismos surgiram e voltaram a fechar-se, como a goela enorme de um gigante. As montanhas oscilavam, como os ramos de salgueiro numa tempestade, e submergiam nas águas. Massas de terra se erguiam das águas, tornando-se montanhas. Toda a superfície do mundo se achava em estado de transformação, de movimento contínuo. Alguns sobreviventes dispersos, em meio a milhões, fugiam gri­tando para as montanhas que se haviam erguido. Outros, nave­gando em navios que de algum modo tinham conseguido sobre­viver à convulsão, chegavam a terras altas e iam para qualquer abrigo que pudessem encontrar. A própria Terra parou, deteve sua direção de rotação, e em seguida passou a girar na oposta. Florestas ardiam, transformando-se em cinzas no piscar de um olho. A superfície da Terra estava desolada, arruinada, quei­mada, inteiramente. Bem no fundo de buracos, ou nos túneis de lava de vulcões extintos, um punhado disperso da população humana, enlouquecido pela catástrofe, acocorava-se e manifes­tava numa algaravia o seu terror. Dos céus negros caía uma substância esbranquiçada, de gosto doce, e que sustinha a vida.

No decurso de séculos, a Terra voltou a modificar-se. Os mares agora eram terras e as terras que tinham existido eram agora mares. Uma planície baixa tivera suas paredes rochosas rachadas e afundara, e as águas a haviam invadido, para formar o mar hoje conhecido por Mediterrâneo. Outro mar próximo afundou, por uma brecha no seu leito, e quando as águas saíram e o deixaram seco, formou-se o Deserto de Saara. Sobre a superfície da Terra, andavam tribos selvagens que, à luz das fogueiras de seus acampamentos, contavam as lendas antigas, falavam do Dilúvio da Lemúria, e da Atlântida. Falavam, tam­bém, do dia em que o Sol Ficara Parado.

A Caverna dos Antigos jazia sepulta, em meio aos detritos de um mundo semi-afogado. A salvo de intrusos, repousava muito abaixo da superfície da terra. Com o correr do tempo, correntes rápidas removeram os detritos, a terra de aluvião, per­mitindo que mais uma vez as rochas se apresentassem à luz do sol. Finalmente, aquecida pelo sol e resfriada por uma chuva repentina e gelada, a face da rocha se partiu, com ruído estron­doso, e nós conseguimos entrar.

Sacudimo-nos, estendendo os membros entorpecidos, e nos pusemos em pé, cansados. Havíamos passado por algo que muito nos abalara. Agora, tínhamos de comer, dormir e na manhã se­guinte olharíamos outra vez por ali,, para talvez aprendermos alguma coisa. E, então, nossa missão cumprida, fecharíamos a entrada, como fora indicado. A Caverna voltaria a dormir em paz, até que os homens de boa vontade e alta inteligência re­gressassem. Segui para a boca da Caverna e fitei a desolação, as rochas, e imaginei o que um homem dos Velhos Tempos pensaria, se pudesse erguer-se da sepultura e se pusesse a meu lado, naquele lugar.

Quando voltava para o interior, maravilhei-me com o contraste; um lama acendia fogueira, com isca e madeira seca, queimando excremento seco de iaque, que havíamos trazido para esse fim. Ao redor, estavam os artefatos e máquinas de uma era extinta. Nós, homens modernos, aquecíamos água sobre um fogo de estrume, cercados por máquinas tão maravilhosas que se achavam além de nossa compreensão. Suspirei e dirigi meus pensamentos à tarefa de misturar o chá com tsampa.

 

O culto matutino terminara e nós, os meninos, seguíamos as pressas para nossa sala de aula, acotovelando-nos e empurrando-nos, no esforço por não sermos o último. Não devido a um grande interesse pela educação, de nossa parte, mas porque o Mestre daquela matéria tinha o hábito horrível de dar uma varada no último que se apresentasse! Eu, alegria das alegrias, consegui ser o primeiro, refestelando-me no brilho da aprovação do sorriso do Mestre. Com impaciência, ele fez sinal aos demais para que se apressassem, de pé à porta e dando pescoções nos que lhe pareciam lentos demais. Finalmente, estávamos todos sentados, de pernas cruzadas, sobre as esteiras estendidas no chão. Como é nosso costume, ficávamos de costas para o Mestre, que constantemente patrulhava por trás, de modo que nunca sabíamos onde ele estava, e assim tínhamos de estudar com afinco.

            Hoje, vamos verificar como todas as religiões são semelhantes, — entoou ele. — Já observamos como a história do Dilúvio é comum a todas as crenças, em todo o mundo. Agora, vamos dedicar atenção ao tema da Virgem Mãe. Até a inteli­gência mais retardada — disse fitando-me com expressão dura — sabe que nossa Virgem Mãe, a Bem-aventurada Dolma, a Virgem Mãe de Misericórdia, corresponde à Virgem Mãe de certas seitas da Fé Cristã.

Passos apressados se detiveram à entrada da sala. Um monge-mensageiro entrou, fazendo profunda mesura para o Mestre.

           Saudações a ti, Homem Erudito, — murmurou. — O Senhor Lama Mingyar Dondup apresenta seus cumprimentos e pede que Terça-Feira Lobsang Rampa seja dispensado da aula imediatamente... a questão é urgente.

O Mestre fez uma careta.

            Menino! — trovejou. — Você é uma amolação, e per­turba a turma. Dê o fora!

Mais do que depressa, fiquei em pé, fiz mesura para o Mestre, e saí correndo atrás do Mensageiro, também apressado.

O que é? — perguntei, em arquejo.

Não sei, — disse ele. — Também estou querendo saber. O Lama Dondup preparou os objetos de cirurgia, e os cavalos também.

Prosseguimos em carreira.

            Ah! Lobsang! Você, então, sabe apressar-se! — disse meu guia, rindo, quando chegamos a ele. — Nós vamos à Aldeia de Shö, onde precisam de nossos serviços cirúrgicos.

Dito isso, montou em seu cavalo e fez-me sinal para que montasse no meu. Isso era sempre uma operação difícil; os cavalos e eu jamais parecíamos ter os mesmos projetos, quando se tratava de montar. Segui em direção a ele, e a criatura andou de lado, afastando-se de mim. Passei para o outro lado, e dei um salto, depois de correr, antes que o cavalo percebesse o que se passava. Em seguida, procurei imitar os liquens das monta­nhas, na tenacidade de meu apego à cela. Bufando com resig­nação exasperada, o animal se voltou sem que fosse preciso comandá-lo, e acompanhou o cavalo de meu guia, descendo a trilha. Aquele animal em que eu estava tinha o hábito horrível de parar nos pontos mais íngremes e olhar pela borda, baixando a cabeça e fazendo uma espécie de bamboleio. Eu acredito fir­memente que esse animal fosse dotado de um senso de humor (muito inoportuno!) e percebesse de modo completo o efeito que causava em mim. Descemos pela trilha e logo passávamos pelo Pargo Kaling, o Portão Ocidental, chegando assim à Aldeia de Shö. Meu guia seguiu à frente pelas ruas, até chegarmos a um edifício grande, que reconheci como sendo a prisão. Guar­das saíram de lá correndo, ficando com nossos cavalos. Apanhei as duas bolsas de meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e as levei, entrando naquele lugar sombrio. Tratava-se de um lugar desagradável, horrível, eu sentia o cheiro do medo, via as for­mas de pensamento más, criadas pelos transgressores. Era, por certo, um lugar cuja atmosfera fazia com que meus cabelos ficassem em pé.

Acompanhei meu guia, indo ter a uma sala bastante gran­de. A luz do sol entrava pelas janelas. Bom número de guardas ali se encontrava, e à espera para saudar o Lama Mingyar Don­dup estava um Magistrado de Shö. Enquanto conversavam, olhei ao redor. Ali, ao que achei, era onde os criminosos se viam julgados e condenados. Pelas paredes, viam-se registros e livros. Sobre o chão, a um lado, um amontoado que gemia. Olhei em sua direção, e ao mesmo tempo ouvi o Magistrado conversando com meu guia:

            Chinês, um espião, ao que julgamos, Honrado Lama. Procurava subir a Montanha Sagrada, aparentemente querendo infiltrar-se na Potala. Escorregou e caiu. De que altura? Talvez uns trinta metros. Está em más condições.

Meu guia adiantou-se, e eu fui ter a seu lado. Um homem retirou as cobertas, e diante de nós tínhamos um chinês de meia idade. Era bem pequeno, parecendo criatura de agilidade notá­vel — algo assim como um acrobata —, eu estava pensando. Agora, gemia de dor, o rosto molhado de suor e a pele apre­sentando uma tonalidade de lama esverdeada.

O homem se encontrava em mau estado, estremecendo e comprimindo os dentes em agonia. O Lama Mingyar Dondup olhou para ele, tomado de compaixão.

            Espião, talvez assassino, seja lá o que for, temos de fazer algo por ele, — afirmou.

Ato contínuo, ajoelhou-se ao lado do homem e pôs as mãos nas têmporas do sofredor, fitando-lhe os olhos. Em questão de segundos o acidentado descansava, olhos entreabertos, um leve sorriso nos lábios. Meu guia afastou mais as cobertas e inclinou-se sobre suas pernas. Senti-me enojado diante do que via: os ossos da perna do homem apareciam, trespassando-lhe as calças. As pernas pareciam completamente estraçalhadas. Com uma faca aguda, meu guia cortou a roupa do homem. Houve um arquejo por parte dos observadores, ao verem as pernas com ossos intei­ramente partidos, dos pés às coxas. O lama, com gestos gentis, apalpou-as. O homem ferido não se moveu nem contorceu, pois estava profundamente hipnotizado. Os ossos da perna rangiam, como o som de sacos de areia cheios pela metade.

Os ossos estão partidos demais para ajustar, disse meu Guia. — As pernas parecem pulverizadas, teremos de ampu­tá-las.

Honrado Lama — disse o Magistrado —, pode desco­brir o que ele estava fazendo? Receamos que fosse um assas­sino.

Antes disso, retirar-lhe-emos as pernas, — respondeu o Lama. — Depois poderemos indagar a ele.

Inclinou-se novamente sobre o homem, e mais uma vez fitou-lhe os olhos. O chinês pareceu descansar ainda mais, en­trando num sono profundo.

Eu abrira as bolsas, e pusera o fluido herbáceo esterilizante na tigela. Meu guia mergulhou as mãos, para que se encharcassem. Eu já preparara seus instrumentos, em outra tigela. Sob a direção dele, lavei o corpo e as pernas do homem. Quando toquei nas mesmas, tive uma sensação singular; parecia que tudo fora estraçalhado. Agora, elas apresentavam uma cor azul, sarapintada, com as veias a se assemelharem a cordéis negros. Seguindo as instruções de meu guia, que ainda empapava as mãos, coloquei faixas esterilizadas tão altas quanto pude nas pernas do chinês, onde elas reuniam ao corpo. Enfiando um bastão em um laço, apertei até que a pressão fez parar a circula­ção. Com grande rapidez, o Lama Mingyar Dondup apanhou uma faca e cortou a carne, em forma de um "v". Na ponta desse "v", serramos o osso — o que restava dele — e depois do­bramos as duas abas do "v", de modo que a extremidade do osso ficasse protegida por uma capa dupla de carne. Entreguei-lhe fio, feito das partes esterilizadas de um iaque, e com rapidez ele costurou essas abas, bem apertadas. Devagar, com cuidado, fui soltando a pressão na faixa que apertava a perna do homem, pronto a apertá-la novamente se o coto sangrasse. A costura se agüentou, nenhum sangue saiu. Por trás de nós, um guarda vomitava com violência, tornando-se branco como gesso, e cain­do em desmaio!

Com cuidado, meu guia fez curativos no coto e mais uma vez lavou as mãos na solução. Dediquei minha atenção à outra perna, a esquerda, e passei o bastão pelo laço da presilha. O lama assentiu, e eu fiz girar novamente o bastão, para impedir que o sangue corresse para aquela perna. E logo a mesma estava ao lado da outra, separada do corpo. Meu guia voltou-se para um guarda que o observava, e lhe disse que levasse as pernas, embrulhando-as em tecido.

— Devemos devolver essas pernas à Missão Chinesa, — disse o lama. — Do contrário, eles dirão que ele foi torturado. Pedirei a Sua Santidade que esse homem seja devolvido à sua gente. A missão dele não importa; ela fracassou, como todas as tentativas assim fracassarão.

- Mas, Honrado Lama! — disse o Magistrado. — O homem devia ser forçado a nos contar o que estava fazendo, e o motivo.

Meu guia não disse coisa alguma, mas voltou-se novamente para o homem hipnotizado, fitando-lhe profundamente os olhos agora abertos.

            O que estavas fazendo? — perguntou.

O homem gemeu, e revirou os olhos. Meu guia perguntou-lhe, de novo:

            O que ias fazer? Ias assassinar uma Grande Pessoa, dentro da Potala?

Espuma surgia ao redor da boca do chinês e então, com relutância, ele assentiu, confirmando.

            Fala! — ordenou o lama. — Um assentimento não basta.

E assim, devagar, penosamente, a história se apresentou. Era um assassino, pago para assassinar, pago para criar pro­blemas num país pacífico. Um assassino que fracassara, como todos fracassariam, por não conhecerem nossos dispositivos de segurança! Enquanto eu pensava nisso, o Lama Mingyar Dondup se punha em pé.

            Irei ver O Mais Precioso, Lobsang. Você fique aqui, e guarde esse homem — ordenou.

O chinês gemeu.

Vão matar-me? — perguntou, com voz débil.

Não! — respondi. — Não matamos ninguém.

Umedeci-lhe os lábios, enxuguei-lhe a testa. Ele logo vol­tava à tranqüilidade; creio que tenha dormido, após aqueles momentos difíceis. O Magistrado o fitava com ar azedo, achando que os sacerdotes eram loucos em querer salvar um assassino frustrado. O dia se arrastava. Guardas vinham, outros iam. Eu sentia o estômago doer de fome. Finalmente, ouvi passos conhe­cidos, e o Lama Mingyar Dondup entrou na sala. Primeira­mente, veio e examinou o paciente, verificando se o homem estava em conforto tão grande quanto as circunstâncias permi­tiam, e que os cotos não sangravam. Pondo-se em pé, olhou para o funcionário leigo mais graduado e disse:

            Em virtude da autoridade que me dá O Mais Precioso, ordeno que providencie duas macas, imediatamente, e leve este homem, com as pernas dele, para a Missão Chinesa.

Dito isso, voltou-se para mim:

            Você acompanhará esses homens, e me informará, se eles se mostrarem desnecessariamente brutos, ao transportá-lo.

Eu me sentia claramente insatisfeito; ali estava aquele assassino, com as pernas amputadas — e meu estômago rugindo, tão sem comida quanto um tambor de templo. Enquanto os homens se ausentavam, procurando macas, saí correndo, para onde vira os funcionários tomando chá! Com voz altaneira, exigi — e consegui — uma boa porção. Enfiando tsampa afobada­mente pela garganta abaixo, regressei correndo.

Em silêncio, taciturnos, os homens entraram na sala, atrás de mim, trazendo duas liteiras brutas, feitas de tecido estendido entre as varas. Mal-humorados, recolheram as duas pernas e as puseram em uma das macas. Com gentileza, sob os olhos vigilantes do Lama Mingyar Dondup, colocaram o chinês sobre a outra. Cobriram-lhe o corpo com um pano, e o amarraram sob a maca para que ele não pudesse cair da mesma. Meu guia vol­tou-se para o funcionário leigo mais graduado e disse:

            Tu acompanharás esses homens, e apresentarás meus cumprimentos ao Embaixador Chinês, dizendo-lhe que estamos devolvendo um de seus homens. Você, Lobsang — disse, voltando-se para mim —, vai acompanhá-los e ao regressar apre­sente-se a mim.

Dito isso, afastou-se, e os homens saíram da sala. O ar estava frio, lá fora, e eu estremeci em meu manto fino. Segui­mos pelo Mani Lhakhang, indo à frente os homens que carregavam as pernas, e depois os dois que carregavam a maca com o chinês. Eu seguia a um lado, e o funcionário leigo mais graduado ao outro. Entramos à direita, passamos os dois Parques e prosseguimos rumo à Missão Chinesa.

Com o Rio Feliz rebrilhando à nossa frente, exibindo pon­tos de luz em meio às árvores, chegamos à muralha externa da Missão. Resmungando, os homens baixaram suas cargas por algum tempo, enquanto descansavam os músculos doloridos, olhando com curiosidade a muralha da Missão. Os chineses se mostravam muito ofendidos com alguém que procurasse entrar ali. Houvera casos de meninos que tinham levado tiros "por aci­dente", ao traspassarem a muralha, como crianças gostam de fazer. Agora, íamos entrar! Cuspindo nas mãos, os homens se inclinaram e voltaram a apanhar as macas. Prosseguindo, entra­mos à esquerda para a Estrada Lingkor, chegando às dependên­cias da Missão. Homens de aspecto patibular vieram à porta, e o funcionário mais graduado disse:

            Tenho a honra de devolver-lhe um de seus homens, que procurou entrar no Terreno Sagrado. Ele caiu, e foi preciso amputar-lhe as pernas. Aqui estão elas, para que vocês as examinem.

Guardas chineses, fazendo caretas de desagrado, apanharam as macas e entraram com elas no edifício, levando o homem e suas pernas. Outros, apontando-nos armas, fizeram-nos gestos para que nos retirássemos. Voltamos pela trilha, e eu me escondi atrás de uma árvore, sem ser visto. Os demais prosseguiram. Gritos agitaram o ar. Olhando ao redor, vi que não havia guar­das ; todos tinham entrado na Missão. Tomado por impulso tolo, deixei a segurança duvidosa da árvore e corri silenciosamente para a janela. O homem ferido estava estendido no chão, um dos guardas se sentara sobre seu peito, enquanto dois outros esta­vam sentados sobre seus braços. Um quarto guarda encostava cigarros acesos aos cotos amputados. De repente, o quarto ho­mem se pos de pé, sacou o revólver e disparou no ferido, entre os olhos.

Um graveto estalou atrás de mim. Imediatamente, pus-me de joelhos e me voltei. Outro guarda chinês surgira, e apon­tava para mim com um fuzil, visando o ponto onde minha ca­beça estivera. Mergulhei entre suas pernas, fazendo-o cair e soltar o fuzil. Com pressa, corri de uma árvore para outra. Tiros vinham pelos galhos baixos, e havia o ruído de pés em carreira, atrás de mim. Ali, a vantagem era toda minha; eu era ligeiro, e os chineses paravam muitas vezes para disparar. Voltei cor­rendo à parte traseira do jardim o portão já estava guardado e subi numa árvore que servia para isso, e me arrastei por um de seus galhos, de modo a poder cair sobre a muralha. Se­gundos depois, estava de volta na estrada, à frente de meus con­cidadãos, que haviam carregado o ferido. Assim que ouviram o que eu tinha a narrar, apressaram os passos. Já não retardavam mais o passo, na esperança de ver alguma coisa animada; que­riam, agora, evitar tudo isso. Um guarda chinês saltou do alto da muralha para a estrada, fitando-me com o ar mais descon­fiado. Retribuí-lhe o olhar, com uma expressão cândida. Fazen­do uma careta, murmurando uma praga que falava mal de meus pais, ele se voltou para o outro lado. Nós passamos a andar com mais velocidade!

De volta na Aldeia de Shó, separei-me dos homens. Olhan­do um tanto apreensivamente sobre o ombro, apressei-me e logo subia a trilha para Chakpori. Um velho monge, descansando à beira do caminho, chamou:

O que há com você, Lobsang? Está com aspecto de quem se acha perseguido por todos os Demônios!

Prossegui correndo e, sem fôlego, entrei na sala de meu guia, o Lama Mingyar Dondup. Par momentos, fiquei ali resfolegando, procurando recuperar o fôlego.

            Puxa! arquejei, finalmente. Os chineses mataram aquele homem; mataram com tiro!

Em torrente de palavras, narrei-lhe o que acontecera. Meu guia ficou silente, poi momentos. Depois disse:

            Você vai ver muita violência em sua vida, Lobsang, e por isso não fique demasiadamente agitado com este fato. Tra­ta-se do método comum da diplomacia: matar aqueles que fracassam, e renegar os espiões que sejam apanhados. Isso é feito em toda parte do mundo, em todos os países do mundo.

Sentados à frente de meu guia, recuperando-me na sere­nidade calma de sua presença, pensei em outro assunto que me perturbava.

            Senhor! exclamei. Como funciona o hipnotismo?

Ele me fitou, tendo um sorriso nos lábios.

            Quando foi que você comeu pela última vez? con­trapôs.

Em um só assomo, toda minha fome voltou.

Oh, há umas doze horas, respondi, um tanto con­trafeito.

Nesse caso, vamos comer agora, aqui, e depois, quando estivermos um tanto mais fortes, poderemos falar sobre hipno­tismo.

Com um gesto de mão, fez-me calar, permanecendo na atitude de meditação. Percebi a mensagem telepática que mandava a seus criados comida e chá. Percebi, também, a mensa­gem telepática a alguém na Potala, alguém que tinha de ir falar com O Mais Precioso, depressa, para fazer relatório detalhado. Mas minha "interceptação" da mensagem telepática foi inter­rompida pela entrada de um criado trazendo comida e chá.

Voltei a sentar-me, cheio de comida, sentindo-me ainda mais desagradavelmente repleto. O meu dia fora duro, eu pas­sara fome durante muitas horas, mas (o pensamento me perturbava, intimamente) havia comido em demasia, e impruden­temente, naquele momento? De repente, com ar desconfiado, olhei para cima. Meu guia me fitava, e era óbvio em seu sem­blante que ele havia achado graça em minha atitude.

            Sim, Lobsang, observou. Você comeu demais. Espero que consiga acompanhar minha prekção sobre o hipno­tismo.

Examinou meu rosto enrubescido, e seu próprio olhar abrandou-se.

            Pobre Lobsang, você teve um dia difícil. Vá descansar agora, e continuaremos com a nossa preleção amanhã.

Ergueu-se, deixando a sala. Consegui pôr-me em pé, com esforço, e segui quase trôpego pelo corredor. Dormir! Era tudo quanto queria. Comida? Ora, bolas! Tivera-a em demasia. Cheguei a meu local de dormir, envolvendo-me nos mantos. O sono foi agitado, não houve dúvida; tive pesadelos, no qual chineses sem pernas corriam atrás de mim, em meio a árvores, e outros chineses, com armas, não paravam de saltar sobre meus ombros, na tentativa por derrubar-me.

"Bumba!" fez minha cabeça, batendo no chão. Um dos guardas chineses desferia-me pontapés. "Bumba!" e minha cabeça bateu de novo. Sem ver direito, abri os olhos e lá estava um acólito, batendo em minha cabeça com energia, e dando­-me pontapés, na tentativa desesperada por despertar-me.

Lobsang! — exclamou, ao ver que eu abri os olhos. — Lobsang, pensei que você estava morto. Você dormiu a noite toda, faltou aos cultos; e somente a intervenção de seu Mestre, o Lama Mingyar Dondup, o salvou dos Inspetores. Acorde! — gritou, pois eu quase voltava a dormir.

A consciência veio inundar-me. Pelas janelas, vi os raios do sol matutino, que parecia fitar-nos por cima dos altos Himalaias, iluminando os edifícios mais altos no vale, mostrando os tetos dourados do Sera distante, brilhando sobre o cimo do Pargo Kaling. Ontem- eu fora à Aldeia de Shö. Ah! Aquilo não fora sonho. Hoje, hoje eu contava faltar a algumas au­las e aprender diretamente com meu amigo Mingyar Dondup. Aprender coisas sobre o hipnotismo, além disso! Logo termi­nava o desjejum e seguia para a sala de aula, não para ali ficar e fazer récitas dos cento e oito Livros Sagrados, mas a fim de explicar o motivo pelo qual não o fazia!

Senhor! — disse, ao ver que o Mestre acabava de entrar na sala. — Senhor! Tenho de estar com o Lama Mingyar Dondup hoje. Suplico ser dispensado da aula.

Ah, sim! Sim, meu menino — disse o Mestre, em tom de voz espantosamente cordial. — Estive conversando com o Santo Lama, seu guia. Ele teve a bondade de fazer comentários favoráveis, a seu respeito, quanto ao progresso que tem efetuado sob meus cuidados; confesso estar reconhecido, reco­nhecidíssimo.

Para meu espanto maior, ele estendeu a mão e bateu-me no ombro, antes de entrar na sala de aula. Perplexo, e sem saber que tipo de mágica haviam feito com ele, segui em direção aos Alojamentos dos Lamas.

Eu seguia, sem qualquer preocupação, leve como uma plu­ma. Ao passar por uma porta entreaberta... "Epa!" exclamei de repente, fazendo uma parada repentina. "Nozes em con­serva!" O odor delas era bem forte. Voltando atrás, em silên­cio, espiei pela porta. Um velho monge, de cabeça baixa, pa­recia estar olhando o chão, murmurando coisas que não eram suas orações, deplorando o desaparecimento de toda uma jarra de nozes em conserva, que de algum modo fora trazida da Índia.

            Posso ajudar, Reverendo Lama? — perguntei, educadamente.

O velho voltou para mim o rosto feroz, e fez um comen­tário de tal natureza que eu segui correndo pelo corredor, enquanto o podia fazer.

Todas aquelas palavras, só por causa de umas castanhazinhas! — comentava comigo mesmo, cheio de desgosto.

Entre! — disse meu guia, quando me aproximava de sua porta. — Pensei que você tinha voltado a dormir.

Senhor! — disse eu. — Vim ter aqui para receber sua instrução. Estou ansioso por conhecer a natureza do hipnotismo.

Lobsang — disse meu guia —, você tem muito mais a aprender, além disso. Em primeiro lugar, tem de aprender a base para o hipnotismo. De outra forma, não sabe exatamente o que faz. Sente-se.

Eu me sentei, as pernas cruzadas, naturalmente, sobre o chão. Meu guia estava sentado à minha frente. Por algum tem­po, pareceu imerso em pensamentos, e depois disse:

            A esta altura, você deve ter compreendido que tudo é vibração, eletricidade. O corpo tem muitas substâncias químicas diferentes em sua composição. Algumas delas são levadas ao cérebro, pela corrente sangüínea. O cérebro, como você sabe, recebe o melhor suprimento de sangue e das substâncias químicas que ele contém. Esses ingredientes, potássio, man­ganês, carbono e muitos outros, formam o tecido cerebral. A interação deles cria uma oscilação singular de moléculas, a que chamamos uma "corrente elétrica". Quando alguém pensa, põe em movimento uma cadeia de circunstâncias que resultam na formação dessa corrente elétrica, e daí as "ondas cerebrais"

Pus-me a pensar em tudo aquilo; mas não conseguia per­ceber. Se havia "correntes elétricas" em meu cérebro, por que motivo eu não sentia o choque das mesmas? Aquele menino que estivera soltando papagaio, ao que me lembrava, fazia isso durante uma tempestade elétrica.Eu me lembrei do clarão azul e vívido, quando o relâmpago percorreu sua linha úmida do papagaio; lembrei-me, com estremecimento, como ele tom­bara ao chão, transformado num monte seco e frito de carne. E, certa feita, também eu recebera um choque da mesma fonte, um simples formigamento comparado ao outro, mas "formi­gamento" suficiente para me atirar a três metros de distância.

            Honrado Lama! — protestei. — Como pode haver eletricidade no cérebro? Isso poria o homem enlouquecido de dor!

Meu guia riu de mim.

            Lobsang! — disse, com uma risadinha. — O choque que você levou uma vez proporcionou-lhe idéia inteiramente incorreta sobre a eletricidade. A quantidade de eletricidade no cérebro é muito pequena. Instrumentos delicados podem medi-la, e traçar as variações, enquanto alguém pensa ou empreende alguma ação física.

A idéia de um homem medindo a voltagem de outro era quase demasiada para mim, e comecei a rir. Meu guia simples­mente sorriu, dizendo:

            Esta tarde; vamos andar até a Potala. O Mais Pre­cioso tem lá um dispositivo que nos permitirá conversar com mais facilidade sobre essa questão de eletricidade. Vá divertir-se agora... faça uma refeição, vista o melhor manto que tem, e encontre-se comigo aqui, quando o sol estiver no meio-dia.

Ergui-me, fiz mesura e me retirei.

Por duas horas perambulei por ali, andando no teto e ati­rando pedrinhas na cabeça dos monges que passavam lá embaixo, e que de nada desconfiavam. Cansando-me desse brinquedo, desci de cabeça para baixo por um alçapão, que dava para um corredor escuro. Pendurado, de cabeça pára baixo, pelos pés, cheguei exatamente a tempo de ouvir passos que se aproximavam. Não podia ver, porque o alçapão ficava a um canto. Pondo a língua para fora e fazendo uma cara de ferocidade, fiquei à espera. Um velho fez a volta e, não podendo ver, esbarrou em mim. Minha língua úmida tocou-lhe a face. Ele deu um grito e deixou cair a bandeja que carregava, com estron­do, desaparecendo com velocidade surpreendente para um ho­mem de tal idade. Também eu recebi uma surpresa: quando o velho monge esbarrara em mim, deslocara meus pés de seu sustentáculo precário. Caí de costas no corredor. O alçapão se fechou, com estrondo, e toda uma carga de poeira sufocante caiu sobre mim! Pondo-me em pé, estonteado, saí correndo tão depressa quanto pude, na direção oposta. Ainda aturdido pelo choque, mudei de manto e fiz uma refeição. O choque não fora bastante forte para me levar a esquecer isso!

Pontualmente, quando as sombras desapareciam e o dia chegava à sua metade, apresentei-me a meu guia. Com algum esforço, ele conseguiu apresentar-me um semblante calmo, ao me ver.

— Um monge idoso, Lobsang, jura ter sido atacado por um demônio, no corredor do Norte. Um grupo de três lamas foi para lá, a fim de exorcizar o demônio. Não há dúvida de que estarei fazendo minha parte, se o levar... e é você... à Potala, como ficou combinado. Venha!

Voltou-se e saiu da sala. Eu o acompanhei, lançando olha­res apreensivos ao redor. Afinal de contas, nunca se sabia ao certo o que aconteceria, se os lamas estivessem exorcizando. Eu tinha visões vagas, nas quais me via flutuando no ar, rumando para destino desconhecido e provavelmente incômodo.

Saímos do edifício, indo ter ao ar livre. Dois pôneis esta­vam prontos, seguros por cavalariços. O Lama Mingyar Dondup montou, e desceu lentamente a montanha. Fui ajudado a mon­tar, e um dos palafreneiros desferiu uma palmada brincalhona no meu pônei. Também o animal parecia estar com vontade de brincar. Baixou a cabeça, ergueu o traseiro e, descrevendo um arco no ar, fez-me escorregar de suas costas. Um palafre­neiro voltou a segurar o animal, enquanto eu me levantava do chão e sacudia a poeira do manto. Voltei a montar, atento, para evitar que os palafreneiros se saíssem com outra.

O pônei sabia que estava com um pateta a bordo. O ani­mal estúpido continuava andando pelos lugares mais perigosos, detendo-se à beira dos mesmos. Ali, baixava a cabeça e fitava com ânsia o chão rochoso lá embaixo. Finalmente, desmontei e puxei o pônei atrás de mim. Assim, andava mais depressa. No sopé da Montanha de Ferro, montei novamente e acompanhei o meu guia, entrando na Aldeia de Shö. Ele tinha algo a fazer ali, o que nos deteve por algum tempo. Foi o bastante para que eu me recuperasse, em fôlego e na compostura, estraça­lhada no tombo. Depois, montando de novo, subimos a Es­trada da Potala, larga e de degraus. Com satisfação, entreguei meu pônei aos palafreneiros que encontramos. Com satisfação ainda maior, acompanhei o Lama Mingyar Dondup a seu pró­prio apartamento. Meu prazer era tanto maior quanto eu sabia que ficaria ali por um ou dois dias.

Não tardou o momento de comparecer ao culto no Templo lá embaixo. Ali na Potala, os serviços religiosos eram — como eu julgava — excessivamente formais, a disciplina rigorosa demais. Tendo-me divertido mais do que cabia em um dia, bem como sofrendo muitos pequenos ferimentos, tratei de apre­sentar meu melhor comportamento, e o serviço se concluiu sem incidentes. Era já coisa aceita que, quando o meu guia se achasse na Potala, eu ocupasse um pequeno quarto ao lado do dele. Fui para lá, sentando-me para aguardar os acontecimentos, sabendo que o Lama Mingyar Dondup estava dedicado a ques­tões de estado, com um funcionário de alta graduação, que re­gressara recentemente da Índia. Era fascinante espiar pela janela e ver a Cidade de Lhasa a distância. A visão apresen­tava beleza insuperável: lagos orlados por salgueiros, fulgores dourados vindos do Jo Kang, e a multidão fervilhante de pere­grinos que erguia seu clamor ao pé da Montanha Sagrada, na esperança de ver O Mais Precioso (que se achava na resi­dência) ou, ao menos, algum alto funcionário. Um cordão interminável de comerciantes e seus animais seguia devagar pelo Pargo Kaling. Fiquei pensando, por momentos, nas cargas exóticas que traziam, mas fui interrompido por passos leves atrás de mim.

— Vamos tomar chá, Lobsang, e depois prosseguiremos com nossa palestra, — disse meu guia, que acabara de entrar.

Eu o acompanhei a seu quarto, onde encontramos alimentos muito diferentes daqueles geralmente servidos a um monge pobre. Chá, naturalmente, mas havia também coisas doces, tra­zidas da Índia. Era tudo de meu agrado, muito de meu agrado! De modo normal, os monges não falam, enquanto comem; isso é considerado desrespeito ao alimento, mas naquela ocasião o meu guia disse que os russos procuravam criar problemas para o Tibete, e procuravam infiltrar espiões em nosso país. Logo terminamos a refeição, e seguimos para os aposentos onde o Dalai Lama guardava muitos dispositivos estranhos, vindos de terras distantes. Por algum tempo, ficamos a examiná-los, ape­nas, o Lama Mingyar Dondup indicando objetos estranhos e explicando o uso que tinham. Finalmente, ele se deteve a um canto da sala, dizendo:

            Olhe para isto, Lobsang!

Fui ter a seu lado, e não fiquei impressionado, em absoluto, pelo que via.

Diante de mim, sobre uma mesinha, havia uma jarra de vidro. Em seu interior, havia dois fios finos pendentes, cada qual sustentando em sua extremidade uma pequena esfera de algo que parecia ser medula de salgueiro.

            É medula! — comentou meu guia, secamente, quando manifestei minha opinião. — Você, Lobsang, pensa na eletricidade como algo que dá choque. Existe outra espécie, ou manifestação, a que chamamos eletricidade estática. Agora, observe!

Da mesa, o Lama Mingyar Dondup retirou um bastão luzi­dio, com mais ou menos um palmo de comprimento. Esfregou-o com rapidez no manto, e depois o levou para perto da jarra de vidro. Para minha enorme surpresa, as duas esferas de medula se afastaram, com violência — e permaneceram afastadas, mes­mo quando o bastão foi retirado.

            Continue observando! — exortou meu guia.

Pois bem, era exatamente o que eu fazia. Após alguns minutos, as bolas de medula desceram novamente, devagar, sob o chamamento normal da gravidade. E logo estavam pendentes, em vertical, como acontecera antes da experiência.

Faça você, agora, — disse o lama, estendendo-me o bastão negro.

Pela Bem-aventurada Dolma! — gritei. — Eu não vou tocar nessa coisa!

Meu guia dava gargalhadas, ao ver o ar mais do que agi­tado por mim exibido.

Tente, Lobsang — disse, com suavidade —, porque eu nunca fiz uma brincadeira de mau gosto com você, até hoje.

Sim — resmunguei —, mas uma vez é sempre a pri­meira.

Ele me obrigou a segurar o bastão. Com cuidado, apanhei o objeto horrível. Relutando, temeroso (esperando um choque a qualquer momento), esfreguei o bastão em meu manto. Não houve sensação alguma, nenhum choque ou formigamento. Finalmente, eu o levei em direção à jarra de vidro e — maravilha das maravilhas! — as bolas de medula se afastaram outra vez!

            Como vê, Lobsang — observou meu guia —, a eletri­cidade está em ação, mas você não sente choque algum. É essa a eletricidade do cérebro. Venha comigo.

Levou-me a outra mesa, sobre a qual se achava um dispo­sitivo dos mais notáveis. Parecia ser uma roda, sobre cuja superfície havia numerosas placas de metal. Dois bastões eram fixos, de modo que um feixe de fios vindos de cada um tocava de leve duas dessas placas. Dos bastões, fios iam ter a duas esferas de metal, distantes uma da outra mais ou menos um palmo. Aquilo tudo não fazia sentido algum para mim. "Está­tua de um demônio!" eu pensava. Meu guia confirmou essa impressão, com o que fez em seguida. Apanhando uma manivela que se projetava na parte traseira da roda, fê-la girar com vigor. Com grunhido de raiva, a roda passou a viver, emitindo clarões e cintilando. Das esferas de metal, uma grande língua de relâmpago azul saltou, chiando e estralejando. Surgiu um odor estranho, como se o próprio ar estivesse queimando. Eu não ia esperar mais: aquele, do modo mais claro possível, não era o lugar para mim. Atirei-me debaixo da mesa maior e procurei sair para a porta distante, arrastando-me pelo chão.

O chiado e o estralejar pararam, sendo substituídos por outro som. Eu me detive, na fuga, pondo-me a ouvir com espanto. Aquilo não era o som de gargalhadas? Nunca! Nervo­samente, examinei a situação, do abrigo onde me achava. Lá estava o Lama Mingyar Dondup, quase explodindo de riso. Lágrimas de hilaridade escorriam de seus olhos, enquanto o rosto se lhe tornara vermelho de divertimento. Parecia arque­jante.

            Oh, Lobsang! — disse, finalmente. — É a primeira vez que vejo alguém tão assustado por uma Máquina Winshurst. Esses engenhos são utilizados em muitos países estrangeiros, para demonstração das propriedades da eletricidade.

Eu rastejei, saindo de onde estava, sentindo-me bastante imbecil, e espiei mais de perto aquela máquina estranha. O lama disse:

            Eu vou segurar estes dois fios, Lobsang, e você faça girar a manivela com a maior velocidade possível. Vai ver o relâmpago ao redor de mim, mas isso não me fará mal, nem dor. Vamos tentar. Quem sabe? Talvez você tenha a oportunidade de rir de mim!

Tomou dois fios, um em cada mão, acenando-me para que começasse. De cara amarrada, empunhei a manivela e a fiz girar com a maior velocidade que pude. Tive de gritar, com espanto, quando faixas grandes, purpúreas e violetas, de relâm­pago, percorreram as mãos e o rosto de meu guia. Ele se mostrava inteiramente imperturbável. Enquanto isso, aquele odor voltara.

            É ozônio, coisa inofensiva, — disse o meu guia. Eu, finalmente, deixei-me persuadir a segurar os fios, enquanto o lama empunhava a manivela. O chiado e estralejar se mostravam inteiramente assustadores, mas quanto à sensação — pa­recia mais uma brisa fresca do que qualquer outra coisa! O lama tirou diversas coisas de vidro de uma caixa e, uma por uma, ligou-as por fios à máquina. Quando acionou a manivela, vi uma chama brilhante ardendo dentro de uma garrafa de vidro e, nas demais, uma cruz e outras formas de metal, delineadas por fogo vivo. Em parte alguma, porém, senti choque elétrico. Com essa Máquina Winshurst, meu guia demonstrou como uma pessoa que não fosse clarividente podia ver a aura humana, mas falaremos sobre isso depois.

Com o tempo, esmaecendo a luz do dia, desistimos de nossas experiências e voltamos ao quarto do lama. Havia, em primeiro lugar, o culto da tarde, pois nossa vida no Tibete parecia inteiramente circunscrita pelas necessidades de cerimônias reli­giosas. Tendo deixado o serviço religioso, voltamos ao aparta­mento de meu guia, o Lama Mingyar Dondup, onde nos senta­mos na atitude costumeira, de pernas cruzadas, no chão, tendo entre nós a mesinha com mais ou menos palmo e meio de altura.

            Bem, Lobsang — disse meu guia —, temos de tratar dessa questão do hipnotismo, mas antes disso é preciso escla­recer o funcionamento do cérebro humano. Eu lhe mostrarei... ao que espero!... que pode haver a passagem de uma corrente elétrica sem que se sinta dor ou desconforto. Agora, você deve levar em conta que, quando uma pessoa pensa, era uma corrente elétrica. Não precisamos entrar na questão de como uma corrente elétrica estimula uma fibra muscular e causa reação, pois todo o nosso interesse, no momento, é a corrente elétrica — as ondas cerebrais que já foram tão claramente medidas e registradas pela ciência médica ocidental.

Reconheço que achei algum interesse nisso, porque a meu modo humilde sempre julgara que o pensamento tinha uma força, porque me lembrava o cilindro de pergaminho, com per­furações, que utilizara às vezes na Lamaseria, e que eu fizera girar, usando unicamente a força do pensamento.

Sua atenção está devaneando, Lobsang! — disse meu guia.

Desculpe, Honrado Mestre — respondi. — Estava apenas refletindo sobre a natureza indubitável das ondas do pensamento, e pensando na distração que tirei daquele cilindro, que o senhor me apresentou há alguns meses.

Meu guia olhou para mim, dizendo:

            Você é uma entidade, um indivíduo, e tem seus próprios pensamentos. Pode achar que vai adotar algum rumo de ação, como suspender aquele rosário. Já ao pensar na ação, seu cérebro faz com que a eletricidade circule de seus componentes químicos, e a onda da eletricidade prepara seus músculos para a ação iminente. Se uma força elétrica maior ocorresse em seu cérebro, nesse caso sua intenção inicial de erguer o rosário seria contrariada. É fácil ver que, se eu puder persuadi-lo de que não consegue erguer o rosário, nesse caso seu cérebro... es­tando fora de seu controle, você não conseguirá erguer o ro­sário, ou executar a ação que planejava.

Eu o fitei, e pensei no caso, que realmente não fazia muito sentido para mim, pois como poderia ele influenciar a quantidade de eletricidade que meu cérebro estivesse criando? Pensei sobre isso, olhei para ele e fiquei imaginando se devia dar expressão à minha dúvida. Não houve necessidade, porém, pois ele a adivinhara e se apressou a me esclarecer.

            Posso garantir-lhe, Lobsang, que o que digo é fato demonstrável, e num país ocidental poderíamos provar tudo isto, mediante um aparelho que traçaria as três ondas cerebrais bá­sicas. Aqui, entretanto, não dispomos de tal equipamento, e somente podemos falar sobre a questão. O cérebro gera eletri­cidade, gera ondas, e se você resolver erguer o braço, nesse caso o seu cérebro gera ondas de acordo com a intenção de sua decisão. Se eu puder... falando de modo teórico... aplicar uma carga negativa em seu cérebro, nesse caso sua intenção inicial será frustrada. Em outras palavras, você pode ser hip­notizado.

Aquilo começava a fazer sentido. Eu vira a Máquina de Winshurst e assistira a diversas demonstrações efetuadas com sua ajuda, e vira como era possível alterar a polaridade de uma corrente, fazendo assim com que ela seguisse em direção oposta.

Honrado Lama — exclamei —, como é possível ao senhor levar uma corrente a meu cérebro? O senhor não pode tirar a tampa de minha cabeça e pôr alguma eletricidade lá dentro. Nesse caso, como pode fazer isso?

Meu caro Lobsang — disse meu guia —, não é neces­sário entrar em sua cabeça, porque eu não preciso criar qualquer eletricidade e pô-la em você, mas posso fazer sugestões apropriadas, pelas quais você se convencerá da precisão de minhas afirmações ou sugestões, e em seguida você... sem qualquer controle voluntário de sua parte... criará sozinho essa corrente negativa.

Olhou para mim, acrescentando:

            Não desejo, de modo algum, hipnotizar pessoa alguma, contra a vontade dela, a não ser em caso de necessidade médica ou cirúrgica, mas creio que com sua colaboração seria bom demonstrar uma questão simples de hipnotismo.

Eu exclamei, mais do que depressa:

            Oh, sim, eu adoraria experimentar o hipnotismo!

Ele sorriu largamente diante de minha impetuosidade, e perguntou:

            Pois bem, Lobsang, o que, em condições normais, você não gosta de fazer? Pergunto isso, porque quero hipnotizá-lo e levá-lo a fazer algo que você, por gosto, não faria, de modo a ficar pessoalmente convencido de que, ao fazer essa coisa, está agindo sob influência involuntária.

Pensei por momentos, e não sabia o que dizer, pois eram tantas as coisas que não gostava de fazer! Fui salvo dessa dificuldade por meu guia, que exclamou:

            Eu sei! Você não tem desejo algum de ler aquele tre­cho bastante complexo, no quinto volume do Kangyur. Acre­dito que se estivesse com bastante medo de que alguns dos ter­mos ali usados o traíssem, e traíssem o fato de que naquela determinada questão você não estudou tão assiduamente quanto é desejado por seu professor!

Fiquei bastante abatido com isso e reconheço que também senti as faces corarem, com algum embaraço. Era inteiramente verdade, pois havia uma passagem bastante difícil no Livro, que me levava a apuros sérios. Entretanto, no interesse da ciência, estava pronto a ser persuadido a lê-la. Na verdade, tinha quase uma fobia quanto a ler aquele trecho! Meu guia sorriu e disse:

            O Livro está ali, ao lado da janela. Traga-o aqui, procure esse trecho e leia em voz alta, e se você não tentar lê-lo, se quiser embaralhar a coisa toda... teremos uma prova muito melhor.

Com relutância, fui apanhar o Livro e, com má vontade extrema, revirei-lhe as folhas. Nossas páginas tibetanas são muito maiores — muito mais pesadas — do que as dos livros ocidentais. Procurei de um para outro lado, tornei as coisas tão arrastadas quanto possível. Ao fim, cheguei à passagem apropriada e confesso que a mesma, devido a algum incidente anterior com um professor, vinha trazer-me uma sensação de enjôo quase físico.

Eu ali estava, com O Livro à frente, e por mais que me esforçasse não conseguia pronunciar aquelas palavras. Isso pode parecer estranho, mas era um fato, porque eu fora tão maltratado por um professor incompreensivo que adquirira um verdadeiro ódio por aquelas frases sagradas. Meu guia olhou para mim — só isso. Olhou para mim, e logo algo pareceu estalar dentro de minha cabeça e eu descobri, com surpresa considerável, que estava lendo, não apenas "lendo", mas fazendo-o de modo fluente, com facilidade, sem qualquer hesitação. Chegando ao fim do parágrafo, estava com a sensação mais inexplicável pos­sível. Baixei O Livro e fui até o meio da sala, onde plantei uma bananeira, isto é, fiquei de cabeça para baixo! "Estou fi­cando louco!" pensava. "O que meu guia vai pensar de mim, se me comporto deste modo inteiramente idiota?" Mas logo me ocorreu que meu guia me levava — influenciava-me — a comportar-me assim. Com rapidez, pus-me em pé e descobri que ele sorria para mim, com uma expressão da maior benevo­lência.

É, realmente, uma questão das mais simples, Lobsang, a de influenciar uma pessoa. Não há dificuldade alguma, para quem tenha aprendido a questão básica. Eu apenas pensei em algumas coisas, e você recolheu meus pensamentos telepáticamente, e isso levou seu cérebro a reagir do modo como eu antevira. Assim, certas flutuações em seu padrão cerebral normal foram causadas, produzindo esse resultado muito interessante!

Honrado Lama! — disse eu. — Quer dizer que, se pudermos pôr uma corrente elétrica no cérebro de alguém, po­demos levá-lo a fazer tudo que quisermos?

            Não, não quer dizer isso, em absoluto, — respondeu meu guia. — Quer dizer que, se podemos persuadir alguém a uma certa ação, e a ação que desejamos não for contrária à crença dessa pessoa, nesse caso ela certamente a executará, ape­nas porque suas ondas cerebrais foram alteradas, e qualquer que tenha sido sua intenção inicial, ela reagirá como foi sugerido pelo hipnotizador. Na maioria dos casos, a pessoa recebe sugestões de um hipnotizador, e não há influência verdadeira exer­cida pelo mesmo, senão a influência da sugestão. O hipnotizador, mediante alguns truques, consegue induzir um rumo de ação na vítima, contrário àquele que a mesma planejava.

Fitou-me a sério, por momentos, e depois aduziu:

            Está claro que você e eu temos outros poderes, além desse. Você conseguirá hipnotizar uma pessoa instantaneamente, até mesmo contra a vontade dela, e esse dom está sendo dado a você, devido à natureza singular de sua vida, devido às vicissitudes muito grandes, devido ao trabalho excepcional que terá de realizar.

Sentado, fitava-me para poder avaliar se eu assimilara a informação que me dera e, satisfeito ao ver que isso acontecia, prosseguiu:

            Mais tarde... ainda não... você aprenderá muito mais acerca do hipnotismo e como hipnotizar com rapidez. Quero dizer que também terá seus poderes telepáticos aumentados, porque, quando viajar do Tibete para outros países distantes, precisará estar em contato conosco todo o tempo, e o meio mais rápido e eficiente é por telepatia.

Tudo aquilo me deixava inteiramente taciturno. Por todo o tempo eu parecia estar aprendendo coisas novas e, quanto mais aprendia, menos tempo tinha para mim mesmo, parecendo-me que uma quantidade cada vez maior de trabalho estava sendo aduzida, sem que retirassem nenhuma!

            Mas, Honrado Lama! — disse. — Como a telepatia funciona? Não parece acontecer coisa alguma entre nós, mas ainda assim o senhor sabe quase tudo que penso, ainda mais quando não quero que saiba!

Meu guia fitou-me, riu e disse:

            É uma questão realmente muito simples, a telepatia. Basta controlar as ondas cerebrais. Veja a coisa do seguinte modo: você pensa, seu cérebro gera correntes elétricas que flutuam, de acordo com as variações de seu pensamento. De modo normal, seus pensamentos vão ativar um músculo, de maneira que um membro se erga ou baixe, ou você pode estar pensando em certo assunto, a distância, seja ele qual for, e sua energia mental é irradiada... isto é, a força-energia de seu cérebro é emitida indiscriminadamente em todas as direções. Se houvesse um meio pelo qual você pudesse focalizar seu pensamento, nesse caso o mesmo seria de intensidade bem maior na direção para a qual foi focalizado.

Olhei para ele, lembrando-me de pequena experiência que me revelara, algum tempo antes; tínhamos estado em posição bastante parecida àquela, isto é, bem alto, sobre O Pico (como nós, tibetanos, chamamos A Pótala). O lama, meu guia, na escuridão da noite, acendera pequena vela e a luz tremeluzia com debilidade. Ele, porém, pusera uma lente de aumento diante da vela e, ajustando a distância da mesma em relação à chama, conseguira projetar sobre a parede u'a imagem muito mais brilhante da chama. Para fortalecer a lição, pusera uma super­fície brilhante por trás da vela e isso, a seu turno, concentrara a luz ainda mais, de modo que a imagem sobre a parede se tornara maior. Falei-lhe disso, e ele respondeu:

            Sim! É inteiramente correto, por diversos truques é possível focalizar o pensamento, enviá-lo em certa direção predeterminada. Na verdade, cada pessoa tem o que podemos chamar de um comprimento de onda individual, isto é, a quan­tidade de energia na onda básica emitida pelo cérebro de qual­quer pessoa segue uma ordem precisa de oscilação, e se puder­mos determinar a cadência de oscilação da onda cerebral básica de outra pessoa, e sintonizarmos com essa oscilação básica, não haverá dificuldade alguma em trasmitir nossa mensagem, pela chamada telepatia, qualquer que seja a distância.

Fitava-me com firmeza, agora, e acrescentou:

            Você deve tornar bem claro em seu espírito, Lobsang, que a distância nada significa, quando se trata de telepatia. A telepatia pode ultrapassar os oceanos, pode ultrapassar até mesmo os mundos!

Confesso que estava ansiosíssimo por poder fazer mais no reino da telepatia. Visualizava a mim próprio, conversando com aqueles companheiros que se achavam em outras lamaserias, tais como o Sera, ou mesmo em regiões distantes. Pareceu-me, entretanto, que todos os meus esforços haviam sido dedi­cados a coisas que me auxiliariam no futuro, futuro esse que, de acordo com todas as profecias, seria sem a menor dúvida uma coisa das mais tenebrosas.

Meu guia voltou a interromper-me os pensamentos:

            Voltaremos mais tarde a essa questão de telepatia. Examinaremos também a questão de clarividência, porque você disporá de poderes anormais de clarividência, o que lhe facili­tará as coisas, se souber como funciona esse processo. Tudo gira ao redor das ondas cerebrais e da interrupção do Registro Akáshico, mas a noite chegou, devemos encerrar nossa palestra por enquanto, preparar-nos para dormir, para estarmos descan­sados a tempo para o primeiro serviço.

Pôs-se em pé e eu o imitei. Fiz-lhe uma mesura, em ati­tude de respeito, e desejei poder demonstrar de modo mais adequado o respeito profundo que sentia por aquele grande homem, que se tornara tão meu amigo.

Por instantes, um rápido sorriso nos lábios, ele se adiantou, e senti-lhe a mão quente no ombro. Um gesto gentil, e ele disse:

            Boa noite, Lobsang, não devemos demorar mais, ou vol­taremos a ser dorminhocos... incapazes de acordar... quando chegar o momento de estarmos presentes às nossas devoções.

Em meu quarto, fiquei por uns momentos em pé à janela, por onde entrava o ar frio da noite. Olhei para as luzes de Lhasa, refletindo em tudo o que me fora dito e em tudo que tinha ainda por aprender. Pareceu-me óbvio que quanto mais aprendia tanto mais havia a aprender, e fiquei pensando onde tudo aquilo acabaria. Com um suspiro, talvez de desesperança, envolvi-me melhor no manto e me deitei no chão frio, para dormir.

 

Um vento gélido, frigidíssimo, soprava, vindo das mon­tanhas. Poeira e pedrinhas esvoaçavam no ar, parecendo visar aos nossos corpos encolhidos. Animais que a idade tornara prudentes apresentavam-se de cabeça baixa para o vento, para que os pelos não fossem levantados, fazendo-os perder calor. Demos a volta ao Kundu Ling e entramos no Mani Lhakhang. Uma lufada repentina de ar, ainda mais feroz do que as outras, irrompeu sob o manto de um de meus companheiros, e com um berro de pavor ele foi atirado ao ar, como se fosse um papagaio. Nós olhamos para cima, apavorados, as bocas abertas. Ele parecia estar voando para a Cidade, os braços abertos, o manto enfu­nado, tendo adquirido dimensões gigantescas. Veio uma pausa ao vento e ele caiu como uma pedra, no Kaling Chu! Corremos aflitos para lá, receando que ele se afogasse. Chegados à mar­gem, ele — Yulgye — parecia de pé na água, até a altura dos joelhos. A ventania gemeu com força renovada, fazendo com que Yulgye virasse e trazendo-o de volta a nossos braços. Ma­ravilha das maravilhas, ele quase não se molhara, a não ser dos joelhos para baixo. Saímos dali apressadamente, apertando os mantos nos corpos, para também não sermos atirados ao ar.

Marchávamos pela Mani Lhakhang, e que marcha fácil era aquela! A ventania uivante nos empurrava, e nosso esforço único era manter a posição vertical! Na Aldeia de Shö, uma comitiva de damas de alta patente procurava abrigo. Eu sempre gostava de adivinhar qual poderia ser a identidade da pessoa par trás da máscara de couro. Quanto mais "jovem" fossem as faces pintadas sobre o couro, tanto mais velhas as mulheres que as usavam. O Tibete é país cruel e duro, com ventos uivan­tes a derrubar torrentes de pedras e areia das montanhas. Homens e mulheres muitas vezes usavam máscaras de couro, como proteção contra as tempestades. Essas máscaras, com frestas para os olhos e outra pela qual se respirava, eram in­variavelmente pintadas com uma representação que o portador fazia de si mesmo!

Vamos passar pela Rua das Lojas! gritou Timon, lutando por fazer-se ouvir acima da ventania.

Pura perda de tempo, gritou Yulgye. Eles fecham as persianas quando sopra ventania assim. De outro modo, as mercadorias seriam arrastadas pelo vento.

Prosseguimos com pressa, em velocidade duas vezes maior do que a normal. Passando pela Ponte de Turquesa, tivemos de segurar-nos uns aos outros, tamanha a força do vento. Olhando para trás, vimos que a Pótala e a Montanha de Ferro estavam cingidas por uma nuvem negra. Era uma nuvem composta de partículas de poeira e pedrinhas, que tinham rolado dos Himalaias Eternos. Seguindo à frente com pressa, temendo que a nuvem negra nos apanhasse se nos retardássemos pela Casa de Doring, pouco além do Círculo Interno, ao redor do imenso Jo Kang. Estrugindo, a tempestade desabou sobre nós, batendo em nossas cabeças e rostos desprotegidos. Timon ergueu instintivamente as mãos, a fim de proteger os olhos. O vento enfunou-lhe o manto e o ergueu bem por cima da cabeça, deixando-o tão nu quanto uma banana descascada, bem diante da Catedral de Lhasa.

Pedras e gravetos esvoaçavam pela rua, em nossa direção, machucando-nos as pernas e, às vezes, tirando-nos sangue. O céu enegreceu-se mais, tornando-se escuro como a noite. Empur­rando Timon à frente, lutando com o manto esvoaçante que se lhe esbatia ao redor da cabeça entramos cambaleando no San­tuário do Lugar Sagrado. Lá dentro havia paz, paz profunda, paz tranqüilizante. Há uns mil e trezentos anos que ali vinham as pessoas piedosas fazer as suas devoções. Até mesmo o ma­terial com que o Santuário fora construído tresandava santi­dade. O chão de pedras fora marcado e alisado por gerações sucessivas de peregrinos. O ar dava a impressão de coisa viva, tanto incenso fora queimado ali, no decorrer dos tempos, que parecia ter deixado o lugar com uma vida senciente.

Colunas enegrecidas pela idade, vigas nas mesmas con­dições, apresentavam-se em meio ao crepúsculo perpétuo. O fulgor opaco do ouro, refletindo a luz de lâmpadas de man­teiga e velas, de pouco adiantava para diminuir a penumbra. As chamas pequeninas a tremeluzir transformavam as sombras das Figuras Sagradas, fazendo-as empreender uma dança grotesca nas paredes do Templo. Ali, o deus fazia pirueta com a deusa num jogo incessante de luz e sombra, enquanto a procissão infinda de peregrinos piedosos passava pelas lâmpadas.

Pontos minúsculos de luz, de todas as cores, vinham de grandes montes de jóias. Diamantes, topázios, berilos, rubis e jade emitiam a luz de sua natureza, formando um padrão sempre mutável, um calidoscópio de cor. Grandes redes abertas, de ferro, com espaços pequenos demais para permitirem a passagem de uma mão, guardavam as jóias e ouro contra aqueles cuja cupidez sobrepujava a correção. Ali e acolá, no crepúsculo brilhante por trás da cortina de ferro, havia pares de olhos vermelhos luzindo, prova de que os gatos do Templo estavam sempre alertas. Incorruptíveis, insubornáveis, sem te­merem homem ou fera, andavam em silêncio, sobre patas de veludo. Mas aqueles pés macios ocultavam garras afiadas como navalhas, caso sua ira fosse despertada. Animais de inteli­gência insuperável, bastava-lhes olhar a pessoa para conhecer-lhe a intenção. Um gesto suspeito em direção às jóias que guardavam, e eles se tornariam demônios encarnados; traba­lhando em grupos de dois, um deles saltava à garganta do can­didato a ladrão, enquanto o outro se penduraria ao braço direito do mesmo. Apenas a morte os faria soltar a presa, a menos que os monges auxiliares chegassem depressa...! Para mim, ou outros como eu, que os amavam, os gatos ronronavam e se rolavam no chão, permitindo-nos brincar com as jóias de valor inestimável. Brincar, mas não levar. Todos negros, com olhos azuis vívidos e que brilhavam com a cor de sangue à luz refletida, eram conhecidos em outros países como gatos "siameses". Ali, no Tibete gelado, eram todos negros. Nos países tropicais, ao que eu fora informado, eram todos brancos.

Andamos por ali, apresentando nossos respeitos às Ima­gens Douradas. Lá fora, a tempestade rugia e esbravejava, fa­zendo voar todos os objetos que se achassem soltos e tornando perigosa a passagem de viajantes incautos, forçados por assuntos urgentes a estarem nas estradas varridas pelo vento. Ali, onde nos encontrávamos, no Templo, tudo era tranqüilidade, a não ser pelo arrastar semi-silencioso de pés, enquanto os nume­rosos peregrinos faziam seus circuitos, e pela "clack-chack" das Rodas de Oração, sempre a girar. Nós, porém, não as ouvía­mos. Dia após dia, noite após noite, as Rodas giravam e com seu "clack-chack, clack-chack, clack-chack" até se tornarem par­te de nossa existência. Não as ouvíamos, assim como não ouvía­mos as batidas de nosso próprio coração ou nossa própria respi­ração. Havia, entretanto, outro som. Um "purr-purr" áspero e arquejante, bem como o tilintar da cortina de metal, enquanto um velho gato enfiava a cabeça na mesma, para fazer-me lembrar que éramos velhos amigos. Sem maior atenção, enfiei os dedos por ali, afagando-lhe a cabeça. Com gentileza, ele "mordeu" meus dedos em saudação e depois, com a língua velha e áspera, quase me arrancou a pele, com o fervor de suas lambidas! Houve algum movimento suspeito mais além do Tem­plo, e ele — como um relâmpago — partiu para proteger "sua" propriedade.

Que bom, se tivéssemos olhado as lojas! — insistiu Timon.

Seu estúpido! — sussurrou Yulgye. — Você sabe que elas estão fechadas durante as tempestades.

Silêncio, meninos! — disse um Inspetor de ar feroz, saindo das sombras e dirigindo-se a nós, desferindo um golpe que pos o pobre Timon fora de equilíbrio, fazendo-o espraiar-se no chão. Um monge próximo fitou a cena, com ar de desaprovação, fazendo sua Roda de Orações girar furiosamente. O grande Inspetor, criatura com mais de dois metros de altura, aproximara-se de nós, parecendo uma montanha humana, e chiou, entre os dentes:

Se vocês, meninos, fizerem um só barulhinho... eu os estraçalharei com as mãos e jogarei os pedaços para os cachorros, lá fora. Agora, silêncio!

Com uma última careta de raiva em nossa direção, voltou-se e desapareceu nas sombras. Com cuidado, receando até o farfalhar de seu manto, Timon se pos em pé. Descalçando as sandálias, seguimos nas pontas dos pés para a parta. Lá fora, a tempestade continuava rugindo; dos pináculos das montanhas, pendões de neve estonteantemente branca se desprendiam. Dos pontos inferiores, da Pótala e de Chakpori, faixas negras de poeira e pedras esvoaçavam. Pelo Caminho Sagrado, grandes colunas de poeira se dirigiam para a Cidade. O vento uivava, gemia, como se os próprios demônios houvessem enlouquecido e estivessem executando uma cacofonia demente, sem motivo ou razão.

Segurando-nos uns aos outros, arrastamo-nos para o sul, dando a volta ao Jo Kang, procurando o abrigo de um vão de parede, parte traseira do edifício do Conselho. A torrente de ar turbulento ameaçava erguer-nos do chão, atirando-nos contra a parede do Convento Tsang Kung. Estremecíamos diante dessa possibilidade, e continuamos em busca de abrigo. Atingindo nosso objetivo, apoiamo-nos, a respiração voltando em grandes soluços devido aos esforços que havíamos feito.

            Xxxxx! — disse Timon. — Eu bem queria pôr um feitiço contra aquele Inspetor xxxxx! O teu Honrado Guia podia fazer isso, Lobsang. Talvez tu o convenças a transformar aquele xxxxx em um porco, — aduziu, cheio de esperança.

Em resposta, sacudi a cabeça e disse:

            Tenho a certeza de que ele não o faria, pois o Lama Mingyar Dondup jamais faz mal a qualquer criatura, homem ou animal. Ainda assim, seria mesmo bom transformar o Inspetor em alguma outra coisa. Ele foi um abusado!

A tempestade amainava. O uivo do vento ao redor dos beirais tornava-se menos agudo, as pedras antes carregadas pelo vento caíam pelas estradas, estralejavam nos telhados. Tampou­co a poeira penetrava em nossos mantos como antes. O Tibete é um país alto e exposto ao tempo. Os ventos se formavam por três das cordilheiras e seguiam em fúria pelos passos mon­tanhosos, sendo freqüente atirarem os viajantes à morte, nos fundos das ravinas. Lufadas violentas estrugiam nos corredores de lamaserias, limpando-os completamente, arredando toda a poeira e lixo, antes de entrarem em uivo pelo vale, indo ter às faixas abertas mais além.

O clamor e tumulto haviam cessado. A última das nuvens de tempestade voava no céu, deixando a vasta abóbada celeste purpúrea e límpida. O brilho forte do sol nos iluminava, estonteando-nos após a penumbra e escuridão da tempestade. Com rangidos, portas se abriam cautelosamente, surgiam cabeças, avaliava-se o estrago ocorrido no dia. A pobre e velha Sra. Raks, perto de cuja casa nos encontrávamos, tivera as janelas dianteiras empurradas para dentro, pelo vento, e as traseiras empurradas para fora. No Tibete, as janelas são feitas de papel oleado e grosso; oleado para que se possa, forçando um pouco a vista, olhar para fora. O vidro é muito raro em Lhasa, e o papel, feito dos abundantes salgueiros e juncos, é barato. Partimos para casa — Chakpori — parando sempre que alguma coisa interessante nos atraía a atenção.

            Lobsang! — disse Timon. — Olhe, as lojas vão abrir agora! Vamos, não vai levar muito tempo!

Assim dizendo, voltou-se para a direita, em passos muito mais rápidos. Yulgye e eu o acompanhamos, com a menor das relutâncias. Chegados à Rua das Lojas, olhamos ao redor. Que maravilhas havia ali! O cheiro onipresente do chá, muitos tipos de incenso vindos da Índia e da China. Joalheria, coisas que haviam vindo da Alemanha distante, e que para nós eram tão estranhas que nem sequer tinham significado. Mais adiante, chegamos a uma loja onde vendiam doces, coisas pegajosas sobre pauzinhos, bolos cobertos de açúcar branco e colorido. Olhávamos, e ansiávamos; como pobres cheias, não tínhamos dinheiro com que comprar coisa alguma, mas podíamos olhar de graça.

Yulgye cutucou meu braço e cochichou:

            Lobsang, aquele camarada grandão não é o tal Tzu, que já tomou conta de ti?

Voltei-me, olhando na direção que ele apontava. Sim! Era Tzu, não havia dúvida. Tzu que me ensinara tanto, que fora tão duro comigo. Instintivamente, dei um passo à frente, sorrindo para ele.

            Tzu! — disse eu. — Eu sou...

Ele fez uma careta para mim, e rosnou:

            Afastem-se, meninos, não atrapalhem um cidadão ho­nesto que está trabalhando para seu senhor. De mim não conseguem dinheiro algum.

Dito isso, voltou-se abruptamente, afastando-se dali.

Senti que meus olhos ficavam quentes, e tive o receio de que ia cobrir-me de ridículo, diante de meus amigos. Não, eu não podia dar-me ao luxo das lágrimas, mas Tzu me ignorara, fingira não me conhecer. Tzu, que me ensinara desde o nascimento! Eu pensava como ele procurara ensinar-me a montar em meu pônei Nakkim, como me ensinara a lutar. Agora, ele me repudiara ele me desdenhara. Baixei a cabeça, desconsolado, arrastei o pé na poeira. Perto de mim, meus dois com­panheiros se mantinham silenciosos, embaraçados, sentindo-se como eu, achando que também tinham sido menosprezados. Um movimento repentino atraiu-me a atenção e um indiano idoso e barbudo, usando turbante, veio devagar em minha direção.

            Jovem senhor! disse, em seu tibetano de sotaque singular. Eu vi tudo, mas não pense mal daquele homem. Alguns de nós esqueceram a infância. Eu não esqueci. Venha comigo.

Seguiu à frente para a loja, que havíamos admirado.

            Estes jovens podem apanhar o que quiserem, disse ao lojista.

Timidamente, cada um de nós apanhou uma daquelas coisas pegajosas e lindas, fazendo mesura de reconhecimento do indiano.

—            Não! Não exclamou ele. Um não basta, tirem outro, vocês todos.

Nós o fizemos, e ele pagou ao lojista sorridente.

            Senhor! disse eu, em tom fervoroso. Que a Bênção de Budha esteja convosco, e vos proteja; que vossas ale­grias sejam muitas!

Ele sorriu para nós, com expressão benigna, inclinou-se ligeiramente e se voltou, para dar prosseguimento ao que fazia.

Devagar, voltamos para casa, comendo lentamente os doces, para que durassem o mais possível. Tínhamos quase esquecida o sabor daquelas coisas. Aqueles eram mais saborosos do que a maioria, porque haviam sido dados com tão bons sentimentos. Eu refletia, enquanto andávamos, que fora primeiramente o meu Pai que me ignorara, na escadaria da Potala, e agora Tzu o fizera. Yulgye quebrou o silêncio:

            É um mundo engraçado, Lobsang, agora que somos meninos, eles nos ignoram e desdenham. Quando formos lamas, os Cabeças-Negras virão correndo, procurando nossos favores!

No Tibete, os leigos são designados como "Cabeças-Ne­gras", porque têm cabelos sobre as mesmas; os monges, naturalmente, as têm raspadas.

Aquela noite, no culto, mostrei-me muito atento; decidi trabalhar com tal afinco que me tornaria um lama o mais cedo possível, e depois andaria em meio àqueles "Cabeças-Negras" desdenhando-os quando procurassem meus serviços. Estava tão atento, na verdade, que atraí a atenção de um Inspetor. Ele me fitou, repleto de desconfiança, achando que tal devoção em mim era coisa inteiramente inatural! Assim que o culto ter­minou, fui apressadamente para meu alojamento, pois sabia que teria um dia ocupado com o Lama Mingyar Dondup, a partir do amanhecer. Por algum tempo, não consegui dormir. Revirei-me, pensando no passado e nas agruras que atravessara.

De manhã, levantei-me, fiz o desjejum e estava a ponto de seguir para os Alojamentos dos Lamas. Ia saindo do quarto, quando um monge corpulento, com um manto esfarrapado, se­gurou-me .

Ei, você! disse. Você vai trabalhar na cozinha, esta manhã... e limpar as mós, também!

Mas, Senhor! repliquei. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, quer minha presença.

Procurei passar por ele.

            Não, você vem comigo. Não importa quem deseja sua companhia, eu estou dizendo que você vai trabalhar na cozinha.

Agarrou-me o braço e o torceu, de modo que não pudesse fugir. Com relutância, fui com ele, pois não havia alternativa.

No Tibete, todos nós trabalhamos periodicamente em ser­viço braçal, realmente braçal. "Ensina humildade!" dizem uns. "Impede que um menino se ache importante demais!" dizem outros. "Elimina as distinções de classe!" afirmam ainda outros. Meninos e monges trabalham em qualquer tarefa que lhes seja destinada, puramente como medida disciplinar. Havia, naturalmente, um quadro doméstico de monges de grau inferior, mas os meninos e monges de todos os graus tinham de comparecer às tarefas mais baixas e desagradáveis, como preparo. Nós odiávamos isso, pois os "titulares" todos eles homens inferiores — tratavam-nos como escravos, sabendo muito bem que não nos podíamos queixar. Queixar-nos? A coisa visava a ser bem dura!

Seguimos pelo corredor de pedra, descendo os degraus feitos de duas pranchas de madeira, com barras cruzadas, chegando às grandes cozinhas,onde eu sofrera uma queimadura tão séria na perna.

            Pronto! disse o monge, que me segurava. — Le­vante-se e limpe os sulcos nas pedras.

Apanhando uma ponteira aguda de metal, subi em uma das grandes rodas de moagem de cevada, e me pus industriosamente a cavar os detritos aninhados naquelas ranhuras. Aquela pedra fora negligenciada e agora, ao invés de moer, servia ape­nas para estragar a cevada. Minha tarefa era a de "preparar" a superfície, de modo que ficasse novamente aguda e limpa. O monge permanecia por ali, limpando ociosamente os dentes.

            Ei! — gritou uma voz, vinda da entrada. Terça-Feira Lobsang Rampa! O Terça-Feira Lobsang Rampa está aqui? O Honrado Lama Mingyar Dondup quer vê-io imedia­tamente.

Instintivamente, fiquei em pé e saltei da pedra.

            Aqui estou! — gritei.

O monge cerrou o punho, desferindo um murro em cima da cabeça e derrubando-me ao chão.

            Eu digo que você fica aqui, e fará o seu trabalho, — resmungou. — Se alguém quiser vê-lo, que venha buscá-lo pessoalmente.

Apanhando-me pelo pescoço, ergueu-me e me atirou sobre a pedra. Bati com a cabeça em um canto e todas as estrelas do céu eclodiram em minha consciência, antes de esmaecerem e deixarem o mundo vazio e escuro.

Foi estranho, mas tive a sensação de que era erguido — erguido horizontalmente — e depois me punha em pé. Em algum lugar, um gongo enorme, de som profundo, marcava os segundos da vida, fazendo "bong-bong-bong" e com uma batida final achei que tinha sido atingido por um relâmpago azul. Naquele ins­tante o mundo se tornou muito claro, brilhante, com uma espécie de luz amarelada, na qual eu podia ver com mais clareza do que o normal. "Oh" disse a mim mesmo, "estou, então, fora de meu corpo! Oh! Que aspecto estranho eu tenho!" Tinha eu muita experiência em matéria de viagem no astral, e eu já fora muito além dos confins deste velho planeta nosso, viajando também a muitas das maiores cidades deste globo. Agora, porém, ocorria minha primeira experiência de ser "arrancado do corpo". Estava em pé, diante da grande mó, fitando com desa­grado considerável a figurinha de manto rasgado, caída na pedra. Eu a fitava, sentindo apenas interesse efêmero ao obser­var como meu corpo astral se prendia àquela figura surrada por um cordão branco-azulado, que ondulava e pulsava, bri­lhando com intensidade e esmaecendo, brilhando e esmaecendo sem cessar. Depois fitei mais de perto meu corpo, sobre aquela laje, ficando assustado com o grande ferimento na têmpora esquerda, da qual jorrava sangue vermelho-escuro, sangue que se entranhava nas ranhuras da pedra, misturando-se de modo inextricável com os detritos até então não retirados.

Uma agitação repentina chamou-me a atenção e, ao me voltar, vi meu guia, o Lama Mingyar Dondup, entrando na cozinha, o rosto pálido de raiva. Adiantou-se e parou bem diante do monge-chefe da cozinha — o monge que me tratara tão mal. Nenhuma palavra foi dita, palavra alguma, na verdade, houve um silêncio abafado e mortal. Os olhos penetrantes de meu guia pareceram relampejar para o monge-cozinheiro e, com um suspiro idêntico ao de um balão perfurado, ele caiu, tornando-se uma massa inerte no chão de pedra. Sem lhe dedicar um segundo olhar, meu guia afastou-se, voltou-se para minha figura terrena ali estendida, respirando de modo estertorante sobre aquela roda de pedra.

Olhei ao redor, verdadeiramente fascinado em pensar que conseguiria, agora, sair de meu corpo para distâncias curtas. Efetuar "viagens distantes" no plano astral não era nada, eu sempre o soubera fazer, mas aquela sensação de sair de mim mesmo e fitar minha casca terrena de argila era uma experiência nova e empolgante. Desligando a atenção dos aconteci­mentos a meu redor, por momentos, deixei-me flutuar flutuar, passando pelo teto da cozinha. "Puxa!" disse, involuntaria­mente, ao passar pelo teto de pedra, indo ter à câmara acima. Ali estavam sentados diversos lamas, em contemplação profun­da. Notei, com algum interesse, que tinham uma espécie de modelo do mundo à frente, uma bola sobre a qual se achavam indicados os continentes, as terras, oceanos e mares, e que a bola se achava fixa com certa inclinação, inclinação correspon­dente à da própria Terra no espaço. Não me demorei ali, pois aquilo se assemelhava demasiadamente a trabalho escolar, e prossegui em viagem para cima. Passando por outro teto, e depois outro, depois outro, cheguei à Sala dos Túmulos!

Ao redor, estavam as paredes grandes e douradas que sustentavam os túmulos das Encarnações do Dalai Lama, nos séculos anteriores. Ali fiquei, em contemplação reverente, por alguns momentos, deixando-me depois flutuar para cima, mais para cima, de modo que finalmente, lá embaixo, vi aquela Potala gloriosa, com todo o seu ouro refulgente, todo o seu escarlate e carmesim e com as paredes brancas e formidandas que pareciam fundir-se com a rocha viva da própria montanha.

Voltando o olhar de leve para a direita notei a Aldeia de Shö e mais além a cidade de Lhasa, com as montanhas azuis ao fundo. Ao erguer-me mais, no espaço, podia divisar as imensidões de nossa terra bela e agradável, terra que podia mostrar-se dura e cruel devido aos caprichos do tempo imprevisível mas que, para mim, era a pátria!

Um puxão de vigor notável chamou-se a atenção, e veri­fiquei que estava sendo puxado, assim como eu puxara, muitas vezes, de volta, algum papagaio esvoaçando no céu. Eu descia sempre e sempre, chegava à Potala, atravessava soalhos que se tornavam tetos, até alcançar finalmente meu destino, pondo-me de novo ao lado de meu próprio corpo na cozinha.

O Lama Mingyar Dondup estava banhando com gentileza minha têmpora esquerda — tirando pedaços da mesma. "Ora, essa!" — disse eu para mim mesmo, em espanto profundo. "Minha cabeça é tão grossa que se rachou, ou rachou a pedra?" Em seguida, vi que estava com uma pequena fratura, e notei também que boa parte do material retirado de minha cabeça eram detritos — fragmentos —, pedaços de pedra e resíduos de cevada moída. Observava aquilo com interesse e, devo confessar, certo divertimento, pois em pé ali, ao lado do corpo carnal, em meu corpo astral, não sentia dor, nem incômodo algum, ape­nas paz.

O Lama Mingyar Dondup terminou finalmente seu tra­balho e pôs uma tira de substância herbácea comprimida em minha cabeça, atando-a com fitas de seda. Depois, fazendo sinal a dois monges que esperavam, com uma maca, disse-lhes que me erguessem com cuidado.

Os homens — monges de minha própria Ordem — ergueram-me com suavidade, depositando-me na maca e, com o Lama Mingyar Dondup andando ao lado, fui levado dali.

Olhei ao redor com espanto considerável, pois a luz esmae­cia. Eu estivera assim por tanto tempo que o dia já terminava? Antes que pudesse responder, verifiquei que eu também esmae­cia, o amarelo e o azul da luz espiritual diminuíam em inten­sidade, eu era tomado por um desejo completamente esmagador e imperioso de descansar — dormir, sem me preocupar mais com coisa alguma.

Por algum tempo, não tive consciência e, depois, pela minha cabeça passaram dores horríveis, dores que me faziam ver vermelhos e azuis e verdes e amarelos, dores que me levavam a pensar que eu ia enlouquecer com um sofrimento tão intenso. Senti uma mão fresca em minha cabeça, e uma voz suave disse:

— Tudo está bem, Lobsang. Tudo está bem, descanse, descanse, durma!

O mundo pareceu tornar-se um travesseiro escuro e fofo, tão macio quanto a penugem de cisnes, e nele mergulhei satisfeito, em paz; o travesseiro pareceu envolver-me, de modo que eu não tomava mais conhecimento de coisa alguma, não existia, e mais uma vez minha alma vagou pelo espaço, enquanto na terra o corpo surrado continuava descansando.

Devem ter transcorrido muitas horas, quando voltei à consciência. Despertei e encontrei o meu guia sentado ao lado, tendo minhas mãos nas suas. Quando minhas pálpebras se abriram e a luz do anoitecer entrou, sorri debilmente, e ele sorriu em resposta, retirando as mãos. De uma mesinha ao lado, trouxe uma chávena com alguma bebida de cheiro doce. Levando-a a meus lábios com suavidade, ordenou:

            Beba isto, que lhe fará bem!

Bebi, e a vida irrompeu outra vez em meu corpo, a tal ponto que procurei sentar-me. O esforço foi demasiado, e caí como se fora atingido mais uma vez na cabeça, com força, vi luzes vívidas, constelações de luzes, e logo desisti de tais es­forços.

As sombras da noite se alongavam, de baixo veio o som emudecido das conchas, e eu sabia que o culto estava a ponto de começar. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, disse:

            Tenho de ir por meia hora, Lobsang, porque O Mais Precioso quer minha presença, mas seus amigos Timon e Yulgye estão aqui, para cuidar de você em minha ausência, e chamar-me, se for preciso.

Dito isso, apertou-me as mãos, pôs-se em pé e deixou o quarto.

Dois rostos conhecidos apareceram, entre assustados e inteiramente animados. Eles se acocoraram à meu lado, e Timon disse:

            Oh, Lobsang! O Chefe da Cozinha pagou por tudo isso!

            Sim — disse o outro —, ele está sendo expulso da Lamaseria, por brutalidade extrema e desnecessária. Está saindo agora, e saindo escoltado!

Eles borbulhavam de animação, e Timon disse outra vez:

            Pensei que tinhas morrido, Lobsang, tu realmente san­graste como um iaque recheado!

Fui forçado a sorrir, enquanto os olhava, e as vozes dos amigos mostravam como ficavam emocionados diante, de qual­quer acontecimento animado que viesse contrastar com a mono­tonia da vida em uma lamaseria. Não sentia rancor por eles, devido à animação que demonstravam, sabendo que também eu ficaria animado se a vítima fosse outro. Sorri para eles, e fui tomado por um cansaço opressivo. Fechei os olhos, pretendendo descansá-los por momentos, e mais uma vez perdi noção de tudo.

Por diversos dias, talvez sete ou oito ao todo, descansei deitado de costas e o meu guia, o Lama Mingyar Dondup, foi meu enfermeiro. Não fosse por ele, eu não teria sobrevivido, pois a vida em uma lamaseria não é obrigatoriamente gentil ou bondosa, é realmente a sobrevivência dos mais aptos. O lama era um homem bondoso, um homem amoroso, mas ainda que ele não o fosse, existiria o maior dos motivos para que eu continuasse vivo. Eu, como disse antes, tinha uma tarefa espe­cial a executar na vida, e supunha que as agruras pelas quais passava, como menino, destinavam-se de algum modo a me for­talecer, tornar-me imune às vicissitudes e ao sofrimento, pois todas as profecias que eu ouvira — e foram em bom número! — tinham indicado que minha vida seria uma vida de pesar, uma vida de sofrimento.

Não era apenas sofrimento, porém, à medida que meu es­tado melhorava, surgiam mais oportunidades de conversar com meu guia. Falamos de muitas coisas, tratamos de assuntos comuns e também de assuntos que eram dos mais incomuns. Examinamos extensamente diversos temas ocultos, e eu me lem­bro de ter dito, em certa ocasião:

            Deve ser uma coisa maravilhosa, Honrado Lama, ser bibliotecário e possuir todo o conhecimento do mundo. Eu seria um bibliotecário, se não fossem essas profecias terríveis quanto ao meu futuro.

O meu guia sorria para mim.

            Os chineses têm um dito: "Um quadro vale mil pala­vras", Lobsang, mas eu digo que não há quantidade por maior que seja de leitura nem de contemplação de quadros que possa substituir a experiência, a prática e o conhecimento.

Olhei para ele, para ver se falava sério, e depois pensei no monge japonês, Kenji Tekeuchi, que durante quase setenta anos estudara a palavra impressa e deixara de praticar ou absorver qualquer coisa do que lera.

Meu guia lia meus pensamentos.

            Sim! — disse. — O velho não é um ser mental. Con­seguiu uma indigestão mental, lendo tudo, tudo, e o fez sem absorver coisa alguma. Julga ser um grande homem, um homem de espiritualidade inexcedível. Ao invés disso, é um pobre velho pateta, que não engana pessoa alguma, tanto quanto a si próprio.

O lama suspirou, com tristeza, e acrescentou:

            Ele está espiritualmente falido, sabendo tudo, mas sem saber coisa alguma. A leitura insensata, indiscriminada e mal orientada de tudo quanto nos vem às mãos é perigosa. Esse homem seguiu todas as grandes religiões e, embora sem compreender nenhuma delas acreditou ser o maior homem espiritual de todas.

            Honrado Lama! — disse eu. — Se é tão pernicioso ter livros, para que existem livros?

Meu guia fitou-me por momentos, com semblante inexpressivo. ("Ha!" Pensei, "A resposta para essa, ele não conhece!") E ele voltou a sorrir, dizendo:

            Mas, meu caro Lobsang, a resposta é tão clara! Leia, leia e continue lendo, mas jamais permita que qualquer livro se sobreponha ao seu discernimento. Um livro se destina a ensinar, instruir ou mesmo divertir. Um livro não é um mestre a ser seguido cegamente e sem razão. Nenhuma pessoa dotada de inteligência deve deixar-se escravizar por um livro, ou pelas palavras de outra.

Eu me reclinei, assentindo. Sim, isso fazia sentido. Mas, então, para que preocupar-se com livros?

Livros, Lobsang? — disse meu guia, em resposta à indagação. — É claro que deve haver livros! As bibliotecas do mundo contêm a maior parte do conhecimento, mas somente um idiota diria que a humanidade seja escrava dos livros. Eles existem apenas como guia para a humanidade, para consulta, para uso. É um fato fora de dúvida que os livros mal utilizados podem ser uma maldição, pois levam um homem a julgar ser superior ao que é, e assim o levam a caminhos tortuosos na vida sem que ele tenha o conhecimento ou a lucidez para seguir esses caminhos até o fim.

Bem, Honrado Lama — voltei a perguntar —, quais são as utilizações dos livros?

Meu guia fitou-me com dureza e respondeu:,

            Você não pode ir a todos os lugares do mundo e estudar com os maiores Mestres do mundo, mas a palavra escrita... livros... podem trazer-lhe os ensinamentos deles. Você não precisa acreditar em tudo que lê, nem os grandes escritores dizem que você o deva fazer, pois você deve utilizar seu próprio raciocínio, e utilizar as palavras de sabedoria deles como indi­cadoras do que devam ser as suas palavras de sabedoria. Posso assegurar-lhe que uma pessoa ainda não capaz de estudar um assunto pode prejudicar-se imensamente, apanhando um livro e... por assim dizer... procurando erguer-se acima de sua posição cármica, estudando as palavras e obras dos outros. Pode ocorrer que o leitor seja homem de desenvolvimento evo­lucionário baixo e, nesse caso, ao estudar as coisas que na atualidade não sejam para ele, venha a embotar, ao invés de favorecer, seu desenvolvimento espiritual. Conheci muitos casos assim, e nosso amigo japonês é apenas um deles.

Meu guia tocou a sineta pedindo chá, suplemento dos mais necessários a todas as nossas conversas! Quando o chá foi trazido pelo monge-ajudante, retomamos a palestra, e meu guia disse:

            Lobsang! Você vai levar uma vida das mais incomuns, e para esse fim o seu desenvolvimento está sendo forçado, seus poderes telepáticos aumentados por todos os métodos de que disponhamos. Vou dizer-lhe, agora, que em questão de poucos meses você vai estudar por telepatia ligada à clarividência, alguns dos maiores livros do mundo... algumas das obras-pri­mas literárias do mundo, e vai estudá-las a despeito da falta de conhecimento da língua em que foram escritas.

Receio ter ficado boquiaberto de espanto, pois como poderia estudar um livro escrito em língua que não compreendia? Tra­tava-se de coisa que me intrigava, mas logo recebi uma resposta:

            Quando seus poderes de telepatia e clarividência forem um pouco mais aguçados... como serão... você poderá re­colher todos os pensamentos de um livro, através de pessoas que recentemente; leram o mesmo ou se acham empenhadas nessa leitura. Esta é uma das utilizações menos conhecida da telepatia que, naturalmente, tem em tais casos de estar aliada à clarividência. As pessoas em outras partes do mundo nem sempre têm acesso a uma biblioteca pública, ou a uma das bibliotecas principais de um país; elas podem passar pela porta, mas a menos que provem ser estudantes genuínos à procura do conhecimento, não as deixam entrar. Esse impedimento não será imposto a você, que poderá viajar no astral e estudar, e isso o ajudará durante todos os dias de sua vida, e na época em que passar para além dela.

Falou-me, então, das utilizações do ocultismo. O mau emprego do poder oculto, ou o domínio de outra pessoa por meios ocultos, provocava um castigo realmente terrível. Os poderes esotéricos, os poderes metafísicos e as percepções extra-sensoriais deveriam ser utilizados apenas para o bem, apenas a serviço dos outros, apenas para aumentar a soma total de conhecimento contida no mundo.

            Mas, Honrado Lama! — disse eu, aflito. — Que me diz das pessoas que saem de seus corpos, com animação ou interesse, o que me diz quando elas saem dos corpos e quase morrem de susto? Não se pode fazer algo para preveni-las? Meu guia sorriu com bastante tristeza, ao dizer:

            É verdade, Lobsang, que muitas, muitas pessoas lêem livros e fazem experiências, sem disporem de um mestre ade­quado. Muitas pessoas saem de si, quer mediante a bebida ou superexcitação, ou entregando-se demasiadamente a algo que não serve para o espírito, e depois entram em pânico. Há um modo pelo qual você pode ajudar, e está em, por toda Sua vida, advertir aqueles que indagam, dizendo-lhes que a única coisa a recear, nas questões ocultas, é o medo. O medo permite que pensamentos indesejáveis, entidades indesejáveis, entren! e se apoderem do controle da pessoa, assenhoreiem-se da pessoa e vo­cê, Lobsang, deve repetir sempre que nada há a recear, senão o próprio medo. Ao expulsar o medo, você fortalece a huma­nidade e torna mais pura essa humanidade. É o medo que causa as guerras, é o medo que cria a dissensão no mundo, é o medo que joga o homem contra outro. O medo, e apenas o medo, é o inimigo, e se o expulsarmos de uma vez por todas, nesse caso... creia em mim... não há mais coisa alguma que precise ser temida.

Medo? Que queriam dizer todas aquelas palavras sobre o medo? Fitei meu guia e creio que ele tenha notado a per­gunta impronunciada em meus olhos. Talvez lesse meus pensamentos, telepáticamente, mas o fato é que disse, de repente:

            Você, então, está pensando sobre o medo? Bem, você é jovem e inocente!

Eu pensava: "Oh! Não tão inocente quanto ele pensa!"

O lama sorriu, como a saborear essa piada embora, naturalmente, eu não houvesse pronunciado uma só palavra e afirmou:

            O medo é uma coisa muito verdadeira, uma coisa tan­gível, e você terá ouvido falar daqueles que estão viciados com o espírito... que se tornam embriagados. São homens que vêem criaturas notáveis. Alguns desses beberrões afirmam ver grandes elefantes com listras roxas, ou criaturas ainda mais bizarras. Posso dizer-lhe, Lobsang, que as criaturas vistas por eles... e a que chamam invenções de sua imaginação... são criaturas verdadeiras, sem dúvida.

Eu ainda não estava muito claro quanto a essa questão do medo. Sabia, naturalmente, o que era o medo, no sentido físico. Pensava no dia em que tivera de ficar imóvel, do lado de fora da Lamaseria de Chakpori, para submeter-me à prova de resis­tência, antes de me permitirem entrar e ser aceito como o mais humilde, dos humildes cheias. Voltei-me para meu guia di­zendo:

            Honrado Lama, o que é todo esse medo? Conversando, ouvi falar das criaturas do astral mais baixo, mas eu mesmo, em todas minhas viagens no astral, nunca encontrei coisa algu­ma que me causasse medo algum. O que é esse medo?

Meu guia permaneceu imóvel por momentos e depois, como se chegasse a uma decisão repentina, ficou rapidamente em pé e disse:

            Venha!

Eu também me levantei, e seguimos por um corredor de pedras, entrando à direita, depois à esquerda, e novamente à direita. Prosseguindo em nossa jornada, chegamos finalmente a uma sala onde não havia luz. Era como entrar em uma poça de negrume, e meu guia seguiu primeiro, acendendo uma lâm­pada de manteiga já pronta ao lado da porta e depois, fazendo-me um gesto para que me deitasse, disse:

            Você tem idade suficiente para conhecer as entidades do astral inferior. Estou preparado para ajudá-lo a ver essas criaturas, e providenciar para que nenhum mal lhe aconteça, pois elas não devem ser conhecidas, a menos que a pessoa esteja adequadamente preparada e protegida. Vou apagar esta luz, e você descanse em paz, deixando-se flutuar, sair do corpo... deixe-se flutuar para onde quiser, sem destino, sem intenção... apenas flutuar e vagar, como a brisa.

Dito isso, apagou a lâmpada e não havia qualquer vislumbre de luz naquele lugar, quando fechou a porta. Eu nem sequer conseguia perceber-lhe a respiração, mas sentia sua presença cálida e reconfortante perto de mim.

A viagem astral não era experiência nova, pois eu nascera com a capacidade de efetuá-la e de lembrar-me sempre de tudo. Agora, estendido no chão, tendo a cabeça apoiada em parte de meu manto que enrolara, entrelacei os dedos e pus os pés juntos, pensando no processo de deixar o corpo, o processo que é tão simples para quem o conhece. Logo senti a sacudidela suave que indica a separação do veículo astral do físico, e com esse solavanco veio uma torrente de luz. Eu parecia estar flutuando na extremidade de meu Cordão de Prata. Lá embaixo, impe­rava a escuridão mais completa; a escuridão da sala que aca­bara de deixar, e na qual não havia um só vislumbre de luz.

Olhei ao redor, mas aquilo não era diferente em coisa alguma das viagens normais que eu empreendera antes. Pensei em erguer-se acima da Montanha de Ferro, e bastou o pensamento para não mais estar naquela sala, mas pairando sobre a Mon­tanha, a uns cem metros de altura, mais ou menos. De repente, eu já não percebia a Potala, não percebia a Montanha de Ferro, não percebia mais a terra do Tibete, ou o Vale de Lhasa. Sen­ti-me cheio de apreensão, meu Cordão de Prata tremeu com violência, e fiquei apavorado ao ver que parte da nebulosidade "azul-prateada" que sempre emanava do Cordão se transfor­mara em um verde-amarelado doentio.

Sem qualquer aviso, houve um retorcimento horrível, puxadas terríveis, uma sensação de inimigos enlouquecidos que procuravam puxar-me para baixo. Instintivamente, olhei para lá, e quase desmaiei com o que vi.

Ao redor de mim, ou melhor, por baixo, estavam as cria­turas mais estranhas e odiosas, tais como as vistas pelos bêba­dos. A coisa mais horrível que já vi em minha vida surgiu, ondulante, em minha direção, semelhante a uma lesma imensa, com face humana horrível, mas de cores tais como nenhum ser hu­mano jamais teve. Esse rosto era vermelho, mas o nariz e ore­lhas verdes, e os olhos pareciam girar dentro de suas órbitas. Havia outras criaturas, também, cada qual parecendo mais hor­rível e nauseante do que a anterior. Vi criaturas que nenhuma palavra poderia descrever, mas ainda assim elas pareciam ter um traço humano comum de crueldade. Estendiam-se, procura­vam apanhar-me — procuravam desligar-me de meu Cordão. Outras estendiam-se para baixo, procurando romper o Cor­dão, puxando-o. Eu olhava, estremecia e pensei: "Medo! Então, isto é o medo! Bem, estas coisas não me podem ferir, estou imu­ne às suas manifestações, imune à seus ataques!" E ao pensar assim, as entidades desapareceram, não existiam mais. O Cor­dão etéreo que me ligava ao corpo físico clareou e os reverteu às suas cores normais; senti-me alegre, livre, e sabia que ao fazer e vencer aquela prova, não voltaria mais a ter medo de coisa alguma que pudesse acontecer, no plano astral. Aquilo servira para me ensinar, de modo conclusivo, que as coisas que tememos não podem ferir-nos, a menos que o permitamos, mediante nosso medo.

Um puxão repentino em meu Cordão de Prata atraiu-me a atenção mais uma vez, e eu olhei para baixo sem a menor hesi­tação, sem a menor sensação ou sentimento de medo. Vi um pequeno brilho de luz, vi que meu guia, o Lama Mingyar Dondup, acendera aquela pequenina e tremulante lâmpada de man­teiga, e meu corpo puxava para si o corpo astral. Com suavi­dade, flutuei e passei pelo telhado do Chakpori, indo até onde me achava em posição horizontal sobre o corpo físico e depois, com imensa suavidade, desci e o astral e o físico se combinaram em um só. O corpo que agora era "eu" contorceu-se de leve, e em me sentei. Meu guia me fitava com um sorriso afetuoso no rosto.

            Andou bem, Lobsang! disse. Eu o levei a um grande segredo, um dos maiores, e você se saiu melhor, em sua primeira tentativa, do que eu na minha. Sinto-me orgulhoso de você.

Eu ainda estava bastante intrigado quanto àquela coisa de medo, de modo que disse:

            Honrado Lama, o que realmente existe a temer?

Meu guia adotou uma expressão séria até mesmo som­bria enquanto dizia:

            Você tem levado uma vida boa, Lobsang, e nada deve recear. Assim sendo, não sente medo. Mas existem aqueles que cometeram crimes, que fizeram coisas erradas contra outros. Quando se acham a sós, a consciência os perturba muito. As criaturas do astral inferior nutrem-se do medo, alimentam-se daqueles que têm a consciência perturbada. As pessoas criam formas de pensamento más. Talvez, em algum dia no futuro, você consiga ir a uma catedral muito velha, ou templo, que exis­ta há inúmeros anos. Das paredes desse edifício (como o nosso próprio Jo Kang) você perceberá o bem que ocorreu dentro do mesmo. Depois disso, entretanto, poderá ir repentinamente a uma prisão muito antiga, onde muito sofrimento e muita perse­guição ocorreu, e nesse caso será o efeito oposto. Daí segue que os habitantes dos edifícios criam formas de pensamentos que habitam as paredes dos mesmos, tornando-se assim visível que um bom edifício tem boas formas de pensamento que apresentam boas emanações, e lugares maus apresentam maus pensamen­tos dentro de si, ficando mais uma vez claro que apenas pen­samentos maus podem vir de um edifício mau, e esses pensa­mentos e formas de pensamentos podem ser vistos e tocados por quem seja clarividente enquanto estiver no estado astral.

Meu guia pensou por momentos, e depois acrescentou:

            Existem casos, como você perceberá, nos quais os mon­ges e outros imaginam serem maiores do que sua própria reali­dade, e com isso criam uma forma de pensamento, e com o tempo a mesma vem colorir toda a sua visão. Há um caso do qual me lembro neste instante, em que um velho monge birma­nês... criatura notavelmente ignorante, é preciso dizer... era monge de categoria inferior, sem compreensão, mas ainda assim nosso irmão, e de nossa Ordem, pelo que tínhamos de usar de toda a tolerância. Esse monge levava uma vida solitária, como muitos de nós o fazemos, mas ao invés de dedicar o tempo à me­ditação e contemplação, e às demais coisas do bem, imaginou que era um homem poderoso, na terra da Birmânia. Imaginou não ser um monge inferior, e que mal pusera o pé na Trilha do Esclarecimento. Ao invés disso, na solidão de sua cela, imagi­nou-se um grande Príncipe, um Príncipe de estados poderosos e grande fortuna. De início, isso foi inofensivo, tratava-se de diversão inofensiva, ainda que inútil. Por certo ninguém o teria condenado por algumas imaginações ociosas de anseio, pois, como digo, ele não tinha o espírito ou o conhecimento para dedi­car-se realmente às tarefas espirituais a serem empreendidas. Esse homem, com o correr dos anos, sempre que se achava a sós, tornava-se o grandíssimo Príncipe. Isso veio colorir sua visão, afetar-lhe os modos, e com a passagem do tempo o monge hu­milde pareceu desaparecer, vindo o Príncipe arrogante a tomar seu lugar. Afinal o pobre desgraçado realmente acreditava, com a maior firmeza, ser um Príncipe da Birmânia. Falou com um Abade, um dia, como se o Abade fosse um servo em sua pro­priedade principesca. O Abade não era criatura tão pacífica quanto alguns de nós, e lamento dizer que o choque de ver o pobre monge transformado em príncipe o desequilibrou, redu­zindo-o a um estado de instabilidade mental. Mas você, Lobsang, não precisa preocupar-se com tais coisas; você é estável, bem equilibrado, sem medo. Lembre-se apenas dessas palavras, como advertência: o medo corrói a alma. A imaginação vã e inútil leva a pessoa para a trilha errada, de modo que, com a passagem dos anos, essas imaginações se tornam realidade, e as realidades desaparecem da vista, não voltando mais à luz por diversas encarnações. Mantenha-se na Trilha, não permita que anseios ou imaginações aloucadas venham colorir ou destorcer sua visão. Este é o Mundo de Ilusão, mas para aqueles que possam enfren­tar tal conhecimento, a ilusão pode ser transformada em reali­dade, quando estivermos fora deste mundo.

Pensei em tudo isso, e devo confessar que já o vira falar sobre aquele monge transformado em príncipe mental, porque lera a esse respeito em algum livro na Biblioteca dos Lamas.

            Honrado Guia! disse eu. Quais são as utilizações do poder oculto, então?

O lama entrelaçou os dedos e fitou-me diretamente.

            As utilizações do conhecimento oculto? Bem, isto é muito fácil, Lobsang! Temos o direito de ajudar aqueles que mereçam ajuda. Não temos o direito de ajudar aqueles que não querem nossa ajuda, e que ainda não estão prontos para rece­bê-la. Não utilizamos o poder oculto ou a capacidade oculta para nosso próprio ganho, nem os alugamos, nem aceitamos recompensas. Todo o intuito do poder oculto é acelerar o desen­volvimento da pessoa, acelerar a evolução da pessoa, e ajudar o mundo como um todo, não apenas o mundo dos humanos, mas o mundo da natureza, dos animais...tudo.

Fomos mais uma vez interrompidos pelo culto, que tinha início no edifício do Templo perto de nós, e como teria sido des­respeitoso aos Deuses prosseguir uma conversa enquanto os mesmos eram adorados, encerramos a palestra e permanecemos em silêncio, sentados, perto da chama fraca da lâmpada de man­teiga, que já se extinguia.

 

Era agradável, sem a menor dúvida, estar deitado na relva fresca e alta, na base do Pargo Kaling. Por cima, às minhas costas, as velhas pedras se erguiam para o céu e, de onde me encontrava, estendido no chão, a ponta mais alta delas parecia arranhar as nuvens. De modo assaz apropriado, o "Botão do Lótus" formando a ponta simbolizava o Espírito, enquanto as "folhas" que sustentavam o "Botão" representavam o Ar. Eu, na base, me apoiava confortavelmente na representação da Vida sobre a Terra. Pouco além de meu alcance a menos ,que me erguesse estavam os "Degraus de Alcance". Pois bem, eu procurava "alcançar", agora!

Era agradável estar deitado ali a observar os negociantes vindos da Índia, China e Birmânia, que chegavam à nossa cida­de. Alguns vinham a pé, enquanto puxavam longas filas de ani­mais carregando mercadorias exóticas, vindas de lugares muito distantes. Outros, mais imponentes ou talvez simplesmente can­sados, estavam montados nos animais e olhavam ao redor. Fiquei pensando ociosamente no que suas bolsas continham e logo voltei a mim, com um sobressalto: era por esse motivo que esta­va ali! Estava ali para observar a aura de tantas pessoas quan­to pudesse. Estava ali para "adivinhar", com base na aura e na telepatia, o que aqueles homens faziam, o que pensavam, e quais eram suas intenções.

No lado oposto da estrada um esmoler cego se achava sen­tado, coberto de sujeira. Esfarrapado e de aspecto comum, choramingava para os viajantes que passavam. Um número sur­preendente destes lhe atirava moedas, deliciando-se a observar o cego procurando as moedas que caíam e finalmente localizando-as pelo som que faziam, ao baterem na terra e, às vezes, ti­lintarem contra uma pedra. De vez em quando, e não era comum, ele deixava de encontrar uma pequena moeda, e o viajante a erguia, deixando-a cair de novo. Pensando nele, voltei minha cabeça preguiçosa em sua direção, sentando-me de modo ereto, dominado pelo espanto. A aura do homem!

Eu jamais me dera ao trabalho de observá-la antes. Agora, observando com cuidado, vi que ele não era cego, vi que era rico, tinha dinheiro e bens guardados, e que fingia ser um cego pobre, pois era o meio mais fácil de ganhar a vida que ele conhecia. Não! Não podia ser, eu estava enganado, consciente demais, ou coisa parecida. Talvez meus poderes estivessem fra­quejando. Perturbado com tal pensamento, pus-me sobre os pés relutantes, e fui procurar esclarecimento com meu guia, o Lama Mingyar Dondup, que se achava do lado oposto, no Kundu Ling.

Algumas semanas antes, eu sofrera uma operação, para que minha "Terceira Visão" pudesse ser mais ampla. Desde o nascimento eu possuía poderes incomuns de clarividência, com a capacidade de ver a "aura" ao redor dos corpos de seres humanos, animais e plantas. A operação dolorosa obtivera êxito, aumentando meus poderes muito mais do que se esperava, até mesmo mais do que o Lama Mingyar Dondup esperava. Agora, meu desenvolvimento estava sendo apressado; o preparo que recebia em todas as matérias ocultas ocupava o dia todo. Sentia-me apertado por forças poderosas, enquanto este lama e aquele lama "metiam à força" conhecimento no cérebro, mediante a telepatia ou outras forças estranhas, cujo meca­nismo eu estava estudando de modo tão intenso. Para que a sala de aula ou o trabalho escolar, quando se pode aprender pela telepatia? Para que ficar imaginando acerca das intenções de um homem, quando se pode ver isso, em sua aura? Mas eu estava a fazer exatamente a mesma coisa, com aquele cego!

            Puxa! Honrado Lama! Onde está? — gritei, correndo e atravessando a estrada, à busca de meu guia.

No pequeno parque, tropecei em meus próprios pés, aflito, quase caindo.

            Então! — disse meu guia, sorrindo, sentado pacifica­mente em um tronco caído. — Então! Você está indignado! Acabou de descobrir que o homem "cego" vê tão bem quanto nós.

Eu me detivera, resfolegando, arquejando tanto pela falta de ar quanto pela indignação.

            Sim! — exclamei. — O homem é um impostor, um ladrão, porque está roubando de quem tem bom coração. Devia ser metido na prisão!

O lama explodiu em gargalhadas, diante de meu rosto ver­melho e indignado.

Mas, Lobsang, — disse, com suavidade —, para que tanta agitação! Aquele homem está vendendo serviços, tanto quanto outro que vende Rodas de Orações. As pessoas lhe dão esmolas insignificantes, para serem consideradas generosas; isso faz com que se sintam bem. Por algum tempo, isso lhes aumenta a cadência de vibração molecular... eleva-lhes a espi­ritualidade ... leva-os para mais perto dos Deuses. Faz-lhes bem! As moedas que dão? Não são nada! Não lhes farão falta!

Mas ele não é cego! — disse eu, exasperado. — É um ladrão!

Lobsang, — disse meu guia —, ele é inofensivo, está vendendo serviços. Mais tarde, no mundo ocidental, você veri­ficará que os homens que trabalham em publicidade fazem afir­mações cuja falsidade prejudica a saúde das pessoas, deforma crianças que ainda vão nascer, transforma os razoavelmente lú­cidos em maníacos alucinados.

Bateu com a mão na árvore caída, fazendo-me um gesto para que me sentasse a seu lado. Eu atendi, batendo com os calcanhares na casca do tronco.

Você deve exercitar o uso da aura e da telepatia juntas, — disse meu guia. — Usando uma, mas não a outra, suas conclusões podem ser deformadas, como aconteceu neste caso. É essencial usar todas as faculdades que se tenha, empregar todos os poderes que se possua, em todos os problemas. Pois bem, esta tarde terei de ir-me embora, e o Grande Lama Médico, o Reverendo Chinrobnobo, do Hospital Manzekang, conversará com você e você com ele.

Puxa! — disse eu, com pesar. — Mas ele nunca fala comigo! Nem sequer me dá atenção.

Tudo isso mudará... de um ou de outro modo, esta tarde, — disse meu guia.

"De um ou de outro modo", eu pensava, achando aquilo muito agourento.

Juntos, meu guia e eu voltamos para a Montanha de Ferro, pausando momentaneamente para olhar de novo as antigas es­culturas em rocha colorida, que ainda pareciam novas. Depois, subimos a trilha íngreme e pedregosa.

            Como a vida, esta trilha, Lobsang, — disse o lama. — A vida segue uma trilha dura e pedregosa, com muitas armadilhas e buracos, mas quem perseverar alcançará o cimo.

Quando chegamos ao cimo da trilha, estavam fazendo a chamada para o Serviço do Templo. Calamo-nos e cada um de nós seguiu seu caminho, ele indo ter com seus companheiros, e eu com os outros de minha classe. Assim que o culto terminara e eu comera, um chela menor do que eu aproximou-se, um tanto nervoso.

            Terça-Feira Lobsang Rampa, — disse, com certa hesi­tação —, o Santo Lama Médico Chinrobnobo quer vê-lo imediatamente, na Escola Médica.

Endireitei o manto, inalei profundamente algumas vezes, para que meus nervos se acalmassem e caminhei com segurança que não sentia para a Escola.

            Ah! — trovejou uma voz sonora, uma voz que me fazia lembrar o som de uma trombeta do Templo.

Permaneci de pé em frente dele e apresentei-lhe meus respeitos, do modo consagrado e tradicional. O lama era homem grande, alto, corpulento, de ombros largos, figura inteiramente assustadora para um menino pequeno. Eu achava que um peteleco que ele me desse arrancaria minha cabeça do tronco e a mandaria rolando pela encosta da montanha. Ele, entretanto, fez sinal para que me sentasse à sua frente, e o fez de modo tão cordial, que quase caí sentado!

            Agora, menino — disse, com sua voz forte e profunda, semelhante ao trovão nas montanhas distantes —, ouvi falar muito a seu respeito. O seu Ilustre Guia, o Lama Mingyar Dondup, afirma que você é um prodígio, que tem poderes para­normais imensos. Vamos ver!

Eu continuava sentado, estremecendo.

            Está-me vendo? E o que vê? — perguntou ele.

Estremeci ainda mais, ao dizer a primeira coisa que me ocorria:

            Vejo um homem tão grande, Santo Lama Médico, que julguei ser uma montanha, quando entrei.

A gargalhada ruidosa em que ele prorrompeu causou tal lufada de vento que receei ser capaz de arrebatar-me o manto.

            Olhe para mim, menino, olhe para minha aura e diga o que vê! — ordenou, e depois aduziu: — Diga-me o que vê na aura, e o que significa para você.

Olhei para ele, não diretamente, não de frente, pois muitas vezes isso obscurece a aura de uma figura vestida. Olhei na direção dele, mas não exatamente para ele.

            Senhor! disse, então. Vejo, em primeiro lugar, o esboço físico de seu corpo, fracamente, como estaria, sem o manto. E depois, bem perto do senhor, vejo uma luz azulada leve, na cor de fumaça de madeira nova. Ela me diz que o senhor tem trabalhado demais, que tem passado noites sem dormir ultimamente, e que sua energia etérica está baixa.

Ele me fitava, agora, com olhos um tanto maiores do que o normal, e assentiu, com satisfação.

Prossiga! ordenou.

Senhor! continuei. Sua aura se estende a uma distância de uns nove palmos, em ambos os lados. As cores estão em camadas tanto verticais quanto horizontais. O senhor tem o amarelo da espiritualidade elevada. Neste instante, está pasmo porque alguém de minha idade lhe pode dizer tanta coisa, e pensa que meu guia, o Lama Mingyar Dondup, tem algum conhecimento, afinal de contas. Está pensando que terá de pedir desculpas a ele, por ter manifestado dúvidas quanto à minha capacidade.

Fui interrompido por imensa gargalhada.

Você está certo, menino! Está certo! disse ele. Prossiga!

Senhor! (e aquilo era brincadeira de criança para mim!) Recentemente, teve algum infortúnio, e levou um golpe sobre o fígado. Dói, quando ri demais, e o senhor está pensando que deve tomar alguma erva de tatura, e fazer massagem forte, enquanto se achar sob sua ação anestésica. Está pensando que foi o Destino quem decidiu que, de mais de seis mil ervas, a tatura tinha de estar escassa, neste momento.

Ele já não ria. Fitava-me com respeito indisfarçado. Eu aduzi:

            Está também indicado em sua aura, Senhor, que em pouco tempo será o mais importante Abade Médico do Tibete.

Ele me fitava, agora, com alguma apreensão.

            Meu menino, disse —, você tem grande poder. Irá longe. Nunca, nunca abuse do poder que tem. Pode ser perigoso. Agora, vamos falar sobre a aura como iguais. Mas façamo-lo enquanto tomamos chá.

Ergueu uma sineta de prata e a sacudiu com vigor tal que receei vê-la voar de sua mão. Em questão de segundos, um jovem monge entrava apressadamente, trazendo chá e — oh, alegria das alegrias! — algumas guloseimas da Mãe Índia! Enquanto ali estávamos sentados, refleti que todos aqueles Altos Lamas tinham alojamentos confortáveis. Lá embaixo, via os grandes jardins de Lhasa, o Dodpal e o Khati, que — assim parecia — se achavam ao alcance de meu braço, se o estendesse. Mais à esquerda, o Chorten de nossa região, o Kesar Lhakhang, parecia um sentinela, um tanto do outro lado da estrada, mas honesto, e podia ver também meu ponto favorito, o Pargo Kaling (Portão Ocidental).

            O que causa a aura, Senhor? — perguntei.

Como o seu respeitado guia, o Lama Mingyar Dondup, já lhe disse, — principiou ele —, o cérebro recebe mensagens do Eu Maior. Correntes elétricas são geradas no cérebro. Toda a Vida é elétrica. A aura constitui uma manifestação de força elétrica. Ao redor da cabeça da pessoa, como você sabe muito bem, existe o nimbo. As pinturas antigas sempre mostram um Santo ou Deus com essa "tigela dourada" ao redor da parte traseira da cabeça.

Por que tão poucas pessoas vêem a Aura e o Halo? — perguntei.

Algumas não acreditam na existência da aura, porque elas não a conseguem ver. Esquecem que também não podem ver o ar, e sem ar ninguém consegue viver! Algumas... pouquíssimas... pessoas vêem a aura. Outras, não. Há quem possa ouvir freqüências mais altas e freqüências mais baixas do que outros. Isso tem tanto a ver com o grau de espiritualidade do observador, quanto a capacidade de caminhar sobre ondas indica uma pessoa necessariamente espiritual. Dito isso, sorriu para mim e aduziu:

            Eu caminhava sobre andas, quase tão bem quanto você. Agora, meu corpo já não se presta a isso.

Também sorri, pensando que ele precisaria de um tronco de árvores, aliás, um par, para servir-lhe de andas.

            Quando operamos você, para a Abertura do Terceiro Olho — disse o Grande Lama Médico — pudemos observar que partes de sua formação lobo frontal eram muito diferentes das da pessoa comum e, por isso, supusemos que, fisicamente, você nasceu para ser clarividente e telepata. É esse um dos moti­vos pelos quais você recebeu e continuará a receber este preparo intenso e adiantado.

Fitou-me, com satisfação imensa, e prosseguiu:

            Vai ter de ficar aqui, na Escola Médica, por alguns dias. Temos de examiná-lo completamente para ver como é possível aumentar sua capacidade, e ensinar-lhe muita coisa.

Houve uma tosse discreta à porta e meu guia, o Lama Mingyar Dondup, entrou na sala.

Dei um pulo, pondo-me em pé e fazendo uma mesura para ele — o que também foi feito pelo Grande Chinrobnobo. Meu guia sorria.

            Recebi sua mensagem telepática — disse —, Grande Lama Médico, de modo que vim com tanta rapidez quanto pude, pois talvez me desse o prazer de ouvir a confirmação de minha descoberta, no caso de nosso jovem amigo.

Dito isso, sorriu para mim e sentou-se.

O Grande Lama Chinrobnobo também sorriu e disse:

            Respeitado Colega! Prazerosamente me inclino ao seu conhecimento superior, aceitando este jovem para investigações. Respeitado Colega, vossos próprios talentos são numerosos, sois surpreendentemente versátil, mas nunca encontramos um meni­no como este.

E então, para meu espanto, eles prorromperam em risada, e o Lama Chinrobnobo estendeu o braço para alguma parte atrás de si, dali retirando três jarras de nozes em conserva! Devo ter ficado com uma cara estúpida, pois ambos se voltaram para mim e prorromperam em risadas ainda mais altas.

            Lobsang, você não está usando sua capacidade telepá­tica. Se o fizesse, perceberia que o Reverendo Lama e eu chegamos, ao pecado de fazer uma aposta. Ficou assentado entre nós que, se você correspondesse às minhas afirmações, nesse caso o Reverendo Lama Médico lhe daria três vidros de nozes em conserva, e se você não correspondesse ao padrão que eu declarei, eu teria de fazer uma longa viagem e empre­ender certos trabalhos médicos para meu amigo.

Meu guia sorriu novamente para mim e disse:

            Naturalmente, vou fazer a viagem para ele, de qualquer modo, e você irá comigo, mas temos de acertar as coisas e, agora, a honra ficou satisfeita.

Apontou para as três jarras e disse:

            Ponha-as a seu lado, Lobsang. Quando você sair daqui, quando deixar esta sala, leve-as consigo, pois são o botim do vencedor e neste caso o vencedor é você.

Eu me sentia realmente aparvalhado. Era claro que não podia usar os poderes telepáticos naqueles dois Altos Lamas. O simples pensar em fazer coisas assim causava-me calafrios. Eu amava meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e respeitava enormemente o conhecimento e sabedoria do Grande Lama Mé­dico, Chinrobnobo. Teria sido um insulto, teria sido muito má educação, na verdade, ouvir o que dissessem, mesmo telepá­ticamente. O Lama Chinrobnobo voltou-se para mim e disse:

            Sim, meu menino, seus sentimentos merecem louvor. Estou realmente satisfeito em cumprimentá-lo, e tê-lo entre nós. Vamos ajudá-lo com seu desenvolvimento.

Meu guia disse:

            Agora, Lobsang, vai ter de ficar neste edifício por uma semana, talvez, e vai aprender muita coisa sobre a aura. Ah, sim! — disse, interpretando o olhar que lhe dediquei. — Sei que você julga saber tudo acerca da aura. Pode vê-la, lê-la, mas agora tem de aprender as explicações da mesma, tem de aprender o quanto os demais não vêem. Vou deixá-lo agora, mas o verei amanhã.

Ergueu-se e, naturalmente, nós fizemos o mesmo. Meu guia apresentou suas despedidas e depois se retirou daquela câmara bastante confortável. O Lama Chinrobnobo voltou-se para mim e disse:

            Não fique tão nervoso, Lobsang. Nada vai acontecer a você. Vamos, apenas, tentar ajudá-lo e acelerar o seu próprio desenvolvimento. Antes do mais, vamos falar sobre a aura humana. Você, naturalmente, a vê com clareza, e pode compreender a aura, mas imagine se não fosse assim dotado... ponha-se na posição de noventa e nove e nove décimos, ou mais, da população do mundo.

Voltou a sacudir com violência aquela sineta de prata e mais uma vez o criado entrou com pressa, trazendo chá e, naturalmente, as "outras coisas necessárias", que me agradavam mais quando tomava chá! Pode ser de interesse mencionar aqui que no Tibete às vezes bebíamos mais de sessenta chávenas de chá em um dia. O Tibete, naturalmente, é um país frio, e o chá quente nos aquecia, não podíamos sair .e comprar bebidas, como os povos do Ocidente faziam. Éramos limitados ao chá e tsampa, a menos que alguma pessoa realmente bondosa trou­xesse, de país como a Índia, aquelas coisas das quais não dis­púnhamos no Tibete.

Acomodamo-nos, e o Lama Chinrobnobo disse:

            Já falamos sobre a origem da aura. B a força, vital de um corpo humano. Vamos supor, por momentos, Lobsang, que você não consegue ver a aura e nada sabe a respeito dela, porque apenas pensando assim é que lhe posso contar o que a pessoa comum vê e o que não vê.

Assenti, para indicar que compreendera. Naturalmente, nascera com capacidade de ver a aura e coisas assim, e tais poderes tinham sido aumentados pela operação da "Terceira Visão", e em muitas ocasiões no passado eu fora quase arrastado a dizer o que via, sem perceber que as demais pessoas não viam o mesmo. Lembrei-me de ocasião anterior, quando dissera que uma pessoa ainda estava viva — pessoa essa que o Velho Tzu e eu tínhamos visto caída, ao lado da estrada, e Tzu dissera que eu estava inteiramente errado, que o homem se achava morto. Eu dissera: "Mas, Tzu, o homem ainda está com as luzes acesas!" Por sorte, como compreendi mais tarde, a ven­tania que soprava truncara minhas palavras, de modo que Tzu não compreendera o significado das mesmas. Movido por algum impulso, entretanto, ele examinara o homem caído à beira da estrada, descobrindo que ainda estava vivo! Mas isto é uma digressão.

            O homem ou mulher comum, Lobsang, não pode ver a aura humana. Alguns, na verdade, sustentam a crença de que não existe coisa tal como a aura humana. Podiam dizer, com a mesma facilidade, que não existe coisa tal como o ar, porque não o podem ver!

O Lama Médico olhou para mim, para ver se eu o acompanhava, ou se meus pensamentos tomavam o rumo das nozes em conserva. Satisfeito com meu aspecto de atenção, assentiu com um movimento da cabeça e prosseguiu:

            Enquanto houver vida em um corpo, haverá também uma aura que pode ser vista por quem possua o poder, dom ou capacidade... qualquer que seja o nome. Deixe explicar a você, Lobsang, que, para a percepção mais clara da aura, a criatura que esteja sendo vista deve estar inteiramente nua. Falaremos sobre isso mais tarde. Basta, para as leituras co­muns, olhar uma pessoa que tenha alguma roupa no corpo, mas se vai procurar algo relacionado a um motivo médico, nesse caso a pessoa deve estar completa e inteiramente nua. Bem, envolvendo inteiramente o corpo e estendendo-se do mesmo por uma distância de um oitavo de polegada a três ou quatro polegadas, existe o escudo etérico. É uma bruma azul-cinzenta, e quase não se pode chamá-la de bruma, pois, embora pareça assim, dá para ver claramente por ela. Essa cobertura elétrica é a emanação puramente animal, e provém de modo par­ticular da vitalidade animal do corpo, de modo que uma pessoa muito sadia terá um etérico bastante largo, até mesmo com três ou quatro polegadas de distância quanto ao corpo. Somente os mais dotados, Lobsang, percebem a camada seguinte, pois entre o etérico e a aura propriamente dita existe uma outra faixa, talvez com três polegadas de espessura, e é preciso ser realmente dotado e talentoso para ver cores nessa faixa. Confesso que não consigo ver coisa alguma senão o espaço vazio, nesse ponto.

Eu fiquei .realmente satisfeito com isso, porque podia ver todas as cores no espaço, e me apressei a dizê-lo.

            Sim, sim, Lobsang! Sei que você vê nesse espaço, pois você é um dos mais talentosos nesse sentido, mas eu estava fa­zendo de conta que você não podia ver a aura, de modo nenhum, porque tenho de lhe explicar tudo isso.

O Lama Médico olhou para mim com ar de reprovação reprovação, sem dúvida, por haver eu interrompido o fio de seus pensamentos. Quando julgou que eu estava suficientemente submisso para não apresentar outras interrupções, ele pros­seguiu :

            Em primeiro lugar, então, existe a calmada etérica. Após a camada etérica, vem essa zona que tão poucos de nós conseguem distinguir, a não ser como espaço vazio. Por fora dela, temos a aura. A aura não depende tanto da vitalidade •animal quanto da vitalidade espiritual. A aura se compõe de faixas em rodopio, e estrias de todas as cores do espectro visível, e isso significa mais cores do que podemos ver com os olhos físicos, pois a aura é vista por sentidos outros que não a visão física. Todo órgão no corpo humano emite seu próprio feixe de luz, seu feixe de raios, que se alteram e flutuam, conforme a flutuação dos pensamentos da pessoa. Muitas dessas indicações se acham presentes em grau acentuado no etérico e no espaço além, e quando o carpo nu é visto a aura parece ampliar as indicações de saúde ou doença, sendo claro que os suficientemente clarividentes podem perceber a saúde ou a doença de uma pessoa.

Eu sabia de tudo a esse respeito, para mim isso era como brincadeira de criança, e eu estivera praticando coisas assim desde a operação da Terceira Visão. Tinha conhecimento dos grupos de Lamas Médicos que se sentavam ao lado de pessoas doentes e examinavam o corpo nu, para ver como podiam ajudá-las. Eu julgara que talvez, estivesse sendo preparado para tra­balhar desse modo.

            E então! disse o Lama Médico. Você está sendo preparado especialmente, em alto grau, e quando for àquele grande mundo ocidental, além de nossas fronteiras, julgamos e esperamos que você consiga conceber um instrumento pelo qual até mesmo aqueles destituídos de poder oculto conseguirão ver a aura humana. Os médicos, vendo a aura humana, e vendo realmente o que está errado em alguma pessoa, poderão curar-lhe a doença. Como, falaremos mais tarde. Sei que tudo isto é bastante fatigante, grande parte do que estou dizendo já é há muito do seu conhecimento, mas pode ser fatigante porque você é um clarividente nato, e talvez jamais tenha pensado sobre o mecanismo de funcionamento de seu dom; isso é uma questão que deve ser remediada, porque um homem que conheça ape­nas metade de um assunto estará preparado pela metade, e será útil também pela metade. Você, meu amigo, vai ser muito útil, não resta dúvida! Mas vamos encerrar esta sessão, agora, Lobsang, e voltar a nossos próprios apartamentos...pois um deles foi destinado a você...e poderemos descansar e pensar nessas questões que apenas esboçamos aqui. Nesta semana, você não precisará freqüentar qualquer culto e isso por ordem pessoal de Sua Santidade. Toda a sua energia e devotamento devem ser dirigidos unicamente à compreensão das matérias que eu e meus colegas vamos apresentar.

Pos-se em pé, e eu o imitei. Mais uma vez aquela sineta de prata foi empunhada pela mão poderosa, e sacudida com tanto vigor que realmente receei que o pobre objeto se rompesse em pedaços. O monge-criado entrou correndo, e o Lama Médico Chinrobnobo disse:

            Você tratará de Terça-Feira Lobsang Rampa, que é um hóspede de honra aqui, como sabe. Trate-o como trataria um monge visitante de alto grau.

Voltou-se para mim, fez uma mesura, eu me apressei a fazer o mesmo, naturalmente, e logo o criado fez sinal para que eu o acompanhasse.

            Pare! berrou o Lama Chinrobnobo. Você esque­ceu as nozes!

Voltei com pressa, apanhando minhas três preciosas jarras, sorrindo um tanto embaraçado enquanto o fazia, e logo segui sem perda de tempo para ir ter com o criado que esperava.

Passamos por um corredor curto e o criado me levou a um quarto muito bom, que tinha janelas dando para a barca que cruzava o Rio Feliz.

            Devo cuidar do senhor, Mestre disse o criado. A sineta está aqui, para chamar-me quando quiser.

Voltou-se e saiu. Eu fui para a janela. A vista do Vale Sagrado me fascinava, pois a barca feita com couros inflados de iaque acabava de sair da margem e o barqueiro a impelia com uma vara, pelo rio veloz. Na outra margem, ao que vi, estavam três ou quatro homens que, por sua indumentária, deviam ser de alguma importância impressão que logo se confirmou, pelos modos obsequiosos do barqueiro. Eu os obser­vei por alguns minutos e depois, de repente, senti-me mais cansado do que poderia achar possível. Sentei-me no chão, sem ao menos me dar ao trabalho de apanhar uma almofada, e antes de percebê-lo já havia caído de costas, dormindo.

As horas se arrastaram, ao acompanhamento de estrale-jantes Rodas de Orações. De repente, sentei-me, ereto, estremecendo de medo. O Culto! Estava atrasado para o Culto. Com a cabeça inclinada para um lado, pus-me à escuta. Em algum lugar, uma voz entoava alguma Litania. Era o suficiente dei um salto, pondo-me em pé e corri para a porta minha conhecida. Não estava lá! Com um baque que me sacudiu os ossos, colidi com a parede de pedra e caí de costas. Por momentos, houve um clarão azul-branco dentro de minha cabeça, que também bateu na pedra, e logo me recobrei, pondo-me em pé mais uma vez. Em pânico, por estar atrasado, corri pelo quarto e pareceu-me não encontrar porta alguma. Pior ainda, não havia qualquer janela!

            Lobsang disse uma voz, vinda da escuridão —, você está doente?

A voz do criado me trouxe de volta aos sentidos, como um balde de água gelada.

            Oh disse eu, timidamente. Esqueci, julguei estar atrasado para o Serviço. Esqueci que tinha sido dispensado.

Houve uma risadinha abafada e a voz disse:

            Vou acender a lâmpada, pois a noite está muito escura.

Um pequeno brilho veio da porta — que se achava em lugar dos mais inesperados! — e o criado se adiantou para mim.

            Um interlúdio dos mais divertidos, — asseverou. — Pensei, de início, que um bando de iaques disparara e entrara aqui.

O sorriso que ostentava retirou toda a ofensa das palavras que pronunciara. Acomodei-me outra vez, e o criado se retirou, levando consigo a luz. Na escuridão menor que era a janela, uma estrela cadente passou, incendiando-se, incandescente, e sua jornada por aquela distância imensa chegara ao fim. Eu me voltei para o outro lado e adormeci.

O desjejum foi da mesma tsampa antiga e enfadonha, com chá. Coisa nutritiva, alimentícia, mas sem proporcionar qualquer inspiração. Depois, o criado veio e disse:

            Se estiver pronto, devo levá-lo a outro lugar.

Pus-me em pé e caminhei com ele, saindo do quarto. Seguimos por caminho diferente, dessa feita, indo ter a uma parte do Chakpori que eu não sabia existir. Descendo, descendo muito, até que eu julgasse estarmos chegando às entranhas da própria Montanha de Ferro. Já não havia qualquer lampejo de luz, a não ser das lâmpadas que carregávamos. Finalmente, o criado parou, apontando para a frente:

            Prossiga... em frente, e entre na sala à esquerda.

Com uma inclinação, voltou-se e regressou por onde tínhamos vindo. Eu prossegui, imaginando: "O que vem, agora?" A sala à esquerda estava diante de mim. Entrei e parei, espan­tado. A primeira coisa a chamar minha atenção era uma Roda de Orações, no meio do aposento. Tive tempo, apenas para vê-la de relance, mas ainda assim pareceu-me uma Roda de Orações muito estranha, e logo meu nome foi pronunciado:

            Bem, Lobsang! Folgamos em vê-lo aqui.

Olhei, e lá estava o meu guia, o Lama Mingyar Dondup, tendo sentado a seu lado o Grande Lama Médico Chinrobnobo, e no outro lado um Lama indiano de aspecto muito distinto, chamado Marfata. Ele já estudara medicina ocidental, e na ver­dade estudara em alguma Universidade alemã, que creio cha­mar-se Heidelberg. Era, agora, um monge budista, um lama, naturalmente, mas "monge" na acepção genérica.

O indiano me fitou de modo tão inquiridor, tão penetrante, que julguei estar ele examinando o tecido na parte traseira de meu manto — pois ele parecia olhar através de meu corpo.

No entanto, naquela determinada ocasião eu nada tinha de ruim na consciência, e retribuí esse olhar. Afinal de contas, por que não olharia para ele? Eu era tão bom quanto ele, pois estava sendo preparado pelo Lama Mingyar Dondup e pelo Grande Lama Médico Chinrobnobo. Um sorriso se forçou em seus lábios rígidos, como se lhe causasse dor intensa. Ele assentiu, voltando-se para meu guia.

            Sim, estou satisfeito em ver que o menino é como dizem.

Meu guia sorriu — mas não havia coisa alguma forçada nesse sorriso, que era natural, espontâneo e realmente consolava o coração..

O Grande Lama Médico disse:

            Lobsang, nós o trouxemos aqui, a esta sala secreta, por­que queremos mostrar-lhe coisas, e falar de coisas com você. O seu guia e eu o examinamos, e estamos realmente satisfeitos com os seus poderes, poderes esses que vamos aumentar em intensidade. Nosso colega indiano, Marfata, não acreditava que tal prodígio existisse no Tibete. Esperamos que você venha comprovar todas as nossas afirmações.

Olhei para o indiano, e pensei: "Bem, aí temos um homem com opinião bastante exaltada, sobre si próprio". Voltei-me para o Lama Chinrobnobo e disse:

            Respeitável Senhor, O Mais Precioso, que teve a bon­dade de me conceder audiência em uma série de ocasiões, adver­tiu-me expressamente contra proporcionar provas, dizendo que a prova era um simples paliativo para a mente ociosa. Aqueles que queriam provas não eram capazes de aceitar a verdade de uma prova, par mais que ficasse esclarecida.

O Lama Médico Chinrobnobo riu para mim, de modo que quase receei ser arrastado pela ventania por ele criada, e meu guia também riu, e ambos fitaram o indiano Marfata, que con­tinuava sentado, olhando para mim com ar azedo.

            Menino! — disse o indiano. — Você fala bem, mas a fala não prova coisa alguma, como você próprio diz. Agora, diga-me uma coisa, menino, o que vê em mim?

Senti-me bastante apreensivo, parque grande parte do que eu via não me agradava.

            Ilustre Senhor! — disse eu. — Receio que se disser o que vejo, vós venhais a interpretá-lo mal e achar que estou apenas sendo insolente, ao invés de responder à vossa pergunta.

Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, assentiu em concor­dância, e pelo rosto do Grande Lama Médico Chinrobnobo um sorriso enorme e radioso se apresentou, como o aparecimento da lua cheia.

            Diga o que quiser, menino, pois não temos tempo para conversa fantasiosa aqui, — disse o indiano.

Por alguns momentos, fiquei a olhar o Grande Lama In­diano, e assim foi até que ele próprio se mexesse um pouco, diante da intensidade com que eu o fitava, e então declarei:

— Ilustre Senhor! Ordenaste-me que falasse como vejo, e eu sei que meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e o Grande Lama Médico Chinrobnobo também querem que eu fale francamente. Pois bem, isto é o que vejo, e nunca o vi antes, mas com base em vossa aura e vossos pensamentos, percebo o seguinte: Sois um homem que viajou muito, e viajou pelos grandes oceanos do mundo. Fostes àquela pequena ilha cujo nome não conheço, mas onde todas as pessoas são brancas, e onde existe uma outra ilha pequena, próxima, como se fosse um poldro da grande ilha, que seria a égua. Vós vos antagonizastes muito com essa gente, e eles estavam realmente ansio­sos por adotar alguma medida contra vós, com relação a algo ligado a...

Hesitei nesse ponto, pois o quadro se mostrava bastante obscuro, referia-se a coisas sobre as quais eu não tinha o menor conhecimento. Entretanto, prossegui:

            Houve algo ligado a uma cidade indiana, que em vossa mente presumo ter sido Calcutá, e alguma coisa ligada a um buraco negro, onde as pessoas daquela ilha foram submetidas a grandes inconveniências ou embaraços. De algum modo, jul­garam que vós poderíeis ter evitado problemas, ao invés de causá-los.

O Grande Lama Chinrobnobo riu outra vez, e isso fez bem a mim, ouvir essa risada, porque indicava que eu estava na pista certa. Meu guia não deu qualquer indicação, mas o india­no rosnou.

Eu prossegui:

            Depois, fostes para outra terra, e posso ver o nome "Heidelberg" claramente escrito em vossa mente. Nessa terra, estudastes medicina de acordo com muitos ritos bárbaros, de acordo com os quais efetuastes muitos cortes, cortastes muitas coisas e serrastes outras, e não usastes os sistemas que temos aqui no Tibete. Com o tempo, recebestes um pedaço de papel grande, com muitos carimbos e selos. Também noto, em vossa aura, que sois um homem com enfermidade.

Respirei fundo, nessa altura, porque não sabia como minhas palavras seguintes seriam recebidas.

            A doença de que sofreis é uma para a qual não existe cura, em que as células do corpo se tornam selvagens e crescem como ervas daninhas, mas não de acordo com um padrão, não de um modo ordenado, mas se espalham, obstruem e se agarram em órgãos vitais. Senhor! Estais encerrando vossa própria vida nesta terra, pela natureza de vossos pensamentos, que não reconhecem qualquer bondade nas mentes alheias!

Por diversos momentos a mim pareceram anos! não houve som algum, e depois o Grande Lama Médico Chinrobnobo disse:

            Isso é inteiramente correto, Lobsang, inteiramente cor­reto!

O indiano disse:

            O menino provavelmente foi informado de tudo, antes de vir aqui.

Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, disse:

            Ninguém falou a seu respeito. Ao contrário, grande parte do que ele disse é novidade para nós, pois não investi­gamos a sua aura, nem sua mente, porque o senhor não nos con­vidou a isso. Mas a questão principal que examinamos é que o menino Terça-Feira Lobsang Rampa possui esses poderes, e os mesmos vão ser desenvolvidos ainda mais. Não temos tempo para disputas, nem lugar para elas. Ao invés disso, há trabalho sério a fazer. Venha! ordenou, pondo-se em pé, e levando-me para aquela grande Roda de Orações.

Examinei o objeto estranho, e vi que não era uma Roda de Orações, afinal de contas, mas ao invés disso um disposi­tivo com cerca de quatro palmos de altura, a quatro palmos do chão, e uns cinco de largura. Havia duas pequenas janelas de um lado, e pude notar o que me pareceu ser vidro nas mesmas. No outro lado da máquina, e fora do centro, apresentavam-se duas janelas bem maiores. Do lado oposto, existia uma manivela comprida, mas toda a coisa era um mistério para mim. Não fazia a menor idéia do que se tratava. O Grande Lama Médico disse:

            Este é um dispositivo, Lobsang, com o qual aqueles que não são clarividentes podem ver a aura humana. O Grande Lama Indiano Marfata veio aqui consultar-nos, não disse qual a natu­reza de seu mal, afirmando que se soubéssemos tanto sobre a medicina esotérica, tomaríamos conhecimento de sua enfermi­dade, sem que fosse preciso ele dizer. Trouxemo-lo aqui, para que pudesse ser examinado com esta máquina. Ele concordou em retirar o manto, e você o examinará primeiro e depois dirá qual é o mal de que ele sofre. Depois, utilizaremos esta má­quina e veremos até onde suas descobertas e as da máquina podem coincidir.

Meu guia indicou um ponto em uma parede escura, e o indiano seguiu até lá, retirando o manto e demais peças de roupa, de modo que se apresentou na pele castanha e nua contra a parede.

            Lobsang! Olhe bem para ele, e diga-nos o que vê, — ordenou meu guia.

Eu não olhei para o indiano, mas um tanto para um dos lados. Pus os olhos fora de foco, por ser esse o meio mais fácil de ver a aura. Isto é, não usei a visão binocular normal, mas ao invés disso, via com cada um dos olhos, em separado. É realmente difícil explicar, mas consistia em olhar com um dos olhos para a esquerda e com o outro para a direita, e isso é simplesmente uma habilidade — um truque — que pode ser aprendido, a bem dizer, por qualquer pessoa.

Olhei o indiano, e sua aura brilhava e flutuava. Vi que era realmente um grande homem, de grande poder intelectual, mas que, infelizmente, toda sua visão fora amargurada pela doença misteriosa que tinha. Enquanto o fitava, enunciei meus pensamentos, falei à medida que vinham a meu espírito. Não percebia, de modo algum, a atenção com que meu guia e o Grande Lama Médico ouviam minhas palavras.

            Está claro que a doença foi causada por muitas tensões dentro do corpo. O Grande Lama Indiano esteve insatisfeito e frustrado, e isso agiu contra a saúde dele, fazendo com que as células de seu corpo disparassem, fugindo da direção do Eu Maior. Assim, ele tem essa enfermidade aqui — (eu apontei para o fígado) — e, por ser homem de temperamento muito áspero, a doença se agrava a cada vez que é contrariado. Torna-se claro, pela aura, que se ele se pusesse mais tranqüilo, mais plácido, como o meu guia, o Lama Mingyar Dondup, perma­neceria mais tempo nesta terra, e assim conseguiria realizar uma parte maior de sua tarefa, sem necessidade de ter de voltar.

Mais uma vez reinou o silêncio, e fiquei satisfeito em ver que o lama indiano assentia, como em acordo completo com meu diagnóstico. O Lama Médico Chinrobnobo voltou-se para aquela máquina estranha, e espiou pelas janelinhas. Meu guia foi ter à manivela, fazendo-a girar com força cada vez maior, até que uma palavra do Lama Médico Chinrobnobo o levasse a manter a rotação em velocidade constante. Por algum tempo, o Lama Chinrobnobo espiou por aquele dispositivo, depois empertigou-se e, sem dizer uma palavra, o Lama, Mingyar Dondup tomou seu lugar, enquanto o Lama Médico Chinrobnobo acionava a manivela, como meu guia fizera anteriormente. Afi­nal, eles terminaram seu exame, e ali ficaram, sendo óbvio que conversavam por telepatia. Não fiz qualquer tentativa de inter­ceptar-lhe os pensamentos, porque fazê-lo teria sido uma gros­seria e me teria posto "acima de minha posição". Finalmente, voltaram-se para o indiano e disseram:

            Tudo que Terça-Feira Lobsang Rampa lhe disse é cor­reto. Examinamos sua aura do modo mais completo, e acredi­tamos que tenha câncer do fígado. Também acreditamos que isso tenha sido causado por certa irritabilidade. Acreditamos que, se você levar uma vida tranqüila, ainda terá bom número de anos à frente, anos nos quais poderá cumprir sua tarefa. Estamos preparados para interceder em seu favor, de modo que, se você concordar com nosso plano, terá permissão de ficar aqui em Chakpori.

O indiano debateu o assunto por algum tempo, e depois fez sinal a Chinrobnobo, com quem deixou a sala. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, bateu-me no ombro e disse:

            Andou bem, Lobsang. Andou bem! Agora, quero mos­trar-lhe esta máquina.

Seguiu para aquele dispositivo muito estranho, e suspendeu uma parte da tampa. Toda a coisa se movia, e lá dentro vi uma série de braços que vinham de um eixo central. Na extremidade dos braços havia prismas de vidro em vermelho-rubi, azul, amarelo e branco. À medida que a manivela era acionada, correias que ligavam a manivela ao eixo faziam com que os braços girassem, e eu observei que cada prisma, à sua vez, era posto em alinhamento, o que se via espiando pelos dois ocula­res. Meu guia mostrou-me como a coisa funcionava e depois disse:

            Está claro que isto é um dispositivo muito primitivo e desajeitado. Nós o utilizamos aqui para experiências, na esperança de que algum dia se possa fazer um modelo menor. Você jamais terá de utilizá-lo, Lobsang, mas não são muitos os que possuem o poder de "ver a aura com tanta clareza. Em alguma ocasião, explicarei o funcionamento com mais detalhes; mas, resumindo, a máquina se baseia num princípio heteródino, pelo qual prismas coloridos em rotação rápida interrompem a linha da visão, destruindo assim a imagem normal do corpo humano e intensificando os raios, muito mais fracos, da aura.

Recolocou a tampa, e voltou-se para outro dispositivo em uma mesa a um canto distante. Seguia para lá, quando o Lama Médico Chinrobnobo voltou à sala e veio ter conosco.

            Ah! — disse, aproximando-se de nós. — Com que, então, vai examinar o poder de pensamento dele? Ótimo! Pre­ciso ver isto!

Meu guia apontou para um cilindro curioso, feito, ao que parecia, de papel bruto.

            Isto, Lobsang, é um papel grosso e forte. Você verá que tem inúmeros buracos, feitos com um instrumento muito embotado, de modo que o papel está rasgado e deixa projeções. Depois disso, dobramos esse papel, de modo que todas as pro­jeções ficassem para fora e a folha, ao invés de ser lisa, formasse um cilindro. Sobre a parte superior do cilindro, fixamos uma palha rígida, e num pequeno pedestal fixamos uma agulha pon­tiaguda. Assim, temos o cilindro apoiado num suporte quase destituído de fricção. Agora, observe!

Sentou-se, e pôs as mãos em ambos os lados do cilindro, sem tocá-lo, mas deixando perto de uma polegada ou polegada e meia de espaço entre as mãos e as projeções. Logo o cilindro começava a girar, e fiquei atônito à medida que aquilo adquiria velocidade, chegando a girar com rapidez. Meu guia o deteve, com um toque, e colocou as mãos na direção oposta, de modo que os dedos — ao invés de apontarem para longe de seu corpo, como fora antes — apontavam agora para o mesmo. O cilindro começou a girar, mas na direção oposta!

            O senhor está soprando nele! — disse eu.

            Todos dizem isso! — disse o Lama Médico Chinrobno­bo. — Mas estão completamente errados.

O Grande Lama Médico foi a um recanto, numa parede distante, e dali voltou trazendo uma chapa de vidro, bastante grossa, que levou a meu guia, o Lama Mingyar Dondup. Meu guia deteve o cilindro, para que não girasse, e permaneceu quie­to e parado, enquanto o Grande Lama Médico Chinrobnobo punha a folha de vidro entre ele e o cilindro de papel.

            Pense em rotação, — disse o Lama Médico.

Meu guia deve tê-lo feito, pois o cilindro começou a girar outra vez. Era de todo impossível que ele, ou qualquer outra pessoa, soprasse sobre o cilindro, fazendo-o girar, devido ao vidro. Ele tornou a deter o cilindro, voltando-se para mim e dizendo:

            Você venha tentar, Lobsang!

Levantou-se do banco, onde eu me sentei.

Coloquei as mãos exatamente como meu guia fizera. O Lama Médico Chinrobnobo segurava a folha de vidro, à minha frente, para que minha respiração não influenciasse a rotação do cilindro. Eu estava ali, sentado, sentindo-me um imbecil. Ao que parecia, o cilindro achava que eu realmente o era, pois nada aconteceu.

            Pense em fazê-lo girar, Lobsang! — disse meu guia.

Eu pensei, e imediatamente a coisa começou a girar. Por momentos, tive vontade de largar tudo e sair correndo — julgando que aquilo era enfeitiçado, mas logo a razão (de certo tipo!) prevaleceu, e permaneci sentado.

            Este dispositivo, Lobsang, — disse meu guia —, gira pela força da aura humana. Você pensa em rodá-lo, e sua aura põe um rodopio na coisa, que a faz girar. Você pode estar interessado em saber que um dispositivo assim já foi experimentado em todos os principais países do mundo. Todos os maiores cientistas já procuraram explicar o funcionamento desta coisa, mas a gente ocidental, naturalmente, não pode acreditar em força etérica, de modo que inventam explicações ainda mais estranhas do que a força verdadeira do etérico!

O Grande Lama Médico disse:

            Estou com muita fome, Mingyar Dondup. Acho ter chegado o momento de voltarmos a nossos quartos, para descansar e comer. Não devemos sobrecarregar as capacidades do rapaz, nem sua resistência, pois ele enfrentará bastante disso no futuro.

Nós nos voltamos, e as luzes se apagaram naquela sala. Seguimos pelo corredor de pedra, para o edifício principal do Chakpori. Eu logo me encontrei em uma sala com meu guia, o Lama Mingyar Dondup. Logo — pensando feliz! — con­sumia alimento, e me sentia muito melhor.

            Coma bem, Lobsang — disse meu guia — porque mais tarde, hoje, voltaremos a vê-lo, para falar sobre outros assuntos.

Por uma hora, aproximadamente, descansei em meu quar­to espiando pela janela, parque tinha uma fraqueza: sempre gostei de olhar de lugares altos, observando o mundo a se mover lá embaixo. Gostava muitíssimo de observar os comerciantes, seguindo em marcha lenta pelo Portão Ocidental, indi­cando a cada passo que davam o deleite por terem alcançado o final de uma viagem longa e árdua, pelos altos passos das montanhas. No passado, os comerciantes haviam-me falado da visão maravilhosa que se tinha, de determinado lugar num passo alto onde, quando se vinha da fronteira indiana, podia-se espiar por uma rachadura das montanhas, e ver a Cidade Sa­grada, com seus telhados refulgindo em ouro e, pelo lado das montanhas, as paredes brancas do "Monte de Arroz", seme­lhante realmente a um monte de arroz, estendendo-se em pro­fusão generosa pelas encostas montanhosas. Eu adorava observar o barqueiro que atravessava o Rio Feliz, e sempre estava à espera para ver um furo surgir em seu barco de peles infla­das. Ansiava por vê-lo afundar gradualmente, desaparecer de vista, até que apenas a cabeça do homem estivesse acima da água. Nunca tive tanta sorte, porém, e o barqueiro sempre chegou à outra margem, recebendo sua carga e regressando.

Não tardou que eu estivesse outra vez naquela sala profun­da, com meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e o Grande Lama Médico Chinrobnobo.

Lobsang! disse o Grande Lama Médico. Quando for examinar um paciente ou uma paciente, para poder ajudá-lo ou ajudá-la, você precisa fazer com que a pessoa fique inteiramente sem roupa.

Honrado Lama Médico! disse eu, um tanto con­fuso. Não vejo motivo pelo qual eu deva fazer, uma pessoa tirar a roupa, neste clima frio, pois posso ver-lhe a aura perfeitamente, sem qualquer necessidade, em absoluto, de retirar uma só peça, e, oh! Respeitável Lama Médico! Como seria possível eu pedir a uma mulher que tirasse a roupa?

Meus olhos se voltaram para cima, no horror causado pelo pensamento. Devo ter formado uma figura bastante cômica, porque tanto meu guia quanto o Lama Médico explodiram em gargalhadas. Sentaram-se, enquanto davam vazão à sua hilaridade. Fiquei à frente deles, sentindo-me formidavelmente imbecil mas, na verdade, minha perplexidade era completa quan­to a essas coisas. Eu podia ver uma aura perfeitamente sem problema algum e não viá motivo para afastar-me do que era minha própria prática normal.

            Lobsang! disse o Lama Médico. Você é um clarividente muito dotado, mas existem coisas que você não vê ainda. Você nos deu uma demonstração notável da habilidade que tem em ver a aura humana, mas não teria percebido a enfermidade do fígado no lama indiano Marfata, se ele não houvesse retirado a roupa.

Refleti sobre isso, e quando pensei bem tive de reconhecer que era verdade; ao olhar para o lama indiano, enquanto o mesmo estivera com o manto, embora visse muita coisa a respeito de seu caráter e traços básicos, eu não percebera o mal no fígado.

            Está inteiramente correto, Honrado Lama Médico, confirmei —, mas eu gostaria de receber mais algum preparo do senhor, nessa questão.

Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, olhou para mim e disse:

            Quando você olha para a aura de uma pessoa, quer ver a aura dela, não está preocupado com os pensamentos da ovelha, da qual veio a lã que foi transformada em um manto. Todas as auras são influenciadas por aquilo que interfere com seus raios diretos. Aqui temos uma lâmina de vidro, e se eu soprar sobre ela, isso afetará o que você pode ver através do vidro. Da mesma forma, embora este vidro seja transparente, na verdade êle altera a luz, ou melhor, a cor da luz, que você veria quando espiando por ele. Do mesmo modo, se olhar por um pedaço de vidro colorido, todas as vibrações que recebe de um objeto são alteradas em intensidade pela ação do vidro colorido. Assim é que uma pessoa cujo corpo esteja vestido, ou tenha ornamentos de qualquer tipo, fica com a aura modificada, de acordo com o teor etérico da roupa ou ornamento.

Pensei sobre isso, e tive de concordar com o que o meu guia afirmava. E ele prosseguiu:

            Uma outra questão é que cada órgão do corpo projeta seu próprio quadro... seu próprio estado de saúde ou doença... no etérico, e a aura, quando descoberta e livre da influência das roupas, amplia e intensifica a impressão que recebemos. Assim, é fora de dúvida que, se você vai ajudar uma pessoa, para saber se está com saúde ou doente, terá de examiná-la sem as roupas.

Sorriu para mim, e aduziu:

            E se estiver fazendo frio, Lobsang, ora! Você terá de levá-la para um lugar mais quente!

Honrado Lama disse eu —, faz algum tempo que o senhor me disse que estava trabalhando em um dispositivo que permitiria a cura de doença, por meio da aura.

Isso é inteiramente correto, Lobsang disse meu guia —, a doença é apenas uma dissonância nas vibrações do corpo. Um órgão tem sua cadência de vibração molecular perturbada, sendo assim considerado doente. Se pudéssemos real­mente ver o quanto a vibração de um órgão se afasta do normal, nesse caso, restaurando a cadência de vibração à que devia ser, teremos efetuado uma cura. No caso de uma doença mental, o cérebro geralmente recebe mensagens do Eu Maior, que não consegue interpretar corretamente, e assim os atos resul­tantes são aqueles que se afastam do que é aceito como atos normais de um ser humano. Desse modo, se o ser humano não conseguir raciocinar ou agir de modo normal, diz-se que apre­senta alguma enfermidade mental. Medindo a discrepância... ou subestímulo...podemos ajudar uma pessoa a recuperar o equilíbrio normal. As vibrações podem estar mais baixas do que o normal, resultando em subestímulo, ou mais altas do que o normal, o que apresentaria efeito semelhante àquele de uma febre cerebral. De modo perfeitamente definido, a doença pode ser curada pela intervenção através da aura.

O Grande Lama Médico interveio nesse ponto, dizendo:

Por falar nisso, Respeitável Colega, o Lama Marfata esteve falando sobre essa questão comigo, e disse que em certos lugares da índia...em certas lamaserias isoladas...eles estavam fazendo experiências com um dispositivo de voltagem muito alta, conhecido como...ele hesitou, e disse: — É um ge­rador de Graaf. — Mostrava-se um tanto incerto quanto aos termos, mas fazia um esforço realmente viril para nos dar a informação exata.

Esse gerador, ao que parece, desenvolve uma voltagem extraordinariamente alta, com corrente extraordinariamente bai­xa, e aplicado de certo modo ao corpo, faz com que a inten­sidade da aura aumente muitíssimas vezes, de modo que até o não-cterividente possa observá-la com clareza. Também estou informado de que fotografias foram tiradas de uma aura huma­na, sob tais condições.

Meu guia assentiu, com ar solene, e disse:

            Sim, também é possível ver a aura humana por meio de um corante especial, um líquido que fica imprensado entre duas lâminas de vidro. Providenciando-se iluminação e fundo adequados, e vendo o corpo humano nu por essa cortina, muitas pessoas podem realmente ver a aura. Eu intervim, dizendo:

            Mas, Honrados Senhores! Por que as pessoas têm de utilizar todos esses truques? Eu posso ver a aura! Por que elas não podem?

Meus dois mentores voltaram a rir, e dessa feita não acha­ram necessário explicar a diferença entre o preparo como o que eu tinha e o preparo do homem ou mulher comuns.

O Lama Médico disse:

            Agora, sondamos no escuro, procuramos curar nossos pacientes, usamos regras empíricas, tais como ervas e pílulas e poções. Somos como homens cegos, procurando um alfinete que caiu ao chão. Gostaria de ver um dispositivo pequeno, de modo que qualquer pessoa não-clarividente pudesse espiar por ele e ver a aura humana, ver todos os defeitos da aura humana e, ao vê-los, se capacitasse a curar a discrepância ou deficiência que foi realmente a causa da doença.

Durante o resto daquela semana, mostraram-me coisas, usando o hipnotismo e a telepatia, e meus poderes aumentaram e se intensificaram; tivemos conversas sucessivas sobre os me­lhores meios de ver a aura e aperfeiçoar u'a máquina que tam­bém visse a aura e então, na última noite daquela semana, fui para meu pequeno quarto na Lamaseria de Chakpori, espiando pela janela e pensando no dia seguinte, quando voltaria àquele dormitório maior, onde dormia em companhia de tantos outros.

As luzes no Vale cintilavam. Os últimos raios do sol, . vindos sobre a orla rochosa de nosso Vale, faziam tremeluzir os telhados dourados, como se fossem dedos faiscantes a emitir chuveiros de luz dourada, e ao fazê-lo dividiam a luz em cores iridiscentes, que eram do espectro do próprio ouro. Azuis, amarelos, vermelhos e até alguns verdes, lutavam por atrair o olhar, tornando-se cada vez mais fracos, à medida que a luz esmaecia. Logo o próprio Vale se achava envolto em veludo escuro, um azul-violeta escuro ou purpúreo, que quase podia ser apalpado. Por minha janela aberta, eu sentia o odor dos salgueiros, e o odor das plantas no jardim tão lá embaixo. Uma brisa vadia trazia odores ainda mais fortes às minhas narinas, o pólen e as flores em botão.

Os últimos raios do sol desapareceram completamente, e não mais aqueles dedos de luz vinham sondar a orla de nosso Vale fechado por rochas. Ao invés de fazê-lo, atiravam-se ao céu que eseurecia, refletindo-se sobre nuvens baixas, exibindo vermelho e azul. De modo gradual, a noite se tornou mais escura, à medida que o sol se punha mais e mais, para além de nosso mundo. Logo surgiam pontos brilhantes de luz no céu purpúreo escuro, a luz de Saturno, de Vénus, de Marte. Depois veio a luz da Lua, corcovada no céu, com todas as marcas de bexiga bem claras. Pela face da lua passou uma nuvem leve e esgarçada. Fazia-me pensar em uma mulher, que se encobria com alguma peça de indumentária, depois de ter sido examinada mediante a aura. Eu me voltei, decidido em cada fibra do meu ser em que faria tudo para aumentar o conhecimento da aura humana, e ajudaria aqueles que saíssem pelo grande mundo a fora para levar ajuda e paz a milhões de sofredores. Deitei-me no chão de pedra, e quase no mesmo instante em que minha cabeça tocou no manto dobrado adormeci, e não percebi mais nada.

 

O silencio era profundo, intenso o ar de concentração. Com intervalos longos, vinha um farfalhar quase inaudível, que logo desaparecia outra vez, refazendo-se a tranqüilidade tumu­lar. Olhei ao redor, vendo as longas filas de figuras imóveis e em mantos, sentadas no chão e de costas aprumadas. Eram homens atentes, homens que se concentravam nos feitos do mundo exterior. Alguns, na verdade, estavam mais preocupados com os feitos do mundo fora deste! Meu olhar percorreu o lugar, parando primeiro em uma figura augusta, e depois em outra. Ali estava um grande abade, vindo de um distrito dis­tante. Lá estava um lama, em roupa pobre e humilde, homem que descera das montanhas. Sem pensar, movi uma das mesas compridas e baixas, de modo a ter mais espaço. O silêncio era opressivo, um silêncio vivo, silêncio que não podia haver, corn tantos homens ali presentes.

Crash! O silêncio foi rude e ruidosamente estraçalhado. Eu dei um salto de um palmo acima do chão, em posição sen­tada, e de algum modo consegui voltar-me, ao mesmo tempo. Estendido por completo no chão, ainda aturdido, estava um mensageiro da Biblioteca, com livros de capa de madeira ainda fazendo ruído a, seu redor. Ao entrar, sobrecarregado, não vira a mesa que eu movera. Esta, tendo apenas uns vinte e cinco centímetros de altura acima do chão, servira para fazê-lo tropeçar. Agora, estava por cima dele.

Mãos solícitas recolheram com gentileza os livros, tirando-lhes a poeira. Os livros são objetos reverenciados no Tibete. Eles contêm conhecimento, e jamais devem ser maltratados. Ora, a preocupação tinha por objeto os livros e não o homem. Eu recolhi a mesa, afastando-a do caminho. Maravilha das mara­vilhas, ninguém achou que eu devia ser incriminado, de modo algum. O mensageiro, esfregando a cabeça, procurava com­preender o que acontecera. Eu não estivera por perto; como era óbvio, não podia tê-ío feito tropeçar. Balançando a cabeça em espanto, ele se voltou e saiu. Logo a calma era restaurada, e os Lamas voltaram à sua leitura na Biblioteca.

Tendo danificado minha parte superior e a inferior (falando-se literalmente!) enquanto trabalhava nas cozinhas, eu fora permanentemente banido de lá. Agora, como trabalho "braçal" eu tinha de ir à grande Biblioteca e espanar os entalhes nas capas de livros e, de modo geral, manter limpo o lugar. Os livros tibetanos são grandes e pesados. As capas de madeira apresentam entalhes intricados, com o título e muitas vezes também uma ilustração. Era um trabalho pesado, o de erguer os livros das prateleiras, levá-los em silêncio para minha mesa, espaná-los, e depois devolver cada qual a seu lugar. O Biblio­tecário mostrava-se muito exigente, examinando cuidadosamente cada livro, para ver se realmente estava limpo. Havia capas de madeira que abrigavam revistas e jornais de países fora de nossas fronteiras. Eu gostava, de modo particular, de examiná-los, embora não conseguisse ler uma só palavra. Muitos desses jornais estrangeiros, publicados meses antes, apresentavam fi­guras, e eu as examinava sempre quando possível. Quanto mais o Bibliotecário procurasse impedi-lo, tanto mais eu me afundava nos livros proibidos, sempre que sua atenção se desviava de mim.

As ilustrações de veículos com rodas me fascinavam. Não havia, naturalmente, veículos de rodas em todo o Tibete, e nossas Profecias indicavam com a maior clareza que, com a chegada das rodas ao Tibete, haveria o "início do fim". O Tibete seria mais tarde invadido por uma força do mal, que se estendia pelo mundo como uma enorme chaga cancerosa. Esperávamos que, a despeito da Profecia, as nações maiores e mais poderosas não se interessariam por nosso pequeno país, que não tinha intenção guerreira , nenhum desígnio ou intenção quanto ao espaço de vida dos demais povos.

Eu examinava as ilustrações e fiquei fascinado em uma revista (naturalmente não sei qual o seu nome) na qual vi algumas fotos toda uma série delas mostrando como esta revista era impressa. Havia máquinas enormes, com grandes rolos e enormes rodas dentadas. Os homens, nas figuras, tra­balhavam como maníacos, e eu achei que isso era muito diferente do que acontecia no Tibete. Ali, trabalhávamos com o orgulho do artesanato, com o orgulho de executar bem uma tarefa. Nenhuma idéia comercial entrava no espírito do artesão do Tibete. Voltei-me e examinei novamente aquelas páginas, e então pensei sobre como estávamos fazendo as coisas.

Lá na Aldeia de Shö os livros estavam sendo impressos. Monges-entalhadores habilidosos trabalhavam com boas madeiras, esculpindo caracteres tibetanos, esculpindo-os com a lentidão que garantia a precisão absoluta, a fidelidade absoluta aos menores detalhes. Após os entalhadores terminarem cada tábua de impressão, outros a levariam, dando-lhe polimento, de modo que nenhuma falha ou aspereza ficasse sobre a madeira, após o que a tábua seria levada para exame de outros, que lhe conferiam a precisão com relação ao texto, pois nenhum erro pôde jamais ocorrer em um livro tibetano. O tempo não importava, mas a precisão sim.

Com as tábuas todas entalhadas, cuidadosamente polidas e inspecionadas à cata de erros ou falhas, elas passariam aos monges-impressores. Estes punham a tábua voltada para cima em uma bancada, e em seguida a tinta seria passada sobre as pa­lavras em relevo, entalhadas. As palavras, naturalmente, eram todas entalhadas ao inverso, de modo que, quando impressas, apareciam do modo certo. Tendo a tábua tintada e cuidado­samente examinada mais uma vez, para ter a certeza de que nenhuma parte ficara sem tinta, uma folha de papel duro, seme­lhante ao papiro do Egito, seria rapidamente estendida sobre o tipo, com sua superfície com tinta. Uma pressão suave e em rolo seria aplicada à parte de trás da folha de papel, e a mesma tirada da superfície impressora, com movimento rápido. Monges-inspetores imediatamente a tomavam, examinando-a com a maior cautela, à procura de qualquer defeito qualquer falha e se a houvesse, o papel não seria rasgado ou queimado, mas empilhado e amarrado.

A palavra impressa, no Tibete, é tida como semi-sagrada, sendo considerado um insulto ao conhecimento a destruição ou mutilação de papel que tenha palavras de erudição ou religiosas. Assim é que, com o correr do tempo o Tibete acumulou pilha após pilha, fardo após fardo, de folhas ligeiramente imperfeitas.

Se a folha de papel fosse considerada satisfatoriamente impressa, os impressores recebiam ordem para continuar, e pro­duziam diversas folhas, cada uma das quais era tão cuidadosa­mente examinada à procura de falhas quanto a primeira. Muitas vezes observei esses impressores a trabalhar, e no curso de meus estudos tive de empreender esse trabalho também. Eu esculpia as palavras impressas, invertidas, dava polimento aos entalhes e, sob supervisão meticulosa, passava a tinta e mais tarde imprimia livros.

Os livros tibetanos não são encadernados como os ociden­tais. Um livro tibetano é coisa comprida, ou talvez fosse melhor dizer que se trata de coisa larga e muito curta, porque uma linha tibetana se estende por diversos palmos, mas a página pode ter apenas um palmo de altura. Todas as foihas contendo o necessário seriam cuidadosamente estendidas, e no correr do tempo — não havia pressa — secariam. Quando já havia decor­rido tempo mais do que suficiente para secar, os livros eram reunidos. Em primeiro lugar viria uma tábua de base, à qual eram ligadas duas fitas, e depois, sobre essa tábua de base, seriam reunidas as páginas do livro em sua ordem correta, e quando cada livro assim estivesse montado, sobre a pilha de páginas impressas seria colocada outra tábua pesada que for­mava sua capa. Essa tábua pesada ostentaria entalhes intricados, mostrando talvez cenas do livro e, naturalmente, dando-lhe o título. As duas fitas vindas da tábua de baixo, a essa altura, eram trazidas e amarradas na de cima, e uma pressão conside­rável era feita, de modo que todas as folhas fossem compri­midas em uma massa compacta. Os livros de valor especial eram, em seguida, cuidadosamente envoltos em seda, e o envoltório selado, de modo que apenas aqueles com autoridade adequada pudessem abri-lo e perturbar a paz desse livro tão cuidadosa­mente impresso!

A mim parecia que muitas dessas ilustrações ocidentais representavam mulheres com notável falta de roupa; e tal cons­tatação me levava a crer que tais países deviam ser muito quentes; pois, de outra forma, como poderiam as mulheres andar tão descompostas? Em algumas das ilustrações havia pessoas deitadas, obviamente mortas, e de pé sobre elas estaria, talvez, um homem de aspecto vilanaz, tendo um pedaço de cano de metal em uma das mãos, do qual saía fumaça. Jamais pude compreender o intuito daquilo, pois — a julgar por minhas próprias impressões — o povo no mundo ocidental tem seu maior passatempo em andar de um lado para outro, matando­-se mutuamente, após o que homens grandes, com roupas es­tranhas, chegavam e punham coisas de metal nas mãos ou punhos da pessoa que estava com o cano fumegante.

As damas sub-trajadas não me perturbavam, de modo algum, e tampouco despertavam qualquer interesse particular em mim, pois os budistas e hindus e, na verdade, todos os povos do Oriente sabem muito bem que o sexo é necessário à vida humana. Sabia-se que a experiência sexual talvez fosse a mais elevada forma de êxtase que o ser humano podia experimentar, enquanto ainda dotado de carne. Por esse motivo, muitas de nossas pinturas religiosas mostravam um homem e uma mulher — geralmente referidos como Deus e Deusa — no mais aper­tado dos abraços apertados. Devido a que os fatos da vida e do nascimento fossem tão bem conhecidos, não havia qualquer necessidade especial de disfarçar o que eram fatos e, às vezes, um detalhe se mostrava quase fotográfico. Para nós, isso não era pornográfico, de modo algum, não era indecente, em abso­luto, sendo apenas o método mais conveniente de indicar que, com a união do macho e da fêmea, certas sensações específicas eram geradas, sendo explicado que, com a união das almas, um prazer muito maior poderia ser experimentado, mas que isso, naturalmente, não podia ser neste mundo.

Nas conversas com os comerciantes, na cidade de Lhasa, na Aldeia de Shö, e aqueles que descansavam ao lado da estrada no Portão Ocidental, recolhi a informação notável de que no mundo ocidental era considerado indecente expor o corpo ao olhar de outra pessoa. Eu não podia compreender o motivo para isso, pois o fato mais elementar da vida era que tinha de haver dois sexos. Recordava-me de uma conversa com um velho comerciante, que freqüentava a estrada entre Kalimpong, na Índia, e Lhasa. Por algum tempo, procurei encontrá-lo no Por­tão Ocidental, e saudá-lo a cada nova visita bem sucedida à nossa terra. Muitas vezes, ficávamos por ali, por bastante tem­po. Eu lhe dava notícias a respeito de Lhasa e ele me dava notícias a respeito do grande mundo lá fora. Muitas vezes, também, ele trazia livros e revistas para meu guia, o Lama Mingyar Dondup, e me cabia então a tarefa agradável de entre­gá-los. Aquele comerciante; certa feita, me disse:

— Eu lhe contei muita coisa a respeito da gente do Oci­dente, mas ainda não a compreendo, e há uma das coisas que eles dizem, de modo particular, que não faz sentido algum para mim. É a seguinte: o Homem é feito à imagem de Deus. É o que dizem, mas ainda assim têm medo de mostrar o corpo, que afirmam ser feito à imagem de Deus. Quererá isso dizer, então, que eles sentem vergonha da forma de Deus?

Fitava-me com ar indagador e eu, naturalmente, não sabia o que dizer, simplesmente não podia responder à pergunta. O Homem é feito à imagem de Deus. Portanto, se Deus é o supremo na perfeição — como devia acontecer — não devia haver vergonha na exposição de urna imagem de Deus. Nós, chamados pagãos, não sentíamos vergonha de nossos corpos. Sabíamos que sem o sexo não havia continuação da raça. Sabíamos que o sexo, em ocasiões apropriadas, e em ambientes apropriados, naturalmente, aumentava a espiritualidade de um homem e de uma mulher.

Fiquei também atônito, quando soube que alguns homens e mulheres que haviam estado casados, talvez por bom número de anos, jamais tinham visto, sem roupas, o corpo um do outro. Quando fui informado de que eles "se amavam" apenas com as janelas fechadas e a luz apagada, lembro-me de que jul­guei ter achado que meu informante me tomava por um pateta do interior, realmente imbecil demais para saber o que se passava no mundo, e depois de uma sessão assim resolvi que na pri­meira oportunidade perguntaria a meu guia, o Lama Mingyar Dondup, a respeito do sexo no mundo ocidental. Afastei-me do Portão Ocidental, e segui correndo pela estrada, indo ter à trilha estreita e perigosa que nós, os meninos de Chakpori, utilizávamos por gosto, ao invés de usarmos a trilha comum. Ela teria causado medo a um homem das montanhas; freqüen­temente, assustava-nos também, mas era uma questão de honra não utilizar a outra trilha, a menos que estivéssemos em com­panhia dos que nos eram superiores e, presumivelmente, melho­res do que nós. A maneira de subir acarretava a escalada, utili­zando-se as mãos, em "dentes" escarpados de rocha, pendu­rados precariamente em certos pontos expostos e, por todo o tempo, fazendo aquelas coisas que nenhuma pessoa suposta­mente lúcida faria, ainda que para isso recebesse uma fortuna. Por fim, cheguei ao cimo e entrei no Chakpori, passando por um caminho que também era conhecido nosso e que teria feito os Inspetores terem ataques de raiva se soubessem que o utili­závamos. Assim, finalmente, eu me encontrava dentro do Pátio Interno, muito mais esgotado do que se tivesse vindo pela trilha comum, mas, ao menos, a honra ficara satisfeita. Eu subira um pouco mais depressa do que alguns meninos conseguiam descer.

Sacudi as pedrinhas e poeira do meu manto, esvaziei a ti­gela, onde juntara numerosas plantas pequenas, e achando que estava bastante apresentável, segui à procura de meu guia, o Lama Mingyar Dondup. Ao dar uma volta, vi que ele se afastava de mim, de modo que o chamei:

            Upa! Honrado Lama!

Ele parou, voltou-se e caminhou para mim, coisa que possivelmente nenhum outro homem em Chakpori teria feito, pois ele tratava todos os homens e meninos como seus iguais, e cos­tumava dizer que não é a forma externa, não é o corpo que se esteja usando no momento, mas o que há por dentro o que controla o corpo o que importa. O meu próprio guia era uma Grande Encarnação, que facilmente fora Reconhecida, quando regressara ao corpo. Eu recebia uma lição constante da humil­dade daquele grande homem, e sempre levava em consideração os sentimentos daqueles que não eram apenas "não tão grandes", mas de alguns que eram para dizer a coisa com clareza dos mais baixos.

            Pois, então, Lobsang! disse meu guia. Vi você subindo por aquela trilha proibida e, se eu fosse um Inspetor, você estaria ardendo num bom número de lugares do corpo, neste momento; ficaria muito satisfeito em não ter de sentar-se, por muitas horas.

Dito isso, riu e prosseguiu:

            No entanto, eu mesmo costumava fazer coisa bem pare­cida e ainda sinto o que possivelmente é uma emoção proibida, ao ver outros fazendo o que não posso mais fazer eu próprio. Bem, para que essa pressa, finalmente?

Eu o fitei, dizendo:

Honrado Lama, eu soube de coisas horríveis a respeito da gente do mundo ocidental, e minha mente está em agitação constante, porque; não consigo saber se estão zombando de mim... se estão fazendo com que me torne um imbecil ainda maior do que já sou... ou se as maravilhas que me foram descritas são realmente um fato.

Venha comigo, Lobsang disse meu guia. Eu vou para meu quarto, ia meditar, mas vamos falar sobre essas coisas. A meditação pode esperar.

Voltamo-nos, e seguimos lado a lado para o quarto do Lama Mingyar Dondup aquele que tinha visão por cima do Parque das Jóias. Entrei ali em suas pegadas e, ao invés de sentar-se imediatamente, ele tocou a sineta para que o criado trouxesse chá. Depois, tendo-me a seu lado, foi até a janela, espiando para aquela faixa encantadora de terra. Terra que era um dos mais belos lugares de todo o mundo, talvez. Lá embaixo, ligei­ramente à esquerda, encontrava-se o jardim fértil e arbóreo, co­nhecido como Norbu Linga, o Parque das Jóias. A bela água clara cintilava entre as árvores, e o pequeno Templo de O Mais Precioso ali se achava em uma ilha, refulgindo à luz do sol. Alguém seguia pelo caminho de pedras — uma trilha na super­fície da água, formada de pedras lisas, com espaços vazios entre si, de modo que a água pudesse passar livremente e os peixes não encontrassem obstáculos. Olhei cuidadosamente e julguei poder distinguir um dos altos membros do Governo.

            Sim, Lobsang, ele vai ver O Mais Precioso — disse o meu guia, em resposta ao pensamento que eu não enunciara em palavras.

Juntos, observamos por algum tempo, pois era agradável estar ali, vendo aquele parque com o Rio Feliz cintilando mais além, e dançando, como se tomado pela alegria de um belo dia. Também podíamos ver a Barca — um de meus pontos favori­tos, fonte interminável de prazer e espanto, ao ver o barqueiro levar a embarcação feita de peles infladas, atravessando alegre­mente para a outra margem.

Abaixo de nós, entre nó e o Norbu Linga, peregrinos caminhavam devagar pela estrada Lingkor. Prosseguiam, quase sem olharem para nossa própria Chakpori, mas em vigilância constante, para ver se conseguiam observar alguma coisa de interesse no Parque das Jóias, pois devia ser conhecimento co­mum entre os peregrinos sempre alertas que O Mais Precioso estaria no Norbu Linga. Eu também via o Kashya Linga, um parque pequeno, com bom número de árvores, que ficava ao lado da Estrada da Barca. Havia uma pequena estrada que dava da Estrada de Lingkor para o Kyi Chu, sendo usada principal­mente por viajantes que quisessem usar a Barca. Alguns, entre­tanto, a utilizavam para chegar ao Jardim dos Lamas, no outro lado da Estrada da Barca.

O criado trouxe chá, bem como uma comida saborosa. Meu guia, o Lama Mirigyar Dondup, disse:

            Venha, Lobsang, vamos quebrar nosso jejum, pois ho­mens que vão conversar não devem estar vazios por dentro, a não ser que a cabeça também o esteja!

Sentou-se sobre uma das almofadas duras que nós, no Ti­bete, utilizamos ao invés de cadeiras, pois sentamos no chão com as pernas cruzadas. Assim, fez-me um gesto para que seguisse seu exemplo, e eu obedeci com alegria, porque a visão de comi­da sempre servia para me apressar. Comemos em silencio rela­tivo. No Tibete, especialmente entre os monges, não era consi­derado decente falar ou fazer ruído enquanto a comida estivesse à frente. Os monges sozinhos comiam em silêncio, mas se esti­vessem em uma congregação de número maior, um Leitor faria a leitura, em voz alta, dos Livros Sagrados. Esse Leitor situar-se-ia num lugar alto, onde, além de ver o livro, pudesse ver a reunião de monges, e ver imediatamente aqueles que se acha­vam tão dedicados à comida que não tinham tempo para ouvir-lhe as palavras. Quando se formava uma congregação de mon­ges, nesse caso também os Inspetores estariam presentes para impedir que houvesse qualquer faia, a não ser a do Mange-Leitor. Nós, entretanto, estávamos sós; e trocamos alguns co­mentários sem importância, sabendo que muitos dos antigos cos­tumes, tais como permanecer em silêncio às refeições, eram bons para a disciplina para quem estivesse no meio de uma aglome­ração de pessoas, mas não eram necessários para dois homens como nós. Assim, em minha presunção, eu me classificava como associado de um dos homens realmente grandes de meu país.

Bem, Lobsang, disse meu guia, quando havíamos terminado. — Fale-me do que tanto o incomoda.

Honrado Lama! disse eu, com alguma agitação. Um comerciante que passou por aqui, e com quem andei fa­lando sobre questões de alguma importância, no Portão Oci­dental, deu-me algumas informações notáveis acerca das pes­soas do Ocidente. Disse que elas consideram nossas pinturas re­ligiosas como coisas obscenas. Contou-me algumas coisas inacreditáveis a respeito dos hábitos sexuais delas, e eu ainda creio "que ele estivesse a me fazer de tolo.

Meu guia fitou-me, pensou por momento, e depois disse:

            Entrar nessa questão, Lobsang, tomaria mais de uma sessão. Temos de ir a nosso Culto, e o tempo se avizinha para isso. Vamos debater apenas um dos aspectos disso, está bem?

Eu aceitei, ansioso, porque estava realmente intrigadíssimo quanto a todo o assunto. Meu guia disse, então:

            Tudo isso provém da religião. A religião do Ocidente é diferente da religião do Oriente. Deveríamos examinar esse as­pecto e ver que relação ele tem com o assunto.

Endireitou o manto ao redor do corpo, pondo-se mais a cômodo, e tocou a sineta para que o criado levasse as coisas da mesa. Quando isso foi feito, voltou-se para mim e deu início a uma palestra que achei de enorme interesse.

            Lobsang, disse ele —, devemos traçar um paralelo entre uma das religiões do Ocidente e a nossa própria religião budista. Você perceberá, de suas lições, que os Ensinamentos de nosso Senhor Gautama foram um tanto alterados, com o cor­rer do tempo. No decurso dos anos e séculos que se sucederam desde a passagem, nesta terra, de O Gautama e Sua elevação à Budância[1], Os Ensinamentos que Ele pessoalmente trans­mitiu sofreram alteração. Alguns de nós acham que eles muda­ram para pior. Outros acham que os Ensinamentos foram pos­tos de acordo com o pensamento moderno.

Olhou para mim, para ver se eu o acompanhava com aten­ção suficiente, e se eu compreendia o que ele falava. Eu compreendia, sim, e o acompanhava com perfeição. Ele assentiu para mim, de modo breve, e prosseguiu:

            Nós tivemos o nosso Grande Ser, a quem chamamos Gautama, a quem outros chamam o Buda. Os cristãos também têm o seu Grande Ser. O Grande Ser deles divulgava certos Ensinamentos. A lenda e, na verdade, os registros verdadeiros dão testemunho do fato de que o Grande Ser deles, de acordo com suas próprias Escrituras, andou pelos desertos, na verdade visitou a Índia e o Tibete, à procura de informação, à procura de conhecimento, buscando uma religião que fosse ade­quada à mentalidade e espiritualidade dos ocidentais. Esse Grande Ser veio a Lhasa, e realmente visitou nossa Catedral, o Jo Kang. O Grande Ser, em seguida, regressou ao Ocidente, formulando uma religião que era de todos os modos admirável e adequada ao povo ocidental. Com o Passamento desse Grande Ser desta terra...como nosso próprio Gautama passou...cer­tas dissensões surgiram na Igreja Cristã. Uns sessenta anos após esse Passamento, uma Convenção ou Reunião foi efetuada num lugar chamado Constantinopla. Certas alterações foram introduzidas nos dogmas cristãos...certas alterações foram feitas na crença cristã. Provavelmente alguns dos sacerdotes da época achavam que tinham de aduzir alguns tormentos, a fim de manter em ordem alguns dos elementos mais refratários de sua congregação.

Fitou-me novamente para ver se eu o acompanhava, e mais uma vez indiquei que não apenas o fazia, mas que me achava imensamente interessado.

            Os homens que compareceram àquela Convenção em Constantinopla, no ano 60, eram criaturas destituídas de simpatia para com as mulheres, exatamente como alguns de nossos monges sentem vertigem apenas por pensarem em uma delas. A maioria dos mesmos encarava o sexo como algo sujo, algo a que só se devia recorrer no caso de necessidade absoluta, a fim de aumentar a população. Eram homens que não tinham grande impulso sexual em si, e certamente se viam dotados de outros impulsos, talvez alguns dos mesmos fossem espirituais... eu não sei... sei apenas que no ano 60 resolveram que o sexo era sujo, que o sexo era obra do demônio. Decidiram que as crian­ças eram trazidas ao mundo impuras e não mereciam uma recom­pensa, enquanto, de algum modo, não houvessem sido purifi­cadas.

Fez uma pausa momentânea, e sorriu, ao prosseguir:

            Eu não sei o que julgavam que devia ter acontecido com todos os milhões de crianças nascidas antes desse encontro em Constantinopla!

"Você compreenderá, Lobsang, que eu estou dando informações a respeito da Cristandade, como eu a compreendo. Tal­vez, quando você for viver entre essa gente, tenha algumas im­pressões diferentes, ou informações diferentes, que possam de algum modo modificar minhas próprias opiniões e ensinamen­tos."

Ao encerrar essa afirmação, as conchas soaram e ouviu-se o clangor das trombetas do Templo. Ao redor de nós, surgiu a movimentação ordenada de homens disciplinados que se preparavam para o Culto. Nós também nos pusemos em pé, endirei­tando os mantos, antes de seguirmos para o Templo, onde seria realizado o Culto. Antes de deixar-me à entrada, meu Guia disse:

            Venha a meu quarto depois, Lobsang, e prosseguiremos com nossa conversa.

Assim é que entrei no Templo, tomando lugar entre meus companheiros, fiz minhas orações e agradeci a meu próprio Deus particular por ser eu tibetano tanto quanto meu guia, o Lama Mingyar Dondup. O velho Templo era belo, com seu ar de ado­ração e as nuvens de incenso em movimento lento que nos punham em contato com as pessoas em outros planos de exis­tência. O incenso não é apenas um cheiro agradável, algo que "desinfeta" um Templo — é uma força viva, uma força dis­posta de tal modo que, escolhendo-se o tipo determinado de incenso, podemos realmente controlar a cadência de vibrações. Aquela noite, no Templo, o incenso flutuava e conferia uma atmosfera suave e de mundo antigo ao lugar. De meu lugar, em meio aos meninos de meu grupo, olhei para os recantos difusos do edifício do Templo. Havia o canto profundo dos velhos lamas acompanhado às vezes pelas sinetas de prata. Aquela noite, tínhamos conosco um monge japonês. Ele viera, percor­rendo todo o caminho até nossa terra e depois de se deter na Índia por algum tempo. Era um grande homem em seu próprio país, e trouxera consigo seus tambores de madeira, tambores que desempenham parte tão importante na religião dos monges japoneses. Eu me maravilhava diante da versatilidade dele, diante da música notável que produzia nos tambores. Parecia realmente espantoso, a mim, que ao bater em um tipo de caixa de madeira se obtivesse um som tão musical; ele estava com o tambor de madeira e tinha uma espécie de castanholas, cada qual com sinetas. Também os nossos lamas o acompanhavam com outras sinetas, enquanto a grande concha do Templo se fazia ouvir, nos momentos apropriados. Pareceu-me que todo o Tem­plo vibrava, as próprias paredes pareciam dançar e estremecer, e a bruma na distância dos recantos mais afastados se trans­formava em semblantes, os semblantes de lamas há muito mor­tos. Daquela vez, entretanto, o Culto terminou com rapidez demasiada, para mim, e me apressei a ir ter com meu guia, o Lama Mingyar Dondup.

Você não perdeu muito tempo, Lobsang! disse meu guia, em tom alegre. Pensei que talvez parasse no caminho para fazer uma de suas inúmeras refeições leves!

Não, Honrado Lama, respondi. Estou aflito por obter algum esclarecimento, pois confesso que a questão do sexo no mundo ocidental me causou bastante espanto, depois de ouvir tanta coisa dos comerciantes e outras pessoas.

Ele riu de mim, e disse:

O sexo desperta muito interesse em toda parte! É o sexo, afinal de contas, que mantém as pessoas nesta terra. Nós o examinaremos conforme sua necessidade.

Honrado Lama, disse eu —, o senhor disse anteriormente que o sexo era a segunda força maior do mundo. O que queria dizer com isso? Se o sexo é tão necessário para manter o mundo povoado, por que não é a força mais importante de todas ?

A maior força do mundo, Lobsang, não é o sexo, a maior força que existe é a imaginação, pois sem a imaginação não haveria o impulso sexual. Se um macho não tivesse imaginação, não se interessaria pela fêmea. Sem imaginação, não haveria escritores, artistas, não haveria coisa alguma construtiva ou boa!

Mas, Honrado Lama — repliquei —, o senhor está dizendo que a imaginação é necessária ao sexo? E se é assim, como a imaginação se aplica aos animais?

— Os animais possuem imaginação, Lobsang, do mesmo modo como os seres humanos. Muitas pessoas julgam que os animais são criaturas sem mente, sem qualquer forma de inteligência, sem qualquer forma de razão. Eu, que vivi um número surpreendentemente prolongado de anos, afirmo o contrário.

Meu guia olhou para mim, e depois, sacudindo um dedo em minha direção, afirmou:

            Você afirma gostar dos gatos do Templo, e vai dizer que eles não têm imaginação? Você sempre fala com os gatos do Templo e se detém para acariciá-los. Depois de você ter sido afetuoso com eles a primeira vez, eles o esperarão a segunda, a terceira, e assim por diante. Se fossem apenas reações insensíveis, se fossem apenas padrões cerebrais, então os gatos não espe­rariam por você na segunda e na terceira ocasião, mas aguarda­riam até que o hábito se formasse. Não, Lobsang, qualquer ani­mal tem imaginação. Um animal imagina os prazeres de estar com sua companheira, e ocorre então o inevitável!

Quando me pus a pensar no assunto, e pensar longamente, tornou-se perfeitamente claro que meu guia estava certo. Eu vira pequenos pássaros— pequenas fêmeas — batendo as asas, de modo bem parecido com aquele pelo qual as mulheres jovens batem as pestanas! Eu observara pássaros pequenos, e vira uma aflição muito verdadeira, enquanto esperavam que seus compa­nheiros regressassem da busca incessante de comida. Observara a alegria com que um pássaro amoroso saudara o companheiro, ao regresso do mesmo. Era óbvio, agora que pensava no assun­to, que os animais realmente dispunham de imaginação e assim pude perceber o teor das observações de meu guia, no sentido de que a imaginação era a maior força sobre a terra.

            Um dos comerciantes me contou que, quanto mais uma pessoa se entregue ao ocultismo, tanto mais se opõe ao sexo, Honrado Lama, — disse eu. — Isso é verdade, ou estão brincando comigo? Já ouvi contar tantas coisas muito estranhas, que francamente não sei em que acreditar.

O Lama Mingyar Dondup assentiu, com tristeza, enquanto respondia:

            É inteiramente correto, Lobsang, que muitas pessoas intensamente interessadas nas questões ocultas se mostram inten­samente antipáticas ao sexo, e isso por um motivo especial: você já ficou sabendo, anteriormente, que os maiores ocultistas não são normais, isto é, eles têm alguma coisa fisicamente errada em si. Uma pessoa pode sofrer uma doença grave, como a tuberculo­se ou o câncer, ou qualquer coisa assim. Uma pessoa pode apre­sentar algum mal dos nervos... seja lá como for, trata-se de uma doença, e essa doença aumenta a percepção metafísica.

Ele franziu levemente o cenho, ao prosseguir:

            Muitos verificam que o impulso sexual é bem forte. Al­guns, por este ou aquele motivo, utilizam métodos de sublima­ção desse impulso sexual, e podem voltar-se para as coisas espirituais. Uma vez que um homem ou uma mulher se tenha afastado de algo, deixa-se tomar de repulsa mortal por essa coisa. Não há reformador maior... nenhum propagandista maior... contra os males da bebida do que o beberrão reformado! Do mesmo modo, um homem ou mulher que tenha renunciado ao sexo (possivelmente porque não podia satisfazer, ou receber satisfação) se dedicará às questões ocultas, e todo o impulso que anteriormente ia (com êxito ou sem ele) para as aventuras sexuais dedica-se, então, a aventuras no plano oculto. Infeliz­mente, porém, essa gente muitas vezes se inclina a não manter equilíbrio nisso; tendem a lamuriar, dizendo que apenas quem renuncia ao sexo é capaz de progredir. Nada poderia ser mais fantástico, nem poderia haver maior deformação. Algumas das pessoas de mais vulto conseguem levar uma vida normal, e tam­bém progredir, de modo vasto, na metafísica.

Exatamente nesse instante, o Grande Lama Médico Chinrobnobo entrou. Nós o saudamos, e ele veio sentar-se conosco.

Estou contando a Lobsang algumas coisas sobre o sexo e o ocultismo, — disse o meu guia.

Ah, sim! — disse o Lama Chinrobnobo. — Está na hora de ele receber algumas informações sobre isso; pensei no assun­to por muito tempo.

Meu guia prosseguiu:

            Está claro que quem usa o sexo normalmente... como deve ser usado... aumenta sua própria força espiritual. O sexo não é coisa para ser abusada, mas por outro lado também não deve ser repudiado. Levando-se vibrações a uma pessoa, essa pessoa pode aumentar, espiritualmente. Quero fazê-lo ver, entretanto — disse, fitando-me com severidade —, que o ato sexual só deve ser executado por aqueles que se amem, aqueles que este­jam ligados por afinidade espiritual. Aquilo que é ilícito, ilegal, não passa de uma simples prostituição do corpo, e pode preju­dicar a pessoa tanto quanto a outra espécie pode ajudá-la. Do mesmo modo, um homem ou uma mulher deve ter apenas um companheiro, evitando todas as tentações que o afastariam da trilha da verdade e da correção. O Lama Chinrobnobo disse:

            Mas existe outra questão sobre a qual deve falar com mais extensão, Respeitável Colega, a referente ao controle da natalidade. Eu o deixarei para tratar do caso.

Pôs-se em pé, fez uma mesura séria, e saiu da sala. Meu guia esperou por momentos, e depois disse:

            Você já se cansou disto, Lobsang?

Não, Senhor! — respondi. — Estou ansioso por apren­der o que puder, pois tudo isso é novo para mim.

Nesse caso, deve saber que nos primeiros dias da vida sobre a terra, os povos se dividiam em famílias. Nas regiões do mundo havia pequenas famílias que, com a passagem do tempo, se tornaram grandes. Como parece ser inevitável entre os seres humanos, ocorrerem brigas e dissensões. Uma família lutou contra outra. Os vencedores mataram os homens derrotados, levando as mulheres dos mesmos para sua própria família. Logo se tornou claro que, quanto maior fosse a família, que agora era designada como tribo, tanto mais poderosa e segura se achava com relação aos atos agressivos das outras.

Olhou para mim com algum pesar, e prosseguiu:

            As tribos aumentavam em número, com o decorrer dos anos, e séculos se passaram. Alguns homens se estabeleceram como sacerdotes, mas sacerdotes com um pouco de poder polí­tico, de olho no futuro! Eles decidiram que necessitavam de um edito sagrado... aquilo a que chamariam uma ordem de Deus... e que auxiliaria a tribo em seu conjunto. Ensinaram que era preciso ser fértil e multiplicar-se. Naqueles dias tratava-se de uma necessidade muito real, porque se as pessoas não "se mul­tiplicassem" sua tribo se enfraqueceria e seria, talvez, completa­mente exterminada. Assim... os sacerdotes que ordenaram ao povo "crescei e multiplicai-vos" estavam até mesmo salvaguar­dando o futuro de sua própria tribo. Com o transcurso de sé­culos e mais séculos, entretanto, torna-se bem claro que o índice de aumento da população do mundo é de tal ordem que este se torna super povoado, existindo mais gente do que é permitido pelas disponibilidades de alimentos. Algo terá de ser feito a esserespeito.

Eu conseguia compreender tudo aquilo, efiquei satisfeito ao ver que meus amigos do Pargo Kaling — os comerciantes que haviam viajado por tanta distância etempo — me haviam dito a verdade.

Meu guia prosseguiu:

Algumas religiões ainda hoje acham ser realmente errado colocar alguma limitação no número de crianças que nascem, mas se encararmos a história do mundo, vemos que a maioria das guerras foi causada por falta de espaço, por parte do agressor. O país que tenha uma população em expansão rápida sabe que, se continuar a expandir-se nesse ritmo, não haverá comida ou oportunidades suficientes para seus próprios habitantes. As­sim é que empreendem a guerra dizendo que precisam ter es­paço para viver!

Nesse caso, Honrado Lama, que solução daria ao pro­blema?

Lobsang! A questão é fácil, se os homens e mulheres de boa vontade se reunirem para debater o assunto. As formas antigas de religiões... os velhos ensinamentos religiosos, eram inteiramente adequados, quando o mundo era jovem, as pessoas pouco numerosas, mas agora é inevitável... e será, com o tem­po! ... que novas atitudes sejam adotadas. Você pergunta o que eu faria? Bem, eu faria o seguinte: tornaria legal o con­trole de nascimentos. Ensinaria a todos os povos o controle da natalidade, como pode ser conseguido, o que é, etudo o que se pudesse descobrir a respeito. Que as pessoas desejosas de filhos tivessem talvez um ou dois, enquanto que as que não o desejas­sem soubessem como evitá-los. De acordo com nossa religião, Lobsang, não haveria transgressão alguma em fazer isso. Eu estudei os livros antigos, de muitos anos passados, antes que a vida surgisse nas partes ocidentais deste planeta, pois, como você sabe, a vida surgiu primeiramente na China e nas regiões ao redor do Tibete, espalhando-se para a Índia, antes de pros­seguir para o Ocidente. Entretanto, não estamos examinando isso.

Naquele instante, decidi que assim que pudesse pediria a meu guia que falasse mais sobre a origem da vida neste planeta, mas relembrei que estava estudando tudo quanto podia sobre o sexo. Meu guia me observava e, ao ver que eu voltara a prestar atenção, prosseguiu:

Como eu dizia, a maioria das guerras é causada pela superpopulação. É um fato que haverá guerras... sempre haverá guerras... enquanto houver populações vastas e em cres­cimento. E é necessário que haja guerras, pois de outra forma o mundo seria inteiramente tomado por gente, do mesmo modo como um rato morto é inteiramente comido por enxames de for­migas. Quando você se afastar do Tibete, onde temos uma popu­lação muito pequena, e for a algumas das grandes cidades do mundo, ficará espantado e apavorado com os grandes números e multidões de gente. Verá que minhas palavras estão certas; as guerras são inteiramente necessárias, para reduzirem a popula­ção. As pessoas vieram à terra a fim de aprenderem coisas, e se não houvesse guerra e doenças, não haveria modo algum de manter a população sob controle e alimentada. Eles seriam como uma nuvem de gafanhotos, comendo tudo o que encontrassem, contaminando tudo, e depois dariam fim completo, a si mesmos.

Honrado Lama! — disse eu. — Alguns dos comercian­tes com quem eu falei sobre essa coisa de controle da natalidade dizem que muitas pessoas a julgam má. Ora, por que elas pensam assim?

Meu guia meditou por momentos, provavelmente calculan­do o quanto deveria contar-me, pois eu ainda era jovem, e de­pois disse:

            A alguns, o controle de natalidade parece ser o assas­sinato de uma pessoa que não nasceu, mas segundo nossa Fé, Lobsang, o espírito não entrou na criança por nascer. Em nossa Fé, não pode ter ocorrido o assassinato e, de qualquer modo, é claramente absurdo dizer que tenha havido algum assassinato, ao se adotarem precauções para impedir a concepção. Seria o mesmo se disséssemos que assassinamos uma grande quanti­dade de plantas se impedirmos que as sementes das mesmas germinem! Também os seres humanos imaginam, com freqüên­cia, serem a coisa mais maravilhosa que já aconteceu neste grande Universo. Na verdade, como é claro, os seres humanos são apenas uma forma de vida, e nem por isso a mais elevada, mas não há tempo para entrarmos na questão, neste momento.

Pensei em outro ser do qual ouvira falar, e que me parecera coisa tão chocante — coisa tão terrível — que mal conseguia ter a coragem de mencioná-lo. Ainda assim, consegui!

            Honrado Lama! Ouvi falar que alguns animais, as vacas, por exemplo, são enxertadas por meios não-naturais. Isso é verdade ?

Meu guia pareceu bastante chocado, por momentos, e de­pois disse:

            Sim, Lobsang, isso é inteiramente correto. Existem cer­tos povos, no mundo ocidental, que procuram criar gado pelo que chamam de inseminação artificial, isto é, as vacas são inseminadas por um homem com uma seringa grande, ao invés de porem um touro para fazê-lo. Essas pessoas parecem não com­preender que fazer uma cria, quer seja um bebê humano ou bebê urso, ou bebê vaca, é mais do que apenas uma união mecânica. Se alguém quer ter bom gado, nesse caso deve haver amor, ou uma forma de afeição, no processo de cruza. Se os seres huma­nos fossem artificialmente inseminados, poderia acontecer que.. . nascendo sem amor. .. eles seriam subumanos! Vou repetir, Lobsang, dizendo que para o tipo melhor de ser humano ou animal, é necessário que os pais gostem um do outro, que ambos se elevem em vibração espiritual, bem como física. A insemina­ção artificial, efetuada em condições frias e sem amor, resulta em crias muito más, na verdade. Creio que a inseminação arti­ficial seja um dos maiores crimes perpetrados nesta terra.

Eu ali estava sentado, com as sombras do anoitecer invadin­do o quarto, banhando o Lama Mingyar Dondup no crepúsculo, e enquanto aumentavam, vi que sua aura refulgia com o dourado da espiritualidade. Para mim, de modo clarividente, a luz era realmente brilhante e interpenetrava o próprio crepúsculo. Mi­nhas percepções clarividentes diziam como se eu não sou­besse antes que me encontrava na presença de um dos maio­res homens do Tibete. Senti-me reconfortado, por dentro, senti que todo o meu ser pulsava de amor por ele, meu guia e per­ceptor .

Lá embaixo, as conchas do Templo soaram novamente, mas desta feita não nos estavam chamando, chamavam outros. Juntos, fomos à janela espiar. Meu guia pos a mão em meu ombro, enquanto olhávamos para o vale lá embaixo o vale já parcialmente envolvido na escuridão purpúrea.

            Deixe sua consciência ser o seu guia, Lobsang disse meu guia. Você sempre saberá se uma coisa está certa, ou se uma coisa está errada. Você irá longe... mais longe do que consegue imaginar...e terá muitas tentações postas à sua frente.  Deixe que sua consciência o guie.  Nós, no Tibete somos povo pacífico, somos gente de uma população pequena, somos criaturas que vivem em paz, que acreditam na santidade, que acreditam na santidade do Espírito. Onde estiver, seja lá o que suportar, deixe que sua consciência seja o seu guia. Estamos tentando ajudá-lo com sua consciência. Estamos ten­tando conferir-lhe um poder telepático e clarividência máxi­mos, de modo que sempre, no futuro, enquanto viver, poderá estar em contato telepáticamente com grandes lamas, aqui nos altos Himalaias, grandes lamas que, mais tarde, dedicarão todo o seu tempo à espera de suas mensagens.

À espera de minhas mensagens? Receio que tenha ficado boquiaberto de espanto; minhas mensagens? O que havia de tão especial em mim? Por que motivo grandes lamas estariam esperando minhas mensagens todo o tempo? Meu guia riu, dando-me um tapa no ombro.

A razão para sua existência, Lobsang, é que você tem uma tarefa muitíssimo especial a executar. A.despeito de todas as vicissitudes, a despeito de todos os sofrimentos, você obterá êxito em sua tarefa. Mas é claramente injusto que você seja deixado por conta própria, em um mundo estranho, mundo que zombará de você e o chamará de mentiroso, impostor e mistificador. Nunca desespere, nunca desista, pois o direito pre­valecerá. Você...prevalecerá!

As sombras do anoitecer transformavam-se na escuridão da noite, e lá embaixo as luzes da Cidade cintilavam. Acima de nós uma lua nova nos fitava, sobre a orla das montanhas. Os planetas, inúmeros milhões deles, cintilavam nos céus purpúreos. Olhei para cima, pensei em todas as previsões a meu respeito todas as profecias que haviam feito sobre minha vida e pensei também na confiança e fé demonstradas por meu amigo, meu guia, o Lama Mingyar Dondup. E fiquei contente.

 

O Mestre estava de mau humor; talvez o chá que tomara não se achasse suficientemente quente, talvez seu tsampa não houvesse sido torrado ou misturado de acordo com seu paladar. O Mestre estava de mau humor; nós, os meninos, sentávamo-nos na sala de aula quase estremecendo de pavor. Ele já caíra inesperadamente sobre meninos à minha direita, meninos à mi­nha esquerda. Eu tinha boa memória, conhecia perfeitamente as Lições — poderia repetir capítulo e versículo de qualquer parte dos cento e oito volumes de O Kangyur. "Ta-plac! Ta-plac!" Eu saltei, quase um palmo no ar, tomado de sur­presa, e uns três meninos à esquerda, outros três à direita, saltaram também igualmente surpresos. Por momentos nem sabíamos qual de nós estava levando a coça, e então, quando o mestre bateu com mais força, percebi que eu era o infeliz! Ele prosseguiu batendo, enquanto resmungava, sem parar:

— Favorito do Lama! Idiota mimado!! Vou-lhe ensinar a aprender alguma coisa!

A poeira se levantava de meu manto, em nuvem sufocante que me pôs a espirrar. Por algum motivo, isso enraiveceu ainda mais o Mestre, pelo que se dedicou à tarefa de tirar mais poeira de mim. Por sorte — e sem que ele soubesse — eu previra seu mau humor, e vestira mais roupa do que o comum, de modo que — embora ele não ficasse satisfeito, se tivesse conhecimento disso — seus golpes não me preocupavam além da conta. De qualquer modo, eu era um menino rijo.

Aquele Mestre era uma criatura tirânica, um perfeccio­nista sem ser perfeito ele mesmo. Não só tínhamos de ser perfeitos em nosso Trabalho Escolar, como também se a pro­núncia e a inflexão não fossem exatamente de acordo com seus desejos, apanhava a bengala, ia para trás, e depois nos surrava pelas costas. Agora, fazia algum exercício a mais, e eu quase sufocava no meio da poeira. Os meninos, no Tibete, como os meninos por toda a parte, costumam rolar na poeira, quando brigam ou brincam, e meninos inteiramente separados da influên­cia feminina nem sempre conseguem que toda a poeira saia da roupa; a minha estava cheia dela, e isso era mais ou menos o costumeiro. O Mestre prosseguiu, deferindo bordoadas:

            Vou-lhe ensinar a pronunciar mal as palavras! Demonstrando desrespeito ao Conhecimento Sagrado! Seu imbecil mimado, sempre faltando às aulas, e depois voltando e sabendo mais do que os outros a quem, ensinei... Fedelho inútil... vou-lhe ensinar, você vai aprender comigo, de um modo ou de outro!

No Tibete, sentamo-nos no chão, as pernas cruzadas, na maioria das vezes sobre almofadas com umas quatro polegadas de espessura, e diante de nós temos mesas que podem ir de palmo a palmo e meio de altura do chão, dependendo do tamanho do estudante. Aquele Mestre, de repente, pôs as mãos com força na parte de trás da minha cabeça, empurrando-a para minha mesa, onde eu tinha uma ardósia e alguns livros. Colocando-me assim em posição adequada, respirou fundo e passou a um verdadeiro espancamento. Eu me contorcia, só por ques­tão de hábito, não porque estivesse sofrendo, porque a despeito de seus esforços mais empenhados, nós éramos meninos enri­jecidos, quase literalmente "curtidos em couro", e coisas assim eram uma ocorrência cotidiana. Algum menino deu uma risa­dinha mais ao lado, e o Mestre deixou-me, como se eu me houvesse transformado em brasa viva, saltando como um tigre sobre o outro. Tive o cuidado de não proporcionar qualquer indicação de meu próprio divertimento, ao ver uma nuvem de poeira levantar-se de alguns meninos mais adiante na fila! Sur­giram diversas exclamações de dor, pavor e horror, à minha direita, porque o Mestre já estava batendo indiscriminada­mente em todos, sem saber qual dos meninos rira. Finalmente, sem fôlego e por certo sentindo-se muito melhor, o Mestre encerrou seu exercício físico.

            Ah! arquejou. Isso vai ensinar a vocês, seus monstrinhos, a prestarem atenção ao que digo. Agora, Lobsang Rampa, recomece, e trate de apresentar a pronúncia perfeita.

Eu recomecei tudo, e quando dedicava os pensamentos a alguma coisa sabia realmente fazê-la bem. Dessa feita foi o que fiz com atenção, de modo que não houve novas demonstrações de raiva do Mestre nem bordoadas ainda mais fortes em mim.

Durante toda aquela sessão, cinco horas ao todo o Mestre andou para a frente e para trás, de olho muitíssimo vivo em todos nós, e nenhuma provocação lhe foi necessária para que se atirasse, apanhando algum menino infeliz, exatamente quando o mesmo julgava não estar sendo observado. No Tibete, nosso dia começa à meia-noite, quando vamos a um culto Religioso e, naturalmente, existem cultos a intervalos regulares. Depois, temos de executar trabalho rude, para que nos mantenhamos humildes, para que não encaremos o pessoal doméstico com desdém. Também temos um período de descanso, e depois disso vamos para nossas aulas. Estas duram cinco horas, sem parar, e por todo esse tempo os professores cuidavam de fazer-nos aprender completamente. Nossas aulas, é claro, duravam mais do que cinco horas por dia, mas aquela sessão, a da tarde, tinha essa duração.

As horas se arrastavam, parecia que estávamos ali há dias e dias. As sombras quase não se moviam, e o sol, lá em cima, dava a impressão de estar cravado em um só lugar, do qual não se retirava. Suspirávamos em exasperação e tédio, achando que um dos Deuses devia descer e tirar aquele Mestre de nosso meio, pois era o pior de todos, ao que parecia esquecido de que em alguma ocasião, oh, em tempo muito longínquo, também fora jovem. Mas, afinal, as conchas soaram e em cima, no teto, ouviu-se uma trombeta, reverberando pelo Vale, mandando um eco de volta, refletido pela Potala. Com um suspiro, o Mestre disse:

            Bem, lamento que tenha de deixá-los agora, meninos, mas podem acreditar que quando os vir outra vez, tratarei de fazê-los aprender alguma coisa!

Fez um sinal, em direção à porta. Os meninos da fileira mais próxima puseram-se em pé, com um salto, e correram para a mesma. Eu já ia, também, mas ele me chamou:

            Você, Terça-Feira Lobsang Rampa, vá ter com o seu guia, e aprenda as coisas, mas não volte aqui, exibindo-se com os meninos a quem eu ensinei. Você está aprendendo por hipnotismo e outros métodos, e vou ver se consigo expulsá-lo da sala.

Desferiu-me um pescoção, e prosseguiu:

            Agora, suma-se de minha vista. Acho difícil suportá-lo aqui, outros estão se queixando de que você aprende mais do que os meninos a quem eu ensino.

Assim que soltou meu manto, também saí correndo, e nem sequer me dei ao trabalho de fechar a porta por onde saíra. Ele berrou alguma coisa mas eu já corria com velocidade suficiente para não ter de voltar.

Lá fora, alguns dos outros meninos estavam à minha es­pera, bem fora do alcance da audição do Mestre, como era natural.

Devíamos fazer alguma coisa com esse camarada, disse um dos meninos.

Sim! corroborou outro. Alguém vai ficar muito machucado se ele continuar desse jeito.

Você, Lobsang disse um terceiro —, está sempre a jactar-se de seu Mestre e Guia... Por que não fala com ele, por que não diz a ele como somos maltratados?

Pensei no assunto, e me pareceu uma boa idéia, pois tínha­mos de aprender, mas não havia motivo pelo qual devêssemos fazê-lo sob tanta brutalidade. Quanto mais pensava na questão, tanto mais agradável ela se tornava; eu iria ter com meu guia, dizendo-lhe como éramos tratados, e ele, a seu turno, iria ter com o Mestre, aplicando-se um sortilégio, transformando-o em um sapo, ou coisa parecida.

            Sim! exclamei. Vou, agora mesmo.

Dito isso, voltei-me e saí correndo.

Segui pelos corredores conhecidos, subindo sempre, de modo a me aproximar do telhado. Finalmente, enveredei pelo corredor dos lamas, e descobri que meu guia já estava em seu quarto, tendo a porta aberta. Fez-me sinal para que entrasse, e disse:

            Ora, Lobsang! Você está agitado. Foi nomeado Abade ou coisa parecida?

Olhei para ele, com ar bastante pesaroso, e disse:

            Honrado Lama, por que motivo nós, os meninos, somos tão maltratados na aula?

Meu guia fitou-me com ar sério, dizendo:

            Mas como foram maltratados, Lobsang? Sente-se e con­te o que o preocupa tanto.

Sentei-me, e comecei minha narrativa triste. Enquanto falei, meu guia não fez qualquer comentário, nem interrupção alguma. Deixou-me dizer o que sentia, e finalmente cheguei ao final de meu rosário de pesares, e quase ao final do fôlego.

            Lobsang disse meu guia —, não lhe ocorre que a própria vida é apenas uma escola?

Uma escola? — contrapus, fitando-o como se meu guia houvesse repentinamente perdido a lucidez. Minha surpresa não seria maior se ele me dissesse que o Sol se fora e que a Lua viera para o lugar do mesmo!

Honrado Lama, — disse eu, atônito, — o senhor disse que a vida é uma escola?

Foi exatamente o que eu disse, Lobsang. Descanse um pouco, vamos tomar chá, e depois conversaremos.

O auxiliar que foi chamado logo nos trouxe chá e coisas boas para comer. Meu guia comia de modo muito parcimo­nioso. Como dissera uma vez, eu comia o bastante para sus­tentar uns quatro homens como ele! Mas o dissera com um sorriso tão travesso, que não houvera qualquer ofensa. Muitas vezes brincava comigo e eu sabia que ele jamais, em qualquer circunstância, diria alguma coisa que magoasse outra pessoa. Eu realmente não me importava, de modo algum, com o que ele me dizia, sabendo qual era sua intenção. Ali, sentados, tomamos nosso chá, e depois meu guia escreveu um pequeno bi­lhete dando-o ao auxiliar para que o entregasse a outro lama.

            Lobsang, eu disse que você e eu não estaremos no Ser­viço do Templo, esta noite, pois temos muito a conversar, e embora os Serviços do Templo sejam coisas muito essenciais... diante de suas circunstâncias especiais... é necessário dar-lhe mais instrução do que o comum.

Pôs-se em pé, e foi ter à janela. Eu o imitei, apressada­mente, indo ter com ele, pois um dos meus prazeres era ficar por ali e ver tudo o que acontecia. Meu guia tinha um dos quartos mais altos no Chakpori, quarto do qual se podiam ver espaços amplos a distâncias enormes. Além disso, ele dispunha de uma daquelas coisas maravilhosas, um telescópio. As horas que passei com aquele instrumento! As horas que passei olhando a Planície de Lhasa, vendo os comerciantes na própria Cidade, observando as damas de Lhasa que cuidavam de seus afazeres, fazendo compras, visitas e (como entendo) desperdiçando o tempo. Durante dez ou quinze minutos ficamos ali, olhando, após o que meu guia disse:

            Vamo-nos sentar outra vez, Lobsang, e falar sobre a questão de escola. Quero que me escute, Lobsang, pois se trata de um assunto que você deve compreender bem claramente desde o início. Se não entender algo do que eu digo, faça-me parar no mesmo instante, pois é essencial que compreenda tudo, ouviu?

Assenti e polidamente disse:

            Sim, Honrado Lama, eu o ouço e compreendo. Se não. entender, falarei.

Ele concordou e disse:

            A vida é como uma escola. Quando estamos além desta vida, no mundo astral, antes de descermos ao corpo de uma mulher, examinamos com os outros o que vamos aprender. Há algum tempo, contei-lhe uma história sobre o velho Seng, o chinês. Eu lhe disse que íamos usar um nome chinês porque você... sendo quem você é!...procuraria ligar qualquer nome tibetano com algum tibetano seu conhecido. Vamos dizer que o velho Seng, que morreu e viu todo seu passado, chegou à conclusão de que tinha certas lições a aprender. E então as pessoas que o ajudavam puseram-se a procurar pais, ou melhor, possíveis país, que vivessem nas circunstâncias e nas condições capazes de capacitar à alma que fora o velho Seng a aprender as lições desejadas.

Meu guia olhou para mim e prosseguiu:

            Acontece coisa muito parecida a um menino que se vai tornar monge. Se quiser ser monge-médico, vem para o Chakpori. Se quiser fazer trabalho doméstico, certamente poderá entrar na Potala, pois eles parecem estar sempre com escassez de monges domésticos, por lá. Escolhemos nossa escola de acordo com o que queremos aprender.

Assenti, porque tudo era bem claro para mim. Meus pró­prios pais haviam feito todos os preparativos para que eu entrasse no Chakpori, desde que tivesse a necessária capacidade de permanência para enfrentar a prova inicial de resistência. Meu guia, o Lama Mingyar Dondup, continuou:

            Uma pessoa que vai nascer já tem tudo preparado. Ela descerá e nascerá de uma mulher, que vive em certo distrito, casada com certa classe de homem. Julga-se que isso conferirá à criança que vai nascer as oportunidades de adquirir a experiência e o conhecimento planejados antes. Com o tempo, chega­do o momento, nasce a criança. De inicie, tem de aprender a comer, tem de aprender a controlar certas partes do corpo físico... Tem de aprender a falar e ouvir. De início, você sabe, uma criancinha não consegue focalizar os olhos, tem de aprender a ver. Ela está na escola.

Olhou para mim e havia um sorriso em seu semblante, ao aduzir:

Nenhum de nós gosta da escola, alguns têm de vir, mas outros não o precisam fazer... Planejamos vir... não pelo Carma... mas para aprendermos outras coisas. A criança cresce, torna-se um menino e vai então para uma sala de aulas, onde às vezes é tratado com bastante brutalidade pelo mestre. Mas não há nada de errado nisso, Lobsang. Ninguém jamais foi prejudicado pela disciplina. A disciplina é a diferença entre um exército e uma turba. Você não consegue um homem culto, a menos que esse homem tenha sido disciplinado. Muitas vezes, agora, você acha que está sendo maltratado, que o professor é duro e cruel, mas... seja lá o que pense, agora... você esco­lheu particularmente vir a esta Terra, em tais condições.

Bem, Honrado Lama, se eu concordei em vir para cá, nesse caso acho que devia mandar examinar os meus miolos. E se eu concordei em vir para cá, por que motivo não sei de nada disso?

Meu guia olhava para mim, a rir-se, gargalhando mesmo.

            Eu sei exatamente como você se sente, Lobsang, no dia de hoje, mas na verdade não há coisa alguma com que deva preocupar-se. Você veio a este planeta, em primeiro lugar, para aprender certas coisas. E então, tendo aprendido essas coisas, vai passar a um mundo maior, além de nossas fronteiras, para aprender outras. A Trilha não vai ser fácil, mas você obterá êxito no fim, e eu não quero que fique desanimado. Todas as pessoas, qualquer que seja a posição ocupada por elas na vida, descem à Terra, vindas dos planos astrais, para poderem apren­der e, ao aprendê-lo, progredirem. Você concordará comigo, Lobsang, em que se quiser progredir na Lamaseria tem que estudar e passar nos exames. Você não teria grande respeito por um menino que fosse repentinamente colocado acima de você, e que apenas pelo favoritismo se tornasse um lama ou abade. Enquanto houver exames adequados, você sabe que não será preterido pelo capricho, fantasia ou favoritismo de uma pessoa superior.

Eu percebia isso, também. Assim explicado, o assunto era de uma simplicidade a toda prova.

            Nós vimos à terra para aprender coisas e, não importa quão duras ou amargas sejam as lições aqui, trata-se de lições que nós nos propusemos receber antes de virmos. Quando deixamos esta terra, temos férias por algum tempo no outro Mun­do, e depois, se quisermos fazer progresso, passamos à frente. Podemos regressar a esta terra sob condições diferentes, ou podemos seguir para uma etapa completamente diferente da existência. Muitas vezes, quando estamos na escola, julgamos que o dia não vai acabar, achamos que não vai haver um fim para a aspereza do professor. A vida sobre a terra é assim; se tudo corresse sem tropeços, se tivéssemos tudo que quisés­semos, não estaríamos aprendendo uma lição, estaríamos apenas vagando na corrente da vida. É um fato deplorável que só apren­demos com a dor e o sofrimento.

Bem, então, Honrado Lama, por que motivo alguns meninos, e alguns lamas também, têm uma vida tão fácil? Sem­pre me parece que eu fico com as dificuldades, as profecias más, os espancamentos por um professor irritado, quando real­mente fiz o melhor que pude.

Mas, Lobsang, algumas dessas pessoas que aparente­mente estão muito satisfeitas... você tem certeza de que real­mente o estejam? Tem a certeza de que as condições são tão fáceis para elas, afinal de contas? Enquanto não souber o que elas planejavam fazer antes de virem à terra, você não se encontra em posição de avaliar. Todas as pessoas que vêm a esta terra o fazem com um plano preparado, um plano do que querem aprender, o que se propõem a fazer, e o que aspiram a ser quando deixarem esta terra, depois de passarem pela sua escola. E você diz que realmente se esforçou na aula de hoje. Tem certeza disso? Não estava bastante complacente, achando que sabia tudo quanto devia saber da lição? Você, por sua atitude bastante superior, não fez com que o Mestre se sentisse mal?

Perguntava isso a fitar-me de modo um tanto acusador, e percebi que minhas faces se punham vermelhas. Sim, ele realmente sabia de alguma coisa! Meu guia tinha a habilidade mais deplorável de pôr a mão nos lugares sensíveis. Sim, eu fora complacente, achara que daquela feita o Mestre não conseguiria descobrir falta alguma em mim. Minha atitude superior, natu­ralmente, não contribuíra pouco para a exasperação daquele Mestre. Meneei a cabeça, concordando.

            Sim, Honrado Lama, tenho tanta culpa quanto outro qualquer.

Meu guia olhou para mim, sorriu, e assentiu.

            Mais tarde, Lobsang, você irá a Chungking, na China, como sabe — disse o Lama Mingyar Dondup.

Concordei, taciturno, não querendo sequer pensar no momento em que eu teria de partir. Ele prosseguiu:

            Antes que deixe o Tibete, mandaremos consultar di­versas escolas e faculdades para obter detalhes quanto ao mé­todo de instrução que usam. Receberemos todos os pormenores, e decidiremos então que faculdade ou universidade lhe oferecerá exatamente o tipo de preparo do qual você necessita nesta vida. De modo semelhante, antes que uma pessoa no mundo astral sequer pense em descer à terra, avalia o que se propõe a fazer, o que quer aprender, e o que finalmente deseja conse­guir. Depois, como já lhe disse, pais adequados são descobertos. É o mesmo que procurar uma escola adequada.

Quanto mais eu pensava nessa coisa de escola, tanto mais a mesma me desagradava.

            Honrado Lama! disse eu. Por que motivo algu­mas pessoas sofrem tantas doenças, tantos infortúnios? O que isso lhes ensina?

Meu guia disse:

            Mas você deve lembrar-se de que uma pessoa que vem a este mundo tem muito a aprender, não se trata apenas de aprender a entalhar, de aprender uma língua, ou a recitar os Livros Sagrados. A pessoa tem de aprender coisas que vão ser de utilidade no mundo astral, depois de deixar a terra. Como já lhe disse, este é o Mundo de Ilusão, e se presta extremamente bem a nos ensinar o que são as vicissitudes e, ao passarmos por estas, devemos compreender as dificuldades e pro­blemas dos outros.

Pensei sobre tudo isso, e me pareceu que tínhamos chegado a um assunto dos mais importantes. Meu guia, obviamente, percebeu meus pensamentos, pois disse:

            Sim, a noite está chegando, está na hora de encerrarmos nossa conversa, pois ainda temos muito o que fazer. Preciso ir ao Pico (como chamávamos a Potala) e quero levá-lo comi­go. Você passará lá toda a noite e o dia de amanhã. Amanhã, poderemos falar novamente sobre esta questão, mas vá agora pôr um manto limpo, e trazer outro de reserva.

Pos-se em pé, e deixou o quarto. Eu hesitei apenas por momentos e isso porque estava estonteado e logo segui às pressas para me preparar com a melhor indumentária, levando outra de reserva.

Juntos, descemos a estrada da montanha, chegando ao Mani Lhakhang, e exatamente quando passávamos pelo Pargo Kaling, o Portão Ocidental, ouvi um berro alto e repentino pór trás de mim, que quase me fez cair da sela.

            Uai! Santo Médico Lama! — gritou uma voz feminina, bem ao lado da estrada.

Meu guia olhou, e desmontou em seguida. Conhecedor da minha insegurança quando em cima de um pônei, fez sinal para que continuasse montado, concessão que me encheu de gratidão.

            Sim, madame, o que é? — perguntou meu guia, em tom bondoso.

Houve movimentos repentinos e uma mulher atirou-se aos pés dele.

            Oh! Santo Médico Lama — disse ela, arquejante. — Meu marido não soube gerar um filho normal, aquele desgra­çado filho de uma cabra!

Taciturna — aturdida por sua própria audácia — ela es­tendeu um pequeno volume à frente. Meu guia inclinou-se e examinou.

Mas, madame, — observou. — Por que incrimina seu marido, devido a seu filho adoentado?

Porque aquele homem malsinado sempre andou por aí, em companhia de mulheres à toa, só pensa em mulheres, e quando nos casamos não conseguiu sequer gerar uma criança normal.

Para meu desalento, ela começou a chorar, e as lágrimas caíam ao chão, fazendo "pequenos ruídos, exatamente como pe­dras de granizo, rolando das montanhas.

Meu guia olhou ao redor, fitando & escuridão que aumen­tava. Uma figura ao lado do Pargo Kaling saiu das sombras mais escuras e veio à frente. Era um homem com roupa esfarrapada, e no semblante ostentava uma expressão das mais cabis­baixas. Meu guia fez-lhe um sinal e ele se adiantou, ajoelhando-se no chão aos pés do Lama Mingyar Dondup. Este fitou a ambos e disse:

            Vocês não andam certos em incriminar-se mutuamente por um acidente de nascimento, pois isso não é questão que tenha ocorrido entre vocês, mas tem a ver com o Carma.

Voltou a olhar para a criança, afastando os abrigos em que a mesma se achava envolta. Examinou com atenção, e eu sabia que ele olhava para a aura da criança. Depois, emper­tigou-se, dizendo:

            Madame! Sua criança pode ser curada, a cura se acha dentro das nossas possibilidades. Por que não a trouxe antes?

A pobre mulher voltou a pôr-se de joelhos e apressada­mente entregou a criança ao marido, que a recebeu como se fosse algo capaz de explodir a qualquer momento. Ela entre­laçou as mãos e, olhando para meu guia, disse:

            Santa Médico Lama, quem nos daria atenção? Nós vie­mos do Ragyab, e não merecemos os favores de alguns dos outros Lamas. Não podíamos vir, Santo Lama, por mais urgen­te que fosse nossa necessidade.

Eu achei tudo aquilo ridículo, pois os Ragyabs ou Eliminadores dos Mortos, que viviam no canto sudeste de Lhasa, eram tão essenciais quanto outros em nossa comunidade. Eu sabia disso porque meu guia estava sempre frisando que qual­quer que fosse a atividade da pessoa, a mesma continuava sendo um membro útil da comunidade. Lembro-me de ter rido gosto­samente certa feita, quando ele dissera:

            Até mesmo os ladrões, Lobsang, são gente útil, pois sem eles não haveria necessidade de policiais, e são os ladrões que dão emprego aos homens da polícia!

Mas aqueles Ragyabs... muita gente os encarava com desdém, julgando-os impuros porque lidavam com os mortos, retalhavam os cadáveres, de modo que os abutres comessem as partes espalhadas. Eu sabia — e sentia, como meu guia — que eles faziam um bom trabalho, pois grande parte de Lhasa era tão rochosa, tão pedregosa, que não se podia cavar sepulturas, e ainda que isso fosse possível, de modo normal o Tibete era tão frio que os corpos ficariam congelados e não entrariam em decomposição, não seriam absorvidos pelo solo.

            Madame! — ordenou meu guia. — Vai trazer-me esta criança pessoalmente, daqui a três dias, e nós faremos o possível para curá-la, porque com base neste exame rápido que fiz parece que pode ser curada.

Procurou alguma coisa na bolsa da sela, tirando dali um pedaço de pergaminho. Com rapidez escreveu uma mensagem no mesmo, entregando-a à mulher.

            Traga isto a mim, no Chakpori, e o ajudante a deixará entrar. Informarei ao guarda do portão de sua vinda, e não encontrará dificuldade alguma. Esteja tranqüila, todos nós somos humanos aos olhos de nossos Deuses, e nada tem a recear de nós.

Voltou-se, então, e fitou o marido:

            Você deve continuar fiel à sua esposa.

E, voltando-se para esta, aduziu:

            Você não deve ser tão áspera com seu marido. Talvez, se for mais bondosa, ele não vá a outros lugares, à procura de compensação! Agora, vão para sua casa, e daqui a três dias voltem ao Chakpori, que eu os receberei e ajudarei. É minha promessa.

Montou novamente no pônei, e nós partimos. Diminuindo, à medida que a distância aumentava, vinham os sons de louvores e agradecimentos do homem do Ragyab e a mulher.

            Acredito que esta noite, ao menos, Lobsang, eles esta­rão de acordo, sentir-se-ão com disposição bondosa um com o outro! — afirmou, com uma risada curta, seguindo adiante pela estrada à esquerda, pouco antes de chegarmos à Aldeia de Shö.

Eu ficara realmente espantado com aquilo, pois fora a primeira vez que vira marido e mulher.

            Santo Lama, — exclamei —, não compreendo como essa gente pode unir-se. Se não gostam um do outro, por que o fazem?

Meu guia sorria, enquanto respondia:

            Você, a chamar-me de "Santo Lama"! Você se julga um camponês? Quanto à sua pergunta, bem, vamos falar sobre tudo isso amanhã. Esta noite, estamos ocupados demais. Amanhã, falaremos sobre essas coisas, e eu procurarei tranqüilizá-lo, porque a sua mente está muito confusa!

Juntos, escalávamos a montanha. Eu sempre gostei de olhar para trás, vendo a Aldeia de Shö, e imaginei o que acon­teceria se jogasse uma pedra de bom tamanho em um ou dois telhados: Atravessá-los-ia? Ou o estardalhaço faria alguém sair da casa, pensando que os demônios estavam jogando coisas sobre ele? Nunca tivera o atrevimento de jogar a pedra, porque não queria que a mesma atravessasse o telhado e atingisse alguém lá dentro. Entretanto, a tentação sempre foi das mais fortes.

Na Potala, subimos as escadas sem fim — escadas que se mostravam bem gastas, e com degraus íngremes — e finalmente chegamos a nossos apartamentos, que ficavam bem além do alcance dos monges comuns, e situados por cima dos armazéns. O Lama Mingyar Dondup foi para seu quarto e eu para o meu, que ficava ao lado do dele, devido à posição de meu guia, e por ser eu o seu chela. Segui para a janela, e como gostava de fazê-lo, fiquei olhando dali. Lá embaixo havia algum pássaro noturno, chamando a companheira, no Bosque de Salgueiros. A luz brilhava, agora, e eu podia ver aquele pássaro — ver as ondulações da água, enquanto suas pernas compridas se sa­cudiam bem como a lama. De algum lugar, bem próximo, veio o canto de um pássaro em resposta. "Pelo menos aquele marido e mulher parecem estar em harmonia" pensei. Logo chegava o momento de dormir, pois eu tinha de comparecer ao culto da meia-noite, e já estava tão cansado que talvez na manhã se­guinte eu viesse a perder a hora.

Na tarde do dia seguinte, o Lama Mingyar Dondup veio a meu quarto, onde eu estudava um livro antigo.

—            Venha comigo, Lobsang. Acabo de voltar de uma con­versa com O Mais Precioso, e agora temos de debater problemas que estão intrigando você.

Voltou-se e seguiu à frente, para seu próprio quarto. Sen­tado diante dele, pensei em todas as coisas que tinha no espírito.

—            Senhor! perguntei eu. Por que motivo as pessoas que se casam são tão inamistosas umas com as outras? Eu olhei a aura daqueles dois Ragyabs, ontem à noite, e me pareceu que realmente se odiavam um ao outro; se se odiavam, por que se casaram?

O lama pareceu realmente triste, por alguns momentos, e depois disse:

—            As pessoas esquecem, Lobsang, que vêm a esta terra para aprender lições. Antes que uma pessoa nasça, enquanto uma pessoa se acha ainda no outro lado da vida, os prepara­tivos têm prosseguimento, decidindo que tipo de companheiro matrimonial será escolhido. Você deve compreender que muita gente se casa com o que poderíamos chamar o calor da paixão. Depois a paixão passa, a novidade se esgota, e a familiaridade cria o desdém!

"A familiaridade cria o desdém." Pensei sobre isso e con­tinuei pensando. Por que motivo, então, as pessoas se casa­vam? Era claro que o faziam para que a raça humana conti­nuasse. Mas por que motivo as pessoas não se acasalavam do mesmo modo que os animais? Ergui a cabeça, e fiz essa per­gunta a meu guia. Ele me fitava, ao responder:

—            Ora, Lobsang! Você me surpreende, pois devia saber tão bem quanto eu que os chamados animais muitas vezes se acasalam por toda a vida. Muitos animais o fazem, muitos pássaros também, certamente os mais evoluídos. Se as pessoas se juntassem, como você diz, apenas com o fito de aumentarem a população, nesse caso as crianças resultantes seriam criatu­ras quase sem alma, o mesmo, na verdade, que aquelas cria­turas nascidas pelo que se conhece como inseminação artificial.

Deve haver amor nas relações, deve haver amor entre os pais, se quiserem que nasça o melhor tipo de criança... de outra forma, será coisa bem parecida com um produto saído de uma fábrica!

As questões de marido e mulher realmente me intrigavam. Pensei em meus próprios pais, minha Mãe, que fora mulher dominadora, e em meu Pai, que fora realmente duro com os seus filhos. Eu não sentia muito afeto filial quando pensava quer nela ou nele. Disse, então, a meu guia:

Mas por que as pessoas se casam no calor da paixão? Por que não se casam assim como quem faz um negócio?

Lobsang! — disse meu guia. — Isso acontece muitas vezes com os chineses e japoneses. É freqüente que os casa­mentos deles sejam combinados, e tenho de reconhecer que os matrimônios chineses e japoneses são mais bem sucedidos do que no mundo ocidental. Os próprios chineses comparam o casamento a uma chaleira. Não se casam na paixão porque dizem que é como uma chaleira que ferve e que se esfria. Casam-se com calma, e deixam que a chaleira mítica vá à fervura; desse modo ela permanece quente por mais tempo!

Olhou para mim, para ver se eu o acompanhava — para ver se o assunto se tornara claro.

Mas eu não posso compreender, Senhor, o motivo pelo qual as pessoas são infelizes, quando juntas.

Lobsang, as pessoas vêm à terra como a uma sala de aula. Vêm para aprender as coisas, e se marido e mulher fossem idealmente felizes juntos, desse modo não aprenderiam, porque nada haveria a aprender. Eles vêm a esta terra para estarem juntos, e prosseguirem juntos... e isso é parte da lição... eles têm de aprender a dar e a receber. Cada qual tem arestas cortantes, arestas ou idiossincrasias que irritam e magoam o outro cônjuge. O cônjuge irritante tem de aprender a dominar e, talvez, dar fim ao traço irritante, enquanto o cônjuge irritado deve aprender a ser tolerante e a perdoar. Praticamente todo casal poderia viver com êxito, desde que aprendesse essa lição de dar e receber.

Senhor! — disse eu. — Como deviam marido e mu­lher viver juntos?

Marido e mulher, Lobsang, deviam esperar o momento favorável, e nessa oportunidade ser bondosos, corteses, e dizer calmamente o que os incomoda. Se marido e mulher debatessem as questões, seriam, então, mais felizes em seu matri­mônio .

Pensei sobre isso, e imaginei como meu Pai e minha Mãe se dariam, se procurassem discutir qualquer coisa entre si! A mim, pareciam o fogo e a água, cada qual tão contrário ao outro quanto possível. Meu guia, como era óbvio, sabia o que eu estava pensando, pois prosseguiu:

Deve haver algum dar e receber, porque se as pessoas têm de aprender alguma coisa, nesse caso necessitam de uma percepção suficiente para saberem que existe algo de errado nelas.

Mas como é — perguntei — que uma pessoa se apaixona por outra, ou se sente atraída por outra? Se as duas se sentem atraídas uma pela outra em uma etapa, por que logo esfriam?

Lobsang, você saberá muito bem que, se uma pessoa vir a aura, poderá conhecer a outra. A criatura comum não vê a aura, mas, não obstante, são numerosos os que têm um sentimento, podem dizer que gostam desta pessoa, ou não gos­tam daquela outra. Na maior parte das vezes, não podem afir­mar qual seja o motivo pelo qual gostam ou desgostam, mas concordarão em que uma pessoa as agrada, e outra as desagrada.

Bem, Senhor, como podem gostar repentinamente de uma pessoa e, repentinamente, desgostar de outra?

Quando as pessoas se encontram em certa etapa, quando sentem que estão apaixonadas, suas vibrações aumentam e pode ocorrer muito bem que essas duas, um homem e uma mulher, tenham elevadas vibrações, tomando-se compatíveis. Infeliz­mente, não as deixam sempre elevadas. A esposa se tornará desmazelada, talvez negue ao marido o que é direito dele, sem a menor dúvida. O marido, em seguida, procurará outra mulher, e gradualmente eles se separarão. Também gradualmente, suas vibrações etéricas sofrerão alteração, de modo que não mais se mostrem compatíveis, tornando-se então inteiramente antipá­ticos.

Sim, eu podia perceber isso, que realmente vinha explicar muita coisa, mas voltava ao ataque!

            Senhor! Fico de todo perplexo em saber que uma criancinha viva por talvez um mês, e depois morra. Que possibilidade teve essa criancinha de aprender, ou de pagar o Carma atrasado? Parece um desperdício para todos, até onde percebo!

O Lama Mingyar Dondup sorriu de leve, diante de minha veemência.

            Não, Lobsang, nada se desperdiça! Sua mente está con­fusa. Supõe que uma pessoa viva uma vida, apenas. Tomemos outro exemplo.

Dito isso, olhou para mim, e depois pela janela, por momentos. Eu percebia que ele pensava naquela gente dos Ragyabs

            talvez pensasse no filho deles.

            Eu quero que você imagine estar acompanhando uma pessoa que passa por uma série de vidas, — disse meu guia.

            Essa pessoa andou bastante mal em uma vida, e nos últimos anos chegou à conclusão de que não pode prosseguir mais, decide que a situação está demasiadamente ruim para ela, de modo que dá fim à vida; comete suicídio. Tal pessoa, portanto, morreu antes do tempo certo. Todos nós estamos destinados a viver um determinado número de anos, dias e horas. Tudo está fixado antes de descermos a esta terra. Se uma pessoa dá fim à sua própria vida, talvez doze meses antes do momento em que teria morrido normalmente, nessas condições é preciso voltar e cumprir os doze meses restantes.

Olhei para ele, visualizando algumas das possibilidades notáveis que podiam advir disso. Meu guia prosseguiu:

            Uma pessoa dá fim à vida. Continua no mundo astral até que ocorra uma oportunidade pela qual possa descer novamente à terra, sob condições apropriadas, e viver o tempo que tem de cumprir na terra. Esse homem, com doze meses, bem, ele poderá descer e ser uma criancinha doentia e morrerá enquan­to ainda o for. Ao perder essa criancinha, também os pais terão ganho algo; terão perdido uma criancinha, mas terão adquirido experiência, pago um pouco do que tinham de pagar. Nós con­cordaremos em que, enquanto as pessoas se acham sobre a terra, sua visão, as percepções, os valores... tudo... está de­formado. Este, repito, é o Mundo de Ilusão, o mundo de va­lores falsos, e quando as pessoas regressam ao Mundo Maior do Eu Maior, poderão ver que as lições duras e destituídas de sentido que tiveram de atravessar neste período da terra não foram tão disparatadas, afinal de contas.

Olhei ao redor, e pensei em todas as profecias a meu respei­to; profecias antevendo vicissitudes, profecias antevendo torturas, profecias antevendo períodos passados em terras distantes e estranhas. Comentei, então:

            Nesse caso, uma pessoa que faz uma profecia está ape­nas entrando em contato com a fonte de informações; se tudo está determinado antes que se venha à terra, então é possível, sob certas condições, adquirir tal conhecimento?

— Sim, isso é inteiramente correto, mas não creia que tudo esteja determinado de modo inevitável. As linhas básicas se acham presentes. Recebemos certos problemas, certas linhas a seguir, e ali somos deixados, para fazermos o melhor possível. Uma pessoa pode ter êxito, outra fracassar. Olhe a coisa da seguinte maneira: Suponho que dois homens sejam informados de que têm de ir daqui a Kalimpong, na Índia, não precisam seguir a mesma trilha ou caminho, mas é necessário que cheguem ao mesmo destino, se o conseguirem. Um deles adotará uma rota, e o segundo tomará outra; dependendo da rota que adotem, suas experiências e aventuras serão afetadas. Assim temos a vida, nosso destino é conhecido, mas como chegamos a ele, eis algo que depende de nós mesmos.

Enquanto falávamos, um mensageiro surgiu, e meu guia, com palavras curtas de explicação a mim, o acompanhou pelo corredor. Fui ter novamente à janela, apoiando os cotovelos no peitoril, o rosto nas mãos. Pensei em tudo que ouvira, pensei em todas as experiências que atravessara, e todo o meu ser se enchia de amor por aquele grande homem, o Lama Mingyar Dondup, meu guia, que me demonstrara mais amor do que meus pais, em qualquer momento da vida. Decidi que, fosse como fosse o futuro, eu sempre agiria e me comportaria como se meu guia estivesse à meu lado, examinando meus atos. Lá embaixo, nos campos, monges músicos praticavam sua arte; lá estavam os diversos "brumps-brumps-brumps", gemidos e guinchos emi­tidos por seus instrumentos. Ociosamente eu os fitava. A mú­sica nada representava para mim, pois eu era surdo aos acordes, mas vi que se tratava de homens muito sérios, esforçando-se bastante para produzirem boa música. Voltei-me, procurando ocupar-me novamente com um livro.

Logo me cansei da leitura; estava inquieto. As coisas aconteciam cada vez mais depressa, comigo. Cada vez mais ociosamente eu folheava as páginas e então, tomado de uma decisão repentina, pus tudo aquilo entre as capas de madeira esculpida e amarrei as fitas. Tratava-se de um livro que devia ser envolto em seda. Seguindo o cuidado inato, completei minha tarefa, e deixei o livro de lado.

Pondo-me em pé, fui à janela e pus-me a olhar para fora. A noite estava um tanto abafada, parada, sem um só sopro de vento. Voltei-me, e saí do quarto. Tudo estava parado, parado como a quietude de um grande edifício que parecia dotado de vida. Ali, na Potala, há alguns séculos que os homens vinham trabalhando e desempenhando tarefas sagradas, e por isso o próprio edifício como que criara uma vida própria. Segui com pressa até a extremidade do corredor, e ali subi em uma escada. Logo chegava ao telhado alto, ao lado dos Túmulos Sagrados.

Em silêncio, fui ter a meu lugar costumeiro, um ponto bem abrigado dos ventos, que normalmente desciam com força das montanhas. Encostado a uma Imagem Sagrada, e com as mãos entrelaçadas na nuca, fiquei a contemplar o Vale. Cansando-me disso após algum tempo, deitei-me e fitei as estrelas. Enquanto o fazia, tive a mais estranha das impressões: todos aqueles mundos lá em cima estavam girando em torno da Potala. Por algum tempo isso me fez sentir tonteira, como se eu estivesse caindo. Enquanto observava, notei um traço fino de luz. Tornando-se mais intenso, ele explodiu repentinamente numa luz brilhante. "Outro cometa que acaba!" pensei, enquan­to ele se queimava, expirando em um chuveiro de fagulhas vermelhas.

Tomei consciência de um "shush-shush" quase inaudível, por perto. Com cautela, ergui a cabeça, imaginando o que podia ser. À luz fraca das estrelas, vi uma figura de capuz,, andando de um lado para outro, na parte oposta aos Túmulos Sagrados. Pus-me a observar. A figura seguiu até a parede de frente para a cidade de Lhasa. Observei o perfil, enquanto ele fitava a distância. Era o Homem mais solitário do Tibete, a meu ver. O Homem com mais preocupações e responsabili­dades do que qualquer outro no país. Ouvi um suspiro profun­do, e tive curiosidade de saber se também Ele tivera profecias tão duras quanto as minhas. Com cuidado, rolei para o lado e me arrastei, afastando-me dali em silêncio; não desejava intrometer-me — ainda que inocentemente — nos pensamentos particulares de outro. Logo cheguei à entrada, e desci em silêncio para o abrigo de meu próprio quarto.

Uns três dias depois, eu me achava presente quando meu guia, o Lama Mingyar Dondup, examinava o filho do casal de Ragyabs. Ele despiu a criança, examinando-lhe cuidadosamente a aura. Por algum tempo, meditou, fitando a base do cérebro. Aquela criança não chorou, nem choramingou durante todo o exame. Como eu sabia, embora fosse pequenina, compreendia que o Lama Mingyar Dondup estava procurando curá-la. Meu guia, finalmente, pôs-se em pé, e disse:

            Bem, Lobsang! Vamos curá-lo. É claro que ele tem um mal causado por dificuldades no nascimento.

Os pais esperavam num quarto próximo à entrada. Eu, tão próximo à meu guia quanto uma sombra, fui com ele ver aquela gente. Quando entramos, eles se prostraram aos pés do Lama. Com suavidade, ele lhes falou:

            O seu filho pode ser curado, e o será. Em nosso exame, tornou-se claro que no momento do nascimento o deixa­ram cair, ou bateram nele. Isso pode ser remediado, e vocês não precisam ter receio.

A mãe tremia, ao responder:

            Santo Lama Médico, é como o senhor diz. Ele veio de chofre, sem ser esperado, e caiu ao chão. Eu estava sozinha, nesse momento.

Meu guia fez um gesto de solidariedade e compreensão, dizendo:

            Voltem amanhã a esta hora, e tenham a certeza de que poderão levar seu filho... curado.

Eles ainda faziam mesuras e prostrações, enquanto deixávamos a sala.

Meu guia fez com que eu examinasse cuidadosamente a criança.

            Olhe, Lobsang, há pressão aqui — indicou. — Este osso está comprimindo o nervo... observe como a luz áurica toma a forma de leque ao invés de ser redonda.

Tomou minhas mãos nas suas, fazendo-me apalpar ao redor da área afetada.

            Vou reduzir, afastar o osso que está causando a obstru­ção. Observe!

Mais depressa do que eu consegui ver, apertou os polega­res, para dentro, para fora. O menino não gritou; fora rápido demais para sentir dor. Agora, porém, a cabeça não pendia para o lado, como antes, mas se mostrava firme, sobre o pescoço, como devia ser. Por algum tempo, meu guia massageou o pes­coço da criança, cuidadosamente, da cabeça para baixo, em direção ao coração, e nunca na direção oposta.

No dia seguinte, à hora marcada, os pais regressaram e ficaram quase delirantes de alegria ao verem o que parecia mi­lagre.

            Vocês terão de pagar por isto, — disse o Lama Mingyar Dondup, sorrindo. — Vocês receberam o bem. Assim sendo, precisam pagar o bem, um ao outro. Não briguem, nem estejam em desacordo um com o outro, pois uma criança absorve as atitudes dos pais. O filho de pais sem bondade torna-se destituído dela. A criança de pais infelizes e sem amor é infeliz e sem amor, à seu turno. Paguem... com bondade e amor um para com o outro. Nós os visitaremos, para ver a criança, dentro de uma semana.

Dito isso, sorriu, afagando a face da criança, e depois se voltou e saiu, tendo-me ao lado.

— Algumas das criaturas muito pobres são orgulhosas, Lobsang, ficam perturbadas se não tiverem dinheiro com que pagar. Faça sempre o possível para que elas pensem que estão pagando. Eu lhes disse que precisam pagar. Isso os agradou, pois eles acharam que, em sua melhor roupa, haviam-me impres­sionado a tal ponto que eu julguei tratar-se de gente com dinhei­ro. O único modo pelo qual eles podem pagar é, como eu disse, sendo bondosos um com o outro. Se o homem e a mulher mantiverem seu orgulho, seu amor-próprio, Lobsang, eles fa­rão qualquer coisa que pedirmos!

De volta à meu quarto, apanhei o telescópio com que esti­vera brincando. Estendendo os tubos luzidios de latão, olhei na direção de Lhasa. Duas figuras surgiram rapidamente em foco, uma delas levando uma criancinha nos braços. Enquanto eu observava, o homem passou o braço pelo ombro da mulher, beijando-a. Em silêncio, guardei o telescópio e dei prosseguimento a meus estudos.

 

Estávamo-nos divertindo, diversos de nós, no pátio, caminhando sobre nossas andas, procurando um derrubar o outro. Aquele que permanecesse sobre as andas, invencível diante dos assaltos efetuados pelos demais, seria o vencedor. Três de nós caímos em meio ao estrugir de gargalhadas, pois alguém enfiara as andas em um buraco no chão e tombara sobre nós, derrubando-nos.

O velho Mestre Raks estava roxo de raiva, hoje, vocês viram? — disse um de meus companheiros, feliz da vida.

Sim! — gritou outro do grupo. — Os outros haveriam de ficar verdes de inveja se o vissem em tal estado de espírito e desabafar em nós, sem perder o fôlego.

Nós nos entreolhamos, e começamos a rir; estava roxo? Verde de inveja? Chamamos os outros para que saíssem das andas e se sentassem em nossa companhia, e começamos um brinquedo novo. Quantas cores podíamos usar, descrevendo as coisas?

Roxo na cara! — exclamou um deles.

Não — respondi —, já temos o rosto roxo de raiva.

Assim é que prosseguimos, partindo de um estado de espí­rito que fazia suas vítimas tornarem-se roxas de raiva, até um professor que se mostrava verde de inveja. Outro se referiu a uma mulher escarlate, que vira no mercado, em Lhasa! Por momentos, não soubemos se isso estaria certo, porque não tínha­mos a certeza do que significava uma mulher escarlate.

            Eu sei! — retorquiu o menino à minha direita. — Podemos ter um homem que esteja amarelo, amarelo de covar­dia. Afinal de contas, o amarelo é usado muitas vezes para indicar a covardia.

Pensei sobre tudo isso, parecendo-me que, se tais ditos eram de usança comum em nossa língua, nesse caso deveria haver alguma causa; e isso me fez sair à procura de meu guia, o Lama Mingyar Dondup.

            Honrado Lama! disse eu, irrompendo no estúdio dele, um tanto agitado.

Ele me fitou, sem se mostrar perturbado, em absoluto, com minha entrada sem cerimônia.

            Honrado Lama, por que motivo utilizamos as cores para descrever os estados de espírito?

Ele baixou o livro que estudava, fazendo-me um gesto para que me sentasse.

Você deve estar falando desses termos de uso comum, a respeito de um roxo de raiva, ou homem verde de inveja sugeriu.

Sim respondi, ainda mais agitado, vendo que ele sabia a que eu me referia. Eu realmente gostaria de saber o motivo por que todas essas cores são importantes. Deve haver explicação para isso!

Ele olhou para mim, voltou a rir, replicando:

            Bem, Lobsang, com essa você se candidatou a mais uma preleção extensa. Vejo, porém, que andou fazendo algum exer­cício fatigante, e acho que podemos tomar chá... eu já estava à espera do meu, aliás...antes de prosseguirmos com este assunto.

O chá não tardou a chegar. Dessa feita, foi chá com tsarnpa, o mesmo que qualquer outro lama, monge ou menino, em toda a Lamaseria, estaria recebendo. Comemos em silêncio, eu pensando sobre cores e imaginando qual podia ser a implicação das mesmas. Logo terminávamos nossa refeição bastante frugal, e olhei para meu guia, com ar de expectativa.

            Você sabe um pouco a respeito dos instrumentos musicais, Lobsang principiou ele. Sabe, por exemplo, que existe um instrumento musical muito utilizado no Ocidente, conhecido pelo nome de piano Há de lembrar-se que, juntos, examinamos uma fotografia com tal instrumento. Ele contém muitas teclas, umas negras, outras brancas. Bem, esqueçamos as negras, e imaginemos ao invés disso que temos um teclado com, digamos, três quilômetros de extensão... ainda mais comprido, se você quiser... e contendo todas as vibrações que possam ser obtidas, em qualquer plano da existência.

Dito isso, observou-me para ver se o acompanhava, porque o piano era um instrumento estranho para mim. Eu — como meu guia dissera — vira aquilo somente em ilustrações. Satisfeito ao verificar que eu percebia a idéia essencial, ele pros­seguiu:

            Se você tiver um teclado, contendo todas as vibrações, nesse caso a faixa completa de vibrações humanas estaria, talvez, nas três teclas do meio. Você compreenderá... pelo menos, espero que seja assim!... que tudo consiste de vibrações. To­memos a vibração mais baixa que o homem conhece. Trata-se daquela de um material duro. Você a toca, e ela obstrui a passagem de seu dedo, e ao mesmo tempo todas as moléculas desse material está vibrando! Pode ir mais além, subindo o teclado imaginário, e ouvirá uma vibração conhecida por som. Pode subir mais, e seus olhos receberão uma vibração chamada visão.

Com essa, eu me pus ereto, num movimento rápido; como podia a visão ser uma vibração? Se eu olhasse para uma coisa... bem, como é que a via?

            Você vê, Lobsang, porque o artigo que está sendo visto vibra e cria uma agitação que é percebida pelo olho. Em outras palavras, um artigo que você possa ver gera uma onda que pode ser recebida pelos bastões e cones no olho, que a seu turno transfere esses impulsos em imagem do artigo contemplado. É tudo muito complicado e não precisamos examinar o assunto em detalhe. Estou apenas procurando fazer ver que tudo é vibração. Se subirmos mais na escala, temos ondas de rádio, ondas telepáticas, e as ondas daquelas pessoas que vivem em outros planos. Mas, naturalmente, eu disse que íamos limitar-nos, de modo específico, àquelas três notas imaginárias do te­clado, que podern ser percebidas pelos seres humanos como coi­sas sólidas, como som, ou como visão.

Eu tinha de pensar sobre tudo isso, tratando-se de uma questão que realmente fazia meu cérebro tinir. Nunca me opunha a aprender, entretanto, mediante os métodos bondosos de meu guia. A ocasião única em que eu detestava aprender era quando algum professor tirânico esbordoava meu pobre manto antigo com um bastão inteiramente desagradável.

            Você pergunta acerca das cores, Lobsang. Bem, cer­tas vibrações se imprimem na aura da pessoa como cores. Assim, por exemplo, se uma pessoa estiver muito abatida... se ela estiver inteiramente infeliz... nesse caso parte de seus sentidos emitirão uma vibração, ou freqüência que se aproxima da cor a que chamamos roxo, de modo que até as pessoas que não sejam clarividentes podem quase percebê-lo, e assim é que essa cor entrou na maioria das línguas em todo o mundo, indi­cando um estado de abatimento... um estado de espírito desa­gradável, infeliz.

Eu começava a compreender a idéia, agora, mas ainda es­tava intrigado, sem saber como uma pessoa podia ficar verde de inveja, e o disse.

Lobsang, por dedução, você poderia ter raciocinado por si mesmo que, quando uma pessoa está sofrendo do vício conhecido por inveja, suas vibrações se transformam um tanto, de modo que dá a impressão, às demais, de ficar verde. Não quero dizer, com isso, que seus traços fisionômicos se esverdeiem, como você sabe muito bem, mas tal criatura dá a impressão de ser verde. Também gostaria de tornar claro a você que, quando uma pessoa nasce sob uma determinada influência plane­tária, nesse caso é afetada com força ainda maior por essas cores.

Sim! — exclamei. — Sei que uma pessoa nascida sob Áries gosta do vermelho!

Meu guia riu, e disse:

            Sim, isso está sob a lei da harmonia. Certas pessoas correspondem mais prontamente à uma certa cor, porque a vi­bração da mesma está em simpatia íntima com sua própria vibração básica. É esse o motivo pelo qual uma pessoa de Áries (por exemplo) prefere uma cor vermelha... porque a pessoa de Áries tem muito vermelho em sua composição, e acha a pró­pria cor vermelha agradável à vista.

Eu ansiava por fazer uma pergunta; já tinha conhecimento desses verdes e roxos, e podia até compreender o motivo pelo qual uma pessoa absorta em profunda meditação tivesse sua aura permeada de traços castanhos. Mas não compreendia o motivo pelo qual uma mulher fosse escarlate! '

            Honrado Lama! — explodi, incapaz de conter mais minha curiosidade. — Por que uma mulher pode ser chamada de mulher escarlate?

O meu guia olhou-me como se fosse explodir, e por momentos fiquei dando tratos à bola, sem saber o que dissera e que quase o levara a ter um acesso de hilaridade reprimida. Então ele me disse, bondosamente e com detalhes, de modo que no futuro eu não tivesse qualquer dúvida sobre a questão!

            Quero dizer-lhe, também, Lobsang, que cada pessoa tem uma freqüência básica de vibração, isto é, as moléculas de cada um vibram em certa cadência, e o comprimento de ondas geradas pelo cérebro de uma pessoa pode classificar-se em grupos espe­ciais. Não há duas pessoas com o mesmo comprimento de onda... nem o mesmo comprimento de onda é idêntico em todos os aspectos, mas quando duas pessoas se encontram próximas ao mesmo comprimento, ou quando este acompanha certas oita­vas de outra, nesse caso é dito que são compatíveis, e geral­mente dão-se muito bem, quando juntas.

Olhei para ele, e me pus a pensar acerca de alguns de nossos artistas altamente temperamentais.

Honrado Lama, é verdade que alguns dos artistas vibram em cadência maior do que outros? — indaguei

Não há dúvida alguma, Lobsang. Para o homem ter o que se conhece por inspiração, para ser um bom artista, nessas condições sua freqüência de vibrações deve ser muitas vezes mais elevada do que o normal. Às vezes ela o torna irritadiço... difícil de lidar. Estando em cadência mais alta de vibração do que a maioria, ele tende a encarar com desdém os mortais infe­riores. Entretanto, muitas vezes o trabalho que executa é tão bom que conseguimos tolerar os seus modos desdenhosos e suas fantasias!

Eu imaginei aquele grande teclado, estendendo-se por diversos quilômetros. Pareceu-me estranho que, num teclado em tais condições, o alcance humano de experiência se limitasse a apenas umas três teclas, e manifestei tal estranheza.

            O ser humano, Lobsang, gosta de pensar que é a coisa única na criação que importa, como você sabe. Na verdade, existem muitas, muitíssimas outras formas de vida, além dos seres humanos. Em outros planetas, existem formas de vida que são inteiramente desconhecidas dos seres humanos, e o homem comum nem sequer poderia começar a entender tal forma de vida. Em nosso teclado imaginário, os habitantes de um planeta muito distante deste Universo estariam em extremo diferente do teclado, diferente daquele em que se situariam os seres humanos. Também as pessoas nos planos astrais de existência encontrar-se-iam em faixa mais alta do teclado, pois um fantasma que pode atravessar uma parede é de natureza tão tênue que sua própria cadência de vibrações seria realmente alta, embora o teor molecular se mostrasse baixo.

Ele olhou para mim, e riu de minha expressão de perplexidade, explicando então:

            Bem, como você sabe, um fantasma pode atravessar uma parede de pedras, porque a mesma consiste de moléculas em vibração. Existem espaços entre cada molécula, e se houver um ser composto de moléculas tão pequenas que elas possam passar entre os espaços de uma parede de pedras, nesse caso esse ser conseguirá atravessá-la, sem qualquer impedimento. Naturalmente, as criaturas astrais possuem uma cadência muito elevada de vibração, e são de uma natureza tênue, isto é, não são sólidas, o que, a seu turno, significa que elas têm poucas moléculas. A maioria das pessoas imagina que o espaço além de nossa terra... além da orla de ar acima de nós... esteja vazio. Isso não acontece assim, o espaço possui moléculas por toda a parte. São, em sua maioria, moléculas de hidrogênio, ampla­mente dispersas, mas as moléculas estão lá, e podem ser medidas, sem a menor dúvida, de modo bem semelhante àquele pelo qual a presença de um chamado fantasma pode ser medida.

As conchas do Templo soaram, chamando-nos novamente.

            Voltaremos a este assunto amanhã, Lobsang, porque quero que você fique muito bem esclarecido sobre esta questão, — disse meu guia, ao nos separarmos à entrada do Templo.

O encerramento do Serviço do Templo foi o início de uma corrida — a corrida para o alimento. Estávamos todos bastante famintos, pois nossos próprios suprimentos de alimento haviam-se esgotado. Era aquele o dia em que se recebia um suprimento novo de cevada recém-torrada. No Tibete, todos os monges carregam uma pequena bolsa de couro, com cevada, que foi torrada e moída, e que, misturada ao chá amanteigado, torna-se tsampa. Assim é que seguimos com pressa, e logo nos juntamos à multidão que esperava para encher as bolsas. Em seguida, fomos para o Salão, onde havia chá, de modo que pudéssemos fazer nossa refeição da noite.

Aquela substância era horrível. Eu mastiguei o meu tsam­pa, perguntando a mim mesmo se havia algo de errado no meu estômago. Ela apresentava um paladar horrível, oleoso e quei­mado, e eu francamente não sabia como engoli-la.

Bolas! — resmungou o menino a meu lado. — Esta coisa foi queimada demais, ninguém vai conseguir engolir!

A mim, parece que tudo ficou estragado, neste lote de alimento! — afirmei.

Tentei um pouco mais, contorcendo o rosto em concen­tração aflita imaginando como iria engolir aquilo. No Ti­bete, desperdiçar comida é um grande pecado. Olhei ao redor, e vi que os outros faziam exatamente o mesmo, olhavam em volta! A tsampa era ruim, não havia dúvida alguma. Por toda a parte, as tigelas estavam sendo postas no chão, e isso era ocorrência muito rara em nossa comunidade, onde todos se achavam sempre à beira da fome. Engoli apressadamente o tsam­pa que tinha na boca, e algo muito estranho no mesmo atingiu-me com força inesperada, no estômago. Pondo-me rapida­mente em pé, e levando a mão à boca, tomado de apreensão, saí correndo para a porta...

            Bem! Jovem, -— disse uma voz de sotaque estranho, quando me voltei para a porta, depois de haver vomitado violentamente a comida perturbadora.

Voltei-me, e vi Kenji Tekeuchi, o monge japonês que estivera em toda parte do mundo, vira tudo, fizera tudo, e agora estava pagando por tudo, com ataques periódicos de instabili­dade mental. Ele olhou para mim, com uma expressão de solidariedade .

Coisa horrível, não é? perguntou, solidário. Tive a mesma dificuldade, e vim cá fora pelo mesmo motivo. Teremos de ver o que vai acontecer. Vou ficar aqui fora alguns momentos, contando que o ar puro afaste parte do miasma que esta comida ruim causou.

Senhor! disse eu, com desânimo. Esteve em toda parte, e pode dizer por que motivo, aqui no Tibete, rece­bemos alimentação tão horrivelmente monótona? Estou inteiramente farto de tsampa e chá, e chá com tsampa, e tsampa com chá. Às vezes, mal consigo enfiar essa porcaria pela goela abaixo.

O japonês fitava-me com grande compreensão e solidarie­dade ainda maior.

            Ah! Você, então, pergunta a mim, porque eu provei muitas espécies diferentes de comida? Sim, e provei mesmo. Viajei muito toda minha vida. Comi na Inglaterra, Alemanha, Rússia...quase em toda parte do mundo. A despeito de meus votos sacerdotais, vivi bem, ou pelo menos julguei que vivia bem, nessa ocasião, mas agora minha negligência quanto aos votos que fiz trouxe-me remorsos.

Olhava para mim, e pareceu voltar novamente à vida, com um tremor em todo o corpo.

Oh! Sim! Perguntou o motivo pelo qual temos comida tão monótona. Vou-lhe dizer. As pessoas no Ocidente comem muito, e dispõem de variedade demasiada de comida. Os órgãos digestivos trabalham em base involuntária, isto é, não são con­trolados pela parte voluntária do cérebro. Conforme ensinamos, se o cerebro, por meio dos olhos, tiver a oportunidade de ava­liar o tipo de comida que vai ser consumido, nesse caso o estó­mago consegue soltar a quantidade e concentração necessárias de sucos gástricos, a fim de envolver e trabalhar o alimento. Se, por outro lado, tudo for engolido indiscriminadamente, e a pessoa estiver ocupada em conversa tola, durante esse tempo, nesse caso os sucos não são preparados, a digestão não se pode efetuar, e a pobre pessoa tem indigestão e, mais tarde, talvez sofra de úlceras gástricas. Você quer saber por que sua comida é simples? Bem! Quanto mais comum e, razoavelmente, mais monótona for a comida consumida, tanto melhor se mostra para o desenvolvimento das partes psíquicas do corpo. Estudei a fundo o ocultismo, tive grandes poderes de clarividência, e depois devorei todos os tipos de preparados inacreditáveis, e bebidas ainda mais incríveis. Perdi todos os meus poderes metafísicos, de modo que agora tenho de vir aqui, ao Chakpori, para ser tratado, para ter um lugar onde descansar o corpo cansado, antes de deixar esta terra. E quando eu a houver deixado, em questão de poucos meses, os quebradores de cadáveres farão a tarefa... completarão a tarefa... que uma mistura indiscri­minada de bebidas e alimentos iniciou.

Olhou para mim, em seguida teve um daqueles tremores estranhos, outra vez, e disse:

Oh, sim, meu menino! Receba meu conselho, fique com a comida simples todos os dias de sua vida, e jamais perderá os seus poderes. Se não atender ao meu conselho, e enfiar por sua garganta esfaimada tudo que puder, perderá o que tem, e o que ganhará? Bem, meu menino, você ganhará uma indigestão; ganhará úlceras gástricas, juntamente com mau gênio. Oh, oh! Vou-me embora, aí vem um outro acesso.

O monge japonês, Kenji Tekeuchi, pos-se em pé, trêmulo, e cambaleou na direção do Alojamento dos Lamas. Eu o fitava, sacudindo a cabeça, com tristeza. Gostaria muitíssimo de poder conversar com ele por mais tempo. Que tipo de comida seria aquele de que falara? Teria bom sabor? Depois, controlei-me com um estremecimento; por que tentar-me, quando tudo que tinha à frente era chá amanteigado e rançoso, e tsampa, que realmente havia queimado a ponto de se tornar uma massa estur­ricada, à qual alguma substância estranha e oleosa fora adicio­nada? Sacudi a cabeça, e caminhei novamente para o Salão.

Mais tarde, aquela noite, estava conversando com meu guia, o Lama Mingyar Dondup.

            Honrado Lama, por que motivo as pessoas compram horóscopos aos vendedores, lá na Trilha?

Meu guia sorriu, com tristeza, enquanto respondia:

            Naturalmente, como você sabe, não pode haver qualquer horóscopo de valor, a menos que seja preparado individualmente para a pessoa a quem ele alega referir-se. Nenhum horóscopo pode ser preparado na base de produção em massa. Os horós­copos dos vendedores na Trilha, lá embaixo, servem apenas para que eles consigam dinheiro dos crédulos.

Olhava para mim, e aduziu:

Naturalmente, Lobsang, os peregrinos que têm esses horóscopos voltam para casa, e mostram essa lembrança da Potala. Ficam satisfeitos, bem como o vendedor. Assim sendo, por que pensar nisso? Todos se satisfazem.

O senhor acha que as pessoas devem mandar preparar horóscopos? — perguntei.

Não, Lobsang, não acho. Apenas em certos casos, como é o seu. Com freqüência demasiada os horóscopos são apenas usados para poupar à pessoa o esforço de adotar um rumo de ação de sua própria responsabilidade. Eu me oponho muito ao uso da astrologia ou horóscopos a menos que exista um motivo definido e específico para isso. Como você sabe, a pessoa comum é como um peregrino que segue até a Cidade de Lhasa. Ele não pode ver a estrada à frente, porque árvores e casas e curvas da estrada o impedem. Tem de estar preparado para o que aparecer. Daqui, podemos olhar lá embaixo a estra­da, e ver qualquer obstrução, pois estamos em elevação maior. O peregrino, portanto, é como uma pessoa sem horóscopo. Nós, mais altos no ar do que o peregrino, somos como as pessoas que têm o horóscopo, pois podemos ver a estrada à frente, po­demos ver os obstáculos e dificuldades, e desse modo devíamos encontrar-nos em posição de sobrepujar as dificuldades, antes que elas realmente ocorram.

Há uma outra coisa que me perturba muito, Honrado Lama. Pode dizer-me como sabemos das coisas, nesta vida, que conhecemos no passado?

Olhei para ele ansiosíssimo, pois sempre tinha medo de fazer perguntas assim, não me cabendo o direito de mergulhar com tanta profundidade nesses assuntos, mas ele não se ofen­deu. Ao invés disso, respondeu:

            Antes de virmos para esta terra, Lobsang, planejamos o que pretendíamos fazer. O conhecimento foi guardado em nosso subconsciente, e se pudéssemos entrar em contato com esse subconsciente...como alguns de nós o podem fazer!... nesse caso, saberíamos de tudo que tínhamos planejado. Naturalmente, se desejássemos conhecer tudo que havíamos planejado, não haveria mérito algum em esforçar-nos por melhorarmos, porque saberíamos estar seguindo um plano pre­determinado. Por alguns motivos, às vezes, a pessoa entra em sono, ou sai do corpo, enquanto se acha consciente, e entra em contato com seu Eu Maior. Às vezes, o Eu Maior poderá trazer conhecimento do subconsciente e transferi-lo de volta ao corpo na terra, de modo que, quando o corpo astral regressa ao corpo carnal, há o conhecimento, na mente, de certas coisas que ocorreram na vida passada. Pode servir de advertência espe­cial para não cometer um engano, que poderia ter sido come­tido em vida após vida. As vezes, uma pessoa sente o grande desejo de cometer suicídio... e isso é apenas um exemplo,.. e se foi castigada, vida após vida, por fazê-lo, nesse caso é fre­qüente ter uma recordação de algo acerca da autodestruição, na esperança de que tal lembrança leve o corpo a abster-se da autodestruição.

Pensei acerca de tudo isso, e depois fui para a janela, pondo-me a olhar para fora. Lá embaixo, estendia-se o verde da área alagada e o belo verde das folhas dos salgueiros. Meu guia interrompeu-me os devaneios.

            Você gosta de olhar por essa janela, lobsang. Será que lhe ocorre que olha para fora com tanta freqüência porque acha que o verde é muito agradável aos olhos?

Enquanto pensava nisso, compreendi que instintivamente via o verde, após ter estudado os meus livros.

            O verde, Lobsang, é a cor mais repousante para os olhos. Ela traz descanso aos olhos cansados. Se for para o mundo ocidental, verificará que em alguns teatros de lá existem lugares chamados "a sala verde", onde atores e atrizes vão descansar os olhos, depois de estarem submetidos aos palcos cheios de fumaça e ao brilho ofuscante das lâmpadas.

Abri os olhos, espantado diante disso, e achei que daria prosseguimento a essa questão de cores, quando a oportunidade se apresentasse. Meu guia disse:

— Tenho de deixá-lo agora, Lobsang, mas amanhã volte a ter comigo, porque vou ensinar-lhe outras coisas.

Pôs-se em pé, bateu-me gentilmente no ombro e saiu. Por algum tempo, permaneci espiando pela janela, olhando para o verde da grama no pântano e as árvores que se mostravam tão repousantes à visão.

 

Eu me afastei um pouco da trilha, olhando para a encosta da montanha. Meu coração pesava no peito, e eu tinha os olhos quentes das lágrimas que não me atrevia a derramar. O ancião estava sendo carregado, descendo a montanha. O monge japonês Kenji Tekeuchi havia "regressado a seus Ancestrais". Agora, os Quebradores de Cadáveres levavam-lhe o pobre corpo encar­quilhado, tirando-o de nós. Estaria seu Espírito, naquele mo­mento, percorrendo uma trilha orlada de flores de cerejeira? Ou estaria vendo os erros de sua vida, e planejando o regresso? Olhei novamente, antes que os homens fizessem uma curva na trilha. Olhei lá para baixo, vendo o vulto inerme e comovente que já fora um homem. Uma sombra encobriu o sol, e por algum tempo imaginei perceber um semblante no formato das nuvens.

Era verdade — perguntava-me a mim mesmo — que havia Guardiães do Mundo? Grandes Espíritos Guardiães, que tratavam de fazer com que o Homem tivesse sofrimentos na Terra, a fim de poder viver? Ora, deviam ser como professores de escola, estava eu pensando. Kenji Tekeuchi talvez fosse encon­trar-se com eles. Talvez lhe dissessem que ele aprendera bem. Eu contava que assim fosse, pois ele fora um velho frágil, que vira muita coisa e sofrera bastante. Ou teria de voltar à carne outra vez, reencarnar, de modo que pudesse aprender mais? E quando ele viria? Em uns seiscentos anos, ou agora?

Pensei no assunto; pensei no Culto que acabara de deixar, o Culto de Orientação dos Mortos. As tremeluzentes lâmpadas de manteiga, cintilando como as chamas de uma vida débil. Pensei nas nuvens de incenso odorífero, que pareciam formar criaturas vivas. Por momentos, eu julgara que Kenji Tekeuchi voltara a ter conosco, como ser vivo, ao invés de seguir carre­gado à nossa frente, como um cadáver encarquilhado. Agora, talvez, ele estivesse examinando o Registro Akáshico, esse Registro indelével de tudo quanto já acontecera. Talvez ele conseguisse ver onde errara e lembrar-se disso, quando voltasse.

O ancião me ensinara muita coisa. A seu modo estranho, gostara de mim, falara comigo como se fosse um igual. Agora, não estava mais sobre a Terra. Ociosamente, desferi um pontapé numa pedra, esfreguei as sandálias surradas no chão. Ele tivera uma mãe? De algum modo, não conseguia imaginá-lo jovem, tendo família. Deveria ter sido sozinho, vivendo entre nós, estranhos, tão longe de seu próprio país, tão longe da brisa cálida e de sua própria Montanha Sagrada. Com freqüência ele me falara sobre o Japão, e nessas ocasiões sua voz se tor­nara roufenha, os olhos tinham adquirido expressão estranha.

Certo dia, ele me chocara, dizendo que as pessoas esquadrinhavam as questões ocultas, quando fariam melhor se espe­rassem, até estarem prontas, ao invés de tentarem importunar um Mestre.

— O Mestre sempre vem, quando o estudante está pronto, menino — ele me dissera. — E quando você tiver um Mestre, faça tudo que ele disser, pois apenas então você estará pronto.

O dia se tornara mais escuro. Nuvens se apresentavam e o vento começava a fazer voar as pedrinhas.

Lá embaixo, na planície, um pequeno grupo de homens surgiu, vindo da base da montanha. Com suavidade, eles colocaram seu fardo no dorso de um pônei, montaram nos seus e seguiram devagar. Eu fiquei a olhar para a planície até que, finalmente, o pequeno cortejo desaparecesse. Devagar, voltando-me para outro lado, subi a montanha.



 

[1]  N.T. — Etapa atingida por quem se torna um Buda.

 

                                                                                            Lobsang Rampa  

 

                      

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