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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CHAVE DE VIDRO / Dashiell Hammett
A CHAVE DE VIDRO / Dashiell Hammett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os dados verdes cruzaram rolando a mesa verde, bate­ram na borda juntos e voltaram. Um parou logo, mostrando seis pontinhos brancos em duas fileiras iguais para cima. O outro rolou até o centro da mesa e imobilizou-se com um único ponto para cima.

Ned Beaumont resmungou baixinho — "Uumm!" — e os vencedores limparam o dinheiro da mesa.

Harry Sloss pegou os dados e chocalhou-os na peluda mão branca.

Dois lances — disse. Jogou uma nota de vinte dólares e outra de cinco sobre a mesa.

Ned Beaumont recuou dizendo:

Vão vocês, eu preciso me reabastecer.

Cruzou a sala de bilhar até a porta. Ali encontrou-se com Walter Ivans, que entrava.

Olá, Walt.

E teria seguido adiante, se Ivans não o pegasse pelo braço, fazendo-o voltar-se.

Vo-você con-conversou com Pa-Paul? — Ao dizer a última palavra, uma fina espuma voou entre os seus dentes.

Vou ver ele agora — disse Ned Beaumont. Os olhos de Ivans, de um azul da China, iluminaram-se no rosto re­dondo, até que o outro, estreitando os seus, acrescentou: — Não espere muita coisa. Se puder agüentar mais um tempo.

Ivans torceu o queixo. — Ma-mas ela va-vai ter ne-nenén no mês que vem.

Os olhos negros de Ned Beaumont apresentaram uma expressão de espanto. Ele puxou o braço da mão do homem mais baixo e recuou. Depois retorceu um canto da boca, sob o bigode negro, e disse:

Ê uma hora ruim, Walt, e... você vai poupar um bocado de decepção não esperando muita coisa antes de no­vembro. — Estreitava novamente os olhos, atento.

Ma-mas se vo-você disser a e-ele...

Vou pintar as coisas o mais feio possível, e você deve saber que ele vai fazer o máximo, mas neste momento está num beco sem saída.

Moveu os ombros, e o rosto tornou-se sombrio, com ex­ceção do vigilante brilho nos olhos.

Ivans umedeceu os lábios e piscou os olhos muitas vezes. Inspirou profundamente e deu tapinhas no peito de Ned Beau­mont com ambas as mãos.

A-ago-agora vá-vá — disse numa voz urgente e supli­cante. — Eu vo-vou espe-perar por vo-você aqui.

 

 

 

 

Ned Beaumont subiu ao andar de cima acendendo um charuto manchado de verde. No patamar do segundo andar, onde estava pendurado o retrato do governador, voltou-se para o lado da frente do prédio e bateu na larga porta de carvalho que fechava o corredor naquela ponta.

Ao ouvir o "Tudo bem" de Paul Madvig, abriu a porta e entrou.

Paul Madvig estava só na sala, parado de pé, diante da janela, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, de costas para a porta, olhando através da tela a escura rua da China lá em­baixo.

Voltou-se lentamente e disse:

Oh, você por aqui.

Era um homem de quarenta e cinco anos, alto como Ned Beaumont, mas com uns vinte quilos a mais, sem flacidez. O cabelo, claro, partia-se no meio, emplastrado na cabeça. Tinha um rosto bem proporcionado, com aspecto sadio, corado e robusto. As roupas escapavam do berrante pela quali­dade e pelo modo como ele as usava.

Ned Beaumont fechou a porta e disse:

Me empreste algum dinheiro.

Madvig retirou do bolso interno do paletó uma grande carteira marrom.

Quanto quer?

Umas duas de cem.

Madvig deu-lhe uma de cem e cinco de vinte, pergun­tando:

Dados?

Obrigado. — Ned Beaumont embolsou o dinheiro. — É.

Faz muito tempo que você não dá uma ganhadazinha, não é? — perguntou Madvig, voltando a enfiar as mãos nos bolsos.

Não muito... um mês ou um mês e meio.

Madvig sorriu.

É muito tempo pra ficar perdendo.

Não pra mim. — Sentia-se uma nota de irritação em sua voz.

Madvig chocalhou algumas moedas no bolso.

O jogo está bom esta noite? — Sentou-se numa quina da mesa e baixou os olhos para os sapatos marrom-reluzentes.

Ned Beaumont olhou curiosamente o homem loiro, ba­lançou a cabeça e disse:

Mixaria. — Andou até a janela. Acima dos prédios do outro lado da rua o céu mostrava-se negro e denso. Ele foi até o telefone às costas de Madvig e discou um número. — Alô, Bernie. Aqui é Ned. Qual é a cotação de Peggy OToole?... Só isso?... Bem, me dê quinhentos de cada... Claro... Aposto que vai chover, e se chover ela vence Incinerator... Tudo bem, me dê uma cotação melhor então... Certo. — Repôs o telefone no gancho e voltou para a frente do outro.

Madvig perguntou:

Por que não tenta parar um pouco quando está numa maré de azar?

Ned Beaumont fechou a cara.

Não adianta, só faz estender o azar. Eu devia ter posto aqueles mil e quinhentos na cabeça, em vez de espalhar. É melhor a gente receber o castigo de uma vez e acabar logo com a coisa.

Madvig deu uma risadinha e ergueu a cabeça para dizer:

Se você agüenta o arrocho.

Ned Beaumont deixou cair os cantos da boca, seguidos pelas pontas dos bigodes.

Eu agüento o que tiver de agüentar — disse, encaminhando-se para a porta.

Já estava com a mão na maçaneta quando Madvig disse, seriamente:

E eu acho que agüenta mesmo, Ned.

Ned Beaumont voltou-se e perguntou, irritado:

Agüento o quê?

Madvig desviou o olhar para a janela.

Qualquer coisa.

Ned Beaumont estudou o rosto desviado de Madvig. O loiro mexeu-se desconfortavelmente e tornou a chocalhar as moedas no bolso. O outro perguntou, de olhos vazios, num tom extremamente intrigado:

Quem?

Madvig corou. Ergueu-se da mesa e deu um passo em direção a Ned Beaumont.

Vá pro inferno!

Ned Beaumont deu uma risada.

Madvig sorriu encabulado e enxugou o rosto com um lenço de bordas verdes.

Por que não tem ido lá em casa? perguntou. Mamãe estava dizendo ontem de noite que não vê você há um mês.

Talvez eu apareça uma noite dessas, esta semana.

Deve aparecer. Sabe como mamãe gosta de você. Venha jantar. Madvig guardou o lenço.

Ned Beaumont tornou a se encaminhar para a porta, devagar, olhando o loiro pelos cantos dos olhos. Com a mão na maçaneta, perguntou:

Era pra isso que você queria me ver?

Madvig franziu a testa.

Era, quer dizer... Pigarreou. Hum... oh, tem outra coisa. De repente, desaparecera sua timidez, dei­xando-o aparentemente tranqüilo e dono de si. Você sabe mais dessas coisas que eu. O aniversário da srta. Henry é quinta-feira. Que acha que devo dar a ela?

Ned Beaumont retirou a mão da maçaneta da porta. Ao tornar a encarar Madvig de frente, seus olhos já haviam perdido a aparência de espanto. Soprou a fumaça do charuto e perguntou:

Vão fazer esses troços de aniversário, não vão?

Vão.

Você foi convidado?

Madvig balançou a cabeça.

Mas vou jantar lá amanhã de noite.

Ned Beaumont baixou o olhar para o charuto, depois tornou a olhar o rosto de Madvig e perguntou:

Vai apoiar o senador, Paul?

Acho que vamos.

O sorriso de Ned Beaumont era tão brando quanto sua voz quando fez a pergunta seguinte:

Porquê?

Madvig sorriu.

Porque com a gente por trás ele vai pôr Roan no chinelo, e com a ajuda dele a gente pode eleger toda a chapa como se nem tivesse concorrentes.

Ned Beaumont pôs o charuto na boca. Perguntou, ainda brandamente:

Sem você — acentuou o pronome — por trás, o se­nador conseguiria desta vez?

Madvig foi calmamente decisivo.

Nem uma chance.

Após uma pequena pausa, Ned Beaumont perguntou:

Ele sabe disso?

Deve saber melhor que ninguém. E se não sabe... Mas que diabo deu em você?

A risada de Ned Beaumont foi de escárnio.

Se ele não soubesse — insinuou — você não estaria indo jantar lá amanhã. É isso?

Carrancudo, Madvig tornou a perguntar:

Que diabo deu em você?

Ned Beaumont retirou o charuto da boca. Tinha estra­çalhado a ponta com os dentes.

Em mim não deu nada. — Armou uma expressão pensativa. — Acha que o resto da chapa não precisa do apoio dele?

Apoio é coisa que uma chapa nunca tem demais — respondeu Madvig com indiferença. — Mas sem a ajuda dele a gente podia dar um jeito do lado da gente.

Já prometeu alguma coisa pra ele?

Madvig franziu os lábios.

Está tudo acertado.

Ned Beaumont baixou a cabeça até ficar olhando o loiro por baixo das sobrancelhas. Seu rosto tornara-se pálido.

Deixe ele, Paul disse numa voz baixa e rouca. Acabe com ele.

Madvig pôs os punhos nos quadris e exclamou baixinho, com descrença:

Ora, macacos me mordam!

Ned Beaumont passou por ele e, com dedos inseguros, esmagou a ponta acesa do charuto na bacia de cobre martelado em cima da mesa.

Madvig fitava o homem mais jovem, até que ele se endi­reitou e se voltou. Então o loiro sorriu com afeição e irritação.

Que deu em você, Ned? — queixou-se. — Vai bem até um certo ponto, e depois, sem motivo algum, sai com uma dessas. Quero ser mico de circo se entendo você!

Ned Beaumont fez uma careta de repugnância.

Está bem. Esqueça. E voltou imediatamente ao ataque com uma pergunta cética: Acha que ele vai fazer o seu jogo depois de reeleito?

Madvig não se preocupava com isso.

Posso dar um jeito nele.

Talvez, mas não se esqueça que ele nunca levou a pior em nada na vida.

Madvig concordou.

Certo, e esse é um dos melhores motivos que eu co­nheço pra me juntar a ele.

Não, não é, não, Paul disse seriamente Ned Beau­mont. É o pior dos piores. Reveja isso, mesmo que lhe dê dor de cabeça. Até onde aquela estonteante filha loira dele fisgou você?

Madvig disse:

Eu vou me casar com a srta. Henry.

Ned Beaumont franziu os lábios como quem assobia, mas não assobiou. Estreitou mais ainda os olhos e perguntou:

Isso faz parte da barganha?

Madvig deu um sorrisinho de garoto.

Ninguém sabe disso ainda respondeu —, a não ser você e eu.

Manchas rubras surgiram nas faces magras de Ned Beau­mont. Ele deu seu mais belo sorriso e disse:

Pode confiar em mim, que eu não vou sair tagare­lando por aí, e aqui vai um conselhozinho. Se é isso que você quer, faça com que ponham a coisa por escrito, prestem jura­mento perante um tabelião e depositem um sinal em dinheiro, ou, melhor ainda, insista no casamento antes do dia da elei­ção. Aí pode ter certeza ao menos de sua libra de carne,[1] ou será que ela pesa umas cento e dez?

Madvig mexeu os pés. Evitava o olhar fixo de Ned Beau- mont quando disse:

Não sei por que você fica aí falando do senador como se ele fosse um vigarista. É um cavalheiro e...

Certamente. Li sobre isso no Post... um dos poucos aristocratas que restam na política americana. E a filha é uma aristocrata. É por isso que estou lhe avisando pra costurar a camisa no corpo quando for se encontrar com eles, senão vai sair sem ela, porque pra eles você é uma forma inferior de vida animal, à qual não se aplica nenhuma das regras sociais.

Madvig deu um suspiro e começou:

Ora, Ned, não seja tão...

Mas Ned Beaumont havia se lembrado de alguma coisa. Seus olhos brilhavam de malícia.

E não devemos esquecer que o jovem Taylor Henry é um aristocrata também, e provavelmente foi por isso que você proibiu Opal de andar por aí com ele. Como vai ser quando você se casar com a irmã dele e ele se tornar tio emprestado de sua filha ou algo assim? Isso dará a ele o direito de recomeçar a sair com ela?

Madvig bocejou.

Você não entendeu direito, Ned. Eu não perguntei nada disso a você. Só perguntei que presente eu devia dar à srta. Henry.

O rosto de Ned Beaumont perdeu a animação, tornou-se uma máscara ligeiramente sombria.

Até onde você chegou com ela? — perguntou, numa voz que nada manifestava o que ele poderia estar pensando.

Não cheguei a parte alguma. Estive lá talvez meia dúzia de vezes pra falar com o senador. Às vezes vejo ela, às vezes não, mas apenas pra cumprimentar ou alguma coisa assim, com outras pessoas em volta. Sabe, ainda não tive uma oportunidade pra dizer alguma coisa a ela.

Um brilho de gozação surgiu por um momento nos olhos de Ned Beaumont, e depois desapareceu.

Amanhã é seu primeiro jantar lá?

É, mas não espero que seja o último.

E não recebeu convite pra festa de aniversário?

Não. Madvig hesitou. Ainda não.

Então não vai gostar da resposta.

O rosto de Madvig se manteve impassível.

Qual, por exemplo? perguntou.

Não dê nada a ela.

Ora, diabos, Ned!

Ned Beaumont deu de ombros.

Faça como quiser. Foi você quem me perguntou.

Mas por quê?

A gente não deve dar nada às pessoas quando não se tem certeza de que elas gostariam de receber alguma coisa da gente.

Mas todo mundo gosta de...

Talvez, mas a coisa vai mais fundo. Quando a gente dá alguma coisa a alguém, está dizendo alto e em bom som que sabe que essa pessoa gostaria que a gente desse...

Entendi disse Madvig. Esfregou o queixo com os dedos da mão direita. Franziu a testa e acrescentou: Acho que você tem razão. Seu rosto se tranqüilizou. — Mas diabos me levem se vou perder essa oportunidade.

Ned Beaumont apressou-se a dizer:

Bem, então mande flores ou alguma coisa assim. Caía bem.

Flores? Meu Deus, eu queria...

Claro, queria dar um carro de luxo ou uns dois metros de colar de pérolas. Vai ter oportunidade pra isso mais tarde. Comece de baixo e vá subindo.

Madvig armou uma expressão de desagrado.

Acho que você tem razão, Ned. Sabe mais dessas coisas que eu. Então serão flores.

E não demais. — Depois, no mesmo fôlego: — Walt Ivans está dizendo a todo mundo que você devia ajudar o irmão dele.

Madvig puxou para baixo o botão do colete.

Todo mundo pode dizer pra ele que Tim vai ficar fora de circulação até depois da eleição.

Vai deixar que ele vá a julgamento?

Vou — respondeu Madvig, e acrescentou com mais ênfase: — Você sabe muitíssimo bem que não posso impedir, Ned. Com todo mundo empenhado na reeleição e os clubes femininos em pé de guerra, seria entregar o pescoço à forca conchavar o caso de Tim agora.

Ned Beaumont deu um sorrisinho malicioso ao loiro e falou com voz arrastada.

A gente não ligava muito pros clubes femininos antes de se juntar à aristocracia.

Mas agora liga. — Madvig tinha os olhos opacos.

A mulher de Tim vai ter nenêm no mês que vem — disse Ned Beaumont.

Madvig soprou uma rajada de impaciência.

Tudo tem de acontecer pra tornar a coisa mais difícil — queixou. — Por que eles não pensam nessas coisas antes de se meter em encrencas? Não têm miolos, nenhum deles.

Têm votos.

É isso que é o diabo — rosnou Madvig. Olhou furioso para o chão, por um momento, e ergueu a cabeça. — Vamos cuidar dele assim que os votos estejam contados, mas até lá, nada feito.

Isso não é muito generoso com os rapazes — disse Ned Beaumont, olhando enviesado para o outro. — Com miolos ou não, estão acostumados a que cuidem deles.

Madvig adiantou um pouco o queixo. Os olhos, redondos e de um brilho opaco, encararam Ned Beaumont. Em voz baixa, perguntou:

E então?

Ned Beaumont sorriu e manteve a voz num tom casual.

Você sabe que não é preciso muita coisa assim pra que eles comecem a dizer que era diferente nos velhos tempos, antes de você se juntar ao senador.

É?

Ned Beaumont sustentou sua posição sem mudar a voz ou o sorriso.

Você sabe que é preciso pouca coisa desse tipo pra que comecem a dizer que Shad 0'Rory ainda cuida dos rapa­zes dele.

Madvig, que tinha escutado com um ar de total atenção, disse então, numa voz baixa e bastante decidida:

Eu sei que você não vai começar a fazer com que falem isso, Ned, e sei que posso contar com você pra fazer o que puder pra parar qualquer conversa desse tipo que por acaso ouça.

Por um momento, após isso, os dois ficaram calados, olhando-se nos olhos, sem qualquer mudança no rosto de nenhum dos dois. Ned Beaumont quebrou o silêncio.

Ajudaria um pouco se a gente cuidasse da mulher e do nenéndeTim.

O negócio é esse. Madvig recolheu o queixo e seus olhos perderam aquele ar sombrio. Cuide disso, está bem? Dê tudo a eles.

 

Walter Ivans esperava por Ned ao pé da escada, de olhos brilhantes e esperançoso.

Que-que fo-foi que ele di-disse?

É o que eu disse a você: não pode fazer nada. Depois da eleição, Tim vai ter tudo que precisa pra sair, mas nada de agitação até lá.

Walter Ivans deixou pender a cabeça e emitiu um baixo grunhido de dentro do peito.

Ned Beaumont pôs uma mão no ombro do homem mais baixo e disse:

É duro, e ninguém sabe melhor disso que Paul, mas ele não pode fazer nada. Quer que você diga à mulher dele pra não pagar nenhuma conta. Que mande tudo pra ele... alu­guel, mercearia, médico e hospital.

Walter Ivans ergueu a cabeça rapidamente e tomou a mão de Ned Beaumont nas suas.

Po-por De-Deus, é mu-muito ba-bacana da parte dele! Tinha os olhos azuis molhados. Ma-mas eu que- queria ti-tirar Tim de-de lá.

Ned Beaumont disse:

Bem, sempre tem uma possibilidade de aparecer al­guma coisa pra tirar ele de lá. — Tirou a mão e acrescentou: — Vejo você por aí. —Passou pelo lado de Ivans e foi para o salão de bilhar.

O salão de bilhar estava deserto.

Ele pegou seu chapéu e sua capa e foi até a porta da frente. A chuva caía, em compridas cordas enviesadas, cin­zentas, na rua da China. Ele sorriu e falou à chuva, baixinho:

Caia, queridinha, três mil duzentos e cinqüenta dóla­res de chuva.

Voltou e chamou um táxi.

 

Ned Beaumont tirou as mãos de cima do morto e levantou-se. A cabeça do morto rolou um pouco para a es­querda, despencando do meio-fio, e o rosto recebeu em cheio a luz do poste da esquina. Era um rosto jovem, e a expressão de raiva parecia intensificada pelo inchaço escuro que atra­vessava diagonalmente a testa, do início dos cabelos loiros cacheados até uma das sobrancelhas.

Ned Beaumont olhou a rua da China acima e abaixo. Até onde podia ver, não havia ninguém. Duas quadras abaixo, diante do Log Cabin Club, dois homens saltavam de um automóvel. Deixaram o carro parado ali, de frente para Ned Beaumont, e entraram no clube.

Após olhar fixamente o automóvel por alguns segundos, Ned Beaumont girou depressa a cabeça para tornar a olhar rua acima, e então, com a rapidez que fez de ambos os movimentos um só e contínuo, rodopiou e saltou para cima da calçada, escondendo-se à sombra da árvore mais próxima. Respirava de boca aberta, e embora minúsculas gotas de suor houvessem brilhado em suas mãos à luz, agora tremia, e levantou a gola da capa.

Permaneceu à sombra da árvore, apoiando-se nela, por meio minuto talvez. Depois empertigou-se de repente e come­çou a andar em direção ao Log Cabin Club. Andava com rapidez crescente, curvado para a frente, é já ia mais acele­rado quando notou um homem que vinha do outro lado da rua. Afrouxou imediatamente o passo e obrigou-se a andar ereto. O homem entrou numa casa antes de passar por ele.

Quando Ned Beaumont chegou ao clube, tinha parado de respirar pela boca. Ainda tinha os lábios um tanto franzidos. Olhou o automóvel vazio sem se deter, subiu os degraus do clube entre as duas lanternas e entrou.

Harry Sloss e outro homem atravessavam o saguão, vin­dos do vestiário. Pararam e disseram juntos:

Olá, Ned.

Sloss acrescentou:

Soube que você apostou em Peggy O’Toole hoje.

Foi.

Pra ganhar muito?

Três mil e duzentos.

Sloss passou a língua pelo lábio inferior.

Isso é ótimo. Deve estar pronto prum joguinho hoje de noite.

Mais tarde, talvez. Paul está aí?

Não sei. Acabamos de chegar. Não venha tarde de­mais: prometi à garota que estaria em casa cedo.

Ned Beaumont disse:

Certo. E foi ao vestiário. Paul está? pergun­tou à moça.

Está, chegou há uns dez minutos.

Ned Beaumont olhou seu relógio. Eram dez e meia. Subiu até a sala da frente do segundo andar. Madvig em trajes de jantar, sentava-se à mesa com a mão estendida para o telefone quando Ned Beaumont entrou.

Retirou a mão e perguntou:

Como está, Ned? O rosto bonito parecia corado e plácido.

Ned Beaumont disse:

Já estive pior. Fechou a porta atrás de si e sentou-se numa poltrona não distante da de Madvig. Como foi o jantar de Henry?

A pele nos cantos dos olhos de Madvig enrugou-se.

Já estive em piores disse.

Ned Beaumont cortava a ponta de um charuto claro com manchas escuras. O tremor de suas mãos não combinava com a firmeza da voz ao perguntar:

Taylor estava lá?

Ergueu o olhar para Madvig sem erguer a cabeça.

No jantar, não. Por quê?

Ned Beaumont estirou as pernas cruzadas, reclinou-se na poltrona, moveu a mão que segurava o charuto num arco indiferente e disse:

Ele está morto numa sarjeta lá pra cima.

Madvig, imperturbável, perguntou:

É mesmo?

Ned Beaumont curvou-se para a frente. Os músculos de seu rosto magro enrijeciam-se. O envoltório do charuto par­tiu-se entre seus dedos com um fraco estalido. Ele perguntou irritado:

Você entendeu o que eu disse?

Madvig assentiu com a cabeça, vagarosamente.

E então?

Então o quê?

Ele foi assassinado.

Tudo bem — disse Madvig. — Quer que eu fique histérico por causa disso?

Ned Beaumont empertigou-se na poltrona.

Chamo a polícia?

Madvig ergueu um pouco as sobrancelhas.

Eles ainda não sabem?

Ned Beaumont encarava o loiro. Respondeu:

Não tinha ninguém por perto quando encontrei ele. Eu queria falar com você antes de fazer qualquer coisa. Posso dizer que encontrei ele?

Madvig baixou as sobrancelhas.

Por que não? — perguntou, sem expressão alguma.

Ned Beaumont levantou-se, deu dois passos na direção

do telefone, parou e tornou a voltar-se para o loiro. Falou dando um certo destaque:

O chapéu dele não estava lá.

Não vai precisar dele agora. — Depois Madvig fran­ziu a testa e disse: — Você é um maldito idiota, Ned.

Ned Beaumont disse:

Um de nós dois é.

E dirigiu-se ao telefone.

 

TAYLOR HENRY ASSASSINADO Cadáver do filho do senador encontrado na rua da China "Taylor Henry, vinte e seis anos, filho do senador Ralph Bancroft Henry, foi encontrado morto na rua da China, perto da esquina com a avenida Pamela, poucos minutos após às 10h da noite passada. Acredita-se que tenha sido vítima de um assalto.

"O juiz de instrução William J. Hoops declarou que a morte do jovem Henry foi causada por fratura no crânio e concussão, causadas quando bateu a nuca na quina do meio- fio, após ser derrubado por uma pancada com um porrete ou outro instrumento contundente na testa.

"Acreditava-se que o corpo tenha sido encontrado primeiramente por Ned Beaumont, avenida Randall, 914, que se dirigiu ao Log Cabin Club, a duas quadras de distância, para telefonar à polícia; mas antes de alcançar a Central de Polícia pelo telefone, o corpo já fora encontrado e o assassinato comu­nicado pelo patrulheiro Michael Smitt.

"O Chefe de Polícia Frederick M. Rainey ordenou imediatamente a prisão em massa de todos os tipos suspeitos da cidade e emitiu uma declaração dizendo que fará de tudo para prender o assassino ou assassinos de pronto.

"Membros da família Henry declararam que o rapaz deixou sua casa, na rua Charles, por volta das 9h, para..."

Ned Beaumont pôs o jornal de lado, engoliu o café que ainda restava em sua xícara, pôs a xícara e o pires em cima da mesa de cabeceira e tornou a recostar-se contra os traves­seiros. Tinha o rosto cansado e pálido. Puxou o cobertor até o pescoço, cruzou as mãos por trás da cabeça e ficou fitando com olhos insatisfeitos o desenho pendurado entre as duas janelas.

Ficou ali deitado durante meia hora, movendo apenas as pálpebras. Depois pegou o jornal e releu a matéria. Enquanto lia, a insatisfação espalhava-se dos olhos para todo o rosto. Tornou a pôr o jornal de lado, saiu da cama, envolveu o corpo magro, que usava um pijama branco, num quimono com figurinhas marrom e negras, enfiou os pés nuns chinelos marrom, e, tossindo um pouco, passou à sala de estar.

Era uma sala grande, à maneira antiga, de pé direito alto e janelas largas, com um tremendo espelho acima da lareira e muito veludo vermelho nos móveis. Pegou um charuto numa caixa em cima da mesa e sentou-se numa ampla poltrona vermelha. Os pés descansavam numa faixa de sol, de fim de manhã, e a fumaça que ele soprava encorpava-se de repente ao entrar na luz do Sol. Tinha a testa franzida agora, e roía uma unha quando não tinha o charuto na boca.

Soaram batidas na porta. Ele se endireitou, de olhos atentos, alerta.

Entre.

Entrou um garçom de paletó branco.

Ned Beaumont disse:

Oh, tudo bem — num tom desapontado, e tornou a relaxar contra o veludo vermelho da poltrona.

O garçom passou para o quarto, saiu com uma bandeja cheia de pratos e foi-se. Ned Beaumont jogou o que restava do charuto na lareira e entrou no banheiro. Depois de se barbear, tomar banho e se vestir, o rosto perdeu a palidez, e o porte a maior parte de cansaço.

 

Não era exatamente meio-dia quando Ned Beaumont deixou seus aposentos e andou oito quadras até um prédio de apartamentos cinza-claro na rua Link. Apertou um botão na entrada, entrou quando a fechadura deu um estalido e subiu até o sexto andar num pequeno elevador automático.

Apertou o botão da campainha no umbral de uma porta assinalada com o número 611. A porta foi aberta imediatamente por uma garota miúda, que devia estar terminando a adolescência. Tinha os olhos negros e raivosos, o rosto branco, a não ser em volta dos olhos, e também raivoso. Ela disse:

Oh, olá. — E com um sorriso e um gesto de mão vagamente apaziguante desculpou-se por sua raiva. A voz tinha uma finura metálica. Ela usava um capote de peles marrom, mas não chapéu. O cabelo curto — era quase negro — assentava-se liso e brilhante como esmalte na cabeça redonda. Os pingentes de ouro com brilhantes incrustados, nas orelhas, eram cornalina. Ela recuou, puxando a porta.

Ned Beaumont adiantou-se, passando pela poria e perguntando:

Bernie já voltou?

A raiva tornou a arder no rosto dela, que disse numa voz aguda:

Aquele bastardo miserável!

Ned Beaumont fechou a porta sem se voltar.

A garota aproximou-se dele, pegou-lhe os braços acima dos cotovelos e tentou sacudi-lo.

Sabe o que eu fiz por aquele vagabundo? per­guntou. Deixei a melhor casa que qualquer moça já teve, e uma mãe e um pai que achavam que eu era a própria srta. Jesus. Me disseram que ele não valia nada. Todo mundo me disse isso, e tinham razão, mas eu fui burra demais pra ver. Bem, espero dizer ao senhor que sei agora, aquele... O resto era gritante obscenidade.

Ned Beaumont, imóvel, ouvia seriamente. Seus olhos não eram agora os de um homem sadio. Quando a falta de fôlego a interrompeu por um instante, ele perguntou:

Que foi que ele fez?

Fez? Me deu o fora, aquele... O resto da frase era obscenidade.

Ned Beaumont retraiu-se. O sorriso com que ele abriu os lábios era aguado. Perguntou:

Acho que não deixou nada pra mim.

A garota cerrou os dentes e aproximou o rosto do dele. Tinha os olhos arregalados.

Ele deve alguma coisa a você?

Eu ganhei... Pigarreou. Devo ter ganho três mil duzentos e cinqüenta mangos no quarto páreo de ontem.

Ela tirou as mãos dos braços dele e deu uma risada de desprezo.

Tente receber. Veja. Estendeu as mãos. Um anel de cornalina no dedo mínimo da mão esquerda. Ela ergueu as mãos e tocou os brincos de cornalina. Estas são as únicas peças fedorentas de minhas jóias que ele me deixou, e não deixava, se eu não estivesse com elas.

Ned Beaumont perguntou, numa voz estranhamente distanciada:

Quando foi que isso aconteceu?

Ontem de noite, mas eu só descobri hoje de manhã. Mas não pense que não vou fazer aquele filho da puta se arrepender de ter me conhecido. — Enfiou a mão nas roupas e tirou-a fechada. Aproximou-a do rosto de Ned Beaumont e abriu-a. Continha três pedacinhos de papel amassados. Quando ele quis pegá-los, ela tornou a fechar os dedos, recuando e puxando a mão.

Ele moveu os cantos da boca, impaciente, e deixou cair a mão.

Ela disse, excitada:

Viu o jornal hoje de manhã, sobre Taylor?

A resposta de Ned Beaumont — Sim — foi bastante calma, mas seu peito inchou e esvaziou com a respiração apressada.

Sabe o que é isso aqui? — Estendeu mais uma vez os três pedaços de papel embolados na mão aberta.

Ned Beaumont balançou a cabeça. Estreitara os olhos, que brilhavam.

São as notas promissórias de Taylor Henry — ela disse triunfantemente. — No valor de mil e duzentos dólares.

Ned Beaumont ia dizer alguma coisa, conteve-se, e quan­do falou sua voz era sem vida.

Não valem um centavo com ele morto.

Ela tornou a enfiá-los no vestido e aproximou-se de Ned Beaumont.

Escute — disse —, nunca valeram um centavo, e por isso é que ele está morto.

Isso é um palpite?

É qualquer droga que você queira chamar. Mas deixe eu lhe dizer uma coisa: Bernie telefonou pra Taylor sexta-feira passada e disse que só dava a ele três dias pra dar as caras.

Ned Beaumont alisou um lado do bigode com a unha do polegar.

Você não está apenas se fazendo de brava, está? — perguntou cautelosamente.

Ela armou uma expressão furiosa.

É claro que estou brava — disse. — Estou brava o bastante pra entregar as notas pra polícia, e é o que eu vou fazer. Mas se acha que não foi isso que aconteceu, é um maldito idiota.

Ele ainda não parecia convencido.

Onde conseguiu elas?

No cofre. Gesticulou com a mão esguia em direção ao interior do apartamento.

Ele perguntou:

A que horas, ontem de noite, ele deu o fora?

Não sei. Cheguei em casa nove e meia, e fiquei sen­tada por aqui a maior parte da noite esperando por ele. Só de manhã foi que comecei a desconfiar de alguma coisa, dei uma olhada na casa e vi que ele tinha limpado cada centavo em dinheiro e cada jóia minha que eu não estava usando.

Ele tornou a alisar o bigode com a unha do polegar e perguntou:

Aonde acha que ele iria?

Ela bateu o pé e, sacudindo os punhos para cima e para baixo, voltou a xingar Bernie numa voz esganiçada e furiosa.

Ned Beaumont disse:

Páre com isso! Pegou os pulsos dela e imobilizou- os. — Se só vai ficar gritando, neste caso, me dê essas notas que eu faço alguma coisa.

Ela arrancou os pulsos das mãos dele, gritando:

Não vou lhe dar nada! Vou dar elas à polícia, e a ninguém mais!

Está bem, então dê. Aonde acha que ele foi, Lee?

Lee disse irada que não sabia aonde ele iria, mas sabia aonde gostaria de fazê-lo ir.

Ned Beaumont disse, cansado:

É isso mesmo. Piadinhas vão fazer muito bem à gente. Acha que ele voltaria pra Nova Iorque?

Como vou saber? Os olhos dela haviam se tornado de repente cautelosos.

A irritação provocou manchas vermelhas nas faces de Ned Beaumont.

Que é que você está aprontando agora? perguntou, desconfiado.

O rosto dela era uma máscara inocente.

Nada. Que quer dizer?

Ele se curvou para ela. Falou com considerável seriedade, balançando lentamente a cabeça de um lado para outro com as palavras.

Não pense que não vai à polícia com elas, Lee, porque vai mesmo.

Ela disse: É claro que vou.

 

Na mercearia que ocupava parte do térreo do prédio de apartamentos, Ned Beaumont foi ao telefone. Discou o número do Departamento de Polícia, chamou o tenente Doolan e disse:

— Alô. Tenente Doolan?... Estou falando da parte da srta. Lee Wilshire. Ela está no apartamento de Bernie Despain, na rua Link, 1666. Parece que ele desapareceu de re­pente ontem à noite, deixando algumas notas promissórias de Taylor Henry pra trás... Correto, e ela diz que ouviu ele ameaçar Taylor uns dois dias atrás... Sim, e ela quer falar com você o mais breve possível... Não, é melhor você vir ou mandar buscar ela o mais depressa possível... Sim... Isso não faz muita diferença. Você não me conhece. Estou só falando em nome dela porque ela não queria telefonar do apartamento dele...

Ficou à escuta por mais um instante, e depois, sem mais nada dizer, pôs o telefone no gancho e saiu da mercearia.

Ned Beaumont dirigiu-se a uma bonita casa de tijolos aparentes, numa fila de bonitas casas de tijolos aparentes, no alto da rua Tâmisa. A porta foi aberta, quando ele tocou a campainha, por uma jovem negra que sorria com todo o rosto pardo.

Como vai, sr. Beaumont?

E fez do ato de abrir a porta um caloroso convite.

Ned Beaumont disse:

Olá, June. Tem alguém em casa?

Sim, senhor, estão na mesa almoçando.

Ele se encaminhou para a sala de jantar, nos fundos, onde Paul Madvig e a mãe sentavam-se um em frente ao outro numa mesa de toalha vermelha e branca. Havia uma terceira cadeira, mas não estava ocupada, e o prato e prataria no lugar não haviam sido usados.

A mãe de Paul Madvig era uma mulher alta e magra, cujos cabelos loiros haviam desbotado, mas sem ficar inteira­mente brancos, aos setenta e tantos anos. Os olhos eram tão azuis, límpidos e jovens quanto os do filho — e mais jovens ainda quando ela ergueu o olhar para Ned Beaumont que entrava na sala. Aprofundou as rugas da testa, porém, e disse:

Então aí está você finalmente. É um garoto impres­tável, esquecendo uma velha desse jeito.

Ned Beaumont deu um sorrisozinho leviano.

Ora, mãe, já sou um garoto crescido, e tenho de cuidar de meu serviço. Acenou levemente para Madvig. Olá, Paul.

Madvig disse:

Senta aí, que June vai trazer alguma coisa pra você comer.

Ned Beaumont curvava-se para beijar a mão enrugada que a sra. Madvig lhe estendia. Ela recolheu-a e armou-lhe uma carranca.

Onde foi que você aprendeu esses truques?

Eu disse a você que estava ficando crescido. Ele se dirigiu a Madvig: Obrigado, faz só alguns minutos que tomei o café da manhã. Olhou a cadeira vazia. Onde está Opal?

A sra. Madvig respondeu:

Está deitada. Não está se sentindo bem.

Ned Beaumont balançou a cabeça, esperou um momento e perguntou delicadamente:

Nada sério?

Madvig balançou a cabeça.

Dor de cabeça ou alguma coisa assim. Acho que a menina dança demais.

A sra. Madvig disse:

Você sem dúvida é um ótimo pai, nem sabe quando a filha tem dores de cabeça.

A pele em torno dos olhos de Madvig enrugou-se.

Ora, mãe, não seja inconveniente disse, e voltou-se para Ned Beaumont. Qual é a boa-nova?

Ned Beaumont passou por trás da sra. Madvig e se dirigiu à cadeira vazia. Sentou e disse:

Bernie Despain deu o fora ontem de noite com o di­nheiro que ganhei com Peggy OToole.

O loiro arregalou os olhos.

Ned Beaumont continuou:

Ele deixou atrás mil e duzentos dólares em notas promissórias de Taylor Henry.

Os olhos do loiro se estreitaram repentinamente.

Ned Beaumont disse:

Diz Lee que ele chamou Taylor sexta-feira e deu a ele três dias pra acertar as contas.

Madvig tocou o queixo com as costas da mão.

Quem é Lee?

A garota de Bernie.

Oh. — Depois, como Ned Beaumont nada dizia, Madvig perguntou: — Que foi que ele disse que fazia se Taylor não aparecesse?

Eu não soube. — Ned Beaumont pôs um antebraço na mesa e curvou-se sobre ele para o loiro. — Me faça sub-xerife ou alguma coisa assim, Paul.

Pelo amor de Deus! — exclamou Madvig, piscando. — Por que quer uma coisa dessas?

Vai facilitar pra mim. Vou atrás desse cara, e um distintivo pode evitar que eu me meta em encrenca.

Madvig fitou com olhos preocupados o homem mais jovem.

O que está pressionando você tanto assim? — pergun­tou devagar.

Três mil duzentos e cinqüenta dólares.

Está bem — disse Madvig, ainda falando devagar —, mas alguma coisa já inquietava você ontem de noite, antes de saber que tinham lhe passado o calote.

Ned Beaumont moveu um braço, impaciente.

Você espera que eu tropece em cadáveres sem piscar um olho? — perguntou. — Mas esqueça isso. Não importa agora. O que importa é que preciso apanhar esse cara. Tenho de apanhar. — Tinha o rosto pálido, endurecido, e a voz desesperadamente séria. — Escute, Paul: hão é só o dinheiro, embora três mil e duzentos sejam um bocado, mas seria o mesmo se fossem cinco mangos. Eu passo dois meses sem ganhar uma aposta, e isso me chateia. Pra que sirvo, se minha sorte foi embora? Aí eu faturo, ou acho que faturo, e fico bem de novo. Posso tirar o rabo do meio das pernas e sentir que sou uma pessoa novamente, e não uma coisa que anda levando pontapés por aí. O dinheiro é muito importante, mas não é o essencial. Esse negócio de perder, perder e perder me deixa assim. Entende isso? Está me deixando fulo. E aí, quando acho que cansei o azar, esse cara dá uma dessas em cima de mim. Não posso suportar. Se suportar, estou frito, minha co­ragem me abandonou. Não vou tolerar. Vou atrás dele. Vou de qualquer jeito, mas você pode amaciar um bocado o ca­minho me arrumando isso.

Madvig estendeu uma mãozona aberta e empurrou delicadamente o rosto contraído de Ned Beaumont.

Ora, diabos, Ned! É claro que arrumo. O único pro­blema é que não quero você metido em coisas, mas... dia­bos!... se é desse jeito... acho que o melhor seria tornar você investigador especial do gabinete do Promotor Distrital. As­sim você fica sob o comando de Farr, e ele não mete o nariz.

A sra. Madvig levantou-se com um prato em cada mão.

Se não fosse uma regra minha não me meter nos assuntos dos homens disse severamente —, eu certamente teria alguma coisa a dizer a vocês dois, correndo por aí com Deus sabe que espécie de negócios escusos, que podem meter vocês sabe Deus em que tipo de encrenca.

Ned Beaumont deu um sorrisinho até que ela deixou a sala com os pratos. Depois parou de rir e disse:

Quer arrumar isso agora, pra que hoje de tarde esteja tudo pronto?

Claro concordou Madvig, levantando-se. Vou telefonar pra Farr. E se tiver mais alguma coisa que eu possa fazer, você sabe.

Ned Beaumont disse: Claro e Madvig saiu.

Jung entrou e começou a tirar a mesa.

A srta. Opal está dormindo? perguntou Ned Beau­mont.

Não, senhor, ac-ibo de levar chá e torradas pra ela.

Vá perguntar a ela se posso aparecer por um minuto.

Sim, senhor, claro que vou, sim.

Depois que a negra saiu, Ned Beaumont levantou-se da mesa e começou a andar de um lado para outro da sala. Manchas rubras aqueciam-lhe as faces logo abaixo dos pômulos. Parou de andar quando Madvig entrou.

Tudo certo disse Madvig. Se Farr não esiver lá, fale com Barbero. Ele arruma você, e você não precisa dizer nada a ele.

Ned Beaumont disse: Obrigado e olhou a mulata na entrada.

Ela disse:

Ela pediu pra subir.

 

O quarto de Opal Madvig era quase todo azul. Ela, metida num roupão azul e prata, recostava-se nos travesseiros da cama quando Ned Beaumont entrou. Tinha os olhos azuis como o pai e a avó, ossos compridos como os deles, e uma pele rosada de textura ainda infantil. Seus olhos estavam vermelhos.

Ela largou um pedaço de torrada na bandeja em seu colo, estendeu a mão para Ned Beaumont, mostrou-lhe uns dentes fortes num sorriso e disse:

Olá, Ned.

Não tinha a voz firme.

Ele não pegou a mão dela. Bateu de leve nas costas da mão, dizendo:

Olá, pequena. — E sentou-se no pé da cama. Cruzou as pernas compridas e tirou um charuto do bolso. — A fu­maça incomoda a cabeça?

Oh, não — disse.

Ele assentiu, como para si mesmo, tornou a pôr o charuto no bolso e abandonou o seu ar despreocupado. Virou-se na cama para olhá-la mais diretamente. Tinha os olhos úmidos de simpatia, e a voz rouca.

Eu sei, garota, é duro.

Ela o olhava fixamente, com olhos de bebê.

Não, na verdade grande parte da dor de cabeça já passou, e de qualquer forma não era tão terrível assim. — A voz não estava mais insegura.

Ele sorriu para ela com os lábios finos e perguntou:

Quer dizer então que eu sou um estranho agora?

Ela armou uma pequena ruga entre as sobrancelhas.

Não sei do que você está falando, Ned.

Com a boca e os olhos duros ele respondeu:

Estou falando de Taylor.

Embora a bandeja se mexesse um pouco nos joelhos dela, nada em seu rosto mudou.

É, mas... você sabe... eu não via ele há meses, desde que papai fez...

Ned Beaumont levantou-se abruptamente. Disse:

Está bem — por cima dos ombros, adiantando-se para a porta.

A garota na cama não disse coisa alguma.

Ele saiu do quarto e desceu a escada.

Paul Madvig, vestindo o casaco no saguão embaixo, disse:

Tenho de ir ao escritório para ver aqueles contratos de esgotos. Deixo você no gabinete de Farr, se quiser.

Ned Beaumont já tinha dito: — Ótimo — quando a voz de Opal chegou até eles, lá de cima.

Ned, oh, Ned!

Já vou indo! ele respondeu gritando, e depois, para Madvig: Não espere, se está com pressa.

Madvig olhou o relógio.

Tenho de correr. Vejo você no Club hoje de noite.

Ned Beaumont disse: Hum-hum e tornou a subir a escada.

Opal empurrara a bandeja para o pé da cama.

Feche a porta. Depois que ele fechou, ela se afas­tou na cama para lhe dar lugar, para que se sentasse a seu lado. Depois perguntou: Por que está agindo desse jeito?

Não deve mentir pra mim disse gravemente, sen­tando-se.

Mas, Ned! Os olhos azuis dela tentavam sondar os negros dele.

Ele perguntou:

Quanto tempo faz que viu Taylor?

Você quer dizer falar com ele? O rosto e a voz dela eram francos. Faz semanas e...

Ele se levantou abruptamente. Disse: Está certo por sobre o ombro, encaminhando-se para a porta.

Ela deixou que ele chegasse a um passo da porta antes de chamar:

Oh, Ned, não torne a coisa tão difícil pra mim.

Ele se virou lentamente, o rosto sem expressão.

Não somos amigos? ela perguntou.

Claro respondeu prontamente, sem entusiasmo. Mas é difícil lembrar isso quando a gente mente pro outro.

Ela se virou de lado na cama, repousando a face no travesseiro de cima, e começou a chorar. Não emitia som algum. As lágrimas caíam no travesseiro e formavam uma mancha acinzentada.

Ned voltou à cama, tornou a sentar-se ao lado dela e puxou-lhe a cabeça do travesseiro para o seu ombro.

Opal ficou chorando ali por vários minutos. Depois, co­meçou a dizer palavras abafadas contra o paletó dele:

Vo-você sabia que eu estava me encontrando com ele?

Sabia.

Ela se endireitou, alarmada.

Papai sabia?

Não creio. Não sei.

Ela baixou a cabeça no ombro dele, e suas palavras seguintes foram abafadas:

Oh, Ned, estive com ele ontem de tarde, a tarde toda!

Ele apertou os braços em torno dela, mas nada disse.

Após outra pausa, ela perguntou:

Quem... quem você acha que pode ter feito aquilo com ele?

Ele piscou.

Ela ergueu a cabeça de repente. Já não havia fraqueza nela agora.

Você sabe, Ned?

Ele hesitou, umedeceu os lábios, murmurou:

Acho que sei.

Quem foi? — ela perguntou ferozmente.

Ele tornou a hesitar, evitando os olhos dela, e depois fez-lhe uma pergunta, vagarosamente:

Promete guardar pra si mesma até chegar a hora?

Prometo — se apressou a responder, mas quando ele ia falar ela o deteve, agarrando o ombro mais próximo com ambas as mãos. — Espere. Não prometo se você não me pro­meter que eles não escaparão, que serão apanhados e puni­dos.

Não posso prometer isso. Ninguém pode.

Ela o encarou, mordendo o lábio, e disse:

Está bem então, eu prometo de qualquer forma. Quem foi?

Ele algum dia lhe disse que devia a um jogador cha­mado Despain mais dinheiro do que podia pagar?

Esse... esse Despain...?

Eu penso que sim, mas algum dia ele lhe falou al­guma coisa sobre a dívida... ?

Eu sabia que ele estava numa encrenca. Ele me disse isso, mas não disse o que era, a não ser que ele e o pai tinham tido uma briga por causa de um certo dinheiro, e que estava... "desesperado", foi o que disse.

Mencionou Despain?

Não. Que foi? Por que acha que esse tal Despain fez isso?

Ele estava com mais de mil dólares em notas promis­sórias de Taylor e não podia resgatar. Deixou a cidade às pressas ontem de noite. A polícia está à procura dele agora. Baixou a voz, olhando um pouco enviesado para ela. Você faria uma coisa pra ajudar a prender e condenar esse cara?

Faria. O quê?

Me refiro a uma coisa meio baixa. Sabe, vai ser duro condenar ele, mas, se for culpado, você faria alguma coisa que pudesse ser meio... bem... feia... pra garantir que ele fosse grampeado?

Qualquer coisa respondeu.

Ele deu um suspiro e esfregou os lábios.

Que é que você quer que eu faça? ela perguntou ansiosa.

Quero que me consiga um dos chapéus dele.

Quê?

Preciso de um dos chapéus de Taylor disse Ned Beaumont. Tinha o rosto corado. Pode me conseguir um?

Ela estava pasma.

Mas pra quê, Ned?

Pra garantir que Despain será grampeado. É só o que posso" dizer a você no momento. Pode me arranjar ou não?

Eu... eu acho que posso, mas gostaria que você...

Quando?

Hoje de tarde, acho ela disse —, mas gostaria...

Ele tornou a interrompê-la.

Você não precisa saber nada a respeito. Quanto me­nos souberem, melhor, e o mesmo se aplica à obtenção do chapéu por você. Passou o braço em volta dela e puxou-a para si. Você amava realmente ele, pequena, ou era só porque seu pai...

Eu realmente amava ele ela soluçou. Tenho toda certeza... tenho certeza de que amava.

O Truque do Chapéu

 

Ned Beaumont, usando um chapéu que não lhe assentava bem, seguiu o carregador que levava suas malas pelo Termi­nal Grand Central em direção a uma saída para a rua Qua­renta e Dois, e dali para um táxi marrom. Deu uma gorjeta ao carregador, subiu no táxi, deu ao motorista o nome de um hotel nos arredores da Broadway, na Quadra dos Quarenta, e recostou-se acendendo um charuto. Mascava mais que fu­mava o charuto, enquanto o táxi se arrastava através do trá­fego que se dirigia aos teatros, em direção à Broadway.

Na avenida Madison, um táxi verde dobrando com o sinal fechado, bateu de cheio no marrom de Ned Beaumont, jogando-o contra um carro estacionado no meio-fio, que o fez cair para um canto, debaixo de uma chuva de estilhaços de vidro.

Ele se aprumou e saiu no meio da multidão que se acotovelava. Disse que não estava ferido. Respondeu às perguntas de um policial. Encontrou o chapéu que não era exatamente de seu número e o pôs na cabeça. Mandou transferir suas malas para outro táxi, deu o nome do hotel ao segundo motorista e encolheu-se num canto, pálido e trêmulo enquanto durou o resto da corrida.

Depois de registrar-se no hotel, pediu sua correspondên­cia e deram-lhe dois recados telefônicos e dois envelopes la­crados, sem selos do correio.

Ele pediu ao boy que o levou ao seu quarto que lhe arran­jasse um quartilho de uísque. Quando o rapaz se foi, girou a chave na fechadura e leu os recados telefônicos. Ambos esta­vam datados daquele dia, um das 4,50 da tarde, outro das 8,5 da noite. Ele olhou o relógio de pulso. Eram 8,45 da noite.

O primeiro recado dizia: No Gargoyle. O último dizia: No Tom & Jerry's. Telefono depois. Ambos estavam assina­dos: Jack.

Ele abriu um dos envelopes. Continha duas folhas de papel cobertas com uma vigorosa letra masculina, datadas do dia anterior.

Ela está hospedada no Matin, quarto 1211, registrada como Elleen Dale, de Chicago. Deu alguns telefonemas do depósito, e contatou um homem e uma moça que moram na 30 L. Foram a um monte de lugares, em sua maioria bares clandestinos, provavelmente à procura dele, mas não parecem ter tido muita sorte. Meu quarto é o 734. O homem e a moça chamam-se Brook.

A folha de papel no outro envelope, coberta com a mesma letra, era datada daquele dia.

Vi Deward hoje de manhã, mas ele disse que não sabia se Bernie estava na cidade. Telefono mais tarde.

Ambas as mensagens estavam assinadas: Jack.

Ned Beaumont lavou-se, pôs nova roupa de baixo tirada das malas, e acendia um charuto quando o boy lhe trouxe seu quartilho de uísque. Ele pagou, pegou uma coqueteleira no banheiro e puxou uma poltrona para perto da janela do quarto. Ficou ali sentado, fumando, bebendo e fitando o outro lado da rua, até que o telefone tocou.

— Alô? — disse. — Sim, Jack... Ainda agora... Onde? Claro... Claro, estou a caminho.

Tomou outra dose de uísque, pôs o chapéu que não era exatamente do seu número, pegou o casaco que tinha jogado sobre o encosto de uma poltrona, vestiu-o, bateu num dos bolsos, apagou a luz e saiu.

Eram nove e dez.

 

Passando por uma dupla porta envernizada, sob um anúncio elétrico que dizia Tom & Jerry's, na frente do térreo de um prédio que ficava à vista da Broadway, Ned Beaumont entrou num corredor estreito. Uma porta de uma só folha, de vaivém, na parede esquerda do corredor, que dava para um pequeno restaurante.

Um homem numa mesa de canto levantou-se e ergueu um indicador para ele. Era de estatura média, jovem e ele­gante, com um rosto magro e moreno.

Ned Beaumont caminhou até ele.

Olá, Jack — disse, ao apertarem-se as mãos.

Estão lá em cima, a garota e os tais Brook — disse-lhe Jack. — Aqui você deve ficar numa boa posição, sentado de costas pra escada. Eu localizo eles se saírem, ou se ele entrar, e tem muita gente no meio pra impedir que ele veja você.

Ned Beaumont sentou-se à mesa de Jack.

Estão"esperando por ele?

Jack moveu os ombros.

Não sei, mas estão de tocaia, pra alguma coisa. Quer alguma coisa pra comer? Não se arranja nada pra beber aqui embaixo.

Ned Beaumont disse:

Eu quero uma bebida. Não podemos arranjar um lugar lá em cima onde eles não vejam a gente?

Não é um estabelecimento muito grande — afirmou Jack. — Tem uns dois reservados lá em cima onde a gente podia ficar escondido deles, mas se ele aparecer, é provável que veja a gente.

Vamos arriscar. Eu quero uma bebida e tanto faz falar com ele aqui mesmo, se ele aparecer.

Jack olhou curiosamente para Ned Beaumont, depois desviou os olhos e disse:

Você é quem manda. Vou ver se um dos reservados está vazio. — Hesitou, moveu os ombros de novo e deixou a mesa.

Ned Beaumont virou-se na cadeira para observar o jovem elegante ir até a escada e subir. Ficou olhando o pé da escada até que o jovem voltou. Do segundo degrau, Jack chamou-o. Quando Ned Beaumont o alcançou, ele disse:

O melhor deles está vazio, e ela está de costas, de modo que você pode dar uma olhada de lado pros Brook ao passar.

Subiram. Os reservados mesas e bancos dentro de anteparos de madeira à altura do peito ficavam à direita do alto da escada. Eles tinham de se virar e olhar através de um largo arco e além do bar para ter uma visão do restaurante do segundo andar.

Ned Beaumont olhou bem para as costas de Lee Wilshire, que usava um vestido castanho-claro decotado e um chapéu marrom. O casaco de peles marrom pendia do encosto da cadeira. Ele olhou os companheiros dela. À esquerda, sentava-se um sujeito pálido, de nariz adunco e queixo comprido, um animal predatório de uns quarenta anos. Na frente dela, uma garota carnuda e ruiva, de olhos bastante separados, que ria.

Ned Beaumont acompanhou Jack até o reservado. Senta­ram-se em lados opostos da mesa. Ned Beaumont dava as costas para o restaurante, perto da ponta do banco, para aproveitar inteiramente a amurada de madeira. Tirou o cha­péu, mas não o casaco.

Veio um garçom. Ned Beaumont disse:

Uísque.

Jack disse:

Rickey.

Jack abriu um maço de cigarros, tirou um e, olhando-o, disse:

O jogo é seu, e estou trabalhando pra você, mas isso aqui não é um lugar lá muito bom pra enfrentar ele, se ele tiver amigos por aqui.

Tem?

Jack pôs o cigarro no canto da boca, fazendo-o mover-se como um bastão quando falava.

Se eles estão esperando por ele aqui, é que pode ser um dos redutos dele.

O garçom aproximou-se com as bebidas. Ned Beaumont esvaziou o seu copo imediatamente e queixou-se:

Não deu pra nada.

É, acho que sim disse Jack, e tomou um gole do seu copo. Acendeu o cigarro e tomou outro gole.

Bem disse Ned Beaumont —, vou partir pra cima dele assim que ele dê as caras.

Muito justo. — O rosto bonito e moreno de Jack nada demonstrava. — E eu, que faço?

Ned Beaumont disse:

Deixe comigo — e chamou o garçom.

Pediu um scotch duplo, e Jack outro rickey. Ned Beau­mont esvaziou o seu copo assim que ele chegou. Jack deixou que levassem sua primeira dose pela metade e bebericou da segunda. Ned Beaumont acabou tomando outro scotch duplo e mais outro, não dando a Jack tempo de acabar nenhuma de suas doses.

E então Bernie Despain surgiu subindo a escada.

Jack, olhando o alto da escada, viu o jogador e pisou o pé do companheiro por baixo da mesa. Ned Beaumont, erguendo o olhar de seu copo vazio, tornou-se subitamente duro e frio nos olhos. Espalmou a mão sobre a mesa e levantou-se. Saiu do reservado e postou-se diante de Despain. Disse:

Quero meu dinheiro, Bernie.

O homem que subia atrás de Despain contornou-o e golpeou com muita força o corpo de Ned Beaumont com o punho esquerdo. Não era um homem alto, mas tinha os ombros maciços e os punhos pareciam globos enormes.

Ned Beaumont foi jogado para trás, contra a divisória do reservado. Curvou-se para a frente e seus joelhos cederam, mas ele não caiu. Vacilou ali por um instante. Tinha os olhos vidrados e a pele assumira uma coloração esverdeada. Disse alguma coisa que ninguém poderia entender e dirigiu-se ao alto da escada.

Desceu a escada, com as pernas bambas, pálido e sem chapéu. Atravessou o restaurante de baixo, chegou à rua e ao meio-fio, onde vomitou. Depois disso, encaminhou-se para um táxi que estava parado a uns cinco metros, entrou nele e deu ao chofer um endereço em Greenwich Village.

 

Ned Beaumont saltou do táxi na frente de uma casa cujo porão, com a porta aberta embaixo de uns degraus marrom, despejava na rua escura barulho e luz. Passou pela entrada e achou-se numa sala estreita, onde dois barmen de paletó branco serviam a uma dúzia de homens e mulheres, e dois garçons se movimentavam entre mesas às quais se sentavam os clientes.

O barman mais calvo disse:

Deus do céu, Ned!

Largou uma mistura cor-de-rosa que estava batendo num copo comprido e estendeu a mão molhada por cima do balcão.

Ned Beaumont disse:

Olá, Mack e apertou a mão molhada.

Um dos garçons aproximou-se para apertar a mão de Ned Beaumont, e depois um italiano redondo e corado, a quem Ned Beaumont chamou de Tony. Quando acabaram esses cumprimentos, Ned Beaumont disse que pagaria uma bebida.

Pagar uma ova disse Tony. Voltou-se para o balcão e raspou-o com um copo de coquetel vazio. Esse cara não paga nem um copo d'água esta noite disse, quando conseguiu atrair a atenção dos barmen. O que ele quiser, é por conta da casa.

Ned Beaumont disse:

Tudo bem pra mim, contanto que eu peça. Um scotch duplo.

Duas garotas sentadas a uma mesa na outra extremidade dobalcão levantaram-se e gritaram:

Ora viva, Ned!

Ele disse a Tony:

Volto num minuto e foi até a mesa das garotas.

Elas o abraçaram, fizeram-lhe perguntas, apresentaram-no aos homens que as acompanhavam e abriram lugar para ele à mesa.

Ele se sentou e respondeu às perguntas, dizendo que vol­tara a Nova Iorque apenas para uma breve visita, e não para ficar, e que aquilo era um scotch duplo.

Pouco mais das três horas da manhã, levantaram-se da mesa, deixaram o estabelecimento de Tony e foram para outro quase exatamente igual, a três quadras de distância, onde se sentaram a uma mesa que dificilmente poderia se diferenciar da primeira e beberam a mesma bebida que bebiam antes.

Um dos homens saiu às três e meia. Não se despediu dos outros, nem eles dele. Dez minutos depois, Ned Beaumont, o outro homem e as duas garotas saíram. Entraram num táxi na esquina e foram para um hotel perto da praça Washington, onde o outro homem e uma das garotas saltaram.

A garota restante levou Ned Beaumont, que a chamava de Fedink, para um apartamento na rua Setenta e Três. O apartamento estava muito abafado. Quando abriram a porta, receberam uma baforada de ar quente. Depois de dar três passos pela sala de estar adentro, ela suspirou e caiu no chão.

Ned Beaumont fechou a porta e tentou despertá-la, mas não conseguiu. Com dificuldade, carregou-a, arrastando-a para o quarto ao lado e a pôs numa cama coberta de chita. Tirou parte das roupas dela, encontrou alguns cobertores para cobri-la e abriu uma janela. Depois foi ao banheiro e vomitou. Em seguida, retornou à sala de estar, deitou-se no sofá com roupa e tudo, e adormeceu.

 

Um telefone, tocando junto à sua cabeça, acordou-o. Ele abriu os olhos, pôs os pés no chão, virou de lado e olhou a sala em volta. Quando viu o telefone, fechou os olhos e relaxou.

O telefone continuava tocando. Ele gemeu, tornou a abrir os olhos e contorceu-se até libertar o braço esquerdo de debaixo do corpo. Levou o pulso para perto dos olhos e olhou o relógio, meio vesgo. O cristal do mecanismo se fora e os ponteiros haviam parado às doze para as doze.

Ned Beaumont contorceu-se de novo no sofá, até erguer-se sobre um dos cotovelos, segurando a cabeça com a mão esquerda. O telefone ainda tocava. As luzes estavam acesas. Por uma porta aberta ele via os pés de Fedink, debaixo das cobertas, na ponta da cama.

Tornou a gemer e sentou-se, passando os dedos por entre os cabelos desgrenhados e comprimindo as têmporas entre as palmas das mãos. Tinha os lábios secos e pardacentos. Passou a língua por eles e fez uma careta de repugnância. Depois levantou-se, tossindo um pouco, tirou as luvas e o casaco, jogou-os no sofá e entrou no banheiro.

Quando saiu, foi até a cama e olhou para Fedink. Ela dormia profundamente, de cara para baixo, um braço dentro de uma manga azul, dobrado sobre a cabeça. O telefone parara de tocar. Ele ajeitou a gravata e voltou à sala de estar.

Viu três cigarros Murad numa caixa aberta em cima da mesa entre duas poltronas. Pegou um dos cigarros, murmu­rou "Indiferente" sem humor, encontrou uma caixa de fósforos, acendeu o cigarro e foi até a cozinha. Espremeu o suco de três laranjas num copo comprido e bebeu-o. Fez café e tomou duas xícaras.

Quando saía da cozinha, Fedink perguntou numa voz dolorosamente chã:

Onde está Ted?

Seu único olho visível estava meio aberto.

Ned Beaumont aproximou-se dela:

Quem é Ted? perguntou.

Aquele cara com quem eu estava.

Você estava com alguém? Como vou saber?

Ela abriu a boca e emitiu um arroto desagradável ao fechá-la.

Que horas são?

Também não sei. Algum momento de um dia ainda claro.

Ela esfregou o rosto no travesseiro de chita e disse:

Acabei me mostrando uma dona legal mesmo, pro­metendo casar com ele ontem e deixando ele pra trazer o primeiro vagabundo que encontro pra casa comigo. Abriu e fechou a mão que tinha sobre a cabeça. Ou não estou em casa?

Bem, de qualquer modo você tinha a chave disse Ned Beaumont. Quer um suco de laranja e um café?

Não quero merda nenhuma, a não ser morrer. Quer ir embora, Ned, e nunca mais voltar?

Vai ser duro pra mim ele disse mal-humorado —, mas vou tentar.

Pôs o casaco e as luvas, tirou um gorro muito amassado de um dos bolsos do casaco, colocou-o na cabeça e deixou o apartamento.

 

Meia hora depois, Ned Beaumont batia na porta do quarto 734 de seu hotel. Afinal a voz de Jack, sonolenta, soou do outro lado.

Quem é?

Beaumont.

Oh sem entusiasmo —, tudo bem.

Jack abriu a porta e acendeu as luzes. Usava pijamas de bolinhas verdes. Estava descalço. Tinha os olhos embotados, o rosto vermelho de sono. Bocejou, assentiu com a cabeça e voltou para a cama, onde se estendeu de costas olhando para o teto. Depois perguntou, sem muito interesse:

Como está você esta manhã?

Ned Beaumont fechara a porta. Estava parado entre ela e a cama, olhando mal-humorado o homem deitado. Per­guntou:

Que aconteceu depois que eu fui embora?

Nada. — Jack tornou a bocejar. — Ou quer saber o que foi que eu fiz? — Não esperou uma resposta. — Saí e me plantei do outro lado da rua até eles saírem, Despain, a garota e o cara que acertou você saíram. Foram até o Buckman, na rua Quarenta e Oito. É onde Despain está escondido... apartamento 939... com o nome de Barton Dewey. Fiquei por ali até depois das três, e depois caí fora. Eles ainda estavam lá, a não ser que tivessem me passado a perna. — Acenou com a cabeça, ligeiramente, em direção a um canto do quarto. — Seu chapéu está na cadeira ali. Pensei que podia salvar ele pra você.

Ned Beaumont foi até a poltrona e pegou o chapéu que não era exatamente do seu número. Enfiou o gorro amassado no bolso do casaco e pôs o chapéu na cabeça.

Jack disse:

Tem um pouco de gim em cima da mesa, se você quiser uma dose.

Ned Beaumont disse:

Não, obrigado. Você tem uma arma?

Jack deixou de olhar para o teto. Sentou na cama, espreguiçou-se, bocejou pela terceira vez e perguntou:

Que imagina que vai fazer?

Sua voz não revelava nada além de uma cortês curio­sidade.

Vou ver Despain.

Jack encolhera os joelhos, cruzando as mãos em torno deles, e sentava-se um pouco curvado para a frente, fitando os pés da cama. Disse devagar:

Não acho que você deva, não neste momento.

Eu preciso, neste momento.

Sua voz fez com que Jack o olhasse. O rosto de Ned Beaumont estava num cinza-amarelado doentio. Os olhos turvos, cercados de olheiras, não se abriam o suficiente para mostrar as escleróticas. Os lábios pareciam secos e mais gros­sos que de hábito.

Passou a noite toda acordado? — perguntou Jack.

Dormi um pouco.

Bêbado?

Sim, mas e aquela arma?

Jack jogou as pernas para fora das cobertas e pôs os pés no chão.

Por que não dorme um pouco primeiro? Depois a gente pode ir atrás deles. Você não está em forma agora.

Ned Beaumont disse:

Eu vou agora.

Jack disse:

Está bem, mas está errado. Sabe que eles não são bebês, pra gente partir pra cima deles de pernas bambas. Eles não estão brincando.

Onde está a arma? — perguntou Ned Beaumont.

Jack levantou-se e começou a desabotoar o paletó do pijama.

Ned Beaumont disse:

Me dê a arma e volte pra cama. Eu vou.

Jack abotoou o botão que acabara de desabotoar e se meteu na cama.

A arma está na gaveta de cima. Tem mais balas também, se você quiser. — Virou-se de lado e fechou os olhos.

Ned Beaumont encontrou a arma, colocou-a no bolso traseiro da calça e disse:

Vejo você depois.

Apagou as luzes e saiu.

 

O Buckman era um prédio de apartamentos quadrado, amarelo, que ocupava a maior parte da quadra onde ficava. Dentro, Ned Beaumont disse que queria falar com o sr. Dewey. Quando lhe perguntaram o seu nome, respondeu: — Ned Beaumont.

Cinco minutos depois, deixava um elevador e caminhava num longo corredor, na direção de uma porta onde Bernie se achava parado.

Despain era um homenzinho baixo e musculoso, com uma cabeça grande demais para o corpo. E os cabelos com­pridos, fofos e ondulados exageravam ainda mais o tamanho da cabeça, até fazê-la parecer uma deformidade. O rosto moreno apresentava feições graúdas, com exceção dos olhos, e fortes vincos sulcavam-lhe a testa e desciam das narinas até abaixo da boca. Numa das faces, via-se uma cicatriz leve­mente avermelhada. O terno azul estava cuidadosamente pas­sado, e ele não usava jóias.

Parado na porta, sorrindo forçadamente, disse:

Bom dia, Ned.

Quero falar com você, Bernie.

Era o que eu achava. Assim que deram seu nome pelo telefone, eu disse pra mim mesmo: "Aposto que ele quer falar comigo".

Ned Beaumont nada disse. Tinha o rosto amarelo, repri­mido.

O sorriso de Despain alargou-se mais.

Bem, meu rapaz, não precisa ficar parado aí. Entre.

Pôs-se de lado.

A porta dava para um pequeno hall. Por uma porta mais à frente, que estava aberta, viam-se Lee Wilshire e o homem que batera em Ned Beaumont. Haviam parado de arrumar duas malas de viagem para olhá-lo.

Ele entrou.

Despain seguiu-o, fechou a porta do corredor e disse:

O "Garoto" é meio apressado, e quando você partiu pra mim daquele jeito, ele achou que você talvez estivesse procurando encrenca, sabe? Pintei o diabo com ele, e talvez se você falar com ele, ele até peça desculpas.

O Garoto disse alguma coisa num murmúrio a Lee Wil­shire, que fuzilava Ned Beaumont com os olhos. Ela deu uma risada má e respondeu:

É, um esportista até o fim.

Bernie Despain disse:

Pode ir entrando, sr. Beaumont. Já conhece o pes­soal, não conhece?

Ned Beaumont adiantou-se para dentro do quarto onde estavam Lee e o Garoto.

O Garoto perguntou:

Como vai a barriga?

Ned Beaumont não disse coisa alguma.

Bernie Despain exclamou:

Deus! Prum cara que diz que veio aqui conversar, você conversa menos que qualquer um.

Quero conversar com você disse Ned Beaumont. Precisamos ter toda essa gente em volta?

Eu preciso respondeu Despain. Você, não. Pode se livrar deles simplesmente saindo e indo cuidar de seus próprios negócios.

Tenho negócios aqui.

Correto, tinha alguma coisa sobre um dinheiro. Despain sorriu para o Garoto. Não tinha alguma coisa sobre um dinheiro, Garoto?

O Garoto estava agora na porta pela qual Ned Beaumont entrara no quarto.

Alguma coisa assim disse numa voz áspera —, mas esqueci o que era.

Ned Beaumont tirou o casaco e pendurou-o no encosto de uma espreguiçadeira marrom. Disse:

Não se trata de meus negócios desta vez. Estou... Me deixe ver. Tirou um papel do bolso interno do paletó, des­dobrou, olhou-o e disse: Estou aqui como investigador especial do gabinete do Promotor Distrital.

Por uma breve fração de segundo, o brilho nos olhos de Despain embotou-se, mas ele disse imediatamente:

Ora, se você não está subindo na vida! Da última vez que vi você, andava por aí quebrando galhos pra Paul.

Ned Beaumont tornou a dobrar o papel e a recolocá-lo no bolso.

Despain disse:

Bem, vá em frente, investigue alguma coisa pra nós... qualquer coisa... só pra mostrar à gente como é que se faz. — Sentou-se de frente para Ned Beaumont, balançando a cabeça grande demais. Não vai me dizer que fez todo esse caminho até Nova Iorque pra me perguntar sobre o assassinato de Taylor Henry?

É.

Isso é muito ruim. Eu podia ter poupado a viagem pra você. Acenou com uma mão para as malas no chão. Assim que Lee me contou do que se tratava, comecei a fazer as malas pra voltar e rir de sua arapuca.

Ned Beaumont recostou-se confortavelmente na pol­trona. Tinha uma mão às costas.

Se é uma arapuca, foi Lee quem armou. A polícia conseguiu a muamba com ela.

Foi — ela disse furiosa — quando tive de entregar porque você mandou eles lá, seu bastardo.

Despain disse:

Ho-ho, Lee é uma frangota burra, está certo, mas aquelas notas não significam nada. Elas...

Eu sou uma frangota burra, sou? — Lee gritou indig­nada. — Não vim até aqui pra avisar você, depois que você fugiu com toda peça fedorenta de...

É — Despain concordou brincando —, e vindo aqui você mostrou exatamente como é burra, porque trouxe esse cara direto pra mim.

Se é assim que você pensa, estou muito satisfeita por ter dado à polícia aquelas notas promissórias. Que acha disso?

Despain disse:

Vou lhe dizer exatamente o que penso disso depois que nossa visita for embora. — Voltou-se para Ned Beaumont. — Então o honesto Paul Madvig está deixando você soltar os cachorros em cima de mim, hem?

Ned Beaumont sorriu.

Ninguém armou nada contra você, Bernie, e sabe disso. Lee nos deu uma pista e o resto nós juntamos a ela.

Tem mais alguma coisa, além do que ela deu a vocês?

Muito.

Quê?

Ned Beaumont tornou a sorrir.

Tem um monte de coisas. Eu podia dizer a você, Bernie, que não gostaria de falar diante de uma multidão.

Despain disse:

Maluco!

O Garoto falou da porta a Despain em sua voz áspera:

Vamos chutar esse sapo pra fora da lata dele e ir andando.

Espere — disse Despain. Depois armou uma carranca e fez uma pergunta a Ned Beaumont: — Tem uma ordem de prisão contra mim?

Bem, eu não...

Sim ou não? — O humor fanfarrão de Despain se fora.

Ned Beaumont disse devagar:

Não que eu saiba.

Despain levantou-se e empurrou sua poltrona para trás.

Então vá dando o fora daqui e depressa, antes que eu deixe o Garoto tirar outra casquinha de você.

Ned Beaumont se levantou. Pegou seu casaco. Tirou o gorro do bolso do casaco e, segurando-o com uma mão, o casaco no outro braço, disse seriamente:

Você vai se arrepender.

Foi para a saída com toda dignidade. A áspera risada do Garoto e a aguda vaia de Lee o acompanharam.

 

Ao sair do Buckman, Ned Beaumont desceu a rua em passo apressado. Tinha os olhos reluzentes no rosto cansado, e os bigodes negros retorciam-se acima de um trêmulo sorriso.

Na primeira esquina, deu de cara com Jack. Perguntou:

Que está fazendo aqui?

Jack disse:

Ainda estou trabalhando pra você, até onde sei, e por isso vim pra cá, pra ver se podia encontrar alguma coisa pra fazer.

Ótimo. Arranje um táxi rápido pra gente. Eles estão fugindo.

É pra já e desceu a rua.

Ned Beaumont permaneceu na esquina. Dali podia ver as entradas da frente e lateral do Buckman.

Em pouco tempo Jack voltou num táxi. Ned Beaumont entrou, e disseram ao chofer onde estacionar.

Que foi que você fez com eles? perguntou Jack, quando pararam.

Umas coisas.

Oh.

Passaram-se dez minutos, e Jack, dizendo "Olhe", indi­cou com um dedo um táxi que encostava na porta lateral do Buckman.

O Garoto, carregando duas malas de viagem, deixou o prédio primeiro, e depois, quando já estava no táxi, Despain e a garota correram para juntar-se a ele. O táxi partiu a toda.

Jack curvou-se para a frente e disse ao chofer o que fazer. Correram atrás do outro táxi. Ziguezaguearam por ruas iluminadas pelo sol da manhã, entraram por um caminho tortuoso até chegarem finalmente a uma decaída mansão de pedras na rua Quarenta e Nove Oeste.

O táxi de Despain parou diante da casa, e mais uma vez o Garoto foi o primeiro do trio a saltar na calçada. Olhou rua acima e abaixo. Foi até a porta da frente e abriu-a. Depois voltou ao táxi. Despain e a garota saltaram literalmente e entraram apressados na casa. O Garoto seguiu-os com as bagagens.

Fique aqui com o táxi — disse Ned Beaumont a Jack.

Que vai fazer?

Tentar a sorte.

Jack balançou a cabeça.

Este é outro lugar não recomendado pra se procurar

encrenca — disse.

Ned Beaumont disse:

Se eu sair com Despain, você dá o fora. Pegue outro táxi e vá vigiar o Buckman. Se eu não sair, faça o que julgar melhor.

Abriu a porta do táxi e saltou. Tremia. Os olhos bri­lhavam. Ignorou alguma coisa que Jack se curvou para fora para dizer e atravessou correndo a rua até a casa na qual os dois homens e a garota haviam entrado.

Marchou direto para os degraus da frente e pôs a mão na maçaneta, que girou. A porta não estava trancada. Ele a empurrou, abrindo-a, e após examinar um escuro saguão entrou.

A porta bateu atrás dele, fechando-se, e um dos punhos do Garoto deu-lhe na cabeça um soco de raspão que lhe arrancou o gorro e o mandou voando contra a parede. Ele se abaixou um pouco, tonto, quase com um joelho no chão, e o outro punho do Garoto atingiu a parede acima de sua cabeça.

Ned Beaumont arreganhou os dentes e deu um soco nas virilhas do Garoto, um soco curto e duro que arrancou um rosnado do outro e o fez cair para trás, dando-lhe tempo de se refazer antes que o adversário pudesse vir em cima dele.

Um pouco mais além, no saguão, Bernie Despain encostava-se na parede, a boca escancarada e fina, os olhos estrei­tados reduzidos a pontos negros, dizendo repetidas vezes numa voz lenta:

Dê nele, Kid, dê nele...

Lee Wilshire não estava à vista.

Os dois socos seguintes do Garoto pegaram no peito de Ned Beaumont, esmagando-o contra a parede e fazendo-o tossir. O terceiro, que visava o seu rosto, ele evitou. Depois afastou o Garoto de si: forçou o antebraço contra a garganta dele, e o chutou na barriga. O Garoto rugiu furiosamente e veio com ambos os punhos, mas, Ned Beaumont teve tempo para enfiar a mão no bolso traseiro da calça e sacar a arma de Jack. Mas não teve tempo de fazer pontaria, e, com ela ainda apontada para baixo, puxou o gatilho e conseguiu atingir o Garoto na coxa direita. O outro berrou e caiu no chão do saguão. E ali ficou, olhando Ned Beaumont de baixo para cima, com olhos sanguinolentos e assustados.

Ned Beaumont recuou dele, pôs a mão esquerda no bolso da calça e falou a Bernie Despain:

Vamos comigo. Quero conversar com você.

Tinha no rosto uma sombria determinação.

Ouviu passos que corriam no andar acima, em algum ponto no fundo da casa uma porta se abriu, e vozes excitadas ecoaram no saguão, mas não apareceu ninguém.

Despain olhou por um longo instante para Ned Beau­mont, como se horrivelmente fascinado. Depois, sem uma palavra, passou por cima do homem caído no chão e saiu da casa na frente do outro. Ned Beaumont pôs o revólver no bolso do palfetó antes de descer os degraus para a rua, mas sem largá-lo.

Pra aquele táxi disse a Despain, indicando o carro, do qual Jack saía. Quando chegaram lá, ele disse ao chofer que os levasse a qualquer parte, "simplesmente por aí, até eu dizer a você aonde ir".

Já estavam em movimento quando Despain recuperou a voz.

Isto é um assalto. Vou lhe dar o que você quiser porque não quero ser morto, mas é simplesmente um assalto.

Ned Beaumont deu uma risada desagradável e balançou a cabeça.

Não esqueça que eu subi na vida e sou alguma coisa no gabinete do Promotor Distrital.

Mas não existe acusação contra mim. Não sou procu­rado. Você disse...

Estava gozando você, Bernie, por meus próprios mo­tivos. Você é procurado.

Porquê?

Por matar Taylor Henry.

Isso aí? Diabos, vou voltar e enfrentar isso. Que é que vocês têm contra mim? Eu tinha algumas notas promissórias dele, claro. E fugi na noite em que ele foi assassinado, certo. E apertei ele como o diabo porque ele não queria resgatar elas, certo. Que tipo de acusação é essa pra um advogado de primeira não rebater? Deus do céu, se eu deixei as notas numa hora qualquer antes das nove e meia... pra ficar com a his­tória de Lee... isso não mostra que eu não estava tentando receber naquela noite?

Não, e esse não é o único material que temos contra você.

É só o que podem ter — disse Despain, ansioso.

Ned Beaumont deu um sorriso de escárnio.

Errado, Bernie. Lembra que eu tinha um chapéu quando fui falar com você hoje de manhã?

Talvez. Acho que tinha.

Lembra que eu tirei um gorro do bolso do casaco e pus ele na cabeça?

Pasmo e temor começaram a surgir nos olhinhos do homem moreno.

Por Deus! E então? Onde quer chegar?

Quero chegar à prova. Lembra que o chapéu não assentava direito na minha cabeça?

A voz de Bernie Despain tornou-se rouca:

Não sei, Ned. Pelo amor de Deus, que quer dizer?

Quero dizer que não me assentava direito porque não era meu. Lembra que o chapéu que Taylor usava quando foi morto não foi encontrado?

Não sei. Não sei nada sobre ele.

Bem, o que estou tentando dizer é que o chapéu que eu usava hoje de manhã era de Taylor, e está agora plantado entre a almofada do assento e a do encosto daquela poltrona marrom no apartamento que você tinha no Buckman. Acha que isso, com o resto, seria bastante pra fazer você sentar na cadeira elétrica?

Despain teria gritado de terror, se Ned Beaumont não houvesse posto a mão em sua boca e rosnado em seu ouvido:

Calado!

O suor escorria pelo rosto moreno. Despain caiu sobre Ned Beaumont, agarrando as lapelas do casaco dele com as mãos e balbuciando:

Escute, não faça isso comigo, Ned. Pode ficar com todo centavo que eu lhe devo, cada centavo com juros, se não fizer isso. Eu nunca pensei em roubar você, Ned, por Deus. Só que fiquei duro e pensei em pegar a grana como um emprés­timo. Por Deus, Ned. Não tenho muita coisa agora, mas vou receber dinheiro pelas pedras de Lee que vou vender hoje, e dou sua grana, até o último centavo. Quanto era, Ned? Eu lhe dou tudo imediatamente, esta manhã mesmo.

Ned Beaumont empurrou o homem moreno para o lado no táxi e disse:

Eram três mil duzentos e cinqüenta dólares.

Três mil duzentos e cinqüenta dólares. Vai receber, até o último centavo, esta manhã mesmo, imediatamente. Despain olhou o relógio. Sim, senhor, neste minuto mesmo, assim que eu consiga chegar lá. O velho Stein vai estar em casa antes disso. Só diga que vai me soltar, Ned, pelos velhos tempos.

Ned Beaumont esfregou as mãos pensativamente.

Eu não posso, exatamente, soltar você. Não neste momento, quer dizer. Preciso me lembrar da ligação com o Promotor Distrital, e que você é procurado pra interrogatório. Assim, a única coisa que a gente pode resolver é o chapéu. Eis a minha proposta: me dê meu dinheiro, que dou um jeito de estar sozinho quando pegar o chapéu, e ninguém mais vai saber disso. De outro modo, dou um jeito pra que metade da polícia de Nova Iorque esteja comigo e... aí está. É pegar ou largar.

Oh, Deus! gemeu Bernie Despain. Diga a ele pra levar a gente à casa do velho Stein. Fica na...

 

Ao deixar o trem que o trouxera de volta de Nova Iorque, Ned Beaumont era um homem empertigado, alto e de olhos límpidos. Só o peito chato indicava alguma fraqueza em sua constituição. O rosto, na cor e nas linhas, parecia saudável, o passo longo e elástico. Subiu agilmente a escada de concreto que ligava a estação ao nível da rua, atravessou o salão de espera, acenou para um conhecido atrás do balcão de informações e saiu por uma das portas que davam para a rua.

Enquanto esperava na calçada que o carregador trou­xesse suas malas, comprou um jornal. Abriu-o quando já estava dentro do táxi, em direção à avenida Randall, com a bagagem. Leu uma meia coluna na primeira página:

SEGUNDO IRMÃO ASSASSINADO

Assassinado Francis F. West próximo ao local onde irmão também encontrou a morte

"Pela segunda vez em quinze dias a tragédia se abateu sobre a família West, da avenida N. Achland, 1342. Francis F. West, de trinta e um anos, foi morto a tiros na rua, a menos de uma quadra da esquina onde tinha visto o irmão Norman ser atropelado e morto por um caminhão que supostamente contrabandeava bebidas no mês passado.

"Francis West, que trabalhava como garçom no Café Rockaway, voltava do trabalho pouco depois da meia-noite, quando, segundo testemunhas da tragédia, foi alcançado por um carro em andamento, vindo da avenida Achland em alta velocidade. O carro encostou no meio-fio ao alcançar West, e diz-se que mais de uma dúzia de tiros foi disparada de dentro dele. West caiu com oito balas no corpo, morrendo antes que alguém pudesse chegar até ele. O carro dos assassinos, que segundo as testemunhas não parou, retomou imediatamente velocidade e desapareceu na esquina da rua Bowman. A polícia está tendo dificuldade para descobrir o carro, pois há descrições conflitantes fornecidas pelas testemunhas, nenhuma das quais afirma ter visto qualquer um dos homens dentro do automóvel.

"Boyd West, o irmão sobrevivente, que também presen­ciou a morte de Norman no mês passado, não pode encontrar motivos para o assassinato de Francis. Disse que não sabe de nenhum inimigo de seu irmão. A srta. Marie Shepperd, da avenida Baker, 1917, com quem Francis West ia se casar na próxima semana, foi igualmente incapaz de citar alguém que pudesse desejar a morte de seu noivo.

"Timothy Evans, suposto motorista do carro que atro­pelou e matou acidentalmente Norman West, no mês passado, recusou-se a falar com os repórteres em sua cela, na Prisão Municipal, onde está sendo mantido sem fiança, à espera de julgamento por homicídio culposo."

Ned Beaumont dobrou o jornal cuidadosamente e guar­dou-o num dos bolsos do casaco. Tinha os lábios meio fran­zidos e os olhos brilhantes, pensando. Fora isso, era um rosto sério. Reclinou-se num canto do táxi e ficou brincando com um charuto não aceso.

Em seu apartamento, dirigiu-se, sem parar para tirar o casaco, ao telefone e fez quatro chamadas, perguntando a cada vez se Paul Madvig estava e se sabiam onde poderia ser encontrado. Após o quarto telefonema, desistiu de tentar localizá-lo.

 

Largou o telefone, pegou o charuto onde o deixara, em cima da mesa, pegou o telefone e discou o número da prefei­tura. Pediu para falar com o gabinete do Promotor Distrital. Enquanto aguardava, puxou uma cadeira, com um pé, sen­tou-se e pôs o charuto na boca. Então disse ao telefone:

Alô. O sr. Farr está?... Ned Beaumont... Sim, obri­gado. Tragou e exalou a fumaça lentamente. Alô, Farr?... Cheguei há poucos minutos... Sim. Posso ver você


agora?... Certo. Paul lhe falou alguma coisa sobre o assas­sinato de West?... Não sei onde ele está, você sabe?... Bem, tem um ângulo do caso que eu gostaria de discutir com você... Sim, digamos meia hora... Certo.

Largou o telefone e atravessou a sala para ir examinar a correspondência na mesa perto da porta. Havia algumas revistas e nove cartas. Olhou rapidamente os envelopes, jogou-os de novo em cima da mesa sem abrir nenhum e foi ao quarto despir-se. Depois entrou no banheiro para barbear-se e tomar banho.

 

O Promotor Distrital Michael Joseph Farr era um homem robusto de quarenta anos. Cabelo escovinha, acima de um rosto rosado e obstinado. O tampo de sua mesa de nogueira estava vazio, a não ser por um telefone e um grande tinteiro de ônix verde, onde uma figura de metal nua, segurando um avião, erguia-se num pé só entre duas canetas-tinteiro preto e branco, inclinadas para os lados, em ângulos.

Ele apertou a mão de Ned Beaumont com as suas e mandou-o sentar numa poltrona de couro, antes de retornar a seu assento. Balançou-se para trás na cadeira e perguntou:

Fez uma boa viagem?

A curiosidade brilhava por trás da amistosidade em seus olhos.

Foi tudo bem — respondeu Ned Beaumont. — Sobre esse tal Francis West: com ele fora do caminho, como fica o caso contra Tim Ivans?

Farr teve um sobressalto, mas depois fez desse espanto parte de uma contorção deliberada para se ajeitar numa posi­ção mais confortável na cadeira.

Bem, não vai fazer muita diferença — disse. — Quer dizer, não muita, pois tem ainda o outro irmão pra depor contra Ivans. — Era óbvio que não encarava Ned Beaumont, mas olhava para uma quina da mesa de nogueira. — Por quê? Que é que você tem em mente?

Ned Beaumont olhava seriamente o homem que não o olhava.

Eu estava apenas imaginando. Mas suponho que es­teja tudo bem, se o outro irmão pode e quer identificar Tim.

Farr, ainda sem erguer o olhar, disse:

Claro. Balançou a cadeira para frente e para trás suavemente, uns poucos centímetros em cada sentido, meia dúzia de vezes. As faces carnudas moviam-se em pequenas ondas, nos pontos onde cobriam os músculos do maxilar. Pigarreou e levantou-se. Olhou para Ned Beaumont, agora com olhos amistosos. Espere um minuto disse. Tenho de ir ver uma coisa. Esquecem de tudo se não fico em cima deles. Não vá embora. Quero falar sobre Despain com você.

Ned Beaumont murmurou:

Não se apresse quando o Promotor Distrital deixou o escritório, e sentou-se e ficou fumando placidamente du­rante todos os quinze minutos que o outro ficou fora.

Farr retornou carrancudo.

Desculpe por deixar você desse jeito disse, sentando-se —, mas estamos atolados de trabalho. Se continuar assim... — Completou a frase fazendo um gesto de desamparo com as mãos.

Está tudo bem. Alguma novidade no assassinato de Taylor Henry?

Nada. Era isso que eu queria perguntar a você... sobre Despain. Também dessa vez Farr decididamente não olhava o rosto de Ned Beaumont.

Um leve sorriso de deboche, que o outro não podia ver, contorceu por um instante os cantos da boca de Ned Beaumont. Ele disse:

Não temos muita coisa contra ele quando olhamos o caso de perto.

Farr assentiu lentamente com a cabeça para a quina da mesa.

Talvez, mas deixar a maldita cidade na mesma noite não parece coisa muito boa.

Ele tinha outro motivo pra isso disse Ned Beau­mont. Um motivo muito bom. O sorriso fantasma apa­receu e desapareceu.

Farr tornou a assentir, como alguém que quer ser con­vencido.

Você não acha que há uma possibilidade de ele ter realmente matado Henry?

A resposta de Ned Beaumont foi dada com indiferença:

Não acho que foi ele, mas sempre existe uma possibi­lidade, e você tem o bastante pra segurar ele um pouco, se quiser.

O Promotor Distrital ergueu a cabeça e olhou para Ned Beaumont. Sorriu com um misto de retraimento e camara­dagem, e disse:

Me mande pro inferno se não for de minha conta, mas por que, em nome de Deus, Paul mandou você a Nova Iorque atrás de Bernie Despain?

Ned Beaumont conteve sua resposta por um momento. Depois deu de ombros um pouco e disse:

Ele não me mandou. Me deixou ir.

Farr não disse nada.

Ned Beaumont encheu os pulmões de fumaça de charuto, esvaziou-os e continuou:

Bernie embolsou uma aposta minha. Foi por isso que se mandou. Acontece que Taylor Henry foi assassinado na noite do dia em que Peggy O'Toole chegou na frente, com mil e quinhentos de meus dólares em cima dela.

O Promotor Distrital apressou-se a dizer:

Está tudo bem, Ned. Não é de minha conta o que você e Paul fazem. Eu... você sabe, é só que não estou tão certo de que Despain não se deparou por acaso com Henry na rua e deu uns trancos nele. Acho que talvez mantenha ele guardado uns tempos, por segurança. — A boca dura curvou-se num sorriso que era um tanto aliciante. — Não pense que estou enfiando o nariz nos assuntos de Paul, ou nos seus, mas... — O rosto rosado estava tenso e brilhante. Ele se curvou de repente e puxou uma gaveta, abrindo-a. Ouviu-se um ruído de papel sob seus dedos. Ele retirou a mão da gaveta e estendeu-a por cima da mesa em direção a Ned Beaumont. Nela havia um pequeno envelope branco com um canto cortado. — Aí, olhe. — Tinha a voz empastada. — Olhe isso e veja o que acha, ou se é uma maldita tolice.

Ned Beaumont recebeu o envelope mas não o olhou logo. Manteve os olhos, agora frios e reluzentes, focalizados no rosto vermelho do Promotor Distrital.

O rosto de Farr tornou-se vermelho-escuro sob o olhar fixo do outro homem, e ele ergueu uma mão carnuda num gesto de reconciliação.

Não dou nenhuma importância a isso, Ned, mas...

quer dizer, a gente sempre recebe um monte de lixo desse tipo em todo caso que aparece, e... bem, leia e veja.

Após outro considerável momento, Ned Beaumont trans­feriu o olhar de Farr para o envelope. O endereço estava datilografado:

Exmo. sr. M. J. Farr

Promotor Distrital Prefeitura

Centro Pessoal

O carimbo era datado do sábado anterior. Dentro, uma única folha de papel branco, com três frases, sem saudação nem assinatura, datilografadas:

"Por que Paul Madvig roubou um dos chapéus de Taylor Henry depois que ele foi assassinado?

Que aconteceu com o chapéu que Taylor Henry usava quando

foi assassinado?

Por que o homem que alegou ter sido o primeiro a encontrar o cadáver de Taylor foi feito membro de sua equipe?"

Ned Beaumont dobrou o comunicado, tornou a enfiá-lo no envelope, largou-o em cima da mesa e alisou o bigode do centro para a esquerda e da esquerda para o centro, com a unha do polegar, olhando o Promotor Distrital com olhos parados e falando-lhe num tom monótono:

Eentão?

As faces de Farr tornaram a enrugar-se nos pontos onde recobriam os músculos maxilares. Ele franziu a testa, acima dos olhos suplicantes.

Pelo amor de Deus, Ned disse, ansioso —, não pense que estou levando isso a sério. A gente recebe montes desse tipo de lixo toda vez que acontece alguma coisa. Eu só queria mostrar a você.

Ned Beaumont disse:

Tudo bem, enquanto você continuar pensando desse jeito. Ainda tinha os olhos e a voz inalterados. Falou alguma coisa a Paul sobre isso?

Sobre a carta? Não. Não vejo ele desde que a carta chegou, hoje de manhã.

Ned Beaumont pegou o envelope de cima da mesa e colo­cou-o no bolso interno do paletó. O Promotor Distrital, olhan­do a carta ser metida no bolso, pareceu pouco à vontade, mas não disse nada.

Depois de guardar a carta e retirar outro fino charuto mosqueado de outro bolso, Ned Beaumont disse:

Não creio que eu diria alguma coisa a ele sobre isso se fosse você. Ele já tem muita coisa em que pensar.

Farr já dizia: — Claro, o que você disser, Ned — antes de Ned Beaumont encerrar sua fala.

Após isso nenhum dos dois disse coisa alguma por algum tempo, durante o qual Farr voltou a olhar para a quina da mesa, e Ned Beaumont a encará-lo pensativamente. Esse período de silêncio foi quebrado por um zumbido que vinha de debaixo da mesa do Promotor Distrital.

Farr pegou o telefone e disse:

Sim... Sim. — Seu lábio pequeno avançou sobre o superior, e o rosto vermelho cobriu-se de manchas. — O diabo que não vai! — rosnou. — Traga o bastardo e ponha ele contra o outro, e aí, se ele não falar, vamos trabalhar um pouco nele... Sim. Faça isso. — Bateu o telefone no gancho e fuzilou Ned Beaumont com os olhos.

Ned Beaumont imobilizara-se no ato de acender seu cha­ruto, que estava numa mão, e o isqueiro, aceso, na outra. Inclinava um pouco o rosto para a frente, entre os dois. Seus olhos reluziam. Ele pôs a ponta da língua entre os lábios, recolheu-a e moveu os lábios num sorriso que nada tinha a ver com diversão.

Novidades? — perguntou, em voz baixa e persuasiva.

A voz do Promotor Distrital estava selvagem:

Boyd West, o outro irmão que identificou Ivans. Co­mecei a pensar nisso enquanto a gente conversava e mandei ver se ainda identificava. Ele diz que não tem certeza, o bas­tardo.

Ned Beaumont balançou a cabeça, como se tal notícia não fosse inesperada.

Onde isso deixa as coisas?

Ele não pode se safar assim — resmungou Farr. — Identificou o outro uma vez, e vai garantir isso quando chegar diante do júri. Vou mandar trazer ele agora, e quando acabar com ele, será um menino bonzinho.

NedBeaumont disse:

É? E se não for?

A mesa do Promotor Distrital estremeceu com um soco do punho dele.

Será!

Aparentemente, isso não impressionou Ned Beaumont. Ele acendeu seu charuto, apagou e guardou o isqueiro, soprou a fumaça e perguntou num tom levemente divertido:

Claro que será, mas suponha que não. Suponha que ele olhe pra Tim e diga: "Não tenho certeza de que é ele"?

Farr tornou a bater na mesa.

Ele não fará isso... não quando eu acabar com ele... não fará outra coisa senão se levantar diante do júri e dizer: "É ele".

O ar de divertimento desapareceu do rosto de Ned Beau­mont e ele falou meio cansado:

Ele vai recuar na identificação e você sabe disso. Bem, que é que você pode fazer? Não tem nada que possa fazer, tem? Isso significa que seu processo contra Tim Ivans foi pelos ares. Você encontrou o carro cheio de bebida onde ele deixou, mas a única prova que tem de que era ele quem estava difigindo quando atropelou Norman West era o teste­munho ocular dos dois irmãos. Bem, se Francis está morto e Boyd com medo de falar, você não tem acusação, e sabe disso.

Em voz alta e enfurecida, Farr começou a dizer:

Se acha que vou ficar aqui sentado em meu...

Mas com um gesto de impaciência da mão que segurava o charuto, Ned Beaumont interrompeu-o.

Sentado, de pé ou montado numa bicicleta disse —, você está frito, e sabe disso.

Estou? Sou o Promotor Distrital desta cidade e muni­cípio e... Abruptamente, parou de estourar. Pigarreou e engoliu em seco. Seus olhos perderam a agressividade, que foi substituída primeiro pela confusão, e depois por algo semelhante ao medo. Ele se curvou sobre a mesa, preocupado demais para impedir que a preocupação se mostrasse em seu rosto vermelho. Disse: É claro que você sabe que, se você... se Paul... quer dizer, se existe algum motivo pelo qual eu não deva... você sabe... a gente pode deixar pra lá.

O sorriso que nada tinha com diversão erguia de novo as pontas dos lábios de Ned Beaumont, cujos olhos brilhavam por trás da fumaça do charuto. Ele balançou devagar a cabeça e falou devagar, num tom desagradavelmente suave:

Não, Farr, nao existe nenhum motivo, ou nenhum desse tipo. Paul prometeu soltar Ivans depois da eleição, mas, acredite você ou não, Paul nunca mandou matar ninguém, e, mesmo que tenha mandado, Ivans não era suficientemente importante para que se mandasse matar ninguém por ele. Não, Farr, não existe nenhum motivo, e não me agradaria pensar que você vai ficar andando por aí pensando que existe.

Pelo amor de Deus, Ned, não me entenda errado — queixou-se Farr. — Você sabe muito bem que não tem nin­guém na cidade mais a favor de Paul e você do que eu. Deve saber disso. Eu não queria dizer nada disso, a não ser que... bem, que vocês podem sempre contar comigo.

Ned Beaumont disse: — Isso é ótimo — sem muito entu­siasmo, e levantou-se.

Farr levantou-se e rodeou a mesa com a mão vermelha estendida.

Qual é a pressa? — perguntou. — Por que não fica por aqui e vê como esse tal de West age quando trouxerem ele? Ou — olhou o relógio — que vai fazer hoje de noite? Que tal jantar comigo?

Sinto, não posso — respondeu Ned Beaumont. — Tenho de correr.

Deixou que Farr balançasse sua mão, murmurou um "Sim, farei isso", em resposta à insistência do Promotor Distrital em que ele aparecesse com freqüência e saíssem uma noite, e saiu.

 

Walter Ivans estava parado junto a uma fila de homens que operavam máquinas de bater pregos, na fábrica de caixas onde era empregado como capataz, quando Ned Beaumont entrou. Ele o viu imediatamente e, saudando-o com a mão erguida, desceu o corredor central, mas em seus olhos azuis e em seu branco rosto redondo havia, de algum modo, menos prazer do que ele parecia tentar expressar.

Ned Beaumont disse:

Olá, Walt. — E virando-se levemente para a porta, escapou da necessidade de falar ou ignorar ostensivamente a mão estendida do homem mais baixo. — Vamos sair desse barulho.

Ivans disse alguma coisa, que foi abafada pelo barulho de metal enterrando metal em madeira, e saíram pela porta aberta por onde Ned Beaumont entrara. Do lado de fora havia uma larga plataforma de madeira sólida. Um lance de escada descia uns seis metros até o chão.

Ficaram na plataforma e Ned Beaumont perguntou:

Sabe que uma das testemunhas contra o seu irmão foi morta ontem de noite?

S-sim, eu vi-vi no jor-jornal.

Ned Beaumont perguntou:

Sabe que a outra não tem certeza se pode identificar seu irmão?

Na-não, eu na-não sabia di-disso, Ned.

Sabe que se ele não identificar, Tim sai?

S-sim.

Ned Beaumont disse:

Você não parece tão satisfeito a esse respeito quanto devia estar.

Ivans enxugou a testa com a manga da camisa.

Mas-mas eu esto-tou, Ned, po-por Deus que esto­fou!

Você conhecia West? Aquele que foi assassinado.

Na-não, a na-não ser que eu fu-fui fa-falar com e-ele uma ve-vez, pra pe-pedir que alivi-viasse o la-lado de Ti-Tim.

Que foi que ele disse?

Na-não quis.

Quando foi isso?

Ivans mexeu os pés e enxugou o rosto na manga da camisa outra vez.

Do-dois ou tr-três di-dias atra-trás.

Ned Beaumont perguntou em voz baixa:

Tem alguma idéia de quem podia ter matado ele, Walt?

Ivans balançou a cabeça.

Por um momento, Ned Beaumont fitou pensativamente um ponto por cima do ombro de Ivans. O barulho das má­quinas de pregar saía pela porta a uns três metros de dis­tância, e de outro andar vinha o zumbir das serras. Ivans inspirou e expirou um longo trago de ar.

A expressão de Ned Beaumont se tornara simpática quando ele transferiu o olhar para os olhos azuis do homem mais baixo outra vez. Ele se curvou um pouco e perguntou:

Você está bem, Walt? Quer dizer, vai ter gente que vai pensar que talvez você tenha atirado em West pra salvar seu irmão. Você tem...?

E-eu esta-tava no clube ontem de-de no-noite, da-das oito até-té depois da-das du-duas da ma-manhã — respondeu Walter Ivans, tão rápido quanto sua gagueira permitia. — Harry Sloss e B-Ben Fer-ferris e Brager po-podem dizer isso a vo-você.

Ned Beaumont deu uma risada.

É muita sorte sua, Walt — disse alegremente.

Deu as costas ao outro e desceu os degraus de madeira até a rua. Não deu atenção ao "Até logo, Ned", muito amis­toso, de Walter Ivans.

 

Da fábrica de caixas Ned Beaumont andou quatro qua­dras até um restaurante e usou um telefone. Fez as quatro ligações que tinha feito antes, nesse mesmo dia, tornado a perguntar por Paul Madvig e, não o encontrando por telefone, deixou instruções para que Madvig o chamasse. Depois en­trou num táxi e foi para casa.

Havia mais cartas sobre as que já estavam na mesa junto à porta. Ele pendurou o chapéu e o casaco, acendeu um charuto e sentou com a correspondência na maior das pol­tronas de veludo vermelho. O quarto envelope que abriu era idêntico ao que o Promotor Distrital lhe havia mostrado. Continha uma única folha de papel trazendo três frases dati­lografadas, sem saudação ou assinatura:

"Você encontrou o cadáver de Taylor Henry depois que ele morreu ou estava presente quando ele foi assassinado?

Por que só comunicou a morte dele depois que a polícia já tinha descoberto o cadáver?

Acha que pode salvar os culpados fabricando provas contra os inocentes?"

Ned Beaumont revirou os olhos e franziu a testa lendo essa mensagem, e puxou muito mais fumaça de seu charuto. Comparou-a com a que o Promotor Distrital recebera. O papel e os tipos eram idênticos, como o era a forma como as três frases de cada papel se achavam dispostas e a hora nos selos.

De testa franzida, tornou a enfiar ambas em seus enve­lopes, mas apenas para tornar a retirá-las imediatamente e relê-las e reexaminá-las. Como fumava muito rápido, o cha­ruto ardeu irregularmente de um lado. Ele o pôs na borda da mesa ao lado com uma careta de repugnância e alisou o bigode com dedos nervosos. Guardou mais uma vez as men­sagens e recostou-se na poltrona, fitando o teto e mordendo uma unha. Passou os dedos pelos cabelos. Enfiou a ponta de um dedo entre o colarinho e o pescoço. Endireitou o corpo e tornou a tirar os envelopes do bolso, mas os guardou de volta sem olhar. Mordia o lábio inferior. Finalmente, sacudiu-se impacientemente e começou a ler o resto de sua correspondência. Estava lendo-a quando o telefone tocou.

Foi atender.

Alô... Oh, olá, Paul, onde está?... Quanto tempo vai ficar aí?... É, ótimo, dê um pulo aqui ao voltar... Certo, estarei aqui.

Retornou à leitura da correspondência.

 

Paul Madvig chegou ao apartamento de Ned Beaumont quando os sinos da igreja cinzenta do outro lado da rua batiam a hora do Angelus. Entrou dizendo animado.

Como vai, Ned? Quando voltou?

Tinha o corpanzil envolto num terno de tweed cinza.

No fim da manhã de hoje respondeu Ned Beau­mont, quando apertavam as mãos.

Conseguiu?

Ned Beaumont mostrou as bordas dos dentes, num sor­riso satisfeito.

Consegui o que fui buscar... tudo.

Isso é ótimo. — Madvig jogou o chapéu sobre uma poltrona e sentou em outra junto à lareira.

Ned Beaumont voltou à sua poltrona.

Aconteceu alguma coisa enquanto estive fora? — perguntou, pegando o copo de coquetel pela metade, ao lado da coqueteleira na mesa, junto do seu cotovelo.

Acertamos a confusão sobre o contrato de esgotos.

Ned Beaumont bebericou seu coquetel e perguntou:

Teve de fazer um corte muito grande?

Muito. Não vai ter nada como o lucro que ia ter, mas é melhor do que arriscar agitar as coisas tão perto da eleição. A gente compensa isso nas obras de rua do ano que vem, quando as extensões para Salem e Chestnut forem feitas.

Ned Beaumont concordou com a cabeça. Olhava os tor­nozelos estendidos e cruzados do loiro. Disse:

Não deve usar meias de seda com tweed.

Madvig ergueu uma perna para olhar o tornozelo.

Não? Eu gosto do contato da seda.

Então abandone os tweeds. Taylor Henry já foi enter­rado?

Sexta-feira.

Você foi ao funeral?

Fui — respondeu Madvig, e acrescentou, meio constrangido: — O senador sugeriu que eu fosse.

Ned Beaumont repôs o copo na mesa e tocou os lábios com um lenço branco tirado do bolso de cima do paletó.

Como vai o senador?

Olhou de lado para o loiro e não ocultou o divertimento em seus olhos.

Madvig respondeu, ainda meio constrangido:

Vai bem. Passei quase toda esta tarde lá em cima com ele.

Na casa dele?

Um-hum.

A ameaça loira estava lá?

Madvig não franziu exatamente a testa. Disse:

Janet estava lá.

Ned Beaumont, guardando o lenço, emitiu um som aba­fado na garganta e disse:

Huumm. Agora é Janet. Está conseguindo alguma coisa com ela?

Madvig recompôs o rosto. Disse numa voz chã:

Ainda acho que vou me casar com ela.

Ela sabe disso? Que suas intenções são honrosas?

Pelo amor de Deus, Ned! protestou Madvig. Por quanto tempo vai me manter no banco das testemunhas?

Ned Beaumont deu uma risada, pegou a coqueteleira de prata, sacudiu-a e serviu outra dose.

Que acha do assassinato de Francis West? pergun­tou, quando voltou a sentar com o copo na mão.

Madvig pareceu intrigado por um instante. Depois seu rosto se desanuviou e ele disse:

Oh, aquele cara que foi morto a tiros na avenida Achland ontem à noite.

Esse mesmo.

Um leve ar de intriga voltou aos olhos azuis de Madvig. Ele disse:

Bem, eu não conhecia ele.

Ned Beaumont disse:

Era uma das testemunhas contra o irmão de Walter Ivans. Agora a outra testemunha, Boyd West, está com medo de depor, e com isso a acusação cai.

Isso é ótimo — disse Madvig, mas quando a última palavra deixou seus lábios uma expressão de dúvida já se instalara nos olhos. Ele encolheu as pernas e se curvou para a frente. Está com medo? perguntou.

Estou, a menos que você prefira "apavorado".

O rosto de Madvig se endureceu, atento, e seus olhos se tornaram discos azuis endurecidos.

Onde está querendo chegar, Ned? perguntou, em voz quebradiça.

Ned Beaumont esvaziou seu copo e o recolocou na mesa.

Depois que você disse a Walt Ivans que não podia soltar Tim até depois da eleição, ele foi chorar suas mágoas junto a Shad O'Rory disse, com deliberada monotonia, como se recitasse uma lição. Shad mandou alguns dos gorilas dele assustar os dois Wests para que não testemu­nhassem contra Tim. Um deles não se assustou, e eles liqui­daram.

Madvig, de cara fechada, protestou:

Que diabos tem Shad com os problemas de Tim Ivans?

Estendendo a mão para pegar a coqueteleira, Ned Beau­mont disse, irritado:

Está bem, eu estava só imaginando. Esqueça.

Deixe disso, Ned. Você sabe que seus palpites são bastante bons pra mim. Se tem alguma coisa em mente, desembuche.

Ned Beaumont pôs a coqueteleira sem servir a dose e disse:

Pode ser só um palpite mesmo, Paul, mas é o que me parece. Todo mundo sabe que Walt Ivans andou trabalhando pra você no Terceiro Pavilhão, e é membro do Club e tudo, e que você faria o que pudesse pra tirar o irmão dele de uma encrenca se ele lhe pedisse. Bem, todo mundo, ou um bocado de gente, vai começar a se perguntar se você não mandou atirar e assustar as testemunhas contra o irmão dele, pra que ficassem caladas. Isso se aplica aos de fora, os clubes femi­ninos que você tanto teme hoje e os cidadãos respeitáveis. Os de dentro... os que, em sua maioria, não dariam a mínima se você tivesse feito isso... vão saber de alguma coisa parecida com a verdade. Vão saber que um de seus rapazes precisou recorrer a Shad, e que Shad deu um jeito. Bem, esse é o bu­raco que Shad meteu você... ou não acredita que ele iria tão longe pra meter você num buraco?

Madvig rosnou entredentes:

Sei muito bem que ele iria, o piolhento. — Olhava uma folha verde entretecida no tapete a seus pés.

Ned Beaumont, após olhar atentamente o loiro, prosse­guiu:

E a gente pode olhar por outro ângulo ainda. Talvez não aconteça, mas você estará com o flanco aberto pra isso se Shad quiser explorar.

Madvig ergueu o olhar para perguntar:

Qual?

Walt Ivans esteve no Club toda a noite de ontem, até duas da manhã de hoje. Isso significa mais três horas do que o tempo que ele já permaneceu algum dia no Club antes, a não ser em noites de eleição ou de banquete. Compreende? Estava criando um álibi pra si... no nosso Club. E se... — a voz de Ned Beaumont baixou um tom e seus olhos negros se arregalaram, sérios — Shad encrencar Walt plantando provas de que ele matou West? Seus clubes femininos e todas as pessoas que gostam de berrar sobre coisas desse tipo vão pensar que o álibi de Walt é falso... preparado por nós pra proteger ele.

Madvig disse:

O piolhento. — Levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos da calça. Eu gostaria, por Deus, que a eleição ou já tivesse passado ou ainda estivesse longe.

Nada disso teria acontecido então.

Madvig deu dois passos para o centro da sala. Murmu­rou: Maldito e ficou franzindo a testa para o telefone na mesinha junto à porta do quarto. O peito imenso subia e descia com a respiração. Ele disse pelo canto da boca, sem olhar para Ned Beaumont:

Arranje um meio de bloquear esse ângulo. Deu um passo na direção do telefone e parou. Esqueça disse, e se voltou para ficar de frente para o outro. Acho que vou expulsar Shad de nossa cidade. Estou cansado de ter ele em volta. Acho que vou expulsar ele imediatamente, começando esta noite.

Ned Beaumont perguntou:

Como, por exemplo?

Madvig deu um risinho:

Por exemplo respondeu —, acho que vou mandar Rainey fechar a Dog House e o Paradise Gardens e todos os antros em que sabemos que Shad ou qualquer um de seus amigos tem interesses. Acho que vou mandar Rainey fechar todas, uma por uma, esta noite mesmo.

Ned Beaumont falou, hesitante:

Está metendo Rainey numa enrascada. Nossos tiras não estão acostumados a se preocupar com a aplicação da lei. Não vão gostar muito disso.

Podem fazer isso uma vez, por mim disse Madvig —, sem achar que pagaram todas as dívidas que têm comigo.

Talvez. O rosto e a voz de Ned Beaumont pareciam duvidosos ainda. Mas a coisa desse jeito parece como dar um tiro de canhão pra arrombar a porta de um cofre quando se poderia conseguir a mesma coisa sem nenhum barulho, usando persuasão.

Você tem alguma coisa escondida na manga, Ned?

Ned Beaumont balançou a cabeça.

Nada de que tenha certeza, mas não faria mal esperar uns dias até...

Então foi Madvig quem balançou a cabeça.

Não disse. Eu quero ação. Não sei merda ne­nhuma sobre como se abrem cofres, Ned, mas sei lutar... do meu jeito... partir com as mãos. Nunca consegui aprender a boxear, e nas únicas vezes que tentei levei foi surra. Daremos no sr. O'Rory o tiro de canhão.

 

O homem magro e musculoso, de óculos de aros de tarta­ruga, disse:

Assim, não precisa se preocupar de modo algum com isso. — E recostou-se calmamente em sua poltrona.

O homem à esquerda dele — um sujeito magro, com bigodes castanhos ralos e arrepiados e sem muito cabelo na cabeça — disse ao homem à sua esquerda:

—Não me soa tão bem assim.

O magro disse:

Ora, bobagens!

Madvig falou ao magro:

Você viu Parker, Breen?

Breen disse:

Sim, vi, e ele diz cinco, mas acho que a gente pode conseguir mais uns dois dele.

O homem de óculos disse zombando:

Meu Deus, eu diria que sim!

Breen deu um sorriso de escárnio, de lado.

É. E de quem você algum dia conseguiria tanto assim?

Três batidas soaram na larga porta de carvalho.

Ned Beaumont levantou-se da cadeira onde se achava montado e foi até a porta. Abriu-a menos de um palmo.

A pessoa que tinha batido era um homenzinho moreno, de sobrancelhas pequenas, usando um terno azul amassado. Não tentou entrar na sala, e procurou falar num murmúrio, mas a excitação tornou sua voz audível a todos.

Shad O'Rory está lá embaixo. Quer falar com Paul.

Ned Beaumont fechou a porta e voltou-se, encostado nela, a fim de olhar para Paul Madvig. Só eles dois, entre os dez que se achavam na sala, pareciam inalterados pelo anúncio do homem de sobrancelhas pequenas. Os demais não demonstravam abertamente sua excitação — em alguns, se podia vê-la no enrijecimento súbito — mas em nenhum deles a respiração era a mesma de antes.

Ned Beaumont, fingindo não saber que não era neces­sário repetir, disse, num tom que manifestava o devido inte­resse em suas palavras:

O'Rory quer falar com você. Esta lá embaixo.

Madvig olhou o seu relógio.

Diga a ele que estou ocupado agora, mas se quiser esperar um pouco, vou falar com ele.

Ned Beaumont assentiu com a cabeça e abriu a porta.

Diga a ele que Paul está ocupado agora instruiu ao homem que batera na porta —, mas se ele ficar por aí algum tempo, Paul fala com ele. Fechou a porta.

Madvig interrogava um homem de cara quadrada e ama­relada sobre as possibilidades de conseguirem mais votos do outro lado da rua Chestnut. O homem de cara quadrada res­pondeu que achava que conseguiriam mais que da última vez, "com uma margem dos diabos", mas ainda não o bastante para prejudicar muito a oposição. Enquanto falava, deslizava os olhos de lado para a porta.

Ned Beaumont sentava-se acavalado em sua cadeira junto da janela, fumando um charuto.

Madvig fez uma pergunta a outro homem sobre o volume da contribuição para a campanha que se devia esperar de um sujeito chamado Hartwick. Esse outro homem mantinha os olhos longe da porta, mas faltou coerência à sua resposta.

Nem a expressão calma de Madvig e de Ned Beaumont nem a concentração objetiva dos dois nos problemas da cam­panha conseguiam conter o aumento da tensão na sala.

Após quinze minutos, Madvig levantou e disse:

Bem, ainda não estamos por cima, mas estamos che­gando lá. É só vocês darem duro que a gente tira o diploma. Foi até a porta e apertou a mão de cada um, à medida que saíam. E os homens saíram um tanto apressadamente.

Ned Beaumont, que não deixara sua cadeira, perguntou, quando ele e Madvig eram os únicos na sala:

Fico por aqui ou dou o fora?

Fique por aqui. Madvig se encaminhou até a ja­nela e olhou a rua da China, ensolarada, lá embaixo.

Com os punhos prontos? perguntou Ned Beau­mont, após uma pequena pausa.

Madvig se voltou da janela, assentindo.

Não sei de nada melhor — sorriu juvenilmente para o homem acavalado na cadeira —, a não ser, talvez, que com os pés também.

Ned Beaumont ia dizer alguma coisa, mas foi interrom­pido pelo ruído da maçaneta sendo girada.

Um homem abriu a porta e entrou. Era de estatura pouco acima da média, de constituição esbelta, de uma esbelteza que dava uma aparência falsa de fragilidade. Embora parte dos cabelos estivessem brancos, provavelmente não passava muito dos trinta e cinco anos. Tinha os olhos de um azul-cinza notavelmente límpidos, num rosto meio longo e estreito, mas finamente esculpido. Usava um casaco azul-escuro, sobre um terno também azul-escuro, e trazia um chapéu derby na mão metida em luva negra.

O homem que entrou atrás dele era um sujeito de pernas bambas, da mesma altura, um sujeito moreno com algo de macaco na curvatura dos ombros enormes, no comprimento dos braços grossos e no rosto achatado. O chapéu deste último, do tipo diplomata, estava na cabeça. Ele fechou a porta e se recostou contra ela, pondo as mãos nos bolsos do casaco xadrezado.

O primeiro homem, tendo avançado a essa altura uns quatro ou cinco passos sala adentro, pôs o chapéu numa ca­deira e começou a tirar as luvas.

Madvig, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, sorriu amistosamente e disse:

Como vai, Shad?

O homem de cabelos brancos disse:

Otimamente, Paul. E você? — A voz era um forte barítono, musical, com um leve sotaque irlandês.

Madvig indicou com um pequeno aceno de cabeça o homem na cadeira e perguntou:

Conhece Ned Beaumont?

O'Rory disse:

Conheço.

Ned Beaumont disse:

Conheço.

Nenhum cumprimentou o outro com um aceno de ca­beça, e Ned Beaumont não se levantou de sua cadeira.

Shad O'Rory acabava de tirar as luvas. Colocou elas num bolso do casaco e disse:

Política é política e negócios são negócios. Venho abrindo meu caminho com dinheiro e estou disposto a conti­nuar assim, mas quero receber pelo que pago. Sua voz modulada era apenas divertidamente séria.

Que quer dizer com isso? Perguntou Madvig, como se não ligasse muito.

O que quero dizer é que metade dos tiras da cidade compra o leite das crianças com a grana que recebe de mim e de alguns dos meus amigos.

Madvig sentou junto à mesa.

E daí? Perguntou com o mesmo desinteresse de antes.

Quero receber pelo que estou pagando. Estou pa­gando pra que me deixem em paz. Quero que me deixem em paz.

Madvig deu uma risadinha.

Você não quer dizer, Shad, que veio se queixar a mim porque seus tiras não querem continuar vendidos?

Quero dizer que Doolan me disse ontem à noite que as ordens pra fechar minhas casas vieram direto de você.

Madvig tornou a dar uma risadinha e se virou para falar com Ned Beaumont.

Que acha disso, Ned?

Ned Beaumont deu um sorriso débil, mas não disse nada.

Madvig disse:

Sabe o que penso disso? Penso que o capitão Doolan tem trabalhado demais. Penso que alguém devia dar ao ca­pitão Doolan umas longas férias. Não deixe que eu esqueça isso.

O'Rory disse:

Comprei proteção, Paul, e quero ela. Negócios são negócios e política é política. Vamos manter as duas coisas separadas.

Madvig disse:

Não.

Os olhos azuis de Shad 0'Rory olharam sonhadoramente alguma coisa distante. Ele deu um sorriso meio triste, e havia um tom de tristeza em sua voz musical, levemente irlandesa, quando falou. Disse:

Isso vai dar em matança.

Os olhos azuis de Madvig estavam opacos, e a voz tão indecifrável quanto os olhos. Ele disse:

Se você quiser que dê.

O homem de cabelos brancos balançou a cabeça.

Vai ter de dar — disse, ainda tristemente. — Estou grande demais pra lamber suas botas agora.

Madvig se recostou na cadeira e cruzou as pernas. O tom com que falou dava pouca importância às palavras. Disse:

Talvez você esteja grande demais pra lamber minhas botas deitado, mas vai lamber. — Franziu os lábios e acres­centou, como uma reconsideração: — Já está lambendo.

O ar sonhador e a tristeza desapareceram rapidamente dos olhos de Shad O'Rory. Ele pôs o chapéu negro na cabeça. Ajeitou a gola do casaco no pescoço. Apontou um dedo longo e branco para Madvig e disse:

Vou reabrir a Dog House hoje de noite. Não quero ser perturbado. Se você me perturbar, eu perturbo você.

Madvig descruzou as pernas e pegou o telefone em cima da mesa. Chamou o número do Departamento de Polícia, pediu para falar com o Chefe e disse-lhe:

Alô, Rainey... Sim, ótimo. Como estão os paren­tes?... Isso é bom. Escute, Rainey, eu soube que Shad está pensando em reabrir hoje de noite... Sim.. Sim... Feche aquela joça com tanta força para que ela balance... Certo... Claro. Até logo. — Empurrou o telefone e disse a O'Rory:

Entende agora qual é a sua posição? Está liquidado, Shad. Está liquidado aqui pra sempre.

O'Rory disse baixinho:

Eu entendo. — Voltou-se, abriu a porta e saiu. O sujeito bambo parou para cuspir — deliberadamente - no tapete à sua frente e encarar Madvig e Ned Beaumont. Depois, saiu.

Ned Beaumont enxugou as palmas das mãos com um lenço. Nada disse a Madvig, que o olhava com olhos interrogadores. Os de Ned Beaumont estavam sombrios. Após um instante, Madvig perguntou:

Então?

Ned Beaumont disse:

Errado, Paul.

Madvig levantou e foi até a janela:

Deus do céu! — queixou-se por sobre o ombro. — Nada jamais serve pra você?

Ned Beaumont levantou de sua cadeira e caminhou para a porta.

Madvig, voltando da janela, perguntou furioso: É mais alguma de suas malditas tolices? Ned Beaumont disse: É e saiu da sala. Desceu a escada, pegou o chapéu e deixou o Log Cabin Club. Cami­nhou sete quadras até a estação ferroviária, comprou uma passagem para Nova Iorque e fez reservas para o trem da noite. Depois tomou um táxi e foi para o seu apartamento.

 

Uma mulher robusta e disforme, usando roupas cinza, e um garoto gorducho arrumavam a mala e três valises de couro de Ned Beaumont, sob a supervisão dele, quando a campainha da porta tocou.

A mulher levantou, grunhindo, e foi atender. Abriu a porta inteiramente.

Deus do céu, sr. Madvig disse. Vá entrando.

Madvig entrou dizendo:

Como vai, sra. Duveen? Está com uma aparência cada vez mais jovem. Passeou o olhar pela mala, as valises, até o garoto. Olá, Charley. Pronto pro trabalho na misturadora de cimento?

O garoto sorriu acanhadamente e disse:

Como vai, sr. Madvig?

O sorriso de Madvig chegou finalmente a Ned Beaumont.

Vai a algum lugar?

Ned Beaumont sorriu educadamente.

Vou disse.

O loiro olhou em volta da sala, fixando novamente a mala e as valises, as roupas empilhadas sobre as poltronas e as gavetas escancaradas. A mulher e o menino retornaram a seu trabalho. Ned Beaumont encontrou duas camisas meio desbo­tadas numa pilha sobre uma poltrona e colocou elas de lado.

Madvig perguntou:

Pode me dar meia hora, Ned?

Tenho bastante tempo.

Madvig disse:

Pegue seu chapéu.

Ned Beaumont pegou o chapéu e o casaco.

Ponha o máximo que puder — disse à mulher, en­quanto ia com Madvig para a porta —, e o que sobrar pode ser mandado com as outras coisas.

Ele e Madvig desceram a escada até a rua. Caminharam uma quadra, em direção ao sul. Então Madvig perguntou:

Aonde vai, Ned?

Nova Iorque.

Dobraram num beco.

MadVig perguntou:

Praquê?

Ned Beaumont deu de ombros.

Estou indo embora de vez.

Abriram uma porta verde, de madeira, na parede de tijolos vermelhos no fundo de um prédio, subiram um cor­redor, passaram por outra porta e entraram no salão de um bar onde meia dúzia de homens bebia. Trocaram cumpri­mentos com o barman e com três dos clientes ao se dirigirem a uma salinha onde havia quatro mesas. Não havia mais nin­guém ali. Sentaram numa das mesas.

O barman enfiou a cabeça na porta e perguntou:

Cerveja como sempre, cavalheiros?

Madvig disse: — É — e depois, quando o barman se retirou: — Por quê?

Ned Beaumont disse:

Estou cansado dessa coisa de cidade provinciana.

Se refere a mim?

Ned Beaumont não disse coisa alguma.

Madvig também nada disse por algum tempo. Depois deu um suspiro e disse:

Essa é uma hora dos diabos pra me largar na mão.

O barman entrou com duas canecas de cerveja clara e

uma tigela de biscoitos salgados. Depois que tornou a sair, fechando a porta atrás, Madvig exclamou:

Deus, é duro se dar com você, Ned!

Ned Beaumont moveu os ombros.

Eu nunca disse que não era. — Ergueu sua caneca e bebeu.

Madvig quebrava um biscoito em pequenos pedaços.

Quer mesmo ir embora, Ned? — perguntou.

Estou indo.

Madvig largou os fragmentos do biscoito na mesa e sacou um talão de cheques do bolso. Destacou um cheque, tirou uma caneta-tinteiro do outro bolso e encheu-o. Depois balan­çou-o, para secar, e jogou-o na mesa, na frente de Ned Beaumont.

O outro, baixando o olhar para o cheque, balançou a cabeça e disse:

Não preciso de dinheiro, e você não me deve nada.

Devo, sim. Devo a você mais do que isso, Ned. Gos­taria que aceitasse.

Ned Beaumont disse: Está bem, obrigado e pôs o cheque no bolso.

Madvig bebeu a cerveja, comeu um biscoito, recomeçou a beber, pôs a caneca na mesa e perguntou:

Você tinha alguma coisa em mente... alguma bron­ca... além daquela lá no Club?

Ned Beaumont balançou a cabeça.

Você não pode falar comigo daquele jeito. Ninguém pode.

Diabos, Ned, eu não disse nada.

Ned Beaumont não disse nada.

Madvig tornou a beber.

Se incomoda de me dizer por que acha que agi errado com O'Rory?

Não ia adiantar nada.

Experimente.

Ned Beaumont disse:

Está bem, mas não vai adiantar nada. Reclinou a cadeira para trás, segurando a caneca numa mão e alguns biscoitos na outra. Shad vai reagir. Tem de reagir. Você acuou ele. Disse que ele está liquidado pra sempre. A única coisa que ele pode fazer é jogar a longo prazo. Se puder perturbar essa eleição, estará em posição de fazer o que puder pra ganhar. Se você ganhar a eleição, ele vai ter de dar o fora de qualquer jeito. Você está botando a polícia em cima dele. Ele vai ter de reagir contra a polícia, e vai reagir. Isso significa que você vai criar alguma coisa que poderá ser apresentada como uma onda de crime. Você está tentando reeleger toda a administração municipal. Bem, dar a eles uma onda de crime... e uma onda que segundo todas as possibilidades eles não vão poder controlar... exatamente antes da eleição, não vai fazer com que pareçam muito eficientes. Eles...

Acha que eu devia maneirar com ele? perguntou Madvig, franzindo a testa.

Não acho isso. Acho que você devia ter deixado uma saída pra ele, uma linha de retirada. Não devia botar ele contra a parede.

A carranca de Madvig se aprofundou.

Eu não sei nada sobre seu jeito de lutar. Foi ele quem começou. Só sei é que, quando a gente acua alguém, vai em frente e liquida. Esse sistema tem funcionado bem pra mim até agora. — Corou um pouco. — Não quero dizer que me ache um Napoleão, ou alguma coisa assim, Ned, mas subi de menino de recado de Packy Flood, na velha rua Cinco, para o lugar onde me sento confortavelmente hoje.

Ned Beaumont esvaziou sua caneca e deixou as pernas da frente da cadeira descerem até o chão.

Eu lhe disse que não ia adiantar. Faça como quiser. Continue pensando que o que servia pra velha rua Cinco serve pra qualquer parte.

Havia na voz de Madvig alguma coisa de ressentimento e alguma coisa de humildade quando ele perguntou:

Você não me tem em grande conta como político, tem, Ned?

Então foi o rosto de Ned Beaumont que corou. Ele disse:

Eu não disse isso, Paul.

Mas foi o mesmo que dizer, não foi? — insistiu Mad­vig.

Não, mas acho que você deixou que lhe passassem pra trás. Primeiro, deixou os Henrys manobrarem você pra apoiar o senador. Aí estava a sua oportunidade de entrar e liquidar um inimigo acuado, mas acontece que esse inimigo tinha uma filha, posição social e sei mais o que, e você...

Deixe disso, Ned — resmungou Madvig.

O rosto de Ned Beaumont ficou sem expressão. Ele se levantou, dizendo:

Bem, tenho de me apressar.

E voltou-se para a porta.

Imediatamente Madvig saltou nos seus calcanhares, com uma mão em seu ombro, dizendo:

Espere, Ned.

Ned Beaumont disse:

Tire a mão de mim.

Não se voltou.

Madvig pôs a outra mão no braço de Ned Beaumont e o fez voltar.

Escute aqui, Ned começou.

Ned Beaumont disse:

Me solte. Tinha os lábios pálidos e rígidos.

Madvig sacudiu-o. Disse:

Não seja um maldito idiota. Você e eu...

Ned Beaumont atingiu a boca de Madvig com o punho esquerdo.

Madvig tirou as mãos de cima de Ned Beaumont e recuou dois passos. Enquanto seu pulso tinha tempo talvez de bater três vezes, ele permaneceu boquiaberto, o pasmo estampado na face. Depois seu rosto enegreceu de cólera e ele cerrou a boca com força, fazendo com que o queixo ficasse duro e inchado. Cerrou os punhos, ergueu os ombros e avançou.

Ned Beaumont passou a mão de lado para pegar uma das pesadas canecas de cerveja, embora não a erguesse da mesa. Curvou o corpo um pouco para o lado, ao se inclinar para pegar a caneca. Fora isso, enfrentava diretamente o loiro. Tinha o rosto franzido e rígido, linhas brancas de tensão em torno da boca. Os olhos negros fuzilavam ferozmente os azuis de Madvig.

Ficaram assim, a menos de um metro de distância um loiro, alto e de físico poderoso, curvado para a frente, os enormes ombros encolhidos, os grandes punhos em posição; o outro de cabelos e olhos negros, alto e magro, o corpo um pouco curvado para o lado, com um braço estendido desse lado para segurar a pesada caneca de vidro pela alça e a não ser pelas respirações, não se ouvia som algum na sala. Também não vinha som algum do bar do outro lado da fina porta, nem o tinir de copos, nem o zumbido de conversas, nem o barulho de água correndo.

Depois de bem uns dois minutos, Ned Beaumont retirou a mão da caneca e deu as costas a Madvig. Nada mudara em seu rosto, a não ser nos olhos, que, já que não se concentra­vam nos de Madvig, se tornaram duros e frios em vez de furio­sos. Ele deu um passo até a porta, sem pressa.

Madvig falou em voz rouca, do fundo do peito.

Ned.

Ned Beaumont parou. Seu rosto ficou mais pálido. Ele não se voltou.

Madvig disse:

Seu filho da puta louco.

Então Ned Beaumont se voltou, devagar.

Madvig estendeu a mão aberta e empurrou o rosto de Ned Beaumont para um lado, fazendo-o perder o equilíbrio e afastar rapidamente um pé e pôr uma mão numa das cadei­ras à mesa.

Madvig disse:

Eu devia lhe dar uma surra dos diabos.

Ned Beaumont sorriu irritado e sentou na cadeira contra a qual cambaleara. Madvig sentou na frente dele e bateu no tampo da mesa com a caneca.

O barman abriu a porta e enfiou a cabeça.

Mais cerveja — disse Madvig.

Do bar, através da porta aberta, vinha o som de homens conversando e de copos batendo em copos e em madeira.

 

Ned Beaumont, tomando o café da manhã na cama, gritou:

Entre e depois, quando a porta da frente se abriu e fechou: Sim?

Uma voz grave e rouca na sala de estar perguntou:

Onde está você, Ned?

Antes que ele pudesse responder, o dono da voz arra­nhada entrou no quarto e disse:

Que moleza, hein?

Era um jovem forte, com um pálido rosto quadrado, boca larga de lábios grossos, de um dos cantos da boca pendia um cigarro, e alegres olhos vesgos.

Olá, Whisky disse Ned Beaumont. Pegue uma cadeira.

Whisky olhou em volta do quarto.

Bom lugarzinho você tem aqui disse.

Tirou o cigarro dos lábios e, sem virar a cabeça, usou-o para indicar a sala de estar atrás, por cima do ombro.

Pra que toda aquela bagagem? Está se mudando?

Ned Beaumont mastigou bem e engoliu os ovos mexidos que tinha na boca, antes de responder:

Estou pensando.

Whisky disse: É? enquanto pegava uma cadeira que estava diante da cama. Pra onde?

Nova Iorque, talvez.

Que quer dizer com talvez?

Ned Beaumont disse:

Bem, arranjei um ducado que aponta pra lá.

Whisky bateu a cinza do cigarro no chão e tornou a pôr no canto esquerdo da boca. Fungou.

Quanto tempo vai ficar fora?

Ned Beaumont segurava a xícara de café no meio do caminho entre a bandeja e a boca. Ficou olhando pensati­vamente o jovem por cima dela. Afinal, disse:

É uma passagem só de ida.

E bebeu.

Whisky olhava para ele de lado agora, até fechar intei­ramente um dos olhos negros, enquanto o outro não passava de um fino brilho negro. Tirou o cigarro da boca e bateu-o de novo, jogando mais cinza no chão. Sua voz arranhada tinha um tom persuasivo.

Por que não procura Shad antes de ir embora? — sugeriu.

Ned Beaumont largou a xícara e sorriu. Disse:

Shad e eu não somos tão amigos assim pra que ele fique sentido se eu for embora sem dizer adeus.

Whisky disse:

Não é isso.

Ned Beaumont transferiu a bandeja do colo para a me­sinha de cabeceira. Virou-se de lado, apoiando-se num dos cotovelos sobre o travesseiro. Puxou os lençóis mais para cima, no peito. Depois perguntou:

Que é então?

É que você e Shad podem se entender.

Ned Beaumont balançou a cabeça.

Acho que não.

Não pode estar errado? — perguntou Whisky.

Claro — admitiu o homem na cama. — Uma vez, em 1912, cometi um erro. Esqueci o que foi.

Whisky levantou-se, para esmagar seu cigarro num dos pratos da bandeja, parado ao lado da cama, junto à mesinha, disse:

Por que não tenta, Ned?

Ned Beaumont franziu a testa.

Me parece perda de tempo. Não acho que Shad e eu possamos nos dar bem.

Whisky chupou um dente ruidosamente. Os lábios gros­sos, caídos nos cantos, deram ao ruído um tom de escárnio.

Shad acha que podiam. Ned Beaumont abriu os olhos.

É? perguntou. Foi ele quem mandou você aqui?

Diabos, foi disse Whisky. Não acha que eu ia estar aqui, falando desse jeito, se ele não tivesse mandado.

Ned Beaumont tornou a estreitar os olhos e perguntou:

Porquê?

Porque ele acha que você e ele podem se entender.

O que quero dizer explicou Ned Beaumont —, é por que ele achou que eu ia querer me entender com ele?

Whisky fez uma expressão de repugnância.

Está querendo brincar comigo, Ned? perguntou.

Não.

Bem, pelo amor de Deus, não acha que todo mundo na cidade sabe que você e Paul brigaram no bar de Pip Carson ontem?

Ned Beaumont assentiu com a cabeça.

Então é isso disse baixinho, como para si mesmo.

É isso garantiu o homem de voz arranhada, e mais:

Acontece que Shad sabe que você ficou bravo porque achava que Paul não devia mandar fechar as casas dele. Agora, você está em boa situação com Shad, se souber usar a cabeça.

Ned Beaumont disse, pensativamente:

Não sei, não. Eu gostaria de dar o fora daqui, voltar pra cidade grande.

Use a cabeça disse Whisky. A cidade grande vai estar no mesmo lugar depois da eleição. Fique por aí. Sabe que Shad está cheio da nota e soltando muito pra derrotar Madvig. Fique por aí e pegue uma fatia.

Bem disse lentamente Ned Beaumont —, não ia fazer mal nenhum discutir o assunto com ele.

Você está danado de certo disse Whisky, animado.

Prenda a fralda com o alfinete e vamos agora mesmo.

Ned Beaumont disse: Certo e saltou da cama.

 

Shad O'Rory levantou e fez uma reverência.

É um prazer ver você, Beaumont — disse. — Jogue o chapéu e o casaco em qualquer lugar.

Não ofereceu a mão para um aperto.

Ned Beaumont disse: — Bom dia — e começou a tirar o casaco.

Da porta, Whisky disse:

Bem, vejo vocês depois.

0'Rory disse: — É, faça isso — e Whisky, puxando a porta ao recuar, deixou-os.

Ned Beaumont largou o casaco no braço do sofá, pôs o chapéu em cima e sentou ao lado. Olhava O'Rory sem curio­sidade.

O'Rory tinha voltado para sua cadeira, uma coisa qua­drada e fofa de um dourado e um vinho mortiços. Cruzou as pernas e juntou as mãos — as pontas dos dedos se tocando — sobre o joelho de cima. Deixou a cabeça finamente esculpida afundar em direção ao peito, de modo que os olhos azuis-cinza olhassem Ned Beaumont de baixo para cima, por baixo das sobrancelhas. Disse, em sua voz irlandesa de agradável modulação:

Devo alguma coisa a você por tentar convencer Paul a não...

Não deve nada — disse Ned Beaumont.

O'Rory perguntou:

Não?

Não. Eu estava do lado dele. O que disse foi pro próprio bem dele. Achei que estava fazendo uma má jogada.

O'Rory sorriu delicadamente.

E ele vai saber disso antes de acabar.

Fez-se silêncio durante algum tempo, então. O'Rory sen­tava meio afundado em sua poltrona, sorrindo para o visi­tante. Ned Beaumont sentava no sofá, olhando com olhos que não davam qualquer indicação do que ele pensava.

O silêncio foi quebrado por O'Rory, que perguntou:

Que foi que Whisky lhe falou?

Nada. Disse que você queria falar comigo.

Agiu muito bem no que se refere a ele — disse O'Rory. Separou as pontas dos dedos e bateu as costas de uma das finas mãos na palma da outra. É verdade que você e Paul romperam pra sempre?

Eu achava que você sabia disso respondeu Ned Beaumont. Achava que foi por isso que mandou me cha­mar.

Eu soube disse O'Rory —, mas nem sempre é a mesma coisa. Que pensa que podia fazer agora?

Estou com uma passagem pra Nova Iorque no bolso e as malas prontas.

O'Rory ergueu uma mão e alisou o lustroso cabelo branco.

Você veio pra cá de Nova Iorque, não foi?

Eu nunca disse a ninguém de onde vim.

O'Rory tirou a mão dos cabelos e fez um pequeno gesto de protesto.

Não acha que eu ligo pro lugar de onde qualquer cara vem, acha? perguntou.

Ned Beaumont não disse nada.

O homem de cabelos brancos disse:

Mas me importo em saber pra onde você vai, e se dependesse de mim gostaria que não fosse pra Nova Iorque por uns tempos. Já pensou por acaso que talvez possa ganhar muito ficando aqui?

Não disse Ned Beaumont —, isto é, não até Whisky aparecer.

E que pensa agora?

Não sei de nada. Estou esperando pra ouvir o que você tem a me dizer.

O'Rory tornou a levar a mão aos cabelos. Seus olhos azul-cinza se mostravam amistosos e astutos. Perguntou:

Há quanto tempo está aqui?

Um ano e três meses.

E há quanto tempo você e Paul eram como carne e unha?

Um ano.

O'Rory balançou a cabeça.

Deve saber um monte de coisas sobre ele disse.

Sei, sim.

O'Rory disse:

Deve saber um monte de coisas que poderiam me ser úteis.

Ned Beaumont disse, numa voz chã:

Faça sua proposta.

O'Rory se levantou das profundezas de sua poltrona e se dirigiu até uma porta oposta àquela pela qual Ned Beaumont tinha entrado. Quando a abriu, um imenso buldogue inglês saiu. O'Rory retornou à sua poltrona. O cão se deitou no tapete na frente da poltrona vinho e dourado, olhando com olhos sombrios o dono.

O'Rory disse:

Uma coisa que posso lhe oferecer é a oportunidade de uma boa vingança contra Paul.

Ned Beaumont disse:

Isso não significa nada pra mim.

Não?

No que me diz respeito, estamos quites.

O'Rory ergueu a cabeça. Perguntou baixinho:

E não gostaria de fazer alguma coisa que prejudicasse ele?

Eu não disse isso — respondeu Ned Beaumont meio irritado. — Não me importa prejudicar ele, mas posso fazer isso qualquer hora por mim mesmo, e não quero que você pense que estará me dando alguma coisa quando me der uma oportunidade de fazer isso.

O'Rory balançou a cabeça pra cima e pra baixo, agradavelmente.

Pra mim está bem — disse —, contanto que ele seja prejudicado. Por que ele liquidou o jovem Henry?

Ned Beaumont deu uma risada.

Vá devagar — disse. — Ainda não fez sua proposta. É um cachorro bonito. Que idade tem?

Mais ou menos o limite, sete anos. — O'Rory esticou v um pé e esfregou a ponta do focinho do cachorro com ele. O animal balançou a cauda indolentemente.

Que tal acha isso? Depois da eleição eu arrumo pra você a melhor casa de jogo que este Estado já viu, e deixo que dirija ela do jeito que te agradar, com toda a proteção que já ouviu falar.

Isso é uma oferta na base do se — disse Ned Beau­mont, de um jeito meio chateado. — Se vocês vencerem. Seja como for, não tenho certeza se quero ficar aqui depois da eleição, ou mesmo até lá.

O'Rory parou de esfregar o focinho do cachorro com a ponta do sapato. Ergueu o olhar para Ned Beaumont, sorriu ambiciosamente e perguntou:

Não acredita que a gente vai ganhar a eleição?

Ned Beaumont sorriu.

Você nem mesmo aposta nisso.

Ainda sorrindo ambicionamente, O'Rory fez outra per­gunta:

Você não é bom demais pra se juntar comigo, é, Beaumont?

Não. Ned Beaumont levantou-se e pegou o seu chapéu. Não foi idéia minha. A voz era casual, o rosto cortesmente inexpressivo. Eu disse a Whisky que ia ser pura perda de tempo. Estendeu a mão para pegar o casaco.

O homem de cabelos brancos disse:

Sente aí. A gente ainda pode conversar, não pode? E talvez chegue a alguma parte antes de acabar.

Ned Beaumont hesitou, ergueu levemente os ombros, tirou o chapéu, colocou-o com o casaco no sofá e sentou-se junto deles.

O'Rory disse:

Eu lhe dou dez mil mangos em dinheiro agora, se você vier pra cá, e outros dez mil na noite da eleição, se a gente vencer Paul, e mantenho a oferta daquela casa pra você pegar ou largar.

Ned Beaumont franziu os lábios e olhou sombriamente para O'Rory, por baixo de sobrancelhas unidas.

Quer que eu traia ele, é claro disse.

Quero que vá ao Observer e conte tudo o que sabe sobre as coisas em que ele está envolvido... os contratos dos esgotos, como e por que Henry foi assassinado, aquela sujeira de Shoemaker no fim do ano passado, a maneira corrupta como ele governa a cidade.

Não tem nada no caso dos esgotos agora disse Ned Beaumont, falando como se tivesse a mente mais ocupada com outras coisas. Ele abriu mão dos lucros pra não levantar nenhuma suspeita.

Está bem admitiu O'Rory, com leve confiança. Mas tem alguma coisa no caso de Taylor Henry.

É, a gente podia pegar ele por aí disse Ned Beau­mont, franzindo a testa —, mas não sei se poderia usar o caso de Shoemaker... hesitou sem criar encrenca pra mim.

Diabos, não queremos isso — disse correndo O'Rory. — Isso está fora. Que mais temos?

Talvez a gente possa fazer alguma coisa com a ex­tensão da concessão dos bondes, e com aquele problema no ano passado no tribunal de contas do município. Mas vamos ter de cavar um pouco primeiro.

Valerá a pena pra nós dois — disse O'Rory. — Eu mando Hinkle... é o cara do Observer... arrumar o material. Basta você dar o serviço pra ele, que ele escreve. Podemos começar com esse negócio de Taylor Henry. É uma coisa que está quente.

Ned Beaumont alisou o bigode com a unha do polegar e murmurou:

Talvez.

Shad O'Rory deu uma risada.

O que você quer dizer é que a gente deve começar primeiro com os dez mil dólares? — perguntou. — Tem certa razão nisso. — Levantou-se, atravessou a sala até a porta que abriu para o cachorro e fechou atrás de si. O cão não se levantou da frente da poltrona vinho e ouro.

Ned Beaumont acendeu um charuto. O cão virou a ca­beça e olhou-o.

O'Rory voltou com um grosso maço de verdes notas de cem dólares presas por uma tira de papel pardo, na qual estava escrito em tinta azul: $ 10.000. Bateu o maço na outra mão e disse:

Hinkle está aqui agora. Disse a ele que viesse.

Ned Beaumont enrugou a testa.

Devia me dar um pouco de tempo pra arrumar minha mente.

É só passar a coisa a Hinkle do jeito que sair. Ele dá a forma.

Ned Beaumont assentiu com a cabeça. Soprou a fumaça do charuto e disse:

É, posso fazer isso.

O'Rory estendeu o maço com a grana.

Dizendo "Obrigado", Ned Beaumont recebeu e guardou o dinheiro no bolso interno do paletó. O maço formou um volume no lugar, sobre o peito chato.

Shad O'Rory disse:

O agradecimento é nos dois sentidos.


E retornou para sua poltrona.

Ned Beaumont tirou o charuto da boca.

Tem uma coisa que eu quero lhe dizer enquanto ainda me lembro disse. Cavar provas contra Walt Ivans no assassinato de West não prejudicará tanto Paul quanto se a gente deixar como está.

O'Rory olhou curiosamente para Ned Beaumont por um momento, antes de perguntar:

Porquê?

Paul não vai deixar ele usar o álibi do Club.

Quer dizer que vai ordenar aos rapazes que esqueçam que Ivans esteve lá?

É.

O'Rory fez um ruído com a língua e perguntou:

Como ele teve a idéia de que eu ia jogar com Ivans?

Oh, a gente imaginou.

O'Rory sorriu.

Você quer dizer que você imaginou disse. Paul não é tão esperto assim.

Ned Beaumont fez uma careta de modéstia e perguntou:

Que tipo de serviço vocês empurraram pro Ivans?

O'Rory deu uma risadinha.

Mandamos o palhaço a Braywood comprar as armas que foram usadas. Seus olhos azul-cinza tornaram-se de repente duros e penetrantes. Depois tornaram a se mostrar divertidos, e ele disse: Oh, bem, nada disso é grande coisa, agora que Paul está decidido a criar barulho grosso. Mas foi isso que fez ele começar a dar em cima de mim, não foi?

Foi disse Ned Beaumont —, embora provavel­mente isso fosse acontecer mais cedo ou mais tarde. Paul acha que foi ele quem ajudou você no início, aqui, e que você devia ficar debaixo da asa dele, e não crescer o bastante pra enfren­tar ele.

O'Rory sorriu delicadamente.

E eu sou o cara que vou fazer ele se arrepender de um dia ter me dado essa ajuda. prometeu. Ele pode...

Abriu-se uma porta e entrou um homem. Era um jovem de roupa cinza, folgada. Tinha o nariz e as orelhas muito grandes. O cabelo, de um castanho indefinido, precisava de um corte, e o rosto um tanto sujo parecia demasiado enrugado para a idade.

Entre, Hinkle — disse O'Rory. — Este é Beaumont. Vai dar o serviço pra gente. Me mostre quando tiver arru­mado tudo, e a gente faz a primeira jogada no jornal de amanhã.

Hinkle sorriu, exibindo dentes ruins, e murmurou algo educado ao visitante.

Ned Beaumont se levantou, dizendo:

Ótimo, vamos pra minha casa agora e começar a tra­balhar.

O'Rory balançou a cabeça.

Será melhor aqui — disse.

Ned Beaumont, pegando o chapéu e o casaco, sorriu e disse:

Sinto muito, mas estou esperando alguns telefonemas e coisas assim. Pegue seu chapéu, Hinkle.

Hinkle, parecendo assustado, ficou parado e mudo.

O'Rory disse:

Vai ter de ficar aqui, Beaumont. Não podemos deixar que lhe aconteça alguma coisa. Aqui terá bastante proteção.

Ned Beaumont deu seu mais belo sorriso.

Se é com o dinheiro que está preocupado — pôs a mão no interior do paletó e tirou o maço —, pode ficar com ele até eu entregar o material.

Não estou preocupado com nada — disse calmamente O'Rory. — Mas você está ferrado se Paul souber que veio a mim, e não quero correr nenhum risco de que seja liquidado.

Vai ter de correr — disse Ned Beaumont. — Eu vou.

O'Rory disse:

Não.

Ned Beaumont disse:

Sim.

Hinkle se virou rapidamente e saiu da sala.

Ned Beaumont virou e se dirigiu para a outra porta, aquela que tinha entrado, andando empertigado e sem pressa.

O'Rory falou algo ao buldogue a seus pés. O cão se le­vantou numa pressa desajeitada e passou por Ned Beaumont, se postando contra a porta. Ficou parado, com as pernas abertas, mal-humorado.

Ned Beaumont sorriu com os lábios presos e se voltou novamente para O'Rory. Tinha o maço de dez mil dólares na mão. Ergueu-o e disse:

Você sabe onde pode enfiar isso.

E atirou o pacote para O'Rory.

Quando baixou o braço, o cão, saltando desajeitado, veio em cima dele. As mandíbulas fecharam-se sobre o seu pulso. Ned Beaumont foi jogado para a esquerda pelo impacto e caiu sobre um joelho, com o braço perto do chão para tirar dele o peso do animal.

O'Rory levantou de sua poltrona e foi até a porta por onde Hinkle batera em retirada e abriu. Disse:

Chegue aqui um minuto.

Depois se aproximou de Ned Beaumont, que, ainda sobre um dos joelhos, tentava soltar o braço dos puxões do ca­chorro. O animal estava quase agachado no chão, as quatro patas retesadas, segurando apresa.

Whisky e dois outros homens entraram na sala. Um deles era o sujeito amacacado e bambo que acompanhara Shad O'Rory ao Log Cabin Club. O outro era um garoto de cabelos cor de areia, de dezenove ou vinte anos, forte, rosado e som­brio. O garoto sombrio passou por trás de Ned Beaumont, ficando entre ele e a porta. O sujeito bambo pôs a mão direita sobre o braço esquerdo de Ned Beaumont, o braço que o cão não segurava. Whisky parou a meio caminho entre Ned Beau­mont e a outra porta.

Então O'Rory disse ao cão:

Patty!

O animal soltou o pulso de Ned Beaumont e se encami­nhou para seu dono.

Ned Beaumont se levantou. Tinha o rosto pálido e mo­lhado de suor. Olhou a manga do paletó e o pulso rasgados, e o sangue escorrendo pela mão, que tremia.

O'Rory disse, em sua voz irlandesa musical:

Foi você quem pediu.

Ned Beaumont ergueu o olhar do pulso para o homem de cabelos brancos,

É disse —, e vai ser preciso um pouco mais do que isso pra me impedir de sair daqui.

 

Ned Beaumont abriu os olhos e gemeu.

O garoto de faces rosadas e cabelo cor de areia virou a cabeça por sobre o ombro para rosnar:

Cala a boca, seu bastardo!

O homem amacacado disse:

Deixe ele em paz, Rusty. Talvez tente sair de novo, e aí agente se diverte mais. — Sorriu olhando os nós dos dedos inchados. — Dê as cartas.

Ned Beaumont murmurou alguma coisa sobre Fedink e sentou. Estava numa cama estreita, sem lençóis nem colcha de qualquer espécie. O colchão nu exibia manchas de sangue. Ele tinha o rosto inchado, ferido e ensangüentado. Sangue seco colava a manga de sua camisa ao pulso que o cachorro mordera, e a mão tinha uma crosta de sangue coagulado. Estava num quartinho amarelo e branco, mobiliado com duas cadeiras, uma mesa, uma cômoda, um espelho de parede e três gravuras francesas em molduras brancas, além da cama. Diante dos pés da cama havia uma porta aberta, mostrando parte do interior de um banheiro de azulejos brancos. A outra porta que havia estava fechada. Não havia janelas.

O homem moreno amacacado e o garoto de faces rosadas e cabelo arenoso sentavam nas cadeiras jogando baralho na mesa, sobre a qual se viam cerca de vinte dólares em notas e em moeda.

Com uns olhos negros onde o ódio se mostrava como um brilho embaçado, vindo de muito abaixo da superfície, Ned Beaumont olhou os jogadores e começou a sair da cama. Era uma tarefa difícil. O braço direito pendia inútil. Teve de jogar uma perna de cada vez por sobre a beira da cama, com a mão esquerda, e duas vezes caiu de lado e teve de se reerguer com o braço esquerdo.

Uma vez o homem amacacado olhou de lado, esquecendo as cartas, para perguntar gozadoramente:

Como está indo, irmão?

Fora isso, os outros dois deixaram ele em paz.

Ele se levantou finalmente, trêmulo, ficando de pé junto da cama. Se firmando com a mão esquerda na cama, chegou até a extremidade dela. Então se endireitou e, olhando fixa­mente sua meta, avançou para a porta fechada. Perto dela tropeçou e caiu de joelhos, mas a mão esquerda, estendida desesperadamente, pegou a maçaneta e ele tornou a erguer-se.

Então o homem amacacado pôs as cartas cuidadosa­mente na mesa e disse:

Agora.

Seu sorriso, que mostrava dentes notavelmente bonitos e brancos, era largo o bastante para mostrar que não se tratava de dentes naturais. Ele se aproximou e ficou parado junto a Ned Beaumont.

Ned Beaumont puxava a maçaneta da porta.

O homem amacacado disse:

Vamos lá, Houdini.

E, com todo o seu peso por trás do soco, enfiou o punho direito no rosto dele.

Ned Beaumont foi jogado contra a parede. Bateu pri­meiro com a parte de trás da cabeça, e depois todo o corpo grudou contra a parede, e ele deslizou até o chão.

O rosado Rusty, ainda segurando suas cartas na mesa, - disse sombriamente:

Deus do céu, Jeff, você vai rebentar ele.

Jeff disse:

Ele? Indicou o homem a seus pés, chutando não especialmente com força na coxa. Ninguém pode rebentar ele. É duro. É um garoto duro. Gosta disso. Curvou o corpo, agarrou as lapelas do homem inconsciente, uma em cada mão, e o pôs de joelhos. Não gosta, nenén? perguntou, e, segurando-o sobre os joelhos com uma mão, lhe atingiu o rosto com o outro punho.

Alguém sacudiu a maçaneta da porta do outro lado.

Jeff gritou:

Quem é?

A voz agradável de O'Rory:

Eu.

Jeff arrastou Ned Beaumont o bastante para abrir a porta, deixou que ele caísse e a abriu com uma chave tirada do bolso.

Entraram O'Rory e Whisky. O'Rory olhou para o homem caído no chão, depois para Jeff, e finalmente para Rusty. Tinha os olhos azul-cinza embaçados. Quando falou, foi para perguntar a Rusty:

Jeff esteve batendo nele só pra se divertir?

O garoto de faces rosadas balançou a cabeça.

Esse Beaumont é um filho da puta disse mal- humorado. — Toda vez que acorda, se levanta e começa alguma coisa.

Não quero ele morto, ainda não — disse O'Rory. Baixou o olhar para Ned Beaumont. — Vê se consegue fazer ele acordar de novo. Quero falar com ele.

Rusty se levantou da mesa.

Não sei — disse. — Ele está muito ruim.

Jeff estava mais otimista.

Claro que a gente consegue — disse. — Vou mostrar a vocês. Pegue os pés dele, Rusty. — Passou as mãos sob os braços de Ned Beaumont.

Levaram o homem inconsciente para o banheiro e o puseram na banheira. Jeff fechou o ralo e abriu a torneira de água fria embaixo e o chuveiro em cima.

Isso vai fazer ele se levantar cantando num instante.

Cinco minutos depois, quando o arrastaram pingando da

banheira e o puseram de pé, Ned Beaumont conseguia firmar- se. Levaram ele de novo para o quarto. O'Rory sentava numa das cadeiras, fumando um cigarro. Whisky tinha ido.

Ponham ele na cama — ordenou O'Rory.

Jeff e Rusty depositaram Ned Beaumont na cama, vira­ram ele para cima e o ajeitaram. Quando tiraram as mãos dele, ele caiu de costas. Puxaram-no para cima, sentando-o, e Jeff lhe esbofeteou o rosto machucado com a mão aberta, dizendo:

Vamos lá, Rip Van Winkle, acorde.

Bela chance dele voltar à vida — resmungou o mal- humorado Rusty.

Acha que não vai voltar? — perguntou Jeff, animado, e tornou a esbofetear sua vítima.

Ned Beaumont abriu o único olho não fechado pela in­chação.

O'Rory disse:

Beaumont.

Ned Beaumont ergueu a cabeça e tentou olhar em volta do quarto, mas nada mostrava que ele via Shad O'Rory.

O'Rory se levantou da cadeira e ficou parado na frente dele, se curvando até ter o rosto a poucos centímetros do rosto do outro. Perguntou:

Está me ouvindo, Beaumont?

O olho aberto de Ned Beaumont olhou com opaco ódio os olhos de O'Rory.

O'Rory disse:

Aqui é O'Rory, Beaumont. Está ouvindo o que eu digo?

Movendo os lábios inchados com dificuldade, Ned Beau­mont externou um enrolado:

Estou.

O'Rory disse:

Bom. Agora escute o que vou lhe dizer. Você vai me dar material sobre Paul. Falava muito distintamente, sem que sua voz perdesse nada do tom musical. Talvez ache que não, mas vai. Vou mandar darem duro em você até você falar. Está me entendendo?

Ned Beaumont sorriu. As condições do rosto tornavam o sorriso horrível. Ele disse:

Não falo.

O'Rory recuou e disse:

Dêem duro nele.

Enquanto Rusty hesitava, o amacacado Jeff bateu na mão erguida de Ned Beaumont, afastando-a para um lado, e o empurrou em cima da cama.

Vou experimentar-uma coisa disse.

Pegou as pernas de Ned Beaumont e as jogou sobre a cama. Se curvou sobre ele, as mãos trabalhando no corpo.

O corpo, os braços e as pernas de Ned Beaumont estremeceram convulsivamente e ele gemeu três vezes. Depois disso ficou quieto.

Jeff se endireitou e tirou as mãos de cima do homem deitado na cama. Ofegava pesadamente pela boca de macaco. Rosnou, meio queixoso, meio em desculpa:

Não adianta agora. Ele desmaiou de noto.

 

Quando Ned Beaumont recobrou a consciência, estava sozinho no quarto, com as luzes acesas. Tão penosamente quando antes, se arrancou da cama e atravessou o quarto até a porta. Estava fechada. Ele mexia na maçaneta quando ela se abriu de repente, o empurrando de costas contra a parede.

Jeff, em roupas de baixo e descalço, entrou.

Mas você não é mesmo uma maravilha? disse. Sempre com algum truquezinho. Nunca se cansa de ser jo­gado no chão? — Pegou-o pela garganta com a mão esquerda


e lhe golpeou o rosto com o punho direito, duas vezes,mas não com tanta força quanto antes. Depois o jogou para trás, sobre a cama. — E desta vez fique aí — resmungou.

Ned Beaumont ficou quieto, com os olhos fechados.

Jeff saiu, fechando a porta atrás de si.

Dolorosamente, Ned Beaumont saiu da cama e se enca­minhou para a porta. Experimentou-a. Depois recuou dois passos e tentou jogar-se contra ela, conseguindo apenas cam­balear até ela. Continuou tentando até que a porta foi nova­mente escancarada por Jeff.

Jeff disse:

Eu nunca vi um cara que gostasse de apanhar tanto, ou que eu gostasse de bater tanto. — Inclinou-se bastante para um lado e desferiu o punho desde o joelho.

Ned Beaumont permanecia cegamente no caminho do punho, que atingiu sua face e o jogou do outro lado do quarto. Ele ficou onde caiu. E ainda estava ali duas horas depois quando Whisky entrou.

Whisky o acordou com água do banheiro e o ajudou a ir para a cama.

Use a cabeça — pediu. — Esses arruaceiros vão ma­tar você. Não têm juízo nenhum.

Ned Beaumont olhou com um olho sangrento e opaco.

Deixe eles — conseguiu dizer.

Dormiu até ser acordado por O'Rory, Jeff e Rusty. Recusou-se a dizer a O'Rory qualquer coisa sobre os negócios de Paul Madvig. Arrastaram-no para fora da cama, espancaram até deixá-lo inconsciente, e o jogaram novamente na cama.

Isso se repetiu algumas horas depois. Não lhe trouxeram comida.

Indo do quarto ao banheiro, quando recuperou a cons­ciência após a última dessas surras, ele viu, no chão ao lado da base da pia, uma fina lâmina de barbear vermelha de meses de ferrugem. Pegá-la de trás da base foi uma tarefa que lhe tomou dez minutos inteiros, e seus nervos insensíveis falharam uma dúzia de vezes até conseguirem pegá-la do chão de azu­lejos. Tentou cortar a garganta com ela, mas a lâmina caiu de suas mãos depois que ele apenas arranhara o queixo em três partes. Deitou no chão do banheiro e soluçou até adormecer.

Quando tornou a acordar, podia se levantar, e se le­vantou. Molhou a cabeça com água fria e bebeu três copos d'água. Isso o fez sentir náusea, e em seguida começou a tremer de frio. Foi para o quarto e se deitou no colchão nu manchado de sangue, mas se levantou quase imediatamente para voltar cambaleando e tropeçando apressado ao banheiro, onde se pôs de quatro e vasculhou o chão até encontrar a lâmina de barbear enferrujada. Sentou-se no chão e guar­dou-a no bolso do colete. Ao fazer isso, seus dedos tocaram o isqueiro. Ele o tirou e olhou. Um brilhe malicioso surgiu no seu único olho aberto, enquanto olhava o isqueiro. Não era um brilho de sanidade.

Tremendo tanto que os dentes batiam, se levantou do chão do banheiro e voltou ao quarto. Riu asperamente quando viu o jornal debaixo da mesa onde o homem moreno amacacado e o sombrio rapaz de faces rosadas tinham jogado ba­ralho. Rasgando, amassando e embolando o jornal, levou-o até a porta e o pôs no chão. Em cada uma das gavetas da cômoda encontrou um pedaço de papel de embrulho dobrado, cobrindo o fundo. Embolou-os e os colocou junto ao jornal contra a porta. Com a lâmina de barbear, fez um rasgão no colchão, retirou os grandes bolos de algodão cinza que recheiam tais colchões e os levou até a porta. Não tremia mais, nem cambaleava, e usava as mãos com habilidade, mas aca­bou se cansando de estripar o colchão e arrastou o que restava dele com capa e tudo para a porta.

Deu uma risadinha então e, após a terceira tentativa, acendeu o isqueiro. Ateou fogo ao pé do monte contra a porta. A princípio ficou junto do monte, agachado sobre ele, mas à medida que a fumaça aumentou, recuou passo a passo, relutantemente, tossindo enquanto isso. Acabou entrando no ba­nheiro, onde encharcou uma toalha com água e enrolou em torno da cabeça, cobrindo os olhos, nariz e boca. Voltou cambaleando para o quarto, uma figura indefinida no ambiente enfumaçado, caiu contra a cama e sentou no chão ao lado dela.

Jeff o encontrou ali ao entrar.

O homem amacacado entrou praguejando e tossindo através do trapo que mantinha contra o nariz e a boca. Ao abrir a porta, empurrara a maior parte do monte ardente para trás, um pouco. Chutou mais um pouco para fora do seu caminho e pisou por cima do resto para chegar até Ned Beaumont. Pegou-o pela parte de trás da gola e o arrastou para fora do quarto.

Do lado de fora, ainda segurando pela parte de trás da gola, Jeff o colocou de pé a pontapés e fez que corresse até o fim do corredor. Ali, o empurrou por uma porta aberta. Gritou:

— Vou comer uma de suas orelhas quando voltar, seu bastardo.

Tornou a chutá-lo, voltou ao corredor, bateu a porta e girou a chave na fechadura.

Ned Beaumont, metido no quarto a chutes, escapou de uma queda se agarrando numa mesa. Endireitou o corpo mais um pouco e olhou em volta. A toalha tinha caído em torno do pescoço e sobre os ombros, como um cachecol. O quarto tinha duas janelas. Ele se dirigiu à mais próxima e tentou levantá-la. Estava fechada. Ele destrancou e tentou levantá-la. Lá fora era noite. Passou uma perna pelo batente, depois a outra, virou-se de modo a ficar de barriga para baixo sobre o ba­tente, escorregou até ficar pendurado pelas mãos, tateou com os pés em busca de algum apoio, não encontrou nenhum e se deixou cair.


 

Uma enfermeira fazia alguma coisa no rosto de Ned Beaumont.

Onde estou? — ele perguntou.

No Hospital São Lucas — ela disse. Era pequena, tinha olhos cor de avelã muito grandes e brilhantes, uma voz sem fôlego e abafada, e um cheiro de mimosa.

Que dia?

Segunda-feira.

Que mês e ano? — ele perguntou. Quando ela franziu a testa, ele acrescentou: — Oh, deixe pra lá. Há quanto tempo estou aqui?

Este é o terceiro dia.

Onde tem um telefone? — Ele tentou sentar.

Pare com isso — ela disse. — Não se pode usar o tele­fone, e não deve se excitar.

Então use você. Chame Hartford seis e diga ao sr. Madvig que preciso falar com ele imediatamente.

O sr. Madvig vem aqui todas as tardes — ela disse. — Mas não creio que o dr. Tait deixe o senhor falar com alguém ainda. Na verdade, já falou agora um bocado mais do que devia.

Que hora do dia é agora? Manhã ou tarde?

Manhã.

É muito tempo pra esperar — ele disse. — Chame ele agora.

O dr. Tait virá aqui daqui a pouco.

Não quero falar com o dr. Tait — ele disse, irritado. — Quero Paul Madvig.

Vai fazer o que lhe mandarem — ela respondeu. — Vai ficar deitado aí, e calado, até o dr. Tait chegar.

Ele armou uma carranca para ela.

Que bela enfermeira você é. Ninguém nunca lhe disse que não é bom pros pacientes que a gente discuta com eles?

Ela ignorou a pergunta.

Ele disse:

Além disso, você está machucando meu queixo.

Ela disse:

Se o senhor ficasse quieto, não doeria.

Ele ficou calado por um instante. Depois perguntou:

Que acham que aconteceu comigo? Ou não se adian­tou bastante ainda em suas lições pra saber?

Provavelmente uma briga de bêbados — ela disse, mas não pôde se manter séria depois disso. Deu uma risada e disse: — Mas, honestamente, o senhor não devia falar tanto, e não pode ver ninguém enquanto o médico não autorizar.

 

Paul Madvig chegou no início da tarde.

Deus, é um prazer ver você vivo de novo! — disse. Pegou a mão não enfaixada do inválido nas suas.

Ned Beaumont disse:

Eu estou bem. Mas escute o que a gente tem de fazer: pegar Walt Ivans, mandar levar ele até Braywood e mostrar ele aos negociantes de armas de lá. Ele...

Você já me disse tudo isso — disse Madvig. — Já foi feito.

Ned Beaumont franziu a testa.

Eu disse?

Claro... na manhã que te acharam. Levaram você pro pronto-socorro, e você não quis deixar que lhe fizessem nada enquanto não falasse comigo, e eu vim aqui e você me falou de Ivans e Braywood e caiu duro.

Desapareceu de minha mente — disse Ned Beau­mont. — Você grampeou eles?

Pegamos os Ivans, claro, e Walt Ivans falou, depois de ser identificado em Braywood, e o Grande Júri indiciou Jeff Gardner e dois joões-ninguém. Mas não vamos conseguir grampear Shad com isso. Gardner é o cara com quem Ivans tratou, e qualquer um sabe que ele não ia fazer nada sem ordem de Shad, mas provar isso é outra coisa.

Jeff é o cara que parece um macaco, não é? Já pe­garam ele?

Não. Shad escondeu ele depois que você fugiu, ima­gino. Eles pegaram você, não foi?

Um-hum. Na Dog House, em cima. Fui lá armar uma arapuca pro cavalheiro e foi ele quem armou uma pra mim. Franziu a testa. Me lembro que fui lá com Whisky Vassos, fui mordido por um cachorro, espancado várias vezes por Jeff e um rapaz loiro. Depois teve alguma coisa com um incêndio e... acho que é só isso. Quem me encontrou? E onde?

Um tira encontrou você se arrastando de quatro no meio da rua Colman às três da manhã, deixando atrás uma trilha de sangue.

Estou pensando em fazer umas coisas engraçadas disse Ned Beaumont.

 

A enfermeirinha de olhos grandes abriu cautelosamente a porta e enfiou a cabeça.

Ned Beaumont falou numa voz cansada:

Está bem... brincando de esconde-esconde! Não acha que está um pouco velha demais pra isso?

A enfermeira abriu mais a porta e ficou na soleira, segurando-a com uma mão.

Não admira que os outros batam no senhor disse. Eu queria ver se estava acordado. O sr. Madvig e... o tom sem fôlego tornou-se mais pronunciado em sua voz, e os olhos mais brilhantes e uma senhora estão aqui.

Ned Beaumont olhou com curiosidade e um pouco gozadoramente,

Que tipo de senhora?

É a srta. Janet Henry ela respondeu, como quem revela alguma inesperada brincadeira agradável.

Ned Beaumont se virou de lado, dando as costas para a enfermeira. Fechou os olhos. Um canto da boca contorcia-se, mas a voz soou vazia de expressão.

Diga a eles que ainda estou dormindo.

O senhor não pode fazer isso — ela disse. — Eles sabem que não está dormindo... mesmo que não tivessem ouvido o senhor falando... ou que eu já tivesse voltado.

Ele gemeu dramaticamente e se ergueu sobre um dos cotovelos.

Isso só vai fazer com que ela volte outra hora — resmungou. — É melhor acabar logo com isso.

A enfermeira, olhando-o com olhos de pouca importân­cia, disse ironicamente:

Tivemos de pôr policiais diante do hospital para con­ter todas as mulheres que querem ver o senhor.

Está muito bem você dizer isso — ele disse. — Talvez se impressione com filhas de senadores que estão nas colunas sociais todos os dias, mas nunca foi cercado por elas do jeito que eu fui. Digo a você que elas fizeram minha vida infeliz, elas e suas colunas sociais. Filhas de senadores, sempre filhas de senadores, nunca a filha de um deputado ou de um ministro de gabinete ou de um vereador, pra variar... nunca outra coisa que não... Acha que os senadores são mais políticos que...

O senhor não tem graça nenhuma — disse a enfer­meira. — É a maneira como penteia o cabelo. Vou mandar que entrem. — Deixou o quarto.

Ned Beaumont inspirou profundamente. Seus olhos brilhavam. Ele umedeceu os lábios, e depois os comprimiu num contido sorriso cheio de segredo, mas quando Janet Henry entrou no quarto o rosto dele era uma máscara de polidez casual.

Ela veio direto à sua cama, e disse:

Oh, sr. Beaumont, fiquei tão satisfeita ao saber que estava se recuperando bem, que simplesmente tive de vir. — Pôs uma mão na dele e sorriu. Embora seus olhos não fossem castanho-escuros, os cabelos loiros faziam parecer escuros. — Assim, se não queria que eu viesse, não deve culpar Paul. Fui eu que fiz com que ele me trouxesse.

Ned Beaumont lhe retribuiu o sorriso e disse:

Estou muitíssimo satisfeito que tenha feito isso. É muitíssima bondade sua.

Paul Madvig, seguindo Janet Henry dentro do quarto, fora para o outro lado da cama. Deu um sorriso afetuoso para ele e disse:

Eu sabia que você ficaria, Ned. Foi o que disse a ela. Como está hoje?

Ótimo. Puxem umas cadeiras.

Não podemos ficar respondeu o loiro. Tenho de me encontrar com M'Laughlin no Grandcourt.

Mas eu não disse Janet Henry. Tornou a dirigir seu sorriso para Ned Beaumont. Não posso ficar... um pouquinho?

Eu adoraria garantiu Ned Beaumont, enquanto Madvig, contornando a cama para oferecer uma cadeira à jovem, irradiava prazer com cada um dos dois e dizia:

Isso é ótimo.

Quando a garota sentou junto à cama, seu casaco negro pendurado no encosto da cadeira, Madvig olhou o relógio e falou:

Preciso correr. Apertou a mão de Ned Beaumont. Precisa de alguma coisa?

Não, obrigado, Paul.

Bem, melhoras. O loiro voltou-se para Janet Hen­ry, parou e tornou a falar a Ned Beaumont: Até onde acha que devo ir com M'Laughlin desta vez?

Ned Beaumont encolheu um pouco os ombros.

Até onde você queira, contanto que não ponha nada em termos claros. Isso ia assustar ele. Mas pode contratar ele até pra cometer assassinatos, se puser a coisa de uma maneira indireta, como por exemplo: "Se houvesse um cara chamado Smith, que morasse em tal e tal lugar, e ficasse doente ou alguma coisa assim. O cara não ficava bom, você aparecia por acaso pra falar comigo, e por sorte eu tinha um envelope endereçado a você aos meus cuidados. Como iria eu saber que ele continha quinhentos dólares?".

Madvig assentiu com a cabeça.

Não preciso de assassinos disse —, mas precisamos daquele voto ferroviário. Armou uma carranca. Queria que você estivesse de pé, Ned.

Vou estar dentro de um ou dois dias. Você viu o Observer esta manhã?

Não.

Ned Beaumont olhou em volta do quarto.

Alguém pegou ele. O lixo estava num editorial dentro de um box no meio da primeira página. Que vão nossas autoridades municipais fazer a respeito? Uma lista de crimes de um mês e meio, para mostrar que estamos tendo uma onda de crimes. E uma lista menor de quem foi preso, pra mostrar que a polícia não pode fazer muita coisa a esse respeito. A maior parte do berreiro é sobre o assassinato de Taylor Henry.

Quando o nome de seu irmão foi citado, Janet Henry piscou e abriu os lábios num leve suspiro. Madvig a olhou, e depois rapidamente para Ned Beaumont, movendo a cabeça num ligeiro gesto de advertência.

Ignorando o efeito de suas palavras sobre os outros, Ned Beaumont continuou:

Foram brutais a respeito. Acusaram a polícia de man­ter deliberadamente as mãos longe do assassino durante uma semana, pra que um jogador altamente situado nos círculos políticos aproveitasse pra acertar uma disputa com outro jogador... se referiam à minha ida atrás de Despain pra pegar meu dinheiro. Perguntavam o que o senador Henry achava do uso feito pelo seu novo aliado político do assassinato do filho dele pra esse fim.

Madvig, vermelho, remexendo em busca do relógio, disse apressadamente:

Vou arranjar um exemplar e ler. Preciso...

Também — prosseguiu serenamente Ned Beaumont — acusam a polícia de invadir... depois de ter protegido eles durante anos... os bares cujos donos não quiseram fazer contribuições à campanha. É assim que descrevem sua briga com Shad O'Rory. E prometem publicar uma lista de estabelecimentos que ainda estão funcionando porque os donos contri­buíram.

Madvig disse desconfortavelmente:

Bem, bem, até logo. — A Janet Henry: — Tenha uma boa visita. — E a Ned Beaumont: — Vejo você depois. — E saiu.

Janet Henry se curvou para a frente em sua cadeira.

Por que você não gosta de mim? — perguntou a Ned Beaumont.

Acho que talvez goste — ele disse.

Ela balançou a cabeça.

Não gosta. Eu sei.

Não pode julgar pelos meus modos ele disse. Eles sempre foram muito ruins.

Você não gosta de mim ela insistiu, sem corres­ponder ao sorriso dele. E quero que goste.

Ele se mostrou modesto.

Porquê?

Porque você é o melhor amigo de Paul ela respon­deu.

Paul ele disse, olhando-a enviesado tem um monte de amigos: é um político.

Ela moveu a cabeça, com impaciência.

Você é o melhor amigo dele. Fez uma pausa, e acrescentou: Ele acha isso.

E que acha você? ele perguntou, meio sério.

Acho que é mesmo ela disse gravemente —, ou então não estaria aqui agora. Não teria passado por isso tudo por ele.

Ele retorceu a boca num sorriso frouxo. Não disse nada.

Quando ficou claro que não ia falar, ela disse seriamente:

Eu gostaria que você gostasse de mim, se pudesse.

Ele repetiu:

Eu acho que talvez goste.

Ela balançou a cabeça.

Não gosta, não.

Ele sorriu. Seu sorriso era muito jovem e atraente, os olhos tímidos, a voz juvenil, retraída e confidente, quando disse:

Vou lhe dizer o que faz você pensar desse jeito, srta. Henry. É que... sabe, Paul me tirou da sarjeta, a gente pode dizer, há mais ou menos um ano, e por isso eu fico meio desajeitado e atrapalhado quando estou no meio de gente como você, que pertence a outro mundo, inteiramente... So­ciedade, colunas sociais e essas coisas todas... e você inter­preta erradamente essa... hum... gaucherie como inimizade, que não é de jeito nenhum.

Ela levantou e disse:

Está me ridicularizando.

Mas sem ressentimento.

Depois que ela se foi, Ned Beaumont se recostou nos travesseiros e ficou olhando o teto com olhos reluzentes até a chegada da enfermeira.

Ela entrou e perguntou:

Que esteve aprontando agora?

Ned Beaumont ergueu a cabeça para olhá-la mal-humoradamente, mas não falou.

A enfermeira disse:

Ela saiu daqui quase à beira das lágrimas.

Ned Beaumont tornou a baixar a cabeça sobre os traves­seiros.

Devo estar perdendo o jeito — ele disse. — Geral­mente faço as filhas dos senadores chorarem.

 

Um homem de estatura média, jovem e elegante, com um rosto fino e moreno, quase bonito, entrou.

Ned Beaumont se pôs sentado na cama e disse:

Olá,Jack.

Jack disse:

Você não parece tão ruim quanto eu achava que estava.

Ainda estou inteiro. Pegue uma cadeira.

Jack sentou e tirou um maço de cigarros.

Ned Beaumont disse:

Tenho outro serviço pra você. — Enfiou a mão sob os travesseiros e tirou um envelope.

Jack acendeu o cigarro antes de pegar o envelope na mão do outro. Era um envelope simples, branco, endereçado a Ned Beaumont, no Hospital São Lucas, e trazia o carimbo do correio local datado de dois dias antes. Dentro, uma única folha de papel datilografado, que Jack tirou e leu, dizia:

"Que sabe você sobre Paul Madvig que Shad O'Rory estava tão ansioso por saber?

Tem alguma coisa a ver com o assassinato de Taylor Henry?

Se não, por que você chegaria a tais extremos para manter a coisa em segredo?"

Jack tornou a dobrar a folha de papel e a enfiá-la no envelope, antes de erguer a cabeça. Depois perguntou:

Faz sentido?

Não que eu saiba. Quero que descubra quem escreveu isso.

Jack concordou com a cabeça.

Posso ficar com ela?

Pode.

Jack pôs o envelope no bolso.

Alguma idéia sobre quem poderia ser?

Absolutamente nenhuma.

Jack estudou a ponta acesa de seu cigarro.

É um serviço, você sabe acabou dizendo.

Eu sei concordou Ned Beaumont. E só posso dizer a você que teve um monte delas... ou várias delas... nas últimas semanas. Essa é a terceira que eu recebo. Sei que Farr recebeu pelo menos uma. Não sei quem mais tem recebido.

Posso ver alguma das outras?

Ned Beaumont disse:

Essa foi a única que guardei. Mas são muito iguais... o mesmo papel, a mesma máquina, três perguntas em cada, todas sobre o mesmo assunto.

Jack encarou Ned Beaumont com olhos inquisitivos.

Mas não exatamente as mesmas perguntas? per­guntou.

Não exatamente, mas todas dirigidas ao mesmo ponto.

Jack assentiu e puxou uma tragada do cigarro.

Ned Beaumont disse:

Você compreende que isso é pra ser estritamente confidencial.

Claro. Jack tirou o cigarro da boca. O "mesmo ponto" que você falou é a ligação de Madvig com o assas­sinato?

É respondeu Ned Beaumont, olhando direto o elegante jovem moreno —, e não tem ligação nenhuma.

O rosto moreno de Jack permaneceu impenetrável.

Não vejo como poderia ter disse, e se levantou.

 

A enfermeira entrou trazendo uma grande cesta de frutas.

Não é linda? disse.

Ned Beaumont concordou atenciosamente.

A enfermeira retirou um envelope compacto de dentro da cesta.

Aposto que é dela — disse, dando ó envelope a Ned Beaumont.

Aposta o quê?

Qualquer coisa que o senhor queira.

Ned Beaumont assentiu, como se alguma negra suspeita se confirmasse.

Você olhou — disse.

Ora, seu... — As palavras dela se interromperam quando ele riu, mas a expressão da moça permaneceu indig­nada.

Ele retirou o cartão de Janet Henry do envelope. Havia um só pedido escrito nele: Por favor! Franzindo a testa para o cartão, ele disse à enfermeira:

Você ganhou. — E bateu no cartão com a unha do polegar: — Sirva-se dessa porcaria e tire o bastante pra pare­cer que eu comi.

Mais tarde, naquela mesma tarde, ele escreveu:

"Minha cara srta. Henry,

Você me deixou esmagado com sua bondade — primeiro vindo me visitar, e depois com as frutas. Não sei absolutamente como lhe agradecer, mas espero poder algum dia lhe mostrar mais claramente minha gratidão.

Sinceramente seu,

Ned Beaumont"

Ao acabar, leu o que escrevera, rasgou e tornou a es­crever em outra folha de papel, usando as mesmas palavras, mas rearrumando-as para que a segunda frase terminasse: "poder algum dia lhe mostrar minha gratidão mais clara­mente".

 

Ned Beaumont, de roupão de banho e chinelos, lia nessa manhã um exemplar do Observer, tomando o café da manhã à mesa junto da janela, em seu quarto de hospital, quando Opal Madvig entrou. Ele dobrou o jornal, colocou-o virado para baixo na mesa junto à bandeja e se levantou, dizendo cordialmente:

Olá, pequena. Estava pálido.

Por que não me telefonou quando voltou de Nova Iorque? ela perguntou, num tom acusador. Também es­tava pálida. A palidez acentuava a textura infantil de sua pele, mas fazia o rosto parecer menos jovem. Tinha os olhos azuis arregalados e sombrios de emoção, mas não facilmente decifrável. Mantinha um ar orgulhoso, à maneira de alguém mais seguro de seu equilíbrio do que da estabilidade do chão embaixo dos pés. Ignorando a cadeira que ele puxou de perto da parede para ela, a jovem repetiu, imperativamente como antes: Por que não telefonou?

Ele riu para ela suavemente, indulgentemente, e disse:

Gosto de você nesse tom de marrom.

Oh, Ned, por favor...

Assim está melhor ele disse. Eu pretendia ir à sua casa, mas... bem... estava acontecendo um monte de coisas quando voltei, e tinha um monte de pontas soltas de outras que haviam acontecido enquanto estive fora, e quando acabei com elas me deparei com Shad 0'Rory e fui mandado pra cá. Acenou com o braço indicando o hospital.

A seriedade dela não foi afetada pela leveza do tom.

Vão enforcar aquele Despain? ela perguntou.

Ele tornou a rir e disse:

Não vamos chegar muito longe falando desse jeito.

Ela franziu a testa, mas disse com altivez:

Vão, Ned?

Não creio ele disse, balançando um pouco a ca­beça. Tudo indica que ele não matou Taylor mesmo.

Ela não pareceu surpresa.

Você sabia disso quando me pediu pra... pra ajudar a... arranjar... ou plantar... provas contra ele?

Ele sorriu repreensivamente.

É claro que não, pequena. Que acha que eu sou?

Não sabia. A voz dela era fria e indiferente como os olhos azuis. Só queria pegar o dinheiro que ele lhe devia, e me fez usar o assassinato de Taylor pra isso.

Entenda como quiser ele respondeu com desdém.

Ela deu um passo na direção dele. Um leve tremor agitou

o seu queixo por um instante, e depois o rosto jovem tornou-se novamente firme e ousado.

Você sabe quem matou ele? perguntou, os olhos sondando os dele.

Ele balançou a cabeça, devagar, de um lado para outro.

Papai?

Ele piscou.

Quer dizer, se Paul sabe quem matou ele?

Ela bateu o pé.

Quero dizer se papai matou ele? — ela gritou.

Ele tapou-lhe a boca com a mão. Seus olhos focalizando a porta fechada.

Cale a boca — murmurou.

Ela tirou a mão dele, de seu rosto com uma das suas.

Matou? — insistiu.

Numa voz baixa e irada, ele disse:

Se tem de ser uma débil mental, pelo menos não vá sair por aí com um megafone. Ninguém dá a mínima pra suas idéias idiotas, contanto que guarde elas pra si mesma, mas tem de guardar elas pra si mesma.

Ela tinha os olhos arregalados e sombrios.

Então foi ele quem matou mesmo — disse numa voz baixa e chã, mas com absoluta certeza.

Ele aproximou o rosto do dela.

Não, minha cara. — A voz estava furiosa e adocicada. — Paul não matou ele. — Segurava o rosto dela junto do seu. Um sorriso mau distorcia suas feições.

Com voz e expressão firmes, não recuando dele, ela disse:

Se ele não matou, não entendo que diferença faz o que eu diga ou em que altura de voz.

Ele torceu um canto da boca.

Ficaria surpresa se soubesse quantas coisas existem que você não pode entender — disse furioso — e nunca enten­derá, se continuar desse jeito.

Recuou dela, um longo passo, e enfiou os punhos nos bolsos do roupão. Tinha os cantos da boca caídos, e se viam rugas em sua testa. Os olhos estreitados fitavam o chão em frente aos pés dela.

De onde você tirou essa idéia maluca? — resmungou.

Não é uma idéia maluca. Você sabe que não é.

Ele moveu os ombros com impaciência e perguntou:

De onde tirou?

Ela também deu de ombros.

Não tirei de lugar nenhum. Eu... eu de repente vi.

Bobagem — ele disse de um modo cortante, olhan­do-a por baixo das sobrancelhas. Você viu o Observer hoje de manhã?

Não.

Ele a encarou com olhos duros e céticos.

O rosto dela começou a corar de aborrecimento.

Não vi, não. Por que pergunta?

Não?. O tom de voz dizia que não acreditava nela, mas o brilho de ceticismo desaparecera de seus olhos, que estavam opacos e pensativos. De repente se iluminaram. Ele tirou a mão direita do bolso do roupão, e estendeu-a para ela, a palma virada para cima.

Me mostre a carta disse.

Ela o olhou firme, de olhos arregalados.

Quê?

A carta ele disse —, a carta datilografada... três perguntas e sem assinatura.

Ela baixou os olhos para evitar os dele, e o embaraço perturbou muito levemente suas feições. Após um momento de hesitação, perguntou:

Como você sabia? E abriu a bolsa marrom.

Todo mundo na cidade recebeu pelo menos uma ele disse com indiferença. Essa aí é a primeira que rece­beu?

É. Ela lhe entregou uma folha de papel amassada.

Ele a desamassou e leu:

"Será você realmente estúpida demais para não saber

que seu pai matou seu namorado?

Se não sabe, por que ajudou a ele e a Ned Beaumont na tentativa que fizeram de atribuir o crime a um inocente?

Sabe que, ajudando seu pai a escapar da justiça, está se tornando cúmplice do crime dele?"

Ned Beaumont assentiu com a cabeça e deu um leve sorriso.

São bastante parecidas. Fez uma bola com o papel e jogou-a na cesta de lixo ao lado da mesa. Provavelmente vai receber mais delas, agora que está na lista de correspondência.

Opal Madvig prendeu o lábio inferior entre os dentes. Seus olhos azuis brilhavam sem calor. Estudavam o rosto de Ned Beaumont.

Ele disse:

O'Rory está tentando extrair material de campanha disso. Você sabe de meu problema com ele. Foi porque ele pensou que eu tinha rompido com seu pai e podia ser com­prado pra ajudar a envolver Paul no assassinato... pelo menos o bastante pra vencer ele na eleição... e eu não quis.

Os olhos dela não se alteraram.

Por que você e papai brigaram? — perguntou.

Não é da conta de ninguém, pequena — ele disse delicadamente —, se a gente brigou.

Brigaram, sim, na espelunca de Carson. — Cerrou os dentes com um estalido e disse ousadamente: — Brigaram quando você descobriu que ele realmente tinha... tinha ma­tado Taylor.

Ele deu uma risada e perguntou em tom de brincadeira:

E eu não sabia disso o tempo todo?

A expressão dela não foi alterada pelo humor dele.

Por que perguntou se eu tinha visto o Observer? Que é que tem nele?

Um pouco mais desse mesmo tipo de besteira — ele disse, calmamente. — Está ali em cima da mesa, se quiser dar uma olhada. Vai ter muita coisa assim até o fim da campa­nha: vai ser desse jeito. E você vai dar a seu pai uma ótima vantagem, aceitando... — Interrompeu-se com um gesto de impaciência, porque ela não mais o ouvia.

Tinha se dirigido à mesa e pegava o jornal que ele largou quando ela havia entrado.

Ele sorriu divertido às costas dela e disse:

Está na primeira página, Carta Aberta ao Prefeito.

Enquanto lia, ela começou a tremer — os joelhos, as mãos, a boca — de modo que Ned Beaumont franziu a testa, apreensivo, mas quando ela acabou e jogou o jornal em cima da mesa para olhá-lo de frente, o corpo alto e o rosto loiro pareciam de estátua, em sua imobilidade. Ela falou com ele numa voz baixa, entre os lábios, que mal se moviam para deixar passar as palavras.

Eles não se atreveriam a dizer essas coisas se não fossem verdade.

Isso não é nada diante do que ainda vão dizer antes de acabarem. — A voz estava arrastada e preguiçosa. Parecia divertido, embora houvesse sinais de uma raiva difícil de conter no brilho dos olhos.

Ela o olhou por um longo instante, e depois, sem nada dizer, voltou-se em direção à porta.

Ele disse:

Espere.

Ela parou e o enfrentou de novo. O sorriso dele era amis­toso agora, aliciante. O rosto dela era o de uma estátua pintada.

Ele disse:

A política é um jogo duro, pequena, da maneira como se joga aqui agora. O Observer está do outro lado da cerca, e eles não estão se preocupando muito com a verdade de qual­quer coisa desde que prejudique Paul. Eles...

Eu não acredito nisso. Conheço o sr. Mathews... a mulher dele estava apenas uns poucos anos na minha frente na escola, e éramos amigas... e não acredito que ele dissesse qualquer dessas coisas sobre papai se não fosse verdade, ou se não tivesse um bom motivo pra achar que são.

Ned Beaumont deu uma risadinha.

Você sabe um bocado sobre isso. Mathews está afun­dado até as orelhas em dívidas. A State Central Trust Company tem hipotecas sobre a oficina dele... e uma sobre a casa dele também, aliás. A State Central pertence a Bill Roan, que concorre ao Senado contra Henry. Mathews faz o que mandam ele fazer, e publica o que mandam ele publicar.

Opal Madvig não disse coisa alguma. Nada indicava que tivesse sido convencida pelos argumentos de Ned Beaumont.

Ele prosseguiu, falando num tom amigável, persuasivo:

Isso ele indicou o jornal na mesa com um dedo não é nada em comparação com o que virá depois. Vão cho­calhar os ossos de Taylor Henry até pensarem em alguma coisa melhor, e nós vamos ter esse tipo de matéria pra ler até acabar a eleição. É melhor a gente ir se acostumando, e você, mais que ninguém, não deve deixar que lhe aborreçam com isso. Paul não se importa muito. É um político e...

É um assassino ela disse, numa voz baixa e dis­tinta.

E a filha dele é uma idiota! ele exclamou irritado. Quer parar com essa tolice?

Meu pai é um assassino.

Você é louca. Escute, pequena. Seu pai não teve nada, absolutamente nada, a ver com o assassinato de Taylor Henry. Ele...

Não acredito em você — ela disse seriamente. — Nunca mais vou acreditar em você.

Ele fez uma carranca para ela. Ela se virou e marchou para a porta.

Espere. Me deixe...

Ela saiu e bateu a porta atrás de si.

 

O rosto de Ned Beaumont, após uma careta de raiva para a porta fechada, se tornou profundamente pensativo. Surgi­ram rugas em sua testa. Os olhos negros se tornaram estreitos e introspectivos. Os lábios se franziram sob o bigode. Ele acabou levando um dedo à boca e mordendo a unha. Respirava regularmente, porém de um modo mais profundo que o habitual.

Soaram passos do outro lado da porta. Ele abandonou sua aparência pensativa e se encaminhou como quem não quer nada até a janela, cantarolando Little Lost Lady. Os passos não pararam em sua porta. Ele parou de cantarolar e se curvou para pegar a folha de papel com as três perguntas que haviam sido endereçadas a Opal Madvig. Não alisou o papel, mas enfiou-o, embolado frouxamente como estava, num dos bolsos do roupão.

Encontrou e acendeu um charuto, e com ele acesso entre os dentes ficou junto à mesa, olhando enviesado, através da fumaça, a primeira página do Observer.

UMA CARTA ABERTA AO PREFEITO

"Senhor,

O Observer recebeu certas informações que julga serem de capital importância para esclarecer o mistério que cerca o recente assassinato de Taylor Henry.

Essas informações estão limitadas a vários depoimentos por escrito ora no cofre de segurança do Observer. A essência desses depoimentos é a seguinte:

  1. Que Paul Madvig brigou com Taylor Henry há alguns meses devido às atenções que o jovem dedicava à sua filha, e proibiu a filha de tornar a ver Henry.

Que a filha de Paul Madvig, apesar disso, continuou a se encontrar com Taylor Henry num quarto mobiliado que ele alugara para isso.

Que estiveram juntos nesse quarto mobiliado na tarde do mesmo dia em que ele foi assassinado.

Que Paul Madvig foi para a casa de Taylor Henry naquela noite, supostamente para discutir com o jovem, ou com o pai dele, novamente.

Que Paul Madvig parecia furioso quando deixou a residência de Henry poucos minutos antes de Taylor Henry ser assassinado.

Que Paul Madvig e Taylor Henry foram vistos a meia quadra um do outro, menos de uma quadra do local onde se encontrou o corpo do jovem, não mais de quinze minu­tos antes do corpo ser encontrado.

Que o Departamento de Polícia não tem atualmente um único detetive empenhado em tentar descobrir o assassino de Taylor Henry.

O Observer acredita que o senhor deve saber dessas coisas, e que os eleitores e contribuintes também devem sabê-las. O Observer não tem sede de vingança, nenhum outro motivo além de ver que se faça justiça. O Observer aguardará a oportunidade de entregar esses depoimentos, assim como todas as outras informações de que dispõe, ao senhor ou a qualquer autoridade qualificada municipal ou estadual, e, se se puder mostrar que tal atitude constitui uma ajuda à justiça, se absterá de publicar qualquer um ou todos os detalhes desses depoimentos.

Mas o Observer não deixará que se ignorem as informa­ções contidas em tais depoimentos. Se as autoridades eleitas e nomeadas para fazer vigorar a lei e a ordem nesta cidade e neste Estado não considerarem esses depoimentos suficientemente importantes para que se tomem iniciativas com base neles, o Observer levará o assunto àquele tribunal maior, o Povo desta Cidade, publicando-os na íntegra.

  1. K. MATHEWS, Editor"

Ned Beaumont resmungou e soprou fumaça de charuto nessa declaração, mas seus olhos permaneceram sombrios.

 

No início dessa tarde a mãe de Paul Madvig veio visitar Ned Beaumont.

Ele abraçou-a e beijou ambas as faces até que ela o repe­liu, dizendo com fingida severidade:

Pare com isso. Você é pior que o Airedale que Paul tinha.

Eu sou parte Airedale do lado de meu pai. — E se pôs atrás dela para ajudá-la a tirar o casaco de pele de foca.

Alisando o vestido negro, ela foi até a cama e sentou,

Ele pendurou o casaco nas costas de uma cadeira e ficou parado — pernas abertas, mãos nos bolsos do roupão — diante dela.

Ela o estudou criticamente.

Você não parece tão mal — acabou dizendo — nem tão bem ainda. Como se sente?

Ótimo. Só estou demorando aqui por causa das enfer­meiras.

Isso não me surpreenderia muito. Mas não fique aí me olhando como um gato Cheshire. Me deixa nervosa. Sente-se. — Bateu na cama a seu lado.

Ele se sentou junto dela.

Ela disse:

Parece que Paul acha que você fez alguma coisa muito grandiosa e nobre, fazendo o que quer que tenha feito, mas não venha me dizer que, se tivesse se comportado, teria entrado em seja qual for a encrenca que se meteu.

Ora, mãe...—ele começou.

Ela o cortou. O olhar de seus olhos azuis, jovens como os do filho, penetrou nos negros de Ned Beaumont.

Escute aqui, Ned, Paul não matou aquele malandro, matou?

A surpresa fez com que se abrissem os olhos e a boca de Ned Beaumont.

Não.

Eu não acreditava — disse a velha. — Ele sempre foi um bom menino, mas eu soube que estão correndo umas insinuações maldosas, e só Deus sabe o que acontece na política. Eu, certamente, não tenho a menor idéia.

O espanto, tingido de malícia, sé mostrava nos olhos com que Ned Beaumont fitava o rosto ossudo dela.

Ela disse:

Bem, pode ficar me olhando, mas eu não tenho ne­nhum meio de saber o que vocês homens estão aprontando, ou o que fazem sem sequer pensar. Muito tempo antes de vocês terem nascido eu já tinha desistido de descobrir.

Ele deu tapinhas no ombro dela.

Você é uma pessoa maravilhosa, mãe ele disse, com admiração.

Ela se encolheu da mão dele e tornOu a encará-lo com olhos penetrantes.

Você me diria se ele tivesse matado Taylor Henry?

Ele balançou a cabeça dizendo que não.

Então como vou saber se não matou?

Ele riu.

Porque explicou se ele tivesse matado eu ainda diria "não", mas aí, se me perguntasse se eu lhe diria a verdade, eu responderia "sim". A alegria abandonou seus olhos e sua voz. Ele não fez isso, mãe. Sorriu para ela. Sorriu com os lábios apenas, e eles se mostravam finos, contra os dentes. Seria ótimo se alguém na cidade, além de mim, achasse que não foi ele, e seria especialmente ótimo se essa outra pessoa fosse a mãe dele.

 

Uma hora após a partida da sra. Madvig, Ned Beaumont recebeu um pacote contendo quatro livros e o cartão de Janet Henry. Escrevia um bilhete para ela, agradecendo, quando Jack chegou.

Soltando as palavras com a fumaça do cigarro, Jack disse:

Acho que descobri alguma coisa, mas não sei se você vai gostar.

Ned Beaumont olhou pensativo o jovem elegante e alisou a banda esquerda do bigode com um indicador.

Se for o que contratei você pra descobrir, vou gostar muito. Sua voz era tão objetiva quanto a de Jack. Senta aí e me conta.

Jack sentou-se cuidadosamente, cruzou as pernas, pôs o chapéu no chão e ergueu os olhos do cigarro para Ned Beaumont. Disse:

Parece que essas coisas foram escritas pela filha de Madvig.

Ned Beaumont arregalou um pouco os olhos, mas apenas por um instante. O rosto perdeu um pouco de cor e a respi­ração tornou-se irregular. Não houve mudança na voz.

Que é que lhe dá impressão?

De um bolso interno, Jack tirou duas folhas de papel idênticas em tamanho e fabricação, dobradas igual. Deu-as a Ned Beaumont, que, ao desdobrá-las, viu em cada uma três perguntas datilografadas, as mesmas em ambas.

Uma delas é a que você me deu ontem — disse Jack. — Pode dizer qual?

Ned Beaumont balançou a cabeça vagarosamente de um lado para outro.

Não têm diferença — disse Jack. — Eu escrevi a outra na rua Charter, onde Taylor Henry tinha um quarto que era freqüentado pela filha de Madvig... com uma máquina de escrever Corona que tem lá, e em papel que tem lá. Até onde se sabe, o lugar só tem duas chaves. Ele tinha uma, e ela a outra. Ela voltou lá pelo menos umas duas vezes depois que ele foi morto.

Franzindo agora a testa para as folhas de papel que segurava, Ned Beaumont assentiu com a cabeça, sem erguer os olhos.

Jack acendeu outro cigarro com o que estivera fumando, levantou-se e foi até a mesa esmagar o anterior no cinzeiro que havia ali, e depois voltou para a sua cadeira. Nada em seu rosto ou em seus modos indicava que tinha qualquer interesse na reação do outro à sua descoberta.

Após outro minuto de silêncio, Ned Beaumont ergueu a cabeça um pouco e perguntou:

Como conseguiu isso?

Jack pôs o cigarro no canto da boca, onde ele ficou balançando com as palavras.

A dica do Observer sobre o quarto, hoje de manhã, me deu a pista. Foi onde a polícia achou a dela também, mas ela chegou lá primeiro. Mas eu tive uma vantagem muito boa: o tira que ficou de guarda é um amigo meu... Fred Hurley... e por dez mangos me deixou fuçar lá dentro à vontade.

Ned Beaumont sacudiu os papéis que tinha na mão.

A polícia sabe disso? — perguntou.

Jack deu de ombros.

Eu não disse a eles. Interroguei Hurley, mas ele não sabia de nada... tinha sido apenas posto ali pra tomar conta até decidirem o que iam fazer. Talvez saibam, talvez não. Jogou a cinza do cigarro no chão. Eu podia descobrir isso.

Deixe pra lá. Que mais desencavou?

Não procurei mais nada.

Ned Beaumont, após uma rápida olhada ao rosto do rapaz moreno, baixou o olhar de novo para as folhas de papel.

Que tipo de pocilga é essa?

Mil trezentos e vinte e quatro. Eles tinham um quarto com banheiro sob o nome de French. A mulher que dirige o lugar diz que não sabia quem eles eram na verdade até a polícia aparecer hoje. Talvez não soubesse mesmo. É o tipo de casa onde não se faz muita pergunta. Ela diz que eles iam lá muitas vezes, principalmente de tarde, e que a garota voltou lá umas duas vezes na semana passada, pelo que ela sabe, embora pudesse aparecer e sair sem ser vista com muita faci­lidade.

Tem certeza de que é ela?

Jack fez um gesto descompromissado com a mão.

A descrição corresponde. Fez uma pausa, e depois acrescentou cuidadosamente, soltando a fumaça do cigarro: Ê a única que a mulher viu desde que ele foi assassinado.

Ned Beaumont tornou a erguer a cabeça. Tinha os olhos duros."

Taylor recebia outras lá?

Jack tornou a fazer o gesto descompromissado.

A mulher diz que não. Diz que não sabia, mas pela maneira como disse, é quase certo que mentia.

Não se pode dizer pelo que tem no quarto?

Jack balançou a cabeça.

Não. Não tem muita coisa de mulher lá... só um quimono e artigos de toalete e pijamas, e coisas assim.

Muitas?

Oh, um terno e um par de sapatos, umas roupas de baixo, meias e coisas assim.

Chapéus?

Jack sorriu.

Nenhum disse.

Ned Beaumont se levantou e foi até a janela. Lá fora, a escuridão era quase completa. Gotas de chuva grudavam-se à vidraça e muitas outras batiam levemente enquanto ele permaneceu ali. Tornou a voltar-se de frente para Jack.

Muito obrigado, Jack — disse devagar. Focalizava os olhos no rosto do outro, um olhar distraído. — Acho que talvez tenha outro serviço pra você breve... talvez hoje de noite. Dou uma ligada pra você.

Jack disse:

Certo — levantou-se e saiu.

Ned Beaumont foi até o armário para pegar suas roupas, levou-as para o banheiro e as vestiu. Quando saiu, uma enfermeira estava no quarto, uma mulher alta e corpulenta, com um rosto pálido e lustroso.

Ora, o senhor está vestido! — ela exclamou.

É, preciso sair.

À surpresa juntou-se alarme na expressão dela.

Mas não pode, sr. Beaumont — protestou. — Já é de noite e está começando a chover, e o dr. Tait...

Eu sei, eu sei — ele disse com impaciência, e passou por ela, dirigindo-se à porta.

 

A sra. Madvig abriu a porta da frente.

Ned! — exclamou. — Está louco? Andando por aí assim numa noite dessas, e mal saiu do hospital.

O táxi não tinha goteiras — ele disse, mas seu sorriso carecia de firmeza. — Paul está?

— Ele saiu há mais de meia hora. Acho que foi pro Club. Mas entre, entre.

Opal está em casa? — ele perguntou, enquanto fe­chava a porta e a acompanhava pelo corredor.

Não. Foi a alpum lugar, desde de manhã.

Ned Beaumont parou na porta da sala de estar.

Não posso ficar — disse. — Vou dar uma corrida até o Club e ver Paul lá. — Não tinha a voz lá muito firme.

A velha voltou-se rapidamente para ele.

Não vai fazer nada disso — disse, numa voz repreensiva. — Olhe só pra você, está pra pegar um resfriado. Vai se sentar direitinho aqui junto ao fogo e deixar que eu lhe traga alguma coisa quente pra beber.

Não posso, mãe. Tenho coisas a fazer.

Os olhos azuis dela, nos quais a idade não aparecia, tor­naram-se brilhantes e penetrantes.

Quando deixou o hospital? — perguntou.

Agora mesmo.

Ela comprimiu os lábios, tornou a abri-los e disse acusadoramente:


Você não teve alta.

Uma sombra turvou o límpido azul de seus olhos. Ela se aproximou dele e segurou o rosto dele junto ao seu: era quase tão alta quanto ele. Tinha a voz áspera agora, embora viesse vacilante.

É alguma coisa sobre Paul? — A sombra em seus olhos tornou-se reconhecível como medo. — E Opal?

A voz dele saiu quase inaudível.

É alguma coisa que tenho de discutir com eles.

Ela tocou uma das faces dele, meio timidamente, com dedos ossudos.

Você é um bom rapaz, Ned.

Ele passou um braço em torno dela.

Não se preocupe, mãe. Nada disso é tão ruim quanto poderia ser. Apenas... se Opal voltar pra casa faça ela ficar aqui... se puder.

É alguma coisa que você possa me dizer, Ned? — ela perguntou.

Agora, não, e... bem... talvez seja melhor não deixar nenhum deles saber que você acha que alguma coisa está errada.

 

Ned Beaumont caminhou quatro quadras debaixo de chuva e entrou numa mercearia. Usou o telefone dali primeiro para pedir um táxi, e depois para fazer duas ligações e pedir para falar com o sr. Mathews. Não conseguiu.

Ele discou outro número e chamou o sr. Rumsen. Um momento depois, dizia:

— Olá, Jack, aqui é Ned Beaumont. Ocupado?... Óti­mo. É o seguinte. Quero saber se a garota da qual falamos foi ver Mathews, do Observer, hoje, e o que fez depois, se foi... Certo, Hal Mathews. Tentei falar com ele pelo telefone, lá e na casa dele, mas não consegui... Bem, na moita, se puder, mas descubra e descubra rápido... Não, saí do hospital. Esta­rei em casa esperando. Você sabe meu número... Sim, Jack. Ótimo, obrigado, e me chame tantas vezes quanto possa... Até...

Foi para o táxi, que o esperava, entrou e deu seu ende­reço ao motorista, mas após meia dúzia de quadras bateu no vidro com os dedos e deu outro endereço.

O táxi parou finalmente na frente de uma casa térrea cinza, no centro de um terreno de macio gramado.

Espere aqui ele disse ao motorista, ao sair.

A porta da casa acinzentada foi aberta, quando ele tocou a campainha, por uma criada ruiva.

O sr. Farr está? ele perguntou.

Vou ver. A quem devo anunciar?

O sr. Beaumont.

O Promotor Distrital entrou na sala de recepção com ambas as mãos estendidas. Seu rosto rosado e tenaz era todo sorrisos.

Ora, ora, Beaumont, é um verdadeiro prazer disse, indo até ele. Vamos, me dê seu casaco e chapéu.

Ned Beaumont sorriu e balançou a cabeça.

Não vou poder ficar disse. Passei só por um segundo na volta do hospital.

Inteiramente em forma de novo? Esplêndido!

Estou me sentindo muito bem disse Ned Beau­mont. Alguma novidade?

Nada muito importante. Os caras que pegaram você ainda "estão soltos... escondidos em algum canto... mas vamos pegar eles.

Ned Beaumont fez um gesto depreciativo com a boca.

Eu não morri, e eles não tentaram me matar: você só poderia pegar eles com uma acusação de agressão. Olhou meio sonolento para Farr. Recebeu alguma outra daquelas cartas com três perguntas?

O Promotor Distrital pigarreou.

Hum... sim, pensando bem, recebi mais uma ou duas delas.

Quantas? perguntou Ned Beaumont. A voz soou polidamente casual. Erguera os cantos dos lábios um pouco, num leve sorriso. Os olhos brilhavam divertidos, mas seus olhos seguravam os de Farr.

O Promotor Distrital pigarreou.

Três disse relutantemente. Depois seus olhos se iluminaram. Soube do esplêndido comício que fizemos em...?

Ned Beaumont o interrompeu.

Todas na mesma linha?

Hum... mais ou menos. O Promotor Distrital lambeu os lábios e uma expressão de súplica começou a surgir em seus olhos.

Quanto mais... ou menos?

Os olhos de Farr deslizaram dos de Ned Beaumont para a gravata dele, e depois para o ombro esquerdo. Ele moveu os lábios vagamente, mas não emitiu um som.

O sorriso de Ned Beaumont era abertamente malicioso agora.

Todas dizendo que Paul matou Taylor Henry? — perguntou, numa voz adocicada.

Farr deu um salto, o rosto empalideceu até um laranja- claro, e em sua excitação ele deixou os olhos espantados foca­lizarem os de Ned Beaumont outra vez.

Deus do céu, Ned!

Ned Beaumont deu uma risada.

Está ficando nervoso, Farr — ele disse, ainda com a voz adocicada. — É melhor se cuidar, senão vai cair em pe­daços. — Tornou-se sério. — Paul lhe disse alguma coisa sobre isso? Sobre seus nervos, quero dizer.

Nã-não.

Ned Beaumont tornou a sorrir.

Talvez ele não tenha notado ainda. — Ergueu um braço, olhou seu relógio de pulso, e depois para Farr. — Já descobriu quem escreveu elas? — perguntou cortante.

O Promotor Distrital gaguejou:

O-olhe aqui, Ned. Eu não... você sabe... não é... — engasgou e parou.

Ned Beaumont perguntou:

Então?

O Promotor Distrital engoliu em seco e disse, desespe­rado:

Descobrimos alguma coisa, Ned, mas é cedo demais para saber. Talvez não seja nada. Você sabe como são essas coisas.

Ned Beaumont assentiu com a cabeça. Em seu rosto só havia amistosidade agora. A voz era plana e fria, sem indi­ferença, quando disse:

Você descobriu onde elas foram escritas e a máquina em que foram escritas, mas foi só isso que descobriu até agora. Não tem material bastante sequer pra supor quem es­creveu.

Certo, Ned Farr despejou, com um ar de grande alívio.

Ned Beaumont pegou a mão de Farr e balançou-a cordialmente.

A coisa é essa disse. Bem, tenho de correr. Você não pode errar indo devagai, assegurando-se de que está certo antes de seguir em frente. Aceite minha palavra sobre isso.

O rosto e a voz do Promotor Distrital estavam cheios de emoção.

Obrigado, Ned, obrigado.

 

Às nove e dez dessa noite, o telefone na sala de estar de Ned Beaumont tocou. Ele correu a atender.

Alô... Sim, Jack... Sim... Sim... Onde?... Sim, isso é ótimo... É só por esta noite... Muito obrigado.

Quando se levantou do telefone, sorria com lábios páli­dos. Os olhos brilhavam, irrequietos. As mãos tremiam um pouco.

O telefone tornou a tocar antes que ele desse o terceiro passo. Ele hesitou, voltou ao aparelho.

Alô... Oh, alô, Paul... É, cansei de bancar o invá­lido... Nada especial... pensei só em dar uma passadinha pra ver você... Não, receio que não possa. Não estou me sentindo tão forte quanto julgava que estava, e por isso acho melhor ir pra cama... Sim, amanhã, claro... Até...

Vestiu o casaco e pôs o chapéu quando já descia. O vento açoitava a chuva em cima dele quando abriu a porta da rua, e batia em seu rosto quando ele andou meia quadra até a garagem da esquina.

No escritório envidraçado da garagem, um homem desengonçado, de cabelos castanhos e macacão outrora branco, se reclinava para trás numa cadeira de pau, os pés numa prateleira acima de um aquecedor elétrico, lendo um jornal. Ele baixou o jornal quando Ned Beaumont disse:

Olá, Tommy.

A sujeira no rosto de Tommy fazia seus dentes parecerem mais brancos do que eram. E ele exibiu muitos deles num sorriso e disse:

Meio chuvosa esta noite.

É. Tem um carro que possa me arranjar? Um que me leve por estradas de terra esta noite?

Tommy disse:

Deus do céu! É sorte sua escolher essa noite. Podia ter de escolher uma ruim. Bem, eu tenho um Buick que não ligo muito pro que acontecer a ele.

Mas ele me leva lá?

Quase tanto quanto qualquer outro numa noite desta.

Tudo bem. Encha o tanque pra mim. Qual é a melhor estrada pra subir pra Lazy Creek numa noite desta?

Até onde?

Ned Beaumont olhou pensativamente o garagista e disse:

Mais ou menos até onde dá no rio.

Tommy assentiu:

A casa de Mathews? — perguntou.

Ned Beaumont não disse nada.

Tommy disse:

É importante saber pra que lugar você vai.

É? A casa de Mathews. — Ned Beaumont franziu a testa. — Isso é por baixo do pano, Tommy.

Você me procurou porque achava que eu falaria ou porque sabia que não? — perguntou Tommy, esquentado.

Ned Beaumont disse:

Estou com pressa.

Então pegue a estrada do Rio Novo até Barton, pegue a estrada de terra que passa pela ponte... se puder ver ela... e depois a primeira encruzilhada, voltando pra esquerda. Isso vai levar você atrás da casa de Mathews, mais ou menos por cima do topo do morro. Se não encontrar a estrada de terra com este tempo, vai ter de subir a estrada do Rio Novo até onde ela cruza e depois voltar pela velha.

Obrigado.

Quando Ned Beaumont entrava no Buick, Tommy lhe disse num tom marcadamente casual:

Tem um revólver de reserva no bolsão do lado.

Ned Beaumont olhou o homem desengonçado.

De reserva? — perguntou sem expressão.

— Boa viagem — disse Tommy. Ned Beaumont fechou a porta e partiu.

 

O relógio no painel marcava dez e trinta e dois. Ned Beaumont apagou os faróis e saiu um tanto rigidamente do Buick. A chuva, jogada pelo vento, martelava árvores, matagais, chão, homem e carro com pancadas de água incessantes. Morro abaixo, em meio à chuva e à folhagem, brilhavam fra­camente manchas irregulares de luz amarela. Ned Beaumont tremia, tentava apertar mais a capa de chuva contra o corpo, e começou a descer o morro aos tropeções, pelo mato enchar­cado, em direção às manchas de luz.

O vento e a chuva, às suas costas, o empurravam encosta abaixo em direção às manchas. Ã medida que descia, a rigi­dez o abandonava aos poucos, e assim, embora ele tropeçasse e cambaleasse muitas vezes, deparando-se com obstáculo aos seus pés, mantinha-os funcionando e os movia com bastante habilidade, se bem que de um jeito meio sem rumo.

Acabou encontrando uma trilha. Dobrou para ela, seguindo-a em parte pelo chão escorregadio debaixo dos pés, e em parte pela sensação do matagal roçando seu rosto de ambos os lados, mas de modo algum pela visão. A trilha o levou para a esquerda por uma certa distância, mas então, fazendo uma larga curva, conduziu-o à beira de uma pequena garganta, pela qual a água se precipitava ruidosamente, e dali, em outra curva, para a porta da frente da casa onde a luz amarela brilhava.

Ned Beaumont foi direto à porta e bateu.

Abriu-a um homem grisalho e de óculos, de rosto bon­doso e acinzentado, e os olhos que espiavam ansiosos, através de lentes cercadas por aros de tartaruga claros, eram cinza. Ele vestia um terno marrom alinhado e de boa qualidade, mas o corte não era da moda. Um lado do colarinho duro um tanto alto fora molhado em quatro lugares por gotas d'água. Ele se pôs de lado, segurando a porta aberta, e disse num tom amistoso, embora não entusiasmado:

— Entre, senhor, saia da chuva. Uma noite desgraçada pra se estar fora.

Ned Beaumont baixou a cabeça não mais que uns poucos centímetros, no início de um cumprimento, e entrou. Viu-se numa grande sala, que ocupava todo o térreo da casa. A escassez e simplicidade do mobiliário lhe davam um ar primitivo agradavelmente desprovido de ostentação. Era cozinha, sala de jantar e sala de estar.

Opal Madvig levantou-se da banqueta na qual se sentava numa ponta da lareira e, mantendo-se ereta, encarou com olhos hostis e sombrios.

Ele tirou o chapéu e começou a desabotoar a capa de chuva. Os outros o reconheceram então.

O homem que abrira a porta disse:

Ora, é Beaumont!

Disse isso num tom de incredulidade, e arregalou os olhos para Shad O'Rory.

Shad O'Rory sentava-se numa cadeira de madeira no centro da sala, na frente da lareira. Sorriu sonhadoramente para Ned Beaumont, dizendo, em seu barítono irlandês leve­mente musical:

É mesmo — E: — Como vai, Ned?

O rosto amacacado de Jeff Gardner alargou-se num sor­riso que exibia seus belos dentes falsos e quase escondia inteiramente os olhinhos vermelhos.

Por Deus, Rusty! — disse ao sombrio rapaz de faces rosadas que se refestelava no banco a seu lado. O pequeno "Bola de Borracha" voltou pra gente. Eu disse a você que ele gostava da maneira que a gente fazia ele saltar por aí.

Rusty fuzilava Ned Beaumont com os olhos e rosnou alguma coisa que não chegou do outro lado da sala.

A magra garota de vermelho sentada não longe de Opal Madvig olhou Ned Beaumont com olhos negros interessados.

Ned Beaumont tirou o casaco. Seu rosto magro, que ainda trazia as marcas dos punhos de Jeff e Rusty, estava tranqüilo, a não ser pela inquietude que brilhava nos olhos. Pôs o casaco e o chapéu numa comprida cômoda não pintada contra a parede, perto da porta. Sorriu educadamente para o homem que o tinha recebido e disse:

Meu carro quebrou quando eu passava por aqui. É muita bondade sua me dar abrigo, sr. Mathews.

Mathews disse:

De modo algum... É um prazer — um tanto vaga­mente.

Depois, seus olhos assustados tornaram a olhar supli­cantes para O'Rory.

O'Rory alisou o lustroso cabelo branco com uma mão fina e pálida, e sorriu agradavelmente para Ned Beaumont, mas não disse nada.

Ned Beaumont foi até a lareira.

Olá, pequena disse a Opal Madvig.

Ela não respondeu ao seu cumprimento. Ficou ali de pé, olhando-o com olhos hostis.

Ele dirigiu seu sorriso para a garota magra de vermelho:

Essa é a sra. Mathews, não é?

Ela disse: É numa voz macia, quase doce, e es­tendeu a mão.

Opal me disse que a senhora foi colega de escola dela ele disse, apertando a mão. Voltou-se de frente para Rusty e Jeff. Olá, rapazes disse com indiferença. Eu espe­rava encontrar vocês qualquer hora dessas, breve.

Rusty não disse nada.

O rosto de Jeff tornou-se uma feia máscara de sorridente prazer.

Eu e você disse entusiasmado —, agora que os nós dos meus dedos sararam. Que acha que me faz gostar tanto de bater em você?

Shad O'Rory falou delicadamente ao homem amacacado, sem se voltar para olhá-lo:

Você fala demais, Jeff. Talvez, se não fosse isso, ainda tivesse os dentes.

A sra. Mathews falou alguma coisa a Opal em voz baixa. Opal balançou a cabeça e tornou a sentar na banqueta junto à lareira.

Mathews, indicando uma cadeira de madeira na outra ponta da lareira, disse nervosamente:

Sente-se, sr. Beaumont, seque os pés e... se aqueça.

Obrigado. Ned Beaumont puxou a cadeira mais diretamente exposta ao calor do fogo e sentou.

Shad O'Rory acendia um cigarro. Quando acabou, ti­rou-o dos lábios e perguntou:

Como está se sentindo, Ned?

Muito bem, Shad.

Isso é ótimo. — O'Rory virou a cabeça um pouco para falar aos dois homens no banco: Vocês rapazes podem voltar pra cidade amanhã. Tornou a se voltar para Ned

Beaumont, explicando suavemente: — A gente estava se prevenindo até ter certeza de que você não ia morrer, mas não importa uma acusação de agressão.

Ned Beaumont assentiu.

É possível que eu não me dê o trabalho de apresentar queixa contra você por isso, de qualquer modo, mas não esqueça que nosso amigo Jeff é procurado pelo assassinato de West. — A voz era casual, mas nos olhos, fixos no tronco que ardia na lareira, surgiu um breve brilho de maldade. Nada havia neles, porém, a não ser gozação, quando encarou Mathews. — Embora, sem dúvida, eu pudesse apresentar queixa, pra encrencar Mathews por esconder vocês.

Mathews apressou-se a dizer:

Eu não fiz isso, sr. Beaumont. Eu nem sabia que eles estavam aqui até subir hoje, e fiquei surpreso como... — Interrompeu-se, o rosto em pânico, e falou a Shad O'Rory, gemendo: — Você sabe que é bem-vindo. Sabe disso, mas o que estou querendo dizer — um sorriso de alegria iluminou de repente o seu rosto — é que, ajudando você sem saber, eu não fiz nada pra ser legalmente responsabilizado.

O'Rory disse baixinho:

Sim, você me ajudou sem saber. — Os sérios e lím­pidos olhos azuis olharam sem interesse o editor do jornal.

O sorriso de Mathews perdeu a alegria, tremulou e mor­reu inteiramente. Ele mexeu na gravata, nervoso, com os dedos, e acabou evitando o olhar de O'Rory.

A sra. Mathews disse a Ned Beaumont, suavemente:

Todo mundo estava tão chato esta noite. Estava simplesmente horrível até o senhor chegar.

Ele a olhou com curiosidade. Os negros olhos dela eram luminosos, suaves, convidativos. Sob seu olhar de avaliação, ela baixou um pouco a cabeça e comprimiu um pouco os lábios. Tinha os lábios finos, muito escuros de batom, mas bonitos. Ele sorriu e, levantando-se, se aproximou dela.

Opal Madvig fitava o chão a seus pés. Mathews, O'Rory e os dois homens observaram Ned Beaumont e a dona da casa.

Ele perguntou:

Que é que faz deles tão chatos? — E sentou-se no chão diante dela, de pernas cruzadas, não diretamente de frente para ela, mas de costas para o fogo, apoiando-se numa mão no chão, atrás, o rosto virado para um lado, para ela.

Tenho certeza que não sei ela disse, fazendo bi­quinho. Achei que ia ser divertido quando Hal me per­guntou se queria vir aqui pra cima com ele e Opal. E aí, quando chegamos aqui, encontramos esses... fez uma li­geira pausa: amigos de Hal. Falava de forma ambígua. Prosseguiu: Todos ficaram sentados por aí insinuando al­gum segredo deles do qual eu não sei nada, e foi insupor­tavelmente estúpido. Opal estava tão ruim quanto o resto. Ela...

O marido disse:

Vamos, Eloise num tom ineficazmente autoritário, e quando ela ergueu os olhos para enfrentar os dele, viu mais embaraço que autoridade no olhar que ele lhe dirigia.

Estou pouco ligando ela disse, petulante. É ver­dade, e Opal é tão ruim quanto o resto de vocês. Ora, vocês e ela nem falaram do que era que vinham pra cá discutir, pra começar. Acham que eu teria ficado aqui até agora? Não fosse pela tempestade, não teria.

Opal Madvig tinha o rosto vermelho, mas não ergueu os olhos.

Eloise Mathews baixou a cabeça em direção a Ned Beaumont e a petulância em seu rosto se tornou brincalhona.

É isso que o senhor tem de compensar — assegurou-lhe. — E foi por isso, e não pelo fato de o senhor ser bonito, que fiquei tão satisfeita com sua chegada.

Ele franziu a testa para ela, fingindo-se indignado.

Ela franziu a testa para ele, e nela, isso era autêntico.

Seu carro quebrou mesmo? perguntou. Ou veio aqui falar com eles sobre o mesmo assunto chato que está deixando eles tão estupidamente cheios de mistérios. Foi isso. O senhor é mais um deles.

Ele deu uma risada. Perguntou:

Não faria diferença alguma o motivo pelo qual eu vim, se mudei de idéia depois de ter visto a senhora, faria?

Nã-ã-ã-o ela estava desconfiada —, mas eu teria de estar certíssima de que você tinha mudado.

E de qualquer modo ele prometeu superficial­mente eu não vou ser misterioso sobre coisa alguma. Não tem mesmo idéia nenhuma do motivo pelo qual estão todos tão ansiosos?

Nem a mínima — ela respondeu despeitadamente —, a não ser que tenho toda certeza de que deve ser alguma coisa muito estúpida, e provavelmente política.

Ele ergueu a mão livre e deu tapinhas numa das dela.

Garota esperta, acertou nas duas coisas. — Virou a cabeça para olhar O'Rory e Mathews. Quando seus olhos vol­taram para ela, luziam de divertimento. — Quer que eu lhe diga o que é?

Não.

Primeiro — ele disse. —, Opal acha que o pai dela assassinou Taylor Henry.

Opal Madvig emitiu um som de estrangulamento da garganta e saltou de sua banqueta. Pôs as costas da mão contra a boca. Tinha os olhos tão arregalados que os brancos apareciam em toda a volta das íris, vidrados e terríveis.

Rusty se pôs de pé num salto, o rosto vermelho de raiva, mas Jeff, com um olhar enviesado e mau, segurou o braço do rapaz.

Deixe ele pra lá — falou, bem-humorado. — Ele está bem.

O rapaz ficou de pé, olhando para a mão do macaco em seu braço, mas não tentou se libertar.

Eloise Mathews sentava-se passada em sua cadeira, olhando Opal sem compreender.

Mathews tremia, um homem doente, de rosto cinza e enrugado, com o lábio e as pálpebras inferiores caídos.

Shad O'Rory sentava-se curvado para a frente em sua cadeira, o rosto finamente modelado, pálido e duro, os olhos parecendo gelo azul-cinza, as mãos agarrando os braços da cadeira, os pés plantados no chão.

Segundo — disse Ned Beaumont, totalmente inalte­rado pela agitação dos outros. — Ela...

Ned, não! — exclamou Opal Madvig.

Ele se virou no chão a fim de olhar para ela.

Ela tirara a mão da boca. Apertava as mãos contra o peito. Os olhos apavorados, todo o rosto desvairado pediam piedade a ele.

Ele a estudou por algum tempo. Através da janela e das paredes vinha o som da chuva em selvagens rajadas. Os olhos dele, estudando-a, eram frios, decididos. Ele acabou por falar-lhe, numa voz bastante bondosa, mas distante.

Não é por isso que você está aqui?

Não, por favor ela disse roucamente.

Ele moveu os lábios num fino sorriso, com o qual os olhos nada tinham a ver, e perguntou:

Ninguém deve andar falando disso por aí, a não ser você e os inimigos de seu pai?

Ela deixou cair as mãos os punhos dos lados, ergueu furiosa o rosto e disse numa voz de som duro:

Ele assassinou Taylor.

Ned Beaumont se reclinou sobre a mão atrás e ergueu os olhos para Eloise Mathews.

Era o que eu lhe dizia falou arrastado. Pen­sando assim, ela foi ver o seu marido, depois de ler a sujeira que ele escreveu hoje de manhã. É claro que ele não achava que foi Paul quem matou mesmo: apenas está num aperto... com as hipotecas nas mãos da State Central, que pertence ao candidato de Shad O'Rory ao Senado... e tem de fazer o que lhe mandam. O que ela...

Mathews o interrompeu. A voz do editor estava fina e desesperada.

Vamos parar com isso, Beaumont. Você...

0'Rory interrompeu Mathews, com uma voz tranqüila e musical.

Deixe ele falar, Mathews. Deixe ele dizer a parte dele.

Obrigado, Shad disse Ned Beaumont com indife­rença, sem virar a cabeça, e prosseguiu: Ela foi procurar seu marido pra confirmar as suspeitas dela, mas ele não podia fornecer nada nesse sentido, a não ser que mentisse. Ele não sabe de coisa alguma. Simplesmente está jogando lama onde quer que Shad lhe ordene que jogue. Mas tem uma coisa que ele pode fazer, e fará. Pode publicar no jornal de amanhã que ela veio ver ele e lhe disse que acredita que o pai matou o amante dela. Isso será um belo golpe. "Opal Madvig Acusa o Pai de Assassinato; Filha do Chefão Diz que ele Matou o Filho do Senador!" Não está vendo isso, em letras negras, estam­pado na primeira página do Observer?

Eloise Mathews, de olhos arregalados, o rosto pálido, ouvia de respiração presa, curvada para a frente, acima dele. A chuva, jogada pelo vento, batia nas paredes e janelas. Rusty encheu e esvaziou os pulmões com um longo suspiro.

Ned Beaumont pôs a ponta da língua entre os lábios sorridentes, recolheu-a e disse:

Foi por isso que ele trouxe ela pra cá, pra manter ela escondida até a publicação da matéria. Talvez soubesse que Shad e os rapazes estavam aqui, talvez não. Não faz nenhuma diferença. Ele trouxe ela pra um lugar onde ninguém pode descobrir o que ela fez até os jornais estarem nas ruas. Não quero dizer que teria trazido ela, ou mantido ela aqui, contra a vontade dela... isso não seria muito inteligente da parte dele da forma como estão as coisas... mas nada disso é necessário. Ela está disposta a chegar a qualquer extremo pra arruinar o pai.

Opal Madvig disse, num sussurro, mas claramente:

Ele matou ele.

Ned Beaumont endireitou-se e a olhou. Olhou-a solene­mente por um momento, e depois sorriu, balançou a cabeça num gesto de divertida resignação, e voltou a apoiar-se nos cotovelos.

Eloise Mathews olhava o marido com seus olhos negros, onde predominava o espanto. Ele sentara e tinha a cabeça abaixada. Ocultava o rosto nas mãos.

Shad 0'Rory tornou a cruzar as pernas e tirou um ci­garro.

Acabou? — perguntou suavemente.

Ned Beaumont lhe dava as costas. Não se voltou para responder:

Você nem acreditaria como acabei. — Tinha a voz plana, mas o rosto parecia subitamente cansado, gasto.

O'Rory acendeu seu cigarro.

Bem — disse, depois de fazer isso —, que diabos vale isso? Agora é nossa vez de pendurar uma acusação das gran­des em vocês, e vamos fazer isso. A garota procurou a gente com a história dela por vontade própria. Veio porque quis. O mesmo vale pra você. Ela, você e qualquer outra pessoa podem ir aonde querem. — Levantou-se. — Pessoalmente, estou querendo ir pra cama. Onde vou dormir, Mathews?

Eloise Mathews falou, ao marido:

Isso não é verdade, Hal. — Não era uma pergunta.

Ele demorou a tirar as mãos do rosto. Conseguiu digni­dade ao dizer:

Querida, existe uma dúzia de indícios suficientes con­tra Madvig pra justificar nossa insistência em que a polícia ao menos interrogue ele. É só o que temos feito.

Eu não me referia a isso — disse a mulher.

Bem, querida, quando a srta. Madvig apareceu... Ele vacilou, parou, um homem de rosto cinza, que tremia diante do olhar da esposa, e tornou a levar as mãos ao rosto.

 

Eloise Mathews e Ned Beaumont estavam sozinhos na grande sala do térreo, sentados em cadeiras um pouco sepa­radas, à frente da lareira. Ela se curvava para diante, fitando com olhos trágicos o último tronco que ardia. Tinha as pernas cruzadas, um dos braços passado pelo encosto da cadeira. Ele fumava um charuto e a olhava disfarçadamente.

Os degraus rangeram e o marido desceu até o meio da escada. Estava inteiramente vestido, apenas tirara o cola­rinho. A gravata, meio frouxa, pendia para fora do colete. Ele disse:

Querida, não vem pra cama? Já é meia-noite.

Ela não se moveu.

Ele disse:

Sr. Beaumont, o senhor...?

Ao ouvir o seu nome, Ned Beaumont se voltou para o homem na escada, o rosto cruelmente plácido. Quando o jornalista interrompeu a frase, ele voltou a olhar o charuto e a mulher de Mathews.

Após algum tempo, o jornalista tornou a subir.

Eloise Mathews falou sem tirar o olhar do fogo.

Tem uísque na cômoda. Quer ir pegar?

Certamente. Ele encontrou o uísque e o trouxe para ela, depois arranjou dois copos. Puro? perguntou.

Ela assentiu com a cabeça. Os seios redondos moviam irregularmente a seda vermelha do vestido, com a respiração.

Ele serviu duas grandes doses.

Ela só ergueu o olhar do fogo quando ele lhe pôs um copo na mão. Quando o fez, sorriu maliciosamente, contorcendo os lábios muito pintados e finos, perfeitos, para um lado. Os olhos, refletindo a luz do fogo, pareciam demasiado brilhantes.

Ele sorriu para ela, de cima.

Ela ergueu o copo.

Ao meu marido!

Ned Beaumont disse casualmente: — Não — e jogou o conteúdo do copo na lareira, onde o líquido fez saltarem chamas dançantes.

Ela deu uma risada gostosa e ficou em pé.

Sirva outro — ordenou.

Ele pegou a garrafa do chão e tornou a encher seu copo.

Ela ergueu o dela acima da cabeça.

A você!

Beberam. Ela teve um arrepio.

É melhor beber alguma coisa junto ou depois — ele sugeriu.

Ela balançou a cabeça.

Quero desse jeito. — Pôs uma mão no braço dele e deu as costas ao fogo, parada junto dele. — Vamos trazer aquele banco pra cá.

É uma idéia — ele concordou.

Afastaram as cadeiras da frente da lareira e trouxeram o banco para ali, ele segurando numa ponta, ela na outra. O banco era largo, sem encosto.

Agora apague as luzes — ela disse.

Ele obedeceu. Quando voltou ao banco, ela já se sentara e servia uísque em seus copos.

A você, desta vez — ele disse, e beberam e ela se arrepiou.

Ele se sentou ao lado dela. Estavam rosados ao calor da lareira.

Os degraus rangeram e o marido dela desceu até eles. Parou no degrau de baixo e disse:

Por favor, querida!

Ela sussurrou no ouvido de Ned Beaumont, selvagemente:

— Jogue alguma coisa nele.

Ned Beaumont deu uma risadinha.

Ela pegou a garrafa de uísque e perguntou:

Onde está seu copo?

Enquanto ela enchia os copos, Mathews tornou a subir.

Ela entregou a Ned Beaumont o copo dele e tocou-o com o seu. Tinha os olhos alucinados. Uma mecha de cabelos negros soltara-se e caía-lhe na testa. Ela respirava pela boca, arquejando baixinho.

A nós! — disse.

Beberam. Ela largou o seu copo e caiu nos braços dele. E já tinha a boca colada na dele quando se arrepiou. O copo que caíra quebrou-se ruidosamente no piso de madeira. Ned Beaumont tinha os olhos estreitados, matreiros. Os dela estavam firmemente cerrados.

Não haviam se mexido quando os degraus rangeram. Ned Beaumont não se mexeu nem nesse momento. Ela apertou os finos braços em torno dele. Ele não podia ver a escada. Ambos respiravam pesadamente agora.

Então a escada tornou a ranger, e pouco depois eles separaram os rostos, embora se mantivessem abraçados. Ned Beaumont ergueu o olhar para a escada. Não havia ninguém lá.

Eloise Mathews escorregou a mão para a nuca dele, cor­rendo os dedos por entre os seus cabelos, enterrando as unhas no couro cabeludo. Não tinha os olhos totalmente fechados, mas em negras fendas risonhas.

A vida é assim ela disse, numa vozinha de fingido amargor, deitando-se para trás no banco e puxando-o para si, a sua boca para a dela.

Estavam nessa posição quando ouviram o tiro.

No mesmo instante, Ned Beaumont estava longe dos braços dela e de pé.

O quarto dele? perguntou alto.

Ela piscou para ele cega pelo terror.

O quarto dele? repetiu Ned Beaumont.

Ela moveu a mão debilmente.

Na frente disse, em voz enrolada.

Ele correu para a escada e subiu em longos saltos. No alto, deparou-se com o amacacado Jeff, inteiramente vestido, a não ser pelos sapatos, que piscava para afastar o sono dos olhos inchados. Jeff levou uma mão ao quadril, estendeu a outra para deter Ned Beaumont e falou:

Vamos lá, que é isso tudo aí?

Ned esquivou-se à mão estendida, saiu de lado e mandou o punho fechado no focinho do macaco. Jeff cambaleou para trás, resmungando. Ned Beaumont saltou passando por ele e correu em direção à frente da casa. O'Rory saiu de outro quarto e correu atrás dele.

De lá de baixo veio o grito da sra. Mathews.

Ned Beaumont escancarou uma porta e parou. Mathews jazia de costas no chão do quarto, sob um abajur. Tinha a boca aberta, e um pouco de sangue escorria dela. Um de seus braços estendia-se atravessado no chão. O outro repousava no peito. Contra a parede, no ponto para o qual o braço esten­dido parecia apontar, via-se um revólver negro. Numa mesa junto à janela, um tinteiro — com a tampa voltada para cima ao lado — uma caneta e uma folha de papel. Uma cadeira perto da mesa, de frente para ela.

Shad O'Rory empurrou Ned Beaumont para um lado e ajoelhou-se ao lado do homem caído no chão. Enquanto estava ali, Ned Beaumont, por trás dele, deu uma rápida olhada ao papel sobre a mesa, e depois enfiou-o no bolso. Jeff entrou, seguido por Rusty, que estava nu. O'Rory levantou-se e estendeu as duas mãos para fora, num pequeno gesto de que estava tudo terminado.

Deu um tiro no céu da boca — disse. — Finis.

Ned Beaumont se virou e deixou o quarto. No corredor, encontrou Opal Madvig.

Que foi, Ned? — ela perguntou, numa voz assustada.

Mathews se matou com um tiro. Vou lá pra baixo ficar com ela até você se vestir. Não entre lá. Não tem nada pra ver. — Desceu.

Eloise Mathews era um vulto obscuro deitado no chão ao lado do banco.

Ele deu dois rápidos passos na direção dela, parou, olhou a sala em volta com olhos astutos e frios. Depois dirigiu-se até a mulher, pôs um joelho no chão ao lado dela e sentiu o seu pulso. Olhou-a tão de perto quanto podia, à luz fraca do fogo agonizante. Ela não dava sinais de consciência. Ele tirou do bolso o papel que pegara na mesa do marido dela e ficou de joelhos para a lareira, onde, ao brilho das brasas, leu:

"Eu, Howard Keith Mathews, em pleno gozo da mente e da memória, declaro que é esta a minha última vontade e testamento:

Dou e lego à minha amada esposa, Eloise Braden Ma­thews, seus herdeiros e cessionários, todos os meus bens reais e pessoais, de qualquer natureza ou espécie.

Nomeio por esta a State Central Trust Company única executora deste testamento.

Em testemunho disso, assino esta..."

Ned Beaumont, sorrindo sombriamente, parou de ler e rasgou o testamento três vezes. Levantou-se, ergueu a grade da lareira e jogou os pedaços de papel nas cinzas ardentes. Os pedaços inflamaram-se luminosamente por um momento e desapareceram. Com a pá de ferro trabalhado que estava ao lado, ele desfez as cinzas do papel entre os carvões.

Depois voltou para o lado da sra. Mathews, despejou um pouco de uísque no copo do qual bebera, ergueu a cabeça dela e forçou um pouco da bebida por entre os lábios da jovem. Ela já estava parcialmente recuperada, tossindo, quando Opal Madvig desceu.

 

Shad O'Rory desceu a escada. Jeff e Rusty vinham atrás dele. Estavam todos vestidos. Ned Beaumont achava-se de pé junto à porta, de capa de chuva e chapéu.

Aonde vai, Ned? — perguntou Shad.

Procurar um telefone.

O'Rory assentiu.

É uma boa idéia, mas tem uma coisa que eu quero lhe perguntar. — Desceu o resto da escada, os seguidores logo atrás.

Ned Beaumont disse:

Sim? — Tirou a mão do bolso. A mão era visível para O'Rory e os homens atrás dele, mas o corpo de Ned Beaumont ocultava-a do banco onde Opal se sentava abraçando Eloise Mathews. E nessa mão havia uma pistola quadrada. — Só pra que vocês não façam nenhuma tolice. Estou com pressa.

O'Rory não pareceu ver a pistola, embora não se aproxi­masse. Disse, pensativamente:

Eu estava pensando que, com um tinteiro aberto e uma caneta em cima da mesa, e uma cadeira junto dela, é meio engraçado que a gente não tenha encontrado nada es­crito lá em cima.

Ned Beaumont sorriu com fingida surpresa.

Como, nada escrito? — Deu um passo para trás, em direção à porta. — Essa é engraçada, claro. Discutirei isso com você durante horas quando voltar do telefone.

Seria melhor agora — disse O'Rory.

Sinto. — Ned Beaumont recuou rapidamente para a porta, apalpou atrás em busca da maçaneta, encontrou-a e abriu-a. — Não me demoro muito. — Saltou para fora e bateu a porta.

A chuva parara. Ele deixou a trilha e correu pelo meio do mato alto para o outro lado da casa. De dentro da casa veio o som de outra porta batendo nos fundos. Ouvia-se o rio não muito longe, à esquerda de Ned Beaumont. Ele se dirigiu com esforço para lá, através do mato.

Um apito agudo, não alto, soou em algum canto atrás dele. Ned Beaumont afundou num lugar de lama mole e chegou até um grupo de árvores, afastando-se do rio por entre elas. O apito tornou a soar à sua direita. Depois das árvores vinham arbustos que chegavam aos ombros. Ele se afundou entre eles, curvando-se para se ocultar, embora a escuridão da noite fosse quase completa.

Seu caminho era encosta acima, subindo um morro muito escorregadio, sempre cheio de altos e baixos, através de um matagal que arranhava seu rosto e suas mãos, enganchava-se em sua roupa. Caiu três vezes e tropeçou muitas outras. O apito não tornou a soar. Ele não encontrou o Buick. Não encontrou a estrada pela qual viera.

Arrastava os pés agora, e tropeçava mesmo sem obstá­culos, e quando chegou ao alto do morro e ia descer do outro lado, começou a cair com mais freqüência. No pé do morro, achou uma estrada e dobrou para a direita nela. O barro da estrada grudava-se cada vez mais em seus pés, fazendo com que ele parasse de vez em quando para raspá-lo. Usava a pis­tola para isso.

Quando ouviu um cachorro latir às suas costas, parou e voltou-se oscilantemente e olhou para trás. Perto da estrada, uns quinze metros atrás dele, via-se o vulto de uma casa, pela qual ele passara. Refez seus passos e chegou a um portão alto. O cachorro — um monstro agigantado na noite — lançou-se do outro lado do portão e latiu de uma maneira terrível.

Ned Beaumont tateou numa das extremidades do portão, achou o ferrolho, abriu-o e cambaleou para dentro. O cão recuou, circulando, fintando ataques que não fazia, enchendo a noite de clamor.

Uma janela abriu-se rangendo, e uma voz pesada gritou:

— Que diabo você está fazendo com o cachorro?

Ned Beaumont deu uma fraca risada. Depois sacudiu-se e respondeu em voz não muito apagada:

Aqui é Beaumont, do gabinete do Promotor Distrital. Preciso usar seu telefone. Tem um homem morto lá embaixo.

A voz pesada rugiu:

Não sei de que você está falando. Cale a boca, Jane! O cachorro latiu três vezes com crescente energia, e depois calou-se. — Agora, que é que há mesmo?

Preciso telefonar. Gabinete do Promotor Distrital. Tem um homem morto lá embaixo.

A voz pesada exclamou:

Ao diabo com você! A janela fechou-se rangendo de novo.

O cachorro recomeçou a latir, a rondar e a fintar. Ned Beaumont atirou sua pistola enlameada em cima dele. O animal correu e desapareceu por trás da casa.

A porta da frente foi aberta por um homem vermelho e atarracado, metido numa comprida camisola de dormir azul.

Santa Maria, você está imundo! exclamou quando viu Ned Beaumont aproximar-se da luz que saía da porta.

Telefone disse Ned Beaumont.

O homem vermelho amparou-o, porque ele cambaleava.

Pronto disse mal-humorado. — Me diga a quem chamar e o que dizer.Você não pode fazer coisa alguma.

Telefone disse Ned Beaumont.

"O homem vermelho firmou-o pelo corredor, abriu uma porta e disse:

Lá está ele, e é uma sorte danada sua a velha não estar em casa, senão você nunca que ia entrar com essa lama toda em cima.

Ned Beaumont desabou sobre uma poltrona diante do telefone, mas não estendeu logo a mão para pegá-lo. Franziu a testa para o homem de camisola de dormir azul e disse numa voz enrolada:

Saia e feche a porta.

O homem vermelho não entrara na sala. Fechou a porta.

Ned Beaumont pegou o telefone, curvou-se para a frente até apoiar-se na mesa com os cotovelos e discou o número de Paul Madvig. Meia dúzia de vezes, enquanto esperava, suas pálpebras se fecharam, mas a cada vez ele as abria, e quando afinal falou, foi claramente:

Olá, Paul... Ned... Esqueça. Escute. Mathews come­teu suicídio na casa dele, no rio, e não deixou testamento... Escute. Isso é importante. Com um monte de dívidas e sem testamento nomeando um executor, caberá aos tribunais indicar alguém pra administrar a propriedade. Pegou?... Sim. Dê um jeito pra que a coisa vá pro juiz certo... Phelps, digamos... e podemos manter o Observer fora da briga... a não ser do nosso lado... até depois da eleição. Pegou?... Está bem, está bem, agora escute. Isso é só uma parte. É o que tem de ser feito agora. O Observer está carregado de dinamite pra amanhã. Você tem de parar ele. Tire Phelps da cama e consiga um interdito... qualquer coisa pra parar o jornal até você poder mostrar aos empregados do Observer a posição deles, agora que o jornal vai ser dirigido durante mais ou menos um mês por seus amigos... Não posso lhe dizer agora, Paul, mas é dinamite, e você tem de impedir que seja distri­buído. Tire Phelps da cama e desça com ele e vejam por vocês mesmos. Você tem umas três horas, talvez, antes que esteja nas ruas... Exato... Quê?... Opal? Oh, ela está bem. Está comigo... Sim, levo ela pra casa... Quer telefonar às autori­dades sobre Mathews? Vou voltar lá agora. Certo.

Colocou o telefone na mesa e levantou-se, cambaleou até a porta, abriu-a após a segunda tentativa e desabou no corre­dor, onde a parede da frente o impediu de cair no chão.

O homem vermelho veio correndo até ele.

Se apóie em mim, irmão, que eu dou um jeito. Es­tendi um cobertor no sofá, e você não precisa se preocupar com a lama e...

Ned Beaumont disse:

Quero um carro emprestado. Preciso voltar à casa de Mathews.

Foi ele que morreu?

Foi.

O homem vermelho ergueu as sobrancelhas e emitiu um assobio abafado.

Me empresta um carro? — perguntou Ned Beau­mont.

Meu Deus, irmão, seja razoável! Como pode dirigir um carro?

Ned Beaumont recuou da frente do outro, inseguro.

Vou a pé — disse.

O homem vermelho fuzilou-o com o olhar.

Também não vai, não. Se você agüentar um pouqui­nho aí enquanto ponho as calças, eu levo você de carro lá, embora provavelmente você vá morrer no caminho.

Opal Madvig e Eloise Mathews estavam juntas na grande sala quando Ned Beaumont foi mais carregado do que condu­zido para dentro pelo homem vermelho. Os homens haviam entrado sem bater. As duas garotas estavam de pé juntas, de olhos arregalados, assombradas.

Ned Beaumont arrancou-se dos braços de seu compa­nheiro e olhou em volta da sala.

Onde está Shad? murmurou.

Opal respondeu-lhe:

Foi embora. Todos eles foram embora.

Tudo bem ele disse, falando com dificuldade. Quero falar a sós com você.

Eloise Mathews correu para ele.

Você matou ele! gritou.

Ele deu uma risadinha idiota e tentou abraçá-la.

Ela gritou, esbofeteou-lhe o rosto com a mão aberta.

Ele caiu duro para trás, sem dobrar-se. O homem ver­melho tentou ampará-lo, mas não pôde. Ele não se moveu mais de modo algum depois que bateu no chão.

 

O senador Henry pôs o guardanapo na mesa e se levan­tou. De pé, parecia mais alto e mais jovem do que era. A cabeça um tanto pequena, sob a tênue cobertura de cabelos grisalhos, era notavelmente simétrica. Os músculos, com a idade, cediam naquele rosto aristocrático, acentuando as li­nhas verticais, mas a frouxidão não lhe atingira os lábios, e os anos hão pareciam ter tocado de modo algum os seus olhos: eram de um cinza esverdeado, profundos, não grandes mas brilhantes, e com as pálpebras firmes. Ele falou com uma cortesia grave estudada:

Me perdoa se levar Paul lá pra cima por algum tempo?

A filha respondeu:

Sim, se me deixar o sr. Beaumont e prometer não ficar lá em cima a noite toda.

Ned Beaumont sorriu polidamente, inclinando a cabeça.

Ele e Janet Henry passaram a uma sala de paredes bran­cas, onde o carvão ardia indolentemente numa grade, sob um console branco, lançando sombrios reflexos rubros nos móveis de mogno.

Ela acendeu um abajur junto ao piano e sentou-se a ele, de costas para o teclado, a cabeça entre Ned Beaumont e a luz. Os cabelos loiros captavam a luz do abajur e mantinham uma auréola em torno da cabeça. O vestido negro era de um material parecendo couro, que não refletia a luz, e ela não usava jóias.

Ned Beaumont curvou-se para bater a cinza de seu cha­ruto sobre o carvão em brasa. Uma pérola escura no peito de sua camisa, faiscando à luz do fogo quando ele se movia, parecia um olho rubro piscando. Quando se endireitou, per­guntou:

Vai tocar alguma coisa?

Vou, se você desejar... embora eu não toque excepcionalmente bem. Gostaria de conversar com você agora, enquanto tenho uma oportunidade. Tinha as mãos juntas no colo. Os braços, retos, forçavam os ombros para cima e em direção ao pescoço.

Ned Beaumont concordou educadamente mas nada dis­se. Afastou-se da lareira e sentou-se não distante dela, num sofá cujas extremidades eram em forma de lira. Embora estivesse atento, não havia curiosidade em sua expressão.

Virando-se na banqueta do piano para de frente para ele, ela perguntou:

Como está Opal? A voz era baixa, íntima.

A dele era casual:

Perfeitamente bem, até onde eu sei, embora não veja ela desde a semana passada. Ergueu o charuto meio palmo em direção à boca, baixou-o e, como se a pergunta acabasse de lhe ocorrer, disse: Por quê?

Ela arregalou os olhos castanhos.

Ela não está de cama com um colapso nervoso?

Oh, isso! ele disse descuidadamente. Paul não lhe falou?

Sim, ele me disse que ela estava de cama com um colapso nervoso. — Encarou-o perplexa. Ele me disse isso.

O sorriso de Ned Beaumont tornou-se suave.

Acho que ele é sensível a isso disse devagar, olhando o charuto. Depois ergueu o olhar para ela e moveu os ombros um pouco. Não tem nenhum problema com ela nesse ponto. Só que ela meteu na cabeça a idéia idiota de que ele matou seu irmão e... o que é mais idiota ainda... andava por aí falando nisso. Ora, Paul não podia deixar a filha dele andar por aí acusando ele de assassinato, e por isso teve de segurar ela em casa até ela tirar essa idéia da cabeça.

Quer dizer que éla está... hesitou: seus olhos bri­lhavam está... bem... prisioneira?

Você faz a coisa soar melodramática. — Ele tinha um ar indiferente. — Ela é apenas uma criança. Fazer as crianças ficarem em casa não e um dos meios habituais de disciplinar elas?

Janet Henry apressou-se a responder:

Oh, sim! Apenas... — Olhou as mãos no colo e tor­nou a erguer o rosto. — Mas por que ela pensou isso?

A voz de Ned Beaumont soou morna, como seu sorriso.

Quem não pensa?

Ela pôs as mãos na borda da banqueta do piano, e cur­vou-se para a frente. Tinha o rosto branco muito sério.

Isso era o que eu queria perguntar ao senhor, sr. Beaumont. As pessoas pensam isso?

Ele fez que sim com a cabeça. Tinha o rosto tranqüilo.

Os nós dos dedos dela estavam brancos sobre a borda da banqueta. A voz estava ansiosa, ao perguntar:

Porquê?

Ele se levantou do sofá e foi até a lareira jogar o resto do charuto no fogo. Quando voltou ao seu assento, cruzou as pernas compridas e reclinou-se à vontade.

O outro lado acha que é boa política fazer as pessoas pensarem isso. — Nada havia em sua voz, seu rosto ou suas maneiras que mostrasse que ele tinha algum interesse no que falava.

Ela levantou as sobrancelhas.

Mas, sr. Beaumont, por que as pessoas pensariam uma coisa dessas se não houvesse alguma espécie de indício, ou algo que se possa fazer parecer um indício?

Ele a olhou curiosa e divertidamente.

Há, é claro. Pensei que a senhorita sabia. — Alisou uma banda do bigode com a unha de um polegar. — Não recebeu nenhuma das cartas anônimas que têm corrido por aí?

Ela se levantou rapidamente. A excitação distorcia o seu rosto.

Sim, hoje! — exclamou. — Queria mostrar ao senhor, para...

Ele- deu uma risada baixinho e ergueu uma mão, a palma voltada para fora, num gesto de quem detém alguma coisa.

Não se incomode. Todas parecem ser muito iguais, e já vi muitas.

Ela tornou a sentar, lentamente, relutantemente.

Ele disse:

Bem, essas cartas, o material que o Observer estava publicando até que tiramos ele da briga, as conversas que os outros têm ventilado por aí... ergueu os finos ombros pegam quaisquer fatos que existem e fazem uma bela acusa­ção contra Paul.

Ela prendeu o lábio inferior entre os dentes para per­guntar:

Ele... está realmente em perigo?

Ned Beaumont fez que sim com a cabeça e falou com calma certeza:

Se perder a eleição, perder o domínio no governo municipal e estadual, vão eletrocutar ele.

Ela teve um arrepio e perguntou, numa voz que tremia:

Mas se vencer estará seguro?

Ned Beaumont tornou a assentir.

Claro.

Ela prendeu a respiração. Os lábios tremiam tanto que as palavras saíram aos saltos.

Vai ganhar?

Creio que sim.

E não fará diferença então, seja quais forem os indí­cios que tiverem contra ele? Ele... a voz falhou não estará em perigo?

Não irá a julgamento disse Ned Beaumont. Ficou em pé de repente. Fechou os olhos com força, abriu-os e olhou o tenso rosto pálido dela. Um brilho alegre surgiu nos olhos dele, e a alegria se espalhou por todo o rosto. Riu não alto, mas com total prazer e exclamou: A própria Judite!

Janet Henry permanecia sentada, sem fôlego, olhando para ele com olhos castanhos, sem compreender, no rosto pálido e vazio.

Ele começou a andar pela sala, num caminho irregular, falando depressa não a ela embora de vez em quando virasse a cabeça por cima do ombro e sorrisse.

É esse o jogo, claro dizia. Ela podia tolerar Paul... ser gentil com ele... por causa do apoio político que o pai dela precisava, mas isso teria seus limites. Ou era tudo que seria preciso, uma vez que Paul estava tão apaixonado por ela. Mas quando se convenceu de que Paul tinha matado seu irmão e ia escapar do castigo se ela não... Isso é esplêndido! A filha e a namorada de Paul tentando levar ele pra cadeira elétrica. Não há dúvida de que ele tem uma sorte dos diabos com as mulheres. — Tinha na mão, agora, um fino charuto manchado de verde-claro. Parou diante de Janet Henry, cortou a ponta do charuto e disse, não acusadoramente, mas como partilhando uma descoberta com ela: — Foi você que espalhou essas cartas anônimas por aí. Certamente que foi você. Elas foram escritas na máquina de escrever que está no quarto onde seu irmão e Opal se encontravam. Ele tinha uma chave e ela outra. Ela não escreveu, porque ficou perturbada com elas. Você, sim. Você tirou a chave, quando ela foi entregue a vocês com o resto das coisas dele pela polícia, foi para o quarto e escreveu elas. Essa é ótima. — Recomeçou a andar. Disse: — Bem, bem, temos de fazer o senador arranjar um esquadrão de boas enfermeiras e trancar você em seu quarto com um colapso nervoso. Isso está começando a ser epidêmico entre as filhas de nossos políticos, mas precisamos garantir a eleição, mesmo que toda casa da cidade tenha de ter seu paciente. — Voltou a cabeça por cima do ombro e sorriu amistosamente para ela.

Ela levou a mão à garganta. Fora isso, não se moveu. Não falou.

Ele disse:

O senador não vai nos causar muita encrenca, feliz­mente. Não dá a mínima pra nada... nem pra você nem pra seu irmão morto... a não ser prá reeleição, e sabe que não consegue isso sem Paul. — Deu uma risada. — Foi isso que impeliu você pro papel de Judite, hein? Sabia que seu pai não ia romper com Paul... mesmo achando que ele era culpado... até vencer a eleição. Bem, é reconfortante saber disso... pra nós.

Quando ele parou de falar para acender seu charuto, ela falou. Tirara a mão da garganta. Tinha as mãos no colo. Sentava-se ereta, mas sem rigidez. Sua voz era fria e com­posta.

Não sou muito boa pra mentir. Sei ciue Paul matou Taylor. Escrevi as cartas.

Ned Beaumont tirou o charuto aceso da boca, voltou ao sofá com liras nas extremidades e sentou-se de frente para ela. Tinha o rosto sério, mas sem hostilidade.

Você odeia Paul, não é? Mesmo que ele provasse a você que não matou Taylor, você ainda odiaria ele, não é?

É ela respondeu, os olhos castanho-claros firmes nos dele, mais escuros. Acho que sim.

É isso ele disse. Não odeia ele por achar que matou seu irmão. Acha que ele matou seu irmão porque odeia ele.

Ela moveu lentamente a cabeça de um lado para outro.

Não.

Ele sorriu ceticamente. Depois perguntou:

Você discutiu isso com seu pai?

Ela mordeu o lábio e enrubesceu um pouco.

Ned Beaumont tornou a sorrir.

E ele disse a você que isso era ridículo.

O rubor acentuou-se das faces dela, que começou a dizer alguma coisa, mas não o fez.

Ele disse:

Se Paul matou seu irmão, seu pai sabe.

Ela baixou o olhar para as mãos no colo e disse com um ar de infelicidade:

Meu pai deve saber, mas não acredita.

Ned Beaumont disse:

Ele deve saber. Estreitou os olhos. Paul falou alguma coisa a ele naquela noite sobre Taylor e Opal?

Ela ergueu a cabeça, espantada.

Não sabe o que aconteceu naquela noite? per­guntou.

Não.

Não teve nada a ver com Taylor e Opal ela disse, atropelando as palavras na ânsia de dizê-las. Era... Virou a cabeça abruptamente em direção à porta e fechou a boca com um estalido. Ouviu-se o som de uma profunda risada do outro lado, e depois o de passos que se aproxi­mavam. Ela tornou a voltar-se para Ned Beaumont, apres­sada, erguendo as mãos num gesto de apelo. Preciso contar a você sussurrou, numa ânsia desesperada. Posso falar com você amanhã?

Pode.

Onde?

Em minha casa.

Ela assentiu rapidamente com a cabeça. Ele teve tempo de murmurar seu endereço, e ela de sussurrar:

Depois das dez?

Ele fez que sim com a cabeça, antes que o senador Henry e Paul Madvig entrassem na sala.

 

Paul Madvig e Ned Beaumont despediram-se dos Henry às dez e meia da noite e entraram num sedan marrom que Madvig dirigiu pela rua Charles abaixo. Depois de percorrerem uma quadra e meia, Madvig soltou a respiração numa rajada de satisfação e disse:

Deus do céu, Ned, não sabe como estou excitado por você e Janet estarem se dando tão bem.

Olhando de viés para o perfil do loiro, Ned Beaumont disse:

Eu posso me dar bem com qualquer pessoa.

Madvig deu uma risadinha.

É, pode, sim — disse com certa tolerância. — O diabo que pode.

Ned Beaumont curvou os lábios num sorrisinho fino e cheio de segredos.

Tem lima coisa que quero falar com você amanhã. Onde vai estar, digamos, no meio da tarde?

Madvig dobrou com o sedan para a rua da China.

No escritório. É o dia primeiro do mês. Por que não fala agora? Ainda temos muita noite pela frente.

Ainda não sei o que é. Como vai Opal?

Está bem — disse Madvig sombriamente, e depois exalamou: — Deus! Eu gostaria .de ter pena dela. Tornaria as coisas um bocado melhores. — Passaram por uma luz de poste. Ele despejou: — Ela não está grávida.

Ned Beaumont nada disse. Tinha o rosto inexpressivo.

Madvig reduziu a velocidade do sedan ao se aproxima­rem do Log Cabin Club. Tinha o rosto corado. Perguntou num sussurro:

Que é que você acha, Ned. Ela era... — pigarreou ruidosamente — amante dele? Ou era só namoro?

Ned Beaumont disse:

Não sei. Não me importa. Não pergunte a ela, Paul.

Madvig parou o sedan e ficou por um momento sentado atrás do volante, olhando diretamente em frente. Depois tornou a pigarrear e falou numa voz baixa e áspera:

Você não é tão mau assim, Ned.

Um-hum concordou Ned Beaumont, enquanto sal­tavam do sedan.

Entraram no Club, separando-se casualmente sob o re­trato do governador no alto da escada no segundo andar.

Ned Beaumont entrou numa sala meio pequena no fun­do, onde cinco homens jogavam pôquer e três bicavam. Os jogadores abriram espaço para ele, e às três da manhã, quan­do se suspendeu o jogo, ele já ganhara uns quatrocentos dólares.

 

Era quase meio-dia quando Janet Henry chegou ao apartamento de Ned Beaumont. Ele estivera andando de um lado para outro, roendo as unhas e fumando charutos alternada­mente, por mais de uma hora. Dirigiu-se sem pressa até a porta quando a campainha tocou, abriu-a e Janet, sorrindo com um ar de leve mas agradável surpresa, disse:

Sinto muitíssimo estar atrasada ela começou mas...

Mas não está ele garantiu. Era qualquer hora depois das dez.

Fez com que entrasse em sua sala de estar.

Gosto disso ela disse, girando lentamente, exami­nando a sala antiquada, a altura do teto, a largura das ja­nelas, o tremendo espelho sobre a lareira, o veludo vermelho dos móveis. É delicioso. Voltou os olhos castanhos para uma porta entreaberta. Aquele é o seu quarto?

É. Gostaria de ver?

Adoraria.

Ele mostrou-lhe o quarto, depois a cozinha e o banheiro.

É perfeito ela disse, quando voltaram à sala de estar. Eu não sabia que ainda restavam coisas assim numa cidade tão horrivelmente modernizada como se tornou a nossa.

Ele fez uma pequena curvatura de reconhecimento da aprovação.

Eu gosto, e, como pode ver, não tem ninguém aqui pra ficar nos escutando, a menos que estejam enfurnados no armário, o que não é provável.

Ela se recompôs e olhou direto dentro dos olhos dele.

Eu não pensava nisso. Podemos não concordar, po­demos até nos tornar... ou ser já... inimigos, mas sei que você é um cavalheiro, senão não estaria aqui.

Ele perguntou num tom brincalhão.

Quer dizer que aprendi a não usar sapatos marrom com camisas azuis? Essas coisas?

Não me refiro a essas coisas.

Ele sorriu.

Então está enganada. Sou um jogador e um agregado político.

Não estou enganada. — Uma expressão de súplica surgiu em seus olhos. — Por favor, não vamos discutir, pelo menos enquanto não for preciso.

Sinto muito. — O sorriso dele era de quem pedia des­culpas agora. — Não quer se sentar?

Ela se sentou. Ele também, numa ampla poltrona ver­melha de frente para ela.

Agora vai me contar o que aconteceu em sua casa na noite em que seu irmão foi assassinado.

É — ela disse, de um modo quase inaudível. Corou, e transferiu o olhar para o chão. Quando tornou a erguê-lo, estava inibido. O embaraço dificultava-lhe a voz:

Eu queria que você soubesse. É amigo de Paul e isso... isso pode tornar você inimigo dele, mas... acho que, quando souber o que aconteceu... quando souber a verdade... não será... pelo menos não será meu inimigo. Não sei. Talvez você... Mas você deve saber. Depois poderá decidir. E ele não contou a você. — Olhou-o atentamente, e a inibição abandonou os seus olhos. — Contou?

Não sei o que aconteceu em sua casa naquela noite — ele disse. — Ele não me contou.

Ela se curvou para ele, num movimento rápido, para perguntar:

Isso não mostra que tem alguma coisa que ele quer esconder, alguma coisa que precisa esconder?

Ele moveu os ombros.

E se mostrar? — Sua voz não tinha excitação alguma.

Ela franziu a testa.

Mas você tem de entender... Deixe isso pra lá agora. Vou lhe dizer o que aconteceu e verá por si mesmo. — Conti­nuou a curvar-se para a frente, olhando os olhos dele com olhos castanhos atentos. Ele veio jantar, a primeira vez que recebemos ele pra jantar.

Eu sabia disso disse Ned Beaumont —, e seu irmão não estava lá.

Taylor não estava à mesa ela se apressou em corri­gir —, mas estava no quarto dele. Só meu pai, Paul e eu estávamos à mesa. Taylor ia jantar fora... não queria jantar com Paul, devido à briga que tinham por causa de Opal.

Ned Beaumont concordou atentamente, sem entusiasmo.

Depois do jantar, Paul e eu ficamos sozinhos por al­gum tempo no... no quarto onde eu e você conversamos ontem à noite, e de repente ele me abraçou e me beijou.

Ned Beaumont deu uma risada, não alta, mas de uma alegria abrupta e irreprimível.

Janet Henry ergueu o olhar para ele, surpresa.

Ele reduziu a risada a um sorriso e disse:

Desculpe. Prossiga. Digo depois por que ri. Mas, quando ela ia prosseguir, ele disse: Espere. Ele disse al­guma coisa quando beijou você?

Não. Isto é, pode ter dito, mas nada que eu tenha entendido.

Ned Beaumont tornou a rir.

Deve ter dito alguma coisa sobre sua libra de carne. Provavelmente, foi minha culpa. Eu tinha tentado convencer ele a não apoiar seu pai na eleição, disse que seu pai estava usando você como isca pra ganhar o apoio dele, e aconselhei que, se estava disposto a se vender desse jeito, devia se garantir e cobrar sua libra de carne antes da eleição, pois de outro modo jamais ia receber.

Ela arregalou os olhos, e havia menos perplexidade neles.

Ele disse:

Isso foi naquela tarde, embora eu não achasse que tivesse influenciado muito ele. Enrugou a testa. Que fez você com ele? Paul estava querendo casar com você, e todo cheio de respeito e essas coisas todas, e você deve ter feito alguma coisa muito errada pra fazer ele saltar desse jeito.

Eu não fiz nada com ele ela respondeu devagar —, embora tivesse sido uma noite difícil. Nenhum de nós estava à vontade. Eu pensava... tentava não demonstrar que... bem... que me chateava ter de fazer sala a ele. Sei que ele não estava à vontade, e suponho que... o embaraço dele... e talvez uma certa desconfiança de que você tivesse razão fizeram com que ele... — Terminou a frase com um breve e rápido movimento para fora de ambas as mãos.

Ned Beaumont assentiu com a cabeça.

Que aconteceu então?

Eu fiquei furiosa, é claro, e deixei ele ali.

Não disse nada pra ele? — Os olhos de Ned Beau­mont faiscavam com uma gozação muito mal disfarçada.

Não, nem ele disse qualquer coisa que eu ouvisse. Subi e encontrei papai "que descia. Enquanto contava a ele o que tinha acontecido... estava tão furiosa com ele quanto com Paul, porque era culpa dele o fato de Paul estar lá em casa... Enquanto eu falava, ouvimos Paul sair pela porta da frente. E então Taylor desceu de seu quarto. — Seu rosto ficou pálido e tenso, a voz rouca de emoção. — Tinha me ouvido conversando com papai e me perguntou o que acontecera, mas deixei ele ali com papai e fui pro meu quarto, furiosa demais pra continuar falando naquilo. E não vi mais nenhum dos dois, até que papai veio ao meu quarto e disse que Taylor tinha... tinha sido assassinado. — Parou de falar e olhou, pálida, para Ned Beaumont, torcendo os dedos, à espera de uma resposta para a sua história.

A resposta dele foi uma fria pergunta:

Bem, e daí?

E daí? — ela repetiu espantada. — Não está vendo? Como pude deixar de saber então que Taylor tinha corrido atrás de Paul, alcançado ele e sido morto por ele? Estava fu­rioso e... — Seu rosto iluminou-se. — Você sabe que o chapéu dele não foi encontrado. Ele saiu apressado demais... furioso demais... pra parar pra pegar o chapéu. Ele...

Ned Beaumont balançou lentamente a cabeça de um lado para outro e interrompeu-a. A certeza em sua voz era indis­cutível.

Não. Isso não significa nada. Paul não teria necessi­dade de matar Taylor, nem mataria. Daria um jeito nele com um braço só, e não perde a cabeça numa briga. Eu sei disso. Já vi Paul brigar e já briguei com ele. Isso não significa nada. — Estreitou as pálpebras sobre os olhos, que se haviam tor­nado mais duros. — Mas e se matou? Quero dizer, aciden­talmente, embora eu não possa acreditar nem mesmo nisso. Você poderia fazer outra acusação que não de legítima de­fesa?

Ela ergueu a cabeça, com desdém.

Se foi legítima defesa, por que ele esconderia?

Ned Beaumont não pareceu impressionado.

Ele quer casar com você explicou. Não ia ajudar muito admitir que matou seu irmão, mesmo... Deu uma risadinha. Estou ficando tão ruim quanto você. Paul não matou ele, srta. Henry.

Os olhos dela estavam tão duros quando os dele antes. Olhou-o e não disse nada.

A expressão dele tornou-se pensativa. Perguntou:

Você tem apenas mexeu os dedos de uma mão o dois e o dois que acha que somou para deduzir que seu irmão correu atrás de Paul naquela noite?

Isso basta ela insistiu. Ele matou. Tem de ter matado. De outro modo... ora, de outro modo, que estaria ele fazendo lá embaixo na rua da China sem chapéu?

Seu pai não viu ele sair?

Não. Ele também só soube quando nos disseram...

Ele a interrompeu.

Ele concorda com a senhorita?

Tem de concordar! ela exclamou. É inequívoco. Tem de concordar, não importa o que diga, do mesmo modo que você. Tinha lágrimas nos olhos agora. Não pode esperar que eu acredite que não concorda, sr. Beaumont. Não sei o que sabia antes. Foi você quem encontrou Taylor morto. Não sei o que mais descobriu, mas agora deve estar sabendo a verdade.

As mãos de Ned Beaumont começaram a tremer. Ele se arriou mais na poltrona, para poder enfiar as mãos nos bolsos das calças. Tinha o rosto tranqüilo, a não ser pelas marcadas linhas de tensão em redor da boca. Disse:

Achei ele morto. Não tinha mais ninguém lá. Não achei nada mais.

Achou agora ela disse.

A boca dele contorceu-se sob o bigode. Os olhos torna­ram-se vermelhos de cólera. Ele falou numa voz baixa, ás­pera, deliberadamente irada:

Sei que quem matou seu irmão prestou um favor ao mundo.

Ela se encolheu para trás na poltrona, levando a mão à garganta a princípio, mas imediatamente o horror abandonou o seu rosto e endireitou-se, olhando-o com compaixão. Disse baixinho:

Eu sei. O senhor é amigo de Paul. Isso dói.

Ele baixou um pouco a cabeça e murmurou:

Foi uma coisa desagradável de dizer. Uma coisa tola. — Sorriu enviesado. — Como vê, eu tinha razão quando disse que não era um cavalheiro. — Deixou de sorrir e a vergonha abandonou os seus olhos, deixando-os claros e firmes. Disse em voz baixa: — Tem razão quando diz que eu sou amigo de Paul. Sou, não importa quem ele tenha matado.

Após um instante encarando-o seriamente, ela falou numa vozinha sincera:

Então é inútil? Eu achei que podia lhe mostrar a verdade... — Interrompeu-se com um gesto de desânimo do qual participaram as mãos, os ombros e a cabeça.

Ele moveu lentamente a cabeça de um lado para outro.

Ela deu um suspiro e se levantou, estendendo a mão.

Sinto muito e estou decepcionada, mas não precisa­mos ser inimigos, precisamos?

Ele se levantou na frente dela, mas não apertou sua mão. Disse:

A parte de você que tapeou Paul e está tentando me tapear é minha inimiga.

Ela continuou de mão estendida, enquanto dizia:.

E a outra parte de mim, a parte que nada tem a ver com isso?

Ele tomou a mão dela e fez uma reverência.

 

Depois que Janet Henry se foi, Ned Beaumont dirigiu-se ao telefone, discou um número e disse:

— Alô, aqui é Beaumont. O sr. Madvig já chegou?... Bem, quando ele chegar diga que chamei e vou passar por aí praverele... Sim, obrigado.

Olhou o seu relógio. Passava um pouco da uma da tarde. Ele acendeu um charuto e sentou perto de uma janela, fu­mando e olhando a igreja cinza do outro lado da rua. A fumaça que expelia do charuto espiralava-se, afastando-se das vidra­ças em nuvens cinza, acima de sua cabeça. Ele mastigava a ponta do charuto. Ficou ali sentado durante dez minutos, até que o telefone tocou.

Foi atender.

Alô... Sim, Harry... Claro. Onde está você? Vou ao centro. Espere lá por mim... Meia hora... Certo.

Jogou o charuto na lareira, pôs o chapéu e o casaco, e saiu. Andou seis quadras até um restaurante, comeu uma salada e pãezinhos, bebeu uma xícara de café, andou mais quatro quadras até um hotelzinho chamado Majestic e subiu ao quarto andar num elevador operado por um rapaz franzino que o chamou de Ned e perguntou o que ele achava do terceiro páreo.

Ned Beaumont pensou e disse:

Lord Byron deve conseguir.

O ascensorista disse:

Espero que esteja errado. Apostei em Pipeorgan.

Ned Beaumont deu de ombros.

Talvez, mas ele está carregando um monte de peso.

Foi até o quarto 417 e bateu na porta.

Harry Sloss, em mangas de camisa, abriu-a. Era um homem atarracado de trinta e cinco anos, cara larga, e par­cialmente calvo. Disse:

Em ponto. Entre.

Depois que ele fechou a porta, Ned Beaumont per­guntou:

Qual é o problema?

O homem atarracado foi até a cama e sentou-se. Franziu a testa ansiosamente para o visitante.

Não me parece tão bem assim, Ned.

O quê?

Esse negócio de Ben ir à prefeitura falar.

Ned Beaumont disse irritado:

Está bem. Na hora em que estiver disposto a me dizer do que está falando eu ficarei agradecido.

Sloss ergueu uma mão pálida.

Espere, Ned, eu digo do que se trata. Escute só. Apalpou o bolso em busca de cigarros, tirou um maço amas­sado. Se lembra da noite em que o garoto de Henry foi apagado?

O "um-hum" de Ned Beaumont foi indiferente.

Se lembra que eu e Ben tínhamos acabado de entrar quando você chegou lá, no Club?

Lembro.

Bem, escute: a gente viu Paul e o rapaz discutindo lá, embaixo das árvores.

Ned Beaumont alisou um lado do bigode com a unha do polegar, e falou vagarosamente, parecendo intrigado.

Mas eu vi vocês saltarem do carro diante do Club... pouco depois que achei ele... e vocês vinham do outro lado. — Moveu um dedo. — E Paul já estava no Club, chegou antes de vocês.

Sloss fez que sim com a cabeça, vigorosamente.

Está tudo bem — disse —, mas a gente foi de carro da rua da China até o bar de Pinky Klein, e como ele não estava lá a gente deu meia-volta e foi pro Club.

Ned Beaumont assentiu.

Que foi exatamente que vocês viram?

Vimos Paul e o rapaz parados debaixo das árvores, brigando.

Conseguiram ver isso passando de carro?

Sloss tornou a assentir vigorosamente com a cabeça.

Era um lugar escuro — lembrou-lhe Ned Beaumont. — Não percebo como puderam distinguir os rostos deles, passando assim de carro, a não ser que tenham diminuído a marcha ou parado.

Não, não fizemos nada disso, mas eu reconheceria Paul em qualquer lugar — insistiu Sloss.

Talvez, mas reconheceria que era o rapaz que estava com ele?

Era ele. Claro que era. A gente viu o bastante pra saber disso.

E conseguiram ver que estavam brigando. Que quer dizer com isso? Lutando?

Não, parados como se estivessem discutindo. Você sabe, a gente pode saber quando duas pessoas estão brigando, às vezes, pela maneira como agem.

Ned Beaumont sorriu sem alegria.

É, se um deles estiver pisando na cara do outro. — Seu sorriso desapareceu. — E foi isso que Ben foi contar na prefeitúra?

É. Não sei se foi por conta própria ou se Farr soube de alguma coisa, de algum modo, e mandou chamar ele, mas de qualquer forma ele despejou tudo pra Farr. Isso foi ontem.

Como você soube disso, Harry?

Farr está me caçando — disse Sloss. — Foi assim que eu soube, Ben disse que eu estava com ele e Farr mandou um recado pra que eu aparecesse pra falar com ele, mas não quero tomar parte nisso.

Espero que não tome, Harry — disse Ned Beaumont.

Que vai dizer se Farr pegar você?

Não vou deixar ele me pegar, se puder evitar. Era por isso que queria ver você. — Pigarreou e umedeceu os lábios.

Achei que talvez fosse bom deixar a cidade por uma semana ou duas, até a coisa murchar, e que precisavam de um dinheirinho.

Ned Beaumont sorriu e balançou a cabeça.

Não é isso que deve fazer — disse ao homem atar­racado. — Se quer ajudar Paul, vá a Farr e diga que não reco­nheceu os dois homens embaixo das árvores, e que acha que ninguém, de um carro, poderia reconhecer.

Está bem, é o que eu vou fazer — disse Sloss pronta­mente. — Mas escute, Ned, preciso ganhar alguma coisa com isso. Estou me arriscando e... bem... você sabe como é.

Ned Beaumont fez que sim com a cabeça.

A gente arranja um lugar mole pra você depois da eleição, um emprego onde só tenha de aparecer talvez uma hora por dia.

Isso vai ser... — Sloss levantou-se. Os olhos claros mostravam urgência. — Vou dizer a você, Ned, estou duro como o diabo. Não podia em vez disso me arranjar uma graninha agora? Chegaria numa hora danada de boa.

Talvez. Vou discutir isso com Paul.

Faça isso, Ned, e me telefone.

Claro. Até logo.

 

Do hotel Majestic, Ned Beaumont foi à prefeitura, ao gabinete do Promotor Distrital, e disse que queria falar com o sr. Farr.

O rapaz de cara redonda a quem disse isso deixou a sala de espera e retornou um minuto depois com uma expressão de quem se desculpa.

Sinto muito, sr. Beaumont, mas o sr. Farr não está.

Quando vai voltar?

Não sei. A secretária dele disse que ele não deixou recado.

Vou me arriscar. Esperarei no escritório dele.

O rapaz de cara redonda barrou-o.

Oh, não pode fazer...

Ned Beaumont deu seu mais belo sorriso ao rapaz e per­guntou baixinho:

Não gosta desse emprego, filho?

O jovem hesitou, remexeu-se e saiu da frente dele. Ned Beaumont desceu o corredor interno até a porta do Promotor Distrital e abriu-a.

Farr ergueu o olhar de sua mesa, saltou de pé.

Era você? — exclamou. — Diabo de rapaz! Nunca entende nada direito. Disse que era um tal sr. Bauman.

Não faz mal — disse suavemente Ned Beaumont. — Eu entrei.

Deixou o Promotor Distrital sacudir sua mão para cima e para baixo e conduzi-lo a uma poltrona. Depois de sentados, ele perguntou ociosamente:

Alguma novidade?

Nada. — Farr balançou-se para trás em sua poltrona, os polegares enfiados nos bolsos de baixo do colete. — Só a mesma velha história, embora Deus saiba que tem bastante.

Como vai indo a campanha?

Podia ir melhor... — Uma sombra passou pelo rosto obstinado e vermelho do Promotor Distrital. — Mas acho que vamos dar um jeito, é claro.

Ned Beaumont manteve a voz desinteressada.

Que é que há?

Uma coisinha aqui, outra ali. Estão sempre surgindo. É a política, imagino.

Alguma coisa que eu possa fazer... ou Paul... pra ajudar? — perguntou Ned Beaumont, e, depois de Farr ba­lançar a cabeça de cabelos ruivos à escovinha: — Essa con­versa de que Paul teve alguma coisa a ver com o assassinato de Henry é a pior que você está enfrentando?

Um brilho de susto surgiu nos olhos de Farr, mas desa­pareceu quando ele piscou. Ele se endireitou na poltrona.

Bem disse cautelosamente —, tem muita gente achando que a gente devia ter esclarecido o assassinato há muito tempo. Esta é uma das coisas... talvez uma das maio­res.

Fez algum progresso desde a última vez que te vi? Descobriu alguma coisa nova?

Farr balançou a cabeça. Os olhos demonstravam cautela.

Ned Beaumont sorriu sem entusiasmo.

Ainda indo devagar em algum dos ângulos do caso?

O Promotor Distrital retorceu-se na poltrona.

Bem, sim, claro, Ned.

Ned Beaumont assentiu. Tinha os olhos reluzentes de malícia. A voz, quando falou, era de escárnio:

O ângulo de Ben Ferriss é um desses que você está examinando devagar?

A dura boca pequena de Farr se abriu e fechou. Ele es­fregou os lábios, juntos. Os olhos, depois de se arregalarem de espanto, tornaram-se desprovidos de expressão. Ele disse:

Não sei se existe alguma coisa na história de Ferriss ou não, Ned. Não creio que exista. Nem sequer pensei muito nela pra lhe falar.

Ned Beaumont deu uma risada de gozação.

Farr disse:

Você sabe que eu não esconderia nada sobre você e Paul, nada que fosse importante. Me conhece muito bem pra saber disso.

Nós conhecíamos você antes de começar a ficar com medo respondeu Ned Beaumont. Mas está tudo bem. Se quer o cara que estava no carro com Ferriss pode pegar ele agora mesmo no quarto 417 do Majestic.

Farr olhava o tinteiro de sua mesa, a figura nua dan­çante segurando um avião no alto, entre as duas canetas incli­nadas para fora. Tinha o rosto enrugado. Não disse nada.

Ned Beaumont levantou-se da poltrona sorrindo com os lábios finos.

Paul sempre tem prazer em ajudar os rapazes a saí­rem do buraco. Acha que ajudaria se ele se deixasse prender e julgar pelo assassinato de Henry?

Farr não moveu os olhos do tinteiro de mesa. Disse obstinadamente:

Não sou eu quem vai dizer a Paul o que fazer.

— Está aí uma idéia! — exclamou Ned Beaumont. Cur­vou-se sobre a borda da mesa até aproximar o rosto do ouvido do Promotor Distrital, e baixou a voz a um tom confidencial. — E aqui vai outra que acompanha aquela: você não deve fazer muita coisa que Paul não diga pra fazer.

Saiu sorrindo, mas parou de sorrir do lado de fora.

 

Ned Beaumont abriu uma porta onde estava escrito Companhia Construtora e Empreiteira East State e trocou boas-tardes com as duas moças que se sentavam às mesas lá dentro, depois passou a uma sala maior, na qual havia meia dúzia de homens, aos quais falou, e abriu uma porta com a palavra "Privado". Entrou numa sala quadrada onde Paul Madvig se sentava a uma mesa bem gasta, olhando uns papéis colocados à sua frente por um homenzinho que rondava respeitosamente em torno do ombro dele.

Madvig ergueu a cabeça e disse:

Olá, Ned. — Afastou os papéis e disse ao homenzi­nho: — Traga esse lixo de volta daqui a pouco.

O homenzinho juntou seus papéis e, dizendo — Certa­mente, senhor — e — Como vai, sr. Beaumont? — deixou a sala.

Madvig disse:

Você parece que teve uma noite difícil, Ned. Que foi que fez? Sente aí.

Ned Beaumont tinha tirado o casaco. Colocou-o numa poltrona, pôs o chapéu em cima e tirou um charuto.

Não, estou bem. Que novidades há com você? — Sentou-se numa quina da mesa gasta.

Eu gostaria que você fosse falar com M'Laughlin — disse o loiro. — Pode dar um jeito nele, se é que alguém pode.

Tudo bem. Que é que há com ele?

Madvig fez uma careta.

Só Deus sabe! Eu achava que tinha ele na linha, mas está falseando a gente.

Um brilho sombrio surgiu nos olhos escuros de Ned Beaumont. Ele baixou o olhar para o loiro e disse:

Ele também, hein?

Madvig perguntou devagar, após pensar um momento:

Que quer dizer com isso, Ned?

A resposta de Ned Beaumont foi outra pergunta:

Tudo está indo a seu gosto?

Madvig moveu os ombros com impaciência, mas os olhos não perderam o olhar fixo de vigilância.

Também não está tão ruim assim. A gente pode pas­sar sem o conjunto de votos de M'Laughlin, se for preciso.

Talvez. — Os lábios de Ned tornaram-se finos. — Mas não podemos continuar perdendo e nos dar bem. — Pôs o charuto num canto da boca e disse em torno dele: — Sabe que não estamos tão bem quanto há duas semanas.

Madvig deu um sorriso de tolerância ao homem sobre sua mesa.

Deus, você parece contar os votos, Ned! Alguma coisa lhe parece errada? — Não esperou por uma resposta, e pros­seguiu placidamente: — Nunca passei por uma campanha, ainda, que num momento ou outro, não parecesse que estava indo pro brejo.

Ned Beaumont acendia seu charuto. Soprou a fumaça e disse:

Isso não significa que nunca vá. — Apontou o cha­ruto para o peito de Madvig. — Se o assassinato de Taylor Henry não for esclarecido imediatamente, você não precisará se preocupar com a campanha. Estará liquidado, vença quem vencer.

Os olhos azuis de Madvig tornaram-se opacos. Fora isso, não houve mudança em seu rosto. A voz permaneceu inalte­rada.

Que quer dizer exatamente com isso, Ned?

Todo mundo na cidade acha que você matou ele.

É? — Madvig levou a mão ao queixo, esfregou-o pensativamente. — Não se preocupe com isso. Já falaram mal de mim antes.

Ned Beaumont deu um sorriso morno e perguntou com fingida admiração:

Existe alguma coisa pela qual você não tenha passado antes? Já se submeteu a um tratamento elétrico?

O loiro deu uma risada.

Nem acho que vá me submeter um dia disse.

Não está muito longe dele neste momento, Paul disse baixinho Ned Beaumont.

Madvig tornou a rir.

Deus do céu! gozou.

Ned Beaumont deu de ombros.

Não está ocupado? Não estou tomando seu tempo com minhas tolices?

Estou ouvindo você Madvig disse em voz baixa. Nunca perco nada ouvindo você.

Muito obrigado, senhor. Por que acha que M'Laughlin está tirando o dele da reta?

Madvig balançou a cabeça.

Ele imagina que você está liquidado disse Ned Beaumont. Todos sabem que a polícia não tentou descobrir o assassino de Taylor, e todos acham que é porque foi você quem matou ele. M'Laughlin acredita nisso o bastante pra lhe dar o fora nas urnas desta vez.

É? Ele acha que seria melhor pra ele ter Shad diri­gindo a cidade em meu lugar? Acha que o fato de ser suspeito de um assassinato torna minha reputação pior que a de Shad?

Ned Beaumont franziu a testa para o loiro.

Você ou está se enganando ou tentando me enganar. Que é que a reputação de Shad tem a ver com isso? Ele não apóia abertamente os candidatos dele. Você apóia, e são seus candidatos os responsáveis pelo fato de não se fazer nada em relação ao assassinato.

Madvig levou a mão ao queixo e apoiou o cotovelo na mesa. Seu belo rosto corado não tinha rugas. Ele disse:

Falamos um bocado sobre o que os outros imaginam, Ned. Vamos falar do que você imagina. Acha que estou liqui­dado?

Provavelmente está disse Ned Beaumont numa voz baixa e segura. Está numa enrascada, se ficar parado. Sorriu. Mas seus candidatos devem ganhar, sem dúvida.

Isso disse Madvig calmamente requer uma explicação.

Ned Beaumont curvou-se e bateu cuidadosamente a cinza do charuto na escarradeira junto à mesa. Depois disse, sem nenhuma emoção:

Eles vão te trair.

É?

Por que não? Você deixou Shad lhe tirar a metade da ralé que lhe dava base. Está contando com as pessoas respei­táveis, o elemento melhor, pra ganhar a eleição. Eles estão ficando astutos. Bem, seus candidatos fazem uma encenação grandiosa, prendem você por assassinato, e os cidadãos respeitáveis... deliciados com essas nobres autoridades, corajosas o bastante pra prender o reconhecido chefão delas por violar a lei... os cidadãos respeitáveis vão se atropelar uns aos outros na corrida às urnas pra eleger os heróis pra mais quatro anos de administração municipal. Você não pode censurar muito os rapazes. Eles sabem que estarão em boa posição se fizerem isso, e desempregados se não fizerem.

Madvig tirou a mão do queixo e perguntou:

Você não conta muito com a lealdade deles, conta, Ned?

Ned Beaumont sorriu.

Quase tanto quanto você — respondeu. Seu sorriso desapareceu. — Não é só um palpite, Paul. Fui faiar com Farr esta tarde. Tive de entrar na marra, arrombar a porta... ele tentou me evitar. Disse que não estava investigando o assassinato. Tentou esconder de mim o que descobriu. No fim, minimizou a coisa. — Armou uma expressão de desprezo cem a boca. — Farr, o sujeito que eu sempre conseguia fazer saltar a meu comando.

Bem, isso é só Farr — começou Madvig.

Ned Beaumont interrompeu-o.

Só Farr, e aí é que está o sinal. Rutlege ou Brody, ou mesmo Rainey, podiam deixar você na mão individualmente, mas se Farr está fazendo alguma coisa, isso é um anúncio de que sabe que tem outros ao lado dele. — Franziu a testa para o rosto imperturbável do loiro. — Pode deixar de acreditar em mim na hora que quiser, Paul.

Madvig fez um gesto de indiferença com a mão que levara ao queixo.

Eu informo a você quando deixar — disse. — Como você foi parar no gabinete de Farr?

Harry Sloss me telefonou hoje. Parece que ele e Ben Ferriss viram você brigando com Taylor na rua da China, na noite do assassinato, ou dizem que viram. Ned Beaumont olhava o loiro sem qualquer expressão particular nos olhos, e a voz era vulgar. Ben tinha ido contar isso a Farr. Harry queria dinheiro pra não ir. Alguns membros de seu Club estão lendo os sinais. Venho observando Farr perder a coragem já há algum tempo, e por isso fui lá dar uma conferida nele.

Madvig assentiu.

E tem certeza de que ele está me esfaqueando pelas costas?

Tenho.

Madvig levantou de sua poltrona e foi até a janela. Ficou ali, as mãos enfiadas nos bolsos da calça, olhando através da vidraça, por uns três minutos talvez, enquanto Ned Beaumont, sentado na mesa, fumava e olhava as largas costas do loiro. Depois, sem virar a cabeça, Madvig perguntou:

Que foi que você disse a Harry?

Pedi tempo.

Madvig deixou a janela e voltou à mesa, mas não se sentou. Seu rubor aumentara. Fora isso, não se via mudança alguma no rosto. A voz era plana.

Que acha que devemos fazer?

Sobre Sloss? Nada. O outro macaco já foi falar com Farr. Não importa muito o que Sloss fizer.

Eu não me referia a isso. Falava da coisa toda.

Ned Beaumont deixou o charuto cair na escarradeira.

Eu disse a você. Se o assassinato de Taylor Henry não for esclarecido imediatamente, você está liquidado. É só isso. É a única coisa sobre a qual vale a pena tentar alguma ação.

Madvig deixou de olhar para Ned Beaumont. Ficou olhando o amplo espaço vazio na parede. Comprimiu os lábios carnudos. O suor umedecia as têmporas. Ele disse, do fundo do peito:

Não vai adiantar. Pense em outra coisa.

As narinas de Ned Beaumont se moveram com a respi­ração, os olhos pareciam mais negros. Ele disse:

Não tem mais nada, Paul. Qualquer outra coisa vai cair direitinho nas mãos de Shad ou Farr e a turma dele, e qualquer um deles arruinará você.

Madvig disse meio asperamente:

Tem de haver uma saída, Ned. Pense.

Ned Beaumont levantou-se da mesa e postou-se diante do loiro, muito próximo.

Não tem. Essa é a única saída. E você vai usar ela quer goste, quer não, senão eu uso por você.

Madvig balançou violentamente a cabeça.

Não. Fique fora.

Ned Beaumont disse:

Está aí uma coisa que não vou fazer pra você, Paul.

Então Madvig olhou-o nos olhos e disse num áspero sus­surro:

Eu matei ele, Ned.

Ned Beaumont inspirou e expirou, um longo suspiro.

Madvig pôs as mãos nos ombros de Ned Beaumont e falou com palavras enroladas e imprecisas.

Foi um acidente, Ned. Ele desceu a rua correndo atrás de mim quando eu saí, com uma bengala que tinha pegado na saída. Nós tínhamos... tinha havido um problema lá e ele me alcançou e tentou me bater com a bengala. Não sei como aconteceu, mas tirando a bengala da mão dele bati na cabeça dele com ela... não com força... não pode ter sido com muita força... mas ele caiu e despedaçou a cabeça no meio-fio.

Ned Beaumont assentiu. Seu rosto tornara-se de repente vazio de qualquer expressão, a não ser a fixa concentração nas palavras de Madvig. Perguntou numa voz seca, que combinava com o seu rosto:

Que aconteceu com a bengala?

Escondi debaixo de meu casaco e queimei. Quando soube que ele estava morto, vi a bengala em minha mão, já a caminho do Club, e aí guardei ela debaixo do casaco e depois queimei.

Que tipo de bengala era?

Nodosa, marrom, pesada.

E o chapéu dele?

Não sei, Ned. Creio que caiu com a pancada e alguém pegou.

Ele estava de chapéu?

Estava, claro.

Ned Beaumont alisou o lado do bigode com a unha do polegar.

Lembra se viu o carro de Sloss e Ferriss passar por você?

Madvig balançou a cabeça.

Não, mas pode ter passado.

Ned Beaumont franziu a testa para o loiro.

Você bagunçou tudo fugindo com a bengala e quei­mando ela, e ficando calado esse tempo todo resmungou.

Tinha uma nítida alegação de legítima defesa.

Eu sei, mas não queria isso, Ned disse Madvig asperamente. Quero Janet Henry mais do que jamais quis qualquer coisa em minha vida, e que possibilidade eu teria então, mesmo tendo sido um acidente?

Ned Beaumont riu na cara de Madvig. Um riso abafado e amargo. Disse:

—- Teria mais possibilidade do que tem agora. Madvig, olhando-o fixamente, nada disse. Ned Beaumont disse:

Ela sempre achou que você matou o irmão dela. Odeia você. Vem tentando manobrar você pra sentar na ca­deira elétrica. Ela foi a primeira a lançar suspeitas sobre você, com cartas anônimas enviadas a todo mundo que estivesse interessado. Foi ela quem voltou Opal contra você. Esteve esta manhã em meu apartamento me contando isso, tentando fazer com que eu me voltasse também. Ela...

Madvig disse:

Chega! — Endireitou-se, um loiro altão cujos olhos pareciam frios discos azuis. Que é, Ned? Quer ela pra você ou será... — Interrompeu-se com desprezo. Não importa.

Indicou a porta com o polegar, indiferentemente. Dê o fora, seu patife, este é o beijo de despedida.

Ned Beaumont disse:

Saio quando acabar de falar.

Madvig disse: —- Você sai quando recebe ordem pra sair. Não pode dizer coisa alguma que eu acredite. Nunca mais. Ned Beaumont disse:

Tudo bem. Pegou seu chapéu e casaco e saiu.

 

Ned Beaumont foi para casa. Tinha o rosto pálido e soturno. Arriou-se numa das grandes poltronas vermelhas com uma garrafa de Bourbon e um copo na mesa ao lado, mas não bebeu. Fitava sombriamente os sapatos pretos e mordia uma unha. O telefone tocou. Ele não atendeu. O crepúsculo começava a expulsar o dia na sala, que já estava meio escura quando ele se levantou e foi até o telefone.

Discou um número. Depois disse:

Alô, eu gostaria de falar com a srta. Henry, por favor. — Após uma pausa, que ele passou assobiando em surdina, disse: — Alô, srta. Henry?... Sim... Acabo de contar tudo a Paul, sobre você... Sim, e você tem razão. Ele fez o que você disse que ele fez... — Deu uma risada. — Tinha razão. Sabia que ele ia me chamar de mentiroso, se recusar a me ouvir e me expulsar, e ele fez tudo isso... Não, não, está tudo bem. Tinha de acontecer... Não, realmente... Oh, provavelmente é definitivo. A gente disse coisas que dificilmente poderão ser desditas... Sim, a noite toda, creio... Isso será ótimo... Tudo bem. Até.

Serviu uma dose de uísque então e bebeu-a. Depois foi até o quarto, onde as sombras da noite avançavam, pôs o despertador para as oito horas e deitou-se inteiramente vestido, de barriga para cima, na cama. Ficou algum tempo olhando o teto. Depois adormeceu, respirando irregularmente, até que o alarme soou.

Levantou-se preguiçosamente da cama e, ligando as lu­zes, entrou no banheiro, lavou o rosto e as mãos, pôs um cola­rinho limpo e acendeu o fogo na lareira da sala de estar. Leu um jornal até a chegada de Janet Henry.

Ela estava excitada. Embora começasse logo assegurando a Ned Beaumont que não previra o resultado da conversa dele com Paul, que não contara com isso, seus olhos mostravam uma alegria franca, e ela não podia evitar que os sorrisos curvassem seus lábios quando formavam as palavras de desculpa.

Ele disse:

Não importa. Eu teria de fazer isso, mesmo sabendo como terminaria. Acho que, no fundo, sabia. É uma dessas coisas. E se você tivesse me dito que seria assim, eu tomaria isso como um desafio e mergulharia de cabeça.

Ela estendeu as mãos para ele.

Estou satisfeita. Não vou fingir que não estou.

Sinto muito — ele disse, tomando as mãos dela —, mas eu não me afastaria um passo de meu caminho pra evitar isso.

Ela disse:

E agora sabe que tenho razão. Ele matou Taylor. Os olhos eram inquisitivos.

Ele assentiu.

Ele me disse que matou.

E você vai me ajudar agora? As mãos dela aper­tavam as dele. Ela se aproximou.

Ele hesitou, franzindo a testa para o ansioso rosto dela abaixo.

Foi legítima defesa, ou um acidente disse devagar. Eu não posso...

Foi assassinato? ela exclamou. É claro que ele ia dizer que foi legítima defesa. Balançou a cabeça impa­ciente. E mesmo sendo legítima defesa ou acidente, não se deve fazer com que ele vá ao tribunal provar isso, como qual­quer outro?

Ele esperou demais. Este mês que ficou calado pesa­ria contra ele.

Bem, e de quem foi a culpa? ela perguntou. E você acha que ele ficaria calado tanto tempo se fosse legítima defesa?

Ele assentiu com lenta ênfase.

Foi por sua causa. Está apaixonado por você. Não queria que soubesse que ele matou seu irmão.

Eu sei! ela exclamou com ferocidade. E todo mundo vai saber!

Ele moveu um pouco os ombros. Tinha o rosto sombrio.

Não vai me ajudar? ela perguntou.

Não.

Ora, você brigou com ele.

Acredito na história dele. Sei que é tarde demais pra ele fazer o tribunal acreditar. Estamos separados, mas não vou fazer isso com ele. Umedeceu os lábios. Deixe ele em paz. É provável que peguem ele sem sua ajuda ou a minha.

Não vou deixar. Não vou deixar ele em paz enquanto não for punido como merece. Prendeu a respiração e seus olhos escureceram. Acredita nele o bastante pra se arriscar a descobrir provas de que ele mentiu pra você?

Que quer dizer? ele perguntou, com cautela.

Me ajudará a descobrir provas de verdade, se ele está mentindo ou não? Tem de haver provas conclusivas em algum canto, alguma prova que possamos encontrar. Se realmente acredita nele, não vai ter medo de me ajudar.

Ele estudou o rosto dela por algum tempo, antes de per­guntar:

Se eu fizer isso e a gente encontrar prova concreta, promete aceitar ela, seja em que sentido for?

Prometo — ela disse —, se você também prometer.

E guardará o que a gente descobrir até acabarmos o serviço... encontrar nossa prova positiva... não vai usar o que a gente achar contra ele até conseguirmos tudo?

Sim.

Feito — ele disse.

Ela soluçou de felicidade, e lágrimas vieram-lhe aos olhos.

Ele disse:

Sente aí. — Tinha o rosto fino e duro, a voz cortante. — Temos de armar alguns esquemas. Soube de alguma coisa dele esta tarde ou noite, desde que brigamos?

Não.

Então não sabemos ao certo em que pé você está com ele. Há uma possibilidade de que ele tenha decidido depois que eu tinha razão. Isso não fará nenhuma diferença entre eu e ele agora... estamos separados... mas precisamos descobrir o mais breve possível. — Levantou as sobrancelhas olhando os pés dela e alisou o bigode com a unha do polegar. — Vai ter de esperar até que ele lhe procure. Não pode se dar o luxo de telefonar pra ele. Se ele estiver indeciso a seu respeito, isso pode fazer com que se decida. Até onde está segura dele?

Ela sentava na poltrona junto à mesa.

Estou tão segura dele quanto uma mulher pode estar de um homem. — Deu uma risadinha encabulada. — Sei que isso soa... Mas estou, sr. Beaumont.

Ele assentiu.

Então provavelmente está tudo bem, mas você deve ter certeza disso até amanhã. Já tentou interrogar ele?

Ainda não, realmente não. Estava esperando...

Bem, isso está fora de questão por enquanto. Por mais segura que estiver sobre ele, vai ter de ter cuidado agora. Descobriu mais alguma coisa que não me contou?

Não — ela disse, balançando a cabeça. — Não sabia muito bem como tratar disso. É por isso que eu queria tanto que você...

Ele tornou a interrompê-la:

Já pensou contratar um detetive particular?

Já, mas tinha medo, medo de ir a um que contasse a Paul. Não sabia a quem me dirigir, em quem confiar.

Eu tenho um que podemos usar. Ele passou os dedos pelos cabelos negros. Agora tem duas coisas que quero que você descubra, se já não sabe. Está faltando algum dos chapéus de seu irmão? Paul diz que ele estava de chapéu. Não tinha nenhum lá quando encontrei ele. Veja se consegue descobrir quantos ele tinha, e se estão todos lá... sorriu com exceção do que eu tomei emprestado.

Ela não deu atenção ao seu sorriso. Balançou a cabeça e ergueu um pouco as mãos, desencorajada.

Não posso. Nós nos livramos de todas as coisas dele há algum tempo, e de qualquer forma eu duvido que alguém saiba exatamente o que ele tinha.

Ned Beaumont deu de ombros.

Eu não achava que a gente ia chegar a parte alguma com isso. A outra coisa é uma bengala, se está faltando alguma delas... dele ou de seu pai... particularmente uma nodosa, pesada e marrom.

Era de papai ela disse ansiosamente —, e acho que está lá.

Verifique. Ele mordeu a unha do polegar. Basta fazer isso, por hoje e amanhã, e talvez descobrir em que pé está com Paul.

Que é que há? ela perguntou. Quer dizer, com a bengala. — Levantou-se, excitada.

Paul diz que seu irmão atacou ele com ela e foi gol­peado com ela quando Paul tentava tomar ela dele. Ele diz que levou a bengala consigo e queimou.

Oh, tenho certeza de que todas as bengalas de papai estão lá. Tinha o rosto pálido, os olhos arregalados.

Taylor não tinha nenhuma?

Só uma preta de castão de prata. Ela pôs a mão no pulso dele. Se estiverem todas lá, isso significa que...

Pode significar qualquer coisa ele disse, e pôs a mão sobre a dela. Mas nada de truques advertiu.

Não vou fazer ela prometeu. Se você ao menos soubesse como estou feliz por ter sua ajuda, como eu queria isso, saberia que pode confiar em mim,

Espero. Ele tirou a mão de cima da dela.

 

Sozinho em seu apartamento, Ned Beaumont andou de um lado para outro por algum tempo, o rosto tenso, os olhos brilhantes. Às vinte para as dez, olhou o relógio de pulso. Depois, vestiu o casaco e desceu até o hotel Majestic, e lá lhe disseram que Harry Sloss não estava. Ele saiu, pegou um táxi e disse:

West Roadlnn.

A West Road Inn era uma construção quadrada, branca — cinza à noite —, escondida da estrada por árvores, uns cinco quilômetros além dos limites da cidade. O térreo estava intensamente iluminado, e havia uma meia dúzia de auto­móveis parados na frente. Outros se achavam num comprido galpão escuro à esquerda.

Ned Beaumont, com um aceno familiar ao porteiro, en­trou num grande restaurante, onde um conjunto de três mem­bros tocava de modo extravagante, e oito ou dez pessoas dan­çavam. Ele atravessou um corredor por entre as mesas, con­tornou a pista de dança e parou diante do bar que ocupava um canto do salão. Ele era o único do lado de fora do balcão.

O barman, um homem gordo de nariz esponjoso, disse:

Boa noite, Ned. Não temos visto muito você ultima­mente.

Olá, Jimmy. Estou me comportando. Um Manhat­tan.

O barman começou a preparar o coquetel. O conjunto acabou a música. Ouviu-se uma voz de mulher, fina e aguda:

Não vou ficar no mesmo lugar com aquele bastardo daquele Beaumont.

Ned Beaumont voltou-se, recostando-se à borda do bal­cão. O barman imobilizou-se com a coqueteleira na mão.

Lee Wilshire estava parada de pé no centro da pista de dança fuzilando Ned Beaumont com os olhos. Tinha uma das mãos no antebraço de um jovem troncudo de terno azul, um pouco apertado demais para ele. Também o rapaz olhava para Ned Beaumont, meio estupidamente. Ela disse:

É um vagabundo bastardo, e se você não botar ele pra fora daqui, eu vou embora.

Todos os demais, no estabelecimento, estavam num si­lêncio atento.

O rapaz corou. A tentativa de carranca que fez aumentou o seu embaraço.

A garota disse:

Vou lá dar uma bofetada nele, se você não for.

Sorrindo, Ned Beaumont disse:

Olá, Lee. Viu Bernie depois que ele foi solto?

Lee xingou-o e deu um furioso passo em direção a ele.

O rapaz troncudo estendeu a mão e a deteve.

Vou dar um jeito nele disse —, nesse bastardo. Ajeitou a gola do paletó, deu um puxão nas abas e deixou a pista de dança pisando forte em direção a Ned Beaumont.

Que é que está pensando? perguntou. Que está pensando, falando a uma dona desse jeito?

Ned Beaumont, fixando sombriamente o rapaz, estendeu o braço direito e pôs a mão com a palma voltada para cima no balcão.

Me dê alguma coisa pra bater nele, Jimmy. Não estou a fim de usar os punhos.

Uma das mãos do barman já desaparecera embaixo do balcão. E tornou a aparecer com um pequeno porrete, que colocou na mão de Beaumont, que o deixou ali enquanto dizia:

Ela já foi chamada de um monte de coisas. O último cara que vi com ela chamava ela de frangota burra.

O rapaz endireitou-se, os olhos se movendo de um lado para outro.

Não vou esquecer de você, e um dia desses a gente se encontra sem ninguém por perto. Girou nos calcanhares e falou a Lee Wilshire.

Vamos, vamos dar o fora desta espelunca.

Dê o fora você ela disse com desprezo. O diabo me leve se vou sair com você. Você me dá nojo.

Um homem atarracado, com quase todos os dentes de ouro, surgiu e disse:

Vai, sim, todos dois. Fora.

Ned Beaumont deu uma risada e disse:

A... hum... damazinha está comigo, Corky.

Corky disse:

Muito justo. E para o rapaz: Fora, vagabundo.

O rapaz saiu.

Lee Wilshire retornara à sua mesa. Sentou-se lá com as faces entre os punhos, fitando a toalha.

Ned Beaumont sentou-se diante dela. Disse ao garçom:

Jimmy tem um Manhattan lá que é meu. E quero alguma coisa pra comer. Já comeu, Lee?

Já — ela disse, sem erguer os olhos. — Quero um silverfizz.

Ned Beaumont disse:

Ótimo. Quero um bife com cogumelos, qualquer le­gume que Tony tenha aí que não seja enlatado, um pouco de alface e tomate com tempero de Roquefort, e café.

Depois que o garçom se afastou, Lee disse com amar­gura:

Os homens não prestam, nenhum deles. Aquela grande fraude! — Começou a chorar em silêncio.

Vai ver você pegou o tipo errado — sugeriu Ned Beaumont.

É você quem vem me dizer isso — ela disse, erguendo o olhar furioso para ele —, depois do truque sujo que fez comigo.

Não fiz nenhum truque sujo com você — ele protes­tou. — Se Bernie teve de botar suas jóias no prego pra pagar o dinheiro que afanou de mim, não foi minha culpa.

O conjunto começou a tocar.

Nada é nunca culpa de ninguém — ela disse. — Vamos dançar.

Oh, está bem — ele disse, com relutância.

Quando voltaram à mesa, o coquetel dele e o fizz dela os esperavam.

Que é que Bernie anda fazendo? — ele perguntou, enquanto bebiam.

Não sei. Não vejo ele desde que saiu, e não quero ver. Outro cara bacana! Que sorte eu tenho tido este ano. Ele, Taylor e esse bastardo!

Taylor Henry? — ele perguntou.

É, mas não tive muita coisa com ele — ela se apressou a explicar — porque foi quando eu morava com Bernie.

Ned Beaumont acabou seu coquetel antes de perguntar:

Você era apenas uma das garotas que se encontravam de vez em quando com ele no quarto que ele tinha na rua Charles.

Era — ela disse, olhando-o cautelosamente.

Ele disse:

Acho que a gente precisa de uma bebida.

Ela passou pó no rosto enquanto ele chamava o garçom e pedia as bebidas.

 

A campainha da porta acordou Ned Beaumont. Ele se levantou da cama, sonolento, tossindo um pouco, vestiu o quimono e calçou os chinelos. Passava um pouco das nove em seu despertador. Ele foi até a porta.

Janet Henry entrou desculpando-se.

Sei que é muito cedo, mas eu não podia esperar nem mais um minuto. Tentei repetidas vezes chamar você no tele­fone ontem de noite, e mal preguei os olhos porque não consegui. Todas as bengalas de papai estão lá. Assim, como você vê, ele mentiu.

Ele tinha uma pesada, nodosa e marrom?

Tinha, é a que o major Saebridge trouxe pra ele da Escócia. Ele nunca usa, mas está lá. Ela sorriu triunfan­temente para Ned Beaumont.

Ele piscou, sonolento, e passou os dedos pelos cabelos assanhados.

Então mentiu, certo.

E ela disse alegremente ele estava lá quando voltei pra casa ontem de noite.

Paul?

É. E pediu que eu casasse com ele.

A sonolência desapareceu dos olhos de Ned Beaumont.

Ele falou alguma coisa sobre a briga da gente?

Nem uma palavra.

Que foi que você disse?

Eu disse que estava muito em cima da morte de Taylor pra eu ficar noiva dele, mas não disse que não aceitaria mais tarde, e assim temos o que julgo ser um entendimento.

Ele olhou-a curiosamente.

A animação deixou o rosto dela, que pôs a mão no braço dele. A voz falhou um pouco.

Por favor, não pense que sou inteiramente cruel disse. Mas... oh!... eu quero tanto... fazer o que decidimos fazer, que tudo mais parece... bem... não ter nenhuma impor­tância.

Ele umedeceu os lábios e disse numa voz grave e deli­cada:

Em que enrascada estaria ele, se você amasse ele tanto quanto odeia.

Ela bateu o pé e gritou:

Não diga issoíNunca mais diga isso!

Linhas de irritação surgiram na sua testa e em seus lábios comprimidos.

Ela disse, arrependida:

Por favor, eu não posso suportar isso.

Desculpe. Já tomou café da manhã?

Não. Estava ansiosa demais pra trazer minhas notí­cias a você.

Ótimo. Vai comer comigo. Que gostaria? — Encami­nhou-se para o telefone.

Depois de pedir a comida, ele entrou no banheiro para escovar os dentes, lavar o rosto, as mãos e pentear o cabelo, Quando voltou à sala de estar, ela tirara o chapéu e estava de pé junto à lareira fumando um cigarro. Ia dizer alguma coisa, mas parou quando o telefone tocou.

Ele foi atender.

Alô... Sim, Harry, dei uma passada aí, mas você não estava... Queria lhe perguntar sobre... você sabe... o cara que você viu com Paul naquela noite. Estava de chapéu?... Es­tava? Tem certeza?... E segurava uma bengala?... Tudo bem... Não, não consegui nada com Paul nesse ponto, Har­ry... É melhor você mesmo falar com ele... É... Até.

Os olhos de Janet Henry interrogavam-no quando ele deixou o telefone.

Ele disse:

Era um dos dois caras que dizem que viram Paul conversando com seu irmão na rua, naquela noite. Ele diz que viu o chapéu, mas não a bengala. Mas estava escuro, e os dois passaram de carro. Não acredito nem que tenham visto alguma coisa.

Por que está tão interessado no chapéu? É tão impor­tante assim?

Ele deu de ombros.

Não sei. Sou apenas um detetive amador, mas parece uma coisa que poderia ter algum significado, num sentido ou no outro.

Você soube de mais alguma coisa depois de ontem?

Não. Passei parte da noite bebendo com uma garota com quem Taylor se divertia, mas não deu em nada.

Alguém que eu conheça?

Ele balançou a cabeça, depois olhou-a penetrantemente e disse:

Não era Opal, se é onde quer chegar.

Não acha que nós poderíamos... obter alguma infor­mação dela?

De Opal? Não. Ela acha que o pai matou Taylor, mas que foi por causa dela. Não for nada que ela soubesse que fez ela pensar assim... nenhuma informação que tivesse... foram suas cartas e o Observer, e coisas assim.

Janet Henry assentiu com a cabeça, mas não pareceu convencida.

Chegou o café.

O telefone tocou quando comiam. Ne d Beaumont foi atender e disse:

Alô... Sim, mãe... Quê? Ficou à escuta, de testa franzida, por um momento, e depois disse: Você não pode fazer muita coisa, a não ser deixar eles, e não creio que isso faça mal algum... Não, não sei onde ele está... Não creio que vá... Bem, não se preocupe com isso, mãe, vai dar tudo certo:.. Claro, isso é certo... Até. Voltou à mesa sorrindo. Farr teve a mesma idéia que você disse ao sentar-se. — Era a mãe de Paul. Um homem do gabinete do Promotor Distrital está lá, pra interrogar Opal. Um brilho intenso tinha aparecido em seus olhos. Ela não pode ajudar eles de modo algum, mas estão fechando o cerco sobre ele.

Por que ela telefonou pra você? perguntou Janet Henry.

Paul tinha saído e ela não sabia onde encontrar ele.

Ela sabe que você e Paul brigaram?

Aparentemente, não. Ele largou o garfo. Es­cute. Tem certeza de que quer ir até o fim com isso?

Quero ir até o fim com isso mais do que jamais quis fazer qualquer coisa na vida.

Ned Beaumont deu um riso amargo e disse:

Essas são praticamente as mesmas palavras que Paul me dizia pra me dizer o quanto queria você.

Ela estremeceu, o rosto endureceu, e olhou-o friamente.

Ele disse:

Não sei sobre você. Não estou certo sobre você. Não tenho certeza sobre você. Tive um sonho do qual não gostei muito.

Ela sorriu então.

Certamente não acredita em sonhos?

Ele não sorriu.

Não acredito em nada, mas sou jogador demais pra deixar de ser afetado por um monte de coisas.

O sorriso dela tornou-se menos gozador. Ela perguntou:

Qual foi esse sonho que fez você desconfiar de mim? — Ergueu um dedo, em fingida seriedade. — Depois eu lhe conto um que eu tive sobre você.

Eu estava pescando e peguei um peixe enorme... uma truta arco-íris, mas enorme... e você disse que queria ver, pegou o bicho e atirou na água antes que eu pudesse impedir.

Ela riu alegremente.

Que foi que você fez?

O sonho acabou aí.

Era uma mentira. Não vou atirar sua truta de volta à água. Agora vou lhe contar o meu. Eu estava... — Arregalou os olhos. — Quando foi o seu? Na noite em que veio jantar?

Não. Na noite passada.

Oh, isso é muito ruim. Seria mais bonito e impressio­nante se a gente tivesse os sonhos na mesma noite, na mesma hora e no mesmo minuto. Nós estávamos... no sonho... está­vamos numa floresta, você e eu, cansados e mortos de fome. Andávamos e andávamos, até chegar a uma casinha, e batemos na porta, mas ninguém atendeu. Experimentamos a porta. Fechada. Então espiamos por uma janela, e vimos lá dentro uma grande mesa cheia de todo tipo imaginável de comida, mas não podíamos entrar por nenhuma das janelas, porque elas tinham barras de ferro. Por isso, voltamos à porta e tornamos a bater e a bater, mas mesmo assim ninguém atendia. Aí a gente se lembrou de que às vezes as pessoas deixam as chaves embaixo do capacho da porta, e lá estava ela. Mas quando abrimos a porta, vimos centenas e centenas de cobras no chão, onde não podíamos ver antes pela janela, e elas vieram todas se contorcendo e rastejando pra cima de nós. Batemos a porta e fechamos e ficamos ali mortos de medo, ouvindo as bichas silvarem e baterem as cabeças contra o lado de dentro da porta. Aí você disse que talvez, se abrísse­mos a porta e nos escondêssemos das cobras, elas sairiam e iriam embora, e foi o que fizemos. Você me ajudou a subir para o telhado... que era baixo nessa parte do sonho: não me lembro como era antes... e subiu atrás de mim, se abaixou e abriu a porta, e todas as cobras rastejaram pra fora. Ficamos prendendo a respiração no telhado até que a última das centenas e centenas de cobras se esgueirou para a floresta. Então saltamos, corremos para dentro e fechamos a porta, e comemos e comemos e comemos, e acordei sentada na cama batendo palmas e rindo.

Acho que você inventou isso disse Ned Beaumont, após uma pequena pausa.

Porquê?

Começou como um pesadelo e terminou como outra coisa, e todos os sonhos que eu já tive sobre comida termina­vam antes que eu tivesse uma oportunidade de comer mesmo.

Janet Henry deu uma risada.

Não inventei tudo. Mas não precisa perguntar que parte é verdade. Você me acusou de mentir, e não vou lhe dizer nada agora.

Oh, está bem. Ele tornou a pegar o garfo, mas não comeu. Perguntou, com um ar de quem acaba de ter uma idéia: — Seu pai sabe de alguma coisa? Acha que a gente poderia arrancar alguma coisa dele, se procurasse ele com o que já temos?

Acho ela disse avidamente sim.

Ele franziu a testa, pensativamente.

O único problema é que ele pode ficar bravo e explo­dir a coisa toda antes da gente acabar. Ele é esquentado, não é?

A resposta dela foi dada com relutância.

É, mas... o rosto dela iluminou-se, suplicante tenho certeza de que, se a gente mostrasse a ele como é impor­tante esperarmos até... Mas estamos prontos já, não estamos?

Ele balançou a cabeça.

Ainda não.

Ela fez beicinho.

Talvez amanhã ele disse.

Mesmo?

Não é uma promessa ele advertiu-a. — Mas acho que estaremos.

Ela estendeu a mão por cima da mesa para pegar uma das dele.

Mas você vai me prometer que me informa no mesmo minuto em que estivermos prontos, não importa que hora do dia ou da noite seja.

Claro, isso eu lhe prometo. — Ele olhou de lado para ela. — Não está muito ansiosa pra assistir à execução, está?

O tom dele fez com que ela corasse, mas ela não baixou os olhos.

Sei que você me acha um monstro. Talvez eu seja.

Ele baixou os olhos para o seu prato e murmurou:

Espero que goste, quando conseguir.

 

Depois que Janet Henry se foi, Ned Beaumont dirigiu-se ao telefone, discou o número de Jack Rumsen, e quando ele atendeu, disse:

Pode dar uma passadinha aqui, Jack?... Ótimo. Até. Quando Jack chegou, ele já estava vestido. Os dois se

sentaram em poltronas uma em frente à outra, ambos com um copo de Bourbon e água mineral, Ned Beaumont fumando um charuto, Jack um cigarro.

Ned Beaumont perguntou:

Soube de alguma coisa de minha briga com Paul? Jack disse casualmente:

Soube.

Que acha?

Nada. Me lembro de que a última vez que acharam que vocês brigaram era só um truque pra pegar Shad O'Rory.

Ned Beaumont sorriu, como se houvesse esperado essa resposta.

É isso que todo mundo pensa desta agora? O jovem elegante disse:

Um monte de gente pensa.

Ned Beaumont aspirou lentamente a fumaça do charuto e perguntou:

E se eu dissesse a você que desta vez foi pra valer? Jack não disse nada. Seu rosto nada revelava do que lhe ia pela mente.

Ned Beaumont disse:

Foi. — Bebeu de seu copo. — Quanto lhe devo?

Trinta mangos pelo serviço sobre a jovem Madvig. O resto você já acertou.

Ned Beaumont tirou um rolo de cédulas do bolso da calça, separou três de dez dólares e deu-as a Jack.

Jack disse:

Obrigado.

Ned Beaumont disse:

Agora estamos quites. — Aspirou a fumaça e soprou-a, dizendo: — Quero que você faça outro serviço. Estou atrás do escalpo de Paul no assassinato de Taylor Henry. Ele me disse que foi ele, mas eu preciso de um pouco mais de provas. Quer trabalhar nisso pra mim?

Jack disse:

Não.

Por que não?

O jovem moreno levantou-se para pôr seu copo vazio na mesa.

Fred e eu estamos montando um belo negócio de detetive particular aqui. Mais uns dois anos e estaremos bem. Eu gosto de você, Beaumont, mas não o bastante pra mexer com o manda-chuva da cidade.

Ned Beaumont disse, inalterado:

Ele está em baixa. A turma toda está se preparando pra derrubar ele. Farr, Rainey e...

Deixe eles fazerem isso. Não quero entrar nessa qua­drilha, e só vou acreditar que eles podem fazer isso quando fizerem. Talvez dêem uns dois ou três trompaços nele, mas derrubar mesmo é outra coisa. Você conhece ele melhor do que eu. Sabe que tem mais fibra que o resto deles todos juntos.

Tem, e é isso que está acabando com ele. Bem, se você não quer, não quer.

Jack disse:

Não quero. — E pegou o chapéu. — Qualquer outra coisa, eu teria prazer em fazer, mas... — Moveu uma mão num gesto terminante.

Ned Beaumont levantou-se. Não havia ressentimento em suas maneiras nem em sua voz quando disse:

Eu achava que seria essa a sua reação. — Alisou uma banda do bigode com um polegar e olhou pensativamente além de Jack. Talvez você possa me dizer o seguinte: tem alguma idéia de onde posso encontrar Shad?

Jack balançou a cabeça.

Depois da terceira vez que invadiram o estabeleci­mento dele... quando os dois tiras foram mortos... ele não está pintando por aí, embora não pareçam ter muita coisa contra ele pessoalmente. Tirou o cigarro da boca. Co­nhece Whisky Vassos?

Conheço.

Pode descobrir com ele, se conhece ele o bastante. Está na cidade. Geralmente pode ser encontrado numa hora ou outra da noite no bar de Tim Walker, na rua Smith.

Obrigado, Jack, vou tentar isso.

Tudo bem disse Jack. Hesitou. Sinto como o diabo que você e Paul tenham brigado. Desejo que você... — Interrompeu-se e encaminhou-se para a porta. Você sabe o que faz.

 

Ned Beaumont desceu até o gabinete do Promotor Dis­trital. Desta vez não houve demora para o levarem à presença de Farr.

Farr não se levantou de sua poltrona, não estendeu a mão. Disse:

Como vai, Beaumont? Senta aí.

A voz era friamente cortês, e o rosto agressivo não parecia tão vermelho como de hábito. Os olhos estavam parados e duros.

Ned Beaumont sentou-se, cruzou as pernas confortavel­mente e disse:

Eu queria contar a você o que aconteceu quando fui falar com Paul depois que saí daqui, ontem.

O "E?" de Farr foi frio e educado.

Eu disse a ele como encontrei você... em pânico. Ned Beaumont, dando seu mais belo sorriso, prosseguiu, como quem conta uma anedota muito engraçada, mas sem importância: Disse a ele que você estava tentando juntar coragem suficiente pra pendurar o assassinato de Taylor Henry nele. Ele acreditou a princípio, mas quando eu disse que a única maneira dele se salvar era apresentar o verdadeiro assassino, ele disse que isso não adiantava. Disse que era ele o verdadeiro assassino, embora chamasse o caso de acidente, ou legítima defesa, ou qualquer coisa assim.

O rosto de Farr tornara-se mais pálido e rígido em torno da boca, mas ele não falou.

Ned Beaumont levantou as sobrancelhas.

Não estou entediando você, estou? — perguntou.

Vá, continue — disse friamente o Promotor Distrital.

Ned Beaumont inclinou a cadeira para trás. Seu sorriso

era de gozação.

Acha que estou brincando, não é? Acha que é um truque que estamos fazendo com você. — Balançou a cabeça e murmurou: — Você é uma pobre alma tímida, Farr.

Farr disse:

Tenho satisfação em receber qualquer informação que você possa me dar, mas estou muito ocupado, e por isso vou ter de lhe pedir...

Ned Beaumont riu então e respondeu:

Tudo bem. Achei que talvez você gostasse de ter essa informação num depoimento por escrito, ou algo assim.

Muito bem. — Farr comprimiu um dos botões pero­lados de sua mesa.

Uma mulher grisalha, vestida de verde, entrou.

O sr. Beaumont deseja ditar um depoimento. — Farr disse a ela.

Ela disse:

Sim, senhor. — Sentou-se do outro lado da mesa de Farr, pôs a caderneta de notas na mesa e, segurando uma lapiseira de prata no ar, olhou para Ned Beaumont com olhos castanhos vazios.

Ele disse:

Ontem à tarde, em seu escritório, no Edifício Nebel, Paul Madvig me disse que tinha ido jantar na casa do senador Henry na noite em que Taylor Henry foi assassinado; que ele e Taylor Henry tiveram algum tipo de problema por lá; que depois que ele deixou a casa, Taylor Henry correu atrás dele, alcançou e tentou bater nele com uma bengala nodosa, pesada e marrom; que ao tentar tomar a bengala de Taylor Henry, bateu acidentalmente com ela na testa dele, derrubando o outro; e que levou a bengala consigo e queimou. Disse que seu único motivo para ocultar sua participação na morte de Tay­lor Henry foi o desejo de ocultar isso de Janet Henry. É só isso.

Farr disse à estenógrafa:

Transcreva isso imediatamente.

Ela saiu do escritório.

Ned Beaumont disse:

Eu achava que estava lhe trazendo notícias que iam deixar você muito excitado. Deu um suspiro. Pensava que você ia arrancar os cabelos.

O Promotor Distrital encarou-o firmemente.

Ned Beaumont, nem um pouco intimidado, disse:

Pensava que você pelo menos ia mandar arrastar Paul até aqui e confrontar ele com essa... acenou com a mão "revelação danosa" é um bom termo.

O Promotor Distrital falou num tom contido:

Por favor, deixe que eu dirija meu próprio gabinete.

Ned Beaumont tornou a rir e calou-se, até que a estenó­grafa grisalha voltou com uma cópia datilografada da decla­ração dele. Então, perguntou:

Tenho de jurar isso?

Não disse Farr —, apenas assine. Será o bastante.

Ned Beaumont assinou o documento.

Não é nem metade tão divertido quanto eu achava que ia ser — queixou-se animado.

O maxilar de Farr enrijeceu-se.

Não ele disse, com sombria satisfação —, não creio que seja.

Você é uma alma tímida, Farr repetiu Ned Beau­mont. Tenha cuidado com os táxis quando atravessar a rua. Fez uma curvatura. Vejo você depois.

Do lado de fora, fez uma careta de raiva.

 

Nessa noite, Ned Beaumont tocou a campainha de uma casa escura de três andares, na rua Smith. Um homem baixo, de cabeça pequena e ombros atarracados, abriu a porta meio palmo, disse:

Tudo bem e abriu-a toda.

Ned Beaumont, dizendo "Olá", entrou, desceu seis me­tros de um corredor escuro, passando por duas portas fecha­das à direita, abriu uma à esquerda e desceu uma escada de madeira até um porão onde havia um bar e onde um rádio tocava baixinho.

Do outro lado do bar, uma porta de vidro fosco com a palavra "Banheiro". Essa porta abriu-se e saiu um homem, um homem moreno com algo de macaco no caimento dos ombros grandes, no comprimento dos braços grossos, no achatamento do rosto e na curva das pernas bambas: Jeff Gardner.

Ele viu Ned Beaumont e seus olhinhos avermelhados reluziram.

Ora, pelo amor de Deus, se não é o "Beaumont-Me-Bata-Mais"! — resmungou, mostrando os belos dentes numa imensa careta.

Ned Beaumont disse:

Olá, Jeff — enquanto todos na sala os olhavam.

Jeff adiantou-se oscilando para Ned Beaumont, passou o braço esquerdo rudemente sobre os ombros dele, tomou-lhe a mão direita na sua e falou jovialmente ao pessoal:

Este aqui é o cara mais legal contra quem já esfolei os nós dos dedos, e olhem que já esfolei um bocado. — Arrastou Ned Beaumont para o bar. — Vamos todos tomar uma bebidinha, e depois eu mostro como é que a gente faz. Por Deus que mostro! — Olhou com malícia o rosto do outro. — Que diz disso, meu rapaz?

Ned Beaumont, olhando imperturbável o feio rosto es­curo tão perto, embora mais baixo, do seu, disse:

Scotch.

Jeff riu deliciado e tornou a falar aos outros:

Estão vendo, ele gosta. É um... — hesitou, franzindo a testa, lambeu os lábios — um maldito massacrista, é isso que ele é. — Olhou com malícia para Ned Beaumont. — Sabe o que é um massacrista?

Sei.

Jeff pareceu decepcionado.

Uísque — disse ao barman. Quando as bebidas foram postas à frente deles, soltou a mão de Ned Beaumont, embora mantivesse o braço em torno de seus ombros. Beberam. Jeff colocou o copo no balcão e pôs a mão no pulso de Ned Beaumont. — Tenho um lugar certo pra mim e você lá em cima — disse —, uma sala pequena demais pra você cair. Posso jogar você de um lado pra outro, contra as paredes. Desse jeito a gente não vai perder tanto tempo enquanto você se levanta do chão.

Ned Beaumont disse:

Eu pago uma bebida.

Não é má idéia — concordou Jeff.

Tornaram a beber.

Depois que Ned Beaumont pagou, Jeff virou-o em dire­ção à escada.

Desculpem a gente, cavalheiros disse aos outros no bar —, mas prcisamos ensaiar nosso número. Bateu no ombro de Ned Beaumont. Eu e meu queridinho.

Subiram dois lances de escada e entraram numa salinha em que se amontoavam um sofá, duas mesas e meia dúzia de cadeiras. Viam-se alguns copos vazios e pratos com restos de sanduíches numa das mesas.

Jeff espiou o quarto em volta e perguntou:

Pra onde diabos foi ela? Soltou o pulso de Ned Beaumont, tirou o braço de cima dos ombros dele e perguntou: Não está vendo nenhuma dona por aqui, está?

Não.

Jeff balançou a cabeça para cima e para baixo, enfati­camente.

Foi embora disse. Deu um passo incerto para trás e apertou um botão de campainha junto à porta, com um dedo sujo. Depois, acenando com a mão, fez uma grotesca curva­tura e disse:

Senta aí.

Ned Beaumont sentou-se à menos desarrumada das duas mesas.

Sente em qualquer dessas malditas cadeiras em que queira disse Jeff com outro gesto largo. Se não gosta dessa, pegue outra. Quero tratar você como meu convidado, e ao diabo com você se não gostar disso.

É uma ótima cadeira disse Ned Beaumont.

É uma cadeira dos diabos disse Jeff. Não tem uma cadeira nesta espelunca que valha nada. Veja. Pegou uma das cadeiras e arrancou-lhe uma das pernas da frente. Você chama isso de uma ótima cadeira? Escute, Beaumont, você não sabe merda nenhuma sobre cadeiras. Largou a que tinha na mão, jogou a perna no sofá. Não me engana. Sei o que está aprontando. Pensa que estou bêbado, não é?

Ned Beaumont deu um sorriso.

Não, você não está bêbado.

O diabo que não estou. Estou mais bêbado que você. Estou mais bêbado que qualquer um nesta espelunca. Estou bêbado como o diabo, e não pense que não estou, mas... — Ergueu um grosso e sujo indicador.

Um garçom entrou perguntando:

Que vai ser, pessoal?

Jeff virou-se de frente para ele.

Onde estava você? Dormindo? Toquei chamando você faz uma hora.

O garçom começou a dizer alguma coisa.

Jeff disse:

Eu trago o melhor amigo que tenho no mundo aqui em cima pra uma bebida, e que diabo acontece? Temos de ficar sentados toda uma merda de uma hora esperando um garçom imundo. Não admira que ele esteja chateado comigo.

Que querem? — perguntou o garçom, com indife­rença.

Quero saber pra onde diabos foi a garota que estava aqui.

Oh, ela? Foi embora.

Embora pra onde?

Não sei.

Jeff armou uma carranca.

Ora, descubra, e rápido, diabos. Que está pensando com essa de não saber pra onde ela foi? Ora, se esta não é uma bela espelunca, onde ninguém... — Um brilho de astúcia surgiu nos seus olhos. — Vou lhe dizer o que fazer. Vá no banheiro das damas e veja se ela está lá.

Não está — disse o garçom. — Saiu.

Bastarda imunda! — disse Jeff, e voltou-se para Ned Beaumont. — Que é que a gente faz com uma bastarda imunda dessas? Trago você aqui em cima, porque quero que conheça ela, porque sei que você vai gostar dela e ela de você, e ela é metida a besta demais pra conhecer meus amigos e dá o fora.

Ned Beaumont acendia um charuto. Não disse nada.

Jeff coçou a cabeça.

Ora, traga alguma coisa pra gente beber então. — Sentou-se à mesa, em frente a Ned Beaumont e disse selvagemente: — Quero um uísque.

Ned Beaumont disse:

Scotch.

O garçom afastou-se.

Jeff fuzilava Ned Beaumont com os olhos.

Não vá pensando que não sei o que você está apron­tando, também disse furioso.

Não estou aprontando nada respondeu indiferen­temente Ned Beaumont. Queria ver Shad, e achei que talvez encontrasse Whisky Vassos aqui e ele me encaminhasse a Shad.

Acha que eu não sei onde Shad está?

Deve saber.

Então por que não me perguntou?

Muito bem. Onde está ele?

Jeff bateu na mesa com força, com a mão aberta, e berrou:

Você é um mentiroso! Não dá a mínima pra onde Shad está! Ê de mim que está atrás!

Ned Beaumont sorriu e balançou a cabeça negando.

É, sim o homem amacacado insistiu. Você sabe muito bem quê...

Um homem de meia-idade, mas ainda jovem, de gordos lábios vermelhos e olhos redondos, chegou à porta. Disse:Deixe disso, Jeff. Está fazendo mais barulho que todo mundo junto na casa.

Jeff contorceu-se na cadeira.

É esse bastardo disse ao homem à porta, indicando Ned Beaumont com um aceno do polegar. Ele pensa que não sei o que está aprontando. Eu sei o que ele está apron­tando. É um canalha, é isso que ele é. E eu vou dar uma surra dos diabos nele, é isso que eu vou fazer.

O homem à porta disse, sensatamente:

Bem, não precisa fazer tanto barulho por causa disso. Piscou para Ned e se foi.

Jeff disse ameaçadoramente:

Tim também está virando um canalha. E cuspiu no chão.

Apareceu o garçom com as bebidas.

Ned Beaumont ergueu seu copo e disse:

Olhando você e bebeu.

Jeff disse:

Eu não quero olhar pra você. Você é um canalha. Encarava ameaçadoramente Ned Beaumont.

Você é doido.

Você é um mentiroso. Eu estou bêbado. Mas não estou tão bêbado que não saiba o que você está aprontando.

Esvaziou o seu copo, enxugou a boca com as costas dá mão. — E digo que você é um canalha.

Sorrindo amigavelmente, Ned Beaumont disse:

Está certo. Seja como você quiser.

Jeff adiantou um pouco o focinho de macaco.

Você acha que é muito esperto, não é? Ned Beaumont não disse nada.

Acha que é um truque esperto vir aqui e tentar me enrolar pra poder me entregar.

Isso é correto — disse Ned Beaumont, indiferente. — Tem uma acusação de assassinato contra você por matar Francis West, não tem?

Jeff disse:

Pro diabo com Francis West. Ned Beaumont deu de ombros.

Eu não conhecia ele. Jeff disse:

Você é um canalha. Ned Beaumont disse:

Eu pago uma bebida.

O homem amacacado assentiu solenemente e inclinou sua cadeira para trás, para apertar o botão da campainha. Ainda com o dedo no botão, disse:

Mas ainda é um canalha.

A cadeira oscilou para trás, virando. Ele plantou os pés no chão e a colocou de novo em pé, antes que ela o derrubasse.

Bastarda! — resmungou, puxando-a novamente para a mesa. Pôs o cotovelo na mesa e apoiou o queixo num punho.

Que diabos me importa se você me entregar? Não pensa que vão me fritar, pensa?

Por que não?

Por que não? Deus do céu! Eu só precisava agüentar o tranco até a eleição, e depois, é com Shad.

Talvez. .

Talvez o diabo!

O garçom entrou e eles pediram suas bebidas.

Talvez Shad deixasse você se lixar de qualquer ma­neira — disse com indiferença Ned Beaumont, quando vol­taram a ficar a sós. — Coisas dessas já aconteceram antes.

Bela chance zombou Jeff com tudo que sei sobre ele.

Ned Beaumont expeliu a fumaça do charuto.

Que é que você tem contra ele?

O homem amacacado deu uma risada, ruidosa, com menosprezo, e bateu na mesa com a mão aberta.

Deus do céu! gritou. Ele acha que estou bêbado a ponto de dizer a ele.

Da entrada veio uma voz discreta, um musical barítono levemente irlandês:

Vá em frente, Jeff, diga a ele.

Shad O'Rory estava na entrada. Seus olhos azul-cinza fitavam Jeff um tanto tristemente.

Jeff virou os olhos alegremente para o homem na entrada e disse:

Como vai, sr. Shad? Entre e sente pra uma bebida. Conheça o sr. Beaumont. É um canalha.

O'Rory disse em voz baixa:

Eu disse a você pra ficar escondido.

Mas, meu Deus do céu, Shad, eu estava ficando de um jeito que achei que ia acabar me mordendo! E esta espe­lunca é escondida, não é? Ê um boteco clandestino.

0'Rory olhou durante mais um momento para Jeff, e depois para Ned Beaumont.

Boa noite, Beaumont.

Olá, Shad.

O'Rory sorriu delicadamente e, indicando Jeff com um leve aceno, perguntou:

Tirou muita coisa dele?

Não muita que eu já não soubesse respondeu Ned Beaumont. Ele faz um bocado de barulho, mas nada do que diz faz sentido.

Jeff disse:

Eu acho que vocês dois são um par de canalhas.

O garçom chegou com as bebidas. O'Rory deteve-o.

Esqueça. Já beberam bastante. O garçom levou as bebidas. Shad O'Rory entrou na sala e fechou a porta, ficando de costas para ela. Disse:

Você fala demais, Jeff. Já lhe disse isso antes.

Jeff respondeu, furioso:

Que diabos deu em você?

Ned Beaumont deu uma risada.

Estou mandando você sair, Jeff — disse O'Rory.

Deus do céu, e eu não sei disso?

O'Rory disse:

Chegamos ao ponto em que vou deixar de falar com você.

Jeff levantou-se.

Não seja um canalha, Shad — disse. — Que diabo! — Contornou a mesa. — Eu e você, a gente tem sido companheiros há muito tempo. Você sempre foi meu chapa e eu vou ser sempre seu. — Estendeu os braços para abraçar O'Rory, adiantando-se para ele. — Claro, estou encrencado, mas...

O'Rory pôs uma mão branca no peito do homem amacacado e empurrou-o para trás.

Sente-se. — Não ergueu a voz.

O punho esquerdo de Jeff partiu para o rosto de O'Rory.

O'Rory moveu a cabeça para a direita, o mínimo bas­tante para que o soco passasse raspando o seu rosto finamente esculpido, que permaneceu sério. Ele levou a mão direita ao quadril.

Ned Beaumont voou de sua cadeira ao braço de O'Rory, pegou-o com ambas as mãos, e caiu de joelhos.

Jeff, jogado contra a parede pelo ímpeto de seu próprio soco, virou-se então e agarrou a garganta de Shad O'Rory com ambas as mãos. O rosto do homem amacacado estava ama­relo, distorcido, hediondo. Não havia mais nenhuma embria­guez nele.

Pegou o trabuco? — Jeff estava ofegante.

Peguei. — Ned Beaumont levantou-se e recuou, segu­rando uma pistola negra apontada para O'Rory.

O'Rory tinha os olhos vidrados, esbugalhados, o rosto manchado, túrgido. Não lutava contra o homem que lhe apertava a garganta.

Jeff virou a cabeça para dar um risinho para Ned Beau­mont. Um sorriso largo, genuíno, idiotamente bestial. Os olhinhos vermelhos brilhavam de prazer. Ele disse, numa voz rouca e de boa índole:

Agora veja o que a gente vai ter de fazer. Vai ter de aplicar o serviço nele.

Ned Beaumont disse:

Eu não quero ter nada a ver com isso. — Tinha a voz firme, e as narinas abriam e fechavam rapidamente.

Não? Jeff zombou. Acho que você pensa que Shad é o tipo do cara que esquece o que a gente fez. Passou a língua pelos lábios. Vai esquecer. Vou dar um jeito pra que esqueça.

Sorrindo de uma orelha a outra para Ned Beaumont, sem olhar o homem cuja garganta tinha nas mãos, Jeff começou a inspirar e expirar longa e lentamente. O paletó enrugava-se no ombro, nas costas e ao longo dos braços. O suor brotava em sua feia face escura.

Ned Beaumont estava pálido. Também respirava pesadamente, e o suor lhe umedecia as têmporas. Olhou por cima do ombro de Jeff o rosto de O'Rory.

Estava cor de fígado. Os olhos esbugalhados, cegos. A língua projetava-se para fora, azul, entre lábios azulados. O corpo esguio retorcia-se. Ele começou a bater na parede atrás dele com uma das mãos, mecanicamente, sem força.

Sorrindo para Ned Beaumont, sem olhar para o homem cuja garganta apertava, Jeff separou mais um pouco as pernas e curvou as costas. A mão de O'Rory parou de bater na parede. Houve então um estalido abafado, e depois, quase imediatamente, um mais forte. O'Rory não se contorcia mais. Pendia frouxo nas mãos de Jeff.

O macaco deu uma risada gutural.

Apagou disse.

Afastou uma cadeira com um pontapé e jogou o corpo de O'Rory no sofá. O corpo caiu de cara para baixo, uma mão e um pé pendendo para fora, no chão. Jeff esfregou as mãos nos quadris e voltou-se para Ned Beaumont.

Eu sou um boboca de natureza boa disse. Qualquer um pode me chutar por aí o quanto quiser, que eu nunca faço nada.

Ned Beaumont disse:

Você tinha medo dele.

Jeff deu uma risada...

Acho que tinha. Como qualquer um com a cabeça no lugar. Quer me dizer que você não tinha? Tornou a rir, olhou a sala em volta e disse: Vamos, dar o fora antes que apareça alguém. Estendeu a mão. Me dê o trabuco. Eu me livro dele.

Ned Beaumont disse:

Não. Moveu a mão para o lado, até ter a pistola apontada para a barriga de Jeff. A gente pode dizer que isso foi legítima defesa. Estou com você. A gente pode se safar num inquérito.

Deus, mas é uma bela idéia! — exclamou Jeff. — Eu com uma acusação de assassinato pendurada em cima de minha cabeça no caso daquele cara, West! — Os olhinhos vermelhos continuavam mudando o foco de Ned Beaumont para a pistola.

Ned Beaumont sorriu com finos lábios pálidos.

Era nisso que eu estava pensando — disse baixinho.

Não seja um trouxa de merda — explodiu Jeff, dando um passo à frente. — Você...

Ned Beaumont recuou, contornando uma das mesas.

Não me importa lhe dar um tiro, Jeff — disse. — Se lembre que me deve alguma coisa.

Jeff parou e coçou a nuca.

Que espécie de canalha é você? — perguntou, per­plexo.

Só um chapa. — Ned Beaumont adiantou de repente a pistola. —Senta aí.

Após um momento de furiosa hesitação, Jeff sentou-se.

Ned Beaumont estendeu a mão esquerda e apertou o botão da campainha.

Jeff levantou-se.

Ned Beaumont disse:

Senta.

Jeff sentou-se.

Ned Beaumont disse:

Ponha as mãos na mesa.

Jeff balançou a cabeça, tristemente.

Que bastardo espertinho você acabou sendo. Não acha que vão deixar você me arrastar pra fora daqui, acha?

Ned Beaumont contornou a mesa outra vez e sentou-se numa cadeira de frente para Jeff e para a porta.

Jeff disse:

O melhor que você tem a fazer é me dar essa arma e esperar que eu esqueça isso. Deus do céu, Ned, este é um dos meus esconderijos! Você não tem a mínima chance no mundo de aprontar qualquer coisa aqui.

Ned Beaumont disse:

Mantenha a mão longe do vidro de ketchup.

O garçom abriu a porta e arregalou os olhos.

Diga a Tim pra dar uma subida aqui disse Ned Beaumont. E depois para o homem amacacado, que ia dizer alguma coisa: Cale a boca.

O garçom fechou a porta e correu.

Jeff disse:

Não seja trouxa, Ned. Com isso, só vai conseguir uma surra. Que vantagem vai ter tentando me entregar? Ne­nhuma. Passou a língua nos lábios. Sei que você está magoado pela surra que a gente deu em você, mas... dia­bos!... não foi minha culpa. Só fiz o que Shad mandou, e já não acertei as contas apagando ele pra você?

Ned Beaumont disse:

Se não mantiver a mão longe desse vidro de ketchup, vou fazer um buraco nela.

Jeff disse:

Você é um canalha.

O homem de meia-idade mas jovem, de lábios gordos e olhos redondos, abriu a porta, entrou rapidamente e fechou-a atrás de si.

Ned Beaumont disse:

Jeff matou O'Rory. Chame a polícia. Vai ter tempo de limpar o lugar antes que eles cheguem. Melhor chamar um médico também, caso ele não esteja morto.

Jeff deu uma risada de desprezo.

Se ele não está morto, eu sou o Papa. Parou de rir e dirigiu-se ao homem de lábios gordos com indiferente familiaridade: Que acha desse cara, pensando que você vai deixar ele se safar com essa? Diga a ele a chance que ele tem de fazer isso, Tim.

Tim olhou o morto no sofá, olhou para Jeff e para Ned Beaumont. Tinha os olhos redondos sóbrios. Disse a Ned Beaumont, lentamente:

Isso é ruim pra casa. A gente não pode arrastar ele pra rua e deixar ele ser achado lá?

Ned Beaumont balançou a cabeça.

Limpe sua casa antes que os tiras cheguem aqui, que tudo fica bem pra você. Prometo fazer o que puder por você.

Enquanto Tim hesitava, Jeff disse:

Escute, Tim, você me conhece. Sabe...

Tim disse, sem ênfase especial:

Pelo amor de Deus, feche a matraca.

Ned Beaumont sorriu.

Ninguém conhece você, Jeff, agora que Shad está morto.

Não? — O homem amacacado reclinou-se mais confortavelmente na cadeira. — Bem, me entregue. Agora que sei que tipo de canalhas são vocês, prefiro enfrentar a prisão do que pedir uma maldita coisa que seja a qualquer um dos dois.

Tim, ignorando Jeff, perguntou:

Tem de ser assim?

Ned Beaumont fez que sim com a cabeça.

Acho que posso agüentar — disse Tim, e pôs a mão na maçaneta.

Se importa de verificar se Jeff tem uma arma? — per­guntou Ned Beaumont.

Tim balançou a cabeça.

Isso aconteceu aqui, mas eu não tenho nada a ver, e não vou ter — disse, e saiu.

Jeff, refestelando-se confortavelmente na cadeira, as mãos ociosas na borda da mesa, conversou com Ned Beau­mont até a polícia chegar. Conversou animadamente, cha­mando o outro de inúmeros nomes feios, obscenos e simples­mente ofensivos, acusando-o de uma longa e variada lista de vícios.

Ned Beaumont escutava com polido interesse.

Um homem grisalho e ossudo, em uniforme de tenente, foi o primeiro policial a chegar. Meia dúzia de detetives vinham atrás dele.

Ned Beaumont disse:

Olá, Brett. Acho que ele tem uma arma.

Que é que há? — perguntou Brett, olhando o corpo no sofá, enquanto dois dos detetives, passando por ele, agar­ravam Jeff Gardner.

Ned Beaumont contou a Brett o que acontecera. Sua his­tória foi verdadeira, a não ser por dar a impressão de que O'Rory fora morto no calor da briga, e não depois de ter sido desarmado.

Enquanto Ned Beaumont falava, entrou um médico, vi­rou o corpo de Shad O'Rory para cima no sofá, examinou-o ligeiramente e levantou-se. O tenente olhou o médico, que disse:

Foi-se. — E saiu da pequena sala.

Jeff xingava jovialmente os dois detetives que o segura­vam. Toda vez que xingava, um dos detetives dava-lhe um soco no rosto. Jeff ria e continuava a xingá-los. Os dentes postiços haviam saltado. A boca sangrava.

Ned Beaumont deu a pistola do morto a Brett e levan­tou-se.

Quer que eu vá à central de polícia agora? Ou ama­nhã está bem?

Melhor ir agora — respondeu Brett.

 

Passava muito da meia-noite quando Ned Beaumont dei­xou a central de polícia. Despediu-se dos dois repórteres que saíram com ele e entrou num táxi. O endereço que deu ao chofer foi o de Paul Madvig.

Havia luz no térreo da casa de Madvig, e enquanto ele subia os degraus da frente, a porta foi aberta pela sra. Mad­vig. Vestia-se de negro, e tinha um xale sobre os ombros.

Ele disse:

Olá, mãe. Que faz de pé tão tarde?

Ela disse:

Pensei que era Paul. — Embora o olhasse sem decep­ção.

— Ele não está em casa? Eu queria falar com ele. — Deu-lhe um olhar penetrante. — Que é que há?

A velha recuou, puxando a porta consigo.

Entre, Ned.

Ele entrou.

Ela fechou a porta e disse:

Opal tentou se suicidar.

Ele baixou os olhos e murmurou:

Quê? Que quer dizer?

Cortou um dos pulsos antes que a enfermeira pudesse impedir. Mas não perdeu muito sangue, e está bem, se não tentar de novo. — Havia um pouco de fraqueza, tanto na voz quanto na expressão dela.

Ned Beaumont não tinha a voz firme.

Onde está Paul?

Não sei. Não conseguimos encontrar ele. Já devia estar em casa. Não sei onde está. — Pôs uma mão ossuda no braço de Ned Beaumont, e agora sua voz tremia um pouco. — E você... você e Paul...? — Parou, apertando o braço dele.

Ele balançou a cabeça.

Está acabado, pra sempre.

Oh, Ned, não pode fazer nada pra dar um jeito? Você e ele... — Tornou a perder a voz.

Ele ergueu a cabeça e olhou-a. Tinha os olhos molhados. Disse delicadamente:

Não, mãe, está acabado pra sempre. Ele lhe contou?

Só me disse quando eu contei a ele que tinha tele­fonado pra você sobre o homem do gabinete do Promotor Distrital que estava aqui, que eu não devia nunca mais fazer isso, que vocês... que vocês não eram mais amigos.

Ned Beaumont pigarreou.

Escute, mãe, diga a ele que vim falar com ele. Diga que vou pra casa esperar lá por ele, vou ficar esperando a noite toda. — Tornou a pigarrear e acrescentou: — Diga isso a ele.

A sra. Madvig pôs as mãos ossudas nos ombros dele.

Você é um bom menino, Ned. Não quero que você e Paul briguem. Você é o melhor amigo que ele já teve, não importa o que surgiu entre os dois. Que foi? Ê aquela Janet...

Pergunte a Paul — ele disse, numa voz baixa e amar­ga. — Moveu a cabeça com impaciência. — Vou embora, mãe, a não ser que possa fazer alguma coisa por Opal. Posso?

Não, a não ser ir falar com ela. Não está dormindo ainda, e talvez fizesse algum bem conversar um pouco com ela. Ela ouvia você antes.

Ele balançou a cabeça.

Não, ela não ia querer falar comigo — engoliu em seco — tampouco.

 

Ned Beaumont foi para casa. Tomou café, fumou, leu um jornal, uma revista e metade de um livro. De vez em quando, parava de ler para andar inquieto pelo aparta­mento. A campainha da porta não tocava. O telefone não to­cava.

Às oito da manhã, tomou banho, barbeou-se e pôs rou­pas limpas. Pediu o café da manhã e o comeu.

Às nove horas, foi ao telefone, discou o número de Janet Henry, pediu para falar com ela e disse:

Bom dia... Sim, ótimo, obrigado... Bem, estamos prontos para os fogos de artifício... É... Se seu pai está aí, acho que devemos primeiro contar tudo a ele... Ótimo, mas nem uma palavra até eu chegar aí... É só o tempo de ir daqui até aí. Estou saindo agora... Certo. Vejo você em alguns minutos.

Levantou-se do telefone fitando o espaço, bateu as mãos ruidosamente e esfregou as palmas. A boca era uma linha mal-humorada sob o bigode, os olhos pontos negros ardentes. Foi até o armário e com gestos rápidos vestiu o casaco e pôs o chapéu. Deixou o quarto assobiando baixinho Little Lost Lady e atravessou as ruas em largas passadas.

A srta. Henry está me esperando — disse à criada que abriu a porta dos Henry.

Ela disse:

Sim, senhor. — E o conduziu a uma sala ensolarada, com um vistoso papel de parede, onde o senador e a filha se sentavam tomando o café.

Janet Henry saltou imediatamente e veio ao encontro dele com ambas as mãos estendidas, gritando com excitação:

Bom dia!

O senador levantou-se de um modo mais calmo, olhando a filha com polida surpresa, e depois estendeu a mão para Ned Beaumont, dizendo:

Bom dia, sr. Beaumont. É um grande prazer vê-lo. Não quer...?

Não, obrigado, já tomei o meu.

Janet Henry tremia. A excitação tirara-lhe a cor das faces, escurecera-lhe os olhos, dando-lhe a aparência de uma pessoa drogada.

Temos uma coisa pra contar ao senhor, pai — ela disse, numa voz plana e sem tensão. — Uma coisa que... — Voltou-se abruptamente para Ned Beaumont. — Diga a ele! Diga a ele!

Ned Beaumont olhou-a de lado, juntando as sobrance­lhas, e depois olhou diretamente para o pai dela. O senador permanecera de pé em seu lugar à mesa. Ned Beaumont disse:

O que temos são provas muito fortes... incluindo uma confissão... de que Paul Madvig matou seu filho.

O senador estreitou os olhos e pôs a mão espalmada sobre a mesa à sua frente.

Que provas fortes são essas? — perguntou.

Bem, senhor, o principal é a confissão, é claro. Ele diz que seu filho correu atrás dele naquela noite e tentou bater nele com uma bengala nodosa e marrom, e que ao tomar a bengala bateu acidentalmente nele com ela. Diz que levou a bengala consigo e queimou, mas sua filha... — fez uma leve curvatura para Janet Henry — diz que ela ainda está aqui.

Está — ela disse. — É aquela que o major Sawbridge trouxe pro senhor.

O rosto do senador estava pálido como mármore, e igualmente firme.

Prossiga.

Ned Beaumont fez um leve gesto com a mão.

Bem, senhor, isso estouraria a história dele de que foi acidente ou legítima defesa... o fato de seu filho não estar com a bengala. — Moveu um pouco os ombros. — Contei isso a Farr ontem. Ele aparentemente está com medo de correr muitos riscos... sabe como ele é... mas não vejo como pode deixar de prender Paul hoje.

Janet Henry franziu a testa para Ned Beaumont, obvia­mente perplexa com alguma coisa, fez que ia falar, mas em vez disso comprimiu os lábios.

O senador Henry tocou os lábios com o guardanapo que segurava na mão esquerda, soltou-o sobre a mesa e pergun­tou:

Existe... ah... alguma outra prova?

A resposta de Ned Beaumont foi outra pergunta feita com indiferença:

Essas não bastam?

Mas ainda existem outras, não existem? perguntou Janet.

Coisas em apoio a essas disse Ned Beaumont com indiferença. Dirigiu-se ao senador: Posso lhe fornecer mais detalhes, mas o senhor já tem o essencial da história. É o bastante, não é?

Demais disse o senador. Levou a mão à testa. Não posso acreditar, e no entanto é verdade. Se me desculpa por um minuto e... você também, minha querida, eu gostaria de ficar só, para pensar, para me ajustar a... Não, não, fiquem aqui. Eu gostaria de ir para o meu quarto. Fez uma graciosa curvatura. Por favor, fique, sr. Beaumont. Não vou demorar muito... apenas um momento para... para me ajustar ao conhecimento de que esse homem, com quem tra­balhei ombro a ombro, é o assassino de meu filho.

Fez outra curvatura e saiu, andando ereto, rígido.

Ned Beaumont pôs uma mão sobre o pulso de Janet Henry e perguntou numa voz tensa e baixa:

Escute, ele é capaz de alguma loucura?

Ela o olhou, espantada.

Ele é capaz de sair por aí caçando Paul explicou Ned Beaumont. Não queremos isso. Não se pode dizer o que iria acontecer.

Eu não sei ela disse.

Ele fez uma careta de impaciência.

Não podemos deixar que ele faça isso. Não podemos ir pra algum lugar perto da porta da frente, pra podermos deter ele se ele tentar?

Sim. Ela estava ássustada.

Conduziu-o à frente da casa, a uma salinha mergulhada em penumbra por pesadas cortinas, cuja porta ficava a alguns palmos da frente. Ficaram juntos na penumbra da sala, perto da porta entreaberta alguns centímetros. Ambos tre­miam. Janet Henry tentou sussurrar alguma coisa, mas ele fez um "psiu", pedindo silêncio.

Não estavam muito tempo ali quando passos abafados soaram no tapete do saguão, e o senador Henry, de chapéu e casaco passou depressa em direção à porta da rua.

Ned Beaumont saiu e disse:

Espere, senador Henry.

O senador voltou-se. Tinha o rosto duro e frio, os olhos imperiosos.

Quer fazer o favor de me desculpar. Preciso sair.

Isso não adianta — disse Ned Beaumont. Chegou mais perto do outro. — Só mais encrenca.

Janet Henry foi para o lado do pai.

Não vá, pai — pediu. — Escute o sr. Beaumont.

Já escutei o sr. Beaumont — disse o senador. — Estou inteiramente disposto a escutá-lo de novo, se ele tiver mais alguma informação a me dar. Fora isso, devo pedir a vocês que me desculpem. — Sorriu para Ned Beaumont. — Ê com base no que o senhor me disse que estou agindo agora.

Ned Beaumont encarou-o com olhos inalterados.

Não acho que o senhor deve ir falar com ele — disse.

O senador olhou altivamente para Ned Beaumont.

Janet disse:

Mas, pai... — antes que a expressão nos olhos dele a detivesse.

Ned Beaumont pigarreou. Manchas vermelhas surgiam em suas faces. Estendeu rápido a mão e tocou o bolso direito do casaco do senador.

O senador Henry recuou indignado.

Ned Beaumont assentiu, como para si mesmo.

Isso não adianta de jeito nenhum — disse seriamente. Olhou para Janet Henry. — Ele tem uma arma no bolso.

Pai! — gritou ela, e levou a mão à boca.

Ned Beaumont franziu os lábios.

Bem — disse ao senador —, está claro que não po­demos deixar o senhor sair daqui com uma arma no bolso.

Janet Henry disse:

Não deixe, Ned.

Os olhos do senador ardiam de desprezo por eles.

Acho que vocês dois esqueceram quem são disse.

Janet, quer por favor ir para o seu quarto.

Ela se afastou dois passos, relutante, depois parou e gritou:

Não vou! Não vou deixar você fazer isso! Não deixe, Ned.

Ned Beaumont umedeceu os lábios.

Não vou deixar prometeu.

O senador, olhando-o friamente, pôs a mão direita na maçaneta da porta da rua.

Ned Beaumont adiantou-se e pôs a mão sobre a dele.

Escute aqui, senhor disse respeitosamente —, não posso deixar o senhor fazer isso. Não estou apenas interfe­rindo. Tirou a mão do senador, vasculhou o bolso interno do paletó e tirou um pedaço de papel dobrado, puído, enru­gado e sujo. Aqui está minha nomeação como investigador especial do gabinete do Promotor Distrital, no mês passado.

Estendeu-o para o senador. Até onde eu sei, nunca foi cancelada, e assim encolheu os ombros —, não posso deixar o senhor sair pra dar tiros em ninguém.

O senador não olhou o papel. Disse com desprezo:

Você está é tentando salvar a vida de seu amigo assassino.

O senhor sabe que não é isso. O senador recompôs.

Chega disso disse, e girou a maçaneta. Ned Beaumont disse:

Pise na calçada com essa arma no bolso, e eu lhe prendo.

Janet Henry gemeu:

Oh, pai!

O senador e Ned Beaumont fitavam-se dentro dos olhos, ambos respirando de uma maneira audível.

O senador foi o primeiro a falar. Falou à filha:

Quer nos deixar uns poucos minutos, minha querida? Tem umas coisas que eu gostaria de dizer ao sr. Beaumont.

Ela olhou interrogativamente para Ned Beaumont. Ele assentiu.

Sim ela disse ao pai —, se você não sair antes de eu ver você de novo.

Ele sorriu e disse:

Você me verá.

Os dois homens observaram-na afastar-se saguão abaixo, dobrar à esquerda com um olhar para eles por sobre o ombro e desaparecer numa porta.

O senador disse pesarosamente:

Receio que o senhor não tenha uma influência tão boa sobre a minha filha quanto devia ter. Ela não é habitualmente tão... ah... teimosa.

Ned Beaumont deu um sorriso de desculpa, mas não falou.

O senador perguntou:

Há quanto tempo dura isso?

O senhor se refere à nossa investigação sobre o assas­sinato? Pra mim, só um ou dois dias. Sua filha está nisso desde o início. Sempre achou que foi Paul.

Quê? — A boca do senador permaneceu aberta.

Ela sempre achou que foi ele. O senhor não sabia? Ela odeia ele como veneno... sempre odiou.

Odeia ele? — O senador estava ofegante. — Deus, não!

Ned Beaumont fez que sim com a cabeça e sorriu curiosamente para o homem encostado à porta.

O senhor não sabia disso?

O senador expeliu o ar com força.

Entre aqui — disse, e entrou na frente na sala escura onde Ned Beaumont e Janet Henry haviam se escondido. O senador acendeu as luzes, enquanto Ned Beaumont fechava a porta. Os dois ficaram frente a frente, de pé.

Quero falar com o senhor de homem para homem, sr. Beaumont — começou o senador. — Podemos esquecer suas — sorriu — ligações oficiais, não podemos?

Ned Beaumont assentiu.

É. Farr provavelmente já se esqueceu delas também.

Exatamente. Agora, sr. Beaumont, eu não sou um homem sanguinário, mas diabos me levem se posso suportar a idéia de que o assassino de meu filho anda por aí livre e impune, quando...

Eu disse ao senhor que vá pegar ele. Não têm saída. A prova é forte demais, e todo mundo conhece.

O senador tornou a sorrir, gelidamente.

O senhor certamente não está tentando me dizer, como um político praticante para outro, que Paul Madvig corre algum perigo de ser punido por alguma coisa que fez nesta cidade?

Estou, sim. Paul está liquidado. Estão traindo ele. A única coisa que segura eles é que estão habituados a saltar quando ele estala o chicote, e precisam de um tempo pra juntar coragem.

O senador Henry sorriu e balançou a cabeça.

Permite-me discordar do senhor? E apontar o fato de que estou na política há mais anos do que os que o senhor tem de vida?

Claro.

Então posso garantir ao senhor que eles jamais vão juntar a coragem necessária, por mais tempo que tenham. Paul é o chefão deles, e apesar de possíveis rebeliões tempo­rárias, continuará sendo.

Acho que não concordo com isso disse Ned Beaumont. Paul está liquidado. Franziu a testa. Agora, sobre esse negócio da arma. Não adianta. É melhor me entre­gar. Estendeu a mão.

O senador enfiou a mão no bolso do casaco.

Ned Beaumont aproximou-se e pôs a mão no pulso do senador.

Me dê.

O senador fuzilava-o com o olhar.

Está bem disse Ned Beaumont —, se tenho de fazer isso... E, após uma breve luta, em que uma cadeira caiu, tomou a arma, um antiquado revólver niquelado, do senador. Enfiava-o num dos bolsos traseiros das calças quan­do Janet Henry, de olhos alucinados e rosto pálido, entrou.

Que é isso? gritou.

Ele não quer ouvir a voz da razão resmungou Ned Beaumont. Tive de tomar a arma dele.

O senador contorcia o rosto e respirava asperamente. Deu um passo em direção a Ned Beaumont.

Saia já de minha casa! ordenou.

Não saio disse Ned Beaumont. As extremidades de seus lábios arquearam-se. A raiva começou a arder em seus olhos. Estendeu a mão e tocou rudemente o braço de Janet Henry. Sente aí e escute isso. Você pediu e vai receber. Falou ao senador: Tenho muita coisa pra dizer, portanto é melhor o senhor se sentar também.

Nem Janet Henry nem o pai se sentaram. Ela olhava para Ned Beaumont com pânico nos olhos, ele com olhos cautelo­sos. Os rostos dos dois estavam igualmente brancos.

Ned Beaumont disse ao senador:

O senhor matou o seu filho.

Nada se alterou no rosto do senador. Ele não se mexeu.

Por um demorado momento, Janet Henry ficou tão imó­vel quanto o pai. Depois, uma expressão de extremo horror surgiu no rosto dela, e ela se sentou lentamente no chão. Não caiu. Dobrou lentamente os joelhos e arriou no chão, sentada, inclinada para a direita, a mão direita apoiando-se no chão, o rosto horrorizado erguido para o pai e para Ned Beaumont.

Nenhum dos dois olhava para ela.

Ned Beaumont disse ao senador:

O senhor quer matar Paul agora pra ele não poder dizer que foi o senhor quem matou o seu filho. Sabe que pode matar ele e ficar impune... aquela história do cavalheiro impulsivo da velha escola... se puder impingir ao mundo a atitude que tentou impingir a nós. — Parou.

O senador nada disse.

Ned Beaumont prosseguiu:

O senhor sabe que ele vai parar de acobertar o senhor se for preso, porque não vai querer que Janet pense que matou o irmão dela, se puder impedir. — Deu uma risada amarga. — E que maldita piada contra ele, essa! — Passou os dedos pelos cabelos. — O que aconteceu foi mais ou menos o se­guinte: quando Taylor soube que Paul tinha beijado Janet, correu atrás dele, levando a bengala e usando um chapéu, embora isso não seja tão importante. Quando o senhor pensou no que podia acontecer às suas possibilidades de se reeleger...

O senador interrompeu-o num áspero tom de raiva:

Isso é insensatez! Não vou deixar minha filha su­jeita...

Ned Beaumont riu brutalmente.

Claro que é insensatez — disse. — E o fato do senhor trazer a bengala com que matou ele pra casa, e usar o chapéu dele porque tinha corrido atrás dele de cabeça descoberta, também é insensatez, mas é a insensatez que vai pregar o senhor na cruz.

O senador Henry disse numa voz baixa e indiferente:

E a confissão de Paul?

Ned Beaumont sorriu.

É muita coisa disse. Vou lhe dizer o que vamos fazer. Janet, telefone pra ele e peça que ele venha aqui imediatamente. Depois diremos a ele que seu pai ia sair atrás dele com um revólver, pra ver o que ele diz.

Janet mexeu-se mas não se levantou do chão. Seu rosto estava branco.

O pai disse:

Isso é ridículo. Não vamos fazer nada disso.

Ned Beaumont disse, decisivo:

Telefone pra ele, Janet.

Ela se pôs de pé, ainda com o rosto branco, e, sem dar atenção ao veemente "Janet!" do senador, foi até a porta.

O senador mudou de tom então e disse:

Espere, querida. E depois: Gostaria de falar a sós com você de novo disse a Ned Beaumont.

Está bem disse Ned Beaumont, voltando-se para a moça que hesitava na porta.

Antes que ele pudesse dizer-lhe alguma coisa, ela dizia obstinadamente:

Eu quero ouvir. Tenho o direito de ouvir.

Ele assentiu com a cabeça, tornou a olhar o pai dela e disse:

Ela tem.

Janet, querida disse o senador —, estou tentando poupar você. Eu...

Não quero ser poupada ela disse numa vozinha plana. Quero saber.

O senador mostrou as palmas num gesto de derrota.

Então não direi nada.

Ned Beaumont disse:

Telefone pra Paul, Janet.

Antes que ela pudesse mover-se, o senador falou:

Não. Isso é mais difícil do que vocês deviam tornar para mim, mas... Tirou um lenço e enxugou as mãos. Vou contar a vocês exatamente o que aconteceu, e depois vou pedir um favor a vocês, um favor que acho que não podem recusar. Contudo... — Interrompeu-se para olhar a filha. Entre, minha querida, e feche a porta, se tem de ouvir.

Ela fechou a porta e sentou-se numa cadeira perto dele, curvando-se para a frente, o corpo rígido, o rosto tenso.

O senador pôs as mãos às costas, ainda segurando o lenço, e, olhando sem inimizade para Ned Beaumont, disse:

Eu corri atrás de Taylor naquela noite porque não gostaria de perder a amizade de Paul por causa do esquentamento de meu filho. Alcancei-os na rua da China. Paul tinha tomado a bengala dele. Estavam, ou pelo menos Taylor estava, discutindo furiosamente. Pedi a Paul que nos dei­xasse, para que eu pudesse cuidar de meu filho, e ele fez isso, me dando a bengala. Taylor falou comigo como filho nenhum deve falar com um pai, e tentou me empurrar da sua frente pra poder tornar a perseguir Paul. Não sei exatamente como aconteceu... a pancada... mas aconteceu, e ele caiu e bateu a cabeça no meio-fio. Paul voltou então... não se afastara muito... e descobrimos que Taylor tinha morrido instantanea­mente. Paul insistiu em que deixássemos o corpo ali e não admitíssemos nossa participação na morte dele. Disse que por mais inevitável que fosse, podiam criar um escândalo desagradável com aquilo na campanha iminente, e... bem... deixei que ele me convencesse. Foi ele quem pegou o chapéu de Taylor e me deu pra voltar pra casa... eu tinha saído de cabeça descoberta. Garantiu que a investigação da polícia seria detida se ameaçasse chegar muito perto de nós. Mais tarde... na verdade, na semana passada... quando fiquei as­sustado com os rumores de que ele tinha matado Taylor, fui a ele e perguntei se não era melhor a gente contar tudo. Ele riu de meus temores e me garantiu que era inteiramente capaz de cuidar de si mesmo. — Tirou as mãos das costas, enxugou o rosto com o lenço e disse: — Foi isso que aconteceu.

A filha gritou numa voz sufocada:

Você deixou ele lá, daquele jeito, caído na rua!

Ele piscou, mas não disse nada.

Após um momento de carrancudo silêncio, Ned Beaumont disse:

Um discurso de campanha... um pouco de verdade enfeitada. — Fez uma careta. — O senhor tinha um favor a nos pedir.

O senador baixou os olhos para o chão, depois tornou a olhar para Ned Beaumont.

Mas isso é só pra você ouvir.

Ned Beaumont disse:

Não.

Me perdoe, querida — o senador disse à filha, e depois, a Ned Beaumont: — Eu lhe contei a verdade, mas compreendo muito bem a posição em que me coloquei. O favor que lhe peço é que me devolva meu revólver e me dê cinco minutos... um minuto... sozinho nesta sala. Ned Beaumont disse:

Não.

O senador hesitou, com a mão no peito, o lenço pen­dendo da mão.

Ned Beaumont disse:

Vai receber o que merece.

 

Ned Beaumont foi até a porta da rua com Farr, a estenógrafa grisalha, dois detetives da polícia e o senador.

Não vem com a gente? — perguntou Farr.

Não, mas vejo você depois.

Farr sacudiu-lhe a mão com entusiasmo.

Apareça logo e com mais freqüência, Ned — disse. — Você faz truques comigo, mas não me incomodo com isso quando vejo o que resulta.

Ned Beaumont deu-lhe um sorriso, trocou acenos de cabeça com os detetives, despediu-se da estenógrafa e fechou a porta. Subiu a escada até a sala de paredes brancas onde ficava o piano. Janet Henry levantou-se do sofá com liras nas extremidades quando ele entrou.

Já foram — ele disse, numa voz conscientemente banal.

Eles... eles...?

Arrancaram um depoimento completo dele... com mais detalhes que os que ele nos contou.

Você me dirá a verdade?

Sim — ele prometeu.

Que... — A voz falhou. — Que vão fazer com ele, Ned?

Provavelmente não muita coisa. A idade e a impor­tância dele e essas coisas todas vão ajudar. As possibilidades são de que condenem ele por assassinato culposo, e depois afastem ou suspendam a sentença.

Você acha que foi um acidente?

Ned Beaumont balançou a cabeça. Tinha os olhos frios. Disse brutalmente:

Acho que ficou furioso com o fato do filho interferir em suas chances de se reeleger e bateu nele.

Ela não protestou. Torcia os dedos, juntos. Quando fez a pergunta seguinte, foi com dificuldade.

Ele... ele ia atirar em Paul?

Ia. Podia se safar com aquela história do grande homem que vinga a morte que a lei não podia vingar. Sabia que Paul não ia ficar calado se fosse preso. Paul fez aquilo, como apoiou a reeleição de seu pai, porque queria você. Não poderia conquistar você dizendo que matou seu irmão. Pouco estava ligando pra o que os outros pensavam, mas não queria que você pensasse que foi ele, e sairia de baixo num segundo se precisasse.

Ela assentiu com a cabeça, infeliz.

Eu odiava ele, e fiz mal a ele e ainda odeio. — Deu um soluço. — Por que, Ned?

Ele fez um gesto de impaciência com a mão.

Não me peça pra decifrar enigmas.

E você me enganou e me fez de tola, e me causou tudo isso, e eu não odeio você.

Mais enigmas — ele disse.

Há quanto tempo, Ned — ela perguntou —, há quanto tempo você sabia sobre... sobre papai?

Não sei. Estava lá no fundo de minha mente há muito tempo. Era a única coisa que se encaixava na idiotice de Paul. Se ele tivesse matado Taylor, teria me dito antes. Não havia motivo pra esconder isso de mim. Havia um motivo pra que ele me ocultasse os crimes de seu pai. Sabia que eu não gostava dele. Deixei isso bastante claro. Não achava que podia confiar em mim pra não denunciar seu pai. E sabia que podia em relação a ele mesmo. Assim, quando eu disse pra ele que ia esclarecer o assassinato independente do que ele dissesse, ele fez aquela falsa confissão pra me deter.

Ela perguntou:

Por que você não gostava de papai?

Porque — ele disse — não gosto de cafetões.

O rosto dela ficou vermelho, os olhos envergonhados. Ela perguntou numa voz seca e arrependida:

E não gosta de mim por quê... ?

Ele não disse nada.

Ela mordeu o lábio e gritou:

Me responda!

Você é decente ele disse —, só não com Paul, não da maneira como manobrou ele. Nenhum dos dois era outra coisa que não veneno pra ele. Tentei dizer isso a ele. Tentei dizer a ele que vocês dois consideravam ele uma forma inferior de vida animal, e boa caça para qualquer tipo de tratamento. Tentei dizer a ele que seu pai era um homem habituado toda a vida a vencer sem muito esforço, e que num aperto ou per­deria a cabeça ou viraria bicho. Bem, ele estava apaixonado por você; assim... Bateu os dentes com um estalido e encaminhou-se para o piano.

Você me despreza ela disse, numa voz baixa e dura. Me acha uma prostituta.

Eu não desprezo você ele disse, irritado, sem vol­tar-se de frente para ela. O que quer que tenha feito, já pagou por isso, e foi paga, e isso se aplica a todos nós.

Fez-se silêncio entre eles, até que ela disse:

Agora você e Paul vão voltar-a ser amigos.

Ele se voltou do piano com um movimento que era como se fosse sacudir-se e olhou o relógio no pulso.

Agora vou ter de dizer adeus disse.

Um brilho de espanto brilhou nos olhos dela.

Não está indo embora?

Ele fez que sim com a cabeça.

Posso pegar o trem das quatro e trinta.

Não está indo embora pra sempre?

Se puder evitar que me tragam aqui pra um desses julgamentos, e acho que isso não será tão difícil assim.

Ela estendeu as mãos, impulsivamente.

Me leve com você.

Ele piscou os olhos.

Quer mesmo ir embora ou está apenas histérica? perguntou. Tinha o rosto cor de carmim agora. Antes que ela pudesse falar, disse: Não faz nenhuma diferença. Levo você, se quiser ir. Franziu a testa. Mas e tudo isso? acenou com a mão, indicando a casa. Quem vai tomar conta?

Ela disse amargamente:

Não me importa... nossos credores.

Tem outra coisa em que você precisa pensar ele disse, devagar. Todo mundo vai dizer que você desertou seu pai assim que ele entrou num aperto.

Eu estou desertando ele — ela disse —, e quero que as pessoas digam isso mesmo. Não me importa o que digam... se você me levar com você. — Soluçou. — Se... Eu não faria isso se ao menos ele não tivesse vindo embora e deixado ele lá sozinho naquela rua escura.

Ned Beaumont disse bruscamente:

Esqueça isso agora. Se vai mesmo, arrume suas coi­sas. Só o que puder levar numas duas malas. Podemos man­dar buscar as outras coisas depois, talvez.

Ela emitiu um riso agudo e não natural e saiu correndo da sala. Ele acendeu um charuto, sentou-se ao piano e tocou baixinho até ela voltar. Ela pusera um chapéu e um casaco negros, e trazia duas malas de viagem.

 

Foram de táxi até o apartamento dele. Durante a maior parte da corrida, ficaram calados. A certa altura, ela disse de repente:

Naquele sonho... não contei a você... a chave era de vidro e se despedaçou em nossas mãos assim que abrimos a porta, porque a fechadura estava emperrada e tivemos de forçar.

Ele olhou de lado para ela e perguntou:

E daí?

Ela teve um arrepio.

Não pudemos trancar as cobras, e elas saltaram todas em cima da gente, e eu acordei gritando.

Foi só um sonho — ele disse. — Esqueça. — Sorriu sem alegria. — Você jogou minha truta de volta na água... no sonho...

O táxi parou diante do prédio dele. Subiram ao aparta­mento. Ela se ofereceu para ajudá-lo a arrumar suas coisas, mas ele disse:

Não, eu posso fazer isso. Sente aí e descanse. Ainda temos uma hora antes da partida do trem.

Ela se sentou numa das poltronas vermelhas.

Aonde você... aonde vamos? — perguntou timida­mente.

Nova Iorque, pelo menos por enquanto.

Já arrumara uma mala quando a campainha da porta tocou.

É melhor você passar pro quarto — ,ele disse a ela, e levou as malas dela para lá. Fechou a porta de comunicação ao sair.

Foi até a porta da frente e abriu-a.

Paul Madvig disse:

Vim lhe dizer que você tinha razão, e que sei disso agora.

Não veio ontem à noite.

Não, eu não sabia então. Cheguei em casa logo depois que você saiu.

Ned Beaumont assentiu com a cabeça.

Entre — disse, afastando-se para um lado.

Madvig entrou na sala de estar. Olhou imediatamente as malas, mas deixou o olhar vaguear pela sala algum tempo, antes de perguntar:

Está indo embora?

Estou.

Madvig sentou-se na poltrona que Janet Henry ocupara. A idade mostrava-se em seu rosto, e ele se sentou cansada­mente.

Como está Opal? — perguntou Ned Beaumont.

Está bem, pobrezinha. Vai ficar bem agora.

Foi você quem fez isso com ela.

Eu sei, Ned. Deus, como sei! — Madvig estendeu as pernas e olhou os sapatos. — Espero que não ache que estou me sentindo orgulhoso de mim mesmo. — Após uma pausa, acrescentou: — Acho... sei que Opal gostaria de ver você, antes de você ir embora.

Vai ter de se despedir dela por mim, e de mamãe também. Vou partir no das quatro e trinta.

Madvig ergueu os olhos azuis enevoados pela angústia.

Você está certo, claro, Ned — disse numa voz sumida —, mas... bem... Deus sabe que você está certo! — Tornou a baixar o olhar para os sapatos.

Ned Beaumont perguntou:

Que vai fazer com seus seguidores não muito fiéis? Chutá-los de volta à linha? Ou eles mesmos já fizeram isso?

Farr e o resto daqueles ratos?

Um-hum.

Vou ensinar uma coisinha a eles — Madvig falou com determinação, mas não havia entusiasmo em sua voz, e não ergueu o olhar dos sapatos. — Vai me custar quatro anos, mas posso aproveitar esses quatro anos pra limpar a casa e montar uma organização que se mantenha de pé.

Ned Beaumont ergueu as sobrancelhas.

Vai acabar com eles na eleição?

Acabar com eles? Diabos, vou dinamitar eles! Shad está morto. Vou deixar a turma dele dirigir isso aqui pelos próximos quatro anos. Não tem nenhum deles que possa montar nada bastante sólido pra me preocupar. Recupero a cidade na próxima vez, e aí já fiz a limpeza da casa.

Podia ganhar agora.

Claro, mas não quero ganhar com esses bastardos.

Ned Beaumont assentiu com a cabeça.

É preciso paciência e raça, mas acho que é a melhor maneira de fazer o jogo.

É só o que eu tenho — disse Madvig, com um ar infeliz. — Jamais vou ter crânio. — Mudou o foco dos olhos dos sapatos para a lareira. — Você tem de ir embora, Ned? — perguntou, quase inaudivelmente.

Tenho, sim.

Madvig pigarreou violentamente.

Não quero ser um merda de um idiota — disse —, mas me agradaria pensar que, indo ou ficando, você não guarda ressentimento de mim, Ned.

Não guardo nenhum ressentimento de você, Paul.

Madvig ergueu a cabeça num gesto rápido.

Aperta minha mão?

Certamente.

Madvig saltou de pé. Sua mão agarrou a de Ned Beau­mont, esmagou-a.

Não vá embora, Ned. Fique comigo. Deus sabe que preciso de você agora. Mesmo que não precisasse... farei o melhor que possa pra compensar tudo isso.

Ned Beaumont balançou a cabeça.

Não tem nada pra compensar comigo.

E você...?

Ned Beaumont tornou a balançar a cabeça.

Não posso. Tenho de ir.

Madvig soltou a mão do outro e tornou à sentar-se, taci­turno, dizendo:

Bem, eu mereço.

Ned Beaumont fez um gesto de impaciência.

Não tem nada a ver com isso. Parou e mordeu o lábio. Depois disse brutalmente: Janet está aqui.

Madvig encarou-o.

Janet Henry abriu a porta do quarto e entrou na sala. Tinha o rosto pálido e tenso, mas o mantinha erguido. Foi direto a Paul Madvig e disse:

Fiz um bocado de mal a você, Paul. Eu...

O rosto dele ficara tão pálido quanto o dela. E de repente o sangue precipitou-se de volta a ele.

Não, Janet disse com voz rouca. Nada do que você pudesse fazer... O resto do discurso foi um murmúrio ininteligível.

Ela recuou, encolhendo-se.

Ned Beaumont disse:

Janet está indo comigo.

Madvig entreabriu os lábios. Olhou estupidamente para Ned Beaumont, e ao fazer isso o sangue tornou a abandonar suas faces. Quando estava sem uma gota de sangue, murmu­rou alguma coisa, da qual só se conseguiu entender a palavra "sorte", virou-se desajeitadamente, foi até a porta e saiu, deixando-a aberta atrás.

Janet Henry olhou para Ned Beaumont. Ele olhava fixa­mente a porta.

 

 

[1] Alusão à peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare, em que o judeu Shylock faz um empréstimo de três mil ducados a Antônio, nobre veneziano, sob a condição, registrada em cartório, de que, caso ele não pague no dia, lhe será retirada do corpo uma libra (meio quilo) de carne. — N. T.

 

 

                                                                  Dashiell Hammett

 

 

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