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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CIDADE DOS HEREGES / Federico Andahazi
A CIDADE DOS HEREGES / Federico Andahazi

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Na França medieval, o duque Geoffroy de Charny fez uso de sua maléfica inteligência para perpetrar um plano voltado para assegurar- lhe glória e poder. Dominado pela ambição, propõe- se reviver o caráter milagroso do Santo Sudário, um pretexto perfeito que justifica a construção de uma igreja para seu próprio proveito. No entanto, sua filha Christine será protagonista, junto com o jovem monge Aurélio, de uma tormentosa história de amor. Opondo-se aos planos de seu pai e pondo a nu a licenciosa vida dos conventos, Christine organizará uma revolta religiosa. Juntos irão fundar uma cidade tão perfeita quanto efêmera, onde a liberdade, o amor e o sexo lutarão para encontrar um destino. Federico Andahazi escreveu com maestria uma história apaixonante que revela o segredo do Sudário de Turim. A trama que se desdobra em A cidade dos hereges exibe de maneira magistral a luta do poder político e do poder eclesiástico em suas estratégias, argúcias e atos cruentos e aterradores. A natureza humana torna visível sua face mais escura.

 

 

 

 

TROYES, FRANÇA, 1347

O vento era um soluço ao cortar-se nas agulhas da abadia de Saint-Martin-es-Aires. Semelhante aos uivos que os cães ofereciam à lua cheia, aquele som se misturava aos provenientes dos claustros. Era a hora em que o silêncio monacal se convertia, pouco a pouco, numa surda ladainha: os chicotes trovejando sobre as costas em chagas dos monges flagelantes, os lamentos afogados pela penitência, as orações sussurradas e as invocações a viva voz, os gemidos que procediam do êxtase místico e os outros, os nascidos das paixões menos devotas, todos, a um tempo, iam crescendo entre os muros do mosteiro com a chegada da noite. O jovem padre Aurélio caminhava resoluto, como se tentasse encobrir com seus passos aquele sórdido murmúrio. Buscava um pouco de silêncio. Segurando um pequeno candeeiro avançava no escuro e estreito corredor de pedra, em cujos lados se distribuíam as portas dos claustros de onde provinha aquela seqüência de sons. Jogou o capuz sobre a cabeça tentando inutilmente deixar de ouvi-los. O repetido concerto de cada dia depois do ângelus mortificava o suscetível ânimo do noviço padre Aurélio, mas aquela noite não podia evitar um mau augúrio. Havia algo que destoava naquele côro sombrio, embora não conseguisse precisá-lo. Ia a caminho do corredor que circundava a praça central da abadia para distrair-se com o canto dos grilos e os guinchos dos morcegos, quando de uma das portas pôde distinguir um grito que foi imediatamente silenciado. O coração lhe deu um pulo. Não tinha sido uma queixa surgida da autoflagelação. Por um momento duvidou de que aquele breve alarido fosse humano. Deteve-se e tentou decifrar algo em meio ao bulício dolente; ia retomar a marcha, mas naquele mesmo instante voltou a se repetir o grito que, como o anterior, foi sufocado. Girou sobre seus calcanhares e sigilosamente voltou atrás. O coração do padre Aurélio batia com a força da inquietude. Levado pela mais pura intuição, deteve-se em frente à porta do quarto do irmão Dominique. No interior havia-se feito um silêncio suspeito. Dominique de Reims costumava infligir-se vários açoites todas as noites antes de dormir, Aurélio conhecia a exata duração das diárias sessões de chicotadas. De repente ouviu-se uma respiração agitada, um rangido de madeiras – provavelmente o beliche -e então sim, outra vez ouviu-se aquela mesma queixa. Não era aquela a rouca voz do irmão Dominique; era uma voz aguda, estreitada ainda mais pelo sofrimento. O jovem padre afastou o candeeiro do seu corpo e no chão, debaixo de seus próprios pés, pôde ver umas marcas de barro fresco que deslizavam até o outro lado da porta. Um novo grito o sobressaltou. Viu-se compelido a bater na porta, mas se deteve antes de descarregar a urgência do seu punho; considerou que não lhe assistia o direito de interromper a jaculatória de seu irmão de retiro, que, se suas suspeitas não tivessem um fundamento certo, cometeria pecado. Dispunha- se a continuar seu caminho quando distinguiu duas gotas de sangue entre as marcas do barro que havia no chão. Inclinou-se e comprovou que o sangue ainda estava fresco. Voltou a se incorporar e escutou claramente uma voz que parecia suplicar clemência. Então sim, fez soar os nós dos dedos contra a porta. No entanto, a madeira não chegou a soar: ao contato com a mão impetuosa, as dobradiças chiaram e a porta, que não estava travada, abriu-se lentamente; em pé junto ao beliche, com os tornozelos enredados 10 no hábito e completamente nu, o irmão Dominique segurava pelo pescoço um menino que se debatia entre os agasalhos, resistindo o quanto lhe permitiam as suas magras forças aos brutais embates do padre. Com uma mão ele afundava o rosto do pequeno contra o enxergão e com a outra untava-se a glande, inflamada e violácea, com o sebo quente que caía de uns círios acesos. Tal era o arrebatamento de Dominique de Reims, que não se deu conta da inesperada visita. O menino, cujas roupas estavam violentamente rasgadas, grunhia, berrava e suplicava clemência cada vez que o clérigo tentava enfiar seu ensebado pau naquele corpinho que lhe resistia com vigor. Se Aurélio não interveio de imediato foi porque não conseguia sair do seu estupor. Mas ao pasmo inicial seguiu-se uma indignação que lhe nasceu no abdome e se instalou em seus punhos: estava para pular no pescoço do seu irmão, quando, ao ver o Cristo que presenciava a cena da cabeceira do catre, tentou apaziguar-se. Descarregou sua indignação na porta, empurrando-a de tal modo que a aldrava bateu com estridência contra a parede. Só então o irmão Dominique deu-se por inteirado de que tinha visitas. Longe de demonstrar surpresa, e menos ainda pudor, o padre soltou suavemente a cabeça do menino que, nem bem deixou de sentir a opressão no pescoço, endireitou-se e, sem sequer pegar suas roupas, saiu correndo como uma lebre, perdendo-se de imediato fora do quarto. Os dois homens ficaram a sós. Dominique de Reims sequer se dignava a olhar para o jovem padre; pegou um pano velho e, nu como estava, procedeu a limpar o sebo que lhe pingava daquela sorte de tronco grosso, ainda ereto e sacudido por espasmos. - Nesta casa sagrada costuma-se bater na porta antes de entrar - disse, ao mesmo tempo que recolhia a batina do chão e se vestia lentamente. Aurélio não respondeu, limitou-se a olhá-lo fixamente nos olhos e a fechar a porta às suas costas. Dominique de Reims soltou uma sonora gargalhada e, apontando para o promontório que levantava o hábito por baixo do cordão de amarrar, disse-lhe:

- Quer fazer justiça com as próprias mãos? Muito bem, faça de uma vez, estou esperando - acrescentou abrindo os braços, como entregando-se ao arbítrio do seu interlocutor, ao mesmo tempo que jogava a pélvis para a frente colocando ainda mais em evidência as dimensões daquilo que se elevava debaixo de suas roupas. O jovem padre pôde perceber que aquelas palavras não eram apenas um sarcasmo, mas que havia nelas um ambíguo tom de proposição verdadeira. O irmão Dominique estava evidentemente bêbado, sua boca fedia a vinho de missa. No entanto, longe de parecer-lhe um atenuante, isso fez o padre Aurélio ser invadido por uma fúria ainda maior. Apontou para o Cristo que presidia o quarto; eram tantos os insultos e imprecações que nasciam dentro de si que quase engasgou com eles e não conseguiu soltar nenhum. Jamais sentira qualquer simpatia pelo irmão Dominique, achava-o capaz de muitas coisas, mas nunca de semelhante atrocidade. Certa vez havia chegado a seus ouvidos a versão de que alguns membros da ordem, sub-repticiamente, costumavam trazer meninos da granja vizinha para o mosteiro, mas não achou isso possível. Antes que Aurélio pudesse dizer alguma coisa, o monge serviu-se de vinho num cálice acinzentado, sentou na beirada do beliche e, apontando para uma cadeira junto a uma pequena carteira, convidou o visitante a tomar também assento. O jovem padre declinou o convite e permaneceu em pé junto à porta. - Você é muito jovem ainda - começou a dizer o corpulento prelado -, na sua idade eu teria procedido do mesmo modo. Mas há coisas que você deveria saber. O irmão Dominique falava como se quem tivesse que se desculpar fosse Aurélio, de repente se dirigia a ele num tom de paternal indulgência e com a hierática atitude de quem está a ponto de fazer uma revelação. Serenamente explicou-lhe que o que acabava de presenciar não quebrava em absoluto os votos de castidade nem contravinha os princípios de abstinência e continência promovidos por Santo Agostinho, pois não envolvia a participação de uma mulher, arma do demônio e culpada pelo pecado original. Ao contrário, os irmãos da Ordem Agostiniana à qual pertenciam tinham como apótema a passagem do Livro dos Apóstolos que proclamava: "A multidão de crentes possui um só coração e uma única alma, e tudo é comum entre eles". Lembrou-lhe que a amizade e a fraternidade levadas até o limite eram a essência da vida agostiniana, e que não era outra coisa o que havia visto: um ato de amizade desinteressada. Fez-lhe ver que se lesse a obra de Santo Agostinho comprovaria que as palavras que com maior freqüência apareciam nela eram amor e caridade. Então pronunciou a mais célebre sentença do santo: "Ama e faz o que quiserdes porque nada do que fizerdes por amor será pecado". Uma sensação de náusea invadiu o irmão Aurélio; naquele momento soube que qualquer coisa que conseguisse dizer seria em vão. Abriu a porta e saiu do claustro de Dominique.

 

Na solidão do seu quarto, ainda horrorizado, Aurélio pegou papel e pena e começou a escrever:

Minha senhora:

Desde que estou em retiro neste mosteiro ao pé do abismo, os dias se sucedem como uma nova prova que Deus coloca no meu caminho. Por momentos meu espírito fraqueja e temo desabar. Longe de ver temperado meu caráter, cada passo se faz mais trabalhoso e vacilante. Minha alma se debate à beira de um fosso de incerteza. De apenas uma coisa estou certo: não renunciei ao vosso amor só para ser testemunha das mais repugnantes ações que, em nome do Senhor, acontecem aqui, ao mudo amparo destas paredes. Talvez não tenha eu a temperança do grande Agostinho e, ao não poder honrar seu santo nome, não mereça com justiça chamar-me agostiniano. Devo confessar-vos que jamais consegui esquecer de vós; vossa cotidiana lembrança obnubila minha razão e, por momentos, se antepõe ao meu propósito mais alto: servir ao Supremo. Mas quando vejo meus irmãos em Deus entregarem-se aos instintos mais baixos, às mais abomináveis misériasda carne,a lembrança de vosso belo rosto se eleva com a pureza dos anjos.

Aurélio levantou o olhar do papel e, contra sua própria vontade, lembrou dos obscuros fatos que lhe coube presenciar desde o dia em que chegara ao mosteiro sete meses antes. Então continuou descrevendo a Christine como aqueles mesmos que durante o dia enchiam a boca com palavras de castidade, abstinência, virtude e probidade, pelas noites deslizavam de forma sub-reptícia de claustro em claustro e mais tarde saíam ajeitando as vestes suadas, ofegantes e inflamados em rubor. Depois descarregavam a fúria do chicote sobre suas costas em chagas, como se desse modo pudessem expiar suas culpas. Mas a visão daquele menino inocente, vítima da bestial luxúria do irmão Dominique, foi a gota que fez transbordar o copo. A carta que Aurélio escrevia era dirigida à mulher que amava ou, dito com propriedade, à que tentava amar: Christine. Voltou a mergulhar a pena no tinteiro e prosseguiu:

Sei que não deveria estar escrevendo estas linhas, que quanto mais vos evoco, menos posso exorcizar do meu corpo as marcas de vossas carícias e da minha alma as brasas da paixão. Deus me põe à prova cada vez que vejo meus irmãos entregues à luxúria. É então quando me pergunto o que pode haver de mau na atração que vosso corpo exerce sobre o meu. Em comparação com as atrozes ações das que sou com freqüência testemunha, nosso amor poder-se-ia dizer a coisa mais pura e sagrada. Se a contemplação da qual falava Agostinho descansa nos divinos princípios do Bem, da Bondade e da Verdade, me pergunto: em que me desvio do caminho do Bem, se vossa alma é a encarnação da bondade? Por que teria de me afastar do Belo, se a vossa é a imagem mesma da Beleza? Como poderia me afastar da Verdade, se o que sinto por vós é o mais autêntico e verdadeiro? Não cometo sacrilégio ao me fazer estas perguntas, pois sabeis que é na dúvida que se afirma a fé. E se o pecado se redime na confissão como ato de elogio e penitência, me permito tomar-vos como minha confessora, porque não há ninguém aqui o suficientemente probo para obrar como tal. Permiti-me então usar vosso nome para chegar ao Todo-poderoso e obter assim Seu perdão.

Ainda ressoavam nos ouvidos do jovem sacerdote os gritos sufocados daquele menino indefeso e seu coração batia com a força da iracúndia. A lembrança do rosto de Christine, de sua voz doce e suave, se impôs sobre aqueles ecos e lhe devolveu um pouco a calma.

Aurélio ficara órfão aos dez anos. Primeiro morreu seu pai, Honoré de Brie, um cavaleiro em dificuldades que, para salvar-se da ruína, contraiu matrimônio com uma jovem nobre oriunda das Astúrias. Ela se mudou para Lyon, onde ele vivia e, com o auxílio do dote, conseguiu saldar as dívidas antes que os credores tomassem posse da sua casa. No entanto, não demoraria a contrair de novo enormes compromissos que não tinha como pagar, se não às expensas da fortuna da esposa. Vários anos mais velho que a mulher, Honoré de Brie não chegou a deixar sua família na rua: a peste negra o matou depois de uma breve agonia. Embora o pai não parecesse prestar nenhuma atenção ao seu filho, para Aurélio foi uma perda enorme: sentia grande carinho por aquele homem de modos deliberadamente rústicos, quando não grotescos, que parecia não ter respeito por nada nem por ninguém. Admirava aquela displicência, tão contrastante com o espírito apaixonadamente católico da sua mãe. A personalidade de Aurélio foi sendo construída sobre uma estreita cornija em cujos lados estavam aqueles exemplos tão diferentes. Muito pouco tempo haveria de passar entre a morte do seu pai e a da sua mãe; sem que nada o anunciasse, sem que mediasse enfermidade alguma, um dia, enquanto caminhava pelos campos em volta da casa, a mãe de Aurélio caiu morta como caem os pássaros. Foi ele quem a encontrou deitada sobre as folhas outonadas das bétulas. Um piedoso tio, irmão do seu pai, passou a cuidar do menino e o levou para morar com ele na sua casa de Troyes. A descoberta de Santo Agostinho 16 teve para Aurélio a força de uma revelação. Sem dúvida, via na mãe do santo, aquela cuja insistência fizera com que se entregasse a Cristo por completo, o reflexo de sua própria mãe. Criado na austeridade que caracterizava o espírito do seu tio, quando teve a idade suficiente, Aurélio sequer tomou posse do castelo de Velayo, nas Astúrias, que lhe correspondia por herança, já que logo decidiu que seus dias teriam de transcorrer num mosteiro.

A precoce leitura da Cidade de Deus e das Confissões o uniram para sempre à enorme figura de Santo Agostinho, a ponto de adotar como próprio o primeiro nome do Santo: Aurélio; essa era a homenagem que rendia a quem considerava seu mestre. Talvez por seguir os tortuosos caminhos de seu mentor espiritual, talvez porque assim o quis o acaso, antes de ingressar na ordem dos irmãos agostinianos, uma mulher cruzou em seu beato caminho. Igual a Agostinho, o africano, que caiu nos braços de Floria e conheceu as trilhas mundanas da concupiscência antes de se entregar por completo a Deus, Aurélio conheceu, no mais bíblico dos sentidos, a formosa Christine. Eram jovens demais; no entanto, foi um romance tão apaixonado que Aurélio esteve a ponto de renunciar aos hábitos antes de tomá-los. Mas se sentia em falta com Deus. Nem mesmo a idéia do matrimônio, por sagrado que fosse, o eximia de um tormentoso sentimento de culpa. Sempre havia sustentado que a união conjugal era um mal menor, mas enfim um mal. Pensava, como São Jerônimo, que o casamento era a reafirmação do pecado original, que o verdadeiro estado de graça correspondia à virgindade e à castidade, tal como era a existência paradisíaca anterior ao pecado. Jamais haveria de se perdoar por ter tido conhecimento carnal. Mas tampouco conseguiria esquecer aquelas sensações incomparáveis que o assediavam desde a lembrança dia após dia. Era tamanho o peso na consciência que atormentava Aurélio que finalmente abandonou Christine e ingressou na ordem dos agostinianos no mosteiro de Saint-Martin-es-Aires. Ela, por sua parte, havia sofrido demais para se debater naqueles dilemas morais; os remorsos aos quais se submetia Aurélio eram uma verdadeira frivolidade comparados com a tragédia que tivera que viver Christine. No entanto, apesar desse injusto calvário, havia jurado a Aurélio amor eterno e não estava disposta a quebrar sua palavra. Abandonada pelo homem que amava, vítima da infinita maldade de seu próprio pai e da indiferença da sua mãe, à beira da enfermidade mental, deserdada e desterrada da sua família, Christine se viu obrigada também a tomar hábito. Não foi impelida por nenhuma convicção religiosa nem sentiu em momento algum o chamado divino; de fato, decidiu casar-se com Deus porque não lhe restava alternativa. Seu casamento com o Altíssimo foi semelhante àquelas cerimônias acertadas entre famílias, como aquela que se casa com um ancião rico e bondoso ao qual, no entanto, não poderá brindar-lhe um amor sincero. Jamais se resignaria a ter perdido Aurélio. Mas se ele estava disposto a fazer o possível para se redimir perante Deus, ela iria lutar até as últimas conseqüências para recuperar o homem que amava.

 

Aurélio acreditava conhecer até o último meandro da alma de Christine, em aparência tão transparente. No entanto, ela guardava um segredo; carregava sozinha o peso do sofrimento. Decidira suportar sem ajuda o peso da sua cruz e atravessar o calvário sem que ninguém enxugasse suas lágrimas. Forçada pelas circunstâncias, Christine abraçou a vida religiosa que antes havia abandonado. Sempre tivera uma relação apaixonada com Jesus. Quando ainda era menina sentiu uma atração irrefreável por aquele homem que se esvaía em sangue na cruz. Sentiu amor pelo Filho, não pelo Pai nem pelo Espírito Santo. Era pequena demais para compreender o sentido da Santíssima Trindade, enteléquia que, a rigor, nunca chegou a conceber, nem mesmo quando adulta. Intuía que não era aquela a forma de amar a Cristo, mas não conseguia experimentar outra. Acreditava que jamais haveria de conhecer nenhum homem que pudesse suscitar nela uma paixão sequer semelhante. Quando ainda não sabia ler, pedia à mãe que lhe contasse uma vez e outra mais a vida e a paixão daquele homem de olhar transparente. Esforçou-se para compreender precocemente o alfabeto e assim poder, ela mesma, estudar com avidez o Evangelho. Jesus era a encarnação do Bom, do Belo e do Verdadeiro. Considerava uma injustiça que tivesse sido tão breve sua passagem por este mundo e lamentava não ter nascido na sua época e na sua terra.

O amor ilimitado que sentia por Cristo estava inspirado, sem dúvida, pelo seu pai, o duque Geoffroy de Charny; não porque ele tivesse inculcado esse amor nela pelo exemplo; nem mesmo poder-se-ia afirmar que esta devoção nascera da férrea educação, quase monacal, que havia recebido; ao contrário, Christine encontrava ao abrigo de Jesus o refúgio de tudo o que desprezava em sua casa, a começar pelo seu pai. Sua mãe, Jeanne de Vergy, era uma mulher muito jovem. Contava apenas quinze anos quando teve seu primeiro filho, Geoffroy de Charny II, e dezessete quando nasceu Christine. De fato, mãe e filha podiam passar por irmãs. Jeanne era dona de uma formosura proporcional à sua estreiteza intelectual; olhava o mundo com uma indiferente incompreensão que beirava a idiotia. Raramente pronunciava palavra e, salvo em situações extremas, tudo parecia dar-lhe na mesma. Não manifestava senão os sentimentos mais elementares como o pranto diante da dor física e o sorriso diante da placidez; nunca ria francamente. Seus dois filhos importavam-lhe menos que seus sete cachorros. Seu marido costumava atribuir estas características ao fato de ela ter nascido de sete meses, mas não era mais que uma justificativa sem muito pretexto. No entanto, fora do círculo familiar, não eram poucos os que suspeitavam que, na realidade, Jeanne se fazia passar por estúpida para evitar assumir responsabilidades, evitar afazeres domésticos e desfrutar sem sobressaltos da fortuna do seu esposo. Quanto ao seu irmão mais velho, Geoffroy, era o decalque vivo do seu pai tanto física como espiritualmente, se este último termo pudesse ser aplicado ao duque e a seu rebento. Christine sentia a dor da orfandade não só pela virtual ausência mental da sua mãe, mas além disso pela horrorosa presença do seu pai. Se tivesse se visto obrigada a descrever o duque o teria feito por oposição a Cristo. E, a rigor, podia-se afirmar que Um e o outro eram o exato oposto: o caráter generoso e austero de Jesus contrastava com a avareza e a ostentação do duque; o amor pelos mais fracos e desprotegidos que o Salvador predicava opunha-se ao desprezo que Geoffroy de Charny sentia pelos pobres, principalmente por aqueles que trabalhavam e sobreviviam em suas terras. A estampa lânguida, harmoniosa e despojada de Jesus Cristo estava na antípoda da figura obesa, excessiva e grotesca do pai de Christine. Se isso fosse pouco, uma coxeadura pertinaz completava o retrato. Felizmente, Christine havia herdado a beleza da sua mãe. Talvez sem sabê-lo até aquele momento, pai e filha iriam ver unidos seus irreconciliáveis desígnios em Cristo. Mas o amor de Christine pelo Messias não se restringia à sua prédica e à sua obra, não apenas sentia por Ele um vínculo espiritual, mas também um inexplicável laço de sensualidade. Resignava-se ao fato de saber que não poderia apaixonar-se por nenhum simples mortal quando, sendo já uma moça, apresentou-se-lhe Jesus em pessoa. Ou pelo menos foi o que ela acreditou.

Caminhava por entre as bancas do mercado da praça de Troyes procurando um cordeiro para o jantar, abria caminho entre o populacho que se acotovelava nas pequenas tendas que exibiam reses dependuradas, pescado recém-tirado das redes e quanto mais pudesse ser levado à panela, quando viu o animal que precisava. Parecia ser o último, de modo que se apressou antes que alguém se lhe antecipasse. Gritou com todas as suas forças para o vendedor quando, no mesmo momento em que estava para pegar a corda que prendia o animal, uma mão surgida do tumulto se adiantou a ela. Maldisse até esvaziar seus pulmões: não iria permitir que lhe arrebatassem o que ela havia visto antes, estava disposta a discutir com quem fosse e, se o caso se apresentasse, a ficar com ele à força. Não poupou nenhum insulto. Acompanhou com os olhos o curso daquele braço delgado que usurpava seu cordeiro e no momento em que encontrou o rosto do ladrão ficou petrificada. Era Jesus Cristo. O Nazareno a olhou com olhos piedosos e compreensivos e, para terminar de convencê-la de quem era, disse-lhe com a generosidade incomparável do Galileu: - Compartilhemos. Imediatamente, do nada, fez aparecer outro animal idêntico e o aproximou dela. Se até aquele momento estava agitada, quando presenciou a multiplicação do cordeiro quase cai desmaiada. Era tamanha sua obnubilação que nem mesmo parou para pensar que o advento do Messias significava o temido final dos tempos. Mas nada havia de apocalíptico naquela cena, ao contrário: o céu estava diáfano, soprava uma brisa grata e o mercado estava animado e alegre. Christine não conseguiu, ou talvez não quisesse, perceber que, na realidade, o cordeiro milagrosamente multiplicado estava oculto atrás de uma das lonas que delimitavam a banca. Vendo que a moça não atinava a pegar o animal, o homem sussurrou-lhe: - Vai levá-lo? Christine segurou-o então pela corda como se acabasse de receber uma ordem. O jovem adivinhou de imediato o que estava acontecendo. Não era a primeira vez que acreditavam ver nele Jesus ressuscitado. Sabia da surpreendente semelhança que guardava com o Cristo pintado na basílica de Troyes. Em geral, tais situações produziam-lhe um aborrecimento infinito, mas agora, talvez pela beleza infreqüente daquele rosto petrificado e pálido, achou a cena divertida. Então levantou a mão, ergueu o dedo indicador e o médio e, perto do ouvido de Christine, disse:

- Ego sum lux mundi. Foi então que a jovem caiu ao chão. Tudo o que Christine lembrava daquele primeiro encontro foi que logo acordou nos braços daquele Cristo e, quando estava certa de ter ganho o céu por toda a eternidade, ouviu que daquela boca emoldurada por uma barba suave e um pouco rala brotavam palavras que a princípio lhe custou entender:

- Meu nome é Aurélio - apressou-se em dizer e depois lhe suplicou que não voltasse a desmaiar, já que das duas vezes que começara a recuperar a consciência voltou a perdê-la ao abrir os olhos e deparar com aquele rosto nazareno. Quando finalmente conseguiu voltar a si e compreendeu a verdadeira situação, teve uma sucessão de sentimentos: primeiro se sentiu profundamente estúpida, a seguir teve vergonha, depois se desiludiu e por último foi invadida por uma indignação vulcânica. Aurélio não encontrava palavras para se desculpar. Quando Christine ficou em pé, dedicou-lhe um olhar de ódio e começou a se afastar com passo decidido. Aurélio se sentia mortificado. Deambulando em volta dela com os braços abertos, tentava explicar-lhe que não podia condená-lo por não ser Jesus Cristo e que tampouco podia lhe pedir perdão por esse fato irremediável. Havia algo em Aurélio que enternecia Christine; não era só sua figura lânguida e ao mesmo tempo formosa, nem sua voz serena e convincente, senão certa ingênua seriedade que lhe conferia uma graça ao seu pesar. A moça foi se despojando do aborrecimento, embora se ocupasse de fingi-lo com uma expressão grave e indiferente, enquanto avançava resoluta abrindo passo entre as pessoas que abarrotavam o mercado. Ele ia alguns passos atrás dela e não conseguia evitar de deter seu olhar na estreita cintura cingida por um boldrié acordoado que lhe destacava os quadris generosos e arredondados. De repente ela deteve sua marcha, apoiou-se contra uma das colunas e, na solidão daquela galeria, simulou um gesto de enfastiada resignação. Olhou Aurélio com seus olhos verdes emoldurados por uns cílios longos e arqueados, como se lhe cobrasse uma explicação convincente e uma desculpa sincera. E quanto mais o examinava, mais se convencia da enorme semelhança que tinha com Jesus. Parados um diante do outro, aquele Cristo redivivo tinha que fazer esforços para não baixar a vista em direção ao busto que transbordava do decote ornado com cordéis e aos mamilos que de repente ficaram marcados no tecido como se apontassem para ele.

- Não tenho palavras para me desculpar - disse uma vez mais Aurélio. - Então não diga nada - sussurrou Christine, aproximando seus lábios encarnados do ouvido dele. Sentiram suas respirações agitadas, e, sem tirar os olhos dos de Aurélio, a moça teve o impulso de beijá-lo. Mas não o fez: apenas pousou seus lábios sobre os dele e imediatamente os afastou um pouco. Aurélio sentiu uma inexplicável mistura de atração e pânico. Antes que atinasse em fazer algum movimento, ela voltou a aproximar sua boca da dele e percorreu brevemente os lábios do rapaz com sua língua desde um canto do lábio até o outro. Aurélio acreditou morrer de medo, mas uma efusão impensada o obrigou a beijá-la, como se uma vontade alheia à sua tivesse se apoderado do seu corpo. Então ela o afastou suavemente e com um fio de voz lhe disse:

- Amanhã, aqui mesmo. Vou estar esperando a essa hora. Christine deu meia-volta e se afastou até se perder na multidão do mercado. Aurélio ficou sozinho diante da coluna, tentando compreender se aquilo tinha acontecido realmente ou se fora uma alucinação que não sabia como qualificar.

Segurando a carta entre os dedos, Christine lembrava daquele distante dia em que havia conhecido Aurélio, muito tempo antes que ela imaginasse que teria de vestir os hábitos que agora cobriam aquele corpo ainda jovem e secretamente belo. Leu as confissões do homem a quem ainda amava e, longe de sentir gratidão por ser a depositária de sua confiança, não pôde menos do que experimentar indignação. À luz de uma vela, entre as quatro paredes do seu pequeno quarto no convento Notre-Dame-aux-Nonnains, pegou a pena e despejou toda a sua chateação no papel.

 

Padre Aurélio:

Não osfaçais vãs ilusões: por mais que quereis convencer-vos de que não estais cometendo pecado, a vossa é uma falta imperdoável É um pecado aos olhos de Deus e, embora eu não vos importe em absoluto, também ofende minha modesta pessoa. Lamento que não haja em vosso mosteiro alguém probo diante de quem possais confessar-vos como manda Deus:lembro-vos que a confissão é um sacramento. Por outra parte, no que concerne a mim, não estou disposta a tolerar que me utilizeis como um degrau para chegar a Deus e, assim, obter perdão. Nem mesmo supondo que as mulheres pudéssemos aspirar a sacerdotisas poderia eu absolver-vos, pois sou parte do pecado que quereis lavar. Tampouco posso menos que indignar-me quando pretendeis redimir-vos da atração que, segundo assegurais, vos provoca a lembrança do meu corpo, em comparação com os atos repugnantes que cometem vossos irmãos. Qualquer coisa pareceria boa, bela e verdadeira à sombra de um fato tão atroz como o abuso de um menino. Tampouco posso aceitar que me considereis uma prova que Deus colocou em vosso caminho, como sefosse eu a serpente no paraíso. Pior ainda, afirmais que quanto mais me evocais, menos podeis exorcizar de vosso corpo as marcas de minhas carícias e de vossa alma as brasas da paixão. Exorcizar! Por acaso sou eu o demônio e vós a encarnação da inocência? Falais das brasas da paixão como quem se refere ao fogo do inferno. Quem deixou então as marcas indeléveis do amor no meu corpo? Isso não parece importar-vos em absoluto. A quem entreguei eu minha virgindade? Mas pelo visto só conta vossa castidade. Se queríeis parecer-vos com Santo Agostinho, a quem tanto admirais, o estais conseguindo: a ele coube a santidade e a canonização, e a Floria, sua concubina, a criação dos filhos que ele pôs em seu ventre e a responsabilidade de todos os pecados da carne que ela lhefez cometer. Quiçá deve lembrar-vos que eu não vos obriguei a albergar-vos em meu corpo. A indignação que Christine demonstrava escondia, na verdade, a dor daquilo que havia jurado a ela mesma não revelar a ninguém. Era certo que se havia consagrado a Deus a contragosto. As coisas que narrava Aurélio na sua carta eram aberrantes, embora não menos monstruosas que as que ela via todo dia no convento. No entanto, as práticas que no mosteiro de SaintMartin- es-Aires ocorriam em forma noturna e porta adentro nos claustros, no convento de Notre-Dame-aux-Nonnais aconteciam inclusive à luz do dia e sob a aparência de cerimônias animadas pela paixão religiosa. Todos os dias, a abadessa, madre Michelle, preparava o salão nobre acendendo incensos, pétalas secas e exalações de enxofre. Sob a tênue luz de umas poucas velas, as irmãs se reuniam em torno de um pequeno caldeiro repleto de brasas e entoavam salmos. À medida que as religiosas iam alcançando um estado de comunhão entre elas e para com o Altíssimo, eram embargadas por um sentimento extático: os cânticos deixavam de ser um murmúrio para irem convertendo- se em exclamações pronunciadas aos gritos. Aquelas cerimônias tinham por propósito manter afastado o demônio daquele frágil rebanho e, se por acaso ele se havia apoderado de alguma delas, o que era freqüente, havia que expulsá-lo por meio do exorcismo. A primeira vez que Christine assistiu a esse rito sentiu pavor: viu como as irmãs passaram do sussurro a proferir de repente uns uivos guturais e depois, com umas vozes aterrorizantes, cavernosas, começaram a vomitar horríveis blasfêmias misturadas com frases ditas em latim. Então seus corpos se comoveram em espasmos, como se os demônios resistissem a abandoná-las, assumindo posições insólitas, prosternando-se no chão, arras- tando-se com o traseiro, indo e vindo com as coxas incrivelmente separadas. Algumas curvavam as costas de tal forma que chegavam a colocar a cabeça entre suas próprias pernas e, em meio a imprecações, juntavam os lábios da boca aos do baixo- ventre. Em outra oportunidade, Christine presenciou como a muito beata sóror Catherine deitava no chão levantando a saia do hábito e, como se houvesse alguém em cima dela, imitava os movimentos da cópula, invocando alternativamente o nome de Cristo e o de Satanás. Imediatamente produziu-se o contágio entre grande parte das religiosas, incluída a própria abadessa, e, diante dos olhos agitados da noviça Christine, as monjas se enlaçavam entre si, alternando-se umas com as outras de duas em duas, três em três ou então todas juntas. Durante esse transe, por momentos suplicavam de joelhos a Jesus e depois ofereciam suas partes posteriores descobertas ao Demônio que, segundo manifestavam aos gritos, as urgia para possuí-las. Várias vezes madre Michelle, vendo o terror que assaltava Christine depois destas cerimônias, lhe explicara que era assim como Deus se manifestava diante delas e que, embora pudesse parecer o contrário, aquele estado estava contemplado pela Igreja e tinha um nome: ékstasis. Disse-lhe que todas as mulheres santificadas o experimentavam com freqüência. Vendo a incredulidade nos olhos da jovem noviça, uma noite a conduziu até a biblioteca do convento, pegou um pesado volume de uma das prateleiras e leu para ela algumas passagens. Era uma cópia das memórias de Santa Margarite Cucherat* que, tendo feito votos de castidade aos quatro anos e depois ingressado no convento aos oito, começou a ter seus primeiros contatos com Jesus, a quem chamava de "seu noivo". Com uma voz cristalina e límpida que contrastava com aquele vozeirão diabólico durante os estados de êxtase, a madre superiora leu:

 

- "Quando estava diante de Jesus me consumia como uma vela no contato enamorado que tinha com ele." Esta frase comoveu Christine, já que expressava o que ela mesma sentia por Jesus Cristo quando era uma menina e até o dia em que conheceu Aurélio. Poder-se-ia dizer que ela substituiu na humana pessoa de Aurélio o amor impossível pelo Redentor. No entanto, a frase seguinte a sacudiu como se lhe tivessem dado um golpe:

 

- "Um dia Jesus se pôs em cima de mim com todo o seu peso e respondeu desta forma aos meus protestos: 'Deixe que possa usar de ti segundo meu prazer já que cada coisa deve ser feita a seu tempo. Agora quero que sejas objeto do meu amor, abandonada às minhas vontades, sem resistência da tua parte, para que possa gozar de ti'". "A Virgem me aparecia com freqüência, fazendo-me carícias inexplicáveis e prometendo-me sua proteção."

 

Se o testemunho que Christine ouviu a fez ver que não era original em sua antiga atração por Jesus, o que haveria de ouvir em seguida dissuadiu-a de todo sentimento de culpabilidade por seus impulsos. A abadessa fechou o livro, colocou-o de volta no lugar, caminhou até o outro extremo da biblioteca, pegou outro exemplar e, depois de procurar uma página, disse:

 

- Isto foi escrito por Santa Ângela de Fuligno: "Durante os êxtases era como se fosse possuída por um instrumento que me penetrasse e se retirasse rasgando-me as entranhas. Estava preenchida de amor e satisfeita de inestimável plenitude. (*)Henri Bougaurd, biógrafo de Margarite Cucherat, refere as surpreendentes semelhanças entre La dévotion, única obra de Santa Margarite Cucherat, e La dévotion ao coer de Jesus, escrita por Santa Maria Alacoque em 1698. Os estados de êxtase que ambas as santas descrevem são chamativamente coincidentes, podendo supor-se, como o faz Bougaurd, que a beata do século XVII, mentora do Apostolado do Sagrado Coração, tivesse encontrado alguma inspiração em sua antecessora.

 

Meus membros partiam-se de desejo, enquanto ficava lânguida, lânguida, lânguida... A seguir, quando voltada desses encantos de amor, me sentia tão leve e satisfeita que amava até os demônios. A princípio acreditei ser vítima de um vício que não me atrevo a nomear, e pretendia livrar-me dele introduzindo-me carvões em brasa sobre a vagina para apaziguar os ardores".*

 

Para terminar de convencer a noviça de que nada de mal havia naquelas cerimônias, continuou lendo, depois, os testemunhos de Santa Maria da Encarnação:

 

- "No decorrer do êxtase se me apresentou Jesus, meu esposo, e depois de exigir-me unir-se a mim, perguntei-lhe: 'Então, meu adorado amante, quando faremos este acoplamento?'. E Jesus me respondeu: 'Neste mesmo momento'. Durante estes encantamentos me parecia ter dentro do meu ser uns braços que estendia para abraçar aquele que tanto desejava." Madre Michele saltou umas páginas e continuou lendo:

 

- "Durante um êxtase Jesus me levou a um bosque de cedros onde havia uma morada com duas camas e, ao perguntar-lhe para quem era a segunda cama, me respondeu: 'Uma é para ti, que és minha esposa, e a outra é para minha mãe'. Jesus me possuiu, mas não da maneira que se entende espiritual, por meio do pensamento, mas de forma tão tangível que sentia a participação do corpo como na realidade. Quando Jesus me liberava, considerava meu corpo como o responsável por estes pecados, e então, para mortificar meu corpo, lambia as cuspidas mais asquerosas, colocava pequenas pedras nos sapatos e me extraía dentes, mesmo que estivessem saudáveis." Por último leu para ela algumas passagens da vida de Santa Teresa de Luodun:

 

- "Meu mal havia chegado a tal ponto de gravidade que estava sempre à beira do desmaio. Sentia um fogo interior que me queimava. Minha língua reduzida a pedaços de tanto mordêla. Enquanto Cristo me falava, não me cansava de contemplar a beleza extraordinária da sua humanidade. (*) Santa Ângela de Fuligno, 1284-1309. 29

 

 

Experimentava um prazer tão forte que é impossível poder experimentar semelhantes em outros momentos da vida. Durante os êxtases o corpo perde todo movimento, a respiração se debilita, emitem-se suspiros e o prazer chega por intervalos."

 

A abadessa deteve sua leitura para ver que efeitos produziam estas passagens no ânimo da noviça, pigarreou para clarear sua voz e continuou:

 

- "Num êxtase me apareceu um anjo tangível em sua constituição carnal e era muito bonito; vi na mão deste anjo um longo dardo; era de ouro e levava na extremidade um aguilhão de fogo. O anjo penetrou-me com o dardo até as vísceras e quando o retirou me deixou ardente de amor em relação a Deus. A dor da ferida produzida pelo dardo era tão viva que me arrancava escassos suspiros, mas este inefável mártir que me fazia ao mesmo tempo provar as delícias mais suaves, não estava constituído por sofrimentos corporais, embora o corpo inteiro participasse. Estava presa de uma confusão interior que me fazia viver numa contínua excitação que tentava apaziguar com água benta, e para não perturbar as outras religiosas que teriam podido compreender sua origem. Nosso Senhor, meu esposo, me concedia tais excessos de prazer que me impus não acrescentar nada mais nem relatar que todos os meus sentidos eram comprazidos." Quando madre Michelle terminou de ler aquela sucessão de testemunhos que as santas haviam deixado, Christine guardou silêncio. Em que pese a contundência das palavras, não parecia convencida de que aqueles estados de êxtase, por muito sagrados que fossem, se ajustassem ao que ela concebia como uma vida religiosa. Christine havia conhecido o amor carnal e algumas das descrições que acabava de escutar guardavam muita semelhança com o que ela havia experimentado. Aquelas "suaves delícias" provocadas nas entranhas, as referências ao "prazer tão forte, impossível de poder provar semelhantes em outros momentos da vida", as vividas sensações "durante as quais o corpo se convulsiona, a respiração se debilita, emitem-se suspiros e o prazer chega por intervalos", era, simples e singelamente, a intensa e terrena culminação que sobrevinha ao amor carnal. No entanto, Christine achava que aquela atividade pecaminosa, disfarçada de santidade, se aproximava de certos estados de loucura que ela havia visto, com pavor, no hospício de Troyes. Lembrava do seu distante encontro amoroso com Aurélio e lhe parecia um ato de pureza, já não em comparação com os ritos que havia presenciado, mas em si mesmo. Na suspeita e temor de que aqueles desvarios fossem produto da abstinência, Christine nunca participou daquelas cerimônias. Num canto afastado e na sombra, via como suas irmãs se entregavam às frenéticas orgias celebradas em homenagem a Deus e cujo propósito era manter o diabo afastado, e não podia explicar a si mesma por que peregrina razão Aurélio se condenava, e em conseqüência também condenava a ela, àquela existência sórdida.

 

A abadessa era uma mulher madura que conservava, no entanto, um repousado ar de juventude. Severa e ao mesmo tempo indulgente, inflexível para manter a disciplina mas compreensiva na hora de escutar razões fundamentadas, podia ser uma madre equânime ou um pai rigoroso. Seus traços femininos e suaves se endureciam, por momentos, numa expressão de severa masculinidade. Se bem estas cerimônias que derivavam do êxtase coletivo pudessem apresentar a aparência de uma bacanal, transcorriam, de fato, sob o férreo e místico controle da superiora. Nada escapava do seu olhar nem ficava por conta do acaso. Nenhuma das irmãs tinha que se arrumar sozinha em sua luta contra o demônio e, se as coisas se complicavam em meio a um transe, a superiora as assistia com o experimentado conhecimento que tinha do súcubo imundo que queria apoderar-se do seu rebanho. Em certa oportunidade, uma noviça que não chegava aos quinze anos foi vítima dos obscuros desígnios de Satã. Pouco antes de se iniciar a cerimônia em torno do caldeiro, sóror Gabrielle, esse era o nome da vítima, envolta num tule de suor fervente, começou a manifestar a presença do intruso que tentava encarnar-se em seu corpo.

 

Com aquela voz cavernosa e proveniente de outro mundo, a mulher proferia imprecações e blasfêmias às suas irmãs. A abadessa, intuindo que haveria de ser uma luta denodada, se aproximou da jovem monja empunhando um crucifixo. Quando a madre superiora ficou diante dela, a moça a olhou com uns olhos temíveis, ferozes e injetados de sangue, ao mesmo tempo que levantava as saias, exibindo seu sexo inflamado e ainda imberbe. Então a mais velha das irmãs compreendeu que era justamente através daquele úmido resquício por onde o demônio havia iniciado seu ingresso, fato certamente freqüente. Sua longa experiência indicava à superiora que os íncubos encontravam nos pecaminosos orifícios da luxúria a via régia por onde tomar o corpo das inocentes criaturas. A moça estava tensa como um arco com o abdome para cima, apoiada no chão sobre a ponta dos pés e as palmas das mãos, movendo o quadril e imitando os movimentos do coito. A superiora ordenou a Christine, que estava oculta atrás de uma coluna e era a única que não mostrava sinais de contágio, que segurasse sua irmã por debaixo dos braços, enquanto ela tentava abrir-lhe ainda mais as pernas para que a besta se retirasse daquele corpo ainda infantil. Poder-se-ia dizer que a noviça não era dominada por sentimentos de dor, mas, ao contrário, parecia experimentar um prazer sem limites. Gemia, contorcia-se e uma expressão de lascívia se instalara em seu rosto. Era um fato evidente que o demônio estava invadindo a humanidade de sóror Gabrielle através daquela vulva aberta como um róseo broto. A irmã superiora falou-lhe olhando para o centro das pernas, ordenando que Satanás abandonasse de imediato a inocente. Christine, enquanto tentava segurar aquele corpo convulsionado, pôde notar que a sugestão não só não havia dissuadido o suposto demônio, como tampouco pareceu convencer a pequena religiosa que, a julgar pelos gemidos, sentia-se muito à vontade com o invasor. Sóror Gabrielle maldisse a madre superiora em línguas mortas e tentou esbofeteá-la. Então madre Michelle decidiu mudar a estratégia: se o infausto se apoderara de sua vítima às expensas do prazer, ela, em nome de Deus, iria dar-lhe tanto gozo que ao maléfico espírito não restaria outra alternativa a não ser fugir ao ver-se derrotado. Umedeceu três dedos da mão introduzindo-os em sua boca e percorreu com eles os lábios arrebatados daquela fenda candente. Christine viu com seus próprios olhos como se levantava um vapor espesso ao contato da mão. A jovem monja se revolveu e deu um alarido que poderia ter sido tanto de deleite como de dor ou ambos ao mesmo tempo. Mas o corpo parecia disposto a resistir que o despojassem daquele que tanto gozo lhe estava proporcionando. A superiora, com um movimento impetuoso e certeiro, tirou-lhe o hábito, deixando a noviça completamente nua. Com uma mão segurava o crucifixo e com a outra começou a acariciar os mamilos exacerbados da possuída. Isto último pareceu exercer um efeito imediato. No entanto, a docilidade durou pouco: de repente, a noviça reclamava que o maldito não a abandonasse. A abadessa indicou a Christine que lhe segurasse os peitos e não deixasse de esfregar-lhe os mamilos, arregaçou as mangas e, mostrando o crucifixo ao espírito das trevas que habitava as estreitas comarcas de Vênus, se dispôs a aplicar o último recurso, aquele que Santa Ângela aconselhava em seus escritos. Aproximou a cruz e com ela começou a esfregar suave mas impetuosamente os lábios mudos da noviça. Então sim, o êxtase se impôs sobre a lascívia e a figura do Salvador derrotou de imediato Luzbel. Sóror Gabrielle apertou o crucifixo entre suas pernas e, tremendo como uma folha, lançou um suspiro de arroubo e foi voltando a si. Exausta mas pacificada, a jovem monja ficou deitada no chão com um sorriso pleno de beatitude. Christine a cobriu com o hábito, endireitou-se e, com uma mistura de vergonha e remorso, correu para seu claustro. Tudo isto Christine relembrava na escura solidão do quarto. Sentada à beira da sua cama, apertando a carta de Aurélio contra o peito, não conseguiu evitar um pranto amargo. Olhando o crucifixo que estava sobre a cabeceira, maldisse aquele que se havia interposto em suas vidas, e cuja lânguida aparência a fazia lembrar, todos os dias, do homem que amava.

 

À mesma hora em que no convento Christine remexia dentro de um enorme caldeiro um guisado de galinha que teria de compartilhar com suas irmãs, seu pai, o duque Geoffroy de Charny, apurava sua coxeadura pelas ruas de Troyes. Um sol primaveril conferia à cidade uma alegria festiva. No entanto, a expressão adusta do nobre contrastava com o ânimo das pessoas, que pareciam celebrar o fato de o céu ter finalmente clareado depois do temporal que assolara a cidade nos últimos dias. E, na verdade, o duque não tinha nada que festejar. Acabava de manter um encontro com Henri de Poitiers, bispo de Troyes, que não lhe dera boas notícias. Ou pelo menos não as que ele queria ouvir. Geoffroy de Charny esperava obter a permissão da autoridade eclesiástica para construir uma igreja no vizinho povoado de Lirey. A rigor, a permissão lhe havia sido concedida, embora não da forma em que teria desejado o duque. Ele solicitara não só o visto favorável, mas também a metade do dinheiro necessário para erigir uma catedral em homenagem à Virgem. O bispo lhe fez saber que, embora celebrasse sua devoção, a máxima autoridade não julgava necessário destinar semelhante gasto a um povoado que apenas abrigava duas centenas de almas, na sua maioria camponeses pobres. Era um investimento alto demais para tão magro ganho: em termos de esmolas e venda de indulgências demorariam não menos de meio século para recuperar o investimento. As igrejas que havia em Troyes eram suficientes para abrigar inclusive os moradores de Lirey. Por muito convincentes que parecessem os argumentos em contrário exibidos pelo duque, o bispo deu por encerrada a reunião com um conclusivo "não". Geoffroy de Charny caminhava golpeando o cajado contra o chão e maldizendo o bispo pelo negócio que acabava de fazê-lo perder. Estava realmente convencido de que uma igreja em Lirey podia ser um assunto sumamente lucrativo. Enquanto abria caminho entre os vendedores da praça, não queria se resignar à derrota; pensava de que forma poderia fazer ver ao bispo os enormes benefícios que a construção da igreja poderia trazer. Ao passar podia ouvir o pregão dos vendedores de relíquias que exibiam suas sagradas mercadorias, oferecendo-as aos gritos aos viandantes que saíam da igreja. Sobre uns tecidos puídos descansavam, entre tantas outras coisas, espinhos pertencentes à coroa da paixão de Cristo, relicários que continham pêlos da barba de José, pequenos frascos com leite da Virgem, plumas pertencentes às asas do arcanjo Gabriel, o santo prepúcio de Nosso Senhor, a lança que atravessou o costado de Jesus e tantas lascas da cruz que dariam para construir um barco. Aquele era um espetáculo freqüente. O duque de Charny dizia a si mesmo que se aqueles falsificadores de pouca monta que invadiam a praça iam embora no final do dia com o bolso repleto, como não haveria de ser negócio uma igreja que exibisse autênticas relíquias. No final das contas, ele era comerciante e não estava disposto a tolerar que um clérigo lhe ensinasse como fazer negócios. De repente, um lençol que pendia de uma das barracas se agitou com o vento e foi enredar-se na cara do duque. Geoffroy de Charny se enfureceu; em seu afã por tirá-lo de cima, ficou a ponto de cair. Estava para descarregar sua fúria ameaçando o vendedor com o cajado quando a imagem que viu sobre o tecido o impressionou: era a imagem de Jesus impressa no tecido. Era tal o estupor com que o contemplava que sequer escutou quando o vendedor lhe disse hesitante:

 

- É o Santo Sudário que envolveu o corpo de Nosso Senhor. O duque perguntou o preço e o vendedor lhe disse uma cifra proporcional à sua fascinação, esperando que pechinchasse. Mas Geoffroy de Charny extraiu a taleiga que levava amarrada à cintura e pagou sem dizer palavra. Poder-se-ia dizer pela expressão de ambos que acabavam de ter um mesmo pensamento: "Pobre idiota, não sabe o que faz". Mas o tempo haveria de dar a razão ao duque, que acabava de confirmar que sabia fazer bons negócios.

 

Com uma expressão de triunfo, Geoffroy de Charny afastou- se carregando o volumoso sudário, levando sua coxeadura e sua renovada esperança rua acima.

 

Não muito longe das ruas por onde Geoffroy de Charny passeava sua coxeadura carregando sua compra, no seu claustro do mosteiro de Saint-Martin-es-Aires Aurélio lia a carta indignada que lhe havia enviado Christine e não conseguia evitar um sentimento de vergonha e culpa: vergonha diante de sua própria estupidez e culpa porque, já foi dito, talvez ele não fosse apenas uma vítima das circunstâncias; afinal aquele destino, do qual se queixava amargamente, era o que ele mesmo escolhera. Por outra parte, havia subestimado a inteligência de Christine: os argumentos que ela expunha tinham uma solidez difícil de rebater e uma sinceridade tão incisiva e afiada como um punhal. Cada vez que Aurélio recebia uma carta da mulher que amava sentia que seu pequeno universo, construído laboriosamente à força de leituras de Santo Agostinho, começava a tremer nas bases. Eram certas as palavras de Christine: não tinha o direito de culpá-la por um pecado que ambos haviam cometido de mútuo acordo. Em seu foro mais íntimo, Aurélio tinha que reconhecer diante de sua própria consciência que não tinha sido uma mera vítima da tentação, tal como pretendia convencer-se injustamente. Não lhe teria sido difícil apoiar-se no Gênese e culpar Christine: em última instância, se Eva era a responsável pela expulsão do paraíso, o fatídico objeto da incitação ao pecado original, a mesma imputação podia ser estendida a todas as mulheres. De fato, esta era a opinião da Igreja, e sempre que Aurélio declarou sua falta num confessionário, foi rapidamente absolvido com este argumento: as mulheres são as verdadeiras culpadas da luxúria, enquanto os homens se deixam cair no abismo do mal por simples fraqueza; no que respeita à carne, os varões não são pecadores por ação, mas por omissão, por não guardar a tempera suficiente para resistir à tentação. Mergulhado nessas cavilações, o jovem religioso, tentando em vão definir responsabilidades perante Deus, lembrou do dia em que se entregou aos braços da voluptuosidade. Na consciência mortificada de Aurélio, ao fato em si se somavam, como um severo agravante, as circunstâncias que o haviam cercado. Como se estivesse comparecendo perante o Altíssimo no dia do Juízo Final, Aurélio reconstruiu o momento em que, para ele, havia se iniciado sua perdição.

 

No dia seguinte ao do primeiro encontro no mercado, Aurélio se debatia entre obedecer aos severos ditames da sua consciência ou deixar-se arrastar pela lembrança daqueles olhos verdes e daquele sorriso bonito e amigável. Depois de muito pensar, chegou a uma solução que conciliava ambas as possibilidades: iria para o encontro mas, ao mesmo tempo, prometeu a si mesmo que o único motivo que haveria de guiar seus passos era o de se redimir do seu pequeno e infantil pecado do dia anterior. Iria desculpar-se perante a jovem, explicaria a ela que aquele acontecimento havia sido um inocente impulso nascido da fraqueza. Diria a ela que seu verdadeiro e único compromisso era com Deus, que já decidira tomar hábito seguindo o caminho de Santo Agostinho. A rigor, justificou-se, aquele encontro não seria com Christine, senão mais bem com seu próprio espírito: era a melhor forma de pôr à prova sua temperança. Demonstrando sua renovada inteireza receberia o perdão de Deus, ficaria desculpado por Christine e já não sentiria nenhum remorso de consciência. Armado de todas essas convicções, chegou ao lugar do encontro. Apoiou suas costas sobre uma das colunas da galeria que rodeava a praça do mercado, a mesma em que havia conhecido o sabor incomparável dos lábios de Christine. Como quem estuda antes de enfrentar uma banca examinadora, repassava in pectore tudo o que haveria de lhe dizer, quando a viu surgir da multidão do mercado. Sua formosura era tal que, quando avançava entre as pessoas, era como se todos desaparecessem à sua passagem. Aurélio de repente teve a impressão de que eles dois eram os únicos em meio ao gentio, os únicos na praça, os únicos no mundo. Por um momento, esqueceu o onisciente olhar de Deus. O cabelo negro dela entregava-se selvagem e orgulhoso como uma bandeira de guerra flamejando na brisa veranil. Aqueles olhos verdes já se haviam cravado nos de Aurélio e tinham agora uma expressão desafiadora. Enquanto caminhava, a força de sua resolução se manifestava no movimento cadenciado dos peitos que assomavam por cima do decote. E enquanto se aproximava, cada passo de Christine era um golpe mortal em cada um dos argumentos que Aurélio tinha preparado. Todas as suas convicções caíam com a mesma facilidade com que o vento desfolha uma árvore outonal. As estudadas explicações que havia imaginado se converteram no mais absoluto silêncio quando, por fim, a teve diante de si. Christine pronunciou umas palavras que Aurélio não conseguiu entender: tal era o embevecimento que só viu o movimento dos seus lábios encarnados falando muito perto da sua boca. Demoraram a compreender que não estavam sozinhos. De repente, o nada que Christine havia deixado atrás de si voltou a povoar-se com brutalidade. O pregão dos vendedores, a ruidosa passagem das carroças carregadas de frutas, vegetais e peixe, a maré humana que ia e vinha pelas ruelas voltou do silêncio para se converter numa realidade alheia, hostil e indiscreta. Christine pegou-o pela mão e o conduziu até uma rua estreita e serpenteada. Aurélio se deixava levar como o faria um menino. Igual a uma mariposa atrás de um candeeiro, ia magnetizado seguindo aquela cintura diminuta, que parecia contraída por um espartilho e no entanto estava livre de qualquer pressão, tal como revelava o amplo e vaporoso vestido que usava. Assim andaram durante um tempo, que para Aurélio pareceu incalculável, até que chegaram ao limite da cidade. Num bosque de abetos, depois de superar uma íngreme encosta de pedras, pararam para recuperar o fôlego. À sombra de uma ramagem generosa juntaram seus peitos palpitantes e se abraçaram. Havia algo no perfume da pele de Christine que fazia com que Aurélio se embriagasse de tal modo que deixava de ser aquele jovem tímido e beato. Então, como se fosse um experimentado varão e não o casto e pueril homenzinho que era, bruscamente desnudou um ombro de Christine e o percorreu até o pescoço com seus lábios, ida e volta, conseguindo que ela se comovesse num espasmo e deixasse escapar um gemido de prazer. Suavemente a encostou contra a árvore e a firmou contra o tronco. Assim, encurralada entre ele e o abeto, beijou-a apaixonadamente; enquanto com um braço a rodeava pela cintura, a outra mão procurou refúgio no decote, acariciou-lhe suavemente um peito, como se o sopesasse, e depois o liberou do sufoco do vestido deixando-o nu. Antes de beijá-lo, quis deleitar-se olhando aquele mamilo rosado, enorme e perfeito. Depois umedeceu seus dedos, o indicador e o polegar, na boca suplicante dela e, apenas com a ponta dos dedos, percorreu a auréola do mamilo até chegar ao seu centro suave e túrgido. Por sua vez, Christine tentava manter os olhos bem abertos: não conseguia deixar de ver Jesus em Aurélio. A simples visão de ter Cristo à sua disposição, só para ela, perdendo-se no seu decote, beijando-a e entregando-se aos seus braços, a enchia de um gozo proibido. E quanto mais avançava naquela prescrição, mais prazer alcançava. E cada vez que Aurélio lhe arrancava um soluço, gemia o nome do Senhor. - Jesus...! - exclamava, confundindo os nomes dos dois homens que amava e não era preciso que se desculpasse. E quando Aurélio a levantou no ar, pousou-a sobre a for- quilha do abeto e levantou sua saia para enfiar a cabeça debaixo, ela exclamou:

 

- Santo Cristo! - e não teve que dar nenhuma explicação pelo erro.

 

Assim, naquela posição, Christine segurou-o fortemente pelo cabelo e foi guiando a cabeça dele a seu gosto e prazer, daqui para lá entre suas coxas, até conduzi-lo ao exato centro de suas pernas.

 

- Deus meu! - gritou ela, em alusão ao Filho, não ao Pai nem, menos ainda, ao Espírito Santo, quando sentiu como a língua de Aurélio percorria os silenciosos lábios que estavam completamente úmidos. Ao ouvir as invocações a Deus em semelhantes circunstâncias, longe de se sentir um herege, Aurélio considerou que tinha as Escrituras do seu lado. Perdido entre as folhagens dos campos de Vênus, relembrava os versos bíblicos dos amantes do Cântico dos Cânticos:

 

Assopra no meu jardim, para que se derramem os seus aromas: Ah! Se viesse o meu amado para o seu jardim, e comesse seusfrutos excelentes! As voltas de tuas coxas são como jóias, trabalhadas por mãos de artista.

 

E enquanto comia daquela doce fruta, Aurélio se despojava de todo sentimento de culpa. Assim como no livro sagrado, ele poderia ter dito como Salomão:

 

Eis que és formosa, amiga minha, eis que és formosa: os teus olhos são como pombas.

 

E ela, enquanto gemia e se entregava, sentada como estava sobre a forquilha do abeto, poderia ter respondido:

 

Eis que ésformoso, amado meu, e doce: Nosso leito é de flores.

 

Quem poderia condená-los por serem fiéis à palavra sagrada? E assim, enquanto faziam o que Deus mandava, Christine retirou suavemente a cabeça de Aurélio de entre suas pernas, deslizou do ramo e desceu suavemente até a cintura de Aurélio. Tomou entre suas mãos a protuberância que pelejava para escapar das calças, acariciou-a, liberou-a e por fim a levou até sua boca. E assim, de cócoras, à sombra da ramagem da árvore, animava-a o mesmo espírito que brotava do Cântico aos Cânticos:

 

Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os filhos: desejo muito a sua sombra, e debaixo dela me assento; e o seu fruto é doce ao meu paladar.

 

Quem poderia ser dono da suficiente autoridade moral para reprová-los? Ante os olhos de quem poderiam estar cometendo sacrilégio? Aquelas passagens bíblicas constituíam a celebração divina do amor e do prazer, o mais belo elogio poético da relação entre o homem e a mulher. Aurélio via como a língua de Christine percorria cada palmo do seu sexo.

 

Mel e leite estão debaixo da tua língua; Os teus dois peitos são como dois filhos gêmeos da gazela, Que se apascentam entre lírios.

 

Então Aurélio tomou Christine suavemente por baixo dos braços e a recostou sobre a relva. Com a mesma delicadeza pousou em cima dela; não tinha mãos suficientes para acariciá-la e lábios para beijá-la. E era como se ressoassem as palavras do Antigo Testamento:

 

O teu umbigo como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu ventre como monte de trigo, cercado de lírios. Os teus dois peitos como dois filhos gêmeos da gazela.

 

Deixa que teus peitos sejam como cachos de uva, E o aroma de tua boca como de maçãs.

 

E assim, Aurélio, extraviado entre as coxas de Christine, entrou nela com delicadeza e abriu passo lenta e suavemente naquelas terras virgens. E longe de pensar que a despojava de alguma virtude, longe de crer que sujava seu corpo e denegria sua alma, poderia ter dito como nos versos sagrados:

 

Tu és toda formosa, amiga minha, e em ti não há mancha.

 

E Christine sentiu que ao entregar-se generosamente, sem fazê-lo em troca de contratos maritais, sem se converter numa prenda de intercâmbio entre famílias, sem constituir-se numa moeda a mais dentro do dote que pagavam os pais para se desembaraçarem de suas filhas, era mais nobre e mais pura que a mais nobre e pura das esposas. E com isso era suficiente para declamar como no Cântico dos Cânticos:

 

Eu sou do meu amado, e ele me tem afeição.

 

E assim, enquanto se entregavam um ao outro obedecendo do ditame dos sentidos e do coração, em cada ápice de seus corpos e em cada canto de suas almas, honravam a Obra e elogiavam a Criação, tal como fazia a palavra sagrada:

 

Põe-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço, porque o amor é forte como a morte, e duro como a sepultura o ciúme: as suas brasas são brasas de fogo, labaredas do Senhor. As muitas águas não poderiam apagar este amor nem os rios afogá-lo.

 

E assim, com os corpos enlaçados sobre a relva, debaixo do ramo de abeto, Aurélio e Christine adormeceram com a cálida brisa do verão e a paz que a tranqüilidade outorga à consciência.

 

Tudo isto Aurélio relembrava no escuro claustro do mosteiro, enquanto segurava a carta de Christine nas mãos.

 

Geoffroy de Charny contemplava extasiado sua nova aquisição. Havia estendido o manto sobre o amplo salão e caminhava em volta dele examinando-o com uma mão no queixo. Era uma tela de três passos de comprimento por um de largura, apresentava um aspecto estranhamente acinzentado e a luminosa figura de Jesus lhe conferia um fulgor sacro. O duque deteve-se no rosto: tinha uma expressão tranqüila apesar do suplício das últimas horas. Os estigmas da coroa de espinhos apresentavam pequenas manchas do que parecia ser sangue de verdade. Os braços estavam entrecruzados diante do torso e um dos pulsos deixava ver a marca feita pelo prego, e a mesma coisa nos pés. De repente, o duque bateu as palmas das mãos e, antes que o som parasse de reverberar contra as alturas do teto e as espaçadas paredes de pedra, apresentaram- se três criados. O duque ordenou-lhes que olhassem o sudário e que então lhes contassem sua impressão: o primeiro persignou-se e imediatamente começou a sussurrar algumas orações. O segundo havia caído de joelhos e tocava o manto como um náufrago que se aferrasse a uma tábua flutuando no meio do mar. O outro ficara aniquilado e não atinava a se mexer. Geoffroy de Charny teve que ordenar-lhes três vezes e aos gritos que se retirassem do salão. Outra vez a sós com seu sudário, acabou de se convencer do potencial de uma relíquia. Voltou a olhar a figura sobre a tela e considerou que, se aquela tela, sendo uma péssima falsificação, uma pintura feita por alguém que sequer merecia ser chamado de pintor, mesmo assim conseguia suscitar semelhantes arrebatamentos de fé, uma confeccionada pelo melhor dos artistas poderia convocar multidões. A Igreja não podia ignorar o valor das relíquias. De fato, o concílio geral do ano 787 decretara: "Se a partir de hoje se encontrar um bispo consagrando um templo sem relíquias sagradas, será deposto como transgressor das tradições eclesiásticas". Embora aquela velha encíclica não estivesse em vigor de fato, o estava de direito, já que nunca havia sido derrogada. Geoffroy de Charny conhecia a importância que essa lei tivera na sua época. A fé não necessitava de provas, mas certas relíquias sustentavam materialmente o que o dogma não tinha forma de provar. A proliferação de objetos sagrados serviu para que aparecessem cada vez mais igrejas paroquiais; assim, de cada sede episcopal partiam procissões cada vez mais numerosas. Atravessando as campinas, carregavam a céu aberto montes de ossos, supostos restos de santos, até as novas paróquias. Embora aquela encíclica do século VIII promovesse necessariamente a falsificação de relíquias, já que resultava impossível contar com tantos objetos sagrados para quantas igrejas havia, o certo é que as autoridades eclesiásticas comprovaram que nunca antes haviam atraído tantos fiéis. Os complexos mistérios da fé, os árduos tratados de Santo Agostinho e Santo Tomás, resultavam incompreensíveis para as grandes maiorias analfabetas e não podiam competir com a eloqüência de uma coroa de espinhos ou a mágica figura de Jesus fixada numa tela, como o mítico mandylion de Edessa ou o lenço sangrado das Astúrias. De fato, na época da encíclica, o esplendor dos mosteiros e dos povoados aos quais pertenciam se sustentava, justamente, nas relíquias. Os objetos sacros e os restos de santos convocavam multidões chegadas de povoados vizinhos. E assim, esses novos centros de atração faziam com que as aldeias se convertessem em povoados e os povoados em cidades cada vez mais prósperas. Na mesma proporção engordavam as arcas dos clérigos, as ordens religiosas e os senhores feudais. Em todas as partes veneravam-se ossos sagrados e uma infinidade de objetos que, supostamente, tinham estado em contato com Jesus. E tal era a proliferação de novas igrejas, que não davam conta para abastecerem- se de relíquias. Assim surgiu um original negócio: o da fabricação e venda no atacado de objetos sagrados. Geoffroy de Charny conhecia a história de todas e de cada uma das igrejas da França. Aquele impostor da praça não havia vendido ao duque uma falsificação grosseira, ao contrário, dera-lhe uma brilhante idéia para fundar a que haveria de ser a igreja mais rentável de toda a Europa. Só precisava voltar às fontes.

 

A ira que revelavam as cartas de Christine tinha uma razão última que Aurélio ignorava. Para ele, aquele encontro no bosque, nem bem despertou abraçado com ela debaixo do abeto, deixou de ser como uma passagem dos doces versos do Cântico dos Cânticos pára. converter-se numa visão de pesadelo. Quando abriu os olhos e se descobriu seminu junto à moça que dormia com uma expressão de plenitude, benzeu-se como se se tratasse do próprio demônio. Após o descanso, ao se diluírem os eflúvios do chamado da carne, Aurélio se sentiu de repente abandonado da mão de Deus, percebia a si mesmo como uma mazela da mais baixa ralé, tal como descrevia São Paulo em Coríntios a quem ousava fornicar:

 

Já por carta vos tenho escrito que não vos associeis com os que se prostituem; isto não quer dizer absolutamente com os devassos deste mundo, ou com os avarentos, ou com os roubadores, ou com os idólatras; porque então vos seria necessário sair do mundo.

 

Assim, exatamente assim se sentiu: expulso do mundo, expulso do seu paraíso construído com as páginas de Santo Agostinho, e expulso, por antecipação, do Reino dos Céus.

 

Por um instante de gozo, considerou, acabava de perder de uma vez e para sempre a eterna felicidade à direita do Altíssimo.

 

Porque sabeis isto, que nenhum devasso, ou imundo, ou avarento, que seja idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus. Que ninguém vos engane com palavras vãs, porque por estas coisas vem a ira de Deus sobre osfilhos da desobediência. Não sejais, pois, partícipes com eles.

 

As palavras de Paulo acudiam à sua consciência para atormentá- lo. Como havia sucumbido aos encantos de Christine? Como havia podido desobedecer aos divinos mandamentos? Enquanto se endireitava sacudindo as folhas de relva como se quisesse se despojar dessa maneira do sentimento de sujeira que o assediava, queria voltar a ser o de sempre, o de antes, e não podia perdoar-se o fato de haver entregue sua preciosa castidade. Não teve sequer a valentia de olhar nos olhos da sua amiga e dizer-lhe tudo isso na cara; pegou sua roupa, vestiu-se e foi embora antes que ela despertasse. Alguns dias depois, Christine recebeu uma carta na qual ele lhe expôs as razões pelas quais renunciava para sempre ao seu amor. Ela aceitou a decisão de Aurélio com silenciosa resignação. Quando Aurélio considerou que havia passado um tempo prudente para que pudessem voltar a se ver, forjou um encontro casual. Naquela oportunidade voltou a comunicar-lhe sua resolução de abandoná-la e ingressar nas ordem dos agostinianos. Christine não pronunciou uma só palavra para retê-lo. Não queria persuadi-lo de nada que não nascesse do seu coração. No entanto, para Christine, os tormentos a que Aurélio se submetia lhe pareciam de uma futilidade que beirava o cinismo à luz daquilo que a ela coubera. Tão decidida estava a não lhe impor nenhuma convicção que jamais disse ao homem que amava que, durante aquele encontro embaixo do abeto, Aurélio havia deixado sua semente nas entranhas dela. Ainda não imaginava de que maneira teria de enfrentar aquela situação, mas estava disposta a continuar em frente do modo que fosse. Não sabia como iria enfrentar seu pai, o duque Geoffroy de Charny, seu irmão mais velho, o olhar de condenação do resto da família e o de todos aqueles que a cercavam. Os planos do duque em relação a Christine eram bem diferentes: ela já tinha treze anos, idade suficiente para que fosse entregue em casamento. De fato, havia muito tempo, vendo a precoce beleza de Christine, quando era ainda uma menina pequena, Pierre Douras, conde de Lirey, havia se apressado em pedir a mão da filha do duque. Para Geoffroy de Charny aquele pacto era um negócio duplamente rentável: por um lado assegurava para si um dote nada desprezível e, por outro, quanto maiores fossem os espaços de poder que pudesse conquistar em Lirey, tanto maiores seriam as possibilidades de levar a cabo seus planos para construir sua igreja na cidade vizinha. O conde era um homem de sólidos contatos com a hierarquia eclesiástica e um bom amigo do bispo Henri de Poitiers. O futuro genro do duque aparecia como a ponte perfeita entre ele e suas ambições clericais. Christine sempre havia sofrido de náuseas incontroláveis diante da simples visão do seu futuro marido, que tinha idade para ser seu avô. Sua fisionomia era semelhante à de um pássaro carniceiro: o nariz, em gancho e comprido, o pescoço estendido inclinado para a frente, as costas curvadas, o queixo com prognatismo e um tom de voz agudo lhe conferiam uma aparência de ave de rapina. O simples fato de imaginar que teria de compartilhar o leito matrimonial com o conde de Lirey até que a morte os separasse fez com que Christine formasse uma opinião otimista a respeito da morte. Mas aquele era o destino da maior parte das mulheres jovens. O casamento não estava sob o signo do amor, mas sim da conveniência. Não se sustentava na paixão, mas no ambíguo conceito de caritas. A rigor, quase todos os negócios se escondiam sob o manto da caridade. A honesta copulatio entre os cônjuges era a fórmula que a Igreja havia autorizado para que as paixões da carne se apaziguassem e assim fossem canalizadas para o único fim: a procriação. O amor, como regra geral, era um mal que acontecia fora do casamento. Assim, o amor entre o homem e a mulher era considerado impuro e, como tal, condenável. O casamento regido pela razão e não pela paixão, pela moderação da carne e não pela fornicação, pela caridade e não pelo amor era o que se ajustava aos desejos de Deus, enquanto o amor, nascido dos mais baixos instintos, era obra de Satanás. Christine aceitara mansamente aquele destino, como faziam quase todas as mulheres, até o momento em que conheceu Aurélio. Sem dúvida, a condição sine qua non para que o duque pudesse entregar sua filha em casamento era que fosse virgem; que conseguisse dar testemunho de que não tinha mácula alguma, manchando com sangue virtuoso o lençol marital. Christine não conseguia sequer imaginar como seu pai haveria de reagir ao ficar sabendo que ela já não era mais virgem e que, além disso, carregava um filho do pecado no ventre. E, mesmo imaginando o pior, não teria podido suspeitar o que haveria de acontecer com ela. O castigo que o direito fixava para as mães solteiras era a pena de morte por afogamento. E certamente Christine teria preferido essa condenação à que lhe impôs seu pai.

 

As mulheres que ficavam grávidas acidentalmente tinham poucos caminhos a seguir: enfrentar o castigo que impunha a Igreja e assim ganhar o céu purificando sua alma no patíbulo logo após dar à luz; fugir da sua família e entregar-se à prostituição num lupanar, ou ter a sorte de que seu amante a raptasse dos braços familiares e fugisse com ela para outro povoado ou cidade. Este, sem dúvida, não era o caso de Christine, nem teria podido ser, já que Aurélio nem sequer estava inteirado que havia deixado sua semente nas entranhas da moça. Talvez a alternativa mais benévola para com ela mesma fosse a de denunciar que havia sido violada por um desconhecido. Mas ela se negava sequer a considerar esta última possibilidade por mais de uma razão. Enquanto se debatia no terrível dilema, o volume da sua barriga ia crescendo, dia a dia, a uma velocidade maior que a de seu pensamento: não sabia como resolver o problema. Tinha que manchar suas roupas com sangue de cordeiro para fingir menstruações aos olhos das criadas; tinha que ocultar suas náuseas e se esconder da mãe para vomitar e, quando o tamanho de seu abdome era já indissimulável, enfaixava- se fortemente por baixo do vestido. Não sabia qual haveria de ser a sua sorte, mas estava decidida a ser mãe. Por nada do mundo iria renunciar ao seu filho, mesmo que tivesse que se prostituir pelo resto da vida. Quando chegou o dia em que já não conseguiu ocultar sua barriga nem sequer apertando-a com faixa, decidiu que era o momento de fugir de casa. Estava guardando apressadamente algumas roupas e víveres numa taleiga quando foi descoberta por seu irmão, Geoffroy II. O duque havia delegado ao seu primogênito quase todos os assuntos atinentes à autoridade doméstica diante da aparente ausência mental de sua mulher, Jeanne. Assim, a integridade moral de sua irmã menor era um assunto do qual ele cuidava com mais zelo do que êxito. Christine evitava escrupulosamente dirigir a palavra ao seu irmão, não só porque achava que não tinham lá muito assunto para conversar, mas porque o desprezava tanto quanto ao seu pai. Por outra parte, quanto menos falasse com ele, tanto mais conseguiria ela guardar sua intimidade e seus segredos. Quando viu Christine enfardando suas coisas às escondidas, seu irmão iniciou um interrogatório inquisitorial. Tremendo de medo (tinha motivos para temê-lo), Christine guardava um silêncio hermético ao mesmo tempo que estudava o modo de fugir do quarto pela fresta que ficava entre a pessoa de Geoffroy e a porta.

 

- Você seria capaz de guardar um segredo? - perguntou Christine semeando a intriga. Aquelas palavras bastaram para que seu irmão relaxasse um pouco e demonstrasse um falso espírito de compreensão e piedade, com o único propósito de que ela confessasse.

 

-É claro - mentiu Geoffroy. - Quero que veja isto - disse Christine olhando para o interior da taleiga que segurava nas mãos.

 

Vencido pela curiosidade, o rapaz avançou alguns passos abandonando seu lugar junto à porta. Foi então que ela atirou a taleiga no meio do rosto dele e correu até alcançar a saída. Enquanto corria pelo corredor em direção à porta da casa, podia ouvir os passos apressados do irmão. Ela sempre tinha sido mais ágil que Geoffroy e, mesmo grávida, sabia que seu irmão não poderia alcançá-la. Estava a um palmo da maçaneta quando se interpôs em seu caminho o grosso cajado do seu pai. De repente Christine se sentiu como um pequeno cervo acossado por dois caçadores. E mesmo sabendo que não tinha escapatória, não se entregou; endireitou-se e tentou retomar a corrida; mas quando girou sobre os calcanhares, chocou-se contra seu irmão que, imediatamente, a agarrou pelo pescoço. Ao simples contato entre os corpos Geoffroy notou que havia algo anormal na barriga da irmã. Então, puxou as roupas dela e deixou descoberto o abdome volumoso de Christine. O duque passou da incompreensão para o assombro e do assombro para a ira. Olhava atônito para a barriga da filha e nela via, como numa esfera de adivinhação, seu futuro desabando: estava perdido, considerou. Aquilo não apenas constituía um escárnio para o seu sobrenome, mas, além disso, era o cadinho onde se derretiam num instante todas as suas quimeras. O casamento com o conde de Lirey era já impossível: não somente teria o duque de renunciar ao generoso dote oferecido, como, além disso, teria que compensá-lo por faltar com a promessa com o equivalente ao dobro do montante da prenda, conforme assinalava a lei. De qualquer modo, isso era nada em comparação com o que mais importava a Geoffroy de Charny: a partir daquele momento podia despedir-se para sempre da idéia de fundar a igreja em Lirey. Enquanto seu filho segurava Christine pelo pescoço, o duque ergueu o cajado no ar e ficou a ponto de descarregá- lo com todas as suas forças sobre a barriga que abrigava a prova do pecado; de fato, a legislação o amparava: podia, à luz das circunstâncias, fazer uso da prerrogativa da autoridade paterna e surrá-la. Na verdade era muito freqüente que fosse o próprio pai quem, com a assistência dos membros varões da família, se encarregasse de fazer justiça em casos de adultério. E esse era, exatamente, o crime que Christine cometera, o de adultério, já que havia perdido sua virgindade fora do casamento embora este ainda não tivesse se concretizado. As mulheres corrompidas por este delito eram condenadas à forca, atiradas num lago ou então executadas "com um só golpe pelo fio de uma lâmina de aço". O adultério era, sobre todas as coisas, uma mácula negra para a família, de modo que a afronta tinha que ser lavada com o sangue da contraventora. Por outra parte, era muito freqüente que fossem os próprios familiares a delatarem os supostos criminosos. Os maridos erguiam o indicador contra suas esposas, os irmãos acusavam-se entre si, os filhos levantavam testemunho contra os pais e os pais apontavam o dedo para seus próprios filhos. Deus estava acima de tudo e não devia haver muito o que pensar, já que ninguém podia ter prerrogativas acima d'Ele. A delação era, em última instância, a única forma de não conspirar contra o Altíssimo com o silêncio cúmplice. Mesmo assim, caso a mulher tivesse engravidado por causa do pecado, era preciso esperar que a execução tivesse lugar depois do parto. Mas para Geoffroy de Charny, os meses que faltavam para o parto seriam um interminável tempo de vergonha e ignomínia; não estava disposto a submeter-se à humilhação pública e perder, num segundo, todo o prestígio que havia construído laboriosamente durante tantos anos. Assim, ainda brandindo o bastão no ar, o duque ordenou ao seu filho que levasse a irmã ao seu aposento e amarrasse-lhe os pulsos e tornozelos na cama. Teve que se controlar para não espancar Christine até matá-la. Mas sabia que, acima de tudo, não podia perder de vista seu principal objetivo: construir sua igreja em Lirey. Tinha que agir com rapidez e inteligência. Geoffroy de Charny esperou que caísse a noite. Sob a lua cheia cavalgou até os confins de suas próprias comarcas e adentrou um bosque afastado das adormecidas granjas de seus servos. Quando a espessura se fez densa a ponto de não poder continuar a cavalo, apeou e, abrindo caminho com um sabre afiado, chegou até uma cabana oculta entre a folhagem. A tênue luz de uma chama brilhava entre as frestas das madeiras, revelando a vigília da sua moradora. Não precisou bater à porta ou anunciar-se: uma voz áspera como um galho crepitante disse:

 

- Adiante, estava aguardando-vos. O duque raramente experimentava medo, mas cada vez que, por alguma razão de força maior, tinha que recorrer à casa da velha Corneille, um frio gelado lhe percorria a espinha. Não sabia como explicar, mas toda vez que chegava de modo imprevisto, ela sempre adivinhava sua presença sem que precisasse se anunciar. Geoffroy de Charny entrou na humilde choça; sentada junto a um caldeiro estava ela, do jeito de sempre, preparando sabe-se lá que poção. A casa da mulher media não mais de três passos de comprimento por cinco de largura. Estava feita de troncos sem alisar e o teto era de palha. Naquele cubículo convivia com vários gatos que deitavam ao redor da fogueira e uns quantos corvos que aferravam suas garras a uma vara próxima ao teto. Havia também um par de cabras que serviam para se aquecer ao se recostar em cima delas. O único móvel era um catre e de todas as partes pendiam panelas de barro, caçarolas e conchas de todas as formas e tamanhos. Corneille era uma mulher de uma idade incerta; desde que o duque era criança lembrava dela sempre do mesmo jeito, como se o tempo não passasse para ela, mas não porque se mantivesse jovem; ao contrário, poder-se-ia dizer que nascera anciã. Sobre a velha Corneille pesavam várias acusações de bruxaria. Mas era boa demais em suas más artes para que as autoridades políticas e eclesiásticas se atrevessem a atirá-la à fogueira, um pouco por receio de que o demônio tomasse represálias em defesa de sua melhor discípula e um pouco porque não conseguiam prescindir de seus necessários serviços. O que Deus não outorgava, Corneille vendia por um preço razoável.

 

- Pelo visto não pode se desfazer tão facilmente daquilo que condena - disse a velha sem parar de remexer o caldeiro. O duque inclinou-se respeitosamente diante da bruxa com a mesma reverência com que cumprimentaria um sacerdote, e se dispôs a relatar seu problema. Mas logo após pronunciar algumas palavras, Corneille o fez calar como se conhecesse os detalhes do assunto. O panorama não se apresentava animador. Se a gravidez datava de algumas poucas semanas, podia ser facilmente interrompida com uma preparação à base de açafrão, salsinha e ápio. Mas à luz dos fatos, não restava outro remédio que a aplicação da vara dourada ou método da Via Régia. A bruxa Corneille pediu ao duque que trouxesse sua filha, um relicário que lhe pertencesse e quarenta moedas de ouro, colocando especial ênfase neste último ponto.

 

Geoffroy de Charny e seu filho levaram Christine arrastada, como se fosse um animal. Haviam-na atado pelos pulsos e pelos tornozelos para que não pudesse sequer tentar fugir e lhe puseram uma mordaça para calar seus gritos desesperados. A moça, adivinhando os desígnios do seu pai, afogava-se em suas próprias lágrimas e, se tivesse conseguido, teria implorado que a matassem. A única coisa que amava neste mundo com inteira convicção era o filho que levava nas entranhas. Se tivesse podido falar, teria suplicado que aplicassem a condenação que lhe cabia por lei: que esperassem até o momento de parir e que depois a matassem. Não lhe importava absolutamente sua sorte. Enquanto a arrastavam pelo campo, não prestava nenhuma atenção à dor dos abrolhos que se lhe enterravam na carne como pequenas coroas de espinhos, nem os arranhões que flagelavam sua pele; unicamente cuidava para que sua barriga não batesse contra as pedras do caminho. E assim, arrastando-a pelos campos, depois de passar por todas as estações daquele calvário, chegaram à casa de Corneille.

 

Amarrada de pés e mãos ao catre, envolta pela nuvem de vapor do caldeiro e pela fumaça preta que provinha de um incensário, Christine via os olhos curiosos dos corvos olhando a cena das alturas do teto. Tinha a pele lacerada pelas cordas e da boca lhe caía um fio de sangue por causa da mordaça. Mas não lhe importava em absoluto a dor; o tormento físico ficara completamente adormecido pelo suplício da alma. E aquela dor podia mais que todo o resto; impunha-se à indignação e ao medo, ao desamor de seu próprio pai e ao ódio infinito que Deus parecia ter dela. E enquanto Christine via como a bruxa preparava a varinha assassina aquecendo-a na chama, sentia-se presa numa solidão oceânica, despojada daquilo que mais lhe pertencia. E quando contemplava seu próprio pai, em pé num canto da choça, segurando um crucifixo e desculpando-se perante o Altíssimo pelos pecados da filha, considerou que Deus jamais havia estado do lado dos fracos, nem dos indefesos, nem dos desamparados. Em primeiro lugar, a velha a obrigou a tomar uma preparação feita com cantárida, arruda, sabina e cornozoilo de centeio. Essa beberagem era um fortíssimo tóxico que em muitas oportunidades acabava com o feto pela simples razão de que, antes, acabava com a vida da mãe. Christine torceu a cabeça e vomitou junto ao catre. As cabras, assustadas, baliam e iam de lá para cá no diminuto espaço da choça. Os corvos se juntaram ao rebuliço dando horrorosos grasnidos, enquanto o duque invocava Deus e Corneille, Satanás. Aquele era o retrato vivo de um presépio diabólico, cujo signo não era o parto mas sim o seu total contrário. A filha do duque estava à beira do desvanecimento mas, lamentavelmente para ela, mantinha-se consciente. Quando a extremidade da vara ganhou uma cor azulada por causa do calor, Corneille untou-a com um azeite hediondo e começou a invadir o corpo de Christine em direção ao ventre. Por mais que ela retesasse os músculos e tentasse fechar a passagem da vara, estava completamente indefesa. Sentiu o calor do metal na carne e achou que estava morrendo de dor. Na realidade, era isso o que teria desejado: morrer naquele mesmo momento e não ter que assistir ao despojo brutal a que estava sendo submetida. De fato, a morte da grávida era o que ocorria com maior freqüência. Mas pôde comprovar com tristeza que, apesar de tudo, continuava com vida. Christine sentiu como o metal torturante de repente investiu contra o útero. Gritou com todas as suas forças, mas desta vez por causa do desespero: foi uma estocada mortal, ela soube. A morte daquele que levava nas suas entranhas já era um fato consumado. A partir de então nem mesmo o pranto era suficiente para afogar tanto desconsolo. Enquanto Corneille rasgava a membrana ovular e depois extraía o pequeno corpo em formação, Christine não emitiu um só som, nem moveu um só músculo do rosto; não gritou nenhum insulto, não lançou nenhuma imprecação, nem implorou piedade. Estava morta em vida. Tudo era silêncio quando a bruxa tomou entre suas mãos o nonato e o mostrou a Geoffroy de Charny. O duque ergueu o olhar até as alturas e agradeceu a Deus. Corneille enfiou o feto dentro do relicário e o deu ao nobre em troca das quarenta moedas de ouro. A igreja do duque Geoffroy de Charny já contava com seu primeiro mártir.

 

Aquele doloroso acontecimento iria marcar para sempre a vida de Christine. Não apenas sofreu o repúdio de sua própria família, mas, além disso, foi deserdada e teve declarada sua emancipação. Este último ponto significava, de maneira pura e simples, a expulsão da sua casa e o fim da proteção de seu pai, supondo, é claro, que alguma vez a tivesse tido. Para o duque, em compensação, esse fato foi apenas um percalço em seus negócios. A frustração do casamento de sua filha com Pierre Douras significava um duro revés para suas ambições de construir uma igreja em Lirey, já que perdia seu mediador com o arcebispo Henri de Poitiers. Além disso, estava obrigado a compensar economicamente o conde ao faltar com a promessa de entregar a mão de sua filha. No entanto, Geoffroy de Charny sentiu-se confortado com o fato de que o mal, personificado na herética figura de Christine, já não habitasse mais a casa. Sua mãe jamais pareceu ter-se dado por inteirada do destino da sua filha.

 

A idéia de fabricar o Santo Sudário para construir o templo em sua homenagem apresentava-se-lhe como a melhor forma de recuperar as possibilidades que a escandalosa conduta de Christine lhe havia arrebatado. Para o duque não se tratava de uma adulteração, mas de um ato de justiça e reparação. Geoffroy de Charny retirou- se para os altos do castelo, onde haveria de passar uma breve temporada, com o único propósito de pensar sem ser molestado. Assim o fez saber à sua mulher, ao seu filho e aos criados. Na torre mais alta do castelo, de onde dominava a cidade de Troyes, com o olhar perdido num ponto impreciso situado acima da linha do horizonte, pensava e fazia anotações. Durante os últimos dias, precisamente desde que começara a traçar a idéia de confeccionar o "autêntico" manto que cobrira Jesus até sua ressurreição, havia convencido a si mesmo da veracidade de uma velha fábula: a da existência do mandylion de Edessa, aquele mítico lençol que conservara milagrosamente a imagem do rosto de Jesus, e que teria aparecido naquela cidade próxima de Constantinopla. Aquele seria o primeiro elo da história que começava a imaginar. Sabia que mais importante ainda que a eloqüência do objeto em si era o relato sobre o qual teria de se sustentar. Não existia evidência certa da Sagrada Imagem de Edessa, e sim numerosas versões bastante pouco coincidentes entre si. Geoffroy de Charny reconstruía in mente as histórias que ouvira sobre o mandylion, e tentava unificá-las numa só que se ajustasse aos seus planos. Lembrou que no século VI começaram a aparecer numerosas imagens de Cristo que foram chamadas de acheiropoieton ou acheropitas, termos que aludiam à ausência da mão humana em sua confecção. Uma lenda atribuída a Eusébio, que garantia ter se documentado nos arquivos de Edessa, dizia que ao adoecer o rei Abgar V, rei de Edessa, e vendo que a sua vida se apagava, desesperado mandou um emissário chamado Ananias para que visse Jesus e o convencesse de que acudisse ao seu reino. Ananias não teve boas notícias: Jesus não aceitou o convite, mas enviou ao rei bênçãos e boaventura para ele e seu povo. João de Damasco acrescentou em 730 que, cativado pelo esplendor do rosto de Jesus, Ananias pintou um retrato do Messias. Mas ao ver Jesus que o mensageiro não tinha ofício nem talento algum para o retrato, pegou um tecido, cobriu o rosto com ele e, ao retirá-lo, apareceu a perfeita representação do seu rosto. Segundo esta tradição, as imagens posteriores de Cristo foram copiadas do tecido de Edessa. O duque de Charny, trancado no seu baluarte, relembrava que, entre as lendas, havia uma que atribuía o caráter milagroso do lençol ao rechaço dos persas que, em 544, haviam sitiado Edessa. A imagem havia sido levada por todo o perímetro das muralhas e, ao final daquela cerimônia, os atacantes abandonaram o sítio. Igualmente, diz-se que o eloqüente poder do mandylion serviu para derrotar os iconoclastas, que caíram rendidos diante da força da evidência. Foi então que Constantinopla decidiu apoderar-se daquela poderosíssima arma. Em 943 o imperador Lecapenus sitiou e depois invadiu Edessa, tomando a Imagem que foi levada no ano seguinte para a capela imperial de Bucelião. E aí terminavam os relatos. Geoffroy de Charny ia escrevendo a história de maneira a não esquecer nenhum detalhe. Antes de fabricar seu Santo Sudário precisava criar uma moldura histórica que tornasse verossímil sua iminente reaparição. Então imaginou de que forma poderia continuar o relato: no ano 1204, depois do saque e destruição de Constantinopla, o manto ficou nas mãos dos Cavaleiros Templários, que o ocultaram na fortaleza de São João de Acre, sob a custódia dos monges guerreiros. Pois bem, raciocinou Geoffroy de Charny, como poderia ter chegado o mandylion das mãos dos cruzados até as suas? E se ele mesmo tivesse sido membro da Ordem dos Cavaleiros Templários? Era uma boa possibilidade: ele poderia ter tido a seu encargo a proteção da relíquia e tê-la levado secretamente para a França para deixá-la bem guardada. Esta alternativa deixava-o, além disso, numa posição heróica, embora apresentasse alguns pontos delicados: todos sabiam que em 1307 o rei da França, Felipe, o Belo, dissolvera a Ordem dos Templáriose mandara executar seus membros, acusados de praticarem cultos secretos pagãos. No entanto, considerou que o tempo jogava a seu favor: já não existia, de fato, a tenaz perseguição que tivera lugar no passado em relação aos templários. Além disso, Geoffroy de Charny mantinha muito boas relações políticas e até familiares com certos integrantes da corte. O duque tinha experiência em inventar histórias sobre seu passado; sem poder exibir uma só glória, justificava sua coxeadura, fruto da mais pura torpeza ao cair do cavalo durante uma jornada de caça, atribuindo-a à sua corajosa participação na batalha de Calais, na qual, é claro, jamais estivera. De acordo com a sua apócrifa autobiografia, Geoffroy de Charny dizia haver servido sob as ordens do conde d'Eu nas guerras de Languedoc e Guyenne. Assegurava que em 1345 partira com as tropas de Humberto II para batalhar na terra infiel. Mas só se havia ausentado de Troyes para se esconder na sua casa de campo na vizinha Lirey. Nunca perdia oportunidade de relatar com que inteireza havia suportado seu cativeiro ao cair prisioneiro dos britânicos no decorrer de uma feroz batalha. Jactava-se de haver sido resgatado pelos ofícios de ninguém menos do que o rei da França em troca de mil écus de ouro. Sem enrubescer, assegurava que o haviam designado para erguer o brasão marcial do rei. O certo é que o duque nunca foi muito destro no manejo das armas. Mas sua coxeadura, as vestimentas galhardas que costumava usar e sua estatura augusta pareciam convencer todo mundo ou, pelo menos, aqueles que tinham a paciência para ouvi-lo. Por outra parte, costumava confundir valentia com crueldade; dono de uma ferocidade sem limites, era freqüente que maltratasse os camponeses que trabalhavam em sua fazenda. Diante de faltas certamente menores, o duque não hesitava em estaqueá-los ou açoitálos com suas próprias mãos. A imagem pública de homem violento que havia sabido construir para si sem dúvida contribuía para o seu propósito. A esta história imaginária só era preciso acrescentar alguns capítulos. A partir daquele momento seria um Cavaleiro da Ordem dos Templários e, nada menos, o encarregado da guarda do mandylion de Jesus. Era suficientemente astuto para saber que não deveria declamar isso a viva voz, já que se supunha que sobrevivera à matança que recaíra sobre os Templários. Devia ter um passado de heróica clandestinidade e guardar um cauto silêncio a respeito. Tinha que se mover no terreno dos rumores, deixar que a versão corresse de boca em boca e se difundisse segundo a mecânica própria do murmúrio.

 

Agora que dera forma ao relato, ficava pela frente a tarefa mais árdua: fabricar o Lençol Sagrado. Uma história sangrenta teria que se avizinhar.

 

Aurélio nunca soube do terrível calvário que Christine atravessou. Jamais ficou sabendo que, durante aquele fugaz encontro, havia deixado sua semente no ventre da mulher que resolvera trocar por Deus. Christine guardou o segredo para não acrescentar um tormento ao homem que ainda, e apesar de tudo, amava. Com sua própria dor já era suficiente.

 

Para Aurélio, por sua parte, o mosteiro de Saint-Martines- Aires havia-se convertido na mais difícil das provas que Deus colocara no seu caminho. Longe de encontrar em seu lugar de retiro a paz espiritual necessária para o exercício da contemplação, seus sentidos e sua alma estavam debruçados sobre seus próprios e sombrios pensamentos. Sem poder entregar-se por completo ao Altíssimo e à consideração mística da Sua criação, ocupava os dias em relembrar, para seu pesar, a mulher junto à qual havia sido feliz, embora não quisesse admiti-lo. Pelas noites costumava visitá-lo o fantasma da insônia, atormentando-o com lembranças carregadas de uma voluptuosidade contra a qual já não sabia como lutar. Ignorante da cruel via crucis que Christine havia padecido, imaginava seu corpo nu, sua boca oferecendo-se como uma fruta repleta de suco, e o perfume único da sua pele. Por mais que se benzesse, não conseguia espantar os demônios que lhe laceravam a alma e lhe inflamavam o corpo; podia sentir como os humores chegavam num torvelinho até se instalarem no baixo- ventre, deixando a carne tão palpitante e pétrea que o mero roçar com o enxergão ou o leve contato com as cobertas produziam no jovem padre um prazer indômito. Por mais que se encomendasse a todos os santos, não conseguia evitar a visão de Christine, de seus mamilos vermelhos e suaves como um pêssego e, contra sua própria vontade, imaginava que percorria com sua língua aquelas coxas firmes, depois o púbis até chegar, por fim, ao recinto mais hospitaleiro, àquele lugar cálido como um pequeno vulcão fervendo. E enquanto ia e vinha com sua língua desde um extremo ao outro, apertava com toda a força de suas mãos as nádegas generosas que tremiam seguindo o movimento ascendente e descendente dos quadris. Então qualquer pensamento religioso ao qual Aurélio quisesse apelar tornava-se obsceno, indizível: como mesclar a santa imagem da Virgem com aqueles devaneios lascivos?

 

O que podia fazer Ela além de enrubescer e fugir? Então, abandonado às suas visões, derrotado por suas próprias tentações, o jovem padre iniciava um rítmico movimento contra o catre, esfregando- se levemente, até que sobrevinha o êxtase. Tentava conter os fluidos na concavidade da sua mão, mas geralmente era tal a profusão que transbordavam da concha da mão e iam parar nas cobertas. Fatigado, sujo, humilhado por sua própria consciência e sentindo-se o mais vil dos pecadores, Aurélio dormia com uma expressão amarga. Quando chegava o dia tentava esquecer tudo, mas ali, debaixo dos lençóis, haviam ficado as marcas do pecado como uma recordação cruel que atiçava suas culpas. Por mais que Aurélio quisesse se convencer de que dedicava o dia inteiro à contemplação, muitas vezes tinha a impressão de que o que fazia era uma coisa só e simples: nada. Diferentemente dos mosteiros pertencentes a outras ordens, como a dos beneditinos, os monges agostinianos eram donos de uma passividade tal que, talvez, aos olhos de um ímpio, pudessem parecer vagabundos. Mas não se podia confundir contemplação com indolência, embora Aurélio em alguns momentos duvidasse disso. Talvez ainda não tivesse conseguido apreender o conceito filosófico de seu mestre, o grande Agostinho, segundo o qual o conhecimento, a revelação da verdade surgia do puro e simples ato de pensar nas coisas divinas. Tão simples era o método que talvez em sua própria simploriedade residia a dificuldade, dizia a si mesmo Aurélio. Via seus irmãos contemplando sentados sob a galeria que rodeava o pátio ou sentados debaixo de uma árvore, e o faziam com tal devota quietude que às vezes chegavam a emitir roncos celestiais. Então perguntava- se se chegaria o dia em que sua comunhão com Deus seria tão grande que pudesse prescindir completamente da razão para compreender o sentido último da criação. Muitas vezes Aurélio suspeitava que tanta inação poderia ser, talvez, o que mantinha seu espírito ocupado em pensamentos sombrios e pecaminosos. Via os camponeses trabalhando nos campos do mosteiro e acreditava descobrir por trás da agonia de suas costas curvadas pelo peso da colheita uma recôndita expressão de felicidade, de verdadeira união com a obra divina, como se o trabalho os liberasse dos pecados que pudessem cometer.

 

- Não existe trabalho mais sufocante que o do pastor - costumava dizer o prior da abadia de Saint-Martin-es-Aires, o padre Alphonse, com o propósito de fazer ver aos iniciados que o trabalho do religioso, velando pela alma de seus filhos incontáveis, superior em número a qualquer rebanho de ovelhas, era o mais elevado e sacrificado dos trabalhos. Mas por momentos Aurélio não conseguia evitar o desesperante sentimento de ver consumir- se sua existência com a mesma passividade com a qual se extinguiam os círios que iluminavam sua clausura. O jovem sacerdote havia visto os mosteiros beneditinos e franciscanos adornados com baixos-relevos e pinturas feitos pelos próprios monges e, em comparação com as paredes escuras e sem ornamentos de sua casa de retiro, eram lugares gratos e belos. Notava que os demais mosteiros estavam cheios de vida e trabalho, de fenomenais bibliotecas feitas pelos monges copistas, de oficinas onde se ensinavam e exerciam os mais diversos ofícios, enquanto ele e seus irmãos se entregavam a uma árida e monocórdica contemplação durante o dia e a umas práticas abjetas durante a noite. Podia ver que, enquanto seu mosteiro estava completamente isolado, os outros mantinham comunicação entre si, intercambiavam algumas experiências e se deixavam influenciar pelo saber dos monges irlandeses e saxões. Mas os agostinianos do padre Alphonse resistiam à doutrina de São Benito que estabelecia o trabalho manual, além do espiritual e intelectual. Isso havia determinado uma economia autárquica sustentada no intercâmbio de trabalhos dentro da comunidade religiosa: o trabalho dos sacerdotes abarcava todas as tarefas, desde o cultivo dos campos, a manufatura de tudo o que era necessário, até o trabalho artesanal e artístico. Em contrapartida, a ordem dos agostinianos, cujos membros estavam ocupados demais na dura tarefa da contemplação, delegava todo o trabalho aos irmãos leigos e as tarefas mais rudes aos camponeses livres e aos servos e vassalos do mosteiro. Numa coisa, sim, coincidiam os agostinianos do prior Alphonse com as ordens monacais mais laboriosas: em que o trabalho era um castigo, tal como se depreendia das escrituras quando Deus disse ao primeiro homem depois do pecado original: "No suor do teu rosto comerás o pão até que voltes à terra" e "tirou-o Jeová do jardim do Éden, para que lavrasse a terra da qual foi tomado". No entanto, o padre Alphonse achava mais conveniente e eficaz a prática da autoflagelação: alguns minutos de rigorosas chicotadas nas costas resultava, a seu critério, uma penitência muito mais contundente aos olhos do Altíssimo do que longas jornadas de trabalho físico. Por outra parte, os monges não podiam fazer as mesmas atividades mundanas que o resto dos mortais, a deles era uma tarefa espiritual, metafísica, que devia envolver o menos possível os assuntos corporais. O prior Alphonse sustentava que se os monges deviam trabalhar usando seu corpo da mesma forma que os leigos, então, seguindo a mesma lógica, logo teriam de pedir a abolição do celibato para dar rédea solta a todas as atividades da carne. Mas Aurélio olhava suas mãos imaculadas, hábeis somente para proporcionar-se o proibido prazer, e não podia evitar de se sentir completamente inútil. Dizia a si mesmo que se pudesse ocupar seu pensamento com assuntos mais tangíveis além da contemplação e em algum trabalho mais concreto que a oração, talvez se visse menos compelido a exercitar aqueles trabalhos manuais noturnos que o enchiam de culpa. Pensava nos monges da abadia de Saint Gall e nos do mosteiro de Solignac, fundado por São Elígio, o célebre ourives do século VII, em suas maravilhosas obras de arte, nos relicários feitos por suas próprias mãos, e imaginava que nenhum mau pensamento, nenhuma má ação podia sair daquelas imaginações prodigiosas postas a serviço de Deus mediante o trabalho. Depois de tudo, considerava Aurélio, o próprio Deus havia trabalhado tão duro durante os seis primeiros dias, que se permitiu só um de descanso para contemplar sua obra. Tinha direito ele a dedicar os sete dias da semana à contemplação da criação? Pensava nas fabulosas oficinas daqueles conventos e nos monges miniatures empunhando os pincéis para ilustrar os livros feitos pelos copistas, nos scriptores, jovens ajudantes dos sábios antucuarii brandindo a pena como hábeis calígrafos que eram e no nobre trabalho dos rubricatores, e não conseguia explicação para o fato de seus irmãos se sentirem tão à vontade sem fazer nada. Ou, para dizê-lo em seus próprios termos, sem fazer nada além de refletir nos divinos assuntos. Talvez deixassem de se ver justificados cada vez que introduziam sub-repticiamente meninos no mosteiro para saciar seus apetites carnais se decidissem dedicar seus esforços físicos a ganhar o pão com o suor do seu rosto. Como sempre, cada vez que um pensamento o atormentava, Aurélio pegou papel e pena e encabeçou a nota com as palavras de sempre: Minha senhora:...

 

Geoffroy de Charny tinha que se mover com cautela e ser extremamente discreto. Não comentou o plano com ninguém, nem mesmo com o próprio filho, a quem considerava sua mão direita. Tinha contato com muitos e muito bons artistas, mas em nenhum tinha confiança suficiente para confessar abertamente seus planos. Conhecia a natureza humana; sabia que por mais devoto que fosse, até o mais católico dos pintores tinha seu preço. E ele estava disposto a pagá-lo. Mas não era apenas uma questão de dinheiro. Aquele tipo de discrição não se comprava apenas com dinheiro vivo, mas requeria a convicção no daquele que sente que vai cometer uma fraude, mas, ao contrário, daquele que sente que vai cometer um ato de justiça, de anônima filantropia. Sabia que deveria superar vários escolhos; para que a relíquia fosse suficientemente valiosa e verossímil, era preciso desterrar todo vestígio que pudesse ser facilmente desmentido. A frágil versão de que o mandylion de Edessa tivera origem num ato mágico produzido em vida por Jesus ao entrar em contato com seu rosto parecia aos olhos do duque um relato fraco e em última instância sem muito valor, já que sequer era sugerido nos Evangelhos. Precisava pensar num objeto que tivesse sido a testemunha muda da ressurreição, cuja existência fosse abonada pelas Escrituras. E que o apresentasse de corpo inteiro, não só o rosto. Foi por isso, apesar da tosca fatura, que ficara tão impressionado com o sudário que comprara na praça. Então, considerou, era mister preparar as coisas de modo que no futuro ninguém tivesse dúvidas de que o lençol de Edessa não era um simples pano, e sim uma mortalha. Sim, mas existiam ainda vários problemas: em primeiro lugar, as Escrituras eram um tanto ambíguas a respeito; conforme cada um dos diversos evangelhos, às vezes se falava que o corpo de Cristo tinha sido coberto com bandagens, de acordo com o costume judeu, e não envolto numa mortalha; no entanto, em outras passagens, fazia-se menção a um lençol.

 

Geoffroy de Charny examinou a Bíblia repetidas vezes, leu e releu passagens em que se aludia à morte e ressurreição de Jesus. No Evangelho segundo São João, capítulo 19, rezava:

 

Depois disto, José de Arimatéia (o que era discípulo de Jesus, mas oculto, por medo dos judeus) rogou a Pilatos que lhe permitisse tirar o corpo de Jesus. E Pilatos lho permitiu. Então foi e tirou o corpo de Jesus. 39. E foi também Nicodemos (aquele que anteriormente se dirigira de noite a Jesus), levando quase cem arráteis dum composto de mirra e aloés. 40. Tomaram pois o corpo de Jesus e o envolveram em lençóis com as especiarias, como os judeus costumam fazer, na preparação para o sepulcro. O duque não conseguiu evitar uma expressão de desalento: São João não fazia menção a mortalha alguma. Nem sequer falava de um pano que lhe cobrisse o rosto. A leitura de São Lucas não era mais alentadora: no capítulo 24, onde relata os fatos da ressurreição, Geoffroy de Charny leu:

 

  1. Pedro, porém, levantando-se, correu ao sepulcro, e, abaixando- se, viu só os lençóis ali postos; e retirou-se admirando consigo aquele caso.

 

Tampouco aqui havia vestígio algum de um tecido que cobrisse o corpo de Cristo. Outra vez apareceram os lençóis, no plural, em clara alusão às bandagens que os judeus utilizavam. No entanto, na versão de São João, no capítulo 20, aparecia um novo elemento:

 

  1. Então Pedro saiu com o outro discípulo, e foram ao sepulcro. 4. E os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais apressadamente do que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro.

 

  1. E, abaixando-se, viu no chão os lençóis; todavia não entrou. 6. Chegou pois Simão Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro, e viu no chão os lençóis, 7. E que o lenço, que tinha estado sobre a sua cabeça, não estava com os lençóis, mas enrolado num lugar à parte. 8. Então entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu. Outra vez fazia-se menção aos numerosos lençóis, que davam idéia da bandagem tradicional dos hebreus. Mas aqui podia-se encontrar uma menção a um lenço ou sudário que cobria o rosto de Jesus. Isto acrescentava um elemento novo, embora insuficiente, para a idéia que o duque imaginava. No entanto, o Evangelho segundo São Mateus, em seu capítulo 27, dizia: 57. E, vinda já a tarde, chegou um homem rico de Arimatéia, por nome José, que também era discípulo de Jesus. 58. Este foi ter com Pilatos, e pediu-lhe o corpo de Jesus. Então Pilatos mandou que o corpo lhe fosse dado. 59. E José, tomando o corpo, envolveu-o num fino e limpo lençol. 70

 

  1. E o pôs no seu sepulcro novo, que havia aberto em rocha, e, rodando uma grande pedra para a porta do sepulcro, foi-se. O coração de Geoffroy de Charny bateu com força: ali estava a mortalha, o sudário que cobriu completamente o corpo de Jesus Cristo antes da ressurreição. A leitura de São Marcos, capítulo 15, o mergulhou numa euforia contida. Seus planos começavam a ganhar forma: 42. E, chegada a tarde, porquanto era o dia da preparação, isto é, a véspera do sábado. 43. Chegou José d'Arimatéia, senador honrado, que também esperava o reino de Deus, e ousadamente foi a Pilatos, e pediu o corpo de Jesus. 44. E Pilatos se maravilhou de que já estivesse morto. E, chamando o centurião, perguntou-lhe se já havia muito que tinha morrido. 45. E, tendo-se certificado pelo centurião, deu o corpo a José; 46. O qual comprara um lenço fino, e, tirando-o da cruz, o envolveu nele, e o depositou num sepulcro lavrado numa rocha; e revolveu uma pedra para a porta do sepulcro. Outra vez o lenço. Sua idéia ganhava a forma que o duque previra. E caso restasse alguma dúvida, ali estavam as palavras de São Lucas que, no capítulo 23, vinham confirmar a existência da mortalha.

 

  1. E eis que um varão por nome José, senador, homem de bem e justo, 51. Que não tinha consentido no conselho e nos atos dos outros, de Arimatéia, cidade dos judeus, e que também esperava o reino de Deus; 71

 

  1. Este, chegando a Pilatos, pediu o corpo de Jesus. 53. E, havendo-o tirado, envolveu-o num lenço, e pô-lo num sepulcro escavado numa penha, onde ninguém ainda havia sido posto. 54. E era o dia da preparação, e amanhecia o sábado. Geoffroy de Charny fechou a Bíblia e, comprazido consigo mesmo, disse que o caminho para a reaparição do Santo Sudário começava a ficar aplanado. Ainda se apresentavam várias dificuldades, ele sabia disso. Mas as coisas começavam a acomodar-se ao seu plano. Já podia imaginar sua igreja em Lirey e as procissões vindas de todo o mundo para ver a Sagrada Síndone.

 

Christine nunca conseguira se refazer do brutal despojo a que fora submetida pelo próprio pai. Mas era uma mulher forte e aprendeu a temperar seu espírito. Aquele, o capítulo mais negro da sua breve biografia, não deixara marcas no seu corpo - estava tão linda como sempre -, embora, sim, tivesse forjado sua alma a sangue e fogo. Nas pessoas moralmente fracas, a dor causa um ressentimento que tende a se igualar com a crueldade do vitimário. O espírito de vingança começa a se impor acima de qualquer outro sentimento e o afã de justiça se deixa avassalar pela sede de revanche. Em Christine, ao contrário, o dano sofrido ensinou-a a compreender a dor dos seus semelhantes; a ofensa e o despojo foram tão grandes que, na mesma proporção, cresceu a sua inteireza, e o seu senso de justiça se estendeu a todas as ordens da sua existência. Não a guiava um espírito de piedade cristã - jamais ofereceria a outra face ao inimigo -, e sim um critério de equanimidade terrena e desinteressada: não agia para congraçar-se com Deus e desse modo ganhar o Céu, mas por convicção íntima. Simplesmente queria evitar que outros sofressem como ela sofrera. Na verdade, nunca perdoara seu pai nem estava disposta a fazê-lo. Defendia suas idéias, embora isso pudesse ocasionar-lhe transtornos. Não compartilhava a misericórdia irracional de suas irmãs. Considerava uma ofensa à dignidade 73 o perdão indiscriminado. Muitas de suas companheiras de claustro estavam ali porque tinham sido vulneradas em sua integridade e cruelmente violadas. Deviam então entregar-se aos braços de Deus, já que nenhum homem estaria disposto a tomálas por esposas: a violação era considerada uma mancha no corpo da mulher e elas eram as culpadas por incitar o homem, pelo simples fato de arcarem com sua feminilidade. Madre Michelle costumava convencer suas filhas de convento de que o perdão e a misericórdia deviam estender-se, inclusive, àqueles que as haviam humilhado e despojado de sua honra. Christine não dissimulava sua indignação, chegando a elevar a voz e ousar discutir com a madre superiora, mesmo sabendo que seria castigada. Sem dúvida, esses argumentos constituíam uma defesa da própria abadessa diante dos solapados abusos sexuais aos quais ela mesma costumava submetê-las. Mas Christine, antes de poder ingressar no convento, teve que atravessar outro calvário. Como se não bastasse aquele brutal episódio, não só foi deserdada por seu pai, como, além disso, foi expulsa de sua própria casa e desterrada da família. Esta emancipação forçada era o mais cruel dos destinos que podia caber a uma mulher. Enquanto Aurélio se debatia em seus dilemas teológicos e morais no refúgio do mosteiro, sabendo que podia dispor quando quisesse do castelo que lhe coubera como herança em Velayo, Christine, literalmente, não tinha onde cair morta. As mulheres sem família que sofriam a desgraça de ficarem solteiras ou enviuvarem sem fortuna, isto é, sem nenhum homem que se compadecesse e as tomasse sob seus cuidados segundo os princípios maritais da caritas, em geral estavam condenadas à mais feroz indigência. Se tinham a sorte de viver no campo, podiam sobreviver pobremente fazendo trabalhos rurais mal pagos e à margem do controle dos grêmios. Mas o que nos campos era digna pobreza, nas cidades se transformava em sórdida miséria. Nas urbes, as mulheres sozinhas, na maioria dos casos, viam-se empurradas para os pequenos furtos, a mendicância ou a prostituição de rua.

 

Christine era, apesar de todas as vicissitudes, uma mulher de uma beleza infreqüente. Deambulando sozinha, faminta e derrotada pelos subúrbios de Troyes, foi presa fácil dos proxenetas que gerenciavam o rentável negócio da prostituição. Quase contra a sua vontade e arrastada pelo desespero, foi recolhida da rua por monsieur Derrieux, um obscuro rufião dos vários que disputavam entre si o negócio da exploração de mulheres. Em sua acolhedora maison du plaisir, deu-lhe banheiro, cama e comida. Pelo simples fato de ter aceitado o asilo de seu anfitrião, Christine contraiu sua primeira dívida, que teria de saldar, é claro, com seu corpo. Somando humilhação atrás de humilhação, depois de ter-se entregado por amor e de ter recebido em troca o abandono do homem que amava, depois de ter sido obrigada a se desfazer do filho que levava nas entranhas, depois de ver sua família dar-lhe as costas e expulsá-la do seu seio, depois de ter passado fome, frio e privações, era ela quem devia pagar. Cada vez que um homem ofegante, suarento e malcheiroso descarregava sua lascívia dentro do seu corpo tantas vezes ultrajado, recebia uma porcentagem da paga tão exígua que só dava para abater uma pequena parte da dívida que cada vez crescia mais. Endividava-se por receber comida, roupa e hospedagem a um juro tão alto que nem em toda a sua vida poderia saldar semelhante soma. Por outra parte, aquele hospitaleiro bordel que lhe deu refúgio converteu-se com o tempo numa verdadeira prisão: não tinha permissão de sair para que não tivesse oportunidade de fugir sem pagar sua dívida.

 

Foi a Igreja que a liberou daquela sórdida existência. Por aquela época, havia sido fundada na França a Ordem de Maria Madalena; esta ordem religiosa tinha um propósito fundamental: o de dar às prostitutas a possibilidade de se redimirem e, por meio da penitência, alcançarem o perdão de Deus. Desde que em 1197 o papa Inocêncio III convocou os paroquianos a tomarem por esposa uma prostituta e, dessa forma, salvarem duas almas, proliferaram por toda a Europa ordens e fundações como o hospício de Halle ou a Casa das Almas, em Viena, que se lançaram à salvação das pecadoras. Mas, a rigor, eram poucas as mulheres que podiam ser liberadas dos lupanares: a maioria das prostitutas não estava em condições de se ajustar a outra vida - quase todas eram analfabetas e não tinham nenhum outro ofício -, ou então resistiam a trocar um cativeiro por outro. Christine era uma moça extremamente culta e, ainda por cima, conhecia os evangelhos de cor. E quando a superiora descobriu que, além disso, era jovem e bonita, conseguiu, através da Ordem de Maria Madalena, uma vaga para ela no noviciado. Foi muito breve a sua passagem pelo bordel: apenas seis meses que para ela pareceram anos e teriam de marcar a fogo seu espírito pelo resto da sua vida. Christine abraçou a vida religiosa com o mesmo desinteresse que havia caracterizado sua passagem pelo prostíbulo. E, certamente, muitas de suas irmãs, assim como ela, haviam passado por algum dos tantos bordéis galeses antes de ingressarem no convento. Christine comprovou imediatamente que o convento não se diferenciava muito da casa de prostituição: tanto um como a outra eram dirigidos por uma figura semelhante designada pelo mesmo nome: abesse, abadessa. Inclusive, na maior parte dos casos, era muito mais estrita a disciplina nos prostíbulos do que nos conventos, tal como ela pudera comprovar. Com mão férrea, era preciso cuidar para que as virtuosas não fugissem de seus claustros para pecar, assim como para que as impuras não escapassem dos antros para deixarem de pecar. Ambas eram vidas intramuros e proibiam-se as saídas. Com igual zelo, putas e beatas deviam cuidar das vestes: era tão importante para as primeiras se emperiquitarem com jóias, usarem decotes que mostrassem a carne e apertarem suas formas com ajustados espartilhos, como para as segundas se mostrarem bonitas aos olhos de Deus cobrindo suas curvas com folgados hábitos e suas cabeças com imaculadas cogulas. As putas não podiam retirar-se dos lupanares por causa das dívidas e promessas de lealdade que contraíam, e o mesmo acontecia com as religiosas. Umas se entregavam a terríveis orgias e obscuras cerimônias libertinas, enquanto as putas, em contadas ocasiões, também deviam fazê-lo. Mas com o tempo Christine se resignou à vida no convento. No entanto e apesar de todo o sofrimento, nunca conseguiu esquecer Aurélio.

 

Geoffroy de Charny queria ser dono da relíquia mais apreciada da cristandade. Nenhum outro objeto poderia competir com a mortalha em que José de Arimatéia havia envolto o corpo de Jesus antes da ressurreição. O sudário deveria revelar-se tão magnânimo como o milagre que tivera lugar ao seu amparo e deixar seu testemunho à posteridade. Mas o duque não ignorava que já existia na Espanha, numa igreja de Oviedo, um sudário que, supostamente, conservava o sangue e a figura imprecisa do Divino Rosto. De modo que o seu lençol tinha portanto que ser não o mais extraordinário, mas o único, o autêntico: deveria suscitar uma convicção tal que fizesse os outros parecerem toscas falsificações e caírem no esquecimento. No entanto, o sudário de Oviedo se revelaria uma concorrência difícil: os testemunhos daqueles que tinham conseguido ir vê-lo eram impressionantes; as marcas sobre o tecido eram tão reais e cruas que evidenciavam em toda a sua dimensão a crueldade incomparável do martírio. Geoffroy de Charny precisava vê-lo com os próprios olhos para formar uma idéia e assim poder superar em eloqüência o sudário conservado na catedral de Oviedo. De modo que, sem informar ninguém de seus verdadeiros propósitos, o duque partiu emviagem para a Espanha.

 

OVIEDO, ESPANHA, 1347

Geoffroy de Charny chegou a Astúrias numa tarde calorenta perto do entardecer. Elevou seu olhar para o norte e, entre a fenda das colinas, pôde ver o mar Cantábrico, cinza e bravio em comparação com o Mediterrâneo. À medida que ia se aproximando da cidade, à beira do caminho via com grata surpresa a profusão de tabernas sucedendo-se uma após a outra. Pareciam competir entre si em luzes, aromas e paroquianos que se apinhavam em longas mesas, no parapeito das janelas e até bebendo sentados no chão. Abraçados uns aos outros, cantavam melodias célticas e entornavam vinho e bebidas com aroma de maçã nuns copões que pareciam inabarcáveis. Uma alegria desconhecida invadiu o espírito do duque. Exausto após a longa viagem, entrou numa taberna ao acaso. Comeu, bebeu e de repente se surpreendeu cantando a plenos pulmões canções cujo sentido ignorava, saindo de uma tasca para entrar então na seguinte até que, bêbado como um tonel, quase esqueceu o motivo que o levara até a península. No entanto, ao descobrir numa das mesas um religioso, que também parecia ter perdido as formas e empunhando uma taça cantava como um a mais, lembrou do seu propósito. Animado pelo álcool, aproximou-se do prelado e, com a loquacidade dos bêbados, apresentou-se. Falaram de nimiedades com a paixão e a veemência da ebriedade. Com admiração, o duque soube que seu interlocutor, aquele homem de aparência comum que se comportava com a mesma naturalidade dos camponeses, era o padre Antônio de Escobedo, máxima autoridade eclesiástica, bispo sob cuja responsabilidade estava a Santa Igreja Catedral de Oviedo. Geoffroy de Charny atribuiu à vontade de Deus semelhante coincidência. Pouco a pouco, o duque foi dirigindo a conversação para o sudário. Então pôde comprovar que o núncio estava convencido da autenticidade da relíquia que entesourava em sua igreja. O nobre francês o fez saber da sua curiosidade, disfarçando-a de devoção.

 

O padre Antônio de Escobedo lamentou que o lenço só estaria em exibição no ano seguinte. Foi tal o impacto que estas palavras causaram no duque que a bebedeira esfumou-se de repente. Dono de uma súbita lucidez e vendo agora o estado calamitoso do padre, considerou que talvez pudesse tirar partido. Fingindo uma comoção ainda maior que a que realmente o invadia, o duque disse ao padre Antônio que o único motivo que o havia levado até Oviedo era poder venerar a relíquia» que aquele era o seu maior anseio. Convidou-o para outro trago e o fez saber que, embora não tivesse vindo em viagem oficial e não trouxesse credenciais, várias vezes havia sido emissário da Coroa da França. Com sua habitual grandiloqüência e histrionismo pôs-se em pé e, exibindo sua coxeadura, relatou-lhe, convencido de sua própria mentira, como por pouco perdera sua perna direita combatendo pela causa de Cristo. E, para o caso de os argumentos parecerem escassos, confessou seu propósito de construir em sua terra uma igreja em homenagem à Virgem. Comovido diante de semelhante exibição de fervor e sensibilizado pelo efeito do vinho, Antônio de Escobedo benzeu o visitante e rogou-lhe que o seguisse. Era meia-noite quando chegaram às portas da Catedral de Oviedo. Os passos dos dois homens retumbavam na fria escuridão do recinto, mal iluminado por uns poucos círios. O padre caminhava sem necessidade de olhar; conhecia cada canto da igreja que havia percorrido a maior parte dos dias de toda a sua vida. Geoffroy de Charny, ao contrário, caminhava tateando, tropeçando com todo o obstáculo que se interpunha em seu caminho. Uma inquietude imprecisa, atiçada pela lôbrega penumbra feita de sombras alongadas e trêmulas, havia-se apoderado do duque. Chegaram às portas de um recinto que o padre Antônio chamou de "Câmara Santa".O núncio, que ainda mostrava evidentes sinais de bebedeira, tentava com pouco êxito enfiar a chave dentro da fechadura. Quando finalmente conseguiu, a porta rangeu e um vento gelado soprou do interior. A Câmara Santa tinha dois andares: o superior, ao qual se tinha acesso por uma escada circular, era conhecido pelo nome de Cripta de Santa Leocádia. Geoffroy de Charny caminhava atrás do religioso; atravessaram o andar inferior, chamado de Câmara do Tesouro ou Câmara Santa, e ali o duque pôde ver duas das jóias sagradas mais apreciadas: a Cruz da Vitória e a Cruz dos Anjos. O padre Antônio adotou de imediato uma expressão de recolhimento, fez o sinal-da-cruz e sem dizer palavra apontou para um canto que presidia o recinto. O duque ficou ofuscado ao ver resplandecer na escuridão, como se brilhasse com luz própria, um cofre de madeiras preciosas recoberto de prata. Era a Arca Santa. Se só de ver a arca o duque perdeu o fôlego, quando o padre abriu o grosso cadeado que fechava a tampa, achou que seu coração iria parar: ali, em seu interior, estava o mítico Sudário de Oviedo.

 

O padre Antônio de Escobedo iluminou o interior da arca e então Geoffroy de Charny pôde ver, por fim, o sudário: era um tecido retangular de aproximadamente um braço de comprimento por meio de largura. Sulcado por rugas e marcas que o tempo deixara com os anos, podia-se perceber um rasgo na parte superior direita, fruto de repetidas dobraduras. Evidenciava-se também um orifício provocado provavelmente pela cera derretida de uma vela e outras três diminutas perfurações de antigos pregos que, talvez, prendessem o tecido a uma moldura ou a um bastidor. Mas o que deixou o duque sem fala foram as manchas de sangue que o pano apresentava; eram máculas semelhantes a um grande coágulo que guardavam uma imperfeita simetria em cada metade do sudário. A forma destas marcas cor de borra de vinho ajustava-se à de um semblante, podendo-se notar incertamente a testa, o nariz e a boca. O tecido estava confeccionado em linho e se percebiam fios enlaçados por nós transversais, de uma textura semelhante ao tafetá. Embora o rosto impresso com sangue fosse muito confuso, Geoffroy de Charny descobriu umas estranhas marcas redondas na parte superior, nas quais acreditou ver algo semelhante aos estigmas que deixaria uma coroa de espinhos. Enquanto o duque francês contemplava extasiado o sudário, o bispo, com uma voz tênue, contou-lhe a história do pano; disse-lhe que aquele era, sem margem a dúvidas, o tecido que cobrira o rosto de Jesus de Nazaré, depois que foi despregado e descido do monte Gólgota, o mesmo pano que era mencionado nos evangelhos e confirmado por Nonnos de Panópolis no século V: "Seguindo atrás chegou Simão e imediatamente entrou. Viu os lençóis juntos no chão vazio, e o tecido que envolvia a cabeça com um nó na parte de trás da cabeleira. Não estava junto com os lençóis funerários, e sim amplamente enrolado em si mesmo, torcido em lugar à parte", recitou o padre. Quando o rei dos persas, Cosroes II, invadiu a Palestina e entrou em Jerusalém no ano 614, os cristãos escaparam levando consigo as relíquias num cofre. O padre Antônio, segurando o círio acima da sua cabeça, continuou relatando de que modo aquela arca que agora estava diante dos seus olhos tinha sido embarcada e, circunavegando as costas do norte africano, tocando depois Alexandria, chegara por fim à Espanha através de Cartagena no ano 616. Contava a tradição que mais tarde o tecido fora levado a Sevilha, onde foi guardado por San Isidoro e que, com a morte deste no ano de 636, fora trasladado a Toledo. Por volta de 695, quando da invasão dos mouros, o sudário viajou com os cristãos espanhóis rumo ao norte, indo desde a Via da Prata, passando por Badia, Quirós e depois Morcín. A meia-voz, enquanto o duque examinava a relíquia, o padre explicou-lhe que a arca que agora descansava naquela cripta estivera por longos anos enterrada nos montes asturianos de Monsacro, até chegar, finalmente, à cidade de Oviedo no século VIII. Alfonso II mandou erguer a Câmara Santa para abrigá-la ali. Foi Alfonso VI quem, impressionado com a relíquia, mandou que fossem feitas as cobertas e ornamentos de prata sobre as madeiras da arca. Desde então o Sudário de Cristo havia sido custodiado na catedral de Oviedo. Enquanto o núncio falava, uma idéia cruzou a mente de Geoffroy de Charny, uma ocorrência fugaz que, no entanto, começou a abrir caminho em sua vontade: um pensamento atroz do qual não podia desembaraçar-se e que fez com que levasse, sem perceber, a mão até o cabo da adaga que carregava na cintura. Tinha diante de si a relíquia mais valiosa da cristandade, protegida - ou, para dizê-lo com propriedade, desprotegida- por um padre ancião, bêbado e indefeso. E agora estava ali, ao alcance da sua mão.

 

O bispo morto, degolado no recinto da Câmara Santa, e seus braços hirtos abraçando a arca sagrada vazia, saqueada: tal era o quadro que Geoffroy de Charny podia imaginar enquanto acariciava o cabo da faca que trazia oculta debaixo das roupas. No entanto, o padre Antônio gozava ainda de boa saúde e dormitava sentado sobre um degrau da cripta de Santa Leocádia. Nada podia impedir o duque de tomar o santo trapo, guardá-lo tranqüilamente, cortar a garganta do padre para assegurar-se do seu silêncio e levar a Troyes ou a Lirey seu flamante troféu. Não haveria testemunhas e por aquelas horas a cidade já estava deserta. Se não fosse porque tinha um plano superior, Geoffroy de Charny teria matado seu anfitrião sem que o assaltasse o menor escrúpulo. E, com efeito, tinha melhores propósitos. Roubar o sudário não lhe acarretaria mais que problemas e, certamente, sua intenção não era ter uma relíquia escondida num porão do seu castelo, nem um botim que desatasse uma guerra. Por outra parte, examinando a peça com frieza, considerou que talvez não fosse tão eloqüente como parecia à primeira vista. Sem dúvida ele estava predisposto a ver naquele tecido um objeto milagroso, mas se alguém com alheia objetividade, que não soubesse do que se tratava, o observasse, não teria visto mais que um pano manchado. Se não soubesse do relato, jamais teria visto naquelas máculas enegrecidas um rosto humano e menos ainda o do Cristo. Ele tinha em mente a relíquia perfeita, uma que não deixasse nenhuma dúvida, cujo sentido e mensagem fossem evidentes por si mesmos a qualquer pessoa que os visse e, ao mesmo tempo, que pudesse expressar em seu próprio mistério o enigma da ressurreição. O lenço de Oviedo, considerou o duque, não apresentava vestígio de milagre algum; a impressão daquelas vagas feições era fruto do contato daquele tecido com o sangue, autêntico ou imitado com pigmentos, e não de um inexplicável fulgor, tal como lhe haviam relatado. O nobre francês havia passado do assombro para a desconfiança e da suspeita para o mais fechado ceticismo antes de que se consumisse o círio que iluminava a cripta. Sentiu-se logrado, enganado em sua confiança, como se ele mesmo fosse um inocente peregrino e não um falsário que estava coletando informação para levar a cabo a maior das fraudes. Pensou que a história que o religioso espanhol acabava de contar-lhe tampouco outorgava ao sudário uma sustentação lá muito sólida. Uma vez mais, chegou à conclusão de que o relato devia estar à altura do objeto; de nada valeria o esmero e o ofício do artista, de nada serviria a verossimilhança e o poder de convicção da relíquia se não estivesse acompanhada por uma fábula que a respaldasse. Justamente por essa razão não queria deixar nada entregue ao acaso; e agora que havia visto o famoso sudário de Oviedo, podia tomar consciência de algumas complicações. Aquele recinto lhe pareceu o mais adequado dos lugares para terminar de urdir a história. Acompanhado pelos sonoros roncos do padre Antônio, sentou-se ao pé do estrado que sustentava a Arca Santa e ponderou: o sudário que ele faria ressurgir do esquecimento precisava ter um fundamento histórico, isto é, devia ser o mesmo que José de Arimatéia teria comprado, tal como constava das escrituras. Depois, deveria ter uma continuidade ao longo da história, ou seja, aparecer mencionado em diferentes relatos e por diversos personagens. Em terceiro lugar, era preciso que este sudário tivesse um caráter milagroso e desse testemunho da imagem de Cristo. Diferentemente do trapo de Oviedo, que não apresentava vestígio de nenhum milagre, a imagem de Edessa reunia todas as características que ele procurava. Mas havia um problema: sendo o sudário uma peça deslumbrante, sobre cuja superfície havia ficado milagrosamente impressa a imagem de Jesus, tal como revelava a mítica imagem de Edessa, como era possível que nenhum dos discípulos de Cristo tivesse percebido este fato assombroso? Nos evangelhos afirmava-se que Pedro ao ingressar "correu até o sepulcro: e quando olhou dentro viu apenas os lenços jogados; e foi embora maravilhado com o que havia acontecido", no que se refere à ressurreição. Mas não dizia nada sobre o fato notável de que sobre os lenços estivesse a imagem do Messias. O mesmo foi presenciado pelos outros discípulos, tal como está testemunhado na Bíblia: "Com esta nova saiu Pedro e o dito discípulo, e se encaminharam ao sepulcro", e depois o evangelho relata que "corriam ambos lado a lado, mas este outro discípulo correu mais depressa que Pedro, e chegou primeiro ao sepulcro". E o que foi que viu?: "tendo-se inclinado, viu os lenços no chão, mas não entrou". E como se fossem poucas as testemunhas, dizia o Novo Testamento, "chegou atrás dele Simão Pedro, e entrou no sepulcro, e viu os lenços no chão e o sudário ou lenço que haviam colocado sobre a cabeça de Jesus, não junto com os demais tecidos, mas separado e dobrado em outro lugar. Então o outro discípulo, que havia chegado primeiro ao sepulcro, entrou também, e viu, e acreditou". Estava claro que não existia absolutamente nenhuma referência à imagem impressa sobre o sudário e que, se houvesse se produzido aquele milagre, não teria podido escapar aos olhos dos discípulos. Talvez, considerou Geoffroy de Charny, fosse possível desculpar os seguidores pelo fato de que, aniquilados pela ressurreição e pela ausência do corpo de Cristo, não tivessem se dado conta de que se produzira o divino acontecimento. No entanto, este argumento tampouco parecia convincente, já que se o lençol havia se conservado, era porque algum deles tivera que recolhê-lo do chão, dobrá-lo, carregá-lo e sair com ele. Como era possível que nem mesmo assim tivessem se dado conta de tamanho prodígio?

 

Nada disso haveria de ser um obstáculo no caminho do duque. Alguma idéia ele haveria de ter. Carregado de desalento mas com o impulso irrefreável de sua inquebrantável vontade, Geoffroy de Charny abandonou a Câmara Santa sem acordar o bispo. Depois saiu da Catedral de Oviedo e se dispôs a encontrar um lugar para passar a noite e voltar a Troyes na madrugada seguinte. Queria colocar mãos à obra o quanto antes, sabendo que o sudário de Oviedo não seria um rival digno daquele que se preparava para a executar.

 

LIREY, 1347

Geoffroy de Charny decidiu retirar-se em Lirey para cuidar das providências necessárias e ultimar os detalhes para iniciar, de uma vez, sua cristã obra. Longe de todo olhar indiscreto, na tranqüila solidão de sua casa de campo, poderia trabalhar sem que ninguém o incomodasse. Em primeiro lugar, voltou a revisar as contas. Considerando a reticência da autoridade eclesiástica, o duque estava disposto a fazer o total do investimento exigido pela construção da igreja. Adiantando-se aos acontecimentos, debatia- se entre dois critérios: erigir uma igreja majestosa que fizesse jus à relíquia que haveria de abrigar ou, ao contrário, construir uma capela modesta que não eclipsasse em esplendor o Santo Sudário. Mas estava precipitando-se demais. Era freqüente entre os nobres cultivar para si fama de benfeitores, financiando a construção de capelas, igrejas e até catedrais. Isso não só lhes assegurava a posteridade na memória dos homens e um lugar privilegiado no Reino dos Céus, mas, no melhor dos casos, representava um suculento negócio. Uma igreja, de acordo com sua localização, importância, prestígio e oratória de seu pároco, quantidade de celebrações de cerimônias, venda de indulgências, recebimento de esmolas, etcétera, tinha um volume de renda considerável. Em alguns casos, esses dividendos podiam ser colossais; o usufruto de uma catedral como a de Notre-Dame de Paris não só era mais rentável que o maior dos comércios tradicionais, como podia arrecadar mais dinheiro que o recebido por um Estado pequeno a partir de impostos. Se a igreja em questão tivesse sido financiada em todo ou em parte por um particular, este, além de ter a prerrogativa de escolher o pároco, tinha assegurada sua participação nos ganhos de acordo com o volume do investimento original e os que pudesse fazer a posteriori. Havia igrejas cuja afluência de pessoas era determinada pela quantidade de habitantes da cidade ou povoado em que estivessem encravadas; havia também aquelas cujo atrativo era a grandiosidade ou as obras de arte que as ornamentavam; e outras com maior importância histórica e as que estavam presididas por um vicário de inflamada retórica que atraía uma multidão de fiéis. Também havia as que guardavam os vestígios da consumação de algum milagre, ou as que se consagravam à devoção do santo padroeiro ou à adoração do ícone de tal ou qual Virgem; as que conservavam os restos mortais de algum santo e as que entesouravam relíquias. E depois, todas as combinações possíveis. A idéia de Geoffroy de Charny era que sua igreja reunisse a maior parte das virtudes enumeradas. Sua localização em Lirey era estratégica, já que seria a única no povoado. Embora a população fosse pouco significativa, podia converter-se num centro de atração para as pessoas das populosas cidades vizinhas. Por outra parte, imaginava uma construção austera mas adornada com pinturas e obras de arte alusivas à ressurreição que pudessem fazer ver, tanto aos ilustrados como aos analfabetos, como havia sido aquele momento crucial. Já tinha em mente quem teria de ser o pároco: precisava ser um homem generoso e lúcido, dono de um passado respeitável, uma oratória convincente e um caráter piedoso embora decidido. Quem era aquele homem? Ele mesmo, é claro. Ninguém melhor do que ele poderia cuidar de seu próprio negócio. O fato de ter esposa e filhos não representava um grande impedimento, já que até o próprio papa Inocêncio os tivera.

 

O Santo Sudário, cujo advento estava próximo, haveria de conferir à igreja do duque os mais valiosos atrativos: o de milagre, operado na imagem de Cristo; os restos mortais, conservados nos traços do próprio sangue de Jesus. Sem sombra de dúvidas, seria a relíquia mais valiosa de todas as existentes. Geoffroy de Charny não via motivo para que algum detalhe pudesse escapar de seus planos. Agora só faltava encontrar o artista mais idôneo e confiável.

 

TROYES, 1347

Christine aproveitava o acesso à biblioteca que lhe fora outorgado pela madre superiora para ler durante seus momentos livres. Lia com avidez a Metafísica de Aristóteles e a vida das santas, as Confissões de Santo Agostinho e o Antigo Testamento, e todo o volume que lhe chamasse a atenção. A leitura provocava nela uma via de fuga de sua existência no convento, mas não num sentido metafórico e sim concreto: quando lia recuperava seus anelos que, certamente, iam além dos muros do beatério. A leitura era para ela não o modo de se resignar à sua sorte, mas a forma de recuperar as esperanças. As páginas de Aristóteles, fundamentalmente, contagiavam- na daquele espírito de indagação e de um sentimento de liberação em virtude do pensamento. Lia para tentar explicar seu trágico destino e assim assenhorear-se dele. Estudava as Escrituras, não com o afã de sustentar os dogmas, mas de questioná-los. As cartas que escrevia a Aurélio logo se converteram no veículo de suas próprias cavilações, no pretexto para refletir sobre suas leituras. Assim, descobriu que sua paixão pelo estudo talvez fosse, também, o modo de recuperar o homem que ainda, e apesar de tudo, amava. Rapidamente compreendeu que a forma de reconquistá-lo não era afastando-o da doutrina de Jesus por meio da tentação dos sentidos.

 

Ao contrário, em suas cartas Aurélio revelava que a resistência ao pecado o afirmava cada vez mais arraigadamente em suas convicções agostinianas. Christine sabia que o seu corpo, que ainda ardia e se rebelava contra a clausura oculto sob o hábito, exercia sobre ele um efeito paradoxal: quanto mais forte era a atração carnal, tanto maior era a recusa intelectual que nele se despertava. Os preceitos acabavam impondo-se aos instintos e às paixões voluptuosas. Então Christine decidiu empreender uma tarefa que, para pesar seu, ia superar em muito seu íntimo propósito. Se o breve romance com Aurélio se desfizera espatifando-se contra o muro indestrutível do dogma e da fé, então, disse a si mesma, estava disposta a construir um novo dogma da fé e do amor. Se a cada nova ação de Christine erguia-se uma reação defensiva por parte de Aurélio, não tinha sentido lançar-se com o duro aríete da heresia, mas sim abrir seu coração com a chave sutil da palavra inspirada nas próprias Escrituras. Daí por diante, sua arma fundamental já não seria apenas seu corpo como naquele longínquo encontro sob o abeto, mas o próprio Evangelho com o qual Aurélio costumava defender-se. Durante as noites, ganhando tempo ao sono, iluminada pela luz clandestina de um pequeno candeeiro, Christine começou a escrever a que haveria de se converter na primeira doutrina sensualista cristã da qual tenha restado registro, apesar de todas as tentativas ulteriores de fazê-la desaparecer. Assim, ao mesmo tempo que suas irmãs dormiam o sono dos justos, Christine escrevia sem parar, procurando a maneira de encontrar na letra de Deus a chave para recuperar o homem que amava. Por muito paradoxal que pudesse resultar, enquanto suas companheiras de retiro encontravam o regozijo no corpo, se satisfaziam em autênticas orgias e depois pegavam no sono com a convicção de estarem em paz com Jesus, Christine era a única que mantinha a mais rigorosa abstinência e no entanto, se a autoridade eclesiástica tivesse se inteirado de sua tarefa noturna, sem dúvida a teria condenado com o maior dos rigores. Mas haveria de chegar o dia em que a abstinência de Christine iria se ver interrompida, não por obra de Aurélio como ela teria gostado, mas pela necessidade de que seus escritos não fossem descobertos pela abadessa.

 

Enquanto redigia uma das tantas cartas que costumava escrever a Aurélio, Christine ignorava que aquelas linhas iriam converter- se no primeiro capítulo de um tratado que faria tremer as bases da fé de vários homens e mulheres. Nestas primeiras cartas, ainda se percebia um tom de hostilidade que logo iria moderar-se até se converter em sutil persuasão. Sem saber que aquelas primeiras palavras seriam o prefácio de uma obra colossal, Christine escreveu:

 

Padre Aurélio:

 

Proclamais aos quatro ventos o amor ao próximo. Pergunto- me, então, por que estranha razão estais afavor de condenar a humanidade à sua extinção? Se desprezais o deleite da carne, também repudiais a vida. Se, como sustentais, a castidade é o estado que Deus espera dos homens, não é necessário que vos explique que a vida sobre a Terra se extinguiria em pouco tempo. Se o sexo é algo sujo para os clérigos, também o será para o homem comum, simples. Ou por acaso a vossa castidade vos faz sentir superior ao resto dos mortais? É que então, para que a humanidade não se extinga, deixais o trabalho sujo para que seja feito pelos demais? Predicais que Jesus deve ser o exemplo a seguir pelos homens e a Virgem Maria o das mulheres. Não os estaríeis pronunciando pela castidade e a virgindade se vossa venerada mão não se tivesse comportado como Eva. Que pequem os outros, que sejam os outros a arder no fogo do inferno pela eternidade, enquanto vós, em vossa castidade, vos asseguraiso Reino dos Céus. E falais de generosidade. Não perdoais aos simples que unam seus corpos com alegre inocência, aos homens e mulheres por cujas vias corre sangue quente e alvoroçado que, ao pecar, se pronunciam pelo triunfo da vida, enquanto vós, em vossa virtude, cavalgais sobre a morte; não os perdoais a eles mas sim a vossos irmãos que se aproveitam das crianças indefesas e depois encontram a dispensa naflagelação. Ultrajes à inocência, chagas abertas pelo rigor do chicote, abstinência diante do apelo da natureza, vagabundagem que justificais sob o nome de contemplação ascética, esses são alguns dos mais elevados valores aos quais decidistes entregar-vos.

 

Enquanto escrevia, Christine precisava conter-se para não revelar a brutal vexação a que havia sido submetida pelo próprio pai e na qual, embora ignorasse, Aurélio estava envolvido. A rigor, quando mencionava aqueles ultrajes à inocência, estava falando veladamente de si mesma. Para não se deixar vencer pelo peso das lembranças, Christine continuou escrevendo:

 

E no que concerne ao matrimônio, sei que tampouco desculpais os leigos casados pelo horroroso pecado que cometem cada vez que unem seus corpos para procriar. Apenas lhes concedeis o benefício de tolerar esse mal menor comparado com a fornicação, mas só de má vontade e porque não vos resta mais remédio. O certo é que não os agrada sequer o matrimônio, basta ver os baixos-relevos da igreja da Madeleine, em Vézelay, que mostram o próprio demônio tentando unir em casamento São Benedito com uma mulher. Aí estão, também, os frisos do capitel da igreja de Civaux, nos quais pode-se ver representado o matrimônio como a consumação da derrota diante da tentação da carne; os cônjuges aparecem junto a uma sereia, emblema da luxúria, que precipita a queda do homem da barca do bem para o mar tumultuado do pecado. Considerais, como São Jerônimo e São Bernardo, que o matrimônio está reservado àqueles homens fracos de espírito e que carecem da fortaleza para suportar os embates da tentação. Podereis me dizer, por acaso, que o matrimônio é um sacramento abençoado pela Igreja. Podereis enganar-vos se assim o quereis, mas não pretendais que eu também acredite na farsa. O matrimônio foi sacralizado mais tarde, só porque a autoridade eclesiástica não encontrou outra saída diante da impossibilidade deabolir a vontade natural que tende à união da carne com a carne. Sabeis bem que a autoridade, quando não consegue impedir certos "males" nem sequer com o uso da força, então decide declará-los sagrados. Desta maneira, tomando-os para si e assenhoreando-se deles, pode legislá-los. Assim o demonstra a história: vendo Roma que não conseguia colocar barreiras à torrente irrefreável da cada vez mais numerosa cristandade, mesmo tendo sido o verdugo de Jesus, adotou o Império a religião daquele a quem repudiou. Isso mesmo aconteceu com o sacramento do matrimônio: antes que os homens e as mulheres se unissem sem lei nem norma e, como em Sodoma e Gomorra, deforma caótica e promíscua, juntando-se homens com homens e mulheres com mulheres, a autoridade resolveu ordenar as coisas, decretar indissolúvel a união, estabelecer um contrato perante a lei dos homens e um sacramento aos olhos de Deus. As palavras de Dionísio, bispo de Alexandria entre 247 e 264, confirmam o que vos digo; em sua condenação da seita dos ceríntios, acusa seu fundador de proclamar "Que o reino de Cristo seria na Terra, e que as coisas que ele desejava eram sua propriedade, ser escravo do corpo e da sensualidade, enchendo o Céu de sonhos; indulgência ilimitada na glutonaria e na luxúria em banquetes, bebedeiras, casamentos, festivais, sacrifícios e na imolaçãode vítimas". Vede em que lugar e em companhia de que outrosmales era colocado o matrimônio. Digo-vos, então: nem mesmo sob o matrimônio ficam absolvidos os homens do pecado da união dos corpos. Por que se diz que a Santíssima Virgem concebeu sem pecar? Qual teria sido o pecado de Maria se, como acredita a Bíblia, ela estava retamente casada com José? Assim o assinalam os Evangelhos: "Ora o nascimento de Jesus Cristo foi deste modo: Estando Maria sua mãe desposada com José, achou-se ter concebido (por obra) do Espírito Santo, antes de coabitarem

(São Mateus, 1, 18). "E (estando Isabel) no sexto mês,foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão, que se chamava José, da casa de Davi, e o nome da Virgem era Maria' (São Lucas, 1, 26, 27). Pergunto-vos novamente: que pecado podia cometer Maria se era a esposa legítima de José? Dou-vos a resposta: não tolerais a união dos corpos nem sob o sagrado matrimônio.

 

Presa da indignação, Christine escrevia sem medir as conseqüências que haveriam de produzir suas palavras no espírito de Aurélio. Mergulhada em suas cavilações, algumas das quais eram a conclusão de vários anos de reflexões e leituras, de observações e estudos, Christine tampouco se detivera para pensar o que aconteceria se aquelas anotações fossem descobertas pela Madre Superiora. Por muito menos que tais blasfêmias muitas mulheres haviam sido acusadas de bruxaria e enviadas à fogueira, sem sequer serem submetidas ao benefício da Inquisição. E se não tivesse sido pela enorme beleza de Christine, que havia conseguido deslumbrar madre Michelle, sua sorte no convento teria sido outra. Seu espírito rebelde e esquivo, sua indiferença, mas principalmente o modo pelo qual a noviça recusava as amorosas propostas da superiora, eram motivo suficiente para, chegado o momento, deixá-la cair em desgraça. Mas o desejo da abadessa pela jovem monja era ainda mais forte que o despeito. A carta de Christine estava dirigida a Aurélio; no entanto, aquele tom incisivo e por momentos iracundo parecia ter por destinatário não o homem que amava mas aquele que ela desprezava com toda a força do coração: seu pai, Geoffroy de Charny. Sua aversão por assuntos dogmáticos estava relacionada com a velha discussão tácita que mantinha com seu progenitor, antes ainda de que a fizesse passar pelo mais cruel dos calvários; ela havia sido testemunha do modo pelo qual seu pai manejava seus negócios com os clérigos. A religião chegou a ser para Christine sinônimo de política espúria, de corrupção e de conspirações. É o que havia visto durante toda a sua vida em casa. Nada parecia diferenciar a nobreza à qual pertencia Christine a contragosto da aristocracia clerical e, de fato, existia uma aliança não declarada entre ambas. Os abades dispunham de riquezas ilimitadas e tinham uma multidão de súditos. Eram os mais intrusos conselheiros e os mais hábeis políticos na hora de urdir conjurações. Quantas vezes seu pai havia recorrido à autoridade eclesiástica para que intercedesse em seu favor em diversos negócios em troca de certas prerrogativas. Toda a animosidade que Christine destilava na carta parecia ser uma longa reprovação dirigida a seu próprio pai. Talvez o tom que devesse empregar com Aurélio fosse o da doce persuasão, o da compreensão e da amizade e não o do desplante. Depois de tudo, o que ela queria era recuperar o homem que amava e não fazer com que fugisse como um cervo assustado. Mas Christine, em sua honestidade, não sabia forjar estratégias. Se o que escrevera até então constituía uma perigosa heresia, o que viria a seguir seria um sacrilégio tal que poderia chegar a valer-lhe não mais o repúdio de Aurélio, mas a morte.

 

LIREY, 1347

Geoffroy de Charny aspirava ser o bispo de sua própria igreja. Afinal de contas, refletia, semelhante investimento deveria outorgar-lhe pelo menos essa prerrogativa. Era, em última instância, um negócio como qualquer outro e significaria uma enorme desídia deixar a condução em mãos alheias. Como não estar à frente de uma empresa de tal magnitude, perguntava-se. No entanto, Henri de Poitiers não parecia disposto a facilitar-lhe as coisas; não o havia feito no passado e não havia razões para supor que poderia mudar sua rígida posição. O bispo de Troyes não via com bons olhos a ordenação de leigos e, em última instância, atinha-se aos cânones de Sárdica, que ordenavam a respeito: "Se um rico, ou um advogado, ou um funcionário oficial solicitar um bispado, não deve ser ordenado a menos que tenha desempenhado previamente o cargo de eleitor, diácono ou sacerdote, de maneira que se eleve à mais alta hierarquia, o episcopado, mediante a ascensão progressiva. Deve conferir-se a ordenação somente àqueles cuja vida inteira tenha estado submetida a exame durante um período prolongado e cuja valia tenha sido demonstrada". E não era este último o caso de Geoffroy de Charny. Certo era que os cânones de Sárdica tinham sido violados já desde a data da sua redação, ali pelos primórdios do cristianismo. Como regra geral, os clérigos mais elevados costumavam ser homens vinculados à política e aos negócios. Durante os encontros que Geoffroy de Charny mantinha com Henri de Poitiers tentava convencê-lo de que sua condição de leigo não podia ser um obstáculo aos seus propósitos clericais. O duque enumerava ao bispo a lista de todos aqueles que haviam sido ordenados sacerdotes sem provir do seio da Igreja; sem enrubescer comparava-se a São Jerônimo e Santo Agostinho, com Paulino de Nola e com o primeiro filósofo cristão, Orígenes, todos eles homens leigos que haviam chegado a ser presbíteros. O próprio Santo Ambrósio havia sido batizado, ascendido a todos os graus eclesiásticos e finalmente consagrado bispo de Milão na mesma quantidade de dias que levou Deus para criar o mundo. Mas Henri de Poitiers mostrava-se inflexível. De nada valia apontar para os casos de Fabiano e Eusébio, de Filogônio de Antioquia ou de Nectário de Constantinopla, só para mencionar os mais distantes no tempo. Então Geoffroy de Charny adotava um tom quase intimidador e, fazendo velada alusão a seu suposto passado marcial e a seus supostos vínculos com a mais alta oficialidade militar, lembrava ao bispo de Troyes que Eusébio e São Martin de Tours haviam sido impostos pelo rigor das armas do exército do Império. Henri de Poitiers ria com vontade e dizia: - Se tem intenção de invadir minha igreja com tropas não devia avisar-me. Agora mesmo vou mandar cavar uma fossa à sua volta. Talvez o duque se sentisse um pouco patético. Mas nada era obstáculo para continuar com sua estratégia de persuasão. Vendo que não conseguia tirar o bispo de sua insistência, Geoffroy de Charny apelava para o recurso que melhores resultados lhe havia dado: o suborno. Com um tom intrigante ia tentando sutilmente para ver o grau de disposição que podia encontrar em seu interlocutor. Como quem menciona uma anedota sem implicação alguma, lembrava dos casos de corrupção episcopal no conclave de Éfeso descobertos por Crisóstomo, bispo de Constantinopla no ano 401.

 

Olhando para o chão, brincando nervosamente com seus dedos, o duque citava as palavras dos imputados na hora de confessar: "Reconhecemos haver pago subornos para que fôssemos ordenados bispos e nos eximissem do pagamento de impostos".

 

- Que escândalo - dizia Geoffroy de Charny sem escandalizar- se para ver a reação de Henri de Poitiers -, se pelo menos tivessem oferecido subornos para fins mais nobres como os que guiam os meus passos... - Por acaso pode-se pagar um suborno em nome de um propósito elevado?- respondia o bispo e,antes que o duque avançasse em terreno pantanoso, se apressava em lembrar-lhe da posição de Constantino, inclinado a evitar as negociatas e a evasão de impostos dos ricos, proibindo aos representantes das corporações e demais grupos privilegiados o acesso ao sacerdócio. Então Geoffroy de Charny dava por concluída a reunião pondo-se em pé e admitindo para si mesmo que havia perdido outra batalha. No entanto, animava-o a idéia da vitória final embandeirado em seu estandarte: o Santo Sudário de Cristo. Esta seria sua chave mágica para obter sua igreja e nada haveria de impedir que a presidisse de fato e de direito.

 

TROYES, 1347

Uma noite entre as noites, a abadessa, vencida por uma inquietação que lhe tirara o sono, percorria os corredores do convento sem saber o que procurava exatamente. Reinava o mais absoluto silêncio entre as sombras, quando, ao passar em frente à porta do claustro da irmã Christine de Charny, acreditou perceber a tênue luz de uma chama brilhando entre a fresta de duas madeiras. Ia bater à porta mas conteve o impulso de sua mão no ar atraída pela curiosidade. Inclinou-se apoiando os braços contra seus joelhos e aproximou seu olho da estreita fenda pela qual vira o fulgor. Madre Michelle pôde ver então o corpo nu da noviça reclinado sobre a pequena escrivaninha. De sua perspectiva via seu perfil esbelto. Achou enigmático o fato de que estivesse escrevendo tão concentrada àquela hora da madrugada, mas sobre a curiosidade intelectual impôs-se a voluptuosa avidez de espiar em silêncio aquele corpo que não conhecia. O coração da abadessa agitou-se ao ver como aqueles peitos, generosos e firmes, se moviam sutilmente enquanto a noviça mergulhava a pena no tinteiro. Não pôde, não quis, evitar que sua mão se enfiasse por baixo do hábito, até encontrar a brecha vertical que reclamava carícias. O dedo médio da madre Michelle ia e vinha de uma comissura a outra que formavam aqueles lábios mudos, ao mesmo tempo que observava como os mamilos da jovem monja roçavam o papel enquanto procurava no ar a palavra justa que haveria de escrever. Por momentos Christine se recostava contra o encosto com certa displicência, mostrando, sem saber, a extensão de suas pernas compridas e ao mesmo tempo fornidas; então a abadessa tinha que afogar os gemidos que lutavam para romper o silêncio mona- cal. Agora, um dedo não lhe era suficiente para acalmar o ardor úmido que penetrava até as entranhas, de modo que se acariciava o interior, indo e vindo com o indicador, o médio e o anular. De repente, madre Michelle pôde ver como a jovem monja se aprumava um pouco, esticando-se para alcançar um copo com água que estava na ponta da escrivaninha, deixando ver umas nádegas redondas, apertadas e tão duras como as volutas de madeira da cadeira sobre a qual estava sentada. Então sim, a abadessa não conseguiu mais se conter e, envolta num véu de suor, bateu à porta com desespero. Christine, como num ato reflexo, fechou subitamente o caderno e procurou com o olhar um lugar onde pudesse escondê-lo; tão austero e despojado era seu aposento que não encontrava a menor fenda. Apertando o caderno contra o peito nu, ia e vinha com desespero, sem saber que estava sendo observada. Outros três golpes voltaram a sobressaltá-la. — Quem é? - sussurrou Christine, simulando a voz de quem acaba de acordar. A abadessa anunciou-se com um tom de urgência, exigindo que abrisse a porta. Christine jogou rapidamente o hábito por cima, escondeu o caderno embaixo do catre e entreabriu apenas a porta. Então pôde ver madre Michelle em pé, com as faces afogueadas e a respiração agitada.

 

- Madre, a senhora está bem?- disse sinceramente preocupada. - Não conseguia dormir e ao passar e ver luz pensei que talvez também estivesse acordada e precisasse de um pouco de companhia. Não gostaria de me convidar a entrar? - disse a superiora diante da estupefação da noviça.

 

-É que... - hesitou Christine - é que eu estava tentando pegar no sono. A abadessa não podia confessar que havia estado espiando-a e que, ao contrário do que afirmava, a vira atarefada escrevendo. Então limitou-se a dizer:

 

- Por acaso existe alguma coisa que eu não deva saber? Christine não conseguiu evitar uma expressão de contrariada resignação e, obrigada pela suspeita da superiora, abriu a porta e a convidou a entrar. A jovem monja se apressou a sentar no catre para esconder com seu pé a borda do caderno que espreitava sob a liteira. Madre Michelle sentou junto dela. Percorria com seu olhar o corpo coberto e as partes valorizadas pelo hábito e se deteve nos lindos mamilos que ficavam marcados por cima do tecido, aqueles mesmos que acabara de ver através da fresta da porta. Christine adivinhou de imediato as intenções da madre superiora e pôde confirmá-las quando esta pousou uma mão sobre sua coxa. Um calafrio de incerta recusa correu pelas costas da noviça. Afastou-se um pouco tentando não ser descortês. Madre Michelle estava excitada demais para ficar com rodeios; parecia disposta a qualquer coisa para ter, de uma vez por todas, o corpo jovem e sempre esquivo de Christine. De maneira que, com um movimento rápido, inclinou-se por baixo da cama e, para horror da jovem religiosa, pegou o caderno que esta acabara de esconder.

 

- Talvez queira compartilhar suas leituras da mesma maneira que eu compartilho as minhas - disse a superiora, aludindo aos encontros na biblioteca, durante os quais ela lia em voz alta os testemunhos das santas. Christine considerou que se aquelas anotações ganhassem a condição pública isso poderia lhe custar a vida; e desta vez não teria outra oportunidade como quando foi exonerada por sua família. Precisava agir com rapidez. No mesmo instante que a abadessa abriu a capa do caderno, a jovem religiosa sussurrou:

 

- Durante muito tempo esperei por esse momento.

 

O rosto da superiora se iluminou. Então Christine a pegou pela mão obrigando-aa soltar o caderno. Levou um dedo da madre Michelle aos lábios, umedeceu-o com sua saliva e foi guiando-o lentamente através do seu pescoço e depois pelo peito, até seu próprio mamilo, traçando uma trilha úmida, tórrida. Fechou os olhos como se assim pretendesse não ser testemunha daquele quadro que não protagonizava mas que propiciava com o único propósito de impedir que a abadessa lesse suas cartas. E assim, guiando o indicador da priora, Christine foi deslizando-o de um mamilo ao outro. Apertava as pálpebras imaginando que era o dedo de Aurélio; aquela idéia lhe permitia continuar e, desse modo, vencer a repulsa. Madre Michelle se desmanchava em gemidos; por fim conseguira o que tanto desejava desde o dia em que vira Christine pela primeira vez. A abadessa desfrutava perversamente o fato de que fosse sua subordinada quem tomara o comando da situação, ficando completamente à sua mercê. Dessa maneira, ao tomar a iniciativa, a noviça podia avançar por onde ela decidisse e, ao mesmo tempo, colocar limites à inesgotável lascívia da superiora. Mas ainda estava sobre a saia da madre Michelle o caderno que continha as heréticas anotações, fato este que mantinha a inquietação de Christine; quando a jovem religiosa tentou pegar o caderno e afastá-lo, a abadessa o apertou entre suas coxas como se soubesse que daquele objeto dependia a prolongação da cena. Christine soube então que não ia ser uma tarefa simples recuperar suas anotações. Ficou em pé, afastou-se alguns passos e tirou o hábito exibindo seu corpo nu diante da madre Michelle. Depois girou a cadeira que estava junto à escrivaninha e sentou oferecendo suas pernas abertas, com a intenção de que a superiora tivesse que se aproximar dela e, desse modo, largasse o caderno. Mas a mais velha das religiosas, ao ver o espetáculo que tinha diante dos olhos, aferrou o caderno entre as coxas com mais força e, com um suave movimento ascendente e descendente da cintura, começou a esfregar a parte interna das coxas na rígida e grossa lombada do volume. Isso lhe permitia manter as mãos livres, de maneira que com elas desabotoou a parte de cima do hábito, deixando ver peitos que eram grandes, redondos e ainda viçosos. Enquanto olhava Christine, a abadessa, recostada no catre, ao mesmo tempo que se proporcionava prazer com o caderno aferrado entre as coxas, acariciava seus mamilos aproximando-os por momentos da sua própria boca e percorrendo-os com a própria língua. Ao contrário do que se havia proposto, Christine via com desespero como a superiora, longe de largar os heréticos escritos, estava quase incorporando- os. De alguma forma precisava recuperá-los. Depois de deleitar madre Michelle mostrando-lhe sua jovem humanidade nua, endireitou-se, foi até ela, ajoelhou-se a seus pés e, com decisão, levantou-lhe a saia do hábito. Mas quando quis ir além dos joelhos, a jovem deparou com a resistência da priora que não parecia disposta a soltar seu botim. Aquele ia ser um árduo trabalho. Então Christine mudou a estratégia: evidentemente não se tratava de afastar as pernas da superiora com violência, como quem força uma porta, mas de encontrar a delicada chave que lhe permitisse abrir com suavidade. Assim, a noviça criou coragem, abraçou amorosamente a monja e a beijou nos lábios. Quando sentiu que estava à sua mercê, sem deixar de beijá-la, pegou seus seios e os acariciou como só as mulheres sabem fazê-lo, dando- lhe prazer nos lugares em que ela gostava de recebê-lo. Christine, que estava em cima da madre Michelle, de repente girou sobre seu eixo ventral, deixando de repente seu sexo no meio do rosto da abadessa e pousando seu próprio rosto sobre a saia da priora. Só então a superiora abriu as pernas deixando cair, por fim, o valioso caderno de anotações. Mas agora, sim, precisava ir até as últimas conseqüências. Era o preço que aceitara pagar por suas notas. Christine nunca antes havia tocado o sexo de uma mulher, se bem que, dada sua experiência com seu próprio corpo, podia saber exatamente como tratá-lo para dar-lhe o maior gozo. E assim o fez. E não teve outro remédio senão permitir que o mesmo fizesse com ela a abadessa, cuja prática para dar prazer era proporcional à sua idade e sabedoria. Afogadas em seus próprios gemidos, as duas mulheres se entregaram por completo uma à outra até que aconteceu, ao mesmo tempo, o êxtase e, depois, o grato cansaço da tarefa cumprida.

 

Satisfeita e agora acalmada, madre Michelle vestiu-se e, tendo recuperado o sono perdido, abriu a porta do claustro para dirigir-se aos seus aposentos. Christine abraçou seu caderno e assim adormeceu, na esperança de que ao acordar não lembrasse de mais nada do acontecido.

 

LIREY, 1347

Geoffroy de Charny não era original em sua ambição para obter objetos sacros do modo que fosse. De fato, o culto às relíquias remontava à época de Ambrósio, bispo de Milão por volta do ano 300. Se Roma conservava os restos de Pedro e de Paulo, se Constantinopla tinha André, Lucas e Timóteo, se em Jerusalém haviam encontrado a cabeça de João Batista, as correntes que martirizaram Paulo e até a cruz de Cristo, sua cidade não podia ficar atrás. Ambrósio mantinha em relação às relíquias um interesse que beirava o doentio. Assim, durante seu bispado proliferaram os achados que, se não em sua totalidade, na maior parte dos casos eram grosseiras fraudes: o bispo de Milão estava fascinado com os pregos que atravessaram a carne de Jesus e, convertidos em jóias,

haviam sido exibidos por Helena, a mãe de Constantino, em seu cetro. O culto foi tomando laivos de superstição, a ponto de Vigilâncio ter denunciado a adoração de relíquias como obra dos idólatras. A autoridade política via com preocupação como cresciam as profanações dos túmulos dos santos por parte de certos monges que, sem escrúpulos, esquartejavam os corpos e vendiam suas partes como se se tratassem de reses. As coisas chegaram a tal extremo que Teodósio viu-se obrigado a publicar uma norma que dizia: "Não poderão ser exumados nem trasladados os corpos sepultados. Não se permitirá vender, nem comprar, nem traficar de modo algum as relíquias dos mártires". E isso era, justamente, o que Henri de Poitiers queria evitar. Cada vez que Geoffroy de Charny sugeria a possibilidade de trazer a maior das relíquias da cristandade para a Igreja, o bispo de Troyes adotava a cautelosa atitude de Vigilâncio e Teodósio contra o fanatismo fúnebre de Ambrósio. Mas tanto Geoffroy de Charny como o antigo bispo de Milão, em sua época, sabiam que era muito mais fácil entrar no coração da plebe pela superstição do que pela fé, por meio da magia do que pela palavra das Escrituras, e pela credulidade antes que pela crença. Os deuses pagãos da Antigüidade, uma vez depostos, transformaram-se em horrendos demônios que assombravam as almas supersticiosas. Assim, os restos dos santos revelavam-se um corpo protetor diante dos diabólicos espíritos que vinham das trevas. Quanto mais relíquias uma igreja entesourava, tanto maior era o número de paroquianos que, a cada dia, buscavam amparo em seu refúgio. Geoffroy de Charny lembrava ao bispo de Poitiers que haviam sido erguidas catedrais sobre os túmulos dos santos, que a simples costela de um mártir podia arrastar multidões. Mas o prelado sequer se manifestava interessado em saber qual era a relíquia que o duque dizia possuir. E o certo era que, mesmo sem ter sequer a falsificação, Geoffroy de Charny já se achava dono do autêntico sudário que havia coberto o corpo de Cristo. Vendo que todas as conversações com Henri de Poitiers não haviam dado nenhum resultado, o duque decidiu levar adiante seu projeto e, com a relíquia em seu poder, obter a permissão de ninguém menos que o próprio papa se fosse necessário para construir sua igreja. Antes de solicitar a opinião de um artista, instalado em sua casa do pequeno povoado de Lirey, o duque concebeu como teria de ser o aspecto do sudário. Em primeira instância deveria ter caráter milagroso: assim como o mítico lençol de Edessa e aquele que vira recentemente em Oviedo, tinha que dar o testemunho da figura impressa de Jesus Cristo. Com efeito, mandaria para o esquecimento o insignificante sudário de Oviedo e, por outra parte, para que o seu resultasse verossímil, deveria ter uma sustentação histórica. Tal como projetado, depois de apresentar sua relíquia em público, deixaria que as pessoas acreditassem que era aquele o famoso mandylion de Edessa, e que havia se apoderado dele de forma heróica como o cavaleiro templário que, na verdade, nunca foi. Mas se deparava com uma grande dificuldade: de acordo com todas os testemunhos, o duvidoso manto de Edessa só representava o rosto de Jesus. Disso não havia dúvida; podia haver alguma suspeita sobre a existência certa do perdido sudário da Turquia, mas, mesmo que fossem mitos, todos eles falavam de um lenço que havia coberto apenas o rosto de Cristo. E Geoffroy de Charny não se conformava com uma pequena peça. Tinha que representar o Filho de Deus de corpo inteiro. Então, de repente, teve uma iluminação: uma idéia que conciliava ambas as possibilidades abriu caminho entre as alternativas. Aquela imagem de Jesus impressa num tecido que, segundo o que se dizia, fora vista durante os dias de sítio da cidade turca não seria um lenço, mas um extenso lençol dobrado de tal forma que só deixava ver o rosto de Cristo. Com seu pulso pouco hábil, o duque pegou um papel amplo e, com um pedaço de carvão, desenhou uma figura humana. Dobrou-o e desdobrou-o várias vezes, até que por fim conseguiu que apenas ficasse visível o rosto. Para que isso acontecesse tivera que dobrar o lençol sobre si mesmo em quatro dobras. Disse a si que aquela era uma idéia magistral. Dessa forma o mítico mandylion de Edessa ia ser uma mortalha que envolvera o corpo inteiro de Cristo. Existia numa igreja de Avignon uma pintura cuja visão comovera enormemente Geoffroy de Charny; tratava-se de um díptico que mostrava num painel Jesus sendo baixado da cruz e, no outro, como seu corpo era envolto num lençol por José de Arimatéia. Então deu-se conta de que o sudário da pintura era um tecido tão extenso que envolvia o corpo inteiro. As costas de Jesus repousavam sobre o tecido, depois este se dobrava na cabeça e o cobria pela frente até os pés. Se o sudário de Cristo era na verdade tal como aparecia no díptico, isso colocava alguns problemas mas, com certeza, igual quantidade de vantagens. Em primeiro lugar, o lençol deveria ter pelo menos o dobro do comprimento. Geoffroy de Charny voltou a desenhar desajeitadamente a figura num papel maior e pôde comprovar que agora, para que apenas o rosto ficasse visível, deveria fazer oito dobras. Seria, considerou, um tecido volumoso demais para que durante tanto tempo se tivesse acreditado que era um pequeno lenço. No entanto, aos olhos do duque, essa alternativa apresentava uma vantagem inestimável: não só ficaria impresso o rosto de Jesus como no trapo de Oviedo, mas o corpo inteiro, de frente e de costas. Esta possibilidade era muito mais eloqüente, já que apresentava um virtual díptico da frente e das costas de Jesus Cristo, mostrando-o, pela primeira vez, integralmente, como havia sido. O coração do duque bateu com força só de imaginar. Se contasse com habilidade suficiente, teria iniciado a obra com suas próprias mãos naquele exato momento para que ninguém além dele conhecesse o segredo. Mas iria precisar de um artista e, certamente, um com muitíssima competência. Mas, bem, de que modo teria se formado a figura de Cristo no tecido? De maneira milagrosa, com certeza. Mas como teria de ser o aspecto desse milagre operado sobre o pano? Teria de ser algo assombroso e nunca visto. Descartou rapidamente a idéia de que a imagem estivesse impressa com sangue ou outra substância que apresentasse a mesma aparência, por duas razões: em primeiro lugar, o sangue era um composto físico que poderia turvar o caráter metafísico do milagre e, em segunda instância, podia levantar a suspeita de que fosse um arremedo do tecido da Catedral de Oviedo. Desdobrou sobre o chão o sudário que havia comprado na tenda da praça e voltou a examiná-lo com escrúpulo: era uma falsificação tão grosseira que, considerou, iria lhe servir de modelo do que não deveria fazer. Notava-se a mão do pintor a tal ponto que podiam distinguir-se as pinceladas. As feições de Cristo eram uma cópia exata do rosto representado pela primeira vez em Bizâncio e depois reproduzido à exaustão em uma infinidade de pinturas, entalhes e esculturas. As cores eram demasiadamente brilhantes e reais para que se tratasse de um fato milagroso; não aparentava ser em absoluto uma impressão obrada por Deus, supondo-se que Deus houvesse se dedicado a um passatempo tão banal em comparação com suas altíssimas ocupações. O duque considerou que o sudário que ele haveria de mandar executar não deveria lembrar uma pintura, não teria que ser visto como um feito artístico, nem despertar nenhuma inquietação estética, e a técnica empregada seria inédita e incomparável. A obra teria que ser de uma natureza tal que produzisse no espectador o mesmo arroubo que um milagre.

 

Para pôr mãos à obra imediatamente, o duque devia conseguir um tecido adequado. Esta não era uma questão simples, já que os antigos tecidos de uso corrente na Palestina eram bem diferentes dos que podiam ser comprados numa loja. Tampouco se tratava de um detalhe menor, já que Geoffroy de Charny sabia que seu lençol "santo" iria ficar sujeito ao férreo olhar de seus críticos, a começar por Henri de Poitiers. Por outra parte, os tecidos do Oriente Próximo antigo eram bem característicos e diferentes entre si; de fato, era tal a importância da produção têxtil que cada cidade era homônima dos tecidos que a distinguiam: de Gaza provinham os panos com os quais se costumava envolver os mortos, os tecidos de fustão eram de uma aldeia do Cairo chamada Fustat, o tecido conhecido como damasco tomou seu nome da cidade síria, a musseline havia sido introduzida na Europa a partir da cidade persa de Mosul, o baldacco era o nome italianizado de Bagdá e daí vinha o baldaquino, aquele pequeno dossel que enfeitava os altares, o tafetá que era próprio de Taftah e o tabis, bem conhecido na França, que provinha do subúrbio de Attabiyya. O duque, devoto das relíquias, não ignorava que os materiais e sua manufatura delatavam facilmente uma falsificação. No entanto, não era fácil conseguir um antigo tecido virgem da Palestina.

 

VENEZA, 1347

Somente para procurar um tecido, Geoffroy de Charny empreendeu uma viagem a Veneza por dois motivos: o primeiro, para passar inadvertido, já que em Troyes e em Lirey era uma pessoa pública e não podia comprar um tecido e depois apresentálo como um relíquia diante do nariz do comerciante que o havia vendido; o segundo, porque a cidade dos canais, além de ser um centro comercial incomparável, estava fortemente influenciada por Bizâncio e era possível conseguir nela tecidos de qualquer lugar do Oriente e do Oriente Médio. No mercado próximo à praça de São Marcos comprou de um comerciante sírio um tecido de gaze; fez isso com pouca convicção já que era fino demais para ser o que havia envolvido o filho do carpinteiro. Depois considerou um tecido de fio incerto e rústico, cuja confecção apresentava uma aparência realmente antiga e também o comprou. Por último, soterrado por uma multidão de panos e tapeçarias coloridos, descobriu um tecido de linho que se destacava do resto por sua branca austeridade. Geoffroy de Charny considerou que bem poderia passar por aquele lençol que José de Arimatéia havia comprado. Mas quando o observou mais detidamente, notou que a trama era de ponto de espiga de três cruzes, um tecido diferente do simples entrecruzado plano que se usava para fiar o linho na época de Jesus. Embora o ponto de espiga fosse moderno demais para que pudesse passar por um tecido feito nos velhos teares palestinos, cuja técnica era a elementar trama e urdidura, o duque considerou que eram três excelentes tecidos e partiu de volta à França satisfeito com sua mercadoria.

 

Agora lhe faltava decidir o mais importante: qual seria a representação de Jesus. Assunto aparentemente simples, mas que apresentava mais problemas do que se poderia supor.

 

TROYES, 1347

Apesar do empenho que Christine pôs para esquecer o episódio que protagonizara com madre Michelle, para seu desconsolo foi a primeira coisa da qual lembrou na manhã seguinte quando acordou abraçada ao seu caderno. A partir daquela noite nunca mais conseguiu olhar nos olhos da abadessa e evitava a todo custo ficar a sós com ela. Suas visitas à biblioteca tornaram-se cada vez menos freqüentes para evitar qualquer circunstância que pudesse propiciar um encontro a sós. Sentia-se profundamente humilhada e, embora não fosse uma menina e tivesse o entendimento suficiente para proceder de acordo com seu maduro critério, considerava que havia sido abusada pela superiora. Não porque ignorasse que no final havia sentido prazer; ao contrário, tinha consciência e era isso justamente o que lhe provocava uma imensa indignação, não só em relação à abadessa, mas em relação à sua própria pessoa. Madre Michelle, tirando partido de seu cargo, da superioridade hierárquica e do ilimitado poder que tinha sobre suas filhas de clausura, não fazia mais que corrompê-las. Aquele era o termo que melhor se ajustava ao sentimento de Christine: corrompida; porque além de vexada, humilhada e submetida havia lhe propiciado prazer contra sua vontade. Era o mesmo modo de proceder dos pederastas: o maior delito dos corruptores de crianças não era o vexame, mas o fato de conseguir, à força da submissão repetida, a domesticação dos sentidos até dobrar o espírito. De forma que as crianças terminavam tendo a percepção de que agiam por vontade própria. Mas como Christine era adulta e inteligente, podia compreender que, por mais que houvesse gozado, tinha sido um ato repulsivo. A partir daquele incidente sua vida no convento se transformara num novo tormento. Cuidando cada vez mais de não ser surpreendida de novo, aprendera a escrever na penumbra para que a luz do candeeiro não a delatasse. Por outra parte, encontrou um esconderijo perfeito: a biblioteca. Em seu claustro não existia esconderijo possível, era pequeno e despojado demais. Entre os numerosíssimos volumes que se apertavam nas estantes da biblioteca, seu livro de anotações passava completamente despercebido, mesmo estando à vista de todo mundo. E mesmo que pudesse existir a remotíssima possibilidade de que por acaso alguém o pegasse por engano, nada indicava a quem pertencia a autoria daqueles manuscritos. Cada noite, completamente no escuro na biblioteca, Christine escrevia em forma de cartas a Aurélio suas impressões sobre os mais variados assuntos. Mas não podia evitar um tom de desilusão: Padre Aurélio:

 

Com o passar dos dias, cada vez me sinto mais prisioneira dentro deste hábito que cinge meu corpo mas ainda mais meu espírito. Vou falar-vos com o coração nas mãos. O que vou dizer-vos irá doer mais em mim do que em vós. Sabeis o quanto amei Jesus durante minha infância, e para mim sua figura magnânima, generosa e humilde foi o exemplo que não podia encontrar em meu próprio pai. No entanto, não posso ser cega a um fato evidente por mais que a Santa Igreja, desde sua própria fundação, tenha tentado ocultar. Um fato que, por sua própria gravidade, desmente de uma vez e para sempre o fundamento sobre o qual descansa toda a doutrina de Cristo e torna enigmático o porquê de sua transcendência no tempo.

 

Antes que atireis ao fogo esta carta e me repudieis para sempre, permiti-me que vos exponha meus argumentos. Sem dúvida, o triunfo do cristianismo sobre as religiões provenientes do Oriente, do Egito e da Grécia e com seus cultos e deuses em fusão em Roma deve-se à nunca igualada figura de Jesus Cristo. Foi tal o impacto que sua sublime pessoa produziu em seus contemporâneos, em seus discípulos e seguidores, que sua mensagem transcendeu muito a brevidade de sua passagem por este mundo. Tão convincente foi sua prédica, tão nova sua doutrina como inesquecível sua paixão, seu padecimento e sua morte. A gigantesca dimensão de Cristo como homem eclipsou sua principal profecia nunca cumprida, tal como havereis de ver se me outorgais a oportunidade de que vos demonstre. O embasamento da doutrina de Jesus era a iminência do fim do Mundo. Jesus Cristo e seu punhado de discípulos constituíam uma pequena seita apocalíptica que predicava urgida pela proximidade da conclusão dos tempos. O dia do juízo final era um fato tão próximo que erapreciso procurar com rapidez a redenção para prestar contas perante o Supremo. Toda a prédica de Jesus se apoia nesta premissa. Mas Jesus, além disso, apresentou-se como o Messias. Foram estas duas razões, somadas, as que fizeram fracassar suapredicação perante o povo judeu. O Messias que osjudeus esperavam não devia trazer consigo a hecatombe, mas, ao contrário, o Enviado da Casa de Davi haveria de restaurar o reino de Israel e devolvê-lo aos seus dias de esplendor; o Messias não seria o que haveria de anunciar o Apocalipse, mas quem erigiria Jerusalém no coração do Mundo. Por outra parte, para o Império Romano, Jesus de Nazaré não significou mais que um pequeno incidente sem a menor importância. Depois da paixão, crucificação, morte e ressurreição de Cristo, os cristãos primitivos passaram o resto de suas vidas esperando seu iminente retorno e, em conseqüência, o Apocalipse. Como é evidente, este fato jamais aconteceu. Era de se esperar que, diante da eloqüente falta de consumação de tão fundamental premissa, o cristianismo haveria de cair pelo peso de seu próprio fracasso: assim como os judeus puderam confirmar seu ceticismo vendo que o Mundo não se extinguia, era de se esperar que a decepção se apoderasse inclusive de seus seguidores. Por que razão, longe de se dissolver, a primitiva Igreja apostólica cresceu em número de fiéis e se afirmou dentro do Império até se converter na religião de Roma e se estendeu até a Síria e a Ásia Menor? Se a principal condição do cristianismo não se concretizava, então era preciso fazer com que os fiéis esquecessem esse caráter apocalíptico original. Assim foi-se produzindo uma sutil embora substancial mudança na doutrina de Jesus. A vida no além e o destino da alma não iriam depender da sentença surgida do Juízo Final de todos os homens depois do fim do Mundo, mas imediatamente após a morte de cada indivíduo. O regresso do Messias não seria já um fato tão próximo como o foi a ressurreição em relação à sua morte. A volta de Cristo iria ver-se postergada indefinidamente e já não seria preciso esperar o Apocalipse mas a expiração de cada mortal, quando chegasse sua hora, para prestar contas diante de Deus. Mas é impossível não enxergar que os principais valores da doutrina de Jesus tinham sentido apenas à luz da iminência do final dos tempos. O desdém pelos bens materiais, o elogio da pobreza, a asseveração de que seria mais fácil um camelo passar por uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus, tudo isso tinha como base a fé na eternidade diante do fim do Mundo. Para que podiam servir as riquezas terrenas tendo pela frente oApocalipse? A fraternidade, o amor ao próximo e inclusive ao inimigo não eram senão a necessidade do perdão final e a reconciliação eterna naquele além de glória infinita. Que utilidade poderia ter a lei de Talião, da revanche, do olho por olho, dente por dente, diante da proximidade do Juízo Final? Era esse fato que igualava todos os homens. Por isso, também, era necessário o elogio do sofrimento, da dor e do martírio, e, conseqüentemente, o repúdio do prazer, da felicidade e da prosperidade: era preciso pagar aqui, na Terra, para ter acesso à eterna felicidade. E também na concepção apocalíptica dos cristãos primitivos está a semente da castidade e da virgindade, da proibição da união da carne com a carne. Além do prazer vedado para alcançar a glória eterna, para que trazer filhos a um mundo em extinção? O reino dos Céus estará aberto para os mortos uma vez ressuscitados, do mesmo modo que Jesus havia se erguido do sepulcro. A vida após a ressurreição estaria em outro lugar, não aqui na Terra, e seria para sempre; mas para que isso acontecesse, antes deveria ocorrer o Apocalipse. Esse e não outro era o sentido da redenção; o Messias chegaria para nos redimir de todos osnossos pecados, para chegarmos puros ao Juízo Final. Isso explica o porquê das privações que o cristianismo impõe, diferentemente do que ocorre nas religiões em que oprazer, a felicidade, a celebração da fertilidade, da vida e da prosperidade são parte de sua essência. Mas já vedes, apesar da profecia fundamental do cristianismo, aqui estamos, ainda, sobre a face da Terra, condenados a sofrer sem motivo, sem que esteja à vista o final dos tempos. Aquela herética expressão especulativa de Christine era, no fim das contas, uma tortuosa declaração de amor; com aquele novo ponto de vista sobre o cristianismo como seita apocalíptica que havia estendido seus princípios de sofrimento e castidade apesar do não-cumprimento de sua premissa fundamental, Christine não pretendia assentar teoria mas alcançar um propósito muito mais modesto: abrir os olhos, o coração e o apetite carnal de Aurélio. Talvez não fosse aquela a melhor forma de consegui-lo, mas até aquele momento não tinha outra.

 

LIREY, 1347

Geoffroy de Charny não queria contratar os serviços de um artista antes de ter concebido por inteiro a aparência da obra. O artista seria um mero executor de sua idéia. Dessa forma pretendia evitar que os preconceitos do pintor, fosse quem fosse, guiassem o curso do seu plano. O duque não queria uma obra de arte, mas uma relíquia, de modo que necessitava prescindir do presunçoso julgamento de um artista. Não precisava mais do que da pura mão-de-obra. Mas ainda não decidira qual dos três tecidos que havia comprado em Veneza haveria de utilizar, nem que aspecto teria o Cristo de seu sudário. Não era esta última uma questão menor, já que a fisionomia de Jesus Cristo era um assunto que despertava intensos debates. Qual era a verdadeira aparência do Nazareno? As diferentes representações ao longo da história variavam radicalmente. As primeiras imagens de Jesus haviam sido encontradas em distintas catacumbas. Na cripta do cemitério de São Calixto havia afrescos muito rudimentares influenciados pelo modo de representação helênico. Naquela época eram freqüentes as imagens de Cristo personificado sob a forma conhecida como O bom pastor: era visto robusto, sem barba, com o cabelo curto e carregando uma ovelha sobre os ombros.

Geoffroy de Charny tinha muitas reservas quanto à veracidade desta imagem, já que era fácil deduzir que a figura era tomada emprestada sem mudança alguma do Jovem do bezerro, o moscóforo grego que datava de 570 a.C. Para o duque esta não era uma representação de Jesus mas uma metáfora, já que os cristãos primitivos ainda se atinham, embora de modo incerto, à proibição de adorar imagens. Esta hipótese via-se reforçada em grande parte da iconografia das catacumbas: a pomba era a alma, o pavão-real a eternidade, a videira ou a espiga aludiam à eucaristia. Jesus também aparecia simbolizado pela figura do peixe: em grego o vocábulo ikhthys, que significa "peixe", contém as iniciais do Salvador: Iesus Khristos Theu Yos Soter, Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. Geoffroy de Charny conjeturou que a representação imberbe de Jesus Cristo feita pelos cristãos primitivos não tinha o valor de um retrato, mas de um símbolo. No entanto, o duque não queria deixar nenhum detalhe por conta do acaso; tinha que contar com a imagem de Cristo que se mostrasse não só verdadeira, mas, além disso, verossímil. Por outra parte, Geoffroy de Charny não encontrou nos evangelhos nenhum detalhamento sobre a fisionomia do Filho de Deus. As pinturas paleocristãs apresentavam diversas imagens de Jesus Cristo e da Virgem, mas como naquela época já não restavam vestígios certos da transmissão oral daqueles que haviam visto Cristo, nem o Evangelho mencionava nada em virtude da lei mosaica que proibia representar imagens, durante os séculos II e III foram tomados modelos do mundo clássico grecoromano. Tanto na catacumba de São Calixto como na de Priscila, Jesus Cristo aparece como Mestre, seguindo o costume dos antigos filósofos gregos. A Virgem era representada como mãe, como o Bebê sentado em seu regaço. Estas imagens haveriam de inspirar a arte bizantina com a manifestação do Theotokos, que mais tarde será adotado pela iconografia românica. O duque revisou o maior número de códices que estavam a seu alcance para estabelecer a exata imagem que devia ter tido o Cristo. Revelava-se um fato misterioso o aparecimento de diversas imagens de Cristos negros em diversos lugares da Europa; em Marsat e em Rocamadour, em Altõtting e Colônia, em Glastonbury e Walsingham, em Loreto e Nápoles, em Montserrat e Solsona, em Madri e na Extremadura, haviam sido encontrados entalhes de diversos salvadores negros. Teceram-se muitas hipóteses em torno dessas esculturas, como por exemplo que na época de Jesus Cristo a região da Palestina estava povoada por uma mistura de egípcios, etíopes e babilônios, provenientes, em maior ou menor medida, do centro da África. De acordo com estas conjeturas, não era de estranhar que Cristo tivesse sido negro. A este fato havia-se somado o não menos estranho achado de várias virgens negras disseminadas nas costas do mar Mediterrâneo. Conseqüente com esta lógica, se Maria tinha ascendência em algum lugar da África, era lícito supor que também Jesus fosse negro. Mas Geoffroy de Charny sabia que todas estas especulações eram fruto daqueles que, guiados por um espírito obscurantista, jogavam sombras onde devia-se lançar luz. A explicação dos Cristos e das virgens negros era muito simples: na época em que foram feitos, a cor da pele costumava ser pintada com pigmentos aglutinados com azeites, enquanto as roupas eram coloridas com tempera a ovo. Com freqüência acontecia que esses óleos primitivos, em contato com a luz e o ar, acabavam enegrecendo totalmente, como resultado da oxidação. Era então perceptível como as roupas, pintadas com tempera, conservavam inalterada sua cor. A prova mais conclusiva desse fato era que a fisionomia dos entalhes não apresentava os traços distintivos da raça negra. De modo que o duque descartou inteiramente esta possibilidade para seu lenço, não só por ser inverossímil, mas porque, além disso, seria imediatamente rechaçada pela Igreja: de acordo com a autoridade eclesiástica, os negros, assim como os animais, careciam de alma.

 

Geoffroy de Charny comprovou que a partir de Bizâncio generalizou-se a representação mais difundida, que era o Jesus Cristo Pantokrator, cujo mais antigo registro era, talvez, o afresco da igreja de Santa Catalina no Sinai. Os novos cânones iconográficos se ajustavam alegoricamente, e segundo as normas da Hermeneia, às diferentes partes de um templo: assim o Cristo Pantocratos, representado como uma Majestade abençoando com os dedos indicador e médio elevados, devia estar na cúpula, o Tetramorfos, ou seja, os quatro evangelistas, nas pendentivas; a Virgem na abside e por último os santos e temas evangélicos nas paredes das naves. Este era um Cristo bem diferente do paleocristão, apresentava uma barba generosa, em alguns casos dividida, a expressão severa do sumo senhor de todas as coisas, dimanando uma luminosidade digna do livro que segura, em cuja capa lia-se: "EGO SUM LUX MUNDI". A cabeça estava ornamentada com a auréola crucífera e flanqueada dos lados pela primeira e última letras do alfabeto grego, alfa e ômega. Os pés descansavam sobre um pedestal semicircular que simbolizava o mundo. Esta era, sem dúvida, a imagem que mais havia se difundido e que mais viva impressão provocava em Geoffroy de Charny. De fato, o duque entesourava várias imagens do Cristo Criador de todas as coisas, as quais colecionava com devoção. Tinha várias moedas bizantinas cunhadas entre os séculos VII e X que levavam a imagem do Pantocrator. As que mais apreciava datavam dos anos 692 a 695, correspondentes à época de Justiniano II. Eram de ouro e se dividiam em duas categorias: umas, chamadas tremissis, e as outras, denominadas solidus. Um solidus pesava o triplo de um tremissis. Embora as de menor valor tivessem a bela dedicação das miniaturas, as solidus, como seu nome anunciava, apresentavam uma aparência que impunha respeito. A figura de Jesus podia ser vista tão vívida e real que parecia querer erguer-se da superfície plana do metal. Geoffroy de Charny não podia evitar de estremecer toda vez que via essas moedas, já que eram a síntese perfeita de suas duas grandes paixões: a religião e o dinheiro. Para sua filha Christine, em compensação, era aquela a prova mais contundente da corrupção a que havia chegado a Igreja; não podia conceber como tinham conseguido conciliar a humilde figura de Jesus com o símbolo mais eloqüente do que ele repudiara em sua predicação.

 

O duque sempre acreditou que aquelas moedas tinham influenciado sua sorte; e enquanto as acariciava esperando que o iluminassem em sua nova empresa, sequer suspeitava que aqueles solidus iam converter-se na chave de seu sudário.

 

TROYES, 1347

Christine, roubando horas ao sono, escrevia sem parar durante as noites até que brilhavam as primeiras luzes da aurora. Logo descobriu que se queria recuperar o amor de Aurélio tinha que construir uma doutrina do amor que não só contradissesse o Evangelho, mas que se apoiasse nele. Não era difícil encontrar no Antigo Testamento alusões à sensualidade e ao amor carnal entre o homem e a mulher; de fato, o Cântico dos Cânticos era uma extensa celebração do encontro dos corpos. Mas no Novo Testamento as menções à sensualidade eram todas condenatórias. No entanto, Christine encontrou nas passagens mais impensadas das Sagradas Escrituras a vindicação cristã do corpo e dos sentidos. Assim, escreveu: Uma das conseqüências mais sensíveis da queda do Advento iminente foi a confusão que se gerou em torno da doutrina da ressurreição dos mortos. Se interrogarmos qualquer um que se diga cristão sobre o que há de acontecer depois da morte, vos responderá com a mesma inocência de uma criança: dirá que se tiver procedido segundo o que Deus manda, tendo sido batizado, recebido os sacramentos e estando limpo de pecado, há de esperá-lo o céu depois que expire. Com a mesma candura, dirá que aquele que morreu sem batismo e em pecado irá direto para o inferno. Sustentará que no momento de seproduzir a morte, a alma se separará do corpo para elevar-se até encontrar-se com a glória de Deus pelos séculos dos séculos, ou então que a alma descerá aos infernos para sofrer por toda a eternidade. Esta é a idéia geral: que o corpo é finito e a alma eterna. Bem, os sacerdotes deveriam dissuadir osparoquianos de semelhante idéia que contradiz a palavra de Jesus e as Escrituras. Durante os últimos tempos, parece que nosso clérigos costumam desprezar o corpo em favor da alma, em oposição ao exemplo vivo que nos foi legado por Nosso Senhor Jesus Cristo ao ressuscitar com seu corpo dentre os mortos. A crença na ressurreição dos mortos é dogma de fé, portanto, todo aquele que diga que o corpo se corrompe de uma vez e para sempre, comete pecado. O ensinamento de São Paulo insiste neste ponto, refutando os gentios, os saduceus e, na epístola aos coríntios, a Himeneu e a Fileto. Cometem pecado aqueles, como os gnósticos, os maniqueus e os priscilianistas, pensam que o corpo se separa da alma definitivamente. Meu querido Aurélio, não poderíeis chamar-vos de cristão se desprezásseis o corpo, já que tereis de levá-lo por toda a eternidade apartir do momento em que soem as trombetas que indiquem o final dos tempos. Podeis comprovar que tudo o que afirmo está nas Escrituras. Lede as palavras de São Paulo, na Epístola aos Coríntios, capítulo 15. 12. E se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como dizeis alguns entre vós que não há ressurreiçãodos mortos? 13. Pois, se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. 14. E se Cristo não ressuscitou é pois vã a nossa predicação, é também vã a nossa fé; 15. E somos assim considerados falsas testemunhas de Deus, porque demos testemunho contra Deus (dizendo) 125 que ressuscitou a Cristo, ao qual não ressuscitou, se os mortos não ressuscitam.

 

  1. Porque se os mortos não ressuscitam também Cristo não ressuscitou; 17. E se Cristo não ressuscitou é vã a vossa, porque ainda permaneceis nos vossos pecados. (...)

 

  1. Porque, assim como a morte (veio) por um homem, também por um homem (veio) a ressurreiçãodos mortos. Digo-vos então, meu querido Aurélio, que comete pecado quem pretende que a morte do corpo é o destino do homem, e que na morte se alcança a paz, já que Deus é Deus de vivos e não de mortos, e o que vence a morte como o fez Jesus. Assim nos diz São Paulo:

 

  1. Ora o último inimigo a ser destruído será a morte. (...) Mas dirá alguém: Como ressuscitarão os mortos? E com que corpos virão?

 

As mesmas palavras de Jesus respondem a esta pergunta que formula São Paulo; nos sinópticos diz como serão os mortos depois da ressurreição, quando replicando os saduceus afirma: "Quando os mortos ressuscitem, nem o homens tomarão mulheres nem as mulheres maridos, mas serão como os anjos de Deus, que estão nos céus. Agora, a respeito de que os mortos tenham de ressuscitar, não leste no livro de Moisés como Deus falando com ele na sarça, lhe disse: 'Eu sou o Deus de Abraão e o Deus de Isaac e o Deus de Jacó?' E em verdade que 'Deus não é Deus de mortos e sim de vivos". Meu querido Aurélio, não posso mais que me entristecer ao ver com que hostilidade falais de vosso corpo como se fosse um inimigo e não a carne com a qual haveis de comparecer no dia do Juízo Final. Outra vez, apelo a Paulo quando diz:

 

  1. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis; e nós seremos mudados. 53. Porque importa que este (corpo) corruptível se revista da incorruptibilidade, e que este (corpo) se revista da imortalidade.

 

  1. E quando este corpo mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória.

 

Portanto, vos repito, meu querido Aurélio, não desdenheis o corpo, não o flageleis, nem o priveis, já que, quando chegar o momento, haverá de levantar-se da tumba para encontrar- se com a alma e assim, de corpo presente, prestarais contas perante Deus. A ressurreição como dogma de fé outorga a mesma importância ao corpo que à alma, reunindo um com a outra. É palavra de Jesus que todos, absolutamente todos os homens terão de ressuscitar; tanto os justos como os pecadores. No Símbolo dos Apóstolos afirma-se claramente: "Acredito na ressurreição da carne'. O Concilio Lateralense estabeleceu que "Todos ressuscitarão com o corpo que agora levam". Assim afirma, também, São João no capítulo V: 28. Não os maravilheis disso; porque virá a hora em que todos os que estão nos sepulcros ouvirão a sua voz; 29. E os que fizeram o bem sairão para a ressurreição de vida; mas os que fizeram o mal, para a ressurreiçãode condenação. Meu querido Aurélio, as referências à ressurreição dos mortos nas Escrituras são tão numerosas que não poderia citar todas aqui. Bem, mas quando haveremos de nos levantar dos sepulcros? Certamente quando nos caiba comparecer perante o Altíssimo. E não seremos julgados logo após morrer, como supõe a maioria dos que se crêem cristãos, mas no dia do Juízo Final, que só acontecerá quando Jesus regresse pela segunda vez, isto é, quando ocorra o Advento esobrevenha o Apocalipse. Até esse momento o Céu, como até agora, permanecerá com a única presença de Jesus Cristo à direita de Deus, e o inferno com a maléfica solidão de Satanás. Quem pense que a alma de seus mortos habita no céu comete pecado, porque ninguém pode entrar no Reino dos Céus sem que seu corpo tenha ressuscitado antes. Sustentar o contrário é desconhecer um dos mais fundamentais dogmas de fé. De fato, já no séculoII, Policarpo qualificava como filho de Satanás "aquele que negue a ressurreição dos mortos e o Juízo Final. E assim explica também Atenágoras em seu tratado De Resurrectione Mortuorum, onde diz: ''dado que o homem está composto por corpo e alma, não poderia alcançar sua bem-aventurança se o corpo não volta a se unir com a alma". Minucio Félix vê sinais da ressurreição em toda a divina criação: "Olhai como para nosso consolo toda a natureza preludia a futura ressurreição. O sol nasce e se põe, os astros se ocultam e reaparecem, as flores morrem e renascem, as árvores depois da velhice, reverdejam. As sementes só germinam quando se corrompem. Assim o corpo no sepulcro, como as árvores no inverno ocultam seu verdor com mentida aridez. Também nós temos de esperar a primavera do corpo". A Doutrina dos Apóstolos descreve com nitidez os dias do Advento, os dos últimos tempos: "O primeiro sinal será os céus abertos, depois o som da trombeta e o terceiro a ressurreição dos mortos". Por isso, Aurélio, não vos deixeis enganar pelos que, no mosteiro onde viveis, maltratam e flagelam as costas com o rigor do chicote, pois, assim como a alma, o corpo é criação divina e haverão de se reunir por toda a eternidade. Tertuliano, no século III, disse sobre a ressurreição: "Esta carne diz que Deus a formou com suas mãos e segundo sua própria imagem, que animou com seu sopro a semelhança de sua vida; esta carne não ressuscitará? Esta carne que é de Deus por tantos títulos? Ressuscitará, pois, a carne, e por certo toda e a mesma e em toda a sua integridade'. Equivocai-vos, meu querido Aurélio, se supondes, com a mesma inocência de uma criança, que será vossa alma despojada de vosso corpo a que haverá de habitar o Céu ou o Averno. Eis aqui o testemunho de vosso amadíssimo Santo Agostinho: "Ressuscitará a carne, a mesma que é sepultada, a mesma que morre, esta mesma que vemos, que apalpamos, que tem necessidade de comer e de beber para conservar a vida; esta carne que sofre enfermidades e dores, esta mesma tem que ressuscitar, nos maus para que sempre penem, nos bons para que sejam transformados". Seguindo o raciocínio de Agostinho, é plausível pensar que não poderia existir felicidade completa no Céu se a alma prescindisse de seu corpo. E aqueles que merecem o castigo do inferno e o eterno sofrimento não teriam outro modo de padecer o horror do fogo se não lhe fosse dado um corpo sensível. E quanto ao que escrevestes, maldizendo aquelas partes de vosso corpo que desviam vosso pensamento de Deus e, segundo dizeis, vos aproxima das feras selvagens, deveis resignar-vosa que aquela parte que renegais e que, por outra parte, tanta felicidade me deu no passado, também haverá de acompanhar- vos na outra vida, segundo afirma o sábio Santo Tomás de Aquino na Summa theologiae: "Todos os órgãos e membros que constituem o corpo humano serão restituídos na ressurreição". Bem, mas sob que aspecto ressuscitaremos, dado que desde o nascimento até a velhice teremos mudado nossa aparência tantas vezes como dias tiver tido nossa vida? Por acaso iremos levantar-nos do sepulcro decrépitos, corrompidos e monstruosos? Qual será nossa fisionomia? Que idade haveremos de ter? Respondem Santo Tomás e Santo Agostinho que os que marcharão para o Reino dos Céus o farão ressuscitados "para receber a perfeição: hão de ressuscitar perfeitos". E os réprobos ressuscitarão completos com todos os seus órgãos, mas para seu eterno suplício. Por outra parte, a doutrina da ressurreição dos mortos demonstra como a própria religião, longe de renegar a existência do corpo como contrário aos assuntos divinos,o exalta e afirma seu caráter eterno em conjunção com a alma.

 

LIREY, 1347

Geoffroy de Charny não ignorava que a representação de Cristo por si só implicava um problema tão delicado como antigo. Embora não parecesse ter ficado rastro do movimento iconoclasta que proibiu toda forma de produção e veneração de imagens no passado, ali estava ainda o primeiro mandamento, claro e indiscutível. Segundo dizia no Êxodo, Deus Pai, no monte Sinai, havia dito a Moisés:

 

20:4. Não farás para ti imagem, nem nenhuma semelhança do que esteja acima no céu, nem aqui embaixo na terra, nem nas águas por baixo da terra. 20:5. Não te inclinarás para elas, nem as honrarás; porque eu sou Jeová teu Deus, forte, zeloso, que visitou a maldade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração dos que me aborrecem (...) Como seria possível que Jesus fosse o primeiro a violar o mais fundamental dos mandamentos deixando sua própria imagem impressa num tecido para que fosse venerada? Se Jesus Cristo obrava de forma contrária aos mandamentos, então podia-se duvidar de sua divindade, desmentindo desse modo a doutrina da Trindade; o Pai e o Filho não só deixariam de ser a mesma entidade como, ao tornar-se imagem no lenço, o Filho teria se rebelado contra o Pai. Não se tratava apenas de um mandamento, mas do primeiro do decálogo e não deixava margem a nenhuma dúvida. O duque pela primeira vez vacilou em seu propósito. Sentiu temor. Considerou que o sudário que havia planejado fabricar podia ser tomado não já como uma mera falsificação, mas como uma heresia; de acordo com as Sagradas Escrituras, era uma contradição em si mesmo. Jeová, que no Monte Sinai repudiara as imagens, não podia desmentir sua própria palavra obrando milagrosamente uma imagem divina. Geoffroy de Charny sabia que as imagens eram muito mais eloqüentes e didáticas para a plebe do que qualquer tratado de teologia, não ignorava que uma boa pintura de um santo vencendo um demônio era mais convincente que as próprias Escrituras, dado que a grande maioria era analfabeta. Mas não podia desconhecer que o primeiro mandamento que Deus havia disposto e que Cristo havia referendado proibia toda forma de veneração de imagens. Os iconoclastas tinham um fundamento ao destruir toda representação; de fato não faziam mais que obedecer ao comando divino quando, também no Êxodo, Jeová adverte contra a idolatria em Canaã:

 

34:13. Derrubareis seus altares, e quebrareis suas estátuas, e cortareis suas imagens de Asera. 34:17. Não farás para ti deuses de fundição. Não havia maneira de entender outro sentido no primeiro dos mandamentos. Qualquer exegese em contrário não podia ser senão um torcimento mentiroso urdido nos concílios, em favor do enorme poder evangelizador das imagens. De fato, os hebreus sempre se mantiveram fiéis a este mandato e seus templos jamais tiveram o adorno de uma figura humana ou um animal ou qualquer forma que não fosse abstrata. A idéia de um Deus único e Todo poderoso deitava por terra qualquer panteão e a rejeição dos deuses assimiláveis aos fenômenos naturais como a chuva, o trovão e o vento, ou associados à cosmografia como o sul, a lua e as estrelas. Deus, criador do Universo, era de uma magnificência tal que tornava- se impossível não já representar, mas, sequer, imaginá-lo. Se para o homem era inadmissível apreender os limites do Universo e conceber o infinito, como dar testemunho da forma de Deus se Ele era superior a toda cifra e maior que a própria eternidade. Seria um insulto a Deus, uma heresia, que o homem, em sua pequenez, tentasse representar o criador de todas as coisas. Deus era o único que tinha o poder de criar e dar forma à matéria, inclusive à sua imagem e semelhança. Podia criar um ser da costela de outro ser, mas seria um ato de imperdoável soberba e um arrogante afã de tomar o lugar de Deus que o homem fizesse "imagem ou semelhança do que esteja acima no céu, aqui embaixo na terra, ou nas águas por baixo da terra". Por outra parte, tampouco os maometanos ousavam apresentar imagens em suas imponentes mesquitas. De fato, muitos cristãos viam a causa das formidáveis vitórias militares dos muçulmanos em sua obstinada repulsa das imagens. A influência árabe em Bizâncio foi outro fator decisivo do movimento iconoclasta. Seja por motivos supersticiosos que atribuíam a este fato seu poder militar, seja pela tendência natural de acomodar-se aos desígnios dos vencedores, ou então para ganhar autoridade entre as hostes islâmicas, a Igreja Cristã do Oriente acolheu rapidamente o primeiro mandamento. No século III Eusébio proclamou que toda representação de Cristo se opunha às Escrituras e, portanto, era de ordem idólatra. Muitos anos antes, Astério de Amásia havia dito: "Não fazei cópia de Cristo; já lhe basta a humilhação da Encarnação, à qual se submeteu voluntariamente e por nós. Antes levai em vossa alma espiritualmente o Verbo incorpóreo". Tinha sentido fabricar uma relíquia que contradizia esse Verbo sagrado?, perguntava-se o duque vacilando de repente em seu propósito. Por acaso era disparatado pensar num retorno do velho movimento iconoclasta que queimasse seu lençol e, de passagem, o próprio duque? Geoffroy de Charny era consciente de que, em última instância, a corrente iconoclasta tinha sua origem numa guerra soterrada: a luta entre o poder político e o poder eclesiástico. Impulsionados pelo mesmo afã de lucro que guiava os passos do duque, os monges de Bizâncio entesouravam em suas igrejas toda classe de ícones milagrosos. Assim, as multidões chegavam em peregrinações e deixavam suas oferendas em troca de suplicar pelo favor das imagens. Quanto maior era o número e importância desses ícones, tanto maior era a riqueza e o prestígio dos mosteiros que os exibiam. Desse modo, os monges, mesmo vendo como os fiéis se ajoelhavam diante das imagens, faziam caso omisso do mandamento enquanto engordavam seus cofres e aumentava seu poder. Os imperadores assistiam com preocupação ao progressivo aumento da autoridade monacal em detrimento de seu poder secular. Leão III foi o primeiro a perceber que a aristocracia eclesiástica, além de estar isenta do pagamento de impostos, havia-se apoderado de extensos territórios e, em virtude da propriedade de suas imagens sagradas, tinham consigo o fervor supersticioso do povo. Desta maneira, Leão III, ao proibir o culto das imagens, podou o crescente poder monacal em prol de construir seu poderio absolutista e militarista. Mas o duque não era ingênuo: sabia que o sentido das Escrituras podia ser torcido tantas vezes quantas fossem necessárias para o poder de turno. No entanto, as coisas haviam mudado demais; naquela época, considerou Geoffroy de Charny, a Igreja detinha a totalidade do poder, não o dos assuntos do Céu, mas também o secular, a tal ponto que Thomas Becket, arcebispo de Canterbury, chegou a declarar: "Em razão de seu cargo, o clérigo só tem como rei a Cristo. Os clérigos não podem se submeter aos reis seculares, mas somente ao seu próprio rei, o Rei do Céu. Os reis cristãos devem submeter seu governo aos eclesiásticos, não impô-los a estes. Os príncipes cristãos devem obedecer aos ditames da Igreja, mais que preferir sua própria autoridade, e os príncipes devem inclinar a cabeça diante dos bispos em vez de julgá-los".

 

Geoffroy de Charny considerou que não havia possibilidades de um retorno do fantasma iconoclasta. A supressão das imagens já não representaria um benefício para ninguém. Além disso, a proliferação de pinturas da Virgem, dos santos, dos apóstolos, de Jesus Cristo e até de ninguém menos que o Deus Pai representado como um ancião de barbas brancas, outrora uma heresia que teria sido paga com a vida, havia se difundido de tal forma que já não havia como voltar atrás, pensou. Com o ânimo renovado, passeando com entusiasmo sua coxeadura pelo salão do palácio de Lirey, o duque voltou a infundir-se ânimo em relação à sua nova empresa. Por outra parte, convenceu-se, no II Concilio Ecumênico de Nicéia celebrado no ano 787, ficou definitivamente resolvida a disputa com os iconoclastas quando a Igreja teve que admitir a utilidade da representação de imagens sagradas. Claro que para contradizer um mandamento tão claro e basilar tiveram que forçar um pouco as coisas.

 

No entender de Geoffroy de Charny a fundamentação havia sido certamente pobre, tão pobre como a que empregara Tomás de Aquino. Em sua Summa theologiae, o santo afirmava que o culto das imagens não tinha por objetivo o ícone em si mesmo, mas enquanto forma que remetia a Deus encarnado. De maneira que a veneração que se dirigia a uma imagem enquanto tal não se detinha nela, mas tinha como destino final a divindade da qual era reflexo. Por outra parte, diziam os bispos, quando o homem caiu devido ao pecado original e Jeová se ausentou de sua vida cotidiana, sua imagem se fez difusa até que a humanidade a esqueceu por completo. Então confundiu Deus com outras coisas e lhe ofereceu culto como se se tratasse de deuses. Estas falsas divindades eram representadas como entalhes, esculturas ou pinturas. A proibição do mandamento, diziam, estava dirigida contra estas imagens e encontrava seu fundamento na idolatria dessas representações. E dado que, além disso, os hebreus eram apenas um punhado de almas assediadas por povos entregues à adoração de ídolos, Deus quis preservar os eleitos das falsas divindades.

 

No entanto, considerou Geoffroy de Charny, esses argumentos eram extremamente frágeis: ninguém podia subestimar tanto as antigas religiões do Oriente Próximo, quem podia sustentar seriamente que aqueles povos confundiam os entalhes com a deidade que representavam? Se para eles tal ou qual entalhe, estátua ou pintura era uma divindade em si, como se explicava que a mesma imagem fosse repetida da mesma forma e tivesse um nome particular? Para citar um exemplo, qual era a diferença conceitual entre uma estátua de Anúbis e uma de São Pedro? É claro que ninguém pensaria que cada imagem isolada de Pedro se referia a um santo distinto, mas que aludiam todas elas ao fundador da Igreja, do mesmo modo que os egípcios não acreditavam que cada representação de Anúbis era um deus diferente em si mesmo. Os antigos egípcios podiam ser acusados de politeístas mas não exatamente de estúpidos. Ao contrário, considerou o duque, a Igreja Romana promovia a veneração de diversas Virgens como se, efetivamente, não se tratasse da única: cada igreja tinha sua própria Virgem e todas pareciam competir entre si em poder milagroso e concessão de favores em troca de promessas e, é claro, esmolas.

 

De fato, cada uma delas era reverenciada de um modo diferente e era muito freqüente ver procissões levando em andores as estátuas como se dessa forma as Virgens mostrassem seu poder de convocação entre os fiéis. E se além disso algum desses entalhes chorasse lágrimas de sangue, era venerada até o delírio, chegando a seus pés peregrinações que se amontoavam em cima dela para poder tocá-la. Como podia a Igreja não ver em semelhantes práticas uma idolatria tão primitiva como aquela que Deus condenara no Decálogo? E enquanto refletia sobre os frágeis postulados de Santo Tomás, o duque encontrou de repente uma explicação que lhe pareceu perfeita. E esse argumento não só lhe permitiria justificar a existência do sudário, como, ainda por cima, se converteria no argumento mais sólido que a Igreja poderia encontrar para defender a veneração das imagens sem contradizer em absoluto o primeiro mandamento. Era uma solução que não apresentava fissuras teológicas:

 

o advento de Jesus Cristo, ou seja, de Deus encarnado, ia ter múltiplas conseqüências. Os ensinamentos do Antigo Testamento iam ganhar um novo sentido à luz de semelhante acontecimento. O primeiro dos mandamentos só podia ser entendido diante da impossibilidade material de abranger a grandeza de Deus e, conseqüentemente, tornava-se insultante toda tentativa de representação por parte do homem. O rosto de Deus era um mistério indecifrável. Isso foi indiscutivelmente assim até o momento em que Deus se tornou visível na pequena aldeia de Belém. O primeiro mandamento que Deus pronunciou era tão categórico e verdadeiro como Sua posterior decisão de tornar-se carne na figura de Cristo. Assim, Geoffroy de Charny, falando consigo mesmo, concluiu: "Jesus Cristo é a imagem visível do Pai". Como fazia cada vez que queria justificar uma idéia de ordem teológica, abriu a Bíblia com o propósito de encontrar um fundamento irrefutável. Não virava as páginas ao acaso; como se acreditasse relembrar incertamente uma alusão à questão, foi diretamente ao Evangelho de João. Depois de procurar sem êxito, iluminado pelo candeeiro, finalmente encontrou a frase que procurava:

 

14:6. Jesus lhe disse: Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao pai se não por mim. 14:7. Se me conhecêsseis, também certamente conheceríeis meu Pai; mas conhecê-lo-eis bem cedo, e já o vistes. 14:8. Disse-lhe Felipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta. 14:9. Disse-lhe Jesus: Há tanto tempo que estou convosco, e ainda não me conhecestes? Felipe, quem me vê, vê também ao Pai. Como dizes, pois: Mostra-nos o Pai? Ali estava, de uma maneira tão clara e transparente como o primeiro mandamento, a idéia que queria plasmar. Mas não dita com sua palavra leiga e terrena, mas pronunciada por ninguém menos do que Deus feito homem. A partir desta nova perspectiva, o santo sudário que envolvera Cristo traria uma mensagem às gerações futuras: "Eu sou o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Esta é minha imagem e a plasmei neste tecido para que ninguém me confunda com os falsos deuses e cometa idolatria". O lençol santo vinha referendar o mandamento contra qualquer embate iconoclasta, a prova de que o próprio Jesus havia obrado pelo Espírito Santo a imagem do Pai, demonstrando de maneira empírica a Santíssima Trindade.

 

Satisfeito com a gigantesca obra intelectual que havia conseguido construir durante aquela noite fértil, o duque soprou a chama do candeeiro e dormiu sobre sua escrivaninha.

 

Lá fora o sol começava a se elevar sobre a videira.

 

TROYES, 1347

Christine escrevia todas as noites na penumbra de seu claustro para que a luz não a delatasse e assim não voltasse a ser descoberta pela superiora. Exausta, apressava-se para concluir sua secreta tarefa antes da aurora para poder esconder seus manuscritos na biblioteca, quando o convento ainda dormia. Tendo desmentido a pretensão de que o corpo era um lastro para a elevação da alma, agora queria que Aurélio esquecesse as amarras da lei e procedesse segundo o ditame de sua própria consciência. Com os olhos avermelhados pelo trabalho e o sono, Christine escreveu:

 

Agora quero falar-vos da Lei. Posso perceber em vossas cartas o sofrimento que vos provoca manter- vos fiel às leis de Deus. E então vos digo que se padeceis por ser fiel a Deus, estais sendo- lhe infiel; que se não considerais justa Sua Lei no mais profundo da vossa consciência, é porque, talvez, as que acreditais serem leis de Deus não o sejam. Por outra parte, se algo nos legou o ensinamento de São Paulo é, justamente, o desconhecimento da Lei, posto que não existe lei fora da nossa própria consciência que nos possa revelar a fé. Esta é a pedra angular do cristianismo e aquilo que o funda como religião diferente de nossos antecessores,os judeus. E não é então por acaso que tenha sido um judeu o primeiro a compreender a mensagem mais profunda de Jesus. Refiro-me, é claro, a Paulo, o chamado "judeu de Tarso". Ninguém como São Paulo soube interpretar a nova mensagem trazida pelo Messias para o povo de Israel. O apóstolo Paulo foi quem fez da palavra de Cristo uma teologia, mas, principalmente, o primeiro a ver que a dimensão do Verbo do Salvador era tal que implicava, forçosamente, a ruptura com a tradição de sua própria fé e seus próprios valores judeus. Se não fosse pelo gigantesco trabalho de Paulo, o cristianismo teria se extinguido pouco depois de nascer. Não é absolutamente um paradoxo que o Apóstolo fosse um judeu da mais tradicional das tribos de Israel: a de Benjamim. Somente um hebreu depura estirpe, um fariseu quanto à lei, podia compreender, eportanto explicar e difundir pelo mundo, para além de seu próprio povo, a Mensagem Universal de Jesus Cristo. E talvez porque foi um judeu puro, foi o mais antigo doscristãos puros. Paulo se converteu ao cristianismo como tantos outros judeus. No entanto, ele o fez de um modo único e conclusivo. Qualquer judeu podia aderir à palavra de Jesus sem mudar drasticamente seu modo de perceber a existência e, principalmente, suas tradições. Mas Paulo percebeu de imediato que esse ato de fé implicava a modificação do mais essencial dos princípios judeus: a relação da religião com a Lei. Assim como foi respeitoso e observou as leis enquanto oficiou como rabino, tão logo Cristo entrou em seu coração soube que a nova religião exigia a absoluta rejeição de toda lei. Quando o milagre da revelação de Jesus transformou Paulo, imediatamente predicou a palavra entre os de seu povo, mas também entre os gentios. Paulo predicou como judeu a chegada, a morte e a ressurreição do Messias dos judeus. Mas sua missão transcendia as fronteiras do povo de Israel. Assim, comprovou que os que não pertenciam à fé de Abraão viam com horror a circuncisão, primeiras das leis que surgia do Livro Sagrado, a Bíblia, e que devia ser aplicada aos recém-nascidos para sua salvação. Então, na Epístola aos Romanos, Paulo afirma que o homem pode prescindir da circuncisão que a lei manda, à medida em que esta possa ser obrada na alma antes que na carne:

 

2:25. Porque a circuncisão é, na verdade, proveitosa, se tu guardares a lei; mas, se tu és transgressor da lei, a tua circuncisão se torna em incircunàsão. 2:26. Se, pois, a incircuncisão guardar os preceitos da lei, porventura a incircuncisão não será reputada como circuncisão?

 

2:27. E a incircuncisão que por natureza o é, se cumpre a lei, não te julgará porventura a ti, que pela letra e circuncisão é transgressor da lei? 2:28. Porque não é judeu o que o é exteriormente, nem é circuncisão a que o é exteriormente na carne. 2:29. Mas é judeu o que o é no interior, e circuncisão a que é do coração, no espírito, não na letra: cujo louvor não provém dos homens, mas de Deus. Os gentios convertidos mostravam-se pouco dispostos a aceitar esta, como quase a totalidade da lei hebraica. De modo que ficava muito difícil convencer aqueles que nada tinham que ver com a Judéia do advento do cristianismo como um fato judeu. E então sim, quanto mais longe queria Paulo levar a Palavra do Messias dos judeus, compreendia que, para que isso fosse possível, devia, paradoxalmente, deixar de ser judeu.

 

Mas, por outra parte, quando maior era a quantidade de gentios que conseguia convencer, mais se difundia o Livro Sagrado dos Judeus, a Bíblia. O cristianismo deixava de ser um fato que só dizia respeito aos filhos de Israel e se expandia para todos os povos, mas, ao mesmo tempo, estendia uma ponte indestrutível com a tradição hebraica, já que Jesus procedia da linhagem de Davi.

 

3:29. É porventura Deus somente dos judeus? E não o é também dos gentios? Também dos gentios, certamente. 3:30. Se Deus é um só, que justifica pela fé a circuncisão, e por meio da fé a incircuncisão. A lei mosaica, para se abrir aos gentios, tinha que desprender- se então de sua própria raiz e deixar de ser lei. E ao mesmo tempo a profecia do Antigo Testamento via-se cumprida na figura de Cristo como Messias. Mas para construir este sistema teológico, Paulo tinha que romper com a Lei. De fato, a Lei dos judeus continha seiscentos e treze mandamentos, impossíveis sequer de lembrar. Paulo notara que a observância da Lei era um mandamento cujo fundamento era externo à convicção e próprio da coerção, e que nada que fosse feito por obrigação e não surgisse do coração e da consciência podia conduzir à salvação. Por que razão um ato que carecia de toda importância além da imposição legal, como era a circuncisão, haveria de assegurar a salvação? Para São Paulo não existia outro caminho para a salvação que não fosse o da fé, que não podia ser distinguida por homem algum, mas apenas por Deus. Não somente o modo de proceder na Terra e as obras do homem davam conta de sua virtude, mas, principalmente, o modo pelo qual se entrega a Deus por meio da fé. E isso é algo que se dá entre a consciência de cada homem e Deus; não existe forma de traduzir este laço de fé num contrato legal, porque não há nada mais elevado que os olhos de Deus. Assim, na mesma epístola, Paulo diz que o único modo de dar prova da fé é:

 

2:15. Os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os quer defendendo-os;

 

A salvação só será possível se o homem, por meio do conhecimento do Evangelho, escolhe Deus e, deste modo e só deste modo, Deus o escolhe a ele. Paulo foi o mais fiel crente na liberdade. E para unir-se a Cristo por escolha, era preciso liberar- se da lei.

 

3:28. Concluímos pois que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei. 2:1. Portanto, é inescusável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu, que julgas,fazes o mesmo. Para Paulo, não pode chamar-se cristão aquele que ouse julgar seus semelhantes. A lei não somente perde a primazia, mas é mais importante a liberdade de arbítrio do que o julgamento por tal ou qual escolha.

 

2:3. E tu, ó homem, que julgas os que fazem tais coisas, cuidas que, fazendo-as tu, escaparás aojuízo de Deus? A frase é conclusiva: julgar o semelhante se converte, então, em pecado, um pecado que só Deus e ninguém mais do que Deus terá poder para julgar.

 

2:14.Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei.

 

Paulo aqui se refere àqueles que, por não serem judeus, desconhecem a lei revelada por Moisés e, no entanto, podem aspirar à salvação pois, abraçando a palavra de Jesus, levarão a verdade em seus corações mesmo que não se submetam às normas escritas. De modo que, na doutrina de Paulo, a fé não está sujeita à lei escrita nem promulgada, nem dada a conhecer por homem algum, mas que apenas se manifesta.

 

2:15. Os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os quer defendendo-os; Mas São Paulo foi muito mais longe: não somente se atreve a romper com a lei, mas a condena. Conforme surge de suas próprias palavras, a lei é a semente do pecado, a semente maldita que, ao enunciar as proibições, as promove, as preconiza e difunde. A lei, meu querido Aurélio, leva em seu enunciado sua própria violação,

 

4:15. Porque a lei opera a ira. Porque onde não há lei também não há transgressão. Assim, as tábuas da lei resultam ser um decálogo de pecados que talvez a muitos pecadores jamais tivesse lhes passado pela cabeça cometer, se não fosse porque, ao enunciá-los, Moisés os deu a conhecer. O próprio Paulo culpa-se de seus próprios pecados por ter sido um escravo da lei:

 

7:7. (...) mas eu não conheci o pecado se não pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: Não cobiçarás. 7:8. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, obrou em mim toda a concupiscência: porquanto sem a lei estava morto opecado. Se o mal não se albergava até então no espírito do homem, a partir da revelação de Moisés ao seu povo, germinou opecado sob a forma da lei. A parábola da mulher viúva explica o ponto de vista dePaulo:

 

7:2. Porque a mulher que está sujeita ao marido, enquanto ele viver, está-lke ligada pela lei; mas, morto o marido, está livre da lei do marido. 7:3. De sorte que, vivendo o marido, será chamada adúltera, se for doutro marido; mas, morto o marido, livre está da lei, e assim não será adúltera, se for doutro marido. 7:4. Assim, meus irmãos, também vós estais mortos para a lei pelo corpo de Cristo, para que sejais doutro, daquele que ressuscitou de entre os mortos, afim de que demos fruto para Deus. Assim, a fé é semente da vida e a lei é da morte. Por outra parte, na mesma medida em que as leis se perpetuam como palavra escrita, também seperpetua o mal:

 

7:9. E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu o pecado, e eu morri. 7:10. E o mandamento que era para vida, achei eu que me era para morte. A afirmação a seguir resume completamente a essência da doutrina de Paulo. Em breves palavras dirá com quão pouco se pode ser fiel a Jesus, mesmo sem conhecer uma só das leis escritas nem gravadas nas tábuas mosaicas:

 

13:8. A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros: porque quem ama aos outros cumpriu a lei.

 

LIREY, 1347

Geoffroy de Charny precisava decidir, de uma vez por todas, que imagem haveria de ter o Cristo do seu sudário. Depois de fazer um exaustivo exame de todas as representações conhecidas e tendo descartado a priori o duvidoso Cristo negro, eliminou depois a possibilidade de utilizar a representação paleocristã do Bom Pastor, pois, considerou, não pretendia ser uma personificação e sim um símbolo do Salvador. Acariciou com o indicador o solidus de ouro que apertava na mão e, sobre a superfície, reconheceu pelo tato a figura do Pantocrator. Aquela era, sem dúvida, a imagem de Jesus Cristo que mais impressão e recolhimento despertava não apenas nele, mas na maioria dos fiéis. Estava então resolvido: sobre a base daquela representação faria a figura do sudário. Outra vez pegou o papel e com pulso decidido rascunhou a carvão um incerto Cristo de acordo com a fisionomia do Pantocrator; primeiro desenhou-o de frente e, depois, de forma simétrica, de costas, como se fossem dois corpos unidos pela cabeça. Muito bem, considerou, já tinha resolvido não só como seria a aparência de seu Jesus, mas de que maneira estaria disposta sua imagem no tecido. Mas faltava ainda definir a técnica. Era pouco o que o duque conhecia de técnicas pictóricas. No entanto, não queria deixar este aspecto fundamental ao arbítrio do artista. O duque acreditava na força criadora da ignorância. Pensava que, justamente, por ignorar todas as técnicas, estava em condições de criar uma jamais vista. Ele queria encontrar um modo de representação inédito que, por não ser parecido com nada conhecido, desse a impressão de que aquela imagem tinha sido formada de modo milagroso. Já havia resolvido que a figura não estaria feita com sangue ou substância de aparência semelhante, como era o caso do lenço de Edessa. Resistia a pensar numa pintura a tempera como a que era empregada nos afrescos. Tinha visto técnicas inovadoras utilizadas por alguns artistas italianos que aglutinavam os pigmentos com azeites. Estas pinturas apresentavam um brilho e uma luminosidade inéditos; no entanto, considerou, eram tão esplêndidas quanto artificiosas. Geoffroy de Charny, alternativamente, apertava a moeda entre seus dedos, deixava-a sobre a escrivaninha e a olhava, como se quisesse obter dela a resposta definitiva a todas as suas interrogações. E enquanto brincava nervosamente com o solidus, tentava lembrar de algum objeto ao qual a Igreja tivesse outorgado caráter milagroso. Procurava em sua memória sem muito êxito, ao mesmo tempo que rabiscava traços involuntários sobre o papel. Tinha que ser, considerou, um ícone verdadeiro. Nem bem pronunciou entre lábios aquelas duas últimas palavras, veio à sua memória o nome "Verônica". A princípio se surpreendeu pela aparição daquele nome de mulher, mas não demorou para encontrar a razão: Verônica tinha sua origem nas palavras latinas vera icon, isto é, "verdadeiro ícone". Só então lembrou da lenda do manto da Verônica.

 

Segundo um antigo e difundido relato que não era mencionado nas Escrituras, durante a Paixão de Jesus, num ponto da Via Crúcis, enquanto Simão ajudava Jesus a carregar a cruz, uma mulher de imponente estatura deteve-se diante deles. Seu nome era Serafia, mulher de Sirac, membro do Conselho do templo, mas dali por diante, a partir do milagre que se avizinhava, passaria a ser conhecida como Verônica. Contava o relato que Serafia, acompanhada por sua pequena filha, ofereceu a Jesus uma taça com vinho para atenuar sua dor e acalmar sua sede.A garota tinha a cabeça e os ombros cobertos por um pano. Naquele mesmo momento se aproximou a escolta e então a menina se apressou em esconder a taça, enquanto sua mãe se apresentou diante de Jesus e lhe ofereceu o pano para que secasse o suor e limpasse o sangue. O Salvador aplicou o pano sobre seu rosto e o devolveu à garota, agradecendo-lhe. Serafía beijou a manta e a guardou debaixo de suas roupas, enquanto sua filha estendia a taça para Jesus; mas os soldados não permitiram que bebesse. Quando Serafia chegou à sua casa, estendeu o manto sobre a mesa e, ao ver o que havia acontecido no tecido, por pouco não caiu desmaiada: o rosto ensangüentado de Jesus havia ficado impresso no pano. Enquanto lembrava daquele relato, o duque rascunhava sobre a superfície do papel. Dizia a si mesmo que aquele sudário era de lã fina e que seu comprimento era o triplo de sua largura. De acordo com esta história, Verônica conservou o sudário sobre a cabeceira de sua cama. Depois de sua morte, o pano ficou em poder da Igreja por intermédio dos Apóstolos. No entanto, Geoffroy de Charny ignorava o que dizia a lenda sobre o destino daquele tecido e achava no mínimo enigmático o fato de nenhum dos Apóstolos ter deixado registro de semelhante prodígio. Disso lembrava o duque quando, ao olhar para o papel sobre o qual fazia anotações, quase caiu desmaiado como a própria Verônica: no centro da folha pôde ver como havia aparecido de maneira milagrosa o rosto de Jesus Cristo olhando-o com seus olhos piedosos.

 

LIREY, 1347

Christine, vendo que faltava pouco para clarear, voltou a mergulhar a pena no tinteiro escrevendo contra o relógio. A fadiga e a falta de sono mergulhavam-na num horroroso mal-estar: ardiam- lhe os olhos, as costas se vergavam de dor e uma vertigem que parecia fazer o quarto girar em torno dela punham-na à beira do desfalecimento. Apesar de tudo, não parava. Apoiou sua testa contra a pedra fria da parede e, com a mente mais clareada, escreveu:

 

Vede, meu querido Aurélio, com que pouco seria possível substituir a lei se cada um de nós se ativesse a esta simples frase: "amai-vos uns aos outros" Olhai que diferente seria o mundo se entendêssemos o sentido mais profundo e simples destas poucas palavras. Todo o corpus do direito romano, com sua grandeza e seus erros, todos os códigos, tratados e jurisprudência, deixariam de ter razão de ser. A totalidade da lei mosaica manifestada no Talmude, o direito canônico hebreu, cairiam pela própria falta de utilidade. A justiça sobre a qual descansa o ideal do Estado dos antigos gregos não teria sentido à luz desta simples sentença. A lei, meu querido Aurélio, longe de representar a retidão de um povo, coloca manifestamente a vontade soterrada de transgredi-la. Quanto mais duras e cruéis são as leis, tanto mais duros e cruéis serão os delitos. Aqueles que mandam acender mais fogueiras para opor-se ao pecado, a heresia e o crime, não farão mais do que acrescentar fogo ao fogo e multiplicar o pecado, a heresia e o crime. Quanto mais elaborado é o corpo doutrinai da justiça, tanto mais refinados tornam-se os métodos para evadi-la. Não é a lei produto do crime, mas o crime produto da lei. Não é o mandamento resultado do pecado, e sim o pecado resultado do mandamento. Por acaso Adão teria comido ofruto da árvore se Deus não lho houvesse proibido? Primeiro foi a proibição, ou seja, a lei, depois opecado. A evolução de um povo não estará assinalada pela perfeição de suas leis, mas pela possibilidade de viver sem elas. A existência no Reino dos Céus não haverá de ter lei alguma; então, por que esperar esse dia incerto? Por que não liberar-nos da lei aqui e agora? Se em verdade devemos acreditar que o amor de Jesus fará ninho em nossos corações e se estenderá a cada um de nós, se em verdade acreditamos certa a palavra que diz amai-vos uns aos outros, então para que a lei? Aurélio, não vou acheis um virtuoso por ser zeloso da lei. A lei está em vosso coração, não está escrita. E o que vós acrediteis que é bom, o será se for por convicção e não porque a lei o permita ou o condene. E haverá tantas leis como homens haja. Assim diz Paulo, também, em sua Epístola aos Romanos, em relação à lei quanto ao jejum:

 

14:2. Porque um crê que tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come legumes. 14:3. O que come não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come; porque Deus o recebeu por seu. E ninguém pode julgar o próximo se cada qual está convencido de proceder com retidão. E ninguém pode ensinar-nos o que é reto e o que não é, já que esta certeza está em nosso coraçãoe ninguém mais que Deus sabe se está fazendo bem ou mal

 

14:4. Quem és tu, que julgas o servo alheio? Para seu próprio Senhor ele está em pé ou cai; mas estará firme; porque poderoso é Deus para o firmar. 14:5. Um faz diferença entre dia e dia, mas outro julga iguais todos os dias. Cada um esteja inteiramente seguro em seu próprio ânimo. Assim é como deveríamos viver e, confio, assim viverá o homem algum dia: sem se prender a lei e só de acordo com o que lhe dita a própria consciência. Por acaso parece uma heresia o que digo? Como haveriam de me julgar os doutores da Igreja se afirmasse eu que não necessito que Suas Excelências me indiquem o que é bom e o que é mau? Não duvido que houvessem mandado à fogueira o próprio Paulo quando o santo Apóstolo afirmou que:

 

14:13. Assim que não nos julguemos mais uns aos outros; antes seja o vosso propósito não pôr tropeço ou escândalo ao irmão. 14:14. Eu sei, e estou certo no Senhor Jesus que nenhuma coisa é de si mesmo imunda a não ser para aquele que a tem por imunda; para esse é imunda. Aurélio, vos digo isso caso vosso coração abrigue alguma dúvida: amo-vos tanto como no dia em que vos entreguei meu corpo e alma. E não considero isso imundo. No mais profundo de mim, sei que meu amor é o mais puro que meu coração guarda. Sepensais em vosso foro mais íntimo que minha lembrança revela-se a vós repulsiva, nunca mais haverei de escrever- vos. Mas tenho a certeza de que não é assim.

 

O duque não se atrevia a tocar o papel em cuja superfície havia aparecido milagrosamente o rosto de Jesus Cristo. Prostrou- se aos pés da mesa, fez o sinal-da-cruz três vezes e elevou o olhar para as alturas como se buscasse uma explicação.

 

- Obrigado, Senhor - repetia uma e outra vez de joelhos sobre o chão sem poder terminar de acreditar no que acontecera. Mas de repente sentiu medo. Geoffroy de Charny teve a inquietante suspeita de que, talvez, houvesse perdido definitivamente a razão. Considerou que, talvez, a fadiga causada por tantas noites de vigília, o fato de não pensar em outra coisa a não ser em sudários, mantos, lenços e toda classe de imagens milagrosas, haviam acabado com seu juízo e estava sofrendo alucinações. Voltou a olhar o papel e ali estava, com efeito, a perfeita imagem do Salvador. Se bem que "perfeita" não era o termo que melhor se adequava. Havia algo estranho que não se ajustava às imagens convencionais e que lhe conferia um caráter sobrenatural, mas o duque não conseguia compreender o que era exatamente. Então Geoffroy de Charny levantou o papel e quase morre de decepção. Tão inclinado estava seu espírito a que se produzisse o milagre da impressão do Divino Rosto, que não havia se dado conta de seu próprio truque. Ao ver a grande moeda que havia ficado debaixo do papel entendeu tudo. A imagem que estava na folha havia-se formado por efeito da involuntária esfregação do carvão sobre o papel.

 

O duque não havia percebido que debaixo da folha estava o solidus de ouro que servira de selo, como se se tratasse de uma gravura mas invertida. A moeda havia atuado como um virtual baixo-relevo que, pela pressão que o carvão exercera sobre o papel, deixou impressa a figura do Pantocrator do solidus. Primeiro sentiu desilusão ao descobrir que não se tratava de um milagre; no entanto, ao examinar novamente a imagem, considerou que, apesar de tudo, aquele desenho apresentava vários pontos interessantes. A estranheza que causava aquele rosto residia no fato de que, diferentemente dos retratos usuais, a figura inteira apresentava um tom uniforme igual à cor do carvão, mas o que devia aparecer em negro era visto em branco e vice-versa. Aquela característica conferia-lhe uma estranha distorção que bem podia se ajustar à aparência nada natural que um milagre apresentaria. Então voltou a invadi-lo a euforia: se aquela imagem conseguira enganar seus olhos desconfiados e fazê-lo crer que se tratava de um fato divino, então, um pintor que empregasse aquela mesma técnica com arte, destreza e competência conseguiria tapear o olho mais acostumado e o espírito mais cético. Um vento quente entrou pela janelinha do sótão e fez vacilar o fogo do candeeiro que iluminava o rosto acordado de Geoffroy de Charny. O prenúncio da tempestade se formando tirou o duque de seus gratos devaneios. Era noite alta. Tanto trabalho tivera sua recompensa: já havia descoberto que aparência ia ter o Cristo de seu sudário. A figura do Pantocrator da moeda gravado acidentalmente sobre o papel criava um efeito deslumbrante. Agora um artista deveria reproduzir aquela imagem em tamanho natural; eram necessários apenas um tecido e, com certeza, um modelo que substituísse o solidus. O primeiro ele já conseguira numa loja em Veneza. Quanto ao segundo, já lhe ocorreria uma idéia de como e onde procurá-lo.

 

Geoffroy de Charny adormeceu com a convicção de que Deus estava do seu lado: se a imagem gravada no papel não era um milagre, tratava-se, pelo menos, de uma revelação.

 

TROYES, 1348

Da relação epistolar de Christine com Aurélio surgiu uma vasta e inesperada obra literária, composta não só pelas cartas que chegavam ao seu destino. Christine chegou a acumular centenas de cartas que jamais havia enviado a Aurélio. Sem se propor a isso, e inclusive apesar dela, aquelas anotações se converteram num livro ou, para ser mais preciso, em dois, embora ela mesmo ignorasse isso a princípio. Depois de escrever durante quase toda a noite, perto da madrugada, Christine ia até a biblioteca e ocultava o resultado de seu trabalho numa das prateleiras mais altas, dissimulando seus manuscritos entre todos os demais. Certa vez, acreditou perceber que os papéis não estavam na ordem em que ela os havia deixado. Mas achou que talvez não fosse mais que uma percepção equivocada, fruto do cansaço. Por outra parte, considerou, se ainda não havia sofrido nenhuma conseqüência, isso significava que a abadessa não estava inteirada de seus heréticos escritos. Não deu nenhuma importância à sua impressão, até que voltou a acontecer; uma vez mais, teve a incerta sensação de que algo não estava em seu lugar ou, se estava, era porque alguém o havia acomodado para que parecesse intacto. O primeiro impulso de Christine foi tirar imediatamente os escritos daquele lugar 154 e procurar para eles outro esconderijo. Mas logo considerou que se alguém os estivera lendo, mesmo que os escondesse em outro lugar, estaria de qualquer modo em sérios problemas. Tinha que saber se olhos indiscretos haviam descoberto seu perigoso segredo ou se tudo aquilo não era mais que uma suspeita infundada. De modo que, na madrugada seguinte, depois de escrever como de costume durante a noite, acrescentou as novas folhas e colocou entre as páginas um fio bem fino e um cabelo. Agora era esperar. Por outra parte, não percebia nenhuma mudança no tratamento que madre Michelle tinha para com ela. Christine costumava ter pouca intimidade com suas irmãs, mas naquele dia acreditou perceber uma atitude esquiva por parte de algumas delas, como se evitassem olhá-la nos olhos ou trocar palavras. Teve medo. Esperou a noite com impaciência e, ao mesmo tempo, com um contraditório desejo de que o dia não terminasse. Depois do jantar retirou-se para o seu claustro. Quis escrever como sempre, mas a inquietação fazia suas mãos tremerem e impediam sua cabeça de se concentrar numa só idéia. Ia e vinha de lá para cá pelo seu diminuto quarto como uma fera enjaulada e o tempo parecia se negar a passar. Tentou dormir, mas seu coração batia com tal força que era como se alguém estivesse constantemente sacudindo-a para que não conseguisse pegar no sono. Quando por fim chegou a madrugada, apressou seus passos sub-reptícios até a biblioteca. Primeiro espreitou cautelosamente e, como não viu ninguém, entrou. Olhou na prateleira e ali pôde ver seus manuscritos. Realmente, era difícil diferenciá-los de todos os demais e não era fácil ter acesso até lá. Então considerou que sua preocupação não tinha sentido. Com uma súbita tranqüilidade colocou a pequena escada e subiu até as alturas de penumbra, perto do teto. Quando tinha os papéis ao alcance da mão, pôde comprovar com pânico que o fio e o cabelo já não estavam lá.

 

Durante os dias seguintes tentou indagar quem podia ser a que fuçava nos seus papéis, rogando que não fosse a superiora. Entabulava conversações mais ou menos triviais com as demais para tatear quem poderia estar a par de suas cartas, mas ninguém dava qualquer sinal. Então, uma noite decidiu se esconder na biblioteca para surpreender a intrusa. No triângulo que se formava embaixo da escada havia um pequeno vão onde guardavam-se vassouras e apetrechos de limpeza. Ali dentro se fechou, espiando pela fresta das madeiras da porta, esperando que chegasse a que, com o ar furtivo de um rato, bisbilhotava suas cartas. Teve que adotar uma posição decididamente incômoda para amoldar sua esbelta humanidade àquele pequeno triângulo. À medida que passava o tempo, aquela postura se converteu num verdadeiro tormento: as costas, que procuravam acomodar-se à forma oblíqua do canto da escada, doíam-lhe de tal modo que a respiração ficava difícil; as panturrilhas, que tinham que suportar o peso desequilibrado do resto do corpo, lhe davam cãibras de arrancar-lhe lágrimas. No exato momento em que estava para desistir de seu propósito por causa do suplício, escutou como rangiam as dobradiças da porta da biblioteca; o coração de Christine deu um pulo no peito. Pôde ouvir os passos da recém-chegada e ver sua silhueta, mas não chegava a distinguir seu rosto oculto debaixo da touca. Através da fresta da porta, Christine observou como a religiosa acomodava a escadinha e subia até a estante onde estavam seus manuscritos. Logo que alcançou os papéis, desceu com eles e sentou-se à mesa. Assim ficou, com os dedos entrelaçados, o manuscrito à sua frente, e o olhar perdido num ponto impreciso situado no teto. Christine comprovou com assombro que a irmã, cujo rosto não chegava a discernir, não estava lendo. Prestes a cair sobre seus próprios joelhos, vencida pela dor que lhe produzia aquela posição, oculta como estava embaixo da escada, Christine tentava acomodar seu corpo evitando fazer algum ruído que pudesse delatá-la quando, de repente, ouviu que a porta voltava a se abrir. Com surpresa, viu entrar outra irmã que se sentou junto à anterior. As duas olhavam em silêncio os papéis sem lê-los.

 

Christine não conseguia explicar a si mesma aquela estranha situação. Procurava encontrar uma resposta; naquele momento a porta abriu pela terceira vez; agora eram três as noviças que ingressavam e sentavam-se? também, em volta do manuscrito. A porta nem bem terminou de se fechar quando entraram sigilosamente, uma atrás da outra, cinco irmãs mais. Christine temeu que aquilo fosse uma espécie de julgamento sumário in absentia de sua pessoa, por causa de sua obra. Sentiu pânico diante do que parecia um tribunal inquisitorial feminino. De repente o silêncio foi rompido quando uma delas, a que ocupava a cabeceira, começou a ler os secretos escritos de Christine. Lia num sussurro e sob a tênue luz de uma vela, como se fosse aquele um ato clandestino. As demais ouviam com extrema atenção. As pernas de Christine fraquejaram, não mais como conseqüência da impossível posição que tinha que adotar, mas por ouvir de lábios alheios o conteúdo daquelas linhas que ousavam colocar em dúvida a férrea educação do convento. Tornar extensiva a premissa do amor cristão em relação ao próximo, não só como entidade puramente espiritual, mas, além disso, provendo a alma de um corpo substancial, tal como se podia deduzir da doutrina da ressurreição dos mortos, objetava os preceitos que dia a dia ouviam da boca da abadessa. Embora a madre superiora contradissesse seus ensinamentos com suas ardentes cerimônias de exorcismo, expulsando os demônios fazendo-os arder na fogueira do deleite da carne, jamais iria tolerar uma defesa doutrinária da sensualidade. Mas quando os olhos de Christine se acostumaram à penumbra, pôde notar que madre Michelle não estava presente à leitura pública de seus manuscritos. Com enorme vergonha, ouviu como ventilavam seu secreto romance com Aurélio e de que forma eram expostas suas cruas confissões de amor. Mas para seu completo estupor, viu como, durante a leitura das passagens mais íntimas e comovedoras, a maioria chorava de emoção. E também acreditou perceber que, naqueles fragmentos nos quais colocava em dúvida a autoridade da hierarquia eclesiástica acusando-a de proceder como os aristocratas, em contraste com a austera pessoa de Jesus, suas irmãs assentiam com decisão. O mesmo acontecia cada vez que a irmã lia as passagens em que se apontava de que forma a chegada de Cristo significava a ruptura com a lei, enquanto a Igreja havia se erigido como reitora absoluta do direito e, associada ao poder monárquico, oferecia a este seu direito canônico, como se estes dois últimos termos não fossem antagônicos. E, sendo que nem os camelos nem as agulhas haviam variado suas dimensões desde a época em que Jesus predicava, não havia razão para que os purpurados deixassem de condenar a riqueza e tivessem abandonado completamente os pobres.

 

Sem compreender ainda qual era o sentido daquela reunião em que se examinava em público o que ela escrevia privadamente, Christine não suportou mais as dores causadas pela postura dentro daquele diminuto triângulo e, subitamente, perdeu o equilíbrio; para espanto de suas companheiras, as portas do pequeno vão embaixo da escada se abriram escancaradamente e viram como a autora das sacrílegas páginas que estavam lendo desabava no centro da sala. Quando Christine ficou em pé, notou que as irmãs a olhavam com pavor. Demorou para compreender que eram elas as que se sentiram surpreendidas em infração, quando uma delas se atirou aos seus pés e, com um tom de súplica, disse:

 

- Minha senhora, perdoe nossa impertinência, mas seus escritos são o mais alto ensinamento junto com os Evangelhos. Outra juntou suas mãos diante do rosto e, como quem falasse com uma eminência, implorou:

 

- Somos suas servas, por favor não nos denuncie à madre superiora. O desconcerto de Christine era tal que não conseguia articular uma só palavra. A partir daquela noite Christine se converteu, contra sua vontade, numa espécie de guia espiritual daquele punhado de irmãs que a idolatravam em segredo. Logo se formou uma espécie de confraria clandestina que haveria de produzir, em pouco tempo, uma verdadeira cisma no convento. Aproveitando o elo que havia se criado entre o beatério e a abadia a partir de fino laço epistolar entre Christine e Aurélio, pouco a pouco se criou uma ponte cada vez mais sólida entre os dois mosteiros: já não só trocavam cartas os dois, mas as noviças e os monges mais jovens seguiram o mesmo exemplo. Ambos os edifícios estavam tão próximos um do outro e, no entanto, até aquele momento, pareciam dois universos isolados. Mas a partir daquele encontro, seus habitantes se sentiram próximos, não só espiritualmente, mas perceberam de repente sua proximidade física. O intercâmbio de impressões e experiências intramuros de umas e outros os fizeram ver que estavam malgastando seus dias presos dentro daquelas paredes, que seus destinos estavam regidos por verdadeiros pederastas, por lobos com roupas de pastores. As cartas estavam cheias de dúvidas e algumas certezas, carregadas de indignação mas também de uma profunda ternura. Sobre as linhas daquela correspondência nasceram romances epistolares, escreviam-se poesias repletas de amor e também de adolescente sensualidade.

 

A rebelião dos jovens frades e noviças haveria de eclodir mais cedo do que eles mesmos imaginavam.

 

                                     VILAVICIOSA / ÊXODO

 

TROYES, 1348

Christine e Aurélio voltaram a se encontrar. Como generais de diferentes divisões de um mesmo exército, uma e outro encabeçaram suas respectivas legiões; Christine, montada num alazão, vestida com seu hábito mas com o capuz jogado sobre os ombros, a cabeça descoberta e o cabelo ao vento, estava diante de umas vinte noviças que haviam decidido fugir com ela. Aurélio se aproximava a todo galope pela trilha que delimitava os campos pertencentes ao convento. Atrás da nuvem de pó que seu cavalo levantava seguia-o uma dúzia de homens, em sua maioria jovens monges. Aurélio parou a pouca distância de Christine. Contemplaram-se em silêncio até que ele apeou, caminhou lentamente até ela e, estendendo uma mão, convidou-a a desmontar. Assim o fez, sem desgrudar um segundo seus olhos dos de Aurélio. Frente a frente, sem pronunciar palavra, disseram um ao outro com o olhar tudo o que teriam gostado de dizer durante aqueles dois longos e intermináveis anos até que, por fim, se fundiram num abraço. Christine não pôde evitar um pranto sufocado que foi a eclosão de uma quantidade de sentimentos longamente contidos: o amor desatado em seu estado mais elementar, a emoção épica da vitória, o sofrimento guardado durante tanto tempo, convertido agora numa felicidade que transbordava, os anseios de liberdade em relação ao futuro e um estremecimento feito de impressões antagônicas e indizíveis. Homens e mulheres olhavam a cena comovidos, ao mesmo tempo que examinavam uns aos outros contagiados por aquele sentimento que fundia os corpos de Christine e Aurélio. Mas o tempo urgia. Então todos se misturaram até converter-se num só grupo compacto e empreenderam a marcha em direção ao poente.

 

Foi um longo e perigoso êxodo em direçãoa terras espanholas. Contavam apenas com umas poucas horas de vantagem sobre as tropas oficiais que saíram em sua perseguição, dispostos a capturá-los vivos ou mortos. Quando o prior da abadia, o padre Alphonse, descobriu de madrugada a ausência de treze de seus religiosos, demorou para compreender que se tratava de uma fuga. Mas sua surpresa foi maiúscula quando soube que do convento também haviam escapado vinte noviças. Antes de empreender a fuga, o grupo de homens e mulheres parou no alto de uma colina. Ali, com as primeiras luzes da aurora, contemplaram pela última vez a cidade. Olhavam inquietos quão próximos estavam ambos os conventos. De fato, desde aquela perspectiva, confundiam-se as agulhas das pequenas torres dos edifícios, fundidos num único contorno. Custava-lhes acreditar que, estando tão perto, haviam permanecido tão distantes durante tanto tempo. Deram uma última olhada nos telhados vermelhos de Troyes e, depois da silenciosa despedida da cidade, retomaram a marcha pela estreita trilha que serpenteava o monte.

 

Os prófugos deixaram atrás de si uma extensa esteira de falatórios. Para culminar a indignação do abade, chegaram os testemunhos dos camponeses que diziam ter visto como se uniam em demoníaca horda para fugirem todos juntos. Estas primeiras versões foram se acrescentando em número e tornando-se mais frondosas em imaginação: logo apareceram testemunhas que asseguravam como, ao se encontrarem os dois grupos, mesclaram seus corpos nus e, deitados sobre a grama, fornicavam aos pares, trios, aos montes, sem importar gênero nem idade, e houve até quem assegurasse que ninguém menos que o próprio Demônio presidia a orgiástica cena. A abadessa, por sua parte, lamentava secretamente que fossem as religiosas mais jovens e bonitas, aquelas que mais prazeres davam durante as cerimônias de êxtase místico, as que tivessem decidido fugir. Sentia um despeito semelhante ao que padeceria uma amante abandonada e deixou-se vencer por um ódio proporcional ao seu rancor. De modo que madre Michelle não hesitou em dar sua concordância junto ao prior para que fosse aplicado aos desertores o mais exemplar dos castigos. Além das tropas, foram organizados grupos de camponeses que, armados de tridentes, foices, gadanhas e paus saíram para caçar os hereges. Quando soube o que havia acontecido, o próprio Geoffroy de Charny distribuiu armas entre os homens que trabalhavam em suas terras e encabeçou o bando para dar caça à sua filha. Organizou outro grupo comandado por seu filho e deu-lhes uma ordem terminante caso a encontrassem:

 

- Matem-na. O duque arrependeu-se de não tê-lo feito antes ele mesmo com o poder que lhe outorgava a lei. Christine já lhe havia causado transtornos demais, mas que ousasse liderar uma revolta e fuga de freiras no beatério era um fato que, certamente, não ajudava seu nobre propósito de construir uma igreja. Estava disposto a matá-la com as próprias mãos para sacrificá-la perante a autoridade eclesiástica e, desse modo, limpar seu ilustre sobrenome.

 

Os prófugos sabiam que não seria fácil a marcha em território gaulês. Convertido num Moisés que guiasse os seus através do deserto de incompreensão e hostilidade em que havia se transformado a França, Aurélio avançava tateando, rezando para que não fossem interceptados. Mas, diferentemente dos hebreus fugindo do Egito, os prófugos dos mosteiros tinham não só Deus ao seu lado, mas também contra eles; Aurélio também não contava com o poder que Jeová outorgara a Moisés: não podia converter as varas em cobras, nem os rios em sangue; não podia lançar pragas de rãs nem de piolhos sobre seus perseguidores, nem aniquilar seus animais; não tinha o poder para lacerar a pele de seus inimigos com úlceras, nem condená-los a temporais de granizo ou ao açoite das lagostas ou ao assédio das trevas. Aurélio, Christine e seus poucos seguidores não tinham sequer o número suficiente de homens para poder enfrentar um eventual ataque. Contavam com escassos víveres, apenas alguns animais que conseguiram trazer com eles, cabras e ovelhas, e tinham que dormir ao relento, já que não contavam com couros para armar tendas; apenas alguns rústicos toldos improvisados com panos para se protegerem das chuvas. Durante aquele penoso êxodo, não só careciam de levedo para levedar o pão, como sequer tinham farinha para fazer pão ázimo como os filhos de Israel no deserto. E ao contrário do povo judeu, não eram guiados por Jeová durante o dia como uma coluna de nuvem, nem durante a noite como uma coluna de fogo; e não foi preciso que Deus endurecesse o coração do prior nem da abadessa como fizera o Faraó porque já tinham o coração endurecido e estavam sedentos de vingança; e não foi necessário que enviassem por eles seiscentos carros escolhidos e todos os capitães, nem toda a cavalaria e todos os exércitos como teria feito o Faraó, porque eram poucos e, em sua maioria, mulheres.

 

E quando as tropas tivessem se aproximado, os prófugos ergueriam os olhos, e aí os cavalos e seus ginetes viriam atrás deles; por isso os temeram muito, e clamaram a Jeová.

 

E disseram os homens a Aurélio como disseram a Moisés: Não havia sepulcros no mosteiro, já que nos tirou para que morramos dessa forma?

 

E disseram as mulheres a Christine: Por que fez assim conosco, tirando-nos do convento?

 

E Aurélio teria desejado falar a seus homens com as palavras que Moisés disse ao povo de Israel no deserto: Não temais; sede firmes, e vede a salvação que Jeová fará hoje com vós; mas não tinha uma só palavra para pronunciar em seu favor.

 

E Christine teria gostado de dizer às suas: Jeová lutará por vós, e vós estareis tranqüilas; mas tampouco ela tinha uma só palavra para pronunciar em seu favor.

 

E estando à beira do rio Ave assediados pelas tropas, Aurélio estendeu sua mão esperando que Jeová fizesse o rio recuar e o tornasse seco, e as águas ficassem divididas. Mas o rio não se moveu.

 

E Aurélio e Christine desejavam que todos eles entrassem pelo meio do rio, seco, tendo as águas como paredes à sua direita e à sua esquerda. Mas as águas estavam calmas sobre seu leito.

 

E vendo os exércitos atrás deles, Aurélio estendeu sua mão, para que as águas se voltassem sobre os que os perseguiam, sobre seus carros, e sobre sua cavalaria. Mas as águas não lhe obedeceram.

 

E então Christine teria querido estender sua mão sobre o rio, e que este se voltasse em toda a sua força, e os exércitos ao fugir se deparassem com o rio; e que Jeová os derrubasse em meio do rio. Mas as águas jaziam calmas.

 

E disse Aurélio que as águas se voltassem e cobrissem os carros e a cavalaria,e todo o exército que havia entrado atrás deles no rio; e que não sobrasse deles nenhum. Mas o rio não o ouviu.

 

E desejou que pudesse ir pelo meio do rio, seco, tendo as águas por paredes à sua direita e à sua esquerda. Mas as águas estavam planas e tranqüilas.

 

E rogou que assim os salvasse Jeová aquele dia; e teriam querido ver os exércitos que os perseguiam mortos na margem do rio.

 

Mas Aurélio não era Moisés, nem Christine era Aarão, nem aquele grupo de homens e mulheres que os seguia era o povo eleito, nem o rio Gave era o mar Vermelho, nem Jeová era Jeová porque não tinham Deus algum que os amparasse.

 

Encerrados entre o rio Gave e as tropas, Aurélioe Christine e toda a sua gente se resignaram a esperar a morte antes que pudessem chegar à terra espanhola que estava do outro lado do rio.

 

Olhando-se frente à frente, as tropas armadas de um lado e o indefeso e exausto grupo de prófugos do outro, o sangrento desenlace parecia inevitável. No entanto, Christine conseguiu perceber uma expressão de inquietude no adail, que se tornava extensivo a todos os seus homens. Acreditou ver um ligeiro tremor no pulso do braço em alto que segurava a espada e não se decidia a baixá-la para dar a ordem de ataque. E aquele medo tinha um fundamento: tamanho foi o empenho do abade em convencer os soldados de que aqueles desertores eram a legião do Demônio, tantas eram as versões dos que afirmavam ter sido testemunhas das perversas orgias às quais se entregavam, tão numerosos foram os relatos sobre os diabólicos festins noturnos, que os perseguidores finalmente acabaram por se convencer. Os exércitos costumavam estar preparados para combater com o inimigo mais feroz e desapiedado, mas eram poucos os que se atreviam a enfrentar cara a cara ninguém menos do que Belzebu. Christine adivinhou que estavam sendo temidos quando conseguiu distinguir um soldado fazendo o sinal-da-cruz. Então soube que não estavam desarmados nem desamparados. Se não com a ajuda de Jeová, como a que haviam recebido os judeus para atravessar o mar Vermelho, o fariam com o auxílio de Satanás. Encurralados contra o rio Gave, Christine apelou às suas companheiras e, sem olhá-las, instou-as num sussurro para que a imitassem em tudo o que fizesse; então rasgou suas roupas e com um olhar maligno desnudou seus peitos desafiando os soldados. As demais mulheres fizeram o mesmo, ao mesmo tempo que lançavam uns alaridos semelhantes aos que proferiam durante os estados de êxtase místico no convento. Os homens costumavam temer as mulheres, temor que, habitualmente, se disfarçava como desprezo; e nada era mais temido que a horripilante figura das bruxas. Aquele grupo de fêmeas que mostravam os dentes como lobos e exibiam seus corpos nus, tal como costumava se apresentar Satanás, era uma imagem aterradora. Os soldados estavam paralisados e não atinavam em atacar, mas tampouco a recuar. Aurélio aproveitou o desconcerto das tropas para deslizar por trás de uma rocha e alcançar uns matos. Conseguiu escapar com agilidade e por fim chegou, sem ser visto, até a retaguarda dos soldados, trepando sobre uma pedra. Enquanto as mulheres gritavam e se moviam nuas como animais no cativeiro, Aurélio abriu seus braços bem estendidos e, assumindo a expressão do crucificado, disse:

 

- Filhos meus, eu voltei. A hora final chegou. Logo haverão de soar as trombetas e os mortos se erguerão de seus sepulcros. Os soldados giraram suas cabeças e puderam ver Jesus Cristo em pé sobre o rochedo. Então passaram do medo ao pânico e se postaram diante do Messias que havia voltado ao mundo para anunciar o Juízo Final. Agora tudo ganhava sentido para eles: estavam diante da última de todas as batalhas, a do filho de Deus contra as hostes de Satanás.

 

- Nada tendes a fazer aqui, não vos interponhais ante o imundo - disse Aurélio agora enérgico e, antes que pudesse pronunciar a última palavra, os soldados fugiram tão rápido como puderam. Aquele exíguo povo de Israel composto por três dezenas de homens e mulheres pôde ver como as hostes do prior se afastavam derrotadas como os exércitos do faraó.

 

Do outro lado do estreito mar Vermelho, a um passo, estava agora a Espanha, esperando-os como se fosse a terra prometida. Sem dificuldade, alcançaram por fim a outra margem do rio Gave.

 

       A CIVILIZAÇÃO DO AMOR / ASTÚRIAS, ESPANHA, 1348

 

O grupo de homens e mulheres liderado por Aurélio e Christine chegou por fim à pequena vila de Velayo, nas Astúrias. O povoado estava situado num vale fértil, aberto e frondoso, banhado pelas mansas águas do rio Viacaba. Apesar da fadiga, a fome e todos os rigores e adversidades da penosa viagem, nem bem pisaram o chão de Velayo se sentiram imensamente felizes. A brisa suave e morna, o céu diáfano e as pradarias extensas e hospitaleiras insuflaram-lhes um novo ânimo. Os campos semeados até as encostas das colinas baixas e sinuosas eram uma promessa de abundância e prosperidade. Os camponeses ceifavam com uma alegria que contrastava com a carrancuda resignação dos aldeões de Troyes. As casas do povoado eram brancas e simples e abrigavam gente do campo e também do mar, agricultores e pescadores, já que a vila era abraçada pelo rio que desembocava nas costas do Cantábrico. Aurélio desdobrou o mapa e, olhando em volta, demorou a compreender que o castelo que dominava o vale encimado por uma colina era o seu. Era uma construção de pedra erigida em duas alas simétricas e coroada por uma torrinha circular. O outeiro sobre o qual se afirmava e todas as terras que o circundavam, desde o rio até um monte espesso, constituíam o total da propriedade.

 

Aurélio tomou posse de sua herança apresentando os documentos de propriedade ao conde de Gijón, dom Alonso, filho bastardo de Henrique II, dono da maior parte das terras e virtual governador do nascente povoado. Acostumados todos à introvertida existência que levavam umas no convento e outros na abadia, habituados à vida religiosa, o grupo ocupou o castelo e dispôs das instalações como se se tratasse de um mosteiro leigo. A divisão das tarefas foi organizada segundo as habilidades de cada um. Certo era que os varões, forjados no árduo trabalho da contemplação, não faziam outra coisa além de se entregar à quietude. Durante os primeiros tempos as mulheres tinham que se ocupar de quase todos os trabalhos: acender e manter o fogo para cozinhar e dar calor ao lar, costurar, tecer e bordar, fazer a roupa, lavála e conservá-la. Também tinham que moer os grãos, fazer a farinha e amassar o pão. As terras das Astúrias eram ricas em maçãs e não tanto em videiras, de modo que logo as mulheres aprenderam a fabricar sidra como antes faziam vinho. Mas instados por Aurélio, que tanto padecia no mosteiro com a ociosidade disfarçada de misticismo, pouco a pouco os homens começaram a assumir algumas tarefas: cortar e armazenar a lenha, manter o bom funcionamento das dobradiças e das carpintarias, aprenderam alguns rudimentos de ferraria e a cortar e costurar o couro para fabricar calçados. As mulheres, por seu lado, encarregavam-se de elaborar tudo o que se relacionava com o leite, salvo a produção dos queijos que ficava a cargo dos homens. Mas, com certeza, os trabalhos verdadeiramente árduos eram feitos pelos camponeses que viviam nas modestas casas das terras pertencentes ao feudo: os trabalhos de arar, semear, colher, ceifar o feno e cuidar dos semeadouros; ordenhar, pastorear o gado, criar animais de curral, tosquiar e produzir a lã. De fato, durante os primeiros tempos, mantinham este regime feudal que logo haveriam de abandonar e substituir por outro completamente inovador. Mas o mais notável era o vínculo que unia os membros daquela curiosa comunidade. Se nas casas religiosas das que provinham, os homens por um lado e as mulheres por outro, estavam unidos entre si pelo amor que professavam a Cristo, em seu novo ambiente leigo estavam irmanados somente pelo amor que tinham uns pelos outros. Por outra parte, a vida nos claustros estava regida por uma firme verticalidade, uma ordem hierárquica inviolável, cuja cabeça era a figura do abade ou da abadessa que mandavam em seus subordinados. No castelo de Velayo, em contrapartida, não existiam as hierarquias, não havia pastores nem cordeiros, cada um fazia o que lhe ditava sua boa consciência e tendiam a uma verdadeira sociedade paulina sem leis, porque onde não havia maldade não fazia falta a lei. A princípio custava-lhes despojar-se de sua férrea formação; homens e mulheres habitavam diferentes alas do palácio. Mas logo esse rígido limite foi se diluindo até que coabitaram segundo fosse seu desejo. Aurélio e Christine se amavam com um amor transparente e puro, despojado de qualquer contrato ou laço legal; estavam tão genuinamente unidos pelo ditame de seus corações que não era necessária nenhuma instância contratual. Costumavam dormir no quarto mais alto do castelo, de onde se contemplava o vale banhado pelo rio e se ouvia o som do mar. Logo o exemplo se espalhou e os homens e as mulheres foram formando pares, irmanando cada vez mais, fazendo e desfazendo romances, matrimônios indissolúveis ou que duravam o tempo de uma noite. Todos eram donos de tudo porque tudo era compartilhado: o teto e a comida, a ignorância para convertê-la em saber, e o saber para que não se transformasse em soberba; compartilhava-se a lenha e o fogo e também o frio para trocá-lo por calor; compartilhava-se o dinheiro e a escassez, o temor para convertê-lo em valentia e a valentia para que não se convertesse em arrogância. Fiéis à letra de Paulo, levavam sua predicação de ruptura com a Lei até as últimas conseqüências: não era preciso observar os mandamentos, por agora não tinham nenhum valor no rigor da pedra escrita, mas sim no espírito e na própria consciência. Assim, naquela pequena sociedade paulina, todos se atinham ao principal dos mandamentos que bem podia substituir o decálogo: amai-vos uns aos outros; porque o que ama opróximo, cumpriu a lei. À luz do livre-arbítrio, não só declamado mas certamente praticado, construíram uma sociedade sustentada no amor verdadeiro segundo a palavra de São Paulo: Assim que não nosjulguemos mais uns aos outros; antes seja o vosso propósito não pôr tropeço ou escândalo ao irmão.

 

E assim, procedendo de acordo com os ditames do coração, coabitavam os homens com as mulheres, compartilhando o trabalho e o descanso, as conversas e o silêncio, as leituras e as escrituras,

o teto e o leito. Já nessa harmoniosa convivência perguntavam-se por que estranha razão homens e mulheres haviam permanecido separados até então, privando-se uns das outras e vice-versa. Assim descobriram que a abstinência era a mãe da maior parte dos males e pecados que aconteciam dentro dos claustros. Tão logo quebraram a regra da castidade desapareceram os demônios; os íncubos e os súcubos que torturavam as noviças no convento se esfumaram para sempre; agora não era preciso celebrar aquelas tenebrosas cerimônias para espantar Satanás. Ao serem rompidos os diques da abstinência e serem possuídas por homens, não havia forma de que as mulheres fossem possuídas pelo Demônio, como costumava acontecer no convento. Aos olhos de quem desconhecesse o férreo vínculo de amor que unia os habitantes do castelo de Velayo, aquela convivência entre homens e mulheres teria se afigurado como a mais imunda das promiscuidades. Mas Aurélio, Christine ou qualquer de seus seguidores teria respondido com as palavras de São Paulo: Eu sei, e confio no Senhor Jesus, que nada é imundo em si mesmo; mas para o que pensa que algo é imundo, para ele o é. Aquele era um mundo perfeito.

 

No castelo de Velayo não era necessário o estabelecimento de lei alguma, porque onde havia amor não era preciso que houvesse lei; esta afirmação paulina não nascia da reflexão teológica, mas da mais pura experiência. A rigor, diariamente podiam comprovar que as leis eram a substituição do amor quando este estava ausente. Tão profunda e genuína era esta convicção, que teria sido completamente desnecessário que algum Moisés lhes exibisse as tábuas da lei, pois as levavam gravadas no coração. Não desejavam a mulher do próximo porque as mulheres não tinham propriedade e decidiam por elas mesmas com quem desejavam coabitar; ninguém roubava porque tudo era de todos e roubar alguém eqüivalia a roubar a comunidade e, portanto, a si mesmo; santificavam o dia de sábado dos hebreus e o domingo dos cristãos, porque santificavam igualmente todos os dias da semana, já que o trabalho não era para eles um castigo mas uma bênção; a ninguém teria passado pela cabeça matar, não porque fosse expressamente proibido, mas porque não conheciam o ódio e muito menos a sanha, nem tinham motivos para fazê-lo. Não levantavam falso testemunho porque onde não havia hipocrisia nem deslealdade nem proibição de pensamento ou de palavra não havia lugar para a mentira, e, de fato, o engano não tinha sentido algum. Não desejavam os bens alheios pela simples razão de que não existiam bens alheios, já que a propriedade de um indivíduo era também a propriedade dos demais.

 

O regime feudal originário, segundo o qual os camponeses da granja pertencente ao castelo trabalhavam as terras ficando apenas com uma pequena parte do produzido, o suficiente apenas para subsistir, foi rapidamente abolido. A maior parte dos mosteiros e conventos mantinha com os camponeses a mesma política dos senhorios: o abade era o equivalente ao senhor feudal e os vassalos trabalhavam para ele só em troca de teto e comida. E assim como nos feudos estavam perfeitamente diferenciadas as famílias nobres das plebéias, nas abadias existia uma estrita divisão entre monges e leigos: as irmandades estavam dadas entre os religiosos e, é claro, não incluíam os servos. Aurélio decidiu que para que existisse uma verdadeira irmandade deviam incluir também os camponeses e apagar qualquer fronteira entre o castelo e a granja. Não apenas compartilhavam seus pertences entre os moradores da casa grande e os dos casarios, mas tornavam-lhes extensivos todos os seus princípios, podendo-se misturar uns com os outros e tendo todos os habitantes da propriedade herdada os mesmos direitos. Este novo sistema produziu uma imediata prosperidade geral, as humildes casas nas quais moravam as famílias de camponeses se converteram num povoado florescente, colorido e alegre; compartilhavam-se as missas na paróquia do castelo e não havia um pároco fixo: cada um tomava a palavra e dizia o que lhe parecia importante expor; ouvia missa quem queria, e os que não queriam não eram obrigados a participar. As festividades eram coletivas e, de fato, cada vez encontravam mais oportunidades e motivos para festejar.

 

Aurélio ganhou para si rapidamente a devoção de todos os moradores da vila. Se tivesse sido por sua vontade, poderia ter- se convertido num homem poderoso: as multidões o adoravam e não teriam vacilado em obedecer a qualquer arbítrio ou converter- se em soldados de um exército incondicional. Se Aurélio tivesse sido dono de um espírito messiânico poderia ter provocado um movimento de cisma ou ainda ir mais longe: poderia ter malversado sua enorme semelhança com o Nazareno e, usurpando seu lugar, tirar proveito das multidões. Mas não o animava nenhum afã de poder nem acreditava ter qualquer atributo acima de seus semelhantes; não se sentia chamado a predicar porque estava convencido de que não o adornava o dom da sabedoria; por outra parte, fazia ingentes esforços para desfazer-se de toda certeza, já que encontrava na dúvida o caminho para a verdade. Até que, por último, renunciou à verdade como bem supremo diante da evidência de que todas as iniqüidades, todas as matanças e ignomínias eram perpetradas justamente em nome dela. A ausência da Verdade como dogma inamovível tornava possível a diversidade de pareceres e, como nas antigas ágoras gregas, tudo podia ser objeto de discussão. Floresceu então a efêmera arte da conversação: a discussão fecunda ou o mero prazer de levar o pensamento até os limites da lógica e da moral contrastavam com o silêncio monacal ao que estavam acostumados. De modo que, se durante os anos que passou no mosteiro Aurélio aspirava a ser pastor, agora que podia dispor de um numeroso rebanho descobriu que não era digno tratar seus semelhantes como se fossem simples gado.

 

Mas os boatos sobre a nova comunidade do florescente povoado de Pelayo não tardaram em se converter em maliciosa falação. Nos povoados vizinhos começou a se substituir o nome de Velayo pelo de Vilaviciosa; de fato, já em 1348 apareceram os primeiros registros onde o nome oficial do povoado figurava, com efeito, como Vilaviciosa de Astúrias. No entanto, durante os primeiros tempos não se ouviram recriminações muito ruidosas sobre a excêntrica coletividade. Ou quando eram ouvidas, havia quem se encarregasse de silenciar esses protestos; e tinham suas boas razões para fazê-lo: tal era a prosperidade da vila desde que haviam chegado os novos moradores do castelo, que o conde de Gijón, dom Alonso, nunca antes havia conseguido arrecadar tanto dinheiro em impostos. Mas não ia demorar muito tempo para que as crescentes queixas dos povoados próximos se convertessem Christine e Aurélio formavam um casal imperfeito; diferentemente do ideal do par conjugal, segundo o qual a mulher devia se submeter aos sábios desígnios do homem, não havia uma só decisão que não surgisse do comum acordo entre ambos. Aquele era um casal defeituoso já que seu fundamento era o amor e não a caridade com a qual o varão devia amparar e guiar sua esposa, como se ela fosse incapaz, obtusa ou incompetente para conseguir ser alguém por si só. Por outra parte, Christine não trouxe um dote com o qual pudesse ressarcir o tormento que todos os maridos tinham que tolerar ao se verem obrigados a conviver com um ser pouco menos que desprezível. Era um casal inconcebível porque não estava destinado à consagração da descendência, pois o ventre de Christine, depois do mais cruel dos despojos a que havia sido submetido pelo seu pai, era um território devastado e infecundo. Era um casal inadmissível uma vez que não tinha como propósito a fusão de duas fortunas, mas, ao contrário, aquela união significou a divisão de uma herança em inumeráveis mãos que jamais haviam sido donas de nada. Era um casal impróprio porque não significava a aliança de duas famílias, já que eram duas almas arremessadas a todos os exílios possíveis. Para a autoridade era um casal repugnante, já que se baseava não apenas nos pilares do amor e da paixão, mas também nos sólidos alicerces da voluptuosidade, contradizendo, um a um, todos os preceitos indicados pela Igreja, segundo as palavras de São Jerônimo:

 

É absolutamente repugnante amar a esposa de outro homem, ou a própria, em demasia. Um homem sábio deve amar sua esposa com juízO) não com paixão. O amor do homem deve governarseus impulsos voluptuosos e não precipitar-se em relações sexuais. Quem ama de maneira ardente demais sua esposa é um adúltero.

 

E justamente era esta frase a que melhor descrevia a convivência entre Aurélio e Christine. Não foi, no entanto, uma tarefa simples para Aurélio despojar-se da pesada armadura que mantinha seu corpo afastado das coisas mundanas. Foi para ele mais fácil modificar seu rígido universo intelectual fundado nas leituras de Santo Agostinho do que levar à prática aquele novo mundo de sensualidade que nascia diante de seus olhos. Descobriu, então, que, se a tarefa que se havia proposto Agostinho para abandonar o vício e abraçar a virtude parecia uma epopéia, o caminho inverso era muitíssimo mais difícil ainda. Era infinitamente mais árduo o trabalho de desembaraçar-se da sua antiga moral que o esforço que lhe havia demandado construí-la. Tão férrea era a força do dogma que a razão não conseguia abrir caminho; tão arraigada estava a fé que sequer o chamado do instinto conseguia romper a barreira do preceito. Santo Agostinho narrava em suas confissões o enorme esforço que devia fazer para vencer os fortíssimos impulsos da carne, já que seu sexo parecia comportar-se de maneira independente e contrária à sua vontade; em suas Confissões, dizia o santo: "os membros pudendos se excitam quando lhes apraz, em oposição à mente que é sua dona, como se estivessem animados por uma vontade própria". Aurélio lamentava-se do mesmo modo que o teólogo africano, mas pela razão oposta: quando no leito marital abraçava o corpo nu de Christine, tendo acreditado superar qualquer escolho moral, sua vontade lutava para entregar-se às mais baixas paixões; no entanto, seu companheiro parecia responder aos ditames de abstinência que aprendera no mosteiro, negando- se a participar do pecado. Instalava-se assim o estranho paradoxo de que, enquanto o espírito de Aurélio se liberava das amarras da religião, seu sexo se havia convertido num pequeno e castíssimo monge que se negava a esgueirar a cabeça do capuz, condenando seu dono a uma existência de involuntária virtude. Christine era paciente e, principalmente, dedicada. O amor infinito que sentia por seu marido superava qualquer obstáculo carnal. Era, além disso, uma mulher extremamente inteligente e logo compreendeu a origem do problema: levando em conta a formação agostiniana de Aurélio, era natural supor que o amor e a sensualidade corriam para ele por trilhos diferentes: o amor era uma prerrogativa da alma, enquanto a paixão pertencia à carne. E, de fato, quanto mais amada se sentia ela por seu esposo, em proporção inversa, muito menor era o desejo que lhe demonstrava. E, ao contrário, notava que nos efêmeros momentos em que o pequeno monge se convertia num duríssimo e grande guerreiro, voltava imediatamente ao repouso quando ela lhe dedicava ternas palavras de amor. Assim, se Aurélio abrigava dois homens sob um mesmo nome, Christine considerou que se também conseguisse ser duas mulheres em uma, teria solucionado o problema: seria uma rameira na hora de compartilhar a alcova e a mais pura das esposas no resto do dia. E assim foi. Chegaram a ser um casal feliz, apesar do que pudesse opinar o poder eclesiástico.

 

Aurélio e Christine levaram os princípios paulinos até mesmo ao seu particular conceito de matrimônio: se o amor entre os semelhantes, que havia sido pregado por Jesus, estava destinado a substituir a coação das leis, o matrimônio, como arquétipo da união mais elementar, devia estar fundado sem dúvida alguma no amor e não na lei. Se, tal como fez notar São Paulo, a chegada de Cristo implicava a ruptura com todos os ritos legais tais como a circuncisão, o jejum, a observância do Shabbat, a Páscoa etcétera, com mais razão ainda esta renúncia à lei devia tornar-se extensiva ao contrato marital: por acaso não era um insulto ao amor manchá-lo com um convênio como o que era firmado entre inimigos? Tão duvidoso assim era o fundamento que levava duas pessoas a se unirem até que a morte as separasse que havia que ser jurando perante Deus, referendado perante a Lei e rubricado num contrato?

 

A mútua confiança e o amor incondicional tornavam inútil e até ofensiva a celebração de um contrato. A rigor, podia-se afirmar que Aurélio e Christine eram mais paulinos que Paulo: sem dúvida, não podiam deixar de considerar todas as afirmações de São Paulo contrárias à união dos sexos, nem ignorar que ele só aprovava o casamento por considerá-lo a única solução contra a concupiscência. No entanto, também ficava claro que a cisão da tradição hebraica que foi produzida pelo grande judeu de Tarso era não apenas de ordem teológica, mas, fundamentalmente, de caráter lógico: num mundo sob o signo do amor não era necessária a lei. Em contrapartida, todos os dizeres de Paulo em que condenava a união da carne em favor da abstinência não atendiam a nenhuma lógica e sim à crença, certamente errônea, na iminência do Apocalipse. Ele suponha pertencer à geração que iria presenciar o fim dos tempos e que a vida neste mundo haveria de ser apagada para sempre. De outro modo não se entenderia por que razão haveria de condenar a humanidade à sua extinção evitando a procriação. De modo que Aurélio, Christine e todos os seus seguidores, vendo que o fim do mundo era um fato que não precisava de uma vigília rigorosa e que Jesus não tinha previsto um retorno peremptório, descobriram que nada impedia de fazer tudo o que fosse necessário para trazer filhos ao mundo e não sentir culpa pelo prazer que acarretava semelhante tarefa. E no caso particular de Aurélio e Christine, que não podiam gerar, a união de seus corpos não tinha outro propósito que o do puro deleite. Em que momento a humanidade havia decidido condenar o prazer? Não era em absoluto casual que o primeiro dos filósofos cristãos, Orígenes, oferecesse com seu exemplo a solução final para acabar de vez com o prazer, seguindo a lógica de uma passagem dos Evangelhos, na qual Jesus diz a seus discípulos: "se tua mão ou teu pé é ocasião de cair, corta-o e tira-o de ti; melhor entrar na vida coxo ou manco do que ter duas mãos ou dois pés e ser atirado ao fogo eterno. E se teu olho é ocasião de cair, arranca-o e tira-o de ti; melhor entrar com um só olho na vida, do que tendo dois olhos ser atirado ao inferno de fogo". De acordo com tais postulados, talvez sem distinguir entre as parábolas e a realidade, Orígenes, temendo cair devido ao impulso da carne, decidiu arrancar os genitais com as próprias mãos.

 

Com o tempo, até os próprios moradores do povoado foram substituindo o nome de Velayo pelo de Vilaviciosa, apelido que acabaria se convertendo em sua denominação oficial, tal como ficaria conhecido para sempre: Vilaviciosa de Astúrias. Sem dúvida, nem Aurélio nem Christine ignoravam que a Espanha não era o melhor lugar para fundar uma comunidade semelhante. Mas, com certeza, não se sentia nas Astúrias daquela época a opressão clerical que reinava na França. A península ainda não era a grande pira inquisitorial em que se transformaria tempos depois; ao contrário, enquanto a semente da cruenta luta contra a heresia, nascida na Sicília em 1223 com a bênção papal e a pedido do imperador Federico II Hohenstaufen, espalhava-se desde o sul dos reinos da Itália e da França, na Espanha os bispos diocesanos eram geralmente benévolos. Por outra parte, em comparação com outros âmbitos pertencentes à própria Igreja, a comunidade de Velayo teria merecido ser chamada de Vilavirtuosa. Por exemplo, no século X, Arquibaldo, arcebispo de Sens, era tão afeto à abadia de São Pedro que decidiu expulsar os monges e substituí- los por um harém de concubinas que instalou no refeitório, além de abrigar seus falcões e cães de caça nos claustros. O bispo de Liège, Henrique III, tinha sessenta e cinco filhos bastardos, a maioria dos quais havia sido engendrada por ele em sua igreja.

 

Por outra parte, os obscuros eventos que tinham lugar tanto na abadia como no mosteiro dos quais provinham os fundadores de Vilaviciosa nada ficavam a dever aos de Sodoma e Gomorra. Mas os murmúrios sobre a suposta libertinagem que reinava na vila e os luxuriosos costumes de seus moradores colocavam o conde de Gijón numa situação embaraçosa: não sabia quanto tempo poderia durar a bonança econômica às custas de se fazer cúmplice daquele grupo de hereges desenfreados. Por outra parte, os conselheiros de Dom Alonso assinalavam para o conde o perigo que representaria a disseminação do exemplo de Vilaviciosa; o que aconteceria, perguntavam-se, se os povoados vizinhos, vendo o florescimento súbito de Velayo ao serem rompidas as fronteiras hierárquicas e econômicas entre o palácio e a plebe, decidissem derrubar também os muros que os separavam das riquezas de que gozavam - sem que as tivessem produzido - os nobres. Era claro que os servos não podiam esperar de seus senhores a mesma generosidade de Aurélio. E ficava muito mais evidente ainda que os senhores feudais não estavam dispostos a que seus vassalos vissem em Vilaviciosa um modelo a seguir. De modo que o corregedor de Velayo notou que o extraordinário incremento da arrecadação de impostos, que, como regra geral, utilizava em proveito próprio, poderia voltar-se contra ele caso seus próprios feudatários descobrissem que seria muito mais proveitoso para eles estabelecer um regime semelhante ao de Vilaviciosa. Os conselheiros fizeram- no ver que o número de camponeses superava amplamente qualquer exército e que, convertidos em turba, seria impossível contêlos. Definitivamente, a comunidade de Velayo não podia erigirse como exemplo ou, melhor ainda, devia receber um corretivo exemplar. Mas para não converter seus habitantes em vítimas era preciso apresentá-los, aos olhos dos povoados vizinhos, como as desapiedadas hostes de Satanás. O nome de Vilaviciosa e a infinidade de falatórios sem dúvida contribuíam para os propósitos do conde de Gijón. Bem sabiam seus conselheiros que não havia melhor recurso que brandir a pecha do pecado para empunhar as armas em nome da ira de Deus e, assim, colocar as arcas em situação bem resguardada. Por outra parte, sem saber, Dom Alonso ia receber uma ajuda inesperada.

 

LIREY, FRANÇA, 1349

Do outro lado do rio Viacaba, em Lirey, enquanto Geoffroy de Charny se desvelava idealizando o sudário de Cristo, chegou a seus ouvidos a notícia de que sua filha estava na Espanha liderando uma congregação de hereges. Não duvidou disso um instante: imediatamente dispôs de um pequeno embora bem armado exército e, como se se tratasse de um destino, partiu novamente em direção a Astúrias. Dessa vez estava decidido a acabar com a fonte de todas as suas desgraças, que se resumiam numa só palavra: Christine. Não iria permitir que aquela que deixara de ser sua filha continuasse vilipendiando sua nobre linhagem, seu nome e sua honra. Se durante anos Geoffroy de Charny cultivara o mito de seu passado como valente cruzado, agora tinha a oportunidade de demonstrar que podia comandar um exército vitorioso. Com certeza não era possível comparar a gesta da conquista da Terra Santa com a incursão a um pequeno castelo completamente desguarnecido, sem fortificações nem exército, como tampouco havia como comparar as aguerridas hostes de Maomé com aquele pequeno grupo de monges e noviças que jamais haviam empunhado uma arma. Mas o duque sabia que trazer de volta sua própria filha e entregá-la às autoridades para que a justiçassem era a melhor forma de provar sua infinita lealdade para com o Altíssimo: que sacrifício maior podia esperar-se de um cristão exemplar? Talvez fosse aquela sua última oportunidade de demonstrar a Henri de Poitiers sua incondicionalidade e conseguir deste modo a permissão para construir sua igreja em Lirey.

 

Novamente esperançado, Geoffroy de Charny partiu com sua armada para travar suas pequenas cruzadas.

 

ASTÚRIAS, 1349

O conde Gijón, dom Alonso, recebeu com enorme beneplácito o duque chegado de Troyes. Dispostos a fazer com que a lição corresse aos quatro ventos, estabeleceram uma aliança estratégica, como se realmente acreditassem que iam arrebatar Jerusalém das mãos dos exércitos muçulmanos. A coalizão de ambas as milícias somava meio milhar de homens providos de sabres, lanças e espadas para enfrentar um punhado de pacíficos religiosos e camponeses desarmados, e sua grande maioria mulheres e crianças. Na madrugada de 13 de julho de 1349 entraram na pequena granja de Vilaviciosa, tomando de assalto o modesto casario, saqueando e destruindo tudo o que encontravam pela frente, violando as mulheres, assassinando os homens e as crianças e ateando fogo às casas num ato de misericórdia, já que o fogo purificava as almas dos hereges. Tão repentino foi o ataque que sequer tiveram tempo de fugir; alguns poucos tentaram defender suas famílias com foices e gadanhas, mas a superioridade em armas dos agressores era tamanha que não havia forma de detê-los. Deixando atrás de si um tendal de cadáveres, avançaram rumo ao castelo para completar o massacre. Não precisaram transpor o óbice de uma fossa infestada de piranhas, nem erguer escadas para escalar muros fortificados; não foi necessário que lutassem corpo a corpo com arqueiros encarrapitados no alto das torres, nem que derrubassem os portões com pesados aríetes, já que o castelo estava aberto a quem quisesse entrar. À sua passagem, as hostes do conde e do duque matavam sem piedade aqueles que se interpunham em sua frenética carreira. Vendo a facilidade com que levavam a cabo a heróica gesta, Geoffroy de Charny colocou-se à frente das vitoriosas milícias. E enquanto atravessava com sua espada os hereges, procurava em cada mulher o rosto de sua filha. Mas não era o único: Aurélio, aturdido, queria encontrar Christine, enquanto via cair seus companheiros um após o outro. Nisso estava, perambulando desesperado de um lado para o outro, escorregando no sangue, saltando sobre corpos mutilados, quando o duque o teve a seu alcance. Aurélio e Geoffroy de Charny jamais haviam visto um a cara do outro. O duque estava a ponto de descarregar o fio da lâmina sobre o pescoço do marido de sua filha quando, de repente, Aurélio girou a cabeça sobre seu ombro; então, ao ver o duque aquele rosto idêntico ao de Jesus, deteve sua mão no ar. Ficou absorto olhando aquele Cristo Pantocrator e seus olhos se iluminaram como se acabasse de receber a verdadeira Revelação. Ao ver a vacilação de seu comandante, um de seus homens elevou sua espada e descarregou- a com violência sobre Aurélio; estava a um ápice de decapitálo quando o duque interpôs seu sabre entre a espada e o pescoço. - Não o matem! - gritou com todas as suas forças e ordenou que o capturassem sem fazer-lhe mal. Assim que Aurélio foi atado de pés e mãos, Geoffroy de Charny apeou, deu-lhe água fresca para beber e descobriu uma pequena ferida que sulcava seu rosto; então passou-lhe um pano úmido com delicadeza. Vendo que as cordas que lhe cingiam os membros estavam apertadas demais, afrouxou-as um pouco e limpou as lacerações. Aurélio não se explicava por que razão aquele homem se mostrava tão piedoso com ele, depois de ter assassinado sem misericórdia seus companheiros. Tão deslumbrado estava o duque com o seu achado que, por um momento, esqueceu completamente que o verdadeiro propósito de sua empresa era encontrar sua filha. Por seu lado, Aurélio não se importava em absoluto com sua sorte: de mãos atadas como estava, via a trágica cena e rezava para que Christine tivesse podido escapar. Mas para seu completo desconsolo, a viu surgir entre os cavalos que pisoteavam os corpos ensangüentados e a olhou com olhos de espanto quando comprovou que corria em sua direção. Estava disposta a morrer junto do seu esposo. Mas ignorava que seu pai não tinha a menor intenção de matar seu vistoso genro. Geoffroy de Charny saiu de seu encantamento ao sentir a descarga de murros sobre as suas costas; virou a cabeça por cima do ombro e ali estava, entregue e ao alcance de sua mão, a origem de todas as suas desgraças. O duque elevou o olhar para o céu e agradeceu a Deus tantas recompensas; disse a si mesmo que sua cruzada tinha sido um sucesso. Os golpes que Christine lhe desferia eram para ele um bálsamo que endurecia sua pele e o preenchia de um ódio grato. Deixou-se golpear até que seu espírito se encheu daquele ódio e o ultrapassou por completo. Assim funcionava a alma de Geoffroy de Charny: o ódio era a lenha que alimentava a fogueira de maldade que o animava a cada passo. Então pegou Christine pelo pescoço e começou a apertá-lo com a força do rancor longamente contido: oprimia o pescoço de sua filha e era invadido por um gozo infinito. Aurélio gritava de desespero, enquanto tentava endireitar-se sobre seus pés amarrados; no preciso instante em que conseguiu levantar, um dos homens do duque desferiu-lhe um furioso pontapé em pleno rosto, fazendo um fio de sangue cair sobre o barro. Só então o duque soltou o pescoço da sua filha e correu até aquele Cristo estendido no chão. Ergueu-o entre seus braços e perguntou-lhe se estava bem, ao mesmo tempo que o reanimava com suaves palmadas no rosto. Cravou o olhar no miliciano que ousara machucar seu jovem Salvador e com voz tênue, pausada, disse-lhe: - Dei-lhes ordens para que não o machucassem. Terminou de pronunciar estas palavras e, para que não pairassem dúvidas sobre a obediência que deviam prestar-lhe, Geoffroy de Charny atravessou com sua espada o ventre de seu próprio soldado, que desabou junto ao corpo convulsionado de Christine. Então, como se nada tivesse acontecido, o duque pegou sua filha pelos cabelos até deixá-la na posição vertical e voltou ao ponto em que havia interrompido sua tarefa: estava disposto a acabar de uma vez por todas com a fonte de seus pesares. Aurélio não entendia por que motivo aquele assassino havia se convertido em seu guardião, mas considerou que aquele mesmo zelo protetor devia ser usado por ele em seu favor. Ao ver que o rosto de Christine passava de um tom pálido para um azul mortuário e que seu corpo se movia, exânime, às expensas dos arrebatamentos de fúria do duque, Aurélio, com ambos os pulsos amarrados, recolheu do chão uma pedra que tinha uma aresta afiada como uma pederneira e gritou com todas as suas forças:

 

- Solte-a agora mesmo! Então Geoffroy de Charny pôde ver com espanto que seu Nazareno empunhava a pedra contra seu próprio pescoço, ferindo suas veias perigosamente. Quando comprovou que um fio de sangue começava a manchar a pequena rocha, atirou-se em cima dele deixando cair de novo Christine.

 

- Não, por favor, não faça isso - disse como se de repente se tivesse transformado num pai amoroso, ao mesmo tempo que cobria as feridas com sua própria roupa tentando estancar a hemorragia. - Se quer que conserve minha vida, então deverá velar pela dela. Não sei por que me protege depois de ter matado os meus. Mas se algo acontecer a ela, posso assegurar-lhe que eu mesmo me encarregarei de acabar com minha vida. Não foi necessário que Aurélio dissesse uma palavra mais para que o duque ordenasse que reanimassem Christine e que a pusessem a salvo. Era o armistício que estava disposto a assinar desde que nada arruinasse o perfeito modelo vivo que Deus lhe enviara para que, finalmente, pudesse fabricar o sudário à imagem e semelhança de Jesus Cristo.

 

LIREY, 1349

Até o final de seus dias, Christine e Aurélio lembrariam de Vilaviciosa como um sonho tão doce quanto efêmero. A memória de seus companheiros massacrados era uma dor que não lhes cabia na alma; apenas os dois sobreviveram à matança e não conseguiam evitar um sentimento de culpa sem fundamento que, no entanto, lacerava sua consciência. Do belo povoado abraçado pelo rio e pelas colinas só ficaram cinzas que finalmente foram levadas pelo vento do Cantábrico. O castelo, que outrora se erguia orgulhoso sobre os montes baixos e sinuosos, era agora uma testemunha muda da ignomínia e foi usurpado pelo conde de Gijón. Nada. Do sono de Vilaviciosa não restou absolutamente nada. Nem mesmo a história deixou um digno vestígio daquela breve epopéia.

 

De volta à França, Geoffroy de Charny fez prisioneiros Aurélio e Christine na inexpugnável torre de seu castelo de Lirey. Não podiam se ver; apenas conseguiam ouvir um ao outro quando tentavam trocar palavras através do muro de pedra que os separava. Aurélio ignorava qual era o interesse do duque em sua pessoa; não compreendia que secreta razão o levava a dedicar- lhe tantos cuidados: seu captor havia colocado à sua disposição um criado que cuidava para que não lhe faltasse boa comida e o melhor dos vinhos de sua própria colheita. Mas o que mais intrigava Aurélio era o afanoso empenho que o duque punha em cuidar da sua saúde e, principalmente, da sua aparência. Dos sangrentos episódios da tomada de Vilaviciosa, Aurélio conservava ainda uma importante cicatriz mal fechada que descia desde um de seus malares e lhe sulcava a bochecha. Todos os dias, uma vez pela manhã e outra antes do anoitecer, Geoffroy de Charny dirigia- se à cela de seu genro e, pessoalmente, ocupava-se de curar o corte que havia sido feito por um de seus homens com um pontapé. Com suas próprias mãos lavava a ferida para que não se infectasse e depois ungia-a com um ungüento para que acabasse de cicatrizar. A condição de Christine, em contrapartida, não era tão afortunada, se é que se podia aplicar este último termo ao destino de Aurélio: permanecia acorrentada a maior parte do dia, davam-lhe de comer pouco menos que desperdícios e apenas um pouco de água para beber.

 

Enquanto mantinha confinados sua filha e Aurélio, Geoffroy de Charny deu, por fim, com o artista que haveria de levar a cabo a obra que era sua obsessão: o sagrado sudário que cobrira o corpo de Jesus Cristo. Chamava-se Maurice Cassell, era um excelente pintor, notável escultor, habilidoso no ofício de baixo-relevo, na decoração de paredes e no entalhe de madeira. Como a maioria de seus colegas da época, era um anônimo artesão cujo status estava mais próximo do de um pedreiro, mestre-de-obras ou mesmo arquiteto do que dos artistas propriamente ditos. A rigor, os únicos considerados verdadeiros artistas e com direito à celebridade e, no melhor dos casos, à posteridade eram os poetas e os dramaturgos. Ninguém sabia quem desenhara a catedral de Reims, nem quem foram os pintores dos afrescos conhecidos como "As bodas místicas de Santa Catalina, na Notre-Dame de Mont Morillon; ninguém conhecia o nome do autor das formidáveis esculturas do pórtico da catedral de Chartres, nem quem entalhara os imponentes baixo-relevos da igreja de São Trófimo de Aries. E, é claro, este anonimato que ensombrecia os artistas favorecia os obscuros planos do duque.

 

Maurice Cassell apresentava-se como o homem perfeito; não só por seu magistral talento, mas porque sua condição econômica era pouco menos que calamitosa: tornava-se simples para Geoffroy de Charny comprar suas magníficas artes e, melhor ainda, seu silêncio. No entanto, menos fácil seria para o duque ganhar sua consciência. Maurice Cassell era um homem de fé sincera e, quando o nobre lhe confessou seus propósitos, o pintor não pôde evitar um sentimento de devota indignação. Mas Geoffroy de Charny era dono de uma retórica imbatível: jamais argumentava opondo-se ao seu interlocutor: ao contrário, evitando violentar suas convicções, criava a ilusão de que ambos concordavam nas mesmas opiniões, só que ele entrava com meios opostos unicamente na aparência. Por outra parte, Maurice Cassell não tinha muito brilho e para o duque não foi absolutamente difícil enredá-lo em sua oratória inflamada e em seus argumentos cheios de grandiloqüência. Não se trataria de uma falsificação, disse-lhe, mas de um ato de cristã justiça: o milagre do Santo Sudário sem dúvida havia tido lugar, tal como relatavam as crônicas do tecido de Edessa. Mas as hostes de Maomé tinham decidido ocultá-lo ou, pior ainda, destruí-lo, não só pelo afã de revanche em relação aos exércitos cruzados mas, principalmente, para ocultar a prova irretorquível da ressurreição de Cristo. Aquele lençol brutalmente destruído era o testemunho material e irrefutável da verdade das Escrituras. Fabricar a relíquia não podia ser considerado uma fraude, mas um ato de restituição para a cristandade, uma bandeira de evangelização perante os incrédulos e o triunfo da fé sobre os falsos profetas. Vendo que Maurice Cassell oferecia pouca resistência aos seus sólidos argumentos, Geoffroy de Charny, para terminar de convencê-lo, foi ainda mais longe; disse-lhe que se pusesse todo o seu talento a serviço do Senhor haveria de ganhar um lugar à sua direita, e que, ao contrário, se regateasse suas artes perante Deus para devolver a relíquia se faria cúmplice dos bárbaros que a haviam destruído e, desse modo, seria condenado para sempre ao fogo do Averno. O espírito pusilânime do pintor se sentiu comovido diante de tão terrível imagem. Seu silêncio foi uma concessão. Então Geoffroy de Charny deu o golpe de graça: esvaziou sobre a mesa uma taleiga repleta de moedas de ouro.

 

- A decisão está em suas mãos - disse-lhe conclusivo. Maurice Cassell pegou o dinheiro, voltou a colocá-lo na pequena bolsa, guardou-o entre suas roupas e por fim sentenciou:

 

- Amanhã começa a obra.

 

Era uma manhã diáfana. Aurélio procurou o magro raio de sol que entrava pela janelinha vertical, apenas uma estreita incisão na parede. Encheu os pulmões com o vento matinal que trazia o perfume da videira e assim, reclinado contra a parede, golpeou uma das pedras; foram dois golpes suaves. Esperou a resposta idêntica de Christine com a qual, como todas as manhãs desde que estavam naquele cativeiro, davam-se bom-dia. E cada vez que ouviam aquele som, uma e outro tinham a comovedora impressão de estar dando-se um longo e cálido abraço. Depois raspavam as pedras com algum seixo arrancado do piso e esse ruído que percorria a parede era uma longa carícia. Mas naquela manhã a parede não era mais do que isto: uma muda e surda parede que só devolvia a Aurélio um silêncio desolador, aterrorizante. Os golpes suaves se converteram em desesperadas descargas do punho e, diante do mutismo absoluto, Aurélio vociferou o nome de Christine, ao mesmo tempo que arremetia contra a grossa muralha com seu corpo lânguido, como se quisesse derrubá-la. Tamanho era o escândalo que o guarda subiu apressado as escadas e, ao ver como Aurélio começava a se ferir, atirou-se sobre ele e o abraçou para impedir que continuasse maltratando seu corpo.

 

- Christine! - gritava.- Onde está Christine?

 

Naquele mesmo momento, Geoffroy de Charny entrou na cela e com voz parcimoniosa lhe disse:

 

- Quer ver Christine? Então deve fazer o que eu lhe disser. Aquelas palavras fizeram Aurélio conter-se. Estava disposto a fazer o que fosse desde que pudesse ver sua esposa. O duque arrastou sua coxeadura escada abaixo e ordenou ao guarda que conduzisse o rapaz atrás dele. O cativeiro naquela pequena cela o havia tornado fraco e a falta de costume fazia com que o simples ato de caminhar se tornasse para ele uma árdua tarefa. Desceram até os salão principal, atravessaram o estreito corredor que unia os diversos aposentos e, por fim, saíram nos jardins que rodeavam a casa.

 

- Quer ver Christine? - disse o duque. - Muito bem, ali poderá vê-la. Aurélio teria desejado que aquela visão fosse uma alucinação ou um pesadelo. Resistia a acreditar no que seus olhos viam: no final de um longo caminho que se iniciava no castelo e se perdia entre os vinhedos, havia um cadafalso sobre cuja frágil superfície descansavam os pequenos pés de Christine; vestia uma leve túnica branca e uma corda grossa lhe rodeava o pescoço. Ao pé do improvisado patíbulo havia um carrasco que segurava entre as mãos a corda que mantinha a cobertura do chão sobre a qual se apoiava Christine; bastava que desse um pequeno puxão para que a tampa cedesse e a moça ficasse pendurada pelo pescoço.

 

- Por favor - implorou Aurélio -, não lhe faça mal. Farei o que o senhor quiser, mas não a mate. - Muito bem- respondeu Geoffroy de Charny -, prometo não lhe fazer mal se fizer o que lhe peço. Naquele momento, Aurélio baixou o olhar e viu a seus pés umas madeiras que formavam uma cruz enorme e perfeita. Demorou a compreender que aquela cruz era para ele.

 

                       VIA CRÚCIS

 

Geoffroy de Charny, no salão principal, constituído em virtual pretório, oficiando de Pilatos e, ao mesmo tempo, de pontífice dos judeus, fez comparecer Aurélio e, apontando com seu indicador fino e nodoso, perguntou-se que acusações poderiam pesar sobre ele.

 

- És tu o rei dos hereges? - perguntou-lhe. Aurélio não podia pensar em outra coisa que não fosse a sorte de Christine que pendia por um fio; temia dar uma resposta que significasse a morte da mulher que amava. Estava disposto a sacrificar-se. Timidamente respondeu:

 

- Dizes isto por tua convicção ou é o que te disseram outros a meu respeito? - Foram o abade do teu mosteiro e o conde de Gijón, corregedor do teu próprio povoado, quem te denunciaram. - Meu humilde povoado de Velayo, injustamente chamado de Vilaviciosa, não é um reino, já que não tem rei. Geoffroy de Charny, como Pilatos, podia ter dito aos imaginários pontífices hebreus: "Eu não encontro nenhum crime. Todavia vós tendes o costume que os solte um na Páscoa".

 

Mas não havendo nenhum Barrabás para escolher, o duque condenou aquele Cristo. Geoffroy de Charny, diante dos olhos sobressaltados de serviçais e criados, pegou um chicote e açoitou as costas de Aurélio, tal como Pilatos fez com Jesus, segundo diziam os Evangelhos. Um dos milicianos que havia participado da tomada de Vilaviciosa foi o encarregado de colocar-lhe uma coroa de espinhos sobre a cabeça, enquanto outros o vestiam com roupas cor grená. Então se ouviram gritos cheios de mofa:

 

- Salve, Rei dos hereges! - diziam, enquanto o esbofeteavam, golpeavam-lhe a cabeça com uma vara ou cuspiam nele. E colocados de joelhos lhe faziam reverências. Depois de o terem escarnecido, tiraram-lhe as roupas cor púrpura e lhe colocaram suas próprias vestes. Depois o levaram para fora para crucificá-lo.

 

Do mesmo modo que Pilatos entregou Jesus Cristo aos pontífices judeus, o duque deixou Aurélio nas mãos de seus milicianos para assim lavar as suas.

 

À saída do palácio, uns serviçais levantaram a cruz e a carregaram sobre as costas de Aurélio. Na parte superior do madeiro lia- se: AURÉLIO VELAYO, REI DOS HEREGES. E levando sua cruz, caminhou em direção a Christine que estava no cadafalso no final do caminho. Depois chegou a um pequeno promontório que se parecia com o Gólgota, o lugar da Caveira, onde jazia o esqueleto de um cão. Aurélio, sem desgrudar o olhar da mulher que amava, esforçava-se sob o peso esmagador da cruz que superava sua estatura para apertar o passo e chegar até ela, mas seus pés vacilavam e mal podiam avançar. Para que ninguém ficasse em dúvida, o cartaz sobre a cruz estava escrito em hebreu, grego e latim.

 

Escoltado por uma guarda de milicianos, Aurélio, com as costas vergadas pelo peso da cruz e a dor dos açoites, arrastava os pés em direção a Christine para tentar salvá-la, mesmo às custas de seu próprio sacrifício, tal como dizia a Escritura. Em meio aos insultos dos soldados e alguns serviçais do duque que vociferavam "Eis aqui o rei dos hereges", Aurélio, com o fôlego fatigado, não deixava de olhar para sua meta; sabia que se não cobrisse a distância daquele caminho que o separava de Christine o carrasco haveria de enforcá-la. Precisava ser forte. Com o rosto coberto pelo sangue que lhe caía da testa por causa dos espinhos que se enterravam na sua carne, avançou até que suas pernas fraquejaram e, tendo dado duzentos passos, caiu pela primeira vez de joelhos. Ergueu a vista e, ao ver a mulher que amava em pé sobre o cadafalso e o carrasco a ponto de puxar a corda, recuperou forças, voltou a ficar em pé e, por fim, retomou a marcha.

 

Aurélio deu quarenta passos e, diante do desespero de ver suas forças se esgotarem, disse a primeira das palavras que os mortais pronunciam:

 

- Mãe - murmurou como uma criança. Procurando consolo para sua dor e arrumando ânimo para não cair, invocava o nome da mulher que, quando pequeno, o confortava cada vez que era invadido pelo medo e pelo desalento.

 

- Mãe - repetiu num pranto sufocado. Os soldados não paravam de mofar de suas lágrimas. Mas a lembrança de sua mãe lhe deu forças para se manter em pé e dar mais alguns passos.

 

O fôlego renovado de Aurélio só lhe foi suficiente para andar uns trinta passos. Geoffroy de Charny, vendo que seu Cristo estava a ponto de desfalecer, ordenou a um de seus vassalos que ajudasse o réu a carregar a cruz. O homem, um camponês forte e robusto, segurou o menor dos madeiros desembaraçando Aurélio de boa parte do peso; o fez com uma mistura de submissão ao duque e um autêntico sentimento de piedade para com aquele pobre rapaz, tal como fez Simão, o Cirineu. Aurélio olhou-o com uma gratidão infinita e ambos avançaram caminho acima.

 

Assim andou Aurélio uns noventa passos. À medida que avançava, os camponeses se aproximavam com curiosidade e olhavam a cena da beira do caminho. Alguns não se atreviam a pronunciar qualquer palavra, outros o injuriavam mexendo a cabeça e os mais exaltados, querendo congraçar-se com seu senhor, gritavam:

 

- Eis aí o rei dos hereges, o filho de Satanás que não consegue salvar a si mesmo! Por acaso seu pai não conseguiu salvá-lo? Naquele momento, de dentro do grupo de aldeãos surgiu uma mulher jovem que, comovida, acompanhou o passo do réu e, tirando o lenço com o qual cobria a cabeça, limpou o rosto coberto de sangue que caía desde a coroa, as lágrimas que rolavam por suas faces e o suor do esforço que o dilacerava. Como fez Verônica, a moça guardou o lenço entre suas roupas. Geoffroy de Charny, ao ver a cena, correu até a mulher e exigiu-lhe que entregasse o tecido na esperança de ver materializado o milagre do rosto impresso no tecido. Mas na superfície do lenço não havia nada além de uma mancha informe de sangue. O duque atirou o lenço sobre sua dona.

 

Durante o breve tempo em que a mulher deteve seu passo e o confortou limpando-lhe o rosto, Aurélio conseguiu recuperar um pouco de fôlego. Avançou setenta passos mais até um breve arco que a videira fazia sobre o caminho e passou por debaixo dele como fez Cristo pela Porta Judiciária, o lugar onde os juizes promulgavam as sentenças e se ordenava a pena de morte. Nem bem havia transposto o arco, voltou a cair de joelhos. Teria morrido naquele mesmo lugar se não tivesse erguido o olhar: ali, a pouca distância, estava Christine. Havia avançado tanto que agora podia ver suas feições. Aqueles olhos azuis inundados em lágrimas, aquele cabelo denegrido animado pelo vento e o pescoço longo e orgulhoso cingido pela corda ameaçadora foram a força que fez com que voltasse a se erguer.

 

Com muita dificuldade arrastou a cruz outros trinta e cinco passos. Ali conseguiu ouvir claramente o pranto desconsolado de Christine. Não chorava por sua própria sorte, mas pela dele. Não resistia ver o calvário do homem que amava e, aos gritos, rogava piedade para Aurélio. Outras mulheres cuja curiosidade as havia feito aproximar-se, contagiadas pelos lamentos de Christine sobre

 

o cadafalso, soluçavam com autêntica amargura. Entre o grupo de mulheres, Aurélio conseguiu distinguir uma cujo nome ignorava, que suplicava misericórdia para ele: sentiu-se comovido, pois era a mais desprezada de todas por vender seu corpo. E ela, a humilhada, a que recebia o repúdio e o escárnio, mostrava-se como uma alma justa, piedosa e despojada de rancor. Então Aurélio utilizou seus últimos alentos para consolar as mulheres.

 

Naquele ponto iniciava-se a subida para uma suave ladeira; para Aurélio, no entanto, extenuado e carregando sua cruz, era como escalar uma montanha. Deu alguns poucos passos e suas pernas voltaram a fraquejar: caiu no chão pela terceira vez. Tinha os ombros doloridos e o peso dos madeiros cruzados eram já uma carga insofrível. Os pés lacerados e a vista nublada pelo cansaço, mas mais pelo sangue que manava da coroa de espinhos e inundava seus olhos. O carrasco que segurava a corda do cadafalso, vendo que o condenado não conseguia pôr-se em pé, fez menção de puxar a corda para abrir o frágil chão que mantinha Christine. Ao ver isto, Aurélio voltou a juntar forças e outra vez conseguiu ficar em pé quando já ninguém mais esperava que fosse possível.

 

Aurélio deu quatro passos e começou a penosa subida dos dezenove degraus que conduziam ao cadafalso onde estava a mulher que amava. Christine via-o subir degrau por degrau e seu coração se partia. Ninguém compreendia como aquele homem desfalecente conseguia empreender aquela cruel escadaria carregando a cruz. Mas estava disposto a salvar a vida de Christine dando em troca a sua. Podia ver seu rosto próximo e até sentir o perfume de seu alento e isso o tornava forte. Ao chegar ao final da subida, os milicianos do duque lhe tiraram as roupas, pegaram suas vestes e fizeram quatro partes, uma para cada soldado. Pegaram também sua túnica, que não tinha costura, pois era de um só tecido de cima a baixo e disseram entre eles:

 

- Não vamos dividi-la, melhor tirar na sorte, para ver de quem será. E assim cumpriu-se a Escritura que dizia: "Dividiram entre eles minhas vestes, e sobre minha roupa tiraram a sorte". E assim fizeram os milicianos.

 

Depois deram-lhe de beber vinho e fel.

 

Ao chegar ao cume do monte, os milicianos do duque tiraram a cruz das costas de Aurélio, estenderam-na no chão e depois recostaram aquele corpo desfalecente sobre os madeiros. Abriram-lhe os braços, prendendo-os com cordas à trave, e fixaram seus pés contra um estribo que saía da viga maior. Então, Geoffroy de Charny ordenou que lhe dessem pregos e martelo e, com extremo cuidado, procurou no pulso direito o lugar onde se uniam os ossos. Ali fixou o prego e descarregou o martelo com a precisão de um carpinteiro. O metal atravessou a carne em três golpes, enquanto um manancial de sangue brotava da ferida. Foi mais trabalhoso para o duque atravessar a madeira. A dor era tal que Aurélio desejava morrer o quanto antes. Seus olhos procuravam desesperadamente os de sua esposa. Quando o braço ficou pregado, Geoffroy de Charny fez o mesmo com o pulso esquerdo; da segunda vez ficou mais fácil, pois já tinha experiência. Depois o duque ficou em pé e foi até o extremo das pernas do condenado. Esta era a parte mais difícil, já que, para ajustar-se às imagens mais verossímeis da crucificação precisava atravessar ambos os pés com um só prego. Enquanto Aurélio se dessangrava pelos orifícios dos pulsos, o duque tateava o lugar exato por onde devia passar a estaca; pousou a planta do pé direito por cima do peito do esquerdo e ordenou a dois de seus homens que segurassem fortemente ambos os pés.

 

Então sim, colocou o prego no lugar exato e descarregou um golpe brutal que quebrou os ossos, mas não chegou a penetrar na carne. Temendo arruinar sua obra magnânima, voltou a acomodar o prego num lugar mais brando e, outra vez, martelou com todas as suas forças. Desta vez o metal abriu passagem na carne sem dificuldade passando através do pé direito. Seus homens prenderam firmemente os tornozelos e Geoffroy de Charny voltou a levantar o martelo. Não lhe foi fácil perfurar o pé esquerdo, já que estava oculto pelo outro e não podia ver o lugar exato onde pregar. Por outra parte, a profusão de sangue tornava tudo mais complicado. Por fim, depois de vários golpes, a estaca alcançou a madeira.

 

O duque ordenou que erguessem a cruz e a fixassem. Assim que alcançou a vertical, Aurélio ficou junto a Christine, olhou-a amorosamente e soube, então sim, que podia morrer tranqüilo. Era a hora sexta e o céu se cobriu de nuvens, os pássaros voaram em bando. Perto da hora nona, Aurélio abriu os olhos e, ao ver que as pernas da sua esposa começavam a fraquejar, ciente de que se desmaiasse ficaria imediatamente enforcada, murmurou:

 

- Christine, não me abandones. Os milicianos entenderam que Aurélio estava invocando Cristo e disseram:

 

- Ouvi, o rei dos hereges, o filho do imundo está invocando Cristo. Vamos ver se ele vem tirá-lo da cruz. Um dos homens do duque embebeu uma esponja com vinagre e, com um longo bambu, aproximaram-na da boca dele. Mas naquele mesmo momento Aurélio, clamando em alta voz, entregou seu espírito e expirou.

 

Quando Geoffroy de Charny comprovou que seu Cristo estava morto, pegou uma lança e, de acordo com o Evangelho de São João, atravessou-lhe o costado. E como disse a Escritura, da ferida saiu sangue e água.

 

Christine, que mal conseguia se manter em pé, ao ver seu marido morto, deixou que suas pernas fossem vencidas e ao desvanecer ficou dependurada pelo pescoço, que se partiu de imediato.

 

Os dois cadáveres recortavam-se contra o céu da manhã.

 

Geoffroy de Charny ordenou que depusessem ambos os cadáveres, primeiro o de Aurélio, que era o que lhe importava. Mandou que o descessem com extremo cuidado e o despregassem sem danificar o corpo. Foi muito mais trabalhoso tirar as estacas do que pô-las, já que haviam ficado fortemente pregadas e qualquer ferramenta usada para agarrar a cabeça dos pregos podia dilacerar a carne que estava ao redor. Depois de muito pelejar, os homens do duque conseguiram liberar o corpo de Aurélio da cruz. Depois arriaram o cadáver de Christine e o deixaram de lado sem prestar-lhe qualquer cuidado. Geoffroy de Charny olhou para o seu Cristo e chorou de emoção diante de sua obra.

 

Depois disto, Geoffroy de Charny deixou de proceder como Pilatos e se converteu em José de Arimatéia. Amorosamente e como o fez o discípulo de Jesus, pediu que lhe dessem as cem libras de mistura de mirra e aloés que havia comprado. Pegou o corpo de Aurélio e envolveu-o em lenços com especiarias aromáticas, como era costume sepultar entre os judeus, conforme indicavam as escrituras. Depois o duque ordenou que lhe trouxessem um dos tecidos que comprara em Veneza, o mais simples, o de trama e urdidura, e com ele cobriu o cadáver, passando-o por baixo das costas e dobrando-o depois pela frente.

 

Perto dali, Geoffroy de Charny havia mandado que abrissem uma caverna que serviria de sepulcro, como estava escrito. E assim, envolto em seu sudário, o duque colocou o morto no sepulcro e depois ordenou que o tampassem com uma pesada pedra, igual dizia a Bíblia. O corpo de Aurélio devia passar pelo exato procedimento que passara o de Cristo. No terceiro dia iria buscá-lo e assim o entregaria ao pintor para que fixasse a imagem do corpo sobre a tela.

 

Quanto à sua filha, ordenou que fosse enterrada no campo sem cruz nem lápide.

 

O TEAR DO DIABO

Havia sido uma jornada extenuante. Chegada a noite, Geoffroy de Charny decidiu descansar. Sua perna ruim tinha ficado miserável depois de percorrer cada passo da Via Crúcis. Doíam-lhe os braços e o cabo do martelo havia abrido feridas nas suas mãos. No entanto, não conseguia pegar no sono. Tinha a convicção de que estava levando a cabo uma obra divina e temia que algo pudesse sair mal se não compreendesse cabalmente os sinais que Deus lhe enviava. De fato, guardava a secreta esperança de que realmente Aurélio ressuscitasse dos mortos e deixasse impressa sua imagem no tecido do sudário. Por essa mesma razão, não quis que Maurice Cassell estivesse presente na crucificação. Por outra parte, temia que o artista, homem pusilânime e de espírito fraco, pudesse se assustar diante de cena tão crua e se negasse a colaborar na obra. Ao duque parecia mais sensato apresentar ao pintor o cadáver já preparado, tal como devia estar o de Jesus no momento da ressurreição, segundo as Escrituras. Mas, justamente por esse motivo, Geoffroy de Charny se debatia num terrível dilema: de acordo com os Evangelhos, Jesus voltara à vida no terceiro dia da sua morte na cruz; como o duque mantinha a íntima esperança de que se produzisse o milagre, não se atrevia a procurar o cadáver antes que passassem os três dias bíblicos, temendo arruinar um possível prodígio divino. Mas, por outra parte, existia o risco certo de que o corpo de Aurélio entrasse em decomposição. O clima seco, desértico, da Palestina tornava possível que um cadáver pudesse se manter em boas condições por vários dias, mas o calor úmido que reinava em Troyes punha em perigo sua obra. Temia abrir o sepulcro e deparar-se com um corpo corrompido, hediondo, inchado e repleto de vermes. Por outra parte, suspeitava que os camponeses, filhos da superstição, pudessem roubar o cadáver e fazer circular o boato de que o rei dos hereges havia ressuscitado. De modo que, igual a Pilatos aconselhado pelos sacerdotes e pelos fariseus quando lhe disseram: "Manda, pois, que se guarde o sepulcro até o terceiro dia, para que não venham seus discípulos à noite e o furtem, e digam ao povo: Ressuscitou dos mortos", Geoffroy de Charny ordenou a seus homens que selassem a pedra que tampava o sepulcro e dispusessem uma guarda.

 

Naquela noite e nos dias seguintes o duque não conseguiu pregar um olho. Cada vez que entrava um serviçal no seu aposento, esperava que lhe anunciasse que um anjo com aspecto de relâmpago se apresentara diante do sepulcro e, fazendo tremer a terra, tivesse removido a pedra que selava a entrada. Mas seus homens só se aproximavam para perguntar-lhe em que podiam servi-lo, vendo que seu senhor apresentava uma aparência transtornada e não comia nem dormia.

 

E assim, em vigília e jejum, passou Geoffroy de Charny aqueles três intermináveis dias. Ao amanhecer do terceiro dia, já doente pela ansiedade e pela espera, por fim saiu correndo até o sepulcro. Quando chegou, viu que junto à guarda que ele havia disposto havia um grupo de mulheres: ali, feita um mar de lágrimas, estava a que vendia seu corpo e a outra mulher que havia limpado o rosto de Aurélio. Apressou ainda mais sua coxeadura para que lhe dissessem o que queria escutar: "Por que procurais entre os mortos o que ainda vive?". Mas nada disso ocorreu. Ali, incólume e selada, estava a pedra tapando o sepulcro. Então ordenou a seus homens que a tirassem. Assim fizeram com muito esforço. Quando se fez uma abertura por onde passar, o duque ingressou na caverna.

 

Cegado pela falta de luz e pela loucura, ao não ver ninguém, acreditou que o milagre havia tido lugar. Mas nem bem seus olhos se acostumaram à penumbra conseguiu ver o corpo horizontal de Aurélio coberto pelo manto, tal como ele o deixara. Geoffroy de Charny não se sentiu desalentado: Deus estava lhe pedindo que ele mesmo fizesse o milagre. O duque inclinou-se sobre o cadáver daquele que não havia conseguido se erguer dos mortos, elevou o olhar para as alturas e murmurou:

 

- Amém.

 

Geoffroy de Charny montou a oficina do milagre na recâmara mais afastada do castelo. Ali havia disposto todas as coisas que o pintor lhe pedira. No centro do quarto, sobre uma mesa de carvalho, jazia o corpo de Aurélio. Era ainda o terceiro dia desde sua morte na cruz. O duque descobrira com inquietação que o cadáver apresentava vários sinais de decomposição: um cheiro penetrante fazia com que o ar da recâmara fosse difícil de respirar. O corpo começava a inchar; já não apresentava a figura delgada que mal se distinguia da forma da cruz; a pele estava esticada e os ossos haviam ficado ocultos por trás da carne deformada. O rosto não tinha a expressão dolente que o duque teria apreciado, mas uma careta desfigurada, não de sofrimento, mas como de um certo incômodo. Mas havia ainda um problema maior: Geoffroy de Charny, ao acomodar o corpo de Aurélio antes de amortalhá-lo, havia disposto os braços de tal maneira que seus genitais ficassem cobertos pelas mãos. Sem dúvida, teria sido mais natural que cruzasse os braços sobre o peito como correspondia, mas, como exibir o sexo do Filho de Deus sem escandalizar? De modo que os braços tinham ficado numa posição artificialmente pudica que, num efeito paradoxal, conferia-lhe um aspecto obsceno. Não resultava muito santa a imagem daquele Cristo tocando as partes pudendas, mesmo que fosse para ocultá-las. Além disso, o rigor mortis era já tão tenaz, que não havia maneira de modificar a posição. Todas as tentativas feitas foram vãs: era como pretender alterar a pose de uma escultura cortada na pedra. Pouco restara da imagem de Aurélio. Mas para Geoffroy de Charny, cuja razão havia se extraviado completamente, era a imagem de Jesus levantando do sepulcro. O plano do duque era simples e, para seu turvado juízo, genial; assim como por obra da revelação divina descobrira que esfregando a moeda com um carvão sobre o papel aparecia o decalque do sagrado rosto, sua idéia era que o sudário fosse como o papel e o cadáver de Aurélio como a moeda. Era só cobrir o corpo com o lençol e esfregar a superfície do tecido com alguma substância que copiasse as formas e as fixasse por contato. Maurice Cassell ouviu os argumentos do duque com extrema atenção e depois deu-lhe sua conclusão: aquela idéia era inviável. Geoffroy de Charny, enfurecido, pegou o artista pelo pescoço e, aos brados, fez-lhe saber que cada um de seus passos estava ditado pela voz indiscutível do Altíssimo e que desobedecer a ele era desobedecer a Deus. O pintor quis expor seus argumentos, mas o duque ameaçou matá-lo se não se submetesse em silêncio às ordens do Eterno. Maurice Cassell, considerando o morto que estava diante do seu nariz, não teve dúvidas de que seu contratante não o estava ameaçando em vão. De modo que abaixou a cabeça e obedeceu, mesmo sabendo qual seria o resultado.

 

Maurice Cassell mergulhou o lençol num balde cheio de água. Apertava o tecido entre os dedos para que cedesse por completo e se tornasse permeável. Feito isto, pediu ao duque que o ajudasse a torcer o lençol para que perdesse o excesso de líquido e amaciasse. Depois quis estendê-lo, mas o tecido era tão largo e o quarto tão pequeno que não dava para desdobrá-lo de comprido. Levaram o sudário até um dos andares superiores e o estenderam como um brasão de uma das janelas. Cada minuto que passava era irreparável para o cadáver de Aurélio, cuja decomposição avançava implacável como a noite, embora o recinto fosse frio. O duque queria que a obra estivesse concluída ao amanhecer, de modo que antes de o manto escorrer por completo Geoffroy de Charny disse ao pintor que não havia tempo a perder e voltaram com o tecido para a escura recâmara.

 

Maurice Cassell pediu ao duque que o ajudasse a descer o corpo ao chão por um momento para depois enrolá-lo no tecido. O cadáver estava rígido como a mesa sobre a qual jazia: um pegou-o pelos pés, o outro pelos ombros e assim o depositaram no chão. O pintor estendeu o sudário prolixamente sobre a superfície da mesa e depois voltaram a subir o corpo. Então sim, pegou o resto do tecido, passou-o por cima da cabeça de Aurélio e cobriu a parte frontal dos despojos, fazendo o tecido úmido aderir bem aos relevos. Depois preparou uma mistura de pós dentro de uma tigela e, diante da curiosidade do duque, o pintor explicou que eram diversos pigmentos: óxido de ferro, vermillion, amarelo de arsênico, azul-ultramar, malaquita, carvão de lenha e vermelho de ruiva. À medida que os juntava, a mistura ia variando de tonalidade segundo se acrescentasse um ou outro. Numa hora, o pó adquiriu um tom avermelhado que às vezes deixava escapar brilhos dourados. Geoffroy de Charny decidiu com entusiasmo que era exatamente assim que deveria ficar a cor da figura. Na opinião de Maurice Cassell, aquele era um tom pictórico e artificioso demais, mas não se atreveu a contradizer o duque depois da primeira altercação quando ameaçara matá-lo. O pintor debatia- se entre acrescentar à mistura um aglutinante à base de cola ou ovo, ou aplicar o pó sem fixador algum. Cada alternativa apresentava vantagens e desvantagens: a primeira daria à cor um suporte firme e bem adesivo, mas seria difícil dar-lhe uma aparência etérea, devido à densidade que a tinta iria adquirir. A segunda daria à figura uma materialidade delicada e impalpável, deletéria como a imagem de um milagre; no entanto, o pintor temia que ficasse pouco duradoura e volátil demais. Optou pela segunda alternativa por uma razão fundamental: o tempo; se queria ter a obra pronta para a madrugada devia colocar mãos à obra de vez.

 

A construção do milagre estava para começar.

 

Maurice Cassell pegou um trapo e, comprimindo-o fortemente, fez um fardo pequeno, compacto e firme. Introduziu o trapo na tigela e com ele apertou o pó até tingir o pano por igual. O que fez a seguir o pintor, por muito inovador que pudesse parecer aos olhos leigos do duque, era a aplicação de uma técnica muito difundida havia muito tempo: o frottis. Com o trapo carregado de pigmentos, começou a esfregar o sudário e, pelo efeito da pressão exercida sobre os volumes, o tecido ia revelando a forma do corpo rígido que estava atrás. Assim, o duque pôde ver com uma euforia contida que, magicamente, o rosto de Aurélio ia aparecendo decalcado no tecido conforme o pintor esfregava os pigmentos com o trapo, com a mesma simplicidade que o Pantocrator do solidus havia ficado impresso no papel. Geoffroy de Charny comprovou que seu contratado tinha um talento inigualável: trabalhava com desenvoltura e rapidez, via a mão experiente de Maurice Cassell indo e vindo sobre a mortalha e, como um mago, fazia com que surgisse a imagem luminosa daquele Cristo. A primeira coisa que ficou impressa no sudário foi o rosto. O duque notou que o trabalho ficava mais difícil quando tentava decalcar a barba e os cabelos, em contraposição à facilidade com que copiava as partes mais rígidas como a testa, os malares e os arcos superciliares. A barba era tão rala e sutil que quase não oferecia resistência.

 

Mas rapidamente o pintor encontrou a solução para o problema; com um pincel finíssimo impregnado do mesmo pigmento misturado com água, pintou a barba com tão hábil delicadeza que não percebia o artifício. O mesmo fez depois com os cabelos. Geoffroy de Charny cumprimentou-se pela escolha de seu artista. O rosto, uma vez concluído, apresentava um aspecto celestial: embora não tivesse a expressão característica com que se costumava representar o Cristo, havia algo nele que o tornava sagrado. O duque demorou a compreender que o que lhe conferia aquele caráter era, justamente, a falta de dramaticidade artística. Aquela expressão natural desprovida de qualquer artifício apresentada pelo cadáver real que servia de matriz tornava-o próximo e profundamente humano. Na conjunção da naturalidade e da aparência prodigiosa que lhe dava a técnica do frottis residia o segredo da fascinação que exercia. O Cristo era aquilo mesmo: Deus feito homem. Por outra parte, Maurice Cassell era dono de uma habilidade tal que, pressionando fortemente sobre as partes ósseas e menos nas zonas moles, conseguia dissimular o inchaço do cadáver. Assim, quando chegou às costelas, esfregou com energia sobre cada um dos ossos, de tal modo que os eflúvios da decomposição que enchiam os despojos não eram percebidos em absoluto. Geoffroy de Charny guardava certa inquietação sobre como iriam ficar as feridas dos pregos nos pés e nas mãos: deveriam ser o suficientemente perceptíveis para que transmitissem o sofrimento, mas sem ganhar um destaque tal que lhes tirasse veracidade. No entanto, vendo que o pintor estava fazendo seu trabalho com excelência, preferiu não contagiar-lhe sua ansiedade e manter-se em silêncio. Por fim, chegou ao pulso direito; como se houvesse adivinhado o pensamento do duque, esfregou o orifício de tal forma que o pigmento não penetrasse demais no lugar por onde havia passado o prego, mas que ao contrário ficasse claro o perímetro da ferida. Os dois, ao mesmo tempo, notaram imediatamente um problema: o sangue já estava coagulado demais para que conseguisse tingir o tecido e, mais ainda, para que a mancha o atravessasse para torná-lo visível.

 

De modo que, sem vacilar, Maurice Cassell voltou a brandir o pincel. Com um pigmento vermillion misturado com óxido de ferro conseguiu rapidamente a cor exata do sangue seco. Com umas poucas mas precisas pinceladas imitou à perfeição a hemorragia surgida da ferida. À luz do êxito obtido deste modo, repetiu o procedimento com os demais estigmas.

 

Ainda nem havia amanhecido quando a figura ficou completamente terminada. Geoffroy de Charny estava emudecido pela emoção que lhe fechava a garganta. Era a obra mais maravilhosa que jamais havia contemplado e lhe pertencia.

 

Maurice Cassell, em pé num canto da recâmara, não encontrava as palavras para lhe dizer que todo aquele trabalho havia sido em vão.

 

Em sua impenetrável estupidez selada pelo ferrolho da loucura, Geoffroy de Charny havia-se negado a ouvir os argumentos de Maurice Cassell. Aturdido pela alucinatória voz de Deus, o duque não tivera ouvidos para atender às terrenais razões que pudessem contrariar sua certeza, proveniente dos céus. Seu infantil modelo do solidus esfregado contra o papel jamais teria podido funcionar pela simples razão de que um corpo não é uma moeda e um papel não se comporta como um tecido. Enquanto o pano permanecia aderido ao cadáver de Aurélio, a aparência era perfeita, mas havia um detalhe que escapava aos cálculos de Geoffroy de Charny e que o pintor, sim, havia previsto, embora não lhe tivesse sido dada a possibilidade de revelá-lo. Quando o duque ordenou a Maurice Cassell que retirasse a mortalha, este sequer atinou a se mexer do seu lugar. Tamanho era o pânico que invadira o artista que só respondeu: - Faça isso o senhor mesmo. O duque supôs que o pintor estava lhe cedendo o privilégio e ingenuamente agradeceu. Maurice Cassell fechou os olhos e não se atreveu a abri-los quando seu contratante pegou o lençol pela extremidade superior e começou a puxar o sudário. O tecido havia secado sobre o corpo de modo que estava levemente aderido e, por momentos, Geoffroy de Charny precisava puxar com força para soltá-lo.

 

Seu coração batia com a força da emoção e um sorriso alegrava seu rosto consumido. Mas aquele júbilo ia durar pouco: nem bem retirou a parte correspondente ao rosto, notou algo sumamente estranho que, a princípio, teve dificuldade para compreender. Por um momento acreditou que o que estava vendo era uma distorção, produto da fadiga. Puxou o manto rapidamente até descobrir a parte anterior do corpo, e depois ordenou ao pintor que o ajudasse a tirar a parte do tecido que estava por baixo do cadáver. Mas Maurice Cassell não se atreveu a obedecer. De modo que, sem esperar, o duque puxou com todas as suas forças até que liberou o sudário completamente. Quando o alisou no chão teve diante de si uma visão aterradora: o rosto impresso no tecido de repente havia se estendido para os lados, convertendo-se no semblante de um homem obeso às raias da caricatura. E à medida que ia alisando o resto do manto com a palma da mão, descobria que também o corpo se deformava, como seria visto no reflexo de um espelho convexo. De repente, seu magro e frágil Jesus Cristo havia-se transformado num bufão rechonchudo e bochechudo: a imagem mais grotesca e ofensiva que jamais havia visto. A primeira coisa que pensou foi que Satanás estava se interpondo entre ele e sua divina missão; maldisse o nome da Besta com todas as suas forças. Maurice Cassell teria gostado que Geoffroy de Charny ficasse com aquela certeza e abandonasse seu desatinado propósito, mas quando lhe pediu uma explicação, o pintor não pôde fazer menos do que expor-lhe o que havia ocorrido: uma figura humana gravada numa moeda era um baixo-relevo que criava uma impressão de profundidade maior que a que realmente tinha, mas na verdade tratava-se de um entalhe feito sobre uma superfície plana. Por essa razão era possível ser decalcado sobre um papel igualmente plano sem que se deformasse. Um corpo real, ao contrário, apresentava volumes muito maiores e, ao se aderir o tecido sobre as partes correspondentes aos perfis, uma vez desdobrado todas as profundidades ficavam reduzidas a um só plano estendido. Por isso, a frente e ambos os lados eram vistos agora como se fossem uma coisa só. Isso explicava a deformação que sofrera a figura de Aurélio. Contrariamente ao que pensava Maurice Cassell, o duque manteve a calma; não lhe fez uma só recriminação nem elevou o tom de voz. Quando o pintor acreditou que aquela era uma rendição diante da evidência, Geoffroy de Charny falou com serenidade e resolução: - Muito bem, se um corpo não se comporta como uma moeda, vamos tomar o caminho mais simples - murmurou, enquanto brincava com o solidus de ouro entre os dedos: voltou a cobrir o cadáver com o manto e completou a idéia. - Quero que cunhe a maior moeda que jamais foi feita e depois a decalque sobre um manto. O duque saiu da recâmara deixando Maurice Cassell tão duro como o morto que jazia em vão sobre a mesa.

 

Aurélio foi enterrado junto a Christine no meio do campo num túmulo sem lápide nem cruz. É claro, a decisão de que descansassem no mesmo pedaço de solo não se deveu aos desígnios do duque, mas à boa vontade do coveiro. Antes que o corpo terminasse de se decompor, Maurice Cassell tomou daqueles despojos os traços e as proporções de Aurélio para passá-los para o entalhe que Geoffroy de Charny lhe ordenara. O pintor pensou várias vezes em desistir e devolver ao duque a paga; no entanto, sabia que semelhante decisão podia custar-lhe a vida. Depois de vários dias de intenso trabalho, Maurice Cassell concluiu a maior moeda que jamais havia sido feita, para usarmos a denominação que lhe pusera o duque. A rigor, tratava-se de duas peças retangulares, cada uma das quais com uma medida semelhante à de quem servira de modelo. Estavam entalhadas em madeira de nogueira; uma delas era a "cara" da moeda, sobre cuja superfície estava entalhada a parte da frente da figura do Cristo inspirado em Aurélio, e a outra, a "coroa", representava o corpo de costas. Maurice Cassell havia conseguido fazer dois belos baixo-relevos, dignos de ornamentar uma catedral. No entanto, estavam destinados à destruição para que não ficassem provas da mão do homem na obtenção do milagre. Como o primeiro dos tecidos havia fracassado, o artista utilizou como manto o segundo dos que Geoffroy de Charny trouxera de Veneza. Era um tecido de melhor qualidade e de feitura mais complexa; não se tratava da simples trama e urdidura, como o anterior, mas de um tecido em espiga. Embora esse tipo de trama não existisse na época de Cristo, isso pareceu ao duque um detalhe sem importância: a seu ver, tinha uma aparência melhor e mais verossímil que o anterior. Por outra parte, o fracasso diante da primeira tentativa dava ao pintor uma experiência maior e lhe revelara o comportamento dos materiais empregados. O fato de utilizar um entalhe em madeira revelava-se muito melhor do que um corpo real por várias razões: em primeiro lugar, trabalhar sobre um plano evitava os problemas da fusão da frente e do perfil numa única dimensão, mas, além disso, desse modo não enfrentava o obstáculo representado pelas diferentes consistências apresentadas por um corpo humano, como a carne, os ossos e os cabelos; a madeira oferecia idêntica resistência à fricção, e já não havia complicações na hora de decalcar, por exemplo, a barba. Por outra parte, Maurice Cassell modificou e melhorou o procedimento: não só se valeu dos pigmentos anteriores, mas, para conseguir um efeito ainda mais etéreo, de modo a empregar a menor quantidade possível de tinta, fez o seguinte: empapou o lençol com água para que se adaptasse à forma do baixo-relevo. Esperou que o tecido secasse totalmente e depois, de acordo com a técnica do frottis, aplicou com um trapo uma mistura de óxido de ferro e proporções mínimas de amarelo de arsênico, malaquita, carvão de lenha e vermelho de ruíva; tudo isso aglutinado com uma substância gelatinosa feita à base de colágeno. Desse modo, surgiu a figura do entalhe de acordo com o previsto: tinha uma estranha aparência de naturalidade e volume que lhe era conferida pelo efeito do decalque por uma parte, e, por outra, uma incerta luminosidade da qual não se entendia a realidade, pois onde deviam aparecer sombras havia luz, e vice-versa. Assim, os espaços em branco rodeavam as formas proeminentes. Era este raro efeito de luzes e sombras invertidas o que dava ao conjunto uma sina misteriosa que faria pensar num fenômeno sobrenatural, como se uma sorte de raio divino, no momento em que o Salvador voltava à vida, houvesse deixado sua marca indelével no tecido por sua própria força milagrosa. Quanto às manchas de sangue dos estigmas, como na primeira tentativa, Maurice Cassell pintou-os a pincel com uma mistura de pigmentos ocre, vermelho e vermillion. Quanto o pintor concluiu, estendeu o tecido na sua largura e pôde comprovar que ambas as figuras, a frente e as costas, ficavam unidas pela cabeça. O milagre, por fim, estava consumado.

 

TROYES, 1349

Aos olhos de Geoffroy de Charny, o Lençol Santo de Nosso Senhor Jesus Cristo era um prodígio. Havia cumprido à perfeição a tarefa que Deus lhe encomendara. Só faltava construir a igreja que abrigaria a relíquia mais valiosa, e não somente pela cristandade: agora o mundo todo deveria se render diante da evidência da ressurreição de Cristo. Assim, o duque solicitou uma audiência formal com o arcebispo de Troyes para dar-lhe a conhecer o Santo Sudário e obter, no final, a bênção para erguer um templo em sua homenagem. Henri de Poitiers, farto como estava das visitas de Geoffroy de Charny, não levou em conta o pedido de audiência; mas foi tal a tenacidade do duque que, finalmente e para pôr termo a tanta insistência, o bispo acertou uma entrevista.

 

No dia da audiência, Geoffroy de Charny se dirigiu ao bispado com uma delegação que incluía uma guarda de honra, dois oficiais e até um tabelião, como se se tratasse de um príncipe em missão de paz. Encabeçando a comissão vinham dois homens vestidos de púrpura, carregando um cofre em cujo interior estava dobrada a relíquia. Longe de se sentir intimidado, como era a pretensão do duque, Henri de Poitiers, ao ver semelhante demonstração de força, esteve a ponto de cancelar a reunião antes mesmo de que começasse.

 

Por outra parte, não estava disposto a tolerar a presença de um tabelião, como se sua palavra tivesse que ser posta à consideração de um estranho e, ainda por cima, a serviço de seu visitante. Henri de Poitiers, dando mostras de uma paciência sem limites, disse que audiência teria lugar somente se o duque despachasse de volta toda a sua patética coorte de bufões. Geoffroy de Charny teve que entrar no palácio sem companhia alguma e arrastando a pesada arca que continha seu tesouro.

 

Assim que ficaram frente a frente, o duque, antes de mostrar a sua excelência o que guardava, querendo criar suspense e expectativa, extraiu uma pequena Bíblia de dentro de suas roupas e começou a ler aqueles trechos do Evangelho que narravam o modo pelo qual José de Arimatéia havia envolto o corpo de Cristo no lençol. Mas o bispo, que sem dúvida era capaz de recitar as Escrituras de cor, pediu-lhe que fosse imediatamente direto ao assunto.

 

- Recuperei para a humanidade o Santo Sudário de Nosso Senhor Jesus Cristo - disse então sem mais prólogo Geoffroy de Charny com a voz embargada pela emoção. O bispo ficou pasmo. Debatia-se entre mandar embora à força o seu interlocutor ou deixá-lo continuar para ver até onde era capaz de chegar. O duque iniciou uma longa peroração, sugerindo que o obtivera durante sua suposta incursão pela Terra Santa como parte das hostes dos Templários; falou até perder-se num mar de palavras e idéias desconexas e, por fim, se dispôs a abrir o cofre.

 

Diante dos assustados olhos de Henri de Poitiers, Geoffroy de Charny estendeu o Lençol Santo no amplo piso do salão. O duque pôde ver o súbito assombro no rosto do bispo ao contemplar a figura de Cristo no exato momento da ressurreição. Caminhava à beira do sudário percorrendo com o olhar cada detalhe. Estava emudecido.

 

- Assombroso... - murmurou consigo o bispo. Então o duque acreditou que era o momento oportuno para que Henri de Poitiers pusesse por escrito a autorização para construir um templo em sua homenagem, ao qual pudessem chegar peregrinos do mundo tudo para venerar a relíquia. De modo que estendeu o documento para que rubricasse. No entanto, o bispo não terminara de falar.

 

-Assombroso... - repetiu entre os dentes e, por fim, concluiu:

 

- É a maior fraude que meus olhos já viram. Disse isso e ordenou aos seus guardas que tirassem imediatamente do palácio aquele vigarista e, aos gritos, jurou que investigaria a fraude até as últimas conseqüências.

 

- Isso não vai terminar aqui - dizia a si mesmo o duque enquanto arrastava a arca com seu Santo Sudário rua abaixo -, isso não vai terminar aqui.

 

AVIGNON, FRANÇA, 1349

Acompanhado por sua coxeadura, sua loucura, sua mulher e seu Santo Sudário, Geoffroy de Charny chegou nada menos do que à sede do papado em Avignon. Diferente do que havia sido Roma, a nova cidade pontifícia não tinha a magnificência imperial daquela, nem se respirava ali o ar místico que irradiava da pedra fundadora de Pedro. Em Avignon tudo tinha um viés mais burocrático que espiritual e conseguia-se até sentir o perfume do dinheiro. E à medida que percorriam suas ruas, compreendiam por que era chamada de cidade do pecado. A mulher de Geoffroy de Charny, Jeanne de Vergy, estava encantada e tentava convencer seu esposo de que todos aqueles fatores, sem dúvida, favoreciam seus planos. Mas a razão do duque estava tão perturbada que havia chegado a se convencer de que aquele lençol, que ele mesmo comprara em Veneza, era o que realmente havia coberto o corpo de Cristo. Fosse como fosse, não conseguia explicar a si mesmo como não havia tomado antes a decisão de entrevistar-se com o papa, Clemente VI. Sua Santidade concedeu-lhe imediatamente uma audiência e ficou maravilhado com o Lençol Santo. Tamanho foi seu entusiasmo que pediu ao duque para guardar o quanto antes a relíquia para não colocá-la em risco, e depois se sentaram para falar de negócios. O pontífice achou uma grande idéia a construção de uma igreja colegiada em Lirey que abrigasse o Santo Sudário. Tudo contribuía para os nobres fins da arrecadação. Tão magnífica lhe pareceu a proposta de Geoffroy de Charny que não só lhe deu autorização para construí-la como se ocupou de que recebesse um crédito para o início imediato das obras. Em apenas dez minutos, o próprio papa Clemente VI outorgou-lhe o que o miserável bispo de Troyes lhe negara durante anos. Uma vez acordados os termos do negócio, Sua Santidade ficou em pé e despediu-se rapidamente de Geoffroy de Charny depois que este se ajoelhara no chão tentando beijar-lhe os pés. O duque, enquanto caminhava pelas ruas de Avignon, não cabia em si de alegria. Temia que tudo aquilo não passasse de um grato sonho e que, de uma hora para outra, fosse acordar.

 

LIREY, 1353

Quatro anos mais tarde, a igreja colegiada ficou pronta. Chamou-se Santa Maria de Lirey, mas era conhecida como a Capela do Santo Sudário. Geoffroy de Charny mandou construíla bem em cima dos restos de Christine e Aurélio. É claro que não fez isso movido pelo ânimo de homenagear sua memória, mas, ao contrário, porque desse modo garantia que os corpos cobertos por toneladas de tijolos jamais seriam encontrados. A contragosto, o duque havia colocado sobre suas sepulturas uma magnífica cruz: a que coroava a agulha do campanário. Era uma capela austera no meio da campina que se elevava sobre os semeadouros. Tinha seis estreitas janelas de cada lado na nave central que lhe conferiam uma luminosidade tênue e com alguns reflexos verdes provenientes do campo. O teto em duas águas de telhas vermelhas completava a feitura pastoril e bucólica. O interior, no entanto, apresentava um aspecto mais severo e majestoso, de acordo com a valiosa relíquia que abrigava. Os dois retábulos foram encomendados ao próprio Maurice Cassell e, curiosamente, ambos foram feitos com a técnica do baixo-relevo; um representava a Crucificação e no outro via-se o momento em que envolviam no sudário o corpo de Jesus. Ou talvez fosse de Aurélio. De fato, a semelhança da figura de Cristo do retábulo com o que aparecia no sudário era assombrosa. No lugar mais destacado da igreja, por cima do altar, ficava o Lençol Santo de Nosso Senhor Jesus Cristo dependurado na vertical desde as alturas, como um estandarte. Nada faltava para a abertura da paróquia; de acordo com seus planos, o próprio Geoffroy de Charny haveria de oficiar como pároco para que ninguém mais que ele pudesse ter o controle de seu próprio negócio. No entanto, quando estava já tudo preparado, um acontecimento inesperado iria retardar, uma vez mais, a concretização de seu maior anseio: as hostilidades com a Inglaterra haviam sido retomadas.

 

POITIERS, FRANÇA, 1356

Geoffroy de Charny temeu o pior: se os ingleses chegassem a Troyes e, conseqüentemente, assumissem também o controle de Lirey, seu precioso tesouro seria saqueado, do mesmo modo que, séculos atrás, as tropas muçulmanas fizeram com o lenço de Edessa. O duque não ia esperar de braços cruzados que isso acontecesse. Outra vez organizou sua pequena armada e se pôs sob as ordens de João II para resistir ao avanço do inimigo. À frente de suas tropas vitoriosas na gesta de Vilaviciosa de Astúrias, alistou as hostes para partir para Poitiers. No entanto, o exército britânico não era comparável ao punhado de homens e mulheres, em sua maioria monges e noviças sem armas nem formação militar, que habitavam o castelo de Velayo. Em 19 de setembro de 1356 foi travada a sangrenta batalha de Poitiers. O duque, acostumado às vitórias fáceis sobre adversários inermes, pela primeira vez soube o que era a guerra. De repente, ao deparar com o rigor de um inimigo feroz, compreendeu cabalmente que aquele glorioso passado de legionário era uma vil mentira na qual ele mesmo acabara acreditando. No campo de batalha, vendo como seus homens caíam um atrás do outro como moscas da mesma forma que eles haviam massacrado sem piedade os indefesos seguidores de Aurélio e Christine, decidiu fugir. Mas foi tarde: uma lança atravessou- lhe o peito antes que seu cavalo pudesse girar e galopar em direção contrária ao inimigo. Geoffroy de Charny expirou no ato sem sofrer, dispensa que, certamente, não havia concedido a Aurélio nem à sua própria filha.

 

LIREY, 1356

A história do Santo Sudário não ia terminar, no entanto, com a morte de Geoffroy de Charny. Em novembro de 1356, sua viúva, Jeanne de Vergy, que havia feito do silêncio um culto, convencendo sua própria família de que sofria de uma enfermidade mental que a mergulhava na idiotia, inaugurou a capela de Santa Maria de Lirey. Aqueles que, fora do círculo familiar, suspeitavam de Jeanne não se equivocavam. Com a morte do marido, transformou- se, de um dia para outro, numa mulher brilhante para os negócios. Ela mesma se ocupou de escolher um capelão que não fosse capaz de interferir no negócio; era a única que administrava, com mão firme, cada moeda que entrava na esmola. A modesta igreja rural chegou a ser, em seu momento de esplendor, a mais visitada da França. A atração do Lençol Santo era tamanha que chegavam peregrinos de toda a Europa para venerar a imagem vivente de Cristo no momento de sua ressurreição. A riqueza de Jeanne, viúva de Charny, chegou a ser incalculável e estava alicerçada, literalmente, no martírio de sua filha, seu genro e seu próprio marido. Ninguém se atrevia a pôr em dúvida a autenticidade da mortalha e o discreto espaço da capela não dava para abrigar as multidões. A bela e silenciosa imagem de Jeanne não podia despertar as suspeitas de ninguém; salvo as do velho inimigo do duque: Henri de Poitiers. O bispo nunca haveria de perdoar Geoffroy de Charny, nem mesmo morto, pelo fato de ter atropelado sua autoridade. Por outra parte, sua honestidade e retidão jamais iriam tolerar que estivesse sendo exibida uma relíquia falsa de ninguém menos do que Cristo em sua própria diocese, tão repletos de riquezas estavam os cofres da igreja. Depois de uma extensa e dificultosa investigação, o bispo de Troyes obteve a confissão de Maurice Cassell. Apenas um interrogatório foi suficiente para que o pintor, homem temeroso e de espírito fraco, declarasse entre prantos a verdade. Agora que o duque estava morto podia purgar seu remorso. Tão comovedor foi o reconhecimento da fraude por parte do artista que Henri de Poitiers convenceu-se de que estava lhe contando toda a verdade. Mas Maurice Cassell omitiu falar do assassinato de Aurélio; só se referiu ao entalhe do baixo-relevo e não a quem servira de modelo. O pintor não estava disposto a se envolver em semelhante crime. Com a confissão assinada pelo autor da fraude, o bispo conseguiu proibir a exibição pública da falsa mortalha. Com a morte de Henri de Poitiers e quando o tempo fez com que as pessoas esquecessem do escândalo, o manto foi discretamente recolocado em seu lugar sobre o altar da igreja. Novamente as multidões começaram a chegar em peregrinação, enchendo os cofres da paróquia colegiada. O fiel sucessor do antigo bispo de Troyes, Pierre d'Arcis, denunciou imediatamente o fato, podendo demonstrar a fraude novamente, desta vez perante os tribunais. Com a sentença definitiva dos juizes e as provas do caso, escreveu ao novo papa, Clemente VII:

 

"A questão, Santo Padre, apresenta-se desta maneira. Há algum tempo nesta diocese de Troyes, o deão de certa igreja colegiada, a saber a de Lirey, falsa e mentirosamente, consumido pela paixão da avareza, animado não por algum motivo de devoção mas unicamente de benefício, providenciou para a sua igreja um certo lenço habilmente pintado no qual, por sua destra prestidigitação, estava representada a dupla imagem de um homem, ou seja, de frente e de costas, e o deão declara e pretende mentirosamente que era o verdadeiro sudário em que nosso Salvador Jesus Cristo foi envolto em seu túmulo, e no qual ficou impresso o retrato do Salvador com as chagas que tinha. Esta história foi feita circular não só na França mas poder-se-ia dizer ao redor do mundo inteiro, de maneira que as pessoas viessem de todas as partes para vê-lo. Além disso, para atrair as multidões a fim de tirar-lhes dissimuladamente o dinheiro, têm lugar pretendidos milagres, já que foram alugados alguns homens para que se dêem como curados quando se expõe o sudário, que todos acreditam ser o sudário de Nosso Senhor. Monsenhor Henri de Poitiers, de piedosa memória, então bispo de Troyes, ao ser posto a par desses fatos por numerosas pessoas prudentes que o instavam a agir sem demora, como era seu dever, de fato, no exercício de sua jurisdição ordinária, empenhou-se em descobrir a verdade nesta questão. [...] No final das contas, depois de ter aplicado grande diligência em sua investigação e seus interrogatórios, descobriu a fraude e de que modo dito lenço havia sido astutamente pintado, ou seja, era uma obra devida ao talento de um homem, e em absoluto milagrosamente forjada ou outorgada por graça divina." O novo bispo de Troyes, Pierre d'Arcis, honrando a memória de seu antecessor, conseguiu que o tecido fosse retirado. Jeanne, mulher paciente e muito mais criteriosa que seu defunto marido, temendo que o sudário lhe fosse confiscado, decidiu voltar a apostar no tempo, seu fiel aliado, e o escondeu durante trinta e quatro anos. Mas o bispo voltou a denunciar que o deão da paróquia de Nossa Senhora de Lirey, "sempre com uma intenção de fraude e com um objetivo de benefício", sugeriu à viúva que voltasse a expor a relíquia "para que com a arrecadação das peregrinações à igreja pudesse ser enriquecida com as oferendas dos fiéis".

 

Temendo que a fraude reaparecesse, Pierre d'Arcis sugeriu que o lenço fosse colocado sob a custódia da Coroa e escreveu:

 

"E nesta petição consegui, sem a menor dificuldade, perante o tribunal do parlamento do Rei, explicar as origens supersticiosas daquele sudário, o uso que se fazia dele, a trapaça e o escândalo para os quais chamava a atenção do tribunal. Na verdade, é um assombro, para todos os que conhecem os fatos, que a oposição com a qual me deparo nesses procedimentos provenha da Igreja, da qual deveria esperar um apoio vigoroso e até temer um castigo se me tivesse mostrado indolente ou negligente."

 

O novo bispo, tal como acontecera com o anterior, teve que suportar com surpresa e indignação que o flamante pontífice autorizasse a exposição do lenço. No entanto, não ia permanecer em silêncio e solicitou que "semelhante superstição seja publicamente condenada por Sua Santidade". E foi além, escrevendo:

 

"Declaro-me disposto a fornecer todas as informações que bastariam para eliminar a menor dúvida sobre a questão dos fatos mencionados, tanto em público como de outra maneira, para desculpar-me e poder descarregar minha consciência num assunto que me interessa."

 

E por certo as informações que tinha não eram poucas. O bispo de Troyes, além de ter em seu poder a confissão que Maurice Cassell fizera a Henri de Poitiers, havia feito várias observações que provavam por si sós a falsidade do lençol:

 

  1. Como semelhante milagre teria passado inadvertido aos discípulos de Jesus quando entraram no lugar do sepulcro? Como nenhum deles conseguiu ver o prodígio se, como testemunham as Escrituras, viram ao contrário com clareza os lenços com os quais haviam envolto o corpo de Cristo?

 

Como os Evangelhos poderiam ter omitido mencionar a prova material da ressurreição de Jesus?

 

  1. Ás manchas e linhas do suposto sangue que aparecem no tecido não correspondem a nenhuma lógica: quando a cabeça sangra, o sangue não corre em fios como ocorre na imagem, mas fica aderido aos cabelos. Por outra parte, no lenço, o sangue cai como o faria num corpo que estivesse na vertical. Se aquele manto foi o que cobriu o cadáver de Jesus, o sangue deveria correr para os lados do rosto como acontece com os corpos que jazem, já que aquela foi a última posição de Jesus no momento de ser amortalhado por José de Arimatéia. Poder-se-á dizer que o sangue havia coagulado enquanto estava na cruz e por isso as linhas mantinham-se paralelas ao eixo longitudinal do corpo; mas se o sangue já estava seco, então tampouco teria a suficiente viscosidade para manchar tão profusamente o tecido. 3. Algo semelhante ao assinalado com relação às linhas de sangue acontece com os cabelos. De acordo com a representação, os cabelos caem como o fariam num corpo colocado em pé, coisa que seria impossível num corpo horizontal. O cabelo de um corpo que jaz cai perpendicular ao chão e nunca paralelo a ele. 4. Se as marcas dos estigmas fosse realmente sangue nunca conservariam a cor avermelhada que ostentam, mas teriam ficado enegrecidas com o passar do tempo. 5. Por outra parte, notam-se numerosos problemas nas proporções. A cabeça é notavelmente pequena em relação ao corpo. Os dedos de suas mãos são assimétricos e excessivamente compridos. Segundo se vê na figura de costas, as plantas de seus pés tocam o chão completamente sem que seus joelhos estejam flexionados, coisa impossível para a anatomia humana. O comprimento de seus antebraços é notoriamente excessivo; este último elemento é evidentemente ex professo e foi feito com o torpe propósito de que suas mãos cobrissem as partes pudicas sem ter que fazêlo com os braços estendidos. Esta posição confere à figura um aspecto de repouso e pudor, impossíveis de conseguir na realidade.

 

  1. Se o manto tivesse abrigado um cadáver, na imagem impressa que representa o dorso do corpo deveria aparecer uma marca diferente da que apresenta a figura nos pontos de apoio sobre o chão: os glúteos, as panturrilhas, as espáduas e a cabeça deveriam aparecer achatados, tal como ocorre com os corpos estendidos no chão. 7. O artista que fez a figura esqueceu de representar a parte superior da cabeça. Ambas as imagens, a que representa a frente e a que mostra as costas, estão unidas por um só ponto da cabeça. O volume do crânio simplesmente não existe. Isso é a prova de que o sudário foi feito a partir de dois baixos-relevos planos, como quem esfrega a cara e a coroa de uma moeda num mesmo papel. Apesar da contundência dos argumentos, a única coisa que o bispo conseguiu foi que Clemente VII o condenasse ao silêncio, sob pena de excomunhão. Em 1390, finalmente, autorizou a exposição do Santo Sudário, ao qual antepôs a discreta, quase imperceptível denominação de "representação", para não ser completamente cúmplice do engodo; quase num sussurro, admitiu que "não se trata do Verdadeiro Lençol de Nosso Senhor, mas de um quadro ou pintura feitos à semelhança ou representação do lençol". Mas jamais impediu que o lenço continuasse sendo exposto nem revogou a condenação de silêncio imposta a Pierre d'Arcis.

 

A decisão do papa tinha um fundamento que o próprio bispo ignorava: Jeanne, a viúva do duque? revelou-se uma mulher pragmática que sabia cuidar do seu negócio e não perdia tempo. Embora já bem mais velha, era ainda bela e, conservando intacta sua silenciosa sedução, contraiu matrimônio com um tal de Aimon de Genebra. Poucos sabiam que o novo marido de Jeanne de Vergy era primo de um fulano chamado Roberto de Genebra, mais conhecido em Avignon como Clemente VII

 

O caso foi dado como encerrado e, a partir de então, nada impediu que o falso sudário fosse exposto às multidões cegadas pela superstição que, dia após dia, enchiam a pequena capela. Talvez os peregrinos que contemplavam com lágrimas nos olhos o homem no manto jamais soubessem que estavam chorando o martírio mais iníquo e vão que já fora cometido em Lirey. Talvez nenhum dos visitantes nunca tenha ficado sabendo que debaixo de seus pés doloridos pela longa marcha descansavam os restos daquele a quem contemplavam com devoção. Pelas noites, quando o silêncio voltava a ser o dono dos semeadouros e os campos se recompunham do suplício dos passos incansáveis dos caminhantes, nem tudo era calma na serena campina: a longa e pesada sombra do remorso caía sobre a consciência dos que foram testemunhas da paixão e morte de Aurélio e Christine, que, apesar de tudo e contra tudo, descansavam finalmente juntos.

 

Um vento fresco acaricia a campina como uma mão gigantesca e piedosa. Um vento que precipita as folhas mortas do outono e desnuda os ramos da videira. Sopra e, ao se dividir na cruz sobre o campanário de Santa Maria de Lirey, converte-se num soluço, num lamento inconsolável. O vento, guardião da memória de todas as coisas, o que traz tempestades e augúrios, o que leva as pestes e move os moinhos para fazer o pão, acompanha o lento passo dos caminhantes. O vento é um peregrino também. Sopra em Troyes e Lirey, e seu alento longo chega até as costas do Cantábrico; como um coveiro, o vento passa o dorso da pá sobre as terras calcinadas de Vilaviciosa e tira o pó dos sepulcros anônimos das crianças de Velayo, dos velhos, das mulheres e dos homens cujo pecado foi amar o próximo mais que a si mesmos. O vento não esquece; sopra desde o começo dos tempos e soprará depois do final, quando já nada restar em pé. Quando a ignomínia, a infâmia e o opróbio não deixem pedra sobre pedra, uma brisa suave, viúva do mundo, chorará sem pausa sobre a terra devastada. Mas hoje, nas pradarias de Lirey, sopra uma brisa amável que abana a testa dos viajantes vindos de todas as partes para ver o milagre do homem no sudário; um vento brioso mas mudo, que tenta propagar a verdade como as sementes do cardo sobre o campo. Aquele vento, o que refrescou a testa ferida de Aurélio em sua hora de martírio, é o mesrno que levou as palavras de consolo aos dolentes ouvidos da mulher que amava. Ele na cruz, ela no cadafalso, a brisa os embalava como se fossem uma só forma feita com a secreta matéria do amor. Mas agora, na bucólica igreja de Santa Maria de Lirey, o vento é um caminhante a mais entre todos os que vêm deixar sua oferenda e ingressa silencioso misturado com as pessoas. De repente, diante dos olhos assombrados na multidão, o Santo Sudário dependurado sobre o altar sacode-se com fúria; Deus feito homem, Aurélio feito Cristo, se agita sobre as cabeças dos visitantes como se quisesse fazer trovejar a punição; a mulherada, como um rebanho assustado, estremece. Mas não há por que temer: é o vento, apenas o vento.

 

                               EPÍLOGO

Com a morte de Jeanne de Vergy, seu filho, Geoffroy de Charny II, sucedeu sua mãe na administração da igreja de Santa Maria de Lirey até o final de seus dias. Em 1453, Margarita de Charny, filha do anterior e esposa de Hubert de Vellerexel, que a levara à ruína financeira, cedeu o manto a Ana de Lusignano, esposa do duque Ludovico de Sabóia, em troca de um castelo e um palácio. O lenço foi transferido para Chambéry.

 

Em 1506, o papa Júlio II aprovou a Missa e o Ofício da Síndone, permitindo o culto público. Em 1532, um voraz incêndio declarou-se em Chambéry durante a noite de 3 até a madrugada de 4 de dezembro; o relicário que protegia o manto ficou parcialmente queimado e algumas gotas de prata fundida atravessaram várias partes do linho que permanecia dobrado. Em 1534, as irmãs da Ordem das Clarissas repararam o tecido, costurando remendos nos setores danificados. Em 1535, para colocá-lo a salvo das ações militares, o manto ia iniciar um périplo que incluiu as cidades de Turim, Vercelli, Milão e Nice. Mas finalmente foi devolvido ao lugar de onde havia partido: Chambéry. Em 14 de setembro de 1578, Emanuel Filiberto De Sabóia transferiu o lençol para Turim para que São Carlos Borromeu venerasse a suposta relíquia. No ano de 1694, o manto foi levado à Capela anexa do Domo de Turim. Durante o cerco da cidade foi transferido para Gênova e anos mais tarde, devolvido. Entre 1939 e 1946, durante a Segunda Guerra Mundial, o lençol foi transferido secretamente para o Santuário de Montevergine. Em 1898, o advogado italiano Secondo Pia, depois de bater várias chapas fotográficas do lençol, ao revelar o filme acreditou equivocadamente que a figura estampada no tecido era um virtual negativo fotográfico. Mas imediatamente surgiu a evidente refutação: se se tratasse de um negativo, o homem do sudário seria um ancião de barba branca, já que tanto o bigode como a barba da figura no tecido são visivelmente negros. Por outra parte, o suposto sangue não deveria aparecer vermelho caso fosse um negativo. A fotografia confirmou as suspeitas de que a imagem fora obtida pela técnica medieval dofrottis. Em 1978, por ocasião do IV Centenário da chegada do manto a Turim, foi exibido publicamente de 26 de agosto a 8 de outubro. Em 18 de março de 1983 morreu Humberto II da Sabóia, tendo ordenado em seu testamento que a Síndone passasse à propriedade do Vaticano. Em 21 de abril de 1988 a Igreja autorizou que fossem efetuadas três provas de datação por meio da técnica do carbono 14. As provas foram feitas em três laboratórios distintos e independentes. A pedido da Santa Sé, a tomada de amostras e a avaliação dos resultados foram feitas sob a coordenação do Museu Britânico. As conclusões sobre a antigüidade do tecido foram convergentes: para o laboratório de Oxford, o tecido tinha 750 anos; para o de Zurique, 675, e para o de Túcson, 646. Ou seja, uma média de 690 anos. O lençol havia sido feito, sem dúvida alguma, entre 1260 e 1390. Em 31 de outubro de 1988 a Igreja reconheceu e assumiu publicamente o resultado, dando- se por encerrada toda a discussão. Desde então a Igreja outorga à Síndone o tratamento de "ícone". Em 24 de fevereiro de 1993, a Síndone foi transferida para o altar-mor do Domo de Turim para permitir os trabalhos de restauração da capela guariniana. Em 5 de setembro de 1995, o cardeal Giovanni Saldarini anunciou as duas próximas exibições: uma de 18 de abril a 14 de junho de 2000. Na noite de 11 para a madrugada de 12 de abril de 1997, um novo incêndio danificou gravemente a capela da Síndone. Um bombeiro conseguiu romper a estrutura de vidro e salvar desse modo o manto. Em 18 de abril de 1998 foi realizada a mais recente exibição. A postura da Igreja com relação ao manto continua a mesma admitida por Clemente VII: "Não se trata do Verdadeiro Lençol de Nosso Senhor, mas de um quadro ou pintura feitos à semelhança ou representação do lençol". Uma forma certamente eufemística de admitir que se trata de uma falsificação.

 

 

                                                                  Federico Andahazi

 

 

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