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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CRUZ ARDENTE / Diana Gabaldon
A CRUZ ARDENTE / Diana Gabaldon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CRUZ ARDENTE

Primeira Parte

 

“Vá, Frank”, pensei com severidade.

         Fora ainda estava escuro, mas a bruma que se elevava da terra úmida era de uma cor cinza perolado; a alvorada se aproximava. Embora nada se movesse, nem dentro nem fora, percebi um leve roçar sobre minha pele.

         “ Eu não deveria ir a suas bodas?”

         Ignorava se as palavras se formaram por si só em meus pensamentos ou se eram, elas e o beijo, mero produto de meu subconsciente. Tinha-me dormido pensando nos preparativos do enlace, assim não era estranho que tivesse sonhado com bodas. E com noites de bodas.

         Alisei a musselina enrugada de minha camisa e supus que não era só o sonho o que avermelhava minha pele. Não recordava nada concreto, só um confuso matagal de imagens e sensações. Possivelmente fora o melhor.

         Girei sobre os ramos e me apertei a Jamie. Estava morno e cheirava gratamente a fumaça de lenha e a uísque, com um leve ar de virilidade. Despertei muito devagar, arqueando as costas para lhe tocar o quadril com a pélvis. Se estava muito sonolento ou desinteressado, o gesto seria o bastante leve para passar desapercebido. Se não…

         Não. Sorriu fracamente, com os olhos ainda fechados, e uma de suas mãos se deslizou lentamente por minhas costas, até posar-se em meu traseiro com um apertão firme.

-Humm?-disse-. Hummm.

         Logo com um suspiro, voltou a relaxar-se no sonho, sem me soltar. Me aconcheguei contra ele, reconfortada. A proximidade física do Jamie bastava para apagar os sonhos persistentes. E Frank (se é que era ele) tinha razão até certo ponto. Estou segura de que, de que se fosse possível Bree teria querido que seus dois pais assistissem a suas bodas.

         Já estava completamente acordada, mas muito cômoda para me mover. Fora chovia; o ar, frio e úmido, fazia mais atrativo o quente ninho de edredons que a distante perspectiva do café quente. Sobre tudo porque, para obtê-lo, teria que baixar ao arroio em busca de água, acender a fogueira com a lenha úmida, moer os grãos em um morteiro de pedra e logo prepará-lo.

         Estremecida só de pensá-lo, cobri-me com o edredom e reatei a lista mental das coisas necessárias com a que me tinha ficado encarregada.

         Comida, bebida… Felizmente não precisava me preocupar disso. Yocasta, a tia do Jamie, encarregaria-se de tudo; melhor dizendo, faria-o Ulises, seu mordomo negro.

         Ao menos Bree estrearia de vestido; isso também era presente da Yocasta. Seria de lã de cor azul escura; a seda era muito cara e pouco prática para quem vivia nos bosques. Não se parecia em nada ao cetim branco e a flor-de-laranja com o que eu me tinha imaginado que se casaria algum dia; claro que a ninguém lhe teria ocorrido umas bodas como esta no ano 1960.

         Perguntei-me que teria opinado Frank do marido da Brianna. Provavelmente lhe teria gostado; Roger, como ele, era historiador (ou ao menos o tinha sido). Estava dotado de inteligência e senso de humor; era um músico de talento e um homem doce, totalmente dedicado a Brianna e ao pequeno Jemmy.

         O qual é admirável, por certo -pensei em direção a bruma - dadas as circunstâncias.           

         “ Admite-o, verdade?” As palavras se formaram em meu interior, como se ele as tivesse pronunciado: irônicas, burlando-se de uma vez dele e de mim.

         Jamie franziu o sobrecenho e crispou os dedos contra minha nádega, emitindo pequenos bufidos em sonhos.

         “ Você sabe que fui - disse em silêncio-.Sempre o admiti e sabe, de modo que não me chateie, quer?”

         Dava as costas ao ar exterior e apoiei a cabeça no ombro do Jamie, procurando refúgio no contato com o tecido de sua camisa.

         Na realidade me dava a impressão de que Jamie não via tanto mérito como eu (ou como Frank, possivelmente) no fato de que Roger tivesse aceito ao Jemmy como filho próprio. Para ele era, simplesmente, um dever; nenhum homem honorável poderia atuar de outra maneira. E parecia duvidar de que Roger fosse capaz de manter e proteger a uma família nos páramos da Carolina. Embora fosse alto, hábil e de boa compleição, para ele as coisas “ de capa e espada” eram letra de canções; para o Jamie, ferramentas de seu ofício.

         Súbitamente notei pressão da mão apoiada em meu traseiro, e me sobressaltei.

-Sassenach - disse Jamie, sonolento - está-te retorcendo como um girino no punho de um pirralho. Precisa ir a letrina?

-Ah, está acordado - disse, me sentindo um pouco surpresa.

-Agora sim.-Retirou a mão e se despertou com um grunhido; os pés descalços apareceram pelo outro extremo do edredom.

-Desculpe, não quis te acordar.

-OH, não se preocupe - tranqüilizou -.Estava sonhando algo diabólico. Acontece-me sempre que passo frio enquanto durmo. -Levantou a cabeça e se olhou os pés, movendo os dedos com desgosto-. por que não me deitei com os meias três-quartos?

-Com o que sonhava?-perguntei, intranqüila. Oxalá não tivesse sonhado quão mesmo eu.

-Com cavalos-respondeu, para meu alívio.

Joguei-me a rir.

-Tão diabólico pode ter sido um sonho com cavalos?

-Deus! Foi terrível. - esfregou-se os olhos com os punhos. Logo sacudiu a cabeça, como se tratasse de tirar o sonho da mente -.Tinha a ver com os reis irlandeses. Recorda o que contava Mackenzie ontem à noite, junto à fogueira?

-Os reis ir…ah, sim! - A lembrança me fez rir outra vez.

         Roger, entusiasmado por seu recente compromisso, tinha obsequiado ao grupo reunido em torno da fogueira com canções, poemas e entretidas anedotas históricas; entre elas, os ritos com os que se dizia que os antigos irlandeses coroavam a seus reis. Um destes requeria que o candidato triunfador copulasse com uma égua branca ante a multidão congregada, presumivelmente para demonstrar sua virilidade; em minha opinião, parecia mas bem uma prova do sangue frio do cavalheiro.

-Eu estava a cargo do cavalo, e tudo saía mal -me informou Jamie - O homem era muito baixo e eu devia procurar algo onde pudesse subir. Encontrei uma rocha, mas não pude levantá-la. Logo, um tamborete, mas lhe desprendeu uma pata. Por fim, disseram-me que não importava, que podiam lhe cortar as patas da égua. Eu tratava de impedi-lo, enquanto o homem que ia ser rei atirava de suas calças, queixando de que não podia desabotoar a braguilha. Nesse momento alguém se fixou em que a égua era negra e disse que não servia.

         Sufoquei uma gargalhada para não despertar a ninguém dos que dormiam perto.

-Foi então quando despertou?

-Não. Por algum motivo isso me ofendeu muito. Disse que sim que serviria, e que em realidade era muito melhor a égua negra, pois todo mundo sabe que os cavalos brancos são débeis e que a descendência seria cega. E eles que não, que não, que o negro traria má sorte. E eu, insistindo em que não era certo e…-Interrompeu-se com um pigarro.

-E então?

         Encolheu-se de ombros, me olhando de soslaio; um vago sufoco lhe subia pelo pescoço.

-Pois nada, disse que serviria e que o demonstraria. E sujeitei à égua pela garupa, para impedir que seguisse movendo-se, e já estava preparado para…bem …para me converter em rei da Irlanda. E foi então quando despertei.

Os dois estalamos em gargalhadas.

- OH! Agora sim que lamento haver despertado - me enxuguei os olhos com uma ponta do edredom -.Não duvido que tenha sido uma dura perda para os irlandeses. Mas me pergunto o que pensariam as rainhas da Irlanda dessa cerimônia tão especial - adicionei.

-Não acredito que as damas saíssem absolutamente prejudicadas na comparação - me assegurou Jamie - Embora haja sabido de homens que preferem…

- Não me referia a isso, a não ser às conseqüências higiênicas, compreende? Pôr o carro antes que o cavalo é uma coisa, mas isso de antepor a égua à rainha…

-A…ah, sim.- Sua cara avermelhou visivelmente -.Pode dizer o que quiser dos irlandeses, Sassenach, mas acredito que se lavam de vez em quando. E dadas as circunstâncias, é possível que o rei encontrará útil um pouco de sabão em…

-Em meia cabeça de gado?-sugeri-. Seguro que não. Ao fim e ao cabo, o cavalo é bastante grande…

-Não é só questão de espaço, Sassenach, mas também de disposição - observou ele, me lançando um olhar de recriminação-.E nessas circunstâncias, compreenderia que o homem necessitasse um pouco de ânimo. De qualquer forma – disse - Não leu Horacio nem ao Aristóteles?

-Não. Nem todo mundo pode ser tão instruído como você. E nunca me interessou muito Aristóteles, sabendo que, em sua classificação do mundo natural, situava às mulheres por debaixo dos vermes.

-Seguro que não estava casado.-A mão do Jamie descendeu lentamente por minhas costas, apalpando os nós da coluna através da camisa-.Do contrário, teria detectado os ossos.

         Com um sorriso, elevei uma mão até seu maçã do rosto, que destacava sobre a avermelhada barba.

         Nesse momento vi que, fora, o céu se esclareceu à alvorada, e recordei por que se tirou os meias três-quartos a noite anterior. Por desgraça, ambos estávamos tão cansados pelas celebrações que ficamos dormidos no meio do abraço.

         Essa lembrança me resultou tranqüilizador, pois explicava o estado de minha camisa e o sonho que tinha tido. Ao mesmo tempo me estremeci: Frank e Jamie eram homens muito diferentes, e no fundo eu não tinha nenhuma dúvida sobre qual dos dois me tinha beijado justo antes de despertar.

- me beije - disse súbitamente. Ele roçou meus lábios com os seus, e sentiu saudades ao ver que eu o soltava. Logo sorriu.

-De acordo, Sassenach. Mas antes terei que sair um momento.

-Será melhor que te dê pressa-disse-.Está esclarecendo, e a gente se levantará logo.

         O assentiu com a cabeça e saiu. Cavei-me o cabelo com os dedos e rodei sobre mim mesma em busca da garrafa de água. Ao sentir o ar frio nas costas, olhei por cima de meu ombro; a aurora já estava ali e a bruma tinha desaparecido.

         Toquei o anel de ouro que levava na mão esquerda; tinha-o recuperado a noite anterior, e depois de sua larga ausência ainda me era estranho. Possivelmente era esse anel o que tinha convocado ao Frank a meus sonhos. Possivelmente essa noite, durante as bodas, tocasse-o de novo com a esperança de que ele pudesse ver a felicidade de sua filha através de meus olhos. por agora, entretanto, Frank tinha desaparecido e isso me alegrava.

         Um som leve chegou flutuando no ar: o fugaz pranto de um bebê ao despertar.

         Em outros tempos, eu tinha pensado que não devia haver mais de duas pessoas em um leito conjugal. Ainda acreditava. Entretanto, um bebê era mais difícil de apagar que o espectro de um antiga amor, e o leito da Brianna e Roger devia forzosamente dar capacidade a três.

         A cara do Jamie apareceu junto ao bordo da lona refletindo nervosismo e alarme.

-Será melhor que te vista, Claire-disse-. Os soldados se estão formando junto ao arroio. Onde estão minhas meias três-quartos?

         Incorporei-me de um salto. Longe, ladeira abaixo, os tambores começaram a redobrar.

 

A fria névoa se acumulava ao redor dos terrenos baixos; uma nuvem se posou sobre o monte Helicón, e o ar estava denso de umidade. Cruzei um lance de pastos duros, rumo ao lugar onde se congregou um destacamento do 67º regimento de escoceses; formados na borda, com os tambores rugientes e o gaiteiro da companhia tocando a pleno pulmão, pareciam impermeáveis à chuva.

         Eu sentia muito frio e não pouco chateio. Ao me deitar esperava despertar com café quente e um café da manhã nutritivo ao que seguiriam dois bodas, três batismos, duas extrações de demola, a extirpação de uma unha infectada e outras entretidas formas de são contato social, dessas que requerem uísque. Em lugar disso, depois de despertar de um sonho inquietante, me tinha conduzido a um jogo amoroso para logo me arrastar sob uma garoa fria in medeia maldita cabeça de gado, ao parecer para que escutasse alguma proclama.

         Os escoceses do acampamento tinham demorado para levantar-se e baixavam a colina com passo vacilante; quando o gaiteiro emitiu a última rajada, o tenente Archibald Hayes deu um passo à frente.

         Seu nasal acento do Fife era bem audível, e além disso tinha o vento a favor. Ainda assim, acredito que quem estava algo mais acima podiam ouvir muito pouco. Nós, em troca, encontrávamo-nos ao pé da costa, a escassos vinte metros do tenente; pese ao tagarelo de meus dentes, ouvi todas suas palavras.

-” Por sua excelência, o cavalheiro William Tryon, capitão geral de sua majestade, governador e comandante em chefe, em e sobre esta província” -leu Hayes, levantando a voz até o uivo para impor-se aos ruídos do vento e a água, e aos murmúrios premonitorios da multidão-. “ Considerando-tronó, enquanto dirigia à multidão um olhar fulminante-que recebi informação de que grande número de escandalosos e bagunceiros se reuniram na cidade do Hillsborough, em nos dias vinte e quatro e vinte e cinco do mês passado, durante a sessão da Corte Superior de Justiça desse distrito, para opor-se às justas medidas de governo e em aberta violação das leis de seu país, atacando ao juiz de sua majestade, e deste modo golpeando e hiriendo a várias pessoas durante a sessão de dita corte, e manifestando outras indignidades e insultos ao governo de sua majestade, cometendo muito violentos atropelos contra as pessoas e propriedades dos habitantes de dita cidade, brindando pela condenação do legítimo soberano, o rei Jorge, e pelo êxito do aspirante…” -Hayes fez uma pausa, tragou ar e continuou lendo-:” …portanto, com o fim de que as pessoas envoltas em ditos atos escandalosos possam ser levadas ante a justiça, com o assessoramento e consentimento do Conselho de sua majestade, pronuncio esta meu proclama, insistindo e comprometendo estritamente a todos os juizes de paz de sua majestade existentes neste governo para que executem diligentes investigações quanto aos crímenes citados, e para que recebam as declarações daquelas pessoas que se pressentem ante eles para proporcionar informação sobre o expresso; declarações estas que me serão transmitidas, com o fim de ser apresentadas ante a assembléia geral em New Bern, o trigésimo dia do próximo mês de novembro, data até a qual permanecerá prorrogada para o imediato despacho de assuntos públicos.” -Uma inalação final. A cara do Hayes estava purpúrea-.” Sacado de meu punho e letra e com o grande selo da província em New Bern, nos dia dezoito de outubro, no décimo ano do reinado de sua majestade, Anno Domini mil setecentos e setenta. Assinado William Tryon” -concluiu, com um último bufido.

-Fixaste-te?-comentei ao Jamie-, acredito que todo isso era uma só frase, menos o fechamento. Assombroso, inclusive para um político.

-Cala, Sassenach-disse ele, com o olhar ainda fixa no Archie Hayes.

         detrás de mim a multidão emitiu um rugido apagado, de interesse e consternação, com certo sotaque de diversão ante as frases referidas aos brinde desleais.

         Essa era uma congregação de escoceses, muitos deles exilados às colônias depois do levantamento do Estuardo; se Archie Hayes tivesse querido tomar nota oficial de quanto se dizia a noite anterior, enquanto as jarras de cerveja e uísque passavam ao redor da fogueira… Claro que então só tinha consigo quarenta soldados; quaisquer que fossem suas próprias opiniões sobre o rei Jorge e a possível condena do monarca, as reservou com toda prudência.

         Convocados pelo bater dos tambores, uns quatrocentos escoceses das Terras Altas rodeavam o lugar eleito pelo Hayes para seu assentamento, no ribazo do arroio. Homens e mulheres se protegiam com seus trajes (as plaids e os arisaids) bem rodeados contra o vento que aumentava. A julgar pelas caras pétreas que se viam, eles também se reservavam sua opinião.

-Toda pessoa que deseje fazer declarações relativas a estes muito graves assuntos pode as confiar a meu atención-anunciou o tenente-.Passarei o resto do dia em minha loja com meu secretário. Deus salve ao Rei!

         Depois de entregar a proclama a seu cabo, saudou com uma inclinação à multidão e girou com firmeza fazia uma grande loja de lona ereta perto de umas árvores; no mastro vizinho, ondulavam as bandeiras do regimento.

         Eu tremia; deslizei uma mão pela abertura do capote do Jamie e reconfortei meus dedos frios no calor de seu corpo. Jamie apertou o cotovelo contra seu flanco, reconhecendo a presença dessa emano geada, mas não me olhou; estava estudando as costas em retirada do Archie Hayes.

         O tenente era um homem compacto e sólido, de pouca estatura mas de grande presencia; caminhava com firmeza, como se desdenhasse às pessoas reunida na ladeira. Ao desaparecer dentro de sua loja, deixou a lapela levantada se por acaso alguém queria entrar.

         Não era a primeira vez que, contra minha vontade, admirava o instinto político do governador Tryon. Era óbvio que se estava lendo essa proclama em toda a colônia; e, embora poderia ter deixado que um oficial ou um magistrado local levasse a nossa congregação sua mensagem, tomou-se a moléstia de enviar ao Hayes.

         Archibald Hayes tinha tomado o campo do Culloden ao lado de seu pai, quando só tinha doze anos. No combate foi ferido, capturado e enviado ao sul. Quando lhe ofereceu a possibilidade de escolher entre ser transladado ou incorporar-se ao exército, escolheu a mesnada do Rei e tirou o máximo partido para a situação. O fato de que tivesse chegado a oficial antes de fazer quarenta anos era testemunho suficiente de seu talento.

         Era tão atrativo como competente; no dia anterior, convidado a compartilhar nossa comida e nosso fogo, tinha passado a metade da noite conversando com o Jamie…e a outra metade passeando de fogueira em fogueira, sob a tutela de meu marido, que o apresentou aos chefes de todas as famílias importantes que ali se encontravam.

         E de quem foi a idéia?, perguntei-me, levantando a vista para o Jamie. Sua cara não deixava entrever o que pensava, e isso era sinal de que estava pensando algo bastante perigoso. Acaso sabia de antemão o dessa proclama?

         Nenhum oficial inglês, ao mando de tropas inglesas, teria podido levar semelhante noticia a uma reunião como a nossa e esperar a menor colaboração. Mas Hayes e seus escoceses, tão leais, com suas saias de tartán…Além disso, Hayes fazia levantar sua loja de costas a um denso pinar; se alguém desejava falar em segredo com ele, podia aproximar-se através do bosque sem que ninguém o visse.

         -Acaso Hayes espera que alguém se além da multidão, corra a sua loja e se renda imediatamente?-murmurei ao Jamie. Entre os pressente, ao menos doze homens tinham participado dos distúrbios do Hillsborough; três deles estavam ali mesmo. Ao ver a direção de meu olhar, Jamie me indicou com um gesto silencioso que fora discreta.

         Hobson, MacLennan e Fowles, agrupados frente a nós, conversavam sobre voz baixa. Os três provinham de um diminuto assentamento chamado Drunkard’s Creek, a uns vinte e quatro quilômetros de nossa casa da Colina do Fraser. Hugh Fowles, genro do Joe Hobson, era muito jovem; não tinha mais de vinte anos, e embora tentava manter a compostura, sua cara estava pálida.

         Eu ignorava o que pensava fazer Tryon com quem tivesse participado dos distúrbios, mas percebi a inquietação criada pela mensagem do governador.

         No Hillsborough a gente tinha destruído vários edifícios; uns quantos funcionários públicos foram tirados rastros e atacados na rua. Segundo os rumores, um juiz de paz (irônico título) tinha perdido um olho a conseqüência de um cruel golpe de látego. O juiz Henderson tinha escapado por uma janela para fugir da cidade, o qual impediu que houvesse sessão na Corte. Era evidente que o governador estava muito irritado pelo acontecido.

         Joe Hobson olhou ao Jamie; logo apartou a vista. A presença do tenente ante nossa fogueira, a noite anterior, não tinha passado desapercebida.

         Se Jamie detectou esse olhar, não a devolveu, encolheu-se de ombros e inclinou a cabeça fazia mim.

-não acredito que Hayes espere que alguém se entregue, não. Possivelmente esteja obrigado a pedir informação; graças a Deus, eu não estou obrigado a responder.

         Não tinha falado em voz alta, mas sim o suficiente para chegar aos ouvidos do Joe Hobson, que girou a cabeça e dedicou ao Jamie um gesto de irônico reconhecimento. Logo tocou a seu genro no braço, e ambos se afastaram para os acampamentos disseminados acima, onde as mulheres estavam atendendo as fogueiras e ocupando-se dos meninos.

         Era o último dia da congregação; essa noite haveria bodas e batismos: a bênção formal do amor e seus frutos, surtos dessa multidão carente de igreja durante tudo no ano anterior. Depois se entoariam as últimas canções e se dançaria entre as chamas de muitas fogueiras. Ao chegar a manhã, as famílias retornariam a seus lares, disseminados das ribeiras povoadas do rio Cape Fear até as montanhas silvestres do oeste, levando notícias da proclama e dos fatos do Hillsborough.

         Eu estava intranqüila. Durante a semana da congregação se ouviu com freqüência alardear sobre os distúrbios do Hillsborough, mas não todos os que o escutaram estavam dispostos a considerar heróis aos bagunceiros.

         Senti o murmúrio de conversações que estalavam atrás da proclama: as famílias se agrupavam e alguns homens foram de grupo em grupo, transmitindo o discurso do Hayes colina acima, repetindo-o a quem não o tinha ouvido por estar longe.

-Vamos? Há muito que fazer antes das bodas.

-Sim?-Jamie me jogou uma olhada- Eu acreditava que os escravos da Yocasta se encarregariam de tudo. Entreguei os tonéis de uísque ao Ulises, que será o soghan.

-Ulises? trouxe sua peruca?- A idéia me fez sorrir. O soghan era o homem que se encarregava de servir a bebida e o refrigério nas bodas das Terras Altas escocesas; em realidade, a palavra significava algo assim como “ homem alegre e cordial” . Ulises era possivelmente a pessoa mais digna que eu tivesse visto jamais, até sem seu librea e sua peruca de crina empoeirada.

-Se a trouxe, de noite a terá pega na cabeça.-Jamie levantou a vista para o céu encapotado-.Ditosa a noiva sobre a que brilha o sol-citou-.Ditoso o cadáver sobre o que cai a chuva.

-Isso é o que eu gosto dos escoceses-comenté secamente-.Têm um provérbio adequado para cada ocasião. Não te atreva a dizer isso diante do Bree.

-Por quem toma, Sassenach?-acusou-me com um sorriso-.É minha filha, não?

-Por supuesto-reprimindo o súbito recordo do outro pai da Brianna, olhei por cima do ombro para comprovar que ela não estivesse ao alcance de minha voz.

         Não havia sinais de seu flamígera cabeça. Digna filha de seu pai, descalça media um metro oitenta; distingui-la em meio de uma multidão era quase tão fácil como detectar ao Jamie.

-De qualquer modo, não é o banquete de bodas o que preocupa-dije a meu marido-.Devo me ocupar do café da manhã e logo atender o consultório matutino com a Murria Macleod.

-Não disse que Murria era um enganador?

-Disse que era ignorante, teimoso e uma ameaça para a saúde pública-corregí-. Não é o mesmo…exatamente.

-Exactamente-corroborou Jamie, sonriendo-. E o que pensa fazer, educá-lo…ou envenená-lo?

-O que resulte mais efetivo. Se ao menos pudesse lhe pisar acidentalmente a lanceta e romper-lhe ao menos não aplicaria sangrías. Vamos, que me estou congelando.

-Sim, ele vejamos-asintió, e jogou uma olhada aos soldados, ainda formados com o passar do arroio-.Parece que o pequeno Archie pensa manter a seus moços ali até que a multidão se retirou. estão-se pondo azuis.

         em que pese a estar armados e com o uniforme completo, a fila de escoceses permanecia tranqüila; sem dúvida eram imponentes, mas já não pareciam ameaçadores. Uns meninos brincavam de correr entre eles, atirando com descaramento do bordo das saias ou aproximando-se para tocar os mosquetes, os cantis e os punhos de adagas e espadas.

-Abel, a charaid!-Jamie se tinha detido para saudar o último dos homens do Drunkard’s Creek-.Já tomaste o café da manhã?

         MacLennan tinha ido à congregação sem sua mulher; por isso comia onde a sorte o levasse. Embora a multidão se estava dispersando, ele se mantinha impassível em seu sítio. “ Provavelmente espera que o convidem a tomar o café da manhã” , pensei com cinismo.

         Observei sua corpulenta silhueta e calculei mentalmente seu possível consumo de ovos, parritch e pão torrado, comparando-o com as minguantes provisões de nossa cesta. A escassez de mantimentos não impediria a nenhum escocês oferecer sua hospitalidade, e muito menos ao Jamie, que estava convidando ao MacLennan a tomar o café da manhã conosco, enquanto que eu dividia mentalmente dezoito ovos entre nove pessoas em vez de oito. No trajeto montanha acima, teríamos que pedir emprestado mais café no acampamento da Yocasta.

         Quando íamos retirar nos, Jamie deslizou a mão por meu traseiro. Ante minha exclamação, Abel MacLennan se voltou a me olhar, boquiaberto, e eu lhe sorri, resistindo o impulso de lhe dar um chute a meu marido; então nos deu as costas e subiu apressadamente a costa. Jamie me agarrou do cotovelo para me ajudar a passar entre as pedras, enquanto se agachava fazia meu ouvido, murmurando:

-por que diabos não te puseste anáguas, Sassenach? Não leva absolutamente nada debaixo da saia. vais morrer de frio!

-Nisso não te equivoca, tremendo a pesar do capote. Em realidade levava uma camisa de linho sob o vestido, mas era um objeto pouco adequado para o inverno.

-Ontem levava uma anágua de lã. O que foi que ela?

-Não acredito que queira sabê-lo.

         Jamie arqueou as sobrancelhas, mas antes de que pudesse fazer outra pergunta ressonou um grito detrás de nós.

-Germain!

         Germain, de dois anos, tinha aproveitado que Marsali, sua mãe, estava ocupada com sua irmã recém-nascida para escapar de sua custódia e corre para os soldados. Evitando a captura, lançou-se de cabeça custa abaixo. Ia cobrando velocidade como uma pedra lhe rodem.

-Fergus!-uivou Marsali.

         Para ouvir seu nome, o pai do Germain interrompeu sua conversação bem a tempo para ver que seu filho tropeçava com uma pedra e caía de bruces. O menino era um acrobata nato; não fez nada por salvar-se, mas sim se deixou cair com graça e se enroscou formando uma bola, como um puercoespín. Passou por entre as filas de soldados como uma bala de canhão e se afundou no arroio com um chapinho.

         Várias pessoas correram colina abaixo para ajudar, mas um dos soldados já estava junto ao ribazo. Ali se ajoelhou para cravar a ponta da baioneta na roupa flutuante do menino e rebocou o vulto empapado para a borda.

         Fergus se meteu na água geada e pouco profunda, estirando-se para agarrar a seu lhe jorrem filho.

-Merci, mon ami, mille merci beaucoup-disse ao jovem soldado-.Et toi, toto-adicionou, sacudindo a sua vergôntea, que cuspia-. Comment ça vai, pequeno cabeça oca?

         O soldado parecia surpreso, mas não soube se era pela maneira de falar do Fergus ou pelo gancho de ferro que ocupava o lugar da mão esquerda.        

-Tudo está bem, senhor-disse, com um sorriso tímido-.Acredito que não se feito mal.

         Brianna saiu de detrás de um castanho, com o Jemmy, de seis meses, apoiado em seu ombro, e agarrou à pequena Joan de braços do Marsali.

-me dê ao Joanie-disse-.Você te ocupe do Germain.

         Jamie se tirou o pesado capote dos ombros para tender-lhe ao Marsali.

-Sim, e lhe diga ao soldado que o resgatou que deva compartilhar nossa fogueira-lhe disse-. Podemos alimentar a outro, Sassenach?

-Por supuesto-respondi, refazendo velozmente meus cálculos mentais. Dezoito ovos, quatro fogaças de pão duro para torrar (não, devia reservar uma para a viagem de volta a casa, ao dia seguinte), três dúzias de omeletes de advenha-si é que Jamie e Roger não as tinham comido já-, meio frasco de mel…

         Marsali desapareceu, correndo em auxílio aos homens de sua família, que estavam empapados e tiritando. Jamie a seguiu com a vista e deixou escapar um suspiro de resignação, enquanto o vento inflava as mangas de sua camisa. Logo me sorriu de soslaio.

-Suponho que nos congelaremos juntos, Sassenach. Mas não importa. De qualquer modo não quereria viver sem ti.

-Vamos, Jamie Fraser!-disse amigavelmente-.Mas se você for capaz de viver nu em um témpano de gelo e derretê-lo! O que tem feito de sua jaqueta e seu plaid?

-Não pergunte, muito sorridente, enquanto me cobria a mão com uma palma grande e calejada-.Vamos. Estou esfomeado e quero tomar o café da manhã.

-Espera-dije, me apartando.

         Jemmy, nada disposto a compartilhar os braços de sua mãe com a recém legada, chiava. Alarguei os braços para agarrá-lo.

-Obrigado, mamãe.-Brianna sorriu-.Mas está segura de que prefere a esse? A menina é mais tranqüila…e pesa a metade.

-Não, está bem. Cala, tesouro, vêem com seu abuelita.

         Jemmy, ao me reconhecer, abandonou seu escarcéu para agarrar-se por meu cabelo com os punhos gordinhos. Desenredei seus dedos para olhar por cima de sua cabeça, mas lá abaixo parecia estar tudo sob controle.

         Fergus, com as calças e os meias três-quartos jorrando de água, envolto-se os ombros com o capote do Jamie e estava espremendo o peitilho da camisa com uma só mão, enquanto dizia algo ao soldado que tinha resgatado ao Germain. Marsali se tinha tirado o arisaid para envolver ao pequeno, e seus cabelos loiros voavam por debaixo do lenço.

         O tenente Hayes, atraído pelo bulício, espiou da abertura de sua loja. Ao levantar os olhos se encontrou com meus; depois de agitar a mão em uma breve saudação, segui a minha família para nosso acampamento.

         Jamie disse a Brianna algo em gaélico, enquanto a ajudava a cruzar um lance pedregoso do atalho, diante de mim.

-Sim, estou preparada-respondió ela, em nosso idioma-.Onde está sua jaqueta, papai?

-A emprestei a seu marido-disse ele-.Não convém que se presente a suas bodas com aspecto de mendigo, verdade?

         Bree se pôs-se a rir.

-Antes mendigo que suicida fracassado.

-Como há dito?-Pu-me à altura deles no momento em que saíamos do amparo das rochas. Estirei a boina de ponto do Jemmy para lhe cobrir mais as orelhas e logo lhe tampei a cabeça com a manta.

-Uf!-Brianna encurvou os ombros para o bebê que tinha em braços, protegendo o das rajadas de vento.

-Quando começou o rufo de tambores, Roger se estava barbeando, esteve a ponto de cortar o pescoço-lhe explicou Jamie-.O peitilho de sua jaqueta se manchou de sangue.

         Bree olhou a seu pai, com os olhos lagrimeantes pelo vento.

-De maneira que o viu esta manhã. Sabe onde está agora?

-São e salvo-le assegurou ele-.Disse-lhe que fora a falar com o pai Donahue enquanto Hayes nos lia o seu.-Olhou-a com aspereza-.Poderia me haver dito que o menino não era católico.

-Poderia-disse ela, sem perturbar-se-.Mas não quis. Não me preocupa.

-Se com essa peculiar expressão quer dizer que não tem importância…-começou a dizer Jamie secamente.

         Mas o interrompeu a chegada do Roger, resplandecente com a saia de tartán verde e branco dos Mackenzie, e a manta escocesa do mesmo tecido sobre a jaqueta e o colete do Jamie.

-Fica muito bem, Roger-comentei-.Onde te cortaste?- Sua cara tinha em tom rosado típico da pele recém barbeada, mas não havia marcas à vista.

         Roger entregou o pacote de tartán vermelho e negro que trazia sob o braço: sua manta escocesa. Logo inclinou a cabeça a um lado para me mostrar em talho profundo debaixo da mandíbula.

-Justo aí. Nave foi nada, mas sangrou como o demônio.

         A ferida já tinha uma nítida linha escura de crosta, de sete ou oito centímetros; cruzava o pescoço por um lado, do ângulo da mandíbula. Toquei a pele circundante; não estava mau: o fio tinha penetrado limpamente. Não sentiu saudades que tivesse sangrado tanto; verdadeiramente dava a impressão de que tinha tratado de cortar o pescoço.

-Algo nervoso, esta manhã?-brinquei-.Acaso te está arrependendo?

-É um pouco tarde para isso-disse secamente Brianna, aproximando-se de mim-.Ao fim e ao cabo, tem um pirralho que necessita sobrenome.

-Terá tantos sobrenomes que não saberá o que fazer com isso-le assegurou Roger-.E também você…senhora Mackenzie.

         O nome acendeu um pequeno rubor na cara da Brianna, que lhe sorriu. Ele se inclinou para beijá-la na frente e, ao mesmo tempo, agarrou o bebê agasalhado. Ao sentir o peso do vulto, olhou-o, estupefato.

-Não é o nuestro-explicou Bree, muito sorridente-.É Joan, a do Marsali. Jemmy está com mamãe.

-Graças a Deus-disse ele, sustentando-o com mais cuidado-.Pensei que se evaporou ou algo assim.

-De evaporar-se nada-gruñí, enquanto acomodava melhor ao Jemmy em seu cálida manta-. Acredito que engordou um quilograma enquanto subíamos a costa.

         Acalorada pelo esforço, apartei um pouco ao bebê de meu corpo. Jamie se fez cargo dele e o colocou sob um braço, como se fora uma bola de futebol, lhe sustentando a cabeça com uma mão.

-me diga, falaste com o sacerdote?-perguntou, olhando ao Roger com ar cético.

-Fui-confirmó este secamente, respondendo tanto ao olhar como à pergunta-.pôde comprovar que não sou o Anticristo. Enquanto esteja disposto a que o menino receba o batismo católico, não há oposição à bodas. Hei dito que estou disposto.

         Jamie grunhiu a maneira de resposta, enquanto eu reprimia um sorriso. Embora ele não tinha prejuízos religiosos, o descobrimento de que seu genro era presbiteriano, sem intenções de converter-se, tinha provocado algum comentário.

         Bree me buscou o olhar para me dedicar um sorriso de soslaio.

-foste muito prudente ao não mencionar a religião antes de tiempo-sussurrei, cuidando de que Jamie não pudesse me ouvir.

-Roger queria dizer algo, mas lhe pedi que guardasse silêncio. Sabia que se esperávamos até um momento antes das bodas, papai não armaria uma stramash.

         Reparei a um tempo em sua ardilosa avaliação da conduta paterna e seu desenvolvido uso do escocês. Seu parecido com o Jamie ia muito além da aparência externa; tinham o mesmo talento para apreciar às pessoas e a mesma facilidade para a linguagem. Mesmo assim, algo me rondava pela cabeça, um pouco relacionado com o Roger e a religião…

         Tínhamo-nos aproximado dos homens o suficiente para ouvir sua conversação.

-…com respeito a Hillsborough-dizia Jamie, inclinando-se para o Roger para fazer-se ouvir pesar do vento-.Queria informação sobre os bagunceiros.

-Ah, sim?-O jovem parecia a um tempo interessado e cauteloso-.Ao Duncan Innes gostará de ouvir isso. Ele esteve no Hillsborough durante os distúrbios, sabia?

-Não.-Jamie pôs muita atenção-.Esta semana logo que vi ao Duncan. Pode que o pergunte depois das bodas…se sair vivo desta.

         Essa noite Duncan se casaria com a Yocasta Cameron, a tia do Jamie, e a perspectiva o punha nervoso.

         Roger se voltou para falar com a Brianna, protegendo ao Joan do vento com seu corpo.

-Sua tia há dito ao pai Donahue que pode celebrar as bodas em sua loja. Isso será uma ajuda.

-Brrrr!- Bree encurvou os ombros, estremecida-.Graças a Deus. Não é o melhor dia para casar-se sob as árvores.

         Roger parecia algo intranqüilo.

-Não acredito que seja as bodas que imaginava quando foi pequena-dijo.

         Brianna levantou a vista para ele; um sorriso lento e largo se estendeu por sua cara.

-A primeira, tampouco-lhe respondeu-.Mas eu gostei.

         Roger abriu a boca para replicar, mas ao surpreender o olhar de advertência do Jamie voltou a fechá-la. Parecia sobressaltado, mas inegavelmente agradado.

-Senhor Fraser!

         Um dos soldados ascendia a colina para nós, com os olhos fixos no Jamie.

-Cabo MacNair, a seu serviço, senhor-disse ao chegar, respirando ruidosamente. Saudou com uma seca inclinação de cabeça-. Com os cumpridos do tenente, você teria a bondade de visitá-lo em sua loja?- À lombriga voltou a inclinar-se, esta vez menos abruptamente-. Meus completo, senhora Fraser.

-A seu serviço, senhor.-Jamie respondeu à reverência do cabo-.Transmita minhas desculpas à tenente, mas tenho obrigações que requerem minha presença em outro sítio.

         Falava em tom cortês, mas o cabo o olhou com dureza. Embora jovem, não era novato; uma rápida expressão de entendimento cruzou sua cara. Ninguém quereria deixar-se ver entrando sozinho na loja do Hayes, imediatamente depois dessa proclama.

-O tenente me ordenou requerer também a assistência dos senhores Farquard Campbell, Andrew ManNeill, Gerald Forbes, Duncan Innes e Randall Lillywhite, além da sua, senhor.

-Sim?-comentou secamente.

         Assim Hayes queria consultar aos homens poderosos da zona. Farquard Campbell e Andrew MacNeill eram grandes latifundiários e magistrados locais; Gerald Forbes, juiz de paz e eminente procurador do Cross Creek; Lillywhite, magistrado do distrito. E Duncan Innes estava a ponto de converter-se em proprietário da plantação maior da metade ocidental da colônia, em virtude de suas iminentes bodas com a tia do Jamie. Meu marido, por sua parte, não era rico funcionário da Coroa, mas possuía uma grande cocesión de terras em território selvagem, embora a maior parte estivesse ainda parada.

-Ah, então bem. Diga à tenente que o visitarei logo que seja conveniente.

         Absolutamente intimidado, MavNair fez uma reverência e se afastou, presumivelmente em busca dos outros cavalheiros de sua lista.

-A que vem isto?- perguntei ao Jamie-.Uy!- levantei a mão para enxugar no queixo de meu neto um hilillo de baba, antes de que chegasse à camisa do Jamie-.De maneira que te está saindo um dente, né?

-Tenho dentes de sobre-me assegurou meu marido-.E você também, por isso vejo. Quanto a que quer Hayes de mim, não sei. E não tenho intenção de averiguá-lo antes do necessário.

         Olhou-me arqueando uma sobrancelha e eu pus-se a rir.

-Ah, com que isso de “ conveniente” tem certa flexibilidade, não?

-Não disse “ conveniente para ele” -assinalou Jamie-.Agora bem, com respeito a sua anágua, Sassenach, e por que anda brincando de correr pelo bosque com o traseiro nu… Duncan, a charaid!

         A expressão irônica de seu rosto se fundiu em autêntico prazer ao ver o Duncan Innes, que vinha para nós atravessando um bosquecillo de cornejos.

         Duncan que já ia vestido para as bodas, passou com dificuldade sobre um tronco cansado devido à falta do braço esquerdo, e saiu ao atalho onde estávamos. Nunca o tinha visto tão elegante, e assim o disse.

-OH, bom-repôs, sobressaltado-.É o que desejava a senhorita Eu.

         Logo se encolheu de ombros, para descartar a um tempo o completo e a chuva, enquanto se sacudia a pinaza e os trocitos de casca que lhe tinham aderido à jaqueta ao passar entre os pinheiros.

-Brrr! Um dia espantoso, MAC Dubh, não te engane.-Levantou a vista ao céu movendo a cabeça-.Ditosa a noiva sobre a que brilha o sol; ditoso o cadáver sobre o que cai a chuva.

-Em realidade, não sei até que ponto se pode esperar que um cadáver seja feliz-comentei-, quaisquer sejam as condições meteorológicas. Mas estou segura de que Yocasta será feliz, a pesar do dia.-Ao ver sua expressão de desconcerto, apressei-me a acrescentar-: E também você, é obvio!

-OH…fui-murmuró, algo inseguro-.Sim, certamente. O agradeço, senhora.

-Quando te vi vir através do bosque, pensei que teria ao cabo MacNair te pisando os talões-observó Jamie-.Não vais visitar o Archie Hayes, verdade?

         Duncan pareceu sobressaltar-se.

-Ao Hayes? Não. Para que me quereria o tenente?

-em setembro esteve no Hillsborough, não? Ouça, Sassenach, te leve a este pequeno esquilo.

         Jamie se interrompeu para me entregar ao Jemmy, que tentava subir pelo torso de seu avô, embora o motivo principal pelo que meu marido se liberava da carga o descobri ao receber ao menino.

-Muitíssimas graças-dije, enrugando o nariz. Jamie me sorriu de brinca a orelha e pôs-se a andar com o Duncan caminho acima. Eu farejei cautelosamente-.Hum…já terminaste? Não, acredito que não.

         Jemmy fechou os olhos, ficou muito vermelho e emitiu um ruído lhe estalem, como o de uma metralhadora com surdina. Afrouxei seus envoltórios apenas o suficiente para lhe jogar uma olhada.

-Uf!-exclamei, ao retirar a manta. Bem a tempo-. Com o que te alimenta sua mãe?

         Encantado ao ver-se livre de suas ataduras, Jemmy agitou as pernas como sinais de multiplicação de moinho, com o uma desagradável substância amarelada emanou pelas pernas das calças abolsadas do fralda.

-Puaj!-exclamei sucintamente.

         E carregando ao menino com os braços estirados, afastei-me do atalho para um pequeno regato que serpenteava pela ladeira. Encontrei um bom sítio à borda, com uma grosa capa de folhas quedas. Ali me ajoelhei e, estendendo uma dobra de minha capa, coloquei em cima ao Jemmy, a quatro patas; logo lhe tirei o fralda sujo sem me incomodar em desabotoá-lo.

-Uy!-exclamou ele, surpreso pelo contato do ar frio, e apertou as nádegas gordezuelas.

-Ja!-disse-lhe-.Se te assustar um pouco de ar frio no traseiro, espera e verá.

         Com um punhado de folhas molhadas o limpei energicamente. O menino foi bastante estóico; retorceu-se, mas sem chiar. Em troca se queixou quando pincei por suas retiradas. Tendi-o rapidamente de costas e, com uma mão sobre a zona perigosa, apliquei um tratamento similar a suas partes íntimas. Isso provocou um enorme sorriso.

-Ah, de maneira que é todo um escocês das Terras Altas, né?-comentei, lhe devolvendo o sorriso.

-E o que quer dizer com isso?

         Ao levantar a vista, descobri ao Jamie apoiado em uma árvore, ao outro lado do regato.

-Ao parecer, é insensível ao frio e a humedad-expliquei, arrojando o último punhado de folhas sujas-.Por outra parte…bom, não tive muito trato com bebês varões, mas isto é bastante precoce?

         Jamie sorriu ante a visão que se revelava sob minha mão. O diminuto apêndice aparecia tão erguido como meu polegar e aproximadamente do mesmo tamanho.

-Ah, no-explicou-.Vi a muitos pequenos em couros. Todos fazem isso de vez em quando.-E se encolheu de ombros, alargando o sorriso-.agora bem, não sei se ocorrer só com os pequenos escoceses.

-Habilidade que melhora com os anos, atreveria-me a decir-concluí secamente. Arrojei o fralda sujo ao outro lado do regato, onde caiu a seus pés, com um ruído de chapinho-quítale os alfinetes de segurança e enxágua isso, quer?

         Enrugou um pouco o nariz, mas se ajoelhou ao momento. Logo levantou cautelosamente com dois dedos aquela coisa repugnante.

-Ah, de maneira que isto era o que tinha feito com suas anáguas-comentó.

         Eu tinha aberto o bolso que me pendurava da cintura para tirar um retângulo de tecido limpa, já dobrado. Não era o tipo de fralda que ele sustentava, a não ser uma flanela suave, grosa, muito lavada e tinta de vermelho claro com suco de bagos.

         Encolhi-me de ombros. depois de revisa ao Jemmy, se por acaso houvesse novas explosões, coloquei-o em cima do fralda limpo.

-Com três bebês de fraldas e um clima tão úmido, nada se seca. Estamos escassos de trapos limpos.

         Ao redor do claro onde tínhamos acampado, os arbustos estavam festoneados de penetrada que ondulava, quase toda ainda molhada graças a essa chuva inoportuna.

-Toma.

         Jamie se estirou por cima do regato e me entregou os alfinetes de segurança tirados do fralda sujo. Agarrei-os com cuidado para que não caíssem no arroio. Tinha os dedos rígidos e gelados, mas os alfinetes de segurança eram valiosos; Bree os tinha feito com arame quente, enquanto Roger esculpia em madeira os capuzes do extremo, guiando-se pelos desenhos de minha filha.

         Preguei o fralda em volto da virilha do Jemmy e atravessei o tecido com um alfinete, sonriendo ao ver a cabeça de madeira. Bree tinha esculpido em um jogo uma pequena e cômica rã, com um largo sorriso sem dentes.

-Vai, ranita, já está preparado.-Sentei-me com o menino em meu regaço e o envolvi de novo em sua manta-.Aonde foi Duncan? A ver a tenente?

         Jamie sacudiu a cabeça, agachado e pendente de sua tarefa.

-Hei-lhe dito que ainda não fora. É certo que esteve no Hillsborough durante aqueles distúrbios. É melhor que espere um pouco, desse modo, se Hayes perguntar, ele poderá jurar que nenhum dos homens pressente aqui participou do alvoroço. Quando cair a noite não haverá já nenhum.

         Observei suas mãos, grandes e hábeis, que escorriam o fralda enxaguado. Normalmente as cicatrizes de sua mão direita eram quase invisíveis, mas nesse momento se destacavam em trincadas linhas brancas contra a pele avermelhada pelo frio. Todo aquilo me inquietava um pouco, embora parecia não ter nenhuma vinculação direta conosco.

         Em geral, não experimentava mais que um leve nervosismo quando pensava no governador Tryon; ao fim e ao cabo, ele estava comodamente refugiado em seu novo palácio de New Bern, separado de nosso pequeno assentamento da Colina do Fraser por quatrocentos e oitenta quilômetros de cidades costeiras, plantações, pinares, montanhas sem caminhos e um páramo lhe uivem. Com tantos motivos como tinha para preocupar-se, como os autotitulados “ reguladores” -que tinham aterrorizado Hillsborough, e aos delegados e juizes corruptos que provocassem esse terror-, dificilmente teria tempo para pensar em nós, ou ao menos isso esperava.

         Mas seguia em pé o incômodo feito de que Jamie fora titular de uma grande concessão de terras nas montanhas da Carolina do Norte, como um presente do Tryon…e o governador, a sua vez, tinha no bolso do colete um dado pequeno, mas importante: que Jamie era católico. E as outorgas de terras por conta do Rei só se podiam fazer em benefício de protestantes.

         Dado o insignificante número de católicos da colônia, a religião estranha vez era um problema. Não havia Iglesias nem sacerdotes católicos residentes; o pai Donahue fazia a viagem de Baltimore, a pedido da Yocasta. A tia do Jamie e seu defunto algemo, Héctor Cameron, tinham influência na comunidade escocesa local desde fazia tanto tempo que a ninguém lhe teria ocorrido pôr em tecido de julgamento sua religião. Poucos escoceses sabiam que fomos papistas; entretanto, era provável que se inteirassem muito em breve. Essa noite, o sacerdote casaria ao Bree e ao Roger, que viviam juntos desde fazia um ano, assim como a outras dois casais católicos do Bremerton…e também a Yocasta e Duncan Innes.

-Archie Hayes é católico?-disse súbitamente.

         Jamie pendurou o fralda úmido de um ramo próximo.

-Não o perguntei-, mas acredito que não. Quer dizer, seu pai não o era. Surpreenderia-me que o fora ele, mais ainda sendo oficial.

-Certo.-Não obstante, não era pelo tenente Hayes e seus homens pelo que eu estava preocupada, mas sim pelo Jamie. Exteriormente lhe via tão sereno e seguro de si mesmo como de costume, mas eu o conhecia muito bem; a noite anterior, enquanto intercambiava piadas e contos com o Hayes, eu tinha notado que os dois dedos rígidos de sua mão direita (mutilados em uma prisão inglesa) contraíam-se contra sua perna. Nesse instante, via a fina ruga que se formava entre suas sobrancelhas quando estava aflito.

-…presbiteriano-estava dizendo. Olhou-me com um sorriso irônico-.Como o pequeno Roger.

         de repente caí na quanta d o que era o que me tinha estado importunando na cabeça.

-Sabia- assinalei-.Sabia que Roger não era católico. Viu como batizava a essa criatura do Snaketown, quando…o tiramos aos índios.

         Muito tarde vi cruzar uma sombra por sua cara e me mordi a língua. Ao lhes tirar ao Roger, tínhamos deixado em seu sítio ao Ian, o sobrinho a quem Jamie tanto queria. A sombra durou um momento, mas sorriu, apartando a lembrança do Ian.

-Sabia, fui-dijo.

-Mas Bree…

-teria se casado com o moço embora fora hotentote-me interrompeu-. E se houver se ser franco, não poria muitas objeções incluso se Roger fora hotentote-adicionou, para minha surpresa.

-Seriamente?

         Jamie cruzou o arroio para a borda onde eu me encontrava, secando-as mãos com o extremo de sua manta.

-É reto e bom. aceitou ao menino como filho dele, sem dizer uma palavra do assunto à moça. É o menos que deve fazer um homem, mas não qualquer o faz.

         Involuntariamente, olhei ao Jemmy. Eu mesma tratava de não pensar nisso, mas de vez em quando não podia deixar de analisar suas facções, procurando alguma pista que identificasse a seu verdadeiro pai.

         depois de unir-se ao Roger e passar uma só noite com ele, Brianna tinha sido violada pelo Stephen Bonnet dois dias depois. Não havia modo de saber com certeza quem era o pai, e por agora Jemmy não se parecia absolutamente a nenhum dos dois. Nesse momento, mordiscava-se o punho com cara de concentração; com seu suave penugem rojo-dourado, não se parecia com ninguém tanto como ao próprio Jamie.

-Hum…E por que tanta insistência em que o sacerdote o passasse?

-De todas formas, casarão-dijo-se ele, com lógica-.Mas quero que o pequeno receba o batismo católico.-Pôs uma manaza na cabeça do Jemmy, alisando com o polegar as diminutas sobrancelhas ruivas-.Me ocorreu que, eu alvoroçava um pouco pelo Mackenzie, aceitariam com gosto de an gille ruadh aqui, não?

Rendo, cobri com uma dobra da manta os ouvidos do Jemmy.

-E eu, tão convencida de que Brianna tinha descoberto como é!

-E é certo-disse ele muito sorridente.

         de repente se inclinou para me beijar. Sua boca era suave e muito cálida. Tinha sabor de pão com manteiga; seu corpo despedia um forte aroma de homem e a folhas frescas, com um leve eflúvio de fraldas.

-Humm, que agradável!-disse com aprovação-.Faz-o de novo.

         Ao redor do bosque todo estava em silêncio; não se ouviam pássaros nem bestas, só o sussurro da folhagem e o murmúrio da água sob nossos pés. Movimento constante, som constante…e no centro de tudo, uma paz perfeita. Embora havia muita gente na montanha, nesse lugar, nesse momento, era como estar sozinhos no Júpiter.

         Abri os olhos com um suspiro, percebendo um sabor a mel. Jamie, sonriendo, tirou-me uma folha amarela do cabelo. O bebê era um peso quente em meus braços, o centro do universo.

         Nenhum dos dois falou, por não perturbar a quietude.

         Estirei-me para lhe sacudir do ombro umas quantas sementes de arce. Ele me agarrou a mão e a levou a boca, com uma ferocidade súbita que me sobressaltou. Entretanto, seus lábios eram tenros, quente a ponta de sua língua contra o montículo carnudo na base do polegar; monte de Vênus, chamam-no: a sede do amor.

         Quando levantou a cabeça, senti o frio repentino em minha mão, ali onde se via a antiga cicatriz, branca como um osso. Uma letra J atalho na pele. Sua marca sobre mim.

         Apoiou a mão contra minha cara e eu a cobri com a minha, como se pudesse sentir, contra minha fria bochecha, descolorida-a C que ele tinha em sua palma. Embora não dissemos nada, o voto parecia, tal como o fizemos em outros tempos, em um lugar sagrado, com os pés em uma parte de rocha viva em meio das areias movediças que eram as ameaças de guerra.

         O frio passou; o sangue quente palpitava em minha mão para abrir aquela antiga cicatriz e verter-se novamente por ele. Chegaria sem que eu pudesse detê-la.

         Mas esta vez não o abandonaria.

 

 

 

         Saí de entre as árvores seguindo ao Jamie, quem, no trajeto para nosso acampamento, comunicou-me que tinha convidado a outras duas famílias a compartilhar conosco o café da manhã. De novo, eu fazia cálculos mentais para que me chegasse com o que tinha.

-Robin McGillivray e Geordie Chisholm-disse, apartando um ramo para que eu passasse-. Pareceu-me que devíamos lhes dar a bem-vinda; têm intenções de instalar-se na Colina do Fraser.

-Seriamente? Quando? E quantos são?

         Eram perguntas importantes. O inverno estava muito perto para que fora possível edificar, nem mesmo a mais tosca das cabanas que lhes servisse de alojamento. Se nesses dias alguém vinha às montanhas, teria que viver conosco na casa grande, ou apinhar-se em uma das cabanas para habitantes que semeavam a Colina. Se era necessário, os escoceses das Terras Altas eram capazes de compartilhar uma só habitação entre dez. Como inglesa, eu não tinha o sentido da hospitalidade tão desenvolvido.

-Os McGillivray, seis; os Chisholm, ocho-respondeu Jamie, sorridente-.Mas os McGillivray não chegarão até a primavera. Robin é armeiro e tem trabalho no Cross Creek durante o inverno. Sua família viverá em Salem com uns familiares até que passe o frio; sua esposa é alemã.

-Ah, o que bien-respondi enquanto calculava: assim quatorze mais para tomar o café da manhã…a soma dava vinte e quatro.

-Pedirei a minha tia que me empreste um pouco de café e arroz, de acordo?-Jamie tinha estado interpretando a crescente consternação de minhas facções. Com um sorriso, alargou os braços para receber ao bebê-.Me dê ao pequeno; assim terá as mãos livres para cozinhar.

         Segui-o com a vista, aliviada de estar sozinha, sequer por alguns momentos. Embora eu adoro as reuniões sociais, depois de passar uma semana entre visitas, fofocas e consultas médicas diárias e atravessar pequenas mas contínuas crises, precisava estar sozinha, reunir forças e concentrar a mente. Mas nesse instante era incapaz de me centrar na logística do café da manhã, nas bodas, nem sequer na iminente operação cirúrgica que pensava realizar. Olhava mais para diante, mais à frente da viagem de volta; desejava estar em casa.

         A Colina do Fraser era um sítio elevado nas montanhas do ocidente, um lugar remoto e isolado. Logo que tínhamos visitantes, fomos poucos, embora a população ia em aumento; mais de trinta famílias tinham ido instalar se nas terras outorgadas ao Jamie, sob seu patrocínio. Em sua maioria eram homens que ele tinha conhecido durante seu encarceramento no Ardsmuir. Me ocorreu que Chisholm e McGillivray deviam ser também ex-prisioneiros; Jamie tinha estendido um convite permanente a todos esses homens, e a manteria em pé, quaisquer fosse os custos de ajudá-los.

         Um corvo passou em silencioso vôo, lento e pesado. Devia ser um presságio especial, pois é estranho que um ave voe com esse clima…Me golpeei a cabeça com o canto da mão, tratando de afugentar a superstição. Se viver por um tempo com escoceses das Terras Altas, até a última pedra, até a última árvore passam a ter algum significado!

         E talvez assim era. Até rodeada de gente nessa montanha, sentia-me quase sozinha, amparada pela chuva e a bruma. Ainda fazia frio, mas não o sentia. O sangue palpitava perto da pele; senti crescer o calor em minha Palmas. A chuva caía a meu redor, silenciosa, me molhando a roupa até fazer que me adira brandamente, como nuvens contra a montanha.

         Poderia ter acontecido algum tempo assim enfeitiçada de não ter sido pelo repico de pisadas no atalho.

-Senhora Fraser!

         Era Archie Hayes em pessoa. Se lhe surpreendeu lombriga só de pé junto ao atalho, não o demonstrou. Em troca inclinou a cabeça em uma saudação cortesa.

-Tenente.-Eu também me inclinei, sentindo que me ruborizava como se me tivesse surpreso no meio do banho.

-Está por aqui seu marido, senhora?-perguntou-me, com ar indiferente.

         em que pese a meu sobressalto senti uma pontada de desconfiança. Se a montanha vinha a Mahoma, não se tratava de algo indiferente.

-Suponho que sim. Em realidade, não sei onde estejam, tratando de não olhar colina acima, para o sítio onde aparecia um pico de lona da grande loja da Yocasta.

-Ah, suponho que está muito ocupado-dijo Hayes, sem alterar-se-.Um homem como ele, no último dia da congregação, tem que ter muito que fazer.

-Sim, suponho que…né…sim.

         Inquieta, perguntei-me como diabos me liberaria de convidar à tenente a tomar o café da manhã. Nem sequer uma inglesa podia cometer a grosseria de não oferecer comida sem provocar comentários.

-Né…o cabo McNair disse que desejava ver também ao Farquard Campbell-comentei, decidida-.Pode que Jamie tenha ido falar com ele. Com o senhor Campbell, quero dizer.

         Como se tratasse de ajudá-lo, indiquei-lhe o acampamento dos Campbell, que estava no extremo oposto do da Yocasta.

-Fui-dijo-.Poderia ser.-atrasou-se um momento antes de levantá-la boina para me saudar-. bom dia, senhora.

         E se afastou…para a loja da Yocasta. Segui-o com a vista, perdida toda sensação de paz.

-Mierda!-disse pelo baixo.

         E me pus em marcha para me ocupar do café da manhã.

 

                     Os pães e os peixes

         Tínhamos escolhido um sítio afastado do atalho principal, com boa vista ao ribazo do arroio. Olhando para baixo, vi como Archie Hayes insistia a seus homens a mesclar-se com a gente da congregação, e a maioria deles obedecia de muito bom grau.

         Não saberia dizer se ditava esta política como uma mutreta, por penúria ou por simples humanidade. Muitos de seus soldados eram jovens que se encontravam separados de suas famílias; para eles era uma alegria voltar a ouvir vozes escocesas, ser bem recebidos junto ao fogo do lar e com o oferecimento de brose e parritch.

         Nem Roger nem Brianna estavam à vista, mas me alarmou ver o Abel MacLennan sentado ao outro lado do claro, mordiscando uma parte de pão torrado no extremo de um pau. Jamie tinha retornado com as provisões que tinha pedido emprestadas e as estava desembrulhando no chão, junto ao fogo. À lombriga me dedicou um sorriso.

-Por fim chega, Sassenach!-disse, levantando-se-. por que demoraste tanto?

-OH!, é que no atalho me encontrei com n conhecido-dije. Jamie juntou as sobrancelhas, intrigado.

-O tenente te está procurando-siseé, me inclinando para ele.

-Mas se isso já sei, Sassenach-replicou ele, com voz normal-.ele, com voz normal-.E me achará bastante logo.

-Sim, mas…

         Pigarreei e olhei com intenção, alternativamente, ao Abel MacLennan e ao jovem soldado. Jamie, com seu conceito da hospitalidade, não toleraria que arrancassem a suas hóspedes de seu teto, e eu supunha que o mesmo princípio se aplicava também à fogueira de seu acampamento. Ao jovem soldado podia lhe resultar incômodo prender o MacLennan, mas seguro que o tenente não vacilaria.

         Jamie pôs cara de diversão e me levou para o jovem.

-Querida-dijo formalmente-, me permita te apresentar ao recruta Andrew Ogilvie, que provém da aldeia do Kilburnie. Recruta Ogilvie, minha esposa.

-A seu serviço, senhora!-O jovem me fez uma reverência, avermelhado, e Jamie me apertou levemente o braço.

-O recruta Ogilvie me estava dizendo que o regimento se dirige para o Portsmouth, na Virginia…onde se embarcará rumo a Escócia. Alegrará-se de voltar para a pátria, verdade, moço?

-OH, sim, senhor!-assegurou o soldado-.O regimento se dispersará no Aberdeen. E logo irei a casa, a toda a velocidade que me permitam as pernas.

-Com que o regimento vai dispersar se?-perguntou Fergus, aproximando-se para participar da conversação, com o Germain nos braços.

-Sim, senhor. Agora que os franchutes…né…com perdão, senhor…estão apaziguados e os Índia salvo, não temos nada que fazer aqui. E a Coroa não nos paga por ficar cruzados de braços-respondió o jovem, melancólico-.Bem cuidadoso, a paz pode ser algo bom e não deixa de me alegrar. Mas não se pode negar que é difícil para o militar.

-Quase tão difícil como a guerra, não?-replicou Jamie, seco.

         O moço avermelhou intensamente; jovem como era, não podia ter visto muito em matéria de combate. A guerra dos Sete Anos tinha terminado quase dez anos atrás, quando o recruta Ogilvie, com toda probabilidade, ainda brincava de correr descalço pelo Kilburnie. Sem emprestar atenção ao abafado da moço, Jamie se voltou para mim.

 

-Há-me dito que o sessenta e sete é o único regimento que fica nas colônias.

-O último regimento escocês? Perguntei.

-Não, senhora: o último das tropas regulares da Coroa. Suponho que há guarnições aqui e lá, mas todos os regimentos permanentes foram convocados a Inglaterra ou a Escócia. Somos os últimos… e além disso vamos com atraso. Devíamos nos haver embarcado no Charleston, mas ali as coisas ficaram feias, de modo que vamos de caminho ao Portsmouth o mais rápido que podemos. O ano já está avançado, mas o tenente soube que um navio que poderia arriscar-se a fazer a travessia para nos levar. Se não…se não, passaremos o inverno no Portsmouth, suponho, arrumando-nos isso como podemos.

-Assim a Inglaterra pensa nos deixar desprotegido?-Marsali parecia escandalizada pela idéia.

-OH!, não acredito que haja nenhum perigo sério, senhora-a tranqüilizou o recruta-.chegamos a uma cordato definitivo com os franchutes. E se eles não armam revôo, os índios não poderão fazer grande coisa. Faz tempo que tudo está tranqüilo; sem dúvida, as coisas seguirão assim.

         Fiz um pequeno ruído no fundo da garganta; Jamie me apertou levemente o cotovelo.

-E não pensou você ficar, possivelmente?-Lizzie, que estava mandando e ralando batatas, deixou a terrina junta ao fogo e começou a engordurar a frigideira-.Ficar nas colônias, quero dizer. Ainda fica muita terra para poente.

-Ah!...-O recruta Ogilvie olhou à moça e voltou a ruborizar-se-.Bom, reconheço que ouvi perspectivas piores, senhorita. Mas me temo que devo ir com meu regimento.

         Lizzie agarrou dois ovos e os rompeu limpamente contra o flanco da terrina. Sua cara, geralmente pálida como o soro, tinha um leve reflexo rosado do intenso rubor do recruta.

-OH!, bom, é uma pena que deva ir-se tão logo- comentou. Suas loiras e largas pestanas roçavam suas bochechas-.De qualquer modo, não o deixaremos ir com o estômago vazio.

         Ogilvie avermelhou ainda mais.

-É…você muito amável, senhorita. Muito amável.

         Lizzie levantou timidamente a vista e sua vermelhidão se acentuou. Jamie se desculpou com uma suave tosse e se afastou da fogueira, me levando consigo.

-Jesus!-disse pelo baixo-.E não faz nem um dia que se feito mulher! Estiveste-lhe dando lições, Sassenach, ou todas as mulheres nascem assim?

-Suponho que é um talento natural-disse, circunspeta.

         Em realidade, o inesperado advento da primeira menstruação do Lizzie depois do jantar da noite anterior tinha sido a gota que enchesse o copo em relação aos panos limpos.

-Hum…Suponho que devo começar para lhe buscar marido-comentou Jamie, resignado.

-Marido!Mas se logo que tem quinze anos!

-Ah, sim?-Jogou uma olhada ao Marsali, que esfregava o cabelo escuro do Fergus com uma toalha, e os desviou para o Lizzie e o soldado; logo me olhou com uma sobrancelha cinicamente arqueada.

-Pois fui-repliqué, um pouco irritada-. É certo que Marsali só tinha quinze anos quando se casou com o Fergus, mas isso não significa…

         Jamie prosseguiu, descartando momentaneamente ao Lizzie:

-O fato é que o regimento parte amanhã para o Portsmouth; assim não tem tempo nem vontade de atender esse assunto do Hillsborough. Isso incumbe ao Tryon.

-Mas o que Hayes disse…

-OH!, não duvido que, se alguém lhe disser algo, lhe enviará as declarações a New Bern. Mas não acredito que lhe interesse muito se os reguladores incendiaram o palácio do governador, enquanto não lhe impeça de embarcar-se a tempo.

         Suspirei, tranqüilizada. Se Jamie estava no certo, quão último faria Hayes seria tomar prisioneiros, quaisquer fossem as evidências que tivesse. MacLennan estava a salvo.

-Mas, nesse caso, para que lhes quer Hayes, a ti e aos outros? Está-te procurando, sim, e pessoalmente.

-Não sei-disse, movendo a cabeza,pero- não tem nada que ver com este assunto do Tryon. Se assim fora, me poderia haver isso dito ontem à noite. Mais ainda: se se interessasse pelo assunto, não teria deixado de me dizer isso Não, Sassenach, pode acreditá-lo: para o pequeno Archie Hayes, os bagunceiros não são mais que um dever que cumprir. Quanto a por que me busca…-Estirou um braço por cima de meu ombro para passar um dedo pelo bordo do pote de mel-.Não quero pensar nisso antes do necessário. Ficam três toneladas de uísque; antes de que caia a noite tenho que havê-los convertido em um arado, uma folha de foice, três cabeças de tocha, cinco quilogramas de açúcar, um cavalo e um astrolábio. É um jogo de magia que requer certa atenção, não crie?

         depois de me passar docemente o dedo pringoso pelos lábios, beijou-me.

-Um astrolábio?-disse, saboreando o mel. Devolvi-lhe o beijo-.Para que?

-E logo quero voltar a casa-susurró ele, sem emprestar atenção a minha pergunta. Tinha a frente apertada contra a meus e seus olhos estavam muito azuis-. Quero me deitar contigo… em meu leito. E vou passar o resto do dia pensando no que te farei uma vez que te tenha ali. Assim que o pequeno Archie pode ir-se jogar aos gudes com seus ovos, de acordo?

-Excelente ideia-susurré-.Quer dizer-lhe pessoalmente?

         Tinha visto um brilho do tartán verde e negro ao outro lado do claro, mas quando Jamie se girou, vi que nosso visitante não era Hayes, a não ser John Quincy Myers, que levava uma manta escocesa envolta na cintura.

         Isto acrescentava um novo toque de cor à vestimenta me Myers, de por si chamativa.

-Amigo James!- Ao ver o Jamie se adiantou depressa, com um amplo sorriso e a mão estendida, fazendo soar as campainhas que tinha enroscadas às meias-.Supus que te encontraria tomando o café da manhã!

         Meu marido piscou um pouco ante esta aparição, mas respondeu com cortesia ao apertão de mãos do gigante.

-Sim, John. Quer nos acompanhar?

-Né…fui-me somei, olhando clandestinamente a cesta da comida-.Fique, por favor.

         John Quincy me fez uma cerimoniosa reverência, tirando o chapéu.

-A seu serviço, senhora, e muito agradecido. Mas talvez mais tarde. Agora vim para me levar a senhor Fraser. Necessita-o com urgência.

-Quem?-perguntou Jamie, cauteloso.

-Robbie McGillivray, diz chamar-se. Conhece esse homem?

-Sim, claro que sim.-Fora o que fosse o que Jamie sabia desse tal McGillivray, fez que procurasse no pequeno arca onde guardava suas pistolas-.O que acontece?

-Bom…Foi sua esposa quem me pediu que viesse a por ti. E como ela não fala o que se diz um bom inglês, pode que tenha confundido um pouco o relato. Mas, conforme acredito, certo caçador de recompensas capturou a seu filho, dizendo que o moço era um dos rufiões que alvoroçaram no Hillsborough, com intenções de levá-lo ao cárcere de New Bern. Só que Robbie diz que ninguém vai levar se a um filho dele e…Bom, a partir daí a pobre mulher se confundiu e já não pude lhe entender uma palavra. Mas acredito que Robbie estaria muito agradecido se pudesse ir ajudar lhe.

         Jamie ficou a jaqueta verde do Roger, que estava pendurada de um arbusto à espera de que lhe limpassem as manchas de sangue, e se sujeitou a pistola recém carregada sob o cinturão.

-Aonde?-perguntou.

         Myers fez um breve gesto com a mão e entrou entre os acebos, com o Jamie lhe pisando os talões. Fergus, que tinha estado escutando o diálogo com o Germain em braços, deixou ao menino junto aos pés do Marsali.

-Devo ir ajudar ao Grand-père-disse. Logo agarrou um pau entre a lenha e o pôs em mãos de seu filho-. Você fique; protege a mamam e à pequena Joan da gente má.

-Oui, batata.-Germain agarrou o pau com firmeza, dispondo-se a defender o acampamento.

         Marsali, MacLennan, Lizzie e o recruta Ogilvie tinham estado contemplando a cena com expressão vácua. Quando Fergus entrou decididamente nos arbustos detrás agarrar outro lenho, o soldado voltou para a vida.

-Né..-disse-.Possivelmente deveria ir a por meu sargento, não lhe parece, senhora? Se houver algum distúrbio…

-Não, não-repus em seguida. Quão último precisávamos era que Archie Hayes e seu regimento se apresentassem em massa-. Estou segura de que tudo sairá bem. Sem dúvida é só um mal-entendido. O senhor Fraser resolverá pessoalmente. Não tema.

         Enquanto falava, ia bordeando sigilosamente a fogueira para me aproximar do lugar onde tinha deixado meus úteis médicos, protegidos da garoa sob uma lona. Colocando a mão por debaixo do bordo, agarrei minha pequena equipe de emergência.

-Lizzie, por que não oferece ao recruta Ogilvie um pouco de compota de morangos para sua torrada? E certamente o senhor McLennan gostará de pôr um pouco de mel em seu café. Desculpa-me, verdade, senhor MacLennan? Devo ir a…né…

         Com um sorriso tolo, escorri-me entre as folhas de acebo. Detive-me para me orientar e o vento chuvoso me trouxe um leve retintín de campainhas. Girando para o som, pus-se a correr.

 

         O caminho era difícil. Quando os alcancei, perto do campo de competição, estava sem fôlego. Aquilo logo que estava começando; chegou-me o zumbido das conversações entre a multidão de homens que se reuniam, mas ainda não havia gritos de fôlego nem uivos de desencanto.

         Não pude apreciar o espetáculo, pois Jonh Quincy se abria passo entre os carriolas, saudando com a mão aos conhecidos enquanto passávamos. No lado oposto da multidão, um homem miúdo se separou-se a massa para sair precipitadamente a nosso encontro.

-MAC Dubh, vieste! Obrigado por te incomodar.

-Não é moléstia, Robbie-lhe assegurou Jamie-.O que é os que acontece?

         MacGillivray jogou uma olhada aos participantes e a seus partidários; logo, assinalou com a cabeça as árvores próximas. Seguimo-lo, sem chamar a atenção da multidão que se reunia em volto de duas grandes pedras envoltas em cordas; supus que alguns dos fortachones foram levantar as maneira de proeza.

-É por seu filho, Rob?-perguntou Jamie.

-Fui-respondió o hombrecito-.Quer dizer, já não.

-O que aconteceu?-perguntei-.Está ferido?

-Ele não-foi a críptica resposta.

         Atrás havia um pequeno espaço aberto-tão pequeno que não chegava a ser um claro,erizado- em pastos secos e pinheiros tenros. Enquanto Fergus e eu nos agachávamos para passar sob uma trepadeira, uma mulher corpulenta veio para nós; seus ombros se avultaram ao levantar o ramo de árvore que aferrava, mas ao ver o MacGillivray se relaxou um pouco.

-Wer ist dá?-perguntou, nos olhando com suspicacia.

         Nesse momento John Quincy passou por debaixo da trepadeira. Ela baixou seu pau; suas facções, sólidas e agradáveis, acalmaram-se ainda mais.

-Ja, Myers! Traz-me para dêem Jamie, oder?

-Sim, meu amor. Este é Jamie Roy. Sheumais MAC Dubh.-MacGillivray se apressou a atribui-la aparição do Jamie, lhe apoiando respetuosamente uma mão na manga-. Ute, minha esposa, MAC Dubh. E seu hijo-acrescentou, assinalando ao Fergus com um vago gesto.

         Ute MacGillivray parecia uma valkiria a dieta de farinhas: alta, muito loira e muito forte.

-A seu serviço, señora-saudou Jamie, inclinando-se.

-Madame…-acrescentou Fergus, com uma reverência cortesã.

         A senhora MacGillivray lhes respondeu com uma profunda inclinação, sem apartar a vista das visíveis mancha de sangue que sulcavam a jaqueta do Jamie…melhor dizendo do Roger.

-Mein Herr-murmurou, com ar impressionado.

         Logo se voltou para chamar por gestos a um jovem de dezessete ou dezoito anos, que tinha estado espreitando algo mais atrás. Era miúdo, fibroso e moreno, tão parecido a seu pai que dificilmente se teria podido duvidar de sua identidade.

-Manfred-anunciou sua mãe, orgulhosa-.Mein moço.

         Jamie inclinou a cabeça em uma grave saudação.

-Encantado senhor MacGillivray.

-Né…a seu serviço, senhor.-O jovencito parecia duvidar, mas alargou a mão.

-É um prazer conhecê-lo, senhor-lhe assegurou meu marido, estreitando-lhe

         Uma vez cumpridas as formalidades, percorreu brevemente com a vista aquele lugar tranqüilo, com uma sobrancelha arqueada.

-Informaram-me que um caçador de recompensas o estava incomodando.Devo entender que o assunto está resolvido?-perguntou a pai e filho, que intercambiaram olhadas. Por fim Robin tossiu como pedindo desculpas.

-Bom, MAC Dubh, não se pode dizer que esteja resolvido. Em realidade…-Deixou a frase sem terminar, com uma expressão afligida em seus olhos. Sua mulher lhe cravou um olhar severo; logo se voltou para o Jamie.

-Ist kein moléstia-lhe disse-.Ich haf dêem pequeno assunto preparado. Mas queremos saber como esconder dêem korpus.

-O… corpo?-repeti, bastante sufocada.

         Até o Jamie parecia um pouco perturbado.

-Mataste-o, Rob?

-Eu?-MacGillivray se mostrou espantado-. MAC Dubh, por quem toma?

         Ao Jamie não parecia descabelada a possibilidade de que MacGillivray cometesse um ato violento, e o homenzinho se envergonhou.

-Bom, suponho que poderia haver…, que em efeito… Mas esse assunto do Ardsmuir, MAC Dubh, ocorreu faz muito tempo e é água passada! Verdade?

-Verdade-disse Jamie-. Mas o que me diz desse caçador de recompensas? Onde está?

         Uma risita sufocada detrás de mim fez que me desse a volta e descobrisse que o resto da família MacGillivray, silenciosa até então, estava ali. tratava-se de três jovencitas, sentadas em fileira em cima de um tronco cansado. Foram imaculadamente embelezadas com pulcros aventais e toucas brancas.

-Meine meninas-anunció a senhora; as três moças pareciam versões reduzidas dela mesma-. Hilda, Inga und Senga.

         Fergus se inclinou elegantemente ante as três.

-Enchanté, mês demoiselles.

         As meninas, entre risitas agudas, inclinaram a cabeça a modo de resposta, mas sem levantar-se, o qual me pareceu estranho. Então notei que algo estranho acontecia sob as saias da maior; era uma espécie de vulto que se agitava acompanhado por um grunhido afogado. Hilda cravou energicamente seu talão no que fora, sem deixar de me sorrir alegremente.

         Ouviu-se outro grunhido, esta vez muito mais audível, proveniente de debaixo de suas saias. Jamie deu um coice e se voltou para ela. Sempre com seu alegre sorriso. Hilda se inclinou para recolher delicadamente o bordo de sua saia, sob a qual se viu uma cara frenética, dividida em duas por uma tira de pano escuro atada ao redor da boca.

-É ele-disse Robbie, que parecia compartilhar o talento de sua esposa para expor o óbvio.

-Já vejo.-Jamie contraiu os dedos contra sua manta-.Né…poderíamos deixá-lo sair, não?

         Robbie fez um gesto às meninas, que se levantaram deixando ao descoberto a um hombrecito, tendido contra o tronco, maço de pés e mãos com algo que parecia meias de mulher, e amordaçado com um lenço. Estava molhado, talher de barro e um pouco machucado…

         Myers se inclinou para lhe agarrar pelo pescoço e levantá-lo.

-Bom, não parece grande costure-dijo criticamente-.Diria-se que a caça de ladrões não está tão bem paga como a gente crie.

         Em realidade, o homem r bastante mirrado e estava esfarrapado, além de desalinhado, furioso…e assustado. Ute lançou um bufido de desprezo.

-Saukerl!-exclamou, cuspindo às botas do prisioneiro. Logo se voltou para o Jamie, cheia de encanto-. Bem, mein Herr. Como acredita que deveríamos matá-lo?

         O caçador de recompensas abriu muito os olhos, retorcendo-se entre as mãos do Myers e emitindo gemidos frenéticos através da mordaça. Jamie o observou esfregando-a boca com um nódulo. Logo, dirigiu-se ao Robbie, que se encolheu levemente de ombros, olhando de soslaio a sua esposa, como se pedisse desculpas.

-Hum!-Meu marido pigarreou-.Possivelmente já tinha você alguma idéia, senhora?

         Ute, radiante, extraiu um comprido adaga de seu cinturão.

-Pensava que se poderia cortar a pedaços, wie ein Schwein, ja? Mas olhe.-Cravou cuidadosamente ao prisioneiro entre as costelas. O homem chiou através da mordaça, enquanto que na camisa esfarrapada florescia uma pequena mancha de sangue-.Muita Blut- explicou ela, com uma careta de desencanto.

         Assinalou com um gesto da mão para as árvores. Mais à frente, o espetáculo de levantamento de pedras parecia estar em plena marcha.

-Die Leute pode cheirar.

-Podeoler?- Desviei a vista para o Jamie, pensando que se tratava de alguma desconhecida expressão alemã. Ele pigarreou, esfregando-a nariz-.Ah!, pode oler-exclamei-.Sim, suponho que sim.

-Se não desejarem chamar a atenção, tampouco conviria matar o de um disparo-consideró Jamie, pensativo.

-Eu voto porque lhe partamos a crisma-disse Robbie MacGillivray-.Isso é bastante fácil.

-Parece-te?-Fergus entreabriu os olhos, concentrando-se-.Eu acredito que é melhor matá-lo a faca. Se o crava no lugar correto, não sai tanta sangra. No rim, justo debaixo das costelas, por atrás, né?

         A julgar pelos insistentes sons que provinham da mordaça, o cativo parecia rechaçar as sugestões. Jamie se esfregou o queixo, dúbio.

-Bom, não é tão difícil-reconheceu-.Também poderíamos estrangulá-lo. Claro que moveria os intestinos. E se queremos evitar o aroma, até lhe esmagando o crânio…Mas me diga, Robbie, como chegou este homem até aqui?

-Né?-MacGillivray parecia não compreender.

-Seu acampamento não está perto?-Meu marido assinalou com um breve gesto o diminuto claro, para explicar-se. Não havia rastros de fogueira; em realidade, ninguém tinha acampado nesse lado do arroio. Entretanto, todos os MacGillivray estavam ali.

-OH, não! Não, nosso acampamento está mais acima. Só viemos para fazer uma pequena prova com os pesos-explicó Robbie, apontando para o campo de competição-.E este condenado abutre viu nosso Freddie e se apoderou dele.

         Dirigiu um olhar de rancor ao prisioneiro. Então vi que de seu cinturão pendia uma corda, e a pouca distância, no chão, havia um par de esposas de ferro.

-Vimo-lo capturar a nosso irmano-intervino Hilda-.Então, nós o empurramos até aqui, onde ninguém pudesse vê-lo. Como disse que pensava entregar-lhe ao delegado, minhas irmãs e eu o derrubamos e nos sentamos sobre ele. Mamãe lhe deu uns quantos chutes.

-São gut Mädchen, fortes, meine meninas.- Ute deu a sua filha uns tapinhas afetuosos no robusto ombro-. Viemos hier die Wetkämpfer, talvez escolher marido para a Inga ou Senga. Hilda tem einen Mann já prometido-.acrescentou, satisfeita.

         Observou ao Jamie sem nenhuma dissimulação, demorando o olhar aprobatoria em sua estatura, a amplitude de seus ombros e seu bom aspecto geral. Logo me disse:

-Bom Mann, grande, o teu. Tem filhos farones?

-Não, sinto-o-me desculpei-.Né…Fergus está casado com a filha e meu algemo-añadí, vendo que seu olhar avaliador passava a ele.

         O caçador de recompensas voltou a concentrar a atenção sobre si, com um chiado de indignação através da mordaça.

-Ah, sim!-exclamou Jamie-.por que não permitimos que o cavalheiro diga o que tenha que dizer?

         Robbie assentiu a contra gosto; a estas alturas as competições estavam muitos avançadas e ninguém escutaria um grito isolado.

-Não permita que me matem, senhor!-Assim que lhe tiraram a mordaça, o homem apelou ao Jamie-.Só cumpro com meu dever ao pôr aos delinqüentes em mãos da justiça.

-Ja!-exclamaram imediatamente todos os MacGillivray, e Inga e Senga estalaram em palavrões e chutes dirigidos às pantorrilhas do cavalheiro.

-Basta!-gritou Jamie. Como não obtivera resultados, agarrou ao jovem MacGillivray pelo pescoço, bramando a todo pulmão-:Ruhe!

         Isto provocou um surpreso silêncio e uma série de olhares culpados em direção ao campo onde se celebravam as competições.

-Bem-disse meu marido com firmeza-.Myers, traz para o cavalheiro, quer? Rob, Fergus, me acompanhem. Bitte, Madame.

         Ela o olhou piscando, mas logo fez um lento gesto de aquiescencia. Jamie, sujeitando ao Manfred pelo pescoço, levou-se a contingente masculino para o arroio, me deixando a cargo das damas.

-Seu Mann salfará a meu filho?- perguntou-me Ute, preocupada.

-Tentará-o.-Joguei uma olhada às meninas, que se tinham apinhado detrás da mãe-.Sabem se seu irmão esteve realmente no Hillborough?

-Bom, ja esteve, nesse momento- disse Inga, algo desafiante-.Mas não alvoroçando. Só foi fazer remendar uma peça do arnês e se encontrou envolto na multidão.

         Ao surpreender um rápido olhar entre a Hilda e Senga, deduzi que essa não devia ser toda a verdade. Graças a Deus, não me correspondia julgar.

         A senhora MacGillivray mantinha a vista fixa no grupo dos homens que conversavam a certa distância. Tinham desatado ao caçador de recompensas, com exceção das mãos; de pé, com as costas apoiada contra uma árvore, mostrava os incisivos como um rato encurralado. Jamie e Myers estavam ante ele enquanto Fergus, em um lado, olhava-os com atenção. Rob MacGillivray despontava uma ramita de pinheiro com uma faca, olhando de vez em quando ao prisioneiro com ar de concentração.

-Não duvido que Jamie poderá…né…fazer algo-disse.

-Gut.-Ute MacGillivray assentiu, sem deixar de observá-los-.Se eu não matá-lo, melhor. Mas se dever, eu fazê-lo.

         Acreditava-lhe.

-Compreendo-dije com cautela-.Mas…Desculpe-me você, mas até se esse homem se levou a seu filho, não podia apresentar-se ante o delegado e explicar…?

         Mais olhadas entre as meninas. Esta vez foi Hilda quem falou.

-Nein, senhora. Verá…as coisas não teriam estado tão mal se o caçador de recompensas tivesse ido a nosso acampamento. Mas aqui embaixo…-Assinalou com a cabeça o campo de competição.

         Ao parecer, a dificuldade radicava no prometido da Hilda, certo Davey Morrison, do Hunter’s Point. O senhor Morrison era um próspero granjeiro e um homem de grande valia, além de atleta hábil na arte de arrojar pedras. Sua família era gente muito reta: se Manfred tivesse sido apressado por um caçador de recompensas diante da congregação o escândalo teria desembocado na ruptura do compromisso da Hilda, perspectiva que perturbava ao Ute muito mais que a idéia de degolar ao prisioneiro.

-Mau, também, que eu o mata e alguém fé-disse francamente, assinalando a tênue cortina de folhagem que nos ocultava ao campo onde se competia-. Die Morrison não contentes.

-Suponho que não.-Perguntei-me se Davey teria idéia de onde ia meter se-.Mas você…

-Quero casar bem a meine meninas-replicó ela com firmeza-.Procuro gut homens für Sie, homens bonitos, grandes, mit terra e dinheiro.-Rodeou com um braço os ombros da Senga-.Nicht wahr, Liebchen?

-Ja, mama-murmuró a jovencita, apoiando a touca no seio de sua mãe.

         No bando masculino estava acontecendo algo. Tinham desatado as mãos ao caçador de recompensas, que se esfregava as bonecas e escutava ao Jamie com expressão precavida. Jogou-nos uma olhada; logo, ao Robin MacGillivray, quem lhe disse algo e assentiu enfaticamente. O homem moveu a mandíbula como se ruminasse alguma idéia.

-Assim que esta manhã baixaram todos para ver as competições e procurar bons candidatos para maridos de suas filhas. Sim, já compreendo.

         Jamie afundou a mão em seu sporran e extraiu algo que aproximou do nariz do prisioneiro, como convidando-o a farejar. A essa distância não se via o que era, mas o homem mostrou asco e alarme.

-Ja, somente para olhar.-A senhora MacGillivray, que não os estava observando, soltou a Senga depois de lhe dar uns tapinhas-. Agora famos a Salem, onde ist meine Família. Talvez ali encontramos um bom Mann, também.

         Myers se aproximou de nós através do bosquecillo.

-Não há por que preocupar-se, señora-assegurou ao Ute-.Eu sabia que Jamie Roy se encarregaria de tudo. E assim foi. Seu moço está a salvo.

-Ja?-disse ela, olhando com ar dúbio para os arvorezinhas.

         Mas era verdade. Todos os homens tinham assumido uma atitude relaxada. Jamie estava lhe devolvendo as algemas ao caçador de recompensas. Vi que as entregava com brusco desagrado; no Ardsmuir lhe tinham posto grilos.

-Gott sei dank-disse Ute, com um suspiro explosivo.

         Jamie e Rob MacGillivray conversavam, enquanto Fergus, levemente carrancudo, seguia com a vista a retirada do caçador de recompensas, que se afastava já para o arroio.

-O que foi exatamente o que Jamie lhe disse?-perguntei ao Myers.

-OH, bom…-O gigante me dirigiu um largo sorriso-.Jamie Roy, muito sério, disse-lhe ao homem…(que, dito seja de passagem, chama-se Harley Boble) que tinha tido muita sorte de que todos chegássemos a tempo. Deu-lhe a entender que, de outro modo, a dama aqui pressente-hizo uma reverência ao Ute-o teria levado a casa em sua carreta para trocearlo como um porco onde ninguém a visse. Então Jamie Roy lhe aproximou para lhe fazer uma confidência, e disse que ele teria podido pensar o mesmo…de não ser pela reputação do Frau MacGillivray, famosa por suas salsichas, e porque tinha tido o privilégio das provar no café da manhã da manhã. Foi então quando Boble começou a perder a cor. E quando Jamie Roy extraiu uma parte de embutido para lhe mostrar…

-OH, Santo Céu!-disse, recordando vividamente como cheirava essa salsicha. No dia anterior a comprei a um vendedor na montanha, para logo descobrir que estava mal curada; quando a cortei, despediu um horrível aroma de sangue podre. Jamie tinha guardado os restos em seu sporran, com intenção de que lhe devolvesse o dinheiro ou de fazer os tragar ao vendedor-. Agora o entendo.

         Myers fez um gesto afirmativo e se voltou para o Ute.

-E seu marido, senhora…Este bendito Rob MacGillivray é um mentiroso nato.

-Papai não é capaz de matar uma mosca-me disse Inga, pelo baixo e renda-se-.Não pode retorcer o cangote a um frango.

         Myers elevou os ombros em um gesto de bom humor, enquanto Jamie e Rob se aproximavam pela erva úmida.

-De modo que Jamie deu ao Boble sua palavra de cavalheiro de que o protegeria de você. E Boble deu sua palavra de…Bom, disse que não se aproximaria do jovem Manfred.

-Hum-murmurou Ute, ofendida porque se criticasse a reputação de suas salsichas-. Eu, fazer uma porcaria como essa!-disse, enrugando o nariz para a fedorento parte de carne que Jamie submetia a sua inspeção-. Pfaugh! Ratzfleisch!

         Desprezando o embutido, dirigiu-se a seu marido murmurando em alemão. Logo aspirou fundo e reuniu a seus filhos, insistindo-os a agradecer devidamente a ajuda do Jamie. Lhe fez uma reverência, ruborizado pelo coro de gratidão.

-Gern geschehen-disse-. Euer ergebener Diener, Frau Ute.

         Ela o olhou, radiante, enquanto meu marido se despedia do Rob.

-Que Mann bonito e grande-murmurou enquanto o observava de cima abaixo.

         Imediatamente notou que eu estava comparando ao Jamie com o Rob; o armeiro era bastante bonito, de facções cinzeladas e cabelo negro encaracolado, muito curto, mas tinha os ossos de um pardal e chegava aproximadamente ao ombro de sua fornida esposa. Não pude deixar de me perguntar como, dada sua evidente admiração pelos homens corpulentos…

-OH!, bom…-Ela se encolheu de ombros como pedindo desculpas-.O amor, já sabe você.

         Dizia-o como se o amor fora um estado lamentável, mas impossível de evitar. Joguei um olhar ao Jamie, que estava envolvendo cuidadosamente seu embutido para guardá-lo no sporran.

-Vá se sei-disse.

 

         Quando retornamos a nosso acampamento, os Chisholm se estavam despedindo. Por sorte Jamie havia trazido abundante comida do acampamento da Yocasta, assim pude me sentar ante um grato café da manhã de pastéis redondos de batata, bannocks com manteiga, presunto frito e café, me perguntando que mais podia acontecer esse dia.

         Mais tarde, com a terceira taça de café na mão, apartei a lona que cobria meus utensílios de medicina. Era hora de inspecionar o conteúdo e preparar todos os remédios que deviam estar recém feitos.

        Esgotadas as ervas mais comuns que tinha levado comigo, tinha aumentado minha provisão graças aos bons ofícios do Myers, quem me trouxe várias coisas estranhas e úteis das aldeias índias do norte, e a meus judiciosos intercâmbios com o Murray MacLeod, jovem e ambicioso farmacêutico que se entrou no continente para estabelecer sua loja no Cross Creek.

         O jovem Murray albergava todas aquelas horríveis ideia que passavam por conhecimentos médicos nessa época…e afirmava sem nenhum acanhamento a superioridade de métodos científicos tais como a sangria e as ventosas, por cima da antiquada tendência a curar com ervas que preferiam as velhas ignorantes como eu. Mesmo assim, sua condição de escocês o dotava de uma forte veia pragmática. depois de jogar uma olhada à poderosa estrutura do Jamie, tragou-se as opiniões mais insultantes. Eu tinha cem gramas de absinto e um frasco de gengibre silvestre que ele desejava. Além disso, tinha observado que a maioria dos montanheses iam para mim e não a ele quando afetava alguma dolencia,y… também que meus padres os faziam melhorar. Se eu tinha secretos, ele queria conhecê-los. E eu, com muito prazer, deixaria que os conhecesse.

         Por sorte, ainda ficava muita casca de salgueiro. Vacilei ante a pequena fileira de frascos que continha o cofre. Havia ali vários emenagogos fortes: caulófilo, fungo e poleo-memora, mas escolhi os mais suaves: tanaceto e arruda. Pus um punhado na terrina e o deixei encharcar em água fervendo. além de acalmar as moléstias da menstruação, o tanaceto tinha fama de acalmar os nervos…e resultava difícil imaginar uma pessoa mais nervosa que Lizzie Wemyss.

         Joguei uma olhada à fogueira, onde Lizzie lubrificava com geléia de morangos a torrada do recruta Ogilvie, que parecia repartir sua atenção entre a moça, Jamie e o pão, dedicando a maior proporção a sua torrada.

         A arruda era também um bom antiparasitario. Eu não estava segura de que Lizzie tivesse lombrigas, mas era lago comum entre a gente da montanha. Não lhe viria mal uma dose.

         Observei ao Abel MacLennan, me perguntando se conviria lhe jogar um pouco da beberagem no café; em que pese a sua corpulência, tinha o aspecto gasto e anêmico de quem alberga parasitas intestinais.

         A pequena Joan voltava a chorar de fome. Marsali fez um gesto de dor quando o bebê ficou a mamar, mas se relaxou quando o leite começou a fluir. Mamilos gretados. Havia trazido ungüento de lã de ovelha? Pois não, que pena!

-um pouco de café, querida?-O senhor MacLennan, que tinha estado observando ao Marsali com preocupada solidariedade, ofereceu-lhe sua taça de café intacta-.Minha esposa estava acostumada dizer que o café quente acalmava os dores da lactação. É melhor com uísque , mas mesmo assim…

-Taing.-Marsali aceitou a taça com um sorriso agradecido-.estive geada toda a manhã. Pensa voltar amanhã para o Drunkard’s Creek, senhor MacLennan?-perguntou-lhe cortesmente ao lhe devolver a taça vazia-.Ou viajará a New Bern com o senhor Hobson?

-Hobson vai a New Bern?-perguntou Jamie bruscamente-.Como sabe?

-Há-o dito sua filha, a senhora Fowles-respondeu Marsali-. Disse-me isso quando lhe pedi emprestada uma camisa seca para o Germain. Está preocupada com o Hugh, seu marido, porque seu pai, o senhor Hobson, quer que ele o acompanhe, mas Hugh tem medo.

-A que vai Joe Hobson a New Bern?-perguntei, a minha vez.

-A apresentar uma petitória ao governador-disse Abel MacLennan-.De muito servirá!-E sorriu ao Marsali com tristeza-. Não, moça. Para falar a verdade, não sei aonde ir. Mas não será a New Bern.

-Não o espera sua esposa no Drunkard’s Creek?

-Minha esposa morreu, moça-fue a suave resposta-.Morreu faz dois meses.

-OH, senhor Abel!-Marsali se inclinou para diante para lhe estreitar a mão, cheios de dor os olhos azuis-.Sinto-o tanto!

         Lhe deu uns tapinhas na mão, sem levantar a vista. Em seu escasso cabelo refulgiam diminutas gotas de chuva. Jamie, que se tinha posto de pé para interrogar à moça, tomou assento no tronco, junto ao MacLennan e lhe pôs meigamente uma mão nas costas.

-Não sabia, a charaid-disse em voz baixa.

-Não.-O outro olhou as chamas transparentes, sem as ver-.É que bom, a verdade é que não o hei dito a ninguém. até agora.

         Jamie e eu intercambiamos um olhar. Drunkard’s Creek não podia albergar a mais de vinte e cinco almas nessas poucas cabanas disseminadas pelas ribeiras. Entretanto, nem os Hobson nem os Fowles tinham mencionado a perda do Abel; devia ser verdade que não o havia dito a ninguém.

-Como aconteceu, senhor Abel?-Marsali seguia retendo sua mão.

-OH…-disse em tom vago-.Aconteceram tantas coisas…E não obstante…ao fim e ao cabo não foi tanto. Abby…Abigail, minha esposa, morreu de umas febres. Agarrou frio e…e morreu.

         Jamie jogou um pouco de uísque em uma taça vazia e a pôs nas mãos inermes do MacLennan, lhe curvando os dedos até que ele a sujeitou.

-você beba, homem-disse.

         Em silêncio, todo mundo observou ao Abel, que provava obedientemente o uísque: um sorvo, logo outro. O jovem Ogilvie se removeu em sua pedra, incômodo; parecia estar desejando retornar a seu regimento, mas não partiu, como se temesse que sua partida fizesse sofrer ainda mais a esse homem.

         A mesma quietude do MacLennan atraía todas as olhadas, sossegava qualquer conversação.

-Eu tinha bastante-disse de repente-.De verdade.-Olhou em volto da fogueira, como se nos desafiasse a contradizê-lo-.Para os impostos, compreendem? O ano não foi tão bom como esperava, mas fui prudente. Tinha em reserva dez tonéis de milho e quatro magníficos couros de veado. Todo isso valia mais que os seis xelins do imposto.

         Mas os impostos não se pagavam em cereais, couros e blocos de anil, a não ser em efetivo. Entre os agricultores a troca era a maneira habitual de fazer negócios. Ninguém pagava nada em efetivo, salvo os impostos.

-Bom, é razoável-disse MacLennan, piscando severamente para o Ogilvie, como se o jovem tivesse protestado-.Para que quer sua majestade uma piara de porcos ou uns quantos perus? Não, compreendo que se deva pagar em dinheiro. E eu tinha o cereal; podia vendê-lo facilmente por seis xelins.

         A única dificuldade era converter dez tonéis de cereal em seis xelins de impostos. No Drunkard’s Creek havia quem poderia haver os comprado, mas ali ninguém tinha dinheiro. Era preciso levar esse milho a Salem, a população mais próxima onde se podia obter efetivo. Mas Salem estava a uns sessenta quilômetros do Drunkard’s Creek: requeria-se uma semana para ir e retornar.

-Eu tinha cinco acres de cevada tardia-explicó Abel-.Amadurecida, lista para a ceifa. Não queria deixar que se perdesse. E meu Abby era uma mulher miúda, magra. Não podia pô-la a segar e debulhar.

         Como não queria perder uma semana das tarefas da colheita, Abel procurou ajuda em seus vizinhos.

-É boa gente-insistiu-.Um ou dois podiam me emprestar algum céntimo, mas eles também tinham que pagar seus impostos, entendem?

         Ainda crédulo em obter, de algum modo, o dinheiro necessário sem realizar a árdua viagem a Salem, Abel se atrasou…muito tempo.

-O delegado é Howard Travers-disse-.Veio com um papel e disse que devia nos expulsar, por não pagar os impostos.

         Frente à necessidade, Abel viajou a toda pressa para Salem, mas quando retornou com os seis xelins sua propriedade tinha desaparecido e a cabana estava ocupada por desconhecidos.

-Eu sabia que ela tinha que estar cerca-explicó-, porque não abandonaria aos pirralhos.

         E ali foi onde a achou, envolta em um edredom puído, tremendo sob a grande pícea da colônia que protegia as tumbas dos quatro meninos MacLennan, todos falecidos ao primeiro ano de vida. em que pese a todas suas súplicas, Abigail, não quis baixar a que tinha sido sua cabana e pedir ajuda a quem a tinha jogado. Abel não soube nos dizer se foi a loucura da febre ou simples tozudez; sua esposa se aferrou aos ramos da árvore com força demencial, dizendo a vozes os nomes de seus filhos…e ali morreu, durante a noite.

-Tinham-na autorizado a levá-lo que pudesse. Tinha um hatillo com seu pano mortuário. Ainda a vejo ante a roca, apenas depois de nossas bodas, fiando para tecê-lo. Tinha pequenas flores ao longo de um bordo. Era hábil com a agulha.

         Envolveu a Abigail na mortalha bordada. Logo, sepultou-a junto ao menor de seus filhos e caminhou três quilômetros pela estrada, com intenção de lhe contar o acontecido aos Hobson.

-Mas quando cheguei a sua casa os encontrei a todos indo de um lado a outro. Hugh Fowles tinha recebido a visita do Travers, que vinha pelos impostos, mas não havia dinheiro. Travers, sonriendo como um símio, disse-lhe que lhe dava igual; dez dias depois, voltou e os expulsou.

         Hobson tinha reunido com muita dificuldade o dinheiro para pagar seus impostos; os Fowles se apinharam com o resto da família, sãs e salvos, mas Joe estava furioso pela maneira de tratar a seu genro.

-Joe vociferava, enlouquecido de ira. Janet Hobson me fez passar, e me ofereceu comida. Ali estava Joe, gritando que se cobraria a terra do pele do Howard Travers. E Hugh, que parecia um cão atropelado, e sua esposa que me saudava, e todos os pirralhos chiando por sua comida e…bom, pensei lhes dar a notícia, mas logo…

         Dormiu sob a mesa e despertou antes do alvorada. A sensação de irrealidade persistia. Tudo a seu redor parecia um sonho. Era como se ele mesmo tivesse deixado de existir. Seu corpo se levantou, lavou-se. Comia e falava sem que ele soubesse. Já ninguém existia no mundo exterior. E quando Joe Hobson se levantou para anunciar que ele e Hugh iriam ao Hillsborough para procurar justiça na Corte, Abel MacLennan tirou o chapéu partindo pela estrada com eles.

-Enquanto caminhava me ocorreu que estávamos todos mortos-dijo, com ar sonhador-. Eu, Joe, Hugh e outros. Dava-me igual estar em um sítio que em outro; só era questão de mover-se até o momento de tender meus ossos junto ao Abby.

         Ao chegar ao Hillsborough não se precaveu das intenções do Joe. limitou-se a segui-lo, sem pensar, pelas ruas lamacentas e cheias de cristais quebrados das janelas destroçadas. Viu a luz das tochas e a multidão, ouviu os gritos e os alaridos, sem comover-se.

-Só eram homens mortos, um repicar de ossos contra ossos-dijo, encolhendo-se de ombros. Guardou silêncio. Logo se voltou para o Jamie e o olhou larga, severamente-.É assim? Você também está morto?

         Uma mão lassa, calejada, flutuou até o maçã do rosto de meu marido, que a agarrou para estreitá-la entre as suas.

-Não, a charaid-disse com suavidade-.Ainda não.

         MacLennan assentiu lentamente.

-Sim. Tempo ao tempo-disse-.Tempo ao tempo. Não é tão mau.

         Então ficou de pé, cobrindo-a cabeça com o quadrado de tecido vermelho. voltou-se para mim com uma saudação cortesa, e seus olhos vagos e afligidos.

-Agradeço-lhe o café da manhã, senhora.-E se afastou.

 

                   Humores biliosos

         A partida do Abel MacLennan pôs fim ao café da manhã bruscamente. Ogilvie se retirou dando as obrigado; Jamie e Fergus se foram em procura de ceifam e astrolábios; Lizzie, que se murchava em ausência de seu soldado, declarou que não se sentia bem e desapareceu em um dos refúgios, com uma grande infusão de atanasia e arruda.

         Por sorte, Brianna decidiu reaparecer nesse momento, sem o Jemmy. Conforme me disse, ela e Roger tinham tomado o café da manhã com a Yocasta. O menino se dormiu em braços da anciã e o tinha deixado ali para vir me ajudar com as consultas da manhã.

-Está segura de querer me ajudar hoje? depois de tudo, é o dia de suas bodas. Acredito que Lizzie ou a senhora Martin poderiam…

-Não, farei-o eu-me assegurou, passando um pano pelo assento do tamborete-.Lizzie se encontra melhor, mas não tanto como para suportar pés infectados e estômagos pútridos.

         Com um leve estremecimento, fechou os olhos à lembrança do ancião a quem, no dia anterior, eu tinha curado um talão ulcerado. A dor tinha feito que ele vomitasse sobre suas calças esfarrapadas, o qual provocou que muitos dos que esperavam ser atendidos vomitassem também.

-Não, suponho que no-reconheci a contra gosto-. Mas seu vestido não está de tudo terminado, verdade? Não deveria ir a…?

-Tudo está bem-me assegurou-.Fedra está costurando a prega. E Ulises anda dando ordens aos serventes como se fora um sargento do exército. Eu não faria mais que estorvar.

         Cedi sem mais reparos, embora sentia saudades um pouco essa prontidão. Embora Bree não era afetada frente às exigências da vida normal, tais como esfolar animais e limpar pescado, eu sabia que a perturbava a proximidade de pessoas com má formações ou enfermidades visíveis, embora fizesse o possível por dissimulá-lo. Não era asco, disse-me, a não ser uma empatia que a paralisava.

         Retirei o hervidor do fogo para verter água bulindo em um frasco grande médio cheio de álcool destilado, entreabrindo os olhos para protegê-los contra as nuvens de vapor alcoólico. Realmente era duro ver que tantas pessoas sofriam de coisas que em outra época poderiam tratar-se facilmente com anti-sépticos, antibióticos e anestesia. Mas nos hospitais de campanha, em um momento no que todas essas inovações eram novas e estranhas, eu tinha aprendido a manter a objetividade, que sabia necessária e valiosa.

         Se se interpunham meus próprios sentimentos, não poderia ajudar a ninguém. Mas Brianna não tinha esse tipo de conhecimentos para usar como escudo. Ainda não.

         Quando acabou de limpar e ordenar, ergueu as costas com uma pequena ruga entre as sobrancelhas.

-Recorda à mulher que viu ontem? A que trouxe para o menino atrasado?

-Não é algo que se possa esquecer-disse, com tanta ligeireza como foi possível-. por que? Ouça, pode te ocupar disto?

         Assinale a mesa dobradiça, que se negava a fechar-se como era devido; suas articulações se incharam com a umidade. Brianna franziu o sobrecenho, estudando-a; logo deu um golpe com o canto da mão à articulação correspondente. O móvel obedeceu imediatamente, como se reconhecesse a presença de uma força superior.

-Preparado.-esfregou-se o flanco da mão, distraída e ainda com as sobrancelhas franzidas-.Insistiu muito em lhe recomendar que tratasse de não trazer mais meninos. O do pequeno era hereditário?

-poderia-se dizer que fui-respondí secamente-.Sífilis congênita.

         Ela levantou a vista, empalidecendo.

-Sífilis? Está segura?

         Fiz um gesto afirmativo, enquanto enrolava uma tira de linho cozido para vendagens. Ainda estava muito molhado, mas não havia remédio.

-A mãe ainda não apresentava os signos exteriores visíveis dos últimos estádios da enfermidade, mas nos meninos são inconfundíveis.

         A mulher tinha vindo simplesmente a que lhe abrisse uma fístula, com o pequeno obstinado a suas saias. Ele tinha a característica nariz esmagado à altura da ponte, e sua mandíbula estava tão mal formada que não me surpreendeu vê-lo tão desnutrido: logo que poderia mastigar. Era impossível saber quanto de seu evidente atraso se devia ao dano cerebral e quanto à surdez; parecia sofrer ambas as deficiências, mas não tentei as avaliar, pois não havia nada que pudesse fazer pelas remediar. Tinha-lhe aconselhado à mãe que lhe desse pot liquor que talvez aliviasse a desnutrição; pelo resto, em pouco se podia ajudar ao pobrecito.

-Aqui não a vejo tão freqüentemente como em Paris ou no Edimburgo, onde havia muitas prostitutas-le disse ao Bree, arrojando a bola de ataduras ao saco de lona que ela mantinha aberto-. Mas sim, de vez em quando. por que? Acaso pensa que Roger tem sífilis?

         Olhou-me boquiaberta. Sua expressão espantada se apagou ante uma instantânea corrente de vermelho furioso.

-Claro que não, mamãe!-exclamou.

-Bom, não é que eu o pensasse-expliqué brandamente-. Mas passa nas melhores famílias…e como perguntava…

         Ela lançou um forte bufo.

-Eu te perguntava por anticoncepcionais-corrigió entre dentes-.Ao menos é o que pensava fazer, antes de que te lançasse com a Guia médica de enfermidades venéreas.

-Ah, é isso.-Observei-a pensativamente, reparando nas manchas de leite seca que tinha no sutiã-.Bom, amamentar é bastante efetivo. Não te brinda segurança absoluta, certamente, mas sim bastante. depois dos primeiros seis meses, menos.

         Jemmy já tinha seis meses.

-Hum…-murmurou ela, tão ao estilo do Jamie que devi me morder o lábio inferior para não rir-. E o que outra coisa efetiva há?

         Eu não tinha falado com ela de métodos anticoncepcionais, ao estilo do século XVIII. Quando apareceu pela primeira vez na Colina do Fraser não parecia necessário. E a verdade é que depois não foi, pois já estava grávida. Assim agora sim que o necessitava?

         Com o sobrecenho franzido, fui guardando cilindros de ataduras e molhos de ervas dentro de meu saco.

-O normal é qualquer tipo de barreira. Uma parte de seda ou uma esponja, empapadas em toda classe de coisas, desde vinagre a brandy, embora se dispuser de azeite de atanasia ou de cedro, supõe-se que é o melhor. Hão-me dito que algumas mulheres, nas Índias, usam meio limão, mas obviamente aqui não seria uma opção adequada.

         Ela deixou escapar uma breve risada.

-Não, não acredito. E tampouco acredito que o azeite de atanasia dê muito bons resultados. É o que usava Marsali quando ficou grávida do Joan.

-Ah!, usava-o? Suponho que alguma vez não se tomaria a moléstia…e basta com uma vez.

         Mais que vê-la, senti-a esticar-se e me mordi os lábios outra vez, esta vez de mortificação. Para ela, uma única vez tinha sido suficiente; o que não sabíamos era qual dessas duas únicas vezes. Mas Brianna se encolheu de ombros e os deixou cair, descartando deliberadamente as lembranças que meu irrefletido comentário pudesse ter conjurado.

-Disse-me que o tinha estado usando, mas possivelmente o esqueceu. De qualquer modo não sempre dá resultado, verdade?

         Carreguei-me ao ombro o saco de ataduras e ervas secas, e agarrei o cofre dos remédios.

-Quão único funciona sempre é o celibato-respondi-.Suponho que, no caso que nos ocupa, não é uma opção satisfatória.

         Ela sacudiu a cabeça, refletindo tristemente, fixa o olhar em um grupo de homens jovens que se entreviam depois das árvores de abaixo; estavam-se alternando para arrojar pedras ao outro lado do arroio.

-Era o que me temia-dijo.

         Percorri o claro com um olhar analítico. Algo mais? Não me preocupava abandonar a fogueira; embora Lizzie ficasse dormida, com esse clima não havia na montanha nada que pudesse queimar-se; até a isca e a lenha armazenadas em um extremo do abrigo estavam úmidas. Mas faltava algo.

         O que? Ah, sim. Deixando um momento a caixa, ajoelhei-me para me arrastar ao interior do abrigo e revolvi no matagal de edredons. Ao sair, por fim levava meu taleguilla de remédios.

         depois de recitar uma breve oração a Santa Brida, pendurei-me isso do pescoço, por debaixo do sutiã. Estava tão habituada a usar esse amuleto quando ia praticar a medicina que já quase não percebia o ridículo desse pequeno rito. Quase. Bree me estava observando com expressão bastante estranha, mas não disse nada.

         Eu tampouco; limitei-me a recolher minhas coisas e a segui através do claro, evitando com cuidado os sítios mais lamacentos. Já não chovia, mas as nuvens prometiam mais água em qualquer momento; dos troncos cansados e os arbustos goteantes emanavam volutas de bruma.

         Que motivos teria Bree para interessar-se pelos anticoncepcionais? Parecia-me sensato, certamente, mas por que agora? Talvez tivesse alguma relação com o fato de que estivesse a ponto de casar-se com o Roger. Embora levavam vários meses vivendo como marido e mulher, a formalidade dos votos pronunciados ante Deus e ante os homens bastavam para impor uma maior sobriedade aos jovens mais amalucados. Mas nem Roger nem Brianna o eram.

-Existe outra possibilidade-disse a suas costas, pois ia diante de mim pelo caminho escorregadio-. Não sei até que ponto é confiável, pois ainda não a provei com ninguém. Nayawenne a velha tuscarora que deu de presente o saco de remédios, disse-me que havia ervas de mulheres. Mesclas diferentes para coisas diferentes, mas uma planta especial para isso; disse que sua semente impediam ao espírito do homem impor-se ao da mulher.

         Bree fez uma pausa e se voltou pela metade para me aproximar eu.

-Assim vêem os índios o embaraço? O homem ganha?

-Bom, em certo modo-disse rendo-.Se o espírito da mulher é muito forte para o homem ou não cede ante ele, ela não poderá conceber. Por isso, quando uma mulher quer ter um filho e não pode, com muita freqüência o chamán não a trata só a ela, a não ser a seu marido ou aos dois.

         Ela lançou uma exclamação gutural, em parte só por diversão.

-Qual é a planta, a erva das mulheres?-perguntou-. Conhece-a?

-Não tenho a certeza-admiti-. Quer dizer, não estou segura de seu nome. Ela me mostrou tanto a planta em crescimento como as sementes secas, e estou segura de que poderia reconhecê-la, mas não era uma planta que eu conheça por um nome inglês.-E acrescentei, por ajudar-: Isso sim: era da família das umbelíferas.

         Bree me dirigiu uma morada séria, que a assemelhou novamente ao Jamie. Logo se aparou para deixar passar a umas quantas dá as Campbell. Ao passar rumo ao arroio nos saudaram uma a uma, com uma reverência ou uma cortês inclinação de cabeça.

-bom dia você tenha, senhora Fraser-disse uma pulcra jovem; era uma das filhas menores do Farquard Campbell-. Está seu marido por aqui? Diz meu pai que gostaria de falar com ele.

-Não me temo que se foi.-Fiz um gesto vago; Jamie podia estar em qualquer parte. Mas se o veja o direi.

         Ela fez um gesto afirmativo e continuou a marcha; as mulheres que a seguiam se detiveram o felicitar a Brianna por suas bodas. Ela aceitava seus bons desejos com gentil cortesia, mas detectei que algo a preocupava.

-O que te passa?-disse sem rodeios, assim que as Campbell já não puderam nos ouvir.

-O que me passa, do que?-perguntou ela, sobressaltada.

-O que é o que se preocupa? E não me diga que nada, porque vejo que sim. Tem algo que ver com o Roger? Tem dúvidas sobre as bodas?

-Não exactamente-respondeu, com ar precavido-.Quero me casar com o Roger. Quer dizer, respeito a isso não há nenhum problema. É que…é que me ocorreu algo.

         Deixou morrer a voz e um lento rubor subiu a suas bochechas.

-Sim?-perguntei, bastante alarmada-. O que é?

-Imagina que eu tenha uma enfermidade venérea-barboté-. Não porque me tenha contagiado isso Roger, ele não, mas…Stephen Bonnet?

-OH!-murmurei. Alarguei uma mão para lhe estreitar o braço-. Não se preocupe, carinho. Não tem nada.

         Ela aspirou fundo e deixou escapar o ar; seus ombros perderam parte da tensão.

-Está segura?-insistiu-. Pode afirmá-lo? Encontro-me bem, mas me ocorreu…As mulheres não sempre têm sintomas.

-É cierto-confirmei-, mas os homens sim. Se Roger tivesse contraído algo feio, contagiado por ti, eu me teria informado faz muito tempo.

         Sua cara tinha empalidecido um pouco, mas ante isso voltou o rubor. Tossiu, lançando bafo com o fôlego.

-Que alívio! Assim Jemmy está bem? Está segura?

-Por completo-la tranqüilizei. Ao nascer lhe tinha posto nos olhos gotas de nitrato de prata que tinha conseguido obter com grandes gastos e muita dificuldade, só no caso de. Mas estava segura. Além de não apresentar nenhum sintoma específico de enfermidade, Jemmy refletia um ar de saúde que fazia incrível qualquer idéia de infecção.

-É por isso pelo que te interessaste pelos anticoncepcionais?-perguntei, saudando com a mão para o acampamento dos MacRaes-. se preocupa ter mais filhos, se por acaso…

-OH, não! Quer dizer…Não tinha pensado nas enfermidades venéreas até que mencionou a sífilis; só então me ocorreu a horrível ideia…de que ele pudesse…-Interrompeu-se para pigarrear-.Né…não, só queria saber.

         Brianna estava muito sã; embora carecíamos de coisas importantes, como antibióticos e instalações médicas sofisticadas, eu lhe tinha recomendado não subestimar o poder da simples higiene e a boa alimentação.

         Não, pensei, observando a potente curva de suas costas, enquanto levantava a pesado equipe por cima de uma raiz emaranhada no atalho. Não era isso. Embora tivesse motivos para preocupar-se, basicamente não era uma pessoa temerosa.

         Roger? Tal e como estavam as coisas, qualquer pensaria que o melhor era conceber quanto antes outro menino, que fora definitivamente filho dele. Isso ajudaria a cimentar o novo matrimônio. Por outra parte, o que aconteceria nesse caso? Roger estaria mais feliz, mas Jemmy…

         Ao aceitar ao menino como filho próprio, Roger fazia um juramento de sangue. Mas a natureza humana é como é; embora eu estava segura de que ele jamais o descuidaria ou abandonaria, era muito possível que seus sentimentos trocassem quando tivesse uma vergôntea que fora seu filho sem lugar a dúvidas. arriscaria-se Bree a isso?

         Pensando-o bem, pareceu-me que ela atuava com prudência ao esperar. Dava tempo ao Roger para que estabelecesse um vínculo estreito com o Jemmy, antes de complicar a situação familiar com outro menino. Era muito sensato, sim…e Brianna era uma pessoa eminentemente sensata.

         Só quando chegamos finalmente ao claro onde atendia as consultas pela manhã, me ocorreu outra possibilidade.

-Podemos ajudar, senhora Fraser?

         Dois dos meninos Chisholm, os menores dos varões, apressaram-se a nos liberar de nossa pesada carga e, sem que ninguém lhes dissesse nada, começaram imediatamente a ajudar. Não tinham mais de oito e dez anos; enquanto os via trabalhar, compreendi que nessa época um moço de doze ou quatorze anos podia ser um homem adulto.

         Brianna também sabia. Eu estava segura de que jamais abandonaria ao Jemmy enquanto ele a necessitasse. Mas, e mais adiante? O que passaria quando ele abandonasse a sua mãe?

         Abri meu cofre e comecei a preparar todo o necessário para o trabalho da manhã.

         Brianna tinha vinte e três anos. Jemmy podia chegar à independência total quando ela tivesse ao redor de trinta e cinco. E se já não necessitava de seus cuidados…, ela e Roger poderiam retornar. Voltar para sua própria época, a um tempo seguro, reatar a vida que lhes correspondia por direito.

         Mas só se não tinha outros filhos que, por indefesos, retiveram-na aqui.

-bom dia você tenha, senhora.

         Um homem baixo e já amadurecido, de pé ante mim, era o primeiro paciente da manhã. Embora na cara lhe arrepiava a barba de uma semana, estava notavelmente pálido, com aspecto viscoso, tão irritados os olhos pela fumaça e o uísque que seu mal era visível imediatamente. A ressaca era endêmica entre os pacientes da manhã.

-Tenho um pequeno retortijón nas tripas, senhora-disse, tragando saliva com ar desventurado-.Você teria por acaso algo que me acalme isso?

-Tenho o mais adequado-le assegurei, jogando mão de uma taça-.Ovo cru e um pouco de ipecacuana. depois de um bom vômito se sentirá como novo.

 

O consultório funcionava na margem do grande claro, ao pé da colina, onde pelas noites ardia a grande fogueira da congregação

         Uma vez atendido o cavalheiro da ressaca, produziu-se uma breve pausa. Então pude concentrar minha atenção no Murray MacLeod, que se tinha instalado a pouca distância.

         Notei que Murray tinha começado cedo: junto a seus pés, a terra estava escura; as cinzas pulverizadas, empapadas e viscosas de sangue. Estava atendendo a um dos primeiros pacientes, um fornido cavalheiro, cujo nariz vermelho e esponjoso, assim como a papada frouxa, eram testemunho de toda uma vida de excessos alcoólicos. face à chuva e o frio, tinha ao homem em camisa, com a manga recolhimento e o torniquete em seu sítio; sobre os joelhos do paciente, a terrina da sangria.

         Eu estava a três metros largos do tamborete onde Murray praticava seu ofício; mesmo assim, e apesar de quão tênue era a luz matinal, notei que o paciente tinha os olhos amarelos como a mostarda.

-Doença hepática-le disse a Brianna, sem me incomodar em baixar a voz-.A icterícia se vê daqui, verdade?

-Humores biliosos-anunció MacLeod em voz bem alta, enquanto abria sua navalha de sangrar-.Um excesso de humores. Claro como a água.

         Murray, miúdo, moreno e pulcro no vestir, não tinha uma presença muito impressionante, mas era enérgico em suas opiniões, sim.

-Cirrose causada pela bebida, diria yo-continuei.

-Um impacto da bílis, devido ao desequilíbrio do escarro.- Murray me fulminou com o olhar. Obviamente pensava que eu tinha intenção de lhe roubar, se não o paciente, sim o efeito.

         Sem lhe emprestar atenção, inclinei-me para examinar ao homem, que pareceu alarmado por meu escrutínio.

-Você tem um vulto duro justo debaixo das costelas, à direita, verdade?-assinalei amavelmente-.Sua urina é escuro e seus sedimentos, negras e sanguinolentas. Equivoco-me?

         O homem negou com a cabeça, boquiaberto. Começávamos a chamar a atenção.

-Ma-dreeee.-Brianna estava de pé detrás de mim. Enquanto saudava o Murray com a cabeça, inclinou-se para me dizer ao ouvido-:O que pode fazer contra a cirrose, mamãe? Nada!

         Interrompi-me, me mordendo os lábios. Ela tinha razão: levada pelo impulso de me exibir fazendo um diagnóstico (e de impedir que Murray utilizará com ele sua navalha oxidada), tinha passado por cima o detalhe de que não podia oferecer nenhum tratamento alternativo.

         O paciente passava o olhar de um a outra, obviamente intranqüilo. Fiz um esforço por lhe sorrir e inclinei a cabeça ante o Murray.

-O senhor MacLeod o há dito bem-disse, forçando as palavras entre os dentes-.Doença hepática, sem dúvida, causada por um excesso de humores.

         A cara do Murray, até então tensa de suspicacia, ficou comicamente estupefata ante minha capitulação. Brianna me adiantou um passo para aproveitar o momento.

-Há um enfeitiço-dijo, sonriéndole encantadoramente-.É para…né…afiar a faca e facilitar o fluxo dos humores. me permita demonstrar-lhe

         antes de que ele pudesse apertar os dedos, Bree lhe arrebatou a navalha da mão e girou para nossa pequena fogueira, onde um caldeirão cheio de água fumegava desde seu trípode.

-No nome do Miguel, que blande as espadas, o defensor das almas, entoou.

         Ela elevou a navalha em um sinal da cruz grande e lenta, olhando de um lado a outro para assegurar-se de contar com a atenção dos pressente. Assim era: estavam fascinados. Mais alta que a maioria dos curiosos, com os olhos azuis entreabridos em concentração, parecia-se muito ao Jamie em alguma de suas atuações mais valorosas. Só cabia esperar que fora tão hábil como ele.

-Benze este fio pela cura de seu servente-disse Bree, elevando os olhos ao céu, enquanto sustentava a navalha sobre o fogo, como os sacerdotes que oferecem a Eucaristia. Algumas borbulhas atravessavam a água, mas ainda não tinha chegado à ebulição.

-Benze este fio que tem que extrair sangue, que tem que verter sangue, que tem que…né…tirar o veneno do corpo de seu muito humilde peticionário. Benze-lhe fio…benze o fio…benze o fio na mão de seu humilde servidor. Obrigado sejam dadas a Deus pelo brilho do metal.

“ Obrigado sejam dadas a Deus pelo caráter repetitivo das orações gaélicas” , pensei cinicamente.

         E, graças a Deus!, a água estava fervendo. Ela baixou a folha breve e curva até a superfície, cravando na multidão um olhar carregado de intenção, e declamou:

-O que a pureza das águas que brotaram do flanco de Nosso Senhor Jesus Cristo impere sobre este fio!

         Afundou o metal na água e ali o sustentou até que o vapor, ao elevar-se sobre o marco de madeira, avermelhou-lhe os dedos. Então levantou a navalha e a passou apressadamente à outra mão, elevando-a no ar enquanto agitava subrepticiamente a mão escaldada a suas costas.

         Que a bênção de San Miguel, que defende contra os demônios, impere sobre este fio e a mão de quem o branda, para a saúde do corpo, para a saúde da alma. Amém!

         E deu um passo adiante para oferecer ceremoniosamente o instrumento ao Murray, com a manga para diante. MacLeod, que não era nada parvo, jogou-me um olhar em que uma aguda suspeita se mesclava com a relutante apreciação da perícia teatral de minha filha.

-Não toque a hoja-recomendei, com um sorriso-. Romperia o feitiço.Ah!, e deve repetir o encantamento cada vez que a use. Tenha presente que deve fazer-se com água fervendo.

-Hummmm-resmungou ele.

         Mas agarrou a navalha pela manga, cuidadosamente. depois de saudar a Brianna com um breve movimento de cabeça, voltou-se para seu paciente. E eu, para a minha: uma jovencita com urticária. Brianna me seguiu, muito satisfeita de si mesmo. detrás de mim se ouviu o suave grunhido do doente e o ressonante repico do sangue que caía na terrina metálica.

         Sentia-me bastante culpado pelo paciente do MacLeod, mas Brianna tinha toda a razão: eu não podia fazer absolutamente nada por ele, dadas as circunstâncias. Um cuidadoso tratamento a comprido praça, acompanhado de excelente alimentação e total abstinência de álcool, podia lhe prolongar a vida. As duas primeiras possibilidades eram muito remotas; a terceira não existia.

         Enquanto o salvava de uma possível infecção generalizada, Brianna tinha aproveitado a oportunidade de proporcionar o mesmo amparo aos futuros pacientes do MacLeod. Mas não pude menos que sentir uma insistente culpa por não ter feito algo mais. Mesmo assim, ainda se aplicava o primeiro princípio médico que tinha aprendido em meus tempos de enfermeira, nos campos de batalha da França: trata ao paciente que tem ante ti.

-te aplique este ungüento-disse severamente a jovencita da urticária-.E não te arranhe!

 

                   Presentes de bodas

         O céu não se limpou, mas no momento, a chuva tinha cessado. Entretanto, ainda havia desassossego no ar; as nuvens de fumaça se levantavam como fantasmas entre as árvores.

         Uma dessas colunas cruzou o atalho diante do Roger, quem, concentrado como estava em sua lista mental de recados que cumprir esse dia, girou para evitá-la.

         Primeiro iria à carreta dos funileiros, a comprar alguma pequenez como presentes de bodas para a Brianna. O que gostaria? Uma jóia, uma cinta? Tinha muito pouco dinheiro, mas precisava celebrar a ocasião com algum presente.

         Lhe teria gostado de lhe pôr seu anel no dedo, quando pronunciassem seus votos matrimoniais, mas ela insistia em que o rubi cabujón de seu avô serviria perfeitamente; ficava bem e não faria falta gastar dinheiro em outro anel. Bree era pragmática, às vezes até o chateio, em contraste com a nervura romântica do Roger.

         Teria que ser algo prático, mas ornamental. Uma bacinilla grafite, por exemplo? A ocorrência lhe fez sorrir, mas a idéia do prático persistia, tinta com certa dúvida.

         Recordava vividamente à senhora Abercrombie, quem uma noite, em meio do jantar, tinha chegado à casa paroquial em estado de histeria, dizendo que tinha matado a seu marido e perguntando o que devia fazer. O reverendo Wakefield, deixando a senhora a cuidado de sua ama de chaves, dirigiu-se à residência dos Abercrombie, em companhia do Roger, que por então era ainda adolescente.

         Encontraram ao marido da mulher no chão da cozinha; felizmente, ainda estava com vida, embora enjoado e sangrando profusamente de uma pequena ferida no couro cabeludo, conseqüência de um golpe dado com a prancha elétrica de vapor que lhe tinha agradável a sua esposa, em ocasião do vigésimo terceiro aniversário de bodas.

-Mas ela me disse que a prancha velha chamuscava os guardanapos!-repetia o senhor Abercrombie, a queixosos intervalos, enquanto o reverendo lhe cobria habilmente a ferida com esparadrapo e Roger limpava a cozinha.

         Foi a vívida lembrança daquelas manchas sangrentas no linóleo gasto o que acabou por decidi-lo. Por pragmática que Bree fora, tratava-se de suas bodas. Para bem ou para mau, até que a morte nos separe. Procuraria algo romântico, o mais romântico que se pudesse conseguir por um xelim e três peniques.

         Entre as agulhas das píceas próximas distinguiu um brilho vermelho. deteve-se inclinando-se para espiar por um oco entre os ramos.

-Duncan?-disse-. É você? 

         Duncan Innes saiu de detrás das árvores, assentindo com ar tímido. Ainda levava o tartán escarlate dos Cameron, mas se tinha tirado a esplêndida jaqueta para envolvê-los ombros com o extremo de sua manta no cômodo estilo antigo das Terras Altas.

-Podemos falar um momento, ao Smeòraich?-perguntou.

-É obvio. Vou à carreta dos funileiros; me acompanhe.

         Roger voltou para o caminho, onde a fumaça já tinha desaparecido, e ambos partiram através da montanha, um ao lado do outro, como bons companheiros. O jovem não dizia nada, esperando cortesmente a que Duncan escolhesse seu modo de iniciar a conversação. Se tinha algo que dizer, diria-o ao seu devido tempo. Ao fim, Duncan tomou fôlego e começou:

-MAC Dubh me disse que seu papai era pastor presbiteriano. É certo isso?

-Fui-confirmó Roger, bastante surpreso pelo tema-. Quer dizer…quando mataram a meu verdadeiro pai, fui adotado por um tio de minha mãe, ele era pastor.

         Enquanto falava, Roger se perguntou por que tinha a necessidade de dar explicações, se durante quase toda sua vida tinha chamado “ pai” ao reverendo. Ao Duncan dava igual, sem dúvida.

         Seu companheiro estalou a língua em sinal de simpatia.

-Mas, então, é presbiteriano, verdade? Ouvi o MAC Dubh falar disso.

         em que pese a suas bons maneiras de sempre, sob o bigode desigual do Duncan apareceu um breve sorriso.

-Sim, já imagino-replicó Roger, seco. O estranho teria sido que alguém, em toda a congregação, não tivesse ouvido o MAC Dubh falar do assunto.

-Bom, o caso é que eu também sou presbiteriano-reconheceu Duncan.

         O jovem o olhou atônito.    

-Você? Mas se eu pensava que foi católico!

         Seu companheiro encolheu o ombro do braço amputado, com um leve ruído de sobressalto.

-Não. Meu bisavô materno era presbiteriano e muito sólido em suas crenças, compreende?- Duncan sorriu com certo acanhamento-. Quando me chegaram estavam muitos diluídas. Mamãe era religiosa, mas a papai não gostava de muito a igreja, e a mim tampouco. E quando conheci o MAC Dubh…bom, ele não ia pedir me que o acompanhasse a missa os domingos, verdade?

         Roger assentiu, com um breve grunhido de compreensão. Duncan e Jamie se conheceram na prisão do Ardsmuir, depois do levantamento. Embora a maioria dos soldados jacobitas eram católicos, também havia entre eles protestantes de diferentes variedades…que provavelmente guardavam silêncio sobre seu credo ao conviver estreitamente com uma maioria de católicos. Também era verdade que, ao dedicar-se posteriormente ao contrabando, Jamie e Duncan tinham tido poucas oportunidades para discutir de religião.

-Sim, compreendo. E suas bodas com a senhora Cameron, esta noite…

         O outro assentiu com a cabeça, mascando reflexivamente uma ponta do bigode.

-Isso. Crie que tenho a obrigação de dizer algo?

-A senhora Cameron não sabe? Jamie tampouco?

         Duncan sacudiu silenciosamente a cabeça, fixo os olhos no barro pisoteado do caminho. Certamente, a opinião que mais importava era a do Jamie, antes que a da Yocasta Cameron. Evidentemente, Duncan não tinha acreditado que as diferenças religiosas tivessem importância; quanto a Yocasta, Roger nunca tinha ouvido dizer que fora devota absolutamente. Mas a reação do Jamie ante o presbiterianismo de seu futuro genro tinha alarmado ao pobre homem.

-MAC Dubh disse que foste falar com o padre.- Duncan o olhou de soslaio e pigarreou, avermelhado-. Lhe…obrigou a um batismo romano?

-Né…no-respondeu. Outro leque de fumaça se abateu súbitamente sobre eles, fazendo-o tossir-. Não-repetiu, enxugando-os olhos lagrimeantes-. Mas não batizam aos que já receberam os óleos. Você está batizado?

-OH!, fui-exclamó Duncan, como se isso o reanimasse-. Sim, quando era…quer dizer…-Uma vaga idéia cruzou por sua mente, mas foi descartada com um novo encolhimento de ombros-.Sim.

-Bem. me deixe pensar um pouco, quer?

         A carreta dos funileiros estava já à vista, acurrucada como um boi, com lonas e mantas protegendo a mercadoria da chuva. Mas Duncan se deteve; obviamente queria resolver esse assunto antes de passar a outra coisa. esfregou-se o dorso do pescoço, pensativo.

-Não-disse por fim-, acredito que não precisa dizer nada. Não haverá missa; só o ofício matrimonial, que é mais ou menos o mesmo. Aceita a esta mulher, aceita a este homem, na pobreza e na riqueza, etcétera.

         Duncan assentiu com a cabeça, muito atento.

-Isso posso dizê-lo, fui-dijo-.Embora me custe um pouco, isso de na riqueza e na pobreza. Você sabe do que falo.

         Disse-o sem nenhuma ironia, como se enunciasse um fato óbvio; a reação do Roger ante o comentário o agarrou obviamente por surpresa.

-Não o disse com má intenção-se apressou a esclarecer-.Quer dizer…me referia a que…

         O jovem agitou uma mão, tratando de descartar o tema.

-Não tem importância. A verdade não ofende, como dizem, não?

         E era a verdade, ambos estavam na mesma situação: um homem sem propriedades nem dinheiro que se casava com uma mulher rica ou com grandes possibilidades de sê-lo.

         Nunca lhe tinha ocorrido pensar que Fraser fora rico, talvez por seu aspecto modesto, talvez simplesmente porque ainda não o era. Mas o certo é que possuía dez mil acres de terra. Embora uma boa parte era ainda território ermo, não tinha por que continuar assim. Já havia arrendatários nessa propriedade, e logo haveria mais. E quando esses arrendamentos começassem a render dinheiro, quando houvesse moendas nos arroios, assentamentos, lojas e botequins, quando o punhado de vacas, porcos e cavalos se multiplicou até formar grandes rebanhos de bom gado baixo à atenta vigilância do Jamie…então Fraser seria muito rico. E Brianna era sua única filha biológica.

         E ali estava também Yocasta Cameron, já visivelmente rica, que tinha manifestado de nomear herdeira a Brianna. A moça se negou categoricamente a aceitar a idéia, mas Yocasta era tão teimosa como sua sobrinha e tinha mais anos de prática. Além disso pouco importava o que Brianna fizesse ou dissesse: a gente suporia…

         A fumaça lhe tinha deixado no fundo da boca um amargo sabor a cinza. depois de tragar-lhe dedicou ao Duncan um sorriso torcido.

-Fui-dijo-. Bom para bem ou para mau. Suponho que elas nos terão encontrado algo bom, verdade?

         Duncan sorriu com certa melancolia.

-Algo bom, sim. Ouça, seriamente crie que não haverá problemas com o da religião? Eu não gostaria que a senhorita Eu ou MAC Dubh pensassem mal de mim por não haver dito nada. É que não queria armar um revôo sem necessidade.

-Não, claro que no-respondeu Roger. Logo aspirou fundo, apartando o cabelo molhado da cara-. Acredito que não haverá nenhum problema. Quando falei com o…com o sacerdote, a única condição que me impôs foi que devia permitir que nossos filhos recebessem o batismo católico. Mas como você e a senhora Cameron não têm que pensar nisso…

         Deixou a frase delicadamente inconclusa, mas seu companheiro pareceu aliviado.

-OH, não!-disse, com uma risada algo nervosa-. Não acredito que isso deva me preocupar.

-Pois bem…-Roger se obrigou a sorrir e lhe deu uma palmada nas costas-. Que tenha sorte.

-Também você, ao Smeòraich.

         O jovem esperava que Duncan seguisse seu caminho, posto que sua pergunta estava respondida. Entretanto, o homem seguiu caminhando lentamente a seu lado, junto à fila de carretas, estudando as mercadorias exibidas com uma leve enruga na frente.

         Sua grande estatura permitia ao Roger olhar por cima das cabeças da maioria; assim avançava a passo lento, jogando uma olhada aqui e lá, tratando de imaginar como reagiria Brianna ante isso.

         Era formosa, mas não dava importância a sua beleza. Em realidade, ele logo que tinha podido dissuadir a de cortá-la maior parte de sua gloriosa juba vermelha; incomodava-lhe que lhe manchasse continuamente e que Jemmy atirasse dela. Possivelmente uma cinta fora um presente prático. Ou um pente de prender cabelo decorado. Não, muito melhor um par de algemas para o pequeno.

         Mas se deteve junto a um posto de tecidos, agachando-se para olhar debaixo da lona. Duncan, com a manta levantada até as orelhas para proteger-se contra os golpes de vento, aproximou-se para ver o que estava olhando.

-Procuram algo em especial, senhores?-A vendedora se inclinou para eles sobre sua mercadoria, apoiando o peito nos braços cruzados, e dividiu entre ambos um sorriso profissional.

-Fui-dijo Duncan, inesperadamente-.Um metro de veludo. você tem algo assim? Que seja de boa qualidade; a cor não importa.

         A mulher arqueou as sobrancelhas (até com sua roupa de domingo, Duncan não tinha cara de petimetre), mas não fez comentários enquanto rebuscava entre seus diminuídas estoque.

-Sabe se à senhora Claire fica um pouco de lavanda?-perguntou ele, voltando-se para o Roger.

-Sim tem, fui-confirmó Roger, desconcertado.

-É uma idéia que tive-.A senhorita Eu sofre de enxaquecas e não dorme muito bem. Minha mãe tinha um travesseiro cheio de lavanda e assegurava que ficava dormida como um bebê assim que apoiava a cabeça nela. E me ocorreu que uma parte de veludo, para que o apóie na bochecha, compreende?...e se a senhora Lizzie me costurasse isso…

         “ Na saúde e na enfermidade…”

         Roger fez um gesto aprobatorio. sentia-se comovido e um pouco envergonhado ante tanta consideração. Tinha tido a impressão de que as bodas do Duncan e Yocasta era, principalmente, questão de conveniência e bons negócios. Talvez o era, sim, mas a falta de uma louca paixão não impedia a ternura nem o gesto considerado, não é verdade?

         Realizada sua compra, Duncan se afastou com o veludo bem protegido sob sua manta, enquanto Roger percorria lentamente o resto dos postos. Selecionava, sopesava e descartava mentalmente, espremendo o cérebro por decidir qual dessa miríade de objetos podia agradar a sua noiva. Pendentes? Não, o meninos atiraria deles. O mesmo com um colar…ou uma cinta para o cabelo, bem pensadas as coisas.

         Sua mente seguia rondando as jóias. Pelo general, ela as usava muito pouco, mas durante toda a congregação tinha brilhante o anel de rubi de seu pai, que Roger lhe tinha dado no momento de aceitar-se para sempre. Jem o babava de vez em quando, mas isso não lhe faria mal.

         Súbitamente se deteve, deixando que a multidão fluíra a seu redor. Mentalmente, via o ouro, o rosado intenso do rubi cabujón vívido em seu dedo comprido e pálido. O anel de seu pai. É obvio, como não se precaveu antes?

         Embora Roger tivesse recebido essa jóia do Jamie, não era seu dono e não podia dá-la a sua vez. E de repente desejava com desespero lhe dar a Brianna algo que fora realmente dele.

         A passo decidido, retornou a uma carreta cujas mercadorias de metal cintilavam até sob a chuva. Tinha observado que o dedo anelar da Brianna tinha a grossura de seu mindinho.

-Éste-decidiu, levantando um anel troca. Era feita de fios trancados de cobre e bronze; certamente lhe poria o dedo verde em poucos minutos. “ muito melhor” , pensou enquanto pagava. Embora não o usasse constantemente, levaria a marca que a identificaria como dela.

         “ Por este motivo abandonará a mulher a casa de seu pai, unirá-se a seu marido e os duas serão uma mesma carne.”

 

                   Distúrbios

         Apesar da garoa, uma considerável multidão de pacientes esperava seu turno na consulta. Despedia-me de uma jovem afetada por um bócio incipiente, lhe aconselhando procurar uma quantidade de pescado seco (ao viver tão afastados do mar não teria a segurança de consegui-lo sempre fresco) e comer todos os dias um pouco, por seu alto conteúdo em iodo.

-O seguinte!-chamei, me apartando o cabelo molhado dos olhos.

         A multidão se abriu como o Mar Vermelho, deixando ver um ancião miúdo, tão fraco que parecia um esqueleto ambulante, vestido com farrapos; trazia nos braços uma confusão de peles. Quando o tive perto, descobri a que se devia a deferência da gente: fedia a mapache morto.

-Meu cão está ferido-anunció o homem. depois de depositar ao animal em minha mesa, apartando bruscamente os instrumentos, assinalou um rasgo no flanco do animal.-. Você o atenderá.

         Não tinha dado a sua frase um tom de solicitude, mas a fim de contas meu paciente era o cão, que parecia bastante mais cortês. De tamanho médio, tinha as patas curtas, a pelagem hirsuta e umas orelhas desflecadas. Ofegava plácidamente, sem fazer intento algum de escapar.

-O que lhe aconteceu?-perguntei, enquanto punha fora de perigo a vasilha cambaleante.

-brigou-se com uma mapache.

-Hum-murmurei, observando ao animal com gesto dúbio. Tendo em conta sua improvável ascendência e sua evidente cordialidade, qualquer aproximação a um mapache fêmea se teria devido antes à luxúria que à ferocidade. Para confirmar essa impressão, o animal projetou para mim uns quantos centímetros de seu rosado membro reprodutor.

-Gosta, mamem Bree, muito séria.

-Que honra!-murmurei, rogando que a seu proprietário não lhe ocorresse fazer alguma demonstração similar.

-Tesouras-pedí, já resignada, estendendo a palma.

         depois de recortar a pelagem condensada em torno da ferida, tive o prazer de comprovar que não havia muita tumefação, nem outros sinais de que estivesse infectada. O talho tinha coagulado bem; pelo visto tinha passado algum tempo. Perguntei-me se o cão tinha encontrado seu castigo na montanha. O ancião não me resultava conhecido, nem falava com entonação escocesa. Parecia duvidoso que tivesse participado da congregação.

-Né…quer você lhe sujeitar a cabeça, por favor?-pedi-lhe.

         O dono, sumido em suas tristes reflexões, não fez gesto algum de colaborar.

-Vejamos, a bhalaich, vamos ver. Disse uma voz tranqüilizadora a meu lado.

         Ao me voltar, surpreendida, vi que o cão farejava com interesse os nódulos do Murray MacLeod. Ante minha cara de assombro ele se encolheu de ombros com um sorriso; logo se inclinou para a mesa, aferrando ao estupefato animal pela pele do pescoço e o focinho.

-Aconselharia-lhe que atuasse depressa, senhora Fraser-disse.

         Sujeitando com firmeza a pata mais próxima, comecei. O animal reagiu retorcendo-se com vigor em um intento de escapar. Por fim conseguiu liberar-se do Murray; imediatamente saltou fora da mesa, lançando-se para o espaço aberto, com as suturas a rastros. Joguei-me sobre ele e ambos rodamos entre as folhas e o barro, dispersando aos curiosos, até que uma ou duas almas audazes foram em meu auxílio e imobilizaram ao vira-lata contra o chão, para que eu pudesse terminar meu trabalho.

         Atei o último nó, cortei o fio encerado com a navalha do Murray (embora pisoteada na resistência, por sorte não se quebrado) e finalmente retirei o joelho com que sujeitava o flanco do sabujo, ofegando quase tanto como ele.

         Os espectadores aplaudiram e eu fiz uma reverência, um pouco aturdida. Murray se inclinou para levantar o cão e o pôs de novo sobre a mesa, junto a seu proprietário.

-Seu cão, senhor-lhe disse, com um ofego sibilante.

         O ancião apoiou uma mão na cabeça do animal e nos olhou com o sobrecenho franzido, como se não soubesse como interpretar esse novo enfoque de cirurgia em equipe.

         Logo jogou uma olhada aos soldados, por cima de seu ombro, e finalmente voltou para mim.

-Quais são?-perguntou em tom de profundo desconcerto.

         Sem esperar resposta, afastou-se encolhendo os ombros. O cão desceu de um salto e, com a língua pendurando, partiu junto a seu dono em busca de novas aventuras.

         Aspirei profundamente, sacudi o barro de meu avental e, depois de dar as graças ao Murray com um sorriso, fui lavar me as mãos antes de atender ao próximo paciente.

-Ja!-exclamou Brianna pelo baixo-.Aqui o tem!

         E levantou apenas o queixo, assinalando algo a minhas costas. Girei-me para olhar.

         O seguinte paciente era um cavalheiro. Um cavalheiro de verdade, a julgar por sua roupa e seu porte, ambos bastante por cima do habitual. Eu o tinha visto rondar pelo extremo do claro, observando alternativamente meu centro de operações e o do Murray, como se se perguntasse a qual dos médicos brindar o privilégio de atendê-lo. Pelo visto, o incidente do cão tinha inclinado a balança em meu favor.

         Joguei uma olhada ao Murray, que estava visivelmente aborrecido. Os cavalheiros estavam acostumados a pagar em dinheiro. Encolhi-me um pouco de ombros, como lhe pedindo desculpas. Logo, com um simpático sorriso profissional, indiquei ao novo paciente que tomasse assento em meu tamborete.

-você tome assento, senhor, e me diga onde lhe dói.

         O cavalheiro era um tal senhor Goodwin, do Hillsborough; sua principal doença, uma moléstia no braço. Mas notei que esse não era seu único problema; uma ferida recentemente cicatrizada serpenteava pelo flanco de sua cara, estirando a comissura do olho para baixo em um entorto os olhos feroz.

         Apalpei cuidadosamente o braço e o ombro, lhe pedindo que o levantasse e o movesse um pouco, enquanto o para breves pergunta. O problema era bastante óbvio: deslocou-se o cotovelo; embora felizmente a lesão se reduziu por si só, parecia ter um tendão esmigalhado, que agora estava apanhado entre o olécranon e a cabeça da ulna; desse modo, qualquer movimento do braço piorava a lesão.

         Isso não era tudo; apalpando cautelosamente para baixo, não menos de três fraturas simples no antebraço, já ao meio soldar. Não todo o dano era interno: observei os restos descoloridos de dois grandes moretones no antebraço, em cima das fraturas; cada um deles era uma mancha irregular, de tom amarelo esverdeado; no centro, o negro avermelhado da hemorragia profunda. “ Se estas não forem lesões recebidas em defesa própria-me dije,yo- sou a China”

-Bree, busca me umas tabuletas adequadas, quer?-pedi.

         Brianna assentiu sem dizer nada e despareció, enquanto eu lubrificava as contusões mais leves do senhor Goodwin com um ungüento de cayeput.

-Como se lesou, senhor Goodwin?-perguntei em tom indiferente, enquanto escolhia uma atadura de linho-. Parece ter liberado um verdadeiro combate. Espero ao menos que seu competidor tenha ficado ainda pior.

         O senhor Goodwin sorriu fracamente ante minha ocorrência.

-Pois sim, foi todo um combate-dijo-, embora não me incumbia. Mas bem foi questão de má sorte: poderia-se dizer que me encontrava em mau lugar no pior momento. Mesmo assim…

         Fechou por ato reflito o olho estirado ao tocar eu a cicatriz. A tinham saturado sem habilidade, mas estava bem fechada.

-De varas?-comentei-.O que aconteceu?

         Embora deixou escapar um grunhido, não parecia molesto pela necessidade de me contar isso

-Sem dúvida você escutou ao oficial, senhora, que leu as palavras do governador com respeito à atroz conduta dos bagunceiros.

-Duvido que as palavras do governador tenham escapado à atenção de alguien-murmurei, atirando brandamente a pele com a ponta dos dedos-.De maneira que você esteve no Hillsborough. É isso o que me está dizendo?

-É claro que sim.-Suspirou, mas se relaxou um pouco, vendo que minhas mãos pinçavam sem fazer mal-. Em realidade vivo no Hillsborough. E se me tivesse ficado tranqüilamente em casa, como me rogava minha boa esposa…-Sorriu pela metade, com tristeza-. Sem dúvida teria podido escapar.

-Como diz o refrão inglês, a curiosidade matou ao gato.- Seu sorriso me tinha feito descobrir algo; pressionei brandamente com o polegar em uma zona arroxeada da bochecha-.Alguém lhe golpeou aqui com certa força. Tem dentes quebrados?

         Pareceu um pouco surpreso.

-Sim, senhora. Mas não é algo que você possa reparar.

         Levantou-se o lábio superior, descobrindo um oco onde faltavam duas peças dentais. Um pré-molar tinha sido arrancado limpamente, mas o outro estava partido para a altura da raiz.

         Brianna, que chegava nesse momento com as tabuletas, emitiu um leve som de asco. Os outros dentes do senhor Goodwin, essencialmente inteiros, tinham incrustações de sarro amarelo e as manchas pardas do tabaco mascado.

-OH!, acredito que posso fazer algo-lhe assegurei, sem emprestar atenção a minha filha-.Dói ao morder, verdade? Não posso arrumá-lo, mas sim extrair os restos do dente quebrado e tratar a gengiva para evitar infecções. Quem o golpeou?

         Apenas se encolheu de ombros, observando com um interesse algo apreensivo as tenazes reluzentes e o escalpelo de folha plaina que eu preparava.

-A verdade, senhora, é que não sei bem. Eu só me aventurei a ir à cidade para visitar os tribunais. vou cercar julgamento contra alguém em Virginia-explicou-, e me requer que presente alguns documentos para respaldar minha posição. Mas não pude realizar o trâmite, pois a rua, diante dos tribunais, estava repleta de homens, muitos dos quais tinham ido armados são paus, látegos e toscos instrumentos desse tipo. Sabia que meu amigo, o senhor Fanning, estava dentro, e comecei a me preocupar com ele.

-Fanning…Se refere você ao Edmund Fanning?

         Estava escutando só pela metade, enquanto procurava a melhor maneira de realizar a extração, mas reconheci o nome. Farquard Campbell o tinha mencionado ao narrar ao Jamie os sangrentos detalhes dos distúrbios que seguiram a Lei do Selo, poucos anos atrás. Fanning tinha sido renomado chefe de correios da colônia, lucrativo posto que provavelmente lhe custou bastante dinheiro. E pagou um preço até major quando foi obrigado a renunciar pela força. Pelo visto, sua impopularidade tinha aumentado nos cinco anos transcorridos.

         O senhor Goodwin apertou os lábios, até desenhar uma linha de desaprovação.

-Sim, senhora, desse cavalheiro se trata. E face às coisas escandalosas que a gente divulga sobre ele, comigo e com meus se comportou sempre como um bom amigo. Por isso, para ouvir que se expressavam sentimentos tão lamentáveis, essas ameaças contra sua vida, decidi ir em seu auxílio.

         O senhor Goodwin não tinha tido muito êxito em sua galharda empresa.

-Tratei de me abrir caminho entre a multidão-disse, com a vista fixa em minha mão. Eu estava lhe acomodando o braço ao longo da tabuleta e dispondo debaixo a vendagem de linho-. Mas não pude fazer grande coisa. Logo que tinha chegado ao pé da escalinata quando de dentro me chegou um forte grito. A multidão retrocedeu, me arrastando consigo.

         Tiraram o Edmund Fanning do edifício pela força e o arrastaram pelas escadas; sua cabeça golpeava cada um dos degraus.

-E que ruído!-exclamou, estremecido-.O ouvia por cima da gritaria.

-Céu Santo!-murmurei-. Mas não o mataram, verdade? Não soube que morrera ninguém no Hillsborough. Afrouxe o braço, por favor, e aspire fundo.

         O senhor Goodwin aspirou fundo, sim, mas só para lançar um forte bufo. Seguiu-lhe uma exclamação muito mais grave: eu acabava de girar o braço, liberando o tendão apanhado e alinhando corretamente a articulação.

-Pois se não morreu, não foi por misericórdia dos desmandados-me disse-.Foi só porque decidiram que seria mais divertido arremeter contra o juiz maior. Então, deixaram ao Fanning inconsciente ali atirado para correr ao interior do edifício. Outro amigo e eu nos apressamos a levantar o pobre homem. Quando tratávamos de levá-lo a um refúgio próximo, ouvimos gritos a nossas costas. Imediatamente nos atacou a multidão. Foi assim como me fizeram isto-se tocou o braço recém entalado-y isto.

         Assinalou a cicatriz junto ao olho e o dente destroçado. Logo me olhou com as grosas sobrancelhas contraídas.

-me crie, senhora: espero que alguns destes homens decidam revelar os nomes dos bagunceiros, a fim de que sejam justamente castigados por atos tão bárbaros. Mas se encontrasse aqui a quem me golpeou, não o entregaria à justiça do governador. É obvio que não o faria!

         Enquanto apertava lentamente os punhos, cravou-me um olhar fulminante, como se suspeitasse que eu tinha a criminosa escondido sob a mesa. Brianna se removeu, inquieta. Sem dúvida estava pensando, como eu, no Hobson e Fowles. Quanto ao Abel MacLennan, sem importar o que tivesse feito no Hillsborough, sentia-me inclinada a tomá-lo por espectador inocente.

         depois de murmurar algumas palavras de simpatia sem me comprometer, tirei a garrafa de uísque que utilizava como desinfetante e tosca anestesia. Ao vê-lo, o senhor Goodwin pareceu reanimar-se notavelmente.

-Só um poquito disto para…né…fortalecer o espíritu-sugeri, lhe enchendo uma taça. Assim lhe desinfetaria também o horrível interior da boca-.Retenha-o um momento antes de tragar; isso lhe intumescerá o dente.

         Voltei-me para a Brianna, enquanto Goodwin sorvia obedientemente uma boa quantidade de licor, com as bochechas infladas como as rãs a ponto de cantar. Minha filha estava um pouco pálida, mas não soube se lhe tinha afetado o relato do paciente ou a visão de sua dentadura.

-Acredito que não vou necessitar te o resto da manhã, querida-dije, lhe dando uns tapinhas-. por que não vais ver se Yocasta estiver lista para as bodas da noite?

-Está segura, mamãe?

         Até enquanto o perguntava, desatou-se o avental manchado de sangue e o reduziu a um novelo. Vendo que olhava para o alto do atalho, segui a direção de sua vista. Roger estava espreitando detrás de um arbusto, com os olhos fixos nela. Notei que lhe iluminava o rosto ao vê-la. Isso despertou uma cálida alegria. Eram um bom casal, sim.

-Agora, senhor Goodwin, você beba uma gota mais, para que possamos terminar com este pequeno assunto.

         Me voltando para meu paciente com um sorriso, agarrei as tenazes.

 

                   Pelos velhos tempos

         Roger esperava ao bordo do claro, observando a Brianna. De pé junto Claire, a moça triturava ervas, media líquidos e fazia enfaixa. A pesar do frio, estava arregaçada; no esforço de rasgar o robusto linho, os músculos de seus braços nus se enchiam e flexionavam sob a pele sardenta.

         Não só ele o observou. Das pessoas que esperavam para ser atendidas pelos dois médicos, a metade também estava contemplando a Brianna; algumas (as mulheres, em sua maioria), com expressão vagamente intrigada; outras (homens todos eles) com encoberta admiração, tinta de especulações terrestres, que provocaram no Roger o impulso de sair ao claro e fazer valer imediatamente seus direitos sobre ela.

         «Bom, que olhem. Enquanto ela não lhes devolva o olhar, não importa, verdade?»

         Saiu de entre as árvores, apenas um pouco, e ela se girou imediatamente para olhá-lo. O gesto levemente carrancudo desapareceu e sua cara se iluminou. Lhe devolveu o sorriso, com um movimento de cabeça que a convidava a segui-lo, e pôs-se a andar pelo atalho, sem esperar.

         Tinha abandonado o trabalho, e trazia algo na mão: um pacote pequeno, envolto em papel e maço com corda. Ele alargou uma mão para conduzi-la fora do atalho, para um bosquccillo onde a folhagem vermelha e amarelo dos arces oferecia uma agradável sensação de intimidade.

         - Me perdoe por te apartar de seu trabalho - disse, embora não o sentia.

         - Não importa. Já queria escapar. Temo-me que não agüento isso do sangue e as tripas. - Ela o admitiu com uma careta melancólica.

         - Me alegro - assegurou-lhe ele- . Não é isso o que pretendo de uma esposa.

         - Pois te conviria - apontou ela, lhe jogando um olhar tristemente reflexivo- . Aqui, neste lugar, não te viria mal ter uma esposa capaz de te arrancar os dentes se lhe estragam e de te costurar os dedos se lhe os curtas machadando lenha.

         O dia cinza parecia lhe haver afetado o ânimo... ou talvez era pelo trabalho que tinha estado fazendo. Ver o desfile de pacientes do Claire era deprimente para qualquer, salvo para a mesma Claire: toda uma série de deformidades, mutilações, feridas e enfermidades horríveis.

         Quanto menos, o que pensava dizer distrairia a Brianna dos detalhes mais horripilantes do século XVIII. lhe cobrindo a bochecha com uma mão, alisou uma das povoadas sobrancelhas vermelhas com o polegar gelado. Ela também tinha a cara fria, mas detrás da orelha, sob o cabelo, a pele estava morna... como seus outros lugares ocultos.

         - Eu encontrei o que desejava - disse com firmeza- . Mas o que me diz de ti? Não teria preferido a um homem capaz de arrancar o couro cabeludo aos índios e prover o jantar com sua escopeta? Tampouco eu gosto de muito o sangue, sabe?

         Nos olhos do Bree reapareceu uma faísca de humor, aliviando seu ar preocupado.

         - Não, acredito que não necessito a um sanguinário. Assim chama minha mãe a papai, mas só quando está zangada com ele.

         Roger riu.

         - E como me chamará você quando te zangar? - provocou-a.

         Ela o olhou, como avaliando a pergunta, e a faísca se fez mais intensa.

         - OH, não se preocupe. Papai não quis me ensinar palavrões em gaélico, mas do Marsali aprendi coisas muito feias em francês. Sabe o que significa um soulard? E um grand gueule?

         - Oui, MA petite chou, embora nunca vi uma couve com um nariz tão vermelho. - Apontou-lhe com o dedo diretamente ao nariz; ela o esquivou, rendo.

         - Maudit chien!

         - Reserva algo para depois das bodas - aconselhou-lhe ele- . Pode te fazer falta.

         Logo a agarrou da mão para levá-la para uma pedra onde estivesse cômoda, então voltou a reparar no pequeno pacote que ela trazia.

         - O que é isso?

         - Um presente de bodas.

         Bree o alargou sustentando-o com dois dedos, enojada, como se fora um camundongo morto.

         - Fios de seda para bordar - explicou-lhe ela- . Da senhora Buchanan. Entre suas sobrancelhas tinha reaparecido a ruga e essa expressão...               Preocupada? Não, era outra coisa, mas Roger foi incapaz de saber o que era.

         - O que tem de mau a seda para bordar?

         - Nada, mas sabe para que é? - Bree agarrou novamente o pacote e o guardou no bolso que tinha pacote sob a anágua. Olhava para baixo, colocando-as saias, mas ele notou que tinha os lábios apertados- . Disse que é para nossos panos mortuários.

         A estranha versão que Brianna fazia desse término escocês, com seu acento bostóniano, fez que Roger demorasse um momento em decifrá-lo.

         - Panos mo... Mortalhas, quer dizer?

         - Sim. Ao parecer, meu dever de esposa é me sentar a fiar para minha mortalha, da manhã seguinte à bodas. - Disse-o entre dentes apertados- . Desse modo já estará tecida e bordada quando mora de parto. E se for rápida para os trabalhos, terei tempo de fazer também uma para ti; de outro modo terá que ser seu seguinte algema quem a termine.

         Roger sentiu desejos de rir, mas era óbvio que ela estava afligida.

         - A senhora Buchanan é uma idiota - disse ele, estreitando suas mãos- . Não deixe que se preocupe com suas tolices.

         Brianna o olhou por debaixo de suas sobrancelhas franzidas, dizendo com toda claridade:

         - A senhora Buchanan é ignorante, estúpida e insensível. Mas não se equivoca.

         - É obvio que sim - assegurou ele, fingindo segurança, embora com um pouco de apreensão.

         - Quantas algemas enterrou Frarquard Campbell? - inquiriu ela- . E Gídeon Oliver? E Andrew MacNeil?

         Nove, entre os três. MacNeil se casaria essa noite pela quarta vez, com uma moça do Weaver's Gorge, de dezoito anos.

         - Mas Jenny Ban Campbell teve oito filhos e coveiro a dois maridos - contra-atacou, firme- . A própria senhora Buchanan segue viva e abanando o rabo, depois de ter tido cinco crios. Vi-os: todos cabezahuecas, mas sãs.

         Isso provocou uma relutante contração de lábios, que o respirou a continuar:

         - Não tem nada que temer, tesouro. Com o Jemmy não teve nenhuma dificuldade, não é verdade?

         - Não? Pois se crie que isso é tão fácil, a próxima vez pode fazê-lo você - espetou-lhe ela. Quis liberar sua mão, mas ele a reteve sem encontrar resistência.

         - Mas está disposta a que haja uma próxima vez, verdade? Apesar do que diga a senhora Buchanan. - Embora seu tom era deliberadamente ligeiro, estreitou-a contra si, ocultando a cara em sua cabeleira, para que não visse quão importante era essa pergunta para ele.

         Bree, sem deixar-se enganar, apartou-se um pouco para trás. Seus olhos, azuis como a água, investigaram nos dele.

         - Casaria-te comigo, apesar de ter que observar o celibato? - perguntou- . É o único método seguro. O azeite de atanasia não sempre dá bom resultado. Aí tem ao Marsali!

         A existência da pequena Joan era testemunho eloqüente do inefectivo que resultava esse método anticoncepcional. Mesmo assim...

         - Deve haver outros recursos - expressou ele- . Mas se quiser celibato... Pois bem, seja.

         Ela se pôs-se a rir, porque a mão do Roger se esticou posesivamente contra seu traseiro, enquanto seus lábios tinham pronunciado a renúncia. Mas a risada se apagou e o azul de seus olhos se tornou mais escuro, mais turvo.

         - Diz-o a sério, verdade?

         - Sim - assegurou ele. E era certo, embora a idéia lhe pesava no peito como uma laje.

         Com um suspiro, lhe acariciou a bochecha com uma mão, seguindo a linha do pescoço, o oco da base. Pressionou com o polegar contra o pulso palpitante, lhe deixando sentir seus próprios batimentos do coração.

         Havia-o dito a sério, mas inclinou a cabeça para ela e lhe buscou a boca. Precisava unir-se a ela com tanta urgência que o faria de qualquer maneira possível: com as mãos, com o fôlego, a boca, os braços; sua coxa pressionou entre os do Bree, lhe separando as pernas. Ela apoiou uma mão contra seu peito, para rechaçá-lo, mas logo a esticou convulsivamente, aferrando a um tempo a camisa e a carne. Seus dedos se cravaram profundamente nos músculos do peito. E logo ficaram pegos, com a boca aberta, ofegantes, entrechocando dolorosamente os dentes no arrebatamento do desejo.

         - Não posso... não devemos... - Ele se largou. Sua mente, entorpecida, jogou mão de palavras fragmentadas. Nesse instante a mão do Bree encontrou o caminho sob sua saia escocesa: um toque frio e firme em sua carne acalorada. Então perdeu por completo a faculdade da fala.

         - Uma última vez, antes de renunciar - disse Bree- . Em lembrança dos velhos tempos.

         E caiu de joelhos entre as folhas molhadas, arrastando-o com ela.

         Chovia outra vez; a cabeleira pulverizada-se o veteaba de umidade. Tinha os olhos fechados e a cara volta para a garoa; as gotas lhe golpearam a cara, rodando como lágrimas. Em realidade, não sabia se rir ou chorar.

         Roger jazia a seu lado, médio cobrindo-a; seu peso era um consolo morno e sólido; sua saia escocesa protegia da chuva as pernas nuas e enredadas dos dois. Ela curvou uma mão contra sua nuca, lhe acariciando o cabelo molhado e lustroso.

         Então ele se incorporou, com um grunhido de urso ferido. Uma rajada fria golpeou o corpo do Bree, úmido e quente ali onde tinham estado em contato.

         - Perdoa - murmurou ele- . Sinto muito, sinto muito. Não deveria ter feito isso.

         - Não importa - disse ela, incorporando-se.

         Tinha os peitos inchados pelo leite, que tinha empapado a camisa e o corpino em grandes mancha, lhe gelando a pele. Roger, ao notá-lo, recolheu o manto que ela tinha deixado cair e lhe cobriu brandamente os ombros.

         - Me perdoe - repetiu, enquanto lhe apartava o cabelo emaranhado da cara.

         - Não se preocupe. Ainda estou amamentando ao Jemmy; são só seis meses. Acredito que ainda não há perigo.

         Mas se perguntava por quanto tempo mais. Ainda lhe atravessavam o corpo pequenas descargas de desejo, misturadas com o medo.

         Precisava tocá-lo. Agarrou uma ponta de seu manto para pressionar a ferida que sangrava sob a mandíbula do Roger. Abstinência, quando seu contato, seu aroma, a lembrança dos últimos minutos a faziam desejar derrubá-lo entre as folhas para recomeçar? Quando a ternura brotava dela como o leite que ia a seus peitos sem que ninguém a convocasse?

         Os peitos lhe doíam de desejo insatisfeito; sentiu a destilação do leite que lhe corria pelas costelas, sob o tecido. tocou-se um peito, pesado e cheio. Sua garantia de amparo... por um tempo.

         Roger lhe apartou a mão de sua cara e se tocou d talho.

         - Está bem - disse- . Já não sangra.

         Sua expressão era muito estranha, ou talvez eram muitas. Normalmente sua cara era agradavelmente reservada, possivelmente algo severo. Agora suas facções pareciam incapazes de assentar-se; passava de uma inegável satisfação a uma consternação igualmente inegável.

         - O que acontece, Roger?

         O lhe jogou uma fugaz olhada e apartou a vista; às bochechas subiu um leve rubor.

         - OH, bom - disse- . É que... em realidade... ainda não nos casamos.

         - Certamente que não. As bodas será esta noite. E a propósito... - Bree o observou tentando não rir- . OH, querido. diria-se, senhor MacKenzie, que alguém o submeteu a sua vontade no meio do bosque.

         - Muito graciosa, senhora MAC - replicou ele, assinalando seu próprio desalinho- . Você também parece ter liberado um estranho combate. Mas me referia a que estamos comprometidos há um ano... e isso é um vínculo legal, pelo menos em Escócia. Mas faz tempo que se cumpriu o período de um ânus e um dia... e não estaremos formalmente casados até a noite.

         Ela o olhou com os olhos entreabridos, enxugando-a chuva com o dorso da mão. Uma vez mais cedeu ao impulso de rir.

         - Santo Céu, não me diga que isso te importa! O sorriu com certa relutância.

         - Bom, não, mas fui criado por um pregador. Já sei que está bem, mas o velho calvinista escocês que levo dentro me sussurra que é pecaminoso fazê-lo com uma mulher que não é minha esposa.

         - Ja! - exclamou ela- . Não me venha com essas do velho calvinista arde. O que é o que acontece?

         - Não posso dizer que seu medo não esteja justificado - disse em voz baixa- . Até hoje não me tinha precavido de quão perigoso é o matrimônio para uma mulher. - Levantou a vista para lhe sorrir, embora a expressão preocupada não abandonou seus olhos verde musgo- . Quero-te, Bree, mais do que posso expressar. Mas estive pensando no que acabamos de fazer, no estupendo que foi, e tenho cansado na conta de que possivelmente... Não, com segurança... se continúo fazendo-o porei sua vida em perigo. E maldito se quero deixar de fazê-lo!

         - Sim. - Aspirou tão fundo como ele e deixou escapar o ar em uma voluta branca- . Bom, suponho que é muito Urde para preocupar-se por isso. - Tocou-lhe o braço- . Quero-te, Roger.

         E baixou a cabeça para beijá-lo, procurando consolo contra seus temores na força do braço que a rodeava, no calor desse corpo.

         - OH, Bree! - murmurou ele contra seu cabelo- . Quero lhes manter a salvo, a ti e ao Jemmy, de algo que possa lhes ameaçar. É terrível pensar que eu mesmo poderia ser a ameaça, que poderia te matar com meu amor... mas é certo.

         O coração do Roger pulsava sob seu ouvido, sólido e firme. Bree sentiu a tibieza que lhe voltava para as mãos, entrelaçadas contra os ossos de suas costas; o degelo foi mais fundo, até desenredar algumas fios gelados do medo que tinha dentro.

         - Tudo está bem - disse por fim, por lhe oferecer o consolo que ele não conseguia lhe brindar- . Não acredito que haja problemas. Tenho bons quadris. Todo mundo me há isso dito. Quadris de vasilha, verdade?

         Deslizou melancolicamente uma mão pela generosa curva de um quadril. Ele seguiu o percurso com sua própria mão, sorridente.

         - Sabe o que me disse ontem à noite Ronnie Sinclair, depois de verte recolher um lenho do chão? Disse-me, com um suspiro: «Sabe como se escolhe uma boa moça, MacKenzie? Começa pelo fundo e vai ascendendo.» Ai!

         Recebeu o cabeçada com um coice, rendo. Logo se inclinou para beijá-la com muita suavidade.

         - Quer que tenhamos um bebê, verdade? - perguntou ela, brandamente- . Um bebê que seja teu sem lugar a dúvidas?

         Ele manteve por um momento a cabeça inclinada, mas ao fim levantou a vista, lhe deixando ver a resposta em sua cara: um grande desejo misturado com preocupação.

         - Não quisesse... - começou.

         Mas lhe tampou a boca com uma mão para sossegá-lo.

         - Sim. Compreendo.

         E era certo... ou quase. Ambos eram filhos únicos; sabia da necessidade de vínculo, de afeto; mas a sua estava satisfeita. Tinha tido não um pai carinhoso, a não ser dois. Uma mãe que a amava além dos limites do espaço e o tempo. Os Murray do Lallybroch, como se alguém lhe tivesse agradável inesperadamente uma família. E sobre tudo seu filho: sua carne, seu sangue, um peso pequeno e crédulo que a atava com firmeza ao universo.

         Roger, em troca, era órfão. Durante muito tempo tinha estado sozinho no mundo, depois de perder a seus pais antes de conhecê-los; morto seu velho tio, não tinha a ninguém que o amasse só por ser de seu próprio sangue. Só a ela. Era compreensível que ansiasse a certeza que ela sustentava nos braços ao amamentar a seu filho.

         de repente Roger pigarreou.

         - Né... lhe pensava dar isso esta noite, mas talvez... bom... - Afundou a mão no bolso interior da jaqueta e lhe entregou um objeto brando, envolto em um tecido- . Deveria ser um presente de bodas, não?

         Sorria, mas Bree detectou em seus olhos a vacilação. Ao apartar o tecido se encontrou com um par de olhos de botão negro que a olhavam. A boneca luzia um vestido de calicó verde; em sua cabeça estalava o cabelo de lã vermelha. Sentiu um nó na garganta e o peso do coração no peito.

         - Me ocorreu que ao menino podia lhe gostar de... possivelmente para mordê-la.

         Bree se moveu; a pressão do tecido empapado provocou uma ardência em seus peitos. Tinha medo, sim, mas havia coisas mais fortes que o medo.

         - Haverá uma próxima vez - disse-lhe, apoiando uma mão em meu braço- . Não posso te dizer quando, mas a haverá.

         Roger estreitou com força aquela mão, sem olhá-la.

         - Obrigado, quadris de vasilha- disse por fim, muito fico.

 

A chuva aumentava; já era torrencial. Roger se apartou com o polegar o cabelo molhado dos olhos e se sacudiu como um cão, disseminando gotas de água da trama fechada de sua jaqueta e sua manta. O peitilho azul tinha uma mancha de barro; esfregou-a sem resultado algum.

         - Cristo! Não posso me casar assim - disse- . Pareço um mendigo.

         - Ainda está a tempo, sabe? - brincou ela- . Ainda poderia te jogar atrás.

         - foi muito tarde desde dia em que te conheci - resmungou ele- . Além disso, seu pai me estriparia como a um porco se me ocorresse pensá-lo melhor.

         - Ja! - exclamou ela. Mas o sorriso dissimulado pôs uma covinha em suas bochechas.

         - Mulher! Não me diga que a idéia você gosta!

         - Sim. Quer dizer... - Agora Bree ria; isso era o que ele procurava- , não quero que te estripe, mas eu gosto de saber que o faria. Todo pai deve ser protetor. - Tocou-o apenas, sorridente- . Como você, senhor MacKenzie.

         Agarrou-a por um braço para conduzi-la para um lugar protegido da chuva, ao amparo de um grupo de discos, onde a pinaza formava uma capa seca e fragrante sob os pés, protegida pelos largos ramos.

         - Bom, venha a sentar um momento comigo, senhora MAC. Há uma pequenez, nada importante, que quero lhe dizer antes das bodas.

         Fez-a sentar a seu lado, em um tronco podre e carregado de líquen, Logo pigarreou, procurando o fio do relato.

         - Estando ainda no Inverness, antes de te seguir através das pedras, dediquei algum tempo a revisar os papéis do reverendo; ali encontrei uma carta que lhe tinha escrito seu pai. Refiro ao Frank Randall. Não importa muito... agora já não... mas me pareceu que... Bom, que não devia haver segredos entre nós antes de nos casar. Ontem à noite o contei a seu pai. Deixa que agora lhe conte isso a ti.

         A mão do Bree cobria calidamente a sua, mas os dedos se foram esticando segundo ele falava; entre as sobrancelhas da moça cresceu um sulco profundo.

         - Outra vez - pediu ela, ao terminar Roger- . Conta-me o outra vez.

         Por dar gosta, ele repetiu a carta tal como a tinha memorizado, palavra por palavra. Tal como a tinha recitado ao Jamie Fraser a noite anterior.

         - De maneira que essa lápide que está em Escócia, com o nome de papai, é falsa? - A estupefação lhe fez elevar um pouco a voz- . Papai... Frank... fez que o reverendo a pusesse ali, no cemitério da Santa Kilda, mas ele não está... quer dizer, não estará baixo ela?

         - Sim, assim foi, e não, não estará - disse Roger, seguindo escrupulosamente d rastro à pergunta- . Frank Randall queria que a pedra fora uma espécie de reconhecimento, suponho: uma dívida que tinha com seu pai... seu outro pai, Jamie.

         A cara da Brianna estava morada pelo frio, com a ponta do nariz e das orelhas tintas de vermelho; o calor do sexo se ia esfumando.

         - Mas se não tinha segurança de que mamãe e eu a encontrássemos!

         - Não sei se queria que a encontrassem - opinou Roger- . Talvez ele tampouco sabia. Mas se sentiu na obrigação de fazer esse gesto. Por outra parte - adicionou, recordando súbitamente algo- , não disse Claire que ele queria te levar a Inglaterra, justo antes de sua morte? Talvez pensava te levar ali e ocupar-se de que a encontrasse, para logo deixar que você e Claire decidierais o que fazer.

         Ela se esteve quieta, resmungando aquilo.

         - Ele sabia, pois - disse, lentamente- . Que ele... que Jamie Fraser tinha sobrevivido à batalha do Culloden. Sabia... e não disse nada?

         - Não acredito que o possa reprovar - observou Roger, suave- . Não era puro egoísmo, compreende?

         - Não? - Ainda estava horrorizada, mas não tinha chegado à irritação. Ele a viu dar voltas ao assunto, tratando de vê-lo em todos seus aspectos para saber o que pensar, o que sentir.

         - Não. Pensa-o, tesouro - insistiu-a ele. A pícea estava fria contra suas costas; a casca do tronco cansado, úmida sob a mão- . Amava a sua mãe, sim, e não queria arriscar-se a perdê-la outra vez. Isso pode ser egoísmo, mas ao fim e ao cabo ela se casou primeiro com ele. Ninguém pode reprovar ao Frank que não queria cedê-la a outro homem. Mas isso não é tudo.

         - Que mais? - A voz do Bree soava serena; seus olhos azuis olhavam de frente.

         - Pois... o que teria passado se o houvesse dito? Ali estava você, uma criatura pequena. Recorda que nenhum deles teria pensado que você também podia cruzar através das pedras.

         Bree seguia olhando-o com atenção, mas seus olhos haviam tornado a empanar-se.

         - Mamãe teria tido que escolher - disse brandamente, sem deixar de olhá-lo- . Entre ficar conosco... ou reunir-se com ele. Com o Jamie.

         - Te deixar atrás - completou Roger, com um gesto afirmativo- ou ficar e continuar com sua existência, sabendo que seu Jamie estava com vida, possivelmente a seu alcance... mas fora de seu alcance. Romper seus votos esta vez a propósito, e abandonar a sua filha. Ou viver desejando. Não acredito que isso fora muito bom para sua vida familiar.

         - Compreendo. - Ela suspirou. O vapor de seu fôlego desapareceu no ar frio como um espectro.

         - Talvez Frank teve medo de permitir que escolhesse - apontou Roger- , mas o certo é que lhe economizou (e também a ti) a dor de fazê-lo. Pelo menos então.

         Os lábios da Brianna se franziram, projetaram-se, ficaram frouxos.

         - Eu gostaria de saber o que teria decidido ela se ele o houvesse dito - murmurou, algo triste.

         Lhe estreitou ligeiramente a mão.

         - Teria ficado - disse com segundad- . Acaso não o decidiu uma vez? Jaime a obrigou a retornar para te manter a salvo, e ela se foi. teria ficado contigo enquanto a necessitasse, sabendo que era o que ele desejava. Inclusive quando voltou, tampouco o teria feito se você não tivesse insistido. Suponho que sabe bem.

         Ela relaxou um pouco as facções, aceitando a idéia.

         - Acredito que tem razão. Mas saber que ele estava com vida e não tratar de reunir-se com ele...

         Roger se mordeu a cara interior da bochecha para não perguntar: «O que decidiria você, Brianna, se tivesse que escolher entre o pequeno e eu?» Que homem podia impor uma alternativa assim à mulher que amava, embora fora hipoteticamente? Seja pelo bem do Bree, seja pelo seu próprio... não o perguntaria.

         - Mas ele pôs a lápide ali. Para que? - O sulco entre suas sobrancelhas seguia sendo profundo, mas já não reto; contraía-o uma crescente preocupação.

         Roger não conhecia o Frank Randall, mas experimentava certa empatia com esse homem. E não era tão desinteressada. Até então não teria podido dizer por que necessitava que Bree soubesse o da carta justo agora, antes das bodas, mas seus próprios motivos foram aparecendo com mais claridade (e mais inquietantes).

         - Acredito que foi por obrigação, como te hei dito. Obrigação não só com o Jaime ou sua mãe, mas também contigo. Se... - Fez uma pausa para lhe estreitar a mão com força- . Ouça, pensa no pequeno Jemmy. É tão meu como você e sempre o será. - Aspirou fundo- . Mas se eu estivesse no pele do outro homem...

         - Se fosse Stephen Bonnet - esclareceu ela, com os lábios tensos, brancos de frio.

         - Se eu fosse Bonnet - acordou ele, com um calafrio de rechaço à idéia- , e soubesse que um desconhecido está criando a meu filho, não quereria que o menino soubesse algum dia a verdade?

         Os dedos do Bree se esticaram nos seus. Seus olhos se obscureceram.

         - Não deve dizer-lhe Pelo amor de Deus, Roger, me prometa que não o dirá nunca!

         Ele a olhou fixamente, atônito. As unhas da moça lhe cravavam dolorosamente na mão, mas não fez nada por liberar-se.

         - Ao Bonnet? Não, mulher! Se alguma vez voltasse a vê-lo, não esbanjaria o tempo falando.

         - Não refiro ao Bonnet. - Bree se estremeceu, sem que ele soubesse se tremia de frio ou de emoção- . Não te aproxime desse homem, Por Deus! Mas não: referia ao Jemmy. - Tragando saliva com dificuldade, aferrou-lhe as mãos- . Prometa-me isso Roger. Se me amar, me prometa que jamais dirá ao Jemmy o do Bonnet. Jamais. Até se me acontecesse algo...

         - Não te acontecerá nada!

         Ela o olhou com um pequeno sorriso irônico.

         - O celibato tampouco é para mim. - Tragou saliva- . E se me acontecesse algo... Promete-o, Roger.

         - Prometo-o, sim - disse ele, a contra gosto- . Se estiver segura...

         - Estou segura, sim!

         - Mas não te teria gostado de saber... o do Jamie?

         Bree se mordeu o lábio. Seus dentes se afundaram ao ponto de deixar uma marca purpúrea na suave carne rosada.

         - Jamie Fraser não é Stephen Bonnet.

         - De acordo - reconheceu ele, seco- . Mas eu não referia ao Jemmy, para começar. Só quis dizer que, se eu fosse Bonnet, eu gostaria de sabê-lo Y...

         - Ele sabe. - Brianna apartou abruptamente a mão e se levantou, lhe voltando as costas.

         - Como que sabe? - Roger a alcançou com grande rapidez e a aferrou pelo ombro para girá-la para si. Vendo que ela fazia uma leve careta, afrouxou os dedos e aspirou fundo, tratando de manter a voz serena- . Que Bonnet sabe o do Jemmy?

         - Pior ainda. - Bree apertou os lábios para impedir que tremessem; logo os abriu, apenas o necessário para deixar que escapasse a verdade- . Acredita que Jemmy é filho dele.

         Então lhe falou dos dias que tinha passado sozinha no River Run, prisioneira de seu embaraço. Falou de lorde John Grei, o amigo de seu pai e dela mesma, a quem tinha podido revelar seus medos e seus conflitos.

         - Temia que todos vós tivessem morrido. Todos: mamãe, papai, você. - Embora o capuz lhe tinha cansado para trás, não fez nada por reacomodarla. O cabelo vermelho pendia sobre seus ombros como chorreantes penetra de rato; tinha gotas de chuva aderidas às povoadas sobrancelhas vermelhas- . Quão último papai me disse... Não, não o disse sequer; teve que escrevê-lo, porque eu não lhe dirigia a palavra. - Tragou saliva, passando uma mão sob o nariz para enxugar a gota que ali pendia- . Disse-me que... devia encontrar a maneira de... de perdoá-lo. Ao Bo... ao Bonnet.

         - A maneira do que? - perguntou Roger.

         - Ele sabia disso - disse Bree, e se interrompeu para olhá-lo, já dominados os sentimentos- . Já sabe o que lhe aconteceu... no Wentworth.

         Com certa estupidez, ele fez um breve gesto afirmativo. Em realidade não tinha uma idéia clara do que tinham feito ao Jamie Fraser... nem desejos de saber mais. Tinha visto as cicatrizes em suas costas e sabia, por alguns comentários do Claíre, que eram só um vago aviso.

         - Ele sabia disso. E sabia o que era necessário fazer. Disse-me isso. Se queria me sentir... íntegra outra vez, devia achar o modo de perdoar ao Stephen Bonnet. E o fiz.

         - Fez-o. - A voz lhe saiu resmungona- . Encontrou-o, pois? Falou com ele?

         Ela assentiu, enquanto se tirava o cabelo molhado da cara. Grei tinha vindo a lhe dizer que Bonnet estava preso e condenado. Enquanto aguardava ser transportado ao Wilmington para sua execução, retinham-no no depósito que a Coroa tinha no Cross Creek. Ali foi onde Brianna foi visitar o, levando consigo o que confiava que fora a absolvição: para o Bonnet, para si mesmo.

         - Estava enorme. - Sua mão esboçou o vulto do embaraço avançado- . Disse-lhe que o bebê era filho dele. ia morrer; talvez o consolaria um pouco pensar que... deixava algo detrás de si.

         Roger sentiu que o ciúmes lhe apertavam o coração, em um ataque tão abrupto que por um momento a dor lhe pareceu físico. «Que deixava algo atrás dele - pensou- . Algo dele. E eu? Se eu morrera amanhã... E bem poderia ser, moça! Aqui a vida é tão perigosa para mim como para ti. O que deixaria de mim atrás, me diga?»

         Soube que não devia perguntá-lo. Tinha jurado não expressar jamais o pensamento de que Jemmy pudesse não ser dele. Se entre eles havia um verdadeiro matrimônio, Jem era seu fruto, quaisquer fossem as circunstâncias de seu nascimento. Entretanto, sentia que as palavras lhe escapavam, que ardiam como ácido.

         - Mas estava segura de que o menino era dele?

         Bree se deteve em seco para olhá-lo, com os olhos dilatados pelo horror.

         - Não. Não, é obvio! Se estivesse segura lhe haveria isso dito. No peito do Roger a dor se acalmou um pouco.      

         - Vale. Mas lhe disse que era... Não lhe disse que havia dúvidas?

         - ia morrer! Minha intenção não era lhe contar a história de minha vida, a não ser lhe oferecer algum consolo. O não tinha por que inteirar-se de sua existência, de nossa noite de bodas O... Vete ao diabo, Roger!

         E lhe deu uma patada na tíbia. O se cambaleou pela força do ataque, mas a sujeitou por um braço, lhe impedindo de fugir.

         - Perdoa! - disse, antes de que ela pudesse golpeá-lo outra vez. Ou mordê-lo: parecia disposta- . Perdoa. Tem razão. Ele não tinha por que inteirar-se. E eu tampouco tenho por que te obrigar a recordar todo isso.

         - claro que sim - disse lhe cravando um olhar sombrio- . Há dito que não deveria haver segredos entre nós. Mas, às vezes, quando revela um segredo há outro escondido detrás, certo?

         - Sim. Mas não se trata... não é minha intenção...

         antes de que ele pudesse dizer nada mais o interrompeu um ruído de pegadas e conversação. Quatro homens saíram da bruma, falando em gaéli-CO com ar despreocupado. Levavam redes e paus afiados; todos foram descalços e molhados até os joelhos. As fileiras de pescado fresco resplandeciam sob a luz chuvosa.

         - Ao Smedraich! - Um homem os viu por debaixo da asa empapada de seu chapéu; imediatamente rompeu em um largo sorriso, enquanto percorria seu desalinho com um olhar ardiloso- . Mas se for você. Astuto! E a filha do Vermelho! Homem! Não podiam dominar-se até que obscurecesse?

         - Sem dúvida é mais doce provar a fruta roubada que esperar a bênção de um sacerdote murcho.

         - Ah, não - disse o terceiro, enxugando-a nariz, enquanto olhava a Brianna, que se tinha apertado o manto- . Ele só estava lhe cantando uma canção de bodas, verdade?

         - Bem que conheço a letra dessa canção - assegurou seu companheiro, alargando o sorriso até exibir a falta de um molar- . Mas eu a canto com mais doçura!

         A Brianna voltavam a lhe arder as bochechas; embora não falava o gaélico com tanta fluidez como Roger, não lhe escapava o sentido dessas brincadeiras grosseiras. Roger se plantou diante dela, protegendo-a com seu corpo, mas os homens não tinham má intenção. face às piscadas e aos sorrisos apreciativos, não fizeram mais comentários. O primeiro se tirou o chapéu para golpeá-lo contra sua coxa, lhe sacudindo a água. Logo foi ao grão.

         - Alegra-me muito te haver encontrado, ao Oranaiche. Ontem à noite minha mãe te ouviu tocar junto ao fogo, e comentou com minha tia e minhas primas que sua música o fazia dançar o sangue nos pés. Agora todas querem que venha ao Spring Creek, a cantar no ceilidh. É que vai casar se minha prima menor, a única filha de meu tio, o dono do moinho farináceo.

         - Será uma grande festa, sem dúvida! - interveio um dos mais jovens.

         - Ah, umas bodas? - disse Roger, em gaélico lento e formal- . Haverá outro arenque, pois.

         Os dois homens maiores estalaram em uma gargalhada; seus filhos, em troca, pareciam desconcertados.

         - Ah, poderiam vocês esbofetear a estes guris com um arenque, e eles não saberiam o que é - disse o homem da boina, movendo a cabeça- . Os dois nasceram aqui.

         - E onde vivia em Escócia, senhor?

         O homem deu um coice, surpreso ante essa pergunta, que uma voz clara tinha formulado em gaélico. Durante um instante olhou fixamente a Brianna; ao responder, sua cara tinha trocado.

         - No Skye - disse brandamente- . Skeabost, ao pé das Cuillins. Sou Angus MacLeod; Skye é a terra de meus pais e de meus avós. Mas meus filhos nasceram aqui.

         Falava em voz baixa, mas seu tom apagou a hilaridade dos jovens, como se sobre eles tivesse cansado uma manta úmida. O homem do chapéu encurvado olhou a Brianna com interesse.

         - E você, a nighean, nasceste em Escócia?

         Ela moveu a cabeça. Ante a expressão interrogante dos homens, Roger respondeu:

         - Eu sim. No Kyle do Lochalsh.

         - Ah! - A satisfação se estendeu pelas facções murchas do MacLeod- . Por isso é que conhece todas as canções das Terras Altas e as Ilhas.

         - Não todas - corrigiu ele, sonriendo- . Mas sim muitas... e quero aprender mais.

         - Faz-o - disse o outro, cabeceando lentamente- . Faz-o, cantor, e enséñaselas a seus filhos. - Seu olhar se posou na Brianna, com um leve sorriso lhe curvando os lábios- . Que as cantem a meus filhos, e assim estes conhecerão o lugar de que vieram, embora jamais o vejam.

         Um dos jovens se adiantou com ar tímido e ofereceu a Brianna um bolo de pescados.

         - Para você - disse- . Um presente de bodas.

         Roger viu que ela contraía ligeiramente uma comissura da boca. Seria humor ou histeria incipiente? Mas ela alargou a mão para agarrar a fileira lhe jorrem, com grave dignidade. Logo, recolhendo o bordo do manto com uma mão, fez a todos uma profunda reverência.

         - Chaneil facal agam dhuibh ach taing- disse, com seu gaélico pausado, de acento estranho. «Não tenho palavras para lhes dizer, salvo obrigado.»

         Os jovens se ruborizaram. Os majores se mostraram profundamente agradados.

         - É boa, a nighean - disse MacLeod- . Deixa que seu marido te ensine... e insígnia Gaidhlig a seus filhos varões. Que tenham muitos!

         E se tirou a boina em uma extravagante reverencia, apertando o barro com os dedos dos pés para não perder o equilíbrio.

         - Muitos filhos varões, fortes e sãs! - acrescentou seu companheiro. Os dois moços assentiram, sorridentes, e murmuraram com acanhamento:

         - Que você tenha muitos filhos varões, senhora!

         Roger fez automaticamente os acertos para o ceiltdh, sem atrever-se a olhar a Brianna. Quando os homens partiram, lançando olhadas curiosas para trás, eles ficaram em silêncio, separados por um ou dois passos. Brianna mantinha a vista fixa no barro e a erva, cruzada de braços. No peito do Roger perdurava o ardor, embora um pouco alterado. Queria tocá-la, voltar a desculpar-se, mas pensava que com isso não obteria a não ser piorar as coisas.

         Ao final foi ela quem deu o primeiro passo: lhe aproximou para apoiar a cabeça em seu peito; a frescura de sua cabeleira úmida lhe roçou a ferida do pescoço. Seus peitos estavam enormes, duros como pedras; puxavam contra ele, como apartando-o.

         - Necessito ao Jemmy - disse ela, em voz fica- . Necessito a meu bebê.

         As palavras se entupiram na garganta do Roger, apanhadas entre a desculpa e a irritação. Até então não tinha imaginado quão penoso séria pensar que )emmy pertencia a outro, que não era filho dele, mas sim do Bonnet.

         - Eu também o necessito - sussurrou ao fim.

         E lhe deu um beijo fugaz na frente. Logo voltou a lhe agarrar a mão para cruzar a pradaria. A montanha, vamos, seguia amortalhada na bruma, invisível, embora dela descendiam gritos e murmúrios, fragmentos de diálogo e música, como ecos de algum Olimpo.

 

                   Metralha

         No meio da amanhã, a garoa tinha cessado; a fugaz visão de um céu azul que aparecia entre as nuvens me dava alguma esperança de que o anoitecer limparia. Pelo bem da Brianna não queria que se aguassem as cerimônias nupciais. Já que não se casava em uma igreja bonita, com arroz e cetim branco, ao menos queria que o lugar estivesse seco.

         Esfreguei-me a mão direita, tratando de me tirar a cãibra que me tinham provocado as tenazes de extração dental. O molar rota do senhor Goodwin me tinha dado mais trabalho do que eu tinha esperado, mas me arrumei isso para arrancá-la, com raiz e tudo. Logo o enviei a sua casa com uma pequena garrafa de uísque e instruções de fazer buchos com ele cada hora para evitar a infecção. Tragá-lo era opcional.

         Ao desperezarme, o bolso de minha saia se chocou contra minha perna, emitindo um tinido leve, mas lhe gratifiquem. O senhor Goodwin tinha pago em dinheiro; perguntei-me se bastaria para pagar um astrolábio, e para que quereria Jaime ter um de esses. De repente, um leve pigarro interrompeu minhas especulações.

         Girei em redondo. Ali estava Archi Hayes, com um ar algo zombador.

         - OH! - exclamei- . Né... Posso lhe ser útil em algo, tenente?

         - Pois, poderia ser, senhora Fraser. - Olhava-me com um leve sorriso- . Conforme diz Farquard Campbell, seus escravos estão convencidos de que pode fazer você que os mortos se levantem. Sim esse é o caso, um trocito de metal perdido não tem que ser grande costure para suas habilidades cirúrgicas, verdade?

         Murray MacLeod, para ouvir isso, emitiu um forte bufo e se voltou para seus próprios pacientes.

         - OH! - repeti.

         E me esfreguei o nariz com um dedo, sobressaltada. Quatro dias antes, um dos escravos do Campbell tinha sofrido um ataque de epilepsia; por acaso, recuperou-se abruptamente no momento em que eu apoiava em seu peito uma mão exploratória. Foi inútil tratar de explicar o que tinha acontecido; minha fama se pulverizou como um incêndio nas ervas secas da montanha.

         Voltei-me para o Hayes, me limpando as mãos no avental.

         - Bem, me permitam ver essa parte de metal, e veremos o que se pode fazer.

         Sem pigarrear, o tenente se tirou a boina, a jaqueta, o colete, o corbatón e a camisa, junto com a gorget de prata de seu cargo. depois de lhe entregar os objetos à ajuda de campo que o acompanhava, tomou assento em meu tamborete, sem que sua plácida dignidade se alterasse por efeito da nudez parcial.

         Seu torso carecia de pêlo e tinha a cor pálida do soro, característico da pele que aconteceu anos sem expor-se ao sol, em marcado contraste com o bronzeado curtido da cara, as mãos e os joelhos. Mas os contrastes foram ainda mais à frente.

         Sobre a pele leitosa do bico da mamadeira esquerda tinha uma enorme mancha negro azulado, que o cobria das costelas até a clavicula. O mamilo da direita apresentava uma cor normal, entre rosado e pardusco, mas o da esquerda era muito branco. Ao vê-lo pisquei. Detras de mim se ouviu um suave: «Ao Dhial»

         - A Dhia, tha e`tionnadadh dubh!- disse outra voz. «Por Deus, está-se pondo negro!»

         Hayes, como se não ouvisse nada de todo isso, sentou-se para que eu realizasse meu exame. Uma inspeção mais detalhada revelou que a coloração escura não era uma pigmentação natural, a não ser uma série de manchas, provocadas pela presença de inumeráveis granulos escuros incrustados na pele. O mamilo tinha desaparecido por completo, sendo substituído por uma reluzente cicatriz branca, do tamanho de uma moeda.

         - Pólvora - disse, deslizando a ponta dos dedos pela zona obscurecida- . Ainda tem você o projétil dentro?

         O sítio por onde tinha penetrado estava à vista. Toquei o emplastro branco, tratando de imaginar a trajetória que a bala podia ter seguido.

         - A metade - respondeu ele, tranqüilamente- . Fragmentou-se. O cirurgião que me extraiu isso me deu as partes. Mais adiante tratei de ajustar os fragmentos, mas só obtive meia bale, de maneira que o resto deve estar dentro.

         - Que se fragmentou? Sente saudades que as partes não lhes atravessassem o coração ou os pulmões - comentei, me sentando em cuclillas para observar a ferida com mais atenção.

         - Sim, ou pelo menos isso acredito, pois me entrou pelo peito, como vê, mas agora está aparecendo por minhas costas.

         Para estupefação da multidão (e também minha) estava no certo. Não só pude apalpar um vulto pequeno, justo sob o bordo exterior da escápula esquerda, mas também também a vi: um inchaço escuro, que pressionava contra a pele branca e suave.

         - Por todos os diabos! - disse.

         O deixou escapar uma exclamação divertida, não sei se por minha surpresa ou por minha linguagem.

         Por estranho que fora, o trocito de metralha não oferecia nenhuma dificuldade cirúrgica. depois de inundar um pano limpo em minha terrina de álcool destilado, limpei a zona com esmero e esterilizei um bisturi. Logo fiz um corte rápido. Hayes se manteve muito quieto. Era militar e escocês; tal como o demonstravam as marcas de seu peito, tinha suportado coisas muito piores.

         Quando pressionei com dois dedos aos lados da incisão, os lábios do pequeno corte se avultaram: de repente apareceu uma parte banguela de metal escuro, como se algo me tirasse a língua. Foi possível sujeitá-lo com um par de fórceps e retirá-lo. Com uma pequena exclamação de triunfo, deixei cair o fragmento na mão de meu paciente e apliquei contra suas costas um pano empapado em álcool.

         Ele deixou escapar um comprido suspiro; logo me sorriu por cima do ombro.

         - O agradeço, senhora Fraser. Este pequeno me acompanha a muito tempo, mas não me causar pena me separar dele.

         Cavou a palma manchada de sangue, observando com grande interesse o fragmento metálico que sustentava.

         - Quando aconteceu isto? - perguntei com curiosidade.

         - Faz vinte anos ou mais, senhora - disse. Tocou a mancha branca e insensível que, em outros tempos, tinha sido um dos sítios de seu corpo com mais sensibilidade- . Isto aconteceu no Culloden.

         Disse-o como sem lhe dar importância mas o nome me arrepiou a pele dos braços. Vinte anos ou mais... vinte e cinco, provavelmente mais. E por então...

         - Mas se não teria você mais de doze anos! - exclamei.

         Ele arqueou uma sobrancelha.

         - Onze. Cumpri os doze ao dia seguinte.

         Calei o que teria podido lhe responder. Acreditava ter perdido a capacidade de me espantar ante as realidades do passado, mas ao parecer não era assim. Alguém tinha disparado a quemarropa contra um menino de onze anos. Não havia possibilidades de engano, não era um tiro desviado no calor do combate. O homem que o fez sabia que estava matando a um menino. E apesar disso tinha disparado.

         A incisão media apenas dois ou três centímetros de longitude e não era profunda; não necessitaria sutura. depois de pressionar um pano limpo contra a ferida, pu-me diante dele para enfaixá-lo com uma tira de linho.

         - É um milagre que sobrevivesse - disse.

         - Em efeito - afirmou- . Estava tendido em terra, com a cara do Murchison sobre mim, Y...

         - Murchison!

         A exclamação me escapou. Vi um brilho de satisfação na expressão do Hayes. Então experimentei uma breve inquietação premonitoria, recordando o que Jamie havia dito sobre o Hayes a noite anterior. «Pensa mais do que diz, esse pequeno Archie... e olhe que fala muito. Tome cuidado com ele, Sassenach.» Mas já era algo tarde para tomar cuidado; além disso me parecia difícil que tivesse importância, até se se tratava do mesmo Murchison.

         - Vejo que conhece você seu nome - observou ele, cordialmente- . Na Inglaterra ouvi dizer que certo sargento Murchison, do vigesimosexto, foi enviado a Carolina do Norte. Mas quando chegamos ao Cross Creek a guarnição já não estava. Acredito que foi por um incêndio, verdade?

         - Né... sim - confirmei, algo nervosa por essa referência. Alegrou-me que Bree se retirou; só duas pessoas conheciam a verdade do acontecido ao incendiar o depósito que a Coroa tinha no Cross Creek; uma das duas era ela. Quanto à outra... Não era provável que Stephen Bonnet se cruzasse com o tenente em um futuro próximo... inclusive se seguia com vida.

         - E os homens da guarnição - insistiu Hayes- , Murchison e os outros, sabe onde foram?

         - O sargento Murchison morreu, por desgraça - disse a minhas costas uma voz grave e fica.

         Hayes olhou além de mim, sonriendo.

         - Ao Sheumais ruaidh - disse- . Esperava que cedo ou tarde viesse você a reunir-se com sua esposa. passei a manhã buscando-o.

         O nome me sobressaltou tanto como ao Jarme. Uma expressão de surpresa lhe cruzou as facções; mas imediatamente desapareceu, sendo substituída pela cautela. Dos tempos do levantamento, ninguém o chamava Jamie o Vermelho.

         - Assim me hão isso dito - respondeu secamente. Logo se sentou em meu segundo tamborete frente a Hayes- . Vejamos, pois. Do que se trata?

         Hayes agarrou o sporran que pendurava entre seus joelhos, revolveu nele durante um instante e extraiu um papel dobrado, selado com cera vermelha e marcado com um escudo. Ao reconhecê-lo, me deteve o coração durante um segundo. Parecia difícil que o governador Tryon me enviasse um tardio cartão de aniversário.

         depois de verificar cuidadosamente que o nome inscrito no fronte fora o do Jamie, o tenente a entregou. Para minha surpresa, meu marido seguiu sentado, com os olhos fixos na cara do Hayes, sem abri-la.

         - O que o traz por aqui? - perguntou abruptamente.

         - Ah!, o dever, sem dúvida - respondeu o militar, com as finas sobrancelhas arqueadas em inocente surpresa- . por que outro motivo atuamos os soldados?

         - O dever - repetiu Jamie, golpeando-se ociosamente a perna com aquela missiva- . Pois bem. O dever poderia lhes levar do Charleston a Virginia, mas há maneiras mais rápidas de chegar até ali.

         Hayes ia encolher se de ombros, mas desistiu dê imediato, pois o gesto perturbou a zona que eu estava enfaixando.

         - Tinha que trazer a proclama do governador Tryon.

         - O governador não tem autoridade sobre você nem sobre seus homens.

         - É certo - coincidiu ele- , mas por que não lhe fazer um favor, se estava em minha mão?

         - Sim. E pediu a você que lhe fizesse esse favor ou foi idéia dela? - inquiriu Jamie.

         - A ancianidad o pôs algo suspicaz, Sheumais ruaidh - observou Hayes.

         - É assim como cheguei a velho - replicou meu marido, com um ligeiro sorriso. Logo fez uma pausa, observando a seu interlocutor- . Diz você que foi um homem chamado Murchison quem lhe disparou no campo do Drumossie?

         Eu tinha terminado de enfaixá-lo. Hayes moveu o ombro, provando a dor.

         - Mas se sabe perfeitamente, ao Sheumais ruaidhl Não recorda você esse dia, homem?

         A cara do Jamie sofreu uma mudança sutil. Senti um leve estremecimento de inquietação. O certo era que ele quase não recordava o último dia dos clãs, a matança que tinha deixado a tantos homens sangrando sob a chuva; a ele, entre outros. Eu sabia que às vezes, em sonhos, vinham-lhe pequenas cenas daquele dia, fragmentos do pesadelo. Mas fora pelo trauma, pelas lesões ou por simples força de vontade, a batalha do Culloden estava perdida em sua memória, ao menos até agora. E não parecia provável que desejasse recuperá-la.

         - Esse dia aconteceram muitas coisas - disse- . Não recordo tudo, não. Inclinando abruptamente a cabeça, afundou o polegar sob a dobra da carta. Abriu-a com tanta brutalidade que o selo de lacre se fez pedaços.

         - Seu marido é homem modesto, senhora Fraser - disse-me Hayes, enquanto convocava a sua ajuda de campo com um gesto da mão- . Alguma vez lhe contou o que fez aquele dia?

         - Nesse campo houve muitas amostras de valentia - murmurou Jamie, com a cabeça inclinada para o papel- . E muito do contrário.

         Não parecia estar lendo. Tinha o olhar fixo, como se visse outra coisa além da carta que sustentava.

         - Assim foi - reconheceu Hayes- . Mas quando um homem lhe salva a vida, vale a pena recordá-lo, verdade?

         Jamie levantou bruscamente o olhar, sobressaltado.

         - Não recorda você que golpeou ao Murchison na cabeça, no momento em que estava a ponto de me cravar ao chão com sua baioneta? Nem que logo me elevou para me levar fora do campo, a um pequeno poço próximo? Ali, na erva, jazia um dos chefes, e seus homens lhe estavam limpando a cabeça com aquela água. Mas estava muito quieto; compreendi que tinha morrido. Ali havia alguém que me atendeu. Queriam que ficasse, pois estava você ferido e sangrando, mas se negou. Desejou-me sorte em nome de San Miguel, e voltou para campo de batalha.

         Hayes se acomodou a cadeia do gorget, colocando a pequena medialuna de prata sob o queixo. Sem o corbatón, seu pescoço parecia nu, indefeso.

         - Parecia um homem selvagem, com o cabelo solto ao vento e o sangue lhe correndo pela cara. Para me carregar, havia você embainhado a espada, mas voltou a extrai-la ao empreender a volta. Não acreditei voltar a vê-lo; nunca vi a ninguém ir desse modo ao encontro da morte.

         Moveu a cabeça, com os olhos entreabridos, como se não visse o homem sóbrio e confiável que tinha ante si, não ao Fraser, Fraser o da Crista, a não ser ao Jamie o Vermelho, o jovem guerreiro que não tinha retornado ao campo por valentia, mas sim porque desejava perder a vida: depois de me haver perdido , sentia-a como uma carga.

         - Seriamente? - murmurou Jamie- . Havia-o... esquecido.

         Percebi sua tensão, que vibrava sob minha mão como um cabo tenso. Tinha esquecido muitas coisas, sim, mas isso não. E eu tampouco.

         Hayes inclinou a cabeça para que o assistente lhe sujeitasse o corbatón no pescoço. Logo se ergueu para me saudar.

         - O agradeço, senhora. foi você muito gentil.

         - Não tem importância - disse, com a boca seca- . foi um prazer.

         Hayes ficou a jaqueta e sujeitou sua manta com um pequeno broche dourado: que lhe tinha dado seu pai antes do Culloden.

         - Assim Murchison morreu - disse, como para seus adentros - . Comentaram-me... - Seus dedos lutaram durante um momento com o fechamento do broche - que havia dois irmãos com esse nome, parecidos como duas gotas de água.

         - Em efeito - disse Jamie, olhando-o aos olhos. A cara do tenente só expressava um vago interesse.

         - Ah, e sabe você, por ventura, qual deles foi...?

         - Não, mas não importa. Ambos morreram.

         - Ah - repetiu Hayes. deteve-se um momento, como se refletisse. Logo se inclinou formalmente ante o Jamie, com a boina apoiada contra o peito.

         - Buidheachas dhut, ao Sheumais MAC Brian. E que San Miguel lhes defenda.

         Saudou-me brevemente com a boina e, depois de plantar-lhe na cabeça, girou para partir. Sua ajuda de campo o seguiu em silêncio.

         - O que recorda? - perguntei-lhe, seguindo com a vista ao Hayes, que pisava com cautela o estou acostumado a empapado de sangue.

         - Quase nada - respondeu. Logo se levantou para me olhar, escuros os olhos como o céu encapotado de lá encima - . E isso ainda é muito.

         Entregou-me o papel estragado. A chuva tinha deslocado a tinta em algumas linhas, mas ainda era legível. Em contraste com a proclama, continha duas frases, mas o ponto adicional para a despedida não diluía seu impacto.

 

New Bern, 20 de outubro

Coronel ame Fraser:

                Considerando que a paz e a boa ordem deste Governo foram violados ultimamente, e que as pessoas e propriedades de muitos habitantes desta província foram danificadas por um grupo de pessoas que se autodenominan reguladores, ordeno-lhes, por entesouramento do

conselho de sua majestade, que convoquem a um recrutamento geral a tantos homens como consideram adequados para servir em um regimento de milicianos, e que me vocês informem na maior brevidade possível o número de voluntários que estão dispostos a emprestar serviço a seu rei e a seu país, quando os convocar, e também que número de efetivos pertencentes a seu regimento podem receber ordens de sair em caso de emergência, e em caso de que os insurgentes tentem novos atos violentos. Sua diligente e pontual obediência a estas ordens serábien recebida por seu obediente servidor,

William Tryon

 

         Dobrei esmeradamente a carta manchada pela chuva, notando apenas que me tremiam as mãos. Jamie voltou a agarrá-la entre o polegar e o índice, como se fora um objeto repugnante. E a verdade é que o era. Olhou aos olhos, torcendo ironicamente a boca.

- Eu esperava contar com algo mais de tempo - disse.

 

                 O capataz

         Enquanto Brianna ia a pelo Jemmy à loja da Yocasta, Roger assediou lentamente a colina para seu próprio acampamento. «Haverá uma próxima vez», havia dito ela. E ele retinha essas palavras, lhe dando voltas em sua mente como a um punhado de moedas no bolso. Não tinham sido meras palavras: havia nelas intenção, uma promessa nesse momento mais importante que quantas Bree lhe tinha feito na primeira noite de bodas.

         O pensar em bodas lhe recordou, por fim, que havia outra em florações. Ao tornar uma olhada comprovou que, na verdade, Bree não tinha exagerado ao falar de seu aspecto. Demônios, e além disso a jaqueta era do Jamie!

         Começou a sacudi-la pinaza e as manchas de barro, mas o interrompeu um «olá» do atalho, mais acima. Ao levantar a vista viu que Duncan Innes descendia cautelosamente a levantada pendente, com o corpo inclinado para compensar o braço que lhe faltava. Levava posta sua esplêndida jaqueta escarlate, com as voltas de cor azul e os botões dourados. Sua transformação, de pescador das Terras Altas a próspero latifundiário bem embelezado, era assombrosa; até sua atitude parecia ter trocado; lhe via muito mais seguro de si mesmo.

         Acompanhava-o um cavalheiro entrado em anos, alto e magro, de aspecto muito pulcro, embora puído; as escassas mechas brancas, atadas para trás, descobriam uma frente alta, estendida pela calvície. A boca se afundou por falta de dentes, mas retinha sua curva humorística; os olhos eram azuis e brilhantes. O nariz largo e bicudo, a roupa negra, descolorida e gasta, davam-lhe o aspecto de um afável abutre.

         - Ao Smeòraich- saudou Duncan, agradado- . Justamente a pessoa que desejava encontrar! Confio em que esteja preparado para seu enlace- acrescentou, contemplando com ire interrogante IA jaqueta manchada do jovem e seu cabelo cheio de folhagem.

         - OH, sim! - Roger pigarreou, convertendo seu escovado em um breve tamborilar no peito, para afrouxar o escarro- . Que umidade para as bodas, verdade?

         - Ditoso o cadáver sobre o que cai a chuva - acrescentou Duncan, rendo com certo nervosismo- . Oxalá não morramos de pleurisia antes de nos casar, né, moço? - E se acomodou sobre os ombros a fina jaqueta carmesim, tirando do punho uma imaginária bolinha de pó.

         - Está muito elegante, Duncan - comentou Roger, com a esperança de distrair a atenção de seu maltratado estado- . Todo um noivo!

         Seu interlocutor avermelhou um pouco depois do bigode cansado; a única mão retorceu os botões blasonados de sua jaqueta.

         - OH, bom - disse, um pouco sobressaltado- . A senhorita Eu disse que não queria apresentar-se com um espantalho. - E tossiu, voltando-se abruptamente para seu companheiro, como se ante essa palavra tivesse recordado sua presença- . Senhor Bug, este é Roger MAC, de quem lhe falei, o genro dele.

         Olhou novamente ao Roger, assinalando com um gesto vago a seu companheiro, que se adiantou com a mão estendida e uma reverência rígida, mas cordial.

         - Arch Bug, ao Smeóraich.

         - A seu serviço, senhor Bug - saudou Roger cortesmente. Notou, com certo sobressalto, que à mão ossuda que estreitava a sua lhe faltavam os dois primeiros dedos.

         - Hum - respondeu o outro.

         Sua atitude indicava que correspondia sinceramente ao sentimento.

         - Que amabilidade por parte do senhor Fraser, cavalheiro, e seguro de que não terá motivos para arrepender-se, claro que não, e o hei dito pessoalmente. Não posso lhe expressar a você que bênção foi, quando não sabíamos de onde viria nossa próxima comida, nem como conseguiríamos proteção. Devemos confiar em Cristo e em Nossa Senhora, disse ao Arch, isso lhe disse, e se tivermos que passar fome, faremo-lo em estado de graça. E Arch me respondeu...

         Ante nós surgiu uma mulher pequena e gordinha, tão entrada em anos como seu marido e vestida com roupa igualmente gasta, mas bem cerzida. Como era tão baixa, Roger não a tinha visto, pois a ocultavam as volumosas abas da vetusta jaqueta de seu marido.

         - A senhora Bug- sussurrou-lhe Duncan, sem que fizesse falta.

         - ... e sem um penique com que contar, e eu pensando o que ia ser de nós, e então Sally McBride me diz que tinha sabido que Jamie Fraser necessitava um bom...

         O senhor Bug sorriu sobre a cabeça de sua esposa. Ela se interrompeu em meio de uma frase, dilatados os olhos de espanto ao ver a jaqueta do Roger.

         - Mas olhe isso! O que lhes aconteceu, filho? foi um acidente? diria-se que alguém lhes derrubou e arrastou pelos talões por cima do esterco!

         Sem aguardar resposta, tirou um lenço limpo do volumoso bolso que pendurava de sua cintura. depois de lhe jogar uma generosa cuspida, começou a limpar as manchas do peitilho.

         - OH, não é necessário... Quer dizer... né... obrigado. - Roger, que se sentia como apanhado em uma espécie de maquinaria, olhou ao Duncan esperando que ele o resgatasse.

         - Jamie Roy pediu ao senhor Bug que vá trabalhar como capataz na Colina.

         Duncan aproveitou a pausa que a tarefa impunha à senhora Bug para oferecer uma explicação.

         - Capataz? - Roger sentiu um pequeno impacto ante essa palavra, como se alguém lhe tivesse dado um golpe debaixo do esterno.

         - Sim, para quando ele deva viajar ao estrangeiro ou esteja ocupado com outros assuntos. É certo que os campos e os arrendatários não se cuidam sozinhos.

         Duncan falava com um ligeiro tom de melancolia; era um singelo pescador do Coigach, por isso freqüentemente as responsabilidades de dirigir uma plantação grande lhe resultavam onerosas. Jogou uma olhada ao senhor Bug, com um brilho de cobiça, como se pensasse fugazmente em esconder a essa útil pessoa em seu bolso para levar-lhe ao River Run. Claro que também deveria levar-se a senhora Bug.

         - E tão boa sorte nos veio como anel ao dedo, e apenas ontem dizia ao Arch que no máximo poderíamos conseguir trabalho no Edenton ou Cross Creek, ele como marinheiro, mas é uma vida tão perigosa, verdade? Todo o dia molhado até os ossos, e os vapores mortíferos que saem dos pântanos, e o ar tão carregado de miasmas que não se pode respirar; e eu talvez poderia trabalhar como lavadeira na cidade enquanto ele estivesse de viagem, embora eu não gostaria de nada, porque não nos separamos uma só noite desde que nos casamos, verdade, meu amor?

         Elevou um olhar devoto a seu alto marido, que lhe sorriu com doçura. Ao Roger lhe ocorreu que o homem devia ser surdo. Ou que possivelmente logo que levavam uma semana casados.

         - Tínhamos pensado provar no Edimburgo - disse o ancião. Sua dicção era lenta e elegante, com a suave cadência das Terras Altas.     «De maneira que não é surdo... - disse-se Roger- ainda.»

         - ... pois eu tinha lá um primo que estava relacionado com uma empresa bancária, e pensamos que talvez ele poderia falar com alguém...

         - Mas eu era muito velho e não tinha suficiente preparação...

         - ... e miúda sorte tivessem tido de contar com ele! Mas não, esses parvos não quiseram saber ruuia do assunto, assim viemos a tentar, se pudermos...

         Duncan procurou o olhar do Roger, dissimulando um sorriso sob o bigode, enquanto a história das aventuras dos Bug emanava nesse estilo sincopado. O jovem lhe devolveu o sorriso, embora no íntimo se esforçava por desprezar uma insistente sensação de desconforto.

         Não obstante, só nesse momento Roger caiu na conta de que, inconscientemente, tinha suposto que ele seria a mão direita do Jamie nesses assuntos. Ou quanto menos, a esquerda.

         Fergus ajudava ao Jamie no que podia, fazendo recados e levando informação, mas o fato de que lhe faltasse uma mão limitava sua capacidade física; tampouco podia ocupar-se de papéis e contas; Jenny Murray tinha ensinado a ler, a sua maneira, ao órfão francês adotado por seu irmão, mas nunca conseguiu lhe fazer entender os números.

         De maneira que Jamie pensava que até um ancião médio estropiado estava em melhores condicione que seu genro para atender os assuntos da Colina do Fraser. A idéia era inesperadamente amarga.

         Ele sabia que seu sogro duvidava de sua capacidade, além da desconfiança natural que inspira em todo pai o homem que se deita com sua filha. Como Jamie carecia absolutamente de ouvido, não podia apreciar seus dons musicais. E embora Roger era trabalhador e de bom tamanho, resultava infelizmente certo que tinha muito poucos conhecimentos práticos sobre a cria de animais, a caça e o uso de armas mortíferas. E, além disso, carecia da grande experiência do senhor Bug no manejo de um imóvel grande. Era o primeiro em admitir todo isso.

         Mas ele ia converter se no genro do Jamie. Mas se o mesmo Duncan acabava de apresentá-lo assim! Embora se tivesse educado em outra época, era um escocês das Terras Altas e sabia perfeitamente que o sangue e o parentesco estavam por cima de todas as coisas.

         Pelo habitual, quando só havia uma filha, considerava-se que seu marido era o filho varão da casa; quanto a autoridade e respeito, só o chefe da família estava por cima dele... a menos que tivesse um grave defeito: se fosse alcoólico notório por exemplo, ou dissoluto até o criminoso. Ou fraco mental... Santo Céu!, seria isso o que Jamie pensava dele? Que era um idiota sem remédio?

         - Sinta-se, jovem, que eu me ocuparei deste bonito desastre. - Era a senhora Bug quem interrompia suas lúgubres reflexões- . Mas você olhe como está, tudo enlameado e talher de manchas! Esteve brigando? OH, bom, espero que o outro tenha ficado pior. Não se fale mais.

         antes de que ele pudesse protestar, já o tinha sentado em uma pedra e, depois de tirar um pente do bolso e lhe soltar o cabelo, ocupou-se de sua enredada juba com movimentos tão enérgicos que parecia que ia arrancar lhe tiras de couro cabeludo.

         - Chamam-no Astuto, verdade?

         - OH, sim, mas não é pela cor de seus formosos cabelos - interveio Duncan, muito sorridente ante a óbvia desconforto do jovem- . É por seu canto. Tem a voz tão doce como os rouxinóis.

         - Canta? - exclamou a senhora Bug, cativada, deixando cair a mecha- . Era você quem cantava ontem à noite? Ceann-rára e Loch Ruadhainn? E além disso tocando o bodhran?

         - Bom, talvez - murmurou ele com modéstia.

         A ilimitada admiração da senhora, expressa longamente, era uma adulação que o fez envergonhar-se desse momentâneo ressentimento contra seu marido.

         «depois de tudo - pensou, observando os muitos remendos de seu avental e as rugas de sua cara- , é óbvio que estes anciões aconteceram maus tempos. Talvez Jamie os contratou tanto por caridade como porque necessitava ajuda.»

         Sentindo-se já algo melhor, agradeceu gentilmente à senhora Bug a assistência emprestada.

         - Virão agora a nosso acampamento? - perguntou, olhando ao marido com ar inquisitivo- . Suponho que ainda não conhece você à senhora Fraser nem...

         Interrompeu-o um ruído que parecia um alarme de bombeiros; embora longínqua, era óbvio que se estava aproximando. Como já estava familiarizado com esse estrépito não se surpreendeu ao ver que seu sogro aparecia por um dos caminhos que serpenteavam pela montanha, com o Jem nos braços, retorcendo-se e chiando como gato escaldado.

         Jamie, que parecia levemente intimidado, entregou-lhe o menino. A falta de melhor inspiração, Roger colocou um de seus polegares naquela boca bem aberta, com o que o alvoroço cessou abruptamente. Todos se relaxaram.

         - Que pequeno tão doce! - A senhora Bug ficou nas pontas dos pés para arrulhar ao Jem, enquanto seu avô, extremamente aliviado, voltava-se para saudar o senhor Bug e ao Duncan.

         «Doce» não era o adjetivo que Roger teria escolhido. «Louco de atar» era uma expressão mais adequada.

         - Onde está Bree?

         - Só Deus sabe e não quer dizê-lo - respondeu brevemente seu sogro- . Estive-a procurando por toda a montanha desde que o rorro despertou em meus braços e decidiu que não era feliz em minha companhia. - depois de farejar com suspicacia a mão com que tinha sustentado a seu neto, a limpou nas abas da jaqueta.

         - Parece que tampouco lhe satisfaz a minha. - Jem tinha começado a lhe roer o polegar; a baba lhe corria pelo queixo e gotejava sobre a boneca do Roger- . Não viu ao Marsali?

         Sabia que a Brianna não gostava que outra mulher amamentasse ao Jemmy, mas estavam ante uma emergência. Jogou um olhar em redor, com a esperança de que houvesse por ali alguma mãe lactante que se compadecesse da criatura, se não dele.

         - Vamos, me dêem a esse pobre pequeñín - disse a senhora Bug, alargando os braços. Por isso ao Roger concernia, passou imediatamente de entremetida charlatana a anjo de luz- . Bom, bom, a leannan, já passou tudo.

         Jemmy, que sabia reconhecer a autoridade a primeira vista calou imediatamente e contemplou à mulher com olhos dilatados por um enorme respeito.    Ela se sentou com o menino no regaço e começou a atendê-lo, com a mesma eficiente firmeza com que tinha atendido a seu pai. Roger se disse que Jamie se equivocou do Bug ao escolher capataz.

         Não obstante, Arch estava demonstrando tanto sua inteligência como suas aptidões com sensatas perguntas sobre o gado, as colheitas, os arrendatários, etcétera. «Mas se eu poderia fazer todo isso!», pensou Roger, que seguia o diálogo com atenção. «Em parte», corrigiu-se honestamente, assim que a conversação virou para os parasitas. Talvez Jamie estava justificado em procurar a alguém com mais conhecimentos... mas ele podia aprender, depois de tudo.

         - E quem é este guri tão simpático, né? - A senhora Bug se pôs de pé, arrulhando ao Jemmy, já respetablemente transformado.       Seguindo com um dedo romo a linha daquela bochecha redonda, jogou uma olhada ao Roger- . Sim, sim, tem os olhos do pai, já se vê, não?

         Ele avermelhou, esquecendo por completo aos parasitas.              

         - Sim? Eu diria que se parece muito mais a sua mãe.

         A anciã franziu os lábios, estudando-o com olhos entreabridos. Logo sacudiu decididamente a cabeça, dando uns tapinhas ao cocuruto do Jem.

         - O cabelo possivelmente não, mas o corpo se, é o seu, jovem. Esses bons ombros, bem largos! - depois de um breve gesto de aprovação dirigido ao Roger, beijou ao menino na frente- . E não me surpreenderia que, com o tempo, tivesse os olhos verdes. Recordem o que lhes digo, jovem: quando crescer será seu viva imagem. Verdade que sim, hombrecito? - acrescentou, hociqueando ao Jemmy- . Será uma moço grande e forte como seu papai, não é certo?

         «É o tipo de coisas que se dizem sempre», recordou-se a si mesmo, tratando de apagar o absurdo arrebatamento de prazer que lhe causavam essas palavras. «As velhas sempre dizem que os crios se parecem com um ou a outro.» de repente descobriu que temia admitir sequer a possibilidade de que Jemmy pudesse ser dele, de tanto como o desejava. disse-se com firmeza que não importava; fora ou não de seu sangue, é obvio que o amaria e cuidaria como a um filho. Mas sim que importava, e de que maneira!

         antes de que pudesse dizer nada à mulher, o senhor Bug se voltou para ele, para inclui-lo cortesmente na conversação dos homens.

         - MacKenzie? - disse- . É você dos MacKenzie de lorridon? Ou possivelmente do Kilmarnock?

         - Roger MAC é meu parente, por parte de mãe - disse Jamie despreocupadamente- . Dos MacKenzie do Leoch, verdade?

         - Ah, sim? - Arch Bug parecia impressionado- . Pois se que chegou longe, moço!

         - OH, não mais que você, senhor, sem dúvida... ou qualquer dos que estão aqui. - Roger assinalou com um breve gesto montanha acima, de onde chegavam, flutuando no ar úmido, gritos gaélicos e música de gaitas de fole.

         - Não, não, jovem! - A senhora Bug se incorporou à conversação, com o Jemmy apoiado contra o ombro- . Não é isso o que Arch quer dizer. É que está você muito longe dos outros.

         - Do que outros? - Roger intercambiou um olhar com o Jamie, quem se encolheu de ombros, igualmente intrigado.

         - os do Leoch - alcançou a dizer Arch, antes de que sua esposa agarrasse o fio do diálogo entre seus dentes.

         - Inteiramo-nos no navio, sabem? Havia um grupo grande dos MacKenzie, todos das terras que estão ao sul do velho castelo. Quando seu senhor partiu com o primeiro grupo, aqueles ficaram, mas agora queriam ir reunir se com o que subtração do clã, para ver se podiam trocar sua sorte porque...

         - O senhor? - interrompeu-a Jamie, áspero- . Não era Hamish MAC Callum?

         Hamish, filho do Colum, traduziu Roger para seus adentros. E fez uma pausa. Quer dizer, Hamish MAC Dougal. Mas no mundo havia só cinco pessoas que soubessem. Agora, possivelmente só quatro.

         A anciã assentiu enfaticamente.

         - Sim, sim, assim o chamavam eles. Hamish MAC Callum MacKenzie, senhor do Leoch. O terceiro. Assim o disseram. Y...

         Ao parecer, Jamie tinha encontrado a maneira de entender-se com a senhora Bug; por meio de implacáveis interrupções, conseguiu lhe extrair a história em menos tempo do que seu genro teria acreditado possível. O castelo do Leoch tinha sido destruído pelos ingleses na purgação das Terras Altas que seguiu ao Culloden. Jamie conhecia essa parte, mas depois, prisioneiro ele também, não tinha tido notícias do destino de quem vivia ali.

         - E não tive valor para perguntar - acrescentou, com uma melancólica inclinação de cabeça.

         Os Bug intercambiaram um olhar, suspirando ao uníssono, com os olhos escurecidos pelo mesmo sotaque triste que apagava a voz do Jamie.   Era uma expressão a que Roger estava já muito habituado.

         - Mas se Hamish MAC Callum ainda vive... - Jamie, que não tinha retirado a mão de seu ombro, o estreitou com força ao dizer isto- . É uma notícia que alegra o coração, não?

         E sorriu com tão óbvia alegria, que Roger, inesperadamente, sentiu brotar em sua cara um enorme sorriso a modo de resposta.

         - Sim - disse, aliviado o peso em seu coração- . Sim, isso!

         O fato de que não tivesse a menor ideia de quem era Hamish MAC Callum MacKenzie não tinha nenhuma importância; o homem era na verdade um parente, de seu mesmo sangue, e a idéia o regozijava.

         - Sabem aonde foram? - inquiriu seu sogro- . Hamish e seus seguidores?

         A Acadia... não, ao Canadá, responderam os Bug. Ou a Nova Escócia? A Maine? Não... a uma ilha, decidiram, depois de uma complexa consulta mútua. Ou possivelmente...

         Jemmy os interrompeu com um uivo que indicava seu iminente falecimento por inanição. A senhora Bug deu um coice, como se alguém lhe tivesse parecido um pau.

         - Devemos levar a este pobre pequeno com sua mamãe - disse em tom de recriminação, repartindo imparcialmente seu olhar fulminante entre os quatro homens, como se os acusasse coletivamente de uma conspiração para assassinar ao menino- . Onde está seu acampamento, senhor Fraser?

         - Eu a guiarei, senhora - ofereceu-se precipitadamente Duncan- . Me acompanhe você.

         Roger pôs-se a andar depois dos Bug, mas Jamie o reteve lhe pondo uma mão no braço.

         - Não; deixa que Duncan os leve - disse, despedindo-se do casal com uma inclinação de cabeça- . Mais tarde falarei com o Arch. Agora tenho algo que te dizer, a chliamhuinn.

         Roger sentiu que ficava algo tenso ante esse término formal. Tinha chegado o momento em que Jamie lhe diria que defeitos de caráter e formação o faziam inadequado para assumir a direção das coisas na Colina do Fraser?

         Mas não: seu sogro estava tirando um papel enrugado de seu sporran. O entregou com uma leve careta de desgosto, como se lhe queimasse na mão. Roger o percorreu velozmente com os olhos; logo apartou a vista da breve mensagem do governador.

         - Tropa. Quando?

         Jamie encolheu um ombro.

         - Ninguém sabe, mas antes do que qualquer quereria, suponho.- Dedicou ao jovem um sorriso deprimido e triste - . ouviste as conversações havidas em torno do fogo?

         Roger assentiu com seriedade. Tinha escutado os diálogos entre uma canção e outra, durante as competições de tiro de pedra, entre os pequenos grupos que bebiam sob as árvores, no dia anterior. No tiro do tronco tinha começado uma briga a murros, rapidamente sufocada sem que se produziram danos; mas a ira pendia como uma fetidez no ar da congregação.

         Jamie se passou uma mão pela cara e o cabelo. Logo se encolheu de ombros, suspirando.

         - Tive sorte ao me encontrar hoje com o Arch Bug e sua esposa. Se se chegar à luta (e suponho que assim será, se não agora, mais adiante), Claire virá conosco. E eu não gostaria de deixar que Brianna as arrumasse sozinha. Mas se pode solucionar.

         Roger sentiu que o abandonava o pequeno peso da dúvida; de repente o via tudo claro.

         - Sozinha. Isso significa que... desejas que te acompanhe? Para te ajudar a recrutar homens para a tropa?

         Jamie o olhou com ar surpreso.  

         - É obvio. Quem, se não?

         E rodeou os borde de sua manta aos ombros, curvado contra o vento que aumentava.

         - Vamos, pois, capitão MacKenzie - disse, com uma nota irônica na voz - . Temos muito que fazer antes de suas bodas.

 

                   A semente da discórdia

         Uma parte de minha mente estava no pólipo nasal de um escravo do Farquard Campbell; a outra, no governador Tryon. Dos dois era o pólipo quem me inspirava mais compaixão, e minhas intenções eram acabar com ele cauterizando-o com um ferro quente.

         Parecia muito injusto, disse-me, carrancuda, enquanto esterilizava o bisturi e punha o mais pequeno de meus cauterizadores em uma terrina de brasas.

         Seria esse o começo? Ou um deles? Terminava 1770; em cinco anos mais, as treze colônias estariam em guerra. Mas cada uma chegaria a esse ponto por um processo distinto. depois de ter vivido tanto tempo em Boston, sabia, pelos textos escolar do Bree, como tinha sido o processo em Massachusetts... ou como seria. Os impostos, a massacre de Boston, Harbor, Hancock, Adams, a Partida do Chá, todo isso. Mas na Carolina do Norte como tinha acontecido? Quer dizer, como aconteceria?

         Bem podia estar produzindo-se já. O dissentimento fervia a fogo lento desde fazia vários anos, entre os plantadores da costa oriental e os curtidos moradores da zona ocidental. Os reguladores surgiam, em sua maioria, de entre estes últimos; os primeiros apoiavam de todo coração ao Tryon, quer dizer: à Coroa.

         - Já está bem?

         Tinha dado ao escravo um bom sorvo de uísque medicinal para lhe insuflar forças. Sorri-lhe como lhe dando fôlego e ele assentiu; parecia inseguro, mas resignado.

         Eu nunca tinha ouvido falar dos reguladores, mas ali estavam, em que pese a tudo. E a essas alturas, com o que eu tinha visto, sabia quanto omitem os livros de História. Acaso as sementes da revolução se estavam semeando diretamente ante meus narizes?

         Com um murmúrio tranqüilizador, envolvi-me a mão esquerda com um guardanapo de linho e, sujeitando com firmeza o queixo do escravo, coloquei o escalpelo por sua fossa nasal. Cortei o pólipo com um destro movimento da folha; o sangue emanou a fervuras, quente, através do pano que me rodeava a mão, mas ao parecer não havia muita dor. O escravo parecia surpreso, mas não inquieto. Apertei o pano com força contra o nariz do homem, para deter o sangue e logo o retirei. antes de que o sangue voltasse a emanar, pressionei o ferro quente, esperando havê-lo feito no ponto correto.

         O escravo emitiu um som estrangulado, mas não se moveu, embora as lágrimas lhe corriam pelas bochechas, molhadas e quentes contra meus dedos. O aroma de carne chamuscada e sangue era o mesmo que surge dos andaimes. Meu estômago lançou um forte grunhido. Os olhos dilatados e avermelhados do escravo se encontraram com meus, atônitos. Vendo que minha boca se contraía, deixou escapar uma débil risita entre as lágrimas e os mucos.

         Retirei o ferro, com o pano preparado. Não houve mais sangue. Então inclinei bem para trás a cabeça do homem, entortando os olhos para olhar dentro de seu nariz, e tive o gosto de detectar uma marca pequena e poda na parte alta da mucosa.

         O homem não falava inglês; sorri-lhe, mas ao falar dirigi a sua companheira, uma jovem que não lhe tinha solto a mão durante toda essa dura prova.

         - Reporá-se perfeitamente. Por favor, lhe diga que não se tire a crosta. Se se torcedor, se houver pus ou febre...

         Fiz uma pausa; o resto da frase devia ser «... consulta imediatamente com seu médico», mas isso não era possível.

         - Consulta com sua ama - disse em troca, a contra gosto- . Ou busca a uma curandeira que saiba de ervas.

         Pelo pouco que sabia, a atual senhora Campbell era jovem e bastante confundida. Mesmo assim, em qualquer plantação, o ama devia saber como tratar uma febre. E se aquilo passava de uma simples infecção à septicemia... em qualquer caso ninguém poderia fazer muito por ele.

         Despedi-me do escravo lhe dando uma palmada no ombro e chamei o seguinte paciente.

         Uma infecção: isso era o que se estava gerando. Em geral tudo parecia tranqüilo; ao fim e ao cabo, a Coroa estava retirando todas suas tropas. Mas sem dúvida perduravam dezenas, centenas, milhares de diminutos gérmenes de discórdia, conformando bolsas de conflito em todas as colônias. A regulação era só um deles.

         Tinha a meus pés um pequeno cubo de álcool destilado para desinfetar os instrumentos. Afundei o cauterizador nele e logo voltei a pô-lo no fogo. O álcool se acendeu com um breve pif!, sem levantar chama.

         Tive uma sensação desagradável, como se a nota escrita que nesses momentos queimava o sporran do Jamie fora uma chama similar, aplicada a uma entre um milhão de pequenas mechas. Algumas seriam sufocadas; outras se apagariam por si só. Mas umas quantas seguiriam ardendo, chamuscando um caminho destrutivo através de lares e famílias. O final seria uma cisão limpa, mas correria muita sangre antes de que o ferro quente das armas pudesse cauterizar a ferida aberta.

         Acaso Jamie e eu jamais teríamos um pouco de paz?

 

- Ali está Duncan MacLeod. Possui trezentos acres perto do rio Yadkin, mas não há ninguém ali, salvo ele e seu irmão.

         Jamie se esfregou a cara com uma manga para secar o brilho de umidade que lhe aderia e lhe impregnava até os ossos. depois de piscar para limpar a vista, sacudiu-se como os cães, pulverizando as gotas que lhe tinham condensado no cabelo. Logo prosseguiu, assinalando a voluta de fumaça que marcava a fogueira do MacLeod:

         - Mas é parente do velho Rabbie Cochrane. Rabbie não veio à congregação; acredito que está doente de hidropisia. Mas tem onze filhos já maiores, disseminados pelas montanhas como grãos de milho. Roger, lhe dedique ao MacLeod todo o tempo que seja necessário; te assegure primeiro de que venha porque quer fazê-lo; logo lhe diz que mande aviso ao Rabbie. lhe diga que nos reuniremos na Colina do Fraser dentro de quinze dias.

         Vacilou, com uma mão no braço do Roger para impedir que partisse abruptamente. Com os olhos entreabridos ante o resplendor, sopeso as possibilidades. Tinham visitado juntos três acampamentos e contavam com a palavra de quatro homens, Quantos mais poderiam achar na congregação?

         - Quando acabar com o Duncan vá aos currais de ovelhas. Ali estará certamente Angus Og. Conhece o Angus Og?

         Roger assentiu, esperando que fora quem ele acreditava. Na última semana lhe tinham apresentado ao menos a quatro homens chamados Angus Og, mas um deles ia seguido por um cão e fedia a lã crua.

         - Og Campbell, verdade? Curvado como um anzol e com um olho desviado?

         - Esse é, sim. - Jamie fez um gesto de aprovação afrouxando a mão- . Está muito coxo para combater, mas se encarregará de que vão seus sobrinhos e divulgará a notícia entre os assentamentos próximos ao High Point. De maneira que temos ao Duncan, Angus... ah, sim: Joanie Findlay.

         - Joanie?

         Fraser sorriu de brinca a orelha.

         - A velha Joan, chamam-na. Acampa perto de minha tia. Ela e lain Mhor, seu irmão.

         Roger assentiu, dúbio.

         - Bem. Mas é com ela com quem devo falar, verdade?

         - À força - disse Jamie- . lain Mhor não pode falar. Mas ela tem outros dois irmãos e dois filhos varões em idade de combater. Enviará-os.

         Elevou o olhar ao céu. Ficavam talvez duas horas de boa luz.

         - Com isso basta - decidiu, secando-a nariz com a manga- . Volta para a fogueira quando tiver terminado com a velha Joan, e comeremos algo antes de suas bodas, vale?

         despediu-se do Roger com uma sobrancelha arqueada e um leve sorriso. Logo lhe voltou as costas, mas antes de que o jovem pudesse dar um passo girou outra vez.

         - lhes diga em seguida que é o capitão MacKenzie - aconselhou-lhe- . Emprestarão-lhe mais atenção.

         E se afastou a grandes passos, em busca dos candidatos mais recalcitrantes de sua lista.

 

         A fogueira do MacLeod fumegava na bruma como uma chaminé. Roger se dirigiu para ali, repetindo os nomes pelo baixo: «Duncan MacLeod, Rabbie Cochrane, Angus Og Campbell, Joanie Findlay... Duncan MacLeod, Rabbie Cochrane...» Não havia nenhuma dificuldade; com três repetições o gravava tudo, já fora a letra de uma nova canção, os dados de um livro de texto ou as instruções sobre a psicologia de possíveis recrutas para a tropa.

         Parecia-lhe razoável procurar ali a quão escoceses viviam apartados antes de que se dispersassem para suas granjas e suas cabanas. E o reconfortava o fato de que até o momento os homens abordados tivessem aceito o recrutamento sem mais que um olhar furioso e um pigarro de resignação.

         Capitão MacKenzie... O título que Fraser lhe tinha outorgado tão despreocupadamente lhe provocava um sobressaltado orgulho.

         Ao mesmo tempo, tinha que admitir que experimentava uma pequena ardência de entusiasmo. Talvez aquilo, no momento, fora só jogar à guerra. Mas a idéia de partir com um regimento de milicianos, com os mosquetes ao ombro e o aroma de pólvora nas mãos...

         Faltavam só quatro anos, disse-se, para que os milicianos pisassem na erva do Lexington. Homens que, em um princípio, não eram mais soldados que aqueles com quem falava em meio da chuva, não mais que ele. Ser consciente disso lhe arrepiou a pele e lhe assentou no ventre com um estranho peso de importância.

         Já se morava. Santo Céu!, morava-se de verdade.

 

         MacLeod não apresentou nenhum problema; entretanto, demorou mais do que esperava em encontrar ao Angus Og Campbell, fundo entre ovelhas até o traseiro e irascível pela interrupção. o de «capitão MacKenzie» não causou muito efeito nesse velho cretino; mais sorte teve ao invocar ao «coronel Fraser», pronunciado com certo sotaque de ameaça. Angus Og se mordeu o comprido lábio superior com mal-humorada concentração; logo assentiu a contra gosto e voltou para suas negociações com um resmungão: «Farei-o saber, sim.»

         Quando ascendeu novamente para o acampamento do Joan Findlay, a garoa tinha cessado e as nuvens começavam a abrir-se.

         Levou-se a surpresa de descobrir que «a velha louvam» era uma mulher atrativa, de uns trinta e cinco anos, com penetrantes olhos de cor avelã que o observaram com interesse baixo as dobras de seu arisaid molhado.

         - De maneira que a isso chegamos, né? - disse, depois da breve explicação de seu visitante- . Quase o esperava, depois de escutar o que aquele moço disse esta manhã.

         Tocou-se reflexivamente os lábios com a manga da colher de madeira.

         - Tenho uma tia que vive no Hillsborough, sabe você?, com uma habitação na Casa do Rei. Justo em frente está a casa do Edmund Fanning... quer dizer, estava. - Soltou uma gargalhada breve, sem humor- . Tem-me escrito. Diz que a multidão chegou agitada pela rua, blandiendo paus como um turba de demônios. Arrancaram de seus alicerces a casa do Fanning e a arrastaram com cordas, frente aos olhos de minha tia. Assim agora devemos enviar a nossos homens para que tirem as castanhas do fogo pelo Fanning, verdade?

         Roger se mostrou cauteloso; tinha ouvido muitas coisas sobre o Edmund Fanning, que distava de ser querido.

         - Não saberia o que lhe dizer, senhora Findlay - manifestou- . Mas o governador..

         Joan Findlay bufou de maneira expressiva.

         - O governador! - exclamou, cuspindo ao fogo- . Ora! Mas bem, os amigos do governador. Mas assim são as coisas e assim serão sempre: os pobres devem verter seu sangue pelo ouro do rico.

         Voltou-se por volta de duas meninas que se materializaram detrás dela, silenciosas como pequenos fantasmas envoltos em xales.

         - Annie, vá procurar a seus irmãos. Você, Joanie, remove a panela. Cuida de arranhar bem o fundo, para que não se queime.

         depois de entregar a colher a mais pequena, afastou-se, indicando ao Roger que a seguisse.

         O acampamento era miserável: apenas uma manta de lã estirada entre duas matas para proporcionar algum casaco. Joan Findlay se agachou ante a cova assim formada e Roger a imitou, agachando-se para olhar por cima do ombro da mulher.

         - A bhráthair, veio o capitão MacKenzie - disse ela, alargando uma mão para o homem que jazia em um jergón de erva seca, sob a manta.

         Roger sentiu uma brusca impressão ao vê-lo, mas se dominou. Na Escócia de sua época se haveria dito que era espasmódico; que nome lhe dariam agora? Talvez nenhum; Fraser se tinha limitado a dizer que não podia falar.

         Não, e tampouco mover-se devidamente. Seus membros ossudos estavam consumidos; seu corpo, contraído em ângulos impossíveis. Seus movimentos espasmódicos tinham movido o edredom que o cobria, amontoando-o entre suas pernas, com o que o torso ficava exposto; em suas resistências, tirou-se pela metade a camisa. A pele pálida dos ombros e as costelas resplandecia na sombra em frios tons azuis.

         Joan Findlay lhe cobriu a bochecha com uma mão para lhe girar a cabeça, a fim de que pudesse olhar ao Roger.

         - Meu irmão lain, senhor MacKenzie - apresentou com voz firme, como se o desafiasse a reagir.

         A cara também estava distorcida, com a boca torcida e lhe babem, mas naquela ruína humana havia um belo par de olhos cor avelã, cheios de inteligência, que sustentaram o olhar do visitante. Roger, dominando firmemente seus sentimentos e suas próprias facções, alargou a mão para estreitar a garra do doente. A sensação foi terrível: ossos agudos e frágeis sob uma pele tão fria que bem teria podido ser a de um cadáver.

         - lain Mhor - disse com suavidade- . ouvi falar de você. Jamie Fraser vos envia suas saudações.

         As pálpebras descenderam em um delicado gesto de reconhecimento; logo voltaram a subir e contemplaram ao Roger com tranqüila inteligência.

         - O capitão veio para recrutar milicianos - disse Joan, atrás do visitante- . O governador deu ordens. Parece que está cansado dos distúrbios e a desordem, conforme diz, e quer acabar com isso pela força.

         Sua voz encerrava um forte tom de ironia.

         Os olhos de lain Mhor se detiveram na cara de sua irmã. Sua boca se movia, lutando por recuperar a forma; o peito estreito se esticou com o esforço. dele emergiram umas poucas sílabas roucas, espessas de saliva. Logo caiu para trás, respirando com força, a vista fixa no Roger.

         - Pergunta se lhe pagará ao que se recrute, capitão - traduziu Joan. Roger vacilou. Jamie tinha previsto essa pergunta, embora não havia uma resposta definitiva. Mas a franqueza o obrigou a responder.

         - Não se. Ainda não se anunciou nada... mas talvez se faça.

         O pagamento de um recrutamento dependia da resposta que tivesse a convocatória do governador; se a só ordem produzia tropas insuficientes, as autoridades podiam considerar adequado oferecer um melhor incentivo aos milicianos que respondessem à chamada.

         Nos olhos de lain Mhor faiscou uma expressão desencantada, quase imediatamente substituída por outra de resignação. Qualquer ingresso teria sido bem recebido, mas em realidade não o esperavam.

         - O que lhe vai fazer!

         A voz do Joan expressava a mesma resignação. Roger a ouviu apartar-se para um lado, mas ainda seguia detento daqueles olhos avelã, de largas pestanas, que sustentavam seu olhar sem ceder, curiosos. Não estava seguro de poder retirar-se sem mais; queria oferecer ajuda, mas havia ajuda possível?

Alargou uma mão para a camisa aberta e o edredom enredado. Era pouco, mas melhor que nada.

         - Permite-me?

         Os olhos avelã se fecharam durante um instante e voltaram a abrir-se com aquiesciencia. O se dedicou a pô-lo tudo em seu sítio, lain Mhor, embora consumido, era assombrosamente pesado e levantá-lo desde esse ângulo resultava difícil.

         Mesmo assim não demorou mais que um momento; o homem ficou decentemente coberto e melhor abrigado. Roger sustentou novamente seu olhar; logo, com uma inclinação de cabeça e um sorriso turvado, retrocedeu até sair daquele ninho revestido de ervas, tão mudo como o mesmo lain Mhor.

         Os dois filhos varões do Joan Findlay já estavam ali, junto a sua mãe; eram robustos moços de dezesseis e dezessete anos, que observavam ao visitante com cautelosa curiosidade.

         - Este é Hugh - indicou ela, estirando-se para apoiar uma mão em seu ombro. Logo fez o mesmo com o outro- : E este, lain Og.

         Roger inclinou cortesmente a cabeça.

         - A seu serviço, cavalheiros.

         Os moços intercambiaram um olhar; logo baixaram a vista, sufocando um grande sorriso.

         - Bem, capitão MacKenzie. - A voz do Joan remarcou o título- . Se emprestar a meus filhos, promete-me você enviá-los a casa sãs e salvos?

         Os olhos de cor avelã da mulher eram tão agudos e inteligentes como os de seu irmão..., e tampouco cediam. Ele reuniu forças para não apartar a vista.

         - Até onde esteja meu poder, senhora... cuidarei de que estejam a salvo. A mulher elevou apenas o bordo da boca; sabia perfeitamente o que estava em seu poder e que não. Mesmo assim sorriu, deixando cair as mãos aos lados.

         - o Irã.

         Então ele se despediu. Enquanto se afastava, sua confiança lhe pesava no» ombros.

 

                   Os presentes da avó Bacon

         Uma vez atendido o último de meus pacientes, me desperecé com fruição. De uns quantos pacientes podia dizer, sem faltar à verdade, que os tinha salvado de infecções graves e até da morte. E tinha dado uma versão mais de meu próprio sermão da montanha, pregando o evangelho da nutrição e a higiene às multidões reunidas.

         - Bem-aventurados quem come verduras, porque conservarão seus dentes - murmurei a um cedro.

         Detive-me para arrancar algumas de seus fragrantes bagos e triturei uma com a unha do polegar, desfrutando de seu aroma limpo e penetrante.

         - Bem-aventurados os que se lavam as mãos depois de limpar o traseiro - acrescentei, apontando com um dedo admoestador a um arrendajo azul- , pois eles não adoecerão.

         O acampamento já estava à vista e, com ele, a deliciosa perspectiva de uma taça de chá quente.

         - Bem-aventurados quem ferve a água - disse-lhe ao pássaro- , pois eles serão chamados salvadores da humanidade.

         - Senhora Fraser! Senhora! - gorjeou uma vocecita junto a mim, interrompendo meus ensoñaciones.

         Ao baixar a vista me encontrei com o Eglantine Bacon, de sete anos, e Pansy, sua irmã menor: um par de meninas ruivas, de cara redonda e sardenta.

         - Ah, olá, querida. Como está? - perguntei, sonriéndole. Bastante bem, a julgar por seu aspecto; nos meninos, a enfermidade está acostumada ser visível a simples vista; as pequenas Bacon transbordavam saúde.

         - Muito bem, senhora, muito obrigado. - Eglantine me fez uma breve reverencia, logo deu um tranco à cabeça do Pansy para que fizesse o mesmo..

         Uma vez observadas as regras de cortesia (os Bacon eram gente de cidade, que tinham ensinado bons maneiras a suas meninas), Eglantine afundou a mão em seu bolso e entregou um grande pacote de tecido.

         - A avó Bacon vos envia este presente - explicou orgulhosamente, enquanto eu desdobrava o tecido. Resultou ser uma touca enorme, decorada com encaixes e cintas de cor malva- . Este ano não pôde vir à congregação, mas disse que devíamos lhe trazer isto e lhe dar as obrigado pelo remédio que lhe enviou você para seu... reu-MA-tismo.

         Pronunciou a palavra com cuidado, franzindo a cara ao concentrar-se; logo se relaxou, radiante de orgulho por havê-lo feito tudo corretamente.

         - Muito obrigado! Que bonita! - Levantei a touca para admirá-la, enquanto me ocorriam umas quantas coisas sobre a avó Bacon.

         Deu-me cara a cara sua opinião, de que era indecoroso, em uma mulher de minha idade, não usar boina nem lenço, algo censurável na esposa de um homem tão importante; mais ainda, tão somente «as busconas dos andurriales e as mulheres de baixa condição» levavam o cabelo solto sobre os ombros.   Eu me limitei a rir, sem lhe emprestar atenção, e lhe dava uma garrafa de uísque bastante bom, com instruções de beber um poquito com o café da manhã e depois do jantar.

         A mulher, que não deixava dívidas impagadas, tinha decidido me pagar a sua maneira.

         - Não vai você a ficar a Eglantine e Paruy me olhavam com ar crédulo- . A abuelita nos disse que devia ficar a para que pudéssemos lhe dizer como ficava.

         - Isso disse?

         Ao parecer, não havia remédio. Encasquetei-me a touca, que me caía sobre a frente, quase até a ponte do nariz, e rodeava minhas bochechas de envoltórios postas fitos, me fazendo sentir como um esquilo que espiasse desde sua toca.

         Eglantine e Pansy palmetearon em um paroxismo de prazer. Pareceu-me oir sufocados ruídos de diversão a minhas costas, mas não me girei.

         - Digam a sua abuelita que lhe agradeço este encantador presente, de acordo?

         Dava às meninas uns tapinhas na cabeça e caramelos de melaço, antes das enviar a reunir-se com sua mãe. No momento em que elevava uma mão para me tirar essa excrecencia da cabeça, caí na conta de que a mãe estava ali: provavelmente tinha estado de um princípio, espreitando detrás de um placaminero.

         - OH! - exclamei, convertendo meu gesto em um intento de reacomodar o brando meio doido. Levantei com um dedo a parte pendente, para ver melhor- . Senhora Bacon! Não a tinha visto você.

         - Olá, senhora Fraser.

         A cara do Polly Bacon mostrava uma delicada cor rosada, sem dúvida provocado pelo frio. Tinha os lábios muito apertados, mas lhe dançavam os olhos sob o volante de sua muito correto touca.

         - As meninas queriam lhe entregar isso - disse. Teve o tato de não olhá-la- . mas minha sogra lhes enviou outro pequeno presente. Pareceu-me que seria melhor dar-lhe eu mesma.

         Desatei a corda, e deixei cair em minha palma uma pequena quantidade de sementes diminutas, de cor parda escura.

         - O que é? - perguntei ao Polly, intrigada.

         - Não sei que nome tem em nosso idioma - respondeu ela- . Os índios a chamam dauco. A avó Bacon é neta de uma curandeira catawba, sabia você? dela aprendeu a usar essas sementes.

         - De verdade? - Agora compreendia que o desenho me resultasse familiar: devia ser a planta que Nayawenne me tinha mostrado uma vez, a planta das mulheres. Não obstante perguntei, para maior segurança- : Para que serve?

         Nas bochechas do Polly aumentou o rubor. antes de inclinar-se para mim percorreu o claro com a vista, para assegurar-se de que ninguém pudesse nos ouvir.

         - Para impedir que alguém fique grávida. Tomadas uma cucharadita todos os dias, em um copo de água. Todos os dias, entende? Então a semente do homem não arraiga no ventre feminino.

         Seus olhos se enfrentaram a meus; a seu brilho divertido se adicionava algo mais sério.

         - A avó se deu conta de que é você mulher de conjuros. E sendo assim, freqüentemente terá que ajudar às mulheres que sofrem abortos, por não falar do que se padece ao perder a um menino que nasce vivo... Encomendou-me lhe dizer que mais vale acautelar que curar.

         - Lhe diga a sua sogra que o agradeço muito - manifestei com sinceridade.

         À idade do Polly, a maioria das mulheres tinham cinco ou seis filhos e as via desgastadas pela sucessão de embaraços inoportunos; ela, com apenas duas meninas, carecia desse aspecto. Obviamente, as sementes eram efetivas.

         O sorriso estalou em sua cara.

         - O direi. Ah!... disse algo mais. Que sua avó lhe disse que era magia de mulheres; assim não a mencione a nenhum homem.

         Sim, era compreensível que o remédio da velha avó Bacon fora ofensivo para alguns homens. Seria Roger um de esses?

         Depois de me despedir do Polly Bacon, levei meu cofre a nosso abrigo e guardei cuidadosamente nele aquele saquito de sementes. Uma útilísima aquisição para meu farmacopea, se Nayawenne e a avó Bacon estavam no certo. Além disso, era um presente muito oportuno, tendo em conta minha anterior conversação com o Bree.

         Até era mais valioso que o pequeno montão de peles de coelho que tinha acumulado, embora estas fossem bem recebidas. Levantei a tampa de uma cesta vazia; guardaria-as ali para a viagem de volta.

         - ... Stephen Bonnet.

         O nome se cravou em meus ouvidos como uma picada de aranha, fazendo que deixasse cair ruidosamente a tampa do cesto. Imediatamente joguei um olhar a meu redor, mas não vi nem a Bríanna nem ao Roger. Jamie estava de costas a mim, mas era ele quem tinha falado.

         Tirei-me a touca e, depois de pendurá-la cuidadosamente de um ramo de cornejo, saí decidida para me reunir com ele .

 

         Não sei do que estavam falando os homens, mas se interromperam à lombriga. O tenente Hayes partiu, depois de me agradecer uma vez mais a assistência cirúrgica. Sua cara redonda e branda não revelava nada.

         - O que acontece Stephen Bonnet? - perguntei assim que ele esteve muito longe para me ouvir.

         - Isso era o que eu lhe estava perguntando, Sassenach. Já está preparado o chá? - Jamie se aproximou do fogo, mas eu o detive lhe pondo uma mão no braço.

         - por que? - inquiri.

         Como não o soltasse, enfrentou-se para mim a contra gosto.

         - Porque quero saber onde está - disse, sem alterar-se. Não se incomodou em fingir que não me entendia. Uma sensação de frio me bateu as asas no peito.

         - Hayes sabe onde está? soube um pouco do Bonnet?        

         Ele moveu a cabeça, mudo. Estava-me dizendo a verdade. Quando afrouxei os dedos, aliviada, ele retirou o braço; fez-o sem aborrecimento, com uma objetividade tranqüila e decidida.

         - Claro que é meu assunto! - apontei, respondendo ao gesto.

         Falava em voz baixa, olhando a meu redor para me assegurar de que nem Bree nem Roger me ouvissem. Ele não estava à vista; ela estava de pé junto à fogueira, sumida em conversação com os Bug. Voltei-me novamente para o Jamie.

         - Para que buscas a esse homem?

         - Não é prudente saber de onde pode vir o perigo? - respondeu-me sem me olhar; com um sorriso e um movimento de cabeça saudou o Fergus, que se encontrava a minhas costas.

         Retornou a sensação fria, penetrante, como se alguém me tivesse perfurado o pulmão com uma lasca de gelo.

         - OH!, claro - disse, com toda a desenvoltura possível- . Quer saber onde está para evitar ir ali, não?

         Um pouco parecido a um sorriso cruzou a cara.

         - Exatamente para isso- disse.

         Dada a escassez de população na Carolina do Norte, em geral, e o longe que estava a Colina do Fraser, em particular, as possibilidades de que tropeçássemos acidentalmente com o Stephen Bonnet eram mínimas. Havia um só motivo para que desejasse localizar ao Stephen Bonnet... e eu sabia perfeitamente.

         - Jamie. - Voltei a lhe pôr uma mão no braço- . Deixa-o em paz. Por favor.

         Ele me cobriu a mão com a sua, mas o gesto não me tranqüilizou.

         - Não se preocupe, Sassenach. Passei-me a semana perguntando por toda a congregação. Não lhe viu em nenhum ponto da colônia.

         - Melhor assim - disse. Mas não me escapava o fato de que ele tinha estado procurando o Bonnet com assiduidade, sem me dizer nada. E além disso não me prometia deixar de buscá-lo.

         - Deixa-o em paz - repeti pelo baixo- . Já vamos ter muitos problemas. Não necessitamos mais.

         Ele me tinha atraído para si para impedir interrupções; percebi seu poder no contato: seu braço sob minha mão, sua coxa roçando o meu.

         - Há dito que é teu assunto. - Seus olhos estavam serenos; a luz de outono decoloraba seu tom azul- . Eu sei que é meu. Apóia-me ou não?

         Maldita seja! Ia a sério, só havia um motivo para procurar o Stephen Bonnet.

         Girei sobre meus talões, arrastando-o comigo, de modo que ambos ficamos olhando ao fogo, muito juntos e com os braços entrelaçados.        Brianna, Marsali e os Bug escutavam encantados ao Fergus, quem estava relatando algo, com a cara acesa pelo frio e a risada, Jemmy nos olhava por cima do ombro de sua mãe, com os olhos redondos e cheios de curiosidade.

         - Deve pensar neles - disse-lhe, com a voz grave e trêmula de paixão- . E em mim. Não crie que Stephen Bonnet já lhes tem feito bastante danifico?

         - Sim, mais que bastante.

         Estreitou-me contra si. Embora sentia seu calor através da roupa, sua voz soou fria como a chuva. Fergus desviou um olhar para nós e, depois de me sorrir calidamente, continuou com seu relato.

         - Deixei-o em paz - disse Jamie, muito fico- e isso conduziu ao mal. Posso permitir que siga livre, sabendo que classe de homem é, sabendo que eu o liberei para que siga pulverizando miséria? É como ter solto a um cão raivoso, Sassenach, e você não quereria que eu fizesse isso.

         Sua mão estava dura; seus dedos, frios sobre meus.

         - Uma vez o deixou ir, e a Coroa voltou a apanhá-lo. Se agora estiver livre não é por sua culpa.

         - Talvez não seja culpa minha que esteja livre - afirmou- , mas tenho a obrigação de impedir que siga assim... até onde eu possa.

         - Sua obrigação é sua família!

         Agarrou-me o queixo e inclinou a cabeça, cravados seus olhos em meus.

         - Crie acaso que lhes poria em perigo?

         Mantive-me rígida, resistindo por um comprido instante; logo encurvei os ombros e deixei cair as pálpebras, em um gesto de capitulação. Aspirei funda, longamente, tremendo. Mas não cedi de tudo.

         - Caçar é perigoso, Jamie - apontei brandamente- . E você sabe. Sua mão se relaxou, mas sem me soltar a cara; seu polegar seguiu o contorno de meus lábios.

         - Sei - sussurrou- . Mas sou caçador velho, Claire. Não haverá perigo para eles, juro-o.

         - Só para ti? E o que será de nós se você..?

         Nesse momento vi a Brianna pela extremidade do olho. Olhava-nos e sorria com tenra aprovação, caso que estava ante uma cena de ternura entre seus pais.

         - Não me acontecerá nada - disse firmemente.

         E me estreitou contra si para sufocar a discussão com um beijo. Do fogo nos chegou um breve aplauso.

         - Encoré!- gritou Fergus.

         - Não - disse ao Jamie enquanto soltava. Embora falava em sussurros, meu tom era veemente- . Encoré não. Não quero ouvir nunca mais o nome do Stephen Bonnet.

         - Tudo sairá bem - murmurou ele, me estreitando a mão- . Confia em mim, Sassenach.

 

                     Orgulho

         Roger caminhava colina abaixo sem olhar atrás, entre a maleza e a erva pisada; mas seguiu pensando nos Findlay enquanto se afastava de seu acampamento.

         Os dois moços eram ruivos e baixos, mas de ombros largos. As duas meninas menores, moréias, altas e magras, tinham os olhos cor avelã de sua mãe. Considerando a diferença de idade entre os varões e suas irmãs, Roger chegou à conclusão de que a senhora Findlay devia haver-se casado duas vezes. E parecia estar viúva outra vez.

Talvez devesse lhe mencionar a Brianna o caso do Joan Findlay como a melhor prova de que o matrimônio e os partos não eram necessariamente mortais para as mulheres. Ou possivelmente era melhor abandonar o tema por um tempo.

         Não obstante, além do Joan e de seus filhos, perseguiam-no os olhos suaves e brilhantes do Iain Mhor. Que idade teria? Provavelmente fora menor que Joan, mas possivelmente não. Ela o tinha tratado com deferência, lhe apresentando ao Roger tal como as mulheres apresentam a qualquer visitante ao chefe da família. Por ende, não podia ser muito menor. Trinta anos ou mais, talvez?

         <Santo Céu!-pensou-, como pode um homem sobreviver assim tanto tempo em uma época como esta?> jurou-se a si mesmo que procuraria a maneira de manter ao Iain Og e ao Hugh Findlay bem longe de todo perigo. E se se pagava pelo recrutamento, eles cobrariam sua parte.

         Enquanto isso... Vacilou. Acabava de passar junto ao acampamento da Yocasta Cameron, que bulia como uma pequena aldeia, com seu cacho de lojas, carretas e abrigos. Ante a perspectiva de suas bodas (agora, da dobro bodas), Yocasta havia trazido para quase todos seus escravos domésticos e também a uns quantos dos peões. além de ganho, tabaco e mercadorias gastas para comercializar, havia baús cheios de roupa, lençóis, baixelas, cavaletes, mesas, tonéis de cerveja e montanhas de comida, destinadas à celebração posterior. Essa manhã, Bree e ele tinham tomado o café da manhã com a senhora Camerún; a baixela de porcelana, com rosas pintadas, continha fatias de suculento presunto frito, atravessado com pregos de aroma, porridge de aveia com nata e açúcar; compota de frutas em conserva; pãozinhos tenros de milho lubrificados de mel; café da Jamaica... Ao recordá-lo, o estômago lhe contraiu com um agradável grunhido.

         O contraste entre essa abundância e a pobreza do acampamento dos Findlay não podia ser aceito com complacência. Com súbita decisão, deu a volta e iniciou a breve ascensão para a loja da Yocasta.

         A senhora Cameron estava em casa, por assim dizê-lo; viu suas botas enlameadas junto à loja. Apesar de ser cega, ainda saía para visitar os amigos, acompanhada pelo Duncan ou Ulises, seu mordomo negro.

         Não obstante, felizmente nesses momento parecia estar sozinha. Roger a viu através da lapela aberta da loja; encontrava-se reclinada em sua poltrona de cano, em evidente repouso. Fedra, sua criada, ocupava um tamborete junto à entrada, com uma agulha na emana e entortando os olhos sobre o tecido azul que lhe cobria o regaço.

Yocasta foi primeira em perceber sua presença; incorporou-se na poltrona assim que ele tocou a lapela, girando a cabeça para ali.

- Senhor Mackenzie. É realmente o Astuto, verdade?- disse a senhora Cameron, sonriendo nessa direção.

O Riu. Logo, obedecendo a seu gesto, inclinou a cabeça para entrar.

- O mesmo, mas como sabe você, senhora Cameron? Não hei dito uma palavra, muito menos cantei Acaso respiro de algum jeito melodiosa?

 

Brianna lhe tinha falado da assombrosa habilidade com que sua tia compensava a cegueira com os outros sentidos, mas mesmo assim lhe surpreendia tanta acuidade.

- Ouvi suas pegadas e logo senti o aroma de seu sangue- respondeu ela, sem lhe dar importância -. Essa ferida tornou a abrir-se, não? Vamos, sinta-se, filho Prefere você uma taça de chá ou um bom gole? Fedra, um pano, por favor.

 

Ele se levou involuntariamente os dedos ao corte que tinha no pescoço. Precipitado-los sucessos do dia tinham feito que o esquecesse por completo, mas a dama tinha razão: havia tornado a sangrar, deixando uma crosta seca sob a mandíbula e no pescoço de sua camisa.

Fedra já estava de pé, pondo uma bandeja com bolos e bolachas em cima de uma mesita, junto à poltrona da Yocasta. <Se não fora pela terra e a erva que estou pisando- disse-se Roger-, pareceria que está em seu salão do River Run.>

- Não é nada- disse com acanhamento.

Mas Yocasta agarrou o pano que lhe entregava sua criada e insistiu em lhe limpar a ferida com suas próprias mãos.

- Vá, manchou-lhe a camisa – lhe informou, apalpando com ire desaprobador o tecido rígido-. Poderemos lavá-la? Não sei se quererá ficar a empapada. É impossível que esteja seca para o anoitecer.

- Ah!, não, senhora. O agradeço mas tenho outra. Para as bodas, claro.

- Bem.

Fedra havia trazido um botecito com graxa medicinal; devia ser do Claire, pelo aroma de lavanda e hidraste. Yocasta agarrou um pouco de ungüento com a unha do polegar e lubrificou cuidadosamente a ferida, pressionando os dedos contra o osso de sua mandíbula.

Quando teve terminado, passou-lhe ligeiramente a mão pela cara e a cabeça; depois de retirar do cabelo uma folha murcha. Surpreendeu-o lhe limpando a cara com o pano molhado. Logo, deixou-o cair para tomar a mão, lhe envolvendo os dedos com os seus.

- Preparado. Apresentável de novo! E agora que está você em condições de aparecer em público, senhor MacKenzie, veio a falar comigo ou só passava por aqui?

Fedra pôs a seu lado uma terrina de chá e um platito com bolo, mas Yocasta não lhe soltou a mão esquerda. Isso lhe pareceu estranho, mas a atmosfera de intimidade lhe facilitou abordar o que queria lhe pedir.

Expressou-o com simplicidade; tinha escutado ao reverendo fazer essas chamadas à caridade em ocasiões anteriores e sabia que o melhor era permitir que a situação falasse por si mesmo, deixando a decisão final liberada à consciência do ouvinte. Yocasta escutava atentamente, com um pequeno sulco entre as sobrancelhas. Ao terminar de falar, pensou que a anciã se daria tempo para pensar, mas sua resposta foi imediata.

- Se conhecer o Joanie Findlay e também a seu irmão. Tem você razão; a tísica se levou a seu marido faz dois anos, Jamie Roy me falou ontem dela.

- Ah, de verdade?- Roger se sentiu algo parvo.

Yocasta fez um gesto afirmativo. Logo, reclinou-se um pouco, com os lábios cavados, pensando.

- Não é só questão de oferecer ajuda, sabe?- explicou-. Alegra-me poder fazê-lo. Mas Joan Findlay é uma mulher orgulhosa; não aceita caridades.

Sua voz encerrava uma leve nota de recriminação, como se Roger tivesse tido que sabê-lo.

E talvez assim era. Mas ele tinha atuado deixando-se levar pelo impulso, comovido pela pobreza dos Findlay. Não lhe tinha ocorrido que, ao carecer de quase tudo, para o Joan seria muito mais importante aferrar-se a sua única posse valiosa: seu orgulho.

- Compreendo – disse lentamente-. Mas deve haver uma maneira de ajudá-la sem que a ofenda.

Yocasta inclinou a cabeça a um lado, logo para o outro, em um gesto que lhe resultou peculiarmente familiar. É obvio: Bree o fazia algumas vezes quando refletia.

- Pode ser- disse-. No banquete de bodas, esta noite. Ali estarão os Findlay, e comerão bem. Ulises poderia lhes envolver um pouco de comida para a viagem de volta.

Sorriu brevemente; logo a expressão concentrada retornou a suas facções.

- O sacerdote- disse, com súbito ar de satisfação.

- Que sacerdote? refere-se você ao pai Donahue?

Uma sobrancelha grosa e brunida se arqueou para ele.

- Naturalmente. Há acaso algum outro na montanha?

Logo levantou a mão livre. Fedra, sempre alerta, foi a seu lado.

- Senhorita Eu?

- Busca algumas costure nos baús, moça- ordenou Yocasta, lhe tocando o braço- Mantas, boinas, calças de montar e camisas singelas... as moços de quadra podem prescindir de algumas.

- Meias- apontou Roger, pensando nos pés descalços e sujos das meninas.

- Meias- assentiu Yocasta-. Coisas singelas, mas de lã boa e bem remendadas. Ulises tem minha bolsa; lhe diga que te entregue dez xelins, que envolverá em um dos aventais. Logo fará um hatillo com tudo e o levará a pai Donahue. lhe diga que para o Joan Findlay, mas que não deve dizer de onde provém. Ele saberá o que fazer.

Com gesto satisfeito, retirou a mão do braço de sua criada e a despediu com um breve gesto.

- Anda, vete, te ocupe já disso.

Fedra assentiu com um murmúrio e saiu da loja, detendo-se só para sacudir o objeto azul que tinha estado costurando, e dobrá-la cuidadosamente sobre o tamborete. Roger viu que era um corselete para o vestido de bodas da Brianna, decorado com elegantes cintas entrecruzadas. Teve uma súbita visão dos brancos peitos da Brianna, aparecendo por um grande decote de cor anil escuro. Com certa dificuldade, retomou a conversação.

- Dizia você, senhora?

- Perguntava se com isso bastará.

Yocasta lhe sorria com uma expressão ligeiramente maliciosa, como se lhe tivesse estado lendo os pensamentos. Seus olhos eram azuis, como os do Jamie e os do Bree, mas não tão escuros. Estavam fixos nele... ou pelo menos se dirigiam a ele. Não podia lhe ver a cara, sem dúvida, mas dava a estranha impressão de que podia ver através dele.

- Se, senhora Cameron. foi você... muito bondosa. – Fez gesto de levantar-se, esperando que lhe soltasse a mão imediatamente. A anciã, em troca, apertou os dedos retendo-o.

- Ainda não. Tenho uma ou duas coisas que lhe dizer, jovem.

Ele voltou a instalar-se no assento, muito composto.

- Certamente, senhora Cameron.

- Não estava segura de si era melhor falar agora ou esperar a que parecesse, mas já que está você aqui, sozinho... - inclinou-se para ele, concentrada- Contou-lhe minha sobrinha que eu queria nomeá-la herdeira de minha propriedade?

- Sim, em efeito.

Imediatamente ficou em guarda. Brianna o havia dito, sim... deixando muito claro o que pensava dessa proposta. Roger se preparou para repetir suas objeções, com a esperança de poder fazê-lo com mais tato de que teria empregado ela. Depois de um pigarro, começou com cautela:

- Não duvido que minha esposa é muito consciente da honra que lhe faz você, senhora Cameron, mas...

- Sim?- sentiu saudades Yocasta, seca-. Ninguém o teria pensado, ouvindo-a falar. Mas sem dúvida você conhece o que pensa melhor que eu. De qualquer modo, devo lhe dizer que troquei que idéia.

- Sim? Bom, acredito que ela...

- Hei- dito ao Gerald Forbes que redija meu testamento, legando River Run e tudo que contém ao Jeremiah.

- A… – O cérebro do Roger demorou um instante em reagir -. Como? Ao pequeno Jemmy?

Ela seguia inclinada fazia diante, como se o estudasse. Por fim se tornou para trás com um gesto afirmativo, sempre sem lhe soltar a mão. Roger compreendeu que, ao não poder vê-lo, esperava interpretar suas reações pelo contato físico. Pois bem, podia inteirar-se de tudo o que seus dedos lhe dissessem. A notícia o tinha deixado tão aturdido que não sabia como reagir. O que diria Bree quando se inteirasse?

- Sim – disse ela, com um cordial sorriso-. Verá você: me ocorreu que, quando uma mulher se casa, suas propriedades passam à mãos de seu marido. Não é que não haja forma de resolver isso, mas sempre é difícil. E não quero recorrer aos advogados mais do indispensável. Em minha opinião, recorrer à lei é sempre um engano, não está de acordo, senhor MacKenzie?

Completamente estupefato, Roger caiu na conta de que o estava insultando deliberadamente. E não era só um insulto, mas também uma ameaça. Essa mulher pensava... Sim! Pensava que ele ia depois da suposta herança da Brianna, e lhe estava advertindo que não recorresse a artefatos legais para obtê-la.

- Mas isto é o mais... ! Pensam muito no orgulho do Joan Findlay!,Criem que eu não tenho? Como lhes atrevem a sugerir tal coisa, senhora Cameron?

- É você um jovem arrumado, Astuto- disse ela, retendo-o com força- apalpei sua cara. E leva o sobrenome MacKenzie, que é dos bons, sem dúvida. Mas nas Terras Altas abundam os MacKenzie verdade? Homens de honra e homens que não o têm. Jamie Roy o trata como a um parente, mas talvez é só porque está você comprometido com sua filha. Eu não acredito conhecer sua família.

A surpresa estava cedendo passo a uma nervosa necessidade de rir. Conhecer sua família? Provavelmente não. Como lhe explicar que ele era descendente direto, de sexta geração, do Dougal, irmão da própria Yocasta?Que não só era sobrinho do Jamie, mas também também dele, embora um pouco mais abaixo da árvore genealógica?

- Ninguém de quantos falaram comigo durante esta semana a conhece- acrescentou ela, com a cabeça inclinada a um lado, como o falcão que observa à presa.

        Tinha-o acaso por um estelionatário que tinha enganado ao Jamie? Ou talvez supunha que ambos estavam envoltos em algum plano?

         antes de que achasse alguma réplica digna, lhe deu um tapinha na mão, sem deixar de sorrir.

- Por isso pensei legar-lhe tudo ao pequeno. Será uma boa maneira de fazer as coisas, não lhe parece? Brianna poderá utilizar o dinheiro, certamente, até que o pequeno Jeremiah seja major de idade... , a menos que ao menino lhe aconteça algo.

Sua voz encerrava uma clara nota de advertência, embora seus lábios continuavam sonriendo, com os olhos inexpressivos ainda fixos nele.

- O que? Mas que diabos quer você dizer com isso?

Roger empurrou seu tamborete para trás, mas não lhe soltou a mão. Era muito forte, a pesos de seus anos.

- Gerald Forbes será meu testamento testamentario e há três fideicomisarios para administrar a propriedade. Mas se Jeremiah sofresse algum percalço, tudo irá à mãos de meu sobrinho Hamish. – Agora a mulher estava muito séria-. Você não verá nem um penique.

Ele retorceu seus dedos baixo os dela e apertou com força, até apinhar os nódulos ossudos. Que o interpretasse como quisesse! Yocasta afogou uma exclamação, mas Roger não a soltou.

- Está-me você dizendo que eu poderia fazer mal a esse menino?- Sua voz soou áspera a seus próprios ouvidos.

Ela, embora pálida, conservou sua dignidade, com os dedos apertados e o queixo erguido.

- Hei dito isso?

- Há dito muitas coisas.. e o que calou fala ainda mais alta. Como se atreve você a me fazer essas insinuações?

Soltou-lhe a mão, quase arrojando-lhe ao regaço. Ela esfregou lentamente os dedos avermelhados, enquanto refletia com os lábios franzidos.

- Pois bem – disse ao fim -, ofereço-lhe minhas desculpas, senhor MacKenzie, se o ofendi em algo. Mesmo assim, pensei que seria melhor que soubesse minhas intenções.

- Melhor? Melhor para quem? – Ele estava já de pé, indo para a saída. conteve-se com dificuldade para não estelar contra o chão as bandejas de porcelana, carregadas de bolos e bolachas, a modo de despedida.

- Para o Jeremiah – respondeu ela a suas costas, sem alterar-se -. E para a Brianna. Possivelmente também para você mesmo, jovem.

Ele girou em redondo.

- Para mim? O que significa isso?

Ela se encolheu vagamente de ombros.

- Se não poder você amar ao menino por si mesmo, possivelmente possa tratá-lo bem por suas expectativas.

Roger seguia com a vista cravada nela e as palavras entupidas em sua garganta. Sentia a cara quente; o sangue lhe palpitava sordamente nos ouvidos.

- OH!, já sei o que acontece. É compreensível que um homem não tenha muito afeto ao menino que sua esposa teve com outro, mas se...

Então ele deu um passo adiante e a aferrou por um ombro. Yocasta deu um coice e piscou; as chamas das velas refulgiram ao refletir-se em seu broche.

- Senhora- pronunciou Roger, lhe falando muito fico, frente a frente -: não quero seu dinheiro. Minha esposa não o quer. E meu filho não o terá. Meta-lhe pelo traseiro!

E a soltou para sair da loja, roçando ao passar ao Ulises, que o seguiu com a vista, desconcertado.

 

                   Virtude

A gente se movia entre as sombras crescentes da avançada tarde, indo de uma fogueira a outra para ver-se, igual a faziam todos os dias; mas hoje na montanha imperava uma sensação diferente.

Em parte era a doce tristeza da despedida; em parte era espera: as ânsias de voltar para casa, os prazeres e os perigos da viagem iminente; em parte, também, simples cansaço.

Mas o desejo de estar em casa era forte: meu lar espaçoso, a paz de meu luminoso consultório e meu leito de plumas, brando e limpo, com lençóis de linho que cheiravam a romeiro e milenrama.

Fechei por um momento os olhos, convocando uma melancólica visão desse refúgio deleitoso. Logo os abri à realidade: uma churrasqueira pegajosa, enegrecida pelos restos chamuscados das tortas de aveia; os sapatos empapados e os pés gelados; as roupas úmidas, ásperas de areia e pó; uma jovem mãe rendida de cansaço, com os peitos doloridos e os mamilos gretados; uma noiva a ponto de casar-se; uma criada pálida com cãibras menstruais; quatro homens escoceses ligeiramente ébrios (e um francês em estado similar) que vagavam pelo acampamento como outros tanto ursos e não seriam de nenhuma ajuda na hora de empacotar, essa noite. E no sob ventre, uma dor penetrante me trazia a ingrata notícia de que meu próprio fluxo mensal (que ultimamente era muito menos que mensal, por sorte) tinha decidido fazer companhia ao do Lizzie.

Chiando os dentes, arranquei de um ramo da maleza um pano frio e úmido. Logo percorri o caminho que levava para a sarjeta que servia de letrina às mulheres.

A minha volta, o primeiro que me saudou foi um fedor quente a metal queimado. Disse um pouco muito expressivo em francês, parte da útil fraseología adquirida em L’Hôspital dê Anges, onde a linguagem soez estava acostumado a ser a melhor ferramenta médica da que se dispunha.

Marsalí ficou boquiaberta. O pequeno Germain, me olhando com evidente admiração, repetiu a frase corretamente e com um belo acento parisino.

- Sinto-o – me desculpei, olhando ao Marsali-. Alguém deixou que se consumisse a água na bule.

- Não importa, mãe Claire – disse ela com um suspiro, sacudindo ritmicamente à pequena Joanie, que começava a chorar outra vez-. Coisas piores lhe ensina seu pai de propósito. Há algum pano seco?

depois de me envolver a mão com uma dobra da saia, sujeitei a asa e retirei bruscamente a bule das chamas. O calor atravessou o tecido úmido como um relâmpago, me obrigando a soltá-la.

- Merde! – disse Germain, em um alegre eco.

- Sim, certamente – confirmei eu, me chupando a ampola de meu polegar. A bule vaiava entre as folhas molhadas. De um chute a fiz rodar até um atoleiro de barro.

- Merde, merde, merde, merde - cantou Germain, aproximando-se bastante à melodia do Rose, Rose>; infelizmente, as circunstâncias fizeram que essa amostra de precocidade musical passasse sem ser apreciada.

- Cala menino – disse.

Não calou, Jemmy começou a chiar ao uníssono com o Joan. Lizzie, que tinha sofrido uma recaída pela relutante partida do recruta Ogilvie, gemia sob um ramo. E se somou ao granizo: pequenos projéteis de gelo branco dançavam na terra e ricocheteavam sonoramente contra meu couro cabeludo.

O granizo durou pouco, mas ao amainar a corrente e o repico, ouviu-se pelo caminho um ruído crepitante de botas cobertas de barro. por ali vinha Jamie, com o pai Kenneth Donahue a reboque, talheres de granizo o cabelo e os ombros.

- trouxe para o pai a tomar o chá – disse, iluminando o claro com seu sorriso.

- Não, disso nada – repliquei, bastante ominosa. E se ele pensava que o do Stephen Bonnet estava esquecido, nisso também se equivocava.

Girando para o som de minha voz, deu um coice exagerado à lombriga com a touca.

- É você, Sassenach? – perguntou com fingido alarme, inclinando-se ostentosamente para olhar por debaixo do volante cansado do meio doido.

Por respeito à presença do sacerdote, abstive-me de lhe dar um joelhada em algum sítio sensível. Ele pareceu não precaver-se; distraiu-o Germain, que agora dançava e cantava distintas versões de minha expressão francesa inicial, com a música do Row, Row, Row Your Boat” . O pai Donahue ia adquirindo um intenso tom rosado pelo esforço de fingir que não entendia o francês.

- Tailandeses toi, crétin- disse Jamie, afundando a mão em seu sporran. Disse-o com bastante cordialidade, mas seu tom foi o de quem espera ser obedecido imediatamente. Germain se interrompeu abruptamente, com a boca aberta; Jamie se apressou a meter nela um doce. O menino fechou a boca e, concentrado no assunto que o ocupava agora, esqueceu as canções.

Alarguei a mão para o hervidor, utilizando novamente parte do vôo de minha saia como cabo. Jamie agarrou um pau resistente, com o que enganchou a asa da bule, apartando a de minha mão.

- Voilà- disse, oferecendo-me isso

- Merci- repliquei, com evidente falta de gratidão. Mesmo assim aceitei o pau e me encaminhei para o arroio mais próximo, levando ante mim a bule fumegante como se fora uma lança.

Ao chegar a um remanso semeado de pedras, deixei-a cair ruidosamente e, me arrancando a touca, joguei-a em um juncal; logo a pisei, deixando um grande rastro de barro no linho.

- Não hei dito que te sentasse mau, Sassenach- disse uma voz divertida a minhas costas.

Arqueei uma sobrancelha fria para ali.

- Acaso vais dizer me que me sinta bem?

- Não. Dá-te o aspecto de um cogumelo venenoso. Está muito melhor sem ela- assegurou-me.

E me atraiu para si para me beijar.

- Não é que não valore a intenção- disse-lhe. O tom de minha voz o deteve um centímetro de minha boca -. Mas se balanças um cabelo mais, acredito que vou arrancar te um trocito de lábio com os dentes.

Ele ergueu as costas como o homem que, depois de levantar tranqüilamente uma pedra, precave-se de que em realidade era um ninho de vespas. Com muchísima lentidão, apartou as mãos de minha cintura.

-OH!- disse. E inclinou a cabeça a um lado, me estudando com os lábios cavados -. Parece algo nervosa, Sassenach.

Não havia dúvida de que era certo, mas para me ouvi-lo senti ao bordo das lágrimas. Pelo visto o impulso era visível, pois ele me agarrou a mão, com muita suavidade, e conduziu a uma rocha grande.

- Sente-se- disse -. Fecha os olhos, a nighean donn. Descansa um momento.

Sentei-me, com os olhos fechados e os ombros cansados. Chape-os lhe vos e os ruídos metálicos anunciaram que ele estava limpando e enchendo o hervidor.

- me perdoe- disse ao fim, abrindo os olhos.

Ele se voltou a me olhar, sonriendo pela metade.

-por que, Sassenach? Não é que tenha rechaçado meu leito; ao menos, espero que ainda não tenhamos chegado a isso.

Nesse momento, fazer o amor era absolutamente o último de minha lista, mas lhe devolvi a meia sorriso.

- Não – disse, melancólica- . depois de passar duas semanas dormindo no chão, não rechaçaria o leito de ninguém.

Ante isso arqueou as sobrancelhas. Pus-se a rir; tinha-me pego despreparada.

- Não – repeti -. Só estou... exausta.

Algo me retorceu a parte baixa do ventre. Com uma careta, apertei as mãos contra a dor.

- Ah! – disse ele novamente – Exausta nesse sentido.

- Exausta nesse sentido – confirmei. Logo toquei o hervidor com o pé -. Será melhor que leve isso ao acampamento. Tenho que ferver água para uma infusão de casca de salgueiro. Requer muito tempo.

- Ao diabo com a casca de salgueiro – disse ele, extraindo uma cigarreira de prata de debaixo da camisa -. Isto prova. Ao menos não precisa ferver-se previamente.

Desenrosquei o plugue para inalar. Uísque, e muito bom.

- Amo-te – disse sinceramente.

Ele riu.

- Eu também te amo, Sassenach - disse, tocando-me o pé com suavidade. Enchi-me a boca e deixei que corresse pela garganta.

-OoooooH! – suspirei, e bebi outro sorvo. Um irlandês me tinha assegurado, certa vez, que um uísque excelente podia levantar um morto, e eu não pensava rebater-lhe Que maravilha! – murmurei ao abrir novamente os olhos-. Onde o conseguiu?

Apesar do pouco que eu sabia do tema, podia afirmar que era de origem escocesa, envelhecido durante vinte anos; muito diferente do forte licor que Jamie destilava detrás da casa, na Colina.

- Através da Yocasta – respondíó -. ia ser um presente de bodas para a Brianna e Roger, mas me pareceu que você o necessitava mais.

Tem razão – afirmei.

Seguimos juntos, em amistoso silêncio; eu bebia a sorvos, lentamente; o impulso de enlouquecer e massacrar a todos ia diminuindo gradualmente, junto com o conteúdo da cigarreira.

- passaram três meses desde seu último período – disse Jamie -. Supus que já não havia mais.

Sempre me desconcertava um pouco notar quão observador era dessas coisas.

- Não é um grifo que se fechamento sem mais, sabe? – disse, um pouco chateada-. Por desgraça. Mas bem, volta-se errático e ao fim cessa, mas não sabe quando.

-Ah!

inclinou-se para diante, com os braços cruzados sobre os joelhos, contemplando ociosamente os ramos e as folhas que flutuavam na corrente do arroio.

- Suponho que seria um alívio acabar com todos isso. Menos complicações, verdade?

Reprimi o impulso de extrair invejosas comparações sexuais sobre os fluidos corporais.

- Talvez – disse -. Já te informarei, de acordo?

Sorriu vagamente, mas teve a prudência de não insistir; sabia perceber a irritação em minha voz.

Eu sorvi um poquito mais de uísque. de repente Jamie se estirou, dizendo:

- Né... Sassenach...

- O que acontece?- perguntei, surpreendida.

Ele agachou a cabeça com estranho acanhamento.

- Não sei se tiver feito mal ou não, Sassenach. Em todo caso te peço perdão.

- Claro – disse, algo vacilante. o que era o que lhe estava perdoando?-. O que tem feito?

- Bom, eu nada- disse, um pouco envergonhado-. Só fixe que você o faria.

- O que?- Tinha uma leve suspeita- Do que se trata? Se tiver prometido ao Farquard Campbell que eu visitaria essa velha horrível de sua mãe...

- OH, não!- assegurou-me-. Nada disso. Prometi ao Josiah Beardsley que hoje trataria de lhe extirpar as amídalas.

- Como?

Fulminei-o com o olhar. No dia anterior tinha conhecido ao jovem Josiah Beardsley, o pior caso de abscessos nas amídalas que eu tivesse visto em minha vida. O estado pustuloso de seu adenoides me impressionou até tal ponto que os descrevi detalladamente a tudo durante o jantar, fazendo que Lizzie ficasse verde e cedesse sua segunda batata ao Germain; então, tinha mencionado que a única padre possível era uma operação cirúrgica, mas não esperava que Jamie saísse para me buscar trabalho.

- por que? – perguntei.

Ele se balançou um pouco para trás, me olhando de abaixo.

- Necessito-o, Sassenach.

- Se? E para que?

Josiah logo que tinha quatorze anos; ao menos, isso acreditava. Em realidade, ele não sabia com certeza quando tinha nascido e seus pais estavam muito mortos para contá-lo. Era miúdo até para quatorze anos e estava muito desnutrido, com as pernas um pouco curvadas pelo raquitismo.

- Para arrendatário, é obvio.

- Pois eu diria que já tem mais candidatos dos que pode aceitar.

Era certo. Não tínhamos dinheiro absolutamente, embora as operações de intercâmbio feitas pelo Jamie durante a congregação cobriam parcialmente nossas dívidas com vários mercados do Cross Creek. Teniamos terras em abundância, a maior parte cobertas de bosques, mas carecíamos de médios para ajudar a quem queria instalar-se nelas e as cultivar. Ter aos Chisholm e aos McGillivray era já ir muito além de nossas possibilidades, para somar mais arrendatários.

Jamie se limitou a assentir com a cabeça, desprezando essas complicações.

- Sim, mas Josiah é um moço prometedor.

- Hum! – murmurei, dúbia. A verdade é que o menino parecia robusto, e a isso se referia Jamie ao dizer que era prometedor; demonstrava-o o simples feito de que tivesse sobrevivido até então-. Pode ser. Mas há muitos outros como ele. O que tem ele de especial para que o necessite?

- Quatorze anos.

Olhei-o com uma sobrancelha arqueada em um gesto de pergunta. Sua boca se torceu em um sorriso irônico.

- Todos os homens que tenham entre dezesseis e sessenta anos devem servir na tropa, Sassenach.

Jamie estirou os braços com um suspiro, flexionando os nódulos até que rangeram.

- O háras, pois? – perguntei-. Formar uma companhia de milicianos para ir?

- É preciso – respondeu simplesmente -. Tryon me tem pego pelos ovos e não quero comprovar se estiver disposto a espremer, compreende?

- Isso me temia.

Enquanto fizesse o que o governador lhe pedia... Bom, o governador era um político de êxito; sabia manter a boca fechada quando convinha. Mas se o desafiava, bastaria com uma singela carta enviada desde New Bern para privar à Colina de Frase de sua residentes Frase.

- Hum, de maneira que está pensando que, se retirar da Colina a todos os homens disponíveis... não pode deixar alguns?

- Para começar, não tenho tantos, Sassenach- assinalou-. Posso deixar ao Fergus, devido a seu manquedad. E ao senhor Wemyss para que cuide a casa. Ele é servo, até onde todos sabem, e só os homens livres têm obrigação de unir-se à tropa.

- E só os homens sãs. Isso exclui ao marido da Joanna Grant, que tem um pé de madeira.

- Sim, e ao velho Arch Bug, que passa amplamente dos setenta. São quatro homens e possivelmente oito meninos menores de dezesseis anos, para cuidar de trinta casas e mais de cento e cinqüenta pessoas.

- Suponho que as mulheres podem arrumar-lhe por si só – disse -. depois de tudo estamos no inverno; não há colheitas que atender. E não acredito que os índios causem problemas nestes dias.

Ao me tirar a touca me tinha afrouxado a cinta; o cabelo escapava das tranças desfeitas para todos lados, e me pegava ao pescoço em mechas frisadas e úmidos. depois de me arrancar a cinta, tratei de me pentear com os dedos.

- De qualquer modo, por que dá tanta importância ao Josiah Beardsley? Não acredito que adicionar outro menino de quatorze anos possa trocar muito as coisas.

- Beardsley é caçador – explicou Jamie -, e dos bons. Trouxe para a congregação quase duzentos pesos em peles de lobo, veado e castor, e todos os caçou ele mesmo, sem ajuda, conforme disse. Eu mesmo não poderia superá-lo.

Passei uma mão através de meu cabelo úmido, cavando as mechas soltas.

- Está bem, compreendo isso, mas o que têm que ver as amídalas com o assunto?

Jamie me olhou com um sorriso. Logo se inclinou sobre meu ombreio para recolher a cinta que eu tinha no regaço.

- Preparado – disse, voltando a sentar-se a meus pés -. Vamos agora às amídalas. Disse-lhe ao menino que devia tirar-lhe se não queria que sua garganta piorasse.

- E assim será.

Josiah Beardsley me tinha acreditado. O inverno anterior tinha estado ao bordo da morte, quando um abscesso na garganta esteve a ponto de asfixiá-lo antes de que arrebentasse, e não estava muito desejoso de arriscar-se a que se repetisse.

- É a única cirurgiã ao norte do Cross Creek - assinalou Jamie -. Quem outro poderia fazê-lo?

- Bom, é certo – disse, vacilando-, mas...

- De modo que lhe fiz uma oferta – me interrompeu ele-, Uma parcela de terra onde, chegado o momento, Roger e eu lhe ajudaremos a construir uma cabana, e em troca ele me dará a metade das peles que consiga nos três invernos vindouros. Aceita... sempre que você lhe extirpe as amídalas como parte do trato.

- Mas por que hoje? Não posso extirpar amídalas aqui!- assinalei com um gesto o bosque empapado.

- por que não? – Jamie arqueou uma sobrancelha-. Não disse ontem à noite que era uma nimiedad, só uns quantos cortes com o mais pequeno de suas facas?

Esfreguei-me o nariz com um nódulo, em um gesto de exasperação.

- Olhe, embora não seja igual a amputar uma perna, isso não significa que seja singelo.

Em realidade, era uma operação relativamente fácil, cirurgicamente falando. O que podia provocar complicações era a possibilidade de uma infecção posterior; era necessária uma atenção cuidadosa que, embora pobre substituto dos antibióticos, era muito melhor que o abandono.

- Não é questão de lhe arrancar as amídalas e deixá-lo ir – expliquei -. Em troca, quando chegarmos à Colina...

- Não tem pensado retornar diretamente conosco – me interrompeu.

- por que?

- Não me há isso dito; só esclareceu que tinha algo que fazer. Virá à Colina a primeira semana de dezembro. Pode dormir no abrigo onde se guarda o feno.- acrescentou

- De maneira que ambos esperam que eu lhe corte as amídalas, ponha-lhe um par de pontos e o deixe ir tranqüilamente - perguntei, sardônica.

- Com o cão atuou muito bem – apontou ele, sorridente.

- Ah!, inteiraste-te.

- Pois sim. E com o moço que se cortou o pé dom uma tocha, e pirralhos que tinham sarpullido de leite, e com a dor de dente da senhora Buchannan...e sua batalha com o Murray MacLeod pelos condutos biliares.

- tive muito que fazer esta manhã, sim.

- Toda a congregação está falando de ti, Sassenach. O certo é que, ao ver toda essa multidão clamando por ti, lembrei-me da Bíblia.

- Da Bíblia? – Devi pôr cara de incompreensão, pois seu sorriso se tornou mais larga.

- “ E toda a multidão queria tocá-lo” - citou Jamie -. “ Pois dele emanava virtude e os curava a todos “ .

Ri melancolicamente, mas me interrompeu um pequeno hipido.

- Temo-me que, nestes momentos, fiquei-me sem virtude.

- Não se preocupe. Nesta cigarreira tem que sobre.

Isso me recordou que devia lhe oferecer uísque, mas ele o rechaçou com um gesto, com as sobrancelhas franzidas em reflexão.

- Operará-lhe as amídalas, uma vez que venha à Colina?

depois de refletir durante um momento, fiz um gesto afirmativo e traguei. Mesmo assim havia riscos; normalmente eu não realizava operações que pudessem evitar-se, mas o estado do Josiah era realmente horrível; se não se tomavam medidas, as infecções constantes podiam acabar matando-o.

Jamie assentiu, satisfeito.

- Bem, ocuparei-me disso.

Meus pés se descongelaram, até molhados como estavam, e começava a me sentir abrigada, dócil. Ainda sentia o ventre dolorido, mas isso já não me importava tanto.

- estive pensando algo, Sassenach – disse ele.

- O que?

- Falando da Bíblia...

- Hoje não pode te tirar as Escrituras da cabeça, verdade?

Um sorriso lhe curvou para cima.

- Pois não. É que estive pensando. Quando o Anjo do Senhor se apresenta a Sara e lhe diz que ao ano seguinte terá um menino, ela ri, dizendo que é uma estranha brincadeira, pois isso já não está nela como está nas demais mulheres.

- Em sua situação, quase todas as mulheres tomariam a brincadeira- assegurei-lhe-. Mas muitas vezes penso que Deus tem um senso de humor muito peculiar.

- Até onde sei- disse, pondo cuidado em não me olhar-, se não te chamar María e o Espírito Santo não teve intervenção alguma, há uma só maneira de ficar grávida. Equivoco-me?

- Até onde eu sei, se. – Cobri-me a boca com uma mão para sufocar o soluço.

- Se, E nesse caso... Bom... Isso significa que Sara ainda se deitava com o Abraham, não?

Seguia sem me olhar, mas as orelhas lhe haviam posto vermelhas. Compreendendo tardiamente o motivo dessa análise religiosa, estirei um pé para roçá-lo brandamente.

- Pensava que possivelmente deixaria de te desejar?

- Agora não me deseja – assinalou com lógica.

- Sinto-me como se tivesse o ventre cheio de cristais quebrados, estou médio empapada e coberta de barro até os joelhos, e a pessoa que te busca vai aparecer entre os arbustos em qualquer momento, com uma matilha de sabujos- disse, com certa aspereza-. Está-me convidando a gozar carnalmente contigo neste montão de folhagem molhada? Porque nesse caso...

- Não, não – se apressou a dizer- Agora não. Só queria dizer..., perguntava-me se...

As pontas de suas orelhas tinham chegado ao vermelho opaco. levantou-se bruscamente, sacudindo-as folhas murchas da saia com exagerada força.

- Se a estas alturas pretendesse me embaraçar, Jamie Fraser – lhe disse, medindo o tom- , assaria-te os cojones em brochette. Mas quanto a me deitar contigo...

Interrompeu o que estava fazendo para me olhar. Eu lhe sorri, lhe deixando ver o que pensava.          

- Uma vez que tenha de novo um leito- disse -, prometo-te não rechaçá-lo.

- Ah... – Aspirou fundo, súbitamente feliz-. Então tudo está bem. É que... tinha minhas dúvidas, sabe?

A um súbito sussurro de folhagem seguiu a aparição do senhor Wemyss, cuja cara magra e ansiosa apareceu entre duas matas de groselhas.

- Ah!, é você, senhor- disse, com evidente alívio.

- Suponho que sim – confirmou Jamie, resignado-. Há algum problema, senhor Wemyss?

O homem demorou para responder, pois se tinha enredado com o arbusto.

- Devo me desculpar por incomodá-lo, senhor- disse, muito vermelho, atirando nervosamente de uma ramilla Espinosa que lhe tinha enredado no cabelo loiro, já escasso-. É que... Bom, ela disse que ia partir o com a tocha do cocuruto até a virilha, se ele não a deixava em paz; e ele disse que nenhuma mulher podia lhe falar nesse tom. E ela tem uma tocha, se...

Acostumado aos métodos de comunicação do senhor Wemyss, Jamie suspirou e, jogando mão da cigarreira, desarrolhou-a para lhe dar um bom gole fortalecedor. Ao baixar ao recipiente brocou ao Senhor Wemyss com o olhar.

- Quais?- interrompeu.

- OH!... né ... Não lhe hei dito? Rosamund Lindsay e Ronnie Sinclair.

- Estraguem.

Não era uma boa notícia. Jamie me devolveu a cigarreira com um suspiro.

- você vá a lhes dizer que vou para ali, senhor Wemyss- disse.

O magro rosto do senhor Wemyss expressou uma muito vivo apreensão ao imaginar-se frente a frente com a tocha do Rosamund Lindsay, mas major ainda era o respeito que lhe inspirava Jamie. depois de nos fazer uma rápida e pulcra reverência, arrojou-se torpemente às matas de groselha.

Um chiado como de ambulância anunciou a aparição do Marsali, com o Joan em braços. Esquivou cuidadosamente ao senhor Wemyss, lhe arrancando ao passar um ramo que lhe aderia à manga.

- Tem que vir, papai- disse, sem preâmbulos -. O pai Kenneth foi detido.

As sobrancelhas do Jamie se dispararam para cima.

- O que o prenderam? Justo agora? Quem?

- Neste momento, sim! Um homem gordo, horrível, que disse ser o delegado do condado. Chegou com dois homens; perguntaram quem era o sacerdote e, quando o pai Kenneth disse que era ele, agarraram-no pelos braços e o levaram sem mais, sem pedir permissão a ninguém.

O sangue alagava a cara de meu marido; seus dois dedos rígidos tamborilaram brevemente a coxa.

- O levaram que meu lar?- disse-. A Dhia!

Obviamente, era uma pergunta retórica. antes de que Marsali pudesse responder, chegou um ranger de pisadas da direção oposta. Brianna apareceu ante nossa vista, desde detrás de um pinheiro.

- O que!- ladrou ele.

Bree piscou, desconcertada.

- Né... Geordie Chisholm diz que um dos soldados lhe roubou um presunto que tinha no fogo, que vás falar com o tenente Hayes.

- Sim – replicou o imediatamente- Depois. Enquanto isso vê com o Marsali a averiguar onde levaram a pai Kenneth. E você, senhor Wemyss...

Mas o senhor Wemyss tinha podido, ao fim, escapar do abraço insistente do arbusto. Um estrondo longínquo indicou que corria a cumprir com suas ordens.

Um Breve olhar à cara do Jamie convenceu às moças que se impunha uma veloz retirada. Em poucos segundos nos encontramos outra vez a sós. Ele aspirou fundo e, pouco a pouco, deixou escapar o fôlego entre os dentes.

Eu teria querido reir, mas não o fiz. Em troca me aproximei; a pesar do frio e a umidade senti o calor de sua pele através da manta escocesa.

- A mim, ao menos, só querem me tocar os doentes- disse, lhe oferecendo a cigarreira -. O que faz você quando a virtude te abandona?

Jogou-me um olhar, e um lento sorriso lhe estendeu pela cara. Ato seguido, sem emprestar atenção à cigarreira se inclinou para agarrar minha cara entre as mãos e me beijou com muita suavidade.

- Isto – disse.

Logo girou em redondo e pôs-se a andar colina abaixo. Presumivelmente ia outra vez pleno de virtude.

 

                   Feijões e andaime

Voltei com a bule a nosso acampamento, para encontrar o lugar momentaneamente deserto. depois de pendurar a bule cheia de água sobre o fogo, para que fervesse, detive-me refletir para onde seria melhor dirigir meus esforços.

Embora a situação do pai Kenneth podia ser a mais grave a longo prazo, dificilmente minha presença poderia trocar as coisas. Mas eu era médico e Rosamund Lindsay tinha uma tocha. Dava uns golpes com a mão a minha roupa e a meu cabelo úmido, para lhes impor um pouco de ordem, e parti colina abaixo para o arroio, abandonando a touca a sua sorte.

Ao parecer, Jamie tinha pensado o mesmo em relação às prioridades, pois o encontrei de pé junto ao fosso do andaime, em aprazível conversação com o Ronnie Sinclair, despreocupadamente apoiado na manga da tocha, da que tinha conseguido apropriar-se.

O fosso era amplo; um declive natural, formado no ribazo de argila por alguma remota inundação e, nos anos seguintes, afundada graças a um judicioso trabalho a pá. Nesse mesmo momento, havia várias pessoas utilizando-o; os aromas a porco, aves, cordeiro e zarigüeya se mesclavam em uma nuvem de lenha de macieira e nozes duras; saboroso incenso que me fez a boca água.

A visão do fosso era menos apta para despertar o apetite. A lenha molhada despedia nuvens de fumaça branca, que ocultavam pela metade vários vultos tendidos sobre as piras de brasas.

- Digo-te que é veneno! – estava dizendo Ronnie Sinclair, acaloradamente, quando apareci atrás dele- Arruinará-os! Quando essa mulher termine, não servirão nem para os porcos.

- Pois são porcos, Ronnie – disse Jamie, com notável paciência, desviando o olhar para mim-. Se quer saber minha opinião, nada do que faça com um porco ao cozinhá-lo pode deixá-lo incomestible.

- É certo – apoiei, sonriendo ao Ronnie-. Toucinho defumado, costelas assadas, lombo ao forno, presunto assado, embutidos, pão de graxa, pudim negro... Alguém disse uma vez que do porco se pode aproveitar tudo, salvo o chiado.

- Pois sim, mas isto é um andaime, não? – aduziu Ronnie tercamente, sem emprestar atenção a meus débeis intentos de humor-. Qualquer sabe que o porco assado se amadurece com vinagre. Essa é a maneira adequada de fazê-lo! Ninguém põe cascalho nos embutidos, verdade? Nem ferve o toucinho com o lixo recolhimento no galinheiro. Cha!

Ao trocar o vento me chegou uma apetitosa baforada. A julgar pelo aroma, o molho do Rosamund parecia incluir tomates, cebolas, pimientos vermelhos e açúcar em quantidade suficiente para deixar uma grosa crosta negruzca na carne, além de um tentador aroma a caramelo no ar.

- Suponho que a carne, cozida dessa maneira, ficará muito suculenta – disse, sentindo que meu estômago começava a grunhir e fazer-se nós sob o sutiã passado os laços.

- Sim, e são porcos estupendos – acrescentou Jamie, para congraçar-se com o Rosamund, que tinha levantado um olhar fulminante. Estava ennegreciada até os joelhos e suas mandíbulas quadradas mostravam sulcos de chuva, suor e fuligem-. São porcos selvagens ou domésticos, senhora?

- Selvagens – respondeu ela, endireitando-se com certo orgulho -. Engordados com castanhas, Não há nada como isso para dar sabor à carne!

Ronnie Sinclair expressou seu desprezo e sua brincadeira com um ruído muito escocês.

- Pois tão bom não deve ser o sabor, pois tem que escondê-lo sob um montão desse asqueroso molho, que dá à carne esse aspecto sanguinolento, como se estivesse crua!

Rosamund fez um comentário muito terrestre com respeito à suposta virilidade dos homens que se impressionam ao pensar no sangue.

- OH!, sem dúvida está muito bem cozida- replicou Jamie para acalmá-los -. Seguro que a senhora Lindsay esteve trabalhando pelo menos do amanhecer.

- Desde muito antes, senhor Fraser- replicou a dama, com certa satisfação sombria-. Se quiser um andaime decente, começa ao menos um dia antes e a atende durante toda a noite. Estou cuidando estes porcos desde ontem pela tarde.

E aspirou uma grande baforada da fumaça que ascendia, com expressão beatífica.

- Ah, assim deve ser! Embora seja um desperdício oferecer este rico molho a escoceses cretinos.- Rosamund voltou a colocar o tecido impermeável, pondo-a em seu sítio com tenras palmadas-. Têm vocês a língua encurtida de tanto vinagre como jogam a suas provisões.

Jamie elevou a voz, afogando a indignada reposta do Ronnie a essa calúnia.

- foi Kenny quem caçou esses porcos para você, senhora? Os porcos selvagens são imprevisíveis; é perigoso espreitar a uma besta desse tamanho. Como os javalis que caçávamos em Escócia, verdade?

- Ja! Pois claro que não, senhor Fraser. A estes os matei eu mesma. Com essa tocha- añadio, assinalando com a cabeça o instrumento em questão. Logo olhou ao Ronnie com os olhos entreabridos de maneira sinistra-. Afundei-lhes o crânio de um só golpe.

- Sua intenção é vender a carne, verdade, senhora Lindsay?- disse Jamie-. Mau mercado é o que mata a seus clientes, não?

- Ainda não perdi a nenhum, senhor Fraser- acrescentou ela, apartando outro tecido impermeável para orvalhar um pernil fumegante com o molho de sua chaleira-. E nunca ouvi outra coisa que elogios de seu sabor. Claro que isso era em Boston, de onde provenho.

<Onde a gente tem bom critério>, implicava obviamente seu tom.

- A última vez que fui ao Charlotteville conheci um homem de Boston – comentou Ronnie-. Disse-me que tinha por costume comer feijões de café da manhã, e ostras de jantar, e que assim o tinha feito sempre desde que era uma cria. Sente saudades que não estalasse como uma bexiga de porco, se se enchia com essa porcaria!

- Feijões, feijões, são boas para seu coração- disse alegremente, aproveitando a oportunidade-. Quando mais as come, mais lhe pedorreas. Mas lhe pedorreas, melhor é a vida. Comamos feijões em cada comida!

Ronnie, ao igual à senhora Lindsay, ficou boquiaberto. Ante a gargalhada do Jamie, a expressão atônita da mulher se dissolveu em uma risada estrepitosa. Ao cabo de um momento, o outro se uniu a contra gosto, com um pequeno sorriso que lhe torcia a comissura da boca.

- Passei um tempo em Boston – disse brandamente, ao ceder um pouco a hilaridade-. Isso cheira de maravilha, senhora Lindsay!

Rosamund asintío com dignidade, gratificada.

- Pois claro que sim, senhora, embora eu seja quem o diga.- inclinou-se para meu, baixando um pouco sua estridente voz-. É obra de minha receita privada- disse, dando uma palmada à terrina de louça-. Tira reluzir o sabor, vê você?

Ronnie abriu a boca, mas só emitiu um pequeno chiado, resultado evidente da pressão que os dedos do Jamie aplicavam a seu biceps. A mulher, sem lhe emprestar atenção, encetou-se em uma amável discussão com meu marido, que concluiu com a reserva de uma peça inteira para a celebração de nossas bodas.

Para ouvir isso joguei uma olhada ao Jamie. Como parecia que o pai Kenneth estava caminho de Baltimore ou dos calabouços do Edenton, parecia-me duvidoso que essa noite pudesse celebrar-se bodas alguma.

Por outra parte, tinha aprendido a não subestimar ao Jamie. Depois de um completo à senhora Lindsay, afastou-se do fosso levando-se ao Ronnie pela força; apenas se deteve para me pôr a tocha nas mãos.

- Cuida bem isso, Sassenach- disse-me, me dando um beijo breve. Logo me sorrio-. E me diga, onde aprendeste tanto sobre a história natural dos feijões?

- Em realidade é uma pequena canção. Brianna a aprendeu na escola quando tinha uns seis anos- respondi, lhe devolvendo o sorriso.

- lhe diga que a cante a seu marido. Assim ele a escreverá em seu librejo.

Rodeou com braço amistoso e firme os ombros do Ronnie Sinclair, que apresentava indícios de querer escapar para o andaime.

- me acompanhe, Ronnie- disse-. Devo falar com o tenente. Acredito que ele quer comprar um presunto à senhora Lindsay- acrescentou-. Mas gostará de escutar o que puder lhe contar sobre seu pai. Você e Gavin Hayes foram grandes amigos, verdade?

- Pois sim- O cenho do Ronnie se suavizou um pouco-. Sim, sim. Gavin era um homem feito. aquilo lástima.- Moveu a cabeça; obviamente, referia-se à morte do Gavin, acontecida anos atrás. Levantou um olhar para o Jamie, cavando os lábios-. Sabe o moço o que aconteceu?

Essa sim que era uma pergunta delicada. A verdade era que Gavin tinha sido enforcado por ladrão no Charleston.

- Sim, tive que dizer-lhe respondeu Jamie, em voz baixa-. Mas acredito que lhe faria bem conhecer coisas de seu pai em outros tempos. o conte o que significou para nós Ardsmuir.

Algo que não chegava a ser um sorriso se refletiu em sua cara. Vi na do Sinclair uma ternura similar.

A mão do Jamie se esticou no ombro de seu companheiro; logo caiu a um lado. Ambos ascenderam a colina cotovelo a cotovelo, esquecendo as sutilezas do andaime.

A névoa já se levantava nos terrenos baixos da montanha; em poucos minutos eles desapareceram da vista. Do bosque brumoso, mais acima, masculinas vozes escocesas descenderam para o fosso fumegante, cantando em amistoso uníssono:

Feijões, feijões, são boas para seu coração ...

 

Ao retornar ao acampamento, encontrei ali ao Roger, que tinha terminado com seus recados. Estava de pé perto do fogo, conversando com a Brianna; o via preocupado.

- Não te aflija- disse-lhe, estirando o braço junto a seu quadril para retirar o te ronronem cozido-. Jamie o arrumará de algum modo. foi a ocupar do assunto.

- De verá?- Parecia um pouco sobressaltado-. Já sabe?

- Sim. Suponho que resolverá assim que encontre ao delegado.

Agarrei a bule trincada que utilizava quando acampávamos, pu-la na mesa e verti nela um pouco de água fervida, para esquentá-la. A jornada tinha sido larga; provavelmente a velada também o seria.

- O delegado?- Roger olhou a Brianna com estupefação tinta de alarme-. Não acredito que ela me tenha denunciado ao delegado, ou se?

- te denunciar? Quem!- perguntei, me somando ao coro de estupefatos. depois de pendurar novamente o hervidor em seu trípode, procurei a lata de chá-. O que estiveste fazendo, Roger?

Um leve rubor aparecío em seus altos maçãs do rosto, mas antes de que pudesse responder, Brianna lançou um bufido de risada.

- Dizendo a tia Yocasta até onde pode chegar.- Olhou ao Roger com os olhos encolhidos em triângulos de maliciosa diversão, imaginando a cena-. Homem, como me teria gostado de estar ali!

- O que lhe há dito, Roger?- inquiri com interesse.

Seu rubor se acentuou. Apartou a vista.

- Não quero repeti-lo- disse, breve-. Não é algo que deva dizer a uma mulher, menos ainda a uma anciã, e muito menos se estiver a ponto de ingressar em sua família. Perguntei ao Bree se não deveria ir pedir lhe desculpas antes das bodas.

- Não- replicou ela, imediatamente-. Que descaramento o seu! Tinha todo o direito a dizer o que disse.

- É que não lamento a substância de meu comentário, a não ser a forma- explicou ele, com um irônico indício de sorriso. Logo se voltou para mim-. Olhe, talvez deveria ir desculpar me, para não me sentir incômodo esta noite. Não quero arruinar as bodas do Bree.

- As bodas do Bree? Crie que vou casar me sozinha?- perguntou ela, enrugando as sobrancelhas ruivas.

- OH, não!- admitiu ele, sonriendo um pouco. Tocou-lhe brandamente a bochecha-. Eu estarei a seu lado, não o duvide. Sempre que nos casemos, dá-me igual como seja a cerimônia. Em troca você quererá que seja bonita, verdade? E não é questão de danificá-la; se o fizesse, sua tia me daria com um lenho na cabeça antes de que pudesse dizer; <Sim, quero.>

- Assim Jamie foi em busca do pai Kenneth- concluí-. Que Marsali não reconhecesse ao delegado que o levou complica as coisas.

Roger elevou as sobrancelhas escuras antes das unir em um gesto preocupado.

- Não sei se...- voltou-se para mim-. Ouça, é possível que o tenha visto faz uns instantes.

- Ao pai Kenneth?- perguntei, com a faca suspensa sobre o bolo de frutas.

- Não, ao delegado.

- O que? Onde?- Bree girou pela metade sobre seus talões, passeando em redor um olhar flamígera, com o punho apertado. Agradeci à sorte que o delegado não estivesse à vista. Que Brianna fora presa por agressão sim que danificaria as bodas.

- foi por ali.- Roger assinalava colina abaixo, para o arroio... e a loja do tenente Hayes.

Nesse momento apareceu Jamie, com aspecto de fadiga, preocupação e grande chateio. Pelo visto ainda não tinha encontrado ao sacerdote.

- Papai!- saudou-o Bree-. Roger crie ter visto o delegado que se levou a pai Kenneth.

- Sim? – Ele se reanimou imediatamente-. Onde?

Tinha fechado a mão, como preparando-se, e não pude menos que sorrir.

- Do que te ri?- perguntou ao dar-se conta.

- De nada- assegurei-lhe-. Anda, come um pouco de bolo.

E lhe entreguei uma parte, que ele se meteu imediatamente na boca, enquanto voltava a concentrar sua atenção no Roger.

- Onde?- inquirío borrosamente.

- Não sei se era o homem que está procurando- esclareceu o jovem-. Era um hombrecito esfarrapado. Mas levava um prisioneiro algemado, um dos tios do Drunkard’s Creek. Acredito que era MacLenan.

Jamie tossiu, engasgado, cuspindo ao fogo trocitos de bolo mastigado.

- prendeu ao senhor MacLennan? E você o permitiu?- Bree olhava a seu companheiro, consternada. Nem ela nem Roger tinham estado pressente quando Abel contou sua história, mas ambos o conheciam bem.

- Não podia fazer muito por impedi-lo- assinalou ele, brandamente-. O que fiz foi perguntar ao MacLennan se necessitava ajuda. Pensava ir em busca de seu pai ou do Facquard Campbell. Mas ele me olhou como se eu fora um fantasma. E quando voltei a perguntar moveu a cabeça, com um sorriso estranho. Por uma questão de princípios, não me pareceu correto golpear a um delegado. Mas se...

- Não é delegado- disse Jamie, com voz rouca e lacrimejando. Fez uma pausa para tossir outra vez.

- Um caçador de ladrões- expliquei ao Roger-. Algo assim como um caçador de recompensas.

O chá ainda não estava preparado, mas encontrei meia garrafa de cerveja, que entreguei ao Jamie.

- Aonde levarão ao Abel?- perguntei -. Não há dito que Hayes não queria prisioneiros?

Jamie sacudiu a cabeça. depois de uns goles baixou a garrafa. Já respirava um pouco melhor.

- Não os quer, não. O senhor Boble, porque tem que ser ele, levará ao Abel ao magistrado mais próximo. E se Roger acabar de vê-lo...

Com as sobrancelhas franzidas, girou para inspecionar a ladeira em redor, pensativo.

- Provavelmente seja Farquard- concluiu-. Sei que na congregação há três juizes de paz e três magistrados. De todos eles, o único que acampa neste lado é Campbell.

-Ah, que bem!- Suspirei aliviada. Farquard Campbell era um homem justo; atia-se estritamente à lei, mas não carecia de compaixão. Além disso tinha uma velha amizade com a Yocasta Cameron.

- Sim, pediremos a minha tia que fale com ele. Possivelmente seja melhor fazê-lo antes das bodas.- voltou-se para o Roger-. Quer ir, MacKenzie? Eu devo encontrar ao pai Kenneth, se quisermos que haja bodas.

Pela cara que pôs, o jovem também parecia haver-se engasgado com o bolo.

- Né... bom... – murmurou, incômodo-. Nestes momentos não acredito ser o melhor para levar uma mensagem à senhora Cameron.

Jamie o olhava com uma mescla de interesse e exasperação.

- por que?

Roger, intensamente ruborizado, relatou a parte essencial de sua conversação com a Yocasta; ao final baixou a voz até fazê-la quase inaudível. Mesmo assim o ouvimos com claridade. Jamie me olhou com a boca contraída. Logo seus ombros começaram a estremecer-se. Eu sentia que a risada me borbulhava sob as costelas, mas não era nada comparada com a hilaridade de meu marido. Ria quase em silêncio, mas tanto que lhe encheram os olhos de lágrimas.

-OH, Cristo!- ofegou ao fim, apertando-os flancos-. Acredito que me hei partido da risada.- E alargou a mão por volta de um dos panos tendidos, que usou para secá-la cara. Um momento depois, já mais reposto, disse-: Está bem. Nesse caso, vá a casa do Farquard. Se Abel estiver alli, lhe diga ao Campbell que eu respondo por ele. E traz o de volta

E o pôs em marcha com um breve gesto. Roger, pálido de mortificação mas cheio de dignidade, partiu imediatamente. Bree foi atrás dele, jogando um olhar de recriminação a seu pai, cujo único efeito foi lhe fazer reir em silêncio um pouco mais.

Eu afoguei meu próprio regozijo com um gole de chá fumegante, deliciosamente perfumado. Ofereci a taça a meu marido, mas ele a rechaçou com a mão, contentando-se com o resto da cerveja. Por fim comentou, baixando a garrafa:

- Minha tia sabe muito bem, por certo, o que se pode comprar com dinheiro e que não.

- E acaba de comprar para se, e para todos os do condado, uma boa opinião do pobre Roger, não é assim?- repliquei bastante seca.

- Pobre Roger- reconheceu Jamie, com a boca ainda contraída-. Pobre, mas virtuoso.- Levantou a garrafa de cerveja até esvaziá-la e a baixo com um leve suspiro de satisfação-. Embora, bem vista as coisas, também comprou um pouco de valor para o moço, verdade?

- <Meu filho>- citei brandamente, assentindo-. Crie que ele mesmo se precaveu antes de dizê-lo? O que na verdade quer ao Jemmy como a um filho?

Ele fez um gesto indefinido com os ombros, sem chegar a encolhê-los.

- Não sei. Mas é bom que essa idéia lhe tenha fixado na mente antes de que chegue o próximo bebê, que será seu sem lugar a dúvidas.

Recordei minha conversação com a Brianna essa manhã, mas decidi que era melhor não dizer nada, ao menos por agora. depois de tudo, isso incumbia ao Roger e ao Bree.

O suave calor que sentia na boca do estômago não era só por causa da infecção: Roger tinha jurado aceitar ao Jemmy como filho próprio, qualquer que fosse seu verdadeiro pai; era um homem de honra e essa era sua intenção. Mas a voz do coração fala mais alto que nenhum juramento pronunciado tão somente pelos lábios.

Na época em que eu retornei através das pedras, grávida, Frank me tinha jurado que me conservaria como esposa, que trataria ao menino como filho próprio, que me amaria como antes. Seus lábios e sua mente tinham feito o possível por cumprir com esses três votos, mas seu coração, a fim de contas, pronunciou um sozinho. Do momento em que recebeu a Brianna em seus braços, ela foi sua filha.

Mesmo assim, o que teria passado se tivéssemos tido outro filho? Essa possibilidade nunca existiu, mas se tivesse acontecido... Sequei lentamente a bule e a envolvi em um pano de cozinha, contemplando a visão dessa criatura mítica, a que Frank e eu teríamos podido ter, nunca tivemos e jamais teríamos. Depositei a bule envolta no cesto, com tanta suavidade como se fora um bebê dormido.

Quando me girei, Jamie seguia me olhando com uma expressão bastante estranha: tenra, mas melancólica.

- Alguma vez me ocorreu te dar as obrigado, Sassenach?- disse, com voz algo rouca.

- por que?- perguntei, intrigada.

Ele me agarrou a mão para que me aproximasse. Cheirava a cerveja e a lã molhada. Também, muito vagamente, à doçura do bolo de frutas com brandy.

- Por meus meninos- disse brandamente-. Pelos filhos que me deste.

-OH...!- Inclinei-me lentamente para diante, até posar a frente contra a sólida calidez de seu peito, e encerrei entre minhas mãos a parte baixa de suas costas, suspirando-. Foi... um prazer.

 

- Senhor Fraser, senhor Fraser!

Ao levantar a cabeça, encontrei-me com um menino que descendia correndo a levantada pendente, agitando os braços para não perder o equilíbrio, com a cara muito vermelha de frio e esforço.

- Uf!

Jamie alargou as mãos bem a tempo para sujeitá-lo no momento em que atravessava o último par de metros, já fora de controle. Logo o elevou em braços, sonriéndole. Reconheci-o; era o menor dos filhos do Farquard Campbell.

- Se, Rabbie, o que acontece? Você pai quer que vá a pelo senhor MacLennan?

Rabbie sacudiu a cabeça; suas mechas desiguais se elevaram como a pelagem de um cão pastor.

- Não, senhor- ofegou, procurando fôlego. No esforço por respirar e falar com mesmo tempo, tragou uma baforada de ar que lhe inchou a garganta como a uma rã-. Não senhor. Meu papai diz que se inteirou de onde esta o sacerdote e que eu devo lhe mostrar o caminho, senhor. Virá você comigo?

As sobrancelhas do Jamie se elevaram em momentânea surpresa; depois de me jogar uma olhada, dedicou ao Rabbie um sorriso e um gesto de assentimento, agachando-se para depositá-lo no chão.

- Sim, moço, irei. Anda, guíame.

- Que delicadeza a do Farquard!- comentei ao Jamie pelo baixo, enquanto Rabbie brincava de correr diante, jogando de vez em quando um olhar por cima de seu ombro, para assegurar-se de que podíamos lhe seguir o passo. Ninguém repararia em um pequeno entre os enxames de meninos que andavam pela montanha. Em troca teria chamado a atenção de todos que Farquard Campbell viesse pessoalmente ou enviasse a um de seus filhos adultos.

Jamie bufou um pouco; a bruma de seu fôlego foi um fio de vapor no fria glacial.

- Ao fim e ao cabo não é assunto do Facquard, pese ao grande avaliação que sente por minha tia. E suponho que, se me enviou ao pequeno, é porque conhece responsável e não quer escolher bandos me apoiando contra ele.- Jogo um olhar ao sol poente e logo me olhou , com melancolia-. Disse que acharia ao pai Kenneth antes do entardecer, mas mesmo assim... Não acredito que esta noite haja bodas, Sassenach.

Rabbie nos conduzia para cima, seguindo sem vacilar o labirinto de atalhos e erva pisoteada. A gente já se estava congregando em volto do fogo familiar, desejosa de jantar, e ninguém nos dedicou um olhar.

Por fim Rabbie se deteve o pé de um atalho bem marcado, que conduzia para cima e para a direita. Perguntei-me quem teria ao pai Kenneth sob custódia, e o que se propunha Jamie.

- Ali acima- disse Rabbie innecesariamente, assinalando o extremo de uma grande loja.

Ao vê-la, Jamie emitiu um som escocês do fundo de sua garganta.

- Ah! – disse muito fico-, de maneira que assim são as coisas.

- Não me diga como. me diga de quem.- Eu observava essa loja: grande, de lona parda encerada, pálida no crepúsculo. Obviamente pertencia a alguém endinheirado, mas não me resultava conhecido.

- O senhor Lillywhite, do Hillsborough- disse Jamie, franzindo as sobrancelhas em reflexão. Logo deu uns tapinhas na cabeça ao Rabbie Campbell e lhe entregou um penique tirado de seu sporran-. Obrigado, moço. Agora corre a sua casa, que é hora de jantar.

O menino agarrou a moeda e desapareceu sem comentários, feliz de ter completo com seu recado.

- Já, compreendo.

Contemple a loja com olho desconfiado. Isso explicava umas quantas coisas, mas não todas. O senhor Lillywhite era magistrado do Hillsborough. Eu não sabia mais dele, mas o tinha visto uma ou duas vezes durante a congregação: um homem alto, um pouco curvado, que se caracterizava por sua jaqueta verde garrafa com botões de prata. Nunca me tinham apresentado isso formalmente.

Os magistrados eram os responsáveis por designar aos delegados; isso explicava o vínculo com o <gordo horrível> que havia descrito Marsali e por que o pai Kenneth estava encarcerado ali. Mas ficava por saber se era o delegado ou Lillywhite quem tinha querido retirar o da circulação.

Jamie me apoiou uma mão no braço para me apartar do atalho, fazia o amparo de um pinheiro pequeno.

- Você não conhece senhor Lillywhite, verdade, Sassenach?

- Só de vista. O que quer por mim?

Ele me sorriu com um brilho travesso nos olhos, em que pese a estar preocupado pelo sacerdote.

- Está disposta?

- Suponho que sim, a menos que me ordene golpear na cabeça ao senhor Lillywhite e liberar o pai Kenneth pela força. Esse tipo de coisas está mais em sua linha que na minha.

Ele riu ante isso, jogando à loja um olhar que me pareceu ofegante.

- Nada eu gostaria mais- disse, confirmando esta impressão-. E não seria nada difícil- acrescentou, observando os flancos de lona, que ondulavam ao vento-. Olhe seu tamanho; ali dentro não pode haver mais de dois ou três homens, além disso do sacerdote. Poderia esperasse a que obscurecesse por completo e logo, com um ou dois moços...

- Sim, mas o que quer que eu faça agora?- interrompi-o. Parecia-me melhor pôr reserva a um fio de pensamentos claramente criminal.

Ele abandonou suas maquinações para me avaliar com olhos entreabridos.

- Não trouxeste algo de sua equipe médica?- perguntou, com ar dúbio-. Um frasco de beberagem, uma pequena faca?

- Frasco de beberagem, diz! Não... OH!, espera um momento. Sim, trouxe isto. Servira?

Urgando no bolso que me pendurava da cintura, tinha encontrado a pequena caixa de marfim em que guardava minhas agulhas de acupuntura, com ponta de ouro.

Ele assentiu, obviamente satisfeito, e tirou do sporran a cigarreira de prata.

- Servirão, sim- disse, me entregando o uísque-. Leva isto também, para impressionar. Sobe até a loja, Sassenach, e dava a quem está custodiando ao sacerdote que o homem está doente.

- O guarda?

- O padre- corrigiu-. A estas horas todos têm que saber que é curandeira e lhe reconhecerão ao verte. Dava que estiveste tratando ao pai Kenneth por uma enfermidade e que necessita imediatamente uma dose de seu remédio. Do contrário morrerá. Não acredito que queiram isso... e de ti não terão medo.

- Não acredito que tenham motivos- reconheci, algo cáustica-. Bem, não tenho que apunhalar ao delegado com minhas agulhas, verdade?

A idéia lhe fez sorrir de brinca a orelha, mas negou com a cabeça.

- Não. Só quero que averigúe por que o capturaram e o que pensam fazer com ele. Se fosse eu mesmo a perguntar, poria-os em guarda.

Isso significava que não tinha abandonado por completo a idéia de lançar um ataque comando contra a fortaleza do senhor Lillywhite, se as respostas resultavam insatisfactorias. Joguei uma olhada à loja e, aspirando fundo, acomodei-me o xale sobre os ombros.

- Está bem. E você o que fará enquanto isso?

- Vou pelos meninos – disse.

E depois de me apertar fugazmente a mão, para me desejar sorte, partiu costa abaixo.

 

Ainda estava me perguntando o que significaria essa críptica declaração (que meninos e para que?) Quando distingui a lapela aberta da loja; mas todas as especulações voaram de minha mente ante a aparição de um cavalheiro que correspondia ao descrito pelo Marsali, <um gordo horrível>, com tanta exatidão que não me couberam dúvidas sobre sua identidade; seus ojillos de contas me observaram como se avaliasse minhas possibilidades comestíveis.

- Bons dias você tenha, senhora- disse, sem entusiasmo, como se me encontrasse pouco apetitosa; mas inclinou a cabeça com respeito formal.

- Bons dias – respondi alegremente, lhe fazendo uma breve reverencia. Alguma vez vai mal cortês, ao menos em um começo-. Você deve ser o delegado, verdade? Temo que não tive o prazer de lhe ser formalmente apresentada. Sou a senhora Fraser, a esposa do James Fraser, da Colina do Fraser.

- David Anstruther, delegado do condado do Orange. Um servidor, senhora.- inclinou-se outra vez, embora sem muitas amostras de prazer. Tampouco parecia havê-lo surpreso o nome do Jamie, já porque não lhe era familiar (coisa estranha) ou porque já esperava uma embaixada como essa.

Sendo assim, não tinha sentido me andar com rodeios.

- Tenho entendido que aloja aqui ao pai Donahue- disse cordialmente-. vim a vê-lo. Sou seu médico.

Não sei o que esperava, mas não era isso; ficou algo boquiaberto, deixando ver um grave caso de má oclusão, gengivite avançada e falta de um bicúspide. antes de que pudesse fechar a boca, da loja saiu um cavalheiro alto, de jaqueta verde garrafa.

- A senhora Fraser?- disse, arqueando uma sobrancelha. Logo se inclinou puntillosamente-. Há dito você que desejava falar com o cavalheiro clerical detido?

- Detido?- Ante isso fingi grande surpresa-. Um sacerdote? Vá, o que pode ter feito?

O delegado e o magistrado intercambiaram um olhar. Logo este pigarreou.

- Talvez ignora você, senhora, que na colônia da Carolina do Norte só o clero da Igreja estabelecida (quer dizer, a Igreja Anglicana) pode celebrar legalmente seus ofícios.

- me valha Deus!- exclamei, afetando horrorizada surpresa até onde me era possível-. Não, não tinha a menor ideia. Mas que coisa tão estranha!

O senhor Lillywhite piscou um pouco, gesto que interpretei como indicação do que tinha conseguido criar uma impressão de educada surpresa. depois de me esclarecer a garganta, mostrei a cigarreira de prata e o estojo das agulhas.

- Bom, espero que as dificuldades resolvam logo. Mesmo assim, eu gostaria de ver um momento ao pai Donahue. Tal como hei dito, sou seu médico. Ele tem uma... indisposição...- deslizei para trás a coberta do estojo para exibir delicadamente as agulhas, permitindo que imaginassem algo adequadamente virulento- que requer tratamento regular. Poderia vê-lo por um instante, a fim de lhe administrar seu remédio? Não quereria que... né..., que acontecesse algo inconveniente por falta de atenção por minha parte, como compreenderão.

E sorri com todo meu encanto.

O delegado encolheu o pescoço dentro da jaqueta, assumindo um aspecto malévolamente anfíbio, mas o senhor Lillywhite pareceu mais afetado por meu sorriso. Observou-me de pés a cabeça, vacilando.

- Bom, não estou seguro de que... – começou a dizer.

Nesse momento umas pegadas chapinharam no atalho, detrás de mi. Me girei, quase esperando ver o Jamie. Em troca me encontrei com o senhor Goodwin, meu paciente da manhã; tinha uma bochecha ainda torcida por meu tratamento, mas o tipóia permanecia intacto.

Ele também se surpreendeu à lombriga, mas me saudou com grande cordialidade, em uma nuvem de vapores alcoólicos. Pelo visto tinha tomado muito a sério meu conselho de desinfetar.

- Senhora Fraser! Confio que não tenha vindo para atender a meu amigo Lillywhite. Ao senhor Anstruther, em troca, não lhe viria mal uma boa purgação para limpar os humores biliosos, verdade, David? Ja, ja!

- Querido George- saudou o senhor Lillywhite, calidamente-, vejo que já conhece esta encantadora dama.

- OH!, é claro que sim, cavalheiro.- O senhor Goodwin voltou para mim um semblante muito sorridente-. Mas se apenas esta manhã a senhora Fraser me tem feito um grande serviço! Um grande serviço, sim. Olhem isto!

Blandió seu braço entalado; notei com prazer que não parecia estar lhe causando nenhuma dor, embora provavelmente isso se devia à anestesia que se estava autoadministrando, antes que a minha obra.

- Curou-me o braço com apenas um toque aqui, um toque lá... e me extraiu um dente quebrado com tanta limpeza que apenas o notei. Uk! – Colocou um dedo para retirar a bochecha, deixando ver a parte de algodão ensangüentado no oco do dente e uma pulcra linha de pontos negros na gengiva.

- Estou realmente impressionado, senhora- Lillywhite, com cara de interesse, farejou o bafo de uísque e prego de aroma que surgia daquela boca. Vi que sua língua formava um vulto em sua bochecha, ao sondar cautelosamente um molar.

- Mas o que a traz por aqui, senhora Fraser?- O recém-chegado voltou para mim o raio de sua jovialidade-. Tão avançado o dia... Possivelmente me você faça a honra de compartilhar meu jantar ante a fogueira?

- OH!, muito obrigado, mas a verdade é que não posso- disse, com a mais encantada de meus sorrisos-. vim a ver outro paciente.. quer dizer..

- Quer ver o sacerdote- interrompeu Anstruther.

Ante isso Goodwin piscou, desconcertado só por um instante.

- Ao padre? Há um sacerdote aqui?

- Um papista- ampliou o senhor Lillywhite, curvando um pouco os lábios ante essa palavra impura-. Me fez saber que havia um sacerdote católico camuflado na reunião e que se propunha celebrar uma missa durante as festividades de esta noite. Certamente, enviei ao senhor Anstruther para que o prendesse.

- O pai Donahue é meu amigo- intervim, com toda a energia possível-. E não estava camuflado, a não ser convidado sem dissimulações, como hóspede da senhora Cameron. Além disso, é meu paciente e requer tratamento. vim a garantir que o receba.

Amigo dele? É você católica, senhora Fraser?

O senhor Goodwin parecia sobressaltado; obviamente, não lhe tinha ocorrido que sua dentista fora papista; levou-se a mão à bochecha torcida, em um gesto de estranheza.

- Sou-o- manifestei, com a esperança de que ser católica não fora ilegal, segundo a concepção do Lillywhite.

Evidentemente não era assim. O senhor Goodwin deu uma cotovelada a seu amigo.

- OH!, vamos, Randall. Deixe que a senhora veja esse homem. Que dano pode fazer? E se em realidade é convidado da Yocasta Cameron...

O senhor Lillywhite franziu os lábios, refletindo um momento. Logo se fez a um lado e apartou a lapela de lona para que eu passasse.

- Não acredito que haja nenhum mal em que veja seu... amigo – manifestou lentamente-. Passe, pois, senhora.

A silhueta do pai Donahue se recortava frente à lona iluminada; estava sentado em um tamborete ante uma pequena mesa dobradiça na qual se viam umas poucas folhas de papel, um tinteiro e uma pluma. O mesmo poderiam ter sido instrumentos de tortura, a julgar por sua rígida atitude defensiva, evocativa de alguém que esperasse o martírio.

Desde atrás me chegou um ruído de pederneira e yesquera; logo, um vago resplendor que foi crescendo. Um menino negro (o servente do senhor Lillywhite, provavelmente), adiantou-se em silencio para pôr um pequeno abajur de azeite sobre a mesa.

- Pai Kenneth. – Estreitei-lhe a mão com um amplo sorriso, em benefício de quem quer que pudesse estar espiando pela abertura-. Trouxe-lhe seu remédio. Como se sente?

Agitei as sobrancelhas para lhe indicar que devia me seguir o jogo. Ele me olhou fixamente um momento, fascinando, mas logo pareceu entender e tossiu um pouco. Animado por meu gesto afirmativo, fez-o outra vez, já com mais entusiasmo.

- foi... muito amável, ao pensar em meu, senhora Fraser- ofegou entre mais tosse.

Desentupi a cigarreira e lhe servi uma generosa medida de uísque.

- Está você bem, pai?- perguntei em voz baixa, ao me inclinar par oferecer-lhe Sua cara...

- OH!, não é nada, querida senhora Fraser, nada absolutamente- assegurou-me, deixando aparecer seu tom irlandês na tensão do momento-. É que cometi o engano de resistir quando o delegado me prendeu. Não só isso, mas também, levado pela impressão, causei algum prejuízo aos cojones do pobre homem, que só cumpria com seu dever, Deus me perdoe.

O pai Kenneth dirigiu o olho ileso para cima em uma expressão piedosa, arruinada pela irredenta sorriso que se estendia abaixo. Não era muito alto e parecia major do que era, em virtude do desgaste que o imponian os largos períodos passados a cavalo. Mesmo assim, não passava dos trinta e cinco anos, e sob seu gasto casaco negro, era enxuto e robusto como um látego. Começava a compreender a que se devia a beligerância do delegado.

- Além disso- acrescentou, tocando-se com cautela o olho negro-, o senhor Lillywhite me ofereceu a mais gentil das desculpas pelo dano sofrido.

O sacerdote agarrou o uísque que eu lhe tinha servido e o apurou, fechando os olhos em sonhadora bênção.

- Não poderia desfrutar de melhor remédio- disse ao abri-los de novo-. O agradeço muito, senhora Fraser. Estou tão reposto que poderia caminhar sobre as águas.

Então recordou que devia tossir; esta vez o fez com delicadeza, com um punho apoiado na boca.

- por que o prenderam?- perguntei, baixando a voz.

Joguei outra olhada à entrada da loja, mas estava deserta; de fora chegava um murmúrio de vozes. Pelo visto Jamie tinha razão: não suspeitavam de mim.

- Por celebrar a Santa Missa- respondeu ele-. Ao menos, isso hão dito, embora seja uma perversa mentira. Não celebrei nenhuma missa desde domingo passado, e isso foi na Virginia.

Agarrei a cigarreira para lhe servir outra medida generosa. Enquanto ele a bebia, esta vez com mais lentidão, franzi o sobrecenho, refletindo. O que se traziam entre mãos o senhor Lillywhite e companhia? Não podiam, sem dúvida, levar a julgamento do sacerdote pelo cargo de oficiar missa. Certamente, não lhes custaria muito conseguir testemunhas falsas para provar que o tinha feito, mas o que ganhariam com isso?

Embora o catolicismo não era popular na Carolina do Norte, eu não via o benefício em prender um padre que, de qualquer modo, iria pela manhã. O pai Kenneth provinha de Baltimore e pensava retornar ali. Solo tinha concorrido à congregação por fazer um favor a Yocasta Cameron.

- OH!- exclamei. O sacerdote me olhou inquisitivamente por cima de sua taça-. É só uma idéia- disse, lhe indicando com um gesto que continuasse-. Por acaso sabem se o senhor Lillywhite tem alguma relação pessoal com a senhora Cameron?

Yocasta, mulher proeminente e enriquecida, tinha caráter forte; por ende não lhe faltariam inimigos. Não me explicava por que o senhor Lillywhite queria chatear a de uma maneira tão peculiar, mas mesmo assim...

- Conheço a senhora Cameron- disse o magistrado a minhas costas-. Entretanto, ai!, não posso dizer que tenha uma amizade íntima com essa dama.

Girei-me em redondo. Estava de pé à entrada da loja, seguido pelo delegado Anstruther e o senhor Goodwin. Jamie fechava a marcha me fazendo um imperceptível gestos com uma sobrancelha.

O senhor Lillywhite se inclinou ante mi.

- Acabo de lhe explicar a seu marido, senhora, que por consideração à senhora Cameron tentei regularizar a situação do senhor Donahue, a fim de permitir sua presença na colônia. Entretanto, temo que minhas sugestões foram sumariamente rechaçadas.

O pai Kenneth deixou sua taça e ergueu as costas, resplandecente o olho são à luz do abajur.

- Querem que firme um juramento, senhor- disse ao Jamie, assinalando com um gesto o papel e a pluma que tinha ante si-. A efeitos de que não assino a crença na transustanciación.

- Seriamente?- A voz do Jamie não revelava mais que um interesse amável.

- Bom, pois não pode, verdade?- disse, olhando ao círculo de homens-. Os católicos... quer dizer, nós- esclareci, olhando ao senhor Goodwin- acreditam certamente na transustanciación. Não é assim?- perguntei, me voltando para o padre, que assentiu com a cabeça, sonriendo apenas.

O senhor Goodwin parecia desconforme, mas resignado; o desconforto social tinha reduzido sua jovialidade alcoólica.

- Sinto muito, senhora Fraser, mas assim o manda a lei. Só com uma condição se permite aos clérigos não pertencentes à Igreja estabelecida permanecer legalmente na colônia, e é que assinem esse juramento. São muitos os que o fazem. Conhece reverendo Urmstone, o pregador metodista itinerante? Ele assinou o juramento, e também o senhor Calvert, que vive perto do Wadesboro.

O delegado parecia muito ufano. Contendo meu impulso de lhe pisar um pé, voltei-me para o senhor Lillywhite.

- Pois como o pai Donahue não pode assiná-lo, o que se propõem fazer com ele? Jogá-lo em uma masmorra? Não podem fazer isso: está doente!

Como obedecendo a um sinal, o pai Kenneth tossiu devidamente. O senhor Lillywhite me olhou com ar dúbio, mas preferiu dirigir-se ao Jamie.

- Em justiça poderia encarcerar a este homem, mas por consideração a você e a sua tia, senhor Fraser, não o farei. Não obstante deverá abandonar amanhã a colônia. Farei-o escoltar até a Virginia, onde será posto em liberdade. Pode você confiar em que se cuidará de seu bem-estar durante a viagem.

E desviou uma fria olhar cinza para o delegado, que se ergueu em toda sua estatura, tratando de luzir digno de confiança, sem muito resultado.

- Compreendo.- Jamie falou em tom ligeiro, passeando o olhar de um a outro dos homens; por fim a posou no delegado-. Espero que assim seja, senhor... pois se chegasse a meu conhecimento que o bom pai sofreu algum dano, mi... desassossego seria maiúsculo.

Ele delegado o sustuvo o olhar, pétrea a cara, até que o senhor Lillywhite lhe dirigiu um gesto carrancudo.

- Dou-lhe minha palavra, senhor Fraser.

Jamie lhe fez uma leve reverencia.

- Não poderia pedir mais, senhor. Entretanto, se me permitir a presunção... não poderia o pai passar a noite cômodo entre seus amigos? Assim poderia despedir-se deles. E minha esposa, atender suas lesões. Eu me faria responsável por entregá-lo sem falta a suas mãos, amanhã pela manhã.

O senhor Lillywhite cavou os lábios, figiendo estudar a proposta, mas era mau ator. Não sem interesse, precavi-me de que tinha previsto essa solicitude e já tinha decidido negar-se.

- Não senhor- disse, tratando de adotar um tom relutante-. Lamento não poder acessar a seu pedido. Mas se o sacerdote deseja escrever cartas a seus conhecidos... – Assinalou com a cabeça o montão de papéis-. Eu me encarregarei de que sejam prontamente entregues.

Meu marido também pigarreou, estirando-se um pouco.

- Pois bem- disse-, se tolerar meu atrevimento...

Fez uma pausa, como se estivesse um pouco envergonhado.

- Diga, senhor. – Lillywhite o olhava com curiosidade.

- Permitiria você que o bom pai me escutasse em confissão?- Jamie tinha parecido o olhar no poste da loja, evitando a minha com diligência.

- Em confissão?

O magistrado parecia atônito. O delegado, em troca, emitiu um ruído que alguém muito caridoso podia interpretar como risita zombadora.

- Tem algum peso na consciência?- perguntou rudamente-. Ou possivelmente uma premonição de morte iminente. né?

Disse-o com um sorriso maligno. O senhor Goodwin, com cara de escandalizado, murmurou um protesto. Jamie, desdenhando-os a ambos, centrou sua atenção no senhor Lillywhite.

- Sim, senhor. Faz algum tempo que não tive oportunidade de me confessar, compreende? E é muito possível que passe ainda mais antes de que volte a apresentá-la ocasião. Tal como estão as coisas...- Nesse momento cruzou um olhar comigo e assinalou a lapela da loja com um gesto breve, mas enfático-. Desculpariam-nos um momento, cavalheiros?

Sem aguardar a resposta, agarrou-me pelo cotovelo para me empurrar veloz mente fora.

- Brianna e Marsali estão atalho acima, com os crios- vaiou-me ao ouvido, assim que estivemos fora da loja-. Quando Lillywhite e esse bode do delegado estejam bem longe vá a por eles.

E me deixou de pé no caminho, atônita, para entrar de novo na loja.

- Com seu perdão, cavalheiros- ouvi-lhe dizer-. Pareceu-me que... há coisas que um homem não deve dizer frente a sua esposa, compreendem?

Houve um murmúrio de compreensão masculina; também captei a palavra <confissão>, repetida pelo senhor Lillywhite em tom dúbio.

Depois de descender alguns passos pelo caminho, detiveram-se conferenciar.

O vulto do Anstruther se aproximou um pouco mas ao senhor Goodwin.

- Que coño é a transustanciación?- murmurou.

Vi que o senhor Goodwin erguia os ombros, estirando-se, mas imediatamente os elevou para as orelhas.

- Com toda franqueza, senhor, não estou seguro do que significa essa palavra- disse com certa gazmoñeria-; não obstante, percebo nela alguma forma de doutrina papista perniciosa. Talvez o senhor Lillywhite possa lhe oferecer uma definição mais completa. Randall?

- É obvio- disse o magistrado-. É o conceito de que, ao pronunciar o sacerdote determinadas palavras durante a celebração de sua missa, o pão e o vinho se transformam na substância mesma do corpo e o sangue de Nosso Salvador.

- O que?- Anstruther parecia confundido-. Como é possível fazer isso?

- Trocar o pão e o vinho em carne e sangue?- disse o senhor Goodwin, bastante desconcertado-. Mas isso é brujeria!

- Seria-o, se em realidade se produzira- objetou o senhor Lillywhite, um pouco mais humano-. A igreja sustenta, com muita razão, que não é assim.

- E estamos seguros disso?- O delegado parecia desconfiar-. Viu-os você fazê-lo?

- Pessoalmente, não. Mas tenho entendido que é assim.

- Pois bem, isso é canibalismo puro e duro, não?- A mole do delegado voltou a estirar-se, entusiasmada-. Isso sim que vai contra a lei! por que não deixamos que este tio faça seu truque de magia e os prendemos a todos? Acredito que poderíamos encerar a um montão desses bodes de um só golpe.

- Não – disse, sem elevar a voz-. Temo que não, delegado. Tenho instruções de não permitir que o sacerdote realize nenhuma cerimônia e que lhe impeça de receber visitantes.

- Ah, sim? E o que é o que está fazendo agora?- acusou Anstruther, assinalando para a loja às escuras, onde a voz do Jamie tinha começado a soar, vacilante. Provavelmente falava em latim.

- Isso é muito diferente- disse Lillywhite, irritado-. O senhor Frase é um cavalheiro. E a proibição de receber visitas é para evitar que o padre celebre matrimônios secretos, coisa que agora não pode nos preocupar.

- me benza, pai, pois pequei- disse Jamie, elevando súbitamente a voz.

O magistrado deu um coice, enquanto o pai Kenneth, murmurava uma interrogação.

- cometi pecados de luxúria e impureza, tanto de pensamentos como de fato- anunciou Jamie, em um volume que não me pareceu muito discreto.

- OH! Já vejo- repôs o pai Kenneth, levantando também a voz, como se estivesse interessado-. Agora bem, meu filho, esses pecados de impureza, de que forma se manifestaram, e em quantas ocasiões?

- Pois bem... Para começar, olhei a algumas mulheres com desejo luxurioso. Em quantas ocasiões... calculemos um centenar, pelo menos, pois aconteceu bastante tempo desde minha última confissão. Tem que saber com que mulheres aconteceu, pai, ou basta com que lhe diga o que pensei lhes fazer?

O senhor Lillywhite ficou notavelmente rígido.

- Acredito que não teremos tempo para tanto, querido Jamie- disse o padre-. Mas sim quer me falar de uma ou duas ocasiões, para que eu possa me formar uma idéia quanto ao... né... à gravidade do pecado.

- OH!, bem. Bom, a pior deve ter sido aquela vez, com a manteigueira.

- Manteigueira? Ah... dessas com uma manga que aparece?- O tom do pai Kenneth expressava uma triste compaixão pelas libidinosas possibilidades que isso sugeria.

- OH, não! Pai. Era um desses barris que ficam de lado, com uma pequena manivela para lhe dar voltas, sabe? Pois bem, ela estava lhe dando voltas com muito vigor, e tinha os cordões do sutiã desatados de modo que seus peitos se bamboleavam fazia aqui e para lá. E o tecido lhe pegava ao corpo com o suor do trabalho. Pois bem: o barril tinha a altura exata, e era curvado, compreende? E isso me fez pensar em tombá-la em cima e lhe levantar as saias Y...

Involuntariamente abri a boca em um gesto de horror. O sutiã que estava descrevendo era o mijo, e meus peitos, e minha manteigueira! Por não falar de minhas saias. Recordava vividamente aquela ocasião. Se se tinha iniciado com um pensamento impuro, certamente não ficou só nisso.

Um ruído lhe sussurrem e um murmúrio voltaram minha atenção aos homens que conversavam sobre o caminho. O senhor Lillywhite tinha pego de um braço ao delegado, que ainda se inclinava avidamente para a loja, erguendo as sobrancelhas, e o arreganhava com um vaio, enquanto o obrigava apressadamente a afastar-se pelo caminho. O senhor Goodwin os seguiu, embora com ar relutante.

Por desgraça, o ruído que fizeram ao afastar-se afogou o resto do pecado que Jamie describia, mas também, felizmente, o sussurro de folhas e ramillas roda que anunciavam a aparição da Brianna e Marsali a minhas costas, com o Jemmy e Joan em braços e Germain obstinado à costas de sua mãe, como um bonito.

- Já temia que não se fossem alguma vez- sussurrou Bree, espiando sobre meu ombro fazia o lugar por onde tinham desaparecido o magistrado e seus companheiros-. Fica alguém?

- Não. Vamos.

E alargue os braços para o Germain, que veio a eles de boa vontade.

- Ou nous allées, Grad-mére?- perguntou com voz sonolenta, enquanto beijocava afetuosamente meu pescoço.

- Chist. vamos ver o Grand-père e ao pai Kenneth- sussurrei-lhe-. Mas temos que ir muito calados.

- OH,! assim?- vaiou em um forte sussurro. E começou a cantar pelo sob uma canção francesa muito vulgar.

- Chist!- Plantei-lhe uma mão contra a boca, úmida e pegajosa pelo que tinha estado comendo- Não cante, tesouro. Não convém despertar aos bebês.

Assim que entramos, Jamie se interrompeu abruptamente. Logo lhe ouvi dizer, depressa:

-E pecados de ira, orgulho e inveja... ah! E também alguma mentira, pai. Amém.

Caiu de joelhos, recitando precipitadamente um ato de contrição em francês, e antes de que o pai Kenneth acabasse de dizer: <Ego te absolvo> já estava de pé, retirando ao Germain de meus braços.

Meus olhos se foram adaptando à escuridão; chegava a distinguir as silhuetas volumosas das moças e o alto contorno do Jamie, que plantou ao menino na mesa, ante o sacerdote, dizendo:

- Depressa, pois pai. Não temos muito tempo.

- Tampouco temos água- observou o padre-. A menos que as senhoras tenham recordado trazer um pouco...

Tinha pego o pederneira e a yesquera, com os que estava tratando de acender novamente o abajur. Bree e Marsali intercambiaram um olhar de horror. Logo sacudiram a cabeça ao unisono.

- Não lhes preocupem, pai- disse Jamie, tranqüilizador.

Vi-o alargar a mão para algo que estava sobre a mesa. ouviu-se o breve chiado de uma cortiça ao sair; logo, o aroma quente e doce do bom uísque encheu a loja, enquanto da mecha brotava uma chama vacilante, que se estabilizou em uma luz pequena e clara.

- Dadas as circunstâncias...- disse Jamie, oferecendo a cigarreira aberta ao sacerdote.

O pai Kenneth apertou os lábios, embora me pareceu que não era um gesto de irritação, mas sim de hilaridade contida.

- Os óleos batismais- explicou, desarrolhando o frasco antes de pô-lo na mesa-. Graças a quão virgem o levava em cima. O delegado se apropriou da caixa com os elementos para a missa. – Fez um rápido inventário dos objetos depositados na mesa, contando-os com os dedos-. Fogo, óleos, água... ou algo assim... e um menino. Muito bem. Suponho, senhora, que você e seu marido serão os padrinhos de este.

Isso ia dirigido a mim. Jamie tinha ido hospedar se junto à entrada da loja.

- De todos, pai- disse, sujeitando com firmeza ao Germain, que parecia disposto a descer de um salto-. Não te mova, tesouro. É só um momento.

detrás de mim se ouviu o som de metal desenvainado contra pele azeitada. Ao me voltar vi o Jamie entre as sombras; montava guarda junto à porta com a adaga na mão. Um escrúpulo apreensivo me enroscou no ventre. Bree afogou uma exclamação a meu lado.

- Jamie, meu filho- disse o pai Kenneth, em tom de suave reprimenda.

- Continuem, pai, por favor- foi a tranqüila resposta. – decidi que meus netos recebam o batismo esta mesma noite. E ninguém poderá impedi-lo.

O padre aspirou fundo com um leve vaio. Logo moveu a cabeça.

- Em nome deste menino renunciam a Satanás e a todas suas obras?- perguntou, falando depressa.

Reagi bem a tempo para me unir ao Jamie na resposta dos padrinhos, recitando abnegadamente:

- Renunciamos a eles.

- Acreditam no único Deus o Pai o Filho e o Espírito Santo?

- Cabezotas - modulei com os lábios, para o Jamie. Ele alargou o sorriso, enquanto eu me apressava a acompanhar seu firme: <Acredito.>

Era uma pegada o que tinha ouvido fora, no caminho, ou só o vento do anoitecer, que fazia ranger a seu passado os ramos dos mastreie?

Terminadas as perguntas e respostas, o sacerdote me sorriu de brinca a orelha; a luz lhe pisquem do abajur lhe dava aspecto de gárgula. Seu olho são se fechou brevemente em uma piscada.

- Damos por sentado que responderão o mesmo pelos outros dois, verdade , senhora? E qual será o nome de pilha deste doce pequeno?

Sem quebrar o ritmo, tomou a cigarreira de uísque e sotaque cair uma cautelosa destilação de licor na cabeça do menino, repetindo:

- Eu te batizo, Germain Alexander Claudel MacKenzie Fraser, no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.

O menino observava essa operação com profundo interesse; quando o líquido correu pela ponte de seu nariz, alargou a língua para provar as gotas, mas imediatamente fez uma careta.

- Puja1- disse com toda claridade-. Pipí de cavalo.

Marsali lhe espetou um breve estalo escandalizado, mas o padre se limitou a rir entre dentes. depois de baixar ao Germain da mesa, chamou o Bree com um gesto.

Ela sustentou ao Jemmy por cima da mesa, embalando-o em seus braços como se fora a vítima de um sacrifício. Embora estava atenta à cara do bebê, vi que torcia um pouco a cabeça, distraída por algo que acontecia fora. ouviam-se ruídos no atalho, sim. E vozes. Um grupo de homens que conversavam; as vozes eram amistosas, mas não estavam ébrios.

Já tensa, tratei de não olhar ao Jamie. Se entravam, o melhor seria agarrar ao Germain, engatinhar por debaixo do extremo oposto da lona e sair fugindo. No caso de, sujeitei-o pelo pescoço da camisa. Nesse momento senti um ligeiro toque: Bree tinha movido o corpo contra mim.

- Tudo está bem, mamãe – sussurrou-. São Roger e Fergus.

depois de um movimento com a cabeça para a escuridão, concentrou sua atenção no Jemmy.

Era certo; a pele de minhas têmporas se arrepiou de alívio. Agora reconhecia a voz imperiosa e algo nasal do Fergus, que recitava uma larga oração, e uma grave ronrono escocês que devia ser o do Roger. Uma risita aguda, a do senhor Goodwin, flutuou na noite, seguida por algum comentário do senhor Lillywhite, com sua pronúncia aristocrática.

Essa vez sim olhei ao Jamie. Ainda tinha a adaga desenvainado, mas tinha deixado cair a mão a um lado e seus ombros estavam menos tensos. Sorriu-me outra vez, e nesta ocasião lhe devolvi o gesto.

Jemmy estava acordado, mas dormitado. Embora não apresentou objeções ao óleo, deu um coice ante o frio contato do uísque na frente, abrindo muito os olhos, e emitiu um agudo chiado de protesto.

Sua mãe lhe deu suaves golpes nas costas como se fora um bongo, distraindo-o com um pequeno murmúrio ao ouvido. Ele se conformou chupando o polegar, fulminando aos reunidos com um olhar suspicaz. Para então, o pai Kenneth já estava vertendo uísque sobre o Joan, que dormia em braços do Marsali.

- Eu te batizo, Joan Laoghaire Claire Fraser – disse, seguindo as indicações da moça.

Olhei-a com surpresa. Sabia que se chamava Joan, como a irmã menor do Marsali, mas ignorava quais seriam seus outros nomes. de repente, os olhos inclinados da menina se abriram de par em par, junto com sua boca, que emitiu um alarido penetrante. Todo mundo deu um salto, como se entre nós tivesse estalado uma bomba.

- Vão em paz a servir ao Senhor! E vão às pressas!- disse o pai Kenneth, que já estava tampando diestramente a garrafa e a cigarreira, escondendo freneticamente todo rastro da cerimônia.

Atalho abaixo se ouviam vozes elevadas em intrigadas perguntas.

Marsali saiu da loja como o raio, com a lhe uivem bebê apertada contra o peito e Germain, em que pese a seus protestos, sujeitou pela mão. Bree se deteve apenas para beijar na frente ao pai Kenneth.

- Obrigado, pai- sussurrou.

E desapareceu em uma revoada de saias e anáguas.

Jamie me tinha pego pelo braço e estava me empurrando também para fora, mas se deteve durante segundo meio.

- Pai?- sussurrou para trás-, Pax vobiscum!

O padre já havia tornado a sentar-se detrás da mesa, com as mãos cruzadas e as acusadoras folhas em branco estendidas ante ele. Levantou a vista com um leve sorriso. Sua cara, à luz do candil, expressava uma paz perfeita, a pesar do olho negro.

- Et cum spiritu tuo, homem- disse, enquanto levantava três dedos em uma última bênção.

 

- por que tem feito isso?- O sussurro da Brianna flutuou até mim, cheio de irritação. Ela e Marsali foram uns poucos passos mais adiante.

- por que tenho feito o que? Deixa isso, Germain; vamos procurar a papai, quer?

- Beliscar ao Joanie. Vi-te! Pôde fazer que pilhassem a todos.

- É que era preciso!- Marsali parecia surpreendida ante a acusação-. E em realidade não teria importado, porque o batismo já parecia. Não podiam obrigar ao pai Kenneth a que o desfizera, verdade?- Riu como uma menina ante a idéia-. Germain, hei-te dito que deixe isso!

- Como que era preciso? Solta, Jem, que é meu cabelo! Ai! Solta, digo-te!

Obviamente Jemmy estava já totalmente acordado, com desejos de explorar os arredores.

- Mas se a menina estava dormida!- disse Marsali, escandalizada-. Não despertou quando o pai Kenneth lhe verteu a água... quer dizer, o uísque... na cabeça. E já se sabe que é má sorte que um menino não chie um pouco quando lhe batiza; é assim como sabe que o pecado original o está abandonando. Ia eu a permitir que o diabhol ficasse em minha pequena, mo mhaorine?

Bree deixou escapar um bufido de risada, já apagada sua irritação.

Os assuntos do dia estavam resolvidos e a gente se ia sentando para jantar, antes de iniciar as canções e a última ronda de visitas. O aroma de fumaça e a comida arrastava dedos tentadores no ar frio e escuro; o estômago me resmungava brandamente em resposta a sua convocatória. Ojala Lizzie se repôs o suficiente para começar a cozinhar.

- O que significa mo mharine?- perguntei ao Jamie-. É a primeira vez que o ouço.

- Significa “ meu patatita” , conforme acredito- respondeu ele-. É irlandês, não?. Ela o aprendeu que padre.

Suspirou, como se estivesse profundamente satisfeito com a ação dessa noite.

- Santa Bride benza ao pai Kennth. Por um momento temi que não poderíamos fazê-lo. É Roger o que está ali, com o pequeno Fergus?

- É ele, sim. E falando disso, meu doce patatita- acrescentei, lhe agarrando com firmeza do braço para que diminuísse o passo-, Como te ocorreu contar ao pai Kenneth esse assunto da manteigueira?

- Não me diga que te ofendeu, Sassenach!- exclamou, em tom de surpresa.

- É obvio que me ofendeu!- O sangue subiu às bochechas, cálida, embora não teria podido dizer se se devia à lembrança de sua confissão ou ao do episódio original.

- Bom, também confessei que tinha mentido, Sassenach- disse ele.

Não pude lhe ver o sorriso, mas a ouvia muito bem em sua voz. Suponho que ele também ouviu a minha.

- Tinha que pensar um pecado o bastante horrível para afugentar ao Lillywhite. E não podia confessar roubos nem fraudes. Pode que algum dia deva fazer negócios com esse homem.

- Ah!, e pensa que esses delitos poderiam lhe repugnar, enquanto que sua atitude para as mulheres de blusas molhadas lhe parecerá só um pequeno defeito.

- Baixa a voz, Sassenach- murmurou, me tocando a mão-. Que os meninos não lhe ouçam. Além disso- acrescentou, baixando tanto a voz que se viu obrigado a me sussurrar ao ouvido-, não me acontece com todas as mulheres. Só com as que têm um traseiro encantador, bem redondo.

E me soltou a mão para me apalpar o traseiro com familiaridade, com notável pontaria apesar da penumbra.

- Não me incomodaria em cruzar a rua por uma mulher fraca, embora estivesse completamente nua e jorrando. Quanto ao Lillywhite- resumiu, em um tom mais normal, mas sem retirar a mão-, embora seja protestante, Sassenach, não deixa de ser homem.

- Ignorava que esses dois fatores fossem incompatíveis- disse secamente a voz do Roger, surgindo da escuridão.

Jamie retirou imediatamente a mão, como se minha nádegas estivessem em chamas. Não era assim (não de tudo), mas não se podia negar que sua pederneira tinha disparado uma ou duas faíscas entre a isca, por úmida que estivesse. Não obstante, faltava muito para a hora de deitar-se.

Detive-me o tempo indispensável para administrar à anatomia do Jamie um breve e íntimo apertão, que lhe arrancou uma exclamação afogada. Logo girei para o Roger.

- O... o pai está bem?- perguntou este-. Disse-me Brianna que o tinham maltratado. Espero que não voltem a fazê-lo uma vez que se vá.

Ante isso Jamie ficou sério. Encolhendo-se levemente de ombros, acomodou-se a jaqueta.

- Acredito que não terá problemas, não. Fiz uma pequena recomendação ao delegado.

A ênfase carrancuda que pôs ao dizer “ pequena recomendação” o expressou com claridade. Teria sido mais efetivo um bom suborno, mas eu sabia perfeitamente que, nesses momentos, só tínhamos dois xelins, três peniques e nove céntimos. Era melhor economizar dinheiro e confiar nas ameaças. Pelo visto, ele pensava o mesmo.

- Falarei com minha tia- continuou- para que enviei esta noite uma nota ao senhor Lillywhite, expressando sua opinião sobre o assunto. Isso protegerá melhor ao pai Kenneth que quanto eu possa dizer.

- Não acredito que se alegre ao inteirar-se de que se pospor as bodas- comentei. Yocasta Cameron, filha de um senhor das Terras Altas e viúva de um rico latifundiário, estava habituada a sair-se com a sua.

- Não, em efeito- disse Jamie, irônico-; para o Duncan, em troca, possivelmente seja um alívio.

Roger riu e ajustou seu passo ao nosso para descender pelo atalho; levava sob o braço ao Jimmy, como se fora uma bola de futebol.

- É certo. Pobre Duncan. Assim que as bodas se adiaram definitivamente, não?

Não pude ver o gesto carrancudo do Jamie, mas senti que sacudia a cabeça, dúbio.

- Temo-me que sim. Não quiseram me devolver ao padre, embora lhes dava minha palavra de entregá-lo pela manhã. Poderíamos resgatá-lo pela força, mas mesmo assim...

- Duvido que isso servisse de algo- interrompi. E lhes contei o que tinha escutado enquanto esperava fora da loja.

- Não acredito que fiquem cruzados de braços e permitam ao pai Kenneth celebrar matrimônios- concluí-. Embora o ajudasse a escapar, buscariam-no por toda a montanha, esvaziando as lojas e provocando distúrbios.

Ao delegado Anstruther não lhe faltaria ajuda; embora Jamie e sua tia merecessem muita estima entre a comunidade escocesa, não se podia dizer o mesmo dos católicos em geral e dos padres em particular.

- Instruções?- repetiu Jamie, atônito- . Está segura, Sassenach? Foi Lillywhite quem disse que tinha instruções?

- Foi ele.- Só então me precavi de quão peculiar era isso. Obviamente, o delegado recebia instruções do senhor Lillywhite, pois esse era seu dever, mas quem podia estar dando ordens ao magistrado?

- Aqui há outro magistrado e um par de juizes de paz, mas... – disse Roger lentamente.

levantou-se um vento suave, que fazia repicar como se fossem sabres os ramos nus de carvalhos e nogueiras. Mesmo assim, a voz do Jemmy era o bastante potente como para que Brianna o ouvisse. Captei a do Marsali, falando amigavelmente do jantar com o Germain e Fergus. Mas não se ouvia o tom mas grave e sensual do Bree, com sua entonação bostoniana.

. por que?- perguntou Jamie ao Roger, elevando a voz para fazer-se oir a pesar do vento.

- por que o que? Ouça, Jem, vê isto? quê-lo? Sim, é obvio. Assim está bem, pequeno, masca-o um momento.

Uma faísca de luz se refletiu em algo que Roger tinha na mão livre; logo o objeto desapareceu e os gritos do Jemmy cessaram bruscamente, substituídos por fortes ruídos de sucção.

- O que é isso? Não será um objeto pequeno que possa tragar, verdade?- perguntei, inquieta.

- OH não!, é uma cadeia de relógio. Não se preocupe- tranqüilizou-me Roger-. Tenho o extremo bem sujeito. Se a traga, posso recuperá-la.

- Quem poderia ter motivos para impedir que te casasse?- perguntou Jamie, paciente, ignorando o perigo que corria o sistema digestivo de seu neto.

- Eu?- Roger parecia surpreso-. Não acredito que a ninguém importe que eu me case ou não, salvo a mim mesmo... e a ti, possivelmente- añadio, com um toque de humor-. Mas tem que querer que o menino tenha sobrenome, suponho. A propósito...- voltou-se para mi. O vento, que tinha liberada largas mechas de seu cabelo, convertia-o em uma selvagem silhueta negra-. Que nome lhe puseram, finalmente? No batismo, quero dizer.

- Jeremiah Alexander Ian Fraser MacKenzie- disse, tratando de recordá-lo corretamente-. É o que desejava?

- OH!, não me importava muito- disse ele.

Llovizneaba outra vez; além de sentir as gotitas geladas na cara, vi os fossas que formavam na água do atoleiro, ali onde o tocava a luz do fogo.

- Eu queria que se chamasse Jeremiah- continuou-, mas disse ao Bree que escolhesse os outros nomes. Ela não podia decidir-se entre o John, pelo John Grei Y... e Ian, por sua primo.

Uma vez mais detectei uma leve vacilação, enquanto que o braço do Jamie ficava algo rígido sob minha mão. Ian, o sobrinho do Jamie, era um ponto gélido, afresco na mente de todos, graças à nota que dele tínhamos recebido no dia anterior. Isso devia ter decidido a Brianna, finalmente.

- Bom, se não ser por suas bodas com minha filha- insistiu Jamie, capitoso-, Por qual é? a da Yocasta com o Duncan? Ou a dos Bremerton?

- Pensa que alguém se proposto impedir as bodas de esta noite?- Roger aproveitou a oportunidade para falar de algo que não fora Ian Murray-. Não crie que essa por aversão geral contra as práticas romanas?

- Poderia ser, mas não é por isso. Se não, por que esperaram até agora para prender o padre? Um momento, Sassenach; ajudarei-te.

Jamie me soltou a mão para rodear o atoleiro: logo me agarrou pela cintura para me cruzar por cima, com um revôo de saias.

- Não.- Jamie continuou a conversação, voltando-se para o Roger-. Suponho que ao Lillywhite e Anstruther não gostam dos católicos, mas para que armar um alvoroço agora, se de qualquer modo o sacerdote se iria pela manhã? Acaso pensam que poderia corromper às boas gente da montanha antes do amanhecer, se não o detiveram?

Roger riu brevemente.

- Não, suponho que não. Há alguma outra coisa que o sacerdote devesse fazer esta noite, além das bodas e os batismos?

- Possivelmente umas quantas confissões- disse, beliscando ao Jamie no braço-. Nada mais, que eu saiba.

- Não se opuseram a que escutasse a minha. E não acredito que porque lhes importasse que um católico estivesse em pecado mortal. De qualquer maneira, a seu modo de ver estamos todos condenados. Mas sim soubessem que alguém necessita desesperadamente confessar-se e tivessem algo que ganhar....

- Se esse alguém estivesse disposto a pagar por ver o padre?- perguntei, cética-. Homem, estamos falando de escoceses! Se se tratasse de pagar uma boa quantidade de dinheiro por um sacerdote, qualquer católico escocês, fora adultero ou assassino, limitaria-se a recitar um ato de contrição e a ficar em mãos de Deus.

Jamie lançou um bufido de risada; a bruma branca de seu fôlego se enroscou em sua cabeça como a fumaça de uma vela; o frio se estava acentuando.

- Acredito que sim- disse, seco -. E se Lillywhite tivesse alguma intenção de fazer negócios com as confissões, começa   muito tarde para obter grandes lucros. Mas e se a idéia não fora impedir que alguém se confesse, a não ser assegurar-se de escutar o que disser?

Roger emitiu um grunhido satisfeito; ao parecer, a hipótese lhe parecia factível.

- Extorsão? Poderia ser, se- disse com aprovação.

“ Leva-o no sangue” , pensei. Embora tivesse estudado em Oxford, não cabia duvida de que era escocês. Sob seu braço se produziu uma violenta comoção, seguida por um alarido. Roger baixou a vista.

- OH!, deixaste cair sua guloseima? Onde está?

Com o Jemmy ao ombro como sim fora uma confusão de roupa lavada ficou em cuclillas para pinçar no chão, em busca da cadeia para o relógio, que Jemmy devia ter arrojado na escuridão.

- Extorsão? Parece-me um pouco desatinado- objetei, me esfregando o nariz, que tinha começado a me gotejar-. Se tiver entendido bem, eles, por exemplo, suspeitariam que Farquard Campbell cometeu algum crime espantoso e, se tivessem a certeza, poderiam extorqui-lo. É assim? Parece-me uma idéia muito matreira. Roger, se encontrar um alfinete, é meu.

- Lillywhite e Anstruther são ingleses, não?- apontou Jamie, com um delicado sarcasmo que fez rir ao Roger-. os dessa raça são matreiros e traições por natureza, não Sassenach?

- Tolices!- disse, tolerante-. Além disso, eles não trataram de escutar sua confissão.

- Não tenho com o que pagar uma extorsão- assinalou ele, embora era perfeitamente óbvio que só discutia por entreter-se.

- Mesmo assim- comecei.

Mas me interrompeu Jemmy; cada vez mais inquieto, jogava-se de um lado a outro, lançando gritos intermitentes como um apito de vapor. Roger beliscou algo entre os dedos, com cautela, e se incorporou.

- encontrei seu alfinete- disse-. Mas não há sinais da cadeia.

- Alguém a verá pela manhã- respondi, elevando a voz para me fazer ouvir, pois a barafunda ia em aumento-. Será melhor que me dê ao menino.

Alarguei os braços para receber ao bebê; Roger me entregou isso com visível ar de alívio, que entendi ao captar uma baforada que vinha dos fraldas.

- Outra vez?- senti saudades.

O debío interpretar isso como recriminação pessoal, pois fechou os olhos e começou a uivar como um alarme anti-aéreo.

- Mas onde se colocou Bree?- perguntei, tratando simultaneamente de embalá-lo e mantê-lo a uma higiênica distância-. Ai!

Parecia ter aproveitado a escuridão para desenvolver vários membros adicionais, todos os quais estavam agitando-se ou procurando algo que aferrar.

- Só foi a um pequeno recado- explicou Roger.

Seu vaguedad fez que Jamie girasse a cabeça imediatamente. Pelo visto farejava algo estranho. voltou-se para mim com uma sobrancelha arqueada. Estava eu no jogo?

- Não tenho nem idéia- assegurei-lhe-. Ouça, cruzarei até a fogueira do McAllister para pedir que me emprestem um fralda limpo. Veremo-nos em nosso acampamento.

Sem esperar resposta, sujeitei ao bebê com firmeza e me abri passo entre as matas, rumo ao acampamento mais próximo. Georgina McAllister, que tinha gêmeos recém-nascidos (eu tinha atendido o parto, quatro dias atrás), proveu-me encantada de um fralda limpo e um arbusto privado, depois da qual poder fazer meus acertos pessoais.

Alegrava-me de que tivéssemos podido concretizar os batismos (em realidade, era surpreendente que isso me fizesse sentir tão gratificada), mas devia reconhecer certa inquietação pelo fato de que se cancelou as bodas da Brianna. Embora não tinha feito maiores comentários, eu sabia que tanto ela como Roger desejavam ver benta sua união.

- Senhora?- Era a maior das meninas McAllister, que se tinha devotado para trocar ao Jemmy; entre dois dedos sustentava delicadamente um objeto comprido e viscoso-. encontrei este miçanga no fralda do bebê. Pode ser de seu marido?

- Virgem Santa!

O reaparecimento da cadeia me impressiono, mas um instante de racionalidade corrigiu meu primeiro alarme, ao pensar que Jemmy a tinha tragado. Qualquer objeto sólido teria demorado várias horas em percorrer o conduto digestivo, por muito ativo que fora o infante. Pelo visto, tinha deixado cair seu brinquedo pelo peitilho de sua camisa, com o que foi parar a sua fralda.

- me dê isso, menina.

O senhor McAllister agarrou a cadeia com uma leve careta. Depois de tirar um grande lenço da cintura de suas calças, limpou-a com esmero, até fazer brilhar os elos de prata e um pequeno relógio redondo, com certo tipo de selo.

Enquanto observava com severidade esse relógio, resolvi mentalmente dar um bom repreensão ao Roger por permitir que Jemmy ficasse algo na boca. Graças a Deus não se desprendeu.

- Mas se esse é o pequeno relógio do senhor Caldwell!- Georgina se inclinou para diante, olhando por cima das cabeças de quão gêmeos estava amamentando.

- Seriamente?- Seu marido entreabriu os olhos para observar o objeto, enquanto se apalpava a camisa em busca dos óculos.

- Sim, estou segura. Vi-o no domingo, quando pregava. Foi então quando começaram minhas dores- explicou, voltando-se para mim- e tive que sair antes de que ele terminasse. Ao ver que me retirava, deveu pensar que estava abusando de nosso tempo, pois extraiu o relógio do bolso para lhe jogar uma olhada; vi o brilho desse adorno que pendura da cadeia.

- Isso é um selo, a nighean – informou seu marido, que se tinha plantado uns óculos em forma de meia lua na ponte da naríz e estava dando voltas ao pequeno emblema entre os dedos-. Mas tem razão: é do senhor Caldwell. Vê?

Um dedo calejado seguiu o contorno da figura: uma maça, um livro aberto, um sino e uma árvore, sobre um peixe que tinha uma argola na boca.

- Isso é da Universidade do Glasgow. O senhor Caldwell é erudito – me disse, com os olhos azuis dilatados por um grande respeito - . Esteve ali para aprender a pregar, e que bem o faz! Perdeu-te um bonito final, Georgie – acrescentou, voltando-se para sua esposa.

- Hum... Pois por mim, o senhor Caldwell poderia ter arrebentado, pelo pouco que me importava nesses momentos – disse sua esposa de maneira de maneira franco, enquanto recolocaba seu dobro carrega para procurar uma posição mais cômoda - . Tampouco me importava que a parteira fora a Índia ou inglesa... OH!, perdoe, senhora Fraser.. enquanto soubesse receber a um bebê e deter a hemorragia.

Murmurei alguma frase modesta, descartando as desculpas de Georgiana a favor de averiguar algo mais sobre os orígenes dessa cadeia.

- Dizem que o senhor Caldwell é pregador? – Certa suspeita se agitava no fundo de minha mente

- OH, sim! O melhor que eu tenha escutado – me assegurou o senhor McAllister - . E me crie que os escutei a todos! O senhor Urmstone é magnífico para os pecados, mas já está entrado em anos e se pôs um pouco rouco, de modo que deve estar bem diante se quer ouvi-lo. Mas isso é algo perigoso, sabem?, porque sempre começa com os pecados dos que estão diante.

- Este bebê está faminto, senhora- interveio a menina que tinha ao Jemmy em braços. Isso era evidente por seus alaridos e sua cara vermelha - . Poderíamos lhe dar um poquito de parritch?

Joguei uma olhada ao caldeirão pendurado sobre o fogo; estava fervendo, de modo que a maior parte dos gérmenes teriam morrido. Entreguei à menina a colher de corno que levava no bolso, com a segurança de que estaria razoavelmente poda.

- Muitíssimas obrigado. Agora bem, este senhor Caldwell, é presbiteriano, por acaso?

O senhor McAllister pareceu surpreso; logo sorriu com toda a cara ante meu perceptividad.

- Pois sim, claro! O mencionaram, senhora Fraser?

- Acredito que meu genro tem certa relação com ele – disse, com um tintura de ironia.

Georgina comentou, rendo:

- Eu diria que seu neto o conhece, sem dúvida. – Assinalou com a cabeça a cadeia que seu marido tinha na mão -. Os pirralhos dessa idade são como as urracas. apoderam-se de quanto coisa brilhante vêem.

- É certo – disse lentamente, contemplando os elos de prata e o relógio que pendurava deles.

Isso dava outro aspecto ao assunto. Se Jemmy habia assaltado o bolso do senhor Caldwell, obviamente tinha sido antes de que Jamie planejasse o improvisado batismo. Mas Bree e Roger sabiam muito antes que o pai Kenneth tinha sido detido e que suas bodas ficava possivelmente cancelada; teriam tido tempo de sobra para fazer outros planos enquanto Jamie e eu nos ocupávamos do Rosamund, Ronnie e outras crises diversas. Tempo de sobra para que Roger fora a falar com o senhor Caldwell, o ministro presbiteriano... levando ao Jemmy consigo.

Jemmy estava devorando o porridge com o empecinamiento de uma piranha esfomeada; ainda não podíamos nos retirar. Melhor assim, pensei; que Brianna desse a seu pai a notícia de que havia bodas, depois de tudo, com sacerdote ou sem ele.

Estendi minhas saias para secar a prega molhada; a luz do fogo arrancou brilhos a meus dois anéis. dentro de meu borbulhava uma grande necessidade de rir, pensando no que diria Jamie quando se inteirasse; mas a conteve por não explicar aos McAllister o motivo de minha hilaridade.

- Posso me levar isso? – disse-lhe em troca ao chefe de família, assinalando com a cabeça a cadeia de relógio -. É possível que veja o senhor Caldwell, dentro de um momento.

                   Ditosa a noiva sobre a que brilha a lua

Tivemos sorte. Não voltou a chover e as nuvens enfraquecidas revelaram uma lua de prata, que se elevava luminosa sobre a costa do Black Mountain; era a luz adequada para umas íntimas bodas familiar.

Eu já conhecia o David Caldwell, embora só ao me vê-lo lembrei dele; era um cavalheiro miúdo, mas extremamente atrativo e muito pulcro no vestir, apesar de levar uma semana acampando a céu aberto. Jamie também o conhecia e respeitava.

Vi que Roger nos olhava; logo se voltou para o Bree. Possivelmente tinha um leve sorriso nas comissuras da boca, ou talvez era só efeito das sombras. Jamie exalou com força pelo nariz e recebeu outra cotovelada.

- No do batismo te saiu com a tua – sussurre.

Ele levantou um pouco o queixo. Brianna nos olhou, algo nervosa.

- Não hei dito uma palavra, verdade?

- É umas bodas cristã perfeitamente respeitável.

- Acaso disse que não o fora?

- Pois ponha cara de felicidade, homem! – vaiei.

depois de exalar uma vez mais, assumiu uma expressão benévola a que lhe faltava um grau para chegar à imbecilidade absoluta.

- Melhor? – perguntou, com os dentes apertados em um sorriso simpático.

Duncan Innes, que casualmente se voltou para nós, deu um coice e se girou depressa para murmurar algo a Yocasta, que estava de pé perto da fogueira, com seu reluzente cabelo branco e com uma atadura sobre os olhos doentes, para proteger os da luz. Ulises, que estava a seu lado, pôs-se a peruca em honra à ocasião; era o único que eu via dele, como se pendurasse na escuridão por cima do ombro da anciã. Quando se girou para nós divisei o leve brilho de seus olhos.

- Quem é esse, Grand-mère?

Germain, que como de costume tinha escapado da custódia paterna, apareceu perto de meus pés, assinalando curiosamente ao reverendo Caldwell.

- É um ministro da Igreja, querido. Tia Bree e tio Roger vão casar se.

- Ou qu’on vai “ mimistro” ?

Aspirei fundo, mas Jamie ganhou pela mão.

- É uma espécie de padre, mas não um padre como Deus manda.

- Padre mau? – Germain observou ao reverendo Caldwell com muito mais interesse.

- Não, não- intervim - . Não é nada mau. Só que... Pois verá, nós somos católicos e os católicos têm padres, mas tio Roger é presbiteriano.

- Ou seja, um herege – colaborou Jamie.

- Não é um herege, querido. Grand-père está brincando. Os presbiterianos som...

O menino não emprestava atenção a minhas explicações; tinha inclinado a cabeça para trás e observava ao Jamie com fascinação.

- por que Grand-père está fazendo caretas?

- Porque estamos muito contentes – explicou ele, com o semblante ainda fixo em um rictus de cordialidade.

- Ah! – Imediatamente Germain estirou sua cara, extraordinariamente móvel, em um tosco fac-símile da mesma expressão: um sorriso de fogo fátuo, com os dentes apertados e os olhos saltados-. Assim?

- Sim, querido – disse, com intenção -. Exatamente.

Marsali, ao nos ver, piscou e atirou da manga ao Fergus. Ele se voltou entreabrindo os olhos.

- Cara de contente, papai! – Germain assinalou seu gigantesco sorriso -. vê?

Fergus passeou o olhar entre sua vergôntea e Jamie. A boca lhe contraiu e pôs cara de incompreensão; mas, imediatamente, trocou-a por um enorme sorriso de insinceridade, cheia de dentes brancos. Marsali lhe deu um chute no tornozelo. Ele fez uma careta, mas o sorriso não vacilou.

Ao outro lado do fogo, Brianna e Roger mantinham um bate-papo de última hora com o reverendo Caldwell.

Ela apertou os lábios, mas lhe curvaram irreprimiblemente para cima. Tremiam-lhe os ombros de risada contida. Senti que Jamie se estremecia a meu lado.

O reverendo Caldwell se adiantou, marcando o livro com um dedo no sítio devido.

Pigarreando um pouco, abriu seu livro de orações.

- Amados fiéis: reunimo-nos aqui, em presença de Deus...

Senti que Jamie se relaxava um pouco para ouvir essas palavras. Provavelmente nunca tinha participado de uma cerimônia protestante, a menos que contássemos o improvisado batismo que o mesmo Roger tinha celebrado entre os mohawks. Fechando os olhos, elevei uma oração pelo jovem Ian, tal como fazia quando pensava nele.

- portanto, recordemos com reverência que Deus estabeleceu e santificou o matrimônio, pelo bem-estar e a sorte da humanidade.

Ao abrir os olhos vi que todas as olhadas se concentravam no Roger e Brianna, que permaneciam de pé frente a frente, com as mãos entrelaçadas. Formavam um bonito casal; ambos eram quase da mesma estatura; ela, luminosa; ele, moreno. Embora suas facções não se pareciam absolutamente, ambos tinham os ossos marcados e as curvas claras, legado compartilhado do clã MacKenzie.

Joguei uma olhada ao outro lado do fogo, procurando o mesmo parecido de ossos e carne na Yocasta: alta e distinguida, a cara cega absorta na voz do ministro. Vi que estendia a mão para posá-la no braço do Duncan. O reverendo Caldwell se ofereceu gentilmente a celebrar também suas bodas, mas Yocasta se negou, pois preferia esperasse para uma cerimônia católica.

- depois de tudo não temos pressa, verdade, querido meu? – tinha-lhe perguntado ao Duncan, dirigindo-se a ele com uma exibição de deferência que não engano a ninguém.

Mesmo assim me pareceu que Duncan parecia mais aliviado que decepcionado pelo adiamento de suas núpcias.

- Através de seus apóstolos, Ele ensinou a quem forme esta relação que fomentem a mútua estima e o amor...

Duncan havia talher a mão da Yocasta com a sua, em um surpreendente gesto de ternura. Esse não seria um matrimônio por amor, disse-me, mas sim por mútuo afeto.

- Encomendo-lhes a ambos ante o grande Deus: se algum de vós não pode unir-se legalmente em matrimônio, confesse-o agora. Pois tenham a segurança de que, sim duas pessoas se unem de outra maneira que a permitida pelo Verbo de Deus, Ele não tem que benzer essa união.

O reverendo Caldwell fez uma pausa, passeando um olhar de advertência entre o Roger e Brianna. Ele moveu apenas a cabeça, sem apartar os olhos da cara do Bree. Ela sorriu um pouco a modo de resposta. O reverendo pigarreou para continuar.

ao redor da fogueira tinha desaparecido o ar de muda hilaridade; já não se ouvia outra coisa que fica voz do reverendo e o crepitar das chamas.

- Roger Jeremiah, toma a esta mulher como esposa, e juras amá-la e protegê-la, com responsabilidade e serviço, com fé e ternura, conviver com ela e apreciá-la conforme o ordena Deus, no santo vínculo do matrimônio?

- Sim, juro-o- disse Roger, com voz grave e sensual.

Ouvi um fundo suspiro a minha direita; Marsali tinha apoiado a cabeça no ombro do Fergus, com expressão sonhadora. Ele se girou um pouco para beijá-la na frente. Logo sua cabeça moréia se recostou contra a brancura do lenço que cobria o cabelo de sua esposa.

- Sim, juro-o – disse Brianna com claridade, levantando o queixo para olhar ao Roger de frente, em resposta à pergunta do ministro.

O senhor Caldwell percorreu o círculo com um olhar benévolo; a luz do fogo faiscava em seus óculos.

- Quem entrega a esta mulher para desposá-la com este homem?

produziu-se uma muito breve pausa; logo senti que Jamie dava um leve coice, pego por surpresa. Apertei-lhe o braço; a luz do fogo cintilou em meu anel de ouro.

- OH!, eu, claro está – disse.

Brianna se voltou a lhe sorrir, com os olhos penumbrosos de amor.

Lhe devolveu o sorriso; logo piscou, pigarreando, e me espremeu a mão com força.

Eu também senti um nó na garganta para ouvir os votos, recordando meus dois bodas. E Yocasta, que se tinha casado três vezes? Que lembranças percebia nessas palavras?

- Eu, Roger Jeremiah, aceito-te, Brianna Ellen, como legítima algema...

A luz da lembrança brilhava em quase todas as caras reunidas em torno do fogo.

- Na abundância e na escassez...

- Na alegria e na dor...

- Na saúde e a enfermidade...

Lizzie estava em êxtase, com os olhos muito abertos ao mistério que se realizava diante dela. Quando chegaria seu turno de fazer tão assustadoras promessas ante suas testemunhas?

Jamie me agarrou a mão direita, enlaçando seus dedos com meus, e a prata de meu anel lançou um brilho vermelho à luz das chamas. Ao olhá-lo aos olhos vi neles a mesma promessa que nos mios:

- Enquanto ambos vivamos.

 

                   As chamas da declaração

Abaixo resplandecia a grande fogueira, entre estalos de lenha molhada que ressonavam como pistoletazos contra a montanha; mas eram disparos longínquos, quase desapercebidos no bulício dos festejos.

em que pese a sua decisão de que não a casasse o reverendo Caldwell, Yocasta tinha servido generosamente um abundante festim de bodas, em honra do Roger e Brianna. A um lado do fogo, Roger tocava um violão emprestado, dando uma serenata ao Bree ante um círculo extasiado. Mais perto, Jamie conversava com alguns amigos, sentado junto ao Duncan e sua tia.

- Senhora?- Ulises se materializou a meu lado, de librea e bandeja em mão, tão resplandecente como se estivesse no salão do River Run em lugar de uma ladeira enlameada.

- Obrigado. – Aceitei uma taça cheia de algo que resultou ser brandy. E muito bom brandy. Bebi um sorvo, deixando que me impregnasse no nariz. Mas antes de que pudesse aspirar muito mais, tomei consciência de uma súbita pausa no animado festejo.

Jamie percorreu o círculo com os olhos, cruzando olhadas; logo se levantou para me oferecer o braço. Embora um pouco surpreendida, apressei-me a deixar a taça na bandeja do Ulises e; depois de me alisar o cabelo para trás, ajustei-me o lenço e fui ocupar meu sítio a seu lado.

- Thig a seo, a bhean uasa – disse, sonriéndome. “ Venham, senhora” . Logo elevou o queixo, convocando aos outros. Roger deixou seu violão imediatamente e alargou uma mão para o Bree.

- Thig a seo, a bhean – disse, muito sorridente.

Com uma expressão de surpresa, ela ficou de pé, com o Jemmy nos braços.

Jamie esperava, imóvel. Pouco a pouco os outros se levantaram, sacudindo-a pinaza e a areia de pregas e fondillos, entre risadas e sussurros intrigados. Também os bailarinos interromperam seus giros para ver do que se tratava; a música dos violinos morreu no revôo da curiosidade.

Jamie me guiou pelo caminho escuro, para as chamas que saltavam da grande fogueira; os outros nos seguiram entre um murmúrio de especulações. Ele se deteve esperar no bordo do claro principal. Umas figuras escuras se moveram entre as sombras e a silhueta de um homem se recortou ante o fogo, com os braços em alto.

- Aqui estão os Menzie! – anunciou o homem. E jogou no fogo o ramo que levava. elevaram-se vitores apenas audíveis entre aqueles de seu clã que estavam ao alcance de sua voz.

Outro ocupou seu lugar: MacBean, e outro mais : Ogilvie. Logo nos tocou o turno.

Jamie se adiantou ele sozinho para a luz das chamas.

- Reunimo-nos aqui para dar a bem-vinda a velhos amigos- disse em gaélico-. E para conhecer outros, com a esperança de que possam unir-se a nós para forjar uma vida nova nesta nova terra. – Sua voz era grave e chegava longe; cessaram os últimos retalhos de conversação, enquanto a gente empurrava e se apinhava em torno da fogueira, em silêncio, estirando o pescoço para escutar -. Todos sofremos muitas privações no caminho até aqui.

Girou lentamente, percorrendo as caras que rodeavam o fogo. Ali estavam muitos dos homens do Ardsmuir: vi os irmãos Lindsay, feios como um trio de sapos; os olhos de raposa do Ronnie Sinclair e seu cabelo cor gengibre, levantando em chifres; as facções de moeda romana do Robin McGillivray. Todos olhavam das sombras, as caras cruzadas pelo fogo.

- Muitos dos nossos morreram em combate – disse, com voz apenas audível sobre o rumor do fogo -. Muitos pereceram queimados. Outros, por fome. Outros, no mar, por feridas ou enfermidades. – Fez uma pausa-. Muitos morreram de pena.

Olhou um momento mais à frente do círculo imaginado; pensei que talvez procurava o rosto do Abel McLennan. Então elevou sua taça e a mostrou em uma saudação.

- Slàinte! – murmuraram dez ou doze vozes, levantando-se como o vento.

- Slàinte! – repetiu ele. Logo inclinou a taça para que algo do brandy caísse nas chamas, onde vaiou e ardeu azul por um instante.

Baixou a taça e fez uma pausa, com a cabeça inclinada. Logo elevou o recipiente para o Archie Hayes; inescrutável sua cara redonda, o fogo cintilava em seu gorget de praia e no broche de seu pai.

- Embora choremos a perda de quem morreu, também devemos lhes render coleto a todos vocês, os que lutaram e sofreram com igual valor... e sobreviveram.

- Slàinte! – surgiu a saudação, mais potente esta vez, com o trovejar de vozes masculinas.

Jamie fechou os olhos; quando voltou a abri-los olhava a Brianna, que estava de pé junto ao Lizzie e Marsali, com o Jemmy em braços. A grosseria e a força de suas facções contrastava com a inocência daquelas redondas caras infantis e a suavidade das jovens mães, embora em sua mesma delicadeza a luz do fogo destacava as nervuras de granito escocês de seus ossos.

- Rendemos tributo a nossas mulheres – disse, elevando a taça sucessivamente para a Brianna e Marsali e logo fazia mim. Um breve sorriso lhe tocou os lábios -. Pois elas são nossa fortaleza. E nossa vingança contra os inimigos será, ao final, a vingança do berço. Slàinte!

Entre os gritos da multidão, bebeu a taça de madeira até o sedimento e a jogou no fogo, onde ficou um momento, escura e redonda; logo estalou em uma labareda resplandecente.

- Thig a seo! – convocou, alargando a mão direita para meu - . Thig a seo, a Shorcha, Nighean Eanruig, neart mo chridhe. - “ Vêem mim – dizia -, vêem mim, Claire, filha do Henry, força de meu coração.”

Quase sem sentir os pés nem a aqueles com os que tropeçava ao caminhar, dirigi-me para ele e estreitei sua mão, fria, mas forte entre meus dedos. Vi-o girar a cabeça. Procuraria o Bree? Mas não; alargou a outra emano para o Roger.

- Seja vi mo làmh, Roger an t’òranaiche, MAC Jeremiah MAC Choinnich! - “ Ponha junto a minha mão, Roger, o cantor, filho do Jeremiah MacKenzie.” Roger permaneceu imóvel, os olhos escuros fixos no Jamie; logo avançou para ele, como sonâmbulo. A multidão ainda estava excitada, mas os gritos se apagaram e a gente estirava o pescoço para escutar o que se dizia.

- me acompanhe ao combate- disse meu marido em gaélico, sem apartar os olhos do Roger com a mão esquerda estendida. Falava com lentidão e claridade, para fazer-se entender -. Sei um escudo para minha família... e para a tua, filho de minha casa.

De súbito a expressão do Roger pareceu dissolver-se, como um rosto visto na água quando se arroja uma pedra. Logo se solidificou uma vez mais e ele estreitou com força a mão oferecida.

Então Jamie se voltou para a multidão e iniciou a cerimônia. Era algo que eu lhe tinha visto fazer em Escócia, muitos anos atrás: a identificação e convite formal dos arrendatários por parte do senhor; freqüentemente se realizava no dia de pagamento trimestre ou depois da colheita. Aqui e lá as caras se acenderam ao reconhecê-la; muitos desses montanheses conheciam o costume, embora até essa noite não a tivessem visto no novo continente.

- Vêem mim, Geordie Chisholm, filho do Walter, filho do Connaught, o Vermelho!

- Aconpáñenme, ao Choinneich, Evan, Murdo, filhos do Alexander Lindsay, da Garganta!.

- A meu lado, Joseph Wemyss, filho do Donald, filho do Robert!

Sorri ao ver o confundido senhor Wemyss, extremamente agradado pelo fato de que lhe incluíra publicamente, com a cabeça em alto e o cabelo loiro revolto pelo vento da grande fogueira.

- junto a mim, Josiah, o Caçador!

Estava Josiah Beardsley ali? Sim, em efeito; uma silhueta escura e ligeira saiu das sombras para ocupar um lugar no grupo que flanqueava ao Jamie. Procurei seu olhar e lhe sorri; ele apartou os olhos, pressuroso, mas um sorriso sobressaltado ficou nos lábios, como se a tivesse esquecido ali.

Quando a primeira parte da cerimônia concluiu, o grupo era impressionante: perto de quarenta homens, agrupados cotovelo a cotovelo e tão acesos pelo orgulho como pelo uísque. Vi que Roger intercambiava um largo olhar com a Brianna, que lhe sorria do outro lado do fogo, radiante. Ela inclinou a cabeça para sussurrar algo ao Jemmy, submerso em suas mantas e dormitado em seus braços, e lhe elevou uma manecita lassa para agitá-la para o Roger. Ele riu.

- ... Air mo mhionnan...

Em minha distração me tinha perdido a oração final do Jamie, da que só captei as últimas palavras. O que disse, fora o que fosse, deveu contar com a aprovação geral, pois houve um grave rumor de solene assentimento entre os homens que nos rodeavam. Logo, um instante de silêncio.

Ele me soltou a mão e se agacho para recolher um ramo do chão. depois de acendê-la no fogo, sustentou-a em alto e a jogou para cima, flamejando. O ramo deu vários voltas enquanto caía, diretamente ao coração do fogo.

- Aqui estão os Fraser da Colina! – bramou. E o claro estalou em um grande aclamo.

Enquanto ascendíamos novamente a costa para reatar os festejos interrompidos, encontrei-me junto ao Roger, que cantarolava pelo sob uma toada alegre. Apoiei-lhe uma mão na manga e ele me olhou de acima, sorridente.

- Parabéns – lhe disse, lhe devolvendo o sorriso - . Bem-vindo à família, filho da casa.

Ele estirou o sorriso até fazê-la enorme.

- Obrigado – disse - . Mamãe.

Ao chegar a um plano caminhamos juntos sem falar. De repente disse, em tom muito diferente:

- foi... um pouco muito especial, verdade?

Não soube se o de especial se referia ao histórico ou ao pessoal. Em qualquer dos dois casos tinha razão, de modo que assenti.

- Mas não ouvi a última parte – disse - . E não sei o que significa earbsachd. sabe você?

- OH, sim!

Ali, entre as fogueiras, estávamos às escuras. Eu não via dele mais que uma sombra mais escura contra o negro das mantas e as árvores. Mas em sua voz havia uma nota estranha. Pigarreou.

- É um juramento... em certo modo. Ele, Jamie, fez-nos um juramento, a sua família, a seus arrendatários. Respaldo, amparo, esse tipo de coisas.

- Sim? – exclamei, um pouco sentida saudades - . E por que diz “ em certo modo” ?

- Pois... – Por um momento guardou silêncio, obviamente ordenando suas frases - . Mais que um simples juramento é uma palavra de honra- explicou, cuidadoso - . Diz-se que o earbsachd foi em outros tempos a característica distintiva dos MacCrimmon do Skye; basicamente, significava que a palavra dada uma vez se devia cumprir infalivelmente, qualquer que fosse o custo. Sim um MacCrimmon prometia fazer algo – se deteve para tomar fôlego -, cumpriria-o embora no intento devesse morrer na fogueira.

Agarrou-me pelo cotovelo, com surpreendente firmeza.

- Vamos – disse pelo baixo -. Me permita que te ajude. O estou acostumado a está escorregadio.

 

                   A noite de nossas bodas

         Cantará para mim, Roger?

         Estava de pé na entrada da loja que lhes tinham emprestado, olhando para fora.

-Sempre canto para ti, tesouro-disse ele.

         Aproximou-se por detrás, apoiando-a de costas contra si, de modo que a cabeça da Brianna descansava em seu ombro, fresco e vivo o cabelo contra sua cara. Curvou um braço em volto de sua cintura e inclinou a cabeça para lhe acariciar com seu nariz a curva da orelha.

-De qualquer maneira que sa-susurró-. Não importa que você esteja ou não para me escutar. Sempre canto para ti.

         Então ela girou entre seus braços, com um ronrono de sorte, e procurou sua boca, que tinha sabor de carne assada e veio com especiarias.

         A chuva repicava contra a lona e o frio do outono avançado subia do chão, a seu redor. Aquela primeira vez, o ar cheirava a lúpulos e atoleiros, e o arco nupcial tinha um terrestre aroma a feno e burros de carga. Agora o ar vibrava de pinheiros e zimbros, especiado com a fumaça das fogueiras em brasas…e um sotaque vago e adocicado a fraldas sujos.

         Entretanto, ela estava uma vez mais em seus braços, luz e sombras, escondida a cara, lustroso o corpo. Nnaquele tempo naquele tempo a tinha encontrado líquida e fundida, úmida do verão. Agora sua pele estava fria como o mármore, salvo onde ele a tocava…e mesmo assim o verão perdurava na palma de sua mão, ali onde entrava em contato com ela, doce e untuosa, carregada com os segredos de uma noite calorosa e escura. Tinha sido o adequado, disse-se, que esses votos se pronunciaram ao ar livre, como os primeiros: parte do vento e a terra, do fogo e a água.

-Amo-murmuró-te ela contra sua boca.

         E Roger apanhou o lábio entre os dentes, muito comovido para responder ainda a essas palavras.

         Nnaquele tempo, naquele tempo, como agora, houve palavras entre eles. Foram as mesmas. E ele as tinha pronunciado com tanta seriedade como agora. Não obstante era distinto.

         A primeira vez, aquelas palavras tinham sido para ela sozinha. Embora o fez à vista de Deus, Ele foi discreto; manteve-se longe, voltando as costas à nudez de ambos.

         Entretanto, agora as tinha pronunciado ante o fulgor de uma fogueira, ante o rosto de Deus e do mundo, sua gente e a dela. Seu coração pertencia ao Bree, junto com tudo que possuía. Mas já não se tratava dele e ela, do de um ou outra. Os votos estavam pronunciados, seu anel no dedo, o vínculo estabelecido e presenciado. Eram um só corpo.

-Necessito…-disse ela, e, sem terminar, tocou-se o peito-. Espera um momento, quer?

         Claire lhe tinha dado a comida ao menino enquanto Brianna ia fazer sua proposta ao reverendo Caldwell. Cheio a arrebentar de porridge e compota de pêssego, logo que puderam despertá-lo para que mamasse um pouco, antes de cair novamente na sonolência; Lizzie o levou, com a tripita redonda e tensa como um tambor. Isso era necessário para que eles tivessem intimidade; aturdido no estupor do glutão, era difícil que o pequeno despertasse antes do amanhecer. Mas o preço era o leite não consumido.

         Brianna, pudorosamente de costas ao Roger e com um arisaid sobre os ombros para proteger do frio, agarrou um peito na palma da mão e apertou uma taça sob o mamilo, para receber a destilação. ouvia-se o vaio do leite, diminuta campainha contra o metal.

         Embora lhe dava pena afogar esse som que lhe resultava erótico, Roger agarrou o violão e aplicou o polegar às cordas, a mão aos trastes. Em vez de rasguear ou tocar acordes, pulsou arpejos, pequenas vozes que ecoassem à sua; o palpitar de uma corda ia marcando a melodia.

         Uma canção de amor, sem dúvida. Uma das mais antigas, em gaélico. Embora ela não conhecesse algumas palavras, provavelmente captaria o sentido.

 

         Na noite de nossas bodas

         Irei saltando a ti com presentes,

         na noite de nossas bodas…

 

         Fechou os olhos, vendo na memória o que a noite agora ocultava. Seus mamilos tinham a cor das ameixas amadurecidas e o tamanho das cerejas. Roger recordava vividamente a sensação dos ter na boca. Deles tinha mamado uma vez, fazia muito, antes de que chegasse Jemmy. Mas já não.

 

         Terá cem salmões de prata…

         cem peles de texugo…

 

         Nunca lhe pedia que o fizesse, nunca o rechaçava…Não obstante, por sua maneira de aspirar quando lhe tocava os peitos era evidente que se estava contendo para não fazer uma careta.

         Era só porque lhe doíam? Ou não confiava em que ele fora suave?

         Afugentou o pensamento afogando-o em uma pequena cascata de notas líquidas como um salto de água.

         “ Talvez não seja por ti- sussurrou a voz, negando-se tercamente a deixar-se distrair-. Talvez seja por ele, por algo que lhe fez”

         “ Vete ao diabo” , pensou ele, sucintamente, marcando cada palavra com uma corda fortemente pulsada. Stephen Bonnet não teria capacidade em seu leito de bodas. Nem pensar.

         Apoiou uma mão contra as cordas para as sossegar por um instante e, enquanto ela se tirava o arisaid dos ombros, recomeçou em inglês. Uma canção especial, só para eles dois. Ignorava se alguém podia ouvi-lo, mas não tinha importância. Ela ficou de pé para tirá-la camisa, em tanto os dedos do Roger tocavam a tranqüila introdução do Yesterday, dos Beatles.

         Ouviu-a rir uma vez; logo, suspirar. E o fio também sussurrou contra sua pele enquanto caía.

         Lhe aproximou por atrás, nua; a suave melancolia da canção ia enchendo a escuridão. Acariciou-lhe o cabelo, balançando-se. morria por girar-se e apoderar-se dela, mas conteve o impulso, acentuando a espera. Inclinando a cabeça para as cordas, cantou até que todo pensamento desapareceu dele, até que só ficaram seu corpo e o dela. Não teria podido dizer em que momento a mão do Bree cobriu a seu contrário os trastes. Então se levantou para voltar-se para ela, ainda loja de comestíveis de música e de amor, suave, forte e puro na escuridão.

 

         Brianna jazia imóvel na penumbra, sentindo o trovejar de seu coração palpitando lentamente em seus ouvidos. O batimento do coração se repetia no pulso de se pescoço, nas bonecas, os peitos, o ventre. Tinha perdido a noção de seus limites; pouco a pouco retornou a sensação de membros e dedos, cabeça e tronco, de espaço ocupado. Moveu o único dedo pego entre suas pernas; ao liberá-lo, o último dos impactos cosquilleantes lhe correu pelas coxas.

         Aspirou fundo, lentamente, escutando.

         Ele seguia respirando larga e regularmente; graças a Deus continuava dormindo. Ela tinha atuado com cautela, sem mover mais que a gema de um dedo, mas a sacudida final do clímax foi tal que seus quadris deram um salto, enquanto o ventre se estremecia e os talões se cravavam no jergón, com um forte sussurro de palha.

         O esforço de mover-se era inconcebível, mas sua convulsão final tinha retirado o edredom dos ombros de seu companheiro; a pele de suas costas ficava à vista, nua e suave, escura em contraste com o tecido claro. O oco quente que a rodeava era abrigado e perfeito, mas não podia desfrutá-lo enquanto ele jazia exposto ao ar glacial da meia-noite. Bree detectou um brilho molhado na curva alta de seu maçã do rosto.

         depois de evocar a noção de ossos e músculos, achou um neurônio em condições de funcionar e lhe ordenou que disparasse. Encantada uma vez mais, tendeu-se de flanco, de cara a ele, e o cobriu brandamente com o edredom até as orelhas. Ele se removeu um pouco, murmurando algo; lhe acariciou o cabelo negro, revolto, e o viu sorrir apenas, entreabrindo os olhos com o olhar vácuo de quem só vê em sonhos. Logo voltaram a fechar-se; depois de um comprido suspiro, ele voltou a ficar dormido.

-Amo-te- sussurrou-lhe, cheia de ternura.

         Uma brisa fria lhe arrepiou o pêlo do braço; então voltou a pô-lo sob os cobertores, ousando a mão ligeira no traseiro do Roger.

         Seu contato não era nenhuma novidade, mas mesmo assim lhe apaixonava por sua perfeita redondez, seu pêlo encaracolado e áspero. Uma vaga lembrança de seu gozo solitário a insistiu a fazê-lo outra vez, a introduzir sua mão livre entre as pernas; mas a deteve o simples esgotamento; deixou os dedos lassos cobrindo a carne torcida; um deles, lânguido, seguiu o rastro viscoso.

         Tinha albergado a esperança de que essa noite fora distinta. Sem o perigo constante de despertar ao Jemmy, sem pressas, levados pela emoção dos votos pronunciados, talvez…Mas foi como sempre.

         Não era por falta de excitação. Pelo contrário: cada movimento, cada contato lhe imprimia nos nervos da pele, nos sulcos da boca e a memória, afogando-a com aromas, marcando-a a fogo com suas sensações. Mas por maravilhoso que fora o ato de amor, perdurava sempre uma estranha sensação de distância, uma barreira que ela não podia atravessar.

         Assim se encontrou uma vez mais revivendo, enquanto ele dormia, cada momento da paixão que acabavam de compartilhar…e na lembrança pôde, uma vez mais, ceder finalmente a ela.

         Talvez era porque o amava muito; cuidava tanto de lhe dar agradar, que não sabia ocupar do dele. A satisfação que sentia ao o ter nos braços, perdido e gemendo, era muito maior que o simples gozo físico do clímax. Entretanto, baixo isso havia algo mais tenebroso: uma peculiar sensação de triunfo, como se tivesse ganho uma luta entre os dois, nunca declarada nem reconhecida.

         Com um suspiro, apoiou a frente contra a curva do ombro do Roger, desfrutando de seu aroma: um almíscar forte e amargo.

         Uma vez mais baixou a mão, com cuidado para não despertá-lo, e deslizou para dentro um dedo para comprovar se tudo estava bem. O trocito de esponja seguia em seu sítio, empapada em azeite de atanasia; sua presença frágil e aromática custodiava a entrada de seu ventre.

         Aproximou-se um pouco mais. Ele, inconscientemente, girou o corpo pela metade para lhe dar capacidade, envolvendo-a imediatamente com seu reconfortante calor. Sua mão procurou provas, como um ave que voasse às cegas, lhe roçando o quadril e o ventre, em busca de um sítio onde descansar. Ela a agarrou entre as suas para acolhê-la sob seu queixo. Quando beijou um daqueles nódulos, grandes e ásperos, ele exalou um profundo suspiro e relaxou a mão.

         Então se acomodou melhor contra o corpo do Roger, experimentando consolo e espera.

         Eram os primeiros dias, disse-se. Tinham toda a vida por diante. Já chegaria, sem dúvida, o tempo de render-se.

 

                   A fogueira do vigia

De onde dormiam, através de um oco entre as rochas, podia ver a fogueira do vigia que ardia ante a loja do Hayes. A grande fogueira da congregação se reduziu a brasas, mas essa fogueira pequena ardia sem pausa, como uma estrela contra a noite fria. de vez em quando, uma silhueta escura, com saia escocesa, levantava-se para atendê-la; e, depois de recortar-se contra seu esplendor, voltava a esfumar-se na noite.

         Tinha começado a respirar com mais lentidão, relaxando todos os músculos do corpo. Não porque tentasse dormir; o sonho estava longe e ele não tinha intenção de buscá-lo.

         Tampouco era por enganar ao Claire, lhe fazendo acreditar que estava dormido. Tão perto de seu corpo e de sua mente como estava, ela saberia insone. Não: era só por lhe dar um sinal, um engano assumido que a liberasse de lhe emprestar atenção. Assim ela poderia dormir, sabendo-o ocupado dentro da cápsula de sua mente, sem exigências imediatas que ela devesse satisfazer.

         Um golpe de vento trouxe de acima algumas nota musicais; gaita e violino. Os escravos da Yocasta, que não estavam dispostos a abandonar essa estranha celebração pela necessidade de dormir ou os imperativos do clima.

         O fraco gemido de um bebê. Jemmy? Não: provinha de atrás. A pequena Joan, pois. E a voz do Marsali, grave e doce, cantando em francês.

-…Alouette, gentil Alouette…

         Ali, um bonito som que ele estava esperando: pisadas ao outro lado das rochas que bordeaban seu santuário familiar. Rápidas e ligeiras, costa abaixo. Aguardou com os olhos abertos. Poucos momentos depois lhe chegou o fraco alto de um sentinela apostado perto da loja. Abaixo a luz do fogo não mostrou nenhuma silhueta, mas a lapela da loja se agitou, deixou passo e voltou a cair, invisível.

         Tal como ele pensava, então: havia fortes sentimentos de hostilidade contra os responsáveis pela revolta. Não se interpretava como uma traição aos amigos, mas sim como a necessária ação de entregar aos criminosos para proteger a quem preferia respeitar a lei.

-J’ante plumerai a tête…

         Lhe ocorreu perguntar-se por que freqüentemente as canções para meninos eram horripilantes. A mesma Brianna, que provinha de uma época supostamente mais aprazível, cantava ao pequeno Jem historia de mortes terroríficas e trágicas perdas, tudo com uma expressão tão tenra como a Virgem. Esses versos que falavam da filha do mineiro, que se afogou entre seus patitos…

         Perversamente, perguntou-se que coisas horríveis tinha incluído a Santa Mãe em seu repertório de canções de berço; a julgar pela Bíblia, a Terra Santa não tinha sido mais pacífica que a França ou Escócia.

         Teria se feito o sinal da cruz como penitência pela idéia, mas Claire dormia sobre seu braço direito.

-Atuaram mau?- A voz do Claire surgiu brandamente sob seu queixo, sobressaltando-o.

-Quais?- Inclinou a cabeça para ela para beijar a densa suavidade de seus cachos. Seu cabelo cheirava a fumaça de lenha e a um aroma áspero e claro: o dos bagos de zimbro.

-Os homens do Hillsborough.

-Sim, acredito que sim.

-O que teria feito você?

         Ele suspirou, encolhendo um só ombro.

-O que posso dizer? Se eu também tivesse sido enganado, sem esperanças de ressarcimento, talvez teria elevado a mão contra o responsável. Mas o que se fez lá…já o ouviste. Casas derrubadas e incendiadas, homens que foram tirados a força e deprimidos a golpes, só pelo cargo que desempenhavam…Não, Sassenach; não sei que teria feito eu, mas isso não.

         Ela girou um pouco a cabeça, lhe deixando ver a curva alta de seu maçã do rosto, emoldurado de luz, e a contração do músculo que passava por diante de sua orelha: estava sonriendo.

-Isso pensava eu. Não imagino formando parte de uma turfa.

         Lhe beijou a orelha para não responder diretamente. Por sua parte, era-lhe muito fácil imaginar-se assim. Isso o assustava. Conhecia muito bem a força que havia em algo assim.

         Um escocês das Terras Altas era por si só um guerreiro; mas o mais capitalista dos homens não passava de ser um homem.

-E se não fora um homem quem te enganasse? Se fosse a Coroa ou a Corte? Não uma pessoa, a não ser uma instituição.

         Ele compreendeu onde queria levá-lo. Rodeou seu braço em volto dela; o fôlego do Claire lhe esquentava os nódulos da mão, curvada sob seu queixo.

-Não é assim. Aqui não. Agora não.

         Os bagunceiros tinham atacado como resposta a crímenes cometidos por homens, por indivíduos; o preço desses crímenes se podia pagar com sangue, mas não se pagava com uma guerra. Ainda não.

-No-confirmou ela-. Mas assim será.

-Agora não- repetiu ele.

         Tinha a folha de papel bem oculta em seus alforjas, com sua detestável convocatória. Devia atender esse assunto quanto antes, mas por essa noite fingiria que não estava ali. Uma última noite de paz, com sua esposa nos braços e sua família perto.

         Outra sombra junto ao fogo. Outra voz de alto lançada pelo sentinela. Um mais que cruzava a soleira dos traidores.

-E eles, fazem mau?- Claire assinalou a loja de abaixo com uma leve inclinação de cabeça-. Os que vão denunciar a seus conhecidos?

-Sim- disse ele, depois de um momento-. Eles também fazem mau.

         A turfa pode mandar, mas são os indivíduos os que pagam o preço do fato. Parte desse preço era essa ruptura da lealdade, o enfrentamento entre vizinhos, onde o medo era um laço corrediço que se apertava até não deixar fôlego de misericórdia nem de perdão.

         Estreitou ao Claire contra si, curvando a mão livre contra a parte baixa de seu ventre. Ela suspirou com um sotaque de dor física e se acomodou também, aninhando o traseiro o tigela de suas coxas. Jamie sentiu que começava a fusão ao relaxar-se ela; era esse estranho mesclar-se de corpos.

         Ao princípio ocorria só quando a possuía, e somente ao terminar. Depois, cada vez com mais freqüência, até que o mero contato de sua mão foi a um tempo convite e realização, uma entrega inevitável, oferecida e aceita. de vez em quando resistia, só para comprovar que era possível, pois de repente temia perder-se a si mesmo.

         Confiava em que era o correto. Dizia-o a Bíblia: “ Serão uma só carne” e “ O que Deus uniu, não o separe o homem” . Jamie tinha sobrevivido a uma separação, mas não poderia passar por outra e continuar vivendo.

         Os sentinelas tinham posto um abrigo de lona perto da fogueira, para proteger-se da chuva. Mas a água levada pelo vento fazia que os ramos chispassem, iluminando o tecido claro com uma piscada que palpitava como um coração.

         Jamie não temia morrer com ela, por fogo ou de qualquer outra maneira; o que temia era viver sem ela.

         Trocou o vento, levando consigo quase inaudíveis risadas da pequena loja onde dormiam (ou não) os recém casados. Ele sorriu para si para as ouvir. Só cabia esperar que sua filha encontrasse no matrimônio um gozo tão grande como o seu. Mas até o momento as coisas foram bem. Ao moço lhe iluminava a cara quando a via.

-O que fará?- perguntou Claire. Suas palavras quase se perderam no repico da chuva.

-O que seja preciso.

         Não era resposta, mas não cabia outra.

         Não havia mundo algum além desse pequeno espaço, disse-se Jamie. Escócia tinha desaparecido; as colônias estavam em marcha. Pelo que se morava, ele só tinha uma vaga idéia pelas coisas que Brianna lhe contava. A única realidade era a mulher que tinha nos braços, seus filhos e netos, seus arrendatários e serventes. Esses eram os dons que Deus lhe tinha entregue para que os albergasse e protegesse.

         Estava-se excitando pelo mero hábito do contato íntimo; seu membro, ao erguer-se, ficou incómodamente apanhado. Desejava-a, desejava-a desde por volta de vários dias; embora tinha tido que adiar o impulso no agitação da congregação. A dor surda que sentia nos testículo era um eco do que ela devia sentir no ventre.

         Alguma vez a havia poseído durante a regra, quando os dois se desejavam muito para esperar. Era sujo e perturbador, mas também excitante; deixava-o com uma vaga sensação de vergonha, não de tudo desagradável. Embora não fora um bom momento nem estivessem em bom lugar, a lembrança de outros momentos e outros lugares o obrigou a trocar de posição, apartando-se dela para não incomodá-la com a evidência física de seus pensamentos.

         Não obstante, o que sentia agora não era lascívia, nem sequer a necessidade de companhia anímica. Queria cobri-la com seu corpo, possui-la, pois desse modo podia fingir que ela estava a salvo.      

         Havia-se posto rígido, involuntariamente contraído por esses pensamentos. Claire estirou uma mão para trás e a apoiou sobre sua perna; ali ficou durante um momento, para logo estendê-la brandamente mais acima, em uma busca dormitada.                   Lhe inclinou a cabeça para lhe aproximar os lábios ao ouvido. Disse o que pensava sem pensá-lo.

-Nada poderá te fazer danifico enquanto haja fôlego em meu corpo, a nighean donn. Nada.

-Sei- disse ela.

         Seus membros se afrouxaram pouco a pouco; sua respiração se fez mais tranqüila e a suave redondez do ventre se avultou contra a palma do Jamie, enquanto se afundava no sonho. Sua mão permaneceu onde estava, cobrindo-o.

         Jamie seguia tenso e acordado, muito depois de que a chuva tivesse apagado a fogueira do sentinela.

 

                                   A chamada do chefe

 

                   Nada há como o lar

Gideon estirou a cabeça como uma víbora, dirigindo a à perna do cavaleiro que ia diante.

-Seja!- Jamie atirou da cabeça do grande baio antes de que pudesse morder-. Maldito filho de rameira- murmurou pelo baixo.

         O comentário foi captado pelo Geordie Chisholm; como ignorava que se livrou por pouco dos dentes do Gideon, olhou por cima de seu ombro, sobressaltado. Jamie pediu desculpas com um sorriso e açulou ao cavalo para que deixasse atrás à mula do outro.

         Passou junto à Brianna e Marsali, que foram no centro da coluna, ao trote lento; quando deixou atrás ao Claire e Roger, à cabeça do grupo, ia a tal velocidade que só pôde fazer um gesto com o chapéu para saudá-los.

-A mhic an dhiobhail- disse, inclinando-se para o pescoço do animal, enquanto se plantava novamente o chapéu-. É mais enérgico do que te convém, sem mencionar o que me convém . Vejamos quanto resiste a campo aberto, quer?

         O que esse condenado precisava era terreno plano, onde Jamie pudesse fazê-lo galopar até lhe baixar as fumaças e trazer o de volta soprando. Posto que não havia um sítio plano em trinta quilômetros à redonda, teria que conformar-se com o que havia.

         Recolheu as rédeas e, estalando a língua, cravou-lhe os talões nas costelas. O cavalo se lançou à carga colina acima, como se o tivessem disparado de um canhão.

         Gideon estava bem alimentado; era um animal resistente e de ossos grandes; Jamie o tinha comprado justamente por isso. Além disso era indócil e tinha mau caráter, razão pela qual não havia flanco muito. Mesmo assim, o preço foi superior ao que Fraser podia pagar sem ter que fazer um esforço.

         Depois de meia hora de esquivar ramos baixos, cruzar arroios e galopar costa acima por todas quão pendentes Jamie lhe assinalou, Gideon estava, se não precisamente amigável, ao menos o bastante exausto para deixar-se dirigir. Jamie estava empapado até as coxas, machucado, sangrando por cinco ou seis arranhões e ofegando quase tanto como o cavalo. Não obstante, ainda se mantinha na cadeira e conservava o mando.

         Dirigindo a cabeça do cavalo para o sol poente, voltou a estalar a língua.

-Vamos- disse-. Voltemos para casa.

         Embora se tinham esforçado muito, dada a forma escarpada da terra não haviam talher tanta distância para perder de tudo. Jamie apontou a cabeça do Gideon para cima e, um quarto de hora depois, chegaram a uma pequena colina de reconheceu.

         Avançaram com cautela ao longo do topo, procurando um lugar seguro para descender por entre os matagais de álamos e píceas. Sabia que a partida não estava longe, mas possivelmente lhe levasse algum tempo encontrar-se com ela, e preferia fazê-lo antes de que chegassem à Colina. Embora Claire ou MacKenzie podiam guiá-la perfeitamente, reconhecia que ansiava retornar a casa à cabeça de sua gente.

-Vá, homem!, nem que fora Moisés- murmurou, movendo a cabeça em um gesto de brincadeira ante suas próprias pretensões.

         O cavalo estava talher de espuma; quando chegaram a um trecho onde as árvores já não estavam tão juntas, Jamie se deteve descansar um momento, afrouxando as rédeas, mas preparado para desalentar qualquer capricho que essa besta louca pudesse estar concebendo.

         A brisa provinha do oeste. Jamie levantou o queixo, desfrutando de seu contato frio na pele acalorada. O estou acostumado a caía em ondulantes cheire pardas e verdes, acesas aqui e lá em emplastros de cor, que iluminavam a bruma nos terrenos baixos como o resplendor da fumaça de uma fogueira. Ante aquele panorama sentiu que o invadia a paz; aspirou profundamente, relaxando o corpo.

         Gideon também se relaxou, deixando escapar lentamente seu espírito de luta, como a água que se sai de um cubo quebrado. Jamie apoiou brandamente as mãos em seu pescoço e o animal permaneceu imóvel, com as orelhas para diante. “ Ah!” , pensou. E então caiu na conta de que se tratava de um Sítio.

         Não tinha palavras para designar esses lugares, mas os reconhecia cada vez que encontrava algum. Poderia havê-los qualificado de sagrados, mas a sensação que o provocavam não tinha nada que ver com a Igreja nem com o santo. Eram, simplesmente, lugares que lhe correspondiam, e com isso bastava, embora preferia encontrá-los quando estava sozinho. Deixou descansar as rédeas sobre o pescoço do cavalo. Nenhuma besta louca como Gideon podia causar problemas em um lugar assim.

         Quando era um menino, tinha aprendido a maneira de viver separado dentro de uma multidão, conservando a intimidade em sua mente quando seu corpo não podia tê-la. Mas como era montanhês, também tinha aprendido muito tempranamente o encanto da solidão e a virtude curativa dos sítios tranqüilos.

         De súbito teve uma visão de sua mãe, um dos pequenos retratos vívidos que sua mente entesourava e apresentava inesperadamente, como reação só Deus sabia a que: um som, um aroma, algum capricho passageiro da memória.

         Tinha estado instalando armadilhas para coelhos em uma colina; estava acalorado e suarento, com os dedos cravados pelas novelo espinhosas e a camisa pega à pele pelo barro e a umidade. Ao ver um bosquecillo, aproximou-se em busca de uma sombra. Ali estava sua mãe, sentada no chão junto a um diminuto manancial, sob a sombra esverdeada. Permanecia imóvel, coisa estranha nela, com as largas mãos cruzadas no regaço.

         Não disse nada, mas lhe sorriu. Ele se aproximou sem lhe falar, repleto por uma grande sensação de paz e contente, e apoiou a cabeça contra seu ombro; ao sentir que seu braço o rodeava, soube que ocupava o centro de seu mundo. Então, tinha cinco ou seis anos.

         A visão desapareceu tão súbitamente como tinha vindo, como uma truta resplandecente que se esfumasse na água escura. Não obstante, deixou detrás de si a mesma sensação de profunda paz, como se alguém o tivesse abraçado brevemente, como se uma mão suave lhe tocasse o cabelo.

         Desmontou, com a necessidade de sentir a pinaza sob as botas, algum contato físico com esse lugar. A cautela lhe fez atar as rédeas a um pinheiro forte, embora Gideon parecia bastante sereno; o potro tinha baixado o testuz e procurava matas de pasto seco. Durante um instante, Jamie permaneceu imóvel; logo girou cuidadosamente para a direita, de cara ao norte.

         Já não recordava quem lhe tinha ensinado isso: sua mãe, seu pai ou o velho John, o pai do Ian. Mas girou na direção do sol, murmurando aquela breve oração para cada um dos quatro pontos cardeais, e terminou de frente ao oeste, olhando ao sol poente. Formou uma taça com as mãos vazias e a luz as encheu, transbordando sua Palmas.

 

        Que Deus me faça seguro cada passo,

         Que Deus me abra cada caminho,

         Que Deus me ponha em claro cada caminho,

         E que Ele me leve entre suas próprias mãos.

 

         Com um instinto mais antigo que a oração, tirou a cigarreira do cinturão para verter algumas gotas no chão.

         A brisa lhe trouxe alguns sons dispersos: risadas e ruídos de animais que avançavam através da maleza. A caravana não estava longe: apenas ao outro lado de um pequeno terreno baixo, rodeando a passo lento a curva da colina oposta. Já era hora de reunir-se com isso para o último lance, até chegar à Colina.

         Ainda vacilou um momento, resistindo a quebrar o feitiço do Sítio. Pela extremidade do olho detectou um movimento imperceptível; então se agachou ante um arbusto de acebo entreabrindo os olhos para olhar nas sombras cada vez mais intensas.

         Ali estava, petrificado, confundindo-se perfeitamente com o fundo escurecido. Jamie não o teria visto, a não ser por esse pequeno movimento captado por seu olho de caçador. Era um gatinho diminuto, de pelagem cinza arrepiada como a semente amadurecida do algodoncillo; os olhos enormes, quase incolores na penumbra, permaneciam bem abertos e sem piscar.

-Ao Chait- sussurrou, alargando lentamente um dedo fazia ele-. O que faz aqui?

         Um gato feroz, sem dúvida; nascido de uma mãe selvagem, que comprido tempo atrás teria escapado de alguma cabana de colonos, liberando-se da armadilha do doméstico. Quando lhe roçou a pelagem tênue do peito, o animal lhe cravou súbitamente os pequenos dentes no polegar.

-Ai!- Apartou a mão imediatamente para examinar a gota de sangue que brotava da pequena punção. Durante um momento fulminou ao gato com o olhar, mas o animal se limitou a sustentá-la, sem fazer gesto de fugir. depois de um instante, Jamie se decidiu. Sacudiu a mão, fazendo cair o sangue às folhas; seria, como o uísque, outra oferenda aos espíritos desse Sítio, que obviamente haviam resolvido lhe oferecer também um presente.

-Pois bem, seja- disse pelo baixo. ajoelhou-se para estender a mão, com a palma para cima. Com muita lentidão moveu um dedo, logo o seguinte, e o outro, e o último, e logo outra vez, com o movimento ondulante das algas na água. Os grandes olhos claros seguiam fixamente o movimento, como hipnotizados. Vendo que a ponta do diminuto rabo se contraía imperceptivelmente, Jamie sorriu.

         Se era capaz de atrair às trutas, por que não a um gato?

         Quando ao fim voltou a lhe tocar a pelagem, o animal não tentou escapar. Um dedo se deslizou por seu cabelo; outro, baixo as frite almofadinhas de uma garra. E se deixou agarrar brandamente com a mão, que o retirou do chão.

         Jamie o reteve um momento contra o peito, acariciando-o com um dedo, seguindo a sedosa linha da mandíbula, as orelhas delicadas. O bichinho fechou os olhos e começou a ronronar, em êxtase, vibrando em sua palma como um trovão longínquo.

-OH!, assim virá comigo, né?

         Como o gato não se fazia de rogar, abriu o pescoço da camisa para colocar dentro aquela coisa diminuta. O gatinho antes de acurrucarse contra sua pele pinçou entre suas costelas; seu ronrono se reduziu a uma vibração calada, mas agradável.

         Gideon, agradado pelo descanso, começou a marcha. Um quarto de hora depois alcançaram aos outros. Mas a momentânea docilidade do potro se evaporou ante a tensão da ascensão final.

         O cavalo era muito capaz de dominar esse caminho íngreme, certamente; o que não tolerava era ir detrás de outra arreios. Pouco importava que Jamie quisesse ou não chegar a sua casa à cabeça de sua gente: se Gideon tinha algo que dizer a respeito, não só iriam à cabeça, mas também vários corpos mais adiante.

         Jamie se encontrou simpatizando bastante com o cavalo: ansioso por estar em casa, esforçando-se por chegar quanto antes, e irritado por tudo o que ameaçasse atrasando. Nesse momento, o principal impedimento contra o avanço era Claire; a inoportuna tinha detido sua égua frente a ele para recolher umas quantas ervas à beira do caminho. Como se não tivesse já a casa inteira cheia de novelo, da soleira até o telhado, e as alforjas avultadas por outra carga!

         Gideon, captando imediatamente seu estado de ânimo, estirou o pescoço para mordiscar à égua na garupa. O animal, entre relinchos e pinotes, saiu disparado caminho acima, com as rédeas pendurando. O macho tentou sair atrás dela, mas foi detido de um puxão nas rédeas.

         O ruído fez que Claire se desse a volta, com os olhos dilatados pela surpresa. Olhou primeiro ao Jamie; logo, a sua égua que desaparecia caminho acima, e novamente a ele, desculpando-se com um encolhimento de ombros. Tinha as mãos cheias de folhas maltratadas e raízes muito sujas.

-Sinto muito. Disse. Mas ele viu a contração na comissura da boca, o rubor em sua pele e o sorriso que brilhava em seus olhos. Muito a seu pesar, a tensão de seus ombros se acalmou. Embora tinha intenção de arreganhá-la, as palavras não foram a sua boca.

-Vamos, te levante- disse em troca, resmungão-. Eu gostaria de jantar.

         Ela montou, rendo-se em sua cara e apartando as saias para que não incomodassem. Gideon, irascível ante essa carga adicional, girou bruscamente a cabeça para lançar uma dentada a algo que estivesse a seu alcance, mas Jamie o estava esperando: fustigou com o extremo da rédea o focinho do potro, que deu um coice para trás, soprando de surpresa.

-Assim aprenderá, pequeno bode.

         Impregnando o chapéu, assegurou na arreios a seu díscola algema, com as saias bem rodeadas sob as coxas e os braços rodeando sua cintura. O gatinho, bruscamente arrancado de sua sesta, cravou as unhas na cintura do Jamie com um uivo de alarme, embora seu grito se perdeu entre os chiados mais potentes do cavaleiro, que atirava com a cabeça do cavalo, entre juramentos enquanto lhe empurrava os quartos traseiros com a perna esquerda.

         Gideon, nada fácil de vencer, executou um salto como uma espiral. de repente Jamie ouviu um pequeno “ eeeh!” e percebeu uma sensação de vazio a suas costas: Claire tinha sido jogada na maleza como um saco de farinha.

-Vai tudo bem?- perguntou Roger, arqueando uma sobrancelha.

-Naturalmente- respondeu Jamie, tratando de recuperar o fôlego sem perder a dignidade-. E você, como está?

-Bem.

-Me alegro.- Jamie já estava desmontando. Arrojou as rédeas ao MacKenzie e, sem deter-se ver se as sujeitava, retornou correndo pelo atalho, gritando:

-Claire! Onde está?

-Aqui!- anunciou ela alegremente. E emergiu de entre as sombras dos álamos, coxeando um pouco e com o cabelo cheio de folhas. Pelo resto parecia ileso-. E a ti, aconteceu-te algo?- perguntou-lhe, olhando-o com uma sobrancelha arqueada.

-Não, estou bem, mas vou matar a esse cavalo.- Abraçou-a para assegurar-se de que estava íntegra. Embora ofegava ao respirar, a sentia tranquilizadoramente sólida. Lhe deu um beijo no nariz.

-Mas não o mate antes de que cheguemos a casa. Falta uma milha e não quero percorrê-la descalça.

         De repente se ouviu uma voz:

-Né! Deixa isso, bastardo!

         Jamie soltou ao Claire para voltar-se para olhar. Roger estava arrancando um punhado de novelo maltratadas do focinho do Gideon. Mais planta? Que mania era essa? Claire se inclinou para diante para as observar com interesse.

-O que é isso que tem aí, Roger?

-Para o Bree- disse ele, as submetendo a sua inspeção-. São as que convêm?

         Aos olhos profanos do Jamie, pareciam amarelados caules de cenoura que tivessem ficado muito tempo plantados, mas Claire tocou a suja folhagem com um gesto de aprovação.

-OH, sim!- disse-. Que romântico!

         Jamie, com muito tato, emitiu um leve ruído, sugiriendo que era hora de continuar o caminho, posto que Bree e a lenta tribo dos Chisholms os alcançariam muito em breve.

-Está bem- disse Claire, lhe dando uma palmada no ombro-. Não bufe; já vamos.

-Hummm!- resmungou ele, agachando-se para lhe oferecer uma mão como estribo. depois de subir a à arreios, jogou ao Gideon um olhar que dizia: “ Não tente nada estranho, maior bode” , e montou atrás dela-. Esperará aos outros para guiá-los você?- Sem esperar resposta, atirou das rédeas e pôs ao potro atalho acima.

         Apaziguado pelo fato de estar muito por diante de outros, Gideon se dedicou à tarefa de subir sem pausa entre os matagais de espinillos e álamos brancos, castanhos e píceas.

         Ao avançar, Jamie recuperou sua própria equanimidade; também lhe reconfortou o fortuito achado do chapéu perdido: pendia de um carvalho à beira do caminho, como se alguma mão bondosa o tivesse posto ali. Mas sua intranqüilidade mental continuava; não podia captar a serenidade, embora a montanha estava em paz, com o ar nebuloso de cor azul, perfumado de pinheiros e madeira verde.

         De repente, com um súbito tombo na boca do estômago, caiu na conta de que o gatinho tinha desaparecido. Ardiam-lhe os arranhões na pele do peito e o abdômen, ali onde tinha subido por ele, em um frenético esforço por escapar, mas devia ter saído pelo pescoço da camisa, pêra ver-se arrojado de seu ombro na descabelada carreira custa abaixo. Jogou uma olhada a ambos os lados, escrutinando as sombras sob as matas e as árvores, mas sua esperança foi vã. A escuridão se acentuava e já estavam no caminho principal, o sítio onde ele e Gideon se desviaram pelo bosque.

-Vê com Deus- murmurou, fazendo o sinal da cruz-se brevemente.

-O que diz?- perguntou Claire, girando-se um pouco na cadeira de montar.

-Nada.- depois de tudo, embora pequeno, era um gato selvagem. Saberia arrumar-lhe sem dúvida.

         Gideon roía o bocado, cabeceando. Jamie notou que, uma vez mais, o tensão de sua mão circulava pelas rédeas, e fez um esforço por afrouxá-la. Também afrouxou a que sujeitava a sua esposa, que de repente se encheu os pulmões de ar.

         Fazia que os Bug se adiantassem, guiados pelo Fergus, para que Claire não devesse ocupar-se simultaneamente das tarefas da chegada e da hospitalidade. Só se precaveu de que Claire também estava tensa quando ela se relaxou súbitamente contra ele, lhe apoiando uma mão na perna.

-Não aconteceu nada- disse ela-. Cheiro a fumaça de chaminé.

         Ele levantou a cabeça para farejar. Sua esposa tinha razão: na brisa flutuava o aroma penetrante das nozes queimadas. Não se tratava do fedor que recordava de ás conflagrações, mas sim de um aroma caseiro, que prometia casaco e comida. Era de presumir que a senhora Bug o tinha obedecido ao pé da letra.

         Ao rodear a última curva do caminho viram a alta chaminé de pedra, que se elevava por cima das árvores, com um grande penacho de fumaça frisando-se sobre as taças.

         A casa estava em pé.

         Saíram da castañeda ao amplo claro onde se levantava a casa, sólida e cuidada, com as janelas douradas pelos últimos raios do sol. Era uma casa modesta, caiada e com o telhado coberto com tablones, de linhas definidas e sólida construção, imponente só se a comparava com as toscas cabanas que ocupavam a maioria dos colonos. A que fora sua primeira casa, escura e maciça, estava ainda ali, algo mais abaixo. E dessa chaminé também saía fumaça.

-Alguém acendeu o fogo para o Bree e Roger- comentou Claire, assinalando-a com a cabeça.

-Que bem!- Jamie rodeou sua cintura com um braço; ela, com um murmúrio de contente, moveu o traseiro contra seu regaço.

         A porta se abriu de par em par. Ali estava a senhora Bug, redonda e desalinhada como uma bola de palha arrastada pelo vento. Jamie sorriu ao vê-la. depois de ajudar ao Claire, ele também desmontou.

-Tudo está bem, tudo está bem, e você senhor?- A mulher o tranqüilizou antes de que suas botas tocassem terra.

         Levava uma taça de estanho em uma mão e um pano na outra. Não deixou de lustrá-la nem um instante, nem sequer ao apresentar a cara para aceitar o beijo do Jamie na bochecha murcha. Sem esperar resposta, ficou nas pontas dos pés para beijar ao Claire na bochecha, radiante.        

-OH, que maravilha que esteja em casa, senhora!, você e o senhor, e já tenho o jantar preparado, de modo que não terá que incomodar-se nada, senhora, mas passem, passem e tirem-se essa roupa suja, que eu mandarei ao velho Arch ao porão a procurar um pouco de licor e logo…

         Gideon, impaciente, empurrou-lhe o cotovelo com o focinho.

-Ah, sim!- disse ele, recordando suas obrigações-. Vêem, condenado animal.

         Quando o cavalo e a égua estiveram desensillados, escovados e comendo, Claire já tinha conseguido escapar da senhora Bug; ao retornar do estábulo, Jamie viu que a porta da casa se abria de par em par e Claire, com cara de culpado, saía olhando para trás, como se temesse que a perseguissem.

         Aonde ia? Sem vê-lo, partiu precipitadamente para a esquina oposta da casa, desaparecendo em uma revoada de saias. Ele a seguiu com curiosidade.

         Claro, tinha visto sua consulta e agora, antes de que obscurecesse de tudo, queria ver seu pomar; ele a divisou um instante, recortada contra o céu, na costa que havia detrás da casa. A brisa noturna lhe trouxe o aroma acre da letrina distante, sugiriendo que logo seria necessário ocupar-se dela. relaxou-se ao pensar nos novos arrendatários; escavar uma letrina nova seria a tarefa mais apropriada para os moços do Chisholm, os dois maiores.

         Ele tinha cavado essa com o Ian, quando chegaram à Colina. Deus!, como sentia saudades ao guri…

-Ao Mhicheal bheanaichte- murmurou. “ San Miguel, protege-o” Embora apreciava ao Mackenzie, se tivesse podido escolher não teria trocado ao Ian por esse homem. Mas como foi decisão do Ian, não havia nada mais que dizer a respeito.

         separando-se de si a dor de havê-lo perdido, afrouxou-se as calças para urinar detrás de uma árvore. Se o visse, Claire faria algum desses comentários, supostamente engenhosos, sobre os cães e os lobos, que marcavam seu território quando retornavam a ele. “ Nada disso- replicou-lhe mentalmente-; para que subir a colina, para piorar as coisas na letrina?” Mas, pensando-o bem, esse era seu território, e se lhe desejava muito mijar nele…Se acomodou as roupas, já mais tranqüilo.

         Ao levantar a cabeça, viu-a baixar do pomar com o avental cheio de cenouras e nabos. Uma rajada de vento formou redemoinhos a seu redor as últimas folhas da castañeda, em uma dança faiscante de luz.

         Levado por um súbito impulso, Jamie entrou entre as árvores, e começou a procurar algo. Normalmente só emprestava atenção a aquelas novelo que fossem comestíveis para cavalos ou seres humanos, ou que fossem suficientemente duras para fazer pranchas ou vigas ou um obstáculo para o passo. Não obstante, uma vez que começou a procurar com critério estético se surpreendeu ante a variedade que havia, assim recolheu um punhado de cada uma delas.

         Bem a tempo: ela, perdida em seus pensamentos, vinha rodeando a esquina da casa. Passou ao meio metro dele, sem vê-lo.

-Sorcha- chamou Jamie, muito fico.

         Ela se voltou, entreabrindo os olhos contra os raios do sol poente, mas os alargou, dourados, ante a surpresa de vê-lo.

-OH!- Claire contemplou os ramos e espigas, depois o olhou a ele. Tremeram-lhe os lábios, como se estivesse a ponto de chorar ou rir, sem decidir-se entre as duas coisas. Logo aceitou as novelo, pequenos e frios os dedos que roçaram sua mão-. OH, Jamie!, são preciosas.

         ficou nas pontas dos pés para beijá-lo, quente e salobre. Ele queria mais, mas ela já ia pressurosa para a casa, com aquelas insignificantes novelo apertadas contra o peito como se fossem de ouro.

         Jamie se sentiu agradavelmente tolo, e bobamente agradado consigo mesmo. Ainda tinha na boca o sabor do Claire.

-Sorcha- sussurrou.

         Caiu então na conta de que assim a tinha chamado um momento antes. Isso sim que era estranho; não era estranho que ela se surpreendeu: era seu nome em gaélico, mas ele estranha vez o utilizava. Gostava de sua condição de estranha, de inglesa. Era seu Claire, seu Sassenach.

         Entretanto, ao passar junto a ele, foi Sorcha. Não significava só “ clara” , mas também “ luz” .

         Aspirou profundamente, satisfeito.

         de repente se sentiu faminto, tanto de comida como dela, mas não se deu pressa por entrar. Algumas classes de fome são doces por si só; a esperança de satisfazê-la é tão grata como a saciedade.

         Ruído de cascos e vozes; por fim chegava o resto. Sentiu a súbita urgência de conservar um momento mais sua aprazível solidão, mas já era muito tarde; em poucos segundos se viu rodeado pela confusão: gritaria de meninos entusiastas, chamadas de mães inquietas, a bem-vinda aos recém chegados, o agitação e a pressa ao descarregar, desenganchar as mulas e os cavalos, lhes dar água e penso…

         Mas em meio dessa Babel se movia como se ainda estivesse sozinho, aprazível e em silencio sob o sol poente. Estava em casa.

 

         Na temprana queda da noite, a casa se erguia branca como um espírito benévolo que custodiasse à Colina. A luz emanava por todas suas portas e janelas; do interior chegavam risadas.

         Voltou-se para perceber um movimento na escuridão; era sua filha, que vinha do estábulo com um cubo de leite fresca na mão. Ela se deteve junto a ele, contemplando a casa.

-É bonito estar em casa, verdade?- disse brandamente.

-Sim- respondeu ele.

         Olharam-se, sorridentes. Logo ela se inclinou para diante para observá-lo melhor, e o girou para pô-lo frente à luz da janela. Um par de rugas lhe franziu a pele entre as sobrancelhas.

-O que é isso?- perguntou, sacudindo sua jaqueta.

         Uma lustrosa folha escarlate caiu flutuando até o chão. Ao vê-la ela elevou as sobrancelhas.

-Será melhor que vás lavar te, papai- disse-. estiveste onde a hera venenosa. -me poderia haver isso dito, Sassenach.- Jamie jogou um olhar furioso à mesa onde eu tinha posto seu ramalhete, em uma taça de água, perto da janela do dormitório. O vermelho manchado e intenso da hera venenosa refulgia até na penumbra da luz que lançava o fogo-. E além disso poderia te desfazer dela. Acaso quer te burlar de mim?

-Não, absolutamente- assegurei, sorridente, enquanto pendurava meu avental do cabide e desatava os cordões de meu vestido-. Mas se lhe houvesse isso dito quando me entregou isso, me teria tirado isso. É o único ramo que me deste em sua vida e, como não acredito que me dê de presente outro, tenho a intenção de conservá-lo.

         Ele lançou um bufo e se sentou na cama para tirá-los meias três-quartos. Já quase se despiu; a luz do fogo resplandecia sobre seus ombros. arranhou-se a cara interior da boneca, embora eu lhe havia dito que era psicosomático, que não tinha sinais de sarpullido.

-Nunca voltaste para casa com prurido de hera venenosa- comentei-, embora seguro que, com todo o tempo que passa nos bosques e nos semeados, mais de uma vez a encontraste. Acredito que é imune a ela. Há pessoas assim, sabe?

-De verá?- Isso pareceu lhe interessar, embora não deixou de arranhar-se-. Como você e Brianna, que alguma vez adoecem?

-Algo assim, mas por diferentes motivos.

         Tirei-me o vestido, bastante imundo depois de uma semana de viagem. Logo desatei o espartilho, com um suspiro de alívio. Continuando, fui ver se a caçarola de água que tinha posto sobre as brasas já estava quente; não pensava me deitar sem me haver tirado a sujeira da viagem, mas tampouco queria dar um espetáculo público ao fazê-lo.

         A água rielaba de calor com diminutas borbulhas aderidas ao interior da panela. Introduzi um dedo, só para comprovar como estava: quente e deliciosa. depois de verter um pouco na bacia, deixei o resto ali para que se mantivera quente.

         Inclinei-me para revolver nas alforjas que ele tinha subido e deixado junto à porta. Na congregação alguém me tinha dado uma esponja das de verdade, importada das Índias, como pagamento por lhe extrair um dente infectado. Era perfeita para um banho rápido.

-E coisas como a malária, o que tem Lizzie…

-Não as tinha curado? Interrompeu Jamie, franzindo o sobrecenho.

         Meneei a cabeça em um gesto de pena.

-Não, padecerá-a sempre. Só posso tratar de que os ataque não sejam tão graves nem tão freqüentes. Mas a leva no sangue, compreende?

         Ele se tirou a cinta com que se atava o cabelo e sacudiu as mechas avermelhadas, deixando a juba solta.

-Não tem sentido- objetou, se levantando para desabotoá-los calças-. Há-me dito que, se uma pessoa teve o sarampo e sobreviveu, não pode voltar a contrai-lo, porque permanece em seu sangue. Por isso eu não posso adoecer de varíola nem de sarampo, porque os tive quando menino e estão em meu sangue.

-Bom, não é exatamente igual- disse, sem maior convicção. depois de tão comprido trajeto não me sentia em condições de explicar as diferenças entre imunidade ativa, passiva ou adquirida, anticorpos e infecções parasitárias-. Falando de cavalgar…

-Quem fala de cavalgar?- disse Jamie, com cara de surpresa.

-Ninguém, mas eu estava pensando nisso.- Descartei com esse gesto detalhe sem importância-. O que pensa fazer com o Gideon?

-OH…!- ele deixou cair as calças ao chão e se desperezó, pensativo-. Não acredito poder me permitir o luxo de matar o de um disparo. E é um tipejo vigoroso. Para começar, vou cortar o. Talvez isso o assente um pouco.

-Cortá-lo? Ah!, quer dizer castrá-lo. Sim, suponho que isso o faria mais obediente, embora me parece um pouco drástico.- Vacilei um momento, relutante-. Quer que o eu faça?

         Ele me cravou um olhar de surpresa. Logo estalou em uma gargalhada.

-Não, Sassenach. Não acredito que cortar a um potro de dezoito palmos seja trabalho para uma mulher, embora seja cirurgiã. Não se requer uma mão suave, não crie?- Alegrou-me ouvi-lo.

         Deixei que a camisa se deslizará desde meus ombros até a cintura. O fogo tinha enfraquecido um pouco o ar glacial da habitação, mas ainda estava o bastante frio como para que me arrepiasse a pele dos peitos e os braços. Jamie se tirou o cinturão para tirar com cuidado tudo o que tinha pendurado dele. depois de pôr tudo no pequeno escritório, mostrou-me a cigarreira elevando uma sobrancelha com ar inquisitivo.

         Assenti com entusiasmo. Ele se girou para procurar uma taça. Com tanta gente na casa com todas seus pertences, nossas alforjas tinham sido levadas acima e jogadas no interior de nosso quarto.

         Jamie parecia uma esponja, refleti, vendo-o ir de um lado a outro completamente nu e despreocupado. Absorvia-o tudo, e parecia capaz de entender-se com tudo o que lhe tocasse em sorte, por estranho que fora a sua experiência.

         Em geral, eu não me arrependia de nada. Tinha escolhido estar ali, e ali queria estar. Entretanto, de vez em quando surgiam pequenezes, como nossa conversação sobre a imunidade, que me faziam compreender quanto tinha perdido do que tinha, pelo que era. Não podia negar que algumas de minhas debilidades tinham sido superadas. E às vezes ao pensá-lo sentia um vazio dentro de mim.

         Jamie se agachou para rebuscar em uma das alforjas. Seu traseiro nu, voltado fazia mim com total inocência, ajudou-me a limpar o momentâneo desassossego. Realmente tinha formas grácis, arredondadas pelos músculos e gratamente coberta por um pêlo rojo-dourado que captava a luz do fogo e as velas. As colunas largas e claras das coxas emolduravam a sombra do escroto, escuro e apenas visível entre eles.

         Por fim tinha encontrado uma taça, que encheu até a metade. Ao entregar me apartou isso os olhos do líquido escuro, surpreso ao descobrir que o estava observando.

-O que acontece?- perguntou-. Há algum problema, Sassenach?

-Não- disse. Mas minha voz deveu sonar dúbia, pois ele contraiu as sobrancelhas-. Não- repeti com mais firmeza. E aceitei a taça com um sorriso, elevando-a apenas em um gesto de agradecimento-. Só estava pensando.

         Um sorriso de resposta apareceu os lábios.

-Sim? Pois não convém que pense muito a estas horas da noite, Sassenach. Pode te provocar pesadelos.

-Atreveria-me a dizer que tem razão.- Bebi um sorvo e me surpreendi ao descobrir que era vinho; muito bom, além disso-. Onde o conseguiu?

-Do pai Kenneth. É vinho sacramental, sem consagrar, é obvio. Disse-me que os homens do delegado o levariam; É preferiu que eu me trouxesse isso.

         Ao mencionar ao padre, uma leve sombra lhe cruzou a cara.

-Crie que sairá desta?- perguntei.

-Isso espero.- Ele se inquietou-. Adverti-lhe ao delegado que, se alguém maltratava ao pai, ele e seus homens teriam que responder por isso.

         Assenti em silêncio, bebendo a sorvos. Se Jamie se inteirava de que o pai Donahue tinha sofrido algum dano, o delegado não deixaria de pagar por isso. A idéia me tranqüilizou um pouco. Não era o melhor momento para fazer inimigos. E o delegado do condado do Orange não era bom inimigo.

         Ao levantar a vista me encontrei com os olhos do Jamie, fixos em mim, embora agora com profunda complacência.

-Ultimamente te está pondo formosa, Sassenach- observou, inclinando a cabeça a um lado.

-Diz-o por me adular- reprovei com um olhar frio, enquanto agarrava a esponja.

-Deve ter aumentado seis ou sete quilogramas da primavera- disse, me inspecionando com ar de aprovação-. foi um bom verão para a engorda, não?

         Dava-me a volta para lhe arrojar a esponja à cabeça, e É a apanhou sonriendo.

-Nestas últimas semanas estiveste tão abrigada que não me tinha precavido dessas novas redondeces. Faz pelo menos um mês que não te vejo nua.

         Seguia me avaliando como se eu fora um bom candidato para ganhar uma medalha na exposição de porcos.

-as desfrute, avermelhando de chateio-. Talvez não volte às ver em algum tempo!

         E recolhi bruscamente a parte superior da camisa, para cobrir meus peitos, inegavelmente engrossados. Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso por meu tom.

-Zangaste-te comigo, Sassenach?

-Claro que não, repus-. De onde tiraste essa idéia?

         Ele sorriu, esfregando o peito com a esponja, enquanto me percorria com os olhos. Seus bicos da mamadeira, encolhidas pelo frio, recortavam-se rígidas e escuras entre o pêlo avermelhado e o brilho úmido de sua pele.

-Eu gosto de gorda, Sassenach- disse pelo baixo-. Gorda e suculenta como uma gallinita roliça. Eu gosto de muito assim.

         Poderia ter tomado aquilo como um simples intento de cobrir uma patacoada, não ser pelo fato de que os homens nus vêm convenientemente equipados com detectores sexuais de mentiras. Era certo: gostava de muito.

-OH!- exclamei. E baixei a camisa com bastante lentidão-. Pois…

         Ele levantou o queixo. Vacilei um momento, mas logo me levantei para deixar que a camisa caísse ao chão, onde se uniu a suas calças. Depois, agarrei a esponja que ele tinha na mão.

-Quero…né…terminar de me lavar, se me permitir isso- murmurei.

         Voltei-lhe as costas, apoiando um pé no tamborete para me lavar; detrás de mim se ouviu um alentador ronrono de apreciação. Quando acabei e me dava a volta, Jamie seguia me observando, embora ainda se esfregava a boneca, levemente carrancudo.

-E você, lavaste-te?- perguntei- . Embora já não te incomode, se ainda fica na pele um pouco de azeite da hera venenosa, pode deixar restos no que toque…e eu não sou imune a ela.

-Esfreguei-me as mãos com sabão- assegurou-me, apoiando-me isso nos ombros a modo ilustrativo. Não era de sentir saudades que se arranhasse; suas mãos estavam ásperas e gretadas.

Inclinei a cabeça para lhe beijar os nódulos. Logo abri a cajita onde guardava minhas coisas pessoais, em busca do bálsamo para a pele, feito de azeite de noz, cera de abelhas e lanolina desencardida; era muito suavizante e tinha um verde aroma a essências de camomila, cânfora, milenrama e flores de saúco.

         Agarrei um poquito com a unha do polegar e o esfreguei entre minhas mãos; embora originalmente era quase sólido, liquidificava-se agradavelmente ao esquentar-se.

-Vêem- disse-lhe.

         E pus uma de suas mãos entre as minhas, esfregando para que o ungüento penetrasse nas gretas de seus nódulos, massageando sua Palmas calejadas.

-O ramalhete é encantador, Jamie- disse-lhe, assinalando com a cabeça o molho de novelo posto na taça-. Mas, como te ocorreu fazê-lo?

         Removeu-se um pouco, obviamente incômodo.

-Pois…- Apartou a vista-. É que…quero dizer…Tinha uma tolice para te dar de presente, mas a perdi. Mas como te pareceu muito tenro que Roger agarrasse umas quantas ervas para a Brianna…- Interrompeu-se, murmurando pelo sob algo que soou a “ ffrnn!” .

         Senti um forte desejo de rir, mas o que fiz foi lhe agarrar a mão para lhe dar um beijo leve em seus nódulos. Parecia sobressaltado, mas agradado. Com seu dedo polegar na palma de minha mão, acariciou o bordo de uma ampola ao meio cicatrizar, deixada por um hervidor quente.

-Ouça, Sassenach, você também necessita um pouco disto. me permita.

         E se inclinou para colher com um dedo um pouco do ungüento verde. Logo encerrou minha mão na sua, quente e ainda escorregadia pela mescla de azeite e cera de abelhas.

         Fez uma pausa para me beijar ligeiramente. As chamas vaiavam no lar e a luz do fogo piscava nas paredes caiadas. Era como estar juntos e sós no fundo do mar.

-Roger não o fez por puro romantismo, sabe?- comentei-. Ou talvez sim. Depende de como queira olhá-lo.

         Jamie pareceu intrigado. Nossos dedos se entreteceram, movendo-se apenas. Suspirei de prazer.

-Sim?

-Bree me perguntou sobre o controle de embaraço. Disse-lhe que métodos existem agora; francamente não são muito bons, embora sim melhores que nada. Mas a anciã avó Bacon me deu algumas sementes; conforme diz, as índias as usam como anticoncepcionais, e supostamente são muito efetivas.

         A cara do Jamie sofreu um trocou do mais cômico: de sonolento prazer a olhos de estupefação.

-Anti com o que? Ela… quer dizer que…essas vulgares sementes…?

-Pois sim. Ao menos acredito que podem ajudar a evitar o embaraço.

-Hummm.

         O movimento dos dedos se deteve; juntou as sobrancelhas em um gesto mais preocupado que de desaprovação, ou assim me pareceu. Logo continuou me massageando as mãos, as envolvendo em seu punho, muito maior, com um movimento decidido.

-Crie que…?- Mas se interrompeu.

-O que?

-Humm… É que… Não te parece algo estranho, Sassenach, que uma jovem recém casado esteja pensando em algo assim?

-Não, não me parece isso- disse com bastante aspereza-. A meu modo de ver, é muito sensato. E eles não são tão recém casados. estiveram…Quer dizer, já têm um filho.

         Ele dilatou as fossas nasais em mudo desacordo.

-É ela a que tem um filho- replicou-. A isso referia, Sassenach. Parece-me que, quando uma jovem se leva bem com seu marido, o primeiro que pensa não é precisamente como fazer para não lhe dar um filho. Está segura de que tudo está bem entre eles?

         Fiz uma pausa para estudar a pergunta.

-Acredito que sim- disse ao fim, lentamente-. Não esqueça, Jamie, que Bree vem de uma época em que as mulheres podem decidir quando terão um filho e se querem o ter ou não, com bastante segurança- A boca larga se franziu em um gesto reflexivo. Notei que lutava com a idéia, totalmente contrária a sua própria experiência.

-De maneira que assim são as coisas?- perguntou ao fim-. A mulher pode decidir que sim ou que não, sem que o homem tenha arte nem parte?

         Sua voz refletia assombro e desaprovação. Ri um pouco.

-Claro, como Mackenzie também é dessa época, não lhe resultará estranho.

-Ele mesmo recolheu as ervas- assinalei.

-Assim foi ele.- A ruga ficou entre suas sobrancelhas, mas afrouxou um pouco o cenho.

-Além disso, não é tão estranho que uma jovem pense algo assim. Marsali, antes de casar-se com o Fergus, também veio a me perguntar o mesmo.

-Seriamente?- Arqueou uma sobrancelha-. E você não o disse?

-Por seu posto que sim!

-Pois não lhe deu bom resultado, não?

         Germain tinha nascido aproximadamente dez meses depois das bodas; Marsali voltou a ficar grávida aos poucos dias de desmamá-lo. Senti que o rubor subia às bochechas.

-Não há nada infalível, nem sequer os métodos modernos. Além disso, nada dá resultado se não se usa.

         Em realidade, Marsali só se interessou pelos anticoncepcionais, não porque não queria ter filhos, mas sim porque temia que o embaraço perturbasse a intimidade de sua relação com o Fergus. “ Quando chegarmos à parte da franga, quero desfrutá-la” : essas tinham sido suas palavras naquela ocasião. Sorri ao as recordar.

         Uma das mãos do Jamie seguia entrelaçada com a minha; a outra abandonou meus dedos para procurar outro lugar…muito levemente.

-OH!- disse. Começava a perder o fio de minhas idéias.

-Pílulas, disse- Sua cara estava muito perto; os olhos nublados pelos pensamentos-. É assim como se faz?

-Hum…OH…! Sim.

-Você não te trouxe nada disso- observou-. Ao retornar.

         Aspirei profundamente e deixei escapar o ar. Sentia que começava a me dissolver.

-Não-disse, um pouco deprimida.

         Ele fez uma pausa, posando a mão ligeira,

-por que?- perguntou em voz baixa.

-Bom…em realidade…pensei…É preciso tomar sempre. E não podia trazer tantas. Há algo definitivo, uma pequena operação. É bastante simples e te deixa permanentemente…estéril.

         Jamie permanecia muito quieto, a vista encurvada.

-Pelo amor de Deus, Claire- rogou ao fim, em voz fica-, me diga que o fez.    

         Aspirei fundo e lhe estreitei a mão; meus dedos escorregaram um poquito.

-Se o tivesse feito, Jamie- disse com suavidade-, haveria-lhe isso dito.- Voltei a tragar saliva-. Você…o tivesse querido?

         Ainda me estreitava uma mão. A outra se apartou para me tocar as costas e me estreitou muito brandamente contra ele. Senti sua pele quente contra a minha.

-Já tenho suficientes filhos- murmurou-. Mas só tenho uma vida. E essa é você, mo chridhe.

         Elevei uma mão para lhe tocar a cara. Estava sulcada de cansaço, áspera de barba enchente.

         Eu o tinha pensado, sim; estive muito perto de pedir a um cirurgião amigo que me esterilizasse. O sangue-frio e a mente clara assim o aconselhavam; não tinha sentido correr riscos. Entretanto…não havia segurança de que eu sobrevivesse à viagem, de que pudesse chegar à época e ao lugar corretos, de que voltasse a encontrá-lo. Menos possível ainda era conceber outra vez a minha idade.

         Toquei-o apenas; ele deixou escapar um som grave e apoiou a cara contra meu cabelo, me estreitando com força. Nossos atos de amor eram sempre perigo e promessa: se nesses momentos ele tinha minha vida em suas mãos, eu tinha sua alma e sabia.

-Pensei…, pensei que jamais veria a Brianna. E não sabia o do Willie. Não era justo te privar da possibilidade de ter outro filho. Sem lhe dizer isso não.

         “ É sangue de meu sangue- havia-lhe dito- , osso de meus ossos.” Era certo. E sempre seria assim, embora disso não surgissem filhos.

-Não quero mais filhos- sussurrou-. Quero a ti.

         Envolvi-o com minha mão, escorregadia e com aroma a verdor, e dava um passo atrás para atrai-lo comigo para a cama. Logo que tive consciência para apagar a vela.

-Não se preocupe pelo Bree- disse-lhe, buscando-o para tocá-lo, enquanto se elevava sobre mim, negro contra a luz do fogo-. Roger recolheu as ervas para ela. Sabe o que ela quer.

         Ele soltou um fundo suspiro, um fôlego de risada que se entupiu em sua garganta e acabou em um pequeno grunhido de prazer e satisfação, enquanto se deslizava entre minhas pernas, bem lubrificada e disposta.

-Eu também sei o que quero- disse, sufocando a voz em meu cabelo-. Amanhã te cortarei outro ramalhete.

 

         Drogada pela fadiga, lânguida de amor e adormecida pela comodidade de uma cama branda e poda, dormi como um tronco.

         Para o amanhecer comecei a sonhar; foram sonhos agradáveis, de contato e cor, sem forma. Umas mãos pequenas me tocavam o cabelo, apalpavam-me a cara. Girei-me de flanco, semiconsciente, sonhando que amamentava a um menino. Uns dedos suaves, diminutos, tocavam-me o peito. Levantei a mão para abranger a cabeça do menino. Mordeu-me.

         Imediatamente me incorporei na cama com um grito. Uma silhueta cinza cruzou correndo o edredom e desapareceu pelos pés da cama. Chiei outra vez, mais forte ainda.

         Jamie saltou do leito, rodou pelo chão e acabou de pé, com os punhos dispostos.

-O que?- interpelou, percorrendo o quarto com um olhar selvagem-. Quem? O que foi?

-Um rato!- disse, assinalando com um dedo trêmulo o ponto onde a silhueta cinza tinha desaparecido, no oco entre os pés da cama e a parede.

-Ah…!- Relaxou os ombros, esfregando-a cara e o cabelo com a mão, piscando-. Um rato.

-Um rato em nossa cama- precisei, nada disposta a considerar o fato com o menor grau de calma-. E me mordeu!- Inspecionei com mais atenção o peito ferido: não havia sangue; só um par de diminutas perfurações que ardiam um pouco. Mas ao pensar na possibilidade de contrair a raiva me esfriou o sangue.

-Não se preocupe, Sassenach. Já me encarregarei dela.

         Agarrou o atiçador do lar e avançou decididamente para os pés da cama. Eu me pus de joelhos, lista para saltar em caso necessário. Jamie elevou o atiçador e apartou a parte pendente da colcha.

         Descarregou o atiçador com grande força…mas o apartou a um lado, estrelando-o contra a parede.

-O que?- perguntei.

-O que?- repetiu ele, mas em tom de incredulidade. agachou-se um pouco mais, entortando os olhos na penumbra. Logo se pôs-se a rir. Deixando cair o atiçador, ficou de cuclillas no chão para estirar lentamente o braço entre os pés da cama e o muro, emitindo entre dentes um pequeno gorjeio. parecia-se com o dos pássaros quando comem em algum matagal longínquo.

-Está lhe falando com o rato?- Comecei a engatinhar para ele, mas com um movimento de cabeça me indicou que retornasse, sem deixar de emitir aquele gorjeio.

-Aqui está seu rato, Sassenach- disse, depositando uma bola de cabelo cinza na colcha.

         Dois enormes olhos, de cor verde clara, cravaram-se em mim sem piscar.

-me valha Deus!- disse-. De onde vieste?

-Esse é o presente que pensava te fazer, Sassenach- disse Jamie, com imensa satisfação-. Para que mantenha seu consultório livre de animálias.

-Serão das pequenas- observei, examinando meu novo presente-. Acredito que uma barata grande poderia levar-lhe a sua toca. E não quero nem pensar se se tratasse de um camundongo. É macho?

-Crescerá- assegurou-me Jamie-. Lhe olhe as patas.

         O gato se pôs de barriga para cima e estava imitando a um inseto morto, com as patas no ar. Suas garras resultavam enormes em contraste com o corpo miúdo. Toquei as minúsculas almofadinhas, de rosa imaculado na espessura de suave pelagem cinza. O gatinho se retorceu em êxtase.

         Alguém chamou discretamente à porta. Enquanto me cobria apressadamente o peito com o lençol, a porta se abriu, e vi aparecê-la cabeça do senhor Wemyss, com o cabelo rígido como palha de trigo.

-Né… tudo em ordem, senhor?- perguntou, com uma pálpebra míope-. Minha menina me despertou, dizendo que acreditava ter ouvido um grito. E logo ouvimos um golpe, como se…- Seus olhos, apartando-se apressadamente de mim, fixaram-se na marca que o atiçador tinha deixado no muro caiado.

-Sim, tudo está bem, Joseph- assegurou-lhe Jamie-. Era só um gatinho.

-Ah, sim?- O senhor Wemyss olhou para a cama entreabrindo os olhos. Sua cara fraca se dividiu em um sorriso ao ver o vulto de pelagem cinza-. Um bichano? Homem, será-nos útil na cozinha, sem dúvida.

-Sim. E falando de cozinhas, Joseph, seria possível que sua filha subisse uma tigela de nata para nossa hóspede?

         O homem fez um gesto afirmativo e desapareceu, dedicando ao gatinho um último sorriso paternal.

         Jamie se desperezó com um bocejo e se esfregou vigorosamente o cabelo, que estava mais revolto do habitual. Observei-o com apreciação puramente estética.

-Parece um mamute lanzudo- disse.

-Sim? E o que é um mamute, além de ser algo grande?

-uma espécie de elefante pré-histórico. Esses animais de tromba larga, sabe?

         Ele entorto os olhos para olhar o corpo em toda sua longitude; logo me olhou com ar intrigado.

-Vá, obrigado pelo completo, Sassenach- disse-. De maneira que um mamute…

         Projetou os braços para cima e voltou a estirar-se, arqueando despreocupadamente as costas; desse modo realçou qualquer parecido incidental que pudesse existir entre a anatomia matinal masculina e o adorno facial dos paquidermes.

-Não me referia precisamente a isso- ri-. Deixa de te exibir. Lizzie entrará em qualquer momento. Ponha camisa ou volta para a cama.

         Um ruído de pegadas no patamar fez que se mergulhara debaixo do edredom; o gatinho, assustado, brincou de correr pelo lençol. Mas quem trazia a tigela de nata resultou ser o senhor Wemyss em pessoa, para lhe evitar a sua filha a possível visão de um homem em seu estado natural.

         Desenredei ao gatinho de meu cabelo, que se tinha refugiado ali, e o pus no chão, junto à terrina de nata. Provavelmente não tinha visto algo assim em sua vida, mas bastou com o aroma; poucos segundos depois tinha o focinho fundo até os bigodes e lambia com entusiasmo.

-Como ronrona!- comentou Jamie, aprobador-. Ouço-o daqui.

-É um encanto. De onde o tirou?- Me acurruqué contra o corpo do Jamie, desfrutando de seu calor; o fogo quase se apagou e o ambiente da habitação era gélido, e acre de cinzas.

-Encontrei-o no bosque.- depois de um grande bocejo, Jamie se relaxou, apoiando a cabeça em meu ombro para contemplar ao animal, que se tinha abandonado a um êxtase de gulodice-. Acreditava havê-lo perdido quando Gideon se desbocou. Suponho que se escondeu em uma das alforjas.

         Jamie suspirou, me esquentando o ombro com seu fôlego.

-Uma semana, acredito- disse pelo baixo.

-Para que tenha que partir?

-Sim. É o tempo que necessito para deixar aqui ordenadas as coisas e falar com os homens da Colina. Logo, uma semana para cruzar o território entre a Linha do Tratado e Drunkar’s Creek. Chamarei recrutamento e os trarei aqui para adestrá-los. Assim, no caso de que Tryon convoque a tropa…

         Fiquei calada um instante, com uma mão envolvendo a do Jamie contra meu peito.

-Se a convoca irei com vós.

         O me beijou a nuca.

-Quer vir?- perguntou-. Não acredito que seja necessário. Nem você nem Bree recordam que tenha havido combates aqui por estas datas.

-Isso significa só que, de acontecer algo, não será uma grande batalha- repliquei-. Estas colônias são grandes, Jamie. E em duzentos anos passam muitas coisas. É lógico que não saibamos dos conflitos menores, sobre todos dos que aconteceram em um lugar diferente. Em Boston, em troca…

         Apertei-lhe a mão com um suspiro.

-Sim, suponho que é certo- disse ele-. Mesmo assim não acredito que isto chegue a nada. Suponho que Tryon só quer assustar aos reguladores para que se comportem bem.

         Isso era o mais provável. Mesmo assim eu recordava bem o velho dito: “ O homem propõe e Deus dispõe.” Fora Deus ou William Tryon o que estava a cargo, só o céu sabia o que podia acontecer.

-É uma hipótese ou uma esperança?- perguntei-lhe.

         Ele estirou as pernas com um suspiro e me rodeou a cintura.

-Ambas as coisas- admitiu-. Sobre tudo, uma esperança. Reza porque assim seja. Mas também é o que penso.

         O gatinho, depois de esvaziar a tigela, sentou-se e retirou de seus bigodes os restos daquela deliciosa coisa branca; logo caminhou para a cama, com os laterais visivelmente avultados, e subiu de um salto. depois de acurrucarse contra mim, dormiu imediatamente.

        Talvez não dormia de tudo, pois eu percebia a pequena vibração de seu ronrono através da colcha.

-Que nome poderia lhe pôr?- perguntei-me em voz alta, tocando o extremo da cauda suave, arrepiada-. Mancha? Pompom? Nuvem?

-O que nomeie tão tolos- murmurou Jamie, com preguiçosa tolerância-. Assim chamam os bichanos em Boston? Ou na Inglaterra?

-Não. Nunca tive gatos- admiti-. Frank lhes tinha alergia; faziam-no espirrar. me sugira então um bom nome escocês para gato. Diarmuid? MacGillvray?

         Ele soprou de risada.

-Adso- disse. Chama-o Adso.

         Ele apoiou comodamente o queixo em meu ombro, contemplando ao gatinho dormido.

-Minha mãe tinha ou gatinho que se chamava Adso- disse, sem que eu o esperasse-. Um bichano cinza, muito parecido a este.

-Seriamente?- Estranha vez falava de sua mãe, que tinha morrido quando ele tinha oito anos.

-Sim, era um bom caçador. E queria muito a minha mãe; aos meninos não nos fazia casa.- A lembrança o fez sorrir-. Possivelmente porque Jenny o vestia com roupa de bebê e lhe dava de comer bolachas. E eu o deixei cair no lago do moinho, para ver se sabia nadar. Sabia, mas não gostou.

-Eu não o reprovaria- comentei, divertida-. Mas por que se chamava Adso? É o nome de algum santo?- Já estava habituada aos nomes peculiares dos Santos celtas, desde o Aodh a Dervorgilla. Mas nunca tinha ouvido falar de são Adso. Provavelmente fora o santo padroeiro dos ratos.

-Não, era um monge- corrigiu ele-. Minha mãe era muito culta. Estudou no Leoch, sabe?, junto com o Colum e Dougal; sabia ler grego e latim, um pouco de hebreu, francês e alemão. Certamente, no Lallybroch não tinha muitas oportunidades de ler, mas meu pai, com muito esforço, fazia trazer livros desde o Edimburgo e Paris.

         Alargou um braço por cima de meu corpo para tocar uma orelha sedosa, translúcida. O gatinho retorceu os bigodes, franzindo a cara como se fora a espirrar, mas não abriu os olhos. O ronrono continuou sem que tivesse minguado.

-Um de seus livros preferidos estava escrito por um austriaco, da cidade do Melk, e lhe gostou para o gatinho.

         O gato, ao entreabrir uma pálpebra, deixou ver uma ranhura verde, em resposta para ouvir o nome. Logo voltou a fechar-se e o ronrono se reatou.

-Bom, se não lhe incomoda, suponho que a mim tampouco- disse, resignada-. Será Adso.

 

                   Mais vale mau conhecido

         Uma semana depois, enquanto as mulheres nos dedicávamos à demolidora tarefa de lavar a roupa, a mula Clarence deixou ouvir seu clarinada, anunciando que se aproximavam visitas. Como cabia esperar, uma mula bago saía já de entre as árvores, seguida por uma gorda égua castanha a que levavam das rédeas. A mula agitou as orelhas, relinchando com entusiasmo em resposta à saudação do Clarence. me tampando os ouvidos com os dedos para bloquear esse alvoroço infernal, entreabri os olhos contra o fulgor do sol da tarde, tratando de distinguir ao cavaleiro montado na mula.

-Senhor Husband!- Corri a saudá-lo.

-você tenha bom dia, senhora Fraser!

         Hermon Husband fez uma breve inclinação a modo de saudação. Logo desmontou com um grunhido que refletia muitas horas na cadeira. Quando se endireitou, seus lábios se moveram sem emitir som algum no marco da barba; era qualquer e não dizia palavrões, ao menos em voz alta.

-Está seu marido em casa, senhora Fraser?

-Acabo de ver que se dirigia ao estábulo. Irei buscá-lo- gritei, por cima do relinchar constante das mulas, e assinalei a casa com um gesto-. Eu me ocuparei de seus animais.

         Ele me agradeceu isso com uma inclinação de cabeça e rodeou a casa, coxeando lentamente para a porta da cozinha. Notei que se movia com dor; logo que podia apoiar-se no pé esquerdo. Levaria muito tempo de viagem, provavelmente uma semana, quase sempre dormindo ao raso.

         Desensillé a mula, retirando no processo dois alforjas gastas, meio cheias de panfletos mau impressos e grosseiramente ilustrados. Fixei-me na ilustração com interesse; era uma gravura em madeira de uns reguladores indignados, desafiando com expressão justiceira a um grupo de funcionários, entre os quais havia uma figura achaparrada que identifiquei sem dificuldade: David Anstruther; embora não se mencionava seu nome o artista tinha captado com notável facilidade o parecido do delegado com um sapo venenoso. Acaso Husband se dedicava agora a repartir essa sujeira se porta em porta?

         Fui para o estábulo, uma cova de pouca profundidade que Jamie tinha fechado com uma grosa paliçada. Brianna dizia que era a sala de maternidade, posto que seus ocupantes habituais eram éguas, vacas ou cerdas a ponto de parir.

         Perguntei-me que traria para o Hermon Husband por aqui…e se o estariam seguindo. Era dono de uma granja e um pequeno moinho, ambos a dois dias de caminho da Colina; costa pensar que só tivesse feito a viagem pelo prazer de nossa companhia.

         Husband era um dos líderes da Regulação; mais de uma vez o tinham encarcerado pelos panfletos provocadores que imprimia e distribuía. Segundo minha notícias mais recentes, os quaisquer da zona o tinham excluído de suas reuniões, pois viam com maus olhos suas atividades, que lhes pareciam uma incitação à violência. Não lhes faltava razão, a julgar pelo material que eu tinha lido.

         A porta do estábulo estava aberta e deixava escapar um aroma agradavelmente fecundo a palha, esterco e calor animal, junto com uma corrente de palavras, também fecundas. Jamie, que não era qualquer, sim acreditava em palavras malsoantes e as estava usando profusamente, embora em gaélico, que tende mais a quão poético ao vulgar. As efusões desse momento se podiam traduzir, a grandes rasgos, como: “ Oxalá lhe retorçam as vísceras como serpentes e as tripas lhe estalem através das paredes da pança!O que a maldição dos corvos caia sobre ti, feto de uma estirpe de moscas de estercolero!” Ou algo pelo estilo.

-Com quem está falando?- perguntei-lhe, aparecendo a cabeça pela porta-. E qual é a maldição dos corvos?

         Pisquei na súbita penumbra; dele só vislumbrava uma sombra alta recortada contra os montões de feno claro acumulados contra a parede. Ele se voltou para me ouvir e caminhou para a luz da porta. Tinha estado acontecendo-os dedos pela cabeça; lhe tinham solto várias mechas de cabelo e tinha fibras de palha enganchadas neles.

-Tha negam na galladh torrach- disse, com um gesto feroz e um breve gesto para trás.

-Branca filha de p…! Essa condenada cerda tornou a fazê-lo!

         A grande cerda branca, embora dotada de excelente graxa e assombrosa capacidade reprodutiva, era também uma besta ardilosa que não tolerava o cativeiro. Quando fui entrar, derrubou-me ao chão em sua fuga para os espaços abertos.

 

                   Lições de tiro

Brianna jogou uma olhada por cima de seu ombro, sentindo-se culpado. A casa tinha desaparecido sob um manto amarelo de folhas de castanho, mas o pranto de seu filho lhe ressonava nos ouvidos.

Ao ver que olhava para trás, Roger enrugou o gesto embora sua voz soou ligeira.

         – Não lhe acontecerá nada. Já sabe que Lizzie e sua mãe o cuidarão bem.

         – Lizzie o mimará até malcriá-lo – reconheceu ela.

         Não gostava de abandoná-lo. Ainda tinha em sua cabeça, magnificados pela imaginação, os chiados de pânico do menino quando ela tentava desprender de sua camisa os deditos, para entregar-lhe a sua mãe; ainda via seu carita manchada de lágrimas, com expressão indignada ante a tração.

         Mas ao mesmo tempo, experimentava uma urgente necessidade de escapar. Não via o momento de tirar-se essas manecitas pegajosas da pele e fugir na manhã, livre como um dos gansos que voavam grasnando para o sul pelos passos da montanha.

         Disse-se, a contra gosto, que não sentiria tão culpado por havê-lo deixado se no fundo não o tivesse desejado tanto.

         – Estou segura de que estará bem. – Dizia-o mais para tranqüilizar-se que para o Roger–. É que…até agora nunca o tinha deixado durante tanto tempo.

         – Faz um dia precioso, não crie?

         A cara do Roger tinha perdido a expressão cautelosa. Ele também sorriu; seus olhos se suavizaram até um verde tão intenso e fresco como o musgo que formava densos leitos ao pé sombreado das árvores sob os quais passavam.

Estupendo – disse ele – Que bem sinta sair de casa! Verdade?

         Ela olhou, mas aquilo parecia ser uma simples asseveração, sem motivos ulteriores. Em vez de responder, fez um gesto afirmativo, elevando a cara para a brisa que vagava entre as píceas e os abetos. Um redemoinho de ferrugentas folhas de álamo caiu sobre eles, adhiriéndose pasajeramente ao tecido das calças e às médias de lã fina.

         – Espera um momento.

         Movida por um impulso, Bree se deteve para tirar o calçado de couro e as médias, e os colocou sem olhares na mochila que levava a ombro. Logo permaneceu imóvel, com os olhos fechados em êxtase, movendo os largos dedos descalços sobre um emplastro de musgo úmido.

         – Roger, o que deveria provar isto! É maravilhoso!

Ele arqueio uma sobrancelha, mas a obedeceu: deixou a arma (tinha-a pego ao sair e Bree o permitiu) e, descalçando-se e colocando-se detrás dela, deslizou cautelosamente pelo musgo um pé de comprimento ossos. Involuntariamente fechou os olhos, abrindo a boca em um “ Ah!” sem som.

         Súbitamente, ela se girou para beijá-lo. Roger abriu os olhos pela surpresa, mas era rápido de reflexos: lhe rodeando a cintura com o braço, beijou-a. Na lonjura se ouviu um débil grito. Talvez era o pranto de um bebê, talvez só um corvo longínquo, mas a cabeça do Bree girou para o som, como a agulha de uma bússola que apontasse fielmente para o norte.

         O momento se rompeu. Roger deu um passo atrás, soltando-a.

         – Quer que retornemos? – perguntou, resignado.

         Ela negou com a cabeça, com os dentes apertados.

         – Não. Mas nos afastemos um pouco mais da casa, quer? Não convém incomodá-los com o ruído. Dos disparos, quero dizer.

         Ele sorriu, enquanto Bree sentia que o sangue lhe ardia na cara. Não, não podia fingir que não se deu conta de que existia mais de um motivo para essa expedição privada.

         – Claro, o dos disparos…–disse ele, agachando-se para recolher os meias três-quartos e os sapatos–. Vá.

         Ela não quis calçar-se, mas aproveitou a oportunidade para agarrar a arma. Não é que não confiará nele, embora Roger admitia não ter disparado nunca uma arma aquela cone, mas sim gostava da sensação de levá-la.

         – vais caminhar descalça? – Roger jogou um olhar inquisitivo a seus pés; logo, à montanha, onde um impreciso caminho serpenteava entre sarças e ramos quedas.

         – Só durante um momento – lhe assegurou ela–.Quando era pequena ia sempre descalça. Papai…Frank…nos levava todos os verões à montanha: às Brancas ou aos Adirondacks. Passada uma semana, a planta de meus pés parecia de couro. Teria podido caminhar sobre brasas sem sentir nada.

         – Sim, também eu–disse ele, sorridente. E guardou seus sapatos. Logo assinalou com um gesto o vago atalho que se abria passo entre a maleza e as salientes graníticas meio coveiras–.Calro que caminhar à borda do Ness ou pelo guijarral do Firth era um pouco mais fácil que andar por aqui, apesar das pedras.

         – É certo– reconheceu ela, olhando-se ceñudamente seus pés–.Te puseste a vacina antitetânica recentemente? Se por acaso pisa um pouco afiado e te corta?

         Ele já ia escalando diante, apoiando o pé com cautela.

         – antes de passar através das pedras me pus todas as vacine existentes–assegurou–. Tifo, cólera, dengue, de tudo. Seguro que o tétanos estava incluído.

         – Dengue? Eu cria que me tinha vacinado de tudo, mas contra isso não. –Afundando os pois na fresca palhinha do pasto seco, deu vários passos para alcançá-lo–. Não acredito que aqui seja necessário.

         O atalho rodeava a curva levantada de um ribazo coberto de erva amarelada, e desaparecia sob um maciço de discos escuros. Ele apartou as pesados ramos para deixá-la passar. Bree se agachou para a perfumada penumbra, sustentando o mosquete com cuidado em ambas as mãos.

         – É que não sabia com certeza aonde teria que ir, compreende? –A voz do Roger chegou desde detrás dela, despreocupada, apagada pelo ar sombreado sob as árvores–. Se se tratasse das cidades costeiras ou as Índias Ocidentais, ali havia…há –se corrigiu automaticamente–muitas enfermidades africanas gastas pelos navios negreiros. Pareceu-me melhor estar preparado.

         Ela aproveitou o escarpado do terreno para não responder, mas a horrorizava (e ao mesmo tempo lhe provocava um prazer vergonhoso) descobrir até onde estava disposto a chegar com tal de ir atrás dela.

         O estou acostumado a estava talher pelo pardo matizado da pinaza; mas estava tão molhada que não rangia nem cravava os pés. Sentiu-a esponjosa, fresca e agradável baixo ela; por sua elasticidade, era como se a massa de agulhas murchas medisse ao menos trinta centímetros de profundidade.

         –Ai! –Roger, menos afortunado, tinha escorregado ao pisar em um caqui podre; logo que conseguiu sujeitar-se a um arbusto de acebo, que o cravou com suas folhas espinhosas–. Mierda! –exclamou, chupando o polegar ferido–Menos mal que estou vacinado contra o tétanos!

         Ela assentiu, rendo, mas de repente algo a preocupou: ela e Roger estavam protegidos contra enfermidades como a difteria e o tifo, mas Jemmy não.

         Tragou saliva ao recordar o acontecido a noite anterior. Esse cavalo tinha mordido a seu pai no braço. Claire fez que se sentasse ante o fogo, sem camisa, para lhe limpar e lhe enfaixar a ferida. Como Jemmy aparecia a cabeça do berço, cheio de curiosidade, seu avô sonriendo o pôs em seus joelhos.

         –Arre, arre, cavalinho! – cantarolou, fazendo saltar ao pequeno–Ao passo!Ao trote!Ao galope!

         Mas o que se gravou na mente do Bree não foi a encantadora cena dos dois ruivos festejando-se com risadas; foi a luz do fogo refulgindo na pele de seu filho, translúcida, perfeita, intacta,…e com um brilho prateado nas cicatrizes que cruzavam as costas de seu pai, vermelho escuro no corte sanguinolento do braço. Para os homens era uma época perigosa.

         Não poderia proteger ao Jem de fazer-se danifico: sabia. Mas ao pensar que ele ou Roger podiam ficar doentes ou lesar-se, se o fazia um nó no estômago e um suor frio lhe percorria a cara.

         – É este um bom sítio para praticar? –perguntou Roger.

         Tinham chegado a um brejo, uma pradaria elevada, densa de ervas e rododendros. No lado oposto havia um grupo de álamos, cujos ramos pálidos tremulavam com uns quantos farrapos de folhas douradas e carmesins, vívidas contra o profundo azul do céu. Um arroio um pouco escondido gorgoteaba colina abaixo; um falcão de cauda vermelha voava em círculos. O estava bem alto, quente sobre seus ombros. E a pouca distância havia um agradável ribazo coberto de erva.

         –Perfeito–disse Bree.

         E baixou o mosquete que levava o ombro.

 

Era uma arma magnífica, que superava o metro e meio de longitude, mas tão bem equilibrada que podia sustentar-se descansando com o braço estendido sem que se movesse. Isso estava fazendo Brianna, a maneira de demonstração.

         –Vê? – disse, recolhendo o braço e apoiando a culatra contra seu ombro, em um movimento fluido–. Esse esse o ponto de equilíbrio; tem que pôr a mão esquerda aqui; com a direita, agarra a culatra e a parientas contra seu ombro. Coloca-a bem, que não se mova. O retrocesso é muito forte.

         Golpeou levemente a culatra de nogueira contra o ombro coberto de pele de veado; logo baixou a arma par dar-lhe ao Roger. Ele observou, irônico, que punha menos ternura e cautela quanto lhe entregava ao bebê. Por outra parte, até o que tinha podido ver, Jemmy era muitos mais indestrutível que o mosquete.

         Bree lhe ensinava, ao princípio vacilante e relutante a corrigi-lo. Mas ele se mordia a língua e a imitava com esmero, seguindo a fácil sucessão de passos: abrir o cartucho com os dentes, cevar, carregar, martelar e verificar. Embora vexado por sua própria estupidez de novato, secretamente estava fascinado (e não pouco excitado) pela ferocidade que adquiriam os movimentos de sua esposa.

         –trouxeste o lanche? –brincou ele–. Eu esperava que matássemos algo e nos comêssemos isso.

         Sem lhe emprestar atenção, ela extraiu um puído lenço de cor clara para utilizar como branco. Sacudiu-o com ar crítico. Em outros tempos cheirava a jasmins e a erva; agora, a pólvora, couro e suor. Roger aspirou esse aroma, acariciando disimuladamente a madeira da culatra.

         – Preparado? – perguntou ela, lhe dirigindo um sorriso.

         – Sim, claro.

         – Revisa sua pederneira e sua carga. Eu irei colocar o branco.

         Vista desde atrás, com o cabelo avermelhado pacote com força, vestida com essa folgada camisa de caçador que a cobria dos ombros até as coxas, o parecido com seu pai se intensificava de um modo surpreendente. Mas era impossível confundi-los: com calças ou sem eles, Jamie Fraser nunca tinha tido esse traseiro.

         Havia outro motivo par lhe pedir a Brianna que saísse a disparar com ele. Não cabia pensar que esse motivo permanecesse oculto: quando ele o sugeriu, Claire os tinha cuidadoso a ambos com um ar divertido e sapiente, que fez exclamar a Brianna, em tom de acusação: “ Mamãe!” .

         depois dessa muito breve noite de bodas, na congregação, esta era primeira e única vez que estava a sós com a Brianna, livre das insaciáveis exigências de sua vergôntea.

         Quando ela baixou o braço, viu um brilho do sol refletido em sua boneca: tinha posto seu bracelete, e ele o comprovou com um intenso prazer. O tinha agradável ao lhe pedir que se casasse com ele, fazia toda uma vida, nas glaciais brumas de uma noite, no Inverness. Era um simples aro de prata que tinha umas frases gravada em francês: Je t’amie, dizia; “ amo-te” . Um peu, beaucoup, passionemetn, ps du tout: “ um pouco, muito, apaixonadamente, nada absolutamente” .

         – Passionement– murmurou, enquanto imaginava sem nada em cima, salvo esse bracelete e seu anel de bodas.

         Mas terei que começar com o primeiro. E agarrou um novo cartucho. Ao fim e ao cabo tinham tempo.

 

Uma vez segura de que Roger ia adquirindo bons hábitos para carregar a arma, embora ainda não tivesse velocidade, Brianna lhe permitiu apontar e, por fim, disparar. Continuando, baixou o mosquete e olhou a Brianna com um grande sorriso. Ela explorou em uma gargalhada.

         – Parece um desses cômicos que se disfarçam de negros–disse, com a ponta do nariz avermelhado pela diversão–. Toma, te limpe um pouco, que agora vamos disparar desde mais longe.

         Em troca da arma lhe deu um lenço limpo. Ele se limpo a fuligem da cara, enquanto Bree limpava o canhão e recarregava sem esforço. de repente ela levantou bruscamente a cabeça, cravando os olhos em um carvalho, ao outro lado da pradaria.

         Roger não tinha ouvido nada, pois ainda estava ensurdecido pelo rugir do mosquete, mas ao voltar-se divisou um pequeno movimento: era um esquilo cinza, em equilíbrio sobre o ramo de um pinheiro, a nove ou dez metros do chão.

         Sem a menor vacilação, Brianna apoiou a arma contra seu ombro e pareceu disparar, tudo a um tempo. O ramo que sustentava ao esquilo voou em uma chuva de lasca; o animal caiu a terra, ricocheteando no trajeto contra os elásticos ramos da confira.

         Roger correu até a árvore, mas precisava dar-se pressa: o esquilo jazia morta, flácida como um trapo.

         – Bom disparo– a felicitou, mostrando a peça a Brianna, que se aproximava de vê-la–. Mas não tem uma só marca. Deve havê-la matado com susto.

         Ela sustentou seu olhar.

         – Se tivesse querido lhe dar, Roger, o teria feito– assegurou, com um sotaque de recriminação–. E se o tivesse feito, agora teria na mão um punhado de purê de esquilo. Às peças desse tamanho não lhes aponta diretamente: aponta às patas e as derruba. – Parecia uma bondosa professora de maternal corrigindo a um aluno lento.

         – Ah, sim? – Ele reprimiu uma leve irritação–. Isso lhe ensino isso seu pai?

         Ela o olhou com ar estranho.

         – Não. Ensino-me isso Ian.

         A resposta foi um murmúrio que não dizia nada. Ian era um tema incômodo para a família. Todos amavam a esse primo da Brianna e o sentiam falta de. Mesmo assim, por delicadeza se abstinham de mencioná-lo ante o Roger.

         Não tinha sido exatamente culpa dela que Ian Murray ficasse com os mohawk, mas tampouco se podia negar que ele tinha tido algo que ver com o assunto. Se não tivesse matado a esse índio…

         Não era a primeira vez que Roger apartava as lembranças confusas daquela noite no Snaketown. Mesmo assim podia sentir as lembranças físicas: a quebra de onda de terror no ventre: o estremecimento do impacto nos músculos de seus braços ao cravar com toda sua força o extremos quebrado de uma vara na sombra que fazia aparecido ante ele, saindo da lhe uivem escuridão. Uma sombra muito sólida.

         Recoda ao Murray com claridade, embora apenas o tinha visto; não era mais que um moço, desajeitado e alto, de cara feia, mas simpática.

         Ao pensar em sua cara, viu-a como a última vez: recém marcada com uma tatuagem em forma de ponto, que cruzava as bochechas e a ponte do nariz. Estava bronzeado, mas a pele do couro cabeludo, recém barbeado, era de um tom claro e rosado, como o traseiro de um bebê.

         – O que acontece?

         A voz da Brianna o sobressaltou, fazendo que ao disparar o canhão saltasse para cima. O projétil se desviou ainda mais que os anteriores. Em doze disparos não pôde fazer um solo branco.

         – O que acontece? – repetiu ela.

         Roger aspirou fundo e se esfregou a cara com a manga, sem que lhe importasse manchar a de fuligem.

         – Sua primo– disse abruptamente–. Lamento o que lhe passou, Bree.

         A cara da moça se abrandou ao suavizar o cenho preocupado.

         – OH! – disse. E se aproximou, lhe apoiando uma mão no braço, de modo que ele sentiu o calor de sua proximidade. Logo, com um profundo suspiro, apoiou a frente em seu ombro–. Bom– disse a fim–, eu também o lamento, mas não tem mais culpa que ou papai… ou o mesmo Ian. – Emitiu um pequeno bufo que talvez quis ser risada–. Se alguém tiver a culpa, essa é Lizzie… e a ela ninguém o reprova.

         Ele sorriu com certa ironia.

         – Sim, compreendo– disse, cobrindo com uma mão a suavidade de sua trança. Tem razão. Entretanto…matei a um homem, Bree.

         Ela não se apartou nem fez gestos de surpresa; pelo contrário, ficou completamente imóvel. Ele também; era o último que pensava dizer.

         – Não me havia isso dito– manifestou ela, por fim, levantando a cabeça para olhá-lo. Parecia indecisa, como se vacilasse continuar falando do tema. A brisa lhe cruzou a cara com uma mecha de cabelos, sem que ela fizesse nada por apartá-los.

         – Eu… bom, para falar a verdade, logo que pensei nisso.

         Roger deixou cair a mão, e a imobilidade se quebrou. Bree deu um passo atrás.

         – Sonha terrível, verdade? Mas… – Procurou trabalhosamente as palavras adequadas. Embora não tinha sido sua intenção, agora que tinha começado a falar, sentia a urgente necessidade de explicar-se.

         – Foi de noite, durante um combate na aldeia. Escapei. Tinha uma parte de vara rota na mão. Quando alguém saiu da escuridão…

         de repente encurvou os ombros, compreendendo que não havia maneira possível de explicá-lo. Baixou a vista ao mosquete que ainda tinha na mão.

         – Ignorava que o tivesse matado– disse muito fico, a vista no pederneira–. Nem sequer lhe vi a cara. Incluso no sei quem era…embora sem dúvida o conhecia; Snaketown era uma aldeia pequena e eu conhecia todos os NE rononkwe.

         De súbito se perguntou por que não lhe tinha ocorrido pensar quem era o morto. Obviamente, não o tinha feito porque preferia não havê-lo feito.

         – NE rononkwe? – Ela repetiu as palavras com ar incerto.

         – Os homens… os guerreiros… os valentes. Assim é como se chamam, Kahnyen’kehka.

         Sentiu que Bree voltava a aproximar-se, mas sem sentir repulsa.

         – Arrepende-te de havê-lo feito?

         – Não– respondeu o imediatamente. Levanto a vista–. Quer dizer…sim, lamento que tenha acontecido. Mas não me arrependo de havê-lo feito.

         Ele estava no Snaketown como escravo e não sentia nenhum afeto pelos mohawk, embora os havia bastante decentes. Nunca teve intenção de matar: só se defendeu. E nas mesmas circunstâncias voltaria fazê-lo.

         Não obstante havia uma pequena chaga de culpa, pela facilidade com que tinha descartado essa morte. Os kahnyen’kehka cantavam e narravam histórias de seus mortos, mantendo a memória viva em volto das fogueiras, nomeando-os e relatando suas façanhas por muitas gerações. O mesmo faziam os escoceses de Terras Altas.

         Mesmo assim, tinha a escura sensação de ter privado ao morto desconhecido, não só de sua vida, mas também de seu nome, ao tratar de apagá-lo com o esquecimento, de comportar-se como se essa morte não tivesse acontecido, só para livrar-se de tomar consciência dela. E isso estava mau, disse-se.

         Bree permanecia quieta, mas não imóvel; seus olhos descansavam nele com um pouco parecido à compaixão. Mesmo assim, Roger desviou a vista para o mosquete cujo canhão aferrava. Seus dedos manchados de fuligem tinham deixado no metal negros ovalóides gordurentos. Ela alargou a mão para agarrar a arma e apagou as marcas com a aba de sua camisa.

         Roger deixou que ficasse. Enquanto a observava, esfregou-se os dedos sujos nas calças.

         – É que… não te parece que, se tiver que matar a alguém, deveria ser com um propósito?

         Ela não respondeu, mas seus lábios se franziram um pouco. Logo voltaram a relaxar-se.

         – Se isto disparas contra alguém, Roger, será com um propósito– disse em voz baixa.

         Cravou-lhe os olhos azuis, apaixonados. O que ele tinha tomado por compaixão era, em realidade, uma fera quietude, como pequenas chamas azuis em um lenho já consumido.

         – E se tiver que matar a alguém, Roger, quero que o faça com intenção.

 

Uns vinte e cinco disparos depois, ele podia fazer branco nos tacos de maneira ao menos em um de cada seis intentos. Ela notou que começavam a lhe tremer os músculos do antebraço, cansados pelo esforço. Em adiante, falharia cada vez mais por pura fadiga. E não seria bom para ele.

         Tampouco para ela. Começavam a doê-los peitos, lojas de comestíveis de leite. Logo terei que fazer algo com isso. Depois do último disparo se fez cargo do mosquete.

         – vamos comer– disse, sorridente–. Estou esfomeada.

         O esforço de disparar, recarregar e pôr os brancos os tinha mantido em calor, mas se aproximava o inverno e o ar estava frio. Muito frio, lamentou-se ela, para tender-se nus entre as samambaias secas. Mas o sol esquentava e ela havia tomando a previsão de pôr dois edredons velhos em sua mochila, junto com o almoço.

         Roger guardava silêncio, mas era um silêncio cômodo. Enquanto ele cortava fatias de queijo duro, baixas as pestanas, ela admirou seus membros comprido; os dedos, pulcros e rápidos; a boca suave, e uma gota de suor que rodava pela curva bronzeada de seu maçã do rosto, diante da orelha.

         Não sabia com certeza como interpretar o que havia lhe contando. De qualquer modo era bom que o houvesse dito, embora não gostava de pensar em sua estadia com os mohawk. Para ela tinham sido tempos tão maus como par Roger: sozinha, grávida, sem saber se ele ou seus pais voltariam jamais. Ao alargar a mão para aceitar uma parte de queijo, roçou-lhe os dedos e se inclinou para diante, para incitá-lo a beijá-la.

         Ele o fez; logo se apartou. Seus olhos, livres da sombra que os acossava antes, eram de um verde suave e claro.

         – Pizza– disse Roger.

         Ela piscou, mas imediatamente pôs-se a rir. Era um de seus jogos: alternar-se para mencionar as coisas que sentiam saudades daquele outro tempo, o de antes…ou o de depois, segundo como se olhará.

         – A Coca-cola– replicou imediatamente–. Acredito que poderia fazer pizza, mas de que serve a pizza sem a Coca-cola?

         – A cerveja é perfeita para lhe acompanhá-la assegurou ele–. Mas de verdade crie que poderia fazer pizza?

         – Não vejo por que não. – Ela mordiscou o queijo, pensativa–. Este não serviria– decidiu; continuando, fez uma pausa para mastigar e tragar, e logo bebeu um comprido gole de cidra–. Agora que o penso, isto iria muito bem com pizza. – Baixando a bota, lambeu de seus lábios o resto doce, levemente alcoólico–. Mas o queijo…possivelmente se pudesse tusar o de ovelha. Papai trouxe um pouco de Salem, a última vez que esteve ali. Pedirei-lhe que consiga um pouco mais para ver como se funde.

         Logo entreabriu os olho para o sol brilhante e pálido, fazendo seus cálculos.

         – Mamãe tem tomate seco em abundância. E toneladas de alho. Sei que também há manjericão. Quanto ao órgão, tenho minhas dúvidas, mas poderia prescindir dele. E a respeito da massa… –Desprezou o detalhe com um gesto da mão–. Farinha, água e graxa. Nenhum problema.

         Roger, rendo, deu-lhe uma bolacha cheia de presunto e do picadinho da senhora Bug.

         –” De como chegou a pizza às colônias” –disse, elevando a bota de cidra em um breve brinde–. A gente sempre se pergunta de onde saíram os grandes inventos da humanidade. Agora sabemos!

         – Talvez sabemos, sim –disse ela brandamente, ao cabo de um instante. – Perguntaste-te alguma vez por que estamos aqui?

         – É obvio. – O verde de seus olhos era agora mais escuro. – Seu também, verdade?

         Ela assentiu com a cabeça e deu uma dentada à bolacha; o picadinho estava doce pela cebola e também picante. Os três tinham pensado nisso, certamente. Ela, Roger e sua mãe. Sem dúvida alguma, esse passo através das pedras devia ter algum sentido. Entretanto… seus pais estranha vez falavam da guerra e as batalhas, mas pelo pouco que diziam (e pelo muito que tinha lido) sabia o casuais e sem sentido que revistam ser estas coisas.

         Roger esmiuçou um resto de pão entre os dedos e arrojou as migalhas a um par de metros.

         – Bom –disse–, se alguma vez o descobrir, não deixe de me dizer isso quer?

         Bree sentia o pulsar do coração lhe fazendo cócegas nos peitos; pequenas descargas elétricas, que o baluarte do esterno já não podia conter, beliscavam-lhe os mamilos. Não se atreveu a pensar no Jem; bastaria uma insinuação para que seu leite emanasse a correntes.

         Sem dar-se tempo a pensá-lo muito, tirou-se a camisa pela cabeça.

         Roger tinha os olhos abertos, fixos nelas, suaves e brilhantes como o musgo sob as árvores. Ela desfez o nó da banda de linho e sentiu o toque frio do vento nos peitos nus. Sustentou-os com as mãos; a pesadez se iniciava, lhe façam cócegas.

         – Vêem –disse em voz fica, os olhos fixos nele–. Date pressa. Necessito-te.

 

Estavam meios vestidos, comodamente enredados sob o edredom esfarrapado, dormitados e pegajosos pelo leite seca. Ainda os rodeava o calor da paixão.

         Estaria acordado Roger? Em vez de girar a cabeça ou abrir os olhos, para comprová-lo, ela tratou de lhe enviar uma mensagem: uma lenta e pessoas palpitação do coração, uma pergunta que navegasse de sangre a sangue. “ Está aí?” , disse, sem voz. Durante um momento não aconteceu nada. Sua respiração lenta e regular era um contraponto ao suspiro da brisa entre as árvores e a erva, como o fluxo que chega a uma costa arenosa. Logo, o dedo do Roger lhe roçou a palma, tão leve que poderia ter sido o contato de uma aleta ou uma pluma.

         “ Estou aqui–dizia–.E você?”

         A mão do Bree se fechou sobre a dele. E Roger se voltou para ela.

 

Nessa época do ano, a luz morria cedo. Embora ainda faltava um mês para o solstício de inverno, a meia tare o sol já roçava o pendente do Black Mountain. Quando giraram para o este, rumo ao lar, suas sombras se estiraram para frente até alcança uma longitude impossível.

         Bree levava o mosquete. Embora não tinham saído a caçar, se se apresentava a oportunidade não a desperdiçaria. O esquilo que tinha matado antes já estava poda e guardada em sua mochila, mas logo que alcançava para dar um pouco de sabor ao guisado de verduras. Não viria mal caçar umas quantas mais. Ou uma zarigüeya, pensou, sonhadora.

         Um bando de codornas saiu de um arbusto próximo como um estalo de metralha. Ela deu um coice, com o coração na boca.

         – Esses se comem, não? –Roger assinalava com a vista a última daquelas bolinhas cinzas e brancas. Ele também se sobressaltou, mas não tanto como ela; Bree o notou com chateio.

         – Sim –disse, mal-humorada por haver-se deixado pilhar despreparada–. Mas não os díspares com o mosquete, usa uma arma para aves, com perdigones. É como uma escopeta.

         – Já sei –replicou ele, seco.

         Bree não tinha desejos de conversar; aquilo a tinha arrancado de seu humor aprazível. Os peitos começavam a lhe pesar outra vez; era hora de ir a casa, a pelo Jemmy.

         Suspirou profundamente. Roger riu pelo baixo.

         – Hum? –perguntou ela, girando a cabeça.

         Roger lhe rodeou a cintura com um braço.

         – foi um dia precioso, verdade? –comentou ele, brandamente.

         – Sim –confirmou ela sonriendo.

         ia dizer algo mais, mas por cima do sussurro dos ramos lhe chegou outro ruído. apartou-se súbitamente.

         – O que…?

         Mas ela se levou um dedo aos lábios para sossegá-lo. Logo se escorreu para um grupo de carvalhos, chamando-o por gestos.

         Era um bando de perus que escavavam tranqüilamente sob um carvalho grande, desenterrando vermes. O sol, já baixo, iluminava a iridiscencia de seus peitos, fazendo que o negro desbotado das aves refulgisse em pequenos arco íris a cada movimento.

         Bree já tinha a arma carregada, mas não o tinha cevado. Procurou provas o bote de pólvora que levava no cinturão e encheu a cazoleta, quase sem apartar a vista dos perus. Roger se escondeu a seu lado. Lhe deu uma cotovelada, lhe oferecendo a arma com uma sobrancelha arqueada. As aves estavam apenas a vinte metros e até a mais pequenas tinham o tamanho de uma bola de futebol.

         Ele vacilou, mas o desejo de tentá-lo era visível em seu olho. Bree lhe pôs firmemente a arma nas mãos e assinalou um oco no matagal. Roger trocou cautelosamente de posição, procurando uma linha visual limpa. Bree abria e fechava as mãos; morria por corrigi-lo, por apertar o gatilho.

         Viu que aspirava fundo e continha o fôlego. Logo ocorreram três coisas, em tão rápida sucessão que pareceram simultâneas. O mosquete se disparou com um enorme fum!, uma chuva de folhas secas brotou da terra, sob a árvore, e quinze perus enlouquecidos correram diretamente para eles, como uma equipe de futebol demente, entre histéricos gluglús.

         O mosquete voou pelo ar. Brianna o apanhou e extraiu um cartucho da caixa que levava no cinturão. Enquanto, o último peru correu para o Roger, serpenteou par esquivá-lo e, ao vê-la, lançou-se em direção oposta. Pró fim passou como raio entre os dois, glugluteando alarma e imprecações.

         Bree se deu a volta e apontou no momento em que o ave abandonava o chão. Por uma fração de segundo viu o vulto negro recortado contra o céu diáfano e disparou contra as plumas de sua cauda. O peru caiu a quarenta metros de distância e tocou terra com um golpe seco, audível.

         Ela se esteve quieta um momento. Logo baixou lentamente o mosquete. Roger a olhava, boquiaberto, apartando-os arranhões sanguinolento com o tecido da confisca. Bree lhe sorriu levemente; tinha as mãos suarentas contra a culatra de madeira e o coração lhe palpitava com força, em uma reação tardia.

         –Deus bendito! –exclamou ele, impressionado–. Isso não foi só questão de sorte verdade?

         – Pois… em parte –disse ela, tratando de ser modesta. Mas fracassou. Um enorme sorriso lhe floresceu na cara–. Possivelmente a metade.

         Ele foi cobrar a presa, enquanto Bree voltava a limpar a arma. Retornou com um ave de cinco quilogramas, que gotejava sangue como se fora um cantil agujerada.

         –Que inseto! –Roger estirou o braço para que escorresse–. Não acredito ter visto nenhum antes, como não fora assado em uma bandeja, com enfeite de castanhas e batatas assadas. –Olhou-a com grande respeito–. Foi um disparo estupendo, Bree.

         Ela avermelhou de prazer, contendo-se par não dizer: “ Mas se não ter sido nada” . Se conformou lhe dando as obrigado.

         Continuaram a marcha para sua casa. Roger levava o ave lhe gotejem, um pouco separada do corpo.

         – Você tampouco faz muito tempo que pratica o tiro –comentou, ainda impressionado–. Seis meses, talvez?

         Ela não queria descender na avaliação da façanha; mesmo assim se ponho-se a rir e lhe disse a verdade, encolhendo-se de ombros.

         – Mas bem seis anos. Provavelmente dez.

         – Como?

         – Papai… Frank… me ensino a disparar quando tinha onze ou doze anos. Aos treze deu de presente um calibre vinte e dois. Aos quinze já levava a disparar contra alvos da terracota. Durante os fins de semana de outono íamos caçar pombas e perdizes.

         Roger a olhou com interesse.

         – Supus que te teria ensinado Jamie. Não tinha nem idéia de que Frank Randall fora tão esportista.

         – É que não o era –replicou ela, pausada–. OH!, sabia disparar, porque durante a Segunda guerra mundial esteve no exército. Mas não praticava muito. limitava-se a me ensinar e a olhar. Em realidade, nem sequer tinha armas.

         – Que estranho!

         – Também sinto saudades –continuou, tentando mostrar-se indiferente–, depois de que me contou o de sua carta e tudo é, na congregação.

         O calvo um olhar agudo.

         – O que é o estranho?

         Bree aspirou fundo, sentindo que as bandas de linho lhe afundavam nos peitos.

         – Que um homem que não sabia montar nem disparar se tomasse tantas moléstias para que sua filha soubesse fazer as duas coisas. E não porque estivesse de moda entre as meninas. –Tratou de rir–. Em Boston, ao menos.

         Por um momento não se ouviu outra coisa que o sussurro dos pois entre as folhas secas.

         – Jesus! –murmurou Roger, ao fim–. Procurou o Jamie Fraser. Dizia-o em sua carta.

         – E achou a um Jamie Fraser. Isso também o dizia. O que não sabemos é se era o que correspondia. –Bree mantinha a vista fixa em suas botas, atenta às serpentes. No bosque havia serpentes cascavel e cabeça de cobre. de vez em quando as via tomando sol nas pedras ou em cima de troncos ensolarados.

         Roger aspirou fundo, levantando a cabeça.

         – Sim. E agora te está perguntando que mais pôde ter descoberto.

         Ela assentiu sem olhá-lo.

         – Talvez me descobriu –disse pelo baixo, com um nó na garganta–. Talvez sabia que eu cruzaria através das pedras. Em todo caso não me disse isso.

         Ele se deteve e a agarrou de um braço para girá-la sobre ele.

         – E talvez não sabia –disse com firmeza–. Possivelmente só pensou que o tentará, se alguma vez averiguava o do Fraser. E se por acaso o fazia… quis que estivesse a salvo. Eu acredito que isso é o que desejava, soubesse o que soubesse: que estivesse a salvo. –Esboçou um sorriso um pouco torcido–. Quão mesmo você quer para mim, verdade?

         Ela soltou um fundo suspiro. Essas palavras a consolavam. Nunca tinha posto em dúvida que Frank Randall a tinha querido durante toda sua infância e sua adolescência. E não queria duvidar tampouco agora.

         – Sim –disse, ficando nas pontas dos pés para lhe dar um beijo.

         – Pois bem. –Lhe tocou brandamente o peito, ali onde a pele de veado mostrava já um pequeno emplastro molhado–. Jem tem que ter fome. Vamos. Já deveríamos estar em casa.

         E continuaram baixando a montanha, por volta do dourado mar de folhas de castanho, contemplando as sombras abraçadas que os prediziam.

         – Crie que…?–começou ela. Mas vacilou.

         A cabeça de uma sombra se inclinou para a outra, atenta.

         – Crie que Ian será feliz?

         – Isso espero –respondeu Roger, rodeando o braço que a rodeava–. Se tiver uma esposa como a meu… estou seguro de que sim.

 

                   Vinte sobre vinte

Agora sujeita isto sobre o olho esquerdo e lê a linha mais pequena que possa ver com claridade.

Com ar de grande paciência, Roger aproximou a colher de madeira a seu olho direito e entreabriu o esquerdo, concentrando-se na folha de papel que eu tinha parecido na porta da cozinha. Ele estava de pé no vestíbulo da entrada, pois o corredor era o único lugar do interior da casa que media uns seis metros.

- Et seu Brute? –leu. Logo baixou a colher para me olhar, com uma sobrancelha levantada-. Nunca tinha visto nenhuma tabela tão culta.

- É que sempre pensado que as normais som bastante aborrecidas –lhe expliquei-. Agora o outro olho, por favor. Qual é a linha mais pequena que pode ler com facilidade?

Ele investiu a colher, entortando os olhos ante as cinco linhas escritas à mão, cujos tamanhos decresciam tão uniformemente como eu tinha sido capaz de fazê-lo. Logo leu lentamente a terceira.

- ‹‹No coma mais cebollas.›› De quem é isto?

- Do Shakespeare, é obvio –respondi eu, tomando nota-. ‹‹No coma cebolas nem alho, pois devemos exalar um suave Essa aliento.›› é a mais pequena que chega a ler?

Vi que a expressão do Jamie se alterou sutilmente. Ele e Brianna estavam de pé detrás do Roger, no alpendre, presenciando os procedimentos com grande interesse. Brianna se inclinava levemente para seu marido, com expressão algo ansiosa, como se assim o impulsionasse a ver. A expressão de seu pai, em troca, delatava uma leve surpresa, um pouco de piedade… e um inegável brilho de satisfação. Pelo visto ele se podia ler a quinta linha sem dificuldade. ‹‹Lo honro››, de Julho César: ‹‹Porque era valente, honro-o; porque era ambiciosa, o maté.››

Ele deveu perceber meu olhar, pois sua expressão se desvaneceu; imediatamente sua cara reassumiu ao acostumado bom humor inescrutável. Entreabri os olhos, para lhe dizer: ‹‹No me engañas››, e ele apartou a vista. A comissura de seus lábios se contraiu levemente.

- Não os nada da seguinte? –Bree se tinha aproximado um pouco mais ao Roger, como atraída por osmose. Olhou atentamente o papel; logo, a seu marido, lhe dando ânimos. Obviamente ela também podia ver as duas últimas linhas sem dificuldade.

- Não –disse Roger, bastante seco.

A pedido do Bree tinha mimado que eu lhe examinasse os olhos, mas era evidente que isso não o fazia feliz. Descarregou a colher de madeira contra a palma de sua mão, impaciente por terminar.

- Algo mais?

- Só uns poucos exercícios –disse, tratando de acalmá-lo-. Vêem aqui. Há mais luz.-Apoiei-lhe uma mão no braço para levá-lo a meu consultório, enquanto olhava com dureza aos outros-. Brianna, por que não põe a mesa para jantar? Não demoraremos muito.

Ela vacilou um instante, mas Jamie lhe disse algo em voz baixa. Roger estava de pé entre o caos de minha consulta, como um urso que ouvisse ladrar aos cães na distância: simultaneamente vexado e precavido.

- Não é necessário tudo isto –disse, enquanto eu fechava a porta-. Vejo bem. É só que ainda não tenho muita pontaria. Não me passa nada mau nos olhos.

Ainda assim não fez intento algum de escapar. Eu captei um tom dúbio em sua voz.

- Isso acredito, sim –disse com ligeireza-. De qualquer modo, deixa que te veja. Só por curiosidade…

Obtive que se sentasse, embora a contra gosto, e a falta da pequena lanterna habitual, acendi uma vela. Passei-a por diante de sua cara, para cima, para baixo, à direita, à esquerda, lhe pedindo que não deixasse de olhá-la e observando as mudanças, enquanto seus olhos se moviam de um lado a outro. Como para esse exercício não se requeriam respostas, começou a relaxar-se um pouco; gradualmente afrouxou as mãos contra as coxas.

- Muito bem –disse, em tom grave e sedativo-. Sim, assim é… Pode olhar para cima, por favor? Sim… Agora para baixo, para o rincão da janela. Estraguem…sim. Agora me olhe outra vez. Vê este dedo? Bem, agora fecha o olho esquerdo e me diga se se mover. Estraguem…

Por fim apaguei a vela de um sopro e estirei as costas com um pequeno grunhido.

- Bem –disse ele, com leveza-. Qual é o veredicto, doutora? Devo ir fazer me um fortificação branco?

Agitou a mão para ventilar as volutas de fumaça da vela apagada, fingindo indiferença; tão somente o desmentiu uma ligeira tensão nos ombros. Ri.

- Não, ainda não necessita um cão guia de cegos, nem sequer óculos. Não obstante… há dito que nunca tinha visto uma tabela literária. Deduzo que as viu de outro tipo. Usava óculos quando foi menino?

Ele enrugou o sobrecenho, retrocedendo em sua mente.

- Sim - disse lentamente. A sua cara apareceu um sorriso-. Melhor dizendo, tive um par. Dois, três. Quando tinha sete ou oito anos, acredito. Eram uma moléstia e medaban dor de cabeça, de modo que tendia às esquecer no ônibus, ou entre as pedras do rio… Em realidade, não recordo as haver tido postas durante mais de uma hora em cada ocasião. Quando perdi o terceiro par, meu pai se deu por vencido. – encolheu-se de ombros-. Se tiver que ser franco, sempre pensei que não as necessitava.

- Bom, por agora não.

Ao captar o tom de minha voz me olhou com ar intrigado.

- Como?

- É um pouco míope do olho esquerdo, mas não tanto como para que te cause dificuldades. –Esfreguei-me a ponte do nariz, como se percebesse ali o beliscão dos óculos-. Me deixe adivinhar… Quando foi à escola jogava bem ao jóquei e ao futebol, mas não ao tênis.

Ele riu. Seus olhos se enrugaram nas comissuras.

- Tênis? Nas escolas primárias do Inverness? Haveríamos dito que era um jogo para maricas. Mas te compreendo. E tem razão: jogava bem ao futebol, mas não servia para o tênis. por que?

- Porque não tem visão binocular –expliquei-. É provável que alguém o detectasse quando foi menino e que tratasse de lhe corrigir isso com lentes prismáticas. Mas aos sete ou oito anos já era tarde –me apressei a acrescentar, vendo que não compreendia-. Para que dê resultado é preciso fazê-lo antes dos cinco anos.

- Que não tenho… visão binocular? Mas não a temos todos? Quer dizer… os dois olhos me funcionam, verdade?

Parecia um pouco desconcertado. olhou-se a palma da mão, fechando um olho e logo o outro, como se esperasse encontrar alguma resposta em suas linhas.

- Seus olhos funcionam bem –lhe assegurei-. O problema é que não o fazem de uma vez. Em realidade é um transtorno bastante comum; muitos o sofrem sem sabê-lo. Em algumas pessoas, não se sabe por que, o cérebro nunca aprende a fundir as imagens que vêm dos dois olhos, para conformar uma imagem tridimensional.

- Não vejo em três dimensões? –agora me olhava com olhos muito entreabridos, como se esperasse lombriga súbitamente aplanada contra o muro.

- A verdade é que… não tenho equipe de oculista. –Indiquei com um gesto a vela apagada, a colher de madeira, as figuras desenhadas e um par de varinhas que tinha estado usando-. Nem estudos especializados. Mas estou quase segura, sim.

Expliquei-lhe o que sabia, e ele me escutava em silêncio. Sua vista parecia bastante normal quanto a acuidade. Mas como seu cérebro não fundia a informação de seus olhos, ele devia calcular a distância e a localização relativa dos objetos por simples comparação inconsciente dos distintos tamanhos, em vez de formar uma verdadeira imagem tridimensional. O qual significava que…

- Vê bem para realizar quase qualquer tarefa que deseje –lhe assegurei-. E é muito provável que aprenda a disparar bem. De fato, a maioria da gente fecha um olho para disparar. Mas poderia ter dificuldades para disparar contra brancos móveis. Embora veja aquilo aos que aponta, ao carecer de visão binocular talvez não possa determinar exatamente onde está, a fim de dar no branco.

- Compreendo –disse ele-. Com que se se trata de brigar, o melhor seria que eu limitasse aos pauladas. É assim?

- Segundo minha humilde experiência quanto a conflitos escoceses, a maioria das brigas não passam dos pauladas.

Isso lhe arrancou um pequeno grunhido de diversão, mas não disse mais. Permaneceu em silêncio, refletindo, enquanto eu recolhia a desordem própria de um dia de consulta.

Através da parede ouvia vozes apagadas; a súbitas choramingação do Jemmy, uma breve exclamação da Brianna, outra do Lizzie; logo, a voz grave do Jamie que evidentemente se ocupava do bebê enquanto Bree e Lizzie se ocupavam do jantar.

Roger também os ouviu; vi que sua cabeça girava para o som.

-Que mulher! –disse, com um sorriso-. Sabe caçar a presa e cozinhá-la. O qual é uma sorte, dadas as circunstâncias –e acrescentou-: Pelo visto, eu não vou pôr muita carne em nossa mesa.

-Ora! –exclamei com energia, para impedir qualquer intento de autocompasión-. Eu nunca cacei nada e ponho comida nesta mesa todos os dias. Se crie que sua obrigação é matar algo, há frangos, gansos e porcos em abundância. E se consegue apanhar a essa condenada cerda branca antes de que arruíne por completo nossos alicerces, será o herói do lugar.

Isso o fez sorrir, embora com um sotaque de ironia.

- Espero recuperar meu autorespeto, com porcos ou sem eles –disse-. O pior do assunto será explicar-lhe a esses atiradores. Assinalou com a cabeça para a parede, onde a voz da Brianna se mesclava a do Jamie, em uma conversação apagada-. Tratarão-me com muita amabilidade, como se tivesse perdido um pé.

Rendo, terminei de limpar meu morteiro e me estirei para guardá-lo no armário.

- Bree só se preocupa com ti, por este assunto da Regulação. Mas Jamie pensa que não acontecerá nada. Há muito poucas possibilidades de que tenha que disparar contra alguém. Além disso, as aves de presa tampouco têm visão binocular –acrescentei-. Excetuando os mochos. Pode dizer ao Bree e ao Jamie que sua vista é como a de um falcão.

Ante isso riu francamente. Logo se levantou, sacudindo-os abas da jaqueta.

-Isso farei. –Abriu-me a porta que dava ao corredor, me esperando, mas quando cheguei me pôs uma mão no braço para me deter-. Este transtorno binocular… -disse, assinalando vagamente seus olhos- suponho que é de nascimento.

- Sim, quase com certeza.

Ele vacilou; obviamente, não sabia como expressar-se.

- E é… hereditário? Meu pai esteve nas Forças Aéreas; não pôde havê-lo padecido. Mas minha mãe usava óculos. Tinha-as penduradas do pescoço com uma cadeia; lembrança ter jogado com elas. Talvez herdei isto dela.

Franzi os lábios, tratando de recordar se tinha lido algo sobre transtornos oculares hereditários, mas não me veio nada concreto.

-Não sei –disse ao fim-. Poderia ser. Mas talvez não. Em realidade, não sei. se preocupa pelo Jemmy?

-OH…! –Um vago desencanto lhe cruzou as facções, embora o apagou quase imediatamente. Com um sorriso torpe, agüentou a porta para me permitir o passo-. Não é que me preocupe, não. Só pensava que… se for hereditário e o pequeno também o tivesse… então eu teria a certeza.

O corredor estava impregnado de saborosos aromas a guisado de esquilo e pão fresco. Embora estava faminta, estive-me quieta, olhando-o.

- Não é que o deseje –explicou Roger ao ver minha expressão-. Só que se fosse assim…-Apartou a vista, tragando saliva-. Ouça, não diga ao Bree o que me ocorreu, por favor.

Toquei-lhe apenas o braço.

-Acredito que o compreenderia. Que queira ter a certeza.

Ele jogou uma olhada à porta da cozinha, pela que surgia a voz da Brianna, cantando Clementine, para buliçoso deleite do Jemmy.

- Compreenderia, talvez –disse ele-. Isso não significa que gostasse de inteirar-se.

 

                     A cruz ardente

         Os homens não estava: Jamie, Roger, o senhor Chisholm e seus filhos, os irmãos MacLeod… Todos eles tinham desaparecido antes do amanhecer, sem deixar mais rastro que os desordenados restos de um café da manhã apressado e rastros de barro na soleira.

Fora trovejou uma porta ao abrir-se e a animação se apagou abruptamente, sendo substituído por uma correria de fuga e risitas sufocadas.

-Hummm! –disse a voz da senhora Bug, satisfeita por ter desalojado aos bagunceiros. A porta se fechou. Ruídos de madeira e metal anunciaram que no piso de abaixo se iniciavam as atividades do dia.

Quando baixei, poucos instantes depois, encontrei a essa boa senhora dedicada simultaneamente a torrar pão, ferver café, preparar o porridge e queixar-se, enquanto limpava o rastro deixado pelos homens. Não se queixava da desordem (o que outra coisa podia esperar-se deles?), mas sim pelo fato de que Jamie não a tivesse despertado par lhes preparar um bom café da manhã.

-E como as arrumará o senhor agora?-inquiriu, blandiendo o garfo em um gesto de recriminação-. Um homem bem desenvolvido como ele, andando por ali, sem ter no estômago mais que um pouco de leite e um pãozinho rançoso.

Passeando meus olhos legañosos pela mescla de mendrugos e pratos sujos, tive a sensação de que o senhor e seus companheiros tinham dado conta das provisões.

-Não acredito que vá morrer de fome –murmurei, recolhendo uma migalha com o dedo umedecido-. O café está preparado?

Dos meninos Chisholm e MacLeod, os majores passavam a noite junto ao lar da cozinha, envoltos em mantas ou trapos. Já se tinham levantado e estavam fora, seus cobertores se encontravam amontoados depois do banco.

-Lavaste-lhes essas garras imundas, pequenos pagãos? –acusou a senhora Bug ao vê-los. Logo assinalou com a colher do porridge os bancos instalados ao longo da mesa-. Se estiverem podas venham a lhes sentar. E ai do que não se limpe os pés de barro!

Em poucos momentos, bancos e tamburetes ficaram cheios; as senhoras Chiísmo. MacLeod e Aberfeldy bocejavam e piscavam entre suas vergônteas, entre inclinações de cabeça e murmúrios de ‹‹Buenos días››.

Com doze bocas abertas que alimentar, a senhora Bug se encontrava em seu próprio molho. Enquanto a via ir do lar à mesa, disse-me que em alguma vida anterior devia ter sido carbonífero.

-Viu ao Jamie antes de que partisse? –perguntei, quando fez uma pausa para voltar a encher as taças de café, com um grande embutido cru na outra mão.

-Não. –Sacudiu a cabeça, muito branca debaixo do lenço-. Não me inteirei que nada. Antes do amanhecer ouvi que meu velho se levantava, mas supus que iria ao desculpado, por não me incomodar com o ruído da bacinilla. Mas não retornou. E quando despertei já se foram todos. Ah, não! Nada disso!

Pela extremidade do olho tinha detectado um movimento. Atirou um bom golpe com o embutido na cabeça de um dos MacLeod, que imediatamente retirou os dedos do frasco de geléia.

-Talvez tenham ido de caçada –sugeriu timidamente a senhora Aberfeldy.

-Fariam melhor em procurar sítios onde se possa edificar e madeira para as casas –disse a senhora MacLeod. Logo se separou da cara uma mecha de cabelo encanecido, sonriéndome com ironia-. Sem ânimo de criticar sua hospitalidade, senhora Fraser, preferiria não passar o inverno sob seus pés.

Como a essas horas da manhã não estava em meus melhores condicione, sorri cortesmente, murmurando algo incompreensível. Eu também preferia não ter cinco ou dez pessoas de mais na casa durante o inverno, mas não estava segura de que se pudesse evitar.

A carta do governador era bastante clara. Todos os homens fisicamente sãs dos territórios afastados deveriam ser recrutados como tropas de tropa, e apresentar-se no Salisbury por volta de meados de dezembro. Ficava muito pouco tempo para construir casas. Ainda assim, eu esperava que Jamie tivesse algum plano para aliviar a aglomeração. Adso, o gatinho, tinha instalado sua residência no armário de minha consulta, e a cena da cozinha ia adquirindo seu habitual parecido com as pinturas do Bosco.

Pelo menos, com tantos corpos amontoados, a cozinha tinha perdido o frio do amanhecer; o ambiente estava agora esquentado e ruidoso. Não obstante, dado o confuso da cena, passaram vários minutos antes de que eu notasse que as jovens mães pressente não eram três, a não ser quatro.

-De onde saíste? –perguntei, sobressaltada ao ver minha filha acurrucada em um rincão.

Bree piscou, dormitada, e trocou de posição ao Jemmy, que mamava com total concentração, alheio à multidão.

-Em metade da noite os Mueller chamaram a nossa porta –explicou ela, bocejando-. Eram oito, Não falavam bem nosso idioma, mas me pareceu lhes entender que papai os tinha chamado.

-Seriamente? –Agarrei uma parte de bolo de passas, me adiantando por muito pouco a um jovem Chisholm-. Ainda estão ali?

-Estraguem. Obrigado, mamãe. –Alargou a mão para a parte de bolo que eu lhe oferecia-. Sim. antes de que amanhecesse vinho papai e tirou o Roger da cama; ao parecer ainda não necessitava aos Mueller. Quando Roger se foi, um velho enorme se levantou do chão, dizendo: ‹‹Bitte, Maedle››y se deitou a meu lado. –Um delicado rubor lhe acendeu as bochechas-. E pensei que era melhor vir aqui.

-Ah! –exclamei, contendo um sorriso-, deve ter sido Gerhard.

O velho granjeiro, eminentemente prático, não entenderia por que devia tender seus vetustos ossos no duro chão de pranchas, se havia espaço disponível na cama.

-Isso suponho –disse ela confusamente, mastigando um bocado de bolo-. Acredito que é inofensivo, mas ainda assim…

-Sim, claro, para ti não representa nenhum perigo –coincidi com ela.

-Inofensivos ou não, têm que ter fome –deu a senhora Chisholm, sempre prática. E se agachou para recolher uma boneca, um fralda molhado e a um garotinho que se retorcia, e ainda dispunha de uma mão livre para o café-. Será melhor limpar isto, antes de que os alemães cheirem a comida e devam esmurrar a porta.

-Fica algo para eles? –perguntei, algo intranqüila, tratando de recordar quantos presuntos havia no abrigo onde os defumávamos. Depois de duas semanas de hospitalidade, nossas provisões estavam diminuindo de maneira alarmante.

-É obvio –assegurou energicamente a senhora Bug, deixando cair as fatias de embutido na frigideira quente-. Assim que tenha terminado com este grupo, poderão lhes dizer que devam tomar seu café da manhã. Você, a muirninn… -Usou a espátula para dar um cabeçada a uma menina de oito ou nove anos-. Corre ao porão, enche seu avental de batatas e me traz isso Aos alemães gosta das batatas.

-Posso ajudar…? –comecei, fracamente.

Mas a anciã sacudiu a cabeça, me afugentando com pequenos movimentos de vassoura.

-Nem pensar, senhora Fraser! –disse-. Terá você bastante que fazer e… Né, vocês, não entrassem em minha bonita cozinha com essas botas cheias de barro! Fora, as limpem antes de pôr um pé aqui!

Na soleira da porta estava Gerhard Mueller, desconcertado, seguido por seus filhos e sobrinhos varões. A senhora Bug, sem deixar-se intimidar pelo facho de que lhe tirasse trinta centímetros e não falasse nosso idioma, enrugou a cara e lhe cravou ferozmente a vassoura nas botas.

depois de dar uma cordial bem-vinda aos Mueller, aproveitei a oportunidade para escapar.

Tratando de evitar a multidão da casa, lavei-me fora, no poço. Logo fui aos abrigos para me ocupar de fazer inventário. A situação não era tão malote como temia; com uma administração prudente, havia bastante como para que nos durasse todo o inverno, embora talvez fora necessário constranger um pouco a mão generosa da senhora Bug.

Deixei a pesada vasilha cheia de headcheese junto à porta do abrigo, para não esquecer a quando retornasse à casa.

O celeiro estava cheio em suas três quartas partes, embora no exterior, no chão, podiam ver-se excrementos de camundongo em quantidades alarmantes. Adso, o gato, crescia com celeridade, mas nem tanto; seu tamanho era o de um rato normal. A farinha era lago escassa: só havia oito sacos. Talvez houvesse mais no moinho. Teria que lhe perguntar ao Jamie.

Fiz um repasse de nossas provisões. O mel. Detive-me franzindo os lábios. Tinha quase oitenta litros de mel desencardido e quatro grande vasilhas de favo, retirado de minhas colméias, à espera de que o convertêssemos em velas de cera. Todo isso se conservava na cova fechada com uma paliçada que servia de estábulo, a fim de proteger o dos ursos, mas não dos meninos aos que lhes tocava alimentar às vacas e as cerdas do estábulo. Até então eu não tinha visto dedos nem caras pringosas que os delatassem, mas não viria mal tomar algumas medidas preventivas.

Somando a carne, os cereais e a pequena granja, parecia que ninguém ia passar fome durante esse inverno. O que me preocupava agora era algo que não era grave, mas mesmo assim importante: a deficiência de vitaminas. Joguei um olhar ao bosquecillo de castanhos, cujos ramos estavam já completamente nus. Passariam quatro meses largos antes de que se visse alguma hortaliça fresca, embora ainda ficavam muitos nabos e couves por recolher.

Enquanto caminhava de retorno a casa, tratei de calcular quantas provisões deveriam levar-se Jamie e seus milicianos, e quantas deixar para o consumo das mulheres e os meninos. Era impossível dizê-lo; isso dependeria, em parte, dos homens que pudesse recrutar e do que cada um levasse consigo. Mesmo assim, ao ter sido renomado coronel lhe corresponderia a responsabilidade de alimentar aos homens do regimento; os recursos ficariam reembolsados mais adiante, se acaso, por atribuição da assembléia.

Não era a primeira vez que lamentava profundamente não saber mais sobre o tema. Durante quanto tempo estaria em funcionamento essa assembléia?

Brianna estava fora, dando voltas e voltas ao redor do poço, com uma expressão pensativa lhe enrugando a frente.

-Tuberías? –disse, sem preliminares-. Fabricam-se tubos de metal nesta época? Os romanos os fazia, mas…

-Vi-os em Paris e no Edimburgo, utilizados para canalizar a chuva dos telhados –sugeri-. De modo que existem. Mas não estou segura de ter visto nenhum nas colônias. Se há os têm que ser terrivelmente caros. –Descontando as coisas mais singelas, como as ferraduras para cavalos, todas as coisas de ferro deviam ser importadas do Fran Bretanha, ao igual a todo o metálico, fora de cobre, bronze ou de chumbo.

-Hum, pelo menos sabem o que é. –Entreabriu os olhos, calculando a inclinação do chão entre o poço e a casa. Logo moveu a cabeça com um suspiro-. Acredito que poderia fazer uma bomba. Mas levar a água até o interior da casa é outra coisa. –de repente bocejou, piscando, com os olhos ligeiramente lacrimosos à luz do sol-. Estou tão cansada que não posso pensar. Jemmy chorou toda a noite. E quando ao fim ficou dormido, apareceram os Mueller. Acredito que não peguei olho.

-Lembrança essa sensação –disse, solidária, sonriendo.

-Fui muito pesada de bebê? –perguntou ela, me devolvendo o sorriso.

-Muito –lhe assegurei, girando para a casa-. E o teu, onde está?

- Com... –Brianna se deteve, me aferrando o braço-. O que…? No nome de Deus, o que é isso?

Ao olhar para lá, senti um espasmo no fundo do ventre.

-O que é resulta bastante evidente –disse, me aproximando-. O que me pergunto é que faz aqui.

Era uma cruz. Uma cruz bastante grande, feita com dois ramos de pinheiro seco, despojadas das ramitas menores e atadas entre si com uma corda. Estava firmemente plantada no bordo do pátio, perto de uma grande pícea azul que custodiava a casa, e alcançava uns dois metros de altura. Os ramos eram magros embora sólidas, e não se podia dizer que fora volumosa ou que incomodasse; entretanto, sua tranqüila presença parecia dominar o pátio, tal como o tabernáculo domina o interior da igreja. Ao mesmo tempo, seu efeito não resultava reverente nem protetor. Pelo contrário: era sinistro.

-organizamos alguma reunião religiosa? –Brianna tratou de tomá-lo a brincadeira, pois a cruz a desassossegava tanto como a mim.

-Que eu saiba, não.

Era obra do Jamie; isso se notava na qualidade do artesanato. Os ramos tinham sido escolhidas por sua retidão e sua simetria; estavam cuidadosamente recortadas, com os extremos afiados. O pau que cruzava tinha um corte prolixo, que se ajustava bem ao vertical. A corda que os ligava se entrecruzava com esmero de marinheiro.

-Pode que papai tenha baseado sua própria religião –disse Brianna, pois ela também reconhecia o estilo.

De súbito apareceu a senhora Bug pela esquina da casa, com uma terrina cheia de comida para os frangos. Ao nos ver, deteve-se em seco e abriu imediatamente a boca. Preparei-me instintivamente para a investida; Bree, pelo baixo, emitiu uma risita zombadora.

-Ah, está aqui, senhora! Acabo de dizer ao Lizzie que é uma vergonha, uma verdadeira vergonha, todos esses pirralhos alvoroçando acima e abaixo, e deixando porcarias por toda a casa, e até na destilaria da senhora e Lizzie me diz, diz-me…

-Em minha consulta? O que? Onde? O que têm feito?

Já ia correndo para a casa, completamente esquecida da cruz. A senhora Bug me seguia me pisando os talões, sem deixar de tagarelar.

-Surpreendi a duas desses fantasias de diabo jogando aos boliches ali dentro, com esses bonitos frascos azuis que você tem e uma maçã. Mas pode ficar tranqüila, que lhes dei uns bons cabeçadas. Olhe que deixar restos de comida apodrecendo-se ali e…!

-Meu pão! –Tinha chegado até o vestíbulo de diante. Ao abrir a porta, encontrei tudo limpo e reluzente… incluindo a encimera, onde eu tinha deixado meu último experimento com a penicilina. Agora estava completamente vazia; a superfície de carvalho tinha sido esfregada até perder o gentil.

-Era repugnante –disse a senhora Bug do vestíbulo, a minhas costas, apertando os lábios com virtuosa pazguatería-. Repugnante! Todo talher de mofo, tudo azul e…

Aspirei fundo, apertando os punhos contra meu corpo, para não acogotarla. Fechei a porta, por não ver a encimera vazia, e me voltei para a diminuta escocesa.

-Senhora Bug –disse, fazendo um grande esforço por falar com calma-. Você sabe perfeitamente quanto avaliação sua ajuda, mas lhe pedi que não…

A porta principal se abriu de par em par, chocando-se contra a parede do lado.

-Condenada bruxa! Como te atreve a levantar a mão contra meus pequenos?

Encontrei-me cara a cara com a senhora Chisholm, avermelhada de fúria e armada com uma vassoura, com dois pequeñuelos obstinados a suas saias com as bochechas vermelhas e manchadas de lágrimas recentes.

-Você e seus preciosos pequenos! –exclamou a anciã, indignada-. Se tanto se preocupa por eles, já poderia educá-los como Deus manda e lhes ensinar a comportar-se bem, em vez de permitir que brinquem de correr por toda a casa como bárbaros, rompendo e arruinando-o tudo, do desvão até a entrada!

-Bom, senhora Bug, não acredito que os meninos quisessem…

Meu intento apaziguador se perdeu sob os chiados desses três Chisholm, como se fossem apitos de vapor; os da mãe eram os mais potentes.

-Quem é você para que meus meninos são ladrões, velha entremetida! –A mulher agitou a vassoura, movendo-se de lado a lado em um intento de fazer branco na senhora Bug. Eu me movi com ela, saltando daqui para lá, me interpondo entre as dois combatentes.

-Senhora Chisholm –disse, elevando uma mão apaziguadora-. Margaret. Ouça, estou segura de que….

-Que eu sou o que? –A senhora Bug pareceu expandir-se, como a massa ao fermentar-. Pois olhe, o que sou é uma mulher temerosa de Deus e uma alma cristã! E quem é você para falar com seus maiores e a seus superiores desse modo? Você e essa tribo de demônios que andam brincando de correr pelas colinas com farrapos, sem nem sequer uma bacinilla onde mijar!

-Senhora Bug!   -exclamei, me voltando para ela-. Não deveria…

A senhora Chisholm não se incomodou em procurar uma réplica; limitou-se a investir, com a vassoura lista. Levantei os braços para evitar que acontecesse meu lado. Ao ver-se frustrada em seu intento de esmurrar à senhora Bug, o que fez foi lhe dirigir estocadas por cima de meu ombro, tratando de atravessá-la.

A anciã, que obviamente se sentia a salvo depois da barricada de minha pessoa, saltava como uma bola do PING-pong, com seu carita redonda arrebatada de triunfo e de fúria.

-Mendigos! –gritou a todo pulmão-. Funileiros! Ciganos!

-Senhora Chisholm!Senhora Bug! –supliquei.

Mas nenhuma das duas me emprestou atenção.

 

                   O bardo

Quando ao fim Roger chegou à porta de sua casa já tinha escurecido de tudo, mas as janelas refulgiam, acolhedoras, e a chaminé despedia uma chuva de faíscas, prometendo calor e comida. Estava cansado, com frio e faminto; experimentava uma profunda e agradecido avaliação por seu lar, substancialmente agudizado ao saber que pela manhã deveria abandoná-la.

- Brianna? –Entrou entreabrindo os olhos para procurar a sua esposa no resplendor.

- Por fim! Que tarde chega! Onde estiveste? –Ela saiu do pequeno quarto do fundo, com o bebê no quadril e uma pilha de tartán apertada contra o peito. Alargou a cabeça sobre a malha para lhe dar um beijo fugaz, lhe deixando um tentador gosto a geléia de ameixas.

- passei estas dez horas últimas a cavalo, subindo e descendo por vales e colinas –disse ele, lhe tirando o tecido das mãos para atirá-la sobre a cama- , em busca de uma mítica família holandesa. Vêem me dar um beijo decente, quer?

Ela, obediente, rodeou-lhe a cintura com o braço livre para lhe dar um comprido beijo, perfumado de ameixas. Roger se disse que, por faminto que estivesse, o jantar podia esperar um pouco. Mas o bebê, que pensava distinto, lançou um berro tal que Brianna se apartou apressadamente, fazendo uma careta.

- Segue sem lhe sair o dente? –perguntou Roger, observando o semblante vermelho e inchado de sua vergôntea, talher por um reluzente filme de muco, saliva e lágrimas.

- Como pudeste adivinhá-lo? –exclamou ela, cáustica- . Ouça, pode agarrá-lo um minuto?

depois de pôr ao Jemmy em braços de seu pai, estirou-se do sutiã; o linho verde estava úmido, enrugado e cheio de manchas claras: leite cuspido. Descobriu um de seus peitos, e alargando os braços para o menino, sentou-se com ele na cadeira de amamentar, junto ao fogo.

- aconteceu-se o dia assim –lhe informou, movendo a cabeça. O bebê se retorcia e choramingava, golpeando com a mão nervosa o alimento que lhe oferecia- . Não quer mamar mais que uns poucos minutos e logo volta a vomitar. Choraminga se o levanta, mas muge se o deixa. –passou-se uma mão fatigada pelo cabelo- . Sinto-me como se tivesse passado o dia combatendo com lagartos.

- Hum!, má coisa. –Roger se esfregou a parte baixa das costas, tratando de fazê-lo com dissimulação. Logo assinalou a cama com o queixo- . Né… para que é esse tartán?

- Ah!, tinha-o esquecido. É teu. –Apartando momentaneamente a atenção do menino, levantou a vista para o Roger. Pela primeira vez reparou em seu desalinho- . Trouxe-o papai. Quer que lhe ponha isso esta noite. A propósito: tem uma grande mancha de gradeio na cara. Tem-te cansado?

- Várias vezes.

Ele se aproximou do lavamanos, coxeando um pouco.

- Sim? Que má sorte! Chist, chist –sossegou ao menino, balançando-o- . Tem-te feito mal?

- Não, estou bem.

Ele se tirou a jaqueta e lhe deu as costas para verter água no recipiente. Logo se molhou a cara, atento aos chiados do Jemmy; para seus adentros calculava as possibilidades que tinha de fazer o amor com a Brianna antes da partida, que seria pela manhã. Continuando, secou-se com a toalha, jogando uma olhada dissimulada a seu redor, se por acaso houvesse algo para comer. Tanto a mesa como o lar estavam vazios, embora no ar pendia um forte aroma de vinagre.

- Sauerkraut? –adivinhou, farejando audiblemente- . Os Mueller?

- trouxeram dois grandes frascos. –Brianna fez um gesto para o rincão, onde se via um recipiente de pedra entre as sombras- . Esse é o nosso. comeste algo?

- Não. –Seu ventre retumbou audiblemente; ao parecer estava disposto a aceitar o sauerkraut frio, se não havia outra coisa. Mas na casa grande devia haver comida. Reanimado por essa idéia, tirou-se as calças e deu começo à incômoda tarefa de tablear o tartán, a fim de fazer uma manta que pudesse sujeitar com o cinturão.

Jemmy, balançado por sua mãe, acalmou-se um pouco e só emitia intermitentes gemidos de mal-estar.

- O que era isso de uns míticos holandeses? –perguntou ela, sem deixar de balançá-lo.

- Jamie me enviou para o nordeste, em busca de uma família holandesa que, conforme lhe hão dito, instalou-se perto do Boiling Creek. Devia recrutar aos homens para a tropa e, no possível, fazer que me acompanhassem. –Jogou um olhar carrancudo ao pano preparado na cama. Só tinha usado uma manta como essa duas vezes- . É muito importante que me ponha isso?

Brianna, a suas costas, emitiu um breve bufo de risada.

- Algo terá que te pôr. Não pode ir à casa grande vestido só com a camisa. Não encontrou a esses holandeses, verdade?

- Nem sequer um tamanco.

Tinha chegado a algo que parecia ser Boiling Creek, subiu uma ribeira ao longo de vários quilômetros, esquivando (ou não) ramos baixos, sarças e matas de hamamelis, sem achar rastros de nada.

- Talvez tenham partido. Podem ter ido a Virginia ou a Pensilvania –disse Brianna, pormenorizada.

- Vale –suspirou ele- . Ria, se for preciso.

Vestir uma manta rodeada não era o mais digno que alguém podia fazer, dado que o método mais eficiente consistia em tombar-se sobre o tecido tableada e rodar como uma salsicha no assador. Jamie sabia fazer o de pé, mas, claro, o homem tinha prática.

Suas resistências, deliberadamente exagerados, foram recompensados pelas risadas da Brianna, que a sua vez pareceram ter um efeito sedativo sobre o bebê. Quando Roger deu os toques finais a suas pranchas e drapeados, mãe e filho estavam avermelhados, mas felizes. Ele lhes fez uma garbosa reverência. Bree aplaudiu com uma só mão contra o joelho.

- Estupendo –disse, percorrendo-o apreciativamente com o olhar- . Olhe a papai! Papai bonito!

Jemmy, que contemplava boquiaberto aquela visão de glória viril, floresceu em um sorriso largo e lento. Roger ainda estava faminto, dolorido e cansado, mas isso não parecia tão importante. Sonriendo de orelha a orelha, alargou os braços para o bebê.

- Tem que te trocar? Se o menino já estiver cheio e seco, levarei-o a casa. Assim terá um pouco de tempo para te arrumar.

- Insinúas que devo me polir, não? –Brianna o olhou severo, levantando o nariz largo e reta. Tinha parte do cabelo solto, em mechas e enredos, e seu vestido mostrava um aspecto lamentável.

- Está preciosa –assegurou ele, enquanto levantava o menino com destreza- . Cala, a bhalaich. Já desfrutaste muito de mamãe. E ela, por certo, desfrutou muito de ti. Agora vêem comigo.

- Não esqueça o violão! –clamou Bree.

Ele se deteve ante a porta, surpreso.

- O que?

- Papai quer que cante. Espera, que me deu uma lista.

- Uma lista? Do que? –Por isso Roger sabia, Jamie não emprestava a menor atenção à música. De fato, que Fraser não apreciasse sua maior habilidade lhe chateava um pouco, embora estranha vez o admitisse.

- De canções, certamente. –Ela recitou a lista memorizada- . Quer que cante Ho ro! e Birniebouzle. E The Great Silkie. Disse que entre uma e outra pode cantar outras coisas, mas quer essas. E logo deverá cantar coisas de guerra. Não é assim como me disse isso, mas já sabe a que me refiro: Killiecrankie, The Haughs of Cromdale e The Sherrifsmuir Fight. Só as mais antigas, certamente; diz que não cante as do quarenta e cinco, salvo Johnnie Monopolize. Essa não deve faltar, mas quase ao final. E…

Roger a olhou fixamente, desenredando o pé do Jemmy das dobras de sua manta.

- Eu pensava que seu pai não conhecia sequer o título das canções, por não falar de preferências.

Brianna, já de pé, tirou-se a larga forquilha que lhe sujeitava o cabelo, deixando que a cascata vermelha caísse sobre seus ombros e sua cara. Logo passou ambas as mãos pela massa avermelhada, jogando-a para trás.

- É certo que não tem preferências. Papai não tem o menor ouvido musical. Mamãe assegura que tem um bom sentido do ritmo, mas que não sabe distinguir uma nota de outra.

- Isso era o que eu pensava, mas por que…?

- Embora não empreste atenção à música, Roger, disposta atenção. –Cravou o pente no matagal de seu cabelo- . E se fixa. Sabe como reage a gente quando escuta essas canções, e o que sente.

- Seriamente? –murmurou ele. O fato de que Fraser reparasse no efeito de sua música, embora não pudesse apreciá-la pessoalmente, provocou-lhe um estranho prazer- . Assim quer que os abrande um pouco, não é isso?, que os entusiasme antes de que ele faça sua parte.

- Isso. –Ela assentiu com a cabeça, enquanto desatava os cordões de seu sutiã. Seus peitos saltaram, redondos e soltos sob a fina camisa de musselina.

Roger trocou de posição para acomodá-la manta. Ela captou esse leve movimento e o observou. Logo elevou lentamente as mãos para sustentá-los peitos, olhando-o com um pequeno sorriso. Por um momento ele teve a sensação de que tinha deixado de respirar.

Brianna foi primeira em romper o momento: deixando cair as mãos, foi pinçar no baú onde guardava sua roupa interior.

- Sabe exatamente o que se traz entre mãos? –perguntou, apagada a voz nas profundidades do baú- . Já tinha levantado essa cruz quando partiram?

- Sim. –Jemmy lançava pequenos bufidos, como uma locomotiva de brinquedo que puxasse costa acima. Roger o pôs debaixo de um braço, abrangendo a tripita com a mão- . É uma cruz ardente. Sabe do que se trata?

Ela emergiu do baú com uma camisa limpa nas mãos; parecia um pouco alterada.

- Uma cruz ardente? Não me diga que vai queimar uma cruz no pátio!

- Não exatamente. –Roger desprendeu o bordam com a mão livre e provou a tensão do tambor com o dedo. Logo lhe explicou em poucas palavras a tradição da cruz ardente- . É algo estranho –concluiu, pondo o tambor fora do alcance do Jemmy- . Não acredito que se tornou a fazer nas Terras Altas depois da Sublevação. Mas seu pai me disse que a tinha visto uma vez. É algo muito especial ver aqui essa cerimônia.

Arrebatado por seu entusiasmo de historiador, demorou para dar-se conta que Brianna não estava tão entusiasmada.

- Pode ser –disse ela, intranqüila- . Não sei. Dá-me calafrios.

- Né? –Roger lhe jogou uma olhada, surpreso- . por que?

Bree se encolheu de ombros, tirando-a camisa enrugada pela cabeça.

- Não sei. Possivelmente porque vi cruzes ardentes… nos informativos da televisão. O KKK… ou é que não sabe? Pode que a televisão britânica não relatório… não informava dessas coisas.

- O Ku Klux Klan? –Aqueles fanáticos preconceituosos não lhe inspiravam tanto interesse como os peitos nus da Brianna, mas fez um esforço por concentrar-se na conversação- . OH! Claro que estou informado. De onde crie que tiraram a idéia?

- O que? Não me diga que…

- Certamente –afirmou ele, alegremente- . Dos imigrantes escoceses; em realidade, descendem deles. Por isso se deram o nome do Klan” . E agora que o penso –acrescentou- , esta noite poderia ser… o elo. A ocasião que traz o costume do velho mundo ao novo. Não seria grandioso?

- Grandioso –repetiu Bree, vagamente, sacudindo um vestido limpo de linho azul, com ar inquieto.

- Tudo se inicia em algum ponto, Bree- explicou ele, com mais suavidade- . Muito freqüentemente não sabemos onde nem como. Importa que esta vez saibamos? Além disso, o Ku Klux Klan não nascerá até dentro de cem anos, pelo menos. –Fez saltar ligeiramente ao Jemmy sobre o quadril- . Não o veremos nós, nem tampouco nosso pequeno Jeremiah; talvez nem sequer seu filho.

- Estupendo –replicou ela com secura- . E nosso bisneto poderia acabar sendo o Grande Dragão.

Ele se pôs-se a rir.

- Sim, é possível. Mas esta noite é seu pai.

 

                   Jogando com fogo

Não estava seguro do que esperava. Talvez um pouco parecido ao espetáculo da grande fogueira, durante a congregação. Os preparativos eram os mesmos: implicava grandes quantidades de comida e bebida. Em um extremo do pátio havia um enorme tonel de cerveja e outro mais pequeno, cheio de uísque; um porco descomunal girava lentamente em cima de um leito de brasas, despedindo nuvens de fumaça e aromas que faziam a boca água.

Ele sorriu ante as caras banhadas pelo fogo, lustrosas de graxa e acesas pela bebida. Logo seu tamboreó bordam. O estômago lhe ressonava com força, mas o ruído se perdeu sob o buliçoso estribilho do Killiecrankie:

 

         Conheci diabo e ao Dundee

         nas ladeiras do Killiecrankie!

 

Quando lhe trouxessem o jantar a teria ganho, sem dúvida. Llevab mais de uma hora cantando e tocando. A lua já se elevava sobre o Black Mountain. Aproveitou o estribilho para jogar mão da taça que tinham deixado sob seu tamborete; depois de umedecê-la garganta atacou a nova estrofe com mais solidez.

 

         Briguei em terra, briguei no mar,

         e em casa briguei com minha tia!

         Conheci diabo e ao Dundee

         nas ladeiras do Killiecrankie!

 

Cantava com um sorriso de profissional, cruzando um olhar aqui, concentrando-se em um rosto mais à frente e calculando mentalmente o efeito. estava entrando no que Bree chamava “ coisas de guerra” .

Sentia a cruz erguida a suas costas, quase oculta pela escuridão. Mas todos a tinham visto, entre murmúrios de interesse e especulação.

- Jamie Fraser, em um lateral, mantinha-se fora do círculo de luz. Roger logo que distinguia sua silhueta alta, escura, à sombra da grande pícea vermelha que se levantava perto da casa. passou-se toda a velada percorrendo metodicamente o grupo; aqui e lá se detinha intercambiar uma saudação cordial, dizer uma piada, escutar um problema ou um relato. Agora estava sozinho, esperando. Já quase tinha chegado o momento de fazer o que se propunha, fora o que fosse.

Roger lhes concedeu um momento para aplaudir e o aproveitou para refrescar-se. Logo se lançou com “ o Johnnie Monopolize” : rápida, ardente e divertida. Durante a congregação a tinha cantado várias vezes; sabia bem o efeito que causava.

Alguns daqueles homens tinham combatido no Prestonpans; embora derrotados no Culloden, ainda aclamavam às tropas do Johnnie Monopolize e se regozijavam ante a oportunidade de reviver essa famosa vitória. Inclusive os escoceses que não tinham combatido ali, conheciam-na. Só importava que o passassem bem.

A multidão cantou médio a gritos o estribilho final, quase afogando sua voz.

 

         Né, Johnnie Monopolize, segue andando?

         Ainda soam seus tambores ?

         Se está andando, eu esperaria,

         para me aproximar das brasas pela manhã!

 

Com um último toque de tambor, fez uma reverência, entre grandes aplausos. O pré-aquecimento parecia. Era hora de apresentar o ato principal. Muito sorridente, levantou-se de seu tamborete e desapareceu entre as sombras, para os maltratados restos do enorme porco assado.

Bree estava ali, aguardando-o, com o Jemmy completamente acordado nos braços. Ela se estirou para lhe dar um beijo e lhe trocou o bordam pelo menino.

- estiveste estupendo! –disse- . Agüenta-o. vou trazer te comida e cerveja.

Geralmente, Jem preferia estar com sua mãe; mas estava tão aturdido pelas chamas e o ruído que não protestou pela mudança de mãos. limitou-se a acomodar-se contra o peito do Roger, chupando-se muito sério o polegar.

Seu pai suava pelo esforço, com o coração acelerado pela adrenalina da atuação; longe do fogo e da multidão, o ar lhe esfriou a cara avermelhada. O bebê era um peso quente e sólido no oco de seu braço. Tinha estado bem e sabia. Só cabia esperar que fora o que Fraser desejava.

Quando Bree reapareceu, trazendo uma taça e um prato cheio de comida, Jamie já tinha entrado no círculo de luz, ocupando o sítio abandonado pelo Roger ante a cruz.

Alto, largo de ombros, luzia sua melhor jaqueta cinza e uma saia de tartán azul claro; o cabelo solto e flamígero sobre os ombros, com uma pequena trança de guerreiro a um lado, adornada com uma só pluma. A luz do fogo cintilava no punho dourado de sua adaga e no broche que sujeitava sua manta, e sua atitude era séria, apaixonada. Era todo um espetáculo… e sabia.

Em poucos segundas a multidão se aquietou. Os homens faziam calar a seus companheiros mais faladores.

   - Sabem bem por que estamos aqui, verdade? –perguntou ele, sem preâmbulos.

Levantou a mão para mostrar a enrugada citação do governador, bem visível a mancha vermelha do selo oficial à luz do fogo. Houve um rumor de assentimento; a multidão ainda estava alegre; sangue e uísque corriam livremente por suas veias.

- Nos convoca a cumprir com o dever. A honra nos obriga a apoiar a causa da lei… e do governador.

Roger viu que o velho Gerhard Mueller, inclinado para um lado para escutar o que um de seus genros lhe traduzia ao ouvido, assentia com ar de aprovação.

- Ja! –gritou- . Lang lebe governador!

Houve um murmúrio de risadas e um eco de gritos em inglês e gaélico. Jamie, sorridente, esperou a que se sossegasse o bulício. Logo girou lentamente, olhando cara a cara, reconhecendo a cada homem com um gesto da cabeça. Por fim se voltou com a mão para a cruz que se levantava atrás dele, nua e negra.

- Nas Terras Altas de Escócia, quando um chefe se dispunha à guerra –disse, em tom despreocupado e coloquial, mas de modo que se ouvisse em todo o pátio- , prendia fogo à cruz ardente e a conduzia pelas terras de seu clã, como sinal para que os homens de seu sobrenome agarrassem as armas e fossem ao sítio de reunião, preparados para a batalha.

uns quantos homens tinham visto aquilo ou, ao menos, sabiam do que estava falando.

- Mas estamos em uma terra nova. Somos amigos –sorriu ao Gerhard Mueller- , Ja, Freund,, vizinhos e compatriotas –um olhar aos irmãos Lindsay- , mas não somos clã. Embora me pôs ao mando, não sou seu chefe.

“ Não me venha com essas –pensou Roger- . De qualquer modo vais ser o muito em breve.” Deu um último gole de cerveja fria e deixou a taça e o prato. A comida podia esperar um pouco mais. Bree tinha pego ao bebê e ele tinha novamente seu bordam sob o braço. Preparou-o; lhe dirigiu um olhar sorridente, mas quase toda sua atenção estava fixa em seu pai.

Jamie se inclinou para retirar uma tocha da fogueira. Logo se ergueu com ela, Iluminando os planos amplos e os ângulos marcados de sua cara.

- Que Deus seja testemunha de nossa boa disposição e fortaleza nossos braços. –Fez uma pausa para que os alemães pudessem segui-lo- . Que esta cruz ardente se eleve como testemunho de nossa honra, para invocar o amparo de Deus sobre nossas famílias… até que retornemos sãs e salvos.

Aproximou a tocha ao poste da cruz e ali a sustentou até que a casca seca se prendeu; uma chama pequena foi crescendo e cintilando na madeira escura. Roger sentiu que Brianna suspirava a seu lado, afrouxando em parte sua tensão.

Fraser se ergueu um momento, observando a chama até assegurar-se de que tinha aceso. Logo arrojou sua tocha à fogueira e se dirigiu novamente aos homens.

- Não podemos saber o que será de nós. Que Deus nos dê valor –disse simplesmente- . Que Deus nos dê sabedoria. Se for Sua vontade, que ele nos brinde paz. Partiremos pela manhã.

Então girou para afastar do fogo, procurando o Roger com o olhar. O jovem lhe fez um sinal de assentimento; depois de tragar para esclarecê-la voz, começou a cantar brandamente, na escuridão, a canção com que Jamie queria pôr fim à cerimônia: “ A flor de Escócia.”

         OH, flor de Escócia,

         quando voltaremos a verte?

         os que brigamos e morremos

         por sua pequena colina e seu vale…

 

Não era uma das canções que Bree chamava “ coisas de guerra” . Era algo solene e melancólico. Mas tampouco uma canção enfermo, em que pese a tudo; expressava lembranças, orgulho e decisão. Nem sequer era legitimamente antiga (Roger conhecia homem que a tinha composto, em sua própria época), mas Jamie a tinha ouvido e, como conhecia a história do Stirling e Bannockburn, estava plenamente de acordo com esses sentimentos.

 

         E se plantou ante ele,

         o orgulhoso exército do Eduardo,

         e o mandou de volta,

         para que o pensasse melhor.

 

O grupo de escoceses deixou que cantasse ele sozinho a estrofe, mas ao chegar ao estribilho as vozes se elevaram, fica, logo mais audíveis:

 

         E o enviou a casa…

         Pensa-o outra vez!

 

Ele recordou algo que Bree lhe havia dito a noite anterior, na cama, durante os poucos instantes em que ambos estiveram ainda conscientes. Tinham estado conversando sobre gente da época, perguntando-se se algum dia conheceriam pessoalmente a pessoas como Jefferson ou Washington. Era uma perspectiva estimulante e absolutamente impossível. Ela mencionou ao John Adams, citando algo que, segundo os livros, Jefferson havia dito (antes bem, diria) durante a Revolução: “ Sou guerreiro; que meu filho possa ser comerciante… e que seu filho possa ser poeta.”

         Agora as colinas estão nuas

         e as folhas de outono se amontoam, quietas.

         Sua terra, que agora perdeste,

         nunca foi tão querida

 

         Isso se enfrentou a ele,

           o orgulhoso exército do Eduardo,

         e o enviou a casa.

         Pensa-o outra vez..

 

Já não era o exército do Eduardo, a não ser o do Jorge. Mas seguia sendo o mesmo exército orgulhoso. Viu um instante ao Claire, de pé entre as outras mulheres que formavam um grupo à parte no limite do círculo de luz. Sua expressão era remota; estava muito quieta, com o cabelo solto ao redor da cara, obscurecidos os olhos dourados por uma sombra interior e fixos no Jamie, que estava a seu lado, em silêncio.

O mesmo exército orgulhoso no qual ela tinha combatido um dia; o orgulhoso exército onde tinha morrido o pai do Roger. Sentiu um nó na garganta; teve que agarrar ar desde muito fundo para cantá-lo com ferocidade. “ Serei guerreiro, para que meu filho possa ser mercado e seu filho, poeta.” Nem Adams nem Jefferson tinham combatido; Jefferson não teve nenhum filho varão. O poeta foi ele, e suas palavras ainda ressonavam através dos anos e os exércitos em armas, ardendo no coração de quem estava dispostos a morrer por ela, pelo país que sobre elas se fundou.

“ Possivelmente seja por seu cabelo” , pensou Roger ironicamente, ao ver o brilho de luz avermelhada na cabeça do Jamie, que se movia para observar em silêncio aquilo que tinha iniciado. Algum tintura vikingo no sangue dava a aqueles homens altos e ferozes o dom de conduzir aos homens à guerra.

 

         Os que lutaram e morreram

         por sua colina e sua garganta…

 

Assim tinha sido e voltaria a ser. Pois os homens sempre combatiam pelo mesmo: o lar e a família. E embora agora Roger tirava o chapéu bardo de um chefe escocês exilado, trataria também de ser guerreiro quando chegasse o momento, pelo bem de seu filho e dos que viessem depois.

 

           E o enviou a casa.

           Pensa-o outra vez.

           Pensa-o… outra vez.

 

                     O angélico de meu descanso

Embora era muito tarde, fizemos o amor por consentimento tácito; ambos precisávamos procurar refúgio e consolo na carne do outro. Solos em nossa quarto, com as venezianas bem fechadas para deixar fora os ruídos e as vozes do pátio (o pobre Roger seguia cantando, por exigência popular), pudemos descartar as pressas e as fadigas da jornada, ao menos por um momento.

Depois, ele me abraçou com força, obstinado a mim como se fora um talismã.

- Tudo sairá bem –disse em voz baixa, acariciando seu cabelo úmido; afundei os dedos onde se encontram o pescoço e os ombros; ali o músculo estava duro como lenha sob a pele.

- Sim, sei.

esteve-se quieto um momento, me deixando trabalhar. A tensão de seu pescoço e seus ombros se foi relaxando gradualmente; seu corpo se fez mais pesado sobre o meu. Ao sentir que eu aspirava fundo, deixou-se cair a um lado. Seu estômago ressonou audiblemente; ambos rimos.

- Não tiveste tempo para jantar? –perguntei.

- Não posso comer antes –respondeu- . Provoca-me cãibras. E depois não houve tempo. Tem aqui algo comestível?

- Não –disse, com pena- . Tinha algumas maçãs, mas os Chisholm lhes jogaram mão. Perdoa. Devi te trazer algo.

Sim, eu sabia que Jamie estranha vez comia “ antes” (antes de qualquer luta, confrontação ou situação socialmente tensa), mas não me tinha ocorrido que talvez depois não tivesse tempo de comer com todo mundo.

- Tinha outras coisas em que pensar, Sassenach –respondeu secamente- . Não se preocupe. Posso esperar ao café da manhã.

- Está seguro? –tirei um pé da cama, disposta a me levantar- . Fica muita comida. Se não querer baixar, posso ir eu e…

Agarrou-me pelo braço para me colocar com firmeza sob os cobertores. Logo me adaptou à curva de seu corpo, me pondo um braço em cima para assegurar-se de que não me movesse dali.

- Não –disse com decisão- . Esta pode ser a última noite que passe em uma cama durante muito tempo e penso ficar nela… contigo.

- Está bem.

Me acurruqué sob seu queixo, obediente, me relaxando contra ele. Compreendia: ninguém subiria para nos buscar, a menos que se apresentasse uma emergência, mas bastaria que ele ou eu aparecêssemos abaixo para provocar um imediato turba de gente que necessitava isto ou aquilo, que desejava perguntar algo, dar conselho, pedir… Era muito melhor ficar ali, abrigados e em mútua paz.

Eu tinha apagado a vela e o fogo se estava consumindo. Estive a ponto de me levantar pôr mais lenha, mas decidi não fazê-lo. Que se reduzira a brasas; de qualquer modo partiríamos para amanhecer.

Me desperecé, desfrutando a consciência do suave abraço do leito de plumas, dos lençóis limpa e suaves, com seu leve aroma a romeiro. Haveria posto suficientes mantas na bagagem?

A voz do Roger nos chegou através das venezianas, ainda potente, mas um pouco trincada pela fadiga.

- O Astuto deveria ir-se à cama –disse Jamie, com leve desaprovação- , se é que quer despedir-se de sua esposa como se deve.

- Mas se Bree e Jemmy se retiraram faz horas! –senti saudades.

- O pirralho, possivelmente, mas a moça segue ali. Faz um momento ouvi sua voz.

- De verdade? –agucei o ouvido, mas não distingui mais que um rumor de aplausos apagados, ao terminar a canção- . Suponho que quer acompanhá-lo tanto tempo como posso. Pela manhã estes homens estarão exaustos, por não falar da ressaca.

- Enquanto possam montar a cavalo, pouco me importa que vomitem entre a maleza de vez em quando –me assegurou Jamie.

Me acurruqué, me rodeando as mantas aos ombros. A voz grave e ressonante do Roger, entre risadas, negou-se com firmeza a seguir cantando. Doíam-me o pescoço e os ombros; também os pés, depois de caminhar até o manancial carregando ao Jemmy. Apesar de tudo, encontrei-me fastidiosamente desvelada, sem poder eliminar os ruídos do mundo externo, tal como os portinhas o eliminavam da vista.

- Recorda tudo o que fez hoje?

Era um pequeno jogo com o que estávamos acostumados a nos entreter de noite; cada um tratava de recordar, com luxo de detalhes, o que tinha feito, visto, ouvido e comido durante o dia, do momento de levantar-se até o de voltar para a cama. Mas essa noite ele não estava de humor para isso.

- Não recordo nada do que aconteceu antes de que fechássemos esta porta –disse, me apertando carinhosamente uma nádega- . Mas a partir de então acredito poder recordar um ou dois detalhes.

- Eu também o tenho razoavelmente afresco na mente –lhe assegurei.

Então deixamos de falar, nos assentando no sonho, enquanto abaixo cessavam os ruídos que eram substituídos pelo zumbir de roncos mistos. Ao menos, eu tratei de fazê-lo, mas não serve de nada: um momento depois estava mais acordada ainda, cheia de ansiedade contida, imaginando a total destruição de meu consultório; Brianna, Marsali ou os meninos, sucumbindo ante alguma súbita epidemia; a senhora Bug provocando rebeliões e derramamentos de sangue por toda a Colina.

Tombei-me para o outro lado, de cara ao Jamie.

- Está pensando tão alto que te ouço daqui –lhe disse- . Ou talvez contas ovelhas?

Abriu imediatamente os olhos, me dirigindo um sorriso melancólico.

- Contava porcos –me informou- . E com bom resultado, a não ser por essa besta branca que me aparecia de soslaio, sempre fora do alcance, como me provocando.

Ri com ele; logo, aproximei-me para apoiar a frente contra seu ombro, com um profundo suspiro.

- Temos que dormir, Jamie. Estou tão cansada que meus ossos parecem estar a ponto de fundir-se. E você estava em pé até antes que eu.

- Hum… - Rodeou-me com um braço para me estreitar contra seu ombro.

- Essa cruz… não acabará incendiando a casa? –perguntei um momento depois, tendo encontrado um motivo mais de preocupação.

- Não. –Sua voz soava algo sonolenta- . Faz tempo que se apagou.

O fogo do lar se reduziu a um leito de brasas resplandecentes. me tombando novamente para o lado oposto, fixei a vista nelas, tratando de esvaziar minha mente.

- Quando me casei com o Frank –lhe contei- , o sacerdote nos aconselhou que iniciássemos nossa vida conjugal rezando juntos o rosário na cama, todas as noites. Frank disse que não sabia bem se era um ato de devoção, uma maneira de conciliar o sonho ou só um método anticoncepcional permitido pela Igreja.

O peito do Jamie, a minhas costas, vibrou de risada calada.

- Pois se quer poderia provar, Sassenach- disse- . Mas terá que ser você quem leva a conta dos Ave-marias; está deitada sobre minha mão esquerda e já me intumesceram os dedos.

Movi-me um pouco para que pudesse retirar a mão.

- Rezar sim –disse- . Mas não isso, poderia ser outra oração. Conhece alguma boa para o momento de deitar-se?

- Montões –assegurou ele, movendo os dedos em alto para que o sangue voltasse para eles. Na penumbra da habitação, esse pausado movimento me recordou a maneira em que atraía às trutas, as incitando a sair de entre as pedras- . Deixa que faça memória.

A casa já estava em silêncio, descontando os habituais rangidos da madeira ao assentar-se.

Aqui tem uma –disse Jamie, por fim- . Tinha-a quase esquecida. Ensinou-me isso meu pai, não muito antes de morrer, dizendo que algum dia poderia me ser útil.

acomodou-se melhor, inclinando a cabeça para que o queixo descansasse sobre meu ombro, e começou a me falar com ouvido, com voz grave e cálida:

 

         Benze, OH Deus, a lua que está por cima de mim.

         Benze, OH Deus, a terra que está debaixo de mim.

         Benze, OH Deus, a minha esposa e a meus filhos.

         E me benza, OH Deus, a mim, que cuidei que eles.

         Benze a minha esposa e a meus filhos,

         E me benza, OH Deus, a mim, que cuidei que eles.

 

Tinha começado com certo acanhamento, vacilando de vez em quando em busca de uma palavra, mas isso já tinha desaparecido. Agora, falava com suave segurança, e não já para mim, embora sua mão morna descansava na curva de minha cintura.

 

         Benze, OH Deus, aquilo em que sedimento o olhar.

         Benze, OH Deus, aquilo em que ponho a esperança.

         Benze, OH Deus, minha razão e meu objetivo.

         Benze, OH benze-os, Deus da vida.

         Benze, OH Deus, minha razão e meu objetivo.

         Benze, OH benze-os, Deus da vida.

 

Sua mão acariciou a curva de meu quadril e subiu a me tocar o cabelo.

 

           Benze a quem compartilha meu leito e meu amor.

           Benze o manejo de minhas mãos.

           Benze, OH benze, OH Deus, o combate em defesa própria.

           E benze, OH benze, o descanso angélico.

           Benze, OH benze, OH Deus, o combate em defesa própria.

           E benze, OH benze, o descanso angélico.

 

Sua mão se ficou quieta sob meu queixo. Envolvi-a com a minha, suspirando muito fundo.

- OH!, gostou-me, sobre tudo o do descanso angélico. Quando Bree era pequena a deitávamos com uma oração aos anjos: “ Que Miguwl esteja a minha direita, Gabriel a minha esquerda, Uriel detrás de mim, Rafael diante… e sobre minha cabeça, a presença do Senhor.” - Ele me estreitou os dedos a modo de resposta.

Algo mais tarde, ao sentir que se levantava, voltei brevemente para a consciência.

- O que…? –perguntei, dormitada.

- Nada –sussurrou- . Só quero escrever uma nota. Dorme, a nighean donn. Ao despertar estarei a seu lado.

 

         Colina do Fraser, 1 de dezembro de 1770

         Do Sr. James Fraser a lorde John Grei,

         Plantação de Monte Josiah

 

                               Milord:

       Escrevo-lhe com a esperança de que tudo continue bem em sua casa e para seus habitantes; em especial, minhas saudações a seu filho.

       Todo marcha bem em minha casa e, até onde sei, no River Run também. As núpcias planejadas para minha filha e minha tia, sobre as quais lhe escrevi, sofreram a inesperada interferência das circunstâncias (principalmente uma circunstância chamada Randall Lylliwhite, nome que lhes menciono se por acaso algum dia passa a seu conhecimento). Mas meus netos receberam o batismo, por fortuna, e embora as bodas de minha tia foi adiada para outro momento, a união de minha filha com o senhor MacKenzie foi consagrada por cortesia do reverendo senhor Caldwell, digno cavalheiro, embora presbiteriano.

     O jovem Jeremiah Alexander Ian Fraser MacKenzie (o nome Ian é, é obvio, a variante escocesa do John, e se deve ao completo de minha filha a um amigo, além de sua primo) sobreviveu de bom ânimo tanto a seu batismo como à viagem de volta. Sua mãe me encomenda lhe dizer que seu xará possui agora não menos de quatro dentes, temível lucro que o torna extremamente perigoso para aquelas almas despreparadas que, enfeitiçadas por sua aparente inocência, põem inadvertidamente seus dígitos a seu pernicioso alcance. O menino remói como um crocodilo.

     Durante o verão Deus tem feito prósperos nossos esforços, nos benzendo com abundância de cereais e feno silvestre, e de bestas para consumir. Os porcos sobem à presente a não menos de quarenta; duas vacas tiveram bezerros e comprei um cavalo novo. O caráter deste animal me provoca graves duvida, mas seu fôlego não.

     Até aqui minhas boas novas.

   Passo agora às más. fui renomado coronel de tropa, com ordens de recrutar e entregar a tantos homens como me é possível ao serviço do governador, por volta de meados de mês; este serviço está destinado a colaborar com a cessão de hostilidades locais.

   Durante sua visita a Carolina do Norte, talvez ouvisse falar de um grupo de homens que se autodenominan “ reguladores” … ou talvez não, posto que nessa ocasião outros assuntos ocuparam sua atenção (minha esposa sente prazer em receber bons informe sobre sua saúde e lhe envia um pacote de remédios, com instruções para sua administração, se por acaso ainda lhe atormentam os dores de cabeça)

   Isto reguladores não são mais que chusma, menos disciplinados em sua maneira de atuar que os bagunceiros que, segundo nos há dito, enforcaram ao governador do Richardson em Efígie, Boston. Não digo que seus queixa não tenham fundamento, mas sim sua maneira das expressar faz difícil sua reparação por parte da Coroa; antes bem, pode provocar em ambas as partes maiores excessos, o qual não deixará de terminar em dano.

   Em 24 de setembro houve no Hillsborough um estalo de violência, durante o qual se destruíram caprichosamente muitas propriedades e se recorreu à força –às vezes com justiça, às vezes não- , contra funcionários da Coroa. Um juiz foi infelizmente ferido. Muitos dos reguladores foram presos. Após não se ouviram mais que murmúrios ou pouco mais.

   Tryon é um homem capaz, mas não é granjeiro. Mesmo assim, talvez espera, mediante uma demonstração de força agora (quando é provável que não seja necessária) intimidar aos bagunceiros a fim de que mais adiante não seja necessário fazê-lo. É um militar.

   Estes comentários me levam a verdadeiro objetivo desta missiva. Não espero conseqüências fatais da atual empresa, mas mesmo assim… Você também é militar, ao igual a eu. Conhece o imprevisível do mal e que catástrofes podem surgir dos começos mais corriqueiros.

   Ninguém conhece os detalhes de seu próprio final, salvo que este tem que chegar. portanto, tomei todas as previsões possíveis para o bem-estar de minha família.

   Enumero aqui a seus membros, posto que não os conhece todos: Claire Fraser, minha amada algema; minha filha Brianna e seu marido, Roger MacKenzie, e seu filho, Jeremiah MacKenzie. Minha outra filha Marsali e seu marido, Fergus Fraser, filho adotivo meu, que agora têm dois pequenos, chamados Germain e Joan. A pequena Joan leva o nome da irmã do Marsali, conhecida como Joan MacKenzie, que à presente amora ainda em Escócia. Não disponho de tempo para familiarizá-lo com a história da situação, mas tenho bons motivos para considerar a esta jovem como uma filha mais, e me sinto igualmente obrigado a cuidar seu bem-estar e o de sua mãe, chamada Laoghaire MacKenzie.

   Rogo-lhe, em nome de nossa larga amizade e pela consideração que lhe merecem minha esposa e minha filha, que se me acontecesse alguma desgraça nesta empresa, façam o que esteja a seu alcance para as pôr a salvo.

   Parto para amanhecer de amanhã, que não está muito distante.

   Seu muito humilde e obediente servidor,

                        James Alexander Malcom MacKenzie Fraser

 

   Postcriptum: Meu agradecimento pela informação com que respondeu você a minha anterior averiguação sobre o Stephen Bonnet. Tomo nota do conselho que a acompanha com a maior apreciação e gratidão por sua amável intenção, embora, tal como suspeita, não me fará trocar de atitude.

 

   Post-postcriptum: Farquard Campbell, do Greenoaks, perto do Cross Creek, tem em seu poder copia de minha vontade e testamento e dos documentos correspondentes a minha propriedade e assuntos, aqui e em Escócia.

 

                    A tropa fica em marcha

O tempo nos ajudou , mantendo-se frio mas espaçoso. Com os Mueller e os homens das granjas dos arredores, partimos da Colina do Fraser um grupo de quase quarenta homens...e eu.

No terreno baixo do Wogan nos uniram seis mais, e três no Belleview, mais os dois irmãos Findlay que provinham de um pequeno assentamento chamado Possum Gut. Todas as noites Jamie dirigia exercícios de prática militar,aunque de um tipo muito pouco ortodoxo.

- Não temos tempo para adestra-os como é devido –explicou ao Roger , a primeira noite- .Necessitam-se semanas de formação para que os homens não fujam quando começar o fogo.

O jovem se limitou a fazer um gesto de assentimento, embora me pareceu que por sua cara passava certa expressão de inquietação.

- É natural fugir do perigo,no?El objetivo de adestrar às tropas é as acostumar à voz do oficial, de modo que a escutem e obedeçam sem pensar no perigo.

- Sim, igual a adestra a um cavalo para que não se espante dos ruídos- interrompeu Roger.

- Assim é –lhe deu a razão Jamie, muito sério- .Mas há uma diferencia;el cavalo deve estar convencido de que você sabe mais que ele, enquanto que o oficial só precisa gritar mais forte.

Roger se pôs-se a rir. Jamie prosseguiu com uma meia sorriso:

- Na França, quando me arrolei como soldado, me hacian partir de um lado a outro, de cima abaixo; desgastei um par de bota santes de que me dessem pólvora para a arma. Ao terminar o dia estava tão exausto que, se tivessem disparado um cañonazo junto a meu jergón, não me teria movido um cabelo.

Girou um pouco a cabeça; o sorriso desapareceu de sua cara.

- Mas não temos tempo para isso. A metade de nossos homens têm alguma experiência como soldados, teremos que confiar em que eles se mantenham firmes, se chegar o momento de combater, e dêem valor ao resto.

Olhou mais à frente do fogo, assinalando o panorama de árvores e montanhas que foram desaparecendo.

- Não é um grande campo de batalha,verdade? Devemos nos organizar para lutar onde haja um lugar para refugiar-se. Ensinaremo-lhes a combater como o fazem os montanheses de Escócia, a congregar-se ou disseminar-se a minha palavra e, se não, a arrumar-lhe como podem. Embora só a metade dos homens têm experiência como soldados, todos eles sabem caçar.

Levantou o queixo, assinalando para os recrutas, vários dos quais tinham caçado pequenas presas durante a jornada. Os irmãos Lindsay tinham disparado sobre as codornas que estávamos comendo.

Roger fez um gesto afirmativo e se agachou para retirar da fogueira uma bola de argila enegrecida, escondendo sua cara. Eu me levantei.

- Mas não é exatamente como caçar não? –Sentei-me junto ao Jamie para lhe dar um pão-doce de milho quente- .Muito menos agora.

- O que quer dizer, Sassenach? –Jamie partiu o pão-doce, entrecerrando os olhos de agradar ao inalar o aroma que dele emanava.

- Para começar, não sabe se chegarão a combater –assinalei- .Además,en todo caso não lhes enfrentarão com tropas treinadas; os reguladores têm tão pouca experiência como seus homens. Em terceiro lugar, a verdadeira intenção não é matá-los, a não ser assustá-los para que se retirem ou se rendam. E quarto- sorri ao Roger- , o objetivo da caça é matar algo, enquanto que o da guerra é retornar com vida.

Jamie se engasgou. Tentei lhe ajudar com uns tapinhas nas costas, mas ele me fulminou com o olhar. Tossiu algumas migalhas, tragou saliva e se levantou, agitando o plaid.

- me escute –disse, algo rouco- .Tem razão, Sassenach , mas também te equivoca. É verdade que não é como caçar, porque normalmente a presa não trata de te matar a ti.- voltou-se para o Roger, carrancudo, e lhe disse- : Disposta atenção. Claire se equivoca no resto. A guerra consiste em matar, e isso é tudo. Se não querer chegar a fazê-lo, se te conformar assustando, e sobre tudo se pensar em sua próprio pele...Vamos homem, estivesse mais morto quando anochezca o primeiro dia.

Jogou no fogo os restos de seu pão-doce e se afastou sem fazer ruído.

 

Durante um momento fiquei petrificada, até que o calor do pãozinho que tinha na mão me queimou os dedos. Deixei-o no tronco, com um *ai* apagado. Roger se moveu em seu assento.

- Tudo bem? –perguntou-me sem me olhar. Seus olhos seguiam fixos no lugar por onde Jamie tinha desaparecido.

- Bem.

Esfriei os dedos queimados contra a casca úmida do tronco. Uma vez aliviado o incó,odo silencio por esse pequeno diálogo, foi possível mencionar o assunto que nos ocupava.

- Embora Jamie tem certa experiência no tema –lhe disse- , acredito que isto foi uma reação exagerada.

- Você crie? –Roger não parecia nervoso nem preocupado por seus comentários.

- É obvio. Aconteça o que acontecer com os reguladores, sabemos perfeitamente que isto que isto não vai ser uma guerra declarada. O mais provável é que fique em nada!

- Tem razão.- O jovem seguia com a vista perdida na escuridão e os lábios franzidos, em atitude cavilosa- .Só que... não acredito que se referisse a isso.

Arqueei uma sobrancelha e ele me olhou com um sorriso irônico.

- Quando saiu de caceria comigo me perguntou que sábia eu do que se morava. O contei. Bree me há dito que também perguntou a ela e que lhe respondeu.

- O que se morava? Refere-te à revolução?

Roger assentiu, atento à parte de pão-doce que estava desmigando entre seus dedos largos e calejados.

- Contei-lhe o que sabia. As batalhas, a política. Não todos os detalhes, é obvio, mas sim o principal do que lembrança e o prolongado e sanguinário que será.- Durante um instante guardou silêncio; logo me olhou com um brilho verde nos olhos- .Suponho que é um intercâmbio justo. Tratando-se dele nunca se sabe, mas possivelmente o assustei e acaba de me devolver o favor.

Com um bufido de risada, levantei-me para sacudir os miolos e as cinzas de minha saia.

- O dia em que possa assustar ao Jamie Fraser com histórias da guerra, filho meu –disse- , esse dia se congelará o inferno.

Ele riu, sem perder a compostura.

- Pode que não o assustasse, mas ficou muito calado. Mas te direi algo.- Embora assumiu um ar mais sério, seus olhos seguiam brilhando- . A mim sim que me assustou.

 

Joguei uma olhada para os cavalos. Apesar de não ver o Jamie sabia que estava ali; o sutil movimento dos animais, seus leves bufos, diziam-me que alguém conhecido estava entre eles.

- -Ele não era um simples soldado –disse ao fim, em voz baixa- . Era oficial.

Voltei a me sentar no tronco e toquei o pão-doce. Logo que estava morno. Agarrei-o sem prová-lo.

- Eu fui enfermeira militar, sabe? Em um hospital da campanha, na França.

Ele inclinou com interesse sua cabeça moréia. O fogo projetava sombras intensas a sua cara, destacando o contraste das sobrancelhas densas e os ossos fortes com a curva suave da boca.

- Atendiá a soldados. Todos eles tinham medo.- Sorri com tristeza- .Os que tinham estado sob o fogo, porque recordavam; os que não, porque imaginavam. Mas os que não podiam dormir de noite eram os oficiais.

Deslizei distraídamente o polegar pela superfície desigual do pão-doce. Estava algo gordurenta.

- Eu estava com o Jamie depois do Preston, quando um de seus homens morreu em seus braços. Chorava. Isso o recorda. Se não recordar o do Culloden é porque não pode suportá-lo.

Baixei a vista à massa frita que tinha na mão, escavando as pontas queimadas com a unha do polegar.

- Assustou-o, sim. Não quer chorar por ti. Eu tampouco –acrescentei brandamente- .Embora agora não aconteça nada, quando chegar o momento...tome cuidado, há-me oido?

Houve um comprido silencio. Logo ele disse pelo baixo:

- Sim.- E se levantou. Suas pegadas se perderam rapidamente no silêncio da terra úmida.

O que ao Jamie assustava não era o que Roger lhe havia dito, a não ser o que ele mesmo sabia. Tudo bom oficial tem duas opções: deixar-se desmoronar pela responsabilidade...ou endurecer-se como as pedras. Ele sabia.

Quanto a mi...eu também sabia umas quantas coisas. Estava casada com dois militares, ambos os oficiais. Tinha sido enfermeira e curadora nos campos de batalha de duas guerras.

Nos campos de batalha das duas guerras mundiais morreram milhares de soldados pelas feridas causadas; eu sabia. E sabia também que centenas de milhares morreram por infecções e enfermidades. Agora as coisas não seriam diferentes. Não nos próximos quatro anos.

E isso me assustava muito.

 

A noite seguinte acampamos nos bosques do Balsam Mountain, um ou dois quilômetros mais à frente do assentamento do Lucklow. Vários homens queriam continuar até a aldeia Brownsville, o ponto mais afastado de nossa viagem, antes de nos dirigir para o Salisbury. No Brownsville havia a possibilidade de nos encontrar com alguma tabernao, correio o menos, um abrigo acolhedor onde pudéssemos dormir. Mas ao Jamie pareceu melhor esperar.

- Não quero assustar às pessoas –havia dito ao Roger- entrando com uma tropa de homens armados depois do anoitecer. É melhor aparecer quando tiver amanhecido, explicar ao que vamos e conceder aos homens um dia e uma noite para que se preparem.

Um espasmo de tosse lhe sacudiu os ombros.

Eu não gostava do aspecto do Jamie nem como soava sua voz. Tinha má cara; quando se aproximou da fogueira para encher sua tigela, percebi um som sibilante em sua respiração. A maioria dos homens se encontravam no mesmo estado; os narizes vermelhos e as tosses eram endêmicas. A fogueira vaiava a cada instante, alcançada por algun cusparada.

- Ewald –chamou Jamie a um dos Muellers, com voz rouca. Fez uma pausa para pigarrear, com ruído de flanela rasgada- .Ewald, procura o Paul e tragam mais lenha para o fogo. A noite será fria.

Uma vez servido a última terrina, pu-me de costas ao fogo para tomar minha ração de guisado; um grato calor rodeou meu traseiro gelado.

- Está bem, senhora?- Jimmy Robertson, que tinha preparado a carne, perguntou-me, esperando um completo.

- Delicioso –lhe assegurei.

Em realidade, estava quente e eu tinha fome. Isso, somado ao feito de não ter tido que guisá-lo eu, deu a minhas palavras um tom de sinceridade tal que ele se foi satisfeito.

A mim também começava a me gotejar o nariz; esperava que simplesmente fora por causa da comida quente. Ao tragar, vi que não havia sinais de irritação na garganta, nem de congestão em meu peito. Ao Jamie tagarelavam os dentes; tinha terminado de comer e estava de pé a meu lado, esquentando-as nádegas junto ao fogo.

- Todo bien,Sassenach? –perguntou, rouco.

- Só rinite vasomotriz –repliquei, me tocando o nariz com o lenço.

- Onde? –Jogou um olhar suspicaz ao bosque- .Aqui? Não disse que viviam no África?

- O que? Ah, os rinocerontes. Sim, assim é. Só quis dizer que me gotejava o nariz, mas não tenho a gripe.

- Ah, não? Menos mal. Eu sim –acrescentou, e espirrou três vezes seguidas. Logo me entregou sua terrina vazia, para poder soá-la nariz com ambas as mãos, coisa que fez emitindo uma série de ruídos escandalosos. Fiz uma careta ao ver o avermelhadas e irritadas que estavam suas fossas nasais. Em meu alforja tinha um pouco de graxa de urso alcanforada, mas ele não me permitiria ficar o em público.

- Está seguro de que não deveríamos continuar? –perguntei- . Geordie diz que a aldeia não está longe e há uma...espécie de caminho.

Conhecia a resposta; ele não era dos que trocam de estratégia para sua comodidade pessoal. Desde perto, o assobio da respiração do Jamie tinha uma nota mais grave, lhe zumbam, que me afligia.

Ele sabia a que me referia, e sorriu, guardando o lenço empapado na manga.

- Sairei adiante, Sassenach –disse- . É só um pequeno resfriado. estive pior que agora em muitas ocasiões.

Relaxou o gesto. Dava-me a volta e vi dois homens que emergiam do bosque, sacudindo-a pinaza e trocitos de casca da roupa: Jack Parker e um dos novos, cujo eu nomeie ignorava ainda; a julgar por seu acento, seguro que tinha emigrado recentemente de algum lugar próximo ao Glasgow.

- Tudo em calma, senhor –disse Parker, tocando o chapéu em saudação- . Mas frio como a caridade.

- Sim. Do jantar não fui capaz de sentir minhas partes privadas –disse o do Glasgow, esfregando-se com uma careta enquanto se aproximava do fogo- . É como se tivessem desaparecido!

- Entendo-te –replicou Jamie- . Faz um momento fui mijar, mas não me encontrei isso.

Entre as gargalhadas, foi inspecionar os cavalos, com uma segunda tigela de guisado ao meio esvaziar na mão. Os outros já estavam preparando suas mantas e debatiam a conveniência de dormir com os pés ou a cabeça para o fogo.

- Se te aproximar muito lhe chamuscarão as reveste das botas –argumentou Evan Lindsay- . Veis?Las cunhas se derreteram e olhem o que passou.

Levantou um pé de grande tamanho, exibindo um calçado maltratado, pacote com uma corda tosca que o mantinha sujeito. Às vezes se costuravam as reveste e os saltos, mas o mais comum era as unir com pequenas cunhas de madeira ou couro pegas com resina de pinheiro ou algum outro adesivo. a de pinheiro, em particular, era inflamável. Eu tinha visto estalar faíscas nos pés de quem os aproximava muito ao fogo: era alguma dessas cunhas, súbitamente presa pelo calor.

- É preferível a que te queime o cabelo –argumentou Ronnie Sinclair.

- Não acredito que os lindsay tenham que nos preocupar por isso. –Kenny sorriu a seu irmão maior, tirando-a boina de ponto que seus usaba,como dois irmãos, para cobri-la calva.

- Sim, sem duvidá-lo, a cabeça perto do fogo –disse Murdo- . Não convém que te congele o couro cabeludo.- Continuando, jogou um olhar invejoso ao Roger, quem se estava atando a densa juba negra com uma parte de couro- . MacKenzie não tem por que preocupar-se. É mais peludo que um urso!

Roger respondeu com um grande sorriso. Como os outros, tinha deixado de raspar-se assim que partimos da Colina; agora, passados oito dias, exibia um penugem espesso e escuro.

Jamie voltou a tempo para isso oir e riu também, mas a risada acabou em um espasmo de tosses.

Evan esperou a que passasse.

- O que opina você, MAC Dubh? Pés ou cabeça?

Jamie se limpou a boca com a manga e sorriu. Parecia um verdadeiro vikingo, tão peludo como outros, com o fogo arrancando brilhos vermelhos e dourados a sua barba recente e sua juba solta.

- Isso não me preocupa, moços –disse- . Eu dormirei abrigado em qualquer posição.- E me

assinalou com a cabeça.

Houve um rumor geral de risadas, às que acrescentaram alguns comentários ligeiramente soezes em escocês e gaélico, por parte dos homens da Colina.

- Igual a uma tropa de sujos babuínos –murmurei pelo baixo- . E eu durmo com o bonito chefe!

- Os babuínos são os macacos sem cauda?- perguntou ele, interrompendo seu diálogo com o Ewald sobre os cavalos.

- Sabe perfeitamente.

Olhei-o aos olhos e ele curvou a boca a um lado,sabiendo que eu lhe adivinhava o pensamento. O sorriso se alargou.

- Por certo –murmurou a meu ouvido- , leva postos essas calças infernais?

- Sim.

- tira-lhe isso

- O que? Aqui? –Olhei-o com olhos de fingida inocência- . Quer que me congele o traseiro? –Ele entreabriu apenas, com um brilho azul de gato.

- Não te congelará. Asseguro-lhe isso.

ficou detrás de mim; o calor ardente das chamas foi substituído pela fresca solidez de seu corpo. Não menos ardente, como descobri quando me rodeou a cintura com os braços para me atrair para si.

- Ah, encontraste-a –disse- .Que bem!

- Que coisa? Tinha perdido algo? –Roger se deteve. Vinha de onde estavam os cavalos, com um cilindro de mantas sob um braço e seu bodharm sob o outro.

- Pois.. só um par de calças velhas –respondeu Jamie. Às escondidas atrás de meu xale, deslizou uma mão sob a cinturilla de minha saia- . vais obsequiar nos com uma canção?

- Se alguém quiser, certamente.- O jovem sorriu, avermelhada a luz do fogo sobre suas facções- . Em realidade quero aprender uma; Evan prometeu me cantar uma peça romântica que lhe ensinou sua avó.

- OH!, acredito q a conheço –riu Jamie.

Roger arqueou uma sobrancelha; eu, assombrada também, torci um pouco o torso para olhar a meu marido.

   - Claro que não poderia cantá-la –disse ele com suavidade- . Mas sei a letra. No cárcere do Ardsmuir, Evan a cantava muito freqüentemente. É um pouco grosseira –acrescentou, com esse tom vagamente afetado que revistam adotar os montanheses do Escocia,justo antes de te dizer algo escandaloso.

Roger, reconhecendo-o, pôs-se a rir.

- Nesse caso será melhor que a escriba- disse- , para benefício das gerações futuras.

Os dedos do Jamie tinham estado trabalhando com habilidade. Nesse momento, as calças (que eram deles e, portanto, umas seis talhas mais das que me correspondiam) caíram silenciosamente ao chão. Uma corrente geada subiu sob minhas saias, chocando-se contra minhas partes inferiores recém despidas. Aspirei bruscamente.

- Faz frio, não? –Roger se encongió de ombros, estremecendo-se exageradamente por solidariedade.

- Pois sim –confirmei- . Para lhe congelar as Pelotas a um macaco de bronze, não?

Os dois estalaram em simultâneos ataques de tosse.

 

Com o sentinela em seu posto e os cavalos atendidos, retiramos a nosso lugar de descanso, a discreta distância do fogo. O calor da comida e o fogo se esfumaram, mas só me estremeci de verdade quando ele me tocou.

Teria querido me colocar imediatamente entre as mantas, mas Jamie me reteve. Sua intenção original parecia intacta, mas algo lhe distraiu. Ficou imóvel, embora sem deixar de me abraçar, com a cabeça erguida para escutar, a vista fixa na penumbra do bosque.

- O que acontece? –Movi-me um pouco, me apertando instintivamente contra ele, e seus braços me rodearam.

- Não sei. Mas percebo algo, Sassenach. –apartou-se um pouco, levantando a cabeça em inquieta busca, como o lobo que fareja o vento, mas não nos chegou mais mensagem que um distante repico de ramos nus- . Se não serem rinocerontes, algo há.- Um sussurro intranqüilo me

arrepiou os cabelos da nuca- . Espera um momento, querida.

O vento soprou súbitamente frio com a perda de sua presença, enquanto ele ia falar em voz baixa com dois dos homens. O que era o que percebia ali? Seu sentido do perigo me inspirava o major dos respeitos. Um momento depois se sentou em cuclillas a meu lado, enquanto eu me cobria entre as mantas.

- Não passa nada. Hei-lhes dito que esta noite poremos dois guardas e que cada um deve ter sua arma carregada e à mão. Mas acredito que tudo está bem.

Seguia olhando para o bosque, mas sua expressão era só pensativa.

- Tudo está bem –repetiu

- foi-se?

Girou a cabeça, com os lábios algo contraídos. Sua boca paredía suave, tenra e vulnerável entre sua barba incipiente.

- Não sei sequer se tiver havido algo ali, Sassenach –disse- . Pareceu-me sentir que me observavam, mas pôde ser um lobo de passagem, um mocho... ou nada mais que um spiorad em pena, vagando pelo bosque. De qualquer modo já se foi.

Sorriu-me; vi a piscada de luz que emoldurava sua cabeça e seus ombros, recortados contra o fogo. Mais à frente se ouvia a voz do Roger, sobre o crepitar do fogo; estava aprendendo a melodia da canção, seguindo a voz de evan, rouca, mas segura. Quando Jamie se deslizou entre as mantas, a meu lado, girei para ele, buscando-o com as mãos frite para lhe devolver o favor que me tinha feito antes.

Tremíamos convulsivamente, cada um procurando com urgência o calor do outro. Achei-o e ele me girou, elevando as capas de tecido que nos separavam até ficar detrás de mim, me rodeando com um braço; pequenas partes de secreta nudez nos uniam calidamente sob as mantas. De cara ao bosque em penumbras, contemplei a luz do fogo que dançava entre as árvores, enquanto Jamie se movia detrás de mim (detrás, no meio, dentro), grande e quente, tão devagar que logo que fazia sussurrar os ramos sobre as que jazíamos.

A voz do Roger se elevou, doce e potente, e pouco a pouco deixamos de tremer.

 

Despertei muito mais tarde, sob um céu negro azulado, com a boca seca, e a respiração rouca do Jamie perto de meu ouvido. Tinha estado sonhando um desses sonhos sem sentido de incessante repetição, que ao despertar desaparecem mas deixam um desagradável sabor na boca e na mente. Necessitava água e devia esvaziar a bexiga, tudo de uma vez, de modo que me escorri com cuidado sob o braço do Jamie e saí das mantas. Ele se moveu, com uma leve queixa, soprando em sonhos, mas não despertou.

Detive-me para posar uma mão em sua frente. Estava fria, sem febre. Talvez fora só um forte resfriado, como ele dizia. Levantei-me, abandonando a contra gosto o quente santuário de nosso ninho, mas sabendo que não podia esperar à manhã.

As canções se sossegaram; a fogueira era agora mais pequena, mas seguia acesa, alimentada pelo sentinela. Era Murdo Lindsay. Levantei a mão em uma breve saudação. Murdo respondeu com uma inclinação de cabeça e continuou vigiando o bosque.

Os homens dormiam em um círculo, sepultados entre suas mantas. De repente, ao caminhar entre eles senti reparo. Afetada ainda pelo feitiço da noite e os sonhos, estremeci-me ante aquelas silhuetas caladas, tão quietas uma ao lado da outra. Assim tinham disposto os cadáveres no Amiens. E no Preston. Imóveis e amortalhados, um junto a outro, com as caras cobertas, anônimos. Estranha vez a guerra olhe a seus mortos à cara.

E por que despertava do abraço amoroso pensando na guerra e em fileiras adormecidos de cadáveres? Isso me perguntei enquanto passava por onde estavam aqueles corpos. A resposta era singela dado nosso destino: íamos para uma batalha, se não imediata, ao menos próxima.

Passei junto ao último dos homens dormidos como se caminhasse em meio de um sonho maligno, do que ainda não tinha despertado de tudo. Logo recolhi um cantil do chão, perto das alforjas, e bebi profundamente. O frio penetrante da água começou a dissipar meus pensamentos sombrios, arrastados por aquele sabor doce e limpo. Fiz uma pausa para me secar a boca.

Seria melhor levar um pouco ao Jamie; se não o tinha despertado minha ausência, despertaria minha volta. E ele também teria a boca seca, já que não podia respirar pelo nariz. Pendurei-me a

cantil ao ombro e entrei na proteção do bosque.

Pese ao frio intenso, ali havia muita paz.Jamie tinha razão: se algo tinha passado por ali horas antes, no bosque não havia já nada adverso.

Como se ao pensar nele o tivesse convocado, ouvi uma pegada cautelosa e o ofego lento e sibilante de sua respiração. Tossiu com um ruído estrangulado que eu não gostei absolutamente.

- Aqui estou –disse pelo baixo- . Como está seu peito?

A tosse se cortou em um súbito ofego de pânico e um ranger de folhas. Vi que Murdo, junto ao fogo, levantava-se de um salto, mosquete em mão; logo, uma silhueta escura passou como um raio a meu lado.

- Né! –exclamei, mais surpreendida que assustada. A silhueta tropeçou. Instintivamente, ondeei a correia do cantil por cima de minha cabeça, e golpeei com ela as costas da silhueta, com um ruído oco. Quem quer que fosse ( não se tratava do Jamie) caiu de joelhos , tossindo.

As estrelas giravam raudamente no alto, refulgindo por entre os ramos sem folhas. Meu atacante desapareceu, depois de ter expresso seu sobressalto com uma pequeñña interjeição escocesa. A minha esquerda se ouviam gritos e ruídos de choque, mas toda minha atenção estava concentrada em recuperar o fôlego.

O intruso já tinha sido capturado e miserável até a luz do fogo.

Se não tivesse estado tossindo ao receber meu golpe, o mais provável é que tivesse conseguido escapar. Tal como aconteceram as coisas, agora tossia e ofegava tanto que logo que podia manter-se em pé; sua cara estava arroxeada pelo esforço de fazer acontecer o ar. As veias da frente se sobressaíam como lombrigas. Ao respirar (ao menos, ao tentá-lo) emitia um arrepiante assobio.

- Que diabos faz você aqui? –interpelou Jamie, rouco. Logo fez uma pausa para tossir por solidariedade.

Pergunta-a era puramente retórica, pois era evidente que o menino não podia falar. Era Josiah Beardsley, meu possível paciente de amidalite. O que tivesse estado fazendo da congregação não parecia ter melhorado sua saúde, por certo.

Corri para o fogo, em busca da cafeteira que estava entre as brasas. Colhi-a com uma dobra de meu xale e a agitei. Bem: ficava um pouco. E como tinha estado fervendo do jantar, devia estar quente como o inferno.

- Sentem e lhe afrouxem as roupas; e me tragam água fria. –Abri-me passo através do círculo de homens que rodeava ao cativo, obrigando-os a apartar-se com a cafeteira quente.

Um momento depois punha um tigela de café em seus lábios, negro e viscoso, diluído tão somente com um pouco de água fria para que não lhe queimasse a boca.

- Exala lentamente contando até quatro, aspira contando até dois, exala de novo e bebe um sorvo –o instruí.

O branco dos olhos era visível ao redor da íris; pelas comissuras de sua boca aparecia a saliva. Apoiei-lhe uma mão firme no ombro, insistindo-o a respirar, a contar, a respirar... Um sorvo, uma inspiração, um sorvo, uma inspiração... E quando se acabou o café, sua cara tinha perdido esse alarmante matiz carmesim para aproximar-se mais à cor da pança do pescado, com um par de marcas avermelhadas ali onde os homens o tinham golpeado. O ar seguia assobiando em seus pulmões, mas ao menos respirava, o qual era uma considerável melhoria.

Os homens o obsevaban com interesse, entre murmúrios, mas como fazia frio, era tarde e a emoção da captura tinha desaparecido, começavam a bocejar e entrecerrar os olhos. depois de tudo, só era um guri, mirrado e além feio. A uma ordem do Jamie, voltaram para suas mantas sem protestar, deixando que seu chefe, Roger e eu atendêssemos ao inesperado hóspede.

Para ter quatorze anos era miúdo e estava fraco até a debilitação; quando lhe abri a camisa para auscultá-lo, teria podido lhe contar as costelas, Pelo resto, não tinha nenhum rasgo belo: o cabelo negro, muito curto, estava denso de pó, graxa e suor; em geral, seu aspecto era o de um macaco cheio de pulgas; grandes e negros, os olhos ressaltavam na cara consumida pela preocupação e a desconfiança.

depois de ter feito quanto estava a meu alcance, fiquei mais satisfeita com seu aspecto. A meu sinal, Jamie se agachou a lu lado.

- Bem, senhor Beardsley –disse com simpatia- ,viestes para lhes incorporar a nossa

tropa?

- Né... não. –Josiah fez girar a taça de madeira entre as mãos, sem elevar a vista- . Eu... né... meus assuntos me trejeron para aqui, isso é tudo.

Sua voz soava tão rouca que fiz uma careta por empatia, imaginando a dor de sua garganta inflada.

- Compreendo. –Jamie manteve a voz grave e amistosa- . De maneira que viu nossa fogueira por acaso e te ocorreu dever buscar comida e refúgio.

- Sim, assim foi. –Tragou saliva com evidente dificuldade.

- Estraguem. Mas veio mais cedo, verdade? Estava no bosque quando obscureceu. por que esperou a que saísse a lua antes de te aproximar?

- Eu não... não estava...

- OH, claro que sim.- O tom do Jamie seguia sendo cordial, mas firme. Alargou a mão para agarrar ao Josiah pela perchera da camisa, lhe obrigando a que o olhasse- .Ouça, menino, entre você e eu há um trato. É meu arrendatário, conforme acordamos. Isso significa que tem direito a meu amparo. Também significa que eu tenho direito ou seja a verdade.

Josiah lhe sustentou o olhar. Embora sua expressão havia medo e cautela, também se via nela o aprumo de uma pessoa muito major. Não fez esforço algum por apartar a vista. Seus olhos, negros e sagazes, tornaram-se profundamente calculadores. Esse menino ( se na verdade o podia considerar assim, coisa que Jamie, obviamente, não acreditava) estava habituado a depender exclusivamente de si mesmo.

- Vos disse, senhor, que iria a sua casa por volta do ano novo, e isso é o que penso fazer. O que faça enquanto isso é meu assunto.

Jamie arqueou as sobrancelhas, mas o soltou com um lento gesto afirmativo.

- É certo. Mas admitirá que alguém tem direito a sentir curiosidade.

O menino abriu a boca para falar, mas trocou de idéia e escondeu novamente o nariz na taça de café. Jamie o tentou de novo.

- Podemos te oferecer ajuda para seus assuntos? Quer viajar um trecho conosco, ao menos?

Josiah negou com a cabeça.

- Não. Tenho uma obrigação para com você, senhor, mas é melhor que atenda isso por mim mesmo.

Roger, que estava sentado detrás do Jamie, observava-o em silêncio. de repente se inclinou para diante, os olhos verdes fixos no menino.

- Esse teu assunto –disse- , tem algo que ver com essa marca que leva no polegar?

A taça caiu ao chão; o café, ao derramar-se, salpicou-me a cara e o sutiã. antes de que eu pudesse piscar para ver o que ocorria, o moço tinha abandonado suas mantas e cruzado a metade do claro. Por então Jamie já ia detrás dele. Ambos desapareceram no bosque, como uma raposa açoitada por seu sabujo. Roger e eu ficamos boquiabertos.

Pela segunda vez na noite, os homens abandonaram suas mantas e jogaram mão de suas armas. Eu começava a pensar que o governador ficaria muito agradado com seus milicianos; sem dúvida alguma, estavam preparados para ficar em ação em um momento.

 

- Que diabos...? –perguntei ao Roger, enquanto me limpava o café das sobrancelhas.

- Acredito que não deveria ter mencionado o tema tão de repente –disse.

- O que? O que? O que passa agora? –bramou Murdo Lindsay, apontando seu mosquete às árvores.

- Atacam-nos? Onde estão esses bodes? –Kenny apareceu a meu lado, engatinhando; espiava por debaixo de seu gorro de ponto como um sapo sob um regador.

- Nada. Não acontece nada. Quer dizer... em realidade está tudo bem.

Os homens voltaram a deitar-se, enquanto Roger e eu nos olhávamos por cima da cafétera.

- O que era? –perguntei, um pouco irritada.

- A marca? Estou quase seguro de que era uma letra L. A vi quando lhe deu a taça de café e ele a colheu com a mão.

Me contraiu o estômago. Sabia o que significava isso; tinha-o visto em outras ocasiões.

- Ladrão –disse Roger, sem deixar de me olhar- . Marcaram-no.

- Sim –exclamei, entristecida- . OH!, meu deus.

- Se a gente da Colina se inteirasse, não o aceitariam? –perguntou Roger.

- Duvido que algum se incomodasse. O problema é que tenha fugido quando o mencionou. Não só é um ladrão sentenciado: temo que possa ser um fugitivo. E na congregação, Jamie o convocou.

- Ah. –Roger se arranhou distraídamente os bigodes- . Earbsachd. Agora Jamie se sentirá comprometido com ele, verdade?

- Algo assim.

Roger era escocês e das Terras Altas, pelo menos tecnicamente. Mas tinha nascido muito depois de que desaparecessem os clãs; nem a história nem a herança podiam lhe haver ensinado a força desses antigos vínculos entre senhor e arrendatário, entre o chefe e o integrante do clã. O mais provável é que o mesmo Josiah não tivesse idéia de quão importante era o earbsachd, prometido-o e aceito por ambas as partes. Jamie sim.

- Crie que Jamie poderá alcançá-lo? –perguntou ele.

- Suponho que já o tem feito. Se o tivesse perdido já estaria de volta.

Roger se levantou de meu lado para espiar entre as árvores, um pouco aflito.

- Está demorando muito. Se tiver pilhado ao guri, o que está fazendo com ele?

- lhe tirando a verdade, suponho –disse- . Ao Jamie não gosta que lhe mintam.

Ele me olhou com certo sobressalto.

- Como o faz?

Encolhi-me de ombros

- Como pode. –Eu lhe tinha visto fazê-lo através da razão, a astúcia, o encanto, as ameaças e, em uma ocasião, por meio da força bruta. Rezei para que não tivesse que empregá-la, mais por seu bem que pelo do Josiah.

- Compreendo –murmurou Roger - . Pois bem...

   A cafeteira estava vazia; agasalhada sob meu capote, baixei ao arroio para enchê-la outra vez. depois de pendurá-la novamente sobre o fogo, sentei-me a esperar.

- Deveria ir dormir –disse, depois de alguns minutos.

Roger se limitou a sorrir. Logo se limpou o nariz e se acurrucó melhor dentro da capa.

- Você também.

   Roger avivou um pouco o fogo, acrescentando algumas partes de lenha. A cafeteira fumegava, mesclando o ruído dos roncos fleumáticos dos homens com o vaio das gotas que caíam ocasionalmente ao fogo. Roger guardava silêncio, contemplando o movimento das chamas e o bosque, com os olhos entreabridos. Perguntei-me o que pensaria.

- Teme por ele? –perguntou fico, sem me olhar.

- Quando? Agora ou sempre? –Sorri sem muito humor- . Se temesse por ele não descansaria nunca.

Ele se voltou a me olhar com um vago sorriso.

- Agora está tranqüila, verdade?

Sorri novamente, esta vez de verdade.

- Não me estou passeando de um lado a outro –respondi- . Nem me retorço as mãos.

- Talvez te servisse para as manter quentes.

Um dos homens se moveu em seus envoltórios, murmurando. Durante um momento deixamos de falar. A cafeteira fervia, deixando ouvir o suave rumor do líquido.

O que é o que o atrasava? Não podia demorar tanto em interrogar ao Josiah Beardsley; a essas horas já deveria ter obtido as respostas que queria ou deixado em liberdade ao moço. Pouco importava ao Jamie o que o guri tivesse roubado, a não ser pela promessa do earbsachd.

- Quer que vá a por ele? –perguntou Roger súbitamente, em voz baixa.

Dava um coice e me esfreguei a cara com uma mão, movendo a cabeça para me limpar.

- Não. É perigoso entrar em bosques desconhecidos na escuridão. E de qualquer modo não o encontraria. Se pela manhã não retornou... já haverá tempo.

Com o lento transcorrer dos segundos comecei a pensar que, em realidade, o amanhecer podia chegar antes que Jamie. Estava preocupada com ele, mas enquanto não esclarecesse, não havia nada que se pudesse fazer. Tratando de distrair a mente daquelas especulações nervosas, provei a

contar as tosses dos homens que dormiam em torno do fogo.

A oitava foi a do Roger: uma tosse grave, frouxa, que lhe sacudiu os ombros. Perguntei-me se estaria preocupado pelo Bree e Jemmy. Ou possivelmente se perguntava se Bree estaria preocupada com ele. Eu poderia havê-lo tirado de dúvidas, mas de nada lhe teria servido.

Por fim comecei a dormitar, me sobressaltando cada vez que cabeceava. A última vez despertou o breve contato de duas mãos em meus ombros. Roger me tendeu no chão, me amontoando a metade do xale sob a cabeça, a maneira de travesseiro, e me abrigando os ombros com o resto. Vi-o um momento, recortado contra o fogo, negro e peludo em seu capote. Logo não soube mais.

 

Não sei durante quanto tempo dormi. Despertou súbitamente um espirro explosivo, a pouca distância. Jamie estava sentado a um par de metros, sujeitando a boneca do Josiah Beardsley com uma mão, a faca com a outra. deteve-se o tempo suficiente para espirrar duas vezes mais, depois de limpá-la nariz com a manga, impaciente, afundou a adaga entre as brasas.

Ao sentir o fedor do metal quente me incorporei de súbito. antes de que pudesse dizer ou fazer nada, algo se moveu pego a mim. Baixei a vista, estupefata, olhei uma e outra vez, convencida, em meu atordoamento, de que ainda estava sonhando.

Sob meu capote, acurrucado contra meu corpo, um menino dormia profundamente. Ao levantar o olhar, vi que Jamie pressionava o polegar do Josiah contra o petal abrasador de sua adaga enegrecida.

Ele viu meu gesto convulsivo pela extremidade do olho e me dirigiu um olhar carrancudo, enrugando os lábios calado mandando silêncio. Josiah tinha a cara contraída e os lábios estirados, descobrindo os dentes em um gesto de tortura, mas não fazia ruído algum. Ao outro lado do fogo, Kenny Lindsay observava, sentado e calado como uma rocha.

Ainda convencida de que sonhava ( ao menos, isso esperava), apoiei uma mão no menino acurrucado contra mim. Ele se moveu outra vez. O contato da carne sólida sob os dedos despertou por completo. Quando fechei a mão sobre seu ombro, ele abriu os olhos de par em par, alarmado.

separou-se de um salto, levantando-se com estupidez. Então viu seu irmão (pois obviamente Josiah era seu gêmeo) e se deteve abruptamente, jogando um olhar enlouquecido em volto do claro: os homens disseminados, Jamie, Roger, eu mesma.

Josiah, sem emprestar atenção à dor da mão queimada, que devia ser espantoso, levantou-se para aproximar-se velozmente a seu irmão e lhe agarrou pelo braço.

Vi que Josiah lhe espremia o braço para tranqüilizá-lo; então comecei a suspeitar o que era o que tinha roubado. lhes dirigindo um sorriso, alarguei a mão para o Josiah. - me deixe ver essa mão –sussurrei.

Depois de uma momentânea vacilação, ele me entregou a mão direita. Era um bom trabalho, tanto que por um momento me senti enjoada. A gema do polegar lhe tinha sido retirada com um corte limpo; a ferida aberta, cauterizada com metal ao vermelho. Um ovalóide negro, encostrado, substituía a marca incriminatoria.

Alguém se moveu brandamente detrás de mim: Roger me trazia a caixa de remédios. Deixou-a junto a meus pés.

Pela lesão não podia fazer muito, salvo aplicar um pouco de ungüento de genciana e enfaixar o polegar com um pano limpo e seco. Jamie, já guardado a adaga, levantou-se sem ruído para ir revolver entre as alforjas. Quando acabei minha breve tarefa, ele estava de volta, com um pouco de comida envolta em um lenço e uma manta que nos sobrava atada em um cilindro. Também trazia as calças que me tinha tirado.

Entregou o objeto ao menino novo; a comida e a manta, ao Josiah. Logo estreitou com força o ombro do rapaz e pôs uma mão suave nas costas de seu irmão, para fazer que se girassem em direção ao bosque, assinalando as árvores com um gesto com a cabeça. Josiah assentiu. depois de me saudar tocando-a frente, muito branco a vendagem do polegar, sussurrou:

- Obrigado, senhora.

Os dois meninos desapareceram silenciosamente entre as árvores; os pés descalços do gêmeo apareciam, pálidos, sob a prega lhe ondulem das calças.

Surpreendi ao Roger olhando sobre o ombro do Jamie. O jovem assinalou para o este e cruzou um

dedo sobre os lábios, logo se encolheu de ombros com uma careta de resignação. Estava tão interessado como eu por saber o que tinha acontecido e por que. Mas tinha razão: a noite chegava a seu fim. Logo amanheceria; os homens, habituados a despertar com a primeira luz, começariam a flutuar para a superfície da consciência.

Jamie tinha deixado de tossir, mas estava emitindo uns gorgoteos horríveis, em um intento de limpar a gargante. Parecia um porco afogando-se no barro.

- Toma- sussurrei, lhe devolvendo o tigela- . Bebe e te deite. Deveria dormir um momento.

- Não vale a pena –disse, e apontou a cabeça para o este, onde os pinheiros se recortavam muitos negros contra o céu acinzentado- . Além disso, tenho que pensar que diabos vou fazer agora.

 

                   A morte vem de visita

Logo que pude conter minha impaciência enquanto os homens despertavam, comiam e levantavam o acampamento, com irritante parcimônia. Por fim, encontrei-me uma vez mais na arreios, cavalgando em uma manhã tão fria e limpa que o ar parecia fazer-se pedacinhos ao respirá-lo.

 

- Bem –disse sem preâmbulos, quando minha égua ficou à altura de seu cavalo- . Conta.

Ele se voltou a me olhar, sonriendo. Apesar daquela noite agitada, sentia-me cheia de energia; o sangue circulava muito perto de minha pele, florescendo em minhas bochechas.

- Não quer que esperemos ao pequeno Roger?

- O contarei má tarde, ou o fará você.

Açulei a minhas arreios para aproximá-la a do Jamie, com os joelhos envoltos no vapor que despedia o focinho do animal. Meu marido se esfregou a cara com uma mão, se sacudindo para desprendê-la fadiga.

- Bem –disse- . notaste que são irmãos, verdade?

- Notei-o, sim. De onde diabos saiu o outro?

- dali.

Assinalou para poente com o queixo. Entreabrindo os olhos distingui algo que parecia uma pequena casa, com um par de abrigos desvencilhados. Nesse momento uma pequena figura saiu da casa por volta de um deles.

- Estão a ponto de descobrir que ele desapareceu –disse Jamie, algo carrancudo- . Com um pouco de sorte pensarão que foi ao desculpado ou a ordenhar as cabras.

Não me incomodei em perguntar como sabia que ali tinham cabras.

- É o lar do Josiah e seu irmão?

- Em certo modo, Sassenach. Eram escravos.

- Eram? –repeti, cética. Parecia-me duvidosa que o período de escravidão dos irmãos tivesse expirado, casualmente, a noite anterior.

Jamie encongió um ombro e se limpou o nariz com a manga.

- A não ser que alguém os pilhe, sim.

- Você pilhou ao Josiah –assinalei- . O que te disse?

- A verdade.- Torceu um pouco a boca- . Ao menos isso acredito.

Tinha açoitado ao Josiah na escuridão, guiando-se por sua frenéticas ofega, até apanhá-lo em um terreno baixo rochoso. Envolveu ao menino gelado em sua manta, obrigou-o a sentar-se e, com judiciosa paciência e firmeza (reforçadas com sorvos de uísque de sua cigarreira), conseguiu lhe extrair a história.

- A família emigrou: pai, mãe e seis pirralhos. Somente os gêmeos sobreviveram à viagem; outros pereceram no mar por enfermidade. Aqui não tenian parentes; ao menos, ninguém que esperasse o navio, de modo que o capitão os vendeu. Como o preço não havia talher o custo das passagens de toda a família, os meninos foram contratados para servir por trinta anos, para que seus jornais pagassem a dívida.

Contava-o com voz indiferente; eram coisas que aconteciam. Eu sabia, mas estava muito menos dispostas às aceitar sem comentários.

- Trinta anos! Mas se... Que idade tinham então?

- Dois ou três anos.

Fiquei atônita. Esse dado mitigava a tragédia básica, se o comprador dos meninos tivesse cuidado seu bem-estar. Mas recordei as costelas esquálidas do Josiah e suas pernas curvadas. Não os tinha cuidado absolutamente. Claro que o mesmo acontecia com muitos meninos que viviam em seus próprios lares.

- Josiah não tem nem idéia dos quais eram seus pais, de onde vinham e como se chamavam –explicou Jamie, entre tosses e pigarros- . Sabe ou nome e o de seu irmão, que se chama Keziah, mas nada mais. Beardsley é o sobrenome do homem que os adquiriu. Quanto aos moços, não sabem se forem escoceses, ingleses ou irlandeses. Com esses nomes é provável que não sejam alemães nem poloneses, mas nem sequer isso é impossível.

- Hum.. Assim Josiah fugiu. Suponho que isso tem algo que ver com a marca de seu polegar.

Jamie assentiu, com a vista no chão, enquanto seu cavalo descendia cautelosamente o pendente.

- Roubou um queijo. Nisso foi sincero. –Alargou a boca em um gesto de momentânea diversão- . Roubou-o de uma granja do Brownsville, mas a criada o viu. Em realidade, a mulher disse que tinha sido o outro irmão, mas... Possivelmente não foi tão sincero como eu pensava. De qualquer maneira, um dos meninos agarrou o queijo, Beardsley os descrubió e chamou o delegado. Josiah aceitou a culpa... e o castigo.

Depois desse incidente, acontecido um par de anos antes, o menino tinha fugido da granja. Conforme contou ao Jamie, sua intenção era voltar para resgatar a seu irmão assim que achasse um lugar para viver. O oferecimento de meu marido lhe pareceu um dom do céu; então abandonou a congregação para retornar a pé.

- Imagine sua surpresa quando nos encontrou encarapitados na ladeira- comentou Jamie, e espirrou. limpou-se o nariz, com olhos lacrimosos- . Estava espreitando a pouca distância, sem saber se esperar a que fôssemos ou averiguar se íamos para a granja, pois nesse caso poderia aproveitar a distração para entrar às escondidas e levar-se a irmão.

- E você decidiu entrar com ele para ajudá-lo no roubo.

Também me gotejava o nariz pelo frio. Enquanto me soava, joguei uma olhada ao Jamie. Ainda tinha o nariz vermelho e a pele úmida devido à enfermidade, mas seus altos maçãs do rosto estavam acesos pelo sol da manhã e o via bastante corajoso, considerando que tinha passado toda a noite em um frio bosque.

- Foi divertido, não? –adivinhei.

- Pois sim! Levava anos sem fazer algo assim. –O sorriso lhe enrugou os olhos, convertendo-os em triângulos azuis- . Foi como quando fazíamos incursões nas terras dos Grant, com o Dougal e seus homens, sendo eu um menino. Escorríamo-nos na escuridão e entrávamos no celeiro... meu deus, se tive que me conter para não ficar com a vaca! Quer dizer, o teria feito, se tivessem tido vaca.

Ri com indulgência.

- É um perfeito bandido, Jamie.

- Bandido? –exclamou, um pouco ofendido- . Mas se for um homem muito honrado, Sassenach! Ao menos, quando posso permitir me corrigiu isso, jogando uma olhada para trás para assegurar-se de

que ninguém pudesse nos ouvir.

- OH!. É totalmente honrado. mais do que te convém. Só que não sempre respeita as leis.

Esta observação pareceu desconcertá-lo um pouco, pois enrugou o sobrecenho, com um grunhido que tanto podia ser uma interjeição escocesas negativa como um intento de afrouxar o escarro. Tossiu um pouco. Logo freou a suas arreios e, levantando-se nos estribos, agitou o chapéu para o Roger, que estava a certa distância, costa acima. O jovem respondeu a seu gesto e pôs a seu cavalo em direção a nós.

Eu detive minha égua junto ao Jamie e deixei cair as rédeas sobre seu pescoço.

- Farei que o pequeno Roger vá com os homens ao Brownsville –explicou Jamie, erguido em sua cadeira- enquanto eu visito os Beardsley. Vem comigo, Sassenach, ou vai com ele?

- Irei contigo –disse sem vacilar- . Quero ver como são esses Beardsley.

   Sorridente, apartou-se o cabelo antes de voltar a impregnar o chapéu. Levava o cabelo solto para proteger do frio o pescoço e as orelhas; sua juba brilhava como cobre fundido sob o sol da manhã.

- Isso pensava. Mas cuidado com sua cara –acrescentou, em zombadora advertência- . Não vás ficar te boquiaberta nia a te pôr como um tomate se se mencionar ao servo ausente.

- Cuida você a tua –lhe repliquei, bastante chateada- . Tomata! Disse-te Josiah se lod maltratavam? –Talvez havia algo mais que o incidente do queijo depois da fuga do Josiah.

Ele moveu a cabeça.

- Não o perguntei, nem ele me disse isso. Mas pensa um pouco, Sassenach: abandonaria uma casa decente para viver sozinha nos bosques, dormir sobre folhagem fria e comer vermes e grilos até que aprendesse a caçar?

Açulando a seu cavalo subiu a costa ao encontro do Roger, enquanto eu estudava a conjetura. Retornou minutos depois. Eu pusé minhas arreios à altura da sua, com outra pergunta na mente.

- Mas se as coisas estavam tão mal para obrigá-lo a fugir, por que seu irmão não o acompanho?

Jamie me dirigiu um olhar de surpresa. Logo sorriu, algo carrancudo.

- Keziah é surdo, Sassenach.

Não era surdo de nascimento, conforme haviam dito ao Josiah; seu gêmeo tinha perdido o ouvido a conseqüência de uma lesão, quando tinha ao redor de cinco anos. portanto, sabia falar, mas só era capaz de ouvir ruídos muito fortes; ao não poder perceber o sussurro das folhas ou o ruído de pegadas, não podia caçar nem evitar a perseguição.

- Diz que Keziah entende o que lhe diz, e isso é indubitável.

Por então tínhamos chegado ao pé do pendente. Os cavalos se agruparam um instante em volto do Jamie, enquanto se decidiam os rumos e se estabeleciam os pontos de reunião. depois de intercambiar despedidas, Roger assobiou entre dentes, mostrando apenas um rastro de acanhamento, e agitou seu chapéu no ar em gesto de convocatória. Vi-o relaxar-se, girando-se pela metade na cadeira; logo olhou para o fronte.

- Não está seguro de que outros o sigam –comentou Jamie, com ar crítico. Logo se encolheu de ombros- . Já as arrumará. Ou não.

- As arrumará –assegurei, recordando a noite anterior.

- Alegra-me que o pense, Sassenacha. Vamos.- E estalou a língua, atirando as rédeas para que seu cavalo desse meia volta.

- Se não estar seguro de que as possa arrumar, por que deixa que vá sozinho? –perguntei a suas costas, ao entrar no bosquecillo que se interpunha entre nós e a granja, já invisível- .por que não manter ao grupo unido e conduzi-lo você mesmo ao Brownsville?

- Para começar, não aprenderá se não lhe dou oportunidade. Por outra parte... –Fez uma pausa, indo para mim- . Por outra parte não quero que todo o grupo vá a casa dos Beardsley. Poderiam inteirar-se de que desapareceu um servo. E todo o acampamento viu ontem à noite ao Josiah. Se te faltar um menino e se inteira de que um guri provocou um alvoroço no bosque próximo, pode tirar certas conclusões, não?

Segui-o através de um estreito desfiladeiro entre os pinheiros. O rocio cintilava como diamantes na casca e as agulhas. As gotas geladas que caíam dos ramos me arrepiavam a

pele.

A menos que esse tal Beardsley seja velho ou aleijado, não deveria unir-se a ti? –objetei- .cedo ou tarde alguém mencionará ao Josiah diante dele.

Jamie sacudiu a cabeça.

- Em todo caso, o que lhe diriam? Os homens viram o guri que trouxemos e o viram fugir outra vez. Por isso eles sabem, pode ter tornado a escapar.

- Kenny Lindsay os viu ambos, quando voltou com eles.

encolheu-se de ombros.

- Sim, falei com o Kenny enquanto selávamos os cavalos. Não dirá nada.

Tinha razão: Kenny era um de seus homens do Ardsmuir, dos que o obedeciam sem perguntar.

- Não –prosseguiu ele, guianado a suas arreios em volto de uma grande rocha- , Beardsley não é um aleijado; Josiah me disse que comercializa com os índios; leva mercadorias ao outro lado da Linha do Tratado, às aldeias cherokees.Lo que não sei é se estará em casa nestes momentos. Mas nesse caso...

Aspirou fundo e se deteve tossir, pelo comichão do ar frio nos pulmões.

- É outro dos motivos pelos que tenho feito que os homens se adiantem –continuou, algo ofegante- . Não nos reuniremos com eles até manhã, conforme acredito. Até então terão disposto de uma noite para beber e alternar no Brownsville; já não recordarão ao menino e será difícil que o mencionem em presença do Beardsley.

Pelo visto, contava com que os donos da granja fossem hospitalares e nos dessem albergue. Era uma expectativa razoável nessa zona boscosa. Decidi que se essa noite tossia outra vez, lubrificaria-lhe bem com graxa alcanforada, gostasse ou não; se fosse necessário, inclusive me

sentaria sobre seu peito.

 

Quando saímos das árvores joguei um olhar dúbio à casa. Era mais pequena do que me tinha parecido e parecia uma ruína, mas eu tinha dormido em sítios piores e sem dúvida voltaria a fazê-lo.

O achaparrado celeiro tinha a porta totalmente aberto, mas não se viam sinais de vida. Todo o lugar parecia estar deserto, se não fora pela voluta de fumaça que saía da chaminé.

O dizer que Jamie era honrado, eu falava a sério, embora não fora toda a verdade. Era honrado, e também respeitava as leis... quando lhe mereciam respeito. que uma lei tivesse sido promulgada pela Coroa não era suficiente. Em troca, havia leis não escritas pelas que ele teria dado a vida.

Não obstante, embora a lei da propriedade tinha menos poder sobre os incursores escoceses que sobre outras pessoas, o certo era que ia pedir a hospitalidade de um homem ao que tinham despojado de algo de sua propriedade. Jamie não se opunha energicamente à servidão; pelo general teria respeitado o direito do senhor. O fato de que não o fizesse significava que percebia o predomínio de uma lei superior, já fora a amizade, a compaixão, o earbsachd ou outra.

Ele se tinha detido e me estava esperando.

- por que decidiu ajudar ao Josiah? –perguntem-lhe in rodeios, enquanto cruzávamos o maltratado milharal que se estendia diante da casa.

Jamie se tirou o chapéu e o enganchou à cadeira para atar o cabelo arrumando-se para o encontro.

- Pois... disse-lhe que, se estava decidido a seguir seu caminho, que o fizesse. Mas se queria vir à Colina, só ou com seu irmão, devíamos felpa resa marca de seu polegar para não provocar rumores. Do contrário os Bearsdley podiam inteirar-se e as conseqüências seriam nefastas.

Aspirou fundo e deixou escapar o ar; logo se voltou para mim, muito sério.

- O moço não vacilou nem um momento, embora sabia o que é ser marcado. E te direi, Sassenach: por amor ou por valor, o homem desesperado pode fazer algo uma vez. Mas quando já o tem feito e sabe o que vais sofrer, requer-se algo mais para fazê-lo de novo.

E, sem esperar rspuesta, entrou no pátio espantando a um bando de pombas, muito erguido na arreios, com os ombros quadrados. Não havia sinais das cicatrizes que lhe marcavam as costas sob o capote, mas eu as conhecia de sobra.

De maneira que era isso. “ Igual a na água a cara reflete a cara, o coração do homem reflete ao

homem.” E a lei do valor era a que ele tinha respeitado sempre.

 

- Ah, da casa! –gritou Jamie, detendo-se no centro do pátio.

Era a etiqueta aceita para quem chegava a uma casa desconhecida. Embora a maioria dos montanheses eram hospitalares, não faltavam quem olhava aos forasteiros com cautela e tendiam a fazer as apresentações a ponta de pistola, enquanto o visitante não tivesse estabelecido sua boa fé.

Tendo isto em conta, mantive a prudente distancia detrás do Jamie, mas cuidei de me manter à vista, estendendo ostensiblemente minhas saias, a fim de exibir minha condição feminina como prova de que nossas intenções eram pacíficas.

Jamie se dirigia para o estábulo, gritando a intervalos sem resultado aparente. Joguei uma olhada a meu redor, mas no pátio não havia rastros recentes, além das nossas. Junto ao tronco ao meio serrar se via um montão de esterco, mas não estava fresco; embora as bolas estavam úmidas de rocio, quase todas se desfeito em pó.

Ninguém tinha entrado nem saído dali, salvo a pé. O mais provável era que Beardsley estivessem ainda dentro, mas não se deixavam ver. Era cedo, sim, mas os granjeiros já deviam estar dedicados a suas tarefas. Ao fim e ao cabo, um momento antes eu tinha visto alguém ali.

Ao me voltar para a porta reparei em uma estranha série de entalhes cortados na madeira do marco. Eram pequenas, mas numerosas: percorriam uma das ombreiras com toda sua longitude e a outra, até a metade. Olhei mais atentamente; estavam dispostas em grupos, tal como os prisioneiros revistam levar a conta das semanas.

Jamie saiu do estábulo, seguido por uns quantos balidos. As cabras que ele tinha mencionado, sem dúvida. Perguntei-me se as ordenhar seria responsabilidade do Keziah. Nesse caso não demorariam para

descobrir sua ausência, se é que não a tinham descoberto ainda.

Jamie deu alguns passos para a casa e voltou a gritar, com as mãos ao redor da boca. Não houve resposta. depois de aguardar um momento, encolheu-se de ombros e subiu ao alpendre para bater na porta com o punho de sua faca. O ruído teria despertado a um morto, se havia algum na vencidad.

Jamie me olhou com uma sobrancelha arqueada. Os granjeiros não estavam acostumados a ausentar-se deixando a casa desatendida, sobre tudo se tinham ganho.

- Há alguém ali –disse ele, respondendo a meu pensamento- . As cabras estão recém ordenhas; ainda têm gotas nas tetas.

- Crie que terão saído a procurar... né... já sabe? –murmuré,acercándome

-Talvez.

apartou-se para espiar por uma janela. Quase todos seus cristais tinham desaparecido ou estavam quebrados. Uma parte de musselina puída, sujeita com tachinhas, cobria a abertura. Vi que Jamie a observava com ar carrancudo, com o dedén do artesão ante uma reparação mau feita.

de repente girou a cabeça.

- ouviste, Sassenach?

- Sim. Pensei que eram as cabras, mas...

O balido se ouviu outra vez, já inconfundiblemente dentro da casa. Jamie apoiou uma mão na porta, mas não cedeu.

- Ferrolho –disse brevemente

E voltou para a janela para soltar cuidadosamente uma esquina do tecido.

- Fiu! –exclamei, enrugando o nariz ante a baforada que surgia.

Estava habituada aos aromas das cabanas fechadas do inverno, onde os bafos de suor, roupa suja, pés molhados e bacinillas se mesclavam ao pão assado e os guisados, mas o aroma que emanava da residência dos Beardsley ia muito além do normal.

- Ou têm porcos dentro da casa –disse, jogando uma olhada ao estábulo- , ou há ali dez pessoas que não saíram da primavera.

- É um pouco forte –coincidiu ele. Aproximou a cara à janela, fazendo uma careta ante o fedor, e uivou: Thig a mach! Se não sair, Beardsley, vou entrar!

Espiei por cima de seu ombro, para ver o que resultados produzia essa ameaça. O quarto interior era amplo, mas estava tão lotado que a madeira manchada do chão logo que era visível entre o amontoamento de coisas.

A outra janela estava coberta por uma pele de lobo, que deixava o interior em sombras. Com tantas caixas, fardos e móveis amontoados, aquilo parecia uma versão empobrecida da cova do Alí Babá.

Outra vez chegou esse ruído da parte traseira da casa, um pouco mais forte; era uma mescla de rugido e chiado. Dava um passo atrás; o aroma acre, somado ao som, trouxe-me para a cabeça uma imagem de pelagem escura e violência súbita.

- Ursos –sugeri, médio a sério- . A gente se foi e dentro há um urso.

- Sim, Ricitos de Ouro –disse Jamie, seco- . Sem dúvida. Com ursos ou sem eles, aqui passa algo estranho. me traga as pistolas e a caixa de cartuchos que tenho na alforja.

antes de que eu pudesse abandonar o alpendre, dentro se ouviu um ruído de pés que se arrastavam. Girei imediatamente. Jamie tinha jogado mão de sua adaga, mas ao olhar para dentro afrouxou os dedos no punho. Vendo seu gesto de surpresa, inclinei-me sobre seu braço para olhar.

Uma mulher apareceu entre duas montanhas de mercadorias para olhar para fora com desconfiança, como um rato que espiasse de um cubo de lixo. Não tinha muito aspecto de rato: era bastante robusta e de cabelo ondulado, mas piscou à maneira calculadora dos insetos, avaliando a ameaça.

- Larguem-se –disse. Ao parecer, deduziu que não fomos a vanguarda de um exército invasor.

- bom dia você tenha, senhora –começou Jamie- . Sou James Fraser, de...

- Não me importa quem seja. Largue-se.

- Não o farei, é obvio –replicou ele com firmeza- . Devo falar com o homem da casa.

Pela cara gordinha cruzou uma estranha expressão: preocupação, cálculo e algo que podia ser diversão.

- De veraz? –Falava com um ligeiro ceceio- . E por ordem de quem?

Ao Jamie começavam a avermelhar-se o as orelhas, mas respondeu com bastante calma.

- Do governador, senhora. Sou o coronel James Fraser –enfatizou- , e estou a cargo de recrutar uma tropa. Todos os homens fisicamente aptos, de entre dezesseis e sessenta anos, devem emprestar serviço. você terá a bondade de chamar o senhor Beardsley, por favor?

- De maneira que uma mi-li-recua? –disse ela, pausadamente- . por que? Contra quem vão brigar?

- Com um pouco de sorte, contra ninguém. Mas se chamou a recrutamento e devo responder. E também todos os homens fisicamente aptos que habitem dentro da Linha do Tratado.

Jamie esticou a mão contra o marco da porta e olhou à mulher de frente, com um sorriso cordial. Ela entreabriu os olhos e franziu os lábios, pensativa.

- Fízicamente aptoz –disse ao fim- . Bom, não ténemoz nada de ezo. O ziervo tornou a fugir, mas até zi eztuviera aqui não zería apto: zordo como uma taipa, e baztante mudo.- Assinalou a porta a modo de ilustração- . Mas zi quereiz perzeguirlo, podéiz quedaroz com ele.

Ao parecer ninguém pensava correr detrás o Keziah. Aspirei fundo para dar um suspiro de alívio, mas o contive imediatamente.

Jamie não se daria por vencido com tanta facilidade.

- Está o senhor Beardsley em casa? –perguntou- . Quero vê-lo.

E provou a atirar do marco; a madeira seca se rompeu com um ruído de pistoletazo.

- Não eztá em condicionez de receber a ninguém –disse ela. A nota estranha aparecia outra vez em sua voz, cautelosa, mas ao mesmo tempo carregada de um pouco parecido ao entusiasmo.

- Está doente? –perguntei, aparecendo - .Talvez possa ajudar. Sou doutora.

Ela se adiantou um passo ou dois para me olhar, com o sobrecenho franzido sob uma densa massa de cabelo castanho. Era mais jovem do que eu tinha pensado; vista à luz, a safada não apresentava telarañas de velhice nem carnes frouxas.

- Doutora?

- Minha esposa é uma curadora de renome –explicou Jamie- . Os índios a chamam Corvo Branco.

- A mulher dos conjuros? –Ela abriu os olhos alarmada, e deu um passo atrás.

Algo me resultava estranho nessa mulher. Ao observá-la compreendi o que era. Pese ao fedor da casa, estava poda, com o cabelo suave e esponjoso; não era o normal na temporada fria; a maioria da gente não se banhava durante vários meses.

- Quem é você? –perguntei sem rodeios- . A senhora Beardsley? Ou talvez a senhorita Beardsley?

Não tinha mais de vinte e cinco anos, pensei, apesar do volumoso de sua figura. Observei-a com certo desagrado, mas ela me sustentou o olhar com bastante frieza.

- Zoy a zeñora Beardzley.

O alarme tinha desaparecido; franziu os lábios, projetando-os para fora com ar de cálculo. Jamie flexionou o braço e o marco da janela rangeu violentamente.

- Pazen, pois.

Ali estava outra vez esse tom estranho, entre o desafio e a ansiedade. Jamie franziu o sobrecenho ao captá-lo, mas deixou de sacudir o marco.

Ela saiu de entre as caixas para aproximar-se da porta. Vi-a em ação menos de um segundo, mas bastou para notar que era agarre; arrastava um pé contra o chão.

ouviram-se golpes e grunhidos enquanto lutava com o cadeado; logo, um chiado e o golpe seco de este ao cair ao chão. A porta, curvada, entupiu-se no marco; Jamie empurrou com o ombro e a abriu de repente; as pranchas ficaram trêmulas pelo impacto. Quanto tempo levava sem abrir-se?

Muito, pelo visto. Jamie entrou soprando e tossindo; eu o segui, tratando de respirar pela boca. Mesmo assim o aroma teria podido deprimir a um furão. À fetidez da mercadoria acumulada se somava a de alguma letrina. Também cheirava a comida podre, mas havia algo mais. Contraí cautelosamente as fossas nasais, tratando de não inalar mais que umas poucas moléculas para sua análise.

- Quanto tempo leva doente o senhor Beardsley? –perguntei. Entre a fetidez geral, tinha reconhecido um claro aroma de enfermidade.

- Puez baztante.

Quando fechou a porta a nossas costas experimentei uma súbita claustrofobia. Dentro o ar estava denso, tanto pelo fedor como pela falta de luz. Senti um forte impulso de arrancar as coberturas de ambas as janelas para que entrasse um pouco de ar, mas apertei as mãos contra minha capa para não fazê-lo.

A senhora Beardsley ficou de lado para escorrer-se e Jamie foi atrás dela, passando baixo uns quantos postes para loja. Segui-os com cautela, tratando de não pensar que meu pé, de vez em quando, pisava em objetos desagradablemente brandos. Maçãs podres? Ratos mortos? Caminhei me apertando o nariz e sem olhar para baixo.

A casa era de contrucción singela; uma habitação grande na parte frontal e outra detrás.

A habitação posterior contrastava de maneira chamativa com o asqueroso amontoado de em frente. Tudo estava impecável; a mesa de madeira e o lar de pedra, bem polidos; uns quantos utensillos reluziam em sua prateleira. Uma das janelas tinha o cristal intacto e sem cobrir; o sol da manhã atravessava a habitação, puro e radiante. Ali havia quietude e silêncio; isso aumentou a estranha sensação de ter entrado em uma espécie de santuário, com respeito ao caos do quarto dianteiro.

A impressão de paz se evaporou ao momento, ante um forte ruído que chegou de acima. Era o mesmo que tínhamos ouvido antes, mas o ouvia mais perto; um chiado desesperado, como o de um porco ao que torturassem. Jamie deu um coice e se dirigiu rapido para uma escalerilla que, do lado oposto da habitação, conduzia para um desvão.

- Eztá ali acima –disse a senhora Beardsley.

Não era necessário, pois Jamie já ia pela metade da escalerilla. O chiado se deixou ouvir outra vez, mais urgente. Decidi não ir procurar minha maleta sem ter investigado.

No momento em que agarrava a escalerilla, Jamie apareceu acima.

- Traz luz, Sassenach –disse brevemente. E sua cabeça desapareceu.

A mulher permanecia imóvel, com as mãos sepultadas no xale, sem fazer nada por procurar um candil. Tinha os lábios apertados e as bochechas manchadas de vermelho. Passei por seu lado para agarrar uma palmatória da prateleira e, depois de acendê-la no lar, subi precipitadamente.

- Jamie? –Apareci a cabeça pelo desvão, sustentando a vela em alto.

- Aqui, Sassenach. –Ele estava de pé ao outro lado do quarto, onde as sombras eram mais densas. Passei sobre o batente da escalerilla para me reunir com ele, pisando com cautela.

Ali o fedor era muito mais forte. Ao ver um reflexo de algo na escuridão, aproximei a vela para olhá-lo.

Jamie aspirou bruscamente, tão espantado como eu, mas imediatamente dominou suas emoções.

- O senhor Beardsley, preumo –disse.

O homem era enorme; ao menos, tinha-o sido. A carne do braço pendia frouxa e branca; o enorme peito se afundava no centro, e o pescoço, que em outros tempos devia ter parecido o de um touro, estava consumido até mostrar as fibras. Um só olho brilhava, fenético, depois das mechas condensadas.

Esse olho se abriu de assombro. O homem emitiu novamente quel ruído, tratando de levantar a cabeça com insistência. Percebi o calafrio que percorria ao Jamie. Aquilo bastou para me arrepiar o cabelo da nuca, mas me dominei.

- Sujeita me o candil –diije, lhe pondo a palmatória na mão.

Deixei-me cair de joelhos; muito tarde, notei algo líquido através da saia. O homem jazia em sua própria imundície, desde para tempo, no estou acostumado a molhado e talher de substância viscosa. Estava nu; cobria-o só uma manta de linho. Ao retirá-la detectei chagas ulcerosas entre as manchas de excremento.

O que afetava ao senhor Beardsley era bastante óbvio; uma parte de sua cara lhe caía

grotescamente, com a pálpebra entrecerrado; tanto o braço como a perna jaziam lassos e mortos, com as articulações nodosas e extrañamente distorcidas pelo desaparecimento da massa musculas. Entre balidos resoplantes, a língua aparecia pela comissura da boca, babando, em um vão intento de falar.

- Chist –lhe disse- . Não fale. Tudo irá bem.

Agarrei-lhe a boneca para avaliar o pulso; a carne se movia sobre os ossos, frouxa, sem a menor resposta a meu contato.

- Um ataque cerebral –disse brandamente ao Jamie- . Uma apoplexia, como diria você.

Apoiei uma mão no peito do Beardsley para lhe oferecer algum consolo.

- Não se preocupe –lhe disse- . viemos a ajudá-lo.

Falava em tom tranqüilizador, mas me estava perguntando que ajuda poderíamos lhe dar. Higiene e casaco, pelo menos; nesse desvão fazia tão frio como no exterior; seu peito tinha a pele de galinha sob o pêlo abundante.

A escalerilla rangeu pesadamente; ao me voltar vi o contorno de uma cabeça esponjosa e dois grossos ombros, recortados contra a luz da cozinha.

- Quanto tempo leva assim? –perguntei com aspereza.

- Maz ou menoz... um mez –disse ela, depois de uma pausa. E adicionou à defensiva- : Não pude trazladarlo. Ez muito pezado.

Isso era certo, sem dúvida.

- por que está aqui acima? –inquiriu Jamie- . Se não o moveu você, como pôde chegar até aqui?

Girou para iluminar o desvão com a luz da vela. Ali havia poucas coisas que pudessem atrair a um homem: um velho colchão de palha, umas quantas ferramentas disseminadas e velhos trastes domésticos. A luz brilhou contra a cara da senhora Beardsley, convertendo em gelo seus pálidos olhos azuis.

- Vinha... perziguiéndome –disse fracamente.

- O que? –Jamie se aproximou da escalerilla e a agarrou por um braço para ajudá-la (contra a vontade da mulher, pareceu-me) a subir o trecho restante- . Como é isso de que a estava perseguindo?

Ela curvou os ombros, redonda e feia como um frasco de bolachas entre seus grandes xales.

- Golpeou-me –disse simplesmente- . Zubí a escalerilla para fugir dele, mas me ziguió. Trate de ezconderme aqui, entre laz zombraz, e ele veio... mas entoncez... caiu. Y... já não pôde levantarze.

Voltou para encongerse de ombros.

- Hum, sim –disse Jamie, passando a vista de uma em outro- . Bem. Faça o favor de taer um pouco de água, senhora. Traga também outra vela e alguns trapos limpos –adicionou.

- Jamie, me aproxime a luz, quer?

ficou a meu lado, sustentando a vela para que iluminasse o corpo arruinado. Jogando ao Beardsley um tenebroso olhar, em que se mesclavam a piedade e o desagrado, moveu lentamente a cabeça.

- O castigo de Deus, não te parece, Sassenach?

- Não acredito que seja inteiramente de Deus –disse, baixando a voz para que não chegasse à cozinha. Alarguei a mão para agarrar a vela- . Olhe.

À sombra, perto da cabeça do Beardsley, havia um recipiente com água e um prato de pão, duro e azulado de mofo; ali o estou acostumado a estava talher de mendrugos de pão ao meio comer. Ela o tinha alimentado apenas o suficiente para mantê-lo com vida, embora na habitação de abaixo havia grandes quantidades de comida, assim como fardos de peles, jarras de azeite, mantas de lã empilhadas. Entretanto, o dono de todos esses bens jazia na escuridão, esfomeado e tremendo sob um sozinho lençol de linho.

- por que não o deixou morrer, sem mais? –perguntou-se Jamie em voz baixa, fixa a vista no pão mofado.

Ante isso Beardsley lançou uns gorgoteos e grunhidos; seu olho lacrimejou, em tanto umas borbulhas de muco apareciam no nariz. Arqueou o corpo, fustrado, mas logo se derrubou com um ruído

carnudo, que sacudiu as pranchas do desvão.

- Acredito que te entende. Verdade? –Tinha dirigido esta pergunta ao doente; pela maneira em que gorgoteó, babando, resultou óbvio que entendia; ao menos sabia que lhe estava falando.

- E se quer saber por que...

Assinalei com um gesto as pernas do Beardsley, movendo lentamente a vela sobre elas. Algumas das chagas se deviam ao feito de ter acontecido tanto tempo tendido e sem mover-se. Outras não. Uma das grandes coxas apresentava talhos paralelos, obviamente feitos com uma faca, já negros e coagulados. A pantorrilha estava decorada por uma linha regular de ulcerações: feridas muito vermelhas, rezumantes e bordeadas de negro. Queimaduras que lhe tinham deixado ulcerar.

Ao ver aquilo, Jamie grunhiu pelo baixo e olhou para a escalerilla. De abaixo nos chegou o ruído de uma porta ao abrir-se; uma rajada fria subiu até o desvão, fazendo dançar a chama da vela. Quando a porta se fechou, chama-a voltou a estabilizar-se.

- Acredito que poderia lhe baixar. –Jamie elevou o candil para avaliar as vigas do teto- . Possivelmente, passando por esta viga uma corda grosa. O pode mover?

- Sim –disse. Mas não estava emprestando atenção. Ao me inclinar para as pernas do homem notei uma baforada de algo que levava muitíssimo tempo sem cheirar, um fedor maligno e sinistro.

Não me tinha encontrado isso muitas vezes, mas bastava com uma: o aroma penetrante da gangrena refrigerante é inesquecível. Não quis dizer nada que pudesse alarmar ao Beardsley, se é que podia me entender. Em troca lhe dava um tapinha tranqüilizador e fui em busca da palmatória para ver melhor.

Ao entregármenla, Jamie se inclinou para me murmurar ao ouvido:

- Pode fazer algo por ele, Sassenach?

- Não –respondi, também em voz baixa- . Quer dizer, pela apoplexia não. Posso lhe tratar as chagas e lhe dar algumas ervas contra a febre. Isso é tudo.

Contemplou um momento a figura encurvada nas sombras, já imóvel. Logo moveu a cabeça, fazendo o sinal da cruz-se, e baixou depressa em busca de uma corda.

Eu voltei lentamente onde o doente, que me recebeu com um denso “ Haugggg” e um incansável tamborilar com uma só perna, como o aviso dos coelhos. Ajoelhei-me junto a seus pés, lhe falando em tom tranqüilizador, de nada em particular, enquanto aproximava a luz para examinar-lhe Os dedos. Todos os desdos do pé morto estavam queimados; alguns só tinham ampolas; outros estavam consumidos quase até o osso. Os dois primeiros se haviam posto negros e um tintura esverdeado se estendia sobre a impigem.

Fiquei horrorizada, tanto pelo ato em si como pelo que podia ter conduzido a isso. Que diabo faríamos com esses duas miseráveis?

Obviamente não podíamos levar ao Beardsley conosco. E era igualmente óbvio que não podíamos deixá-lo ali, aos cuidados de sua esposa. Talvez pudéssemos levá-lo até o Brownsville;

no estábulo devia haver uma carreta. Mas mesmo assim, o que passaria depois?

Não havia nenhum hospital onde pudessem atendê-lo. Se algum lar do Brownsville o recebia por caridade, muito bem. Mas ao ver o estado do Beardsley passado um mês, era improvável que sua paralisia e sua fala melhorassem muito. Quem aceitaria atendê-lo dia e noite durante o resto de sua vida?

Claro que o resto de sua vida podia ser muito curto, segundo o êxito que eu tivesse ao tratar a gangrena. A preocupação diminuiu ao me concentrar no problema imediato. Teria que amputar; era a única possibilidade. Os dedos não ofereciam dificuldade, mas talvez não bastasse com eles. Se era mister cortar o pé ou parte dele, aumentava o risco de shock e de infecção.

Sentiria algo? Às vezes as vítimas de ataques cerebrais retinham a sensação no membro afetado, embora não pudessem movê-lo; outras vezes havia movimento sem sensação ou nenhuma das duas coisas. Toquei cautamente um dedo engagrenado, lhe observando a cara.

Não me olhou, não fez ruído algum. Isso respondia à pergunta; não tinha sensibilidade no pé. Em certo modo era um alívio; ao menos não sofreria a dor da amputação.

detrás de mim houve um leve roce. A senhora Beardsley estava ali. depois de pôr no chão um cubo de água e um montão de trapos, ficou a minhas costas enquanto eu começava a lavar a

imundície.

- Pode curá-lo? –perguntou. Sua voz soava serena, remota, como se falasse de um desconhecido.

De repente, a cabeça do paciente se bamboleou para fixar em mim o olho aberto.

- Acredito que posso ajudar um pouco –disse com cautela, desejando que Jamie retornasse logo. Necessitava minha maleta, mas além disso a companhia dos Beardsley me punha nervosa.

Mais ainda quando o doente emitiu inadvertidamente uma pequena quantidade de urina. A mulher pôs-se a rir. Ele respondeu com um som que me arrepiou a pele dos braços. depois de retirar o líquido de sua coxa, continuei com minha tarefa, tratando de não emprestar atenção.

- você têm ou o senhor Beardsley algum parente perto? –perguntei, no tom mais coloquial possível- . Alguém que pudesse lhes dar uma mão?

- Ninguém –disse ela- . Eu vivia em Maryland. Ele me zacó da caça de meu pai. Para me trazer aqui. –Disse “ aqui” como se se referisse ao inferno; nesse momento havia certa similitude, por certo.

Abaixo se abriu a porta; uma rajada de ar frio anunciou a volta do Jamie. Ouvi o ruído quando pôs minha caixa na mesa e me levantei depressa, desejando escapar deles embora fora um momento.

- Ali está meu marido com os reemedios. Irei A... né... a trazer... hum...

Escorri-me junto à senhora Beardsley para voar esccalerilla abaixo, suando a pesar do frio. Jamie estava junto à mesa, carrancudo, dando voltas à corda que tinha nas mãos. Para me ouvir levantou a vista, relaxando um pouco a cara.

- Como vai, Sassenach? –perguntou em voz baixa, assinalando o desvão com o queixo.

- Muito mal –sussurrei- . Tem dois dedos gangrenados; terei que amputar-lhe E ela diz que não têm familiares que possam ajudá-los.

- Hum. –Apertou os lábios, dedicando sua atenção a estilingue que improvisava.

Eu ia agarrar minha caixa para revisar os instrumentos, mas me detive o ver as pistolas do Jamie na mesa, junto com o corno de pólvora e o estojo de balas. Toquei-lhe o braço. “ Para que?” , modulei com os lábios assinalando-os com a cabeça.

Entre suas sobrancelhas se acentuou a ruga, mas antes de que pudesse responder, acima se ouviu um terrível alvoroço: derrubadas e golpes secos, acompanhados por um ruído gorgoteante.

Jamie deixou cair a corda e saiu disparado para a escalerilla, comigo lhe pisando os talões. Quando apareceu a cabeça acima deixou escapar um grito e se lançou para frente. Ao entrar no desvão, lhe seguindo, vi-lhe lutar com a senhora Beardsley.

Lhe deu uma cotovelada na cara, golpeando-o em pleno nariz. Isso tirou ao Jamie qualquer inibição que lhe impedisse de maltratar a uma mulher: girou-a em redondo e lhe aplicou um seco uppercut ao queixo, que a deixou cambaleante, com os olhos frágeis. Lancei-me para diante para resgatar a vela, enquanto a mulher caía sentada em um colchão de saias e anáguas.

- B cago... essa ed... bujed. –A voz do Jamie soava apagada pela manga que pressionava seu

cara, para estancar o sangue que surgia de seu nariz, mas sua sinceridade era inconfundível.

O senhor Beardsley se agitava como um peixe recém pescado, entre ruídos sibilantes e gorgoteos. Ao levantar a palmatória vi que tratava de tocar o pescoço com uma mão. Tinha um lenço de tecido, retorcido como uma corda; sua cara estava negra, com o único olho exagerado. Apressei-me a desatar o lenço; sua respiração se aliviou com um grande sopro de ar fétido.

- Se tivesse sido mais rápida o teria liquidado. –Jamie baixou o braço manchado de sangue, tocando-a nariz com delicadeza- . Cristo, acredito que me tem quebrado isso.

- por que? por que me impediram isso? –A senhora Beardsley ainda estava consciente, embora se cambaleava e tinha os olhos frágeis- . Deveria morrer, quero que mora, deve morrer.

- A nighean MA galladh, poderia havê-lo matado em qualquer momento deste último mês, se tivesse querido –assinalou ele, impaciente- . por que quiseste esperar a ter testemunhas?

Ela o olhou com olhos súbitamente claros e penetrantes.

- Não o queria morto –disse- . Queria que morrera. –Sorriu mostrando os restos de seus dentes

quebrados- . Lentamente.

 

- OH, Meu deus! –Passei-me uma mão pela cara. Embora logo que mediava a manhã, tinha a sensação de que esse dia já durava várias semanas- . É minha culpa. Disse-lhe que acreditava poder ajudar e pensou que eu o salvaria, que possivelmente o curaria por completo.

Essa maldita reputação de curadora mágica!

- Beztia imunda! –gritou a senhora Beardsley, e se incorporou sobre os joelhos para agarrar um pãozinho duro e o jogou na cabeça- . Beztia imunda, hendionda, imunda, perverza...

Jamie a aferrou pelo cabelo antes de que se tornasse contra o corpo tendido. Logo a separou de um braço, lhe solucem e chiando insultos.

- Por todos os demônios –disse, por cima do alvoroço- . Me traga essa corda, Sassenach, antes de que os mate aos dois.

A tarefa de baixar ao senhor Beardsley do desvão deixou a ambos os banhados em suor e manchados de imundícies, fedorentos e com os joelhos frouxos pelo esforço. A mulher se instalou em um tamborete do rincão, calada e malévola como um sapo, sem fazer nada por ajudar.

Jamie se enxugou a frente com uma manga manchada de sangue. Logo contemplou ao Beardsley, movendo a cabeça. Não pude reprovar-lhe até limpo e abrigado, depois de lhe haver dado algumas colheradas de papa quentes, o homem se encontrava em um estado lamentável. Examinei-o uma vez mais, com esmero, à luz da janela. Sobre os dedos dos pés não cabiam dúvidas: o fedor da gangrena era muito claro, assim como o tintura esverdeado que cobria a impigem.

Teria que amputar algo mais que os dedos. Apalpei cuidadosamente a zona em putrefação, me perguntando se seria melhor tentar uma amputação parcial, entre os metacarpos, ou cortar simplesmente à altura do tornozelo. Esta última operação seria mais rápida; em condições normais, teria tentado a amputação parcial, mais conservadora, mas neste caso não tinha sentido: era óbvio que o doente não voltaria a caminhar.

Mordisquei-me o lábio inferior, dúbia. Em realidade, todo aquilo podia ser inútil; o homem ardia em uma febre intermitente e as chagas das pernas e nádegas gotejavam pus. Que possibilidades tinha de recuperar-se da amputação sem morrer a conseqüência da infecção?

A esposa apareceu detrás de mim sem que eu a tivesse ouvido; para ser tão pesada se movia com notável suavidade.

- Que pienzaz fazer? –perguntou, com voz neutra e remota.

- Os dedos deste pé estão gangrenados –disse. Já não tinha sentido ocultar a situação ao paciente- . Terei que amputar-lhe

Em realidade não havia opção, embora o coração me deu um tombo ao pensar que teria que passar ali talvez semanas inteiras, atendendo ao Beardsley. Não podia entregá-lo aos “ tenros” cuidados de sua esposa.

Ela rodeou lentamente a mesa e se deteve perto dos pés. Sua cara não expressava nada, mas nas comissuras da boca titilava um pequeno sorriso que ia e vinha, como se não dependesse de sua vontade. depois de contemplar esses dedos enegrecidos por um comprido minuto, sacudiu a cabeça.

- Não –disse muito fico- . Deixa que ze apodreça.

Ao menos, isso resolveu a dúvida de se Beardsley entendia ou não: dilatou o olho aberto, lançando

um chiado de ira, e começou a debater-se em um esforço por alcançá-la, até tal ponto que quase cai ao chão. Jamie teve que lutar para manter essa mói na mesa. Quando ao fim o doente cedeu, ofegante e emitindo pequenos miados, ele endireitou as costas, também agitado, e cravou na senhora Beardsley um olhar de grande desgosto.

Ela encurvou os ombros e os rodeou com o xale, mas levantou o queixo em um gesto desafiante, sem retroceder nem apartar a vista.

- Zoy zu ezpoza –disse- . Não permitirei que o cortem. Ezo poria zu vida em perigo.

- Pois assim morrerá –disse, seca- . E será uma morte horrível. Você...

Não pude terminar: Jamie me espremeu o ombro com força.

- leve-lhe isso fora, Claire –me disse em voz baixa.

- Mas...

- Fora.- Esticou a mão em meu ombro, fazendo a pressão quase dolorosa- . Não entre até

que eu te chame.

Estava carrancudo, mas em seus olhos havia algo que me fez sentir um vazio aquoso nas vísceras. Joguei uma olhada ao aparador, onde estavam suas pistolas, junto a minha caixa de remédios. Logo voltei a olhá-lo, horrorizada.

- Não pode –disse.

Ele olhou tristemente ao doente.

- Se um cão estivesse assim, não o pensaria duas vezes –disse- . Posso fazer menos por ele?

- Mas ele não é um cão!

- Não, em efeito.- Deixando cair a mão, rodeou a mesa para deter-se junto ao Beardsley.

- Se me entende fecha o olho, homem –murmurou. Houve um momento de silêncio. O olho avermelhado do doente se fixou na cara de jamie, com inegável inteligência. A pálpebra se fechou lentamente; logo voltou a subir.

- Vete –me disse Jamie- . Que dita ele. Se quiser... ou se não... chamarei-te.

Tremiam-me os joelhos. Entrecruzei as mãos entre as dobras da saia.

- Não. –Olhei ao Beardsley, tragando saliva com dificuldade. Logo neguei com a cabeça- . Não. Eu... se você... necessita uma testemunha.

Ele vacilou um instante, mas acabou por assentir.

- Tem razão, sim. –Jogou uma olhada à mulher. Estava muito quieta, com as mãos apertadas sob o avental, nos olhando alternativamente aos tres.Él moveu brevemente a cabeça. Logo se voltou de novo para o homem, quadrando os ombros.

- Pisca uma vez para dizer que sim, dois para dizer que não –instruiu- . entendeste?

A pálpebra descendeu sem vacilar.

- Escuta, pois.- Jamie aspirou fundo e começou a falar com voz carente de emoção, sem apartar a vista da cara arruinada e a ferocidade desse olho aberto- . Sabe o que te aconteceu?

Uma piscada.

- Sabe que minha esposa é doutora, curadora?

O olho rodou para mim, voltou para o Jamie. Uma piscada.

- Diz que sofreste uma apoplexia e que o dano não tem remédio. Compreende?

Da boca torcida surgiu um bufido. Não era notícia. Uma piscada.

- Tem o pé pòdrido. Se não lhe cortarem isso, a gangrena te matará. Compreende?

Não houve resposta. Tinha farejado a gangrena; talvez suspeitava, mas só agora estava seguro de que provinha de sua própria carne. Uma lenta piscada.

Beardsley tinha tomado sua decisão muito antes, talvez inclusive antes de nossa chegada. depois de tudo, levava um mês nesse purgatório, suspenso na fria escuridão; tinha podido refletir, lutar a braço partido com suas perspectivas e fazer as pazes com a morte.

Compreendia?

OH, sim, muito bem.

Jamie se inclinou para a mesa, com uma mão no braço do Beardsley, sacerdote de mangas manchadas, oferecendo a absolvição e a salvação. A mulher seguia petrificada à luz da janela, como estúpido anjo denunciante.

As asseverações e as perguntas chegaram a seu fim.

- Quer que minha esposa te corte o pé e trate suas feridas?

Uma piscada, logo dois, exagerados, deliberados.

A respiração do Jamie era audível. O peso que sentia no peito convertia cada palavra em um suspiro.

- Pede-me que te tire a vida?

A pálpebra caiu... e não voltou a elevar-se.

Jamie também fechou os olhos, percorrido por um pequeno estremecimento. Logo sacudiu por um instante, como se saísse da água fria, e se dirigiu para o aparador onde tinha posto suas pistolas.

Apressei-me a me aproximar dele para lhe apoiar uma mão no braço. Ele não me olhou, atento à pistola que estava martelando. Estava muito pálido, mas suas mãos não tremiam.

- Vete –disse- . Leve-lhe isso fora.

Voltei-me para o Beardsley, mas ele já não era meu paciente. Agarrei à mulher do braço e a conduzi para a porta. Ela me acompanhou com passos mecânicos, sem olhar atrás.

 

O pátio iluminado pelo sol parecia irreal. A senhora Beardsley se liberou de mim para ir para o estábulo, apertando o passo. depois de jogar um olhar sobre o ombro para a casa, partiu em uma pesada carreira, até desaparrecer pela entrada do estábulo como se a perseguissem os demônios.

Eu tinha captado sua sensação de pânico. Estive a ponto de correr atrás dela, mas não o fiz. Detive-me esperá-la no bordo do pátio. O coração me palpitava lentamente, retumbando em meus ouvidos.

Por fim se ouviu o disparo; foi um som seco, pouco audível, que não chamou a atenção entre o suave balido das cabrass no estábulo e o sussurro dos frangos que escavavam a terra, a pouca distância. “ No coração ou na cabeça” , pensei súbitamente. E me estremeci.

Era já muito passado o meio-dia; uma brisa geada atravessava o pátio, agitando o pó e as fibras de feno. Eu seguia esperando. Ele debiá de haver-se detido a rezar uma breve oração pela alma do Beardsley. Passou um minuto, dois; ao fim se abriu a porta traseira. Jamie deu uns quantos passos para o exterior e se deteve vomitar.

Adiantei-me se por acaso me necessitasse, mas não era assim. Ergueu as costas, limpando-a boca, logo pôs-se a andar em direção oposta a mim, rumo ao bosque.

De repente me senti supérflua e extrañamente ofendida. Apenas uns momentos antes estava trabalhando, absorvida na prática da medicina; conectada à carne, a mente e o corpo; atenta aos sintomas, consciente do pulso e a respiração, dos signos vitais do moribundo.Aunque Beardsley não me era simpático absolutamente, tinha-me dedicado por completo à luta por lhe conservar a vida e aliviar seus sofrimentos. Ainda sentia nas mãos o contato estranho de sua carne quente e frouxa.

Agora meu paciente estava morto. E eu tinha a sensação de que me tinham amputado uma pequena parte do corpo. Talvez era a impressão.

Joguei uma olhada à casa; minha cautela original tinha sido substituída por asco... e um pouco mais fundo. Terei que lavar o corpo, certamente, e arrumá-lo para o enterro. Era algo que eu tinha feito mais de uma vez sem grandes reparos, embora sem entusiasmo; entretanto, agora sentia uma enorme relutância a entrar novamente.

Era possível que seu espírito rondasse ainda a casa, sem haver-se precavido de sua liberdade?

- Não seja supersticiosa, Beauchamp –me disse com severidade- . Basta já disso.

Mesmo assim não dava um só passo para a casa. Fiquei no pátio, tensa como um colibri indeciso.

Se Beardsley já não necessitava minha ajuda e Jamie tampouco, ainda ficava alguém que podia requerê-la. Dava as costas à casa para caminhar para o estábulo.

Era só um abrigo grande, aberto, com um palheiro fragrante de feno, cheio de formas móveis. Detive-me a entrada até que meus olhos se adaptaram à penumbra. Ali estava a mulher, acurrucada em um montão de palha fresca. Cinco ou seis cabras se amontoavam ao redor, puxando entre si e lhe mordiscando as franjas do xale. Era pouco mais que uma sombra jibosa, mas surpreendi o breve brilho de um olho cauteloso entre as sombras.

- Já eztá? –Pergunta-a foi apenas audível por cima dos suaves balidos.

- Sim. –Vacilei, mas não parecia necessitar meu consolo. Já via melhor: ela tinha um cabrito

acurrucado no regaço e acariciava a cabecita sedosa- . Estão bem, senhora Beardsley?

- Não Zé –murmurou.

Aguardei, mas ela não se moveu. A aprazível compañia das cabras podia consoloarla tanto coo eu, de modo que a deixei, quase lhe invejando o quente refúgio do estábulo e seus alegres camaradas. Passaria algum tempo antes de que pudéssemos partir, assim que me dediquei a preparar os cavalos.

Em um lateral havia meio tronco oco, que servia como abrevadero, mas estava vazio.

 

Agradecida pelo tempo que me levaria essa tarefa, extrajé água do poço e enchi o tronco, cubo

depois de cubo.

Enquanto me secava as mãos na saia olhei a meu redor, procurando alguma ocupação útil, mas não ficava nenhuma

Ao levantar a vista, surpreendeu-me encontrar a porta traseira aberta. Estava segura de havê-la fechado. Estaria Jamie dentro? Ou a senhora Beardsley?

Estirei o pescoço para jogar uma olhada à cozinha, mantendo uma distância prudente, mas ao me aproximar ouvi o rítmico chuff de uma pá na terra. Ao rodear a esquina oposta encontrei ao Jamie, cavando perto de um fresno que crescia no pátio, a pouca distância da casa. Ainda estava em mangas de camisa; o vento esmagava o linho manchado contra seu corpo, lhe agitando o cabelo vermelho contra a cara.

Quando o apartou com a boneca, impressionou-me ver que estava chorando. Chorava em silêncio, com certa selvageria, atacando a terra como se fora um inimigo. À lombriga pela extremidade do olho fez uma pausa para limpar-se rapidamente a cara, como se queria enxugar o suor da frente.

Respirava com dificuldade, até o ponto de que lhe ouvia distância. Aproximei-me para lhe oferecer em silencio água e um lenço limpo. Não olhou aos olhos, mas bebeu, tossiu e bebeu de novo. Logo se soou o nariz com cautela. Tinha-a torcida, mas já não sangrava.

- Não passaremos a noite aqui, verdade? –arrisquei-me a perguntar, enquanto me sentava em um bloco de madeira, sob o fresno.

Ele sacudiu a cabeça.

- Não, Por Deus –disse com voz rouca. Estava avermelhado e com os olhos avermelhados, mas se controlava com firmeza- . Iremos assim que lhe tenhamos dado uma sepultura decente. Não me importa voltar a passar frio no bosque, mas não quero dormir aqui.

Eu estava plenamente de acordo, mas havia outro detalhe a ter em conta.

- Y... ela? –perguntei com delicadeza- . Está na casa? A porta traseira está aberta.

Jamie voltou a cravar a pá com um grunhido.

- Não, fui eu. Ao sair tinha esquecido deixá-la aberta... para que a alma possa escapar –explicou ao ver meu assombro.

O que me produziu um calafrio não foi o fato de que isso coincidisse com minha idéia anterior, a não ser o tom fleumático de sua explicação.

- Compreendo –disse, fracamente.

Durante um momento, Jamie contunuó cavando; a pá se afundava profundamente na terra, que ali era margosa e rica em húmus. Por fim, sem quebrar o ritmo da tarefa, disse:

- Em uma ocasião, Brianna me contou algo que tinha lido. Não o recordo bem, mas se tratava de um assassinato. O morto era um homem perverso que tinha induzido a alguém a cometê-lo. E ao final, quando lhe perguntava ao narrador què se devia fazer, ele dizia: “ Deixem passar à justiça de Deus.”

- Crie que neste caso se tratou disso? De justiça?

Ele moveu a cabeça, mas não como uma negativa, mas sim de desconcerto. Logo continuou cavando. Observei-o por um momento, tranqüilizada por sua proximidade e pelo ritmo hipnótico de seus mivimientos. depois de um momento, preparei-me para a tarefa que me aguardava.

- Será melhor que vá preparar o corpo e a limpar o desvão –disse a contra gosto- . Não podemos deixar a pobre mulher só com essa imundície, apesar do que tenha feito.

- Espera, Sassenach. –Jamie interrompeu a tarefa e, um pouco desconfiado, jogou uma olhada à casa- . Em um momento entrarei contigo. Mientra –assinalou o bosque com a cabeça- , poderia trazer algumas pedras para o montículo?

Um montículo? Isso me surpreendeu o bastante; parecia um detalhe desnecessário para o defunto

senhor Beardsley. Embora no bosque haveria lobos.También me ocorreu que Jamie estava inventando uma desculpa convincente para que eu atrasasse entrar de novo na moradia. E nesse caso, carregar rochas parecia uma alternativa muito desejável.

Felizmente não faltavam pedras adequadas. Meia hora depois, a idéia de entrar tinha começado a me parecer muito menos objetável. Mas como Jamie seguia dedicado a sua tarefa, eu continuei com a minha.

Por fim, já ofegante, deixei cair outra carga junto à sepultura, cada vez mais funda. As sombras se alargaram no pátio e o ar era tão frio que me tinham intumescido os dedos; melhor assim, dado que os tinha cheios de arranhões.

- Tem uma pinta terrível –comentei, separando-se de minha cara o cabelo desalinhado- . A senhora Beardsley não saiu ainda?

Ele fez um gesto negativo, mas demorou um instante em recuperar o fôlego para falar.

- Não –disse, tão rouco que apenas lhe ouvi- . Ainda está com as cabras. Suponho que ali não faz frio.

Observei-o com desassossego. Cavar tumbas é um trabalho duro.

- Acredito que já é bastante profunda –disse, inspecionando sua obra. Eu me teria conformado com um buraco superficial, mas Jamie não fazia nada ao descuido- . Deixa-o já, homem, e te troque essa camisa. Está empapado; agarrará um resfriado espantoso.

Sem incomodar-se em discutir, ele recolheu a pá para quadrar pulcramente as esquinas do fossa, de modo que não se desmoronassem. A sombra da casa caía sobre a sepultura aberta, larga e fria. Cobri-me os cotovelos com as mãos, tremendo em silêncio.

Jamie arrojou a pá a terra com um ruído metálico que me sobressaltou. Ao sair do fossa esteve imóvel um minuto, com os olhos fechados, cambaleando-se de fadiga. Logo os abriu para sonréirme.

Terminemos com isto –disse.

 

Já fora porque a porta aberta tinha permitido a fuga do espírito do defunto, já porque Jamie estava a meu lado, entrem in vacilar. O fogo se apagou, deixando a cozinha fria e penumbrosa, mas dentro não se percebia nada maligno. Simplesmente... estava vazia.

Os restos mortais do senhor Beardsley descansavam apaciblemente sob uma das mantas com que comercializava. Mudo e quieto, vazio ele também.

A esposa tinha declinado assistir às formalidades e até a entrar na casa, enquanto o corpo de seu marido estivesse ali, de modo que varri o lar, acendi outra vez o fogo e o avivei até que cobrou vida. Enquanto, Jamie se ocupava de limpar o desvão.

Na morte, Beardsley parecia muito menos grotesco que em vida; já relaxados os membros disformes, tinha perdido o ar de luta frenética. Tinha a cara coberta com uma toalha de algodão, mas quando espiei baixo ela, vi que não devia limpar nenhuma sangria: Jamie lhe tinha disparado limpamente no olho cego, sem que a bala arrebentasse o crânio. O olho são estava fechado; a ferida negra continuava aberta e fixa. Voltei a depositar a toalha contra essas facções, às que a morte havia devolvido a simetria.

Jamie se deteve silenciosamente a meu lado, me tocando o ombro.

- vá lavar lhe –disse isso, assinalando o pequeno hervidor que tinha pendurado no lar para esquentar água- . Eu me posso arrumar isso sozinha.

Ele se tirou a camisa empapada e a deixou cair dentro do lar. Emprestei atenção aos ruídos caseiros que fazia ao lavar-se. de vez em quando tossia, mas sua respiração parecia mais tranqüila que quando estava fora, à fria intempérie.

- Ignorava que a apoplexia pudesse ser assim –cometó- . Creia que matava imediatamente.

- Às vezes sim –disse, algo distraída, me concentrando no que fazia- . Mas com muita freqüência acontece como neste caso.

- Sim? Nunca me ocorreu lhe perguntar ao Dougal ou ao Rupert. Ou ao Jenny. Se meu pai...

A frase se cortou abruptamente, como se a tivesse tragado.

Ah! De maneira que era isso. Tinha esquecido o que ele me contasse anos antes, pouco depois de nos casar. Seu pai tinha presenciado a flagelação do Jamie no Fort William; a impressão o

provocou uma apoplexia que o matou. Ao Jamie, ferido e doente, tinham-no tirado subrepticiamente do forte para enviá-lo ao exílio. Só semanas mais tarde soube da morte de seu pai; não tinha tido oportunidade de despedir-se dele, de sepultá-lo, nem de honrar sua tumba.

- Jenny deve sabê-lo –comentei- . E ela te haveria dito se...

Se Brian Fraser tinha padecido uma agonia tão lenta como esta, reduzido à impotência ante os olhos da família que tinha tratado de proteger, ela o teria contado? Se tinha atendido a seu pai na incontinência e a discapacidad, se tinha esperado dias, semanas, súbitamente privada de seu pai e de seu irmão, obrigada a enfrentar sozinha à morte que se aproximava momento a momento...

Mas Jenny Fraser era uma mulher muito forte, que amava profundamente ao Jamie. Talvez teria querido protejerlo, tanto da culpa como do conhecimento.

Voltei-me para ele. Estava médio nu, mas asseado, aon uma camisa limpa nas mãos. Olhava-me, mas notei que seus olhos foram mais à frente e se fixavam no cadáver com afligida fascinação.

- Ell lhe haveria isso dito –repeti, me esforçando por imprimir certeza a minha voz.

Jamie aspirou fundo, penosamente.

- Talvez.

- Estou segura –disse com mais firmeza.

Ele assentiu com a cabeça e suspirou outra vez, com mais soltura. Compreendi então que a morte do Beardsley não afetava só a essa casa. Mas só Jenny tinha a chave da única porta que se podia abrir para meu marido.

Agora compreendia por que o tinha visto chorar, por que tinha posto tanto esmero ao cavar a tumba. Não era por espanto nem por caridade, muito menos por consideração para o defunto, mas sim pelo Brian Faser, o pai ao que não tinha podido sepultar nem chorar.

Já vestido, Jamie rodeou a mesa para me ajudar a levantar o corpo, mas em lugar de introduzir as mãos por debaixo, alargou-as para agarrar as minhas.

- me jure, Claire –disse. Estava quase afônico; tive que me inclinar para ouvir- . Se algum dia me acontecer o que a meu pai... me jure que me fará o mesmo favor que eu lhe tenho feito a este miserável.

A pá tinha deixado ampolas novas em sua Palmas. Percebi a brandura estranha, móvel, cheia de fluido.

- Farei o que deva –sussurrei por fim- . Como você o tem feito.

Ele me estreitou as mãos e as soltou.

- Agora vamos enterrar o. Tudo terminou.

 

                   Brownsville

Era meia tarde quando Roger e seus milicianos chegaram ao Brownsville, depois de haver-se desviado do caminho e vagado várias horas pelas colinas até que dois cherokees com os que

encontraram-se lhes indicaram o rumo.

Brownsville estava formado por cinco ou seis choças desmanteladas repartidas em uma colina, como um punhado de lixo jogado entre a maleza moribunda.

Mesmo assim era, obviamente, bom sítio para começar, embora só fora pelo bem dos homens que o acompanhavam: ao ver os tonéis tinham começado a vibrar como limagens de ferro perto de um ímã. O aroma da levedura da cerveja lhes saía ao encontro como uma bem-vinda. Pensando que tampouco iria mal uma jarra, agitou uma mão para ordenar o alto. Fazia um frio entumecedor e tinha passado muito tempo do café da manhã. Dificilmente lhes serviriam nada ali, além de pão ou um guisado, mas m entra fora possível comer algo quente e regá-lo com algum tipo de álcool, ninguém se queixaria.

Roger tinha desmontado e estava a ponto de chamar os outros quando uma mão apertou o braço.

- Attendez.- Fergus falava muito baixo, quase sem mover os lábios. De pé junto a ele, olhava algo que estava mais à frente- . Não te mova.

Roger não se moveu, nem tampouco os homens, ainda em seus cavalos. Estavam vendo quão mesmo Fergus, fora o que fosse.

- O que acontece? –perguntou, baixando também a voz.

- Alguém, dois tipos, estão-nos apontando com pistolas da janela.

- Ah.- Roger compreendeu que Jamie tinha tido muito bom critério ao não entrar no Brownsville na escuridão, a noite anterior. Estava visto que conhecia a natureza suspicaz dos lugares remotos.

Movendo-se com muita lentidão, levantou as mãos no ar e lhe fez um gesto com o queixo ao Fergus, que o imitou a contra gosto.

- Olá, aos da casa! –gritou, contoda a autoridade que se é possível quando se têm as mãos por cima da cabeça- . Sou o capitão Roger MacKenzie, com uma companhia de milicianos ao mando do coronel James Fraser, da Colina do Fraser.

O único efeito que provocou essa informação foi que um dos canhões se desviasse, apontando para o Roger, o que lhe fez compreender que a arma não tinha pontudo contra ele em um começo; a outra ainda assinalava sobre seu ombro direito, para o grupo de cavaleiros que se removiam em suas cadeiras, entre murmúrios inquietos.

Genial. E agora o que? Os homens esperavam que ele fizesse algo. Sempre com lentidão, baixou as mãos e tomou fôlego para gritar outra vez. antes de que pudesse falar, ouviu-se uma voz rouca detrás da pele de veado:

- Estou-te vendo, Morton, cretino!

Esta imprecação veio acompanhada de um visível movimento da primeira pistola, que abandonou abruptamente ao Roger para dirigir-se para o mesmo branco que sua companheira: presumivelmente, Isaiah Morton, um dos milicianos do Granite Falls.

Entre os homens a cavalo houve um ruído de roce e gritos de sobressalto. de repente estalou o inferno, ao disparar-se simultaneamente as duas pistolas. Os cavalos se encabritaram, espantados.

Roger se tinha arrojado corpo a terra à primeira explosão, mas ao apagá-los ecos, levantou-se como por reflexo, tirando o barro dos olhos, e carregou de cabeça contra a porta.

Para sua própria surpresa, sua mente funcionava com toda claridade. Se Brianna necessitava vinte segundos para carregar e martelar uma arma, esses bodes não podiam fazê-lo muito mais depressa. portanto, ficavam uns dez segundos de graça, e tinha a intenção de aproveitá-los.

Golpeou a porta com o ombro, fazendo-a voar para dentro até se chocar com a parede. Roger entrou tropeçando na habitação e foi a estelar se contra o muro de em frente. Ali se deu um forte golpe no ombro contra a chaminé e ricocheteou, mas conseguiu manter-se em pé, embora cambaleando-se como se estivesse bêbado.

Na habitação havia várias pessoas que se voltaram para ele, boquiabertas. Quando sua visão se limpou o suficiente, pôde ver que só duas estavam armadas. Enchendo-os pulmões de ar, jogou-se contra o tipo que tinha mais perto, um homem mirrado, de barba espaçada, e o agarrou pela camisa, imitando a um professor muito temido que tinha tido na escola elementar.

- O que é o que te propõe, pequeñajo? –bramo Roger, atirando dele até que ficou de

puntillas.

- Senhor! Solte a meu irmão!

A vítima do Roger tinha deixado cair a arma e o corno do `´olvora, cujo contido se pulverizou pelo chão. Mas o outro pistoleiro tinha conseguido recarregar sua arma e agora tentava apontar ao Roger. Resultava-lhe difícil por causa das três mulheres presentes na habitação, dois das quais lhe atiravam do braço, lhe falando de uma vez e lhe entorpecendo o caminho. A terceira se havia talher a cabeça com o avental e emitia rítmicos chiados de histeria.

Nesse momento, Fergis entrou na casa, com uma enorme pistola e apontou ao homem armado.

- Tenha a bondade de baixar isso, por favor –dijo,alzando a voz para fazer-se ouvir por cima da animação- . E você, senhora, pode jogar água sobre esta jovem? Ou possivelmente melhor esbofeteá-la? –Assinalou com o gancho à mulher histérica, cujos chiados lhe arrancaram uma leve careta.

Uma das mulheres se aproximou lentamente a que gritava, como se estivesse hipnotizada; depois de aferrá-la pelo ombro e sacudi-la, começou a lhe murmurar algo ao ouvido, sem apartar os olhos do Fergus. Os alaridos cessaram, sendo substituídos por soluços irregulares e convulsivos.

- E quem demônios é você? –O segundo homem, que tinha baixado a arma, olhava ao Fergus com ar confundido.

O francês fez um gesto despreocupado com o gancho de ferro, que parecia fascinar às mulheres.

- Isso não tem importância –disse com ar grandioso, elevando dois ou três centímetros mais seu aristocrático narigudo- . O que requeiro... quer dizer, o que requeremos –corrigiu, dirigindo ao Roger um gesto cortês- é saber quem são vocês.

Os habitantes da cabana se intercambiaram olhadas, como perguntando-se os quais eram. Depois de um momento de vacilação, o mais corpulento dos dois homens levantou agressivamente o queixo.

- Meu nome é Brown, senhor. Richard Brown. Lionel, meu irmão; Meg, minha esposa; Alicia, minha filha... –Essa era a moça que gritava, que já se tirou o avental da cabeça e seguia banhada em lágrimas- . E Thomasina, minha irmã.

- Para lhes servir, senhora, senhoritas.- Fergus dedicou às damas uma elegante reverencia, sem deixar por isso de apontar com a pistola para a frente do Richard Brown- . Peço-lhes perdão por este transtorno.

A senhora Brown respondeu com uma inclinação de cabeça; tinha os olhos algo frágeis. A senhorita Thomasina Brown, alta e de aspecto severo, olhou alternativamente ao Roger e ao Fergus.

Fergus parecia agradado; tinha conseguido transformar uma confrontação armada em uma cena de salão parisino. A seguir olhou ao Roger e lhe cedeu o controle da situação com um claro gesto da cabeça.

- Bem.- Roger tinha a sensação de que sua folgada camisa de lã se converteu em uma camisa de força. Voltou a aspirar homdo, enchendo-os pulmões com esforço- . Pois como lhes dizia, sou... né... o capitão MacKenzie. O governador Tryon nos encomendou recrutar uma companhia de milicianos. viemos a lhes notificar que têm vocês a obrigação de contribuir com homens e provisões.

Richard Brown pareceu surpreender-se, seu irmão ficou carrancudo. antes de que pudessem apresentar nenhuma objeção, Fergus se aproximou do Roger, murmurando:

- Mon capitain, não conviria averiguar se tiverem matado ao senhor Morton, antes de aceitá-los em nossa companhia?

- OH, sim. –Roger cravou nos Brown seu olhar mais severo- . Senhor Fraser, quer ver o que passou com o senhor Morton? Eu esperarei aqui.

Sem perder de vista aos donos da casa, alargou uma mão para receber a pistola de seu companheiro.

- OH, o tal Morton está vivinho e abanando o rabo, capitão, só que não está aqui. há-se pirado como raposa com o rabo chamuscado, mas quando desapareceu se movia perfeitamente. –A voz nasal do do Glasgoww falou da porta.

Um grupo de cabeças curiosas, entre elas a do Henry Gallegher, espiavam da porta. Também se viam várias armas desencapadas. Roger começou a respirar com mais facilidade.

Os Brown, tendo perdido todo o interesse pelo Roger, olhavam ao Gallegher completamente desconcertados.

- O que há dito? –sussurrou a senhora Brown a sua cunhada.

A outra dama moveu a cabeça, com os lábios apertados.

- Diz que o senhor Morton está são e salvo –traduziu Roger. E tossiu- . O qual é uma sorte para vocês –acrescentou, dirigindo-se aos homens da casa, com toda a ameaça que pôde pôr em sua voz. Logo se voltou para o Gallegher, que se tinha reclinado contra o marco da porta, mosquete em mão, com cara de estar muito entretido.

- Todos estão bem, Henry?

Ele se encolheu de ombros.

- Estes sacos de esterco não furaram a ninguém, mas deixaram uma bonita perdigonada em seu alforja. Senhor –adicionou tardiamente.

- Na do uísque? –inquiriu, alarmado, Roger.

- O que vai! –Os olhos do Gallegher refletiram seu horror ante a possibilidade. Logo o tranqüilizou com um grande sorriso- . Na outra.

- Ah, bom. –O capitão fez um gesto com a mão- . Só eram minhas calças, verdade?

Essa reação arrancou risadas e exclamações de apoio entre os homens apinhados na porta. E respirou ao Roger para dirigir-se ao mais pequeno dos Brown.

- E o que têm vocês contra Isaiah Morton? –quis saber.

- desonrou a minha filha –replicou o homem imediatamente, já recuperada a compostura. E cravou no Roger um olhar fulminante. A barba lhe retorcia de cólera- . Hei-lhe dito que, se se atrevia a aparecer essa maldita cara em dez milhas à redonda, veria-o morto aos pés de minha menina. E mailditos sejam meus olhos se essa porca víbora não teve o descaramento de cavalgar até minha porta! –O senhor Richard Brown se voltou para o do Glasgoww- . Diz que os dois erramos o tiro?

Gallagher se encolheu de ombros como pedindo desculpas.

Sim. Sinto muito.

A mais jovem das senhoritas Brown escutava o diálogo algo boquiaberta.

- erraram? –perguntou. A esperança lhe iluminava os olhos avermelhados- . Isaiah vive ainda?

- Não por muito tempo –seguró seu tio, carrancudo.

Roger olhou ao Fergus, que se encolheu levemente de ombros. Tinha que decidir ele.

E o que podia lhes dizer? Morton era miliciano; portanto, tinha direito a seu amparo. Não devia entregar-lhe aos Brown, face ao que tivesse feito, se é que conseguiam apanhá-lo. Por outra parte, sua missão era recrutar aos dois irmãos e a todos os homens do Brownsville que fossem aptos, além de conseguir provisões para ao menos uma semana. Dadas as circunstâncias, não parecia que a proposta fora a ser bem recebida.

Tinha a irritante convicção de que Jamie não teria tido dúvidas de como resolver essa crise diplomática. Mas, pessoalmente, ele não tinha a mais mínima idéia do que fazer.

 

Ao menos dispunha de um plano para ganhar tempo. Baixando a pistola com um suspiro, procurou a

taleguilla que pendia de sua cintura.

- Henry, traz a alforja onde tenho o uísque, quer? Senhor Brown, espero que me permita adquirir um pouco de comida e um tonel de sua cerveja para alimentar a meus homens.

Com um pouco de sorte, quando o tivessem bebido tudo, Jamie já teria chegado.

 

                   Um terço de cabra

Não tinha terminado, depois de tudo. Obscureceu muito antes de que acabássemos na granja dos Beardsley: limpar, voltar a carregar as alforjas e selar novamente os cavalos. Estive a ponto de sugerir que jantássemos antes de partir (não habiamos comido nada do café da manhã), mas a atmosfera de lugar era tão perturbadora que nem Jamie nem eu tínhamos apetite.

- Esperaremos –disse ele, carregando as alforjas a lombos da égua. Logo jogou uma olhada à casa- . Sinto um vazio no estomago, mas com esta casa à vista não poderia provar bocado.

- Compreendo-te. –Eu também olhei com inquietação para trás, embora não havia nada que ver, salvo a casa quieta e vazia- . Não vejo a hora de me afastar daqui.

Os cavalos davam coices, inquietos, sacudindo as crinas em sua ansiedade de partir. Eu os compreendia. Joguei outro olhar para trás, sem poder me conter. Teria sido difícil imaginar algo tão desolador. E mais difícil ainda, imaginar-se vivendo sozinha ali.

Pelo visto, a senhora Beardsley também o tinha pensado e tinha chegado a uma conclusão similar, pois nesse momento emergiu do estábulo, com o cabrito nos braços, anunciando que viria conosco. Ao parecer também se levava as cabras. Entregou-me o cabrito e desapareceu novamente no estábulo.

- Não pode as abandonar aqui- murmurei ao Jamie, que protestava na penumbra, a minhas costas- . Terá que as ordenhar. Além disso não há tanta distância, ou sim?

- Sabe a que velocidade caminham as cabras, Sassenach?

- Nunca tive ocasião de lhes medir o tempo –repliquei, um pouco irritada, trocando de posição a minha pequena carga peluda- . Mas não acredito que sejam muito mais lentas que os cavalos, na escuridão.

Respondeu com um som gutural escocês, ao que o escarro dava mais expressividade que de costume. Logo tossiu.

- Que mal está! –observei- . Quando chegarmos te porei a graxa mentolada, moço.

Ele não pôs objeções, coisa que me alarmou, pois indicava uma grave depressão de sua vitalidade. Mas antes de que pudesse fazer mais investigações sobre sua estado de saúde me interrompeu a aparição da senhora Beardsley, que saía do estábulo seguida de seis cabras, atadas à mesma corda como uma banda de sentenciados jovialmente ébrios.

Jamie observou aquela procissão com ar dúbio.

- A mãe seguirá a sua cria e as otrs seguirão ao macho –me disse- . As cabras são animais sociáveis; nenhuma quererá afastar-se por sua conta, muito menos de noite. Fora! –murmurou, separando-se de sua cara um focinho inquisitivo, enquanto se agachava a revisar a cilha- . Com porcos seria pior. Eles sim se agrupam a seu modo.

E se incorporou, dando uma palmada distraída a um testuz peludo. Logo disse à senhora Beardsley, lhe mostrando o falso nó que tinha pacote à cadeira, perto de sua mão:

Se ocorrer algum percalço, soltem imediatamente, ou o cavalo fugiria com todos vós e esta criatura terminará enforcada.

Ela assentiu; era um vulto curvado a lombos da égua. Logo olhou para a casa.

- Debemoz irnoz antez de que zalga a lua –disse em voz baixa- . Ez entoncez quando aparece.

Pelas costas me correu um calafrio. Jamie, com um coice, voltou-se para a casa às escuras. A ninguém lhe tinha ocorrido fechar a porta, que permanecia aberta, como uma concha

ocular vazia.

- Quem? –perguntou, com um fio de voz.

- Mary Ann –respondeu- . Ela foi a última. –Não havia ênfase em sua voz; falava como sonâmbula.

- A última o que? –perguntei eu.

- A última ezpoza. –E agarrou as rédeas- . Quando zale a lua apareze de pé sob o zerbal.

Jamie girou a cabeça para mim. A escuridão não me permitiu ver sua expressão, mas não era necessário. Pigarreei.

- Não seria melhor... fechar a porta? –sugeri.

Presumivelmente, o espírito do senhor Beardsley já tinha captado a idéia. E embora sua viúva não tivesse nenhum interesse na casa e seu conteúdo, não parecia decente deixá-la a mercê dos mapaches e os esquilos. Por outra parte, eu não tinha nenhum desejo de me aproximar da casa deserta.

- Subida, Sassenach.

Jamie cruzou o pátio a grandes passos, fechou a porta com mais violência da necessária e retornou, a passo enérgico.

- Hop! –exclamou, montando detrás de mim. E partimos, com o resplendor da medial uma apenas visível por cima das árvores.

Sentia-me bastante a salvo ali, sobre a mole poderosa do cavalo, com o ruído das cabras a nosso redor e, detrás a presença tranqüilizadora do Jamie, que me rodeava a cintura com um braço. Mas não o suficiente para voltar a vista atrás. E ao mesmo tempo, o impulso de olhar era tão intenso que quase rebatia o medo que me inspirava a granja.

- Em realidade não é um serbal, não?- disse brandamente Jamie, detrás de mim.

- Não- confirmei- . É um fresno silvestre. Mas são muito parecidos.

Estreitei-lhe a mão cheia de ampolas, e ele me beijou na cabeça.

No alto do atalho me voltei a olhar, mas só se via um vago brilho no telhado erodido da casa. O fresno e o que baixo ele houvesse (ou não) permaneciam ocultos nas sombras.

Foi um grande alívio abandonar por fim as terras dos Beardsley. Quando os pinheiros tamparam tudo o terreno baixo, separei-me da mente os pertubadores acontecimentos do dia para pensar no que nos esperava no Brownsville.

- Confio em que Roger as tenha arrumado bem –disse, me apoiando contra o peito do Jamie, com um pequeno suspìro.

- Hum jum.

- Espero que tenha encontrado alguma estalagem –insisti, pensando que essa perspectiva podia provocar algo mais de entusiasmo- . Seria magnífico ter comida quente e uma cama limpa.

- Hum jum. –Esta vez tinha uma mescla de humor e cepticismo, sobre a possível existência de comida quente e camas podas nos territórios se separados da Carolina.

- Laas cabras parecem levá-lo muito bem –acrescentei. E aguardei com espera.

- Hum jum. –Dava-me a razão a contra gosto, embora duvidando sobre a duração dessa boa conduta por parte das cabras.

Enquanto eu formulava mentalmente outra observação, com a esperança de insisti-lo a repetir aquilo (o máximo tinham sido três vezes), Gideon justificou súbitamente a desconfiança do Jamie elevando-se de mãos com um forte bufo.

Choquei-me com o peito do Jamie e o golpe seco de minha cabeça contra sua clavícula me fez ver as estrelas. Ele me sujeitou me rodeando com o braço até me deixar sem ar enquanto atirava das rédeas com uma só mão, gritando.

Eu não tinha idéia do que estava dizendo; não sabia sequer se falava em inglês ou em gaélico. O cavalo relinchava, encabritado, e eu procurava algo ao que me agarrar: crinas, cadeira, rédeas... Um ramo me açoitou a cara, me cegando. Reinava o pandemônio; ouviam-se chiados, balidos e um ruído como de tecido rasgado. Logo, algo me golpeou com força, me lançando à escuridão.

Não me deprimi, mas faltou pouco. Fiquei escancarada em um matagal, me esforçando por respirar, incapaz de me mover e sem ver nada, além de umas quantas estrelas disseminadas no céu.

A certa distância se ouvia uma grande animação, no que preponderava um coro de cabras espavoridas,

interrompido de gritos que pareciam de mulher. Gritos de duas mulheres.

Movi a cabeça, confundida. de repente me pus de barriga para baixo e comecei a me arrastar: acabava de reconhecer, embora tarde, o que era aquilo. Com freqüência tinha ouvido rugidos de jaguar, mas sempre de longe, a distancia segura. Mas este não estava nada longe. O ruído de tecido rasgado tinha sido o bufido de um grande felino, que estava muito perto.

Ao chocar com um grande tronco cansado me apressei a me esconder baixo ele, me introduzindo no oco tudo o que pude. Não era o melhor dos esconderijos, mas talvez impedisse que algo saltasse das árvores sobre mim.

Seguia ouvindo os gritos do Jamie, embora o tom de seus comentários tinha passado a ser uma espécie de rouca fúria. As cabras já não baliam; era possível que o felino as houvesse matodo a todas? Tampouco se ouvia a senhora Beardsley. Os cavalos, em troca, armavam um tremendo barulho com tanto relinchar e dar coices.

- Aqui –grasnei, decidida a não abandonar meu refúgio sem saber com certeza onde estava o jaguar... ou ao menos sem ter segurança de que não estava perto de mim. Os cavalos tinham deixado de relinchar, embora seguiam soprando e fazendo ruído com os cascos, para demonstrar que nenhum deles tinha fugido nem cansado presa do visistante- . Aqui! –repeti, elevando um pouco a voz.

Mais rangidos a pouca distância. Jamie apareceu a tropicões na escuridão e se agachou para medir debaixo do tronco. Sua mão encontrou meu braço e o estreitou.

- Está bem, Sassenach?

- Não tive tempo de averiguá-lo, mas acredito que sim. –Saí do tronco com cuidado para ver se estava ferida. Cardeais aqui e lá, cotovelos esfolados e uma sensação de ardência na bochecha golpeada pelo ramo. Basicamente, tudo estava bem.

- Me alegro. Date pressa, que está ferido. –Ele me levantou e me ajudou a caminhar.

- Quem?

- O macho caibro, é obvio.

Para então minha vista se adaptou à escuridão. Pude distinguir as grandes silhuetas do Gideon e da égua sob um álamo; ambos agitavam crinas e caudas com nervosismo. A pouca distância havia um vulto mais pequeno, que parecia ser a senhora Beardsley, agachada junto a algo.

Cheirava a sangue e a fetidez de cabra. Pu-me em cuclillas, alargando a mão até encontrar cabelo áspero, quente. O macho caibro se sobressaltou com um forte “ Beeeeh!” , que me tranqüilizou um pouco. Possivelmente estivesse ferido, mas não moribundo. O corpo que tinha sob minhas mãos estava sólido e vital, com os músculos tensos.

- Onde está a fera? –perguntei, enquanto localizava a dureza dos chifres e continuava palapando apressadamente a coluna, as cortillas e os flancos. O animal apresentou suas objeções com selvagens sacudidas.

- foi –disse Jamie, que também se agachou. Apoiou uma mão na cabeça do macho- . seja seja a bhalaich. Tudo está bem. Seas,mo charaid.

Não encontrava nenhuma ferida aberta no corpo da cabra; entretanto cheirava a sangue: um bafo quente e metálico, que perturbava o limpo ar noturno do bosque. Os cavalos também o farejavam e se removiam na escuridão, inquietos.

- Estamos seguros de que se foi? –insisti, tratando de não pensar na sensação de ter uns olhos cravados na nuca- . Cheiro a sangue.

- Sim. A fera se levou a uma das fêmeas –me informou Jamie, enquanto se ajoelhava a meu lado para apoiar uma mão no pescoço do animal- . A senhora Beardsley soltou a este bravo moço, que se jogou de cabeça contra o felino. Não o vi tudo, mas acredito que a bestial e lançou um zarpazo. Ouvi-a chiar e bufar. E nesse momento o macho caibro também gritou. Pode que se quebrado uma pata.

Assim era. Com essa informação achei facilmente a fratura, no úmero da pata dianteira direita. A pele estava intacta, mas o osso, quebrado. Apalpei o leve deslocamento dos extremos. A cabra puxou, tratando de me cornear o braço. Seus olhos se moviam, frenéticos; as estranhas pupilas quadradas eram visíveis, mas incolores sob o fraco claro lunar.

- Pode curá-lo, Sassenach?

- Não sei.

O animal seguia lutando, mas seus movimentos se debilitavam perceptivelmente.

- Não sei –repeti. Meus dedos tinham encontrado finalmente o pulso; era muito veloz e débil. Tratei de imaginar os tratamentos possíveis, todos rudimentares- . É muito possível que mora, Jamie, embora lhe reduza a fratura. Não seria melhor sacrificá-lo? Convertido em carne será muito mais fácil de transportar.

Ele acariciou brandamente o pescoço da cabra.

- A um animal tão valente... Seria uma pena.

Para ouvi reso, a senhora Beardsley soltou uma risita nervosa, como de menina.

- Ze chama Hiram –disse- . Ez um bom moço.

- Hiram –repetiu ele, sem deixar de acariciá-lo- . Pois bem, Hiram. Courage, mon brave. Sairá adiante. Tem os ovos do tamanho de um melão.

- De caquis, mas bem –observei, pois tinha encontrado inadvertidamente os testículo em questão ao efetuar meu exame- . Embora perfeitamente respeitáveis, sem dúvida.

Aspirava o menos possível para não cheirá-lo. As glândulas almizcleras do Hiram estavam trabalhando horas extraordinárias. Até o penetrante aroma de sangue ficava em segundo plano.

- Disse-o em sentido figurado –me informou jamie, com bastante secura- . O que vais necessitar, Sassenach?

Pelo visto a decisão estava tomada.

- Pois bem. –Tirei-me o cabelo da cara com o dorso da boneca- . Busca me um par de ramos retas, de uns trinta centímetros de longitude, sem ramillas laterais, e uma parte de corda. Logo me ajudará com ele –acrescentei, tratando de sujeitar a meu inquieto paciente- . Hiram parece te ter simpatia. Talvez te reconhece como espírito afim.

Jamie riu; foi um som grave e reconfortante junto a meu cotovelo. incorporou-se, depois de lhe arranhar uma vez mais as orelhas, e se afastou entre sussurros de folhagem. Momentos depois estava de retorno com o que lhe tinha pedido.

- Bem. –Apartei uma mão do pescoço do Hiram para agarrar os paus- . vou entalar o; desta maneira não poderá dobrar a pata e fazer-se mais danifico. Teremos que levá-lo nas costas.

me ajude a tender o de lado.

A senhora Beardsley rondava a meu lado, com um cabrito em braços. O pequeno emitiu um débil balido, como se despertasse súbitamente de um pesadelo, e Hiram respondeu com um forte “ beeh” .

- Tenho uma idéia –murmurou jamie. E se levantou para agarrar o cabrito. Logo voltou a ajoelhar-se e o aproximou do macho. Imediatamente o hociqueó no flanco, com um balido. Uma língua larga e viscosa serpenteou sobre minha mão, lesma, procurando a cabeça do pequeno.

- Sei rápida, Sassenach –sugeriu Jamie.

Não necessitei mais incentivo. Em poucos minutos tive a pata estabilizada e as tabuletas acolchoadas com um dos muitos xales que a senhora Beardsley levava em cima. Hiram se tinha tranqüilizado e só emitia algun gemido ocasional. O cabrito, em troca, balia a todo pulmão.

- Onde está sua mãe? –perguntei. Mas não necessitava a resposta. Embora não fora muito entendida em cabras, sabia de maternidade: só a morte manteria a uma mãe longe do filho que estivesse Armando um alvoroço semelhante. As outras cabras tinham retornado por curiosidade, por medo às sombras ou, simplesmente, por procurar companhia, mas a mãe não se adiantou.

- Pobrecilla... –disse tristemente a senhora Beardsley- . Uma cabra tão doce...

Hiram já tinha os ossos em seu sítio e o entalado bem firme. Emitiu um forte e belicoso “ beeeeehhh!” e se levantou apoiando-se em três patas. Caiu imediatamente, mas sua reação animou a todos. Até a senhora Beardsley lançou uma exclamação de palcer ao vê-lo.

- Muito bem. –Jamie se incorporou com um profundo suspìro- . E agora...

- E agora o que? –inquiri.

- Agora devo decidir o que faremos. –Havia certo nervosismo em sua voz.

- Não continuaremos para o Brownsville?

- Poderíamos continuar. Se a senhora Beardsley conhecer bem o caminho e é capaz de achar o atalho à luz das estrelas.

voltou-se para ela, espectador, mas até nas sombras vi o gesto negativo da mulher.

Então caí na conta de que já não estávamos no caminho; em todo caso, era apenas um estreito caminho aberto pelos veados.

- Não podemos estar tão longe, verdade? –Olhei a meu redor, aguçando inutilmente a vista na escuridão, como se pudesse haver algín letreiro luminoso que indicasse a situação do atalho. Em realidade, não tinha nem idéia do rumo.

- Não –respondeu Jamie- . Quanto a mim, acredito que cedo ou tarde a encontraria. Mas não penso andar a tropicões pelo bosque, na escuridão e com tudo isto.

Percorreu o círculo com a vista, contando cabeças. Dois cavalos muito assustadiços, duas mulheres (uma delas bastante estranha e possível homicida) e seis cabras, dois das quais não podiam caminhar. Em realidade tinha razão.

Jogou os ombros para trás e os encongió um poquito, para acomodar uma camisa estreita.

- irei jogar uma olhada. Se encontro o caminho em seguida, melhor. Se não, acamparemos até manhã –disse- . À luz do dia será muito mais fácil encontrar o caminho. Tome cuidado, Sassenach.

E com um espirro final, desapareceu no bosque, me deixando a mim só ao cuidado do ferido e nossos acompanhantes.

- Acredita que voltará? –A senhora Beardsley se acuclilló a meu lado, com o xale bem apertado aos largos ombros. Falava em voz baixa, como se temesse que alguém pudesse nos ouvir.

- Quem? O jaguar? Não, não acredito. Para que? –Mesmo assim me percorreu um calafrio ao pensar no Jamie, solo na escuridão. Hiram soprou, com a paleta firmemente apoiada em minha coxa. Logo apoiou a cabeça em meu joelho e lançou um comprido suspiro.

- Como se sente? –perguntei, mais por manter a conversação que por verdadeiro interesse.

- Alegra-me haver zalido de eze lugar –disse simplesmente.

Decididamente, eu compartilhava seus sentimentos; ao menos nossa situacion tinha melhorado com respeito à da granja, até com jaguar e tudo. Mas isso não significava que desejasse passar uma temporada ali.

- Conhece alguém no Brownsville? –perguntei-lhe. Não estava segura do tamanho da população, embora pelos comentários de alguns milicianos parecia ser uma aldeia importante.

- Não. –Durante um momento guardou silêncio. Tinha a cabeça inclinada para trás para poder contemplar as estrelas e a aprazível lua- . Ez que... nunca hei eztado no Brownsville –acrescentou, quase tímida.

Nem em nenhum outro lugar, ao parecer. Contou a história entre vacilações, mas quase com ânsias, ante o interesse, embora mínimo, por minha parte.

Resumindo, Beardsley a tinha comprado a seu pai para levá-la a sua casa, junto com outras mercadorias adquiridas em Baltimore. Uma vez ali a manteve essencialmente prisioneira; tinha proibido abandonar a granja e deixar-se ver por aqueles que pudessem acontecer por ali. Enquanto ele viajava pelas terras dos cherokees com sua mercadoria, deixava-a na casa para que fizesse todo o trabalho. Não contava com mais companhia que a de um servo surdo-mudo.

- Que coisa! –disse. Com todo o acontecido durante o dia tinha esquecido ao Josiah e a seu gêmeo. Perguntei-me se ela conheceria os dois ou só ao Keziah.

- Quanto faz que veio a Carolina do Norte? –perguntei.

- Doz añoz –respondeu em voz baixa- . Doz añoz, trez mezez e cinco díaz.

Recordei as marcas feitas na ombreira da porta. Quando começaria a levar a conta? Desde o começo? Estirei as costas; isso incomodou ao Hiram e o fez resmungar.

- Já vejo. A propósito, como te chama? –perguntei, caindo na conta de que não sabia seu nome.

- Franzez –disse. Mas o tentou outra vez, como se não gostasse desse som confuso- . Fran-cesss.- O final foi um vaio entre os dentes partidos. encolheu-se de ombros, rendo. Foi uma risada breve e tímida- . Fanny. Minha mãe me chamava Fanny.

Fanny –repeti para respirá-la- . É um nome muito bonito. Posso te chamar assim?

- Zería... um prazer –disse. Tomou ar, mas se deteve sem falar, como se fora muito tímida para expressar o que estava pensando. Morto seu marido, parecia totalmente passiva, privada da força que a tinha animado antes.

- Ah –exclamei ao compreender- . Claire. Tutéame, por favor.

- Claire. Que bonito!

- Bom, ao menos não tem nenhuma esse –disse sem pensar- . OH, perdoa.

Lhe subtraiu importância com um pequeno bufo. Respirada pela escuridão, a sensação de intimidade engendrada pelo tuteo... ou simplesmente pela necessidade de falar depois de tanto tempo, falou-me de sua mãe, que tinha morrido quando ela tinha doze anos; de seu pai, que pescava caranguejos, e da vida que levava em Baltimore, onde vadeava pela costa durante o baixo mar, para recolher ostras e almejas, e contemplava os navios pesqueiros e os navios de guerra que passavam frente ao forte Howard.

- Era... aprazível –disse com melancolia- . Tão aberto... Zólo o céu e a água. –E voltou a inclinar a cabeça para trás, como se desejasse o trocito de céu visível entre os ramos que se entrecruzavam em cima de nós. Talvez as montanhas boscosas da Carolina do Norte eram refúgio e abraço para um escocês como Jamie, mas bem podiam resultar claustrofóbicas e estranhas para quem estivesse acostumado à costa marítima do Chesapeake.

- Pensa retornar lá? –perguntei.

- Retornar? –Parecia um pouco sobressaltada- . Pois... não o tinha pensado.

- Não? –Tinha encontrado uma árvore contra o qual me apoiar. Estirei-me um pouco para alivia as costas- . Sem dúvida sabia que você... que o senhor Beardsley ia morrer. Não tinha nenhum plano?

Além de divertir-se torturando-o enquanto morria lentamente, claro. Caí na conta de que tinha começado a me sentir muito a gosto com essa mulher, só na escuridão com as cabras. Podia ter sido uma vítima do Beardsley... ou talvez o dizia só para que a ajudássemos. Conviria recorde os dedos queimados de seu marido e o horroroso estado do desvão. Endireitei-me um poquito; no caso de, apalpei a pequena faca que levava a cintura.

- Não. –Parecia um pouco aturdida. Não era de sentir saudades. Eu mesma estava aturdida, simplesmente pela emoção e a fadiga. Tanto que me perdi o que disse a seguir.

- O que há dito?

- Que... Mary Ann não me disse o que devia fazer... dezpuéz.

- Mary Ann –repeti, cautelosa- . Ela era... a primeira esposa do Beardsley, não?

Fanny se pôs-se a rir. O cabelo da nuca me arrepiou de uma maneira muito desagradável.

- OH, não. Mary Ann era a quarta.

- A... quarta –repeti, um pouco deprimida.

- Ez a única que ele enterrou sob o zerbal –me informou- . Foi um engano. Laz otraz eztán no bozque. Daria-lhe preguiça, zupongo. Não quizo caminhar tanto.

- Ah. –Não me ocorria melhor resposta.

- E ze o disse. Ela aparece sob o zerbal quando zale a lua. A primeira vez que a vi penzé que era uma mulher viva. Tive medo do que ele pudesse lhe fazer, zi a via zola ali, e zalí para adverti-la.

- Compreendo. –Algo em minha voz deveu expressar pouca credulidade, pois ela voltou a cabeça para mim. Agarrei a adaga com mais firmeza.

- Não me creez?

- claro que sim! –assegurei-lhe, tratando de me tirar a cabeça do Hiram do regaço. Me tinha dormido a perna esquerda pela pressão e não sentia o pé.

- Posso demoztrártelo –disse ela, com voz serena e segura- . Mary Ann me disse onde eztaban... laz otraz... e as encontrei. Posso enzeñarte laz tumbaz.

- Não é necessário –assegurei, flexionando os dedos do pé para restaurar a circulação. Se me aproximava, jogaria-lhe a cabra em cima e rodaria para um lado para fugir engatinhando enquanto chamava o Jamie. E onde diabos estava Jamie, a tudo isto?- . Assim... Fanny... Dizia-me que o senhor Beardsley... –tampouco sabia o nome dele, mas dadas as circunstâncias preferia manter minhas relações com sua memória em um plano formal- que seu marido assassinou a quatro mulheres. E ninguém se inteirou?

Claro que ninguém tinha por que inteirar-se. A granja do Beardsley estava muito isolada e não era estranho que as mulheres morreram: por acidente, de parto ou, simplesmente, por excesso de trabalho. Se alguém sabia que o homem tinha perdido a quatro algemas, era muito possível que a ninguém interessasse averiguar por que.

- Zí. –Pareceu-me que estava tranqüila; ao menos, de momento não parecia perigosa- . Me teria matado também, mas Mary Ann ze o impediu.

- Como?

Ela suspirou, acomodando-se no chão. De seu regaço surgiu um balido sonolento; então caí na conta de que o cabrito estava novamente ali. Afrouxei os dedos em volto da faca; seria-lhe difícil me atacar com uma cabra no regaço.

Conforme me contou, saía a conversar com a Mary Ann quando a lua estava alta. A fantasmal mulher aparecia sob o serbal só entre medial uma crescente e a meia minguante, nunca em lua nova nem em quarto crescente.

- Que detalhe! –murmurei. Mas ela não se precaveu. Estava absorta em seu relato.

Aquilo se prolongou durante vários meses. Mary Ann lhe disse quem era; também a informou sobre o destino sofrido por suas predecessoras e como tinha morrido ela mesma.

- A eztranguló. Vi-lhe no pescoço laz marcaz de zuz dedoz. Ela me advertiu que algum dia faria o mizmo comigo.

Apenas algumas semanas depois, Fanny teve a certeza de que tinha chegado o momento.

- Eztaba até acima de rum, zabez? Ziempre era pior quando bebia. E eza vez...

Trêmula de nervos, tinha deixado cair a bandeja com o jantar do Beardsley, salpicando o de comida. Ele se levantou de um salto, rugindo, e se jogou contra ela. Fanny se deu a volta e fugiu.

- Ele eztaba entre a porta e eu- disse- . Corri ao dezván. Penzé que, bêbado como eztaba, não poderia zubir a ezcalerilla. E não pôde.

Beardsley se tinha cambaleado e a escalerilla caiu ruidosamente. Enquanto ele lutava por devolvê-la a seu sítio, entre rezongos e maldições, alguém bateu na porta. O homem

inquiriu a gritos quem era, mas não houve resposta; só um golpe mais. Do bordo do desvão, Fanny viu sua cara avermelhada; ele a fulminou com o olhar. ouviu-se um terceiro golpe. Beardsley tinha a língua tão entorpecida pelo álcool que não podia falar com coerência; limitou-se a grunhir, com um dedo em alto em sinal de advertência; logo caminhou para a porta, cambaleando-se, e a abriu com violência. Ao olhar fora lançou um alarido.

- Eu nunca tinha ouvido algo azí –murmurou ela- . Nunca.

Beardsley girou em redondo e, em sua carreira, tropeçou com um tamborete e caiu de bruces, escancarado. Se levanró com muita dificuldade e foi para a escalerilla. Subia torpemente, salteando degraus, a tapas, entre exclamações e gritos.

- Gritava-me que o ajudasse, que o ajudasse. –Sua voz tinha uma nota estranha. Talvez era só estupefação pelo fato de que semelhante homem lhe tivesse pedido socorro. Mas me pareceu que esse tom delatava o profundo e secreto prazer que lhe provocava a lembrança.

Ele chegou ao batente da escalerilla, mas não pôde dar o passo final para o desvão. Sua cara passou repentinamente do vermelho ao branco; os olhos lhe voltaram para trás. Logo caiu de bruces às pranchas, inconsciente, com as pernas lhe pendurando absurdamente do bordo.

- Não podia baixá-lo; apenaz pude arraztralo hazia dentro. –Suspirou- . O rezto... já o zabez.

- Não de tudo. –Jamie falou da escuridão, perto de meu ombro, me sobressaltando. Hiram despertou com um grunhido de indignação.

- Quando tornaste? –interpelei.

- Faz o bastante. –Veio a ajoelhar-se a meu lado, com uma mão em meu braço- . E o que foi o que viu na porta? –perguntou à senhora Beardsley. Sua voz não expressava mais que um leve interesse, mas notei que sua mão estava tensa. Percorreu-me um calafrio. “ O que.”

- Nada –respondeu ela, simplesmente- . Não vi ninguém ali. Mas... dezde eza porta ze via o zerbal. E havia zalido a meia lua.

depois disso houve um momento de silêncio. Por fim jamie se esfregou a cara com uma mão e suspirou.

- Sim. Bem. –levantou-se- . encontrei um sítio onde poderemos nos refugiar durante a noite. me ajude com a cabra, Sassenach.

Felizmente, o sítio que jamie tinha encontrado estava a pouca distância. Era uma espécie de fenda pouco profunda, em um ribazo arciloso médio desmoronado. Em outros tempos tinha deslocado algum arroio por ali; a água tinha desprendido uma boa parte do ribazo, deixando uma abertura. Não obstante, anos atrás algo tinha desviado o curso da água; as pedras arredondadas que tinham formado seu leito estavam disseminadas e meio fundas no chão margoso.

- Ocorre algo, Sassenach? –Jamie se tinha detido. Estava na ladeira, algo por cima de mim, com o Hiram sobre os ombros. De abaixo, recortado contra o chão, era uma figura grotesca e ameaçadora, alta e com chifres e uma giba monstruosa.

- Estou bem –lhe confirmei, quase sem fôlego- . É aqui?

- Sim. me ajude, Quer? –Parecia mais sufocado que eu. ajoelhou-se cuidadosamente, enquanto eu me apressava para lhe ajudar a depositar ao Hiram no chão. Ele ficou de joelhos, com uma mão em terra para sustentar-se.

- Espero que pela manhã não seja tão difícil encontrar o caminho –disse. Olhava-o com preocupação. O esgotamento lhe obrigava a inclinar a cabeça e o ar gorgoteaba em seu peito com cada fôlego. Necessitava um sítio com fogo e comida, quanto antes.

Ele moveu a cabeça e pigarreou.

- Sei onde está. –Voltou a tossir- . Só que...

A tosse lhe sacudia com força; notei que esticava os ombros para agüentá-la. Quando cessou lhe apoiei brandamente uma mão nas costas; percorria-lhe um tremor constante; não era um calafrio, a não ser o estremecimento dos músculos forçados além dos limites de sua força.

- Não posso continuar, Claire –disse pelo baixo, como se se envergonhasse de admiti-lo- . Estou esgotado.

- lhe deite –lhe disse, também fico- . Eu me ocuparei de tudo.

Houve certo alvoroço e confusão, mas meia hora depois todos estávamos mais ou menos instalados, os cavalos maneados e uma pequena fogueira acesa. Ajoelhei-me para examinar a meu paciente principal, que estava tendido sobre o peito, com a pata entalada estendida para diante, com suas damas sões e salvas atrás dele, ao casaco do ribazo. Hiram emitiu um belicoso “ Beh!” e me ameaçou com os chifres.

- Ingrato –murmurei ao apartrme.

A risada de jamie se quebrou em um espasmo de tosse que lhe sacudiu os ombros. Estava acurrucado a um lado da costa, com a cabeça apoiada na jaqueta dobrada.

- Quanto –lhe disse- , abre esse capote e te levante a cmisa. Agora mesmo.

Ele me olhou com os olhos entreabridos; logo jogou uma olhada à senhora Beardsley. Seu recato me fez dissimular um sorriso, mas lhe dava à mulher um heervidor pequeno e a enviei em busca de água e lenha; logo extraí a cabaça com o ungüento mentolado.

Agora que podia vê-lo bem, o aspecto do Jamie me alarmou um pouco. Estava pálido, com os lábios brancos e as fossas nasais circundadas de vermelho, ojeroso de fadiga. Parecia muito doente; ouvi-lo era ainda pior: seu fôlego assobiava no peito ao respirar.

- Bom, suponho que se Hiram não quis morrer diante de suas fêmeas, você tampouco morrerá diante de mim –disse com ar dúbio, enquanto colhia com o dedo um pouco de graxa fragrante.

- Não penso morrer –disse, bastante vexado- . Só estou um pouco cansado. Pela manhã serei o de sempre. OH, Deus, como isto ódio!

Tinha o peito bastante quente, mas não me pareceu que fora febre, era difícil determiná-lo, com os dedos tão frios.

Ele deu um coice e tratou de escapulir-se, com um agudo “ Auh” . O sujeitei com firmeza pelo pescoço e procedi a fazer minha vontade, apesar de seus protestos. Ao fim deixou de resistir e se entregou, entre risadas intermitentes, espirros e algum gemido ocasional, quando lhe tocava algum sítio onde houvesse cócegas. Às cabras pareceu muito entretido.

Em poucos minutos o tinha deixado ofegante no chão, com a pele do peito e o pescoço brilhantes de graxa e avermelhados pela fricção. No ar reinava um forte aroma a hortelã e cânfora. Pu-lhe uma flanela grosa no peito, baixei-lhe a camisa, agasalhei-o com a capa e lhe cobri até o queixo com uma manta.

- Bem –disse, satisfeita, enquanto me limpava as mãos com um pano- . Assim que tenha água quente tomaremos uma boa infusão de marrubio.

Abriu um olho suspicaz.

- Tomaremos?

- Bom, você. Eu prefiro me beber o pis do cavalo.

- Eu também.

- Infelizmente, que eu saiba, não tem efeitos medicinais.

Ele fechou o olho com um grunhido. Durante um momento respirou com dificuldade, como um fole quebrado. Logo levantou a cabeça alguns centímetros.

- Essa mulher tornou?

- Não. Suponho que encontrar o arroio na escuridão lhe levará algum tempo. –Vacilei- . Ouviu o que me contou?

Ele moveu a cabeça.

- Tudo não, mas sim bastante. o da Mary Ann e todo isso?

- Sim.

- O creíste, Sassenach?

Em vez de responder imediatamente, tomei algum tempo para me tirar a graxa das unhas.

- Nesse momento, sim –disse ao fim- . Agora... não estou tão segura.

Ele grunhiu outra vez, agora com aprovação.

- Não acredito que seja perigosa –disse- . Mas tenha sua pequena adaga à mão, Sassenach... e não lhe volte as costas. Alternaremo-nos para montar guarda; desperta dentro de uma hora.

Fechou os olhos, tossindo, e dormiu profundamente.

 

As nuvens começavam a cobrir a lua e o vento frio agitava a erva do ribazo.

- Despertar dentro de uma hora –murmurei ao trocar de posição, em um esforço por obter uma mínima postura cômoda no chão rochoso- . Ja! Nem o sonhe!

Levantei-lhe a cabeça para apoiá-la em meu regaço. Ele se queixou um pouco, mas não se moveu. Girei os ombros e me reclinei, procurando algum apoio contra a...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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