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A DACTILÓGRAFA ATERRADA / Erle Stanley Gardner
A DACTILÓGRAFA ATERRADA / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DACTILÓGRAFA ATERRADA

 

Há cerca de um ano, o ilustre John Ben Shepperd, procurador-geral do estado do Texas, convidou-me a reunir os meus colegas, a fim. de elaborarmos um programa de conferências em assembleias, no Texas, de vários funcionários judiciais.

Reuni, pois, os meus colegas e invadimos o Texas, como uma horda de incuráveis tagarelas.

Daí em diante, o Texas procedeu como só o Texas sabe proceder.

Uma frota de luxuosos aviões particulares, tripulados por pilotos experientes, conduziu-nos velozmente de terra em terra, de acordo com o nosso programa de conferências. O nosso grupo encontrou uma hospitalidade franca e cordial, verdadeiramente inesquecível, e quando chegou a hora da partida os que eram advogados viram-se nomeados representantes especiais do gabinete do procurador-geral.

O nosso chefe, o procurador-geral John Ben Shepperd, é um indivíduo dinâmico e possuidor de tremenda energia, da qual bem precisa. O Texas é um estado imenso, com uma personalidade tão forte como a de um domador de cavalos selvagens e um desprezo total pela impostura e pela hipocrisia. Quando um texano gosta de alguém, gosta cem por cento e com toda a franqueza; quando não gosta, tende para se mostrar cortês, e a cortesia formal de um texano é gelada como uma nevasca.

O tamanho extraordinário do Texas dá origem a situações únicas, sem paralelo. Por exemplo, durante anos existiu, no estado do Texas, um “principado que, na realidade, era uma autêntica monarquia.

Num aspecto, este principado Duval estava inteiramente ao abrigo da lei. Era composto, na sua maioria, por votantes de língua espanhola, que durante anos votaram sempre do mesmo modo. O mal é que votavam como um homem lhes ordenava que votassem. Segundo se apurou, os votantes não ligavam importância nenhuma aos assuntos nem às pessoas em causa; limitavam-se, pura e simplesmente, a votar de acordo com as instruções que recebiam. O homem que lhes dava as instruções era conhecido por “Duque de Duval”.

A batalha jurídica que permitiu ao estado do Texas “reconquistar” esta monarquia, é tão emocionante como um bom romance policial. Um dos corajosos e extraordinários condutores dessa batalha foi John Ben Shepperd, o procurador-geral do Texas.

Mal conheci John Ben Shepperd desejei dedicar-lhe um livro e falar a seu respeito aos meus leitores. É uma força vital na administração da justiça e possui a coragem, a força, a visão e a genica necessárias para fazer coisas.

Escrevi ao meu amigo Park Street e pedi-lhe que me dissesse alguma coisa acerca dos antecedentes de John Ben Shepperd. Os comentários de Park Street foram tão penetrantes, tão absolutamente apropriados, que não resisto a reproduzi-los aqui, textualmente, com a sua autorização.

Eis o que Park Street escreveu, em resposta ao meu pedido:

Os anos de trabalho dedicado e incansável de John Ben Shepperd, nos campos da lei e da imposição da lei, granjearam-lhe tantos louvores oficiais que não caberiam nas paredes do seu espaçoso gabinete de Austin, Texas.

“Xerifes, juizes de condado, ligas de boa administração e grandes júris presentearam-no com placas de louvor à extraordinária contribuição por ele dada à luta contra o crime, quase todas elas referentes a acções "acima e para além do cumprimento do dever".

“A maior alegria de Shepperd, como procurador-geral do Texas, é trabalhar com funcionários judiciais e promotores de justiça que lidam diariamente com o crime, ao nível local. Todos os anos toca uma trombeta a chamar juízes, promotores de justiça distritais, funcionários de tribunais e não-profissionais interessados na luta contra o crime, que saem das florestas, das pradarias e dos montes do Texas para assistir à conferência anual convocada pelo procurador-geral para estudo de assuntos relacionados com a aplicação e o cumprimento da lei. Mergulham então em números, factos, decisões de tribunais, tendências e métodos de combate ao crime de um estado cujos problemas, neste aspecto, são tão vastos, variados e agrestes como o seu terreno.

“Este funcionário entroncado e cheio de energia, actua como coordenador de centenas de corporações policiais do Texas, para as quais publica (a expensas suas) um resumo dos assuntos criminais e jurídicos do "Lone Star State". Muitos criminosos têm sido apanhados, no Texas, por um polícia ou xerife de botas de cowboy, cujo equipamento-padrão inclui um revólver 45 e um, livrinho de capa azul, chamado Manual do Polícia e escrito por John Ben Shepperd. O procurador, de 39 anos, tem lutado veementemente pelo aumento dos salários dos polícias e pela revisão de antiquadas leis de remuneração e salário relacionadas com os promotores e juízes locais.

"O Crime", diz este texano do leste, com o seu sotaque arrastado, "não é moroso nem estúpido. Toca infinitas variações do mesmo tema e aperfeiçoa novas formas e métodos. Como a lebre e a tartaruga, vence-nos na corrida se não o perseguirmos incansável e implacavelmente, com a lei às costas,”

“Shepperd não pára, passa a vida a propor e a insistir em novos estatutos destinados a colmatar brechas jurídicas e a imprimir velocidade ao andamento de certas passagens do código criminal. Ao investigar a extorsão no seguro, apontou nada menos de trinta e nove elos fracos da lei civil e criminal. Foi conselheiro de uma comissão texana que redigiu a primeira legislação destinada a colocar o partido comunista fora da lei, parte da qual foi adoptada pela Lei Federal Anticomunista de 1954, Após uma batalha de um ano com o suborno, a corrupção e a violência do fabuloso Condado Duval do Texas, insistiu em grandes modificações destinadas a dar maior liberdade de acção aos polícias e promotores de justiça locais, na luta contra o crime político.

“A sua Comissão de Aplicação da Lei do Procurador-Geral foi organizada com o apoio e a colaboração de proeminentes cidadãos texanos interessados em auxiliar a Polícia na sua luta contra o crime. Esta comissão criou uma fundação destinada a estudos e à publicação de trabalhos acerca das necessidades das autoridades encarregadas da aplicação da lei, assim como ao treino de polícias. Patrocina um vasto programa, ao nível estadual, de educação pública no capítulo da aplicação e cumprimento das leis, a fim de familiarizar as comunidades texanas com a amplitude do problema e os métodos de aperfeiçoamento.

“Os seus esforços para manter a lei e os homens a ela ligados acima da crescente onda de crimes, mercê do "tratamento" de certas provisões enfermiças dos estatutos, granjearam-lhe a reputação de "médico legal", proporcionando-lhe o direito literal e figurativo de possuir três títulos honorários de doutor em leis.

“O que Mr. Shepperd faz pelas leis e pelos homens de leis, também o faz pelos seus confrades através da publicação de Obter Dictum, órgão oficial do gabinete do procurador-geral, enviado (mais uma vez a expensas pessoais) a advogados e entidades judiciais de todo o estado, a fim de os manter informados das actividades do departamento jurídico do estado. Isto constitui contribuição importante para a eficiência geral da profissão, no Texas.

“Shepperd, que foi presidente regional sulista e vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores-Gerais, é agora presidente da referida associação. Anteriormente, adquiriu proeminência nacional como presidente da Nova Câmara de Comércio dos Estados Unidos e como membro de três comissões conselheiras do presidente dos Estados Unidos. No seu movimentado gabinete de Austin orienta o trabalho de quarenta e sete advogados, que trabalham em mais de duas mil causas por ano, das quais ganham mais de noventa e cinco por cento.

“Entre todas as honras e louvores que tem recebido, a que mais o orgulha é uma simples placa que lhe foi oferecida pelas Mães e Esposas Unidas do Condado Duval, e que diz: A John Ben Shepperd, que com coragem e integridade cristã conquistou para os nossos filhos o direito de crescerem livres da corrupção e do medo.”

Também eu dedico este livro ao meu amigo e chefe, o Ilustre John Ben Shepperd.

Erle Stanley Gardner

 

Perry Mason olhava o recurso que Jackson, o seu escriturário, submetera à sua aprovação.

Della Street, sentada do outro lado da secretária, interpretou correctamente a expressão do advogado.

- Que está errado?

- Diversas coisas - respondeu-lhe Mason. - Para começar, tive de o encurtar, de 96 páginas para 32.

- Meu Deus! O Jackson disse-me que já o encurtara duas vezes e não lhe podia tirar nem mais uma palavra...

- Como estamos nós de dactilógrafas, Della? - perguntou o advogado, a sorrir.

- Stella está em casa, com gripe, e Annie encontra-se positivamente submersa num alude de trabalho.

- Nesse caso, temos de arranjar uma dactilógrafa de fora, pois o recurso tem de estar pronto amanhã, para o copiador.

- Está bem. Telefonarei à agência e pedirei que mandem imediatamente uma dactilógrafa.

- Entretanto, Della, darei uma nova vista de olhos a esta história, para ver se lhe posso tirar mais quatro ou cinco páginas. Os recursos não devem ser escritos para Impressionar o cliente. Devem ser concisos e, sobretudo, quem os redige deve fazê-lo de maneira que o juiz tenha uma ideia clara dos factos da causa, antes de haver qualquer argumento acerca da lei. Os juizes conhecem as leis... ou, se não conhecem, têm empregados que as podem consultar por eles.

Mason pegou num lápis azul, grosso, e recomeçou a leitura das páginas já muito riscadas. Della Street foi à sala contígua, a fim de telefonar a pedir a dactilógrafa.

Quando voltou, Mason levantou os olhos do trabalho e perguntou-lhe:

- Arranjou?

- A agência não tem nenhuma, neste momento. Ou melhor, as que tem são medíocres. Expliquei que queria uma rápida, perfeita e com boa vontade, pois o senhor não desejava ler outra vez essa história e encontrar uma quantidade de erros.

Mason acenou com a cabeça e continuou a revisão do recurso.

- Quando podemos contar com uma, Della?

- Prometeram-me arranjar alguém que possa ter o trabalho pronto amanhã, cerca das duas e meia da tarde, mas advertiram-me de que talvez levassem algum tempo a localizar a rapariga em que pensavam. Disse-lhes que eram trinta e duas páginas.

- Vinte e nove e meia - corrigiu o advogado, a sorrir. - Acabo de cortar mais duas páginas e meia.

Mason fazia o último corte, meia hora depois, quando Gertie, a recepcionista, abriu a porta do gabinete e anunciou:

- Chegou a dactilógrafa, Mr. Mason.

O advogado acenou com a cabeça e recostou-se na cadeira. Della Street estendeu a mão para a minuta, mas hesitou, ao ver Gertie reaparecer e fechar cuidadosamente a porta, depois de entrar.

- Que temos, Gertie?

- Que lhe disse para a assustar, Mr. Mason?

O advogado olhou, perplexo, para a secretária, que exclamou:

- Meu Deus, nós nem sequer falamos com ela! Limitámo-nos a telefonar a Miss Mosher, da agência.

- Pois esta rapariga está morta de medo - afirmou Gertie, em voz baixa.

Mason sorriu a Della Street. A tendência de Gertie para exagerar e dramatizar tudo era tão grande que se tornara uma espécie de brincadeira, no escritório.

- Que fez você para a assustar, Gertie?

- Eu?! Que fiz eu? Nada! Estava a atender um telefonema e, quando me voltei, dei com ela, junto da recepção. Não a ouvi entrar. Tentou dizer qualquer coisa, mas pareceu incapaz de falar, sequer. Deixou-se ficar parada, a olhar. Ao princípio, não liguei muita importância, mas depois reparei que estava a apoiar-se à secretária. Aposto que sentia os joelhos fracos e...

- Deixemos agora as suas opiniões - interrompeu-a Mason, intrigado. - Vejamos o que aconteceu, Gertie. Que lhe disse você?

- Disse-lhe: “Creio que é a nova dactilógrafa?” Ela acenou com a cabeça e eu acrescentei: “Sente-se aí, a essa secretária, enquanto lhe vou buscar o trabalho.”

- E que fez ela?

- Foi-se sentar à secretária.

- Está bem, Gertie. Obrigado por nos ter dito.

- Está absolutamente aterrorizada - insistiu a recepcionista.

- Não tem importância. Algumas raparigas ficam assim, quando começam a trabalhar numa casa. Se a memória não me atraiçoa, você também teve algumas atrapalhaçõezinhas, quando para cá veio, não é verdade, Gertie?

- Atrapalhaçõezinhas! Mr. Mason, quando entrei no escritório e me lembrei de que não tirara a pastilha-elástica da boca, perdi por completo a cabeça! Fiquei sem saber que fazer e...

- Volte para o telefone - interrompeu-a o advogado. - Parece-me que o estou a ouvir tocar.

- Oh, tem razão! Também estou a ouvi-lo. Abriu a porta e saiu a correr.

Mason estendeu a minuta à secretária e disse-lhe:

- Vá-lhe dar que fazer, Della.

Quando Della voltou, passados dez minutos, Mason perguntou-lhe:

- Como vai a nossa aterrada dactilógrafa?

- Se aquela é uma dactilógrafa aterrada, o melhor será telefonar a Miss Mosher e aconselhá-la a aterrorizar todas as suas dactilógrafas, antes de as mandar trabalhar.

- Boa?

- Escute.

Entreabriu a porta do gabinete e ouviu-se o matraquear da máquina de escrever, num staccato firme.

- Parece saraiva num telhado de zinco - comentou Mason.

DellaStreet fechou a porta.

- Nunca vi nada assim. A rapariga puxou a máquina para si, meteu o papel, olhou para a minuta, pôs as mãos no teclado e a máquina explodiu, literalmente, em acção. Contudo, chefe, creio que a Gertie tinha razão, que a ideia de vir para cá trabalhar assustou a rapariga. Talvez ela saiba alguma coisa a seu respeito ou a sua fama a tenha constrangido. No fim de contas - acrescentou Della, secamente -, o senhor não é de todo desconhecido...

- Bem, pegue nessa pilha de cartas e despachemos as mais importantes. À velocidade que disse, a minuta estará dactilografada num abrir e fechar de olhos.

DellaStreet acenou afirmativamente.

- Instalou-a à secretária junto da porta da biblioteca?

- Pareceu-me que não a podia pôr noutro lugar. Preparei a secretária assim que soube que íamos precisar de uma dactilógrafa extra. Como sabe, a Stella não gosta que ninguém utilize a sua máquina de escrever. Está convencida de que lha desafinam.

- Se essa rapariga é boa, Della, talvez a possamos empregar uma ou duas semanas. Temos que lhe dar que fazer, não temos?

- Se temos!

- Acho melhor telefonar a Miss Mosher e dizer-lhe. Della Street hesitou.

- Não seria melhor esperar, até avaliarmos o seu trabalho? Ela é rápida, sem dúvida, mas ainda não sabemos se é perfeita.

- Boa ideia, Della. Esperemos, então.

 

- Aqui tem as primeiras dez páginas do recurso, chefe - disse Della Street, ao colocar um maço de papéis em cima da secretária do advogado.

Mason deu-lhes uma vista de olhos e soltou um assobio, entre dentes.

- É a isto que chamo escrever à máquina!

DellaStreet pegou numa das folhas e inclinou-a, para que a luz se reflectisse da superfície lisa.

- Já experimentei com duas ou três folhas e não encontro um único indício de rasura. Tem um toque maravilhoso e é muito rápida.

- Telefone a Miss Mosher e informe-se acerca da rapariga. Como se chama ela?

- Mae Wallis.

DellaStreet levantou o auscultador e disse à telefonista:

- Mr. Mason deseja falar com Miss Mosher da agência de secretárias, Gertie... Não tem importância, eu espero.

Passados momentos, perguntou:

- Miss Mosher?... Não está?... Bem, telefono por causa da dactilógrafa que ela mandou ao escritório de Mr. Mason. Fala Della Street, secretária de Mr. Mason... Tem a certeza?... Talvez tenha deixado um bilhete qualquer... Sim, sim... É pena... Não, não queremos duas raparigas... Não, não. Miss Mosher mandou-nos uma, chamada Mae Wallis. Queria saber se podíamos contar com ela para trabalho efectivo, durante uma semana... Peça a Miss Mosher que nos telefone, quando chegar. Della Street desligou e disse ao advogado:

- Miss Mosher saiu e a empregada que deixou a substituí-la não tem conhecimento de nos terem mandado alguém. Encontrou um bilhete na secretária, a recomendar-lhe que nos arranjasse uma dactilógrafa. Miss Mosher indicava os nomes de três possíveis candidatas e a rapariga tem estado a tentar localizá-las. Uma está de cama, com gripe, a outra a trabalhar e a terceira ainda não apareceu.

- Isso nem parece de Miss Mosher, que geralmente é muito eficiente. Quando nos mandou a rapariga, devia ter destruído o memorando. Enfim, não tem importância.

- Miss Mosher deve voltar daqui a cerca de uma hora e eu recomendei que nos telefonasse, assim que chegasse.

Mason voltou a concentrar-se no trabalho que tinha na secretária. Interrompeu-o para atender um cliente, que tinha entrevista marcada para as três e meia, e depois recomeçou a ditar as cartas.

As quatro e meia, Della Street foi ao escritório contíguo e quando voltou observou:

- Continua a escrever como se a casa estivesse a arder, chefe. Martela a máquina com toda a gana.

- A minuta estava muito emendada, com muitos riscos, acrescentos e entrelinhas.

- Isso parece não a incomodar nada. As pontas dos dedos daquela rapariga estão ligadas à corrente. Ela...

O telefone retiniu, insistente, na secretária de Della Street, que concluiu a frase enquanto estendia a mão para o auscultador:

- ...sabe, de facto, tocar música num teclado.

Levantou o auscultador e atendeu:

- Estou... Sim, Miss Mosher. Telefonámos por causa da dactilógrafa que nos mandou... O quê?... Não mandou?... Mae Wallis... Ela disse que veio da sua agência, que a senhora a mandou... Bem, peço desculpa, Miss Mosher. Deve ter havido qualquer engano. Mas a rapariga é, de facto, competente... Sim, já tem o trabalho quase acabado. Lamento muitíssimo, creia. Falarei com ela e... Tenciona demorar-se aí um bocado?... Nesse caso, falarei com ela e depois ligarei para aí. Mas foi isso que ela disse... Sim, da sua agência... Combinado, eu volto-lhe a telefonar.

DellaStreet repôs o auscultador no descanso.

É - Mistério?

- indagou o advogado.

- Parece que sim. Miss Mosher diz que não nos mandou ninguém. Andou atarefada a procurar raparigas, sobretudo raparigas com aptidões para lhe agradarem. - Desta vez arranjou uma perfeita. Ou, pelo menos, alguém a arranjou.

- Que fazemos?

- Para começar, pergunte-lhe quem a mandou. Tem a certeza de que ela disse que foi Miss Mosher?

- Foi o que a Gertie disse.

- Está a basear-se apenas no que a Gertie disse? Della Street acenou afirmativamente.

- Não falou com Miss Wallis?

- Não. Enquanto esperava pelo trabalho, procurou o papel e os químicos, na secretária, meteu-os na máquina, e quando me viu limitou-se a estender a mão para a minuta. Perguntou-me se queria um original e três cópias, respondi-lhe que, para trabalhos destinados à tipografia, só usávamos um original e duas cópias, e ela replicou-me que metera na máquina um original e três cópias e não perderia tempo a tirar a cópia a mais; na página seguinte poria só duas. Depois colocou a minuta na secretária, pôs os dedos no teclado, e aí vai ela, a toda a velocidade!

- Permita que lhe chame a atenção para um pormenor que demonstra a falácia do depoimento humano. Você talvez tenha sido sincera ao dizer a Miss Mosher que Mae Wallis declarou ter sido enviada pela sua agência, mas se recordar as palavras exactas de Gertie verificará que a nossa recepcionista disse que a rapariga lhe pareceu assustada e constrangida e que ela lhe perguntou se era a nova dactilógrafa. A jovem acenou afirmativamente e Gertie indicou-lhe a secretária. Gertie não nos disse que lhe perguntara se fora Miss Mosher quem a enviara.

- Bem, tive a impressão clara...

- Certamente que teve, e eu também. Mas longos anos passados a contra-interrogar testemunhas ensinaram-me a ouvir com cuidado o que uma pessoa diz, realmente. Tenho a certeza de que Gertie não nos disse que perguntara especificamente à rapariga se ela viera da agência de Miss Mosher.

- Bem, donde poderia ter vindo, então?

- Chamemo-la e perguntemos-lhe. E não a deixemos fugir, Della, pois gostaria de pôr parte deste trabalho em dia, e a pequena é, na verdade, um achado.

DellaStreet acenou com a cabeça, saiu e quando regressou, passados momentos, fingiu que empoava o nariz.

- Deixou recado? – perguntou-lhe Mason.

- Disse à Gertie que no-la mandasse assim que ela voltasse.

- Como vai o recurso?

- Adiantado. O trabalho está em cima da secretária, com os originais e as cópias ainda juntos. E muito limpa e perfeita, não é?

Mason concordou, com um aceno de cabeça, recostou-se na cadeira e acendeu um cigarro.

- Esperemos por ela, para vermos o que nos diz, Della. Se pensarmos bem no assunto, apresenta-se-nos um problema intrigante.

Depois de Mason fumar o cigarro, tranquilamente, Della levantou-se e voltou ao escritório contíguo.

Mason franziu a testa, ao vê-la regressar sozinha.

- Talvez seja uma dessas raparigas muito nervosas, que consomem uma quantidade de energia, a escrever à máquina a toda a velocidade, e depois têm de parar para um período de descanso completo, a fumar um cigarro ou...

- Ou? - perguntou Della, quando o advogado se calou.

- Ou a tomar uma bebida. Bem sei que não há nada de confidencial naquela minuta, mas se a pequena cá ficar uns quatro ou cinco dias acabará por fazer algum trabalho confidencial. Portanto... talvez não seja má ideia ir até ao vestiário e verificar se a nossa dactilógrafa eléctrica não tem um frasquinho na algibeira e não está agora a mascar um alho, para disfarçar o cheiro.

- Darei também uma fungadela, para ver se me cheira a marijuana.

- Conhece o cheiro? - perguntou-lhe o advogado, a sorrir.

- Claro que conheço! Não estaria a trabalhar para um dos maiores advogados do país se não tivesse aprendido a reconhecer, pelo menos, o odor de algumas das mais comuns formas de transgressão da lei.

- Muito bem, vá procurá-la e diga-lhe que queremos falar com ela, Della. Tente tagarelar um bocadinho, despreocupadamente, para a avaliar. Não teve ensejo de conversar muito com ela, pois não?

- Perguntei-lhe apenas o nome e pouco mais. Lembro-me de lhe perguntar como se escrevia o seu nome próprio e de ela me responder M-A-E.

Mason acenou com a cabeça, Della saiu e voltou passados poucos minutos. - Ela não está, chefe.

- Onde demónio se meteu, então?

- Levantou-se e saiu - respondeu Della, e encolheu os ombros.

- Disse à Gertie aonde ia?

- Não. Levantou-se, saiu e a Gertie calculou que fosse aos lavabos.

- É estranho. A porta dos lavabos não costuma estar fechada?

A secretária acenou afirmativamente.

- Nesse caso, devia ter pedido uma chave ou perguntado, pelo menos, onde ficava o aposento. A respeito do chapéu e do casaco?

- Parece que não trazia uma coisa nem outra. Apenas uma malinha, que levou consigo.

- Vá buscar o resto do trabalho que ela fez, sim? Della Street obedeceu. Entregou as páginas dactilografadas a Mason, que lhes deu uma vista de olhos.

- Ainda faltam algumas páginas - comentou a secretária.

- Não lhe levariam muito tempo a concluir, Della, pois eu cortei muito estas últimas folhas. O Jackson começou a desperdiçar eloquência, a bombardear o juiz com uma peroração acerca de liberdades, direitos constitucionais e processos legais.

- Ele sentia-se tão orgulhoso dessa parte, chefe! Não cortou tudo, pois não?

- Cortei quase tudo. Um tribunal de apelação não se interessa por eloquência e, sim, pela lei e pelos factos aos quais a aplicará. Já pensou que se os juizes de apelação tivessem de ler todas as linhas de todos os resumos que lhes submetem não teriam tempo para mais nada, nem mesmo que trabalhassem doze horas por dia? E, mesmo assim, não leriam tudo.

- Nunca tinha pensado nisso, confesso. Quer dizer, então, que eles não lêem as exposições?

- Teoricamente, lêem. Mas a verdade é que, na prática, é impossível.

- Que fazem, então?

- A maior parte das vezes dão-lhes uma vista de olhos, fixam os pontos jurídicos, passam por alto as súplicas apaixonadas e entregam os recursos aos seus empregados. A experiência ensinou-me que um homem se defende melhor se se cingir a uma exposição absolutamente imparcial e honesta dos factos, incluindo tanto os que são desfavoráveis à sua causa como os que lhe são favoráveis e fazendo assim ao tribunal a justiça de partir do princípio de que o juiz conhece as leis. O advogado pode ser útil se indicar ao juiz os casos a que a lei se aplica e os factos da causa, mas deve lembrar-se de que, se o juiz ignorasse as leis, não participaria no tribunal de apelação. Della, na sua opinião, que terá acontecido ao demónio da rapariga?

- Deve estar algures, no prédio.

- Porquê?

- Bem... é apenas um daqueles pressentimentos... Há-de voltar, para receber, pois trabalhou que nem uma danada.

- Devia ter ficado, ao menos, para acabar o trabalho. Não demoraria mais de quarenta ou cinquenta minutos, à velocidade a que estava a trabalhar.

- O chefe parece estar convencido de que ela nos virou pura e simplesmente as costas e nos deixou à nora...

- Tenho, de facto, esse pressentimento.

- Talvez tenha ido lá abaixo, à tabacaria, comprar cigarros.

- Se assim fosse, já teria voltado há muito tempo.

- Sim, tem razão. Mas... mas, chefe, ela há-de querer receber o dinheiro do seu trabalho!

Mason ordenou cuidadosamente as páginas do recurso.

- Bem, mesmo assim, deu-nos uma grande ajuda... Calou-se, ao ouvir uma série de pancadas especiais à porta do seu gabinete particular.

- Deve ser o Paul Drake, Della. Que ventos o trarão? Vá abrir, sim?

DellaStreet obedeceu. Paul Drake, chefe da Agência de Detectives Drake, com escritório ao fundo do corredor, junto do elevador, sorriu-lhes e perguntou:

- Que estiveram vocês a fazer, durante toda a balbúrdia?

- Que balbúrdia? - perguntou o advogado.

- O prédio cheio de polícias e vocês dois aqui sentados, a dirigir um monótono cartório de advogado!

- Que remédio! Mas sente-se, Paul, e fume um cigarro. Conte-nos tudo, ande. Estivemos a preparar um recurso.

- Nem outra coisa seria de esperar - comentou Drake, e deixou escorregar o corpanzil para a grande poltrona, excessivamente estofada, destinada aos clientes.

- Que se passou? - insistiu Mason.

- A Polícia anda à procura de uma fulana qualquer, neste andar. Não procuraram no seu escritório?

Mason lançou um rápido olhar de advertência a Della, antes de responder:

- Que eu saiba, não.

- Devem ter procurado.

- Veja se a Gertie já se foi embora, Della. Della Street abriu a porta do gabinete e respondeu:

- Vai a sair, agora mesmo.

- Consegue apanhá-la?

- Consigo. Está a chegar à porta... - Della ergueu a voz e chamou: -Gertie, chegue aqui um instantinho, por favor!

- Gertie retrocedeu e parou à entrada do gabinete.

- Que deseja, Mr. Mason?

- Estiveram cá no escritório alguns polícias, esta tarde?

- Estiveram, sim. Houve um roubo qualquer, ao fundo do corredor.

Mason olhou de novo para Della, antes de perguntar:

- Que queriam os polícias?

- Desejavam saber se todas as pessoas do escritório estavam identificadas, se estava alguém com o senhor, aqui, e se víramos uma rapariga ladra.

- Que lhes respondeu? - indagou Mason, com o cuidado de conservar a voz absolutamente inexpressiva.

- Respondi-lhes que o senhor estava apenas com a sua secretária, Miss Della Street, e que no escritório se encontrava apenas o pessoal do costume e uma dactilógrafa extra, mandada pela nossa agência para dactilografar um documento urgente.

- E depois?

- Foram-se embora. Porquê?

- Por nada. Tive curiosidade, apenas.

- Devia ter-lhe dito alguma coisa, Mr. Mason? Sei que não gosta de ser incomodado, quando está a tratar da correspondência...

- Fez muito bem, Gertie. Apenas quis saber o que se passou. Pode-se ir embora, e passe uma noite divertida.

- Boas noites e obrigada.

- Aí tem - comentou Drake. - Se tivesse alguma cliente no seu gabinete, a Polícia insistiria, com certeza, em lhe falar e em dar uma vista de olhos à senhora.

- Quer dizer que eles revistaram o andar?

- Sem tirar nem pôr, Perry. O escritório roubado fica mesmo defronte da sala de repouso das senhoras. Uma das estenógrafas, ao abrir a porta da sala de repouso, viu uma jovem de costas para ela, a experimentar chaves sucessivas na fechadura da porta do escritório. Desconfiou e deixou-se ficar a observar. A quarta ou quinta chave a rapariga conseguiu abrir a porta e entrar no escritório.

- De que escritório se tratava?

- Do da South African Gem Importing and Exploration Company.

- Continue, Paul.

- A estenógrafa era uma moça esperta, telefonou ao gerente do prédio, a avisá-lo, e depois foi postar-se junto dos elevadores, para ver se a tal rapariga saía e se metia num deles. Se metesse, estava disposta a tentar segui-la.

- Isso podia ser perigoso.

- Pois podia, mas a moça é valente.

- Seria capaz de reconhecer a mulher?

- A mulher, não, mas a maneira como vestia, sim. "Você sabe como são as mulheres, Perry. Não viu a cara da intrusa, mas sabe descrever com todos os pormenores a cor e o corte do seu saia-e-casaco, o tom das meias e dos sapatos, o penteado, a cor do cabelo e tudo o mais.

- Compreendo. - Mason olhou, de novo, subrepticiamente, para Della Street. - Claro que ela indicou todos esses pormenores à Polícia?

- Claro.

- E não a encontraram?

- Não. Mas o gerente do prédio deu aos polícias uma chave-mestra, para poderem entrar no escritório da companhia importadora de pedras preciosas. Parece que tinha passado por lá um ciclone! A intrusa procedeu a uma busca rápida, pois havia gavetas abertas, papéis espalhados no chão, uma cadeira derrubada, uma mesa de máquina de escrever desviada e a máquina caída no chão...

- Mas da rapariga, nem sinal?

- Nem dela nem de ninguém. Os dois sócios da firma, uns tipos chamados Jefferson e Irving, chegaram logo atrás da Polícia. Tinham ido almoçar e ficaram estupefactos com a destruição ocorrida durante a sua breve ausência.

Drake abanou a cabeça e continuou:

- O gerente do prédio chamou a estenógrafa que dera o alarme e foi-se postar com ela nos elevadores, a observar toda a gente que saía. Quando a Polícia chegou, passados apenas uns dois minutos - palavra, estes carros munidos de rádio são formidáveis! -, o gerente explicou o que se passara. Os “chuis” subiram e o gerente e a rapariga continuaram a vigiar os elevadores. Os polícias não fizeram muito estardalhaço, mas passaram por todos os escritórios do andar, para se certificarem.

- E pelas salas de descanso também, suponho - observou Mason.

- Com certeza. Mandaram logo para lá duas raparigas. Foram os primeiros lugares a merecer a sua atenção.

- Bem, Paul, estamos a navegar de vento em popa! Se não somos nós que saímos e nos enredamos nos crimes, são os crimes que vêm ter connosco... pelo menos indirectamente. Jefferson e Irving chegaram logo atrás da Polícia, não é verdade?

- É.

- E o gerente do prédio estava lá em baixo, junto dos elevadores, à espera que a tal rapariga saísse?

- Sim.

- Sabia, claro, em que escritório a jovem se introduzira?

- Pois com certeza! Deu todos os pormenores à Polícia, a esse respeito, e até uma chave-mestra, para poderem entrar.

- E depois continuou à espera, junto dos elevadores, com a estenógrafa que viu a rapariga entrar no escritório?

- Sim.

- Uma série de precauções complicadas para apanhar uma ladra esquiva.

- Bem, Perry, eu não devo falar acerca dos meus clientes, e não falaria a ninguém, mas você sabe que represento os donos do edifício. Parece que a companhia importadora de pedras preciosas espera, em breve, meio milhão de dólares de diamantes...

- Oh, diabo!

- Você sabe como fazem estas coisas, hoje em dia. Seguram as pedras e mandam-nas pelo correio.

- O que me parece estranho - murmurou Mason, pensativo - é que Irving e Jefferson chegassem logo atrás da Polícia e que o gerente do prédio estivesse lá em baixo, junto dos elevadores, e não os avisasse de que encontrariam a Polícia no escritório e... Que se passa? - perguntou o advogado, admirado, ao ver Drake endireitar-se, bruscamente, na cadeira.

O detective deu uma pancada na testa.

- Que se passa, homem? - insistiu o advogado.

- Passa-se que devo ter a cabeça muito dura! Meu Deus, Perry, o gerente do prédio esteve a contar-me a história toda e esse pormenor nem me passou pelo espírito! Dê-me licença que utilize o seu telefone.

Drake juntou o gesto à palavra e ligou para o escritório do gerente do prédio.

- Fala Paul Drake. Estive a pensar nessa história da companhia importadora de pedras preciosas. Segundo a Polícia, os dois sócios, Irving e Jefferson, chegaram quando estavam a revistar o escritório... Bem, o senhor estava lá em baixo, junto dos elevadores, com a tal este-nógrafa. Porque não lhes disse que a Polícia estava no escritório a...

Uma série de ruídos, no auscultador, interrompeu Drake, que prosseguiu, passados momentos:

- Quer ou não quer que eu veja isso?... Está bem. Telefone-me, sim?... Neste momento estou no escritório de Perry Mason... Espere, o P. B. X. está desligado, visto terem terminado as horas de serviço normal, mas poderei atender a sua chamada em...

- Um momento, Paul - interrompeu Della. - Ligarei esta linha com o P. B. X., para facilitar.

- Pronto, a secretária de Mason fará a ligação necessária, para que este telefone fique ligado à linha principal - explicou o detective, ao gerente do prédio. - Telefone-me assim que souber alguma coisa, hem?

Drake desligou, voltou a refestelar-se na poltrona dos clientes e sorriu a Mason.

- Desculpe ter recolhido os créditos da sua ideia, Perry, mas o meu ganha-pão é este. Não lhe podia dizer que a ideia só me acudira depois de falar consigo, pois não?

- Não meti nenhuma lança em África, Paul. O caso é evidente...

- Claro que é evidente. Por isso mesmo tenho vontade de bater em mim próprio, por não ter pensado logo no assunto. Estávamos tão absortos a tentar perceber como demónio a rapariga se sumira, que nem me admirei de o gerente não ter avisado o Jefferson e o sócio do que se passava, quando eles chegaram.

- Provavelmente o gerente estava enervado...

- Se estava enervado, homem! Conhece-o?

- O novo, não. A Della já falou com ele, mas eu só lhe falei pelo telefone e nunca o vi.

- É um tipo muito nervoso, um destes fulanos que vivem numa tensão constante e fazem tudo imediatamente, a toda a velocidade. Por sinal, fez bom trabalho, ao fechar o edifício.

- Não há dúvida de que fizeram tudo para tentar apanhar uma ladra solitária - concordou Mason.

O telefone tocou.

- Deve ser para si - disse Della a Drake. O detective pegou no auscultador e atendeu.

- Fala Paul Drake... Sim, compreendo. Claro que podia ter acontecido isso... Admira que não os tenha visto... Bem, muito obrigado. Pareceu-me, apenas, que devíamos averiguar esse pormenor... Não tem importância. Não era obrigatório o senhor lembrar-se disso... Não, não. Tencionava perguntar-lhe, mas passou-me de ideia, na confusão. Agora lembrei-me e achei melhor esclarecer o assunto, antes de me ir embora... Está bem, obrigado. Veremos o que se consegue descobrir.

O detective desligou e sorriu de novo a Mason.

- O tipo ficou com a impressão de que tenho estado a fazer horas extraordinárias, a espremer os miolos por causa do problema dele.

- E a respeito dos dois sócios? Qual é a explicação?

- Tudo indica que passaram por ele, sem que os visse, e entraram no elevador. Claro que a atenção do tipo e da estenógrafa se concentrava nas pessoas que saíam e não nas que entravam. Aquela hora, logo a seguir ao almoço, há muito movimento, de gente a subir e a descer. O gerente acaba de telefonar ao Jefferson e este disse-lhe que o viu, e à rapariga, junto dos elevadores, e que tencionava fazer-lhe uma pergunta qualquer, acerca do prédio, mas percebeu que ele devia estar à espera de alguém e, por isso, desistiu e subiu com o sócio no elevador.

- Parece plausível, de facto - admitiu Mason. - Sabe alguma coisa acerca do Jefferson e do Irving?

- Pouco. A South African Gem Importing and Exploration Company decidiu abrir aqui um escritório. Dedica-se, sobretudo, ao negócio de diamantes por atacado e tem a sede em Joanesburgo e uma sucursal em Paris. Este negócio do meio milhão de dólares de diamantes foi feito por intermédio de Paris. Escreveram ao gerente do prédio, receberam uma planta do andar e as condições de arrendamento, assinaram o contrato e pagaram antecipadamente seis meses de renda. Mandaram Duane Jeffer-son da África do Sul, para dirigir a sucursal. Walter Irving veio de Paris, para o ajudar.

- Têm feito negócios?

- Ainda não. Estão apenas a instalar-se. Consta-me que esperam um cofre de excepcional categoria, à prova de ladrões, que puseram anúncios a pedir empregados e compraram alguns móveis.

- Esses dois tipos trouxeram com eles alguns diamantes?

- Não. Infelizmente, as coisas já não se fazem assim, hoje em dia, o que nos tem privado, a nós, detectives particulares, de muitos negócios. Agora as pedras preciosas são enviadas, seguras, pelo correio. Expedem-se pedras do valor de meio milhão de dólares como se expede um pacote de roupa suja. O remetente paga uma taxa de seguro, cuja importância é considerada uma despesa inerente à transacção. Se as pedras se perdem, a companhia seguradora passa o

 cheque respectivo, e pronto.

- É um sistema infalível e seguro.

-Compreendo -murmurou Mason, pensativo. -Nesse caso, que pretendia a rapariga?

- Vá-se lá saber!

- No capítulo de pedras preciosas, o escritório estava vazio, não é verdade?

- Exactamente. Mais tarde, quando a primeira remessa chegar, instalarão alarmes contra ladrões por toda a parte, terão um cofre inexpugnável e todos os requisitos.

Agora, ainda não têm nada. Noutros tempos, um mensageiro especial traria as pedras preciosas e as agências de detectives particulares seriam contratadas para fornecer guarda-costas, vigias, etc. Agora, um empregado dos Correios, que nem sequer traz uma arma, desce o corredor, com um pequeno volume com diamantes no valor de meio milhão de dólares, diz, “Assine aqui”, o tipo assina, atira o pacote para o cofre e pronto. Faz-se tudo numa base de percentagens. As companhias de seguros são concorrentes duras de roer, Perry. Que diria você se uma delas segurasse os seus clientes contra quaisquer prejuízos provocados por qualquer tipo de litígio? Se tal fosse possível, os seus clientes pagariam um prémio de seguro, deduzi-lo-iam como despesa e...

- O mal, Paul, é que o prémio de seguro seria muitíssimo grande para que um tipo se sentisse indiferente, quando o fechassem na câmara de gás...

- Diabos me levem se não tem razão! - concordou Paul, a sorrir.

 

Quando Paul Drake saiu do gabinete, Mason perguntou à secretária:

- Que lhe parece, Della?

- Receio que pudesse ser... isto é, foi mais ou menos à mesma hora e... Enfim, às vezes penso que não prestamos a devida atenção à Gertie, por ela ser exagerada, mas... Talvez esta rapariga estivesse realmente aterrada, como a Gertie disse, e... Bem, podia ter sido ela.

- Isso significaria que teria vindo ter connosco por saber que lhe tinham cortado a retirada... Não teria outro remédio senão entrar num escritório qualquer. Entrou neste, à sorte, e devia estar a ver se Inventava um problema qualquer, que lhe servisse de pretexto para me consultar, quando a Gertie lhe deu a entender, com a sua pergunta inocente, que estávamos à espera de uma dactilógrafa.

DellaStreet acenou com a cabeça.

- Saia e explore as imediações - ordenou-lhe o advogado. - Eu tentarei fazer o mesmo.

- Que pretende, ao certo, que faça?

- Passe revista à máquina de escrever e à secretária de que ela se serviu; depois vá à sala de repouso e veja se encontra alguma coisa.

- Mas a Polícia já revistou a sala de repouso!

- Reviste-a também, Della, veja se ela escondeu alguma coisa. Existe a possibilidade de ela ter tido em seu poder algo muito incriminador, que escondeu em qualquer lado, com a intenção de o vir buscar mais tarde. Pelo -meu lado, vou lá abaixo comprar cigarros.

Mason saiu, desceu no elevador e foi à tabacaria do átrio. A empregada, uma rapariga alta e loura, de gelais dos olhos azuis, sorriu inexpressivamente. -Olá! - cumprimentou Mason.

O cumprimento cordial tornou-lhe os olhos ainda mais friamente cautelosos. - Boas tardes.

- Venho pedir uma informaçãozinha - disse o advogado.

-Vendemos charutos, cigarros, pastilha-elástica, rebuçados, jornais e revistas.

- Mason riu-se e redarguiu-lhe:

- Não me interprete mal!

- Não me interprete o senhor mal a mim.

- Sou inquilino do prédio há algum tempo. É nova cá, não é?

- Sou. Comprei a tabacaria a Mr. Carson e... Espere, estou a reconhecê-lo!

Perry Mason, o famoso advogado! Desculpe, Mr. Mason. Pensei que estivesse a... enfim, muita gente pensa que por uma rapariga vender cigarros se vende em cada maço que lhe compram.

- Eu é que peço desculpa - redarguiu-lhe Mason. - Devia-me ter apresentado.

- Em que lhe posso ser útil, Mr. Mason?

- Provavelmente em nada... Desejava uma informaçãozinha, mas se é nova aqui não deve conhecer bem os

Inquilinos do prédio.

- Infelizmente, assim é, tanto mais que não tenho grande memória para nomes e caras. Ando a ver se consigo fixar os clientes habituais, e garanto-lhe que tem sido um problema.

- Há dois outros inquilinos relativamente novos no prédio. Um chama-se Jefferson e o outro Irving...

- Refere-se aos gerentes daquela firma importadora, de pedras preciosas?

- Exactamente. Conhece-os?

- Agora conheço. Houve um grande alarido, esta tarde, embora eu não saiba ao certo o que se passou. Parece que lhe arrombaram o escritório e...

- Indicaram-lhe quem eles eram?

- Indicaram. Um deles - creio que Mr. Jefferson -, parou aqui, a comprar cigarros, e contou-me tudo.

- Mas não os conhecia antes?

- De vista?

Mason acenou afirmativamente e a rapariga abanou a cabeça.

- Desculpe, mas não o posso ajudar, Mr. Mason.

- Não tem importância.

- Porque pergunta, Mr. Mason? Está interessado no caso?

- Indirectamente - respondeu-lhe o advogado, a sorrir.

- É tão misterioso! Embora não o reconhecesse, quando se aproximou, tenho ouvido falar tanto de si que me parece conhecê-lo muito bem. Que é um interesse indirecto, Mr. Mason?

- Nada acerca de que valha a pena falar.

- Bem, lembre-se de que estou aqui numa posição muito central... Se alguma vez desejar que recolha algumas informações, para si, bastará dizer-me, pois terei muito gosto em colaborar em tudo quanto puder. Talvez agora a minha utilidade não seja muita, visto ser nova cá, mas... enfim, se houver alguma coisa em que o possa servir, conte comigo.

- Obrigado.

- Deseja que converse mais um bocadinho com Mr. Jefferson? Mostrou-se muito cordial e conversou comigo, enquanto o aviava. Não o encorajei, claro, mas "tenho o pressentimento... bem, o senhor sabe como são estas coisas. Mason sorriu.

- Quer dizer que ele se sente solitário e gosta do seu aspecto, não é?

- Bem, eu não disse exactamente isso...-redarguiu a rapariga, e riu, constrangida.

- Mas acha que seria possível encorajá-lo?

- Quer que experimente?

- Importava-se?

- Estou às suas ordens, Mr. Mason.

O advogado meteu-lhe na mão uma nota de vinte dólares, dobrada.

- Tente descobrir onde se encontrava o gerente do prédio quando Jefferson e Irving regressaram do almoço.

- Obrigada, Mr. Mason. Pesa-me a consciência por lhe aceitar este dinheiro, mas como se trata do gerente, sei a resposta à sua pergunta...

- E qual é a resposta?

- Eles chegaram enquanto o gerente e uma jovem estavam a observar os elevadores. Um deles encaminhou-se para o gerente, como se lhe fosse dizer alguma coisa, mas desistiu, ao vê-lo preocupado, a observar os elevadores. Na altura, não atribuí grande importância ao facto, mas mais tarde, quando me indicaram os dois homens, reconheci-os. Espero que a informação o satisfaça, Mr. Mason.

- Satisfaz. Obrigado.

- Obrigada fico eu, Mr. Mason. Se alguma vez lhe puder ser útil, estarei às ordens... e não lhe custará vinte dólares todas as vezes.

- Agradeço-lhe, mas não costumo aceitar seja o que for em troca de nada.

- Oh, nem seria de esperar outra coisa! – exclamou a rapariga, e envolveu-o no mais encantador dos sorrisos.

Mason subiu no elevador.

Della, num estado de grande excitação, exclamou, mal ele abriu a porta:

- Meu Deus, chefe, estamos atolados no caso até aos olhos!

-Continue. Estamos atolados em quê? Della Street mostrou-lhe uma caixinha de folha, quadrada.

- Que tem você aí?

- Um grande bocado de pastilha-elástica meio-seca.

- Onde a arranjou?

- Estava colada na parte inferior do tampo da secretária onde Mae Wallis trabalhou.

- Mostre, Della.

A secretária abriu a caixa e mostrou o bocado de pastilha-elástica ao advogado.

- Era exactamente assim que estava colada à parte interna do tampo da secretária.

- E que fez você?

- Peguei numa lâmina e retirei-a. Como vê, as pontas dos dedos ficaram marcadas, no ponto onde ela carregou contra a madeira.

Mason olhou-a a sorrir, e exclamou:

- Você está-se a tornar uma detective das arábias, Della! Temos, portanto, duas impressões digitais?

- Exactamente.

- Bem, mas não vamos entregá-las à Polícia, pois não?

- Suponho que não.

- Nesse caso, como não estamos particularmente interessados em cooperar com a Polícia, não teria importância se destruísse as impressões digitais, ao retirar a pastilha-elástica.

- Espere, pois ainda não viu tudo. Trata-se, como concordará, de um grande naco de pastilha-elástica, tão grande que a rapariga não o teve na boca todo de uma vez.

- Acha que ela o aplicou na secretária às prestações?

- Acho que o aplicou lá com um fito. Pensei nisso, mal o vi.

- Que fito?

DellaStreet virou a caixa em cima da secretária de Mason, de modo que a pastilha-elástica caísse no mata-borrão.

- Era este o lado que estava colado à madeira. Mason fitou as cintilações que saíam de alguns pontos da massa de pastilha-elástica, e exclamou:

- Meu Deus, Della! Quantas são?

- Não sei. Não quis mexer. Está tudo tal qual como tirei da secretária. Vêem-se partes de dois grandes diamantes.

- Isto constitui uma prova, Della - observou o advogado, pensativo. - Temos de ter muito cuidado, para que nada lhe aconteça.

Della acenou afirmativamente.

- Presumo que a goma seja suficientemente dura para se conservar assim?

- A parte interna está um pouco mole, mas agora que está exposta ao ar endurecerá depressa.

Mason pegou na caixinha, meteu-lhe lá dentro a pastilha-elástica e inclinou-a ora para um lado, ora para o outro, a fim de observar bem tanto a parte de baixo como a de cima.

- Duas das impressões digitais são latentes e muito boas, Della. A terceira é pior; parece mais o lado de um dedo. Mas estas duas são perfeitas.

A secretária acenou com a cabeça.

- Trata-se, provavelmente, do indicador e do polegar. De que lado da secretária estava, Della?

- Do lado direito.

- Então devem ser as impressões do indicador e do polegar direitos.

- Que fazemos, chefe? Chamamos a Polícia? Mason hesitou um momento, antes de responder:

- Primeiro quero saber mais alguma coisa do que se está a tramar, Della. Não encontrou nada na sala de repouso?

- Meti o nariz em tudo! Nem me escapou o recipiente que utilizam para dispor das toalhas sujas, de papel, uma grande caixa metálica com uma tampa em cunha, que se levanta de um lado e do outro, de modo a poder-se deitar as toalhas de ambos os lados.

- Encontrou alguma coisa, Della?

- Alguém se serviu do receptáculo para se desfazer de uma quantidade de cartas de amor, alguém que estava com muita pressa ou que não achou necessário dar-se ao trabalho de tomar precauções, para evitar que olhos curiosos se saciassem. As cartas nem sequer estavam completamente rasgadas.

- Vamos lá ver isso...

- Estavam num maço e eu apoderei-me delas todas. Ainda bem que a hora de ponta acabara, pois nem quero pensar no papel que faria se entrasse alguém e me apanhasse a esgaravatar no receptáculo das toalhas usadas!

Mason acenou com a cabeça, preocupado, enquanto observava as cartas.

- Que lhe parece, chefe?

- Sou da sua opinião. Ou a pessoa que as deitou fora estava com muita, muita pressa, ou se tratou de um truque e a pessoa quis ter a certeza de que elas dariam nas vistas e seriam lidas sem dificuldade. Por outras palavras, é quase bom de mais para ser verdade. Uma rapariga que se quisesse desfazer de cartas não cometeria o descuido de as lançar no receptáculo das toalhas usadas, sem ao menos as rasgar. A não ser que se pretendesse dar um falso indício...

-E se fosse um homem? Aparentemente, as cartas foram escritas a um homem e...

- Mas foram encontradas na sala das senhoras.

- Sim, tem razão.

Mason observou uma das cartas.

 -Estão escritas de um modo muito peculiar, com uma certa veia excêntrica. Ouça esta, Della:

“Queridíssimo Príncipe Encantador:

“Quando, a noite passada, chegaste no teu cavalo, desejava dizer-te muitas coisas, mas só me lembrei delas depois de partires.

“Não sei porquê, a cintilante armadura e o formidável elmo davam-te um ar tão virtuoso e íntegro que me senti uma criatura distante, de um mundo mais sórdido. Talvez não saibas, meu príncipe encantador, mas oferecias um espectáculo belo, com a viseira do elmo levantada, o cavalo de cabeça baixa e flancos arfantes e suados, do esforço de te transportar naquela derradeira missão de salvar uma donzela em apuros, e o sol-poente a arrancar reflexos à tua reluzente armadura...”

Mason fez uma pausa, olhou para Della e exclamou:

- Que diabo!

- Repare na assinatura, chefe. Mason virou duas folhas e leu:

- “Tua fiel e dedicada Mae.”

- Reparou como está escrito? M-A-E. O advogado franziu os lábios, pensativo.

- Só precisamos de um assassínio, para ficarmos numa situação absolutamente insustentável, Della.

- Em que situação?

- Na de ocultar provas importantes à Polícia.

- Não tenciona dizer-lhe nada acerca de Mae Wallis?

- Não me atrevo, Della. A Polícia não faria o mínimo esforço para me acreditar. Está a ver a situação em que me encontraria? Tentaria convencer as autoridades de que, enquanto elas procediam a uma busca ao prédio, a fim de encontrarem uma mulher que se introduzira nos escritórios da South African Gem Importing and Exploration Company, eu me encontrava inocentemente no meu gabinete, sem fazer a mínima ideia de que devia ter mencionado a dactilógrafa que caiu do céu aos trambolhões exactamente no momento preciso, que parecia aterrada e que, ao contrário do que se supunha, não veio da agência de Miss Mosher - coisa que eu sabia, nessa altura.

- Sim - admitiu Della, a sorrir -, com as suas relações e a sua reputação, compreendo que a Polícia se mostrasse, pelo menos, céptica.

- Muito, muito céptica. E como não é bom para a Polícia adquirir hábitos de cepticismo, evitaremos colocá-la numa situação embaraçosa.

 

Três dias depois, ao abrir a porta do seu gabinete particular, Perry Mason encontrou Della Street à sua espera, a secretária cuidadosamente arrumada e, caso raro, a pilha da correspondência atrasada toda chegada para um lado.

- Chefe, tenho estado a ver se o encontro - disse-lhe a secretária, em voz baixa e angustiada. - Sente-se e escute-me, antes de alguém saber que já chegou.

Mason pendurou o chapéu no bengaleiro, sentou-se à secretária, olhou ironicamente para Della e disse-lhe:

- Parece muito enervada. Que se passa?

- Passa-se que temos o nosso assassínio.

- “O nosso assassínio”? Que quer dizer?

- Lembra-se do que disse acerca dos diamantes? Que só precisávamos de um assassínio para tornar tudo perfeito?

Mason endireitou-se, bruscamente, na cadeira.

- Que sucedeu, Della? Explique-me tudo depressa.

- Ninguém parece saber ao certo o que se passa, mas Duane Jefferson, da South African Gem Importing and Exploration Company, foi preso por assassínio. O outro sócio da companhia, Walter Irving, está lá fora, à sua espera. Chegou um telegrama de Joanesburgo, enviado pela sede da firma, a informá-lo de que encarregaram o representante legal de lhe pagarem dois mil dólares, como sinal, para o chefe representar Duane Jefferson.

- Assassínio? - murmurou Mason. - Quem demónio é o cadáver?

- Ignoro. Apenas tenho conhecimento da chegada do telegrama e de que Walter Irving já cá veio três vezes, para lhe falar. Pediu-me que o avisasse, assim que o chefe chegasse, e desta vez acabou por se decidir a esperar pessoalmente, em vez de aguardar um telefonema meu. Afirma que tem a máxima urgência em lhe falar.

- Mande-o entrar, Della. Vejamos de que se trata. Onde está a caixinha?

- No cofre.

- Onde está a secretária de que Mae Wallis se serviu?

- Mandei-a de novo para o canto da biblioteca.

- Quem a transportou?

- O porteiro e um dos seus ajudantes.

- Que tal é você a mascar pastilha-elástica, Della?

- Óptima. Porquê?

- Masque um bocado e depois utilize-o para recolocar o que tem os diamantes na secretária, exactamente no lugar onde o encontrou.

- Mas haverá uma diferença de solidez, chefe. A outra pastilha-elástica está seca e dura e a que eu mascar agora ficará húmida e...

- ... e secará se decorrer um intervalo suficientemente longo.

- Que intervalo decorrerá?

- Isso dependerá inteiramente da sorte. Mande entrar Walter Irving, Della, e vejamos o que pretende.

DellaStreet encaminhou-se para a porta, a acenar com a cabeça, mas Mason deteve-a:

- E trate de mascar a pastilha-elástica imediatamente.

- Enquanto o chefe atender o Irving?

O advogado acenou afirmativamente e a rapariga saiu do gabinete, para voltar logo a seguir com Walter Irving, um indivíduo bem vestido e entroncado, com todos os indícios de ter acabado de sair da barbearia. Tinha o cabelo aparado de fresco, as unhas brilhantes e o rosto rosado e liso de quem acaba de se barbear e submeter a uma massagem.

Aparentava cerca de quarenta e cinco anos, tinha olhos castanhos-avermelhados inexpressivos e todo o ar de um homem que não denunciaria qualquer emoção, nem mesmo que metade do prédio ruísse.

- Bons dias, Mr. Mason. Creio que não me conhece, mas eu vi-o no elevador e apontaram-mo como sendo o advogado criminal mais esperto do estado.

- Obrigado - agradeceu Mason, enquanto lhe apertava a mão, e acrescentou, com certa secura: - “Advogado criminal” é uma expressão popular; prefiro considerar-me “advogado judicial”.

- Pois muito bem. Recebeu um telegrama da minha companhia, da África do Sul, não recebeu?

- Recebi.

- Autorizaram-me a pagar-lhe um sinal, para representar o meu sócio, Duane Jefferson.

- Esse telegrama é um mistério completo para mim - confessou Mason. - De que se trata?

- Já lá vamos. Primeiro quero esclarecer certos pormenores.

- A que se refere?

- Aos seus honorários.

- Que temos a tal respeito?

- As coisas são diferentes, na África do Sul - redarguiu Irving, sem desviar o olhar do de Mason.

- Diga-me claramente aonde quer chegar.

- A isto, apenas: estou aqui para proteger os interesses dos meus patrões, a South African Gem Importing and Exploration Company. É uma firma grande e rica e encarregou-me de lhe pagar dois mil dólares de sinai e de deixar ao seu critério o resto dos seus honorários, Ora eu não faço negócios assim. Deste lado do oceano, os advogados criminais têm uma certa tendência para apanhar tudo quanto podem. Eles... Com a breca, Mr. Mason, para que havemos de perder tempo com subterfúgios? A minha firma tem a impressão de que lida com um advogado de toga e peruca, não faz a mínima ideia do modo como se deve tratar com um advogado criminal.

- E o senhor faz?

- Se não faço, garanto-lhe que me esforçarei por aprender. Estou empenhado em proteger os interesses da minha companhia. Portanto, quanto nos vai custar o trabalho?

- Refere-se aos honorários totais?

- Exactamente.

- Primeiro fale-me do caso, exponha-me os pormenores principais, e depois responderei à sua pergunta.

- É tudo uma grande embrulhada. A Polícia invadiu-nos o escritório, confesso que não sei porquê, e encontrou alguns diamantes. Estes tinham lá sido postos com intenção reservada, para nos incriminar, pois nem o Jefferson nem eu jamais os víramos. A nossa companhia acaba de abrir aqui uma sucursal, facto que não agrada a certas pessoas.

- Quanto valiam os diamantes?

- A roda de cem mil dólares, preço de retalhista.

- Como acabou por redundar em assassínio?

- Isso também eu queria saber!

- Sabe, ao menos, quem foi assassinado?

- Um indivíduo chamado Baxter. Um contrabandista.

- Os diamantes - os que a Polícia encontrou - estavam no seu escritório?

- Como diabo quer que eu saiba?

Mason fitou-o, durante alguns segundos, e depois perguntou-lhe:

- Como diabo quer que eu saiba?

Irving sorriu e desculpou-se:

- Esta manhã estou um bocadinho irritadiço...

- Também eu. E se começasse a falar?

- Só lhe posso dizer, com certeza, que há em tudo Isto qualquer espécie de maquinação, destinada a comprometer-nos. Jefferson nunca matou ninguém. Conheço-o há anos, Mr. Mason! Tente ver as coisas deste modo: uma grande companhia sul-africana, muito conceituada e ultraconservadora, conhece Duane Jefferson há anos e, mal sabe que o prenderam, prontifica-se a entrar com o dinheiro necessário, seja quanto for, para lhe obter o melhor advogado possível. Note, a companhia não disse que adiantaria dinheiro ao Jefferson, para pagar a um advogado; ordenou-me que contratasse o melhor defensor possível, para o representar.

- E o senhor sugeriu o meu nome?

- Não. Tencionava sugerir, mas alguém se me antecipou. Recebi um telegrama a autorizar-me a levantar dois mil dólares, da nossa conta local, e a entregar-lhe essa importância, como sinal, para que o senhor começasse imediatamente a dar os passos necessários. Se é a companhia que lhe paga os honorários, quem será o seu cliente?

- Duane Jefferson.

- Suponha que ele tentava levá-lo a fazer qualquer coisa que não era no melhor dos seus interesses. Como procederia? Obedeceria às suas instruções ou faria o que fosse melhor para ele?

- Porque pergunta?

- Duane tenta proteger uma mulher. Prefere ser condenado a denunciá-la. Acha-a maravilhosa, mas eu penso que se trata de uma velhaca esperta e manhosa, que está empenhada em o incriminar.

- Quem é ela?

- Quem me dera sabê-lo! Se soubesse, mandá-la-ia seguir por detectives, num abrir e fechar de olhos. Mas não sei. Sei apenas que existe. Perdeu a cabeça pelo Duane e ele protegê-la-á.

- Casada?

- Ignoro, mas creio que não.

- E a respeito do assassínio?

- Está relacionado com o contrabando. Duane Jeffer-son vendeu uma partida de diamantes a Munroe Baxter, por intermédio do escritório da África do Sul. Baxter encarregou Jefferson de os mandar cortar, polir e entregar na nossa sucursal de Paris. Esta desconhecia a história da transacção e limitou-se a fazer a entrega a Baxter, de acordo com as instruções recebidas da África do Sul. Geralmente, tentamos obter algumas informações acerca das pessoas com quem negociamos, mas o Baxter teve artes de envolver os nossos dois escritórios na transacção, de tal modo que cada um deles pensou que o outro procedera à investigação habitual. Baxter conseguira revestir-se de uma aura de absoluta respeitabilidade.

- Como souberam do contrabando?

- Ele tinha uma cúmplice que deu à dica e confessou tudo.

- Quem é ela?

- Uma rapariga chamada Yvonne Manco.

- Diga-me mais coisas.

- Não leu a notícia acerca de um tipo que andava num cruzeiro, saltou do barco e se suicidou, há algum tempo?

- Li, sim. Esse indivíduo não se chamava Munroe Baxter?

- Exactamente, Mr. Mason.

- Por isso me pareceu que já ouvira o nome, algures, quando o senhor o mencionou. Como acabou isso por redundar, agora, em assassínio?

- Yvonne Manco é uma rapariga muito bonita, que fez um cruzeiro à volta do mundo. Foi a rainha do barco. Quando escalaram em Nápoles, Yvonne, ao descer o por-taló, encontrou Munroe Baxter, indivíduo com todo o aspecto de francês, mas cujo nome, cidadania e passaporte eram americanos. Conto-lhe tudo isto para que o senhor possa avaliar devidamente a sequência dos acontecimentos.

- Continue.

- Segundo parece, Munroe Baxter estivera, em tempos, apaixonado por Yvonne Manco. A bordo constou que O romance terminara devido a um mal-entendido qualquer. Quem quer que escreveu o “argumento” fez um belo trabalho, Mr. Mason!

- Era, então, fita?

- Se era! Tão falsa como uma nota de três dólares.

- Que sucedeu?

- Naturalmente, os passageiros sentiram-se curiosos e interessados. Viram o tipo abrir caminho através da multidão, abraçar Yvonne Manco e ela desfalecer nos seus braços... Ali estava um belo romance, uns pòzinhos de escândalo, uma página do passado daquela linda rapariga... Era comovedor, patético... e, naturalmente, provocou muitos mexericos.

Mason acenou com a cabeça, compreensivo.

- O barco esteve dois dias em Nápoles e, quando levantou ferro, Munroe Baxter suplicava a Yvonne que casasse com ele. Foi o último homem a desembarcar e, depois, ficou no cais, a chorar copiosamente. Lágrimas de crocodilo, claro...

- Continue - insistiu Mason, interessado.

- O barco navegou pelo Mediterrâneo e parou em Génova. Munroe Baxter lá estava, na doca. Yvonne Manco voltou a desfalecer nos seus braços e a recusar-se a desposá-lo. O barco partiu, mais uma vez. Até que surgiu o desenlace... Quando o navio estava ao largo de Gibraltar, surgiu um helicóptero, com um homem a descer por uma escada de corda. O homem - Munroe Baxter - esteve uns momentos precariamente suspenso do último degrau, o helicóptero pairou sobre a coberta do barco e Baxter deixou-se cair, junto da piscina, onde Yvonne Manco apanhava sol, ataviada com um sedutor fato de banho.

- Romântico - comentou Mason.

- E oportuno - acrescentou Irving, secamente. - Ninguém seria capaz de resistir a uma corte tão impetuosa e dramática. Os passageiros obrigaram, praticamente, Yvonne a consentir. O capitão casou-os, nessa noite, no alto mar, os passageiros viraram o barco do avesso, para celebrar, foi, em suma, formidável.

- Faço ideia.

- E, claro, como Baxter embarcou de modo tão dramático, sem ter consigo uma escova de dentes ou um lenço, como haveria a Alfândega de suspeitar que ele contrabandeava trezentos mil dólares de diamantes, no cinto de camurça que lhe prendia as calças? Perante um romance tão belo, quem imaginaria que Yvonne Manco era amante de Munroe Baxter havia uns dois anos, sua cúmplice num negócio de contrabando e que o namoro dramático não passava de uma grande peta?

- Compreendo.

- O cenário estava preparado - prosseguiu Irving. - Aos olhos dos passageiros, Munroe Baxter era um francês maluco - cidadão dos Estados Unidos, sem dúvida, mas com a excitabilidade e a veemência dos Franceses. Por isso, quando, ao aproximar-se o barco de terra, Yvonne Manco, vestida a primor, dançou três vezes seguidas com o atraente ajudante do comissário, ninguém se admirou de Baxter armar uma cena violenta, ameaçar matar-se, romper em pranto, correr para o camarote e saltar pela borda fora, depois de uma discussão em que Yvonne ameaçou divorciar-se.

- Sim, lembro-me de os jornais falarem muito dessa história.

- Pareceu feita de encomenda, para os jornais, Mr. Mason. Quem imaginaria que o apaixonado Munroe Baxter levava consigo trezentos mil dólares de diamantes, quando se atirou ao mar, que era um excelente nadador, muito capaz de alcançar, sem dificuldade, uma lancha que o esperava, num lugar previamente combinado, e que, mais tarde, ele e a bela Yvonne repartiriam os lucros de um folhetim cuidadosamente escrito, sober-bamente realizado e inteligentemente representado, apenas com o intuito de intrujar as autoridades alfandegárias?

- Mas não o conseguiu?

- Oh, conseguiu! Correu tudo às mil maravilhas e como estava previsto... excepto num pormenor: Munroe Baxter não compareceu ao encontro marcado com Yvonne Manco. Ela dirigiu-se ao motel isolado que tinham escolhido, esperou, esperou, esperou...

- Talvez Baxter achasse que um bolo inteiro era melhor do que meio bolo - observou Mason.

Irving abanou a cabeça.

- Parece que a encantadora Yvonne procurou o cúmplice que esperava na lancha e que, ao princípio, lhe disse que Baxter não aparecera; devia ter sido vítima de cãibras, ao nadar debaixo de água.

- Isso passou-se nas águas territoriais dos Estados Unidos?

- Perto do porto de Los Angeles.

- De dia?

- Não. Pouco antes de amanhecer. Tratava-se de um cruzeiro, como já disse, e o barco pretendia atracar o mais cedo possível, para que os passageiros dispusessem do máximo de tempo em terra.

- Muito bem, supôs-se que Baxter se afogou. E depois, que sucedeu?

- Yvonne Manco teve uma suspeita horrível. Pensou que o cúmplice da lancha devia ter mantido a cabeça de Baxter debaixo de água, ao mesmo tempo que lhe tirava o cinto com os diamantes. Provavelmente nunca diria nada se não se desse a coincidência de as autoridades alfandegárias começarem a somar dois e dois. Chamaram a encantadora Yvonne, a fim de a interrogarem acerca do seu “marido”, pois parecia que ambos tinham viajado noutro cruzeiro, cerca de dezoito meses antes, como marido e mulher.

- E Yvonne Manco foi-se abaixo e contou-lhes a história toda?

- Toda, incluindo até que Duane Jefferson estivera implicado na venda das pedras. A Polícia começou a interessar-se muito por Jefferson e, ontem à tarde, depois de Yvonne Manco depor sob juramento, passou um mandado de busca e revistou o escritório.

- E recuperou cem mil dólares de diamantes?

- Recuperou um bom sortido de diamantes. Digamos que um terço do valor contrabandeado.

- E os restantes dois terços? Irving encolheu os ombros.

- E a identificação? -insistiu o advogado. - Onde foram encontradas as pedras?

- Onde alguém as “plantara”, muito inteligentemente. Talvez se recorde do pequeno alvoroço que se verificou, quando descobriram uma intrusa no escritório? A Polícia pediu-nos que víssemos se faltava alguma coisa, e a nós não nos passou pela cabeça ver se estava alguma coisa a mais.

- Onde encontraram os diamantes?

- Num embrulhinho colado às costas de uma secretária com fita gomada.

- E que tem Duane Jefferson a dizer a tal respeito?

- Nada, evidentemente. Foi uma novidade para ele, assim como o foi para mim.

- Pode garantir esses factos?

- Posso, mas não posso garantir as ideias românticas e loucas do Duane, que só pensa em proteger a rapariga.

- É a mesma que se introduziu no escritório?

- Penso que sim. Duane teria um ataque e nunca mais me falaria, se soubesse que penso tal coisa. Quando se trata de mulheres, é preciso lidar com ele com luvas de pelica. No entanto, tudo indica que o senhor terá de arrastar a pequena para o caso, e Duane deixará de colaborar consigo assim que o ouvir mencionar a sua existência.

Mason ficou pensativo.

- Então? - perguntou-lhe Irving.

- Passe o cheque dos dois mil dólares, por conta de cinco mil dólares de honorários.

- Cinco mil dólares de honorários?

- Não será mais do que isso.

- Incluindo detectives?

- Não. As despesas serão pagas à parte. Estou a falar de honorários.

- Diabos me levem! - explodiu Irving. - Se os tipos da sede não tivessem mencionado um sinal de dois mil dólares, poderia levá-lo a encarregar-se do assunto por essa importância, sem mais nada.

Mason limitou-se a olhá-lo, sem proferir palavra.

- Bem, o que está feito, está feito – resmungou Irving, enquanto tirava da carteira um cheque já preenchido e o estendia ao advogado.

- Della - disse Mason à secretária -, passe um recibo com a indicação de que se trata de um sinal, em nome de Duane Jefferson.

- Que quer isso dizer? - indagou Irving.

- Apenas que não sou responsável perante o senhor ou a sua companhia e sim, somente, perante o meu cliente.

Irving pareceu meditar no assunto.

- Alguma objecção?

- Não, Mr. Mason. Presumo que está a dar a entender que se voltaria até mesmo contra mim, se isso conviesse aos interesses de Duane.

- Não estou a dar a entender; estou a dizer. O outro sorriu.

- Por mim, acho bem. Vou, até, mais longe: se alguma vez as coisas se começarem a pôr feias, pode contar comigo para tudo quanto for preciso para o apoiar. Nem sequer me importarei de desempenhar o papel da testemunha desaparecida!

- Não tente aconselhar as jogadas. Deixe isso comigo. Irving estendeu-lhe a mão e despediu-se.

- Só queria que compreendesse a minha posição, Mason.

- O importante é que você compreenda a minha.

 

Mason olhou para Della Street, quando Walter Irving saiu.

- Então? - perguntou-lhe a secretária.

- Tive de aceitar o caso quase por uma questão de autodefesa, Della.

- Porquê?

- Caso contrário, estaríamos a ocultar informações acerca de um assassínio, não poderíamos, sequer, alegar que protegíamos um cliente e a situação tornar-se-ia muito perigosa.

- E a"ssim?

- Assim, temos um cliente a quem podemos estar a proteger. Um advogado que representa um cliente, num caso de assassínio, não é obrigado a ir à Polícia e expor as suas deduções, suspeitas e conclusões, sobretudo se tem motivos para crer que tal procedimento seria contrário aos interesses do cliente.

- Mas quanto à prova positiva?

- A prova de quê?

- De que acolhemos uma jovem que entrou no escritório e lá “plantou” diamantes.

- Não sabemos se ela os “plantou”.

- De que esteve no escritório...

- Não sabemos se foi ela.

- É uma dedução razoável.

- Suponha que ela era apenas uma dactilógrafa que, por coincidência, se encontrava no prédio. Nós apresentamos à Polícia uma série de suspeitas, a Polícia comunica a história aos jornalistas e ela processa-nos por difamação.

- Compreendo - murmurou Della, muito séria. - Receio que seja inútil tentar convencê-lo.

- E.

- Posso, ao menos, fazer uma pergunta?

- Qual?

- Acha que foi por pura coincidência que o contrataram para representar os interesses de Duane Jefferson?

Mason coçou o queixo, pensativo.

- Então, chefe?

- Já pensei nisso - admitiu o advogado. - Claro que o facto de eu ser conhecido como advogado judicial e de ter escritório no mesmo andar do mesmo prédio permitiria a Irving ouvir falar a meu respeito e, naturalmente, comunicar à sede da sua companhia que poderia recorrer a mim...

- Mas ele não comunicou. Disse que alguém se lhe antecipou e que recebeu apenas o telegrama a mandar entregar-lhe os dois mil dólares.

Mason acenou com a cabeça e Della insistiu:

- Então?

- Não tenho comentários a fazer.

- Mas que fazemos, agora?

- Agora a nossa posição é muitíssimo clara, Della. Sugiro-lhe que vá à loja de artigos fotográficos e compre uma máquina de fotografar impressões digitais. Pode adquirir, também, uma máquina de vidro de focagem fosco. Veremos se é possível fotografar as impressões digitais latentes da pastilha-elástica.

- E depois?

- Depois ampliaremos a fotografia, de modo a mostrar apenas as impressões digitais e não a pastilha-elástica.

- E depois?

- Entretanto, espero que tenhamos conseguido localizar a rapariga que deixou as impressões digitais e esclarecido toda essa embrulhada. Enquanto você vai comprar as máquinas fotográficas, eu vou ao escritório do Paul Drake conversar com ele...

- Chefe, isto não é um bocado... arriscado?-perguntou Della Street, com certa apreensão.

- Claro que é!-respondeu-lhe o advogado, com um sorriso contagioso, de tão descarado.

- Não seria melhor esquecer outras coisas e proteger-se?

- Estamos a proteger um cliente, Della. Descreva-me a rapariga o melhor que puder.

- Calculo que terá uns vinte e seis ou vinte e sete anos, deve medir 1,57 m e pesar cerca de 72 quilos. Tinha cabelos castanhos-avermelhados e olhos mais ou menos do mesmo tom, muito expressivos. Era atraente, elegante e bem proporcionada.

- Boa figura?

- Perfeita.

- Que vestia?

- Lembro-me perfeitamente desse pormenor, pois estava espampanante. Pensei, até, que parecia mais uma cliente do que uma rapariga ao serviço de uma agência de empregos. Trazia um saia,-e-casaco de flanela cinzenta, de excelente corte, sapatos de pelica azul-marinho, com um delicado picotado branco na biqueira, mala pequena, a condizer, e luvas brancas. Chapéu... deixe-me pensar... Não, tenho a certeza de que não usava chapéu. Prendia-lhe os cabelos uma bandelete de tartaruga, e garanto-lhe que não tinha um único cabelo fora do lugar. Não despiu o casaco, enquanto trabalhava, por isso não posso jurar, mas creio que por baixo trazia uma camisola de casimira azul-clara. Desabotoou apenas o botão de cima, do casaco, por isso não tenho a certeza.

- A vocês, mulheres, nunca escapa nada acerca de outras mulheres, pois não, Della? - perguntou Mason, a sorrir. - Felicito-a pela sua excelente memória. Importa-se de dactilografar tudo quanto me disse, acerca da descrição da rapariga? Utilize uma folha de papel simples e não timbrado.

Mason esperou que a secretária dactilografasse o que lhe pedira e, no fim, disse-lhe:

-Pronto, agora vá comprar as máquinas fotográficas. Abasteça-se de filmes, lâmpadas, um tripé e tudo quanto lhe pareça necessário. Mas não diga para que precisamos do material, hem?

- A máquina de fotografar impressões digitais não será, só por si, elucidativa?

- Diga ao lojista que preciso de contra-interrogar uma testemunha e desejo saber tudo acerca do funcionamento dessas máquinas.

DellaStreet acenou afirmativamente, ao mesmo tempo que Perry Mason pegava na folha dactilografada e se dirigia ao escritório de Paul Drake. Cumprimentou a rapariga do telefone e perguntou-lhe:

- O Paul está no escritório?

- Está, sim, Mr. Mason. Deseja que o informe de que está aqui?

- Encontra-se alguém com ele?

- Não.

- Então avise-o de que vou a caminho.

O advogado empurrou a cancela da divisória e meteu pelo comprido corredor envidraçado, aos lados do qual havia diversos escritòriozinhos. Por fim chegou a um, um pouco mais espaçoso, com uma tabuleta que dizia “Paul Drake, Particular”, empurrou a porta e entrou.

- Estava à espera de ter notícias suas - disse-lhe o detective, e acrescentou, ao ver Mason arquear as sobrancelhas:- Não arme em Inocente. Telefonaram da South African Gem Importing and Exploration Company, de longa distância, a perguntar por si. Chamaram o gerente do prédio e interrogaram-no a seu respeito.

- Mencionaram-lhe o meu nome ou pediram-lhe que recomendasse um advogado?

- Mencionaram o seu nome e declararam-se interessados em saber tudo a seu respeito.

- Que lhes disse o gerente? Drake sorriu, ao responder:

- Tem a renda em dia, não tem?

- Sabe acerca de que demónio se trata, Paul?

- Sei, apenas, que há assassínio no caso e, a julgar pela atitude da Polícia, diria que alguém deve ter dado à dica e confessado.

- Sim, uma confissão susceptível de atirar as culpas para o lombo de qualquer outra pessoa e livrar de apertos os calos de quem a fez.

- É possível. Que vamos fazer? - Trabalhar.

- Em quê?

- Para começar, preciso de encontrar uma rapariga. - Que bases temos, para a procurar? Mason estendeu ao detective a descrição que Della Street dactilografara.

- Óptimo! Posso ir lá para baixo, parar à esquina, à hora do almoço, e escolher, em dez minutos, um cento de raparigas que correspondam a esta descrição.

- Releia o papel. Essa é muito melhor do que a média.

- Se não fosse, em vez de um cento arranjava-lhe um milhar.

- Está bem, vou-lhe dar um ponto de referência mais preciso: esta pequena é uma excelente dactilógrafa. É provável que tenha um bom lugar de secretária, em qualquer lado.

- A não ser, claro, que tenha sido uma excelente dactilógrafa e depois haja casado.

Mason admitiu tal possibilidade, com um aceno de cabeça, e acrescentou:

- Também tem experiência jurídica.

- Como sabe isso?

- Não lho posso dizer.

- Muito bem. Que quer que faça?

- Sugiro-lhe que monte um escritório fictício, que telefone à Associação das Secretárias Judiciais e publique um anúncio no jornal forense e nos jornais vulgares, a pedir uma dactilógrafa jovem e atraente. Não sei se a rapariga que me interessa também é estenógrafa. Portanto, você indicará que o conhecimento de estenografia será factor desejável, embora não imprescindível. Oferecerá um ordenado de duzentos dólares por semana...

- Meu Deus, Perry, receberá um dilúvio de respostas! Será o mesmo que convidar a cidade toda a invadir-lhe o escritório.

- Mais devagar, pois ainda não lhe disse tudo!

- Já calculava.

- O seu anúncio estipulará que a pequena terá de se submeter a prova de dactilografia, que é imprescindível que copie com rapidez e perfeição. Fixe um número elevado de palavras por minuto. Ora, o género de rapariga de que precisamos já deverá ter um emprego, em qualquer outro lado, o que significa a necessidade de oferecermos um lugar com atractivos suficientes para a instigarem a vir dar uma vista de olhos. Como, estando empregada, não poderá vir às horas normais de expediente, mencione no anúncio que o escritório estará aberto ao meio-dia e até às sete da tarde.

- Quer que alugue um escritório mobilado?

- Exactamente.

- Vá contando com a necessidade de substituir a carpete, quando prescindir do aluguer... - aconselhou Drake, em tom lúgubre. - A horda de interessadas será tal que deixará a existente no fio. É verdade, como demónio saberei se a que lhe interessa aparece?

- Ia-lhe falar precisamente disso. Começará a examinar as pretendentes, e pode desde já contar que poucas serão as capazes de dactilografar à velocidade estipulada. Seja absolutamente implacável com as qualificações e arranje uma boa secretária, para ir fazendo a escolha. Exclua, tacitamente, todas as que precisarem de recorrer à borracha. A rapariga que procuro é capaz de fazer o teclado trabalhar como uma metralhadora.

- E depois?

- Quando reunir um grupo de pequenas que correspondam às exigências, marque-lhes uma entrevista pessoal, observe-as cuidadosamente, para ver se correspondem à descrição que lhe dei, e peça-lhes que lhe mostrem a carta de condução. Uma dactilógrafa da categoria que pretendemos é natural que tenha carro. Será assim que apanharemos o nosso peixe.

- Como?

- Esta “tarde, mandar-lhe-ei a impressão digital de um polegar direito -ou melhor, a fotografia da impressão digital de um polegar direito. Talvez não seja uma obra-prima, no género, mas permitir-lhe-á, pelo menos, identificá-la. Quando estiver a observar as licenças de condução, arranje maneira de ser chamado a outro compartimento, para tratar de qualquer coisa. Pretexte, por exemplo, que se trata de outra pretendente, a quem tem de dar um recado, ou que precisa de atender um telefonema... Enfim, seja o que for. Saia com a licença de condução da rapariga que estiver a entrevistar e compare as impressões digitais. Um olhar bastará  para eliminar a maior parte delas, ao passo que terá de estudar outras com um pouco mais de atenção. Mas se aparecer a que pretendemos, não lhe custará nada identificar a Impressão digital.

- E depois, que faço?

- Tome nota do nome e da morada indicados na licença de condução. Assim, ela não lhe poderá impingir um nome falso. E telefone-me imediatamente, claro.

- Mais alguma coisa?

- Penso - mas, note, trata-se apenas de um palpite -, penso que o primeiro nome da rapariga é Mae. Se lhe aparecer uma jovem que corresponda à descrição que lhe entreguei, escreva à máquina como se o Demo a perseguisse e se chame Mae, comece a prestar muita atenção a todos os pormenores.

- Quando me mandará a tal impressão digital?

- Esta tarde. As licenças de condução têm a impressão do polegar direito.

- Não me pode dizer a que vem tudo isto, Perry?

- Será melhor para si não saber - respondeu-lhe o advogado, a abanar a cabeça e a sorrir.

- Trata-se de uma das tais coisas, hem? - redarguiu o detective, em voz que denotava uma singular falta de entusiasmo.

- Não trata nada. Pretendo apenas prevenir-me, um bocadinho...

- Consigo, preferia que se prevenisse um bocadão, pois se as coisas derem para o torto será muito, muito difícil remediá-las.

 

Mason estava sentado na sala de visitas da cadeia, a observar Duane Jefferson. O seu cliente era um indivíduo alto e calmo, que parecia reservado, nada nervoso e, de certo modo, muito britânico.

O advogado tentou arrancá-lo à sua extraordinária complacência e recordou-lhe:

- É acusado de assassínio.

- Se não fosse, seria difícil encontrar-me aqui, não é verdade? - redarguiu-lhe Jefferson, friamente.

- Que sabe acerca do assunto?

- Virtualmente, nada. Conheci Baxter, em vida... isto é, partindo do princípio de que se trata do mesmo homem.

- Como o conheceu?

- Dizia-se um grande negociante por atacado. Apareceu no escritório da África do Sul a dizer que desejava comprar diamantes. É contrário à política da firma vender diamantes em bruto, a não ser que se trate, evidentemente, de diamantes industriais.

- Baxter queria as pedras em bruto?

- Queria.

- E informaram-no de que não lhas podiam vender?

- Bem, houve que proceder com tacto, Mr. Mason. Baxter prometia ser um excelente cliente e negociava a dinheiro.

- Que fizeram, então?

- Mostrámos-lhe alguns diamantes cortados e polidos, mas ele não os quis. Explicou que o negócio em que estava interessado exigia que comprasse os diamantes em bruto e acompanhasse todas as fases da sua evolução, do corte ao polimento; queria poder dizer aos seus clientes que escolhera pessoalmente os diamantes, tal qual como tinham vindo das jazidas.

- Porquê?

- Não explicou.

- E não lhe perguntaram?

- Nas companhias dirigidas por ingleses, tentamos reduzir ao mínimo as perguntas de carácter pessoal. Não bisbilhotamos, Mr. Mason.

- Que fizeram, então?

- Combinou-se que ele escolheria os diamantes e que nós os enviaríamos para a nossa sucursal em Paris, onde seriam cortados e polidos, depois do que os receberia.

- Quanto valiam as pedras?

- Preço por atacado ou a retalho?

- Atacado.

- Muito menos do que a retalho.

- Quanto menos?

- Não lhe posso dizer.

- Porquê?

- Essa informação constitui um segredo comercial muito bem guardado.

- Mas eu sou o seu advogado.

- Pois é.

- Escute, você é inglês?

- Não.

- Americano?

- Sim.

- Há quanto tempo trabalha numa companhia inglesa?

- Há cinco ou seis anos.

- Tornou-se muito britânico em tão pouco tempo.

- Há certos maneirismos que o comércio espera encontrar nos representantes de uma companhia como a nossa.

- Mas também há certos maneirismos que um júri espera encontrar num cidadão americano! Se um júri achasse que o senhor aperfeiçoara, intencionalmente, uma atitude britânica, creia que talvez tivesse boas razões para lamentar o seu sotaque e esse seu ar de frio e impessoal desinteresse.

- Um júri capaz de permitir que considerações pessoais dessa ordem influenciassem o seu critério, só me mereceria desprezo - replicou Jefferson, e arqueou ligeiramente os cantos dos lábios, numa atitude de franco desdém.

- Isso despedaçaria o coração dos jurados.

- Acho melhor entendermo-nos, desde já, Mr. Mason. São os princípios que regem as minhas acções. Preferia morrer a ceder numa questão de princípio.

- Muito bem, como queira. O enterro é seu... Voltou a ver Baxter?

- Não. Depois do encontro na África do Sul, o negócio foi concluído por intermédio da sucursal parisiense.

- Irving?

- Não creio que tenha sido Irving, Mr. Mason. Suponho que foi um dos outros representantes.

- Leu as notícias acerca da chegada do barco de cruzeiro e do suposto suicídio de Baxter?

- Li, sim, Mr. Mason.

- E fez às autoridades alguns comentários a tal respeito?

- Claro que não.

- Sabia que Baxter trasia consigo uma pequena fortuna em diamantes?

- Presumia que a nossa sucursal em Paris lhe entregara uma pequena fortuna em diamantes, mas não podia saber, de modo nenhum, o que ele lhes fizera.

- Não apresentou sugestões nenhumas às autoridades?

- Claro que não. As nossas transacções comerciais são estritamente confidenciais.

- Mas discutiu a morte de Baxter com o seu sócio, Irving?

- Irving não é meu sócio, Mr. Mason, e, sim, um representante da companhia. Um amigo pessoal, sem dúvida, mas...

- Compreendo.

- Sim, discuti o assunto com ele.

- Irving apresentou algumas ideias?

- Nenhuma. Aventou apenas a hipótese de toda a situação se revestir de certas circunstâncias suspeitas.

- Não lhe acudiu ao espírito a possibilidade de ser tudo parte de uma maquinação de contrabandistas?

- Prefiro não debater essa sugestão, Mr. Mason. Apenas posso dizer que a transacção apresentou certas circunstâncias suspeitas.

- Circunstâncias que discutiu com Irving?

- Sim, como um representante da companhia a conversar com outro. Preferia, contudo, não pormenorizar o que disse. Deve lembrar-se, Mr. Mason, de que não estou aqui como indivíduo, mas, sim, como representante.

- Pode estar neste país como representante, mas não se esqueça, nunca, de que está nesta cadeia numa capacidade puramente individual.

- Sem dúvida, Mr. Mason.

- Sei que a Polícia encontrou diamantes no seu escritório.

Jefferson limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça.

- Donde vieram eles?

- Não faço a mínima ideia, Mr. Mason. Estou no meu escritório cerca de seis das vinte e quatro horas do dia, e creio que, além do porteiro, a mulher da limpeza tem uma chave-mestra. Entra e sai muita gente, como calcula. A Polícia disse-me, até, que alguém tentou introduzir-se, ou conseguiu introduzir-se, no escritório.

- Uma rapariga.

- Sim, disseram-me que foi uma jovem.

- Faz alguma ideia de quem seria?

- Certamente que não!

- Conhece algumas raparigas, aqui na cidade? Jefferson hesitou.

- Conhece?

Jefferson fitou o advogado nos olhos e respondeu-lhe:

- Não.

- Não se dá com nenhuma jovem?

- Não.

- Não estará a tentar proteger alguém?

- Porque tentaria proteger alguém?

- Não lhe perguntei porquê, por enquanto, mas apenas se

- Não,

- Compreende que poderia ser muito grave se tentasse falsear os factos, não compreende?

- Não é norma de lei neste país dever a acusação provar, para além de toda a dúvida razoável, que o acusado é culpado? - rebateu Jefferson.

Mason acenou afirmativamente.

- No meu caso, não o conseguirá provar - afirmou Jefferson, cheio de confiança.

- Talvez não tenha outra oportunidade de me contar a sua história.

- Já lha contei.

- Não há nenhuma rapariga?

- Não.

- Antes de vir da África do Sul para cá não se correspondia com nenhuma jovem deste país?

Notou-se, de novo, uma ligeira hesitação, antes de Jefferson fitar o advogado e responder:

- Não.

- A Polícia Informou-o de que uma jovem se introduziu no seu escritório?

- A Polícia falou-me de alguém que abriu a porta com uma chave.

- Deu a sua chave a alguma mulher? - Certamente que não.

- Escute, se deseja proteger alguém, conte-me a história toda e eu tentarei proteger essa pessoa tanto quanto for possível. No fim de contas, represento-o, tenho o dever de tentar fazer o que for melhor para o seu interesse. Aconselho-o a não pretender enganar o seu próprio advogado. Compreende aonde isso o poderia levar?

- Compreendo.

- E não está a proteger ninguém?

- Não.

- O gabinete do promotor de justiça acha que tem quaisquer provas contra si, pois de contrário não lhe faria semelhante acusação.

- Quanto a mim, um promotor de justiça é tão susceptível de se enganar como qualquer outra pessoa.

- Às vezes até é mais. Não me está a ajudar muito, Mr. Jefferson.

- Mas que ajuda lhe posso eu dar? Suponha que entrava no seu escritório, amanhã de manhã, e encontrava lá a Polícia, que lhe dizia ter descoberto no seu gabinete determinada mercadoria roubada. Suponha, ainda, que eu lhe pedia que me contasse toda a história. Que me poderia dizer?

- Tentaria responder às suas perguntas.

- Eu respondi às suas, Mr. Mason.

- Tenho razões para crer que existe na cidade uma jovem que o senhor conhece.

- Não existe.

- Bem, tudo depende de si-declarou o advogado, e levantou-se.

- Pelo contrário, Mr. Mason. Creio que, como verificará, tudo dependerá do senhor.

- Talvez tenha razão - admitiu Mason, e fez sinal ao guarda de que terminara a entrevista.

 

Quando Mason abriu a porta do seu gabinete particular, Della Street levantou a cabeça do trabalho e perguntou-lhe:

- Então, chefe, como correu isso?

Mason encolheu os ombros, com certo desalento.

- Não falou? - insistiu a secretária.

- Falou, mas o que disse não fez sentido. Está a proteger uma mulher qualquer.

- Porquê?

- A resposta teremos nós de a descobrir. Arranjou as máquinas fotográficas?

- Arranjei. Máquinas, lâmpadas, filmes, tripé, tudo.

- Vamos lançar-nos no negócio fotográfico... Recomende à Gertie que não nos interrompam, aconteça o que acontecer.

DellaStreet estendeu a mão para o telefone interno, mas hesitou.

- A Gertie é capaz de fazer um bicho de sete cabeças de tudo isto, chefe.

Mason franziu a testa e admitiu, pensativo:

- Marcou um ponto, Della.

- Com o seu temperamento romântico, encherá a cabeça de ideias que nem à cacetada de lá sairão.

- Está bem, não lhe diga que cheguei. Vamos para a biblioteca e... Acha-se capaz de me ajudar a deitar a secretária de lado, Della?

- Posso tentar, pelo menos.

- Óptimo. Vamos para a biblioteca e fechamos a porta à chave.

- E se a Gertie precisar de mim para qualquer coisa? Não será melhor dizer-lhe o que vamos fazer, a fim de...

Mason abanou a cabeça e interrompeu-a:

- Não quero que ninguém saiba nada a este respeito. Della fingiu que atirava qualquer coisa para o cesto dos papéis e comentou:

- Lá se vai o meu bom nome!

- Bastará que fique para me ajudar a virar a secretária e a arranjar as luzes. Fecharemos apenas a porta que dá da biblioteca para a recepção e deixaremos a deste lado aberta. Assim ouvirá o telefone, se a Gertie tocar.

- Pois sim, mas suponha que ela entra, por qualquer motivo...

- Como a porta estará aberta, verá que estamos a fotografar qualquer coisa.

- A curiosidade dela é tão grave como o seu romantismo.

- Mas ela fala?

- Quem me dera sabê-lo, chefe! Talvez fale ao namorado... A Gertie é das que nem com um açaimo se conseguem calar. Duvido, no entanto, que seja capaz de falar a mais alguém.

- Correremos o risco. Venha daí, Della, vamos voltar a secretária e preparar as luzes.

- Aqui tem um mapa com todas as instruções. Disse ao homem que desejávamos fotografar uns documentos. Para obter um verdadeiro close-up tem de mudar o factor de exposição. A máquina de filmar impressões digitais parece que é um conjunto completo, com luz e todos...

- Compreendo - interrompeu-a Mason. - Quero fotografar o matacão de pastilha-elástica, colado à secretária, e close-ups das impressões digitais. Se a máquina não fizer bom trabalho, poderemos encarregar um fotógrafo de ampliar as impressões.

- A máquina de filmar impressões digitais parece ser tão fácil...-Dellacalou-se, de súbito.

- Que até um idiota a saberia usar? - perguntou Mason, a rir.

- Bem, foi mais ou menos o que o homem da loja disse.

- Pois sim, vamos lá ver isso. Tiraremos fotografias com diferentes tabelas de exposição. Trouxe películas suficientes?

- Se trouxe! Calculei que quereria ter a certeza de obter resultados e, por isso, comprei películas suficientes para tirar todas as fotografias que quiser e com todas as tabelas de exposição.

- Óptimo.

DellaStreet pegou numa ponta da secretária da máquina de escrever e Mason na outra.

- Temos de a afastar da parede. Agora incline-a para trás. Pesará, nos momentos antes de chegar ao chão. Acha que pode?

- Claro que posso, chefe. Não é pesada.

- As gavetas estão cheias de papel, e a máquina de escrever... Podíamos tirar algumas coisas, para a tornar mais leve.

- Não percamos tempo. Assim está bem. Deitaram a secretária, de lado, no chão.

- Muito bem. Agora dê-me uma ajuda com a iluminação e o tripé, Della, e depois focalizamos...

- Tenho uma lente de aumentar, chefe. Segundo me disseram, na focalização crítica, necessária para os close-ups, a lente ajuda.

- Não lhe escapa nada, hem? Vejamos o que conseguimos. Precisamos de luzes cruzadas assimétricas, e como a luz varia na razão inversa do quadrado da distância, espaçaremos as luzes de acordo com essa norma. Mason tirou, primeiro, uma série de fotografias com a máquina de impressões digitais, e depois ligou e ajustou a iluminação, montou a máquina fotográfica no tripé e focalizou-a convenientemente. Serviu-se de uma fita métrica, para determinar a posição das luzes, e em seguida meteu a película na máquina e observou atentamente o matacão de pastilha-elástica.

- Isto vai ser bonito! - comentou Della Street.- Onde aprendeu que precisava de utilizar luzes cruzadas assimétricas, para sublinhar os sulcos das impressões digitais?

- A contra-interrogar fotógrafos, lição que reforcei com a leitura de livros de fotografia. um advogado tem de saber um bocadinho de tudo. Ainda não reparou que tenho ali o livro Photographic Evidence, da autoria de Scott? - Mason apontou um volume encadernado de pele vermelha.

- Sim, reparei nisso e também o tenho visto consultá-lo, de tempos a tempos. Valeu-se dele naquele caso do automóvel, não valeu?

Vali. Não imagina quanto a fotografia tem que se lhe diga! Agora, Della, vou começar com esta lente em f11 e tirar uma fotografia na vigésima quinta parte de um segundo. Depois tiraremos outra num décimo de segundo e outra num segundo, e a seguir utilizarei o disparador automático e fotografarei em dois segundos. Seguidamente experimentaremos em f16, repetiremos a sequência das exposições, e voltaremos a experimentar em f22.

- Está bem. Tomarei nota das diferentes exposições. Mason começou a fotografar.

- Está o telefone a tocar!-exclamou Della, de súbito. - É a Gertie que quer qualquer coisa.

Correu para o gabinete particular de Mason, enquanto este continuava a fotografar. Quando reapareceu, Della Street disse a Perry Mason:

- Walter Irving deseja que lhe telefone assim que chegar.

Mason acenou com a cabeça.

- A Gertie perguntou-me se o senhor ainda não chegara e eu menti-lhe descaradamente.

- Fez muito bem, Della. Walter Irving não disse o que queria, pois não?

- Disse que desejava saber se o chefe conseguira arrancar alguma informação a Duane Jefferson acerca da tal mulher.

- Assim que acabarmos este trabalho, diga ao Paul Drake que mande seguir o Irving.

- Suspeita dele?

- Não se trata bem disso. A nossa política é proteger o nosso cliente e mandar todos os outros para o Inferno.

- Como procede o cliente?

- Não abre bico. Afirma não saber nada acerca da rapariga que se introduziu no escritório, não conhecer nenhuma rapariga de cá, não se ter correspondido com nenhuma, etc.

- Acha que ele mente, chefe?

- A visita de Mae Wallis ao escritório deles não foi casual.

- Está convencido de que a tal rapariga era ela?

- Oficialmente, não. Negá-lo-ia à Polícia, se fosse preciso. Mas donde demónio vieram os diamantes da pastilha-elástica?

- Chefe, por que motivo “plantaria” ela diamantes do valor de cem mil dólares e conservaria dois consigo, antes de os esconder num matacão de pastilha-elástica?

- Posso-lhe dar uma resposta, Della, mas talvez não seja a resposta.

- Mesmo assim, sou toda ouvidos.

- Suponha que alguém a encarregara de “plantar” certos diamantes. Trazia-os embrulhados em papel de seda, na malinha de mão, teve de trabalhar à pressa e, possivelmente, assustou-se. Aconteceu alguma coisa que lhe levantou suspeitas, compreendeu que fora descoberta...

- Porque pensa assim?

- Porque ela deixou o escritório em desordem, para dar a impressão de que procurava qualquer coisa. Se tudo corresse bem, ter-se-ia limitado a entrar, a “plantar” os diamantes e a sair.

- Acha, então, que as pedras que escondeu na pastilha-elástica foram algumas que se esqueceu de deixar no escritório?

- Eu disse-lhe que lhe podia dar uma resposta, Della. Depois de se instalar no nosso escritório como dactilógrafa, pôde respirar fundo, abriu a malinha para se certificar de que não se esquecera de nada e encontrou alguns diamantes. Sabia que a Polícia andava no prédio e que corria o risco de ser apanhada, interrogada e talvez, até, revistada, e por isso colou os diamantes à parte interna do tampo da secretária.

- Continuo convencida de que as cartas do “príncipe encantador” estão relacionadas com o assunto, chefe.

- Também eu. Talvez ela colocasse os diamantes no escritório e, ao mesmo tempo, deixasse as cartas na sala de repouso, propositadamente.

- Sim, é possível... Olhe, lá está outra vez o telefone a tocar!

DellaStreet correu ao gabinete e Mason continuou a tirar fotografias.

- De que se tratava agora? -perguntou o advogado, quando a secretária voltou.

- Devo anunciar-lhe que a Gertie está um nadinha desconfiada.

- Sim?

- Sim. Quis saber porque demorava tanto tempo a atender o telefone.

- Que lhe respondeu?

- Que estava a copiar um trabalho e não queria parar no meio de uma frase.

Mason desligou as luzes.

- Ficamos por aqui, Della; já temos fotografias suficientes. Não se esqueça de dizer ao Paul que mande seguir o Walter Irving.

 

Poucas manhãs depois, ao consultar uns documentos que tinha em cima da secretária, Mason comentou:

- Bem, o grande júri acusou formalmente Duane Jefferson de assassínio de primeiro grau.

- Porquê a acusação formal?

- O promotor de justiça pode proceder contra um acusado de duas maneiras: processá-lo ou encarregar alguém de o processar. A seguir o tribunal ordena uma audiência preliminar, que permite ao advogado de defesa contra-interrogar as testemunhas. Se o tribunal confirma a acusação, o promotor de justiça organiza o processo e a causa é levada a julgamento, perante um júri. No entanto, o promotor de justiça pode, se assim o desejar, apresentar testemunhas ao grande júri, este pronuncia o acusado e a cópia dos depoimentos das testemunhas é entregue ao defensor que, neste caso, só as pode contra-interrogar no julgamento. Neste processo contra Duane Jefferson a principal testemunha, ouvida pelo grande júri, parece ter sido Yvonne Manco, a qual contou uma grande história acerca do modo como o seu amante, Munroe Baxter, foi apagado do mapa por certa gente antipática e má, que queria roubar os diamantes que ele contrabandeava. Um polícia declarou que uma grande parte dessas pedras preciosas foi encontrada no escritório ocupado por Duane Jefferson.

- Esses depoimentos chegam para justificar uma acusação formal?

- Sozinhos não chegam, com certeza, para se conseguir uma acusação, num tribunal de justiça - afirmou Mason, a sorrir.

- Tenciona pôr em dúvida a suficiência das provas?

- Oh, não! O promotor de justiça tem qualquer razão especial para conseguir um julgamento imediato, e eu vou colaborar com ele por todos os meios ao meu alcance.

- Não seria melhor protelar um bocado as coisas, até...?

Mason abanou a cabeça, sem a deixar acabar.

- Porquê, chefe?

- Consta que o promotor de justiça tem uma testemunha-surpresa, que tenciona atirar-nos ao caminho. Ora, ele está tão enfronhado nessa táctica que talvez se esqueça de que não existe, na realidade, nenhum corpus delicti.

- Que quer dizer com isso?

- O cadáver de Munroe Baxter nunca apareceu. -Tem de aparecer?

- Não é forçoso. Contrariamente à crença popular, a expressão corpus delicti não significa “corpo da vitima” e, sim, “corpo do crime. No entanto, é necessário mostrar que foi cometido um assassínio. Isso pode-se conseguir mediante provas independentes, mas não há, evidentemente, prova melhor do que o corpo da vítima.

- Aceita, então, um julgamento imediato?

- Assim que tivermos uma data livre no calendário... o que não deve ser difícil conseguir, com o promotor de justiça e o advogado de defesa interessados, ambos, num julgamento rápido. Como vai o Paul Drake com o seu novo escritório?

- Só queria que visse, chefe! Todos os jornais publicam um anúncio a pedir uma dactilógrafa com prática de assuntos jurídicos e capaz de dactilografar a uma velocidade espantosa, e a oferecer um ordenado - inicial, note! - de duzentos dólares por semana. O anúncio insinua que o advogado que precisa de tal empregada trata de assuntos de importância internacional e talvez exista a possibilidade de certas viagens ao estrangeiro, para encontros com personalidades importantes. Enfim, o sonho de todas as secretárias!

- E quanto ao escritório onde ele atende as pretendentes?

- Cheio de boas secretárias, máquinas de escrever, livros de Direito, carpetes fofas e um ar de serena dignidade, que dá a reconfortante sensação de que até o porteiro, deve auferir um ordenado mais ou menos equivalente ao do director de uma companhia.

- Espero que ele não tenha carregado demasiado a nota... Talvez seja melhor ir dar uma vista de olhos.

- Esteja descansado, que não exagerou. A atmosfera de conservadorismo e respeitabilidade envolve o escritório como uma cortina de nevoeiro e infiltra-se em todos os cantos e nichos. Só queria que visse as pretendentes! Entram por ali dentro a mascar pastilha-elástica, às gargalhadinhas e desejosas de tentar a sorte, embora tenham consciência de que não possuem as qualificações exigidas. Ficam alguns segundos de pé, no escritório, depois tiram a pastilha-elástica da boca, admiram o mobiliário e começam a falar em segredinhos.

- Como exclui ele as incompetentes?

- As raparigas são convidadas a sentar-se às máquinas de escrever, que são diversas, e a dactilografar o nome, a morada e as habilitações. Claro que uma boa dactilógrafa pode avaliar, mal uma rapariga toca nas teclas, se ela é verdadeiramente exímia, relativamente competente ou apenas medíocre. Só as que percebem na realidade do ofício passam a primeira prova.

- Bem, é...

O telefone particular, cujo número não vinha na lista, retiniu, vibrante.

- Deve ser o Paul, chefe. Só ele conhece este número.

- Isso significa que tem informações tão importantes que não se atreve a comunicar-mas pelo P. B. X. - observou Mason, enquanto levantava o auscultador. - Paul?

Paul Drake falou depressa, mas no tom abafado de quem não deseja que a sua voz seja ouvida num aposento contíguo.

- Sou eu, sim, Perry.

- Diga coisas, homem.

- Tenho a sua rapariga.

- Tem a certeza?

- Tenho.

- Quem é?

- Chama-se Mae W. Jordan e mora na Cabachon Street, 792. Presentemente está empregada numa firma de advogados, cujo nome não deseja indicar e aos quais teria de avisar com duas semanas de antecedência, se a contratássemos. Precisa muito do emprego, e, com a breca, como ela toca aquele piano! Rápida e perfeita como nunca vi outra.

- A que apelido corresponde o “W”? Wallis?

- Ainda não sei. Quis apenas avisá-lo, sem perda de tempo, de que temos a rapariga.

- Mas é a mesma?

- É. As impressões digitais correspondem. Estou com a licença de condução dela à minha frente.

- E a respeito da morada?

- Cabachon Street, segundo ela indicou e está mencionado na licença de condução.

- Escute o que deve fazer, Paul. Diga-lhe que supõe que ela obterá o emprego, mas que terá de falar pessoalmente com o patrão, às seis da tarde. Diga-lhe que volte a essa hora, percebeu?

- Percebi. Digo-lhe mais alguma coisa acerca do emprego?

- Não. Tente averiguar o que puder, mostre-se interessado, mas não excessivamente curioso.

- Quer que a mande seguir?

- Se está certo da morada, não é preciso.

- Deseja que tente informar-me acerca do escritório onde ela trabalha?

- Não, Paul. Como sabemos o seu nome e a sua morada, com facilidade saberemos mais alguma coisa que quisermos. A pequena é inteligente e esperta e talvez esteja implicada num caso de assassínio. Com uma operação de contrabando de diamantes, está, com certeza. Demasiadas perguntas seriam...

- Percebi - interrompeu Paul. - Combinado, marcarei um encontro para as seis da tarde e voltarei a telefonar-lhe daqui a quinze ou vinte minutos.

- Pode fazer melhor do que isso: assim que despachar essa rapariga, meta-se no automóvel e venha cá. Não vale a pena perder mais tempo aí, pois encontrámos o que pretendíamos. Amanhã feche o escritório, retire os anúncios dos jornais e diga a todas as outras pretendentes que o emprego já foi atribuído. Comecemos a reduzir despesas.

- Entendido.

Mason desligou e sorriu a Della Street.

- Temos a nossa dactilógrafa, Della. Chama-se Mae W. Jordan e mora na Cabachon Street, 792. Tome nota, mas guarde-a onde ninguém a encontre.

 

Paul Drake sorria, da satisfação de um trabalho bem feito, ao sentar-se na confortável poltrona do gabinete de Perry Mason.

- Conseguimos, Perry, embora começássemos do zero e poucas ou nenhumas pistas possuíssemos.

Mason olhou para Della, antes de responder:

- Foi um belo trabalho, Paul.

- Onde obteve a sua pista, em primeiro lugar, Perry?

- Oh, foi apenas um palpite! - exclamou o advogado, e esboçou um gesto de desprendimento, como se quisesse tirar todo o mérito ao caso.

- No entanto, apresentou-me uma excelente impressão digital - lembrou Drake.

- Puramente fortuito.

- Bem, se não me quer dizer, não diga. Vejo que pronunciaram o Jefferson.

- É verdade.

- O promotor de justiça diz haver no caso certos factores que exigem um julgamento rápido, a fim de evitar que as provas se desvaneçam.

- Ah, sim! - redarguiu o advogado, sem se comprometer.

- Tenciona arrastar os pés e atrasar as coisas?

- Para quê?

- Bem, regra geral, quando o promotor de justiça quer uma coisa, o advogado de defesa tem ideias diferentes.

- Esta causa não é vulgar, Paul.

- Também me parece que não.

- Que descobriu acerca do Irving? Drake tirou um livrinho de apontamentos da algibeira, e respondeu:

- Walter Stockton Irving de seu nome completo, trabalhou cerca de sete anos na sucursal de Paris da South African Gem Importing and Exploration Company, gosta da vida no velho continente, dos seus padrões morais mais tolerantes e do seu ritmo de vida mais pacato. Grande fã de corridas de cavalos.

- Não me diga!

- Tal qual. Claro que, lá, as corridas não são bem como câ.

- Jogador?

-Exactamente, exactamente... não. Vai uma vez por outra a Monte Carlo e arrisca uns cobres, mas parece gostar mais de sair com um binóculo, de braço dado com uma boneca e a balancear uma bengala.

- Isso interessa-me muito, Paul.

- Já calculava.

- Que faz ele cá?

- Aguarda que a sucursal esteja em condições de entrar em funcionamento. Leva uma vida recatada, talvez porque a acusação que pesa sobre o Jefferson lhe inspire comedimento. Parece ter estabelecido um contacto.

- Com quem?

- Com uma pequena francesa chamada Marline Chaumont.

- Onde?

- Num chalé da Ponce de Leon Drive, 8257.

- Marline Chaumont vive lá sozinha? -Não. Toma conta de um irmão.

- Toma conta? Que tem ele?

- Parece tratar-se de doente mental. Deram-lhe alta do hospital, para que a irmã tomasse conta dele, mas têm tomado todas as precauções e mais algumas para evitar que a vizinhança saiba o que se passa. Uma vizinha desconfia de que se trata de um doente mental, mas por enquanto só existem desconfianças.

- Violento?

- Não, Perry, agora já não. Inofensivo, apenas. Já ouviu falar de lobotomia pré-frontal? (1)

- Certamente. Usavam esse tratamento nos loucos violentos, sem esperanças de cura, e nos criminosos. Segundo creio, deixaram de o aplicar.

- Transforma um homem mais ou menos num “vegetal”, não é?

- Bem, os médicos não são unânimes a esse respeito, Paul. Mas creio que, hoje em dia, não fazem essa operação.

- A este tipo, parece que a fizeram. Enfim, pouco consegui apurar a seu respeito. Marline conheceu Irving em Paris e, provavelmente, quando se liberta da sua triste responsabilidade e se aperalta, deve ser uma pequena de estalo.

- E agora, o que é?

- A irmã dedicada, Perry. Os Franceses são assim. Pintam a manta quando estão livres, mas quando assumem responsabilidades, assumem-nas mesmo.

- Há quanto tempo cá está ela?

- Encontra-se no país há um ano, segundo tem declarado aos fornecedores, mas não conseguimos confirmar nada. Está há pouco tempo nas imediações, mudou-se para o chalé quando soube que iam dar alta ao irmão. Antes morara num apartamento, o que não seria próprio para um doente mental. Por isso Marline alugou o chalé.

 

(1) Técnica psicocirúrgica iniciada em 1936 pelo notável neurologista português Dr. Egas Moniz (N. da T.)

 

- Vive lá sozinha com o irmão?

- Tem uma mulher a dias, algumas horas.

- E o Irving tem lá ido?

- Duas vezes, segundo me constou.

- Para tentar convencer Marline a sair, não?

- O que ele tenta, não sei. Marline parece ser muito dedicada ao irmão e muito caseira. A primeira vez que o meu detective seguiu Irving ao chalé, foi de tarde. Marline abriu a porta, cumprimentaram-se afectuosamente, o tipo entrou, demorou-se cerca de uma hora e, ao sair, pareceu querer persuadir a rapariga a acompanhá-lo. Demorou-se à porta, a conversar com ela, mas Marline limitou-se a sorrir-lhe e a abanar diversas vezes a cabeça. Irving voltou, nessa mesma noite, e, aparentemente, a rapariga convenceu-o a ficar a tomar conta do doente, pois saiu passados momentos e demorou-se uma ou duas horas.

- Como viajou ela?

- De autocarro.

- Não tem automóvel?

- Parece que não.

- Aonde foi?

- Com a breca, Perry, não me disse que queria que a seguisse! Quer?

- Não... suponho que não, Paul. Mas o caso interessa-me. Que sucedeu, depois disso?

- De duas, uma: ou Irving reconheceu que perdia o tempo e o feitio a tentar desviar Marline das suas responsabilidades, com a sua corte, ou o sarilho em que o Jefferson está metido lhe pesa muito nos ombros. Passa a maior parte do tempo no seu apartamento.

- Onde?

- No Alta Loma Apartments.

- Apurou alguma coisa acerca do processo, Paul?

- Parece que o promotor de justiça está muito confiante.

É tão grande o seu desejo de lhe pregar uma partida, Perry, que anda positivamente em círculos, ansioso por atacar. Disse a uns repórteres conhecidos que esperava e desejava um caso destes havia muito tempo. Você está fixe neste assunto, Perry?

- Estou fixe? Que quer dizer com isso?

- Não tem nada a pesar-lhe na consciência nem a macular-lhe a reputação?

- Com certeza que não!

- Bem, o promotor de justiça está a proceder como se o tivesse na mão... Parece um miúdo que recebeu um brinquedo novo, no Natal... ou melhor, uma árvore de natal cheia de brinquedos novos.

- Ainda bem que se sente feliz. Mas falemos de Mae Jordan, sim, Paul?

- Além do que lhe disse pelo telefone, só sei que prometeu comparecer à entrevista, logo às seis horas.

- Está a trabalhar?

- Está.

- Que impressão lhe deu, Paul?

- Interessante e competente. Tem voz agradável, personalidade simpática, aspecto muito decente e elegante, sabe perfeitamente o que faz, sabe dactilografar como ninguém e a sua estenografia não fica a dever nada à das melhores estenógrafas.

- Está contente com o emprego que tem?

- Parece que não. Ignoro o que se passa, mas ela quer libertar-se do meio ambiente.

- Talvez um romance de amor infeliz? - Talvez.

- Dá essa impressão.

- Poderá averiguar isso esta tarde, Perry.

- Quando estivermos com ela no escritório, esta tarde, não mencione o meu nome, Paul. Não faça apresentações nenhumas. Limite-se a dizer que sou o homem para quem ela trabalhará.

- E ela não o reconhecerá?

- Creio que nunca a vi - respondeu Mason, ao mesmo tempo que olhava para Della Street.

- Isso não quer dizer nada. As suas fotografias aparecem muito nos jornais.

- Se me reconhecer, não terá grande importância, pois a seguir às primeiras perguntas não será de um emprego que lhe falarei, Paul.

- Quer dizer que ela perceberá que se tratou tudo de uma farsa, assim que você aparecer?

- Bem, espero que não seja assim tão depressa... Mas perceberá pouco depois de eu a começar a interrogar. Enquanto ela falar, deixá-la-ei falar.

- Não será por muito tempo, É das que respondem às perguntas, mas não dá informações que não lhe peçam.

- Está bem, Paul. Ver-nos-emos logo, pouco antes das seis.

- Lembre-se de que talvez haja aborrecimentos... - Que quer dizer?

- A rapariga não pensa noutra coisa senão em arranjar um emprego que lhe permita viajar. Quer afastar-se de tudo. Assim que perceber que você pretendeu apenas localizá-la, para a usar como testemunha, não vai gostar nada.

- Que lhe parece que fará?

- Acho-a capaz de tudo.

- Gostarei disso, Paul.

- Gostará?

- Gostarei. Estou interessado em saber como ela reaje, quando está furiosa. Não se iluda acerca da moça, Paul, pois ela está metida num caso muito sinistro.

- Muito metida?

- Até aos olhos, provavelmente. Essa Marline Chaumont de que me falou conheceu o Walter Irving em Paris?

- Parece que sim. Ficou encantada quando o viu. O tipo bateu à porta, ela abriu, olhou-o e voou-lhe positivamente para os braços. Cem por cento francesa.

- E o Irving deixou de lá ir? Drake abanou a cabeça.

- Que faria Marline, se eu lá fosse conversar com ela, esta tarde?

- Talvez falasse, talvez não.

- Diria ao Irving que eu lá fora?

- Provavelmente.

- Tenho de correr esse risco, Paul. Vou visitar Marline Chaumont.

- Posso sugerir-lhe que me leve? - perguntou Della Street.

- Como pau-de-cabeleira ou para tomar nota do que se disser?

- Posso ser muito eficiente em ambas as coisas, chefe.

- São os antecedentes franceses - comentou Drake, a sorrir.--Assustam a valer, Perry.

 

Perry Mason conduzia devagar, ao longo da Ponte de Leon Drive.

- É ali - anunciou Della. - O chalé branco da esquerda, com a cerca verde.

Mason passou pelo chalé, a avaliá-lo, virou no cruzamento seguinte e retrocedeu. - Que lhe vai dizer, chefe?

- Dependerá da opinião que ela me causar.

- E da impressão que lhe causarmos?

- Suponho que sim.

- Não será um pouco perigoso, chefe?

- Em que sentido?

- Será quase certo ela contar a Irving.

- Contar-lhe o quê?

- Que veio informar-se acerca dele.

- Eu próprio lho direi.

- E ele ficará a saber, assim, que o chefe o mandou seguir.

- Se ele conheceu Miss Chaumont em Paris não saberá como nós o soubemos. Palavra que gostava de pregar um bom susto a Mr. Walter Irving! Mostra-se excessivamente seguro de si.

Mason subiu os três degraus do alpendre e premiu o botão da campainha. Momentos depois a porta abriu-se uma nesga, cautelosamente, e o advogado viu uma corrente de segurança esticada através da abertura. Sorriu ao par de brilhantes olhos negros que o observavam do Interior do chalé e informou:

- Procuramos Miss Chaumont.

- Sou eu.

- De Paris?

- Mais oui. Vivi em Paris e agora moro aqui.

- Importa-se que lhe faça algumas perguntas?

- Acerca de quê?

- De Paris.

- Adoraria que me interrogasse acerca de Paris!

- Mas é pouco cómodo estar aqui fora, de pé, a falar através da greta da porta...

- Monsieur ouve-me?

- Oh, sim!

- Eu também o ouço.

Mason sorriu-lhe de novo. Agora que os seus olhos se tinham habituado à meia-claridade, distinguia o oval do rosto e uma parte do corpo esbelto.

- Conheceu a sucursal em Paris da South African Gem Importing and Exploration Company?

- Porque me faz semelhante pergunta?

- Porque estou interessado na resposta.

- Quem é o senhor?

- Chamo-me Perry Mason e sou advogado.

- Ah, é Perry Mason!

- Exactamente.

- Li coisas a seu respeito.

- Que interessante!

- Que deseja, Mr. Mason?

- Saber se conheceu a tal companhia, em Paris.

- Conheci, sim.

- E conheceu, também, algumas das pessoas que trabalhavam .por conta dela?

- Mas com certeza, Monsieur! Não nos familiarizamos com uma companhia; só nos podemos familiarizar com as pessoas, com algumas das pessoas, não é verdade? Com a companhia, non.

- Conheceu Walter Irving, enquanto esteve em Paris?

- Conheci. Era meu amigo. Agora encontra-se cá.

- De vez em quando, saía com ele, em Paris?

- Saía. Há algum mal nisso?

- De modo nenhum! Estou apenas a tentar tomar conhecimento dos antecedentes. Conheceu Duane Jefferson, em Paris?

- Duane Jefferson é da sede, da África do Sul. A ele não o conheço.

- Conhece alguém do escritório sul-africano?

- Duas vezes, quando veio gente de lá visitar Paris, pediram-me que ajudasse... Nessas alturas usava um vestido ousado, fazia-lhes olhos tentadores, enfim, divertia-os e cativava-os.

- Quem a apresentava a esses homens?

- O meu amigo, Walter.

- Walter Irving?

- Sim.

- Gostava de saber umas coisas acerca de Mr. Irving.

- É simpático. Foi ele que lhe disse que me encontrava aqui?

- Não. Localizei-a por intermédio de pessoas que trabalham para mim e que têm um escritório em Paris.

- E o escritório de Paris localizou-me aqui? Impossível, Momsieur!

- Estou aqui - redarguiu Mason, a sorrir.

- Eu também. Mas... enfim, não se... - como dizem vocês? - ... não se contradiz um homem com a sua posição, Monsieur Mason.

- Que género de indivíduo é Walter Irving?

- Walter Irving tem muitos amigos. É muito simpático e tem... mais uma vez, como dizem vocês? - ... um coração muito grande. Esse grande coração está-lhe sempre a arranjar aborrecimentos. Dá excessivamente, até a camisa do corpo, se for preciso. É dos que, quando confiam, confiam mesmo. Às vezes abusam dele, do seu feitio... É amigo de Walter, Monsieur Mason?

- Gostava de me informar acerca dele.

- Essa senhora que está consigo é a sua mulher?

- É a minha secretária.

- Oh, mil perdões! Parecem... enfim, parecem muito iguais, só um.

- Trabalhamos juntos há muito tempo.

- Compreendo. Posso-lhe dizer uma coisa, como amiga de Walter Irving?

- Porque não?

- Não perca de vista Duane Jefferson.

- Que quer dizer?

- Quero dizer que é ele que precisa ser vigiado. É esperto e matreiro... e tem a cabeça cheia de ideias loucas.

- Que sabe acerca dele?

- Que sei, Monsieur? Saber, sei pouco, mas uma mulher tem intuição, pressente. Ao Walter conheço-o muito bem. É generoso, honesto, fiel como um cão, confia demasiado... Mas gosta de se exibir, de dar nas vistas. Gosta de ter muito que vestir e de exibir a rapariga bonita que leva pelo braço, gosta de multidões, de...- Calou-se, deu uma gargalhada e acrescentou: - É um simplório, apesar de ser tão esperto noutros sentidos. Quando se interessa por uma pequena, gosta que as pessoas olhem para trás, a admirá-la, ao passear de braço dado com ela. Por isso, quando saio com Walter, escolho um vestido que... enfim, a sua secretária compreende o que quero dizer. As curvas, percebe?

Della Street acenou com a cabeça e Miss Chaumont deu outra gargalhadinha.

- O Walter sente-se muito feliz, quando sai comigo assim. Quanto ao Jefferson, Monsieur Mason, penso que...

- Mas eu pensava que não o conhecia!

- Ouço as pessoas falar e presto atenção. As vezes sou muito curiosa. E agora, Monsieur Mason, dê-me licença, oui? Tenho um irmão doente, lá em cima, que precisa de muito sossego e tranquilidade para descansar. Já vi que são pessoas decentes e simpáticas e, por isso, não me importava de os convidar a entrar, mas não posso, por causa da saúde do meu irmão.

- Agradecemos-lhe muito - redarguiu o advogado. - Walter Irving sabe que a senhora está na cidade?

- Se sabe que estou cá? Claro que sabe. Localizou-me depressa. É muito impetuoso e de agradável convívio. Se não fosse o meu irmão, vestir-me-ia de modo ousado e atraente e iria com ele a clubes nocturnos. Ele adoraria, e eu também. No entanto, tenho responsabilidades que me obrigam a permanecer em casa. Não se esqueça do que lhe digo, Monsieur Mason: Duane Jefferson é um tipo muito frio, muito cortês e traiçoeiro como uma víbora.

- Se vir Walter Irving dir-lhe-á que viemos visitá-la?

- Não quer que lhe diga?

- Não sei. Trata-se de uma simples rotina...

- Façamos um pacto, Monsieur Mason: não diga ao Walter o que eu disse acerca do Duane Jefferson, e eu não aludirei à sua visita. Será um segredinho entre ambos, está bem? Mas, por favor, se o tal Jefferson fez coisas mal feitas, não o deixe arrastar com ele o meu amigo Walter!

- Pensa que Jefferson fez coisas mal feitas?

- Tenho ouvido o que se diz...

- Mas a companhia onde ele trabalha atribui-lhe uma reputação excelente, tem a máxima confiança na sua honra e na sua integridade.

- Já lhe disse, Monsieur Mason, que as companhias não sentem; só as pessoas que lá trabalham é que sentem. Mais tarde, quando o julgamento se efectuar, lerei os jornais com muito interesse. Tenha cuidado com Duane Jefferson! Talvez ele lhe conte uma história muito bonita e muito plausível, mas quando for chamado ao banco das testemunhas e verificar que não se pode esconder atrás da sua fria atitude britânica, então é possível que se enfureça, e quando ele se enfurece... Enfim, tenha cuidado.

- Jefferson tem mau génio?

- Não sei, Monsieur Mason, mas tenho ouvido o que os outros dizem, e é voz corrente que ele é má peça, quando se enfurece. A sua atitude exterior é apenas uma máscara.

- Muito obrigado - agradeceu Mason.

A mulher hesitou, um momento, e depois atirou-lhe um beijo, na ponta dos dedos, e fechou a porta, suave mas firmemente.

 

Perry Mason e Paul Drake saíram do elevador e percorreram o corredor do grande edifício de escritórios.

- É aqui - anunciou Paul Drake, e parou diante de uma porta em cujo vidro fosco se liam apenas a palavra “Entrada”e o número “555”.

Mason entrou, olhou à sua volta e disse:

- Não há dúvida de que você montou isto em grande, Paul.

- Secretárias e cadeiras alugadas, assim como as máquinas de escrever. O resto faz parte do escritório mobilado que aluguei.

- Ignorava que se alugassem casas assim.

- Este prédio serve uma clientela Internacional. De vez em quando, precisam de um grande escritório mobilado, para reuniões de directores, conferências e coisas assim. A última vez que este foi alugado - a semana passada -, o inquilino foi uma grande companhia mexicana, que efectuou aqui uma conferência comercial. Claro que uma coisa destas dá prejuízo, mas a boa vontade internacional e a conveniência dos inquilinos do prédio, que de vez em quando têm grandes reuniões, compensa os proprietários de quaisquer perdas financeiras. Entre para aqui, Perry.

O advogado entrou num gabinete particular.

- As entrevistas foram aqui, Paul?

- Foram.

- A rapariga estará cá às seis horas?

- Em ponto. Tenho a impressão de que a pequena se orgulha de ser pontual e eficiente.

- Também é essa a opinião que tenho dela.

- Ainda não está disposto a dizer-me como soube da sua existência?

- Não.

- Nem o que ela tem a ver com o caso?

- Pode ter sido ela a rapariga que entrou subrepticiamente no escritório da South African Gem Importing and Exploration Company.

- Já desconfiava disso. O seu "aspecto é quase o mesmo da descrição feita à Polícia.

- Tem um gravador ligado?

- Esta sala tem três microfones instalados, e naquele armário há um gravador.

- E a respeito de recepcionista, Paul?

- A minha recepcionista deve estar a...-Interrompeu-o o toque de um “besouro”. - Isto quer dizer que entrou alguém.

Drake levantou-se, foi à grande sala contígua e regressou instantes depois, com uma jovem muito atraente.

- Apresento-lhe Nora Pitts, Perry. É uma das minhas detectives, trabalha aqui como recepcionista e percebe do ofício.

Muito corada e um bocadinho nervosa, Miss Pitts aproximou-se e estendeu a mão a Mason.

- Sempre tive esperança de o conhecer pessoalmente, num dos meus trabalhos, Mr. Mason... Mr. Drake reserva-me para as missões deste género. Geralmente fico na periferia, e até já começava a recear nunca o vir a conhecer.

- Não devia ter guardado segredo de uma coisa destas, Paul!

Drake sorriu, viu as horas e perguntou à rapariga:

- Compreende o que pretendemos, Nora?

Miss Pitts acenou afirmativamente.

- Conhece Della Street, a minha secretária? - perguntou-lhe Mason.

- Conheço-a de vista.

- Poucos minutos depois de chegar a rapariga que esperamos, chegará Miss Street, pois disse-lhe que estivesse aqui às seis e um quarto em ponto.

Nora escutava com atenção e o seu interesse profissional dominava por completo o prazer que tivera em conhecer pessoalmente o advogado.

- Que devo fazer?

- Calculo que a rapariga chegará às seis horas ou, quando muito, uns dois minutos depois. Mande-a entrar imediatamente. Eu começarei a conversar com ela e a interrogá-la, e Della Street chegará às seis e um quarto, em ponto. Ouviremos o “besouro”, no gabinete, quando a porta se abrir, por isso não precisará de nos avisar. Miss Street sentar-se-á, à espera, e eu tocarei, quando precisar dela.

- Muito bem.

- Percebeu tudo, Nora? - indagou Drake.

- Com certeza.

- Faltam sete minutos para as seis - disse o detective. - Ela é capaz de chegar adiantada. Vamos.

Nora Pitts sorriu a Mason e voltou para a recepção. No gabinete, Drake sentou-se a fumar cachimbo e Mason acendeu um cigarro.

- Os jornais dão a entender que o seu cliente é manhoso...

- O tipo tenta proteger uma rapariga qualquer - respondeu Mason, irritado -, e nós só lhe conseguiremos arrancar a verdade depois de a arrancarmos a ela.

- E você pensa que Mae Jordan é a rapariga em questão?

- Não sei, Paul. Pode ser.

- E se for?

- Convencê-la-emos a contar-nos a sua história.

- E depois disso, que tenciona fazer?

- A nossa conversa com ela ficará gravada. Irei à cadeia, contarei ao Jefferson o que se passou e aconselhá-lo-ei a dizer tudo.

- E depois?

- E depois teremos a sua história.

- Como identificará o promotor de justiça os diamantes, Perry?

- Pouco sei acerca do caso, mas sei muito acerca do promotor de justiça. Há anos que ele espera apanhar-me... Desta vez, julga que já me tem nas mãos, o que significa que deve ter bases muito fortes. No entanto, apostava que se esqueceu de um ponto legal.

- Que ponto?

- O corpus delicti.

- Parece-lhe que ele não poderá provar a acusação?

- Como conseguirá provar que existiu assassínio? Nunca encontraram o corpo de Baxter! Eu poderei demonstrar ao júri, mercê das próprias testemunhas de Hamilton Burger, que Munroe Baxter era um actor inteligente, que fingiu um suicídio para contrabandear diamantes. Porque não forjaria também um assassínio, a fim de não ter de repartir os lucros com a sua cúmplice? Direi ao júri ser quase certo que Baxter arranjou outra pequena qualquer, alguma “brasa” disposta a substituir Yvonne Manco como cúmplice dele. Haveria alguma coisa mais natural, para Baxter, do que fingir que o assassinaram, para evitar que Yvonne Manco o procure, de olhar coruscante?

- Expostas as coisas desse modo, Perry, parece haver, de facto, possibilidades.

- Será assim que as exporei ao júri - afirmou Mason, a sorrir. - Hamilton Burger não terá o mar calmo e fácil que prevê. Admito que me surpreenderá, que terá qualquer coisa que me deixará abalado, mas depois disso passaremos a factos fundamentais. Estou convencido de que conseguirei reduzir a sua causa a frangalhos.

Fumaram em silêncio e, passados minutos, Mason perguntou:

- Que horas são? No meu relógio são seis e cinco.

- E no meu seis e seis. Que lhe parece terá acontecido?

- Não sei. Acha que ela terá mudado de ideias?

- Oh, não! Estava interessadíssima.

Mason começou a andar de um lado para o outro e a consultar, de vez em quando, o relógio.

Às seis e um quarto, em ponto, o “besouro” tocou. O advogado abriu a porta da recepção e chamou:

- Entre, Della.

DellaStreet entrou no gabinete e perguntou a Mason:

- A dactilógrafa não veio?

- Não.

- Talvez se tenha atrasado ou...

- Não, a rapariga não se atrasou - afirmou Mason, a abanar a cabeça. - Desconfiou, o que é diferente.

- Enquanto aqui esteve, não! - asseverou Drake, peremptório. - Quando saiu, os olhos brilhavam-lhe, de contentamento, e...

- Sem dúvida, Paul. Mas é uma rapariga inteligente e foi ao Better Business Bureau, ou a uma agência de crédito, e encarregou alguém de telefonar para a gerência deste prédio e averiguar quem alugara este escritório.

- Oh!-exclamou o detective.

- Quer dizer que deixou rastro, Paul?

- Não tive outro remédio. Se ela procedeu como você diz, é natural que tenha descoberto que o escritório foi alugado pela Agência de Detectives Drake.

- Vamos, Paul - disse Mason, ao mesmo tempo que pegava no chapéu.

- Precisa de mim? - perguntou-lhe Della. O advogado hesitou.

- Talvez seja melhor vir. Mais tarde, oferecemos-lhe de jantar. - Mason parou na recepção apenas o tempo suficiente para dizer a Nora Pitts que continuasse no seu posto até Drake telefonar.

- Se a rapariga aparecer, aguente-a e telefone para o escritório - recomendou o detective.

Meteram-se no automóvel de Mason, que seguiu para a Cabachon Street. O prédio que lhe interessava era estreito e de dois andares.

- Apartamento 218 - informou Drake.

Mason premiu diversas vezes o botão da campainha e, por fim, como não obteve resposta, tocou para a porteira. A porta abriu-se, com um estalido do trinco, Drake empurrou-a e entraram. A porteira, uma sexagenária alta e ossuda, apareceu no patamar e observou o grupo com olhar frio e experiente.

- Não alugamos a curto prazo - anunciou.

- Sou investigador - informou Drake. - Tentamos localizar Mae Jordan.

- Ah, sim! Bem, Miss Jordan foi-se embora.

- Foi-se embora? Que quer dizer?

- Disse-me que estaria ausente uns tempos e pediu-me que lhe tratasse do canário.

- Ia para algum lado?

- Creio que sim. -Parecia apressadíssima! Chegou a correr e preparou duas malas...

- Sozinha? - indagou Mason.

- Não. Acompanhavam-na dois homens. -Dois homens?

- Sim.

- Ela apresentou-lhos?

- Não.

- Foram ao apartamento com ela?

- Foram.

- E desceram com ela?

- Desceram. Cada um trazia uma mala.

- Miss Jordan não lhe disse quanto tempo estaria ausente?

- Não.

- Como chegou ela? De automóvel ou num táxi?

- Não a vi chegar, mas vi-a partir num carro particular, com os tais homens. Porquê? Aconteceu alguma coisa?

Mason e Drake entreolharam-se.

- A que horas foi isso? - perguntou o advogado à porteira.

- Seriam umas... deixe-me ver... Sim, creio que foi há pouco mais de hora e meia.

- Obrigado - agradeceu Mason, e saiu à frente do grupo, direito ao automóvel.

- Então? - perguntou-lhe Drake.

- Ponha os seus homens em campo, Paul. Descubra onde Mae Jordan trabalhava, desenterre tudo quanto puder a seu respeito. Preciso de a encontrar!

- E que fará, quando a encontrar?

- Entregar-lhe-ei uma intimação, chamá-la-ei a depor e virá-la-ei do avesso! - respondeu Mason, irritado. -Quanto tempo levará a averiguar onde se encontra, neste momento, Walter Irving?

- Sabê-lo-ei assim que os meus detectives telefonarem, a dar notícias. Tenho dois homens em campo. Geralmente, telefonam de hora a hora, mais ou menos.

- Quando o localizar, avise-me. Estarei no meu gabinete.

DellaStreet sorriu ao detective e comentou:

- O jantar fica adiado.

 

Mason ainda não estava no escritório havia dez minutos quando o telefone secreto tocou. Della olhou-o, interrogadoramente, e o advogado disse-lhe:

- Eu atendo. - Levantou o auscultador. -Diga, Paul.

- Um dos meus homens anunciou que Irving- vem a caminho deste prédio e parece louco furioso.

- A caminho deste prédio?

- Sim.

- Pode ter três destinos: o escritório dele, o seu ou o meu. Se for para aí, mande-mo cá.

- E se for para o seu escritório, quer ajuda?

- Não será necessário.

- O meu detective disse que o tipo cuspia fogo! Recebeu um telefonema a meio do jantar, e já nem voltou à mesa. Saiu, meteu-se num táxi e deu a morada daqui.

- Está bem. Veremos o que sucede. Mason desligou e disse a Della Street:

- O Irving vem para cá.

- Falar consigo? - Talvez.

- Que fazemos?

- Esperaremos por ele. A entrevista talvez seja desagradável.

Cinco minutos depois, bateram furiosamente à porta do gabinete particular de Mason.

- Deve ser ele. Eu abro-lhe a porta, Della.

Mason levantou-se, atravessou o gabinete e abriu a porta.

- Boas noites - cumprimentou friamente.

- Que diabo pretende fazer? - perguntou-lhe o recém-chegado. - Deitar tudo a perder?

- Está uma senhora presente. Tenha cuidado com a língua, se não quer ser posto lá fora.

- Quem me porá lá fora?

- Eu.

- Você e quem mais?

- Eu sozinho.

Irving mediu-o de alto a baixo, um momento, e depois comentou:

- Tenho de admitir que me saiu um raio de um advogado!

- Entre, sente-se e diga-me o que tem a dizer. E aviso-o de que, se mais alguma vez se lembrar de me ocultar alguma coisa, ainda se arrependerá mais do que desta.

- Não pretendi ocultar-lhe nada. Eu...

- Acabou-se. Diga-me o que o preocupa, que também tenho algo a dizer-lhe, depois.

- Foi procurar Marline Chaumont.

- Claro que fui.

- Não devia ter ido.

- Nesse caso, porque não mo disse?

- Para lhe ser franco, não pensei que descobrisse alguma coisa acerca dela. Ainda estou para saber como o conseguiu...

- Que mal houve em procurá-la?

- Que mal houve? Descobriu o seu jogo, foi o que foi!

- Continue. Conte-me o resto.

- Não tencionava tocar nesse aspecto da questão enquanto não obtivesse as provas de que precisamos. Ela tem andado com essa farsa do irmão doente para poder...

- É uma farsa? - interrompeu Mason.

- Não se faça mais parvo do que é! - replicou o outro, irritado.

- Que se passa com o irmão dela?

- Qual irmão, qual carapuça! Foi muito idiota, se engoliu essa! O suposto irmão é Munroe Baxter.

- Continue. Fale.

- Esse facto não chega para lhe mostrar a asneira que fez?

- O facto chegaria; a sua afirmação não chega,.

- Pois é como lhe digo.

-  Não estou interessado nas suas hipóteses ou suposições. Quero factos.

- Marline é uma pessegazinha manhosa e esperta. É francesa, é vivaça e raciocina muito depressa. Tem-se andado a divertir com o Munroe Baxter, que gosta mais dela do que da Yvonne Manco, de quem se começava a cansar. Por isso, quando se atirou ao mar, Baxter foi direitinho aos braços da Marline Chaumont, que já tinha um ninho preparado para o “irmão” doente, fraco da bola.

- Provas?

- Andava a ver se as obtinha.

- Viu Marline?

- Com certeza. Depois de pensar muito bem, empenhei-me em a ver.

- E o irmão, também o viu?

- Tentei, mas ela foi mais esperta do que eu. Fechou-o num quarto das traseiras e guardou a única chave. Disse-me que precisava de ir a um desses bancos que estão abertos toda a noite, a fim de tratar de um negócio qualquer, e eu ofereci-me para ficar com o irmão. Pegou-me logo na palavra! Depois de ela sair, dei a volta à casa e encontrei o quarto das traseiras fechado à chave. Creio que ela administrara um sedativo ou qualquer coisa ao tipo. Ouvi-o ressonar, suavemente. Bati à porta e tentei acordá-lo, pois queria vê-lo.

- Pensa que se trata de Munroe Baxter?

- Sei que é Munroe Baxter. - Sabe, como?

- Não preciso de lhe dar explicações a esse respeito. -Isso é o que você julga!

Irving encolheu os ombros e replicou:

- Já que começou a estragar tudo, continue e acabe o trabalho.

- Muito bem! Manterei o chalé vigiado e...

- Valer-lhe-á de muito! - exclamou Irving, desdenhoso. - Marline e o irmão puseram-se a andar de lá para fora trinta minutos depois da sua visita. A casa está tão fria e morta como um ninho do ano passado! Se quiser, até aposto dez contra um em como não encontrará uma única impressão digital em todo o chalé!

- Para onde foram?

Irving encolheu novamente os ombros.

- Isso também eu queria saber! Fui lá, encontrei a casa vazia, desconfiei e encarreguei uma agência de detectives particulares de averiguar o que sucedeu. Estava a jantar, esta noite, quando o detective me telefonou. Uma vizinha que estava a espreitar pela cortina, à janela, viu chegar um carro e apear-se um homem e uma mulher. Reconheceu-o, por ter visto fotografias suas, e a descrição que fez da mulher que o acompanhava assenta como uma luva ali à sua secretária, Miss Street. Meia hora depois de vocês partirem, chegou um táxi, no qual Marline mandou carregar quatro malas grandes e uma pequena. Depois ela e o motorista ajudaram um homem a meter-se no carro. O tipo cambaleava, como se estivesse bêbedo, drogado, ou ambas as coisas.

- E depois?

- O táxi arrancou.

- Muito bem, localizaremos esse táxi - afirmou Mason.

Irving riu-se, desdenhoso.

- Julga que está a lidar com uma quadrilha de idiotas?

- Talvez esteja.

- Muito bem, Mason, tente localizar o parzinho! Tente e verá até que ponto complicou tudo.

Irving- levantou-se e Mason perguntou-lhe, em voz sinistramente calma:

- Há quanto tempo sabia tudo isso?

- Não há muito. Procurei a Marline, quando cheguei. Ela conhece toda a gente da sucursal de Paris, pois ajudava-nos sempre a receber os compradores, é esperta... Percebeu as intenções do Baxter e enfeitiçou-o... Assim que fui visitá-la, compreendi que se passava qualquer coisa pouco católica. O pânico invadiu-a, ao ver-me. Mostrou-se toda mel, para disfarçar, mas excedeu-se. Convidou-me a entrar, mas foi-me contando a história acerca do irmão e, depois, fez-me esperar, enquanto o fechava à chave e o adormecia com uma injecção. Nessa noite, deixou-me lá sozinho e saiu. Pude revistar a casa, mas o Baxter estava morto para o mundo... É uma espertalhona! Preparava-me para desmascarar toda a tramóia, mas você tinha de estragar tudo!

Irving encaminhou-se para a porta, mas o advogado deteve-o:

-Um momento! Ainda não acabou. Sabe mais alguma coisa acerca de toda...

- Claro que sei! Mas não tenha ilusões, Mason. Doravante, tudo quanto souber guardarei para mim. Aviso-o, também, de que vou telegrafar à companhia, a dizer-lhe que perca o amor aos dois mil dólares de sinal e contrate um advogado que tenha, pelo menos, um pouco de senso.

Quando Irving saiu e fechou a porta, Della estendeu a mão para o telefone. Mas Mason fez-lhe sinal para desistir.

- Lembre-se de que o Paul Drake tem dois homens a segui-lo, Della. Saberemos aonde irá, quando sair daqui.

- Óptimo. Nesse caso, agora pode levar-me a jantar.

 

DellaStreet pôs o telegrama decifrado em cima da secretária de Mason, quando este entrou no gabinete.

- De que se trata, Della?

- Telegrama da South African Gem Importing and Exploration Company.

- Estou despedido?

- De modo nenhum!

- Que diz o telegrama?

- Que deve continuar a proteger os interesses de Duane Jefferson; que a companhia se informou a seu respeito, antes de o contratar, e tem confiança em si, e que o seu representante oficial nesta zona, e o único que pode dar ordens em nome da companhia, é Duane Jefferson.

- Já é alguma coisa - comentou Mason, ao mesmo tempo que pegava no telegrama e lia. - Até parece que não têm muita confiança em Walter Irving...

- Claro que não sabemos o que Irving telegrafou à companhia...

- Sabemos o que ele nos disse que telegrafaria. - Em que pé o deixa isso?

- A ver navios... e a nós também, se não descobrirmos nenhuma pista acerca de Mae Jordan e Marline Chaumont.

- Porque não pede um adiamento, até...-Mason interrompeu-a, a abanar a cabeça. - Porquê, chefe?

- Por várias razões. Uma delas, é que garanti ao promotor de justiça que aceitava o julgamento na primeira data livre da agenda do tribunal; outra, é que continuo a pensar que temos mais a ganhar do que a perder se deixarmos efectuar-se o julgamento antes de o promotor de justiça ter ensejo de pensar bem no verdadeiro problema.

- Acha que o dito irmão de Marline Chaumont é, realmente, Munroe Baxter?

Mason consultou o relógio, antes de responder:

- A esta hora, o Paul já deve ter a resposta a essa pergunta. Telefone-lhe e peça-lhe que venha cá, Della. Dez minutos depois, Paul Drake dava contas das suas investigações:

- Esse tal Irving está enganado, Perry. Marline Chaumont esteve no hospital do estado e identificou-se como irmã de Pierre Chaumont, que lá estava internado havia um ano. Pierre tornara-se violento e haviam-no operado ao cérebro. Depois disso, ficou como um cãozinho e só o conservaram no hospital porque não tinham para onde o mandar. Foi com grande alívio que o entregaram à irmã, Marline. Portanto, a possibilidade de se tratar de Munroe Baxter é tão insignificante que escusa de pensar nela. Para começar, Marline apareceu no hospital e levou o irmão mais de um mês antes de o barco de Baxter dever chegar. Quando ela levou Pierre, Baxter estava em Paris.

- O nome do doente é, realmente, Pierre Chaumont?

- No hospital estão convencidos disso.

- Quem os convenceu?

- Não sei. Marline, suponho. O tipo vivera com um nome suposto e fora um criminoso depravado, um psicopata. Consentiu em se submeter à lobotomia, e fizeram-lha. Aparentemente, a intervenção cirúrgica curou-o das tendências homicidas, mas deixou-o como uma alma penada. Segundo deduzi, encontra-se numa espécie de transe hipnótico, faz tudo quanto lhe dizem.

- Investigou no hospital?

- Investiguei. O médico não está muito satisfeito com os resultados, que esperou fossem melhores, mas diz que o indivíduo era uma perda total, no estado em que se encontrava antes da operação. Os resultados, embora reduzidos, foram um benefício. Picaram contentíssimos por se verem livres dele, no hospital.

- Faço ideia! Que mais, Paul?

- O que tenho para lhe dizer, agora, vai surpreendê-lo...

- Pois surpreenda-me, homem!

- Mae Jordan foi apanhada por investigadores do gabinete do promotor de justiça.

- Diabo! Que pretendem eles? Arrancar-lhe alguma confissão?

- Ninguém sabe. Ontem à tarde apareceram dois homens no escritório de advogados onde ela trabalha. Tive dificuldade em descobrir o nome da firma, mas consegui-o. El uma das mais fortes e conservadoras da cidade, e a chegada desses dois homens, que se identificaram e disseram que iam buscar Mae Jordan, causou uma grande sensação. Conversaram com ela, num gabinete particular, e depois procuraram o velho Honcut, que é o sócio principal da firma Honcut, Graidley e Billings, e disseram-lhe que, para segurança da própria Mae, a manteriam fora da circulação durante uns tempos. A rapariga tinha direito a três semanas de licença, e os tipos disseram ao Honcut que ela regressaria logo a seguir ao julgamento.

- Ela acompanhou-os de boa vontade?

- Parece que sim.

- Como a encontraram eles, Paul?

- Com a maior das simplicidades. Revistaram o Jef-ferson, quando o prenderam, e confiscaram-lhe um livrinho com nomes e moradas. Estava tudo em código, mas eles decifraram o código e começaram a visitar as diversas pessoas. Quando chegou a vez da Jordan, ela falou.

- Tentou livrar-se incriminando Duane Jefferson... - comentou Mason, pensativo. - Quando a apanhar no lugar das testemunhas, submetê-la-ei a um contra-inter-rogatório de que se há-de lembrar durante muito, muito tempo! E a respeito do Irving, Paul? Aonde foi, quando saiu daqui?

- Tenho mais mâs notícias para si...

- Era importantíssimo, Paul! - exclamou o advogado, Inquieto. - Eu disse-lhe...

- Sei muito bem o que me disse, Perry, e vou-lhe dizer uma coisa, acerca do trabalho de seguir pessoas, que já lhe disse uma dúzia de vezes e que provavelmente direi ainda muitas mais: quando um tipo esperto sabe que está a ser seguido e não quer ser seguido, pouco se pode fazer. Se ele é inteligente, esquiva-se sempre que lhe apetecer, a não ser que lhe tenhamos na peugada quatro ou cinco detectives equipados com quaisquer meios de intercomunicação.

- Mas ele não sabia que estava a ser seguido!

- Quem lhe disse?

- Bem, não o demonstrou, quando aqui esteve.

- Mas demonstrou-o, sem dúvida nenhuma, quando daqui saiu! Que lhe disse você, Perry?

- Nada que lhe levantasse suspeitas. Mas que fez ele?

- Começou a esquivar-se aos “sombras”.

- Como?

- Para começar, meteu-se num táxi. Deve ter dito ao motorista que queria despistar um carro que o seguia, e o motorista saiu-se da missão muito airosamente. Passava os sinais de trânsito precisamente quando eles estavam a mudar, e o meu detective tentava segui-lo, decidido a explicar o que se passava a qualquer polícia de trânsito que o detivesse. Teve pouca sorte, pois o polícia que o deteve não simpatizava com detectives particulares e multou-o. Entretanto, Irving teve tempo de se pôr ao fresco. Geralmente, os polícias dão-nos uma oportunidade, num trabalho destes, se temos as credenciais à mão, lhas mostramos e dizemos que vamos a seguir o carro da frente. Mas este “chui” deteve propositadamente o meu detective, até o outro se pisgar. Aliás, não creio que isso tivesse grande importância, no fim de contas. Irving sabia que o seguiam e estava resolvido a livrar-se do seguidor. Quando um tipo esperto mete uma ideia dessas na cabeça, não há nada a fazer, a não ser confiar na sorte.

- Que fez você, Paul?

- O costume. Mandei homens para o prédio onde mora, a fim de retomarem a vigilância quando ele aparecesse. Fiz tudo.

- E ele não voltou? Drake abanou a cabeça.

- E quanto aos outros?

- Você julgava que seria fácil localizar Marline Chaumont...

- Quer dizer que falhou o alvo em toda a linha? - interrompeu Mason, impaciente.

- Descobri o que aconteceu a Mae Jordan.

- E mais nada?

- Mais nada.

- Muito bem, que ia a dizer acerca de Marline Chaumont? Dê-me as más notícias por atacado.

- Levei um tempo dos demónios para encontrar o motorista do táxi que foi ao chalé, mas quando por fim o encontrei ele não teve dificuldade em se lembrar do episódio. Levou a mulher, o homem, quatro malas e uma maleta ao aeroporto.

- E depois?

- Depois... nada. Não conseguimos apurar como nem quando ela saiu do aeroporto.

- Quer dizer que uma mulher acompanhada por um homem praticamente incapaz de se mover sozinho e sobrecarregada com quatro malas e uma maleta desapareceu do aeroporto, sem deixar rasto?

- Exactamente. Um dia há-de experimentar, para ver como é, Perry.

- Hei-de experimentar o quê?

- Localizar todos os motoristas de táxi que vão ao aeroporto e perguntar-lhes se transportaram um homem, uma mulher, quatro malas e uma maleta. Chega gente de avião de poucos em poucos minutos, o aeroporto é um autêntico manicómio.

- Está bem, Paul, deixemos isso. O Irving avisou-me de que não conseguiríamos nada, mas eu pensei que as quatro malas nos ajudariam.

- Também eu, quando você me disse.

- Foram directamente para o aeroporto?

- Foram.

- Devem ter seguido para qualquer lado, Paul!

- Com certeza que seguiram. Posso-lhe dizer para onde não seguiram.

- Seja, diga.

- Não viajaram em nenhum dos aviões que levantaram voo mais ou menos àquela hora.

- Como sabe?

- Examinei as listas de excesso de bagagem. O motorista disse-me que as malas eram pesadas, que deviam pesar uns dezoito quilos cada uma. Examinei, também, as partidas dos aviões.

- Procurou-os pelos nomes, evidentemente?

O olhar que Drake lançou ao advogado fulmlnou-o.

- Não seja idiota, Perry. Essa foi a primeira coisa que fiz, sem dificuldade nenhuma. Depois interroguei os vendedores de bilhetes, para saber se, àquela hora, havia algum registo de venda de bilhetes, com tal excesso de bagagem. Não havia. Em seguida perguntei aos empregados das cancelas se se lembravam de alguma mulher que precisara de ajuda para levar um homem para bordo. Não tinham visto ninguém nessas circunstâncias. Perguntei se passara algum indivíduo de cadeira de rodas, mas a sorte foi a mesma. Cheguei, por isso, à conclusão de que ela fora ao aeroporto, descarregara a bagagem, pagara ao motorista e se metera noutro táxi.

- E não conseguiu localizar esse outro táxi?

- Os meus homens ainda estão a trabalhar nisso... mas é o mesmo que abordar uma pequena de mini-saia e camisola justa e perguntar-lhe se se lembra de lhe assobiarem, ontem, ao descer a rua.

Passados momentos, Mason sorriu.

- Pronto, errámos o alvo em toda a linha! - exclamou. - Mas por que diabo mandaria o promotor de justiça deter Mae Jordan?

- Para a interrogar.

- Nesse caso, porque não a deixou partir, depois de a interrogar?

- Porque ainda não acabou de a interrogar. Mason abanou a cabeça.

- Está a esquecer-se de um pormenor: ela foi ao apartamento buscar duas malas. O promotor de justiça tem-na praticamente sob custódia.

- Porquê?

Mason sorriu, de novo.

- Essa foi a pergunta que eu lhe fiz, Paul. A única resposta é, sem dúvida, que a quer como testemunha importante. Mas, a ser assim, isso significa que ela lhe contou uma história que o deixou ceguinho de todo e que ele engoliu linha, anzol e chumbada.

- Não lhe parece que ela seja uma testemunha importante?

Mason pensou um momento, antes de responder, com um sorriso a alastrar-lhe lentamente pelas feições:

- Seria, se dissesse a verdade. Não me poderia dar melhor notícia, Paul.

- Porquê?

- Porque se o promotor de justiça não a chamar a depor, como testemunha, eu alegarei que ele sabotou a minha defesa, ao fazer desaparecer a minha testemunha. Mas se, pelo contrário, ele a chamar, arranjarei maneira de que se sinta o promotor de justiça mais angustiado a oeste de Chicago!

- Quer dizer que lhe vai fazer o jogo, aceitando um julgamento imediato?

Mason sorriu, uma vez mais.

- Paul, alguma vez viu um bom jogo da corda? Duas equipas, uma a puxar para cada lado, com uma linha divisória ao meio?

Drake pensou um momento, antes de responder:

- Costumavam entreter-se com isso nas cidades da província, no 4 de Julho.

- E alguma vez viu um jogo da corda entre bombeiros e polícias?

- Talvez, mas não me lembro. Porquê?

- Quando os bombeiros estavam com os pés bem fincados e bufavam e arfavam, os polícias trocavam um sinal secreto, davam um bom bocado de corda e os bombeiros recuavam, de escantilhão. Depois os polícias puxavam, com toda a força, e arrastavam os adversários todos, pela linha divisória, de fundilhos no chão.

Drake sorriu, por sua vez.

- Agora que fala disso, parece que me lembro, sim...

- Pois bem, Paul, eis ao que chamo fazer o jogo do promotor de justiça. Vamos-lhe dar muita, muita corda... Mas, respondendo mais especificamente à sua pergunta, é verdade, consinto num julgamento imediato. Aceito o julgamento enquanto o ilustre promotor de justiça está hipnotizado pela história de Mae Jordan, e antes que ele descubra que eu sei certas coisas que ele ignora.

 

As dez e meia do segundo dia de julgamento ficou concluída a escolha do júri. O juiz Hartley recostou-se na sua cadeira, a prever um julgamento prolongado e renhidamente disputado.

- Cavalheiros, o júri foi escolhido e prestou juramento - anunciou. - A acusação pode apresentar a sua causa.

Hamilton Burger, o promotor de justiça, que deixara a escolha do júri ao cuidado de subordinados, entrou dramaticamente na sala, a fim de conduzir, em pessoa, a acusação. Inclinou a cabeça ao juiz e, quase sem parar, passou pela mesa dos advogados e deteve-se virado para os jurados.

- Bons dias, senhoras e senhores do júri. Sou o promotor de justiça deste condado. Esperamos demonstrar-lhes que o réu é empregado da South African Gem Importing and Exploration Company; que, em virtude do seu emprego, teve ensejo de saber que um homem chamado Munroe Baxter tinha em seu poder grande quantidade de diamantes, avaliados em mais de trezentos mil dólares no mercado retalhista; que o réu sabia que Munroe Baxter tencionava trazer os diamantes para este país, de contrabando, e o assassinou e se apoderou das pedras. Apresentaremos testemunhas, a fim de demonstrar que existiu premeditação, deliberação e astúcia na execução de um diabólico plano de assassínio. Demonstraremos que uma boa parte dos diamantes trazidos de contrabando para o país, por Munroe Baxter, foram encontrados em poder do réu. Baseados nestas provas, pediremos um veredicto de assassínio de primeiro grau.

Hamilton Burger inclinou a cabeça ao júri e foi-se sentar à mesa da acusação.

As pessoas ligadas ao tribunal entreolharam-se, surpreendidas. Hamilton Burger nunca apresentara uma causa tão resumidamente, e a ninguém escapou o significado de tal concisão. O promotor de justiça tivera o cuidado de não mostrar o seu jogo nem dar à defesa a mínima ideia do modo como tencionava provar as suas acusações.

- A minha primeira testemunha será Yvonne Manco

- anunciou Burger.

Era evidente que Yvonne Manco fora cuidadosamente ensaiada. Aproximou-se, a esforçar-se o mais possível para parecer modesta e recatada, com a sua saia abaixo do joelho e o decote subido. No entanto, apesar de toda a sua boa vontade, tentar apresentá-la como mulher recatada e modesta era tão impossível como disfarçar um carro de corridas em sóbrio automóvel familiar.

Yvonne indicou o nome e a morada ao escrivão e em seguida olhou inocentemente para o promotor de justiça

- mas só depois de lançar aos homens do júri um olhar avaliador, de soslaio.

Em resposta a perguntas de Burger, contou a história das suas relações com Munroe Baxter, do cuidadoso plano de contrabando das pedras preciosas, do cruzeiro marítimo e da falsa “corte impulsiva e apaixonada” de Baxter.

Relatou o conluio destinado a encenar o falso suicídio, o seu namorico deliberado com o ajudante do comissário, a cena de ciúmes e o apoteótico mergulho nas águas da baía, ao nascer do dia. Confessou que transportara, na bagagem, uma pequena garrafa de ar comprimido, e que Baxter, ao mergulhar, estava preparado para nadar muito tempo debaixo de água.

Hamilton Burger apresentou uma série de mapas e fotografias do barco e pediu à testemunha que indicasse o ponto aproximado onde o mergulho se verificara, tanto na coberta do navio como na baía.

- Pode contra-interrogar - disse a Perry Mason.

Mason sorriu à testemunha, que se apressou a retribuir o sorriso, a cruzar as pernas e a mudar ligeiramente de posição. Como resultado de tal estratégia, dois dos homens do júri chegaram-se para a frente, a fim de verem melhor, ao mesmo tempo que as duas juradas menos atraentes erguiam desdenhosamente o queixo.

- Dá pelo nome de Yvonne Manco? - começou por perguntar Mason.

- Sim.

- Tem outro nome?

- Não.

- Era realmente casada com Munroe Baxter?

- Era, mas agora que sou viúva prefiro usar o meu nome de solteira: Yvonne Manco.

- Compreendo. Não quer usar o nome do seu marido?

- Não se trata disso. Yvonne Manco é o meu nome profissional.

- Qual é a sua profissão?

Houve um momento de silêncio, mas logo a seguir Hamilton Burger levantou-se.

- Protesto, Excelência! Protesto quanto ao modo como a pergunta foi feita e protesto contra a pergunta, que é incompetente, irrelevante e secundária.

O juiz Hartley coçou o queixo, pensativamente.

- Bem, dadas as circunstâncias, aceito o protesto. No entanto, em virtude da resposta da testemunha... Enfim, aceito o protesto.

- Casou, de facto, com Baxter?

- Casei.

- A bordo?

- Sim.

- E antes disso?

- Não.

- Não houve nenhuma cerimónia anterior?

- Não.

- Sabe o que é um casamento consuetudinário?

- Sei.

- Já usara o nome de Mrs. Baxter?

- Já.

- Antes do cruzeiro?

- Sim.

- De acordo com o conluio existente entre a senhora e Munroe Baxter, ele devia fingir que morrera, é verdade?

- É.

- Quem teve a ideia? A senhora ou ele?

- Ele.

- Baxter devia fingir que se suicidava, atirando-se ao mar, para poder passar alguns diamantes de contrabando?

- Sim, já lhe disse que sim.

- Por outras palavras, se, em qualquer altura, isso fosse vantajoso para ele, Munroe Baxter não se importava de fingir que morrera.

-Protesto! Pede uma conclusão, à testemunha, e já foi perguntado e respondido - declarou Hamilton Burger.

- Protesto aceito - decidiu o magistrado.

Mason, que conseguira, no entanto, apresentar a sua ideia, sorriu ao júri e perguntou à testemunha:

- Sabia que estava a participar numa operação de contrabando?

- Certamente. Não sou estúpida.

- Claro. Depois de começar esta investigação, falou com o promotor de justiça?

- Naturalmente!

- E foi graças à interferência do promotor de justiça que se tornou possível a senhora depor, como testemunha, neste julgamento, com a garantia de não ser processada por contrabando?

- Bem, claro que...

- Um momento, um momento! - interrompeu Bur-ger. - Desejo protestar contra a pergunta, Excelência.

- Continue - ordenou o magistrado à testemunha.

- Mas é incompetente, irrelevante e secundária - insistiu o promotor de justiça. - Não é contra-interrogatório correcto.

- Recusado o protesto. A testemunha deve responder à pergunta.

- Bem, claro que não houve nenhum acordo definido. Isso seria... imprudente.

- Quem lhe disse que seria imprudente?

- Todos concordaram que seria imprudente.

- Quem são esses “todos”? A quem se refere?

- Bem, os funcionários da alfândega, o promotor de justiça, os detectives, a Polícia, o meu próprio advogado...

- Compreendo. Disseram-lhe que seria imprudente estabelecer um acordo definido, mas isso não os impediu de lhe garantir que, se depusesse como desejavam, não seria processada por contrabando, pois não?

- Excelência, protesto contra a expressão “como desejavam” - interveio Burger. - Pede uma conclusão da testemunha.

O juiz Hartley olhou para Yvonne Manco, pensativo.

- Farei a pergunta de outro modo - disse Mason. - Houve alguma conversa acerca do que a senhora declararia?

- Recomendaram-me que dissesse a verdade.

- Quem lho recomendou?

- Mr. Burger, o promotor de justiça.

- E garantiram-lhe que, se depusesse assim, ficaria impune, do contrabando?

- Se eu dissesse a verdade? Sim.

- Já dissera qual era verdade, antes de lhe darem essa garantia?

- Já.

- E a história que contou então foi a mesma que contou agora, como testemunha?

- Certamente.

- Portanto, quando o promotor de justiça lhe recomendou que dissesse a verdade, a senhora depreendeu que ele se referia à mesma história que nos acaba de contar?

- Sim.

- Portanto, garantiram-lhe imunidade, no caso do contrabando, se contasse a história que nos acabou de contar, como testemunha?

- Foi o que compreendi.

- Logo, pelo simples facto de contar tal história, fica Impune quanto ao contrabando?

- Bem, não foi... não foi dito tão cruamente. Ouviram-se gargalhadas.

- Não desejo mais nada - declarou Mason. Hamilton Burger, visivelmente Irritado, anunciou: - A minha testemunha seguinte é Jack Gilly.

Jack Gilly era um homem magro, de olhos manhosos, zigomas salientes, nariz comprido e fino, testa alta e queixo pontiagudo. Encaminhou-se para o lugar das testemunhas num silêncio quase furtivo, prestou juramento, indicou o nome e a morada, sentou-se e olhou para o promotor de justiça, numa atitude de expectativa.

- Qual é a sua ocupação? - perguntou-lhe Burger.

- Neste momento?

- O seu trabalho de agora não é o mesmo de há seis meses?

- Em que consiste?

- Alugo barcos de pesca.

- Onde?

- Aqui, no porto.

- Conheceu Munroe Baxter, em vida?

- Um momento, antes de responder à pergunta - ordenou Mason à testemunha, e depois voltou-se para o juiz e declarou: - Protesto, Excelência, pois a pergunta supõe um facto que não foi provado. Até agora, ainda não se provou, neste tribunal, que Munroe Baxter não esteja vivo.

- Posso ser ouvido a tal respeito, Excelência? -perguntou Hamilton Burger.

- Bem, parece-me que o modo lógico de apresentar o caso seria começar por... - redargiu o juiz, hesitante.- No entanto, ouvi-lo-ei, senhor promotor de justiça.

- Munroe Baxter atirou-se à água, no mar alto, e não voltou a ser visto vivo. Tenho testemunhas, entre os passageiros e a tripulação do navio, de que Baxter correu para a popa do barco, saltou e desapareceu na água. Do barco pediram que mandassem uma lancha e as águas foram cuidadosamente esquadrinhadas, mas Munroe Baxter não voltou à superfície.

- O senhor promotor de justiça não pode esperar que este tribunal julgue baseado numa suposição que o promotor tenciona provar com o depoimento de outras testemunhas. Além disso, uma testemunha sua declara que foi tudo parte de um plano de Munroe Baxter para...

- Sim, sim, bem sei - interrompeu Hamilton Burger. - Mas até os melhores planos falham, como todos sabemos. Podem acontecer muitos imprevistos, e saltar da coberta de um barco é aventura arriscada e perigosa.

- Recomenda-se ao promotor de justiça que se coíba de interromper o magistrado. Eu estava a dizer, quando me interrompeu, que o depoimento da sua própria testemunha indica que foi tudo um estratagema, planeado para dar a impressão de que Munroe Baxter se suicidara. Como é lícito admitir que um homem continua vivo enquanto não se provar que morreu, o tribunal acha aceitável o protesto.

- Muito bem, Excelência. Farei a pergunta de outro modo - redarguiu Hamilton Burger. - Mr. Gilly, conheceu Munroe Baxter?

- Conheci.

- Bem ou mal?

- Encontrei-o várias vezes.

- Conhecia Yvonne Manco, a testemunha que depôs antes de si?

- Sim.

- Chamo a sua atenção para o dia 6 de Junho deste ano. Que fez, nesse dia?

- Aluguei barcos.

- E no dia 5 de Junho, que fez?

- Aluguei barcos.

- No dia 5 de Junho, cerca das sete da tarde, alugou algum barco?

- Aluguei.

- A quem?

- Francamente, não sei.

- Foi a algum homem que nunca vira antes?

- Foi.

- O homem disse-lhe o que queria?

- Disse que o tinham mandado ter comigo porque eu...

- Um momento - interrompeu Mason. - Protesto contra qualquer conversa que não tenha sido travada na presença do réu e que não esteja com ele relacionada.

- Proponho-me relacionar esta conversa com o réu - replicou Burger.

- Nesse caso, a relação devia ter sido estabelecida antes de referida a conversa-Insistiu Mason.

- Protesto aceito - decidiu o juiz, a acenar com a cabeça.

- Muito bem - resignou-se o acusador. - Alugou um barco a esse tal desconhecido?

- Aluguei.

- Teve razão para alugar o barco, em virtude do que o homem lhe disse?

- Tive.

- Ele pagou-lhe o aluguer?

- Pagou.

- Quando saiu o homem com o barco? Isto é,. quando lho entregou o senhor?

- Cerca das cinco horas da manhã seguinte.

- Que circunstâncias rodearam a entrega do barco?

- Ele estava na doca comigo. Através de um binóculo potente, de que estava munido, vi o paquete do cruzeiro aproximar-se do porto e informei desse facto o cliente. Ele saltou para o barco e partiu.

- Ligou o motor?

- O motor fora ligado uma hora antes, para aquecer e estar tudo em ordem.

- Que fez o homem?

- Levou o barco da doca para o largo.

- Um momento - interrompeu de novo Mason. - Excelência, proponho que o depoimento até agora feito pela testemunha seja anulado, pois ainda não foi relacionado, em qualquer sentido, com o réu.

- Relacioná-lo-ei nas próximas perguntas - afirmou Burger.

- O tribunal reserva a sua decisão - disse o juiz.

Parece-me que estas perguntas são, em grande parte, preliminares.

- Que fez o senhor depois de alugar o barco? - perguntou o promotor de justiça à testemunha.

- Bem, senti curiosidade e quis ver...

- Os seus pensamentos e emoções não interessam - interrompeu Burger. - Que fes?

- Meti-me no automóvel e dirigi-me para um ponto da costa de onde podia ver o que se passava.

- Que quer dizer com a expressão “o que se passava”?

- Queria observar o barco que alugara.

- E que viu?

- Vi o navio entrar lentamente no porto.

- E que mais viu?

- Vi Munroe Baxter atirar-se à água.

- Sabe que era Munroe Baxter?

- Bem, eu... Enfim, fiquei a saber, pelo que aconteceu.

- Mas reconheceu-o?

- Pareceu-me Baxter, mas daquela distância e com aquela luz, não juraria que fosse.

- Então não jure - replicou Burger, secamente. - Viu um homem saltar do barco?

- Vi.

- Esse homem pareceu-lhe alguém conhecido?

- Pareceu.

- Quem?

- Munroe Baxter.

- Se bem entendi as suas palavras, o homem que saltou do barco parecia Munroe Baxter, mas o senhor não pode jurar que fosse ele. É assim?

- É.

- Que sucedeu, depois?

- Vi pessoas a correr, na coberta do navio, ouvi vozes a chamar uma lancha, aos gritos, e vi uma lancha navegar nas imediações do navio.

- Que mais aconteceu?

- Mantive o binóculo assestado no barco que alugara.

- E que viu?

- Estavam dois homens a bordo.

- Dois homens?-repetiu Burger.

- Sim.

- Sabe donde veio o segundo homem?

- Não, não sei. Mas presumo que o homem a quem aluguei o meu barco o foi buscar a uma das outras docas, enquanto eu me dirigia para o meu automóvel.

- A sua suposição não interessa. Não sabe, por conhecimento próprio, donde veio o segundo homem?

- Não.

- Sabe apenas que, quando chegou ao ponto donde podia observar o seu barco, estavam dois homens a bordo?

- Sim.

- Muito bem. E depois, que sucedeu?

- O barco manteve-se no mesmo lugar durante algum tempo. O segundo homem parecia estar a pescar, pois segurava uma pesada cana de pesca.

- E depois?

- Passado um bom bocado, vi a cana dar, subitamente, um esticão, como se algo muito pesado se tivesse prendido na linha.

- E depois?

- Depois vi um vulto negro, parcialmente submerso e que parecia agarrado à linha.

- E que mais viu?

- Um dos homens inclinou-se para fora do barco e pareceu-me estar a falar...

- Deixe lá o que lhe pareceu. Que fez o homem?

- Debruçou-se do barco.

- E depois?

- Estendeu o braço para o objecto escuro, que estava na água.

- E depois?

- Depois vi-o erguer o braço direito e baixá-lo rapidamente, várias vezes. Empunhava uma faca, que enterrava no vulto escuro, meio-submerso.

- E depois?

- Os dois homens mexeram na coisa que estava na água e um deles tirou um peso qualquer do barco e amarrou-o ao vulto escuro.

- E depois?

- Ligaram o motor e rebocaram, devagar, o objecto que estava na água, e a que tinham amarrado um peso. Corri para o automóvel e regressei à minha doca.

- E que sucedeu, a seguir?

- Passadas umas duas horas o homem que alugara o barco devolveu-o.

- Vinha alguém com ele?

- Não. Vinha sozinho.

- Que fez o senhor?

- Perguntei-lhe se recolhera alguém e ele...

- Protesto contra qualquer conversa que não tenha sido travada na presença do réu - declarou Mason.

- Um momento - pediu Burger. - Retiro a pergunta, até a relacionar com o caso. Mr. Gilly, reconheceu o outro homem, que viu no barco com o desconhecido?

- Na altura, não, pois nunca o vira.

- Viu-o depois?

- Vi.

- Quem era?

- O réu.

- Refere-se a Duane Jefferson, o réu que se encontra neste tribunal?

- Refiro.

- Identifica-o positivamente?

- Um momento! - interveio Mason. - Protesto, pois é uma tentativa, da parte da acusação, para contra-Interrogar a sua própria testemunha.

- Protesto recusado. A testemunha deve responder à pergunta.

- Identifico, sim.

- Observou o barco pelo binóculo?

- Observei.

- Qual é a potência das lentes?

- Sete por cinquenta.

- É um binóculo bom?

- É.

- Com lentes revestidas?

- Sim.

- Viu o barco com clareza suficiente para distinguir as feições das pessoas que estavam a bordo?

- Vi.

- Depois de lhe devolverem a embarcação, notou nela algumas manchas?

- Notei.

- Que manchas?

- Manchas de sangue que...

- Não, não - interrompeu Burger. - Descreva apenas as manchas. Não sabe se eram de sangue.

- Sei que pareciam, de sangue.

- Limite-se a descrever as manchas, por favor - insistiu o promotor, desejoso de parecer virtuoso e imparcial.

- Eram manchas avermelhadas-escuras.

- Onde as encontrou?

- Do lado de fora do barco, logo abaixo da amurada, e no interior, onde houvera qualquer coisa que pingara ou esguichara.

- Quando reparou nas manchas, pela primeira vez?

- Logo após o barco me ser devolvido.

- As manchas eram frescas, nessa altura?

- Protesto! Pede uma conclusão à testemunha e não foi devidamente fundamentada - interveio Mason.

- Protesto aceito - decidiu o juiz.

- Bem, como lhe pareceram as manchas? - perguntou o promotor à testemunha.

- O mesmo protesto.

- A mesma decisão do tribunal.

- Diga-me uma coisa, Mr. Gilly, há já algum tempo que se dedica ao negócio da pesca e à pesca como passatempo?

- Há, sim.

- E, durante esse tempo, tem tido ocasião de ver muito sangue nos barcos?

- Tenho, sim.

- E aprendeu a avaliar a idade relativa dessas manchas pela cor do sangue?

- Aprendi.

- A testemunha está a ser interrogada acerca de sangue de peixe? - indagou Mason.

- Bem... está - admitiu Burger.

- O promotor de justiça permite que lhe pergunte se alega que as manchas encontradas no barco e descritas pela testemunha eram de sangue de peixe?

- Eram manchas de sangue humano! - explodiu Burger.

- Na minha opinião, uma testemunha não pode ser considerada perita em manchas de sangue humano por demonstrar que possui experiência de manchas de sangue de peixe.

- O princípio é o mesmo, Mr. Mason - ripostou o promotor. - O sangue, ao secar, assume as mesmas diferentes tonalidades.

- Devo deduzir que o promotor de justiça está a depor como perito na matéria?

O juiz sorriu.

- Creio que o tribunal tem de concordar com o advogado de defesa, senhor promotor de justiça. Se pretende qualificar essa testemunha como perito, primeiro haverá que demonstrar se existe uma similaridade na aparência do sangue humano e do sangue de peixe.

- Pronto, debaterei esse ponto de outro modo e com outra testemunha - resignou-se Burger. É positivo na identificação do réu, Mr. Gilly?

- Sou.

- Ele estava no barco quando viu a tal coisa - fosse o que fosse - apunhalada com uma faca?

- Estava.

- As manchas que mencionou estavam no barco, quando o alugou?

- Não.

- Estavam no barco quando lho devolveram?

- Estavam.

- Onde se encontra agora o barco?

- Em poder da Polícia.

- Quando se apoderou dele a Polícia?

- Cerca de dez dias depois.

- No dia 16 de Junho?

- Creio que foi no dia 15.

- Encontrou mais alguma coisa no barco?

- Encontrei.

- O quê?

- Uma faca com bainha, com a palavra “Duane” gravada num dos lados do cabo e as iniciais “M. J.” no outro.

- Onde está essa faca?

- A Polícia levou-a.

- Quando?

- Quando levou o barco.

- Reconheceria essa faca, se a voltasse a ver?

- Reconheceria.

Hamilton Burger desfez um embrulho de papel de seda, mostrou uma faca de caça, de lâmina aguçada, e levou-a à testemunha.

- Alguma vez viu esta faca?

- É a que achei no barco.

- Encontra-se no mesmo estado em que se encontrava então?

- Não. Tinha sangue... quero dizer, então tinha mais manchas de qualquer coisa vermelha do que tem agora.

- É natural, pois parte das manchas foram retiradas no laboratório da Polícia, para análise - explicou Burger, em tom suave. - Pode contra-interrogar a testemunha, Mr. Mason. Entretanto, peço que esta faca seja assinalada, para identificação.

Mason sorriu à testemunha e perguntou-lhe, em voz que escorria boas intenções:

- Já alguma vez foi condenado, Mr. Gilly?

Hamilton Burger levantou-se, bruscamente, como se tencionasse protestar, mas depois voltou a sentar-se, devagar.

Os olhos manhosos de Gilly desviaram-se do rosto de Mason para o chão.

- Fui, sim.

- Quantas vezes?

- Duas.

- Porquê?

- Uma, por furto.

- E a segunda vez?

- Perjúrio.

- A que distância se encontrava do barco, quando o observou pelo binóculo? - perguntou Mason, com o mais afável dos sorrisos.

- A cerca de... bem, a uma distância equivalente a dois bons quarteirões.

- Que tal estava a luz?

- Acabava de nascer o dia.

- Havia nevoeiro?

- Nevoeiro, não. Uma espécie de neblina.

- Neblina fria?

- Sim. Estava frio.

- De que se serviu para limpar as lentes do binóculo? Ou não as limpou?

- Creio que não as limpei.

- E viu um dos dois homens a pescar?

- Vi. O réu empunhava a cana de pesca.

- E, aparentemente, apanhou qualquer coisa?

- Um corpo grande prendeu-se à linha.

- Já tinha visto alguém pescar peixes grandes?

- Já.

- Algumas vezes, quando apanharam tubarões, viu-os soltá-los da linha, cortando-a, ou apunhalá-los, até os matarem, antes de os soltarem do anzol?

- Não se tratava de nenhum tubarão.

- Fiz-lhe uma pergunta. Viu?

- Sim.

- Essa coisa que se prendeu na linha de pesca chegou a sair inteiramente da água?

- Não.

- Saiu o suficiente para lhe permitir ver de que se tratava?

- Esteve sempre quase inteiramente submersa.

- Nunca vira o homem que lhe alugou o barco, antes de ele o procurar?

- Nunca.

- E não o voltou a ver?

- Não.

- Sabe se a faca não estava no barco quando o alugou?

- Sei.

- Quando a viu, pela primeira vez?

- Na tarde do dia 6 de Junho.

- Onde?

- No meu barco.

- Não a vira antes?

- Não.

- No entanto, examinara o barco?

- Examinara.

- No tempo que decorreu entre a entrega da embarcação e a descoberta da faca, o barco esteve onde alguém se poderia aproximar e atirar-lhe para dentro a faca?

- Suponho que sim. Qualquer pessoa o poderia ter feito, se lá tivesse andado a meter o nariz.

- Quanto lhe pagou, pelo aluguer do barco, esse misterioso indivíduo?

- Protesto! - interveio Burger. - A pergunta é incompetente, irrelevante e secundária e não constitui contra-interrogatório correcto.

- Faço-a de outra maneira - prontificou-se Mason, a sorrir. - Tem uma tabela fixa, para o aluguer do barco, Mr. Gilly?

- Tenho.

- Quanto?

- De um dólar a dólar e meio por hora.

- Esse desconhecido pagou-lhe a taxa habitual de aluguer?

- Fizemos um acordo especial.

- Recebeu mais do que a tabela habitual?

- Recebi.

- Quanto mais?

- Protesto! - interveio de novo o promotor de justiça. - Não é contra-interrogatório correcto, refere-se a factos que não foram apresentados e é incompetente, irrelevante e secundária.

- Protesto não aceito.

- Quanto recebeu de aluguer? - perguntou Mason a testemunha.

- Não me lembro, assim de repente... Creio que foram cinquenta dólares - respondeu Gilly, sempre com os olhos a fugir aos de Mason.

- Essa importância foi pedida por si ou oferecida pelo homem?

- Foi pedida por mim.

- Tem a certeza de que foram cinquenta dólares?

- Não me lembro bem. Ele deu-me um bónus, cuja importância não me recordo bem.

- Foram mais de cinquenta dólares?

- Talvez. Não contei. Recebi as notas que ele me deu e meti-as na caixa onde guardo o dinheiro, fechado à chave.

- Contou esse bónus, noutra altura?

- Não me lembro de. ter contado.

- Podiam ser mais de cinquenta dólares?

- Creio que sim, mas não sei.

- Poderiam ser mil dólares?

- Oh, isto é absurdo! - protestou Hamilton Burger.

- O tribunal quer ouvir a resposta - decidiu, secamente, o magistrado.

- Poderiam ser? - insistiu Mason.

- Não sei.

- Registou o pagamento nos seus livros?

- Não tenho livros.

- Então não sabe quanto dinheiro tem nessa caixa fechada à chave?

- Não sei a importância exacta.

- E o número aproximado de dólares?

- Também não.

- É de centenas de dólares?

- Não.

- Tem mais de quinhentos dólares nessa caixa, neste momento?

- Não sei.

- Mais de cinco mil dólares?

- Não faço ideia.

- Mas é possível que tenha?

- É.

- A sua condenação por perjúrio foi a primeira ou a segunda?

- A segunda.

- Não desejo mais nada, Mr. Gilly - declarou Mason, a sorrir.

- São horas da interrupção do meio-dia - disse o juiz Hartley, depois de consultar o relógio. - O julgamento recomeça às duas horas da tarde. Durante a interrupção, os jurados não devem formar ou exprimir qualquer opinião quanto aos méritos da causa; devem esperar que sejam apresentados e debatidos todos os factos. Os jurados também não devem discutir o caso entre si ou permitir que o discutam na sua presença. O réu continua sob custódia. O tribunal interrompe o julgamento até às duas horas.

Paul Drake e Della Street, que tinham estado sentados em lugares que lhes haviam sido reservados, na parte da frente da sala, foram ter com Perry Mason.

O advogado, porém, fez-lhes sinal para esperarem. Em seguida voltou-se para o seu constituinte e perguntou-lhe:

- A propósito, onde estava o senhor na noite do dia 5 e na manhã do dia 6 de Junho?

- No meu apartamento, deitado e a dormir.

- Pode prová-lo?

- Não seja absurdo! -respondeu Jefferson, desdenhosamente.

- Sou solteiro, Mr. Mason, durmo só. Não precisei de provar onde me encontrava, nessa altura, e continuo a não precisar. Ninguém acreditará na palavra de um perjuro e gatuno, que nunca na sua vida me tinha visto. Quem é essa escumalha do cais? Toda aquela história é ridícula!

- Eu próprio me sentiria inclinado a pensar assim se não fosse o ar de tranquila confiança do promotor de justiça. Portanto, é muito importante para mim saber exactamente onde o senhor se encontrava na noite do dia 5 e na manhã do dia 6 de Junho.

- Bem, não vejo razão para se preocupar com as primeiras horas da noite do dia 5. No dia 6, isto é, da meia-noite do dia 5 até às oito e meia do dia 6, estive no meu apartamento. Cheguei ao meu escritório cerca das nove da manhã do dia 6, e posso provar onde estive a partir de pouco depois das sete da manhã desse mesmo dia.

- Quem o provará?

- O meu sócio, Walter Irving. Tomou o pequeno almoço comigo, no meu apartamento, às sete da manhã, e depois fomos juntos para o escritório,

- E acerca da faca?

- É minha. Roubaram-ma de uma mala, do apartamento.

- Onde a arranjou?

- Foi uma prenda.

- De quem?

- Isso não tem nada a ver com o assunto, Mr. Mason.

- Quem lha deu?

- Não tem nada com isso.

- Tenho de saber quem lha deu, Jefferson.

- Quem governa os meus assuntos sou eu.

- Mas quem o defende sou eu!

- Pois defenda, mas não me faça perguntas acerca de mulheres. Não discuto as minhas amigas com ninguém.

- Há alguma coisa de que se envergonhe, relacionada com a oferta da faca?

- Evidentemente que não!

- Então diga-me quem lha deu.

- Seria embaraçoso discutir qualquer mulher consigo, Mr. Mason. Poderia redundar numa situação que o levaria a julgar-me perjuro, acerca das minhas relações com mulheres, quando o promotor de justiça me interrogasse.

Mason observou o rosto de Jefferson demoradamente.

- Escute - disse-lhe, por fim -, não têm conta as vezes em que uma causa fraca, da parte da acusação, se robustece porque o réu se vai abaixo, ao ser contra-interrogado. Eu espero que este caso não chegue ao ponto em que seja necessário defendê-lo, mas se chegar preciso de ter a certeza de que você não me mente.

Jefferson olhou-o, friamente, e replicou: - Nunca minto a ninguém. - Depois virou as costas ao advogado e fez sinal ao guarda para o levar.

DellaStreet e Paul Drake juntaram-se a Mason, enquanto este descia a coxia.

- Qual é a sua opinião, Drake?

- Há, sem dúvida, algo de muito suspeito em toda a história, que tem todos os indícios de um conluio para incriminar o acusado. Como pode o Burger pensar que testemunhas do género que apresentou chegam para fazer valer semelhante acusação, feita a um homem como Duane Jefferson?

- Isso é o que temos de descobrir. Alguma novidade?

- Walter Irving voltou.

- Não me diga! Onde esteve?

- Ninguém sabe. Apareceu cerca das dez e meia da manhã e esteve no tribunal.

- Onde?

- Sentado numa das filas de trás, a prestar muita atenção a tudo.

- Há em tudo isto algo completa e absolutamente contraditório... - murmurou Mason. - Não faz sentido.

- A Polícia tem, com certeza, qualquer surpresa de arrepiar, mas não consigo descobrir qual é. Reparou que o Hamilton Burger parece continuar absolutamente eufórico?

- É isso que me preocupa. Burger chamou aquelas testemunhas e procedeu como se estivesse apenas a apresentar uma base preliminar. Não deu a impressão de se interessar muito pelas histórias que contaram, nem com os meus ataques à sua personalidade e credibilidade. Está a preparar terreno para algo realmente grande.

- A respeito do Irving, tenciona comunicar com ele?

- As nossas relações não são amigáveis. A última vez que saiu do meu gabinete ia furioso como um cavalo selvagem. Telegrafou à companhia, para ver se me despediam... Não descobriu nada acerca de Marline Chaumont ou do Irmão?

- Não descobri onde se encontram, mas julgo ter descoberto como me despistaram.

- Como foi, Paul? Estou interessado nisso.

- É tão simples que me sinto furioso por não ter percebido há mais tempo.

- Explique-se, homem!

- Marline Chaumont limitou-se a levar as malas e a encarregar um carregador de as depositar nos armários da arrecadação de bagagem. Depois levou o irmão para uma limusina do aeroporto, como se fossem passageiros chegados. Deu a um carregador as chaves de dois dos armários, para lhe levantar duas malas, e seguiu na limusina para um hotel do centro da cidade. A seguir saiu com o irmão e desapareceram por completo.

- E depois, naturalmente, foi buscar as outras duas malas?

- Talvez se metesse num táxi, depois de deixar o irmão em segurança, fosse ao aeroporto buscar as duas malas restantes e regressasse para junto do doente.

- Temos de a encontrar, Paul.

- Estou a tentar, Perry.

- Não pode verificar pelos registos dos hotéis? Não pode...?

- Ouça, Mason, verifiquei todos os registos de hotel feitos mais ou menos por essa altura; verifiquei o aluguer de casas, nas agências; verifiquei os pedidos de ligação de água e luz, feitos mais ou menos na mesma data... Enfim, tenho feito tudo quanto me tem vindo à cabeça. Encarreguei raparigas de telefonar para prédios de habitação, a fim de descobrir se alguém pretendera alugar um apartamento. Até procurei nos motéis, para ver se alguém se inscrevera nessa data! Fiz tudo quanto me pareceu possível.

- Verificou nas agências de aluguer de automóveis, Paul?

- A que se quer referir?

- Quero-me referir aos automóveis alugados por uma pessoa, para ela própria guiar, mediante tanto por dia e tanto por quilómetro.

No rosto de Drake estamparam-se emoções diversas.

- Ela não... Oh, não! Meu Deus, Perry, talvez me tenha passado uma probabilidade com muitas possibilidades!

- Porque não havia de alugar um automóvel, carregá-lo com a bagagem, sentar-se ao volante, ir a uma das cidades dos arredores, arrendar uma casa, regressar com o automóvel e...?

- Diria que existe uma possibilidade em dez mil, mas verificarei. É tudo quanto nos resta.

- Trate disso depressa, Paul.

 

O julgamento recomeçou às duas horas em ponto.

- Chame a sua testemunha seguinte, senhor promotor de justiça - ordenou o juiz.

Hamilton hesitou, um instante, antes de dizer:

- Chamo Mae Wallis Jordan.

Mae Jordan, serena, discreta, e em passos lentos e firmes, como se se preparasse para uma tarefa havia muito antevista com o máximo desagrado, encaminhou-se para o lugar das testemunhas, prestou juramento, indicou o nome e a morada e sentou-se.

A voz de Hamilton Burger trasbordava simpatia, ao perguntar-lhe:

- Conhece o réu, Duane Jefferson, Miss Jordan?

- Conheço.

- Como travou conhecimento com ele?

- Deseja saber quando o vi pela primeira vez?

- Quando comunicou com ele pela primeira vez? E como?

- Vi-o pela primeira vez depois de ele cá chegar, mas havia algum tempo que me correspondia com ele.

- Em que data o viu pela primeira vez? Lembra-se?

- Lembro-me perfeitamente. Ele chegou de comboio e eu estava à sua espera, na estação.

- Em que data?

- No dia 17 de Maio.

- Deste ano?

- Sim.

- Mas trocara, anteriormente, correspondência com o réu?

- Trocara.

- Como começou essa correspondência?

- Começou de... de brincadeira.

- Em que sentido?

- Interesso-me por fotografia. Numa revista da especialidade veio um anúncio a propor a troca de estereo-fotografias coloridas de África por estereofotografias coloridas do deserto do sudoeste. Interessou-me a troca e escrevi para a caixa postal indicada.

- Na África do Sul?

- Devia escrever ao cuidado da revista, mas depois esta enviaria o correio à pessoa que publicara o anúncio, e que era...

- Um momento! - interrompeu Mason.- A testemunha não deve apresentar a conclusão a que chegou, pois não sabe quem publicou o anúncio. Isso só se poderá verificar nos registos da revista.

- Apresentá-los-emos - afirmou Hamilton Burger, cada vez mais eufórico. - No entanto, Miss Jordan, deixemos isso por agora. Que sucedeu?

- Troquei correspondência com o réu.

- Qual era a natureza geral dessa correspondência?

- perguntou Burger, e acrescentou, voltando-se para Mason: - Claro que pode protestar por não ser esta a melhor maneira de apresentar provas, mas estou a tentar apressar o julgamento.

- Desconfio sempre de quem tenta apressar um julgamento mediante a apresentação de provas secundárias

- redarguiu Mason, sorridente. - As cartas seriam a melhor prova.

- Só pretendo mostrar a natureza geral da correspondência - especificou Burger.

- Protesto, em virtude de não ser a melhor prova e de a pergunta requerer uma conclusão da testemunha.

- Protesto aceito - respondeu o juiz Hartley.

- Recebeu cartas da África do Sul? - perguntou Bur-ger à testemunha, em voz que traía ligeira irritação.

- Recebi.

- Como eram essas cartas assinadas?

- Bem... de várias maneiras.

- Que vem a ser isso? - perguntou Burger, desagradavelmente surpreendido. - Pensava que...

- Não importa o que o promotor de justiça pensava - interveio Mason. - Vamos aos factos.

- Como eram essas cartas assinadas? - repetiu Burger.

- As primeiras traziam a assinatura do réu, o seu nome.

- Onde estão agora essas cartas?

- Não existem.

- Não existem?

- Destruí-as.

- Descreva o conteúdo dessas cartas - pediu o promotor, melefluamente. - Excelência, como provei que a melhor prova já não existe, procuro demonstrar, mediante provas secundárias...

- Não há protestos - cortou o magistrado.

- Ia declarar - disse Mason - que gostaria de fazer algumas perguntas, em contra-interrogatório, acerca da natureza e conteúdo das cartas e de quando e como foram destruídas, a fim de ver se devia ou não protestar.

- Proteste primeiro e depois poderá fazer as perguntas - decidiu o juiz.

- Protesto, Excelência, em virtude de não se terem apresentado bases adequadas para a introdução de provas secundárias, e também porque, segundo agora parece, algumas dessas cartas nem traziam o nome do réu. Desejaria, por isso, fazer algumas perguntas, a este respeito.

- Pois faça-as - convidou Hamilton Burger, a sorrir. Mason dirigiu-se à testemunha:

- Disse que as cartas estavam assinadas de várias maneiras. Que significa, exactamente, tal afirmação?

- Bem... -começou a testemunha, e calou-se, hesitante.

- Prossiga.

- Enfim, algumas das cartas estavam assinadas com vários... com vários nomes jocosos.

- Como, por exemplo?

- “Papá das Pernas Longas”, era um deles. Ouviu-se na sala um estremecimento de riso, sufocado assim que o juiz Hartley franziu a testa.

- E outros?

- Eram vários... Compreende, trocávamos fotografias... fotografias jocosas.

- Que quer dizer com a expressão “fotografias jocosas”?

- Sou uma apaixonada pela fotografia, paixão que o réu compartilha, e... começámos a corresponder-nos formalmente, ao princípio, e pouco a pouco a correspondência tornou-se mais pessoal. Ele pediu-me uma fotografia minha e eu... de brincadeira...

- Continue - insistiu Mason. - Que fez?

- Tirara uma fotografia a uma solteirona já nada jovem, mas possuidora de um rosto interessante, que denotava muito carácter. Peguei numa fotografia minha, em fato de banho, e... enfim, procedi a um truque fotográfico, de modo que o rosto da solteirona ficou a encimar o meu corpo. Mandei a composição ao réu, convencida de que, se ele pretendia apenas namoriscar, mudaria de ideias.

- Foi uma brincadeira ou uma atitude destinada a enganá-lo?

- Essa primeira fotografia destinou-se a enganá-lo - respondeu a rapariga, muito corada. - O truque estava tão bem feito que seria impossível ele descobrir que se tratava de uma composição fotográfica - ou, pelo menos, eu julguei que lhe seria impossível.

- E pediu-lhe que, em troca, lhe mandasse também uma fotografia?

- Pedi.

- E recebeu alguma?

- Recebi.

- De que se tratava?

- Do focinho de uma girafa, de óculos, enxertado no corpanzil de um homem muito musculoso, sem dúvida um lutador ou um halterofilista.

- E, assim, a senhora ficou a saber que ele percebera que a sua fotografia era uma composição?

- Fiquei.

- Que sucedeu, depois?

- Trocámos várias fotografias jocosas, cada um a tentar ser um pouco mais exagerado do que o outro.

- E as cartas?

- As cartas eram assinadas com vários nomes, de certo modo condizentes com o tipo da fotografia.

- A senhora também assinava assim as cartas que lhe escrevia?

- Assinava.

- E ele as que lhe escrevia a si?

- Sim.

Em tom deliberadamente casual, Mason perguntou:

- Suponho que ele assinava as cartas que lhe escrevia com nomes do género de “Seu Príncipe” ou “Sir Galaad”?

- Sim.

- E “Príncipe Encantador”? A rapariga estremeceu.

- Sim... Na realidade, passou, no fim, a assinar todas as suas cartas com o nome de “Príncipe Encantador”.

- Onde se encontram agora essas cartas?

- Destruí-as.

- Sabe onde se encontram as cartas que a senhora lhe escreveu a ele?

- Des... destruí-as.

Hamilton Burger sorriu e comentou:

- Prossiga, Mr. Mason, prossiga... Está a ir muito bem!

- Como se apoderou delas?

- Fui... fui ao escritório dele.

- Quando ele lá estava?

- Eu... quando obtive as cartas, ele estava lá, de facto.

Mason sorriu, por sua vez, ao promotor de justiça.

- Suponho, Excelência - disse ao juiz -, que perguntei o que tinha a perguntar, acerca deste assunto. Prescindo do direito de ulterior interrogatório, quanto às cartas, mas insisto no meu protesto. A testemunha não pode jurar que essas cartas tenham sido enviadas pelo réu. Tinham a assinatura de “Príncipe Encantador” e outros nomes, que a própria testemunha qualificou de jocosos.

O magistrado perguntou a Mae Jordan:

- Essas cartas eram respostas a outras enviadas por si?

- Sim, Excelência.

- Como endereçava as cartas que lhe enviava?

- A “Duane Jefferson, ao cuidado da South African Gem Importing and Exploration Company”.

- Para o endereço da companhia na África do Sul?

- Sim, Excelência.

- Enviava essas cartas pelas vias normais de correio?

- Sim, Excelência.

- E recebia outras em resposta?

- Sim, Excelência.

- As cartas, pelo seu conteúdo, provavam ser respostas às enviadas por si?

- Sim, Excelência.

- Queimou essas cartas?

- Sim, Excelência.

- O protesto não é aceito - decidiu o juiz. - O promotor de justiça pode apresentar provas secundárias, quanto ao conteúdo das cartas.

Hamilton Burger inclinou levemente a cabeça e voltou a interrogar a testemunha:

- Descreva-nos o que diziam essas cartas que destruiu.

- Bem, o réu dizia que se sentia solitário, que estava longe das pessoas que conhecia, que não tinha raparigas amigas... Era tudo uma brincadeira. É tão difícil de explicar!

-Prossiga, explique o melhor que puder.

- Adoptámos a atitude de... bem, fingimos que se tratava de uma correspondência de corações solitários. Ele escrevia-me a dizer que era muito virtuoso e muito rico e que daria um bom marido, e eu respondia-lhe que era muito bonita e que... Oh, é impossível tentar explicar, a sangue-frio!

- Falta contextura, por assim dizer? - observou Burger.

- Exactamente. - preciso compreender o estado de espírito e os antecedentes, pois de contrário não é possível fazer uma ideia do que se tratava. As cartas, só por si, dariam Irremediavelmente a impressão de idiotas e estúpidas. Foi por isso que achei indispensável recuperá-las.

- E que fez?

- A certa altura, Duane Jefferson escreveu-me uma carta séria, a comunicar que a companhia decidira abrir uma sucursal nos Estados Unidos, aqui, nesta cidade, que lhe confiara a gerência e que ele estava ansioso por me conhecer.

- Que fez a senhora?

- De súbito, senti-me tomada de terrível pânico. Trocar correspondência brincalhona com um homem que se encontrava a milhares de quilómetros de distância, era uma coisa; mas encontrar-me, de repente, cara a cara com esse homem, era outra bem diferente. Senti-me constrangida e embaraçada.

- Prossiga.

- Bem, quando ele chegou... Quero dizer, ele telegrafou-me a avisar em que comboio chegava, eu fui esperá-lo e... e foi então que as coisas começaram a correr mal.

- Em que sentido?

- Tive a impressão de que pretendia correr comigo, além de não o achar o tipo de pessoa que esperara. Claro

- acrescentou, apressadamente - que fui uma grande idiota, ao formar uma ideia antecipada de um homem que nunca vira, mas a verdade é que acabara por ter uma grande consideração por ele. Julgava-o um amigo e sofri uma amarga decepção.

- E depois?

- Falei com ele duas ou três vezes, pelo telefone, e saímos uma noite juntos.

- E que sucedeu?

- O indivíduo mostrou-se absolutamente impossível.

- A testemunha quase estremeceu, de repugnância, e lançou um olhar furioso ao réu. - Assumiu ares condescendentes, mas de modo reles e espalhafatoso, e demonstrou, pela sua atitude, que interpretara erradamente o tom da minha correspondência. Considerava-me uma... tratou-me como se eu fosse... enfim, não demonstrou o mínimo respeito, a mínima consideração. Não deu mostras de possuir quaisquer sentimentos elevados.

- E que fez a senhora?

- Disse-lhe que queria reaver as minhas cartas.

- E ele?

- Redarguiu-me que lhas poderia comprar - respondeu a rapariga, e lançou novo olhar furioso a Duane Jefferson.

- Que fez a senhora?

- Decidi reaver as cartas. Eram minhas, aliás. -E depois?

- No dia 14 de Junho fui ao escritório, a uma hora em que sabia que nem o réu nem Mr. Irving lá se encontrariam.

- E que fez?

- Entrei no escritório.

- Com que intenção?

- Com a única intenção de encontrar as cartas que escrevera.

- Tinha motivos para crer que elas estavam no escritório?

- Tinha. Ele dissera-me que estavam na sua secretária e que eu as poderia ir buscar assim que cumprisse as suas condições.

- Que sucedeu?

- Não consegui encontrar as cartas. Procurei e tornei a procurar, abri as gavetas da secretária e...

- Continue - incitou Hamilton Burger.

- A porta abriu-se.

- E quem apareceu, à entrada?

- O réu, Duane Jefferson.

- Sozinho?

- Não. Acompanhava-o Walter Irving.

- Que sucedeu?

- O réu usou linguagem reles, chamou-me nomes que nunca ninguém me chamara.

- E depois?

- Correu para mim e...

- Que fez a senhora?

- Recuei, choquei com uma cadeira e caí. Então Mr. Irving agarrou-me pelos tornozelos e o réu acusou-me de bisbilhoteira. Respondi-lhe que estava ali apenas para reaver as minhas cartas.

- E depois?

- Ficou um momento parado, a olhar-me com aparente surpresa, e por fim disse a Mr. Irving: “Macacos me mordam se não a acredito!”

- E depois?

- O telefone tocou, Irving atendeu, escutou um momento e exclamou: “Meu Deus, a Polícia!”

- Continue.

- O réu correu para um ficheiro, abriu-o, tirou o maço das minhas cartas, atadas com um fio, estendeu-mas e disse: “Aqui tem, idiotazinha! Tome e saia daqui para fora! A Polícia procura-a. Alguém a viu entrar no escritório e avisou a Polícia. Está a ver a grande idiota que é?”

- Que mais?

- Começou a empurrar-me para a porta. Mr. Irving meteu-me qualquer coisa na mão e disse: “Tome, serão uma recompensa para calar a boca.”

- E que fez a senhora?

- Assim que me empurraram para fora da porta, corri para a sala de repouso das senhoras.

- Continue - incitou Burger.

- Mal abri a porta, vi o réu e Walter Irving saírem do escritório e correrem para a sala dos homens.

- E depois?

- Não esperei para ver mais nada. Entrei na sala, arranquei o cordel do maço das cartas, dei-lhes uma vista de olhos, para me certificar de que eram as minhas, e destruí-as.

- Como as destruiu?

- Meti-as no receptáculo das toalhas usadas, pois assim seriam recolhidas e queimadas.

- E que fez a seguir?

- Senti-me apanhada numa ratoeira. Sabia que a Polícia devia estar a chegar e...

- Continue.

- Tinha de fazer qualquer coisa, para sair dali.

- E que foi que fez? - insistiu o promotor de justiça, a sorrir.

- Pensei que as saídas deviam estar guardadas e que a pessoa que me vira certamente dera à Polícia uma boa descrição minha, por isso... olhei à minha volta, à procura de um esconderijo qualquer, e vi uma porta com o letreiro: “Perry Mason, advogado. Entrada”. Ouvira falar de Perry Mason, naturalmente, e pensei que talvez não fosse má Ideia consultá-lo, dizer-lhe que me queria divorciar, ou que tivera um acidente de automóvel... enfim, qualquer coisa, uma história capaz de o interessar e de me permitir estar no seu gabinete, quando a Polícia chegasse. Estava convencida de que seria capaz de o interessar o tempo suficiente para evitar a Polícia e sair quando esta desistisse da busca. Agora compreendo que era uma ideia louca, mas pareceu-me a única probabilidade de fuga. Afinal, a sorte estava comigo.

- Em que sentido?

- Parece que as secretárias de Mr. Mason esperavam uma dactilógrafa, que tinham telefonado à agência e esta ficara de lha mandar. Parei um momento à porta, hesitante, e a recepcionista julgou que eu era a dactilógrafa. Perguntou-me se era, respondi-lhe que sim e comecei a trabalhar.

- Trabalhou, então, no escritório de Perry Mason, essa tarde? - perguntou Burger, em tom melífluo.

- Sim, trabalhei lá um bocado.

- E depois?

- Quando a costa ficou livre, escapei-me.

- Quando foi isso?

- Estava a dactilografar um documento e receei que, se o acabasse, Mr. Mason telefonasse à agência, a fim de saber quanto devia pagar. Não sabia que fazer, se tal sucedesse. Por isso, quando tive uma boa aberta, esgueirei-me para a sala de repouso e daí para o elevador e para a rua.

- Falou em qualquer coisa que lhe meteram na mão. Sabe o que foi?

- Sei.

- O que foi?

- Diamantes. Dois diamantes.

- Quando o descobriu?

- Poucos minutos depois de começar a trabalhar. Metera na mala o que me tinham dado, e quando tive ensejo vi o que era. Encontrei dois embrulhinhos de papel de seda, retirei o papel e vi dois diamantes. Fiquei tomada de pânico. Compreendi, de súbito, que se aqueles indivíduos dissessem que a intrusa roubara diamantes do seu escritório, estaria em maus lençóis, pois não teria qualquer defesa aceitável. Por isso livrei-me das pedras. Compreendi que caíra numa armadilha.

- Que fez?

- Colei os diamantes ao interior do tampo da secretária onde estava a trabalhar, no escritório de Mr. Mason.

- Colou-os como?

- Com pastilha-elástica.

- Que quantidade de pastilha-elástica?

- Uma quantidade colossal! Tinha umas doze pastilhas, na mala, e mastiguei-as todas, para formar uma grande bola. Depois meti-lhe dentro os diamantes e colei tudo ao interior do tampo da secretária.

- Onde se encontram agora esses diamantes?

- Que eu saiba, ainda estão no mesmo sítio.

- Excelência, se permitir, sugiro que um funcionário do tribunal vá ao escritório de Perry Mason, com instruções para procurar no lugar descrito pela testemunha e trazer a pastilha-elástica com os dois diamantes.

O juiz Hartley olhou, interrogadoramente, para Perry Mason.

- Eu não me lembraria de protestar, Excelência - disse-lhe o advogado de defesa.

- Muito bem. O tribunal ordena, pois, que um funcionário vá buscar os diamantes e os apreenda.

- Peço que os vão buscar imediatamente, Excelência - pediu o promotor de justiça-, antes... bem, antes que lhes aconteça alguma coisa.

- Que lhes poderia acontecer? - inquiriu o magistrado.

- Bem, agora que se sabe... agora que o depoimento foi feito... enfim, desagradar-me-ia muito se acontecesse alguma coisa a essa prova.

- Também a mim! - afirmou Mason, sinceramente. - Alio-me ao pedido da acusação e sugiro que um dos ajudantes do promotor de justiça mande imediatamente um funcionário ao meu escritório.

- Pode indicar a secretária que foi utilizada por esta senhora? - perguntou-lhe Burger.

- Foi uma secretária que se encontra na biblioteca.

- Muito bem - comentou o juiz. - Pode encarregar-se desse assunto, senhor promotor de justiça, e depois continuar o interrogatório.

Hamilton Burger foi à mesa do escrivão e pegou na faca que fora anteriormente marcada, como prova.

- Estou a mostrar-lhe uma faca com uma lâmina de vinte centímetros e a palavra “Duane” gravada num dos lados do cabo e as iniciais “M. J.” do outro- disse à testemunha. - Conhece esta faca?

- Conheço. Fui eu que a enviei ao réu, para o endereço da África do Sul, como presente de Natal, o ano passado. Disse-lhe que a podia utilizar para proteger... para proteger a minha honra.

A testemunha começou a chorar.

- Creio que não tenho mais perguntas a fazer a esta testemunha - declarou Hamilton Burger, suavemente. - Pode contra-interrogar, Mr. Mason.

Mason esperou pacientemente que Mae Jordan enxugasse os olhos e o fitasse.

- É, creio, uma dactilógrafa muito rápida e perfeita?

- Tento ser competente.

- Trabalhou no meu escritório na tarde em questão?

- Trabalhei.

- Sabe alguma coisa acerca de pedras preciosas?

- Nem por isso.

- Sabe distinguir um diamante verdadeiro de um diamante de imitação?

- Não era preciso nenhum perito para identificar aquelas duas pedras. Eram diamantes de muita categoria. Percebi-o mal os vi.

- Comprou esses diamantes ao réu?

- Se comprei os diamantes ao réu? Que quer dizer?

- Pagou-lhe alguma coisa? Deu-lhe alguma compensação?

- Claro que não! - respondeu a testemunha, com veemência.

- Pagou as pedras a Mr. Irving?

- Não.

- Então sabia que elas não lhe pertenciam?

- Deram-mas.

- Ah! Então pensou que eram suas?

- Tive a certeza de que caíra numa armadilha, que eles diriam que me introduzira no seu escritório e roubara os diamantes. Seria a minha palavra contra a deles.

Sabia que não me tinham dado dois diamantes muito valiosos só para não falar da correspondência trocada.

- Diz que eles lhos deram. Recebeu-os de Jefferson ou de Irving?

- De Mr. Irving.

Mason observou, durante um momento, a arrogante testemunha, e depois perguntou-lhe:

- Começou a corresponder-se com o réu quando ele estava na África do Sul?

- Sim.

- E escreveu-lhe cartas de amor?

- Não eram cartas de amor.

- Tratavam de assuntos que não desejaria fossem lidos por este júri?

- Eram cartas patetas, Mr. Mason. Por favor, não tente revesti-las daquilo que não tinham.

- Estou a interrogá-la acerca da natureza das cartas.

- Eram muito patetas.

- Considerá-las-ia imprudentes?

- Creio que sim.

- Desejava reavê-las?

- Sentia... enfim, sentia-me muito idiota, em relação a todo o assunto.

- Por isso queria reaver as cartas?

- Sim, desejava muito reavê-las.

- E, para isso, não se importaria de cometer um delito?

- Queria as cartas.

- Responda à pergunta, por favor. Não se importaria de cometer um delito para reaver essas cartas?

- Não creio que seja delito entrar num escritório para reaver uma coisa que nos pertence.

- Sabia que era ilegal utilizar uma chave falsa para entrar em propriedade alheia, a fim de retirar certas coisas?

- Prentendia reaver uma coisa que me pertencia.

- Sabia que era ilegal utilizar uma chave falsa para abrir aquela porta?

- Eu... eu não consultei nenhum advogado para me informar dos meus direitos.

- Onde arranjou a chave com a qual abriu a porta?

- Não disse que tinha uma chave.

- Admitiu que entrou no escritório a uma hora em que sabia que Jefferson e Irving não estariam lá.

- E então? Fui buscar o que era meu.

- Se tinha uma chave que abriu a porta do escritório, onde a arranjou?

- Onde se costumam arranjar chaves?

- Numa loja de ferragens?

- Talvez.

- Adquiriu uma chave para abrir a porta do escritório numa loja de ferragens?

- Não responderei a nenhumas perguntas acerca de chaves.

- E se o juiz lhe disser que tem de responder?

- Recusar-me-ei, a pretexto de que qualquer depoimento meu acerca do modo como entrei no escritório me poderia incriminar. Em virtude disso, não sou obrigada a responder.

- Compreendo. Mas já admitiu que entrou ilegalmente no escritório. Portanto, qualquer tentativa feita agora para exercer a sua prerrogativa constitucional chegaria tarde.

- Se o tribunal permitisse, desejaria ser ouvido a este respeito - disse Burger. - Pensei no assunto com muita atenção. O tribunal notará que a testemunha se limitou a declarar que entrou no escritório a uma hora em que o réu e o seu colega estavam ausentes. Não disse como entrou no escritório. Tanto quanto o seu e depoimento permite deduzir, a porta podia muito bem estar aberta,  como se trata de um escritório público, onde se espera que entrem pessoas a fim de efectuarem transacções, não haveria nada de ilegal numa entrada, no caso de a porta não estar fechada à chave. A testemunha encontra-se, portanto, numa situação que lhe permite, se o desejar, recusar-se a dizer como entrou no escritório, a pretexto de que isso tenderia a incriminá-la. O juiz Hartley franziu o cenho.

- Essa é uma atitude muito fora do vulgar, numa testemunha chamada pela acusação, senhor promotor de justiça.

- O caso também é fora do vulgar, Excelência.

- Deseja ser ouvido a tal respeito, Mr. Mason? -perguntou o magistrado.

- Desejo fazer mais algumas perguntas à testemunha - respondeu o advogado, a sorrir.

- Oponho-me a mais contra-interrogatório acerca deste assunto - avisou Burger, em voz que denunciava irritação e uma certa apreensão. - A testemunha expôs claramente o que se passou. O advogado de defesa não se atreve a contra-interrogá-la acerca dos factos pertinentes, por isso insiste continuamente no pormenor de esta jovem, ao ceder às suas emoções, se ter colocado numa situação embaraçosa. Prolonga a tortura, como um gato a brincar com um rato, na esperança de, assim, influenciar o júri contra a testemunha. Esta foi clara: recusa-se a responder a perguntas acerca do ponto em questão.

Mason sorriu.

- Fui acusado de prolongar a tortura, na esperança de influenciar o júri. Não desejo tal coisa. O que desejaria, isso sim, seria obter informações que são necessárias aos jurados. Quando o promotor de justiça prolongou o interrogatório de Mr. Gilly, para tentar influenciar o júri contra o réu, ninguém me ouviu protestar. O que é bom para um, devia ser bom para o outro.

- O protesto do promotor não é aceito - decidiu o juiz, a sorrir. - O advogado de defesa pode continuar a interrogar.

- Quer dizer-nos o nome da pessoa que lhe forneceu a chave que lhe permitiu entrar no escritório da South African Gem Importing and Exploration Company?

- Não.

- Porquê?

- Porque, se respondesse, me poderia incriminar. Por isso recuso-me a responder.

- Discutiu esta fase do seu depoimento com o promotor de justiça?

- Excelência, aqui temos o velho truque tantas vezes usado pelos advogados de defesa! - protestou Burger.- Admito que esta testemunha discutiu o seu depoimento comigo. Não a chamaria se o seu depoimento não fosse pertinente e importante, e a única maneira de o saber era, falar com ela.

Sem desfitar a testemunha, Mason repetiu:

- Discutiu esta fase do seu depoimento com o promotor de justiça?

- Sim.

- E discutiu com ele o que aconteceria se lhe fizessem uma pergunta acerca do nome da pessoa que lhe forneceu a chave?

- Sim.

- E disse-lhe que se recusaria a depor a seu respeito, a pretexto de que isso a incriminaria?

- Sim.

- Foi a senhora que fez essa afirmação ao promotor de justiça, ou foi ele que lhe sugeriu que se podia recusar a responder, com esse fundamento?

- Bem, eu... eu... claro que conheço os meus direitos.

- Mas há pouco declarou não saber que fosse crime entrar num escritório para se apoderar de algo que lhe pertencia.

- Bem, eu... eu penso que se trata de um interessante ponto jurídico. Compreendo agora que um escritório público... isto é, um estabelecimento que se destina a estar aberto ao público, é diferente de uma residência particular. E como ia buscar o que me pertencia...

Mason sorriu.

- Quer dizer, Miss Jordan, que adopta, agora, a opinião de que não foi crime entrar no escritório?

- Não.

- Então adopta, agora, a opinião de que foi crime entrar no escritório?

- Agora compreendo que, dadas as circunstâncias... Recuso-me a responder à pergunta, a pretexto de que a resposta me pode incriminar.

- Por outras palavras, o promotor de justiça insinuou-lhe que devia considerar o seu gesto um crime e, portanto, se podia recusar a responder, quando eu a interrogasse?

- Discutimos o assunto.

- E foi o promotor de justiça quem sugeriu que, dadas as circunstâncias, se podia recusar a responder a certas perguntas que eu lhe fizesse, em contra-interrogatório?

- Eu disse ao promotor de justiça que não responderia a certas perguntas.

- E ele disse-lhe que poderia evitar responder-lhes se exigisse imunidade, a pretexto de que se podia incriminar?

- Sim, de certo modo, disse.

- Trazia dois diamantes consigo, quando saiu do escritório?

- Sim.

- Não lhe pertenciam?

- Tinham-me sido dados.

- Por quem?

- Por Mr. Irving, que me disse que os trouxesse.

- Ele disse-lhe porque os devia trazer?

- Disse-me que os trouxesse e calasse a boca.

- E a senhora trouxe-os?

- Sim.

- E calou a boca?

- Não sei o que quer dizer.

- Não falou a ninguém acerca dos diamantes?

- Naquela altura, não.

- Sabia que eram valiosos?

- Não sou estúpida, Mr. Mason.

- Pois não. Sabia que eram diamantes e sabia que eram valiosos?

- Certamente.

- E aceitou-os?

- Sim.

- Que lhes fez?

- Já disse o que lhes fiz. Colei-os ao interior do tampo da secretária do seu escritório.

- Porquê?

- Porque queria ter um lugar para os guardar.

- Podia tê-los metido na sua mala ou na sua algibeira.

- Não... não quis. Não queria ter de explicar como arranjara os diamantes.

- Ter de explicar a quem?

- A quem quer que me interrogasse.

- A Polícia?

- A quem quer que me interrogasse, Mr. Mason. Pressenti que caíra numa armadilha e que iria ser acusada de ter roubado os diamantes.

- Mas os diamantes foram-lhe dados?

- Foram, mas pensei que ninguém me acreditaria, se o dissesse.

- Nesse caso, não espera que o júri acredite, agora, na sua história?

- Protesto! - interveio Burger. - A pergunta é controversial.

- Protesto aceito.

- Não é verdade que quem lhe deu uma chave para entrar ilegal e criminosamente no escritório também lhe entregou um embrulhinho de diamantes, que deveria deixar num ponto qualquer do escritório, onde mais tarde seriam encontrados pela Polícia? - inquiriu Mason.

- Não!

- Não é verdade que entrou no prédio com esses diamantes, embrulhados em papel de seda; que os escondeu no escritório, do qual teve de fugir apressadamente, ao saber que a Polícia fora avisada; que, depois de entrar no meu escritório e começar a trabalhar, revistou a mala, para se certificar de que dispusera de todos os diamantes, e verificou, horrorizada, que dois dos diamantes que devia ter deixado no escritório tinham ficado na sua mala, e que, presa de pânico, tentou livrar-se deles pelo modo que descreveu?

- Um momento! - gritou o promotor. - Protesto, pois a pergunta presume factos que não foram provados e não é contra-interrogatório correcto, além de não haver base para...

- O protesto não é aceito - decidiu o juiz, secamente.

- Não é verdade que procedeu como acabei de descrever? - voltou Mason à carga.

- Não! Não levei nenhuns diamantes comigo, não tinha nenhuns diamantes comigo quando entrei no escritório.

- Mas não ousa dizer-nos quem lhe deu a chave do escritório?

- Recuso-me a responder a perguntas a esse respeito.

- Obrigado. Não desejo mais nada.

Mae Jordan afastou-se, enquanto os jurados a olhavam com certo cepticismo.

Hamilton Burger chamou outras testemunhas, a fim de estabelecer pormenores técnicos - tripulantes que determinaram a posição exacta do navio, quando Baxter saltara, passageiros que o tinham visto saltar e o proprietário de uma lancha que navegara nas imediações. Chamou, também, um perito policial, que tinha examinado as manchas de sangue do barco de Gilly e da faca e que afirmou tratar-se de sangue humano.

Perry Mason contra-interrogou o perito que examinara as manchas de sangue.

- Quando procedeu ao exame? - começou por lhe perguntar.

- No dia 19 de Junho.

- Quando as manchas de sangue já tinham, pelo menos, dez dias a duas semanas de existência?

- Creio que sim.

- No barco?

- Sim.

- Na faca?

- Sim.

- Podiam ter mais tempo?

- Podiam.

- Podiam ter um mês?

- Bem, podiam.

- A única base que tem para avaliar quando foram feitas essas manchas, no barco, são as palavras de Jack Gilly?

- Sim.

- Sabia que Jack Gilly já foi condenado por perjúrio?

A testemunha estremeceu.

- Protesto. A pergunta é incompetente, irrelevante e secundária e não constitui contra-interrogatóro correcto - declarou Burger.

- Protesto aceito. O advogado de defesa deve confinar o seu contra-interrogatório às manchas de sangue, à natureza dos exames efectuados e à competência profissional da testemunha.

- Não tenho mais perguntas a fazer - declarou Mason.

Max Dutton, a última testemunha da tarde de Burger, era claramente uma testemunha-surpresa. Declarou que residia em Bruxelas e que viera de avião, a pedido do promotor de justiça, a fim de depor. Era, informou, perito em pedras preciosas, e possuía um sistema de fazer modelos de pedras preciosas que tornava possível Identificá-las, desde que tivessem valor suficiente para valer a pena. Tirava medidas microscópicas das dimensões, dos ângulos, das facetas e de quaisquer falhas. A testemunha declarou conservar um registo permanente das identificações a que procedia, o que facilitava as avaliações, as operações do seguro e a identificação de pedras roubadas.

Trabalhara para Munroe Baxter, que lhe confiara algumas pedras e o encarregara de proceder à identificação das maiores, a fim de poderem, ser rapidamente identificadas, se necessário.

A testemunha tentou declarar o que Munroe Baxter lhe dissera, o que se passara quando lhe entregara as pedras, mas Perry Mason protestou e o juiz aceitou o protesto. No entanto, Hamilton Burger conseguiu demonstrar que os diamantes chegaram às mãos da testemunha numa caixa com o timbre da sucursal parisiense da South African Gem Importing and Exploration Company.

A testemunha declarou que escolhera as pedras maiores e fizera esquemas completos delas, para que pudessem ser identificadas. Acrescentou que examinara um embrulho de pedras preciosas que a Polícia lhe confiara e que, segundo deduzira, tinham sido encontradas na secretária do réu. Dez dessas pedras eram idênticas às que identificara cuidadosamente, a pedido de Baxter.

- Pode contra-interrogar - disse Burger a Mason.

- Esse seu sistema para identificação de pedras toma em consideração todas as possíveis marcas identificadoras?

- Toma.

- Portanto, permitiria a qualquer pessoa duplicá-las?

- Não, senhor, não permitiria. Pode cortar uma pedra de determinado tamanho e obter exactamente o mesmo ângulo das facetas de outra pedra, mas as falhas não teriam a mesma posição, em relação às facetas.

- No entanto, seria possível efectuar uma duplicação, desde que se encontrasse uma pedra com determinadas falhas?

- Isso quase equivale a perguntar se se podem duplicar impressões digitais, desde que se encontre uma pessoa que possua sulcos exactamente idênticos a outra.

- Deseja declarar, sob juramento, que o seu sistema de identificar pedras é tão exacto como a identificação de indivíduos por meio da ciência das impressões digitais?

A testemunha hesitou.

- Não é exactamente o mesmo - admitiu, por fim. - Não desejo mais nada - anunciou Mason, a sorrir. O julgamento foi interrompido, até ao dia seguinte. Enquanto Mason reunia os seus papéis, Walter Irving abriu caminho, através da multidão que saía da sala. Parou junto da mesa de Mason e sorriu-lhe, um pouco envergonhado.

- Creio que talvez lhe deva uma desculpa...

- Não me deve nada - replicou-lhe o advogado. - Mas, note, eu também não lhe devo nada.

- Não me deve nada, é certo, mas não deixarei de lhe pedir desculpa. E até lhe digo que essa tal Jordan é uma mentirosa descarada. Penso que entrou no escritório para lá deixar os diamantes e afirmo, além disso, que não se passou nada do que ela disse. Nós só voltámos do almoço depois de ela fazer no escritório o que pretendia fazer e se ter escapulido. Podemos prová-lo, o que chega para a desmascarar como mentirosa. Também não lhe dei diamantes nenhuns nem lhe disse que calasse a boca. Depois de a ver aqui, lembrei-me de já a ter visto à chegada do comboio. Encontrou-se com o Duane e tentou impor-se-lhe. Que me lembre, foi a única vez que lhe pus os olhos em cima. Aquela pequena deve estar a fazer um jogo muito arriscado, mas não joga sozinha. Há algo atrás de tudo aquilo, algo muito sinistro e maquinado por interesses poderosos, que obrigaram o promotor de justiça a fazer figura de parvo.

- Espero que seja assim. A propósito, onde esteve metido?

- Estive no México. Subestimei a sua competência, confesso, mas tentava dar-lhe oportunidade de fazer incidir as suspeitas em mim, se precisasse.

- Mas não precisei - declarou Mason, e acrescentou, significativamente: - Ainda.

Irving sorriu-lhe.

- Assim mesmo é que é, advogado! Poderá, em qualquer altura, meter-me uma rasteira e confundir as coisas, no espírito dos jurados, mesmo que não queira mostrar-se cordial comigo. Lembre-se de que estou às ordens, como suspeito.

- Não imagine que me esquecerei, alguma vez, disso - replicou-lhe Mason, a fitá-lo nos olhos.

O sorriso de Irving exprimia puro deleite. Os seus olhos castanhos-avermelhados sustentaram o olhar frio e duro do advogado, com inquebrantável afabilidade.

- Isso mesmo! Quando precisar de mim, estou às ordens. E, claro, posso confirmar o alibi do Duane, no tocante à manhã do dia 6: tomámos o pequeno almoço juntos, pouco depois das sete, chegámos ao escritório pouco antes das nove e estivemos juntos toda a manhã.

- E a respeito da noite de 5? Irving desviou os olhos.

- Então?

- O Duane foi a qualquer lado.

- Aonde?

- Saiu com uma mulher.

- Quem?

Irving encolheu os ombros.

- Viu o que está a acontecer aqui? - perguntou-lhe Mason. - Se o promotor de justiça conseguir levar as coisas ao ponto de me obrigar a chamar o réu a depor, a atitude de Jefferson, a sua arrogância e a sua recusa a responder a certas perguntas prejudicarão a sua causa, aos olhos do júri.

- Eu sei, eu compreendo perfeitamente as suas dificuldades. Antes de o chamar a depor, deixe-me falar com ele. Hei-de conseguir meter-lhe algum juizo na cabeça, mesmo que isso redunde na sua inimizade para o resto da vida. Em resumo, quero que o senhor saiba que pode contar inteiramente comigo.

- Pois sim. Consta-me que mandou um telegrama muito interessante à sua companhia, na África do Sul...

Sem deixar de sorrir nem desviar os olhos, Irving redarguiu:

- Recomendei à companhia que o despedisse. Mas esta noite enviarei outro telegrama, que será muito diferente. Não encontrou Marline Chaumont, pois não?

- Não.

O sorriso de Irving desvaneceu-se.

- Eu disse-lhe que não encontraria. Foi esse o seu único erro, Mason. Fora isso, está a sair-se muito bem.

E, como se estivesse absolutamente confiante da boa vontade de Mason, girou nos calcanhares e saiu do tribunal.

Á noite, no escritório, Mason andava de um lado para o outro.

- Com os demónios, Paul, porque se mostrará o Hamilton Burger tão inteiramente confiante?

- Bem, esta tarde, você meteu-lhe alguns sustos! Estava tão furioso que estremecia como uma taça de geleia!

- Eu sei que ele estava furioso, Paul. Estava furioso, estava irritado, estava aborrecido... mas também estava seguro de si. Hamilton Burger detesta-me. Gostaria de me ver empoleirado num ramo, sobre um poço muito fundo, e de cortar o ramo. Não se importaria, sequer, de apanhar alguns salpicos, quando eu caísse à água... Há qualquer coisa neste caso que nós ignoramos.

- Bem, mas que tem ele de positivo?

- Por enquanto, não tem nada, e é isso que me preocupa. Porque mostrará tanta confiança, se a sua acusação não vale nada? Tem uma mulher aventureira e contrabandista; tem um homem que se provou ter forjado um suicídio. O homem era bom nadador, tinha uma garrafa de ar comprimido escondida sob a roupa e fez exactamente o que estava planeado: representou uma cena de ciúmes, atirou-se ao mar e desapareceu, para que o julgassem morto.

“A seguir, Hamilton Burger apresentou como testemunha a escória da terra, o lixo da beira-mar: um homem que alugou deliberadamente um barco destinado a ser utilizado numa actividade ilegal, um homem que foi condenado duas vezes, uma delas por perjúrio. O júri não acreditará nele.”

- E a rapariga? - perguntou Della Street.

-Aí o caso muda de figura. A rapariga causou boa impressão ao júri. Aparentemente, contrataram-na para levar as pedras preciosas para o escritório e “plantá-las” lá. Os jurados desconhecem isso e aceitam-na pelo seu valor facial.

- Eu diria antes pelo valor da sua figura... - comentou Drake. - Porque a deixou safar-se com tanta facilidade?

- Porque cada vez que ela respondia a uma pergunta ficava mais perto do júri. Os jurados simpatizaram com ela, Paul. Tenciono chamá-la, para novo contra-interrogatório, mas quando o fizer quero saber tudo a seu respeito. Por isso, Paul, encarregue detectives de desenterrarem tudo quanto for possível acerca dela. Quero saber tudo acerca do seu passado e dos seus amigos, antes de a interrogar, assim como onde arranjou a chave que lhe deu acesso ao escritório.

Drake limitou-se a acenar com a cabeça.

- Então, Paul, quando começa a trabalhar? - perguntou-lhe o advogado, impaciente.

- Estou a trabalhar, Perry - respondeu-lhe o detective, a sorrir. - Não tenho feito outra coisa. Desta vez, li-lhe os pensamentos, adivinhei o que pretenderia. Assim que a rapariga deixou o lugar das testemunhas, pus uma quantidade de homens em campo. Dei o número deste telefone secreto à minha secretária, que pode telefonar de um momento para o outro com novidades.

- Merece uma medalha, Paul - elogiou Mason, a sorrir, também. - Com a breca, não há nada pior para um advogado do que contra-interrogar uma rapariga decente, que caiu no goto do júri! Não posso continuar a disparar às cegas, Paul. Da próxima vez que lhe apontar, quero ter munições que acertem em cheio no alvo. Há ainda mais uma coisa que quero que faça.

- O que é?

- Encontre Munroe Baxter.

- Não acredita que tenha morrido?

- Começo a pensar que o Walter Irving tem razão. O suposto irmão pateta de Marline Chaumont pode muito bem ser o Baxter, apesar dos registos hospitalares. Num caso desta amplitude, é possível que encontremos um grande buraco. Se o tipo do manicómio estava assim tão chalado, que impediria Marline Chaumont de o identificar como seu irmão, de o levar e de, em seguida, o despachar e o substituir por Munroe Baxter? Como vamos nós, no tocante a encontrá-la?

- Avançamos, graças à sua ideia. Não me perdoo a minha estupidez! Você tinha razão acerca do aluguer de automóveis. Duas dessas firmas têm agências mesmo no aeroporto. Para alugar um carro, é preciso mostrar a carta de condução, para haver a certeza de que o nome indicado é o verdadeiro.

- Quer dizer que Marline Chaumont alugou um automóvel em seu próprio nome?

- Exactamente. Mostrou a carta de condução, alugou um automóvel e levou-o.

- O irmão estava com ela?

- Nessa altura, não. Ela saiu do aeroporto de limusina, como passageira chegada, dirigiu-se à parte alta da cidade, com o irmão e duas malas, depois voltou, alugou um carro, levantou as outras duas malas, foi buscar o irmão e partiu.

- Para onde?

- Quem me dera sabê-lo! Mas talvez tenhamos possibilidade de o descobrir. O cálculo do aluguer baseia-se na quilometragem percorrida e numa importância diária.

O conta-quilómetros do automóvel, quando Marline Chaumont o devolveu, indicava que percorrera cem quilómetros.

Mason pensou um momento e deu um estalo com os dedos.

- Que temos agora? - perguntou Drake.

- Ela foi para uma das cidades suburbanas, onde alugou uma casa. Agora terá de alugar outro carro e, portanto, de mostrar, de novo, a carta de condução. Teve medo de conservar o automóvel que alugou no aeroporto, por pensar que podíamos averiguar por aí.

- E averiguaríamos decorridas poucas horas, apenas, se eu tivesse a cabeça no seu lugar - resmungou Drake.

- Muito bem. Ela alugou um carro no aeroporto, mas teve medo de que lhe seguíssemos o rastro, obtivéssemos o número do veículo e a apanhássemos. Por isso livrou-se dele o mais depressa que pôde. Foi a uma das cidades suburbanas e alugou outro, mais uma vez em seu próprio nome, por causa da exigência da carta. Ponha os seus homens em campo, Paul, e bata todas as agências de aluguer de automóveis dos arredores.

Paul levantou-se e espreguiçou-se.

- Estou arrasado. Não percebo como você aguenta um ritmo destes, Perry. - Levantou o auscultador do telefone e acrescentou: -Deixe-me telefonar para o escritório, para dar ordens a este respeito.

Marcou o número e, pouco depois, disse:

- Fala Paul. Quero um grupo de homens espalhados pelas cidades dos arredores, a fim de indagarem em todas as agências de aluguer de automóveis se Marline Chaumont alugou algum carro... Exactamente. Tudo, Podem... O quê?... Espere lá, repita isso devagar; quero tomar nota. Quem fez o relatório?... Está bem, mande-o cá imediatamente. Estou no escritório do Mason. E ponha-me esses homens a trabalhar.

Drake desligou e disse ao advogado:

- Temos qualquer coisa! -O quê?

- Encontrámos o ás que Hamilton Burger guarda na manga.

- Tem a certeza?

- Absoluta. Um dos detectives que investigaram o caso sabe o que é. Disse a um repórter que fosse amanhã ao tribunal, se o queria ver estraçalhado, a si, e o repórter espremeu-o, até descobrir de que se tratava. O repórter é muito amigo de um dos meus homens e avisou-nos.

- De que se trata?

- Teremos a história toda daqui a um minuto. Pedi que trouxessem o relatório. Diz respeito à mulher que o Duane Jefferson tenta proteger.

- Até que enfim começamos a ver alguma coisa, Paul! Se apanho essa informação, não quero saber para nada do que Burger tenciona conseguir com ela. Hei-de arranjar maneira de ser mais esperto do que ele.

Aguardaram ansiosamente que batessem à porta. Drake foi abrir, aceitou o sobrescrito que a secretária lhe trazia e perguntou-lhe:

- Não se esqueceu de mandar homens investigar o aluguer de automóveis?

- Já se está a tratar disso, Mr. Drake. Entreguei o assunto ao Davis, que ficou ao telefone.

- Óptimo. Perry, vou dar uma vista de olhos a isto e depois resumo.

Abriu o sobrescrito, tirou as folhas de papel fino, leu-as apressadamente e assobiou.

- Desembuche, homem! - impacientou-se Mason.

- Na noite de 5 de Junho, Jefferson esteve num clube nocturno com uma mulher. Foram no carro dela. O encarregado do parque de estacionamento arrumou o veículo e um cliente arranhou-lhe um guarda-lama. O encarregado tomou nota dos números das licenças e tudo o mais. A mulher assustou-se, deu-lhe vinte dólares e recomendou-lhe que esquecesse o assunto. Claro que o encarregado percebeu logo o que se passava... Ela era casada. Não há dúvida de que era Duane Jefferson quem estava com ela.

- E ela, quem era?

- Chama-se Nan Ormsby.

- Está bem, talvez eu me possa servir disso. Dependerá tudo do ponto aonde as coisas chegaram.

Drake, que continuara a ler o relatório, soltou, de súbito, outro assobio.

- Que mais temos, Paul?

- O jurado número 11 chama-se Alonzo Martin Liggett?

- Que se passa com ele?

- É amigo íntimo de Dan Ormsby, que é sócio da mulher, numa firma chamada “Nan & Dan, Correctores de Imóveis”. Nan Ormsby tem tido aborrecimentos com o marido e quer que ele lhe pague determinada importância, com o que Dan Ormsby não concorda. Até agora, ele não conseguiu descobrir nada contra ela. Com um jurado amigo do Ormsby neste julgamento, está a ver o que acontecerá...

- Meu Deus! - exclamou Mason. - Se o promotor usar isso...

- Não se esqueça de que o palpite veio direitinho do gabinete de Hamilton Burger.

Mason sentou-se, de testa franzida.

- A coisa está muito feia, Perry?

- A situação é perfeita para um promotor de justiça. Se me conseguir obrigar a chamar o meu cliente a depor, pode-se safar. O júri não vai gostar dos ares pseudobritânicos de Duane Jefferson nem da sua petulância. Você sabe os sentimentos que inspiram aqueles que lidam com os Ingleses e se acabam por tornar mais Ingleses do que os próprios Ingleses... Foi isso precisamente o que aconteceu ao Jefferson; aperfeiçoou todos esses maneirismos. O Hamilton Burger não deixará de o apertar... Andava a destruir um lar, saía com uma mulher casada... Está a ver o efeito, com um amigo do Ormsby no júri.

- Não tem nenhum modo de evitar isso, Perry?

- Tenho dois e não gosto de nenhum. Posso basear toda a minha luta na tentativa de provar que não existe nenhum corpus delicti e evitar, assim, que a causa seja apresentada ao júri, para decidir, ou, se o juiz não concordar comigo a esse respeito, posso chamar o réu a depor, mas limitar o meu interrogatório directo a perguntas destinadas a esclarecer onde ele estava às cinco da manhã do dia 6, e protestar como um danado se o promotor de justiça tentar interrogá-lo acerca da noite do dia 5. Como não perguntarei ao réu nada acerca da noite de 5, mas apenas acerca da manhã de 6, posso alegar que o promotor de justiça não o pode interrogar acerca daquela.

- O réu terá de negar, de modo geral, o cometimento do crime?

Mason acenou afirmativamente com a cabeça.

- E isso não abrirá caminho para lhe perguntarem onde estava, na noite de 5, quando o barco foi alugado?

- Segundo a causa apresentada pela acusação, o réu só foi visto na manhã de 6, depois do barco ter sido alugado- isto é, a causa da acusação apresentada até agora... Temos, a esse respeito, o depoimento de Jack Gilly.

- Bem, vou para o meu escritório, ver como andam as coisas. Porei os homens a trabalhar toda a noite. Aconselho-o a dormir um bocado, Perry.

Mason acenou com a cabeça, preocupado.

- Tenho de esclarecer esta embrulhada, Paul. Há uma espécie de sexto sentido que me avisa... Creio que é a atitude de Hamilton Burger que me faz desconfiar. Este é um dos julgamentos em que tenho de estar sempre atento, para não meter o pé em nenhuma armadilha.

- Bem, pense enquanto eu bato terreno... Entre os dois, talvez consigamos estar, amanhã, em melhor situação.

- Burger tem-se mostrado triunfante, embora a sua causa seja uma manta de retalhos... Não era a força da sua causa que o tornava triunfante e, sim, a fraqueza da minha...

- Mas agora que sabe o que se passa, pode desviar-se dos alçapões, Perry?

- Posso tentar - respondeu o advogado, pessimista.

 

O juiz Hartley reatou o julgamento às dez horas em ponto

- Desejo fazer mais umas perguntas a Mr. Max Dutton, o perito em pedras preciosas - anunciou Hamilton Burger.

- Um momento - pediu Mason. - Desejo apresentar uma moção, que me parece dever ser apresentada sem a presença do júri.

O juiz Hartley franziu a testa.

- Espero seja apresentada uma moção quando a acusação acabar de apresentar a sua causa. Não pode esperar para essa altura, Mr. Mason? Gostava de andar depressa com o julgamento.

- Uma das minhas moções pode esperar - respondeu Mason. - A outra, creio que pode ser apresentada na presença do júri. Trata-se de uma moção para que seja excluído todo o depoimento de Mae Jordan, com base no facto de não haver nada nesse depoimento que relacione o réu com qualquer crime.

- Mas a testemunha Dutton declarará que um dos diamantes encontrados na parte inferior da secretária de Perry Mason era idêntico a um dos diamantes da colecção de Munroe Baxter - alegou Burger.

- Isso não incrimina em nada o réu, Duane Jefferson. Não foi ele que deu os diamantes à testemunha Mae Jordan. Mesmo que tenhamos de aceitar o depoimento desta pelo seu valor facial, mesmo que tenhamos de admitir, por causa desta moção, que ela tirou os diamantes do escritório, em vez de ir ao escritório para lá deixar diamantes, mesmo assim, a acusação não poderá incriminar o réu por uma coisa que Walter Irving fez.

- Foi na presença dele e como parte de um empreendimento conjunto - protestou o promotor.

- Não provou nenhum desses pontos - rebateu Mason. O juiz coçou o queixo e observou:

- Sinto-me inclinado a pensar que a moção será bem aceita, senhor promotor de justiça. O tribunal tem pensado muito no assunto...

- Mas eu tenho uma boa causa! - afirmou, desesperado, Hamilton Burger. - Demonstrei que os diamantes estavam em poder de Munroe Baxter, quando saltou do navio. As pedras apareceram, a seguir, em poder do réu...

- Em poder do réu, não - corrigiu Mason.

- Num escritório do qual ele tinha uma chave! - replicou Burger, desesperado.

- O porteiro tinha uma chave, a mulher da limpeza tinha uma chave, Walter Irving tinha uma chave...

- Exactamente - corroborou o magistrado. - Antes de poder relacionar o réu com o caso, há que provar qualquer acto de domínio dele sobre os diamantes. É fundamental.

- Mas, Excelência, já demonstrámos esse acto de domínio! Dois dos diamantes em questão foram dados à testemunha Jordan, para que se calasse acerca das cartas. Demonstrámos que Munroe Baxter veio à superfície e se agarrou à linha que pendia da pesada cana de pesca; que o réu o apunhalou, se apoderou do cinto que continha os diamantes, atou um peso ao corpo e o rebocou para um ponto onde o pôde deixar cair para o fundo...

O juiz Hartley abanou a cabeça e interrompeu:

- Isso é diferente da moção relacionada com o depoimento de Mae Jordan. No entanto, se dermos crédito a todos os depoimentos das testemunhas da acusação e a todas as inferências a tirar delas, como teremos de fazer ao considerar tal moção, talvez haja uma inferência que baste para derrotar a moção. Permito, por isso, que a moção seja apresentada agora, mas reservo a minha decisão. Prossiga, senhor promotor de justiça.

Hamilton Burger chamou de novo Dutton, o qual declarou que uma das pedras encontradas no pedaço de pas-tilha-elástica colado à parte inferior do tampo da secretária de Mason fazia parte da colecção de Baxter.

- Não desejo fazer perguntas - declarou Mason, quando o promotor lhe entregou Dutton, para contra-interrogar.

- Termina assim - declarou Burger, dramática e inesperadamente - a causa da acusação.

- Neste momento, Excelência, desejava apresentar uma moção sem a presença do júri - declarou Mason.

- Os jurados são dispensados durante quinze minutos, período em que não esquecerão a anterior recomendação do tribunal - disse o magistrado.

Depois de os jurados saírem da sala, o juiz Hartley acenou com a cabeça a Mason e disse-lhe:

- Apresente a sua moção.

- Proponho que o tribunal aconselhe ao júri um veredicto de absolvição, visto não ter sido apresentada nenhuma causa que justificasse uma condenação e de não haver nenhuma prova demonstrativa de homicídio, nenhuma prova de corpus delicti e nenhuma prova a relacionar o réu com o caso.

- Não aceito a moção da defesa, Mr. Mason - decidiu o juiz. - Não pretendo tirar-lhe o direito de argumentar, mas o tribunal pensou muito atentamente neste assunto. Sabia que seria apresentada tal moção, mas desejo salientar-lhe que, embora geralmente a prova do corpus delicti inclua o achado do corpo, segundo a lei da Califórnia tal não é necessário. Corpus delicti significa o “corpo do delito”, e não o corpo da vítima.

“A prova de corpus delicti demonstra apenas que um crime foi cometido. Depois do cometimento do crime, é possível relacionar o réu com esse crime por meio de provas adequadas. O corpus delicti, ou o crime propriamente dito, como qualquer outro facto a estabelecer em tribunal, tanto pode ser provado circunstancialmente como por prova directa. Ora, podem-se tirar inferências razoáveis das provas concretas apresentadas.

“Temos provas - embora admita que não são muito firmes - de que Munroe Baxter, a pretensa vítima, transportava consigo determinados diamantes. Presumivelmente, não se teria separado deles sem lutar. Esses diamantes foram, depois, encontrados em circunstâncias que permitem, pelo menos, inferir que estavam sob o domínio e na posse do réu.

“Uma das provas mais fortes até agora apresentadas É a do achado da faca manchada de sangue, no barco. Admito que, se fosse jurado, não me deixaria impressionar muito pelo depoimento da testemunha Gilly; no entanto, um homem condenado por furto e por perjúrio pode muito bem dizer a verdade.

“Temos neste estado o processo do Ministério Público contra Cullen - 37 Califórnia 2º, 614, 234 Pacífico 2º, -, segundo o qual não é imprescindível que o corpo da vítima apareça, para fundamentar uma acusação de homicídio.

“Um dos casos mais interessantes jamais apresentados a julgamento, em qualquer país, foi o do Rei contra James Camb. Trata-se, evidentemente, de um processo Inglês, julgado na segunda-feira, 26 de Abril de 1948, perante o Lorde Juiz Supremo de Inglaterra, o famoso caso do Durban Oastle. James Camb, criado do barco, foi ao camarote de uma jovem passageira. Reconheceram-no lá. A jovem desapareceu e nunca mais foi vista. Não havia provas, a não ser circunstanciais, do corpus delicti, e o depoimento do próprio réu, o qual admitiu ter empurrado o corpo através da vigia, mas alegou que a mulher já estava morta, que morrera de causas naturais e ele se limitara a desfazer-se do corpo.

“No caso presente não temos, evidentemente, nenhuma admissão deste género, mas uma testemunha afirmou que o réu esteve num barco, enquanto um corpo grande - demasiado grande para ser um peixe - se prendia à linha da cana de pesca que o réu segurava. A mesma testemunha declarou ainda que o réu, ou o companheiro deste, se debruçou do barco e apunhalou o tal corpo, com uma faca. Mais tarde, encontrou-se no barco em questão uma faca suja de sangue humano, uma faca que pertencia ao réu. Creio que, dadas todas estas circunstâncias, a causa da acusação tem força suficiente para obrigar a defesa a rebatê-la, e creio também que, se o júri condenasse baseado nos depoimentos feitos, a condenação teria validade.”

Sorridente, Hamilton Burger declarou:

- Penso que, se o tribunal for paciente connosco, verá em breve que provámos, sem sombra de dúvida, um caso de assassínio.

O juiz Hartley olhou, quase desconfiado, para o promotor de justiça, e depois franziu os lábios e ordenou:

- Chamem o júri.

- Pronto, Jefferson - disse Mason ao seu cliente -, tenho de o chamar a depor. Não achou conveniente confiar em mim, como seu advogado, obrigou-me a defendê-lo com muito pouco auxílio da sua parte. Julgo poder provar que a testemunha Mae Jordan mentiu, ao dizer que o senhor chegou ao escritório enquanto ela lá estava. A rapariga da tabacaria declarará que você e o Irving só chegaram depois de o gerente do prédio se ter postado junto dos elevadores. Creio que, se conseguirmos provar que Mae Jordan mentiu acerca de uma coisa, poderemos demonstrar que o resto do seu depoimento não merece confiança. No entanto, ela causou impressão muito favorável ao júri.

Jefferson limitou-se a inclinar a cabeça, de modo friamente formal, e a comentar:

- Muito bem.

- Tem ainda alguns segundos. Deseja dizer-me aquilo que eu já devia saber?

- Sem dúvida. Estou inocente. É tudo quanto precisa de saber.

- Por que diabo não confia em mim?

- Porque há certas coisas que não direi a ninguém.

- Caso lhe interesse, sei onde esteve na noite de 5 de Junho, e o promotor de justiça também sabe.

Por momentos, Jefferson pareceu tornar-se rígido. Depois desviou o olhar e declarou, indiferente:

- Não responderei a nenhuma pergunta acerca da noite de 5 de Junho.

- Não responderá porque eu não lhe farei perguntas a esse respeito em interrogatório directo. Mas lembre-se de uma coisa: perguntar-lhe-ei onde esteve nas primeiras horas da manhã de 6 de Junho. Tenha o máximo cuidado em evitar que as suas respostas se relacionem com um período de tempo anterior a esse, pois se se relacionarem o promotor de justiça fá-lo em farrapos. O seu interrogatório, por mim, será muito, muito breve.

- Compreendo.

- Será apenas um gesto.

- Sim, senhor, compreendo.

O júri entrou e os jurados ocuparam os seus lugares.

- Está preparado para começar, Mr. Mason?-perguntou o juiz.

- Estou, sim, Excelência. Nem sequer incomodarei o tribunal e o júri com uma declaração preliminar. Vou fazer em tiras este tecido de mentiras e insinuações. A minha primeira testemunha será Ann Riddle.

Ann Riddle, a rapariga alta e loura da tabacaria, aproximou-se.

- Lembra-se do dia 14 de Junho deste ano?

- Lembro, sim.

- Onde se encontrava, nesse dia?

- Na tabacaria do prédio onde tem o seu escritório.

- E onde a South African Gem Importing and Exploration Company também tem escritório?

- Sim.

- Explora a tabacaria do prédio?

- Exploro.

- Lembra-se de o gerente do edifício se ter postado junto dos elevadores, com uma jovem?

- Lembro.

- Nessa altura viu o réu?

- Vi. Ele e Mr. Irving, o seu colega, regressavam do almoço e...

- Um momento - interrompeu-a Mason. - A senhora não sabe que eles voltavam do almoço) pois não?

- Não, senhor.

- Muito bem. Faça o favor de limitar as suas declarações ao que sucedeu.

- Bem, vi-os entrar no prédio. O gerente estava junto dos elevadores. Um deles - creio que foi Mr. Irving, mas não tenho a certeza - começou a encaminhar-se na direcção do gerente, mas viu que ele estava atento a qualquer coisa e desistiu. Entraram os dois no elevador.

- Isso aconteceu depois de ter sido dado o alarme acerca da entrada forçada no escritório?

- Foi, sim.

- Pode contra-interrogar - disse Mason a Burger.

- Não desejo fazer perguntas - declarou o promotor, sorridente.

- Chamo o réu, Duane Jefferson, a depor. ,. Frio e calmo, Duane Jefferson levantou-se e dirigiu-se, devagar, para o lugar das testemunhas. Por momentos, não olhou para o júri, e quando se dignou olhar foi com um ar de superioridade que raiava pelo desprezo. “O grandíssimo idiota!”, pensou Mason, irritado. Hamilton Burger recostou-se na cadeira, entrelaçou os dedos atrás da cabeça e piscou o olho a um dos seus ajudantes, ao mesmo tempo que um largo sorriso lhe alastrava pelo rosto.

- Matou Munroe Baxter? - perguntou Mason ao réu.

- Não, senhor.

- Sabia que os diamantes de que se tem falado estavam no seu escritório?

-Não, senhor. ; - Onde se encontrava na manhã de 6 de Junho? Ou melhor: onde esteve, das 2 da manhã de 6 de Junho até ao meio-dia?

- No espaço de tempo mencionado estive no meu apartamento, a dormir, até pouco depois das sete. Depois tomei o pequeno almoço com o meu colega, Walter Irving, e a seguir fomos para o escritório.

- Contra-interrogue! - disse Mason, maldosamente, a Burger.

- Serei muito breve. Só desejo fazer duas perguntas, Mr. Jefferson. Alguma vez foi condenado?

- Eu... - De súbito, Jefferson pareceu mirrar, na cadeira.

- Foi? - gritou Hamilton Burger.

- Cometi um erro, na minha vida - respondeu o réu. - Tenho tentado expiá-lo e creio que o consegui.

- Sério? - perguntou o promotor de justiça, desdenhosamente. - Onde foi condenado, Mr. Jefferson?

- Em Nova Iorque.

- Cumpriu pena em Sing Sing?

- Cumpri.

- Sob o nome de Duane Jefferson?

- Não, senhor.

- Sob que nome?

- Sob o nome de James Kincaid.

- Exactamente. Foi condenado por extorsão mediante logro e artifício.

- Fui.

- Fez-se passar por um herdeiro inglês, não foi? E disse...

-Protesto!-interrompeu Mason. - O promotor não tem o direito de ampliar a admissão.

- Protesto aceito.

- Foi, em certa altura, conhecido por “Gentleman Jim”, uma alcunha do baixo mundo?

- Protesto! - voltou Mason à carga.

- Protesto aceito.

- Não faço mais perguntas - declarou Burger, desdenhosamente.

O réu saiu, como que atordoado, do lugar das testemunhas.

- Chamo Mr. Walter Irving - disse Mason, de lábios arrepanhados de fúria.

Como ninguém respondesse, a chamada foi repetida nos corredores.

Paul Drake aproximou-se e fez sinal a Mason.

- Ele pisgou-se, Perry. Estava sentado junto da porta e pôs-se ao fresco assim que Burger interrogou Jefferson acerca do seu cadastro. Meu Deus, que desastre!

- Mr. Irving parece não estar presente, Mr. Mason - observou o juiz, não sem delicadeza. - Estava intimado?

- Estava, sim, Excelência.

- Deseja que o tribunal passe um mandado?

- Não, Excelência. Talvez Mr. Irving tivesse as suas razões para se ir embora.

- Certamente que teve - comentou o promotor, sarcástico.

- A defesa apresentou a sua causa - declarou Mason. Foi impossível a Hamilton Burger disfarçar o tom de exultante e malicioso triunfo, ao declarar:

- Desejo chamar apenas três testemunhas, na réplica. A primeira é Mrs. Agnes Elmer.

Mrs. Agnes Elmer identificou-se e indicou a morada. Era, explicou, a gerente do prédio onde o réu, Duane Jefferson, alugara um apartamento, pouco depois de chegar à cidade.

- Chamo a sua atenção para as primeiras horas da manhã de 6 de Junho - começou Hamilton Burger. - Sabe se Duane Jefferson estava no seu apartamento?

- Sei.

- Estava no apartamento?

- Não.

- Nessa noite dormiu alguém na cama dele?

- Não.

- Contra-interrogue.

Consciente de que o interrogatório breve e directo se destinava a estender-lhe uma armadilha, no contra-interrogatório, Mason flectiu os braços, devagar, como quem se espreguiça de fadiga, e indagou:

- Como determina a data, Mrs. Elmer?

- Tocaram pouco antes da meia-noite do dia 5. Quando atendi, uma voz de mulher disse-me ser absolutamente necessário que ela falasse com Mr. Jefferson. Disse que ele a metera em...

- Um momento - interrompeu Mason. - Excelência, oponho-me a que esta testemunha relate quaisquer conversas tidas sem que o réu estivesse presente.

- Mas, Excelência isto é absolutamente admissível! - argumentou Burger. - Foi o próprio advogado de defesa quem fez a pergunta. Quis saber como a testemunha determinava a data, e ela está-lhe a responder.

-Talvez o seu argumento tenha algum mérito técnico, senhor promotor de justiça - redarguiu o juiz -, mas estamos num tribunal de justiça e não a travar um desafio de tácticas jurídicas. Toda a natureza do seu interrogatório demonstra que o senhor teve o cuidado de o transformar numa armadilha onde o contra-interrogador caísse. Vou aceitar o protesto. Sirva-se das suas próprias testemunhas para apresentar a sua causa, sem estratagemas.

“Agora o tribunal pergunta à testemunha se não tem outro modo de determinar a data, isto é, se não a pode determinar baseada nas suas próprias acções.”

- Bem, sei que foi no dia 6 porque nesse dia fui ao dentista. Tive uma dor de dentes terrível, toda a noite, e não consegui dormir.

- E como determina a data em que foi ao dentista? - interrogou Mason.

- Pelo livro de marcações do dentista.

- Portanto, não sabe, por conhecimento próprio, em que data foi ao dentista. Sabe apenas a data mencionada no livro daquele, não é verdade?

- É.

- Ora o registo, no livro de marcações do dentista, não foi feito pelo seu punho. Por outras palavras, recorreu a uma conversa com o dentista para refrescar a memória.

- Bem, perguntei-lhe em que data lá fui e ele consultou o registo e disse-me.

- Exactamente. Mas não sabe, por conhecimento próprio, como ele faz os registos.

- Bem, ele deve fazê-lo... Mason interrompeu-a, a sorrir:

- A senhora não se lembra de nada, a não ser que foi na noite em que teve a dor de dentes, não é verdade?

- Bem, se o senhor tivesse tido uma dor de dentes daquelas...

- Perguntei-lhe se era essa a única maneira que tinha de determinar a data. O seu ponto de referência é apenas a dor de dentes?

- é.

-Mas, a pedido do promotor de justiça, tentou certificar-se da data?

- Sim.

- Quando lhe pediu o promotor de justiça que se certificasse?

- Não sei. Foi perto do fim do mês.

- Foi ao consultório do dentista ou telefonou-lhe? -. Telefonei-lhe.

- perguntou-lhe em que data o consultara? -Sim.

- Se não fosse assim, seria incapaz de dizer se foi no dia 6, 7 ou 8?

- Suponho que seria.

- Portanto, refrescou a memória aceitando a palavra de outrem. Por outras palavras, o seu depoimento, quanto à data, é pura e simplesmente depoimento por ouvir dizer?

- Excelência - interveio Burger -, creio que a testemunha tem o direito de refrescar a memória mediante... O juiz Hartley abanou a cabeça.

- A testemunha declarou não se lembrar da data, a não ser relacionando-a com outras circunstâncias - e essas circunstâncias, de que ela se vale para refrescar a memória, dependem do depoimento não jurado de outrem. Não há dúvida de que se trata de depoimento por ouvir dizer, senhor promotor de justiça.

Hamilton Burger inclinou a cabeça e murmurou: - Muito bem, Excelência.

- Não desejo mais nada - disse Mason.

- A acusação chama Josephine Cárter. Josephine Cárter prestou juramento e declarou que era telefonista do prédio onde o réu tinha um apartamento e que trabalhara das dez horas da noite do dia 5 de Julho às seis horas da manhã do dia 6. - Ligou para o réu, nessa noite?

- Liguei.

- Quando?

- Pouco antes da meia-noite. Disseram-me que era um assunto urgente e...

- Não interessa o que lhe disseram. Que fez?

- Liguei para o apartamento do réu.

- Obteve resposta?

- Não. A pessoa que lhe queria falar deixou um recado e recomendou-me que continuasse a ligar, para que Mr. Jefferson recebesse o recado assim que chegasse.

- A que intervalos ligou?

- De hora a hora.

- Até quando?

- Até acabar o meu turno, às seis da manhã.

- Obteve alguma resposta?

- Não.

- Da sua secretária, ao telefone, pode ver o corredor de acesso ao elevador e, se pode, manteve-se alerta, para ver se o réu chegava?

- Posso, e estive alerta, para ligar para o seu apartamento assim que ele chegasse.

- Mas ele não chegou enquanto esteve de serviço?

- Não.

- Tem a certeza?

- Absoluta.

- Contra-interrogue - disse Burger, secamente, a Mason.

- Como sabe que o telefone tocava?-perguntou Mason, a sorrir.

- Baixei a cavilha.

- Os telefones às vezes avariam-se, não avariam?

- Sim.

- Há no quadro algum sinal que lho permita verificar se o telefone para onde liga está a tocar?

- Captamos um som peculiar, quando o telefone toca, uma espécie de zumbido.

- E se o telefone não toca, também ouvem esse zumbido?

- Eu... Nunca tivemos aborrecimentos desses.

- Sabe, por conhecimento próprio, que não se ouve o zumbido, quando o telefone não toca?

- Pelo menos não devia ouvir.

- O que lhe estou a perguntar é se sabe, por conhecimento próprio, que não se ouve.

- Bem, Mr. Mason, nunca estive, ao mesmo tempo, num apartamento onde o telefone não tocasse e no P. B. X., a tentar ligar para esse apartamento.

- Exactamente. Era isso mesmo que eu queria demonstrar, Miss Cárter. Não desejo mais nada.

- Um momento - pediu Burger. - Desejo fazer mais uma pergunta, em interrogatório directo: esteve atenta a quem entrava e saía, para ver se Mr. Jefferson chegava?

- Estive.

- A sua secretária está colocada de maneira que lhe permitiria vê-lo, se ele chegasse?

- Está. Toda a gente que entra no prédio tem de passar por um corredor, e eu posso observar esse corredor através de uma porta de vidro.

- Não desejo mais nada - declarou Burger, sorridente.

- Desejo fazer uma ou duas perguntas em novo contra-interrogatório - disse Mason. - Não a incomodarei muito tempo, Miss Cárter. Disse que esteve atenta a toda a gente que entrava, para ver se o réu chegava.

- Estive, sim.

- Podia tê-lo visto se ele chegasse?

- Podia, sim. Facilmente. Do meu lugar no P. B. X. posso ver as pessoas que descem o corredor.

- Portanto, deseja convencer o tribunal e o júri de que tem a certeza de que o réu não chegou durante o tempo em que esteve de serviço?

- Bem, ele não chegou desde o momento em que liguei pela primeira vez para o seu apartamento até ao momento em que deixei de ligar, ao acabar o meu turno, às seis da manhã.

- E a que horas ligou pela primeira vez para casa dele?

- Foi antes da meia-noite. Onze horas ou um pouco mais, talvez.

- E depois?

- Depois liguei duas ou três vezes entre a primeira chamada e a uma hora, e depois da uma hora decidi ligar hora a hora.

- Uma tocadela breve ou...

- Não. Toquei repetidamente, todas as vezes.

- Depois da primeira ligação, cerca da meia-noite, adquiriu a certeza de que o réu não estava em casa?

- Sim.

- E, em virtude de estar atenta ao corredor, adquiriu a certeza de que ele não podia entrar e ir para o seu apartamento sem o ver?

- Sim.

- Então, se sabia que ele não estava no apartamento e sabia que ele não entrara, porque continuou a ligar, de hora a hora?

A testemunha olhou para Mason, começou a dizer qualquer coisa, calou-se, pestanejou e acabou por gaguejar:

- Bem, eu... eu... Não sei, liguei apenas.

- Por outras palavras, pensou haver uma possibilidade de ele ter entrado sem o ver?

- Bem, isso podia ter acontecido, de facto.

- Portanto, quando há pouco disse ao promotor de justiça que teria sido impossível o réu entrar sem o ver, estava equivocada?

- Eu... eu... discutira o assunto com o promotor de justiça e... enfim, pensava que era isso que devia dizer.

- Exactamente. Obrigado.

Josephine Cárter olhou para o promotor, para ver se haveria mais perguntas, mas Hamilton Burger estava a folhear, ostensivamente, alguns papéis, e limitou-se a resmungar:

- Não desejo nada.

Josephine Cárter abandonou o lugar das testemunhas.

- Agora chamo Ruth Dickey - anunciou Burger. Ruth Dickey prestou juramento e disse que trabalhava

- e trabalhara, no dia 14 de Junho - como empregada de um dos elevadores do prédio onde a South African Gem Importing and Exploration Company tinha o seu escritório.

- Viu Duane Jefferson, o réu, no dia 14 de Junho, pouco depois do meio-dia?

- Vi.

- Quando?

- Ele e Mr. Irving, o seu colega, desceram no elevador, comigo, ao meio-dia e dez. O réu disse que ia almoçar.

- Quando regressaram?

- Voltaram cerca do meio-dia e cinquenta e cinco e subiram no meu elevador.

- Aconteceu alguma coisa fora do normal, nesse dia?

- Aconteceu.

- O quê?

- O gerente do prédio e uma das estenógrafas meteram-se no meu elevador, e o gerente disse-me que descesse imediatamente para o rés-do-chão, visto tratar-se de uma emergência.

- Isso foi antes ou depois de o réu e Irving terem subido consigo?

- Depois.

- Tem a certeza?

- Tenho.

- Quanto tempo depois, mais ou menos?

- Pelo menos cinco minutos.

- Conhece bem o réu?

- Falei algumas vezes com ele.

- Alguma vez saiu com ele, socialmente?

A rapariga baixou os olhos, antes de responder:

- Sim.

- O réu disse-lhe alguma coisa acerca das suas relações com Ann Riddle, a jovem que explora a tabacaria?

- Disse. Contou-me que ele e o sócio a tinham instalado no negócio, que ela era uma espécie de vigilante, a favor deles, mas que ninguém sabia. Acrescentou que, se eu fosse simpática com ele, também poderia fazer alguma coisa por mim.

- Pode contra-interrogar - disse Hamilton Burger.

- Tem saído com outros homens, de vez em quando? - perguntou Mason à testemunha.

- Sim. “

- E, frequentemente, eles têm-lhe feito promessas loucas, acerca do que fariam por si se fosse simpática com eles, não é verdade?

A rapariga riu-se.

- Ficaria surpreendido se soubesse o que alguns deles dizem!

- Acredito - admitiu Mason. - Não desejo mais nada. Obrigado, Miss Dickey.

- É toda a nossa réplica - declarou Burger.

- Sei que é costume haver um intervalo antes de começarem as alegações finais - observou o juiz, compreensivo -, mas gostava muito de terminar este julgamento hoje. Creio que podemos, pelo menos, começar as alegações, a não ser que exista algum motivo para requerer uma interrupção.

Mason, de lábios comprimidos, abanou a cabeça e disse:

- Prossigamos.

- Muito bem. Senhor promotor de justiça, pode começar.

 

As alegações de Hamilton Burger foram relativamente breves. A sua exposição terminou uma horas depois de o julgamento recomeçar, a seguir ao intervalo para almoço. O seu discurso foi uma obra-prima de eloquência forense e triunfo selvagem, um ataque acerbo e vingativo ao réu e, implicitamente, ao seu advogado.

As alegações de Mason, a seguir, salientaram que, embora perjuros e ralé das docas tivessem atacado o seu cliente, ninguém demonstrara, ainda, que Munroe Baxter fora assassinado. Munroe Baxter, insistiu Mason, podia aparecer vivo e são de um momento para o outro, sem com isso desmentir o depoimento de qualquer testemunha.

A encerrar as suas alegações, Hamilton Burger recomendou ao tribunal que informasse o júri de que o corpus delicti tanto podia ser demonstrado por provas circunstanciais como por provas directas.

O juiz leu as instruções aos jurados, que se retiraram, a fim de deliberar.

Mason, com o rosto transformado numa máscara fria e dura, ficou na sala, a andar de um lado para o outro.

DellaStreet, sentada à mesa da defesa, seguia-o com o olhar, compreensiva e pesarosa. Paul Drake, tão deprimido que até perdera o apetite, estava sentado, com a cabeça apoiada nas mãos.

Mason viu as horas, suspirou, fatigado, e deixou-se cair numa cadeira.

- Há alguma possibilidade, Perry? -perguntou Drake.

- Com as provas e os depoimentos apresentados, não. O meu cliente está condenado. Teve alguma sorte com as investigações nas agências de aluguer de automóveis?

- Nenhuma, Perry. Investigámos em todas as agências, aqui e nos arredores.

- E a respeito de Walter Irving?

- Pôs-se na alheta. Saiu do tribunal, meteu-se num táxi e desapareceu. Desta vez, os meus homens sabiam o que ele tentaria fazer e foram mais difíceis de despistar, mas ao fim de uma hora estavam à nora. Foi uma hora dos diabos!

- Como o conseguiu ele?

- De um modo muito simples. Tratava-se, evidentemente, de parte de um plano pré-estabelecido. Tinha um helicóptero alugado, à sua espera num dos aeroportos suburbanos. Dirigiu-se para lá, meteu-se no helicóptero e levantou voo.

- Não é possível descobrir o que se passou? Não têm de preencher uma ficha de voo ou...

- Oh, nós sabemos muito bem o que sucedeu! Ele alugou o helicóptero para o levar ao aeroporto internacional, mas a meio do caminho mudou de ideias e convenceu o piloto a aterrar no aeroporto de Santa Mónica, onde o esperava um automóvel de aluguer.

- Quer dizer, sumiu-se?

- Por completo. Talvez lhe reencontremos a pista, mais tarde, mas além de não ser fácil já não valerá a pena.

Mason ficou pensativo. De súbito, sentou-se, muito direito, e exclamou:

- Paul, esquecemos uma possibilidade!

- Qual?

- Uma pessoa que aluga um automóvel tem de mostrar a carta de condução?

- Claro.

- Tem andado à procura de carros alugados por Marline Chaumont?

- Sim.

- Pois comece a procurar carros alugados em nome de Walter Irving! Ligue para os seus homens, estabeleça uma rede de busca! Preciso de informações, e depressa!

Drake, aparentemente satisfeito por poder abandonar a atmosfera deprimente da sala, respondeu:

- Pois sim, começarei imediatamente.

Pouco antes das cinco horas, uma campainha anunciou que o júri escolhera o veredicto. Os jurados voltaram à sala e o presidente do júri leu o veredicto:

- Nós, o júri encarregado de julgar esta causa, achamos o réu culpado de assassínio de primeiro grau.

Não houve recomendação de clemência nem para que a pena fosse de prisão perpétua.

O juiz fitou, compreensivo, Perry Mason, e perguntou-lhe:

- Podemos concordar numa data para ser pronunciada a sentença?

- Gostaria que fosse escolhida uma data breve, a fim de apresentar uma moção para um novo julgamento - declarou Mason. - Sugiro que sexta-feira seria conveniente para apresentar essa moção e pronunciar a sentença. Prescindimos do prazo habitual.

- E o gabinete do promotor de justiça? - perguntou o magistrado. - Sexta-feira está bem?

O ajudante do promotor de justiça, que se encontrava à mesa da acusação, respondeu:

- Bem, Excelência, acho que sim. Mr. Burger está em conferência com a Imprensa e...

- Pediu-lhe que representasse o gabinete do promotor de justiça?

- Pediu, sim, Excelência.

- Então represente-o! - ordenou o juiz, secamente. - Sexta-feira está bem?

- Está, Excelência.

- Sexta-feira, às dez da manhã. A audiência terminou. O réu continua sob custódia.

Os repórteres, que geralmente assediavam Perry Mason com pedidos de declarações, estavam agora fechados com Hamilton Burger. Os poucos espectadores que se tinham sentido suficientemente interessados para aguardar o veredicto, levantaram-se e saíram. Mason pegou na pasta e Della Street deu-lhe o braço e apertou-lho, amiga.

- O chefe avisou-o, não uma, mas uma dúzia de vezes. Ele não estava a pedir outra coisa.

Perry Mason limitou-se a acenar com a cabeça. Paul, que vinha a descer o corredor, anunciou:

- Tenho notícias, Perry.

- Ouviu o veredicto?

Os olhos do detective esquivaram-se aos do advogado.

- Que notícias traz?

- Walter Irving alugou um automóvel no dia em que Marline Chaumont desapareceu do aeroporto, e ontem à noite alugou outro.

- Bem me parecia. Devolveu o primeiro carro?

- Não.

- O pagamento do aluguer está em dia?

- Está.

- Não o podemos acusar de apropriação indevida do automóvel, para lançarmos a Polícia na pista do veículo?

- Parece que não.

Mason voltou-se para a secretária e perguntou-lhe:

- Della, tem um livro de apontamentos, na mala? A rapariga acenou afirmativamente.

- Muito bem, vamos.

- Aonde?-quis saber Dráke.

- Visitar Ann Riddle, a rapariga que explora a tabacaria do prédio. Talvez a consigamos apanhar antes de ela abandonar, também, o pombal. Hamilton Burger está tão ocupado com a Imprensa e a enfeitar-se com colares de flores, que nem tem tempo para pensar.

- Com a breca, Perry, é... - murmurou Drake, pesaroso. - Avalio o que deve sentir, com um cliente considerado culpado de assassínio de primeiro grau. É a primeira vez que um cliente seu é considerado culpado de assassínio.

Mason voltou-se para Paul Drake, fitou nele os olhos frios e duros e afirmou:

- O meu cliente não foi considerado culpado de nada.

Por momentos, Drake deu a impressão de ter ouvido mal. Depois viu no rosto de Mason algo que o levou a não fazer perguntas.

- Informe-se da morada da rapariga da tabacaria, e vamos - ordenou o advogado.

 

Mason, com uma máscara de implacável determinação, recusou a cadeira que a assustada loira lhe ofereceu.

- Pode falar agora ou mais tarde - advertiu-a. - Como quiser. Se falar agora, talvez lucre alguma coisa com isso; se falar mais tarde, será considerada culpada de cúmplice num assassínio. Decida.

- Não tenho nada a dizer.

- Irving e Jefferson entraram no prédio antes do alvoroço. Quando chegaram ao escritório, Mae Jordan estava lá. Apanharam-na. O telefone tocou e alguém os advertiu de que a Polícia fora avisada de que uma rapariga entrara indevidamente no escritório deles; de que a Polícia se dirigia para lá; de que a rapariga que vira a outra entrar no escritório estava de atalaia, com o gerente do prédio, junto dos elevadores. Só uma pessoa lhes podia ter dado tais informações: você.

- Não tem o direito de dizer semelhante coisa!

- Já a disse, e repito-a. A terceira vez que a disser será na sala de um tribunal. Amanhã de manhã, às dez horas, teremos devassado todo o seu passado e descoberto tudo acerca do que a liga a Irving. A essa hora, já não poderá fazer nada; será tarde. Cometeu perjúrio. Mandá-la-emos seguir. Agora comece a falar.

A rapariga desviou o olhar, incapaz de sustentar o de Mason, e mudou de posição na cadeira.

- Comece a falar - repetiu o advogado.

- Não tenho nada que lhe dizer. Não é a Polícia e...

- Comece a falar.

- Muito bem, pagaram-me para estar atenta e lhes telefonar se acontecesse algo suspeito. Não há nada de ilegal nisso.

- A história é mais profunda do que pretende fazer-me crer. Está metida na tramóia toda, foi com o dinheiro deles que adjudicou a exploração da tabacaria. Vamos, qual é o seu papel em tudo isto?

- Não pode provar nada do que diz, são acusações falsas e difamatórias. Duane Jefferson não disse àquela sirigaita o que ela contou no tribunal, e se disse mentiu.

- Comece a falar.

A rapariga hesitou, mas acabou por abanar, teimosamente a cabeça.

- Della, telefone à Brigada de Homicídios e chame o tenente Tragg. Diga-lhe que quero falar com ele.

DellaStreet encaminhou-se para o telefone.

- Eh, mais devagar!-protestou a loura.- Não pode... -Não posso o quê?-perguntou Mason, quando ela se calou, sem concluir a frase.

- Acusar-me de nada. Não tem provas nenhumas.

- Estou a arranjá-las. Paul Drake é um bom detective e encarregou alguns dos seus homens de arranjar essas provas, de averiguar o que você e o Irving andaram a fazer.

- Muito bem, suponhamos que o cavalheiro meu amigo me emprestou o dinheiro para explorar a tabacaria. Não há mal nenhum nisso. Sou maior e vacinada, posso fazer o que muito bem me apetecer.

- Esta é a sua última oportunidade. Walter Irving está a espalhar uma série de pistas falsas, para despistar possíveis perseguidores. Depois irá ter com Marline Chaumont, que está numa cidade dos arredores, e quando os dois se juntarem alguma coisa acontecerá. Irving deve-lhe ter indicado uma morada, onde poderia comunicar com ele em caso de emergência. Essa morada é o esconderijo de Marline. Onde é?

A rapariga abanou a cabeça.

Mason fez sinal a Della Street, que levantou o auscultador do telefone.

De súbito, a loura desatou a chorar.

- Brigada de Homicídios, por favor - pediu Della Street, depois de fazer a ligação.

- É em Santa Ana - disse a loura.

- Onde? - inquiriu Mason.

A rapariga abriu a mala, tirou um papel e estendeu-o a Mason. O advogado acenou com a cabeça e Della desligou o telefone.

- Venha - ordenou Mason.

- Que quer dizer? - protestou a loura.

- Ouviu-me bem. Não a deixaremos ficar aqui Para se servir do telefone. O caso é muito sério para nós.

- Não me pode obrigar a ir!

- Não a posso obrigar a ir comigo, mas Posso arranjar maneira de a fecharem bem fechada na esquadra. A única desvantagem, para nós, será um atraso de quinze minutos. Que prefere?

- Deixe de olhar para mim assim! Assusta-me.

- Estou a expor-lhe as coisas como elas são. Quer ser acusada de assassínio ou não quer?

- Eu...

- Vista-se.

Ann Riddle encaminhou-se para um armário.

- Vigie-a, Della - recomendou Mason. - Não queremos que se lembre de levar alguma arma.

Ann Riddle vestiu um casaco leve e pegou na mala, mas Paul abriu-a, para se certificar de que não continha nenhuma arma.

Desceram os quatro no elevador, em silêncio, meteram-se no automóvel de Mason e partiram.

 

A casa ficava num bairro residencial sossegado. Estava uma luz acesa, na sala, e um automóvel arrumado na garagem. Uma faixa húmida, no passeio, indicava que o relvado fora regado havia pouco.

Mason parou o carro, abriu a porta e subiu apressadamente os degraus do alpendre. Della correu atrás dele e Paul agarrou no braço de Ann Riddle.

Mason tocou à campainha e a porta abriu-se meia polegada.

- Quem é? - perguntou uma voz de mulher. Mason encostou-se à porta tão bruscamente que a abriu toda. Marline Chaumont cambaleou, para trás, e exclamou, assustada:

- Você!

- Vimos buscar o seu irmão - anunciou Mason.

- Mas não podem! O meu irmão... Não é da Polícia, non?

- Não, mas podemos ter aqui a Polícia em cinco minutos.

Um espasmo de cólera desfigurou o rosto de Marline Chaumont.

- Você! - atirou a palavra à loura como se lhe cuspisse. - Tinha de fazer jogo duplo!

- Não fiz! -protestou Ann Riddle. - Eu só...

- Eu sei o que você fez, sua traidora! Cuspo-lho em cima!

- Deixem-se agora de delicadezas - interveio Mason. - Onde está o homem que diz ser seu irmão?

- Mas ele é meu irmão! - Tretas.

- Fui-o buscar ao hospital...

- O homem que foi buscar ao hospital é tão seu irmão como eu. Serviu-se dele apenas para os seus fins, mais nada. Não sei o que lhe fez. Naturalmente meteu-o nalgum manicómio particular, algures. Quero o homem que o substituiu, e quero-o já.

- Não está bom da cabeça! - barafustou Marline Chaumont. - Não tem o direito de...

- Tome conta dela, Paul - disse Mason, e começou a encaminhar-se para as traseiras da casa.

- Será morto! - gritou a mulher. - Não pode fazer isto!

O advogado experimentou as portas, uma de cada vez. A terceira dava para um quarto. Um homem magro e pálido estava deitado na cama, algemado.

Um indivíduo corpulento, que estava sentado a ler uma revista, levantou-se, devagar, e berrou:

- Que diabo vem a ser isto? Mason mediu-o de alto a baixo.

- Parece-me um ex-polícia.

- Que tem você com isso?

- Provavelmente reformado. Tentou a sorte como detective particular, não se saiu muito bem, apareceu este trabalho...

- De que está a falar?

- Não sei que história eles lhe contaram e ignoro se você está ou não metido na alhada, mas seja o que for que lhe tenham dito, a brincadeira acabou. Sou Perry Mason, o advogado.

O homem que estava algemado na cama virou-se para Mason. Os seus olhos, tornados mortiços pelos sedativos, pareceram ter certa dificuldade em se fixarem.

- Quem é você? - perguntou, com a voz pastosa dos que falam a dormir.

- Vim tirá-lo daqui - disse-lhe Mason.

- Este homem é doente mental e tem tendência para ser violento - advertiu o guarda-costas. - Não pode ser solto, tem alucinações...

- Bem sei. O seu verdadeiro nome é Pierre Chaumont, mas ele pensa que é outra pessoa. Tem a mania de que o seu verdadeiro nome é...

- Eh, como sabe tudo isso? - perguntou o homenzarrão.

- Ofereceram-lhe um emprego seguro. Uma mulher impingiu-lhe uma grande conversa fiada e você, naturalmente, julga-a uma das mais doces e maravilhosas criaturas do mundo... É tempo de acordar. Quanto a este homem, vai imediatamente comigo. Primeiro iremos ao melhor médico que encontrarmos, depois... bem, depois preparar-nos-emos para comparecer a um encontro, na sexta-feira às dez da manhã. Nessa altura, você pode estar na cadeia ou ser um homem livre. Escolha agora. Estamos a separar os homens dos rapazes. Se está metido nesta embrulhada conscientemente, é cúmplice de um assassínio; se foi apenas contratado para servir de guarda a um homem que lhe disseram ser doente mental, o caso é diferente. Tem oportunidade de decidir, agora mesmo. Está lá em baixo um detective e a Polícia vem a caminho e deve chegar dentro de minutos. Quererão saber em que pé se encontra. Estou-lhe a dar uma oportunidade, a última.

O homenzarrão pestanejou, devagar.

- Diz que este homem não é um doente mental? - perguntou.

- Claro que não é.

- Eu vi os documentos! Trouxeram-no de um hospital...

- Quem tiraram do hospital foi outro tipo qualquer, que depois trocaram por este. Mas isto não é uma sociedade de debates. Decida-se.

- É Perry Mason, o advogado?

- Sou.

- Traz alguma identificação?

Mason estendeu-lhe o seu cartão e a carta de condução.

- Está bem - disse o outro, e suspirou. - Venceu.

 

O meirinho ordenou silêncio.

Hamilton Burger, com uma expressão de complacente contentamento, sorria à sua volta.

- Foi esta a hora marcada para se ouvir uma moção para um novo julgamento e para ser pronunciada a sentença contra Duane Jefferson - anunciou o juiz. - Deseja falar, Mr. Mason?

- Desejo, sim, Excelência. Peço um novo julgamento, a pretexto de que a causa foi julgada na ausência do réu.

- O quê?! - gritou Hamilton Burger. - O réu esteve sempre presente no tribunal! As actas demonstram-no.

- Quer fazer o favor de se levantar, Mr. Duane Jefferson? - pediu Mason.

O homem sentado a seu lado levantou-se, mas outro indivíduo, que estava sentado no meio da sala, também se levantou. O juiz Hartley fitou-o.

- Aproxime-se - pediu Mason.

- Um momento - interveio o magistrado. - Que significa isto, Mr. Mason?

- Pedi a Mr. Jefferson que se levantasse.

- Ele levantou-se - disse Burger.

- Exactamente.

- Quem é esse outro homem? - quis saber o juiz. - Uma testemunha?

- É Duane Jefferson - informou Mason.

- Um momento, um momento! - gritou Burger. - Que vem a ser isto? Que tramóia pretende a defesa engendrar? Esclareçamos as coisas de uma vez: o réu está ali, de pé, no interior da teia.

- E Duane Jefferson aproxima-se - disse Mason. - Peço um novo julgamento, com base no facto de todo o julgamento de Duane Jefferson, acusado de assassínio de primeiro grau, ter decorrido na sua ausência.

- Eu já devia esperar uma coisa destas!-gritou o promotor de justiça. - Mas a defesa não pode baralhar assim as coisas. Tanto faz que este homem seja Duane Jefferson ou John Doe. É o homem que cometeu o assassínio, é o homem que foi visto cometer o assassínio e é o homem que foi julgado pelo assassínio! Se usava o nome suposto de Duane Jefferson, isso não o impedirá de ser condenado pelo crime que cometeu.

- Mas alguns dos depoimentos que o promotor de justiça apresentou eram dirigidos contra o meu cliente, Duane Jefferson.

- O seu cliente? - perguntou Burger. - O seu cliente está aí, de pé, a seu lado.

Mason sorriu e abanou a cabeça.

- Este é que é o meu cliente - afirmou, e fez sinal ao homem que estava do lado de fora da teia para se aproximar. - Este é Duane Jefferson, foi para defender este homem que a South African Gem Importing and Exploration Company me contratou.

- Mas não foi a ele que o senhor defendeu - alegou Burger. - Não pode sair do atoleiro com toda essa facilidade.

- Estou a defendê-lo agora - declarou Mason, sempre sorridente.

- Pois defenda-o à vontade. Não é acusado de nada!

- Proponho novo julgamento, pois o anterior foi efectuado na ausência do réu.

- O réu está aí a seu lado!-teimou o promotor.- O julgamento efectuou-se na sua presença, foi a ele que o júri considerou culpado. Não quero saber desse outro homem para nada, seja qual for o seu nome.

- Mas apresentou provas constituídas por objectos pertencentes ao verdadeiro Duane Jefferson - lembrou Mason. - A faca, por exemplo. O conteúdo das cartas...

- Que quer dizer?

- Mae W. Jordan disse tudo acerca das cartas que recebera de Duane Jefferson e do conteúdo delas. Apresentei uma moção para que o depoimento dela fosse anulado, mas a minha moção não foi aceita e o júri baseou-se no depoimento acerca das cartas do “Papá das Pernas Longas”, acerca das cartas do “Príncipe Encantador”, acerca das fotografias cómicas, acerca da maneira como travaram conhecimento e acerca da faca!

- Um momento! - interveio o juiz. - O tribunal esta disposto a ouvi-lo, Mr. Mason, mas recorrerá a decisões severas se se verificar que tudo isto não passa da apresentação em termos dramáticos de um ponto técnico, com o fim de confundir as coisas.

- Eu tento, precisamente, esclarecê-las, Excelência. O que aconteceu é muito simples. Duane Jefferson, que está junto da cancela giratória de acesso ao interior da teia, é um empregado de confiança da South African Gem Importing and Exploration Company. Foi mandado a este país, na companhia de Walter Irving, da sucursal de Paris, para abrir uma nova sucursal. Deviam receber, pelo correio, diamantes no valor de meio milhão de dólares.

“Walter Irving, que andara a jogar forte, estava endividado e sabia que, pouco depois de sair de Paris, os livros seriam examinados e os seus desfalques descobertos.

“Este homem, James Kincaid, foi treinado para substituir Duane Jefferson. Quando as pedras chegassem, James Kincaid apoderar-se-ia delas e desapareceria. Walter Irving apressar-se-ia a comunicar à companhia o abuso de confiança de Jefferson e, depois, o corpo deste apareceria, em circunstâncias que dariam a impressão de ele se ter suicidado.

“O mal foi terem sido demasiado ambiciosos. Souberam que Munroe Baxter tencionava contrabandear diamantes para o país, e resolveram matar Baxter e apoderar-se das pedras. Na realidade, Walter Irving trabalhara com Baxter, acerca do contrabando, e, mediante uma remuneração, arranjara maneira de as pedras serem entregues àquele em circunstâncias tais que facilitariam o contrabando.

“O falso Duane Jefferson não precisou de ser muito esperto ou engenhoso, pois tencionava ter a remessa de pedras em seu poder - e o cadáver do verdadeiro Jefferson encontrado - muito antes de a Polícia poder iniciar uma investigação. No entanto, por via de uma questão de impostos, a remessa das pedras atrasou-se e, naturalmente, não lhes foi possível fazer desaparecer o falso Jefferson antes de os diamantes chegarem e Walter Irving poder informar a companhia do roubo. Por isso o verdadeiro Duane Jefferson teve de ser mantido vivo.”

- Excelência! Excelência! - bramou Burger. - Esta é apenas mais uma daquelas grandes cenas dramáticas que tornaram o advogado de defesa famoso. Desta vez o seu cliente foi considerado culpado de assassínio de primeiro grau, e eu tenciono intervir, pessoalmente, para que lhe seja aplicada a pena máxima.

Mason apontou o homem que se encontrava junto da teia e insistiu:

- Este é o meu cliente, foi este homem que me encarregaram de defender. Tenciono demonstrar que o seu julgamento se efectuou na sua ausência. Aproxime-se e preste juramento, Mr. Jefferson.

- Protesto, Excelência!-gritou o promotor de justiça.

- Oponho-me a tal procedimento. Insisto que o réu julgado é o único existente.

- Quero desvendar todos os pormenores deste assunto

- redarguiu o juiz -, e quero saber quais são, exactamente, os argumentos da defesa, antes de tomar qualquer decisão. O tribunal interrompe a sessão, durante quinze minutos, enquanto tentamos deslindar toda esta meada. Peço aos advogados de ambos os lados que se encontrem comigo no meu gabinete. Entretanto, o réu continua sob custódia.

Mason sorriu.

O homem alto e escaveirado, que se encontrava junto da teia, virou-se para trás, para a assistência. Mae Jor-dan aproximou-se dele e arriscou, com certa hesitação:

- Olá, Príncipe Encantador!

Os olhos de Jefferson iluminaram-se.

- Olá, Lady Guinevere! - murmurou, em voz baixa.

- Disseram-me que estaria aqui.

- Príncipe... Príncipe Encantador!

- Deixo-o sob a sua custódia, Miss Jordan - disse Mason, e encaminhou-se para o gabinete do juiz.

 

- Então? - perguntou o magistrado.

- Era um grande estratagema! - exclamou Mason. - Foi engendrado em Paris, assim que Walter Irving soube que o mandariam ajudar Duane Jefferson a abrir uma nova sucursal. Uma rapariga chamada Marline Chaumont, que fora uma espécie de anfitriã da companhia, em Paris, e que tinha muita experiência de trafulhices, estava ao corrente de tudo, assim como James Kincaid. Teriam conseguido os seus intentos se não tivessem, como se costuma dizer, maiores olhos do que barriga. Sabiam que Baxter planeava contrabandear para cá trezentos mil dólares de diamantes, e que Gilly devia ir recebê-los ao largo, no barco de pesca. Persuadiram Gilly de que Baxter mudara de ideias, por causa do seu cadastro, e que queria que fossem outros a levar o barco. Gilly mentiu, ao dizer por quanto alugou o barco. Recebeu dois mil e quinhentos dólares. Foi esse o preço combinado. Marline Chaumont entregou-me uma confissão jurada.

- Um momento - pediu o juiz. - Está a fazer estas declarações acerca do cliente que representa no tribunal?

- Eu não o represento no tribunal. Quem represento é o verdadeiro Duane Jefferson. Foi para defender esse que me contrataram. No entanto, sugiro que o tribunal lhe dê uma oportunidade de arranjar advogado ou nomeie um advogado para o representar. Ele também tem direito a novo julgamento.

- Não pode ter novo julgamento, mesmo que seja verdade o que disse - declarou Burger. - O senhor defendeu-o e perdeu a causa.

Mason sorriu-lhe friamente e replicou:

- Talvez conseguisse fazer valer essa teoria se não fosse o depoimento de Mae Jordan acerca da sua correspondência com Duane Jefferson. Essa correspondência foi trocada com o verdadeiro Duane Jefferson, e não com o homem que julgou por assassínio. Não pode considerar Duane Jefferson culpado de nada, porque ele não esteve presente durante o julgamento, e não pode fazer valer o veredicto do júri contra o homem agora julgado, porque se serviu de provas relacionadas com o verdadeiro Jefferson e não com ele.

“O que devia ter feito era verificar a identificação do homem que prendeu, mas estava tão ansioso por me pregar uma partida que, mal descobriu, pelas impressões digitais, que ele tinha cadastro, se deixou levar pelo entusiasmo.

“Permitiu que Mae Jordan depusesse acerca de uma quantidade de coisas passadas entre ela e o verdadeiro Jefferson, sem se lembrar de se certificar de que o homem a quem ela enviara a faca era o mesmo que estava a ser julgado por assassínio.

“O falso Jefferson e Irving drogaram o verdadeiro Jefferson, pouco depois de saírem de Chicago, de comboio. Roubaram-lhe todos os documentos, as cartas e a faca. Competir-lhe-á provar isso, no próximo julgamento... e eu não o ajudarei. Procure as provas, arranje-as. O que interessa agora é que tenho Marline Chaumont no meu escritório e que tenho aqui uma declaração jurada, feita por ela, declaração que entrego ao juiz e da qual dou uma cópia ao promotor de justiça.

“Só lhe desejo apresentar uma sugestão, Mr. Burger: se alguma vez quiser desembrulhar esta meada, aconselho-o a descobrir quem era o homem que estava no barco com Kincaid, pois não era Irving, com certeza.

“E agora peço ao tribunal que me liberte da minha responsabilidade em relação ao réu, James Kincaid, que se encontra lá fora, sob custódia. Induziu-me a defendê-lo por artifício, fraude e falsa identidade. O meu único cliente é Duane Jefferson.”

- Creio que devo falar com esse Duane Jefferson... - disse o juiz. - Suponho que pode provar a sua Identidade, sem qualquer margem para dúvidas, Mr. Mason?

- Tiraram-lhe as impressões digitais, por causa do serviço militar.

- Parece-me prova suficiente - concordou o magistrado, a sorrir. - Agora gostava de conversar com ele.

Mason levantou-se, foi à porta do gabinete e olhou para a sala do tribunal. Voltou-se para trás e sorriu ao juiz.

- Creio que terei de o interromper... Ele e a testemunha Mae Jordan estão a tagarelar a todo o vapor... Parece haver uma espécie de entendimento tácito, entre ambos. Suponho que isso se deve ao facto de se interessarem os dois por fotografia...

O sorriso do juiz tornou-se mais amplo.

- Talvez Miss Jordan esteja a dizer a Mr. Jefferson onde arranjou a tal chave...- insinuou, malicioso.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner

 

                      

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