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A DAMA DE MONSOREAU Vol.II / Alexandre Dumas
A DAMA DE MONSOREAU Vol.II / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DAMA DE MONSOREAU

Volume II

Primeira Parte

 

           O PRÍNCIPE E O AMIGO

O Chicot, como já vimos, tinha procurado debalde o duque de Anju pelas ruas de Paris durante a noite da Liga.

O duque de Guisa tinha convidado o príncipe a sair, mas este convite havia causado desconfiança à acautelada Alteza. Francisco tinha reflectido, e era homem que, depois de reflectir, excedia a serpente em prudência.

Contudo, como era interesse seu ver por seus próprios olhos as ocorrências daquela noite, resolveu-se a aceitar o convite, mas tomou ao mesmo tempo a resolução de não pôr os pés fora do palácio senão muito bem acompanhado.

Assim, como o homem que se receia de algum perigo lança mão da sua arma favorita, o duque foi buscar a sua espada, que era Bussy de Amboise.

Para que se resolvesse a dar semelhante passo, sempre era preciso que o medo o apertasse muito.

Bussy andava amuado desde o logro que Lhe havia pregado o duque na questão do Sr. de Monsoreau, e Francisco confessava a si próprio que ele, no lugar de Bussy, não se teria limitado a dar demonstrações de despeito ao príncipe que o houvesse atraiçoado duma maneira tão cruel.

Bussy, como todos os homens de organização superior, sentia mais vivamente a dor do que o prazer; quase sempre sucede que o homem intrépido em presença dos perigos, e indiferente e sereno à vista do ferro e do fogo, se deixa abater mais facilmente do que o cobarde pelos efeitos duma contrariedade.

Os homens que as mulheres conseguem enternecer com mais facilidade, são os que mais se fazem temer dos outros homens.

Bussy tinha adormecido, se assim se pode dizer, com a força da sua dor; tinha visto Diana recebida na corte, reconhecida como condessa de Monsoreau, admitida pela rainha Luísa no número das suas damas de honor; tinha visto mil espectadores curiosos devorarem com os olhos aquela formosura sem par, que ele havia descoberto e tirado do túmulo em que estava sepultada.

Durante uma noite inteira tinha conservado os olhos ardentes pregados em Diana, a qual nem uma única vez levantou para ele a vista, e no meio de todo o esplendor daquela função, Bussy, injusto como são todos os homens que amam deveras, Bussy, esquecido do passado e destruindo ele mesmo no seu espírito as recordações de todos os instantes de felicidade pretérita, Bussy, dizemos, não se lembrou do tormento que havia necessariamente de sofrer Diana para se conservar assim de olhos baixos, quando ela sabia que, se os levantasse, podia ver defronte de si um rosto coberto duma tristeza simpática no meio de todas aquelas fisionomias indiferentes, ou estupidamente curiosas.

Oh! Disse Bussy a si mesmo, quando viu que debalde esperava que Diana olhasse para ele, as mulheres só têm esperteza e audácia quando se trata de enganar o tutor, o marido ou a mãe; são todas cubardes quando se trata de pagar uma dívida de simples gratidão; é tal o seu receiu de darem a conhecer que amam alguém, ligam tamanha importância ao menor Favor que podem dispensar, que, para terem o gosto de Fazer desesperar o homem que as requesta, não hesitam em lhe despedaçar o coração. Diana podia dizer-me francamente: Fico-lhe muito obrigada por tudo quanto fez por minha causa, Sr. de Bussy, mas não Lhe tenho amor. E eu ou morria logo de paixão, ou ficava curado. Mas não, prefere deixar que eu lhe tenha amor e suspire por ela inutilmente; porém não há-de conseguir o seu fim, porque já a não amo, desprezo-a!

E afastou-se do círculo onde estava a rainha, com o coração a pular-Lhe de raiva. Bussy estava com o parecer tão transtornado, que, tendo olhado, quando ia a sair, para um espelho de Veneza que havia na sala, achou-se a si mesmo detestável.

Isto é uma loucura, disse ele, pois eu, por causa duma mulher que me despreza, hei-de tornar-me odioso a cem que me querem? Mas porque me despreza ela? Ou por causa de quem? Será por preferir aquele comprimido esqueleto de rosto lívido, que, sempre posto a dez passos dela, a olha continuamente com tanto ciúme. e que finge, ele também que não me vê? E lembrar-me eu que, se quisesse, dentro dum quarto de hora poderia tê-lo mudo e gelado debaixo dos meus joelhos, com dez polegadas da minha espada cravadas no coração; lembrar-me eu que, se quisesse, poderia salpicar aquele vestido branco com o sangue de quem nele coseu aquelas flores; lembrar-me eu que se quisesse, já que não consigu ser por ela amado, poderia obrigá-la a temer- me e odiar-me! Oh, sim: antes ela me tenha ódio, do que eu lhe seja indiferente! Sim, mas seria uma vingança vulgar e mesquinha; é o que faria um Quélus ou um Maugiron, se um Quélus ou um Maugiron fossem susceptiveis de ter amor a alguém. Antes quero parecer-me com aquele herói de plutarco que tanta admiração me causava, com o jovem Antíoco, que se deixou morrer de amor sem divulgar a sua paixão e sem proferir uma única queixa. Sim, calar-me-ei! Sim, eu que tenho lutado corpo a corpo com todos os homens temíveis desta época, eu, que já vi Crillon - o valente Crillon em pessoa, desarmado por mim e com a vida à minha disposição; sim, hei-de disfarçar a minha dor, hei-de sutorá-la na minha alma, como fez Hércules ao gigante Anteu, não o deixando tocar uma só vez com o pé na Esperança sua mãe. Não, nada me é impossível a mim, Bussy, a quem, como a Crillon, puseram a alcunha de Valente, e tudo quanto os heróis Fizeram, também eu hei-de fazer.

E dizendo estas palavras, abriu a mão com que estava rasgando convulsivamente o peito, limpou o suor da testa, e encaminhou-se vagarosamente para a porta; quando ali chegou, o seu primeiro impulso foi levantar arrebatadamente o reposteiro, mas teve bastante império sobre si mesmo para se revestir de paciência e serenidade, e saiu risonhu e tranquilo, mas com um vulcão no coração.

Encontrou no caminho o duque de Anju, e voltou o rosto, porque sentia que apesar de toda a sua firmeza não lhe era possível sorrir, nem mesmo cumprimentar o príncipe que lhe chamava seu amigo e que tão indignamente havia atraiçoado.

O príncipe, quando Bussy passou, proferiu o seu nome, mas ele nem sequer voltou rosto. Bussy foi para casa. Pôs a espada sobre a mesa, tirou o punhal da bainha, desacolchetou ele mesmo o gibão e a capa, e sentou-se numa cadeira de braços encostando a cabeça ao escudo de armas que servia de remate ao espaldar.

Os fâmulos viram-no absorto em seus pensamentos; julgaram que ele queria descansar, e saíram. Bussy, porém, não dormia; estava meditando.

Assim passou umas poucas de horas, sem reparar que na outra extremidade do aposento estava um homem, também sentado e observando-o com curiosidade, sem fazer um único gesto, sem proferir palavra, à espera, provavelmente, de poder entrar em comunicação com ele em virtude de algum movimento ou exclamação.

Finalmente, um arrepio de frio correu pelos ombros de Bussy e fê- lo estremecer; mas o observador não se mexeu.

O conde não tardou em bater o queixo; deixou cair os braços, e a cabeça resvalou-Lhe do espaldar da poltrona e caiu-Lhe sobre o ombro.

Nesse momento o homem que o observava levantou-se de onde estava dando um suspiro, e chegou-se a ele.

- O Senhor Conde - disse ele - está com febre!

O conde ergueu a fronte, que a febre tingira efectivamente de vermelho.

- Ah, és tu, Rémy - disse ele.

- Sim, Senhor Conde, estava aqui à sua espera.

- Aqui, e porquê?

- Porque ninguém se conserva muito tempo no lugar em que está incomodado.

- Obrigado, meu amigo - disse Bussy pegando na mão do mancebo. Rémy conservou entre as suas aquela mão terrível, tornada então mais débil do que a mão duma criança, e apertando-a com afecto e respeito de encontro ao coração:

- Ora vamos - disse ele -, é preciso sabermos, Senhor Conde, se quer conservar-se neste estado. Quer que a febre aumente e o deixe prostrado? Ponha-se de pé; quer combatê-la? Vá meter-se na cama, e mande que lhe leiam algum livro que sirva para lhe dar exemplos de ânimo e resignação.

O conde não tinha motivo algum para desobedecer ao médico: cumpriu a receita. Meteu-se na cama, e ali o acharam os amigos que o vieram visitar.

Rémy, durante todo o dia imediato, conservou-se à cabeceira do leito do conde; desempenhava as duplicadas funções de médico do corpo e de médico da alma; tinha bebidas refrigerantes para aquele, e palavras de consolação para esta.

No dia seguinte, que era aquele em que o Sr. de Guisa tinha ido ao Louvre, Bussy, logo que acordou, olhou para todos os lados, mas não viu Rémy.

Cansou, por fim pensou Bussy; é muito natural! O pobre rapaz não pôde resistir por mais tempo à tentação de ir tomar ar e gozar o sol; e demais, pode ser que Gertrudes já estivesse com saudades dele: Gertrudes é uma simples criada, mas tem-Lhe amor. Uma criada que sabe o que é amor é preferível a uma rainha sensível.

Assim se passou o dia, sem que Rémy aparecesse.

Bussy desejava vê-lo por isso mesmo que estava ausente; e sentia movimentos terríveis de impaciência contra o pobre rapaz.

Oh! murmurou ele uma ou duas vezes, e eu que ainda acreditava em gratidão e amizade! Não, daqui por diante não hei-de acreditar em mais nada. "

Ao anoitecer, quando as ruas já se iam enchendo gradualmente de povo e de rumores, e quando a escuridão já não deixava diferençar os objectos dentro do quarto, Bussy ouviu o som de muitas vozes na antecâmara.

Entrou um criado todo espavorido.

- É o Senhor Duque de Anju - disse ele.

- Mande entrar - replicou Bussy, carregando as sobrancelhas com a ideia de que o vinha procurar o amo de quem ele desprezava até mesmo as atenções.

O duque entrou. O quarto de Bussy estava sem luz; os corações magoados gostam da escuridão, porque a povoam com os fantasmas da imaginação.

- O teu aposento está muito escuro, Bussy - disse o duque -; isto deve causar-te tristeza. Bussy conservou-se calado; estava demasiadamente enfadado para querer falar.

- Estás doente a ponto tal - prosseguiu o duque - que não podes responder?

- Estou com efeito muito doente, meu Senhor - murmurou Bussy.

- Então é esse o motivo por que não te tenho visto em minha casa há dois dias? - disse o duque.

- Sim, meu Senhor - respondeu Bussy.

O príncipe, escandalizado com tanto laconismo, deu duas ou três voltas pelo quarto olhando para as esculturas que se distinguiam no meio da escuridão e apalpando as tapeçarias.

- Téns a casa muito bem posta, Bussy, segundo me parece - disse o duque. Bussy não respondeu.

- Meus Senhores - disse o duque para os seus gentis-homens -, conservem-se no quarto imediato, está visto que o meu pobre Bussy se acha realmente muito incomodado. Porque não mandaram avisar Miron? Não é muito que o médico dum rei trate de Bussy

Um dos criados de Bussy abanou a cabeça: o duque notou aquele movimento.

- Vamos, Bussy, tens algum motivo de desgosto? - perguntou o príncipe quase com afabilidade.

- Não sei - respondeu o conde.

O duque aproximou-se, semelhante a um amante que é maltratado, e que, quanto mais o repelem, mais submisso e condescendente se torna.

- Vamos. fala comigo, Bussy! - disse ele.

- Que pretende que lhe diga, meu Senhor?

- Estás enfadado comigo, não é assim? - perguntou ele mais baixo.

- Eu, enfadado? porquê? E demais, ninguém se enfada com um príncipe. Qual seria o resultado?.

O duque calou-se - Porém - disse Bussy tomando a palavra - estamos perdendo o tempo com preâmbulos. Tratemos do assunto que aqui o traz, meu Senhor.

O duque olhou espantado para Bussy.

- Precisa de mim, não é assim? - disse este último com incrível dureza.

- Ah, Sr. de Bussy!

- Decerto precisa de mim, ainda o repito; julga acaso que me persuado que é por amizade que vem ver-me? Não, por Deus! Porque a ninguém tem amizade.

- Oh, Bussy, pois tu dizes-me semelhantes palavras a mim?

- Vamos, acabemos com isto; fale, meu Senhor: que pretende? Quando um homem está ao serviço dum príncipe, e o príncipe, dissimula a ponto de lhe chamar seu amigo, é necessário agradecer-lhe a dissimulação e sacrificar-lhe tudo, até mesmo a vida. Fale, pois.

O duque corou; mas como não havia luz no quarto, ninguém o viu corar.

- Eu nada queria de ti, Bussy, e enganas-te - disse ele -, se pensas que a minha visita é interesseira. Só desejava, por estar o tempo tão lindo e toda Paris em movimento esta noite por causa da assinatura da Liga, ter-te na minha companhia para andarmos correndo a cidade, e gozarmos também alguma coisa.

Bussy olhou para o duque.

- Acaso não tem Aurilly? - disse ele.

- Um tocador de alaúde.

- Ah, meu Senhor, oculta as suas outras qualidades; parecia-me que ele desempenhava junto de si outras funções; e, além de Aurilly, tem demais a mais dez ou doze cavaleiros cujas espadas ouço retinir no sobrado da minha antecâmara.

O reposteiro ergueu-se vagarosamente.

- Quem está aí? - perguntou o duque com altivez. - Quem é que entra sem pedir licença no quarto onde eu estou?

- Sou eu, Rémy - respondeu o mancebo, entrando majestosamente e sem mostrar acanhamento algum.

- Quem é Rémy? - perguntou o duque.

- Rémy, meu Senhor - respondeu ele próprio -, é o médico do Senhor Conde.

- Rémy - disse Bussy -, é mais do que médico, meu Senhor, é meu amigo.

- Ah! - exclamou o duque oFendido.

- Ouviste o que deseja Sua Alteza? - perguntou Bussy, dispondo-se a saltar para fora da cama.

- Sim, quer que o Senhor Conde o acompanhe; mas.

- Mas o quê? - disse o duque.

- Mas não há-de acompanhar a Sua Alteza - respondeu Le Haudouin.

- E por que razão? - exclamou Francisco.

- Porque está muito frio na rua, meu Senhor.

- Muito frio? - disse o duque, admirado por ver que havia quem se atrevesse a resistir-Lhe.

- Sim, muito frio. E por isso, eu, que sou responsável pela saúde do Sr. de Bussy para com os seus amigos, e para comigo mesmo, proíbo-lhe que saia.

Bussy sempre se ia aprontando para saltar da cama, mas a mão de Rémy encontrou a dele, e apertou-Lha duma maneira muito significativa.

- Está bom - disse o duque. - Visto que se expõe a tamanho risco saindo, pode ficar. E Sua Alteza, ofendido ao vivo, deu dois passos para a porta.

Bussy não se mexeu.

O duque voltou ao pé da cama.

- Então já reflectiste - disse ele -, não te resolves a vir?

- Bem viu, meu Senhor - replicou Bussy -, que o médico me proibiu de sair.

- Deves consultar Miron, Bussy, é um grande doutor.

- Meu Senhor, eu antes quero um médico amigo do que um médico sábio - retorquiu Bussy.

- Pois então adeus!

- Adeus, meu Senhor!

E o duque saiu com grande estrépito.

Apenas ele saiu, Rémy, que o tinha seguido com a vista até passar a porta do palácio, correu ao doente.

- Ora bem, meu Senhor - disse ele -, trate de levantar-se, e quanto antes, se lhe aprouver.

- Para que me hei-de eu levantar?

- Para vir dar um passeio comigo. Está muito calor neste quarto.

- Mas há um instante dizias tu ao duque que estava muito frio na rua.

- A temperatura mudou desde que ele daqui saiu.

- De Forma que. - disse Bussy erguendo-se com curiosidade.

- De forma que, actualmente - respondeu Le Haudouin -, estou convencido que lhe há-de fazer bem tomar ar.

- Não entendo - disse Bussy.

- Entende acaso alguma coisa dos remédios que eu Lhe dou? E contudo sempre os toma. Vamos, arriba! Toca a levantar; um passeio com o Senhor Duque de Anju podia ser perigoso

com o médico é saudável; sou eu que Lho digo; já não tem confiança em mim? Se assim é, mande-me embora.

- Vamos lá - disse Bussy -, já que assim o queres.

- É preciso.

Bussy levantou-se, pálido e a tremer.

- Que interessante palidez! - disse Rémy. - Que lindo doente!. - Para onde vamos nós?

- Dar um passeio a um bairro onde eu estive hoje analisando os ares.

- E que notaste nesses ares?

- Que são muito eficazes para a cura da sua doença, meu Senhor.

Bussy vestiu-se.

- O meu chapéu e a minha espada - disse ele.

Pôs o chapéu na cabeça e cingiu a espada.

Em seguida saíram ambos.

 

         A IGREJA DE SANTA MARIA EGIPCIACA

Rémy deu o braço ao seu doente, voltou à esquerda, enfiou pela Rua Coquillière, e foi-a seguindo até à muralha.

- Tem graça! - disse Bussy - Vais-me levando na direcção das lagoas da Grande Batelière, e queres persuadir-me que os ares deste bairro são saudáveis?

- Tenha um bocadinho de paciência - disse Rémy -; vamos dar a volta pela Rua Pagevin, deixaremos à direita a Rua Breneuse, e depois tomaremos pela Rua Montmartre; verá que linda é a Rua Montmartre!

- Pensas então que a não conheço?

- Pois bem, se a conhece, não me será preciso perder tempo a fazer-lhe admirar as suas belezas; e passarei a mostrar-lhe, sem mais demora, uma ruazinha muito bonita. Venha andando, não lhe digo mais nada.

E, com efeito, depois de ter deixado a Porta de Montmartre à esquerda, e de ter dado uns duzentos passos, pouco mais ou menos, na rua do mesmo nome, Rémy voltou à direita.

- Então que é isto? - exclamou Bussy. - Voltamos agora para trás?

- Esta é a Rua da Gypecienne, ou da Egipcíaca, segundo a etimologia - replicou Rémy.

- Sei isso muito bem - disse Bussy -, mas ainda não respondeste à minha pergunta; onde vamos nós?

- Vê aquela igrejinha? - disse Rémy sem responder ao que lhe perguntava Bussy. Não admira como ela campeia com soberba entre a rua para onde tem o frontispício e o jardim da comunidade que Lhe fica na retaguarda? Aposto que nunca lhe deu na vista até ao dia de hoje?

- É verdade - respondeu Bussy -, nunca tinha reparado nela.

Bussy, como muitos outros Fidalgos, nunca tinha entrado na Igreja de Santa Maria Egípsiaca, templo inteiramente popular, e ao qual os fiéis que o frequentavam também davam o nome de Capela Quoqhéron.

- Muito bem! - disse Rémy - agora que já sabe como se chama a igreja, e que a examinou exteriormente, entremos para ver as vidraças da nave, que também são dignas de atenção.

Bussy olhou para Le Haudouin, e logo percebeu pelo sorriso do mancebo que não era por certo para examinar vidraças, que não se podiam ver à noite, que ele o queria induzir a entrar na igreja.

Mas ainda havia naquela igreja outra particularidade digna de se ver, e que àquela hora se podia examinar, por isso que a igreja estava aberta e iluminada para o ofício da noite; eram as pinturas singelas do século xv, como ainda há muitas na Itália, onde, graças à bondade o clima, se têm conservado, enquanto que, entre nós, a humidade por um lado e o vandalismo por outro, têm apagado das paredes dos nossos templos a maior parte daquelas tradições dos tempos passados, testemunhas duma fé que já não existe.

O rei Francisco I, fundador daquela igreja, tinha mandado pintar a fresco, nas paredes, a vida de Santa Maria Egipcíaca; ora, no número das passagens mais interessantes da vida da santa, o artista, pintor ingénuo e muito amigo da verdade, não diremos anatómica, mas pelo menos histórica, tinha representado, no lugar mais visível da capela- mor, aquele passo escabroso em que Santa Maria, não tendo dinheiro para pagar ao barqueiro, se Lhe oferece como salário da passagem.

Devemos dizer, em abono da verdade, que apesar da veneração que todos os fiéis tinham por Santa Maria Egipcíaca, muitas mulheres sisudas daquele bairro eram de parecer que o pintor deveria ter omitido aquele assunto, ou pelo menos tê-lo apresentado com mais algum rebuço, e a razão que elas davam, ou para melhor dizer, que elas não davam, era que certos pormenores do painel distraíam demasiadamente as vistas dos marçanos que os mercadores seus patrões traziam consigo à igreja aos domingos e dias santos.

Bussy olhou para Le Haudouin, o qual, tendo-se tornado marçano momentaneamente, estava dando a maior atenção à pintura de que se tratava.

- Dar-se-á o caso - disse ele - que tu te lembrasses de despertar em mim ideias anacreônticas com a vista da Capela de Santa Maria Egipcíaca? Se assim é, vieste bater a má porta. Isso é bom para frades ou para rapazes de escola.

- Deus me livre de semelhante ideia! - respondeu Le Haudouin - Omnis cogitatio lubinídosa cerebrum injcit.

- Pois bem, e depois?

- Não devemos tapar os olhos quando entramos aqui.

- Fala com franqueza: tu não me trouxeste aqui unicamente para vér as pernas da Santa Maria Egipcíaca.

- Foi para isso unicamente - respondeu Rémy.

- Pois então já vi; vamo-nos embora.

- Tenha paciência! O ofício está a acabar. Se saíssemos agora iríamos incomodar os fiéis. E Le Haudouin deteve Bussy, agarrando-Lhe no braço com brandura.

- Ah, agora já todos vão saindo - disse Rémy. - Façamos como os mais. Bussy dirigiu-se para a porta com uma distracção bem visível.

- Então que é isso? - disse Le Haudouin. - Vai sair sem tomar água benta? Onde demónio tem a cabeça?

Bussy, obediente como uma criança, encaminhou-se para a coluna em que estava colocada a pia.

Le Haudouin aproveitou o movimento do amo para fazer sinal a uma mulher, que também se encaminhou para a mesma coluna a que se dirigia Bussy.

E no mesmo momento em que o conde estendia a mão para a pia, que era uma concha sustentada por dois egípcios de mármore preto, outra mão, algum tanto grossa e avermelhada, mas que era contudo mão de mulher, veio ao encontro da sua, e molhou-lhe os dedos com a água lustral.

Bussy não pôde deixar de olhar para o rosto da mulher que lhe havia travado da mão; mas logo deu um passo para trás e descorou subitamente, porque acabava de conhecer Gertrudes, com a cara meio escondida num véu de lã preta.

Ficou com o braço estendido, sem se lembrar de se benzer, enquanto Gertrudes passava, cortejando-o e encaminhando-se para a porta da igreja.

Logo atrás de Gertrudes, cujos vigorosos cotovelos iam abrindo caminho, vinha outra mulher cuidadosamente coberta com uma mantilha de seda; tinha uma figura tão elegante e delicada, um pé tão lindo e uma cintura tão fina, que Bussy logo pensou que não havia no mundo senão uma única mulher que tivesse uma cintura, um pé e uma figura semelhantes.

Não foi preciso que Rémy lhe dissesse coisa alguma, olhou para ele simplesmente: Bussy percebia agora o motivo por que o mancebo o tinha trazido à Rua de Santa Maria Egipcíaca, e o havia levado à igreja.

Bussy seguiu a dama, Le Haudouin seguiu Bussy.

A vista daquela procissão de quatro vultos que seguiam a iguais distâncias teria sido coisa divertida, se a tristeza e a palidez de dois deles não dessem indícios de sofrimentos acerbos.

Gertrudes que se tinha conservado sempre na frente, voltou a esquina da Rua de Montmartre, deu alguns passos naquela rua, e de repente virou à direita para um beco, a meio do qual havia uma porta.

Bussy hesitou.

- Então, Senhor Conde - perguntou Rémy -, quer que Lhe pise os calcanhares?. Bussy andou para diante.

Gertrudes, sempre na frente, tirou uma chave da algibeira, abriu a porta, e deixou passar a ama, que entrou sem voltar a cabeça.

Le Haudouin disse duas palavras à criada, afastou-se para o lado, e deixou passar Bussy; depois entrou ele e mais Gertrudes, fecharam a porta, e o beco ficou outra vez deserto.

Eram sete horas e meia da noite, estava-se no princípio de Maio.

Bussy olhou em redor de si: estava num jardim que teria cinquenta pés quadrados, cercado de muros muito elevados, cobertos por uma parreira brava e alguns pés de hera, que espalhavam pelo ambiente o perfume acre e penetrante que a frescura da tarde exala das folhas.

As suaves emanações de alguns lilases, que o sol da manhã fizera desabrochar, despertaram o cérebro ainda vacilante do mancebo, que a si mesmo perguntava se tanto aroma, tanto calor e tanta vida de que estava gozando, ele, que havia apenas uma hora se achava tão só, tão fraco e tão abandonado, não provinha unicamente da presença da mulher a quem amava com tanta paixão.

Diana tinha-se sentado debaixo dum caramanchão de jasmins e clematites, num banquinho de madeira encostado à parede da igreja; estava com a cabeça baixa, as mãos inertes e caídas para os lados, e sobre a areia do jardim viam-se, espalhadas, as flores dum pé de goivos que ela apertava na mão, e que maquinalmente havia desfolhado.

Naquele mesmo instante um rouxinol, escondido num castanheiro próximo, começou a entoar a sua prolongada e melancólica cantiga, ornada de trinados que de quando em quando eram ruidosos como girândolas de foguetes.

Bussy estava só no jardim com a dama de Monsoreau, porque Rémy e Gertrudes tinham-se conservado a distância; chegou-se a ela; Diana levantou a cabeça.

- Senhor Conde - disse ela timidamente -, é escusado estarmos com rodeios: se me encontrou há pouco na Igreja de Santa Maria Egipcíaca, não foi o acaso que lá o levou.

- Não, minha Senhora - respondeu Bussy -; foi Le Haudouin que me obrigou a sair sem me dizer para que Fim, e juro-Lhe que eu não sabia.

- Não percebeu o sentido das minhas palavras, Senhor Conde - disse Diana com tristeza.

- Sim, eu bem sei que foi o Sr. Rémy que o levou à igreja, e contra sua vontade, talvez.

- Minha Senhora - replicou Bussy -, não foi contra minha vontade. Eu não sabia quem lá ia encontrar.

- Eis uma palavra bem dura, Senhor Conde - murmurou Diana abanando a cabeça e olhando para Bussy com lágrimas nos olhos. - Quer dar-me a entender que se soubesse o motivo por que Rémy desejava que o acompanhasse, não teria ido com ele?

- Oh, minha Senhora!.

- É muito natural e muito justo; prestou- me um serviço muito importante, e eu ainda, não agradeci a sua condescendência. Perdoe-me, e receba os meus mais sinceros agradecimentos.

- Minha Senhora.

Bussy parou; estava por tal forma atordoado, que não Lhe ocorriam nem palavras nem ideias.

- Eu quis mostrar-lhe - prosseguiu Diana animando-se - que não sou nenhuma ingrata

e que o meu coração tem boa memória. Fui eu quem pediu ao Sr. Rémy que me proporcionasse a honra de falar com o senhor; fui eu quem aprazei esse lugar para nos encontrarmos; perdoe-me se nisso lhe desagradei.

Bussy levou a mão ao coração.

- Oh, minha Senhora - disse ele -, não julga isso por certo!

As ideias iam renascendo naquele pobre coração dilacerado, e figurava-se-Lhe que aquela

suave brisa da noite, que lhe trazia tão doces perfumes e tão ternas palavras, Lhe tirava ao mesmo tempo uma venda dos olhos.

- Eu bem sei - continuou Diana, que estava mais senhora de si porque já vinha preparada para aquela entrevista - o incómodo que teve para desempenhar a incumbência que Lhe dei. Conheço a sua delicadeza. Fique certo que o conheço, e que sei avaliá-lo. Por isto que Lhe digo pode ajuizar da pena que me causou a ideia de que talvez interpretasse diferentemente os sentimentos do meu coração.

- Minha Senhora - disse Bussy -, há três dias que estou doente.

- Sim, bem sei - respondeu Diana, corando por tal forma que bem dava a conhecer o cuidado que lhe tinha dado aquela doença -; e eu ainda sofria mais, Senhor, pois que... mas era engano, provavelmente - pois que Rémy me fazia acreditar.

- Que eu sofria por julgar que me havia esquecido? Oh! é verdade!

- Era portanto obrigação minha dar o passo que dei, conde - replicou a dama de Monsoreau. - Quis vê-lo, para Lhe agradecer os muitos obséquios que Lhe devo e jurar-lhe grati dão eterna. acredite que lhe digo isto de todo o coração.

Bussy abanou a cabeça com tristeza e não respondeu.

- Duvida das minhas palavras? - perguntou Diana.

- Minha Senhora - respondeu Bussy -, toda a pessoa que tem amizade a outra dá-lho a conhecer conforme pode; sabia que eu estava no palácio na noite da sua apresentação na corte; sabia que eu estava defronte de si; devia necessariamente sentir o peso do meu olhar, e nem sequer levantou os olhos para mim; não me deu a conhecer, por uma palavra por um gesto, por um aceno, que sabia que eu estava ali; mas enfim, pode ser que eu não tenha razão, minha Senhora; talvez não me conhecesse, apenas me viu duas vezes.

Diana respondeu com um olhar tão magoado, que Bussy sentiu-se comovido até ao íntimo da alma.

- Perdão, minha Senhora, perdão - disse ele -; a senhora não é uma mulher como as mais, e contudo o seu procedimento foi como o de todas as mulheres em geral; aquele casamento.

- Não sabe porventura que fui obrigada a concluí-le, ?

- Sim, mas era fácil rompê-lo.

- Pelo contrário, era impossível.

- Pois não lhe dizia o coração que velava por si um homem que lhe era dedicado? Diana abriu os olhos.

- Era essa mesma circunstância que mais me assustava - disse ela.

- E eis as considerações que a induziram a sacrificar-me! Oh, imagine o que terá sido para mim a vida desde que pertence a outro!

- Senhor - disse a condessa com dignidade -, uma mulher nunca muda de nome sem que a sua honra sofra grave dano, sempre que existem vivos dois homens que têm, um, o nome que ela deixou, o outro, o nome que ela tomou.

- Contudo, sempre é certo que preferiu o nome de Monsoreau.

- Está persuadido disso? - balbuciou Diana. - Pois estimo muito! E os olhos arrasaram-se-Lhe de lágrimas.

Bussy, vendo-a inclinar a cabeça para o peito, encaminhou-se para ela com certa agitação.

- Finalmente - disse Bussy - estou tornado ao que dantes era, quero dizer, que sou hoje uma pessoa inteiramente estranha à senhora.

- Ah! - exclamou Diana.

- É o que o seu silêncio me dá a entender.

- Que posso eu dizer-lhe que não Lhe diga o meu silêncio?

- O seu silêncio, minha Senhora, é a continuação da recepção que me fez no Louvre. No Louvre não me viu, aqui não me fala.

- No Louvre tinha eu a meu lado o Sr. de Monsoreau, que estava olhando para mim e que é muito ciumento.

- Ciumento? E que mais quer ele, meu Deus! Que maior felicidade pode ele desejar, quando está gozando duma ventura que todos invejam?

- Digo-lhe que é ciumento, Senhor; há dias que anda desconfiado dum vulto que não se tira das imediações da nossa residência.

- Abandonou, pois, a casinha da Rua de Santo António?

- Pois quê? - exclamou Diana obedecendo a um movimento irreflectido. - Aquele vulto não era o senhor?

- Minha Senhora, desde que o seu casamento foi publicamente proclamado, desde que foi apresentada na corte, desde aquela noite do Louvre, finalmente, em que não se dignou olhar para mim, tenho estado de cama, devorado pela febre e quase morto; já vê que não é possível que seu marido tenha ciúmes de mim, por isso que não fui eu quem ele viu nas imediações da sua habitação.

- Pois bem, Senhor Conde, se é verdade, como me disse, que tinha desejos de me tornar a ver, agradeça-o ao tal desconhecido; porque eu, conhecendo o génio do Sr. de Monsoreau, fiquei a tremer não lhe sucedesse alguma desgraça quando vi o homem em questão, e quis falar-Lhe para lhe dizer: Evite expor assim a sua vida, Senhor Conde, não queira tornar-me ainda mais infeliz do que sou.

- Tranquilize-se, minha Senhora, torno a repetir-lhe que não era eu.

- Agora, deixe que eu conclua tudo quanto tinha a dizer-Lhe. O Sr. de Monsoreau, com receio daquele homem que nós não conhecemos, mas que ele conhece talvez, exige que eu me retire de Paris; de forma que. - prosseguiu Diana estendendo a mão a Bussy - de forma que, o Senhor Conde pode considerar esta entrevista como a última. Parto amanhã para Méridor.

- Vai partir, minha Senhora? - exclamou Bussy.

- É o único meio de tranquilizar o Sr. de Monsoreau - disse Diana -; só assim poderei viver sossegada. E demais, eu detesto Paris, detesto a sociedade, a corte e o Louvre. Estimo que se me proporcione ocasião de ir viver sozinha com as minhas recordações da mocidade; parece-me que quando tornar ao sítio onde decorreram os anos da minha infância, ainda hei-de encontrar um bocadinho da minha felicidade passada que me há-de consolar o coração.

Meu pai vai comigo. Vou encontrar em Méridor o Sr. e a Sr. a de Saint-Luc, que estão ambos

com saudades de me verem. Adeus, Sr. de Bussy.

Bussy escondeu o rosto com as mãos.

- Bem - murmurou ele -, acabou-se tudo para mim. - Que está dizendo! - exclamou Diana levantando-se.

- Digo, minha Senhora, que esse homem que a desterra, que me priva da única esperança que ainda me restava, que era respirar o mesmo ar, vê-la alguma vez por detrás duma gelosia, tocar no seu vestido quando por mim passasse, adorar, enfim, um ente vivo, e não uma

sombra; digo que esse homem é meu inimigo mortal, e que, ainda que me custe a vida, hei- de matá-lo por minhas próprias mãos.

- Oh, Senhor Conde!

- Que miserável! - exclamou Bussy - pois não Lhe basta ter por esposa a mais formosa e a mais casta das mulheres, ainda tem ciúmes!... Ciumento! Monstro ridículo e devorador, era capaz de absorver o mundo!

- Oh, sossegue, conde, sossegue, meu Deus!... ele tem alguma desculpa talvez...

- Tem desculpa, e é a senhora que o defende?

- Oh, se soubesse!... - disse Diana cobrindo o rosto com ambas as mãos, como se

receasse que Bussy a visse corar apesar da escuridão.

- Se eu soubesse?... - repetiu Bussy. - Eu sei uma coisa, minha Senhora, e é que quem

tem a ventura de ser seu marido não se deve lembrar de mais nada neste mundo.

- Porém... - atalhou Diana com voz entrecortada, surda e ardente - porém se se enganasse, Senhor Conde... e se ele o não fosse?...

E ao proferir estas palavras, apertando com a mão Fria de gelo as mãos abrasadas de Bussy Diana levantou-se e fugiu, com a ligeireza duma sombra, pelas sinuosidades umbrosas do

jardim; agarrou no braço de Gertrudes e desapareceu levando-a consigo, antes que Bussy

inebriado, radiante, sem saber o que fazia, tivesse tempo de estender os braços para a deter.

Deu simplesmente um grito e levantou-se a cambalear.

Rémy chegou a tempo de o amparar nos braços e sentou-se no banco que Diana acabava

de deixar.

 

         D'ÉPERNON FICA COM O GIBÃO RASGADO E SCHOMBERG PINTADO DE AZUL

Enquanto mestre La Hurière amontoava assinaturas nos seus registos, e Chicot ia deitar Gorenflot na estalagem da Cornucópia, e Bussy tornava à vida naquele bem-aventurado jardim cheio de aromas, de melodia e de amor, Henrique III, triste e sombrio em consequência do que vira pela cidade, justamente irritado pelas pregações que ouvira nas igrejas, furioso por ter observado as cortesias misteriosas dirigidas a seu irmão de Anju, que ele vira passar pela sua frente na Rua de Santo Honorato, acompanhado pelo Sr. de Guisa e pelo Sr. de Maiena, e com uma comitiva de gentis-homens que pareciam capitaneados pelo Sr. de Monsoreau, Henrique III, dissemos, voltara para o Louvre acompanhado de Maugiron e de Quélus.

O rei, conForme o seu costume, saíra com os seus quatro amigos; porém, logo a alguns passos do Louvre, Schomberg e d'pernon, aborrecidos de verem Henrique tão triste, e imaginando que no meio de tamanho rebuliço não deixariam de encontrar divertimentos e aventuras, tinham aproveitado o primeiro encontrão para desaparecerem à esquina da Rua de L'Astruce e enquanto o rei, com os seus dois companheiros, ia seguindo pelo cais adiante, foram eles pela Rua de Orleães.

Ainda bem não tinham dado cem passos, já cada um deles tinha achado a sua aventura. D'pernon tinha metido a sarabatana pelas pernas dum burguês que ia correndo e que foi logo parar de ventas no chão; e Schomberg tinha tirado a touca a uma mulher, julgando que era feia e velha, mas que, por acaso, era jovem e bonita.

Ambos tinham escolhido mal o dia para caçoarem os bons parisienses, ordinariamente tão pacíficos; girava pelas ruas aquela febre de rebelião que às vezes se desenvolve dentro dos muros das capitais.

O burguês que tinha caído levantou-se, e gritou: Fora o herege! Era um catblico zeloso; todos lhe deram crédito, e correram para d'Épernon.

A mulher tinha gritado: Fora o valido! voz que, naquela conjuntura, era ainda muito mais perigosa; e o marido, que era um tintureiro, tinha largado os aprendizes à perna a Schomberg.

Schomberg era valente: parou, quis recalcitrar, e levou a mão à espada. D'Épernon era prudente: fugiu.

Henrique não tinha ficado com cuidado nos seus dois favoritos; conhecia-lhes os génios e sabia que ambos se livravam facilmente de qualquer aperto; um, graças às pernas; o outro, graças aos braços.

Tinha continuado pois o seu giro; como vimos, e, concluído que foi, voltou para o Louvre.

Entrara para a sala de armas, e, sentado numa grande poltrona, tremia de impaciência, procurando na imaginação um motivo para desabaFar a cólera que o sufocava.

Maugiron estava brincando com o lebréu chamado Narciso, e de que o rei muito gostava. Quélus, com as faces encostadas aos punhos, estava sentado com as pernas cruzadas sobre uma almofada a olhar para Henrique.

- Vão indo, vão indo - dizia o rei. - A conspiração caminha; são, ora tigres, ora serpentes, e quando não saltam, andam de rojo.

- Vossa Majestade não sabe - disse Quélus - que não há reino sem conspirações? Que demónio haviam de fazer os filhos dos reis, os irmãos dos reis, os primos dos reis, se não conspirassem?

- Na verdade, Quélus, quando ouço as tuas máximas tão absurdas, e olho para as tuas enormes faces tão entumecidas, parece-me que estou ouvindo discorrer em política o palhaço da feira de S. Lourenço.

Quélus girou sobre a almofada e voltou as costas ao rei com toda a sem- cerimónia.

- Ora diz-me, Maugiron - prosseguiu Henrique -, tenho razão ou não tenho, por Deus, e achas bonito que me estejam a embalar com frioleiras e inépcias, como se eu Fosse um rei insignificante, ou um mercador de lã que receia perder o seu gato Favorito?

- Pois, Senhor! - disse Maugiron, que sempre seguia em tudo a opinião de Quélusse - Vossa Majestade não é um rei insignificante, mostre-o praticando acções de grande rei. Cos demónios, aqui tem o exemplo em Narciso: é um cão muito manso e obediente; mas quando lhe puxam as orelhas rosna, e quando lhe pisam as patas, morde.

- Bom - disse Henrique - agora o outro compara-me com o meu cão!

- Não senhor - respondeu Maugiron pelo contrário: eu considero Narciso muito acima de Vossa Majestade, porque Narciso sabe defender-se, e Vossa Majestade não sabe.

E voltou, ele também, as costas para Henrique.

- Bem, eis-me só - disse o rei -; muito bem, continuem assim, meus bons amigos, por causa de quem eu sou acusado de delapidar o reino abandonem-me, insultem-me, matem- me todos; não tenho senão verdugos à roda de mim! palavra de honra! Ah, Chicot, meu pobre Chicot, onde estarás tu?

- Bom - disse Quélus -, só nos faltava isto. Agora chama por Chicot!

- É muito natural - respondeu Maugiron.

E o insolente começou a mastigar por entre os dentes certo provérbio latino que se traduz em vulgar pelo axioma: Diz-me com quem lidas, dir-te-ei as manhas que tens.

Henrique carregou os sobrolhos, uma expressão de ira terrível iluminou-lhe os grandes olhos negros, e desta vez foi por certo um verdadeiro olhar de rei que o príncipe dirigiu para os seus indiscretos amigos.

Porém Henrique, como se aquela veleidade de cólera Lhe houvesse exaurido as forças, encostou-se outra vez na poltrona, e divertiu-se a esFregar as orelhas dum dos cãezinhos do cesto.

Naquele momento ressoaram pela antessala passos apressados, e d'Épernon apareceu à porta sem chapéu, sem capa, e com o Fato todo roto.

Quélus e Maugirón voltaram-se logo, e Narciso arremeteu a ladrar para o recém-chegado, mostrando assim que só conhecia os cortesãos do rei pelos vestidos.

- Santo nome de Jesus - exclamou Henrique -, o que foi que te sucedeu!

- Meu Senhor - disse d'Épernon -, olhe para mim; eis a maneira por que tratam os amigos de Vossa Majestade.

- E quem te pôs nesse estado? - perguntou o rei.

- Quem havia de ser, o seu povo, ou, por outra, o povo do Senhor Duque de Anju, que gritava: Viva a Liga, viva a missa! Viva Guisa! Viva Francisco! "; numa palavra, viva toda a gente, menos o rei.

- E que fizeste tu ao povo para ele te tratar dessa maneira?

- Eu? Nada. Que pode um homem fazer a um povo inteiro? Fui conhecido como amigo de Vossa Majestade, e foi quanto bastou.

- Mas Schomberg?

- Schomberg, o quê?

- Schomberg não te acudiu? Schomberg não te defendeu?

- Isso sim! Schomberg não tinha pouco que fazer para se livrar do aperto em que se viu.

- Como assim?

- Sim senhor; deixei-o em poder dum tintureiro, à mulher do qual ele puxou a touca, e que estava tratando de se vingar, ajudado por cinco ou seis aprendizes.

- Por Deus! - exclamou o rei. - Onde deixaste tu o meu pobre Schomberg? - disse Henrique levantando-se; - vou eu mesmo socorrê-lo. Poderá haver quem diga que os meus amigos me abandonaram - acrescentou Henrique olhando para Maugiron e Quélus -, mas ninguém dirá que eu abandonei os meus amigos.

- Obrigado, meu Senhor - disse uma voz por detrás de Henrique -, obrigado; eis-me aqui de volta; Gott verdctmme mich, safei-me sem auxílio de pessoa alguma, mas deu-me um bocado de trabalho.

- Oh, Schomberg, é a voz de Schomberg! - gritaram os três mancebos. - Mas onde diabo estás tu?

E com efeito viram sair da profunda escuridão que reinava na extremidade do gabinete, não um homem, mas uma sombra.

- Schombérg - exclamou o rei -, de onde vens tu! De onde saíste! Por que estás tu dessa cor!

Schomberg, todo ele, dos pés à cabeça, sem excepção de parte alguma do seu vestuário ou da sua pessoa, estava tinto da mais linda cor de azul-ferrete.

- Que miseráveis! Já não me admira que o povo todo corresse atrás de mim.

- Mas o que quer isso dizer? - perguntou Henrique, - Se estivesses amarelo, poder-se-ia atribuir ao susto. porém azul!.

- Os malvados pegaram em mim e meteram-me de molho dentro de uma tina; pensei que me tinham metido dentro de uma tina de água simplesmente, mas vejo que foi numa tina de anil.

- Oh, que graça! - disse Quélus desatando a rir. - Foram castigados por onde pecaram. O anil é muito caro, e tu trazes no corpo pelo menos o valor de vinte escudos de tinta.

- Pois sim, caçoa comigo; sempre queria ver o que farias no meu lugar.

- E não estripaste nenhum? - perguntou Maugiron.

- Deixei o meu punhal não sei onde, metido até ao cabo numa bainha de carne; mas, num abrir e fechar de olhos, agarraram-me, levantaram-me, atiraram-me para dentro da tina, e quase que me afogaram.

- E como conseguiste safar-te das mãos deles?

- Tive a coragem de cometer uma cobardia, meu Senhor.

- Que fizeste pois?

- Gritei: Viva a Liga!

- Tal qual como eu - disse d'Épernon -; mas a mim obrigaram-me a acrescentar: Viva o duque de Anju! "

- E eu também. - disse Schomberg mordendo os beiços de raiva -, eu também gritei o mesmo. Mas não ficou por aqui.

- Como? - disse o rei. - Pois ainda te obrigaram a dar vivas a mais alguma coisa meu pobre Schomberg?

- Não, não me obrigaram a dar vivas a mais coisa alguma; mas no momento em que eu gritava: Viva o duque de Anju!

- E então?

- Adivinhe quem ia passando!.

- Como queres tu que eu adivinhe?

- Bussy, o danado Bussy! Que me ouviu dar vivas ao seu amo.

- E o caso é que ele havia de ficar pasmado - disse Quélus.

- Sim, que ele não via o motivo por que eu gritava! Estava dentro duma tina e com um punhal apontado às goelas.

- Pois deveras? - disse Maugiron. - E não acudiu em teu auxílio? Parece que era um dever dum cavaleiro para com outro.

- Tinha negócios de maior importância a tratar, segundo creio; ia andando com uma rapidez que parecia que tinha asas, apenas tocava com os pés no chão.

- E daí - disse Maugiron - talvez não te conhecesse.

- Boa razão essa!.

- Já tinhas levado o banho de azul?

- Já, é verdade - disse Schomberg.

- Se assim foi, tem alguma desculpa - disse Henrique na realidade, meu pobre Schomberg, eu mesmo não te conheceria.

- Não importa - disse o mancebo, que bem mostrava ser de origem alemã -, hei-de encontrar-me com ele nalgum outro sítio sem ser à esquina da Rua Coquillière, e em dia em que não esteja metido dentro duma tina.

- Oh, eu - disse d'Épernon - não acuso o criado, mas o amo; não é com Bussy que desejava ter uma pendência, era com o Senhor Duque de Anju.

- Sim, sim - disse Schomberg -, o Senhor Duque de Anju, que nos quer matar com o ridículo enquanto não nos mata com o punhal.

- O duque de Anju, a quem entoavam louvores pelas ruas. Vossa Majestade bem os ouviu

- disseram ao mesmo tempo Quélus e Maugiron.

- O caso é que a estas horas o senhor de Paris é o duque e não o rei; atreva-se Vossa Majestade a sair por um instante - disse d'Épernon para o rei -, verá se o tratam com mais respeito do que a nós.

- Ah, meu irmão, meu irmão! - murmurou Henrique em tom ameaçador.

- Ah, sim, meu Senhor, Vossa Majestade ainda há-de dizer muitas vezes como acabou agora de dizer: Ah, meu irmão meu irmão! sem tomar partido algum contra esse irmão! disse Schomberg; - e, contudo, aqui lho declaro, porque estou convencido de que assim é: seu irmão está à testa duma conspiração.

- Era juscamente - replicou Henrique - o que eu estava dizendo a estes senhores, quando tu entraste ainda há pouco, d'Épernon; porém eles responderam-me encolhendo os ombros, e voltando-me as costas.

- Senhor - respondeu Maugiron -, não foi por Vossa Majestade nos dizer que existia uma conspiração que encolhemos os ombros e voltámos as costas, foi porque não vimos que Vossa Majestade estivesse disposto a reprimi-la.

- E agora - prosseguiu Quélus - voltamo- nos para Vossa Majestade para Lhe dizer: Salve-nos, Senhor; ou antes, salve-se, porque se nós cairmos, está morto; porque amanhã o Sr. de Guisa há-de vir ao Louvre para lhe pedir que nomeie o chefe da Liga, e o rei nomeará o duque de Anju, como já prometeu; e o duque de Anju, logo que se vir cheFe da Liga, ou por outra, à frente de cem mil habitantes de Paris ainda escandecidos das orgias desta noite, há-de fazer de Vossa Majestade o que quiser.

- Ah, ah! - disse Henrique. - E se eu me resolvesse a praticar um acto de rigor, poderia contar com o vosso auxílio, meus amigos?

- Sim, Real Senhor - responderam os jovens fidalgos à uma.

- Contanto, porém, Senhor - disse Epernon - que Vossa Majestade me dê tempo para ir vestir outro gibão, outra capa, e pôr outro chapéu.

- Vai ao meu guarda-roupa, d'Epernon, e o meu criado de quarto te dará tudo isso: nós somos da mesma estatura.

- E contanto que Vossa Majestade me conceda o tempo necessário para ir tomar um banho - disse Schomberg.

- Vai ao meu quarto de banho, e o meu banheiro tratará de ti.

- Senhor - disse Schomberg -, podemos então nutrir a esperança de que o insulto que se nos fez não há-de ficar por vingar?

Henrique estendeu a mão em sinal de silêncio, e deixando cair a cabeça sobre o peito, pareceu reflectir seriamente.

E ao cabo dum instante:

- Quélus - disse ele -, vai saber se o Senhor Duque de Anju já voltou ao Louvre. Quélus saiu, d'Épernon e Schomberg ficaram esperando com Maugiron a resposta de Quélus; o zelo de todos eles tinha-se reanimado na presença do perigo: não é durante a tempestade, mas durante a calmaria, que os marinheiros recalcitram.

- Senhor - perguntou Maugiron -, Vossa Majestade resolve-se a tomar uma deliberação?

- Em breve o verás - replicou o rei.

Quélus voltou.

- O Senhor Duque ainda não entrou no palácio - disse ele.

- Muito bem - respondeu o rei. - D'pernon, vai mudar de fato; Schomberg, vai mudar de cor; e os dois, Quélus e Maugiron, vão para o pátio, e conservem-se lá de vigia até que meu irmão volte.

- E quando ele voltar? - perguntou Quélus.

- Assim que ele entrar, mandarás fechar todas as portas; vai.

- Bravo, meu Senhor! - disse Quélus.

- Dentro de dez minutos - disse d'Épernon - estarei na presença de Vossa Majestade.

- Eu, meu Senhor, não sei quanto tempo me será conforme a qualidade da tinta.

- Vem o mais depressa que puderes - respondeu o rei -, é o que unicamente te recomendo.

- Então Vossa Majestade fica só? - perguntou Maugiron.

- Não, Maugiron, fico com Deus, a quem vou pedir que proteja a nossa empresa.

- Peça-Lhe isso de modo que o atenda, meu Senhor - disse Quélus -; porque já vou desconfiando de que Ele está combinado com o Demónio para nos danar a todos juntos neste mundo e no outro.

- Amén! - disse Maugiron.

Os dois fidalgos que iam postar-se de sentinela sairam por uma porta; e os dois que iam mudar de fato por outra.

O rei ficou só, e foi ajoelhar no seu genuflexório.

 

         CHICOT VAI-SE TORNANDO CADA VEZ MAIS REI DE FRANÇA

Deu a meia-noite; era a hora a que geralmente se fechavam as portas do Louvre. Porém Henrique tinha calculado acertadamente que o duque de Anju não deixaria de vir dormir ao Louvre, para desvanecer as suspeitas que o tumulto de Paris, durante aquela noite, poderia ter feito nascer no ânimo do rei.

O rei ordenou, por consequência, que as portas se conservassem abertas até à uma hora. À meia-noite e um quarto Quélus subiu ao gabinete de el-rei.

- Senhor - disse ele -, o duque já voltou.

- Onde está Maugiron?

- Ficou de sentinela, para ver se o duque torna a sair.

- Não sai, por certo.

- Então. - disse Quélus, fazendo um movimento como para dar a entender ao rei que podia pôr o seu plano em execução.

- Deixemo-lo deitar sossegadamente - disse Henrique. - Quem está com ele?

- O Sr. de Monsoreau e os seus gentis- homens de serviçu.

- O Sr. de Bussy?.

- O Sr. de Bussy não veiu.

- Bom! - disse o rei, a quem causou imensa satisfação saber que o irmão não tinha ao seu lado a sua melhor espada.

- Que ordena Vossa Majestade? - perguntou Quélus.

- Que vão dizer a d'Épernon e Shomberg que se aviem, e que previnam o Sr. de Monsoreau que desejo falar- Lhe.

Quélus inclinou-se ante o rei e foi desempenhar a sua incumbência com toda a prontidão que podem ministrar à vontade humana o sentimento do ódio e o desejo da vingança, reunidos no mesmo coração.

Daí a uns cinco minutos voltaram d'Épernon e Schomberg, o primeiro vestido de novo, o segundo tornado à sua cor primitiva. apenas as cavidades du rosto conservavam ainda uma sombra azulada, que, segundo dizia o banheiro, só a poder de muitos banhos de vapor havia de desaparecer de todo.

Depois dos dois mancebos, entrou o Sr. de Monsoreau.

- O Senhor Capitão da guarda real acaba de me participar que Vossa Majestade me fez a honra de me mandar chamar - disse o monteiro-mor inclinando-se.

- É verdade - disse Henrique -, é verdade; porque durante o meu passeio desta noite vi as estrelas tão brilhantes e luar tão lindo, que me lembrei que, estando o tempo tão belo poderíamos fazer amanhã uma magnífica montaria; é pouco mais de meia-noite, Senhor Conde, ponha-se já a caminho para Vincens; mande desencovar um gamo, e amanhã o montearemos.

- Porém, meu Senhor - disse Monsoreau -, julgava que Vossa Majestade se tinha dignado indicar o dia de amanhã aos Senhores Duque de Anju e de Guisa para nomear o chefe da Liga...

- Bem, e depois?. - disse o rei com um tom de altivez que dificilmente admitia réplica.

- É que. depois. depois, talvez não haja tempo.

- O tempo nunca falta, Senhor Monteiro-Mor, a quem sabe empregá- lo convenientemente; e é por isso que lhe digo: tem tempo de partir esta noite, contanto que parta imediatamente. Tem tempo de desencovar um gamo esta noite, e ainda Lhe sobeja tempo para mandar aprontar o estado de que me hei-de servir para as dez horas da manhã. Vá pois, e sem demora! Quélus, Schomberg, mandem abrir a porta do Louvre, para sair o Sr. de Monsoreau, em meu nome, em nome de el-rei; e mandem-na fechar também, em nome de el-rei, logo que ele tiver saído.

O monteiro-mor saiu da câmara muito admirado.

- É célebre a lembrança que teve agora el-rei! - disse ele para os dois fidalgos na antessala.

- É verdade - responderam estes laconicamente.

O Sr. de Monsoreau percebeu que não conseguiria deles mais amplas informações, e calou-se.

Oh! disse ele consigo, olhando na direcção dos quartos do duque de Anju, parece-me que os ares por aqui não estão muito favoráveis a Sua Alteza Real.

Mas não era possível avisar o príncipe. Quélus e Schomberg conservavam-se, um à direita, o outro à esquerda, do monteiro- mor.

O Sr. de Monsoreau até chegou a persuadir-se de que os dois mancebos tinham recebido instruções particulares para o considerarem preso, e só quando se viu fora do Louvre, e sentiu fechar a porta na sua retaguarda, é que se convenceu de que era infundada essa desconFiança.

Ao cabo de dez minutos já Schomberg e Quélus tinham regressado para junto do rei.

- Agora - disse Henrique - silêncio, e venham comigo todos quatro.

- Onde vamos nós, Real Senhor? - perguntou d'Épernon com a sua habitual prudência.

- Quem vier verá - respondeu o rei.

Os mancebos apertaram os cintos das espadas, acolchetaram os mantos, e seguiram o rei, o qual, com uma lanterna na mão, os conduziu pelo corredor particular já nosso conhecido, e que em breve tempo servira à rainha-mãe e ao rei Carlos IX para irem visitar a filha e irmã, a boa rainha Margarida, em cujos quartos habitava agora, como já dissemos, o duque de Anju.

Um criado do quarto estava de guarda no corredor; porém Henrique não lhe deu tempo a levantar-se para ir avisar o amo; agarrou-o com a sua própria mão, ordenando-lhe que se calasse, e entregou-o aos companheiros, que o empurraram para um gabinete, de que fecharam a porta.

Foi por conseguinte o rei em pessoa quem levantou a aldraba da câmara onde dormia o Senhor Duque de Anju.

O duque acabava de se meter na cama, entregue às ideias ambiciosas que os acontecimentos daquela noite Lhe haviam despertado no espírito; tinha visto por toda a parte o seu nome exaltado e o nome do rei enxovalhado. Tinha visto, na companhia do duque de Guisa, o povo de Paris abrir-lhe caminho a ele e aos seus gentis-homens, enquanto os gentis-homens do rei eram apupados, escarnecidos e insultados.

Durante toda a sua longa carreira, tão cheia de surdas tramóias, de conspirações tímidas e de intrigas secretas, nunca ele se tinha visto tão popular, e por consequência tão esperançado. Tinha posto naquele instante em cima da mesa da cabeceira uma carta que o Sr. de Monsoreau lhe havia entregado, escrita pelo duque de Guisa, e em que lhe recomendava muito que não deixasse no dia seguinte de estar presente na câmara do rei quando este se levantasse.

O duque de Anju não precisava de semelhante recomendação, já tencionava não retardar um único instante a hora do seu triunfo.

Porém, grande foi o seu pasmo quando viu abrir-se a porta do corredor particular, e o seu terror chegou ao maior auge quando percebeu que era a mão do rei que a tinha aberto. Henrique fez sinal aos seus companheiros que se conservassem à entrada da porta e encaminhou-se para o leito de Francisco, com semhlante austero, as sobrancelhas carregadas, e sem proferir uma palavra.

- Senhor - balbuciou o duque -, a honra que Vossa Majestade me faz é tão imprevista.

- Que Lhe mete medo, não é assim? - disse o rei; - é muito natural; mas não! Não se levante mano; deixe-se estar deitado.

- Porém, Senhor. conceda-me contudo licença que. - disse o duque a tremer e guardando a carta do duque de Guisa.

- Estava lendo? - perguntou o rei.

- Sim, meu Senhor.

- Era sem dúvida alguma leitura muito interessante que assim o conservava acordado a esta hora tão adiantada da noite.

- Oh, não, Senhor - respondeu o duque com um sorriso forçado -, não era negócio importante; era a correspondência da tarde.

- Sim - disse Henrique -, bem percebo; alguma missiva nocturna chegada pelo correio de Vénus; mas não. vejo que não acertei, porque os bilhetes de que são portadores Íris ou Mercúrio não costumam ser selados com sinetes dessas dimensões.

O duque escondeu a carta de todo.

- Muito discreto é este meu querido mano Francisco! - disse o rei com um riso que sobremaneira assustou o irmão, por isso que mais se parecia com um ranger de dentes.

Fez contudo um esforço e procurou recobrar o sangue-frio.

- Vossa Majestade quer dizer-me alguma coisa em particular? - perguntou o duque, a quem um movimento dos quatro fidalgos que tinham ficado à porta acabava de dar a conhecer que estavam escutando e folgando de verem o princípio da cena.

- O que tenho a dizer em particular, Senhor - respondeu o rei -, há-de permitir que lho diga hoje perante testemunhas; olá, meus Senhores - prosseguiu ele, voltando-se para os quatro fidalgos ouçam o que eu vou dizer, el-rei Lho permite.

O duque ergueu a cabeça.

- Senhor - disse ele com aquele olhar odiento e repleto de peçonha que alguns homens possuem à semelhança das serpentes -, parece-me que antes de insultar um homem da minha categoria, dever-me-ia ter negado a hospitalidade no Louvre; no Palácio de Anju, ao menos poder-Lhe-ia eu responder.

- Deveras? - disse Henrique com terrível ironia; - pelo que vejo esquece-se que em qualquer lugar em que esteja é sempre meu súbdito, e que os meus súbditos estão em minha casa em qualquer parte em que se achem, porque, graças a Deus, eu sou o rei!. o rei de todo o solo da França!.

- Senhor - exclamou Francisco -, estou no Louvre. em casa de minha mãe!

- E sua mãe está em minha casa - respondeu Henrique. - Vamos, Senhor, acabemos com isto: dê-me esse papel.

- Qual?

- O que estava lendo! O que estava aberto sobre essa mesa-de- cabeceira, e que escondeu quando me viu.

- Senhor, reflicta! - disse o duque.

- Em quê? - perguntou o rei.

- Em que essa exigência é imprópria dum cavalheiro, e só digna dum empregado da sua polícia.

O rei tornou-se lívido.

- Entregue-me já essa carta! - disse ele.

- É uma carta de mulher, Senhor, reflicta! - disse Francisco.

- Há cartas de mulher que muito convém ver, e que é muito perigoso deixar de ver, como por exemplo as que nossa mãe escreve.

- Meu irmão!. - disse Francisco.

- A carta já, Senhor - exclamou o rei batendo o pé -, quando não, mando-lha tirar por quatro alabardeiros!

O duque saltou para fora da cama, segurando na mão a carta amarrotada, e com a intenção evidente de se aproximar da lareira para a deitar no lume.

- E seria capaz de fazer tal desfeita a seu irmão! - disse ele.

Henríque percebeu o que ele queria fazer, e colocou-se entre ele e a lareira.

- Não por certo a meu irmão - disse ele - mas ao meu inimigo mortall Não a meu irmão, mas ao duque de Anju, que andou correndo toda a noite as ruas de Paris atrelado à cauda do cavalo do Sr. de Guisa! A meu irmão, que procura esconder de mim uma carta de algum dos príncipes lorenos seus cúmplices.

- Desta vez - replicou o duque - foi mal feita a sua polícia.

- Digo-Lhe que bem vi no sinete os três célebres pássaros mutilados da Lorena, que aspiram a engolir as três flores-de-lis de França. Dê-me já essa carta, dê-ma, quando não!.

Henrique deu um passo para a frente e pôs-lhe a mão sobre o ombro.

Francisco, apenas sentiu o contacto da mão do rei e viu a atitude ameaçadora dos quatro mancebos, que já iam começando a desembainhar as espadas, deitou-se de joelhos de encontro à cama gritando:

- Acudam-me, acudam-me, meu irmão quer matar-me!

Estas palavras, proferidas com o acento do profundo terror que lhes dava a convicção, causaram viva impressão no rei e abrandaram-lhe a cólera, por isso mesmo que a supunham maior do que realmente era.

Pensou que Francisco podia com efeito recear que ele o quisesse assassinar, e que essa morte seria um fratricídio.

Deu-lhe uma espécie de vertigem ao lembrar-se de que na sua família, família maldita como todas aquelas em que deve acabar uma raça, era tradição constante os irmãos assassinarem os irmãos.

- Não! - disse ele. - Está enganado, meu irmão: o rei não lhe quer fazer o mal. que receia; lutou, confesse-se vencido. Sabe muito bem que o rei é senhor; e se o ignorava, fica-o sabendo agora. Pois bem, diga-o, não em voz baixa, mas alto e bom som!

- Oh, sim, meu irmão, digo-o, e proclamo-o - exclamou o duque.

- Muito bem. Agora dê-me a carta. é o rei que Lhe ordena que lhe entregue essa carta. O duque de Anju deixou cair o papel.

O rei apanhou-o; e, sem o ler, dobrou-o e guardou-o no bolso.

- Mais nada, Senhor? - disse o duque com o seu olhar turvo.

- Ainda não concluí, Senhor - respondeu Henrique -; em consequência desta rebelião que não teve felizmente resultado algum sério, terá a bondade de não sair do seu quarto até que as minhas suspeitas a seu respeito se tenham desvanecido completamente. Já está acostumado a esta câmara, que é muito cómoda, e não tem aparência nenhuma de prisão; conserve-se nela. Há-de ter boa companhia, pelo menos da parte de fora da porta, porque estes quatro cavalheiros hão-de ficar aí de guarda esta noite; amanhã pela manhã serão rendidos por uma guarda de suíços.

- Porém. se vierem visitar-me alguns amigos, não poderei vê-los?

- E quem são esses amigos?

- O Sr. de Monsoreau, por exemplo, os Srs. de Ribeirac, de Antraguet, e de Bussy.

- Ah, sim. - disse o rei - ainda ousa falar-me nesse último?

- Porventura teve ele a desdita de cair no desagrado de Vossa Majestade?

- Exactamente - replicou o rei.

- Quando?

- Sempre, e esta noite particularmente.

- Esta noite? O que fez ele esta noite?

- Fez com que me insultassem nas ruas de Paris.

- A Vossa Majestade?

- Sim, a mim, ou aos meus fiéis partidários, o que vem a ser o mesmo.

- Bussy fez com que insultassem alguém nas ruas de Paris esta noite? Enganaram Vossa Majestade.

- Sei muito bem o que digo, Senhor Duque.

- Senhor - exclamou o duque em ar de triunfo -, há dois dias que o Sr. de Bussy não sai do seu palácio! Está em casa deitado, doente e ardendo em febre.

O rei voltou-se para Schomberg.

- Se estava a arder em febre - disse o mancebo -, não era em casa por certo, mas sim na Rua Coquillière.

- Quem lhe disse isso! - perguntou o duque de Anju levantando-se. - Quem viu Bussy na rua Coquillière!

- Vi-o eu.

- Viu Bussy fora de casa?.

- Sim senhor, vi Bussy, em muito boa disposição, alegre e parecendo o homem mais feliz do mundo, na companhia do seu acólito do costume, um tal Rémy escudeiro, médico, que sei eu?

- Então não sei como isso fosse - disse o duque com admiração - estive em casa de Bussy de tarde e encontrei-o de cama; só se ele me enganou.

- Pois bem - disse o rei -; o Sr. de Bussy será castigado com os mais e como os mais, quando este negócio se deslindar.

O duque, julgando que o melhor meio para desviar de si a cólera do rei era deixá-la cair sobre Bussy, não procurou defender mais eficazmente o seu gentil-homem.

- Se o Sr. de Bussy fez isso - replicou ele -, se, depois de se ter recusado a sair comigo, saiu sozinho é que tinha efectivamente, algum projecto que não me podia confessar a mim, cuja dedicação a Vossa Majestade lhe é bem conhecida.

- Ouviram, meus Senhores, o que afirma meu irmão? - disse o rei - afirma que não autorizou o Sr. de Bussy a sair.

- Melhor - disse Schomberg.

- Melhor, porquê?

- Porque, nesse caso, é provável que Vossa Majestade não se oponha ao que nós desejamos fazer.

- Está bom, está bom, veremos isso mais tarde - disse Henrique. - Senhores, recomendo meu irmão ao vosso cuidado; tenham por ele durante toda esta noite, em que vão ter a honra de lhe servir de guardas, todas as atenções que são devidas a um príncipe de sangue isto é, à primeira pessoa do reino depois de mim.

- Oh, meu Senhor! - disse Quélus com um olhar que fez arrepiar o duque. – Vossa Majestade pode ir descansado, todos nós sabemos quanto devemos a Sua Alteza.

- Muito bem; adeus, meus Senhores - disse Henrique.

- Senhor! - exclamou o duque, a quem causava ainda mais susto a ausência do rei do que Lhe tinha causado a sua presença, - estou realmente preso?... Então os meus amigos não podem visitar-me? Então fico proibido de sair?

O corria-Lhe à lembrança a ideia do dia seguinte, em que se tornava indispensável a sua presença junto do Sr. de Guisa.

- Senhor - prosseguiu o duque, que via o rei inclinado a ceder - consinta ao menos que eu apareça ao lado de Vossa Majestade; o meu lugar é ao lado de Vossa Majestade. Posso conservar-me preso do mesmo modo estando ao pé de Vossa Majestade, e guardado ainda melhor do que em qualquer outro sítio. Senhor, conceda-me por favor que apareça na sua companhia.

O rei, que estava quase a anuir ao pedido do duque de Anju, no qual demais a mais, não lhe parecia que houvesse inconveniente, ia responder-Lhe que sim, quando a sua atenção foi desviada do irmão e atraída para a porta por um corpo muito comprido e muito ágil, o qual com os braços, com a cabeça, com o pescoço... enfim, com tudo quanto era susceptível de movimento, fazia os gestos mais negativos que se podiam inventar e executar sem deslocar os ossos.

Era Chicot, que Lhe fazia sinal para que recusasse a licença pedida.

- Não - disse Henrique para o irmão -; está muito bem aqui, Senhor; e apraz-me que se conserve aqui.

- Senhor... - balbuciou o duque.

- Uma vez que o rei de França assim há por bem, parece-me que é quanto deve bastar-Lhe, Senhor - acrescentou Henrique com um modo tão altivo que o duque ficou sucumbido.

Bem digo eu que sou o verdadeiro rei de França!... murmurou Chicot.

 

         CHICOT VAI FAZER UMA VISITA A BUSSY E O QUE ENTRE ELES SE PASSA

No dia imediato àquela noite, pelas nove horas da manhã, estava Bussy almoçando sossegadamente com Rémy, o qual, na sua qualidade de médico, Lhe receitava remédios reconfortantes; versava a conversação sobre os acontecimentos da véspera, e Rémy procurava recordar-se das legendas das pinturas a fresco da igrejinha de Santa Maria Egipcíaca.

- Diz-me cá, Rémy - perguntou de repente Bussy não te pareceu conheceres aquele cavalheiro que estavam metendo numa tina, quando passámos pela esquina da Rua de Coquillière?

- Não há dúvida, Senhor Conde; e tanto assim, que desde então para cá ando a cismar para ver se me lembra como ele se chama.

- Então também não pudeste conhecer quem era?

- Não senhor. Já estava muito azul.

- Eu devia tê-lo livrado - disse Bussy -; é dever entre cavalheiros auxiliarem-se mutuamente contra os vilões; mas na verdade, Rémy, eu ia com demasiada pressa para tratar dos meus próprios negócios.

- Porém, se nós não o conhecemos a ele - disse La Haudouin -, ele por certo nos conheceu a nós, que estávamos de cor natural, porque me pareceu que nos dirigiu um olhar terrível, e que nos acenou com o punho proferindo uma ameaça.

- Estás certo disso, Rémy?

- Estou certo do modo por que ele revolvia os olhos; não tenho a mesma certeza a respeito do punho e das ameaças - disse Le Haudouin, que muito bem conhecia o génio irascível de Bussy.

- Pois então, é preciso que saibamos quem era o tal cavalheiro, Rémy; não posso deixar passar assim semelhante insulto.

- Espere, espere! - exclamou La Haudouin, com o modo dum homem que sai dum banho de água fria ou que entra num banho de água quente. - Oh, meu Deus!. Agora me lembra: conheço quem era!

- Como assim?

- Ouvi-o praguejar.

- Boa dúvida, quem é que não praguejaria em tal situação!.

- Sim, mas ele praguejou em alemão.

- História!

- Disse assim: Gott verdamme.

- Então é Schomberg.

- Ele mesmo, Senhor Conde, ele mesmo!

- Pois, meu caro Rémy, bem podes ir aprontando os teus unguentos.

- Porquê?

- Porque não tardará muito que tenhas de fazer algum conserto na pele dele ou na minha.

- Era o que faltava! Expô-lo agora a que o matem estando de tão perfeita saúde e tão feliz - disse Rémi piscando o olho -; olhe que Santa Maria Egipcíaca já o ressuscitou uma vez, e pode ser que não queira repetir um milagre que o próprio Cristo só fez duas vezes.

- Não podes imaginar, Rémy - disse o conde -, o prazer que se sente, quanto se é feliz em ir jogar a vida com a de outro homem!

- Devagar, devagar - disse La Haudoin -, há-de fazer-me o favor de o privar desse desgosto. Uma formosa senhora minha conhecida recomendou-o ao meu cuidado e fez-me jurar que o conservaria são e salvo, alegando que já lhe deve a vida a ela, e que ninguém pode dispor daquilo que deve.

- Meu bom Rémy! - disse Bussy, concentrando o pensamento nessa distracção que permite ao homem apaixonado ouvir e ver tudo o que se diz e tudo o que se faz, como no teatto se vêem, por detrás dum transparente, os objectos sem os seus ângulus sem a beleza das suas cores; estado delicioso, que é quase o sonho, porque, seguindu a alma o seu pensamento deleitoso e fiel, os sentidos são distraídos pela palavra ou pelo gesto dum amigo.

- Chama-me meu bom Rémy - replicou Le audouin -, porque fiz com que tornasse a ver a dama de Monsoreau; porém ainda continuará a chamar-me bom Rémy agora que vai viver separado dela? E infelizmente vai-se aproximando esse dia, se é que não chegou já.

- Que dizes? - exclamou Bussy energicamente. - Não gosto dessa brincadeira, Le Haudouin.

- Não é brincadeira, Senhor Conde, estou falando sério; não sabe que ela está em vésperas de partir para o Anju, e que eu também vou passar pelo desgosto de me separar da Gertrudes?Ah!.

- Visto isso gostas muito dela?

- Que dúvida. e ela gosta tanto de mim!. Se visse como ela me bate!

- E tu consentes?

- Por amor da ciência; obrigou-me a inventar uma pomada eficaz para fazer desaparecer as nódoas negras.

- Pois então bem podias mandar umas poucas de caixinhas dela a Schomberg.

- Não falemos mais em Chomberg, deixemu-lu limpar-se à sua vontade.

- Está dito; e tratemus da Sr.a de Monsoreau, ou, para melhor dizer, de Diana de Mérídor, porque bem sabes.

- Sei, sei muito bem.

- Rémy, quando te parece que devemos pôr-nos a caminho?

- Ah, disso já eu desconfiava; quanto mais tarde melhor, Senhor Conde.

- Porquê?

- Em primeiro lugar, porque temos aqui em Paris o nosso querido Sr. de Anju, chefe da comunidade, que se meteu, ontem à noite, segundo me quis parecer, em tais trabalhos, que muito há-de carecer do seu auxílio.

- E depois?

- E depois, porque o Sr. de Monsoreau, por um feliz acaso, não tem desconfiança alguma a seu respeito, e poderia muito bem começar a desconfiar, se Lhe constasse que tinha saído de Paris ao mesmo tempo que a esposa que não é esposa.

- Mas que me importa a mim que ele desconFie?

- Poderá não Lhe importar nada, porém importa-me a mim muito, meu caro Senhor. Eu encarrego-me de consertar as estocadas que levar nos duelos, porque, como joga muito bem a espada, nunca há-de levar estocadas muito sérias; mas não posso comprometer-me a salvá-lo das punhaladas que Lhe derem nalguma cilada, e especialmente se elas forem dadas por algum marido ciumento; são animais que ferem a matar; e senão, veja-se no espelho do pobre Sr. Saint-Mégrin que foi morto com tanta malvadez pelo nosso amigo de Guisa.

- Que lhe hei-de fazer, meu querido amigo, se o meu destino for ser morto pelo Monsoreau?.

- E então?

- Então. há-de matar-me.

- E depois, daí a oito dias, um mês, ou um ano, talvez, a Sr. de Monsoreau há-de casar deveras com o marido, fazendo assim raivar a sua pobre alma, que há-de presenciar o acontecimento lá de cima, ou lá debaixo, e que não poderá opor-se-Lhe por não ter corpo.

- Tens razão, Rémy, quero viver.

- Mas não basta viver, Senhor; acredite no que lhe digo: é preciso seguir os meus conselhos e mostrar-se muito amável para com o Monsoreau; ele está actualmente com muitos ciúmes do Senhor Duque de Anju, o qual, enquanto o Senhor Conde estava felizmente a tremer com febre na cama, andava passeando em frente das janelas da dama como um espanhol apaixonado, e foi conhecido por causa do Aurilly. Trate com toda a consideração aquele estimável marido que o não é; nem mesmo indague dele o que é feito da mulher; é pergunta escusada, visto que muito bem sabe onde ela pára, e estou certo que ele apregoará por toda a parte que o senhor é o único fidalgo que possui as virtudes de Cipião: sobriedade e castidade.

- Parece-me que tens razão - disse Bussy. - Agora, que já não tenho ciúmes do urso, quero domesticá-lo; há-de ter sua graça! Ah, agora, Rémy, pede-me o que quiseres; tudo te farei, pois sou feliz.

Bateu alguém à porta, os dois interlocutores calaram-se.

- Quem é? - perguntou Bussy.

- Meu Senhor - respondeu um pajem -, está lá em baixo um cavalheiro que deseja falar-lhe.

- Falar-me tão cedo? Quem é?

- Um sujeito alto, vestido de veludo verde com meias cor-de-rosa, e uma cara que faz vontade de rir; mas parece pessoa capaz.

- Olé! - disse Bussy. - Será Schomberg por acaso?.

- Ele diz que é um sujeito alto.

- É verdade. ou o Monsoreau?

- Diz que parece pessoa capaz.

- Tens razão, Rémy, não pode ser nem um nem outro; manda entrar. O homem que procurava Bussy apareceu à porta dali a um instante.

- Ah, meu Deus! - exclamou Bussy levantando-se precipitadamente à vista do recém-chegado, enquanto que Rémy, como amigo discreto, saía pela porta do gabinete. O Sr. Chicot! - disse Bussy.

- Ele mesmo, Senhor Conde - respondeu o gascão.

Os olhos de Bussy tinham-se fitado nele com certa admiração, que queria dizer claramente, sem que fosse necessário que a boca tomasse parte na conversa: Que vem aqui fazer, Senhor?

A esta interrogação, respondeu Chicot com muita seriedade:

- Senhor Conde, venho propor-lhe um contrato.

- Fale Senhor - replicou Bussy muito admirado.

- Se lhe prestasse um grande serviço, qual seria a paga que me daria?

- Conforme for o serviço, Senhor - respondeu desdenhosamente Bussy.

- Senhor Conde - disse Chicot, sentando-se e cruzando as compridas pernas -, noto que não fez a honra de me mandar sentar.

Esta observação fez subir a cor ao rosto de Bussy.

- Esta sua omissão - disse Chicot - há-de tornar mais avultada a recompensa a que hei-de ficar com jus depois de Lhe prestar o serviço de que se trata.

Bussy não respondeu.

- Senhor - prosseguiu Chicot com desembaraço -, está ao facto do que é a liga?

- Tenho ouvido falar bastante a esse respeito - respondeu Bussy que já ia começando a dar certa atenção ao que Lhe dizia o gascão.

- Pois bem, Senhor - disse Chicot -, nesse caso deve saber que a Liga é uma associação de honrados cristãos que se reuniram com o intento de assassinarem religiosamente os próprios irmãos, os huguenotes. membro da Liga, Senhor Conde. Eu sou.

- Porém, Senhor.

- Diga-me unicamente sim ou não.

- Há-de permitir que lhe diga quanto me admira. - replicou Bussy.

- Eu tinha a honra de Lhe perguntar se era membro da Liga; não percebe?

- Sr. Chicot - disse Bussy -, como não gosto de perguntas de que não percebo o sentido, peço-Lhe que mude de conversa, e ainda esperarei alguns minutos, por decoro, para lhe dizer que, assim como não gosto de perguntas, também não engraço com os perguntadores.

- muito bem: o decoro é uma coisa muito decorosa, como costuma dizer o meu caro Sr. de Monsoreau quando está de bom humor.

Bussy, ao ouvir o nome de Monsoreau, que o gascão proferiu sem alusão aparente, tornou-lhe a prestar atenção.

Hem! disse Bussy consigo, ele desconfiará de alguma coisa, e mandar-me-ia este Chicot para me sondar?.

- E logo, em voz alta:

- Vamos, Sr. Chicot, concluamos a nossa conferência, já lhe disse que apenas nos restam alguns minutos.

- óptimo - retorquiu Chicot -, alguns minutos é muito tempo; no espaço de alguns minucos podem dizer-se muicas coisas; dir-Lhe-ei pois que poderia muito bem ter-me abstido de lhe dirigir aquela pergunta, visto que, se não é já membro da Santa Liga não tardará muito tempo que o seja, e há-de sê-lo indubitavelmente, por isso que o Sr. de Anju também o é.

- O Sr. de Anju? Quem disse isso?

- Ele mesmo falando com a minha pessoa, conforme dizem, ou, por outra, conforme escrevem os senhores homens de lei; como escreveria, por exemplo, o meu bom amigo Sr. Nicolau David, um luminar do forum parisiense que se apagou sem que se saiba quem o soprou; ora, bem vê que se o Senhor Duque de Anju é membro da Liga, o senhor, que é o seu braço direito, não pode dispensar-se de pertencer a ela também. A Liga conhece muito bem os seus interesses, e não há-de querer um chefe maneta.

- Muito bem, Sr. Chicot! E depois? - disse Bussy em tom muito mais cortês do que até ali.

- E depois? - replicou Chicot. - É porque, se é membro da Liga, ou se desconfiarem que tenciona sê-lo, e hão-de desconfiar por certo, suceder-lhe-á o mesmo que sucedeu a Sua Alteza Real.

- Que foi que sucedeu a sua Alteza Real! - exclamou Bussy.

- Senhor Conde - disse Chicot endireitando-se e imitando a atitude que Bussy havia tomado para com ele -, eu não gosto de perguntas, e conceda-me licença para que lhe diga que não engraço com os perguntadores; estou pois com alguns desejos de deixar que Lhe façam o mesmo que fizeram a noite passada a seu amo.

- Sr. Chicot - disse Bussy com um sorriso que continha toda a desculpa que um cavaLheiro pode dar a outro -, peço-Lhe que fale: onde está o Senhor Duque?

- Está preso.

- Onde?

- Na sua câmara. Estão até de guarda a ele quatro dos meus bons amigos: o Sr. de Schomberg, que foi tinto de azul ontem à noite, como muito bem sabe, visto que passou pela frente da loja no momento em que se fazia a operação; o Sr. d'Épernon, que está amarelo do susto que teve; o Sr. de Quélus, que está vermelho de cólera, e o Sr. de Maugiron, que está branco de aborrecimento. É uma vista muito linda, e como o Senhor Duque se vai tornando verde com o medo, não tardará que os habitantes privilegiados do Louvre gozem dum completo arco-íris.

- Pelo que ouço, Sr. Chicot, julga que a minha liberdade corre perigo?

- Não somente corre perigo, Senhor Conde, mas até me persuado de que neste momento em que Lhe estou falando. está alguém, ou deveria estar, em sua procura para o prender.

Bussy estremeceu.

- Gosta da Bastilha, Sr. de Bussy? É um lugar muito próprio para meditações, e o Sr. Lourenço governador da fortaleza, trata muito bem os seus pombinhos.

- E seriam capazes de me mandar para a Bastilha? - exclamou Bussy.

- Parece-me que hei-de ter aqui pelo bolso uma coisa parecida com uma ordem para lá o conduzir, Sr. de Bussy. Quer vê-la?

E Chicot tirou com efeito do bolso dos enormes calções uma ordem assinada pelo rei, mandando capturar, em qualquer parte onde fosse encontrado, Luis de Clermont, senhor de Bussy d'Amboise.

- A redacção é do Sr. de Quélus - disse Chicot -, está muito bem escrita.

- Visto isso, Senhor - exclamou Bussy comovido pela acção de Chicot -, é na realidade um serviço que me presta?

- Quer-me parecer que sim - disse o gascão -; não partilha a minha opinião, Senhor Conde!

- Senhor - disse Bussy -, peço-Lhe que me diga como cavalheiro: é porventura com tenção de me hostilizar em qualquer outra ocasião que hoje me salva? Porque o senhor é amigo do rei, e o rei não é meu amigo.

- Senhor Conde - disse Chicot erguendo o corpo da cadeira e cortejando-o -, eu venho aqui salvá-lo unicamente pelo gosto de o salvar; agora pense o que quiser da minha acção.

- Mas, diga-me por favor, a que devo eu atribuir tamanha bondade?

- Já se esqueceu que Lhe pedi uma recompensa? - é verdade.

- E então?

- Com todo o gosto, Senhor!

- Promete-me pois que há-de fazer o que algum dia eu Lhe pedir?

- À fé de Bussy, tanto quanto a coisa For praticável!

- Muito bem, é quanto me basta - disse Chicot levantando-se. - Agora, monte a cavalo

e trate de desaparecer; eu, pela minha parte, vou levar a ordem de prisão à pessoa a quem

compete executá-la.

- Visto isso, não era o senhor quem estava encarregado de me prender?

- Que lembrança, quem julga que eu sou? Sou um cavalheiro, Senhor...

- Porém - disse Bussy -, vou assim abandonar o meu amo...

- Não tenha remorsos, que ele já o abandonou.

- É um honrado cavalheiro Sr. Chicot - disse Bussy para o gascão.

- E sou, na verdade! - replicou este.

Bussy chamou Le Haudouin. Devemos confessar, em abono da verdade, que Le Haudouin estava escutando à porta, e por isso entrou logo.

- Rémy - exclamou Bussy -, Rémy, os nossos cavalos!

- Já estão aparelhados, meu Senhor - respondeu Rémy com toda a serenidade.

- Senhor - disse Chicot -, parece-me que este mancebo é pessoa de muito talento - Que dúvida - disse Rémy -, bem sei que sou!

E dizendo isto, retribuiu a Chicot a cortesia que este lhe dirigira.

Bussy tirou duma gaveta algumas mãos-cheias de escudos, que dividiu pelos próprios bolsos e pelos de Le Haudouin. Feito isto, cumprimentou Chicot, agradecendo-lhe uma última

vez, e em seguida aprontou-se para sair.

- Peço perdão do meu atrevimento - disse Chicot -, mas desejava assistir à sua partida.

E Chicot acompanhou Bussy e Le Haudouin até ao pátio das cavalariças, onde um pajem estava efectivamente segurando dois cavalos já aparelhados.

- Para onde vamos? - disse Rémy, pegando com indiferença nas rédeas do cavalo.

- Não sei ainda... - disse Bussy, hesitando ou fingindo que hesitava.

- Não gosta da Normandia, Senhor? - disse Chicot, que estava olhando para eles e examinando os cavalos como entendedor.

- Não - respondeu Bussy -, é muito perto.

- E a Flandres, também não lhe agrada? - prosseguiu Chicot.

- É muito longe.

- Parece-me - disse Rémy - que não se Lhe daria de ir até ao Anju, que fica a uma distância razoável, não é assim, Senhor Conde?

- Sim, seja para o Anju - disse Bussy corando.

- Senhor - disse Chicot -, visto ter assentado no destino que leva e estar próximo a partir...

- No mesmo instante.

- Tenho a honra de o cumprimentar; lembre-se de mim nas suas orações.

E o estimável cavalheiro saiu sempre com o mesmo porte grave e majestoso, escalavrando as paredes com a ponteira da comprida durindana.

- Que força que tem o destino, Senhor Conde! - disse Rémy.

- Vamos depressa! - exclamou Bussy. - Pode ser que ainda a alcancemos.

- Ah, Senhor Conde - respondeu Le Haudouin -, se ajuda o destino, tira-lhe todo o merecimento.

E partiram.

 

         O XADREZ DE CHICOT, O EMBOCA-BOLA DE QUÉLUS E A SARABATANA DE SCHOMBERG

Pode-se dizer afoitamente que Chicot, apesar da sua indiferença aparente, voltava para o Louvre não cabendo em si de contente.

Era para ele motivo de triplicada satisfação ter prestado serviço a um homem valente como Bussy, ter urdido uma intriga, e ter habilitado o rei a vibrar um golpe de Estado que as circunstâncias reclamavam.

E com efeito, com o génio e especialmente o valor de Bussy com o espírito de associação que possuíam os Srs. de Guisa, era muito para recear que desabasse uma forte tempestade sobre a boa cidade de Paris.

Tudo quanto o rei receara, e tudo quanto Chicot havia previsto, sucedeu como era de esperar.

O Sr. de Guisa, depois de ter recebido de manhã, em sua casa, os principais membros da Liga, que tinham vindo apresentar-Lhe os registos cheios de assinaturas alcançadas na véspera, pelas praças, às portas das hospedarias de maior fama, e até nos altares das igrejas; o Sr. de Guisa, depois de lhes ter prometido que-a Liga havia de obter chefe, e de os ter obrigado a jurar que haviam de reconhecer como chefe a pessoa que o rei nomeasse; o Sr. de Guisa, finalmente, depois de ter conferenciado com o cardeal e com o Sr. de Maiena, saíra para ir procurar o Sr. de Anju, que havia perdido de vista na véspera pelas dez horas da noite.

Chicot desconfiava que ele havia de dar este passo: e por isso, quando saiu de casa de Bussy, foi sem demora passear para os arredores do Palácio de Alençon, situado à esquina da Rua Hautefeuille e da Rua de Santo-André. Haveria um quarto de hora, apenas, que por ali andava, quando viu desembocar da Rua da Huchette o indivíduo que esperava.

Chicot escondeu-se com a esquina da Rua do Cemitério, e o duque de Guisa entrou no palácio sem o ter visto.

O duque encontrou o primeiro criado de quarto do príncipe bastante inquieto por o amo não ter voltado, mas suspeitava o que na realidade sucedera, isto é, que o duque tinha ido ficar no Louvre.

O duque de Guisa perguntou se na ausência do príncipe não poderia falar com Aurilly; o criado de quarto respondeu-Lhe que Aurilly estava no gabinete do seu amo, e que poderia fazer-Lhe todas as perguntas que quisesse.

O duque entrou. Aurilly, tocador de alaúde e conFidente do príncipe, partilhava, como os nossos leitores estarão lembrados, todos os segredos do Senhor Duque de Anju, e devia saber melhor do que ninguém onde estava Sua Alteza.

Aurilly estava pelo menos com tanto cuidado como o criado de quarto, e, de quando em quando, largava o alaúde, sobre o qual corria os dedos com distracção, para chegar à janela e espreitar pelos vidros se via voltar o amo.

Já por três vezes haviam mandado ao Louvre, e de todas elas obtiveram por resposta que Sua Alteza, tendo regressado muito tarde ao palácio, ainda estava recolhido.

O Sr. de Guisa perguntou a Aurilly que era feito do duque de Anju.

Aurilly havia sido separado do amo na véspera, à esquina da Rua da Árvore Seca, por um grupo que se dirigia a aumentar o ajuntamento de povo que estava à porta da hospedaria da Estrela Brilhante de forma que tinha voltado para o Palácio de Alençon, a fim de aí esperar pelo duque, sem saber que Sua Alteza Real havia resolvido ir ficar no Louvre.

O tocador de alaúde contou então ao príncipe loreno que já tinha mandado três recados ao Louvre, e transmitiu-lhe a resposta idêntica que lá tinham dado a cada uma das mensagens.

- Estar ainda recolhido às onze horas - disse o duque - não é muito provável; o próprio rei está ordinariamente de pé a essa hora. Eu, se fosse ao senhor, Aurilly, ia ao Louvre.

- Já tive essa lembrança, meu Senhor - respondeu Aurilly -; porém receio que o tal sono não seja alguma recomendação que ele fizesse ao porteiro do Louvre, a fim de ficar em liberdade para ir galantear pela cidade; ora, se assim é, Sua Alteza poderá não gostar talvez que o procurem.

- Aurilly - replicou o duque -, acredite no que lhe digo: Sua Alteza é pessoa demasiado sisuda para andar galanteando num dia como o de hoje. Vá pois ao Louvre sem receio, e lá achará Sua Alteza.

- Irei pois, Senhor Duque, já que assim o deseja -; mas que Lhe hei-de eu dizer?

- Diga-lhe que a reunião no Louvre há-de ter lugar às duas horas, e que ele bem sabe que temos de conferenciar antes de nos encontrarmos na presença do rei. Bem vê, Aurilly - acrescentou o duque com um movimento de mau humor muito pouco respeitoso -, que não é no momento em que o rei vai nomear o chefe da Liga que se deve dormir.

- Muito bem, meu Senhor, e pedirei a Sua Alteza que chegue aqui.

- Onde o estou esperando com muita impaciência; pois tendo os membros da Liga sido convocados para as duas horas, muitos já estão no Louvre, e não há um instante a perder. Eu, durante esse tempo, mandarei chamar o Sr. de Bussy.

- Está dito, meu Senhor. Porém, se acaso não encontrar Sua Alteza, que hei-de fazer?

- Se não encontrar Sua Alteza, Aurilly, não mostre que anda em procura dele; bastará que lhe diga depois com todo o zelo: Procurei encontrá-lo. Em todo o caso, às duas horas menos um quarto, também eu hei-de estar no Louvre.

Aurilly cumprimentou o duque e saiu.

Chicot viu-o sair e logo adivinhou o motivo por que ele saía.

Se o duque de Guisa viesse a saber da prisão do duque de Anju, estava tudo perdido, ou, pelo menos, muito atrapalhado. Chicot observou que Aurilly subia pela Rua da Huchette para tomar pela Ponte de S. Miguel; ele então, ao contrário, desceu pela Rua de Santo André das Artes com toda a velocidade de que eram susceptiveis as suas compridas pernas, e atravessou o Sena abaixo da Torre de Nesle, no momento em que Aurilly chegava apenas à vista do Grande-Châtelet.

Seguiremos pois Aurilly, o qual vai conduzir-nos ao teatro dos acontecimentos mais importantes daquele dia.

Desceu pelos cais apinhados de burgueses com aspecto de triunfadores, e chegou ao Louvre, que mostrava, no meio de toda aquela alegria dos Parisienses, uma aparência muito serena e benigna.

Aurilly tinha uso do mundo e prática da corte; conversou primeiro com o oFicial que estava de guarda à porta, o qual era sempre uma personagem muito importante para os espreitadores de notícias e para as pessoas que pretendiam descobrir algum escândalo.

O oFicial da guarda era todo ele amabilidade; participou-lhe que o rei tinha acordado de muito bom humor.

Do oficial da guarda passou Aurilly ao porteiro.

O porteiro estava inspeccionando uns poucos de criados vestidos de novo modelo.

Sorriu-se para o tocador de alaúde e respondeu aos seus comentários acerca do sol e da chuva, dando assim a Aurilly a melhor ideia a respeito da atmosfera política.

Aurilly, por consequência, passou adiante e enfiou pela escada geral que ia ter ao quarto do duque, distribuindo pelo caminho muita cortesia aos fidalgos que encontrava pela escada e nas antessalas.

À porta da câmara de Sua allteza encontrou Chicot sentado num banquinho. Chicot estava jogando xadrez sozinho, e parecia absorto numa combinação profunda. Aurilly tentou passar porém as pernas de Chicot tomavam toda a largura do corredor. Teve de bater no ombro do gascão.

- Ah, é o senhor - disse Chicot -; perdão, Sr. Aurilly.

- Que está fazendo, Sr. Chicot?

- Estou jogando xadrez, como vê.

- Sozinho?

- É verdade. estou estudando uma combinação. o senhor sabe jogar xadrez?

- Muito mal.

- Não admira; é músico, e a música é uma arte tão difícil, que as pessoas que a ela se dedicam são obrigadas a consagrar-lhe todo o tempo e toda a inteligência.

- Segundo me quer parecer, essa combinação é bastante árdua. - perguntou Aurilly a rir.

- É exacto; o rei é que me dá que fazer; saberá, Sr. Aurilly, que no jogo do xadrez o rei é uma personagem muito tola, muito insignificante, que não tem vontade própria, e que apenas pode dar um passo à direita, um passo à esquerda, um passo em frente ou um passo à retaguarda, achando-se aliás cercado de inimigos muito activos, de cavaleiros que saltam três casas duma vez, e duma multidão de peões que o rodeiam, que o apertam e perseguem, de maneira que, se tem a desgraça de ser mal aconselhado, em pouco tempo é um rei perdido. Verdade seja que ainda Lhe resta o bobo, o qual vai e vem, corre duma extremidade do tabuleiro à outra, e tem a faculdade de se colocar por diante, por detrás, ou ao lado dele; porém também é certo que quanto mais o bobo é afeiçoado ao rei, mais ele mesmo se arrisca, Sr. Aurilly, e, neste momento, confessar-Lhe-ei que o meu rei e o bobo se acham numa situação muito perigosa.

- Mas - perguntou Aurilly - por que acaso, Sr. Chicot, veio estudar todas essas combinações à porta da câmara de Sua Alteza Real?

- Porque estou à espera do Sr. de Quélus, que está lá dentro.

- Lá dentro, onde? - perguntou Aurilly.

- No quarto de Sua Alteza.

- No quarto de Sua Alteza? O Sr. de Quélus? - exclamou Aurilly muito admirado. Durante todo este diálogo, Chicot tinha aberto caminho ao tocador de alaúde, porém continuando a tomar a largura do corredor com o tabuleiro e o banco, de sorte que o emissário do Sr. de Guisa achava-se agora colocado entre ele e a porta de entrada.

Contudo hesitava em abrir a porta.

- Mas - disse ele -, que está fazendo o Sr. de Quélus na câmara do Senhor Duque de Anju? Não sabia que eles eram tão amigos.

- Caluda! - disse Chicot com ar misterioso.

E em seguida, segurando sempre o tabuleiro com as mãos, descreveu uma curva com o comprido corpo, de Forma tal que, sem tirar os pés de onde estavam, chegou com a boca ao ouvido de Aurilly.

- Veio pedir perdão a Sua Alteza Real - disse ele -, por causa duma pequena desavença que tiveram ontem.

- Deveras? - disse Aurilly.

- Foi el-rei que assim o exigiu; já lhe há- de ter constado quanto os dois irmãos estão amigos actualmente. El-rei, apenas teve notícia da insolência cometida por Quélus, ordenou-lhe que viesse pedir desculpa a Sua Alteza.

- Isso é certo?.

- Ah, Sr. Aurilly - disse Chicot -, parece-me realmente que estamos tornados à idade de ouro; o Louvre vai transformar-se numa Arcádia, e os dois irmãos Arcades ambos. Ah! perdão, Sr. Aurilly, sempre me esquece que é músico.

Aurilly sorriu e entrou para a antessala. Chicot, quando ele abria a porta, piscou o olho para Quélus, o qual provavelmente já tinha sido prevenido com antecedência.

Chicot, entretanto, prosseguiu nas suas combinações de xadrez, sempre a repreender o seu rei com muita mais aspereza do que merecia por certo um inocente bocado de marfim.

Aurilly, ao entrar na antessala, foi cumprimentado com toda a urbanidade por Quélus, em cujas mãos um magnífico emboca-bola de ébano, marchetado de marfim, fazia rápidas evoluções.

- Bravo, Sr. de Quélus - disse Aurilly vendo executar pelo mancebo uma sorte difícil

- , bravo!

- Ah, meu caro Sr. Aurilly - disse Quélus -, quando conseguirei eu manejar o emboca- bola como o senhor maneja o alaúde!

- Quando tiver gasto tantos dias a estudar o seu bonito - respondeu Aurilly algum tanto escandalizado - quantos anos eu levei a estudar o meu instrumento. Porém, onde está Sua Alteza? O senhor não tem audiência dele esta manhã?

- Prometeu-me audiência, com efeito, meu caro Aurilly, mas Schomberg está primeiro que eu!

- Ah, o Sr. de Schomberg também? - disse o tocador de alaúde ainda mais admirado.

- É verdade! Foi el-rei que assim quis; está ali dentro, na casa de jantar. Entre pois, Sr. Aurilly, e faça-me o favor de lembrar ao príncipe que estamos aqui à espera.

Aurilly abriu a segunda porta, e viu Schomberg mais deitado do que sentado, num grande banco estofado de penas.

Schomberg, assim recostado e embocando uma sarabatana, procurava fazer passar pelo centro dum anel de ouro suspenso do tecto por um fio de retrós umas bolinhas de barro aromatizado, de que tinha abundante fornecimento numa espécie de bolsa de caçador, e que um cão favorito lhe tornava a trazer todas as vezes que elas escapavam de se esmigalhar de encontro à parede.

- Que é isso? - exclamou Aurilly. - Semelhante passatempo nos quartos de Sua Alteza? Ah, Sr. de Schomberg!.

- Ah! Guten Morgen, Sr. Aurilly - disse Schomberg interrompendo o seu divertimento

- ; estou, como vê, matando o tempo enquanto espero que chegue a minha vez de audiência.

- Mas onde está Sua Alteza? - perguntou Aurilly.

- Caluda! Sua Alteza está perdoando neste momento a d'Épernon e a Maugiron. Porém, não quer entrar, o senhor, que goza de toda a privança com o príncipe?.

- Não irei estorvá-lo? - disse o músico.

- Não estorvará, por certo; encontrá-lo-á no seu gabinete de pintura; entre. Sr. Aurilly, entre.

E dizendo isto empurrou Aurilly pelos ombros para o quarto imediato, onde o músico, pasmado, avistou logo à entrada d'Epernon, entretido defronte dum espelho a dar jeito aos bigodes com goma, enquanto que Maugiron, sentado ao pé da janela, se entretinha em recortar gravuras de natureza tal, que os baixos- relevos do Templo de Vénus Afrodite em Cnido e as pinturas da Piscina de Tibério em Cápreas, podiam considerar-se como imagens de santidade comparativamente a elas.

O duque, sem espada, estava sentado na sua poltrona entre aqueles dois homens, que só olhavam para ele para vigiarem os movimentos que fazia, e só lhe falavam para Lhe dizerem palavras agradáveis.

Quando viu Aurilly, quis correr para ele.

- Devagarinho, meu Senhor - disse Maugiron detendo-o -, que pisa as minhas estampas.

- Oh, Deus - exclamou o músico -, que estou vendo! Insultam meu amo?

- Caro Sr. Aurilly - disse d'pernon, continuando sempre a retorcer os bigodes -, como vai de saúde? Julgo que está bom, pela cor vermelha que apresenta.

- Faça-me o favor, senhor músico, de me trazer aqui essa adagazinha, se não lhe causa incómodo - disse Maugiron.

- Senhores, senhores - disse Aurilly -, esquecem-se porventura do lugar em que se acham?

- Não nos esquecemos, não, meu querido Orfeu - respondeu d'Épernon -, e é por esse motivo que o meu amigo lhe pede o seu punhal. Bem vê que o Senhor Duque está sem o seu.

- Aurilly - disse o duque com tristeza e raiva -, não percebes ainda que estou aqui preso?

- Preso? Por quem!

- Por meu irmão. Não o adivinhaste logo que viste quem eram os meus carcereiros? Aurilly soltou um grito de espanto.

- Oh, se eu tal houvesse desconFiado!. - disse ele.

- Teria trazido o seu alaúde para distrair Sua Alteza; meu querido Sr. Aurilly - disse uma voz de escárnio -; mas também eu tive a mesma lembrança: mandei-o buscar, e ele aqui está.

E Chicot entregou eFectivamente o alaúde ao pobre músico; por detrás de Chicot estavam Quélus e Schomberg, que bocejavam quase a ponto de desmancharem os queixos.

- E a partida de xadrez, Chicot? - perguntou d'Épernon.

- Ah, sim, é verdade! - disse Quélus.

- Parece-me, meus senhores, que o meu bobo sempre há-de conseguir salvar o rei; mas, por Deus, sempre lhe há-de dar água pela barba! Vamos, Sr. Aurilly, entregue-me o seu punhal em troca deste alaúde, pêlo por pêlo.

O músico, sobremaneira consternado, obedeceu, e foi sentar-se numa almofada aos pés do amo.

- Já temos um na ratoeira - disse Quélus -, vamos agora tratar de apanhar os outros. E dizendo estas palavras, que davam a Aurilly a explicação das cenas precedentes, Quélus voltou para o seu posto na antessala, tendo previamente pedido a Schomberg que Lhe emprestasse a sarabatana em troca do emboca-bola.

- É muito justo - disse Chicot -, é bom variar de divertimentos; eu, também para variar os meus, vou agora assinar a Liga.

E tornou a Fechar a porta, deixando a sociedade de Sua Alteza Real aumentada com o pobre tocador de alaúde.

 

         O CHEFE DA LIGA

A hora da recepção geral já estava chegada, ou, para melhor dizer, estava quase chegada, porque, desde o meio-dia, tinham começado a entrar para o Louvre os chefes principais, os interessados, e mesmo alguns curiosos.

Paris ainda em tumulto como na véspera, porém com a diferença de que os suíços, que não tinham sido convidados para a função da noite antecedente, eram naquele dia os actores principais dela; Paris, em tumulto como na véspera, dissemos nós, tinha enviado ao Louvre, como que em procissão, as suas deputações de membros da Liga, as suas corporações de operários, os seus vereadores, as suas milícias, e as ondas inumeráveis de espectadores, que, nos dias em que o povo tem alguma empresa entre mãos, aparecem de roda dele para o observarem, tão espontâneos, tão activos e tão curiosos, como se em Paris existissem duas povoações distintas, e como se, naquela grande capital, imagem do mundo em ponto pequeno, cada indivíduo se dividisse à vontade em duas partes, uma para proceder e a outra para ver.

Havia pois em volta do Louvre uma considerável massa de populares, mas que nada tinha de assustador para o paço.

Ainda não era chegada a época em que o murmúrio dos povos, transformado em trovão, devia deitar por terra as muralhas com o sopro da sua artilharia, e derrubar o castelo sobre a cabeça de seus senhores; os suíços daquele dia, antecessores dos de 10 de Agosto e de 27 de Julho, riam-se para as coortes dos Parisienses, apesar de bem armados, e os Parisienses riam-se para os suíços; ainda não era chegado o tempo em que o povo devia ensanguentar o vestíbulo do palácio dos seus reis.

Contudo, ninguém se persuada que o drama, por isso que era menos lúgubre, fosse destituído de interesse; o aspecto que apresentava o Louvre era, pelo contrário, uma das cenas mais curiosas que até aqui temos esboçado.

O rei, sentado na sala grande do trono e cercado dos seus oficiais, dos seus amigos, dos seus criados e da sua família, estava vendo desFilar pela sua frente as corporações todas, as quais, depois de deixarem os chefes no paço, deviam ir ocupar os lugares que lhes estavam designados por baixo das janelas e nos pátios do Louvre.

O rei via pois ali reunidos os seus inimigos, e quase que podia contá-los, tarefa na qual o coadjuvava Chicot, que se conservava escondido por detrás da cadeira real, e em que também o auxiliavam as olhadelas da rainha-mãe, ou alguns ditos dos membros ínfimos da Liga, que se mostravam mais impacientes que os chefes, por isso que não estavam tão iniciados no segredo como eles.

De repente entrou o Sr. de Monsoreau.

- Ora esta - disse Chicot -, olha para acolá, Henriquinho.

- O que queres tu que eu veja?

- Vê o teu monteiro-mor, com a breca! Merece que te dês ao incómodo de olhares para ele; vem tão enfiado e tão salpicado de lama que é um gosto vê-lo!

- E com efeito - disse o rei -, é ele mesmo!

Henrique acenou ao Sr. de Monsoreau, que logo se aproximou.

- Por que acaso está no Louvre, Senhor? - perguntou Henrique. - Julgava que tinha ido para Vincenas tratar de nos desencovar um gamo.

- E o gamo foi efectivamente desencovado às sete horas da manhã, Real Senhor; porém, como vi que era quase meio-dia e que Vossa Majestade não tinha aparecido, receei que tivesse sucedido algum desastre, e vim correndo até aqui para me certificar.

- Deveras? - disse o rei.

- Senhor - disse o conde -, se faltei ao meu dever, peço a Vossa Majestade que atribua a minha falta a um excesso de zelo unicamente.

- Sim senhor - replicou Henrique -, e acredite que Lhe dou o devido apreço.

- Agora - disse o conde com alguma hesitação -, se Vossa Majestade exige que eu volte para Vincenas, como já estou sossegado.

- Não, não, Fique, monteiro-mor; a tal caçada foi uma lembrança que nos passou ontem pela cabeça e que já se foi pelo mesmo caminho por onde tinha vindo; fique, e não se afaste de mim; preciso ter hoje junto de mim gente zelosa do meu serviço, e o senhor mesmo acaba de colocár-se no número daqueles em cujo zelo eu devo confiar.

Monsoreau inclinou-se.

- Onde quer Vossa Majestade que eu tome lugar? - perguntou o conde.

- Queres emprestar-mo por espaço de meia hora? - perguntou Chicot ao ouvido do rei.

- Para quê?

- Para o fazer enraivecer. Que mal te faz isso? Bem sabes que me deves alguma compensação por me obrigares a assistir a uma cerimónia tão enfadonha como esta.

- Pois bem, toma conta dele.

- Já tive a honra de perguntar a Vossa Majestade onde determinava que eu tomasse lugar?

- perguntou segunda vez o conde.

- Pensei que já lhe tinha respondido. Onde lhe aprouver. Por detrás da minha cadeira, por exemplo. É o lugar que eu dou aos meus amigos.

- Venha cá, monteiro-mor - disse Chicot concedendo ao Sr. de Monsoreau uma porção do terreno que tinha reservado para si unicamente -, e fareje-me estes patuscos. Não são precisos sabujos para desencovar estas feras. Por Deus, Senhor Conde, que exalações! Aqueles que acabaram de passar são os sapateiros; eis agora os curtidores. Pela minha salvação, monteiro-mor se perder o rasto deles, declaro-Lhe que o exonero do seu cargo!

O Sr. de Monsoreau fingiu que estava ouvindo, ou, para melhor dizer, ouvia sem perceber o que ele dizia; estava muito inquieto e procurava em redor de si com certa preocupação que não escapou ao rei, a quem Chicot a fez notar.

- Olé - disse ele ao ouvido do rei -, sabes qual é a lebre que está correndo neste momento o teu monteiro-mor?

- Não, qual é?

- Está caçando o teu irmão de Anju.

- Parece-me que Lhe há-de custar a pôr-Lhe a vista em cima - disse Henrique rindo.

- Caça pelo rasto. Tens empenho que ele não saiba onde está?

- Confesso-te que não se me dava que ele se enganasse na trilha.

- Espera, espera, que o vou encaminhar para outra pista. Eu tenho ouvido dizer que as emoções do lobo são parecidas com as da raposa; será fácil ele enganar-se. Pergunta-lhe tu onde está a condessa.

- Para quê?

- Pergunta sempre, depois verás.

- Senhor Conde - disse Henrique -, que é feito da Sr. a de Monsoreau, que a não vejo entre aquelas senhoras?

O conde estremeceu como se uma cobra Lhe houvesse mordido o pé. Chicot coçava a ponta do nariz, piscando os olhos para o rei.

- Senhor - respondeu o monteiro-mor -, a Senhora Condessa andava adoentada, não se dá bem com os ares de Paris, e por isso partiu esta noite, depois de ter obtido licença da rainha, com o barão de Méridor, seu pai.

- E para que parte de França se dirige ela? - perguntou o rei, estimando imenso ter um pretexto para voltar a cara enquanto os curtidores passavam.

- Para o Anju, sua pátria, Real Senhor.

- O caso é - disse Chicot com seriedade - que os ares de Paris não prestam para mulheres grávidas: Gravidis uxoribus Lutetia inclemens. Dou-te de conselho que imites o exemplo do conde, Henrique, e que mandes também a rainha para alguma parte, quando ela assim estiver...

Monsoreau enfiou e olhou furioso para Chicot, o qual, com o cotovelo encostado à cadeira do rei e a barba encaixada na mão, parecia muito atento a observar os serigueiros, que se seguiam imediatamente aos curtidores.

- E quem Lhe disse, senhor atrevido, que a Senhora Condessa está grávida? - murmurou Monsoreau.

- Então não está? - perguntou Chicot. - Parece-me que seria ainda maior atrevimento supor isso.

- Pois não está, Senhor.

- Olha lá, Henrique, ouviste? - disse Chicot. - O teu monteiro-mor, segundo parece, cometeu o mesmo erro que tu; esqueceu-se de juntar as duas camisas de Nossa Senhora.

Monsoreau cerrou os punhos e disfarçou a cólera que sentia, depois de ter dirigido para Chicot um olhar de raiva e de ameaça, ao qual Chicot respondeu carregando o chapéu para os olhos e fazendo ondear como uma cobra a delgada e comprida pluma que o adornava.

O conde percebeu que tinha escolhido má ocasião, e sacudiu a cabeça, como para desafrontar a testa das nuvens que a sobrecarregavam.

O semblante de Chicot também se amenizou, e, passando da atitude de mata-mouros para o mais agradável sorriso:

- A pobre condessa - prosseguiu ele - é capaz de morrer de aborrecimento pelo caminho.

- Já disse a el-rei - respondeu Monsoreau - que ela viajava em companhia de seu pai.

- É verdade, e não se pode negar que a companhia dum pai é sempre muito respeitável. porém nunca é divertida; se ela não tivesse mais ninguém para a distrair pelo caminho senão o estimável barão; mas felizmente.

- O quê? - perguntou logo o conde.

- O quê, o quê? - respondeu Chicot.

- Que quer dizer esse felizmente?

- Ah, ah!. era uma elipse, Senhor Conde.

O conde encolheu os ombros.

- Peço-lhe perdão, Senhor Monteiro-Mor; mas a forma interrogativa de que há pouco se serviu chama-se uma elipse. Ou senão, pergunte a Henrique, que é filólogo.

- Sim - disse Henrique -; mas que significação tinha o teu advérbio?

- Qual advérbio?

- Felizmente.

- Felizmente. significava felizmente. Felizmente, dizia eu, e nisso admirava a bondade de Deus; felizmente, andam a estas horas pela estrada alguns amigos nossos, e muito maganões que eles são, os quais, se encontrarem a condessa, hão-de distraí-la com toda a certeza; e acrescentou com indiferença -, como levam o mesmo destino, é muito provável que a encontrem. Oh, parece-me que os estou vendo. Vê-los, Henrique, tu, que és homem de imaginação viva? Vê-los, numa linda estrada verdejante, fazendo piafés com os cavalos e rendendo finezas à Senhora Condessa?.

Este dito era segundo punhal, mais aguçado do que o primeiro, que entrava no coração do monteiro-mor.

Contudo não lhe era possível despropositar; o rei estava presente; e Chicot tinha nele um aliado, momentaneamente pelo menos; e por isso, com uma afabilidade que bem mostrava a magnitude dos esforços que tinha feito para encobrir o seu mau humor:

- Pois quê? Tem amigos que andam de jornada na direcção de Anju?. - disse ele para Chicot com gesto agradável e risonho.

- Até poderia dizer temos, Senhor Conde, porque os amigos a que me refiro ainda são mais seus amigos do que meus.

- Admira-me o que me diz, Sr. Chicot - replicou o conde -; não conheço pessoa alguma que.

- Bom, de que serve esse mistério?

- Juro-lhe.

- E tanto assim, Senhor Conde; e mesmo são amigos que tanto estima, que há pouco, por costume - porque bem sabe que eles estão a estas horas na estrada do Anju - que há pouco, digo, ainda os procurava, por costume, entre esta multidão; mas debalde, bem entendido.

- Eu? - exclamou o conde. - Notou isso?.

- Sim, meu monteiro-mor; o mais pálido de todos os monteiros- mores, passados, presentes e futuros, desde Nemrod até ao Sr. de Auteforc, seu predecessor.

- Sr. Chicot!.

- O mais pálido, ainda repito: lcriras veritatum. Isto é um barbarismo, porquanto nunca existiu senão uma verdade, e se houvessem duas, haveria uma que não era verdadeira; porém o senhor não é filólogo, meu caro Sr. Esaú.

- Não senhor, não sou; eis pois a razão por que lhe peço que tornemos ao assunto dos tais amigos em que me falava, e que me faça o favor de mos designar pelos seus próprios nomes, se é que essa superabundância de imaginação que em si se nota Lho permite.

- Está sempre a repetir a mesma coisa. Procure, Senhor Monteiro- Mor, procure; o seu ofício é desencovar feras, e senão que o diga aquele desgraçado veado que desencovou esta manhã, e que certamente não esperava semelhante coisa; gostaria porventura que alguém lhe interrompesse o sono?.

Os olhos de Monsoreau divagavam com susto pelas pessoas que estavam em volta do rei.

- Que é isto! - exclamou ele vendo um lugar vago ao lado do rei.

- Vamos adiante!. - disse Chicot.

- O Senhor Duque de Anju! - exclamou o monteiro-mor.

- Acertou - disse o gascão -, eis a fera fora do covil!

- E partiu hoje? - perguntou o conde.

- Partiu hoje - respondeu Chicot -, ou partiu ontem à noite. Não é filólogo, meu conde; mas pergunte a el-rei, que o é. Quando, ou por outra, em que momento desapareceu teu irmão, Henriquinho?

- Esta noite - exclamou o rei.

- O duque. o duque partiu? - murmurou Monsoreau enfiado a tremer. - Ah! meu Deus, meu Deus! Que me está dizendo, Real Senhor?

- Não digo - replicou o rei - que meu irmão partisse, digo unicamente que desapareceu a noite passada, e que os seus mais íntimos amigos não sabem onde ele pára.

- Oh - exclamou o conde encolerizado -, se eu soubesse isso com certeza!.

- Então o que faria? E demais, não me parece que seja grande desgraça render ele algumas finezas à Sr. de Monsoreau. O nosso amigo Francisco é o galã da família; era ele quem substituía nesse particular el-rei Carlos IX, no tempo em que el-rei Carlos IX era vivo, e é ele quem ainda hoje substitui Henrique III, que tem coisas mais importantes em que cuidar do que render finezas a senhoras. Não é muito que haja na corte um príncipe que seja o representante da amabilidade francesa.

- O duque, o duque partiu? - repetiu Monsoreau; - está certo disso, Sr. Chicot?.

- E o senhor? - perguntou o bobo.

O monteiro-mor volveu os olhos outra vez para o lugar que usualmente ocupava o duque ao lado do irmão, e que se conservava devoluto.

- Estou perdido! - murmurou ele com um movimento tão expressivo para fugir, que Chicot deteve-o.

- Conserve-se quieto, por Deus! Não faz outra coisa senão mexer-se, e está causando torturas ao rei. Por minha vida! Que eu quisera estar no lugar de sua esposa, ainda que mais não fosse senão para ver um dia um príncipe que tem dois narizes, e para ouvir Aurilly, que toca alaúde como o defunto Orfeu. Quanto é ditosa a sua esposa, quanto é ditosa!.

Monsoreau estremeceu de raiva:

- Devagar! Senhor Monteiro-Mor - disse Chicot -; oculte a sua alegria; vai abrir-se a sessão, e não parece decente manifestar assim as suas paixões; ouça o discurso de el-rei.

O monteiro-mor não teve rrmédio senão conservar-se no seu lugar, porque, com efeito, a sala do Louvre tinha-se enchido de gente pouco a pouco; permaneceu pois imóvel e em atitude de cerimónia.

A assembleia estava completa; o Sr. de Guisa acabava de entrar na sala e de dobrar o joelho ante o rei, olhando ele também com admiração para a cadeira em que deveria estar sentado o Senhor Duque de Anju.

O rei levantou-se.

Os arautos ordenaram que houvesse silêncio.

- Senhores - disse o rei no meio do silêncio mais profundo, e depois de se ter certiFicado que d'Épernon, Schomberg, Maugiron e Quélus, que haviam sido rendidos por uma guarda de dez suíços, tinham vindo ter com ele e se conservavam na sua retaguarda -, os reis, colocados por assim dizer entre o Céu e a Terra, ouvem igualmente as vozes lá de cima e as que soam cá de baixo. Conheço perfeitamente que a associação de todos os poderes reunidos num único centro para defender a fé católica oferece mais uma garantia aos meus súbditos. E por isso me apraz seguir o conselho que me deu meu primo de Guisa. Declaro pois que a Santa Liga está bem e devidamente autorizada e instituída, e como é indispensável que um corpo tão grande tenha uma cabeça forte e poderosa, como é muito importante que o chefe destinado a sustentar a Igreja seja um dos filhos mais zelosos da mesma Igreja, e que a natureza mesma do seu cargo seja quem Lhe imponha o zelo, escolho um príncipe cristão para o colocar à testa da Liga, e declaro que, de hoje em diante, fica sendo chefe.

Henrique parou aqui de propósito.

Uma mosca que tivesse esvoaçado ter-se-ia ouvido no meio da imobilidade geral. Henrique repetiu:

- E declaro que fica sendo esse chefe Henrique de Valois, rei de França e da Polónia. Henrique, ao proferir estas palavras. tinha levantado a voz com uma espécie de afectação, em sinal de triunfo e para provocar o entusiasmo dos seus amigos, assim como também para acabar de esmagar os partidários da Liga, cujos murmúrios surdos denotavam descontentamento, surpresa e espanto.

O duque de Guisa, esse tinha ficado prostrado; corria-lhe o suor em bagas pela testa; e olhava com pasmo para o duque de Maiena e para o irmão cardeal, que estavam no centro de dois grupos de chefes, um à sua direita e o outro à esquerda.

Monsoreau, cada vez mais admirado da ausência do duque de Anju, começou a tranquilizar-se, recordando-se das palavras de Henrique III.

E com efeito o duque podia ter desaparecido sem ter partido.

O cardeal afastou-se, sem afectação, do grupo onde estava, e aproximou-se do irmão.

- Francisco - disse-Lhe ele ao ouvido -, se não me engano, não estamos seguros aqui. Tratemos de nos despedir quanto antes, porque não há que fiar no povo, e el-rei, que ele ontem odiava, vai tornar-se o seu ídolo por alguns dias.

- Pois bem - respondeu Maiena -, partamos. Espere aqui por nosso irmão, que eu vou adiante preparar a retirada.

- Vá.

Durante este tempo, o rei tinha assinado o auto, que estava pronto sobre a mesa e havia sido redigido de antemão pelo Sr. de Morvilliers, que era a única pessoa que sabia do segredo, além da rainha-mãe; e com o modo chocarreiro que ele usava com tanta perfeição quando queria, disse com voz fanhosa para o Sr. de Guisa:

- Assine também, querido primo.

Entregou-lhe a pena, e indicando-Lhe com o dedo o lugar onde havia de assinar:

- Aqui, aqui - disse ele -; abaixo de mim. Agora passe a pena para o Senhor Cardeal, e depois para o Senhor Duque de Maiena.

Porém o duque de Maiena já ia no fim da escada, e o cardeal já estava na sala imediata. O rei notou a ausência dos dois.

- Pois então entregue a pena ao Senhor Monteiro-Mor - disse ele.

O duque assinou, passou a pena para o monteiro-mor, e fez um movimento de retirada.

- Espere - disse o rei.

E enquanto Quélus, com ar de mofa, recebia a pena da mão do Sr. de Monsoreau, e que não somente todos os fidalgos presentes, como também os chefes das corporações que tinham sido convocados para tão grande solenidade, se dispunham a assinar abaixo do rei, e sobre folhas volantes que deviam formar parte dos registos que na véspera tinham servido para que todos, grandes ou pequenos, nobres ou vilões, inscrevessem os nomes bem por extenso, dizia o rei para o duque de Guisa:

- Meu primo, era de parecer, segundo creio, que se criasse, para guarda da nossa capital, um exército composto das forças da Liga. O exército está formado, e convenientemente formado, por isso que o verdadeiro general dos Parisienses é el-rei.

- Decerto, Real Senhor - respondeu o duque sem saber o que dizia.

- Porém não me esquece - prosseguiú o rei - que ainda tenho outro exército que precisa de comandante, e que é um comando que por direito pertence ao primeiro cabo-de-guerra do meu reino. Enquanto eu fico comandando a Liga, vai pois comandar o exército, meu primo.

- E quando deverei partir? - perguntou o duque.

- Imediatamente - replicou o rei.

- Henrique, Henrique! - exclamou Chicot, o qual, por causa da etiqueta, não podia, como bem desejava, ir à mão ao rei no meio da sua fala.

Porém como o rei não o tinha ouvido, ou, se o ouvira, não havia percebido o que ele queria dizer, adiantou-se respeitosamente, com uma enorme pena na mão, e abrindo caminho até ao pé do rei:

- Calas-te ou não, meu grande pateta - disse-Lhe ele ao ouvido.

Mas já era tarde. O rei, como vimos, tinha dado conhecimento ao duque de Guisa da sua nomeação, e estava-Lhe entregando a patente já assinada, apesar de todos os gestos e trejeitos do gascão.

O duque de Guisa pegou na patente e saiu.

O cardeal estava esperando por ele à porta da sala, e o duque de Maiena esperava-os a ambos à porta do Louvre.

Montaram a cavalo no mesmo instante, e ainda não tinham decorrido dez minutos já todos três estavam fora de Paris.

O resto da assembleia foi-se retirando pouco a pouco. Uns gritavam viva el-rei! outros, viva a Liga!

- Ao menos - disse Henrique rindo - consegui resolver um grande problema.

- Oh, não há dúvida - murmurou Chicot -, olha que sempre és um matemático às direitas!

- É o que te digo - replicou o rei -; fiz com que todos aqueles marotos fossem dando vivas a duas coisas opostas e que têm a mesma significação.

- EStá bene! disse a rainha-mãe a Henrique apertando-Lhe a mão.

- Crê no que ela te diz, e deita-te a dormir - disse o gascão está desesperada; este golpe quase que aniquilou os seus Guisas.

- Oh, Real Senhor, Real Senhor - exclamaram os validos chegando-se tumultuosamente ao rei -, que sublime ideia teve Vossa Majestade!

- Pensam que vai chover dinheiro como maná no deserto - disse Chicot ao ouvido do rei.

Henrique foi levado em triunfo para os seus aposentos; no meio do cortejo que acompanhava e seguia o rei, Chicot fazia o papel do detractor da Antiguidade, perseguindo o amo com as suas lamentações.

A pertinácia com que Chicot procurava fazer sentir ao herói daquele dia que era apenas um homem como os mais, impressionou o rei a tal ponto, que despediu toda a gente e ficou só com Chicot.

- Sabe que mais, Sr. Chicot? - disse Henrique, voltando-se para o gascão. - Já me vai aborrecendo tanta impertinência! Não me dirás o que será preciso que eu faça para te contentar? Cos demónios, eu não exijo condescendência, peço unicamente um pouco de juízo!

- Tens razão, Henrique - replicou Chicot -, porque é a coisa de que mais careces.

- Confessa ao menos que o golpe foi bem vibrado!

- É nisso justamente que eu não posso concordar.

- Ah, está com inveja, senhor rei de França?

- Eu, Deus me livre de tal! Se quisesse ter inveja de alguém, havia de fazer melhor escolha.

- Irra, senhor crítico!.

- Oh, que amor-próprio tão cego!

- Ora vamos: sou eu, ou não sou, rei da Liga?

- És, por certo, isso é incontestável. Mas.

- Mas o quê?

- Mas já não és rei de França.

- E quem é, então, o rei de França?

- Toda a gente, menos tu, Henrique: teu irmão em primeiro lugar.

- Meu irmão? A quem te referes tu?

- Que pergunta essa! Ao Senhor Duque de Anju.

- Que eu conservo aqui preso.

- Sim, porque mesmo assim preso como está, foi sagrado, e tu ainda o não foste.

- Quem foi que o sagrou?

- O cardeal de Guisa; na realidade, Henrique, dou-te de conselho que nunca mais gabes a tua polícia. Pois sagram um rei em Paris perante trinta e três pessoas, no meio da Igreja de Santa Genoveva, e tu não o sabes?

- E tu sabe-lo?

- Certamente que sei.

- E como podes tu saber uma coisa que eu ignoro?

- Eu te digo: é porque tu incumbes da tua polícia o Sr. de Morvilliers, e eu incumbo-me a mim próprio da minha.

O rei carregou as sobrancelhas.

- Temos pois actualmente, como rei de França, sem falar em Henrique de Valois, Francisco de Anju; e depois temos ainda. vejamos. - disse Chicot, fingindo que procurava recordar-se - temos ainda o duque de Guisa.

- O duque de Guisa?

- O duque de Guisa, Henrique de Guisa, Henrique, o Acutilado. Repito, portanto: temos ainda mais o duque de Guisa.

- Fresco rei, na verdade, que há pouco desterrei, que mandei para o exército!

- Bom, e a ti não te desterraram para a Polónia? Pensas que a distância de La Charité ao

Louvre é maior do que a de Cracóvia a Paris? Ah dizes a verdade mandaste-o para o exército; aí é que está a mestria do golpe de que te mostras tão ufano; mandaste-o para o exército, isto é, puseste-o à testa de trinta mil homens; e que exército, por Deus!. Um verdadeiro exército. bem diferente do teu exército da Liga. Não é um exército de burgueses, isso é bom para Henrique de Valois, rei dos favoritos; para Henrique de Guisa destina-se um exército de soldados, e que soldados! Endurecidos pelo trabalho, aguerridos, crestados pela pólvora, capazes de engolirem vinte exércitos da Liga, de forma que, se Henrique de Guisa, que fizeste rei de facto, tivesse um dia a asnática lembrança de o ser no nome também, bastava-Lhe dirigir os seus trombetas para a capital, e dizer: Para a frente, rapazes! Engolamos Paris duma vez, e, juntamente com ele, Henrique de Valois e o Louvre; e os maganões seriam capazes de Lhe fazer a vontade, que eu bem os conheço.

- Noto unicamente que te esqueceu uma circunstância na tua argumentação, apesar de seres tão profundo político - disse Henrique.

- Não nego que assim seja, especialmente se o que me esqueceu foi unicamente algum quarto rei de que não fiz menção.

- Não; esqueceu-te - replicou Henrique com o maior desdém - que aquele que se lembrar de querer ser rei de França, estando a coroa na cabeça dum Valois, deve primeiro olhar para trás e contar os seus antepassados. Que o Sr. de Anju tivesse semelhante ideia, não admira; é príncipe de sangue, e pode pretender o trono; os seus avós são os meus; pode haver luta e debate entre nós, porque entre nós a questão é de primogenitura unicamente. Porém o Sr. de Guisa. ora vamos, mestre Chicot! Vai aprender a ciência do brasão, meu amigo, e depois volta a dizer-nos se as flores-de-lis de França não têm melhor origem do que os pássaros mutilados da Lorena.

- Ah, ah! - exclamou Chicot. - É aí justamente que está o engano, Henrique.

- Como, qual engano?

- É como te estou dizendo. O Sr. de Guisa é oriundo de melhor raça do que tu pensas.

- De melhor raça do que eu talvez. - Henrique sorrindo.

- Não há talvez neste caso, meu Henriquinho.

- Estás doido, Chicot!

- Se o não fosse não era bobo!

- Digo-te que estás doido furioso. Vai aprender a ler, meu amigo!

- Pois bem, Henrique - disse Chicot tu que sabes ler, tu que não precisas, como eu, de voltar para a escola, lê isto.

E Chicot sacou do peito o pergaminho em que Nicolau David tinha escrito a genealogia que nós já conhecemos, a mesma que tinha voltado de Avinhão com a aprovação do papa, e pela qual se mostrava que Henrique de Guisa era descendente de Carlos Magno.

Henrique enfiou logo que acabou de ler o pergaminho, e que viu, ao lado da assinatura do legado, o selo de S. Pedro.

- Que me dizes a isso, Henrique? - perguntou Chicot. - Parece-me que as flores-de-lis ficam algum tanto no escuro, hem?. Por minha fé! Está-se-me Figurando que os pássaros mutilados querem voar a par da águia de César; toma sentido, meu filho!

- Mas. por que meio conseguiste tu apanhar esta genealogia?

- Eu? Pensas porventura que eu gasto muito tempo com semelhantes ninharias?. Veio ela ter comigo sozinha.

- Porém onde estava ela antes de vir ter contigo?

- Debaixo do travesseiro dum advogado.

- E como se chamava esse advogado?

- Mestre Nicolau David.

- Onde estava ele?

- Em Lião.

- E quem foi buscá-la a Lião debaixo do travesseiro do advogado?

- Um íntimo amigo meu.

- Em que se ocupa teu amigo?

- Prega sermões.

- Então é algum frade?

- Tal qual.

- E como se chama?

- Gorenflot.

- Como assim? - gritou Henrique. - Aquele abominável partidário da Liga que fez o discurso incendiário em Santa Genoveva, e que me insultou ontem nas ruas de Paris?

- Lembras-te da história de Bruto, que se fingia doido?.

- Visto isso, o teu frade de Santa Genoveva é um político consumado.

- Não ouviste falar no Sr. Maquiavel, secretário da república de Florença? Sua avó foi sua discípula.

- Então subtraiu esse documento ao advogado?

- Pois sim, tirou-Lho à força!

- A Nicolau David, o espadachim?

- Sim, a Nicolau David, o espadachim.

- O teu frade é algum valentão?

- Um segundo Bayard.

- E um homem que me prestou um serviço tão relevante ainda não se me apresentou para receber a devida recompensa?

- Voltou humildemente para o seu convento, e pede por único favor que ninguém se lembre que ele de lá saiu.

- Chega a esse ponto a sua modéstia?

- É um São Crispim.

- Chicot, à fé de cavaleiro, que a primeira abadia que vagar há-de ser para o teu amigo!

- disse o rei.

- Agradeço em nome dele, Henrique.

Por vida minha! pensou Chicot consigo, aí está o frade entalado entre Maiena e Valois, entre a corda e um canonicato; que fim terá? Enforcá-lo-ão ou fá-lo-ão abade? Só Deus sabe. Em todo o caso, se ainda se conserva a dormir, deve estar sonhando neste momento com coisas que Lhe hão-de parecer muito extraordinárias.

 

           ETÉOCLES E POLINICES

Acabou tumultuariamente, conforme havia começado, o dia da assinatura da Liga. Os amigos do rei congratulavam-se entre si; os pregadores da Liga dispunham-se a canonizar Frei Henrique, e enumeravam, como faziam outrora os panegiristas de S. Maurício, as brilhante façanhas guerreiras de Valois, cuja mocidade tinha sido tão agitada.

Os validos diziam: Até que enfim acordou o leão.

Os partidários da Liga diziam: Finalmente, a raposa desconfiou do laço que Lhe armavam. " E como a feição mais saliente do carácter da nação francesa é o amor-próprio, e os Francos não gostam de chefes de inteligência limitada, os mesmos conspiradores alegravam-se por terem sido ludibriados pelo rei.

Verdade seja que a maior parte dos chefes se tinham homiziado.

Os três príncipes lorenos, como já vimos, tinham saído de Paris à rédea solta, e o Sr. de Monsoreau, principal agente deles, dispunha-se a sair do Louvre, a fim de tratar dos seus aprestos de partida, com o projecto de alcançar o duque de Anju.

Porém, no momento em que ia para sair a porta, Chicot fez-se encontrado com ele.

Os partidários da Liga já tinham saído do paço, e o gascão, por conseguinte, estava descartado a respeito do rei.

- Onde vai com tanta pressa, Senhor Monteiro-Mor? - perguntou ele.

- Para junto de Sua Alteza - respondeu o conde laconicamente.

- Para junto de Sua Alteza?

- Sim, estou com cuidado no príncipe. Nestes tempos em que vivemos não é prudente viajarem os príncipes sem uma comitiva numerosa.

- Oh! Sua Alteza é tão valente - disse Chicot -, que chega a ser temerário. O monteiro-mor olhou para o gascão.

- Em todo o caso - prosseguiu Chicot -, se está com cuidado, confesso-lhe que também estou.

- Em quem?

- Na mesma Alteza.

- Porquê?

- Não ouviu o que por aí dizem?

- Não dizem que ele partiu? - perguntou o conde.

- Dizem que morreu - disse o gascão ao ouvido do seu interlocutor.

- Ora adeus! - exclamou Monsoreau com um gesto de surpresa misturada de contentamento. - Disse-me que já estava a caminho.

- Foi porque me fizeram persuadir de que assim era. Eu estou sempre de boa Fé e dou crédito a todas as patranhas que me contam; porém, agora digo-Lhe que tenho todos os dados necessários para julgar que se ele está a caminho para alguma parte, é para o outro mundo.

- Diga-me, qual é o motivo por que nutre tão fúnebres ideias?

- Ele entrou ontem para o Louvre, não é verdade?

- Não há dúvida, pois também eu entrei com ele.

- Pois bem, e ninguém ainda o viu sair!

- Do Louvre?

- É verdade.

- Porém Aurilly?

- Desapareceu!

- E os seus criados?

- Desapareceram, desapareceram! Desapareceram!

- Está zombando, não é assim, Sr. Chicot? - disse o monteiro-mor.

- Pergunte!

- A quem?

- A el-rei.

- Não é costume interrogar Sua Majestade!

- Qual! O caso está em o fazer com jeito.

- Vou ver - disse o conde -; quero tirar-me de dúvidas.

E deixando Chicot, ou, para melhor dizer, andando adiante dele, encaminhou-se para o gabinete do rei.

Sua Majestade tinha saído naquele instante.

- Onde foi el-rei? - perguntou o monteiro-mor - tenho a dar-Lhe conta da execução de certas ordens de que ele me encarregou.

- Foi ao quarto do Senhor Duque de Anju - respondeu o criado a quem ele se dirigira.

- Ao quarto do Senhor Duque de Anju? - disse o conde para Chicot; - então o príncipe não morreu?

- Eu sei lá! - disse o gascão - parece- me que não poderá estar com muita saúde.

As ideias do monteiro-mor embrulharam-se de todo; era evidente que o Senhor Duque de Anju não tinha saído do Louvre.

Certos boatos que ouviu, e certos movimentos dos criados, acabaram de Lhe confirmar esta verdade.

Como ele não sabia qual era na realidade a causa da ausência do príncipe, admirava-se sobremaneira daquela ausência num momento tão decisivo.

O rei tinha ido, com efeito, ao quarto do duque de Anju; porém como o monteiro-mor, apesar do grande desejo que tinha de saber o que havia sucedido ao príncipe, não podia lá entrar, não teve remédio senão ficar à espera de notícias no corredor.

Já dissemos que os quatro favoritos tinham mandado uma guarda de suíços para os substituir, a fim de irem assistir à sessão; porém, logo que esta terminou, apesar do aborrecimento que lhes causava a incumbência de estarem de guarda ao príncipe, o desejo de apoquentarem Sua Alteza com a notícia do triunfo que o rei tinha alcançado, pôde mais do que o aborrecimento, e por isso haviam voltado para os seus lugares; Schomberg e d'Épernon para a sala, e Maugiron e Quélus para a própria câmara de Sua Alteza.

Pelo que dizia respeito a Francisco, esse também estava mortalmente aborrecido, e é forçoso confessarmos que a conversação dos seus guardas não era de natureza a distraí- lo.

- Sabes o que te digo, Maugiron? - gritava Quélus para Maugiron, que estava no lado oposto da câmara, sem fazer caso da presença do príncipe - é que há uma hora apenas que estou dando o devido valor ao nosso amigo Valois: é na verdade um grande político.

- Explica o teu dito - respondeu Maugiron repoltreando-se numa cadeira de braços.

- El-rei falou abertamente a respeito da conspiração, por conseguinte sabia da sua existência e disfarçava; ele que disfarçava, era porque tinha algum receio dela; e se falou abertamente no assunto, é porque já se lhe acabou o receio.

- Isso é lógico - respondeu Maugiron.

- Se já se lhe acabou o receio, vai castigar os conspiradores tu bem conheces o Valois, torna-se notável certamente por um grande número de qualidades, mas a sua brilhante pessoa é algum tanto escura no artigo clemência.

- Concordo.

- Ora pois, se ele castigar os conspiradores, há-de ser por meio dum processo; se houver processo, vamos gozar sem nos incomodarmos duma segunda representação da cena de Amboise.

- Que lindo espectáculo que há-de ser, meu Deus!

- Decerto, e já nele temos os nossos lugares designados com antecedência, salvo o caso de.

- Salvo o caso. que é muito possível. de serem postas de parte as formas judiciárias, por causa da posição dos acusados, e ser o negócio tratado encapotadamente, como se costuma dizer.

- Estou que assim há-de acontecer - respondeu Maugiron é por essa forma que se tratam geralmente os negócios de família, e esta última conspiração é verdadeiramente um negócio de família.

Aurilly olhou com receio para o príncipe.

- Eu sempre te digo uma coisa - prosseguiu Maugiron -, e é que se estivesse no lugar de el-rei não havia de poupar as cabeças mais elevadas; com efeito, os tais senhores, por isso que são duas vezes mais criminosos do que os mais quando se abalançam a conspirar, julgam que Lhes é lícito entrar em toda e qualquer conspiração. Digo pois que havia de dar exemplar castigo, a um ou dois; a um especialmente; e depois destruía todo o peixe miúdo. O Sena é muito fundo logo abaixo da Torre de Nesle, e eu, se fosse a el-rei, dou-te a minha palavra que não resistia à tentação.

- Nesse caso - replicou Quélus -, parece-me que seria acertado pôr novamente em prática a famosa invenção dos sacos.

- E em que consiste essa invenção? - perguntou Maugiron.

- Uma extravagância real, que tem, pouco mais ou menos, a data de 1350; eis o caso: metiam um homem dentro dum saco, em companhia de três ou quatro gatos, e depois lançavam o embrulho ao rio. Os gatos, que são inimigos da humidade, apenas se sentiam dentro do Sena, vingavam-se no homem do desastre que lhes sucedia, e passavam-se então dentro do saco cenas que infelizmente ninguém podia ver.

- És na verdade um poço de ciência, Quélus - disse Maugiron -, e acho a tua conversação muitíssimo interessante.

- Esta invenção não poderia aplicar-se aos chefes, pois esses sempre têm direito a reclamar o favor de serem degolados em praça pública, ou assassinados a alguma esquina. Mas pode ter lugar para o peixe miúdo, como tu lhe chamas, e por peixe miúdo entendo eu os validos, os escudeiros, os mordomos, os tocadores de alaúde.

- Senhores. - balbuciou Aurilly, pálido de susto.

- Não respondas - disse Francisco -; aquela conversa não pode entender-se comigo, nem, por consequência, com pessoa alguma da minha casa; não é costume em França escarnecer os príncipes de sangue.

- Não, por certo - disse Quélus -; é prática tratá-los mais seriamente: corta-se-lhes o pescoço; o grande rei Luís Xi não costumava privar-se desse gosto, e senão haja em vista o que sucedeu ao Sr. de Nemours!

Os dois favoritos do rei tinham chegado a este ponto do diálogo, quando se ouviu algum rumor na sala; a porta da câmara abriu-se, e o rei apareceu à entrada.

Francisco levantou-se.

- Senhor! - exclamou ele. - Apelo para a justiça de Vossa Majestade, do procedimento indigno dos seus criados para comigo.

Porém Henrique Fingiu não ter visto nem ouvido o irmão.

- Bons dias - disse Henrique, beijando o valido nas duas faces -, bons dias, meu filho; a tua vista alegra-me a alma; e tu, meu pobre Maugiron, como estás?

- Estou morrendo de aborrecimento - respondeu Maugiron -; julgava, Senhor, quando me incumbi de estar de guarda a seu irmão, que ele era mais divertido do que na realidade é. Oh, que príncipe tão enfadonho! Está certo que ele seja filho de seu pai e de sua mãe?

- Senhor - disse Francisco -, tem ouvido! Vossa Majestade quer, porventura, que insultem seu irmão por esta maneira?

- Silêncio, Senhor - disse Henrique sem se voltar -, eu não gosto que os meus presos se queixem!

- Serei preso, se quiser, mas assim mesmo preso não deixo de ser seu.

- A qualidade que está invocando é exactamente a que mais mal lhe faz no seu espírito. Meu irmão, sendo criminoso, é duas vezes criminoso.

- Mas se o não for?.

- Mas é!

- Qual é o meu crime?

- O de ter incorrido no meu desagrado, Senhor.

- Senhor - disse Francisco ofendido -, julga necessário que haja testemunhas das nossas desavenças de família?

- Tem razão. Meus amigos, deixem-me conversar um instante com o senhor meu irmão.

- Senhor - disse Quélus em voz baixa -, atenda Vossa Majestade que não é prudente ficar aqui só entre dois inimigos.

- Eu levo comigo Aurilly - disse Maugiron ao outro ouvido do rei. Os dois fidalgos levaram consigo Aurilly, que ia ardendo de curiosidade e semimorto de susto.

- Eis-nos sós - disse o rei.

- Esperava este momento com impaciência, Senhor.

- E eu também. Ah, aspirava à posse da minha coroa, meu estimável Etéocles?. Tencionava fazer da Liga o meio e do trono o fim? Ah, foi sagrado numa igreja perdida num canto de Paris, para aparecer de repente aos olhos dos Parisienses a escorrer ainda em santos óleos?

- Infelizmente - disse Francisco, vendo aumentar gradualmente a cólera do rei -, Vossa Majestade não me deixa falar.

- Para quê? - respondeu Henrique. - Para mentir, ou para me dizer coisas que eu sei tão bem como o senhor? Era para mentir, meu irmão, porque se confessasse o que fez, havia de declarar que mereceu a pena última! Era para mentir, e quero poupar-lhe essa vergonha.

- Meu irmão, meu irmão! - disse Francisco fora de si. - Como me dirige semelhantes ultrajes!

- Pois então, se isto que lhe estou dizendo pode ser considerado como um ultraje, sou eu quem minto, e muito hei-de folgar de que assim seja. Vamos, fale, que o estou escutando! Mostre-me como não foi desleal, e, o que ainda é pior, um desastrado.

- Não sei o que Vossa Majestade quer dizer; parece ter tomado a resolução de me falar por

enigmas...

- Nesse caso, eu lhe explico as minhas palavras - bradou Henrique em voz ameaçadora -; sim, conspirou contra mim, assim como conspirou outrora contra meu irmão Carlos; a única diFerença está em que na outra conspiração foi o rei de Navarra quem o auxiliou, e nesta é o duque de Guisa. É um lindo projecto, que eu muito admiro, e que lhe teria granjeado um brilhante lugar na história dos usurpadores! É verdade que da outra vez andava de rojo como uma cobra, e desta queria morder como um leão; depois da perfídia, a força aberta; depois do veneno, a espada.

- O veneno? Que quer dizer, Senhor? - exclamou Francisco pálido de raiva e procurando, como aquele Etéocles com quem Henrique o tinha comparado o lugar onde poderia ferir Polinices com o seu olhar de fogo, na Falta de espada ou de punhal. - Que veneno!

- O veneno com que tu assassinaste o nosso irmão Carlos; o veneno que destinavas para Henrique de Navarra, teu sócio. É um veneno já muito conhecido, pelo frequente uso que nossa mãe Lhe tem dado. Foi provavelmente por esse motivo que não te resolveste a empregá-lo em mim; foi por isso que quiseste fazer de cabo-de- guerra, pondo-te à Frente das milícias da Liga. Mas encara bem comigo, Francisco - prosseguiu Henrique dando um passo para o irmão com gesto de ameaça -, e fica bem convencido de que um homem da tua laia nunca há-de matar um homem da minha têmpera!

Francisco ficou prostrado ao ouvir um ataque tão terrível, porém o rei, sem contemplação alguma para com o preso, prosseguiu:

- A espada, a espada! Bem quisera ver-te aqui neste quarto, a sós comigo, e com uma espada na mão. Eu já te venci em velhacaria, Francisco, porque também procurei caminhos tortuosos para chegar ao trono de França; porém para atravessar os caminhos que escolhi era preciso passar sobre os cadáveres de um milhão de polacos, e consegui-o! Se queres ser astuto, sê-o embora, mas de outra maneira; se queres imitar-me, imita-me, mas não como tens feito, rastejando. As minhas intrigas de rei, e a minha astúcia, são dignas dum cabo-de-guerra. Repito pois: foste vencido em astúcia; e serias morto num combate leal; não continues portanto a lutar nem de uma nem de outra forma; porque, de hoje em diante, vou proceder como rei, como senhor, como déspota; de hoje em diante passo a vigiar todas as tuas oscilações, a perseguir-te nos teus esconderijos, e, à menor hesitação, à menor desconfiança, à menor dúvida, agarro-te com a minha mão poderosa e atiro contigo ao cutelo do meu algoz. Era isto o que eu queria dizer-te relativamente aos nossos negócios de família, meu irmão; era a razão por que eu queria falar contigo, Francisco; e é por isso que vou ordenar aos meus amigos que te deixem só esta noite, a fim de que assim, entregue à solidão, possas meditar nas minhas palavras. Se a noite é na realidade boa conselheira, como dizem, deve sê-lo especialmente para quem está preso.

- Visto isso - murmurou o duque -, por causa dum capricho de Vossa Majestade, e por uma desconfiança que se assemelha a um sonho mau que teve, eis-me caído no seu desagrado?.

- Mais ainda, Francisco: caíste debaixo da minha justiça.

- Porém, ao menos, Senhor, marque o termo do meu cativeiro, para meu governo.

- Sabê-lo- á quando lhe lerem a sua sentença.

- E minha mãe? Não poderei ver minha mãe?

- Para quê? Não havia em todo o mundo senão três exemplares do Famoso tratado de montaria que o meu pobre irmão Carlos devorou. digo que devorou porque assim foi; os outros dois estão: um em Florença, e outro em Londres. Além disso, eu não sou nenhum Nem rod, como o meu pobre irmão. Adeus, Francisco!

O príncipe caiu aterrado sobre uma cadeira de braços.

- Senhores - disse o rei tornando a abrir a porta -, Senhores: o Senhor Duque de Anju pediu-me que Lhe concedesse licença para reflectir esta noite numa resposta que me há-de dar amanhã pela manhã. Deixá-lo-ão pois na sua câmara, salvas as rondas que Lhes parecerem convenientes de quando em quando para maior cautela. Encontrarão talvez o preso algum tanto exaltado em consequência da conversação que acaba de ter lugar entre nós; porém lembrem-se de que o Sr. de Anju, conspirando contra mim, renunciou o título de meu irmão; não há portanto aqui senão um preso e guardas; nada de cerimónias; se o preso os escandalizar, avisem-me, que eu tenho a Bastilha à mão, e lá na Bastilha está mestre Lourenço Testu, que é homem insigne para domar génios rebeldes.

- Senhor, Senhor! - murmurou Francisco tentando um derradeiro esforço. - Lembre- se de que sou seu.

- Também era irmão de el-rei Carlos IX, acho eu - disse Henrique.

- Mas determine ao menos que me sejam restituídos os meus criados e amigos.

- Não sei o que parece essa exigência, quando me estou privando dos meus para lhos dar. E Henrique, dizendo isto, Fechou a porta na cara do irmão, o qual foi recuando, pálido, a cambalear, até à poltrona em que se deixou cair.

 

         NO QUAL SE VÊ QUE NEM SEMPRE É TEMPO PERDIDO PASSAR REVISTA AOS ARMÁRIOS QUE ESTÃO VAZIOS

Privado dos seus amigos, o duque de Anju ficou considerando a sua posição como desesperada, depois da cena que acabava de ter com o rei.

Os favoritos tinham contado na sua presença tudo quanto havia ocorrido no Louvre; tinham-Lhe figurado a derrota dos Srs. de Guisa e o triunfo de Henrique maiores do que na realidade eram; tinha ouvido a voz do povo gritar (facto que a princípio lhe parecera impossível) viva el-rei! e viva a Liga! Via-se desamparado pelos principais chefes, que precisavam defender as suas pessoas.

O duque, abandonado pela família, que os envenenamentos e assassinatos haviam dizimado, e que se achava dividida pelos ressentimentos e discórdias, suspirava ao volver os olhos para aquele passado que o rei Lhe havia recordado, lembrando-se que na sua luta contra Carlos IX tinha ao menos por confidentes, ou antes, por vítimas, aquelas duas almas tão dedicadas, aquelas duas espadas vivas, a que chamavam Cocunás e La Mole.

A pena que causa a perda de certas vantagens é como um remorso para muitas consciências. O Sr. de Anju, quando se viu só e abandonado, sentiu pela primeira vez na sua vida uma espécie de remorso por ter sacrificado a vida de La Mole e Cocunás.

Naquele tempo a sua irmã Margarida amava-o e consolava-o.

E que paga dera ele a sua irmã Margarida?

Restava-Lhe ainda a mãe, a rainha Catarina. Porém a mãe nunca lhe tinha sido afeiçoada. Nunca se tinha servido dele a não ser da mesma forma por que ele se servia dos mais, isto é, como instrumento; e Francisco fazia justiça a si mesmo. Sabia muito bem que logo que se entregasse nas mãos da mãe havia de deixar inteiramente de ter vontade própria e ficava sujeito à vontade dela, assim como o navio vítima da fúria do Oceano perde o governo e Fica obedecendo ao impulso das ondas.

Lembrou-se que ainda recentemente tinha a seu lado um coração que valia por todos os corações, uma espada que valia por todas as espadas.

Era Bussy, o valente Bussy, que assim se Lhe apresentava à memória.

O sentimento que Francisco experimentou então parecia-se com remorsos, porque se malquistara com Bussy para agradar a Monsoreau; quisera agradar a Monsoreau, porque este sabia o seu segredo; mas de repente, aquele segredo, com que Monsoreau o ameaçava frequentemente, havia chegado ao conhecimento do rei, de forma que nada tinha já a recear de Monsoreau.

Fora pois inútil e gratuitamente que ele se malquistara com Bussy, dando assim um passo que, segundo disse posteriormente um grande político, era muito mais sério do que um crime, por isso que era falta de habilidade.

Qual não seria a consolação do príncipe, na situação em que se achava, saber que Bussy, grato, e fiel, por consequência, velava por ele? Bussy, que era invencível; Bussy de toda a gente, por isso que um coração leal e uma bem pesada mão sempre granjeiam amigos a quem recebeu o primeiro de Deus e a segunda do acaso!

Se Bussy velasse por ele, tinha a probabilidade de ser solto e a certeza de se vingar.

Mas, como já dissemos, Bussy, ferido no coração, estava amuado com o príncipe, e tinha-se retirado como Aquiles para a sua tenda; de modo que o preso estava só num quarto que ficava à altura de cinquenta pés dos fossos, se quisesse descer da janela; e guardado pelos quatro favoritos, que seria preciso aniquilar, para sair do corredor.

Isso sem falar dos pátios, que estavam sempre cheios de suíços e outros soldados. Chegava de quando em quando à janela e media a distância que dela ia até ao fundo dos fossos; porém uma tal altura era capaz de causar vertigens ao homem mais valente, e o Senhor Duque de Anju estava bem longe de querer ter vertigens.

Além deste inconveniente, não se passava uma hora sem que algum dos guardas do príncipe, ou Schomberg ou Maugiron, às vezes d'Épernon, e outras Quélus, não entrasse na câmara e fizesse a sua ronda sem se importar com a presença do príncipe, e quase que sem o cumprimentar, abrindo as portas e as janelas, dando busca aos armários e aos baús, indo ver debaixo da cama e das mesas, examinando até se as cortinas estavam no seu lugar e se os lençóis não tinham sido cortados em tiras.

Debruçavam-se de vez em quando da varanda, mas aquela altura de cinquenta pés tranquilizava-os.

- À fé de quem sou! - disse Maugiron à volta duma das suas visitas. - Já não estou para mais; requeiro para não tornar a sair da sala, onde, de dia, temos a companhia dos nossos amigos, e não quero que me obriguem a acordar de quatro em quatro horas para ir olhar para o Senhor Duque de Anju.

- Bem se vê - disse d'Épernon - que somos umas crianças; parece que sempre fomos comandantes e nunca soldados; não sabemos, na verdade, interpretar as nossas instruções.

- Como assim? - perguntou Quélus.

- Que pretende el-rei? Quer que nos conservemos de guarda ao Sr. de Anju, mas não exige que estejamos a olhar para ele.

- Isso é verdade; se é preciso guardá- lo, não é preciso vê-lo.

- Muito bem - disse Schomberg -; contudo convém não abrandarmos na nossa vigilância, porque o diabo é muito astuto.

- Será - disse d'Épernon -, porém parece- me que não basta ser astuto para passar por cima dos cadáveres de quatro patuscos como nós.

E d'Épernon, endireitando-se, retorceu o bigode com altivez.

- Tem razão - disse Quélus.

- Bom! - respondeu Schomberg. - Pensas acaso que o Senhor Duque de Anju é tão pateta que intente fugir por esta galeria onde estamos de guarda? Se ele tiver muito empenho em se pôr ao fresco, é capaz de fazer um buraco na parede.

- Com quê? Não tem armas.

- Tem as janelas - disse com alguma timidez Schomberg, o qual se recordava de haver de lá, medido a altura dos fossos.

- Ah, as janelas, que lembrança tão engraçada! - exclamou d'Épernon; - bravo, Schom berg, as janelas! Queres dizer que eras capaz de saltar da altura de cinquenta pés?.

- Confesso que cinquenta pés.

- Pois então ele que é coxo, ele que é pesado, ele que é medroso como...

- Tu - disse Schomberg.

- Meu caro - replicou d'Epernon -, bem sabes que eu só tenho medo de almas do outro

mundo; é uma coisa que não está na minha mão, porque me ataca os nervos.

- É porque - respondeu Quélus muito sério - todos os indivíduos que d'Épernon tem

morto nos duelos lhe apareceram na mesma noite.

- Não caçoemos - disse Maugiron tenho lido imensas histórias de fugas que causam

espanto; com os lençóis, por exemplo.

- Ah, agora sim, a observação de Maugiron é muito acertada - disse d'Épernon. Eu vi em Bordéus um preso que tinha fugido com o auxílio dos lençóis.

- Então bem vês... - disse Schomberg.

- É certo - replicou d'Épernon porém tinha as costas quebradas e a cabeça aberta; faltavam uns trinta pés ao lençol para chegar ao chão, de sorte que havia sido obrigado a saltar, tornando assim a evasão completa; o corpo tinha fugido da prisão, e a alma tinha fugido do corpo.

- Pois deixá-lo! Se escapar - disse Quélus -, teremos uma montaria de príncipe; persegui-lo-emos, pôr-Lhe-emos cerco, e ao pôr-lhe cerco, tratemos de Lhe quebrar um osso, assim como quem não quer a coisa.

- E nesse caso - exclamou Maugiron - voltaremos ao nosso verdadeiro ofício, porque nós somos caçadores e não carcereiros.

Esta peroração pareceu a todos muito concludente, e a conversa mudou para outro assunto notando porém os quatro fidalgos que seria bom continuarem a entrar de hora a hora no quarto do duque de Anju.

Os favoritos tinham toda a razão em se persuadirem de que o duque de Anju nunca intentaria fugir à força, e que, por outro lado, também nunca se resolveria a pôr em prática uma evasão perigosa ou difícil.

Não era decerto por falta de invenção no estimável príncipe, e, devemos mesmo confessar, ele dava tratos à imaginação passeando como um furioso do leito até ao célebre gabinete em que tinha passado duas ou três noites La Mole, quando a rainha Margarida o recolhera durante a noite de S. Bartolomeu.

De espaço a espaço o príncipe encostava o pálido rosto aos vidros da janela que deitava para os fossos do Louvre.

Além dos fossos existia uma praia que teria de largura uns quinze pés, e, do outro lado da praia, viam-se no meio da escuridão, as águas do Sena, serenas como um espelho.

Divisava-se mais ao longe, campeando como um gigante imóvel no escuro da noite, a Torre de Nesle.

O duque de Anju tinha seguido com a vista o pôr-do-sol em todas as suas fases; tinha notado, com o interesse com que uma pessoa presa observa espectáculos daquele género, o afrouxamento gradual da luz e o progresso da escuridão.

Tinha contemplado aquele espectáculo admirável do antigo Paris, com os seus telhados : dourados pelos últimos raios do Sol, e logo, em menos duma hora, prateado pelo primeiro brilho do luar; e depois, tinha-se sentido tomado gradualmente de imenso susto, vendo acumular-se no céu, por cima do Louvre, grandes nuvens que pressagiavam uma trovoada para aquela noite.

O duque, entre outras muitas fraquezas, tinha a de tremer ao estampido dos trovões.

Chegou a ponto de desejar que os favoritos voltassem a guardá-lo à vista, ainda mesmo que tivesse de ser por eles insultado.

Entretanto não era possível chamá-los para junto de si: seria dar-lhes assunto para motejos.

Deitou-se sobre a cama, mas não pôde dormir; quis ler, mas as letras bailavam-lhe diante dos olhos como diabinhos pretos; procurara embriagar-se, mas achou o vinho amargo; correu os dedos pelo alaúde de Aurilly, que tinha ficado pendurado num prego, porém sentiu que a vibração das cordas Lhe atacava os nervos por tal forma que lhe dava vontade de chorar.

Começou então a praguejar como um idólatra e a despedaçar tudo quanto encontrava ao alcance das mãos. Era este um defeito de família, e já todos no Louvre estavam acostumados a ele.

Os favoritos tinham aberto uma greta da porta para averiguarem a causa de tamanho motim; mas vendo que era o príncipe que estava procurando distrair-se, tornaram a fechá-la, o que muito aumentou a cólera do preso.

Acabava ele justamente de fazer uma cadeira em pedaços, quando ouviu o tinir dum vidro da janela que se quebrava, e sentiu ao mesmo tempo uma forte dor no lado.

A sua primeira ideia foi que tinha sido ferido por um tiro de arcabuz desfechado por algum emissário do rei.

- Ah, traidor! Ah, cobarde! - exclamou o preso. - Mandas-me arcabuzar como prometeste! Ah, estou morto!

E deixou-se cair sobre a alcatifa.

Porém, ao cair, deu com a mão num objecto bastante duro e menos liso do que costuma ser uma bala de arcabuz.

Oh! uma pedra! disse ele; visto isso, foi um tiro de falconete. Porém não ouvi explosão alguma!

E ao dizer isto encolheu e estendeu a perna; se bem que a dor tenha sido muito aguda, era evidente que os ossos estavam intactos.

Apanhou a pedra e foi examinar a vidraça.

A pedra havia sido arremessada com tanta força que tinha feito um buraco redondo no vidro.

Por fora da pedra vinha enrolado um papel.

As ideias do duque começaram então a mudar de direcção. Aquele seixo, em vez de ter sido atirado por algum inimigo, não proviria pelo contrário da mão de algum amigo?

Humedeceu-se-lhe a testa de suor; a esperança, assim como o susto, também causa angústias.

O duque chegou-se à luz.

Vinha, com efeito, um papel enrolado por fora da pedra e atado com muitos nós duma fitinha de seda. Era bem claro que o papel diminuíra a dureza do sílex, o qual, se assim não viesse embrulhado, causaria ao príncipe uma dor muito mais intensa do que a que ele sentira, Num abrir e fechar de olhos quebrou o duque a fitinha, desenrolou o papel, e leu o seu conteúdo; tinha ressuscitado completamente.

Uma carta! murmurou ele olhando em redor de si.

E leu o seguinte:

Está acaso farto de viver nesse quarto onde o encerraram? Gosta de ar livre e de liberdade? Entre no gaóinete onde a rainha de Navarra escondeu outrora o seu pobre amigo La Molle. abra o armário, e, tirando a prateleira de baixo, encontrará um fundo falso. nesse fundo falso está uma escada de seda, ao fundo da qual se encontrarão dois robustos homens que o ajudarão a fugir, com pujantes cavalos.

É Um amigo! exclamou o príncipe, um amigo! ah! eu não sabia que tinha um amigo! Quem será este amigo que se lembra de mim? "

O duque reflectiu um instante; mas como não Lhe podia ocorrer quem seria a pessoa que por ele se interessava, correu à janela; porém não viu ninguém.

Será alguma cilada? murmurou o príncipe, em quem o medo podia mais do que todos os outros sentimentos. Mas, em primeiro lugar, acrescentou ele, indaguemos se o armário tem um Fundo Falso, e se, dentro do fundo falso, estará uma escada.

O duque, então, sem mudar a luz de onde estava e resolvendo, para maior cautela, confiar unicamente no seu tacto, dirigiu-se para o gabinete cuja porta noutro tempo ele tinha aberto tanta vez quando esperáva encontrar ali a rainha de Navarra, resplandecente daquela formosura que Francisco apreciava mais do que era talvez lícito a um irmão.

É forçoso confessar que desta vez também o coração do duque palpitava com violência.

Abriu o armário às apalpadelas, examinou todas as prateleiras, e, quando chegou à de baixo, depois de ter carregado na frente, carregou também num dos lados, e sentiu que a tábua se sumia duma banda levantando-se da outra.

Introduziu logo a mão na cavidade, e sentiu com os dedos o contacto duma escada de seda.

O duque, semelhante a um ladrão que foge com a sua presa, correu para a câmara levando consigo aquele tesouro.

Deram as dez horas; o duque lembrou-se da visita que lhe faziam de hora a hora; deu-se pressa em esconder a escada debaixo da almofada de uma cadeira de braços, e sentou-se-Lhe em cima.

Era tão engenhosamente construída que ficava perfeitamente escondida no pequeno espaço onde o duque a tinha ocultado.

Com efeito, ainda bem não tinham decorrido cinco minutos, apareceu Maugiron, com uma espada desembainhada debaixo do braço esquerdo e um castiçal na mão direita.

Ao passo que entrava na câmara do duque ia continuando a falar com os amigos.

O urso está furioso - disse uma voz -; estava despedaçando tudo ainda há pouco; toma sentido não te engula, Maugiron.

- Insolente! - murmurou o duque.

- Creio que Vossa Alteza me fez a honra de me dirigir a palavra... - disse Maugiron com ar atrevido.

O duque ia para replicar, mas conteve-se, por se lembrar que uma altercação só serviria para lhe fazer perder tempo, e que o resultado seria talvez malograr-se-Lhe a fuga.

Disfarçou pois o ressentimento, e fez girar a poltrona de modo a voltar as costas para o fidalgo.

Maugiron, segundo o estilo adoptado, aproximou-se do leito para examinar os lençóis chegou à janela para ver se as cortinas estavam ainda no seu lugar; reparou, na verdade, que estava um vidro partido. mas julgou que fora o duque que, nalgum acesso de raiva, o tivesse quebrado.

- Olé, Maugiron - bradou Schomberg -, já foste engolido? Não dizes palavra? Suspira pelo menos, para sabermos o que devemos fazer, a Fim de te vingarmos.

O duque fazia estalar os dedos com impaciência.

- Não há nada - replicou Maugiron. - Pelo contrário, o meu urso é muito manso e está perFeitamente domesticado.

O duque sorriu-se interiormente.

Quanto a Maugiron, esse saiu sem cortejar o príncipe, como devia, e, ao sair, deu duas voltas à chave.

O príncipe esteve escutando, e, logo que a chave acabou de ranger na fechadura: Senhores, murmurou ele, tomem cautela! Os ursos são animais muito matreiros.

 

         O REI DE NAVARRA

O duque de Anju, tendo ficado só e calculando que tinha ao menos uma hora por sua, tirou a escada que havia escondido debaixo da almofada, desenrolou-a, e passou a examiná-la minuciosamente.

A escada é boa, disse ele consigo; e se é algum laço que me querem armar, não será decerto por falta de solidez dela que o desastre me há-de acontecer.

Estendeu-a em seguida no chão, e contou trinta e oito degraus, distanciados uns dos outros quinze polegadas.

Está bom, o comprimento é suficiente, pensou ele; também por este lado não há nada que recear.

Conservou-se um instante pensativo.

nAh! disse ele, ocorre-me uma lembrança: foram aqueles malvados favoritos que me arranjaram esta escada; ato-a na varanda, eles deixam-me chegar ao ponto de descer por ela, e, quando eu estiver a meio caminho, cortam-lhe as prisões; aí é que está a cilada. "

E depois, tornando a reflectir:

aNão! não pode ser; eles não são tão patetas que julguem que eu me vá expor a descer pela janela sem trancar a porta primeiro; e uma vez a porta trancada, devem ter calculado que tenho tempo de fugir antes que eles a arrombem. E é o que eu Faria - disse ele olhando em roda de si -, é o que eu faria, por certo, se me resolvesse a Fugir. Entretanto, como posso acreditar na inocência desta escada achada num armário da rainha de Navarra? Porque a não ser minha irmã Margarida, qual é a pessoa neste mundo que puderia ter conhecimento da existência desta escada? Vejamos - repetiu ele - quem é este meu amigo? O bilhete está assinado por: um amigo. Quem é o amigo do duque de Anju que tem conhecimento tão perfeito do fundo dos armários da minha câmara, onde, antes de mim, só habitou minha irmã?

O duque acabava apenas de formular este argumento, que lhe parecia não admitir contestação, quando, ao examinar novamente o bilhete para ver se conhecia a letra, se Lhe apresentou de repente outra ideia.

- É Bussy - exclamou ele.

E com efeito, Bussy, que tantas damas adoravam; Bussy, que era tido em conta de herói da rainha de Navarra, a qual, segundo ela mesma assevera nas suas memórias, soltava gritos de susto cada vez que ele tinha algum duelo; Bussy, tão discreto e tão versado na ciência dos armários, era, com toda a probabilidade, o único dos seus amigos com quem o duque podia contar verdadeiramente; não seria ele, porventura, quem lhe tinha escrito o bilhete?

Esta reflexão ainda aumentou mais a perplexidade em que se achava o príncipe. Entretanto tudo se reunia para fazer persuadir o duque de Anju que Bussy era o autor do bilhete.

O duque não sabia todos os motivos que aquele fidalgo tinha para Lhe querer mal, por isso que ignorava os seus amores com Diana de Méridor, se bem que desconfiava que ele gostava dela; o duque, que também se havia apaixonado por Diana, devia pensar que Bussy não teria podido ver uma mulher tão formosa sem se enamorar dela; porém esta desconfiança desvanecia- se por falta de probabilidades.

Julgava que a lealdade de Bussy não lhe permitira ficar inactivo quando lhe encarceravam o amo; as aparências aventurosas daquela jornada haviam seduzido provavelmente a imaginação de Bussy, que tinha querido vingar-se do duque a seu modo, isto é, restituindo-o à liberdade.

Já não Lhe restava dúvida alguma que era Bussy quem Lhe havia escrito e o estava esperando.

O príncipe, para acabar de se certificar, aproximou-se da janela; viu, por entre a névoa que cobria as margens do rio, três vultos oblongos que pareciam cavalos, e duas espécies de estacas, que pareciam cravadas na praia, e que eram provavelmente dois homens.

Dois homens, era isso mesmo: Bussy e o seu Fiel Le Haudouin.

A tentação é grande, murmurou o duque, e o laço, se é que existe, está tão bem armado, que não é vergonha por certo cair nele.

Francisco foi espreitar para a sala pelo buraco da fechadura; viu os seus quatro guardas; dois deles estavam dormindo, e os outros dois tinham herdado o tabuleiro de Chicot e jogavam o xadrez.

Apagou a luz.

Depois foi abrir a janela e debruçou-se então da varanda.

A escuridão ainda tornava mais medonho o abismo que ele procurava sondar com a vista. Recuou.

Porém o ar livre e o espaço tem atractivos tão poderosos para um nariz abafado. Este sentimento apoderou-se dele em tamanho grau que o tornou quase indiferente à ideia de morrer.

O príncipe, admirado do que sentia, julgou ter cobrado o necessário ânimo. Aproveitando então aquele momento de exaltação, agarrou na escada de seda, firmou-se na sacada com os ganchos de ferro que guarneciam uma das extremidades, depois voltou à porta para a trancar da melhor forma que pôde, e, bem convencido de que não se poderia vencer em menos de dez minutos o obstáculo que ele acabava de pôr à entrada na câmara, voltou para a janela.

Procurou os vultos de homens e de cavalos que tinha visto à distância; mas não divisou coisa alguma.

Antes queria que assim fosse, murmurou ele; é melhor fugir só do que fugir com um amigo, por íntimo que seja; e muito menos com um amigo que se não conhece. "

A escuridão era completa naquele momento, e os primeiros roncos da trovoada que se deparava havia uma hora iam começando a retumbar pelo céu; uma grande nuvem com franjas prateadas figurava um elefante deitado de um ao outro lado do rio, com a garupa encostada ao paço e a tromba indeFinidamente recurvada passando além da Torre de Nesle e indo perder- se na extremidade do sul.

à claridade dum raio que sulcou por alguns instantes a imensa nuvem, pareceu ao príncipe que via no fosso que Lhe ficava por baixo da janela os indivíduos que debalde tinha procurado distinguir na praia.

Um relincho de cavalo, que se ouviu neste momento, deu-lhe a conhecer com certeza que estavam à sua espera.

O duque sacudiu a escada para se afirmar se estava bem segura, depois escarranchou-se na grade da janela e pôs o pé no primeiro degrau.

Seria impossível descrever a terrível angústia que naquele momento agitava o coração do príncipe, assim colocado entre a segurança precária que lhe oferecia um frágil cordão de seda, e o receio mortal do irmão.

Porém, apenas pôs o pé no primeiro degrau, pareceu-lhe que a escada, em vez de vacilar como esperava, entesava-se, pelo contrário, e o segundo degrau oferecia-se ao pé sem que tivesse feito o movimento de rotação que era muito natural em tal caso. Seria um amigo ou um inimigo que estava segurando na extremidade da escada? Seriam braços abertos ou mãos armadas que o esperavam à descida?

Um susto irresistível apoderou-se de Francisco; a mão segura à sacada fez um movimento para subir.

Dir-se-ia que a pessoa invisível que estava em baixo à espera do príncipe adivinhava tudo que se passava no seu coração, por isso que, no mesmo instante, uma espécie de puxão muito leve e igual, como uma súplica da seda, fez-se sentir no pé do príncipe.

Está alguém segurando a escada lá em baixo, disse ele: visto isso não querem que eu caia. Vamos, pois, ânimo!

E começou a descer os dois montantes da escada, que estavam esticados como se fossem balas.

Francisco notou que procuravam afastar os degraus da parede para lhe darem a facilidade de meter o pé.

Deixou-se então escorregar e desceu mais com as mãos do que os pés, sacrificando à rapidez da descida a capa estofada que levava.

De repente, em lugar de tocar com o pé no chão, que o instinto lhe dizia não estar muito firme, sentiu-se agarrado ao colo por um homem que lhe disse ao ouvido estas palavras:

- Está salvo!

levaram-no então até ao reverso do fosso, e daí conduziram-no por um caminho aberto pelo desmoronamento da terra e das pedras; chegou finalmente à escarpa, onde estava esperando outro homem, que o agarrou pela gola do gibão e o puxou a si, e, depois de ter ajudado o companheiro pela mesma maneira, foi correndo, dobrado ao meio como um velho, até à margem do rio.

Os cavalos ainda estavam onde Francisco os tinha visto.

O príncipe percebeu que já não era possível recuar; estava completamente à disposição dos salvadores. Correu a um dos cavalos e montou; os seus companheiros fizeram outro tanto.

A mesma voz que lhe tinha falado ao ouvido disse-lhe com o mesmo laconismo e o mesmo frémito:

- Chegue as esporas!

E todos três partiram a galope.

até este ponto tem o negócio corrido bem, pensava o príncipe consigo, esperemos pois que o desfecho desta aventura não desminta o princípio. "

- Muito obrigado, muito obrigado, meu valente Bussy! - murmurava o príncipe dirigindo-se ao companheiro da direita, o qual ia embuçado até aos olhos num grande capote.

- Chegue as esporas - respondia este lá do fundo do capote.

E juntando o exemplo às palavras, os três cavaleiros passavam como sombras.

Assim chegáram ao pé do fosso grande da Bastilha, que atravessaram por uma ponte improvisada na véspera pelos partidários da Liga, os quais, não querendo que houvesse interrupção nas suas comunicações com os amigos, tinham lançado mão daquele meio, que muito ajudava, como se vê, as relações.

Os três cavaleiros dirigiram-se para Charenton. O cavalo em que ia o príncipe parecia ter asas.

De repente, o companheiro da direita saltou o fosso, e internou-se no bosque de Vincenes, dizendo com o habitual laconismo para o príncipe esta única palavra:

- Venha!

O companheiro da esquerda imitou-o, mas sem falar. Desde o momento da partida tinha proferido uma única palavra.

O príncipe não teve necessidade de dar a mão nem de chegar os joelhos ao cavalo; o fogoso animal saltou o fosso com o mesmo ardor que tinham mostrado os outros dois; e ao relincho com que transpôs o obstáculo, responderam os de muitos cavalos, lá do interior da mata.

O príncipe quis sopear o cavalo, porque receava que o fizessem cair nalguma emboscada. Porém já era tarde; o animal ia tão cego que não dava pelo freio; contudo, vendo que seus dois companheiros abrandavam na carreira, também ele abrandou, e Francisco achou-se numa encruzilhada onde estavam oito ou dez homens a cavalo, formados militarmente, e em cujas couraças se reflectiam os raios prateados da Lua.

- Oh, oh - exclamou o príncipe -, o que quer isto dizer, Senhor?

- Com todos os demónios! - bradou o indivíduo a quem a pergunta era dirigida. - Quer dizer que estamos salvos!

- Henrique de Navarra - exclamou o duque de Anju estupfacto - é o meu libertador?

- E então? - replicou o Bearnês. - De que se admira? Não somos parentes?

E volvendo os olhos em procura do companheiro:

- Agripa! - disse ele. - Onde estás tu?

- Eis-me aqui - respondeu d'Aubigné, que ainda não tinha aberto a boca. - Isto é único! Quer dar cabo dos seus cavalos? É verdade que tem tantos!.

- Bom, bom! - replicou o rei de Navarra. - Não ralhes; contanto que ainda haja bem folgados e fogosos, em que se possa andar uma dúzia de léguas duma assentada, é quanto me basta.

- Porém onde quer levar-me, meu bom amigo? - perguntou Francisco com algum receio.

- Onde quiser - disse Henrique contudo, será bom irmos depressa, porque d' bigné tem razão: nas cavalariças de el-rei de França há melhor gado do que nas minhas, e é suficientemente rico para poder rebentar vinte cavalos sem que lhe façam falta, se se meter na cabeça mandar-nos perseguir.

- E sou realmente senhor de ir para onde quiser? - perguntou Francisco.

- Decerto, só estou esperando as suas ordens - disse Henrique.

- Pois bem, irei para Angers.

- Quer ir para Angers? Pois seja para Angers; tem razão, aí estará em sua casa.

- E o primo:

- Eu, quando chegarmos à vista de Angers, deixá-lo-ei, e tomarei o caminho de Navarra, onde a minha terna Margarida está à minha espera; e bastante falta Lhe hei-de ter feito!

- Porém, ninguém sabia que o primo estava aqui - disse Francisco.

- Vim vender três diamantes de minha mulher.

- Ah, sim?

- E averiguar ao mesmo tempo se a Liga sempre me aniquilaria.

- Bem vê que tal não sucedeu.

- É verdade, graças ao senhor.

- Como? Graças a mim?

- Sem dúvida; se, em vez de recusar a nomeação de chefe da Liga, quando soube que era dirigida contra mim, tivesse aceitado e abraçado a causa dos meus inimigos, estava eu perdido. E por isso, logo que soube que el-rei, para o castigar da sua recusa, o tinha mandado prender, jurei que o havia de soltar, e assim fIz.

Sempre a mesma ingenuidade, pensou o duque de Anju; é realmente uma consciência enganá-lo. "

- Vá, meu primo - disse o Bearnês sorrindo -, vá para o Anju. Ah, Sr. de Guisa, julga ter ganho a partida? Pois aqui Lhe envio um adversário que lhe há-de dar que fazer; segui na sela!

E como acabavam de trazer os cavalos que Henrique tinha pedido, montaram ambos e partiram a galope, acompanhados por d'Aubigné, que os seguia a resmungar.

 

         AS DUAS AMIGAS

Enquanto Paris ardia como o interior dum forno, a dama de Monsoreau, acompanhada do pai e de dois criados, que tinham sido recrutados, segundo o uso do tempo, como tropas para aquela expedição, ia-se encaminhando para o Castelo de Méridor, andando à razão de dez léguas por dia.

Também ela ia começando a gozar da liberdade que tão preciosa é às pessoas que muito têm sofrido.

A atmosfera azulada do campo, tão diferente daquela atmosfera sombria que, semelhante ao fumo, cobria as enegrecidas torres da Bastilha, as árvores verdejantes, as compridas árvores que se sumiam como fitas ondulosas para o interior dos bosques, tudo Lhe parecia tão risonho, rico e novo, como se realmente tivesse ressuscitado do túmulo onde o pai a julgara encerrada.

O velho barão parecia ter menos vinte anos. Quem o visse tão direito sobre os estribos, tocando com a espora o idoso Jarnac, julgaria que o nobre fidalgo era um marido velho acompanhando a sua jovem esposa e prodigalizando-lhe amorosos carinhos. Não empreenderemos a descrição da jornada. Não teve outros incidentes além do nascer e pôr-do-sol.

Diana, às vezes, levada da sua impaciência, assim que a Lua começava a pratear os vidros do quarto em que tinha pernoitado, saltava da cama e ia acordar o barão, fazia levantar os criados, e punham-se todos a caminho, alumiados pelo luar, para assim encurtarem mais as léguas a distância que sempre lhes parecia infinita.

Outras vezes deixava passar para diante Jarnac, o qual erguia a cabeça com altivez por ver que andava mais depressa que os companheiros, e conservava-se ela atrás de todos, aproveitando alguma elevação do terreno para ver ao longe se alguém os vinha seguindo. E quando via que a estrada continuava deserta, quando apenas tinha avistado a distância os rebanhos pelas pastagens, ou a silenciosa torre de alguma aldeia que ficava à beira da estrada, então Diana voltava para a frente mais impaciente do que nunca. O pai, que não a perdia de vista, dizia-Lhe, quando ela tornava para o seu lado:

- Não tenhas receio, Diana - Receio de quê, meu pai?

- Não estás olhando para ver se o Sr. de Monsoreau nos vem seguindo?

- Ah, é verdade. Sim, era disso mesmo que eu me queria certificar - dizia a dama olhando novamente para a retaguarda.

Senpre receosa e sempre iludida em suas esperanças, assim chegou Diana, ao cabo de oito dias, às portas do Castelo de Méridor, onde foi recebida à entrada da ponte levadiça pel Sr. a de Saint-Luc e seu marido, que tinham ficado fazendo as vezes de castelões durant a ausência do barão.

Começaram então aquelas quatro pessoas a levar uma vida como a que todos nós temos sonhado ao ler Virgílio e Teócrito.

O barão e Saint-Luc andavam à caça desde manhã até à noite. Via-se às vezes uma nuvem de cães correndo por algum monte abaixo na pista de uma lebre ou de uma raposa, e quando os alaridos da montaria ressoavam pelos bosques, Diana, e Joana, sentadas ao pé uma da outra sobre a relva, à sombra de alguma árvore, estremeciam um pouco e logo continuavam a sua terna e misteriosa conversação.

- Conta-me - dizia Joana - tudo quanto te sucedeu lá no outro mundo, porque na verdade tu tinhas morrido para nós. Olha, os pilriceiros estão sacudindo sobre as nossas cabeças as suas últimas flores brancas de neve, e os sabugueiros espargem o seu suave aroma. O sol da Primavera doura os frondosos ramos dos carvalhos. Nem um único sopro de vento agita o ar, nem um único ente vivo se vê pela tapada; porque os gamos fugiram há pouco quando sentiram tremer o chão debaixo das patas dos cavalos, e as raposas recolheram-se para as suas covas. Conta, anda, minha querida irmã, conta.

- O que estava eu dizendo?

- Não me estavas dizendo coisa alguma. Consideras-te feliz porventura? Oh, esses lindos olhos cercados duma sombra azulada, essa palidez das tuas faces essas lágrimas que não podes reprimir e essa boquinha que não consegue sorrir-se. Diana, tudo isso me diz que tens muito que me contar.

- Não tenho nada, nada que te contar.

- Vives pois muito feliz. com o Sr. de Monsoreau?

Diana estremeceu.

- Bem vês que há alguma coisa! - disse Joana com terna solicitude.

- Com o Sr. de Monsoreau? - repetiu Diana; - para que proferes semelhante nome? Para que evocas esse fantasma aqui no meio dos nossos bosques, no meio das nossas flores e da nossa felicidade?

- Muito bem; agora já sei o motivo por que tens os olhos pisados e porque tanto a miúde os levantas ao Céu; porém, ainda não sei qual é a razão por que a tua boca procura sorrir de vez em quando.

Diana abanou a cabeça com tristeza.

- Parece que me disseste - prosseguiu Joana de Cossé deitando o alvo e torneado braço ao pescoço de Diana - que o Sr. de Bussy se tinha interessado muito por ti.

Diana corou tanto que as pequenas e mimosas orelhas se Lhe tornaram de repente cor de sangue.

- O Sr. de Bussy é um elegante cavaleiro - disse Joana.

- Deixemos essas loucuras - replicou Diana -; o Sr. de Bussy nem já se lembra de Diana de Méridor.

- Pode ser - retorquiu Joana -; mas quer- me parecer que há uma certa Diana de Monsoreau que gosta muito dele.

- Não me digas isso.

- Porquê? Não queres que te diga a verdade?

Diana não respondeu.

- Digo-te que o Sr. de Bussy nem já se lembra de mim. faz muito bem. Oh, sempre fui muito cobarde - murmurou Diana.

- Que estás dizendo?

- Nada, nada.

- Ora vamos, Diana, aí estás a chorar outra vez e a assustar-te... Tu, cobarde? Tu, minha

heroína, foste constrangida...

- Assim julgava... parecia-me o perigo iminente... Porém agora, Joana, os perigos que tanto medo me metiam parecem-me quimeras, e as dificuldades figuram-se-me tão insignificantes que uma criança podê-las-ia ter vencido. Fui muito cobarde, ainda repito; oh, porque

não reflecti eu primeiro?...

- Tudo isso são enigmas para mim.

- Não, não foi nada disto! - exclamou Diana levantando-se na maior agitação. – Não foi por minha culpa; foi ele, Joana, foi ele que não quis. Ainda me lembro daquela situação que me parecia tão terrível; eu hesitava, estava irresoluta... meu pai oferecia-me o seu apoio, mas eu tinha receio... porém não mo ofereceu com bastante instância. Dir-me-ás que tinha contra si o duque de Anju, que estava mancomunado com o Sr. de Monsoreau.

Mas o que importava o duque de Anju ou o conde de Monsoreau! Quando se quer uma coisa deveras, ou quando se tem muito amor a alguém, não se deve olhar nem a princípios nem a senhores. Olha, Joana, se eu algum dia chegasse a amar...

E Diana, entregue à sua exaltação, encostou-se a um carvalho, como se o corpo, aniquilado pelos sofrimentos da alma, já não tivesse força para se conservar erguido.

- Ora vamos, sossega, querida amiga, encaremos o caso a sangue- frio...

- Digo-te que fomos muito cobardes.

- Fomos... Oh, Diana, de quem falas tu? Esse fomos é muito eloquente, minha querida

Diana...

- Refiro-me a meu pai e a mim; parece-me que nem outra coisa se pode entender... Meu pai é um fidalgo honrado, e podia sem receio ir falar a el-rei; eu sou soberba, e não temo homem algum quando lhe tenho ódio... Porém, se queres que te diga o motivo oculto da minha cobardia, ei-lo aqui: percebi que não era amada por ele.

- Estás mentindo a ti própria! - exclamou Joana; - se tu pensasses isso, tendo chegado ao ponto que vejo, ter-Lho-ias lançado em rosto a ele mesmo... Mas não pensas tal, estás certa do contrário do que dizes, hipócrita - prosseguiu ela afagando-a com ternura.

- Tu tens razão em acreditar no amor - respondeu Diana tornando a sentar-se ao lado de Joana -; tu, com quem o Sr. de Saint-Luc casou contra a vontade dum rei! Tu, por cuja causa ele se expôs a ser perseguido, e que Lhe fazes esquecer com teus carinhos que está proscrito e desterrado!

- E certifico-te que dá o desterro por muito bem empregado - respondeu a maliciosa

- Porém eu, reflecte um instante e não sejas egoísta, eu, a quem aquele fogoso mancebo devia amar, eu, que atraí a atenção do indomável Bussy, homem extraordinário para quem não tem obstáculos, casei- me publicamente e apresentei-me aos olhos de toda a corte, mas ele nem sequer olhou para mim; entreguei-me a ele no claustro de Santa Maria Egipcíaca; estávamos sós, ele tinha consigo Gertrudes e Le Haudouin, seus dois cúmplices, e tinha-me também a mim, que ainda era mais sua cúmplice do que eles. Oh, quando me lembro que mesmo pela igreja me podia ele ter roubado com a maior facilidade! Naquele momento quando eu estava conhecendo que ele sofria e se desesperava por minha causa, e via seus olhos amortecidos e os seus lábios desmaiados a arderem em febre, se ele me tivesse pedido que morresse para lhe restituir o brilho aos olhos e a cor aos lábios, eu teria morrido de boa vontade. Pois afastei-me dele, e nem se lembrou de me deter por uma ponta do meu véu. Espera, ainda há mais. Oh, tu não sabes quanto eu sofro! Ele sabia que eu deixava Paris, que voltava para Méridor; sabia que o Sr. de Monsoreau. olha, ainda agora estou corando com a lembrança da confissão que lhe Fiz. que o Sr. de Monsoreau não é meu marido; sabia que eu vinha só; mas foi debalde, minha querida joana, que durante todo o caminho eu voltava a cabeça a cada passo, julgando que ouvia o galope do seu cavalo atrás de nós, Nada, nunca aquele som que eu esperava veio acordar o eco da estrada deserta! Digo-te que nem já se lembra de mim, e que não mereço que por minha causa se Faça uma jornada até ao Anju quando na corte de el-rei de França há tanta mulher formosa e amável, de quem um único sorriso é preferível ao amor da pobre provinciana enterrada nas matas de Méridor, Percebes agora? Já estás convencida? Não tenho razão? Não te parece que fui esquecida e desprezada, minha pobre Joana?

Ainda bem ela não tinha concluído estas palavras estalaram com violência os ramos do carvalho; uma chuva de fragmentos de musgo e de caliça caiu do alto do antigo muro, e um homem, saltando do meio da hera e das amoreiras bravas que o encobriam, veio cair aos pés de Diana, a qual soltou um grito terrível.

Joana afastou-se; tinha conhecido o homem apenas o vira saltar.

- Bem vê que aqui estou - murmurou Bussy, ajoelhando e beijando respeitosamente a borda do vestido de Diana, em que segurou com mão trémula.

Diana, mal conheceu a voz e o sorriso do conde, sentiu tal comoção, que, fora de si e como sufocada por tão inesperada felicidade, abriu os braços e deixou-se cair, quase sem sentidos, sobre o peito do homem a quem acabava de acusar de indiferença.

 

         OS AMANTES

Os desmaios causados pela alegria não são duradouros nem perigosos. São muito raros os exemplos de pessoas que tenham morrido de contentamento.

Diana não tardou pois em abrir os olhos e achou-se nos braços de Bussy o qual não tinha querido ceder à Sr. de Saint-Luc o privilégio de gozar do primeiro olhar da dama de Monsoreau.

- Oh - murmurou ela tornando a si -, oh! Foi muito malfeito, conde, vir assim surpreender-me.

Bussy esperava outras palavras. E quem sabe, os homens são tão exigentes! Quem sabe, se ele não esperava mais do que palavras, ele, em cujos braços mais duma mulher tinha amado à vida depois dum espasmo ou dum desmaio.

Porém Diana não somente se limitou ao delíquio, mas até se desligou brandamente dos braços que a seguravam e voltou para o lado da amiga, a qual, portando-se com discrição a princípio, tinha dado alguns passos para se afastar; mas depois, levada da curiosidade

inerente a toda a mulher de presenciar o encantador espectáculo duma reconciliação entre dois amantes, tinha voltado devagarinho, e sem tomar parte na conversação, estava bastante próxima dos interlocutores para não Lhe escapar Palavra do que diziam.

- Então? - perguntou Bussy. - É assim que me recebe, minha Senhora?

- Não - respondeu Diana -; porque na verdade, Sr. de Bussy, acaba de me dar uma prova de afecto e de ternura. Mas.

- Oh, por favor, elimine esse mas. - suspirou Bussy tornando a ajoelhar aos pés de Diana.

- Não, não, assim não: levante-se, Sr. de Bussy.

- Oh, deixe que eu a adore assim um instante - disse o conde juntando as mãos -; há tahnto tempo que desejava ver-me nesta posição!

- Sim; e, para o conseguir, saltou por cima dum muro. Não somente praticou uma atitude imprópria dum fidalgo da sua qualidade, mas foi também uma grande imprudência, ao desprezar a minha honra.

- Como assim?

- Se por fatalidade alguém o tivesse visto!.

- Quem me havia de ver?

- Os nossos caçadores, que andam por fora, e passaram, ainda não há um quarto de hora, na mata que fica pela parte de lá do muro.

- Oh, sossegue, minha Senhora: eu escondo-me tão cautelosamente que não é possível que me vejam.

- Esconde-se? Oh - disse Joana -, o caso é realmente sobremaneira romanesco; conte-nos isso, Sr. de Bussy.

- Em primeiro lugar, se não a alcancei na estrada, não foi por culpa minha; vim por um caminho, e a Senhora por outro. Veio pela estrada de Rambouillet, e eu pela de Chartres, Demais, ouça-me, e então julgará se o seu pobre Bussy está ou não apaixonado; não me atrevi a alcançá-la, se bem que me persuado de que teria sido fácil empresa. Eu bem sabia que Jarnar não trazia paixão alguma no coração, e que o respeitável animal não sairia fora do seu sério por voltar para Méridor; seu pai também não tinha motivo algum para se apressar, visto que a trazia na sua companhia. Porém não era na presença de seu pai, nem na companhia dos seus criados, que eu queria tornar a vê-la; porque tenho mais receio de comprometê-la do que pensa; andei o caminho todo a passo, devorando, para me distrair, o cabo do meu chicote, o meu sustento durante todos estes dias foi, a bem dizer, unicamente o cabo do chicote.

- Pobre rapaz! - disse Joana; - bem se vê que se sustentou de chicote; olha como está magro.

- Chegou, finalmente - prosseguiu Bussy -; eu tinha ido morar para o arrabalde da cidade; e, escondido por trás dumas tabuinhas, dali a vi passar.

- Oh, meu Deus - exclamou Diana -, e conhecem-no em Angers pelo seu nome?

- Julga-me imprudente a esse ponto? - disse Bussy sorrindo; - nada, sou um comerciante que anda de jornada; vê o meu traje cor de canela; não dá muito na vista, é uma cor muito predilecta dos mercadores e ourives, e além disso tenho um certo ar de preocupação que não é muito impróprio dum botânico que anda em procura de algumas plantas. Em suma, ninguém reparou ainda em mim.

- Bussy, o galante Bussy, está há dois dias numa cidade da província sem que tenhan reparado nele! - disse Joana. - Aposto que lá na corte ninguém tal acreditaria.

- Continue, conde - disse Diana corando. - Como é, por exemplo, que veio da cidade até aqui?

- Trouxe comigo dois óptimos cavalos; monto num deles, saio da cidade a passo, parando de vez em quando para ler os letreiros e os cartazes; mas logo que perco as casas de vista, meto o cavalo a galope, e em vinte minutos venço as três léguas e meia que há daqui até à cidade. Chegado ao bosque de Méridor, oriento-me, e dou com o muro da tapada, que é muitíssimo comprido, pois que a tapada é grande. Ontem gastei mais de quatro horas a explorar o muro, trepando em diversos sítios, sempre na esperança de avistá-la. Por fim já ia desanimando quando a vi, à noitinha, na ocasião em que voltava para casa; os dois cães do barão iam trotando atrás de si, e a Sr. a de Saint-Luc ia-Lhes fazendo negaças com um perdigoto que eles procuravam abocar, até que desapareceu. Saltei por acolá; corri para aqui, onde se achava sentada há pouco; a relva estava muito pisada; tirei por consequência que era este provavelmente o lugar para onde costumava vir gozar da sombra; fiz um sinal no muro para ficar conhecendo o sitio, e, sempre a suspirar, o que muito me faz sofrer.

- Por falta de uso - interrompeu Joana.

- Não o nego, minha Senhora; sempre a suspirar, dizia eu, o que muito me faz sofrer, ainda, repito, tomei novamente o caminho da cidade; ia muito cansado; tinha rasgado, demais a mais, o meu gibão cor de canela, a trepar às árvores, e contudo, apesar dos rasgões do gibão e da opressão que sentia no peito, pulava-me o coração de alegria, por isso que tinha conseguido vê-la. Parece-me que não há que dizer a essa narração - disse Joana -; venceu dificuldades terríveis; foi uma acção louvável e heróica; porém eu, que não tenho o coração tão magnânimo como o senhor, e que receio trepar às árvores, se estivesse no seu lugar, teria conservado o meu gibão intacto e poupado as minhas lindas mãos; vê o estado lamentável em que estão as suas, assim arranhadas pelas silvas?

- É verdade. Mas não teria visto quem eu queria ver.

- Pelo contrário; teria visto, e muito mais à vontade, não somente Diana de Méridor como também a Sr. de Saint-Luc.

- Que teria feito? - perguntou Bussy.

- Teria vindo direito à ponte levadiça do Castelo de Méridor, e teria entrado pela porta. O Senhor Barão abraçava-me logo, a Sr. de Monsoreau dava-me um lugar a seu lado à mesa, o Sr. de Saint- Luc fazia-me imensa festa, e a Sr. de Saint-Luc desafiava-me para fazer anagramas. Era a coisa mais simples do mundo; mas também é verdade que os namorados nunca se lembram das coisas mais simples do mundo.

Bussy abanou a cabeça com um sorriso e olhou para Diana.

- Oh, não - disse ele -, não. Isso que está dizendo, podê-lo-ia fazer toda a gente menos eu! Diana corou como uma criança, e o sorriso e o olhar de Bussy reflectiram-se-lhe nos olhos e nos lábios.

- Está bom - disse Joana - segundo vejo já perdi todas as noções da etiqueta.

- Não - disse Bussy abanando a cabeça. - Não! Eu não podia apresentar-me no castelo! Esta senhora é casada, e o Senhor Barão tem obrigação de vigiar a conduta da filha durante a ausência do marido, embora ele seja um tratante.

- Muito bem - disse Joana -, deu-me uma lição de trato do mundo; obrigado, Sr. de Bussy. o quinau foi bem merecido; é para me ensinar a não me intrometer nos negócios da gente louca.

- Gente louca? - repetiu Diana.

- Louca ou namorada - respondeu a Sr. de Saint-Luc -; e por conseguinte. Beijou Diana na testa, fez uma mesura a Bussy, e deitou a fugir.

Diana quis segurá-la com uma das mãos, mas Bussy agarrou-Lhe na outra, e Diana, assim segura pelo amante, não teve remédio senão largar a amiga.

Bussy e Diana ficaram sós.

Diana conservou-se um instante a olhar para a Sr. de Saint-Luc, que se ia divertindo a cortar flores, e depois sentou-se como envergonhada.

Bussy deitou-se-Lhe aos pés.

- Não é verdade - disse ele - que Fiz muito bem, minha Senhora, e que mereço a sua aprovação?

- Eu não sei fingir - respondeu Diana -, e demais, já sabe o meu modo de pensar; sim, aprovo o que fez, porém a minha indulgência não irá mais longe; quando há pouco desejava a sua presença e chamava pelo seu nome, estava louca e criminosa.

- Oh, Deus, que está dizendo, Diana?

- Digo-lhe a verdade, conde! Posso sem escrúpulo tornar infeliz o Sr. de Monsoreau, que me constrangeu a ser sua mulher contra minha vontade; mas, para gozar desafogadamente do meu direito, devo abster-me de tornar feliz outrem. Posso recusar-Lhe a minha presença, meus sorrisos e carinhos; porém, se concedesse estes meus favores a outro, roubaria aquele a quem legalmente pertenço.

Bussy ouviu com toda a paciência aquela prelecção de moral, que muito amena se tornava a tudo pela graça e doçura de Diana.

- Dá-me licença que fale também, não é assim? - disse ele.

- Fale - respondeu Diana.

- Com franqueza?

- Fale!

- Pois bem! Nem uma única palavra das que proferiu, minha Senhora, foi dita do coração.

- Como?

- Digne-se escutar-me sem impaciência, minha Senhora, bem viu que a estive ouvindo com toda a paciência; tudo isso que disse são sofismas.

Diana fez um movimento.

- Os lugares-comuns da moral - prosseguiu Bussy - não são outra coisa, quando têem aplicação. Em troca dos seus sofismas, vou eu minha Senhora, dizer-lhe algumas verdades. Há um homem a quem pertence, disse a senhora; porém foi a senhora quem escolheu esse homem? Não; foi uma fatalidade que Lho deparou, e a senhora cedeu à Fatalidade. Ora diga-me, tenciona sofrer porventura durante toda a sua vida as consequências de tão odioso constrangimento? Se assim é, compete-me a mim livrá-la dele.

Diana ia para falar, Bussy deteve-a com um aceno.

- Oh, eu bem sei qual é a resposta que vai dar-me. Responder-me-á que se eu o provocar e o matar, nunca mais me tornará a ver. Não importa; eu morrerei de pena por não torn a vê-la, porém a senhora viverá livre e feliz, e poderá tornar ditoso algum homem de bem que, no meio da sua ventura, abençoará algumas vezes o meu nome, dizendo: Obrigado, Bussy, obrigado, por teres dado cabo daquele malvado MonSoreau; e a senhora mesma, que nunca se atreveria a agradecer-me estando eu vivo, agradecer-me-á depois de morto.

Diana agarrou na mão do conde com ternura.

- Bussy - disse ela -, ainda não suplicou, e está ameaçando?

- Ameaçar, eu? ouve-me, e sabe a minha intenção; eu amo-a com tanto ardor, Diana, que nunca farei o que qualquer homem faria no meu lugar. Bem sei que me tem amor. Não o negue, não queira confundir-se com as mulheres de espírito vulgar, que desmentem as acções com as palavras. Sei-o, porque o confessa. E demais, um amor como o meu brilha como o sol e anima todos os corações em que se reflecte; por isso não suplicarei, nem me consumirei com desesperos. Não; aqui de joelhos e beijando- lhe os pés, dir-lhe-ei com a mão direita sobre este coração que nunca soube mentir nem por interesse nem por medo, enfim.

dir- lhe-ei: Diana, amo-a, e este amor há-de durar enquanto eu existir! Diana, juro-Lhe à fé do Céu que estou pronto a morrer pela senhora, e a morrer adorando-a. " Se me tornar a perder Afaste-se daqui, não roube a Felicidade de outrem", levantar-me-ei sem um suspiro, sem uma única queixa, deste lugar onde me julgo tão Feliz e despedir-me-ei respeitosamente, dizendo comigo: Esta mulher não me tem amor, nem o há-de ter nunca. Deixá-la-ei então, e nunca mais me verá. Porém, como o afecto que lhe consagro é maior ainda do que o meu amor e como o desejo que tenho de vê-la feliz há-de sobreviver à certeza de não poder ser feliz, como nesse caso, não terei roubado a felicidade de outrem, ficar-me-á o direito salvo de lhe roubar a vida sacrificando a minha; e é o que hei-de fazer, minha Senhora, para que não seja escrava eternamente, e a fim de que a escravidão não lhe sirva de pretexto para tornar infeliz quem lhe tiver amor.

Bussy estava comovido ao proferir estas palavras. Diana leu nos seus olhos tão brilhantes e leais a Frmeza da sua resolução; conheceu que ele estava determinado a fazer o que dizia e que aquelas palavras se traduziriam indubitavelmente por acções e assim como a neve derrete com o calor do sol de Abril, o seu rigor derreteu-se com o fogo daquele olhar.

- Pois bem - disse ela -, agradeço-lhe, meu amigo, essa violência com que me ameaça É mais uma delicadeza que lhe devo, pois assim me tira os remorsos que teria cedendo ao seu amor. E agora amar-me-á ainda até à morte, como disse? Não serei para o senhor objecto duma paixão passageira, e não me obrigará a arrepender-me um dia de não ter aceitado o odioso amor do Sr. de Monsoreau? Mas não, não pretendo impor-lhe condições: confesso- me vencida, e entrego-me; sou sua. Bussy, pelo amor unicamente já se sabe. Fique pois, amigo, e agora, que a minha vida lhe pertence, vele por nós ambos.

Diana, ao dizer estas palavras, descansou uma das brancas e torneadas mãos sobre o ombro de Bussy, e entregou-Lhe a outra, que ele levou apaixonadamente à boca: Diana estremeceu com o contacto desse beijo.

Ouviram-se então os passinhos de Joana, que vinha tossindo para dar sinal; trazia na mão um ramalhete de flores e uma borboleta, que era a primeira que naquela Primavera se tinha atrevido a sair do seu casulo de seda.

Os dois amantes largaram instintivamente as mãos um do outro.

Joana reparou neste movimento.

- Peço perdão, meus bons amigos, se vim incomodá-los - disse ela -, mas é preciso voltarmos para casa, para evitar que nos venham procurar aqui. Senhor Conde tenha a bondade de voltar para onde ficou o seu excelente cavalo, que anda quatro léguas em meia hora, e deixe que nós duas andemos com todo o nosso vagar, porque me está parecendo que havemos de ter muito que dizer uma à outra, nos mil e quinhentos passos que distam daqui a casa. O resultado da sua teima, Sr. de Bussy, é perder o jantar do castelo, que é excelente, especialmente para um homem que acaba de andar umas poucas de léguas a cavalo e de trepar por cima dum muro; e além do jantar, todas as loucuras que teríamos feito, sem falar em cercas que muito regozijam o coração. Vamos, Diana, voltemos para casa! E Joana enfiou o braço no da amiga, procurando levá-la consigo.

Bussy olhou, sorrindo, para as duas amigas; Diana, que ainda se conservava voltada para ele, estendeu-Lhe a mimosa mão.

Ele tornou a aproximar-se.

- Então - perguntou ele -, não me diz mais coisa alguma?

- Até amanhã - replicou Diana -, não foi esse o nosso ajuste?

- Até amanhã, somente?.

- Até amanhã, e até sempre!

Bussy não pôde reprimir um grito de alegria; levou à boca a mão de Diana; e depois, dizendo um último adeus às duas damas, afastou- se, ou, para melhor dizer, fugiu delas. Conhecia que lhe era precisa muita força de vontade para se resolver a separar-se da mulher que ele tanto tinha desejado tornar a ver.

Diana seguiu-o com os olhos até ao Fim da mata, e, detendo a amiga pelo braço, esteve escutando o som longínquo dos seus passos por entre os tojos.

- Ora agora - disse Joana quando Bussy desapareceu de todo -, queres conversar um instante comigo, Diana?

- Oh, sim - respondeu esta estremecendo como se a voz da amiga a houvesse despertado dum sonho. - Estou ouvindo.

- Muito bem! Sabes pois que amanhã tenciono acompanhar à caça Saint-Luc e teu pai.

- Pois quê? Deixas-me só no castelo?

- Ouve, querida amiga - disse Joana eu também tenho os meus princípios de moral, iá certas coisas a que não posso anuir.

- Oh, Joana - exclamou a Sr. de Monsoreau desanimando -, é possível que tenhas ânimo para me dizeres palavras tão severas a mim, à tua amiga?

- Aqui não há amiga nem inimiga - prosseguiu a Sr. a de Brissac com a mesma placidez. Não posso continuar assim.

- Pensava que me tinhas amizade, Joana, e estás-me traspassando o coração - disse Diana com os olhos arrasados de lágrimas -; não podes continuar, dizes tu; com que não podes tu continuar?

- Não posso continuar - murmurou Joana ao ouvido da amiga - a obstar a que dois amantes como são, tenham plena liberdade para estarem um com o outro.

Diana deitou os braços ao pescoço da folgazã rapariga e cobriu-lhe de beijos o alegre rosto. Neste momento ouviu-se a estrepitosa chamada das trompas dos caçadores.

- Olha, estão chamando por nós - disse Joana -; o pobre Saint-Luc está impaciente, Não sejas mais rigorosa para com ele do que eu tenciono sê-lo para com o teu namorado de gibão cor de canela.

 

         DE COMO BUSSY ENCONTROU UM HOMEM QUE LHE OFERECEU TREZENTAS PEÇAS DE OURO PELO CAVALO E LHO DEU DE GRAÇA

No dia seguinte Bussy saiu de Angers muito antes da hora a que os burgueses mais madrugadores daquela cidade costumavam tomar a sua refeição da manhã.

Não corria, voava pela estrada fora.

Diana tinha subido à plataforma do castelo, de onde se descobria o caminho sinuoso esbranquiçado que ondeava pelo meio dos verdes prados. Viu ao longe aquele ponto escuro que se aproximava como um meteoro, deixando após si, como uma Fita tortuosa, a comprida estrada que vinha percorrendo.

Desceu logo para não dar lugar a que Bussy esperasse por ela, e para alegar, pelo contrário, que era ela quem tinha esperado.

O sol dourava apenas os cumes das árvores, a relva ainda estava húmida do orvalho; ouvia-se ao longe, no monte, o som da trompa de Saint-Luc, que Joana excitava a tocar para assim lembrar à amiga o serviço que Lhe prestava deixando-a sozinha.

O coração de Diana ia possuído de tamanha e tão pungente alegria; sentia-se tão inebriada pela mocidade, pela formosura e pelo amor, que de vez em quando, no meio da sua carreira, parecia-lhe que a alma Lhe emprestava asas ao corpo para o aproximar de Deus.

Porém a distância da casa até à mata era grande; os pezinhos de Diana cansaram-se, apesar da altura da relva, e por umas poucas de vezes Lhe faltou a respiração; por mais diligência que fez, só conseguiu chegar ao lugar aprazado no mesmo instante em que Bussy assomava ao alto do muro, e saltava dele abaixo.

Bussy ainda a viu correr; Diana soltou um gritinho de alegria; ele veio para ela com os braços abertos, e ela correu para ele comprimindo o coração com ambas as mãos; abraçaram-se com ardor.

Que poderiam eles dizer? Amavam-se.

Que poderiam pensar? Viam-se:

Que poderiam desejar? Estavam sentados ao lado um do outro, e de mãos dadas. Passou-se o dia como se fosse uma hora.

Bussy quando Diana saiu daquele suave letargo que se assemelha ao sono duma alma cansada de gozar, apertou-a de encontro ao peito, e disse-Lhe:

- Diana, afigura-se-me que só hoje comecei a viver; parece-me que estou vendo distintamente diante de mim o caminho que me há-de conduzir à eternidade. o astro que me anunciou tamanha felicidade; eu nada sabia do mundo nem da condição dos homens Sobre a Terra; e por isso posso repetir-te o que ontem dizia: tendo começado a viver por ti, contigo hei-de morrer.

- E eu. - respondeu ela. - Eu, que um dia quis procurar a morte sem que sentisse pesar algum de deixar o mundo, tremo hoje com receio de não viver tempo suficiente para esgotar os tesouros de felicidade que me promete o teu amor. Mas diz-me, Luís: porque não te apresentas no castelo? Meu pai havia de estimar ver-te, o Sr. de Saint-Luc é teu amigo, e é calado. Lembra-te que uma hora mais que possamos estar na companhia um do outro é um bem inapreciável.

- Ah, minha Diana; se eu for um dia ao castelo, hei-de lá ir todos os dias; se lá for todos os dias, há- de sabê-lo a província toda; se a notícia chegar aos ouvidos daquele tigre que está casado contigo, não tardará a aparecer por aí. Tu proibiste-me que te livrasse dele.

- Para que serviria isso? - disse ela com aquela expressão que só se encontra na voz da mulher que se ama.

- Pois bem, para nossa completa segurança, quero dizer, para completa segurança da nossa felicidade, é preciso escondermos de todos o nosso segredo. A Sr. de Saint-Luc já o sabe. Saint-Luc há-de sabê-lo também.

- Oh, para quê?

- Porque assim deve ser - respondeu Bussy -; diz-me: serias porventura capaz de me ocultar algum segredo presentemente?

- Não. por certo.

- Escrevi esta manhã a Saint-Luc para lhe pedir uma entrevista em Angers. Ele há-de vir ter comigo; e hei- de conseguir que me prometa, à fé de cavalheiro, que nunca há-de soltar uma palavra a respeito desta aventura. Isto é tanto mais importante, minha querida Diana, quanto estou persuadido de que andam em procura de mim por toda a parte, em consequência dos graves acontecimentos que tinham tido lugar em Paris quando de lá saímos.

- Tens razão. e demais, meu pai é um homem tão cheio de escrúpulos, que, apesar de ser muito meu amigo, era capaz de me denunciar ao Sr. de Monsoreau.

- Escondamo-nos, pois, quanto for possível. e se Deus nos entregar aos nossos inimigos, teremos a consolação de dizer que era uma desgraça inevitável.

- Deus tem muita bondade, Luís, não duvides d'Ele neste momento.

- Eu não duvido de Deus, tenho medo das tramas de algum demónio que inveje a nossa felicidade.

- Diz-me adeus agora, meu amigo, e não te apresses tanto à ida, a rapidez do teu cavalo assusta-me.

- Não tenhas receio, ele já conhece o caminho; é o cavalo mais manso e mais seguro que tenho montado na minha vida. Quando volto para a cidade absorvido pelos meus pensamentos de amor, leva-me sem lhe tocar na rédea.

Os dois amantes continuaram a conversar por esta forma, interrompendo-se unicamennte para trocarem mil beijos.

Finalmente, as trompas dos caçadores, que já vinham próximos do castelo, tocaram o sinal que Joana tinha convencionado com a amiga, e Bussy apartou-se imediatamente dela.

Quando ele já se ia aproximando da cidade, entregue às recordações dum dia tão feliz, e satisfeito por se ver livre do grilhão dourado com que o prendia a amizade dum príncipe de sangue, notou que estava chegada a hora a que se costumavam fechar as portas.

O cavalo, que havia passado o dia todo a pastar na relva da mata, tinha continuado na mesma ocupação pelo caminho, e já começava a anoitecer.

Bussy dispunha-se a chegar-lhe as esporas para recuperar o tempo perdido, quando ouviu atrás de si o galope de dois cavalos. Para um homem que se esconde, e para um amante especialmente, o mais insignificante acontecimento toma proporções ameaçadoras.

É este um ponto em que os amantes felizes muito se parecem com os ladrões. Bussy hesitou; não sabia se seria melhor meter a galope para tomar a dianteira aos cavaleiros, ou encostar para o lado a fim de os deixar passar; porém era tão rápida a carreira em que vinham, que num momento o alcançaram.

Bussy, convencido de que não era cobardia evitar o encontro de dois homens, visto valer por quatro na sua opinião, abriu-Lhes caminho e viu que um dos cavaleiros rasgava com ânsia as ilhargas da cavalgadura, que o outro também estimulava a poder de chicotadas.

- Ora vamos, estamos quase chegados à cidade - dizia o homem com um acento gascão muitíssimo cerrado -; mais trezentas chicotadas e cem esporadas, ânimo e vigor!

- O animal já não tem fôlego, estremece, fraqueja e nega-se. - respondeu o que ia adiante. - Dava de boa vontade cem cavalos neste momento para me ver dentro da minha cidade!

É algum habitante de Angers que está com pressa de chegar a casa. disse Bussy consigo. Contudo. é célebre como o medo nos torna às vezes estúpidos. quis-me parecer que onhecia aquela voz. Porém o cavalo daquele pobre homem não tarda a cair. "

Os dois cavaleiros estavam naquele momento a par de Bussy.

- Olá, cuidado - exclamou ele -, largue os estribos, Senhor, largue depressa, que o cavalo vai-se abaixo!

E com efeito, o cavalo caiu pesadamente para o lado, agitou convulsivamente uma das pernas como se estivesse cavando a terra, e, de repente, deixou de respirar, envidraçaram-se-lhe os olhos, sufocou-se com escuma, e expirou.

- Senhor! - gritou para Bussy o cavaleiro que tinha ficado apeado. - Ofereço-lhe trezentas peças de ouro pelo cavalo em que vai montado.

- Ah, meu Deus! - exclamou Bussy aproximando-se.

- Não ouviu, Senhor? Tenho muita pressa!

- Oh, meu príncipe!. - disse Bussy tremendo com indizível emoção, pois acabava de conhecer o duque de Anju.

Ouviu-se ao mesmo tempo o som do gatilho duma pistola que aprontava o companheiro do príncipe.

Suspenda! - gritou o duque de Anju para o seu desapiedado defensor. - Suspenda, Sr Aubigné! Este é Bussy, ou os diabos me levem!

- É verdade, meu príncipe, sou eu! Porém, para que demónio anda rebentando por esta berma os cavalos na estrada e a estas horas?

- Ah, é o Sr. de Bussy? - disse d'Aubigné. - Então já Vossa Alteza não carece de mim. Conceda-me licença que volte para junto de quem me mandou, como diz a Escritura Sagrada! - Mas não há-de ser sem receber previamente os meus mais sinceros agradecimentos, promessa que Lhe faço duma amizade inalterável - disse o príncipe.

- Aceito tudo meu Senhor, e dia virá em que se recorde do que me disse agora.

- O Sr. d'Aubigné! Sua Alteza!. Ah, custa-me a acreditar no que vejo. - disse Bussy.

- Pois não sabia o que me sucedeu. - disse o príncipe com uma expressão de enfado e desconfiança que não escapou ao conde.

- Não foi porventura para esperar por mim que veio para aqui?

SaFa! pensou Bussy, reflectindo nas conjecturas a que poderia dar azo no espírito desconfiado de Francisco a sua vinda ao Anju às escondidas de todos; tratemos de evitar algum comprometimento! Não somente esperava por Vossa Alteza, mas até tinha vindo ao seu encontro - replicou ele -; mas sempre Lhe digo, meu Senhor, que se deseja entrar na cidade antes que se fechem as portas, é preciso que torne a cavalgar quanto antes.

Ofereceu então o cavalo ao príncipe, que estava ocupado em tirar do seu bolso uns papéis importantes que trazia escondidos entre a sela e o xairel. - Adeus, meu Senhor - disse d'Aubigné dando meia volta à direita. - Sr. de Bussy, sou um seu criado para o servir.

E abalou.

Bussy saltou ligeiramente para as ancas do cavalo em que tinha montado seu amo, e dirigiu-se para a cidade, perguntando pelo caminho a si próprio se aquele príncipe vestido de preto não seria acaso o tenebroso demónio que lhe deparava o inFerno para lhe atravessar a sua felicidade.

Entraram em Angers ao primeiro toque das cornetas do município.

- Que determina agora de mim, meu Senhor?

- Vamos para o castelo! Arvora-se o meu pendão, venham todos prestar-me preito e homenagem e seja convocada a nobreza da província.

- Tudo isso é Facílimo - respondeu Bussy, resolvido a mostrar toda a docilidade para ganhar tempo, e ainda tão sobressaltado que não tinha acordo para sair daquele papel passivo.

- Olá, senhores das cornetas! - bradou ele para os arautos, que voltavam depois do primeiro toque.

Estes olharam para ele e não fizeram caso do que dizia, pois viam dois homens montados num cavalo, coberto de pó a suar, e vestidos com muita simplicidade.

- Então que é isto! - disse Bussy dirigindo-se para eles. - Vosso amo já não é conhecido em sua própria casa? Vão chamar o veador que está de dia!

Este tom imperioso intimidou os arautos; um deles aproximou-se.

- Santo nome de Jesus!. - exclamou ele com espanto e olhando atentamente para o duque. - Este é o nosso senhor e amo!

O duque era muito fácil de conhecer em consequência da deformidade do nariz, partido ao meio, como dizia a cantiga de Chicot.

- É o Senhor Duque! - prosseguiu ele, agarrando no braço do arauto, que ficou igualmente espavorido.

- Muito bem, agora que já o conhece tão bem como eu - disse Bussy -, encha as bochechas e faça trabalhar as trombetas; quero que toda a cidade saiba daqui a um quarto de hora que Sua Alteza está dentro dos seus muros. Entretanto, meu Senhor, iremos caminhando com todo o nosso vagar para o castelo. Quando lá chegarmos já se estará aprontando a ceia para a nossa recepção.

E com efeito, logo ao primeiro pregão dos arautos começaram a formar-se grupos; ao segundo, os rapazes e as comadres entraram a correr por todos os bairros, e a gritar:

- Chegou Sua Alteza!. Viva Sua Alteza!

Os veadores, o governador e os principais cavaleiros dirigiram-se imediatamente para o paço, seguidos duma multidão que a cada instante se tornava mais compacta.

Bussy não se tinha enganado nas suas previsões: quando o príncipe chegou ao castelo já lá se achavam as autoridades da cidade para o receberem. Quando atravessou o cais a muito custo pôde romper por entre a chusma do povo: porém Bussy avistou um dos arautos, e este, batendo com a trombeta pelas caras dos populares, em breve abriu caminho ao príncipe até à escadaria da Casa da Câmara.

Bussy ia na retaguarda.

- Senhores e mui leais súbditos - disse o príncipe -, deliberei vir encerrar-me na minha boa cidade de Angers. Os mais terríveis perigos ameaçavam a minha vida em Paris; até cheguei a estar preso. Consegui contudo fugir com o auxílio de alguns amigos fiéis.

Bussy mordeu os beiços; percebia o sentido do irónico olhar de Francisco.

- Porém estou certo que dentro dos muros desta cidade a minha existência e tranquilidade não correm risco algum.

Os magistrados, estupefactos, gritaram, como por demais:

- Viva o duque nosso senhor!

O povo, na expectativa das liberalidades que o príncipe costumava fazer-Lhe sempre que ali aparecia, gritou com entusiasmo:

- Viva! Viva!

- Vamos cear - disse o príncipe -, ainda não comi desde esta manhã. O duque viu-se cercado num abrir e fechar de olhos, por todos os criados da sua casa, que conservava em Angers na qualidade de duque de Anju, e dos quais só os de mais elevado posto conheciam o amo.

Após estes, vieram cumprimentá-lo os cavaleiros e as damas da cidade. A recepção durou até à meia-noite, puseram-se luminárias, e por todas as praças e ruas se ouviam tiros de mosquete.

O sinal grande da catedral foi posto em movimento, e o vento levou até Méridor o ruído da alegria tradicional da boa gente de Angers.

 

         DIPLOMACIA DO SENHOR DUQUE DE ANJU

Logo que foi cessando o ruído ocasionado pelas demonstrações de alegria de que demos conta no precedente capítulo, o duque de Anju, vendo-se a sós com Bussy, voltou-se para este e disse:

- Agora conversemos.

Francisco, com a costumada perspicácia, havia notado que Bussy se estava mostrando muito mais condescendente do que tinha por hábito; logo dali inferiu que se achava numa falsa posição, e que por conseguinte poderia ele, duque, graças à sua destreza, levar-Lhe toda a vantagem.

Porém Bussy já tinha tido tempo de se preparar para sustentar o ataque, e esperava o príncipe a pé firme.

- Conversemos pois, meu Senhor - rrplicou ele.

- A última vez que nus vimos - disse o príncipe -, estavas muito duente, meu pobre Bussy!

- verdade, meu Senhor - respondeu o conde -, estava muito doente, foi quase por milagre que escapei.

- Naquele dia tinhas junto de ti - prosseguiu o duque - certo médico que muito te queria, pois mordia com toda a ânsia, segundo me quis parecer nas pessoas que se chegavam a ti.

- Também é verdade, meu príncipe, porque Le Haudouin é muito meu amigo.

- E não consentiu que saísses da cama, não é assim?

- O que muito me estava apoquentando, como Vossa Alteza pôde ver.

- Porém - disse o duque -, se estavas realmente apoquentado, terias podido mandar a medicina ao diabo, e saíres comigo, conforme te pedia.

- Eu sei!. - disse Bussy virando e revirando entre as mãos o seu chapéu de comerciante.

- Mas - prosseguiu o duque -, como se tratava de negócio muito grave, tiveste medo de te comprometer.

- Que é isso! - exclamou Bussy, pondo o chapéu na cabeça e carregando-o com um soco para os olhos. - Parece-me que disse que eu tive medo de me comprometer, meu príncipe.

- Assim disse - respondeu o duque de Anju. Bussy deu um pulo na cadeira e pôs-se de pé.

- Pois, Senhor, mentiu! - disse ele. - Mentiu a si mesmo, porque estou certo que não escá convencido disso que diz; tenho pelo corpo mais de vinte cicatrizes que atestam que mais duma vez me tenho comprometido, mas que nunca tive medo, e muita gente conheço eu que nem pode dizer o mesmo, nem mostrar iguais atestados.

- Sempre tens argumentos irrefragáveis, Bussy - replicou o duque muito enfiado

e agitado quando alguém te acusa, gritas mais do que a pessoa que pretende increpar-te e assim imaginas que tens razão.

- Oh, nem sempre tenho razão, meu Senhor, bem o sei, mas também sei perfeitamente

quais as ocasiões em que erro.

- E que ocasiões são essas?

- Quando presto serviços a ingratos.

- Parece-me, na verdade, conde, que te esqueces do respeito que me é devido - disse

o príncipe levantando-se de repente com a dignidade que muito bem sabia mostrar em certas

circunstâncias.

- Com efeito, estou esquecido, Senhor Duque; mas faça Vossa Alteza outro tanto: esqueça-se, ou esqueça-me.

Bussy em seguida deu dois passos para sair da sala; mas o duque preveniu esse movimento

e colocou-se em frente da porta.

- Negar-me-ás - disse o duque - que no dia em que te recusaste a sair comigo, saíste logo

dali a um instante?

- Eu - retorquiu Bussy - nunca nego coisa alguma, meu Senhor, a não ser aquilo que

me querem obrigar a confessar.

- Explica-me então qual foi o motivo por que teimaste em não sair do teu palácio?

- Porque tinha negócios a tratar.

- Em tua casa?

- Em minha casa, ou fora dela.

- Eu julgava que quando um fidalgo está ao serviço de um príncipe, não há negócio

algum, por urgente que seja, que ele deva antepor ao serviço de seu amo.

- E não me dirá quem é que trata dos seus negócios, meu Senhor, a não ser eu?

- Não digo que assim não seja - replicou Francisco -; acrescentarei mesmo que sempre tenho encontrado Fidelidade e dedicação em ti; e para te provar a minha benevolência

para contigo, desculpo o teu mau humor.

- verdade que tinhas alguma razão para estares escandalizado comigo.

- Sempre o confessa, meu Senhor?

- Confesso. Eu tinha-te prometido que havia de castigar o Sr. de Monsoreau. Parece que

tems muito ódio ao tal Sr. de Monsoreau...

- Eu, nenhum! Acho que tem uma cara muito feia, e desejava que ele saísse da corte para

não ver todos os dias aquela cara. Vossa allteza, pelo contrário, gosta daquela fisionomia. Isto

de gostos é coisa que não admite discussão.

- Pois bem! Se é essa a única desculpa que tens a dar-me por te teres amuado comigo

como um rapaz travesso, dir-te-ei que fizeste mal em não querer sair comigo, e em sair depois

de mim para ires praticar valentias inúteis.

- Visto isso, pratiquei valentias inúteis... E ainda há pouco me arguiu de ter tido... Ora

vamos, meu Senhor, sejamos consequentes: que valentias pratiquei eu.

- Concebo a tua inimizade para com o Sr. d'Épernon e o Sr. de Schomberg. Também eu

não posso vê-los e odeio-os mortalmente; porém era melhor que tivesses esperado por uma

ocasião mais própria para te vingares deles.

- Oh, oh - disse Bussy -, que quer isso dizer, meu Senhor?

- Mata-os, com todos os demónios! Mata-os a ambos; ou mata os quatro juntos, que ainda

mais agradecido te ficarei; mas não os faças exasperar, especialmente estando longe deles, porque quem sofre os resultados sou eu.

- Vejamos pois, que fiz eu ao estimável gascão?

- É de d'Épernon que queres falar, não é verdade?

- É.

- Pois bem, fizeste com que o apedrejassem!

- Eu?

- A ponto tal que lhe Fizeram em farrapos o gibão e a capa, tendo de voltar para o Louvre só com os calções.

- Bom - disse Bussy -, aí está um! Passemos agora ao alemão. Que maldade fiz eu ao Sr. de Schomberg?

- Também negarás que o fizeste tingir de cor de anil? Quando o tornei a ver, três horas depois do desastre que Lhe sucedeu, ainda estava azul-claro; e achas talvez que foi uma brincadeira muito chistosa. Pois eu não lhe achei graça nenhuma!

O príncipe, contudo, desatou a rir sem querer, enquanto Bussy, lembrando-se das caras que fazia Schomberg metido dentro da tina, ria às gargalhadas.

- Então - disse ele - fui eu quem fiquei com a fama de lhes ter pregado essas peças?

- Pois então, fui eu, talvez?

- E tem Vossa Alteza ânimo para fazer arguições a um homem a quem ocorrem ideias tão felizes? Bem Lhe dizia eu ainda há pouco que é um ingrato.

- Concedo. Agora diz-me a verdade; e se foi na realidade para isso que saíste, estás perdoado.

- Deveras?

- Sim, dou-te a minha palavra de honra; mas ainda não ouviste todos os motivos que tenho para estar escandalizado contigo.

- Diga.

- Falemos agora a meu respeito.

- Seja.

- Que fizeste tu para me livrares dos apertos em que me vi?

- Bem vê - disse Bussy - o que eu fiz.

- Não vejo, não - Pois não parti logo para o Anju?

- Isto é, fugiste.

- Sim, porque da minha fuga resultava a sua salvação.

- Mas em vez de fugires para tão longe, não podias ter ficado nas imediações de Paris? Parece-me que me terias servido muito melhor em Montmartre do que em Angers.

- Ah, eis aí o ponto em que diferem as nossas opiniões, meu Senhor: eu antes quis vir para o Anju.

- Hás-de concordar que essa razão que alegas não é muito convincente.

- Não concordo tal, porque o meu fim era angariar-Lhe partidários.

- Ah, então já o caso muda de Figura. Ora diz-me, que fizeste?

- Amanhã responderei a essa pergunta, meu Senhor, porque está justamente chegada a hora a que devo deixá-lo.

- E por que motivo me deixas?

- Para ir ter uma conferência com uma personagem muito importante.

- Ah, se assim é, não me oponho; vai, Bussy, mas sê prudente.

- Prudente, porquê, acaso não somos os mais fortes aqui?

- Não importa, não te aventures; já deste muitos passos?

- Há apenas dois dias que estou aqui, como seria isso possível?

- Mas tens estado escondido, ao menos?

- Se tenho estado escondido?. Boa pergunta essa! Não vê este traje que uso? Julga que tenho por costume andar metido num gibão cor de canela? Pois foi também por sua causa que me encaixei dentro desta horrenda vestimenta.

- E onde estás morando?

- Ah, quando eu Lhe disser então avaliará a minha dedicação. Estou morando. estou morando num pardieiro junto das muralhas, com uma saída para o rio; porém, meu príncipe, conte-me agora como conseguiu sair do Louvre? Como foi que o encontrei no meio de estrada real, montado num cavalo estafado, e em companhia do Sr. d'Aubigné?

- Porque tenho amigos - respondeu o príncipe.

- Tem amigos? - replicou Bussy - Ora essa!

- Sim, amigos que tu não conheces.

- Ah, agora entendo! E que amigos são esses?

- El-rei de Navarra e o Sr. d'Aubigné, que viste comigo.

- El-rei de Navarra? Ah, é verdade. Não conspiraram juntos?

- Eu nunca conspirei, Sr. de Bussy.

- Não?. La Mole e Cocunás que o digam.

- La Mole - disse o príncipe cem gesto sombrio - tinha cometido um crime muito diferente daquele pelo qual todos pensam que ele foi a morrer.

- Bem, deixemos La Mole, e tratemos do Senhor Duque, porque nesse ponto divergimos muito de parecer. Por onde demónio saiu do Louvre?

- Pela janela.

- Ah, deveras? E por qual delas foi?

- Pela de meu quarto de dormir.

- Então sabia onde estava a escada de corda?

- Qual escada de corda?

- A que estava escondida dentro dum armário.

- Ah, pelo que vejo, também tu sabias onde ela estava! - disse o príncipe empalidecendo.

- Para que negá-lo? - retorquiu Bussy. - Vossa Alteza bem sabe que eu tive a dita de entrar algumas vezes nesse quarto.

- No tempo em que lá habitava minha irmã Margarida, não é assim? E entravas pela janela?

- Porque não? Vossa Alteza também por lá saiu. O que muito me admira é que descobrisse a escada.

- Não fui eu que dei com ela.

- Quem foi então?

- Ninguém; disseram-me onde estava.

- Quem lhe disse?

- El-rei de Navarra.

- Ah, ah, el-rei de Navarra sabe da existência da escada? Quem tal diria! Mas, enfim, o caso que Vossa Alteza está aqui são e salvo; vamos incendiar o Anju todo, e com o rastilho lançaremos fogo à província de Angulema e à do Béarn; havemos de arranjar uma fogueiraziInha muito bonita.

- Mas não me falaste ainda agora em certa conferência? - disse o duque.

- Ah, é verdade; a nossa conversação estava sendo tão interessante que me tinha esquecido. Adeus, meu Senhor, adeus!

- Levas o teu cavalo?

- Se Vossa Alteza julga que lhe poderá servir, queira utilizar-se dele; tenho outro.

- Nesse caso aceito; depois ajustaremos as contas.

- Sim, meu Senhor, e Deus queira que não seja eu quem lhe fique devendo alguma coisa.

- Porquê?

- Porque não engraço com o indivíduo a quem Vossa Alteza costuma incumbir da verificação das suas contas.

- Bussy!.

- É verdade, meu Senhor, tínhamos convencionado não tornar a falar neste assunto. O príncipe, conhecendo a necessidade que tinha de Bussy, estendeu-Lhe a mão. Bussy apertou-lha, abanando a cabeça ao mesmo tempo.

E em seguida os dois separaram-se.

 

         DIPLOMACIA DO SR. DE SAINT LUC

Bussy voltou para casa a pé, mas em lugar de Saint-Luc, que julgava encontrar à sua espera, apenas achou uma carta em que ele lhe dizia que só no dia seguinte iria falar- lhe.

E com efeito, Saint-Luc, acompanhado dum criado, saiu de Méridor pelas seis horas da manhã do dia seguinte, dirigindo-se para Angers. Chegou ao pé das muralhas na ocasião em que se abriam as portas, e sem reparar na extraordinária agitação do povo, encaminhou-se rapidamente para casa de Bussy.

Os dois amigos abraçaram-se com cordialidade.

- Digne-se, meu caro Saint-Luc - disse Bussy -, aceitar a hospitalidade na minha pobre choupana. Estou acampado em Angers.

- Sim - replicou Saint-Luc -, à maneira dos vencedores, sobre o campo da batalha.

- Que quer dizer com isso, caro amigo?

- Que minha mulher não tem segredos para mim, assim como eu os não tenho para ela, meu caro Bussy e que por conseguinte tudo me contou; vivemos em perfeita comunidade. Aceite pois os meus parabéns, o senhor, que em tudo é meu mestre; e já que me mandou vir aqui, dê-me licença que lhe dê um conselho.

- Diga.

- Livre-nos quanto antes daquele abominável Monsoreau; ninguém sabe na corte das relações que tem com a mulher; o momento, portanto, não pode ser melhor; quando passados tempos, casar com a viúva, sempre hão-de dizer que deu cabo do marido para casar com ela.

- Não acho senão um único inconveniente na execução desse bonito projecto, que já me tinha vindo à lembrança, como ocorreu ao senhor também.

- Ainda bem que pensou como eu; e qual é?

- É eu ter jurado a Diana que hei-de respeitar a vida do marido; enquanto ele não me atacar, já se sabe.

- Fez mal.

- Eu?

- Fez muito mal.

- Porquê?

- Porque nunca se fazem semelhantes juramentos. Olhe que se não andar apressado, e não tratar de se prevenir, sou eu quem lhe digo, o Monsoreau, que é todo ele um composto de malvadez, há-de descobri-lo, e se o descobrir, como é o homem menos cavalheiro que conheço, há-de matá-lo.

- Há-de ser o que Deus quiser - disse Bussy sorrindo -; mas não posso faltar ao juramento que fiz a Diana; matando-lhe o marido...

- Marido!... Bem sabe que ele o não é!

- Sim, mas nem por isso deixa de o ser no nome. Além de que, como já disse, seria faltar ao juramento que lhe fiz; a opinião pública havia de estigmatizar-me, meu caro amigo, e o homem que é hoje um monstro aos olhos de todos, seria depois de morto um anjo que teria perecido às minhas mãos.

- Mas também não lhe dou de conselho que o mate por suas mãos...

- Um assassinato? Ah, Saint-Luc, que triste conselho me está dando!

- Ora essa! Quem fala em assassinato?

- Então qual é a sua ideia?

- Não é nenhuma, querido amigo; foi uma lembrança que tive, e que ainda não está bastante madura para que possa comunicar-Lha. Eu tenho tanta aversão como o senhor ao Monsoreau, apesar de não ter as mesmas razões para o detestar; conversemos pois a respeito da mulher, em lugar de falarmos do marido.

Bussy sorriu.

- É um leal companheiro, Saint-Luc - disse Bussy -, e pode contar com a minha amizade. Ora a minha amizade, como muito bem sabe, consta de três coisas, que são: a minha bolsa, a minha espada, e a minha vida.

- Obrigado - disse Saint-Luc -, aceito, mas para pagar na mesma moeda.

- Agora, o que pretendia dizer-me relativamente a Diana? Vejamos.

- Queria saber se não tenciona aparecer no Méridor.

- Meu caro amigo, agradeço as suas instâncias, porém já sabe as minhas dúvidas.

- Sei tudo. Vindo a Méridor, está exposto a encontrar o Monsoreau, apesar de ele se achar distante oitenta léguas daqui; terá de lhe apertar a mão, e não é agradável apertar a mão a um homem que desejaríamos esganar; e, finalmente, poderá suceder dar ele um beijo em Diana à sua vista, e é cruel ver que outro homem dá beijos na mulher que se ama.

- Ah - exclamou Bussy com furor -, não há dúvida que entendeu os motivos por que não vou a Méridor! Agora, querido amigo...

- Quer despedir-me?... - disse Saint-Luc.

- Não, pelo contrário - replicou Bussy -, peço-lhe que fique, porque preciso interrogá-lo.

- Estou pronto a responder-Lhe.

- Não ouviu a noite passada o toque dos sinos e o estrondo da mosquetaria?

- É verdade, e todos nós lá no castelo ficamos a cismar que teria acontecido.

- E esta manhã, quando atravessou a cidade, não notou mudança alguma?

- Notei; pareceu-me que havia grande agitação, não é assim? Estava para lhe perguntar o motivo que a ocasionava.

- É o resultado da presença do Sr. de Anju, que apareceu aqui ontem.

Saint-Luc deu um pulo na cadeira, como se lhe tivessem dito que tinha chegado o Diabo.

- O duque em Angers? Diziam que estava preso no Louvre!...

- É precisamente porque estava preso no Louvre que está actualmente em Angers. Conseguiu fugir por uma janela, e veio refugiar-se aqui.

- E depois? - perguntou Saint-Luc.

- Depois, meu caro amigo - disse Bussy -, oferece-se-lhe uma excelente ocasião para se furtar às perseguições de Sua Majestade. O príncipe já formou um partido, não tardará que tenha a tropa a seu favor, e passaremos a maquinar uma coisa parecida com uma linda guerra civil.

- Oh! oh! - exclamou Saint-Luc.

- Eu já conto com o senhor para desembainharmos as espadas na companhia um do outro.

- Contra el-rei? - disse Saint-Luc esfriando subitamente.

- Não digo positivamente contra el-rei - retorquiu Bussy -, digo contra todos aqueles que aparecerem em campo contra nós.

- Meu caro Bussy - respondeu Saint-Luc -, eu vim para o Anju para tomar ares do campo, e não para me bater contra Sua Majestade.

- Consente todavia que o apresente a Sua Alteza?

- É escusado, meu caro Bussy; não gosto de Angers, e tenciono deixar esta cidade quanto antes; é uma terra enfadonha e sombria; as pedras aqui são moles como queijo, e o queijo é duro como uma pedra.

- Meu querido Saint-Luc, far-me-ia um serviço assinalado se anuísse ao que lhe peço: o duque perguntou- me o que eu tinha vindo fazer aqui, e como não podia dizer-Lhe a verdade, por isso que ele também gostou de Diana e foi mal sucedido persuadi-o de que tinha vindo tratar de atrair ao seu partido todos os cavalheiros deste distrito; até acrescentei que estava para ter esta manhã uma conferência com um deles.

- Pois bem, dir-lhe-á que esteve com o tal fidalgo, e que ele lhe pediu seis meses para reflectir.

- Devo confessar-lhe, meu caro Saint- Luc, que me parece que é tão teimoso como eu.

- Ouça-me: a única pessoa que amo neste mundo é minha mulher, como o senhor também só adora a sua amante; concordemos pois numa coisa: eu defenderei Diana em toda e qualquer ocasião; o senhor fará o mesmo para com a Sr. de Saint- Luc. Formemos um pacto de amor, se quiser, mas nada de pacto político. Só assim conseguiremos viver em boa harmonia.

- Vejo que não tenho outro remédio senão ceder, Saint-Luc - disse Bussy - porque neste momento leva-me toda a vantagem. Eu preciso do senhor, enquanto o senhor pode muito bem passar sem mim.

- Não hâ tal; sou eu, pelo contrário, que reclamo a sua protecção.

- Como assim?

- Suponha que os angevinos, que é o nome que vão ter os rebeldes, se lembram de sitiar ou saquear o Castelo de Méridor.

- Ah, cos demónios, tem razão! - disse Bussy. - Não quer que os habitantes sofram as consequências duma entrada de assalto.

Os dois amigos desataram a rir, e como naquele momento começavam as salvas de artilharia e o criado de Bussy veio dizer-Lhe que o príncipe já por três vezes tinha chamado por ele, juraram novamente a sua associação extra politica, separando-se encantados um do outro.

Bussy correu para o castelo ducal, onde a nobreza já ia afluindo de todos os pontos da pro víncia; a notícia da chegada do duque de Anju tinha-se espalhado como o eco da artilharia que a festejara, e todas as cidades e aldeias na circunferência de três ou quatro léguas de Anger, estavam alvoroçadas com aquele acontecimento.

O conde tratou logo de arranjar para a recepção oficial um esplêndido banquete e bons discursos; calculava que enquanto o príncipe estivesse entretido a receber, a comer, e especialmente a responder aos discursos, poderia ele ter tempo para ir ver Diana, ainda que fosse só de relance.

Assim que acabou de arranjar ao duque ocupação para algumas horas, voltou para casa; montou no cavalo com que tinha ficado, e tomou a galope o caminho de Méridor.

O duque, entregue a si mesmo, proferiu lindos discursos e produziu admirável efeito falando na Liga, tocando com circunspecção nos pontos concernentes à sua aliança com os seus partidários e alegando que a perseguição que o rei lhe tinha movido era consequência da confiança que nele depositavam os Parisienses.

Enquanto duraxam as respostas e o beija-mão, o duque de Anju foi passando revista aos fidalgos que estavam presentes, reparando cuidadosamente em quais eram os que primeiro tinham chegado, e quais os que ainda faltavam.

Eram quatro horas da tarde quando Bussy voltou; apeou-se, e apresentou-se ao duque coberto de suor e de poeira.

- Ah, ah, meu valente Bussy - disse o duque -, pelo que vejo, andas trabalhando com ardor...

- É como Vossa Alteza vê.

- Estás com calor?

- Corri muito.

- Toma sentido não adoeças, ainda não estás talvez completamente restabelecido.

- Não tem dúvida.

- De onde vens tu?

- Das cercanias da cidade. Vossa Alteza está satisfeito? O cortejo foi numeroso?

- Estou, estou bastante satisfeito; porém, no cortejo, Bussy, faltou-me alguém...

- Quem foi?

- O teu afilhado.

- O meu afillhado?

- Sim, o barão de Méridor.

- Ah! - exclamou Bussy mudando de cor.

- E contudo é necessário não nos esquecermos dele, embora ele se tenha esquecido de mim. O barão tem grande influência na província.

- Julga isso?

- Estou certo que assim é. Era ele o correspondente da Liga em Angers; tinha sido escolhido pelo Sr. de Guisa, e, em geral, os Srs. de Guisa escolhem bem a sua gente. É necessário que ele aqui venha, Bussy!

- Mas se, apesar de tudo, ele não vier, meu Senhor?

- Se ele não vier procurar-me, darei eu os primeiros passos, e irei ter com ele.

- A Méridor?

- Porque não?

Bussy não pôde reprimir um olhar de ciúme e de raiva que cintilou como um relâmpago.

- É verdade - disse ele -, não vejo porque não há-de ir; é príncipe, tudo Lhe é lícito.

- Ora diz-me, pensas que ele ainda me quer mal?

- Não sei, como poderia eu sabê-lo?

Não o viste ainda?

- Não senhor.

- Como tens procurado a gente notável da província, era natural que tivesses ocasião de falar com ele.

- Não teria deixado por certo de o procurar, se eu não tivesse já tido negócios com ele.

Explica-te!

- Fui tão infeliz nas promessas que Lhe fiz - respondeu Bussy -, que não tenho pressa de me tornar a encontrar com ele.

- Pois ele não conseguiu o que desejava?

- Como assim?

- Queria que a filha casasse com o conde: o conde casou efectivamente com ela.

- Está bom, meu Senhor, deixemos esse assunto - disse Bussy.

E voltou as costas ao príncipe.

Naquele mesmo instante entraram mais alguns Fidalgos; o duque dirigiu-se para eles, Bussy ficou só.

As palavras do príncipe tinham-Lhe dado muito que entender.

Quais seriam na realidade as ideias do príncipe a respeito do barão de Méridor? Seriam aquelas que o duque tinha emitido? Não veria ele no velho fidalgo mais do que um meio de reforçar a sua causa com o apoio dum homem poderoso e geralmente estimado?

Ou não seriam os seus projectos políticos uma tentativa para se aproximar de Diana? Bussy examinou a posição do príncipe tal como ela era na verdade; viu que se tinha malquistado com o irmão, que estava desterrado do Louvre e à frente duma insurreição na província.

Pôs na balança dos interesses materiais do príncipe os seus caprichos amorosos. Este último interesse pesava muito pouco, comparado com os outros. Bussy estava disposto a perdoar ao duque todo o mal que Lhe tinha feito contanto que ele o não prejudicasse nos seus amores.

Assistiu ao banquete que Sua Alteza Real deu naquela noite aos fidalgos do Anju e entreteve-se a render finezas às damas da província, a quem ensinou as danças mais modernas para aproveitar os músicos que tinham sido chamados depois da ceia.

É escusado dizer que excitou a admiração das mulheres e fez desesperar os maridos; e como alguns destes últimos olhavam para ele dum modo que não Lhe agradava, retorceu oito ou dez vezes o bigode e perguntou a três ou quatro dos tais senhores se Lhe queriam fazer o obséquio de o acompanhar num passeio ao luar pelo rossio da cidade.

Porém a reputação de Bussy tinha chegado a Angers primeiro que ele, e ninguém aceitou o convite.

 

         OS PROJECTOS DO SR. DE ANJU

Ao entrar no palácio ducal Bussy encontrou uma cara franca, leal e risonha, que ele julgava a oitenta léguas de si.

- Ah - disse ele com um vivo sentimento de alegria -, és tu, Rémy?

- É verdade, meu Senhor.

- Estava para te escrever para que viesses ter comigo.

- Deveras?.

- Palavra de honra.

- Se assim é, fiz bem em vir; receava que se enfadasse comigo.

- Porquê?

- Por ter vindo sem licença. Porém, ouvi dizer que o Senhor Duque de Anju tinha Fugido do Louvre, e que tinha vindo para a sua província. Lembrei-me que estava nas proximidades de Angers; logo, pensei que íamos ter guerra civil, muita soma de estocadas, e muito buraco na pele do meu próximo; e como amo o meu próximo como a mim mesmo, ou ainda mais, vim correndo para aqui.

- Fizeste bem, Rémy; afirmo-te pela minha honra que me estavas fazendo falta.

- Como passa Gertrudes, meu Senhor?

O fidalgo sorriu.

- Prometo-te que hei-de perguntar por ela a Diana a primeira vez que estivermos juntos

- disse ele.

- E fique certo que eu, em paga do seu obséquio, a primeira vez que a vir, hei-de pedir-lhe também notícias da Sr. de Monsoreau.

- Tu és um excelente companheiro; mas, como deste comigo?

- Ora, que grande dificuldade! Perguntei onde era o palácio do duque, e pus-me à sua espera à porta depois de ter ido amarrar o cavalo na estrebaria do príncipe, onde, por sinal, fui dar com o seu.

- Sim, o príncipe rebentou o dele; eu emprestei-lhe o Rolando, e como não tinha outro, ficou com o meu.

- Vejo que é sempre o mesmo homem; fez de príncipe, e o príncipe de criado.

- Não te apresses em me chamar príncipe, Rémy, eu já te mostro a habitação da minha alteza.

E dizendo isto, fez entrar Le Haudouin na sua casinha junto da muralha.

- Aqui tens - disse Bussy -: é este o palácio onde moro; acomoda- te onde puderes, e como pudéres.

- Não me há-de custar muito, pois, como sabe, não preciso de muito lugar; e demais, estou tão cansado que até dormiria em pé se fosse preciso.

Os dois amigos, pois Bussy tratava Le Haudouin mais como amigo do que como criado, separaram-se, e Bussy, com o coração pulando- Lhe de contentamento por se achar outra vez entre Diana e Rémy, dormiu dum sono até pela manhã.

É verdade também que o duque, para poder dormir à vontade, tinha mandado pedir que não dessem mais salvas, que cessassem os tiros de mosquetaria; quanto aos sinos, esses tinham descansado de seu moto próprio, graças às empolas das mãos dos sineiros.

Bussy levantou-se muito cedo, e dirigiu-se ao castelo, deixando ordem para dizerem a Rémy que fosse lá ter com ele: estava empenhado em surpreender os primeiros abrimentos de boca de Sua Alteza, para ler, se fosse possível, os seus pensamentos na careta geralmente muito expressiva que faz todo o homem ao acordar.

O duque acordou, mas parecia que, a exemplo de seu irmão Henrique, tinha posto uma máscara para dormir. Foi debalde que Bussy se incomodou a levantar-se cedo.

O duque tinha aprontado um catálogo de coisas, qual delas a mais importante: Em primeiro lugar, um passeio fora das portas para reconhecer as fortificações da praça; Depois, uma revista dos habitantes e seus armamentos;

Uma visita ao arsenal e a expedição das ordens necessárias para se aprontarem apetrechos de guerra de toda a espécie;

Um exame minucioso do estado em que se achava a cobrança das contribuições da província, a Fim de alcançar dos seus bons e fiéis vassalos um pequeno suplemento de imposto destinado ao ornato interno dos cofres.

Finalmente, a correspondência.

Todavia Bussy sabia já de antemão que não podia contar muito com este artigo; o duque de Anju escrevia pouco; já naquela época ele punha em prática o provérbio scripta manent: o que se escreve fica.

O conde assim precavido contra qualquer pensamento mau que pudesse ocorrer ao prín cipe, assistiu ao acordar deste; mas como já dissemos, sem que Lhe fosse possível perceber-lhe coisa alguma nos olhos.

- Ah! - disse o duque - És tu já?

- verdade, meu Senhor; os negócios de Vossa Alteza preocupam-me de tal forma, que não pude pregar olho toda a noite; ora, pois, que tenciona fazer esta manhã? Vossa Alteza estaria disposto a assistir a uma caçada? Bom, disse Bussy consigo, aqui está mais um divertimento que não me tinha lembrado.

- Pois quê? - exclamou o duque. - Afirmas que passaste a noite em claro por teres pen sado nos meus negócios, e em resultado da tua vigília e meditação vens propor-me uma caçada? Estás zombando!.

- Tem razão - replicou Bussy -; e demais, não temos matilha.

- Nem monteiro-mor - disse o príncipe.

- Ah, essa não seria a dúvida, a montaria havia de parecer-me muito mais divertida não indo ele.

- Pois eu não sou como tu, ele faz-me falta.

O duque disse estas palavras com um modo muito singular; Bussy notou-o.

- Parece-me que esse seu estimável amigo também não concorreu para a sua fuga. O duque sorriu.

Bom! pensou Bussy, aquele sorriso já é meu conhecido: é o sorriso mau; o Monsoreau que se acautele.

- Tu sempre Lhe queres muito mal? - perguntou o príncipe.

- Ao Monsoreau?

- Sim.

- E por que motivo lhe hei-de eu querer mal?

- Por ser meu amigo.

- Tenho dó dele, pelo contrário.

- Que queres dizer com isso?

- Que quanto mais o elevar, maior há-de ser a queda quando cair.

- Muito bem! Vejo que estás de bom humor.

- Eu?

- Sim, porque só quando estás de bom humor é que me falas assim. Não importa - prosseguiu o duque -, ainda sustento o que disse: Monsoreau ter-nos-ia servido de muito aqui nesta terra.

- Como?

- Porque possui fazendas nestas imediações.

- Ele?

- Ou a mulher.

Bussy mordeu os beiços; o duque tornava a trazer a conversa para o ponto de onde ele tanto lhe tinha custado a afastá-lo na véspera.

- Ah, julga isso? - disse Bussy.

- Decerto. Méridor fica a três léguas de Angers; tu, que me trouxeste o barão, bem o sabes. Bussy percebeu que lhe era preciso segurar-se na sela.

- Se o levei à sua presença - replicou ele - foi porque o velho se agarrou com as mãos ambas à minha capa; e para Lhe não deixar metade dela nas mãos, como fazia S. Martinho, não tive remédio senão anuir ao que ele me pedia. Porém a minha protecção não Lhe serviu de muito.

- Ouve - disse o duque -: ocorre-me uma ideia.

Oh! cos demónios! pensou Bussy, que sempre estava de pé atrás com as ideias do príncipe.

- Sim. Monsoreau ganhou-te a primeira partida; mas eu quero que tu lhe ganhes a segunda.

- Que tenciona fazer, meu príncipe?

- É muito simples. Tu conheces-me, Bussy?

- Por minha desgraça, meu príncipe.

- Pensas que sou homem que tolera uma afronta, ou que deixe de a castigar?

- É conforme.

O duque sorriu com um risinho ainda pior do que o primeiro, mordendo os beiços e sacudindo a cabeça de alto a baixo.

- Ora vamos, explique-se, meu Senhor - disse Bussy.

- Pois bem, o monteiro-mor roubou-me uma rapariga de quem eu gostava, para fazer dela sua mulher; eu, agora, quero roubar-lhe a mulher para fazer dela minha amante.

Bussy tentou sorrir; mas, apesar do ardente desejo que tinha de o conseguir, só pôde fazer uma careta.

- Roubar a mulher do Sr. de Monsoreau? - balbuciou ele.

- Parece-me que a empresa é muito fácil - disse o duque -; a mulher veio viver para aqui nas suas fazendas; disseste-me que ela detesta o marido; posso pois esperar, sem demasiada fatuidade, que serei por ela preferido au Monsoreau, e muito especialmente quando eu lhe he prometer.

- E que promessa tenciona fazer-Lhe, meu Senhor?

- De a livrar do marido.

Olé! esteve para exclamar Bussy, e porque não fez isso logo no princípio? Porém teve força para se conter.

- Seria capaz de praticar uma acção tão meritória? - disse ele.

- Tu verás. Entretanto sempre irei fazer uma visita ao Castelo de Méridor.

- Atreve-se a isso?

- Porque não?

- Quer apresentar-se ao velho barão, a quem abandonou depois de me ter prometido.

- Tenho uma desculpa excelente para lhe dar.

- Onde diabo há-de ir buscá-la?

- Ora, digo-Lhe: Não rompi o casamento de sua filha, porque o Monsoreau, sabendo que o Senhor Barão era um dos principais agentes da Liga, de que eu era chefe, ameaçou-me de nos denunciar a ambos a el-rei.

- Ah, ah, e essa desculpa é inventada por Vossa Alteza?

- Devo confessar que não é invenção - respondeu o duque.

- Então já percebo - disse Bussy.

- Percebes? - replicou o duque, que não entendeu o sentido da resposta do seu gentil-homem.

- Percebo.

- Faço-lhe acreditar que foi para Lhe salvar a vida, que se achava ameaçada, que insisti no casamento da filha.

- É uma lembrança magnífica - disse Bussy.

- Não é assim? Mas agora me lembra. chega à janela, Bussy.

- Para quê?

- Chega sempre.

- Aqui estou.

- Como está o tempo?

- Cumpre-me declarar a Vossa Alteza que está excelente.

- Muito bem, pois então manda aparelhar os cavalos, e vamos saber da saúde do velho Méridor.

- Vou já sem demora, meu Senhor.

E Bussy, que se estava contrafazendo havia mais dum quarto de hora, Fingiu que saía, foi até à porta, e voltou em seguida.

- Peço perdão, meu Senhor - disse ele -, mas quantos cavalos determina Vossa Alteza que mande aprontar?

- Quatro ou cinco, aqueles que tu quiseres.

- Então, se Vossa Alteza deixa o número à minha disposição - replicou Bussy -, mandarei aprontar um cento.

- Um cento? - disse o príncipe muito admirado. - Para quê?

- Para levarmos connosco vinte e cinco homens em que nos possamos fiar no caso de algum ataque.

O duque estremeceu.

- No caso de algum ataque? - disse ele.

- Sim; tenho ouvido dizer - prosseguiu Bussy - que há muitas matas para aqueles lados; e não seria admiração nenhuma se caíssemos em alguma emboscada.

- Ah, ah! - disse o duque. - E tu pensas.

- Vossa Alteza sabe muito bem que o valor não exclui a prudência.

O duque tornou-se pensativo.

- Vou mandar aprontar cento e cinquenta - disse Bussy.

E caminhou segunda vez para a porta.

- Espera um instante. - disse o príncipe.

- Que é, meu Senhor?

- Pensas que estou seguro em Angers, Bussy?

- Eu sei lá! A cidade não é muito forte; contudo, sendo bem defendida.

- Sim, sendo bem defendida. mas se for mal defendida? E tu, por muito valente que sejas, nunca poderás acudir a todos os pontos ao mesmo tempo.

- Isso é muito provável.

- Se eu não estou seguro na cidade, e não estou por certo, visto que Bussy duvida.

- Eu não disse que duvidava, meu Senhor.

- Bom, bom; mas se nãu estou aqui seguro, é preciso tratar quanto antes de dar as providências convenientes para o estar.

- Disse bocadinhos de ouro, meu Senhor.

- Pois então quero examinar o castelo e entrincheirar-me lá!

- Tem razão, meu Senhor, porque um bom entrincheiramento.

Bussy balbuciou; não estava costumado a ter medo, e faltavam-lhe expressões de prudência.

- E daí. ocorre-me uma ideia.

- A sua imaginação está muito fecunda esta manhã, meu Senhor.

- Quero mandar vir para aqui os Méridor.

- Vossa Alteza sempre tem tido hoje ideias muito luminosas. Trate de levantar-se da cama se vamos examinar o castelo.

O príncipe chamou os criados, e Bussy aproveitou a ocasião para sair da câmara. Encontrou Le Haudouin na sala de fora. Era justamente quem ele ia procurar. Levou-o para o gabinete do duque, escreveu um bilhete, entrou numa estufa, apanhou uma ramalhete de rosas; enrolou o papel de roda das hastes, foi à cavalariça, aparelhou Rolando, entregou o ramalhete a Le Haudouin, e convidou este a montar a cavalo.

Em seguida conduziu-o até fora da cidade, como Amã conduziu Mardoqueu, e colocou o cavalo à entrada duma vereda estreita.

- É por aqui - disse ele -; deixa ir Rolando à vontade; na extremidade deste caminho acharás uma espessa mata, pela parte de lá da mata uma tapada, de roda da tapada um muro; no sítio onde Rolando parar, atirarás este ramalhete por cima do muro.

O indivíduo de quem está à espera não vem, dizia o bilhete, porque um sujeito que ele não esperava chegou, e mais temível do que nunca, pois ainda a ama. Receba com os lábios e com o coração tudo quanto neste papel é invisível aos olhos.

Rémy largou as rédeas a Rolando, que abalou a galope na direcção de Méridor. Bussy voltou para o paço do duque, e achou o príncipe já vestido. Quanto a Rémy esse dentro em meia hora chegou ao seu destino.

Correndo como uma nuvem impelida pelo vento, Rémy, Fiado nas palavras do amo, atravessou sem hesitar prados, campinas, bosques, ribeiras e montes, e parou ao pé dum muro meio desmoronado, cujo cume, coberto de hera, parecia ligado por ela aos ramos dos carvalhos.

Chegado que foi ali, Rémy pôs-se em pé nos estribos, apertou mais a fita com que o bilhete tinha sido atado ao ramalhete, e depois de ter tossido vigorosamente, atirou com o ramalhete por cima do muro.

Um grito que ressoou da parte oposta deu-Lhe a conhecer que a missiva tinha chegado ao seu destino.

Nada mais restava a fazer a Rémy, pois não tinha que trazer resposta.

Virou por conseguinte a cabeça do cavalo para o lado de onde tinha vindo, mas o animal, que já se ia dispondo a tomar uma refeição à custa das bolotas espalhadas pelo terreno, deu mostras evidentes do muito que Lhe repugnava sair fora dos seus hábitos, obrigando Rémy a recorrer a uma aplicação muito séria de esporas e chicote. Até que afinal, Rolando, resignado, se meteu ao caminho com a usual rapidez.

Passados quarenta minutos entrava ele na sua nova cavalariça com o mesmo desembaraço com que tinha entrado na mata, indo sozinho ocupar o seu lugar em frente da grade guarnecida de feno, e da manjedoura cheia de cevada.

Bussy andava vendo o castelo na companhia do príncipe.

Rémy chegou-se a ele na ocasião em que estava examinando um subterrâneo que ia ter a uma porta falsa.

- Então? - disse ele para o mensageiro. - Que viste? Que ouviste? Que fizeste?

- Vi um muro, ouvi um grito, andei sete léguas - respondeu Rémy com o laconismo dum daqueles rapazes da antiga Esparta que deixavam que as raposas lhes dilacerassem a barriga sem se queixarem, para maior glória das leis de Licurgo.

 

           UMA NINHADA DE ANGEVINOS

Bussy conseguiu entreter por tal forma o duque de Anju com os seus aprestos de guerra, que durante dois dias nem teve tempo para ir a Méridor, nem se tornou a lembrar de mandar chamar o barão a Angers.

O duque contudo falava de vez em quando na sua projectada visita. Mas Bussy tratava logo de lhe procurar alguma outra distracção, inspeccionava os mosquetes da guarda, mandava aparelhar os cavalos de batalha, fazia sair a artilharia e assestava as peças, como se projectasse conquistar uma quinta parte do mundo.

Rémy, assim que via todo este bulício, começava a fazer Fios, a afiar os instrumentos e a preparar bálsamos, como se tivesse de curar metade do género humano.

O duque então atemorizava-se com a enormidade de semelhantes preparativos. É escusado dizer que, de algumas vezes, Bussy, a pretexto de ir examinar as fortiFicações externas, saltava para cima de Rolando. e, em pouco mais de quarenta minutos, chegava ao pé de certo muro, por onde trepava com toda a facilidade, por isso que, com a continuação de trepar, tinha-o desmoronado por tal maneira que já apresentava uma espécie de brecha.

Quanto a Rolando, esse não carecia que Lhe dissessem para onde ia.

Bussy podia largar-lhe a rédea e fechar os olhos, que ele já ia ter ao seu destino. Já ganhei assim dois dias, dizia consigo Bussy; será muita infelicidade minha se daqui a outros dois dias me não deparar o acaso um bocadinho de ventura.

Bussy Fiava-se com razão na sua feliz estrela.

Pela volta da tarde do terceiro dia, na ocasião em que entrava na cidade um imenso comboio de víveres, produto duma requisição feita pelo duque aos seus bons e fiéis angevinos, e quando o Sr. de Anju, para se tornar popular, andava provando o pão de rala dos soldados, saboreando os arenques fumados e bacalhau, ouviu- se um grande motim a uma das portas da cidade.

O Sr. de Anju perguntou qual era a causa daquela bulha, mas ninguém Lhe soube dizer. Os burgueses que a curiosidade atraía ao sítio do barulho eram todos mimoseados com pancadas de cabos de partasanas e coronhadas de mosquetes.

Tinha-se apresentado na barreira da porta de Paris um homem montado num cavalo branco escorrendo em suor.

Ora Bussy, em observância do sistema que havia adoptado para intimidar o duque, fizera com que este o nomeasse capitão-general do distrito de Anju, governador de todas as praças de guerra, e estabelecera por toda a parte a mais severa disciplina, e especialmente em Angers. Ninguém podia sair da cidade sem o santo, e ninguém podia entrar sem o mesmo santo, uma senha, ou úm passe qualquer.

Todo este rigor era com o único fim de evitar que o duque mandasse algum mensageiro a Diana sem que ele o soubesse, e de obstar a que Diana entrasse em Angers sem que ele fosse logo avisado.

Tudo isto parecerá talvez algum tanto exagerado; mas devemos lembrar-nos que cinquenta anos mais tarde também Buckingham fez muita loucura do mesmo género por causa de Ana de Áustria.

O homem do cavalo branco chegara pois a todo o galope, e viera parar na frente da guarda.

Porém a guarda tinha as suas instruções; a sentinela, cumprindo as ordens que recebera, atravessara a partasana, e como o cavalo parecia disposto a não fazer caso daquele impedimento o soldado chamara às armas, sendo então forçoso ao recém-chegado entrar em explicações.

- Eu sou Antraguet - disse o cavaleiro quero Falar com o duque de Anju.

- Nós não sabemos quem é Antraguet - respondeu o comandante da guarda -; e quanto a falar com o Senhor Duque de Anju, não tarda que se cumpra o seu desejo, pois vamos prendê-lo e levá-lo à presença de Sua Alteza.

- Prender-me? - exclamou o cavaleiro. - Acho graça ao maroto que se lembra de querer prender Carlos de Balzac de Antraguet, barão de Cuneo e conde de Graville.

- E contudo assim o farei - disse o burguês, que tinha vinte homens atrás de si, e um só na sua frente.

- Esperem, meus amiguinhos - disse Antraguet. - Não conhecem ainda os Parisienses, não é assim? Pois bem, vou dar-Lhes o pano de amostra!

- Prendemo-lo, levemo-lo a Sua Alteza! - bradaram os milicianos enfurecidos.

- Devagarinho, meus cordeirinhos do Anju! - disse Antraguet. - Eu mesmo terei o gosto de me ir apresentar.

- Que está ele dizendo? - perguntaram os burgueses uns para os outros.

- Está dizendo que o seu cavalo apenas andou dez léguas esta tarde - respondeu Antraguet -, e por conseguinte ainda se acha em estado de os atropelar a todos, se não quiserem abrir caminho. Deixem-me portanto passar, ou... com todos os diabos!...

E como os burgueses de Angers pareciam não entender o que ele pretendia, apesar da praga, Antraguet desembainhou a espada, e com um movimento de rotação executado com admirável rapidez, derrubou os tontos a que pôde chegar das alabardas que tinham apontado para ele.

Em menos de dez minutos ficaram quinze ou vinte alabardas transformadas em cabos de vassoura.

Os burgueses, encolerizados, acometeram às pauladas o recém-chegado, o qual aparava todos os botes com pasmosa destreza, e rindo às gargalhadas.

- Ah, que brilhante entrada! - dizia ele torcendo-se com uma convulsão de riso sobre o cavalo; - oh, como são corteses os burgueses de Angers! Que divertida que é esta terra! Como andou acertado o príncipe em deixar Paris, e que feliz lembrança que me ocorreu de vir ter com ele!

E Antraguet, dizendo isto, continuava não só a aparar as pancadas, mas, de vez em quando, ia retalhando com a espada espanhola o cossolete de anta de um, o capacete de outro; e, quando o apertavam muito, atordoava com uma pranchada pela cabeça algum guerreiro mais imprudente que se aventurava na refrega com o toutiço apenas resguardado por um simples carapuço de lã.

Os burgueses agrupados de roda de Antraguet atiravam-lhe à porfia, ferindo-se uns aos outros, e crescendo sempre em número; parecia que saíam do chão como os soldados de Cadmo.

Antraguet sentiu que já ia começando a cansar.

- Está bom! - disse ele, vendo que as fileiras dos agressores se iam tornando cada vez mais compactas. - Está bom! São valentes como leões, é coisa sabida, e estou pronto a atestá-lo. Mas bem vêem que só lhes restam os cabos das alabardas e que não sabem carregar os mosquetes. Eu tinha tencionado entrar na cidade, mas não sabia que estava defendida por um exército de Césares. Desisto de vencê-los. Adeus, muito boa noite; vou-me embora; digam unicamente ao príncipe que eu tinha vindo de Paris de propósito para o ver.

O capitão, entretanto, tinha conseguido incendiar a mecha do mosquete; mas quando já ia para encostar a coronha da arma ao ombro, Antraguet deu-lhe umas poucas de chicotadas tão bem puxadas com a folha da espada pelos dedos, que ele deixou cair a arma e cumeçou a saltar alternadamente sobre o pé direito e sobre o pé esquerdo.

- Morra, morra! - bradaram os milicianos pisados e enraivecidos. - Não o deixemos fugir, é preciso que não escape!

- Ah! - disse Antraguet. - Ainda há pouco não me queriam deixar entrar, e agora não me querem deixar sair; cautela, que eu vou mudar de táctica; em lugar de me servir da prancha passo a empregar a ponta; em vez de derrubar as alabardas, decepar-lhe-ei as mãos; ora vamos, meus cordeirinhos de Anju, deixam-me sair ou não!

- Não, morra, morra!. Já está cansado! Já vacila! acabemos com ele! - bradaram encolerizados os milicianos.

- Muito bem! então a coisa sempre é séria?.

- É séria, é!

- Pois bem, guardem os dedos, que lhes retalho as mãos!

Acabava ele apenas de dizer estas palavras e dispunha-se a executar a sua ameaça, quando assomou no horizonte um segundo cavaleiro, que vinha correndo com a mesma rapidez, entrou na barreira a todo o galope, e caiu como um raio no meio da refrega, que se ia tornando pouco a pouco num verdadeiro combate.

- Antraguet! - bradou o recém-chegado. - Antraguet! Que diabo estás tu fazendo no meio de todos esses burgueses!

- Livarot! - exclamou Antraguet voltando-se para ele. - Por Deus, que em muito boa hora chegaste! S. Diniz nos ajude; e vamos a eles!

- Bem me queria parecer que te havia de alcançar; tive notícias tuas ainda não há quatro horas, e desde então vim sempre correndo; mas onde diabo vieste meter-te! Assim Deus me perdoe, como me parece que te querem assassinar!

- É verdade, são os nossos amigos do Anju que não querem consentir que eu entre. nem que saia tão-pouco.

- Meus Senhores - disse Livarot tirando o chapéu -, façam favor de abrir para a direita ou para a esquerda, para nos deixar passar!

- Estão-nos insultando! - gritaram os burgueses; - morram, morram!

- Ah!. Pois é assim que eles recebem os hóspedes em Angers?. disse Livarot tornando a Pôr o chapéu na cabeça com uma das mãos e desembainhando com a outra a espada.

- É como vês - replicou Antraguet -; e infelizmente são muitos.

- Não tem dúvida, facilmente os levaremos de vencida, nós os três.

- Sim, nós os três, se acaso fôssemos três; porém somos dois somente.

- Aí vem chegando Ribeirac.

- Ele também?

- Não ouves o galopar do cavalo?

- Já o vejo até. Olá, Ribeirac, olá, anda para aqui!

E com eFeito, naquele mesmo instante, Ribeirac, que parecia vir com tanta pressa como os companheiros, entrava tão estrepitosamente como eles na cidade de Angers.

- Bom! Briga-se por aqui? - disse Ribeirac. - Que feliz momento em que cheguei! Bons dias, Antraguet; bons dias, Livarot.

- A eles! - respondeu Antraguet.

Os milicianos olhavam, com bastante pasmo, para o novo reforço que acabava de chegar em auxílio dos dois amigos, os quais já se preparavam a passar do estado de agredidos ao de agressores.

- Pelo que vejo, é um regimento deles. - disse o capitão das milícias para os seus homens; - Senhores, a nossa ordem de batalha parece-me defeituosa, e proponho que, sem perda de tempo, façamos meia volta à esquerda.

Os burgueses, com a destreza de que sempre dão provas na execução das manobras mili tares, começaram logo a dar meia volta à direita.

Era porque, além do convite do capitão, que os induzia a usarem de prudência, viam que os três cavaleiros tinham formado em linha com um garbo militar que fazia tremer os mais atrevidos.

- É a vanguarda do inimigo! - gritaram os burgueses procurando dar a si mesmos um pretexto para fugirem. - Às armas! às armas!

- Fogo - gritavam outros -, fogo!

- É o inimigo, é o inimigo! - dizia a maior parte.

- Somos todos pais de família. Devemos as nossas vidas às nossas mulheres e filhos. Quem puder que fuja! - bradou o capitão.

E em consequência de todos estes gritos diversos, que eram, como se vê, tendentes ao mesmo Fim, começou na rua um tumulto horroroso; entrando logo a chover uma saraivada de pauladas sobre os curiosos que obstavam a que os medrosos pudessem fugir.

Foi então que o ruído da desordem se ouviu na praça do castelo, onde, como já dissemos, o príncipe estava entretido a provar o pão de rala, os arenques fumados e o bacalhau dos seus partidários.

Bussy e o príncipe indagaram a causa do motim; vieram dizer-lhes que eram três homens, ou antes, três diabos encarnados chegados de Paris, que estavam fazendo todo aquele rebuliço.

- Três homens? - disse o príncipe. - Vai lá ver o que é, Bussy.

- Três homens? - disse Bussy. - Venha comigo, meu Senhor.

E ambos saíram: Bussy ia adiante, o príncipe seguia-o com toda a prudência, acompanhado duns vinte cavaleiros.

Chegaram na ocasião em que os burgueses começavam a manobra de que demos conta, com grave prejuízo dos ombros e dos crânios dos curiosos.

Bussy levantou-se sobre os estribos e, correndo pelos actores daquela cena o seu olhar de águia, logo reconheceu o comprido rosto de Livarot.

- Por vida minha - gritou ele para o príncipe com voz de trovão -, acuda depressa, são os nossos amigos de Paris que nos estão acometendo!

- Pois sim! - respondeu Livarot com um berro que se ouviu acima do ruido do combate.

- São, pelo contrário, os teus amigos do Anju que nos querem dar cabo da pele!

- Abaixo as armas! - gritou o duque. - Abaixo as armas, vilões, são meus amigos.

- Amigos? - exclamaram os burgueses, cheios de contusões, feridos e esfalfados. Amigos? Então era melhor dar-lhes o santo; há uma hora que estamos aqui tratando-os a eles como idólatras, e eles a nós como Turcos.

E acabaram de efectuar o movimento de retirada.

Livarot, Antraguet e Ribeirac adiantaram- se como triunfadores para dentro do espaço que tinha ficado desembaraçado pela retirada dos burgueses, e todos eles se apressaram a ir beijar a mão a Sua Alteza, dirigindo-se em seguida, cada um por sua vez, a abraçar Bussy.

- Já se vê - disse filosoficamente o capitão - que era uma ninhada de angevinos que tomámos por um bando de abutres.

- Meu Senhor - disse Bussy ao ouvido do príncipe -, queira Vossa Alteza contar os seus milicianos.

- Para quê?

- Conte aproximadamente, não digo que seja um a um.

- São pelo menos cento e cinquenta.

- Sim, pelo menos.

- E então? A que vem isso?

- É para Lhe dizer que são soldados que se deixaram vencer por três homens.

- verdade - disse o duque. - E depois?

- Depois, vá sair da cidade com gente desta!.

- Isso é assim - replicou o duque -, mas posso sair com três homens que venceram os outros.

Toma! disse consigo Bussy, desta não me tinha eu lembrado. Muito lógicos são os homens pusilânimes!.

 

           ROLANDO

O Senhor Duque de Anju, graças ao reforço que lhe tinha chegado, pôde empreender reconhecimentos sem fim em roda da praça.

O duque, acompanhado pelos seus amigos, que em tão boa ocasião tinham aparecido, saía num trem de guerra de que se ensoberbeciam os burgueses de Angers, se bem que a comparação daqueles fidalgos bem montados e perfeitamente bem armados, com os arneses rotos e as armaduras ferrugentas da milícia urbana, não era por certo muito favorável a esta última.

Começaram por explorar as muralhas, depois os jardins próximos às muralhas, em seguida os campos contíguos aos jardins, Finalmente os castelos disseminados pelos campos, e era muito para ver então o olhar que o duque deitava para os bosques que lhe tinham metido tanto medo, ou, por outra, com que Bussy Lhe tinha metido tanto medo.

Todos os dias vinham chegando os fidalgos angevinos, trazendo consigo avultadas somas de dinheiro; achavam na corte do duque de Anju uma liberdade que estavam longe de encontrar na corte de Henrique III, não podiam portanto deixar de levar vida folgada numa cidade tão bem disposta como qualquer capital a esgotar a bolsa dos seus hóspedes.

Ainda bem não tinham decorrido três dias, e já Antraguet, Ribeirac e Livarot se achavam relacionados com os cavaleiros angevinos mais apaixonados das modas e dos costumes de Paris.

É escusado dizermos que os tais cavaleiros eram todos casados com mulheres jovens e bonitas.

Devemos também confessar que as lindas cavalgadas do duque de Anju por fora da cidade não eram unicamente para seu próprio divertimento, como poderiam julgar aqueles dos nossos leitores que já estão ao facto do génio egoísta do duque.

Os passeios do príncipe eram para divertir os parisienses que tinham vindo ter com ele, bem como os fidalgos do Anju, e especialmente as damas angevinas.

Aquele sistema de vida devia ser muito agradável a Deus, visto que a causa da Liga era a causa de Deus.

Também devia forçosamente fazer enraivecer o rei.

E finalmente, dava gosto às damas.

De forma que ficava assim representada a grande trindade da época, que era: Deus, o rei, e as damas.

O contentamento de toda aquela gente chegou ao seu auge no dia em que viram chegar perfeitamente acondicionados vinte e dois cavalos de sela, trinta cavalos de trem, e quarenta machos, com as competentes liteiras, carros e carroças, de que se compunha o estado do Senhor Duque de Anju.

Tudo aquilo tinha vindo como por encanto de Túnnes, pela módica quantia de cinquenta mil escudos, que o Senhor Duque de Anju havia destinado para aquela aquisição.

É forçoso dizer, em abono da verdade, que os cavalos traziam as respectivas selas, mas que estas ainda não tinham sido pagas aos seleiros; que os cofres que os carros conduziam tinham magníficas fechaduras e chaves muito seguras, mas que estavam vazios.

Esta última circunstância era muito para louvar no príncipe, pois bem fácil teria sido enchê-las por meio de exacções.

Mas o príncipe não gostava de tirar dinheiro ao seu povo abertamente, preferia subtrair-lho. Todavia a passagem daquela comitiva produziu admirável efeito em Angers. Os cavalos foram levados para as cavalariças, os carros foram arrumados nas cocheiras, e os cofres foram recolhidos pelo fâmulo de maior intimidade do príncipe.

Só de gente muito segura é que se podiam confiar as somas que eles não encerravam.

Finalmente bateram com as portas do palácio na cara da multidão, que Ficou convencida, graças a tão previdente medida, que o príncipe acabava de mandar arrecadar para cima de dois milhões, enquanto que só se tratava de fazer sair da cidade uma soma quase igual a essa, e na qual se compreendia também o custo dos cofres vazios.

A datar daquele dia ficou estabelecida com toda a solidez a reputação de opulência do Senhor Duquc de Anju; e a província toda ficou convencida, à vista do espectáculo que tinha presenciado, que ele era suficientemente abastado para declarar a guerra à Europa em peso, se preciso fosse.

Aquela confiança devia contribuir para que os burgueses sofressem sem impaciência os novos impostos que o Senhor Duque, aconselhado pelos seus amigos, tencionava lançar sobre os angevinos.

E demais, os angevinos mostravam-se dispostos a anuir sem dificuldade aos desejos do duque de Anju.

Nunca se considera mal empregado o dinheiro que se empresta ou se dá aos ricos. O rei de Navarra, com a sua fama de miséria, nunca teria conseguido por certo uma quarta parte das vantagens que resultavam para o duque de Anju da sua reputação de opulência.

Mas tornemos ao duque.

O estimável príncipe vivia como um patriarca cercado de todos os bens da Terra, e, como todos sabem, o Anju é muito boa terra.

As estradas estavam apinhadas de cavaleiros que se dirigiam para Angers, a fim de se apresentarem ao príncipe ou de Lhe oferecerem os seus serviços.

O Sr. de Anju continuava nos seus reconhecimentos, que tinham por objecto a descoberta de algum tesouro.

Bussy tinha conseguido até ali que nenhumas daquelas excursões fosse para os lados do castelo onde Diana habitava.

Aquele tesouro reservava-o Bussy para si unicamente; queria explorar a seu modo aquele cantinho da província, o qual, depois de se ter defendido convenientemente, tinha acabado por se entregar à discrição.

Ora, enquanto o Sr. de Anju reconhecia, e Bussy explorava, o Sr. de Monsoreau chegava às portas de Angers montado no seu cavalo de caça.

Seriam quatro horas da tarde; e o Sr. de Monsoreau, para chegar às quatro horas, tinha andado dezoito léguas naquele dia.

E por isso trazia as esporas vermelhas de sangue, e semimorto o cavalo, que vinha branco de esp uma.

Já lá ia o tempo em que nas portas da cidade havia dificuldade em deixar entrar as pessoas que chegavam; os burgueses de Angers estavam tão soberbos depois da cena com os três amigos que teriam deixado passar sem contestação um batalhão de suíços, ainda mesmo que viesse à frente deles o valente Crillon em pessoa.

O Sr. de Monsoreau, que não era Crillon, entrou logo em direitura, dizendo:

- Vou para o palácio do Senhor Duque de Anju.

Não deu atenção à resposta dos guardas, que ficaram a berrar atrás dele; o cavalo parecia segurar-se sobre as pernas unicamente por um milagre de equilíbrio, devido à mesma velocidade com que vinha correndo; o pobre animal nem já sentia que estava vivo, e poder-se-ia apostar que havia de cair logo que parasse.

Parou com efeito à porta do palácio, mas o Sr. de Monsoreau era excelente cavaleiro, e o cavalo era de raça; e por isso tanto o cavalo como o cavaleiro ficaram de pé.

- Onde está o Senhor Duque? - bradou o monteiro-mor.

- Sua Alteza foi fazer um reconhecimento - respondeu a sentinela.

- Para onde? - perguntou o Sr. de Monsoreau.

- Para aquele lado - disse o soldado, estendendo a mão para um dos quatro pontos cardeais.

- Esta só pelo demónio! - exclamou Monsoreau. - O que eu tinha a dizer ao duque era de muita urgência; que devo fazer?

- Seria bom que levasse em primeiro lugar o seu cavalo para a cavalariça - replicou

a sentinela, que era um galucho da Alsácia -, e lá encostá-lo à parede, quando não, cai por certo.

- O conselho é bom, se bem que dado em mau francês - disse Monsoreau. - Onde Ficam as cavalariças, amigo?

- Ficam além.

Naquele momento chegou-se um homem ao fidalgo, e disse-Lhe o seu nome e qualidade. Era o mordomo.

O Sr. de Monsoreau respondeu com a enumeração do seu nome, apelido e qualidades. O mordomo cortejou-o respeitosamente; o nome do monteiro-mor já era muito conhecido na província.

- Senhor - disse ele -, digne-se entrar e descansar um bocado. Há dez minutos que Sua Alteza saiu, e não voltará antes das oito horas da noite.

- Oito horas da noite! - replicou Monsoreau mordendo o bigode. - Isso é muito tempo perdido. Eu trago uma notícia importante, e é preciso que Sua Alteza a saiba quanto antes. Não tem por aí um cavalo e um guia que possa dispensar-me?

- Um cavalo? Temos aí dez! - respondeu o mordomo. - Pelo que diz respeito ao guia isso lá é diferente, porque Sua Alteza não disse para onde ia, e não terá outro remédio senão ir perguntando às pessoas que encontrar pelo caminho; porque, demais a mais, não quero enfraquecer a guarnição do castelo. É uma das maiores recomendações de Sua Alteza.

- Ah, ah! - exclamou o monteiro-mor. - Visto isso, não se está seguro aqui?

- Oh, sempre se está seguro na companhia de cavalheiros como os Srs. de Bussy, de Li varot, de Ribeirac, de Antraguet, sem falar no nosso invencível príncipe, o Senhor Duque de Anju; mas bem deve compreender.

- Sim, percebo que quando eles aqui não estão há menos segurança.

- É isso mesmo, meu Senhor.

- Bem, vou à cavalariça buscar um cavalo, e tratarei depois de dar com Sua Alteza, indagando onde ele está das pessoas que for encontrando.

- Era capaz de apostar que dessa forma há- de dar por força com Sua Alteza.

- Não saíram daqui a galope?

- Foram a passo, muito a passo.

Muito bem, estou resolvido a ir em seguimento deles; mostre-me o cavalo de que me posso servir.

- Entre na cavalariça e escolha, todos eles pertencem a Sua Alteza.

- Está bom.

Monsoreau entrou.

Dez ou doze cavalos, muitos nédios e alindados, estavam presos às manjedouras, amplamente guarnecidas de feno e cevada.

- Aqui estou - disse o mordomo -, escolha!

Monsoreau examinou como entendedor toda a enfiada de quadrúpedes.

- Irei neste cavalo castanho - disse ele -, mande-mo então aparelhar.

- Ah, quer o Rolando?

- Chama-se Rolando?

- Sim senhor, é o cavalo predilecto de Sua Alteza. Sai nele todos os dias, foi-lhe dado pelo Sr. de Bussy, decerto não o encontraria aqui na cavalariça se Sua allteza não quisesse experimentar hoje os cavalos novos que lhe chegaram de Túrones.

- Então parece-me que não escolhi mal.

- Aparelhe o Rolando - disse o mordomo para um moço de cavalariça.

Quanto au cavalo em que vinha o conde, esse tinha entrado de moto próprio para a cavalariça, onde logo se estendeu sobre a cama sem esperar que o desaparelhassem.

Rolando ficou pronto dentro de alguns minutos.

O Sr. de Monsoreau, que desejava não perder tempo, montou imediatamente, e perguntou segunda vez para que lado tinha ido a soberba cavalgada.

- Saiu por esta porta e seguiu por aquela rua fora - respondeu o mordomo, indicando ao conde o mesmo ponto que a sentinela já lhe havia indicado.

- É extraordinário! - disse o conde de Monsoreau largando a rédea e vendo que o cavalo, sem ele o governar, romava o caminho que acabavam de Lhe ensinar. - Dir-se-ia que Rolando lhes vai seguindo a pista!

- Oh, pode ir descansado - replicou o mordomo -, tenho ouvido dizer ao Sr. de Bussy e ao seu médico, o Sr. Rémy, que este cavalo é o animal mais inteligente que eles conhecem assim que Lhe der o faro dos companheiros irá imediatamente no alcance deles; vê que pernas tão delgadas que tem, que nem um veado as apresenta mais finas?

Monsoreau debruçou-se para as examinar.

- São magníficas, com efeito - disse ele.

O cavalo abalou sem ser mandado, e saiu muito deliberadamente da cidade; até tomou por um atalho antes de chegar às portas, para encurtar o caminho, que se bifurcava circularmente para a esquerda e directamente para a direita.

O animal, ao passo que dava esta prova de inteligência, sacudiu a cabeça como para escapar ao freio que lhe pesava na boca; parecia querer dizer ao cavaleiro que era escusada toda a influência dominadora, e à medida que se ia aproximando das portas da cidade, acelerava a andadura.

Vejo na realidade, disse consigo Monsoreau, que é exacto o que me disseram; pois então, visto que já conheces tão bem o caminho, vai! Rolando, vai! "

E lançou-Lhe as rédeas sobre o pescoço.

O cavalo, quando chegou ao baluarte externo, hesitou um instante, como para deliberar se havia de virar para a direita ou para esquerda.

Virou para a esquerda.

Ia passando naquela ocasião um homem do campo.

- Olá, amigo, Faz favor de me dizer se viu passar por aqui um rancho de cavaleiros?

- Vi, sim senhor - respondeu o rústico encontrei-os acolá para diante. Era exactamente na direcção que Rolando tinha tomado que o camponês dizia ter encon trado o rancho.

- Anda! Rolando, anda depressa! - disse o monteiro-mor largando de todo as rédeas ao inteligente cavalo, que passou a um trote largo, com o qual deveria necessariamente andar suas três ou quatro léguas por hora.

O cavalo foi seguindo ainda por algum tempo o baluarte; de repente, volveu à direita, e entranhou-se numa vereda verdejante que atravessava o campo.

Monsoreau hesitou um instante e esteve para fazer parar Rolando, mas este parecia conhecer tão perfeitamente o caminho, que lhe pareceu melhor deixá-lo ir à vontade.

O cavalo ia-se animando à medida que avançava. Passou do trote para o galope, e em menos de um quarto de hora já a cidade tinha desaparecido completamente aos olhos do cavaleiro.

O cavaleiro também, à medida que avançava, ia conhecendo as localidades. Então que é isto! disse ele ao entrar na mata; parece que vamos para Méridor. Dar-se-á o caso que Sua Alteza tenha vindo passear para as vizinhanças do castelo? E o semblante do monteiro-mor tornou-se carrancudo com aquela ideia, a qual já por mais duma vez se lhe tinha apresentado à imaginação.

Oh! oh! murmurou ele, e eu que queria falar primeiro ao príncipe, deixando para amanhã a visita a minha mulher! Estou vendo que vou ter o gosto de os cumprimentar a ambos ao mesmo tempo.

Um sorriso terrível assomou aos lábios do monteiro-mor.

O cavalo caminhava sempre, continuando a encostar para a direita com uma tenacidade que bem indicava a certeza que tinha de atinar com o seu destino.

Não há dúvida, pensou Monsoreau, deve estar muito perto da tapada de Méridor. Naquele mesmo instante o cavalo começou a relinchar.

Um outro relincho, que soava lá do fundo da ramada, correspondeu-Lhe imediatamente. Ah! ah! disse o monteiro-mor, penso que Rolando já deu com os seus companheiros. A rapidez da carreira de Rolando ia sempre em aumento; passava como um raio por baixo do frondoso arvoredo.

De repente Monsoreau avistou um muro e um cavalo amarrado junto dele. O cavalo tornou a relinchar, e Monsoreau logo supôs que era aquele mesmo que naturalmente tinha relin chado a primeira vez.

Indubitavelmente está aqui alguém! " pensou o conde de Monsoreau empalidecendo.

 

         QUAL ERA A NOTÍCIA QUE TRAZIA O SR. DE MONSOREAU

O Sr. de Monsoreau caminhava de surpresa em surpresa; o muro de Méridor, onde ele tinha vindo dar como por encanto, aquele cavalo que festejava a chegada do outro que ali o tinha trazido como se fora muito seu conhecido; tudo aquilo era suficiente, por certo, para fazer cismar qualquer homem por pouco desconfiado que fosse.

Logo que se aproximou do muro, notou o Sr. de Monsoreau quanto ele estava arruinado naquele sítio; era uma verdadeira escada, que ameaçava tornar-se dentro em pouco uma bre cha; parecia que os pés tinham escavado degraus na pedra, e as silvas, recentemente arrancadas, ainda pendiam pelas raízes em alguns intervalos.

O conde abrangeu tudo isto num golpe de vista, e depois passou a um exame mais mi nucioso.

O cavalo merecia a maior atenção, e foi ele, por consequência, o primeiro examinado. O chocalheiro animal trazia uma sela guarnecida de um xairel bordado de prata. Numa das pontas tinha dois Fenlaçados com dois AA.

Não havia dúvida alguma que o cavalo pertencia à casa do príncipe, pois as iniciais queriam dizer Francisco de Anju.

As desconFianças do conde transformaram-se, à vista do cavalo, em verdadeiro susto. Era evidente que o duque tinha vindo ali.

E já não era a primeira vez que vinha, pois, além do cavalo que estava preso ao muro, ainda havia outro que já sabia o caminho.

Monsoreau concluiu que, visto ter descoberto por acaso aquela pista, devia segui-la até ao fim.

Estava nas suas atribuições de monteiro-mor e de marido ciumento. Porém claro estava que, enquanto se conservasse pela parte de fora do muro, nada poderia

ver.

Amarrou, por consequência, o cavalo ao lado do outro, e começou a trepar denodadamente.

A empresa era muito fácil, os degraus estavam chamando pelos pés, os lugares para as mãos estavam muito bem dispostos, o encosto para os braços estava traçado sobre as pedras na parte superior do muro, e os ramos de um carvalho que naquele sítio estorvavam a vista e impediam os gestos, tinham sido cuidadosamente desbastados com uma faca de mato.

O Sr. de Monsoreau saiu-se perfeitamente da sua tentativa; apenas chegou ao seu observatório, lobrigou ao pé de uma árvore uma mantilha azul e uma capa de veludo preto.

A mantilha pertencia sem dúvida a uma mulher, e a capa preta a um homem; e demais, não era necessário procurar muito longe; o homem e a mulher andavam passeando a uns cinquenta passos dali, de braços dados, com as costas para o muro e escondidos pelas folhas dos arbustos.

Infelizmente para o Sr. de Monsoreau, o muro ainda não estava costumado às suas violências; e o resultado foi soltar-se um pedregulho que fez estalar os ramos da árvore, e foi cair sobre a relva com uma bulha surda.

As personagens de quem o Sr. de Monsoreau não podia ver os rostos por causa do arvoredo voltaram-se, provavelmente, àquele som, pois ouviu-se um grito de mulher, agudo e significativo, e logo o som das passadas deu a conhecer ao conde que fugiam ambos como dois gamos assustados.

Monsoreau, quando ouviu o grito da mulher, sentiu que se Lhe humedecia a testa de suor. Tinha conhecido a voz de Diana.

Não pôde resistir ao movimento de furor que o impelia: saltou do muro abaixo, e, desembainhando a espada, quis seguir a pista dos fugitivos.

Mas já tudo havia desaparecido, nada alterava o silêncio da tapada; não se via uma sombra sequer pelas alamedas, nem um vestígio pelos caminhos, nem um único som pelos bosques, a não ser o canto dos rouxinóis e das toutinegras, que já estavam acostumadas a ver os dois amantes e não se tinham assustado por eles correrem.

Que tinha ele a fazer no meio daquela solidão? Que partido havia de tomar? Para onde se dirigiria? A tapada era grande; se fosse a perseguir aqueles que procurava, podia muito bem topar os que não procurava.

O Sr. de Monsoreau pensou que a descoberta que tinha feito bastava por então; e demais, sentia-se dominado por um sentimento demasiado violento para poder proceder com a prudência que muito convinha empregar para com um rival tão temível pela sua superioridade como Francisco de Anju, pois ele já não duvidava que o seu rival era o príncipe.

Entretanto, ou fosse ele ou não, tinha uma missão da maior urgência a desempenhar para com o duque de Anju, e reservava para essa ocasião formar o seu juízo acerca da culpabilidade ou da inocência de Sua Alteza.

Ocorreu-lhe em seguida uma ideia sublime. Era de saltar o muro no mesmo sítio, e levar consigo o cavalo do intruso que ele tinha vindo surpreender na tapada.

Este projecto de vingança deu-Lhe novo ânimo; deitou a correr, e chegou ao pé do muro a arquejar e escorrendo em suor.

Agarrando-se então aos ramos, conseguiu chegar ao cume, e deixou- se cair para o outro lado; mas nada de cavalo, ou, para melhor dizer, nada de cavalos. A ideia que ele tivera era tão boa, que, antes de lhe ocorrer a ele, ocorrera ao seu inimigo, e este pusera-a logo em execução.

O Sr. de Monsoreau soltou um grito de raiva, ameaçando ao mesmo tempo com um murro o malicioso demónio que decerto se estava rindo dele lá por entre as sombras da mata; porém como a vontade nele não se dava facilmente por vencida, reagiu contra as fatalidades sucessivas que pareciam juntar-se para o abater, e, procurando orientar-se no mesmo instante, apesar da noite que já vinha chegando rapidamente reuniu todo o seu ânimo, e voltou para Angers por um atalho que ele conhecia desde a sua mocidade.

Dali a duas horas e meia chegava ele às portas da cidade, morrendo de sede, de calor e de cansaço; porém a exaltação do pensamento tinha ministrado forças ao corpo, sendo agora como sempre o mesmo homem teimoso e violento.

Demais, tinha-Lhe ocorrido outra ideia que lhe dava alguma esperança: havia de interrogar a sentinela, ou todas as sentinelas mesmo, se preciso fosse; havia de ir perguntar de porta a porta; havia de saber por qual das barreiras tinha entrado um homem com dois cavalos; havia de despejar a bolsa, havia de prometer montes de ouro, e acabaria por saber os sinais do tal homem.

E então, fosse quem fosse, ou mais cedo ou mais tarde, havia de exigir dele o pagamento daquela dívida.

Interrogou a sentinela; porém o soldado acabava de ser ali colocado naquele instante, e nada sabia; entrou no corpo da guarda e procurou informar-se.

O miliciano que havia sido rendido vira passar, haveria duas horas, pouco mais ou menos, um cavalo sem cavaleiro, que por si mesmo tinha tomado o caminho do palácio.

Pensara então que teria sucedido algum desastre ao cavaleiro, e que o cavalo, levado do seu instinto, teria voltado só para casa.

Monsoreau bateu um murro na testa; estava visto que não Lhe era possível saber o que pretendia.

Encaminhou-se então, ele também, para o paço do duque.

Ali havia grande folgança, muito tumulto e alegria; as janelas resplandeciam como outros tantos sóis, e as cozinhas brilhavam como fornos abrasados, deitando pela fresta aromas de veação e de molhos capazes de fazer esquecer ao estômago que era vizinho do coração.

Porém as grades estavam fechadas, e essa circunstância apresentava-lhe uma nova dificuldade: era preciso conseguir que as abrissem.

Monsoreau chamou pelo guarda-portão e disse o seu nome; mas o guarda-portão afirmou que o não conhecia.

- O senhor saiu daqui direito e volta corcovado - disse ele.

- É efeito do cansaço.

- Tinha o rosto pálido e está agora vermelho.

- É por causa do calor.

- Saiu a cavalo e vejo-o a pé.

- O meu cavalo espantou-se, deu-me um repelão que me atirou fora, e fugiu sem mim. Não o viu por aqui?

- Ah, é verdade - replicou o mordomo.

O guarda-portão, contentíssimo por se lhe oferecer aquele meio para se eximir a qualquer responsabilidade, mandou recado ao Sr. Rémy.

O Sr. Rémy chegou, logo conheceu perfeitamente o conde de Monsoreau.

- Oh, meu Deus - disse ele -, de onde vem nesse estado?

Monsoreau repetiu a mesma história que já tinha contado ao guarda-portão.

- E com efeito - respondeu o mordomo - todos nós ficámos com muito cuidado, quando vimos voltar o cavalo sem cavaleiro; e Sua Alteza especialmente, a quem eu tinha tido a honra de prevenir da sua chegada.

- Ah, Sua Alteza mostrou estar com cuidado em mim? - perguntou Monsoreau.

- Com muito cuidado.

- E que disse ele?

- Que o conduzisse à sua presença logo que chegasse.

- Bem, apenas me demorarei o tempo necessário para ir à cavalariça ver se não sucedeu desastre ao cavalo em que fui.

E Monsoreau, dizendo isto, foi direito à cavalariça, onde viu, no mesmo lugar de onde havia sido tirado, o inteligente animal em que tinha montado, o qual estava comendo com o apetite próprio de quem tinha dado tamanha caminhada.

Depois, sem tratar de mudar de vestuário (pois Monsoreau pensava que a importância da notícia que trazia fazia esquecer a etiqueta), dirigiu-se logo para a sala de jantar.

Todos os gentis-homens do príncipe, e Sua Alteza em pessoa, reunidos em roda duma mesa magniFicamente posta e esplendidamente alumiada, estavam ocupados em dar cabo das empadas de faisões, de tiras de carne de javali assada nas grelhas, e de outras iguarias fortementt adubadas, que acompanhavam com vinho tinto de Cahors ou com o vinho branco de Anju tão pérfido e adocicado, que ataca a cabeça mesmo antes de terem desaparecido do copo os topázios que destila quando o vazam.

- A corte está completa - dizia Antraguet, rosado como uma rapariga e já bêbado como um soldado velho -; completa tal qual como a adega de Vossa Alteza.

- Não há tal, não há tal - acudiu Ribeirac -; falta-nos um monteiro-mor. É na verdade uma vergonha comermos nós o jantar de Sua Alteza e não contribuirmos para ele.

- Eu sou de voto que se nomeie um monteiro-mor - disse Livarot -; seja ele quem for mesmo o Sr. de Monsoreau.

O duque sorriu-se, só ele sabia da chegada do conde.

Apenas Livarot tinha acabado a sua frase e o príncipe o seu sorriso, abriu-se a porta, e entrou o Sr. de Monsoreau.

O duque soltou, ao avistá-lo, uma exclamação estrondosa, que ressoou no meio do silêncio geral.

- Então, aqui o têm! - disse ele. - Vejam, meus Senhores, como nos favorece o Céu pois cumpre os nossos desejos apenas os formulamos.

Monsoreau, bastante enleado por ver aquele desembaraço do príncipe, que, em casos tais não era usual em Sua Alteza, cortejou com algum constrangimento e voltou a cara para o lado deslumbrado pelas luzes como um mocho que de repente houvesse sido arrebatado da escuridão e exposto à claridade do Sol.

- Sente-se aí e ceie - disse o duque indicando ao Sr. de Monsoreau um lugar na sua frente.

- Meu Senhor - respondeu Monsoreau -, estou com muita sede, com muita fome e muito cansado; mas não quero beber, nem comer, nem sentar- me, antes de ter dado conhecimento a Vossa Alteza duma notícia da maior importância.

- Veio de Paris, não é assim?

- A toda a pressa, meu Senhor.

- Muito bem, estou ouvindo - disse o duque.

Monsoreau aproximou-se de Francisco, e, com um sorriso nos lábios e o ódio no coração disse-Lhe muito baixinho:

- Meu Senhor, Sua Majestade a Rainha-Mãe saiu de Paris e não poderá já estar muito longe daqui; vem visitar Vossa Alteza.

O duque, sobre quem todos tinham os olhos fitos, deixou o seu contentamento.

- Está bem - disse ele -; obrigado, Sr. de Monsoreau; hoje como sempre, acho no senhor um servidor fiel. Continuemos a cear, meus Senhores.

E chegou novamente para a mesa a poltrona, que tinha afastado um pouco para ouvir o Sr. de Monsoreau.

O banquete tornou a começar; o monteiro-mor, colocado entre Livarot e Ribeirac, apenas sentiu o cómodo de uma boa cadeira e viu na sua frente uma boa refeição, perdeu logo o apetite.

Era o espírito que tornava a dominar a matéria.

O espírito, seguindo o impulso de seus tristes pensamentos, voltava para a tapada de Méridor, e, fazendo outra vez a mesma digressão que o corpo já prostrado tinha empreendido, passeava por aquele caminho verdejante que ia ter ao pé do muro.

Via o cavalo a relinchar, via o muro derrocado e as sombras dos dois amantes a fugir; ouvia o grito de Diana, grito que Lhe retumbara no íntimo da alma.

Tornando-se então indiferente àquele ruído, à luz, ao banquete mesmo, e esquecido do sítio onde estava e de quem tinha diante de si, entregava-se inteiramente às suas reflexões, tornando-se pouco a pouco mais sorumbático, e soltando um gemido surdo que atraiu a atenção dos convivas admirados.

- Está caindo de cansaço, Senhor Monteiro- Mor - disse o príncipe -; na realidade faria bem se se fosse deitar.

- É verdade - disse Livarot -, o conselho que Lhe dá Sua Alteza é bom, e, se o não tomar, arrisca-se a dormir dentro do seu prato.

- Peço perdão a Vossa Alteza - disse Monsoreau erguendo a cabeça estou com efeito cansadíssimo.

- Embriague-se, conde - disse Antraguet -, é o melhor remédio para quem está moído.

- E além disso - murmurou Monsoreau -, a embriaguez traz consigo o esquecimento.

- Ora adeus - disse Livarot -, assim não é possível; vejam, meus Senhores, ainda tem o copo cheio!

- À sua saúde, conde - exclamou Ribeirac levantando o copo ao ar. Monsoreau viu-se obrigado a corresponder ao gentil-homem e despejou o copo duma vez.

- E contudo bebe muito bem, vê, meu Senhor? - disse Antraguet.

- É exacto - replicou o príncipe, procurando ler no coração do conde -, bebe admiravelmente.

- Entretanto, sempre havemos de exigir que nos arranje uma bonita montaria, conde - disse Ribeirac -, visto conhecer estes sítios.

- Tem por aqui próximo trens de caça e bosques - disse Livarot. - E mesmo uma esposa - acrescentou Antraguet.

- Exactamente - repetiu maquinalmente o conde -, exactamente: trens de caça, bosques, e a Sr. de Monsoreau.

- Proporcione-nos ocasião de montearmos um javali, conde - disse o príncipe.

- Farei a diligência, meu Senhor.

- Farei a diligência! - disse um dos fidalgos angevinos - não está má resposta; pois digo-Lhe que há abundância de javalis no bosque! Aposto que se for para o sítio da mata velha sou capaz de desencovar dez em menos de cinco minutos.

Monsoreau descorou sem querer; a mata velha era exactamente aquela parte do bosque onde Rolando o tinha levado.

- Ah, sim, sim! Amanhã, amanhã! - gritaram os fidalgos em coro.

- Quer que seja amanhã, Monsoreau? - perguntou o duque.

- Eu estou sempre às ordens de Vossa Alteza - respondeu Monsoreau -, mas entretanto direi a Vossa Alteza que me acho tão cansado, conforme ainda há pouco se dignou observar, que mal poderei dirigir uma montaria amanhã. E demais, preciso examinar estas cercanias e saber o estado em que estão os bosques.

- E além disso tudo, também é necessário dar-Lhe tempo para ir ver a mulher - disse o duque com uma tal candura, que acabou de convencer o pobre marido de que o príncipe era seu rival.

- Concedido! Concedido! - bradaram os mancebos alegremente. - Damos vinte e quatro horas ao Sr. de Monsoreau para passar revista às suas fazendas.

- Sim, meus Senhores, dêem-mas - disse o conde -, que eu Lhes prometo que não as hei- de empregar mal.

- Agora, monteiro-mor - disse o duque -, dou-Lhe licença para se ir deitar. Vão acom panhar o Sr. de Monsoreau ao seu quarto.

O Sr. de Monsoreau cortejou e saiu, aliviado do grande peso que lhe impunha o constrangimento em que estava.

As pessoas que têm algum pesar gostam da solidão mais ainda do que os amantes felizes.

 

         COMO FOI QUE O REI HENRIQUE III TEVE NOTÍCIA DA FUGA DE SEU IRMÃO MUITO QUERIDO O DUQUE DE ANJU, E O QUE SE SEGUIU A ISSO

Logo que o monteiro-mor saiu da sala de jantar, continuou o banquete com mais alegria e liberdade.

O semblante sombrio de Monsoreau não contribuíra pouco para esfriar a jovialidade dos jovens cavaleiros, pois apesar do pretexto do cansaço tinham notado aquela contínua preocupação de ideias lúgubres que imprimia na fronte do conde uma nódoa de tristeza mortal, a qual formava o carácter particular da sua fisionomia.

Assim que ele saiu, o príncipe, sempre conscrangido na sua presença, tornou ao seu modo sereno.

- Vamos lá, Livarot - disse o duque -, quando entrou o nosso monteiro-mor, tinhas tu começado a contar como foi a tua fuga de Paris. Prossegue.

E Livarot continuou.

Porém, como a nossa qualidade de historiador nos habilita a sabermos melhor do que O próprio Livarot tudo quanto se havia passado, substituiremos a nossa narração à do mancebo;

Será talvez a nossa descrição menos pitoresca, mas muito mais exacta por certo, pois sabemos aquilo de que Livarot não podia ter conhecimento, que eram os acontecimentos ocorridos no Louvre.

Pelo meio da noite, Henrique III acordou com uma bulha desusada que ressoava pelo palácio, onde depois de recolhido o rei, costumava reinar sempre o maior silêncio.

Eram pragas, pancadas com alabardas pelas paredes, corridas pelas galerias imprecações capazes de fazer tremer a terra, e de envolta com a bulha, com os encontrões e blasfémias, as palavras seguintes repetidas por milhares de ecos:

- Que dirá el-rei? Que dirá el- rei?

Henrique sentou-se na cama e olhou para Chicot, o qual, depois de ter ceado com Sua Majestade, tinha adormecido numa poltrona, com as pernas enroscadas à roda da durindana.

O rumor ia sempre em aumento.

Henrique, todo ele luzidío de banha, saltou fora da cama, gritando:

- Chicot! Chicot!

Chicot abriu um olho só; era um rapaz muito prudente, dava muito apreço ao sono, e nunca acordava de todo à primeira voz.

- Ah, fizeste mal em me despertar, Henrique - disse ele. - Estava sonhando que tinha um filho.

- Escuta! - disse Henrique. - Escuta!

- Que queres tu que eu escute? Parece-me que bem bastam as parvoíces que te ouço dizer durante o dia, e que te poderias dispensar de me chamar de noite para continuares pelo mesmo gosto.

- Mas então não ouves! - disse o rei estendendo a mão na direcção da bulha.

- Oh, oh! - exclamou Chicot. - Com efeito, ouço gritos.

- E que dirá el-rei? Que dirá el-rei? - repetiu Henrique. - Ouves agora?

- De duas uma: ou o teu lebréu Narciso está doente, ou os huguenotes estão tirando a sua desforra e fazendo um S. Bartolomeu de católicos.

- Ajuda-me a vestir, Chicot.

- Com todo o gosto; mas ajuda-me tu primeiro a levantar-me daqui, Henrique.

- Que desgraça, que desgraça! - repetiam todos pelas antessalas.

- Cos demónios! o caso sempre é sério - disse Chicot.

- Seria bom que nos armássemos - disse o rei.

- Seria muito melhor - replicou Chicot - que saíssemos quanto antes pela portinha particular, para vermos e observarmos da natureza da desgraça, em vez de esperarmos que no-la venham contar.

Henrique, segundo o conselho de Chicot, saiu logo pela porta particular, e achou-se no corredor que ia ter aos quartos do duque de Anju.

Encontrou ali toda a gente de braços levantados para o Céu, e ouviu exclamações do maior desespero.

- Oh. oh! - disse Chicot. - Já adivinho o que é: o teu infeliz cativo enforcou-se na prisão. Com a breca, Henrique! Dou-te os parabéns: és maior político do que eu pensava.

- Não. desgraçado! - exclamou Henrique. - Não pode ser isso!

- Pois sinto muito - respondeu Chicot.

- Anda, anda comigo!

E Henrique entrou com o gascão no quarto do duque.

A janela estava aberta e cheia duma multidão de curiosos que se apinhavam uns por cima dos outros para contemplarem a escada de corda pendurada das grades de ferro da sacada.

Henrique tornou-se pálido como um defunto.

- Ah, ah, meu filho - disse Chicot -, não tens ainda as sensações tão gastas como eu julgava.

- Fugiu! Fugiu! - bradou Henrique com um metal de voz tão retumbante, que os fidalgos todos se voltaram para trás.

Os olhos do rei pareciam despedir raios; e apertava com um movimento convulso o punho da adaga.

Schomberg arrepelava-se; Quélus batia socos na cara; e Maugiron marrava com a cabeça de encontro à parede como um carneiro.

Quanto a d'Épernon, esse tinha desaparecido com o especioso pretexto de ir no alcance do Senhor Duque de Anju.

À vista dos tratos que os validos estavam infligindo a si próprios acalmou subitamente a cólera do rei.

- Olá, devagarinho, meu filho - disse ele agarrando Maugiron pela cintura.

- Não, por Deus! Quero rebentar, e que o diabo me leve! - respondeu o mancebo recuando para dar mais força às marradas.

- Acudam aqui! - bradou Henrique - ajudem- me a segurá-lo!

- Ó compadre - disse Chicot -, pode matar- se suavemente: enfie simplesmente a espada pela barriga.

- Cala-te aí, carrasco! - disse Henrique com os olhos arrasados de lágrimas. Quélus, durante este tempo, continuava a bater nas faces.

- Oh, Quélus, meu menino - exclamou Henrique -, olha que ficas com a cara azul como Schomberg quando Lhe deram o banho de anil; ninguém poderá olhar para ti, meu amigo...

Quélus sossegou.

Schomberg porém ainda continuava a arrancar mãos cheias de cabelos e chorava de raiva.

- Schomberg! Schomberg, meu queridinho - gritou Henrique -, peço-te que tenhas juízo.

- Ah, que eu endoideço!

- Histórias! - disse Chicot.

- O caso é - disse Henrique - que foi uma grande desgraça, e eis o motivo por que muito convém que conserves o teu juízo, Schomberg. Sim, é uma grande desgraça! Estou perdido! Aí está a guerra civil ateada no meu reino!... Quem seria que fez esta boa obra? Quem ministrou a escada? Por Deus, hei-de mandar enforcar toda a cidade!

Um terror profundo se apoderou dos circunstantes.

- Quem é o criminoso? - prosseguiu Henrique. - Onde está o criminoso? Dou dez mil escudos a quem me disser o seu nome, e cem mil a quem me entregar morto ou vivo.

- Quem quer Vóssa Majestade que seja - exclamou Maugiron - senão algum angevino...

- Por minha fé, que dizes bem - exclamou Henrique. - Ah, os Angevinos, por Deus!

Os Angevinos hão-de pagar-mo!

E como se esta palavra fosse uma faísca que houvesse pegado fogo a um rastilho de pólvora uma explosão terrível de gritos e ameaças ressoou de todos os lados contra os Angevinos.

- Oh, sim, os Angevinos! - gritou Quélus.

- Onde estão eles? - berrou Schomberg.

- É preciso aniquilá-los! - vociferou Maugiron.

- Aprontem-me já cem forcas para um cento de angevinos! - replicou o rei.

Chicot não podia permanecer calado no meio do furor geral; desembainhou pois a comprida espada com gestos de mata-mouros, e esgrimindo-a para a direita e para a esquerda começou a dar pranchadas nos favoritos e a escalavrar as paredes, repetindo com olhar colérico furibundo:

- Oh! com todos os diabos! Maldição! Morram os Angevinos! Morram!

Este grito: Morram os Angevinos! foi ouvido por toda a cidade de Paris, assim como O grito das mães israelitas Foi ouvido por toda a cidade de Roma.

Henrique, entretanto, havia desaparecido.

Tinha-se lembrado da mãe, e, saindo do quarto sem dizer palavra, fora ter com Catarina de quem ele Fazia pouco caso havia algum tempo, e a qual, entregue à sua indolência aparente e à sua devoção afectada, esperava, com a penetração de italiana, uma ocasião que lhe desse

a preponderância que ambicionava.

Quando Henrique entrou, estava ela reclinada, em atitude pensativa, numa grande cadeira de braços, e parecia mais uma estátua de cera figurando a Meditação, do que um ente animado.

Porém, ao ouvir a notícia da fuga de Francisco, a estátua pareceu acordar de repente, se bem que o gesto que deu a conhecer que tinha acordado Foi simplesmente o de se enterrar ainda mais na cadeira abanando ao mesmo tempo a cabeça sem dizer palavra.

- Então, minha mãe?... - disse Henrique. - Não solta uma única exclamação?

- Para quê, meu filho? - perguntou Catarina.

- Pois então esta fuga de seu filho não Lhe parece criminosa, perigosa, e merecedora dos maiores castigos?

- Meu querido filho, a liberdade vale tanto como uma coroa, e lembre-se de que também eu já o aconselhei um dia a que fugisse para ser rei.

- Minha mãe, isto foi um ultraje!

Catarina encolheu os ombros.

- Minha mãe isto foi uma afronta!

- Não - replicou Catarina foi uma fuga, e nada mais.

- Ah - disse Henrique -, é assim que toma o meu partido?.

- Que quer dizer com isso, meu filho?

- Digo que a idade faz embotar os sentimentos, digo...

Deteve-se.

- Que diz? - replicou Catarina com a usual placidez.

- Digo que já não me tem a mesma amizade que me tinha antigamente.

- Está enganado - respondeu Catarina com frieza. - É o meu filho muito querido Henrique. Mas esse de quem se queixa também é meu filho.

- Ah, basta de moral maternal, minha Senhora - disse Henrique com furor -; já sabemos o valor que isso tem.

do que ninguém, meu filho, porque, para com o senhor, a minha moral tem sido sempre a fraqueza.

- E como lhe chegaram os remorsos, está arrependida.

- Eu já previa que este havia de ser o resultado da nossa conversa, meu filho – disse Catarina. - Eis o motivo por que estava calada.

- Adeus, minha Senhora, adeus - disse Henrique -; bem sei o que hei-de fazer, visto que minha mãe não se compadece de mim; hei-de encontrar conselheiros capazes de me auxiliarem no meu ressentimento e de me esclarecerem nesta conjuntura.

- Vá, meu filho - replicou serenamente a florentina -, e possa o espírito de Deus inspirar esses tais conselheiros para que o tirem da posição difícil em que se encontra.

E deixou-o retirar-se sem fazer um gesto, sem dizer uma única palavra para o deter.

- Adeus, minha Senhora - repetiu Henrique.

Porém, quando chegou ao pé da porta, parou.

- Adeus, Henrique - disse a rainha -; dir-lhe-ei, todavia, ainda uma palavra; não pretendo dar-lhe conselhos, meu filho; bem sei que não carece deles; mas recomende aos seus conselheiros que pensem bem antes de emitirem o seu parecer, e que pensem ainda melhor antes de Lhe darem execução.

- Oh, sim! - disse Henrique, agarrando-se a esta palavra da mãe e aproveitando-a para voltar atrás. - Porque a situação é muito intrincada, não é assim, minha Senhora?

- Muito grave! - disse vagarosamente Catarina erguendo os olhos e as mãos para o Céu.

- Muitíssimo grave, Henrique!

O rei, impressionado por aquela expressão de terror que julgava divisar nos olhos da mãe - aproximou-se mais dela.

- Diga-me, minha mãe, não desconfia quem seria que o tirou do meu poder?

Catarina não respondeu.

- Eu - disse Henrique - estou persuadido de que foram os Angevinos.

Catarina sorriu-se com aquela finura que mostrava sempre nela um espírito superior procurando vencer e confundir o espírito de outrem.

- Os Angevinos? - repetiu ela.

- Não acredita que fossem eles - disse Henrique -; e contudo, todos assim o julgam.

Catarina tornou a encolher os ombros.

- Que os outros julguem isso, não me admira - retorquiu ela - mas o meu filho!.

- O quê, minha Senhora? Que pretende dizer? Rogo-lhe que se explique.

- De que serve eu entrar em explicações?

- As suas explicações esclarecer-me-ão.

- Esclarecê-lo-ão!. Ora vamos, Henrique, eu sou uma pobre velha já tonta; a minha única influência está no meu arrependimento e nas minhas orações.

- Não, fale, fale, minha mãe, que eu estou ouvindo. Oh, ainda é, e há-de ser sempre, alma de todos nós; fale, fale.

- escusado, eu só tenho ideias do século passado, e todo o juízo da gente velha encerra-se na desconfiança. Pois a velha Catarina poderia dar nesta idade um conselho que prestasse para alguma coisa? Deixe-se disso, meu Filho; é impossível.

- Pois bem, minha mãe, faça o que quiser - disse Henrique -; persista na sua teima, recuse-me o seu auxílio, prive-me dos seus conselhos. Mas daqui a uma hora, quer lhe pareça bem ou mal, e então hei-de saber o que pensa a esse respeito, estarão enforcados todos os angevinos existentes em Paris.

- EnForcados todos os angevinos? - exclamou Catarina com a admiração que se apodera dos espíritos superiores quando ouvem algum disparate.

- Sim, sim, enforcados, massacrados, assassinados e queimados; a estas horas já os meus amigos andam correndo pelas ruas da cidade para quebrarem os ossos àqueles malditos, àìqueles facinorosos àqueles rebeldes!.

- Não façam tal, desgraçados! - exclamou Catarina aterrada pela gravidade da situação;

- perder-se-ão a si próprios, e isso pouco importaria; mas iriam deitá-lo também a perder, meu filho!

- Como assim?

- Que cegueira!. - murmurou Catarina. - Pois nunca os olhos dos reis lhes hão-de servir para verem?. E juntou as mãos.

- Os reis somente se mostram tais quando sabem vingar as injúrias que lhes fazem, e então praticam um acto de justiça e neste caso especialmente, todo o meu reino se levantará como um só homem para me defender.

- Louco! Insensato! Criança! - murmurou a florentina.

- Mas porquê! Como!

- Julga que será possível queimar ou enforcar homens como Bussy, Antraguet, Livarot e Ribeirac, sem derramar rios de sangue?.

- Que me importa isso! O caso é que os matem.

- Sim, por certo, se os matarem; veja-os eu mortos, e, por Nossa Senhora! dir-lhe-ei que fez bem. Mas não os há-de matar; hão-de unicamente obrigá-los a erguerem o estandarte da lião; fá-los-ão empunhar a espada que eles nunca se teriam lembrado de desembainhar a favor dum amo como Francisco; assim, pois, a sua imprudência fá-los-á sair a campo para

defenderem as vidas, e o reino levantar-se-á em massa não pelo rei, mas contra o rei.

- Mas se eu não me vingar, hão-de pensar que tenho medo, que recuo. - exclamou

Já alguém porventura disse que eu tenho medo?. - replicou Catarina carregando as sobrancelhas e mordendo os beiços delgados e tintos com carmim.

- Contudo, se fossem os Angevinos, sempre seria preciso castigá- los, minha mãe.

- Sim, se fossem eles; mas não foram.

- Quem poderia ser senão os amigos de meu querido irmão?

- Não foram os amigos de seu irmão, porque seu irmão não tem amigos.

- Porém, quem foi então?

- Foram os seus inimigos, ou, para melhor dizer, o seu inimigo.

- Qual inimigo?

- O meu filho bem sabe que nunca teve senão um inimigo, como seu irmão Carlos, e eu mesma nunca tive senão um único também; sempre o mesmo, sem descansar.

- É a Henrique de Navarra que se refere?

- Pois a quem há-de ser senão a Henrique de Navarra?.

- Ele não está em Paris!

- E sabe acaso quem está em Paris, ou quem não está? Sabe o que por aí se pensa? Tem olhos ou ouvidos? Está porventura cercado de gente que veja ou que ouça? Não, por certo: são todos cegos e surdos.

- Henrique de Navarra!. - repetiu o rei.

- Meu filho, sempre que se lhe malograr alguma empresa, que lhe suceder alguma desgraça ou uma catástrofe qualquer, da qual ignore o autor, não procure, não hesite, não indague; é trabalho baldado. Exclame logo: Foi Henrique! Foi Henrique de Navarra! e terá a certeza de haver atinado com a verdade. Descarregue o golpe na direcção em que ele se achar, e creia que terá castigado o réu. Oh, aquele homem, aquele homem!. É a espada que Deus em Sua ira suspendeu por cima da casa de Valois.

- É pois de parecer que dê contra-ordem a respeito dos Angevinos?

- No mesmo instante! - gritou Catarina. - Sem perda dum minuto, dum segundo, sequer! Apresse-se, e talvez já seja tarde; vá quanto antes; revogue essas ordens; vá, quando não, está perdido!

E agarrando no braço do Filho, empurrou-o para a porta com uma força e uma energia incríveis.

Henrique saiu logo do Louvre para procurar reunir os seus amigos.

Porém só encontrou Chicot, sentado numa pedra e desenhando figuras geográficas na areia.

 

         COMO SUCEDEU QUE SENDO O PARECER DE CHICOT CONFORME COM O DA RAINHA-MÃE, O REI SEGUIU O PARECER DA RAINHA-MÃE E DE CHICOT

Henrique afirmou-se primeiro se era na realidade o gascão, o qual, não menos atento do que Arquimedes, parecia resolvido a não voltar a cara, ainda mesmo que Paris fosse tomado de assalto.

- Ah, desgraçado - exclamou ele com voz de trovão - é assim que defendes o teu rei!

- Defendo-o a meu modo, e parece-me que é o melhor meio que tenho.

- O melhor? - exclamou o rei. - O melhor, meu grande mandrião?

- Sustento o que disse, e hei-de prová-lo.

- Sempre quisera ver essa prova.

- É coisa fácil: em primeiro lugar, fizemos uma grande asneira.

- Em quê?

- Em dar as ordens que demos.

- Ah, ah! - disse Henrique, admirado da correlação que havia entre aqueles dois espíritos eminentemente subtis, e que decerto não se tinham combinado para chegarem ao mesmo resultado.

- Sim - respondeu Chicot -, tens amigos a gritarem: Morram os Angevinos! ", e agora, depois de haver reflectido, não vejo prova alguma de que fossem os Angevinos que nos prepararam a peça; tens amigos, digo, a gritarem pela cidade: Morram os Angevinos! e estão-nos arranjando simplesmente a tal guerra civil que os Srs. de Guisa não conseguiram atear, e de que tanto carecem; e sabes que mais? A estas horas, Henrique, ou os teus amigos já têm sido mortos, o que a mim na verdade não me desagradaria, mas muito te havia de afligir a ti, ou expulsaram os angevinos da cidade, o que muito te desagradaria a ti, mas havia de dar por certo muito gosto ao nosso querido duque de Anju.

- Pensas pois - exclamou o rei - que as coisas já terão chegado a esse ponto?

- Se não tiverem ido além.

- Mas tudo isso não me explica o que tu estás fazendo sentado nessa pedra!

- Estou concluindo um trabalho muito urgente, meu filho.

- Qual é?

- Estou desenhando a conFiguração das províncias que teu irmão vai sublevar contra nós, calculando o número de homens com que poderá contribuir cada uma delas para a revolução.

- Chicot! Chicot! - exclamou o rei. - Visto isso, já não tenho de roda de mim senão aves de mau agoiro!

- O mocho pia durante a noite, meu Filho - respondeu Chicot -, porque é a hora própria. O tempo está carregado. Henriquinho, tão carregado, na realidade, que não é admiração julgar que o dia é noite, e estou piando coisas que tu deves ouvir. Vê!

- O quê?

- Olha para o meu mapa geográfico, e vê se digo bem. Aqui está em primeiro lugar o Anju, que tem suas semelhanças com um pastelinho; percebes? É, para ali que fugiu teu irmão, e por isso lhe dei a primazia! O Anju bem manejado e bem dirigido, como hão-de manejá-lo e dirigi-lo o teu monteiro- mor Monsoreau e o teu amigo Bussy, o Anju, só por si, pode fornecer-nos. quando digo nos, é a teu irmão que me refiro. o Anju pode fornecer a teu irmão

dez mil combatentes.

- Pensas isso?

- É o mínimo; passemos agora à Guiena, não é assim? Aqui a tens: é esta figura que se parece com uma vitela andando num pé só. Ah, não deverá causar-te admiração se encontrares aqui na Guiena alguns descontentes, é um antigo foco de revolta, e ainda não há muito tempo que de lá saíram os Ingleses. A Guiena estimaria por conseguinte que se lhe ofereça uma ocasião de se sublevar, não contra ti, mas contra a França. Podemos contar que a Guiena contribuirá com oito mil soldados. É pouco, mas podes estar descansado que hão-de ser bem aguerridos e experimentados. Depois, à esquerda da Guiena, temos o Béarn e a Navarra. Vês? São estas duas divisões que figuram um macaco a cavalo num elefante. Não há dúvida que a Navarra tem sido muito cerceada, mas reunida com o Béarn, ainda terá uma população de trezentos ou quatrocentos mil homens. Supõe tu que o Bearn e a Navarra, bem espremidos pelo teu cunhado Henriquinho, subministrem à Liga cinco por cento da sua população, são dezasseis mil homens. Recapitulemos pois: dez mil pelo Anju. (E Chicot continuou a traçar figuras e algarismos sobre a areia com uma varinha que tinha na mão):

Anju... 10000 Oito mil pela Guiena. 8 000 Dezasseis mil pelo Béarn e Navarra. 16000

Total..... 34 000

- Julgas pois - disse Henrique - que o rei de Navarra se ligará com meu irmão?

- Que dúvida!

- Então estás persuadido de que ele contribuiu para a sua fuga? Chicot olhou atentamente para Henrique.

- Henriquinho - disse ele -, essa ideia não é tua.

- Porquê?

- Porque é muito atilada, meu filho.

- Pouco importa de quem ela seja; estou- te interrogando, responde-me. Julgas que Henrique de Navarra contribuiu para a fuga de meu irmão?

- Vi há dias para a banda da Rua da Ferraria um vulto que se parecia muito com ele pelas costas.

- Viste um vulto parecido com ele? - exclamou o rei.

- É verdade! - respondeu Chicot. - E nunca mais me lembrei de tal senão agora.

- Visto isso, ele estava em Paris?

- Penso que sim.

- E porque pensas tu que sim?

- Porque depois o vi com os meus olhos.

- Tu viste Henrique de Navarra?

- Vi.

- E não vieste logo dizer-me que o meu inimigo tinha vindo bigodear-me no centro da minha capital?

- Ou se é cavaleiro ou não se é - replicou Chicot.

- E depois?

- Depois? Quando se é cavaleiro não se é espião, mais nada.

Henrique Ficou pensativo.

- Ora pois - disse ele -, tenho contra mim o Anju e o Béarn, meu irmão Francisco, e meu primo Henrique.

- Sem contar com os três Guisas, bem entendido.

- Pois quê? Pensas que se unirão a eles?

- Temos por uma parte trinta e quatro mil homens - disse Chicot contando com os dedos -, dez mil pelo Anju, oito mil pela Guiena, dezasseis mil pelo Béarn, e mais vinte ou vinte e cinco mil debaixo das ordens do Sr. de Guisa, como tenente-coronel dos teus exércitos: ao todo, cinquenta e nove mil homens; reduzamo-los a cinquenta mil, por causa das gotas, dos reumatismos, das dores ciáticas e outras doenças. Ainda te fica, como vês, meu filho, uma bonita soma total.

- Porém Henrique de Navarra e o duque de Guisa são inimigos um do outro.

- Isso não obstará a que se liguem contra ti, pois sempre lhes fica o direito salvo a exterminarem-se um ao outro depois que te houverem exterminado a ti.

- Tens razão, Chicot; minha mãe também tem razão; têm razão ambos; é preciso que tratemos de evicar alguma estralada; ajuda-me a fazer reunir os suíços.

- Ah, sim, fazes bem em querer reunir os suíços! Levou-os Quélus consigo.

- As minhas guardas, então.

- Foram com Schomberg.

- Mas pelo menos os meus criados particulares.

- Abalaram com Maugiron.

- Como? - exclamou Henrique. - Sem minha ordem?

- E desde quando dás tu ordens, Henrique? se se tratasse de procissões ou de flagelações, ainda poderia ser: deixam-te pleno poder para martirizares a tua pele ou a pele dos mais. Mas quando se trata de guerra ou de governo, muda o caso de figura; o negócio então é com o Sr de Schomberg, com o Sr. de Quélus, ou com o Sr. de Maugiron; quanto ao Sr. d'pernon, desse nada digo, pois é sabido que logo se esconde.

- Por Deus! - exclamou Henrique. - Pois assim desacatam a minha autoridade?

- Dá-me licença que te diga, meu filho - replicou Chicot, - que sempre tardaste muito em conhecer que és apenas o sétimo ou oitavo rei do teu reino.

Henrique mordeu os beiços e bateu o pé no chão.

- Olá. - disse Chicot, procurando distinguir alguma coisa no meio da escuridão.

- Que é? - perguntou o rei.

- Cos demónios! São eles; olha, Henrique, acolá tens os teus homens. E mostrou efectivamente ao rei três ou quatro cavaleiros que vinham correndo na direcção em que eles estavam, seguidos a alguma distância por uns poucos de homens a cavalo e muita gente a pé.

- Schomberg! - gritou o rei. - Schomberg, anda aqui!

- Quem me chama? - disse Schomberg.

- Anda cá, meu filho, anda cá.

Schomberg julgou conhecer a voz, e aproximou-se.

- Ah! - disse ele. - Parece-me que é o rei...

- Eu mesmo, que andava em tua procura, e não sabendo onde poderia encontrar-te, estava esperando com impaciência que voltasses. Que fizeste?

- Que fizemos? - disse um segundo cavaleiro chegando-se ao sítio onde estava o rei.

- Ah, vem cá Quélus; vem cá também - disse o rei -, e não tornes a sair assim sem minha licença.

- Já não é preciso tornarmos a sair - disse um terceiro, que o rei logo conheceu ser Maugiron -, pois está tudo acabado.

- Está tudo acabado? - repetiu o rei.

- Louvado seja Deus! - disse d'Épernon, que apareceu de repente sem que ninguém soubesse donde tinha saído.

- Hosana! - gritou Chicot levantando ambas as mãos para o Céu.

- Então mataram-nos a todos? - perguntou o rei.

E acrescentou a meia voz:

- Afinal de contas, os mortos não ressuscitam.

- Mataram-nos? - perguntou Chicot. - Ah, se efectivamente os mataram, nada há que dizer.

- Não tivemos esse incómodo - respondeu Schomberg -: os cobardes fugiram como um bando de pombos, apenas pudemos cruzar a espada com um deles.

Henrique empalideceu.

- E com qual deles foi que pudeste cruzar a espada?

- Com Antraguet.

- Mas esse, ao menos, ficou estendido...

- Bem pelo contrário, matou um lacaio de Quélus.

- Visto isso, eles estavam prevenidos... - perguntou o rei.

- Que dúvida! - exclamou Chicot. - Haviam de estar prevenidos necessariamente!

Andaste a berrar: Morram os Angevinos! fizeste sair a artilharia, mandaste tocar os sinos

a rebate, fizeste tremer todo Paris, e queres que toda aquela honrada gente fosse ainda mais

surda do que tu és, meu asno!

- Enfim, enfim - murmurou o rei com voz surda -, aí está a guerra civil ateada.

Estas palavras fizeram estremecer Quélus.

- Cos diabos - disse ele -, é verdade!

- Ah, começas a avaliar as consequências - disse Chicot a boas horas! Aposto contudo

que os Srs. de Schomberg e de Maugiron ainda não desconfiam de tal.

- Estamos prontos - respondeu Schomberg - a defender a pessoa e a coroa de Sua

Majestade.

- Oh, para isso - disse Chicot - temos nós o Sr. de Clisson, que não faz bulha como

o senhor e que vale muito mais.

- Mas enfim - acudiu Quélus -, o Sr. Chicot, que nos está repreendendo com tanta

acrimónia, pensava como nós ainda não há duas horas, ou, se não pensava como nós, gritava

contudo da mesma forma...

- Eu? - disse Chicot.

- Decerto, e até acutilou as paredes gritando: Morram os Angevinos!

- O que eu faço - disse Chicot - não se deve imitar; todos sabem que sou um louco;

mas os senhores, que são homens de juízo...

- Vamos, Senhores - interrompeu Henrique -, nada de altercações; não tardará que tenham com quem guerrear.

- Que determina Vossa Majestade? - perguntou Quélus.

- Que empregues, em acalmar o povo, o mesmo zelo que desenvolveste para o alvorotar; que mandes voltar para o Louvre os suíços, as minhas guardas e os meus criados e que se fechem as portas, para que os burgueses se persuadam amanhã de que as ocorrências desta noite foram apenas o resultado duma rixa de gente embriagada.

Os jovens fidalgos afastaram-se cabisbaixos, transmitindo as ordens do rei aos oficiais que os tinham acompanhado na sua excursão.

Quanto a Henrique, esse voltou para a câmara da mãe, que encontrou ansiosa e sorumbática, e ocupada em dar ordens aos seus criados.

- Então - disse ela -, que sucedeu?

- Sucedeu exactamente o que tinha previsto, minha mãe.

- Fugiram?

- Assim é infelizmente.

- Ah! - disse ela. - E depois?

- Mais nada; parece-me que isto já não é pouco.

- E a cidade?

- A cidade está alvoroçada, mas não é a cidade que me dá cuidado; tenho-a na mão.

- Sim - replicou Catarina -, são as províncias.

- Que vão sublevar-se - prosseguiu Henrique.

- Que tenciona fazer?

- Não vejo senão um meio.

- Qual é?

- O de arrostar abercamente com a situação.

- Por que forma?

- Chamo os meus coronéis, reúno as minhas guardas, mando armar as milícias, recolho o exército que está sitiando La Charité, e ponho-me em marcha para o Anju.

- E o Sr. de Guisa?

- O Sr. de Guisa, o Sr. de Guisa!... Mandá-lo-ei prender, se for preciso!

- Ah, sim... as medidas de rigor hão-de servir de muito...

- Que hei-de fazer, então?

Catarina inclinou a cabeça sobre o peito e reflectiu um instante.

- Todos esses projectos são impossíveis, meu filho - disse ela.

- Ah! - murmurou Henrique profundamente despeitado. - Não tenho hoje senão péssimas inspirações.

- Não é isso, está perturbado; deixe serenar o seu espírito e depois veremos.

- Pois então, minha mãe, subministre-me as ideias que me faltam; façamos alguma coisa, dêmos sinal de vida.

- O meu filho bem viu que eu estava dando ordens.

- Para quê?

- Para a partida dum embaixador.

- E a quem o enviamos?

- A seu irmão.

- Um embaixador àquele traidor? Quer humilhar-me, minha mãe.

- Não é esta a ocasião para ostentar altivez - disse Catarina com severidade.

- E o embaixador é para pedir paz?

- Para a comprar mesmo, se necessário for.

- Com que sacrifícios, meu Deus?...

- Não serão mal empregados, meu filho - retorquiu a florentina - se se ficar habilitado a mandar enforcar com toda a segurança, depois de ter feito a paz, esses indivíduos que daqui fugiram para o guerrear. Não disse ainda agora que muito desejava tê-los em seu poder?

- Oh, para o conseguir, era capaz de dar quatro províncias do meu reino! Uma por cada homem.

- Pois bem: quem quer os fins quer os meios - replicou Catarina com uma voz tão penetrante, que foi avivar no fundo do coração de Henrique o ódio e a vingança.

- Parece-me que tem razão, minha mãe; mas, quem mandaremos nós ter com eles?

- Procure entre todos os seus amigos.

- Minha mãe, por mais que procure, não encontro um único homem a quem possa encarregar de semelhante missão.

- Encarregue dela uma mulher, nesse caso.

- Uma mulher, minha mãe? Pois consentiria.

- Meu filho, estou muito velha, muito cansada, pode ser que a morte esteja esperando por mim à volta, mas assim mesmo hei-de fazer a jornada com tanta rapidez, que hei-de chegar a Angers antes que os amigos de seu irmão, e seu irmão mesmo, tenham tido tempo de conhecer o seu poder.

- Oh, minha mãe, minha boa mãe! - bradou Henrique beijando as mãos de Catarina com efusão. - Sempre o meu sustentáculo, a minha benfeitora, a minha providência!

- Ou, por outra, sou sempre rainha de França - murmurou Catarina fitando no filho um olhar em que havia tanto dó como ternura.

 

         EM QUE SE MOSTRA COMO A GRATIDÃO ERA UMA DAS VIRTUDES DO SR. DE SAINT LUC

No dia imediato àquele em que o Sr. de Monsoreau, em consequência da sua atitude carrancuda à mesa do Senhor Duque de Anju, tinha obtido licença para se ir deitar antes do fim do banquete, levantou-se aquele fidalgo de manhã cedo e desceu ao pátio do palácio. Queria falar com o moço da cavalariça que lhe tinha aparelhado o cavalo, e alcançar dele, se fosse possível, algumas informações a respeito dos hábitos de Rolando.

O conde conseguiu o que pretendia: entrou num grande telheiro, onde quarenta cavalos estavam devorando com toda a sem- cerimónia a palha e a cevada dos Angevinos. O primeiro golpe de vista do conde foi para Rolando, que estava no seu lugar e sobressaía pelo seu apetite.

Procurou em seguida o moço da cavalariça.

Viu-o de pé, com os braços cruzados, e observando, como é costume de todo o bom criado, a maior ou menor avidez com que os cavalos do seu amo levantavam a ração.

- Olá, amigo - disse o conde -, os cavalos de Sua Alteza são porventura ensinados a voltarem sós para a cavalariça?

- Não, Senhor Conde - respondeu o criado -; por que motivo faz essa pergunta?

- Por causa do Rolando.

- Ah, sim, que voltou ontem só para casa; oh, isso não me admira em Rolando, porque é um animal muito inteligente.

- Sim - replicou Monsoreau -, conheci ontem que é com efeito muito inteligente; mas já sucedeu o mesmo alguma outra vez?

- Não senhor; quem o monta usualmente é o Senhor Duque de Anju, que é excelente cavaleiro, e não vai ao chão com facilidade.

- Rolando não me atirou ao chão, meu amigo - disse o conde, que não queria que pessoa alguma se persuadisse, nem mesmo um moço de cavalariça, que ele, monteiro-mor de França, tinha sido cuspido do cavalo -, porque eu, apesar de não ser tão bom picador como o senhor Duque de Anju, sou contudo sofrível cavaleiro. Tinha-o amarrado ao tronco duma árvore para entrar numa casa. Quando voltei já ele tinha desaparecido; julguei que teria sido roubado, ou que algum Fidalgo que por ali tivesse passado o houvesse trazido consigo para me pregar a peça; eis a razão por que lhe perguntava quem o tinha entregado aqui na cavalariça.

- Voltou sozinho, conforme o senhor mordomo teve a honra de dizer ontem ao Senhor.

É célebre! - disse Monsoreau.

Conservou-se um instante pensativo, e depois, mudando de conversa:

- Sua Alteza, dizes tu, monta com frequência neste cavalo?

- Saía nele quase todos os dias enquanto não chegou o estado.

- Sua Alteza recolheu para o paço muito tarde ontem?

- Chegou uma hora, pouco mais ou menos antes que o Senhor Conde.

- E em que cavalo vinha o duque montado? Não era um cavalo castanho- claro, calçado dos quatro pés, e com uma estrela na testa?

- Não senhor - respondeu o criado. - Sua Alteza ontem saiu no Isolino, que é este que aqui está.

- E não reparaste se na escolta do príncipe vinha algum fidalgo montado num cavalo com os sinais que acabei de te dar?

- Não tenho lembrança de ter visto cavalo algum como esse que descreve.

- Muito bem - disse Monsoreau, já impaciente pelo mau êxito das suas pesquisas. Muito bem, obrigado. Aparelha-me Rolando.

- O senhor deseja sair no Rolando?

- Desejo. O príncipe ordenou-te acaso que mo negasses?

- Não, meu Senhor, o estribeiro-mor de Sua Alteza disse-me, pelo contrário, que o gado ficava todo às suas ordens.

Não era possível enfadar-se o conde com um príncipe que se mostrava tão atencioso.

O Sr. de Monsoreau fez um aceno com a cabeça ao moço, e este começou a aparelhar o cavalo.

Logo depois de concluída esta primeira operação, tirou a cabeçada a Rolando, enfreou-o e trouxe-o ao conde.

- Ouve - disse este tirando-Lhe a rédea das mãos -, e responde- me.

- Estou pronto - disse o criado.

- Quanto ganhas cada ano?

- Vinte escudos, Senhor Conde.

- Queres ganhar de pancada dez anos do teu ordenado?

- Pudera não! - replicou o homem. - Porém como hei-de eu ganhá-los?

- Indaga quem foi que saiu ontem daqui num cavalo castanho- claro, calçado dos quatro pés e estrelado.

- Ah, Senhor Conde - replicou o moço -, não é fácil saber isso que deseja; vem aqui

tanto fidalgo visitar Sua Alteza!

- É verdade; mas duzentos escudos perfazem uma soma tão bonita, que sempre hás-de

dar por bem empregado algum incómodo que tenhas para os ganhar.

- Não há dúvida, Senhor Conde, e estou bem longe de me negar a servi-lo.

- Está bom - disse o conde -, gosto da boa vontade que mostras. Aqui tens já vinte escudos de sinal; bem vês que não hás-de perder de todo o teu tempo.

- Muito obrigado, meu fidalgo.

- Bom; dirás ao príncipe que fui reconhecer a mata para dispor a montaria que ele quer fazer.

O conde acabava apenas de proferir estas palavras, quando sentiu ranger a palha por trás de si, debaixo dos pés de alguém que entrava.

Voltou-se logo.

- O Sr. de Bussy! - exclamou o conde.

- Muito bons dias, Sr. de Monsoreau - disse Bussy. - Em Angers? Por que mil raios?

- E o senhor? Disseram-me que estava doente!

- Estou, com efeito - respondeu Bussy -, e o meu médico até me prescreveu o completo descanso, de forma que há mais de oito dias que não saio da cidade. Ah, ah, pelo que vejo, vai sair no Rolando? Vendi este cavalo ao Senhor Duque de Anju, o qual gosta tanto dele que o monta quase todos os dias.

Monsoreau tornou-se pálido.

- Sim - disse ele -, compreendo essa preferência, é um excelente cavalo.

- Não fez má escolha, atendendo a que foi logo à primeira vista - disse Bussy.

- Oh, o nosso conhecimento não data de hoje somente - replicou o conde -, já ontem o montei.

- E Foi por isso que desejou tornar a sair nele hoje?

- É verdade - respondeu o conde.

- Peço perdão - disse Bussy -, mas pareceu-me que lhe ouvi dizer que queria tratar imediatamente duma montaria.

- O príncipe deseja montear um veado.

- Tenho ouvido dizer que há grande abundância deles nestas imediações.

- Há muitos, eFectivamente.

- E para que banda tencionava desencovar o animal?

- Para a banda de Méridor.

- Ah, ah, muito bem - disse Bussy empalidecendo também involuntariamente.

- Quer acompanhar-me? - perguntou Monsoreau.

- Não, agradeço muito - respondeu Bussy - Vou deitar-me. Sinto que me vai tornando a fraqueza.

- Ora bem - exclamou à porta da cavalariça uma voz sonora -, aí está outra vez de Bussy fora da cama sem minha licença!

- Le Haudouin! - disse Bussy. - Bom, não me falta mais nada senão ouvir ralhar. Adeus, conde. Recomendo Rolando ao seu cuidado.

- Fique descansado.

Bussy saiu com o médico, e o Sr. de Monsoreau montou a cavalo e pôs-se a caminho.

- Que tem? - perguntou Le Haudouin. - Está tão pálido que eu mesmo estou quase acreditando que se sente incomodado.

- Sabes onde ele vai? - perguntou Bussy.

- Não sei.

- Vai para Méridor.

- E então, esperava que ele passasse pela porta sem tocar no ferrolho?.

- Que sucederá por lá, meu Deus, depois do que ontem ocorreu?

- A Sr. a de Monsoreau há-de negar.

- Mas ele viu.

- E ela há-de aFirmar-Lhe que tinha os olhos abotoados.

- Diana não tem resolução para tanto.

- Oh, Sr. de Bussy, pois é possível que não conheça ainda o que são mulheres?

- Rémy, sinto-me muito doente.

- Creio bem. Volte para casa. Receito-lhe para esta manhã.

- O quê?

- Uma galinha de fricassé, uma tira de presunto e um guisado de caranguejos.

- Não tenho vontade de comer.

- É mais um motivo para eu lhe receitar um almoço que Lhe desperte o apetite.

- Meu Rémy, adivinha-me o coração que aquele carrasco vai dar lugar a alguma cena em Méridor. Fiz mal em não o acompanhar, como ele me propunha.

- Para quê?

- Para defender Diana.

- Diana há-de saber defender-se sem auxílio de pessoa alguma, já Lho disse, ainda Lho repito; e como é preciso que façamos o mesmo, rogo-Lhe que venha comigo. E demais, não convém que o vejam de pé. Para que saiu apesar de eu Lhe ter proibido?

- Estava em tamanho desassossego, que não me foi possível resistir à tentação.

Rémy encolheu os ombros, levou consigo Bussy, e, depois de ter fechado as portas de casa fê-lo sentar a uma mesa abundantemente servida, enquanto que o Sr. de Monsoreau saía de Angers pela mesma porta por onde na véspera tinha saído.

Motivos ocultos levaram o conde a pedir que lhe dessem outra vez Rolando; queria certificar-se se éra por acaso, ou por hábito, que aquele animal de quem todos gabavam a inteligência o tinha levado na véspera ao pé do muro da tapada. E por isso, logo à saída do paço tinha-Lhe abandonado a rédea sobre o pescoço.

Rolando não tinha faltado ao que o seu cavaleiro esperava dele. Apenas saiu da porta, tomou à esquerda: o Sr. de Monsoreau deixou-o ir; depois à direita: e o Sr. de Monsoreau também não se opôs.

Entranharam-se portanto ambos pela linda vereda verdejante, depois entraram na mata e afinal chegaram ao bosque.

Da mesma sorte que na véspera, Rolando ia apressando o trote à medida que se aproximava de Méridor; até que afinal passou para o galope, e ao cabo de quarenta ou cinquenta minutos estava o Sr. de Monsoreau à vista do muro, exactamente no mesmo sítio da véspera.

- A única diferença era estar tudo deserto e silencioso; não ouvira relincho algum, não lhe aparecera cavalo nenhum amarrado nem solto.

O Sr. de Monsoreau apeou-se; mas desta vez, para não se arriscar a ter de voltar a pé, enfiou a rédea do Rolando no braço e começou a trepar pelo muro.

Porém estava tudo tão solitário dentro como Fora da tapada. As compridas alamedas estendiam-se a perder de vista, e apenas alguns cabritos-monteses animavam a paisagem, atravessando de espaço a espaço, aos pulos, os verdes tabuleiros de relva.

O conde verificou que era escusado perder o seu tempo a espreitar pessoas que estavam prevenidas, e que, em consequência da sua aparição da véspera, tinham interrompido provavelmente os seus encontros ali, ou tinham procurado outro lugar; tornou pois a montar, meteu-se por um caminho de atalho, e, ao fim dum quarto de hora, sopeando sempre Rolando, chegou ao portão do castelo.

O barão estava entretido em ver tratar dos cães de caça, quando o conde atravessou a ponte levadiça. Logo que avistou o genro, veio recebê-lo com todo o cerimonial.

Diana estava sentada à sombra dum magnífico sicômoro, lendo obras poéticas.

A sua Fiel aia, Gertrudes, estava bordando ao lado dela.

O conde, depois de ter cumprimentado o barão, avistou as duas mulheres. Apeou-se e aproximou-se delas.

Diana levantou-se, deu três passos ao encontro do conde, e fez- lhe uma respeitosa mesura.

Que serenidade, ou antes, que perfídia! murmurou o conde; que tempestade vou levantar no seio destas águas mortas! "

Chegou um criado; o monteiro-mor entregou-lhe a rédea do cavalo, e depois, voltando-se para Diana:

- Minha Senhora - disse ele -, conceda-me por favor um instante de atenção.

- Com todo o gosto, Senhor - respondeu Diana.

- Far-nos-á a honra de se demorar aqui no castelo, Senhor Conde? – perguntou o barão.

- Sim senhor; até amanhã pelo menos.

O barão afastou-se, para ir dar ordens precisas a fim de que o quarto do genro fòsse preparado segundo as leis da hospitalidade.

Monsoreau indicou a Diana a cadeira que ela acabava de deixar, e sentou-se.

- Minha Senhora - disse ele -, quem era que estava consigo na tapada ontem à tarde? Diana ergueu para o marido um olhar claro e límpido.

- A que horas, Senhor? - perguntou ela com uma voz que tinha conseguido tornar isenta de toda e qualquer emoção.

- Às seis horas.

- Para que lado?

- Para o lado da mata velha.

- Era alguma amiga minha, e não eu, que por lá andava passeando.

- Era a senhora - afirmou Monsoreau.

- Como sabe que era eu? - disse Diana.

Monsoreau, estupeFacto, não achou resposta a esta pergunta; mas não tardou que a cólera tomasse o lugar da estupefacção.

- Diz-me o nome desse homem?

- De qual homem?

- Daquele que ontem andava passeando com a senhora.

- Não posso dizer-Lho, visto que não era eu que andava passeando.

- Digo-lhe que era a senhora! - exclamou Monsoreau batendo o pé no chão.

- Está enganado, Senhor - respondeu Diana friamente.

- Como se atreve a negar o que eu vi!

- Ah, era o senhor?

- Sim, minha Senhora, era eu mesmo. Como se atreve pois a negar que fosse a senhora, quando em Méridor não habita nenhuma outra mulher?

- Aí istá outro engano, Senhor, pois Joana de Brissac também está aqui.

- A senhora de Saint-Luc?

- Sim, a minha amiga a Sr. - de Saint-Luc.

- E o Sr. de Saint-Luc?.

- Esse não se separa da mulher um instante, como muito bem sabe; o casamento deles foi um casamento de inclinação; quem pois viu ontem na mata foi o Sr. e a Sr. de Saint-Luc.

- Não era o Sr. nem a Sr. de Saint-Luc; era a senhora, a quem eu muito bem conheci, em companhia dum homem que não conheço, mas de quem lhe juro que hei-de saber o nome custe o que custar.

- Visto isso, teima em dizer que era eu?

- Se lhe estou dizendo que a conheci perfeitamente, e que até ouvi o grito que soltou!

- Quando estiver em seu juízo, Senhor Conde - disse Diana -, consentirei então em ouvi-lo; porém agora parece-me que será melhor que me retire.

- Não, minha Senhora - disse Monsoreau detendo Diana pelo braço -, ficará aqui!

- Senhor - disse Diana -, aí vem o Sr. e a Sr. de Saint-Luc. Espero que me faça o favor de disfarçar na presença deles.

Saint-Luc e sua mulher acabavam de aparecer, com efeito, à entrada duma das alamedas, acudindo ao chamamento da sineta que tocava para o almoço, como se unicamente se tivesse esperado pelo Sr. de Monsoreau para ir para a mesa.

Ambos conheceram de longe o conde; e adivinhando logo que poderiam contribuir com a sua presença para livrarem Diana duma posição muito critica, aproximaram-se apressadamente dos dois cônjuges.

A Sr. de Saint-Luc fez uma grande mesura ao Sr. de Monsoreau, Saint-Luc apertou-Lhe a mão com cordialidade. Trocaram todos três alguns cumprimentos, e depois Saint-Luc, dizendo à mulher que tomasse o braço do conde, deu o seu a Diana.

Encaminharam-se todos para casa.

Almoçava-se às nove horas da manhã no solar de Méridor; era um uso antigo do tempo do bom rei Luís XII, que o barão tinha observado sempre escrupulosamente.

O Sr. de Monsoreau achou-se colocado entre Saint-Luc e sua mulher. Diana, a quem a sua amiga, por meio duma hábil manobra, tinha afastado do marido, ficou entre Saint-Luc e o barão. A conversação tornou-se geral; versou, como era natural, sobre a chegada do irmão do rei a Angers, e sobre o movimento que aquele sucesso havia de ocasionar necessariamente na província.

Monsoreau muito desejava imprimir-Lhe outra direcção, mas os seus interlocutores eram animosos, e não Lhe foi possível conseguir o seu intento.

Não era porque Saint-Luc recusasse responder-lhe; bem pelo contrário, procurava adular o marido furioso com uma graça encantadora, e Diana, que a favor da tagarelice de Saint-Luc se via dispensada de falar, agradecia ao seu amigo com frequentes olhadelas.

Este Saint-Luc é um pateta que palra como um papagaio, disse consigo o conde; deste homem é que eu hei-de sacar por alguma forma o segredo que tanto empenho tenho em saber.

O Sr. de Monsoreau, que tinha sido apresentado na corte na ocasião em que Saint-Luc a deixava, não conhecia ainda bem este fidalgo.

E, convencido de que havia de conseguir dele o que pretendia, começou a responder ao mancebo por tal forma que muito aumentou o contentamento de Diana e serenou os ânimos todos.

E demais, Saint-Luc piscava de vez em quando o olho para a Sr. de Monsoreau, como quem queria dizer: Fique descansada, minha Senhora, que eu já formei o meu projecto. Veremos no capítulo seguinte qual era o projecto do Sr. de Saint-Luc.

         O PROJECTO DO SR. DE SAINT LUC

Logo que acabaram de almoçar, Monsoreau deu o braço ao seu novo amigo, e retirou-se com ele do castelo.

- Confesso-lhe - disse ele - que muito estimei encontrá-lo, pois estava-me assustando sobremaneira a ideia de viver aqui só em Méridor.

- Pois quê? - replicou Saint-Luc. - Não Lhe bastava sua esposa? Eu, por mim, posso asseverar-lhe que na companhia de minha mulher era capaz de achar que um deserto mesmo era muito povoado.

- Não digo que assim não seja - respondeu Monsoreau mordendo os beiços. - Contudo...

- Contudo, o quê?

- Contudo estimei imenso encontrá-lo aqui.

- Senhor Conde - replicou Saint-Luc esgaravatando os dentes com um palito de ouro do feitio duma espada -, é, na verdade, muito delicado; pois nunca me poderei persuadir de que chegasse a ter receio de levar aqui uma vida aborrecida na companhia duma mulher tão linda, e num sítio tão encantador.

- coisa a que não dou apreço - retorquiu Monsoreau -, por isso que tenho passado a melhor parte da minha vida no meio de bosques.

- É mais uma razão para que Lhe não causem aborrecimento - disse Saint-Luc -; a mim afigura-se-me que quem uma vez se acostumou a viver no centro dum bosque não pode gostar de outra coisa; veja que admirável tapada esta! Eu sei com certeza que me há-de custar muito a deixar estes lugares. E infelizmente parece-me que não há- de tardar muito.

- E por que motivo quer sair daqui?

- Julga porventura que o homem é senhor do seu destino? O homem é como as folhas das árvores que o vento arranca e impele diante de si por vales e planícies, sem que ele mesmo saiba para onde vai. O senhor é que é muito feliz.

- Feliz, em quê?

- Em ficar aqui vivendo à sombra deste magnífico arvoredo.

- Oh - replicou Monsoreau -, é provável que também não me demore por aqui muito tempo!

- Deveras? Porque diz isso? Acho que está enganado.

- Não estou - disse Monsoreau -, não estou! Oh, eu não sou tão entusiasta como O senhor pelos encantos da Natureza, e tenho muito receio desta tapada que acha tão linda!

- Que está dizendo? - observou admirado Saint-Luc.

- É, como lhe digo - replicou Monsoreau.

- Disse que tem receio desta tapada; e por que razão?

- Porque não me parece muito segura.

- Não é segura? Diz isso a sério? - acrescentou Saint-Luc muito admirado. - Ah, sim, já percebo; por ser muito só, não é isso que quer dizer?

- Não. Não é esse precisamente o motivo; porque presumo que se vive muito acompanhado aqui em Méridor.

- Lá quanto a isso afirmo-Lhe que não - respondeu Saint-Luc com a maior candura -; nem viva alma por aqui aparece.

- Ah, deveras?

- Tal qual como tenho a honra de Lho dizer.

- Pois quê? Nem vem por aí visita alguma de tempos a tempos?

- Desde que eu cá estou, posso afirmar-lhe que ninguém tem vindo.

- Então daquela corte tão luzida que está em Angers não se destaca de quando em quando algum fidalgo para aqui?

- Nem um só.

- Parece impossível.

- Entretanto, assim é.

- Ah, creio que está caluniando os fidalgos angevinos.

- Não sei se isto é calúnia, mas quero que os diabos me levem se já avistei por aqui pluma do chapéu dum único deles.

- Então estou enganado neste ponto.

- Não há dúvida alguma, está completamente enganado. Tornemos porém ao que ia dizendo a respeito de não ser segura a tapada. Anda por aí algum urso?

- Oh, não!

- Ou lobo?

- Também não.

- Haverá ladrões?

- Talvez. Diga-me uma coisa, meu caro Senhor, a Sr. de Saint- Luc, segundo me quis parecer, é muito formosa.

- Não há dúvida que é.

- E costuma passear com frequência pela tapada?

- Com frequência; ela é como eu, gosta muito do campo; mas por que motivo me faz essa pergunta?

- É sem motivo; e quando ela sai a passeio, sempre a acompanha?

- Sempre.

- Ou quase sempre?

- Mas qual é o Fim de todas essas indagações?

- Oh, meu Deus, não têm fim algum, meu querido Sr. de Saint-Luc, ou, se o têm, é muito pessoal.

- Estou ouvindo.

- É porque me disseram.

- Que foi que lhe disseram? Fale.

- Não se enfadará comigo?

- Não costumo enfadar-me.

- E demais, entre gente casada são admissíveis estas confidências; é porque me disseram. que tinha entrado um homem, às escondidas, para dentro da tapada.

- Um homem?

- Sim, um homem.

- Que vinha por causa de minha mulher?

- Oh, eu não digo isso.

- Faria muito mal se não o dissesse, meu querido Sr. de Monsoreau, pois o caso interessa-me muito; e quem foi que viu isso?

- Para que quer saber?

- Diga-mo sempre. Estamos conversando, não é assim? Pois bem! Tanto vale este assunto

como outro qualquer. Diz então que o tal homem vinha aqui por causa da Sr. de Saint-Luc?

Ora, não há uma coisa assim!

- Ouça; se quer que Lhe confesse tudo, dir-lhe-ei que não creio que fosse por causa da

Sr. de Saint-Luc...

- Então, por causa de quem há-de ser?

- Desconfio, pelo contrário, que é por causa de Diana.

- Ah, ainda bem - exclamou Saint-Luc -, antes seja assim.

- Como? Antes seja assim?

- Sem dúvida. É sabido que não há raça mais egoísta do que a dos maridos. Cada um

por si! Deus por todos!

- Ou antes, o Diabo!

- Tornando pois à nossa conversa: julga que entrou aqui um homem?

- Não somente julgo, mas até vi.

- Viu um homem dentro da tapada?

- Vi.

- Sozinho?

- Com a Sr. de Monsoreau.

- Quando foi isso?

- Ontem.

- Onde?

- Olhe, aqui à esquerda.

E como Monsoreau tinha dirigido o seu passeio com Saint-Luc para o sítio da mata velha do lugar onde estava pôde mostrar ao companheiro a parte do muro por onde o homem

devia ter trepado.

- Sim - disse Saint-Luc -, vejo com efeito que este muro está muito arruinado; é preciso

avisar o barão de que Lhe estragam a cerca.

- E de quem desconfia?

- Eu?

- Sim, o senhor.

- De quem desconfio?

- Que venha saltar o muro para estar na tapada a conversar com mínha mulher.

Saint-Luc pareceu entregar-se a profunda meditação, cujo resultado o Sr. de Monsoreau aguardou ansiosamente.

- Então? - disse ele.

- Eu sei lá! - replicou Saint-Luc. - Não sei que pudesse ser outro senão...

- Senão... quem?

- Senão... o senhor - respondeu Saint-Luc destapando a cara, que tinha encoberto com ambas as mãos.

- Está gracejando, meu caro Sr. de Saint-Luc? - disse o conde como que petrificado.

- Não estou, não senhor. Nos primeiros tempos do meu casamento fazia dessas coisas; e por que razão não as há-de fazer também o senhor?

- Está bom, não quer responder-me; confesse-me tudo, meu amigo, nada receie. Vamos lá, ajude-me, procure; é um serviço muito grande que espero dever-lhe.

Saint-Luc coçou uma orelha.

- Eu não vejo que possa ser outra pessoa senão o Senhor - disse ele.

- Basta de zombaria! Tratemos este negócio seriamente, Senhor, porque desde já o previno que o caso é de muita consequência.

- Parece-Lhe isso?

- AFirmo-lhe que tenho a certeza do que Lhe disse.

- Então muda o caso de Figura; pode dizer-me como entra o homem em questão?

- Entra às furtadelas, está visto!

- Com frequência?

- Acho que sim; conhecem-se os vestígios dos pés na pedra mole do muro; olhe!

- Com efeito, assim é.

- Nunca tinha observado o que acabo de lhe dizer?

- Oh! - disse Saint-Luc. - Eu já tinha alguma desconfiança.

- Ah, lá está! - disse o conde a arquejar. - E depois?

- Depois. nunca a coisa me deu cuidado; sempre pensei que era o senhor.

- Mas se eu lhe estou dizendo que não era!

- Dou-lhe todo o crédito, meu caro Senhor.

- Acredita então no que lhe digo?

- Por certo!

- Muito bem! E então?

- Então, é alguma outra pessoa.

O monteiro-mor deitou um olhar quase ameaçador para Saint-Luc, o qual afectava a maior calma.

- Ah! - exclamou ele com um modo tão colérico que o mancebo ergueu a cabeça.

- Ocorre-me outra ideia. - disse Saint-Luc.

- Vejamos?

- Se fosse.

- Se fosse?.

- Não.

- Não?

- Mas talvez.

- Diga depressa!

- Se fosse o Senhor Duque de Anju?

- Também a mim me lembrou que seria ele - respondeu Monsoreau -; mas tirei informações, e soube que não podia ser.

- Ah, ah, o duque é muito ladino!

- Isso é; mas não foi ele.

- Não admite que seja pessoa alguma das que eu lhe aponto - disse Saint-Luc -, e quer por força que eu lhe diga quem foi?

- Decerto; o senhor, que está vivendo no castelo, deve saber.

- Espere. - exclamou Saint-Luc.

- Atinou?

- Ocorre-me outra ideia. Se não era o senhor, nem o duque. era eu decerto.

- O senhor?

- Porque não?

- Foi o senhor que veio a cavalo por fora da tapada, podendo com toda a facilidade vir por dentro?

- Então que quer? Eu sou tão fantástico!... - replicou Saint-Luc.

- E foi o senhor que deitou a fugir quando me viu aparecer em cima do muro?.

- Parece-me que o caso não era para menos.

- Visto isso, não estava ali por bem... - disse o conde custando- Lhe já a reprimir a sua irritação.

- Não digo que não.

- O que eu percebo, afinal de contas, é que está zombando de mim - exclamou o conde muito enfiado -, e já há um quarto de hora que dura a brincadeira.

- Está enganado, Senhor Conde - replicou Saint-Luc puxando pelo relógio e olhando para Monsoreau com uma tal fixidade, que este estremeceu apesar de todo o seu valor. há apenas vinte minucos que dura a caçoada.

- Está-me insultando, Senhor! Está-me insultando! - disse o conde.

- E julga porventura que não me está insultando a mim também com todas essas perguntas de esbirro?

- Ah, agora já eu vou vendo claro o negócio.

- É forte milagre às dez horas da manhã! E o que está vendo? Diga-me.

- Vejo que está de combinação com o traidor, com o cobarde que eu ontem não matei por um triz.

- É na verdade grande admiração! - disse Saint-Luc. - Sendo ele meu amigo...

- Pois se assim é, matá-lo-ei ao senhor em lugar dele.

- Quer matar-me dentro de sua casa?... Assim sem mais nem menos, e não estando eu prevenido?

- Julga talvez que hei-de estar com cerimónias quando se trata de castigar um miserável!

- bradou o conde fora de si.

- Ah, Sr. de Monsoreau - retorquiu Saint-Luc -, sempre é muito malcriado!...

Muito se ressentem as suas maneiras da sociedade das feras! Fora!.

- Então não vê que estou mesmo furioso? - berrou o conde atravessando-se adiante de Saint-Luc com os braços cruzados e o parecer transtornado pela expressão terrível do desespero que Lhe pungia o coração.

- Vejo, sim senhor, e digo-lhe, na verdade, que não lhe está bem o furor; fica horrendo assim, meu caro Sr. de Monsoreau.

O conde, completamente exasperado, levou a mão à espada.

- Ah, note bem - disse Saint-Luc - que é o senhor que me está provocando. Tomo-o ao senhor mesmo por testemunha em como eu estou perfeitamente sereno.

- Sim, peralvilho - gritou Monsoreau -, sim, menino de alcova, estou-o provocando!

- Pois então tenha o incómodo de passar para a parte de fora do muro, Sr. de Monsoreau, porque assim estaremos em terreno neutro.

- Isso não me importa para nada! - exclamou o conde.

- Importa-me a mim - replicou Saint-Luc -; porque não quero matá-lo dentro da própria casa.

- Pois vamos lá! - disse Monsoreau começando logo a trepar pela brecha.

- Cuidado, vá devagarinho, conde! Há aí uma pedra que não está muito segura; vê-se que tem sido muito abalada, Tome sentido não dê alguma queda; porque na realidade muito mal havia de causar.

E Saint-Luc dispôs-se a saltar o muro em seguimento dele.

- Vamos, vamos! - disse o conde desembainhando a espada.

E eu que vim para o campo para me divertir! - disse Saint-Luc falando consigo mesmo; realmente, não arranjei mau divertimento...

E dizendo isto acabou de saltar o muro.

 

       COMO FOI QUE O SR. DE SAINT LUC MOSTROU AO SR. DE MONSOREAU QUAL ERA A ESTOCADA QUE O REI LHE TINHA ENSINADO

O Sr. de Monsoreau estava esperando Saint- Luc de espada na mão e batendo o pé no chão com furor.

- Está pronto? - disse o conde.

- Bonito! - exclamou Saint-Luc. - Não escolheu o pior lugar, está com as costas para o Sol; gosto dessa sem-cerimónia.

Monsoreau fez um quarto de volta.

- Ora ainda bem - disse Saint-Luc -, assim sempre poderei trabalhar com mais desembaraço.

- Não me poupe, Senhor - disse Monsoreau -, que eu também farei o mesmo.

- Pelo que vejo - perguntou Saint-Luc - está muito resolvido a matar-me.

- Se estou resolvido a matá-lo?. Oh, decerto. que estou.

- O homem põe e, Deus dispõe - replicou Saint-Luc desembainhando também a espada.

- Que diz. Senhor?

- Que digo. Olhe bem para aquela moita de papoilas.

- E então?

- Então, não tarda que eu o estenda sobre ela.

E pôs-se em guarda, sempre a rir.

Monsoreau travou o combate com raiva e atirou com incrível agilidade a Saint-Luc dois ou três botes, que este aparou com igual agilidade.

- Por vida minha, Sr. de Monsoreau - disse ele brincando com a espada do seu adversário -, muito destro é no manejo das armas! Sempre lhe digo que qualquer outro indivíduo que não fosse eu ou Bussy, teria sido morto por este último golpe.

Monsoreau empalideceu quando viu que qualidade de homem era o seu antagonista.

- Causa-lhe talvez admiração - prosseguiu Saint-Luc - ver a perícia com que empunho uma espada; é porque el-rei, que é muito meu amigo, como sabe, fez favor de me dar algumas lições, e ensinou-me, além de muitas outras particularidades, uma estocada que logo Lhe ensinarei também. Digo-Lhe isto, porque, se suceder matá-lo com a tal estocada, terá o gosto de saber que morreu duma estocada ensinada por el-rei, o que muito deve lisonjeá-lo.

- É um cavalheiro muitíssimo espirituoso! - disse Monsoreau encolerizado e atirando- lhe ao peito uma estocada capaz de varar uma parede.

- Se não faço mais é porque não posso - replicou Saint-Luc com modéstia; e dizendo isto furtou-lhe o corpo, obrigando assim o adversário a dar uma meia volta que lhe expôs o rosto ao Sol.

- Ah! Ah! - exclamou ele. - Aí está como eu queria vê-lo enquanto não o deito na cama que já lhe mostrei. Não lhe parece que foi bem feita esta evolução? Estou muito satisfeito na verdade! Tinha, ainda há pouco, apenas cinquenta probabilidades contra cem de ser morto por mim! Tem agora noventa e nove.

E logo, com uma flexibilidade, um vigor e uma raiva que Monsoreau não esperava encontrar nele, e de que ninguém teria julgado susceptível naquele mancebo tão efeminado, Saint-Luc atirou uns após outros, e sem interrupção, cinco botes ao monteiro-mor, que os aparou, e ficou atordoado por aquele furacão acompanhado de silvos e de relâmpagos; o sexto foi uma estocada tão habilmente calculada, que metade do ferro da espada de Saint-Luc desapareceu para dentro do peito do seu inimigo.

Monsoreau ainda se conservou um instante de pé como um carvalho cortado pelas raízes que só carece dum leve impulso para cair para o lado.

- Bem, agora - disse Saint-Luc - completaram-se as cem probabilidades; e note uma coisa, Senhor Conde; é que vai cair exactamente sobre a moita que eu Lhe indiquei.

Faltaram as forças ao conde; abriu as mãos, turvou-se-lhe a vista, dobrou os joelhos, e caiu sobre as papoilas, que tornou ainda mais vermelhas tingindo-as com o seu sangue.

Saint-Luc limpou a espada com todo o sossego e esteve observando aquele afrouxamento gradual da cor que se opera no rosto do homem que está para expirar.

- Ah, que me matou! - disse Monsoreau.

- Eu bem Lhe fiz a diligência - respondeu Saint-Luc -; porém, agora que o vejo aí estendido e próximo a morrer, o diabo me leve se não estou arrependido do que fiz; é sagrado para mim agora, Senhor Conde; é verdade que é um homem demasiadamente ciumento, mas era bastante valente.

E Saint-Luc, muito satisfeito por ter recitado esta oração fúnebre, ajoelhou ao pé de Monsoreau e disse-Lhe:

- Quer declarar-me as suas derradeiras vontades, Senhor? Prometo-Lhe, à fé de cavaleiro, que hão-de ser cumpridas; eu sei por experiência que ordinariamente quando se é ferido tem-se muita sede. Se acaso tem sede, vou buscar-Lhe água.

Monsoreau não respondeu. Tinha-se voltado com a cara para o chão, mordendo a relva e estrebuchando.

- Pobre diabo! - disse Saint-Luc levantando-se. - Oh, amizade, tu sempre és muito exigente!

Monsoreau abriu a muito custo os olhos, tentou levantar a cabeça, e tornou a deixá-la cair num lúgubre gemido.

- Está bom, morreu - disse Saint-Luc - não pensemos mais nele. O caso é que matei o homem. Ninguém dirá que perdi o meu tempo aqui no campo.

E, saltando novamente o muro, atravessou a tapada a correr e chegou ao castelo. A primeira pessoa que avistou foi Diana; estava conversando com a amiga. Como há-de ficar bonita vestida de preto! pensou Saint-Luc.

Em seguida aproximou-se do grupo encantador que formavam as duas raparigas:

- Peço perdão, querida Senhora - disse ele para Diana -, mas precisava muito de dar umas palavras à Sr. a de Saint-Luc.

- Fique com ela, meu caro hóspede - replicou a Sr. a de Monsoreau -, que eu vou para a biblioteca ter com meu pai. E tu, quando o Sr. de Saint-Luc tiver acabado, virás buscar-me, pois te espero.

- Irei sem falta - disse Joana.

Diana afastou-se dizendo-Lhe adeus com a mão e sorrindo-se.

Os noivos ficaram sós.

- Que novidade temos? - perguntou Joana com parecer mui risonho. - Tens um ar tão

sinistro, querido esposo!

- Não há dúvida, não há dúvida - respondeu Saint-Luc.

- Que foi que sucedeu?

- Oh, meu Deus, foi uma desgraça!

- A ti? - perguntou Joana muito assustada.

- Não foi a mim precisament mas a uma pessoa que estava ao pé de mim.

- Que pessoa era?

- Era aquele com quem andava passeando.

- O Sr. de Monsoreau?

- É verdade, infelizmente! Pobre homem!

- Que lhe sucedeu pois?

- Parece-me que está morto.

- Morto? - exclamou Joana numa agitação fácil de avaliar. - Morto?

- É como te digo.

- Ele, que ainda agora estava aqui falando, e de olhos abertos?

- Foi essa exactamente a causa da sua morte; fez mau uso dos olhos e deu demasiado à língua.

- Saint-Luc, meu amigo!... - disse a noiva agarrando nas mãos do marido.

- Que tens?

- Tu ocultas-me alguma coisa...

- Nada te ocultarei, juro-to; nem mesmo o sítio onde ele morreu.

- E onde morreu ele?

- Acolá em baixo, por detrás do muro, no mesmo lugar onde o nosso amigo Bussy costumava prender o cavalo.

- Foste tu quem o matou, Saint-Luc?

- E então quem havia de ser? Éramos só dois, eu volto vivo, e digo-te que ele morreu, não é muito custoso de adivinhar qual dos dois matou o outro.

- Ah, desgraçado!

- Minha querida amiga - disse Saint-Luc -, ele provocou- me, insultou-me, e desembainhou a espada primeiro.

- É horrível, é horrível! Pobre homem!

- Bom! - exclamou Saint-Luc. - Isso mesmo esperava eu; não me admirará que daqui a oito dias lhe chamem unanimemente Santo Monsoreau.

- Porém não podemos mais ficar aqui! - disse Joana; - não devemos continuar a viver por mais tempo debaixo do tecto do homem que mataste.

- Foi essa a reflexão que logo fiz, e por isso vim correndo para te pedir, querida amiga, que trates dos aprestos para a nossa partida.

- E nem sequer ficaste ferido?

- Ora ainda bem! A pergunta chegou tarde, mas sempre mostras que te interessas por mim; estou perfeitamente intacto.

- Então partamos!

- E quanto mais depressa melhor, porque dum instante para o outro podem estar inteirados do desastre.

- Que desastre? - exclamou a senhora de Saint-Luc.

- Ah, já estás esquecida do que acabei de contar-te?

- É verdade! E o caso é que a Sr. a de Monsoreau fica viúva.

- É tal qual o que eu dizia com os meus botões ainda há pouco.

- Depois de lhe teres morto o marido?

- Não, antes.

- Bem; enquanto eu vou dar-lhe a triste notícia.

- Procura algum rodeio para lhe poupar a sensibilidade, querida amiga.

- Sempre és muito mau! Enquanto vou dar-lhe a notícia aparelha os cavalos por tuas mãos como se fôssemos dar um passeio.

- É uma excelente ideia. E não será mau que te vão ocorrendo muitas pelo mesmo gosto, minha boa amiga; porque eu confesso-te que vou estando com a cabeça algum tanto azoada.

- Mas para onde vamos nós?

- Para Paris.

- Para Paris? E el-rei?.

- El-rei já terá esquecido tudo; tem ocorrido tanta novidade desde que de lá saímos! E demais, se houver guerra, como me parece muito provável, o meu lugar é ao lado do rei.

- Bem; então partiremos para Paris?

- Sim; mas primeiro quero que me dês pena e tinta.

- Para escrever a quem?

- A Bussy; eu não posso deixar assim o Anju sem Lhe dizer o motivo por que me retiro.

- Tens razão; no meu quarto encontrarás os arranjos necessários para escrever.

- Saint-Luc foi logo para o quarto da mulher, e, com a mão um tanto trémula, escreveu à pressa as regras seguintes:

Caro amigo:

A voz dafama levar-lhe-á a noticia da desgraça que sucedeu ao Sr de Monsoreau; tivemos ambos, para o lado da mata velha, uma discussão acerca dos efeitos e das causas do desmoronamento dos muros, e dos inconvenientes dos cavalos que aprendem a andar sem que os cavaleiros os governem. No maior calor da discussão, o Sr de Monsoreau caiu sobre a moita de papoilas, e com tanta infelicidade que caiu logo morto.

Seu amigo do coração Saint-Luc.

  1. S. - Como esta noticia, à primeira vista, poderia talvez parecer-lhe inverosimil, acrescentarei que, quando aquela desgraça lhe sucedeu, estávamos ambos de espada na mão.

Voupartir neste momento para Paris, com tenção de fazer aspazes com el rei, pois nãojulgo conveniente conservar-me aqui no Anju depois desta ocorrência.

Dali a dez minutos, um criado do barão ia correndo para Angers com esta carta, enquanto o Sr. de Saint-Luc e sua esposa, saindo por uma portinha falsa que dava para uma azinhapartiram sozinhos, deixando Diana muito chorosa e sem saber por que forma havia de contar ao barão a triste história daquele duelo.

Quando Saint-Luc passou ela voltou a cara para o lado.

- Aí está a paga que se tira de servir os amigos! - disse este para a mulher; - está provado que as pessoas são todas ingratas; só eu sou reconhecido.

 

           ONDE SE VÊ A RAINHA-MÃE ENTRAR POUCO TRIUNFALMENTE NA BOA CIDADE DE ANGERS

Exactamente à mesma hora em que o Sr. de Monsoreau caía sob a espada de Saint-Luc, uma grande fanfarra de quatro trombetas tocava às portas de Angers, fechadas, como sabemos, com o maior cuidado.

Era Catarina de Médicis que dava entrada em Angers com um séquito muito imponente. Preveniram imediatamence Bussy que se levantou do leito e foi logo dar a notícia ao príncipe, que se meteu na cama.

Na verdade, os ares agitados pelas trombetas angevinas eram ares muito bons, mas não tinham a virtude dos que Fizeram cair os muros de Jericó; as portas de Angers não se abriram.

Catarina deitou a cabeça fora da liteira para se mostrar às sentinelas avançadas, esperando que a majestade dum rosto real fizesse mais efeito que o som das trombetas. Os milicianos de Angers viram contudo a rainha, saudaram-na mesmo com cortesia, mas as portas continuaram fechadas.

Catarina enviou um fidalgo às barreiras. Tiveram as maiores atenções com esse Fidalgo; mas como ele pedia a entrada da rainha-mãe, insistindo em que Sua Majestade fosse recebida

com as devidas honras, responderam-lhe que sendo Angers praça de guerra, não se abria sem algumas formalidades indispensáveis.

O fidalgo voltou muito mortificado a dar conta a sua ama do ocorrido, e Catarina, ouvindo-o, deixou escapar em toda a amargura da sua realidade, em toda a plenitude da sua acepção, essa palavra que Luís XiV modifcou mais tarde, segundo as proporções que tomara a autoridade real:

- Esperar - murmurou ela.

E os fidalgos que a acompanharam desesperaram-se.

Bussy, que tinha estado perto de meia hora a convencer o duque, sugerindo-Lhe cem razões de Estado, cada qual mais peremptória, Bussy decidiu-se enfim a ir ao encontro da rainha. Mandou selar o cavalo pondo-lhe um forte caparazão, escolheu cinco fidalgos dos mais antipáticos à rainha-mãe, e, colocando-se à frente deles, foi, em passo de mula de vigário, à presença de Sua Majestade.

Catarina começava a fatigar-se, não de esperar, mas de planear vinganças contra os que lhe estavam fazendo representar esta cena.

Lembrava-se do conto árabe em que se diz que um génio rebelde, prisioneiro num vaso de cobre, promete enriquecer aquele que o livrar no decorrer dos primeiros dez séculos do seu cativeiro; e que depois, furioso de esperar, jura a morte do imprudente que despedaçar a tampa do vaso.

Catarina estava neste caso. Ela primeiro prometera a si mesmo agraciar os Fidalgos que se apressassem a vir ao seu encontro. Depois fez votos de esmagar com a sua cólera o primeiro que se Lhe apresentasse.

Bussy apareceu em grande uniforme no corpo da guarda, e olhou vagamente como a sentinela que ouve mais do que vê.

- Quem vive? - bradou ele.

Catarina esperava pelo menos algumas genuflexões; o camarista olhou para ela esperando que lhe dissesse o que havia de fazer.

- Vá, vá lá, que estão perguntando: quem vive, . Responda; é uma formalidade. O fidalgo foi até próximo da fortificação.

- É Sua Majestade a Rainha-Mãe - disse ele - que vem visitar a boa cidade de Angers.

- Muito bem; queira voltar à esquerda, daqui a uns oitenta passos pouco mais ou menos, que lá encontrará a porta falsa.

- A porta falsa? - exclamou o fidalgo. - A porta falsa? Então Sua Majestade há-de entrar por uma porta baixa?

Bussy já ali não estava para ouvir. Tinha-se dirigido com os seus amigos, que riam encapotadamente, para o sítio onde, segundo as suas instruções, devia apear-se Sua Majestade a Rainha-Mãe.

- Vossa Majestade ouviu?. - perguntou o fidalgo. - Mandam-nos para a porta falsa!

- Ouvi muito bem. Entremos por lá, visto que é por lá que se entra. E um relâmpago do seu olhar fez empalidecer o desastrado do camarista, que assim acentuava a humilhação imposta à sua soberana.

O cortejo tomou à esquerda, e a porta falsa abriu-se.

Bussy, a pé, com a espada desembainhada, avançou até fora da porta falsa, e inclinou-se respeitosamente diante de Catarina; em roda dele as plumas das barretinas tocavam no chão.

- Seja Vossa Majestade bem-vinda a Angers - disse ele.

Estavam ao lado dele tambores que não tocavam, e alabardeiros que não se perfilaram. A rainha apeou-se da liteira, e tomando o braço dum dos fidalgos da sua comitiva, dirigiu-se para a pequena porta, depois de ter apenas dito estas palavras:

- Obrigado, Sr. de Bussy!

Foi a única conclusão das meditações que lhe tinham deixado fazer.

Foi andando de cabeça erguida, quando Bussy, de repente, a previne, segurando-a pelo braço:

- Ah, minha Senhora, tome cuidado; a porta é muito baixa; Vossa Majestade por um pouco não deu uma pancada.

- Então é preciso a gente abaixar-se? - disse a rainha. - É a primeira vez que entro deste modo numa cidade.

Estas palavras, pronunciadas com a mais completa naturalidade, tinham para os hábeis fidalgos um sentido e um alcance que fizeram reflectir mais dum assistente, e o próprio Bussy

cofiou o bigode e desviou o olhar para não encarar com a rainha.

- Foste muito longe - disse-Lhe Livarot ao ouvido.

- Deixa lá - replicou Bussy -, é bom que ela passe por outras coisas ainda piores. Passaram a liteira de Sua Majestade para cima do muro por meio de roldanas, e assim pôde a rainha-mãe tornar a instalar-se na carruagem para ir até ao palácio.

Bussy e os seus amigos tornaram a montar a cavalo, escoltando a liteira dos dois lados.

- E meu filho? - exclamou de repente Catarina - não vejo o meu filho d'Anju!

Estas palavras, que ela queria reter, foram-lhe arrancadas por uma cólera irresistível. A ausência de Francisco em tal momento era o cúmulo do insulto.

- Sua Alteza está doente, de cama, minha Senhora; Vossa Majestade crê decerto que só por esse motivo Sua Alteza deixou de vir pessoalmente fazer as honras da sua cidade.

Catarina foi neste ponto sublime de hipocrisia.

- Doente? O meu querido filho doente? - exclamou ela com fingida comoção. - Ah, vamos depressa. meus Senhores. E tem tido o necessário tratamento?

- Nós fazemos o que podemos - disse Bussy olhando para ela com surpresa, como para observar se realmente havia nessa mulher uma mãe.

- Ele sabe que eu vou aqui? - continuou Catarina, depois duma pausa que empregou utilmente em passar revista a todos os fidalgos que a acompanhavam.

- Sabe, sim, minha Senhora, sabe.

Catarina mordeu os beiços.

- Deve então estar sofrendo muito - ajuntou ela em tom de compaixão.

- Horrivelmente - disse Bussy. - Sua Alteza é sujeito a estas congestões.

- Ah, é uma congestão, Sr. de Bussy?

- É, sim, Real Senhora.

Assim chegaram ao palácio. Uma grande multidão formava alas para ver passar a liteira. Bussy foi adiante, saltando os degraus da escada a quatro e quatro, e entrando no quarto do duque quase sem fôlego:

- Ela aí vem - disse ele. - Tenha todo o cuidado.

- Vem furiosa?

- Desesperada.

- Queixa-se?

- Oh, não, muito pior do que isso: sorri!

- Que disse o povo?

- O povo não tugiu nem mugiu; olhou para essa mulher com a mudez do terror; não a conhece, adivinha-a.

- E ela?

- Atira beijos e morde as pontas dos dedos.

- Que diabo!.

- Foi o que eu pensei, meu Senhor; que diabo! Jogou com prudência.

- Achas que me devo colocar em atitude de guerra, não é assim?

- Com certeza! Peça cen, para Lhe darem dez, e ainda assim não alcançará senão cinco.

- Ora, tu julgas-me muito fraco. Mas diz-me: os meus amigos estão todos aí? Porque não voltaria o Monsoreau? - perguntou o duque.

- Creio que está em Méridor. Oh! Havemos de passar muito bem sem ele.

- Sua Majestade a Rainha-Mãe! - anunciou o arauto à entrada da câmara. E logo apareceu Catarina, pálida e toda vestida de preto, segundo o seu costume. O duque de Anju fez um movimento para se levantar. Mas Catarina, com uma agilidade que não se imaginaria num corpo gasto pela idade, lançou-se nos braços do filho e cobriu-o de beijos.

Vai asfixiá-lo, pensou Bussy; e são beijos verdadeiros! "

Ela fez ainda mais, chorou.

- Desconfiemos - disse Antraguet a Ribeirac -; cada lágrima há-de custar-nos almudes de sangue.

Catarina, depois de acabar os seus beijos e abraços, sentou-se à cabeceira do duque; Bussy fez um sinal, e os assistentes retiraram-se. Ele, porém, como se estivesse em sua casa, encostou-se a uma coluna do leito e esperou.

- Não poderia encarregar-se de mandar tratar da minha pobre gente, meu caro Sr. de Bussy? - disse de repente Catarina. - Depois de meu filho, é o senhor o nosso amigo mais caro e o mais íntimo da casa, não é assim? Por isso lhe peço esse favor.

Não havia que hesitar.

Estou apanhado pensou Bussy.

- Real senhora - disse ele -, sinto-me muito feliz em poder agradar a Vossa Majestade; vou imediatamente cumprir as suas ordens.

Espera. murmurou ele. Tu não conheces as portas aqui como no Louvre. eu já volto. "

E saiu sem poder ao menos dirigir um sinal ao duque. Catarina estava desconfiada, não o perdeu de vista um segundo.

Catarina em seguida procurou saber se o filho estava com efeito doente, ou se Fingia apenas a doença. Devia ser essa a base das suas operações diplomáticas.

Mas Francisco, como digno filho de semelhante mãe, representou maravilhosamente o seu papel. Ela tinha chorado; ele teve febre.

Catarina, iludida, julgou-o efectivamente doente; esperou pois ter mais influência sobre um espírito enfraquecido pelos sofrimentos do corpo.

Tornou-se então outra vez carinhosa; abraçou e beijou de novo o duque, tornou a chorar, e a ponto tal que ele se admirou; é perguntou-Lhe a razão por que chorava.

- É porque me lembra, querido filho, que correste um grande perigo!

- Fugindo do Louvre, minha mãe?

- Oh, não, depois de teres fugido.

- Como?

- Os que te ajudaram nessa desgraçada evasão.

- Acabe.

- Eram os teus mais cruéis inimigos.

Ela não sabe nada, pensou ele, mas quer saber.

- O rei de Navarra - disse ela bruscamente -, o eterno flagelo da nossa raça. Reconheço-o perfeitamente.

Ah, ah! exclamou Francisco, ela sabe tudo. "

- Julgas que ele não se há-de gabar - disse ela -, e que não pensa ter ganho tudo?.

- É impossível - replicou ele -; enganaram-na, minha mãe.

- Porquê?

- Porque ele não entrou na minha evasão; e se tivesse entrado, bem vê que estou são e salvo. Há dois anos que não vejo o rei de Navarra.

- Mas não é só desse perigo que falo, meu Filho - disse Catarina, conhecendo que o golpe tinha falhado.

- Que mais receia então, minha mãe? - replicou ele olhando muitas vezes para o lado do corredor, onde a tapeçaria se agitava por detrás da rainha.

Catarina aproximou-se de Francisco, e com uma voz a que procurava dar uma expressão de terror, disse:

- A cólera do rei! Essa cólera violenta que te ameaça!

- Esse perigo é como o outro, minha mãe; creio bem que el-rei, meu irmão, está com efeito dominado por essa cólera violenta, mas eu estou salvo!

- Julgas isso?. - disse ela com um acento capaz de intimidar os mais audaciosos. A tapeçaria tremeu.

- Estou bem certo que assim é - respondeu o duque -; e é de tal modo verdade, minha boa mãe, que a senhora mesma veio pessoalmente anunciar-mo.

- Como? - disse Catarina inquieta com esta impassibilidade.

- Porque - continuou ele, depois de tornar a olhar para o lado do corredor secreto -, se a senhora se não houvesse encarregado de me trazer apenas essas ameaças, não teria decerto vindo aqui, e nesse caso o rei teria hesitado em me oferecer um refém tal como Vossa Majestade.

Catarina, aterrada, levantou a cabeça.

- Refém, eu? - exclamou ela.

- O mais santo e o mais venerável de todos - replicou ele sorrindo-se e beijando a mão de Catarina, não sem deitar outro golpe de vista triunfante para o fundo da câmara, cuja tapeçaria ligeiramente se movia.

Catarina deixou cair os braços aniquilada; não podia adivinhar que Bussy, por uma porta secreta, vigiava o duque, e o tinha em cheque, dominado pelo seu olhar, desde o começo da entrevista, enviando-lhe coragem e espírito a cada hesitação.

- Meu filho - disse ela enfim -, as palavras que te trago são todas de paz; tu tens toda a razão.

- Ouvi-la-ei, minha mãe - disse Francisco com todo o respeito -; creio que nos começamos a entender.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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