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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTRADA / Cormac McCarthy
A ESTRADA / Cormac McCarthy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Quando acordava nos bosques, na escuridão e no frio da noite, estendia a mão para tocar na criança que dormia a seu lado. Noites de trevas mais densas do que as próprias trevas e cada dia mais cinzento do que o anterior. Como os primórdios de um glaucoma frio a obscurecer o mundo. A mão subia e descia suavemente a cada fôlego precioso. Afastou o oleado de tela plástica e soergueu-se sob as vestes e cobertores malcheirosos e olhou para leste em busca de qualquer luz, mas nada viu. No sonho de que despertara tinha penetrado numa gruta onde a criança o conduzira pela mão. A luz que traziam brincava sobre as paredes húmidas de calcário ali depositado pelo escorrer da água. Como peregrinos numa fábula, engolidos por um monstro granítico em cujas entranhas se haviam perdido. Fundos canais de pedra onde a água gotejava melodiosamente, como sinos a dobrar no silêncio para assinalar os minutos da terra e as horas e os dias da terra e os anos incessantes. Até que chegaram a uma grande sala de pedra onde havia um lago negro e antiquíssimo e, na margem oposta, uma criatura que ergueu a boca gotejante do rebordo calcário e fitou a luz com olhos brancos e sem vida e cegos como ovos de aranha. O animal baixou a cabeça sobre a água e agitou-a, como que a farejar o que não conseguia ver. Ali agachado, pálido e nu e translúcido, com os ossos de alabastro projectados em sombras nas rochas atrás de si. As vísceras, o coração a bater. O cérebro que pulsava numa campânula de vidro baço. Agitou a cabeça para um lado e para o outro e depois soltou um gemido surdo e deu meia volta e afastou-se em passo trôpego até se eclipsar nas trevas sem ruído.

Com a primeira luz cinzenta ele levantou-se e deixou o rapaz a dormir e caminhou até à estrada e acocorou-se e perscrutou a paisagem que se estendia para sul. Estéril, silenciosa, maléfica. Parecia-lhe que...

 

 

 

 

estavam no mês de Outubro, mas não tinha a certeza. Há anos que deixara de contar os dias por um calendário. Iam para sul. Nunca conseguiriam sobreviver a outro Inverno naquele lugar.

Quando já havia luz suficiente para usar os binóculos, levou-os ao rosto e examinou o vale mais abaixo. Tudo perdera a cor e se dissolvia no negrume. A cinza macia era arrastada em remoinhos soltos por cima do asfalto. Perscrutou tudo quanto a sua vista alcançava. Os troços de estrada lá ao fundo, no meio das árvores mortas. Procurava qualquer mancha colorida, qualquer indício de movimento, qualquer vestígio do penacho de fumo de uma fogueira. Baixou os binóculos e retirou a máscara de algodão do rosto e limpou o nariz ao pulso e depois tornou a examinar as cercanias com os binóculos. Em seguida limitou-se a ficar ali sentado, a segurar os binóculos e a ver a aurora cor de cinza a congelar sobre a terra. Sabia apenas que o rapaz era a sua garantia. Disse: Se ele não é a palavra de Deus, Deus nunca falou.

Quando regressou, o rapaz ainda estava a dormir. Retirou o oleado azul que o cobria, dobrou-o e levou-o até ao carrinho de supermercado e guardou-o e regressou com os pratos e alguns bolos de milho num saco de plástico e uma garrafa de plástico contendo xarope de bordo. Abriu no chão o pequeno oleado que usavam à laia de mesa e dispôs em cima tudo o que trouxera do carrinho e tirou a pistola do cinto e pousou-a na lona e depois ficou ali parado, a ver o rapaz dormir. Durante a noite este tirara a máscara, que estava agora oculta algures entre os cobertores. O homem contemplava-o e olhava através das árvores, na direcção da estrada. Aquele lugar não era seguro. Podiam vê-los da estrada, agora que o dia nascera. O rapaz virou-se nos cobertores. Depois abriu os olhos. Olá, papá, disse.

Estou aqui mesmo.

Eu sei.

Uma hora depois, já estavam a calcorrear a estrada. Ele empurrava o carrinho e tanto ele como o rapaz levavam mochilas às costas. As mochilas continham as coisas essenciais, para o caso de terem de abandonar o carrinho e fugir. Preso à pega do carrinho havia um espelho cromado de motocicleta que ele usava para vigiar a estrada atrás deles. Ajeitou a mochila de modo a apoiá-la um pouco mais alto nos ombros e espraiou a vista sobre a paisagem devastada. A estrada encontrava-se deserta. Mais abaixo, no pequeno vale, a linha sinuosa de um rio, estagnado e cinzento. Imóvel e de contornos bem precisos. Ao longo da margem, uma amálgama de juncos mortos. Está tudo bem contigo?, perguntou. O rapaz fez que sim com a cabeça. E então puseram-se os dois a caminhar no asfalto sob a luz metálica, cinzento-azulada, a arrastar os pés na cinza, e cada qual era o mundo inteiro do outro.

Atravessaram o rio por uma velha ponte de betão e, alguns quilómetros mais adiante, depararam com uma estação de serviço na berma da estrada. Imóveis no asfalto, examinaram-na. Acho que devíamos ir ver, disse o homem. Dar uma olhadela. As ervas chegavam-lhes ao joelho e desfaziam-se em pó à sua passagem. Atravessaram o tapete de asfalto cheio de fissuras e procuraram o tanque de combustível para as bombas. A tampa desaparecera e o homem apoiou-se nos cotovelos para cheirar o cano, mas o odor a gasolina não passava de resquício, vago e cediço. Ele ergueu-se e observou a construção. As bombas de pé, com as mangueiras estranhamente ainda no seu lugar. As vidraças intactas. A porta de acesso à oficina estava aberta e ele entrou. Um carrinho metálico para guardar ferramentas, alto e estreito, encostado à parede. Vasculhou as gavetas, mas nada encontrou que lhe pudesse ser útil. Chaves de caixa de meia polegada em bom estado. Um roquete. Ali parado, percorreu a garagem com os olhos. Um bidão metálico cheio de lixo. Entrou no escritório. Pó e cinzas por todo o lado. O rapaz ficou à porta. Uma secretária de metal, uma caixa registadora. Meia dúzia de velhos manuais de instruções de automóveis, impregnados de água e deformados. O linóleo estava manchado e com as pontas enroladas por causa dos buracos no tecto. Ele acercou-se da secretária e quedou-se ali. Depois pegou no auscultador do telefone e marcou o número da casa do pai naquele passado distante. O rapaz olhava-o. O que é que estás a fazer?, perguntou.

De novo na estrada, depois de percorrerem quatrocentos metros, ele parou e voltou-se. Estamos a ser burros, disse. Temos de voltar para trás. Empurrou o carrinho para fora da estrada e fê-lo tombar de lado num lugar onde não seria visto e deixaram ali as mochilas e regressaram à estação de serviço. Na oficina, arrastou o bidão de aço do lixo para o centro da divisão e derrubou-o e, aos piparotes, retirou do meio dos detritos todas as garrafas de óleo de litro. Depois sentaram-se no chão a decantar os restos dos recipientes, um por um, deixando as garrafas de plástico a escorrer para dentro de uma tina, viradas de pernas para o ar, até que, no fim de tudo, tinham quase meio litro de óleo de motor. O homem enroscou a tampa de plástico e limpou a garrafinha com um trapo e sopesou-a na mão. Óleo para a pequena candeia artesanal, para lhes iluminar os longos crepúsculos cinzentos, as longas alvoradas cinzentas. Agora já me podes ler uma história, disse o rapaz. Não é, papá? Sim, disse ele. Agora já posso.

Do lado oposto do vale "do rio a estrada atravessava uma zona ardida, completamente negra. Troncos de árvore calcinados e sem ramagens cobriam o terreno em todas as direcções. A cinza movia-se sobre o asfalto e os dedos flácidos dos fios cegos que pendiam dos postes eléctricos enegrecidos soltavam queixumes ténues sob as rajadas de vento. Uma casa ardida numa clareira e a seguir um extenso prado despido e cinzento e um talude de terra barrenta e vermelha, em carne viva, onde as obras na estrada tinham sido abandonadas. Mais adiante viam-se painéis publicitários a anunciar motéis. Tudo como fora em tempos, só que desbotado e estragado pelas intempéries. No alto do monte pararam ao frio e ao vento, a recuperar o fôlego. Ele olhou para o rapaz. Eu estou bem, disse este. O homem pôs-lhe a mão no ombro e fez um sinal com a cabeça a indicar a paisagem desafogada aos pés deles. Tirou os binóculos do carrinho e, parado na estrada, perscrutou a planície lá em baixo, onde a silhueta de uma cidade se recortava na extensão cinzenta como um desenho a carvão traçado na aridez. Nada prendia o olhar, nenhum fumo. Posso ver?, perguntou o rapaz. Sim. É claro que podes. O rapaz apoiou-se no carrinho e ajustou a roda de focagem. O que é que vês?, perguntou o homem. Nada. Baixou os binóculos. Está a chover. Sim, disse o homem. Eu sei.

Deixaram o carrinho num barranco, tapado com o oleado, e subiram a encosta por entre os postes escuros das árvores mortas até onde ele avistara uma longa saliência rochosa e sentaram-se por baixo da laje de pedra e ficaram a contemplar as cortinas cinzentas de chuva que o vento soprava através do vale. Estava muito frio. Sentaram-se os dois, aninhados um contra o outro, cada qual embrulhado num cobertor por cima do casaco, e ao fim de um certo tempo a chuva parou e só se ouvia o tamborilar das gotas na floresta.

Quando as nuvens se dissiparam, desceram até ao carrinho e retiraram o oleado e pegaram nos cobertores e nas coisas de que iam precisar para a noite. Tornaram a subir a encosta e acamparam na terra seca por baixo dos rochedos e o homem sentou-se e abraçou o rapaz, tentando aquecê-lo. Embrulhados nos cobertores, a perscrutarem as trevas sem nome que os vinham amortalhar. A silhueta cinzenta da cidade eclipsou-se como uma aparição assim que a noite caiu e ele acendeu a candeiazinha e pô-la mais atrás, para a resguardar do vento. Depois encaminharam-se para a estrada e ele pegou na mão do rapaz e subiram até ao alto da colina onde a estrada transpunha o cume e onde podiam espraiar a vista pela paisagem a sul que a escuridão ia cobrindo, ali parados ao vento, embrulhados nos cobertores, procurando qualquer indício de fogueira ou candeia. Não se via nada. A candeia nos rochedos, na encosta do monte, pouco mais era do que um salpico de luz e, ao fim de um certo tempo, regressaram. Tudo demasiado encharcado para fazerem lume. Comeram a magra refeição fria e deitaram-se, envoltos nos cobertores, com a candeia entre eles. Ele tinha trazido o livro do rapaz, mas este estava cansado de mais para ler. Podemos deixar a candeia acesa até eu adormecer?, perguntou. Sim. É claro que podemos.

Demorou imenso tempo a adormecer. Ao fim de um bocado, virou-se e olhou para o homem. Sob a luz ténue via-se-lhe o rosto raiado de negro da chuva como um actor trágico do velho mundo. Posso perguntar-te uma coisa?, disse.

Sim. Claro que sim.

Vamos morrer?

Um dia havemos de morrer. Mas não agora.

E continuamos a ir para sul.

Sim.

Para não termos tanto frio.

Sim.

Está bem.

Está bem o quê?

Nada. Está bem, só isso.

Dorme.

Está bem.

Vou apagar a candeia. Pode ser?

Sim. Pode ser.

E depois, mais tarde, nas trevas: Posso perguntar-te uma coisa?

Sim. Claro que podes.

O que é que fazias se eu morresse?

Se tu morresses, eu ia querer morrer também.

Para poderes ir ter comigo?

Sim. Para poder ir ter contigo.

Está bem.

Ficou deitado à escuta, a ouvir a água que gotejava nos bosques. Era a rocha-mãe à flor da terra. O frio e o silêncio. As cinzas do mundo falecido arrastadas para um lado e para o outro no vazio pelos ventos gélidos e efémeros, portadores do tempo. Arrastadas para novos lugares e espalhadas pelo chão e de novo arrastadas. Tudo desligado dos respectivos alicerces, tudo a pairar no ar cinzento, sem qualquer ponto de apoio. Suspenso por uma aragem, trémula e fugaz. Se ao menos o meu coração fosse de pedra.

Acordou antes da alvorada e viu nascer o dia cinzento. Vagaroso e se-miopaco. Levantou-se enquanto o rapaz ainda dormia e calçou os sapatos e, embrulhado no cobertor, afastou-se por entre as árvores. Desceu até uma fenda na rocha e ali se agachou a tossir e tossiu durante muito tempo. Depois deixou-se ficar somente ajoelhado nas cinzas. Ergueu o rosto para o dia exangue. Estás aí?, sussurrou. Irei ver-te no derradeiro momento? Tens pescoço para eu te poder esganar? Tens coração? Amaldiçoado sejas eternamente, tens alma? Oh, Deus, sussurrou. Oh, Deus.

Atravessaram a cidade ao meio-dia do dia seguinte. Ele mantinha a pistola ao alcance da mão, sobre o oleado que dobrara em cima do carrinho. Não deixou que o rapaz se afastasse. A maior parte da cidade ardera. Nenhum sinal de vida. Carros nas ruas cobertos de cinza, tudo sob um manto de cinza e poeira. Rastos fossilizados na lama seca. Um cadáver ressequido à porta de uma casa, dir-se-ia que feito de cabedal, a lançar ao dia um sorriso rasgado. Ele puxou o rapaz para mais perto de si. Lembra-te só de que as coisas que pomos na cabeça ficam lá para sempre, disse. Talvez seja melhor pensares nisto.

Esquecemo-nos de algumas coisas, não é? Sim. Esquecemo-nos do que queríamos recordar e recordamos o que queríamos esquecer.

Havia um lago a quilómetro e meio da quinta do tio dele onde costumavam ir os dois no Outono buscar lenha. Ele sentava-se na popa do barco e deixava a mão mergulhar na esteira fria enquanto o tio se curvava sobre os remos. Os pés do velhote, enfiados nos sapatos pretos de pelica, faziam força contra os suportes do banco fronteiro. O tio de chapéu de palha, com o cachimbo de sabugo de milho entre os dentes e um delgado fio de saliva a pender do fornilho. Virou-se para lançar um olhar à margem oposta, com as mãos pousadas nos cabos dos remos, e tirou o cachimbo da boca para limpar o queixo com as costas da mão. A margem encontrava-se orlada de vidoeiros que se destacavam, alvacentos como ossos, sobre o escuro das coníferas por trás. Na borda do lago via-se uma amálgama de cepos nodosos, cinzentos e carcomidos pelo tempo, as árvores que um furacão derrubara anos antes. As árvores propriamente ditas há muito que tinham sido serradas para dar lenha e a madeira levada dali. O tio guinou o barco e pousou os remos no fundo e sulcaram a água sobre os baixios arenosos até que a popa raspou na areia. Uma perca morta baloiçava de barriga para cima na água límpida. Folhas amarelas. Deixaram os sapatos nas tábuas pintadas e quentes e arrastaram o barco até à margem e lançaram a âncora no extremo da corda. Um balde metálico de banha de porco cheio de cimento com uma argola de ferro no meio. Caminharam ao longo da margem enquanto o tio examinava os cepos, a puxar fumaças do cachimbo, com uma corda de cânhamo enrolada ao ombro. Escolheu um e fizeram-no rodar, usando as raízes à laia de alavancas, até o terem posto meio a flutuar na água. As calças arregaçadas até ao joelho, mas ainda assim ficaram molhadas. Ataram a corda a um gancho na popa e remaram de regresso a casa, atravessando o lago, a arrastar o cepo lentamente atrás do barco. Por essa altura já a noite caíra. Somente o ranger e o deslizar vagaroso e ritmado dos remos nas forquetas. O vidro escuro do lago e janelas iluminadas a surgirem ao longo da margem. Um rádio a tocar algures. Nenhum deles proferira uma só palavra. Eis o dia perfeito da sua infância. O dia que haveria de moldar todos os dias vindouros.

 

Solitários e acossados, calcorrearam a estrada para sul nos dias e semanas seguintes. Uma região agreste e montanhosa. Casas de alumínio. Por vezes, avistavam trechos da auto-estrada interestadual abaixo deles, por entre os troncos despidos das matas outrora plantadas por mão humana. Estava frio e cada vez arrefecia mais. Logo após terem transposto a garganta no alto da montanha, pararam na berma do grande abismo e ficaram os dois a olhar para sul, para a vastidão da paisagem que fora devorada pelas chamas até onde a vista alcançava, com as formas enegrecidas dos rochedos a sobressaírem dos montículos de cinza e vagas de cinza a erguerem-se do solo, sopradas para longe através da devastação. O rasto do Sol mortiço a mover-se, invisível, por trás da névoa.

Demoraram vários dias a transpor aquela vastidão cauterizada. O rapaz encontrara uns lápis de cera e pintou uns dentes aguçados na máscara e caminhava a custo, mas sem se queixar. Uma das rodas da frente do carrinho já não girava bem. O que fazer? Nada. Pois que tudo estava queimado e reduzido a cinzas em volta deles, não era possível fazer lume e as noites eram longas e escuras e frias como nunca até então se lhes havia deparado. Um frio capaz de rachar as pedras, de roubar a vida às pessoas. Ele apertava contra si o rapaz sacudido por calafrios e contava cada frágil respiração nas trevas.

Acordou com o som dos trovões distantes e soergueu-se. A luz ténue cobria tudo, palpitante, sem se perceber de onde provinha, refractada na chuva de fuligem que pairava no ar. Puxou o oleado de modo a cobri-los a ambos e ficou acordado muito tempo, à escuta. Se se molhassem, não haveria fogueiras a que se pudessem secar. Se se molhassem, provavelmente morreriam.

As trevas que via naquelas noites, ao acordar, eram cegas e impenetráveis. Trevas que feriam os ouvidos de tanto escutar. Muitas vezes, tinha de se levantar. Nenhum som a não ser o vento nas árvores enegrecidas e sem folhas. Punha-se de pé e ficava, titubeante, naquela escuridão fria e autista, de braços estendidos para manter o equilíbrio enquanto os cálculos vestibulares dentro do crânio determinavam laboriosamente a posição do seu corpo. Uma velha história, procurar a posição erecta. Todas as quedas são precedidas por uma inclinação. Mergulhava no vazio com grandes passadas, contando-as para depois regressar ao ponto de partida. De olhos fechados, a mover os braços como se fossem remos. Na posição erecta em relação a quê? Algo sem nome na noite, filão ou matriz, de que tanto ele como as estrelas eram satélites. Como o grande pêndulo suspenso da sua cúpula a traçar durante o longo dia os movimentos do universo de que talvez possamos dizer que nada sabe, e, todavia, não pode deixar de saber.

Levaram dois dias a atravessar aquela região cor de cinza, sulcada de cicatrizes. Dali em diante, a estrada corria ao longo da crista de uma cumeeira, com a floresta sem vida a cobrir todas as vertentes em volta. Está a nevar, disse o rapaz. Ele olhou para o céu. Um floco de neve, cinzento e solitário, a tombar muito devagarinho. Apanhou-o na palma da mão e ficou a vê-lo expirar ali como a derradeira hóstia da cristandade.

Avançavam juntos, com o oleado a cobri-los a ambos. Os flocos húmidos e cinzentos rodopiavam, caindo do vazio, dir-se-ia. Lama cinzenta na berma. Água negra a escorrer de baixo dos montes de cinza ensopada. Já não se viam fogueiras de aviso nas serranias distantes. O homem achava que as seitas sanguinárias se deviam ter devorado por completo umas às outras. Ninguém percorria aquela estrada. Nem agentes do asfalto, nem salteadores. Ao fim de um certo tempo chegaram a uma garagem junto à estrada com as portas abertas e cruzaram a soleira e ficaram ali parados, a contemplar o granizo cinzento que tombava das terras altas ao sabor da ventania.

Amontoaram alguns caixotes velhos e fizeram uma fogueira no chão e o homem encontrou umas ferramentas e esvaziou o carrinho e sentou-se a consertar a roda. Desenroscou o parafuso e retirou o casquilho com uma broca manual e revestiu-o com uma secção de tubo que cortara na medida certa com uma serra de arco. Depois tornou a montar as peças todas e apertou o parafuso e pôs o carrinho direito e fê-lo rodar de um lado para o outro. As rodas giravam bastante bem. Sentado no chão, o rapaz observara tudo.

De manhã retomaram a caminhada. Uma paisagem lúgubre. Uma pele de javali pregada à porta de um celeiro. Ratada. A cauda um mero tufo de pêlo. Dentro do celeiro, três cadáveres suspensos das traves do telhado, ressequidos e cobertos de pó por entre as ripas mortiças de luz. Talvez haja aqui alguma coisa, disse o rapaz. Talvez haja milho ou outra coisa qualquer. Vamos embora, disse o homem.

Preocupava-se principalmente com os sapatos de ambos. Com isso e com a comida. Sempre a comida. Num velho fumeiro feito de tábuas encontraram um presunto pendurado num recanto alto. Parecia desenterrado de uma sepultura, de tão ressequido e mirrado. Ele cortou um bocado com a faca. A carne era vermelho-escura e salgada, com sabor intenso e agradável. Nessa noite, fritaram grossas fatias na fogueira e depois cozinharam-nas em lume brando com uma lata de feijão. Mais tarde, ele acordou nas trevas e pareceu-lhe ter ouvido grandes tambores tribais a rufarem algures nos montes escuros e baixos. Depois o vento mudou e ficou apenas o silêncio.

Em sonhos, via a noiva pálida vir ao seu encontro, emergindo de um dossel de folhagem verde, com os mamilos besuntados de argila branca e as costelas pintadas também de branco. Trazia um vestido de gaze e usava o cabelo escuro preso no alto da cabeça com pentes de marfim, pentes de madrepérola. O sorriso dela, os olhos fitos no chão. De manhã estava outra vez a nevar. Pequenas contas de gelo cinzento penduradas ao longo dos fios eléctricos, lá no alto.

Ele desconfiava de tudo isto. Dizia que os sonhos apropriados para um homem em perigo eram sonhos de perigo e que tudo o resto era o chamamento do langor e da morte. Dormia pouco e mal. Tinha sonhos em que ele e o rapaz caminhavam por um bosque em flor onde os pássaros voavam diante deles e o céu era tão azul que fazia doer a alma, mas estava a aprender a despertar precisamente quando penetrava nesses mundos em forma de cantos de sereia. Ali deitado no escuro com o misterioso sabor de um pêssego proveniente de um qualquer pomar fantasma a dissipar-se na boca. Pensava que, se vivesse o suficiente, o mundo acabaria por se perder totalmente. Como o mundo agonizante habitado pelos que ficaram cegos há pouco tempo, todo ele a desvanecer-se lentamente da memória.

Quanto aos devaneios que o acometiam na estrada, não havia despertar que os interrompesse. Continuava a caminhar penosamente. Recordava tudo acerca dela menos o cheiro. Sentado numa sala de espectáculos com ela a seu lado, debruçada para diante, a escutar a música. Volutas e candelabros dourados e as altas pregas colunares das cortinas em ambos os extremos do palco. Ela pegou-lhe na mão e puxou-lha para o regaço e ele sentiu a orla superior das meias dela através do tecido fino do vestido de Verão. Fixa este instantâneo. Agora faz tombar as tuas trevas e o teu frio e amaldiçoado sejas.

Improvisou uns resguardos usando duas vassouras velhas que encontrara e prendeu-as com arame ao carrinho para afastar os ramos da estrada diante das rodas e sentou o rapaz dentro do cesto e pôs-se de pé no varão traseiro como o condutor de um trenó puxado por cães e lançaram-se pelas encostas abaixo, guiando o carrinho nas curvas com o peso dos seus corpos à maneira de praticantes de bobsled. Era a primeira vez desde há muito tempo que via o rapaz sorrir.

No cume do monte havia uma curva e um desvio na estrada. Um velho carreiro que se afastava através das árvores. Percorreram-no e sentaram-se num banco e olharam ao longe por sobre o vale, onde a terra se espraiava numa ondulação suave até mergulhar no nevoeiro que parecia uma cortina de areia. Um lago lá em baixo, frio e cinzento, a marcar a escudela raspada até ao osso da paisagem.

O que é aquilo, papá?

É uma barragem.

Para que é que serve?

Formou o lago. Antes de construírem a barragem, aquilo era um rio como os outros. A barragem usava a água que passava através dela para fazer girar umas grandes pás chamadas turbinas, que produziam electricidade.

Para as pessoas terem luz.

Sim. Para as pessoas terem luz.

Podemos ir até lá abaixo ver?

Acho que é demasiado longe.

A barragem vai ficar ali durante muito tempo?

Parece-me que sim. É feita de betão. Provavelmente, vai durar centenas de anos. Milhares, até.

Achas que é capaz de haver peixes no lago?

Não. Não há nada no lago.

Naquela época tão distante, num lugar muito próximo dali, ele vira um falcão a descer a pique junto à longa falésia azul da montanha e esfacelar com a quilha do esterno o grou que voava no centro de um bando dessas aves e levá-lo para o rio lá em baixo, tão flácido e destroçado, com a plumagem a pender, frouxa e em desalinho, no ar parado de Outono.

O ar granuloso tinha um sabor que nunca se desvanecia na boca. Ficaram parados à chuva como duas reses domésticas. Depois prosseguiram, segurando o oleado acima das cabeças sob o chuvisco mortiço. Tinham os pés molhados e frios e os sapatos cada vez mais estragados. Nas encostas, velhas colheitas mortas e derrubadas. As árvores secas no espinhaço dos montes, angulosas e negras sob a chuva.

E os sonhos tão cheios de cores. Que outro chamamento a morte utilizaria para atrair os vivos? Ao acordar no alvorecer frio, tudo se convertia de imediato em cinza. Como certos frescos antigos sepultados durante séculos, subitamente expostos à luz do dia.

O tempo melhorou e ficou menos frio e penetraram finalmente nas planícies do amplo vale do rio, com os campos de cultivo emparcelados ainda visíveis, tudo morto até à raiz nas terras de aluvião ressequidas. Continuaram a calcorrear o asfalto. Casas altas revestidas de ripas, com telhados de chapa ondulada. Um celeiro de toros num campo com um letreiro numa das abas do telhado, a todo o comprimento, escrito em letras desbotadas de três metros de altura. Visite Rock City.

As sebes na berma da estrada tinham-se transformado em fiadas de sarças negras e retorcidas. Nenhum sinal de vida. Deixou o rapaz parado na estrada, de pistola em punho, enquanto subia um lanço de vetustos degraus de calcário e percorria o alpendre de uma casa rural, a espreitar pelas janelas com as mãos em pala sobre os olhos. Entrou pela porta da cozinha. Lixo pelo chão, jornais velhos. Porcelanas num guarda-louça, chávenas suspensas dos ganchinhos. Percorreu o corredor e parou diante da porta da sala de estar. Ao canto via-se um harmónio já muito antigo. Um televisor. Poltronas e sofás baratos ao lado de um velho roupeiro-cómoda de cerejeira feito à mão. Subiu as escadas e percorreu os quartos de dormir. Tudo coberto de cinza. Um quarto de criança com um cão de peluche no parapeito da janela, a olhar para o jardim. Vasculhou os guarda-roupas. Puxou a roupa para os pés das camas e encontrou dois cobertores de lã em bom estado e tornou a descer as escadas. Na despensa havia três boiões de conservas caseiras de tomate. Soprou o pó das tampas e examinou-as. Alguém antes dele não as achara dignas de confiança e ele também acabou por não achar e saiu da casa com os cobertores ao ombro e tornaram a partir estrada fora.

Nos arrabaldes da cidade chegaram a um supermercado. Alguns carros de modelos antigos no parque de estacionamento juncado de lixo. Deixaram ali o carrinho e percorreram os corredores pejados de detritos entre as prateleiras. Na secção de legumes e fruta, no fundo dos caixotes, encontraram um punhado de feijões encarnados já antigos e aquilo que outrora pareciam ter sido damascos, há muito ressequidos até se transformarem em efígies enrugadas de si mesmos. O rapaz seguia as passadas do homem. Saíram pela porta das traseiras. Na ruela por trás do edifício estavam alguns carrinhos de compras, todos muito enferrujados. Tornaram a percorrer o supermercado em sentido inverso, procurando outro carrinho, mas não havia nenhum. Junto à porta encontravam-se duas máquinas de venda de refrigerantes que alguém fizera tombar no chão e arrombara com um pé-de-cabra. Imensas moedas caídas na cinza. Ele sentou-se e vasculhou com a mão o mecanismo das máquinas esventradas e, na segunda, os dedos fecharam-se em volta de um cilindro de metal frio. Retirou a mão devagar e ficou ali sentado, a olhar para uma lata de Coca-Cola.

O que é isso, papá?

É uma guloseima. Para ti.

O que é?

Anda cá. Senta-te.

Soltou as alças da mochila do rapaz e pousou a mochila no chão atrás dele e enfiou a unha do polegar por baixo da cavilha de alumínio na parte superior da lata e abriu-a. Aproximou o nariz da ténue efervescência que brotava da abertura e depois estendeu a lata ao rapaz. Bebe, disse.

O rapaz pegou na lata. Faz bolhinhas, disse.

Vá, bebe.

Olhou para o pai e depois inclinou a lata e bebeu. Permaneceu imóvel alguns momentos, a pensar no sabor. É mesmo bom, disse.

Sim, é.

Bebe um bocadinho, papá. Quero que sejas tu a beber. Bebe um bocadinho.

Ele pegou na lata e beberricou um gole e devolveu-a ao rapaz. Bebe tu, disse. Ficamos aqui os dois sentados.

É porque eu nunca mais vou beber outra igual, não é? Nunca é imenso tempo. Está bem, disse o rapaz.

Ao crepúsculo do dia seguinte chegaram à cidade. As longas curvas de betão dos viadutos da auto-estrada interestadual pareciam as ruínas de um enorme parque de diversões sobre o fundo distante de névoa. Ele trazia o revólver no cinto, à frente, e o fecho da parka desapertado. Mortos mumificados por toda a parte. A carne agarrada ao longo dos ossos, os ligamentos secos, a repuxarem os membros, retesados como arames. Engelhados e ressequidos como modernos homens das turfeiras, os rostos de tela recozida, as paliçadas amarelecidas dos dentes. Do primeiro ao último, todos estavam descalços como romeiros da mesma ordem mendicante, pois há muito que lhes tinham roubado os sapatos.

Prosseguiram. Ele olhava constantemente para o espelho retrovisor, atento ao que se passava atrás de si. A única coisa que se movia nas ruas era a cinza soprada pelo vento. Atravessaram a grande ponte de betão sobre o rio. Um cais lá em baixo. Pequenos barcos de recreio meio afundados na água cinzenta. Altas chaminés a jusante, obscurecidas pela fuligem.

No dia seguinte, alguns quilómetros a sul da cidade, numa curva da estrada e parcialmente oculta pelas silvas mortas, chegaram a uma velha casa com o vigamento de madeira à vista, com chaminés e empenas e um muro de pedra em volta. O homem parou, depois empurrou o carrinho pela rampa acima.

Que casa é esta, papá?

É a casa onde eu cresci.

O rapaz ficou parado a olhar para o edifício. As ripas de madeira tinham a pintura estalada e a cair e, na parte inferior das paredes, alguém as arrancara quase todas para lenha, deixando à vista as cavilhas e o isolamento. Os painéis de rede mosquiteira da varanda das traseiras jaziam, apodrecidos, no pátio de cimento nu.

Vamos entrar?

Porque não?

Tenho medo.

Não queres ver a casa onde eu vivi em pequeno?

Não.

Não vai haver problema.

Pode estar alguém lá dentro.

Não me parece.

Mas imagina que está?

Ele ficou parado, de olhos erguidos para a empena do seu antigo quarto. Olhou para o rapaz. Queres esperar aqui?

Não. Dizes sempre isso.

Não é por mal.

Eu sei. Mas dizes.

Deixaram escorregar as mochilas das costas e pousaram-nas no pátio e avançaram pela varanda, afastando o lixo com os pés, e abriram caminho até à cozinha. O rapaz não lhe soltava a mão. Tudo muito parecido com as recordações dele. As divisões vazias. No quartinho contíguo à sala de jantar havia uma pequena cama de ferro sem roupas, uma mesa metálica desmontável. Dentro da pequena lareira, a mesma grelha de ferro fundido para o carvão. As almofadas de pinho tinham desaparecido das paredes, deixando apenas as ripas de madeira das juntas. O homem ficou ali parado. Apalpou com o polegar a madeira pintada do friso da lareira, procurando os buracos deixados pelas tachas que, quarenta anos antes, seguravam as peúgas. Era aqui que nós festejávamos o Natal quando eu era miúdo. Virou-se e olhou pela janela e remirou o quintal votado ao abandono. Um emaranhado de lilases mortos com a forma de uma sebe. Nas noites frias de Inverno, quando a luz faltava durante uma tempestade, sentávamo-nos aqui junto ao lume, eu e as minhas irmãs, a fazer os trabalhos de casa. O rapaz observava-o. Via-o atraído por espectros que ele próprio não conseguia ver. É melhor irmos embora, papá, disse. Sim, respondeu o homem. Mas não se mexeu.

 

Cruzaram a sala de jantar onde os tijolos refractários da lareira estavam tão amarelos como no dia em que tinham sido colocados, porque a mãe dele não suportava vê-los enegrecidos. O soalho todo empenado da água da chuva. Na sala de estar via-se um montículo de ossos, o esqueleto desmembrado de um pequeno animal. Possivelmente um gato. Um copo de vidro junto à porta. O rapaz agarrava-lhe a mão com força. Subiram as escadas e entraram no corredor e percorreram-no. No chão, pequenos cones de estuque húmido. As traves de madeira do tecto à vista. Ele parou na soleira da porta daquele que fora o seu quarto. Um espaço exíguo por baixo de uma aba do telhado. Era aqui que eu dormia. A minha cama era contra esta parede. As incontáveis noites para sonhar os sonhos que brotam das fantasias de uma criança, mundos magníficos ou assustadores consoante o modo como emergem, mas nunca o mundo que virá a ser. Abriu a porta do roupeiro, quase à espera de encontrar os objectos da sua meninice. A luz do dia, agreste e gélida, penetrava através do telhado. Cinzenta como o coração dele.

É melhor irmos embora, papá. Podemos ir?

Sim. Podemos ir.

Tenho medo.

Eu sei. Desculpa.

Tenho muito medo.

Pronto, já passou. Não devíamos ter vindo.

Três noites mais tarde, no sopé das montanhas orientais, acordou nas trevas ao ouvir algo que se aproximava. Ficou estendido, com as mãos de ambos os lados do corpo. O solo tremia. O abalo vinha ao encontro deles.

Papá?, disse o rapaz. Papá?

Chiu. Está tudo bem.

O que é, papá?

O abalo acercou-se, cada vez mais intenso. Tudo estremecia. Depois passou por baixo deles como uma composição de metropolitano e afastou-se na noite e desapareceu. O rapaz abraçou-se a ele a chorar, com a cabeça escondida no seu peito. Chiu. Não há perigo.

Tenho tanto medo.

Eu sei. Não há perigo. Já passou.

O que era aquilo, papá?

Era um tremor de terra. Agora já passou. Não nos vai acontecer mal nenhum. Chiu.

Naqueles primeiros anos, as estradas estavam cheias de refugiados amortalhados nas suas roupas. Usavam máscaras e óculos de protecção, sentados na berma com os seus andrajos no corpo, quais aviadores reduzidos à indigência. Traziam carrinhos de mão a abarrotar de bugigangas, puxavam carroças ou reboques. De olhos a brilhar no crânio. Carapaças de homens sem uma réstia de fé aos tropeções pelos viadutos, como bandos migratórios numa terra febril. A fragilidade de todas as coisas enfim revelada. Velhos dilemas inquietantes esvaziados de sentido, dando lugar ao nada e à noite. O derradeiro exemplo de uma coisa leva consigo toda a categoria. Apaga a luz e desaparece. Olha à tua volta. Nunca é imenso tempo. Mas uma coisa o rapaz sabia. Que nunca é apenas um breve instante.

Sentou-se junto a uma janela cinzenta à luz cinzenta do final da tarde, numa casa abandonada, e leu velhos jornais enquanto o rapaz dormia. As curiosas notícias. As bizarras preocupações. As ónagras fecham as pétalas às oito. Contemplou o rapaz adormecido. Serás capaz de fazer o que tem de ser feito? Quando o momento chegar? Serás capaz?

Acocoraram-se na estrada e comeram arroz frio e feijão frio que tinham cozinhado alguns dias antes. Já com um certo sabor a azedo. Não havia lugar onde pudessem fazer uma fogueira que não se visse. Dormiam aninhados um contra o outro nas mantas fétidas, no escuro e no frio. Ele apertava o rapaz contra si. Tão magro. Meu amor, dizia. Meu amor. Mas sabia que, mesmo que agisse como um bom pai, era bem possível que ela tivesse razão no que dissera. Que o rapaz era o único obstáculo que se erguia entre ele e a morte.

O final do ano aproximava-se. Ele mal sabia em que mês estavam. Achava que tinham comida suficiente para atravessar as montanhas, mas não havia maneira de saber ao certo. A garganta no cume da serrania situava-se a mil e quinhentos metros de altitude e lá faria muito frio. Ele dizia que tudo estava dependente de conseguirem chegar à costa, mas, ao acordar de noite, sabia que estas palavras eram vãs e desprovidas de fundamento. Era bem mais provável que morressem nas montanhas e que a história findasse ali.

Passaram pelas ruínas de uma estância turística e meteram pela estrada para sul. Florestas queimadas nas encostas ao longo de quilómetros e quilómetros e neve mais cedo do que ele estava à espera. Nenhum rasto na estrada, nenhum sinal de vida em parte alguma. Os pedregulhos enegrecidos pelo fogo assemelhavam-se a silhuetas de ursos nas vertentes cobertas de bosques agrestes e nus. Ele parou no tabuleiro de uma ponte de pedra onde as águas lodosas tombavam num pego e remoinhavam vagarosamente na espuma cinzenta. Onde em tempos ele vira trutas a oscilarem na corrente e observara as sombras perfeitas desenhadas nas pedras do fundo. Retomaram a marcha, com o rapaz a caminhar penosamente na sua peugada e ele inclinado sobre o carrinho, a subir devagar aos ziguezagues pelas encostas escarpadas. Ainda havia incêndios a lavrar no alto das montanhas e de noite eles viam a luz que emanava das chamas, de um cor de laranja escuro na chuva de fuligem. Estava a ficar mais frio, mas eles ateavam fogueiras todas as noites e deixavam-nas acesas atrás de si na manhã seguinte, quando tornavam a partir. Ele embrulhara os pés de ambos em sacos atados com cordel e até ao momento a neve tinha escassos centímetros de espessura, mas sabia que, se o manto de neve se tornasse muito espesso, seriam obrigados a abandonar o carrinho. Já assim o avanço era difícil e ele parava muitas vezes para descansar. Caminhava a custo até à berma da estrada, de costas para o filho, e ali ficava curvado, de mãos nos joelhos, a tossir. Endireitava-se e quedava-se um momento, de olhos lacrimejantes. Na neve cinzenta havia uma ténue nuvem de sangue.

Acamparam junto a um penedo e ele armou um abrigo de paus com o oleado. Acendeu o lume e começaram a reunir uma grande pilha de lenha que chegasse para toda a noite. Tinham amontoado sobre a neve uma amálgama de ramos mortos de abeto e estavam sentados, embrulhados nos cobertores, a contemplar o fogo e a beber o resto do pacote de cacau encontrado algures semanas antes. Nevava outra vez, flocos macios a tombar suavemente das trevas. Ele dormitava no calor maravilhoso. A sombra do rapaz passou-lhe sobre o corpo, a transportar uma braçada de lenha. Ficou a vê-lo atiçar as chamas. O meteoro chamejante de Deus. As faúlhas precipitaram-se para o alto e sucumbiram no negrume sem estrelas. Nem todas as palavras prestes a morrer são portadoras da verdade e a bênção que proporcionam não é menos genuína por se ver privada dos seus fundamentos.

Acordou quase ao amanhecer com a fogueira reduzida a brasas e caminhou até à estrada. A luz banhava tudo, como se o Sol perdido estivesse finalmente a regressar. A neve cor de laranja e pulsante. Acima deles, ao longo das cumeeiras que a mais leve faúlha abrasava, um incêndio florestal ia avançando, a chamejar e a tremeluzir como a aurora boreal sobre o fundo de nuvens escuras. Apesar do frio, ele ficou ali parado muito tempo. Aquela cor despertou-lhe no peito algo há muito esquecido. Faz uma lista. Recita uma ladainha. Recorda.

O frio era agora mais intenso. Nada se movia naquele mundo em altitude. Um cheiro penetrante a madeira queimada pairava sobre a estrada. Ele empurrava o carrinho através da neve, avançando sem cessar. Alguns quilómetros em cada dia. Não fazia ideia a que distância se situava o cume. Comiam pouco e estavam sempre com fome. Parado na estrada, contemplou a lonjura. Um rio lá muito em baixo. Até onde teriam chegado?

No seu sonho, ela estava doente e ele tratava dela. O sonho tinha aparência de sacrifício, mas as recordações dele eram outras. Não cuidara dela e ela morrera sozinha, algures nas trevas, e não há outro sonho nem outro mundo acordado e não há outra história para contar.

Nesta estrada não há homens criados por Deus. Desapareceram todos e eu fiquei e eles levaram o mundo consigo. Pergunta: Em que é que o que nunca existirá difere do que nunca existiu?

As trevas da Lua invisível. As noites agora somente um pouco menos negras. De dia, o Sol banido roda em volta da Terra como uma mãe aflita de candeia na mão.

Pessoas sentadas nos passeios ao alvorecer, parcialmente imoladas e fumegantes nas suas roupas. Como membros de seitas após tentativas falhadas de suicídio. Outros aproximavam-se para os ajudar. Ao fim de um ano havia fogueiras no cume dos montes e cânticos tresloucados.

Os gritos das pessoas assassinadas. De dia, os mortos empalados em paus aguçados ao longo da estrada. Que mal teriam eles feito? Parecia-lhe bem possível que, na história do mundo, houvesse mais castigo do que crime, mas isso não lhe proporcionava grande consolo.

O ar tornava-se rarefeito e ele achava que o cume já não podia estar longe. Talvez amanhã. Amanhã veio e passou. Não tornara a nevar, mas a neve na estrada tinha quinze centímetros de espessura e a tarefa de empurrar o carrinho por aqueles declives acima era esgotante. Estava convencido de que iam ter de o abandonar. Que peso conseguiriam carregar às costas? Imóvel, olhou ao longe, contemplando os montes despidos. A cinza tombou na neve até a deixar quase negra.

A cada curva dava a impressão de que o desfiladeiro era mesmo ali, até que certo dia, à tardinha, ele estacou e olhou em volta e reconheceu o lugar. Desapertou o botão do pescoço da parka e baixou o capuz e ficou à escuta. O vento nos bosques negros e mortos de abetos. O parque de estacionamento vazio no miradouro. O rapaz parou junto dele. Onde certa vez, num Inverno há muito tempo, ele próprio parara junto do pai. O que é, papá?, perguntou o rapaz.

É o desfiladeiro. É aqui mesmo.

Na manhã seguinte retomaram a marcha bem cedinho. Estava muito frio. À tarde começou a nevar outra vez e acamparam cedo e agacharam-se por baixo do toldo de oleado e ficaram a ver a neve a tombar na fogueira. Ao amanhecer havia no solo mais uns bons centímetros de neve recente, mas parara de nevar e o silêncio era tão profundo que eles quase conseguiam ouvir os próprios corações. Ele amontoou lenha sobre as brasas e atiçou-as até reavivar as chamas e afastou-se, a caminhar penosamente sobre os montões de neve, para desenterrar o carrinho. Examinou as várias latas e regressou para junto do rapaz e sentaram-se diante da fogueira e comeram as últimas bolachas de água e sal e uma lata de salsichas. Numa bolsa da mochila ele encontrara um pacote de cacau meio cheio, o último que lhes restava, e preparou a bebida para o rapaz e depois encheu a própria caneca de água quente e ficou recostado, a soprar para o bordo.

Prometeste que não fazias isso, disse o rapaz.

O quê?

Tu sabes o quê, papá.

Despejou a água quente para dentro da caçarola e pegou na caneca do rapaz e verteu uma parte do cacau para dentro da sua e depois devolveu-lha.

Tenho de estar sempre de olho em ti, disse o rapaz.

Eu sei.

Quem quebra as pequenas promessas também quebra as grandes. Foi o que tu disseste.

Eu sei. Mas eu não vou fazer isso.

Caminharam a custo o dia inteiro, descendo a vertente sul da serrania. Nos pontos onde a neve era mais espessa o carrinho recusava-se a avançar e ele tinha de o arrastar atrás de si com uma mão enquanto abria caminho com os pés. Em qualquer outro lugar que não nas montanhas ter-lhes-ia sido fácil encontrar alguma coisa para usar como trenó. Um velho letreiro metálico ou uma chapa de zinco de um telhado. Os trapos que lhes embrulhavam os pés estavam encharcados e eles sentiram-se frios e húmidos durante todo o dia. Debruçado sobre o carrinho, ele recuperava o fôlego enquanto o rapaz esperava. Ouviu-se um estalo seco vindo algures da montanha. Depois outro. É só uma árvore a cair, disse ele. Não há problema. O rapaz tinha os olhos fitos nas árvores mortas da berma da estrada. Não há problema, repetiu o homem. Mais cedo ou mais tarde, todas as árvores do mundo vão cair. Mas não em cima de nós.

Como é que sabes?

Porque sei.

Ainda assim, deparavam com árvores atravessadas na estrada que os obrigavam a descarregar o carrinho e transportar tudo por cima dos troncos e tornar a pôr tudo lá dentro do lado oposto. O rapaz encontrou brinquedos de cuja existência já se esquecera. Pôs de parte uma camioneta amarela e seguiram caminho com esta pousada em cima do oleado.

Acamparam num socalco de terra, na margem oposta de um regato gelado muito próximo da estrada. O vento soprara as cinzas de cima do gelo e o gelo tinha uma cor negra e o regato parecia um carreiro de basalto a serpentear através do bosque. Apanharam lenha no lado norte da encosta, onde não estava tão húmida, fazendo tombar árvores inteiras que depois arrastavam até ao acampamento. Atearam o fogo e abriram o oleado e penduraram as roupas molhadas em paus para secarem, fumegantes, e para perderem algum do mau cheiro, e sentaram-se embrulhados nas mantas, despidos, enquanto o homem segurava os pés do rapaz contra a própria barriga para lhos aquecer.

Acordou a choramingar em plena noite e o homem abraçou-o. Chiu, disse. Chiu. Já passou.

Tive um sonho mau.

Eu sei.

Queres que te conte como foi?

Se quiseres.

Eu tinha um pinguim e tu davas-lhe corda e o boneco bamboleava-se e abanava as asas. E nós estávamos naquela casa onde vivíamos dantes e o boneco aparecia ao fundo do corredor mas ninguém lhe tinha dado corda e metia imenso medo.

Pronto.

Metia muito mais medo no sonho.

Eu sei. Certos sonhos assustam imenso.

Porque é que eu tive este pesadelo?

Não sei. Mas agora já passou. Vou pôr mais lenha no lume. Tenta adormecer.

O rapaz não respondeu. Depois disse: A mola do boneco não rodava.

Levaram mais quatro dias a abandonar a zona coberta de neve e mesmo então havia manchas de neve em certas curvas da estrada e mais adiante o asfalto continuava ainda negro e molhado da escorrência das terras altas. Alcançaram a orla de uma garganta profunda e lá muito em baixo, na escuridão, passava um rio. Ficaram parados, à escuta.

Altas falésias rochosas na vertente oposta do desfiladeiro, com árvores esguias e negras agarradas à escarpa. O som do rio desvaneceu-se, depois regressou. Um vento frio subia das terras baixas. Demoraram o dia inteiro a alcançar o rio.

Deixaram o carrinho num parque de estacionamento e caminharam através do bosque. Um trovejar surdo vindo do rio. Era uma cascata, com a água a tombar de uma saliência rochosa a vinte e cinco metros de altura, caindo envolta num manto cinzento de névoa, até se precipitar na pequena lagoa cá em baixo. Eles sentiam o cheiro da água e o frio que dela emanava. Um socalco de cascalho molhado que a corrente ali depositara. Ele quedou-se a observar o rapaz. Uau, disse este. Não conseguia tirar os olhos da cascata.

Agachou-se e apanhou um punhado de seixos e cheirou-os e deixou-os cair com um ruído de coisas a entrechocar-se. Redondos e polidos e macios como berlindes ou losangos de pedra, jaspeados e com riscas. Lentículas negras e pedacinhos cintilantes de quartzo polido banhados pela névoa que se elevava do rio. O rapaz acercou-se da margem e agachou-se e encheu as mãos em concha com a água escura.

A cascata tombava quase no centro da lagoa. Em volta formava-se um círculo de coalho cinzento. Parados lado a lado, eles trocavam palavras aos gritos para abafar o estrondo.

Está fria?

Está. Está gelada.

Queres dar um mergulho?

Não sei.

É claro que queres.

Não há perigo?

Anda daí.

Desapertou o fecho da parka e deixou-a cair no cascalho e o rapaz pôs-se de pé e despiram-se e caminharam para dentro de água. Pálidos como fantasmas e percorridos por calafrios. O rapaz tão magro que lhe gelava o coração. Mergulhou de cabeça e veio à tona a arquejar e deu meia volta e ergueu-se, a bater com os braços na água.

Eu ainda tenho pé?, perguntou o rapaz num brado.

Tens. Anda.

Virou-se e nadou até à cascata e deixou que a água lhe caísse em cima. O rapaz estava parado com água pela cintura, agarrado aos ombros e a dar saltinhos para um lado e para o outro. O homem voltou atrás e puxou-o para si. Amparou-o e ajudou-o a boiar, com o rapaz a engasgar-se e a fustigar a água com os braços. Estás a ir muito bem, disse o homem. Estás a ir muito bem.

Vestiram-se, trémulos, e depois subiram o trilho até ao leito superior. Avançaram de pedra em pedra até ao ponto em que o caudal parecia terminar no vazio e ele agarrou o rapaz enquanto este se aventurava até à última laje de rocha. O rio precipitava-se num só jorro sobre a borda com um marulhar intenso e caía a direito até tombar na lagoa, lá em baixo. Ele agarrou-se com força ao braço do homem.

É mesmo alto, disse.

É bastante alto.

Uma pessoa morria se caísse daqui?

Magoava-se. Ainda é uma grande queda.

Isto mete imenso medo.

Embrenharam-se no bosque à luz cada vez mais ténue. Percorreram as zonas alagadiças do trecho superior do rio, por entre as enormes árvores mortas. Uma magnífica floresta meridional que outrora albergara mandrágora e pipsissewa. Ginseng. Os ramos mortos e rudes dos rododendros, retorcidos e nodosos e negros. Ele estacou. Qualquer coisa no meio da manta morta e das cinzas. Curvou-se e afastou os detritos. Uma pequena colónia deles, mirrados, secos e engelhados. Colheu um e aproximou-o do nariz e cheirou-o. Com os dentes, arrancou um pedacinho da borda e mastigou.

O que é isso, papá?

Pantorras. São pantorras.

O que são pantorras?

Uma espécie de cogumelos.

São bons para comer?

Sim. Prova um bocadinho.

Sabem bem?

Prova um bocadinho.

O rapaz cheirou o cogumelo e deu-lhe uma dentada e ficou parado, a mastigar. Olhou para o pai. Isto é bastante bom, disse.

Colheram as pantorras do solo, pequenos seres de aparência bizarra que o homem foi guardando no capuz da parka do rapaz. Voltaram para trás e caminharam até à estrada e desceram até onde tinham deixado o carrinho e acamparam na margem da pequena lagoa, junto à cascata, e lavaram a terra e a cinza das pantorras e puseram-nas de molho numa caçarola cheia de água. Quando ele conseguiu atear o fogo já a noite caíra e, usando um toro à laia de tábua de cozinha, cortou um punhado de cogumelos às rodelas para o jantar, deitou as rodelas para dentro da frigideira juntamente com a carne gorda de porco de uma lata de feijão e pôs a frigideira em cima das brasas para refogar. O rapaz observava-o. Isto é um belo sítio, papá, disse.

Comeram os pequenos cogumelos acompanhados com o feijão e beberam chá e comeram pêras de conserva à sobremesa. Para abafar um pouco o lume, ele amontoou lenha contra a parede rochosa onde acendera a fogueira e pendurou o oleado atrás deles para reflectir o calor e ficaram os dois naquele refúgio, muito quentinhos, enquanto ele contava histórias ao rapaz. Velhas histórias de coragem e justiça tal como ele as recordava até que o rapaz adormeceu, embrulhado nos cobertores, e então ele atiçou o lume e deitou-se, quente e saciado, e ficou à escuta do trovejar surdo da queda-d'água ali bem perto, naquela floresta sombria e andrajosa.

Na manhã seguinte afastou-se e seguiu o carreiro junto à margem para jusante. O rapaz tinha razão ao dizer que aquele era um belo sítio e ele queria averiguar se havia sinais de outros visitantes. Nada encontrou. Ficou a contemplar o rio no ponto em que a corrente se precipitava para dentro de um pego e fervilhava em remoinhos. Atirou à água uma pedra branca, mas esta desapareceu num ápice, dir-se-ia que devorada. Certa vez estivera parado na margem de um rio assim, a contemplar a cintilação do ventre das trutas no fundo de um pego, invisíveis na água cor de chá a não ser quando se viravam sobre o flanco para comer. A reflectirem o sol no seio das trevas como um clarão de facas numa gruta.

Não podemos ficar aqui, disse. Cada dia faz mais frio. E a cascata é uma atracção. Foi-o para nós e sê-lo-á para outros e não sabemos quem eles serão e não conseguimos ouvi-los chegar. Não é seguro.

Podíamos ficar só mais um dia.

Não é seguro.

Bom, talvez possamos encontrar outro lugar qualquer junto ao rio.

Temos de continuar a viagem. Temos de continuar para sul.

O rio não vai para sul?

Não, não vai.

Posso ver no mapa?

Sim. Deixa-me ir buscá-lo.

O mapa de estradas de uma companhia petrolífera, reduzido a frangalhos, fora outrora colado com fita adesiva, mas agora não passava de um maço de folhas numeradas nos cantos com lápis de cera para poderem ser reunidas. Ele percorreu as páginas flácidas e desdobrou as que correspondiam à localização deles.

Vamos atravessar uma ponte aqui. Parecem faltar uns treze quilómetros, mais ou menos. Isto é o rio, a correr para leste. Nós vamos seguir esta estrada aqui, ao longo da vertente leste da montanha. Estas linhas negras no mapa são as nossas estradas. As estradas estaduais.

Porque é que se chamam estradas estaduais?

Porque dantes pertenciam aos estados. Aquilo a que dantes se chamavam estados.

Mas agora já não há estados?

Não.

O que é que lhes aconteceu?

Não sei ao certo. Eis uma boa pergunta.

Mas as estradas continuam a existir.

Sim. E vão continuar durante algum tempo.

Quanto tempo?

Não sei. Talvez muito. Não há nada que possa destruir o asfalto, por isso não devem sofrer estragos durante uma boa temporada.

Mas não vai haver carros nem camiões a circular.

Não.

Está bem.

Estás pronto?

O rapaz fez que sim com a cabeça. Limpou o nariz à manga e pôs aos ombros a pequena mochila e o homem dobrou e guardou os fragmentos do mapa e pôs-se de pé e o rapaz seguiu-o por entre a estacaria cinzenta das árvores, em direcção à estrada.

Quando avistaram a ponte, mais abaixo, deram-se conta de que havia um tractor com semi-reboque a bloquear o tabuleiro, de viés, encravado em ângulo obtuso nos parapeitos de ferro deformados. Estava a chover outra vez e eles ficaram ali parados, com os pingos a tamborilar suavemente no oleado. Os dois a espreitar por baixo do plástico, abrigados na penumbra azul.

Achas que dá para contornar o camião?, perguntou o rapaz. Não me parece. Provavelmente, conseguimos passar por baixo. Se calhar temos de descarregar o carrinho.

A ponte transpunha o rio por cima de uns rápidos. O ruído da água chegou-lhes aos ouvidos quando emergiram da curva na estrada. O vento soprava pela garganta e eles puxaram as pontas do oleado para se cobrirem melhor e empurraram o carrinho para cima do tabuleiro. Avistavam o rio através da balaustrada metálica. Abaixo dos rápidos havia uma ponte ferroviária assente em pilares de calcário. A pedra dos pilares encontrava-se manchada muito acima do nível da água devido às cheias e o meandro do rio estava atulhado com grandes emaranhados de ramagens e galhos negros e troncos de árvores.

O camião estava ali há anos, com os pneus vazios e amarrotados por baixo das jantes. A parte da frente do tractor embatera no parapeito da ponte e aí ficara encravada e o semi-reboque resvalara sobre o prato de acoplamento e fora chocar contra a parte de trás da cabina do motorista. A traseira do semi-reboque guinara lateralmente e fora amolgar o parapeito do lado oposto da ponte, que agora pendia, solto, sobre o vale escarpado do rio, suspenso a mais de um metro do tabuleiro. Ele empurrou o carrinho, tentando fazê-lo passar por baixo do semi-reboque, mas a pega era demasiado alta. Iam ter de o arrastar na horizontal. Deixou o carrinho à chuva, coberto com o oleado, e abrigaram-se os dois por baixo do semi-reboque, de cócoras, e ele deixou o rapaz ali agachado no chão seco e apoiou o pé no degrau por cima do depósito de combustível e içou-se para o alto e limpou as gotas de água da janela e espreitou para dentro da cabina. Tornou a descer e estendeu o braço para o alto e abriu a porta e em seguida trepou para o interior e fechou a porta atrás de si. Sentou-se e olhou em volta. Atrás dos bancos, um compartimento de concepção antiquada, com um catre para o motorista dormir. Papéis no chão. O porta-luvas aberto, mas vazio. Passando entre os dois bancos, penetrou no compartimento traseiro. Havia um colchão grosseiro e húmido sobre o catre e um pequeno frigorífico com a porta aberta. Uma mesa desmontável. Velhas revistas pelo chão. Examinou os pequenos armários de contraplacado sob o tejadilho, mas estavam vazios. Havia gavetas por baixo do catre e ele abriu-as e vasculhou a tralha que continham. Regressou à cabina e sentou-se no banco do condutor e contemplou o rio lá em baixo, através do lento gotejar da água no pára-brisas. O leve tamborilar da chuva no tejadilho de metal e a lenta escuridão a cair sobre todas as coisas.

Nessa noite dormiram no camião e na manhã seguinte a chuva parara e descarregaram o carrinho e passaram tudo por baixo do semi-reboque para o lado oposto e tornaram a meter tudo no carrinho. Uns trinta metros abaixo da ponte, mais ou menos, viam-se os restos enegrecidos de pneus que alguém ali queimara. Ele ficou parado, a olhar para o semi-reboque. O que é que achas que está ali dentro?, perguntou.

Não sei.

Não somos os primeiros a passar aqui. Por isso, o mais provável é não haver ali nada.

Não há maneira de entrar.

Encostou o ouvido ao flanco do semi-reboque e bateu na chapa com a palma da mão aberta. Pelo barulho, parece vazio, disse. Provavelmente, pode entrar-se pelo tejadilho. Caso contrário, alguém já teria aberto um buraco aqui de lado.

E com que é que cortavam a chapa?

Haviam de arranjar alguma coisa.

Despiu a parka e pousou-a em cima do carrinho e subiu para cima do guarda-lama do tractor e daí para cima do capot e, trepando pelo pára-brisas, alcançou o tejadilho da cabina. Endireitou-se e voltou a cabeça e olhou para baixo, para o rio. Metal húmido sob as solas dos sapatos. Baixou os olhos para o rapaz, que tinha uma expressão preocupada. Virou-se e estendeu os braços e agarrou o bordo anterior do semi-reboque e, lentamente, içou-se para o alto. Não era capaz de subir de outra maneira e já não tinha a mesma força de outros tempos. Passou uma perna por cima da borda e ficou ali suspenso, a descansar. Depois ergueu a outra e rolou sobre o ventre e sentou-se.

Havia uma abertura em jeito de alçapão a cerca de um terço do comprimento do tejadilho e ele avançou nessa direcção, caminhando agachado. A tampa do alçapão desaparecera e o interior do semi-reboque cheirava a contraplacado húmido e àquele odor acre que ele já se habituara a reconhecer. Trazia uma revista no bolso de trás das calças e pegou-lhe e arrancou algumas páginas e amachucou-as e tirou o isqueiro do bolso e pegou fogo aos papéis e deixou-os cair para a escuridão. Um vuuush abafado. Abanou a revista para dispersar o fumo e baixou os olhos para o interior. A pequena chama a arder no fundo do compartimento parecia lá muito longe. Pôs a mão em pala sobre os olhos para os proteger do brilho e, quando o fez, pôde ver quase até à extremidade traseira do semi-reboque. Cadáveres humanos, esparramados nas mais diversas posturas. Ressequidos e mirrados nas roupas apodrecidas. O pequeno chumaço de papel a arder reduziu-se a uma ténue chamazita e depois apagou-se, deixando na incandescência, durante um breve momento, um desenho fugaz, dir-se-ia a forma de uma flor, uma rosa de metal em fusão. Depois tudo voltou a ficar escuro.

Acamparam nessa noite numa floresta, no cume de um monte sobranceiro à vasta planura no sopé da serrania, no ponto em que a campina se estendia a perder de vista para sul. Ele ateou uma fogueira contra um penedo e comeram as últimas pantorras e uma lata de espinafres. Durante a noite uma tempestade rebentou nos píncaros da montanha e desceu pelas encostas com todo o fragor, a estralejar e a ribombar, e o mundo cinzento e hirto emergiu da noite uma e outra vez sob o clarão furtivo do relâmpago. O rapaz agarrou-se a ele. Todo aquele estrépito se afastou para outro lugar. Uma breve saraivada de granizo e depois a chuva fria e vagarosa.

Quando tornou a acordar ainda estava escuro, mas a chuva cessara. Uma luz fuliginosa lá longe no vale. Ergueu-se e caminhou ao longo da crista do monte. Uma neblina de fogo que se estendia por quilómetros e quilómetros. Acocorou-se e observou-a. Sentia nas narinas o cheiro do fumo. Molhou o dedo e ergueu-o ao vento. Quando se pôs de pé e se virou para regressar, o oleado estava iluminado a partir do interior, no ponto onde o rapaz acordara. Ali recortada nas trevas, aquela delicada forma azul parecia a tenda de um derradeiro grupo de fugitivos nos confins do mundo. Algo de quase incompreensível. E assim era, de facto.

Ao longo de todo o dia seguinte caminharam envoltos na névoa do fumo dos incêndios, que pairava em volutas acima do chão. Nos vales pouco profundos o fumo ressumava da terra como nevoeiro e as árvores esguias e negras ardiam nas encostas como miríades de velas pagãs alinhadas. Ao final do dia chegaram a um lugar onde o fogo atravessara a estrada e o asfalto ainda estava quente e mais adiante começou a amolecer sob a pressão dos pés deles. O betume negro e escaldante prendia-lhes os sapatos com ruídos de sucção e desfiava-se em filamentos delgados enquanto caminhavam. Pararam. Vamos ter de esperar, disse ele.

Voltaram para trás e acamparam na própria estrada e quando tornaram a partir, na manhã seguinte, o macadame já arrefecera. Pouco depois depararam com um rasto de pegadas embutidas no asfalto. Apareceram de repente, dir-se-ia que do nada. Ele acocorou-se e examinou-as. Alguém saíra da floresta durante a noite e continuara a caminhar sobre o asfalto derretido.

Quem é?, perguntou o rapaz.

Não sei. Quem é um qualquer alguém?

Avistaram-no a caminhar em passo vagaroso pela estrada, à frente deles, a arrastar ligeiramente uma perna e a parar de tempos a tempos, debruçado e hesitante, antes de retomar a marcha.

O que é que fazemos, papá?

Não há perigo. Vamos segui-lo e observá-lo, mais nada.

Ficamos só a ver, disse o rapaz.

Sim. Ficamos só a ver.

Seguiram-no um bom bocado, mas ao ritmo a que ele caminhava estavam a desperdiçar o dia e por fim ele sentou-se na estrada e não se levantou mais. O rapaz agarrou-se ao casaco do pai. Nenhum deles falou. O desconhecido parecia tão queimado como a paisagem em volta, as roupas carbonizadas e negras. As pálpebras queimadas impediam-no de abrir um dos olhos e o cabelo não passava de uma peruca de cinza infestada de piolhos sobre o crânio enegrecido. Quando o ultrapassaram, ele baixou o rosto. Como se tivesse feito algum mal. Tinha os sapatos atados com arame e cobertos de alcatrão e ficou ali sentado em silêncio, curvado para diante, envolto nos seus andrajos. O rapaz não parava de olhar para trás. Papá?, sussurrou. O que é que aconteceu àquele homem?

Foi atingido por um raio.

Podemos ajudá-lo? Papá?

Não. Não o podemos ajudar.

O rapaz puxava-lhe o casaco sem cessar. Papá?, disse.

Pára com isso.

Não o podemos ajudar, papá?

Não. Não o podemos ajudar. Ninguém pode fazer nada por ele.

Continuaram a caminhar. O rapaz chorava e virava-se constante-mente para trás. Quando chegaram ao sopé do monte, o homem parou e olhou para ele e olhou para o troço de estrada que tinham acabado de percorrer. O homem queimado tombara de bruços e àquela distância nem se conseguia perceber o que era. Lamento muito, disse, mas nós não temos nada para lhe dar. Não temos maneira de o ajudar. Lamento o que lhe aconteceu, mas não podemos remediar a situação. Sabes isso, não sabes? O rapaz olhava para o chão, imóvel. Fez que sim com a cabeça. Retomaram a marcha e ele não tornou a olhar para trás.

À tardinha, uma luz baça e sulfurosa dos incêndios. A escorrência dava uma cor negra à água estagnada nas valetas da berma. As montanhas desapareceram, envoltas num véu de fumo. Cruzaram uma ponte de betão sobre um rio onde novelos de cinza e lodo se moviam devagar na corrente. Pedacinhos calcinados de madeira. Acabaram por parar e voltar para trás e acampar por baixo da ponte.

Ele andara com a carteira no bolso até esta lhe fazer nas calças um buraco com a forma do respectivo contorno. Então, certo dia, sentou-se junto à berma da estrada e pegou na carteira e passou o conteúdo em revista. Dinheiro, cartões de crédito. A carta de condução. Uma fotografia da mulher. Alinhou tudo lado a lado no asfalto, como se fossem cartas de jogar. Atirou o pedaço de couro enegrecido pelo suor para o meio da floresta e ficou sentado, a segurar na fotografia. Depois pousou-a também na estrada e depois levantou-se e prosseguiram.

Na manhã seguinte, ainda deitado, perscrutou os ninhos de barro que as andorinhas tinham construído nos recantos, por baixo da ponte. Olhou para o rapaz mas este virara-lhe costas e, estendido no chão, contemplava o rio.

Não podíamos ter feito nada. Ele não respondeu.

Ele vai morrer. Nós não podemos partilhar a comida que temos, caso contrário morremos também. Eu sei.

Então quando é que vais falar comigo outra vez? Estou a falar agora. Tens a certeza? Tenho. Está bem. Está bem.

Estavam na margem oposta de um rio e chamavam-no em altos brados. Deuses maltrapilhos, cobertos de andrajos, a deambular em passo trôpego pela terra devastada. A calcorrear o leito seco de um oceano mineral que se estendia, percorrido por fissuras e quebrado como um prato caído ao chão. Carreiros de fogo bravio nas areias coaguladas. As silhuetas dissiparam-se na lonjura. Ele acordou e ficou deitado nas trevas.

Os relógios pararam à 01h17 da madrugada. Um longo rasgão de luz e depois uma série de estrondos abafados. Ele levantou-se e foi à janela. O que é?, perguntou ela. Ele não respondeu. Entrou na casa de banho e carregou no interruptor, mas já não havia electricidade. Um brilho rosado e mortiço na vidraça da janela. Apoiou-se num joelho e levantou o manípulo para fechar o ralo da banheira e depois abriu as duas torneiras no máximo. Ela estava parada à porta, em camisa de noite, de dedos fincados na ombreira, a afagar a barriga com a outra mão. O que é?, perguntou. O que é que está a acontecer?

Não sei.

Porque é que vais tomar banho?

Não vou.

Certa vez, naqueles primeiros anos, acordara numa floresta de ramagens despidas e ficara deitado na escuridão gélida, a ouvir os bandos de aves migratórias lá no alto. Os seus grasnidos meio abafados milhares de metros mais acima, onde elas descreviam vastos círculos sobre a terra, tão sem rumo como insectos a caminhar em fila indiana na borda de uma tigela. Ele foi murmurando votos até o som se dissipar. Vão com Deus. Nunca mais as tornou a ouvir.

Tinha um baralho de cartas que encontrara numa casa, na gaveta de uma escrivaninha, e as cartas estavam desbotadas e gastas e faltava o dois de paus, mas mesmo assim jogavam algumas vezes à luz da fogueira, embrulhados nas mantas. Ele tentava recordar-se das regras dos jogos de cartas da sua infância. O Burro. Uma variante qualquer do Whist. Tinha a certeza de que se enganava na maior parte delas e inventava novos jogos e dava-lhes nomes saídos da sua própria imaginação. Ponteiro Anormal ou Bafo de Gato. Por vezes, a criança fazia-lhe perguntas acerca do mundo que, para ela, não era sequer uma memória. Ele pensava muito na melhor maneira de lhe responder. Não há passado. O que é que preferes? Mas parou de inventar histórias porque estas também não eram verdadeiras e contá-las fazia-o sentir mal. A criança tinha as suas próprias fantasias. Como as coisas seriam lá no Sul. Outras crianças. Ele tentava pôr freio a isto, mas sem grande convicção. No seu lugar, quem a teria?

Não havia listas de tarefas a cumprir. A batuta todo-poderosa do acaso ditava-lhes os gestos a cada novo dia. A cada hora. Não há mais tarde. Mais tarde é aqui e agora. Todas as coisas encantadoras e belas que temos vontade de aconchegar junto ao coração têm origem comum na dor. Nascem no sofrimento e nas cinzas. E é assim, sussurrou ele ao rapaz adormecido. Eu tenho-te a ti.

Lembrava-se do retrato pousado no asfalto e achava que devia ter tentado mantê-la nas vidas deles, de uma forma ou de outra, embora não soubesse como. Acordou a tossir e afastou-se para não acordar o rapaz. Caminhou nas trevas ao longo de um muro de pedra, embrulhado no cobertor, ajoelhou-se nas cinzas como um penitente. Tossiu até sentir na boca o sabor do sangue e disse o nome dela em voz alta. Pareceu-lhe que o proferira no sono, mas não tinha a certeza. Quando regressou, o rapaz estava acordado. Desculpa, disse.

Não faz mal.

Dorme.

Quem me dera estar com a minha mamã.

Ele não respondeu. Sentou-se ao lado da pequena silhueta embrulhada em mantas e cobertores. Ao fim de algum tempo, disse: Queres dizer que preferias ter morrido.

Sim.

Não deves dizer isso.

Mas é o que eu sinto.

Não digas isso. São coisas que não se devem dizer.

Isto não me sai da cabeça.

Eu sei. Mas tens de fazer um esforço.

Como?

Não sei.

Nós somos sobreviventes, disse-lhe ele por sobre a chama da candeia.

Sobreviventes?, questionou ela.

Sim.

Que é que estás para aí a dizer, valha-te Deus? Nós não somos sobreviventes. Somos os mortos-vivos num filme de terror.

Peço-te, por favor.

Não quero saber. Até podes chorar, é-me indiferente. Não significa nada para mim.

Por favor.

Pára com isso.

Suplico-te. Faço tudo o que tu quiseres.

Como o quê, por exemplo? Eu já devia ter feito isto há muito tempo. Quando havia três balas na pistola em vez de duas. Fui estúpida. Já tivemos esta conversa várias vezes. Não fui eu que criei esta situação, impuseram-ma. Mas agora chega, estou farta. Pensei em nem sequer te dizer nada. Provavelmente, até teria sido melhor. Tens duas balas, sim, e depois? Não nos consegues proteger. Dizes que eras capaz de morrer por nós, mas o que é que nós ganhamos com isso? Se não fosses tu, levava-o também a ele comigo. Sabes bem que sim. É a melhor alternativa.

Estás a dizer loucuras.

Não, estou a dizer a verdade. Mais cedo ou mais tarde, eles apanham-nos e matam-nos. Vão violar-nos, a mim e a ele. Vão violar-nos e matar-nos e devorar-nos e tu recusas-te a encarar a realidade. Preferes esperar que as coisas aconteçam, mas eu não sou capaz. Não sou capaz. Ali sentada, fumava um raminho esguio e seco de videira como se fosse um charuto requintado. Segurava-o entre os dedos com uma certa elegância, com a outra mão sobre os joelhos erguidos. Fitou-o do lado oposto da pequena chama. Dantes falávamos sobre a morte, disse. Agora já não. Porquê?

Não sei.

É porque ela está aqui, junto de nós. Já não há nada para dizer.

Eu nunca te deixaria.

Não me interessa. Isso é irrelevante. Podes achar que eu sou uma cabra infiel, se preferires. Arranjei um novo amante, que me dá aquilo que tu não me consegues dar.

A morte não é um amante.

Ah, isso é que é.

Por favor, não faças isso.

Lamento.

Não sou capaz de continuar sozinho.

Então não continues. Não te posso ajudar. Dizem que as mulheres sonham com perigo para as pessoas à sua guarda e os homens com perigo para si próprios, mas eu não sonho com nada. Dizes-me que não és capaz? Então desiste. Assunto encerrado. Porque há já muito tempo que estou farta deste meu coração de meretriz. Falas em vincar a nossa posição, mas não há posição nenhuma para vincar. Na noite em que ele nasceu foi como se me arrancassem o coração do peito, por isso não me peças agora que tenha compaixão por ti. Não tenho compaixão para dar. Talvez tu sejas bom nisto. Duvido, mas quem sabe. Uma coisa te garanto, nunca conseguirás sobreviver sozinho. Sei-o muito bem porque eu própria nunca teria chegado até aqui. Para uma pessoa que não tivesse ninguém, seria de elementar prudência atamancar um fantasma convincente, insuflar-lhe um sopro de vida e persuadi-lo a caminhar a seu lado com palavras de amor, oferecer-lhe todas as migalhas fantasmagóricas e protegê-lo de todos os perigos com o próprio corpo. Pela minha parte, só tenho esperança no eterno nada e anseio por isso com todas as minhas forças.

Ele não respondeu.

Não tens resposta porque não há resposta possível.

Despedes-te dele?

Não. Não me despeço.

Ao menos espera até amanhã de manhã. Por favor.

Tenho de partir. Ela já se pusera de pé.

Por amor de Deus, mulher. O que é que eu lhe vou dizer? Não te posso ajudar.

Mas para onde é que tu vais? Não se vê sequer um palmo à frente do nariz.

Não preciso de ver.

Ele pôs-se de pé. Suplico-te, disse. Não. Recuso-me. Não sou capaz.

Ela partiu e a frieza deste gesto foi a sua dádiva final. Ia matar-se com uma lasca de obsidiana. Fora ele próprio que lhe ensinara. Mais afiada do que o aço, o gume com um átomo de espessura. E ela tinha razão, não havia discussão possível. As centenas de noites em que tinham ficado acordados, a debater as vantagens e os inconvenientes do suicídio com o fervor de filósofos acorrentados à parede de um manicómio. Na manhã seguinte o rapaz não proferiu uma única palavra e, quando estavam de mochilas às costas e prontos a meter pés ao caminho, virou-se e olhou para trás, para o lugar onde tinham acampado, e disse: Ela foi-se embora, não foi? E ele respondeu: Foi, sim.

Dá mostras de zelo constante, dificilmente se deixa surpreender pelos mais bizarros adventos. Uma criação aperfeiçoada ao mais alto grau para cumprir o seu próprio desígnio. Sentavam-se diante da janela e à luz das velas, de roupão, comiam a ceia à meia-noite e contemplavam cidades distantes a arder. Passadas algumas noites ela deu à luz na cama de casal, sob o foco de uma lanterna de pilhas. Um par de luvas de lavar a louça. A improvável aparição do pequeno cocuruto da cabeça, raiado de sangue e coberto de cabelo negro e liso. O mecónio fétido. Os gritos dela nada significavam para ele. Do outro lado da vidraça somente o frio cada vez mais intenso, os incêndios no horizonte. Ergueu ao alto o corpo vermelho e enfezado, tão em carne viva, tão nu, e cortou o cordão umbilical com uma tesoura de cozinha e embrulhou o filho numa toalha.

Tinhas amigos? Sim. Tinha. Muitos? Sim.

Lembras-te deles?

Sim. Lembro-me deles.

O que é que lhes aconteceu?

Morreram.

Todos?

Sim. Todos.

Tens saudades deles?

Sim. Tenho.

Para onde é que nós vamos?

Vamos para sul.

Está bem.

Passaram o dia inteiro a percorrer a longa estrada negra e pararam de tarde para comer frugalmente das magras provisões. O rapaz tirou o camião de brincar da mochila e traçou estradas na cinza com um pauzinho. O camião avançava vagarosamente e ele imitava os barulhos do motor. O dia parecia quase quente e dormiram deitados nas folhas, com as mochilas debaixo da cabeça.

Houve qualquer coisa que o acordou. Virou-se de lado e ficou estendido, à escuta. Ergueu a cabeça devagar, de pistola em punho. Baixou os olhos para o rapaz e, quando tornou a olhar para a estrada, os primeiros elementos do grupo já estavam a aparecer. Meu Deus, sussurrou. Estendeu o braço e abanou o rapaz, mantendo os olhos fitos na estrada. Eles surgiram a caminhar em passo arrastado através da cinza, virando as cabeças cobertas por capuzes para um lado e para o outro. Alguns traziam máscaras de gás integrais. Um vestia fato de protecção contra agentes biológicos, manchado e sujo. Avançavam, trôpegos, com paus na mão, pedaços de tubo metálico. Tossiam. Foi então que ele ouviu, a rolar na estrada atrás deles, aquilo que lhe soou como um camião a diesel. Rápido, sussurrou. Rápido. Enfiou a pistola no cinto e agarrou o rapaz pela mão e arrastou o carrinho pelo meio das árvores e fê-lo tombar de lado num local onde estaria mais encoberto. O rapaz estava paralisado de medo. Ele puxou-o para si. Está tudo bem, disse. Temos de correr. Não olhes para trás. Vamos.

Pendurou ao ombro as mochilas de ambos e desataram a correr através dos fetos que se esfarelavam à sua passagem. O rapaz estava apavorado. Corre, sussurrou-lhe. Corre. Olhou para trás. O camião já se avistava, soltando o ronco surdo. Homens de pé na caixa aberta, virados para fora. O rapaz caiu e ele puxou-o para o erguer. Está tudo bem, disse. Vamos.

Avistou um hiato por entre as árvores que lhe pareceu ser uma vala ou um fosso e correram pelo meio da erva até darem por eles numa velha estrada secundária. Viam-se placas de macadame estalado através dos montículos de cinza. Ele puxou o rapaz para baixo e agacharam-se os dois sob o talude, à escuta, arquejando para recuperar o fôlego. Ouviam o motor a diesel na estrada principal, a queimar só Deus sabe o quê. Quando se levantou para olhar, avistou somente o alto do camião, a avançar pela estrada. Homens de pé na caixa aberta de taipais gradeados, alguns a empunhar espingardas. O camião afastou-se e o fumo negro do diesel disseminou-se em espirais através do bosque. O motor tinha um som fanhoso, gaguejava e soltava pigarreios. De repente, parou.

Ele baixou-se e pôs a mão no alto da cabeça do rapaz. Meu Deus, disse. Ouviram o veículo a matraquear e a emitir estalos cada vez mais espaçados. Depois ouviu-se apenas o silêncio. Ele tinha a pistola na mão e nem se lembrava de a ter tirado do cinto. Ouviram os homens a falar. Ouviram-nos a soltar e erguer o capot. Sentado no chão, ele tinha o braço em volta do rapaz. Chiu, disse. Chiu. Ao fim de um certo tempo ouviram o camião começar a rolar, arrastando-se pesadamente e rangendo como um navio. A única maneira de o fazer pegar seria empurrando-o mas, naquela subida, não lhe conseguiam imprimir velocidade suficiente. Ao fim de alguns minutos a camioneta tossicou e estremeceu e tornou a parar. Ele ergueu a cabeça para ver e a seis metros de distância, caminhando ao seu encontro através das ervas, a desafivelar o cinto, vinha um dos membros do grupo. Ambos se imobilizaram.

Engatilhou a pistola e apontou-a ao homem e este ficou parado com uma mão estendida junto ao corpo, com a máscara de pintar suja e amarrotada que lhe cobria o rosto a dilatar-se e a contrair-se ao ritmo da respiração.

Vá, continua a andar.

O outro olhou para a estrada.

Não olhes lá para trás. Olha para mim. Se gritas, és um homem morto.

O outro avançou, segurando o cinto com uma mão. Os buracos no cabedal assinalavam o progresso do seu emagrecimento e, num dos lados, o couro tinha uma aparência laçada, onde ele costumava afiar a lâmina da faca. Desceu para a estrada secundária e olhou para a arma e olhou para o rapaz. Olhos cercados por poças de sujidade e profundamente encovados. Como um animal dentro de um crânio a espreitar pelas órbitas. Usava barba que fora cortada a direito em baixo com uma tesoura grande e ostentava no pescoço a tatuagem de uma ave, feita por alguém com uma noção errónea da aparência desses animais. Era magro, seco de carnes, raquítico, vestido com fato-macaco azul, muito sujo, e trazia um boné de pala preto com o logotipo de uma qualquer empresa já desaparecida bordado na parte da frente.

Onde é que vais?

Ia cagar.

Para onde é que vocês vão com a camioneta?

Não sei.

O que é que estás para aí a dizer, como é que não sabes? Tira essa máscara.

Ele tirou a máscara por cima da cabeça e ficou parado, a segurá-la.

Não sei mesmo, disse.

Não sabes para onde é que vais?

Não.

Qual é o combustível para o camião andar?

Diesel.

Quanto é que vocês têm?

Levamos três bidões de duzentos litros na traseira. Têm munições para aquelas armas?

Ele virou a cabeça para olhar para a estrada.

Já te disse para não olhares lá para trás.

Sim, temos munições.

Onde é que as arranjaram?

Encontrámo-las.

Isso é mentira. O que é que vocês comem?

Tudo o que conseguimos encontrar.

Tudo o que conseguem encontrar.

Pois. Olhou para o rapaz. Tu não vais disparar, disse.

Isso é o que tu julgas.

Só tens duas balas. Se calhar só tens uma. E eles vão ouvir o tiro.

Pois vão, mas tu não.

Porque é que dizes isso?

Porque a bala viaja mais depressa do que o som. Vai entrar-te no cérebro antes que tu a consigas ouvir. Para a ouvir precisavas de um lobo frontal e de coisas com nomes como colículo e circunvolução temporal e tu já não as vais possuir, porque vão estar desfeitas em papa.

És médico ou quê?

Não sou coisa nenhuma.

Temos um ferido. Ias ver que ficavas a ganhar.

Tenho cara de imbecil, é?

Não sei de que é que tens cara.

Porque é que estás a olhar para ele?

Posso olhar para onde eu quiser.

Não, não podes. Se tornas a olhar para ele dou-te um tiro.

O rapaz estava sentado com as duas mãos no alto da cabeça, a espreitar por entre os antebraços.

Aposto que ali o rapaz tem fome. Porque é que vocês os dois não vêm comigo até ao camião? Nós arranjamo-vos comida. Não é preciso ser assim tão casmurro.

Vocês não têm nada que se coma. Vamos embora.

Embora para onde?

Vamos embora.

Eu cá não vou a lado nenhum.

Não vais?

Não, não vou.

Se pensas que eu não te vou matar, enganas-te. Mas o que eu preferia era levar-te por esta estrada fora durante um quilómetro e meio, mais ou menos, e depois soltar-te. Só precisamos desse avanço, mais nada. Vocês não nos conseguem encontrar. Nem sequer vão conseguir perceber para que lado é que nós fomos.

Sabes o que é que eu acho?

Diz lá o que é que tu achas.

Acho que 'tás todo borrado.

Largou o cinto, que caiu no asfalto com os apetrechos pendurados. Um cantil, uma velha cartucheira de lona do exército, uma bainha de cabedal para uma faca. Quando o homem ergueu os olhos, o rato do asfalto empunhava a faca. Dera apenas dois passos, mas já quase se interpusera entre ele e o filho.

O que é que pensas que vais fazer com isso?

O outro não respondeu. Era corpulento, mas muito rápido. Mergulhou e agarrou o rapaz e rebolou e tornou a soerguer-se com a criança apertada contra o peito, a encostar-lhe a faca à garganta. O homem já se atirara ao chão e acompanhou o movimento dele e ergueu a pistola e disparou numa posição de equilíbrio, a agarrar o punho com as duas mãos, apoiado em ambos os joelhos, a dois metros de distância. O homem caiu para trás de imediato e ficou estendido, com sangue a borbulhar-lhe do buraco na testa. O rapaz estava caído no regaço do morto, de rosto totalmente inexpressivo. Com gestos bruscos, ele enfiou a pistola no cinto e pendurou a mochila ao ombro e levantou o rapaz do chão e virou-o de costas para si e ergueu-o acima da cabeça e pô-lo às cavalitas e desatou a correr pela velha estrada com quanta força tinha, a agarrar os joelhos do rapaz, este a agarrar-lhe a testa, coberto de sangue e mudo como uma estátua.

Chegaram a uma velha ponte metálica em plena floresta, onde a estrada desaparecida atravessara em tempos um regato quase desaparecido. Começava a tossir, apesar de quase não ter fôlego para isso. Abandonou a estrada e desceu um declive, mergulhando no bosque. Virou-se e ficou parado a arquejar, tentando ouvir. Nada. Avançou a cambalear durante mais uns oitocentos metros e por fim caiu de joelhos e pousou o rapaz na cinza e nas folhas mortas. Limpou-lhe o sangue do rosto e apertou-o contra si. Já passou, disse. Já passou.

No longo crepúsculo frio, com as trevas a tombarem aos poucos, ouviu-os somente uma vez. Abraçou o rapaz com mais força. Tinha na garganta um tossicar que não lhe chegou a sair dos lábios. O rapaz tão frágil e magro através do casaco, a tremer como varas verdes. Os passos nas folhas pararam. Depois prosseguiram. Não falavam nem se chamavam uns aos outros em voz alta, o que causava uma atmosfera ainda mais sinistra. Quando os derradeiros resquícios de luz se dissiparam, o alçapão metálico do frio fechou-se sobre a terra e tremuras violentas sacudiam o rapaz. Nenhuma lua se elevou no céu por trás do negrume e não havia para onde ir. Tinham apenas um cobertor na mochila e ele tirou-o de lá e tapou o rapaz e abriu o fecho da parka e apertou-o contra si. Ficaram ali deitados durante muito tempo, mas estavam a ficar enregelados e por fim ele soergueu-se. Temos de nos mexer, disse. Não podemos ficar aqui deitados. Olhou em volta, mas nada havia para ver. As palavras dele perderam-se nas trevas sem profundidade nem dimensão.

Deu a mão ao rapaz enquanto avançavam aos tropeções pela floresta, mantendo a outra mão estendida na sua frente. Não veria pior com os olhos fechados. O rapaz estava envolto no cobertor e ele disse-lhe para não o deixar cair porque nunca mais o conseguiriam encontrar. O rapaz queria que ele o levasse às cavalitas, mas o homem disse-lhe que tinham de continuar em frente. Passaram a noite inteira a deambular pela floresta, a tropeçar e a estatelar-se, e muito antes da alvorada o rapaz caiu e não se queria levantar mais. Ele embrulhou-o na própria parka e no cobertor e sentou-se a abraçá-lo, a baloiçar para trás e para diante para o embalar. Sobrava-lhe uma única bala no revólver. Recusas-te a encarar a verdade. Recusas-te mesmo.

À luz relutante que fazia as vezes de dia, deitou o rapaz nas folhas e pôs-se a perscrutar a floresta. Quando já estava um bocadinho mais claro, pôs-se de pé e afastou-se e percorreu um vasto círculo em volta do lugar onde tinham pernoitado a céu aberto, semelhante a um acampamento índio, em busca de rastos, mas, à parte as ténues pegadas que eles próprios tinham deixado na cinza, nada mais viu. Voltou para trás e puxou o rapaz para si. Temos de continuar, disse. O rapaz permanecia sentado no chão, inerte, de rosto inexpressivo. Com a sujidade seca no cabelo e estrias de sujidade nas faces. Fala comigo, pediu, mas o rapaz não abriu a boca.

Caminharam para leste por entre os troncos erectos das árvores mortas. Passaram por uma velha casa com o travejamento de madeira à vista e atravessaram uma estrada de terra batida. Um talhão de terreno desbravado, talvez outrora uma horta. Paravam de tempos a tempos para escutar. O Sol invisível não projectava sombras. Depararam inesperadamente com a estrada e ele travou a marcha do rapaz com a mão e agacharam-se na valeta da berma como leprosos e ficaram à escuta. Não soprava vento. Um silêncio de morte. Ao fim de algum tempo ele ergueu-se e deu alguns passos no asfalto. Virou-se para trás e olhou para o rapaz. Anda daí, disse. O rapaz saiu da valeta e o homem apontou os rastos na cinza onde o camião passara. Embrulhado no cobertor, o rapaz baixou o rosto e quedou-se a olhar para a estrada.

Não tinha maneira de saber se eles tinham conseguido pôr o motor do camião outra vez a funcionar ou não. Nem quanto tempo é que eles estariam dispostos a ficar emboscados, à espera de os ver regressar. Empurrou a alça da mochila com o polegar para a fazer cair do ombro e sentou-se e abriu-a. Temos de comer, disse. Tens fome?

O rapaz abanou a cabeça.

Não. É claro que não. Ele pegou na garrafa de plástico cheia de água e desenroscou-lhe a tampa e estendeu-a ao rapaz, que por seu turno lhe pegou e bebeu de pé. Baixou a garrafa e recuperou o fôlego e sentou-se na estrada e cruzou as pernas e bebeu de novo. Depois devolveu a garrafa e o homem bebeu e tornou a atarraxar a tampa e vasculhou dentro da mochila. Comeram uma lata de feijão branco, passando-a de um para o outro, e ele atirou a lata vazia para o meio da floresta. Depois tornaram a pôr-se a caminho pela estrada fora.

O grupo da camioneta acampara na estrada em si. Tinham feito uma fogueira e viam-se achas reduzidas a carvão incrustadas no asfalto derretido, à mistura com cinza e ossos. Ele acocorou-se e pousou a mão no asfalto. Um calor ténue emanava do chão. Pôs-se de pé e percorreu a estrada com os olhos. Depois penetrou na floresta, levando o rapaz consigo. Quero que esperes aqui, disse. Não me vou afastar muito. Se chamares, eu ouço a tua voz.

Leva-me contigo, disse o rapaz. Parecia à beira das lágrimas.

Não. Quero que esperes aqui.

Por favor, papá.

Pára. Quero que faças o que eu te estou a dizer. Pega na pistola.

Não quero a pistola.

Não te perguntei se a querias. Pega-lhe.

Caminhou através do bosque até ao lugar onde tinham deixado o carrinho. Ainda estava caído no mesmo sítio, mas o conteúdo fora saqueado. As poucas coisas que eles não tinham levado encontravam-se espalhadas sobre as folhas mortas. Alguns livros e brinquedos pertencentes ao rapaz. Os sapatos velhos dele e alguns farrapos de roupa.

Endireitou o carrinho e pôs lá dentro as coisas do rapaz e empurrou-o até chegar à estrada. Depois voltou para trás. Nada havia ali. Sangue seco nas folhas, formando manchas escuras. A mochila do rapaz desaparecera. Ao regressar encontrou os ossos e a pele num montículo, com pedregulhos por cima. Uma poça de vísceras. Empurrou os ossos com a biqueira do sapato. Pareciam cozidos. Nem uma peça de roupa. A escuridão tombava de novo e já fazia muito frio e ele deu meia volta e dirigiu-se para o ponto onde deixara o rapaz e ajoelhou-se e abraçou-o e apertou-o contra si.

Empurraram o carrinho através da floresta até alcançar a velha estrada e deixaram-no ali e caminharam pelo asfalto para sul, apressando-se para evitar as trevas. O rapaz estava tão cansado que cambaleava e o homem pegou-lhe e, com um impulso, encavalitou-o nos ombros e continuaram. Quando chegaram à ponte, quase já nem brilhava uma réstia de luz. Ele pôs o rapaz no chão e desceram o talude às apalpadelas. Por baixo da ponte tirou o isqueiro do bolso e acendeu-o e banhou o terreno em volta com a luzinha bruxuleante. Areia e cascalho trazidos pelas águas do rio. Pousou a mochila e guardou o isqueiro e agarrou o rapaz pelos ombros. Só a custo lhe conseguia distinguir as feições na escuridão. Quero que esperes aqui, disse. Vou buscar lenha. Temos de acender uma fogueira.

Tenho medo.

Eu sei, mas eu só me vou afastar um bocadinho e consigo ouvir a tua voz, por isso, se tiveres medo, chamas-me e eu venho logo.

Tenho muito medo.

Quanto mais depressa eu for, mais depressa estarei de volta, e vamos poder atear uma fogueira e então tu já não vais ter medo. Não te deites no chão. Se te deitas no chão adormeces e depois se eu te chamar não respondes e já não te consigo encontrar. Percebes?

O rapaz não respondeu. O homem estava prestes a zangar-se com ele quando percebeu que ele estava a fazer que sim com a cabeça no escuro. Está bem, disse. Está bem.

Trepou a margem de gatas e embrenhou-se na floresta, de mãos estendidas diante de si. Havia lenha por todo o lado, ramos mortos e galhos espalhados pelo chão. Avançou em passo arrastado, pontapeando-os até formar um monte, e, quando já acumulara uma braçada, curvou-se e

apanhou-os e chamou o rapaz e este respondeu e, falando sem parar, conduziu-o de regresso à ponte. Sentaram-se nas trevas enquanto ele cortava aparas de madeira com a faca e partia os ramos mais finos com as mãos, acumulando tudo num montículo. Tirou o isqueiro do bolso e fez girar a rodinha com o polegar. No isqueiro usava gasolina, que ardia com uma frágil chama azul, e curvou-se e pegou fogo às aparas e ficou a ver a língua de fogo a trepar através do emaranhado de galhos. Juntou mais lenha e debruçou-se e soprou suavemente para a base da pequena labareda e dispôs a lenha com as mãos, moldando assim mesmo a fogueira.

Fez mais duas surtidas pela floresta, arrastando braçadas de mato e ramagens até à ponte e empurrando tudo por cima do parapeito. Avistava o brilho do fogo a certa distância, mas não lhe parecia que se conseguisse ver da outra estrada. Por baixo da ponte distinguia uma poça escura de água parada no meio das rochas. Uma orla saliente de gelo. Parado no tabuleiro, atirou a última pilha de lenha por cima do parapeito, com o hálito branco à luz cintilante das chamas.

Sentou-se na areia e fez o inventário do conteúdo da mochila. Os binóculos. Uma garrafa de um quarto de litro quase cheia de gasolina. A garrafa de água. Um alicate. Duas colheres. Dispôs tudo em fila. Havia cinco latas pequenas de comida e ele escolheu uma de salsichas e outra de milho e abriu-as com o pequeno abre-latas do exército e colocou-as no limiar da fogueira e ficaram os dois a ver os rótulos a enrolar-se, chamuscados. Quando o milho começou a fumegar, retirou as latas de junto do fogo com o alicate e, curvados sobre elas com as colheres na mão, comeram os dois devagar. O rapaz cabeceava com sono.

Quando acabaram de comer, levou o rapaz até à língua de cascalho por baixo da ponte e, com um pau, afastou a delgada placa de gelo da margem e ajoelharam-se ali enquanto ele lavava a cara e o cabelo do rapaz. A água estava tão fria que o rapaz chorava. Avançaram um pouco ao longo do cascalho em busca de água limpa e ele tornou a lavar-lhe o cabelo o melhor que conseguiu e finalmente parou porque o rapaz soltava gemidos, tal o frio. Secou-o com o cobertor, ali ajoelhado no halo de luz, com a sombra da infra-estrutura da ponte entrecortada sobre a paliçada de troncos de árvore, na margem oposta do rio. Este é o meu filho, disse. Lavo-lhe o cabelo, sujo com os miolos de um morto. É a tarefa que me cabe. Depois embrulhou-o no cobertor e levou-o ao colo até ao fogo.

Sentado, o rapaz titubeava. O homem mantinha-se atento, não fosse ele tombar nas chamas. Com os pés, abriu buracos na areia para as ancas e os ombros do rapaz no ponto onde ele iria dormir e depois sentou-se com ele no regaço enquanto lhe passava os dedos pelos cabelos diante do lume para os secar. Tudo isto como uma qualquer unção imemorial. Assim seja. Evoca as formas. Quando nada mais tens, constrói cerimónias a partir do nada e dá-lhes vida com o teu sopro.

Acordou de noite com o frio e levantou-se e partiu mais lenha para o lume. As formas dos pequenos galhos de árvore a arderem nas brasas, de um cor de laranja incandescente. Soprou para despertar as chamas e juntou mais lenha à fogueira e sentou-se de pernas cruzadas, encostado ao pilar de pedra da ponte. Pesados blocos de calcário assentados sem cimento. Lá no alto a estrutura metálica, castanha da ferrugem, os rebites martelados, os dormentes e passadiços de madeira. Quando punha a mão no chão, sentia o calor da areia onde estava sentado, mas na noite em volta do fogo reinava um frio cortante. Levantou-se e arrastou mais lenha para baixo da ponte. Ficou imóvel, à escuta. O rapaz não se mexeu. Sentou-se ao lado dele e afagou-lhe o cabelo claro e revolto. Um cálice de ouro, bom para albergar um deus. Por favor, não me contes como é que a história acaba. Quando tornou a perscrutar as trevas ao redor da ponte, começara a nevar.

A lenha que tinham para queimar era somente raminhos delgados e a fogueira só ia arder durante mais uma hora ou talvez um bocadinho mais. Ele arrastou o resto das ramagens para debaixo da ponte e partiu-as aos bocados, pondo o pé em cima dos galhos e quebrando-os ao meio. Pensou que o barulho ia acordar o rapaz, mas não. A madeira húmida crepitava nas chamas, a neve continuava a cair. De manhã veriam se havia ou não rastos na estrada. Aquele fora o primeiro ser humano, à parte o rapaz, com quem ele falara desde há mais de um ano. O meu irmão, finalmente. Os cálculos reptilianos naqueles olhos frios e astutos. Os dentes cinzentos e apodrecidos. Com fiapos de carne humana agarrados. Gente que fez do mundo uma mentira da primeira à última linha. Quando tornou a acordar, o nevão cessara e o alvorecer granuloso ia dando forma à floresta nua em volta da ponte, as árvores negras sobre o fundo de neve. Estava enroscado, com as mãos entre os joelhos, e sentou-se e avivou o lume e pousou nas brasas uma lata de beterraba. O rapaz, aninhado no chão, observava-o.

A neve recente jazia em montículos por toda a floresta, ao longo dos ramos e na concavidade das folhas, toda ela já cinzenta da cinza. Caminharam até onde tinham deixado o carrinho e ele pôs-lhe a mochila dentro e empurrou-o até à estrada. Não havia rastos. Ficaram parados à escuta no silêncio absoluto. Depois puseram-se a calcorrear a estrada através da neve cinzenta já meio liquefeita, com o rapaz ao lado dele, de mãos nos bolsos.

Avançaram a custo durante todo o dia, o rapaz em silêncio. De tarde toda a neve lamacenta já se derretera e ao crepúsculo a estrada estava seca. Não pararam. Quantos quilómetros? Seis, sete. Em tempos jogavam à malha na estrada com quatro grandes anilhas de aço que tinham encontrado numa loja de ferragens, mas as anilhas haviam desaparecido, juntamente com tudo o resto. Nessa noite acamparam numa ravina e fizeram uma fogueira contra uma pequena escarpa rochosa e comeram a última lata de comida. Ele guardara-a para o fim por ser a preferida do rapaz, carne de porco com feijão. Ficaram a ver o molho borbulhar lentamente nas brasas e ele retirou a lata com o alicate e comeram em silêncio. Passou a lata vazia por água e deu-a a beber ao filho e foi tudo. Devia ter tido mais cuidado, disse.

O rapaz não respondeu.

Tens de falar comigo.

Está bem.

Querias saber que aparência têm os homens maus. Agora já sabes. Isto pode voltar a acontecer. A minha tarefa é cuidar de ti. Foi Deus quem me confiou essa missão. Mato qualquer pessoa que te toque. Percebes?

Sim.

Estava ali sentado, com o cobertor a encapuzá-lo. Ao fim de um certo tempo, ergueu o rosto. Nós ainda somos os bons?, perguntou.

Sim. Nós ainda somos os bons.

E havemos de ser sempre.

Sim. Havemos de ser sempre. Está bem.

Na manhã seguinte saíram da ravina e meteram-se de novo à estrada. Ele talhara uma flauta para o rapaz, usando um pedaço de cana apanhado na berma, e tirou-a do bolso do casaco e deu-lha. O rapaz pegou-lhe sem uma palavra. Ao fim de algum tempo deixou-se ficar para trás e ao fim de algum tempo o homem ouviu-o tocar. Uma música informe para a idade futura. Ou talvez a derradeira música na terra, evocada das cinzas da sua ruína. O homem virou-se e ficou a olhá-lo. O rapaz estava alheado, totalmente absorto. O homem achou que ele parecia uma criança trocada em segredo à nascença, triste e solitária, a anunciar a chegada de um espectáculo itinerante por vilas e aldeias sem saber que, atrás de si, os músicos foram todos devorados pelos lobos.

Sentou-se de pernas cruzadas sobre as folhas mortas, na crista de uma cumeeira, e perscrutou o vale abaixo deles com os binóculos. A forma de um rio ainda marcada no chão. As chaminés de tijolo escuro de uma fábrica. Telhados de ardósia. Uma velha torre de armazenamento de água feita de madeira, com cintas metálicas em volta do reservatório. Nenhum fumo, nenhum movimento que indicasse vida. Ele baixou os binóculos e ficou a olhar.

O que é que vês?, perguntou o rapaz.

Nada.

Estendeu-lhe os binóculos. O rapaz passou a alça pelo pescoço e levou os binóculos aos olhos e ajustou a roda de focagem. Tudo em volta deles tão imóvel.

Vejo fumo, disse.

Onde?

Atrás daqueles prédios.

Quais prédios?

O rapaz devolveu-lhe os binóculos e ele tornou a focá-los. Um fio-zinho de fumo tão claro que quase não se distinguia. Sim, disse. Já vi.

O que é que vamos fazer, papá?

Acho que o melhor é irmos dar uma olhadela. Só temos de ter cuidado. Se for uma comuna, têm barricadas. Mas talvez sejam só refugiados.

Como nós. Sim. Como nós.

Então e se forem os homens maus?

Vamos ter de correr esse risco. Temos de encontrar alguma coisa para comer.

Deixaram o carrinho na floresta e atravessaram uma linha férrea e desceram uma encosta íngreme, caminhando sobre hera negra e morta. Ele levava a pistola na mão. Não te afastes, disse. O rapaz obedeceu. Avançaram pelas ruas como sapadores. Um quarteirão de cada vez. Um vago cheiro a fumo de lenha no ar. Esperaram numa loja, de olhos postos na rua, mas nada se moveu. Vasculharam o lixo e o entulho. Gavetas de armários puxadas para fora e atiradas para o chão, papéis e caixotes de cartão inchados pela humidade. Nada encontraram. Todas as lojas tinham sido saqueadas há anos, a maior parte das vitrinas estava partida. A escuridão no interior era tal que quase não se via. Subiram os degraus de aço canelado de umas escadas rolantes, com o rapaz a agarrar-lhe a mão. Pendurados de um varão, alguns fatos cobertos de pó. Procuraram sapatos, mas não encontraram nenhuns. Remexeram no lixo, mas nada havia ali que lhes pudesse servir. Ao voltarem para trás, ele retirou os casacos dos cabides e sacudiu-os e dobrou-os sobre o braço. Vamos, disse.

Ele achava que alguma coisa ficara de certeza para trás, esquecida, mas não. Avançaram aos pontapés através do lixo acumulado nos corredores de uma grande mercearia. Velhas embalagens e papéis e a eterna cinza. Ele passou as prateleiras a pente fino, em busca de vitaminas. Abriu a porta de uma câmara frigorífica, mas o cheiro acre e fétido dos mortos brotou das trevas como uma vaga e ele fechou-a rapidamente. Ficaram parados na rua. Ele olhou para o céu cinzento. A respiração de ambos formava penachos ténues. O rapaz estava exausto. Ele pegou-lhe na mão. Temos de procurar mais um bocadinho, disse. Temos de continuar a procurar.

As casas na orla da povoação pouco mais tinham para lhes oferecer. Entraram numa cozinha pela escada das traseiras e começaram a vasculhar os armários cujas portas estavam todas escancaradas. Uma lata de fermento em pó. Ele ficou parado a remirá-la. Vasculharam as gavetas de um aparador na sala de jantar, depois passaram à sala de visitas. Rolos de papel de parede descolado jaziam no chão como manuscritos antigos. Ele deixou o rapaz sentado nas escadas, a segurar os casacos, enquanto ia ao andar de cima.

Tudo cheirava a humidade e a podridão. No primeiro quarto de dormir viu um cadáver ressequido com as roupas de cama em volta do pescoço. Restos de cabelo apodrecido na almofada. Agarrou a orla inferior da manta e puxou-a para fora da cama e sacudiu-a e dobrou-a debaixo do braço. Passou em revista as escrivaninhas e os roupeiros. Um vestido de Verão num cabide de arame. Nada. Tornou a descer as escadas. Estava a ficar escuro. Pegou na mão do rapaz e saíram os dois para a rua pela porta da frente.

No alto do monte virou-se e perscrutou a cidadezinha. As trevas caíam depressa. As trevas e o frio. Pôs dois dos casacos por cima dos ombros do rapaz, ocultando-o por completo, parka e tudo.

Tenho muita fome, papá.

Eu sei.

Vamos conseguir encontrar as nossas coisas?

Vamos. Eu sei onde estão.

E se alguém as encontrar?

Ninguém as vai encontrar.

Espero bem que não.

Não te preocupes. Anda daí.

O que é que foi aquilo?

Eu não ouvi nada.

Escuta.

Não ouço nada.

Ficaram à escuta. Foi então que, ao longe, ele ouviu um cão a ladrar. Virou-se e olhou na direcção da cidade que o escuro ia cobrindo. É um cão, disse.

Um cão?

Sim.

De onde é que veio o ladrido?

Não sei.

Não o vamos matar, pois não, papá?

Não. Não o vamos matar.

Baixou os olhos para o rapaz, que tremia sob os casacos. Curvou-se e beijou-o na pele áspera da testa. Não vamos fazer mal ao cão, disse. Prometo.

Dormiram num carro estacionado por baixo de um viaduto, com os casacos de fazenda e o cobertor amontoados por cima deles. Nas trevas e no silêncio ele avistou pedacinhos de luz que surgiam aleatoriamente na grelha da noite. Em todos os prédios, os andares mais altos estavam mergulhados na escuridão. Se alguém lá vivesse, teria de carregar água pelas escadas acima e ficaria vulnerável ao fumo de um incêndio ateado por atacantes nos andares inferiores. O que é que eles comiam? Só Deus sabe. Embrulhados nos cobertores, ficaram ali os dois a olhar pelo pára-brisas. Quem são eles, papá?

Não sei.

Acordou de noite e ficou deitado, à escuta. Não se conseguia lembrar onde estava. Este pensamento fê-lo sorrir. Onde estamos?, perguntou.

O que é que disseste, papá?

Nada. Está tudo bem. Dorme.

Vai correr tudo bem, não vai, papá?

Vai, sim.

E não nos vai acontecer mal nenhum, pois não?

Claro que não.

Porque nós transportamos o fogo.

Sim. Porque nós transportamos o fogo.

De manhã caía uma chuva fria. Fustigava a chapa do carro, mesmo ali, por baixo do viaduto, e dançava na estrada em volta. Sentados nos bancos, eles olhavam através da toalha de água no pára-brisas. Quando a chuvada abrandou, uma boa parte do dia já se escoara. Deixaram os casacos e o cobertor na traseira do carro, no chão, e foram pela estrada para vasculhar mais casas. Fumo de lenha no ar húmido. Não mais tornaram a ouvir o cão.

Encontraram alguns utensílios e duas ou três peças de roupa. Uma camisola. Um plástico que podiam usar à laia de oleado. Ele tinha a certeza de que estavam a ser observados, mas não viu ninguém. Numa despensa deram com um saco de farinha de milho meio cheio que as ratazanas tinham mordiscado há já muito tempo. Ele peneirou a farinha usando um pedaço de rede mosquiteira de uma janela e separou uma pequena mão-cheia de caganitas secas e atearam uma fogueira na varanda de cimento da casa e fizeram bolos com a farinha e cozeram-nos sobre um pedaço de chapa. Depois comeram-nos devagar, um por um. Ele embrulhou num papel os poucos que sobraram e guardou-os na mochila.

O rapaz estava sentado nos degraus quando viu qualquer coisa a mexer na traseira de uma casa, do lado oposto da rua. Um rosto olhava-o. Um rapaz mais ou menos da idade dele, envolto num casaco de lã demasiado grande, com as mangas arregaçadas. Pôs-se de pé. Atravessou a rua e subiu em correria a rampa de acesso à outra casa. Ninguém. Lançou um olhar à casa e depois correu até ao fundo do quintal pelo meio das ervas mortas, até chegar a um regato de águas paradas e negras. Volta!, chamou. Eu não te faço mal. Estava ali parado a chorar quando o pai atravessou a rua a correr e o agarrou pelo braço.

O que é que estás a fazer?, sibilou. O que é que estás a fazer?

Estava aqui um menino, papá. Estava aqui um menino.

Não estava aqui menino nenhum. O que é que estás a fazer?

Estava, sim. Eu vi-o.

Eu disse-te que estivesses quieto. Não te disse? Agora temos de nos ir embora. Anda.

Eu só o queria ver, papá. Eu só o queria ver.

O homem pegou-lhe pelo braço e voltaram para trás, subindo o declive do quintal. O rapaz não parava de chorar e não parava de olhar para trás. Anda, disse o homem. Temos de nos ir embora.

Eu quero vê-lo, papá.

Não há ninguém para ver. Queres morrer? É isso que tu queres?

Não me importa, disse o rapaz, a soluçar. Não me importa.

O homem parou. Parou e acocorou-se e abraçou-o. Desculpa, disse. Não digas isso. Não deves dizer isso.

Regressaram ao viaduto através das ruas molhadas e tiraram os casacos e o cobertor do interior do carro e continuaram até ao aterro da via férrea, onde treparam o talude e atravessaram os carris, e penetraram na floresta e recuperaram o carrinho e encaminharam-se para a estrada.

E se aquele menino não tem ninguém que cuide dele?, perguntava o rapaz. E se ele não tem papá?

Há pessoas ali. Estavam só escondidas.

Empurrou o carrinho para cima do asfalto e ficou ali parado. Distinguia os rastos do camião na cinza molhada, ténues e meio apagados pela chuva, mas visíveis, mesmo assim. Pareceu-lhe que conseguia sentir o cheiro deles. O rapaz estava a puxar-lhe o casaco. Papá, disse.

O que é?

Tenho medo por aquele menino.

Eu sei. Mas não lhe vai acontecer mal nenhum.

Devíamos ir buscá-lo, papá. Podíamos trazê-lo e levá-lo connosco. Podíamos levá-lo e levávamos também o cão. O cão podia apanhar alguma coisa para nós comermos.

Não podemos.

E eu dava ao menino metade da minha comida.

Pára com isso. Não podemos.

Ele estava outra vez a chorar. O que vai ser do menino?, soluçava. O que vai ser do menino?

Ao lusco-fusco, num cruzamento, sentaram-se no chão e ele desdobrou os bocados de mapa no asfalto e examinou-os. Pousou no papel o dedo estendido. Isto somos nós, disse. Aqui mesmo. O rapaz recusava-se a olhar. Ele quedou-se a analisar a matriz enovelada de estradas a vermelho e negro, sempre com o dedo no cruzamento onde lhe parecia que poderiam estar. Como se visse as duas figurinhas ali acocoradas. Podíamos voltar para trás, disse o rapaz em voz baixa. Não é assim tão longe. Ainda estamos a tempo.

Acamparam a céu aberto, numa mata, não muito longe da estrada. Incapazes de encontrar um lugar abrigado para atear uma fogueira que não se visse, abstiveram-se de fazer lume. Cada qual comeu dois bolos de milho e dormiram juntos, aninhados no chão, envoltos nos casacos e cobertores. Ele abraçou o filho contra si e ao fim de um certo tempo a criança parou de tremer de frio e ao fim de um certo tempo adormeceu.

O cão de que ele se recorda seguiu-nos durante dois dias. Tentei chamá-lo para junto de nós com palavras doces, mas o bicho manteve-se afastado. Fiz um laço corredio de arame para o apanhar. Tinha três balas na pistola, não me podia dar ao luxo de desperdiçar nenhuma. Ela afastou-se pela estrada fora. O rapaz olhou para ela e depois olhou para mim e depois olhou para o cão e começou a chorar e a suplicar-me que não o matasse e eu prometi-lhe que não ia fazer mal ao bicho. Um cabide em forma de cão com a pele esticada por cima. No dia seguinte tinha desaparecido. Eis o cão de que ele se recorda. Não se lembra de nenhum menino.

Guardara um punhado de passas ressequidas no bolso, dentro de um pano, e ao meio-dia sentaram-se na erva morta da berma da estrada e comeram-nas. O rapaz olhou para ele. Era o último resto de comida, não era?, perguntou.

Era.

E agora vamos morrer?

Não.

O que é que vamos fazer?

Vamos beber água. Depois vamos continuar a calcorrear esta estrada.

Está bem.

Ao anoitecer cruzaram um campo de cultivo, tentando encontrar um lugar onde a fogueira não se visse. Arrastavam o carrinho atrás deles, por cima da terra. Tão pouco promissora, aquela paisagem. Amanhã encontrariam alguma coisa para comer. A noite surpreendeu-os numa estrada lamacenta. Atravessaram-na e penetraram num campo e avançaram penosamente em direcção a uma mancha distante de árvores que se recortavam a contraluz, hirtas e negras, sobre a derradeira porção de mundo visível. Quando lá chegaram já era noite escura. Ele pegou na mão do rapaz e amontoou ramos e mato com os pés e acendeu uma fogueira. A lenha estava húmida, mas ele arrancou a casca morta dos ramos com a faca e amontoou galhos e paus a toda a volta para secarem ao calor. Depois estendeu o plástico no chão e tirou os casacos e os cobertores de dentro do carrinho e descalçou os sapatos húmidos e enlameados, os dele e os do rapaz, e ficaram ali sentados em silêncio, de mãos estendidas para as labaredas. Tentou pensar em alguma coisa para dizer, mas não conseguiu. Já antes tivera aquela impressão, a par da letargia e do desespero entorpecido. O mundo a contrair-se em volta de um núcleo em bruto de entidades reconhecíveis. Os nomes das coisas a seguirem lentamente essas mesmas coisas para o reino do esquecimento. As cores. Os nomes dos pássaros. As comidas. Por fim, os nomes das coisas que cada um acreditava serem verdadeiras. Mais frágeis do que ele pensava. Que parcela já desaparecera? O idioma sagrado privado dos seus referentes e, como tal, da sua realidade. A encolher-se como uma criatura que tenta conservar o calor. Mais tarde ou mais cedo, acabaria por se apagar para sempre.

Dormiram a noite inteira, exaustos, e de manhã a fogueira apagara-se e era uma mancha negra no chão. Ele calçou os sapatos enlameados e foi apanhar lenha, a soprar nas mãos em concha. Tanto frio. Talvez estivessem em Novembro. Talvez fosse mais tarde. Acendeu o lume e caminhou até à orla da mata e ficou a perscrutar as redondezas. Os campos de cultivo mortos. Um celeiro ao longe.

Puseram-se a caminho pela estrada de terra batida e treparam a uma colina onde uma casa se erguera outrora, mas ardera há já muito tempo. A forma enferrujada de uma caldeira erguia-se na água negra da cave. Folhas de chapa ondulada do telhado, todas calcinadas, jaziam amarrotadas nos campos para onde o vento as arrastara. No celeiro conseguiram recolher, no fundo poeirento de uma tremonha metálica, algumas mãos-cheias de um cereal que ele não identificou, e comeram-no ali parados, com poeira e tudo. Depois começaram a atravessar os campos em direcção à estrada.

Caminharam ao longo de um muro de pedra, deixando para trás os restos de um pomar. As árvores em filas ordenadas tinham uma aparência nodosa e negra e os ramos caídos amontoavam-se no chão. Ele parou e percorreu os campos com o olhar. Vento a soprar de leste. A cinza macia movia-se nos sulcos da terra, parava, movia-se outra vez. Ele já vira tudo aquilo em ocasiões anteriores. Sangue seco a formar desenhos no restolho e os anéis cinzentos das vísceras onde as vítimas tinham sido suturadas à pressa e transportadas para longe dali. No muro em frente encontrava-se um friso de cabeças humanas, todas com a mesma expressão facial, ressequidas e encovadas, com esgares hirtos e olhos mirrados. Tinham argolas de ouro nas orelhas coriáceas e, sob as rajadas de vento, o cabelo esparso e sem brilho agitava-se nos crânios. Os dentes nos alvéolos semelhantes a moldes dentários, as tatuagens toscas desenhadas com um qualquer anil de fabrico artesanal, esbatidas à luz empobrecida do Sol. Aranhas, espadas, alvos. Um dragão. Divisas rúnicas, afirmações de fé com erros ortográficos. Velhas cicatrizes com velhos motivos traçados ao longo dos bordos em pontilhado. As cabeças que não tinham sido reduzidas a uma massa informe a golpes de cacete estavam esfoladas e os crânios em carne viva pintados e assinados na testa com rabiscos e um crânio muito branco tinha as suturas entre os ossos cuidadosamente traçadas a tinta, qual plano a indicar os passos da montagem. Ele virou-se e olhou para o rapaz. Parado junto ao carrinho, ao vento. Olhou para a erva seca a ondular e para as fileiras de árvores escuras e retorcidas. Farrapos de roupa soprados contra o muro, tudo cinzento sob a capa de cinza. Caminhou ao longo do muro, passando as máscaras em revista pela derradeira vez, depois transpôs um hiato no próprio muro e saiu para onde o rapaz o esperava. Pôs-lhe o braço em volta dos ombros. Pronto, disse. Vamos.

Nos últimos tempos habituara-se a ver uma mensagem em cada um destes acontecimentos, uma mensagem e um aviso, e, com efeito, aquele quadro de gente morta e devorada revelou ser exactamente isso. Acordou de manhã e virou-se sob o cobertor e olhou para a estrada por entre as árvores, contemplando o caminho que eles próprios tinham percorrido, a tempo de ver surgir os homens que marchavam quatro a quatro. Vestidos com roupas de todos os géneros e feitios, todos eles de lenço vermelho ao pescoço. Vermelho ou cor de laranja, o mais próximo do vermelho que tinham conseguido encontrar. Ele pôs a mão em cima da cabeça do rapaz. Chiu, disse.

O que é, papá?

Gente na estrada. Não levantes a cabeça. Não olhes.

A fogueira apagada não deitava fumo. O carrinho estava totalmente oculto. Ele colou-se ao chão e ficou estendido, a olhar por cima do antebraço. Um exército de sapatilhas, a avançar com passos pesados. Empunhavam tubos metálicos de um metro, com tiras de couro enroladas. Correias de cabedal nos pulsos. Alguns tubos tinham correntes presas à ponta, equipadas na extremidade com os mais variados géneros de maças. Passaram com som tilintante, a marchar em passo gingão, quais bonecos de corda. Barbudos, o hálito a fumegar através das máscaras. Chiu, disse ele. Chiu. A falange que veio a seguir trazia lanças ou chuços engrinaldados com fitas, as longas lâminas feitas com molas de camião marteladas, fabricadas numa forja rudimentar, algures no interior.

O rapaz jazia de rosto escondido nos braços, apavorado. Passaram a sessenta metros de distância, com o solo a estremecer ligeiramente. A baterem com os pés no chão. Atrás vinham carroças puxadas por escravos presos aos tirantes, a abarrotar de despojos de guerra, e em seguida as mulheres, talvez uma dúzia delas, algumas grávidas, e no fim de tudo um contingente suplementar de catamitos, com roupas demasiado leves para o frio que fazia, com coleiras ao pescoço e presos com cangas, dois a dois. Todos passaram. Eles ficaram deitados, à escuta.

Já se foram embora, papá?

Sim, já foram.

Viste-os?

Vi.

Eram os homens maus?

Sim, eram os homens maus.

São imensos, aqueles homens maus.

Pois são. Mas já se foram embora.

Puseram-se de pé e sacudiram as roupas, à escuta do silêncio na lonjura.

Para onde é que eles vão, papá?

Não sei. Estão em movimento. Não é bom sinal.

Porque é que não é bom sinal?

Não é, pronto. Temos de pegar no mapa e dar uma olhadela.

Retiraram o carrinho do mato com que o tinham coberto e ele pô-lo direito e empilhou lá dentro os cobertores e os casacos e empurraram-no até à estrada e ficaram a olhar para o ponto onde a cauda daquela horda maltrapilha parecia ainda pairar como uma imagem persistente no ar agitado.

De tarde recomeçou a nevar. Eles ficaram a contemplar os flocos cinzento-claros que tombavam devagar da névoa sombria. Continuaram a caminhar a custo. Sobre a superfície escura da estrada formava-se uma frágil película de neve suja. O rapaz ficava constantemente para trás e ele parava e esperava por ele. Não te afastes de mim, disse.

Andas demasiado depressa.

Eu vou andar mais devagar.

Prosseguiram.

Deixaste de falar outra vez.

Não é verdade.

Queres parar?

Quero sempre parar.

Temos de ter mais cuidado. Eu tenho de ter mais cuidado.

Eu sei.

Vamos parar. Está bem?

Está bem.

Só temos de encontrar um lugar.

Está bem.

A neve que ia tombando formava uma cortina a rodeá-los. Não havia maneira de ver fosse o que fosse de ambos os lados da estrada. Ele começara de novo a tossir e o rapaz tremia, os dois lado a lado debaixo do plástico, a empurrar o carrinho de supermercado através da neve. Por fim, ele estacou. O rapaz tremia descontroladamente.

Temos de parar, disse ele.

Está imenso frio.

Eu sei.

Onde é que estamos?

Onde é que estamos?

Sim.

Não sei.

Se nós fôssemos morrer tu dizias-me?

Não sei. Nós não vamos morrer.

Deixaram o carrinho voltado num campo de carriços e ele tirou do cesto os casacos e os cobertores embrulhados no oleado de plástico e puseram-se a caminho. Agarra-te ao meu casaco, disse. Não largues. Caminharam pelo meio dos carriços até uma cerca e saltaram por cima, cada qual baixando o arame com as mãos para o outro passar. O arame estava frio e rangia nos grampos. A escuridão adensava-se rapidamente. Prosseguiram. Acabaram por chegar a um bosque de cedros, as árvores mortas e negras mas ainda com folhagem suficiente para suportar a neve. Por baixo de cada uma delas havia um precioso círculo de terra escura e manta morta dos cedros.

Instalaram-se debaixo de uma árvore e empilharam os cobertores e os casacos no chão e ele embrulhou o rapaz num dos cobertores e começou a juntar as agulhas mortas num monte. Com os pés, abriu uma clareira na neve a pequena distância, onde as chamas não pegariam fogo à árvore, e trouxe lenha das outras árvores, quebrando os ramos e sacudindo-os para soltar a neve. Quando acendeu o isqueiro, as chamas crepitaram de imediato naquele material extremamente inflamável e ele percebeu que a fogueira não ia durar muito. Olhou para o rapaz. Tenho de ir buscar mais lenha, disse. Vou estar nas redondezas. Está bem?

Onde são as redondezas?

Quer dizer que não vou estar longe, só isso.

Está bem.

A neve acumulada no chão tinha já quinze centímetros de espessura. Ele patinhava por entre as árvores, a puxar os ramos caídos que assomavam da neve e, quando conseguia reunir uma braçada e regressava para junto da fogueira, esta reduzira-se já a um ninho de brasas pulsantes. Atirava os galhos para cima do lume e afastava-se de novo. Era difícil manter o avanço. O bosque estava a ficar escuro e a luz da fogueira não chegava longe. Caso se apressasse, porém, rapidamente perderia as forças. Quando olhou para trás, o rapaz avançava a custo através da neve que lhe chegava a meio da perna, a apanhar galhos e a amontoá-los nos braços.

A neve caía, caía sem parar. Ele acordou vezes sem conta durante a noite e levantou-se e tornou a despertar o fogo com mil cuidados. Desdobrara o oleado e suspendera uma ponta por baixo da árvore para tentar reflectir o calor do lume. À luz cor de laranja, olhou para o rosto do rapaz adormecido. As faces encovadas, raiadas de negro. Abafou a raiva. Inútil. Não lhe parecia que o rapaz aguentasse aquela caminhada durante muito mais tempo. Mesmo que parasse de nevar, a estrada ficaria praticamente intransitável. A neve caía na quietude com um leve sussurro e as faúlhas ascendiam e ofuscavam-se e feneciam nas trevas eternas.

Estava a dormitar quando ouviu um estrondo na floresta. Depois outro. Soergueu-se. A fogueira estava reduzida a algumas labaredas dispersas no meio das brasas. Apurou o ouvido. O estalo seco e prolongado de galhos a partirem-se. Depois um novo estampido. Estendeu o braço e sacudiu o rapaz. Acorda, disse. Temos de ir.

Ele esfregou os olhos com as costas das mãos para afugentar o sono. O que é?, perguntou. O que é, papá? Vamos. Temos de fugir daqui. O que é?

São as árvores. Estão a cair.

O rapaz soergueu-se e lançou em volta um olhar atónito. Está tudo bem, disse o homem. Vamos. Temos de nos despachar.

Apanhou do chão as mantas e enrodilhou-as e enrolou o oleado em volta. Ergueu o rosto. A neve caía-lhe nos olhos. A fogueira não passava de um montículo de brasas e não dava luz e o bosque quase desaparecera e as árvores tombavam em volta deles nas trevas. O rapaz agarrou-se a ele. Começaram a caminhar e ele tentou encontrar uma clareira no escuro mas finalmente desistiu e estendeu o oleado no chão e sentaram-se os dois e taparam-se com os cobertores e ele puxou o rapaz contra si. O vump das árvores a cair e o tonitruar cavernoso dos montes de neve a explodir no solo faziam estremecer a floresta. Ele abraçou o rapaz e disse-lhe que não havia perigo e que aquilo já ia passar e ao fim de algum tempo passou mesmo. O tumulto surdo dissipou-se ao longe. Depois tornou a fazer-se ouvir, solitário e distante. Depois nada. Pronto, disse ele. Acho que já passou. Escavou um túnel debaixo de uma das árvores caídas, retirando a neve com os braços, as mãos gélidas enclavinhadas dentro das mangas. Arrastaram as mantas e o oleado para dentro do buraco e ao fim de um certo tempo, apesar do frio cortante, tornaram a adormecer.

Quando o dia nasceu, ele abriu caminho para fora da toca, o oleado pesado da neve. Pôs-se de pé e olhou em volta. Parara de nevar e os cedros jaziam caídos por entre montículos de neve e ramos quebrados e um ou outro tronco erguia-se ainda, despido e de aparência queimada, naquela paisagem que se ia cobrindo de cinzento. Ele caminhou a custo através dos montes de neve, deixando o rapaz a dormir debaixo da árvore como um animal a hibernar. A neve chegava-lhe quase aos joelhos. No campo, os carriços mortos quase não se viam sob o manto branco e a neve formava gumes afiados em cima dos arames da cerca e o silêncio era de cortar a respiração. Apoiou-se a um poste e começou a tossir. Não fazia ideia onde se encontrava o carrinho e pareceu-lhe que estava a perder faculdades e já não tinha a cabeça a funcionar bem. Concentra-te, disse. Tens de raciocinar. Quando se virou para regressar, o rapaz estava a chamá-lo.

Temos de ir embora, disse. Não podemos ficar aqui.

O rapaz fitou tristemente os montes de neve cinzenta.

Anda.

Caminharam até à cerca.

Onde é que vamos?, perguntou o rapaz.

Temos de encontrar o carrinho.

O rapaz ficou ali parado, com as mãos nas axilas da parka.

Anda, disse o homem. Tens de vir comigo.

Calcorreou penosamente os campos cobertos de neve, onde se acumulara um espesso manto cinzento, já salpicado com nova camada de cinza. Avançou a custo mais alguns passos e depois virou-se e olhou para trás. O rapaz caíra. Ele largou a braçada de cobertores e o oleado e voltou atrás e ergueu-o do chão. O rapaz já estava a tremer. Ergueu-o do chão e abraçou-o. Desculpa, disse. Desculpa.

Demoraram imenso tempo a encontrar o carrinho. Ele arrancou-o da neve e pô-lo direito e tirou a mochila do cesto e sacudiu-a e atafulhou lá dentro um dos cobertores. Amontoou no cesto a mochila e os outros cobertores e os casacos e pegou no rapaz ao colo e pousou-o em cima do monte e desapertou-lhe os atacadores dos sapatos e descalçou-lhos. Depois pegou na faca e começou a cortar um dos casacos às tiras e a entrapar-lhe os pés. Usou o casaco inteiro e depois cortou grandes quadrados de plástico do oleado e pôs-lhos por baixo dos pés e juntou as pontas por cima e amachucou-as bem e amarrou-lhas em volta dos tornozelos com tiras do forro das mangas do casaco. Recuou um passo. O rapaz baixou os olhos. Agora tu, papá, disse. Ele cobriu o rapaz com outro casaco e depois sentou-se no oleado, em cima da neve, e embrulhou os próprios pés. Ergueu-se e aqueceu as mãos dentro da parka e depois guardou os sapatos de ambos na mochila juntamente com os binóculos e a camioneta de brincar do rapaz. Sacudiu o oleado e dobrou-o e amarrou-o por cima da mochila juntamente com os outros cobertores e pôs a mochila aos ombros e em seguida lançou um último olhar ao cesto do carrinho, mas não havia mais nada. Vamos, disse. O rapaz voltou a cabeça e olhou para o carrinho pela derradeira vez e depois seguiu-o em direcção à estrada.

Caminhar era ainda mais penoso do que ele imaginara. Numa hora percorreram um quilómetro e meio, talvez. Ele parou e voltou-se para trás e encarou o rapaz, que parou também e ficou à espera.

Pensas que vamos morrer, não é?

Não sei.

Nós não vamos morrer.

Está bem.

Mas tu não acreditas em mim.

Não sei.

Porque é que achas que vamos morrer?

Não sei.

Pára de dizer não sei.

Está bem.

Porque é que achas que vamos morrer?

Não temos nada para comer.

Havemos de encontrar alguma coisa.

Está bem.

Quanto tempo é que achas que uma pessoa aguenta sem comida?

Não sei.

Mas quanto tempo é que tu achas?

Alguns dias, talvez.

E depois? A pessoa cai para o lado e morre?

Sim.

Pois enganas-te. Leva imenso tempo. Nós temos água, que é a coisa mais importante. Ninguém sobrevive muito tempo sem água.

Está bem.

Mas tu não acreditas em mim.

Não sei.

Ele perscrutou-lhe o rosto. Ali parado com as mãos nos bolsos do casaco de riscado que lhe ficava a nadar.

Achas que eu te minto?

Não.

Mas achas que eu era capaz de te mentir sobre a morte.

Sim.

Está bem. Eu era capaz disso. Mas nós não vamos morrer. Está bem.

Perscrutava o céu. Havia dias em que o tecto de nuvens cor de cinza se tornava menos denso e agora as árvores erectas ao longo da estrada projectavam sobre a neve a mais ténue das sombras. Prosseguiram. O rapaz não se estava a sentir bem. Ele parou e examinou-lhe os pés e tornou a amarrar o plástico. Quando a neve começasse a derreter ia ser difícil manterem os pés secos. Paravam muitas vezes para descansar. Ele não tinha forças para levar o filho ao colo. Sentavam-se em cima da mochila e comiam mãos-cheias de neve suja. De tarde já começara a derreter. Passaram por uma casa ardida, somente a chaminé de tijolo ainda de pé no quintal. Calcorrearam a estrada o dia inteiro, aquele dia tão minguado. Tão poucas horas. Tinham percorrido uns cinco quilómetros, se tanto.

Ele pensou que a estrada estava tão intransitável que ninguém circulava por ela, mas enganou-se. Acamparam quase em cima do asfalto e fizeram uma grande fogueira, arrastando ramos mortos que a neve cobrira e amontoando-os nas chamas, onde crepitavam e soltavam nuvens de vapor. Não havia alternativa. Os poucos cobertores de que dispunham não os aqueciam. Ele tentou manter-se acordado. Emergia subitamente do sono, endireitando-se com um sobressalto, e dava palmadas no chão em volta, à procura da pistola. O rapaz estava tão magro. Observou-o enquanto dormia. A pele da face repuxada e os olhos encovados. Uma estranha beleza. Levantou-se e arrastou mais lenha para a fogueira.

Caminharam até à estrada e pararam. Havia rastos na neve. Uma carroça. Um qualquer veículo com rodas. Qualquer coisa com pneus de borracha, a avaliar pelas marcas estreitas. Pegadas de botas entre as rodas. Alguém passara no escuro em direcção ao sul, logo ao raiar do dia, o mais tardar. A percorrer a estrada de noite. Ele ficou ali parado, a pensar nisto. Deu alguns passos no asfalto, a examinar os rastos cuidadosamente. Tinham passado a quinze metros da fogueira sem sequer abrandarem para olhar. O homem voltou-se e olhou para o fundo da estrada. O rapaz observava-o.

Temos de sair da estrada.

Porquê, papá?

Vem aí gente.

São os homens maus?

Sim. Receio bem que sim.

Talvez sejam homens bons. Não achas?

Ele não respondeu. Olhou para o céu em obediência a um velho hábito, mas nada havia para ver.

O que é que fazemos, papá?

Anda daí.

Podemos voltar para junto do fogo?

Não. Anda. Provavelmente, não temos muito tempo.

Tenho imensa fome.

Eu sei.

O que é que vamos fazer?

Temos de nos esconder. Sair da estrada.

Eles vão ver as nossas pegadas?

Vão.

Como é que podemos evitar isso?

Não sei.

Eles vão ficar a saber o que nós somos?

O quê?

Se virem as nossas pegadas. Vão ficar a saber o que nós somos?

Ele olhou para trás, para as grandes pegadas redondas que ambos deixavam na neve.

Vão conseguir perceber, disse.

Depois parou.

Temos de pensar melhor nisto. Vamos voltar para junto da fogueira.

Pensara em encontrar algum ponto da estrada onde a neve tivesse derretido por completo, mas depois achou que, uma vez que as pegadas deles não reapareceriam do lado oposto, não serviria de nada. Atiraram neve com os pés para cima da fogueira e dirigiram-se para o meio das árvores, descreveram um círculo e regressaram ao ponto de partida. Caminhavam depressa, deixando um labirinto de pegadas, e depois tornaram a dirigir-se para norte, através do bosque, sempre com a estrada à vista.

Limitaram-se a escolher o ponto mais elevado das cercanias, que lhes proporcionava uma vista para norte, ao longo da estrada, e era sobranceiro ao rasto que tinham acabado de deixar. Ele desenrolou o oleado na neve molhada e embrulhou o rapaz nos cobertores. Vais ter frio, disse. Mas talvez não tenhamos de ficar aqui muito tempo. Ainda não se passara uma hora quando dois homens surgiram na estrada, a avançar em passo largo e veloz, quase a correr. Quando começaram a afastar-se, ele pôs-se de pé para os observar. E, no momento em que o fez, eles pararam e um deles olhou para trás. Ele imobilizou-se. Estava embrulhado num cobertor cinzento e era difícil vê-lo, mas não impossível. Mas pareceu-lhe que, provavelmente, eles tinham sentido o cheiro a fumo. Ficaram os dois parados, a falar um com o outro. Depois prosseguiram. Ele sentou-se. Já não há perigo, disse. Só temos de esperar. Mas acho que já não há perigo.

Há cinco dias que não comiam e pouco tinham dormido e foi neste estado que, nos arredores de uma cidadezinha, chegaram a uma casa outrora imponente, situada numa elevação sobranceira à estrada. O rapaz segurava-lhe a mão. A neve já derretera quase toda no macadame e nos campos e matas virados a sul. Ficaram os dois ali parados. Os sacos de plástico que lhes cobriam os pés há muito que se haviam rompido e tinham os pés molhados e frios. A casa era alta e majestosa, com colunas dóricas brancas na fachada. Um alpendre para os automóveis na parede lateral. Uma rampa de brita que descrevia uma curva através de um prado de erva morta. As janelas estavam estranhamente intactas.

Que casa é esta, papá?

Chiu. Vamos só ficar aqui à escuta.

Não se ouvia nada. O vento a agitar os fetos mortos na berma. Um ranger distante. Porta ou portada.

Acho que é melhor irmos dar uma olhadela.

Papá, não vamos ali acima.

Não há perigo.

Acho que não devíamos ir ali acima.

Não há perigo. Temos de ir dar uma vista de olhos.

Aproximaram-se vagarosamente, subindo a rampa. Não havia pegadas nas manchas irregulares de neve a derreter-se. Uma sebe alta de ligustro morto, com um velho ninho de pássaro preso no emaranhado escuro das ramagens. Ficaram parados no terreiro, a examinar a fachada. Os tijolos feitos à mão de que a casa era construída tinham sido cozidos a partir da própria terra onde ela se erguia. A tinta estalada pendia em compridas línguas secas das colunas e dos sofitos empenados. Por cima da porta, suspenso de uma longa corrente, havia um candeeiro. O rapaz agarrou-se a ele com força enquanto subiam os degraus. Uma das janelas estava entreaberta e uma corda emergia da fresta e atravessava o pórtico até desaparecer na erva. Ele deu a mão ao rapaz e cruzaram o pórtico. Em tempos idos, escravos tinham pisado aquelas tábuas, transportando comida e bebida em bandejas de prata. Aproximaram-se da janela e espreitaram para o interior.

E se estiver alguém aqui dentro, papá?

Não está aqui ninguém.

Acho melhor irmos embora, papá.

Temos de encontrar alguma coisa para comer. Não temos outra alternativa.

Podemos encontrar comida noutro lugar.

Vai correr tudo bem. Anda.

Tirou a pistola do cinto e experimentou a porta, que rodou lentamente para o interior nas grandes dobradiças de latão. Ficaram parados, à escuta. Depois penetraram num amplo vestíbulo, com o chão revestido por um dominó de ladrilhos brancos e negros de mármore. Uma larga escadaria dava acesso ao andar de cima. Papel de parede de primeira qualidade, Morris, manchado da água e a descolar-se. O estuque do tecto formava grandes barrigas e a cercadura denticulada, já amarelecida, estava deformada e meio solta do alto das paredes. À esquerda, através de uma porta, naquilo que em tempos devia ter sido a sala de jantar, via-se um grande aparador de nogueira. As portas e as gavetas tinham desaparecido, mas o resto era demasiado grande para servir de lenha. Quedaram-se os dois na soleira. A um canto da divisão, num amontoado caótico, havia uma grande pilha de roupas. Roupas e sapatos. Cintos. Casacos. Cobertores e velhos sacos-cama. Mais tarde, ele teria tempo de sobra para pensar naquilo. O rapaz não lhe largava a mão. Estava apavorado. Atravessaram o vestíbulo para a divisão do lado oposto, entraram e pararam. Um grande salão, com tectos do dobro da altura das portas. Uma lareira com o tijolo em bruto à vista, onde o friso e a orla de madeira tinham sido arrancados com um pé-de-cabra e queimados. Defronte desta lareira havia colchões e roupas de cama dispostos no chão. Papá, sussurrou o rapaz. Chiu, disse ele.

As cinzas estavam frias. Em volta viam-se algumas panelas enegrecidas. Ele acocorou-se e pegou numa destas e cheirou-a e tornou a pô-la no chão. Pôs-se de pé e olhou pela janela. Erva cinzenta e calcada. Neve cinzenta. A corda que entrava pela janela estava amarrada a uma sineta de latão e a sineta encontrava-se presa a um tosco suporte de madeira que fora pregado ao caixilho. Pegou na mão do rapaz e percorreram um corredor estreito que conduzia à cozinha, nas traseiras. Lixo amontoado por toda a parte. Um lava-louça manchado de ferrugem. Cheiro a mofo e a excrementos. Entraram na pequena divisão adjacente, talvez uma despensa.

No chão deste cubículo via-se uma porta ou alçapão que se encontrava trancado com um grande cadeado, feito de placas de aço sobrepostas. Ele ficou a olhar para aquilo.

Papá, disse o rapaz. É melhor irmos. Papá.

Por alguma razão isto está trancado.

O rapaz puxou-lhe a mão. Estava quase em lágrimas. Papá?, disse.

Temos de comer.

Eu não tenho fome, papá. Não tenho.

Temos de encontrar um pé-de-cabra ou coisa parecida.

Saíram pela porta das traseiras, o rapaz agarrado a ele. Enfiou a pistola no cinto e ficou parado, a examinar o pátio. Havia uma alameda de tijoleira e as formas retorcidas e esqueléticas do que em tempos fora um renque de buxos. No pátio via-se uma velha grade de lavoura feita de ferro, apoiada em pilares de tijolo solto, e alguém entalara entre as barras metálicas um caldeirão de ferro fundido de cento e cinquenta litros, do género que se usava outrora para derreter a gordura dos porcos. Por baixo viam-se as cinzas de uma fogueira e algumas achas enegrecidas. A um canto encontrava-se uma pequena carroça com pneus de borracha. Ele viu todas estas coisas sem as ver. No extremo oposto havia um velho fumeiro de madeira e um alpendre para guardar ferramentas. Atravessou o pátio, quase a arrastar a criança atrás de si, e pôs-se a passar em revista as ferramentas arrumadas num barril, sob o telhado do alpendre. Acabou por encontrar uma pá de cabo longo e sopesou-a na mão. Anda, disse.

De volta à casa, golpeou a madeira em volta do anel metálico do ferrolho e, por fim, conseguiu enfiar-lhe a lâmina por baixo e arrancou-o com um movimento de alavanca. O ferrolho estava aparafusado à madeira e soltou-se de uma só vez, cadeado e tudo. Com um golpe enérgico, introduziu a lâmina da pá na fresta das tábuas e deteve-se e tirou o isqueiro do bolso. Em seguida, pôs-se de pé em cima do olhal da pá e levantou a borda do alçapão e debruçou-se e agarrou-a. Papá, sussurrou o rapaz.

Ele suspendeu o gesto. Escuta, disse. Pára com isso, sim? Estamos a morrer de fome. Percebes? Depois ergueu o alçapão e fê-lo rodar nas dobradiças e deixou-o cair no chão, por trás.

Tu esperas aqui, disse.

Eu vou contigo.

Pensei que estavas com medo.

E estou.

Está bem. Não te afastes de mim.

Começou a descer os toscos degraus de madeira. Baixou a cabeça e depois acendeu o isqueiro e, com um gesto largo, estendeu a chama para as trevas como uma oferenda. Frio e humidade. Um fedor medonho. O rapaz agarrou-se ao casaco dele. Ele distinguia parte de uma parede de pedra. Chão de terra barrenta. Um colchão velho com manchas escuras. Acocorou-se e desceu mais alguns degraus e estendeu a luz. Agachadas contra a parede do fundo estavam pessoas nuas, homens e mulheres, todas a tentar esconder-se, a tapar o rosto com as mãos. No colchão jazia um homem com as pernas amputadas até às ancas e os cotos enegrecidos e queimados. O cheiro era hediondo.

Santo Deus, murmurou ele.

Foi então que, uma por uma, as figuras humanas se viraram, a pestanejar àquela luz digna de dó. Ajudem-nos, sussurraram. Por favor, ajudem-nos.

Santo Deus, disse ele. Oh, santo Deus.

Virou-se e agarrou o rapaz. Despacha-te, disse. Despacha-te.

Deixara cair o isqueiro. Não havia tempo de procurar. Empurrou o rapaz pelas escadas acima. Ajudem-nos!, gritavam as vozes.

Despacha-te.

Um rosto de barbas surgiu a pestanejar na base das escadas. Por favor!, gritou. Por favor!

Despacha-te. Por amor de Deus, despacha-te!

Atirou o rapaz através da abertura com tanta força que o fez estatelar-se ao comprido. Endireitou-se e agarrou o alçapão e ergueu-o e deixou-o cair com estrondo para o fechar e virou-se para agarrar o rapaz mas este levantara-se e estava a executar uma pequena dança de pavor. Por amor de Deus, mexes-te ou quê, sibilou ele. Mas o rapaz estava a apontar pela janela e quando ele olhou sentiu-se gelar dos pés à cabeça. A atravessar o campo, caminhando em direcção à casa, vinham quatro homens de barbas e duas mulheres. Ele agarrou o rapaz pela mão. Valha-me Deus, disse. Corre. Corre.

Precipitaram-se através da casa até à porta da frente e desceram a escadaria. A meio da rampa de brita ele arrastou o rapaz para o prado. Olhou para trás. Os despojos da sebe de ligustro ocultavam-nos em parte, mas ele sabia que dispunham de escassos minutos, no máximo, talvez nem isso. Na base da encosta lançaram-se através de um canavial morto e saíram para a estrada e atravessaram-na e penetraram na floresta, do lado oposto. Ele agarrou o pulso do rapaz ainda com mais força. Corre, sussurrou. Temos de correr. Olhou na direcção da casa, mas não viu nada. Se eles descessem pela rampa, vê-lo-iam a correr por entre as árvores com o rapaz. Eis o momento. Eis o momento. Deixou-se cair no chão e puxou o rapaz para junto de si. Chiu, disse. Chiu.

Eles vão matar-nos? Papá?

Chiu.

Ficaram deitados nas folhas mortas e na cinza com o coração a martelar-lhes no peito. Ele ia começar a tossir. Queria tapar a boca com a mão, mas o rapaz agarrara-a e recusava-se a soltá-la e na outra ele segurava a pistola. Teve de se concentrar para suprimir a tosse e, ao mesmo tempo, tentava apurar o ouvido. Virou o queixo sobre as folhas, tentando ver. Não levantes a cabeça, sussurrou.

Eles vêm aí?

Não.

Rastejaram vagarosamente através das folhas em direcção a um terreno que lhes pareceu mais baixo. Ele ficou deitado à escuta, a abraçar o rapaz. Ouvia-os na estrada a conversar. A voz de uma mulher. Depois ouviu-os nas folhas secas. Pegou na mão do rapaz e enfiou-lhe o revólver entre os dedos. Pega nisso, sussurrou. Pega nisso. O rapaz estava apavorado. Pôs o braço em volta dele e aconchegou-o contra si. O corpo dele tão magro. Não tenhas medo, disse. Se eles te encontrarem, vais ter de te matar. Compreendes? Chiu. Não chores. Estás-me a ouvir? Sabes como é que se faz. Enfias o cano na boca e apontas para cima. Tens de ser rápido, não podes hesitar. Compreendes? Pára de chorar. Compreendes?

Acho que sim.

Não. Compreendes?

Sim.

Diz compreendo, sim, papá.

Compreendo, sim, papá.

Baixou os olhos para o filho. Viu apenas terror. Tirou-lhe a arma da mão. Não compreendes nada, disse.

Não sei o que fazer, papá. Não sei o que fazer. E tu, onde é que vais estar?

Não faz mal.

Não sei o que fazer.

Chiu. Eu estou aqui, não te vou deixar sozinho.

Promete.

Sim, prometo. Ia desatar a correr, para os tentar atrair para longe. Mas não sou capaz de te abandonar.

Papá?

Chiu. Não te levantes.

Tenho tanto medo.

Chiu.

Ficaram deitados, à escuta. Serás capaz de o matar? Quando chegar o momento? Quando chegar o momento não vai haver tempo. O momento é agora. Amaldiçoa Deus e morre. E se a arma não disparar? Tem de disparar. E se não disparar? Serias capaz de esborrachar este adorado crânio com uma pedra? Existe uma tal criatura dentro de ti, da qual nada sabes? Será possível? Abraça-o. Assim mesmo. A alma é sagaz. Puxa-o para ti. Beija-o. Rápido.

Esperou, com o pequeno revólver niquelado na mão. Ia tossir. Concentrou-se totalmente em reprimir a tosse. Tentou apurar o ouvido, mas não ouvia nada. Não te vou abandonar, sussurrou. Nunca te vou abandonar. Compreendes? Ficou deitado nas folhas, a abraçar a criança que tremia. A agarrar o revólver nos dedos enclavinhados. Ao longo de todo o arrastado crepúsculo, até chegarem as trevas. Frias e sem estrelas. Abençoadas. Começou a acreditar que havia hipóteses de se salvarem. Só temos de esperar, sussurrou. Tanto frio. Tentou reflectir, mas o espírito perdia-se em divagações. Estava tão fraco. Toda aquela conversa sobre correr, quando afinal nunca teria forças para isso. Assim que o negrume se adensou em volta deles, soltou as fivelas da mochila e tirou de lá os cobertores e estendeu-os por cima do rapaz e pouco depois este adormeceu.

De noite ouviu guinchos horríveis vindos da casa e tentou pôr as mãos sobre os ouvidos do rapaz e ao fim de um certo tempo os gritos cessaram. Ficou deitado, à escuta. Ao atravessar o canavial em direcção à estrada, vira um caixote. Um objecto parecido com uma casita de brincar para crianças. Percebeu que era ali que eles se escondiam, a vigiar a estrada. Ficavam de atalaia e tocavam a sineta na casa para chamar os companheiros. Dormitou e acordou. Quem vem lá? Passos nas folhas. Não. É apenas o vento. Nada. Soergueu-se e olhou na direcção da casa, mas viu apenas as trevas. Sacudiu o rapaz até o acordar. Anda, disse. Temos de ir. O rapaz não respondeu, mas ele percebeu que estava acordado. Soltou os cobertores e prendeu-os por cima da mochila. Anda, sussurrou.

Partiram através da floresta escura. Havia uma Lua algures por trás das nuvens cor de cinza e eles distinguiam as árvores muito a custo. Avançavam aos tropeções, como bêbedos. Se eles nos encontram matam-nos, não é, papá?

Chiu. Agora silêncio.

Matam-nos, não é, papá?

Chiu. Sim. Sim, matam-nos.

Não fazia ideia da direcção que tinham tomado e receava que pudessem descrever um círculo e regressassem à casa. Tentou recordar se sabia alguma coisa acerca disso ou se era apenas fantasia. Em que direcção se desviavam as pessoas perdidas? Talvez variasse consoante o hemisfério. Ou consoante o facto de a pessoa ser destra ou canhota. Por fim, afastou do espírito esses pensamentos. A ideia de que podia haver alguma tendência a corrigir. O cérebro estava a atraiçoá-lo. Fantasmas esquecidos durante milhares de anos despertavam lentamente do sono. Eis o desvio a corrigir. O rapaz cambaleava. Pediu-lhe que o levasse ao colo, aos tropeções e a arrastar as palavras, e o homem pegou-lhe mesmo ao colo e ele pousou-lhe a cabeça no ombro e adormeceu de imediato. Sabia que não era capaz de o transportar durante muito tempo.

Acordou na escuridão da floresta, estendido nas folhas mortas, sacudido por calafrios violentos. Soergueu-se e apalpou o chão em volta, à procura do rapaz. Pousou-lhe a mão nas costelas magras. Calor e movimento. O bater do coração.

Quando tornou a acordar já quase havia luz suficiente para se ver. Afastou o cobertor e pôs-se de pé e quase caiu. Recuperou o equilíbrio e tentou ver em volta de si no bosque cinzento. Que distância teriam percorrido? Caminhou até ao cume de uma elevação e agachou-se e viu o dia assomar. A alvorada relutante, o mundo frio e envolto na penumbra. Ao longe o que parecia ser um pinhal, agreste e negro. Um mundo sem cor, feito de arame e crepe. Regressou para junto do rapaz e puxou-o para si e obrigou-o a soerguer-se. O rapaz deixava a cabeça tombar constantemente para diante. Temos de ir, disse ele. Temos de ir.

Atravessou o campo com ele ao colo, parando para descansar a cada cinquenta passos, contados em voz baixa. Quando chegou aos pinheiros, ajoelhou-se e estendeu-o na caruma pedregosa e tapou-o com os cobertores e ficou sentado a observá-lo. Parecia saído de um campo de extermínio. Esfomeado, exausto, doente de medo. Curvou-se e beijou-o e pôs-se de pé e caminhou até à orla da floresta e depois percorreu um vasto círculo para ver se o lugar era seguro.

A sul, para além dos campos, avistava a forma de uma casa e de um celeiro. Atrás das árvores, a curva de uma estrada. Um longo caminho de acesso com erva morta. Hera seca a cobrir um muro de pedra e uma caixa de correio e uma cerca ao longo da estrada e as árvores mortas do lado oposto. Tudo frio e silencioso. Envolto no papel químico amarrotado do nevoeiro. Voltou para trás e sentou-se junto do filho. Fora o desespero que o conduzira a um tal grau de imprudência e sabia que não podia tornar a repetir o erro. Acontecesse o que acontecesse.

O rapaz ia ficar horas a dormir. Se acordasse, porém, sentir-se-ia apavorado. Já acontecera antes. Pensou em acordá-lo, mas sabia que, se o fizesse, ele não se lembraria de nada. Ensinara-o a ficar deitado e quieto nos bosques como uma cria de veado. Durante quanto tempo? Depois de meditar um pouco, tirou a pistola do cinto e pousou-a ao lado do rapaz, sob os cobertores, e pôs-se de pé e afastou-se.

Acercou-se do celeiro pela colina sobranceira, parando para observar e ficar à escuta. Desceu através dos despojos de um velho pomar de macieiras, cepos negros e nodosos, com erva morta pelos joelhos. Deteve-se à porta do celeiro e pôs-se à escuta. Luz ténue, em finas ripas. Percorreu as baias poeirentas. Postou-se no centro do celeiro e apurou o ouvido, mas não se ouvia nada. Subiu a escada para o sótão e sentia-se tão fraco que nem sabia ao certo se ia conseguir chegar ao alto. Caminhou até ao extremo do sótão e olhou pela janela alta da empena, observando a paisagem lá em baixo, os terrenos emparcelados, cinzentos e sem vida, a cerca, a estrada.

Havia fardos de palha no chão do sótão e ele agachou-se e conseguiu separar uma mão-cheia de grãos do meio do feno e sentou-se a mastigá-los. Ásperos e secos e cheios de pó. Tinham de conter alguns nutrientes. Levantou-se e empurrou dois fardos, fazendo-os rolar pelo chão, e atirou-os para o centro do celeiro, lá em baixo. Dois baques poeirentos. Voltou para junto da empena e ficou a perscrutar a parte da casa que avistava dali, por trás do recanto da parede. Depois tornou a descer a escada.

A erva entre a casa e o celeiro parecia intacta, sem marcas de pegadas. Dirigiu-se para a varanda. A rede mosquiteira estava a cair aos bocados, apodrecida. Uma bicicleta de criança. A porta da cozinha encontrava-se aberta e ele cruzou a varanda e parou na soleira. As paredes forradas de painéis baratos de contraplacado, com as pontas levantadas da humidade, alguns tombados no chão. Uma mesa vermelha de fórmica. Atravessou a divisão e abriu a porta do frigorífico. Numa das prateleiras via-se uma massa indistinta, revestida de pêlo cinzento. Fechou a porta. Lixo por todo o lado. Pegou numa vassoura que estava ao canto e, com a ponta do cabo, remexeu na amálgama de objectos. Subiu para cima da bancada e procurou às apalpadelas na parte superior dos armários, cobertos de pó. Uma ratoeira. Um pacote, vá-se lá saber de quê. Soprou-lhe para limpar a sujidade. Era refrigerante em pó com sabor a uva. Guardou o pacote no bolso do casaco.

Percorreu a casa, divisão após divisão. Nada encontrou. Uma colher na gaveta de uma mesinha-de-cabeceira. Guardou-a no bolso. Pensou que talvez houvesse roupas num roupeiro ou algum cobertor, mas não. Tornou a sair da casa e foi até à garagem. Passou em revista os utensílios que ia encontrando. Ancinhos. Uma pá. Frascos numa prateleira, cheios de pregos e parafusos. Um x-acto. Ergueu-o para o ver melhor à luz e examinou a lâmina ferrugenta e voltou a pousá-lo. Depois tornou a pegar-lhe. Pegou também numa chave de parafusos que estava dentro de uma lata de café e abriu-lhe o cabo. Lá dentro estavam quatro lâminas novas. Tirou a lâmina velha do x-acto e pousou-a na prateleira e encaixou uma nova e tornou a aparafusar as duas metades do cabo e recolheu a lâmina e guardou o x-acto no bolso. Depois pegou na chave de parafusos e guardou-a também no bolso.

Voltou a encaminhar-se para o celeiro. Levava consigo um pedaço de tecido que tencionava usar para separar grãos das medas de palha, mas, ao entrar no celeiro, estacou e ficou a ouvir o vento. Um ranger metálico algures acima dele, no alto do telhado. Havia ainda no celeiro resquícios de cheiro a vacas e ele lembrou-se que estes animais estavam extintos. Seria mesmo assim? Talvez ainda existisse algures uma vaca, a ser alimentada e tratada com mil cuidados. Seria possível? Mas alimentada com quê? E para quê mantê-la viva? Diante da porta aberta, a erva morta agitava-se ao vento com um som áspero e seco. Saiu do celeiro e ficou parado, a estender o olhar sobre os campos, na direcção do pinhal onde o rapaz jazia adormecido. Começou a atravessar o pomar, subindo a encosta, e depois estacou. Pisara qualquer coisa. Deu um passo atrás e ajoelhou-se e afastou a erva com as mãos. Era uma maçã.

Pegou-lhe e ergueu-a à luz. Dura e castanha e engelhada. Limpou-a com o pano e deu-lhe uma dentada. Seca e quase sem sabor. Mas era uma maçã. Comeu-a toda, caroços e tudo. Segurou o pedúnculo entre o polegar e o indicador e deixou-o cair. Depois começou a caminhar suavemente pela erva. Ainda tinha os pés embrulhados nos restos do casaco e nos farrapos de oleado e sentou-se no chão e desamarrou tudo isto e guardou os bocados de tecido e de plástico no bolso e pôs-se a percorrer as fiadas de árvores de pés descalços. Quando chegou ao fundo do pomar tinha apanhado mais quatro maçãs e guardou-as no bolso e voltou para trás. Seguiu renque após renque até traçar um labirinto na erva. Tinha tantas maçãs que já não as conseguia transportar todas. Apalpou os espaços em volta dos troncos e encheu os bolsos a abarrotar e amontoou maçãs no capuz da parka, atrás da nuca, e carregou maçãs empilhadas nos antebraços, contra o peito. Deixou-as cair em monte, à porta do celeiro, e sentou-se ali e embrulhou os pés dormentes.

No cubículo que servia de bengaleiro, contíguo à cozinha, vira um velho cesto de verga cheio de boiões de vidro. Arrastou o cesto para fora e retirou os boiões um a um e depois virou-o ao contrário e bateu-lhe no fundo para sacudir a poeira. De súbito, deteve-se. O que é que vira? Um algeroz. Uma latada. A serpentina escura de uma videira morta a descer pela grade como a curva no gráfico de lucros de uma empresa. Ergueu-se e tornou a atravessar a cozinha e saiu para o quintal e ficou a contemplar a casa. As janelas reflectiam o dia cinzento e sem nome. O cano descia pelo ângulo da varanda. Ainda tinha o cesto na mão e pousou-o na erva e voltou a subir os degraus. O algeroz descia pelo poste do canto e penetrava num tanque de cimento. Com as mãos, afastou o lixo e os pedaços de rede apodrecida que cobriam a tampa. Regressou à cozinha e pegou na vassoura e tornou a sair e varreu a tampa do tanque até a limpar e encostou a vassoura ao recanto e levantou a tampa. Lá dentro estava um tabuleiro cheio de lodo cinzento e húmido proveniente do telhado, misturado com matéria orgânica, folhas e raminhos mortos. Levantou este tabuleiro e pousou-o no chão. Por baixo encontrava-se cascalho branco. Enfiou a mão no cascalho e afastou-o com os dedos. Por baixo, o tanque estava cheio de carvão de lenha, pedaços obtidos a partir de galhos e ramos inteiros, em efígies carbonizadas das árvores em si. Tornou a pousar o tabuleiro no lugar. No chão via-se um puxador de latão verde em forma de anel. Estendeu o braço e pegou na vassoura e varreu a cinza. Viam-se as frestas nos pontos em que as tábuas tinham sido serradas. Varreu bem as tábuas e ajoelhou-se e enfiou os dedos no anel e levantou o alçapão e, dando impulso, abriu-o. Lá em baixo, nas trevas, encontrava-se uma cisterna cheia de água, tão fresca que lhe conseguia sentir o cheiro. Deitou-se no chão, de barriga para baixo, e enfiou o braço pelo alçapão. Conseguia tocar na água, mesmo à justa. Debruçou-se mais e tornou a estender o braço e encheu a concha da mão de água e cheirou-a e saboreou-a e depois bebeu. Ficou ali deitado muito tempo, a levar a água à boca, uma concha de cada vez. Em nenhum recanto da memória conservava recordação de coisa melhor.

Regressou ao bengaleiro e voltou com dois boiões e uma velha tina esmaltada de cor azul. Limpou a tina e encheu-a de água, que usou em seguida para lavar os boiões. Depois estendeu o braço e mergulhou um dos boiões até ficar cheio e ergueu-o, a gotejar. A água era tão límpida. Ergueu-a a contraluz. Um pedacinho solitário de sedimento a rodopiar dentro do frasco numa lenta espiral aquosa. Inclinou o boião e bebeu devagar, mas, ainda assim, bebeu quase todo o conteúdo. Depois ficou ali sentado no chão, de estômago dilatado. Podia ter bebido mais, mas não o fez. Verteu o resto da água no outro boião e lavou-o e encheu os dois boiões e depois baixou a tampa de madeira da cisterna e levantou-se e, com os bolsos cheios de maçãs e levando na mão os boiões de água, encaminhou-se através dos campos para o pinhal.

Demorara-se mais do que tencionava e estugou o passo o melhor que pôde, com a água a chocalhar e a gorgolejar na bolsa mirrada do estômago. Parou para descansar e retomou a marcha. Quando chegou à mata o rapaz parecia nem se ter mexido e ele ajoelhou-se e pousou os boiões cuidadosamente na caruma e pegou na pistola e enfiou-a no cinto e depois ficou ali sentado a contemplá-lo.

Passaram a tarde embrulhados nas mantas, sentados no chão, a comer maçãs. Bebiam água dos boiões em pequenos goles. Ele tirou do bolso o pacote de sumo de uva em pó e abriu-o e verteu o conteúdo num boião e mexeu o líquido e deu-o ao rapaz. Boa, papá, disse este. Dormiu enquanto o rapaz ficava de vigia e à tardinha tiraram os sapatos da mochila e calçaram-nos e desceram até à casa rural e recolheram o resto das maçãs. Encheram três boiões de água e atarraxaram-lhes as tampas de segurança, formadas por duas peças, de um caixote cheio delas que ele encontrara no bengaleiro, numa prateleira. Depois embrulhou tudo num cobertor e enfiou-o na mochila e amarrou os outros cobertores na parte de cima da mochila e pô-la aos ombros. Ficaram parados à porta, a ver a luz que descia sobre o mundo, a oeste. Depois percorreram o caminho que ia dar à estrada e partiram de novo.

Mantinha-se junto à berma da estrada e, na escuridão, com o rapaz a agarrar-lhe o casaco, tentava sentir o pavimento por baixo dos pés. Ao longe ouvia os trovões e, ao fim de algum tempo, começaram a ver-se ténues estremecimentos de luz à frente deles. Tirou o plástico da mochila, mas o pouco que restava deste já quase não dava para os cobrir e, ao fim de um certo tempo, começou a chover. Avançavam aos tropeções, lado a lado. Não tinham onde se abrigar. Cobriam a cabeça com os capuzes, mas os casacos estavam a ficar encharcados e pesados da chuva. Ele parou na estrada e tentou ajeitar melhor o oleado. O rapaz tremia imenso.

Estás cheio de frio, não estás?

Sim.

Se pararmos, ficamos mesmo enregelados.

Eu já estou enregelado.

O que é que queres fazer?

Podemos parar?

Sim. Está bem. Podemos parar.

Foi a mais longa noite de que ele se recordava, de entre uma miríade de noites assim. Deitaram-se na terra molhada, junto à berma, tapados pelos cobertores, com a chuva a tamborilar no oleado, e ele abraçou o rapaz e ao fim de um certo tempo o rapaz parou de tremer e ao fim de um certo tempo adormeceu. Os trovões rolaram para norte e cessaram e ficou somente a chuva. Ele adormeceu e acordou e a chuva tornou-se mais fraca e ao fim de algum tempo parou. Perguntou a si mesmo se já seria sequer meia-noite. Estava a tossir e a tosse piorou e acordou o rapaz. A alvorada demorou imenso tempo a chegar. Ele soerguia-se de tempos a tempos para olhar para leste e ao fim de um bocado viu que já era dia.

 

Enrolou os casacos de ambos, um de cada vez, em volta do tronco de uma arvorezinha, e torceu-os para expulsar a água. Mandou o rapaz despir as roupas e embrulhou-o num dos cobertores e enquanto ele ficava de pé, percorrido por calafrios, torceu-lhe as roupas e devolveu-lhas, uma por uma. O chão estava seco no ponto onde tinham dormido e sentaram-se ali os dois, com as mantas a cobri-los, e comeram maçãs e beberam água. Depois puseram-se de novo a caminho pela estrada, curvados e encapuçados e trémulos nos seus andrajos como frades mendicantes lançados no mundo para procurar o seu sustento.

Ao final da tarde, do mal o menos, estavam secos. Examinaram os bocados do mapa, mas ele não fazia ideia do lugar onde estavam. Parado numa elevação da estrada, tentou orientar-se ao lusco-fusco. Abandonaram a estrada principal e meteram por uma estrada secundária, pelo meio dos campos, e finalmente chegaram a uma ponte sobre um regato seco e desceram a margem de gatas e aninharam-se por baixo do tabuleiro.

Podemos fazer uma fogueira?, perguntou o rapaz.

Não temos isqueiro.

O rapaz desviou o rosto.

Desculpa. Deixei-o cair. Não te quis dizer.

Não faz mal.

Eu hei-de encontrar sílex. Tenho andado à procura. E ainda temos a garrafinha de gasolina.

Está bem.

Tens muito frio?

Estou bem.

O rapaz estava deitado com a cabeça no regaço do homem. Ao fim de um certo tempo, disse: Eles vão matar aquelas pessoas, não vão?

Sim.

Porque é que têm de fazer isso?

Não sei.

Vão comê-las?

Não sei.

Vão comê-las, não vão?

Vão.

E nós não as podíamos ajudar, porque senão eles comiam-nos também a nós.

Sim.

E foi por isso que não as pudemos ajudar.

Foi.

Está bem.

Passaram por povoações que avisavam as pessoas para se manterem afastadas com mensagens escritas em grandes letras toscas nos painéis publicitários. De modo a poderem escrever nos painéis, tinham-nos pintado com finas camadas de tinta branca, e através da tinta via-se um ténue palimpsesto de anúncios a produtos que já não existiam. Sentaram-se na berma da estrada e comeram as últimas maçãs.

O que é?, perguntou o homem.

Nada.

Havemos de encontrar alguma coisa para comer. Encontramos sempre.

O rapaz não respondeu. O homem observava-o.

Não é isso, pois não?

Podes contar-me.

Diz-me o que é.

O rapaz desviou o rosto e contemplou a estrada.

Quero que me digas. Não há problema.

Ele abanou a cabeça.

Olha para mim, disse o homem.

Ele virou-se e olhou-o. Parecia ter estado a chorar.

Diz-me só o que é.

Nós nunca seríamos capazes de comer uma pessoa, pois não?

Não. É claro que não.

Mesmo que estivéssemos a morrer de fome?

Nós já estamos a morrer de fome.

Tu disseste que não estávamos.

Morrer de fome é uma maneira de dizer. Nós estamos cheios de fome, mas não estamos mesmo a morrer.

Mas nunca faríamos isso.

Não. Nunca.

Aconteça o que acontecer.

Sim. Aconteça o que acontecer.

Porque nós somos os bons.

Sim.

E transportamos o fogo.

E transportamos o fogo. Sim.

Está bem.

Encontrou pedaços de sílex ou calcedónia numa vala, mas no fim de contas era mais fácil raspar com o alicate de cima para baixo no flanco de um penedo, na base do qual acumulara um pequeno montículo de lascas de lenha seca, ensopadas de gasolina. Mais dois dias. Depois três. Estavam mesmo a morrer de fome. Aquela região fora metodicamente devastada, tudo fora pilhado. Não ficara sequer uma migalha. As noites eram tão frias que cegavam e negras como o ventre de um caixão e havia um terrível silêncio no amanhecer prolongado. Dir-se-ia a alvorada antes de uma batalha. A pele do rapaz, da cor da cera das velas, ganhara uma tonalidade translúcida. Com os grandes olhos que tudo fitavam, tinha aparência de extraterrestre.

Ele começava a achar que a morte os alcançara finalmente e que o melhor era encontrar um lugar qualquer para se esconderem onde ninguém descobrisse os cadáveres. Havia alturas em que ficava a ver o rapaz dormir e começava a soluçar descontroladamente, mas não era por causa da morte. Não sabia ao certo porque seria, mas achava que era por causa da beleza ou da bondade. Coisas com as quais o seu cérebro já não sabia como lidar, nem de perto nem de longe. Acocoraram-se num bosque soturno e beberam água de uma valeta filtrada através de um trapo. Viu o rapaz num sonho, dentro de um caixão encostado a uma parede, na vertical, e acordou horrorizado. As coisas que tolerava enquanto estava desperto tornavam-se insuportáveis de noite e ficou acordado, com receio de que o sonho regressasse.

Esgravatavam por entre as ruínas calcinadas de casas onde antes não teriam sequer entrado. Um cadáver a flutuar na água negra de uma cave, no meio do lixo e das canalizações enferrujadas. Ele entrou numa sala de estar parcialmente carbonizada e exposta a céu aberto. As tábuas do soalho, empenadas da água, a tombarem para o quintal. Livros impregnados de humidade numa estante. Pegou num e abriu-o e depois tornou a pô-lo no lugar. Tudo ensopado, a apodrecer. Encontrou uma vela numa gaveta. Não tinha maneira de a acender. Guardou-a no bolso. Saiu da casa sob a luz cinzenta e ficou ali parado e, por um breve momento, viu a verdade absoluta do mundo. A Terra intestada a rodar no espaço, fria e inexoravelmente. As trevas implacáveis. Os cães do Sol a correr, cegos e desenfreados. O vácuo negro e esmagador do Universo. E, algures, dois animais acossados, a tremer como raposas do deserto na toca. Tempo que já não nos pertence e um mundo que já não é nosso e olhos que também já não são nossos para o chorar.

Na orla de uma cidadezinha sentaram-se na cabina de um camião para descansar, a olhar pelo pára-brisas lavado pelas chuvas recentes. Uma leve camada de cinza. Exaustos. Na berma da estrada erguia-se outro painel que fazia ameaças de morte, as letras desbotadas pelos anos. Ele quase sorriu. Consegues ler aquilo?, perguntou.

Sim.

Não prestes atenção. Não há aqui ninguém.

Morreram?

Acho que sim.

Quem me dera que aquele menino estivesse connosco.

Vamos, disse ele.

Agora tinha sonhos esplêndidos, de que detestava acordar. Coisas já desaparecidas do mundo. O frio obrigou-o a alimentar a fogueira. A recordação dela a atravessar o prado em direcção à casa logo de manhãzinha, com um fino vestido cor-de-rosa que se colava aos seios. Ele achava que cada uma das memórias que evocamos certamente violenta as respectivas origens. Como num daqueles jogos que se jogam nas festas. Diz a palavra ao ouvido do seguinte. Por isso, sejamos parcimoniosos. Aquilo que alteramos nas recordações também tem a sua realidade, conhecida ou não.

Percorreram as ruas, envoltos nos cobertores sujos. Ele empunhava a pistola junto à cintura e segurava a mão do rapaz. No extremo oposto da povoação chegaram a uma casa isolada no meio de um campo e atravessaram o campo e cruzaram a porta e percorreram as divisões. Depararam com a própria imagem num espelho e ele quase ergueu a pistola. Somos nós, papá, sussurrou o rapaz. Somos nós.

Parado na soleira da porta das traseiras, contemplou os campos e a estrada mais além e a paisagem soturna para lá da estrada. No pátio havia uma churrasqueira feita a partir de um bidão de duzentos litros cortado longitudinalmente a maçarico e colocado numa armação de ferro soldado. Meia dúzia de árvores mortas no quintal. Uma cerca. Um barracão de chapa ondulada para as ferramentas. Ele sacudiu o cobertor das costas e colocou-o sobre os ombros do rapaz.

Quero que esperes aqui.

Eu quero ir contigo.

Vou só ali dar uma olhadela. Fica aqui sentado, sim? Vais poder ver-me o tempo todo. Prometo.

Atravessou o quintal e abriu a porta, empurrando-a com a mão, ainda de arma em punho. Era uma espécie de barracão de jardim. Chão de terra batida. Prateleiras metálicas com vasos de plástico em cima. Tudo coberto de cinza. Havia utensílios de jardinagem encostados a um canto. Um cortador de relva. Um banco de madeira por baixo da janela e, ao lado, um armário metálico. Abriu o armário. Velhos catálogos. Pacotinhos de sementes. Begónias. Bons-dias. Enfiou-os no bolso. Para quê? Na prateleira mais alta encontravam-se duas embalagens de óleo de motor e ele enfiou a pistola no cinto e ergueu o braço e pegou-lhes e pousou-as no banco. Eram muito velhas, feitas de cartão complexo com bocais metálicos. O óleo impregnara o cartão, mas, ainda assim, pareciam cheias. Recuou um passo e olhou através da porta. O rapaz estava sentado nos degraus das traseiras da casa, embrulhado nos cobertores, a olhá-lo. Quando virou o rosto, o homem viu uma lata de gasolina no canto, atrás da porta. Sabia que era impossível a lata ainda conter gasolina, e todavia, quando a inclinou com o pé e a deixou cair outra vez, ouviu-se um ligeiro chocalhar. Pegou-lhe e levou-a até ao banco e tentou desatarraxar a tampa, mas não conseguiu. Tirou o alicate do bolso do casaco e abriu-lhe as mandíbulas o mais que pôde e tentou abarcar a tampa com elas. Encaixavam à justa e ele desatarraxou a tampa e pousou-a no banco e cheirou a lata. Um cheiro fétido, acumulado há anos. Mas era gasolina e ia arder. Tornou a atarraxar a tampa e guardou o alicate no bolso. Olhou em volta, à procura de um recipiente mais pequeno, mas nada encontrou. Não devia ter deitado fora a garrafa. Era melhor ver na casa.

Ao atravessar o ervaçal sentiu-se prestes a desfalecer e teve de parar. Ficou na dúvida se teria sido por ter cheirado a gasolina. O rapaz observava-o. Quantos dias até à morte? Dez? Não muito mais do que isso. Não conseguia raciocinar. Porque é que parara? Virou-se e baixou os olhos para a erva. Voltou para trás, a bater no chão ao de leve com os pés. Parou e tornou a virar-se. Depois regressou ao barracão. Voltou a sair com uma pá de jardinagem e, no lugar onde estivera parado, enfiou a lâmina na terra. A lâmina mergulhou até a meio e deteve-se com um ruído cavo de madeira. Ele começou a remover a terra às pazadas.

A tarefa progredia devagar. Santo Deus, estava tão cansado. Apoiou-se na pá. Ergueu o rosto e olhou para o rapaz, que continuava sentado como antes. Tornou a curvar-se e retomou o trabalho. Não demorou muito a que começasse a descansar após cada pazada. Por fim, pôs a descoberto uma tábua de contraplacado revestida de tela isolante. Removeu a terra ao longo dos bordos. Era um alçapão medindo um metro por dois, talvez. Num dos extremos via-se um ferrolho com um cadeado envolto num saco de plástico preso com fita adesiva. O homem descansou, apoiado no cabo da pá, com a testa na curva do braço. Quando tornou a levantar a cabeça, o rapaz estava parado no quintal, a poucos passos dele, cheio de medo. Não abras isso, papá, sussurrou.

Não há perigo.

Por favor, papá. Por favor.

Não há perigo.

Há, sim.

Tinha os punhos cerrados junto ao peito e dava saltinhos de medo. O homem largou a pá e pôs-lhe os braços em volta do corpo. Vem comigo, disse. Vamos sentar-nos os dois ali na varanda a descansar um bocadinho.

Depois podemos ir embora?

Vamos só sentar-nos os dois um bocadinho.

Está bem.

Sentaram-se, embrulhados nos cobertores, a contemplar o quintal. Ficaram ali durante muito tempo. Ele tentou explicar ao rapaz que não havia ninguém enterrado no quintal, mas o rapaz desatou logo a chorar. Ao fim de um certo tempo, começou até a achar que talvez a criança tivesse razão.

Vamos só ficar aqui sentados, disse. Nem sequer vamos falar.

Está bem.

Tornaram a percorrer a casa. Ele encontrou uma garrafa de cerveja e um farrapo velho de uma cortina e arrancou uma das pontas do tecido e enfiou-o no gargalo da garrafa com um cabide. Esta é a nossa candeia nova, disse.

Como é que a vamos acender?

Encontrei um resto de gasolina no barracão. E óleo. Vou mostrar-te.

Está bem.

Anda comigo, disse o homem. Está tudo bem. Juro.

Porém, quando se curvou para perscrutar o rosto do rapaz sob o capuz formado pelo cobertor, temeu que tivesse sido destruída qualquer coisa impossível de reparar.

Saíram da casa e atravessaram o quintal até ao barracão. Ele pousou a garrafa no banco e pegou numa chave de parafusos e, com um golpe seco, fez um buraco numa das embalagens de óleo e depois fez outro mais pequeno para ajudar o líquido a escoar. Puxou o pavio para fora da garrafa e encheu-a até meio, mais ou menos, velho óleo monogra-duado, espesso e gélido do frio e que demorou imenso tempo a escorrer. Desatarraxou a tampa da lata de gasolina e fez um pequeno funil de papel com um dos pacotinhos de sementes e verteu gasolina para dentro da garrafa e tapou o gargalo com o dedo e agitou-a. Em seguida, despejou gasolina num prato de barro e pegou no trapo e tornou a enfiá-lo na garrafa com a chave de parafusos. Tirou do bolso um pedaço de sílex e pegou no alicate e percutiu o sílex contra a mandíbula serrilhada. Fez duas ou três tentativas e depois parou e despejou mais gasolina no prato. Isto é capaz de fazer uma chama muito alta, disse. O rapaz assentiu com a cabeça. Ele raspou com o sílex e fez tombar faúlhas no prato e a gasolina desabrochou numa labareda com um vuush surdo. Estendeu o braço e pegou na garrafa e inclinou-a e acendeu o pavio e apagou a chama no prato com um sopro e passou a garrafa fumegante para a mão do rapaz. Pronto, disse. Pega lá.

O que é que vamos fazer?

Põe a mão à frente da chama. Não a deixes apagar-se.

Ergueu-se e tirou a pistola do cinto. Este alçapão parece-se com o outro, disse. Mas é diferente. Eu sei que tu estás com medo. É normal. Parece-me que talvez haja coisas ali dentro e nós temos de dar uma olhadela. Não temos outro sítio para ir. É aqui que tudo se decide.

Quero que tu me ajudes. Se não quiseres segurar na candeia, tens de pegar na pistola.

Eu fico com a candeia.

Óptimo. É isto que os homens bons fazem. Continuam a tentar. Não desistem.

Está bem.

Conduziu o rapaz para o quintal, deixando atrás de si o rasto de fumo negro da candeia. Enfiou a pistola no cinto e pegou na pá e começou a arrancar o ferrolho do contraplacado. Enfiou a orla da lâmina por baixo da chapa e soltou-a ligeiramente e depois ajoelhou-se e agarrou o cadeado e foi-lhe dando puxões até arrancar o ferrolho inteiro e atirou-o para o meio da erva. Meteu a lâmina por baixo do alçapão e agarrou o bordo com os dedos e em seguida pôs-se de pé e ergueu-o. A terra escorregou pela tábua abaixo com um crepitar seco. Olhou para o rapaz. Está tudo bem contigo?, perguntou. O rapaz assentiu com a cabeça em silêncio, segurando a candeia diante de si. O homem fez rodar o alçapão nas dobradiças e deixou-o tombar na erva. Degraus toscos feitos com tábuas de vinte e cinco centímetros por cinco que desciam para a escuridão. Estendeu o braço e tirou a candeia da mão do rapaz. Começou a descer a escada, mas depois deu meia volta e curvou-se e beijou a criança na testa.

O bunker tinha paredes de tijolos de cimento. O chão era também de cimento, revestido com ladrilhos de cozinha. Viam-se dois catres de ferro com armação de molas nuas, cada qual encostado à sua parede, com os enxergões enrolados aos pés, à maneira do exército. Ele virou-se e olhou para o rapaz acocorado mais acima, a pestanejar por causa do fumo que se elevava da candeia, e então desceu até aos últimos degraus e sentou-se e estendeu o braço que segurava a luz. Oh, meu Deus, sussurrou. Oh, meu Deus.

O que é, papá?

Desce. Oh, meu Deus. Desce.

Caixotes sobre caixotes de comida enlatada. Tomate, pêssego, feijão, damasco. Presunto enlatado. Carne de conserva. Largas centenas de litros de água em bidões de plástico de quarenta litros. Rolos de papel de cozinha, rolos de papel higiénico, pratos de papel. Sacos de plástico para lixo cheios de cobertores. Ele apoiou a testa na mão. Oh, meu Deus, disse. Voltou-se e olhou para o rapaz. Não há perigo, disse. Desce.

Papá?

Desce. Desce e vê com os teus próprios olhos.

Pousou a candeia no degrau e subiu e pegou na mão do rapaz. Anda comigo, disse. Não há perigo.

O que é que encontraste?

Encontrei tudo. Tudo. Espera só até veres. Conduziu-o pelas escadas abaixo e pegou na garrafa e ergueu a chama ao alto. Vês?, perguntou. Vês?

O que é isto tudo, papá?

É comida. Consegues ler?

Pêras. Ali diz pêras.

Sim. Pois diz. E é que diz mesmo.

A altura do tecto permitia-lhe à justa ficar de pé. Baixou-se para não bater num candeeiro com quebra-luz verde, suspenso de um gancho. Caminhava de mão dada com o rapaz e percorreram as fiadas de caixotes com palavras traçadas a escantilhão. Chili, milho, guisado, sopa, molho de tomate. A riqueza de um mundo desaparecido. Porque é que isto está aqui?, perguntou o rapaz. É mesmo a sério?

Ah, sim. É a sério.

Puxou um caixote para baixo e abriu-o com gestos bruscos e ergueu uma lata de pêssegos. Isto está aqui porque houve pessoas que acharam que talvez fosse necessário.

Mas não chegaram a usar a comida.

Não. Não usaram.

Morreram.

Sim.

E não faz mal sermos nós a comê-la?

Não, não faz mal. Eles haviam de querer que nós a comêssemos. Assim como nós quereríamos que eles a comessem.

Eram os bons?

Sim. Eram.

Como nós.

Como nós. Sim.

Então não faz mal.

Isso mesmo. Não faz mal.

Havia facas de cozinha e utensílios de plástico e talheres de metal e acessórios de culinária numa caixa de plástico. Um abre-latas. Lanternas eléctricas que não funcionavam. Ele encontrou uma caixa cheia de pilhas de vários géneros e tamanhos e examinou-as uma por uma. A maior parte estava corroída e vertia um líquido viscoso e ácido, mas algumas pareciam em bom estado. Por fim, lá conseguiu pôr uma das lanternas a funcionar e pousou-a na mesa e, com um sopro, apagou a chama da candeia, que deitava imenso fumo. Arrancou uma aba de cartão do caixote aberto e abanou-a para expulsar o fumo e depois subiu os degraus e baixou o alçapão e olhou para o rapaz. O que é que queres para o jantar?, perguntou.

Pêras.

Óptima escolha. Venham as pêras.

Pegou em duas tigelas de papel de uma pilha delas embrulhada em plástico e pousou-as na mesa. Desenrolou os enxergões sobre os catres para se sentarem os dois e abriu o caixote de pêras e tirou de lá uma lata e pô-la na mesa e apertou o abre-latas no bordo da tampa e começou a rodar o manípulo. Olhou para o rapaz, que estava sentado em silêncio na cama, ainda embrulhado no cobertor, a observá-lo. O homem achou que, provavelmente, ele ainda não se compenetrara da existência de tudo aquilo. A qualquer momento, podia acordar na floresta escura e encharcada. Estas pêras vão ser as melhores que alguma vez saboreaste, disse. As melhores. Espera só.

Sentaram-se lado a lado e comeram a lata de pêras. Depois comeram uma lata de pêssegos. Lamberam as colheres e levaram as tigelas aos lábios e beberam a calda espessa e doce. Entreolharam-se.

Mais uma.

Não quero que adoeças.

Eu não adoeço.

Já não comes há imenso tempo.

Eu sei.

Está bem.

Deitou o rapaz na cama e alisou-lhe o cabelo sujo sobre a almofada e tapou-o com os cobertores. Quando subiu os degraus e levantou o alçapão, viu que estava quase escuro lá fora. Foi até à garagem e pegou na mochila e regressou e lançou um último olhar em volta e depois desceu a escada e fechou o alçapão e enfiou uma das pegas do alicate através da grossa argola interior. O feixe da lanterna eléctrica já começara a perder intensidade e ele percorreu as prateleiras até encontrar alguns caixotes cheios com latas de quatro litros de gasolina sem chumbo para campismo. Tirou uma lata de dentro de um caixote e pousou-a na mesa e desatarraxou a tampa e perfurou o selo metálico com uma chave de parafusos. Depois retirou o candeeiro do gancho do tecto e encheu o respectivo depósito. Já encontrara uma caixa de plástico cheia de isqueiros de gás butano e acendeu o candeeiro com um destes e ajustou a chama e tornou a pendurá-lo. Depois sentou-se no catre e ali se quedou.

Enquanto o rapaz dormia, começou a examinar metodicamente as provisões ali armazenadas. Roupas, camisolas, peúgas. Uma bacia de aço inoxidável e esponjas e barras de sabão. Pasta e escovas de dentes. No fundo de um enorme boião de plástico cheio de parafusos e porcas e uma mescla heterogénea de ferragens encontrou, dentro de um saco de pano, um grande punhado de moedas de ouro, krugerrands. Despejou-as na concha da mão e apertou-as entre os dedos e depois tornou a vertê-las para dentro do boião à mistura com as ferragens e pousou o boião outra vez na prateleira.

Passou tudo em revista, arrastando caixotes de cartão e de madeira de um lado da divisão para o outro. Havia uma pequena porta de aço que conduzia a um segundo cubículo, onde estavam armazenadas botijas de gasolina para campismo. Ao canto, uma retrete portátil. Nas paredes viam-se tubos de ventilação com as aberturas cobertas de rede de arame e no chão havia ralos de escoamento. Estava a ficar calor no bunker e ele despira o casaco. Vasculhou tudo. Encontrou uma caixa de cartuchos de calibre 45 ACP e três caixas de balas de espingarda de calibre .30-30. Só não encontrou arma nenhuma. Pegou na lanterna de pilhas e percorreu a divisão e examinou as paredes em busca de um qualquer compartimento oculto. Ao fim de um certo tempo sentou-se no catre, a comer uma barra de chocolate. Não encontrara arma nenhuma e de certeza que não ia encontrar.

Quando acordou, o candeeiro a gasolina suspenso do tecto sibilava mansamente. A luz banhava as paredes do bunker e os caixotes grandes e pequenos. Não sabia onde estava. Deitado, com o casaco a cobrir-lhe o corpo. Soergueu-se e olhou para o rapaz, adormecido no outro catre. Descalçara os sapatos, embora também não se lembrasse de o ter feito, e puxou-os de baixo da cama e calçou-os e subiu os degraus e retirou o alicate da argola metálica e levantou o alçapão e espreitou para fora. Era de manhãzinha. Olhou para a casa e na direcção da estrada e preparava-se para baixar outra vez o alçapão quando se deteve. A ténue luz cinzenta provinha do oeste. Tinham dormido a noite inteira e todo o dia seguinte. Baixou o alçapão e tornou a prendê-lo e desceu a escada e sentou-se na cama. Olhou em volta, para os mantimentos. Preparara-se para morrer e agora já não ia morrer e tinha de reflectir acerca disto. Qualquer pessoa podia ver o alçapão no quintal e perceberia de imediato do que se tratava. Tinha de pensar no que fazer. Isto não era o mesmo do que esconderem-se na floresta. Era o mais diferente disso que se podia imaginar. Por fim, levantou-se e foi até junto da mesa e ligou a mangueira do pequeno fogão de dois bicos à botija de gasolina para campismo e acendeu os dois bicos e tirou de um caixote uma frigideira e uma caçarola e abriu a caixa de plástico dos utensílios de cozinha.

O que acordou o rapaz foi o ruído do pai a moer café num pequeno moinho manual. Soergueu-se e olhou em volta. Papá?, disse.

Olá. Tens fome?

Tenho de ir à casa de banho. Tenho de fazer chichi.

Ele apontou a espátula na direcção da porta baixa de aço. Não sabia usar a sanita química, mas iam utilizá-la, fosse lá como fosse. Não iam ali ficar assim tanto tempo e ele recusava-se a abrir e fechar o alçapão mais do que o estritamente necessário. O rapaz passou diante dele, com o cabelo empastado de suor. O que é isso?, perguntou.

Café. Presunto. Bolinhos.

Uau, disse o rapaz.

Arrastou um baú pelo chão até o enfiar no espaço entre as duas camas e cobriu-o com uma toalha e dispôs-lhe em cima os pratos e copos e utensílios de plástico. Colocou sobre o tampo uma tigela de bolinhos tapada com uma toalha de mãos e um prato com manteiga e uma lata de leite condensado. Sal e pimenta. Olhou para o rapaz, que parecia sob o efeito de drogas. Trouxe a frigideira do fogão e, com um garfo, pôs uma tira de presunto aloirado no prato do rapaz e juntou-lhe ovos mexidos da outra frigideira e, com uma colher, serviu-lhe feijão cozido e encheu os dois copos com café. O rapaz ergueu os olhos e fitou-o.

Vá, come, disse ele. Não deixes arrefecer.

O que é que como primeiro?

O que tu quiseres.

Isto é café?

É, sim. Repara. Barras os bolos com a manteiga. Assim.

Está certo.

Está tudo bem contigo?

Não sei.

Sentes-te bem?

Sim.

Então o que é?

Achas que devíamos agradecer às pessoas?

Quais pessoas?

As pessoas que nos deram isto tudo.

Bom. Sim, se calhar podíamos agradecer-lhes.

Queres ser tu?

E porque não tu?

Eu não sei como é que se faz.

Sabes, sim. Sabes como é que se diz obrigado.

O rapaz ficou imóvel, de olhos fitos no prato. Parecia perdido. O homem estava prestes a falar quando ele disse: Queridas pessoas, obrigado por toda esta comida e pelo resto das coisas. Sabemos que tinham guardado isto para vocês e que se aqui estivessem não nos deixavam comer, por muita fome que tivéssemos, e temos pena que não tenham chegado a comer isto tudo e esperamos que estejam sãos e salvos no céu, junto de Deus.

Ergueu o rosto. Assim está bem?, perguntou.

Sim. Acho que assim está bem.

Ele recusou-se a ficar sozinho no bunker. Seguiu o homem para trás e para diante através do relvado enquanto este transportava os garrafões de plástico de água até à casa de banho, nas traseiras da casa. Levaram com eles o fogãozinho e duas panelas e ele aqueceu água e despejou-a na banheira e verteu água dos garrafões de plástico. Levou imenso tempo, mas queria que o banho estivesse bem quente e agradável. Quando a banheira estava quase cheia, o rapaz despiu-se e, percorrido por calafrios, entrou na água e sentou-se. Escanzelado e sujo e nu. Abraçado aos próprios ombros. A única luz provinha do anel de dentes azuis no queimador do fogão. Então, que tal?, perguntou o homem.

Enfim quente.

Enfim quente?

Sim.

Onde é que ouviste isso?

Não sei.

Seja. Enfim quente.

Lavou-lhe o cabelo sujo e empastado e deu-lhe banho com sabão, usando as esponjas. Abriu o ralo e deixou escoar a água suja onde ele estava mergulhado e verteu-lhe sobre o corpo água morna e limpa da panela e embrulhou-o, trémulo, numa toalha e embrulhou-o novamente num cobertor. Penteou-lhe o cabelo e olhou para ele. Do corpo do rapaz elevava-se vapor, como se fosse fumo. Sentes-te bem?, perguntou.

Tenho os pés frios.

Vais ter de esperar por mim.

Não demores.

Ele tomou banho e depois saiu da banheira e despejou detergente na água do banho e mergulhou na água as calças de ganga fétidas de ambos, empurrando-as para o fundo com um desentupidor de sanitas. Estás pronto?, perguntou.

Estou.

Rodou o botão do queimador até que a chama cuspinhou e se apagou e depois acendeu a lanterna e pô-la no chão. Sentaram-se na borda da banheira e calçaram os sapatos e depois ele entregou ao rapaz a panela e o sabão e ele próprio pegou no fogão e na pequena botija de gasolina e na pistola e, embrulhados nos cobertores, atravessaram o quintal para voltar ao bunker.

Sentaram-se no catre com um tabuleiro de damas entre eles, vestidos com camisolas e peúgas novas e aninhados nos seus cobertores novos. Ele acendera um pequeno aquecedor a gasolina e bebiam Coca-Cola por canecas de plástico e ao fim de um certo tempo ele regressou à casa e torceu as calças de ganga para escorrer a água e trouxe-as para o bunker e pendurou-as para secarem.

Quanto tempo podemos aqui ficar, papá?

Não muito.

Quanto tempo é isso?

Não sei. Talvez mais um dia. Dois.

Porque é perigoso.

Sim.

Achas que eles nos vão encontrar?

Não. Eles não nos vão encontrar.

Podem conseguir.

Não, não podem. Eles não nos vão encontrar.

Mais tarde, quando o rapaz estava a dormir, ele foi até à casa e arrastou algumas mobílias para o relvado. Depois arrastou um colchão e colocou-o em cima da entrada do bunker e, já no interior, puxou-o para cima do contraplacado e baixou cuidadosamente o alçapão de forma a que o colchão o cobrisse por completo. Não era um estratagema lá muito eficaz, mas era melhor do que nada. Enquanto o rapaz dormia, sentou-se na cama e, à luz da lanterna, talhou balas falsas com a faca a partir de um ramo de árvore, encaixando-as cuidadosamente nas câmaras vazias do tambor para logo as desbastar mais um pouco. Aguçou-lhes a ponta com a lâmina da faca e poliu-as com sal grosso até ficarem macias e tingiu-as com fuligem até ficarem cor de chumbo. Quando já tinha prontas as cinco balas falsas, encaixou-as nas câmaras e fechou o tambor com um estalido e virou a arma ao contrário e examinou-a. Mesmo visto de tão perto, o revólver parecia carregado e ele pousou-o a seu lado e levantou-se para apalpar as pernas das calças de ganga que fumegavam por cima do aquecedor.

Guardara o pequeno punhado de cápsulas vazias da pistola, mas tinham desaparecido juntamente com tudo o resto. Devia tê-las guardado no bolso. Até a última perdera. Parecia-lhe que talvez as tivesse conseguido carregar de novo, usando as munições de calibre .45. Os cartuchos provavelmente teriam encaixado, se conseguisse retirá-los sem os estragar. Depois seria questão de cortar as balas do tamanho certo com o x-acto. Levantou-se e passou as provisões em revista pela última vez. Depois reduziu a chama do candeeiro até esta se extinguir com um ténue put-put e beijou o rapaz e enfiou-se na outra cama, sob os cobertores limpos, e contemplou uma vez mais aquele minúsculo paraíso a tremular sob a luz alaranjada do aquecedor e depois adormeceu.

A povoação fora abandonada há anos, mas eles percorreram cuidadosamente as ruas juncadas de objectos, com o rapaz a dar-lhe a mão. Passaram por um contentor metálico de lixo onde em tempos alguém tentara queimar cadáveres. A carne e os ossos calcinados sob a cinza húmida pouco tinham de humano, à parte a forma dos crânios. Já não se sentia cheiro algum. Havia um supermercado no extremo da rua e, num dos corredores atafulhados de caixotes vazios, entre as prateleiras, viam-se três carrinhos metálicos de compras. Ele examinou-os e libertou um deles e acocorou-se e fez girar as rodas e depois pôs-se de pé e empurrou-o ao longo do corredor e voltou para trás.

Podíamos levar dois, disse o rapaz.

Não.

Eu podia empurrar um deles.

Tu és o batedor. Preciso que estejas de atalaia.

O que é que vamos fazer com aquela comida toda?

Teremos de levar o que pudermos.

Achas que vai aparecer alguém?

Sim. Mais cedo ou mais tarde.

Disseste que não ia aparecer ninguém.

Eu não queria dizer nunca.

Quem me dera que pudéssemos viver aqui.

Eu sei.

Podíamos ficar de atalaia.

Nós já estamos de atalaia.

E se viessem homens bons?

Bem, não me parece que seja muito provável encontrarmos homens bons na estrada.

Nós os dois andamos na estrada.

Eu sei.

Se uma pessoa está de atalaia o tempo todo, isso quer dizer que está o tempo todo com medo?

Bem, acho que, à partida, a pessoa já tem de ter um certo medo para estar de atalaia. Para se mostrar cautelosa. Alerta.

Mas no resto do tempo a pessoa não sente medo?

No resto do tempo?

Sim.

Não sei. Talvez uma pessoa deva estar sempre de atalaia. Já que os sarilhos surgem quando menos esperamos, talvez o melhor seja estarmos sempre à espera deles.

E tu estás sempre à espera de sarilhos? Papá?

Estou. Mas às vezes posso esquecer-me de estar alerta.

Sentou o rapaz no baú, por baixo do candeeiro a gasolina, e, com um pente de plástico e uma tesoura, começou a cortar-lhe o cabelo. Tentou ser cuidadoso e demorou bastante tempo. Quando terminou, tirou a toalha que cobria os ombros do rapaz e apanhou do chão os cabelos dourados e limpou-lhe o rosto e os ombros com um pano húmido e ergueu um espelho para ele se ver.

Está óptimo, papá.

Ainda bem.

Estou mesmo com ar de magricela.

Tu és mesmo magricela.

Cortou o próprio cabelo, mas não ficou tão bem. Aparou a barba com a tesoura enquanto esperava que uma panela de água aquecesse e depois barbeou-se com uma lâmina descartável de plástico. O rapaz observava-o. Quando ele terminou, viu-se ao espelho. Parecia não ter queixo. Virou-se para o rapaz. Que tal estou? O rapaz inclinou a cabeça. Não sei, disse. Vais ter frio?

Comeram uma refeição sumptuosa à luz da vela. Presunto e feijão verde e puré de batata com bolinhos e molho. Ele encontrara quatro garrafas de whiskey com selo de garantia, ainda embrulhadas nos sacos de papel da loja onde tinham sido compradas, e bebeu um bocadinho num copo com água. Ficou tonto mesmo antes de ter terminado o copo e não bebeu mais. Para a sobremesa, comeram bolinhos esmigalhados com natas e pedacinhos de pêssego, e depois beberam café. Ele deitou os pratos de papel e os talheres de plástico num saco de lixo. Depois jogaram às damas e ele deitou o rapaz.

De noite foi acordado pelo tamborilar abafado da chuva no colchão por cima da entrada do bunker. Pensou que devia estar a chover imenso, para se ouvir assim. Levantou-se, pegou na lanterna eléctrica e subiu a escada e ergueu o alçapão e varreu o quintal com o feixe de luz. O quintal já estava alagado e a chuva tombava com violência. Fechou o alçapão. Infiltrara-se alguma água, que escorrera pelos degraus abaixo, mas parecia-lhe que, em grande medida, o bunker em si era estanque. Foi ver como estava o rapaz. Tinha a cara coberta de suor e o homem afastou para os pés da cama uma das mantas que o cobriam e abanou-lhe um bocado de cartão junto ao rosto, à laia de leque, e depois diminuiu a intensidade do aquecedor e voltou a deitar-se na cama.

Quando tornou a acordar, pareceu-lhe que a chuva cessara. Mas não fora isso que o acordara. Fora visitado num sonho por criaturas de um género que nunca vira antes. Não falavam. Imaginou-as agachadas junto do catre, a escapulirem-se mal ele acordara. Virou-se e olhou para o rapaz. Talvez se apercebesse, pela primeira vez, de que era um extraterrestre aos olhos do filho. Um ser vindo de um planeta que já não existia, que contava histórias de veracidade bastante duvidosa. Queria recriar o mundo que perdera para desfrute do rapaz, mas isso implicava necessariamente recriar a perda, e achava que talvez o filho percebesse isto melhor do que ele próprio. Tentou recordar o sonho, mas não foi capaz. Restava apenas a atmosfera. Pensou que talvez as tais criaturas tivessem vindo para o avisar. De quê? De que não podia inflamar no coração da criança aquilo que não passava de cinzas no seu. Mesmo agora, uma parte de si desejava nunca terem encontrado aquele refúgio. Uma parte de si desejava sempre que tudo acabasse.

Certificou-se de que a válvula da botija estava fechada e virou o fogãozinho de pernas para o ar sobre o baú e sentou-se e meteu mãos à obra para o desmontar. Desaparafusou o painel inferior e retirou os queimadores unidos pelo respectivo tubo de ligação e, com uma pequena chave inglesa ajustável, separou-os na junta. Despejou o boião de plástico cheio de ferragens e escolheu um parafuso com o tamanho certo para vedar o ponto de encaixe do tubo e depois apertou-o. Ligou a mangueira da botija e ergueu na mão o pequeno queimador de ferro fundido, tão delicado e tão leve. Pousou-o no baú e pegou na placa metálica e foi pô-la no lixo e subiu a escada para ver como estava o tempo. O colchão em cima da abertura absorvera imensa água e era difícil levantar o alçapão. Ficou imóvel, com o alçapão apoiado nos ombros, a contemplar o dia lá fora. Caía chuva miúda. Impossível perceber que altura do dia era. Olhou para a casa e depois espraiou a vista pela paisagem gotejante e em seguida deixou o alçapão fechar-se e desceu os degraus e começou a preparar o pequeno-almoço.

Passaram o dia a comer e a dormir. Ele planeara partir, mas a chuva era desculpa suficiente para ficar. O carrinho de supermercado estava no barracão. Era pouco provável que alguém percorresse a estrada naquele dia. Passaram em revista os mantimentos e separaram o que poderiam levar, formando um cubo cuidadosamente medido no canto do abrigo. O dia foi curto, quase nem merecia tal nome. Ao escurecer a chuva cessara e eles abriram o alçapão e começaram a transportar caixotes e embrulhos e sacos de plástico através do quintal molhado até ao barracão e foram enchendo o carrinho. O alçapão tenuemente iluminado recortava-se nas trevas do quintal como uma sepultura a abrir-se no dia do juízo numa pintura apocalíptica antiga. Quando o carrinho ficou carregado na máxima capacidade, ele amarrou-lhe um oleado por cima e prendeu os ilhós às varetas metálicas do cesto com cordões elásticos curtos e ambos recuaram um passo e contemplaram-no à luz da lanterna eléctrica. Ocorreu-lhe que, lá no supermercado, devia ter retirado vários conjuntos suplementares de rodas dos outros carrinhos, mas agora era tarde de mais. Também devia ter guardado o espelho retrovisor de motocicleta do carrinho velho. Jantaram e dormiram até ao dia seguinte e depois tomaram um novo banho com esponjas e lavaram o cabelo em bacias de água quente. Tomaram o pequeno-almoço e aos primeiros alvores da manhã já estavam na estrada, trazendo no rosto novas máscaras cortadas de lençóis, o rapaz à frente com uma vassoura, a afastar os paus e ramos caídos no asfalto e o homem curvado sobre a pega do carrinho, a ver a estrada dissolver-se na lonjura diante deles.

O carrinho estava tão pesado que era impossível empurrá-lo através da floresta encharcada e fizeram a pausa do almoço em pleno asfalto e prepararam chá quente e comeram o resto do presunto enlatado com bolachas de água e sal e mostarda e compota de maçã. Sentados de costas um para o outro, a observar a estrada. Sabes onde estamos, papá?, perguntou o rapaz.

Mais ou menos.

Mais ou menos, como?

Bom. Acho que estamos a uns trezentos quilómetros da costa. A voo de pássaro.

A voo de pássaro?

Sim. Significa viajando em linha recta.

Estamos quase a chegar lá?

Não estamos quase, mas também já não falta muito. Não estamos a ir a voo de pássaro.

Porque os pássaros não têm de seguir as estradas?

Isso mesmo.

Podem ir para onde muito bem lhes apetece.

Podem.

Achas que ainda é capaz de haver pássaros nalgum lugar?

Não sei.

Mas o que é que tu achas?

Acho que é pouco provável.

Eles podiam voar para Marte ou para outro lugar assim?

Não. Não podiam.

Porque é longe de mais?

Sim.

Mesmo que quisessem.

Mesmo que quisessem.

Então e se eles tentassem e chegassem a meio do caminho ou coisa assim e depois ficassem demasiado cansados, caíam outra vez cá para baixo?

Bom. Seria impossível chegarem a meio do caminho porque estariam no espaço e no espaço não existe ar nenhum, por isso não conseguiam voar, e além disso o frio era tanto que morriam congelados.

Ah.

Seja como for, os pássaros não sabem onde fica Marte.

E nós sabemos onde fica Marte?

Mais ou menos.

Se tivéssemos uma nave espacial podíamos lá chegar?

Bom. Se tivéssemos uma óptima nave espacial e pessoas para nos ajudar, acho que era possível viajar até lá.

E lá em Marte há comida e coisas assim?

Não. Não há lá nada.

Ah.

Ficaram ali muito tempo, sentados nos cobertores dobrados, a observar a estrada em ambas as direcções. Não soprava vento. Nada. Ao fim de um bocado, o rapaz disse: Já não há pássaros nenhuns, pois não?

Não.

Só nos livros.

Sim. Só nos livros.

Bem me parecia.

Estás pronto?

Estou.

Puseram-se de pé e guardaram os copos e o resto das bolachas. O homem empilhou os cobertores em cima do carrinho e prendeu o oleado e depois ficou parado, a olhar para o rapaz. O que é?, perguntou este.

Eu sei que tu achavas que nós íamos morrer.

Pois.

Mas não morremos.

Pois não.

Está bem.

Posso fazer-te uma pergunta?

Claro.

Se eu fosse um pássaro podia voar suficientemente alto para ver o Sol?

Sim, podias.

Bem me parecia. Isso é que era bestial.

Pois era. Estás pronto?

Estou.

Deteve-se. O que é feito da tua flauta?

Deitei-a fora.

Deitaste-a fora?

Sim.

Está bem.

Está bem.

No longo crepúsculo cinzento atravessaram um rio e detiveram-se

e debruçaram-se da balaustrada de betão, a contemplar a água morta

e vagarosa que escorria por baixo. Esboçados no manto de fuligem, a

jusante, os contornos de uma cidade queimada, semelhantes a um véu e papel negro. Tornaram a ver a cidade mesmo antes do anoitecer, enquanto empurravam o pesado carrinho por uma longa encosta acima e pararam para descansar e ele pôs o carrinho de viés na estrada para evitar que rolasse pelo monte abaixo. As máscaras já exibiam manchas cinzentas na zona da boca e tinham os olhos rodeados por círculos sombrios. Sentaram-se nas cinzas junto à berma e olharam para leste, onde a silhueta da cidade se ia tornando cada vez mais escura, dissolvendo-se na noite que caía. Não viram luzes.

Achas que há ali alguém, papá?

Não sei.

Quando é que podemos parar?

Podemos parar agora.

No alto do monte?

Podemos levar o carrinho até àquelas rochas, ali em baixo, e cobri-lo com ramos.

Este é um bom lugar para pararmos?

Bem, as pessoas não gostam de parar no alto dos montes. E nós não gostamos que as pessoas parem.

Então é um bom lugar para nós.

Acho que sim.

Porque nós somos espertos.

Bom, o melhor é não nos armarmos muito em espertos.

Está bem.

Estás pronto?

Sim.

O rapaz levantou-se e pegou na vassoura e pô-la ao ombro. Olhou para o pai. Quais são os nossos objectivos a longo prazo?, perguntou.

O quê?

Os nossos objectivos a longo prazo.

Onde é que ouviste isso?

Não sei.

Não, onde é que tu ouviste isso?

Foste tu que disseste.

Quando?

Há muito tempo.

E qual foi a resposta?

Não sei.

Bom. Eu também não. Vamos. Está a ficar escuro.

 

No final da tarde do dia seguinte, ao descreverem uma curva na estrada, o rapaz parou e pôs a mão sobre o carrinho. Papá, sussurrou. O homem ergueu o rosto. Uma pequena silhueta na estrada, ao longe, vergada e a arrastar os pés.

Ele ficou imóvel, debruçado sobre a pega do carrinho de supermercado. Bom, disse. Quem será aquele?

O que é que havemos de fazer, papá?

Pode ser um isco.

O que é que fazemos?

Vamos segui-lo. Logo veremos se ele olha para trás.

Está bem.

O viajante não era pessoa de olhar para trás. Seguiram-no durante algum tempo e depois ultrapassaram-no. Um velho, pequeno e curvado. Levava às costas uma velha mochila do exército com um cobertor enrolado e atado na parte superior e avançava pela estrada a fazer tape-tape no asfalto com um pau descarnado que lhe servia de bengala. Quando os viu desviou-se para a berma e virou-se e ficou imóvel, de sobreaviso. Tinha uma toalha suja atada por baixo do queixo, como se sofresse de dores de dentes, e, mesmo pelos padrões daquele novo mundo, cheirava horrivelmente mal.

Não tenho nada, disse. Podem ver, se quiserem.

Nós não somos ladrões.

Ele inclinou a cabeça para diante, com a mão na orelha. O quê?, disse em voz muito alta.

Eu disse que não somos ladrões.

Então o que são?

Eles não tinham forma de responder a esta pergunta. O velho limpou o nariz com o pulso e quedou-se à espera. Não tinha sapatos e trazia os pés embrulhados em farrapos e bocados de cartão amarrados com cordel verde e através dos rasgões e buracos viam-se inúmeras camadas de pano imundo. De repente, pareceu mirrar ainda mais. Apoiou-se na bengala e baixou-se para a estrada, onde se sentou no meio das cinzas, com uma mão na cabeça. Parecia um monte de trapos que tivesse caído de uma carroça. Eles aproximaram-se e ficaram a olhá-lo. Ouça lá, disse o homem. Ouça lá.

O rapaz acocorou-se e pôs-lhe a mão no ombro. Ele está assustado, papá. O homem está assustado.

Ele percorreu a estrada com os olhos em ambos os sentidos. Se isto é uma emboscada, ele é o primeiro a morrer, disse.

Ele só está assustado, papá.

Diz-lhe que não lhe fazemos mal.

O velho abanou a cabeça de um lado para o outro, com os dedos enfiados no cabelo sujo. O rapaz ergueu o rosto para o pai.

Se calhar ele acha que nós não somos de carne e osso.

Então o que é que ele acha que nós somos?

Não sei.

Não podemos ficar aqui. Temos de continuar.

Ele tem medo, papá.

Não me parece muito boa ideia tocares-lhe.

Talvez lhe pudéssemos dar alguma coisa para comer.

Ele permanecia imóvel, a olhar para o fundo da estrada. Raios partam, murmurou. Baixou os olhos para o velho. Talvez ele se fosse transformar num deus e eles em árvores. Está bem, disse.

Desamarrou o oleado e dobrou-o para trás e vasculhou no meio das latas de comida e acabou por escolher uma lata de salada de frutas e tirou o abre-latas do bolso e abriu a lata e dobrou a tampa e avançou uns passos e agachou-se e estendeu-a ao rapaz.

Então e uma colher?

Não lhe vou dar colher nenhuma.

O rapaz pegou na lata e estendeu-a ao velho. Toma, sussurrou. Pega lá.

O velho ergueu o rosto e olhou para o rapaz, que agitou a lata diante dele. Parecia alguém a tentar dar de comer a um abutre esfacelado na estrada. Ninguém te faz mal, disse.

O velho baixou a mão que pousara na cabeça. Pestanejou. Olhos cinzento-azulados, meio ocultos nas rugas delgadas e cheias de fuligem da pele.

Toma, disse o rapaz.

Ele estendeu os dedos, descarnados como garras, e pegou na lata e segurou-a junto ao peito.

Come, disse o rapaz. É bom. Com as mãos, imitou o gesto de quem bebe. O velho baixou os olhos para a lata. Agarrou-a melhor e levantou-a, a franzir o nariz. As unhas compridas e amarelecidas raspavam no metal. Por fim, inclinou a lata e bebeu. A calda escorreu-lhe pela barba suja. Baixou a lata, a mastigar com dificuldade. Torcia a cabeça ao engolir. Olha, papá, sussurrou o rapaz.

Estou a ver, disse o homem.

O rapaz virou-se e olhou para ele.

Já sei qual é a pergunta, disse o homem. E a resposta é não.

Qual é a pergunta?

Se podemos ficar com ele. Não podemos.

Eu sei.

Tu sabes.

Pois.

Está bem.

Podemos dar-lhe mais qualquer coisa?

Vamos ver como é que ele se sai com isto.

Observaram-no a comer. Quando o velho terminou, ficou ali sentado, a segurar a lata vazia e a olhar lá para dentro, como se fosse aparecer mais comida.

O que é que lhe queres dar?

O que é que achas que lhe devíamos dar?

Acho que não lhe devíamos dar nada. O que é que lhe queres dar?

Podíamos cozinhar qualquer coisa no fogão. Ele podia comer connosco.

Queres parar, é isso? Passar aqui a noite.

Sim.

Baixou os olhos para o velho e olhou para a estrada. Seja, disse. Mas amanhã continuamos.

O rapaz não respondeu.

É a única cedência que eu faço.

Está bem.

Está bem é mesmo está bem. Não quer dizer que tornamos a negociar amanhã.

O que é negociar?

É falarmos sobre o assunto outra vez e chegarmos a novo acordo. Não há mais acordo nenhum. É assim e ponto final.

Está bem.

Está bem.

Ajudaram o velho a pôr-se de pé e deram-lhe a bengala. Ele não pesava sequer quarenta e cinco quilos. Ficou parado, a olhar em volta com ar hesitante. O homem tirou-lhe a lata da mão e atirou-a para o meio da floresta. O velho tentou entregar-lhe a bengala, mas ele afastou-a com a mão. Quando é que comeste pela última vez?, perguntou.

Não sei.

Não te lembras.

Acabei de comer mesmo agora.

Queres comer connosco?

Não sei.

Não sabes?

Comer o quê?

Talvez carne de vaca estufada. Com bolachas de água e sal. E café.

E o que é que eu tenho de fazer?

Tens de nos dizer o que é feito do mundo.

O quê?

Não tens de fazer nada. Consegues andar bem?

Consigo andar.

Baixou os olhos para o rapaz. És um rapazito?, perguntou.

O rapaz olhou para o pai.

O que é que te parece que ele é?, disse o pai.

Não sei. Não vejo bem.

E a mim, vês-me?

Consigo perceber que está aí uma pessoa.

Óptimo. Temos de ir andando. Olhou para o rapaz. Não lhe dês a mão, disse.

Ele não vê nada.

Não lhe dês a mão. Vamos embora.

Onde é que vamos?, perguntou o velho.

Vamos comer.

Ele assentiu com a cabeça e estendeu o braço que segurava a bengala e deu pancadinhas hesitantes na estrada.

Que idade tens tu?

Noventa.

Não tens nada.

Está bem.

É isso que dizes às pessoas?

Que pessoas?

Quaisquer pessoas.

Acho que sim.

Para elas não te fazerem mal?

Sim.

E resulta?

Não.

O que é que tens na mochila?

Nada. Podes ver, se quiseres.

Eu sei que posso ver. O que é que tens aí dentro?

Nada. Só umas coisas.

Nada que se coma.

Não.

Como é que te chamas?

Ely.

Ely quê?

Qual é o problema de Ely?

Nenhum. Vamos.

Acamparam na floresta, muito mais perto da estrada do que ele desejaria. Teve de arrastar o carrinho enquanto o rapaz o conduzia por trás e fizeram uma fogueira para o velho se aquecer, embora isto também não lhe agradasse muito. Comeram e o velho, embrulhado na colcha solitária, agarrava a colher como uma criança. Tinham somente dois copos e ele bebeu o café pela tigela que usara para comer, de polegares enganchados sobre o bordo. Parecia um buda famélico e andrajoso, de olhos fitos nas brasas.

Não podes vir connosco, sabes, disse o homem.

Ele fez que sim com a cabeça.

Há quanto tempo andas na estrada?

Tenho andado sempre na estrada. Não se pode ficar parado no mesmo lugar.

Como é que vives?

Vou-me governando como posso. Eu sabia que isto vinha aí.

Sabias que isto vinha aí?

Sim. Isto ou outra coisa parecida. Sempre achei que sim.

E tentaste preparar-te?

Não. O que é que eu havia de fazer?

Não sei.

As pessoas estavam sempre a preparar-se para o futuro. Eu não acreditava nisso. O futuro não se estava a preparar para elas. O futuro nem sabia que elas existiam.

Lá isso é verdade.

Mesmo que uma pessoa soubesse o que fazer, no fundo era como se não soubesse. Não saberia se tinha vontade de o fazer ou não. E se essa pessoa fosse o último ser humano na terra? Se tivesse sobrevivido até só restar ela?

Tens vontade de morrer?

Não. Mas se calhar desejava já ter morrido. Quando estamos vivos, temos sempre essa perspectiva pela frente.

Ou talvez desejasses nunca ter nascido.

Bom. Quem pede não escolhe.

Achas que isso já seria pedir demasiado.

O que está feito, feito está. Seja como for, é parvoíce pedir luxos numa época destas.

Talvez sim.

Ninguém quer aqui estar e ninguém quer partir deste mundo. Levantou a cabeça e olhou para o rapaz por sobre as labaredas. Depois olhou para o homem, que lhe viu os olhinhos a fitarem-no à luz da fogueira. Só Deus sabe o que aqueles olhos viam. O homem levantou-se para pôr mais lenha no fogo e varreu para o lume as brasas que tinham tombado nas folhas mortas. As faúlhas vermelhas subiam num estremecimento e sucumbiam nas trevas por cima das chamas. O velho bebeu o resto de café no fundo da tigela e pousou-a na sua frente e debruçou-se para o calor de mãos estendidas. O homem observava-o. Como é que alguém saberia que era o último ser humano na terra?, perguntou.

Não me parece que a pessoa soubesse. Sê-lo-ia e mais nada.

Ninguém saberia.

Não faria diferença nenhuma. Quando alguém morre, é como se todas as outras pessoas morressem também.

Acho que Deus saberia. É isso?

Deus não existe.

Não?

Deus não existe e nós somos os seus profetas.

Não percebo como é que ainda estás vivo. Como é que fazes para comer?

Não sei.

Não sabes?

As pessoas dão coisas.

As pessoas dão coisas.

Sim.

Para comer.

Para comer. Sim.

Ah, isso é que não dão.

Tu deste.

Não dei, não. O rapaz é que deu.

Há outras pessoas na estrada. Vocês não são os únicos.

E tu és o único?

O velho perscrutou-o com ar desconfiado. O que é que queres dizer com isso?, perguntou.

Há mais pessoas contigo?

Que pessoas?

Quaisquer pessoas.

Não há pessoas nenhumas. De que é que estás para aí a falar?

Estou a falar de ti. Do género de actividade a que talvez te dediques.

O velho não respondeu.

Deduzo que queiras ir connosco.

Ir convosco.

Sim.

Vocês não me querem levar convosco.

Tu não queres vir.

Eu nem vos teria acompanhado até aqui, mas tinha fome.

As pessoas que te deram comida. Onde é que elas estão?

Não há pessoas nenhumas. Eu acabei de inventar essa história.

E o que é que inventaste mais?

Ando na estrada como vocês, só isso. É a mesma coisa.

Chamas-te mesmo Ely?

Não.

Não queres dizer o teu nome.

Não quero dizer.

Porquê?

Nunca vos confiaria o meu nome. Nunca permitiria que vocês se servissem dele. Não quero ninguém a falar sobre mim. A dizer onde é que eu estive ou o que é que disse neste ou naquele lugar. Quer dizer, vocês talvez possam falar sobre mim, mas ninguém poderá afirmar que era mesmo eu. Eu podia ser qualquer um. Cá para mim, numa época destas, quanto menos falarmos, melhor. Se tivesse acontecido alguma coisa e nós fôssemos sobreviventes e nos encontrássemos na estrada, então teríamos coisas para dizer uns aos outros. Mas não somos. Por isso não temos.

Talvez não.

Só não queres dizer o teu nome à frente do rapaz.

Por acaso não és um chamariz para um bando de agentes do asfalto, ou és?

Não sou nada. Se quiseres que eu me vá embora, eu vou. Consigo encontrar a estrada sozinho.

Podes ficar, se quiseres.

Já há muito tempo que não via uma fogueira, só isso. Vivo como um animal. Nem queiram saber as coisas que já comi. Quando vi o rapaz, pensei que tinha morrido.

Pensaste que ele era um anjo?

Não sabia o que ele era. Nunca pensei tornar a ver uma criança. Não fazia ideia que isto ia acontecer.

E se eu te dissesse que ele é um deus?

O velho abanou a cabeça. Já não acredito em nada disso. Deixei de acreditar há anos. Onde os homens não conseguem viver, os deuses não têm melhor sorte. Vais ver. É melhor estar sozinho. Por isso espero que não seja verdade, o que acabaste de dizer, porque calcorrear a estrada com o derradeiro deus seria coisa terrível e espero sinceramente que não seja verdade. As coisas serão bem melhores quando toda a gente tiver desaparecido.

Ah, sim?

Sem dúvida.

Melhores para quem?

Para toda a gente.

Para toda a gente.

Claro. Ficaremos todos bem melhor. Vamos todos dar um suspiro de alívio.

É bom saber isso.

Pois é. Quando finalmente tivermos morrido todos, então não restará ninguém aqui na terra a não ser a morte, e também ela terá os dias contados. Andará a calcorrear a estrada de um lado para o outro, sem nada para fazer e sem ninguém que lhe sirva de vítima. Dirá: Para onde é que foi toda a gente? E é assim que as coisas acontecerão. Qual é o mal?

Na manhã seguinte, parados na estrada, ele e o rapaz discutiram o que dar ao velho. Este acabou por não receber grande coisa. Algumas latas de legumes e de fruta. Por fim, o rapaz acercou-se da berma da estrada e sentou-se na cinza. O velho enfiou as latas na mochila e apertou as fivelas. Devias agradecer-lhe, sabes, disse o homem. Eu não te teria dado nada.

Talvez deva e talvez não deva.

E porque é que não havias de lhe agradecer?

Eu cá não lhe teria dado da minha comida.

Estás-te nas tintas se ele ficar magoado?

E ele vai ficar magoado?

Não. Ele não te deu a comida para tu lhe agradeceres.

Então porque é que ele me deu a comida?

O homem olhou para o rapaz e depois voltou a fitar o velho. Tu não ias compreender, disse. Eu próprio não sei se compreendi bem.

Talvez ele acredite em Deus.

Não sei em que é que ele acredita.

Isso depois passa-lhe.

Não passa, não.

O velho não respondeu. Olhou em volta, para o dia que despontava.

Também não nos vais desejar boa sorte, é?, disse o homem.

Não sei o que é que isso significa. Com que é que a boa sorte se parece? Quem é que reconheceria tal coisa?

Em seguida, cada qual seguiu o seu rumo. Quando ele olhou para trás, o velho começara a caminhar com a bengala na mão, a dar pancadinhas no asfalto, a mirrar aos poucos na estrada atrás deles como um bufarinheiro dos tempos antigos, saído de um livro de histórias, escuro e curvado e magro como um aranhiço e prestes a desaparecer para todo o sempre. O rapaz nem por uma vez olhou para trás.

Ao início da tarde abriram o oleado na estrada e sentaram-se e comeram um almoço frio. O homem fitou-o. Falas comigo?, perguntou.

Sim.

Mas não estás contente.

Estou bem.

Quando a nossa comida se tiver acabado, vais ter mais tempo para pensar no assunto.

O rapaz não respondeu. Comeram. Ele olhou para trás, percorrendo a estrada com o olhar. Ao fim de um certo tempo, disse: Eu sei. Mas não me vou lembrar do que aconteceu da mesma maneira do que tu.

Provavelmente não.

Eu não disse que tu fizeste mal.

Mesmo que o tenhas pensado.

Está tudo bem.

Pois, disse o homem. Bom. Não são lá muito animadoras, as coisas que se encontram na estrada. Numa época destas.

Não devias fazer troça dele.

Está bem.

Ele vai morrer.

Eu sei.

Podemos ir agora?

Sim, disse o homem. Podemos ir.

De noite acordou nas trevas frias, a tossir, e tossiu até sentir o peito dorido. Debruçou-se para o lume e soprou nas brasas e juntou mais lenha à fogueira e pôs-se de pé e afastou-se do acampamento até onde a luz o podia levar. Ajoelhou-se nas folhas secas e na cinza, com o cobertor embrulhado em volta dos ombros, e ao fim de algum tempo a tosse começou a diminuir. Lembrou-se do velho, algures na noite. Voltou-se e olhou para o acampamento através da paliçada negra das árvores. Rezou para que o rapaz tivesse tornado a adormecer. Ali ajoelhado, de mãos nos joelhos, a arquejar em surdina. Vou morrer, disse. Mas como é que isso se faz, alguém me explica?

No dia seguinte caminharam até ser quase noite. Ele não conseguiu encontrar lugar seguro para fazer uma fogueira. Quando retirou a botija do carrinho, pareceu-lhe que estava muito leve. Sentou-se e fez menção de rodar a válvula, mas já estava ligada. Rodou o pequeno manípulo na base do queimador. Nada. Debruçou-se e apurou o ouvido. Experimentou de novo as duas válvulas, nas suas diversas combinações. A botija estava vazia. Ficou ali acocorado, de mãos entrelaçadas num punho contra a testa, olhos fechados. Ao fim de um certo tempo levantou a cabeça e ficou estático, a fitar o bosque frio que as trevas iam cobrindo.

Comeram um jantar frio de pão de milho e feijão e salsichas de lata. O rapaz perguntou-lhe como é que a botija se tinha esvaziado tão depressa, e ele respondeu que não sabia ao certo.

Tu disseste que ia durar umas semanas.

Eu sei.

Mas só se passaram alguns dias.

Enganei-me.

Comeram em silêncio. Ao fim de um certo tempo, o rapaz disse: Esqueci-me de fechar a válvula, não foi?

A culpa não é tua. Eu é que devia ter verificado.

O rapaz pousou o prato no oleado e desviou o rosto.

A culpa não é tua. Tem de se fechar as duas válvulas. As juntas deviam estar calafetadas com fita adesiva de teflon para não haver fugas, e eu não fiz isso. A culpa é minha. Não te expliquei bem as coisas.

Mas nós não tínhamos fita adesiva nenhuma, pois não?

A culpa não é tua.

Continuaram naquela marcha lenta e difícil, magros e sujos como drogados sem eira nem beira. Com os cobertores a cobrir-lhes a cabeça para se protegerem do frio, a arrastar os pés por sobre os montículos negros e acetinados. Estavam a atravessar a vasta planície costeira onde os ventos seculares, levantando nuvens ululantes de cinza, os obrigavam a procurar abrigo onde podiam. Em casas ou em celeiros ou no fundo das valetas, na berma da estrada, com os cobertores puxados para cima da cabeça e o céu do meio-dia negro como as catacumbas do inferno. Apertava o rapaz contra si, enregelado até aos ossos. Não desanimes, dizia. Vai correr tudo bem.

A terra sulcada de ravinas, árida e devastada pela erosão. As ossadas de gente e de bichos esparramados nos leitos secos dos rios. Monturos de lixo anónimo. No meio dos campos, casas de lavoura despojadas da tinta, com as ripas de madeira empenadas e côncavas e soltas das cavilhas da parede. Tudo sem sombras e informe. A estrada descia por uma selva de kudzu morto. Um pântano onde juncos mortos boiavam à tona da água. Para além da orla dos campos, a névoa soturna pairava de igual forma sobre terra e céu. Ao final da tarde começara a nevar e eles caminharam com o oleado a cobri-los e a neve húmida a sibilar no plástico.

 

Ele pouco dormira nas últimas semanas. Quando acordou de manhã, o rapaz não estava a seu lado e ele soergueu-se de pistola na mão e depois pôs-se de pé e procurou-o, mas não o via em parte alguma. Calçou os sapatos e caminhou até ao limiar do bosque. A alvorada mortiça a leste. O sol a iniciar o seu frio trânsito, alheio àquele mundo. Viu o rapaz a vir a correr ao seu encontro através dos campos. Papá!, gritou ele. Há um comboio na floresta.

Um comboio?

Sim.

Um comboio a sério?

Sim. Anda comigo.

Não te aproximaste, pois não?

Não. Só um bocadinho. Anda.

Não está lá ninguém?

Não. Acho que não. Vim chamar-te.

Tem locomotiva?

Sim. Grandalhona, a diesel.

Atravessaram o campo e penetraram no bosque do lado oposto. Os carris, assentes num aterro, desciam dos montes e cruzavam a floresta. A locomotiva era uma diesel eléctrica e tinha atreladas oito carruagens de passageiros de aço inoxidável. Ele pegou na mão do rapaz. Vamos ficar aqui sentados a ver, disse.

Sentaram-se no talude e esperaram. Nada se movia. Ele estendeu a pistola ao rapaz. Fica tu com ela, papá, disse este.

Não. Não vamos discutir. Pega.

Ele pegou na pistola e sentou-se com ela no regaço e o homem caminhou ao longo da via férrea e parou a perscrutar o comboio. Atravessou os carris para o lado oposto e percorreu toda a fileira de carruagens. Quando surgiu por trás da última, acenou ao rapaz para que fosse ter com ele e o rapaz pôs-se de pé e enfiou a pistola no cinto.

Tudo coberto de cinza, as coxias juncadas de lixo. Havia malas de viagem abertas em cima dos bancos, que alguém em tempos retirara das bagageiras superiores e saqueara ali mesmo. Na carruagem-restaurante encontrou uma pilha de pratos de papel e soprou-lhes para dispersar a camada de pó que os cobria e guardou-os dentro da parka e foi tudo.

Como é que o comboio veio aqui parar, papá? Não sei. Alguém estava a levá-lo para sul, calculo eu. Um grupo de pessoas. Provavelmente, foi aqui que ficaram sem combustível. Já aqui está há muito tempo? Sim. Parece-me que sim. Há imenso tempo.

Percorreram as últimas carruagens e depois caminharam ao longo dos carris até à locomotiva e treparam para o passadiço. Ferrugem e a tinta a estalar. Abriram à força a portinhola da cabina e ele soprou a cinza que cobria o banco do maquinista e pôs o rapaz aos comandos, que eram muito simples. Pouco mais havia a fazer do que empurrar a alavanca de comando para a frente. Ele imitou ruídos de comboio e o barulho da buzina das automotoras a diesel, mas não sabia ao certo o que é que estes sons poderiam significar para o rapaz. Ao fim de algum tempo, quedaram-se os dois a olhar pelo vidro coberto de poeira, para o ponto onde os carris descreviam uma curva e desapareciam no manto de erva morta. Embora um e outro vissem mundos diferentes, ambos sabiam o mesmo. Que o comboio ia ali ficar a decompor-se aos poucos para toda a eternidade e que nenhum comboio tornaria a percorrer os carris do mundo inteiro.

Podemos ir, papá?

Sim. É claro que podemos.

Começaram a deparar de tempos a tempos com pequenas pirâmides de pedras na berma da estrada. Letreiros numa linguagem críptica, mensagens codificadas cuja chave se perdera. Ele já não as via desde há um certo tempo, mas eram vulgares no Norte, à saída das cidades saqueadas e exangues, mensagens sem esperança para os entes amados que tinham morrido ou a quem se perdera o rasto. Naquela época já todas as reservas de comida se tinham esgotado e os homicídios eram moeda corrente. O mundo não tardaria a ser povoado, em grande medida, por homens capazes de devorar os filhos diante dos pais e as cidades em si estavam nas mãos de grupos de saqueadores enegrecidos que escavavam túneis entre as ruínas e emergiam do entulho a rastejar, de dentes e olhos alvejantes, carregando às costas redes de nylon a abarrotar de latas calcinadas e anónimas, quais clientes às compras nos armazéns do inferno. Um pó de talco macio e negro disseminava-se pelas ruas, soprado pelo vento, como tinta de chocos a espalhar-se em volutas sobre um fundo marinho e o frio descia furtivamente sobre a terra e as trevas chegavam cedo e os necrófagos percorriam o fundo dos desfiladeiros alcantilados com os seus archotes, deixando nos montículos de cinza pegadas sedosas que se fechavam silenciosamente atrás deles como pálpebras. Nas estradas os peregrinos desfaleciam e estatelavam-se no chão e morriam e a Terra gélida e amortalhada rodava sem cessar, passava diante do Sol uma e outra vez sem deixar vestígios, tão despercebida como o curso de um qualquer mundo gémeo sem nome nas trevas milenares em volta.

Muito antes de chegarem à costa, as reservas de alimento já quase se tinham esgotado. Aquela região fora posta a saque há já muitos anos e despojada de tudo o que pudesse ter valor e eles nada encontraram nas casas e edifícios junto à estrada. Ele achou uma lista telefónica numa bomba de gasolina e escreveu o nome da povoação no mapa com um lápis. Sentaram-se no lancil do passeio diante do edifício a comer bolachas de água e sal e procuraram a cidadezinha, mas não a conseguiam localizar. Ele percorreu os vários bocados do mapa e tornou a examiná-los. Por fim, indicou ao rapaz um ponto no mapa. Estavam uns oitenta quilómetros a oeste do que ele julgava. Desenhou no mapa duas figuras humanas estilizadas. Estes somos nós, disse. O rapaz percorreu o caminho até ao mar com a ponta do dedo. Quanto tempo é que demoramos a lá chegar?, perguntou.

Duas semanas. Três.

É azul?

O mar? Não sei. Dantes era.

O rapaz anuiu com a cabeça. Ficou sentado, a contemplar o mapa. O homem observava-o. Julgava saber o que se passava na cabeça do filho. Em criança, ele próprio ficava horas e horas a perscrutar mapas, com um dedo pousado na povoação onde vivia. Assim como procurava o nome dos pais na lista telefónica. Nós próprios no meio de outros, tudo no respectivo lugar. Legitimado no mundo. Anda, disse. É melhor irmos.

Ao fim da tarde começou a chover. Abandonaram a estrada e meteram por um caminho de terra batida através de um campo de cultivo e passaram a noite num barracão. Tinha o chão feito de cimento e, num dos extremos, viam-se alguns bidões de aço vazios. Ele barricou as portas com os bidões e fez uma fogueira no chão e espalmou uns caixotes de cartão para fazer duas camas. A chuva tamborilou toda a noite lá no alto, no telhado de chapa. Quando acordou, a fogueira quase se apagara e estava muito frio. O rapaz estava sentado, embrulhado no cobertor.

O que é?

Nada. Tive um sonho mau.

Com que é que sonhaste?

Com nada.

Estás bem?

Não.

Abraçou-o e apertou-o contra si. Já passou, disse.

Eu chorei. Mas tu não acordaste.

Desculpa. Estava tão cansado, sabes.

Não, isto foi no sonho.

Na manhã seguinte, quando acordou, a chuva cessara. Ficou à escuta do gotejar indolente da água. Mudou de posição, movendo as ancas sobre o cimento duro, e espreitou através das tábuas para contemplar a paisagem cinzenta. O rapaz ainda dormia. A água pingava em poças no chão. Bolhinhas apareciam e deslizavam e tornavam a desaparecer. Numa cidadezinha do sopé da montanha tinham dormido num lugar assim e tinham ficado a ouvir a chuva. Havia lá um bazar antiquado com balcão de mármore negro e bancos cromados com assentos de napa cheios de rasgões, remendados com fita adesiva isolante. A farmácia fora saqueada, mas a loja em si estava estranhamente intacta. Aparelhos electrónicos de grande valor permaneciam nas prateleiras sem um arranhão. Ele percorreu a loja com o olhar. Miudezas. Artigos de costura. E o que é isto? Pegou na mão do rapaz e levou-o dali para fora, mas o rapaz já tinha visto. Uma cabeça humana debaixo de uma redoma para bolos no extremo do balcão. Ressequida. Com um boné de pala. Olhos secos tristemente revirados para dentro. Teria sido um sonho? Não. Levantou-se e pôs-se de joelhos e soprou nas brasas e juntou as pontas chamuscadas das tábuas e ateou de novo o fogo.

Há outros homens bons. Tu disseste que sim.

Pois há.

Então onde é que eles estão?

Escondidos.

De quem é que eles se escondem?

Uns dos outros.

São muitos?

Não sabemos.

Mas devem ser alguns.

Alguns. Sim.

Isso é verdade?

Sim, é verdade.

Mas talvez não seja.

Penso que é verdade.

Está bem.

Não acreditas em mim.

Acredito em ti.

Está bem.

Acredito sempre em ti.

Não me parece.

Acredito, sim. Tenho de acreditar.

Desceram até à estrada, caminhando através da lama. Havia na chuva um cheiro a terra e a cinza molhada. Água escura na valeta da berma, a sair aos borbotões de um bueiro metálico e a formar um charco. Um veado de plástico num quintal. No final do dia seguinte entraram numa cidadezinha onde três homens emergiram de trás de uma camioneta e se postaram na estrada, à frente deles. Macilentos, vestidos de andrajos. Com tubos de metal na mão. O que é que vocês levam no cesto? Ele apontou-lhes a pistola e eles estacaram. O rapaz agarrou-se ao casaco dele. Ninguém falou. Ele tornou a empurrar o carrinho e eles afastaram-se para a berma da estrada. Mandou o rapaz empurrar o carrinho e caminhou às arrecuas, mantendo a pistola apontada aos três homens. Tentou parecer um qualquer assassino migratório igual a tantos outros, mas tinha o coração a martelar no peito e sabia que ia começar a tossir. Os outros regressaram à estrada em passo lento e ficaram a olhar. Ele enfiou a pistola no cinto e virou-se e agarrou a pega do carrinho. No alto da subida, quando olhou para trás, eles ainda estavam ali parados. Disse ao rapaz para empurrar o carrinho e afastou-se para um quintal de onde podia avistar o troço de estrada que ficara para trás, mas eles já tinham desaparecido. O rapaz estava cheio de medo.

Ele pousou a pistola em cima do oleado e agarrou a pega do carrinho e prosseguiram.

Ficaram deitados num campo até escurecer, a vigiar a estrada, mas ninguém apareceu. Estava muito frio. Quando ficou tão escuro que já não se via nada foram buscar o carrinho e regressaram à estrada aos tropeções e ele tirou os cobertores do cesto e embrulharam-se e prosseguiram. Apalpavam o caminho com os pés. Uma das rodas do carrinho soltava um rangido cadenciado, mas não havia nada a fazer. Avançaram a custo durante algumas horas e depois abandonaram a estrada aos tropeções através dos arbustos da berma e deitaram-se na terra fria, trémulos e exaustos, e dormiram até o dia nascer. Quando ele acordou, estava doente.

Estava cheio de febre e esconderam-se na floresta como foragidos. -Não havia onde fazer uma fogueira. Nenhum lugar seguro. Sentado nas folhas, o rapaz observava-o. Os olhos rasos de lágrimas. Vais morrer, papá?, perguntou. Vais morrer?

Não. Só estou doente.

Tenho tanto medo.

Eu sei. Mas não te preocupes. Eu vou ficar bom. Vais ver.

Os sonhos dele tornaram-se mais alegres. O mundo desaparecido regressou. Parentes mortos há muito surgiam como que por encanto e lançavam-lhe olhares de soslaio com ar de clarividência feérica. Nenhum dizia uma só palavra. Ele pensava na sua vida. Há já tanto tempo. Um dia cinzento numa cidade estranha e ele postado diante de uma janela, a olhar a rua lá em baixo. Atrás dele, numa mesa de madeira, um pequeno candeeiro aceso. Sobre a mesa, livros e papéis. Começou a chover e um gato que estava à esquina deu meia volta e atravessou o passeio e sentou-se por baixo do toldo do café. Lá dentro estava sentada uma mulher, com a cabeça nas mãos. Anos depois, ele dera por si nas ruínas calcinadas de uma biblioteca, onde livros enegrecidos jaziam caídos em poças de água. Estantes derrubadas. Um qualquer acesso de fúria ante as mentiras dispostas aos milhares, fileira após fileira. Ele apanhou do chão um dos livros e folheou as páginas ensopadas que se colavam umas às outras. Nunca lhe ocorrera o imenso valor das coisas mais insignificantes alicerçadas num mundo que ainda está para vir.

Surpreendia-o. O facto de o espaço que estas coisas ocupavam ser em si mesmo uma esperança. Deixou cair o livro e lançou em volta um derradeiro olhar e encaminhou-se para a saída e mergulhou na luz fria e cinzenta.

Três dias. Quatro. Ele dormia mal. A tosse dilacerante acordou-o. Sugava o ar com som cavo. Desculpa, disse para as trevas impiedosas. Não faz mal, disse o rapaz.

Acendeu a pequena candeia de petróleo e deixou-a pousada numa pedra e levantou-se e afastou-se em passo arrastado através das folhas mortas, envolto nos cobertores. O rapaz sussurrou-lhe que não se afastasse. É só um bocadinho, disse ele. Não vou para longe. Se chamares, eu ouço. Se a candeia se apagasse, não seria capaz de encontrar o caminho de regresso. Sentou-se no tapete de folhas, no alto do monte, e fitou o negrume. Não se via nada. Não soprava vento. Dantes, quando se afastava assim e se sentava a contemplar a paisagem cujas formas só a muito custo se distinguiam, com a claridade da Lua perdida a banhar a aridez cauterizada, acontecia-lhe ocasionalmente avistar uma luz. Ténue e informe na escuridão. Na margem oposta de um rio ou no coração dos quarteirões enegrecidos de uma cidade queimada. De manhã regressava por vezes com os binóculos e perscrutava as cercanias em busca de qualquer indício de fumo, mas nunca viu nenhum.

Parado na orla de um campo, no Inverno, no meio de homens rudes. Tinha a idade do rapaz. Um pouco mais velho. Ficou a ver enquanto eles escavavam o terreno pedregoso da encosta com picaretas e alviões até trazerem à luz do dia um grande novelo de serpentes, talvez umas cem ao todo, que ali se tinham juntado em busca do calor comum. Os corpos, quais tubos entorpecidos, começaram a mover-se vagarosamente sob a luz fria e crua. Como as entranhas de um enorme animal assim expostas. Os homens regaram-nas com gasolina e queimaram-nas vivas, não tendo remédio algum para combater o mal, somente para a imagem do mal tal como a concebiam. As serpentes em chamas contorceram-se horrivelmente e algumas rastejaram, envoltas em labaredas, sobre o fundo da gruta, iluminando os recantos mais obscuros. Como eram mudas, não se ouviram gritos de dor, e os homens, num silêncio em tudo idêntico, ficaram a vê-las arder e contorcer-se e cobrir-se de negro e, ainda em silêncio, dispersaram no lusco-fusco de Inverno, cada qual com os seus próprios pensamentos, e foram para casa jantar.

Uma noite o rapaz acordou de um sonho e não lho queria contar.

Não és obrigado a contar-me, disse o homem. Já passou.

Tenho medo.

Já passou.

Não passou, não.

É só um sonho.

Tenho muito medo.

Eu sei.

O rapaz desviou o rosto. O homem abraçou-o. Escuta, disse.

O quê?

Quando sonhares com um mundo que nunca existiu ou com um mundo que nunca existirá e te sentires outra vez feliz, então é porque já desististe. Percebes? E tu não podes desistir. Eu não te deixo desistir.

Quando tornaram a meter pés ao caminho ele sentia-se muito fraco e, apesar de todos os seus discursos, invadira-o um desânimo bem mais profundo do que nos últimos anos. Sujo de diarreia, debruçado sobre a pega do carrinho de supermercado. Olhou para o rapaz com olhos esgazeados, de órbitas encovadas. Havia entre eles uma nova distância. Ele sentia-a. Ao fim de dois dias chegaram a uma região que fora varrida por tempestades de fogo, deixando quilómetros e quilómetros de terra queimada. Uma camada de cinzas sobre a estrada com quase dez centímetros de espessura e difícil de trilhar com o carrinho. O asfalto por baixo abaulara por causa do calor e depois tornara a solidificar. Ele curvou-se sobre a pega e percorreu com os olhos a longa estrada rectilínea. As árvores esguias derrubadas. Os cursos de água reduzidos a lama cinzenta. A terra enegrecida, um gigantesco jogo dos pauzinhos carbonizado.

Depois de passarem por um cruzamento naquele lugar selvagem, começaram a deparar com bagagens de viajantes, abandonadas na estrada há já muitos anos. Caixotes e sacos de viagem. Tudo derretido e negro. Velhas malas de fibra sintética que o calor encaracolara e tornara informes. Aqui e além, a marca de objectos arrancados do asfalto pelos recolectores de detritos. Um quilómetro e meio adiante, surgiram os primeiros mortos. Figuras humanas parcialmente atoladas no asfalto, de dedos fincados no próprio corpo, bocas a ulular. Ele pôs a mão no ombro do rapaz. Dá-me a mão, disse. Acho que tu não devias ver isto.

As coisas que pomos na nossa cabeça ficam lá para sempre?

Sim.

Não faz mal, papá.

Não faz mal?

Estas pessoas já estão na minha cabeça.

Não quero que olhes.

Mesmo assim, elas não vão sair de lá.

Ele parou e debruçou-se sobre o carrinho. Olhou para o fundo da estrada e olhou para o rapaz. Tão estranhamente impassível.

Porque é que não continuamos a andar e pronto?, perguntou o rapaz.

Sim. Está bem.

Elas estavam a tentar fugir, não era, papá?

Sim. Estavam.

Mas porque é que não saíram da estrada?

Não podiam. Tudo estava em chamas.

Avançaram aos ziguezagues por entre os corpos mumificados. A pele negra retesada sobre os ossos e os rostos sulcados por gretas e mirrados sobre os crânios. Como vítimas de um tenebroso vácuo gerado naquele lugar. Passaram em silêncio diante dos mortos, percorrendo aquele corredor silencioso com o seu tapete de cinza onde aquela gente se debatia para toda a eternidade na estrada fria e coagulada.

Atravessaram o lugar onde antes se erguera uma vilória, agora com-pletamente reduzida a cinzas. Algumas cisternas de metal, algumas chaminés de tijolo enegrecido ainda de pé. Nas valetas viam-se poças de vidro que derretera e tornara a solidificar numa escória cinzenta e os fios eléctricos descarnados juncavam a berma do asfalto em novelos ferrugentos ao longo de quilómetros e quilómetros. Ele tossia a cada passo. Viu o rapaz a observá-lo. Todos os pensamentos do rapaz se concentravam nele. Antes assim.

Sentaram-se na estrada e comeram o resto do pão de milho assado na frigideira, duro como biscoito, e a última lata de atum. Ele abriu uma lata de ameixas secas e passaram-na de um para o outro. O rapaz ergueu a lata e bebeu o resto da calda e depois pousou-a no regaço e passou o indicador pelo interior da superfície metálica e enfiou o dedo na boca.

Não te cortes, disse o homem.

Dizes sempre isso.

Eu sei.

Viu-o lamber a tampa da lata. Com imenso cuidado. Como um gato a lamber o próprio reflexo num espelho. Pára de olhar para mim, disse.

Está bem.

Empurrou para baixo a tampa da lata e pousou-a na estrada, diante de si. O quê?, perguntou. O que é?

Nada.

Diz-me.

Acho que vem alguém a seguir-nos.

Foi o que eu pensei.

Foi o que tu pensaste?

Sim. Foi o que eu pensei que tu ias dizer. O que é que queres fazer?

Não sei.

O que é que achas?

O melhor é continuarmos. Devíamos esconder o nosso lixo.

Porque senão eles pensam que nós temos imensa comida.

Sim.

E tentam matar-nos.

Eles não vão matar-nos.

Podem tentar.

Não há perigo.

Está bem.

Acho que nos devíamos esconder e esperar por eles. Para ver quem são.

E quantos são.

E quantos são. Sim.

Está bem.

Se conseguirmos atravessar o rio, podemos subir àqueles penedos, acolá, e vigiar a estrada.

Está bem.

Havemos de encontrar um esconderijo.

Ergueram-se e amontoaram os cobertores no carrinho. Traz a lata, disse o homem.

O longo crepúsculo já ia adiantado quando chegaram ao lugar onde a estrada atravessava o rio. Cruzaram a ponte ao som do rumorejar das rodinhas e empurraram o carrinho através da floresta, em busca de um lugar onde o pudessem deixar sem ser visto. Quedaram-se a olhar para a estrada lá atrás, ao lusco-fusco.

E se o puséssemos debaixo da ponte?, sugeriu o rapaz.

E se eles descerem para ir buscar água?

Qual é o atraso deles em relação a nós?

Não sei.

Está a ficar escuro.

Eu sei.

E se eles passarem durante a noite?

Vamos mas é encontrar um esconderijo de onde possamos vigiar a estrada. Ainda há alguma luz.

Esconderam o carrinho e subiram a encosta por entre os penedos, transportando os cobertores, e aninharam-se num ponto de onde avistavam, através das árvores, o troço de estrada que tinham acabado de percorrer, numa extensão de oitocentos metros, mais ou menos. Estavam abrigados do vento e embrulharam-se nos cobertores e ficaram de vigia à vez, mas ao fim de algum tempo o rapaz adormeceu. Ele próprio também estava quase a dormir quando viu uma silhueta surgir no alto da estrada e ficar ali parada. Em breve surgiram mais duas. Depois uma quarta. Os quatro indivíduos ficaram ali imóveis e reagruparam-se. Depois avançaram. Ele só a custo os distinguia na densa penumbra. Pareceu-lhe que se preparavam para parar e lamentou não ter procurado um lugar mais afastado da estrada. Se eles parassem na ponte para dormir, ia ser uma noite comprida e fria. Eles caminharam pelo asfalto e atravessaram a ponte. Três homens e uma mulher. A mulher seguia em passo bamboleante e, quando se aproximou, ele percebeu que ela estava grávida. Os homens levavam mochilas às costas e a mulher carregava uma pequena mala de tecido. Todos com ar indescritivelmente miserável. Suaves baforadas de vapor a sair-lhes da boca e do nariz.

Atravessaram a ponte e continuaram pela estrada fora e desapareceram um por um nas trevas que os esperavam.

Acabou por ser uma longa noite, mesmo assim. Quando já havia luz suficiente para se ver ele calçou os sapatos e pôs-se de pé e embrulhou um cobertor em volta do corpo e abandonou o esconderijo e ficou a olhar para a estrada lá em baixo. O bosque despido, cor de ferro, e os campos mais além. As formas onduladas ainda vagamente visíveis, moldadas há muito tempo pelas grades de lavoura. Talvez algodão. O rapaz estava a dormir e ele desceu até ao carrinho e pegou no mapa e na garrafa de água e numa lata de fruta das já escassas reservas de alimento e voltou para cima e sentou-se nos cobertores e examinou o mapa.

Achas sempre que nós já avançámos mais do que na realidade. Ele moveu o dedo. Então aqui. Mais. Aqui. Está bem.

Dobrou as páginas flácidas, a desfazerem-se aos bocados. Está bem, disse.

Ficaram os dois sentados, a contemplar a estrada por entre as árvores.

Achas que os teus pais te estão a ver? Que eles pesam as tuas acções no livro onde tudo registam? Comparando-as com que outras acções? Não há livro nenhum e os teus pais estão mortos e enterrados.

A vegetação passou de pinheiros para uma mescla de carvalhos e pinheiros. Magnólias. Árvores tão sem vida como todas as outras. Ele pegou numa das grossas folhas e esmigalhou-a na mão até a reduzir a pó e deixou que o pó lhe caísse entre os dedos.

Na estrada, bem cedo, no dia seguinte. Não tinham andado muito quando o rapaz lhe puxou a manga e estacaram e quedaram-se ali. Uma corda esguia de fumo elevava-se da floresta, mais adiante. Ficaram os dois parados, a olhar.

O que é que havemos de fazer, papá?

Se calhar devíamos ir dar uma olhadela.

Vamos continuar em frente, sim? E se eles seguirem o mesmo caminho do que nós? E depois?, perguntou o rapaz.

Vamos tê-los na nossa peugada. Gostava de saber quem são. E se for um exército? É só uma fogueira pequena. Porque é que não esperamos?

Não podemos esperar. Estamos quase sem comida. Temos de seguir em frente.

Deixaram o carrinho na floresta e ele fez rodar o tambor do revólver, verificando o alinhamento dos cartuchos. Os de madeira e o genuíno. Ficaram parados, à escuta. O fumo formava uma coluna no ar parado. Não se ouvia som algum. As folhas estavam moles das chuvas recentes e não faziam barulho sob os passos. Ele virou-se e olhou para o rapaz. O pequeno rosto sujo, de olhos arregalados de medo. Contornaram a fogueira de longe, com o rapaz agarrado à mão dele. Ele agachou-se e pôs-lhe um braço em volta do corpo e ficaram à escuta durante muito tempo. Acho que eles se foram embora, sussurrou.

O quê?

Acho que eles se foram embora. Provavelmente, tinham um vigia.

Pode ser uma armadilha, papá.

Está bem. Vamos esperar mais um bocado.

Esperaram. Avistavam o fumo através das árvores. Um sopro de vento começara a agitar o alto da flecha e o fumo dispersou-se e eles sentiram-lhe o cheiro. Chegou-lhes às narinas o odor de comida ao lume. Vamos dar a volta até ao outro lado, disse o homem.

Posso dar-te a mão?

Sim. É claro que podes.

A floresta não passava de uma imensidão de troncos queimados. Nada havia para ver. Acho que eles nos viram, disse o homem. Acho que eles nos viram chegar e fugiram. Viram que tínhamos uma arma.

Deixaram a comida ao lume.

Sim.

Vamos dar uma olhadela.

Tenho imenso medo, papá.

Não está aqui ninguém. Não há perigo.

Entraram na pequena clareira, com o rapaz agarrado à mão dele. Os outros tinham levado tudo, à parte uma massa negra que assava no espeto, por cima das brasas. Ele estava parado, a perscrutar a orla da clareira, quando o rapaz se virou e escondeu o rosto contra si. Ele olhou rapidamente para perceber o que sucedera. O que é?, perguntou. O que é? O rapaz abanou a cabeça. Oh, papá, disse. Ele virou-se e olhou de novo. O que o rapaz vira era um bebé humano chamuscado, sem cabeça e despojado das vísceras, a tostar no espeto. Ele curvou-se e pegou no rapaz e começou a caminhar para a estrada com ele ao colo, abraçando-o com força. Desculpa, sussurrou. Desculpa.

Não sabia se o filho alguma vez tornaria a falar. Acamparam na margem de um rio e ele sentou-se junto à fogueira, a escutar a água que corria nas trevas. Não era um lugar seguro porque o som do rio abafava todos os outros, mas ele achou que iria alegrar o rapaz. Comeram o resto das provisões e ele pôs-se a examinar o mapa. Mediu a estrada com um pedaço de cordel e perscrutou-a e mediu-a outra vez. Ainda estavam muito longe da costa. Não sabia o que iam encontrar quando lá chegassem. Voltou a juntar os pedaços do mapa e dobrou-os num maço que pôs dentro do saco de plástico e recostou-se e ficou a olhar para as brasas.

No dia seguinte atravessaram o rio por uma estreita ponte de ferro e entraram numa velha cidadezinha erguida em torno de uma fábrica. Percorreram as casas de madeira, mas nada encontraram. Um homem de fato-macaco, morto há muitos anos, estava sentado numa varanda. Parecia um boneco de palha ali posto para anunciar alguma festividade. Percorreram a longa parede escura da fábrica, de janelas emparedadas com tijolos. A fuligem negra e muito fina voava pela rua fora diante deles.

Bizarros objectos espalhados junto à berma da estrada. Aparelhos eléctricos, mobília. Ferramentas. Coisas abandonadas há muito por peregrinos a caminho das suas diversas e colectivas mortes. Até há um ano, o rapaz era capaz de, por vezes, apanhar do chão um objecto qualquer e levá-lo consigo durante algum tempo, mas agora já não fazia isso. Sentaram-se e descansaram e beberam o último resto de água boa e deixaram o garrafão de plástico pousado no meio da estrada, de pé.

O rapaz disse: Se tivéssemos aquele bebezinho, podíamos trazê-lo connosco.

Sim. Podíamos.

Onde é que eles o encontraram?

Ele não respondeu.

Existirá outro nalgum lugar?

Não sei. É possível.

Não devia ter dito o que disse sobre aquelas pessoas.

Quais pessoas?

Aquelas pessoas que morreram queimadas. Que foram apanhadas pelo incêndio na estrada e morreram queimadas.

Não me dei conta de que tivesses dito alguma coisa desagradável.

Não foi desagradável. Podemos partir agora?

Podemos. Queres ir dentro do carrinho?

Eu estou bem.

Porque é que não vais um bocadinho no cesto?

Não quero. Estou bem.

A água corria vagarosa nas terras planas. Os charcos na berma da estrada imóveis e cinzentos. Os rios da planície costeira serpenteavam, plúmbeos, através das terras de cultivo devastadas. Eles prosseguiram. Mais adiante, na estrada, via-se um declive e um canavial. Parece-me que há uma ponte acolá, disse ele. Provavelmente um regato.

Podemos beber água?

Não temos outra hipótese.

Não vai fazer-nos mal.

Não me parece. Mas é capaz de estar seco.

Posso ir à frente?

Sim. É claro que podes.

O rapaz desatou a correr pela estrada fora. Há já muito tempo que ele não o via correr. De cotovelos espetados para fora, a fazer flape-flape com as sapatilhas demasiado grandes. Ele parou e ficou a contemplá-lo, a morder o lábio.

A água era um fiozinho, pouco mais. Ele viu-a correr tenuemente onde se coava para uma laje de betão sob o tabuleiro da ponte e cuspiu para dentro do líquido e ficou a olhar para ver se este se movia. Foi ao carrinho buscar um pano e um boião de plástico e regressou e envolveu o bocal do boião com o pano e mergulhou-o na água e ficou a vê-lo encher. Ergueu-o, gotejante, e observou-o a contraluz. A aparência era sofrível. Retirou o pano e estendeu o boião ao rapaz. Bebe, disse.

O rapaz bebeu e devolveu-lhe o boião.

Bebe mais um bocadinho.

Bebe tu um bocadinho, papá.

Está bem.

Ficaram ali sentados, a filtrar a cinza da água e a beber até não conseguirem beber mais. O rapaz deitou-se de costas na erva.

Temos de ir andando.

Estou mesmo cansado.

Eu sei.

Ficou sentado a observá-lo. Já não comiam há dois dias. Outros dois e começariam a perder forças. Trepou a margem através do canavial para perscrutar a estrada. Escura e negra e sem rastos, a atravessar a paisagem desafogada. Os ventos tinham varrido a cinza e a poeira da superfície do alcatrão. Terras outrora ricas. Nenhum sinal de vida. Não era região que ele conhecesse. Os nomes das povoações ou dos rios. Vamos, disse. Temos de ir andando.

Dormiam cada vez mais. Acordaram repetidas vezes esparramados na estrada como vítimas de acidentes rodoviários. O sono da morte. Ele soerguia-se e procurava a pistola às apalpadelas. No crepúsculo plúmbeo quedou-se de pé, debruçado para diante, com os cotovelos apoiados na pega do carrinho, a olhar através dos campos para uma casa a quilómetro e meio de distância, talvez. Fora o rapaz que a avistara. Emergia da cortina de fuligem e tornava a desaparecer como uma casa num sonho indistinto. Apoiado no carrinho, olhou para o rapaz. Ia ser necessário um certo esforço para lá chegar. Teriam de levar os cobertores, esconder o carrinho algures na berma da estrada. Podiam alcançá-la antes do anoitecer, mas já não ia dar tempo de regressar.

Temos de ir lá dar uma olhadela. Não nos resta outra alternativa.

Eu não quero ir.

Já não comemos nada há vários dias.

Eu não tenho fome.

Não, só estás a morrer de fome.

Eu não quero lá ir, papá.

Não está lá ninguém. Garanto-te.

Como é que sabes?

Porque sei, pronto.

Eles podem lá estar.

Não, não estão. Vai correr tudo bem.

Abandonaram a estrada e avançaram pelos campos, embrulhados nos cobertores, levando apenas a pistola e uma garrafa de água. O campo fora lavrado uma derradeira vez e havia talos de restolho a assomar da terra e a marca ténue da grade de discos ainda se via de leste para oeste. Chovera recentemente e eles sentiam os torrões moles sob os pés e ele não tirava os olhos do chão e ao fim de pouco tempo deteve-se e apanhou uma ponta de flecha. Cuspiu-lhe e limpou a terra contra a costura das calças e estendeu-a ao rapaz. Era de quartzo branco, perfeita como no dia em que fora talhada. Há mais por aqui, disse. Se olhares bem para o chão, encontra-las. Encontrou mais duas. De sílex cinzento. Depois encontrou uma moeda. Ou um botão. Coberto por uma espessa crosta de verdete. Raspou a crosta com a unha do polegar. Era uma moeda. Pegou na faca e poliu-lhe as duas faces com cuidado. As inscrições eram em espanhol. Fez menção de chamar o rapaz que já ia mais adiante, a caminhar penosamente, e depois olhou em volta e viu a paisagem cinzenta e o céu cinzento e deixou cair a moeda e estugou o passo para o alcançar.

Pararam diante da casa e perscrutaram-na. Havia um caminho de brita que se afastava para sul, descrevendo uma curva. Uma arcada de tijolo. Uma escadaria dupla que subia até ao pórtico com a sua colunata. Nas traseiras, um anexo de tijolo que outrora talvez tivesse sido uma cozinha. Mais adiante, uma cabana de toros de madeira. Ele começou a subir os degraus, mas o rapaz puxou-lhe a manga.

Podemos esperar um bocadinho?

Está bem. Mas está a escurecer.

Eu sei.

Está bem.

Sentaram-se nos degraus, a contemplar a paisagem.

Não está aqui ninguém, disse o homem.

Está bem.

Ainda tens medo?

Sim.

Não vai haver problema.

Está bem.

Subiram a escada até ao amplo pórtico com chão de tijoleira. A porta, pintada de negro, tinha um dos batentes aberto, preso com um tijolo de cimento. Folhas e ervas secas que o vento soprara por baixo da frincha. O rapaz agarrou-lhe a mão com força. Porque é que a porta está aberta, papá?

Porque sim, sei lá. Provavelmente, está aberta há anos. Talvez os últimos ocupantes a tenham prendido assim para poderem carregar as bagagens para fora.

Se calhar devíamos esperar até amanhã.

Anda daí. Vamos dar uma olhadela rápida. Antes que escureça demasiado. Se nos certificarmos de que não há perigo, talvez possamos fazer uma fogueira.

Mas não vamos ficar dentro da casa, pois não?

Não temos de ficar dentro da casa.

Está bem.

Vamos beber um gole de água.

Está bem.

Tirou a garrafa do bolso lateral da parka e desenroscou a tampa e ficou a ver o rapaz beber. Depois ele próprio bebeu um pouco e tornou a pôr a tampa na garrafa e pegou na mão do rapaz e entraram no vestíbulo sombrio. Tectos altos. Um lustre importado. No patamar da escada havia uma janela alta ao estilo palaciiano e a respectiva forma recortava-se, invertida, já quase imperceptível, na parede mais abaixo, desenhada pela derradeira luz do dia.

Não temos de ir ao andar de cima, pois não?, sussurrou o rapaz.

Não. Talvez amanhã.

Depois de nos certificarmos de que não há perigo.

Sim.

Está bem.

Entraram na sala de visitas. A forma de um tapete por baixo da cinza muito fina. Mobílias envoltas em lençóis. Rectângulos mais claros nas paredes onde em tempos tinham estado quadros. Na sala do lado oposto ao vestíbulo encontrava-se um piano de cauda. As silhuetas de ambos recortavam-se na vidraça delgada e molhada de salpicos da janela. Entraram e ficaram à escuta. Deambularam pelas divisões com o ar céptico de quem anda à procura de casa para comprar. Parados diante das janelas altas, contemplavam a terra que a escuridão ia cobrindo.

Na cozinha havia talheres e tachos e porcelana de marcas inglesas. Uma despensa cuja porta se fechou suavemente atrás deles. Chão de ladrilhos e fiadas de prateleiras e, em cima das prateleiras, várias dúzias de boiões de litro. Ele atravessou a divisão e pegou num boião e soprou a poeira que o cobria. Feijão verde. Fatias de pimento vermelho de pé, no meio das fileiras ordenadas. Tomate. Milho. Batatas novas. Quiabos. O rapaz observava-o. O homem limpou o pó da tampa de vários frascos e carregou nas tampas com o polegar. A escuridão adensava-se rapidamente. Levou dois boiões até à janela e ergueu-os e virou-os de pernas para o ar. Olhou para o rapaz. Isto pode ser um autêntico veneno, disse. Vamos ter de cozinhar tudo muito bem. Achas que é de arriscar?

Não sei.

O que é que queres fazer?

Tu é que tens de decidir.

Temos de decidir os dois.

Achas que essas conservas estão em condições?

Acho que se as cozinharmos muito bem não vai haver problema.

Está bem. Porque é que achas que ninguém as comeu?

Acho que ninguém as encontrou. A casa não se vê da estrada.

Nós vimo-la.

Tu viste-a.

O rapaz examinou os boiões.

O que é que te parece?, perguntou o homem.

Acho que não temos outra alternativa.

Acho que tens razão. Vamos buscar lenha antes que fique ainda mais escuro.

Carregaram braçadas de ramos mortos pela escada das traseiras e atravessaram a cozinha e entraram na sala de jantar e partiram-nos em bocados mais pequenos e encheram a lareira até ficar a abarrotar. Ele acendeu o lume e o fumo subiu em espirais sobre o friso de madeira pintada e chegou ao tecto e tornou a descer, formando volutas. Abanou a chama com uma revista e pouco depois a chaminé começou a escoar o fumo e o lume rugiu dentro da sala, lançando clarões que se reflectiram nas paredes e no tecto e na miríade de facetas do lustre de cristal. As labaredas iluminaram a vidraça da janela que as trevas iam cobrindo e onde a imagem do rapaz se reflectia numa silhueta enca-puçada, qual duende saído do ventre da noite. Parecia aturdido pelo calor. O homem puxou os lençóis que cobriam a comprida mesa estilo império no centro da sala e sacudiu-os e fez um ninho com eles diante da lareira. Sentou ali o rapaz e descalçou-lhe os sapatos e desenrolou os trapos sujos que lhe embrulhavam os pés. Está tudo bem, sussurrou. Está tudo bem.

Encontrou velas numa gaveta da cozinha e acendeu duas e depois verteu cera derretida sobre a bancada e pô-las de pé na cera. Saiu da casa e trouxe mais lenha e empilhou-a ao lado da lareira. O rapaz não se tinha mexido. Havia frigideiras e tachos na cozinha e ele limpou um destes e pousou-o na bancada e depois tentou abrir um dos boiões, mas não foi capaz. Levou um boião de feijão verde e outro de batatas até à porta da frente e, à luz de uma vela colocada dentro de um copo, ajoelhou-se e pousou o primeiro boião de viés, no espaço entre a porta e o rodapé, e fechou a porta de modo a prendê-lo. Depois agachou-se no chão do vestíbulo e encostou a biqueira do sapato ao bordo exterior da porta e empurrou-a contra a tampa e fez rodar o boião com as mãos. A tampa serrilhada rodou na madeira, esfolando a tinta. Ele agarrou melhor o vidro do frasco e apertou a porta com mais força e tentou de novo. A tampa deslizou na madeira, depois prendeu. Fez girar o boião lentamente entre as mãos, depois retirou-o do rodapé e desapertou o aro da tampa de segurança e pousou-o no chão. Depois abriu o segundo boião e levantou-se e levou-os para a cozinha, segurando o copo na outra mão, com a vela a rolar de um lado para o outro e a cuspinhar. Tentou soltar os discos de ambas as tampas, empurrando-os com os polegares, mas estavam demasiado presos, o que lhe pareceu bom sinal. Colocou o bordo de uma das tampas na orla da bancada e aplicou-lhe um golpe seco com o punho fechado e a tampa soltou-se com um estalo e caiu no chão e ele ergueu o boião e cheirou-o. Tinha um aroma delicioso. Despejou as batatas e os feijões verdes num tacho e levou-o para a sala de jantar e pô-lo ao lume.

Comeram devagar em tigelas de porcelana de osso, sentados em lados opostos da mesa, com uma única vela acesa entre ambos. A pistola pousada no tampo, ali à mão, como um utensílio culinário igual aos restantes. A casa soltava estalos e gemidos à medida que ia aquecendo. Como um bicho a despertar de uma longa hibernação. O rapaz cabeceava sobre a tigela e deixou cair a colher, que estralejou no soalho. O homem levantou-se e contornou a mesa e levou-o ao colo até junto da lareira e deitou-o nos lençóis e tapou-o com os cobertores. Certamente regressou à mesa, pois acordou de noite deitado sobre o tampo, com a cabeça nos braços cruzados. Estava frio na sala e lá fora o vento soprava. As janelas matraqueavam suavemente nos caixilhos. A vela ardera até se apagar e o lume estava reduzido a um montinho de brasas. Ele levantou-se e tornou a atear a fogueira e sentou-se ao lado do rapaz e puxou os cobertores para o tapar melhor e afastou-lhe do rosto o cabelo sujo. Acho que talvez eles nos estejam a observar, disse. Procuram uma coisa que nem mesmo a morte conseguirá destruir e se não a virem irão voltar-nos as costas e não mais regressarão.

O rapaz não queria que ele subisse ao primeiro andar. Ele tentou convencê-lo. Talvez haja cobertores lá em cima, disse. Temos de ir ver.

Não quero que tu vás lá acima.

Não está lá ninguém.

Pode lá estar gente.

Não está lá ninguém. Não achas que nesta altura já teriam descido?

Talvez tenham medo.

Eu digo-lhes que não lhes fazemos mal.

Talvez estejam mortos.

Nesse caso, não se importam se nós levarmos meia dúzia de coisas. Escuta, seja o que for que lá está em cima, é melhor sabermos o que é do que não sabermos.

Porquê?

Porquê. Bom, porque não gostamos de surpresas. As surpresas metem medo. E nós não gostamos de ter medo. E pode haver coisas lá em cima que nos façam falta. Temos de ir dar uma olhadela.

Está bem.

Está bem? Assim de repente?

Bom. Tu não vais dar-me ouvidos.

Tenho estado aqui a ouvir-te.

Mas não com muita atenção.

Não está aqui ninguém. Há anos que esta casa está vazia. Não há pegadas na cinza. Nada foi mexido. Não há mobília queimada na lareira. Há comida.

As pegadas não ficam na cinza. Foste tu que disseste. O vento apaga-as.

Eu vou subir.

Ficaram quatro dias na casa, a comer e a dormir. Ele encontrara mais cobertores no andar de cima e apanharam grandes pilhas de lenha nos terrenos em volta e amontoaram-na no canto da sala para secar. Ele encontrou uma pesada serra já muito antiga, feita de madeira e arame, que usou para serrar em toros as árvores mortas. A lâmina tinha os dentes rombos e cheios de ferrugem e ele sentou-se diante do lume com um limatão redondo e tentou afiá-los, mas sem grande sucesso. Havia um ribeiro a uns cem metros da casa e ele carregou incontáveis baldes de água através dos campos cheios de restolho e de lama e aqueceram água e tomaram banho numa banheira, numa casa de banho contígua ao quarto de dormir das traseiras, no andar de baixo, e ele cortou o próprio cabelo e o do filho e fez a barba. Tinham roupas e cobertores e almofadas que haviam encontrado nos quartos do primeiro andar e ataviaram-se com estas novas indumentárias, as calças do rapaz cortadas na medida certa com a faca do homem. Ele fez um ninho diante da lareira e tombou sobre o flanco uma cómoda alta para a usar como cabeceira daquela cama improvisada e assim reflectir o calor. Durante todo este tempo, choveu sem parar. Ele pôs baldes sob os algerozes nos cantos da casa para apanhar água pura do velho telhado metálico feito de painéis imbricados e, de noite, ouvia a chuva a tamborilar nas divisões superiores e a gotejar através da casa.

Vasculharam os anexos em busca de alguma coisa que lhes pudesse servir. Ele encontrou um carrinho de mão e soltou-o do amontoado de objectos que o prendiam e voltou-o ao contrário e fez girar a roda lentamente, examinando o pneu. A borracha estava lustrosa e cheia de gretas, mas pareceu-lhe que talvez o pneu ainda fosse estanque, e pôs-se a procurar em velhos caixotes e amontoados de ferramentas e acabou por encontrar uma bomba de bicicleta e atarraxou a ponta do tubo ao pipo do pneu e começou a dar à bomba. O ar saía pela comissura, mas ele girou a roda e pediu ao rapaz que apertasse o pneu até tapar a fuga e conseguiu enchê-lo. Desapertou o tubo da bomba e pôs o carrinho de mão direito e fê-lo rolar para trás e para diante. Depois empurrou-o para o ar livre, para que a chuva o lavasse. Quando partiram, passados dois dias, o tempo melhorara e começaram a percorrer a estrada lamacenta, a empurrar o carrinho de mão carregado com os novos cobertores e os boiões de conservas embrulhados nas roupas de reserva. Ele encontrara um par de sapatos resistentes, de atacadores e sola grossa, e o rapaz trazia uns ténis azuis com trapos enfiados nas biqueiras e tinham lençóis limpos para fazer máscaras. Quando alcançaram a estrada de asfalto, tiveram de caminhar para trás, até ao ponto onde tinham deixado o carrinho de supermercado, mas este encontrava-se a um escasso quilómetro. O rapaz seguia ao lado do pai, com uma mão pousada no carrinho de mão. Merecemos aplausos, não achas, papá?, perguntou. Acho, sim.

Alimentavam-se bem, mas ainda estavam muito longe da costa. Ele sabia serem vãs as esperanças que depositava nesse porvir. Lá no íntimo, desejava que brilhasse uma nova luz, embora, pelo que lhe era dado ver, o mundo se tornasse mais sombrio a cada novo dia. Certa vez encontrara um fotómetro numa loja de material fotográfico e pareceu-lhe que o poderia usar para fazer leituras durante alguns meses e calcular as médias para detectar possíveis variações, pensando que talvez encontrasse pilhas que servissem, mas isso nunca aconteceu. De noite, quando acordava a tossir, soerguia-se com a mão levantada acima da cabeça, para repelir as trevas, dir-se-ia. Como um homem a acordar numa sepultura. Como aqueles cadáveres da sua infância, exumados e transferidos para um novo cemitério aquando da construção de uma auto-estrada. Muitos tinham morrido numa epidemia de cólera e haviam sido enterrados à pressa, em caixões de madeira, e os caixões estavam podres e a cair aos bocados. Os mortos surgiam à luz do dia deitados sobre o flanco, de pernas flectidas, e alguns estendidos de barriga para baixo. As antiquíssimas moedas de cobre, de um verde baço, tombadas das gavetinhas das órbitas e caídas nas tábuas manchadas e apodrecidas do fundo dos ataúdes.

Entraram numa mercearia, numa pequena povoação, em cuja parede se via uma cabeça empalhada de veado. O rapaz ficou a contemplá-la durante muito tempo. Havia cacos de vidro no chão e o homem mandou-o esperar à porta enquanto vasculhava no lixo, afastando os objectos aos pontapés com os sapatos de sola grossa, mas nada encontrou. Lá fora havia duas bombas de gasolina e sentaram-se na laje de betão e baixaram uma latinha de folha-de-flandres presa a um cordel para o interior do reservatório subterrâneo e içaram-na de novo e verteram a réstia de gasolina nela contida para dentro de um garrafão de plástico e baixaram-na outra vez. Tinham amarrado um pequeno tubo metálico à lata para que esta fosse ao fundo e agacharam-se sobre o tanque durante quase uma hora como grandes macacos a caçar formigas de um formigueiro com pauzinhos até o garrafão ficar cheio. Depois enroscaram a tampa e puseram o garrafão no tabuleiro inferior do carrinho e retomaram a caminhada.

Longos dias. Vastas planuras, com a cinza a soprar sobre a estrada. De noite, o rapaz sentava-se junto ao lume, com os pedaços do mapa desdobrados no regaço. Sabia de cor os nomes das povoações e dos rios e todos os dias media a distância que tinham conseguido percorrer.

As refeições eram agora mais frugais. A comida estava quase a acabar. Parado na estrada, o rapaz segurava nas mãos o mapa aberto. Puseram-se à escuta, mas nada ouviram. Ainda assim, ele avistava uma paisagem desafogada a leste e o ar que respiravam era diferente. E foi então que o avistaram, depois de percorrerem uma curva da estrada, e ficaram ali os dois imóveis com o vento salgado a soprar-lhes no cabelo, pois tinham baixado os capuzes dos casacos para ouvir melhor. Lá ao longe via-se a praia cinzenta com as ondas vagarosas a rebentar, entorpecidas e plúmbeas, e o som chegava-lhes muito abafado. Dir-se-ia o espectáculo desolador de um oceano sem nada de terreno, a rebentar na costa de um mundo desconhecido e nunca descrito. Na água pouco profunda da zona das marés via-se um petroleiro meio adernado. Mais além, o oceano vasto e frio a ondular pesadamente como um tonel de escórias que alguém inclinasse devagarinho e, ao longe, no céu, o borrão cinzento das tempestades de cinza. Ele olhou para o rapaz e viu-lhe a desilusão estampada no rosto. Desculpa não ser azul, disse. Não faz mal, disse o rapaz.

Uma hora mais tarde estavam sentados na praia, a contemplar a muralha de cinza e nevoeiro que toldava o horizonte. Tinham os calcanhares enterrados na areia e olhavam o mar gélido que se espraiava a seus pés. Frio. Estéril. Sem uma única ave. O carrinho ficara nos fetos, por trás das dunas, e embrulharam-se nos cobertores que haviam trazido, abrigando-se do vento junto a um grande tronco de árvore depositado no areal pelas correntes. Ficaram ali sentados durante muito tempo. Ao longo da orla da enseada, mais abaixo, amontoados de os-sículos no meio dos destroços e das algas mortas. Ainda mais abaixo, caixas torácicas de animais branqueadas pelo salitre, talvez gado. Sobre os penedos, uma geada de sal cinzento. O vento soprava e vagens secas saltitavam sobre os flancos das dunas e imobilizavam-se e depois partiam de novo à desfilada.

Achas que é capaz de haver navios lá longe, no mar alto? Não me parece.

Se houvesse, os marinheiros não conseguiam ver grande coisa. Não. Não conseguiam. O que é que há do outro lado do mar? Nada.

Tem de haver alguma coisa.

Talvez haja um pai com o filho pequeno e estejam os dois sentados na praia.

Isso havia de ser giro.

Sim. Havia de ser giro.

E é possível que eles também transportem o fogo?

É possível, sim.

Mas não sabemos.

Pois é. Não sabemos.

Por isso, temos de estar vigilantes.

Temos de estar vigilantes. Sim.

Quanto tempo é que podemos aqui ficar?

Não sei. Já não temos muita comida.

Eu sei.

Gostas disto.

Muito.

Eu também.

Posso dar um mergulho?

Um mergulho?

Sim.

Olha que vais ficar com o rabinho gelado.

Eu sei.

A água está mesmo fria. Muito mais do que tu julgas.

Não faz mal.

Não quero ter de ir lá buscar-te.

Tu achas melhor eu não ir.

Podes ir dar o teu mergulho.

Mas tu achas que não é boa ideia.

Não. Acho que deves ir.

A sério?

Sim. A sério.

Está bem.

Ergueu-se e deixou o cobertor tombar na areia e depois despiu o casaco e descalçou os sapatos e tirou o resto das roupas. Ficou ali, nu, a abraçar o próprio corpo e a dançar de um pé para o outro. Depois desatou a correr pela praia abaixo. Tão branco. As vértebras nodosas. As omoplatas afiadas como lâminas, num vaivém de serra sob a pele descorada. Correu nu, aos saltos e aos gritos, e mergulhou na rebentação vagarosa das ondas.

Quando saiu da água estava roxo de frio e tinha os dentes a bater. O homem foi ao encontro dele, que estremecia, percorrido por calafrios, e embrulhou-o no cobertor e abraçou-o até ele parar de arquejar. Quando olhou, porém, viu que ele estava a chorar. O que é?, perguntou. Nada. Não, diz-me o que é. Nada. Não é nada.

Quando as trevas caíram, fizeram uma fogueira contra o tronco e comeram pratos de quiabo e feijão e o resto das batatas de conserva. A fruta já se acabara há muito. Beberam chá e ficaram sentados junto à fogueira e dormiram na areia, a ouvir o rufar das ondas na baía. O estremecimento prolongado e o baque final. Ele levantou-se durante a noite e afastou-se e ficou parado na praia, envolto nas mantas. O negrume era demasiado denso para se ver. Sabor a sal nos lábios. À espera. À espera. Depois o ribombar vagaroso a ecoar mais abaixo. O sibilar fervilhante das ondas a lamberem a praia e a retirarem-se outra vez. Ele pensou que, algures no mar alto, ainda poderia haver navios tripulados por cadáveres, à deriva, com as velas flácidas, em farrapos.

Ou vida nas profundezas. Enormes lulas a moverem-se sobre o fundo do mar nas trevas frias. A deslizarem na horizontal como comboios, com olhos do tamanho de pratos. E talvez, do outro lado daquelas vagas ocultas pelo nevoeiro, um outro homem caminhasse efectivamente com outra criança sobre o areal cinzento e sem vida. Com um mero oceano a separá-los, talvez eles dormissem numa outra praia, entre as cinzas amargas do mundo, ou talvez se quedassem de pé, vestidos de andrajos, perdidos sob o mesmo Sol indiferente.

Lembrava-se de ter acordado certa vez numa noite como aquela, ao som do tinido dos caranguejos dentro da frigideira onde deixara os ossos das costeletas do jantar da véspera. Brasas escuras de brilho ténue, restos da fogueira feita com ramos trazidos pelas ondas, a pulsar sob o vento vindo do mar. E ele deitado sob aquela miríade de estrelas. O horizonte negro do oceano. Pôs-se de pé e afastou-se e ficou descalço na areia e viu a espuma lívida surgir ao longo de toda a costa e fervilhar e rebentar e tudo ficar escuro outra vez. Quando voltou para junto do lume, ajoelhou-se e alisou-lhe o cabelo enquanto ela dormia e disse: se eu fosse Deus teria criado o mundo exactamente assim, sem tirar nem pôr.

Quando regressou, o rapaz estava acordado e cheio de medo. Tinha estado a chamar, mas não suficientemente alto para ele o poder ouvir. O homem pôs-lhe os braços em volta do corpo. Eu não te conseguia ouvir, disse. Não te conseguia ouvir por causa da rebentação. Pôs mais lenha no fogo e atiçou as chamas e ficaram os dois deitados sob os cobertores, a ver as labaredas contorcerem-se ao vento, e depois adormeceram.

De manhã ele reavivou a fogueira e comeram e contemplaram a beira-mar. A aparência fria e chuvosa daquela costa não diferia muito das paisagens costeiras do mundo setentrional. Nenhuma gaivota, nenhuma ave marinha. Artefactos carbonizados e absurdos dispersos ao longo da orla marinha ou a rolar nas ondas. Apanharam madeira trazida pelo mar e amontoaram-na e cobriram-na com o oleado e depois começaram a caminhar pela praia fora. Somos vagabundos das praias, disse ele.

E o que é isso?

São pessoas que andam pela praia, à procura de coisas de valor que o mar possa ter trazido.

Que género de coisas?

Todas as coisas possíveis e imaginárias. Tudo o que nos possa ser útil.

Achas que vamos encontrar alguma coisa? Não sei. Vamos dar uma olhadela. Dar uma olhadela, disse o rapaz.

Parados no molhe de pedra, olharam ao longe, para sul. Um enorme escarro cinzento e salgado a remoinhar vagarosamente na laguna rochosa. Mais além, a longa curva da praia. Cinzenta como areia vulcânica. O vento que soprava da água cheirava vagamente a iodo, apenas isso, sem o mais pequeno odor a mar. Sobre as rochas, restos escuros de limos. Atravessaram o molhe e prosseguiram. No extremo da praia, um cabo barrava-lhes o caminho e então abandonaram o areal e meteram por um velho carreiro que subia através das dunas e passava por entre tufos mortos de aveia-do-mar até alcançarem um promontório baixo. Aos pés deles, a costa formava uma curva apertada, semelhante a um gancho, envolta nas nuvens escuras que o vento soprava à beira-mar e, mais além, a assomar da água, jazendo meio tombada sobre o flanco, a silhueta do casco de um veleiro. Agacharam-se os dois no meio dos tufos secos de erva e ficaram a olhar. O que é que fazemos?, perguntou o rapaz.

Vamos ficar aqui um bocado a ver.

Tenho frio.

Eu sei. Vamos descer só mais um bocadinho. Para fugir do vento.

Sentou-se atrás do rapaz e abraçou-o. A erva morta agitava-se suavemente. Ao largo, a extensão cinzenta e sem vida. O infindável rastejar das ondas entorpecidas. Quanto tempo é que temos de ficar aqui?, perguntou o rapaz.

Não muito.

Achas que há gente no barco, papá?

Não me parece.

Se houvesse, estavam todos inclinados.

Pois estavam. Vês algum rasto lá em baixo?

Não.

Vamos só esperar mais um bocadinho.

Tenho frio.

Calcorrearam o troço de praia em forma de crescente, pisando a areia mais firme abaixo da fiada de detritos que assinalava a linha de maré. Pararam, com as roupas a adejar suavemente. Bóias de vidro cobertas por uma crosta cinzenta. Ossadas de aves marinhas. No limiar da maré alta, um emaranhado de ervas e espinhas de peixe aos milhões, formando um cordão que se estendia pela praia fora até onde a vista alcançava, como uma curva de nível da morte. Um enorme sepulcro de sal. Absurdo. Absurdo.

Do extremo da ponta de terra até à embarcação distavam uns trinta metros de mar aberto, talvez. Eles ficaram parados, a olhar para o barco. Cerca de vinte metros de comprimento, totalmente desaparelhado, encalhado em três ou quatro metros de água. Outrora fora um veleiro de dois mastros, vá lá saber-se de que categoria, mas os mastros tinham-se partido pela base e a única coisa que sobressaía do convés eram vários cabeços de latão e alguns suportes da balaustrada, ao longo da borda. Isso e o aro de aço da roda do leme a assomar do poço de comando, à popa. Ele virou-se e perscrutou a praia e as dunas, mais além. Depois passou a pistola para a mão do rapaz e sentou-se na areia e começou a desapertar os atacadores dos sapatos.

O que é que vais fazer, papá?

Vou lá dar uma olhadela.

Posso ir contigo?

Não. Quero que fiques aqui.

Eu quero ir contigo.

Tens de ficar de guarda. E além disso, a água é funda.

Não te vou perder de vista?

Não. Eu subo ao convés de vez em quando para te ver. Para ter a certeza de que está tudo bem.

Quero ir contigo.

Ele deteve-se. Não podes, disse. O vento arrastava as nossas roupas para longe. Alguém tem de olhar pelas coisas.

Dobrou tudo num monte. Santo Deus, estava tanto frio. Curvou-se e beijou o rapaz na testa. Não te preocupes, disse. Mantém-te alerta, só isso. Caminhou pela água, nu, e estacou e molhou o corpo. Depois avançou a chapinhar e mergulhou de cabeça.

Nadou ao longo do casco de aço e deu a volta para o lado oposto, a agitar os braços e as pernas para se manter à tona, arquejante por causa do frio. A meio do flanco da embarcação, o rebordo do convés estava mesmo à flor da água. Agarrando-se com as duas mãos, foi avançando até à popa. O aço tinha um tom cinzento e viam-se marcas de salitre, mas ele conseguiu decifrar a inscrição desgastada em letras douradas. Pájaro de Esperanza. Tenerife. Um par de turcos para prender o salva-vidas, vazios. Agarrou a amurada e içou-se para bordo e voltou-se e agachou-se sobre a superfície inclinada do convés de madeira, a tremer. Alguns pedaços de cabo entrançado, cortados cerce nos macacos esticadores. Buracos de bordos retalhados na madeira, onde as ferragens tinham sido arrancadas. Uma força tremenda que varrera o convés, despojando-o de tudo. Ele acenou ao rapaz, mas este não retribuiu.

A cabina era baixa, de tecto arqueado e vigias ao longo do bordo. Ele agachou-se e limpou o salitre cinzento e espreitou para o interior, mas não conseguiu ver nada. Tentou abrir a porta baixa de teca, mas estava trancada. Deu-lhe um empurrão com o ombro ossudo. Olhou em volta, procurando alguma coisa para forçar a fechadura. Estava a tremer descontroladamente e batia os dentes. Pensou em pontapear a porta com a planta do pé, mas depois achou que não era muito boa ideia. Apertou o ombro entre os dedos e voltou a golpear a porta. Sentiu-a ceder. Um tudo-nada. Continuou a dar-lhe encontrões. A ombreira estava a rachar pelo lado de dentro e acabou por se partir e ele abriu a porta com um último empurrão e desceu os degraus e penetrou na cabina.

Água suja e estagnada ao longo da base da antepara, cheia de papéis ensopados e lixo. Um cheiro acre impregnava a atmosfera. Tudo húmido e pegajoso. Pareceu-lhe que a embarcação tinha sido saqueada, mas tudo aquilo fora obra do mar. No centro do compartimento havia uma mesa de mogno com resguardos de dobradiças a toda a volta. As portas dos armários, abertas, pendiam para dentro do salão, e todas as ferragens tinham um tom esverdeado e baço. Ele cruzou a divisão e dirigiu-se aos camarotes da proa, passando pela cozinha. Farinha e café espalhados no chão e latas de comida meio esborrachadas e cobertas de ferrugem. Uma casa de banho com uma retrete e um lavatório de aço inoxidável. A débil luz marinha penetrava através das escotilhas redondas logo abaixo do tecto. Objectos espalhados por todo o lado. Um colete salva-vidas a flutuar na água que cobria o chão.

Ele estava à espera de qualquer descoberta tenebrosa, mas nada encontrou. Nos camarotes, as coberturas dos colchões tinham sido atiradas para o chão e havia lençóis, mantas e roupas amontoados contra a parede. Tudo molhado. Via-se uma porta aberta que dava acesso ao compartimento de carga da proa, mas estava demasiado escuro para se ver lá dentro. Baixou a cabeça e penetrou no compartimento e apalpou em volta com as mãos. Grandes caixotes com tampas de madeira providas de dobradiças. Apetrechos náuticos amontoados no chão. Começou a arrastar tudo para fora e a fazer uma enorme pilha na cama inclinada. Cobertores, roupas para o mau tempo. Encontrou uma camisola húmida e enfiou-a pela cabeça. Encontrou um par de botas de borracha amarelas e um blusão de nylon e vestiu-o e correu o fecho e vestiu as calças amarelas e tesas de oleado e puxou os suspensórios sobre os ombros com os polegares e calçou as botas. Depois tornou a subir ao convés. O rapaz estava sentado onde ele o deixara, a observar o veleiro. Pôs-se de pé, alarmado, e o homem deu-se conta de que, vestido com aquelas roupas novas, tinha uma aparência dúbia. Sou eu, gritou, mas o rapaz ficou ali, mudo e quedo, e ele acenou-lhe e tornou a descer.

No segundo camarote havia gavetas por baixo da cama que ainda se encontravam no seu lugar e ele soltou-as e puxou-as para fora. Manuais e folhetos em espanhol. Sabonetes. Uma maleta de cabedal preto coberta de bolor, contendo papéis. Guardou os sabonetes no bolso do blusão e endireitou-se. Havia livros em espanhol espalhados por cima da cama, inchados e informes. Um único volume enfiado na estante que cobria a antepara do lado da proa.

Encontrou um saco de marinheiro de lona impermeabilizada e deambulou pelo resto do veleiro com as galochas nos pés, apoiando-se nas anteparas por causa da inclinação, com as calças de oleado amarelo a crepitarem cada vez que o frio lhe fazia tremer as pernas. Encheu o saco com roupas que foi encontrando aqui e acolá. Um par de ténis de mulher que lhe pareceu poder servir ao rapaz. Uma navalha com cabo de madeira. Uns óculos de sol. Ainda assim, havia naquela busca algo de perverso. Como quem começa por esquadrinhar os lugares menos prováveis ao procurar qualquer coisa que perdeu. Por fim, entrou na cozinha. Ligou o fogão e tornou a desligá-lo.

Soltou o trinco do alçapão que dava acesso ao compartimento do motor e ergueu-o. Meio inundado e escuro como breu. Não cheirava a gasolina nem a óleo. Tornou a fechá-lo. Os bancos do poço de comando tinham armários na parte inferior onde havia almofadas, lona para velas, apetrechos de pesca. Num armário por trás do pedestal da roda do leme encontrou rolos de cabo de nylon e botijas de gás feitas de aço e uma caixa de ferramentas feita de fibra de vidro. Sentou-se no chão e passou as ferramentas em revista. Tinham ferrugem, mas ainda podiam servir. Alicates, chaves de fendas, chaves inglesas. Fechou a tampa da caixa e pôs-se de pé e procurou o rapaz com os olhos. Estava enroscado na areia, a dormir, com a cabeça na pilha de roupas.

Levou a caixa de ferramentas e uma das botijas de gás para a cozinha e atravessou-a e deu uma última vista de olhos aos camarotes. Depois pôs-se a examinar o conteúdo dos armários do salão, folheando dossiers e papéis guardados em caixas de plástico, tentando achar o diário de bordo. Encontrou um serviço de porcelana que nunca fora usado, guardado num caixote de madeira cheio de aparas. A maior parte das peças estava partida. Era um serviço para oito pessoas, ostentando o nome do veleiro. Um presente, pensou. Ergueu uma chávena de chá e rodou-a na palma da mão e tornou a pô-la no caixote. A última coisa que encontrou foi uma caixa quadrada de carvalho com os cantos ensamblados e uma placa de latão incrustada na tampa. Pensou que talvez fosse um humidificador, mas não tinha a forma certa, e, quando lhe pegou e lhe sentiu o peso, percebeu o que era. Desprendeu os fechos já corroídos, que se soltaram com um estalido, e abriu a caixa. Lá dentro estava um sextante de latão, possivelmente já com cem anos. Pegou-lhe, retirando-o do interior da caixa, que moldava os respectivos contornos, e segurou-o na mão. Impressionado ante a beleza daquele objecto. O latão tinha cor baça e ostentava manchas de verdete que reproduziam a forma de outra mão que em tempos o segurara, mas, à parte isso, estava em perfeito estado. Limpou o verdete que cobria a placa na parte inferior do sextante. Hezzaninth, Londres. Aproximou a ocular do olho e rodou o tambor. Há muito tempo que não via um objecto que o fizesse vibrar assim. Segurou-o na mão e depois tornou a ajustá-lo no forro de baeta azul da caixa e baixou a tampa e apertou os fechos e tornou a guardar a caixa no armário e fechou a porta.

Quando tornou a subir ao convés para verificar se o rapaz estava bem, não o viu. Um momento de pânico antes de o ver a caminhar pela praia, mais adiante, com a pistola a pender-lhe da ponta dos dedos, de cabeça baixa. Ali parado, sentiu o casco do veleiro a erguer-se e a deslizar. Muito ligeiramente. A maré a encher. A marulhar ao longo dos pedregulhos do pontão, lá ao fundo. Virou costas e tornou a descer para a cabina.

Trouxera os dois rolos de cabo do armário e mediu o diâmetro de cada um com a palma da mão e multiplicou esse valor por três e depois contou o número de voltas do rolo. Cabos de quinze metros. Pendurou-os num cabeço, no convés cinzento de teca, e desceu outra vez para a cabina. Reuniu todos os objectos e amontoou-os contra a mesa. No armário contíguo à cozinha havia alguns garrafões de plástico para água, mas estavam todos vazios, com excepção de um. Ele pegou num dos vazios e viu que o plástico estalara e que a água se tinha escoado pelos buracos e deduziu que, algures nas errâncias sem rumo do navio, os garrafões tinham congelado. Várias vezes, provavelmente. Pegou no garrafão meio cheio e pousou-o na mesa e desapertou a tampa e cheirou a água e depois ergueu-o com ambas as mãos e bebeu. Depois bebeu de novo.

As latas no chão da cozinha não pareciam em bom estado de conservação, nem de perto nem de longe, e mesmo dentro do armário havia algumas cobertas de ferrugem e outras inchadas, o que não augurava nada de bom. Todas tinham sido despojadas dos rótulos e alguém identificara o conteúdo em espanhol, com um marcador preto, directamente sobre o metal. Ele não entendia algumas das designações. Examinou as latas uma por uma, sacudindo-as, apertando-as entre os dedos. Empilhou-as na bancada, por cima do pequeno frigorífico. Pensou que devia haver caixotes de mantimentos armazenados algures no porão, mas parecia-lhe pouco provável que ainda estivessem comestíveis. Fosse como fosse, havia um limite para o que eles conseguiam transportar no carrinho. Ocorreu-lhe que estava a encarar este inesperado golpe de sorte de forma perigosamente descontraída, como uma ocorrência banal, mas, ainda assim, repetiu para consigo aquilo que já antes dissera. Que a boa sorte talvez não o fosse, afinal. Era rara a noite em que, deitado nas trevas, não invejava os mortos.

Encontrou uma lata de azeite e algumas latas de leite condensado. Chá numa latinha enferrujada. Um recipiente de plástico contendo uma farinha qualquer que não reconheceu. Uma lata de café meio cheia. Percorreu metodicamente as prateleiras do armário, a separar o que ia levar do que deixaria para trás. Quando já transportara tudo para o salão e formara uma pilha contra a escada de acesso ao convés, regressou à cozinha e abriu a caixa de ferramentas e meteu mãos à obra para desligar um dos queimadores do pequeno fogão, dotado de uma suspensão para se manter sempre na horizontal. Soltou a mangueira metálica flexível e retirou as grelhas de alumínio dos queimadores, semelhantes a aranhas metálicas, e guardou uma no bolso do blusão. Desprendeu os encaixes de latão com uma chave inglesa e soltou os queimadores. Depois separou-os um do outro e ajustou a mangueira ao tubo de ligação e ajustou a outra extremidade da mangueira à botija de gás e levou este conjunto para o salão. Por fim, amontoou algumas latas de sumo e latas de fruta e de legumes no centro de um oleado e amarrou as pontas com uma corda e depois despiu as roupas e atirou-as para cima da pilha de objectos que reunira e subiu para o convés, nu, e deixou-se escorregar até à amurada com a trouxa de oleado e lançou-se por cima da borda e mergulhou na água cinzenta e gelada do oceano.

Saiu da água sob os derradeiros raios de luz do dia e deixou cair a trouxa na areia e esfregou as palmas das mãos abertas nos braços e no peito para se enxugar e foi buscar as roupas. O rapaz seguiu-o. Não parava de lhe perguntar o que é que ele tinha no ombro, azul e lívido no ponto em que dera as pancadas na porta da cabina. Está tudo bem, disse o homem. Não me dói. Arranjei imensas coisas. Já vais ver.

Caminhavam o mais depressa que conseguiam pela praia fora, tentando fugir à escuridão. Então e se o mar arrasta o barco para longe?, perguntou o rapaz.

Não, não arrasta.

Podia acontecer.

Não vai acontecer. Anda. Tens fome?

Tenho.

Esta noite vamos comer bem. Mas temos de nos despachar.

Eu estou a andar depressa, papá.

E é bem capaz de chover.

Como é que sabes?

Sinto o cheiro da chuva.

A que é que cheira?

A cinza molhada. Anda.

Depois estacou. Onde está a pistola?, perguntou.

O rapaz ficou hirto. Parecia apavorado.

Santo Deus, disse o homem. Olhou para trás, para a extensão de areia que já tinham percorrido. O veleiro já não se via. Olhou para o rapaz, que tinha posto as mãos no alto da cabeça e estava à beira das lágrimas. Desculpa, disse este. Peço imensa desculpa.

Pousou o oleado com as latas de comida. Temos de voltar para trás.

Desculpa, papá.

Não faz mal. A pistola ainda vai lá estar.

O rapaz tinha os ombros caídos. Começou a soluçar. O homem ajoelhou-se e abraçou-o. Não faz mal, disse. Eu é que tenho obrigação de me certificar de que trazemos sempre a pistola, e não o fiz. Esqueci-me.

Desculpa, papá.

Anda. Não há problema. Está tudo bem.

A pistola estava sobre a areia, onde ele a deixara. O homem pegou-lhe e sacudiu-a e sentou-se no chão e puxou a cavilha do tambor e estendeu-a ao rapaz. Segura nisto, disse.

Está tudo bem, papá?

É claro que está tudo bem.

Fez rodar o tambor e soltou-o e segurou-o na palma da mão e soprou a areia que o cobria e entregou-o ao rapaz e soprou através do cano e soprou a areia que cobria o corpo do revólver e depois pegou nas peças que o rapaz tinha na mão e tornou a montá-las e engatilhou a pistola e baixou o cão e tornou a engatilhá-la. Alinhou o tambor de modo a que o cartucho genuíno ficasse pronto a disparar e baixou o cão e guardou a pistola naparka e pôs-se de pé. Não há problema nenhum, disse. Vamos.

O escuro vai apanhar-nos?

Não sei.

Vai, não vai?

Anda daí. Nós aceleramos o passo.

As trevas apanharam-nos mesmo. Quando alcançaram o carreiro na ponta de terra já estava demasiado escuro para se ver fosse o que fosse. Ficaram parados sob o vento que soprava do mar alto, com a erva a sibilar em volta deles, o rapaz a segurar-lhe na mão com força. Temos de continuar a avançar, só isso, disse o homem. Anda.

Não vejo nada.

Eu sei. Vamos ter de dar um passo de cada vez.

Está bem.

Não me largues a mão.

Está bem.

Aconteça o que acontecer.

Aconteça o que acontecer.

Caminhavam na escuridão absoluta sem nada verem, como dois cegos. Ele mantinha uma mão estendida na sua frente, embora naquela charneca salgada não houvesse obstáculos com que pudessem colidir. A rebentação soava mais distante, mas ele orientava-se também pelo vento e, depois de andarem aos tropeções durante quase uma hora, emergiram do ervaçal e dos tufos de aveia-do-mar e pisaram de novo a areia seca da parte superior da praia. O vento soprava mais frio. Ele pusera o rapaz à sua ilharga, do lado abrigado da ventania, quando, de súbito, a praia diante dele emergiu das trevas a tremeluzir e tornou a eclipsar-se.

O que foi isto, papá?

Está tudo bem. Foi um relâmpago. Anda.

Pendurou ao ombro o oleado cheio de latas de comida e pegou na mão do rapaz e prosseguiram, a levantar muito os joelhos como cavalos numa parada para não tropeçarem nalgum pedaço de madeira ou noutro destroço qualquer trazido pelo mar. A estranha luz cinzenta irrompeu de novo sobre a praia. Ao longe, no negrume, um vago rumorejar abafado de trovão. Acho que vi as nossas pegadas, disse ele.

Quer dizer que vamos no caminho certo.

Sim. No caminho certo.

Tenho imenso frio, papá.

Eu sei. Reza para que haja mais relâmpagos.

Continuaram. Quando a luz banhou de novo a praia, ele viu que o rapaz estava curvado para diante e sussurrava para consigo. Procurou as pegadas de ambos a percorrerem a praia em sentido contrário, mas nada viu. O vento tornara-se ainda mais forte e, a qualquer momento, esperava sentir os primeiros salpicos de chuva. Se um temporal os surpreendesse ali, em plena noite, sem qualquer abrigo, estariam em maus lençóis. Desviavam os rostos do vento, agarrados aos capuzes das parkas. A areia crepitava-lhes contra as pernas e fugia para longe na escuridão e os trovões estralejavam mesmo à beira-mar. A chuva irrompeu, vinda do lado do oceano, forte e oblíqua, a fustigar-lhes o rosto, e ele puxou o rapaz contra si.

Ficaram parados sob a bátega de chuva. Que distância já teriam percorrido? Ele esperou por um novo clarão de luz, mas a tempestade estava a afastar-se e, quando o relâmpago seguinte cintilou e depois outro ainda, teve a certeza de que o temporal apagara as pegadas. Continuaram a caminhar penosamente pela areia, na orla superior da praia, na esperança de avistarem a forma do tronco junto ao qual tinham acampado. Em breve os relâmpagos tinham praticamente desaparecido. Foi então que, quando o vento mudou de direcção, ele ouviu um tamborilar distante, ténue. Estacou. Escuta, disse.

O que é?

Escuta.

Não ouço nada.

Anda daí.

O que é, papá?

É o oleado. É a chuva a cair no oleado.

Avançaram em passo trôpego através do areal e do lixo que assinalava a linha de maré cheia. Depararam com o oleado quase de imediato e ele ajoelhou-se e deixou cair a trouxa e procurou às apalpadelas as pedras que usara para prender a orla do plástico e empurrou-as para baixo deste. Levantou-o e puxou-o para cima de ambos e depois usou as pedras para segurar os bordos pelo lado de dentro. Despiu o casaco molhado ao rapaz e puxou os cobertores para cima de ambos, com a chuva a fustigá-los através do oleado. Despiu o próprio casaco e abraçou o rapaz com força e em breve estavam os dois a dormir.

Durante a noite a chuva parou e ele acordou e ficou deitado, à escuta. O marulhar e o baque pesado da rebentação depois de o vento ter esmorecido. Quando surgiram os primeiros raios de luz ténue, levantou-se e caminhou pela praia. A tempestade juncara a costa de destroços e ele deambulou ao longo do limite superior da maré cheia, à procura de alguma coisa que lhes pudesse ser útil. Na água pouco profunda, do outro lado do paredão, um cadáver já antigo que ora surgia ora desaparecia no meio dos pedaços de madeira. Teve pena de não o poder ocultar aos olhos do rapaz, mas este tinha razão. O que é que havia para esconder? Quando regressou, encontrou-o acordado, sentado na areia, a observá-lo. Estava embrulhado nos cobertores e estendera os casacos molhados de ambos por cima das ervas mortas, para secarem. O homem acercou-se e sentou-se ao lado dele e ficaram os dois a contemplar o oceano plúmbeo que ondulava para cima e para baixo por trás da rebentação.

Passaram grande parte da manhã a descarregar o barco. Ele mantinha uma fogueira acesa e emergia da água, nu e trémulo, e deixava cair o cabo de reboque e acercava-se do calor do lume enquanto o rapaz puxava o saco de marinheiro através das ondas indolentes e o arrastava até à praia. Esvaziavam o saco e estendiam cobertores e roupas na areia quente para secarem diante do fogo. O veleiro continha tanta coisa que não iam ser capazes de transportar tudo e ele pensou que talvez pudessem ficar alguns dias na praia, a comer até não poderem mais, mas era perigoso. Nessa noite dormiram na areia, com a fogueira a repelir o frio e com os objectos espalhados a toda a volta. Ele acordou a tossir e levantou-se e bebeu um gole de água e arrastou mais alguma lenha para a fogueira, toros inteiros que levantavam grandes torrentes de faúlhas. A madeira salgada ardia em cambiantes alaranjados e azuis no âmago do fogo e ele ficou sentado a contemplá-la durante muito tempo. Mais tarde caminhou ao longo da praia, com a sombra comprida a estender-se diante dele, sobre o areal, a estremecer num vaivém ao sabor das rajadas de vento nas labaredas. A tossir. A tossir. Curvou-se,

agarrado aos joelhos. Sabor a sangue. A espuma vagarosa rastejava nas trevas, fervilhante, e ele pôs-se a pensar na sua vida mas não havia vida em que pensar e ao fim de algum tempo voltou para junto da fogueira. Tirou uma lata de pêssegos do saco de marinheiro e abriu-a e sentou-se diante do lume e comeu os pedaços de pêssego lentamente com a colher enquanto o rapaz dormia. As chamas dardejavam ao vento e faúlhas fugiam para longe sobre a areia. Pousou a lata vazia entre os pés. Cada novo dia é uma mentira, disse. Mas tu estás a morrer. Isso não é mentira.

Transportavam as novas provisões embrulhadas em oleados ou cobertores pela praia fora e guardavam tudo no carrinho. O rapaz tentava carregar demasiado peso e, quando paravam para descansar, ele tirava-lhe uma parte das latas e transferia-as para a sua trouxa. O veleiro deslocara-se ligeiramente durante a tempestade. Ele contemplou-o. O rapaz observava-o. Vais voltar lá?, perguntou.

Acho que sim. Para dar uma última olhadela.

Tenho um certo medo.

Não há perigo nenhum. Mantém-te alerta, só isso.

Já temos tanta coisa que não conseguimos carregar tudo.

Eu sei. Só quero dar uma olhadela.

Está bem.

Percorreu de novo o veleiro, da proa à popa. Pára. Pensa. Sentou-se no chão do salão, com os pés calçados de galochas apoiados contra o pedestal da mesa. Estava já a escurecer. Tentou recordar-se do que sabia sobre barcos. Levantou-se e regressou ao convés. O rapaz estava sentado junto à fogueira. Desceu para o poço de comando e sentou-se no banco, de costas apoiadas na antepara, os pés sobre o convés, quase ao nível dos seus olhos. Vestia apenas a camisola e o fato impermeável amarelo por cima, que não o aquecia muito, e não conseguia parar de tremer. Estava prestes a levantar-se outra vez quando se deu conta de que estivera a olhar para os fechos na antepara, do lado contrário do poço de comando. Os fechos eram quatro, de aço inoxidável. Em tempos, houvera almofadas a estofar os bancos, e ele via os atilhos nas extremidades, nos pontos em que estas tinham sido arrancadas. No centro da antepara, logo acima do banco, via-se uma correia de nylon a assomar, com a extremidade dobrada e pespontada. Olhou de novo para os fechos.

Eram franqueias rotativas, com uma saliência para enfiar o polegar. Levantou-se e pôs-se de joelhos diante do banco e rodou-as totalmente para a esquerda, uma após outra. Tratava-se de fechos de mola e, depois de os ter aberto, agarrou a correia na base da tábua e puxou-a e a tábua escorregou nos encaixes e soltou-se. Lá dentro, sob o convés, havia um compartimento que albergava várias velas enroladas e aquilo que parecia ser um bote de borracha para duas pessoas, enrolado e atado com cordões elásticos. Um par de reinos de plástico pequenos. Uma caixa de foguetes. E, um pouco mais atrás, uma caixa de ferramentas compartimentada, com a abertura da tampa selada com fita adesiva isolante de cor negra. Puxou a caixa para fora e procurou a ponta da fita adesiva e arrancou-a por completo e soltou os fechos cromados e abriu a tampa. Lá dentro estava uma lanterna eléctrica amarela, de plástico, uma lanterna de sinais alimentada por uma pilha, um estojo de primeiros socorros. Uma radiobaliza de emergência de plástico amarelo. E uma caixa de plástico negro, do tamanho de um livro, aproximadamente. Pegou nela e premiu os fechos, que se abriram com um estalido, e abriu-a. Lá dentro encontrava-se guardada uma velha pistola de sinais de 37 milímetros, de bronze. Retirou-a do estojo com ambas as mãos e examinou-a, virando-a para um lado e para o outro. Premiu a patilha do estribo e abriu a pistola, inclinando o cano para diante. Tinha a câmara vazia, mas havia oito foguetes contidos numa embalagem de plástico, curtos e bojudos e com ar novo. Tornou a guardar a pistola na caixa e baixou a tampa e trancou os fechos.

Saiu da água e caminhou em direcção ao areal, trémulo e a tossir, e embrulhou-se num cobertor e sentou-se na areia quente diante da fogueira, com as caixas a seu lado. O rapaz acocorou-se e tentou pôr-lhe os braços em volta do corpo, o que, quanto mais não fosse, lhe arrancou um sorriso. O que é que encontraste, papá?, perguntou.

Encontrei um estojo de primeiros socorros. E encontrei uma pistola de sinais.

O que é isso?

Eu mostro-te. É para lançar sinais de alerta.

Foi isso que foste procurar?

Foi.

Como é que sabias que lá estava?

Bom, tinha esperança de que lá estivesse. Tive sorte, essencialmente.

Abriu a caixa e rodou-a para que o rapaz pudesse ver.

É uma pistola.

Uma pistola de sinais. Dispara um foguete para o alto e faz um grande clarão de luz.

Posso ver?

É claro que podes.

O rapaz retirou a pistola da caixa e segurou-a na mão. Pode-se acertar numa pessoa com isto?, perguntou.

Sim, pode-se.

E a pessoa morre?

Não. Mas é capaz de pegar fogo.

Foi por isso que a trouxeste?

Foi.

Porque não há ninguém a quem enviar sinais, pois não?

Não.

Gostava de ver como é.

Disparar a pistola, queres tu dizer?

Sim.

Podemos dispará-la.

A sério?

Claro.

No escuro?

Sim. No escuro.

Podia ser um género de festa.

Um género de festa. Sim.

Podemos dispará-la esta noite?

E porque não?

Está carregada?

Não. Mas podemos carregá-la.

O rapaz ficou parado, a segurar a pistola. Apontou-a ao oceano. Uau, disse.

Vestiu-se e começaram a percorrer a praia, transportando o resto do saque. Para onde é que achas que as pessoas foram, papá? As que estavam no barco? Sim. Não sei. Achas que morreram?

Não sei.

Mas as probabilidades não jogam a favor delas.

O homem sorriu. As probabilidades não jogam a favor delas?

Não. Ou jogam?

Não. Possivelmente não.

Eu acho que morreram.

Talvez.

Parece-me que foi isso que lhes aconteceu.

Podem estar vivas nalgum lugar, disse o homem. É possível. O rapaz não respondeu. Continuaram a caminhar. Tinham embrulhado os pés em pano de velas e, por fora, nuns borzeguins de plástico azul cortados de um oleado e deixavam estranhas pegadas nas suas deambulações. Ele reflectiu acerca do rapaz e das inquietações deste e, ao fim de um certo tempo, disse: Provavelmente tens razão. Acho que eles devem estar mortos.

Porque se estivessem vivos nós estávamos a roubar-lhes a comida.

E nós não estamos a roubar-lhes a comida.

Eu sei.

Está bem.

Então quantas pessoas é que tu achas que estão vivas?

No mundo inteiro?

No mundo inteiro. Sim.

Não sei. Vamos fazer uma pausa para descansar.

Está bem.

Estás a andar muito depressa, não aguento o teu ritmo.

Está bem.

Sentaram-se no meio das trouxas.

Quanto tempo é que podemos aqui ficar, papá?

Já me perguntaste isso.

Eu sei.

Veremos.

Isso significa que não vai ser muito tempo.

Provavelmente.

O rapaz fez covinhas na areia com os dedos espetados até traçar um círculo de buracos. O homem observava-o. Não sei quantas pessoas existem, disse. Não me parece que sejam assim muitas.

Eu sei. Puxou o cobertor para cobrir melhor os ombros e olhou ao longe, para a praia cinzenta e sem vida.

O que é?, perguntou o homem.

Nada.

Não. Diz-me.

Talvez haja pessoas vivas noutro lugar.

Que outro lugar?

Não sei. Um lugar qualquer.

Outro lugar para além da Terra, é isso?

Sim.

Não me parece. As pessoas não conseguiriam viver noutro planeta.

Nem mesmo se conseguissem lá chegar?

Não.

O rapaz desviou o rosto.

O que é?, perguntou o homem.

Ele abanou a cabeça. Não sei o que é que andamos aqui a fazer, disse.

O homem fez menção de responder, mas calou-se. Ao fim de algum tempo, disse: Há outras pessoas. Há outras pessoas e nós havemos de as encontrar. Vais ver.

Preparou o jantar enquanto o rapaz brincava na areia. Este tinha uma espátula feita de uma lata de comida espalmada e usou-a para construir uma cidadezinha. Sulcou na areia uma quadrícula de ruas. O homem aproximou-se e pôs-se de cócoras e observou a construção. O rapaz ergueu o rosto. O mar vai destruir isto, não vai?, perguntou.

Vai.

Não faz mal.

És capaz de escrever o alfabeto?

Sou, sim.

Deixámos de trabalhar nas tuas lições.

Eu sei.

Consegues escrever uma frase na areia?

Se calhar, podíamos escrever uma carta aos homens bons. E assim, se eles passassem por aqui, ficavam a saber que nós estivemos neste lugar. Podíamos escrever a frase ali mais acima, onde o mar não a apagasse.

E se os maus a vissem?

Pois.

Eu não devia ter dito isto. Se quiseres, podemos escrever-lhes uma carta. O rapaz abanou a cabeça. Não faz mal, disse.

Ele carregou a pistola de sinais e, assim que a noite caiu, caminharam pela praia, afastando-se da fogueira, e ele perguntou ao rapaz se queria disparar.

Dispara tu, papá. Tu sabes como é que se faz.

Está bem.

Engatilhou a pistola e apontou para longe, sobre a baía, e puxou o gatilho. O foguete descreveu um arco em direcção ao negrume com um longo vuush e explodiu acima da água numa luz turva, algures a grande distância, e ali pairou. As gavinhas quentes de magnésio escorreram lentamente pela escuridão abaixo e o lençol alvacento das ondas que invadia o areal com a subida da maré pulsou sob o clarão e desvaneceu-se devagar. Ele baixou os olhos para o rosto erguido do rapaz.

Não dava para verem isto de muito longe, pois não, papá?

Quem?

As pessoas, fosse lá quem fosse.

Não. Não de muito longe.

Se quiséssemos mostrar onde é que estávamos.

Aos homens bons, queres tu dizer?

Sim. Alguém que quiséssemos que ficasse a saber onde é que nós estávamos.

Quem, por exemplo?

Não sei.

Deus, é isso?

Sim. Talvez alguém desse género.

De manhã ele acendeu a fogueira e afastou-se, caminhando pela praia, enquanto o rapaz dormia. Não esteve afastado muito tempo, mas começou a sentir um estranho desconforto, e, quando regressou, o rapaz estava parado na praia, embrulhado nos cobertores, à espera dele. Estugou o passo. Quando o alcançou, ele já se sentara.

O que é?, perguntou. O que é?

Não me sinto bem, papá.

Colocou a mão em concha sobre a testa do rapaz. Estava a arder. Pegou-lhe ao colo e levou-o até junto da fogueira. Está tudo bem, disse. Vais ficar bom.

Acho que vou vomitar.

Não faz mal.

Sentou-se com ele na areia e segurou-lhe a testa enquanto ele se curvava e vomitava. Limpou-lhe a boca com a mão. Desculpa, disse o rapaz. Chiu. Não fizeste nada de mal.

Levou-o ao colo até ao acampamento e tapou-o com cobertores. Tentou convencê-lo a beber água. Pôs mais lenha no fogo e ajoelhou-se, com a mão na testa dele. Vais ficar bom, disse. Estava apavorado.

Não te afastes, pediu o rapaz.

É claro que não me afasto.

Nem sequer por um bocadinho.

Não. Estou mesmo aqui.

Está bem. Está bem, papá.

Passou a noite abraçado a ele, a cair num sono leve e a acordar em pânico, apalpando-lhe o peito em busca do coração. De manhã, o rapaz não melhorara. Tentou obrigá-lo a beber um pouco de sumo, mas ele recusava-se. Encostou-lhe a mão à testa com força, tentando evocar uma frescura que se recusava a surgir. Limpou-lhe a boca branca enquanto ele dormia. Farei o que prometi, sussurrou. Aconteça o que acontecer. Nunca te enviarei sozinho para o ventre das trevas.

Esquadrinhou o estojo de primeiros socorros do veleiro, mas este nada continha de muito útil. Aspirinas. Ligaduras e desinfectante. Alguns antibióticos, mas todos já fora do prazo de validade. Ainda assim, era tudo o que tinha, e ajudou o rapaz a beber e pôs-lhe uma cápsula sobre a língua. O rapaz estava encharcado em suor. Ele já afastara as mantas que o cobriam e em seguida abriu-lhe o fecho de correr do casaco e despiu-lho e depois despiu-lhe o resto das roupas e afastou-o da fogueira. O rapaz ergueu os olhos para ele. Tenho tanto frio, disse.

Eu sei. Mas estás com imensa febre e temos de fazer com que o teu corpo arrefeça.

Podes pôr-me outro cobertor?

Sim. É claro.

Não me deixas sozinho?

Não. Não te deixo sozinho.

Levou as roupas sujas do rapaz até à rebentação e lavou-as, de pé na água salgada gélida, percorrido por calafrios, nu da cintura para baixo, a mergulhá-las na água e a agitá-las para cima e para baixo e a torcê-las para as secar. Estendeu-as junto ao lume sobre paus cravados na areia e pôs mais lenha na fogueira e foi sentar-se de novo junto ao rapaz, a alisar-lhe o cabelo empastado. À tardinha abriu uma lata de sopa e pousou-a nas brasas e comeu e ficou a ver as trevas a descerem sobre a terra. Quando acordou estava deitado na areia, trémulo, e a fogueira encontrava-se quase reduzida a um monte de cinzas e era noite escura. Soergueu-se, desvairado, e estendeu o braço em busca do rapaz. Sim, sussurrou. Sim.

Reavivou a fogueira e foi buscar um pano e molhou-o e pô-lo sobre a testa do rapaz. A alvorada glacial despontava e, quando já havia luz suficiente para ver, ele penetrou na floresta por trás das dunas e regressou a arrastar um grande amontoado de ramos e galhos mortos, à laia de trenó, e começou a parti-los em bocados pequenos e a amontoá-los junto do fogo. Esmagou aspirinas dentro de um copo e dissolveu-as em água e juntou um bocadinho de açúcar e sentou-se e ergueu a cabeça do rapaz e segurou o copo enquanto ele bebia.

Deambulou pela praia, curvado e a tossir. Ficou parado, a olhar para as vagas escuras. Cambaleava de exaustão. Regressou ao acampamento e sentou-se junto ao rapaz e tornou a dobrar a tira de pano e limpou-lhe o rosto e depois estendeu-lhe o pano sobre a testa. Não te podes afastar, disse. Tens de ser rápido. Para poderes estar com ele. Para o poderes abraçar com força. O derradeiro dia da Terra.

O rapaz dormiu o dia inteiro. Ele acordava-o constantemente para beber a água açucarada e a garganta seca do rapaz soltava ruídos cavos, percorrida por arquejos. Tens de beber, disse ele. Está bem, respondeu o rapaz em voz ofegante. Ele enfiou o copo na areia, ao lado do rapaz, fazendo-o rodar, e ajeitou o cobertor dobrado que lhe servia de almofada, apoiando-lhe melhor a cabeça transpirada, e tapou-o. Tens frio?, perguntou. Mas o rapaz já adormecera.

Tentou ficar de vigília a noite inteira, mas não conseguiu. Acordava constantemente e soerguia-se e dava palmadas na própria cara ou punha-se de pé para juntar mais lenha ao fogo. Abraçava o rapaz e debruçava-se para ouvir o modo como ele sugava penosamente o ar. A mão pousada nas costelas magras e salientes como os degraus de uma escada. Afastou-se pela praia até à orla do círculo de luz e quedou-se ali, com os punhos fechados no alto da cabeça, e caiu de joelhos, a chorar de raiva.

Choveu fugazmente durante a noite, um ligeiro tamborilar no oleado. Ele puxou-o para os cobrir a ambos e virou-se e ficou deitado, a abraçar a criança, a contemplar as chamas azuis através do plástico. Mergulhou num sono sem sonhos.

Quando tornou a acordar, quase nem sabia onde estava. O lume apagara-se, a chuva cessara. Afastou o oleado que o cobria e soergueu-se, apoiado nos cotovelos. A luz cinzenta do dia. O rapaz fitava-o. Papá, disse.

Sim. Estou aqui mesmo.

Posso beber um bocadinho de água?

Sim. Sim, é claro que podes. Como é que te sentes?

Sinto-me um bocado esquisito.

Tens fome?

Só tenho imensa sede.

Deixa-me ir buscar água.

Afastou os cobertores e ergueu-se e contornou a fogueira apagada e pegou no copo do rapaz e encheu-o com água do garrafão de plástico e regressou e ajoelhou-se e estendeu-lhe o copo. Vais ficar bom, disse. O rapaz bebeu. Assentiu com a cabeça e olhou para o pai. Depois bebeu o resto da água. Mais, disse.

Fez uma fogueira e pendurou as roupas molhadas do rapaz na ponta de paus e trouxe-lhe uma lata de sumo de maçã. Lembras-te de alguma coisa?, perguntou.

Sobre quê?

Sobre a tua doença.

Lembro-me de dispararmos a pistola de sinais.

Lembras-te de irmos buscar as coisas ao barco?

Sentado na areia, o rapaz beberricava o sumo. Ergueu o rosto. Não sou nenhum atrasado, disse.

Eu sei.

Tive uns sonhos bastante esquisitos.

Sobre quê?

Não te quero contar.

Não faz mal. Quero que escoves os dentes.

Com pasta de dentes a sério.

Sim.

Está bem.

Examinou todas as latas de comida, mas não encontrou nada de suspeito. Deitou fora algumas que tinham bastante ferrugem. Sentaram-se nessa noite junto à fogueira e o rapaz comeu sopa quente e o homem virou as roupas fumegantes na ponta dos paus e ficou a observá-lo até que o rapaz se sentiu embaraçado. Pára de olhar para mim, papá, disse.

Está bem.

Mas não parou.

Dois dias depois já iam até ao cabo e regressavam, percorrendo a praia em longas caminhadas, calcorreando o areal com os botins de plástico. Comiam lautas refeições e ele armou um toldo feito de lona de vela, com cordas e paus, para se abrigarem do vento. Aos poucos, as provisões iam-se reduzindo e já quase não excediam a capacidade do carrinho e parecia-lhe que talvez pudessem partir dentro de dois dias. Foi então que, ao regressarem ao acampamento, à tardinha, ele viu pegadas de botas na areia. Estacou e ficou imóvel, a perscrutar a extensão da praia. Oh, meu Deus, disse. Oh, meu Deus.

O que é, papá?

Ele sacou a pistola do cinto. Anda, disse. Despacha-te.

O oleado desaparecera. Os cobertores. A garrafa de água e a reserva de comida armazenada no acampamento. A lona fora soprada pela ventania para o meio das dunas. Os sapatos de ambos tinham desaparecido. Ele precipitou-se para o esconderijo onde deixara o carrinho, uma depressão coberta de aveia-do-mar entre duas dunas, mas o carrinho desaparecera também. Tinham levado tudo. Mas que besta, disse ele. Mas que besta.

O rapaz estava imóvel, de olhos arregalados. O que é que aconteceu, papá?

Levaram-nos tudo. Anda.

O rapaz ergueu o rosto. Tinha os olhos marejados de lágrimas.

Não te deixes abater, disse o homem. Nem penses nisso.

Via os rastos do carrinho onde os ladrões tinham subido a custo através da areia solta. Pegadas de botas. Quantos seriam? Perdeu o rasto no terreno mais firme para além dos fetos e depois encontrou-o de novo. Quando chegaram à estrada, deteve o rapaz com a mão. A estrada estava exposta ao vento vindo do mar, de modo que não se via cinza sobre o asfalto, à parte algumas manchas aqui e além. Não pises o asfalto, disse ele. E pára de chorar. Temos de sacudir a areia toda dos pés. Anda cá. Senta-te.

Desamarrou o plástico e a lona que lhes envolviam os pés e sacudiu-os e tornou a amarrá-los. Quero que me ajudes, disse. Estamos à procura de areia. Areia na estrada. Mesmo que seja só um bocadinho. Para percebermos para que lado eles foram. Está bem?

Está bem.

Começaram a caminhar no asfalto em direcções opostas. Ele ainda não dera muitos passos quando o rapaz o chamou. Está aqui, papá. Eles foram por este lado. Quando se acercou, o rapaz estava acocorado na estrada. Olha aqui, disse. Era meia colher de chá de areia da praia que tombara de uma qualquer reentrância na armação inferior do carrinho de supermercado. O homem pôs-se de pé e olhou para o fundo da estrada. Bom trabalho, disse. Vamos.

Lançaram-se em passo acelerado, quase a correr, um ritmo que ele julgou que ia ser capaz de aguentar, mas enganou-se. Teve de parar, debruçado e a tossir. Levantou o rosto para o rapaz, a arquejar ruidosamente. Não podemos correr, disse. Se eles nos ouvem, escondem-se na berma da estrada. Anda.

Quantos são eles, papá?

Não sei. Se calhar é só um.

Vamos matá-los?

Não sei.

Continuaram. O dia já declinava e foi só passada uma hora, muito depois de o longo crepúsculo ter começado, que alcançaram o ladrão, curvado sobre o carrinho a abarrotar, a empurrá-lo pela estrada fora diante deles. Quando olhou para trás e os viu tentou correr com o carrinho, mas o esforço era vão e por fim parou e quedou-se atrás do carrinho, a empunhar uma enorme faca. Ao ver a pistola recuou, mas não largou a faca.

Afasta-te do carrinho, ordenou o homem.

Ele olhou-os. Olhou para o rapaz. Era um proscrito de uma comuna e tinham-lhe cortado os dedos da mão direita. Tentou escondê-la atrás das costas. Uma espécie de espátula carnuda. O carrinho estava cheiíssimo, a transbordar. Roubara tudo.

Afasta-te do carrinho e pousa a faca.

O outro olhou em volta. Como se algures, nas redondezas, houvesse alguém capaz de o ajudar. Esquelético, carrancudo, de longas barbas, imundo. O velho casaco impermeável cheio de rasgões colados com fita adesiva. A pistola era de acção dupla, mas o homem engatilhou-a, ainda assim. Dois estalidos sonoros. À parte isso, somente a respiração deles no silêncio da charneca salgada. Pai e filho sentiam-lhe o cheiro, envolto nos seus andrajos fétidos. Se não pousas a faca e não te afastas do carrinho, disse o homem, rebento-te com os miolos. O ladrão olhou para a criança e aquilo que viu encheu-o de melancolia. Pousou a faca em cima dos cobertores e recuou e ficou parado.

Recua. Mais.

Ele tornou a recuar.

Papá?, disse o rapaz.

Está calado.

Mantinha os olhos fixos no ladrão. Diabos te levem, disse.

Papá, não mates o homem, por favor.

Os olhos do ladrão rolavam-lhe alucinadamente nas órbitas. O rapaz chorava.

Vá lá, meu. Eu já fiz o que tu pediste. Ouve o que o rapaz diz.

Despe-te.

O quê?

Tira a roupa. A roupa todinha, raios te partam.

Vá lá. Não faças isso.

Mato-te aqui mesmo.

Não faças isso, meu.

Não te torno a dizer.

Está bem. Está bem. Tem lá calma, sim?

Despiu-se vagarosamente e amontoou os andrajos repugnantes na estrada.

Os sapatos.

Vá lá, meu.

Os sapatos.

O ladrão olhou para o rapaz, mas este desviara os olhos e tapara os ouvidos com as mãos. Está bem, disse. Está bem. Sentou-se na estrada, nu, e começou a desamarrar os pedaços de cabedal apodrecidos que trazia amarrados aos pés. Depois ergueu-se, segurando-os na mão.

Põe-nos no carrinho.

O outro avançou e pousou os sapatos em cima dos cobertores e recuou de novo. Ali parado, nu e em carne viva, sujo, cheio de fome. A cobrir a nudez com a mão. Já estava a tremer.

Põe as roupas dentro do carrinho.

Ele curvou-se e apanhou os andrajos nos braços e amontoou-os em cima dos sapatos. Ficou ali, abraçado ao próprio corpo. Não me faças isto, meu.

Não te importaste nada de nos fazer o mesmo.

Suplico-te.

Papá, disse o rapaz.

Vá lá. Ouve o que o miúdo diz.

Tentaste matar-nos.

Estou a morrer de fome, meu. Tu terias feito o mesmo.

Roubaste tudo.

Vá lá, meu. Assim eu morro.

Vou deixar-te exactamente como tu nos deixaste.

Vá lá. Suplico-te.

Ele puxou o carrinho para si e fê-lo dar meia volta e pousou a pistola em cima do amontoado de objectos e olhou para o rapaz. Vamos, disse. E partiram pela estrada fora, em direcção ao sul, com o rapaz a chorar e a olhar para trás, para a criatura despida e magra que nem uma tábua, ali parada no asfalto, a tremer de frio e a abraçar o próprio corpo. Oh, papá, soluçava ele.

Pára.

Não consigo parar.

O que é que julgas que nos teria acontecido se não o tivéssemos apanhado? Pára com isso, sim?

Estou a tentar.

 

Quando chegaram à curva da estrada, o homem ainda permanecia no mesmo lugar. Não tinha para onde ir. O rapaz olhava constante-mente para trás e, quando deixou de o avistar, parou e sentou-se ali mesmo, no meio da estrada, a chorar. O homem parou também e ficou a olhar para ele. Tirou os sapatos de ambos do meio dos objectos que abarrotavam o carrinho e sentou-se e começou a desamarrar a lona e o plástico embrulhados à volta dos pés do rapaz. Tens de parar de chorar, disse.

Não consigo.

Calçou os sapatos ao rapaz e calçou os próprios sapatos e depois pôs-se de pé e voltou para trás, caminhando pela estrada em sentido inverso, mas não conseguiu avistar o ladrão. Regressou para junto do rapaz e ficou de pé a seu lado. Ele foi-se embora, disse. Anda.

Ele não se foi nada embora, disse o rapaz. Ergueu os olhos. O rosto cheio de riscos de fuligem. Não foi.

O que é que queres fazer?

Quero ajudá-lo, papá. Quero ajudá-lo, só isso.

O homem olhou para trás, para o fundo da estrada.

Ele só tinha fome, papá. Vai morrer.

Vai morrer de qualquer das maneiras.

Ele tem tanto medo, papá.

O homem acocorou-se e olhou para ele. Eu tenho medo, disse. Percebes? Eu também tenho medo.

O rapaz não respondeu. Ficou ali sentado, de cabeça curvada, a chorar.

Não és tu que tens de te preocupar com tudo.

O rapaz disse qualquer coisa que ele não conseguiu entender. O quê?, perguntou.

O filho ergueu a cabeça, de rosto molhado e enegrecido. Ah, isso é que sou, disse. Eu é que tenho de me preocupar com tudo.

Voltaram para trás a empurrar o carrinho instável pela estrada fora e ficaram ali parados ao frio, na penumbra que se ia adensando, e chamaram em voz alta, mas ninguém apareceu.

Ele tem medo de responder, papá.

Foi aqui que nós parámos?

Não sei. Acho que sim.

Continuaram a percorrer a estrada, a chamar aos gritos no crepúsculo vazio, com as vozes a perderem-se naquelas terras costeiras cada vez mais sombrias. Pararam e quedaram-se de mãos em concha junto à boca, a berrar olás tresloucados para as cercanias lúgubres. Por fim, ele amontoou os sapatos e as roupas do homem na estrada e pôs-lhes uma pedra em cima. Temos de ir, disse. Temos de ir.

Montaram um acampamento rudimentar, sem fogueira. Ele escolheu algumas latas para o jantar e aqueceu-as no queimador ligado à botija de gás e comeram e o rapaz nada disse. O homem tentou ver-lhe o rosto à luz azul da chama. Eu não o ia matar, disse. Mas o rapaz não lhe respondeu. Embrulharam-se nos cobertores e deitaram-se na escuridão. Pareceu-lhe que estava a ouvir o som do mar, mas talvez fosse apenas o vento. Percebia, pelo som da respiração, que o rapaz ainda estava acordado, e ao fim de um certo tempo o rapaz disse: Mas a verdade é que o matámos mesmo.

Na manhã seguinte, comeram e puseram-se a caminho. O carrinho estava tão pesado que era difícil empurrá-lo e uma das rodas estava a ceder. A estrada serpenteava ao longo da costa, com tufos mortos de morraça a penderem sobre o asfalto. O mar cor de chumbo agitava-se lá longe. O silêncio. Ele acordou nessa noite com a luz baça da Lua, semelhante a uma lâmpada de arco voltaico por trás de um manto de negrume, tornando as silhuetas das árvores quase visíveis, e virou-se para o outro lado a tossir. Havia no ar um cheiro a chuva. O rapaz estava acordado. Tens de falar comigo, disse ele.

Estou a tentar.

Desculpa ter-te acordado.

Não faz mal.

Levantou-se e dirigiu-se para a estrada. A forma negra do asfalto a correr das trevas às trevas. Depois um rumorejar surdo e distante. Não era um trovão. Ele sentiu-o debaixo dos pés. Um som sem afinidade com nenhum outro e absolutamente indescritível. Algo de imponderável a mover-se lá longe, algures nas trevas. A terra em si a contrair-se com o frio. Não tornou a acontecer. Em que estação do ano estariam? Que idade teria a criança? Caminhou até à estrada e parou. O silêncio. O sal divino a secar à flor da terra. As silhuetas manchadas de lama de cidades inundadas, reduzidas a cinzas até à linha de água.

Numa encruzilhada, um terreno onde se erguiam dólmenes, juncado de ossos outrora usados para proferir oráculos, agora a desfazerem-se em pó. Nenhum ruído a não ser o vento. O que dirás? Que um homem vivo proferiu estas frases? Que afiou uma pena de ganso com o seu canivetezinho para traçar estas palavras com tinta de abrunheiro ou negro-de-fumo? Num qualquer momento identificável e inscrito nas tábuas do tempo? Ela aí vem, para me roubar os olhos. Para me tapar a boca com terra.

Passou de novo as latas em revista, uma por uma, segurando-as na mão e apertando-as entre os dedos como alguém numa mercearia a verificar se as peças de fruta estão bem maduras. Separou duas que lhe pareceram duvidosas e guardou as restantes e carregou o carrinho e tornaram a fazer-se à estrada. Ao fim de três dias chegaram a uma pequena cidade portuária e esconderam o carrinho numa garagem, nas traseiras de uma casa, e amontoaram velhos caixotes por cima e depois ficaram na casa, para ver se aparecia alguém. Não veio ninguém. Ele abriu todos os armários, mas estavam vazios. Precisava de vitamina D para o rapaz, caso contrário ele ia ficar raquítico. Parado diante do lava-louça, contemplou a rampa de acesso à casa. Luz da cor de água suja a congelar nas vidraças encardidas da janela. O rapaz estava sentado à mesa, curvado sobre o tampo, com a cabeça nos braços.

Percorreram a povoação e desceram até às docas. Não viram ninguém. Ele levava o revólver no bolso do casaco e a pistola de sinais na mão. Percorreram o molhe, com as tábuas toscas escuras do pez e presas com espigões às vigas por baixo. Cabeços de amarração de madeira. Um vago cheiro a sal e a creosote vindo da baía. Na margem oposta, uma fiada de armazéns e a silhueta de um petroleiro, vermelho da ferrugem. Uma grua sobre carris, muito alta, recortada sobre o céu soturno. Não há aqui ninguém, disse ele. O rapaz não respondeu.

Empurraram o carrinho através das ruas secundárias e atravessaram o caminho-de-ferro e, no extremo oposto da cidadezinha, alcançaram de novo a estrada principal. No momento em que deixavam para trás o último dos tristes edifícios de madeira, houve qualquer coisa que assobiou junto à cabeça do homem e estralejou no pavimento e foi despedaçar-se contra a parede da casa de toros, do lado oposto da rua.

Ele agarrou o rapaz e caiu-lhe em cima e agarrou o carrinho para o puxar para junto deles. O carrinho inclinou-se e tombou e o oleado e os cobertores derramaram-se na rua. Numa das janelas superiores da casa, avistou um homem a apontar-lhes um arco e a retesar a corda, e empurrou a cabeça do rapaz para baixo e tentou cobri-lo com o próprio corpo. Ouviu a vibração abafada da corda do arco e sentiu uma dor quente e aguda na perna. Ah, sacana!, exclamou. Ah, sacana. Afastou os cobertores com movimentos bruscos e lançou-se para diante e agarrou a pistola de sinais e soergueu-se e engatilhou-a e apoiou o braço no flanco do carrinho. O rapaz não o largava. Quando o homem voltou a surgir no vão da janela para tornar a retesar o arco, ele disparou. O foguete subiu num ápice em direcção à janela, descrevendo um grande arco branco, e depois chegou-lhes aos ouvidos o som do homem a gritar. Ele agarrou o rapaz e empurrou-o contra o chão e cobriu-o com as mantas. Não te mexas, disse. Não te mexas e não olhes. Puxou os outros cobertores para o chão da rua, procurando a caixa da pistola de sinais. Esta acabou por escorregar para fora do carrinho e ele pegou-lhe com gestos rápidos e abriu-a e tirou de lá os cartuchos e tornou a carregar a pistola e fechou-lhe a culatra e guardou o resto dos foguetes no bolso. Não te mexas, fica exactamente como estás, sussurrou. Afagou o rapaz através dos cobertores e pôs-se de pé e atravessou a rua em corrida, a coxear.

Entrou na casa pela porta das traseiras, com a pistola de sinais erguida ao nível da cintura. As paredes da casa estavam despojadas das ripas e só as cavilhas restavam. Entrou e foi até à sala de estar e parou junto à base da escada. Ficou à escuta de movimentos nas divisões do primeiro andar. Olhou pela janela da fachada, para o ponto onde o carrinho estava tombado na rua, e depois começou a subir os degraus.

Uma mulher estava sentada no canto, a abraçar o homem. Despira o casaco para o cobrir. Assim que o viu, começou a insultá-lo. O foguete apagara-se no soalho, deixando uma mancha de cinza branca, e havia no ar um vago cheiro a madeira queimada. Ele atravessou a divisão e olhou pela janela. A mulher seguiu-o com o olhar. Esquelética, de cabelo grisalho e liso.

Há mais alguém aqui em cima?

Ela não respondeu. Ele passou por ela, contornando-a, e percorreu as divisões. Tinha a perna a sangrar bastante. Sentia as calças a colarem-se à pele. Regressou à sala da frente. Onde está o arco?, perguntou.

Eu não o tenho.

Onde é que está?

Não sei.

Deixaram-te aqui, não foi?

Eu é que me deixei ficar aqui.

Ele virou costas e desceu as escadas ao pé-coxinho e abriu a porta da frente e saiu às arrecuas, a perscrutar a casa. Quando chegou ao carrinho, endireitou-o e tornou a amontoar as coisas lá dentro. Não te afastes de mim, sussurrou. Não te afastes de mim.

Pararam num armazém, nos limites da povoação. Ele atravessou o edifício a empurrar o carrinho e entrou numa salinha, nas traseiras, e fechou a porta e pôs o carrinho a bloqueá-la, de viés. Retirou o queimador e a botija de gás de dentro do cesto e acendeu o queimador e pousou-o no chão e depois desapertou a fivela do cinto e despiu as calças manchadas de sangue. O rapaz olhava-o. A flecha fizera-lhe um rasgão logo acima do joelho, com cerca de oito centímetros de comprimento. Ainda sangrava e toda a parte superior da perna exibia um tom lívido e via-se que o corte era profundo. Uma cabeça de flecha ar-tesanal, martelada a partir de uma tira de ferro, uma colher velha, só Deus sabe o quê. Ele olhou para o rapaz. Vê se consegues encontrar o estojo de primeiros socorros, disse.

O rapaz não se mexeu.

Traz-me o estojo de primeiros socorros, porra! Não fiques aí especado.

O rapaz ergueu-se de um salto e acercou-se da porta e começou a vasculhar por baixo do oleado e dos cobertores amontoados no carrinho. Regressou com o estojo na mão e estendeu-o ao homem e este pegou-lhe sem fazer comentários e pousou-o no chão de cimento diante de si e soltou os fechos e abriu a tampa. Estendeu o braço e aumentou a chama do queimador, para ter mais luz. Traz-me a garrafa de água, disse. O rapaz trouxe a garrafa e o homem desapertou a tampa e despejou água sobre a ferida e apertou-lhe os bordos entre os dedos enquanto limpava o sangue. Besuntou a ferida com desinfectante e rasgou um invólucro de plástico com os dentes e tirou do interior uma pequena agulha curva de sutura e um rolo de fio de seda e segurou a ponta do fio entre os dedos, aproximando-a da luz, enquanto a enfiava no buraco da agulha. Tirou um porta-agulhas do estojo e apertou a agulha entre as mandíbulas e prendeu-as e começou a suturar a ferida. Fê-lo rapidamente e sem grandes primores. O rapaz estava agachado no chão. Ele olhou-o e tornou a curvar-se sobre os pontos. Não és obrigado a ver, disse.

Ficou bom?

Sim. Ficou bom.

Dói?

Sim. Dói.

Fez correr o nó pelo fio de seda abaixo e apertou-o bem e cortou o fio com a tesoura do estojo e olhou para o rapaz, que perscrutava os pontos que ele acabara de dar na ferida.

Desculpa ter gritado contigo.

O rapaz ergueu o rosto. Não faz mal, papá.

Vamos esquecer isto.

Está bem.

Na manhã seguinte estava a chover e um vento forte rufava na vidraça, nas traseiras do edifício. Parado diante da janela, ele olhava para o exterior. Um cais flutuante de aço meio destruído e submerso na baía. As casas do leme de barcos de pesca afundados a assomarem da ondulação cinzenta. Nada se movia lá fora. Tudo o que se podia mexer fora há muito arrastado para longe. Sentia a perna a latejar e retirou a ligadura e desinfectou a ferida e examinou-a. A carne inchada e muito pálida sob a rede de pontos negros. Fez um novo penso e tornou a vestir as calças que o sangue seco deixara hirtas.

Passaram ali o dia, sentados no meio dos caixotes de madeira e de cartão. Tens de falar comigo, disse ele. Eu não deixei de falar contigo. Tens a certeza? Estou a falar agora. Queres que eu te conte uma história? Não.

E porque não?

O rapaz olhou-o e desviou o rosto. E porque não?

Essas histórias não são verdade.

Não têm de ser verdade. São histórias.

Sim. Mas nas histórias nós estamos sempre a ajudar pessoas, e nós não ajudamos ninguém.

Porque é que não me contas tu uma história?

Não quero.

Está bem.

Não tenho histórias para contar.

Podias contar-me uma história sobre ti.

Tu já sabes todas as histórias sobre mim. Estavas presente.

Tens histórias dentro de ti que eu não conheço.

Sonhos, é isso?

Sonhos, sim. Ou apenas pensamentos, coisas que te ocorrem.

Pois, mas as histórias, em princípio, deviam ser alegres.

Não têm de ser.

Tu contas sempre histórias alegres.

Tu não pensas em histórias alegres?

As minhas são mais parecidas com a vida real.

Mas as minhas não.

As tuas não. É verdade.

O homem observou-o. A vida real é muito má?

O que é que tu achas?

Bom, acho que ainda aqui estamos. Aconteceram imensas coisas más, mas nós ainda aqui estamos.

Pois.

Tu não achas que isto seja assim tão bom como isso.

É bom, pois.

Tinham arrastado uma mesa de trabalho para junto das janelas e estendido os cobertores por cima e o rapaz deitara-se sobre o tampo, de barriga para baixo, a contemplar a baía. O homem sentara-se, de perna estendida. Na manta, entre ambos, estavam as duas pistolas e a caixa de foguetes. Ao fim de um certo tempo, o homem disse: Acho que é muito boa. É uma história bastante boa. Tem imenso valor.

Acho que sim, papá. Mas eu só queria ficar um bocadinho sossegado.

Então e sonhos? Dantes contavas-me sonhos, de vez em quando.

Não quero falar sobre nada.

Está bem.

Seja como for, não tenho bons sonhos. São sempre sobre coisas más que estão a acontecer. Disseste que não havia problema, porque os sonhos bons não são bom sinal.

Talvez. Não sei.

Quando acordas a tossir, afastas-te pela estrada fora ou para outro lugar qualquer, mas mesmo assim eu ouço a tua tosse.

Desculpa.

Uma vez ouvi-te chorar.

Eu sei.

Se me dizes para eu não chorar, então tu também não devias chorar.

Está bem.

A tua perna vai ficar boa?

Vai.

Não estás a dizer isso só por dizer?

Não.

É que a ferida parece mesmo grave.

Não é assim tão grave como isso.

Aquele homem tentou matar-nos. Não foi?

Foi, sim.

Tu mataste-o?

Não.

Isso é verdade?

É.

Está bem.

Assim ficas mais descansado?

Sim.

Pensei que não quisesses falar.

E não quero.

Partiram passados dois dias, com o homem a coxear atrás do carrinho e o rapaz sempre à sua ilharga, até deixarem para trás os arrabaldes da cidade. A estrada corria ao longo da costa baixa e cinzenta e sobre o asfalto havia grandes montes de areia que os ventos ali tinham deixado. O avanço tornava-se difícil e, em certos lugares, tinham de abrir caminho com uma tábua que transportavam na prateleira inferior do carrinho, usando-a à laia de pá. Caminharam pelo areal e sentaram-se nas dunas, abrigados do vento, e examinaram o mapa. Tinham trazido o queimador e aqueceram água e fizeram chá e ali ficaram, embrulhados nos cobertores para se protegerem da ventania. Mais adiante, à beira-mar, o cavername de um navio antigo, já carcomido pelos elementos. Tábuas cinzentas e desgastadas pela areia, velhos parafusos compridos saídos das mãos de um ferreiro. As peças de ferro corroídas de um tom lilás sombrio, forjadas numa qualquer oficina em Cádiz ou em Bristol e marteladas numa bigorna enegrecida, feitas para resistir trezentos anos à violência do mar. No dia seguinte passaram pelas ruínas de uma estância balnear, com as janelas das casas tapadas com tábuas, e meteram pela estrada para o interior, através de um pinhal, com o longo tapete rectilíneo de alcatrão coberto de agulhas de pinheiro, o vento a soprar por entre as árvores escuras.

Ele sentou-se na estrada ao meio-dia, sob a melhor luz que iria haver, e cortou os pontos com a tesoura e tornou a guardar a tesoura no estojo e pegou no porta-agulhas. Depois começou a extrair os pequenos fios negros da pele, fazendo força na perna com a polpa do polegar. Sentado na estrada, o rapaz observava-o. O homem apertava as pontas das suturas com as mandíbulas do porta-agulhas e ia-as extraindo, uma por uma. Pequenas cabeças de alfinete de sangue. Quando terminou, guardou o porta-agulhas e cobriu a ferida com gaze, que prendeu com adesivo, e depois pôs-se de pé e puxou as calças para cima e deu o estojo ao rapaz para que este o guardasse.

Isso doeu, não foi?, disse o rapaz.

Sim. Doeu.

És muito corajoso?

Mais ou menos, não muito.

Qual foi a coisa mais corajosa que já fizeste?

Ele cuspiu para a estrada, um escarro sanguinolento. Foi levantar-me esta manhã, disse.

A sério?

Não. Não ligues ao que eu digo. Anda daí, vamos embora.

Ao princípio da noite, a silhueta indistinta de outra cidade costeira, um aglomerado de edifícios altos e vagamente inclinados. Pareceu-lhe que as armações de ferro tinham amolecido com o calor e depois tinham tornado a solidificar, deixando os prédios de viés. O vidro derretido das janelas pendia das paredes como creme a cobrir um bolo.

Prosseguiram. Por vezes, ao acordar agora na aridez negra e gélida da noite, ele emergia de mundos pintados de cores suaves onde havia amor entre os homens, pássaros a cantar, sol.

Apoiava a testa nos braços cruzados sobre a pega do carrinho e tossia. Cuspia uma baba sanguinolenta. Era obrigado a parar e a descansar com uma frequência cada vez maior. O rapaz observava-o. Num outro mundo, o filho já o teria começado a remover da sua vida. Mas o rapaz não tinha outra vida senão aquela. O homem sabia que, de noite, ele ficava acordado, à escuta, para se certificar de que a respiração dele não cessara.

Os dias passavam, vagarosos, sem que ninguém os contasse, os assinalasse num calendário. Lá longe, ao longo da interestadual, enormes filas de carros calcinados e cobertos de ferrugem. O metal despido das jantes mergulhado numa pasta dura e cinzenta de borracha derretida, em anéis enegrecidos de arame. Os cadáveres incinerados, mirrados até ao tamanho de crianças e apoiados nas molas nuas dos assentos. Milhares de sonhos sepultados naqueles corações reduzidos a lascas de pedra. Eles continuaram a caminhar. Palmilhavam o mundo sem vida como ratinhos numa roda. De noite, silêncio de morte e trevas sepulcrais. Tanto frio. Quase nem falavam um com o outro. Ele tossia constantemente e o rapaz ficava a vê-lo cuspir sangue. Avançavam curvados. Sujos, andrajosos, sem esperança. Ele parava e apoiava-se no carrinho e o rapaz continuava a caminhar e depois parava e olhava para trás e ele erguia os olhos lacrimejantes e via-o ali na estrada, estático, a olhá-lo de um futuro inimaginável, a cintilar naquela aridez como um tabernáculo.

A estrada atravessava um atoleiro seco onde tubos de gelo se erguiam da lama gelada como formações rochosas numa gruta. Junto ao tapete de asfalto, os restos de uma velha fogueira. Mais além, um longo caminho elevado de betão. Um pântano morto. Árvores mortas a emergir da água cinzenta, com os restos cinzentos de barba-de-velho a penderem-lhes dos ramos. Os montículos sedosos de cinza contra a berma. Ele parou, encostado ao parapeito rugoso de betão. Talvez agora, com o mundo destruído, fosse finalmente possível perceber de que é que era feito. Oceanos, montanhas. O ponderoso contra-espectáculo das coisas a deixarem de existir. A aridez que tudo varre, insaciável e friamente secular. O silêncio.

Tinham começado a deparar com extensões de pinheiros mortos, derrubados por ciclones, grandes rasgões de devastação na paisagem, como golpes de gadanha. Destroços de edifícios espalhados por todo o lado e novelos de fio dos postes da berma emaranhados como fragmentos de malha. A estrada encontrava-se juncada de detritos e não era fácil avançar com o carrinho. Por fim, sentaram-se os dois na berma, a perscrutar o que tinham diante dos olhos. Telhados de casas, troncos de árvores. Um barco. Ao fundo o céu aberto e, ao longe, o mar soturno a ondular molemente.

Vasculharam os destroços espalhados ao longo da estrada e ele acabou por encontrar um saco de lona que podia carregar ao ombro e uma pequena mala de viagem para o rapaz. Guardaram lá dentro os cobertores e o oleado e o resto das latas de comida e meteram-se de novo à estrada com as mochilas e os sacos, abandonando o carrinho. Avançavam a custo através das ruínas. Vagarosamente. Ele teve de parar para descansar. Sentou-se num sofá que se encontrava na berma, com os estofos inchados da água. Dobrado sobre o ventre, a tossir. Arrancou do rosto a máscara manchada de sangue e pôs-se de pé e passou-a por água na valeta e torceu-a e depois ficou ali parado no asfalto. Com o bafo a formar penachos brancos. O Inverno já lhes vinha na peugada. Virou-se e olhou para o rapaz. Ali estático, com a mala na mão, como um órfão à espera do autocarro.

Dois dias depois chegaram a um grande rio que a água salgada invadia na maré alta e depararam com uma ponte em ruínas, cujos destroços juncavam a corrente vagarosa. Sentaram-se no local onde o tabuleiro da ponte terminava abruptamente e ficaram a ver o rio a arrepiar caminho para montante e a remoinhar em volta das vigas de ferro entrelaçadas. Ele olhou sobre a água, para a paisagem mais além.

O que é que vamos fazer, papá?, disse.

Já agora, o que é que vamos fazer?, perguntou o rapaz.

Percorreram a comprida língua de lama trazida pelas marés onde um barquinho jazia meio enterrado e ali ficaram a contemplá-lo.

Estava a cair aos pedaços, literalmente. O vento anunciava chuva. Calcorrearam a praia com as bagagens, à procura de abrigo, mas em vão. Com gestos atabalhoados, ele amontoou uma pilha de galhos cor de osso, dos muitos que juncavam a borda da água, e ateou uma fogueira e sentaram-se nas dunas, com o oleado a cobri-los, e ficaram a ver a chuva fria que se aproximava do norte. Caía cada vez com mais força, fazendo covinhas na areia. O lume soltava nuvens de vapor e o fumo dançava em volutas baixas e o rapaz enroscou-se debaixo do oleado que tamborilava e pouco depois adormeceu. O homem puxou o plástico para lhe cobrir a cabeça à laia de capuz e contemplou o oceano cinzento lá longe, encoberto pelo manto da chuva, e contemplou as ondas a rebentarem ao longo da costa e a recuarem de novo sobre a areia sombria e mosqueada.

No dia seguinte, rumaram ao interior. Um vasto terreno, baixo e pantanoso, onde fetos e hortênsias e orquídeas silvestres perduravam em efígies de cinza que o vento ainda não alcançara. A caminhada era uma tortura. Dois dias depois, quando alcançaram uma estrada, ele pousou o saco de viagem e sentou-se no chão, dobrado em dois, com os braços cruzados sobre o peito, e tossiu até não conseguir tossir mais. Mais dois dias e uns quinze quilómetros percorridos, talvez. Atravessaram o rio e, um pouco mais adiante, chegaram a uma encruzilhada. Do lado do mar, uma tempestade varrera o istmo e derrubara as árvores mortas e negras de leste para oeste, como ervas no leito de um regato. Acamparam naquele lugar e, quando se deitou, ele percebeu que não seria capaz de avançar mais e que ia morrer ali. O rapaz observava-o, sentado, com os olhos a encherem-se de lágrimas. Ah, papá, disse.

Ele viu-o aproximar-se através da erva e pôr-se de joelhos, segurando o copo de água que fora buscar. Um halo de luz rodeava-o por completo. Ele pegou no copo e bebeu e tornou a recostar-se. A única comida que lhes restava era uma lata de pêssegos, mas ele obrigou o rapaz a comer tudo e recusou-se a aceitar uma só dentada. Não sou capaz, disse. Não faz mal.

Eu guardo a tua metade.

Está bem. Guarda metade até amanhã.

O rapaz pegou no copo e afastou-se e, quando se moveu, a luz moveu-se com ele. Quisera fazer uma tenda com o oleado, ou pelo menos tentar, mas o homem recusou. Disse que não queria nada a cobri-lo. Deitado no chão, contemplava o rapaz junto à fogueira. Queria ser capaz de ver. Olha à tua volta, disse. Não há profeta algum na longa crónica da terra que hoje não seja homenageado aqui. Sejam quais forem as imagens que evocaste, tinhas razão.

O rapaz teve a impressão de que havia no vento um cheiro a cinza molhada. Desapareceu na curva da estrada e regressou a arrastar uma tábua de contraplacado do lixo que juncava a berma é cravou paus no chão com uma pedra e construiu um abrigo periclitante, mas no fim de contas não choveu. Deixou a pistola de sinais e levou o revólver consigo e passou as redondezas a pente fino em busca de comida, mas voltou de mãos vazias. O homem pegou-lhe na mão, arquejante. Tens de continuar, disse. Eu não sou capaz de ir contigo. Mas tu tens de seguir em frente. Não sabes o que poderá estar no fim da estrada. Nós sempre tivemos sorte. Tu também vais ter. Verás. Mas vai-te embora. Eu fico bem aqui.

Não consigo.

Eu fico bem. Já andava a chocar esta doença há muito tempo. Agora, pronto, é o fim. Continua para sul. Faz tudo da mesma maneira que nós fazíamos.

Tu vais ficar bom, papá. Tens de ficar bom.

Não, não vou. Guarda sempre a pistola contigo, nunca a largues. Tens de encontrar os homens bons, mas não podes correr riscos. Não podes correr riscos. Estás a ouvir?

Quero ficar contigo.

Não podes.

Por favor.

Não podes. Tens de transportar o fogo.

Não sei como é que se faz.

Sabes, sim.

Existe mesmo? O fogo?

Existe, sim.

Onde é que está? Eu não sei onde está.

Sabes, sim. Está dentro de ti. Sempre lá esteve. Eu consigo vê-lo.

Leva-me contigo, sim? Por favor.

Não consigo.

Por favor, papá.

Não consigo. Não sou capaz de segurar nos braços o meu filho morto. Pensei que era capaz, mas não sou.

Disseste que nunca me ias deixar.

Eu sei. Desculpa. Amo-te de todo o coração. Sempre te amei. És o miúdo mais fabuloso do mundo. Sempre foste. Quando eu já cá não estiver, vais poder continuar a falar comigo. Podes falar comigo e eu respondo-te. Vais ver.

Vou poder ouvir a tua voz?

Sim, vais. Tens de fazer como se estivesses a imaginar uma conversa entre nós os dois. E vais ouvir a minha voz. Tens de praticar. Só não podes desistir. Está bem?

Está bem.

Está bem.

Tenho tanto medo, papá.

Eu sei. Mas não vai acontecer-te mal nenhum. A sorte vai bafejar-te. Tenho a certeza de que sim. Não consigo continuar a falar. Vou começar a tossir outra vez.

Está tudo bem, papá. Não tens de falar. Está tudo bem.

Avançou pela estrada até onde a coragem lho permitiu e depois voltou para trás. O pai estava a dormir. Sentou-se ao lado dele, por baixo do contraplacado, e ficou a olhá-lo. Fechou os olhos e falou com ele e manteve as pálpebras fechadas e ficou à escuta. Depois tentou outra vez.

Acordou nas trevas, a tossir suavemente. Ficou deitado, à escuta. Sentado junto ao lume, embrulhado num cobertor, o rapaz observava-o. Gotejar de água. Uma luz que ia esmorecendo. Velhos sonhos a invadir o mundo palpável. O gotejar era na gruta. A luz era uma vela que o rapaz transportava num castiçal de cobre martelado. A cera salpicava as pedras. Rastos de criaturas desconhecidas no loess de aparência necrosada. Naquele corredor frio tinham alcançado o ponto de não retorno, que desde o início era medido apenas e só pela luz que transportavam com eles.

Lembras-te daquele menino, papá? Sim. Lembro-me dele. Achas que ele está bem, o tal menino? Sim, sim. Acho que ele está bem.

Achas que ele se perdeu?

Não. Não me parece que ele se tenha perdido.

Tenho medo de que ele se tenha perdido.

Acho que está tudo bem com ele.

Mas quem é que o vai encontrar, se ele estiver perdido? Quem é que vai encontrar o menino?

A bondade vai encontrar o menino. Sempre assim foi. E há-de voltar a ser.

Nessa noite dormiu muito perto do pai e abraçou-o, mas de manhã, quando acordou, o pai estava frio e hirto. Ficou ali sentado muito tempo, a chorar, e depois pôs-se de pé e caminhou através do bosque, até à estrada. Quando regressou, ajoelhou-se ao lado do pai e pegou-lhe na mão fria e repetiu o nome dele em voz alta vezes sem conta.

Ficou ali três dias e depois caminhou até à estrada e olhou para o fundo do caminho e a seguir para o lado de onde eles tinham vindo. Aproximava-se uma pessoa. Ele fez menção de regressar para o seio da floresta, mas deixou-se ficar. Quedou-se no asfalto, à espera, de pistola na mão. Amontoara todos os cobertores em cima do corpo do pai e tinha frio e fome. O homem que surgiu ao longe e se acercou até parar diante dele, a fitá-lo, vestia uma parka de esqui cinzenta e amarela. Ao ombro trazia uma caçadeira de cano virado para baixo, suspensa de uma correia de cabedal entrançado, e usava a tiracolo uma cartucheira de nylon recheada de projécteis. Um veterano de antigas escaramuças, de barbas, com uma cicatriz a marcar-lhe a face e o malar afundado e o único olho são a revirar-se na órbita. Quando falava a boca movia-se de modo imperfeito e quando sorria também.

Onde é que está o homem com quem tu estavas?

Morreu.

Era o teu pai?

Sim. Era o meu papá.

Lamento.

Não sei o que hei-de fazer.

Acho que devias vir comigo.

Tu és um dos homens bons?

O homem puxou o capuz para a nuca, descobrindo o rosto. Tinha o cabelo comprido e enriçado. Olhou para o céu. Como se houvesse ali

alguma coisa digna de ser vista. Olhou para o rapaz. Sou, disse. Sou um dos homens bons. Porque é que não baixas a pistola?

Não posso deixar ninguém pegar na pistola. Aconteça o que acontecer.

Mas eu não quero a tua pistola. Só não quero que ma apontes à cara.

Está bem.

Onde é que estão as tuas coisas?

Nós não temos lá muitas coisas.

Tens um saco-cama?

Não.

O que é que tens? Alguns cobertores?

Usei-os para embrulhar o meu papá.

Mostra-me.

O rapaz não se mexeu. O homem fitou-o. Agachou-se, apoiado num joelho, e, com um gesto largo, retirou a caçadeira de baixo do braço e apoiou a coronha na estrada e fechou os dedos em volta do guarda-mão. Os cartuchos nos alvéolos da cartucheira tinham sido carregados manualmente e as extremidades seladas com cera de velas. Ele cheirava a fumo de lenha. Escuta, disse. Neste momento, tens duas alternativas. Ainda houve uma certa discussão entre nós sobre se devíamos mesmo vir ao teu encontro. Podes ficar aqui com o teu papá e morrer ou podes vir comigo. Se ficares aqui, é melhor não te aproximares da estrada. Não sei como é que vocês conseguiram chegar até aqui, mas acho que tu devias vir comigo. Vai correr tudo bem.

Como é que eu sei que tu és um dos homens bons?

Não sabes. Vais ter de arriscar.

Vocês transportam o fogo?

Se nós transportamos o quê?

O fogo.

És meio amalucado, não és?

Não.

Só um bocadinho.

Sim.

Não faz mal.

Então, em que ficamos?

O quê, se transportamos ou não o fogo?

Isso.

Sim. Nós transportamos o fogo.

Têm miúdos?

Temos, sim.

Têm um menino?

Temos um menino e temos uma menina.

Que idade tem ele?

Mais ou menos a tua idade. Um bocadinho mais velho, talvez.

E vocês não os comeram.

Não.

Vocês não comem pessoas.

Não. Nós não comemos pessoas.

E eu posso ir com vocês?

Sim. Podes.

Então está bem.

Está bem.

Penetraram no bosque e o homem acocorou-se e contemplou o corpo cinzento e tão magro sob a tábua inclinada de contraplacado. Só tens estes cobertores?

Sim.

Aquela é a tua mala?

É.

Pôs-se de pé. Olhou para o rapaz. É melhor voltares para a estrada e esperares lá por mim, não achas? Eu levo os cobertores e o resto.

Então e o meu papá?

O que é que tem.

Não o podemos deixar aqui.

Podemos, sim.

Não quero que as pessoas o vejam.

Não há ninguém para o ver.

Posso cobri-lo com folhas?

O vento arrasta as folhas todas.

Podemos tapá-lo com um cobertor?

Eu trato disso. Vai-te lá embora.

Está bem.

Esperou na estrada e quando o homem saiu da floresta trazia a mala consigo e tinha os cobertores ao ombro. Examinou-os e estendeu um ao rapaz. Toma, disse. Embrulha isto à volta do corpo. Tens frio.

O rapaz tentou entregar-lhe a pistola, mas ele não a aceitou. Isso é para ficar contigo, disse.

Está bem.

Sabes disparar isso?

Sei.

Está bem.

E o meu papá?

Não há mais nada a fazer.

Acho que me quero despedir dele.

Preferes que eu vá contigo?

Não.

Então vai lá. Eu espero por ti.

Ele tornou a penetrar no bosque e ajoelhou-se ao lado do pai. Estava embrulhado num cobertor, tal como o homem prometera, e o rapaz não o destapou mas sentou-se ao lado dele e começou a chorar e não conseguia parar. Chorou durante muito tempo. Hei-de falar contigo todos os dias, sussurrou. E nunca me esquecerei. Aconteça o que acontecer. Depois pôs-se de pé e caminhou de novo em direcção à estrada.

Quando o viu, a mulher abraçou-o e apertou-o contra si. Ah, disse, fico tão feliz por te ver. Por vezes, falava-lhe acerca de Deus. Ele tentava falar com Deus, mas o que mais lhe dava prazer era falar com o pai e fazia-o muitas vezes e nunca se esquecia. A mulher dizia que assim também estava bem. Dizia que ele era portador do sopro de Deus, ainda que este sopro tivesse passado de homem para homem durante toda a eternidade.

 

Outrora existiam trutas nos regatos das montanhas. Víamo-las paradas na corrente cor de âmbar, com a fímbria branca das barbatanas a ondular mansamente na água veloz. Cheiravam a musgo quando as segurávamos na mão. Luzidias e musculosas e a contorcerem-se. No dorso tinham desenhos vermiformes que eram mapas do mundo no seu devir. Mapas e labirintos. De uma coisa que não podia ser recriada. Cuja harmonia não podia ser reposta. Nos fundos vales onde as trutas viviam, todas as coisas eram mais antigas do que o homem e nelas ressoava um mistério.

 

                                                                                Cormac McCarthy 

 

 

                      

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