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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTRADA DO AMOR / Adriana Assunção
A ESTRADA DO AMOR / Adriana Assunção

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  A ESTRADA DO AMOR 

 

Aos quarenta e dois anos, Madalena sentia a sua vida aproximar-se de uma encruzilhada. O divórcio recente deixara-a desamparada e a monotonia do emprego na recepção de uma firma de imobiliário imprimia um sabor amargo ao correr dos dias. O seu casamento durara catorze anos e as boas recordações ficavam-se pelos primeiros cinco ou seis. Depois, lembrava-se apenas das discussões intermináveis, das noites de solidão e da previsível descoberta do romance de António, seu ex-marido, com uma colega de trabalho. Foi o pretexto para colocar um ponto final na sua antiga vida e decidir começar tudo de novo. Quatro meses depois do divórcio, turbulento e muito desgastante, os planos de Madalena começavam a desmoronar-se. A solidão, agora total, reflectia-se em todas as divisões da casa e provocava-lhe um mal-estar cada vez maior, marcado pela inércia e pela incapacidade de tomar iniciativas. Sabia que tinha de dar um novo rumo ao seu quotidiano mas ainda não tinha encontrado a forma certa de o fazer. As aulas de ioga tinham-na ajudado a preencher os primeiros tempos, mas agora sentia que precisava de mais qualquer coisa para dar sentido à sua vida. Durante o tempo em que foi casada com António, habituou-se aos longos passeios de fim de semana. Chegaram mesmo a fazer algumas viagens memoráveis, como aquela em que partiram rumo ao Alentejo e descansaram numa das mais bonitas pousadas que alguma vez tinha visto. A lareira a um canto da sala ampla e os pequenos-almoços com chá e bolinhos caseiros acabados de cozer já não passavam de boas recordações. Agora, as viagens eram apenas de casa para o trabalho e do trabalho para casa, num metropolitano escuro e cheio de gente. Por vezes deixava-se vaguear pelas ruas, olhando as montras ou mesmo tomando café numa dessas pastelarias de bairro. Mas não lhe sabiam bem os passeios solitários; nunca fora uma mulher que gostasse de silêncios pesados e a companhia de alguém era-lhe cada vez mais essencial. Madalena sabia que não podia continuar a adiar a sua vida daquela forma, esperando por uma reconciliação que obviamente não iria acontecer. António trocara-a por outra mulher e não valia a pena continuar a massacrar-se por causa disso. Era preciso continuar a viver, mesmo que fosse preciso aprender a fazê-lo de outra maneira. A decisão estava tomada!

No dia seguinte, quando regressou do escritório onde trabalhava, Madalena dedicou-se de corpo e alma à primeira de uma série de mudanças importantes. Olhou com atenção para a sala onde tinha passado tantas noites ao lado de António, entre a televisão e uma conversa mais calorosa, e começou a desenhar as mudanças. Cortinados, estofos e tapetes, tudo seria trocado e mudado de sítio para que não restassem memórias a pesar-lhe no dia-a-dia. O mesmo aconteceria no quarto, onde a cama de casal guardava ainda, sem se saber muito bem como, um pouco do ambiente de amor e paixão que há muito tinha desaparecido. Antes de deitar mãos à obra, resolveu ligar para a sua amiga de sempre, Mariana, e pedir-lhe ajuda. Para além de ser a sua melhor amiga, sempre pronta para a ouvir e para dar conselhos nos bons e nos maus momentos, Mariana tinha um enorme gosto e uma mão certeira para a decoração. Chegara mesmo a trabalhar num ateliê, mas tinha preferido dedicar-se à empresa que abrira com mais dois sócios, um deles o seu namorado de há muitos anos, Francisco. Por opção própria, nunca tinham casado e mantinham cada um o seu apartamento. Mas eram felizes assim, ao que parecia. Madalena aceitava, mas não conseguia imaginar uma vida assim para si. Precisava de partilhar o mesmo espaço e o dia-a-dia com alguém que estivesse sempre presente...

- Mariana? É a Madalena...

- Olá, querida. Como estás?

- Bem, vou andando... Olha, queria pedir-te ajuda para fazer algumas mudanças cá em casa. Quero uma decoração nova, com outras cores...

- Parece-me uma excelente ideia! Acho que estás mesmo a precisar disso, para mudar de ares e de pensamentos.

- Pois é. Por isso te queria pedir alguns conselhos. Quando é que podemos combinar?

- Por mim, pode ser ainda hoje. Passo por aí dentro de uma hora.

- Obrigada, amiga. Até já. -Até já.

Quando Mariana tocou à campainha já Madalena tinha retirado cortinados e tapetes, pronta para uma remodelação que significasse também algumas mudanças na sua vida. Durante toda a tarde, as duas amigas discutiram tecidos e cores, almofadas e estados de espírito... Folhearam todos os catálogos que Mariana tinha trazido do escritório e pesaram os prós e os contras de todas as decorações possíveis e imaginárias. Só quando caiu a noite se aperceberam do passar do tempo e decidiram sair para jantar, agora que Madalena tinha finalmente tomado algumas decisões, ainda que dissessem apenas respeito à decoração da sua casa. Como costumava dizer Mariana, a casa é o reflexo da nossa alma, e por isso Madalena estava tão satisfeita com as mudanças que se anunciavam. Mariana ligou para Francisco, avisando-o de que não

estaria em casa nessa noite e as duas amigas saíram para o fresco da noite à procura de um restaurante agradável para continuarem a conversa. A sugestão partiu de Mariana, já que Madalena há muito que não saía para jantar fora, e acabaram por se dirigir ao novo restaurante tailandês que tinha aberto há poucas semanas na zona mais antiga da cidade. Nenhuma das duas tinha alguma vez provado comida tailandesa e o exotismo fascinava-as profundamente, pelo que se prepararam para a experiência com alguma ansiedade. Foram no carro de Mariana, estacionaram junto ao rio e avançaram rua fora até à porta vermelha e dourada do restaurante.

A recebê-las estava um empregado impecavelmente vestido, a farda branca com alguns toques a lembrar os tecidos tradicionais do seu país de origem e a simpatia de quem não se cansa de bem receber. Madalena ficou deslumbrada com o espaço e com as cores quentes que se espalhavam pelas paredes e pelas mesas. Alguns tecidos eram mesmo parecidos com os que tinha escolhidos naquela tarde, com Mariana, para a nova decoração da sua sala, e isso pareceu-lhe uma coincidência quase improvável. Cada mesa, coberta com uma toalha branca de linho sob um pequeno pano estampado, tinha um castiçal onde as velas flutuavam como barcos à deriva. As fotografias e pinturas que se espalhavam pelas paredes mostravam paisagens belíssimas, horizontes a perder de vista entre o verde dos canaviais e as águas em movimento dos rios e canais. Sempre sonhara com uma viagem assim, mas o seu ex-marido nunca fora um apreciador de destinos exóticos. E agora que estava sozinha também não lhe parecia uma boa oportunidade para viajar para tão longe... Estava Madalena envolta nestes pensamentos quando Mariana lhe interrompeu o silêncio:

- Estás bem, Madalena?

- Sim. Estava apenas a pensar...

- Podemos ficar naquela mesa junto à janela ou preferes outra?

- A da janela está bem.

Sentaram-se entre a janela com vista para o rio e uma estranha estatueta de madeira escura, representando um homem e uma mulher de mãos dadas e com um olhar quase beatífico, perdido no horizonte. O empregado, que entretanto se apercebera do fascínio de Madalena por tudo quanto via à sua volta, tomou a iniciativa de lhe explicar:

- É a estátua de dois deuses do nosso panteão. Representa o amor entre o homem e a mulher e é uma espécie de imagem protectora de todos os casais.

Madalena agradeceu a explicação com um sorriso e permaneceu silenciosa, olhando a estátua e pensando na tristeza de se encontrar só. Foi Mariana quem escolheu os pratos, já que Madalena mal conseguia orientar-se entre tantos ingredientes.

Quando as travessas fumegantes começaram a chegar à mesa, Madalena ficou ainda mais impressionada. Os cheiros que se libertavam daquela comida transportavam-na para uma terra que não conhecia e que, sem conseguir perceber por que motivo, lhe parecia cada vez mais atraente. Enquanto provavam os diferentes pratos, as duas amigas iam trocando mais ideias e opiniões sobre a nova decoração da casa de Madalena. Esta, por seu lado, cada vez insistia mais nos ambientes quentes e com tom oriental, mesmo sem perceber o porquê do fascínio repentino e crescente que lhe inundava a mente. Entusiasmadas com a conversa, acabaram por ficar no restaurante quase até a hora do fecho, petiscando iguarias exóticas e conversando

sobre as suas vidas. Mariana mostrava-se muito feliz com o seu romance com Francisco e Madalena acabou por confessar a enorme tristeza que vinha sentindo nos últimos tempos.

- Devias mudar alguma coisa mais na tua vida, para além da decoração da casa - disse Mariana - Às vezes é preciso desistirmos de algumas coisas, dedicarmo-nos a novos projectos, para podermos esquecer o passado e prosseguir com a nossa vida.

- Eu também penso assim, Mariana, mas não sei por onde começar... A verdade é que me sinto cada vez mais sozinha naquela casa sempre vazia. E mesmo que já não tenha vontade de estar com o António, depois de tudo o que ele me fez, também não sei com quem tenho vontade de estar.

- Precisas de voltar a apaixonar-te...conhecer alguém que te encante e que te mostre que o António era um chato e que a vida pode ser muito mais divertida do que tu pensas...

- Ora, essas coisas não acontecem quando a gente decide. Ainda para mais com esta idade... já não tenho dezoito anos, Mariana, e a idade também conta quando falamos de sentimentos.

- Que disparate! Podemos sempre apaixonar-nos, em qualquer idade. Basta que nos cruzemos com a pessoa certa. E às vezes a pessoa certa está mesmo debaixo do nosso nariz, só que nós não estamos preparadas para a ver com olhos de ver.

- Pois sim... Então, no meu caso, a pessoa certa deve andar escondida e eu devo estar a ficar míope!

Riram as duas e a conversa continuou no mesmo rumo até que acabaram por se levantar, dando por encerrado um jantar do qual Madalena não se esqueceria tão cedo...

Já no carro, Madalena lamentou o facto de ser tão tarde e de ainda estar a pé, sendo o dia seguinte um dia de trabalho:

- Se calhar devíamos ter saído mais cedo. Já passa das onze e meia e amanhã é dia de trabalho...

- Não faz mal. Com o carro, estás em casa num instante e, daqui a nada, já estás a dormir como um anjinho.

- Sim, mas tens de te desviar do teu caminho para me deixar em casa.

- E que importância tem isso? O carro serve para nos fazer chegar mais depressa aos sítios, ou não? Não me custa absolutamente nada deixar-te em casa e depois seguir para a minha. Além disso, eu nem sequer tenho de acordar tão cedo como tu...

Madalena acenou afirmativamente e voltou a recolher-se aos seus pensamentos, silenciosa como ultimamente era seu hábito. Lembrava-se de António, sempre decidindo rumos e destinos ao volante do automóvel enquanto ela se limitava a ser transportada. Nunca tirou a carta de condução porque António gostava muito de guiar e a levava quase sempre onde era preciso. Claro que, muitas vezes, acabava por não ir onde queria porque António não lhe apetecia ir também. Agora apercebia-se da enorme dependência que isso significava e arrependia-se de ter sido tão passiva durante todos aqueles anos. Afinal, há muitas décadas que as mulheres guiavam sem nenhum constrangimento social e ela nunca havia sabido aproveitar o facto...

- Se calhar, devia tirar a carta.

- A carta? - perguntou Mariana, distraída.

- Sim. A carta de condução.

- Já não é a primeira vez que te dou essa ideia. Não porque me custe levar-te a casa, antes pelo contrário, mas porque é sempre bom termos a nossa autonomia... Lembras-te de quando estavas casada, que nunca podias ir a lado nenhum sozinha, porque só o António sabia guiar?

- Sim... Estava a pensar nisso agora mesmo.

- Bom, ainda vais a tempo de aprender a conduzir. Madalena concordou e ficou a pensar naquela ideia repentina. Mariana deixou-a à porta de casa e seguiu, deixando Madalena uma vez mais entregue à sua solidão. Mas as coisas pareciam começar a mudar na sua cabeça... Quando entrou em casa já não sentiu de modo tão intenso o peso da sala silenciosa. Tinha tomado algumas decisões importantes naquele dia, tinha conhecido um espaço deslumbrante e tudo o que precisava era de mudar realmente algumas coisas na sua vida.

Madalena deixou a imaginação vaguear por canaviais e paisagens de sonho. Não conseguia perceber o fascínio que as imagens da Tailândia exerciam sobre si. Nunca tinha estado no Oriente e, apesar de sempre ter achado todos aqueles países muito interessantes, nunca tinha sentido um apelo tão grande apenas por causa de algumas fotografias e de um restaurante, por sinal muito agradável. De qualquer modo, não pensava em viajar sozinha, muito menos para a Tailândia, pelo que se deixou adormecer sem dar mais importância ao assunto. No dia seguinte, depois do trabalho, iria procurar uma boa escola de condução e começar a mudar realmente alguns hábitos da sua vida.

 

Quando os primeiros raios de sol entraram pelas frestas da persiana, Madalena despertou com uma agradável sensação de bem-estar, coisa que já não sentia há muito tempo. Depois do duche rápido e do pequeno almoço, saiu para a rua e até a entrada do metropolitano lhe pareceu mais convidativa, sem o peso escuro que habitualmente lhe reconhecia. Já no cais subterrâneo, as pessoas que se cruzavam consigo, andando a toda a velocidade, não a incomodavam como era costume. Apesar da pressa e do stresse que ali reinava, Madalena permanecia calma e descontraída, como se um peso enorme tivesse começado a abandoná-la. Ela própria não saberia descrever a sensação ou encontrar-lhe um motivo, mas sentia-se muito bem assim e não pretendia estragar o dia com a busca de explicações para o seu bem-estar inesperado. Sentia-se bem e pronto! Chegada ao escritório, Madalena nem sequer sentiu aquela resistência inicial que anuncia as primeiras horas do trabalho diário. Com uma espécie de luminosidade clara a rodear-lhe os passos, cruzou os corredores e secretárias do escritório com o gesto seguro de quem se sente bem consigo própria. Algumas colegas notaram a diferença e uma delas exclamou mesmo:

- Madalena, estás diferente... Pareces outra, desde ontem à tarde! Passou-se alguma coisa?

- Não. Sinto-me bem e é apenas isso. - respondeu, afastando-se para evitar interrogatórios mais curiosos, até porque não tinha nada de concreto para contar.

O dia passou sem sobressaltos, ainda que Madalena estivesse constantemente à espera das cinco horas da tarde... Queria sair depressa do escritório para poder procurar a escola de condução e começar a cumprir as suas resoluções novas. À hora de almoço aproveitou para folhear as páginas amarelas em busca de uma escola que não ficasse muito longe de casa ou do escritório. Seleccionou quatro escolas e acabou por copiar para um bloco a morada de duas delas, cujo nome lhe inspirou confiança. Queria tratar de tudo naquele dia, para começar a ter lições o mais depressa possível.

Às cinco horas saiu do edifício onde trabalhava e voltou a dirigir-se para o metropolitano. Pelos seus cálculos, teria de sair na estação seguinte para chegar a uma das escolas que procurava. Rosa dos Ventos era o nome que lhe tinha despertado a curiosidade. Afinal, como é que se escolhe uma escola de condução se não temos qualquer referência para além do nome?

Novamente à superfície, demorou alguns minutos até encontrar a rua certa. Não precisou de procurar o número, já que a fila de carros todos iguais não deixava margem para dúvidas. O edifício da escola ficava mesmo a meio da rua e os instrutores alinhavam-se junto aos carros, aguardando os próximos alunos. Madalena entrou, subiu as escadas e achou-se na secretaria da escola, pronta para concretizar a sua mais recente decisão.

- Boa tarde - disse.

- Boa tarde - respondeu a senhora que se encontrava atrás do balcão - Posso ajudá-la?

- Sim. Eu queria tirar a carta e gostava de saber o que preciso de fazer e quais são as condições da vossa escola. Seguiu-se a habitual troca de informações, entre os dados pessoais de Madalena e as informações sobre horários, aulas de código e veículos a gasolina ou a gasóleo. Quando terminaram, Madalena estava inscrita na Rosa dos Ventos e poderia começar a frequentar as aulas de código a partir daquele momento. Era surpreendente...

- Quer dizer que, se quiser, posso assistir já à próxima aula? - perguntou Madalena, quase sem acreditar na rapidez de tudo aquilo.

- Claro que sim - disse a funcionária da escola – A próxima aula começa já daqui a quinze minutos. Se quiser esperar, pode começar hoje mesmo. Madalena não pensou duas vezes. Voltou a descer as escadas, para aproveitar os últimos raios de sol do fim da tarde e para espreitar os carros onde iria aprender a conduzir. Um quarto de hora depois estava sentada numa sala grande e bem iluminada, cheia de sinais de trânsito nas paredes, regras escritas e um ecrã virado para as filas de cadeiras que ocupavam a maior parte do espaço. Outras pessoas foram entrando e procurando os lugares vagos para começarem a aula. Madalena olhou para os seus colegas e sorriu... Nunca pensara voltar aos bancos de uma escola, ainda que fosse de condução. A maioria das pessoas que ali estava tinha pouco mais do que dezoito anos acabadinhos de fazer e preparava-se para tirar a carta rapidamente, assim numa espécie de ânsia de se afirmar na idade adulta. Mas havia outras pessoas, algumas da idade de Madalena ou mesmo mais velhas, que por um motivo ou por outro não tinham tirado a carta na altura esperada.

Entretanto, o professor de Código chegou e a aula teve o seu início. Madalena e um outro rapaz começaram por apresentar-se, já que eram novos naquela escola, e a lição decorreu sem sobressaltos. Uma hora depois, Madalena saiu para a rua com uma estranha sensação de felicidade. Sentia-se bem porque estava, finalmente, a viver a sua vida sem a tristeza a invadi-la a cada passo. Dirigiu-se para a estação, apanhou logo o metro e caminhou para casa com os passos muito mais leves do que era costume. Já em casa, não resistiu a ligar para Mariana para lhe contar a novidade.

- Mariana? Sou eu. Não vais acreditar...

- Apaixonaste-te?

Não, que disparate! Inscrevi-me numa escola de condução e já comecei a ter aulas de código.

- A sério? Que bom, Madalena...

- Pelas contas da senhora da secretaria, poderei começar a ter aulas de condução dentro de duas semanas.

Mas isso é óptimo! Depois temos de combinar umas voltinhas, mas serás tu a segurar no volante... Riram ambas com a ideia e Madalena despediu-se logo depois de combinarem um novo encontro para resolverem os Pormenores finais da sua nova decoração.

Os dias que se seguiram decorreram entre as aulas de código a que Madalena assistia diariamente, com a aplicação de uma aluna recém-chegada ao liceu, e as entregas novos tapetes e cortinados para a sala e para o quarto que já não pareciam os mesmos. Quando os trabalhos de decoração chegaram ao fim, Madalena deparou-se com uma casa que lhe parecia nova e, o que era mais importante, tão diferente da casa onde passara os últimos anos com tão poucas recordações que valessem a pena, vistas a esta distância. Agora, os tecidos estampados e as cores quentes marcavam presença na sua sala, conferindo um ar oriental que lembrava a decoração do restaurante onde tinha jantado com Mariana, há apenas umas semanas. No quarto, a cama de ferro fora substituída por uma mais leve, de madeira, grande e espaçosa como Madalena gostava, mesmo dormindo sozinha. Pelas novas cortinas entrava agora uma luz mais agradável, uma espécie de música brilhante que lhe tornava as manhãs suaves e encorajadoras. Faltava apenas convidar Mariana para tomar chá e para apreciar a sua ”nova” casa. O convite era para essa tarde, depois do exame de código... Entra’. espero que gostes da minha nova casa!

- Está linda, Madalena! Não parece a mesma casa...

Sentaram-se confortavelmente no sofá, entre as almofadas recém-chegadas de uma loja de importação de artigos orientais, e Mariana perguntou, ansiosa:

- E o exame de código?

- Essa era a outra novidade... Passei! E posso começar a ter aulas de condução amanhã mesmo.

- Oh, parabéns, Madalena! Fico muito feliz por ti.

A conversa prolongou-se tarde fora, entre os pormenores da decoração e o entusiasmo de Madalena pelas aulas de condução. Pouco antes do jantar, Mariana saiu e Madalena preparou alguma coisa rápida e leve para comer. Apesar de ser sexta-feira, queria levantar-se cedo no dia seguinte, para aproveitar as aulas da manhã. Nunca tinha guiado e parecia-lhe mais fácil começar num dia em que a cidade não estivesse cheia de trânsito. Adormeceu com a imagem de uma longa estrada a embalar-lhe os sonhos...

 

Quando despertou, pela manhã, demorou alguns segundos a reconhecer o espaço que a rodeava. Por breves momentos, chegou mesmo a imaginar que estava de férias num qualquer país distante, mas a realidade tomou forma e percebeu que a estranheza era apenas motivada pela nova aparência do seu quarto. Levantou-se satisfeita com as mudanças e ansiosa com a ideia de ter a primeira aula de condução. O duche e o pequenoalmoço passaram-se em poucos minutos e Madalena saiu para a rua pronta para começar uma nova fase. Como sempre, apanhou o metro e caminhou, depois, alguns metros até à rua onde ficava a Rosa dos Ventos. Os carros alinhados lá estavam e Madalena dirigiu-se à secretaria para saber qual era o veículo a que se devia dirigir. A senhora da secretaria, com a simpatia que lhe era habitual, indicou-lhe o número vinte e três e disse-lhe que devia ser o sexto ou o sétimo da fila, àquela hora. Madalena voltou a descer as escadas e procurou a plaquinha com o número no vidro dianteiro dos vários carros, até encontrar o vinte e três. Esperou alguns minutos, até que um homem moreno e com um sorriso muito franco se aproximou:

- Bons dias! É para o vinte e três?

- É sim. Muito bom dia.

Madalena estava fascinada com o olhar daquele homem. Os olhos muito escuros e brilhantes deixaram-na estonteada e só conseguia pensar que tinha de entrar no carro para que a aula, a tão esperada aula de condução, pudesse ter início.

- Chamo-me Pereira e serei o seu instrutor de condução - disse, estendendo a mão firme mas delicada em direcção a Madalena.

- Muito prazer. Sou a Madalena.

Depois de um breve aperto de mão, o instrutor Pereira abriu a porta do lado do condutor e, com um gesto suave, convidou Madalena a sentar-se. Depois contornou o veículo e entrou pela porta contrária, acomodando-se no banco ao lado de Madalena. A partir deste momento, a sua voz melodiosa inundou o pequeno espaço do carro, explicando a Madalena como funcionavam os diferentes componentes de um veículo. Madalena escutava atentamente as instruções sobre os pedais, as mudanças e as luzes de sinalização, mas não podia deixar de pensar que a voz do instrutor Pereira lhe dava uma calma interior nada comum em alguém que nunca guiou e se prepara para colocar um carro em andamento pela primeira vez.

Madalena colocou a chave na ignição e rodou a mão, sentindo a vibração do motor a responder ao seu gesto. Começar a rodar foi mais fácil do que alguma vez tinha imaginado e, com a ajuda preciosa do seu instrutor, em breve deixava para trás a rua da Rosa dos Ventos, aventurando-se com calma pelas outras artérias da cidade. Era uma sensação totalmente nova e Madalena gozava o momento com muita satisfação, ainda que nunca perdesse a atenção ao que estava a fazer, para não colocar em perigo nenhum dos dois ocupantes do carro. Pereira ia orientando o percurso do veículo, avisando Madalena para virar à esquerda ou à direita e dando-lhe tempo para sinalizar devidamente todas as manobras. Logo naquela primeira viagem aprendeu a inverter a marcha, a mudar de direcção à esquerda e à direita e a manter o carro no centro da faixa respectiva. Era muito para um dia só, mas o que mais a impressionou foi, na verdade, a figura do instrutor. A pele morena e o cabelo muito liso e brilhante faziam de Pereira um homem atraente, com um certo toque de exotismo que fascinava Madalena. Mas o que mais encantava naquele homem eram os modos, delicados e corteses sem nunca perder a firmeza, e a voz, inspirando calma e muita segurança. Madalena nunca tinha conhecido um homem assim e estava ligeiramente atordoada... Podia ser apenas o nervoso da condução, mas começava a suspeitar que havia algo mais. Foi a voz do instrutor Pereira a quebrar-lhe o fio dos pensamentos:

- Que tal, para primeira vez? Podemos marcar já a aula de segunda-feira?

- Correu muito bem - balbuciou Madalena - Segunda-feira terá de ser depois das dezassete horas.

- Muito bem. Às dezassete e trinta, está bom?

- Sim, está.

- Então fica combinado. Bom fím-de-semana! Pereira voltou a apertar-lhe a mão ao desejar um bom fím-de-semana e Madalena pôde sentir com mais intensidade a suavidade do seu toque. Ficou ainda alguns minutos na rua, olhando para aquele homem que nunca tinha visto antes e com quem passaria a encontrar-se diariamente...

 

Já em casa, Madalena não se sentia capaz de nenhum movimento. Sentada no sofá da sala, agora estofado com novas cores, pensava com satisfação no facto de ter começado, finalmente, as suas aulas de condução. Mas a imagem do instrutor Pereira não lhe saía da cabeça e Madalena começava a irritar-se consigo mesma:

- Que tontice, pareço uma miúda embevecida com o professor!

Depois riu-se do facto de estar a falar sozinha e decidiu preparar alguma coisa para almoçar. Tinha decidido ir passear durante a tarde e não queria perder mais tempo com aquela cisma.

Pouco depois do almoço, o toque do telefone anunciou um convite de Mariana. Francisco estava fora e a amiga queria companhia para ir ao cinema, à sessão da tarde. Madalena aceitou; afinal, não tinha planos muito concretos e sempre podia espairecer as ideias.

Já na rua, perto do cinema, resolveu contar à amiga que as aulas de condução já tinham começado.

- A sério? E só agora é que me dizes... Que tal correu?

- Muito bem. Acho que tenho jeito para guiar e, além disso, gostei bastante do instrutor.

- Isso é muito importante para que as aulas corram da melhor maneira. Eu, por exemplo, quando tirei a carta

tive um instrutor muito antipático e até um pouco brusco, o que me dificultou bastante a vida.

- Este é exactamente o inverso...

Madalena deixou a frase em suspenso e ficou com um ar de felicidade pouco compreensível para quem só está a falar das aulas de condução. Mariana interrogou-a:

- Há mais alguma coisa que eu deva saber? Madalena estremeceu:

- Não, nada. Absolutamente. Não sei porque é que dizes isso. Estava apenas a elogiá-lo.

- Não tinha perguntado tantas coisas.., Será impressão minha ou a minha amiga de sempre está, como direi, apaixonada...?

- Que disparate, Mariana! Imagina-me lá apaixonada por um instrutor de condução! Que ideia...

- Não sei qual seria o problema. É uma profissão como outra qualquer. Além disso, tenho quase a certeza de que estás apaixonada. Nunca te vi falar assim de ninguém desde que te separaste do António.

Já estavam à porta do cinema e Madalena decidiu não ripostar. A amiga conhecia-a demasiado bem. O problema era que ela própria não queria admitir que o fascínio pelo instrutor Pereira teria de ser algo mais do que um simples entusiasmo de quem começa a aprender alguma coisa de novo. Aquela calma que sentia sempre que ele lhe explicava alguma coisa não era normal...

- Madalena! O filme vai começar. Queres acordar ou vais ficar aí pasmada, a pensar no teu instrutor exótico? Mariana soltou uma gargalhada enquanto puxava a amiga para dentro da sala.

- Não estava a pensar nele...

- Sim, sim, eu acredito...

Madalena sentou-se, sentindo alguma irritação, e o filme começou.

Quando voltaram a sair para a rua, Madalena não conseguia dizer uma palavra sobre o filme pela simples razão que nem sequer dera pelo que acontecera no grande ecrã. Estava absorta, completamente distraída com as lembranças daquela manhã.

Mariana não insistiu e deixou a amiga em casa, entregue aos seus pensamentos. E os pensamentos de Madalena não conseguiam afastar-se de Pereira. De onde teria saído aquele homem? A beleza exótica que o caracterizava só era vencida pela simpatia e pelos modos que utilizava sempre que falava ou explicava qualquer coisa. A pele muito morena e os olhos escuros faziam lembrar um qualquer país oriental, mas Madalena não conseguia decifrar qual. E depois havia a voz, aquela voz impossível de descrever e que a deixava sempre em suspenso, ansiosa, mas que, ao mesmo tempo, lhe dava uma segurança que não se lembrava de sentir há muito tempo, em nenhuma situação. O resto do fim-de-semana passou sem novidade. No entanto, Madalena começou a capacitar-se de que talvez sentisse alguma coisa muito intensa relativamente ao seu instrutor de condução. E não sabia se isso era bom... Afinal, professores e alunos deviam ocupar cada qual o seu lugar, sem confusões de espécie nenhuma, muito menos de ordem sentimental. Mas não podia evitar pensar nele...

 

Na segunda-feira passou o dia todo à espera das cinco e meia, com uma sensação de ansiedade que lhe pesava no estômago e a deixava sem vontade de muitas conversas. As colegas do escritório voltaram a fazer perguntas, mas Madalena absteve-se de responder. À hora marcada, dirigiu-se para o veículo número vinte e três. Junto à porta, a primeira coisa que vislumbrou foi o sorriso de Pereira, recebendo-a como se estivesse realmente feliz por voltar a encontrá-la.

- Então, o resto do fim-de-semana foi bom? - disse, enquanto se dirigia para o seu lado.

- Sim, obrigada - respondeu Madalena, um pouco atrapalhada. Sempre fora um pouco tímida, mas hoje sentia-se uma verdadeira adolescente.

Pereira, no entanto, estava decidido a quebrar o gelo. Tinha simpatizado com Madalena desde o primeiro momento e, além disso, um bom ambiente era essencial para que as aulas de condução decorressem de forma tranquila. Madalena colocou o carro em andamento e Pereira indicou-lhe as direcções a seguir, como da última vez. Percorreram algumas avenidas e outras ruas menos movimentadas e Pereira resolveu começar a conversa, para aligeirar a insegurança que Madalena parecia sentir em relação à condução.

- Que tal é a sensação de conduzir? Gosta?

- Sim, muito. Sempre quis aprender a guiar, mas nunca se proporcionou.

- Estamos sempre a tempo...

- Espero bem que sim - riu Madalena, pensando se conseguiria levar a bom porto a sua condução.

Pereira sorriu também, retribuindo a boa disposição da sua aluna. Uma vez mais a aula decorreu sem incidentes e os sessenta minutos pareceram a Madalena apenas um breve momento. Estaria realmente apaixonada? Mas como, se nada sabia sobre o seu instrutor e se poucas palavras haviam trocado para além das necessárias ao bom funcionamento das aulas? Seria possível ter um sentimento como esse por alguém que se conhecia tão mal? As ideias começavam a baralhar-se e Madalena chegou mesmo a pensar em pedir para trocar de instrutor, com medo que a sua aprendizagem pudesse ser prejudicada por toda aquela confusão de sentimentos e impressões. Mas não o fez. Não teve coragem para abdicar da companhia diária daquele homem que a fascinava, apesar de pouco mais saber sobre ele para além do apelido pelo qual toda a gente o tratava na Rosa dos Ventos. Esse era, aliás, um dos mistérios que a atraíam no seu instrutor: o seu primeiro nome. Ainda por cima porque nenhum outro instrutor daquela escola era tratado apenas pelo apelido. Teria um nome de que não gostava? Ou procurava não mostrar logo à primeira as suas origens? Madalena não fazia a menor ideia, mas sabia que queria muito descobrir aquele e outros mistérios.

 

Os dias foram passando e as aulas de condução foram-se sucedendo. Madalena já não tinha muitas dúvidas sobre o seu fascínio por Pereira, mas não se atrevia a fazer-lhe demasiadas perguntas. Apesar de tudo, a simpatia mútua era visível e as reacções de Pereira faziam crer que o seu fascínio era correspondido. Um dia, quando passavam pela Avenida da Liberdade, cruzaram-se com uma carrinha carregada de palmeiras, talvez com destino a algum jardim público. Ao ver as palmeiras, Pereira exclamou com ar feliz:

- Parecem mesmo as árvores do país dos meus pais. Madalena, surpreendida, não resistiu a perguntar-lhe de onde eram os pais. Sempre desconfiou que Pereira teria origens orientais, talvez indianas devido à cor da pele. Mas a resposta deixou-a petrificada:

- Tailândia. Os meus pais são tailandeses, mas eu já nasci em Lisboa, poucos anos depois de eles emigrarem para cá.

Madalena não aguentou a surpresa... Num relance, lembrou-se do jantar com Mariana no restaurante tailandês e do fascínio que sentiu quando lá entrou. Recordou-se das suas decisões de mudança, todas tomadas depois desse jantar, e das fotografias que a levaram a escolher uma decoração tão exótica para a sua casa. Quando despertou dos seus pensamentos, apercebeu-se de que o carro estava parado. Ò instrutor Pereira for a obrigado a usar o seu travão para evitar um acidente, já que Madalena estava completamente absorta e esquecera-se de que estava a conduzir numa das mais movimentadas avenidas da cidade de Lisboa.

- Sente-se bem? Passa-se alguma coisa?

- N...não. Está tudo bem - gaguejou Madalena - É que não esperava... não esperava...

- O quê? - perguntou Pereira um pouco desiludido, pensando que Madalena não gostava do facto de ter origens tailandesas...

- A Tailândia... É difícil de explicar, mas eu tenho uma ligação muito forte com esse país sem saber porquê. Pereira sorriu, algo intrigado, e disse a Madalena que gostava de perceber aquilo que ela tinha acabado de dizer.

- Espero que não considere isto um abuso, porque não é essa a minha intenção, mas podia convidá-la para um café e podia explicar-me melhor essa sua relação com a Tailândia. Afinal, é o país dos meus antepassados e gostava de perceber o que é que leva uma portuguesa a manter com ele uma relação tão forte.

- Eu... Eu acho que não há nenhum problema em tomarmos café depois da aula. Sim, aceito o convite. Terminada a aula, Madalena e Pereira dirigiram-se para um café simpático que havia perto da Rosa dos Ventos. Sentaram-se, pediram dois cafés e Madalena esperou que Pereira contasse mais sobre as suas origens. Mas Pereira estava cheio de curiosidade sobre o que Madalena tinha dito no carro e não esperou muito para insistir:

- Afinal, que espécie de relação mantém com a Tailândia?

- Eu não sei explicar... Acho que aquelas paisagens e aquelas cores quentes mudaram a minha vida.

- Ah! - afirmou Pereira, mais esclarecido - Então já lá esteve?

- Não, nunca, infelizmente...

Agora é que Pereira não percebia nada e Madalena não sabia como clarificar a situação. Numa espécie de inspiração momentânea e inexplicável, começou a falar sobre a sua vida e sobre o jantar no restaurante tailandês, atropelando palavras e ideias com o nervosismo inerente à situação. Contou a Pereira sobre o seu passado, o casamento com António, a traição e o divórcio. Depois falou-lhe do tempo de solidão e do princípio de depressão que começava a ser diagnosticado, até ao momento em que um simples jantar mudou a sua maneira de encarar a vida. O restaurante tailandês tinha sido o princípio de uma nova fase, e agora, sem que ela percebesse porquê nem como, aparecia-lhe ele, Pereira, instrutor de condução com origens tailandesas.

Pereira sorriu ternamente antes de começar a falar, visivelmente atrapalhado:

- No meu país há uma lenda que diz que todas as pessoas têm alguém à sua espera nesta vida, embora nem sempre se consigam encontrar. Para que se cruzem com a pessoa que as espera é necessário que beneficiem da protecção dos deuses que protegem os casais...

- Sim, eu vi esses deuses - disse Madalena, atropelando as próprias palavras - Estavam lá, no restaurante. Era uma estátua muito bonita, em madeira escura...

Depois disto ficaram ambos sem palavras. A timidez de Madalena não era menor do que a de Pereira e acabaram por manter o silêncio até se irem embora. Já à porta do café, com o vento a acentuar o início da noite, Pereira agarrou suavemente a mão de Madalena e disse, baixinho:

- Gilberto. Era Gilbert, por causa de uma avó francesa, mas fiquei Gilberto porque nasci em Lisboa. Chamo-me Gilberto, embora toda a gente me conheça por Pereira na Rosa dos Ventos. Se não quiser voltar a ter aulas de condução comigo, podemos providenciar a troca de instrutor para que...

Madalena interrompeu-o, correspondendo ao toque da sua mão:

- Não é preciso. Podemos continuar com as aulas sem qualquer problema. Para além do mais estão a acabar... E deixe-me dizer-lhe que Gilberto é um nome muito bonito, com uma sonoridade perfeita...

- Então, até amanhã, Madalena...

- Até amanhã, Gilberto...

 

Nessa noite Madalena decidiu que não podia continuar com aquela aventura mirabolante sem falar com a sua amiga. Além do mais, fora ela que a levara ao tal restaurante tailandês... Ligou para Mariana, quase sem conseguir falar.

- Mariana? Sou eu, a Madalena. Não podes imaginar o que se está a passar...

- Hum... Estás apaixonada pelo teu instrutor de condução?

- Sim, mas... Bom isso tu já sabias, não era? O que tu não sabes é que ele é filho de pais tailandeses!

- Tailandeses? Mas isso é uma tremenda coincidência... Como é que isso foi acontecer?

Madalena contou tudo à sua amiga, não escondendo nenhum pormenor. Depois de muito tempo ao telefone, despediram-se com a promessa de Madalena dar notícias no dia seguinte.

A aula que se seguiu à conversa de Gilberto e Madalena foi um momento carregado de tensão. Para além de ser a última aula de Madalena antes de se apresentar a exame, era visível que ambos estavam apaixonados um pelo outro, mas nenhum queria quebrar o protocolo esperado entre instrutor e aluna numa aula de condução. Nesse dia, estava combinado fazerem um percurso maior, apanhando a via rápida Lisboa-Sintra para que Madalena testasse a velocidade e regressando a Lisboa pela estrada de Sintra. E assim foi.

Madalena guiou até Sintra com a destreza que caracterizava já a sua condução e Gilberto não pôde esconder o orgulho que sentia por isso. Chegados a Sintra, pararam um pouco para o descanso regulamentar antes de darem meia volta e regressaram à estrada que os levaria à via rápida para Lisboa, agora escurecida pelo adiantado da hora. A música tocava na rádio, baixinho para não distrair Madalena, e Gilberto ia dando as suas indicações quando um inesperado estrondo fez parar o carro. Madalena assustou-se profundamente, sem conseguir perceber a origem daquele barulho. Gilberto, experiente nestas coisas da estrada, percebeu logo o que ali se passava. Um pneu furado, em plena estrada de Sintra, ainda antes de chegar à auto-estrada. Sem se atrapalhar demasiado, Gilberto disse:

- Bom, não é uma boa notícia, mas pelo menos posso aproveitar para lhe dar algumas noções de mecânica. Além disso, mudar um pneu faz parte dos conhecimentos requeridos para obter a carta de condução, por isso vamos continuar com a nossa lição como se não fosse nada. Madalena sorriu, um pouco mais descontraída, e perguntou a Gilberto se tinham mesmo de se tratar por você. Ele respondeu negativamente e o ambiente entre os dois tornou-se visivelmente mais próximo. Dirigiram-se ambos ao porta-bagagens, em busca do pneu sobressalente e Gilberto começou a operação de troca de pneu, explicando a Madalena todos os passos que dava. Depois de levantar o carro e de desapertar todos os parafusos que sustentavam o pneu furado, Gilberto precisou da ajuda da sua aluna para puxar o pneu para fora do eixo. E foi quando Madalena se baixou para o ajudar que as coisas se precipitaram, sem que nenhum dos dois tivesse uma noção muito clara do que se iria passar a seguir. As mãos tocaram-se furtivamente, primeiro ao de leve, depois com mais intensidade, e nenhum dos dois resistiu ao toque. Banhados pelo luar de Sintra, à beira de uma estrada vazia àquela hora, Madalena e Gilberto trocaram o primeiro beijo com a intensidade própria de quem há muito espera encontrar a sua metade. Já dentro do carro, Gilberto aproximou-se um pouco mais de Madalena, puxando-a suavemente para si enquanto a beijava uma e outra vez. Madalena respondia com a proximidade quase vertiginosa do seu corpo e dos seus lábios, sussurrando o nome de Gilberto junto do seu ouvido. Nunca pensara em fazer amor assim, no meio da rua, resguardada apenas pela fragilidade de um carro, mas o apelo da paixão foi mais forte e foi exactamente isso que aconteceu naquele lusco-fusco impossível de descrever sem atraiçoar a beleza do momento. As mãos de Gilberto percorreram o corpo de Madalena, provocando-lhe um arrepio profundo e inevitável, e a situação precipitou-se. Instrutor e aluna transformaram-se em amantes e deixaram-se levar pela emoção, fazendo amor nos bancos do carro, à luz de um luar memorável que nenhum dos dois haveria de esquecer. Os corpos ondulantes de ambos reflectiam-se um no outro como se se vissem ao espelho e, no momento de maior emoção, Gilberto disse a Madalena que gostaria de levá-la à Tailândia. E foi com a imagem das paisagens verdejantes que tanto a haviam fascinado que Madalena se entregou no corpo daquele homem deslumbrante, deixando-se tocar como se sempre se tivessem conhecido e como se nenhum dos dois tivesse mais passado para além daquela entrega. Entre carícias e suspiros profundos, o tempo foi passando e quando os seus corpos se separaram, o olhar de Gilberto brilhava ainda mais do que o costume e Madalena sentia-se perdida num qualquer local paradisíaco. A emoção que sentia era tanta que, esquecendo a timidez que a caracterizava desde sempre, disse a Gilberto:

- Vem comigo para casa hoje! Quero que conheças o resto da minha vida antes de me mostrares a tua terra.

Gilberto sentiu-se lisonjeado com o convite e aceitou, explicando a Madalena que, antes disso, era preciso que ela guiasse de volta a Lisboa e à Rosa dos Ventos. E era preciso também que ele se dirigisse à secretaria e arranjasse uma boa explicação para aquele atraso, para além do inesperado furo no pneu.

De volta à realidade, Madalena levou o carro até à porta da escola de condução sem a menor hesitação e dirigiu-se para casa, deixando a Gilberto um cartão com as indicações da sua morada e da melhor maneira de lá chegar. Queria preparar-lhe um jantar inesquecível...

 

Quando Gilberto tocou à campainha foi recebido com um beijo caloroso e com o espanto de quem não esperava encontrar uma casa como aquela. Os tecidos e toda a decoração lembravam-lhe as casas tradicionais do seu país natal, apesar de estar em plena Lisboa, a muitos quilómetros de distância da Tailândia e das suas cores. Madalena tinha acendido uma pequena espiral de incenso e tinha preparado um verdadeiro banquete, com legumes estufados, batatas assadas com molho de iogurte e um peixe grelhado com uma mistura de ervas cuja receita lhe tinha sido dada pelo empregado do restaurante tailandês onde tudo tinha, afinal, começado, mesmo que ela nessa altura não sonhasse com o que viria a seguir.

Jantaram com os olhos postos um no outro, trocando histórias antigas e falando da Tailândia com o mesmo fascínio, embora Madalena nunca tivesse estado lá. Gilberto elogiou a comida e prometeu a Madalena levá-la a jantar ao tailandês nos próximos dias, assim que ela se livrasse do exame de condução e do compromisso com a Rosa dos Ventos. Madalena sorriu, entusiasmada com a ideia, e serviu o café antes de convidar Gilberto a mudarem-se para o sofá.

Madalena não conseguia resistir ao olhar daquele homem e a proximidade turvava-lhe os pensamentos. Os seus dedos procuraram a face de Gilberto, desenhando-lhe os contornos com suavidade e tocando a sua boca muito devagar. Gilberto respondeu com mais carícias, antecedendo um beijo que parecia não ter fim. Uma vez mais, os corpos de ambos se tocaram, mas agora sem o nervosismo da primeira vez e sem o perigo de uma estrada semideserta. Fizeram amor no sofá de Madalena uma e outra vez, acabando por se aninharem confortavelmente na cama nova, até agora vazia. Gilberto beijava o corpo de Madalena com uma suavidade que a fazia perder o controlo, enquanto se debatiam com o prazer um do outro até as forças se esgotarem.

Adormeceram assim, entre um beijo e outro, com os corpos suados do amor e do desejo que não queriam reprimir. No dia seguinte nenhum dos dois trabalhava, pelo que se mantiveram na cama até à hora do almoço, trocando beijos e fazendo planos para depois do exame de Madalena. Era como se esse dia, quase a chegar, fosse uma espécie de barreira que tinham de transpor antes de começarem a viver as suas vidas de modo diferente.

Chegara o dia do exame de Madalena. À hora marcada, Gilberto e o examinador do centro de exames encontravam-se junto do carro, cedendo a passagem a Madalena para o lugar do condutor. O exame correu muito bem, e nem outra coisa seria de esperar. Parecia que Madalena tinha nascido para conduzir, avançando pela estrada com muita atenção e com uma enorme destreza. Não falhou nenhuma mudança de direcção, estacionou correctamente em todos os locais indicados e manteve constantemente um controlo admirável sobre o carro e as manobras que executava. O examinador não hesitou em considerá-la apta para conduzir e Madalena foi nesse mesmo dia tratar de toda a papelada necessária para a carta de condução. Uma semana depois tinha a carta nas suas mãos, acabada de chegar pelo correio, e o compromisso com a Rosa dos Ventos chegava ao fim. Telefonou para Gilberto, contando-lhe a novidade, e depois para Mariana, que exigiu uma comemoração à altura lá mais para o fim-de-semana:

- Não penses que te escapas, lá porque andas de namorado novo! Vamos jantar fora e sair depois, como nos velhos tempos, sem horas para voltar para casa e sem carro para nos preocupar.

- Mas se vamos comemorar o facto de eu ter tirado a carta...

- Tens razão. Então fazemos tudo à mesma, mas tu não bebes nem uma gota de álcool para poderes trazer o carro de volta...

Riram alegremente enquanto faziam planos para a comemoração de arromba. Mas Madalena ansiava por outra comemoração, com Gilberto, o homem que a ensinara a conduzir sem medos ou inseguranças e que fazia, agora, parte da sua vida, mesmo que ela ainda não soubesse explicar muito bem como. Perto da hora de jantar, a campainha quebrou o silêncio, agora agradável, do seu apartamento. Era Gilberto, impecavelmente vestido e com um enorme ramo de rosas nas mãos:

- Vamos jantar fora?

- Oh, Gilberto, não te esqueceste...

- Nunca me esqueço das minhas promessas. A mesa já está marcada, é só chegarmos. E, claro, levas tu o carro! Madalena sorriu, trocou de roupa num instante e desceu as escadas ao lado de Gilberto. Ele de fato e ela de vestido escuro e brilhante iam, finalmente, jantar juntos ao restaurante tailandês onde tudo tinha começado. Já estavam juntos há dois meses, mas Gilberto dizia sempre que só queria ir ali com Madalena depois de concluído o processo da carta de condução. E assim foi, mesmo que Madalena tenha insistido várias vezes para que lá fossem antes. Chegaram mesmo a passar à porta do tailandês, a caminho de qualquer outro sítio, e Madalena protestava sempre que queria entrar e jantar ali mesmo. Mas esse foi o único desejo que Gilberto não lhe concretizou, deixando-a à espera do momento certo para ali jantarem juntos, logo depois de tudo estar resolvido na escola de condução onde ele era professor e ela aluna.

Madalena levou o carro até ao restaurante com a concentração e o alívio de quem acaba de obter a carta de condução. Estacionou junto do rio, quase no pontão, como tinha feito com Mariana há uns meses, e olhou a porta vermelha e dourada com a felicidade estampada no rosto. Quando entraram no restaurante, não se espantou de ouvir Gilberto cumprimentar o empregado numa língua desconhecida para si antes de se sentarem na mesa reservada. Seria aquela, certamente, a língua dos pais de Gilberto. Parecia um conjunto de sons harmoniosos, uma espécie de acorde produzido num instrumento com uma musicalidade muito própria, Gilberto convidou-a a provar uma série de iguarias que, da outra vez, tinham passado desapercebidas e foi explicando pacientemente a origem de cada prato. Repetiram o peixe que Madalena havia provado da outra vez e que era, afinal, peixe grelhado à moda dos apanhadores de arroz de Banguecoque. Comeram várias combinações diferentes de legumes e provaram alguns molhos muito intensos, uns picantes e outros não, mas todos cheirando aos arrozais e às longas extensões de verde da Tailândia. Pelo menos, era essa mistura de cheiros que Madalena imaginava quando olhava para as fotografias que decoravam as paredes do restaurante, ou mesmo quando se aproximava, provocante, de Gilberto, ele próprio cheirando um pouco a incenso e a especiarias. Quando a sobremesa já tinha chegado, Gilberto pôs um tom muito solene e agarrou a mão de Madalena com a suavidade que o caracterizava:

- Madalena, queria perguntar-te uma coisa... - Diz.

- Queres casar comigo?

Madalena ficou sem fala e os olhos brilharam de emoção.

- Mas... Não será um pouco precipitado?

Gilberto olhou-a em silêncio, deixando-a sentir a profundidade do seu olhar antes de voltar a falar:

- Vês aquela estátua? - perguntou, apontando a imagem dos dois deuses protectores dos casais que tanto haviam fascinado Madalena na primeira vez que os viu - Há sempre alguém à nossa espera neste mundo e o facto de não agarrarmos o momento quando é preciso agarrá-lo deixa os deuses muito tristes...

Madalena sorriu e apertou a mão de Gilberto com muita força. Queria muito passar o resto dos seus dias ao lado daquele homem de pele morena, que a compreendia, que a respeitava e que a sabia enlouquecer apenas com o toque das mãos na sua pele.

- Aceito, Gilberto, claro que aceito. Com a condição de passarmos a lua-de-mel na Tailândia!

- Mas isso fazia parte dos meus planos desde que pensei em pedir-te para casares comigo... - disse Gilberto, visivelmente emocionado - Partiremos logo depois do casamento para uma viagem inesquecível! Ficamos instalados em Banguecoque, perto dos arrozais e das extensões de água que tanto queres conhecer. Ficarás a conhecer a terra dos meus pais, onde passei algumas longas férias da minha infância e onde já não vou há mais de sete anos. Madalena e Gilberto casaram-se na Basílica da Estrela, rodeados pelos familiares mais chegados e por alguns amigos. Apesar da magnificência do sítio, e das flores exóticas que enfeitavam o altar e os bancos corridos da igreja, foi um casamento discreto e sem agitações. Os pais do noivo acolheram Madalena na família como se sempre soubessem que seria ela a escolhida e a mãe de Madalena, viúva há muitos anos, recebeu Gilberto como se de um novo filho se tratasse. Logo depois do casamento, antes mesmo de partirem ambos em direcção ao aeroporto e, depois, à Tailândia dos seus sonhos, Mariana ainda teve tempo de dizer a Madalena, em tom de brincadeira:

- Da próxima vez que fores a um restaurante exótico, vê lá o que te acontece...

Riram ambas, abraçando-se em jeito de despedida.

Madalena voltaria apenas daí a quinze dias e seria pouco provável que telefonasse entretanto...

 

Quando o avião começou a ensaiar a aproximação ao solo, Madalena apertou a mão de Gilberto e sentiu a ansiedade a pesar-lhe no estômago. Não tinha nenhum medo de andar de avião, nem sequer de aterrar, como acontecia com Mariana. Mas a aproximação do sítio que tanto queria conhecer e que tinha um papel tão importante na vida do seu novo marido deixava-a muito nervosa. Como seria, na realidade, a Tailândia, longe do restaurante exótico junto ao rio, em Lisboa? Madalena sentia-se fascinada com as imagens da Tailândia, mas nunca pensou que a realidade superasse profundamente todas as fotografias que vira. Assim que saíram do aeroporto de Banguecoque, Madalena ficou sem palavras perante tamanha beleza. Gilberto, por seu lado, estava comovido pelo regresso à terra de origem dos seus pais e não conseguia dizer quase nada. Depois de algum tempo de espera, apanharam um táxi e deixaram-se conduzir assim, naquele silêncio confortável, até ao hotel onde ficariam instalados.

Chegados ao quarto, com uma janela que se rasgava para a paisagem belíssima do canal, os noivos abraçaram-se e Madalena sussurrou:

- É linda, a tua terra. Podia viver aqui para sempre...

- Infelizmente, temos ambos de voltar para os nossos trabalhos em Lisboa. Mas enquanto isso não acontece, vamos fazer destes dias os mais inesquecíveis das nossas vidas! Vem, vamos passear na praia fluvial que se vê aqui da janela. Vais ver que é um dos sítios mais bonitos que alguma vez conheceste. E é a ”minha” praia, a praia da minha infância, onde brincava com amigos que já não vivem aqui e que, provavelmente, pouco se lembrarão do ”Português”.

- Não digas isso, Gilberto. Tenho a certeza de que nenhum deles se esqueceu de ti - disse, beijando-o ternamente e afastando dos seus olhos aquela tristeza nostálgica que parecia querer apoderar-se dele. Já de fato de banho e roupa de praia, Madalena e Gilberto apanharam o primeiro riquexó que passou à porta do hotel e dirigiram-se para a praia mais próxima, uma extensão de areia a perder de vista, branca como a luz que envolvia todo o local, e com o azul forte da água a vislumbrar-se ao longe. Caminharam durante muito tempo, absorvendo a beleza da paisagem em silêncio e tocando nas mãos um do outro a cada passo. O desejo tornou-se mais intenso com o passar dos minutos e Madalena acabou por parar, aproximando-se devagar do corpo de Gilberto e acariciando-lhe o torso nu. Gilberto estremeceu e fechou os olhos, procurando gravar aquele momento para sempre na sua memória. Quando abriu os olhos, Madalena estava nua e, para além deles, não havia mais ninguém naquela praia deserta. Beijando-se sem parar, aproximaram-se de uma pequena embarcação tradicional que parecia abandonada e deixaram-se cair lá para dentro, tocando-se e dizendo um ao outro palavras impronunciáveis. Os corpos nus de ambos misturavam-se ao sabor do desejo, despertando sentidos que pareciam adormecidos. Gilberto percorria o corpo de Madalena com a ponta dos dedos, enquanto esta se aproximava mais e mais, tornando o seu corpo e o de Gilberto apenas um.

Por entre as carícias e os beijos, nenhum dos dois se apercebeu do balançar do pequeno barco. Pensaram que a turbulência se devia à agitação dos seus corpos enquanto faziam amor como se fosse a primeira vez... Quando o sossego lhes venceu as forças, Madalena e Gilberto descobriram-se rodeados de água por todos os lados. A princípio assustaram-se, julgando-se muito longe da costa. Mas depois Gilberto reconheceu a proximidade de um canavial que desembocava na praia e onde costumava apanhar rãs quando era uma criança e as férias com os pais o levavam até ali. Remou vigorosamente, com a ajuda de um ramo que por ali estava caído, e trouxe Madalena até ao local de onde tinham partido, antes de se perderem de desejo no corpo um do outro. E foi entre gargalhadas bemdispostas que colocaram os pés em areia firme, voltando a colocar os fatos de banho antes de regressarem ao hotel.

 

O regresso a Lisboa deu-se quinze dias depois, com pouca vontade mas com a alegria de quem se prepara para partilhar uma vida nova.

Madalena e Gilberto decidiram que a casa de Madalena seria o seu ninho de amor. Para além de não ser alugada, ao contrário da casa onde Gilberto vivia anteriormente, tinha sido decorada por Madalena na altura em que um jantar no restaurante tailandês começara a mudar a sua vida. E nunca a decoração de uma casa retratou de maneira tão fiel os sentimentos de quem a habita. Madalena e Gilberto sentiam-se a viver um sonho exótico, mesmo sabendo que se encontravam em Lisboa, a muitos milhares de quilómetros das águas paradisíacas onde passaram a lua-de-mel. Agora, de regresso aos seus trabalhos, partilhavam os dias entre os momentos de paixão e de loucura, amando-se como se ainda estivessem recém-casados, explorando um país distante e muito quente e trocando o corpo pelo desejo por entre canaviais e embarcações perdidas.

Madalena já nem sequer se lembrava de António, das discussões e das lágrimas que ocuparam aquele apartamento durante tanto tempo. Tempo demais, como dizia Mariana e como a própria Madalena reconhecia, agora que tinha encontrado a felicidade nos braços acolhedores de outra pessoa.

Gilberto, por seu lado, continuava a dar aulas de condução, planeando abrir uma escola própria. Já tinha nome, claro: a Estrada da Vida. Primeiro tinha pensado em Estrada do Amor, mas pareceu-lhe pouco adequado para uma escola de condução. No entanto, era isso que sentia quando se lembrava das primeiras aulas de Madalena e queria que o seu novo negócio prestasse homenagem à mulher que amava e que lhe mudara, definitivamente, a vida. Uma vez por ano, passaram a deslocar-se à Tailândia durante as férias, chegando mesmo a levar consigo os pais de Gilberto, cheios de saudades da sua terra. E sempre que chegavam a Banguecoque, o destino era o mesmo: a praia fluvial onde um canavial escondia algumas embarcações abandonadas e onde Gilberto e Madalena faziam amor como se fosse a primeira vez, os corpos molhados com o calor e as ondas e os olhos fechados à espera do anoitecer. Ali tinham alcançado um nível de entendimento só acessível aos casais que beneficiavam da protecção dos deuses e ali regressavam todos os anos, com o desejo pronto para se cumprir e a certeza de que se amariam para o resto da vida, em Lisboa ou na Tailândia.

 

                                                                                Adriana Assunção

 

 

                      

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