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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTRANHA / Hilda Pressley
A ESTRANHA / Hilda Pressley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

A ESTRANHA

 

Sara percorria as ruas da antiga cidade de Suffolk, feliz por estar na última etapa de sua longa jornada. Dirigira desde as oito horas da manhã, com um intervalo para o almoço, e já eram quase quatro horas. Os rochedos escarpados de Yorkshire e as sólidas casas de pedras cinzentas tinham sido há muito deixados para trás. Agora o terreno era mais suave, mais verde e as casas eram feitas de madeira ou de tijolos e pedras.

Como ficara contente em deixar Yorkshire para trás! Não por causa dos seus habitantes, que amara e compreendera porque também ela era nortista. Cordiais e amigáveis, mas francos de uma maneira que o pessoal do sul jamais compreenderia, sentira-se em casa com eles. Que tipo de gente encontraria em Norfolk e Suffolk?

Contra sua vontade, Célia apareceu em seus pensamentos. Sara não sabia do ciúme e da aversão que a noiva do Dr. Gregory nutria contra ela, até que o próprio David lhe contou. Ela nunca mais entraria em sociedade com um médico noivo ou casado. Com o tio John, estaria livre desse tipo de coisa.

— Tio John, velho amigo de seu pai, era um viúvo de meia-idade. Recentemente, sua saúde vinha falhando, mas a clientela aumentava. Quando ele escrevera dizendo que vinha pensando em contratar um assistente, Sara ficara feliz em oferecer os seus serviços, e ele encan­tado em aceitar a oferta.

Sara achava que poderia ser feliz ali. A clientela do tio John — ela sempre o chamara de tio; parecia estranho chamá-lo de outra forma — se espalhava por uma área bastante grande, que compreendia diversas aldeias. Muitos pacientes eram agricultores, naturalmente. Agricultores, silvicultores e operários das novas fábricas que ela tinha visto, pouco antes de entrar na cidade. Muitos destes últimos seriam londrinos, é claro, alguns tão novos quanto ela própria. Como estariam se adaptando? Como ela própria se adaptaria? Haveria atividades nas aldeias, das quais ela pudesse participar? Teatro, talvez? Seus lábios se curvaram num sorriso divertido. Havia sempre a Associação das Mulheres. Sara acreditava que havia uma em cada aldeia. Nunca tivera experiência com o movimento da Associação das Mulheres, mas lera vários artigos sobre ela em jornais e revistas. Tinha ouvido falar que era ótimo para as mulheres do campo.

Nesse lado da cidade, a estrada atravessava cerca de dezesseis quilômetros do bosque, ou "reserva de caça", como eles chamavam. Sara via de relance faisões de caudas longas, com as penas bonitas e sedosas brilhando ao sol fraco. Também havia cervos, mas eram muito assustados para se mostrarem à luz do dia.

Diminuiu a marcha num cruzamento e seguiu o sinal que indicava a East Norton, onde John Henderson tinha sua casa e consultório. Agora havia duas fileiras de casas onde antes havia uma estradinha. Eram modernas, com entrada para carro e janelas amplas. Elas são bem bonitas, pensou Sara, mas preferia uma casa do tipo antigo. Por enquanto, todavia, deveria morar com o tio John na grande casa quadrada situada um pouco além da antiga Praça do Mercado, agora não mais mercado, mas estacionamento de automóveis. O progresso pensou, nem sempre é para melhor.

Sentindo um pouco de ansiedade, virou na entrada para carros da casa de tio John. Tinha chegado. Sua nova vida estava para começar, com seu novo colega, o querido tio John! Alto, com os cabelos come­çando a ficar grisalhos, fazendo-o parecer mais simpático do que nunca, e os olhos azuis cintilantes, tio John gostava de uma boa piada.

A porta da frente se abriu, mas, ao invés de tio John, como espe­rava, era a governanta quem estava lá, dando-lhe um sorriso de boas-vindas e estendendo a mão.

— Boa tarde, Dra. Martindafe. Fez uma boa viagem? Sara apertou a mão que lhe era oferecida.

— Fiz, obrigada, Sra. Benson. Como vai?

— Muito bem, obrigada, senhorita...   Desculpe. Quero dizer doutora.

Sara sorriu.

— Está tudo bem, Sra. Benson. Vamos deixar de lado essas trivia­lidades. O Dr. Henderson está em casa? — perguntou, entrando no vestíbulo.

— Sim, senhorita, mas está descansando.

— Descansando?

Sabia que ele tinha estado doente, mas tio John não era dessas coisas. Estava para perguntar sobre sua saúde, quando a voz dele soou, vinda do topo da escada.

— É você, Sara? Já vou descer querida.

Sara foi até o pé da escada.

— O senhor está bem, tio John? Eu posso subir se quiser.

— De modo algum, querida. Fique à vontade aí na sala, que a Sra. Benson vai fazer um chá.

Quando ele entrou na sala, depois de alguns minutos, Sara ficou chocada. Seus cabelos estavam completamente grisalhos. O corpo, outrora tão aprumado, estava curvado e frágil. Havia círculos escuros debaixo dos olhos, as faces outrora firmes estavam frouxas e a pele embaixo do queixo pendia em dobras. Ela conteve uma exclamação de espanto e tristeza. Todavia, nos olhos dele ainda havia aquele brilho bondoso e alegre.

— Sara querida, não sei dizer o quanto estou feliz em vê-la! — Segurando as suas mãos nas dele, olhou-a com estima. — Você está mais bonita do que nunca. Bem-vinda a Ashton House.

Beijou-a em ambas as faces, e foi com esforço que ela conteve as lágrimas.

— É tão bom vê-lo, tio John! E o senhor me parece tal qual eu me lembrava. É bom estar aqui também.

— Estou ficando velho querida... O fato de tê-la aqui já começou a me remoçar.

Mas tinha sido alguma coisa além dos anos que alterara a sua aparência.

— O senhor tem trabalhado demais — ela lhe disse, enquanto a Sra. Benson trazia o chá e arrumava os pratos de bolos, bolinhos de aveia e pão com manteiga.        

— Bem, não vou mais ter que trabalhar tanto com você aqui, não é? — ele disse, com um sorriso. — E tenho certeza de que o Dr. Crombie também ficará contente.

— Dr. Crombie?!

John Henderson confirmou, com um aceno de cabeça.

— Ele tem um consultório em Wickham. . . Wickham St. John. É um bom sujeito. Não sei o que teria feito sem ele. Às vezes atende os meus pacientes, e eu atendo os dele. Nossas aldeias estão ficando cada vez mais populosas. Muita gente que está saindo de Londres prefere morar aqui e não em Ketford. Acho que você viu as fábricas e as novas casas, quando veio para cá.

Sara não sabia que havia outro médico tão perto. Mas não iria trabalhar com ele, não tinha que se preocupar com isso.

Respondeu às perguntas de John Henderson e indagou sobre sua família e seus filhos. A esposa tinha morrido há dez anos e o filho mais velho, Jeffery, estava exercendo a advocacia na região central da Inglaterra.

— Ele, Molly e seus dois filhos vieram aqui passar duas semanas durante o verão — tio John lhe contou. — O menino é a cara do pai, mas duvido que siga a mesma carreira, Ele me pareceu mais interessado nos "Anjos de Branco" que em Perry Mason. Ficava no meu consultório sempre que podia, experimentando o meu estetoscópio e me fazendo um check-up, o danadínho. Sue, é claro, é como a mãe, e gosta de tirar fotografias com as roupas dela.

Sara estava bem contente por ter vindo. Poderia atender a todos os chamados noturnos e aos que fosse feitos quando o tempo esti­vesse ruim.

O tio John passou a falar sobre o seu segundo filho, professor da escola secundária local, cuja esposa, Alys, também lecionava.

— Os dois filhos estudam num colégio interno. É bom tomar cuidado com Alys. Ela participa ativamente de todas as associações comunitárias e é capaz de convocá-la para as Jovens Escoteiras, ou qualquer coisa parecida!

Sara sorriu. Ela se lembrava de Alys, encantadora, ativa e inteli­gente, com um amor profundo pela vida no campo.

— Não sei nada a respeito das Jovens Escoteiras — respondeu —, mas espero, com o tempo, participar de algumas atividades da aldeia.

— Se depender de Alys, você participará! Não ficaria surpreso se você terminasse como presidente da Associação das Mulheres.

Sara ia responder, quando o telefone tocou. Ambos ficaram ouvindo enquanto a Sra. Benson atendia. Pouco depois, ela entrou na sala.

— O que foi Jessie? — Henderson perguntou.

— É a recepcionista do Dr. Crombie. . .

Sara percebeu um leve escárnio na maneira como a governanta disse "recepcionista". Achou inusitado o fato de um médico do interior ter recepcionista.

— O que aconteceu? -— indagou John Henderson.

— O doutor saiu para atender a um cliente e há um chamado urgente da filha da Sra. Lovell. A mãe dela caiu da escada e não quer voltar a si...

— Está bem, Jessie. Diga a srta. Bridges que já vou.

— Mas, doutor, o senhor não terminou o chá...

— Não faz mal, Jessie. Faça o que estou dizendo.

Jessie saiu da sala, resmungando, e John Henderson levantou-se rapidamente da cadeira.

— Jessie está ficando mandona depois de velha. Desde que adoeci, ela ficou desse jeito. Mas é bem-intencionada.

— Tio John, deixe-me ir — disse Sara.

— Não, não, meu bem, eu nem sonharia em deixá-la ir. Amanhã pode ser. Não, hoje você fica aqui e vai arrumando as suas coisas. Eu...   — E interrompeu-se subitamente, ficando parado, o rosto empalidecido.

— Tio John, o que foi? — perguntou Sara, preocupada.

— Não... É nada. — E ofegou por uns segundos. — Vai passar.

— Sente-se, tio John. Vou até o consultório buscar alguma coisa para o senhor.

— Sara, não faça um estardalhaço por causa disto. Eu lhe garanto que não é nada. Estou bem agora.

— Está certo. Vou deixá-lo descansar um pouco.

— Sara. . . Sinto muito — disse o médico, olhando-a bem.

— Não há o que desculpar, Termine o seu chá. Vou falar com Jessie. — E saiu à procura da governanta.

— Jessie, o Dr. Henderson não está passando bem!

— Oh, senhorita, não me diga que ele teve outro ataque.

— Ele os tem sempre, não? Bem, escute Jessie... O doutor está descansando um pouco. Tenho certeza de que ele tem algum remédio à mão. Sabe me dizer como posso encontrar essa Sra. Lovell? Vou atendê-la. Pode dizer isso a ele, depois que eu tiver saído.

— Oh, obrigada, senhorita. . . Quero dizer doutora. — E deu o endereço a Sara. — É muito fácil, e se errar o caminho qualquer um pode orientá-la.

Sara tinha no carro a valise que levava sempre por toda parte. Deu a partida e saiu, repetindo mentalmente as instruções de Jessie, enquanto ia pensando que o tio John estava mais doente do que ela pensara. Uma grande quantidade de trabalho iria pesar em seus ombros.

Localizou sem dificuldades o chalé de telhado de palha e encontrou a velha senhora, já consciente, mas muito abalada. Tinha a pele fria e úmida e o pulso muito fraco, mas não havia fraturas. Muito sensa­tamente, sua filha a deixara onde ela caíra, pusera um travesseiro sob sua cabeça e a cobrira com um casaco.

— Ajude-me a levá-la para cima e deitá-la na cama — Sara pediu à filha, uma mulher de meia-idade.

Juntas, levaram a velhinha para cima.

— Obrigada, doutora — disse a Sra. Lovell, depois de estar insta­lada confortável mente na cama. — A senhorita é muito bondosa.

A velha senhora, ao que parecia, vivia sozinha. Como acontece frequentemente com pessoas idosas, ela se recusava teimosamente a morar com a filha, ou qualquer dos filhos. Sara disse à Sra. Allwood, a filha, que a mãe não deveria ficar sozinha ã noite.

— Sabe, Sra. Allwood, sua mãe pode piorar. Se ficar muito agitada ou não responder quando falarem com ela, a senhora precisa chamar o médico imediatamente. Tem alguém que a senhora possa mandar telefonar? Algum vizinho?

— Sim, eles têm telefone, doutora. Nossos vizinhos são de Londres — acrescentou a Sra. Allwood, como se isso explicasse tudo. — São artistas. Ele desenha caricaturas para os jornais e ela ilustra livros de crianças.

— E eles a deixam usar o telefone?

— A qualquer hora. São ótimas pessoas, quando se passa a conhe­cê-los melhor.

Sara sorriu. Era assim com a metade da população do mundo. Que estranhos mortais somos nós, que levamos tanto tempo para nos conhecermos? Pensou Sara.

— Está bem, então. Por falar nisso, ela deverá se sentir toda dolo­rida até amanhã. Teve muita sorte de não ter quebrado nenhum osso. Sua mãe deverá se levantar dentro de um ou dois dias, esperta como sempre.

— Quando a senhora voltará doutora? — perguntou a Sra. Allwood, enquanto descia a escada com Sara.

— Não sei. Acho que o Dr. Crombie virá esta noite ou amanhã de manhã. Vou dizer a ele o que aconteceu e que eu vim ver sua mãe.

Quando chegaram ao pé da escada, Sara viu através da janela um carro esporte vermelho que acabava de estacionar no chalé ao lado. Curiosa por ver o artista de quem a Sra. Alíwood falara, parou para observá-lo por trás das cortinas, enquanto ele abria a porta do carro e saía. Era jovem, alto, tinha cabelos castanho-escuros e vestia um paletó de tweed. Mas não o achou com aspecto de artista. Tinha idéias preconcebidas, é claro, mas o rosto daquele homem exibia uma expressão um tanto dura.

Sara afastou-se rapidamente quando ele olhou na direção da janela. Poucas pessoas gostam de ser apanhadas espionando e ela não era exceção. Só esperava que ele não a tivesse visto.

Esperou até que o vizinho entrasse em casa, e então abriu a porta para sair. Quando saiu, porém, ele olhou-a fixamente, observando de relance a valise de médico em sua mão.

— Quem, diabo, é você? — ele perguntou. Ela se aprumou de olhos arregalados.

— Posso lhe fazer a mesma pergunta. Mas, para a sua informação, sou a Dra. Martindale, a nova médica.

— É o quê?! — ele quase gritou.

Sara deu um passo atrás, surpresa e alarmada diante da expressão de descrença no rosto dele. Foi aí que ela reparou na valise na mão dele, e um pensamento súbito lhe veio à mente.

— O senhor é o... Dr. Crombie, é? — perguntou fracamente.

— É claro que sou!

— Bem, eu sou... — Sara geralmente não se deixava intimidar, mas, ao se defrontar com o Dr. Crombie desse jeito e ao vê-lo tão grosseiro, perdeu um pouco da sua compostura normal. — Eu... Eu vim examinar a Sra. Lovell.

— Oh, veio mesmo?

O sarcasmo em sua voz era inconfundível e Sara começou a ficar zangada.

— Escute aqui, Dr. Crombie — começou calorosamente, mas ele a interrompeu.

— Dra... Martindale — disse ele, procurando demonstrar paciên­cia —, se me dá licença, eu sou um homem muito ocupado. Obrigado por ter ido examiná-la. Eu não sabia que estava aqui, mas, já que vim, vou aproveitar para vê-la...   Se me deixar passar. Nós nos veremos em outra ocasião, não tenho dúvida. E quando isso acontecer, vou ter que dizer umas coisinhas ao Dr. Henderson, pode crer.

Sara afastou-se um pouco e ele entrou na casa, com um impulso agressivo.

Que homem estranho! Pensou ela, enquanto retornava a Ashton House. Por que estava tão zangado? Se tivesse havido algum engano, se sua recepcionista tivesse se esquecido de lhe dizer que telefonara ao tio John a respeito da Sra. Lovell, então era de se esperar que ele ficasse um poupo surpreso ao vê-la no chalé. Mas ele ficara mais do que um pouco surpreso. Ficara estarrecido! Mas, ele devia saber que o tio John precisava de um assistente!

Quando chegou em casa, encontrou o tio John muito melhor e também muito agradecido a ela.

— Está tudo bem, tio John — disse suavemente. — Conheci o Dr. Crombie.

Ele pareceu embaraçado.

— é mesmo? Oh!

Ela não pôde deixar de sorrir.

— O doutor ficou muito surpreso quando lhe disse quem eu era. Ele não sabia que eu viria?

— Bem. . . Sim. Mas... Acho que ele ficou com a impressão de que você era um... Quero dizer...

Não havia dúvida de seu embaraço. Sara balançou a cabeça,

— Quer dizer que o senhor não lhe disse que eu era uma médica? Tio John sorriu debilmente e ela percebeu um ligeiro brilho em seus olhos azuis.

— Eu queria fazer a ele uma surpresa. Convidei-o para vir jantar esta noite.

— Fazer uma surpresa a ele! O senhor certamente já lhe causou um choque. Pelo menos, eu causei. O senhor devia ter visto a cara dele.

O rosto de John Henderson se abriu num sorriso.

— Eu gostaria de ter visto. Saiu tudo errado. Eu não queria que vocês se encontrassem desse jeito.

— Eu sei — disse Sara, com um ar levemente acusador. — O senhor ia trazê-lo aqui, apresentá-lo e depois afastar-se um pouco para observar a expressão do rosto dele. — Ela balançou mais uma vez a cabeça, de maneira reprovadora. — Tio John, o senhor é um homem muito mau.

Ele deu uma risadinha.

— Na verdade, é um pouco engraçado, querida. Como vê, Jim é solteiro e vive tendo que se defender das investidas casamenteiras das mulheres da aldeia. Parece piada.

— Tio John! O senhor não está querendo dizer que esteve tentando. . . Arranjar as coisas entre nós?

— Não, não, querida, é claro que não! — ele negou vigorosa­mente. — Nem sonharia em fazer isso. Puxa vida, eu não quero perdê-la tão cedo. Eu só queria provocá-lo, isso é tudo. Mas, por Deus, agora você me deixou preocupado. Quero dizer, eu não quero que você se case com ninguém. Peio menos, ainda não.

— Ainda bem. — Ela riu ironicamente. — O senhor não preci­sava se preocupar conosco. Nós não simpatizamos um com o outro de jeito nenhum. Aliás, acho que ele foi muito grosseiro. O que há de errado com ele?

John olhou espantado para ela.

— Não há nada de errado com Jim. Ele é um sujeito maravilhoso. Oh, às vezes ele fica um pouco nervoso, mas no fundo...

— Ele tem um coração de ouro, não é? Eu aceito a sua palavra. De qualquer forma, espero que as mulheres da aldeia não venham bancar as casamenteiras comigo. Acho que o Dr. Crombie já deve ter muitos problemas com metade das moças da aldeia tentando fisgá-lo.

Enquanto da falava, os olhos de John Henderson foram se abrindo cada vez mais, até que um sorriso cômico brincou em sua boca.

— Puxa, Sara como você está diferente. O que houve com aquela menina doce e amorosa, que. . .

— Talvez ela esteja escondida bem lá no fundo, como o coração de ouro do Dr. Crombie!

Os dois riram.

— Sabe ter você aqui vai fazer bem ao meu coração — disse John. — Na verdade, já estou me sentindo melhor.

Ao ouvi-lo mencionar o coração, embora não se referisse a ele num sentido médico, Sara ficou séria.

— Tio John, quanto ao seu coração. . .

Mas ele sacudiu a cabeça rapidamente.

— Eu não quero falar nisso.

— Mas. . . Mas não seria melhor eu examiná-lo?

— Não. Definitivamente não, querida. Agora que você está aqui para me ajudar, estarei perfeitamente bem. Não quero que faça mais do que a parte que lhe cabe. Temos que planejar um sistema entre nós dois. Mas não esta noite. Você ainda precisa desfazer as malas e não se esqueça de que temos um convidado para o jantar.

— Oh, sim, o senhor convidou o Dr. Crombie, não foi? — E riu. — Bem, uma vez que já nos conhecemos, eu não ficaria surpresa se ele deixasse de vir. Caso ele venha, será por um motivo apenas.

— E qual é?

— O senhor vai descobrir, não tenho dúvida. Ele disse claramente que tinha umas coisinhas para lhe dizer. Portanto, é melhor tomar cuidado.

— Ah! O latido de Jim Crombie é pior do que a sua mordida, você vai ver.

Sara subiu para desfazer as malas. Suas primeiras horas em East Norten tinham sido bem movimentadas. Saíra para atender a um chamado, encontrara o outro médico. Mas, se o latido era pior do que a mordida ou não, ela não sabia. . ,

Sua mente estava realmente fixada em tio John. Será que o coração dele está muito ruim? Perguntou-se. Aparentemente, sim. Seu ataque teria sido um caso típico de angina?

Fosse o que fosse, era obrigada a concluir que o coração do velho médico estava numa condição muito perigosa. Ela teria que fazê-lo repousar o mais que pudesse. Mas, obviamente, ele detestava todo e qualquer estardalhaço a respeito disso. Teria que fazer as coisas com muito tato.

Sara foi instalada num quarto grande e agradável, com uma saleta de vestir e duas janelas, uma dando para frente da casa, com seu encantador jardim cheio de rosas; a outra dando para o quintal. Havia uma lareira artificial, com aquecedor e imitação de lenha, e duas pol­tronas confortáveis, que davam ao quarto uma aparência de sala de estar.

O som da porta de um carro se fechando a fez olhar para o relógio, compreendendo que já era quase hora das consultas da noite. Tio John não falara nada a respeito disso. Ele evidentemente não queria que ela começasse a trabalhar até o dia seguinte. Mas, em vista de seu ataque. . .

Desceu a escada e espiou a sala de espera. Já havia cinco pessoas sentadas, em silêncio; Fechou a porta novamente e foi até a cozinha, onde Jessie estava preparando o jantar.

— Sabe onde está o doutor, Jessie?

Jessie, que mexia no forno, se aprumou: — Acho que ainda deve estar no quarto, doutora.

— Ele geralmente se atrasa para as consultas? Há diversas pessoas na sala de espera, e já passa das seis horas.

Os olhos castanhos de Jessie se dirigiram para o relógio da cozinha.

— Bem, ele tem se atrasado ultimamente, e eu fico sem saber o que fazer. Como vê, se estiver repousando, eu não gostaria de incomodá-lo.

— Não se preocupe Jessie. Eu vou entrar e começar a atender as consultas até que o doutor desça. Acho que ele não vai demorar.

Sara chamou o primeiro paciente, controlando a ansiedade. Ela não deveria criar o hábito de se preocupar cada vez que o Dr. Henderson se atrasasse ou que parecesse cansado. Agora que ela chegara para auxiliá-lo, as condições dele certamente deveriam melhorar.

Sorriu para a mulher de meia-idade que entrou no consultório, e o sorriso se alargou quando ela viu o olhar admirado da paciente.

—É a nova assistente do doutor? — perguntou, com a voz aguda e num dialeto novo para Sara.

— Sou. Sente-se, por favor. O Dr. Henderson foi obrigado a se atrasar um pouco. Bem, o que posso fazer pela senhora? — Sara per­guntou, num tom de voz que supunha inspirar confiança.

— Oh, eu só quero mais um pouco daquelas pílulas que o doutor me deu.

— Muito bem. E pára que eram as pílulas?

A mulher a olhou fixamente, como se estivesse espantada com a pergunta.

— Bem. . . o Dr. Henderson sabe. Não é melhor eu voltar amanhã de manhã, quando ele estiver aqui?

Sara conteve um suspiro, imaginando que isso ainda aconteceria muitas vezes, até que ela passasse a conhecer todos os clientes muito bem, e que todos a conhecessem.

— Quer me dar o seu nome? Assim posso descobrir o que o Dr. Henderson vem lhe receitando.

— Oh, bem, neste caso, o nome é Tyler. Sra. Tyler.

— E seu nome de batismo?

— Dorothy.

Os arquivos ficavam ao lado da escrivaninha. Sara abriu a gaveta marcada R-T, e começou a procurar entre os cartões. Tio John tinha certamente um bom sistema de arquivos. Precisava se lembrar de dizer isso a ele. Taylor, Tennant, Torrey. . . Havia vários pacientes com o mesmo sobrenome.

— Ah, aqui está. Tyler.

Mas sua alegria durou pouco. Não havia nenhuma ficha de D. Tyler. Só uma de E. Tyler, e a paciente que se encontrava sentada no consul­tório no momento não poderia ser de modo algum a "Sra. E. Tyler, primípara, data provável do parto: “22 de junho". Talvez o sistema de arquivo de tio John não fosse tão bom assim.

— A senhora disse que seu nome é Tyler? — indagou. A Sra. Tyler confirmou o que dissera.

Uma outra idéia ocorreu a Sara.

— Como se soletra?

— Ora, do mesmo modo que todo mundo soletra esse nome. T-a-y-1-o-r — foi à resposta, num tom de voz que sugeria claramente que a nova médica era mentalmente retardada.

— T-a-y... Oh, é Taylor!

— Foi o que eu disse. Tyler.

Sara conteve o riso.

— Sinto muito, eu ouvi mal. Agora... Ah, aqui está. Sim, estou vendo. — Sara preencheu a receita. Precisava tomar cuidado com essas diferenças de pronúncia no futuro. — De resto, está tudo bem? — perguntou, entregando-lhe a receita.

— Bem, sim, tudo bem, obrigada... Doutora.

Sara atendeu ainda outros clientes, antes de John Henderson chegar ao consultório.

— Sara, eu não queria que você começasse a trabalhar esta noite. Que boas-vindas você recebeu!

O paciente seguinte ficou parado, indeciso, na porta.

— Está tudo bem, tio John, estou muito contente. Não houve nada de muito importante até agora.

— Não, está tudo bem — ele disse. — Agora, pode ir. Eu vou assumir; e obrigado por ter começado o atendimento.

Sara soube através de Jessie que o Dr. Crombie era esperado as dezenove e trinta. Vestiu, então, um vestido especial, um de seus pre­feridos, com o qual ela se sentia sempre à vontade por saber que lhe ficava bem. Ela era relativamente alta — cerca de um metro e sessenta e sete — e tinha cabelos loiros. Uma vez que estava usando vestido preto, penteou os cabelos num estilo alto e formal, e tomou muito cui­dado com a maquilagem. Tinha a sensação de que essa noite precisaria de todas as armas femininas à sua disposição, baseada no encontro que já tivera com o convidado de seu tio John.

Ela ficou em cima até a chegada do Dr. Crombie e entrou na sala de visitas quando ele e tio John estavam em pé, ao lado da lareira, conversando e tomando aperitivos.

Tio John tinha se trocado e usava terno escuro, camisa branca e gravata borboleta, e estava ainda bonito, apesar da idade e dos efeitos da enfermidade. Sara olhou de relance para o visitante, que usava um terno fino de twend verde-claro e marrom, camisa escura e gravata muito bonita e distinta. Depois, sua atenção foi atraída para o perfil dele, delineado nitidamente contra a parede clara.

Era um bonito perfil, feições bem definidas e inteligentes, e o queixo forte. Além disso, havia uma expressão bondosa e delicada em seu rosto, enquanto ouvia o que o Dr. Henderson estava dizendo. Sara sentiu algo dentro dela se enternecer.

Quando notaram sua entrada, os dois homens se viraram e, pela segunda vez naquele dia. Sara encontrou-se olhando diretamente nos olhos de Jim Crombie. Houve uma pausa antes que tio John falasse, e, durante essa pausa, Sara teve a estranha sensação de que Jim Crombie iria ter um significado muito especial em sua vida. Mas de que modo? Como se estivesse em transe começou a andar na direção dele.

 

— Ah, você está aí, querida! Venha conhecer Jim direito.

A voz de tio John a fez sair da espécie de transe em que se encon­trava. O que teria acontecido com ela? Deu um passo atrás, fechou a porta e atravessou a sala. Jim Crombie olhava-a com sorriso zombeteiro.

— Ora, ora, que transformação! Como vai, Dra. Martindale? Bem-vinda a East Norton.

— Obrigada — ela respondeu, no mesmo tom descontraído. — Devo dizer que o senhor também está um pouco diferente.

— Bem, nós, caipiras do interior, fazemos o que podemos. Natu­ralmente, se eu soubesse que você estaria tão magnífica, teria posto o meu terno de missa.

Sara sorriu, mas não respondeu.

— Agora, o que você vai tomar. Sara? Xerez? Ela se sentou e cruzou as pernas elegantemente.

— Sim, obrigada, tio John.

O Dr. Crombie dirigiu-lhe um olhar rápido e inquiridor.

— Tio John?

— Ele é o amigo mais antigo de meu pai. Eu o chamo de tio John desde pequena.

— O seu pai é médico?

— Meu pai morreu há alguns anos.

— Sinto muito — ele murmurou rapidamente.

— E também era médico, sim — ela prosseguiu. — Ele trabalhou num hospital durante anos.

— Mas você prefere a clínica geral. O que a trouxe a East Norton? Sara achou que já lhe havia dado informações suficientes, por enquanto.

— O senhor faz muitas perguntas, Dr. Crombie -— disse brandamente.

— Ele é um homem perguntador — disse o Dr. Henderson — mas trata-se mais de interesse do que de simples curiosidade. Aliás, eu espero que vocês dois não pretendam ficar chamando um ao outro de doutor e doutora o tempo todo. Quero que vocês sejam amigos-

Sara procurou falar primeiro.

— Tio John, o senhor sabe que eu faria qualquer coisa pelo senhor.

— Puxa mesmo a ponto de me chamar de Jim? — o Dr. Crombie perguntou, ironicamente.

— Até esse ponto — ela retorquiu.

— Ora, ora, isso é que é bondade!

Sara tomou um golinho de seu xerez, antes de acrescentar;

— Vou mais longe ainda. Você pode me chamar de Sara.

Jim Crombie caiu na gargalhada. — Sabe, você é muito divertida. Estou vendo que vai ser muito divertido tê-la por aqui.

— Eu não apostaria nisso — ela respondeu.

John Henderson olhava de um para outro, com um sorriso no rosto, evidentemente gostando do duelo.

— Faz-me um bem enorme ouvir vocês dois — ele disse. — Vejo que vão se dar muito bem.

— Faremos o possível, não é... Sara? — disse o Dr. Crombie, zombeteiramente.

Jessie entrou a essa altura, para lhes dizer que o jantar estava pronto. Enquanto se encaminhavam para a porta, Sara perguntou-lhe se precisava de ajuda.

— Oh, não, obrigada, doutora. É uma refeição muito simples.

Mas atrás de si, Sara ouviu Jim Crombie murmurar:

— Ela vai ser muito, muito útil, John. Ela também canta como soprano?

Sara tentou ficar zangada, mas o máximo que conseguiu foi dar um risinho silencioso. Muito espirituoso esse Jim Crombie! Gostaria de saber por que não se casara. Será que ele era tão difícil de agradar?

— Você pertence a alguma associação desta aldeia? Ou de Ketford? — ela lhe perguntou, enquanto servia a sopa.

— Associação? — ele repetiu. — De que tipo?

— Como é que eu posso saber? Acho que você ficaria muito bem num teatro.

— Acha, é? E você?

— Eu? Oh, eu canto como soprano, não sabia?

A surpresa dele foi completa e tio John quase se dobrava de tanto rir.

— Você encontrou alguém à sua altura, meu rapaz, pode estar certo!

— Assim parece — Jim Crombie respondeu secamente. — E o que você faz, além de cantar como soprano? Imagino que também deva representar bem no palco. Mas aqui vai um conselho: não se envolva demais com nenhuma associação da aldeia.

— Por que não?

— Elas tomam muito tempo.

— Bom quem deve resolver isso sou eu, não é mesmo?

Jim Crombie voltou-se para John e disse, com ironia:

— Ela também tem opiniões próprias. É bom tomar cuidado com isso, John. Dentro de pouco tempo ela estará segurando as rédeas da casa.

— Eu posso agüentar isso. . . E com prazer — observou John. — Só espero não sobrecarregá-la demais. Sabe que ela atendeu metade dos meus pacientes, hoje? Como foi que se saiu, Sara, por falar nisso? Não tivemos tempo de conversar a respeito.

Ela lhe contou sobre a confusão do nome Taylor, e ele riu. Mas, por algum motivo, Jim não achou aquilo nada engraçado.

— O povo de Norfolk é o melhor que existe — disse o Dr. Crom­bie calmamente. — Mas é preciso conhecê-lo bem, antes de tomar certas liberdades.

— Eu não caçoei de ninguém! O que houve foi um engano.

A voz de tio John interveio:

— Vamos, vamos, crianças, deixem disso! Jim, você não devia acusar Sara de caçoar dos pacientes. Ela não é a primeira a cometer um engano como esse, ao ouvir o nosso dialeto de Norfolk pela primeira vez.

Sara notou que o riso tinha desaparecido dos olhos de John e que agora havia um franzimento em seu cenho. Percebeu que significava muito para ele que Jim Crombie e ela se dessem bem. Por isso, começou a sentir raiva de Crombie, mas se conteve em consideração a tio John.

Jim Crombie sorriu.

— Peço que me desculpe Dra. Martindale.

— Certamente, Dr. Crombie.

Ela viu o rosto de tio John se descontrair, e o resto da refeição prosseguiu sem alfinetadas. Jessie levou o café à sala de estar e, depois de perguntarem a Sara se ela se incomodava, os dois homens acenderam os cachimbos. Sara serviu o café, gostando muito da cena doméstica. Como não conhecera a mãe, era muito chegada ao pai e sentia muita falta dele, principalmente ao ver tio John sentado tão placidamente. Jim Crombie também parecia à vontade, e ela ficou pensando sobre quem lhe faria companhia à noite, após um dia de trabalho, quando não precisasse sair para atender a algum caso. Quase no mesmo instante em que eles terminaram o café, o Dr. Crombie se levantou para sair, dizendo que tinha que visitar um paciente.

— Bem, foi uma noite muito calma, até agora — Sara comentou. — É sempre assim?

A observação provocou um riso irônico em Jim Crombie, mas John Henderson comentou bondosamente:

— Bom, não, querida, de modo algum. A noite esteve excepcional­mente tranqüila por um motivo ou outro. Mas às vezes é um corre-corre danado!

O Dr. Henderson fez menção de acompanhá-lo até a porta, mas o Dr. Crombie pôs as mãos sobre os seus ombros e empurrou-o delica­damente de volta à poltrona.

— Não se incomode John, eu sei o caminho. Ou, melhor ainda, talvez a Dra. Martindale queira me dar essa honra —- acrescentou, dando-lhe um olhar significativo.

Sara teve a sensação de que havia algo que ele queria lhe dizer, e respondeu, mantendo o mesmo tom de brincadeira:

— Eu ficaria encantada. . . Se fosse apenas para me certificar de que você vai embora realmente.

John deu uma risadinha.

— É melhor vestir um casaco, Sara, se você for lá fora. Eu não quero que você pegue um resfriado. Boa noite, Jim, vejo-o em breve. Chegando ao vestíbulo, o rosto de Jim Crombie ficou sério.

— John tem razão. É melhor buscar o seu casaco — disse, en­quanto Sara o seguia até a porta da frente. — Eu gostaria de lhe dar uma palavrinha, se não se importa, e está frio lá fora.

— Está bem. Tenho que ir até lá em cima, mas já volto logo.

Sara subiu para buscar o casaco, sentindo-se um pouco como uma menina de colégio prestes a levar um sabão. Mas era ridículo sentir-se assim, pensou. Não conseguia imaginar o que ele queria lhe dizer, mas não iria permitir que ele a intimidasse.

Quando chegou lá fora, ela foi diretamente ao assunto:

— O que tem para me dizer, Dr. Crombie?

— Para começar, acho que, para o bem de seu tio, seria melhor nos acostumarmos a nos tratar como Jim e Sara.

— Como queira.

— Depois, acho que seria melhor se, quando ele estiver por perto, nós deixássemos de lado nossas prováveis diferenças de opinião.

Ela lhe dirigiu um olhar zangado.

— Você está prevendo que haverá diferenças?

— Você deve admitir que não começamos lá muito bem — salien­tou Jim, brandamente.

— Você não pode me culpar por isso — respondeu Sara, aspera­mente.

— Se está se referindo ao nosso encontro perto da casa da Sra. Lovell, devo-lhe desculpas. Você me pegou de surpresa, e eu tive um dia infernal. Além disso, eu só tinha recebido metade do recado.

— Está certo, aceito suas desculpas.

Jim Crombie lhe dirigiu um olhar rápido e penetrante, como se tivesse uma resposta sarcástica na ponta da língua, mas limitou-se a observar:

— Acho que você percebeu que ele está doente.

— é claro! Para falar a verdade, estou preocupada com ele. Ele teve um ataque esta tarde, e tudo que fez foi levantar depressa da cadeira. Foi por isso que saí para atender a Sra. Lovell. Eu saí sem ele saber.

— John não quer que eu o examine — disse o Dr. Crombie.

— Eu também me ofereci.

— £ teimoso como uma mula! Mas gosto dele.

— Isso é algo que temos em comum, pelo menos — disse Sara, com um leve sorriso.

— Sim. — Houve uma pausa, quando Jim abriu a porta do carro. — Bem, não podemos forçá-lo a fazer nada que não queira. De qualquer modo, estou contente que você esteja aqui, pelo bem dele. Ele. . . Gostou de nossas respostas malcriadas. Como eu disse, nós podemos discordar. Mas é melhor você voltar para dentro agora, senão ele ficará preocupado. E claro que você poderia lhe dizer que estivemos batendo um papo amistoso. Isso o alegraria muito. Boa noite.

Ela estava tão zangada que não conseguiu responder. Jim tinha posto na cabeça a idéia de que deveriam fingir que gostavam um do outro, isto é, já decidira que não gostava dela. Era realmente um homem insuportável! Afortunadamente, não iriam trabalhar juntos. Sara pendurou o casaco no cabide do vestíbulo e, forçando um sor­riso, voltou à sala de estar. John Henderson a saudou.

— Bem, o que acha dele, agora que o conheceu em circunstâncias mais apropriadas, hein?

— Oh, nada mal. Ele tem muito senso de humor — disse Sara, com cuidado.

— Sim, mas devo reconhecer que você o fez abrir-se. Eu sabia que vocês se gostariam. Eu disse que você gostaria, não disse?

Ela sorriu e sentou-se, procurando mudar logo de assunto.

— Tio John, acha que podemos falar sobre como é que o senhor gostaria que nós trabalhássemos?

— Bem, querida, acho que podíamos ficar no consultório por turnos. Você pode ficar uma semana com o atendimento da manhã e outra com o atendimento da noite. Alguma coisa assim. O mesmo acontece com as visitas de rotina. Enquanto você fica no consultório, eu vou fazer as visitas, e vice-versa. Tenho certeza de que tudo vai dar certo. Entretanto, se tiver outras idéias, não hesite em me dizer. Aliás, você deve considerar isso uma sociedade, o que eu espero que venha a ser, assim que você se sentir acomodada.

Ela sorriu.

— Obrigada, tio John, mas o senhor não precisa se preocupar com isso. Eu só estava pensando que, se não se importa, eu preferiria sair para fazer visitas a ficar sentada no consultório.

— Está tentando me poupar de esforços, Sara? — disse ele, sorrindo.

— Ora, não, tio...

— Tem certeza? Eu acho que você está.

Sara pensou que não havia nenhuma vantagem em negar e, por isso, assentiu:

— Bem, talvez eu esteja um pouquinho. Mas, falando com toda a sinceridade, tio John, eu realmente preferiria trabalhar fora. Nunca liguei muito para o atendimento no consultório.

— Está bem, querida, se é isso que você quer realmente. Natural­mente, às vezes eu vou ter que sair para fazer visitas, senão o pessoal de Norton vai achar que estou perdendo o interesse por ele. Além disso, é muito provável que haja um chamado urgente enquanto você estiver fora. — Fez uma pausa e prosseguiu: — Já que tocamos no assunto, há a questão dos chamados noturnos. Vamos atender a esses por turnos.

— Não, tio John, eu não queria parecer tão insistente. Mas temos que ser sensatos quanto a isso.

— Você quer dizer que eu devo ser sensato.

— Eu só quero que o senhor seja razoável. Eu sou jovem e saudá­vel, e o senhor... Não é tão jovem e não está tão bem de saúde. Portanto, é mais do que lógico que, se houver um chamado no meio da noite, eu vá atendê-lo. Eu pensaria da mesma forma se as situações fossem inversas. Além do mais, isso ê outra coisa de que gosto, sinceramente.

O Dr. Henderson olhou para ela, descrente.

— O quê? Você gosta de ter que sair da cama no meio da noite?

— Bem, sim... Há uma espécie de drama nisso, uma sensação de ser útil... Digamos que isso me dá uma sensação de importância. De qualquer forma, adoro ficar andando por aí enquanto o resto do mundo está dormindo.

— Está certo, você venceu. Você seria capaz de vender uma gela­deira a um esquimó, não é? Não é de se estranhar que Jim Crombie tenha me prevenido sobre você — disse tio John, de modo provocador.

Sara deixou esse comentário passar sem responder, muito satis­feita por John ter permitido que ela fizesse as visitas, especialmente à noite. Queria impedir a todo custo que ele saísse quando o tempo estivesse ruim, ou que se levantasse subitamente no meio da noite.

Foi só depois que ela se recolheu que percebeu que não havia um telefone no quarto. A primeira coisa que faria no dia seguinte seria pedir à companhia telefônica para mandar instalar uma extensão ao lado de sua cama.

Cansada por causa da longa viagem e pela excitação de estar num lugar novo, deitou-se prazerosamente, sentindo que realmente haveria muito trabalho a ser feito, que teria a oportunidade de poder servir. Diante dela se descortinava um futuro agradável, sem grandes com­plicações. Resolutamente, procurou afastar a imagem do Dr. Crombie da mente.

Sara gostou muito dos dias seguintes. Embora sempre tivesse gos­tado do campo, essa era a primeira vez que estava realmente morando numa zona rural. Havia uma diferença enorme entre as aldeias de mineração de Yorkshire e essas aldeias agrícolas. Nas primeiras, as zonas rurais entre as cidades e essas aldeias eram estragadas pelas feias bocas das minas e os amontoados de escória. Onde estava agora, os montes eram de beterrabas para fazer açúcar, e, em lugar das chaminés, havia pilhas de feno. As pessoas também eram diferentes quanto ao dialeto e o modo de encarar a vida. O comportamento reservado dessas pessoas do campo, seu modo de falar lento, suave e musical, estavam em contraste direto com a afabilidade desinibida e com a franqueza rude dos nortistas.

Sara foi visitar um agricultor que estava sofrendo de bronquite aguda. O homem estava beirando a idade da aposentadoria e, para a surpresa de Sara, estava sozinho em casa.

— Sua esposa está fazendo compras, Sr. Scott? — ela lhe perguntou.

Ele balançou a cabeça negativamente. — Ela saiu para trabalhar, mas estará de volta há uma hora.

— Saiu para trabalhar? — ela repetiu incredulamente. — Qual é a idade dela?

— Oh. . . Sessenta e dois ou sessenta e três anos. — Não é por minha culpa que ela sai para trabalhar, doutora. Eu procuro ganhar o mais que posso... — Ele interrompeu-se e tossiu penosamente.

— Sim, é claro! — disse ela depressa. — Eu não o estava culpan­do. Agora, deixe-me escutar o seu peito.

Havia o habitual frêmito bronquial e numerosos estertores, mas, felizmente, não havia broncopneumonia.

— O senhor já terminou o remédio que o Dr. Henderson lhe receitou?

— Quase, doutora. O vidro de remédio está em cima do lavatório.

— E sua tosse está mais solta do que antes?

— Um pouco, mas ainda está presa.

— Bem, vamos manter a mesma medicação durante um dia ou dois. O senhor contraiu essa doença trabalhando ao ar livre, com qualquer tempo.

— E um dos riscos da profissão, pode-se dizer. E a aragem da terra que faz isso, ficar sentado nos tratores.

— Talvez seja. Por que os tratores não têm capota ou algo pare­cido, como um carro?

Jack Scott arregalou os olhos.

— Meu Deus, eu nunca ouvi falar de nada semelhante. Uma capo­ta em meu velho trator!

— Isso pelo simples motivo de que ninguém pensou em adaptar uma.

Logo depois, Sara se despediu e saiu. A casa estava escrupulosa­mente limpa, ela observou quando passou pela sala de estar. Mas, embora o chalé tivesse eletricidade instalada, não havia água e nem mesmo uma pia; e obviamente nenhum banheiro, nenhum sistema de aquecimento de água e nenhuma privada dentro da casa. Era irônico que nestes dias de viagens espaciais as comodidades básicas ainda fossem negadas a pessoas como os Scott.

Visitou também a esposa de um silvicultor que tinha todas as como­didades modernas, e um ancião que não tinha; o carteiro que vivia numa casa moderna que tinha de tudo, inclusive aquecimento central, e uma mulher cujo marido modernizara um pitoresco chalé com telha­do de sapé. O seu atendimento se espalhava por uma área relativa­mente grande, e muitas vezes tinham que parar para pedir informações sobre o caminho. Embora houvesse sinais em abundância, geralmente não havia placas com os nomes das ruas, e algumas destas não eram mais que trilhas de carroças.

Não obstante, estava adorando a região, especialmente a floresta, e, sempre que possível, pegava uma das estradas que a atravessavam. No final do primeiro dia atarefado, passara a ter certo respeito por essa gente do campo e, no final do segundo, esse respeito aumentara.

Sara não viu novamente Jim Crombie até que ela e o tio Jolin foram jantar na casa de sua filha Alys. Alys preparara uma festa.

— Há umas pessoas que eu gostaria que você conhecesse, Sara. — disse Alys, conduzindo-a a saia de estar do grande prédio escolar.

— O reverendo Ready e a esposa.

Sara apertou as mãos dos dois que, embora fossem de meia-idade, pareciam vivazes e inteligentes.

— Muito prazer.

— E estes são o Senhor e a Sra. Williams, que possuem a maior fazenda por aqui.

— Muito prazer.

Seriam eles os empregadores de Jack Scott?, Pensou Sara.

— Srta. Bridges, recepcionista de Jim.

Sara piscou os olhos quando estendeu a mão para a jovem, que exibia um penteado moderníssimo e caro.

— É, é claro, Jim, que você já conheceu.

— Boa noite, Dr. Crombie — disse Sara, num tom de voz com o qual se desafia o adversário para um duelo, determinada a não deixar que ele levasse alguma vantagem sobre ela.

— Boa noite, Dra. Martindale — ele respondeu, com uma polidez zombeteira.

Alys ficou olhando de um para o outro.

— O que há com vocês dois? Não me digam que já são inimigos declarados! — A seguir, enquanto o marido acompanhava outro con­vidado, disse: — Ah, você está aí, Oliver. Venha conhecer a nossa nova médica.

Um homem alto e flexível se aproximou lentamente deles, dando impressão a Sara de que era um colono australiano ou um vaqueiro.

— Sara este é Oliver Clayton, um dos silvicultores. Oliver, Dra. Sara Martindale.

— Prazer em conhecê-lo, Sr. Clayton.

Uma grande mão se fechou em torno da dela.

— Nada de senhor, por favor. Vamos ser amigos, espero.

— Também espero... Oliver.

— Puxa, não é tocante? — disse Jim Crombie.

— Vamos, Jim, não seja rude — Alys admoestou. — Não ligue para ele, Sara. Ele às vezes é assim, mas o seu latido é pior do que a mordida.

— Eu também acho — ela respondeu. — Mas eu gostaria que ele fosse latir para outra pessoa, para variar. Isso se torna cansativo.

Houve um riso geral, e alguém disse: — Ora, essa acertou em cheio, Jim.

— Está tudo bem — ele disse calmamente. — Posso lidar com essas alfinetadas sem muito trabalho.

Sara dirigiu um sorriso especialmente cordial para Oliver, com quem simpatizara.

— Estou muito interessada em silvicultura, embora saiba pouco a respeito. Deve ser um trabalho muito interessante.

— É o que eu acho. Já viu a nossa floresta?

— Um pouco. Eu a adoro. Acho-a linda. Passo de carro por lá sempre que posso.

Ela viu o interesse dele aumentar.

— Bem, já que está tão interessada, talvez queira que eu a mostre bem. Há muito mais coisas lá do que se pode ver da estrada. Há cerca de trezentos quilômetros quadrados de floresta, sabe? Nós forne­cemos madeira para construções e polpa de madeira para a fabrica­ção de papel e compensados nas fábricas de Ketford.

— Isso parece tão comercial! — observou Sara. — Acho que tenho romantizado a floresta. Minha mente não tinha visto mais do que as árvores em si, sua beleza.

— Mas isso é bom. Estou feliz que você veja as coisas dessa ma­neira. Existem de fato algumas árvores lindas. Lindas mesmo. Árvo­res cultivadas apenas pela sua aparência, e não com propósitos co­merciais.

— Ah! Neste caso, vou esperar com ansiedade que você me mos­tre, Oliver.

Jim Crombie passou por perto e murmurou para Oliver.

— Cuidado. Ela tem um senso de humor mordaz, meu velho. — E passou pela porta antes que Oliver pudesse responder.

— Ele a tem provocado, não? — disse Oliver, rindo para Sara.

— Parece que sim. Acho que ele nunca vai me perdoar por ser mulher.

Oliver deu uma risada. — Ele deveria estar feliz por isso. Eu estou.

— O que eu quero dizer é que o Dr. Henderson não disse que iria ter uma médica como assistente. O Dr. Crombie pensou que era outro homem que viria. Foi apenas mais uma das piadas do Dr. Henderson.

— Aliás, eu também não sabia disso até outro dia, quando Alys me convidou para vir conhecê-la. Pobre Jim! Houve tantas tentati­vas de casá-lo e tantas moças correndo atrás dele, que ficou calejado. Ele parece ter desenvolvido uma espécie de alergia às mulheres. Feliz­mente — acrescentou, sorrindo para ela significativamente.

Os lábios dela se curvaram divertidamente.

— Ora, ora, não fique atrevido demais.

Alys chamou-os para a sala de jantar, e Sara ficou sentada ao lado de Oliver, com Jim Crombie a sua recepcionista no lado oposto.

A srta. Bridge é uma mulher a quem ele não parece alérgico, pensou Sara. Jim mostrou-se muitíssimo cortês com ela durante toda a refeição, tratando-a pelo primeiro nome. O nome dela era Nina, e Sara não pôde deixar de indagar-se se ela não era mais do que uma simples recepcionista para ele. Nina era certamente uma moça muito atraente; fria e um pouco distante, talvez, mas seria certamente pos­sível que esse fosse o tipo de mulher de que ele gostava.

Subitamente, os frios olhos cinzentos encontraram os seus, e Sara percebeu que devia estar encarando a moça do outro lado da mesa.

— Estava admirando o seu penteado, srta. Bridges. Diga-me o nome de seu cabeleireiro. Eu vou precisar de um, uma vez ou outra.

— Mandei arrumar meus cabelos aqui mesmo na aldeia, no Annette's — ela respondeu, e se virou para Jim Crombie novamente.

Havia tal forma de cordialidade no tom de voz da moça que Sara se sentiu mal recebida. Mas, resolvida a não demonstrar seus sentimentos, ela se virou para a Sra. Ready, a esposa do pastor, que estava sentada a seu lado.

— Acho que a senhora leva uma vida muito ativa, Sra. Ready; e seu marido também.

O sorriso da Sra. Ready foi instantâneo.

— Sim, de fato. Grande parte da vida da aldeia se centraliza na igreja. Além das atividades habituais, como a escola dominical e os sermões de domingo, existe a União das Mães, que fica a meu cargo, é claro. Meu marido cuida do curso de Bíblia para homens, e nós cuidamos juntos do clube dos jovens.

Sara não achou essas coisas muito interessantes, por mais admirá­veis que fossem. E tinha as suas dúvidas quanto a se o reverendo e sua esposa fossem as pessoas certas para dirigir um clube de jovens, sendo ambos de meia-idade.

— Não há pessoas na aldeia que possam dirigir o clube dos jovens? — perguntou, e acrescentou, não querendo ofender: — Isso livraria a senhora e seu marido de muito trabalho.

— Oh, nós não nos incomodamos; compreendemos os nossos jo­vens. As pessoas da aldeia ajudam em todo o trabalho da igreja. Mas uma comunidade agrícola é muito atarefada. Eles precisam trabalhar de acordo com as condições atmosféricas. Os agricultores são mais ou menos parecidos com vocês, médicos, Têm poucas horas de tra­balho predeterminadas.

— Mas nem todos os habitantes são agricultores, não é? — per­guntou Sara, interessada na vida social da aldeia. — Deve haver bal­conistas de lojas, por exemplo. Há um bom centro de compras na rua principal. E não há também muitos trabalhadores nas fábricas?

— Não é tão fácil integrar os recém-chegados na vida da comu­nidade quanto a senhora possa pensar, "doutora” — a Sra. Ready respondeu friamente, — Alguns deles simplesmente não querem ser inte­grados. Meu marido tem por hábito visitar todas as famílias que se muda para a aldeia, para fazer com que se sintam bem-vindas. Infe­lizmente, muitas delas não têm religião. E a vida de nossa igreja não consiste apenas na União de Mães e no curso de Bíblia. Temos um clube social, um grupo de teatro, escoteiros e escoteiras.

— £ possível que, se participassem dessas atividades, especialmente do clube social e do grupo de teatro, eles se sentissem obrigados a freqüentar também a igreja.

— Eles não são obrigados.

— Não, mas eles podem sentir como se fossem — Sara insistia, não por estar com vontade de discutir, mas para compreender o pro­blema e encontrar uma solução. — Suponho que já houve tempo em que a vida social da aldeia se centralizava de fato na igreja, mas pode ser que agora haja a necessidade de um centro social que não seja ligado à igreja. Qualquer igreja.

Um silêncio perceptível se seguiu a isso, e Sara percebeu subita­mente que todos haviam parado de conversar e que tinham estado ou­vindo aquilo que ela dissera.

Então, em voz alta, mudando propositalmente de assunto, a Sra. Williams, a esposa do fazendeiro, falou do outro lado da mesa para a Sra. Ready.

— Anne, como vai Philip? Tem tido notícias dele ultimamente?

A Sra. Ready respondeu-lhe, e Sara se sentiu excluída da conversa.

E, do outro lado da mesa, Jim Crombie estava de olho nela, com aquele sorriso já familiar de divertimento em seu rosto.

 

Sara virou-se para Oliver novamente e perguntou-lhe há quanto tempo morava e trabalhava na região.

— Há cinco anos — ele murmurou em seu ouvido —, e ainda sou um forasteiro. — Depois, num tom de voz mais normal: — Mas estou acostumado a mudanças. A comissão de silvicultura nos transfere de um lugar para outro com bastante freqüência.

Sara começou a sentir simpatia por ele. Tinha pelo menos um ami­go em East Norton. Evidentemente, ela havia ofendido a esposa do pároco com aquilo que dissera. Mas será que uma mulher com a instrução dela não podia ouvir um ponto de vista sem tomar isso como crítica pessoal? Ou será que Sara dera à Sra. Ready a impressão de ser ela mesma irreligiosa? Gostaria de ter explicado com mais deta­lhes aquilo que dissera. Que ela via a igreja como um prédio, mas como uma fraternidade que acolhia a todos, e que, se as pessoas não compareciam à igreja como tal, então a igreja certamente deveria ir até elas. Contanto que as pessoas fossem reunidas, isso era tudo o que importava.

A refeição terminou e, depois, Alys Henderson serviu café na sala de estar. Sara tentou conversar com o pároco, mas sentiu que ele havia levantado uma barreira de polidez entre eles. Sua esposa e a Sra. Williams conversavam entre si, dirigindo-se uma à outra como "Anne" e "Dora". Tio John, seu filho Bob e o Sr. Williams se apro­fundavam numa discussão a respeito da lavoura, enquanto Jim Crombie parecia ter muita coisa a dizer a Nina Bridges, sua recepcionista.

Oliver Clayton trouxe a cadeira para perto de Sara.

— Quando é que você vai me deixar mostrar-lhe a floresta? Do­mingo estaria bom para você?

— Acho que sim, obrigada. Não vai haver atendimento no con­sultório e eu posso fazer as visitas na parte da manhã. Que tal depois do almoço, digamos, às duas e meia?

Ele concordou e disse que iria buscá-la.

A noitada terminou bastante cedo. O Sr. e a Sra. Williams foram os primeiros a sair, seguidos pelo pastor e sua esposa. Pouco tempo depois, Jim se levantou, disse que precisava sair e ofereceu carona a Nina.

Alys trouxe o casaco de Nina e os dois partiram, deixando Oliver, Tio John e Sara.

— Como tudo termina cedo no interior. É sempre assim? — Sara perguntou.

John Henderson concordou, com um aceno de cabeça:

— O pessoal dorme cedo no campo. Pelo menos a comunidade agrícola, em parte por hábito, em parte por necessidade. As vacas precisam ser ordenhadas ao raiar do dia.

— Mas por quê? — perguntou Sara. — Sei que se as coitadinhas não forem ordenhadas na hora certa ficam com dor. Mas elas pode­riam ser ordenhadas ao anoitecer, ou mesmo mais tarde, pela ma­nhã. Em outras palavras, a cada vinte e quatro horas.

Bob e tio John riram.

— Ela tem uma teoria para tudo, não é mesmo? — disse Bob.

— Bem, então diga o que há de errado com esta — Sara lhe falou. — O leite não é mais entregue às sete horas da manhã, como antiga­mente, e não é mais distribuído em latões.  

— Não, querida, mas ele ainda precisa ser distribuído o mais breve possível. A refrigeração é cara, o leite precisa ser recolhido nas fazen­das e levado às usinas de laticínios, para ser engarrafado. Apesar de todos esses esforços, ninguém recebe o leite no mesmo dia, atualmente. Ele pode até ter dois dias quando você o receber.

— Oh, entendo — disse Sara, começando a compreender. Oliver murmurou que já era hora de ele ir, mas Alys falou que ainda era cedo.

— Oh, vocês não precisam ir embora. Ninguém aqui precisa se levantar cedo para ordenhar as vacas. Sentem-se todos, e vamos to­mar uma bebida e bater um bom papo.

Sara achou que o ambiente estava mais leve depois que os outros partiram.

— Eu penso que irritei a esposa do pároco — disse tristemente.

— Meu bem — disse Alys — é preciso ter muito tato com as pes­soas daqui. Qualquer coisinha que se diga, e elas pensam que você as está criticando. Acho que você tocou num ponto fraco da Sra. Ready. Você precisa dar tempo para essas pessoas a conhecerem.

— Então acha que eu estava errada em falar como falei? Mas eu estava certa de que ela, como esposa do pastor, seria capaz de dis­cutir o assunto.

— Deveria ser — Oliver disse. — Eu não acho que Sara deva andar por aí pisando em ovos. Se a Sra. Ready não gostou de ouvir isso, se os recém-chegados à aldeia estão pesando em sua consciên­cia, isso é problema dela. Se fosse sincera, ela devia estar agradecida a Sara. Eu ouvi o que Sara disse, e concordo com ela plenamente.

— Mesmo assim, você não pode esperar que uma pessoa aceite uma nova idéia no mesmo instante. Ponha-se no lugar dela, Sara. Supo­nha que, depois de ter estado aqui há alguns anos, um estranho qual­quer viesse e sugerisse uma maneira melhor de tratar seus pacientes. O que você diria?

— Se a sugestão fosse oportuna, eu a aceitaria, é claro — Sara disse rapidamente.

— Está certo — disse Alys. — Talvez você aceitasse, Sara. Mas poucas pessoas são suficientemente adultas, e se você quiser ajudá-las é preciso estar disposta a compreendê-las. Estou certa de que a Sra. Ready vai pensar naquilo que você falou. Mas pode não ser da alça­da dela começar um centro social independente da igreja. É algo muito grande para se exigir dela. Um clube social ligado à igreja é muitas vezes um meio de conquistar pessoas para uma vida melhor. A fun­ção de um pastor não é simplesmente a de proporcionar diversão.

Sara concordou.

— A última coisa que eu sugeriria ou pleitearia seria o afastamento das pessoas da igreja, mas não é verdade que todas as coisas trabalham juntas para o bem?

— Você está certa, Sara, e ninguém está dizendo que não está. Mas, se eu fosse você, procuraria fazer amizade com as pessoas antes de fazer sugestões. Dê uma olhada por aí, veja o que existe na aldeia. Filie-se à Associação das Mulheres, por exemplo.

Ao ouvir isso, tio John caiu numa gargalhada.

— Ah! Aí está! Eu sabia que chegaríamos à Associação das Mu­lheres, mais cedo ou mais tarde.

— E por que não? — Alys perguntou, indignada. — Ela não é política e nem secretária, e se ela não une as pessoas, eu não sei o que mais possa unir.

Sara começou a se sentir feliz. Era disso que gostava. Pessoas sim­plesmente conversando juntas, expressando suas opiniões, sem o temor constante de serem mal interpretadas ou de ofender.

Concordava-se, de modo geral, que as pessoas variavam quanto ao tempo de que precisavam para conhecerem-se suficientemente bem a ponto de serem capazes de dar e receber opiniões sinceras.

— Mas se acham que fui franca demais com a Sra. Ready — Sara disse —, vocês deveriam conhecer o povo de Yorkshire para ver o que é franqueza!

— Eu não acho que você foi franca, de modo algum — Oliver afir­mou. — Talvez seja disso que precisamos em Easi Norton, de uma espécie de brisa fresca. E estou certo de que Sara tem bom senso suficiente para não sair por aí provocando as pessoas.

— Obrigada por essas palavras bondosas, Oliver — disse Sara, sorrindo.

Assim mesmo, ela sentia uma vaga apreensão. Como iria ser fácil ofender as pessoas sem querer e, em conseqüência disso, não conse­guir nada. Não que ela tivesse vindo a East Norton com a idéia de conseguir alguma coisa em particular, exceto ser uma boa médica e ajudar tio John. Mas agora que estava ali e começava a conhecer as pessoas, sentia certa preocupação e um senso de responsabilidade. Isto não queria dizer que pretendesse começar uma espécie de cam­panha, mas era possível que encontrasse algo para fazer na aldeia, além da prática da Medicina. É claro que todos têm um papel na vida da comunidade a que pertença.

Esteve inteiramente ocupada com seu trabalho como médica nos dias seguintes. Uma epidemia branda de gargantas inflamadas e gripe se desenvolveu na região. O consultório ficava cheio duas vezes por dia e havia chamadas a todas as horas do dia e da noite. Em seus esforços para poupar o coração do tio John, Sara vivia correndo, mal tendo tempo para as refeições, até que finalmente John protestou:

— Você mesma vai acabar doente desse jeito. Tem certeza de que não está se excedendo? Você precisa me deixar atender a minha parte das chamadas.

— Bobagem, tio John. Já lhe disse que gosto de sair para fazer visitas e o senhor também tem saído, além de trabalhar no consul­tório. Não se pode dizer que o senhor esteja sem fazer nada.

— Não, mas. . .   oh, bem, se você tem certeza, está bom. Em todo caso, eu não acho que a epidemia vá durar muito. Geralmente elas não duram muito.

— Quer dizer que elas ocorrem regularmente?

— Sim; e ocorrerão até que o plano de saneamento básico seja posto em execução. Você mesma já deve ter visto as condições sani­tárias primitivas que ainda existem em muitos chalés.

— Ê, de fato. Viagens à lua, energia atômica, e aqui estamos nós, virtualmente na Idade Média, em algumas zonas rurais.

— É verdade, mas custa muito caro colocar essas idéias em prá­tica. A maior parte das pessoas receia ter que pagar mais uns centa­vos nos impostos. Muitas casas grandes do campo, é claro, têm seus próprios sistemas de esgoto. As casas modernas também.

— Sim, as fossas sépticas e as fossas negras. Mas a maioria das pessoas que vivem nesses chalés insalubres é de aposentados ou loca­tários. Os aposentados não têm condições financeiras para instalar fossas sépticas, e não se pode esperar que os locatários gastem dinheiro para melhorar a propriedade de outra pessoa. Pelo menos não cente­nas de libras. E tenho certeza de que lavradores como os Scott não podem. Isso realmente cabe aos proprietários dos chalés, e se não qui­serem fazer isso por iniciativa própria, é preciso que haja uma legis­lação mais severa para obrigá-los.

— Ora, Sara, lá vai você de novo! Concordo com você de um modo geral, naturalmente, mas os aluguéis desses chalés são tão bai­xos, e os inquilinos não estão dispostos a pagar mais.. .

— Caro tio John, não é essa a questão, não é mesmo? Ele suspirou pesadamente.

— Não, não é, mas tenha apenas um pouco de paciência, e tudo será realizado.

Sara achava que coisas como o saneamento básico deveriam ter sido realizadas há muitos anos, mas foi para a cama, feliz por se enfiar debaixo dos lençóis e esperando que o telefone não tocasse nessa noite.

Numa de suas visitas ao Sr. Scott, o lavrador com bronquite, Sara ficou surpresa em ver a Sra. Williams, que conhecera na casa de Alys, saindo do chalé.

Sara lhe desejou um bom-dia, mas notou frieza nos modos da outra. Não havia um sorriso em sua face quando respondeu:

— Bom dia, Dra. Martindale. Acabei de visitar o Sr. Scott.

— É muita bondade sua. Espero que ele tenha ficado feliz em vê-la.

A Sra. Williams era patroa e locadora de seu paciente.

— Sim, doutora, ele ficou — respondeu, enquanto ia em direção à porta. — Ao contrário do que se pensa, nós fazendeiros cuidamos de nossos trabalhadores. Bom dia.

E saiu rapidamente, o que Sara achou muito bom. Ficou parada durante um minuto na minúscula sala de estar, fervendo de raiva. Como eram arrogantes algumas dessas pessoas do campo! A esposa do proprietário oferecendo caridade como o faziam há uns cinqüenta anos atrás! Faziam qualquer coisa, menos dar salários adequados, para que eles pudessem pagar um aluguel decente por uma casa decente.

Acalmou-se e subiu a escada para ver o paciente. Como esperava, a Sra. Williams trouxera frutas, um frango, verduras e legumes fres­cos e uma garrafa de vinho feito em casa.

— Ela queria pôr essas coisas na despensa — explicou o Sr. Scott, mas minha mulher não gosta que mexam lá quando ela não está, espe­cialmente a esposa do fazendeiro. Quando a Sra. Williams ouviu o seu carro, desceu a escada correndo!

Sara sorriu.

— Bem, vou levar tudo isso para baixo e deixar sobre a mesa da cozinha. Prometo que não vou chegar nem perto da despensa de sua esposa. Bom, como vai, Sr. Scott?

— Aquele remédio que a senhora me receitou me fez muito bem, doutora.

— Bem, continue tomando-o por mais algum tempo. Acho que o senhor pode se levantar um pouco esta noite. Gostaria disso, não?

— Sim, principalmente porque esta noite vou ficar mais tempo so­zinho. Hoje é a reunião da Associação das Mulheres.

Depois de lhe recomendar que se agasalhasse bem quando descesse, Sara saiu do chalé e continuou a ronda. Tinha apenas mais um pa­ciente para visitar na Fazenda Lago dos Patos, de propriedade do Senhor e Sra. Marley. Depois da experiência com a Sra. Williams, Sara não estava lá muito ansiosa por conhecer outra esposa de fazendeiro, mes­mo em se tratando de uma visita profissional. Mas, é claro, procurou afastar esses pensamentos de sua cabeça ao entrar pelo portão que dava para a casa da fazenda.

O caminho que ia dar na casa não era mais que .uma trilha de carroça. Sara fez uma careta e engatou a primeira marcha, enquanto o carro sacolejava todo na trilha. Era uma casa agradável e de aparên­cia digna, quadrada e sólida, com hera crescendo pelas paredes de um lindo tom cor de vinho.

Sara tocou a campainha e, com um sorriso divertido no rosto, ouviu o som dos carrilhões de Westminsler lá dentro. Poucos minutos depois, a porta foi aberta por uma mulher de rosto moreno e agradável, com uma mancha de farinha no nariz.

— A Sra. Marley? — Sara indagou.

Os olhos da Sra. Marley se fixaram na valise de Sara.

— Oh, sim, doutora, entre.

Sara entrou e um cheiro agradável de algo assando lhe entrou pelas narinas.

— Hum, que cheiro gostoso, Sra. Marley! O que a senhora está fazendo?

— Oh... Apenas uns bolos e bolinhos de aveia para a reunião da Associação das Mulheres, esta noite. Eu assei a maior parte ontem.

— Então a senhora também pertence à Associação? Ela parece ser muito importante aqui na aldeia. Vocês revezam para fazer bolos?

— Bom isso geralmente fica a cargo do comitê, é claro.

— Ah, sim. — Sara eslava começando a ficar interessada na Asso­ciação. Eram tantas as mulheres que participavam, mas no momento estava mais interessada em seu paciente. — Bem, e quanto ao doente, Sra. Marley?

— É o nosso pequeno Peter. Ele não tem estado bem há uns dois dias, e eu pensei que fosse resfriado ou algo assim. Esta manhã apareceu umas pintas. Estão espalhadas por toda parte. No rosto, pescoço. . .

Espero que não nos braços e nas pernas, Sara pensou rapidamente, considerando a possibilidade de ser varíola. O que quer que fosse precisaria estar certa do diagnóstico. Subiu a escada atrás da mãe do menino e entrou num pequeno quarto onde um garoto de cinco anos estava sentado na cama.

— A Dra. Martindale vai vê-lo, Peter — disse a Sra. Marley, à guisa de apresentação. — Você se lembra do Dr. Henderson, não? Bem, esta senhora é médica e veio ajudá-lo. Ela é muito boazinha. Diga boa-tarde para a Dra. Martindale.

— Boa tarde, Dra. Martindale. . .

— Boa tarde, Peter — respondeu Sara, sentando-se na pequena cama. Ela logo percebeu as pintas de catapora, no rosto e na testa. — Sua mãe me falou sobre essas pintinhas em seu peito. Posso dar uma olhada? Estou quase certa de que vou poder dar um jeito nelas.

— Viu como ela é boazinha? — a mãe falou. — Agora venha, vamos tirar o pijama para que a doutora possa examinar o seu peito.

O peito, o abdômen e as costas estavam cobertos de pintas, mas havia poucas nos braços e nas pernas, e Sara ficou satisfeita ao obser­var que elas tinham diversos estágios de desenvolvimento. Algumas eram apenas áreas redondas e vermelhas, enquanto outras eram bolhas mais ou menos do tamanho de uma cabeça de alfinete, que continham um líquido claro. Se as pintas fossem de varíola, estariam todas no mesmo estágio, porque as erupções de varíola aparecem simultanea­mente.

— É catapora, doutora? — a jovem esposa do fazendeiro pergun­tou ansiosamente, vestindo novamente o casaco do pijama de Peter.

Embora tivesse descartado a possibilidade de uma doença mais séria, Sara não procurou minimizar o diagnóstico, que também é muito sério, em qualquer caso, e mais ainda para a mãe de uma criança.

— É, penso que sim. Mas ele ficará bom se o mantiver na cama durante algum tempo. E quanto aos outros dois: Carol e Johnníe?

— Os gêmeos já tiveram, e que trabalho deram!

— Ótimo. Bem, o principal é impedir que ele se coce. Seria melhor enfaixar levemente cada braço. — Ela sorriu para o menino. — A mamãe vai fazer uma brincadeira. Faça de conta que você é um soldado ferido. Você gostaria disso, hein?

— Melhor ainda, você é um piloto ferido — disse a mãe dele, rindo.

— Vou dar a ele alguma coisa para parar a irritação e para fazê-lo dormir.

— Obrigada, doutora. — A seguir, acompanhou-a até a porta da frente.

— Foi um prazer conhecê-la, Sra. Marley — Sara disse. — Se bem que eu lamente que seja por causa da doença do Peter. A senho­ra gosta de ser esposa de um fazendeiro?

A Sra. Marley sorriu.

— Oh, sim. Eu nasci no campo e adoro animais.

— A fazenda é grande? Quero dizer, vocês empregam muitos tra­balhadores?

— Bem, um número razoável; mas nossa fazenda não é tão grande quanto a, digamos, dos Williams.

Ainda havia muitas perguntas que Sara gostaria de fazer, mas se conteve e se despediu, dizendo que voltaria para ver Peter dentro de um ou dois dias.

Quando abriu a porta da sala de estar, ao chegar em casa, encon­trou Jim Crombie. Ele se levantou cortesmente.

— Ah, Dra. Martindale! Em casa, finalmente. Como passou o dia, querida doutora?

Sara reprimiu uma resposta mordaz e se afundou numa poltrona. Se eles fossem amigos, é claro, ou mesmo conhecidos amigáveis, sua saudação seria levada na brincadeira. Mas como não eram ele se divertia sendo sarcástico, como de costume. Sara resolveu ignorá-lo, dirigindo um sorriso para o tio John.

— Como vão as coisas? Teve uma tarde calma?

— Uns dois telefonemas, mas nada urgente. Aliás, eu estive aju­dando Dan no jardim. — Olhou para Jim, que estava em pé, obser­vando Sara, com um sorriso brincando nos lábios. — Jim, você quer pedir a Jessie para trazer o chá, por favor?

— Claro — respondeu Jim, com uma extravagante disposição. Quando ele saiu, Sara deixou escapar um forte suspiro.

— Puxa vida! Eu seria capaz de estrangulá-lo com prazer!

John olhou para ela, surpreendido, e disse meio risonho: — Mas, querida, ele não faz por mal. Está apenas provocando-a, e isso é um bom sinal. Ele gosta de você.

Sara estava prestes a negar isso ardentemente, mas se conteve. Se tio John gostava de pensar assim, tanto melhor. Isso o manteria feliz Estava se lembrando de algo de que se esquecera por um momento

— das palavras de Jim Crombie na noite em que o conhecera. Ele estava representando por causa do tio John. Longe de gostar dela, ele lhe tinha uma profunda antipatia e estava se utilizando do sar­casmo simplesmente para ocultar seus sentimentos.

— Talvez o senhor tenha razão, tio — ela disse, com um sorriso.

— Que chamados o senhor teve?

— Oh, um foi da Sra. Warby, uma mulher cheia de histórias, que chama o médico por qualquer coisinha à toa. Ela é viúva e vive sozi­nha. O marido morreu há cinco anos, e desde então ela vem se quei­xando de uma coisa ou outra. Nunca nada sério. Eu disse que você passaria lá amanhã.

— Tem certeza de que ela estará bem, tio John?

— Oh, sim, meu bem. Ela se sente sozinha, isso é tudo.

— Oh, coitada!

— Sim, eu também sinto pena dela, mas a maior parte é culpa dela mesma. Ela se recusa a participar de qualquer atividade da aldeia. Fica fechada em si mesma, a não ser quando é para chamar o médico.

— Acho que ela tem intenções com relação a você — Jim Crom­bie disse, quando voltou à sala, seguido por Jessie, com o carrinho de chá.

— Bem, eu vou passá-la para Sara.

— Pobre mulher! — disse Jim.

— Muito obrigada, tio John — Sara respondeu. — E de quem foi a outra chamada?

— Era sobre um menino com erupções. Eu disse à mãe para mantê-lo na cama, e que você iria vê-lo mais tarde.

— Pode ser catapora. Eu já tive um caso esta tarde — disse Sara. Ela começou a servir o chá, e Jim se sentou mima cadeira.

— Parece o início de uma epidemia — comentou Jim — Quem foi e onde a pegou?

Sara lhe disse quem era.

— Mas não faço a menor idéia de onde ele a pegou.

— Ora, ora, que descuido. Isso é uma das primeiras coisas que você deveria procurar descobrir — observou Jim.

— É mesmo? — ela volveu friamente.

Tio John olhava para um e para outro, e ria.

— Aposto que sei onde a pegaram. Foi numa festa de crianças em Woodcombe. Eles tiveram um caso de catapora já no dia seguinte. O Dr. Vincent me contou.

— Bom ainda bem — Jim disse. — Pensei que teríamos que fechar a escola, ou algo assim.

Sara percebeu o tom levemente acusador. Era como se, se a escola tivesse que ser fechada, a culpa seria dela. Bebericou o chá e ficou imaginando o que o Dr. Jim Crombie teria contra ela.

— E como se saiu com a Sra. Marley? — perguntou Jim, olhando-a penetrantemente.

— Muito bem. Na verdade, eu a achei muito simpática — disse, com um leve ar de desafio. — Por quê? O que o fez perguntar?

— Eu só queria saber. Peio que sei, você já se indispôs com a Sra. Williams. Pensei que você talvez tivesse uma "diferença" com as esposas de fazendeiros.

Sara sentiu uma fúria crescer dentro dela.

— Talvez tenha — respondeu asperamente. — Talvez eu tenha uma "diferença" com pessoas que preferem praticar a caridade, em vez de pagar salários decentes, que permitem que seus inquilinos vivam em velhos chalés, sem água, sem esgoto e...

— Sara você não disse isso abertamente a Sra. Williams, não foi? — John Henderson perguntou, preocupado.

— Não, tio John, é claro que não! Mas é assim que eu penso. Os olhos de Jim Crombie tinham-se alargado lentamente.

— Você errou de profissão. Deveria ter sido membro do Parla­mento, e não médica.

— É mesmo? — ela volveu espirituosamente. — Pensei que esse tipo de coisas fosse da conta do médico. O Sr. Scott está doente, com bronquite aguda. Ele tem isso todos os anos. E você sabe por quê?

— Porque dirige um trator sem capota, do mesmo modo que os lavradores o fazem há gerações — Jim Crombie respondeu rapidamente.

Sara olhou para ele, surpreendida.

— Então, por que não se faz nada a esse respeito?

— Acho que ninguém nunca pensou nisso. Mas creio que muita gente já sabe disso, inclusive o fazendeiro Williams. E ele não ficou muito satisfeito.

Sara franziu o cenho, intrigada.

— Quer dizer que aquilo que falei ao Sr. Scott foi. . . Digamos, espalhado?                                                                    

— Isso mesmo — confirmou Jim. — É uma das coisas que você precisa aprender. Não se dizem coisas ao acaso no interior. Nem em qualquer sociedade. E não pode esperar que tudo o que você diga seja mantido em segredo. O Sr. Scott repetiu sua conversa para a esposa. A esposa mencionou isso para alguém mais, e assim por diante.

— Ora, vamos, Jim. — John Henderson riu. — Não há necessi­dade de fazer um sermão para Sara. Ela fala o que pensa, sei bem, mas tenho certeza de que não falou mal da Sra. Williams para Scott.

Sara deu um leve suspiro.

— Eu comentei com ele que achava que pegou a bronquite tra­balhando na fazenda sob qualquer tempo. E ele disse que era prin­cipalmente por ficar sentado naqueles tratores.

— E você disse: "Por que os tratores não têm capotas como os carros?"

— Exatamente. E o que quer que eu faça? Saia por aí...

— Você deve pensar antes de falar — Jim Crombie interrompeu-a asperamente — a menos que queira se indispor com toda a aldeia.

— Algumas pessoas da aldeia merecem ser perturbadas — Sara declarou, sem arrependimento. — É por isso que nada nunca é reali­zado. Todo mundo sai por aí com muita polidez, com medo de ferir os sentimentos de alguém. Ter tato e educação com essas pessoas é o mesmo que endossar aquilo que elas fazem. Os erros nunca são corri­gidos mantendo-os em silêncio. Ainda digo, e continuarei dizendo, que os trabalhadores das fazendas deviam ter alguma forma de proteção, enquanto estiverem usando equipamentos como tratores.

— Muito bem, você continuará a se indispor com as pessoas, sem conseguir nada — Jim Crombie retorquiu.

— Como é que você sabe que eu não vou conseguir nada? Pelo menos, isso fará muita gente pensar. O que é mais do que pode ser conseguido com os seus métodos silenciosos, polidos e cheios de tato!

Por um momento, John ficou esquecido, enquanto os dois discutiam. Quando Jim olhava furiosamente para Sara, aparentemente reunindo argumentos para outra investida, tio John riu.

— Continue, Jim. Você não parou por falta de palavras, não é?

Por Deus, é uma beleza ouvir vocês dois discutindo. Quer que eu segure os seus casacos?

Sara ficou um pouco envergonhada. Ainda bem que ele não os estava levando a sério. Jim olhou para John, deu um leve sorriso e tirou o cachimbo do bolso.

— Essa sua sobrinha adotiva é um verdadeiro terror, John. O que é que vamos fazer com ela?

John deu uma risadinha.

— Parece que ela vai deixar marcas no caminho, de uma forma ou de outra. O grande problema, Jim, é que você, eu e a maioria das pessoas daqui já convivemos demais com essas coisas. Nós nos acostumamos com elas. Às vezes é preciso um recém-chegado para mostrar onde estão as coisas erradas. Ou pelo menos nos estimular. Não precisamos dizer que o estado de metade de nossos chalés é deplorável.

— O único problema é que não podemos nos impor às pessoas — disse Jim, num tom de voz mais calmo ao que aquele que usara com Sara. — Isto é uma democracia. Se a torneira ou o banheiro ficar fora da casa, os donos dessas propriedades estão dentro da lei. Quanto aos tratores com capotas, acho que ninguém nem ao menos pensou nisso. Em todo caso, a culpa dificilmente é da Sra. Williams, ou de qualquer outra esposa de fazendeiro. Elas também não são responsáveis pelos salários dos trabalhadores das fazendas.

— Para a sua informação -— Sara disse, mais uma vez na defen­siva —, eu não disse que a Sra. Williams é culpada. Eu não disse nada a ela. Ela me atacou, mais ou menos.

— Há poucos minutos atrás — respondeu Jim —, você disse que tinha uma "diferença" contra as pessoas que preferiam praticar a cari­dade a pagar salários decentes, e assim por diante. Uma vez que acre­dito que a Sra. Williams foi visitar Scott e lhe levou algumas coisas, para ajudá-lo a recuperar as forças, a quem mais você poderia estar se referindo, senão a ela? Do modo como as coisas aconteceram, ela fez uma boa ação e você lhe jogou isso na cara.

— Eu não fiz nada disso! — disse Sara, indignada. — Oh, tio John, ele é insuportável! é mesmo!

John Henderson simplesmente sorriu. Jim Crombie também sorriu, mas seu sorriso era cínico e zombeteiro. Ele se levantou.

— é melhor eu ir andando. Obrigado pelo chá, John. E obriga­do a você, Sara — disse em tom de mofa —, pela conversa. Ela foi muito esclarecedora.

Sara sentiu vontade de atingi-lo com alguma coisa.

— Estou feliz que pense assim. Ela também foi muito esclarecedora para mim.                                                      

Sara estava zangada e magoada. Por quê? Perguntou-se enquanto o acompanhava até a porta, para evitar que tio John se levantasse.

— Deixe-me dar-lhe um conselho, Sara. Vá cora calma com essas pessoas daqui. Lutar em defesa dos injustiçados lhe dá muita satis­fação, tenho certeza, e o fato de estar certa lhe dá muito prazer. Mas lembre-se da história do touro na loja de porcelana. Ele não fez ne­nhum bem, fez?

Diante da injustiça dessas palavras e do intenso sarcasmo, ela ficou muda de raiva por um momento.

— Como se atreve a me acusar dessas coisas? Quanto à sua refe­rência ao touro na loja de porcelana, eu não saí quebrando coisas por aí.

— Não? Você não estava aqui nem há cinco minutos e conseguiu indispor-se com duas das mais destacadas mulheres da aldeia, a espo­sa do pastor e a esposa de um dos maiores fazendeiros do distrito.

Os olhos dela chisparam e ela teve a sensação de um enjôo no estômago.

— Muito obrigada, mesmo — disse ela, a voz tremula de raiva. — Sei exatamente a sua posição com relação a mim, não é mesmo?

Subiu a escada e foi para o quarto, observando da janela enquanto Jim Crombie dava partida no carro e fazia manobra para sair.

Tentou cultivar a aversão por ele, além da raiva que sentia, mas por algum motivo não conseguia. Ao invés disso, sentiu as lágrimas descendo. Quando ele foi embora, afastou-se da janela, agora zan­gada consigo mesma. Era ridículo! Que motivo havia para chorar?

Então, com muita decisão, reuniu seu amor-próprio, que estava em pedaços. Muito bem, não conseguia sentir aversão por ele, por mais irritante que fosse e, portanto, precisava deixar as coisas como estavam.

Levantou-se e se aprumou, assoou o nariz e desceu novamente para encontrar o tio John.

 

Era a vez de Sara atender no consultório aquela noite, e ela estava feliz por isso. Sentando-se diante da grande escrivaninha do consultó­rio, ouvindo as queixas dos pacientes e, em alguns casos, também os seus problemas pessoais, os pensamentos inquietantes sobre Jim Crombie desapareciam.

Uma das pacientes era uma jovem casada, muito bonita, com longos cabelos loiros.

— Eu. . . Acho que vou ter um bebê, doutora — ela disse preo­cupada.

— Ora, não fique triste por causa disso. Não há razão que a im­peça de ter um, não é?

— Não... Mas... Bem, eu não conheço quase ninguém por aqui.

Acabamos de nos mudar para cá, e...

— Entendo você está se sentindo sozinha e um pouco assustada. Bem, não se preocupe. Tudo vai dar certo, tenho certeza.

Mas a moça não iria se acalmar tão facilmente. Seus lábios tre­miam e havia uma expressão de ressentimento em seu rosto.

— Está tudo bem para vocês, médicos, que ficam sentados aí e dizem que tudo vai dar certo. Vocês não sabem o que é estar num lugar estranho, a quilômetros da família. Eu não queria vir para cá, para começar. As pessoas aqui dizem bom dia e é só. Não há nin­guém com quem conversar.

— Há quanto tempo está aqui? — Sara perguntou-lhe calmamente.

— Cerca de três semanas.

— Bem, talvez seja uma surpresa para você, mas eu também sou uma estranha por estas bandas; e estou tendo minhas dificuldades. Mas que tal falar sobre as suas?

A jovem arregalou os olhos para ela.

— Quer dizer que não está aqui há muito tempo? Sinto muito, doutora. Eu não devia ter falado desse jeito. Acho que estou muito nervosa.

— Não foi nada, eu compreendo. Qual é o seu nome? Aí, vamos sentir que realmente nos conhecemos.

— Cárter. Rosemary Cárter.

— E este é o seu primeiro bebê?

— Sim. Eu tinha a impressão de que estava grávida antes de nos mudarmos, mas. . .

— Já tinha ido a um médico por causa disso?

— Não. Mas eu tenho certeza.

— Bem, vamos fazer algumas anotações sobre datas e fatos.

Algumas perguntas confirmaram o diagnóstico da própria Sra. Cárter.

— Agora, deite-se para eu ver o que está acontecendo.

— Muito bem, isso é tudo por ora, Rosemary. Não venha até o consultório. Eu vou visitá-la. Ainda existem mulheres que são capazes de encher sua cabeça com histórias fantásticas. Vou providenciai para que a enfermeira do distrito a visite.

Rosemary fez uma careta.

— Como é ela? Ela é gorda, tem quarenta anos, e tem joanete?

— Quem? A enfermeira Draper? — Sara riu. — É claro que não! Ela tem mais ou menos a sua idade. Você vai gostar dela. Há uma parteira mais velha que a substitui em seus dias de folga, mas ela também é muito boazinha. Você vai ver que elas são muito amáveis e úteis. Você fica em casa o dia todo, não? Não está trabalhando?

Rosemary informou que estava trabalhando numa das fábricas de Ketford.

— Keith não queria morar na cidade, embora fosse bom. Mas ele sempre adorou o interior. Eu também, mas... É tão esquisito e soli­tário, principalmente à noite e nos fins de semana. Eu não queria desistir ainda, mas talvez seja melhor.

— E quanto às finanças? Existem problemas quanto a isso? — Sara perguntou.

— Não, realmente. Acho que podemos dar um jeito.

Sara gostaria de conversar mais com ela, mas havia outros pacien­tes a serem atendidos.

— Vejo-a de novo em breve, Rosemary. Você não tem nada com que se preocupar, realmente, mas seria bom parar de trabalhar assim que puder. Ligue para mim se alguma coisa a preocupar. Quanto a fazer amizade, estou certa de que você logo vai conseguir, mas isso leva algum tempo.

Rosemary agradeceu e saiu.

Um homem gigantesco entrou no consultório a seguir. Tinha bem mais de um metro e oitenta de altura, era atarracado e tinha os mem­bros frouxos.

— O que posso fazer pelo senhor, Sr.. . .

— Marsh. Godfrey Marsh. Eu... Realmente queria ver o médico velho, o Dr. Henderson.

Sara sorriu.

— Eu não sirvo? Eu não quero incomodar o Dr. Henderson, se puder evitar. Mas se o senhor insiste, ele o atenderá na parte da manhã.

— Eu não posso vir na parte da manhã. Pelo menos, é difícil. Eu estou trabalhando.

— Sim, naturalmente. Pode me dizer qual é o seu problema, Sr. Marsh?

— Bem, ele é um tanto vago, entende? Minha mulher me obrigou a vir, senão acho que não teria me dado ao trabalho. Mas tenho perdido muito peso ultimamente.

— O senhor tem comido bem?

— Tenho doutora. É isso que é gozado. Eu como bem... E bebo! Eu fico com tanta sede... Mas parece que tudo me atravessa e não pára. E a mulher está ficando com medo. A senhora sabe como são as mulheres... Oh, desculpe, doutora. Mas ela chegou em casa, hoje, e disse que esteve conversando com alguém que tinha exatamente os mesmos sintomas, ou melhor, o marido dessa mulher os tinha, e des­cobriram que era diabete. Eu disse que isso era bobagem. Ninguém de minha família nunca teve isso.

— Também está me parecendo, diabete quero dizer, mas não deixe que isso o preocupe. Logo que tivermos certeza e descobrirmos até que ponto. Mas, diga-me. O senhor tem tosse?

— Não, eu não tenho tosse.

— O senhor tem uma sensação geral de fraqueza?

— Oh, sim, tenho sim. E comendo tão bem. . .

— Deixe-me ver sua língua, Sr. Marsh.

Ele pôs a língua para fora. Estava grande, seca e vermelha como um pedaço de carne crua, sintomas típicos da diabete.

— Hum. O senhor tem tido furúnculos ou algo parecido, ultima­mente?

— Na verdade, tive um ou dois — ele respondeu, em tom de surpresa.

— Não seria nada extraordinário realmente, Sr. Marsh, se o senhor tiver diabete de fato. Mas, antes de dizer algo em definitivo, preciso examinar sua urina. — Ela indicou um quartinho no canto do con­sultório. — Lá, o senhor encontrará alguns tubos de ensaio. Certo?

Ele meneou a cabeça e entrou no quartinho, parecendo um cachor­ro São Bernardo melancólico. Pobre homem! Pensou Sara. Que cho­que uma coisa dessas deve ser para uma pessoa! Ele saiu depois alguns minutos e ela fez o teste. Como ela supunha, o resultado foi positivo: um alaranjado vivo.

— Penso que não há dúvida a respeito disso, Sr. Marsh. O senhor sabe o que é diabete, não?

— Eu não sei nada realmente.

— Bem, em resumo, é a incapacidade do corpo de armazenar o açúcar até quando precisar dele. Uma substância chamada insulina geralmente faz isso, mas, em seu caso, como no caso de todos os dia­béticos, há uma falta dessa substância, ê por isso que o senhor tem todos esses sintomas: fraqueza, sede e assim por diante. O açúcar se perde em seu sangue e urina. Então, vamos ter que lhe dar insulina artificialmente, por injeção.             . _

A etiologia não era tão simples assim, do modo como ela explicara, é claro. Trata-se de uma série complexa de distúrbios envolvendo todos os sintomas do corpo, bem como o metabolismo das gorduras, proteínas e carboidratos, além de enfermidades auto-imunes, das quais pouco se sabe até o momento. Mas ela lhe contara o suficiente para que ele entendesse mais ou menos o que estava acontecendo.

— Eu vou ter que tomar injeções pelo resto da vida? — ele per­guntou tristemente.

Ela sorriu, com delicadeza.

— Talvez. Mas não deixe que isso o preocupe Sr. Marsh. O senhor vai ficar tão acostumado que nem vai pensar nelas. O senhor vai ver que é como barbear-se todas as manhãs. Porque vai aprender a aplicá-la em si mesmo, é claro. É muito simples. E o senhor vai se sentir muito melhor. Mas estamos antecipando as coisas um pouco. Antes de começarmos qualquer tratamento, quero que o senhor vá para o hospital durante algum tempo, para fazer exames de sangue e tudo o mais. Sua dieta também vai ter que ser controlada.

— Puxa vida!

— Não vai haver problemas, depois que o senhor se acostumar — ela assegurou. — Eu o avisarei quando for para se internar. En­quanto isso, pare de tomar açúcar com seu chá .. E não vá trabalhar.

Ela preencheu um atestado para ele entregar ao seu empregador e lhe perguntou onde trabalhava.

— Eu trabalho para a Comissão de Silvicultura.

— É mesmo? Que interessante! O senhor gosta?

— Oh, sim, gosto muito.

Sara entregou-lhe o atestado e se despediu, resistindo à tenta­ção de lhe perguntar se morava em casa cedida pela Comissão e como era ela. Ela não se lembrava de ter se interessado tanto por esse tipo de coisas antes. Por que seria? Certamente não era simples curiosi­dade. Podia ser que fosse porque, até então, só tinha exercido a medicina em bairros bons das cidades. Assim, achou que, se tivesse trabalhado numa área pobre de uma grande cidade, seu interesse pelar condições de habitação já leria sido despertado.

Terminado o atendimento no consultório, saiu para fazer uma ou duas visitas. Uma delas era uma mulher idosa, com pneumonia, que vivia sozinha, e cuja filha tinha prometido cuidar dela, quando Sara sugerira que fosse para um hospital. Sara queria estar bem certa de que ela cumprira o prometido. Ficou aliviada ao constatar uma ligeira melhora no estado da doente, e também ao saber que a filha, com o marido e dois filhos pequenos, estavam morando na casa proviso­riamente.

O outro paciente era um jovem que vinha se queixando de dores abdominais. Os sintomas tinham sido um tanto vagos, e Sara fora incapaz de dar um diagnóstico com certeza, de modo que achava me­lhor vê-lo novamente. Mas quase não havia mudança nele.

— Vou pedir ao Dr. Henderson que venha vê-lo amanhã cedo — prometeu.

Estava indo para casa quando pensou na Sra. Warby e, como tinha que passar em frente da casa dela, resolveu visitá-la. Ela morava num chalé semi-isolado. Uma das casas estava quase na escuridão — Sara calculou que era iluminada por uma lamparina de querosene e que havia cortinas escuras nas janelas —, mas a outra, onde a Sra. Warby morava, era bem iluminada, obviamente com luz elétrica, e também havia luz na entrada. Sara bateu na porta e esperou.

Segurando a coleira do cachorro, a Sra. Warby olhou para Sara.

— Sim?

— Boa noite. É a Sra. Warby?

— Sim, sou a Sra. Warby.

— Sou a Dra. Martindale. Posso entrar?

Uma ruga se formou na testa da outra.

— Dra. Martindale? — Mas eu telefonei para o Dr. Henderson.

— Eu sei. Sou a nova assistente dele.

— Oh! Eu não sabia que ele tinha uma. Bem, é melhor entrar, então.

Sara entrou no minúsculo hall e seguiu a Sra. Warby até uma sala surpreendentemente grande e muito atraente. O teto era baixo, com uma bela viga de carvalho ao longo de seu comprimento, que devia estar lá há séculos. Uma acha de lenha ardia na lareira. O efeito da saia, com suas paredes claras e tapete vermelho, era muito, muito agradável.

— Que sala linda! — exclamou.

A Sra. Warby sorriu francamente.

— É o que todos dizem, quando a vêem pela primeira vez.

— Sim... a gente não espera encontrar uma sala tão alegre e ao mesmo tempo tão aconchegante.

— Não era assim quando meu marido e eu mudamos para cá, pos­so lhe garantir.

— E mesmo? Como era?

— Bem, para começar, havia um fogão velho e sujo, que não era nem útil nem decorativo, e a pintura e a viga de carvalho estavam amareladas. O papel da parede era horrível, de um bege desbotado, com uma espécie de padrão florido.

— Devia ser horrível — concordou Sara. — Isso mostra o que pode ser feito com uma velha propriedade, E quanto ao resto do chalé?

Sara notou a mudança de expressão no rosto da mulher enquanto conversavam. Obviamente, o chalé significava muito para ela, talvez pelas lembranças do marido. Também era evidente que não havia nada de mal com a Sra. Warby, fisicamente.

— Gostaria de ver, doutora?

Sara disse que sim, sentindo que as necessidades dessa mulher eram diferentes daquelas tratadas com drogas e remédios.

Todo o chalé tinha sido completamente modernizado, embora o seu encanto de séculos tivesse sido restaurado. Uma lareira do tipo vitoriano tinha sido removida e, em seu lugar, havia uma de pedra, com uma grelha medieval. As vigas de carvalho, antes cobertas com papel de parede, tinham sido descascadas e tratadas contra a deterio­ração. Fora construído um banheiro numa suíte colorida. Havia tam­bém um sistema de água quente e fria, e uma cozinha na qual qual­quer dona-de-casa se sentiria feliz, com fileiras de panelas de cobre, armários, lado a lado com um refrigerador, e uma máquina de lavar.

— Sra. Warby, que maravilhoso! Ah, se todos os chalés velhos de East Norton fossem assim! A reforma custou muito?

— Nós não mandamos fazer — ela respondeu calmamente. — Meu marido fez a reforma ele mesmo... E eu o ajudei, raspando a tinta velha, pintando e decorando.

— Quer dizer que ele construiu a lareira, o banheiro e tudo o mais, sozinho?

— Sim, tudo.

— Ele era empreiteiro de profissão?

— Não, ele apenas tinha muita habilidade manual. A senhora toma uma xícara de chá comigo, doutora?

— Oh, sim, obrigada. Não tenho mais visitas a fazer. Mas. Sra. Warby, a senhora ainda não me disse por que chamou o Dr. Hen­derson. Tem se sentido mal?

— É o meu coração, doutora. O Dr. Henderson não lhe disse? Eu teria ido ao consultório, mas me sinto muito fraca. Não tenho ape­tite, não durmo bem e tenho dores de cabeça terríveis.

— Puxa, deve ser muito desagradável para a senhora. Gostaria que eu a examinasse primeiro... ou vamos tomar chá?

— O que preferir doutora.

— Então vamos tomar o chá, está bem?

A Sra. Warby foi à cozinha para prepará-lo. Em vista do que o tio John falara sobre ela, Sara achou possível que a Sra. Warby esti­vesse sofrendo de neurastenia. O marido morrera há cinco anos e ela se sentia solitária, embora se recusasse a participar de qualquer uma das atividades da aldeia. Quando ela voltou, Sara lhe perguntou sobre sua família e soube que não tiveram filhos.

— Deve ser muita solidão para a senhora.

— Eu não me importo. Eu leio muito, sabe? Os livros são ótima companhia. E, é claro, vejo televisão.

— A senhora. . . Então, não fez muitas amizades na aldeia?

— Amizades? Não. Eu tentei. Pelo menos eu tentei, logo que che­guei aqui, mas ninguém parece ter tempo para conversar. Você con­vida as pessoas para fazer uma visita, convida-as para tomar chá, mas pensa que elas retribuem? Oh, não. Depois de um tempo, você pára de tentar, e quando chega gente nova na aldeia, você já se tornou igual ao resto.

— É uma pena que tenha desistido, Sra. Warby. Hoje mesmo, no consultório, estive conversando com uma mulher jovem que estava quase desesperada, à procura de alguém com quem conversar. Ela vai ter o seu primeiro bebê e não conhece ninguém. Naturalmente, ela não está aqui há muito tempo.

— Pobrezinha! Mas ela tem o marido, não tem?

— Sim, tem — Sara respondeu, num tom de voz calmo. — Mas acho que ela quer mais a companhia de outra mulher, para conversar. Mas não alguém que lhe conte histórias tolas e assustadoras sobre partos difíceis.

— Não está sugerindo que eu deva ir bater na porta dela, está, doutora?

— Bem, não. Mas é pena que ninguém lhe estenda a mão para oferecer-lhe amizade.

— Ela não tem vizinhos?

— Não sei. Por falar nisso, e seus vizinhos, Sra. Warby? Quem mora na casa ao lado?

— Um senhor idoso, que também mora sozinho, mas tem a sua família espalhada pela aldeia.

— Naturalmente, o que é preciso é um lugar comum para se encon­trar — disse Sara —, especialmente as mulheres. Elas parecem ter mais necessidade de se reunir do que os homens.

Uma pequena ruga de rebeldia havia se formado nos cantos da boca da Sra. Warby.

— Se estiver tentando me fazer ingressar na Associação das Mu­lheres, doutora, não vai conseguir. Eu já tentei. Você enfrenta uma noite fria e escura de inverno, para ficar sentada num salão igual­mente frio da aldeia, e o que acontece? Ninguém conversa com você, você fica sentada tomando uma xícara de chá sozinha, fica ouvindo uma conversa geralmente chata, depois volta para casa e ninguém nem se dá ao trabalho de dizer boa noite. Quando você chega em casa, vê que o fogo da lareira se apagou e descobre que perdeu um bom programa de televisão.

Sara riu.

— Meu Deus, que quadro melancólico, Sra. Warby! Bom, eu não sei nada a respeito da Associação das Mulheres, mas é certo que metade das mulheres da aldeia parece pertencer a ela. Tentar convencê-la a ingressar nela não me passou pela cabeça. As mulheres certamente precisam de alguma coisa, mas, que a associação seja a resposta, não tenho certeza. — Sara pousou sua xícara vazia. — O chá estava ótimo, obrigada, Sra. Warby. E agora, que tal deixar-me examiná-la? Quer desabotoar a blusa? Vou escutar seu coração, antes de mais nada. Como Sara esperava, não havia sons cardíacos que indicassem algum problema sério. A dor de cabeça da qual a Sra. Warby se quei­xava, aparentemente não tinha nenhum causa orgânica. Não havia nenhuma rigidez no pescoço, nenhum distúrbio na visão.

— Sente alguma dor atrás da orelha? — Sara perguntou.

— Não. É mais nas têmporas e na parte de trás.

— As dores de cabeça são constantes, ou há períodos em que elas desaparecem?

Parecia que havia dias em que as dores não paravam, e períodos durante os quais não tinha esse problema.

— Sente alguma sonolência?

— Não. Às vezes eu gostaria de sentir.

— Tem dores agudas e momentâneas?

— Não.

— Enjôos?

— Eu, de fato, sofro de indigestão.

— Entendo. — Sara ficou pensando por um momento. Pela expe­riência que tinha com pacientes como a Sra. Warby, sabia que não gostavam que lhes dissessem bruscamente que não havia nada de errado com eles. Em todo caso, isso não seria estritamente a expres­são da verdade. Portanto, falou, com tato: — Bem, Sra. Warby, parece que não há nada de terrivelmente errado com a senhora. Vou lhe dar alguns comprimidos para a dor de cabeça e a indigestão. Certo? A Sra. Warby franziu o cenho.

— Mas, se não há nada de errado com o meu coração, por que é que eu tenho palpitações?

— Eu não disse que não havia nada de errado — Sara disse, pacientemente. — Disse que não havia nada de terrivelmente errado, o que é muito diferente. Eu não tentaria ocultar nada da senhora, acredite-me, Sra. Warby.

Ouvindo a situação explicada dessa maneira, a Sra. Warby pareceu apaziguada. Suas feições se descontraíram.

— Estou contente por isso, doutora, e foi bom a senhora ter vindo me ver. Eu. . . Sei que a senhora é uma pessoa ocupada, mas, sem­pre que passar por aqui e sentir vontade de tomar um café ou chá, pode entrar que a casa é sua.

— Ora, obrigada, Sra. Warby. Agora eu preciso ir, senão o Dr. Henderson vai ficar preocupado comigo. Tive muito prazer em co­nhecê-la e espero que nos vejamos com freqüência.

Sara achou que sua paciente parecia mais animada do que quando a vira pela primeira vez, e estava convencida de que a solidão era a parte principal de seu problema. Apesar dos clubes e organizações, era espantoso como existiam pessoas solitárias, tanto nas cidades como no campo. Enquanto se dirigia para casa, ficou pensando sobre o que a Sra. Warby dissera sobre a associação. Seria verdade que uma mulher podia participar de uma agremiação assim, e ainda sentir falta de amizades? As reuniões seriam chatas? Ou a Sra. Warby tinha estado fechada demais dentro de si mesma? Talvez a Sra. Warby tives­se tido uma ou duas noites desagradáveis na Associação das Mulhe­res, por acaso. Não obstante, devia haver algo errado. Sara estava decidida a conversar com Alys sobre isso.

Uma oportunidade surgiu na manhã seguinte. Alys e Bob passaram por lá e Alys lhe fez o convite para uma reunião.

— Se pudesse passar por lá, nem que fosse por uns cinco minutos, talvez fosse uma boa oportunidade de você conhecer umas pessoas.

— Obrigada, eu gostaria de ir. Por falar nisso, estive ouvindo algu­mas críticas à Associação das Mulheres, outro dia.

Alys fez uma careta.

— É possível. Geralmente recebemos críticas de pessoas que não sabem nada a respeito dela.

— Essa pessoa já foi membro.

— Oh, meu Deus! — Alys agora parecia preocupada. — Às vezes recebemos um novo membro que vem e parece que não tem sorte. Às vezes nova participante tem o azar de se sentar ao lado de uma pessoa que não seja extrovertida ou de escutar alguém que dis­cursa mal. Então, antes que se tenha tempo de fazer algo a respeito, a mulher sai, com a mesma rapidez que entrou, e geralmente para sempre.

— Mas o que é que vocês fazem com uma pessoa assim? Não vai alguém visitá-la ou não se faz algo para ela voltar?

— Muitas vezes sim. Mas as pessoas nem sempre dizem por que não querem voltar. Ou então batem a porta na nossa cara. Em todo caso, quem é essa mulher?

Sara hesitou.

— Eu não sei se devo lhe dizer. Entretanto, ela é realmente muito solitária e precisa muito de ajuda. Não vou dizer quem é. Seria uma quebra de sigilo, mas posso tentar fazê-la ir à sua reunião. Para que ê a reunião? Para angariar fundos para a associação?

— Não — Alys respondeu quase indignada —, é para angariar                                                                               fundos para uma festa e presentes de Natal para as pessoas idosas da aldeia.

— Desculpe — disse Sara, rindo. Então perguntou mais coisas sobre a organização e seus tipos de atividades. Quando Alys termi­nou de explicar, ela começou a ficar muito interessada.

— Estou impressionada — disse.

— Eu achei que você ficaria. Que tal ingressar nela?

— Eu não sei. Eu não poderia prometer que seria uma partici­pação ativa e nem útil.

— Não se preocupe com isso. Mas tenho certeza de que você a achará interessante e que vale a pena.

Sara esperava com ansiedade o domingo, dia em que Oliver lhe prometera mostrar a floresta. Tinha havido tantos dias lindos de outono, e ela esperava que o bom tempo continuasse. Quando o do­mingo chegou, o dia começou bom, mas, à tarde, o céu começou a ficar encoberto e choveu.

— Hoje não está bom para passear na floresta — John Henderson comentou, olhando pela janela. — Por que não muda de idéia e o recebe simplesmente para o chá?

— Obrigada, tio John, mas Oliver disse que iríamos tomar chá em algum lugar. Se demorarmos muito talvez eu o traga para o jantar, se estiver tudo bem com Jessie.

Ele riu.

— Oh, está tudo bem com Jessie. Ela sempre faz montes de comida.

Sara olhou para ele afetuosamente.

— Tio John, o senhor tem se sentido bem de fato, ultimamente?

— Sim, meu bem, tenho. Tê-la aqui me faz muitíssimo bem.

— Estou contente por isso.

— E você, sente-se feliz? — perguntou ele. — Está se acostu­mando aqui e conhecendo pessoas novas? Todos os pacientes pare­cem gostar de você.

Ela lhe dirigiu um sorriso meio triste.

— Bem de qualquer modo, estou contente por causa disso — respondeu, pensando, um pouco pesarosa, na Sra. Williams e na esposa do pároco. Não fizera muito sucesso com essas duas senhoras. E também não com Jim Crombie. Mas não mencionaria isso a tio Jofin por nada neste mundo. — Eu estou contente com uma coisa — continuou. — Num distrito rural, pode-se esperar um pouco de oposição quanto a uma mulher médica. Mas só tive um paciente que disse que queria ver o senhor.

— Oh, sim o Marsh, aquele que se constatou ser diabético. Acho que isso foi apenas timidez natural diante de uma médica. Pelo menos, natural para ele. Existem muitas senhoras idosas que preferem uma médica, se bem que não liguem tanto se o médico for velho e de­crépito, como eu.

— Velho e decrépito? Que bobagem, tio John! A campainha da porta soou.

— Ah, deve ser o Oliver — disse Sara. — Vou subir para me vestir. Por favor, tio John, diga-lhe que não vou demorar.

Sara abriu o guarda-roupa. Num dia muito úmido e escuro, em Yorkshire, poucas semanas antes de vir, ela comprara um lindo con­junto de chuva para se animar: uma capa preta e brilhante, um par de botas brancas de salto alto e um chapéu preto com pintas brancas, em plástico brilhante. Hesitou por um momento. Glamouroso demais para o campo. Também tinha um par de galochas, uma capa branca de popelina e um lenço de cabeça impermeável. Mas olhou para o céu cinzento e pensou em Oliver. Por que não usar o que tinha de melhor? Pegou o novo conjunto, vestiu-o, fez uma pose de modelo diante do espelho e riu. Estava satisfatório. Uma bolsa de verniz e um par de luvas de couro completaram o quadro.

Feliz com sua aparência e contente por ter escolhido a roupa mais bonita, desceu a escada. Ouviu vozes masculinas vindas da sala de estar e abriu a porta.

— Olá, Oliver...

Mas não foi Oliver quem se levantou da cadeira. Foi Jim Crombie, com aquele invariável sorriso de zombaria no rosto, com. o qual parecia ocultar a aversão por ela.

 

— Ora, ora! — exclamou Jim, olhando-a de cima a abaixo. — É a Miss Glamour do ano! Vai a algum lugar especial?

— Pode ser que sim — respondeu Sara friamente. — Por outro lado, você também pode dizer que eu vou sair com alguém muito especial.

— Ah! O silvicultor bonitão, sem dúvida.

— Isso mesmo. Suponho que você não faça objeção. — E ficou surpresa com o sarcasmo do seu próprio tom de voz. Nunca fora assim. Estou começando a ficar tão desagradável quanto Jim, pensou.

Mas ele disse brandamente:

— Nem um pouco. Espero que se divirtam.

Sara foi até a janela, sentindo-se um pouco como uma garotinha que se vestiu cedo demais para uma festa. Que homem aborrecido era Jim Crombie! Aliás, detestável! Como poderia pensar de modo diferente? Tio John parecia achar tudo engraçado, pois se divertira com a discussão, como de costume. Sara olhou pela janela e para o relógio. Oliver já estava uns minutos atrasado. Se ele não viesse logo, subiria e tiraria aquela roupa ridícula. Tinha sido uma tola!

Nesse momento, a campainha da porta soou de novo.

— Ah, ele chegou — disse tio John.

— Então já vou indo, tio John!                                            

Jessie estava acabando de sair da cozinha para ir atender à porta.

— Pode deixar Jessie — Sara lhe disse. — Deve ser o Sr. Clayton. É possível que eu o traga para jantar. Está bem?

— é claro, doutora. Será fácil arrumar mais um lugar.

Sara agradeceu e abriu a porta. O comentário dele foi imediato.

— Puxa, você está elegante! Está vestida bem de acordo com um dia como hoje.

— Obrigada.

Oliver desculpou-se por ter se atrasado alguns minutos, enquanto se dirigiam para o carro.

— Eu estava acabando de sair de casa, quando alguém chegou. Espero que não a tenha deixado esperar demais.

Ela disse que não se importava nem um pouco e, para encerrar o assunto, perguntou a Oliver onde ele morava.

— No caminho para Ketford. No momento, estou morando com o silvicultor-chefe. Ele mora num chalé da floresta, mas não num dos antigos, é uma casa moderna, muito bonita, mas. . .

— Mas o quê? — perguntou Sara, enquanto ele dava partida no carro. — Você não gosta de casas modernas?

— Não muito. Se eu fosse casado, acho que gostaria de uma antiga. De modo geral, elas têm mais personalidade.

— Mas não têm esgotos — observou Sara.

— Mas podiam ter.

— Sim, é claro. Estava apenas brincando. E concordo com você: elas de fato têm mais personalidade. Uma de minhas pacientes, a Sra. Warby, mostrou-me todo o seu chalé outro dia, e ele é realmente lindo. Todo o charme do lugar foi restaurado ou mantido; tem ba­nheiro, água quente e fria, iluminação elétrica. . . Tudo.

— Tudo isso pode ser feito — disse Oliver —, e não custam os olhos da cara se as pessoas estiverem dispostas a fazer o serviço aos poucos, em vez de pagar para que os outros o façam.

Sara ia pedir a opinião dele para o custo da instalação de água encanada numa casa, mas já estavam na floresta e Oliver começou a lhe mostrar as árvores.

Uma delas era chamada de magnólia ou tulipeiro e tinha sido importada especialmente.

— Por que é chamada tulipeiro? — perguntou ela.

— Porque as folhas têm o formato de uma tulipa. — Ele parou o carro. — Espere um pouco aí, que eu vou buscar algumas para você ver.

Oliver desceu do carro e voltou logo, com várias folhas na mão.

— Está vendo? — disse depois, estendendo uma folha cor de cobre, para ela ver.

— Oh, sim, tem o formato de uma tulipa. Que interessante!

Oliver saiu lentamente mais uma vez, indicando e dando os nomes de várias coníferas, os diferentes tipos de lanços e carvalhos.

— Estas são árvores cultivadas com propósitos decorativos. Você se lembra de quando eu lhe falei sobre elas, na casa de Bob e Alys. Essas árvores que orlam a estrada nunca são cortadas.

— É bom saber disso.

A floresta era entremeada de alamedas, todas elas numeradas, ten­do cada qual, em sua entrada, uma vassoura, para ajudar a apagar o fogo.

— Vocês têm muitos incêndios? — Sara perguntou.

— Bem, nós nunca tivemos um de grandes proporções, pelo menos desde que eu cheguei aqui. Temos incêndios pequenos de tempos em tempos. As torres de vigia estão sempre atentas, é claro, para que nenhum fogo assuma grandes proporções. — Ele parou o carro numa das alamedas. — Existem umas árvores muito bonitas lá embaixo. Eu pretendia mostrar-lhe de perto, mas. . . — E interrompeu, olhan­do para a chuva.

— Oh, não se preocupe com a chuva por minha causa — Sara disse, rindo. — Eu estou bem equipada. Mas, e você?

— Eu estou bem. Então vamos. Esta é uma das alamedas nas quais não permitimos o trânsito de carros.

Embora estivesse sem chapéu; ele usava uma capa de chuva, e quando saiu do carro tirou do bolso um gorro de camponês.

— Estes são ótimos -— disse, desenrolando-o. — São de náilon e servem tanto na cabeça de um pigmeu como na de um elefante.

Ela riu. Era bom estar com alguém agradável e alegre como Oliver.

— São muito úteis. Pena que não os fabriquem para mulheres.

— Você pode tomar o meu emprestado quando quiser — disse Oliver, rindo.

Desceram pela alameda. As árvores de ambos os lados eram magníficas e lindas, suas cores variavam desde o verde-escuro até o marrom dourado, e o chão da floresta era como um tapete macio e limpo, de uma tonalidade avermelhada. Sara achou ter visto um movimento à distância.

— Existem cervos na floresta? — perguntou um tanto excitada.

— Sim, há um número bastante grande. Na verdade, estão aumen­tando. Mas quase não se vê durante o dia. Pode-se vê-los à noite, quando se atravessa a floresta. Eu passei por um bando deles outra noite.

Depois do passeio pela alameda, Oliver mostrou-lhe os canteiros de mudas, onde novas árvores estavam sendo cultivadas, e seguiram para um lugar onde estava havendo derrubada de árvores. Era tudo interessante, e Sara estava gostando de cada minuto de seu passeio, apesar da chuva.

Finalmente, Oliver levou-a de carro através de quilômetros e mais quilômetros de floresta, por partes que ela nunca tinha visto, onde havia um verdadeiro festival de beleza.

— Você precisa ver depois que neva um pouco ou depois de uma geada — falou Oliver. — Fica uma terra de contos de fada; primave­ra, verão, outono, inverno. Há sempre uma grande beleza na floresta.

Sara dirigiu-lhe um olhar sorridente e viu nele uma expressão que nunca tinha visto no rosto de nenhum outro homem. Era uma expres­são de contentamento e uma tranqüilidade que beirava a ternura; havia um sorriso suave e um olhar distante em seus olhos cinzentos e límpidos. Se ele amasse uma mulher, mesmo que com a metade de intensidade com que amava as suas árvores, pensou Sara essa mu­lher ainda seria muito amada.

— Oliver, por que você não se casou? A maioria dos homens de sua idade é casada.

O sorriso dele se alargou. — De fato é. Mas a resposta é simples. Eu jamais encontrei uma mulher a quem amasse o suficiente para querer me casar.

— Os seus padrões são altos demais? Ou está apaixonado demais pelo seu trabalho, pelas suas queridas árvores?

— Pode ser.

— Qual dos dois?

— Ambos, eu suponho. Quero dizer, é possível um homem ou uma mulher se sentirem tão frustrados com o seu trabalho, que se agarram à primeira pessoa de quem gostam, e mais tarde se arrependem. Veja você mesma, por exemplo. Por que ainda não se casou? Você é inte­ligente, atraente e jovem, embora mulheres de sua idade já tenham se casado e começado a formar uma família.

Ela riu. — Acho que o mesmo acontece comigo. Como você, eu adoro o meu trabalho. E como o seu, o meu trabalho também é muito absorvente.

— E você gostaria de um homem cuja inteligência fosse igual à sua, que pudesse acompanhar a sua mente pesquisadora e que tivesse força de caráter suficiente para conquistar a sua admiração e seu amor.

— Você é muito lisonjeador.

— Não sou lisonjeador. Sincero, talvez.

Sara ficou calada, pensando no que ele dissera. Oliver talvez esti­vesse certo quanto ao tipo de homem que servia para ela, e no mo­mento ela podia pensar em dois que se ajustavam a esse conceito: o próprio Oliver... E Jim Crombie. Sorriu diante da idéia de Jim Crombie e ela se casarem. Seria uma vida de gato e cachorro. E Oliver? Ela não viu nada de errado na idéia, exceto que, no momen­to, não o amava. Gostava dele. Gostava muito. Mas quando se ama a pessoa amada não nos sai da cabeça nem por um instante. Fica nos pensamentos, mesmo enquanto nos concentramos em outra coisa. Torna-se uma parte da gente. Sabia disto porque conhecera um amor assim, há muitos anos.

— Em que você está pensando? — A voz de Oliver interrompeu os seus pensamentos.

— Eu não ousaria lhe contar — ela respondeu, sorrindo.

— É tão ruim assim?

— Bem. . .

— Está certo, não vou pressioná-la — disse ele, rindo. — Por falar nisso, aqui perto há um chalé encantador, pertencente à Co­missão de Silvicultura. Está vazio. Gostaria de vê-lo? Posso ir buscar a chave, se você quiser.

Sara disse que gostaria muito. Oliver virou o carro para uma das alamedas e foi até a casa do homem que guardava as chaves. Chegavam-se-se ao chalé percorrendo-se vários quilômetros de uma estrada profundamente sulcada com quilômetros de florestas de ambos os lados. Finalmente, chegaram a uma clareira na qual ficava o chalé, baixo, isolado, mas convidativo.

— Que lindo! — Sara exclamou. — E por que um chalezinho adorável como este está vazio?

Oliver riu, enquanto a ajudava gentilmente a descer do carro.

— Você fala como "forasteira" típica. Só os forasteiros acham encantadores esses velhos chalés. Não há eletricidade, água encanada e nem esgoto para começar. E como você deve ter notado, fica muito retirado.

— Você também é praticamente um forasteiro. Você falou isso outra noite, na festa de Alys.

— De fato, mas embora eu adore a floresta, não sou um eremita. Acho que não gostaria de morar sozinho.

— Quer dizer, então que, se você se apaixonasse por alguma mu­lher jovem, inteligente e atraente, pensaria nisso?

— Não sei. Dependeria da opinião dela, não é? Suponho que... Se ela adorasse o lugar. . . Mas eu não deixaria minha esposa viver no chalé do jeito como ele está. A reforma pode ser cara, pelo menos se for preciso contratar um empreiteiro. Nem todo mundo é habili­doso como o marido da Sra. Warby, e nem toda mulher teria paciên­cia de morar aqui enquanto o trabalho estiver sendo feito.

— Isso é verdade.

Sara ficou tão encantada com o interior como havia ficado com a parte de fora, embora ele precisasse de uma reforma e de decoração. O chalé não tinha eletricidade, banheiro, nem água encanada. Havia uma grande lareira de tijolos numa sala e um fogão na outra. Na parte de cima, havia dois dormitórios grandes e um pequeno.

— Você não se incomodaria de morar aqui, então? — Oliver riu, enquanto ela olhava extasiada.

— Nem um pouco.

— Sem eletricidade, água quente e tudo mais?

— Sim. As pessoas conseguiam viver sem a eletricidade antes de ela ser inventada. E provavelmente não seria por muito tempo.

— Não seria mesmo? Este chalé fica a quilômetros do poste de eletricidade mais próximo. Você acharia quase impossível viver sem ela. Não teria televisão, ferro elétrico, aspirador, máquina de lavar e fogão elétrico. E não há gás nas redondezas.

— Eu não me importo. Existem coisas como combustível sólido, petróleo, gás líquido. Aquele quartinho lá em cima poderia ser trans­formado num banheiro; seria possível fazer uma fossa séptica.

— Sim, eu sei, mas eu não me arriscaria a trazer você ou qualquer outra mulher para um lugar como este. Você está encantada com ele agora, mas será que estaria daqui a alguns anos?

Ela olhou para ele, levemente surpresa.

— Oliver, acho que estou percebendo uma veia de teimosia em você. Se a sua futura esposa quisesse realmente um chalé como este, você não consentiria? Especialmente você, que também gosta de luga­res antigos. Será que se importaria se ela se cansasse dele depois de algum tempo?

— Só que modernizá-lo teria sido uma perda de tempo e trabalho, sem falar no dinheiro.

— Poderia sempre vendê-lo.

— É isolado demais.

— Meu Deus, você fala como se ele ficasse a centenas de quilômetros de qualquer lugar.

— Esses quatro quilômetros de estrada esburacada seriam sufi­cientes para assustar qualquer mulher.

— Os homens não?

— Alguns homens, sim, acho.

— Bem, isso não me assustou — disse Sara enfaticamente. — E acho que qualquer dinheiro gasto neste chalé valeria a pena. Exis­tem muitos chalés desocupados, pertencentes à Comissão de Silvi­cultura?

— Sim, vários. A maioria das pessoas parece não gostar mais de lugares antigos. Querem uma casa moderna, com todas as comodi­dades, inclusive com aquecimento central, se puderem. São as pes­soas de cidades grandes as que mais gostam de chalés com telhados de sapé e coisas assim. Os londrinos, principalmente.

— Acho que os campos em volta e a paz também têm algo a ver com isso — Sara sugeriu, com uma ponta de ironia. — Quer dizer que são os londrinos que compram essas velhas propriedades?

— Não, eles as alugam para os fins de semana e feriados. E, de modo geral, ficam contentes com elas do jeito que estão. A vida primitiva do campo é boa para curtos períodos, pelo menos para certas pessoas.

— Lá vai você de novo!

— Mas é verdade. Sara. Você sabe disso.

— Sim, é claro. Uma coisa é fazer isso por vontade própria, mas a outra é ser forçado a fazê-lo devido à pobreza ou às circunstâncias. Em todo caso, a vida no campo não precisa e não deve ser primitiva.

— E não é, para alguns.

— Não, e as coisas estão melhorando o tempo todo. Mas é muito injusto que alguns desfrutem todas as amenidades da vida moderna, enquanto outros ainda estão vivendo mais ou menos na era vitoriana.

— Existem alguns que não querem se ajudar — Oliver disse, sor­rindo delicadamente.

— Bobagem — Sara negou rapidamente, mas acrescentou, em tom mais moderado: — Talvez existam. Mas ainda existem muitas pessoas, lavradores assalariados, especialmente, que mal conseguem viver com o que ganham. Suas esposas, algumas de meia-idade, que deveriam ter uma vida um pouco mais calma, precisam sair para trabalhar. Os Scott, por exemplo, um dos trabalhadores da Sra. Wil­liams. Você sabe Oliver, que eles não têm nem ao menos água encanada, e muito menos quente e fria? Nem esgoto? Toda a água é buscada numa bica fora da casa, e a água usada é jogada no jardim. E ouvi dizer que alguns chalés ainda têm água de poço.

— Sim, eu sei.

— Sinceramente, Oliver, quanto custaria a Sra. Williams instalar uma pia e água encanada na casa?

Ele deu um sorriso esquisito.

— Para falar a verdade, muito pouco. As pias de fibra de vidro ou de plástico são muito baratas e têm boa aparência. Não é preciso instalar uma de aço inoxidável ou coisa parecida. Quanto à fossa, também não precisa ser muito complicada. Um buraco no jardim, de cerca de um metro e meio de profundidade e mais ou menos um metro de largura, alguns pedregulhos e cascalhos no fundo, e os lados revestidos com tijolos velhos. A coisa toda não custaria mais do que umas quarenta libras. E os Williams poderiam fazê-lo facilmente.

— Então, por que não o fazem? É um absurdo. Francamente, essas coisas me deixam furiosa. E pensar que muita gente acha que no campo o lavrador recebe um chalé livre de aluguel, muitas batatas, verduras e tudo o mais, de graça!

— É um engano — concordou Oliver. — Os Scott e todos os trabalhadores das fazendas pagam o aluguel dos chalés.

— Aluguel! Eles é quem deveriam receber por morar lá — Sara disse, indignada.

Oliver colocou a mão levemente sobre o ombro dela.

— É muita bondade sua preocupar-se tanto com os problemas dos outros. Em sua maioria, as pessoas só pensam nelas mesmas. O sis­tema de esgotos vai chegar ao distrito. Isso tem sido lento, eu sei, mas o problema é que as casas, na maioria de nossas aldeias rurais, são muito espalhadas. Nas áreas onde as casas são concentradas, como nos conjuntos residenciais e apartamentos, é muito mais fácil.

— É, acho que sim. — Sara olhou mais uma vez em volta da sala onde estavam, e suspirou. — Sei, eu mesma seria capaz de alugar este chalé, como uma espécie de retiro, antes que algum londrino venha e alugue.

— Você teria tempo de usá-lo? Você poderia mandar instalar um telefone. Não é preciso eletricidade para isso. Mas que tal irmos a algum lugar para tomar chá?

Ele trancou o chalé, devolveu a chave e foram a um clube de campo de Norfolk. Como a maioria deles, aquele ao qual Oliver pertencia tinha sido outrora uma grande residência particular.

— Uma relíquia de dias mais fartos — disse Oliver.

— É bem diferente do chalé que acabamos de deixar — Sara comentou secamente. — Mas é lindo assim mesmo. Um símbolo da vida elegante.

— Então você gosta daqui?

— Quem não gostaria?

O interior da casa era muito bonito. Pintura branca, tapetes verme­lhos com arabescos, espelhos compridos, cadeiras cobertas de algodão estampado na sala onde tomavam chá e um belo fogo de lenha. En­tretanto, Sara disse que preferia o chalé.

— Acredito que sim. — Oliver riu.

Sara ficou imaginando de que tipo de casa Jim Crombie gostaria. Certamente gostava do campo, caso contrário não teria resolvido exercer a profissão numa área rural. Sara surpreendeu-se desejando saber mais a respeito dele, mas afastou esses pensamentos, achando que já sabia o suficiente.

— Você está livre o resto da tarde? — perguntou-lhe Oliver. — Caso esteja, talvez queira ir até Norwick. E uma cidade muito bonita. Tenho certeza de que você vai gostar e, de certa forma, é melhor visitá-la no domingo, pelo menos na primeira vez. Ou prefere ir num dia de semana, quando as lojas estão abertas? Suponho que você seja como as outras mulheres, que adoram entrar e sair de lojas.

— Naturalmente, eu gosto de olhar as lojas. Mas também gosto de visitar as cidades nos domingos, especialmente as cidades interes­santes, como acredito que Norwick seja. Há uma atmosfera diferente no domingo e, como você disse, podem-se ver as coisas melhor. Eu estou livre o resto da tarde, e adoraria ir.

— Ótimo!

O céu estava mais claro agora. Sara sentou-se ã vontade no carro e gostou que alguém estivesse dirigindo, para variar. Que pessoa maravilhosa era Oliver! Se Jim Crombie fosse mais parecido com ele! Mas tentou afastar esses pensamentos. Por que estragar o dia pen­sando numa pessoa tão desagradável?

Será que Jim era realmente desagradável? Será que ela, na ver­dade, não gostava dele? E, no fundo do coração, será que não dese­java que ele gostasse dela?

Sara fechou os olhos um pouco, mas o rosto de Jim, com aqueles olhos zombeteiros, estava tão nítido como se ele estivesse presente. Vá embora! Pensou Sara. Vá embora!

Respirou fundo, abriu os olhos e sorriu para Oliver.

— Tudo bem? — ele perguntou, sorrindo também.

Ela assentiu com a cabeça. — Estou me divertindo muito. Este é a primeiro dia de folga, de fato, que tive desde que cheguei aqui.

— O Dr. Henderson não tem estado bem?

— Oh, sim. Ele teve um ataque no dia em que cheguei aqui, mas.   .

— Coração?

— Sim. Mas está melhor, ultimamente.

— é porque você tem cuidado bem dele. Você é uma pessoa muito agradável.

Ela protestou, dizendo que era tio John quem vinha se cuidando bem. Assim mesmo, era bom receber a admiração e o respeito de Oliver. Precisava disso para compensar a atitude de Jim Crombie.

Sara ficou encantada com Norwick. As lojas pareciam maravilhosas. Precisava voltar qualquer dia para visitá-las. Oliver mostrou-lhe a finda catedral antiga, com a estátua de Edith Caveil bem na entrada, e levou-a ao outro lado do rio, de onde a catedral parecia estar incrustada no coração do campo, e não na cidade. O mercado, apesar de estar fechado, parecia alegre e vistoso, com seus toldos multicoloridos. À esquerda do mercado havia um bonito prédio azul com a frente em arco. Uma velha estalagem. E, atrás dela, uma linda igreja do século XV,

Da parte de trás do mercado via-se um prédio magnífico e mais moderno, com uma imponente torre de lado.

— Aquela é a Prefeitura — Oliver falou. — E esse outro prédio cinza e branco, à direita, é a Câmara Municipal.

— Mas é lindo! — Sara exclamou. — Parece um castelo ou uma fortaleza. E adoro aquele desenho... Como uma espécie de tabu­leiro de xadrez na frente. De que é feito?

— De pedras naturais da região. Mas venha, deixe-me mostrar-lhe o nosso pequeno teatro, o Maddermarket. Dizem que é o mais atraente teatro amador do país.

Já estava escuro e, tendo tomado apenas um chá leve, Sara estava começando a ficar com fome.

— Você gostaria de jantar conosco? — perguntou a Oliver. — Já falei com tio John e com Jessie.

— Neste caso, eu não posso recusar — ele disse, rindo. — De qualquer modo, eu não recusaria. Estou morrendo de fome. Eu estava para sugerir que fôssemos jantar em algum lugar.

Sara disse que preferia ir para casa.

— Não quero deixar o tio John sozinho durante muito tempo. Ele estará relativamente bem, mas. . .

Em menos de meia hora eles chegaram a East Norton e quando Oliver dobrou para entrar na Ashton House, ela ficou contente em ver que o carro de tio John estava na garagem. Não tinha saído para atender a nenhum chamado.

Oliver ajudou-a a descer do carro, e ela passou à frente dele para abrir a porta.

— Sara, antes de entrarmos, eu só queria dizer o quanto gostei de estar com você hoje, e lhe agradecer. Gostaria de jantar comigo qualquer noite dessas, em Norwick, e ir ao cinema ou ao teatro? Ela lhe deu,um sorriso.

— Ora, obrigada, Oliver. Eu gostaria muito.

Seu rosto estava tão próximo do dele, que Sara não ficou muito surpresa quando Oliver inclinou a cabeça e encostou seus lábios nos dela, num beijo leve e delicado. Então, talvez por ela não ter feito objeção, a pressão aumentou, e sentiu os braços dele à sua volta. Sara achou o contato agradável, e, por um momento, algo se agitou dentro dela.

Mas, de repente, a porta foi escancarada e, antes que pudessem se separar, uma luz os iluminou e Jim Crombie lá estava diante deles.

Sua expressão era sombria.

— Que cena maravilhosa! Desculpem-me por interromper, mas tal­vez você esteja interessada em saber. Sara, que seu tio precisou ir para o hospital.

 

Sara arregalou os olhos. Por um momento, sentiu-se sem fôlego e sem fala.

— Oh, não! Mas o que aconteceu? Quero dizer... Como? E para que hospital ele foi? Preciso ir vê-lo imediatamente. — Sem esperar que Jim Crombie respondesse, virou-se para Oliver. — Você quer me levar?

— Mas, olhe. . . Sara, você precisa comer primeiro. — E olhou para o outro. — Ele está muito mal, Jim?

— É melhor vocês dois entrarem — disse Jim. — é bobagem sair correndo, Sara. Estão cuidando dele. Se ainda não comeu, é melhor fazê-lo.

Ela comprimiu os lábios e conteve o desejo de dizer-lhe que parasse de lhe dar ordens. Mas entrou no hall, dando-se conta subitamente de que Oliver também não tinha jantado, e de que, afinal, ela poderia ir ao hospital sozinha. Não havia necessidade de ele levá-la.

— Oh, senhorita — disse Jessie entrando no hall —, sinto pelo que aconteceu. Ele tinha acabado de tomar chá, quando veio aquele chamado. Ele estava se sentindo tão bem ultimamente.

Jim Crombie interrompeu-a.

— Jessie... A Dra. Martindale não come desde... Quando?

— Ela tomou um chá leve em Norwick, há umas três horas — Oliver informou. — Eu ia sugerir que fôssemos jantar, mas...

— Desde o chá, Jessie — Jim Crombie interrompeu novamente. — E, é claro, o Sr. Clayton também não comeu, então. . .

— Está tudo pronto na sala de jantar, Dr. Crombie. Vou trazer o café — Jessie disse, saindo, apressada.

Quando Oliver subiu para lavar as mãos, Jim disse bruscamente:

— Seu batom está todo borrado. Devo dizer que não acho grande coisa o seu comportamento como médica.

Com isto, ela não pôde conter a fúria.

— Quer calar a boca? — disse, voltando-se para ele. —- Se você fez alguma coisa para ajudar o tio John, sou-lhe grata, mas isso não lhe dá o direito de me insultar a iodo instante. E certamente não lhe dá o direito de comentar a minha aparência pessoal ou o meu com­portamento. Agora, se me der licença, vou saber direito o que houve, com Jessie.

Subiu a escada correndo, arrumou-se um pouco e quando desceu novamente viu Jessie entrar na sala de jantar com o café. Jim Crombie já devia ter saído, graças a Deus.

— Jessie, em que hospital... — começou, abrindo a porta da sala de jantar novamente, mas parou de repente. Em pé ao lado da lareira, com o cotovelo apoiado na cornija, lá estava Jim Crombie.

— Ele foi para Keiford — informou friamente. — Pensou que tivesse se livrado de mim, não foi?

— Isso seria esperar muito? Parece que você vai ficar para o jantar, não?

— Não, não vou, mas obrigado pelo convite insistente — disse sarcasticamente. — Talvez você não tenha notado, e não notou, tenho certeza, embevecida como estava com seu Oliver, que o meu carro não está aqui.

De repente ela se lembrou de que só o carro do tio John estava lá fora. Não havia sinal do carro de Jim Crombie.

— Então, como vocês foram até lá? — ela perguntou.

— Bem, em suma, eu deixei o meu carro no ponto onde John teve o ataque. Levei-o para o hospital no carro dele. Para começar, eu não estou com vontade de andar a pé uns oito quilômetros para ir buscá-lo. Além disso, enquanto eu estiver aqui, minha recepcionista, ou melhor, minha governanta, Nina que está de folga, sabe onde me encontrar. Você naturalmente vai ao hospital assim que puder. E isso quer dizer que não vai haver nenhum médico disponível durante um longo período. E, é claro, é exatamente nessas ocasiões que alguém fica à beira da morte.

— Entendo. Então você quer que eu ou Oliver lhe demos uma carona até onde você deixou seu carro?

— Exatamente. Por isso, acho que vou ter que me sentar aqui enquanto vocês jantam. — Enquanto falava, sentou-se ao lado da lareira. — Mas, se fosse você, deixaria que Oliver a levasse ao hos­pital. Procure não se preocupar demais, Sara. — Seu tom de voz agora era mais suave, mais bondoso. — Ele teve uma trombose coro­nária, como estou certo de que você já suspeitava.   Tinha sido chamado para atender a um paciente e o esforço em sair correndo foi demais para ele. Fui chamado para atendê-lo e levei-o para o hospital. Tenho certeza de que você concorda que um repouso absoluto, sob cuidados médicos, é muito necessário para ele.

— Sim — respondeu Sara calmamente. — Foi o melhor que podia ter sido feito. E... Muito obrigada novamente.

Nesse momento, Oliver voltou à sala e Sara o convidou para sen­tar-se à mesa.

— E você, Jim? — perguntou ela. — Quer jantar?

— Eu já jantei, obrigado. Mas aceito uma xícara de café.

— Como estava tio John quando você o deixou? — Sara perguntou, servindo o café. — Eu estava pensando em telefonar.

— Ele está bem, realmente. Se quiser, eu ligo e você pode con­versar com a Irmã.

Sara agradeceu mais uma vez. Suas defesas contra ele estavam desmoronando rapidamente. Quando Jim saiu para o hall, o olhar dela o seguiu ligeiramente intrigado.

— Ele é uma pessoa estranha — murmurou em resposta ao olhar inquiridor de Oliver.

— Como assim?

— Não creio que ele seja assim com você. Mas uma hora é insu­portavelmente grosseiro e arrogante, e logo depois. . .

Oliver sorriu.

— Oh, acho que isso acontece com a maioria dos médicos. Eles gostam tanto de bancar os mandões com seus pacientes que pensam que podem fazer isso com todo mundo. É um hábito que adquirem.

Mas Sara sabia, no fundo, que era mais do que isso. Jim voltou para dizer que havia ligado para o hospital, e que a Irmã estava espe­rando para falar com ela. Sabendo agora que o tio John não estava com nenhuma dor e descansava confortavelmente, Sara mandou-lhe um recado e voltou à sala de jantar, onde Jim estava pondo Oliver a par do ocorrido.

— Eu insisto em levá-la ao hospital, Sara — disse Oliver. — Você não pode dirigir sozinha. Nem pense nisso. Podemos levar Jim até onde e!e deixou o carro.

— Obrigada, Oliver.

Sara estava preocupada demais para comer direito. Depois, assim que viu que Oliver parecia ter terminado, subiu até o quarto e vestiu um casaco.

— Você vai ficar com excesso de trabalho enquanto John estiver no hospital, Sara — disse-lhe Jim, quando se sentou no banco de trás do carro de Oliver.

— Sim, eu sei. Mas tio John conseguia dar um jeito antes de eu chegar para ajudá-lo. Por isso, acho que eu também posso.

— Ele conhece bem o distrito.

— Eu estou começando a conhecê-lo muito bem, agora.

— Está certo — disse Jim. — Pode me chamar, se eu puder aju­dá-la de alguma maneira.

Por que é que ela se sentia tão tensa sempre que Jim estava por perto? Eles tinham tido um mau começo, no mesmo dia em que ela chegara. Havia alguma coisa errada entre eles, Sara tinha certeza, alguma aversão ou ressentimento pessoal. Esse pensamento a entris­teceu, e não foi pela primeira vez. Ao que parecia, ela era sempre magoada ou enfurecida por ele. Havia algo nele, uma força que a atraía e repelia ao mesmo tempo.

Oliver deixou Jim no lugar onde eslava o carro, e depois continuou, a caminho do hospital.

Sara encontrou tio John deitado, de olhos fechados, mas, como se sentisse a sua presença, ele os abriu assim que ela chegou e lhe dirigiu um leve sorriso.

— Sinto muito, Sara. Eu não queria que isso acontecesse. Ela segurou a mão dele.

— Não se preocupe com nada, tio John. Apenas fique tranqüilo e descanse direito. O descanso será bom para o senhor, em todos os sentidos.

— Mas todo esse trabalho! Os atendimentos no consultório duas vezes por dia, as visitas e os chamados noturnos. . .

— Não se preocupe, tio John — disse novamente. — Tudo vai dar certo. — Ela hesitou, mas acrescentou, para tranqüilizá-lo: — Jim disse que vai fazer tudo o que puder para ajudar.

O alívio ficou evidenciado nas linhas descontraídas de seu rosto e sua testa.

— Sim, é claro. Ele é um bom sujeito; um dos melhores que conheço. Você pode contar com Jim.

— Sim, tio — ela respondeu, e descobriu, para sua estranheza, que estava falando sério. — Oliver está lá fora. O senhor gostaria de vê-lo?

Mas seus olhos ficaram anuviados.

— Qualquer outra hora, se você não se importa, Sara. Eu estou muito cansado. Por falar nisso, você gostou do passeio?

— Muito. Vou lhe contar tudo na próxima vez que vier visitá-lo. Há algo em especial quê o senhor queira?

Ele balançou a cabeça negativamente, mostrando-se cansado, e então ela se despediu e saiu. Oliver olhou para ela de modo inquiridor.

— Ele está muito cansado, Oliver. Deve ter tido muita dor, mas agora parece estar melhor.

Oliver levou-a para casa mais uma vez. Quando ia entrando, quase esperava ver Jim novamente. Apesar de Jessie estar em casa, ela parecia estranhamente vazia. Depois de perguntar a Sara como o doutor estava, Jessie foi para o quarto.

Sentindo-se agitada e cansada, Sara preparou-se para dormir. Que dia longo e cheio! Os acontecimentos se sobrepuseram em seu cérebro confusamente. Tio John. Pobre tio John! O chalé, a lareira e o fogo aceso, com ela de um lado e Oliver do outro. Ou será que era Jim? A imagem era confusa. Então, aquela sensação de dor voltou nova­mente, como uma grande bola de chumbo em alguma parte de seu interior. Como ele ficara zangado, vendo-a com Oliver... Deitou-se na cama, afundando a cabeça no travesseiro de penas, sentindo mais uma vez os lábios de Oliver nos seus. Então, Oliver se transformou em Jim, ainda zangado, magoando-a, com seus lábios ardentes e exigentes.

Não!

Sentou-se e percebeu que devia ter adormecido com a luz acesa. Apagou-a, pensando se devia tomar comprimidos para dormir, para evitar aqueles sonhos. Mas aí não escutaria o telefone. Resolutamente, evitou pensar tanto em Oliver como em Jim, e começou a contar carneirinhos.

A primeira coisa que fez na manhã seguinte foi telefonar para o hospital e ficou aliviada em saber que tio John dormira muito bem. Disseram-lhe que poderia visitá-lo a qualquer hora, uma vez que era médica. Assim, decidiu ir à tarde, se Jim Crombie tomasse conta de seus pacientes.

Começou cedo no consultório e terminou por volta das dez e quinze, o que era bom para uma manhã de segunda-feira. Foi quando notou o convite para a reunião matinal da Associação das Mulheres. Ela podia muito bem passar por lá, se não surgisse um caso urgente. Mas isso a fez lembrar-se de Bob e Alys e quase engasgou com o café. Tinha se esquecido completamente de avisá-los sobre o que acon­tecera. Correu até o telefone e discou o número deles, quando se deu conta de que não estariam em casa. Ambos estavam lecionando. Preocupada, pegou o fone de novo e, quase inconsciente do que fazia, discou o número de Jim Crombie. A voz fria e impessoal de Nina respondeu, antes que ela entendesse direito porque havia ligado para ele. Mas agora não podia voltar atrás, a menos... Mas falou:

— Aqui é a Dra. Martindale. Posso falar com o Dr. Crombie, por favor?

— Eu não sei se ele está. Quer esperar um pouco, por favor? Houve um vozerio e o som da voz de Nina chamando:

— Jim! Jim!

Mais do que nunca. Sara desejou não ter sido tão impetuosa. Não conseguia pensar em nenhum motivo pelo qual ligara para ele, e estava prestes a recolocar o fone no gancho quando ouviu a voz de Jim no outro lado da linha.

— Alô, Sara. Qual é o problema? John está bem?

— Bem, sim. Liguei para o hospital hoje cedo e disseram que ele passou bem a noite. Pensei em ir vê-lo hoje à tarde.

— Boa idéia — disse Jim, e ficou esperando. Sara não sabia mais o que dizer.

— Para ser sincera, eu estou mais ou menos em pânico — ela disse, depois de uma pausa. — Lembrei-me de repente de que me esqueci de avisar Bob e Alys, e ambos devem estar na escola.

— Oh, está tudo bem — disse ele depressa. — Telefonei-lhes ontem ã noite e lhes comuniquei a notícia. Alys ia telefonar para você, mas eu disse que você tinha ido ao hospital e que estaria can­sada quando voltasse. Aliás, tentei falar com eles na hora em que aconteceu, mas tinham saído e só voltaram bem tarde. Bob disse que ia visitar o pai esta manhã, antes de ir para a escola. A escola de Alys não tem aulas hoje. Portanto, está tudo bem. Não há nada com que se preocupar, certo?

— Sim, oh, sim, você acaba de tirar um peso de minha consciência. Muito obrigada.

— Disponha sempre que precisar. — E antes que ela pudesse responder, Jim disse "até logo" e desligou.

Logo em seguida, aborrecida por ter telefonado para Jim sem motivo, Sara saiu. Fez uma ou duas visitas e dirigiu-se à casa de Alys, por uma rua que passava pelo chalé da Sra. Warby. Sara bateu na porta e a Sra. Warby a atendeu, com uma expressão de satisfação.

— Doutora, eu não a estava esperando. Mas entre. Eu geralmente lavo as minhas roupas na segunda-feira, mas achei que já era hora de sair de minha toca.

— Que bom! — Sara notou que, para uma manhã de segunda-feira, ela parecia mais arrumada do que na noite em que a conhecera. — Estou contente de vê-la disposta, porque pensei em ir à reunião da Sra. Henderson e achei que talvez a senhora quisesse me acompanhar.

Os olhos da Sra. Warby se arregalaram de surpresa.

— Meu Deus! Mas. . . Mas eu não vou à reunião há tanto tempo. É muita gentileza sua, doutora, mas. . .

— Mas o quê?

— Bem, eu...

Sara sorriu. — Oh, vamos lá. Eu não queria ir sozinha. A senhora pode me dar um apoio moral.

— Ora, doutora, está caçoando de mim. A senhora não precisa de ninguém para lhe dar apoio moral. Sei por que deseja que eu vá.

— Querida, esqueça os porquês e os comos — Sara lhe disse deli­cadamente. — Vista o casaco e ponha o chapéu, está bem?

— Então, está certo, doutora, eu vou — disse a Sra. Warby, depois de um momento de hesitação. — Sente-se, por favor, eu não demoro.

Sara ficou bastante contente com seu sucesso, provavelmente devido à tática da surpresa. No carro, a Sra. Warby começou a agradecer de novo, obviamente lisonjeada por ter sido procurada.

Se Alys ficou surpreendida em ver a Sra. Warby chegar com Sara, não o demonstrou. O que demonstrou, e Sara ficou muito grata por isso, foi um prazer genuíno e um acolhimento cordial.

— Ora, Sra. Warby, que prazer vê-la de novo! Sente-se, por favor, aqui está uma cadeira confortável para a senhora. Vou lhe trazer um café.

Alys, ou quem quer que fosse, tinha certamente feito um ótimo trabalho, conseguindo reunir todas aquelas pessoas, apesar de a segunda-feira ser tradicionalmente dia de lavar a roupa. A espaçosa sala de estar estava apinhada, e as mulheres também se espalhavam no grande hall e pela sala de jantar. Num canto da sala, Sara viu de relance a jovem Sra. Rosemary Cárter e foi logo até onde ela estava.

— Bom dia, Rosemary. Como vai você?

Rosemary pulou de onde estivera sentada.

— Oh, doutora, que bom ver a senhora! Eu estou muito bem, obri­gada. A Sra. Henderson não foi muito boazinha em me convidar?

Sara sorriu.

— Eu lhe disse que logo você estaria fazendo amizades, não foi? Venha comigo, há uma pessoa que eu gostaria que você conhecesse. Ela não é jovem, mas, nesse negócio de solidão, e, na verdade, em muitas outras coisas, a idade não importa nem um pouco.

Sara levou-a até onde a Sra. Warby estava e apresentou as duas.

— Lembra-se de quando lhe falei daquela simpática futura mamãe, Sra. Warby? Bem, aqui está ela... A Senhora Cárter. Rosemary, esta é a Sra. Warby. Ela tem um chalé encantador.

As duas mulheres acenaram timidamente, sorriram uma para a outra, e Rosemary começou a conversar, dizendo como adorava a aparência externa dos chalés antigos, mas que nunca tinha visto um por dentro.

— Não viu? Oh, então você precisa ir ver o meu.

Sara quase sentiu emoção pelo triunfo. Rosemary dissera exatamente o que ela queria que dissesse. Foi como se tivesse posto as palavras em sua boca. E a Sra. Warby respondera da mesma forma. Vendo alguém que ela conhecia, no outro lado da sala, Sara deixou as duas conversando e foi direto até a Sra. Williams que vendia bilhetes de rifa.

— Bom dia, Sra. Williams — disse jovialmente.

— Bom dia, doutora.   — A resposta veio um tanto formal. Então, lembrando-se de seus deveres: — Quer comprar um bilhete de rifa? É para a festa de Natal e os presentes das pessoas idosas de nossa cidade.

— Sim, eu sei. — Sara abriu a bolsa. — Fico com bilhetes no valor de cinqüenta pennies. E se eu ganhar um prêmio, pode rifá-lo novamente.

Mas a Sra. Williams não pareceu exatamente contente com essa generosidade. Contou os bilhetes e destacou-os em silêncio, enquanto Sara refletia no que ela estaria pensando. Comprar cinqüenta pennies de bilhetes de rifa também não era um modo de fazer caridade aberta­mente? Se a esposa do fazendeiro tivesse falado isso, Sara discutiria com ela com prazer. Mas não era esse o comportamento das pessoas dessa parte do mundo.

— Dê uma olhada nos prêmios, doutora — ela disse friamente, entregando os bilhetes a Sara. — Talvez haja algo que queira ou que ache útil... Caso seja uma das felizes ganhadoras.

A Sra. Williams afastou-se e Sara foi procurar Alys, que estava na cozinha.

— Sara, que bom ter vindo! Teve notícias do pai de Bob esta manhã?

Sara disse que sim.

— Alys, sinto muito por ter esquecido de telefonar para você ontem à noite. Foi um choque tão grande. Eu tinha saído à tarde, e...

Alys levou-a ao escritório, onde poderiam conversar em particular.

— Bobagem, querida. Graças a Deus, não foi nada de mais sério. Ele deveria ter ido ao hospital para repouso e tratamento há muito tempo, mas não queria nem ouvir falar nisso. Não queria nem que Jim o examinasse. Mas não faz mal, ele está lá agora, e isso vai lhe fazer muito bem. Pensei em ir visitá-lo quando isto terminar.

— Que tal irmos juntas? Sugeriu Sara.

Alys concordou e disse que era melhor voltar para os seus convidados. Foram para o hall apinhado, onde ainda mais convidadas estavam chegando e recebendo café das auxiliares de Alys.

— Toda essa gente é da Associação das Mulheres? — Sara per­guntou.

Alys riu.

— Céus, não; mas eu gostaria que fossem. Mas quase todas per­tencem a uma ou outra agremiação da aldeia, e nós tentamos apoiar as atividades umas das outras sempre que possível.

— Isso é muito bom. Mas quais são as agremiações, além da União das Mães?

— Clube Darby e Joan, Legião Britânica, Clube dos Jovens Fazen­deiros, Escoteiros, Escoteiras, Lobinhos, e o grupo de teatro... É o que eu lhe digo: nós não temos tempo de ficar entediados no campo.

— Parece que não. Mas as pessoas nunca querem sair para irem a um teatro na cidade, ou coisa assim?

— Meu bem, o transporte é que é o problema. Só a ônibus nos dias de feira. A estação ferroviária fica a quilômetros de distância de todas as aldeias e os horários dos trens são inconvenientes. No inverno, isso exige muito esforço. Nem todos possuem carros, mesmo nos dias de hoje. As pessoas do campo sempre tiveram suas próprias diversões e parece que ainda vai ser assim por muito tempo.

— Bem, talvez isso não seja de todo mau. Mesmo assim, as pessoas deveriam poder ir às cidades e à Capital, para terem outras diversões, de vez em quando.

Alys deu um sorrisinho maroto.

— Nós, da Associação das Mulheres, estamos fazendo o melhor que podemos. Já aprovamos uma resolução a respeito dos transportes nas áreas rurais.

— E o que acontece depois disso? — Sara perguntou. — Não adianta aprovar resoluções para o vento.

— Na associação nada é feito ao acaso — Alys disse firmemente. — A aprovação das resoluções dá aos comitês regionais um mandato para agir. A associação tem alguns milhões de membros. Uma carta enviada a um departamento do governo ou a outro órgão qualquer, representando milhões de mulheres de todo o país, certamente tem muito peso.

— Está bem, está bem! — disse Sara, rindo. — Já me convenceu. Quando é que posso me inscrever como sócia?

— Daqui a duas semanas, na sede social, às sete e meia da noite. Vou propor a sua adesão na próxima reunião do comitê.

— Há alguma cerimônia?

— Não, apenas a saudação da presidente- — Alys interrompeu-se, olhando para a porta. — Ah, aí vem a Sra. Ready. Converse com ela, Sara, enquanto vou buscar uma xícara de café para ela.

Sara foi encontrá-la, com um sorriso no rosto. Não queria dar à esposa do pároco a impressão de que havia algo que não fosse uma relação das mais amigáveis entre elas.

— Bom dia, Sra. Ready. Que bom ver a senhora novamente.

A Sra. Ready olhou para ela um tanto insegura no início, mas depois sorriu.

— Ora, Dra. Martindale, não esperava vê-la por aqui.

— Eu entrei só por um momento. Preciso sair assim que Alys voltar com o seu café. Não é uma boa idéia reunir as pessoas e dar uma mãozinha aos idosos?

A Sra. Ready concordou, e parecia ter outra coisa em mente, mas Alys retornou, e Sara se despediu das duas.

Sara continuou a fazer suas visitas, pensando, enquanto dirigia, sobre algumas das pessoas que conhecera desde que chegara à aldeia. Estava começando a sentir certa afeição por elas, mesmo pela Sra. Williams, em cujos calos parecia ter pisado. Sara não tivera a intenção de pisar nos seus calos, mas não se arrependia muito de tê-lo feito, se isso resultasse em alguma coisa boa.

O marido da Sra. Williams era um grande fazendeiro. Até certo ponto, esses grandes fazendeiros haviam tomado o lugar dos nobres rurais e a esposa do fazendeiro se considerava "esposa do nobre rural". Não em todos os casos, é claro, mas em alguns. Sara sabia que os fazendeiros, ou melhor, ainda, as esposas, não tinham culpa se os tratores eram fabricados sem capotas, por exemplo. E eles talvez estivessem impossibilitados de aumentar os salários. Não sabia muito sobre política e nem como os sindicatos funcionavam. Mas tanto os fazendeiros como suas esposas podiam fazer alguma coisa para melhorar os chalés onde os trabalhadores das fazendas moravam e pagavam aluguel

Isto não era da conta de Sara, exceto onde afetasse a saúde de seus pacientes. Mas Sara achava que qualquer um devia ficar contra qual­quer coisa que fosse errada ou injusta, mesmo que isso significasse tornar-se impopular. Às vezes as pessoas precisavam ser sacudidas um pouco.

Sara teve um almoço solitário e não gostou de comer sozinha. Ia sentir falta do tio John. Não pôde deixar de pensar em Jim, que comia sozinho todos os dias... A menos que fizesse suas refeições com Nina. Ainda não fora à casa dele e ficou pensando em como ela seria, que tipos de gostos ele teria.

Depois do almoço ela lhe telefonou para dizer que estava saindo para o hospital e que telefonaria para ele assim que chegasse.

— Tem chamados urgentes? — perguntou Jim.

— Não, nada que não possa esperar até esta noite. Mas acho que lhe devo prevenir sobre o filho dos Marples.

— Peter? O que há com ele?

— Ele está com uma dor abdominal que não sabemos exatamente o que é. Tanto o tio John como eu fomos vê-lo. Talvez seja o apên­dice. Pensei em mandá-lo ao hospital para ficar em observação, caso não melhore em uns dois dias.

— Certo. Obrigado pela informação. Bem, acho que vou ficar aqui a tarde toda, a menos que surja algo urgente em minha área. Dê minhas lembranças ao John. Pode ser que eu vá vê-lo esta noite, se estiver tudo bem com você.

Sara disse que estava e desligaram. Era estranho, mas sentia como se houvesse algo de errado quando Jim era polido com ela. Jim magoava-a muito quando era agressivo, mas havia vezes em que ela gostava de discutir com ele. O que desejava saber era qual era o homem real. Quem quer que fosse, Sara tinha que admitir que gostava mais quando ele era arrogante. Não pôde deixar de rir diante dessa admissão, mas resolveu não fazer mais análises.

Telefonou para Alys, e foram juntas visitar o tio John. Era certo que estavam cuidando bem dele, e, com o repouso e o tratamento, ele já estava parecendo muito melhor.

— Ouça, Sara — ele disse depois que ela lhe contou as novi­dades e lhe assegurou que tudo estava bem —, não quero que você se sinta obrigada a visitar-me todos os dias. Você tem muito que fazer e também precisa se distrair um pouco. Saia com aquele jovem, Oliver, e divirta-se.

Sara sorriu. — Ele ainda não me convidou.

— Oh, ele vai convidar. Será um tolo se não o fizer. O que você acha Alys?

Alys riu. — O que está tentando fazer, papai? Casar Sara antes que ela se estabeleça aqui?

— Não, mas a melhor maneira de se estabelecer é casando-se com alguém que more aqui.

— Então é bom não empurrá-la para Oliver. Ele pode ser trans­ferido. É melhor o Jim Crombie. Ele nasceu por estas bandas.

Sara não disse nada, mas forçou um riso.

— Quando vocês dois terminarem, eu gostaria de decidir, se não se importam. Para falar a verdade, acho que vou ficar solteira. Há um lindo chalé pertencente à Comissão de Silvicultura e estou pensando em alugá-lo. Ele não tem os confortos modernos, mas me convém muito.

Eles não a levaram a sério, é claro, mas quanto mais Sara pensava em alugar o chalé, mais gostava da idéia.

Oliver telefonou-lhe nessa noite, depois que o atendimento no con­sultório terminou, para perguntar-lhe como estava o tio John, e ela o convidou para jantar.

— Eu detesto comer sozinha e tenho certeza de que Jessie ficará muito contente em ter alguém mais para quem cozinhar. Um homem, especialmente.

— Bem, já que você coloca as coisas desse modo, obrigado. Na verdade, eu queria vê-la. Mas falo sobre isso depois.

Vinte minutos depois, Oliver bateu à porta. Jessie tinha preparado um franguinho com deliciosos croquetes de batatas e couve–de-Bruxelas, acompanhados por uma garrafa de vinho branco.

— Jessie! — Sara riu, protestando francamente.

— Nós sempre servimos vinho quando temos convidado srta. Sara — ela disse firmemente. — O doutor teria insistido.

Sara sorriu, pensando que ele certamente o faria, a julgar pelo que dissera naquela tarde.

— Por que esse sorriso? — Oliver perguntou. Diante disso, o sorriso se transformou em riso aberto.

— Oh, não é nada. Estava pensando em Jessie e tio John.

Ela já lhe falara da visita ao hospital e de como ele estava, quando Oliver disse:

— Eu queria lhe perguntar sobre o outro encontro que você me prometeu. Será que é possível, com o Dr. Henderson no hospital?

— Para falar a verdade, ele me disse hoje mesmo que eu precisava me distrair um pouco; e eu acho que preciso, de fato. Se estiver tudo bem com Jim.. .

— Você tem certos dias de folga?

— Até agora, não. Sendo amigos e colegas, eles combinavam as coisas entre si. Parece que dava certo. Mas o que você tem em mente?

Havia uma peça especial no Teatro Royal, ao que parecia que seria encenada em Londres quando encontrassem um teatro. Alguns dos maiores artistas estariam participando.

— Mas será que você vai conseguir entradas? Parece que precisam ser reservadas com semanas de antecedência.

— O teatro ainda não é tão popular assim por essas bandas. Em todo caso, eu já tenho as entradas. Estive na cidade e comprei-as. São para amanhã à noite.

— Bem, vou telefonar para Jim quando acabarmos de jantar. Espero que esteja tudo bem.

Mas Sara não precisaria lhe telefonar. Ela e Oliver estavam rindo de uma piada, quando Jessie o acompanhou até a sala de jantar. Ele parou na porta por um momento — como se fosse o grande inquisidor, Sara pensou —, e ficou olhando de um para o outro, como se os tivesse surpreendido numa orgia de embriaguez. Então, um pensamento súbito e terrível passou pela mente de Sara. Jim dis­sera que visitaria o tio John nessa noite. Será que ele tivera uma recaída?

O riso em seus olhos e o comentário espirituoso e desafiador que tinha em mente se apagaram. Ela pousou o copo lentamente.

— Há... Algo de errado? — perguntou, com a voz trêmula.

 

— Errado? — Jim repetiu.

— Sim... Com o tio John. Você foi visitá-lo esta noite?

— Na verdade, eu estou a caminho de lá. Estava passando por aqui, por isso pensei em entrar para ver se você tinha algum recado ou se havia algo que queria que eu levasse. Eu... Não sabia que você estava dando uma festa.

Oliver riu e Sara sentiu-se grata por ele estar lá.

— Deixe disso, Jim. Sara me convidou para jantar, isso é tudo. O vinho foi idéia da Jessie.

— E a piada foi de Oliver — Sara acrescentou, vendo subitamente o lado engraçado das coisas.

— Oh, é mesmo?

Diante do sarcasmo de seu tom de voz, o bom humor de Sara desapareceu. Sentiu vontade de perguntar com que direito ela ia en­trando e ficando, além de demonstrar desaprovação. Mas se conteve a tempo. Afinal, Jessie o conduzira até a sala, a casa não era dela, além disso, Jim era amigo de seu tio.

Jessie entrou novamente para retirar a louça do prato principal.

— Quer beber alguma coisa? — Sara lhe perguntou. — Tenho certeza de que tio John tem alguma coisa por aí... Não tem Jessie?

Jim sacudiu a cabeça.

— Já estou de saída, se não há nada que você queira que eu leve para o hospital.

— Não há nada, mas obrigada por ter passado aqui — disse Sara, sentindo-se um tanto embaraçada diante de sua recusa em ficar mais um pouco. Ele se encaminhou para a porta, mas, vendo um sinal que Oliver fez com o canto do olho, ela o chamou de volta. — Espere um pouco, Jim.

Com evidente relutância e uma expressão de impaciência no rosto, ele se virou. Sara sentiu-se uma adolescente que ia pedir um favor a um pai tirânico.

— Eu... Estava pensando se você poderia atender os meus cha­mados amanhã à noite. Oliver comprou entradas para o teatro, e...

Com o rosto inexpressivo e os olhos duros como aço, Jim olhou para ela, depois para Oliver, e disse, num tom de voz que não parecia nem um pouco verdadeiro:

— Oh, mas é claro! Podem ir. Espero que se divirtam.

Os agradecimentos de Sara foram dirigidos às suas costas, enquanto ele ia saindo. Ela olhou para Oliver e suspirou.

— Às vezes eu não consigo entendê-lo.

— Acho que sei o que há de errado com ele.

— Sabe? Então eu gostaria que me dissesse.

Oliver abanou a cabeça negativamente. — Não, não, é melhor não dizer. Ele é meu amigo e, além disso, eu posso estar enganado.

Jessie entrou com a sobremesa e continuaram a comer. Sara não conseguia se esquecer de Jim e nem do que Oliver dissera. Durante o resto da noite, ficou pensando sobre o que teria deixado Jim tão mal-humorado, mas não chegou a nenhuma conclusão. Será que estava ressentido por ela ter vindo trabalhar ali? Será que tinha aversão por ela? Obviamente, pelo modo como Jessie o deixava entrar na casa, sem cerimônia, Sim devia estar acostumado a fazê-lo. Talvez preferisse que o novo colega fosse homem, com quem pudesse bater um papo, tomar uma bebida e fumar. Nina não podia ficar de serviço o tempo todo. Ela teria que ir para casa, mais cedo ou mais tarde. Como seria a amizade dele com Nina? Será que ela era mais do que uma simples recepcionista para ele?

Oliver pousou a mão no ombro dela, enquanto Sara mexia com alguma coisa no aparador.

— Um tostão pelos seus pensamentos. Ela sorriu.

— Oh, eu estava distraída.

— Preocupada com Jim?

— Bem, um pouco, acho.

— Se fosse você, não ligaria. Ele deve se abrir a qualquer hora. Se você der tempo, essas coisas se resolvem por si. Não se pode apressar a natureza humana, do mesmo modo que não se pode apres­sar o crescimento natural de uma árvore. Sara sorriu.

— Falou o "homem da floresta". Oliver, eu gosto de você — dis­se impulsivamente.

Os olhos dele se arregalaram.

— Opa! Se você falar assim de novo, eu não serei responsável pelas conseqüências.

Ela riu, divertindo-se com o pequeno flerte. Gostava realmente de Oliver. Ele era encantador. Sentia que ele também gostava dela e tudo isso era muito agradável.

Depois do jantar, ficaram conversando descontraídos, na confortá­vel sala de estar. Oliver sentou na poltrona favorita de John, com as pernas espichadas, bebericando o drinque que Jessie trouxera e mordiscando umas nozes salgadas e uns biscoitinhos com queijo. Sara estava recostada nas almofadas do sofá antigo e cômodo, sen­tada sobre as pernas.

Ela deu um sorriso de satisfação.

— Hum! Que bom!

— Se é!

— Sabe Oliver, acho que eu não gostaria de viver sozinha. Para falar a verdade, tenho certeza de que não. Tenho sentido muita falta de tio John...  E é muito bom ter você aqui. Não sei como Jim agüenta viver sozinho.

— Então, voltamos ao Jim novamente? — ele disse, rindo.

— Desculpe. Ele realmente tem uma tendência de se impor, não é mesmo? Acho que tio John vivia sozinho, assim, antes de eu chegar.

— As pessoas se acostumam a ficar sozinhas, sabe? Muitas vezes precisam ficar. E talvez isso seja melhor do que viver com a pessoa errada.

— Eu não tenho certeza disso. Qualquer um não é "a pessoa errada" até que se passe a conhecê-la?

— Pode ser. Mas você é uma idealista, não é? Acha que todos podem aprender a viver juntos, se tentarem.

— Estou certa de que podem — asseverou Sara.

— Querida, o falo é que uma pessoa precisa ter uma boa natureza para querer tentar; e muitas pessoas simplesmente não querem tentar. Como já disse, não sou nenhum eremita, mas se não conseguisse en­contrar alguém com quem conviver com relativa facilidade, eu prefe­riria viver sozinho. O casamento, é claro, é diferente. Uma pessoa seria insensata se casasse por outro motivo que não fosse o amor.

— Quem está sendo idealista agora? — brincou ela.

— Não há nada de muito idealista nisso. Isso é o que eu consi­dero realístico. Você certamente não se apaixona por uma pessoa de quem não gosta, para começar. E estando apaixonados, um homem e uma mulher têm pelo menos uma base com a qual começar. Em todo caso, uma vez casados, é mais fácil fazerem um esforço para se entenderem, do que não fazerem nenhum, mesmo que seja em benefício próprio.

— Você certamente tem os pés no chão.

— E lá que eles devem estar, não acha? Que os olhos se voltem para os topos das árvores e para o céu, mas que se mantenha os dois pés bem plantados no chão.

— Uma filosofia bastante acertada, Oliver. O problema é que muitas pessoas se esquecem de olhar para o topo das árvores e para o céu. Os problemas das pessoas casadas são muito concretos e rece­bem muita publicidade porque afetam a vida dos filhos. Mas as viúvas e os viúvos, os solteirões e as solteironas também têm os seus problemas. O fato de viver sozinha pode deixar uma pessoa absor­vida em si mesma, de modo que os seus olhos nunca se elevem acima de seus próprios interesses e preocupações. Seus padrões de cuidados pessoais e com a própria casa muitas vezes caem cada vez mais. E as solteironas e solteirões que vivem juntos muitas vezes se tornam muito possessivos. Eu não acho que o homem foi feito para viver sozinho; ou mesmo em pares, exceto como marido e mulher.

— E os homens e mulheres que não são casados? — Oliver perguntou.

— O ideal seria que vivessem com a família. Ou outra família qualquer, caso não tenham uma.

— Mas se acha que as pessoas não devem viver sozinhas, por que está pensando em alugar aquele pequeno chalé que lhe mostrei no domingo à tarde?

Ela sorriu.

— Eu não sei. Acho que há ocasiões em que uma pessoa gosta de ficar sozinha. Mas não o tempo todo. Não é bom.

— Acho que isso depende muito da pessoa, de sua personalidade.

— De modo geral, sim — Sara concordou. — Mesmo uma pessoa de forte personalidade às vezes precisa de ajuda para sair, digamos do "vale de lágrimas" — disse, pensando na Sra. Warby.

— Eu acredito que sim. — Houve uma breve pausa. Oliver olhou para Sara pensativamente. — O que acha do casamento, Sara? Quero dizer com que tipo de homem você gostaria de se casar? Com outro médico?

— Santo Deus, Oliver — ela disse, rindo um pouco —, eu não sei. Eu nunca nem ao menos pensei nisso!

— Nunca?

— Bem, acho que ninguém nunca escolhe realmente, não é? Dizem que o amor às vezes ocorre nos lugares mais inusitados. Acho que dependeria da pessoa por quem me apaixonasse. -— Ela riu leve­mente. — A julgar pelo que Jim e eu sentimos um pelo outro, quero dizer, pelo modo como estamos sempre brigando e discutindo, eu diria que um médico seria a última pessoa por quem me apaixonaria.

— Mas, se não se casasse com um médico, não é possível que você tivesse que desistir de sua profissão? O que acharia disso?

A pergunta a fez sentir-se como se estivesse sem ar.

— Puxa vida, você faz cada pergunta! No momento, eu não consigo pensar em nada mais inconcebível do que eu desistir de ser médica. Será que eu tenho que escolher, isto é, não existe outra alternativa a não ser casar-me com um médico ou desistir da medicina? Que perspectiva!

— Você poderá ter que escolher algum dia. £ provável que, se casasse com um advogado, um professor ou alguém com uma pro­fissão semelhante, você pudesse continuar. Mas suponha, apenas supo­nha, que você se casasse com alguém como eu. Quero dizer, um homem que fosse transferido para todas as partes do país, que nunca ficasse mais do que alguns anos num mesmo lugar. Isso não criaria alguns problemas?

De momento, Sara não respondeu. Olhou para Oliver e perguntou a si mesma: Será que desistiria da profissão para me casar com ele?

— Então? — insistiu Oliver, como que lendo os seus pensamentos.

— Seria difícil — respondeu Sara. E sorriu. — Mas é provável que os problemas pudessem ser superados. O amor encontraria uma solução, como diz o ditado.

O sorriso de Oliver ficou terno quando olhou para ela.

— Estou contente que você seja uma idealista, Sara. Eu ficaria desapontado se não fosse. — Levantou da poltrona e foi até o sofá. Durante um minuto, ficou em pé, olhando para ela. — Sabe, você é a imagem perfeita de uma bela esposa, aí sentada.

— É mesmo? Venha se sentar a meu lado.

Sem mover as pernas, ela se afastou para ele sentar a seu lado. Oliver sentou e pôs o braço em seus ombros. Sara recostou-se nele e fechou os olhos, mas percebeu isso só depois. Sentiu os lábios de Oliver em sua têmpora e colocou a mão no ombro dele. Então os lábios de Oliver encontraram os dela, e ela recebeu com prazer esse contato. Sentiu uma grande satisfação e se descontraiu, retribuindo o beijo carinhosamente.

Depois de algum tempo, ele olhou para os olhos dela.

— Será que é amor, Sara? — perguntou suavemente.

— Eu... Não sei... Ele sorriu brandamente.

— Muito bem, vamos deixar as coisas como estão. Que tal? Beijou-a novamente e, dessa vez, ela ficou excitada. Os braços de Oliver a apertaram. Sara segurou com força o ombro dele.

O telefone começou a tocar de repente. Oliver afrouxou os braços.

— Será que é um chamado para você? Ela se soltou.

— E possível. Mas também pode ser alguém perguntando pelo tio John.

— Espero que sim.

Oliver estava sentado novamente na poltrona quando Jessie bateu na porta e entrou. Parecia assustada.

—É a Sra. Miller, doutora. Alguma coisa terrível aconteceu. O be­bê era para nascer no mês que vem, mas a parteira lhe pediu para ir imediatamente.

Antes que Jessie acabasse de falar, Sara já estava em pé.

— Qual é o endereço, Jessie? Você sabe?

— Travessa do Cisne, ao lado do açougue, à direita. Vou buscar a sua maleta.

— Há alguma coisa que eu possa fazer? — perguntou Oliver. — Estou com o meu carro lá fora.

— Pode deixar, Oliver. Obrigada do mesmo modo. Sinto muito, mas você sabe como é. — Sara lhe deu um sorriso divertido. —- Agora você sabe como seria estar casado com uma médica. E isto poderia ter acontecido no meio da noite. Aliás, é um milagre que não tenha acontecido. — Ao chegar à porta da frente, perguntou: — Quer ficar até eu voltar? Não sei quanto tempo vou demorar, é claro.

Sara percebeu o olhar desaprovador de Jessie e ficou contente quando Oliver disse que preferia não ficar. Obviamente, também tinha notado o olhar de Jessie. Ela se despediu rapidamente e se dirigiu ao seu carro,

A casa dos Miller foi fácil de encontrar. O carro da parteira do distrito já estava lá. Sara foi recebida por um homem de trinta e poucos anos, que parecia assustado e ansioso.

— É minha esposa, doutora. Lá em cima, a primeira porta à es­querda. Quer que eu...

— Não, obrigada, eu encontro.

Subiu rapidamente e entrou no quarto. A enfermeira Draper estava lhe aplicando um pouco de anestésico.

— Qual é o problema? — Sara perguntou.

— Prolapso do cordão, doutora.

— Quantos filhos ela já teve?

— Este é o quarto. Ela não vinha freqüentando a clínica como deveria. Achava que sabia todas as respostas — disse a enfermeira, mas não em tom de censura.

Sara tirara o casaco enquanto a enfermeira falava e agora lavava as mãos numa bacia. Diante da visão do cordão pousado sobre a coxa da mãe, sem que nem a criança e nem a placenta tivessem saído, Sara procurou ocultar seus receios. Falava do modo mais tranqüilizante que podia, enquanto embrulhava cuidadosamente o cordão com uma toalh3 esterilizada. Apalpou o abdômen da paciente e viu que o bebê tinha se virado e estava em posição transversal. Sara ficou pensando. Mas antes de decidir sobre a melhor coisa a fazer, houve uma contração e, com ela, mais um pedaço do cordão saiu.

— Vai sair tudo bem, doutora? Vai dar tudo certo? — a mãe perguntou, ofegante.

— Procure não se preocupar, Sra. Miller. Vamos fazer o que pu­dermos. Em todo caso, o bebê ainda está vivo.

A vida pulsava no cordão, e Sara rezou para que tudo desse certo. Apalpou mais uma vez, e desta vez tentou virar o bebê para a posição correta, a fim de que a cabeça saísse primeiro, como era normal. Mas não foi bem-sucedida. Tentou o outro lado, ainda sem sucesso. Murmurou outra oração silenciosa. Seguiu-se mais uma contração, que fez sair mais cordão. Sara olhou para ele com apreensão crescente. Tocou-o e viu que não estava mais pulsando.

A médica viu de relance os olhos preocupados da parteira por cima da máscara. Só havia uma coisa a fazer para salvar o bebê. Seguiu o cordão com a mão, e, para sua grande alegria, sentiu o pezinho do bebê. Sua última apalpação, bem como a contração da mãe, deviam ter, quase milagrosamente, virado a criança de sua peri­gosa posição transversal. Agora, o outro pé. Depois mais uma contração, e metade do bebê tinha nascido. Estava um pouco roxo, mas o tronco e o braço também saíram. Agora, Sara evitava a pressa, e, puxando as perninhas, a criança — uma menina — nasceu. Todas as três — a enfermeira, a médica e a mãe — deram um grande sus­piro de alívio.

Rapidamente, a enfermeira Draper apareceu com um aparelho de sucção e, poucos minutos depois, o bebê deu um sonoro grito.

— Ê uma menina, Sra. Miller — Sara lhe disse- — Não é o som mais lindo que a senhora já ouviu?

A Sra. Miller acenou com a cabeça e deu um sorriso débil.

— Então, ela está bem, doutora?

Sara lhe garantiu que sim, enquanto enrolava a criancinha com um cobertor quente. O resto do cordão e a placenta saíram facilmente, e Sara desceu a escada para contar ao pai a grande novidade.

— Uma xícara de chá para todos, Sr. Miller, seria mais do que bem-vinda!

Cerca de vinte minutos depois, saiu para a noite fria e estrelada, com a sensação de "missão cumprida". Ao sentar ao volante, olhou para cima e deu um suspiro de contentamento. Como poderia pensar em desistir de seu trabalho como médica? Se tivesse que fazer uma escolha entre casar ou continuar, continuaria.

Tentou pensar em que circunstâncias seria obrigada a fazer uma escolha. Havia sempre falta de médicos, não importando em que parte do país fosse morar. Mas agora estava cansada e precisava de toda a sua concentração para dirigir até em casa.

Jessie lhe trouxe uma bebida quente assim que ela tirou o casaco, e depois de tê-la tomado foi direto para a cama.

Logo que terminou o atendimento no consultório, na noite seguinte. Sara ligou para Jim para lhe dizer que eslava de saída. Preparou-se para ouvir o seu habitual tom de severidade, mas foi à governanta quem respondeu:

— Muito bem, doutora, darei seu recado ao Dr. Crombie — disse afetadamente.

Oliver estava esperando por ela na sala de estar. Sara tirou o aven­tal branco que sempre usava no consultório e vestiu o casaco.

— Estou pronta, Oliver.

Ele se aproximou dela e pôs as mãos sobre os seus ombros.

— Você está maravilhosa. — E beijou-a.

Ela olhou para ele com um ar um tanto divertido.

— Isso já está se tornando um hábito.

— O quê? Beijá-la? Você se incomoda?

— Não. . . — E sorriu. — E claro que não.

Ele conservou o braço em cima dos ombros dela enquanto se diri­giam para a porta, e Sara quis saber se Jessie estava olhando, mas não havia ninguém no hall.

— Eu já estou saindo, Jessie!

Jessie emergiu da cozinha imediatamente.

— A senhora vai voltar tarde, doutora?

— Talvez por volta das onze horas. Não precisa esperar. Eu tenho a minha chave.

Enquanto se dirigiam para Norwick, Oliver lhe perguntou sobre a paciente que atendera na noite anterior.

— Foi muito sério?

— Foi, sim. Não é impossível um bebê ser estrangulado pelo cordão umbilical, mas esses casos são raros, hoje em dia. Foi isso que aconteceu ontem à noite. Infelizmente, são esses casos que recebem muita publicidade, se não se tomar cuidado. E o fato de ouvir falar sobre eles é capaz de deixar uma jovem futura mãe quase desesperada.

— Em todo caso, o fato de você ter conseguido cuidar do caso e de ter salvo tanto a mãe como o bebê deve ser o suficiente para deixar qualquer futura mamãe confiante.

— Acho que a Providência também tem algo a ver com isso. Ele deu um sorriso.

— Não seja tão modesta. Você é uma boa médica. Já ouvi mais de uma pessoa dizer isso. — Ficaram em silêncio por um momento. — Estive pensando sobre o que conversamos ontem à noite. Sabe, você nunca seria capaz de desistir de ser médica e nenhum homem de bom senso esperaria isso de você. Acho que você poderia clinicar em qualquer lugar que quisesse.

Sara achou melhor não lhe perguntar o que ele queria dizer e nem mesmo pensar muito no sentido dessas palavras. Gostava muito dele, mas sabia que não estava apaixonada, por enquanto.

Mas, no fim da noite, começou a achar que talvez estivesse. Nunca conhecera um homem em cuja companhia se sentisse tão à vontade. Gostaram da peça e discutiram sobre ela mais tarde, durante o jantar. Sara descobriu com satisfação que Oliver era bastante versado em teatro.

Quando saíram do restaurante, passearam um pouco pela cidade. Sara disse que adorava as cidades à noite, quando as principais lojas ficavam iluminadas alegremente, ainda que não houvesse muita gente.

— E preciso estar com boa disposição para enfrentar a multidão, não acha?

— Por falar nisso — disse Oliver — ouvi dizer que logo vai haver o baile dos jovens fazendeiros. Gostaria de ir?

— Pode ser. Por que jovens fazendeiros?

— Porque é organizado pelo Clube dos Jovens Fazendeiros, é um acontecimento muito importante.

— Sim, eu adoraria ir. Isto é, se eu combinar os plantões com Jim.

— Jim geralmente vai, quando pode.

— Oh!

— Mas não se preocupe. Podemos combinar com o proprietário do Buli, que fica em frente da Bolsa de Milho, onde o baile é reali­zado. Qualquer chamado pode ser feito através do Buli. O proprietário manda alguém com o recado.

Então, Jim dança? Pensou Sara. Será que vai levar alguém com ele? Nina, talvez?

Quando Oliver manobrou o carro para entrar na Ashton House, as salas da parte de baixo da casa, exceto o hall, estavam escuras.

— Acho que Jessie foi dormir — disse Sara.

— Bem, acho que hoje não vamos nos deparar com Jim, como da última vez em que estive aqui para trazê-la.

— Não, de fato. Eu me senti como uma adolescente voltando tarde para casa, sendo surpreendida na porta por um pai muito bravo.

— Eu não sei o que deu no Jim — observou Oliver. — Acho que está se apaixonando ou coisa parecida. Ele tem todos os sintomas: está taciturno, irritável, imprevisível...

Sara sentiu o estômago se contrair.   Riu de modo um   pouco estranho.

— Deus do céu! Por quem você acha que ele está apaixonado? Sempre pensei que só as mulheres tivessem dessas coisas.

— Meu bem, isso mostra como você conhece pouco os homens. Quanto à pessoa por quem ele está se apaixonando, eu não gostaria de dar uma opinião. Tenho os meus próprios problemas.

— Você?

Oliver colocou o braço sobre os ombros de Sara.

— Sim, eu. — Virou-a para encará-lo, pegando-a suavemente no queixo. — Você está começando a tomar conta de meus pensamentos, sabe?

— Oh, Oliver. . . — protestou Sara, não sabendo se o levava a sério ou não.

— É verdade. Se o telefone não nos tivesse interrompido, ontem à noite, sabe-se lá o que poderia ter acontecido.

Os lábios dele tocaram os dela com muito ardor e Sara correspon­deu imediatamente.

— Sara, estou me apaixonando por você. Eu não pretendia dizer isso, mas. . .

Ela ficou profundamente emocionada.

— Oliver, eu não sei o que dizer...

— Não diga nada. Ainda não é muito cedo. Procuremos ter cer­teza. Vamos... Oh, Sara... Querida...

Beijou-a outra vez e ela sentiu a força de sua paixão, correspon­dendo novamente. Precisava da força e do amor de Oliver. Tinha estado sozinha por muito tempo. Algo dentro dela ansiava pelo amor de um homem como ele. Queria dizer que o amava, mas as palavras não vinham.

— Oliver, por favor, acho melhor eu entrar agora. Está ficando tarde. Boa noite. Obrigada pela noite maravilhosa. Eu gostei muito.

— Que tal outra em breve?

Ela acenou com a cabeça, concordando.

— Telefone-me, Vou esperar ansiosa pelo baile dos jovens fazen­deiros.

Sara ficara preocupada. Será que Oliver estava falando sério? Ou simplesmente gostava da companhia dela, como ela da dele? Não sabia se estava se apaixonando por ele ou não. Não gostaria de magoá-lo, e detestaria se...

Mas não valia a pena se preocupar. Ambos eram adultos. Se os sentimentos dele se tornassem mais fortes do que os seus, isso tam­bém poderia acontecer de modo inverso. Havia sempre esse risco quando duas pessoas se gostavam muito. Às vezes há apenas uma fina linha divisória entre a amizade e o amor. Mas haveria necessidade de algo mais forte do que a afeição para o casamento: um amor forte e profundo que resistisse a todas as falhas do homem e da mulher, às irritações do dia-a-dia, aos problemas da vida. Um casal precisava ter um amor intenso para suportar as provações dos anos. No momento, Sara ansiava tanto por um amor, como nunca aconte­cera antes. Por quê? Por que agora, desde que chegara a Norfolk? Enfiou-se na cama e ficou deitada, pensando durante algum tempo. O que aconteceria se os sentimentos de apenas um deles se transformassem em algo mais do que afeição? Talvez estivesse errada em encorajar Oliver, se é que o estava encorajando.

Socou o travesseiro impacientemente. Era ridículo preocupar-se desse jeito. As coisas simplesmente tinham que tomar o seu rumo. Adormeceu, para ser acordada logo depois, pelo telefone, que tocava insistentemente ao lado de sua cama. Era da polícia. Um homem ido­so, que vivia sozinho, passara mal durante a noite. Um policial que passava por lá, vendo a luz do velhinho acesa, ouvira-o gemendo. Sabendo que o homem muitas vezes não trancava a porta, o policial entrara na casa e o encontrara sentindo muita dor e náuseas.

— Já vou. Qual é o nome dele e onde mora?

O nome era Taylor e ele morava num chalé de tijolos e pedras, na travessa do Charco. Sara sabia onde ficava. Tratava-se de uma estradinha inacabada e cheia de buracos, sem nenhum espaço para manobrar o carro numa distância de uns três quilômetros. Rapida­mente, vestiu uma roupa de baixo de malha, que guardava especial­mente para essas ocasiões, e sobre ela um vestido de lã, e finalmente o casaco.

Lá fora, o choque do ar frio da madrugada a fez estremecer e ficar alerta. Entrou no carro e deu a partida sem nenhum problema.

Um vizinho fazia companhia para o velhinho.

— Ele não tem família na aldeia? — perguntou Sara.

— Não, madame... Quero dizer doutora.

Ela olhou o homem que estava deitado na cama.

— Desde quando está sentindo essa dor, Sr. Taylor?

— Ela vai e volta desde ontem... — respondeu ofegante.

O pulso estava acelerado e fraco, a pele fria e úmida. Não era simplesmente algo que ele tivesse comido. Ele parecia doente e desi­dratado e a dor era obviamente forte. Sara puxou as roupas de cama e apalpou levemente o abdômen do homem.

— Isso começou de repente, Sr. Taylor? Ele acenou com a cabeça.

— Não foi nada que eu comi. Eu não comi nada. Não comi quase nada, ontem, o dia inteiro. . .

— Entendo — Sara disse gravemente. — Bem, agora escute, Sr. Taylor. Quero que vá para o hospital. Há algo aqui que um simples remédio não pode curar.

— Seja lá o que for eu ficaria contente em me livrar disso, douto­ra. Mas a senhora não pode me dar alguma coisa para a dor?

— Sim, eu vou dar. Mas quero que o senhor vá para o hospital imediatamente, entendeu? O senhor tem parente? Onde eles moram? Precisamos avisá-los de que o senhor está doente.

Sara anotou os endereços e saiu, ficando o vizinho até que a am­bulância viesse buscá-lo. E ficou aliviada por ele ter concordado em ir para o hospital com tanta facilidade, pois as pessoas idosas, em geral, são muito teimosas.

Por essas alturas, já eram seis e meia e não valia a pena voltar para a cama. Preparou um bule de chá, levou para a sala de estar e ligou o aquecedor elétrico. Recostou-se nas almofadas e deixou a mente vagar à vontade. Pensou primeiro no velhinho que estava sendo levado para o hospital, depois na Sra. Miller, na velha Sra. Lovel, em Jim, em Oliver, no tio John e mais uma vez em Jim.

Estava quase dormindo quando a porta se abriu e Jessie entrou.

— Meu Deus, doutora, o que a senhora está fazendo aqui? Não ficou no sofá a noite toda, ficou?

Sara riu, levantou-se e se espreguiçou, com os membros entorpe­cidos.

— Não, Jessie, é claro que não. Por que deveria dormir aqui em­baixo, quando tenho uma cama muito confortável lá em cima? Tive que sair para atender um paciente, pouco depois das cinco horas, e achei que não valia a pena voltar para a cama.

Típica governanta de um médico, Jessie quis saber quem era e do que se tratava. Sara contou-lhe o que acontecera, descobrindo que Jessie conhecia praticamente todo mundo, não só na aldeia como num raio de muitos quilômetros - Sara vestiu-se, tomou o café da manhã e começou a ronda diária novamente. Quando voltou para casa, na hora do almoço, encontrou Jim Crombie na cozinha, comendo uma maçã.

— Olá! Veio almoçar? — perguntou-lhe Sara. Ele acenou negativamente com a cabeça.

— A Sra. Thorpe está me esperando. Ouvi dizer que você teve um chamado de madrugada. Você parece cansada.

— Obrigada!

Jim preferiu ignorar o tom sarcástico com que ela disse "obrigada", e observou asperamente:

— Parece que você chegou tarde ontem à noite!

— Não... Nem isso é da sua conta.

— Não precisa ser grosseira — respondeu Jim, enquanto enfiava fumo no cachimbo. — Eu ia sugerir que você descansasse esta tarde. Eu faria as visitas que você tem que fazer.

Antes que Sara pudesse responder, Jessie, que acabara de entrar, intrometeu-se na conversa.

— é muita bondade sua, Dr. Crombie. Ela precisava mesmo de um descanso.

— Estou perfeitamente bem, obrigada — disse Sara, com raiva. — Posso cuidar das minhas visitas. Se o almoço estiver pronto, Jessie, já vou comer. Vou subir só para lavar as mãos.

— Está certo — observou Jim. — Não diga depois que não me ofereci. Estou apenas tentando manter a minha promessa feita a John Não me importa realmente o que você faz. Mas, lembre-se, uma mé­dica não pode se dar ao luxo de dissipar energias. Tchau, Jessie...

— Dona Sara, realmente estou surpresa com a senhora! O doutor estava apenas tentando ajudar — disse Jessie, em tom de repreensão, quando ele saiu.

— Eu gostaria de poder acreditar nisso — ela retorquiu, e subiu a escada.

Não pôde deixar de se sentir um pouco culpada enquanto almo­çava sozinha. Talvez Jim estivesse bem-intencionado. Mas por que, oh, por que ele tinha que ser tão... Tão... Não conseguia encontrar a palavra certa, e ficou irritada e aborrecida. Era sempre assim, cada vez que Jim entrava em cena. Pretendia descansar aquela tarde, em todo caso, e se ele tivesse sido um pouco mais delicado, teria aceitado com prazer o seu oferecimento. Não era ingrata. Nunca tinha sido considerada difícil de conviver com os outros.

Ora, Jim Crombie que vá às favas, pensou de mau humor.

Foi para o quarto assim que terminou o almoço, pedindo a Jessie que não a incomodasse, salvo se houvesse um chamado realmente ur­gente. Pôs uma música suave no toca-discos e se deitou. A irritação logo se dissipou. Na verdade, Jim é engraçado, pensou sonolenta. Afinal, ele tinha notado que ela parecia cansada e se dera ao trabalho de passar por lá. Sorriu e adormeceu.

Nos dias que se seguiram, tudo se passou numa rotina. Tio John foi melhorando de modo constante, Oliver veio para jantar uma ou duas vezes, e ela ficou contente com a sua companhia. Mas, além de um beijo de boa-noite, o relacionamento entre eles não progrediu mais, deixando Sara satisfeita com as coisas do jeito que estavam pelo menos por enquanto. Quanto a Jim, soube que visitara o tio John no hospital, mas só voltaria a vê-lo no baile dos jovens fazendeiros. Oliver passou para buscá-la à noite, e foram para a Bolsa de Milho, no carro dela, pois sempre havia a possibilidade de ser cha­mada para um caso urgente.

— Quase todo mundo da aldeia estará no baile — disse Oliver —, assim como muita gente das redondezas, inclusive a aristocracia local e um punhado de escritores e artistas.

— È mesmo? Eu não sabia que tínhamos essas coisas! Oliver sorriu.

— Oh, sim, nós temos. Mas eles são boas pessoas.

O ambiente era agradável. Sara deixou o casaco aos cuidados de um jovem casal e foi dançar com Oliver no momento em que a orquestra começou a tocar.

Ele olhou-a, satisfeito.

— Você está maravilhosa, Sara. Não pretendo deixar que você suma de vista!

Ela riu e começaram a dançar. Sara usava um vestido azul de chiffon fino, com a saía aberta dos lados, e um lenço no pescoço. Fazia tempo que não dançava assim. Estava se divertindo muito, até que de repente viu Jim. Ele dançava com Nina e parecia ignorar tudo em sua volta.

Sara sentiu algo a apertar dentro dela, o que lhe dava uma sen­sação de abatimento. Odiou Nina e queria chorar.

— O que é que há, Sara? — perguntou Oliver. — Você parece transtornada com alguma coisa.

Ela balançou a cabeça, negando prontamente.

— Não, não estou. Não é nada. É que acabei de me lembrar que... Você me dá licença um instante, Oliver?

Saiu apressadamente, não sabendo exatamente para onde ia. Tudo o que sabia é que precisava sair do salão de baile por um momento, para se recompor. O único lugar era o toalete, que naturalmente esta­va apinhado de gente. Foi até um dos espelhos e começou a pentear os cabelos, que não precisavam de muita arrumação. Fechou os olhos por um momento, respirou fundo e soltou o ar, num esforço para acalmar o tumulto que havia dentro de si.

O que estaria acontecendo com ela? Por que o fato de ver Jim dançando com Nina fazia-a se sentir assim? Olhou-se de novo no gran­de espelho e de repente encontrou a resposta.

Estava apaixonada por Jim!

 

Por que não pensei nisso antes? Perguntou-se Sara. Deveria ter sido óbvio. Mas não queria se apaixonar por ele. Como Jim eviden­temente tinha aversão por ela, lutara contra esse amor, sabendo que isso só poderia lhe causar sofrimento. Entretanto, não podia lutar mais. O fato de ter tomado conhecimento desse amor não lhe trazia nenhuma alegria.

— Você está bem, Sara? — perguntou-lhe Oliver, quando ela voltou.

Sara forçou um sorriso.

— Estou bem, obrigada, Oliver. Estou muito bem. Que tal dan­çarmos de novo?

Com muita força de vontade, impediu que o olhar se desviasse para Jim. Havia muita gente que ela conhecia no baile e alguns até eram seus pacientes. LÁ estavam o pároco e a esposa, o Senhor e Sra. Williams, Alys e Bob. Mas era inevitável que Jim e Nina chegassem perto de Alys e Bob, e dela mesma. Também era inevitável uma troca de parceiros. Bob convidou Nina para dançar, Oliver tirou Alys, e Jim, com um sorriso débil, disse:

— Quer me dar à honra, Sara?

Por uma fração de segundo, ela recuou diante da idéia de um contato tão próximo com ele. Se recusasse, porém, provocaria comen­tários das pessoas que estavam em volta.

Assim, levantou-se e estendeu-lhe a mão.

— Estou satisfeita por você entender que é uma honra — ela replicou, enquanto começavam a dançar no compasso da música.

Jim não lhe deu nenhuma resposta. A música era lenta e a melodia um tanto sentimental. Sara sentiu a mão dele segurando a sua, seu braço em torno dela e entrou num mundo de fantasia.

— Você dança muito bem — disse Jim, depois de algum tempo.

— Você também — ela respondeu.

Houve outro momento de silêncio, estranho para Sara, porque se preparara para ouvir os comentários sarcásticos de Jim. Acostuma­ra-se tanto com eles que, pela primeira vez, pareceu-lhe que Jim tinha muito pouco a dizer. Mesmo quando a música parou, antes de ser bisada, ele continuou calado. Seu rosto estava singularmente sério e Sara gostaria de saber o que estava errado. Notou que uma vez o olhar dele se dirigia para onde Oliver e Nina estavam dançando e, de repente, lembrou-se do que Oliver dissera sobre o fato de Jim estar apaixonado. Apaixonado por Nina é claro! Mas por que ele parecia tão triste? Nina certamente não tinha se afastado dele. Duas pessoas não se apaixonavam necessariamente ao mesmo tempo, é claro. Mas, o que quer que fosse, Sara sentia-se desanimada. Assim, resolveu que, se Jim a convidasse para dançar novamente, inventaria alguma desculpa.

Mas ele não a convidou mais a noite toda. Dançou a maior parte do tempo com Nina, separando-se dela apenas para dançar uma ou outra vez com Alys. Sara comportou-se com a maior naturalidade possível. Tinha orgulho demais para demonstrar a qualquer um o que sentia por ele.

— Está se divertindo? — Oliver perguntou-lhe, quando o baile estava mais ou menos na metade.

Sara deu um sorriso cordial. Ele era um amor. Se tivesse apai­xonado por ele!

— Eu gosto de dançar com você — respondeu.

Oliver apertou-lhe mais a mão. — Ora, ora, que bom! Obrigado, Sara. Por falar nisso, reparei que você e Jim pareciam muito sérios enquanto estavam dançando. Vocês brigaram?

— Nós estamos sempre brigando — respondeu Sara, com um sor­riso. — Realmente nunca nos demos bem, desde que cheguei.

Sara achava que devia estar louca, torturando-se desse modo.

—Hum — Oliver murmurou. — Isso é muito estranho. Acho que isso às vezes acontece com as pessoas. Você tem realmente tanta anti­patia por ele?

— Não, não realmente. Na verdade, às vezes acho que gostamos de trocar respostas malcriadas. O único problema é que ele é muito arrogante e... Sarcástico.

Oliver sorriu e mudou de assunto. Sara ficou aliviada e, durante o resto da noite, evitou mencionar o nome de Jim ou mesmo falar sobre ele. Só pôde fazer isso dispensando toda a sua atenção a Oliver, que correspondeu com muito prazer. Sara tentou fingir que não via os olhares divertidos e penetrantes que Alys e Bob lhes dirigiam de quando em quando, os supercílios levemente erguidos do pároco e da Sra. Ready, e os olhares de desaprovação da Sra. Williams. Nina, durante a maior parte da noite, exibiu uma expressão de satisfação e Sara sentiu vontade de socá-la. Ela estava muito bem, com um vestido muito simples, mas de aparência cara, e seu penteado era maravilhoso.

— Sabe, acho que há mesmo alguma coisa entre esses dois — Alys disse, quando Jim conduziu Nina para a pista de dança mais uma vez.

— Poderia ser pior — respondeu Bob. — Na verdade, acho que ela seria a esposa ideal para ele. Pelo menos, ela sabe o que a esposa de um médico tem que enfrentar.

Isso foi mais do que Sara pode suportar.

— Oliver, quer me levar para casa? O baile já está quase no fim, e eu tenho ido dormir tarde nestes últimos dias.

Ele se levantou prontamente.

— Claro. Acho que também estou cansado. — Boa noite, pessoal... — disse a Alys e Bob.

Sara também disse boa-noite e recebeu um olhar significativo dos dois. Mas estava pouco ligando.

— Você está muito cansada? — perguntou Oliver, quando chegaram ao carro. — Caso esteja, talvez seja melhor eu dirigir.

— Oh, não, está tudo bem. Acho que enjoei de dançar, isso é tudo. Gostei daquelas que dancei com você — disse prontamente —, mas acho que prefiro realmente um jantar dançante.

— Bem, nós poderíamos ir a algum, qualquer noite dessas.

— Oliver, você é um amor!

Ela dirigiu até em casa e perguntou se Oliver não queria entrar para tomar um café e comer alguma coisa.

— Será que Jessie aprovaria? — perguntou. — Já passa da meia-noite.

— Não me importa que Jessie aprove ou não — disse Sara, em tom de briga.

Oliver riu.

— É assim que se fala. Vamos lá!

Jessie deixara uma bandeja preparada para ela sobre a mesa da cozinha, mas dava apenas para uma pessoa. Sara fez café e pôs mais uma xícara na bandeja, juntamente com queijo e biscoitos, e Oliver a levou para a sala de estar. Ela serviu o café, e ambos ficaram em silêncio durante algum tempo. Sara estava pensando como conseguiria permanecer naquele lugar, por causa do modo como se sentia em relação a Jim, quando Oliver falou:

— Sara você já se acostumou de verdade aqui?

Ela arregalou os olhos para ele. Parecia que tinha lido os seus pensamentos.

— Eu... Eu não sei Oliver. É muito difícil dizer. Gosto do campo; na verdade, gosto muito. E estou passando a conhecer melhor os meus pacientes, estou tomando interesse pelo que acontece na aldeia, mas...

— Mas você não é cem por cento feliz. Ela suspirou.

— Devo reconhecer que não sou. Há o tio John, ê claro. Eu não gostaria de desapontá-lo.

— Ele poderia arranjar outra pessoa quando ficar melhor. Isto é, caso você quisesse se mudar.

— Sim, é verdade. Mas por que pergunta Oliver? A resposta dele foi vaga.

— Oh, por nada, em particular. Só queria saber.

Ela achou-o um tanto quieto e retraído. Mas quando o levou até a porta, ele a tomou nos braços e a beijou, esfregando o rosto no dela.

— Vamos sair qualquer noite dessas para dançar e jantar, só nós dois. Eu também estou farto de ajuntamentos de pessoas, desde que a conheci, Sara.

Oliver dissera essas palavras tão baixinho, que ela não teve certeza se entendeu direito. Mas ficou comovida com a sua afeição. Seu amor por Jim parecia estremecer, na influência de um novo sentimentalismo. Sara acariciou-lhe o rosto e ele pegou a mão dela e a beijou. Depois, segurou-a fortemente e a beijou com ardor, e ela correspondeu ao beijo, embora fosse tomada de incerteza e da sensação de que não devia deixá-lo fazer isso.

Mas não queria repeli-lo inteiramente. Disse boa-noite do modo mais delicado que pôde, e ele a soltou.

— Boa noite, então, querida. Eu passarei aqui para vê-la, ou então telefonarei.

Sara fechou a porta e apagou as luzes. Então, com um suspiro profundo, subiu a escada. Por que não podia ser Jim em vez de Oliver? Mas será que Oliver estava mesmo apaixonado? Já ia longe o tempo em que um beijo significava amor eterno. Talvez Oliver se sentisse apenas atraído por ela, sem estar necessariamente apaixonado. Tanto os homens como as mulheres precisariam ser capazes de demonstrar afeição sem terem o casamento como objetivo.

Mesmo assim, achava que o relacionamento deles já fora bastante longe e estava chegando a um ponto perigoso, se é que já não havia chegado. Seria errado da parte dela descontar em Oliver as suas frus­trações com relação a Jim. Ela só o veria mais uma vez, e não mais.

Peio menos, não sozinha. Deixar as coisas continuarem nesse pé não seria justo para com ele, e também não havia sentido envolver-se numa coisa da qual mais tarde se arrependeria.

Quanto a Jim, ela o evitaria o mais que pudesse, e se por acaso o visse, seus sentimentos deveriam ser mantidos sob controle.

Fechou os olhos e não conseguiu ignorar uma dorzinha bem na essência de seu ser.

Com o avanço constante do inverno, os atendimentos no consul­tório aumentaram e as epidemias costumeiras de gripe, ciática, tosses e resfriados começaram a se manifestar. Sara teria esquecido de sua promessa de ir à Associação das Mulheres, caso Alys não tivesse lhe telefonado para lembrá-la.

— é possível que eu chegue tarde — Sara lhe preveniu. — Essa mudança repentina do tempo provocou uma série de doenças leves. Terei muita sorte se terminar o atendimento no consultório em tempo. Além disso, há sempre a possibilidade de eu ter que atender a um chamado urgente.

— Você não mudou de idéia quanto a vir, mudou? — Alys per­guntou, um tanto cismada.

— É claro que não.

— Então peça a Jim para atender aos seus chamados e apresse as coisas no consultório. Sei que vocês médicos gostam de ouvir todos os problemas, até os domésticos e pessoais de seus pacientes, mas algumas pessoas não param de falar. Simplesmente adoram fofocas.

Sara riu, sabendo que Alys estava brincando.

— Está certo, vou fazer o que puder. Tchau.

Precisava telefonar para Jim, para lhe pedir que tomasse conta de seus chamados. Mais ou menos torcendo para que ele não estivesse lá, ela discou o número. Ele mesmo atendeu o telefone. Procurando adotar um tom de voz normal, ela lhe perguntou se ele se importaria em cuidar de seus chamados nessa noite. Ele demorou tanto para responder que ela pensou que tivesse desligado.

Mas ele perguntou, com a voz cheia de sarcasmo:

— Tem outro encontro com Oliver? Ela agarrou o fone com força.

— Você faz alguma objeção? — Não pretendia responder desse jeito, mas, em todo caso, não conseguira se conter.

— Objeção? — ele repetiu. — Eu? Meu Deus, não, por que deve­ria? Não, saia e divirta-se. Do jeito que as coisas vão, logo vamos ter um casamento, e tudo o que posso dizer é que foi muito rápido.

Ela comprimiu os lábios de mágoa e de raiva, e desligou o telefone, sem ao menos se despedir. Por quanto tempo teria que suportar esse tipo de coisa?

Na verdade, o atendimento no consultório não foi tão demorado nessa noite. Sara foi à reunião da associação e gostou muito. As pessoas eram de todas as idades: havia jovens casadas, mulheres de meia-idade e mulheres idosas. Alys conduziu a reunião de modo alegre e cordial. Houve uma palestra sobre maquilagem, feita por uma cabeleireira, e serviram bolinhos caseiros deliciosos com chá. Sara ficou encantada em ver tanto a Sra. Warby como Rosemary Cárter na reunião. Também estavam presentes a Sra. Ready e a Sra. Williams, bem como a Sra. Scott e a esposa do outro fazendeiro, a Sra. Marley.

Sara foi até onde estava a Sra. Williams para conversar um pouco com ela.

— Parece que não há um só momento insípido no campo, não é, Sra. Williams?

Isso pareceu para Sara uma aproximação suficientemente amistosa, mas o que ela viu foram dois olhos arregalados.

— Eu não sei o que a senhora quer dizer, doutora.. .

— Foi só um comentário...

— É mesmo? Me dá licença? A Sra. Ready quer falar comigo. Sara deu de ombros. Ao que parecia, a esposa do fazendeiro ainda não a tinha perdoado. Seriam problemas de consciência que a pertur­bavam, por causa de seus chalés? Uma torneira, uma pia e uma fossa pareciam uma coisa à toa, especialmente quando se tinha tanto dinheiro. Sara balançou a cabeça tristemente. Pouco depois conversou com a esposa do pastor e teve mais sucesso.

— Como vai a senhora?

— Mais ou menos, doutora. Mas nesta época do ano, em especial, a minha artrite me incomoda.

— É mesmo? Que pena! — Seu olhar se dirigiu automaticamente para as mãos da Sra. Ready. — Há quanto tempo a senhora tem artrite?

— Há cerca de três anos; ela vai e volta. Às vezes é pior. Inco­moda muito na parte da manhã. Eu levo horas para me vestir e para fazer outras coisas. Ê muito desagradável. Eu fui ver um médico, antes de meu marido e eu virmos para cá. Mas ele me receitou apenas uns comprimidos para a dor, e me disse para exercitar as juntas sempre que pudesse.

— Entendo. — Sara gostaria de fazer outras perguntas, mas o salão de reuniões da aldeia não era um local apropriado para con­sultas. — Por que não aparece no consultório qualquer dia, a fim de conversarmos a respeito disso?

— Oh, não é nada, doutora, obrigada. Eu não gostaria de tomar o seu tempo. A senhora deve estar muito ocupada, com o Dr. Henderson no hospital. Por falar nisso, como vai ele?

Sara disse que ele estava muito bem e seguiu em frente, para falar com a Sra. Warby, que conversava com Rosemary Cárter.

— Gostou da reunião? — Alys perguntou, quando já era hora de irem para casa.

— Gostei muito. Eu não sabia que a associação tinha interesse por coisas como maquilagem.

— Oh, nós nos interessamos por tudo. Música, teatro, pintura, trabalhos manuais...   Qualquer coisa. Por falar nisso, que tal vir jantar comigo? Deve ser um tanto solitário para você, com meu sogro no hospital. Você pode telefonar para Jessie quando chegarmos em casa.

Sara aceitou alegremente. No final das contas, pensou, nada podia substituir uma boa amiga. Os homens trazem muitos problemas.

Bob tinha saído para ir a alguma reunião, e assim Alys e Sara tiveram a casa só para elas durante algum tempo. Jantaram com uma bandeja diante da lareira da sala de estar e, pouco a pouco. Sara começou a se sentir realmente descontraída. Estava fumando um cigarro e contemplando o fogo, quando Alys disse:

— Sabe, você está parecendo um pouco cansada, desde que meu sogro foi para o hospital. Espero que o trabalho não seja demais.

Sara sorriu levemente.

— Oh, céus, não, Alys. Não é o trabalho. Quero dizer...

— O que é, então?

Sara balançou a cabeça. Alys tinha desarmado a sua guarda.

— Eu estou muito bem, Alys. Mas Alys não se deixou levar.

— Você não pode me enganar, Sara. Alguma coisa está errada. Talvez não esteja dormindo o suficiente, ou. . .

Sara fechou os olhos.

— Alys, aqui é tão calmo! Tenho inveja de você.

— Ê mesmo? Por quê?

— Oh, não me interprete mal. Jessie é uma governanta maravi­lhosa, e tudo o mais. Mas...

— Mas não é o seu próprio lar. É isso?

— £ algo parecido.

Alys olhou-a de modo penetrante.

— Diga-me, Sara até que ponto vai a sua amizade com Oliver?

— Bem, temos saído juntos algumas vozes. Gosto muito dele, mas...

— Existe alguma possibilidade de haver algo mais?

— Não, Alys.

As sobrancelhas de Alys se ergueram.

— Você me surpreende. Achei que vocês pareciam gostar muito um do outro. Estou certa de que Oliver gosta de você; nunca o vi tão interessado em alguém.

Sara suspirou.

— Por favor, Alys, não falemos sobre isso. Eu mesmo achava que era possível, e estava disposta a deixar as coisas seguirem o seu rumo, mas...

— Você se aborreceu com ele por algum motivo? Ela balançou a cabeça negativamente.

— É melhor lhe contar, porque sei que você vai guardar segredo. Descobri apenas no outro dia, na noite do baile dos jovens fazendei­ros, para ser exata, que eu... Me apaixonei por esse homem insupor­tável que se chama Jim Crombie.

Foi um alívio contar. Isso de alguma forma aliviava um pouco a dor que sentia. Uma expressão de prazer iluminou o rosto de Alys.

— Mas isso é maravilhoso!

— Ê mesmo? — Sara perguntou melancolicamente. — Nós não fazemos outra coisa senão brigar, desde que cheguei. Ele me despreza.

— Ora, o que é isso, Sara? Que bobagem!

— Não é, não. Você não sabe. Você não está lá quando ele... Fala comigo como se... — Lágrimas que ela não pôde conter enche­ram os seus olhos. -— Alys, o que vou fazer? — murmurou.

— Sara, querida... — Alys estendeu a mão para segurar a dela. — Isso é incrível. Mas você está enganada a respeito de Jim. Eu. . . eu tenho certeza.

Sara balançou a cabeça.

— Não, não estou. E além disso, existe Nina.

— Nina? O que é que Nina tem a ver com isso? Foi a vez de Sara ficar surpreendida.

— Ora, você mesma disse, na noite do baile, que achava que havia alguma coisa entre os dois. Bob também. Ele disse que ela seria a esposa ideal para ele.

— Puxa, dissemos mesmo. Mas não estávamos falando sério, e estou bem certa de que Jim...

Sara sorriu fracamente.

— É muita bondade sua tentar me consolar, mas não há como fugir aos fatos. Terei que aprender a viver com isso, e espero que, com o tempo, supere o problema. Isso ê tudo. E se for demais para mim, terei que arrumar as malas e ir para algum outro lugar. De qualquer forma, foi bom conversar com alguém a respeito disso, Alys. Não conte isso a ninguém, muito menos para Jim.

Como se eu fosse contar! Sara deu um grande suspiro.

— Eu sei. Eu nunca pensei que uma coisa assim fosse acontecer, quando vim para cá. Eu fugi de uma situação apenas para me envolver em outra.

— Meu bem, uma mulher solteira atraente e inteligente como você vai continuar a ter problemas. Pelo menos, uma que tenha consciência, é preciso que se diga. O que você precisa é... — Ela se interrompeu. — Sinto muito, mas acho que vou ter que ser um pouquinho sem tato.

— Continue — Sara disse ironicamente. — Você ia dizer que o que eu preciso é de um marido.

— Exatamente.

Depois disso, não havia nada mais a dizer sobre o assunto, mas Sara se sentiu melhor por ter conversado com Alys.

Certa manhã, quando Sara saiu para fazer as visitas, passou por acaso diante da Casa Paroquial e sentiu um impulso de visitar a Sra. Ready. O prazer da Sra. Ready em vê-la alegrou o coração de Sara.

— Entre, doutora. Eu ia fazer café. Quer me acompanhar? Sara agradeceu.

— Esta não é realmente uma visita profissional — disse, quando a Sra. Ready trouxe o café para a sala de estar —, mas estive pensan­do nessa sua artrite.

— É muita bondade sua. Mas sempre que passar por aqui, entre, que a casa é sua, doutora. Haverá sempre uma xícara de chá ou de café para a senhora. Eu queria ter falado isso antes.

Sara mal podia acreditar e ficou muitíssimo feliz com a afabilidade da outra.

-— A senhora e o seu marido precisam ir qualquer dia jantar comigo. Mas estive pensando... eu notei que há uma pequena cicatriz em seu pescoço, outro dia. A senhora operou a tiróide?

— Sim, operei.

— Bem, eu estive pensando se o que a senhora acha que é artrite não é tétano, na verdade.

— Tétano? Mas eu sempre associei o tétano às infecções de fe­rimentos.

— Esse é um tipo dele. Mas existe outro tipo que ocorre devido à carência de cálcio. — Ela tentou explicar de modo simples. — Nos adultos, isso é muitas vezes associado com uma tiróide aumentada, mas também pode ser resultante de alguma doença de paratiróide.

A Sra. Ready pareceu assustada.

— Santo Deus! Isso quer dizer que...

— Não, não — Sara se apressou em acalmá-la. — No seu caso, é muito provável que as paratiróides tenham sido perturbadas ou ma­chucadas levemente quando a senhora foi operada. Elas se situam atrás tia tiróide, entende?

— Mas como isso pode causar artrite? Ou o que parece ser artrite?

— Ela provoca um aumento no tono muscular. Agora, deixe-me ver as suas mãos.

A Sra. Ready estendeu as mãos. O polegar estava flexionado sobre a palma da mão, os dedos curvados e as próprias mãos estavam voltadas para dentro.

— Devo admitir que de fato se parece com artrite, mas há esta diferença, disse Sara. — As juntas não estão realmente inchadas. É um espasmo muscular. Vou lhe receitar uma medicação com cálcio e um Tonico contendo ferro, para ver o que acontece. Isso é muito comum na Europa continental, mas nem tanto aqui na Inglaterra.

— Imagine só. £ possível que haja muita gente que pensa que tem artrite, quando na verdade tem esse...   Tétano. Se isso der certo, doutora vou ficar agradecida à senhora pelo resto da vida.

— Chame-me de Sara. É muito mais amigável. Agora preciso ir. Obrigada pelo café. Estava muito, muito gostoso.

A Sra. Ready acompanhou-a até a porta, com uma expressão pensa­tiva no rosto. Sara sentiu que ela queria dizer alguma coisa, mas achou que, se fosse algo importante, a Sra. Ready diria em outra oportunidade.

O curioso foi que, naquela mesma noite, ela recebeu um chamado urgente do fazendeiro Williams. A Sra. Williams estava com dores atrozes nas costas e nas pernas.

Eram exatamente três horas da madrugada. Sara vestiu-se rapida­mente e saiu, apressada. O tempo tinha piorado desde a meia-noite, e a chuva batia no pára-brisa do carro com toda a fúria de uma tem­pestade. Para se chegar até a casa era preciso percorrer um caminho de cerca de um quilometro e meio, que não era mais que uma trilha de carroça. Será que é mesquinhez ou pobreza?, pensou Sara.

Mas não havia nenhum sinal de pobreza na casa. Espessos tapetes, boa mobília, aquecimento central. Sara não pôde deixar de comparar tudo com o chalé dos Scott. O Sr. Williams acompanhou-a até em cima. Era um quarto grande, com carpete branco no chão, mobília moderna e uma cama de casal.

A Sra. Williams, obviamente perturbada, estava deitada atravessada na cama, como se estivesse sofrendo muito. A dor ainda persistia.

— Melhorou um pouco, doutora, graças a Deus — ela falou ofe­gante, quando Sara se aproximou da cama. — Mas ainda está doendo muito e eu nem tenho coragem de levantar a cabeça do travesseiro.

— Como foi que começou? — Sara perguntou, com suavidade. — E quando?

— Bem, eu... eu comecei a sentir dores nas pernas e nas costas há uns dois ou três dias. Uma dor constante e ardente.

— Sente alguma fraqueza nas pernas?

— Não, acho que não.

— E quanto à dor nas costas? Ela começou de repente? Parecia que ela tivera diversos   acessos   agudos,   em intervalos.

Depois, as dores haviam se tornado constantes e ardentes nas pernas, terminando nos joelhos.

— Nada que eu tome parece fazer efeito. Acordei há uns dez mi­nutos e pedi ao meu marido para pegar uns comprimidos. Assim que levantei a cabeça, foi terrível. Mas consegui engolir os comprimidos, e então...   Quando ele voltou para a cama, a dor estava ainda pior. Eu. . .

Sara estava bem certa de que se tratava de um ataque agudo de ciática, talvez em conseqüência de um disco intervertebral saliente estar pressionando o nervo ciático, o que era comumente conhecido como "disco deslocado". Fez testes para se assegurar do diagnóstico e examinou a paciente o. mais que pôde, sem lhe causar mais dor. A seguir, deu-lhe uma injeção para relaxar os músculos.

— Assim que melhorar, Sra. Williams, a senhora precisa pedir ao seu marido para colocar algumas tábuas embaixo do colchão. Isso é essencial para se ter uma base firme. E se houver outra cama onde o seu marido possa dormir será ainda melhor. Obviamente, o fato de ele se mexer na cama, assim como o seu peso, fez o colchão e sua coluna se curvarem, e isso agravou a situação.

A Sra. Williams acenou com a cabeça, concordando. Sara arrumou as roupas de cama e sorriu.

— Espero que consiga dormir logo. Virei vê-la, novamente, du­rante o dia;

A Sra. Williams olhou para ela. Agora, havia desaparecido o olhar de hostilidade que ela vinha dirigindo a Sara desde o dia em que tinham se encontrado no chalé dos Scott.

— Obrigada, doutora. Eu... Sinto muito por acordá-la a essa hora da madrugada.

Sara garantiu-lhe que estava tudo bem.

— Estou contente por ter podido ser útil.

Lá embaixo, o Senhor "Williams havia preparado um bule de chá e Sara aceitou uma xícara com prazer. Enquanto o tomava, ela lhe explicou qual era o problema, repetiu o conselho sobre o colchão, e também falou sobre ele dormir em outra cama. A mudança de atitude, tanto do fazendeiro como de sua esposa, era muito acentuada. Eles obvia­mente haviam se assustado com a dor da Sra. Williams, estavam gratos a ela e também passaram a respeitá-la como médica. Mas Sara gostaria que tivesse sido uma mudança num sentido mais amplo e verdadeiro. Preferia passar sem a gratidão pessoal deles se, em troca, tivesse a certeza de que fariam algo para melhorar os chalés dos trabalhadores.

Após dormir um pouco. Sara estava em pé novamente, mas antes de começar o atendimento da manhã, telefonou para a enfermeira do distrito e lhe pediu que passasse pela fazenda para ver se havia algo que pudesse fazer pela Sra. Williams. Depois, à tarde, foi visitá-la novamente.

— Como está se sentindo agora? — perguntou.

— Muito melhor, doutora. Mas ainda não tenho coragem de me mexer. Obrigada por ter mandado a enfermeira. Não sei como lhe agradecer.

Sara sorriu.

— Vê-la em pé novamente é todo o agradecimento de que preciso. Já providenciou aquelas tábuas do colchão? A senhora talvez não consiga se sentar, mas acho que pode se virar na cama com facilidade, desde que o faça devagar.

Mas o Sr. Williams, ao que parecia, tinha planos de trazer as camas gêmeas do quarto de hóspedes, e de tirar a cama de casal, fixando as tábuas numa delas.

— Ele vai fazer isso quando voltar, esta noite.

— Ótimo.

Quando deixou a fazenda, Sara foi a Ketford ver tio John, e, para sua surpresa, também encontrou Jim lá. Ela sentiu um baque no coração quando o viu ao lado da cama.

— Ora, ora, imagine só, ver você aqui — ele foi logo dizendo.

— Pois é... Que coisa, não? — ela retorquiu, em consideração ao tio John, e viu que os olhos dele brilharam de zombaria. — Como vai, tio John? — perguntou. — Não está farto de ficar aí, está?

— Bem... Estou começando a achar que poderia muito bem ficar em casa, em minha própria cama. Isto é, se Jessie pudesse dar um jeito com as bandejas.

— Não é tanto questão disso. Nós nos revezaríamos para cuidar do senhor. — Ia acrescentar que ele se sentiria tentado a se levantar de­pressa demais, mas, antes que pudesse fazê-lo, Jim se intrometeu:

— É uma sugestão ridícula. Antes que você se desse conta, ele estaria fora da cama, mantendo-se no consultório e até saindo corren­do para atender aos chamados.

— Era isso que eu ia dizer, ou algo parecido, se você não tivesse se intrometido — respondeu Sara.

Tio John riu.

— Vamos vocês dois; já estão começando de novo! Jim, se isso o deixasse mais contente, eu me colocaria sob seus cuidados médicos, e não me mexeria a menos que você mandasse.

— Você está muito melhor onde está — Jim insistiu, e Sara teve que concordar com ele.

— Procure ter paciência, tio John. Nós gostaríamos de vê-lo de volta à ativa, e estou certa de que o senhor também gostaria de estar de volta. Mas, no final das contas, isso vai acontecer mais depressa se o senhor ficar onde está.

— Muito bem, vocês dois — ele disse, olhando de um para o outro, como se fossem seus filhos. —- Mas eu vou voltar para casa no Natal e ninguém vai me impedir.

Faltava cerca de quatro semanas para o Natal e, nessa ocasião, ele já estaria fora de perigo. Sara não estava nada feliz com a idéia de deixá-lo e ir clinicar em outro lugar, mesmo que ele tivesse um novo assistente. Gostava dele como se fosse o seu próprio pai. Mas será que iria suportar aqueles conflitos com Jim? Quanto tempo levava para se desapaixonar novamente? Seria isso possível? Ela o ama­va tanto!

O médico consultor entrou no quarto com o médico assistente e a enfermeira do setor e, depois de uma breve conversa com eles, Sara saiu junto com Jim. Caminharam até o estacionamento em silêncio e Jim, como que para iniciar uma conversa educada, disse:

— Ouvi dizer que você saiu à noite para atender a Sra. Williams.

— As notícias se espalham depressa aqui no campo.

— Eu vi o Sr. Williams no correio esta manha. Se estiver interessa­da, a sua cotação subiu muito por aqueles lados. Com os Williams, quero dizer, não com o correio — corrigiu, tentando fazer gracinha.

Mas Sara estava tensa demais para poder apreciá-la.

— Bem, estou muito contente por minha cotação ter subido em algum lugar.

O queixo dele ficou contraído.

— O que você quer dizer exatamente com isso?

Sara, entretanto, não estava num estado em que pudesse conversar racionalmente, especialmente sobre um assunto tão pessoal. E disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça:

— Em todo caso, é provável que eu não fique aqui por muito tempo. Assim que tio John ficar bom, vou-lhe pedir que encontre outro assistente.

E sem esperar resposta, deixou-o, o coração batendo furiosamente. Durante todo o trajeto de casa, censurou-se por ter falado uma coisa tão ridícula. Era isso que gostaria de fazer, num certo sentido: fugir. Mas a última coisa que queria era desapontar o tio John.

Oliver apareceu naquela noite para levá-la a jantar e dançar no clube de campo ao qual pertencia. Mas mal acabara de fazer o convite, quando o telefone tocou e ela foi chamada para atender a um homem cuja esposa achava que ele tivera derrame cerebral.

— Sinto muito, Oliver. Vejo você amanhã, depois do atendimento no consultório, à noite.

Na verdade, o paciente não tivera hemorragia cerebral, e sim para­lisia de Bell, paralisia do nervo facial. Mas Sara teve que examiná-lo minuciosamente, para se assegurar de que não se tratava realmente de um derrame, O paciente seguia muito bem o dedo dela, com os olhos. Também conseguira pôr a língua para fora, direito, sentira uma picada em ambas as faces. Seus membros não tinham sido afetados em nada. O nervo facial era o único afetado.

Havia muito pouca coisa que ela pudesse fazer, exceto garantir ao paciente e à esposa que sua condição não era séria, e que melhoraria dentro de algumas semanas.

— O calor pode ajudar, e o senhor deve usar uma venda sobre o olho que não fecha, para impedir que caia qualquer coisa nele. Se não começar a melhorar dentro de duas semanas, vá me ver no consul­tório, e eu providenciarei para que o senhor receba um tratamento elétrico — ela dissera.

Decidiu passar pela casa de Alys. Havia um carro na entrada, que ela julgou que fosse de Bob. Alys abriu a porta e pareceu muito con­tente em vê-la.

— Entre — ela disse, dando-lhe um empurrãozinho na direção da sala de estar.

— Posso telefonar para Jessie primeiro... Só para lhe dizer onde estou?

— Sim, à vontade. — Alys entrou na sala de estar, e, quando ouviu Sara desligar, voltou novamente. — Jim está aqui.

— Oh, não — Sara se virou para sair. Mas Alys a segurou firmemente pela mão.

— Não seja boba. Eu disse a ele que você está aqui. Se você fugir, ele vai querer saber por quê. E a propósito... — Mas a campainha da porta da frente interrompeu-a. — Oh, vá entrando. Depois eu lhe conto.

Relutantemente, Sara abriu a porta da sala de estar. Jim estava sentado confortavelmente numa poltrona ao lado da lareira, fumando o seu cachimbo, mas se levantou quando Sara entrou. Ela preparou-se para ouvir a costumeira observação sarcástica, mas ele disse deli­cadamente:

— Olá, Sara. Entre e sente-se.

Sara olhou para ele, mal podendo acreditar que estivesse falando sério. Não sabendo o que dizer, desejou não ter vindo, mas atravessou a sala e sentou-se numa poltrona em frente a dele.

— Acabei de visitar um paciente com paralisia de Bell — disse Sara, procurando refugiar-se conversando sobre a profissão. — A coitada da esposa estava apavorada. Ela achava que o marido tinha tido um derrame cerebral.

— Hum. Acho que deve parecer, para os leigos. Lembro-me, certa vez...

Mas ele interrompeu o que estava dizendo quando Alys e Bob en­traram. Alys ficou olhando de um para o outro, e disse alegremente:

— Puxa, é bom ver vocês aí sentados, conversando normalmente. E esperemos que nenhum de vocês seja chamado para sair, porque vão ficar para o jantar, os dois. E não vou aceitar nenhuma recusa.

Havia tal mudança no comportamento de Jim, que Sara ficou pen­sando se Alys não havia revelado o seu segredo, mas afastou esse pen­samento logo. Alys não faria isso, é claro. Mas não restavam dúvidas quanto a uma coisa: Alys estava dando uma de casamenteira. Ofere­ceu-se para ajudá-la com o jantar, mas ela se recusou categoricamente, puxando Bob para fora da sala e deixando Sara e Jim a sós nova­mente. Jim olhou-a como se estivesse esperando que ela dissesse alguma coisa, ou como se quisesse saber o que ela estava pensando. Havia um silêncio pesado entre eles. Sara evitou olhar para ele, Ficou olhan­do para o fogo, tentando lutar contra o pânico, desejando que não tivesse vindo imaginando quanto tempo seria capaz de suportar esse tipo de coisa.

Jim perguntou suavemente:

— Sara, você falou sério esta manhã, quando disse que iria embora daqui assim que John se recuperasse?

Ela respirou fundo.

— Sim, falei.

— Mas por quê? Pensei que você estivesse se acostumando bem, aqui. Quero dizer...

— Oh, eu estou conhecendo um pouco melhor as pessoas, e gosto do lugar, mas... — E interrompeu-se, confusa.

Essa mudança em Jim era desconcertante. Parecia mais natural quan­do eles ficavam se agredindo mutuamente. Além disso, o que ela poderia lhe dizer? Vou embora porque o amo, e não tenho esperanças porque você sente aversão por mim? Ele a olhava fixamente, com certeza esperando que ela continuasse. Ela hesitou um pouco mas acrescentou:

— Ainda existem algumas pessoas que parecem decididas a inter­pretar mal tudo o que eu digo. Tenho até medo de abrir a boca...

— Mas, Sara, isso pode acontecer em qualquer lugar, quando um recém-chegado começa logo a fazer sugestões. E isso não é assim apenas numa cidadezinha do interior. O mesmo pode acontecer em qualquer ambiente, porque de fato soa como uma crítica àqueles que já pertencem à sociedade e que estão relativamente satisfeitos com ela. Isso, certamente, reflete neles como algo pessoal.

Sara não respondeu. De que adiantaria? Ele não compreenderia, nem ela fazia questão disso.

— Mesmo assim, vou partir assim que puder — disse teimosamente. Alys entrou para dizer que o jantar estava pronto, e assim terminou a conversa entre eles. Durante toda a refeição, Alys manteve a con­versa animada, ajudada por Bob. As vezes, os dois homens falavam sobre uma coisa, e Sara e Alys sobre outra.

Assim que pôde, Sara anunciou que precisava ir embora.

— O quê, tão cedo? — Alys protestou.

— Sinto muito, Alys, mas, se não se incomoda, acho que preciso dormir cedo. Tive que levantar às três da madrugada e, é claro, não pude dormir muito, depois que voltei para a cama. E quem sabe se eu não vou ter que me levantar novamente esta noite? Isso às vezes acontece.

Antes de sair, perguntou a Jim se podia ficar em seu lugar na noite seguinte. Ela não queria ter que telefonar para ele.

— Sim, é claro. Será que você pode fazer o mesmo por mim de­pois de amanhã?

— Oh, sim. É o aniversário de Nina, não é? — Bob disse, sem tato.

Alys lhe dirigiu um olhar furioso, que felizmente não foi visto por Jim, que estava curvado perto da lareira, batendo o cachimbo.

Sara saiu depressa, agradecida por poder ir embora. Ela, na verdade, não queria deixar tio John tão cedo, mas isso teria que acontecer mais cedo ou mais tarde. Na próxima vez que o fosse visitar, teria que lhe contar a novidade da maneira mais suave que pudesse. Se ela lhe explicasse, ele compreenderia.

Sem muito ânimo, pôs um vestido de noite, na noite seguinte, após o atendimento no consultório, e já estava pronta quando Oliver chegou, trazendo um lindo buquê de flores e uma orquídea para o seu vestido.

— Oh, Oliver, que beleza! Você é muito gentil.

Ele sorriu e colocou o braço em cima dos ombros dela.

— Obrigado. Então, vamos?

Havia algo diferente nele nessa noite, como se fosse uma ocasião especial. Estava mais encantador e atencioso que de costume, sugeriu os pratos mais caros do cardápio e até pediu champanhe.

— O que é isso, Oliver, uma comemoração? Ele sorriu suavemente.

— Pode ser. Mas que tal dançarmos?

Segurou-a mais peno do que de costume e, embora o coração de Sara chorasse silenciosamente por Jim, reconheceu que um homem como Oliver poderia ajudá-la a esquecer.

O jantar esteve bom e o champanhe deixou-a um tanto alegre. Oliver era encantador e simpático.

— Sara querida, tenho algumas novidades para você — disse, quando chegaram ao final da refeição.

— São boas?

— Talvez. Depende de você.

— De mim?

Ele meneou a cabeça, assentindo.

— Eu vou mudar daqui. Vou para o sul. Ela o olhou fixamente.

— Oh, Oliver, não! Mas quando?

— Dentro de duas semanas.

— Tão cedo assim? Oh, mas isso é terrível. Eu. . . Ele estendeu a mão e segurou a dela.

— Sara, quer casar comigo? Há uma casa lá onde eu vou. Você pode montar uma clínica, se quiser. Ê uma casa linda, situada bem na orla da floresta. Venha comigo, Sara você quer?

 

Sara sentia vontade de rir e chorar ao mesmo tempo, enquanto Oliver esperava pela resposta, olhando-a ansiosamente.

— Oh, Oliver, eu... Eu não sei o que dizer. Você. . . Faz a coisa parecer tão tentadora que eu...

Mas interrompeu o que ia dizer. Estava a ponto de dizer que ado­raria isso, mas se tratava de toda uma vida. Ele estava pedindo-a em casamento, afinal.

— Apenas diga sim, meu bem. Você não vai se arrepender. Ela deu uma risadinha e balançou a cabeça para ele.

— Não deseja saber se o amo ou não?

Ele a olhou gravemente.

— Tenho quase medo de perguntar. Eu realmente não acho que você me ame; não como eu a amo. Mas você gosta de mim. Não é?

— Sim, Oliver, gosto. Gosto muito de você. Mas isso não é amor, não é?

— Não, mas pode vir a ser, com o tempo. Sou um homem muito paciente. Acho que, com o tempo, você pode vir a me amar.

— Se não me engano, você disse certa vez que uma pessoa seria bem tola se casasse por outra razão que não fosse o amor, e já compreendeu que não estou realmente apaixonada por você. Quer se casar comigo assim mesmo?

— Sim, quero. Eu pretendia... — ele deu um sorriso malicioso —, bem, continuar tentando conquistá-la, mas... a minha transfe­rência provocou uma espécie de estado de emergência. Tenho a im­pressão de que, longe daqui e de certas influências... — Oliver. Interrompeu-se significativamente. — Entende, eu não acho que... Um amor à distância perdure. Não existe apenas um homem para cada mulher. Pode-se apaixonar mais de uma vez na vida. Um amor pode ser para sempre, é claro, isto é, aquele amor dedicado à pessoa com quem finalmente a gente se casa. Aliás, para muitas pessoas, o amor nasce depois do casamento.

Sara entendeu o que ele estava tentando dizer. Oliver sabia o que ela sentia a respeito de Jim. Adivinhara, e mesmo assim queria se casar com ela. Havia muita coisa de verdade naquilo que ele dissera. Poderia levar muito-tempo para um amor se extinguir, mas certa­mente se extinguiria com o tempo, especialmente se fosse substituído por outro. Mas, mesmo enquanto pensava nisso, ela sentia o cora­ção partindo-se lentamente.

— O que é o amor, Oliver? Qual é a sua natureza? Será, na ver­dade, teimosia? Desejar algo que você sabe perfeitamente bem que não lhe pertence?

— Talvez. O anseio por um grande amor está dentro de todos nós. Mas às vezes ele é encontrado nos lugares mais inesperados. Há uma canção que diz algo parecido com: "O amor está onde você o encontra". Eu a amo e tenho certeza de que poderíamos ser felizes juntos. Se achar que não consegue dizer "sim" esta noite, também não diga "não". Pense sobre isso durante os próximos dias, e falemos depois, está bem?

Ele era tão amável, tão bondoso e atencioso, que sentiu vontade de chorar. Mas por que se prendia ao amor que sentia por Jim? Um amor que ele não desejava. Por que chorar pela lua, quando as estre­las estavam ao seu alcance?

Sara sorriu.

— Oliver, você é um homem muito amável e querido. Vou pensar nisso. Eu lhe daria uma resposta agora, só que. . .

— Não diga mais nada. Apenas deixe a idéia amadurecer na sua cabeça. Vamos dançar e nos descontrair.

Sara tentou, mas não foi fácil. Achou difícil afastar Jim de sua mente e parar de pensar na proposta de Oliver. Era curioso que, antes de ter percebido o que sentia por Jim, apreciasse o contato físico com Oliver, a sensação de seus braços em torno dela, os lábios dele colados aos seus. Estivera um pouco apaixonada por ele, ou ima­ginou ter estado. Mas será que esse sentimento não estaria relacio­nado, na verdade, com Jim?

Durante dias, pensou no assunto, como Oliver sugerira. Não conse­guia pensar em outra coisa. O problema estava sempre presente, dor­mindo ou acordada, mesmo enquanto cuidava de seus pacientes. Gos­taria de fugir, de acabar com seu sofrimento, mas a idéia de casar era algo que não conseguia aceitar, ao menos no momento.

Sara foi ajudada em sua decisão por algo que aconteceu uma noite, quando voltava de um chamado. Dirigia através da floresta, quando, de repente, um grande cervo apareceu em sua frente. Ela freou e tentou desviar, mas era tarde demais. Ouviu um baque e teve que se agarrar à direção e se proteger. O carro não passara sobre o animal. Sara parou poucos metros adiante, no meio da estrada, mas antes ouviu um ruído metálico embaixo do capo.

Saiu, imaginando qual seria o estrago e preocupada com o cervo. Conseguia ver um vulto indistinto deitado na estrada e ouvia o som de água corrente por perto. Olhou para baixo e viu, para o seu desa­lento, que a água caía do radiador, muito avariado, sem dúvida. A questão era: como chegar em casa, exceto andando? Estava a uns cinco quilômetros de lá. Talvez conseguisse pegar uma carona com algum motorista que passasse. Mas primeiro precisava dar uma olha­da no pobre animal, ver se havia alguma coisa que pudesse fazer por ele.

Antes que o fizesse, entretanto, os faróis de um carro surgiram na distância. Olhou para o lugar onde o cervo estivera deitado, mas não conseguiu vê-lo. Teria se enganado quanto ao local exato? O carro foi se aproximando, e ela ficou parada, ofuscada pelos faróis, acenando para o motorista parar. Este vinha da direção oposta, por­tanto não havia perigo de atropelar o animal. Pobrezinho! O que pode­ria fazer se ele estivesse muito ferido? E se tivesse morrido?

O carro parou e o motorista saiu. Sara foi em sua direção, e ouviu uma voz que dizia surpresa:

— Ora, é Sara!    

Era Jim! De todas as pessoas que poderiam estar passando pela floresta, tinha que ser Jim!

— Algum problema? — perguntou ele.

— Sim, eu... Acho que atropelei um cervo. Não pude evitar. Ele apareceu de repente na minha frente. Eu brequei e me desviei, mas. . .

— Você está bem? — Jim perguntou prontamente.

— Sim, obrigada, mas. . .

— O que aconteceu, Jim?

Era uma voz de mulher, e Nina desceu do carro. Jim se virou para ela e explicou o que tinha acontecido.

— Oh, que pena pobre animal! Ele está ferido?

— Onde foi isso? — ele perguntou a Sara.

— Um pouco mais para frente. — Começou a caminhar, acom­panhada por ele. Nina os seguiu, repetindo "pobrezinho" várias vezes, como se Sara o tivesse atropelado de propósito. Mas não havia ne­nhum sinal do cervo.

— Eu não posso entender... — Sara dizia, aflita.

— Bem, escute não se preocupe. Esses cervos são bastante fortes. Você provavelmente só o deixou atordoado. Houve alguma avaria no seu carro?

— Penso que sim. Tem certeza a respeito do cervo?

— Tenho. Provavelmente era um veado enorme. Vamos ver o que aconteceu no carro.

Jim andou rapidamente e Nina o seguiu.

— Está ficando muito tarde, Jim.

Ele parecia não ter ouvido. Levantou a tampa do motor e iluminou o interior com o farolete.

— Hum...   As lâminas do ventilador estão tortas e o radiador está avariado. Posso rebocá-la para casa... Isto é, se eu tiver uma corda. . . Ou, então, levo-a para casa, de onde você pode telefonar para a garagem, pedindo-lhes que venham buscar seu carro amanhã cedo.

— Jim, eu já estou atrasada... — disse Nina.

— Não se preocupe — Sara disse a Jim rapidamente. — Vocês podem ir. Eu espero mais alguém passar.

— Nada disso! — disse Jim friamente. — Não demora muito para eu levar Nina até em casa. Vamos.

Nina sentou ao lado de Jim, no banco da frente, e Sara atrás. Ver os dois ombro a ombro, a maneira como Nina olhava para ele, era mais do que conseguia suportar. Onde tinham estado até àquela hora? Teria Nina passado a noite na casa dele? Provavelmente o fazia com freqüência. Não adiantava. Ela simplesmente teria que ir embora logo, quer se casasse com Oliver ou não. Explicaria tudo a tio John. O coração dele estava mais forte agora. Poria um anúncio à procura de um novo assistente. Enfim, tio John compreenderia.

Ao chegarem a Ashton House, Jim, que já deixara Nina em casa, desceu do carro para abrir a porta para ela, e Sara encontrou voz suficiente para lhe agradecer.

Jim olhou-a atentamente. — Tem certeza de que está bem?

— Sim, estou muito bem — murmurou Sara. — Boa noite.

Foi rapidamente em direção à porta e começou a vasculhar os bolsos, à procura da chave. Estava sem a bolsa e não se lembrava de onde pusera a chave da porta. Nesse momento, percebeu a silhueta alta de Jim, ainda em pé, ao lado do carro. Logo em seguida, ele estava a seu lado, com as mãos em seus ombros.

— Sara, tem certeza de que...

Havia lágrimas nos olhos dela. O contato de Jim era mais do que ela podia agüentar. Virou-se violentamente.

— Pelo amor de Deus, deixe-me em paz! Eu estou bem, estou lhe dizendo! Oh, onde é que está a minha chave?

Sentindo-se desesperada, tocou a campainha e Jessie abriu a porta quase imediatamente.

— Ora, é a srta. Sara... e o Dr. Crombie! Entrem os dois, que...

— Está tudo bem, Jessie — Jim disse calmamente, antes que Sara pudesse responder. — Trouxe a Dra. Martindale para casa. Ela teve um pequeno acidente com o carro. Precisa apenas tomar alguma coisa quente... E dormir, eu imagino. Boa noite.

Deu meia-volta e Sara entrou, sentindo-se toda agitada por dentro. Jessie a rodeava, inquieta, perguntando-lhe o que acontecera e fazen­do comentários de solidariedade.

— Aqueles bichos estão se tornando muito perigosos, e mais nume­rosos a cada ano. Agora, vá para a sala de estar que vou lhe trazer algo para beber. Ou prefere ir direto para a cama, e que eu leve lá para cima?

— Acho... Acho que vou direto para cima. Obrigada, Jessie. Nunca se sentira tão fatigada, tão chateada e infeliz. Pensou em

Oliver e, subitamente, a idéia de se casar com ele foi como a apari­ção instantânea de um verdadeiro céu. Nesse momento, desejou mais do que nunca o consolo dos braços dele.

Jim telefonou-lhe logo de manhã, perguntando se havia algo que ele pudesse fazer.

— Você pode usar o carro de John para as suas visitas? — per­guntou.

— Sim, acho que posso — Sara respondeu, em voz baixa. Houve um breve momento de silêncio. Jim se despediu. Nessa mesma noite Alys visitou-a.

— Que história é essa de você ter atropelado um cervo na floresta? — perguntou.

Sara lhe contou o que acontecera.

— Eu ia visitá-la, mas estive ocupada demais hoje.

— Também ouvi falar outra coisa — disse Alys —, mas não con­sigo acreditar que seja verdade.

— Quer me parecer que você esteve batendo um bom papo com alguém a meu respeito.

— Estive sim... Com Jim. Ele me disse que você pretende ir em­bora daqui. E, como Oliver também vai, ele concluiu que você e ele vão... bem...

— Ele talvez tenha razão — Sara disse, com uma pontinha de desafio.

Alys olhou-a fixamente. — Mas, Sara você não pode fazer isso!

— Por que não?

— Você sabe perfeitamente porque não. Sara, estou surpresa com você, e desapontada. Acho que você não deve nem ao menos pensar numa coisa dessas, sentindo o que sente por Jim. Para começar, não é justo fazer isso com Oliver.

— Oliver sabe. De algum modo, ele adivinhou. Ele acha que, longe daqui, eu esquecerei Jim. E eu também penso assim. Além disso, eu não estou bem certa de que...

Alys interrompeu-a, balançando vagarosamente a cabeça.

— Oh, não, não esta! Você não consegue me enganar. Além do mais, este não é o caso. Você não pode se casar de jeito nenhum com um homem a quem não ama.

— Eu gosto muito de Oliver. Longe daqui, e com o tempo. . .

Alys deu um suspiro exasperado.

— Com o tempo! Isto é ridículo. Por falar nisto, acho que você devia ter contado a mim que pretendia ir embora. Acho que você compreende como o pai de Bob irá ficar transtornado, não?

Com isso, Sara sentiu perder o controle. A dor em seu coração era insuportável. Seus lábios tremiam.

— Você acha que não pensei nisso? Mas não consigo suportar mais. Preciso ir-me embora, não percebe?

Alys pôs-lhe as mãos sobre os ombros.

— Querida, sei como você deve estar se sentindo. Sei realmente! Mas procure adiar isso um pouco mais. Você está enganada a res­peito de Jim, estou certa. Aliás, ele disse hoje de manhã que nunca quis brigar com você. Você demonstrou, desde o começo, que não dava importância a ele!

Os olhos de Sara se arregalaram.

— Com efeito! — exclamou, indignada. — Essa é boa! Sabe qual foi a primeira coisa que ele me disse, as primeiras palavras que me falou?

— O que foi?

— Ele disse: "Quem, diabo, é você?" Que tal isso como apresen­tação?

— Ora, você talvez o tenha pegado de surpresa.

— Pode ser, mas isso não dá a ele o direito de dizer que eu não lhe dava importância. A coisa já começou torta desde o início.

Alys suspirou.

— Vocês dois são exasperantes, sem dúvida.

— Não adianta Alys. Quanto mais cedo eu me for, melhor. Terei que explicar tudo ao tio John. Ele entenderá. E, naturalmente, vou esperar até que ele arranje alguém que me substitua. Talvez fosse me­lhor se ele tivesse um homem como assistente. £ possível que, no fundo, Jim não goste de mulheres médicas, embora não o confesse.

— Ora, francamente, Sara... — Alys protestou.

— Está bem, então Jim tem aversão por mim. Esta é outra pos­sibilidade.

Alys fez um gesto de desespero.

— Quando você vai visitar tio John novamente?

— Amanhã, acho. Vou usar o carro dele até que consertem o meu, e não quero me arriscar a dirigir na floresta à noite. Caso contrário posso ficar sem nenhum.

— Sim, é bom mesmo — Alys concordou. Ela levantou-se para sair, com uma expressão um tanto pensativa no rosto.

Sara acompanhou-a até a porta.

— A propósito, sinto muito não lhe ter contado antes. Quero dizer, sinto que você tenha ouvido falar sobre a minha partida através de Jim. Eu pretendia contar-lhe, é claro. A única razão pela qual ele soube antes foi... Bem, para falar a verdade, isso me escapou antes de eu ter resolvido. Eu pensei muito nisso, mas ainda não tinha chegado a uma decisão. Então. . .

— Eu sei. Agora, tchau.

Sara sentia-se constrangida em ter que contar as novidades ao tio John. Na tarde seguinte, foi ao hospital, ensaiando a maneira de falar com ele. Tio John tinha estado tão bem ultimamente, que se sentiu segura de que ele não se importaria com a sua partida e que isso não afetaria o coração dele.

Mas, para o seu desencanto, ele não parecia estar muito bem. Esta­va deitado, com os olhos fechados, e, quando os abriu, deu apenas um sorriso cansado.

— Como vai, tio John? — perguntou Sara.

— Oh, acho que não estou muito bem, querida.

— Mas. . . Mas, tio John, isto é mau. O que aconteceu? O senhor não fez alguma coisa que não devia, não foi? Não tem saído da cama, ou. . .

— Não, não. É que estou me sentindo muito aborrecido. Mas não se preocupe. Eu logo estarei bem de novo. Uma das coisas que me impede de ficar realmente deprimido é saber que você está tomando conta de tudo. Mas, se não fosse por isso, acho que sofreria real­mente um colapso mental.

— Tio John, o senhor não deve falar assim!

— Mas é verdade. Abençoado seja o dia em que você veio para cá! Não sei o que faria sem você. Para falar a verdade, estou pen­sando seriamente em me aposentar e deixá-la cuidando da clínica. De qualquer modo, eu queria tê-la como sócia. Então, eu poderia pelo me­nos ser de alguma utilidade para você.

— O senhor não deve pensar nessas coisas. Só procure melhorar — ela lhe disse.

— Vou fazer isso — ele prometeu — sabendo que você está feliz e contente em East Norton. Você está não é?

— Ora, é claro, tio John. — Como poderia dizer o contrário, ago­ra? Teria que adiar o momento de explicar-lhe a situação, até que ele voltasse para casa.

A expressão de alívio no rosto de tio John foi inconfundível. Era uma coincidência estranha que ele estivesse tão ansioso para que ela se estabelecesse ali, no exato momento em que se decidira a ir embora. Mas a vida era assim.

À tarde veio o correio, com um convite para um jantar na casa de Jim, dois dias depois. Estava escrito num cartão com as bordas dou­radas, com sua própria letra. Uma bela letra, ela pensou, elegante e firme. Seria a primeira vez que poria os pés na casa dele. Tinha em mente enviar-lhe uma desculpa educada, mas queria muito ver como era a casa. Quem mais estaria lá?

Alys telefonou à noite.

— Você vai ao jantar de Jim, não vai, Sara? — perguntou.

— Eu não sei. Não será uma ocasião lá muito feliz para mim, mas. . .

— Nina não estará nesse jantar. Isso eu posso lhe garantir. Vamos lá, Sara.

— Está bem. Vou confirmar minha presença.

Ao que parecia, Oliver também fora convidado, porque apareceu em Ashlon House por volta das oito horas da noite.

— Eu estava passando por aqui, Sara, e resolvi vê-la. Você por acaso vai sair agora?

Sara acenou negativamente com a cabeça.

— Estou contente por você ter vindo, Oliver. Eu queria vê-lo. — E conduziu-o até a sala de estar.

— E quanto ao jantar de Jim? — perguntou Oliver. —. Eu fui convidado e espero que você também tenha sido. Você vai?

Ela assentiu com um movimento de cabeça. — Na verdade, eu não queria ir, mas Alys telefonou e me con­venceu.

Oliver olhou-a pensativamente, e disse:

— Era por causa disso que você queria me ver, não é?

— Não, não exatamente. Eu... Não sei como lhe dizer isto, Oliver, mas talvez não faça nenhuma diferença, afinal.

Sara estava em pé, perto da lareira, e Oliver segurou a mão dela, fazendo-a sentar-se no sofá, a seu lado.

— Qual é o problema? — perguntou delicadamente.

— Bem, eu. . . Eu estava pronta para... Para contar ao tio John, hoje, que ia embora daqui. Tinha resolvido que... Que me casaria com você, Oliver.

Ele deixou escapar uma exclamação de surpresa... — Querida, isso é maravilhoso! — Puxou-a em sua direção e bei­jou-a. — Que bom! Mas o que aconteceu? Você não lhe disse nada?

— Não, não. Ele. . - não parecia estar passando muito bem. Come­çou a falar sobre como estava contente pelo fato de eu estar aqui, e que só por isso sentia alguma disposição. Depois disso, eu. . . Não consegui contar-lhe a novidade.

— Mas pensei que ele tivesse melhorado bastante.

— Eu também, mas. . .

— O que você vai fazer, então? Você vai ter que lhe contar, mais cedo ou mais tarde, a não ser... A não ser... — Ele interrompeu-se.

— Você disse que tinha resolvido se casar comigo, não foi? Não mudou de idéia por causa da pequena recaída do Dr. Henderson, não é?

Sara engoliu em seco.

— Não, eu...   Não mudei de idéia. Quero me casar com você, mas. . . Não posso sair daqui por enquanto. Não posso desapontar tio John. Você compreende, não, Oliver?

Ele acenou afirmativamente com a cabeça.

— Sim, compreendo. Não faz mal. — Olhou-a nos olhos, sorriu levemente e beijou-a com delicadeza. — Vejo-a amanhã. . . Não, depois de amanhã, na casa de Jim. Agora preciso ir. Tenho muita coisa para fazer, arrumar as malas, etc. Junta-se muitas coisas num período de sete anos.

Sara ficou um pouco desapontado por ele ter que ir tão cedo, mas deixou-o sair sem protestar e resolveu dormir cedo.

Durante todo o dia do jantar de Jim, Sara sentiu-se dominada por uma estranha mistura de apreensão e excitação. Sentia como se algo inesperado fosse acontecer, como se fosse um dia de gala. Esperava que não houvesse chamadas de emergência. Tinha apenas dois pacien­tes doentes que precisavam de visita e foi vê-los logo depois de fechar o consultório. Telefonara para o hospital no dia anterior e soubera pela Irmã que tio John melhorara desde o dia em que o vira pela última vez. E assim, às sete e meia da noite, subiu para se vestir. O jantar era às oito. Depois de tomar banho, abriu a porta do guarda-roupa e ficou olhando. O que deveria usar? Uma roupa bonita e vis­tosa, ou alguma coisa sofisticada? Sua mão pousou sobre o vestido preto que usara na primeira noite em que chegara. Apaixonara-se por Jim naquela mesma noite. Sabia disso agora.

Examinou outros vestidos. De que adiantaria usar aquele? Vesti­ria algo inteiramente diferente, o azul-claro. Não, não servia para a ocasião. Era muito extravagante. No fim, ficou com o preto mesmo e penteou os cabelos para cima, num estilo que combinava.

Deu uma última olhada no espelho. Jim provavelmente detestaria o vestido, mas agora era tarde demais para mudá-lo. Em todo caso, nada que ela usasse, fizesse ou dissesse faria diferença.

Por curiosidade, passara diante da casa dele umas duas vezes. A casa era no estilo georgiano, bem afastada da rua, com canteiros de rosas e uma grande variedade de árvores e arbustos flanqueando a entrada de carros. A julgar pelos carros que já se encontravam esta­cionados na frente, devia tratar-se de uma grande festa. Ou, então, ela seria a última convidada a chegar. Reconheceu o carro esporte do fazendeiro Williams, o automóvel preto do pároco, o de Bob e Alys e o de Oliver. Eram mais ou menos as mesmas pessoas que tinham estado na casa de Alys, alguns dias após a sua chegada.

— Estava começando a achar que você tivesse saído para atender a um chamado de emergência — disse Jim.

— Eu... Sinto muito se cheguei atrasada — disse Sara, descul­pando-se.

Ele a ajudou a tirar o casaco.

— Quem falou que você está atrasada? Para falar a verdade, você chegou exatamente na hora marcada. Os outros é que chegaram cedo.

Ela o olhou de modo incerto. Jim parecia fazer tudo para ser agradável. Será que Alys tinha conversado com ele? Mas é claro que sim. Sara preferiria que não. A última coisa que queria é que ele fizesse algum esforço para se mostrar agradável só porque alguém o cen­surara. Sara percebeu que ele a examinava atentamente.

— Você está maravilhosa! — disse Jim inesperadamente para ela. Sara corou incapaz de acreditar que ele estivesse lhe fazendo um elogio sincero. Tentou pensar numa resposta adequada, mas nem con­seguiu dizer "obrigada".

Jim sorriu,

— Sabe, você está exatamente como na noite em que chegou aqui.

Agora tinha certeza de que ele estava procurando ser engraçado.

— Você é muito perspicaz, lembrando-se de que estou usando o mesmo vestido e até que penteei os cabelos do mesmo jeito.

Ele respirou fundo, como se estivesse desesperado, tratando com uma pessoa muito difícil.

— O jantar já está quase pronto — disse, em outro tom de voz. — Se quiser juntar-se aos demais, na sala de estar, Bob lhe servirá uma bebida. — Atravessou o hall e abriu uma porta, de onde vinha um murmúrio de vozes. — Aqui está ela, pessoal. Sirva-lhe uma bebida, por favor, Bob. — E afastou-se, talvez para ir à cozinha e pedir que servissem o jantar.

Todos a cumprimentaram imediatamente. Bob perguntou-lhe que aperitivo queria tomar.

— Estávamos começando a imaginar o que teria acontecido com você — disse Oliver. — Jim estava ficando preocupado.

— Bem, foi muita gente ao consultório esta noite. E, é claro, tive que me vestir. . .

— E fez um belo trabalho — Oliver respondeu. — Você está sim­plesmente estonteante.

— O que é isso? — Sara protestou, rindo. Atravessou a sala e foi até onde a Sra. Williams estava sentada. — Como vai a sua ciática, Sra. Williams?

— O pior já passou, mas ainda está doendo um pouco — respon­deu a Sra. Williams, sorrindo.

— Vou providenciar para que faça uma fisioterapia no hospital. O que a senhora precisa é de alguns exercícios.

A Sra. Ready estava sentada perto da esposa do fazendeiro, e Sara lhe perguntou sobre a suposta artrite.

— Está muito melhor, Sara. Eu mal posso acreditar. Acho que você estava certa. Não era artrite mesmo. Foi muito inteligente de sua parte.

Sara riu e recusou o elogio.

— Faz parte do meu serviço.

Jim retomou para lhes dizer que o jantar estava servido.

— Venha, Sara — disse Alys. — Você não está no consultório agora.

Enquanto seguia os demais, Sara olhou em volta. Era surpreen­dentemente elegante para ser a sala de estar de um solteirão. As pare­des eram forradas com lambris brancos e a pintura da parte superior era verde. Havia luzes de parede nos dois lados da lareira e na parede oposta. Os móveis eram cobertos com tecido verde e um cetim branco de listras. O estilo da mobília era da época da Regência. Era uma sala na qual se podia descansar e relaxar.

Jim reservara para ela o lugar à sua direita. A sala de jantar era grande e tinha quadros interessantes nas paredes. O assoalho era for­rado com magnífico tapete persa.

— Gostei da sua casa, Jim — disse Sara, quase involuntariamente. Ele dirigiu-lhe um olhar de surpresa e respondeu:

— É mesmo? Fico feliz com isso. Eu também gosto dela.

— A escolha da mobília e da decoração foi sua? — perguntou.

— Em parte. Quase toda a mobília pertenceu aos meus pais. Eles morreram num acidente de avião, nos Alpes.

— Sinto muito — ela disse prontamente. — Eu não sabia. — E percebeu, aflita, quão pouco sabia a respeito dele.

— Acho que, para algumas pessoas, parece ter sido há muito tem­po — disse Jim, como que respondendo à pergunta que não foi feita. — Mas, para mim, parece que foi ontem que minha mãe andava pela casa e sentava-se à mesa.

Parecia inacreditável que Jim estivesse conversando com ela desse jeito. Era como se ele e ela fossem as únicas pessoas que se encon­travam na sala. À sua esquerda, Oliver conversava com Alys. À es­querda de Jim e do lado oposto ao dela, Bob falava com Anne Ready. Havia um vozerio geral de conversação amistosa, enquanto todos se acomodavam para o primeiro prato do jantar.

— Quanto tempo faz Jim? — ela perguntou baixinho. — Dez anos.

Dez anos! E a lembrança dos pais, especialmente da mãe, ainda estava fresca, como se ela tivesse se sentado à mesa e andado pela casa ontem mesmo. Se Sara o amava antes, amava-o duas vezes mais naquele momento. Quão cega estivera, por não ter compreendido que pessoa maravilhosa era ele. Que estupidez a sua, ter estado tão pronta a revidar cada vez que ele parecia fazer uma piada, ou. . .

— Há algo de errado com a sopa? — A voz dele interrompeu os seus pensamentos.

Ela olhou em volta e percebeu que todos haviam terminado o primeiro prato, exceto ela.

— Desculpe, eu estava distraída. A sopa está deliciosa. Você deve ter uma governanta excelente.

Ali, na casa dele. Sara estava vendo um lado inteiramente dife­rente da personalidade de Jim, diferente daquele que tinha visto até então. O afável anfitrião, o homem que amara sua mãe mais do que a maioria das pessoas. Lembrou-se do que tio John dissera sobre os esforços infindáveis e infrutíferos das senhoras da aldeia, no sentido de encontrarem uma esposa para Jim. Será que ele comparava com a mãe todas as mulheres que conhecia? Era possível.

à medida que a noite foi se passando, chegou a desejar que ele não fosse tão bom anfitrião. Chegara quase a pensar que Jim estava gostando um pouco dela, até que lhe ocorreu que ele estava sim­plesmente cumprindo uma obrigação. Ela, assim como os demais, era convidada em sua casa.

O café foi servido na elegante sala de estar. Enquanto estiveram jantando, a governanta arrumara as xícaras numa mesa lateral, junta­mente com a cafeteira de prata. Jim pediu a Alys para servir o café, mas ela nem bem começara quando disse:

— Sara, venha cá. Quer tomar conta disto para mim?

Sara atravessou a sala com relutância. O que é que Alys estava tentando fazer? Ela certamente deveria saber o que significava para Sara ter que agir como anfitriã para Jim!

— Não me demoro nem um minuto — Alys sussurrou —, mas, preciso dar um pulinho lá em cima.

— Está certo, Alys. Mas ande depressa, por favor.

Oliver olhou-a curiosamente, quando Sara entregou-lhe o café.

— Você tem muito jeito para isso —- disse.

Só faltavam Alys, Jim e a própria Sara para serem servidos. Alys estava lá em cima. Seu "minuto" estava sendo um tanto espichado. Jim foi até onde ela estava, enquanto enchia as três últimas xícaras.

— Obrigado, Sara. Você cumpriu esse papel encantadoramente. Tivesse ele dito qualquer coisa assim há algumas semanas, ela teria jurado que as suas palavras estariam cheias de sarcasmo. Mas ele parecia bastante sincero. Ou estaria demonstrando boas maneiras por ser o anfitrião?

— Passaram-me essa incumbência — ela disse. — Por alguma ra­zão, Alys desertou de seu posto.

Jim afastou-se com a xícara, assim que Alys retornou. Sara tinha a impressão de que falara algo errado. Mesmo assim, estava muito con­fusa por causa da mudança de atitude dele. Serviu o café a Alys e procurou a companhia de Oliver.

— Você está linda esta noite — ele lhe disse.

Ela sorriu.

— Tenho recebido elogios de toda parte, inclusive de nosso anfi­trião. Que eu saiba, isso é muito inusitado!

Oliver bebericou o café pensativamente, durante algum tempo.

— Você e Jim tiveram um mau começo, não foi? Vocês dois reagi­ram fortemente um ao outro desde o princípio.

— Sim, de fato — ela respondeu baixinho. — Tio John achava que estávamos... Como que brincando.

Oliver deu uma risadinha.

— Não há dúvidas de que vocês conseguiram enganar o Dr. Henderson durante algum tempo. Ele é um velhinho muito perspicaz.

Sara queria saber exatamente aonde ele queria chegar com essa conversa, quando Alys chamou Oliver para mostrar-lhe um livro da biblioteca de Jim.

— Com licença, Sara — disse Oliver.

Jim aproximou-se dela. — Gostaria de ver o resto da casa, Sara?

— Oh, sim, eu adoraria.

— Não há muita coisa para ver, na verdade — ele disse, quando chegaram ao hall —, mas gostaria de lhe mostrar assim mesmo. Que tal começarmos de cima e irmos descendo?

Ele a precedeu ao subirem as escadas. No primeiro andar havia um quarto suficientemente grande para conter uma cama de casal e um conjunto de móveis.

— Meu pai adorava ter espaço para se mover, como ele mesmo dizia. E éramos uma família relativamente grande. Eu era o mais novo.

— Onde está o resto da família?

— Oh, estão espalhados por aí. O meu irmão mais velho morreu pouco depois do acidente de meus pais. £ estranho: uma família vive completa durante anos e, então, subitamente, ao que parece, pri­meiro um, e depois os outros, são levados embora. Agora tenho uma irmã e dois irmãos vivos. Tenho diversos tios, tias e primos, é claro, mas nenhum deles mora no condado. — Jim conduziu-a por outro lance de escadas e abriu uma porta que dava para um grande quarto com o teto inclinado. — Este é o antigo quarto de brincar. Acho que eu deveria tirar algumas coisas daí, mas ainda não tive ânimo para isso.

Sara nunca vira coisa igual. Havia uma mesa de pingue-pongue no centro. Numa das extremidades, uma tela de cinema, obviamente de fabricação caseira, um alvo para dardos, uma mesa coberta de manchas de tintas de todas as cores. Havia um toca-discos, um vio­lino velho, um violão. . .

— Um destes quartos foi meu durante um bom número de anos. Era divertido ficar ao lado da sala de brincar.

Enquanto iam visitando todos os quartos, ela ficava encantada com tudo o que via.

— Vocês devem ter sido uma família muito feliz — disse Sara.

— Éramos de fato. Minha mãe foi uma mulher excepcional, muito bonita e muito talentosa em todos os sentidos.

No primeiro andar, havia três quartos grandes. Um estava mobi­liado, bem arrumado demais para que estivesse sendo usado. O outro evidentemente o dele, tinha várias peças de vestuário espalhadas por toda parte.

— Este era o quarto de meus pais. Mudei-me para cá porque daqui se tem uma linda vista da floresta. — Depois, abrindo a porta do ter­ceiro cômodo, disse: — E esta, como vê, é a sala de música.

A um lado da sala havia um grande piano coberto com uma capa para móveis. No espaço restante, havia várias cadeiras e um longo canapé.

— Minha mãe tocava piano e minha irmã mais nova também. Você sabe tocar?

— Eu costumava tocar, há muitos anos. Mas faz muito tempo que não pego num piano.

— Toque alguma coisa — pediu ele.

Ela hesitou. Nunca fora pianista brilhante e receava ser comparada desfavoravelmente com a mãe dele. — Eu não saberia. Meus dedos estão desajeitados.

— Tente... Por favor. Há diversas músicas naquele armário. Atravessou a sala e abriu as gavetas de um elegante gabinete de música. Ela o seguiu. O piano parecia lindo e Sara se sentiu tentada. Ele abriu a tampa.

— Eu mando afiná-lo uma vez ou outra.

Sara sentou-se, deu uns acordes, e, cuidadosamente, encontrou as notas de uma pequena serenata que costumava tocar de cabeça. Jim foi até a janela e afastou suavemente as cortinas. Sara, ciente de que ele a observava, abaixou as mãos e fechou a tampa do piano nova­mente.

— Oh, não pare. . .

Mas ela se levantou.

— Acho melhor voltarmos à reunião.

Jim caminhou em sua direção. — Estava tão lindo, Sara! Eu gostaria... — De repente, segurou-a pêlos ombros e os seus lábios se juntaram aos dela, num beijo do qual ela jamais se esqueceria.

 

Sara se desvencilhou com um repelão e desceu as escadas, em pâ­nico. O que dera nele de fazer tal coisa, ela não sabia. Tudo o que sabia era que precisava fugir dele. Oliver estava no bali.

— Santo Deus, Sara o que houve?

Ela sabia que a qualquer momento cederia totalmente. Jim se com­portara como em geral acontece com todos os homens. Cedera a um impulso, talvez consciente da solidão do celibato e envolvido por uma melodia sentimental.

— Pegue o seu casaco — disse Oliver — e vá se sentar no meu carro. Você pode vir buscar o seu carro depois. Tenho uma coisa que quero lhe mostrar. Pode ir. Vou apresentar as suas desculpas aos demais. . .   E a Jim. Vou dizer-lhe que você está com dor de cabeça, ou coisa parecida.

Sara foi pegar as suas coisas. A bolsa ficara na sala de estar, mas ela conseguiu entrar e sair sem que ninguém interrompesse a conversa. Saiu e sentou-se no carro de Oliver, com os olhos cheios de lágrimas.

Deveria sentir-me feliz por Jim ter me beijado, pensou. Mas como poderia estar feliz, sabendo que o beijo não fora de amor? Os solu­ços que tentava reprimir ameaçavam sufocá-la. Como iria suportar tudo isso até que tio John melhorasse? Tinha sido uma idiota, é claro, em ficar sozinha com ele. Nunca, nunca mais deveria deixar tal coisa acontecer novamente.

Sozinha na escuridão do carro, chorou pela desesperança de seu amor. Quando Oliver abriu a porta do carro, pegou-a de surpresa. Era tarde demais para esconder o lenço ou enxugar as lágrimas. E Oliver preferiu não fazer de conta que não tinha visto.

— O que há, Sara? Lágrimas de verdade?

Sentiu o seu lenço úmido e pousou delicadamente os dedos sobre os cílios molhados de Sara.

— Muito bem, isso resolve tudo — continuou calmamente, en­quanto punha o carro em movimento.

— Resolve o quê, Oliver? Está... Tudo bem. É só que... Ele me pegou de surpresa, isso é tudo.

— Ele a beijou, não foi?

— Sim.

— E por que isso a deixa transtornada, sentindo o que sente por ele? — Sara não respondeu. Não conseguiria. Oliver olhou-a de soslaio. — Será que nunca lhe ocorreu que ele a beijou porque quis?

Sara não disse nada. Não queria falar a respeito disso. Se Oliver não compreendia, como ela poderia fazê-lo compreender?

— Eu. . .   Sinto muito, Oliver — disse, depois de uns minutos. — Eu não o culparei nem um pouco se você mudar de idéia quanto a se casar comigo. Foi um acontecimento infeliz, isso é tudo. Tomarei o cuidado de nunca mais ir a casa dele novamente, e nunca mais vou ficar sozinha com ele, nem por um instante, se puder evitar. E assim que eu puder vou embora daqui.

Oliver não fez nenhum comentário e ficaram em silêncio durante algum tempo. Quanto tempo levaria para se curar completamente de um amor como esse? Será que Oliver a amava o bastante para ser pa­ciente e não ficar ressentido ou desconfiado? Eram estes os pensa­mentos que passavam peia mente de Sara, porque tinha sérias dúvi­das quanto à sensatez daquilo que se propunham a fazer. Não fazia idéia do que Oliver estava pensando, enquanto dirigia, e não gostaria de lhe perguntar.

— Para onde estamos indo? — perguntou Sara, subitamente.

— Você vai ver.

Estavam rodando através da floresta, mas isso não lhe fornecia nenhum indício. Havia muitas estradas que atravessavam a floresta.

— Recoste-se e feche os olhos. Assim, a surpresa será maior — disse Oliver.

Estará ele levando-me ao lugar onde mora?, Pensou Sara. Mas, sen­tindo-se cansada e aborrecida, fez o que ele sugeriu e fechou os olhos. Embalada pelo movimento suave do carro e pelo zumbido do motor, estava quase pegando no sono quando foi sacudida por uma série de solavancos.

— Santos Deus, Oliver, onde. . .

— Estamos quase chegando.

Ela abriu os olhos e olhou em volta, intrigada. Achava que agora reconhecia a área, mas não conseguia acreditar.

— Oliver, é aqui que fica o chalé da Comissão de Silvicultura, não é?

— Isso mesmo, e nós chegamos.

Manobrou o carro, iluminando o chalé com os faróis.

— Mas por que, Oliver? £ uma loucura fazer isso. Nós não pode­mos. . .

Ele desligou o motor e os faróis, apanhou seu grande farolete e andou em volta do carro para abrir a porta para ela.

— Cuidado, agora. Devagar.

— Você está com a chave? — perguntou Sara.

— Sim, estou com a chave. Cuidado onde pisa.

Ele a levou até a porta da frente, iluminando o caminho.

— Ainda acho que é loucura — protestou. — A casa deve estar fria e escura. A menos, é claro, que você tenha trazido uma veia. E mesmo assim...

— Pode estar um pouco fria, mas vamos logo dar um jeito nisso — ele respondeu, enfiando a chave na fechadura. — Agora me deixe entrar primeiro, para iluminar o caminho.

Entrou, iluminando o ambiente com o farolete, fechou a porta e segurou o braço dela, levando-a para a saía de estar.

Poderíamos ter ido a um lugar melhor para conversar, pensou Sara. Era estranho o que ele estava fazendo. Não haveria nem lugar para sentar, nada de luz, nada de aquecimento. Estava perplexa demais para compreender o que o levava a fazer tal coisa.

Mas, quando chegaram à sala de estar, ela sentiu um tapete macio debaixo dos pés e viu vagamente alguns móveis.

— Oliver, o que... —ela começou a dizer. Ele pôs o farolete nas mãos dela.

— Quer fazer o favor de segurar isto, enquanto eu acendo a luz, Sara?

Pegou uma caixa de fósforos do bolso e, levantando cuidadosa­mente a manga de um lampião que havia sobre a mesa, acendeu o pavio.

— Pronto!

Sara olhou em volta. Ã luz suave do lampião, uma linda peça de latão e porcelana, conseguiu ver um longo divã, duas poltronas e várias mesinhas. Havia um tapete no assoalho e um capacho branco perto da lareira.

— Oliver, é fantástico!            

— Eu bem que achei que você ficaria surpreendida. Você gosta?

— É maravilhoso, mas...

Ele se abaixou para acender a lareira. Havia uma pilha de lenha dentro dela. O fogo se acendeu quase no mesmo instante.

Oliver se virou e sorriu.

— Já trago uma cadeira ou puxo o divã. A sala logo estará aque­cida.

Enquanto falava, puxou o divã para perto da lareira. Ela sentou-se e olhou em volta novamente, incapaz de acreditar no que via.

— Mas, Oliver, eu não compreendo, Você alugou o chalé?

— Isso mesmo. — Ele sentou ao lado dela, com as mãos juntas entre os joelhos.

— Mas por quê? Você não vai embora?

Ele sorriu e fez uma careta.

— Oh, não sei. Um casal que veio de Londres quis alugá-lo. O homem do escritório sabia que eu tinha estado interessado, e telefo­nou-me para perguntar se ainda queria o chalé. Não sei o que deu em mim, pois sabia que ia ser transferido, mas disse que sim. Sabendo que você gostava tanto dele, não pude suportar a idéia de outra pessoa possuí-lo. — Ele se virou para ela e balançou a cabeça tristemente. — Acho que, no fundo, sempre soube que não iria servir para nós. E não vai mesmo, não é? O que você sente por Jim é profundo demais para ser esquecido facilmente. Além disso... — Ele interrompeu-se, aguçando os ouvidos. — Acho que ouvi um carro.

Sara também procurou ouvir.

— Não consigo escutar nada.

Não obstante, Oliver se levantou.

— Vou ver, para ter certeza. Alguém pode ter sido atraído pela luz. Ele saiu e Sara ficou olhando fixamente para o fogo. Oliver estava certo, é claro. Mas o seu próprio problema ainda era sem solução. Ele tinha sido encantador em alugar o chalé em nome dela, mas teria que se desfazer dele. Achava que não poderia continuar no distrito, diante das circunstancias.

Após alguns segundos, ela ouviu, de fato, um carro. Obviamente, alguém vinha chegando. A porta da frente se abriu e se fechou nova­mente, e Sara ouviu passos no vestíbulo.

— Quem era, Oliver? — perguntou, quando ele entrou.

Então sentiu a cor lhe fugir das faces. Não era Oliver quem entrava na sala. Era Jim. Ela o olhou incredulamente.

— Onde. . . Onde está Oliver? — perguntou, levantando-se.

— Ele se foi.

— Foi embora? Não pode ter ido! Ele não disse que ia sair. Ele. . . Foi ver quem...

Jim sorriu debilmente e veio em sua direção.

— Sinto muito, Sara, mas houve uma pequena conspiração. Oliver sabia que eu viria. Para falar a verdade, tem havido muita conspi­ração da parte de muita gente.

— Que... Tipo de conspiração? — Ela se afundou novamente no divã, sentindo uma fraqueza nos joelhos.

O velho sorriso de Jim apareceu em seu rosto, enquanto olhava para ela.

— Há.. . Coisas de casamenteiros lamento dizer.

As faces dela se inflamaram. Ela se levantou mais uma vez, rapi­damente.

— Mas isso é um absurdo! É imperdoável Quem foi que andou. . . Bancando o casamenteiro, como você o chama? Alys? Oliver? Bem, eles poderiam ter evitado todo esse trabalho. — Pegou a bolsa e fez um movimento em direção à porta.

Mas ele a segurou firmemente pelos ombros.

— Sente-se. Você é impulsiva demais. É hora de alguém dar um jeito em você.

— É mesmo? Largue-me!

Sara contorceu-se, como fizera antes, na sala de música da casa dele, mas só que desta vez ele a segurava com mais força.

— Você ainda não pode sair. É longe demais para ir andando até em casa. Oliver levou o carro e não vai voltar. E eu estou com a chave do meu carro guardada no bolso. Você terá que me pôr nocaute para tirá-la de mim, acredite-me. Agora se sente, e vamos esclarecer algumas coisas. Não vou deixar que você fuja novamente, até conver­sarmos um pouco.

Jim puxou-a delicada, mas firmemente para o divã, e tirou o paletó. Depois empilhou mais um pouco de lenha no fogo.

— É bom ficarmos aquecidos — ele disse. — Podemos nos demo­rar aqui. Se fosse você, tiraria o casaco e me poria à vontade.

— Não vou fazer nada disso. Se não me levar para casa, eu vou andando.

Ele sorriu ironicamente.

— Você cria muito caso. Eu também tomei a precaução de trancar a porta da frente. Não quero que você fuja de mim outra vez.

Sara olhou para ele, perplexa.

— Isto é ridículo. O que você acha que está fazendo? Se for essa a sua idéia de piada, eu não penso assim.

Jim balançou a cabeça e sentou-se ao lado dela.

— Não é piada, eu lhe asseguro. Diga-me, Sara: por que você fugiu de mim, quando a beijei? Você me odeia, Sara?

Ela engoliu em seco e virou as costas.

— Não... É claro que não. Não que você não mereça — disse, em tom de acusação. —- Você se comportou abominavelmente. Vo­cê... Mas eu não quero ficar aqui e falar sobre isso.

— Já começou de novo! Quem é que está se comportando abomi­navelmente agora?

Ela fechou os olhos, desesperada. Por que ele viera? O que dera em Oliver, para permitir que isso acontecesse? O que Jim estava ten­tando fazer?

__ Sara — a voz de Jim era suave —, sinto muito pelo modo como tenho me comportado, mas eu achava sinceramente que você sentia aversão por mim.    

— Eu não quero falar sobre isso — repetiu Sara. A qualquer mo­mento ele iria sugerir que fossem amigos e, se o fizesse, ela gritaria.

— Você torna as coisas mais difíceis, Sara. Parece que só me resta contar-lhe a verdade. Então, se ainda quiser que eu me vá, se ainda quiser ir para casa, eu terei que levá-la. Eu... Não teria concordado em vir. Quero dizer...

Ela se levantou, num pulo.

— Então por que veio?

— Vou lhe dizer por quê. Vim porque fui tolo o bastante por pensar que você poderia, repito, poderia, sentir por mim outra coisa que não fosse aversão. Mas estou começando a achar... — Ele inter­rompeu o que estava dizendo. — Aqui vai, então, a grande piada. Sabe por que tenho me comportado Abominavelmente, como você diz? Sabe por que a beijei esta noite? Por que, depois de ter fugido de mim, ainda vim até aqui?

Sara olhou fixamente para ele, os lábios tremendo e os olhos mare­jados. Olhou para ele e balançou a cabeça.

— Porque, que os céus me ajudem, eu... Estou apaixonado por você, só por isso! — disse Jim, quase gritando.

Os olhos dela se arregalaram ainda mais. Não conseguia acreditar no que ouvia. Um misto de soluço e riso escapou dela. Jim, longe de parecer um homem enamorado, parecia zangado. Risos, beirando a histeria, levaram a melhor sobre as lágrimas.

— Oh, não! — disse Sara, ofegante. — Oh, não, eu simplesmente não consigo acreditar.

— Bem, talvez você acredite nisto.

Jim segurou-a fortemente e, envolvendo-a com os braços, beijou-a impetuosamente. Mas desta vez Sara não tentou se libertar e corres­pondeu ao beijo com paixão. Depois de um momento, ele olhou incredulamente para ela.

— Sara o que... É isso, pelo amor de Deus? Será que é real, ou...

— O que você acha? — respondeu, num tom de voz que não era mais que um sussurro.

— Como, diabos, eu vou saber o que achar? É melhor você me contar, antes que eu fique completamente biruta. — Jim puxou-a delicadamente para o divã, fazendo-a ficar aninhada em seus braços. — Agora me diga: Jim, eu o amo, ou melhor, ainda...

— Querido, se você parar de ficar me dando ordens por um segun­do... Eu o amo — disse Sara, com os olhos radiantes.

Por um longo momento ele ficou olhando para ela.

— Diga isso de novo!

Ela se recostou em seus braços e sorriu.

— Você é meio surdo? Jim Crombie, eu o amo, e que o céu me ajude. Eu o amo.

Ele fechou os olhos momentaneamente, como se tivesse que absorver o que ela havia dito.

— Então, por que, diabos, você... Por que saiu correndo quando a beijei, aquela hora?

Sara estava radiante de felicidade. O riso brotava de dentro dela. Era inacreditável, maravilhoso demais! Não precisava se preocupar com o fato de ele gostar ou não dela, nem procurar um sentido duplo em tudo que ele dizia. Não havia necessidade de mal-entendidos ou de medir as palavras.

— E por que acha seu idiota? — ela disse provocadoramente.

— Você nunca deu o menor sinal de como se sentia. Portanto, como eu poderia saber? Pensei que estava me beijando por que. . . Bem, por causa de seus instintos animalescos. Você sabe. . .   Como são essas coisas.

— Instintos animalescos! Essa é boa! Eu seria capaz de...

— Sim? — ela o iniciou, travessamente. — Seria capaz de quê?

— Eu seria capaz de botá-la deitada nos meus joelhos e aplicar-lhe umas boas palmadas.

— Gostaria de vê-lo tentar.

Com uma força que a surpreendeu, ele aceitou o desafio, e ela se viu deitada de bruços sobre os seus joelhos, esperando selvagemente.

— O que pensa que está fazendo, seu bobão! — disse Sara, ofegan­te, mas no fundo tremia de tanto rir.

Alguns minutos depois, quando ela já estava novamente sentada, ele disse, rindo:

— Essa é apenas uma amostra do que vai acontecer com você no futuro, se não se comportar direito.

— Ah, é mesmo?

— Sim — disse Jim, com firmeza. — E acrescentou com ternura:

— Eu a amo, Sara. Beijei-a, na sala de música de minha mãe, por­que simplesmente não pude resistir. Você é uma feiticeira, sabe disso? Acho que você pôs esse vestido e penteou os cabelos desse jeito só para me seduzir.

— Eu achei que seria divertido ver as suas reações — ela caçoou.

— Foi mesmo? Bem, você está vestida exatamente como no dia em que a conheci. Apaixonei-me por você no mesmo momento.. .

Ela olhou para ele, com ar espantado.

— Apaixonou-se por mim naquela mesma noite? Oh, não!

— Oh, sim.

— Então, por que não me contou? Por que você ficou tão. . .

— Tão o quê?

— Tão... Horrorosamente sarcástico a maior parte do tempo. Eu pensei que você me detestasse. Você disse. . .

— Minha querida e doce idiota, eu não estava sendo sarcástico. Em todo caso, não. Naquela noite. Estava apenas mexendo com você. E não se mexe com alguém de quem não se gosta. É um sinal de afeição. Você é que ficava sempre irritada. Quanto a não ter lhe dito antes, como é que eu poderia? Cada vez que eu aparecia, você estava com Oliver.

— Ela lhe deu um sorriso divertido.

— Jamais pensei que um machão como você deixasse uma coisinha dessas impedi-lo de fazer o que quisesse.

— Cuidado — ele ameaçou. — Senão você vai ficar naquela posi­ção novamente. Oliver é meu amigo. Eu tenho um pouco de escrú­pulo. É claro que eu ainda não havia percebido inteiramente que tinha me apaixonado por você, naquela noite. Mas logo percebi que sentia ciúmes de Oliver, e quando notei isso, parecia que você também estava apaixonada por ele.

— Quando foi que você descobriu que eu não estava? — Sara per­guntou, curiosa.

Ele a beijou antes de responder.

— Querida, muitos amigos nossos têm se preocupado muito conosco. Você não acreditaria nos rumores, nos palpites que têm circulado.

Os olhos dela se arregalaram,

— Alys era a única que sabia como eu realmente me sentia — disse Sara. — E me prometeu que não lhe contaria nada.

— De fato, não contou. Ela me disse apenas que você não sentia aversão por mim. E o fez apenas porque eu estava chateado, dizendo que você me detestava, e assim por diante.

Ela sorriu.

— Houve época em que eu pensei que fosse assim mesmo. Acho que era apenas o meu mecanismo de defesa. Mas isso ainda não explica por que você veio até aqui, e por que Oliver mudou subita­mente de idéia, nem por que alugou este chalé e comprou os móveis.

— Meu bem, como lhe disse, tem havido muita conivência. Acho que você ainda não sabe como uma aldeia pode ser. Há uma pessoa de quem você parece ter-se esquecido nisso tudo.

— E quem é?

— Tio John.

Ela franziu o cenho, intrigada.

— O que o tio John tem a ver com isso?

— Ele sabia de tudo. Foi por isso que fez de conta que teve uma recaída. Eu disse a ele que nunca conseguiria enganá-la; você, sendo uma médica muito inteligente, e tudo o mais...

— Você quer dizer... O velho embusteiro! Ora, mas que... Mas espere até eu encontrá-lo!

Jim riu baixinho.

— Não seja severa demais com ele. Ele sabia que eu a amava. E, para falar a verdade, sabia que você não estava apaixonada por Oliver. Eu... há.. . Não gostaria de dizer onde tio John conseguiu informações, mas ele disse de fato que não havia prometido não contar nada a ninguém. Disse que você não estava apaixonada por Oliver, mas sim por algum idiota que parecia estar deixando a garota mais deslumbrante do mundo escapar por entre seus dedos. Bem, que­rida, eu era o único idiota à vista, na ocasião. . .

— Nunca ouvi falar de nada parecido. Alys deve ter-lhe contado. Eu a fiz prometer que não diria nada a você, pois, é claro, queria que ela guardasse isso só para si. Que bando de conspiradores que vocês são! Mas eu os perdôo.

Ele a puxou para mais perto de si.

— Tenho sido um tolo, mas nunca me ocorreu que você pudesse amar tal. . .

Ela colocou o dedo nos lábios dele.

— Não fale mal do homem que amo.

— Oh, querida, nunca em minha vida esperei ouvi-la dizer isso. Você é o tipo de mulher que eu sempre quis, mas nunca pensei que teria a sorte de conseguir.

— Diga-me que tipo de mulher eu sou — disse Sara, sonhadoramente.

— Ora, bem... — ele começou de modo provocador e sem cerimônia. — Deixe-me ver agora. Você é bonita. Eu gosto de loiras...

— Sabe você me surpreende. Pensei que gostasse de morena.

— É mesmo? O que a fez pensar isso?

— Bem, eu. . . Eu pensei que você... Pensei que você e Nina. . . Ele arregalou os olhos.

— Eu e Nina? O que, diabo, essa maluca está falando? Onde é que você foi buscar essa idéia, pelo amor de Deus?

— Bem, ela parece estar sempre lá. Ela o chama de Jim. Você estava com ela naquela noite em que atropelei o cervo...

— Céus! Quantas provas inconsistentes. É claro que ela me chama de Jim. Esse é o meu nome, não é? Todos na aldeia me chamam de Jim. Eu nasci aqui. Em todo caso, ela é noiva de um sujeito que conheceu durante as férias. Este foi um dos motivos pelos quais a contratei. Eu queira uma recepcionista que...

— Que não estivesse procurando um marido simpático? Tio John me contou que as mulheres da aldeia estão sempre tentando casá-lo.

— Abençoados sejam os seus corações; elas sentiam pena de mim. Bem, não vão mais sentir, não? Mas imagine só, você pensar que Nina e eu...

— Você sabe como é. As pessoas apaixonadas não são normais. Elas tiram conclusões precipitadas e...

— Já que você é tão inteligente, por que tirou tantas conclusões precipitadas?

— Os médicos são uns incompetentes quando se trata de fazer o diagnóstico deles mesmos, não sabia?

Ele sorriu.

— Imagino que seja... verdade. Querida, tem certeza de que não se incomoda de se casar com um médico?

— Não, se você não se incomodar.

— Foi bobagem minha perguntar. Tendo chegado até este ponto, tente tirar o corpo fora, se puder.

Sara passou os braços em torno do pescoço dele, adorando senti-lo. Ele a beijou e acariciou seus cabelos.

— Lembrei-me de uma coisa. Sabe? O fazendeiro Williams conta­va-me com orgulho, esta noite, que pretende modernizar os seus cha­lés. Ele vai começar pelo chalé dos Scott. Está vendo o que você fez?

— é maravilhoso, mas duvido que eu tenha algo a ver com isso.

— Está discutindo novamente? Mas diga-me, querida, onde gostaria de passar a lua-de-mel, supondo-se que tenhamos tempo para uma?

Ambos ficaram em silêncio durante algum tempo, pensando em Oliver. Como que lendo os seus pensamentos, Jim disse:

— Querida, não se preocupe com Oliver. Ele nunca achou seria­mente que você se casaria com ele. Ele me disse. Foi por isso que se­gurou este lugar. Oliver falou para não nos preocuparmos com ele.

Sara sorriu um pouco triste.

— Oliver sempre disse que tem os pés bem plantados no chão. Jim a olhou longamente e segurou-lhe o rosto com as mãos.

— Querida, existe uma mulher para cada homem, e você é a minha. Eu a amo. Já falamos demais, e eu esperei por você demais.

Jim cobriu os lábios dela com os dele e, com um longo e suave suspiro de felicidade, Sara fechou os olhos. 

 

                                                                  Hilda Pressley

 

 

                      

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