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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTRELA DO SUL / Júlio Verne
A ESTRELA DO SUL / Júlio Verne

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ESTRELA DO SUL

 

Imediatamente todos os olhares se dirigiram por instinto para a Estrela do Sul...

O diamante tinha desaparecido.

Mas nem a gaiola de ferro, nem o globo de vidro que o cobriam, haviam mudado de lugar; era manifestamente impossível ter alguém tocado nele.

O fenómeno tocava as raias do prodígio.

Cipriano, que se tinha inclinado rapidamente para a frente, acabava de reconhecer sobre a almofadinha de veludo azul, no lugar do diamante, a presença de uma espécie de poeira pardacenta...

 

 

         SÃO LEVADOS DA BRECA ESTES FRANCESES!

— Queira dizer: estou às suas ordens. — Tenho a honra de lhe pedir a mão de Miss Watkins, sua filha.

— A mão de Alice?

— Exactamente. Vejo que o meu pedido lhe causa admiração, mas há-de me dar licença que não compreenda muito bem porque é que lhe parece extraordinário. Tenho vinte e seis anos. Chamo-me Cipriano Méré. Sou engenheiro de minas e fui o segundo do meu curso na Escola Politécnica. Sou filho de uma família digna e estimada, embora não seja rica. O cônsul francês no Cabo pode dar testemunho da verdade das minhas palavras; basta que o senhor mostre desejo disso. E igualmente o poderia certificar o meu amigo Faramundo Barthés, o intrépido caçador que o senhor conhece tão bem, como toda a gente da Gricualândia. Vim para aqui desempenhar uma missão científica por ordem da Academia das Ciências e do Governo francês. O ano passado obtive no Instituto o Prémio Houdart pelos meus trabalhos a respeito da constituição química das rochas do Auvergne. A minha memória acerca da bacia diamantífera do Val, que está quase terminada, parece-me que deve ser bem recebida no mundo científico. Logo que chegue da minha missão, devo ser nomeado professor adjunto da Escola de Minas de Paris, e já mandei tomar uma casa na Rua da Universidade, número 104, terceiro andar. De Janeiro próximo em diante o meu ordenado anual deve ser de quatro mil e oitocentos francos.

Bem sei que não é o Peru; mas com o produto dos meus trabalhos particulares, análises, prémios académicos e colaboração nas revistas científicas, quase duplicarei esse rendimento. E deixe-me dizer-lhe que não será preciso mais para ser feliz, porque os meus gostos são modestos. Tenho a honra de lhe pedir a mão de Miss Watkins, sua filha.

Pelo tom firme e decidido deste pequeno discurso fácil era de ver que Cipriano Méré tinha em tudo o hábito de se dirigir directamente ao seu fim e de falar com a máxima franqueza.

E a fisionomia dele não desmentia a impressão causada pelas palavras. Via-se que era um rapaz habitualmente ocupado com as mais elevadas concepções científicas, e que às vaidades mundanas só concedia o tempo restritamente necessário.

Os cabelos castanhos cortados à escovinha, a barba loira, aparada muito curta, a simplicidade do trajo de viagem de cotim escuro, o chapéu de palha de dez soldos que ele tinha cortesmente posto sobre uma cadeira quando entrara — apesar de o seu interlocutor ter ficado imperturbavelmente coberto com a sem-cerimónia habitual dos tipos da raça anglo-saxónia — tudo denotava em Cipriano Méré um espírito sério, como o seu límpido olhar dava a conhecer um coração puro e uma consciência justa.

Deve também dizer-se que este jovem francês falava inglês na perfeição, como se tivesse vivido muito tempo nos mais britânicos condados do Reino Unido.

Mister Watkins ouvia-o fumando num cachimbo comprido, sentado em uma poltrona de madeira, com a perna esquerda estendida sobre um banco de palha, e com o cotovelo apoiado em uma mesa tosca, defronte de uma botija de gin e de um copo meio desse líquido alcoólico. Este figurão estava vestido de calça branca, jaqueta de linho azul, camisa de flanela amarelada, sem colete nem gravata. Por debaixo do imenso chapéu de feltro, que parecia aparafusado à sua cabeça já bastante cheia de brancas, arredondava-se um carão vermelhudo e inchado, que alguém diria injectado com geleia de groselha. Este rosto, tão pouco atraente, semeado de raras barbicas cor de erva seca, era furado por dois olhinhos pardos, que não respiravam exactamente paciência nem bondade.

Mas, para desculpa do Sr. Watkins, deve dizer-se que o bom homem sofria horrivelmente de gota, o que o obrigava a ter o pé esquerdo todo enfaixado — e a gota, na África Meridional ou em qualquer outro país, nunca teve a ventura de suavizar o génio das pessoas a quem morde as articulações.

A cena passava-se no rés-do-chão da granja de Mister Watkins, próximo do 29.o grau de latitude ao sul do equador e do 22.o grau de longitude a leste do meridiano de Paris, na fronteira ocidental do Estado Livre de Orange, ao norte da colónia britânica do Cabo, no centro da África Austral ou anglo-holandesa. Este país, a que a margem direita do rio Orange serve de limite do lado dos confins meridionais do grande deserto do Calahari, e que nas cartas antigas vem designado com o nome de país dos Grícuas, é chamado com mais razão, há uma dúzia de anos, o Diamond's Field, o "Campo dos Diamantes”.

A sala em que se realizava esta entrevista diplomática tornava-se tão notável pelo luxo despropositado de certas peças da mobília como pela pobreza de algumas outras pequenas coisas. O chão, por exemplo, era apenas a própria terra batida, mas cobriam-no em alguns sítios excelentes tapetes e peles preciosas. Nas paredes, que nunca tinham tido papel de qualidade alguma, via-se um excelente relógio de cobre cinzelado, ricas armas de diversos modelos, estampas inglesas com esplêndidos caixilhos. Um sofá de veludo ostentava-se junto a uma mesa de madeira em branco, que quando muito seria boa para o serviço da cozinha. Em vão algumas poltronas, vindas directamente da Europa, estendiam os braços a Mister Watkins; este preferia-lhes uma cadeira velha, outrora aparelhada por suas mãos. Mas, em suma, a acumulação dos objectos de valor e, mais que tudo, a misturada de peles de panteras, de leopardos, de girafas e de gatos-tigres atiradas por cima de todos os móveis, davam à sala um ar de opulência bárbara.

Pela conformação do tecto era evidente que a casa não tinha andares e apenas constava do rés-do-chão. Era ela, como todas as do país, construída em parte de tabuado e em parte de argila e coberta com chapas de zinco ondulado colocadas sobre a leve armação.

Via-se também que essa casa tinha sido acabada havia pouco tempo. Com efeito, bastava olhar por uma das janelas para poder observar-se, à direita e à esquerda, cinco ou seis construções abandonadas, todas do mesmo género, mas de diferentes idades, e num estado de decrepidez sucessivamente adiantada. Eram outras tantas casas que Mister Watkins tinha edificado, habitado e abandonado uma após outra, conforme as variantes da sua fortuna, e que assinalavam por assim dizer os degraus dela.

A mais afastada era feita simplesmente de torrões de leiva e apenas merecia o nome de cabana. A seguinte era formada com argila, a terceira de barro e tábuas, a quarta de argila e zinco. Vê-se qual fora a escala ascendente que os progressos da indústria do Sr. Watkins lhe tinham permitido subir.

Todas estas edificações, mais ou menos arruinadas, elevavam-se num montículo perto da confluência do Val e do Modder, os dois principais tributários do rio Orange nesta região da África Austral. Nos arredores, até onde a vista podia alcançar para o sudoeste e para o norte, apenas se via a planície triste e nua. O Veld — como se diz no país — é constituído por um solo avermelhado, seco, árido, poeirento, onde mal aparecem aqui e além algumas raras ervas e algumas moitas de espinhos. A ausência total de árvores é a feição característica deste triste cantão. Por isso, e sabendo-se que também não há carvão mineral, como as comunicações com o mar são demoradas e dificultosas, não deve causar admiração que haja falta de combustível, sendo-se obrigado para os usos domésticos a queimar o excremento do gado.

Sobre este fundo monótono, de um aspecto quase lamentoso, estende-se o leito dos dois rios, tão baixos, com margens tão pouco pronunciadas, que mal se compreende como não alagam toda a planície.

Só do lado do oriente é que o horizonte é delimitado pelos longínquos recortes das duas montanhas, o Plat-berg e o Paardeberg, junto às quais quem tiver boa vista poderá distinguir fumo, redemoinhos de pó, pequenos pontos brancos, que são cabanas ou barracas, e em redor delas um formigar de seres animados.

É aí, nesse Veld, que se encontram os jazigos de diamantes em exploração, o Du Toit's Pan, o New-Rush, e o mais rico de todos talvez, o Vandergaart-Kopje. Estas diversas minas a céu aberto e quase à flor da terra, que têm a denominação geral de drydiggings ou "minas secas”, produziram desde 1870 o valor de cerca de quatrocentos milhões de francos em diamantes e pedras finas. Acham-se reunidas em uma circunferência cujo raio terá quando muito dois ou três quilómetros, e podiam distinguir-se perfeitamente com o óculo das janelas da granja Watkins, que apenas distava delas umas quatro milhas inglesas*1.

É preciso notar-se que a palavra “granja”, aplicada a este estabelecimento, é bastante imprópria, porque não se via junto a ela cultura agrícola de qualidade alguma. Mister Watkins, como todos os chamados fazendeiros desta região da África Austral, era mais um criador de gado, um proprietário de manadas de bois e rebanhos de cabras e carneiros, do que o verdadeiro gerente de uma exploração agrícola.

Mas neste meio tempo o Sr. Watkins não dera resposta ao pedido feito por Cipriano Méré com tanta polidez como clareza. Levou pelo menos três minutos a pensar, e por fim resolveu-se a tirar o cachimbo do canto da boca e emitir a seguinte opinião, que decerto pouco vinha ao caso:

— Parece-me que vamos ter mudança de tempo, meu caro senhor. Nunca senti um ataque tão grande de gota como esta manhã!

O jovem engenheiro franziu as sobrancelhas, voltou por um instante a cabeça, e teve de fazer um grande esforço para não mostrar que ficara descontente.

— Talvez lhe fizesse bem deixar-se de tomar gin, Sr. Watkins!

 

*1. A milha inglesa vale 1609 metros.

 

— respondeu ele, um tanto secamente, apontando para a bilha de pó de pedra que se ia esvaziando rapidamente à mercê dos ataques reiterados do bebedor.

— Deixar-me de tomar gin! By Jove! Bonito conselho! — exclamou o fazendeiro. — Então o gin jamais fez mal a uma pessoa honrada? Espera, já sei o que quer dizer na sua! É para me recordar a receita que deu aquele médico a um lord-maire que tinha gota. Como se chamava o tal médico? Parece-me que era Abernethy! “Quer você ter saúde?, dizia ele ao doente. Pois sustente-se com um xelim por dia e ganhe esse xelim com trabalho próprio!” Tudo isso é muito bonito! Mas, pela nossa velha Inglaterra!, se para ter saúde fosse preciso viver à razão de um xelim por dia, de que servia então ter feito fortuna! Isso são tolices indignas de um homem esperto como o senhor é, Sr. Méré! Ora, pois, faça-me o favor de não me tornar a falar em tal! Cá por mim antes queria ir já direitinho para debaixo da terra... Comer bem, beber bem, fumar uma boa cachimbada todas as vezes que me apeteça, não tenho outras alegrias no mundo, e quer o senhor que eu lhes diga adeus?

— Não; eu não tenho nada com isso! — respondeu Cipriano com toda a sinceridade. — Apenas lhe lembro um preceito de saúde que me parece bom! Mas deixemos isso, se lhe parece, meu caro Sr. Watkins, e voltemos ao objecto especial da minha visita.

Mister Watkins, ainda há pouco tão prolixo, voltara ao primeiro mutismo e deitava silenciosamente fumaças pela boca.

Nesse momento abriu-se a porta. Entrou uma rapariga, que trazia uma bandeja com um copo.

Aquela linda criatura, encantadora com a grande touca à moda das aldeãs do Veld, trajava simplesmente um vestido de linho com florinhas. Teria dezanove a vinte anos, era muito branca, com magníficos cabelos loiros e finos, grandes olhos azuis, fisionomia suave e risonha. Era a imagem da saúde, da graça e do bom humor.

— Bons dias, Sr. Méré! — cumprimentou ela em francês, mas com uma leve intonação britânica.

— Bons dias, menina Alice! — respondeu Cipriano Méré, que se erguera à entrada da donzela e se inclinara diante dela.

— Vi-o chegar, Sr. Méré — continuou Miss Alice, deixando ver os lindos dentes no meio de amável sorriso — , e como sei que não gosta deste detestável gin de meu pai, trago-lhe uma laranjada, e estimarei que a ache bem fresca!

— Muito obrigado pela sua amável lembrança!

— É verdade, não quer saber o que o meu avestruz Dada engoliu esta manhã? — continuou ela sem mais cerimónia. — A minha bola de marfim de pontear as meias! É verdade, uma bola de marfim! E olhe que era bem grande; o senhor sabe qual era o tamanho dela; tinha-a recebido directamente do bilhar de New-Rush. Pois aí tem! O comilão do Dada engoliu-a como se fosse uma pílula! Palavra que qualquer dia morro de zanga por causa deste bicho mau!

E, ao contar esta história, Miss Watkins tinha nos cantos dos seus olhos azuis uns pequeninos raios de alegria, que não pareciam indicar grande vontade de realizar aquele lúgubre prognóstico pelos tempos mais chegados. Mas de repente, com a intuição tão rápida que têm as mulheres, notou o silêncio em que ficavam o pai e o jovem engenheiro e as suas caras constrangidas com a presença dela.

— Havia de jurar que os incomodo! — disse então. — Olhem, se têm segredos que eu não possa ouvir, vou-me embora! Demais a mais não posso perder tempo! Ainda tenho de estudar a sonata antes de tratar do jantar! Está dito, decididamente os senhores não estão para conversa! Pois fiquem para aí a tratar das suas negras conspirações!

E já se ia embora; mas voltou atrás, e disse graciosamente, apesar de o assunto ser dos mais graves:

— Sr. Méré, quando quiser fazer-me perguntas a respeito do oxigénio, estou às suas ordens. Já li três vezes o capítulo da química que o senhor me deu para estudar, e o tal corpo “gasoso, incolor, sem sabor e sem cheiro”, já não tem segredos para mim!

E com isto Miss Watkins fez uma linda mesura e desapareceu, leve como um meteoro.

Daí a um instante saíam de um dos quartos mais distantes da sala de visitas os sons de um excelente piano, os quais mostravam que a donzela estava toda entregue aos seus exercícios musicais.

— Então, Sr. Watkins — insistiu Cipriano, a quem aquela amável aparição teria recordado o seu pedido, se ele fosse capaz de o ter esquecido — , faz-me o favor de responder à pergunta que tive a honra de lhe fazer?

Mister Watkins tirou o cachimbo do canto da boca, cuspiu majestosamente, levantou bruscamente a cabeça, e, dardejando sobre o engenheiro um olhar inquisidor, perguntou-lhe:

— Por acaso o Sr. Méré já lhe teria falado nisso?

— Falar de quê! A quem?

— Do que o senhor dizia... a minha filha?

— Quem julga o senhor que eu sou? — replicou o jovem engenheiro com uma exaltação que bem demonstrava a sua sinceridade. — Eu sou francês, Sr. Watkins! Não se esqueça disto! Quer dizer que nunca me atreveria a falar em casamento a sua filha sem o consentimento do pai!

O olhar de Mister Watkins suavizou-se, e desta feita parece que se lhe destravou a língua:

— Muito bem! Belo rapaz! Nem esperava outra coisa da sua discrição a respeito de Alice! — respondeu ele com voz quase cordial. — Pois bem, uma vez que posso ter confiança no senhor, vai-me dar a sua palavra de que também para o futuro lhe não falará nisso!

— E porquê, senhor?

— Porque esse casamento é impossível, e o melhor é riscá-lo já do seu canhenho — replicou Mister Watkins. — Olhe, Sr. Méré, o senhor é um honrado moço, um perfeito gentleman, um excelente químico, um professor distinto e até de grande futuro, não duvido, mas a minha filha não é para si, pela simples razão de que eu fiz para ela outros projectos muito diferentes — Mas, Sr. Watkins...

— Não teime! É inútil! — redarguiu o fazendeiro. — Ainda que o senhor fosse duque e par de Inglaterra, não me convinha! Mas o senhor nem sequer é inglês, e acaba de me declarar com excelente franqueza que não tem fortuna alguma! Ora diga-me, seriamente, imagina o senhor que eu fizesse educar Alice como fiz, dando-lhe os melhores mestres de Vitória e de Bloemfontein, para, quando ela tivesse vinte anos, a mandar viver em Paris, na Rua da Universidade, num terceiro andar, com um sujeito de quem nem ao menos conheço a língua? Pense, Sr. Méré, e ponha-se no meu lugar! Imagine o senhor que é o fazendeiro John Watkins, dono da mina de Vandergaat-Kopje, e que eu sou o Sr. Cipriano Méré, jovem sábio francês em missão no Cabo! Imagine-se aqui, nesta sala, sentado nesta cadeira, beberricando o belo copo de gin e fumando uma cachimbada de tabaco de Hamburgo; porventura admitiria o senhor por um minuto... por um só minuto!... a ideia de me dar a sua filha em casamento?

— Decerto, Sr. Watkins — respondeu Cipriano — , e sem hesitar, se julgasse achar no senhor as qualidades que pudessem fazer a felicidade dela!

— Pois faria muito mal, meu caro senhor, muito mal! — replicou Mister Watkins. — -Se fizesse isso, não era digno de possuir a mina de Vandergaat-Kopje, ou, para melhor dizer, não possuiria decerto tal mina! Porque afinal de contas imagina o senhor que ela me caiu do céu já aberta? Imagina que não me foi preciso ter inteligência e actividade para a desencantar e mais ainda para alcançar a propriedade dela? Ora aí tem, Sr. Méré: a inteligência que eu mostrei nessa circunstância memorável e decisiva, aplico-a em todos os actos da minha vida e especialmente no que diz respeito a minha filha! E é por isto que lhe digo: risque essa ideia do seu canhenho! Alice não é para si.

E após esta conclusão triunfante Mister Watkins pegou no copo e esvaziou-o de um trago.

O moço engenheiro, embaraçado, não achava resposta. E vendo isso o outro carregou mais.

— Estes senhores franceses são admiráveis! — prosseguiu ele. — Nada lhes causa dúvidas, palavra! Pois o senhor chega, como se caísse da Lua, a este sertão da Gri-cualândia, a casa de um pobre homem que nunca tinha ouvido falar de si, há três meses, e que não chegou a vê-lo dez vezes nestes noventa dias, e vem ter com ele e diz-lhe: “John Stapleton Watkins, você tem uma filha encantadora, perfeitamente educada, universalmente reconhecida como a pérola do país, e, o que não é nada mau para o caso, sua única herdeira da propriedade do mais rico Kopje de diamantes dos Dois Mundos! Eu sou o Sr. Cipriano Méré, de Paris, engenheiro, e tenho quatro mil e quinhentos francos de ordenado! Você vai fazer o favor de me dar essa menina em casamento para eu a levar para a minha terra e para você nunca mais ouvir falar dela, a não ser de tempos a tempos pelo correio ou pelo telégrafo!” E o senhor acha isto natural? Pois eu acho uma ideia levada da breca!

Cipriano levantara-se, muito pálido. Pegou no chapéu e dispunha-se a sair.

— Sim, senhor, uma ideia levada da breca — repetiu o fazendeiro. — Eu cá não douro a pílula! Sou um inglês dos antigos. Aqui onde me vê, fui mais pobre do que o senhor, é verdade, muito mais pobre. Trabalhei em todos os ofícios. Fui moço a bordo de um navio mercante, caçador de búfalos no Dacota, mineiro no Arizona, pastor no Transval! Conheci o calor, o frio, a fome, o cansaço. Durante vinte anos ganhei com o suor do meu rosto a côdea de bolacha que me servia de jantar! Quando casei com a falecida Mistress Watkins, mãe de Alice, uma filha de bóer de origem francesa *1 — como o senhor, diga-se de passagem — , não tínhamos nós ambos com que sustentar uma cabra! Mas trabalhei! Não desanimei! Agora estou rico e quero aproveitar o fruto dos meus trabalhos... E sobretudo quero ter minha filha comigo — para me tratar da gota e entreter-me com a música, à noite, quando estou aborrecido! Se ela casar algum dia, há-de ser aqui com um rapaz cá da terra, tão rico como ela, fazendeiro ou mineiro como nós somos, e que não me venha falar em ir passar uma vida pelintra num terceiro andar

 

*1. Um grande número de boéres, ou lavradores holandeses da África Meridional, descendem dos franceses, que passaram à Holanda e em seguida à colónia do Cabo em consequência da revogação do Edicto de Nantes.

 

de uma terra onde eu nunca tive gana de pôr os pés. Há-de casar com James Hilton, por exemplo, ou com outro pândego da mesma laia... Olhe lá que não faltem pretendentes! Finalmente, um legítimo inglês, que não tenha medo de um copo de gin e que se associe a uma cachimbada!

Cipriano já tinha a mão sobre o fecho da porta para sair daquela sala onde abafava.

— Mas, olhe lá, não fique de mal, Sr. Méré — gritou-lhe Mister Watkins. — Eu por mim não lhe quero mal, e terei sempre muito gosto em o ver como inquilino e como amigo! Olhe, hoje esperamos algumas pessoas para o jantar... Quer fazer-nos companhia?

— Não, muito obrigado! — respondeu Cipriano com frieza. — Tenho de acabar a minha correspondência para o correio.

E saiu.

"São levados da breca estes franceses! Levados da breca!” — repetia Mister Watkins, acendendo o cachimbo a um morrão de cabo alcatroado que estava sempre ao pé dele.

E encheu um copázio de gin.

 

         NO CAMPO DOS DIAMANTES

NA resposta que Mister Watkins acabava de dar ao engenheiro, o que mais mortificava este era não poder deixar de lhe achar razão, apesar da excessiva aspereza da forma. Até, reflectindo bem, se admirava de não ter visto as objecções que o fazendeiro lhe podia opor, e de se ter aventurado a receber uma tão grosseira recusa.

Mas o certo é que nunca, até àquele momento, tinha pensado na distância que havia entre ele e a jovem pelas diferenças de fortuna, de raça, de educação, de meio. Habituado, havia cinco ou seis anos, a considerar os minerais sob o ponto de vista puramente científico, para ele os diamantes não eram mais que simples amostras de carbono, que serviam para figurar no museu da Escola de Minas. Além disso, como a vida que ele tinha em França era socialmente muito superior à dos Watkins, perdera completamente de vista o valor mercantil do rico jazigo que o fazendeiro possuía. Por isso nem um instante lhe passou pela cabeça que pudesse haver desproporção entre a filha do dono do Vandergaat-Kopje e um engenheiro francês. E pelo contrário, se ele por acaso tivesse alguma dúvida a este respeito, é muito provável que com as suas ideias de parisiense e de antigo aluno da Escola Politécnica se tivesse julgado muito próximo daquilo que vulgarmente se chama um “casamento desigual”.

A descompostura redonda de Mister Watkins era um triste despertar das suas ilusões. Cipriano tinha muito bom senso e honradez, e por isso deu o devido apreço às sólidas razões do inglês, e não se irritou com a sentença, que realmente considerava justa.

Mas nem por isso o golpe deixava de ser duro, e agora, que tinha de renunciar a Alice, via de repente o quanto ela se lhe tinha tornado querida em menos de três meses.

Porque efectivamente havia apenas três meses que Cipriano Méré a conhecia, isto é, desde que ele chegara à Gricualândia. Como esse tempo lhe parecia já longe!

E pôs-se a recordar tudo. Via-se chegando, num terrível dia de calor e de poeira, ao termo da sua longa viagem de um a outro hemisfério. Tinha desembarcado com o seu amigo Faramundo Barthés — um antigo condiscípulo do colégio que pela primeira vez vinha caçar por divertimento na África Austral. Separaram-se no Cabo. Faramundo Barthés partiu para o país dos Basu-tos, onde tencionava reunir um pequeno destacamento de guerreiros pretos, que haviam de acompanhá-lo nas suas expedições cinegéticas. Cipriano, esse tomou lugar em um pesado carrão de catorze cavalos que serve de diligência nas estradas do Veld, e pôs-se a caminho para o Campo dos Diamantes.

Cinco ou seis caixotes grandes constituíam o material do jovem sábio; era um verdadeiro laboratório de química e mineralogia, de que ele não quisera separar-se. Mas o carrão só leva cinquenta quilos de bagagem por passageiro, e não houve outro remédio senão confiar os preciosos caixotes a um carro de bois que devia levá-los até à Gricualândia com um vagar digno dos Merovíngios.

O tal carrão ou diligência, com lugares para doze pessoas, tinha uma cobertura de lona, e assentava sobre quatro rodas enormes, constantemente molhadas pela água dos rios que se passavam a vau. Os cavalos, metidos dois a dois, e algumas vezes reforçados com mulas, são guiados por dois cocheiros sentados a par: um leva as rédeas, ao passo que o outro maneja um chicote muito comprido de bambu, que lhe serve tanto para excitar o gado como para o dirigir.

A estrada passa por Beaufort, uma bonita cidadezinha edificada ao pé dos montes Nieuweveld, atravessa esta serra, chega a Vitória, e finalmente conduz a Hope-Town — a cidade da Esperança — , na margem do rio Orange, e daí a Kimberley e aos principais jazigos diamantíferos, distantes apenas algumas milhas.

É uma viagem trabalhosa e monótona de oito a nove dias através do Veld estéril. A paisagem tem quase sempre um carácter excessivamente triste — planícies avermelhadas, pedras espalhadas como uma sementeira de cascalho, rochedos pardos aflorando o solo, erva amarela e rara, e moitas famélicas. Nem campos cultivados, nem belezas naturais. De longe em longe uma granja miserável, cujo dono, ao obter do governo colonial a concessão das terras, contraiu a obrigação de dar hospitalidade aos viajantes. Mas essa hospitalidade é sempre das mais elementares. Em tão singulares estalagens não se encontram leitos para homens nem camas de palha para os cavalos. Apenas algumas latas de conservas alimentícias, que já deram a volta ao mundo umas poucas de vezes, e que se pagam a peso de ouro!

Segue-se que o gado, para se poder sustentar, larga-se na planície, onde fica reduzido a procurar algumas moitas de erva por detrás das pedras. Depois, quando se trata de partir, é uma dificuldade para o juntar, e perde-se um tempo imenso.

E que solavancos dá o churrião primitivo por aqueles caminhos ainda mais primitivos! Os assentos são simplesmente as tampas dos caixotes de madeira, que se aproveitam para meter as bagagens miúdas, e sobre os quais faz o papel de martelo-pilão o desgraçado que ali vai durante uma interminável semana. É impossível ler, dormir ou conversar sequer! Em compensação, a maior parte dos passageiros fumam de noite e de dia como chaminés de fábricas, bebem a ponto de se não poder respirar ao pé deles, e escarram à proporção.

Cipriano Méré achava-se, pois, no meio de uma boa representação dessa população flutuante que acode de todos os pontos do Globo logo que se descobrem quaisquer jazigos de ouro ou de diamantes. Havia um napolitano alto, todo desarcado, com grandes melenas pretas, cara de pergaminho e olhos de poucos amigos, que declarava chamar-se Aníbal Pantalacci; um judeu português, chamado Nathan, contraste de diamantes, que ia muito quieto no seu cantinho e olhava para a humanidade como filósofo; um mineiro do Lancashire, Tomás Steel, um latagão com barba ruiva e quadris vigorosos, que tinha desertado do carvão de pedra para vir tentar fortuna na Gricualândia; um alemão, Herr Friedel, que falava como um oráculo e já sabia tudo quanto respeita à exploração diamantina, sem nunca ter encontrado um só diamante na sua ganga; um ianque de lábios delgados, que só conversava com a borracha de couro, e que provavelmente vinha abrir nas concessões uma dessas tabernas onde se despeja o melhor dos lucros dos mineiros. Um fazendeiro das margens do Hart, um bóer do Estado Livre do Orange, um corretor do negócio do marfim que ia para o país dos Namácuas, dois colonos do Transval, e um china chamado Li — como convém a um china — completavam uma companhia tão heterogénea, desvergonhada, suspeita e ruidosa, como nunca encontrou um cavalheiro que se preza.

Cipriano ao princípio divertia-se com as fisionomias e modos daqueles sujeitos; mas depois cansou-se. Apenas continuaram a interessá-lo o inglês Tomás Steel, por causa da sua natureza valente e riso aberto, e o china Li, com os modinhos suaves e felinos. Mas inspiravam-lhe insuperável sentimento de repulsão as graçolas sinistras e a cara patibular do napolitano.

Durante dois ou três dias uma das partidas mais apreciadas deste figurão consistia em atar ao rabicho que o china trazia pelas costas abaixo, à moda da sua terra, toda a casta de porcarias, molhos de erva, talos de couves, um rabo de vaca, uma omoplata de cavalo apanhada no caminho.

Li desatava sem se impacientar o apêndice acrescentado ao seu comprido rabicho, e nem por gestos ou por palavras, nem mesmo por um olhar, dava a entender que a brincadeira lhe parecia exceder os limites permitidos. O rosto amarelo e os olhos reprimidos do china conservavam inalterável placidez, como se ele fosse alheio a tudo o que se passava à roda de si. E realmente julgar-se-ia que ele não entendia nem uma só palavra do que se dizia naquela arca de Noé que rodava para a Gricua-lândia.

Por isso Aníbal Pantalacci não perdia a ocasião para acrescentar, em péssimo inglês, comentários variados às suas invenções de trocista muito ordinário.

— O senhor não tem medo que se pegue a icterícia desse tipo? — perguntava ele ao vizinho do lado em voz alta.

Ou então:

— Se eu tivesse uma tesoura para lhe cortar o rabicho, os amigos veriam que cara ele fazia!

E os passageiros desatavam às gargalhadas. E redobrava a galhofa, porque os bóeres gastavam sempre algum tempo para perceber o que o napolitano dizia, e depois, de repente, atiravam uma grande risada, que vinha com atraso de dois ou três minutos.

Por fim Cipriano irritou-se com esta embirração de fazerem do pobre Li alvo constante de motejos, e disse a Pantalacci que o seu procedimento não era generoso. O outro ia talvez responder uma insolência, mas uma palavrinha de Tomás Steel fez-lhe calar o bico.

— Não! Palavra que não é decente estar a tratar assim este pobre diabo, que nem sequer entende o que o senhor diz! — acrescentou o excelente rapaz, arrependendo-se já de se ter rido com os outros.

Ficou a coisa assim. Mas, alguns instantes depois, Cipriano admirou-se ao ver o olhar fino e levemente irónico que o china lhe deitava — olhar em que havia o verdadeiro cunho do reconhecimento. Veio-lhe então à ideia que talvez Li soubesse mais inglês do que queria deixar parecer.

Debalde, porém, na paragem imediata tentou Cipriano travar conversa com ele. O china conservou-se impassível e mudo. Desde então o jovem engenheiro começou a cismar no que seria aquela criatura esquisita, que se lhe figurava um enigma proposto a decifração; e por isso punha-se muitas vezes a estudar com atenção aquele rosto amarelo e sem pêlos, aquela boca que parecia ter sido feita por uma espadeirada, e que mostrava uns dentes muito brancos, o narizinho curto e de ventas abertas, a testa larga, os olhos oblíquos e quase sempre baixos, como para abafar uma irradiação maliciosa.

Qual seria a idade de Li? Quinze anos ou sessenta? Era impossível dizê-lo. Se por um lado os dentes, o olhar e os cabelos, cor de ferrugem de chaminé, podiam fazer supor que o china era jovem, por outro lado as rugas da testa, das faces e até da boca pareciam indicar uma idade já avançada. Era baixo, delgado, ágil na aparência, mas tinha certas coisas de pessoa de idade e por assim dizer de velhote.

Era rico ou pobre? Outra questão duvidosa. As suas calças de linho escuro, a blusa amarela de tecido de seda e algodão, o barrete de corda entrançada, os sapatos com solas de feltro calçados sobre umas meias de brancura imaculada, tanto podiam pertencer a um mandarim de primeira classe como a um homem do povo.

A sua bagagem consistia em uma só caixa de madeira avermelhada com este letreiro a tinta preta:

  1. Li from Canton to the Cape, o que significa “H. Li, de Cantão para o Cabo”.

Além disto, o china era de um asseio extremo, não fumava, só bebia água, e aproveitava todas as paragens para rapar a cabeça com o maior cuidado.

Cipriano não pôde averiguar mais nada e bem depressa desistiu de pensar neste problema vivo.

Entretanto iam passando os dias, sucediam-se as milhas umas às outras. Algumas vezes os cavalos iam depressa. Noutros momentos parecia impossível fazê-los sair do passo. Mas pouco a pouco diminuía o caminho, e em um belo dia a carroça-diligência chegou a Hope-Town. Na jornada seguinte passaram além de Kimberley. Depois começaram a ver-se no horizonte cabanas de madeira.

Era New-Rush.

O acampamento dos mineiros nesta localidade parecia-se com o que costumam ser, em todos os países recém-abertos à civilização, essas cidades provisórias que saem da terra como por encanto.

Casotas de tábuas, quase todas pequeníssimas e semelhantes às cabanas dos guardas de um estaleiro europeu, algumas barracas de lona, uma dúzia de cafés ou casas de bebidas, uma sala de bilhar, um Alhambra ou sala de dança, stores ou armazéns gerais de géneros de primeira necessidade, e eis o que primeiro saltava aos olhos.

Em tais lojas encontrava-se de tudo — fatos, e mobílias, calçado e vidraça, livros e selas, armas e panos, vassouras e munições de caça, colchas e charutos, legumes frescos e medicamentos, charruas e sabonetes, escovas de unhas e leite condensado, frigideiras e litografias — numa palavra, tudo menos compradores.

Era que naquele momento a população do acampamento estava ainda na mina, trezentos ou quatrocentos metros distante de New-Rush.

Cipriano Méré, como todos os recém-chegados, apressou-se em ir até lá, enquanto preparavam o jantar na cabana pomposamente adornada com o nome de Hotel Continental.

Eram cerca de seis horas da tarde. O Sol, já no horizonte, envolvia-se em ténue névoa de ouro. O jovem engenheiro observou, ainda uma vez, o enorme diâmetro que nestas latitudes austrais apresenta o astro do dia, como também o da noite, sem que a explicação do fenómeno dada até hoje tenha sido satisfatória. Esse diâmetro parecia pelo menos ter o dobro do que se observa na Europa.

Mas outro espectáculo mais novo para Cipriano Méré o esperava no Kopje, isto é, no jazigo dos diamantes.

No começo dos trabalhos a mina formava um montículo em forma de abóbada abatida, o qual fazia saliência neste lugar da planície, que em roda era chã como um mar em calma. Mas agora era uma imensa buraca de paredes alargadas, uma espécie de circo de forma elíptica e de cerca de quarenta mil metros quadrados de superfície que se abria naquele sítio. Essa superfície continha nada menos de trezentos ou quatrocentos claims ou "concessões” de trinta e um pés de lado, que os donos exploravam à sua vontade.

Demais o trabalho consistia simplesmente em extrair, por meio da picareta e do alvião, a terra deste solo, que é geralmente composto de uma areia misturada com cascalho. Esta terra, depois de tirada da mina, leva-se a umas mesas próprias, onde é lavada, pisada, peneirada e finalmente examinada com o maior cuidado a fim de se reconhecer se contém pedras preciosas.

Todos estes claims formam naturalmente covas de profundidades diversas, por isso que foram cavados sem dependência alguma uns dos outros, de modo que uns descem a cem metros, e mais abaixo, do solo, ao passo que os outros só descem até quinze, vinte ou trinta metros.

Pelos regulamentos oficiais cada concessionário é obrigado a deixar de um dos lados da sua cova uma largura de sete pés, absolutamente intacta, para as necessidades do trabalho e da circulação. Este espaço, com outro da mesma largura reservado pelo vizinho, produz uma espécie de calçada ou barreira, que vem assim a conservar-se ao primitivo nível do solo. Sobre esta banqueta atravessa-se uma enfiada de barrotes, os quais saem para um dos lados dela a largura de um metro, dando assim espaço suficiente para que dois carrinhos de mão possam passar sem se embaraçarem.

Mas os concessionários, com grande prejuízo da solidez deste caminho suspenso e de segurança dos mineiros, não se privam de ir escavando gradualmente a base do muro à proporção que os trabalhos vão descendo, de modo que a barreira, que às vezes fica sobranceira com uma altura dupla da da torre de Notre-Dame de Paris, acaba por apresentar a forma de uma pirâmide invertida que assentasse sobre o vértice. Ora é fácil prever a consequência desta má disposição. É o desabamento frequente destas paredes, já na estação das chuvas, já quando uma repentina mudança de temperatura produz fendas na espessura das terras. Mas nem por isso a repetição periódica destes desastres impede os imprudentes mineiros de continuarem a escavar o seu claim até ao limite extremo da parede.

Cipriano Méré, ao aproximar-se da mina, só via ao princípio carrinhos, cheios ou vazios, que circulavam naqueles caminhos suspensos. Mas, quando se chegou bem perto da borda para poder imergulhar a vista até às profundezas daquela espécie de pedreira, descobriu a multidão dos mineiros de todas as raças, cores e vestuários, que trabalham com ardor no fundo dos claims. Havia pretos e brancos, europeus e africanos, mongóis e celtas — a maior parte deles em estado quase completo de nudez, ou vestidos apenas com calças de linho, camisas de flanela, panos de chita, e tendo na cabeça chapéus de palha não raro adornados com penas de avestruz.

Todos estes homens enchiam com terra uns baldes de sola, os quais subiam depois até à borda da mina, ao longo de grandes cabos de arame, por meio da tracção de cordas feitas de tiras de couro de vaca enroladas em cilindros de madeira. Os baldes, quando chegavam acima, eram despejados nos carrinhos, e em seguida voltavam logo para o fundo do claim a fim de tornarem a subir com outra carga.

Aqueles compridos cabos de arame, estendidos em diagonal sobre a profundeza dos paralelepípedos formados pelos claims, dão aos drydiggings ou “minas secas” de diamantes uma fisionomia especial. Dir-se-iam os fios de uma gigantesca teia de aranha, cujo trabalho tivesse sido interrompido subitamente.

Cipriano entreteve-se algum tempo em observar aquele formigueiro humano. Depois voltou para New-Rush, onde bem depressa se ouviu a sineta da mesa-redonda. Aí teve durante toda a noite a satisfação de ouvir uns falar de achados prodigiosos, de mineiros pobres como Job que tinham enriquecido de repente com um só diamante, ao passo que outros, pelo contrário, se lamentavam, a propósito do azar, da capacidade dos corretores, da infidelidade dos cafres empregados nas minas, que roubavam as melhores pedras, e outros assuntos de conversação técnica. Não se ouvia falar senão em diamantes, karats, centenas de libras esterlinas.

Em geral, toda aquela gente tinha uma aparência bem miserável, e por um ou outro digger feliz, que pedia em altos brados uma garrafa de champanhe para regar a sua boa sorte, viam-se vinte caras compridas, cujos donos macambúzios apenas bebiam cerveja fraquinha.

De vez em quando circulava de mão em mão em volta da mesa uma pedra, à qual tomavam o peso, examinando-a e avaliando-a, e que por fim ia encafuar-se no cinto do seu possuidor. Aquele calhau pardacento e baço, sem mais brilho do que um bocado de sílex rolado numa torrente qualquer, era o diamante na sua ganga.

À noite encheram-se os cafés, e em volta dos copos de gin e de brandy continuavam com mais calor as mesmas conversas e as mesmas discussões que tinham animado o jantar.

Cipriano, esse, deitou-se cedo na cama que lhe tinham destinado em uma barraca de lona próxima do hotel. Bem depressa adormeceu ao som de um baile ao ar livre que alguns mineiros cafres tinham organizado ali perto, e dos sons ruidosos de uma corneta de chaves que presidia em uma sala pública às folganças coreográficas dos cavalheiros brancos.

 

MEIA DOSE DE CIÊNCIA, ENSINADA POR AMIZADE

Devemos apressar-nos a dizer, em honra do jovem engenheiro, que ele não tinha ido à Gricualândia para passar o tempo naquela atmosfera de rapacidade, bebedeira e fumo de tabaco. Estava encarregado de fazer levantamentos topográficos e geológicos em certas parcelas do país, de colher amostras das rochas e dos terrenos diamantíferos, e de proceder nos próprios terrenos a análises delicadas. Devia, pois, ser o seu primeiro cuidado arranjar uma habitação sossegada, onde pudesse montar o laboratório, e que por assim dizer servisse de centro das suas explorações através de todo o distrito mineiro. O montículo em que estava edificada a granja Watkins atraiu logo a atenção do engenheiro como um posto que podia ser particularmente favorável aos seus trabalhos. Cipriano estaria ali bastante afastado do acampamento dos mineiros para que esta ruidosa vizinhança não o incomodasse muito, e ao mesmo tempo a cerca de uma hora de caminho dos Kopjes mais distantes, porque o distrito diamantífero não tem mais de dez a doze quilómetros de circunferência. Sucedeu, pois, que escolher uma das casas abandonadas por John Watkins, contratar o aluguer e estabelecer-se nela, tudo foi para o jovem engenheiro negócio de seis horas. E, demais, o fazendeiro mostrou-se razoável. Realmente aborrecia-se muito na solidão em que vivia, e viu com verdadeira satisfação instalar-se perto dele um rapaz que sem dúvida lhe proporcionaria alguma distracção.

Mas se Mister Watkins tinha contado encontrar no seu inquilino um companheiro de mesa ou um parceiro assíduo para os assaltos à bilha de gin, achou-se muito enganado. Cipriano, apenas estabelecido na casota que lhe fora cedida, com todo o seu aparato de retortas, fornos e reagentes — e antes mesmo de lhe terem chegado as principais peças do laboratório — , começara logo os seus passeios geológicos pelo distrito. Por isso, quando voltava à noite, morto de cansaço, carregado de fragmentos de rochas metidos na caixa de zinco, na bolsa de tiracolo, nas algibeiras, e até no chapéu, tinha mais vontade de se atirar para cima da cama e dormir do que ir ouvir as historietas antigas de Mister Watkins. Além disso, fumava pouco e bebia ainda menos. Ora nada disto constituía precisamente o alegre companheiro sonhado pelo fazendeiro.

Cipriano era, contudo, tão leal e tão bom, tão simples nas maneiras e nos sentimentos, tão sóbrio e tão modesto, que era impossível vê-lo habitualmente sem sentir simpatia por ele. Por isso Mister Watkins — talvez mesmo sem dar por tal — sentia pelo jovem engenheiro mais respeito do que nunca a pessoa alguma concedera. “Se aquele rapaz bebesse a valer? Mas que se havia de fazer de um homem que não atira a menor gota de gin para a garganta?” Era assim que regularmente terminavam os juízos que o fazendeiro fazia do seu inquilino.

Quanto a Miss Watkins, essa tinha imediatamente estabelecido com o jovem sábio uma boa e franca camaradagem. Achando nele distinção de maneiras e superioridade intelectual que não encontrara nas pessoas que habitualmente a rodeavam, tinha-se aproveitado com solicitude da ocasião inesperada que se lhe oferecia de completar por meio de noções de química experimental a instrução muito sólida e variada que já havia adquirido pela leitura das obras de ciência.

Interessava-a muito o laboratório do jovem engenheiro com todos aqueles aparelhos esquisitos. Mas principalmente a inglesa tinha muita curiosidade de saber tudo o que se relacionasse com a natureza dos diamantes, essa preciosa pedra que desempenhava um papel tão notável nas conversações e no comércio do país. Na verdade, Alice inclinava-se bastante a considerar tal gema apenas como um bocado de seixo. E não deixava de observar que Cipriano tinha a este respeito desdéns parecidos com os seus. Por isso esta comunhão de sentimentos não foi estranha à amizade que prontamente se formou entre eles. Podia-se dizer com afoiteza que eles eram os únicos na Gricualândia que não julgavam que o fim exclusivo da vida fosse simplesmente procurar, cortar ou vender essas pedrinhas, cobiçadas com tanto ardor em todos os países do mundo.

— O diamante — disse-lhe um dia o jovem engenheiro — é simplesmente carbono puro. É um fragmento de carvão cristalizado, nada mais. Pode-se queimar como qualquer pedaço de brasa, e até foi por causa dessa propriedade de combustibilidade que pela primeira vez se suspeitou a sua verdadeira natureza. Newton, que observava tantas coisas, tinha notado que o diamante lapidado refracta mais a luz que qualquer outro corpo transparente. Ora como ele sabia que este carácter pertence à maior parte das substâncias combustíveis, com a ousadia que lhe era habitual tirou desse facto a conclusão de que o diamante devia ser combustível. E a experiência deu-lhe razão.

— Mas, Sr. Méré, se o diamante é apenas carvão, porque se vende tão caro? — perguntou a jovem.

— Porque é muito raro, menina Alice — explicou Cipriano — , e só tem sido achado no solo em pequenas quantidades. Durante muito tempo só se extraíram diamantes da índia, do Brasil e da ilha de Bornéu. E com certeza se lembra bem, pois havia de ter então sete ou oito anos, da época em que pela primeira vez se descobriu a presença dos diamantes nesta província da África Austral.

— Decerto me recordo! — afirmou Miss Watkins. — Toda a gente parecia doida na Gricualândia. Não se via senão homens armados de pás e alviões, explorando todos os cantos, desviando o curso dos regatos para examinar o leito deles, não pensando nem falando senão em diamantes Apesar de ser ainda pequena, garanto-lhe, Sr. Méré, que às vezes me chegava a aborrecer aquilo! Mas dizia o senhor que o diamante é caro por ser raro... É esta a sua única qualidade?

— Não é exactamente assim, Miss Watkins. A transparência e o brilho deste corpo depois de lapidado, a própria dificuldade da operação, e finalmente a sua extrema dureza fazem com que ele seja realmente muito interessante, e, acrescentarei ainda, muito útil para a indústria. Sabe que o diamante só pode polir-se com o seu próprio pó, e esta preciosa dureza permitiu utilizá-lo, de alguns anos a esta parte, para a perfuração das rochas. Sem o auxílio desta gema não só seria dificílimo trabalhar o vidro e muitas outras substâncias duras, mas a perfuração dos túneis, das galerias das minas, dos poços artesianos, seria também muito mais difícil.

— Agora compreendo — disse Alice, que de repente se sentiu possuída de uma espécie de estima por esses pobres diamantes que até então tanto tinha desprezado. — Mas, Sr. Méré, esse carvão, de que o senhor afirma que se compõe o diamante no estado cristalino — é assim que se costuma dizer, não é verdade? — , esse carvão o que vem a ser no fim de contas?

— É um corpo simples, não metálico, e um dos mais espalhados na natureza — elucidou Cipriano. — Todos os compostos orgânicos sem excepção, a madeira, a carne, o pão, a erva, o contêm em grande proporção. Devem até à presença do carvão, ou carbono, entre os seus outros elementos o grau de parentesco que se observa entre eles.

— Que coisa rara! — disse Miss Watkins. — De modo que aquelas moitas, a erva deste prado, esta árvore que nos abriga, a carne do meu avestruz Dada, e até eu e o senhor mesmo, somos em parte feitos de carvão... como os diamantes? Visto isso, tudo é carvão neste mundo?

— Certamente, Miss Alice, que há muito tempo se pressentiu esse modo de ver, e a ciência contemporânea tende de dia para dia a demonstrá-lo mais claramente! Ou, para melhor dizer, tende a reduzir cada vez mais o número dos corpos simples elementares, número que durante muito tempo foi considerado como sacramental. A este respeito os processos de observação espectroscópica lançaram há muito pouco tempo nova luz sobre a química. Por isso as sessenta e duas substâncias, classificadas até hoje como corpos simples elementares ou fundamentais, poderiam muito bem não ser mais que uma única substância atómica — talvez o hidrogénio — , apresentando-se sob diferentes modos: eléctricos, dinâmicos e caloríficos!

— Oh! O senhor faz-me medo com todos esses palavrões! — exclamou Alice. — Fale-me antes do carvãol Não poderiam os senhores, que são químicos, cristalizá-lo como fazem ao enxofre, de que o Sr. Méré me mostrou outro dia agulhas tão bonitas? Era muito mais cómodo do que ir abrir covas na terra para achar os diamantes!

— Já se tem muitas vezes ensaiado fazer o que diz — respondeu Cipriano — e tentado fabricar o diamante artificial pela cristalização do carbono puro. Direi mesmo que isso já se conseguiu até certo ponto. Despretz em 1853, e ultimamente um outro sábio na Inglaterra, produziram pó de diamante aplicando uma fortíssima corrente eléctrica no vácuo a cilindros de carvão, libertados de toda a substância mineral e preparados com açúcar cândi. Mas até hoje o problema não tem tido solução industrial. De resto, é muito provável que não seja mais que questão de tempo. Qualquer dia, e talvez no momento em que lhe estou falando, Miss Watkins, o processo da fabricação do diamante está descoberto!

Era assim que eles conversavam, ou passeando no eirado que se estendia defronte da casa da granja, ou à noite, sentados na varanda, vendo cintilar as estrelas do céu austral.

Depois Alice deixava o jovem engenheiro para voltar à granja, ou então levava-o a ver o seu pequeno bando de avestruzes, que se guardavam num cercado ao pé do montículo em que se elevava a habitação de John Watkins. A jovem gostava de ver as cabecinhas brancas postas sobre os corpos escuros daqueles animais, as suas pernas grossas e fortes, os tufos de penas amareladas que lhes ornam os cotos das asas e a cauda, e por isso divertia-se, havia um ou dois anos, a criar várias ninhadas das gigantescas pernaltas.

Ordinariamente não se procura domesticar estes animais, e os fazendeiros do Cabo deixam-nos viver em estado quase bravio. Contentam-se com os encerrar em cercados de vasta extensão, defendidos por altas barreiras de fio de arame, iguais às que em certos países se costuma colocar ao lado das linhas férreas. Ora os avestruzes, cuja constituição não lhes permite voar, não podem sair desses cercados. Vivem neles todo o ano, sujeitos a um cativeiro que ignoram, sustentando-se do que encontram e procurando qualquer canto afastado para porem os ovos, os quais são protegidos por leis muito severas contra os larápios. Na época da muda, quando se trata de tirar as penas, tão estimadas pelas mulheres da Europa, enxotam-se pouco a pouco os avestruzes para uma série de cercados sucessivamente mais pequenos, até que seja possível lançar-lhes a mão e arrancar-lhes o seu adorno.

De alguns anos a esta parte a indústria da criação dos avestruzes tem tido nas regiões do Cabo prodigioso desenvolvimento, e podemos com razão admirar-nos de que ela ainda não esteja aclimada na Argélia, onde com certeza não seria menos produtiva. Cada avestruz assim reduzido à escravidão dá ao seu dono, sem despesa alguma, um rendimento anual que varia entre duzentos e trezentos francos. Para compreender isto deve saber-se que uma pena grande, quando é de boa qualidade, vende-se por sessenta francos e até por oitenta — preço corrente do comércio — e que as penas médias e pequenas têm ainda um valor bastante grande.

Mas era unicamente para seu entretenimento pessoal que Miss Watkins criava uma dúzia dessas grandes aves. Gostava de as ver chocar os seus enormes ovos, ou correr com os avestruzes pequenos como fariam as galinhas ou perus, quando ela lhes levava comida. Cipriano acompanhava-a algumas vezes, e gostava de fazer festas a um dos mais bonitos do bando, um certo avestruz de cabeça preta e olhos de ouro, exactamente aquele amimado Dada, que pouco tempo depois engoliria a bola de marfim de que Alice se servia para pontear as meias.

Entretanto, e pouco a pouco, Cipriano sentiu nascer em si um sentimento mais profundo e mais terno para com a jovem. Pensava que nunca haveria de encontrar, para compartilhar a sua vida de trabalho e meditação, uma companheira de coração mais simples, de inteligência mais viva, uma criatura mais amável, mais completa em todo o sentido. Efectivamente, Miss Watkins, que perdera a mãe muito cedo e fora por isso obrigada a governar a casa paterna, era uma perfeita dona de casa e ao mesmo tempo uma verdadeira senhora. Era até esta mistura singular de perfeita distinção e de simplicidade atraente que lhe dava tanto encanto. Sem ter as pretensões tolas de tantas jovens elegantes das cidades da Europa, não receava pôr as mãos na massa de um pudim, vigiar o jantar, ou ver se a roupa branca estava em bom estado. E isto não a impedia de tocar as sonatas de Beethoven tão bem ou melhor que tantas outras, de falar com pureza duas ou três línguas, de gostar de ler, de saber apreciar as obras-primas de todas as literaturas, e, finalmente, de ser muito festejada nas pequenas reuniões de sociedade que algumas vezes havia em casa dos ricos fazendeiros do distrito.

E não se pense que nessas reuniões fossem muito raras as mulheres distintas. No Transval, como na América e na Austrália e em todos os países novos onde os trabalhos materiais de uma civilização que se improvisa absorvem a actividade dos homens, a cultura intelectual é, muito mais do que na Europa, o monopólio quase exclusivo das mulheres. Por isso, no que diz respeito a instrução geral e gosto artístico, são elas as mais das vezes muito superiores aos maridos e aos filhos. A todos os viajantes tem acontecido, não sem algum pasmo deles, encontrar na mulher de um mineiro australiano, ou de um squatter do Far West, um talento musical de primeira plana com sérios conhecimentos literários ou científicos. A filha de um trapeiro de Omaha ou de um salsicheiro de Melburne coraria de pensar que pode ser inferior em instrução, em maneiras elegantes, e em perfeições de todo o género a uma princesa da velha Europa. No Estado Livre de Orange, onde a educação das meninas está há muito tempo ao mesmo nível que a dos rapazes, mas onde estes deixam muito cedo os bancos das escolas, aquele contraste entre os dois sexos torna-se muito mais frisante que em qualquer outra parte. O homem é na família o bread-winner, o ganha-pão; conserva a par da sua rudeza nativa toda a que lhe é comunicada pelo trabalho ao ar livre, pela vida de fadigas e perigos. Pelo contrário, a mulher toma para seu domínio, além dos deveres domésticos, o cultivo das artes e das letras, que o marido pouco aprecia.

E daí vem que por vezes se encontra uma flor de beleza, de distinção e de encanto desabrochando à beira do deserto; tal era o caso da filha do fazendeiro John Wat-kins.

Cipriano tinha pensado tudo isto e, como gostava de ir direito ao seu fim, não hesitara em vir apresentar o seu pedido.

Ai dele! Caía agora das alturas do seu sonho, e via pela primeira vez o abismo quase invencível que o separava de Alice. Por isso, depois daquela entrevista decisiva, entrou em casa com o coração cheio de tristeza. Mas não era homem que se abandonasse a um vão desespero; estava resolvido a lutar neste terreno, e, até ver, bem depressa achou no trabalho derivativo certo para as suas mágoas.

Sentou-se à sua mesinha e pôs-se a acabar, com letra rápida e firme, a longa carta confidencial que começara de manhã, dirigida ao seu venerado mestre, M. J. ..., membro da Academia das Ciências e professor catedrático da Escola de Minas.

«... O que não me pareceu dever consignar na minha memória oficial — dizia-lhe ele — -, porque para mim é ainda apenas uma hipótese, é a opinião que estou muito tentado a ter, em virtude das minhas observações geológicas, a respeito do verdadeiro modo de formação do diamante. Não me satisfazem nem a mim nem ao meu caro mestre a hipótese que faz sair o diamante de uma origem vulcânica ou a que atribui a violentas rajadas a sua chegada aos jazigos actuais e escusado será recordar-lhe os motivos que nos fizeram pôr de parte essas opiniões. A formação do diamante no próprio lugar e pela acção do fogo é também uma explicação demasiado vaga e que não satisfaz. Qual seria a natureza desse fogo, e porque é que ele não havia de ter modificado também os calcários de toda a espécie que se encontram regularmente nos jazigos dia-mantíferos? Isto parece-me simplesmente infantil e digno da teoria dos turbilhões ou dos átomos cartesianos.

“A única explicação que me poderá satisfazer, senão completamente pelo menos até certo ponto, é a do transporte pelas águas dos elementos da gema e da formação posterior do cristal no próprio lugar. Tem-me feito muita impressão o perfil especial, quase uniforme, dos diversos jazigos que tenho passado em revista e que medi com o maior cuidado. Todos apresentam mais ou menos a forma geral de uma espécie de taça, de cápsula, ou antes, tendo em conta a crosta que os cobre, de um cantil de caçador deitado de lado. É como que um reservatório de trinta ou quarenta mil “metros cúbicos sobre o qual tivesse vindo derramar-se um grande conglomerado de areias, lama e terras de aluvião, aplicado sobre as rochas primitivas. Este carácter torna-se sobretudo muito saliente no Van-dergaart-Kopje, um dos jazigos descobertos mais recentemente, e que, diga-se de passagem, pertence exactamente ao dono da cabana onde lhe estou escrevendo.

"Quando se deita numa cápsula um líquido contendo corpos estranhos em suspensão, o que acontece? Os corpos estranhos depositam-se mais especialmente no fundo e junto às bordas da cápsula. Pois bem; é isto exactamente o que sucede no Kopje. Os diamantes encontram-se principalmente no fundo e próximo do centro da bacia, bem como no seu limite extremo. E o facto está tão bem averiguado que os claims intermédios descem rapidamente a um preço inferior, ao passo que as concessões centrais ou próximas dos bordos alcançam muito depressa um valor enorme logo que se tem determinado a forma do jazigo. A analogia, portanto, está a favor do transporte dos materiais pela acção das águas.

"Por outra parte, um grande número de circunstâncias, que são enumeradas na minha memória, tendem a explicar a formação dos cristais no próprio lugar, de preferência ao seu transporte no estado perfeito. Repetindo aqui apenas duas ou três, direi que os diamantes aparecem quase sempre reunidos em grupos da mesma natureza e da mesma cor, o que certamente não aconteceria se eles tivessem sido trazidos, já formados, por uma corrente. Frequentes vezes se acham pegados dois diamantes, que se separam à mais leve pancada. Ora, como é que eles poderiam ter resistido aos atritos e às aventuras de um transporte pelas águas? Demais, os diamantes grandes acham-se quase sempre debaixo do abrigo de uma rocha, o que tende talvez a indicar que a influência da rocha (a sua irradiação calorífica ou outra causa qualquer) facilitou a cristalização. Finalmente, é raro, raríssimo até, encontrar diamantes grandes juntos com outros pequenos. Todas as vezes que encontra uma boa pedra, está sempre isolada. É como se todos os elementos adamantinos do ninho se concentrassem daquela vez em um só cristal sob a acção de causas particulares.

“Estes motivos e outros muitos fazem-nos inclinar para a formação no próprio lugar, depois do transporte, pelas águas, dos elementos de cristalização.

"Mas donde vieram as águas que acarretaram os detritos orgânicos destinados a transformarem-se em diamantes? Eis o que me não foi possível determinar, apesar do estudo cuidadoso que fiz dos diversos terrenos.

“E, contudo, essa descoberta teria importância. Com efeito, se se conseguisse reconhecer o caminho seguido pelas águas, porque não se chegaria, marchando por ele acima, até ao ponto inicial donde partiram os diamantes, ponto onde sem dúvida eles se acham em muito maior quantidade do que nos pequenos reservatórios actualmente explorados? Seria isso uma demonstração completa da minha teoria, o que me daria grande satisfação. Mas não hei-de fazê-la eu, porque o tempo da minha missão está a terminar, e foi-me impossível formular a este respeito qualquer conclusão séria.

“Fui mais favorecido na minha análise das rochas...”

E o jovem engenheiro, continuando a sua narrativa, entrava a respeito dos seus trabalhos em minudências técnicas que sem dúvida eram de alto interesse para ele e para o seu correspondente, mas que o leitor profano talvez não avaliasse do mesmo modo. E por este motivo parece prudente ficar por aqui.

À meia-noite, depois de ter acabado a comprida carta, Cipriano apagou o candeeiro, estendeu-se na cama e adormeceu com o sono dos justos.

O trabalho tinha afugentado a mágoa, ao menos por algumas horas — mas nos sonhos do jovem sábio apareceu por mais de uma vez uma graciosa visão que parecia dizer-lhe que não desesperasse ainda!

 

         VANDERGAART-KOPJE

Decididamente é preciso partir — dizia consigo Cipriano Méré no dia seguinte, ao vestir-se; é preciso deixar a Gricualândia! Depois do que tive a paciência de ouvir àquele sujeito, ficar aqui um dia sequer seria fraqueza! Não me quer dar a filha? Talvez tenha razão! Em todo o caso não me pertence a mim apresentar circunstâncias atenuantes! Devo saber aceitar virilmente o veredicto, por mais doloroso que seja, e contar com as voltas que o mundo dá!”

Sem hesitar mais, Cipriano tratou de acondicionar os seus aparelhos nas caixas que conservava, e que lhe serviam de aparadores e armários. Pusera mãos à obra com ardor, e trabalhava activamente haveria uma ou duas horas, quando pela janela aberta, através da atmosfera matutina, lhe chegou aos ouvidos uma voz fresca e pura que saía do eirado como um canto de cotovia. Essa voz aplicava-se a uma das mais encantadoras melodias de Moore:

 

It is the last rose of summer,

Left blooming alone; All her lovely companions

Are faded and gone, etc.*1

 

*1. É a última rosa do Verão, / deixada só em flor; / todas as amáveis companheiras / estão murchas e mortas.

 

Cipriano correu à janela e viu Alice, que se encaminhava para o cercado dos avestruzes com o avental cheio de guloseimas de que eles gostavam.

Era ela que cantava ao nascer do Sol.

 

/ will not leave thee, thou lone one!

To pine on the stem, Since the lovely are sleeping,

Go sleep with them...*1

 

Nunca o jovem engenheiro se julgara particularmente sensível à poesia, e contudo aquela penetrou-o profundamente. Ficou ao pé da janela, com a respiração suspensa, a escutar, ou, antes, a beber aquelas dulcíssimas palavras. Parou o canto. Miss Watkins distribuía a comida aos avestruzes, e fazia gosto vê-los estender os compridos pescoços e os bicos desastrados para a mãozinha brincalhona de sua dona. Depois, quando acabou a distribuição, a inglesa voltou cantando sempre:

 

It is the last rose of summer.

Left blooming alone...

Oh! who would inhabit

This black world alone?... *2.

 

Cipriano estava em pé, no mesmo lugar, com os olhos humedecidos, como que paralisado por um encantamento.

Afastava-se a voz; Alice ia entrar em casa, já não estava distante dela mais de vinte metros, quando um ruído de passos precipitados a fez voltar-se e logo parar.

Era Cipriano que, por um movimento irreflectido, mas irresistível, saíra de casa com a cabeça descoberta, e corria atrás dela.

— Menina Alice!

— Sr. Méré?

E agora estavam um defronte do outro, à luz do Sol nascente,

 

*1. Não te deixarei abandonada, / penar na tua haste. / Já que as outras formosas estão dormindo, / vai dormir com elas.

  1. É a última rosa do Verão, / deixada sozinha em flor... / Quem poderá viver só neste mundo / neste mundo tão frio?...

 

no caminho que rodeava a granja. Na paisagem árida recortavam-se perfeitamente as suas sombras elegantes sobre a barreira de madeira branca. Agora, que Cipriano tinha chegado junto da jovem, parecia espantado do seu acto e conservava-se calado, indeciso.

— Tinha alguma coisa que me dizer, Sr. Méré? — perguntou ela com interesse.

— Tenho de lhe fazer as minhas despedidas, menina Alice! Parto hoje mesmo! — disse ele com voz pouco firme.

— Partir? O senhor quer partir? Para onde? — inquiriu, muito perturbada.

— Para a minha terra... para França — informou Cipriano. — Os meus trabalhos aqui estão acabados! Está a terminar a minha missão... Não tenho nada mais a fazer na Gricualândia e sou obrigado a voltar a Paris!

E falando assim, com voz entrecortada, tinha a expressão de um criminoso que se desculpa.

— Ah! Sim! É verdade! Assim devia ser! — balbuciou Alice, sem saber muito bem o que dizia.

A jovem estava aniquilada pelo espanto. Aquela notícia surpreendia-a em plena felicidade inconsciente, como se tivesse recebido uma pancada de maçã. Súbito formaram-se-lhe nos olhos grossas lágrimas, que vieram pendurar-se nas longas pestanas que os ensombravam. E, como se esta explosão de mágoa a trouxesse de novo à realidade, achou alguma força para sorrir:

— Partir? — continuou ela. — E então a sua discípula dedicada? Quer deixá-la assim, sem ter acabado o curso de química? Quer que fique no oxigénio e que os mistérios do azoto sejam para sempre letra morta para mim? Isso não é bonito!

Tentava mostrar boa cara e brincar, mas o tom da voz desmentia-lhe as palavras. Sob aquele gracejo escondia-se profunda censura, que foi direita ao coração do jovem. Dizia-lhe em linguagem vulgar:

“E então eu? Não valerei alguma coisa? Assim me torna a sepultar no nada? Veio o senhor mostrar-se aqui, no meio destes bóeres e destes mineiros ávidos, como um ser superior e privilegiado, sábio, altivo, desinteressado, verdadeiramente superior! Associou-me aos seus estudos e trabalhos! Abriu-me o seu coração e fez-me compartilhar as suas altas ambições, as preferências literárias, os gostos artísticos! Mostrou-me a distância que vai de um pensador como o senhor a estes bímanos que me rodeiam! Pôs tudo em obra para se fazer admirar e estimar! Conseguiu-o! E agora vem dizer-me, assim de repente, que se vai embora, que se acabou a festa, que volta para Paris, e que se apressa a esquecer-me! E imagina o senhor que hei-de ver este desenlace com filosofia?”

Sim, de tudo isto havia nas palavras de Alice, diziam-no tão claramente os seus olhos humedecidos, que Cipriano esteve quase a responder a esta censura tácita mas eloquente. Pouco faltou para que exclamasse:

“É preciso! Pedi ontem a seu pai que a deixasse ser minha mulher! Recusou, sem ao menos me deixar uma esperança! Compreende agora porque é que eu parto?”

Lembrou-se a tempo da sua promessa. Comprometera-se a nunca falar à filha de John Watkins do sonho que tinha formado, e julgar-se-ia desprezível se não mantivesse a sua palavra.

Mas ao mesmo tempo percebia quanto era brutal e quase selvagem este projecto de partida imediata, decidido tão subitamente, debaixo da impressão do seu mau êxito. Parecia-lhe impossível abandonar assim, sem preparação, sem demora, aquela encantadora criança que ele amava e que lhe retribuía — via-se bem claramente — um afecto tão sincero e tão profundo.

Causava-lhe agora horror a resolução que duas horas antes se lhe tinha imposto com o carácter da mais imperiosa necessidade. Nem sequer ousava confessá-la. De repente, renegou-a.

— Quando falo em partir, menina Alice — emendou ele — , não é esta manhã... nem mesmo hoje, penso eu! Ainda tenho de tomar apontamentos, de concluir preparativos! Em todo o caso, terei a honra de a tornar a ver e de conversar consigo... a respeito do seu plano de estudos!

, E com isto, voltando rapidamente as costas, Cipriano deitou a fugir como um louco, voltou à sua cabana, atirou-se para cima da poltrona de madeira e pôs-se a reflectir profundamente.

Mudara a corrente dos seus pensamentos.

“Renunciar a tanto encanto por não ter um pouco de dinheiro! — disse ele consigo. — Abandonar a partida logo ao primeiro obstáculo! Será isto um acto tão cheio de coragem como eu imagino? Não seria melhor sacrificar alguns preconceitos e tentar fazer-me digno dela? Tanta gente faz fortuna em poucos meses a procurar diamantes! Porque não havia de fazer eu o mesmo? Quem me impede a mim de desenterrar uma pedra de cem carates, como tem acontecido a outros, ou, melhor ainda, de descobrir um novo jazigo? Com certeza tenho mais conhecimentos teóricos e práticos do que todos esses homens? Porque é que a ciência não me havia de dar a mim o que o trabalho, auxiliado por alguma sorte, lhes deu a eles? E, no fim de contas, não arrisco muito em experimentar! Mesmo debaixo do ponto de vista da minha missão, não pode deixar de ser útil para mim o lançar mão do alvião e provar o ofício de mineiro! E, se for feliz, se vier a enriquecer por este meio primitivo, quem sabe se John Watkins abrandará o seu rigor e se desdirá da primeira decisão? O prémio da aventura merece bem que a tente!”

Cipriano pôs-se novamente a passear no laboratório; mas agora tinha os braços ociosos, e só trabalhava com o pensamento.

De repente, parou, conservando-se meditativo, pôs o chapéu na cabeça e saiu.

Tomou o carreiro que levava à planície e dirigiu-se a passos largos para o Vandergaart-Kopje.

Em menos de uma hora chegou lá.

Naquele momento a turba dos mineiros voltara ao acampamento para o segundo almoço. Cipriano, passando em revista aqueles rostos crestados, perguntava a si mesmo a quem se dirigiria para obter as informações que lhe eram necessárias, quando reconheceu num grupo a cara leal de Tomás Steel, o ex-mineiro do Lancashire.

Já por duas ou três vezes, depois da sua chegada à Gricualândia, tivera ocasião de o tornar a ver e de reconhecer que o excelente rapaz prosperava a olhos vistos, como indicavam suficientemente a sua fisionomia alegre, o fato novinho do trinque e, sobretudo, o recheado cinto que ele ostentava.

Cipriano decidiu-se a falar-lhe e comunicar-lhe os seus projectos — o que fez em poucas palavras.

— Arrendar um claim? Nada mais fácil, se o senhor tem dinheiro. Há justamente um ao pé do meu! Quatrocentas libras esterlinas*; é de graça. Com cinco ou seis pretos que o explorem por sua conta, tem o senhor a certeza de tirar pelo menos setecentos a oitocentos francos de diamantes por semana!

— Mas eu não possuo dez mil francos e não tenho nem um moleque! — declarou Cipriano.

— Pois então compre uma parte de claim — um oitavo ou mesmo meio oitavo — e trabalhe o senhor mesmo nele! Para essa aquisição bastarão uns mil francos!

— Isso talvez me fosse mais fácil — respondeu o jovem engenheiro. — Mas como é que o senhor se arranjou, se não é curiosidade? Veio para aqui com algum capital?

— Cheguei aqui com estes dois braços e com três pesetas de ouro na algibeira. Mas tive sorte. Primeiro trabalhei a meias num oitavo, cujo dono gostava mais de ficar no botequim do que de tratar dos seus negócios. Combinou-se que repartiríamos os achados, e eu fiz alguns sofríveis, principalmente uma pedra de cinco carates, que vendemos por duzentas libras esterlinas. Então cansei-me de trabalhar para aquele vadio e comprei um meio oitavo, que explorei sozinho. Mas, como só lá apanhava pedras pequenas, descartei-me dele há dez dias. Agora ando outra vez a trabalhar de meias no claim de um homem da Austrália, mas nesta primeira semana nós dois ainda não arranjámos senão cinco libras.

— E se eu achasse uma boa parte de claim, para comprar, que não fosse muito cara, o senhor estaria disposto a associar-se comigo para a exploração? — perguntou o jovem engenheiro.

— Estava — respondeu Tomás Steel — , mas com uma condição: que cada um de nós havia de ficar com o que achasse.

Não é porque eu desconfie, Sr. Méré. Mas quer o senhor saber? Depois que aqui estou tenho observado que perco sempre com as partilhas, porque parece que a picareta e o alvião me conhecem, e safo duas ou três vezes mais trabalho do que os outros!

— Isso, francamente, não deixa de me parecer justo — respondeu Cipriano.

— Ah! — exclamou de repente o Lançashireman, interrompendo-se. — Uma ideia, e talvez seja boa! Se nós ambos tomássemos um dos claims de John Watkins?

Como diz? Um dos claims? Pois não lhe pertence todo o terreno do Kopje?

— Certamente, Sr. Méré, mas o senhor sabe que o governo colonial apossa-se dele logo que se reconhece como jazigo de diamantes. O governo é que administra, faz o cadastro e divide os claims, ficando com a maior parte do preço de cessão e pagando ao proprietário apenas uma prestação certa. Na verdade, quando um Kopje é tão vasto como este, essa prestação dá ainda um lindo rendimento, e demais o proprietário tem sempre a preferência para tornar a comprar tantos claims quantos possa explorar. Ora é este justamente o caso de John Watkins. Tem uns poucos em exploração, além do domínio directo de toda a mina. Mas não pode explorá-los tão bem como desejaria, porque a gota não o deixa vir ao terreno, e parece-me que havia de fazer o negócio em boas condições se o senhor quiser propor-lhe o arrendamento de um claim.

— Preferia que o negócio se arranjasse entre o senhor e ele — respondeu Cipriano.

— Não seja essa a dúvida — acedeu Tomás Steel. — -E podemos já tirar o negócio a limpo.

Três horas depois, o meio claim número 942, devidamente demarcado com estacas e reconhecido na planta, era arrendado segundo as formas legais aos Srs. Méré e Tomás Steel, mediante o pagamento do prémio de sessenta libras *, e depois de satisfeitos ao recebedor os direitos de patente. Além disso, estipulava-se especialmente ao arrendamento que os concessionários repartiriam com John Watkins o produto da exploração e lhe entregariam, a título de royalty, os três primeiros diamantes de mais de dez carates que porventura encontrassem. Não havia coisa alguma que demonstrasse que uma tal eventualidade se daria, mas, em suma, era possível — tudo era possível.

Em resumo, o negócio podia considerar-se excepcionalmente bom para Cipriano, e Mister Watkins assim lho declarou com a sua franqueza costumada, quando, depois de assinarem a escritura, bebiam um copo de gin.

— Meteu-se no bom caminho, meu rapaz! — dizia-lhe ele, dando-lhe pancadinhas no ombro. — O senhor dá esperanças! Não me admirava nada que viesse a ser um dos melhores mineiros da Gricualândia!

Cipriano não pôde deixar de ver nestas palavras um feliz presságio para o futuro.

E Miss Watkins, que assistira à entrevista, tinha nos olhos um raio de sol tão límpido! Não! Ninguém acreditaria que aqueles olhos haviam passado a manhã a chorar!

E demais, por acordo tácito, evitaram qualquer explicação a respeito da triste cena da manhã. Cipriano ficava, como era claro, e no fim de contas era o essencial.

O jovem companheiro partiu, pois, com o coração alegre, e a fim de fazer os seus preparativos de mudança, levando apenas alguma roupa numa pequena mala, porque contava estabelecer-se numa barraca na Vandergaart-Kopje e voltar à granja só para passar alguns momentos de descanso.

 

         PRIMEIRA EXPLORAÇÃO

Os dois sócios começaram a trabalhar logo no dia seguinte de manhã. O claim deles estava situado perto da borda do Kopje e devia ser rico no caso de ter fundamento a teoria de Cipriano Méré. Infelizmente, esse claim tinha sido já explorado activamente e mergulhava pela terra dentro até à profundidade de cinquenta e tantos metros.

Mas, por outro lado, isto era uma vantagem, porque, achando-se por esta forma a um nível inferior aos dos claims vizinhos, aproveitava, segundo a lei do país, todas as terras e por conseguinte todos os diamantes que nele pudessem cair das proximidades.

O trabalho era simplicíssimo. Os dois sócios começavam por arrancar com toda a regularidade, à picareta e alvião, uma certa quantidade de terra. Feito isto, um deles subia à borda da mina e içava ao longo do cabo de arame os baldes de terra que o outro lhe mandava de baixo.

Transportava-se em seguida a terra para a cabana de Tomás Steel. Aí, depois de a terem esmagado grosseiramente com toros de madeira e de a limparem dos seixos sem valor, faziam-na passar por um crivo de malhas de quinze milímetros por lado para separar as pedras mais pequenas, as quais eram examinadas cuidadosamente antes de serem deitadas para o refugo. Finalmente, a terra era peneirada num crivo muito apertado para separar dela o pó, e ficava então em estado de ser escolhida.

Depois de estendida sobre uma mesa, junto à qual se sentavam os dois mineiros, estes, armados com uma espécie de raspador feito de um pedaço de lata, iam-na observando           com maior cuidado, punhado a punhado, e deitavam-na para debaixo da mesa, donde era levada para fora e abandonada quando acabava o exame.

Todas estas operações tinham por objecto descobrir, se por acaso existisse, algum diamante, por vezes apenas do tamanho da metade de uma lentilha. E ainda os dois sócios se davam por muito felizes quando não passava o dia sem terem achado ao menos um desses. Empregavam grande entusiasmo nesse trabalho e joeiravam muito minuciosamente a terra do claim, mas, afinal, durante os primeiros dias os resultados foram pouco menos que negativos.

Cipriano, principalmente, parecia ter pouca sorte. Se havia na terra dele um diamante pequenino, era quase sempre Tomás Steel que o via. O primeiro que ele teve a satisfação de descobrir não pesava mais de um sexto de carate, incluindo a ganga.

O carate é um peso de quatro grãos, ou aproximadamente a quinta parte de um grama *. Um diamante de primeira água, isto é, bem puro, límpido e sem cor, vale depois de lapidado cerca de duzentos e cinquenta francos, se pesa um carate. Mas, se os diamantes mais pequenos têm um valor proporcionalmente muito inferior, o valor dos maiores cresce muito rapidamente. Calcula-se em geral que o valor venal de uma pedra de boa água é igual ao quadrado do seu peso, expresso em carates, multiplicado pelo preço corrente do mesmo carate. Por conseguinte, supondo que o preço do carate é de duzentos e cinquenta francos, uma pedra de dez carates, da mesma qualidade, valerá cem vezes mais, isto é, vinte e cinco mil francos.

Mas as pedras de dez carates e mesmo as de um carate são raríssimas. E é exactamente por isso que elas são tão caras. Por outro lado, os diamantes da Gricualândia têm quase todos uma cor amarelada — o que diminui consideravelmente o seu valor em joalharia.

O achado de uma pedra pesando um sexto de carate, no fim de sete ou oito dias de trabalho, era pois fraquíssima compensação de todas as dificuldades e fadigas que * Exactamente 0,2052

ela tinha custado. Por aquele preço mais valia lavrar a terra, apascentar o gado, ou britar pedra nas estradas. Era isto que Cipriano dizia consigo.

Entretanto, a esperança de encontrar um bom diamante que recompensasse de uma só vez o trabalho de muitas semanas, e mesmo de muitos meses, sustentava-o a ele, como sustenta a todos os mineiros, ainda os que têm menos fé. Tomás Steel, esse, trabalhava à maneira de máquina, sem pensar em tal, em consequência da velocidade adquirida — pelo menos aparentemente.

Os dois sócios almoçavam sempre em comum, contentando-se com sanduíches e cerveja, que compravam num restaurante ao ar livre, mas jantavam em uma das numerosas mesas-redondas por onde se repartia a freguesia do acampamento. À noite, depois de se separarem, para ir cada um para seu lado, Tomás Steel dirigia-se para qualquer sala de bilhar, ao passo que Cipriano ia passar uma ou duas horas na granja.

Aí tinha o jovem engenheiro muitas vezes o desgosto de encontrar o seu rival, James Hilton, um rapaz alto, de cabelos ruivos, e com a face crivada de sardas. Não se podia duvidar que este rival fazia rápidos progressos no favor de John Watkins, bebendo ainda anis gin e fumando ainda mais tabaco de Hamburgo do que ele.

É verdade que Alice, segundo se podia observar, parecia desdenhar completamente as elegâncias campónias e a conversa pouco elevada do jovem Hilton. Mas nem assim a presença dele deixava de ser incómoda para Cipriano. Por isso, algumas vezes, não podendo aturá-la, sentindo-se incapaz de se conter, dava as boas-noites à companhia e ia-se embora.

— O Frenchman não anda contente! — dizia então John Watkins, piscando um olho ao companheiro. — Pelos modos, os diamantes não lhe aparecem debaixo da picareta!

Nessas noites Cipriano ia quase sempre passar o resto do serão em casa de um bom velhote bóer, estabelecido próximo do acampamento, que se chamava Jacobus Vandergaart.

Do nome dele é que se originara o do Kopje, cujo solo ele ocupara outrora nos primeiros tempos da concessão. Até, a dar crédito ao que ele dizia, fora por uma verdadeira injustiça que lhe tinham tirado o terreno em proveito de John Watkins. Completamente arruinado agora, vivia numa cabana velha de barro pelo ofício de lapidário de diamantes, que noutro tempo tinha exercido em Amesterdão, sua cidade natal.

Com efeito, acontecia muitas vezes que os mineiros, curiosos de saber o peso exacto das suas pedras depois de lapidadas, lhas levavam ou para as clivar ou para as sujeitar a operações mais delicadas. Mas este trabalho exige mão certa e boa vista, e o velho Jacobus Vandergaart, excelente artista no seu tempo, tinha hoje muita dificuldade em executar as encomendas.

Cipriano, que lhe deu a montar em anel o seu primeiro diamante, sentira bem depressa afeição por esse homem. Gostava de ir sentar-se na modesta oficina para palestrar um bocado ou simplesmente para lhe fazer companhia enquanto ele trabalhava no banco de lapidário. Jacobus Vandergaart, com a barba branca, a cabeça calva coberta com um barretinho de veludo preto, e o comprido nariz ornado de óculos redondos, parecia exactamente um velho alquimista do século XV no meio dos seus instrumentos de forma pouco vulgar e dos frascos dos ácidos.

Dentro de uma escudela, posta sobre um banco colocado próximo da janela, achavam-se os diamantes brutos confiados a Jacobus Vandergaart, e cujo valor era por vezes considerável. Quando ele queria clivar um diamante cuja cristalização lhe não parecia perfeita, começava por verificar bem, com auxílio de uma lente, a direcção das superfícies de clivagem que dividem todos os cristais em lâminas de faces paralelas; depois, com o fio de um diamante já clivado, fazia uma incisão na direcção desejada, introduzia nela uma pequena folha de aço e dava uma pancada seca.

O diamante achava-se clivado em uma face, e a operação repetia-se então nas outras.

Se, pelo contrário, Jacobus Vandergaart queria lapidar a pedra, ou, para falar com mais clareza, gastá-la segundo uma determinada forma, começava por decidir qual a figura que lhe queria dar, desenhando a giz na ganga as facetas projectadas. Depois colocava sucessivamente cada uma dessas faces em contacto com um outro diamante, e submetia-os a prolongada fricção um contra o outro. As duas pedras gastavam-se mutuamente e pouco a pouco ia-se formando a faceta.

Por este modo, Jacobus Vandergaart conseguia dar à gema uma das formas hoje consagradas pelo uso, e que todas se incluem nas três grandes divisões seguintes: o brilhante duplo, o brilhante simples e o brilhante-rosa.

O brilhante duplo compõe-se de sessenta e quatro facetas, além de duas faces mais largas, a maior das quais se chama a mesa e a outra a culatra.

O brilhante simples figura apenas a metade de um brilhante duplo.

O brilhante-rosa tem a parte inferior plana e a superior apresenta uma pirâmide de vértice para cima com facetas.

Por excepção raríssima aparecia de vez em quando para lapidar uma briolette, isto é, um diamante sem superfície plana inferior nem superior, apresentando a forma de uma pequena pêra. Na índia costuma fazer-se um furo na extremidade mais delgada das briolettes para lhe meter um cordão.

Pelo que diz respeito às pendeloques que o velho artista com mais frequência tinha ocasião de lapidar, são elas meias-peras com mesa e culatra, carregadas de facetas na parte anterior.

Depois de lapidado o diamante, restava poli-lo para que o trabalho ficasse concluído. Essa operação efectua-se empregando uma mó, espécie de disco de aço, de cerca de vinte e oito centímetros de diâmetro, assente na mesa, e que, pela acção de uma roda grande e de uma manivela, gira sobre um eixo à razão de duas ou três mil revoluções por minuto. De encontro a este disco, humedecido com óleo e salpicado com pó proveniente dos diamantes precedentemente lapidados, Jacobus Vandergaart comprimia uma após outra as faces da pedra até elas adquirirem um perfeito polido. À manivela dava umas vezes um rapazito hotentote contratado aos dias, quando era necessário, outras um amigo como Cipriano, que nunca se recusava a prestar-lhe esse serviço por mera cortesia.

De mistura com o trabalho conversava-se. Muitas vezes mesmo Jacobus Vandergaart, pondo os óculos para a testa, parava de repente para contar alguma anedota dos tempos passados. Efectivamente sabia tudo a respeito daquela África Austral, onde habitava havia quarenta anos. E a sua conversação tinha tanto encanto exactamente porque reproduzia a tradição do país — tradição ainda fresca e viva.

Em primeiro lugar, o velho lapidário nunca tinha diques para as suas queixas patrióticas e pessoais. Na sua opinião, os Ingleses eram os espoliadores mais abomináveis que têm aparecido no mundo. Contudo, devemos deixar-lhe a responsabilidade das suas opiniões, um pouco exageradas, e perdoar-lhas talvez.

— Não admira nada — repetia ele de bom grado — que os Estados Unidos da América se declarassem independentes; a índia e a Austrália não hão-de tardar muito a fazer o mesmo! Pois qual é o povo que quer tolerar semelhante tirania!? Ah! Sr. Méré, se o mundo soubesse todas as injustiças semeadas pelo Globo por estes Ingleses, tão soberbos com os seus guinéus e com o seu poder naval, não haveria na linguagem dos homens suficientes insultos para lhes atirar à cara!

Cipriano não aprovava nem reprovava: ouvia sem dizer palavra.

— Quer o senhor que lhe conte o que eles fizeram a este seu criado — continuava Jacobus Vandergaart, animando-se. — Oiça e dir-me-á se neste caso pode haver duas opiniões diversas!

E, como Cipriano lhe afirmasse que nada lhe daria mais gosto, o velhote continuou assim:

— Nasci em Amesterdão em 1806, durante uma viagem que meus pais fizeram àquela cidade. Voltei lá mais tarde para aprender o meu ofício, mas passei toda a minha infância no Cabo, para onde minha família emigrara havia uns cinquenta anos. Éramos holandeses e muito orgulhosos de o ser, quando a Grã-Bretanha se apoderou da colónia — a título provisório, dizia ela. Mas John Buli nunca larga o que uma vez agarrou, e em 1815 fomos solenemente declarados súbditos do Reino Unido pela Europa reunida em congresso!

“Veja o senhor em que se mete a Europa a propósito das províncias africanas!

“Súbditos ingleses! Mas isso é que nós não queríamos ser, Sr. Méré. Portanto, pensando que a África era bastante grande para nos dar uma pátria que fosse verdadeiramente nossa — só nossa! — , deixámos a colónia do Cabo para nos metermos por essas terras selvagens que limitavam o país pelo norte. Chamavam-nos bóeres, isto é, aldeões, ou também worrtrekkers, que quer dizer exploradores avançados.

“Mal tínhamos arroteado aqueles territórios ainda novos, mal tínhamos alcançado à força de trabalho uma existência independente, veio logo o Governo britânico reclamá-los como seus — sempre com o pretexto de que nós éramos súbditos ingleses!

“Foi então que se realizou o nosso grande êxodo. Era em 1833. Novamente emigrámos em massa. Carregámos os carrões puxados por bois, com os nossos móveis, instrumentos e sementes, e metemo-nos para a frente por esse deserto.

“Naquela época o território do Natal estava quase inteiramente despovoado. Entre 1812 e 1828 tinham sido exterminados mais de um milhão de seres humanos por um conquistador sanguinário, chamado Tchaka, verdadeiro Átila negro da raça dos Zulos. O seu sucessor, Din-gaan, reinava ainda pelo terror. Foi este rei selvagem que nos deu licença para nos estabelecermos no país onde hoje se levantam as cidades de Durban e de Porto Natal.

“Mas esse grandíssimo patife deu-nos tal autorização com o pensamento reservado de nos atacar quando o nosso estado fosse próspero. Mas também todos nos armámos para a resistência, e foi à custa de esforços inauditos e, posso dizê-lo, de prodígios de valor em mais de cem combates, nos quais as nossas mulheres e até os nossos filhos lutavam a nosso lado, que pudemos ficar na posse daquelas terras, regadas com o nosso suor e com o nosso sangue.

«Ora, apenas tínhamos definitivamente triunfado do déspota negro e destruído o seu poder, quando o governador do Cabo mandou uma coluna britânica com a missão de ocupar o território do Natal, em nome de Sua Majestade a rainha de Inglaterra! Já o senhor vai vendo: éramos súbditos ingleses! Isto passava-se em 1842.

"Outros emigrantes nossos compatriotas tinham, por modo idêntico, conquistado o Transval e aniquilado no rio Orange o poder do tirano Moselekatze. Também eles viram confiscada, por uma simples ordem do dia, a nova pátria que com tanto sofrimento tinham pago!

“Passo em claro as minúcias. Esta luta durou vint anos. Nós a avançarmos cada vez mais e sempre a GrãBretanha a estender a ávida mão sobre nós, como se fossem os servos que pertencêssemos à sua gleba, ainda mesmo depois de a termos abandonado!

"Finalmente, ao cabo de muitos trabalhos e lutas sangrentas, foi-nos possível fazer reconhecer a nossa independência no Estado Livre de Orange. Uma proclamação real, assinada pela rainha Vitória e com a data de 8 de Abril de 1854, garantia-nos a livre posse das nossas terras e o direito de nos governarmos à nossa vontade. Constituímo-nos definitivamente em república e pode dizer-se que o novo Estado, fundado no respeito escrupuloso das leis, no livre desenvolvimento das energias individuais e na instrução espalhada a fluxo por todas as classes, poderia ainda servir de modelo a muitas nações, que devem julgar-se mais civilizadas do que um pequeno Estado da África Austral!

“A Gricualândia fazia parte dele. Foi então que eu me estabeleci, como lavrador, na própria casa onde estamos neste momento, com a minha santa companheira e dois filhos que tinha. Foi então que tracei o meu kraal ou cercado para o gado exactamente no sítio da mina onde o senhor trabalha. Dez anos depois, John Watkins chegou a esta terra e fez a sua primeira cabana. Ignorava-se então que houvessse diamantes nestes terrenos; eu por mim tinha tão poucas ocasiões, havia mais de trinta anos de praticar o meu antigo ofício, que mal me lembrava da existência de tais pedras preciosas.

"De repente, aí por 1867, espalhou-se o boato de que as nossas terras eram diamantíferas. Um bóer das margens do Hart achara diamantes até no excremento dos seus avestruzes, até nas paredes de argila da granja *.

“Imediatamente o Governo inglês, fiel ao seu sistema de se atravessar, desprezando todos os tratados e todos os direitos, declarou que a Gricualândia lhe pertencia.

“Debalde a nossa República protestou! Debalde propôs submeter a questão à arbitragem de um chefe de Estado europeu! A Inglaterra recusou a arbitragem e ocupou o nosso território.

"Podia ao menos esperar-se que os nossos injustos dominadores respeitassem os direitos particulares! Por minha parte, tendo ficado viúvo e sem filhos depois da terrível epidemia de 1878, já me não sentia com ânimo para ir procurar nova pátria, arranjar novo lar — o sexto ou sétimo da minha longa carreira! Fiquei pois na Gricualândia. Fui quase o único que se conservou estranho a essa febre de diamantes que se apoderava de toda a gente, e continuei a cultivar a minha horta como se a um tiro de espingarda da minha casa não se tivesse descoberto o jazigo de Du-Toit's-Pan!

Ora qual não foi um dia o meu espanto quando verifiquei que o muro do meu kraal, feito de pedras secas, ao uso da terra, tinha sido demolido durante a noite e transportado para o meio da planície, a trezentos metros de distância! No lugar do meu, John Watkins, ajudado por um cento de cafres, tinha feito outro, que se ligava com o dele e que fechava no seu terreno uma elevação de terra arenosa e avermelhada que fora até aquele momento propriedade minha sem contestação.

“Queixei-me ao espoliador... Pôs-se a rir. Ameacei-o de o demandar... Disse-me que não me metesse nisso!

“Três dias depois tinha a explicação do enigma, i Aquela elevação de terreno, que me pertencia, era uma mina de diamantes. John Watkins, tendo-se certificado disso, apressara-se em fazer a mudança do meu cercado; depois correra a Kimberley para fazer registar oficialmente a mina em seu nome.

"Pus-lhe demanda! Nunca o Sr. Méré saiba quanto custam demandas em terras de Ingleses! Perdi um a um os meus bois, os cavalos, os carneiros! Cheguei a vender a mobília e até os trapos para sustentar essas sanguessugas humanas chamadas sollicitors, attorneys, sherifp, oficiais de justiça! Numa palavra, ao cabo de um ano de marchas e contramarchas, de demoras, de esperanças sempre enganosas, de ansiedades e desesperos, a questão de propriedade foi enfim definitivamente resolvida em segunda instância, sem recurso nem apelação possível...

“Perdi a demanda, e ainda por cima ficava arruinado. A sentença em boa forma declarava as minhas pretensões mal fundadas, rejeitava os meus embargos, e dizia que se tornava impossível ao tribunal reconhecer claramente o direito recíproco das partes, mas que era preciso para o futuro fixar-lhe um limite razoável e por isso sentenciavam que o vigésimo quinto grau de longitude a leste do meridiano de Greenwich fosse a linha que dali em diante devia separar as duas propriedades.

“O terreno situado para o poente desse meridiano devia ser julgado pertencente a John Watkins, e o terreno situado ao nascente a Jacobus Vandergaart.

“Ora o que parece que ditou aos juizes tão singular decisão foi que efectivamente o tal vigésimo quinto grau de longitude passa, nas cartas dos distritos, através do território que o meu kraal tinha ocupado.

Mas, infelizmente, a mina estava do lado do poente. E por isso está de ver que coube a John Watkins!

“E contudo, como para tornar indelével como uma nódoa a opinião que o país conservou acerca dessa sentença iníqua, ficaram sempre chamando à mina o Van-dergaart-Kopjel “E então, Sr. Méré, não tenho alguma razão em dizer que os Ingleses são uns trastes? — perguntou o velho bóer ao terminar a sua verídica história.

 

         COSTUMES DO ACAMPAMENTO

O leitor decerto concordará que o assunto daquelas conversas não era muito agradável ao jovem engenheiro. Não podia por forma alguma gostar de ouvir tais informações acerca da honestidade do homem a quem continuava a considerar como seu futuro sogro. Foi por isso que bem depressa se habituou a supor que a opinião de Jacobus Vandergaart a respeito do negócio de Kopje era uma ideia fixa de demandista, em que havia muito a descontar.

John Watkins, a quem Méré um dia disse duas palavras sobre o caso, deu em resposta uma grande gargalhada, e, abanando a cabeça, bateu na testa com o dedo indicador como para dizer que o juízo do velho Vandergaart ia cada vez a menos!

Efectivamente, não seria possível que, sem motivos bastantes, se tivesse metido na cabeça do velho, impressionado pela descoberta do jazigo diamantífero, que a mina era propriedade sua? Afinal de contas os tribunais não tinham achado o menor fundamento à pretensão dele e parecia pouco verosímil que os juízes não tivessem adoptado a teoria que melhor se justificava. Tais eram os argumentos que o jovem engenheiro formulava para se desculpar consigo mesmo de continuar a ter relações com John Watkins depois de saber o que Jacobus Vandergaart pensava a respeito dele.

Um outro vizinho do acampamento, a cuja casa Cipriano também gostava de ir de vez em quando, por encontrar lá a vida do bóer em toda a sua cor original, era um fazendeiro chamado Mathys Pretorius, muito conhecido de todos os mineiros da Gricualândia.

Também este homem, apesar de ter apenas uns quarenta anos, vagueara muito tempo pela vasta bacia do Orange antes de ir estabelecer-se naquela terra. Mas uma tal existência nómada não tivera o efeito de o emagrecer e tornar irritável, como acontecera ao velho Jacobus Vandergaart. Pelo contrário, tinha-o estonteado e feito engordar a ponto que mal podia andar. Podia-se comparar com um elefante.

Mathys Pretorius passava a vida quase sempre sentado numa imensa cadeira de braços, feita de madeira, e com dimensões especiais adequadas às suas formas majestosas, e só saía em um carrinho de verga puxado por um avestruz gigantesco. A facilidade com que a pernalta arrastava aquela enorme massa dava ideia aproximada da sua força muscular.

Mathys Pretorius costumava ir ao acampamento para liquidar com os donos dos botequins alguns negócios de legumes. Era muito popular, mas a falar verdade essa popularidade era pouco digna de inveja, porque se fundava na excessiva pusilanimidade do pobre homem. Por isso os mineiros gostavam de lhe causar horríveis sustos, metendo-lhe enormes carapetões.

Umas vezes anunciavam-lhe uma invasão iminente dos Basutos ou dos Zulos! Outras vezes fingiam, na presença dele, ler em um jornal um projecto de lei cominando a pena de morte a todo o indivíduo que nas possessões britânicas se provasse que pesava mais de trezentas libras! Ou então diziam que se tinha visto um cão danado na estrada de Driesfontein, e o pobre Mathys Pretorius, que tinha de passar por essa estrada para voltar para casa, achava mil pretextos para ficar no acampamento.

Mas estes medos quiméricos eram nada comparados com o sincero terror que ele tinha de ver descobrir uma mina de diamantes na sua propriedade! Imaginava de antemão e com horríveis cores o que aconteceria então, se esses homens ávidos, invadindo-lhe a horta e destruindo-lhe os talhões, ainda por cima viessem a expropriá-lo! Pois quem duvidaria que ele havia de ter a sorte de Jaco-bus Vandergaart? Os Ingleses sempre haviam de achar razão para demonstrar que a terra era deles.

Quando tais pensamentos sombrios se lhe apossavam do espírito, ficava com a morte na alma. Se por acaso via um prospector * vagueando em volta da casa dele, perdia a vontade de comer e de beber! E, contudo, cada vez engordava mais!

Um dos seus perseguidores mais encarniçados agora era Aníbal Pantalacci. Este perverso napolitano — a quem, entre parênteses, a fortuna parecia sorrir, pois já empregava três cafres no seu claim e ostentava um enorme diamante no peitilho da camisa — descobrira o fraco do desgraçado bóer. Uma vez por semana entregava-se ao prazer bem pouco engraçado de ir fazer sondagens ou dar algumas cavadelas nas proximidades da granja Pretorius.

Esta propriedade, situada na margem esquerda do Val, a cerca de duas milhas acima do acampamento, tinha terreno de aluviões que efectivamente podiam muito bem ser diamantíferos, apesar de até então não ter aparecido o menor indício de que o fossem.

Aníbal Pantalacci, para tornar completa a tola comédia, tinha o cuidado de se mostrar muito, exactamente defronte das janelas de Mathys Pretorius, e quase sempre levava consigo alguns sócios para lhes dar o gosto de assistirem à caçoada.

Podia então observar-se o pobre homem, meio escondido atrás do cortinado de chita, seguindo com ansiedade os movimentos dos sujeitos, espiando-lhes os gestos, pronto a correr ao curral e meter o avestruz ao carro para fugir, se se visse ameaçado de uma invasão na propriedade.

Mas também para que tivera ele a desgraçada ideia de contar a um amigo que conservava a passarola do carrinho arreada de dia e de noite e a caixa do mesmo carro cheia de provisões para estar pronto a safar-se ao primeiro sintoma decisivo?

— Vou para os Boximanes, para o norte do Limpopo!

— dizia ele. — Há dez anos negociava eu com eles em marfim, e palavra de honra que vale mais cem vezes viver no meio dos selvagens, dos leões e dos chacais do que ficar entre estes ingleses insaciáveis!

Ora o confidente do desgraçado lavrador, segundo o costume invariável de todos os confidentes, não teve coisa que lhe desse maior cuidado do que foi o tornar do domínio público estes projectos! Escusado será dizer que Aníbal Pantalacci se aproveitava de tudo isto para maior gáudio dos mineiros do Kopje.

Outra vítima habitual dos divertimentos de mau gosto do napolitano era, como no princípio, o china Li.

Também este se estabelecera no Vandergaart-Kopje, montando simplesmente uma lavandaria, e toda a gente sabe como os filhos do Celeste Império são hábeis neste ofício.

Efectivamente, aquela famosa caixa encarnada, que tanto dera no goto a Cipriano nos primeiros dias da viagem do Cabo para a Gricualândia, apenas continha escovas, soda, paus de sabão e anil. Mas não era preciso mais para um china inteligente fazer fortuna naquela terra!

Na verdade, Cipriano não podia deixar de sorrir-se quando via o Li, sempre calado e reservado, carregando com o grande cabaz de roupa branca que levava aos fregueses.

Mas o que o fazia desesperar era ver que Aníbal Pantalacci era verdadeiramente feroz para com o pobre diabo. Entornava-lhe garrafas de tinta na tina da barrela, estendia-lhe cordas através da porta para o fazer cair, pregava-o ao banco espetando-lhe uma faca na aba da blusa. E sobretudo, quando tinha ocasião, nunca deixava de lhe arrumar um pontapé às pernas, chamando-lhe cão de pagão!, e, se se tinha feito freguês dele, era exactamente para se entregar a este exercício todas as semanas. Nunca achava a roupa bem clara, apesar de Li a lavar e engomar perfeitamente.

Por causa da mais pequena prega encolerizava-se de um modo espantoso e zurzia o desgraçado china, como se este fosse seu escravo.

Tais eram os grosseiros prazeres do acampamento; mas por vezes transformavam-se em tragédia. Se, por exemplo, acontecia que um preto empregado na mina fosse acusado do roubo de um diamante, toda a gente se constituía na obrigação de acompanhar o delinquente à presença do magistrado, indo-o enchendo de antemão com valentes socos. De modo que, se por acaso o juiz absolvia o acusado, já lá ficavam os sopapos por conta! E também deve dizer-se que era raro em tal caso que o acusado fosse absolvido. O juiz pronunciava mais depressa uma condenação do que comia um gomo de laranja com sal — um dos petiscos favoritos da terra. A sentença consistia de ordinário em condenar o réu a quinze dias de trabalhos forçados e a vinte chicotadas com o cat of nine tails, ou ! gato-de-nove-rabos, espécie de correias com nós, que ainda hoje se usa na Grã-Bretanha e nas possessões inglesas para açoutar os presos.

Mas havia um crime que os mineiros ainda menos perdoavam que o do roubo: era o crime de sonegamento.

Aquele ianque chamado Ward, que tinha vindo com o jovem engenheiro para a Gricualândia, teve um dia cruel experiência disso por ter a ideia de comprar diamantes a um cafre. Ora um cafre não pode legalmente possuir diamantes, pois que a lei lhe proíbe a faculdade de os comprar no claim ou de trabalhar neles por sua conta.

Mal se soube o caso — era à noite, à hora em que todo o acampamento estava em plena animação depois do jantar — , logo uma multidão furiosa se dirigiu ao botequim do culpado, saqueou-o de alto a baixo, lançando-lhe fogo em seguida, e decerto teriam pendurado o ianque na forca que alguns homens de boa vontade já tratavam de arranjar, se por felicidade dele não chegasse uma dúzia de policemen a cavalo ainda a tempo de o salvarem, levando-o preso.

Demais eram bem frequentes as cenas de violência no meio desta população misturada, fogosa, semi-selvagem.

Ali todas as raças se cruzavam, produzindo atritos, em turba heterogénea.

Ali a sede do ouro, a bebedice, a influência do clima tórrido, os maus êxitos e os desgostos, tudo concorria para perturbar os cérebros e inflamar as consciências! Se todos aqueles homens fossem felizes nas pesquisas, talvez conservassem mais sossego e fossem mais pacientes. Mas por cada um que de longe a longe tinha a sorte de encontrar uma pedra de grande valor, havia centos deles que vegetavam com custo, mal ganhando com que suprir as suas necessidades, quando não chegavam a cair na mais profunda miséria. A mina era como que um pano verde de tavolagem, no qual se arriscava não só o capital, mas também o tempo, o trabalho e a saúde! E como era diminuto o número dos jogadores felizes a quem o acaso guiava a picareta na exploração dos claims de Vandergaart-Kopjel

Era isto que Cipriano ia vendo cada dia mais claramente, e perguntava se devia ou não continuar com um ofício tão pouco remunerador, quando uma circunstância casual veio modificar o seu género de trabalho.

Certa manhã deu de cara com uns dez cafres que vinham procurar ocupação ao acampamento.

Aquela pobre gente vinha das longínquas montanhas que separam a Garraria propriamente dita do país dos Basutos. Tinham andado mais de cento e cinquenta léguas a pé ao longo do rio Orange, caminhando a um de fundo, vivendo do que encontravam pelo caminho, isto é, de raízes, de frutos silvestres e de gafanhotos. Metia medo a magreza deles; pareciam mais esqueletos do que seres vivos. Com as pernas escanifradas, os compridos troncos nus, a pele enrugada parecendo cobrir um arcaboiço vazio, com as costelas salientes e as faces encovadas, tinham mais cara de quem quer devorar um bife de carne humana do que de quem vem dar dias de bom e produtivo trabalho. Por isso ninguém se mostrava disposto a contratá-los, e eles para ali estavam acocorados à beira do caminho, indecisos, tristes, embrutecidos pela miséria.

Cipriano comoveu-se muito ao vê-los. Fez-lhes sinal que esperassem, voltou ao hotel onde costumava comer, e mandou arranjar um enorme caldeiro de farinha de milho desfeita em água a ferver, dando ordem para a levarem aos pobres diabos juntamente com algumas latas de carne de conserva e duas garrafas de rum.

Depois entregou-se ao prazer de os ver devorar este festim sem precedentes para eles.

Na verdade pareciam náufragos, salvos numa jangada ao cabo de quinze dias de jejum e angústias! Comiam tanto que em menos de um quarto de hora corriam risco de rebentar como uma granada! Para atender à sua saúde foi preciso pôr termo àquele ágape, sob pena de ver todos os convivas destruídos por uma sufocação geral!

Só um dos pretos, que apresentava fisionomia inteligente e fina — o mais novo deles, ao que parecia — , tinha posto alguma moderação na satisfação da sua fome devoradora. E, o que é mais extraordinário ainda, lembrou-se de agradecer ao seu benfeitor, coisa em que os outros não pensaram. Abeirou-se de Cipriano, pegou-lhe na mão com um impulso singelo e gracioso, e em seguida passou-a pela sua encarapinhada cabeça.

— Como te chamas? — perguntou-lhe à ventura o jovem engenheiro, comovido por este sinal de gratidão.

O cafre, que por acaso percebia algumas palavras de inglês, respondeu imediatamente:

— Matakit.

Cipriano ficou agradado do olhar puro e cheio de confiança do preto. Veio-lhe então a ideia de contratar este rapagão de forte compleição para trabalhar no seu claim, e essa ideia era boa.

“No fim de contas — disse ele consigo — , é o que toda a gente faz no distrito! Mais vale a este pobre cafre que seja eu o patrão dele do que ir cair nas unhas de um Pantalacci qualquer!))

E depois, continuando a falar, perguntou-lhe:

— Diz-me cá, Matakit, vens procurar trabalho, não é verdade?

O cafre fez um gesto afirmativo.

— Queres trabalhar comigo? Dou-te o sustento e instrumentos, e pago-te vinte xelins por mês.

Era a tabela, e Cipriano bem sabia que não podia oferecer mais sem excitar contra si todas as cóleras do acampamento. Mas já ia fazendo tenção de completar aquela mesquinha remuneração com presentes de vestuário, de objectos de uso doméstico e de tudo o que ele sabia que os cafres estimavam mais.

Por única resposta Matakit sorriu-se, mostrando duas fileiras de dentes brancos, e tornou a pôr na cabeça a mão do seu protector. Estava o contrato assinado.

Cipriano levou imediatamente consigo o servo. Escolheu na mala uma calça de linho, uma camisa de flanela, um chapéu velho, e deu-os a Matakit, que mal podia crer em tanta fortuna. Ver-se vestido com tão esplêndido trajo, mal tinha chegado ao acampamento, era coisa que excedia muito os mais atrevidos sonhos do pobre diabo. Não sabia de que modo manifestasse o reconhecimento e alegria. Pulava, ria, chorava ao mesmo tempo.

— Pareces-me bom rapaz, Matakit — disse Cipriano. — Vejo que entendes alguma coisa de inglês... Não poderias dizer algumas palavras?

O cafre fez um gesto negativo.

— Pois uma vez que assim é, proponho-te que aprendas francês — replicou Cipriano.

E sem mais detença deu a primeira lição ao discípulo, indicando-lhe os nomes dos objectos usuais e fazendo-lhos repetir.

Ora aconteceu que Matakit era não só um bom rapaz mas também um espírito inteligente, dotado de memória verdadeiramente excepcional. Em menos de duas horas tinha aprendido mais de cem palavras e pronunciava-as com bastante correcção.

O jovem engenheiro, maravilhado de tal facilidade, logo fez tenção de a aproveitar.

Foram necessários sete ou oito dias de descanso e sustento substancial para que o jovem cafre pudesse refazer-se das fadigas da viagem e ficar em estado de trabalhar. Ora esses oito dias foram tão bem empregados pelo professor e por ele que ao cabo da semana Matakit já estava habilitado a enunciar as suas ideias em francês — de um modo incorrecto é verdade, mas em suma, perfeitamente inteligível. Cipriano aproveitou este adiantamento para o mandar contar toda a sua história. Era bem simples.

Matakit nem sequer sabia o nome da sua terra, que era situada nas montanhas da banda de onde se ergue o Sol. Tudo quanto sabia dizer era que vivia lá muito miseravelmente. Quis então fazer fortuna, a exemplo de alguns guerreiros da sua tribo que se tinham expatriado; por isso tinha vindo, como eles, para o Campo dos Diamantes.

Quanto esperava ele ganhar? Simplesmente uma capa encarnada e dez vezes dez moedas de prata.

Efectivamente, os cafres desprezam o dinheiro em ouro. Isto provém de um preconceito impossível de extirpar, que lhes foi inoculado pelos primeiros europeus que com eles tiveram relações de comércio.

o que tencionava fazer com essas moedas de prata o ambicioso Matakit?

Ora! Comprava uma capa encarnada, uma espingarda e pólvora e depois voltava para o seu kraal. Chegando lá, comprava uma mulher, que trabalharia por conta dele, I tratando-lhe de uma vaca e cultivando-lhe o campo de milho! Nestas condições seria um homem de importância, um grande chefe. Toda a gente havia de invejar-lhe a espingarda e a elevada fortuna, e ele morreria cheio de anos e de consideração. Não havia mais complicações.

Cipriano ficou cismando ao ouvir este programa tão simples. Deveria modificá-lo, alargar os horizontes daquele pobre selvagem, mostrando-lhe para alvo da sua actividade conquistas mais importantes do que uma capa encarnada e uma espingarda de pederneira? Ou seria melhor deixá-lo naquela singela ignorância, para que ele pudesse ir para o seu kraal acabar em paz a vida que desejava? Grave questão, que o jovem engenheiro se não atrevia a resolver, mas que Matakit bem depressa se encarregou de decidir.

Com efeito, o jovem cafre, apenas se viu conhecendo os primeiros elementos da língua francesa, mostrou uma avidez extraordinária para aprender. Fazia perguntas constantemente, queria saber tudo, os nomes dos objectos, O uso deles, a sua origem. Depois apaixonou-se pela leitura, pela escrita, quis aprender a contar. Realmente era insaciável!

Cipriano bem depressa se decidiu. À vista de tão evidente vocação não havia que hesitar. Resolveu-se, pois, a dar todas as noites uma lição de uma hora a Matakit, que, depois do trabalho da mina, dedicava à instrução todo o tempo de que podia dispor.

Miss Watkins, comovida também por este ardor pouco vulgar, empreendeu fazer-se repetidora para as lições do jovem cafre. Além disso, ele dizia-as em voz alta durante todo o dia, já quando dava grandes enxadadas no fundo do claim, já quando içava os baldes ou escolhia as pedras.

E a sua actividade no trabalho era tão comunicativa que se propagava por todo o pessoal como um contágio, e a exploração da mina parecia fazer-se com mais cuidado.

Além disto, Cipriano tinha contratado um outro cafre da tribo de Matakit, recomendado por ele, o qual se chamava Bardik, e cujo zelo e inteligência mereciam também muito apreço.

Foi então que o jovem engenheiro teve uma sorte que ainda lhe não acontecera: achou uma pedra de perto de sete carates, que vendeu imediatamente ao corretor Na-than.

Era na verdade uma boa pechincha. Qualquer mineiro, que só procurasse remuneração normal do seu trabalho, com certeza se mostraria muito satisfeito. Sim, era verdade; mas Cipriano não o estava.

“Ainda que de dois em dois meses ou de três em três meses acontecesse uma fortuna destas — dizia ele consigo — , ficava com isto mais adiantado? Não é de um diamante de sete carates que eu preciso; é de mil ou mil e quinhentas pedras como esta... senão perco Miss Watkins, que será possuída por esse James Hilton ou outro qualquer rival tão bom como ele!”

Ora Cipriano, voltando para o Kopje, depois do lanche, num dia pesado de calor e poeira — dessa poeira encarnada, que faz cegar a gente, flutuando quase constantemente na atmosfera das minas de diamantes — , ia todo entregue àquelas tristes reflexões quando de repente recuou horrorizado ao voltar a esquina de uma cabana isolada.

Apresentava-se a seus olhos um espectáculo lastimoso.

Na lança de um carro de bois, encostado à parede da cabana com a parte posterior para o chão, estava enforcado um homem. Aquele corpo imóvel, com os pés caídos < para baixo e as mãos inertes, caía como um fio de prumo, fazendo com a lança um ângulo de vinte graus, numa toalha de luz deslumbrante.

Era sinistro.

Cipriano, primeiro estupefacto, sentiu logo um grande impulso de compaixão, quando reconheceu o china Li, pendurado pelo pescoço, por meio do próprio rabicho, entre o céu e a terra.

O jovem engenheiro não hesitou um só momento no que havia primeiro a fazer. Trepar até à extremidade da lança do carro, agarrar por baixo dos braços o corpo do paciente, içá-lo para fazer parar os efeitos da estrangulação, e em seguida cortar o rabicho com a faca de algibeira — foi para ele obra de meio minuto. Feito isto, deixou-se escorregar com precaução e pousou a carga à sombra da cabana.

Era tempo. Li ainda não estava frio. O coração batia-lhe com muito pouca força, mas batia. Bem depressa o china abriu os olhos, e, coisa singular, parecia voltar a si ao mesmo tempo que tornava a ver a luz do dia.

Na fisionomia impassível do pobre diabo, mesmo ao sair daquela temível prova, não havia nem terror nem admiração apreciável. Dir-se-ia que apenas acabava de despertar de um leve sono.

Cipriano fez-lhe engolir algumas gotas de água, cortada com vinagre, que trazia no cantil.

— Pode falar agora? — perguntou ele maquinalmente, sem se lembrar que Li não podia compreendê-lo.

Mas o china fez um gesto afirmativo.

— Quem foi que o enforcou dessa maneira?

— Fui eu — respondeu o china, sem parecer que tivesse feito uma coisa extraordinária ou repreensível.

— Você! Mas então, desgraçado, foi um suicídio premeditado? E porquê?

— Li tinha muito calor. Li andava aborrecido — respondeu o china.

E tornou a fechar os olhos como para se esquivar a mais perguntas.

Cipriano notou naquele momento a circunstância estranha de que o diálogo se tinha travado em francês.

— Fala também inglês? — continuou ele.

— Sim — respondeu Li, abrindo um pouco as pestanas. Pareciam duas casas de botões oblíquas, abertas de um e de outro lado do narizinho chato.

Cipriano julgou ver naquele olhar alguma da ironia que por vezes o surpreendera durante a viagem do Cabo para Kimberley.

— As suas desculpas são absurdas!-disse-lhe ele com severidade. — Ninguém se mata porque faz muito calor! Fale sério! Aposto que temos alguma partida do Panta-lacci?

O china abaixou a cabeça.

— Queria cortar-me o rabicho — disse ele, diminuindo o tom da voz — , e tenho a certeza de que o fazia daqui a um ou dois dias!

No mesmo instante, Li viu o famoso rabicho na mão de Cipriano, e verificou que estava consumada a desgraça que ele receava mais que tudo.

— Oh! senhor! O quê! Pois o senhor... cortou-mo! — exclamou ele com voz dilacerante.

— Assim foi preciso para o despendurar, meu amigo! — respondeu Cipriano. — Mas, que diabo!, esteja descansado que nem por isso fica a valer menos nesta terra!

O china parecia tão aflito com aquela amputação que Cipriano, receoso de que ele procurasse novo processo de suicídio, resolveu-se a voltar à sua cabana levando-o consigo.

Li seguiu-o com docilidade, sentou-se à mesa junto do seu salvador, ouviu as repreensões, prometeu que não renovava as suas tentativas, e, sob a influência de uma chávena de chá a ferver, deu mesmo algumas informações vagas a respeito da sua biografia.

Li, que nascera em Cantão, tinha sido educado para o comércio em uma casa inglesa. Depois passara a Ceilão, daí à Austrália e finalmente à África. Em nenhuma parte lhe tinha sorrido a fortuna. O ofício de lavadeiro no distrito mineiro não lhe reunia mais do que outros vinte ofícios que tinha experimentado. Mas a sua alma danada era Aníbal Pantalacci. Este homem tornava-lhe a existência insuportável; se não fosse ele, talvez se tivesse resignado com aquela vida precária na Gricualândia! Numa palavra, queria dar cabo do canastro para escapar às perseguições de Pantalacci.

Cipriano animou o pobre rapaz, prometeu-lhe que o havia de proteger contra o napolitano, deu-lhe a lavar toda a roupa branca que pôde arranjar, e mandou-o embora não só consolado mas radicalmente curado da superstição a respeito do seu apêndice capilar.

E como conseguira isso o jovem engenheiro? Simplesmente declarando a Li com toda a gravidade que a corda do enforcado dá felicidade, e que por isso lhe ia acabar o enguiço, visto que tinha o rabicho na algibeira.

— Em todo o caso, já Pantalacci não o pode cortar.

E este raciocínio, altamente chinês, completou a cura.

 

         O DESABAMENTO

avia cinquenta dias que Cipriano não tinha achado nem um só diamante na mina. Estava cada vez mais aborrecido daquele ofício de mineiro, que lhe parecia um verdadeiro logro quando se não dispõe de capital suficiente para comprar um claim de primeira qualidade e de uma dúzia de cafres para trabalhar nele.

De modo que uma bela manhã Cipriano deixou partir Tomás Steel com Matakit e Bardik, e ficou sozinho na barraca. Queria responder a uma carta de Faramundo Barthés, que lhe mandara notícias por um negociante de marfim que ia para o Cabo. Dizia o intrépido caçador que, “como os conquistadores, sustentava a guerra com a própria guerra. Não só conseguia manter com o produto da caça um pequeno corpo expedicionário, que tinha agregado à sua pessoa, mas ainda ter-lhe-ia sido fácil, se quisesse, tirar lucros importantes da venda das peles e das pontas de marfim ou das trocas com as tribos cafres entre as quais se achava”.

E terminava dizendo:

“Porque não vens dar uma volta comigo até às margens do Limpopo? Hei-de estar ali para o fim do mês que vem, e tenho tenção de descer o rio até à baía de Lourenço Marques, para voltar por mar a Durban, onde me comprometi a ir pôr os meus basutos... Deixa lá essa horrível Gricualândia por algumas semanas, e vem ter comigo...”

Cipriano estava lendo a carta de novo, quando uma formidável detonação, seguida de grande rumor em todo o acampamento, o fez levantar-se a toda a pressa e atirar-se pela barraca fora.

A turba dos mineiros, em grande desordem e comoção, precipitava-se para a mina.

“Um desabamento! — gritavam de todos os lados.

Efectivamente a noite tinha estado muito fresca, quase glacial, ao passo que o dia antecedente fora um dos mais quentes que havia muito se tinham sentido. Ora aquela espécie de cataclismos produziam-se quase sempre depois dessas mudanças repentinas de temperatura e das retracções que delas resultavam no meio do maciço das terras postas a descoberto.

Cipriano apressou-se a caminhar para o Kopje.

Chegado lá, viu de um pequeno relance o que tinha acontecido.

Um enorme lanço de terra, da altura de sessenta metros pelo menos e do comprimento de duzentos, havia-se fendido verticalmente, formando uma abertura parecida com a brecha de uma fortaleza desmantelada. Dali tinham saído muitos milhares de quintais de cascalho, que rolara por sobre os claims, enchendo-os de areias, de entulhos e seixos.

E tudo o que naquele momento se achava em cima do muro de terra, homens, bois, carrinhos, tudo havia dado um salto para o abismo e jazia no fundo.

Por felicidade, ainda o maior número de trabalhadores não tinha descido ao solo inferior da mina, aliás teria ficado soterrada metade da gente do acampamento.

O primeiro pensamento de Cipriano foi pelo seu sócio Tomás Steel. Mas depressa teve a satisfação de o reconhecer no meio dos homens que, postos à beira da brecha, procuravam conhecer a extensão do desastre. Imediatamente correu para ele e interrogou-o.

É verdade, escapámos de boa! — disse o Lancashireman, apertando-lhe a mão.

— E Matakit? — perguntou Cipriano.

— O pobre rapaz está ali debaixo! — respondeu Tomás Steel, apontando para as ruínas que se tinham amontoado na propriedade comum dos dois. — Mal o havia mandado descer, e estava à espera que ele acabasse de encher o primeiro balde para o içar, quando se deu o desabamento! — Mas nós não podemos ficar assim sem fazer nada para tentar salvá-lo! — exclamou Cipriano. — Talvez ainda viva!

Tomás Steel abanou a cabeça.

— Não é muito provável que esteja vivo debaixo de quinze ou vinte toneladas de terra — disse ele. — E, depois, eram precisos pelo menos dez homens a trabalhar dois ou três dias para limpar a mina!

— Não importa! — respondeu o jovem engenheiro resolutamente. — Não se há-de dizer que deixámos uma criatura humana enterrada nesse túmulo, sem tentarmos tirá-la!

E em seguida dirigiu-se a um dos cafres por intermédio de Bardik, que estava ali, e anunciou que dava um ordenado extraordinário de cinco xelins por dia a todos aqueles que quisessem contratar-se com ele para desentulhar a mina.

Imediatamente se ofereceram uns trinta pretos, e sem mais perda de tempo puseram mãos à obra.

Não faltavam picaretas, alviões e pás; os baldes e os cabos estavam ali prontos, os carrinhos também.

grande número de mineiros brancos, sabendo que se tratava de desenterrar um pobre diabo soterrado debaixo das terras desmoronadas, ofereceram benevolamente o seu auxílio. Tomás Steel, electrizado pelo entusiasmo de Cipriano, não era dos que se mostravam menos activos a dirigir aquela operação de salvamento.

Ao meio-dia já se tinham retirado muitas toneladas de areia e de pedras amontoadas no fundo do claim.

Às três horas Bardik deu um grito rouco: acabava de ver debaixo da picareta um pé negro saindo da terra.

Redobraram de esforços e, alguns minutos mais tarde, estava desenterrado todo o corpo de Matakit. O desgraçado cafre estava deitado de costas, imóvel ao que parecia. Por um singular acaso um dos baldes de sola, que lhe serviam no trabalho, tinha-se-lhe voltado sobre a cara, cobrindo-a como uma máscara.

Cipriano notou logo esta circunstância e pensou que talvez pudesse chamar o desgraçado à vida; mas na realidade a esperança era muito fraca porque o coração já não batia, a pele estava fria, os membros hirtos, as mãos em crispação, e o rosto — com aquela palidez lívida própria dos pretos — estava horrivelmente contraído pela asfixia.

Cipriano não perdeu o ânimo. Mandou levar Matakit para a cabana de Tomás Steel, que era a mais próxima. Estenderam-no em cima da mesa, que servia de ordinário para a escolha das pedras, e submeteram-no àquelas fricções sistemáticas e movimentos da caixa torácica, destinados a estabelecer uma espécie de respiração artificial, que é costume pôr em prática para reanimar um afogado. Cipriano sabia que este tratamento se aplica igualmente a todas as espécies de asfixia, e no caso presente não havia outra coisa a fazer, porque não se observavam nem ferimentos, nem fracturas, nem mesmo algum abalo sério.

— Olhe, Sr. Méré, ele ainda aperta na mão um bocado de terra! — fez notar Tomás Steel, que ajudava a friccionar aquele grande corpo preto.

E fazia-o com gana, o valente filho do Lancashire! Se estivesse a polir com suor da palma da mão, como se costuma dizer, a árvore de uma máquina a vapor de duzentos cavalos, decerto não aplicaria à operação um punho mais enérgico!

Estes esforços não tardaram a dar resultado apreciável. A rigidez cadavérica do jovem cafre começou a diminuir pouco a pouco. A temperatura da pele foi-se modificando sensivelmente. Cipriano, de nível com o coração do rapaz, espreitava o mais pequeno sinal de vida; pareceu-lhe sentir na mão um fraco estremecimento de bom agouro.

Bem depressa se manifestaram melhores sintomas. Começou o pulso a bater, uma leve inspiração levantou quase imperceptivelmente o peito de Matakit; e logo uma expiração mais forte indicou a volta manifesta das funções vitais.

De repente, dois valentes espirros sacudiram da cabeça até aos pés aquele grande arcabouço negro, que ainda agora estava tão completamente inerte. Matakit abriu os olhos, respirou, voltou a si.

— Viva! Viva! Está o camarada salvo! — exclamou Tomás Steel, que escorria em suor, suspendendo o trabalho. — Mas, repare, Sr. Méré, olhe que ele não é capaz de largar o tal bocado de terra que tem agarrado com os dedos.

O engenheiro tinha mais que fazer do que estar a observar coisa tão fútil! Dava ao doente uma colher de rum e erguia-o para lhe facilitar o trabalho respiratório. Finalmente, quando o viu bem senhor de si, embrulhou-o em cobertores, e, com o auxílio de dois ou três homens de boa vontade, transportou-o para a sua própria habitação na granja Watkins.

Ali deitaram o pobre cafre na cama. Bardik fê-lo tomar uma chávena de chá a fumegar. Daí a um quarto de hora Matakit adormecia com sono tranquilo e igual; estava salvo.

Cipriano sentiu no coração aquela incomparável satisfação que o homem experimenta depois de arrancar uma vida humana às garras da morte. Tomás Steel e os seus ajudantes, cheios de sede causada por tantas manobras terapêuticas, foram festejar o seu bom êxito no botequineiro mais próximo, regando-o com ondas de cerveja; mas Cipriano quis ficar ao pé de Matakit, e por isso pegou num livro, interrompendo de vez em quando a leitura só para o ver dormir, como um pai que vigia o sono do filho convalescente.

Havia seis semanas que Matakit tinha começado a servir Cipriano, e este só tinha razão para estar contente e até maravilhado com ele. A sua inteligência, docilidade e ardor pelo trabalho eram incomparáveis. Era valente, bondoso, serviçal, com génio singularmente suave e alegre. Nenhum trabalho o fazia aborrecer, nenhuma dificuldade parecia superior à sua coragem. Podia por vezes dizer-se que, se um francês fosse dotado de tais faculdades, todas as posições sociais lhe seriam acessíveis. E acontecia que tão preciosos dons tinham ido encaixar-se debaixo da pele escura e da cabeça encarapinhada de um simples cafre.

Contudo, Matakit tinha um defeito — defeito bastante grave — , que evidentemente derivava da primeira educação e dos hábitos demasiado lacedemónios que no seu kraal havia contraído. Di-lo-emos? Matakit era um tanto larápio, mas quase inconscientemente.

Quando via um objecto que lhe agradava, achava naturalíssimo apropriar-se dele.

Debalde o seu mestre, assustado ao ver esta tendência, lhe dava a este respeito repreensões severíssimas! Debalde o ameaçara de o mandar embora, se o tornasse a achar em culpa! Matakit prometia não tornar a cair noutra, chorava, pedia perdão, e no dia seguinte, se se oferecia ocasião para isso, tornava a começar.

Os furtos não eram de ordinário muito importantes. O que particularmente excitava a sua cobiça não eram coisas de grande valor: eram uma faca, uma gravata, um porta-lápis, alguma bagatela deste género. Mas ainda assim custava muito a Cipriano ver semelhante defeito em uma natureza tão simpática.

"Esperemos! Esperemos! — dizia ele com os seus botões. — Talvez eu ainda consiga fazer-lhe perceber o mal que há em furtar assim!”

E Cipriano, ao mesmo tempo que o via dormir, ia pensando naqueles contrastes extraordinários que só podiam ser explicados pelo tempo que Matakit passara entre os selvagens da sua casta!

Ao cair da noite o jovem cafre acordou tão fresco, tão bem disposto, como se não tivesse sofrido duas ou três horas de suspensão quase completa das funções respiratórias. Agora já podia contar o que tinha acontecido.

O balde, que acidentalmente se lhe encaixara no rosto, e uma comprida escada, que formara como que um botaréu por cima dele, tinham-no primeiro protegido contra os efeitos mecânicos do desabamento, e depois serviram para o livrar por bastante tempo da completa asfixia, por isso que lhe haviam deixado no fundo daquela prisão subterrânea uma pequena provisão de ar. Ele percebeu muito bem tão feliz circunstância e fez toda a diligência para a aproveitar, respirando apenas com demorados intervalos. Mas o ar tinha-se viciado pouco a pouco. Matakit ia sentindo obscurecer as suas faculdades. Finalmente, havia caído como que num sono pesado e angustioso, do qual de vez em quando despertava apenas para tentar um supremo esforço de inspiração. Depois apagara-se tudo. Já não tinha consciência do que acontecia, e estava morto... pois com certeza ele voltava da morte!

Cipriano deixou-o conversar um instante, mandou-o comer e beber, e obrigou-o, apesar dos seus protestos, a ficar aquela noite na cama em que o tinha deitado. Finalmente, tendo já a certeza de que passara todo o perigo, deixou-o só e foi fazer a visita do costume à granja Wat-kins.

O jovem engenheiro sentia necessidade de contar a Alice as suas impressões do dia, o aborrecimento que a mina lhe causava — aborrecimento aumentado ainda pelo acidente daquela manhã. Sentia o coração apertado com a ideia de expor a vida de Matakit a troco do acaso muito problemático de conquistar alguns diamantes ordinários. “Que eu me ocupe neste trabalho, vá! — pensava ele. — Mas impô-lo por um miserável salário a este desgraçado cafre, que nada me deve, é simplesmente odioso!”

Explicou, pois, à jovem quais eram as suas revoltas e desilusões. Falou-lhe da carta que tinha recebido de Faramundo Barthés. Não faria melhor em seguir o conselho do amigo?

Que perdia ele em partir para as margens do Limpopo e tentar a fortuna da caça? Seria coisa mais nobre com certeza do que esgaravatar a terra como um avarento, ou mandá-la esgaravatar, mediante paga, por alguns pobres diabos?

— Que pensa a este respeito, Miss Watkins — perguntou ele — , a menina que tem tanto juízo e senso prático? Dê-me um conselho! Preciso bem dele! Perdi o equilíbrio moral! Preciso de mão amiga que me ajude a pôr-me direito.

Assim falava ele com toda a sinceridade, achando um prazer, que nem sabia explicar, em mostrar por esta forma, àquela confidente, tão meiga e encantadora, a miséria da sua indecisão.

A conversa continuava em francês havia alguns momentos, e esta simples circunstância dava-lhe um grande carácter de intimidade, apesar de que John Watkins, que adormeceu pouco antes em cima da terceira cachimbada, nunca tinha parecido importar-se com o que os jovens diziam ou em inglês ou em qualquer outro idioma. Alice ouvia Cipriano com simpatia.

— Olhe, Sr. Méré — respondeu ela — , tudo o que o senhor me diz há muito tempo que eu o penso por si! Custa-me a perceber como um engenheiro, um sábio como o senhor, se pôde resolver voluntariamente a levar uma vida assim! Pois não é crime contra si e contra a ciência? Gastar o seu tempo tão precioso com um trabalho de operário, que qualquer cafre ou hotentote era capaz de fazer melhor do que o senhor, digo-lhe que é mal feito.

Cipriano poderia com uma só palavra explicar à jovem aquele problema que tanto a admirava e tanto lhe desagradava. E quem sabe até se ela estava exagerando algum tanto a sua indignação para ver se conseguia arrancar-lhe uma confissão? Mas essa confissão tinha ele jurado guardá-la para si, e desprezar-se-ia se a pronunciasse; por isso susteve-a nos lábios prestes a pronunciá-la. Miss Watkins continuou dizendo:

— -Se tem tanto empenho em achar diamantes, Sr. Méré, porque os não procura antes onde certamente teria probabilidade de os encontrar, no seu cadinho? Pois quê?

O senhor é químico, sabe melhor que ninguém de que são feitas essas miseráveis pedras, a que se dá tanto apreço, e vai pedi-las a um trabalho ingrato e maquinal? Eu por mim continuo na mesma ideia: se eu estivesse no lugar do Sr. Méré, procurava antes fabricar diamantes do que tentar achá-los já feitos!

Alice falava com tanta animação, com tanta fé na ciência e no próprio Cipriano, que este sentia o coração como que banhado por benéfico rocio.

Por desgraça, John Watkins despertou naquele momento do torpor em que estava, e perguntou notícias do Vandergaart-Kopje. Necessário foi portanto voltar à língua inglesa, deixar aquele aparte tão delicioso. Quebrou-se o encanto.

Mas a semente caíra em boa terra e devia germinar. O jovem engenheiro, ao voltar para casa, ia pensando naquelas palavras tão entusiásticas, e contudo tão sensatas, que Miss Watkins lhe dissera. Desaparecia a seus olhos tudo quanto elas podiam ter de quimérico para só deixarem ver a muita generosidade, confiança e verdadeira ternura que encerravam.

“E porque não, afinal? — pensava ele. — A fabricação do diamante, que há um século poderia parecer uma utopia, é hoje um facto realizado! Fremy e Peil, de Paris, fizeram rubis, esmeraldas e safiras, que não são mais do que cristais de alumina de cores diferentes! MacTear, de Glásgua, e Ballantine Hannay, da mesma cidade, obtiveram em 1880 cristais de carbono, que tinham todas as propriedades do diamante, e cujo único defeito era ficarem por um preço exorbitantíssimo — muito maior que o dos diamantes naturais do Brasil, da índia ou da Gricualândia — por conseguinte não satisfizeram as necessidades do comércio! Mas quando a solução científica de um problema está achada, a solução industrial não pode estar longe! Porque não hei-de eu procurá-la? Todos esses sábios, que até hoje não deram ainda com ela, são teóricos, homens de gabinete e de laboratório! Não estudaram o diamante no próprio terreno nativo, no seu berço por assim dizer! Mas eu posso aproveitar-me dos trabalhos deles, da sua experiência, e também da minha!

Já extraí diamantes pelas minhas mãos! Já analisei e estudei debaixo de todos os aspectos os terrenos em que eles se encontram! Se há alguém que possa, com um bocado de sorte, conseguir vencer as últimas dificuldades, sou eu! Devo ser eu!”

E isto repetia Cipriano; e isto revolveu no seu espírito durante a maior parte da noite.

Depressa tomou uma resolução. No dia seguinte, de manhã, avisou Tomás Steel de que pelo menos provisoriamente — não tencionava trabalhar nem mandar trabalhar no seu claim. Combinou até que o seu digno sócio podia, se achasse comprador, vender a sua parte; depois fechou-se no laboratório para pensar nos seus novos projectos.

 

         A GRANDE EXPERIÊNCIA

Cipriano, no decurso das suas brilhantes investigações a respeito da solubilidade dos corpos sólidos nos gases — investigações em que se ocupara durante todo o ano precedente — , não tinha deixado de notar que certas substâncias insolúveis na água, como, por exemplo, a sílica e a alumina, são dissolvidas pelo vapor da água a uma alta pressão e a uma temperatura muito elevada.

Daí a resolução que tomou de examinar primeiramente se poderia também encontrar um gás que fundisse o carbono, a fim de obter depois uma cristalização.

Mas todas as tentativas que fez neste sentido foram infrutíferas, e, depois de algumas semanas de ensaios baldados, resolveu mudar de baterias.

E baterias era o termo próprio, porque, como se vai ver, havia de ter papel no drama uma peça de artilharia.

Várias analogias levavam o jovem engenheiro a julgar que talvez o diamante se formasse nos Kopjes do mesmo modo que o enxofre nas solfataras. Ora sabe-se que o enxofre resulta de uma semioxidação do hidrogénio sulfurado; uma parte dele transforma-se em ácido sulforoso, e em seguida o resto deposita-se em cristais nas paredes da solfatara.

“Quem sabe — dizia Cipriano consigo — se os jazigos dos diamantes são verdadeiras carbonataras? Pois se a elas chega necessariamente, de envolta com as águas e depósitos de aluvião, uma mistura de hidrogénio e de carbono sob a forma de gás dos pântanos, porque não será a oxidação do hidrogénio, junto à oxidação parcial do carbono, a causa da oxidação do carbono em excesso?”

Desta ideia à de tentar fazer experimentar por um corpo qualquer, numa reacção análoga mas artificial, a função teórica do oxigénio, não havia grande distância para um químico.

Tal foi o programa que Cipriano decidiu executar imediatamente.

Primeiro que tudo tratava-se de imaginar uma disposição experimental que tanto quanto possível se aproximasse das supostas condições da produção do diamante artificial. Era, além disso, preciso que essa disposição fosse muito simples. Este é o carácter de tudo o que é grande na natureza ou na arte. Haverá coisa mais complicada do que as mais formosas descobertas conquistadas pela humanidade — a gravitação, a bússola, a imprensa, a máquina a vapor, a telegrafia eléctrica?

Cipriano foi em pessoa à profundeza da mina fazer provisão de uma certa qualidade de terra que supôs especialmente favorável para a sua experiência. Depois construiu com essa terra uma espessa argamassa com que guarneceu cuidadosamente o interior de um tubo de aço do comprimento de meio metro, de cinco centímetros de espessura, e que tinha o calibre de oito centímetros.

Esse tubo era nem mais nem menos do que um segmento de peça, inútil para o serviço, que ele conseguira comprar em Kimberley a uma companhia de voluntários, que tinha sido licenciada depois de uma campanha contra as tribos cafres dos arredores.

A tal peça, devidamente serrada na oficina de Jacobus Vandergaart, dera exactamente o objecto preciso, isto é, um recipiente de resistência suficiente para suportar uma enorme pressão no interior.

Cipriano tapou uma das extremidades do tubo, deitou-lhe dentro fragmentos de cobre e cerca de dois litros de água, encheu-o depois de gás dos pântanos e por último cerrou-o com cuidado e fez-lhe cavilhar nas duas extremidades obturadores metálicos de solidez a toda a prova.

Estava o aparelho construído. Restava apenas submetê-lo a um calor intenso.

Foi portanto colocado num grande fornilho de revérbero, cujo fogo devia ser alimentado de dia e de noite de modo que se obtivesse um aquecimento até à cor branca, o que devia durar duas semanas.

Além disso, o tubo e o fornilho estavam envolvidos em espessa camada de barro refractário, que tinha por fim conservar a maior quantidade de calor possível a arrefecer muito lentamente quando chegasse a ocasião própria.

O conjunto parecia-se bastante com uma enorme colmeia ou com uma cabana de esquimós.

Matakit já estava em estado de poder fazer algum serviço ao amo. Tinha ele observado com grande atenção todos os trabalhos da experiência, e, quando soube que se tratava de fabricar diamantes, não foi o que se mostrou menos desejoso de concorrer para o bom êxito da empresa. Depressa aprendeu a alimentar o fogo, de modo que se lhe pôde confiar o cuidado de o conservar devidamente.

E devemos dizer que dificilmente se fará ideia das demoras e dificuldades que houve em estabelecer estas disposições, aliás tão pouco complicadas. Em Paris, em um grande laboratório, a experiência teria sido começada duas horas depois de imaginada, mas naquele país meio selvagem Cipriano não gastou menos de três semanas para poder realizar imperfeitamente a sua concepção. E note-se que foi muito feliz em algumas circunstâncias, principalmente por achar tanto à mão não só a peça velha como o carvão de que precisava. Efectivamente, este combustível era tão raro em Kimberley que para alcançar uma tonelada dele teve de se dirigir a três negociantes ao mesmo tempo.

Finalmente, removeram-se todas as dificuldades, e, depois de aceso o fogo a primeira vez, Matakit apenas tratou de nunca o deixar apagar.

O jovem cafre, devemos dizê-lo, estava todo orgulhoso com este cargo. E contudo não devia ser-lhe ele inteiramente desconhecido, pois decerto na sua tribo teria tido por mais de uma vez ocasião de ajudar a preparados culinários mais ou menos infernais.

Com efeito, Cipriano notara por diversas vezes, depois que tomara ao seu serviço o preto Matakit, que este gozava de verdadeira reputação de feiticeiro entre os outros cafres. É certo que toda a sua bagagem de mágico consistia em alguns segredos de cirurgia elementar e duas ou três peloticas de prestímano, que o pai lhe ensinara. Mas vinham consultá-lo a respeito de doenças verdadeiras ou imaginárias, para explicar sonhos, para compor questões. Matakit nunca ficava calado: sempre tinha alguma receita, ou presságio, ou sentença que desse. As receitas dam por vezes esquisitas e as sentenças estapafúrdias, mas os seus compatriotas iam satisfeitos com elas. Que mais era preciso?

Acrescentaremos que não pouco contribuíram para lhe aumentar o prestígio as retortas e frascos, de que estava agora cercado no laboratório do jovem engenheiro, não falando nas operações misteriosas a cuja colaboração era admitido.

Cipriano não podia às vezes deixar de sorrir ao ver os ares solenes que se dava o excelente rapaz para desempenhar as modestas funções de fogueiro e preparador, metendo mais carvão no fornilho, atiçando as brasas, ou limpando o pó de alguns cadinhos e proveres. E, contudo, nesta mesma gravidade havia alguma coisa que fazia enternecer: era a singela expressão do respeito inspirado pela ciência àquela natureza rude, mas inteligente e ávida de saber.

De resto, Matakit tinha horas de gaiatice e alegria, especialmente quando estava em companhia de Li. Entre estes dois indivíduos, não obstante terem origens tão diversas, travara-se estreita amizade nas visitas que o china fazia agora com frequência à granja Watkins. Ambos falavam francês bastante para se entenderem, ambos tinham sido salvos por Cipriano de morte iminente, e por isso lhe tributavam profundo reconhecimento. Era, pois, natural que se sentissem arrastados um para o outro por sincera simpatia, e essa simpatia prontamente se transformara em afecto.

Li e Matakit, nas suas conversas, davam ao jovem engenheiro um nome afectuoso e singelo, que exprimia perfeitamente o sentimento que por ele tinham. Chamavam-lhe o paizinho, e falando dele empregavam sempre termos da mais exaltada admiração e dedicação.

Esta dedicação manifestava-se em Li pela atenção escrupulosa com que lavava e engomava a roupa branca de Cipriano, em Matakit pelo cuidado religioso que tinha em seguir com pontualidade todas as recomendações do patrão.

Mas algumas vezes os dois amigos levavam ainda mais longe o seu ardor em satisfazer o paizinho. Acontecia por exemplo que Cipriano achava à mesa — comia então em casa — frutas ou guloseimas que não tinha mandado comprar e cuja origem ficava para ele sem explicação, pois que não as via aparecer nas contas dos fornecedores. Outras vezes eram camisas que ao voltar do lavadeiro traziam botões de ouro de origem desconhecida. E ainda de tempos a tempos uma cadeira elegante e cómoda, uma almofada bordada, uma pele de pantera, uma ninharia de valor vinham misteriosamente aumentar os ornatos da casa.

E quando Cipriano fazia a este respeito perguntas a Li ou a Matakit, só conseguia deles respostas evasivas: “Não sei! Eu não fui! Isso não é comigo!” Cipriano decerto se não incomodaria com estas demonstrações de afecto se não pensasse que talvez a origem delas não fosse das mais puras. Se estes presentes só tivessem custado o trabalho de pegar neles? Mas nada vinha confirmar-lhe as suspeitas, e todas as investigações, por vezes bem minuciosas, que fazia a respeito destes estranhos acrescentamentos dos seus haveres, ficavam sempre sem resultado.

E nas suas costas Li e Matakit trocavam entre si sorrisos disfarçados, olhares velhacos, sinais cabalísticos, que evidentemente significavam:

"Olha o paizinho! Não percebe nada!”

Além disso, o espírito de Cipriano andava ocupado com outros cuidados muitíssimo mais graves. John Watkins parecia resolvido a casar Alice, e com este intuito havia algum tempo que fazia da casa um verdadeiro museu de pretendentes. Não só James Hilton lá estava perfilado quase todas as noites, mas ainda todos os mineiros solteiros, que pela felicidade das suas explorações pareciam ao fazendeiro dotados das qualidades indispensáveis para o genro que ele sonhara, se viam atraídos para casa dele, convidados para jantar e finalmente oferecidos à escolha da filha.

O alemão Friedel e o napolitano Pantalacci eram deste número. Ambos pertenciam à classe dos mineiros mais felizes do Vandergaart. Nem no Kopje nem na granja lhes faltava a consideração que em toda a parte se dá ao bom êxito. Friedel era pedante e decisivo nas opiniões mais que nunca, desde que o seu dogmatismo se estribava em alguns milhares de libras esterlinas. Aníbal Panta-lacci, esse, transformado agora em janota colonial, resplendente de cadeias de ouro, anéis e alfinetes de diamantes, usava fatos de linho branco, que lhe davam à pele a cor ainda mais amarela e terrosa.

Mas o ridículo figurão em vão tentava divertir Alice com as suas graçolas e com as cantigas napolitanas. Não que a jovem lhe mostrasse especial desprezo ou parecesse perceber o intuito com que ele ia à granja. Contentava-se com nunca o ouvir espontaneamente, e nunca se ria das piadas nem das atitudes picarescas do sujeito. Ignorava tanto as fealdades morais que nem sequer suspeitava o triste reverso daquela loquacidade; mas só via nele um indiferente ordinário tão aborrecido como quase todos os outros. Cipriano percebia isto perfeitamente, e decerto teria sofrido muitíssimo se visse em conversa ateada com este ser desprezível aquela que ele punha tão alto no seu respeito e ternura.

E como achava muito degradante tentar um esforço sequer para rebaixar tão indigno rival aos olhos de Miss Watkins, o seu brio não lhe deixava manifestar o quanto sofria com isso, e, portanto, esse sofrimento era muito maior. E que direito tinha para o fazer? Em que podia basear as suas críticas? Nada sabia de Aníbal Pantalacci, e no juízo desfavorável que fazia dele apenas era guiado por uma repulsão instintiva. Querer mostrá-lo sob um ponto de vista trágico apenas faria rir. Eis o que Cipriano percebia perfeitamente, e por isso teria grande desgosto se Alice parecesse dar alguma atenção a tal homem.

Além disso, o engenheiro entregara-se de novo com fúria à obra que o absorvia noite e dia. Não era um só processo de fabricação de diamantes, mas dez, vinte experiências que ele tinha em preparação, propondo-se tentá-las logo que terminasse o primeiro ensaio actual. Já se não contentava com os dados teóricos e fórmulas com que durante horas enchia os cadernos dos apontamentos. A cada instante corria ao Kopje, trazia de lá novas amostras de rochas e terras, repetia análises feitas cem vezes, mas com tanto rigor e exactidão que não deixassem escapar nenhum erro. Quanto mais iminente era o perigo de perder Miss Watkins, tanto mais ele estava resolvido a não poupar coisa alguma para o conjurar.

E contudo, no seu íntimo, desconfiava tanto de si mesmo que não quisera dizer coisa alguma à jovem acerca da experiência em via de execução. Miss Watkins apenas sabia que ele seguira o seu conselho e se entregava novamente à química. Isto lhe dava satisfação.

 

           SURPRESA

Grande foi o dia em que a experiência parecia dever ser definitivamente activada.

Tinham já passado duas semanas depois que o fogo deixara de ser alimentado — tempo bastante para que o aparelho tivesse ido arrefecendo gradualmente. Cipriano entendeu que a cristalização do carbono já estaria feita, se é que ela se podia realizar em tais condições, e por isso resolveu levantar a camada de terra que envolvia o fornilho. Foi preciso dar-lhe a valer com a picareta, porque o barro tinha endurecido como se tivesse estado num forno de fazer tijolos. Mas afinal cedeu aos esforços de Matakit, e bem depressa deixou ver primeiro a parte superior do fornilho — que se chama o capitel — e depois o próprio fornilho.

O coração do jovem engenheiro batia cento e vinte pulsações por minuto no momento em que o moço cafre, auxiliado por Li e Bardik, levantava o capitel.

Ele, que pertencia ao número dos que duvidam sempre de si mesmo, não acreditava que a experiência tivesse dado bom resultado! Mas, em suma, era possível! E que alegria se tal fosse! Naquele grosso cilindro negro, que ele novamente via ao fim de tantas semanas, achavam-se encerradas todas as suas esperanças de felicidade, de glória e de fortuna!

Oh, miséria! A peça tinha rebentado!

Sim! À formidável pressão do vapor de água e do gás dos pântanos, levados a uma temperatura das mais elevadas, nem o próprio aço tinha podido resistir. O tubo, apesar de ter cinco centímetros de espessura, rebentara como um simples provete. Apresentava num dos lados, quase ao meio, uma fenda aberta como uma grande boca, torcida pelas chamas, e que parecia escarnecer com riso mau da cara do sábio confundido.

Já era ter azar! Tantos trabalhos para chegar àquele resultado negativo! Na verdade, Cipriano não sentiria tanta humilhação se, graças a precauções bem tomadas, o aparelho tivesse suportado a prova do fogo! Que no cilindro não houvesse sombra de carbono cristalizado, estava ele preparado e mais que preparado para tal desilusão! Mas ter aquecido, arrefecido, amimado, digamos assim, durante um mês aquele velho cilindro de aço para afinal só servir para deitar ao refugo, era o cúmulo do azar! De bom grado o teria atirado com um pontapé para o fundo da encosta, se o tubo não fosse bastante pesado para se não deixar tratar com tanta semcerimónia!

Cipriano ia deixá-lo para ali no fornilho, e preparava-se para sair, todo triste, a fim de ir contar a Alice aquele lamentoso resultado, quando uma curiosidade de químico, que ainda lhe ficara, o levou a aproximar um fósforo da abertura do tubo para examinar o interior dele.

“Naturalmente — pensava ele — a terra com que o guarnecia por dentro também se transformou em tijolo como o invólucro externo do fornilho.”

A suposição era exacta. Mas, por um fenómeno assaz estranho e que Cipriano não compreendeu logo a princípio, parecia que daquele revestimento de terra se tinha separado uma espécie de bola de argila, depois de se ter endurecido separadamente no tubo.

Esta bola, de um vermelho-carregado, tinha pouco mais ou menos o diâmetro de uma laranja, e podia facilmente passar pela abertura. Cipriano puxou-a para fora e pegou nela, com bem pouca curiosidade, para a examinar. Depois, reconhecendo que era exactamente um fragmento de argila, separado da parede, que fora cozido à parte, ia deitá-lo fora quando notou que soava a oco como se fosse uma peça de louça.

Parecia como que uma bilha fechada, dentro da qual dançava uma espécie de guizo muito pesado.

“É exactamente um mealheiro!” — pensou Cipriano.

Mas se fosse obrigado, sob pena de morte, a explicar aquele mistério, não o poderia fazer.

E, contudo, quis tirar aquilo a limpo. Pegou num martelo e quebrou o mealheiro.

E era-o efectivamente e encerrava um tesouro inestimável. Não! Não havia engano possível a respeito do grande seixo que apareceu então aos olhos maravilhados do jovem engenheiro! Aquele seixo era um diamante, envolvido em ganga exactamente igual à dos diamantes normais, mas um diamante de dimensões colossais, inverosímeis, sem precedentes!

Imagine-se: aquele diamante era maior que um ovo de galinha, parecia-se bastante na forma com uma batata, e devia pesar pelo menos trezentos gramas!

“Um diamante! Um diamante artificial! — repetia a meia voz Cipriano, estupefacto. — Achei pois a resolução do problema desta fabricação, apesar do incidente que aconteceu ao tubo! Sou rico! Alice, querida Alice, és minha!”

Mas depois, voltando a não acreditar no que via:

“Não pode ser! É ilusão, é miragem — repetia ele consigo, mordido pela dúvida. — Oh! Vou já saber o que devo pensar!”

E sem gastar tempo a pôr o chapéu, perdido de cabeça, doido de alegria, como acontecera a Arquimedes ao sair do banho em que estava mergulhado, quando descobriu o seu famoso princípio, ele aí vai descendo a correr o caminho da granja, e cai como uma bomba em casa de Jacobus Vandergaart.

Encontrou o velho lapidário ocupado em examinar algumas pedras, que o corretor de diamantes Nathan acabava de lhe dar para lapidar.

— Oh! Sr. Nathan. Está aqui muito a propósito — exclamou Cipriano. — Veja o que eu aqui trago, e veja também o Sr. Vandergaart, e digam-me o que isto é.

O engenheiro pôs a pedra em cima da mesa e cruzou os braços.

Nathan foi o primeiro que pegou no seixo, e empalideceu de surpresa, esbugalhando os olhos, escancarando a boca, e passou-o depois a Jacobus Vandergaart.

Este elevou primeiro o objecto à frente dos olhos à luz da janela, e depois observou-o por cima dos óculos. Em seguida pousou-o sobre a mesa, e, olhando para Cipriano, disse-lhe serenamente:

— Isso é o maior diamante que há no mundo.

— Sim, o maior! — confirmou Nathan. — Tem o duplo ou o triplo do Koh-i-noor, a "montanha de luz”, o orgulho do tesouro real de Inglaterra, que pesa cento e setenta e nove carates.

— O duplo ou o triplo do Grão-Mogol, a pedra maior que se conhece, que pesa duzentos e oitenta carates! — acrescentou o velho lapidário.

— Tem quatro ou cinco vezes o diamante do Czar, que pesa cento e noventa e três carates! — disse com entusiasmo Nathan, cada vez mais estupefacto.

— Sete ou oito vezes o Regente, que pesa cento e trinta carates! — insistiu Jacobus Vandergaart.

— Vinte ou trinta vezes o diamante de Dresde, que só pesa trinta e um carates! — exclamou Nathan.

E acrescentou:

— Calculo que este, depois de lapidado, pode pesar pelo menos quatrocentos carates! Mas quem se atreve a avaliar uma pedra destas! Isto está fora de todo o cálculo possível e imaginável!

— Então porquê? — volveu Jacobus Vandergaart, que dos dois era o que estava mais calmo. — O Koh-i-noor está avaliado em trinta milhões de francos, o Grão-Mogol em doze milhões, o diamante do Czar em oito, e o Regente em seis! Pois bem, este deve certamente valer, o menos, o menos, cem milhões!

— Ora! Tudo depende da cor e da qualidade! — observou Nathan, que começava a voltar ao seu estado normal e, lembrando-se de um negócio possível de futuro, pensou que não seria mau ir tacteando o terreno. — Se ele for incolor e de primeira água, o seu valor é incalculável! Mas se for amarelo, como quase todos os nossos diamantes da Gricualândia, o seu valor já há-de ser mais pequeno! Ainda que eu não sei se para uma pedra destas dimensões preferiria antes uma bela cor azul de safira como a do diamante de Hope, ou cor-de-rosa como a do Grão-Mogol, ou mesmo verde-esmeralda como a do diamante de Dresde.

— Qual! Qual! — exclamou o velho lapidário com entusiasmo! — Eu cá por mim sou pelos diamantes incolores! Falemos do Koh-i-noor ou do Regente! Isso é que são verdadeiras gemas! As outras ao pé delas são pedras de fantasia!

Cipriano já os não ouvia.

— Os senhores desculpem-me — disse ele com precipitação — , mas tenho necessidade de os deixar!

Pegou no seu precioso seixo e, sempre a correr, tornou a subir pelo caminho da granja.

Nem se lembrou de bater. Abriu a porta da sala de visitas, achou-se na presença de Alice, e, antes de ter tempo de pensar na irreflexão do seu procedimento, tomou-a nos braços e beijou-a em ambas as faces.

— Olá! Olá! Que vem a ser isso! — exclamou Mister Watkins, escandalizado com aquelas demonstrações inesperadas.

Estava sentado à mesa defronte de Aníbal Pantalacci, e ia começar com este gracioso de má morte uma partida de piquet.

— Desculpe-me, Miss Watkins! — balbuciou Cipriano, surpreendido do próprio atrevimento, mas radiante de alegria. — Sou muito feliz! Estou doido de alegria! Olhem! Vejam o que aqui trago!

E pousou ou, antes, atirou para a mesa o diamante no meio dos dois jogadores.

Estes, como Nathan e Jacobus Vandergaart, compreenderam logo do que se tratava. Mister Watkins, que ainda tinha bebido pouco da ração diária de gin, estava em estado suficientemente lúcido.

— O senhor achou isto? Foi o senhor mesmo que o achou? No seu claim? — exclamou ele com vivacidade.

— Se eu achei isso? — respondeu Cipriano triunfante. — Melhor! Fabriquei-o eu mesmo todo inteiro! Ah! Sr. Watkins, a química, no fim de contas, sempre serve para alguma coisa!

E ria, e apertava nas mãos os delicados dedos de Alice, a qual, surpreendida com aquelas demonstrações apaixonadas, mas sentindo-se feliz com a felicidade do seu amigo, sorria com suavidade.

— E é a si, menina Alice, que eu devo esta descoberta! — continuou Cipriano. — Quem me aconselhou que tornasse a entregar-me à química? Quem exigiu que eu procurasse achar a fabricação do diamante artificial, Sr. Watkins? Foi a sua encantadora e adorável filha! Oh! Posso prestar-lhe homenagem, como faziam os antigos cavaleiros à sua dama, e proclamar que a ela se deve todo o merecimento da invenção! Porventura teria eu pensado em tal se não fosse ela!

Mister Watkins e Aníbal Pantalacci olhavam para o diamante e depois olhavam um para o outro, abanando a cabeça. Estavam literalmente mergulhados no mais completo e profundo pasmo.

— Diz o senhor que fabricou isto... o senhor mesmo? — tornou John Watkins. — Então é uma pedra falsa?

— Uma pedra falsa!? — exclamou Cipriano. — Diga-lhe que sim! É uma pedra falsa? Mas Jacobus Vandergaart e Nathan avaliam-na em cinquenta milhões o menos, e talvez cem! Apesar de ser um diamante artificial, obtido por um processo que eu inventei, não deixa de ser perfeitamente autêntico! Bem vê que não lhe falta nada... Até tem a ganga!

— E o senhor encarrega-se de fazer outros diamantes como este? — insistiu ainda John Watkins.

— Se me encarrego, Sr. Watkins? Com toda a certeza! Hei-de fazer-lhos aos centos! Faço-lhos dez vezes, cem vezes maiores que este, se o senhor quiser! Faço-lhe tantos que possa calçar com eles o pátio ou macadamizar as estradas da Gricualândia, se tiver desejos disso! Só o primeiro passo é que custa, e, uma vez obtida a primeira pedra, o resto é uma minudência, uma simples questão de determinar certas disposições técnicas!

— Mas se assim é — redarguiu o fazendeiro, que empalidecera — , é a ruína dos proprietários das minas, e a minha ruína e de toda a Gricualândia!

— Pois está claro! — exclamou Cipriano. — Que interesse quer o senhor que haja em cavar a terra para procurar pequenos diamantes quase sem valor, desde o momento em que seja tão fácil fabricá-los industrialmente de todos os tamanhos como fazer pães de quatro libras!

— Mas isso é monstruoso! — replicou John Watkins. — É uma infâmia! Uma abominação! Se o que o senhor diz é verdade, se realmente o senhor possui um tal segredo...

Parou sufocado.

— Bem vê — disse friamente Cipriano — que não falo no ar, pois que lhe trouxe o meu primeiro produto! E parece-me que de tamanho bastante grande para o convencer!

— Pois olhe — respondeu finalmente Watkins, que conseguira poder respirar — , se isso é verdade, Sr. Méré, deviam-no fuzilar imediatamente na rua grande do acampamento! É a minha opinião!

— E a minha também! — -entendeu dever acrescentar Aníbal Pantalacci, com um gesto de ameaça.

Miss Watkins, levantara-se, toda pálida.

— Fuzilar-me simplesmente porque resolvi um problema de química formulado há cinquenta anos? — estranhou o jovem engenheiro, encolhendo os ombros. — Na verdade, seria um tanto forte!

— Não é caso para rir! — insistiu o fazendeiro, furioso. — Já pensou nas consequências disso que o senhor chama a sua descoberta? Em que acaba todo o trabalho das minas, em que a Gricualândia perde a sua mais gloriosa indústria... em que eu fico reduzido à pobreza, eu que lhe estou falando?

— Palavra que não tinha pensado em nada disso! — respondeu Cipriano, com toda a franqueza. — São as consequências do progresso industrial, e a ciência pura não tem nada que ver com isso! Demais, pelo que lhe diz pessoalmente respeito, Sr. Watkins, escusa de recear! O que é meu é seu, e o senhor bem sabe por que motivo procurei dirigir as minhas investigações por este caminho.

John Watkins viu de repente o grande partido que podia tirar da descoberta do jovem engenheiro, e, não se importando com o que pensaria o napolitano, não hesitou em virar a casaca, como se costuma dizer.

— Afinal — respondeu — , pode ser que tenha razão, Sr. Méré, e o senhor fala como excelente rapaz que é. Sim! Pensando bem, parece-me que haverá um meio de a gente se entender! Para que havia o senhor de fazer uma quantidade excessiva de diamantes? Era a maneira mais certa de tornar desprezível a sua descoberta! Não seria mais prudente guardar o segredo com todo o cuidado, usar dele com moderação, fabricar apenas uma ou duas pedras como esta, ou mesmo ficar-se neste primeiro bom êxito, visto que ele lhe dá de repente um capital considerável e faz do senhor o homem mais rico do país? Desta maneira ficava toda a gente contente, as coisas continuavam como dantes, e não vinha o senhor atravessar-se diante de interesses respeitáveis!

Era um novo aspecto da questão, no qual Cipriano não tinha ainda pensado. Mas de repente apareceu-lhe aos olhos, com rigor implacável, o seguinte dilema: ou guardar para si o segredo da sua descoberta, deixá-lo ignorar do mundo e abusar disso para se enriquecer, ou então, como John Watkins dizia com razão, envilecer a um tempo os diamantes naturais e artificiais, e, por conseguinte, renunciar à fortuna para conseguir o quê? Arruinar todos os mineiros da Gricualândia, do Brasil e da índia!

Colocado nesta alternativa, Cipriano hesitou talvez, mas foi apenas um instante. E, contudo, bem compreendia ele que escolher o partido da sinceridade, da honra, da fidelidade à ciência era renunciar irremediavelmente à própria esperança que fora o móbil da sua descoberta!

Esta dor era para ele tão amarga, tão pungente quanto era inesperada. Despertara de repente de um sonho tão agradável!

— Sr. Watkins — declarou ele gravemente — , se eu guardasse comigo o segredo da minha descoberta, não seria mais que um falsário! Ia vender com peso falso; ia enganar o público na qualidade da mercadoria! Os resultados obtidos por um sábio não lhe pertencem a ele, constituem parte do património de todos! Reservar para si, por um interesse egoísta e pessoal, a menor parcela deles é tornar-se um homem culpado do acto mais vil que pode cometer! Não o farei eu! Não! Não esperarei uma semana, um dia sequer, para entregar ao domínio do público a fórmula que o acaso, auxiliado por alguma reflexão, me fez cair nas mãos! A minha restrição única será que, como é justo e digno, oferecerei essa fórmula primeiro à minha pátria, à França, que me pôs em estado de a servir! Amanhã vou dirigir à Academia das Ciências o segredo do meu processo! Adeus, Sr. Watkins, devo-lhe o ter descoberto claramente um dever em que não pensava. Miss Watkins, tive um sonho encantador, mas — ai de mim!. — é preciso renunciar a ele.

E antes que a jovem pudesse dirigir-se para ele, Cipriano pegou no diamante, e depois, cumprimentando Miss Watkins e o pai dela, saiu.

 

EM QUE JOHN WATKINS SE PÕE A PENSAR

Cipriano saiu da granja com o coração dilacerado, mas com a firme resolução de fazer o que julgava ser um dever de profissão, e foi procurar de novo Jaco-bus Vandergaart. Encontrou-o só. O corretor Nathan apressara-se em o deixar para ir espalhar pelo acampamento uma notícia que tão directamente interessava os mineiros.

Não era pequeno o burburinho causado por essa notícia, apesar de não se saber ainda que o enorme diamante do monsiú, como chamavam a Cipriano, era um diamante artificial. Mas bem se importava o monsiú com os falatórios do Kopje! O que ele tinha era pressa de verificar com o velho Vandergaart a qualidade e a cor da pedra antes de escrever o relatório a este respeito, e por isso é que ele voltava a casa do lapidário.

— Meu caro Jacobus — disse ele, sentando-se-lhe ao pé — , faça-me o favor de cortar uma faceta nesta saliência para vermos alguma coisa do que está escondido com a ganga.

— Nada mais fácil — respondeu o velho lapidário, pegando no seixo que lhe apresentava o seu jovem amigo. — Palavra que escolheu perfeitamente o sítio! — acrescentou ao verificar que havia uma pequenina saliência num lado da gema, a qual, afora este defeito, era quase perfeitamente oval. — Cortando por este lado nada arriscamos para o futuro.

Jacobus Vandergaart pôs mãos à obra sem mais demora; escolheu na escudela uma pedra bruta de quatro a cinco carates, fixou-a com segurança na extremidade de uma espécie de cabo e começou a esfregar as duas películas exteriores uma de encontro à outra.

— Ia mais depressa se se clivasse — disse ele — , mas quem havia de se divertir a dar uma martelada numa pedra de tal preço!

Este trabalho, muito demorado e monótono, não levou menos de duas horas. Depois de dar à faceta suficiente tamanho para se poder apreciar a natureza da pedra, foi preciso poli-la na mó, e isto levou muito tempo.

Contudo era ainda bastante de dia quando se concluíram aqueles preliminares. Cipriano e Jacobus Vandergaart, cedendo finalmente à curiosidade, aproximaram-se para verificar o resultado da operação.

Ofereceu-se a seus olhos uma bela faceta cor de azeviche, de uma limpidez e brilho incomparáveis.

O diamante era negro! Singularidade quase única, e em todo o caso muito excepcional, que aumentava, ainda, se era possível, o seu valor.

As mãos de Jacobus Vandergaart tremiam de comoção ao fazê-lo cintilar aos raios do sol poente.

— É a gema mais extraordinária e mais formosa que jamais reflectiu os raios da luz! — - disse ele com uma espécie de respeito religioso. — O que será quando ela puder refractá-los depois de ser lapidada em todas as faces!

— E o senhor encarrega-se desse trabalho? — perguntou Cipriano muito depressa.

— Certamente, meu filho! Seria a honra e o digno remate da minha longa carreira! Mas talvez o senhor fizesse melhor em escolher outra mão mais nova e mais firme do que a minha!

— Não! — respondeu Cipriano, afectuosamente. — Tenho a certeza de que ninguém dedicará à obra mais cuidado e maior habilidade do que o senhor! Guarde-me o diamante, meu caro Jacobus, e trate de o lapidar de seu vagar! É negócio concluído.

O velho voltava e tornava a voltar a pedra entre os dedos, e parecia hesitar em exprimir o que pensava.

— Inquieta-me uma coisa — disse por fim. — Sabe o senhor que não me posso habituar à ideia de ter em casa uma jóia de tão grande valor? São cinquenta milhões de francos pelo menos, e talvez mais, que eu tenho aqui na palma da mão! Não é muito prudente encarregar-se uma pessoa de tamanha responsabilidade!

— Ninguém o saberá, se o Sr. Vandergaart o não disser. Eu por mim garanto-lhe segredo.

— Pois sim! Mas desconfiam! Quem sabe se o senhor foi seguido quando veio para aqui? Não têm a certeza, hão-de fazer suposições! Anda por aí uma gente tão esquisita! Não! não poderia dormir descansado!

— Talvez tenha razão — admitiu Cipriano, achando fundada a hesitação do velho. — Mas então o que se há-de fazer?

— Estou pensando nisso — declarou Jacobus Vandergaart, que ficou calado por alguns momentos.

Depois continuou:

— Oiça, meu caro filho. O que lhe vou propor é muito melindroso, e é preciso supor que o senhor teve confiança absoluta em mim! Mas o senhor conhece-me bem, e não se admirará portanto que eu pense em tomar tantas precauções! É preciso que eu parta imediatamente com os meus instrumentos e a pedra, e que me vá esconder em algum sítio onde não seja conhecido. Em Bloemfontein ou em Hope-Town, por exemplo. Alugo um quarto modesto, fecho-me para trabalhar com o maior segredo, e só voltarei depois de ter acabado a obra. Talvez assim consiga fazer com que os malfeitores me percam o rasto. Mas, repito, quase me envergonho de sugerir este plano...

— Que me parece muito razoável — afirmou Cipriano — e tanto que lhe peço encarecidamente que o ponha em prática!

— Mas olhe que leva tempo, que preciso pelo menos de um mês, e que podem acontecer muitos acidentes no caminho!

— Não importa, Sr. Vandergaart, uma vez que o senhor pensa que é este o melhor partido a tomar. E, no fim de contas, se se perdesse o diamante, não era grande o mal!

Jacobus olhou para o jovem com uma espécie de medo. "Não perderia ele o juízo com um tal lance de fortuna?” perguntava a si mesmo.

Cipriano compreendeu-lhe o pensamento e pôs-se a sorrir. Explicou-lhe portanto donde provinha o diamante e como dali por diante podia fabricar outros e tantos quantos lhe desse na vontade. Mas o velho lapidário, ou porque não desse muito crédito àquela narrativa, ou porque tivesse um motivo especial para não querer ficar sozinho naquela cabana isolada em convívio com uma pedra de cinquenta milhões, o certo é que insistiu por partir imediatamente.

E por isso, depois de ter metido num saco velho de couro os instrumentos e algum vestuário, Jacobus Vandergaart pendurou na porta uma ardósia em que escrevera: Ausente por causa de negócios, guardou a chave na algibeira das calças e o diamante no colete, e pôs-se a caminho.

Cipriano acompanhou-o durante duas ou três milhas pela estrada de Bloemfontein, e só o deixou depois de ele insistir muito.

Era noite fechada quando o jovem engenheiro voltou a casa, pensando talvez mais em Miss Watkins do que na descoberta.

Entretanto, sem gastar tempo em honrar o jantar preparado por Matakit, sentou-se à mesa de trabalho e começou a redigir o relatório que tencionava dirigir pelo primeiro correio ao secretário perpétuo da Academia das Ciências.

Era uma descrição minuciosa e completa da sua experiência, seguida de uma relação muito engenhosa da reacção que tinha dado origem àquele magnífico cristal de carbono.

"O carácter mais notável deste produto — dizia ele entre outras coisas — é a sua completa identidade com o diamante natural e sobretudo a presença de uma ganga exterior.

Efectivamente, Cipriano não hesitou em atribuir este efeito tão curioso à lembrança que tivera de forrar o recipiente com uma camada de terra escolhida com cuidado do Vandergaart-Kopje. A causa por que uma parte daquela terra se tinha separado da parede para formar em volta do cristal uma verdadeira casca, não era de fácil explicação, e este ponto seria sem dúvida elucidado por experiências ulteriores. Talvez se pudesse supor que havia ali um fenómeno inteiramente novo de afinidade química, que o autor se propunha estudar com toda a atenção. Não tinha ele a pretensão de dar logo da primeira vez a teoria completa e decisiva da sua descoberta. O que queria antes de mais nada era comunicá-la sem demora ao mundo sábio, fazer com que a prioridade se atribuísse, como de justiça, à França, e finalmente chamar a discussão e a luz para os factos ainda não explicados e obscuros por si mesmos.

Tendo principiado esta memória, pondo assim em dia as suas contas científicas, à espera de a poder completar com descobertas novas antes de a dirigir a quem competia, o jovem engenheiro ceou alguma coisa e foi deitar-se.

Na manhã seguinte Cipriano saía da sua habitação e passeava, sempre pensando e cismando, pelos diversos terrenos da mina. A sua passagem era recebida com certos olhares que manifestamente não eram de simpatia. Ele não dava por isso, porque tinha esquecido já todas as consequências da sua grande descoberta, apresentadas na véspera com tanta dureza por John Watkins — isto é, a ruína mais cedo ou mais tarde dos concessionários e das concessões da Gricualândia.

E, contudo, isto devia inquietar num país meio selvagem, onde não se hesita em fazer justiça pelas próprias mãos, onde a garantia do trabalho, e por conseguinte do comércio que dele deriva, é a lei suprema. Se a fabricação do diamante artificial se tornasse uma indústria prática, lá ficavam irremediavelmente perdidos todos os milhões enterrados tanto nas minas do Brasil como nas da África Austral, não falando nos milhares de existências já sacrificadas. É certo que o jovem engenheiro podia guardar o segredo da sua experiência; mas a este respeito tinha ele feito uma declaração categórica: estava resolvido a não guardar tal segredo.

Por outro lado, durante a noite — noite de torpor em que John Watkins sonhou sempre com diamantes espantosos do valor de milhões de milhões — , o pai de Alice tinha meditado no seguinte: que Aníbal Pantalacci e outros mineiros vissem com inquietação e cólera a revolução que a descoberta de Cipriano vinha fazer na exploração dos terrenos diamantíferos, nada mais natural, visto que os exploravam por sua própria conta.

Mas para ele, simples proprietário da fazenda Watkins, já a situação não era a mesma. Decerto que, se os claims fossem abandonados em virtude da baixa no valor das gemas, se toda aquela população de mineiros viesse a abandonar os campos da Gricualândia, então diminuiria imenso o valor da sua granja, já não poderia vender tão facilmente os produtos dela, não haveria inquilinos a quem alugasse as suas casas ou cabanas, e talvez um dia se visse obrigado a abandonar uma terra que se tornara improdutiva!

“Ora adeus! — dizia consigo John Watkins — mas antes de chegarmos a esse ponto ainda hão-de passar muitos anos! A fabricação dos diamantes artificiais ainda não chegou ao estado prático mesmo com os processos do Sr. Méré! Talvez no negócio dele entrasse muito o acaso! Mas entretanto, por acaso ou não, o certo é que ele fez uma pedra de enorme valor, a qual, se nas condições de diamante natural vale cinquenta milhões, ainda valerá uns poucos apesar de ter sido produzido artificialmente! Sim! É preciso demorar aqui este rapaz, custe o que custar! É preciso, ao menos durante algum tempo, evitar que ele vá por esse mundo espalhar a sua imensa descoberta! É preciso que aquela pedra entre definitivamente na família Watkins e só saia de cá trocada por um número respeitável de milhões! Ora prender aqui quem a fabricou é a coisa mais fácil — mesmo sem a gente se comprometer definitivamente! Alice está aqui, e, dispondo eu de Alice, bem posso demorar a partida dele para a Europa! Sim! Ainda que tivesse de lha prometer em casamento! Ainda que tivesse mesmo de lha dar!”

Era evidente que John Watkins, agrilhoado pela cobiça devoradora, chegaria até este ponto! Em todo aquele negócio só via a sua pessoa, só pensava em si!

E logo depois, se o velho egoísta pensou na filha, foi para dizer consigo mesmo:

“E, no fim de contas, Alice não terá de que se queixar! Aquele pateta do sábio apresenta-se muito bem! Ama-a e parece-me que ela não é insensível ao seu amor. Ora não há nada melhor do que unir dois corações criados um para o outro, ou pelo menos fazer-lhes esperar essa união até ver em que pára toda esta história?! Ah! por Saint John, meu advogado, leve o demónio Aníbal Pantalacci e quejandos, e cada um por si mesmo no país da Gricualândia!”

Assim calculava John Watkins, tenteando aquela balança ideal, na qual acabava de fazer equilíbrio do futuro da filha com um simples pedaço de carbono cristalizado, e ficou todo contente ao pensar que os pratos estavam na mesma linha horizontal.

De modo que, na manhã seguinte, estava tomada a seguinte resolução: não apressar coisa alguma, deixar correr os acontecimentos, prevendo bem o caminho que eles tomariam para chegar ao desenlace.

E antes de mais nada convinha-lhe tornar a ver o seu inquilino — o que era fácil, visto que o jovem engenheiro vinha todos os dias à granja — ; mas queria também tornar a ver o diamante que nos seus sonhos tomara proporções fabulosas.

Por conseguinte, Mister Watkins dirigiu-se à cabana de Cipriano, que, atendendo a que era bastante cedo, ainda estava em casa.

— Olá, meu amigo — disse-lhe ele com tom de bom humor — , como passou a noite... esta primeira noite depois da sua grande descoberta?

— Bem, muito obrigado, Sr. Watkins — respondeu o jovem com frieza.

— O quê? Pois o senhor pôde dormir?

— Como nas demais noites!

— Então todos esses milhões que saíram daquele fornilho — insistiu ainda Mister Watkins — não lhe perturbaram o sono?

— Por forma nenhuma — afirmou Cipriano. — Compreenda bem isto, Sr. Watkins; para aquele diamante valer milhões era preciso que fosse obra da Natureza e não de um químico!

— Sim! Sim! Sr. Cipriano. Mas tem o senhor a certeza de poder fazer outro ou outros como esse? Compromete-se a isso?

Cipriano hesitou, porque sabia quantas vezes as experiências deste género são seguidas de mau êxito.

— Ora aí está! — -continuou John Watkins. — O senhor não se compromete! Portanto, até novo ensaio feliz, o seu diamante conserva um valor enorme! E, sendo assim, para que se há-de ir dizer, ao menos por enquanto, que é uma pedra artificial?

— Já lhe disse — repetiu Cipriano — que não devo esconder um segredo científico de tanta importância!

— Sim... sim... já sei — replicou John Watkins, fazendo sinal ao jovem para se calar, como se alguém os pudesse estar a ouvir. — Sim... sim... falaremos disso noutra ocasião! Não receie o Sr. Pantalacci e os outros! Nada dirão da sua descoberta, porque o interesse deles é calarem-se. Acredite no que eu lhe digo... Espere! E sobretudo lembre-se de que tanto minha filha como eu ficámos muito contentes com a sua sorte... Sim, muito contentes! É verdade? Não poderia tornar a ver esse famoso diamante? Ontem mal tive tempo de o examinar! Dá-me o senhor licença...

— Já não o tenho! — -informou Cipriano.

— Remeteu-o para França! — exclamou Mister Watkins, aniquilado com tal pensamento.

— Não... ainda não... Assim em bruto não se podia apreciar a beleza dele... Esteja descansado!

— Mas então a quem o entregou o senhor? Por todos os santos de Inglaterra, a quem foi?

— Dei-o a lapidar a Jacobus Vandergaart, e não sei para onde o levou.

— O quê? Pois o senhor confiou um diamante daqueles a esse velho doido? — exclamou John Watkins, verdadeiramente furioso. — Mas isso é demência, senhor! É demência!

— Ora! — volveu Cipriano. — Que quer o senhor que Jacobus ou outro qualquer faça de um diamante cujo valor, para quem não sabe a sua origem, é pelo menos de cinquenta milhões? Cuida o senhor que seja fácil vendê-lo em segredo?

Este argumento parece que convenceu Mister Watkins. Decerto, não devia ser fácil desfazer-se uma pessoa de um diamante de tal preço. Contudo, o fazendeiro não estava sossegado, e daria muito, sim... muito!... para que o imprudente Cipriano o não tivesse confiado ao velho lapidário... ou pelo menos para que o velho lapidário já tivesse voltado à Gricualândia com a preciosa gema!

Mas Jacobus Vandergaart tinha pedido um mês, e, por mais impaciente que estivesse John Watkins, era preciso esperar.

Escusado será dizer que nos dias seguintes os seus comensais habituais, Aníbal Pantalacci, Herr Friedel, o judeu Nathan, não se privavam de cortar na casaca do honrado lapidário. Muitas vezes falavam dele na ausência de Cipriano, e sempre para fazer notar a John Watkins que o tempo ia correndo e que Jacobus Vandergaart não aparecia.

— E para que havia ele de voltar à Gricualândia — dizia Friedel — se lhe é tão fácil guardar aquele diamante de tamanho valor, e que em nada mostra por agora a sua natureza artificial?

— Porque não achava quem o comprasse! — respondia Mister Watkins, reproduzindo o argumento do jovem engenheiro, não obstante não estar muito descansado com ele.

— Ora! Boa razão! — ripostava Nathan.

— Está claro, boa razão! — acrescentava Aníbal Pantalacci. — Creia isto, o velho crocodilo já está bem longe a esta hora! Não há nada mais fácil, principalmente para ele, do que desfigurar a pedra e fazer com que ninguém a conheça! Nem o senhor sabe de que cor ela é! Quem o impede de a cortar em quatro ou cinco bocados, e clivar cada um deles, fazendo outros tantos diamantes ainda muito aproveitáveis!

Estas discussões levavam a perturbação à alma de Mister Watkins, o qual começava a imaginar que Jacobus Vandergaart não tornaria a aparecer.

Só Cipriano acreditava firmemente na probidade do velho lapidário, e afirmava com entusiasmo que ele voltaria no dia marcado. E tinha razão.

Jacobus Vandergaart voltou até quarenta e oito horas mais cedo. Fora tal o seu ardor e diligência que ao cabo de vinte e sete dias concluíra o trabalho de lapidar o diamante. Voltou, pois, durante a noite para o passar na mó e acabar de o polir, e na manhã do vigésimo nono dia Cipriano viu o velho apresentar-se em sua casa.

— Aqui está o seixo — disse ele simplesmente, pondo sobre a mesa uma caixinha de madeira.

Cipriano abriu a caixa, e ficou deslumbrado.

Um enorme cristal negro em forma de rombóide dodecaedro, posto sobre uma camilha de algodão branco, despedia fogos prismáticos de um brilho tal que pareciam iluminar o laboratório. Aquela combinação da cor da tinta, da transparência adamantina absolutamente perfeita e de um poder refringente sem igual, produzia um efeito dos mais maravilhosos e que ao mesmo tempo perturbava.

Estava-se em presença de um fenómeno único, de um jogo da natureza provavelmente.

Ainda pondo de parte toda a ideia de valor, o esplendor da jóia impunha-se por si mesmo.

— Não é só o maior diamante, é também o mais belo que há no mundo! — asseverava gravemente Jacobus Vandergaart com um tudo-nada de orgulho paternal! — Pesa quatrocentos e trinta e dois carates! Pode gabar-se, meu filho, de ter feito uma obra-prima, e o seu primeiro ensaio foi uma obra de mestre.

Cipriano nada respondera aos cumprimentos do velho lapidário. Segundo o seu modo de ver, apenas era o autor de uma descoberta curiosa — nada mais. Muitos outros tinham labutado em vão naquele terreno da química inorgânica, onde ele tinha vencido, não havia dúvida. Mas quais seriam as circunstâncias úteis para a humanidade que resultariam desta fabricação do diamante artificial?

Inevitavelmente viria arruinar, ao fim de certo tempo, todos os que viviam do comércio de pedras preciosas, e, em última análise, não faria enriquecer ninguém.

E estes pensamentos faziam arrefecer no jovem engenheiro o entusiasmo que sentia nas primeiras horas que se seguiram à sua descoberta. Sim! No momento actual aquele diamante, apesar de ter sido tão admiravelmente preparado pelas mãos de Jacobus Vandergaart, apresentava-se-lhe apenas como uma pedra sem valor, à qual dentro em pouco até o prestígio da raridade faltaria.

Cipriano tinha pegado de novo na caixinha, em que cintilava a incomparável gema, e, depois de apertar a mão ao velho, dirigiu-se para a granja de Mister Watkins.

O fazendeiro estava no seu quarto, sempre inquieto, sempre perturbado, à espera da volta, que tão pouco provável lhe parecia, de Jacobus Vandergaart. Ao pé dele estava a filha, que empregava todos os meios possíveis para o sossegar.

Cipriano empurrou a porta e ficou por um momento no limiar.

— E então? — perguntou logo John Watkins, levantando-se muito depressa.

— E então cá está o honrado Jacobus Vandergaart, que chegou esta manhã! — respondeu Cipriano.

— Com o diamante?

— Com o diamante admiravelmente lapidado, e que pesa ainda quatrocentos e trinta e dois carates!

— Quatrocentos e trinta e dois carates! — exclamou John Watkins. — E o senhor trouxe-o?

— Está aqui.

O fazendeiro tinha pegado na caixinha, abriu-a, e os seus olhos cintilavam quase tanto como aquele diamante que ele contemplava com o pasmo admirativo de um extático! Depois, quando lhe foi permitido ter nos dedos, debaixo daquela forma leve e portátil, material e brilhante ao mesmo tempo, o valor colossal representado pela gema, deu ao seu enlevo manifestações por tal modo enfáticas que faziam rir.

Mister Watkins tinha lágrimas na voz e falava ao diamante como se ele fora um ser animado:

— Oh, que bela, que soberba, que esplêndida pedra! — dizia ele. — Ora até que voltaste, querida! Como és brilhante! Como és pesada! Quantos bons guinéus em metal sonante não vales tu? Qual vai ser o teu destino, lindinha? Vão mandar-te para o Cabo e de lá para Londres, para fazerem com que sejas vista e admirada? Mas quem haverá tão rico que possa comprar-te? Nem à rainha será permitido um tal luxo! Era preciso o seu rendimento de dois ou três anos! Há-de ser necessário um voto do Parlamento, uma subscrição nacional! Mas olha, descansa que há-de fazer-se essa subscrição! E também tu irás dormir para a Torre de Londres ao lado do Koh-i-noor, que ao pé de ti será apenas uma criança! Quanto poderás tu valer, linda?

E, depois de fazer um cálculo mental:

— O diamante do Czar pagou-o Catarina II por um milhão de rublos à vista e noventa e seis mil francos de renda vitalícia! Já se vê que não seria muito exagerado pedir por este um milhão esterlino e cem mil francos de renda perpétua!

E logo, surpreendido por uma ideia repentina:

— Não lhe parece, Sr. Méré, que deviam elevar ao pariato o proprietário de uma tal pedra? Todas as classes de merecimento têm direito a ser apresentadas na Câmara Alta, e possuir um diamante deste tamanho não é decerto um merecimento vulgar! Repara tu, filha, olha! Não bastam dois olhos para admirar uma tal pedra!

Miss Watkins, pela primeira vez na sua vida, observou um diamante com algum interesse.

— É realmente muito formoso! Brilha como um bocado de carvão que é, mas como um carvão incandescente — afirmou ela, tirando-a com delicadeza da camilha de algodão.

Depois, por um movimento instintivo, que toda a rapariga na situação dela também teria, aproximou-se do espelho que estava por cima do fogão e pousou a maravilhosa jóia sobre a testa no meio dos seus loiros cabelos.

— Uma estrela encastoada em ouro! — disse com galanteio Cipriano, fazendo por excepção um madrigal.

— É verdade! Parece uma estrela! — exclamou Alice, batendo as palmas. — Pois é preciso dar-lhe esse nome. Baptizemo-la e chamemos-lhe a Estrela do Sul. Quer assim, Sr. Cipriano? Não é ela negra como as belezas indígenas deste país e brilhante como as constelações do nosso céu austral?

— Pois seja Estrela do Sul! — aprovou John Watkins, que ligava pouca importância a esta questão de nome.

— Mas tem cautela, não a deixes cair! — continuou logo, assustado com um movimento brusco que a jovem fizera.

— Olha que se quebrava como se fosse vidro!

— Sim? Pois isto é assim frágil? — inquiriu Alice, tornando a pôr a gema na caixinha com bastante desdém.

— Pobre estrela, és apenas um astro para rir, uma vulgar rolha de garrafa!

— Uma rolha de garrafa! — exclamou Mister Watkins, sufocado. — As crianças nada respeitam!

— Menina Alice — disse então o jovem engenheiro — , foi a menina que me animou a tentar a fabricação artificial do diamante! É portanto a si que esta pedra deve o existir hoje! Mas aos meus olhos é uma jóia que não terá valor algum venal quando se souber a sua origem! Por isso espero que seu pai consinta que eu lha ofereça como recordação da feliz influência que teve sobre os meus trabalhos!

— -O quê! — exclamou Mister Watkins, sem poder dissimular o que sentia ao ouvir aquela proposta... inesperada.

— Menina Alice — repetiu Cipriano — , este diamante é seu! Ofereço-lho eu... dou-lho!

E Miss Watkins, por uma única resposta, estendia ao jovem uma das mãos, que este apertava nas suas com ternura.

 

         A ESTRELA DO SUL

E espalhara-se rapidamente a notícia da volta de Jacobus Vandergaart. Por isso acudiu à granja uma turba numerosa de visitantes para verem a maravilha do Kopje. Também não tardou a saber-se que o diamante pertencia a Miss Watkins, e que o pai, ainda mais do que ela, era o seu verdadeiro possuidor. Daí uma sobreexcitação da curiosidade pública a propósito daquele diamante, obra do homem e não da Natureza.

Devemos notar aqui que nada tinha ainda transpirado acerca da natureza artificial do aludido diamante. Por um lado, os mineiros da Gricualândia não teriam caído na tolice de divulgar um segredo que podia causar a sua ruína imediata. Por outro lado, Cipriano, que não queria fiar coisa alguma do acaso, nada dissera também a este respeito, e tinha resolvido não remeter a sua memória relativa à Estrela do Sul antes de ter contraprovado o seu primeiro êxito com uma segunda experiência. Queria ter a certeza de poder fazer outra vez o que primeiro fizera.

A curiosidade pública estava pois extremamente excitada, e John Watkins não podia decorosamente recusar satisfazê-la, tanto mais que isso lhe lisonjeava a vaidade. Colocou, pois, a Estrela do Sul sobre uma leve camada de algodão em cima de uma colunazinha de mármore branco posta no meio da pedra do fogão da sala de visitas, e, sentado na sua poltrona, ficou ali todo o dia de sentinela vigiando a incomparável jóia e mostrando-a ao público.

James Hilton foi o primeiro que lhe fez ver quanto aquele procedimento era imprudente. Pois então ele não via quantos perigos atraía sobre a sua cabeça, pondo assim em exposição aos olhos de toda a gente o enorme valor que tinha em casa? Na opinião de Hilton era indispensável mandar pedir a Kimberley uma guarda especial de agentes da Polícia, aliás talvez a noite imediata não se passasse a salvamento.

Mister Watkins, assustado com tal perspectiva, deu-se pressa em seguir o conselho do amigo, e só respirou com sossego quando à noitinha viu chegar uma força de policemen a cavalo. Aqueles vinte e cinco homens foram alojados nas dependências da granja. A afluência dos curiosos foi crescendo nos dias imediatos, e a celebridade da Estrela do Sul bem depressa atravessou os limites do distrito e chegou até às cidades mais afastadas. Os jornais da colónia dedicaram artigos e mais artigos à descrição das dimensões, da forma, cor e brilho da formosa pedra. O cabo telegráfico encarregou-se de transmitir todas estas minúcias, por Zanzibar e Adem, à Europa e à Ásia primeiro, e depois às duas Américas e à Oceânia. Apareceram fotógrafos a solicitar a honra de tirar o retrato ao valioso diamante. Vieram desenhadores especiais em nome dos jornais ilustrados para reproduzir a imagem dele. Finalmente, foi um acontecimento para o mundo inteiro.

Formou-se uma lenda. Começaram a circular entre os mineiros histórias fantásticas a respeito de propriedades misteriosas atribuídas à gema.

Dizia-se em voz baixa que uma pedra negra por força havia de ter mau olhado. Havia pessoas cheias de experiência que abanavam a cabeça, dizendo que antes queriam ver aquela pedra do diabo em casa de Watkins do que na sua. Numa palavra, os ditos malévolos e até as calúnias, que são inerentes à celebridade, não faltaram à Estrela do Sul — a qual, como era natural, nada se importou com isso, e continuou, como diz o poeta, a espargir

Torrentes de raios luminosos Sobre os seus obscuros detractores!

Mas não acontecia o mesmo a John Watkins, que andava desesperado com aqueles mexericos. Parecia-lhe que faziam diminuir alguma coisa o valor da pedra, e sentia-se tanto com eles como se fossem ofensas pessoais. Desde que até o governador da colónia, os oficiais das guarnições vizinhas, os magistrados, os funcionários, numa palavra, todos os corpos constituídos, tinham vindo prestar homenagem à sua jóia, pareciam-lhe quase um sacrilégio os livres comentários que alguém se atrevia a fazer a respeito dela.

De modo que para reagir contra aquelas tolices, e também para satisfazer o seu gosto pela comezaina, resolveu dar um grande banquete em honra do querido diamante, que ele estava muito resolvido a converter em espécies amoedadas — dissesse Cipriano o que dissesse — , ainda que Alice tivesse o desejo de o conservar sob a forma de gema.

Ora, infelizmente, tal é a influência do estômago nas opiniões de grande número de homens, que o anúncio daquele banquete foi o bastante para modificar de um dia para o outro a opinião pública no acampamento de Vandergaart! Viram-se sujeitos, que maior má vontade tinham mostrado contra a Estrela do Sul, mudar subitamente de opinião, dizer que, no fim de contas, a pedra estava inocente da má influência que lhe queriam atribuir, e solicitar humildemente um convite para casa de John Watkins.

Há-de falar-se durante muito tempo desse festim na bacia do Val. Naquele dia havia oitenta convivas sentados à mesa, debaixo de uma barraca erguida de encontro a um dos lados da sala de visitas, cuja parede tinha sido deitada abaixo de propósito para aquela solenidade.

Um barão real, ou assado enorme, constituído por um espinhaço de boi, ocupava o centro da mesa, e era flanqueado por carneiros inteiros e por espécimes de todas as qualidades de caça do país. Montanhas de legumes, de frutas, tonéis de cerveja e de vinho, encanteirados de distância a distância e com torneiras metidas, completavam a disposição daquela refeição verdadeiramente pantagruélica.

A Estrela do Sul, colocada sobre a sua coluna e cercada de velas acesas, presidia, por detrás das costas de John Watkins, ao majestoso festim dado em sua honra.

O serviço era feito por uns vinte cafres contratados para o caso sob a direcção de Matakit, que se tinha oferecido para os governar, com a permissão do seu patrão.

Viam-se ali, além da brigada da Polícia, cuja vigilância Mister Watkins queria agradecer por aquela forma, todos os principais figurões do acampamento e dos arredores, Mathys Pretorius, Nathan, James Hilton, Aníbal Pantalacci, Friedel, Tomás Steel e uns cinquenta mais.

Até os animais da granja, os bois, os cães, e principalmente os avestruzes de Miss Watkins, tomavam parte na festa, indo mendigar alguns restos do banquete.

Alice, colocada defronte do pai, na extremidade inferior da mesa, fazia as honras da casa com a sua gentileza costumada, mas não sem uma secreta mágoa, apesar de saber os fundamentos de causa dela: nem Cipriano Méré nem Jacobus Vandergaart assistiram ao jantar.

O jovem engenheiro tinha sempre fugido quanto possível da sociedade de Friedel, de Pantalacci e quejandos. Além disso, depois da sua descoberta, conhecia as intenções pouco benévolas deles a seu respeito, e até as ameaças que tinham feito contra o descobridor daquela fabricação artificial que podia arruiná-los completamente. Tinha-se portanto abstido de ir ao jantar. Quanto a Jacobus Vandergaart, debalde o fazendeiro fez as maiores diligências para tentar uma reconciliação com ele: o lapidário repeliu todas as tentativas.

Ia no fim o banquete. O ter durante ele reinado a maior ordem devia-se à presença de Miss Watkins; o respeito devido a ela obrigou os mais rudes convivas a uma delicadeza suficiente, não obstante Mathys Pretorius ter servido, como sempre, de alvo das brincadeiras estúpidas de Aníbal Pantalacci, que fazia chegar até ao desgraçado bóer as notícias mais estapafúrdias que se podem imaginar! Ia haver fogo de artifício debaixo da mesa! Esperavam que Miss Watkins se retirasse para condenar o homem mais gordo da reunião a beber doze garrafas de gin umas atrás das outras! Tratava-se de coroar a festa com um grande pugilato e um combate geral a tiros de revólver!

Mas foi interrompido por John Watkins, que, na qualidade de presidente do grande banquete, acabava de bater na mesa com o cabo da faca para anunciar aos convivas os toasts tradicionais.

Fez-se silêncio. O anfitrião, erguendo o corpo enorme, apoiou os dois polegares na beira da mesa e começou o speech com a voz um tanto presa, mercê das libações que fizera.

Disse que aquele dia havia de ser para ele a maior das suas recordações da vida de mineiro e de colono! Depois de ter passado por tantas provações como as que conhecera na sua juventude, ver-se agora naquele rico país da Gricualândia, rodeado de oitenta amigos reunidos para festejar o maior diamante do mundo, era uma daquelas alegrias que jamais se esquecem! É verdade que amanhã um dos dignos companheiros que o rodeavam podia achar uma pedra ainda maior! E era isso o que tornava tão aventurosa e tão cheia de poesia a vida do mineiro! (Viva aprovação). Tal felicidade de todo o coração a desejava aos seus convivas! (Sorrisos, aplausos). Julgava mesmo poder afirmar que seria bem difícil de contentar quem, no lugar dele, se não mostrasse satisfeito com esse acontecimento! Concluindo, convidava os seus amigos a beber à prosperidade da Gricualândia, à constância dos preços nos mercados dos diamantes — não obstante qualquer concorrência que aparecesse — , finalmente à felicidade da viagem que a Estrela do Sul ia fazer por esse mundo fora, para levar, primeiro ao Cabo, e depois até à Inglaterra, a irradiação do seu esplendor!

— Mas — observou Tomás Steel — não haverá algum perigo em mandar para o Cabo uma pedra de tanto valor?

— Oh! Há-de levar boa escolta! — respondeu Mister Watkins. — Quantos diamantes têm viajado nestas condições e chegaram a salvamento!

— Até o do Sr. Durieux de Sancy — lembrou Alice — , e contudo, se não fosse a dedicação do criado...

— Então que caso foi esse tão extraordinário que lhe aconteceu? — perguntou James Hilton.

— Aí vai a anedota — respondeu Alice sem se fazer rogar:

“O senhor de Sancy era um fidalgo francês da corte de Henrique III. Possuía um famoso diamante, a que ainda hoje se dá o nome dele. Este diamante, entre parênteses, já tinha tido numerosas aventuras. Pertencera, além de outras pessoas, a Carlos, o Temerário, que o trazia na ocasião em que foi morto junto às muralhas de Nancy. Um soldado suíço achou a pedra no cadáver do duque de Borgonha e vendeu-a por um florim a um pobre padre, que a cedeu por cinco ou seis florins a um judeu. Ora na época em que o senhor de Sancy a possuía, achava-se o tesouro real em grande penúria, e o fidalgo francês consentiu em empenhar o diamante para emprestar ao rei o que lhe dessem sobre ele. A pessoa que emprestava o dinheiro estava em Metz. Foi preciso portanto confiar a jóia a um servo que havia de lha levar.

“ — Não receia que este homem fuja para a Alemanha?” — diziam ao senhor de Sancy.

"— Tenho toda a confiança nele” — respondia o francês.

“Não obstante esta confiança, nem o homem nem o diamante chegaram a Metz. De modo que a corte zombou muito do senhor de Sancy.

"— Tenho toda a certeza de que não foi por culpa do meu criado — repetia ele. — Decerto foi assassinado!”

“Efectivamente, tanto procuraram que vieram a dar com o cadáver dele na valeta de uma estrada.

“ — Abram-no! — disse o senhor de Sancy. — O diamante há-de estar no estômago dele!”

“Fez-se o que ele dizia, e achou-se justificada a sua afirmação. O humilde herói, cujo nome a história nem sequer registou, tinha sido fiel ao dever e à honra até na morte, ofuscando pelo brilho da sua acção, como diz um antigo cronista, o brilho e a virtude da jóia que levava!

Muito me admiraria — disse Alice ao terminar a história — que, se fosse preciso, a Estrela do Sul não ins-pirasse uma dedicação semelhante durante a sua viagem!

Foram recebidas com unânime aclamação as últimas palavras de Miss Watkins. Ergueram-se oitenta braços levantando outros tantos copos, e instintivamente todos os olhos se voltaram para o fogão como para prestar homenagem efectiva à incomparável gema.

A Estrela do Sul já não estava sobre o pedestal, onde ainda pouco antes cintilava por detrás de John Watkins!

O espanto daqueles oitenta rostos era por tal modo manifesto, que o anfitrião voltou-se imediatamente para ver qual era a causa dele.

Mal deu por ela caiu prostrado sobre a cadeira, como se fora fulminado pelo raio.

Correram para ele, desataram-lhe a gravata, deitaram-lhe água na cabeça... Voltou finalmente a si.

— O diamante! — uivou ele com voz atroadora. — O diamante! Quem tem o diamante?!

— Ninguém saia! — ordenou o comandante da brigada da Polícia, mandando ao mesmo tempo guardar todas as saídas da sala.

Os convivas olhavam todos uns para os outros pasmados, ou comunicavam em voz baixa as suas impressões. Não havia ainda cinco minutos que quase todos eles tinham visto o diamante, ou pelo menos julgavam tê-lo visto.

Mas era forçoso renderem-se à evidência: o diamante desaparecera!

— Peço que se apalpem todas as pessoas presentes antes de saírem! — propôs Tomás Steel com a sua costumada franqueza.

— Sim! Sim! — aprovou a assembleia, com voz que parecia unânime.

Esta ideia parece que deu a John Watkins um clarão de esperança.

O chefe da Polícia mandou colocar todos os convivas numa fileira a um dos lados da sala e começou por se sujeitar ele próprio à operação pedida. Virou as algibeiras do avesso, descalçou os sapatos, e mandou apalpar o fato por quem quis. Depois fez idêntico exame a cada um dos homens da sua brigada. Por fim, todos os convivas passaram por diante dele um a um, e foram sucessivamente submetidos a minuciosa investigação.

Mas tais investigações não deram o menor resultado.

Passou-se então revista cuidadosa a todos os cantos e recantos da sala do banquete... Nem sinais do diamante.

— Faltam os cafres que serviram à mesa! — lembrou o oficial da Polícia, que queria tirar o negócio a limpo.

— Está claro! Foram os cafres — afirmou alguém. — São bastante ladrões para terem feito a sorte

Mas os pobres diabos tinham saído um pouco antes do toast de John Watkins, logo que o seu serviço não foi preciso. Estavam lá fora acocorados em círculo, em roda de uma grande fogueira ao ar livre, e, tendo já feito honra aos restos do jantar, estavam preludiando um concerto de sua invenção à moda da Cafraria. Guitarras feitas com cabaças, flautas em que se sopra com o nariz, tantãs sonoros de todos os feitios, começavam já a ensurdecedora cacofonia que precede sempre as grandes manifestações musicais dos indígenas da África Austral.

Os cafres não percebiam muito bem o que se pretendia deles, quando receberam ordem para voltar à sala e começaram a ser apalpados nos seus resumidos trajos. Apenas compreenderam que se tratava do roubo de um diamante de grande valor.

Mas estas manifestações tiveram tanta utilidade e bom resultado como as precedentes.

— Se o ladrão foi um destes cafres — com certeza que foi — , já teve tempo e mais que tempo de pôr em lugar seguro o diamante! — observou com muita razão um dos convivas.

— Isso é evidente — concordou o oficial da Polícia — , e talvez só haja um meio de fazer com que ele se denuncie: é recorrer a um adivinho da sua raça. Às vezes o expediente surte efeito...

— Se dão licença — disse Matakit, que ainda estava com os seus companheiros — , posso tentar a experiência!

Aceitaram logo o oferecimento e os convivas rodearam os cafres; depois Matakit, habituado àquele papel de adivinho, deu começo ao inquérito.

Em primeiro lugar começou por aspirar duas ou três pitadas de tabaco tirado de uma caixa de madeira do ar, que nunca largava.

— Agora vou fazer a prova das varinhas! — anunciou ele depois daquela operação preliminar.

Foi buscar a uma moita próxima uns vinte pauzinhos, mediu-os com toda a exactidão e cortou-os de forma a dar a todos o mesmo comprimento, doze polegadas inglesas. Em seguida distribuiu-os aos cafres enfileirados, tendo antes posto um de parte para si.

— Vocês podem ir para onde quiserem durante um quarto de hora — disse Matakit com ar solene aos companheiros — , e só hão-de voltar quando ouvirem bater no tantã! Se um de vocês é o ladrão, a sua varinha há-de aparecer com o aumento de três dedos!

Os cafres dispersaram-se. Via-se bem que tinham ficado impressionados com aquele pequeno discurso, porque sabiam que os processos da justiça da Gricualândia eram sumários, e que por isso era um homem preso sem grandes delongas, e, sem ter tempo de se defender, ainda mais                 depressa enforcado.

Os convivas, que tinham observado com interesse as peripécias daquele preparativo da cena, começaram naturalmente a comentá-las cada um a seu modo.

— Ora — objectava um — se um desses homens for o ladrão, não será tão tolo que volte cá!

— Pois então por isso mesmo se descobre! — respondeu outro.

— Pois sim! Há-de ser mais esperto do que o Matakit e contenta-se com cortar três dedos da sua varinha para conjurar o argumento que receia!

— Provavelmente é isso mesmo que o adivinho espera, de modo que essa desastrada diminuição da vara é que há-de revelar o culpado!

Neste meio tempo decorreram os quinze minutos. Matakit bateu de repente no tantã, chamando assim aqueles que sujeitara à sua jurisdição.

Voltaram sem faltar um só, enfileiraram-se diante dele e entregaram as varinhas.

Matakit pegou nelas, formou um feixe e achou-as todas perfeitamente iguais.

Ia já a pô-las de parte e declarar que a prova tinha manifestado claramente a probidade dos seus compatriotas, quando, mudando de ideia, foi comparar as varinhas, que lhe haviam sido entregues, com a que ele tinha guardado.

Todas eram mais curtas três dedos!

Os pobres diabos tinham julgado prudente tomar aquela precaução contra um acontecimento que, segundo as suas ideias supersticiosas, podia muito bem dar-se. Ora isto não indicava exactamente que eles tivessem a consciência perfeitamente tranquila, de modo que com certeza cada um deles havia furtado algum diamante durante o dia.

Ao verificar-se este resultado inesperado reboou na sala uma gargalhada. Matakit, com os olhos baixos, parecia profundamente humilhado por ver que na vida civilizada perdia assim toda a importância um meio que lá no seu kraal era tão eficaz.

Então o oficial da Polícia dirigiu-se a John Watkins, que se deixara ficar sentado entregue ao desespero, e, cumprimentando-o, disse-lhe:

— É forçoso, senhor, confessarmos que não se consegue nada hoje! Talvez amanhã sejamos mais felizes, prometendo uma boa recompensa a quem nos der indícios para procurar o ladrão!

— O ladrão! — exclamou Aníbal Pantalacci. — E porque não será exactamente aquele que o senhor encarregou de julgar os companheiros?!

— A quem se refere? — perguntou o oficial da Polícia.

— Ora! A esse Matakit, que talvez esperasse, representando o papel de adivinho, desviar de si as suspeitas!

Se naquele momento tivessem olhado para Matakit, tê-lo-iam visto fazer uma careta esquisita, sair com ligeireza da sala e ir-se safando para o lado da sua cubata.

— Sim! — continuou o napolitano. — Ele andava com os outros cafres que serviam à mesa! É um espertalhão, um trampolineiro, que deu no goto ao Sr. Méré ninguém sabe porquê!

— Matakit é honrado, ficava eu por ele! — exclamou Miss Watkins, pronta a defender o servo de Cipriano.

— Ora! Quem é que te garante isso? — replicou John Watkins. — Sim... o tal negro era muito capaz de ter deitado a mão à Estrela do Sul — Não pode estar longe! — afirmou o oficial da Polícia. — Daqui a um instante temo-lo apalpado! Se ele tiver o diamante em seu poder, há-de receber tantas chicotadas quantos os carates que a pedra pesa, e, se não morrer depois das quatrocentas e trinta e duas, enforca-se!

Miss Watkins tremia de terror. Todos aqueles homens, meio selvagens, acabavam de aplaudir a abominável sentença do oficial de justiça. Mas como seria possível sufocar aquelas naturezas brutais, destituídas de remorso e compaixão?

Daí a pouco Mister Watkins e os seus convidados estavam diante da cubata de Matakit. Meteram a porta dentro.

Matakit já lá não estava, e debalde o esperaram durante toda a noite.

No dia seguinte de manhã também não apareceu. Era claro que tinha saído do Vandergaart-Kopje.

 

          PREPARATIVOS DA PARTIDA

Cipriano Méré, quando na manhã seguinte soube o que se passara no banquete da véspera, no primeiro ímpeto protestou contra a grave acusação feita ao criado. Não podia admitir       que Matakit fosse o autor do furto, e concordava com Alice na dúvida a este respeito. Com franqueza, mais fácil seria para ele suspeitar de Aníbal Pantalacci, de Friedel, de Nathan ou de outro qualquer dos que lhe pareciam sujeitos com quem se devia ter cautela!

Era pouco provável, contudo, que fosse europeu o autor do crime. A Estrela do Sul era, para todos os que lhe desconheciam a origem, um diamante natural e por conseguinte de valor tal que se tornava dificílimo vendê-lo.

“E contudo — insistia Cipriano consigo mesmo — não é possível que fosse Matakit.”

Mas então vinham-lhe à memória algumas dúvidas a propósito de certos furtos, que o cafre umas vezes por outras tinha feito, mesmo no seu serviço. Efectivamente, apesar de todas as admoestações do patrão, Matakit, obedecendo à sua natureza — muito elástica na questão do meu e do teu — , nunca pudera desfazer-se daqueles hábitos tão dignos de censura. É certo que aqueles casos se referiam a objectos sem grande valor; mas, em suma, não seria preciso mais para estabelecer uns precedentes judiciais, que não podiam fazer honra a Matakit!

Além disso, havia como indícios em primeiro lugar a presença do cafre na sala do festim, quando o diamante se eclipsou como por arte mágica; em seguida a circunstância singular de não se encontrar o preto na cubata alguns instantes depois; finalmente, a sua fuga, que talvez tivesse clara explicação, pois não era lícito duvidar de que ele não tinha saído do país.

Efectivamente, Cipriano, que não podia decidir-se a acreditar na culpabilidade do seu criado, debalde esperou durante a manhã que ele voltasse: o criado não apareceu. Averiguou-se mesmo que tanto o saco, onde ele tinha as suas economias, como alguns objectos ou utensílios necessários para um homem que se vai meter por aquelas regiões quase desertas da África Austral, tudo tinha desaparecido da cubata. Já não podia haver dúvida.

Próximo das dez horas o jovem engenheiro, talvez mais triste por causa do procedimento de Matakit do que pela perda do diamante, dirigiu-se para a granja de John watkins.

Lá estavam em grande conferência o dono da casa, Aníbal Pantalacci, James Hilton e Friedel. Alice tinha visto o engenheiro, e por isso, quando ele se apresentou, entrava também ela na sala, onde o pai e os três pretendentes discutiam com grande gritaria a solução que se devia tomar para tornar a apanhar o diamante roubado.

— Persigam-me esse maldito Matakit! — gritava John Watkins, altamente enfurecido. — Agarrem-no, e, se não aparecer o diamante no fato dele, abram-lhe a barriga para ver se ele o engoliu! Ah, minha filha! Fizeste bem em nos contar ontem aquela história! Há-de procurar-se o diamante ainda que seja nas tripas daquele desavergonhado!

— Mas olhe! — respondeu Cipriano com um tom de ironia de que o fazendeiro nada gostou. — Para engolir uma pedra daquele tamanho era preciso que Matakit tivesse estômago de avestruz!

— Então o estômago de um cafre não é capaz de tudo, Sr. Méré? — retorquiu John Watkins. — E parecem-lhe a ocasião e o caso muito próprios para brincar!

— Eu não brinco — retorquiu Cipriano com toda a seriedade. — Mas, se lamento a perda do diamante, é simplesmente porque o senhor me deu licença para eu o oferecer à menina Alice.

— Estou-lhe tão agradecida, Sr. Cipriano — afirmou Miss Watkins — como se ainda o tivesse em meu poder!

— Ora aí têm o juízo das mulheres! — exclamou o fazendeiro. — Tão agradecida como se ainda o tivesse em seu poder! Um diamante que não tem rival no mundo!

— De facto não é exactamente a mesma coisa — observou James Hilton.

— Oh! Certamente que não é! — acrescentou Friedel.

— E eu, pelo contrário, digo que é exactamente a mesma coisa — respondeu Cipriano — , visto que, assim como fabriquei aquele diamante, posso muito bem fabricar outro.

— Olhe, senhor engenheiro — advertiu Aníbal Pantalacci, com voz cheia de ameaças dirigidas ao jovem — , parece-me que andaria melhor em não tentar nova experiência... por interesse da Gricualândia... e pelo seu também!

— Sério?! — redarguiu Cipriano. — Parece-me que não tenho que lhe pedir licença.

— Então? É agora ocasião de discutir a esse respeito? — exclamou Mister Watkins. — O Sr. Méré tem porventura a certeza de bom êxito em outro ensaio? outro diamante, que ele arranjasse, teria exactamente a cor, o peso e, por conseguinte, o valor do primeiro? Pode ele por acaso prometer que há-de fazer outra pedra, mesmo de preço muito inferior? Pois ousará afirmar que na primeira experiência, tão favorável, não entrou o acaso em grande proporção?

Estas considerações de John Watkins eram assaz razoáveis, e por isso impressionaram o jovem engenheiro. Aquilo não era mais que as objecções em que ele já tinha pensado. A sua experiência explicava-se perfeitamente, não há dúvida, com os dados da química moderna; mas não tinha o acaso concorrido muito para a primeira felicidade? E, se tornasse a começar, tinha ele a certeza de ser novamente feliz?

Nestes termos era necessário apanhar a todo o custo o ladrão, e mais útil ainda apanhar o objecto roubado.

— E neste meio tempo não se encontrou nenhum rasto de Matakit? — perguntou John Watkins.

— Nenhum — respondeu Cipriano.

— Procuraram em todos os arredores do acampamento?

— Procurou-se bem! — asseverou Friedel. — O grandíssimo traste desapareceu provavelmente de noite, e será muito difícil, para não dizer impossível, saber para que lado ele se dirigiu!

— E o oficial da Polícia fez alguma busca na cubata? — insistiu o fazendeiro.

— Fez, sim — respondeu Cipriano — , e nada achou que pudesse pô-lo no rasto do fugitivo.

— Oh! — exclamou Mister Watkins. — Dava quinhentas libras e até mil para que o apanhassem.

— Compreendo isso bem, Sr. Watkins! — declarou Aníbal Pantalacci. — Mas receio que não tornemos a ver nem o seu diamante nem aquele que o furtou!

— E então porquê?

— Porque Matakit — explicou Aníbal Pantalacci — depois de se safar daqui não há-de ser tão tolo que se demore no caminho! Há-de atravessar o Limpopo e meter-se pelo deserto; há-de ir até ao Zambeze ou ao lago Tanganhica, até aos Boximanes, se for preciso!

O astucioso napolitano, falando assim, dizia sinceramente o que pensava? Ou não tinha a ideia de por aquela forma impedir que perseguissem Matakit, com o fim de reservar ele para si esse cuidado? Eis o que Cipriano pensava consigo ao mesmo tempo que observava o figurão.

 

Mas Mister Watkins não era homem que abandonasse a partida com o pretexto de que o jogo era difícil. Com certeza teria sacrificado toda a sua fortuna para tornar a haver às mãos a incomparável pedra, e os seus olhares impacientes e enfurecidos dirigiam-se através da janela aberta até às margens verdejantes do Val, como se tivesse esperança de ver ainda lá o fugitivo!

— Não! — exclamou ele. — Isto não pode acabar assim! Quero o meu diamante! É preciso agarrar aquele desavergonhado! Ah! Se eu não padecesse de gota, não havia de ser preciso muito tempo, palavra!

— Pai! — intervinha Alice, procurando fazê-lo sossegar.

— Vejamos, quem se encarrega disto? — exclamou John Watkins, olhando em redor para os circunstantes. — Quem quer ir atrás do cafre? Dou a minha palavra de honra que a recompensa será boa!

E, como ninguém respondia, acrescentou:

— Olhem, os senhores todos quatro ambicionam a mão de minha filha! Pois bem! Apanhem-me esse homem com o meu diamante — dizia agora “o meu diamante — , e, palavra de Watkins, dou minha filha a quem mo trouxer!

— Aceito! — gritou James Hilton.

— E dois! — declarou Friedel.

— Quem não desejará tentar ganhar tão precioso prémio? — murmurou Aníbal Pantalacci, com sorriso amarelo.

Alice, coberta de rubor, sentia-se profundamente humilhada por ver que faziam dela o bolo de uma tal partida, e isto na presença do jovem engenheiro. Debalde procurava esconder a sua confusão.

— Miss Watkins — disse-lhe Cipriano a meia voz, inclinando-se respeitosamente para ela — , eu tinha vontade de concorrer também, mas devo fazê-lo sem sua licença?

— Dou-lha e acompanhada de todos os meus votos, Sr. Cipriano! — respondeu ela rapidamente.

— Então estou pronto a ir até ao fim do mundo! — exclamou Cipriano, voltando-se para John Watkins.

— Palavra que talvez o senhor não erre muito — disse Aníbal Pantalacci — porque me parece que Matakit nos há-de dar que andar! Com a pressa com que decerto se safou, amanhã há-de estar em Potchefstrom, e terá alcançado as terras altas antes mesmo de nós termos saído das nossas barracas!

— E quem nos impede de partir hoje mesmo... imediatamente? — perguntou Cipriano.

— Oh! Eu não, decerto, se o senhor tem desejo disso! — replicou o napolitano. — Mas cá por mim não embarco sem bolacha. Um bom carrão com uma dúzia de bois de tiro e dois cavalos de sela é o menos que é preciso arranjar para uma expedição como esta que eu prevejo! E isto tudo só se encontra em Potchefstrom!

Ainda uma vez, Aníbal Pantalacci falava com seriedade? Ou tinha só por fim desanimar os seus rivais? Seria duvidoso o decidir. Mas o que não padecia dúvida alguma é que ele tinha toda a razão. Sem aqueles meios de locomoção, sem aqueles recursos, seria loucura tentar avançar para o norte da Gricualândia!

Entretanto, Cipriano não ignorava que só o carrão e os bois podiam custar o menos dez mil francos; e ele por sua parte não tinha nem quatro mil.

— Uma ideia! — sugeriu de repente James Hilton, que, na sua qualidade de Africander de origem escocesa, tinha o espírito especialmente adequado à economia. Porque não havemos de nos associar todos os quatro para esta expedição? As probabilidades de cada um ficam da mesma forma iguais, e pelo menos dividem-se as despesas por todos!

— Parece-me isso razoável — apoiou Friedel.

— Aceito — respondeu Cipriano, sem hesitar.

— Nesse caso — observou Aníbal Pantalacci —, deve convencionar-se que cada um de nós há-de conservar a sua independência e poderá deixar sem escrúpulos os companheiros no momento em que isso lhe pareça conveniente para tentar agarrar o fugitivo.

— Isso é claro! — -volveu James Hilton. — Nós associamo-nos para a compra do carrão, dos bois e das provisões; mas cada um pode desligar-se quando lhe aprouver fazê-lo! E tanto melhor para o primeiro que alcançar o fim!

— Combinado! — responderam Cipriano, Aníbal Pantalacci e Friedel.

— Quando partem? — perguntou John Watkins, que com aquela combinação via quadruplicadas as probabilidades de tornar a alcançar o seu diamante.

— Amanhã, na diligência de Potchefstrom — informou friedel. — Nem sequer se deve pensar em chegar antes dela.

— Está combinado!

Entretanto, Alice tinha chamado Cipriano de parte, e perguntava-lhe se ele estava realmente convencido de que fosse Matakit o autor do roubo.

— Miss Watkins — respondeu-lhe o jovem engenheiro. — Vejo-me obrigado a confessar que todas as presunções são contra ele, visto que fugiu! Mas o que me parece certo é que este Aníbal Pantalacci anda com uns modos de quem talvez sabe muito a respeito do desaparecimento do diamante! Que cara digna da forca! E que rico sócio que eu vou ter! Ora! Quem vai à guerra, dá e leva! No fim de contas vale mais tê-lo debaixo de mão e poder vigiar-lhe os movimentos, do que deixá-lo à solta e longe de vista a fazer o que lhe viesse à cabeça!

Pouco depois os quatro pretendentes despediram-se de John Watkins e da filha, como era natural nas circunstâncias em que eles se achavam; as despedidas foram breves e reduziram-se a uma troca de apertos de mão. O que podiam dizer uns aos outros aqueles rivais, que iam partir juntos quando desejariam antes mandar-se mutuamente de presente ao diabo?!

Cipriano, ao voltar para casa, encontrou Li e Bardik. Este jovem cafre tinha-se sempre mostrado muito aplicado ao trabalho, desde que servia o engenheiro. O china e ele estavam dando à língua à entrada da porta. Cipriano preveniu-os de que ia partir juntamente com Friedel, James Hilton e Aníbal Pantalacci para perseguirem o Matakit.

Os dois trocaram entre si um olhar — um só — e depois, aproximando-se sem pronunciarem uma só palavra do que pensavam a respeito do fugitivo, disseram a um tempo:

— Paizinho, leva-nos contigo! Pedimos-te muito, muito!

— Levá-los comigo? E para quê? Digam lá!

— Para te preparar o café e a comida — disse Bardik.

— Para te lavar a roupa — acrescentou Li.

— E para evitar que os maus te façam mal — continuaram os dois como se estivessem combinados.

Cipriano olhou para eles com agradecimento e respondeu:

— Pois seja! Levo-os ambos, visto que assim o desejam!

E em seguida foi despedir-se do velho Jacobus Vandergaart, o qual, sem aprovar ou desaprovar que Cipriano fosse naquela expedição, lhe apertou cordialmente a mão e desejou-lhe boa viagem.

No dia seguinte de manhã, ao dirigir-se para o acampamento de Vandergaart a fim de se meter na diligência de Potchefstrom, o jovem engenheiro levantou os olhos para a granja Watkins, onde tudo ainda dormia.

Mas seria ilusão? Pareceu-lhe ver numa das janelas, por detrás da cortina de musselina branca, uma forma subtil, que, no momento em que ele se afastava, lhe fazia um último sinal de adeus.

 

         ATRAVÉS DO TRANSVAL

Ao chegarem a Potchefstrom os quatro viajantes souberam que um rapaz cafre — cujos sinais condiziam com os de Matakit — tinha na véspera passado pela cidade. Já era uma excelente probabilidade para o bom êxito da expedição. Mas como o fugitivo tinha arranjado ali um bom carrinho com o respectivo avestruz, viram que essa expedição havia de ser bem longa, por isso que se tornava mais difícil alcançá-lo.

Efectivamente, não há animais que andem mais nem mais sofredores do que aqueles. Diremos também que os avestruzes de tiro são muito raros, mesmo na Gricualândia, porque não é fácil ensiná-los. E foi por isso que nem Cipriano nem os seus companheiros os puderam arranjar em Potchefstrom.

E veio a saber-se que em tais condições Matakit tinha continuado o caminho para o norte com um modo de transporte que cansaria dez cavalos de muda.

Restava, pois, prepararem-se para o perseguirem com a maior rapidez possível. Realmente, o fugitivo tinha, além da grande dianteira, a vantagem de uma velocidade muito superior à do modo de locomoção que os seus adversários iam adoptar. Mas, afinal, as forças de um avestruz também têm limites. Contando com o pior, deviam apanhá-lo no fim da sua viagem.

Bem depressa Cipriano teve ocasião de se felicitar por ter levado consigo Li e Bardik: foi quando tratou de arranjar os preparativos para a expedição. Efectivamente, em tais casos, não é pequena dificuldade escolher com discernimento os objectos que possam na realidade ser úteis. Coisa alguma pode substituir a experiência do deserto.

De nada valia a Cipriano ser exímio em cálculo diferencial e integral; não sabia o A B C da vida do Veld, da vida no trek, ou das rodadas do carrão, como lá se diz. Ora os seus companheiros não só pareciam pouco dispostos a ajudá-lo com os seus conselhos, mas tendiam para o induzirem em erro.

Enquanto se tratou do carro coberto com um toldo impermeável, das juntas de bois e das diversas provisões, foram as coisas menos mal. O interesse comum ordenava que elas fossem escolhidas com cuidado, e James Hilton desempenhou-se do encargo perfeitamente. Mas já não acontecia o mesmo com as coisas que se deixavam à iniciativa individual de cada um, por exemplo a compra de um cavalo.

Cipriano já tinha descoberto na praça do mercado um potro muito bonito, de três anos, cheio de fogo, que lhe cediam por preço moderado; já o havia experimentado para cavalaria e, como o achasse bem ensinado, preparava-se para satisfazer ao mercador a quantia pedida quando Bardik o chamou de parte e lhe observou:

— Então que é isso, paizinho, vais comprar esse cavalo?

— Decerto, Bardik! — É o mais bonito que por tal preço tenho encontrado.

— Não devias pegar nele, ainda que to dessem de graça! — advertiu o jovem cafre. — Esse cavalo não resistia oito dias na viagem pelo Transval!

— Que estás tu a dizer? — replicou Cipriano. — Meter-te-ia na cabeça fazer de adivinho comigo?

— Não, paizinho, mas Bardik conhece o deserto e avisa-te de que esse cavalo ainda não está salgado.

— Não está salgado? Então tu queres que eu compre um cavalo de salmoira?

— Não, paizinho, mas isto quer dizer que ele ainda não teve a doença do Veld. De modo que não tardará a tê-la, e, mesmo que não morra dela, fica-te inutilizado!

— Ah! — exclamou Cipriano, maravilhado da advertência que lhe fazia o servo. — E em que consiste essa doença?

— É uma febre ardente acompanhada com tosse — elucidou Bardik.

— É indispensável comprar só cavalos que já a tenham tido, e é fácil reconhecer isso pelo aspecto, porque, quando eles escapam uma vez, é raro que a tornem a ter outra.

Perante uma tal eventualidade não havia que hesitar. Cipriano suspendeu imediatamente a negociação e foi fazer indagações. Toda a gente lhe confirmou o que Bardik lhe dissera. E era um facto tão bem sabido na terra que nem sequer se falava em tal.

O jovem engenheiro ficou assim advertido da sua inexperiência, e por isso tornou-se mais prudente e aconselhou-se com um veterinário de Potchefstrom.

Graças à intervenção desse especialista arranjou em algumas horas a cavalgadura que lhe convinha para aquele género de viagem. Era um cavalo ruço, com a pele em cima do osso, e que até tinha só um bocado da cauda. Mas bastava vê-lo para ter a certeza de que aquele ao menos havia sido salgado, e apesar de ter o trote um pouco duro, valia evidentemente muito mais do que parecia. Chamava-se Templar e tinha na terra verdadeira reputação como cavalo para aguentar. Bardik, que decerto merecia algum direito a ser consultado, declarou-se plenamente satisfeito quando o viu.

Quanto a ele, devia ser especialmente encarregado da direcção do carrão e das juntas de bois, serviço em que seria ajudado pelo seu camarada Li.

Não havia, portanto, que pensar em lhes dar cavalos a um e outro — o que, aliás, Cipriano não poderia fazer visto o dinheiro que teve de desembolsar pela aquisição do seu próprio cavalo.

Não era menos delicada a questão das armas. É verdade que Cipriano já tinha escolhido as suas espingardas, um excelente rifle do sistema Martini-Henry e uma carabina Remington, que não brilhavam pela elegância, mas que eram muito certeiras e carregavam-se depressa. Mas o que nunca lhe passaria pela cabeça, se o china lho não lembrasse, era arranjar um certo número de cartuchos com balas explosivas. Também lhe pareciam munições suficientes quinhentas ou seiscentas cargas de pólvora e chumbo, e ficou muito admirado quando soube que quatro mil tiros por espingarda era o mínimo que a prudência aconselhava naquele país de animais ferozes e de indígenas não menos temíveis.

Cipriano também teve de se munir com dois revólveres de bala explosiva, e completou o seu armamento com a compra de uma soberba faca de mato, que figurava havia cinco anos nas vidraças do armeiro de Potchefstrom, sem que ninguém se tivesse lembrado de a comprar.

Foi também Li que insistiu para que se fizesse esta aquisição, afirmando que nada seria tão útil como a tal faca. E tomou ele pessoalmente o encargo de conservar o fio e o polido daquela folha curta e larga, muito parecida com o sabre-baioneta da infantaria francesa, mostrando assim a confiança que tinha nas armas brancas, confiança que é comum aos homens da sua raça.

Além disso, o prudente china não se tinha separado da famosa caixa encarnada. Lá encafuou, ao lado de uma multidão de caixinhas e ingredientes misteriosos, cerca de sessenta metros dessa corda flexível e delgada, mas de cordões muito fortes, a que os marinheiros dão o nome de linha. E, perguntando-lhe alguém para que a destinava ele, respondeu evasivamente:

— Então no deserto não se há-de estender também a roupa a enxugar?

Em doze horas estavam feitas todas as compras. Lenços impermeáveis, cobertores de lã, utensílios de cozinha, abundantes provisões de boca em latas, jugos, cadeias, correias de sobresselente, tudo isso formava o depósito geral, acomodado na parte posterior do carrão. A parte anterior, cheia de palha, devia servir de leito e abrigo a Cipriano e seus companheiros de viagem.

James Hilton havia-se desempenhado muito bem do seu mandato, e parecia ter escolhido perfeitamente tudo quanto podia ser necessário à sociedade. Tinha ele bastantes fumaças de ser colono muito experiente, de modo que para fazer alarde da sua superioridade, mais do que por espírito de camaradagem, era capaz de cair em dar conselhos aos companheiros a respeito dos usos do Veld. Mas Aníbal Pantalacci nunca deixava de intervir nessas ocasiões e de lhe cortar a palavra.

— Que necessidade tem o senhor de ensinar ao Frenchman o que sabe? — observava-lhe ele a meia voz. — Tem muito empenho em lhe fazer ganhar o prémio da corrida? Se eu estivesse no seu lugar guardava para mim o que soubesse e não abria o bico.

E James Hilton respondia, olhando para o napolitano com sincera admiração:

— É exacto o que o senhor está a dizer... é exacto! E eu que me não lembrava disso!

Cipriano, por sua parte, não deixara de advertir lealmente Friedel do que soubera a respeito dos cavalos do país; mas encontrou-o com uma jactância e teimosia sem limites. O alemão não dava ouvidos a coisa alguma, e só queria governar-se pela sua cabeça. Comprou portanto o cavalo de menos idade e mais fogoso que pôde encontrar — exactamente aquele que Cipriano tinha rejeitado — , e tratou principalmente de arranjar aparelhos de pesca, a pretexto de que depressa se havia de aborrecer de comer caça.

Finalmente, concluíram-se os preparativos para se porem a caminho, e a caravana formou-se na ordem que vamos indicar.

Ia na frente o carrão, puxado por doze bois ruços e pretos, debaixo do supremo mando de Bardik, que umas vezes caminhava junto dos robustos animais, de aguilhada em punho, e outras vezes, para descansar, saltava para cima do carro. Sentando-se então na tábua, entregava-se aos solavancos dos caminhos sem se importar com coisa alguma, e parecia muito satisfeito com aquele modo de locomoção. Os quatro cavaleiros marchavam em linha na retaguarda. A não ser alguma ocasião em que julgassem conveniente afastar-se para atirar a uma perdiz ou fazer um reconhecimento, tal devia ser por muitos dias a formatura quase inalterável da caravana.

Depois de rápida consulta, deliberou-se que se dirigissem em direcção às origens do Limpopo. Todas as informações tendiam a demonstrar que Matakit tinha seguido esse caminho. Efectivamente, não podia ter tomado outro, se era intenção sua afastar-se o mais depressa possível das possessões britânicas. A vantagem do cafre sobre os que o perseguiam consistia tanto no perfeito conhecimento que tinha do país como na rapidez do seu carrinho. Por um lado, decerto sabia para onde ia, e por isso tomava o caminho mais curto; por outro lado, graças às suas relações com as tribos do Norte, tinha a certeza de encontrar em toda a parte auxílio e protecção, sustento e abrigo, e até auxiliares, se tanto fosse preciso. E quem sabe se ele não aproveitaria a influência que tinha sobre os naturais para se voltar contra os seus perseguidores e talvez atacá-los à mão armada? Cipriano e os seus companheiros compreendiam, pois, cada vez mais nitidamente, a necessidade de marcharem unidos e de se ajudarem mutuamente, se quisessem que um deles colhesse o fruto da expedição.

O Transval, que ia por aquela forma ser atravessado do sul ao norte, é essa vasta região da África Meridional — pelo menos trinta milhares de hectares — cuja superfície se estende entre o Val e o Limpopo, a oeste dos montes Drakenberg, da colónia inglesa do Natal, do país dos Zulos e das possessões portuguesas.

Depois de inteiramente colonizado pelos bóeres, antigos cidadãos holandeses do Cabo, que em quinze ou vinte anos espalharam por ele uma população agrícola de mais de cem mil brancos, o Transval excitou, como era natural, a cobiça da Grã-Bretanha. Foi por isso que ela o anexou em 1877 às suas possessões do Cabo. Mas as frequentes revoltas dos bóeres, que se obstinam em querer ser independentes, tornam ainda muito duvidosa a sorte daquele belo país.

Porque, efectivamente, o Transval é um dos países mais pitorescos e férteis da África, e também um dos mais salubres — e assim se explica, posto que se não justifique, a atracção que ele exerce sobre os seus temíveis vizinhos.

E nessa acção política da Inglaterra sobre o Transval também não deixou de influir a recente descoberta de minas de ouro naqueles territórios.

Debaixo do ponto de vista geográfico costuma-se, em geral (a exemplo do que fazem os próprios bóeres), dividir o Transval em três regiões: as terras altas ou Ilooge-Veld, a região das colmas ou Banken-Veld, e a região dos matagais ou Bush-Veld.

A região das terras altas, a mais meridional, é formada pelas serranias, que se afastam do Drakenberg para oeste e para o sul. É o distrito mineiro do Transval, e o seu clima é frio e seco como o Oberland bernes.

O Banken-Veld é mais especialmente o distrito agrícola. Estende-se ao norte do primeiro, e nos seus profundos vales, regados por muitas ribeiras e ensombrados por árvores sempre verdes, abriga a maior parte da população holandesa.

Finalmente, o Bush-Veld, ou região dos matagais, é por excelência a zona da caça, e desenvolve-se em vastas planícies para o norte até às margens do Limpopo, prolongando-se para oeste até ao país dos cafres Bejuanas.

Partindo de Potchefstrom, que está situado no Banken-Veld, os nossos viajantes tinham, pois, de percorrer em diagonal a maior parte desta região para chegarem ao Bush-Veld, e dali, seguindo para o norte, às margens do Limpopo.

Esta primeira parte do Transval foi, como é de prever, a que menos custou a atravessar. Estava-se ainda num país meio civilizado. Os acidentes de maior vulto cifravam-se numa roda entalada em algum atoleiro, ou em algum boi doente. Abundavam pelo caminho patos bravos, perdizes e cabritos monteses, que todos os dias forneciam elementos para o almoço ou jantar. Normalmente passava-se a noite em alguma granja, cujos habitantes, isolados do resto do mundo durante três quartas partes do ano, recebiam com sincera alegria os hóspedes que lhes chegavam.

Em toda a parte os bóeres eram os mesmos, hospitaleiros, atenciosos, desinteressados. É verdade que a etiqueta do país exige que se lhes ofereça uma remuneração pelo abrigo que eles dão aos homens e animais que viajam. Mas quase sempre eles recusam aceitar tal remuneração, e até insistem no momento da partida para que se aceite farinha, laranjas, ou pêssegos espalmados. E deixando-se-lhes em troca uma bagatela, um objecto qualquer de equipamento ou de caça, um chicote, uma barbela, um polvorinho, já eles ficam satisfeitíssimos, por pequeno que seja o valor dessas coisas.

Aquela boa gente tem uma existência bastante trabalhosa, nas vastas solidões; eles e as famílias vivem sem esforço do rendimento dos rebanhos, e cultivam com os seus auxiliares hotentotes ou cafres apenas a terra suficiente para obter uma provisão de grãos e legumes.

As casas são simplesmente feitas de barro e cobertas com espesso colmo. Quando a chuva abre brecha nas paredes — o que acontece bastantes vezes — , o remédio está à mão. Põe-se toda a família a amassar argila, preparando assim um grande monte; depois as raparigas e os rapazes pegam nela às mãos-cheias e fazem cair sobre a brecha um bombardeamento que bem depressa a tapa.

No interior das casas encontram-se apenas alguns móveis, bancos de pau, mesas grosseiras e leitos para as pessoas grandes; as crianças dormem em peles de carneiro.

E, contudo, naquelas existências primitivas também há lugares para a arte. Quase todos os bóeres são músicos, tocam rabeca ou flauta. São doidos pela dança, e para eles não há obstáculos nem fadigas quando tratam de se reunir — indo às vezes de vinte léguas de distância — para se entregarem ao seu divertimento favorito.

As raparigas bóeres são modestas e por vezes muito bonitas com os seus singelos adornos de camponesas holandesas. Casam cedo, levando apenas ao noivo como dote uma dúzia de bois ou de cabras, um carro ou qualquer utensílio deste género. O marido, por sua parte, encarrega-se de fazer a casa, de arrotear algumas jeiras de terra em roda, e fica assim fundada a economia familiar.

Os bóeres vivem muito, e em parte alguma do mundo se encontram tantos centenários como entre eles.

Um fenómeno singular, e que ainda não teve explicação, é a obesidade que os ataca a quase todos, quando chegam à idade madura, e que atinge proporções extraordinárias tanto nos colonos de origem francesa ou alemã como nos de pura raça holandesa.

Entretanto ia continuando a viagem sem incidentes. Raras vezes pousava a expedição à noite em uma granja que não achasse notícias de Matakit. Em toda a parte o tinham visto passar, levado rapidamente pelo seu avestruz, primeiro com dois ou três dias de avanço, depois com cinco ou seis, mais tarde com sete ou oito. Era claro que lhe iam no rasto; mas era também claríssimo que ele ganhava distância sobre os seus perseguidores.

Mas estes quatro nem por isso deixavam de ter a certeza de o alcançarem. O fugitivo havia de parar alguma vez.

A captura dele era portanto questão de tempo apenas.

Por isso Cipriano e os seus três companheiros não se ralavam muito. Pouco a pouco começaram a entregar-se aos seus prazeres favoritos. O jovem engenheiro colhia amostras das rochas. Friedel herborizava e pretendia reconhecer as propriedades das plantas que coleccionava só por olhar para os seus caracteres exteriores. Aníbal Pantalacci apoquentava Bardik e Li, mas alcançava perdão para as suas partidas preparando nos descansos deliciosos pratos de macaroni. James Hilton encarregava-se de abastecer de caça a caravana; não se passava a metade do dia sem que ele tivesse arranjado uma dúzia de perdizes, codornizes à ufa, e por vezes um javardo ou um antílope.

Assim se passavam os dias de jornada uns após outros até que chegaram ao Bush-Veld. Começaram então a rarear as granjas, e por fim desapareceram de todo. Estava-se nos confins da civilização.

A partir desse ponto foi preciso acampar todas as noites, acender grandes fogueiras, acomodando-se em volta delas os homens e o gado para dormirem, e ficando sempre alguém acordado a vigiar as proximidades.

O aspecto da paisagem era cada vez mais bravio. Planícies de areia amarelada, matagais espinhosos, de longe em longe um regato orlado de pauis, era o que se apresentava em lugar dos vales verdejantes de Banken-Veld. Algumas vezes até era preciso fazer um desvio para avistar um verdadeiro bosque de thorn-trees ou árvores de espinhos. São arbustos da altura de três a cinco metros, com um grande número de ramos quase horizontais, cobertos de espinhos de duas a três polegadas de comprimento, duros e acerados como punhais.

Esta zona exterior do Bush-Veld é mais geralmente conhecida pelo nome de Lion-Veld — ou Veld dos Leões — mas não parecia justificar esse temível apelido, porque no fim de três dias de jornada ainda se não tinha visto nem sequer o rasto de algum desses animais ferozes.

"Provavelmente é uma tradição — dizia consigo Cipriano — ; os leões hão-de ter recuado mais para o interior do deserto!”

Mas de uma vez que ele exprimia esta opinião diante de James Hilton, este pôs-se a rir.

— Cuida o senhor que não há leões? — disse ele. — Isso é simplesmente porque o senhor não os sabe ver!

— Ora essa! Então no meio de uma planície despida um leão é coisa que se não distinga?! — respondeu Cipriano com tom um tanto irónico.

— Sim!? Pois aposto dez libras — disse James Hilton — em como antes de uma hora lhe hei-de mostrar um que lhe passaria despercebido.

— Eu nunca faço apostas, por sistema — retorquiu Cipriano — , mas desejo muito fazer essa experiência!

Foram caminhando durante vinte e cinco ou trinta minutos, e já ninguém pensava em leões quando, de repente, James Hilton exclamou:

— Meus senhores, observem aquele ninho de formigas que se vê levantado acolá à direita!

— Que grande novidade! — respondeu-lhe Friedel. — Há dois ou três dias que não vemos outra coisa.

Com efeito, nada há tão frequente no Bush-Veld como esses montões de terra amarela, erguidos por inúmeras formigas e que são os únicos objectos que de longe em longe cortam a monotonia das planícies juntamente com algumas moitas ou raros grupos de magras mimosas.

James Hilton riu-se baixinho.

— Sr. Méré — continuou ele — , se quer galopar um bocado até chegar perto daquele ninho de formigas — aquele para onde estou apontando — prometo-lhe que verá o que o senhor deseja ver! Mas tenha cautela, não se aproxime muito dele, aliás talvez lhe acontecesse mal!

Cipriano deu de esporas ao cavalo, e dirigiu-se para o lugar que James Hilton chamara um formigueiro.

— É uma família de leões que açola! — acrescentou o inglês assim que Cipriano se afastou. — Uma vez em dez, aqueles montões amarelados, que os senhores cuidam ser ninhos de formigas, não são outra coisa.

— Per Bacco! — exclamou Pantalacci. — Que necessidade tinha o senhor de lhe recomendar que se não chegasse?!

Mas, ao ver que era observado por Li e Bardik, continuou, modificando o seu pensamento:

— Que susto vai apanhar o Frenchman! Que grande reinação!

O napolitano enganava-se. Cipriano não era homem que se deixasse assustar, como ele dizia. A duzentos passos do alvo que lhe fora indicado, reconheceu com que terrível ninho de formigas estava metido. Eram um enorme leão, uma leoa e três leõezinhos, enroscados como os gatos, e dormindo sossegadamente ao sol.

Ao ruído das ferraduras do Templar o leão abriu os olhos, ergueu a enorme cabeça e bocejou, mostrando, entre duas fileiras de dentes formidáveis, um abismo por onde caberia uma criança de dez anos.

Depois pôs-se a olhar para o cavaleiro, que parara a vinte passos de distância.

Por felicidade, o feroz animal não tinha fome, aliás não teria ficado tão indiferente.

Cipriano, com a carabina na mão, esperou durante dois ou três minutos as ordens de sua majestade o leão. Mas, vendo que este não estava disposto a romper as hostilidades, não teve ânimo para perturbar a felicidade daquela interessante família: fez voltar o cavalo, e a passo travado tornou para junto dos companheiros.

Estes, obrigados a reconhecer o sangue-frio e coragem do jovem engenheiro, receberam-no com aclamações.

— Se eu tivesse apostado, perdia, Sr. Hilton — respondeu Cipriano simplesmente.

Naquela mesma tarde foram acampar na margem direita do Limpopo. Friedel teimou em ir pescar, apesar dos conselhos de James Hilton.

— Isto aqui é muito doentio, camarada! — dizia-lhe este. — Olhe que no Bush-Veld, depois do pôr do Sol, não se deve permanecer à beira dos rios nem...

— Ora! Ora! Eu já tenho visto outras coisas piores!

— respondeu o alemão, com a teimosia própria da sua raça.

— Então que tem?! — exclamou Aníbal Pantalacci.

— Que mal pode fazer estar ao pé da água aí uma ou duas horas? Quantas vezes passei seis horas e mais metido na água até ao peito, quando andava à caça dos patos?

— Mas olhe que não é exactamente a mesma coisa! — tornara James Hilton, insistindo com Friedel.

— Ora adeus! Tudo isso são cantigas! — replicou o napolitano. — Meu caro Hilton, era melhor que me fizesse o favor de procurar a lata do queijo ralado para eu fazer o macaroni, em vez de estar a impedir que o nosso camarada nos arranje uma excelente petisqueira de peixe. Ao menos teremos uma variante na comida!

Friedel partiu sem querer dar ouvidos a coisa alguma, e demorou-se tanto a deitar o anzol que já era noite fechada quando voltou ao acampamento.

Depois o teimoso pescador honrou como todos os outros os peixes que tinha apanhado; mas, ao deitar-se no carrão junto dos camaradas, queixou-se de violentos calafrios.

No dia seguinte, ao romper da alvorada, quando se levantaram para continuar a jornada, Friedel estava atacado de febre ardente, e não lhe foi possível montar a cavalo. Pediu, contudo, que se pusessem a caminho, afirmando que iria bem deitado na palha dentro do carro. Fez-se como ele desejava.

Ao meio-dia tinha delírio.

Às três horas estava morto.

A doença fora uma febre perniciosa de carácter fulminante.

À vista de um fim tão repentino, Cipriano não pôde deixar de pensar que Aníbal Pantalacci, pelos maus conselhos que dera, tinha naquele acontecimento uma responsabilidade muito grave. Mas ninguém pareceu fazer tal observação a não ser ele.

James Hilton, esse contentou-se com repetir filosoficamente:

— Vejam se eu não tinha razão em lhe dizer que não fosse vadiar para a borda-d'água ao cair da noite!

Pararam durante alguns instantes para darem sepultura ao cadáver, que não se podia deixar assim à mercê dos animais ferozes.

Era o cadáver de um rival, de um inimigo quase, e, contudo, Cipriano sentiu-se profundamente comovido ao prestar-lhe os últimos deveres. É que o espectáculo da morte, sempre tão augusto e tão solene, parece que tem no deserto uma nova majestade. Só, em presença da natureza, o homem compreende melhor que é aquele o termo inevitável. Longe da família, longe dos que lhe são caros, o seu pensamento voa para eles com melancolia. Diz consigo mesmo que talvez também ele caia no dia seguinte na imensa planície para não mais se levantar, e que então também ele será sepultado debaixo de um palmo de areia, tendo por cima uma pedra nua, e que não terá para o acompanharem na hora extrema nem as lágrimas de uma irmã ou de uma mãe, nem as saudades de um amigo. E então, referindo à sua própria situação uma parte da compaixão que lhe inspira a sorte do seu camarada, parece-lhe que é um pouco do seu próprio ser que ele vai encerrar naquela sepultura!

No dia seguinte ao da lúgubre cerimónia o cavalo de Friedel, que ia preso pelo bridão à traseira do carrão, foi atacado pela doença do Veld. Tornou-se preciso abandoná-lo.

O pobre animal apenas sobrevivera algumas horas ao seu dono!

 

         AO NORTE DO LIMPOPO

Foi necessário fazer explorações e sondagens durante três dias para achar vau no leito do Limpopo. E assim mesmo talvez ele se não achasse se não viessem oferecer-se para guiar a expedição alguns cafres Macalacas, que vagueavam na margem do rio.

Estes cafres são uns pobres diabos, uma espécie de hilotas, que a raça superior dos Bejuanas conserva em servidão, obrigando-os ao trabalho sem remuneração alguma, tratando-os com extrema dureza, e, o que é ainda pior, proibindo-lhes o comerem carne, sob pena de morte. Os desgraçados Macalacas podem à vontade matar quanta caça encontrarem no caminho, mas com a condição de a levarem inteirinha aos senhores e donos. Estes não deixam ficar para eles senão as tripas da criação — quase à semelhança do que os caçadores da Europa fazem aos seus cães.

Um macalaca não possui coisa alguma que seja propriamente sua, nem sequer uma cubata ou uma cabaça. Anda quase nu, magro, escaveirado, trazendo a tiracolo intestinos de búfalo que de longe poderiam tomar-se por enfiadas de chouriços, e que na realidade são apenas odres muito primitivos, em que eles guardam a sua provisão de água.

Manifestou-se logo o génio comercial de Bardik na habilidade que ele teve para sacar àqueles desgraçados a confissão de que, apesar da sua miséria, possuíam algumas penas de avestruz escondidas com toda a cautela num matagal próximo. Propôs-lhes imediatamente comprar-lhas, e para este fim combinaram encontrar-se à noite.

Então tu tens dinheiro para lhes pagar?! — perguntou-lhe Cipriano, bastante admirado.

E Bardik, rindo muito, mostrou numa saca de linhagem um punhado de botões de cobre, coleccionados por ele, havia dois meses.

— Isso não é dinheiro sério — respondeu Cipriano- — , e eu não posso consentir que tu pagues a tua compra àquela pobre gente com algumas dúzias de botões velhos!

Mas não foi capaz de fazer compreender a Bardik porque era repreensível o projecto dele.

— Se os macalacas aceitam os meus botões em troca das suas penas, quem pode censurar isto?- — respondia ele. — O senhor bem sabe que eles não tiveram trabalho algum para as apanhar! Nem sequer têm direito de as possuir, pois que só podem mostrá-las às escondidas! Ora um botão, pelo contrário, é um objecto útil, mais útil do que uma pena de avestruz! Então porque me há-de ser proibido oferecer uma ou duas dúzias deles em troca de igual número de penas?

Este raciocínio era especioso, mas nem por isso tinha maior valor. O que o jovem cafre não via era que os macalacas iam aceitar aqueles botões, não pela serventia que poderiam ter, visto que eles quase não traziam roupa, mas pelo valor suposto que atribuíam àqueles discos de metal, tão parecidos com moedas. Havia portanto naquele facto uma verdadeira burla.

Mas Cipriano teve de reconhecer que esta distinção de ideias era demasiado subtil para que pudesse ser compreendida por aquela inteligência de selvagem, aliás muito elástica em assuntos de transacções, e por isso deixou-o fazer o que ele quisesse.

A operação comercial de Bardik realizou-se à noite, à luz de archotes. Era evidente que os macalacas tinham um receio salutar de serem enganados pelo comprador das penas, porque não se contentaram com as luzes acesas pelos brancos, e trouxeram feixes de folha de milho, a que lançaram fogo depois de os pousarem no chão.

Depois disto aqueles indígenas mostraram as penas de avestruz, e trataram de examinar os botões de Bardik.

Naquele momento começou entre eles, com grande cópia de gesticulações e gritos, uma animadíssima discussão acerca da natureza e valor daqueles discos metálicos.

Ninguém entendia uma só palavra do que eles diziam na sua apressada linguagem; mas bastava ver-lhes as faces congestionadas, as caretas eloquentes, e as cóleras muito sérias para se convencer de que o debate era para eles do maior interesse.

De repente, aqueles debates tão apaixonados foram interrompidos por inesperada aparição.

Um preto de elevada estatura, embrulhado com orgulho numa capa velha de chita encarnada, e tendo a fronte cingida por aquela espécie de diadema de tripas de carneiro, usado habitualmente pelos guerreiros cafres, acabava de sair do meio do matagal, em cuja proximidade se debatia a transacção; depois desatou à bordoada com a haste da lança nos macalacas, apanhados em flagrante delito de operações proibidas.

— Lopépe! Lopépe! — gritavam os desgraçados selvagens, safando-se para todos os lados como uma ninhada de ratos.

Mas de súbito surgiu das diversas moitas, que cercavam o acampamento, um círculo de guerreiros, que se apertou em roda dos fugitivos e os reteve prisioneiros.

Lopépe ordenou que imediatamente lhe entregassem os botões; observou-os com todo o cuidado à luz dos archotes feitos com os feixes de milho, e encafuou-os, não sem manifestar claramente a sua satisfação, no fundo da sua bolsa de coiro. Depois chegou-se a Bardik, tirou-lhe das mãos as penas de avestruz já compradas, e apropriou-se delas da mesma forma que fizera aos botões.

Os brancos tinham permanecido espectadores passivos daquela cena, e não sabiam muito bem se seria conveniente meterem-se nela, quando Lopépe cortou a questão dirigindo-se para eles. Parou a alguns passos de distância e começou a falar numa linguagem completamente ininteligível para os estrangeiros.

James Hilton, que sabia algumas palavras de bejuana, conseguiu, contudo, compreender o sentido geral daquela alocução, e comunicou-o aos companheiros. Vinha o chefe cafre a dizer pouco mais ou menos que se queixava de que eles tivessem consentido que Bardik negociasse com os macalacas, os quais não podem possuir bens próprios; e, terminando, declarava que apreendia as mercadorias de contrabando e perguntava aos brancos se tinham alguma coisa a alegar.

Estes estavam divididos sobre a resolução a tomar. Aníbal Pantalacci queria que se cedesse imediatamente para não criar inimizade com o chefe bejuana; James Hilton e Cipriano, não obstante reconhecerem que esta opinião tinha seu fundamento, receavam que, se se mostrassem demasiado conciliadores naquele negócio, Lopépe se enchesse de arrogância, viesse talvez a fazer mais exigências, e resultasse daí uma rixa.

Formaram um rápido conselho em voz baixa e resolveram que se deixassem os botões ao chefe bejuana, mas que se reclamassem as penas.

James Hilton apressou-se a explicar-lhe esta resolução, metade por meio de gestos e metade com o auxílio de algumas palavras cafres.

Lopépe assumiu logo uma catadura diplomática, e pôs-se a reflectir. Mas resolveu-se depressa ao observar os canos das espingardas europeias, que brilhavam na sombra, e entregou as penas.

Desde esse momento aquele chefe, que era na realidade muito inteligente, mostrou-se mais macio. Ofereceu aos três brancos, a Li e a Bardik uma pitada da sua grande caixa, e sentou-se no acampamento. Um copo de aguardente oferecido pelo napolitano acabou de o pôr de bom humor; seguiu-se uma sessão de hora e meia, que se passou de ambas as partes em silêncio quase completo; por fim levantou-se e convidou os componentes da caravana para o ir visitar no dia seguinte ao seu kraal.

Prometeram-lho, houve troca de apertos de mão, e Lopépe retirou-se majestosamente.

Pouco tempo depois de ele partir dormia toda a gente à excepção de Cipriano, que, embrulhado na manta, cismava contemplando as estrelas. Não havia Lua, mas cintilava no firmamento uma poeira de astros. A fogueira apagou-se sem o jovem engenheiro dar por isso.

Estava pensando nos seus, que com certeza se não lembrariam àquela hora que ele estivesse metido em semelhante aventura em pleno deserto da África Austral; pensava na encantadora Alice, que talvez estivesse também então contemplando as estrelas; pensava, enfim, em todos que lhe eram caros. E, deixando-se levar naquele suave cismar, poetizado pelo grande silêncio da planície, ia a adormecer quando foi despertado por um ruído de ferraduras, por uma agitação estranha que partia do lado onde estavam os bois de tiro para passar a noite.

Levantou-se logo.

Cipriano julgou então distinguir na sombra uma forma mais baixa e menos volumosa do que os bois, a qual sem dúvida era a causa daquela agitação.

Sem compreender muito bem o que pudesse ser, Cipriano agarrou num chicote que estava à mão, e dirigiu-se com toda a cautela para o lugar indicado.

Não se enganara. Efectivamente, entre os bois achava-se um animal inesperado, que lhes tinha vindo perturbar o sono.

Meio acordado, e sem mesmo reflectir no que ia fazer, Cipriano levantou o chicote e atirou à toa uma grande chicotada ao focinho do intruso.

A este ataque respondeu de repente um rugido espantoso! Era um leão que acabava de ser tratado como qualquer cãozito pelo jovem engenheiro.

Este mal teve tempo de empunhar um dos revólveres que trazia à cinta e de dar um salto brusco para o lado. O animal pulou para ele, não o alcançou, mas novamente se precipitou sobre o seu braço estendido.

Cipriano sentiu penetrarem-lhe na carne as garras agudas da fera, e caiu no chão de mistura com ela. De repente resoou uma detonação. O corpo do leão agitou-se em uma derradeira convulsão, depois inteiriçou-se e caiu, ficando imóvel.

Fora Cipriano que com a mão que lhe ficara desembaraçada, sem perder a presença de espírito, tinha aplicado o seu revólver ao ouvido do monstro, rebentando-lhe a cabeça com uma bala explosiva.

Neste meio tempo os que dormiam, acordados por aquele rugido seguido de uma detonação, chegaram ao local da batalha. Tiraram Cipriano debaixo do enorme animal, que quase o esmagava com o seu peso, e examinaram-lhe os ferimentos, os quais, felizmente, eram apenas superficiais. Li fez-lhes um curativo simples, ligando-os com algumas tiras de linho molhadas em aguardente; arranjou para o doente o melhor lugar no carrão, e dentro em pouco todos tornaram a adormecer, à excepção de Bardik, que ficou de vigia até pela manhã.

Vinha rompendo o dia quando a voz de James Hilton, pedindo aos companheiros que acudissem, lhes anunciou um novo incidente.

James Hilton estava deitado vestido na frente do carro por baixo da boca do tejadilho, e falava com um tom de voz de grande terror, mas sem se atrever a mexer-se.

— Tenho uma cobra enroscada no joelho direito, por baixo das calças. Não se mexam, senão estou perdido! Mas vejam se podem fazer alguma coisa!

Tinha os olhos dilatados pelo terror e o rosto coberto de palidez lívida. Efectivamente, ao nível do joelho direito, por baixo da fazenda azul das calças, observava-se a presença de um corpo estranho — uma espécie de corda enrolada em volta da perna.

A situação era grave. Como muito bem disse James Hilton, ao primeiro movimento que ele fizesse, a cobra mordia-o com toda a certeza!

Mas, no meio daquela ansiedade e indecisão de todos, Bardik tratou de salvar a situação. Desembainhou sem fazer barulho a faca de mato do seu amo, e foi-se chegando a James Hilton com movimentos quase insensíveis, que pareciam de um verme. Depois colocou os olhos quase ao nível da serpente, e durante alguns segundos esteve a estudar com cuidado a posição do perigoso réptil. Estava com certeza procurando descobrir em que sítio estava a cabeça do animal.

De repente, levantou-se rapidamente, abaixou logo o braço, e a folha da faca foi morder com um golpe seco o joelho de James Hilton.

— Pode deixar cair a bicha! Está morta! — declarou Bardik, escancarando a boca a rir e mostrando os dentes todos.

James Hilton obedeceu maquinalmente e sacudiu a perna... Caiu-lhe aos pés o réptil.

Era uma víbora de cabeça preta, de uma polegada de diâmetro apenas, mas que com a mais pequena mordedura produz a morte. O jovem cafre decapitara-a com maravilhosa precisão. A calça de James Hilton mostrava só um golpe de seis centímetros, e a epiderme nem de leve tinha sido ofendida.

Coisa singular, e com que Cipriano se indignou muito: James Hilton nem sequer se lembrou de agradecer ao seu salvador. Vendo-se livre de perigo, achava naturalíssima aquela intervenção. Não lhe vinha à ideia apertar a mão negra de um cafre e dizer-lhe: “Devo-lhe a vida.”

— Você tem a sua faca bem afiada! — foi só o que ele lhe disse, ao passo que Bardik a tornava a embainhar, sem parecer também dar grande importância ao que acabava de fazer.

O almoço não tardou a vir apagar as impressões daquela noite tão agitada. Nesse dia compunha-se ele de um único ovo de avestruz batido com manteiga, mas que foi o bastante para satisfazer o apetite dos cinco convivas.

Cipriano tinha alguma febre e sofria um tanto das feridas. Mas, não obstante, insistiu em acompanhar Aníbal Pantalacci e James Hilton ao kraal de Lopépe. Entregaram, portanto, o acampamento à vigilância de Bardik, o qual tinha começado a tirar a pele ao leão — um verdadeiro monstro da espécie chamada de focinho de cão. Os três cavaleiros puseram-se a caminho sós.

Esperava-os à entrada do kraal o chefe bejuana, rodeado de todos os seus guerreiros. Por detrás deles, no segundo plano, tinham-se agrupado com curiosidade as mulheres e crianças para verem os estrangeiros. Mas algumas daquelas negras matronas fingiam indiferença. Sentadas na frente das suas cubatas hemisféricas, continuavam a ocupar-se dos seus trabalhos. Duas ou três estavam fazendo redes de compridas ervas têxteis, que torciam em forma de cordas.

O aspecto geral era miserável, apesar de as cubatas serem sofrivelmente construídas. A de Lopépe, mais espaçosa que as outras e forrada interiormente com esteiras de palha, elevava-se proximamente no centro do kraal.

O chefe convidou os seus hóspedes a entrarem nela, apresentou-lhes três bancos e sentou-se também diante deles, formando um arco de círculo na sua retaguarda a guarda de honra.

A cerimónia começou pela troca de cumprimentos do costume, que se reduzem a beber uma chávena de bebida fermentada, manufacturada pelo próprio anfitrião; mas para tornar bem claro que esta cortesia não esconde projectos pérfidos, este começa sempre por molhar os grossos beiços no líquido antes de o entregar ao estrangeiro. Não beber, depois de tão gracioso convite, seria injúria mortal. Os três brancos engoliram, portanto, a cerveja cafreal, não sem muitas caretas de Aníbal Pantalacci, que, segundo ele dizia em aparte, preferia um copo de lacryma-christi àquela insulsa tisana dos Bejuanas.

Depois conversou-se sobre negócios. Lopépe tinha grande vontade de comprar uma espingarda. Mas não se lhe pôde dar esse gosto, apesar de ele oferecer em troca um cavalo sofrível e cento e cinquenta libras de marfim. Efectivamente, os regulamentos coloniais são muito rigorosos neste ponto e proíbem aos europeus ceder qualquer arma aos cafres da fronteira, salvo com autorização especial do governador. Mas os três hóspedes de Lopépe, para o consolar, tinham-lhe trazido uma camisa de flanela, uma corrente de aço e uma garrafa de rum, o que formava um presente esplêndido, que lhe causou manifesta satisfação.

E por isso o chefe bejuana mostrou-se disposto a fornecer todas as indicações que lhe foram pedidas mais inteligivelmente por intermédio de James Hilton.

Em primeiro lugar, tinha passado cinco dias antes pelo kraal um viajante exactamente com os sinais de Matakit. Era a primeira vez, havia duas semanas, que a expedição tinha notícias do fugitivo, e por esse motivo foram recebidas com agrado. O jovem cafre teve de perder alguns dias a procurar o vau do Limpopo, e presentemente dirigia-se para as montanhas do norte.

Havia ainda muitos dias de marcha antes de chegar a essas montanhas?

Sete ou oito quando muito.

Lopépe era amigo do rei desse país em que Cipriano e os seus companheiros iam ver-se obrigados a penetrar?

Lopépe tinha nisso muita honra! Pois quem não havia de querer ser amigo respeitoso e fiel aliado do grande Tonaia, do conquistador invencível dos países cafres!?

Tonaia recebia bem os brancos?

Decerto, porque sabia, como todos os outros chefes do país, que os brancos nunca deixam de vingar a injúria feita a um deles.

Para que serve querer lutar com os brancos? Pois não são eles sempre os mais fortes, graças às suas espingardas, que se carregam por si? Portanto, o melhor é viver em paz com eles, recebê-los bem, e traficar lealmente com os seus negociantes.

Tais foram em resumo as informações dadas por Lopépe. Uma só tinha verdadeira importância: era que Matakit perdera alguns dias de marcha antes de conseguir atravessar o rio e que continuavam a seguir o caminho que ele tomara.

Ao voltarem ao acampamento, Cipriano, Aníbal Pantalacci e James Hilton encontraram Bardik e Li muito assustados.

Contaram que os viera visitar um grupo de guerreiros cafres, de uma tribo diversa da de Lopépe, os quais começaram por cercá-los e depois lhes fizeram um verdadeiro interrogatório. Que vinham eles fazer ali? Era para espionar os Bejuanas, colher informações a respeito deles, reconhecer qual era o seu número, força e armamento? Faziam mal os estrangeiros em se meterem em semelhante empresa! Bem entendido, o grande rei Tonaia não tinha nada que dizer enquanto eles não penetrassem no seu território; mas talvez não visse a coisa com os mesmos olhos se eles se lembrassem de penetrar nas suas terras.

Tal fora a ideia geral do que tinham dito aqueles cafres. O china parecia não se ter impressionado com isso mais que o razoável. Mas Bardik, normalmente tão sossegado e tão cheio de sangue-frio, parecia tomado de verdadeiro terror, que Cipriano não podia compreender.

— Guerreiros muito maus — disse ele, esbugalhando os olhos — , guerreiros que detestam os brancos e lhes fazem cuic É a expressão consagrada entre todos os cafres meio civilizados para exprimir a ideia de morte violenta.

Que se havia de fazer? Convinha dar grande importância àquele incidente? Não, decerto. Aqueles guerreiros, apesar de serem trinta, conforme a narrativa de Bardik e Li, e de terem surpreendido estes desarmados, nenhum mal lhes tinham feito, nem haviam manifestado a menor veleidade de pilhagem. Sem dúvida as suas ameaças eram apenas palavreado oco, como os selvagens gostam muito de impingir aos estrangeiros. Bastariam alguns actos de cortesia para com o grande chefe Tonaia, algumas explicações leais, acerca das intenções com que os três brancos iam àquela terra, para lhe dissipar todas as suspeitas, se porventura as tivesse, e captar a sua benevolência.

Convencionou-se, portanto, de comum acordo que se continuasse a viagem. A esperança de alcançar Matakit bem depressa e de lhe apanhar o diamante roubado fazia esquecer qualquer outra preocupação.

 

         UMA CONSPIRAÇÃO

Ao cabo de uma semana de marcha a expedição acabava de chegar a uma região que em nada se parecia com as outras que até então tinha atravessado desde as fronteiras da Gricualândia. Estava-se já próximo da serrania que, segundo todas as notícias alcançadas a respeito de Matakit, parecia ter sido o destino provável do fugitivo. A proximidade das terras altas e dos numerosos ribeiros que delas descem para ir desaguar no Limpopo, anunciava-se por uma flora e uma fauna inteiramente diferentes das da planície.

Um dos primeiros vales, que se mostrou aos olhares dos três viajantes um pouco antes do pôr do Sol, apresentou-lhes o espectáculo mais agradável e risonho que se pode imaginar.

Entre dois prados verdes como esmeraldas serpenteava uma ribeira tão límpida que deixava em toda a parte ver o fundo do leito. As encostas das colinas, que encerravam aquela bacia, eram atapetadas com árvores frutíferas de variadíssima folhagem. Naquele fundo, ainda iluminado pelo sol, à sombra de baobás enormes, pastavam tranquilamente rebanhos de antílopes avermelhados, de zebras, de búfalos. Mais ao longe um rinoceronte branco, atravessando a passos pesados uma aberta de floresta, dirigia-se vagarosamente para a margem do rio, e roncava já de satisfação com a ideia de ir turbar a limpidez da água chafurdando nela a sua corpulenta massa. Ouvia-se uma fera invisível bocejando aborrecida debaixo de um maciço qualquer. Zurrava um onagro, e através das árvores perseguiam-se macacos aos centos.

Cipriano e os dois companheiros tinham parado no alto da colina para poderem contemplar melhor aquele espectáculo tão novo para eles. Viam-se finalmente chegados a uma dessas regiões virgens, em que o animal bravio — senhor ainda incontestado do solo — vive tão feliz e tão livre que nem sequer suspeita da existência do perigo. E o que se tornava surpreendente não era só o número e o sossego desses animais, era a espantosa variedade da fauna que eles apresentavam naquela parte da África. Dir-se-ia uma tela estranha, em que o pintor se houvesse comprazido em reunir num limitado campo todos os tipos principais do reino animal.

Quanto a habitantes, pouquíssimos. É verdade que, no meio daquelas regiões imensas, os cafres não podem deixar de estar diceminados. É o deserto ou pouco menos.

Cipriano, satisfeito nos seus instintos de sábio e de artista, julgar-se-ia de bom grado transportado aos tempos pré-históricos do megatério e dos outros animais ante-diluvianos.

— Só faltam elefantes para a festa ser completa! — exclamou ele.

Mas imediatamente Li, estendendo o braço, mostrou-lhe várias massas pardacentas no meio de uma vasta clareira. Vistas de longe, pareciam outros tantos rochedos não só pela imobilidade como pela cor. Na realidade, era um rebanho de elefantes. A planície parecia mosqueada por eles na extensão de algumas milhas.

— Então tu entendes de elefantes? — perguntou Cipriano ao china enquanto se preparava o acampamento para aquela noite.

Li piscou os olhinhos oblíquos.

— Vivi dois anos na ilha de Ceilão, servindo como ajudante das caçadas — respondeu ele apenas, com aquela notável circunspecção que empregava sempre em tudo quanto dizia respeito à sua biografia.

— Ah! Se nós pudéssemos atirar a um ou dois! — exclamou James Hilton. — É uma caça muito divertida...

— É verdade, e em que o animal vale bem a pólvora que se gasta! — acrescentou Aníbal Pantalacci. — Dois dentes de elefante já é uma presa bem bonita, e nós podíamos facilmente acomodar três ou quatro dúzias deles na traseira do carrão! Sabem os camaradas que não seria preciso mais para poder pagar todas as despesas da nossa viagem!?

— Mas isso é uma excelente ideia! — exclamou James Hilton. — Porque não havemos de experimentar amanhã antes de nos pormos a caminho?

Discutiu-se o caso. Em suma, decidiu-se levantar o acampamento ao primeiro alvor da madrugada, e ir tentar fortuna para o lado do vale onde se acabavam de descobrir elefantes.

Depois de isso assim combinado, em pouco tempo deram conta do jantar, e em seguida retiraram-se para debaixo da cobertura do carrão, excepto James Hilton, a quem pertencia a vigia daquela noite, e que por isso ficou ao pé da fogueira.

Haveria duas horas que estava só, e começava já a ceder à modorra, quando se sentiu levemente empurrado por um cotovelo. Abriu os olhos. Aníbal Pantalacci estava sentado junto dele.

— Não posso dormir, e parece-me que era melhor vir fazer-lhe companhia — disse o napolitano.

— O senhor é muito amável, mas cá por mim não desgostava de dormir agora algumas horas — respondeu James Hilton, estiraçando os braços. — Se o senhor quer, podemos combinar a coisa perfeitamente: eu vou para o seu lugar no carrão e o senhor fica aqui no meu!

— Não! Deixe-se estar, porque tenho que lhe falar! — redarguiu Aníbal Pantalacci com voz surda.

Olhou em roda para verificar se estavam sós e continuou:

— O senhor já caçou elefantes?

— Já — respondeu James Hilton — , duas vezes.

— Então sabe que é uma caça perigosa! O elefante é tão inteligente, tão fino, tem armas tão valentes! Raras vezes o homem fica vencedor na luta contra ele.

— Ora adeus! Isso é para os desastrados! — retorquiu James Hilton. — Mas com uma carabina de bala explosiva não há muito que recear.

— É isso mesmo o que eu pensava — - replicou o napolitano. — Mas não obstante, pode haver acidentes! Ora imagine que acontecia amanhã um desastre ao French-man. Era uma verdadeira desgraça para a ciência!

— Pois está visto! Uma verdadeira desgraça! — repetiu James Hilton.

E pôs-se a rir com cara de malvado.

— Mas para nós já a desgraça não seria tão grande! — continuou Aníbal Pantalacci, animado com o riso do companheiro. — Ficaremos só dois a perseguir Matakit e o diamante! Ora duas pessoas sós entendem-se sempre bem...

Os dois homens ficaram calados, com a vista fixa nos tições e com o pensamento perdido na sua criminosa maquinação.

— Sim! Duas pessoas podem sempre entender-se! — repetiu o napolitano. — Três é mais difícil.

Houve ainda um instante de silêncio. De repente, Aníbal Pantalacci ergueu bruscamente a cabeça e sondou com o olhar as terras que o rodeavam.

— Não viu nada? — perguntou ele baixinho. — Pareceu-me descobrir uma sombra por detrás daquele baobá!

James Hilton olhou também; mas, apesar de ter a vista muito aguda, não descobriu coisa alguma suspeita nos arredores do acampamento.

— Não é nada! — disse ele. — Roupa que o china pôs a corar ao orvalho.

Daí a pouco continuou a conversa entre os dois cúmplices, mas desta vez em voz baixa.

— Eu podia tirar-lhe os cartuchos da espingarda sem ele perceber! — dizia Pantalacci. — Depois, no momento de se atacar um elefante, eu dava um tiro por detrás dele de modo que o bicho o descobrisse... o que não levaria muito tempo.

— Mas isso que o senhor propõe é bastante sério! — objectava James Hilton, com energia mínima.

— Ora! Deixe-me cá trabalhar e verá que o negócio se arranja por si! — redarguiu o napolitano.

Uma hora depois, Aníbal Pantalacci, ao voltar para o seu canto debaixo da cobertura do carrão e junto aos outros que dormiam, teve o cuidado de acender um fósforo para observar se alguém se tinha mexido. Verificou que Cipriano, Bardik e o china dormiam profundamente.

Pelo menos assim parecia.

Mas, se o napolitano fosse mais esperto, talvez tivesse reconhecido no ressonar estrondoso de Li alguma coisa de artifício e de manha.

Ao despontar da aurora estavam todos a pé. Aníbal Pantalacci aproveitou a ocasião em que Cipriano foi ao regato próximo fazer as abluções matutinas, e tirou-lhe da espingarda os cartuchos. Foi obra de vinte segundos. Estava com certeza sozinho. Naquele momento Bardik fazia o café, e o china andava a apanhar a roupa que tinha deixado exposta ao orvalho da noite na famosa corda estendida entre dois baobás. Com certeza ninguém viu coisa alguma.

Depois de tomarem o café partiram a cavalo, deixando o carrão e o gado entregues à vigilância de Bardik.

Li tinha pedido para ir atrás dos cavaleiros, e armara-se apenas com a faca de mato do patrão.

Em menos de meia hora os caçadores chegaram ao ponto em que na véspera de tarde tinham descoberto os elefantes. Mas naquele dia foi necessário avançar um pouco mais para os achar, chegando a uma larga clareira aberta entre o sopé da montanha e a margem direita do rio.

Na atmosfera clara e fresca, iluminada pelo sol nascente, sobre o tapete de uma imensa pradaria de relva fina, ainda humedecida com o orvalho, estava almoçando uma tribo inteira de elefantes, duzentos ou trezentos pelo menos. Os pequenos pulavam brincando em redor das mães ou mamavam silenciosamente. Os grandes, com a cabeça rente do chão, e agitando a tromba a compasso, pastavam a erva espessa dos prados. Quase todos se abanavam com as enormes orelhas, parecidas com capas de couro, que eles moviam como se fossem pankás indianos.

Naquele sossego da felicidade doméstica havia, por assim dizer, alguma coisa de tão sagrado que Cipriano comoveu-se profundamente e pediu aos companheiros que desistissem da projectada matança.

— Para que serve matar essas criaturas inofensivas? — perguntou ele. — Não era melhor deixá-las em paz na sua solidão?

Mas Aníbal Pantalacci por mais de um motivo não podia gostar de semelhante proposta.

— Para que serve? — respondeu ele, dando uma casquinada de riso. — Serve para nos fornecer as algibeiras, dando-nos alguns quintais de marfim. Terá o Sr. Méré medo desses bichos tão grandes?

Cipriano encolheu os ombros sem fazer caso do atrevimento. Contudo, quando viu o napolitano e o seu camarada continuarem a avançar para a clareira, fez como eles.

Todos três estavam agora apenas à distância de duzentos metros dos elefantes. Se aqueles inteligentes animais, cujo faro é tão vivo, não tinham ainda dado pela aproximação dos caçadores, era porque estes estavam a sotavento, e, além disso, protegidos por um grande maciço de baobás.

Entretanto, um dos elefantes começava a dar sinais de inquietação e erguia a tromba como um ponto de interrogação.

— Está chegado o momento — advertiu Aníbal Pantalacci a meia voz. — Para obtermos um resultado sério é necessário separarmo-nos e escolher cada um a sua peça; depois, a um sinal dado, atirarmos todos ao mesmo tempo, porque ao primeiro tiro todo o rebanho vai pôr-se em fuga.

Adoptou-se o conselho. James Hilton foi para a esquerda, Aníbal Pantalacci para a direita, e Cipriano continuou no centro. Em seguida, continuaram todos a marchar silenciosamente para a clareira.

Naquele momento Cipriano foi muito surpreendido por sentir dois braços que o envolviam vigorosamente, ao mesmo tempo que a voz de Li lhe murmurava ao ouvido:

— Sou eu! Saltei para a garupa do cavalo! Não diga nada! Logo verá porquê!

Cipriano chegava naquela ocasião à orla do maciço, e estava apenas a uns trinta metros dos elefantes. Ia já a engatilhar a espingarda para estar pronto para tudo, quando o china o preveniu:

— A sua espingarda está descarregada! Mas não se assuste... Tudo vai bem! Tudo vai bem!

No mesmo instante ouviu-se um toque de apito, que era o sinal convencionado para o ataque geral, e quase logo em seguida foi disparado um tiro — um só — por detrás de Cipriano.

Este voltou-se muito depressa, e viu Aníbal Pantalacci, que procurava esconder-se atrás de uma árvore. Mas quase nesse mesmo instante um facto mais grave lhe chamou a atenção.

Um dos elefantes, ferido sem dúvida e enfurecido com o ferimento, vinha-se precipitando para ele. Os outros, como o napolitano previra, apressavam-se a fugir com um patear terrível, que abalava a terra até duas milhas em redor.

— É chegado o momento! — gritou Li, sempre agarrado a Cipriano. — Quando o animal estiver quase a alcançá-lo, obrigue o Templar a dar um salto para o lado! Depois ande em roda dessa moita e deixe-se perseguir pelo elefanteI O resto fica por minha conta!

Cipriano apenas teve tempo para executar quase maquinalmente aquelas instruções. O enorme paquiderme, com a tromba erguida, os olhos injectados de sangue, a boca aberta e com os dentes estendidos para a frente, vinha-lhe para cima com incrível rapidez.

Templar portou-se como quem estava acostumado àquelas festas.

Obedecendo com admirável precisão à pressão dos joelhos do cavaleiro, deu justamente na melhor ocasião um violento salto para a direita, de modo que o elefante, que vinha a galope, passou sem o apanhar, exactamente pelo sítio de onde cavalo e cavaleiro mal acabavam de sair.

Entretanto o china tinha desembainhado a faca, e, sem dizer palavra, deixou-se escorregar até ao chão, e com um movimento rápido atirou-se para trás da moita que havia mostrado ao amo.

— Aqui! Aqui! Ande em roda desta moita! Deixe-se perseguir! — gritou ele de novo.

O elefante voltava sobre eles, mais enfurecido ainda por lhe ter falhado o primeiro ataque. Cipriano executou pontualmente a manobra de Li, apesar de lhe não compreender bem o alcance. Girou em redor da moita, seguido pelo animal ofegante, e por duas vezes mais lhe frustrou o ataque fazendo dar ao cavalo um salto repentino. Mas podia essa táctica dar bom resultado por muito tempo? Então Li tinha esperança de fazer cansar o bicho?

Era isto o que Cipriano perguntava a si mesmo, sem poder achar resposta satisfatória, quando de repente, com grande surpresa sua, o enorme animal caiu sobre os joelhos.

Li, aproveitando com incomparável perícia o momento favorável, tinha-se arrastado pelas ervas até aos pés do animal, e com um único golpe da faca de -mato cortara-lhe aquele tendão do calcanhar que no homem se chama tendão de Aquiles.

Assim costumam fazer os Hindus nas caçadas aos elefantes, e o china decerto tinha feito muitas vezes aquela operação em Ceilão, porque acabava de a executar com maravilhosa precisão e sangue-frio.

O elefante jazia por terra, imóvel e impotente, com a cabeça metida entre as espessas ervas. Corria-lhe do ferimento um regato de sangue, que o ia enfraquecendo a

olhos vistos.

— Viva! Bravo! — gritaram imediatamente Aníbal

Pantalacci e James Hilton, comparecendo no teatro da         luta.

— É preciso dar cabo dele com uma bala num olho! —        acrescentou James Hilton, que parecia sentir irresistível necessidade de se agitar e representar um papel activo no drama.

E, dizendo isto, meteu a espingarda à cara e disparou.

Ouviu-se logo no corpo do gigantesco quadrúpede a explosão da bala. Teve uma derradeira convulsão, e depois ficou imóvel, parecendo um rochedo escuro estendido no chão.

— Está pronto! — exclamou James Hilton, chegando o cavalo próximo do animal para o ver melhor.

— Espere! Espere! — parecia dizer o olhar esperto do china, dirigindo-se a seu amo.

Não esperou muito para ver o epílogo horrível mas inevitável daquela cena.

Efectivamente, James Hilton, depois de chegar junto do elefante, inclinou-se nos estribos, e por escárnio tentou levantar-lhe uma das enormes orelhas. Mas o animal, com um movimento súbito, ergueu a tromba, deixou-a cair em cima do imprudente caçador, quebrou-lhe a coluna vertebral e esmigalhou-lhe o crânio, antes que as testemunhas, estupefactas, daquele terrível desfecho tivessem tido tempo de o prevenir.

James Hilton apenas pôde soltar um derradeiro grito. Três segundos depois não era mais que um monte de carnes sangrentas, em cima do qual o elefante caiu para não mais se erguer.

— Bem me parecia a mim que ele estava a fingir-se morto! — declarou sentenciosamente o china, abanando a cabeça.

— Os elefantes nunca deixam de o fazer, quando se ofereça ocasião.

Tal foi a oração fúnebre por James Hilton. O jovem engenheiro, ainda impressionado com a traição de que estivera a ponto de ser vítima, não podia deixar de ver naquele facto o justo castigo de um desses miseráveis que assim tinham querido entregá-lo sem defesa à raiva de um animal terrível.

O napolitano, esse, quaisquer que fossem os seus pensamentos, julgava conveniente não os manifestar.

Neste meio tempo o china tinha-se posto a abrir com a faca de mato, por baixo da relva do prado, uma cova, em que, auxiliado por Cipriano, depositou daí a pouco os restos informes do seu inimigo.

Tudo isto tinha levado seu tempo, e já o Sol ia bastante alto sobre o horizonte quando os três caçadores voltaram para o acampamento.

Ao chegar aí qual foi a sua inquietação!? Bardik já lá não estava!

 

         TRAIÇÃO

Que tinha pois acontecido no acampamento durante a ausência de Cipriano e dos seus dois companheiros? Difícil seria dizê-lo enquanto o jovem cafre não aparecesse.

Puseram-se portanto a esperar por Bardik, chamaram-no, procuraram-no por todos os lados. Não foi possível descobrir o menor vestígio dele. O almoço, que ele começara a preparar, estava junto da fogueira apagada e parecia indicar que o cafre não tinha desaparecido mais que duas ou três horas antes.

Cipriano via-se reduzido a estas conjecturas acerca da causa daquele desaparecimento, mas tais conjecturas eram bastante obscuras. Que o jovem cafre tivesse sido atacado por animal feroz, não era provável, pois que se não via nos arredores um único indício de luta sangrenta nem mesmo de desordem. Que ele tivesse desertado para voltar à sua terra, como muitas vezes costumam fazer os cafres, era ainda menos verosímil da parte de um rapaz tão dedicado, e o jovem engenheiro de modo algum quis admitir semelhante hipótese, proposta por Aníbal Pantallacci.

Numa palavra, depois de se passar metade do dia em investigações, não se encontrou o jovem cafre, ficando sem a menor explicação esse desaparecimento.

Aníbal Pantalacci e Cipriano formaram um conselho; depois de alguma discussão, resolveu-se esperar até à manhã do dia seguinte para levantar o acampamento. Talvez que Bardik voltasse nesse meio tempo, se porventura ele apenas andasse perdido atrás de alguma peça de caça que houvesse podido excitar a sua cobiça de caçador.

Mas, recordando-se a visita feita por um grupo de cafres em um dos últimos acampamentos, pensando-se nas perguntas feitas por esses cafres a Bardik e a Li, e em que eles tinham mostrado receio de verem estrangeiros, talvez espiões, aventurarem-se nas terras de Tonaia, havia algum motivo para imaginar que Bardik tinha sido apanhado por esses indígenas e levado por eles para a sua capital.

Findou o dia com tristeza, e mais lúgubre ainda foi a noite. Parecia soprar sobre a expedição um vento de maldição. Aníbal Pantalacci estava furioso e calado. Tinham morrido os seus dois cúmplices, Friedel e James Hilton, e agora via-se só frente a frente com o seu rival, mas decidido mais que nunca a livrar-se de um pretendente que ele queria pôr de parte no que dizia respeito tanto ao negócio do diamante como ao do casamento. E realmente para ele estas duas coisas eram apenas negócios.

Quanto a Cipriano — a quem Li contara tudo quanto tinha ouvido a respeito da subtracção dos cartuchos — , precisava agora de vigiar dia e noite o seu companheiro de viagem. Verdade é que o china tencionava tomar por sua conta parte da tarefa.

Cipriano e Aníbal Pantalacci passaram parte da noite a fumar junto do lume, silenciosamente, e depois retiraram-se para debaixo da coberta do carrão sem sequer darem as boas-noites. Pertencia a Li vigiar junto da fogueira acesa para afugentar os animais ferozes.

No dia seguinte, ao romper da manhã, ainda o jovem cafre não tinha voltado ao acampamento.

Cipriano ainda queria esperar mais vinte e quatro horas para dar ao criado mais uma probabilidade de voltar, mas o napolitano insistiu para que partissem imediatamente.

— A gente pode muito bem passar sem Bardik — sustentava ele — , e demorarmo-nos mais é arriscarmo-nos a nunca mais alcançar Matakit!

Cipriano cedeu, e o china foi tratar de recolher os bois para a partida.

Nova desgraça e das mais sérias. Também não apareciam os bois! Na véspera à noite ainda eles estavam deitados sobre as grandes ervas em roda do acampamento! E agora não se descobria nem um sequer!

Foi então que se avaliou bem quanto a expedição havia perdido com a ausência de Bardik! Se aquele inteligente servidor estivesse presente no seu posto, ele, que conhecia bem os hábitos da raça bovina na África Austral, não teria deixado de prender às árvores ou a estacas aqueles animais, que tinham descansado um dia inteiro. De ordinário, quando se chega a um descanso depois de uma longa marcha, tal precaução era inútil: os bois, extenuados de cansaço, só tratavam de pastar próximo do carrão, depois deitavam-se durante a noite e, ao acordarem, não se afastavam mais de um cento de metros. Mas já não acontecia o mesmo depois de um dia inteiro de descanso e fartadela.

Era claro que o primeiro cuidado dos animais, ao acordarem, foi ir procurar erva mais tenra do que aquela com que na véspera se tinham fartado. Puseram-se a vadiar por um lado e por outro, foram-se afastando pouco a pouco, depois perderam de vista o acampamento, e é provável que então, arrastados pelo instinto que os chamava ao curral, fossem naturalmente uns atrás dos outros pelo caminho do Transval.

Estava-se a braços com um desastre que, apesar de não ser raro nessas expedições da África Austral, nem por isso deixou de ser dos mais graves, porque sem juntas de bois tornava-se inútil o carrão, e para os viajantes naquelas paragens o carrão é ao mesmo tempo casa, armazém e fortaleza.

Cipriano e Aníbal Pantalacci ficaram muitíssimo desanimados quando, depois de correrem desesperadamente durante duas ou três horas atrás das pegadas dos bois, tiveram de reconhecer que deviam perder toda a esperança de os alcançar.

A situação estava extraordinariamente agravada, e mais uma vez foi preciso formar conselho.

Ora só havia uma solução prática naquela conjuntura: era abandonar o carrão, carregar cada um com as provisões de boca e as munições que pudesse levar, e continuarem a viagem a cavalo. Se as circunstâncias fossem favoráveis, talvez se pudesse achar bem depressa um chefe cafre com quem se negociasse a compra de outras juntas de bois a troco de uma espingarda ou de cartuchos. Quanto a Li, iria montado no cavalo de James Hilton, o qual, como se sabe, já não tinha dono.

Trataram, pois, de cortar ramos espinhosos que servissem para cobrir o carrão, de modo que ele ficasse escondido debaixo de uma espécie de moita artificial. Depois cada um carregou-se com tudo quanto pôde meter nas algibeiras e no saco, em artigos de roupa branca, latas de conservas e munições. Com grande pena teve o china de abandonar a sua famosa caixa encarnada, que pesava muito, <mas não foi possível convencê-lo a que deixasse ficar a corda; enrolou-a à cintura por baixo da blusa.

Terminados estes preparativos, e tendo lançado um derradeiro olhar àquele vale onde tinham sucedido acontecimentos tão trágicos, os três cavaleiros tomaram novamente o caminho das alturas.

Este caminho, como todos os daquela região, era simplesmente uma vereda aberta pelos animais ferozes, os quais quase sempre seguem a direcção mais curta para se dirigirem aos lugares onde bebem.

Já passava do meio-dia, e Cipriano, Aníbal Pantalacci e Li marchavam com bom andamento, por baixo de um sol ardente, até à noite; depois, quando acamparam em uma portela profunda, ao abrigo de um grande penedo e junto de uma boa fogueira de lenha seca, concordaram que, afinal de contas, a perda do carrão não era irreparável.

Continuaram mais dois dias a avançar por esta forma, sem imaginarem quanto estavam próximos de quem procuravam. Efectivamente, na tarde do segundo dia, um pouco antes do pôr do Sol, quando caminhavam a passo para um maciço de arvoredo, a cujo abrigo tencionavam passar a noite, Li exclamou de repente com voz gutural:

— Hugh! — E mostrava com o dedo um pontinho preto que se movia no horizonte, iluminado pelos últimos clarões do crepúsculo.

As vistas de Cipriano e de Aníbal Pantalacci seguiram naturalmente a direcção indicada pelo dedo do china.

— Um viajante! — exclamou o napolitano.

— É Matakit em pessoa! — declarou Cipriano, que se apressara a olhar com o seu óculo. — Distingo perfeitamente o carrinho e o avestruz. É ele!

E passou o óculo a Pantalacci, que a seu turno verificou a verdade do caso.

— A que distância calcula o senhor que ele esteja de nós neste momento? — perguntou Cipriano.

— A sete ou oito milhas pelo menos, mas talvez a dez — respondeu o napolitano.

— Então devemos perder a esperança de o apanhar hoje antes de acamparmos.

— Está visto — concordou Aníbal Pantalacci — ; daqui a meia hora é noite fechada, e não se deve pensar em dar um passo nesta direcção.

— Bem! Mas amanhã, se partirmos cedo, temos a certeza de o apanhar!

— É exactamente o que eu penso.

Nessa ocasião chegavam os cavaleiros ao maciço do arvoredo e desmontaram. Conforme o seu constante costume, trataram primeiro dos cavalos, limpando-os e pensando-os com todo o cuidado, antes de os prenderem a estacas para os deixar pastar. Entretanto o china ocupava-se em acender a fogueira.

Durante estes preparativos veio a noite. Naquele dia o jantar foi talvez um pouco mais alegre que nos três últimos. Mal o acabaram, os três viajantes embrulharam-se nas mantas junto da fogueira convenientemente preparada para se conservar acesa toda a noite, encostaram as cabeças às selas, e prepararam-se para dormir. Convinha estar a pé antes do romper do dia para devorar o caminho e alcançar Matakit.

Cipriano e o china bem depressa adormeceram profundamente, o que não era talvez muito prudente.

Mas não acontecia o mesmo ao napolitano. Durante duas ou três horas agitou-se debaixo da manta, como se o perseguisse alguma ideia fixa. Novamente se assenhoreava dele uma tentação criminosa.

Finalmente, não podendo resistir-lhe por mais tempo, levantou-se com o maior silêncio, foi ao sítio onde estavam os cavalos e selou o dele; depois soltou o Templar e o cavalo do china e levou-os pelos bridões. O terreno estava atapetado de erva miúda, que abafava completamente o ruído dos passos dos três animais, e estes, estremunhados por terem sido acordados tão subitamente, deixaram-se levar com estúpida resignação. Aníbal Pantalacci conduziu-os até ao fundo do vale, em cuja encosta tinha estabelecido o acampamento, prendeu-os a uma árvore e voltou até junto dos companheiros. Nenhum dos dois se tinha mexido.

Então o napolitano pegou na manta, na espingarda com as munições e em algumas provisões de boca. Depois, com todo o sossego e de propósito deliberado abandonou os companheiros no meio do deserto.

A ideia que o perseguira desde o pôr do Sol era que, levando os dois cavalos, ia colocar Cipriano e Li na impossibilidade de alcançarem Matakit. Era portanto a vitória certa para si. O carácter odioso desta traição, a cobardia de roubar assim os companheiros, de quem só recebera provas de benevolência, nada disto demoveu aquele miserável. Cavalgou, e, puxando atrás de si os dois animais que bufavam com ruído, possuídos de medo, afastou-se a trote à luz da Lua, cujo disco aparecia por cima das colinas.

Cipriano e Li dormiam sempre. Só às três horas da manhã é que o china abriu os olhos e contemplou as estrelas que iam empalidecendo no horizonte ao nascente.

“São horas de arranjar o café!” — disse ele consigo.

E sem mais detença atirou com a manta em que estava embrulhado, pôs-se a pé, e começou a fazer os seus arranjos de vestuário e limpeza matutina, que nem no deserto nem na cidade esquecia.

- Mas onde estará o Pantalacci?” — perguntou ele a si mesmo de repente.

Começava a romper a alvorada, e os objectos já iam sendo menos indistintos em torno do acampamento.

“E os cavalos também aqui não estão! — disse consigo Li. — Querem ver que aquele rico camarada...”

E, suspeitando o que acontecera, correu às estacas onde na véspera à noite tinha visto os cavalos presos, deu uma volta ao acampamento, e num relance convenceu-se de que haviam desaparecido tanto o napolitano como toda a bagagem dele.

O caso estava claro.

Um homem de raça branca não teria provavelmente resistido à necessidade muito natural de acordar Cipriano para lhe comunicar imediatamente aquela notícia tão grave. Mas o china era homem de raça amarela e pensava que, quando se trata de anunciar uma desgraça, nunca deve haver pressa. Pôs-se portanto a arranjar o café com todo o sossego.

“Ainda aquele traste nos fez muito favor em nos deixar ficar as provisões!” — repetia ele consigo.

Depois de ter passado o café, segundo as regras, por um saco de linho que ele fabricara para esse fim, encheu duas chávenas feitas da casca de um ovo de avestruz, as quais costumava trazer penduradas de um botão, e depois foi até junto de Cipriano, que continuava dormindo.

— Aqui está o café pronto, paizinho — disse-lhe ele com toda a cortesia, tocando-lhe no ombro.

Cipriano abriu um dos olhos, espreguiçou-se, sorriu-se para o china, sentou-se e engoliu o líquido fumegante.

Foi só então que ele deu pela ausência do napolitano ao ver o lugar dele sem ninguém.

— Onde está Pantalacci? — perguntou ele.

— Partiu, paizinho — respondeu Li com o tom mais natural deste mundo, como se se tratasse de uma coisa que estivesse combinada.

— O quê? Partiu?

— É verdade, paizinho; e levou os três cavalos! Cipriano atirou a manta, e, olhando em roda, ficou ciente de tudo.

Mas tinha uma alma bastante altiva para que deixasse transparecer cuidado ou indignação.

— Muito bem — disse ele — ; mas não pense aquele miserável que levará a melhor.

Em seguida deu cinco ou seis passos e voltou, absorvido nos seus pensamentos e reflectindo na resolução que havia a tomar.

— É preciso partir imediatamente! — disse ele ao china. — Vamos deixar aqui as selas, as rédeas, e tudo o que seja muito pesado ou que empache muito. Levaremos apenas as espingardas e os víveres que nos restam! Andando bem podemos ir quase tão depressa como ele e talvez tomar por atalhos mais a direito!

Li apressou-se a obedecer. Em poucos minutos enrolaram as mantas e puseram os sacos aos ombros. Depois, tudo quanto era forçoso abandonar naquele sítio foi reunido em -monte debaixo de uma espessa camada de abrolhos, e imediatamente se puseram a caminho.

Cipriano tinha razão em dizer que a certos respeitos seria talvez mais cómodo ir a pé. Desta forma pôde ele tomar o caminho mais curto passando por encostas abruptas, que nenhum cavalo seria capaz de trepar; mas com que fadiga se fez isso!

Seria uma hora depois do meio-dia quando os dois chegaram à vertente norte da serra por onde caminhavam havia dois dias. Segundo as informações dadas por Lopépe, não devia estar-se longe da capital de Tonaia. Infelizmente, eram tão vagas as indicações acerca do caminho a seguir, e tão confusas na língua bejuana as ideias a respeito das distâncias, que era muito difícil saber de antemão se se tornavam precisos dois ou cinco dias de marcha para lá chegar.

Quando Cipriano e Li desciam a encosta do primeiro vale, que se abria diante deles depois de terem passado a linha da cumeada, o china deu uma risadinha seca, e disse em seguida:

— Girafas!

Cipriano, olhando para baixo, viu efectivamente uns vinte animais daquela espécie pastando no fundo do vale. Nada tão gracioso à vista como observar de longe os seus compridos pescoços, erguidos como mastros, ou estendidos como serpentes sobre a erva, a três ou quatro metros dos corpos mosqueados de manchas amareladas.

— Podia-se agarrar uma daquelas girafas para substituir o Templar — lembrou Li.

— Montar numa girafa! Ora! Quem é que fez jamais semelhante coisa? — exclamou Cipriano.

— Eu não sei se já se viu isso — replicou o china — , mas só depende do senhor o vê-lo, se me deixa tentar a experiência.

Cipriano, que não tinha o costume de julgar impossível o que apenas era novo para ele, declarou-se pronto a auxiliar Li na sua empresa.

— Estamos a sotavento das girafas — observou o china — , o que é uma felicidade, porque elas têm o faro finíssimo, e, se não fosse isso, já nos teriam sentido! Portanto, se o senhor quer fazer o favor de as rodear pela direita e depois espantá-las com um tiro de espingarda de modo que elas fujam para o meu lado, não é preciso mais nada, e eu afianço-lhe que me encarrego do resto.

Cipriano pôs imediatamente no chão tudo quanto lhe podia embaraçar os movimentos, e, levando só a espingarda, tratou de executar a manobra indicada pelo criado.

Este não perdeu tempo. Desceu a correr a alcantilada encosta do vale até chegar junto de um carreiro que havia em baixo. Era evidentemente o caminho das girafas, a julgar pelas muitas pegadas que elas ali tinham deixado. Nesse local o china colocou-se atrás de uma árvore grossa, desenrolou a comprida corda que nunca o largava e cortou-a em dois pedaços, que teriam cada um trinta metros. Depois atou um seixo em uma das pontas de cada uma das cordas — fazendo assim um excelente lasso — , e deu volta a outra ponta nos ramos inferiores da árvore. Finalmente, enrolou no braço esquerdo a extremidade livre dos dois aparelhos, e em seguida escondeu-se por detrás do tronco e ficou esperando.

Não tinham passado bem cinco minutos quando ressoou um tiro a alguma distância. Logo em seguida um patear rápido, cujo ruído, semelhante ao de um esquadrão de cavalaria, ia aumentando sucessivamente, anunciava que as girafas vinham em debandada, como Li tinha previsto. Vinham direitas a ele pelo seu carreiro costumado, sem suspeitarem sequer a presença de um inimigo que se achava a sotavento.

Eram verdadeiramente soberbas aquelas girafas com as ventas no ar, as cabecinhas sobressaltadas, as línguas caídas. Mas Li nem sequer se inquietava em observá-las. Havia judiciosamente escolhido o seu posto junto de uma garganta do caminho, onde aqueles animais só poderiam passar a dois de fundo, e portanto não tinha mais do que aguardar a chegada deles.

Deixou primeiro desfilar três ou quatro, depois, descobrindo uma cuja altura era extraordinária, atirou o primeiro laço. A corda silvou e foi enrolar-se ao pescoço do animal, que deu ainda alguns passos; mas, de repente, a corda esticou, apertou a garganta da girafa, e esta ficou parada.

Ainda desta vez o china não havia perdido tempo a ver o que sucedia. Mas tinha visto o primeiro laço atingir o alvo, e já pegava no segundo e o atirava a outra girafa. O golpe não foi menos feliz.

Tudo isto se tinha passado em menos de meio (minuto. Já o rebanho espantado se havia dispersado em todas as direcções; mas as duas girafas, meio estranguladas e ofegantes, ficavam prisioneiras.

— Chegue-se cá, paizinho! - — gritou o china para Cipriano, que se dirigia para ele, pouco confiado no bom resultado da manobra.

Viu-se, porém, obrigado a render-se à evidência. Ali estavam dois soberbos animais, grandes, fortes, bem fornidos de carnes, de finos jarretes e garupas luzidias. Mas, por mais que Cipriano os olhasse e admirasse, não lhe parecia possível servir-se deles para cavalgar.

— -Pois como há-de a gente segurar-se num costado assim caído para o quarto traseiro, com uma inclinação de sessenta centímetros pelo menos? — disse ele rindo.

— Monta-se nos ombros do animal, em vez de se montar no lombo — respondeu Li. — E, demais, será muito difícil pôr uma manta enrolada atrás e por baixo da sela?

— Mas nós não temos selas.

— Vou eu daqui a nada buscar a sua.

— E que rédea se há-de arranjar para aquelas bocas?

— Já o patrão vai ver.

O china tinha resposta pronta para tudo, e para ele as acções seguiam-se logo às palavras.

Ainda não tinha chegado a hora do jantar, e já ele havia arranjado com parte da sua corda duas cabeçadas muito fortes que enfiou na cabeça das girafas. Os pobres animais estavam tão espantados com a sua triste aventura e tinham demais um temperamento tão pacífico que nenhuma resistência opuseram. Outros bocados de corda deviam servir de rédeas.

Terminados estes preparativos, foi facílimo conduzir as duas cativas pela arreata. Cipriano e Li, voltando atrás, dirigiram-se ao acampamento da véspera para irem buscar a sela e os objectos que se tinham visto obrigados a abandonar.

Gastou-se o resto da tarde em completar aqueles arranjos. O china tinha verdadeiramente uma habilidade maravilhosa.

Não só modificou num pronto a sela de Cipriano por forma a poder-se colocar horizontalmente no lombo de uma das girafas, mas também fabricou para si uma sela feita de ramos; depois, por mais precaução ainda, passou metade da noite a subjugar as veleidades de resistência das duas girafas, montando-as sucessivamente, e demonstrando-lhes com argumentos peremptórios que não havia remédio senão obedecer-lhe.

 

         UM “STEEPLE-CHASE” AFRICANO

Quando os dois cavaleiros, no dia seguinte, se puseram a caminho, o seu aspecto não deixava de ser assaz ratão. Seria muito para duvidar que Cipriano gostasse de aparecer naquele arranjo aos olhos de Miss Watkins na rua grande do acampamento de Vandergaart. Mas cada um arranja-se como pode. Estava-se no deserto, e as girafas não deviam ser cavalgaduras muito mais esquisitas do que um dromedário. E até a sua andadura tinha alguma analogia com a daqueles navios do deserto, pois que era horrivelmente incómoda, e dava um verdadeiro balanço, que teve ao princípio por efeito causar aos dois companheiros de viagem um leve enjoo.

Mas ao cabo de duas ou três horas Cipriano e o china achavam-se suficientemente habituados. E como as girafas tinham passo rápido e se mostravam muito dóceis, no fim de algumas tentativas de rebeldia, que foram prontamente reprimidas, tudo ia muito bem.

Tratava-se agora de ganhar à força de actividade todo o tempo perdido nos três ou quatro últimos dias da viagem. Quanto não teria andado Matakit àquela hora! Não o teria já apanhado Aníbal Pantalacci? Mas, fosse como fosse, Cipriano estava muito resolvido a não desprezar coisa alguma para o poder alcançar.

Três dias de marcha levaram os cavaleiros, ou antes os girafeiros, até à planície. Iam agora pela margem direita de uma ribeira bastante sinuosa, que corria exactamente na direcção do norte — sem dúvida um dos afluentes secundários do Zambeze. As girafas, que estavam decididamente domadas e, além disso, enfraquecidas tanto pelas longas marchas como pela dieta sistemática em que Li as pôs, deixavam-se guiar com toda a facilidade. Cipriano podia agora largar a comprida rédea de corda da sua cavalgadura e dirigi-la apenas pela pressão dos joelhos.

De modo que, livre desse cuidado, sentia verdadeiro prazer, depois de ter saído das regiões selvagens e desertas que havia pouco atravessara, em reconhecer por todos os lados os vestígios de uma civilização já avançada. Eram, de distância a distância, campos de mandioca ou de taro, amanhados assaz regularmente e regados por meio de um sistema de bambus ligados pelas extremidades uns aos outros, que traziam a água do rio; caminhos largos e bem batidos; finalmente, um certo ar geral de prosperidade; depois, sobre as colinas que limitavam o horizonte, cabanas brancas em forma de colmeias, dando abrigo a uma população muito espalhada.

Mas, não obstante, percebia-se estar ainda no limite do deserto, ainda que não fosse senão pelo número extraordinário dos animais bravios, tanto ruminantes como de outras espécies, que povoavam aquela planície. Aqui e além escureciam o ar bandos inumeráveis de voláteis, de todos os tamanhos e famílias. Viam-se companhias de antílopes ou de gazelas que atravessavam o caminho; por vezes um hipopótamo monstruoso elevava a cabeça acima da água do rio, roncava ruidosamente e tornava a mergulhar com um estrépito semelhante ao de uma catarata.

Cipriano ia enlevado neste espectáculo, e não previa decerto o que o esperava ao dobrar uma das saliências da colina que ia seguindo com o seu companheiro.

Era nem mais nem menos do que Aníbal Pantalacci, sempre a cavalo, e perseguindo à rédea solta o próprio Matakit.

De um ao outro havia quando muito a distância de uma milha, mas havia pelo menos quatro milhas entre eles e Cipriano.

Debaixo daquele sol brilhante, cujos raios caíam a prumo, naquela planície despida e inundada por uma luz deslumbrante, através daquela atmosfera varrida por uma violenta brisa de leste que soprava na ocasião, não podia haver a menor dúvida a tal respeito.

O engenheiro e o china ficaram tão contentes com aquela descoberta que o seu primeiro movimento foi festejá-la com uma verdadeira fantasia árabe. Cipriano deu um viva alegre, Li exclamou Hugh! com a mesma significação. Depois meteram as girafas a trote rasgado.

Era claro que Matakit tinha visto o napolitano, o qual começava a ganhar terreno sobre ele; mas não podia ver o seu antigo patrão nem o seu camarada do Kopje, ainda muito afastados na orla da planície.

Por isso, o jovem cafre, tendo visto aquele Pantalacci, que não era homem que lhe desse quartel e que certamente o mataria como a um cão, apertava quanto podia o avestruz que lhe puxava o carrinho. O veloz animal devorava o espaço, como se costuma dizer. E devorava-o tanto que, de repente, topou contra um pedregulho. Houve abalo violento, e o eixo do carrito, cansado já por tão longa viagem, quebrou-se pelo meio. Saltou logo uma das rodas fora do cubo, e Matakit com a carroça, esta contendo aquele, ficaram estendidos no meio do caminho. O desgraçado cafre ficou muito maltratado pela queda. Mas o terror que o possuía resistiu ao violento choque, ou antes, aumentou ainda com ele. Plenamente convencido de que, se se deixasse apanhar por aquele cruel Pantalacci, estava chegada a sua vez, Matakit levantou-se muito depressa, soltou o avestruz numa volta, e, atirando-se-lhe para cima, continuou o galope.

Começou então um steeple-chase, como não tornara a ser visto no mundo desde o tempo dos espectáculos do circo romano, onde muitas vezes faziam parte do programa as corridas de avestruzes e girafas.

Com efeito, ao passo que Aníbal Pantalacci perseguia Matakit, Cipriano e Li lançavam-se atrás daqueles dois.

Pois não tinham interesse em apanhar ambos, ao jovem cafre para liquidar o negócio do diamante roubado, e ao napolitano para o castigar como merecia?

Por isso as girafas, metidas a todo o galope pelos cavaleiros que tinham visto o acidente do carrinho, corriam quase tão depressa como os cavalos de raça pura, com os compridos pescoços estendidos para a frente, a boca aberta, as orelhas voltadas para trás, e sentindo trabalhar a espora e o chicote, que as obrigavam a desenvolver quanta velocidade podiam.

A velocidade do avestruz de Matakit era prodigiosa. Não há vencedor do Derby ou do Grande Prémio de Paris que pudesse lutar com ele. As asas curtas, inúteis para voar, serviam-lhe contudo para acelerar a carreira. E esta era tão vertiginosa que dentro de pouquíssimos minutos já o jovem cafre tinha ganho considerável distância sobre o seu perseguidor.

Oh! Matakit bem sabia o que fizera ao escolher um avestruz para cavalgadura! Bastava que ele pudesse manter aquela andadura durante um quarto de hora para se ver definitivamente fora do alcance do napolitano e livre das garras dele.

Aníbal Pantalacci bem compreendia que a menor demora lhe ia fazer perder toda a vantagem. Já a distância entre ele e o fugitivo ia aumentando. Para lá do campo de milho, onde se realizava aquela caçada, observava-se a perder de vista um espesso matagal de lentiscos e figueiras-da-índia, cuja ramaria o vento sacudia. Se Matakit alcançasse esse matagal, seria impossível encontrá-lo lá dentro, pois que ninguém mais o poderia ver.

Cipriano e o china continuaram a galopar, seguindo os pormenores daquela luta com interesse fácil de compreender.

Tinham finalmente chegado à base da colina, corriam agora através dos campos, mas estavam ainda distanciados três milhas tanto do caçador como do caçado.

Puderam, contudo, ver que, por um esforço incrível, o napolitano tornara a ganhar algum terreno sobre o fugitivo. O avestruz, ou porque estivesse já extenuado, ou porque se tivesse ferido em alguma raiz ou pedra, o certo é que tinha diminuído consideravelmente de velocidade. Daí a nada estava Pantalacci a trezentos pés do cafre.

Mas nesse momento Matakit alcançava finalmente a orla do matagal; depois desaparecia por ele dentro. De repente, e ao mesmo tempo, Aníbal Pantalacci, violentamente sacudido da sela, rolava pelo chão, ao passo que o cavalo deitava a fugir pelos campos fora.

— Safa-se o Matakit! — exclamou Li.

— Sim, mas o patife do Pantalacci é nosso! — respondeu Cipriano.

E ambos apertaram ainda mais a andadura das girafas.

Meia hora depois tinham atravessado quase completamente o campo de milho, e estavam apenas a quinhentos passos do sítio onde o napolitano acabava de cair. A questão para eles agora era saber se Aníbal Pantalacci tinha conseguido levantar-se e meter-se no maciço dos lentiscos, ou se jazia por terra gravemente ferido — talvez morto!

O miserável ainda lá estava. A cem passos dele Cipriano e Li pararam.

Eis o que tinha acontecido.

O napolitano,-todo entregue ao ardor da perseguição, não vira uma rede gigantesca, estendida pelos cafres para apanhar as aves que fazem guerra incessante às sementeiras. E era nessa rede que Aníbal Pantalacci se fora enrodilhar.

E não era uma rede de pequenas dimensões! Aquela tinha pelo menos cinquenta metros por lado e cobria já alguns milhares de aves de todas as espécies, tamanhos e plumagem, e entre outras uma meia dúzia desses enormes gipaetos, cujas asas, abertas, têm metro e meio de extensão, e que não desprezam as regiões da África Austral.

Como era natural, a queda do napolitano no meio daquele mundo de voláteis foi causar grande algazarra.

Aníbal Pantalacci ficou ao princípio um pouco atordoado pela queda; logo depois tentou levantar-se. Mas tinha envolvido por tal forma os pés, pernas e mãos nas malhas da rede que não pôde conseguir da primeira vez desembaraçar-se dela.

E, contudo, não havia tempo a perder. Por isso ele dava terríveis sacões, puxando com toda a força pela rede, levantando-a, arrancando-a das estacas que a prendiam ao terreno, ao passo que as aves grandes e pequenas faziam o mesmo esforço para fugirem.

Mas quanto mais o napolitano lutava, mais ele se embaraçava nas sólidas malhas da imensa rede.

Entretanto, suprema humilhação lhe estava reservada. Acabava de chegar junto dele uma das girafas, e quem a montava era nem mais nem menos que o china. Li apeou-se, e com a sua fria malícia, pensando que o melhor modo de ter o prisioneiro seguro era encerrá-lo definitivamente na rede, apressou-se logo a soltar a parte dela que se achava na sua proximidade, com a ideia de deitar as malhas umas por cima das outras.

Mas naquele instante operou-se uma mutação de cena das mais inesperadas.

Começou o vento a soprar com extrema fúria, fazendo curvar todas as árvores próximas, como se alguma medonha tromba pasmasse naquela ocasião junto ao solo.

Ora Aníbal Pantalacci nos seus esforços desesperados tinha já arrancado um grande número de estacas que seguravam o apêndice inferior da rede. Vendo-se ameaçado por iminente captura, pôs-se a dar sacudidelas mais desesperadas que nunca.

De repente, num violento assalto da ventaneira, foi a rede arrancada. Quebraram-se as últimas prisões que seguravam ao chão aquele imenso tecido de cordas, e a colónia emplumada, que nela estava prisioneira, começou a bater as asas com espantosa algazarra. As aves pequenas conseguiram fugir; mas os grandes voláteis, com as garras metidas pelas malhas, no momento em que ficaram com as asas livres, começavam a manobrar conjuntamente de um modo formidável. Todos aqueles remos aéreos reunidos, todos aqueles músculos peitorais, cujos movimentos eram simultâneos, auxiliados pela fúria do furacão, constituíam uma potência tão colossal que para ela cem quilogramas de peso eram como uma pena.

Por esta forma a rede, dobrada, envolvida e enrodilhada sobre si mesma, pôde ser actuada pelo vento, o qual a levantou subitamente a vinte e cinco ou trinta metros do chão, levando Aníbal Pantalacci preso pelas mãos e pelos pés.

Cipriano chegava naquela ocasião, e só pôde assistir àquele rapto do seu inimigo para a região das nuvens.

Naquele momento o bando emplumado dos gipaetos, cansado por aquele primeiro esforço, tendia visivelmente a cair, descrevendo longa parábola. Em três segundos chegou à orla dos lentiscos e figueiras-da-índia, que se estendiam ao poente dos campos de milho. Depois, passando a rastejar por cima da copa das árvores, a três ou quatro metros do chão, tornou a levantar-se ao ar.

Cipriano e Li contemplavam com terror o desgraçado suspenso naquela rede, que desta vez foi levada a uma altura de mais de cento e cinquenta pés, graças ao prodigioso esforço dos gigantescos voláteis, ajudados pela tormenta.

Súbito, rebentaram algumas malhas com o peso do napolitano. Viram-no um instante suspenso pelas mãos e tentar segurar-se de novo nas cordas da rede... Mas as mãos abriram-se, Pantalacci deixou de segurar-se, e, caindo como uma massa, despedaçou-se no chão.

A rede, liberta daquele peso, deu um último salto no espaço e soltou-se algumas milhas mais longe, enquanto os gipaetos se dirigiam para as elevadas zonas do espaço.

Quando Cipriano correu até junto do seu inimigo para lhe prestar socorro, estava ele morto... morto naquelas horríveis condições!

E agora era ele o único que restava dos quatro rivais que se tinham lançado através das planícies do Transval para alcançarem o mesmo fim.

 

         O AVESTRUZ QUE FALA

Depois daquela espantosa desgraça, Cipriano e Li apenas pensaram numa coisa: fugir do local onde ela acabava de suceder.

Decidiram, pois, continuar a marcha ao longo do matagal pelo lado do norte, e, andando assim durante uma hora, foram ter ao leito de uma torrente quase seca, que interrompia o maciço dos lentiscos e figueiras-da-índia, permitindo assim contorná-la.

Nova surpresa os esperava aí. A torrente despejava-se numa lagoa bastante vasta, em cujas margens havia vegetação luxuriante, que até àquele momento a tinha escondido à vista.

Cipriano bem quisera voltar atrás, costeando as margens do lago, mas essas margens eram em alguns sítios tão escarpadas que bem depressa teve de desistir de tal projecto. Por outro lado, retroceder pelo caminho por onde tinha vindo era perder toda a esperança de tornar a encontrar Matakit.

Ora na margem oposta do lago levantavam-se uma série de colinas, que em sucessivas ondulações se iam ligar a montanhas bastante elevadas. Cipriano pensou que, subindo até à sua parte superior, teria mais probabilidades de poder observar todo o território adjacente num só golpe de vista e por conseguinte tomar uma decisão.

Novamente se puseram os dois a caminho a fim de tornear o lago. A ausência de qualquer vereda ou carreiro tornava esta operação muito difícil, principalmente por serem algumas vezes obrigados a levar as girafas pela rédea. Desta forma gastaram mais de três horas a percorrer uma distância de sete a oito quilómetros.

Finalmente, quando, depois de tornear o lago, chegaram ao ponto aproximadamente oposto àquele donde tinham partido na margem oposta, era quase noite. Prostrados de cansaço, decidiram acampar naquele sítio. Mas com os poucos recursos de que dispunham, aquela instalação não podia ser muito cómoda. Entretanto Li tratou de todos os arranjos com o zelo habitual; e tendo-os concluído foi ter com o patrão:

— Paizinho — disse-lhe ele com voz carinhosa e conso-ladora — , vejo-o muito cansado! As nossas provisões estão quase acabadas. Deixe-me ir procurar alguma aldeia, onde decerto me não recusarão qualquer coisa que lhe possa servir.

— Queres deixar-me, Li? — exclamou logo Cipriano. — Assim é preciso, paizinho! — respondeu o china.

— Levo uma das girafas e dirijo-me para o norte! A capital desse Tonaia, de quem Lopépe nos falou, não deve agora estar muito longe, e eu farei com que o senhor seja bem recebido por ele. Depois, voltaremos para a Gricualândia, onde o senhor não terá mais que recear daqueles três patifes, que já sucumbiram todos nesta expedição.

O jovem engenheiro reflectiu na proposta do dedicado china. Por um lado via que, se o cafre tinha de ser apanhado, havia de sê-lo principalmente naquela região onde na véspera tinha sido descoberto, e portanto convinha não a abandonar. Por outro lado, era indispensável renovar as provisões, já insuficientes. Por último, Cipriano decidiu-se, ainda que com bastante custo, a separar-se de Li, e combinou-se que o esperaria naquele sítio durante quarenta e oito horas. Em quarenta e oito horas o china, montado na veloz girafa, podia percorrer grande espaço naquela região e estar de volta ao acampamento.

Depois desta combinação Li não quis perder um só instante. Bem se importava ele com o descanso! Havia de passar muito bem sem dormir. Despediu-se, pois, de Cipriano beijando-lhe a mão, foi buscar a sua girafa, saltou-lhe para cima e desapareceu na escuridão.

Cipriano achava-se sozinho em pleno deserto pela primeira vez depois que partira do Vandergaart-Kopje.

Sentiu-se profundamente melancólico, e, depois de se ter embrulhado na manta, não pôde deixar de se entregar aos mais lúgubres vaticínios. Isolado, quase sem víveres nem munições, o que ia ser dele naquele país desconhecido, a muitas centenas de léguas de toda a região civilizada? Bem pequenas eram agora as probabilidades de alcançar Matakit. Quem sabe se ele estaria a meio quilómetro dali, sem sequer suspeitar da presença do seu perseguidor!? Decididamente aquela expedição era desastrosa e tinha sido assinalada por acontecimentos bem trágicos. Quase que cada cem milhas andadas tinham custado a vida a um dos seus membros. Agora só restava um... ele! E seria o seu destino acabar também miseravelmente, como os outros?!

Tais eram as tristes reflexões de Cipriano, o qual, não obstante, conseguiu adormecer.

Quando acordou, a frescura da manhã e o repouso que acabava de ter deram aos seus pensamentos uma feição mais animadora. Enquanto o china não voltava, resolveu subir a alta colina em cuja base tinha parado. Daquela forma poderia explorar com a vista maior extensão de terreno e descobrir talvez com o óculo algum vestígio de Matakit. Mas para fazer isso era indispensável separar-se da girafa, pois que ainda nenhum naturalista classificou aqueles quadrúpedes na família dos trepadores.

Cipriano começou, pois, por lhe tirar a cabeçada, fabricada com tanto artifício por Li, depois prendeu por uma perna o animal a uma árvore, em volta da qual havia erva basta e forte, deixando-lhe bastante comprimento de corda para ela poder pastar à vontade. E realmente, somando-se o comprimento da corda ao do pescoço, o raio de acção do gracioso animal não deixava de ser bastante extenso.

Terminados aqueles preparativos, Cipriano pôs aos ombros a espingarda e a manta, e, despedindo-se da girafa com uma pancadinha no lombo, começou a ascensão da montanha.

Aquela ascensão foi longa e custosa. Passou-se todo o dia a trepar encostas abruptas, a tornear rochas ou picos inacessíveis, a começar por leste ou pelo sul uma tentativa encetada sem resultado por oeste ou pelo norte.

Quando chegou a noite ainda Cipriano estava a meia encosta, e teve de deixar para o dia seguinte a continuação da subida.

No dia seguinte pôs-se novamente a caminho, depois de olhar bem e certificar-se de que Li ainda não tinha chegado ao acampamento. Finalmente, pelas onze horas da manhã chegou ao cume da montanha.

Mas aí esperava-o cruel decepção. O céu cobrira-se de nuvens. Espesso nevoeiro flutuava sobre as encostas inferiores. Debalde Cipriano tentou rasgar com a vista aquela cortina para sondar os vales vizinhos. Toda a região desaparecia sob aquele amontoamento de vapores informes, que nada deixavam distinguir abaixo deles.

Cipriano teimou, demorou-se, sempre com a esperança de que viesse uma aberta que lhe tornasse livre os vastos horizontes que ele ansiava observar. Foi inútil. À proporção que o dia declinava, parecia aumentar a espessura das nuvens, e quando começou a anoitecer havia positivamente chuva.

E assim se achou o jovem engenheiro surpreendido por aquele prosaico meteoro exactamente no cume de um planalto desabrigado, sem uma única árvore, sem um penedo onde se pudesse acoitar. Nada mais senão o chão escalvado e ressequido, e em torno a noite que crescia, acompanhada por uma chuvinha miúda que pouco a pouco ia atravessando a manta, a roupa, e chegava até à pele.

A situação tornava-se crítica, e contudo era preciso aceitá-la. Efectuar a descida em tais condições seria loucura. Cipriano resolveu-se, pois, a deixar-se molhar até aos ossos, esperando que no dia seguinte se secaria aos raios de um sol benéfico.

Passados os primeiros momentos de comoção, Cipriano disse de si para si que aquela chuva — banho refrigerante que o aliviava da secura dos dias precedentes — não tinha nada de desagradável; mas uma das suas consequências mais penosas foi obrigá-lo a comer o jantar, se não cru, pelo menos frio. Acender o lume, ou mesmo um fósforo com semelhante tempo, nem pensar em tal era permitido. Cipriano Méré contentou-se, pois, com abrir uma lata de carne estufada e devorar o seu conteúdo debaixo daquela forma elementar.

Uma ou duas horas mais tarde o jovem engenheiro, entorpecido pela frescura da chuva, conseguiu adormecer com a cabeça encostada a uma pedra coberta com a manta encharcada. Quando despertou com o dia tinha febre violenta.

Compreendeu que estava perdido se tivesse de continuar a receber aquele banho — porque a chuva não cessava de cair em torrentes — , e por isso fez um esforço, ergueu-se, e, firmando-se na espingarda, como se fosse uma bengala, começou a descer a montanha.

Como foi que ele chegou abaixo? Eis o que ele próprio teria muita dificuldade em explicar. Umas vezes rolando pelas encostas encharcadas, outras vezes deixando-se escorregar pelos rochedos húmidos, magoado, ofegante, com a vista perdida, extenuado pela febre, conseguiu contudo continuar o caminho, e chegou cerca do meio-dia ao acampamento onde tinha deixado a girafa. O animal tinha partido, sem dúvida impacientado com a solidão e talvez apertado pela fome, porque a erva estava completamente cortada em todo o círculo, cujo raio era a corda que o prendia. De modo que, por último, pôs-se a roer a prisão e dessa forma conseguira libertar-se. Cipriano teria decerto lastimado muito mais aquele novo golpe da sua má sorte se estivesse no seu estado normal; mas o cansaço extremo e a prostração nem sequer lhe deram força para isso. Quando chegou, apenas pôde pegar na sua maleta impermeável, que por felicidade encontrou, vestir roupa enxuta, e depois, esmagado pela fadiga, atirar-se para o chão ao abrigo de um baobá que sombreava o acampamento.

Começou então para ele um período fantástico de meio sono, febre e delírio, em que todas as noções se confundiam, em que nem o espaço, nem o tempo, nem as distâncias tinham já realidade. Era noite ou dia? Chovia ou fazia sol? Estava ali há doze horas ou há sessenta? Nada sabia. Os sonhos graciosos e os pesadelos terríveis sucediam-se sem descanso no teatro da sua imaginação. Paris, a Escola de Minas, o lar paterno, a granja de Vandergaart-Kopje, Miss Watkins, Aníbal Pantalacci, Hilton, Friedel e legiões de elefantes, Matakit e bandos de aves espalhadas por um céu sem limites, todas as recordações, todas as sensações, todas as antipatias, todas as ternuras se baralhavam e combatiam no seu cérebro como em incoerente batalha. Àquelas criações de febre vinham por vezes acrescentar-se impressões externas. Foi sobretudo horrível quando, no meio de uma tempestade de uivos de chacais, de miadelas de gatos-tigres, de risadas de hienas, o doente inconsciente continuava laboriosamente o romance do seu delírio e julgou ouvir um tiro de espingarda, que foi seguido por um grande silêncio. Depois o infernal concerto continuou em crescendo, prolongando-se até ao dia.

Sem dúvida Cipriano teria passado, durante aquela miragem e sem o sentir, da febre ao eterno repouso, se não viesse atravessar-se ao curso natural das coisas o maior acontecimento e, na aparência, mais extravagante que se pode imaginar.

Chegara a manhã, já não chovia, e o Sol já estava bastante alto. Cipriano acabava de abrir os olhos. Observava, mas sem curiosidade, um avestruz de grande estatura, que se aproximava dele e que por fim parou a dois ou três passos.

“Será o avestruz de Matakit?” — perguntou ele a si mesmo, continuando com a sua ideia fixa.

Foi o próprio avestruz que se encarregou de lhe responder — e, o que mais é, de lhe responder em bom francês.

— Não me engano! Cipriano Méré! Meu pobre camarada, que diabo fazes tu aqui?

Um avestruz que falava francês, um avestruz que sabia o nome dele, eram certamente coisas que causariam admiração a uma inteligência vulgar e que estivesse no estado normal. Pois bem! Cipriano nada se espantou daquele fenómeno inverosímil e achou-o naturalíssimo. Outros mais extraordinários tinha ele visto em sonhos durante a noite precedente! Este pareceu-lhe simplesmente a consequência do seu desconcerto mental.

— Olhe lá, Sr. avestruz, você é malcriado! — respondeu ele. — Quem lhe deu o direito de me tratar por tu?

E falava com aquele tom de voz seco, sobressaltado, próprio dos febricitantes, que não deixava dúvida alguma a respeito do seu estado — o que, parece, comoveu muito o avestruz.

— Cipriano, meu amigo! Estás doente e sozinho neste deserto! — exclamou ele, ajoelhando junto do engenheiro.

Ora isso era um fenómeno fisiológico não menos anormal que o dom da palavra nas pernaltas, porque a genuflexão é um movimento de que a natureza normalmente as inibe. Mas Cipriano, no meio da sua febre, persistia em não se admirar. Achou mesmo muito natural que o avestruz pegasse num frasco de couro, que trazia debaixo da asa esquerda, cheio de água fresca cortada com conhaque, e lhe pusesse o gargalo à boca.

A única coisa que começou a surpreendê-lo foi quando o estranho animal se levantou para atirar ao chão uma espécie de casca, coberta de penas, que pareciam ser a sua plumagem natural, e em seguida um grande pescoço tendo na extremidade uma cabeça de ave. E então, despido daqueles adornos de empréstimo, o avestruz mostrou-se-lhe com as formas de um rapagão, forte, vigoroso, que era nem mais nem menos do que Faramundo Barthés, grande caçador perante Deus e os homens.

— Olha, sou eu! — exclamou Faramundo. — Então não me conheceste pela voz, quando te disse as primeiras palavras? Estás admirado da minha fatiota? É um ardil de guerra que eu aprendi com os cafres para me poder aproximar dos avestruzes e poder mais facilmente atirar-lhes à azagaia! Mas falemos de ti, meu pobre amigo! Porque é que estás aqui doente e abandonado? Foi pelo maior dos acasos que te descobri, por vir vadiar por esta banda, e ignorava mesmo que estivesses nestas terras!

Cipriano, que não estava em estado de conversar, apenas pôde dar ao amigo indicações muito breves a seu respeito. Além disso, Faramundo Barthés compreendeu que o que urgia mais era prestar ao doente os socorros que até ali lhe tinham faltado, e por isso pôs-se a tratar dele o melhor que lhe foi possível.

Aquele ousado caçador tinha já longa experiência do deserto e aprendera com os cafres um método de extrema eficácia para o tratamento da febre palustre, de que o seu pobre camarada estava atacado.

Portanto, Faramundo Barthés começou por abrir no chão uma espécie de cova mortuária, que encheu de lenha, deixando ficar uma saída para que o ar exterior se pudesse introduzir nela. Depois chegou fogo à lenha, e, quando ela ardeu e se consumiu completamente, ficou a cova transformada num verdadeiro forno. Faramundo Barthés deitou então o seu amigo dentro da cova, depois de o ter embrulhado com todo o cuidado, deixando-lhe só a cabeça ao ar. Mal tinham passado dez minutos e já se manifestava transpiração abundante — transpiração que o doutor improvisado teve o cuidado de activar com cinco ou seis chávenas de uma tisana que fez com certas ervas suas conhecidas. Cipriano não tardou a cair em benéfico sono dentro daquela estufa.

Ao pôr do Sol, o doente, quando abriu os olhos, sentia tão manifestos alívios que pedia o jantar. O seu engenhoso amigo tinha resposta para tudo: serviu-lhe imediatamente um excelente caldo que fizera com os mais delicados produtos da sua caça e algumas raízes de várias qualidades. Uma asa de abetarda fria e uma chávena de água com conhaque completaram aquela refeição, que deu alguma força a Cipriano e acabou de lhe libertar o cérebro das nuvens que o obscureciam.

Uma hora depois daquele jantar de convalescença, Faramundo Barthés, que também tinha jantado convenientemente, estava sentado ao pé do jovem engenheiro, e contava-lhe como é que se achava ali, sozinho, e com aquela singular fatiota.

— -Tu bem sabes — disse ele — do que eu sou capaz para experimentar um novo género de caça! Ora eu tenho morto, há seis meses, tantos elefantes, tantas zebras, girafas, leões e outras peças de caça de todos os pêlos e plumagens — sem esquecer uma águia-canibal, que é o orgulho da minha colecção — , que tive, haverá alguns dias, a fantasia de variar os meus prazeres cinegéticos. Até agora só viajava escoltado pelos meus basutos — uns trinta rapagões resolutos, a quem eu pago à razão de um saquinho de contas por mês, e que seriam capazes de se atirar ao fogo pelo seu senhor e amo. Mas ultimamente recebi hospitalidade de Tonaia, o grande chefe deste país, e para obter o direito dele de caçar nas suas terras — de que ele é tão zeloso como um lorde escocês — , consenti em lhe emprestar os meus basutos com quatro espingardas para uma expedição que ele meditava contra um vizinho. Ora este armamento tornou o sujeito simplesmente invencível, de modo que alcançou o mais assinalado triunfo sobre o inimigo. Daí uma amizade profunda selada pela troca do sangue, quer dizer, que chupámos mutuamente uma picadela feita nos antebraços! De modo que de ora avante, entre mim e Tonaia, é para a vida e para a morte! Ora, tendo eu a certeza de não poder ser nunca incomodado em todas as suas possessões, anteontem parti para a caça do tigre e do avestruz. A respeito de tigres, o prazer de matar um a noite passada, e muito me admiraria que tu não ouvisses a algazarra que precedeu esta façanha. Imagina que eu tinha colocado uma barraca-abrigo perto do arcabouço de um búfalo morto ontem, na esperança assaz fundada de ver chegar durante a noite o tigre dos meus sonhos! Efectivamente, o patife não deixou de vir ao convite, atraído pelo cheiro de carne fresca; mas quis a desgraça que duzentos ou trezentos chacais, hienas e gatos-tigres tivessem a mesma ideia que ele! Daí um concerto dos mais discordantes, que devia chegar aos teus ouvidos!

— Parece-me bem que ouvi! — respondeu Cipriano. — E até cuidei que era dado em minha honra!

— Enganaste-te, meu caro amigo! — exclamou Faramundo Barthés. — Era em honra do arcabouço de um búfalo, no fundo daquele vale que tu vês acolá à direita! Quando veio o dia, apenas restavam os ossos do enorme ruminante! Hei-de mostrar-te aquilo. É um bonito trabalho de anatomia! Verás também o tigre, o mais formoso animal que eu tenho morto desde que vim caçar para a África! Já o esfolei, e a pele está a secar numa árvore.

— Mas para que era aquele esquisito disfarce que tu trazias esta manhã? — perguntou Cipriano.

— É um trajo de avestruz. Como já te disse, os cafres empregam muitas vezes este ardil para poderem aproximar-se destas pernaltas, que são muito desconfiadas, custando a atirar-lhes de outra forma! Dirás tu que eu tenho a minha excelente carabina! É verdade, mas então que queres? Meteu-se-me na cabeça caçá-los à moda dos cafres, e foi isso que me proporcionou a vantagem de te encontrar muito a propósito, não é verdade?

— Sim, Faramundo, muito a propósito! Parece-me bem que, senão fosses tu, já não estaria neste mundo! — respondeu Cipriano, apertando cordialmente a mão do seu amigo.

Já estava fora da cova, onde tinha tomado o suadouro, e achava-se suavemente deitado numa cama de palhas arranjada pelo companheiro ao pé do baobá.

O excelente moço não fez só isso. Quis ainda ter o trabalho de ir buscar ao vale próximo a tenda-abrigo, que trazia sempre nas suas expedições, e um quarto de hora depois já a tinha armado por cima do seu querido doente.

— E agora — disse ele — ouçamos a tua história, amigo Cipriano, se é que não te cansas muito a contar-ma!

Cipriano sentia-se com força suficiente para satisfazer a curiosidade bem natural de Faramundo Barthés. Demais, contou-lhe muito resumidamente os acontecimentos que se tinham passado na Gricualândia, por que motivo saíra daquele país em perseguição de Matakit e do diamante, os casos mais notáveis da expedição, a tríplice morte de Aníbal Pantalacci, de Friedel e de James Hilton, o desaparecimento de Bardik, e como finalmente estava à espera do seu criado Li, que devia vir ter com ele ao acampamento.

Faramundo Barthés escutava com extrema atenção. Interrogado pelo seu amigo sobre se teria encontrado um rapaz cafre com os sinais de Bardik, respondeu negativamente.

Mas — acrescentou ele — - achei um certo cavalo abandonado, que pode muito bèm ser o teu.

E logo em seguida contou a Cipriano em que circunstâncias esse cavalo lhe tinha caído nas mãos.

— Há dois dias certos — disse ele — que andava caçando com três dos meus basutos nas montanhas do Sul, quando de repente vi desembocar de um caminho profundo um excelente cavalo castanho sem arreios alguns, à excepção de uma cabeçada e um bridão que arrastava pelo chão. Via-se claramente que o animal estava indeciso a respeito do que devia fazer; eu chamei-o, mostrei-lhe um punhado de açúcar, e ele chegou-se a mim. E aí ficou prisioneiro o dito cavalo, um excelente bicho, cheio de coragem e fogo, salgado como um presunto...

— É o meu! É Templar! — exclamou Cipriano.

— Pois, meu caro amigo, terás o teu Templar — respondeu Faramundo Barthés — e sentirei verdadeiro prazer em to restituir! Agora, boa noite, trata de dormir! Amanhã ao romper da madrugada deixaremos este lugar de delícias!

E logo, juntando o exemplo ao conselho, Faramundo Barthés embrulhou-se na manta e adormeceu junto de Cipriano.

No dia seguinte chegava o china ao acampamento com algumas provisões. Antes de Cipriano acordar, Faramundo Barthés disse a Li tudo o que se tinha passado e encarregou-o de velar pelo amo, enquanto ele ia buscar o cavalo, cuja perda o jovem engenheiro tanto havia sentido.

 

         A GRUTA MARAVILHOSA

Quando Cipriano acordou, foi o próprio Templar que ele viu diante de si. O encontro foi dos mais afectuosos. Dir-se-ia que o cavalo sentia quase tanto prazer como o próprio cavaleiro em tornar a encontrar o seu fiel companheiro de viagem.

Depois do almoço, Cipriano sentiu-se com suficientes forças para cavalgar e partir imediatamente. Por conseguinte, Faramundo Barthés colocou as bagagens todas na garupa do Templar, levou o animal pela arreata e todos se puseram a caminho para a capital de Tonaia.

Enquanto caminhavam, Cipriano ia contando por miúdo ao seu amigo os principais incidentes da expedição depois da partida da Gricualândia. Quando chegou ao ponto da última fuga de Matakit, cujos sinais descreveu, Faramundo Barthés pôs-se a sorrir.

— Ah! Espera aí! — exclamou ele. — Parece-me bem que tenho notícias a dar-te do teu fugitivo, quando não seja do teu diamante!

— Que estás tu a dizer? — perguntou Cipriano, surpreendido.

— Olha — respondeu Faramundo Barthés — , os meus basutos fizeram prisioneiro, não haverá ainda vinte e quatro horas, um rapaz cafre, que andava vagueando por aí, e entregaram-no, atado de pés e mãos, ao meu amigo Tonaia. Era muito provável que este lhe fizesse alguma partida grossa, pois tem muito medo dos espiões, e o cafre, pertencendo a uma tribo inimiga da dele, não podia deixar de ser acusado de espionagem! Mas até agora não lhe tiraram a vida porque, por felicidade para o pobre diabo, acontece que ele sabe fazer algumas pantominas de prestímano, de modo que pode passar por adivinho...

— Óh! Agora não tenho a menor dúvida de que é o Matakit! — exclamou Cipriano.

— Pois olha que se pode gabar de ter escapado de boa — declarou o caçador. — Tonaia tem inventado para os seus inimigos uma série completa de suplícios, que nada deixam a desejar! Mas, repito, podes estar descansado a respeito do teu antigo servo! Está protegido pela sua qualidade de adivinho, e ainda hoje à noite o havemos de ver de perfeita saúde!

Será inútil dizer quanto esta notícia foi particularmente agradável a Cipriano. Era claro que estava alcançado o seu fim, pois não duvidava de que Matakit consentisse em entregar-lhe o diamante de John Watkins, se porventura o tivesse em seu poder.

Assim continuaram conversando os dois amigos durante todo o dia, enquanto atravessavam a planície que Cipriano tinha percorrido alguns dias antes montado na girafa.

À tardinha via-se a capital de Tonaia, meio disposta em anfiteatro sobre uma ondulação que limitava o horizonte ao norte. Era uma verdadeira cidade de dez a quinze mil habitantes, com ruas bem traçadas e cubatas espaçosas e quase elegantes, mostrando aparência de prosperidade e abundância. O palácio do rei, cercado de altas paliçadas, e guardado por guerreiros negros armados de lanças, ocupava só por si uma quarta parte da superfície total da cidade.

Apenas Faramundo Barthés apareceu, logo todas as barreiras se abaixaram diante dele. Foi imediatamente conduzido, com Cipriano, através de uma série de vastos pátios, até à sala de cerimónias, onde estava o invencível conquistador no meio de numerosa companhia, não faltando oficiais nem guardas.

Tonaia teria uns quarenta anos. Era alto e robusto. Trazia na cabeça uma espécie de diadema feito de dentes de javali, e o resto do vestuário consistia em uma túnica encarnada sem mangas e num avental da mesma cor, ricamente bordado com contaria de vidro. Nos braços e nas pernas trazia numerosos braceletes de cobre. A sua fisionomia era inteligente e fina, mas velhaca e dura.

Recebeu com toda a cordialidade Faramundo Barthés, a quem não tinha visto havia dias, e, por deferência, a Cipriano, o amigo do seu fiel aliado.

— Amigos dos nossos amigos, nossos amigos são — disse ele como diria qualquer honrado burguês.

E, apenas soube que o seu novo hóspede estava doente, mandou logo dar-lhe um dos melhores quartos do palácio e servir-lhe excelente ceia.

Por opinião de Faramundo Barthés não se tratou logo do caso de Matakit, que ficou reservado para outro dia.

Efectivamente, na manhã seguinte Cipriano estava completamente restabelecido e capaz de tornar a aparecer diante do rei.

Reuniu-se portanto toda a corte na sala grande do palácio. Tonaia com os dois hóspedes estava no meio do círculo. Faramundo Barthés entrou logo no assunto, servindo-se da língua do país, que ele falava sofrivelmente.

— Os meus basutos trouxeram-te há pouco um rapaz cafre que tinham aprisionado — disse ele ao rei. — Ora acontece que esse rapaz é criado do meu companheiro, o grande sábio Cipriano Méré, que vem pedir à tua generosidade que lho restitua. E portanto eu, amigo dele e teu, atrevo-me a apoiar o seu justo requerimento.

Logo às primeiras palavras Tonaia julgou conveniente assumir uma fisionomia diplomática.

— Seja bem-vindo o grande sábio branco! — respondeu ele. — Mas o que é que ele oferece em resgate do prisioneiro?

— Uma excelente espingarda, dez vezes dez cartuchos e um saquinho de contas — respondeu em seguida Faramundo Barthés.

Ouviu-se um murmúrio de aprovação na assembleia, altamente impressionada pelo esplendor da oferta. Só Tonaia, sempre diplomata, fingiu não ficar deslumbrado.

— Tonaia é um grande príncipe — retorquiu ele, erguendo-se do real escabelo — , e os deuses protegem-no! Haverá um mês enviaram-lhe Faramundo Barthés com valentes guerreiros e espingardas para o ajudar a vencer os seus inimigos! Se Faramundo Barthés assim o deseja, o servo será entregue são e salvo ao seu amo!

— E onde está ele actualmente? — perguntou o caçador.

— Na gruta sagrada, onde é guardado de noite e dia — informou Tonaia, com aquela ênfase própria de um dos mais poderosos soberanos da Cafraria.

Faramundo Barthés apressou-se a resumir estas respostas a Cipriano, e pediu ao rei o favor de ir com o seu companheiro buscar o preso à gruta mencionada.

A estas palavras ouviu-se um murmúrio desaprovador em toda a assembleia. A pretensão destes europeus parecia exorbitante. Nunca, por pretexto algum, fora um estrangeiro qualquer admitido nessa misteriosa gruta. Havia uma tradição respeitada que declarava que, no dia em que os brancos fossem conhecedores do segredo dela, se desfaria em pó o império de Tonaia.

Mas o rei não gostava que a sua corte se metesse a julgar de antemão qualquer das suas decisões. De modo que, por um capricho de tiranete, aquele murmúrio levou-o a conceder o que provavelmente teria recusado se não fosse aquela explosão de sentimento geral.

— Tonaia fez troca de sangue com o seu aliado Faramundo Barthés — respondeu ele com tom de voz peremptório — e nada tem que lhe esconder! Tu e o teu amigo sabeis guardar um juramento?

Faramundo Barthés fez um gesto afirmativo.

— Pois então — continuou o rei negro — jurem que não porão a mão em coisa alguma que virem na gruta! Jurem que, depois de saírem de lá, se comportarão sempre como se nunca tivessem tido conhecimento da existência dela. Jurem que nunca procurarão voltar lá novamente, e que nem mesmo tentarão reconhecer a entrada da gruta! Finalmente, jurem que nunca dirão a pessoa alguma o que virem!

Faramundo Barthés e Cipriano, com as mãos estendidas, repetiram palavra por palavra a fórmula do juramento que lhes era imposto.

Em seguida, Tonaia deu algumas ordens em voz baixa. Toda a corte se levantou e os guerreiros formaram-se em duas fileiras. Alguns servos trouxeram peças de fazendas finas, que serviram para vendar os olhos dos dois estrangeiros; depois o próprio rei se colocou entre eles no fundo de um grande palanquim de palha, levado aos ombros de algumas dúzias de cafres, e o cortejo pôs-se em marcha.

A jornada foi bastante longa — duas horas de caminho pelo menos. Pela natureza dos abalos, que o palanquim experimentava, Faramundo Barthés e Cipriano julgaram perceber bem depressa que iam sendo transportados por uma região montanhosa.

Depois um ar muito fresco e o eco sonoro dos passos da escolta, repercutido por paredes muito juntas uma da outra, indicaram que se tinha penetrado num subterrâneo. Finalmente, os dois começaram a sentir o cheiro resinoso, e compreenderam que se haviam acendido archotes para alumiar o cortejo.

Durou a marcha ainda um quarto de hora; em seguida foi o palanquim arriado ao chão. Tonaia fez sair os seus hóspedes e ordenou que lhes tirassem as vendas.

Faramundo Barthés e Cipriano, desorientados pelo deslumbramento que se sente quando se volta subitamente à luz, julgaram-se ao princípio vítimas de uma como que alucinação extática, por tal forma era esplêndido e inesperado o extraordinário espectáculo que se lhes oferecia aos olhos surpresos.

Achavam-se no centro de uma imensa gruta, cujo solo era coberto por areia finíssima semeada de palhetas de ouro. A abóbada, tão alta como a de uma catedral gótica, perdia-se em profundidades insondáveis. As paredes daquela substrução natural estavam atapetadas de estalactites, de riqueza e variedade de tons nunca vistos, que dos reflexos projectados pelos archotes recebiam fogos do arco-íris, misturados com fulgores de brasas ardentes e irradiações de auroras boreais. Essas inumeráveis cristalizações eram caracterizadas por cores fulgurantíssimas, por formas extravagantes e pelas mais imprevistas disposições dos seus planos. Não eram, como na maior parte das grutas, simples composições de quartzo pendente, reproduzidas com monótona uniformidade. Aqui a natureza, dando livre curso à sua fantasia, parecia ter-se comprazido em esgotar todas as combinações das cores e dos efeitos de luz, a que tão maravilhosamente se presta a vitrificação das suas riquezas minerais.

Rochedos de ametista, paredes de sardónica, montões de rubis, coruchéus de esmeraldas, colunatas de safiras, atirando-se para os ares como florestas de pinheiros, icebergues de águas-marinhas, lustres de turquesas, espelhos de opalas, afloramentos de gipso cor-de-rosa e de lápis-lazúli com veios de ouro — tudo quanto o reino cristalino pode oferecer de mais precioso, raro, límpido e deslumbrante, tudo isso tinha servido de material para aquela surpreendente arquitectura. Ainda mais: todas as formas, mesmo as do reino vegetal, pareciam ter sido tributadas por aquele trabalho fora de toda a concepção humana. Havia ali tapetes de musgos minerais, tão aveludados como a mais fina relva, arborizações cristalinas carregadas de flores e de frutos de pedraria, que faziam por vezes lembrar aqueles jardins de fadas reproduzidos com tanta singeleza pelos desenhos a cores dos Japoneses. Mais longe um tanque artificial, formado por um diamante de vinte metros de comprido, encaixado na areia, parecia um teatro pronto para os folguedos dos patinadores. Palácios aéreos de calcedónia, quiosques e torrinhas de berilo e de topázio, iam-se amontoando de andar em andar até um ponto em que os olhos, fatigados com tantos esplendores, se recusavam a segui-los mais. Finalmente, a decomposição dos raios luminosos através daqueles milhares de prismas, os fogos das centelhas que rebentavam de todos os lados e caíam em chuva fulgurante, constituíam a mais admirável sinfonia de luz e de cor com que jamais foi deslumbrada a vista humana.

Cipriano Méré já não duvidava agora. Achava-se transportado a um desses reservatórios misteriosos, cuja existência tanto tempo suspeitara, e no fundo dos quais a natureza avara pôde entesourar e cristalizar em monte essas gemas preciosas que, nos jazigos mais favorecidos, ela apenas cede ao homem em bocados isolados e fragmentados. Houve um instante em que teve a tentação de duvidar da realidade do que tinha diante dos olhos; mas bastou-lhe, ao passar junto de um enorme banco de cristal, esfregá-lo com a pedra do anel que trazia no dedo para verificar que esse cristal resistia a ser riscado.

Não havia pois a menor dúvida: eram com certeza diamantes, rubis, safiras, o que essa imensa cripta encerrava, e em massas tão prodigiosas que o seu valor, fazendo a conta pelo preço que os homens dão a estas substâncias minerais, devia escapar a todo e qualquer cálculo.

Só os números astronómicos poderiam servir para dar uma apreciação, aliás difícil de fazer, desses valores. Efectivamente, estavam ali enterrados debaixo do chão, ignorados e improdutivos, triliões e quatriliões de milhões!

Conhecia Tonaia a importância da prodigiosa riqueza que tinha assim à sua disposição? É pouco provável, porque o próprio Faramundo Barthés, pouco sabedor destes assuntos, também não parecia suspeitar um só instante que aqueles maravilhosos cristais fossem pedras finas. Provavelmente o rei preto julgava-se apenas senhor e guarda de uma gruta particularmente curiosa, cujo segredo lhe não era permitido transmitir em virtude de um oráculo ou de outra qualquer superstição tradicional.

Cipriano julgou ver esta opinião confirmada ao observar daí a pouco grande número de ossos humanos, amontoados de vez em quando em certos recantos da caverna. Serviria ela de lugar de sepultura para a tribo, ou então — hipótese mais horrível e contudo verosímil — teria ela servido, ou serviria ainda, para celebrar alguns horríveis mistérios nos quais se derramasse sangue humano, talvez com intuitos de canibalismo?

Faramundo Barthés inclinava-se para esta última opinião, e comunicou-a em voz baixa ao seu amigo, acrescentando:

— Mas Tonaia afirmou-me que desde a sua subida ao trono nunca mais houve tais cerimónias! Confesso, contudo, que a vista destas ossadas humanas abala muito a minha confiança!

E apontou para um grande montão delas, que parecia feito havia pouco, e nas quais se viam vestígios evidentes de terem estado a cozer ao lume.

Esta impressão não tardou a ser completamente confirmada alguns instantes mais tarde.

O rei e os seus hóspedes acabavam de chegar ao fundo da gruta, e achavam-se defronte da abertura de um recanto, que podia comparar-se a uma dessas capelas laterais que se observam na parte inferior das naves das basílicas. Por detrás da grade de pau-ferro, que fechava esse recanto, estava um prisioneiro encerrado numa gaiola de madeira, que tinha apenas espaço suficiente para ele poder estar acocorado; era claro que a criatura estava ali destinada a ser engordada para algum festim próximo.

Era Matakit.

— O paizinho! O paizinho! — exclamou o desgraçado cafre apenas viu e reconheceu Cipriano. — Oh! Leve-me daqui! Solte-me! Antes quero voltar para a Gricualândia, ainda que lá me enforquem, do que ficar nesta gaiola de galinhas esperando o medonho suplício que o terrível Tonaia me prepara antes de me devorar!

O pobre diabo dizia isto com voz tão lastimosa que Cipriano sentiu-se muito comovido.

— Está bem, Matakit! — respondeu ele. — Posso obter a tua liberdade, mas não hás-de sair dessa gaiola sem que me restituas o diamante...

— O diamante, paizinho! — exclamou Matakit. — O diamante! Não o tenho! Nem o tive nunca! Juro-o! Juro-o!

E dizia isto com um tom de verdade tão natural que Cipriano ficou plenamente convencido de que não devia duvidar da probidade dele. Além disso, sabemos que sempre lhe custara muito a acreditar que Matakit fosse o autor de tal furto.

— Mas então — perguntou ele — se não foste tu que furtaste o diamante, porque é que fugiste?

— Porquê, paizinho? — respondeu Matakit. — Foi porque, quando se fez a prova da varinha aos meus camaradas, disseram que o ladrão não era outro senão eu, e que tinha andado com manha para afugentar as suspeitas! Ora na Gricualândia, quando se trata de um cafre, o senhor bem sabe que tão depressa ele é interrogado como condenado e enforcado! E então tomei-me de medo, e deitei a fugir pelo Transval fora, como se estivesse culpado!

— O que esse pobre diabo diz tem muitos visos de verdade — observou Faramundo Barthés.

— Eu por mim não tenho já dúvidas — declarou Cipriano — ; e parece-me que ele não fez mal em esquivar-se à acção da justiça na Gricualândia.

E depois disse a Matakit:

— Está bem; eu já não duvido de que estejas inocente do roubo de que foste acusado! Mas no Vandergaart-Kopje provavelmente não nos acreditam quando afirmamos a tua inocência! Queres então correr o risco de voltar para lá?

— Sim, quero! Arrisco tudo para não ficar aqui mais tempo! — exclamou Matakit, que parecia tomado de intenso terror.

— Vamos então tratar desse negócio — prometeu Cipriano. — Aí está o meu amigo Faramundo Barthés a ocupar-se dele.

Efectivamente, o caçador não perdia tempo, e estava já em conferência com Tonaia.

— Fala com franqueza! O que queres em troca do teu prisioneiro? — perguntou ele ao rei preto.

Este reflectiu um instante e acabou por dizer:

— Quero quatro espingardas, dez vezes dez cartuchos para cada uma, e quatro saquinhos de contas. Não é muito, pois não é verdade?

— É vinte vezes de mais, mas Faramundo Barthés é teu amigo, e fará tudo quanto puder para te ser agradável!

E depois de ter, a seu turno, reflectido um instante, continuou:

— Ouve, Tonaia. Terás as quatro espingardas, os quatrocentos cartuchos e os quatro saquinhos de contas. Mas em compensação hás-de fornecer-nos as juntas de bois necessárias para levar esta gente toda até ao Transval com os víveres precisos e uma escolta de honra.

— Está feito o negócio! — respondeu Tonaia com tom de completa satisfação.

E logo, inclinando-se sobre um dos ouvidos de Faramundo, acrescentou com voz confidencial:

— Os bois estão prontos! São os dessa gente, que os meus homens encontraram, quando se dirigiam para o curral, e que trouxeram ao meu kraal! Era presa legítima, não é verdade?

Soltaram então o prisioneiro. Cipriano, Faramundo Barthés e Matakit, depois de lançarem um último olhar aos esplendores da gruta, deixaram-se vendar com docilidade, e voltaram ao palácio de Tonaia, onde a conclusão do tratado foi celebrada com um grande festim.

Finalmente convencionou-se que Matakit não apareceria logo no Vandergaart-Kopje, mas que ficaria nos arredores, e só voltaria para o serviço do jovem engenheiro quando este tivesse a certeza de que não havia perigo. E esta precaução não foi inútil como veremos.

No dia seguinte, Faramundo Barthés, Cipriano, Li e Matakit voltavam para a Gricualândia, acompanhados de boa escolta. Mas agora já não havia ilusões possíveis! A Estrela do Sul estava irremediavelmente perdida, e Mister Watkins não poderia decerto mandá-la brilhar na Torre de Londres no meio das mais formosas jóias de Inglaterra!

 

         A VOLTA

Nunca John Watkins tinha andado de tão mau humor como depois da partida dos quatro pretendentes em perseguição de Matakit. Cada dia, cada semana que passava, pareciam dar-lhe um novo mau modo à proporção que diminuíam as probabilidades, que ele julgava ter, de tornar a alcançar o precioso diamante. E depois faltavam-lhe os seus habituais companheiros de mesa, James Hilton, Friedel, Aníbal Pantalaccí, o próprio Cipriano, que ele estava acostumado a ver com assiduidade em sua casa. Vingava-se na bilha do gin, e deve dizer-se que os suplementos alcoólicos, que ia metendo no estômago, não faziam de modo algum suavizar o seu génio!

Além disso, havia toda a razão na granja para estarem com cuidado pela sorte do pessoal da expedição. Efectivamente, Bardik, que fora capturado por uma guerrilha de cafres (como os seus companheiros tinham com razão suposto), conseguira escapar-se, passados poucos dias. Voltando à Gricualândia contara a Mister Watkins a morte de James Hilton e a de Friedel. Tudo isto era de mau agouro para os que restavam da expedição, Cipriano Méré, Aníbal Pantalacci e o china.

Por isso Alice andava muito triste. Já não cantava, e o piano permanecia constantemente calado.

Mal fazia caso dos avestruzes. Nem o próprio Dada a fazia sorrir com a sua voracidade, e podia engolir à vontade as coisas mais extraordinárias sem que alguém tentasse impedi-lo.

Miss Watkins tinha agora dois receios, que dia a dia iam aumentando na sua imaginação: o primeiro era que Cipriano nunca voltasse daquela expedição amaldiçoada; o segundo era que Aníbal Pantalacci, o mais aborrecido dos outros três pretendentes, viesse trazer a Estrela do Sul e reclamar o prémio da sua boa fortuna. A ideia de que podia ser condenada a casar com o napolitano, mau e velhaco, inspirava-lhe invencível repugnância, principalmente depois que tinha podido ver de perto e apreciar um homem verdadeiramente superior, como era Cipriano Méré. Pensava nisto de dia, com isto sonhava de noite; cobriam-se-lhe de palidez as faces tão frescas, e uma nuvem cada vez mais sombria lhe velava os grandes olhos azuis.

E já iam passados três meses desde que ela assim esperava no silêncio e na tristeza. Naquela noite estava ela sentada à luz do candeeiro, ao pé do pai, profundamente amodorrado junto da bilha de gin. Com a cabeça inclinada sobre um bordado, que tinha começado para substituir a música desprezada, Alice cismava tristemente.

Uma pancada discreta, dada na porta da sala, veio de repente interromper o seu longo cismar.

— Entre — disse ela, algum tanto surpreendida e perguntando a si mesma quem seria que vinha àquela hora.

— Sou só eu, Miss Watkins! — respondeu uma voz que a fez estremecer, a voz de Cipriano.

E era, com efeito, ele que voltava, pálido, magro, queimado do sol, com a barba muito comprida como dantes não usava, com o fato gasto pelas longas marchas, mas sempre alegre, sempre lhano, com a boca e os olhos risonhos.

Alice levantara-se, fazendo um gesto de espanto e de alegria.

Com uma das mãos procurava conter as palpitações apressadas do coração; depois estendeu a outra ao jovem engenheiro, que a apertava nas suas, quando mister watkins, saindo da modorra em que estava, abriu os olhos e perguntou o que havia de novo.

O rendeiro levou dois ou três minutos a perceber a situação. Mas, apenas lhe apareceu um clarão de inteligência, escapou-lhe este grito do coração:

— E o diamante?

O diamante, ai! O diamante não voltava!

Cipriano contou então rapidamente as diversas peripécias da expedição. Narrou a morte de Friedel, a de Aníbal Pantalacci e a de James Hilton, a perseguição de Matakit e o cativeiro dele por Tonaia — não falando, porém, no seu regresso à Gricualândia — e fez saber os motivos da certeza, que ele trazia, da plena inocência do moço cafre. Não se esqueceu de prestar homenagem à dedicação de Bardik e de Li, à amizade de Faramundo Barthés, de recordar tudo quanto devia ao valente caçador e como é que, graças a ele, tinha podido regressar com os dois criados de uma viagem tão mortífera para os seus outros companheiros. Comovido com a narrativa daqueles trágicos acontecimentos, lançou voluntariamente um véu sobre os erros e pensamentos criminosos dos seus rivais, não querendo ver neles senão as vítimas de uma empresa tentada em comum. De tudo o que tinha acontecido apenas reservou o segredo, que havia jurado guardar, isto é, a existência da gruta maravilhosa e das suas riquezas minerais, em comparação das quais todos os diamantes da Gricualândia eram seixos sem valor.

— Tonaia — disse ele ao acabar — cumpriu pontualmente tudo aquilo a que se tinha comprometido. Dois dias depois da minha chegada à sua capital estava tudo pronto para o nosso regresso, as provisões de boca, as juntas de bois e a escolta. Sob o comando do próprio rei, vieram perto de trezentos pretos, carregados de farinhas e carnes fumadas, acompanhar-nos até ao acampamento, onde tínhamos abandonado o carrão cobrindo-o com silvas e mato; achámo-lo em bom estado. Despedimo-nos então do nosso hospedeiro, depois de lhe termos dado cinco espingardas, em vez de quatro com que ele contava — o que o torna o potentado mais temível de toda a região compreendida entre o curso do Limpopo e do Zambeze!

— E a sua viagem de regresso a partir do acampamento? — perguntou Miss Watkins.

— A nossa viagem de regresso foi vagarosa, apesar de fácil e sem acidentes — respondeu Cipriano. — A escolta só nos deixou na fronteira do Transval, onde Faramundo Barthés e os seus basutos se despediram também de nós para se dirigirem a Durban. Finalmente, ao cabo de quarenta dias de viagem através do Veld, aqui estamos, tão adiantados como no dia da partida!

— Mas, em suma, porque foi que o Matakit fugiu daquela maneira? — perguntou Mister Watkins, que tinha ouvido esta narrativa com vivo interesse, sem contudo manifestar exagerada comoção a respeito dos três homens que não mais voltariam.

— Matakit fugia porque tinha a doença do medo! — respondeu o jovem engenheiro.

— Então não há justiça na Gricualândia? — retorquiu o fazendeiro, encolhendo os ombros.

— Ora! A justiça de cá é muitas vezes sumária, Sr. Watkins, e na verdade não serei eu que censure o pobre diabo, acusado falsamente, por ter querido subtrair-se à primeira comoção causada pelo inexplicável desaparecimento do diamante!

— Nem eu! — ajuntou Alice.

— Em todo o caso, repito, o rapaz não cometeu culpa, e espero que o deixarão de ora avante sossegado!

— Sim! — exclamou John Watkins, sem parecer muito convencido da força daquela afirmação. — Mas não lhe parece que esse espertalhão fingiu medo para se pôr fora do alcance dos agentes da Polícia?

— Não! Está inocente! A convicção, que tenho a este respeito, é absoluta, e parece-me bem que a comprei bastante cara! — disse Cipriano um pouco secamente.

— Ora! O senhor pode ficar com a sua opinião, que eu cá fico com a minha! — exclamou John Watkins.

Alice viu que aquela discussão ameaçava degenerar em disputa, e apressou-se a fazer uma divagação, dizendo:

— A propósito, Sr. Cipriano Méré, sabe que, enquanto esteve ausente, o seu claim se tornou excelente e que o seu sócio Tomás Steel está em caminho de vir a ser um dos mais ricos entre os mais ricos mineiros do Kopje?

— Palavra que não sabia! — -respondeu Cipriano com franqueza. — A minha primeira visita foi para si, Miss Watkins, e por isso ainda nada sei do que se passou durante a minha ausência.

— Querem ver que nem sequer jantou? — exclamou Alice, com o instinto de boa dona de casa que era.

— Confesso que não! — declarou Cipriano, corando, apesar de na realidade não haver motivo para tal.

— Oh! Mas o Sr. Méré não se há-de ir embora assim sem comer! Ainda convalescente... e ao cabo de tão penosa viagem! Olhe que são onze horas da noite!

E, sem dar ouvidos aos protestos dele, foi à despensa, e voltou com uma bandeja coberta por alva toalha, e em que vinham alguns pratos com carnes frias e uma excelente torta de pêssegos feita pelas suas próprias mãos.

Imediatamente foi posta uma toalha diante de Cipriano, que estava todo confuso. E como este parecia hesitar em meter a faca num soberbo biltong, espécie de conserva de avestruz, Miss Watkins olhou para ele e disse-lhe com o seu suavíssimo sorriso:

— Será preciso que eu trinche?

Daí a nada o fazendeiro, sentindo nascer-lhe o apetite com aquele aparato gastronómico, pediu também um prato e um pedaço de biltong. Alice não o fez esperar, e unicamente para fazer companhia àqueles senhores, como ela dizia, pôs-se a trincar amêndoas.

Aquela ceia improvisada foi deliciosa. Nunca o jovem engenheiro tinha sentido tão magnífico apetite. Por três vezes se serviu da torta de pêssegos, bebeu dois copos de vinho de Constança, e coroou aquelas façanhas consentindo em provar do gin de Mister Watkins — -o qual, por seu lado, não tardou em tornar a adormecer completa-mente.

— E que tem feito há três meses? — perguntou Cipriano a Alice. — Receio bem que esquecesse toda a sua química.

— Não, senhor; está enganado! — respondeu-lhe Alice com um arzinho de censura. — Pelo contrário, tenho-a estudado muito, e até tomei a liberdade de ir fazer algumas experiências no seu laboratório. Oh! Esteja descansado que não quebrei coisa alguma, e tornei a pôr tudo no seu lugar! Decididamente, gosto muito da química, e com franqueza não compreendo como é que o senhor pôde renunciar a uma ciência tão bela para se fazer mineiro e andar em viajatas pelo Veld.

A Miss Watkins é cruel. Bem deve saber porque é que eu renunciei à química!

— Não sei nada — respondeu Alice, corando — e parece-me que é muito mal feito! Se estivesse no seu lugar, tentava outra vez fazer diamantes! É muito mais elegante do que ir procurá-los debaixo do chão!

— -Então é uma ordem que me dá? — inquiriu Cipriano, com a voz um pouco trémula.

— Oh! não! — volveu Miss Watkins, sorrindo. — Quando muito, um pedido. Ah! Sr. Méré — disse ela como que para corrigir o ar leviano das suas palavras — , se soubesse quanto sofri por me lembrar que o senhor andava exposto a todas essas fadigas e perigos por que acaba de passar! Não sabia por miúdos o que lhe acontecia, mas parece-me que adivinhava o conjunto. Um homem como o senhor, dizia eu comigo, tão ilustrado, tão bem preparado para levar a cabo excelentes trabalhos e fazer grandes descobertas, deveria porventura estar exposto a morrer miseravelmente no meio do deserto, da mordedura de uma serpente ou das unhadas de um tigre, sem proveito algum para a ciência e para a humanidade? Foi um crime tê-lo deixado partir! E como eu tinha razão! Porque, afinal, não está o senhor aqui de volta quase que por milagre? E se não fosse o seu amigo Faramundo Barthés, que o céu abençoe...

Não concluiu, mas duas grandes lágrimas, que lhe bailaram nos olhos, completaram o seu pensamento. Também Cipriano estava profundamente comovido.

— Essas duas lágrimas são para mim mais preciosas que todos os diamantes do mundo; e por elas esqueceria outras fadigas ainda maiores! — disse ele simplesmente.

Houve um momento de silêncio, que a donzela, com o seu bom senso costumado, quebrou, voltando a falar das suas experiências de química.

Já passava de meia-noite quando Cipriano se decidiu a voltar para casa, onde o esperava um maço de cartas de França, postas com todo o cuidado por Miss Watkins sobre a sua mesa de trabalho.

Aquelas cartas, como acontece depois de uma longa ausência, mal se atrevia a abri-las. Se elas lhe fossem dar a notícia de alguma desgraça! O pai, a mãe, a sua irmãzinha Joana! Tantas coisas podiam ter acontecido naqueles três meses!

O jovem engenheiro, depois de verificar por uma rápida leitura que aquelas cartas só lhe faziam saber motivos de satisfação e de alegria, deu um profundo suspiro de alívio. Todos os seus tinham saúde. Do Ministério mandavam-lhe os mais animadores elogios a respeito da sua bela teoria das formações adamantinas. Podia demorar-se mais um semestre na Gricualândia, se assim o julgasse útil para a ciência. Tudo corria portanto bem, e Cipriano adormeceu naquela noite com o coração tão leve como há muito o não sentia.

Passou a manhã do dia seguinte a visitar os seus amigos, especialmente Tomás Steel, que efectivamente tinha feito excelentes achados no claim que pertencia aos dois em comum. O bom do Lancashireman nem por isso deixou de receber o seu sócio com a maior cordialidade. Cipriano combinou com ele que Bardik e Li voltassem para o trabalho como dantes. Se fossem felizes na exploração, reservava-se ele o conceder-lhes uma parte de modo a arranjarem bem depressa um pequeno capital.

Quanto a si estava bem resolvido a não tentar outra vez a fortuna da mina, que sempre lhe fora tão desfavorável, e, seguindo o desejo de Alice, decidiu tornar a tentar mais uma vez as suas indagações químicas.

A conversa que tinha tido com a donzela não fizera mais do que confirmar as suas próprias reflexões. Havia muito que ele pensava que o verdadeiro caminho para ele não era nem o trabalho do operário nem as expedições aventurosas. Muito leal e muito fiel à sua palavra para pensar um instante sequer em abusar da confiança de Tonaia, e aproveitar-se do conhecimento que agora tinha de uma imensa caverna cheia de formações cristalinas, achou naquela certeza experimental uma preciosíssima confirmação da sua teoria sobre as gemas, a qual lhe dava novo ardor para as suas investigações.

Naturalmente, Cipriano voltou à sua antiga vida de laboratório, mas não quis abandonar o caminho que já lhe havia dado bons resultados, e por isso decidiu-se a começar de novo as suas primeiras investigações. E para isso tinha ele um motivo e dos mais sérios, como se pode avaliar.

Efectivamente, desde que o diamante artificial fora julgado irremediavelmente perdido, Mister Watkins, que tinha tido a ideia de consentir no casamento de Cipriano com Alice, já não falava em semelhante coisa. Ora se o jovem engenheiro conseguisse fazer uma outra gema de valor extraordinário, que se contasse por muitos milhões, era provável que o fazendeiro voltasse às suas ideias anteriores.

Daí a resolução de pôr mãos à obra sem demora, e Cipriano não a escondeu dos mineiros do Vandergaart-Kopje, ou pelo menos não a escondeu quanto devia.

Depois de ter arranjado um novo tubo de grande resistência, continuou portanto os trabalhos nas mesmas condições em que os tinha iniciado.

— E contudo — dizia ele a Alice — o que me falta para obter o carbono cristalizado, isto é, o diamante, é apenas um dissolvente próprio, que, pela evaporação ou pelo arrefecimento, deixe cristalizar o carbono. Para a alumina achou-se esse dissolvente no sulfureto de carbono. Trata-se, portanto, de achar, por analogia, um que sirva para o carbono, ou mesmo para os corpos similares, como o boro e a sílica.

Entretanto, e apesar de não possuir ainda esse dissolvente, Cipriano activava muito o trabalho.

Na falta de Matakit, que por prudência ainda se não tinha mostrado no acampamento, era Bardik o encarregado de sustentar o fogo de dia e de noite, tarefa que ele desempenhava com tanto zelo como o seu predecessor.

Nesse meio tempo, e prevendo que, depois daquele prolongamento da sua demora na Gricualândia, seria talvez obrigado a regressar à Europa, Cipriano quis realizar um trabalho mencionado no seu programa e que ainda não tinha podido fazer: era determinar a orientação exacta de uma certa depressão de terreno, situada a nordeste da península — depressão que ele suspeitava ter servido de garganta de escoante das águas, na época longínqua em que se tinham elaborado as formações adamantinas do distrito.

Cinco ou seis dias, portanto, depois da sua volta ao Transval ocupava-se ele daquela determinação com a precisão que costumava aplicar a todas as coisas. Ora havia já uma hora que ele punha estacas e determinava direcções por meio dos pontos marcados numa planta muito minuciosa que tinha alcançado em Kimberley, e, coisa singular, achava sempre nos cálculos uma grande causa de erro ou, pelo menos, de desacordo com aquela planta. Por fim não lhe foi possível recusar-se por mais tempo à evidência: a planta estava mal orientada; as suas longitudes e latitudes estavam erradas.

Cipriano acabava de servir-se, ao meio-dia exacto, de um excelente cronómetro, regulado pelo Observatório de Paris, para determinar a longitude do lugar. Ora, tendo toda a certeza da infalibilidade da bússola e da agulha de declinação, de que usava, não podia hesitar em reconhecer que a carta, com a qual ele comparava as suas marcações, estava completamente errada por causa de um importante engano na orientação.

Efectivamente, o norte dessa carta, indicado, segundo o uso britânico, por uma flecha em aspa, achava-se ao nor-noroeste verdadeiro ou próximo dele. Por conseguinte, todas as indicações da carta estavam necessariamente eivadas de um erro proporcional.

— Já vejo o que foi! — exclamou de repente o jovem engenheiro. — Os asnos chapados, que fizeram esta obra-prima, deixaram nem mais nem menos de meter em linha de conta a variação da agulha magnética *1, a qual é aqui de nada menos de vinte e nove graus oeste!

 

*1. Histórico. (N. do A.)

 

Segue-se que todas as suas indicações de latitudes e longitudes deviam, para ser exactas, descrever um arco de vinte e nove graus, na direcção de oeste para leste, em torno do centro da carta. Devemos acreditar que a Inglaterra não mandou levantar esta planta pelos seus geómetras mais espertos!

E ria-se sozinho daquele engano.

— Ora! Errare humanum est! Atire a primeira pedra a esses pobres agrimensores aquele que nunca se enganou pelo menos uma vez na vida.

Entretanto, Cipriano não tinha motivo algum para conservar secreta aquela rectificação que havia a fazer para a orientação dos terrenos diamantíferos do distrito. De modo que naquele mesmo dia, encontrando Jacobus Vandergaart ao voltar para a granja, falou-lhe no caso.

— É muito curioso — disse ele por fim — que ainda não fosse descoberto um engano geodésico tão palpável, e que torna erradas todas as plantas do distrito! Esse engano implica uma correcção importantíssima a operar em todas as cartas do país.

O velho lapidário olhava para Cipriano com uma cara singular.

— Isso que o senhor está a dizer é verdade?

— Certamente!

— E o senhor está pronto a atestar esse facto diante de um tribunal?

— Diante de dez tribunais, se preciso for.

— E não será possível contestar a sua afirmativa?

— Decerto que não, pois que bastará enunciar a causa do erro! Com a breca, é coisa que se vê bem! Omitir a declinação magnética nos cálculos dos azimutes!

Jacobus Vandergaart retirou-se sem dizer palavra, e não tardou que Cipriano esquecesse a singular atenção que ele tinha dado a este facto de que havia um erro geodésico em todas as plantas do distrito.

Mas dois ou três dias mais tarde Cipriano, vindo fazer uma visita ao velho lapidário, achou a porta fechada.

Na lousa, suspensa ao fecho, liam-se estas palavras, que se via terem sido escritas havia pouco tempo a giz:

Ausente por negócios

 

         JUSTIÇA VENEZIANA

Nos dias que se seguiram Cipriano ocupou-se activamente em seguir as diversas fases da sua nova experiência. Em consequência de algumas modificações introduzidas na construção do forno de revérbero, e por meio de uma tiragem mais bem regulada, esperava ele que a fabricação do diamante se realizasse num tempo muito mais curto do que da primeira vez.

Escusado é dizer que Miss Watkins se interessava vivamente por esta segunda tentativa, da qual devemos concordar que era um tanto inspiradora. De modo que muitas vezes acompanhava o jovem engenheiro nas suas amiudadas visitas de cada dia ao forno, onde, pelas aberturas que havia nas paredes de tijolo, gostava de observar a intensidade do fogo que surgia no interior.

John Watkins não se interessava menos do que a filha naquela obra, mas por motivos diferentes. Tinha pressa em possuir de novo um diamante cujo preço fosse de milhões. Todo o seu receio agora era que esta segunda experiência não desse bom resultado, que a primeira não tivesse sido na máxima parte filha do acaso.

Mas, se o fazendeiro e Miss Watkins animavam o engenheiro na continuação das suas experiências, no aperfeiçoamento da fabricação do diamante, não se dava o mesmo com os mineiros da Gricualândia. Aníbal Panta-lacci, James Hilton e Herr Friedel já não estavam no acampamento, mas tinham deixado companheiros que sobre aquele assunto pensavam exactamente como eles. Assim, o judeu Nathan não deixava de continuar com surdas intrigas a excitar os proprietários dos claims contra o jovem engenheiro. Se aquela fabricação artificial dos diamantes entrasse definitivamente no domínio da prática, lá se ia o comércio dos diamantes naturais e das outras pedras preciosas. Já se tinha conseguido fabricar safiras brancas ou corindos, ametistas, topázios e até esmeraldas, não sendo todas estas gemas outra coisa mais do que cristais de alumina com diversas cores dadas pelos ácidos metálicos. Já isso punha muito em risco o valor venal dessas pedras que tendia a diminuir. Ora se o diamante viesse a tornar-se de fácil fabricação, era a ruína certa dos exploradores diamantíferos do Cabo e dos outros lugares de produção.

Todas estas considerações tinham sido feitas quando foi da primeira experiência do jovem engenheiro; repetiam-se agora com mais acrimónia, maior violência ainda. Os mineiros faziam conciliábulos, que causavam receios de alguma coisa séria contra os trabalhos de Cipriano. Mas ele nada se importava com isso, pois que estava resolvido a levar a experiência ao fim, dissessem ou fizessem fosse o que fosse. Não! Não recuaria diante da opinião pública, e da sua descoberta nada conservaria secreto, pois que ela havia de aproveitar a todos.

Mas, se o engenheiro prosseguia no seu trabalho, sem a menor hesitação ou receio, Miss Watkins, que estava ao facto de tudo quanto se passava, começou a tremer por ele. Repreendia-se por ter induzido Cipriano a continuar naquele caminho. Contar com a Polícia da Gricualândia para o proteger era contar com uma protecção pouco eficaz. Depressa se faz uma partida grossa, e, antes que alguém interviesse, podia Cipriano pagar com a vida o prejuízo que os seus trabalhos ameaçavam fazer aos mineiros da África Austral.

Alice andava portanto muito desassossegada, e não pôde deixar de manifestar a sua inquietação ao jovem engenheiro. Este tranquilizava-a como podia, agradecendo-lhe sempre as suas intenções. Naquele interesse da donzela via ele a prova de um sentimento mais terno, que demais já não era entre eles um segredo.

Ainda que não fosse senão por este motivo, Cipriano aplaudia-se de que a sua tentativa provocasse da parte de Miss Watkins uma expansão mais íntima... e continuava com energia no seu trabalho.

— O que faço, menina Alice, é para nós ambos! — dizia-lhe ele muitas vezes.

Mas Miss Watkins, observando o que se dizia nos claims, vivia em sustos continuados.

E não era sem razão. Elevava-se contra Cipriano um tolle, que não havia de limitar-se às recriminações nem às ameaças, mas devia chegar até um começo de execução.

Efectivamente, Cipriano, ao ir uma noite visitar o forno, achou o sítio dele saqueado. Durante uma ausência de Bardik, tinham alguns homens, aproveitando-se da escuridão, destruído em poucos minutos a obra de muitos dias. Havia sido demolida a edificação de tijolo, quebradas as fornalhas, apagados os fogos, partidos e dispersos os utensílios. Nada restava do material que tantos cuidados e trabalhos tinham custado ao jovem engenheiro. Era preciso começar tudo de novo — se ele não era homem que cedesse diante da força — ou aliás, de abandonar a partida.

“Não! — -exclamou ele. — Não! Não hei-de ceder, e amanhã vou queixar-me dos miseráveis que destruíram o que era meu! Veremos se há justiça na Gricualândia!”

Havia justiça, sim — mas não aquela com que o jovem engenheiro contava.

Sem dizer nada a pessoa alguma, sem mesmo contar a Miss Watkins o que se tinha passado, com receio de lhe causar um novo terror, Cipriano voltou para a sua cabana, e deitou-se, muito resolvido a queixar-se no dia seguinte, ainda que tivesse de ir ao governador do Cabo.

Teriam passado duas ou três horas que havia adormecido quando acordou sobressaltado ao ruído da porta que se abria.

Cinco homens com máscaras pretas, armados de revólveres e espingardas, penetravam no seu quarto. Traziam aquela espécie de lanternas, que em terras inglesas se chamam bull's eyes — olhos de boi — e vieram colocar-se em silêncio à roda do leito.

Cipriano nem sequer por um instante teve a ideia de tomar a sério aquela manifestação mais ou menos trágica. Imaginou que fosse alguma brincadeira, e pôs-se ao princípio a rir, apesar de que, para falar verdade, não tivesse grande vontade de o fazer, e achasse a partida de detestável gosto.

Mas pousou-lhe no ombro mão brutal, e um dos homens mascarados, desdobrando um papel que trazia, começou com voz nada divertida a ler o seguinte:

“Cipriano Méré:

Serve este para o avisar de que o tribunal secreto do acampamento de Vandergaart, reunido em número de vinte e seis membros, e deliberando em nome da salvação comum, hoje, à hora da meia-noite e vinte e cinco minutos, o condenou por unanimidade à pena de morte.

É acusado e convicto de ter, por meio de uma descoberta intempestiva e desleal, ameaçado os interesses e as vidas tanto próprias como das famílias de todos os homens que, ou na Gricualândia ou noutras partes, exercem a indústria de pesquisa, corte e venda dos diamantes.

O tribunal, na sua sabedoria, deliberou que uma tal descoberta devia ser aniquilada, e que a morte de um só era preferível à de muitos milhares de criaturas humanas.

Decretou, pois, que se lhe dêem dez minutos para se preparar a morrer, que se lhe deixe a escolha do género de morte, que se queimem todos os seus papéis, à excepção de qualquer comunicação aberta que queira deixar com destino aos parentes, e que a sua habitação seja arrasada até ao chão.

Assim se faça a todos os traidores!”

Cipriano, ouvindo a sua condenação por aquela forma, começou a sentir-se muito abalado na primeira convicção, e perguntou a si mesmo se, conhecidos os costumes selvagens da terra, não seria aquela comédia mais séria do que ele tinha julgado.

O homem, que o segurava pelo ombro, encarregou-se de dissipar as suas últimas dúvidas a este respeito.

— Levante-se imediatamente! — disse-lhe ele com grosseria. — Não temos tempo a perder.

— É um assassinato! — respondeu Cipriano, que saltou resolutamente abaixo da cama para vestir alguma roupa.

Sentia mais indignação do que terror, e concentrava todo o poder da sua cólera no que lhe acontecia com o sangue-frio que poderia empregar em estudar um problema de matemática. Quem eram aqueles homens? Não conseguiria adivinhá-lo, nem mesmo pelo metal de voz. Sem dúvida, se ali estavam alguns conhecidos dele, tinham a prudência de se conservar calados.

— Já escolheu o género de morte que prefere? — perguntou o mascarado.

— Não tenho escolha alguma a fazer; e apenas protesto contra o crime odioso com que se vão manchar! — declarou Cipriano com voz firme.

— Pois proteste, nem por isso deixará de ser enforcado! Tem alguma disposição a escrever?

— Coisa alguma que possa confiar a assassinos!

— Pois então vamos! — ordenou o chefe. Colocaram-se dois homens aos lados do jovem engenheiro, e formou-se o cortejo para se dirigir para a porta.

Mas naquele instante produziu-se um incidente inesperado. No meio daqueles justiceiros de Vandergaart-Kopje acabava de se precipitar de chofre um homem.

Era Matakit. O jovem cafre, que as mais das vezes vagueava durante a noite nos arredores do acampamento, tinha sido incitado por um pressentimento a seguir aqueles homens mascarados, no momento em que eles se dirigiam para a cabana do jovem engenheiro para lhe meter a porta dentro. Ali tinha ouvido tudo o que se havia dito e compreendera o perigo que ameaçava o seu patrão. Imediatamente, sem hesitar, e sem atender ao que lhe poderia acontecer, empurrou os mineiros e atirou-se aos pés de Cipriano.

— Paizinho, porque é que estes homens te querem matar? — exclamou ele, agarrando-se ao patrão, apesar dos esforços que os homens mascarados faziam para o afastar.

— Porque fiz um diamante artificial! — respondeu Cipriano, apertando comovido as mãos de Matakit, que não se queria separar dele.

— Oh, paizinho, como eu sou desgraçado e estou envergonhado pelo que fiz! — repetia o jovem cafre, chorando.

— Que queres tu dizer com isso? — exclamou Cipriano.

— Sim! Vou confessar tudo, visto que te querem matar! — respondeu Matakit. — Sim! A mim é que devem matar... porque fui eu que pus o diamante na fornalha!

— Enxotem esse falador.

— Já disse que fui eu que pus o diamante no aparelho! — insistia Matakit, barafustando. — Sim! Fui eu que enganei o paizinho! Fui eu que o quis persuadir de que a sua experiência tinha dado bom resultado!

E punha tão feroz energia nos seus protestos que todos se resolveram a dar-lhe atenção.

— Isso é verdade? — perguntou Cipriano, a um tempo surpreso e contrariado pelo que ouvia.

— É! É! Cem vezes verdade!

Já estava sentado no chão, e todos o escutavam, porque o que ele dizia ia mudar completamente o estado da questão.

— Naquele dia do grande desabamento — continuou o preto — , quando eu fiquei enterrado no entulho, tinha achado um grande diamante! Conservava-o na mão, e estava pensando no modo de o esconder, quando a parede caiu em cima de mim, como para me castigar pelo meu criminoso pensamento! Quando depois voltei à vida, encontrei aquela pedra na cama para onde o paizinho me tinha mandado levar! Quis dar-lha, mas tive vergonha de confessar que era um ladrão, e esperei uma ocasião favorável. Justamente algum tempo depois o paizinho quis tentar fazer um diamante e encarregou-me de activar o fogo! Mas de repente, no segundo dia, estando só eu no laboratório, rebenta o aparelho com um barulho espantoso e pouco faltou para que eu não fosse morto pelos estilhaços! Pensei então que o paizinho sofreria desgosto por ter falhado a experiência! Pus então na peça, que estava rachada, o grande diamante, bem envolvido num punhado de terra, e apressei-me a consertar tudo por cima da fornalha para que o paizinho não percebesse nada! Depois esperei sem dizer coisa alguma, e, quando o paizinho achou o diamante, estava bem contente!

Uma formidável gargalhada, que os cinco homens mascarados não puderam reprimir, ecoou ao terminar a narrativa de Matakit.

Cipriano, esse, não ria e mordia os lábios, despeita-díssimo.

Não era possível haver engano, pela maneira como o cafre falava! O que ele dizia era evidentemente verdade. Debalde Cipriano procurava nas suas recordações ou na imaginação motivos para pôr em dúvida ou contradizer mentalmente a afirmativa do cafre. Debalde pensava ele:

“Um diamante natural, exposto a uma temperatura como a da fornalha, ter-se-ia volatilizado!”

O simples bom senso respondia-lhe que a gema, protegida por um invólucro de argila, podia muito bem ter escapado à acção do calor ou sofrê-la apenas parcialmente. Talvez até fosse aquela torrefacção que lhe desse cor negra! Talvez ele se tivesse volatilizado e de novo cristalizado dentro do invólucro!

Todos estes pensamentos se acumulavam no cérebro do jovem engenheiro, associando-se uns aos outros com indizível rapidez.

Estava estupefacto!

— Recordo-me muito bem de ter visto o pedaço de barro na mão do cafre, quando foi o desabamento — observou então um dos homens quando a hilaridade se acalmou um pouco. — E até o apertava tanto entre os dedos crispados que se desistiu de lho tirar!

— Pois está claro! Não pode haver a menor dúvida! — apoiou outro. — É lá possível fazer diamantes! Na verdade fomos bem tolos em acreditar em semelhante asneira! Seria o mesmo que fazer uma estrela!

E puseram-se outra vez todos a rir.

Cipriano com certeza sofria mais com aquela alegria dos sujeitos do que tinha sofrido com a sua brutalidade.

Finalmente, aqueles homens fizeram um breve conselho em voz baixa, e um deles, tomando a palavra, disse:

— Somos de opinião de que se deve suspender a execução da sentença pronunciada contra si, Cipriano Méré! Vai ficar livre! Mas lembre-se de que a sentença permanece suspensa sobre a sua cabeça! Ao menor sinal, à mais pequena palavra para informar a Polícia, será ferido sem piedade! Para bom entendedor meia palavra basta!

Disse, e dirigiu-se para a porta, seguido pelos companheiros.

O quarto ficou mergulhado na escuridão. Cipriano poderia imaginar que tinha sido apenas vítima de um pesadelo. Mas os soluços de Matakit, que estava estirado no chão e chorava ruidosamente com a cabeça entre as mãos, não lhe deixaram pensar que não fosse realidade tudo quanto havia sucedido.

De modo que era verdade que acabava de escapar à morte, mas à custa da maior das humilhações! Ele, engenheiro de minas, ele, aluno da Escola Politécnica, químico distinto, geólogo já célebre, tinha-se deixado enganar pelo grosseiro ardil de um “miserável cafre! Ou, antes, era à sua própria vaidade, à sua ridícula presunção que ele devia aquele engano sem qualificação! Tinha levado a cegueira ao ponto de achar uma teoria para a sua formação cristalina!

Não se podia ser mais ridículo! Pois não pertence só à Natureza, ajudada pelo tempo, o levar a cabo tais obras? E, contudo, quem se não teria enganado com aquela aparência? Ele esperava o bom resultado, tinha tudo preparado para o alcançar, e devia logicamente supor que o havia obtido! Até as dimensões anormais do diamante contribuíam para sustentar aquela ilusão! O próprio Despretz a teria tido! Não estão a acontecer todos os dias equívocos destes? Não se vêem numismatas dos mais experientes aceitar como verdadeiras medalhas falsas?

Cipriano procurava animar-se com aqueles pensamentos. Mas de repente teve uma ideia que o gelou:

“E a minha memória para a Academia! Oxalá que aqueles tratantes lhe não tenham deitado a mão!”

Acendeu uma vela. Não; graças ao céu, a memória ainda ali estava! Ninguém a tinha visto! Só respirou descansado depois de a queimar.

Entretanto a aflição de Matakit era tão grande que foi preciso decidir-se a sossegá-lo. Não foi difícil. Às primeiras palavras do paizinho, o pobre rapaz pareceu voltar à vida. Mas Cipriano, afirmando-lhe que não lhe queria mal e lhe perdoava de bom grado, fê-lo contudo com a condição de que não tornaria a cair noutra.

Matakit assim o prometeu em nome do que havia de mais sagrado, e, tendo-se deitado o seu patrão, fez o mesmo.

E assim acabou aquela cena, que ameaçara terminar em tragédia!

Mas se tal foi o seu desenlace para o jovem engenheiro, não havia de ser igual para Matakit.

No dia seguinte, efectivamente, quando se soube que a Estrela do Sul era nem mais nem menos que um diamante natural, que esse diamante tinha sido achado pelo jovem cafre, que lhe conhecia perfeitamente o valor, todas as suspeitas contra ele renasceram ainda com mais força. John Watkins pôs-se a gritar que não podia deixar de ser Matakit o ladrão da inestimável pedra! Pois não tinha o cafre confessado que pensara em se apossar dela a primeira vez? Logo, era evidente que havia roubado na sala do festim.

Debalde Cipriano protestou, querendo tornar-se responsável pela propriedade do cafre; não lhe deram ouvidos, o que prova plenamente que Matakit, o qual jurava pela sua completa inocência, tinha andado mil vezes bem em fugir da Gricualândia, e mil vezes mal em voltar para lá.

Mas então o jovem engenheiro, que não queria desistir, apresentou um argumento que ninguém esperava, e que na sua ideia devia salvar Matakit.

— Acredito na inocência do cafre — disse ele a John Watkins — , e, demais, ainda que ele fosse culpado, ninguém tem nada que ver com isso senão eu! Quer fosse natural quer artificial, o diamante pertencia-me a mim, antes de eu o oferecer à menina Alice.

— Ah! Com que então o diamante pertencia-lhe? — disse Mister Watkins com um modo singularmente chocarreiro.

— Está claro — tornou Cipriano. — Pois não foi achado no meu clain por Matakit, que estava ao meu serviço?

— Isso é certo — respondeu o fazendeiro — e, por conseguinte, é meu, exactamente pelas condições do nosso contrato, pois que me devem ser entregues em plena propriedade os três primeiros diamantes que forem achados na sua concessão.

Cipriano ficou atordoado e nada achou que responder.

— É justa a minha reclamação? — perguntou Mister Watkins.

— Inteiramente! — admitiu Cipriano.

— Então ficava-lhe muito obrigado se quisesse reconhecer por escrito o meu direito, para o caso em que pudéssemos obrigar aquele tratante a restituir o diamante que tão atrevidamente roubou!

Cipriano pegou numa folha de papel em branco e escreveu:

- Declaro que o diamante achado no meu claim por um cafre ao meu serviço pertence, pelas condições do meu contrato de concessão, ao Sr. John Stapleton Watkins.

Cipriano Méré.”

Há-de confessar-se que esta circunstância fazia desvanecer todos os sonhos do jovem engenheiro. Efectivamente, o diamante, se algum dia viesse a aparecer, pertencia, não como presente, mas como legítima propriedade a John Watkins, e desta forma se abria entre Alice e Cipriano um novo abismo que devia ser cheio com tantos milhões.

E contudo, se a reclamação do fazendeiro prejudicava os interesses dos dois jovens, muito maior prejuízo causava a Matakit! Agora era a John Watkins que ele havia feito o mal! Era John Watkins o roubado! E John Watkins não era homem que abandonasse uma acção, pois que tinha a convicção de haver alcançado o gatuno.

De modo que o pobre diabo foi apanhado, levado para a prisão, e antes de se passarem dez horas havia sido julgado, e, apesar de tudo quanto Cipriano disse em seu favor, condenado a morrer na forca... se se não decidisse ou não conseguisse restituir a Estrela do Sul.

Ora, como na realidade ele a não podia restituir, porque nunca lhe tinha pegado, não podia haver a menor dúvida no caso, e Cipriano já não sabia o que devia fazer para salvar o desgraçado que ele persistia em não julgar culpado.

 

         MINA DE NOVA ESPÉCIE

Entretanto Miss Watkins soube de tudo o que se tinha passado, tanto da cena dos mascarados como da desagradável desilusão por que passara o jovem engenheiro.

— Oh! Sr. Cipriano — disse-lhe ela depois que ouviu toda a narrativa — , a sua vida não valerá todos os diamantes do mundo?

— Querida Alice...

— Não pensemos mais nisso, e deixe-se desse género de experiências.

— Dá-me essa ordem? — perguntou Cipriano.

— Sim! Certamente! Mando-lhe que cesse, como lhe tinha mandado que tornasse a começar... visto que quer receber ordens minhas!

— Como quero executá-las todas! — declarou Cipriano, tomando a mão que Miss Watkins lhe estendia.

Mas quando Cipriano lhe contou a condenação de Matakit, ficou aterrada, principalmente quando soube a parte que seu pai havia tido nesse acto.

Também ela não acreditava na culpabilidade do jovem cafre! Também, ela, de acordo com Cipriano, teria querido fazer tudo para o salvar! Mas que meios se haviam de empregar? Como se havia de fazer com que John Watkins, o implacável queixoso naquele caso, se interessasse pelo desgraçado a quem ele mesmo tinha feito as mais injustas acusações?

Deve acrescentar-se que o fazendeiro não conseguira de Matakit a menor confissão, nem mostrando-lhe a forca preparada para ele, nem dando-lhe esperanças de perdão, se falasse. De modo que, vendo-se obrigado a perder toda a esperança de encontrar jamais a Estrela do Sul, andava pessimamente humorado. Ninguém se lhe podia chegar. A filha, contudo, quis tentar um supremo esforço.

No dia seguinte ao da condenação, Mister Watkins, um pouco mais aliviado da gota, tinha aproveitado aquela folga da sua moléstia para pôr em ordem os seus papéis. Abancado a uma secretária de ébano, com embutidos amarelos — vestígio encantador do domínio holandês, que depois de muitas vicissitudes tinha ido parar àquele canto perdido da Gricualândia — , o fazendeiro estava passando revista aos seus títulos de propriedade, contratos e correspondências.

Por detrás dele, Alice, inclinada sobre o bastidor, bordava, sem fazer muito caso do avestruz Dada, que andava pela sala com a habitual gravidade, umas vezes lançando um olhar pela janela, outras contemplando com os olhos quase humanos os movimentos de Mister Watkins e da filha.

De repente uma exclamação do fazendeiro fez com que Miss Watkins erguesse rapidamente a cabeça:

— Este animal é insuportável — gritava ele. — Aí me tirou ele agora um pergaminho! Dada! Aqui! Dá cá isso!

Apenas estas palavras foram ditas, sucedeu-lhes uma torrente de injúrias.

— Oh! O maldito animal engoliu-o! Um documento importantíssimo! A própria minuta do decreto que determina a exploração do meu Kopje! É intolerável! Mas espera que eu o vou obrigar a deitá-lo fora, ainda que o esgane.

John Watkins, rubro de cólera, fora de si, levantara-se bruscamente. Corria atrás do avestruz, que deu duas ou três voltas à sala e atirou-se por fim pela janela, que era ao nível do chão.

— Pai — bradava Alice, aflita com aquele novo delito do seu favorito — , sossegue, peço-lhe! Ouça-me! Olhe que lhe faz mal.

Mas o furor de Mister Watkins chegara ao auge. Aquela fuga do avestruz tinha acabado de o desesperar.

— Não! — dizia ele com voz sufocada. — É de mais! Vou dar cabo dele! Não hei-de renunciar assim ao título mais importante das minhas propriedades! Com uma bala vou sujeitar o ladrão! Palavra! Aposto que hei-de tornar a apanhar o pergaminho.

Alice foi atrás dele, toda chorosa.

— Peço-lhe que perdoe ao animal! — suplicava ela. — Então esse papel é tão importante? Não se pode arranjar outra cópia? Quer dar-me o desgosto de matar diante de mim o pobre Dada por uma falta tão leve?

Mas John Watkins não dava ouvidos a coisa alguma. Estava olhando para todos os lados a procurar a sua vítima.

Descobriu-a por fim no momento em que se ia refugiando do lado da cabana ocupada por Cipriano Méré. John Watkins imediatamente meteu a espingarda à cara, mas Dada, como se adivinhasse o tenebroso projecto que se tramava contra si, apenas viu aquele movimento, apressou-se a pôr-se ao abrigo da casa.

— Espera! Espera, que já te vou agarrar, maldito animal! — gritou John Watkins, dirigindo-se para ele.

E Alice, cada vez mais aflita, não deixou de o seguir para tentar um último esforço.

Desta forma chegaram ambos junto à casa do engenheiro e rodearam-na. Nem meio avestruz! Dada tornara-se invisível. Ora era impossível que ele tivesse já descido o outeirinho, porque então havia de ter-se visto próximo da granja. Logo, tinha procurado refúgio na cabana por uma das portas ou janelas que abriam para as traseiras.

Foi isto o que John Watkins supôs, e, voltando portanto atrás, foi bater à porta principal.

Cipriano em pessoa veio abrir:

O Sr. Watkins! Miss Watkins! Sinto muito prazer em os ver em minha casa! — disse ele, bastante admirado daquela inesperada visita.

O fazendeiro, esbaforido, explicou-lhe o caso em duas palavras, mas com que fúria!

— Está bem, vamos procurar o culpado! — respondeu Cipriano, convidando John Watkins e Alice a entrar.

— E juro-lhe que há-de saldar contas num pronto! — repetia o fazendeiro, brandindo a espingarda como um tomahawk.

No mesmo instante um olhar de súplica da donzela exprimiu a Cipriano todo o horror que lhe causava a projectada execução. De modo que ele tomou logo um partido bem simples: foi não achar o avestruz. Por isso gritou em francês para o china que acabava de entrar:

— Li, suspeito que o avestruz está no teu quarto! Prende-o e faze com que ele se safe depressa, enquanto eu levo o Sr. Watkins para o lado oposto.

Desgraçadamente este lindo plano caía pela base. O avestruz tinha ido exactamente refugiar-se na primeira sala onde começaram a procurá-lo. Ele lá estava, fazendo-se pequenino, com a cabeça escondida debaixo de uma cadeira, mas tão visível como o Sol ao meio-dia.

Mister Watkins atirou-se para ele, exclamando:

— Oh, desavergonhado, vais-mas pagar!

E contudo, por mais desesperado que estivesse, hesitou um instante perante esta enormidade: dar um tiro à queima-roupa dentro de uma casa que, pelo menos naquele momento, não era sua.

Alice desviava-se, chorando, para não ver nada daquilo.

Então a profunda aflição dela surgiu ao jovem engenheiro uma ideia luminosa.

— -Sr. Watkins — disse ele de repente — , o senhor o que quer é o seu documento, não é verdade? Pois bem, é perfeitamente inútil para isso matar o Dada! Basta abrir-lhe o estômago, donde o documento com certeza ainda não passou! Dá-me licença que eu faça a operação! Frequentei um curso de zoologia no Museum, e parece-me que me hei-de sair bem dessa tentativa cirúrgica!

Ou porque a perspectiva daquela vivissecção lisonjeasse os instintos de vingança do fazendeiro, ou porque a sua cólera começasse a apaziguar-se, ou porque, mau grado seu, o sensibilizasse a verdadeira aflição da filha, o certo é que consentiu em aceitar aquele meio termo; mas declarando que de modo algum queria perder o documento; que, se ele não fosse encontrado no estômago, se procurasse noutro sítio. Que o queria por força!

A operação não era tão fácil de fazer como se poderia imaginar à primeira vista observando a atitude resignada do Dada.

Um avestruz, mesmo dos pequenos, tem o organismo dotado de uma força verdadeiramente incrível. Era mais que certo que o paciente, apenas se sentisse picado pelo ferro do improvisado cirurgião, havia de revoltar-se, enfurecer-se, debater-se com desespero. Por isso Cipriano chamou Li e Bardik para ajudantes.

Resolveu-se antes de mais nada prender o avestruz. Para isso foram aproveitadas as cordas de que Li tinha sempre grande sortimento no quarto. Depois, por um sistema complicado de laços e nós, ligaram os pés e o bico do desgraçado Dada, que ficou impossibilitado de tentar a menor resistência.

Cipriano não se limitou a isso. A fim de poupar a sensibilidade de Miss Watkins, quis evitar todo o sofrimento ao avestruz, e envolveu-lhe a cabeça com uma compressa molhada em clorofórmio.

Feito isto, tratou de proceder à operação, não sem alguma inquietação pelas consequências dela.

Alice, comovida com aqueles preparativos, pálida como uma defunta, tinha fugido para o quarto próximo.

Cipriano começou por apalpar a base do pescoço do animal para se certificar do sítio do papo. Não era difícil, porque esse bucho formava na parte superior da região torácica uma massa considerável, dura, resistente, que ele muito bem sentia com os dedos no meio das partes moles próximas.

Com um canivete foi então rasgada a pele do pescoço com toda a precaução. Essa pele era larga e flácida como a de um peru e coberta com uma penugem parda que facilmente se deixava desviar. Aquela incisão não deitou quase sangue nenhum e foi enxuta com toda a limpeza com um paninho húmido.

Cipriano reconheceu primeiro a posição de duas ou três artérias importantes, e teve o cuidado de as afastar com pequenos ganchos de fio de ferro, que deu a segurar a Bardik. Depois abriu um tecido branco, nacarado, que fechava uma vasta cavidade por baixo das clavículas, e bem depressa pôs à vista o papo do avestruz.

Imagine-se a moela de uma galinha, mas proximamente centuplicada em volume, em espessura e em peso, e ter-se-á uma ideia exacta do que era aquele reservatório.

O papo do Dada apresentava-se com o aspecto de uma algibeira escura, muito distendida pelos alimentos e corpos estranhos que o voraz animal tinha engolido durante o dia, e talvez mesmo em épocas anteriores. E bastava apalpar aquele órgão carnoso, forte, vigoroso, para ver que não havia o menor perigo em atacá-lo resolutamente.

Cipriano pegou na faca de mato, que Li lhe tinha posto à mão, depois de a afiar, e fez naquela massa um golpe profundo.

Dado o golpe, era fácil meter a mão até ao fundo do papo.

Imediatamente se reconheceu e se sacou o documento cuja perda tanto desesperava Mister Watkins. Estava feito numa bola e um pouco amarrotado sem dúvida, mas perfeitamente intacto.

— Ainda há outra coisa — informou Cipriano, que tinha tornado a meter a mão na cavidade, donde tirou uma bola de marfim.

— A bola de pontear de Miss Watkins! — exclamou ele. — E lembrar-se a gente que há mais de cinco meses que o Dada a engoliu! Já se vê que não pôde passar pelo orifício inferior do estômago!

Deu a bola a Bardik e continuou as suas pesquisas, como um arqueólogo nos vestígios de um acampamento romano.

— Uma palmatória de cobre! — exclamou ele, estupefacto, tirando quase imediatamente um desses modestos utensílios, amolgado e esmagado, feito numa pasta e todo oxidado, mas, em todo o caso, deixando conhecer perfeitamente o que era.

Então as risadas de Bardik e de Li tornaram-se tão estrídulas que a própria Alice, a qual naquele momento acabava de entrar de novo no quarto, não pôde deixar de os acompanhar, rindo também.

— Moedas! Uma chave! Um pente de pau do ar! — ia enumerando Cipriano à medida que continuava o seu inventário.

De repente empalideceu. Tinha tocado com os dedos num objecto de forma excepcional! Não! Não podia haver dúvida alguma sobre o que fosse aquilo! E, contudo, não ousava acreditar em semelhante acaso!

Finalmente tirou a mão da cavidade e levantou ao ar o objecto que tinha agarrado.

Um grito saiu da boca de John Watkins!

— A Estrela do Sul!

Sim! O famoso diamante estava ali, finalmente encontrado, intacto, sem nada ter perdido do seu brilho, cintilando como uma constelação à plena luz que entrava pela janela!

Mas — coisa singular e que logo impressionou todas as testemunhas da cena — tinha mudado de cor!

De negra, que era noutro tempo, a Estrela do Sul tinha-se tornado rósea, de uma cor-de-rosa encantadora, que mais aumentava, se é possível, a sua limpidez e esplendor.

— Parece-lhe que isto lhe diminua o valor? — perguntou muito depressa Mister Watkins, logo que conseguiu poder falar, porque a surpresa e a alegria lhe tinham primeiro suspendido a respiração.

— De modo algum! — respondeu Cipriano. — Pelo contrário, é mais uma curiosidade, que faz classificar esta pedra na família tão rara dos ((diamantes camaleões!” Decididamente não faz frio no papo do Dada, pois que ordinariamente é a uma súbita variação da temperatura que são devidas estas variações dos diamantes corados, que bastantes vezes têm sido comunicadas às sociedades científicas!

— Ah! Graças ao céu que foste encontrada, minha lindinha! — repetia Mister Watkins, apertando o diamante na mão, como para se convencer de que não estava sonhando. — Causaste-me muitos cuidados com a tua fuga, ingrata estrela, mas não hei-de tornar a deixar-te escapar!

E levantava-a diante dos olhos, acarinhava-a com a vista, parecia querer engoli-la, como o Dada tinha feito.

Entretanto Cipriano pedira a Bardik uma agulha com um fio grosso e cosera com todo o cuidado o papo do avestruz; depois fechou com uma sutura a incisão do pescoço e desembaraçou o animal das prisões que o obrigavam à quietação.

Dada, muito abatido, abaixava a cabeça e não parecia por forma alguma disposto a fugir.

— Parece-me que ele escapa, Sr. Méré? — perguntou Alice, mais comovida com os sofrimentos do seu favorito do que com o reaparecimento do diamante.

— Ora essa, Miss Watkins; se me parece que escapa! — respondeu Cipriano. — Então imagina que eu teria tentado a operação se não tivesse a certeza disso? Não! Daqui a três dias já não terá o menor vestígio, e não dou mais de duas horas a Dada para que ele comece de novo a guarnecer a curiosa algibeira que acabámos de esvaziar!

Tranquilizada com esta promessa, Alice dirigia ao jovem engenheiro um olhar reconhecido que o recompensava de todos os seus trabalhos.

Naquele momento Mister Watkins, tendo conseguido convencer-se de que estava em seu perfeito juízo e de que tinha realmente tornado a encontrar a sua maravilhosa estrela, saiu da janela.

— Sr. Méré — disse ele, com tom majestoso e solene — , acaba de me prestar um grande serviço, e não sei como poderei jamais recompensar-lho!

O coração de Cipriano começou a bater com violência.

Recompensá-lo! Ah! Mister Watkins tinha para si um meio bem simples! Então era tão difícil para ele cumprir a sua promessa, dar sua filha, que ele havia prometido a quem lhe trouxesse a Estrela do Sull E na verdade não era aquilo o mesmo que se ele a tivesse trazido do fundo do Transval?

Assim pensava Cipriano, mas tinha demasiado orgulho para que exprimisse aquele pensamento em voz alta, e, além disso, tinha quase a certeza de que essa ideia ia nascer por si mesma no espírito do fazendeiro.

Contudo, John Watkins não disse coisa nenhuma dessas, e, fazendo sinal à filha para que o seguisse, saiu da cabana e dirigiu-se a sua casa.

Escusado é dizer que alguns instantes depois Matakit recuperava a liberdade. Mas fora por um triz que o pobre diabo tinha deixado de pagar com a vida a gula do Dada, e com verdade se podia dizer que havia escapado de boa!

 

         A ESTÁTUA DO COMENDADOR

O feliz John Watkins, que era agora o fazendeiro mais rico da Gricualândia, tendo dado um primeiro banquete para festejar o nascimento da Estrela do Sul, não podia deixar de dar agora outro para festejar a sua ressurreição. Mas desta vez podiam estar descansados que haviam de se tomar todas as precauções para que a pedra não tornasse a desaparecer — e o Dada não foi convidado para a festa.

Ora na tarde do dia seguinte deu-se o festim com todo o esplendor.

Desde alta manhã John Watkins tinha mandado correr o pregão da convocação pelos seus convivas habituais, encomendara aos marchantes do distrito peças de carne que bastariam para dar de comer a uma companhia de infantaria, e reunira na despensa todas as vitualhas, latas de conservas e todas as garrafas de vinhos e licores esquisitos que as tabernas dos arredores tinham podido fornecer.

Às quatro horas estava posta a mesa no salão grande, os frascos enfileirados em boa ordem sobre o aparador e os quartos de vaca e de carneiro a assar na cozinha.

Às seis horas chegavam os convidados, todos sécios. Às sete o diapasão da conversa havia já chegado a um tom por tal forma elevado que um clarim dificilmente dominaria a inferneira. Lá estavam: Mathys Pretorius, agora tranquilo porque já não tinha que recear as partidas de Aníbal Pantalacci; Tomás Steel, radiante de força e de saúde; o corretor Nathan, e outros fazendeiros, mineiros, negociantes e oficiais da Polícia.

Cipriano, por ordem de Alice, não tinha podido recusar o convite para o festim, pois que também ela havia sido obrigada a comparecer. Mas ambos estavam muito tristes, porque era evidente que o fazendeiro, agora cinquenta vezes milionário, não podia pensar em dar a filha a um engenheiro ((que nem sequer sabia fazer diamantes!” É verdade! Aquele figurão egoísta tratava por esta forma o jovem sábio, a quem na realidade devia a sua nova fortuna!

O banquete continuava, pois, no meio do entusiasmo pouco moderado dos convivas.

Em frente do feliz fazendeiro — e não por detrás dele — cintilava à luz das velas a Estrela do Sul, colocada sobre uma almofada de veludo azul, e duplamente abrigada por uma gaiola de grades de metal e um globo de vidro.

Já se tinham feito dez brindes à sua beleza, à sua incomparável limpidez, ao seu brilho sem rival. Fazia então um calor sufocante.

Miss Watkins, isolada e como que concentrada em si mesmo no meio do tumulto, parecia não ouvir coisa alguma. Olhava para Cipriano, tão abatido como ela, e as lágrimas não lhe estavam longe dos olhos.

De repente, o ruído das conversas e o tilintar dos copos foi interrompido por três pancadas sonoras na porta do salão.

— Entre! — gritou Mister Watkins com a sua voz rouca. — Quem quer que seja, chegou em boa ocasião, se é que tem sede!

Abriu-se a porta.

Sobre o limiar apareceu a figura comprida e descarnada de Jacobus Vandergaart.

Todos os convivas olharam uns para os outros, muito espantados com aquela inesperada aparição. Sabiam-se tão bem na terra os motivos da inimizade que separava os dois vizinhos, John Watkins e Jacobus Vandergaart, que em volta da mesa correu um surdo rumor. Todos esperavam alguma coisa grave.

Fizera-se profundo silêncio. Todos os olhos estavam fixos no velho lapidário, coberto de cãs. Este, em pé, com os braços cruzados, com o chapéu na cabeça, envolvido na comprida sobrecasaca preta dos dias solenes, parecia o próprio espectro da desforra.

Mister Watkins sentiu-se possuído por vago receio e íntimo tremor. Empalidecia-lhe o rosto por baixo da camada de carmim, que os seus antigos hábitos de alcoolismo nele tinham fixado.

Não obstante isso, o fazendeiro tentou reagir contra aquele sentimento inexplicável, que nem mesmo compreendia bem.

— Há já muito tempo, vizinho Vandergaart — disse ele, sendo o primeiro a dirigir a palavra a Jacobus — , que não me dava o gosto de o ver em minha casa. Que bom vento o traz por aqui hoje?

— O vento da justiça, vizinho Watkins — respondeu o velho com frieza. — Venho dizer-lhe que vai finalmente triunfar e mostrar-se o direito, depois de um eclipse de sete anos! Venho anunciar-lhe que soou a hora da reparação, que volto a tomar posse da minha fazenda, e que o Kopje, que teve sempre o meu nome, é de ora avante legalmente meu, como nunca tinha deixado de o ser perante a equidade! John Watkins, esbulhou-me do que me pertencia! Hoje é a si que a lei vem esbulhar e condena a restituir-me o que me tirou!

John Watkins sentira-se gelar ao princípio com a repentina aparição de Jacobus Vandergaart e com o perigo vago que ele parecia anunciar; mas assim como esse receio fora grande, assim a sua natureza sanguínea e violenta o levava a arrostar de frente um perigo directo e bem definido.

Por isso atirou a cabeça para as costas da cadeira, e pôs-se a rir com modo altamente desprezativo.

— O velhote está doido — disse ele, dirigindo-se aos convivas. — Eu sempre imaginei que ele tinha uma aduela de menos! Mas, ao que parece, agora faltam-lhe umas poucas.

Toda a mesa aplaudiu esta grosseira graçola. Jacobus Vandergaart nem pestanejou.

— Há-de ter razão quem se rir por fim! — replicou ele gravemente, tirando um papel da algibeira. — O Sr. John Watkins sabe que por uma sentença contraditória e definitiva, confirmada no tribunal de apelação e que nem mesmo a rainha poderia anular, lhe pertencem a si neste distrito os terrenos situados ao ocidente do vigésimo quinto grau de latitude a leste de Greenwich, e a mim os que se acham ao oriente do meridiano?

— Exactamente, meu digno pateta! — exclamou John Watkins. — E é por isso que era melhor que se fosse deitar, se é que está doente, do que vir para aqui interromper pessoas honradas que estavam a jantar e que não devem nada a ninguém!

Jacobus Vandergaart tinha desdobrado o papel.

Aqui está uma declaração — replicou ele com voz mais suave — , declaração da repartição do cadastro, referendada pelo governador e registada anteontem em Vitória, pela qual se mostra ter havido até hoje um erro introduzido em todas as plantas da Gricualândia. Este erro foi cometido pelos geómetras que há dez anos foram encarregados de levantar a carta do distrito, os quais, na determinação que fizeram do norte verdadeiro, não levaram em conta a declinação magnética, e daí resultou estarem erradas todas as cartas e plantas deduzidas dos trabalhos deles. Ora, em virtude da rectificação que nestes últimos dias acaba de ser feita, acontece que, entre outras coisas, o vigésimo quinto grau de longitude andou no nosso paralelo três milhas mais para o ocidente... Esta rectificação, que é hoje oficial, dá-me portanto a posse do Kopje que lhe tinha cabido em partilha anterior — porque, segundo a opinião de todos os jurisconsultos e do próprio chief justice, a letra da sentença de modo algum perdeu ainda a sua força! Era isto o que eu lhe vinha dizer, John Watkins!

O fazendeiro, ou porque não compreendesse bem o que acabava de ouvir a Jacobus Vandergaart, ou porque preferisse recusar sistematicamente compreender, tentou ainda responder ao velho lapidário dando uma gargalhada de desprezo.

Mas desta vez o riso era forçado e não encontrou eco nas pessoas que estavam à mesa.

Todas as testemunhas daquela cena, estupefactas, tinham os olhos fixos em Jacobus Vandergaart, e pareciam vivamente impressionadas com a gravidade, firmeza de palavras e certeza inabalável que toda a pessoa dele respirava.

O corretor Nathan foi o primeiro que interpretou o sentimento geral.

Voltou-se para Watkins e disse-lhe:

— O que o Sr. Vandergaart afirma nada tem de absurdo à primeira vista. No fim de contas, esse erro de longitude podia perfeitamente ter-se dado, e, antes de se decidir qualquer coisa, talvez fosse melhor esperar informações mais completas!

— Esperar informações! — exclamou Mister Watkins, dando um murro na mesa. — Para que quero eu informações? Bem me importam a mim as informações! Estou em minha casa ou não estou? Foi-me dada ou não a posse do Kopje por uma sentença definitiva, cuja validade até este velho crocodilo reconhece? Se me vierem inquietar na pacífica posse da minha fazenda, faço o que já fiz da outra vez: dirijo-me aos tribunais, e veremos quem vence!

— Os tribunais já fizeram o que tinham a fazer — replicou Jacobus Vandergaart, com a sua moderação inexorável. — Tudo se reduz agora a uma questão de facto: o vigésimo quinto grau de longitude passa ou não passa pela linha que estava marcada nas plantas cadastrais? Ora está hoje oficialmente reconhecido que havia erro neste ponto, e a conclusão inevitável é que o Kopje reverte para mim.

E, ao dizer isto, Jacobus Vandergaart mostrava o documento oficial, que tinha na mão, e que estava munido de todos os selos e rubricas legais.

A indisposição de John Watkins aumentava a olhos vistos.

Agitava-se na cadeira, tentava rir-se e dificilmente o conseguia.

Naquele momento, por acaso, pousou os olhos sobre a Estrela do Sul; parece que aquela vista lhe tornou a dar a ousadia que começava a abandoná-lo.

— E quando isso assim fosse — exclamou ele — , quando eu tivesse de renunciar, contra toda a justiça, a esta propriedade que me foi dada legalmente e que estou gozando em paz há mais de sete anos, que me importava isso no fim de contas! Não tenho eu com que me consolar, ainda que não fosse mais que esta jóia, que eu posso levar na algibeira do colete e defender de qualquer surpresa?

— Continua enganado, John Watkins — retorquiu Jacobus Vandergaart, com tom peremptório. — Esse brilhante, Estrela do Sul, de hoje em diante pertence-me a mim, pela mesma razão que me pertencem todos os produtos do Kopje que forem encontrados em seu poder, a mobília desta casa, o vinho destas garrafas, as comidas que aí sobejarem nos pratos! Tudo é meu, por isso que tudo proveio do dolo que me foi feito. E esteja descansado que se tomaram todas as precauções!

Jacobus Vandergaart bateu as mãos compridas e descarnadas.

Imediatamente apareceram à porta os constables, de uniforme preto, seguidos imediatamente por um oficial do xerife.

Este, entrando muito depressa, pôs a mão numa cadeira, dizendo:

— Em nome da lei, faço arresto provisório em todos os objectos móveis e valores de qualquer natureza que se encontrem nesta sala!

Levantara-se toda a gente à excepção de Mister John Watkins.

O fazendeiro estava aniquilado, e, tendo-se encostado para trás na sua grande poltrona de madeira, parecia completamente fulminado.

Alice lançara-se-lhe ao pescoço e procurava confortá-lo com palavras de carinho.

Entretanto Jacobus Vandergaart não o perdia de vista, observando-o até com mais compaixão do que ódio, mas sem deixar de olhar para a Estrela do Sul, que cintilava mais radiosamente que nunca no meio daquele desastre.

— Arruinado! Arruinado! — eram as únicas palavras que agora conseguiam pronunciar os lábios trémulos de Mister Watkins.

Naquele momento Cipriano Méré levantou-se, e com voz grave disse:

— Sr. Watkins, visto que a sua prosperidade está ameaçada de uma catástrofe irreparável, consinta-me que só veja neste acontecimento a possibilidade de me aproximar da senhora sua filha! Tenho a honra de lhe pedir a mão de Miss Alice Watkins

 

         UMA ESTRELA CADENTE!

O pedido do jovem engenheiro produziu sobre os convivas de John Watkins um efeito teatral. Apesar da pouca sensibilidade da sua natureza meio selvagem, nenhum deles deixou de aplaudir ruidosamente.

E, na verdade, tanto desinteresse não podia deixar de os comover.

Alice, com os olhos baixos e o coração palpitante, única talvez que se não mostrava surpreendida com o passo dado pelo jovem, estava calada junto ao pai.

O desgraçado fazendeiro John Watkins, ainda acabrunhado pelo golpe fatal que acabava de o ferir, tinha erguido a cabeça.

Efectivamente conhecia bastante Cipriano para saber que, dando-lhe a filha, tornava certos o futuro e a felicidade dela; mas não queria ainda, nem mesmo por um sinal, indicar que já não via objecção alguma a opor à ideia do casamento.

Cipriano, já confuso pelo procedimento público a que fora levado pelo ardor dos seus sentimentos, reconhecia também quanto ele tinha sido insólito, e começava a censurar-se a si próprio por não ter moderado mais os impulsos do seu amor.

Mas no meio deste enleio comum e fácil de compreender, Jacobus Vandergaart deu um passo para o fazendeiro e disse-lhe:

— John Watkins, não quero abusar da minha vitória, nem sou dos que gostam de calcar aos pés o inimigo vencido! Reivindiquei o meu direito porque todo o homem tem obrigação de o fazer sempre! Mas, por experiência própria, sei que é verdade o que o meu advogado repetia, a saber, que o direito rigoroso está por vezes muito próximo da injustiça, e eu não desejo que os inocentes sofram a consequência de erros que não cometeram!

Depois continuou:

— Demais, sou só no mundo e já bem próximo do túmulo! De que me serviriam tantas riquezas se não pudesse reparti-las? John Watkins, se consente em unir estas duas crianças, peço-lhes que aceitem como dote essa Estrela do Sul, que para mim de nada serviria! Comprometo-me, além disso, a fazê-los meus herdeiros, remediando assim, quanto é possível, o mal involuntário que causo a sua encantadora filha!

A estas palavras houve entre os espectadores o que nas actas das sessões parlamentares se chama num vivo movimento de interesse e simpatia”. Todos os olhares se dirigiram para John Watkins.

Este, sentindo os olhos humedecidos repentinamente, cobria-os com mão trémula.

— Jacobus Vandergaart! — exclamou ele por fim, não podendo mais conter os sentimentos tumultuosos que o agitavam. — Sim! O senhor é um homem de bom coração, e vinga-se nobremente do mal que lhe causei fazendo a felicidade destas duas crianças!

Nem Alice nem Cipriano podiam responder, pelo menos em voz alta, mas os seus olhos respondiam por eles com eloquência.

O velho estendeu a mão ao adversário e Mister Watkins agarrou-a com ardor.

Os olhos de todos os circunstantes estavam húmidos, mesmo os de um velho constable de cabelos grisalhos, que parecia contudo tão ressequido como uma bolacha de embarque do Almirantado.

John Watkins, esse, estava realmente transfigurado. A sua fisionomia era agora tão benévola, tão suave quanto há pouco era dura e má.

Quanto a Jacobus Vandergaart, o seu rosto tinha tomado novamente a expressão, que lhe era habitual, da mais serena bondade.

— Esqueçamos tudo — exclamou ele — e bebamos à saúde destas crianças — se o senhor oficial do xerife dá licença — com o vinho que ele arrestou!

— Um oficial do xerife tem algumas vezes a obrigação de se opor à venda das bebidas sujeitas a imposto — disse o magistrado, sorrindo — , mas nunca se opôs a que se fizesse consumo delas!

A estas palavras, ditas com bom humor, circularam as garrafas e tornou a aparecer na sala a mais franca cordialidade.

Jacobus Vandergaart, sentado ao lado de John Watkins, fazia com ele planos para o futuro.

— Vendemos tudo e vamos com os pequenos para a Europa — dizia ele. — Iremos viver com eles no campo, e ainda havemos de ter dias excelentes!

Alice e Cipriano, ao lado um do outro, tinham começado uma conversa em voz baixa, em francês — conversa que também não parecia menos interessante, a avaliar pela animação dos dois.

Fazia então mais calor que nunca.

Uma temperatura elevadíssima, pesada e opressiva, fazia secar os lábios a todos e transformava os convivas em outras tantas máquinas eléctricas prestes a darem faíscas.

Debalde se tinham deixado abertas todas as portas e janelas.

Nem o menor sopro fazia vacilar as velas.

Todos sentiam que só era possível uma solução para tal pressão atmosférica: era uma dessas trovoadas, acompanhadas de relâmpagos e de chuvas torrenciais, que parecem na África Austral uma conjuração de todos os elementos da Natureza.

Esperava-se, ansiava-se por aquela trovoada como por um alívio.

De repente, veio um relâmpago pôr nos rostos uma cor esverdinhada, e quase imediatamente os trovões, ribombando sobre a planície, anunciaram o começo do concerto.

Naquele momento penetrou na sala um pé-de-vento repentino, que apagou as luzes todas.

Depois, sem transição, abriram-se as cataratas do céu e começou o dilúvio.

— Os senhores não ouviram, logo depois do trovão, um estalinho seco como de coisa que se quebra? — perguntou Tomás Steel, enquanto fechavam as janelas a toda a pressa e tornavam a acender as velas. — Parecia um globo de vidro a rebentar!

Imediatamente todos os olhares se dirigiram por instinto para a Estrela do Sul...

O diamante tinha desaparecido.

Mas nem a gaiola de ferro, nem o globo de vidro que o cobriam, haviam mudado de lugar; era manifestamente impossível ter alguém tocado nele.

O fenómeno tocava as raias do prodígio.

Cipriano, que se tinha inclinado rapidamente para a frente, acabava de reconhecer sobre a almofadinha de veludo azul, no lugar do diamante, a presença de uma espécie de poeira pardacenta.

Não pôde reprimir um grito de espanto e explicou com uma palavra o que acabava de suceder, dizendo:

— A Estrela do Sul rebentou!

Toda a gente sabe na Gricualândia que é isso uma doença própria dos diamantes daquelas terras. Ninguém fala nessa doença porque diminuiria consideravelmente o valor deles; mas o facto é que, em virtude de uma acção molecular ainda não explicada, as mais preciosas daquelas pedras rebentam às vezes como se fossem uma bomba de fogo. Em tais casos apenas fica um pouco de pó, que serve quando muito para usos industriais.

O jovem engenheiro estava evidentemente mais preocupado com as consequências científicas do acidente do que com a perda enorme que acabava de sofrer.

— O que é singular — disse ele no meio do espanto geral — não é que a pedra tenha rebentado nestas condições, mas sim que esperasse até hoje para o fazer. Normalmente acontece isto mais cedo, pelo menos durante os dez primeiros dias depois de lapidadas. Não é verdade o que eu digo, Sr. Vandergaart?

— É perfeitamente exacto, e é esta a primeira vez na minha vida que vejo rebentar um diamante três meses depois de lapidado! — declarou o velho, suspirando. — Ova! Estava escrito que a Estrela do Sul não seria para ninguém! — acrescentou ele. — E lembrar-se a gente que para evitar este desastre bastaria ter coberto a pedra com uma levíssima camada de gordura...

— Sim? — -exclamou Cipriano, com a satisfação de uma pessoa que acaba de resolver uma dificuldade. — Nesse caso tudo se explica. A frágil estrela havia sem dúvida achado no papo do Dada essa camada protectora, e foi isso que a salvou até hoje! Na verdade, seria melhor que tivesse rebentado há quatro meses, porque nos tinha poupado todo o caminho que percorremos à cata dela através de todo esse Transval.

Naquele momento viram que John Watkins, que parecia sentir-se mal disposto, se agitava com violência na cadeira.

— Como é que os senhores podem estar a falar tão de leve a respeito de tão grande sinistro? — disse ele por fim, rubro de indignação. — Palavra que estão todos aí a conversar a respeito de cinquenta milhões que se desfizeram em fumo, como se se tratasse de um cigarro!

— Isto prova que somos filósofos! — respondeu Cipriano. — Em tais casos não há remédio senão ser discreto, visto que a discrição é necessária.

— Sejam filósofos à sua vontade — retrucou o fazendeiro — , mas cinquenta milhões são cinquenta milhões e não se acham assim a cada canto. Oh! Jacobus, olhe: sem pensar prestou-me hoje um grande serviço. Se a Estrela do Sul ainda agora fosse minha parece-me que também estalava para aí como uma castanha.

— Então que quer? — disse Cipriano, olhando com imensa ternura para o rosto fresco de Miss Alice, que estava ao lado dele. — Eu conquistei nesta noite um diamante tão precioso que a perda de nenhum outro teria o poder de me incomodar!

Assim acabou por uma cena teatral, digna da sua história, tão curta e agitada, a carreira do maior diamante que jamais se viu no mundo.

Tal fim não contribuiu pouco, como se pode imaginar, para confirmar as opiniões supersticiosas que a seu respeito tinham corrido na Gricualândia. Mais que nunca os cafres e os mineiros tiveram como certo que pedras daquele tamanho por força são fatais.

Jacobus Vandergaart, que sentia orgulho por a ter lapidado, e Cipriano Méré, que pensava em a oferecer ao museu da Escola de Minas, sentiam na realidade com aquele desenlace maior despeito do que aparentemente queriam confessar. Mas, afinal de contas, o mundo continuava a girar da mesma forma, e não se podia dizer que ele perdesse muito com aquele caso.

Entretanto todos aqueles acontecimentos acumulados, aquelas comoções dolorosas, a perda da sua fortuna, seguida da da Estrela do Sul, tinham feito a John Watkins muito mal.

Caiu de cama, foi enfraquecendo durante alguns dias, e depois apagou-se.

Nem os dedicados cuidados da filha, nem os de Cipriano, nem as viris exortações de Jacobus Vandergaart, que se tinha estabelecido à sua cabeceira e passava o tempo a tentar animá-lo, nada pôde atenuar de modo algum aquele terrível golpe.

Debalde este excelente homem conversava com ele acerca dos planos do futuro, falando-lhe no Kopje como propriedade comum de ambos, pedindo-lhe parecer acerca das decisões a tomar, e associando-o sempre aos seus projectos. O velho fazendeiro fora ferido no seu orgulho, na sua monomania de proprietário, no seu egoísmo, em todos os seus hábitos; sentia-se perdido.

Uma noite puxou para si Alice e Cipriano, pôs as mãos deles uma sobre a outra, e sem pronunciar uma palavra deu o último suspiro. Não tinha sobrevivido quinze dias à sua querida estrela.

E, na verdade, parecia que havia estreita conexão entre a fortuna daquele homem e a sorte da estranha pedra. Pelo menos as coincidências eram tais que explicavam até certo ponto, sem contudo as justificar aos olhos da razão, as ideias supersticiosas que corriam na Gricualândia sobre aquele assunto.

Era claro que a Estrela do Sul tinha lançado mau olhado ao seu dono, pois que a entrada da incomparável gema na cena do mundo havia assinalado o começo da decadência da prosperidade do velho fazendeiro.

Mas o que os faladores do acampamento não viam era que a verdadeira origem daquela desgraça estava nos próprios erros de John Watkins — erros em que havia fatalmente o germe dos dissabores e da ruína.

Muitos infortúnios deste mundo são por esta forma atribuídos à misteriosa má sorte, quando, se se descer ao fundo das coisas, a sua base única são os próprios actos dos que os sofrem! Há desgraças imerecidas, é verdade; mas há um número muito maior de outras rigorosamente lógicas, que se deduzem, como a conclusão de um silogismo, das premissas postas pelo sujeito.

Se John Watkins não fosse tão aferrado ao lucro, se não tivesse dado importância exagerada e mesmo criminosa a esses cristaizinhos de carbono chamados diamantes, a descoberta e a desaparição da Estrela do Sul tê-lo-iam deixado ficar frio — como ficou Cipriano — e a sua saúde, tanto física como moral, não seria vítima de um tal acidente. Mas ele tinha dado toda a sua alma aos diamantes; pelos diamantes devia morrer.

Algumas semanas mais tarde celebrava-se o casamento de Cipriano Méré e de Alice Watkins com muita simplicidade e grande alegria de todos. Alice era agora esposa de Cipriano... Que mais podia ela desejar no mundo?

Demais, o jovem engenheiro vinha a ser mais rico do que ela supunha e mesmo do que ele julgava.

Efectivamente, o seu claim tinha, sem ele o saber, alcançado considerável valor em consequência da descoberta da Estrela do Sul.

Enquanto ele fizera a viagem ao Transval, Tomás Steel tinha continuado a explorá-lo, e, como essa exploração havia dado óptimos resultados, afluíram ofertas para a compra da parte que pertencia ao engenheiro.

Vendeu-a por mais de mil francos antes de partir para a Europa.

Alice e Cipriano não tardaram pois a deixar a Gri-cualândia para virem para França, mas antes de o fazerem deixaram seguro o futuro dos três servos do engenheiro — Li, Bardik e Matakit — , obra de caridade a que Jacobus Vandergaart quis associar-se.

Efectivamente, o velho lapidário acabava de vender o seu Kopje a uma companhia dirigida pelo ex-corretor Nathan.

Depois de ter concluído com vantagem essa liquidação, foi ter a França com os seus dois filhos adoptivos, os quais, graças ao trabalho de Cipriano, ao seu merecimento reconhecido, e ao bom acolhimento que teve no mundo científico, tem a sua fortuna garantida, depois de ter, antes, garantida a sua felicidade.

Quanto a Tomás Steel, voltou para o Lancashire com umas vinte mil libras esterlinas, casou, caça a raposa como um gentleman e bebe todas as noites a sua garrafa de vinho do Porto.

Não será talvez esta última coisa a melhor que ele faz.

O Vandergaart-Kopje ainda não está esgotado, e continua a fornecer todos os anos, termo médio, a quinta parte dos diamantes que se exportam do Cabo, mas nenhum mineiro tornou a ter a boa ou má fortuna de encontrar outra Estrela do Sul!

 

                                                                                Júlio Verne  

 

                      

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