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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FILHA DOS MUNDOS / Inês Botelho
A FILHA DOS MUNDOS / Inês Botelho

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

Ailura nascera numa manhã de Primavera de um desses dias que, depois de uma noite de chuva e trovoada, amanhecem claros e radiosos.

Fora sempre uma criança calma, mas de fortes ideias e convicções.

Cheirava a floresta, tinha cabelos castanhos lisos e brilhantes, enigmáticos olhos cor de bronze, pele suave e branca. Possuía uma beleza invulgar e havia nela um não sei quê de misterioso; parecia irradiar calma e sabedoria e ao mesmo tempo era assustadoramente altiva.

Crescera num mundo de Fadas, Elfos, Gnomos e Duendes, mas também num mundo em que não havia tempo para sonhar, apenas tempo para se tornar grande, rica, temida e poderosa.

O pai ensinara-a a acreditar nos sonhos, na magia, no impossível e no irreal. Ensinara-a a confiar nos seus instintos, a nunca desistir e, acima de tudo, a respeitar e a amar.

Assim, durante os seus primeiros onze anos de vida, Ailura viveu sob os ensinamentos daquele homem estranho. Alto e de feições suaves, o seu pai tinha os mesmos cabelos esvoaçantes e o porte magnificente e sereno de Ailura. Estava sempre lá quando a filha precisava dele, e de cada vez que voltava das suas viagens trazia histórias de um reino distante e encantado, com as quais Ailura se maravilhava.

Mas, um dia, o pai partiu sem se despedir e não regressou. Era o dia do décimo primeiro aniversário de Ailura.

A mãe, uma senhora alta e muito bela, tomou conta dela. Recordava-lhe o pai de uma forma terna e quase heróica e ensinou-a a vencer na vida, a chegar mais alto que os outros e a não deixar que lhe fizessem frente.

Aos poucos, Ailura esqueceu os ensinamentos do pai, os sonhos maravilhosos, as Fadas e os Elfos... E o tempo passou, e ela cresceu, tornando-se numa mulher muito diferente do que em criança sonhara ser.

 

 

 

 

                     O ACIDENTE

Esse artigo daqui a uma hora; essa reportagem para amanhã; adia esse jantar; marca um encontro para terça; ele recusou? fá-lo aceitar tudo e desliga esse telefone...

- Ailura, almoçamos?

- Sim.

Ailura vencera na vida, era rica, temida, poderosa; ninguém lhe fazia frente. Aos 28 anos subira mais alto do que jamais alguém da sua idade o fizera, era dona de um jornal de elevada reputação cujas críticas eram temidas e decisivas. Se no seu jornal viesse escrito que um determinado espectáculo era horrível, esse espectáculo estava destinado a ser um fracasso.

Mas, embora tivesse tudo o que se podia desejar, faltava-lhe algo que ela não podia descrever. Era como um enorme vazio, um vazio outrora preenchido com algo que ela não conseguia encontrar.

Levantou-se. O almoço! Considerava-o por vezes um desperdício de tempo, uma altura de convívio

obrigatório em que se via perante os relatos enfadonhos da manhã que o namorado tivera ou confrontada com perguntas sobre a sua vida. Enfim, tinha dito que sim e agora tinha de ir. Sorriu (nunca demonstrar fraqueza é a primeira das regras) e agarrou o namorado.

- Onde me levas hoje?

- A um sítio especial.

- Mmm, misterioso, perigoso...

- Nem por isso.

Pronto, perdera o interesse por completo. Saíram do grande edifício para a rua turbulenta, apinhada de gente apressada, preocupada, tal como eles, que não tinham reparado no círculo em torno da lua na noite anterior a anunciar que algo de especial ia acontecer, nem tinham visto uma águia cruzar os céus da cidade.

- Apanhamos um táxi, Ailura?

- Não. Sinto-me sufocar, preciso de andar.

- Sentes-te mal?

- Não. É só o ar que está pesado.

Ele olhou; como ela era estranha! E que estupidez era essa de o ar estar pesado? O dia estava lindo, o sol brilhava e, para fins de Setembro, até estava quente.

Continuaram a andar por ruas largas e movimentadas, ruas que corriam entre altos prédios como um rio corre entre as suas margens. Ruas carregadas de rostos tristes: a mulher que não consegue arranjar emprego, o jovem que volta para casa com uma negativa a História, a criança que não teve o brinquedo que acabou de pedir à mãe, o pai que sente a família a afastar-se lentamente. Ruas cheias de gritos, do som dos carros, das buzinas, do ladrar dos cães, dos telemóveis a tocar. Ruas de uma cidade afundada na modernidade, nas novas tecnologias, na pressa e na solidão.

Pararam finalmente em frente de uma pequena

pizzaria. Entraram; lá dentro estava escuro. As mesinhas circulares com toalhas de xadrez vermelho, as cadeiras de madeira escura e costas baixas e largas, o balcão de madeira comprido com bancos altos de quatro pernas, os quadros de Itália que povoavam as paredes e a porta de acesso à cozinha constituíam o interior do restaurante.

Ailura não compreendia. Que tinha aquele lugar de especial? Não passava de uma simples pizzaria! Agradável e sossegada, sem dúvida, mas mesmo assim banal.

- Então? Que tal a surpresa? - perguntou ele ansioso.

- É banal - respondeu Ailura, ainda sem perceber qual era o interesse daquele lugar.

- Banal? Foi aqui que começámos a namorar.

Não te lembras? - ele parecia quase eufórico.

- Oh! Claro que me lembro - beijou-o ao de leve na face. - Obrigada pela surpresa.

Fingiu contentamento. Para ela a resposta ideal teria sido "Não, não me lembro. Desculpa". Mas não seria a resposta correcta! Mostraria transparência total e ele não ficaria satisfeito. Numa sociedade que esperava ansiosamente que ela falhasse, não se podia dar ao "luxo" de ser sincera e muito menos a que se pudesse sequer sussurrar que ela fora mal-educada.

Sentaram-se e pediram: - Uma pizza de frango, molho picante, peperoni e extra mozzarela, para mim, e uma de atum, milho, bacon e ovo cozido, para ela.

- Estás estranha hoje.

Ela olhou-o. Que queria ele dizer? Que ela não tinha agido da maneira correcta com ele? Teria deixado transparecer a sua preocupação relativamente à estúpida sensação de vazio? Não. Era impossível. Enfim, não compreendia a razão daquela observação. Talvez tivesse sido apenas um comentário menos feliz, num dia em que ela não estava de muito bom humor.

- Não digas disparates, Pedro - respondeu por fim.

- Não são disparates - retorquiu Pedro. – Parece que não estás neste Mundo...

- Chega, Pedro! - tinha definitivamente perdido a paciência.

- Não, não chega. - Pedro parecia furioso e ao mesmo tempo triste. - Primeiro, aquele disparate de te sentires a sufocar... E tens passado o dia a ignorar-me. Pensas que não o vejo? Que não o sinto?

- Como te atreves?

- Eu amo-te, mas não me sinto amado. Eu preciso de ser amado! - Perdendo toda a compostura, Pedro berrou bem alto as últimas palavras.

- Acabou, Pedro. De facto, nem sei porque é que te aturo. És apenas mais um jornalista do jornal - a sua voz subira acima do tom que ela queria usar.

- Apenas um jornalista? Sou o melhor jornalista daquele jornal.

Era bem verdade. Era o mais aplaudido, o mais lido, o mais respeitado. Só ele estaria em condições de dirigir aquela redacção de jornal se lhe acontecesse alguma coisa.

Serviram as pizzas. Finalmente calma, pegou na faca e no garfo.

- Mesmo assim, apenas um jornalista – e começou a comer.

Pedro sabia que a conversa tinha terminado. Tinham tido uma discussão. Passariam algum tempo a tratar-se com indiferença. Ao fim de uma semana, voltariam um para o outro.

Não falaram mais e o resto do almoço decorreu

com uma paz aparente e uma indiferença notória.

Ailura olhou para o relógio do parque. Estava há hora e meia sentada naquele banco de jardim. Como era bom estar ali! Uma fresca brisa roçava-lhe a cara, ajudando-a a esvaziar a cabeça de todo e qualquer tipo de pensamentos. Ao longe ouvia-se o som das alegres brincadeiras de um grupo de crianças; pelo ar corriam palavras soltas de conversas mais ou menos interessantes; e perto dela uma velha senhora suspirava pela sua juventude há muito perdida. Mas estava a ficar tarde e ela tinha de regressar ao jornal. Por isso levantou-se, pegou na carteira e começou a andar. Podia ter apanhado um táxi, mas por algum motivo não o fez. Talvez por ainda se sentir a sufocar e não lhe apetecer minimamente entrar dentro de um pequeno veículo, quente e ainda para mais a cheirar ao suor de uma infinidade de pessoas que já tinham entrado nele.

Parou junto a uma passadeira, à espera que o sinal ficasse verde. Avançou assim que todas as outras pessoas começaram a andar, meio perdida nas profundezas do seu ser, que ela, lentamente, preenchia, uma vez mais, com os pensamentos que, por momentos, expulsara. Não reparou que as outras pessoas começaram a apressar-se, até que, já quase em cima dela, ouviu o som de uma forte buzina de um camião. Ficou paralisada, incapaz de se mover, fechou os olhos e em menos de um segundo não sentiu mais nada... Nem luz, nem escuridão... Só o vazio.

 

                         A FLORESTA

Ailura sentiu-se despertar, mas não abriu os

olhos. Tinha uma leve consciência de que estava parcialmente submersa nas águas de um calmo rio. Os seus longos cabelos estavam soltos e ondulavam suavemente. Havia uma agradável claridade; decerto a forte luz solar era atenuada por árvores altas, donde chegava um perfume de flores e folhas, misturado com o cheiro de terra húmida.

O seu estado de semi-sonolência foi quebrado pelo agitar das águas, mas, mesmo assim, manteve os olhos fechados. Alguém a agarrou por baixo, levantou e retirou do rio. Deitou-a na relva húmida, segurando delicadamente a sua cabeça.

Finalmente, Ailura abriu os olhos. A primeira imagem que teve foi a de um belo rosto de longos cabelos loiros, coroado por algumas árvores altas de folhas verdes e avermelhadas. Ele, ou ela, sorriu. Ajudou-a a sentar-se e, pela primeira vez, Ailura começou a ter medo. Onde estava? E por que razão ali estava?

- Estás bem? - perguntou ele. Agora via perfeitamente que era um homem, não percebia mesmo como não o percebera logo! Mas quanto à pergunta não estava bem certa da resposta. Lembrava-se do camião. Devia ter tido um acidente, devia ter acordado num hospital, no mínimo numa ambulância, mas nunca numa floresta. Por outro lado, não parecia ter nada partido, não parecia ter sequer um arranhão.

- Estou bem - respondeu por fim.

E antes que ela tivesse tempo de dizer mais qualquer coisa, ele levantou-se, estendeu-lhe a mão e disse:

- Óptimo! Então vamos.

"Vamos"! Ele não podia estar bom do juízo. Ela não ia a lado nenhum sem saber onde estava, o que lhe tinha acontecido e quem era ele. Mas ele já tinha começado a andar e a entrar mais dentro da floresta, e havia outra coisa da qual ela tinha a certeza: não queria ficar sozinha naquele lugar desconhecido.

Por isso correu a juntar-se ao estranho. No entanto, era mais complicado do que ela pensara. Ele era ágil e rápido, e ela, além de estar de sapatos de tacão alto, tinha o seu fato de saia e casaco cinzento claro completamente encharcado. Irritada por ele não esperar por si, Ailura sentou-se numa grande pedra e chamou-o, impacientemente.

- Desculpa! - ele virou-se, parecia ligeiramente divertido com a situação. - Será que me podes dizer onde estou, porque estou aqui e, já agora, quem és tu?

Ele aproximou-se dela, sentou-se no chão e olhou para o céu profundamente azul, encoberto pela folhagem das árvores. Depois baixou os olhos e fitou-a.

- Estás em Caladmiron, a Grande Floresta, e a mais bela que alguma vez encontrarás. A razão pela qual estás aqui sabe-la, mas admito que a tenhas esquecido. Não faz mal, redescobri-la-ás no devido tempo.

- Mas eu tive um acidente: Devia estar num hospital... - disse ela timidamente; a profundidade da voz dele tinha-a, de certo modo, assustado.

- Sim, é verdade.

- Então como é que vim aqui parar?

- Isso levaria muito tempo a explicar, mas pode dizer-se que estás simultaneamente aqui e no hospital. Estás num Mundo paralelo àquele em que viveste até agora, e que muito poucos conhecem. No teu Mundo estás adormecida, aqui estás acordada, mas vives em ambos. Foste chamada, mesmo que não o tenhas percebido, e por isso vieste. Eu fui escolhido para ser o teu guia e protector. Podes e deves confiar em mim!

- Antes de confiar em ti, quero saber quem és.

- Não percebia o que ele queria dizer com aquilo de Mundos paralelos, mas parecia-lhe que não era lá muito possível que isso acontecesse.

Ele levantou-se e pela primeira vez ela reparou que ele estava vestido duma forma um tanto ou quanto medieval. Tinha umas calças justas verde-seco-claras, umas botas altas castanhas, igualmente justas, uma túnica, de mangas compridas, verde- claras, bordada com folhas douradas, e uma espécie de capa-casaco verde- escura.

- Eu sou um elfo.

Ailura arregalou os olhos e deu uma grande gargalhada. A última vez que tinha ouvido falar de elfos fora há muito tempo, numa das histórias da sua infância. Agora tinha a certeza de que o estranho era doido. Mas ele sorriu suavemente, como se soubesse que ela não ia acreditar, e disse:

- Não acreditas, pois não? - e afastou o longo cabelo doirado para trás duma das orelhas. Ailura viu que esta não era redonda, mas sim pontiaguda, como as dos duendes dos seus livros de infância, e começou a ficar novamente assustada.

- Achas que não sou real? Mas sou, tão real quanto tu! - ele parecia outra vez muito divertido. Agarrou o pulso dela com alguma força, mas sem a magoar. - Vês? Tão real como tu própria.

Virou-se e começou a andar.

- Agora já chega de perguntas, vamos. Temos de nos despachar se queremos chegar antes de anoitecer. Despacha-te. Já não falta assim tanto!

Ela seguiu-o o melhor que pôde; ele não andava depressa de mais, mas nunca a deixava atrasar o passo. Ao fim de algum tempo, começou a sentir-se mais confiante. Ele podia ser estranho, podia mesmo ser um elfo (por algum estranho motivo acreditava nele), mas certamente não iria magoá-la. Por outro lado, Ailura não estava habituada a deixar que alguém que não ela tivesse a última palavra, muito menos um estranho. Por isso, quando achou oportuno, atirou-lhe à cara algo que, pensou, o deixaria sem resposta.

- Mas os elfos são criaturas pequenas, de cerca de sessenta centímetros, e tu deves ter no mínimo um metro e setenta!

Ele continuou a andar, mas riu durante um bom bocado. Finalmente, disse:

- Sim, suponho que é isso que dizem as histórias dos humanos. Mas, como vês, é mentira. Os humanos são um bocado estúpidos, não são?

Fora ainda pior que ter estado calada. Desta vez, ele deixara-a claramente sem argumentos, para além de a ter insultado indirectamente. Mas não ia desistir. Se ele estava a pensar que ela lhe obedeceria como um cachorrinho fiel, então estava muito enganado. Parecia condenada a ter de fazer uma espécie de viagem com ele. Tudo bem! Também não lhe parecia que tivesse grande escolha, e sempre preferia viajar com ele do que ficar sozinha naquele lugar estranho. No entanto, se ia passar algum tempo com ele, havia uma coisa que ela queria saber e que ele ainda não lhe tinha dito: o seu nome.

- Quero que saibas que, se vamos "viajar" juntos não serás superior a mim e que eu não aceito ordens de ninguem.

- Sei perfeitamente que não sou superior a ti.

E podes ficar descansada que não te darei uma única ordem. Sou o teu guia, não o teu chefe!

- Óptimo, ainda bem que esclarecemos isto. A propósito, qual é o teu nome? Posso dizer-te que o meu é Ai...

- Sei muito bem que te chamas Ailura. Mas os nomes não são importantes.

Ela percebeu que ele não lho diria, o que a irritou ainda mais. E como é que ele sabia o seu nome? Decididamente, ele era insuportável; devia achar que sabia tudo e que ela não sabia nada. Haveria mais elfos naquela floresta? Como é que ele lhe tinha chamado? Cailidmen? Cali...? Ah, sim, Caladmiron. Seriam todos os elfos convencidos como aquele o era? Bem, estava certa que por ele não saberia mais nada. Pelo menos, não naquele dia. Decidiu que ficaria calada até chegarem onde quer que fosse que ele tinha decidido chegar.

Lá, logo se veria o que iria acontecer.

Ao anoitecer, chegaram finalmente a uma clareira onde estava construída uma casinha baixa e rectangular. Não era muito grande, mas tinha um ar acolhedor.

Ele aproximou-se da porta e bateu. Uma rapariga ruiva e de olhos profundamente azuis abriu-lhes a porta. Tinha um bonito vestido verde brilhante que ondulava quando ela se mexia, o que criava estranhos reflexos cintilantes. Todos os seus gestos eram extremamente graciosos.

- Estás atrasado, Edínmtor! - Então era assim que ele se chamava.

- Eu sei. Desculpai, Elianor.

- Entrem. Daqui a pouco é noite e vocês devem estar cansados e com fome.

Pela primeira vez Ailura deu-se conta de que não comia desde o almoço e que estava cheia de fome. Aliás, tudo o que queria agora era uma refeição quente e uma cama lavada com um bom cobertor. Parecia-lhe que iam ficar ali a dormir, e a rapariga era simpática. De manhã, pedir-lhe-ia alguma roupa mais confortável e talvez uns sapatos mais apropriados para longas caminhadas.

Entraram para uma salinha onde a lareira estava acesa. De cada lado da sala havia uma porta. A da direita dava para a cozinha e a da esquerda para um corredor.

Elianor conduziu-os pelo corredor até à porta do fundo que dava para uma casa de banho onde já estavam preparados dois banhos quentes. Ailura ia começar a protestar que não tomava banho com ele, mas Elianor perguntou suavemente:

- Qual de vocês vai primeiro?

- Ela - respondeu imediatamente Edínmtor, para grande surpresa de Ailura.

Pareceu a Ailura que aquele era o melhor banho que alguma vez tinha tomado. Provavelmente por estar tão cansada e gelada. Quando saiu do banho e se enrolou na suave toalha branca, ficou espantada ao ver que as suas roupas tinham desaparecido, mas que estavam à sua espera umas novas, em cima de um banquinho. Vestiu-as e olhou-se ao grande espelho colocado a um canto da casa de banho. Não lhe ficavam nada mal; de facto ficavam-lhe até muito bem. Eram parecidas com as do elfo. Umas calças justas verde-escuras, umas botas como as do elfo, mas pretas, e uma túnica, de mangas compridas, verde-seco- claras, com flores douradas bordadas.

Subitamente, percebeu que estava alguém à porta. Virou-se rapidamente, mas era apenas Elianor, que lhe sorriu.

- Já acabaste?

- Já! Muito obrigada pelas roupas.

- Oh! De nada, minha querida. Talvez seja melhor mostrar-te o quarto onde vais dormir e deixarmos a casa de banho livre para Edínmtor.

- Ããã... Pois... claro! - Ailura não estava muito certa de querer ser agradável para aquele elfo, mas, ao fim e ao cabo, ele tinha- a ajudado. Ele devia merecer um banho, e a água dele já não estaria tão quente quanto a sua!

Entraram num quarto onde havia uma cama de solteiro, um pequeno armário e um toucador, em cima do qual estava um espelho oval, com um banquinho baixo. Uma janelinha abria para a floresta. Enfim, era um quarto agradável, principalmente depois de um dia como aquele.

- Talvez queiras descansar um pouco. Chamo-te quando a comida estiver pronta - e Elianor saiu, fechando a porta atrás de si.

Ailura foi até ao toucador, sentou-se no banquinho e olhou para o espelho. Era a mesma Ailura de sempre; mas o que é que estava a acontecer-lhe? Por outro lado, sentia-se bem naquele lugar. Parecia mesmo que a sensação de vazio estava a desaparecer!

Pegou num pentezinho que estava em cima do toucador e começou a pentear-se. Os seus cabelos estavam de facto grandes de mais, já quase chegavam ao meio das costas. De certeza que de manhã não conseguiria fazer o rolo que costumava usar, e, mesmo que conseguisse, ele não se aguentaria muito tempo, especialmente sem laca!

Quando acabou, deitou-se um pouco em cima da cama e fechou os olhos. Conseguia ouvir os pássaros a chilrear e o vento a brincar com as folhas das árvores. Era uma música suave, extremamente calma, que ela agradeceu. Aquele "Mundo paralelo" era suave e fresco: Parecia tão puro e sem preocupações: ... Supunha que nada do que ela fizesse a tiraria dali, pelo menos para já! O melhor era, portanto, aproveitar ao máximo fosse lá o que fosse. Edínmtor parecia saber o que fazer. Por agora teria de confiar nele, por muito que isso lhe desagradasse:

Bateram à porta. Ailura levantou- se e abriu, esperando ver o agradável rosto de Elianor. No entanto, deparou- se com o de Edínmtor, o que a deixou inexplicavelmente aborrecida. Ele esboçou um sorriso pândego.

- Elianor espera-nos. Vamos? - perguntou,

estendendo-lhe o braço.

- Vamos.

- Passou por ele, ignorando o seu braço, fechou a porta e ficou à espera que ele lhe indicasse o caminho.

Percorreram o corredor, passaram novamente pela salinha e entraram na cozinha.

Havia uma grande mesa, já posta para o jantar, onde os aguardavam fumegantes travessas de legumes, batatas e carne. Encostado à parede havia um balcãozinho de cozinha e um fogão a lenha, do qual saía uma enorme chaminé que se perdia no tecto da casa. Mas Elianor não estava lá.

- Boa noite, Elianor - disse Edínmtor, olhando para a porta que dava para o exterior. Ailura virou-se rapidamente e viu a bela figura de Elianor recortada na porta.

Elianor entrou dentro de casa e Ailura reparou, com grande espanto, que lhe nasciam das costas duas grandes asas de borboleta em tons de vermelho transparente.

- Desculpem se os fiz esperar. Fui só buscar um pouco de néctar para bebermos.

Pousou um pequeno jarro em cima da mesa e quando se virou, as asas tinham desaparecido.

Edínmtor e Elianor sentaram-se e Ailura imitou-os. Serviram-se e começaram a comer. Estava tudo delicioso.

- O que se passa, minha querida? - Elianor parecia ter percebido a inquietação de Ailura desde que esta tinha visto as suas asas. - Não esperavas ver as asas?

- Para dizer a verdade, não. Pensei mesmo que não tivesse visto bem... Elas desapareceram quase logo.

- Elas só aparecem quando preciso delas. Como

devias saber!

"Como devias saber"?: Não, não devia saber nada daquilo. Nunca lho tinham ensinado. De facto, se alguém lho dissesse, pensaria que esse alguém era doido. Mas agora já não sabia quem seria mais doido. Quem lho dissesse, ou ela, por não acreditar!

- Pensei que toda a gente soubesse que as Fadas têm asas! Os livros infantis dos humanos sempre nos representaram com elas - continuou Elianor, com um ligeiro desapontamento na voz.

- Parece que hoje todas as criaturas que eu julgava pequenas se tornaram grandes!

- Sim, já ouvi dizer que os Humanos nos representam sempre pequenos - observou Edínmtor.

- Parecem recear-nos! É como se, por nos representarem pequenos, nos tornássemos mais insignificantes e menos credíveis.

- Não é isso. No meu Mundo é apenas ridículo acreditar em fadas, elfos e outras criaturas mágicas, pelo menos para pessoas acima dos nove anos! - explicou Ailura.

- Minha querida... - Ailura levantou os olhos para Elianor e reparou que ela devia ser muito mais velha do que aparentava, pois nas profundezas dos seus olhos havia o reflexo duma vasta sabedoria, acumulada ao longo dos tempos. - Euvivo há muitas centenas de anos, muitas mais do que tu possas imaginar. O próprio Edínmtor não é tão novo quanto aparenta ser, embora não deva ter mais de cinquenta anos, o que, para nós, é quase como se ele fosse uma criança.

Ela olhou para eles, espantada. Edínmtor não podia ter cinquenta anos, ele não podia ser mais velho do que ela! E Elianor? Como podia ela ter muitas centenas de anos? Dar-lhe-ia, no máximo, trinta e dois anos.

- Não parece, pois não?

- De facto... não. Pensei que Edínmtor tivesse a minha idade.

- Bem, para nós, vocês têm quase a mesma idade.

Poderiam mesmo casar um com o outro.

- NUNCA! - Era óbvio que o tinha dito alto

de mais. - Desculpai, mas penso que é impossível que venha a apaixonar- me por ele. Pelo menos tão impossível quanto eu ficar a viver neste Mundo.

Elianor sorriu enigmaticamente.

- As Fadas e os Elfos ficam eternamente jovens a partir duma certa idade. Mais ou menos aos vinte e cinco anos.

- Mas então... vocês são eternos?

- Não, minha querida! Morremos como todos os seres vivos. Apenas vivemos mais tempo, cerca de dois mil e quinhentos anos.

Fez uma pausa e olhou para o lado. Fechou os olhos por momentos e inspirou fundo. Depois voltou-se novamente para Ailura.

- Os Homens nem sempre nos temeram. Quando eu era ainda uma jovem fada, eles adoravam-nos e sabiam que existíamos. Os nossos dois Mundos costumavam colidir frequentemente. Mas os Homens passaram a adorar o que não podiam ver, ficaram independentes e o seu conhecimento desenvolveu-se muito para além do que a maioria deles esperava. E assim, porque não era lógico, eles esqueceram-nos. Passámos a ser só uma bonita fantasia para os anos em que ainda são crianças.

- Deixaram de querer acreditar; deixaram de sonhar.

- Não digas isso, Edínmtor - disse, firmemente, Elianor. - Os Homens nunca deixaram de sonhar. Foi a sua capacidade de nunca deixar de sonhar e acreditar no impossível que os levou onde eles estão hoje. - Não tenho bem a certeza de terem chegado a grande sítio.

- Isso não nos cabe a nós decidir ou julgar, Edínmtor - repreendeu Elianor. - Desde que eles sejam felizes, acredito que têm toda a sabedoria necessária para decidir o que é melhor para eles. Não te esqueças de que nós somos muito diferentes deles, por muito parecidos que sejamos fisicamente.

Ailura tinha, sem dúvida, algumas perguntas a colocar, mas, quando olhou para a fada, pareceu-lhe que ela não estava disposta a dizer mais fosse o que fosse. Não parecia zangada, apenas um pouco aborrecida com Edínmtor. Este parecia saber que tinha feito algo errado e passou o resto da refeição de cabeça baixa, o que agradou muito a Ailura. Definitivamente, ele e ela não jogavam. No entanto, era engraçado ter encontrado alguém que conseguisse fazer-lhe frente, e até levar-lhe a melhor de vez em quando, não que fosse sempre, é claro! De uma maneira ou de outra, ela teria a última palavra, e quem ri por último ri melhor.

Passaram o resto da refeição em silêncio. Elianor serviu ainda uns bolinhos de mel com compota de ameixas.

- Agora é melhor irem deitar-se - disse Elianor, quando já tinham comido o suficiente. - Amanhã têm de se levantar cedo. Eu chamo- vos um pouco antes de amanhecer.

Ailura e Edínmtor foram juntos até aos quartos. No entanto, não trocaram uma palavra.

- Boa noite, Ailura. Até amanhã.

- Boa noite.

Quando Ailura entrou no quarto, descobriu uma bonita camisa de noite em cima da cama. Vestiu-a e enfiou-se na cama.

Tinha sido um dia cansativo. Ou teria sido apenas um sonho? Não lhe parecia. Era demasiado real para ser um sonho. Ainda ali estaria quando acordasse? Talvez sim, talvez não. O certo era que, se estivesse, teria de se levantar cedo e, muito provavelmente, teria outro dia igualmente cansativo. E se não estivesse, logo se veria. Por isso, o melhor que tinha a fazer era dormir.

Soprou para apagar a vela que iluminava o quarto, virou-se na cama, puxou os cobertores mais para si, fechou os olhos e adormeceu profundamente.

Isabel tinha ido passar férias a casa dos seus tios. Mas a verdade é que não se divertia lá muito. Eles raramente estavam em casa e a sua prima Amélia nunca a deixava brincar com ela e com as amigas. Por isso, Isabel tinha como único divertimento explorar o enorme casarão em que os tios viviam. Eles não punham qualquer tipo de objecção, apenas tinham dito à criada para não a deixar afastar-se muito no bosque para onde davam as traseiras da casa, não fosse a rapariga perder-se.

Isabel era uma criança extremamente curiosa. Tinha apenas sete anos, mas era notório que se tornaria numa bonita mulher. Tinha olhos muito verdes e cabelo preto brilhante, cortado curto. Era uma criança cheia de alegria e vivacidade.

Naquele dia, tinha escolhido o sótão como lugar de exploração.

Subiu todos os lances de escadas até chegar a uma grande porta. Esticou o braço para chegar ao puxador e, com alguma dificuldade, abriu a porta. Entrou, tendo o cuidado de a fechar atrás de si. Não queria ser incomodada.

Bem no centro do sótão encontrava-se um grande espelho rectangular emoldurado por um caixilho dourado, profusamente trabalhado. Parecia muito antigo. Tinha algumas manchas de bolor e o caixilho estava ligeiramente ferrugento.

Isabel aproximou-se e, sem saber bem porquê, encostou as duas mãos ao espelho e murmurou:

- Para onde me queres levar, estranho espelho? Sentiu-se escorregar para dentro do espelho. Assustada, fechou os olhos e tapou a cara com as mãos.

Quando voltou a abrir os olhos, estava sentada no chão dum amplo quarto. Atrás de si encontrava-se um espelho idêntico ao da casa dos seus tios, mas mais bem conservado. No topo do caixilho estavam inscritas as seguintes palavras:

 

                     E AQUI CHEGARÁS

Isabel levantou-se e olhou à sua volta. O quarto era bonito, mas simples. Havia um armário, uma cómoda, um toucador e uma cama de madeira escura. A cama tinha uma colcha de seda com folhas verdes e flores multicolores finamente bordadas. Em cima do toucador estavam alguns frascos de perfume, um pente, uma escova e uma caixinha que Isabel supôs ter jóias dentro. Pousada na cómoda estava uma taça de vidro com pétalas que boiavam numa água avermelhada.

Por cima da cama havia uma janela com os cortinados abertos. Isabel subiu para cima da cama e espreitou pela janela. Dava para uma floresta de altas árvores de folhas verdes e chão vermelho e dourado.

Quando se virou, deparou com uma porta. Supunha que estava na casa de alguém, logo, aquela porta devia dar para o interior da casa. Curiosa como era, resolveu abri-la e bisbilhotar o resto da casa. Ao abri-la, viu-se num corredor. Numa das extremidades havia uma porta fechada e na outra uma porta aberta que dava para uma salinha. Como tinha dificuldade em abrir portas, decidiu ir até à salinha.

Mais uma vez, a sua decoração era simples. Apenas uma lareira, uma mesa baixa e oval, com outra taça de vidro cheia de uma água avermelhada e pétalas a boiar, um grande sofá azul e um cabide com uma bonita capa azul-escura pendurada.

Isabel observou minuciosamente cada objecto e sentou-se no sofá a descansar.

- Olá!

Isabel levantou-se, assustada, e olhou para a bonita figura de uma rapariga ruiva que estava atrás do sofá.

- O... Olá! - respondeu, a medo.

- E quem é esta simpática intrusa?

- Eu sou a Isabel - e depois, achando que devia ser simpática, estendeu a mão. - Muito prazer em conhecê-la!

A rapariga contornou o sofá, baixou-se e apertou a mão de Isabel.

- Muito prazer, Isabel. Eu sou a fada Elianor.

- Levantou-se. - Chegaste pelo espelho.

- Sim. Acho que sim! Fiz alguma coisa mal?

- Não, de maneira nenhuma!

Elianor olhou para Isabel, que, apesar de ainda estar atrapalhada, já não parecia ter medo.

- Queres voltar para casa, Isabel? Se quiseres, eu levo-te.

Isabel olhou à sua volta e depois para a fada.

- Eu gostava de ficar mais um pouco - respon deu. - Posso?

- Claro! Eu ia agora fazer chá para beber com bolinhos de mel. Também queres?

- Oh sim, por favor.

A fada agarrou a pequenina mão de Isabel e levou-a até à cozinha. Sentaram-se e iam começar a comer quando alguém bateu à porta que dava para o exterior. Elianor levantou-se e abriu.

- Olá, Angus. Hoje tens alguém com quem brincar. Entra.

Um rapazinho de aproximadamente nove anos entrou. Tinha olhos cor de bronze e cabelo castanho. As suas orelhas eram arrebitadas como as dos gnomos dos livros que a mãe de Isabel lhe costumava ler. Parecia muito simpático.

- Olá, Elianor. Como estais hoje?

- Muito bem, obrigada. Deixa-me apresentar-te a Isabel.

Isabel levantou-se e estendeu a mão para Angus. Mas Angus não a apertou; em vez disso, fez uma vénia a Isabel, beijou-lhe a mão e, quando se levantou, disse:

- Permiti-me dizer-vos que sois a mais bela dama que já vi até hoje.

- M... m... muito obrigada! - respondeu Isabel, corando muito.

Elianor riu suavemente.

- Muito bem, Angus. Vejo que te tens aplicado nas aulas de etiqueta. Sem dúvida que foste muito delicado - elogiou Elianor.

- Obrigado! Mas o que disse é verdade. – Angus estava um pouco aborrecido. Não o tinha dito por mera cortesia. A rapariga era sem dúvida muito bonita!

- Desculpai, meu príncipe!

A fada parecia extremamente divertida, mas a atenção de Isabel já estava virada para outro lado.

- És mesmo um príncipe? - perguntou, entusiasmada.

- Sou - respondeu Angus, como se fosse perfeitamente natural. - Mas podes chamar-me apenas Angus.

- Uau! Nunca tinha conhecido um príncipe. - Bem, agora já conheces. - Angus começava a sentir-se nervoso. Não tinha muito jeito para lidar com raparigas.

- Vocês os dois não preferiam ir brincar lá para fora?

Eles olharam um para o outro e depois abanaram positivamente as cabeças.

- Então vão lá. Não a tragas muito tarde, Angus - recomendou Elianor. - E tenham cuidado. Fiquem

por aqui, não quero que vos aconteça nada de mal. Elianor deu-lhes um saco com alguns bolos e os dois saíram.

Tinham descoberto um lugar agradável, com algumas pedras que lhes serviam de bancos e um pequeno charco onde eles se divertiram a chapinhar. Quando se cansaram, sentaram-se nas pedras e comeram os bolos que Elianor lhes tinha dado.

- Afinal, Isabel, o que és tu? Uma fada?

- Não. Eu vim pelo espelho...

- Que espelho?

- O da Elianor.

- Não estou a ver que espelho é!

- Também não interessa.

- Tens razão. Diz lá o que és!

- Sou uma rapariga.

- Isso consigo eu ver! - disse Angus. - Não sou parvo! O que eu quero saber é de que raça és.

- Ah! Da raça humana, é claro.

- Nunca tinha conhecido uma humana!

- Não? - perguntou, admirada, Isabel.

- Não - respondeu Angus.

- Bem, e tu? O que és:

- Um elfo.

- Eu também nunca tinha conhecido um elfo! Passaram o resto da tarde a falar sobre Elfos, Fadas e Homens. Ambos se sentiam muito bem um com o outro. Mas é uma das regras da Natureza que todo o dia dá lugar à noite. Por isso começou a anoitecer e eles tiveram de regressar. Elianor repreendeu-os um pouco porque já era quase noite quando eles chegaram, mas acabou por presenteá-los com um sorriso manso e Angus e Isabel perceberam que ela não estava zangada. Só preocupada.

- Voltas amanhã? - perguntou Angus.

- Volto - prometeu Isabel.

A fada levou-a de volta ao quarto onde estava o

espelho.

- O que faço agora? - perguntou Isabel.

- O mesmo que fizeste junto do outro espelho. Mas desta vez pede que te leve de volta - aconselhou Elianor.

Isabel aproximou-se do espelho, colocou ambas as mãos nele e pediu:

- Leva-me de volta, estranho espelho.

Sentiu-se uma vez mais escorregar para o seu interior e, quando abriu os olhos, estava novamente no sótão dos tios em frente ao antigo espelho. Olhou para o topo do caixilho.

 

                   DAQUI PARTIRÁS...

Sorriu ao ler as palavras. Tinha feito a mais fan tástica das suas descobertas, desde que chegara àquela casa.

Isabel e Angus encontraram-se no dia seguinte e no que se lhe seguiu, e no outro ainda, até que Isabel teve de regressar a casa dos pais. Mas no Verão do outro ano voltaram a encontrar-se, assim como em todos os Verões que se seguiram. E os anos passaram, e eles foram crescendo, bem como a sua amizade...

 

                     OS MAGDUL

Ailura acordou com alguém a bater à porta. O Sol devia estar a nascer, porque ainda não havia muita luz. Olhou à sua volta e viu que ainda estava no quarto em que tinha adormecido na noite anterior. Então continuava em casa de Elianor! De certo modo estava contente por não ter regressado ao seu Mundo.

Voltaram a bater. Tinha de se levantar, por mais que isso lhe custasse.

Vestiu-se e começou a pentear o cabelo. Se ia viajar, tinha de conseguir prendê-lo, desse lá por onde desse. O problema era que, para além de não ter laca, nem sequer tinha um elástico ou uma fita para o prender.

- Minha querida, posso entrar? Ao ouvir a voz de Elianor, Ailura foi rapidamente abrir a porta. A fada entrou e cumprimentou-a amavelmente. Tinha nas mãos várias fitas douradas e verde-seco-claras.

- Se não te importas de sentar no banquinho, eu

começava a fazer-te o penteado.

Ailura sentou-se, um pouco admirada. Teriam as

Fadas a capacidade de ler os pensamentos das outras pessoas?

Elianor entrançou-lhe o cabelo em várias tranças

finas e grossas, que prendia com uma das fitas. Por fim, apanhou o restante cabelo, juntamente com as tranças, num rabo-de-cavalo que prendeu com as duas últimas fitas. Ailura olhou-se ao espelho. Estava muito bonita.

Elianor estava a cortar as fitas das tranças para que não fossem demasiado grandes, o que pareceria ridículo.

- Então, Ailura, gostas?

- Muito. Mas receio que não vá aguentar-se muito tempo.

- Oh! Vai sim! Porque o entrancei com palavras mágicas e o prendi com fitas mágicas. Só se desfará quando tu própria o soltares!

Sorriram uma para a outra.

A fada saiu do quarto e Ailura seguiu-a até à cozinha. Edínmtor já lá estava.

A mesa estava uma vez mais posta, com pão a fumegar, bolos e um grande jarro de leite. Havia ainda vários tipos de compota, mel e alguma marmelada.

Comeram em silêncio, cada um perdido nos seus pensamentos.

Quando acabaram, Elianor pegou em duas mochilas e entregou uma a cada um deles.

- Aí está tudo o que vão precisar para a viagem. Uma manta para as noites mais frias, corda, água, um pouco de vinho e mantimentos. Usem-nos com cuidado e gastem apenas o mínimo indispensável. Pode acontecer alguma coisa pelo caminho que vos atrase e não devem ficar sem mantimentos. - Pegou numa capa verde-escura e entregou-a a Ailura. - Isto é para ti.

Conduziu-os até à sala. Suspirou profundamente. Estendeu a mão para um embrulho que estava em cima duma mesa oval, hesitou por alguns instantes e por fim agarrou-o.

- Edínmtor, o teu pai deixou isto para ti.

- Entregou-lhe o embrulho. - Usa-o apenas se for necessário. Se não precisares dele nem sequer o desembrulhes:

O elfo assentiu com a cabeça; a sua expressão era grave. Depois guardou rapidamente o embrulho dentro da mochila.

- Agora têm de ir. Mas, antes, preciso de dizer uma coisa a Ailura. Espera um pouco lá fora, Edínmtor.

Ele saiu, fechando a porta atrás de si.

- Ailura, eu sei que estás habituada a dar ordens e a ser obedecida. Também percebo que o teu orgulho seja grande, talvez grande de mais! Mas nesta viagem terás que pôr isso de lado. Tens de confiar em Edínmtor. Ele sabe o que faz. Minha querida, promete que o farás!

- Eu prometo que vou tentar. - E, subitamente, deu-se conta que não conseguia dizer-lhe que não, fosse ao que fosse.

- Há ainda outra coisa que tenho de te dizer.

Estou certa que quererás fazer perguntas, mas peço-te que não as faças. - Fez uma pequena pausa. – Durante esta jornada tens de te redescobrir. Aprende a acalmar o teu espírito, a amar a simplicidade, para mais tarde te poderes deslumbrar com o magnificente. Respeita tudo e todos os que te rodeiam. Segue os teus instintos, mas não esqueças a razão por completo. Acredita no teu coração, mesmo que a cabeça te diga que não é possível. Ama. E, acima de tudo, sê verdadeira contigo própria.

Durante alguns momentos, olharam- se nos olhos. Cada uma tentando ver na outra o que não era visível. Ailura queria abraçar a fada. Há tanto tempo que ninguém lhe dava verdadeiro carinho e amor! Era como se Elianor fosse uma sombra do pai que tinha perdido há tantos anos. E então algo no seu espírito se iluminou.

O pai? ... Como o tinha esquecido? A ele e suas histórias, às brincadeiras de ambos. E pela primeira vez deu-se conta que tinha tentado esquecê-lo. Porquê? Era simples. Para esquecer o sofrimento de o ter perdido, sem ter tido tempo de se despedir, sem saber a razão pela qual ele partira, a razão pela qual a tinha abandonado. Nem sequer sabia o que lhe tinha realmente acontecido.

- O meu pai costumava dizer-me coisas desse género, quando eu era muito pequena - acabou por dizer. - Mas isso foi há tanto tempo! ...

- O teu pai era um homem muito sábio - observou Elianor, suspirando novamente. - Está a fazer-se tarde. Tens de ir.

Levantou-se, beijou-a na testa e saiu pela porta que dava para o corredor.

Ailura ficou sozinha. Olhou uma última vez para a salinha e saiu da casa da fada. Quando viu Edínmtor deu-se conta que tinha a cara molhada de lágrimas.

Sem que o conseguisse evitar, caiu nos seus braços a chorar incontrolavelmente.

O dia estava fresco, o que se tornava extremamente agradável para viajar, principalmente para alguém que viajava a pé, como eles. Os ramos das árvores ondulavam com o vento. Ocasionalmente uma folha seca caía, embelezando o chão dourado e vermelho.

Ailura ainda tinha de limpar uma lágrima ou

outra que teimava em cair. Não percebia porque tinha ficado tão triste: Seria por se ter despedido daquela fada que lhe inspirava tanta calma? Ou não tinha suportado a recordação do pai? Por outro lado, estava zangada consigo própria por ter chorado à frente de Edínmtor, e principalmente por ter chorado nos seus braços. Só esperava que ele não tivesse ficado com ideias erradas!

Tentou expulsar estes pensamentos para poder cumprir a promessa que tinha feito a Elianor. Mas surgiu-lhe outro problema. Estava a caminhar já há muito tempo, com um peso considerável às costas, e não estava habituada a andar. O cansaço e as dores estavam a apoderar-se dela. Tinha de parar.

- Edínmtor - chamou Ailura -, podemos parar um pouco? Estou cansada!

- Está bem. Paramos para comer qualquer coisa e para descansar um pouco. Mas depois só paramos quando anoitecer!

A ideia de só parar quando anoitecesse não lhe agradava muito. No entanto, agora tinha de parar, por isso concordou. Mais tarde logo se veria, talvez conseguisse convencê-lo a parar novamente.

Sentaram-se nas folhas secas e abriram as mochilas. Havia carne seca, presunto fumado, peixe salgado, biscoitos, bolos de mel e muita fruta. Comeram um pouco de peixe, bolos de mel e uma peça de fruta.

Redistribuíram o peso pelas mochilas (desta vez a de Ailura estava muito mais leve que a de Edínmtor) e deitaram-se à sombra a descansar.

O Sol estava a começar a pôr-se. Ailura calculava que tivessem caminhado cerca de cinco horas desde que tinham parado, mas, como não tinha relógio, não podia ter a certeza. Nunca o usava, pois existiam milhares por toda a redacção do jornal. Mas agora sentia- se descontrolada, sem qualquer controlo sobre o que acontecia. Estava habituada a reger-se pelo tempo. Ele era vital, pelo menos se se queria ter todos os artigos prontos na altura da impressão!

O elfo estava a abrandar o passo. Por fim, parou.

- Hoje dormimos aqui - declarou.

Ele só podia estar a gozar. Nunca na sua vida Ailura tinha dormido ao relento, nem mesmo das raras vezes em que tinha feito campismo. E certamente não seria aquela a primeira.

- O que foi? - perguntou ele, admirado. – Não gostas do sítio?

Então ele estava a falar a sério!

- Não posso dormir aqui.

- Porque não? É perfeito; não é nem muito exposto, nem muito ventoso. E já está a anoitecer. Não temos tempo para procurar outro lugar!

- Não há nenhuma casa por aqui? Nenhum barracão abandonado?

- Não! É claro que não: - Ele parecia estar a ficar irritado. - Mas porque é que não podes dormir ao ar livre?

Ela sabia que ele ia achar ridículo, por isso não ia dizer-lhe. Recusava-se a dar-lhe um motivo para se rir dela.

- Ailura, porque é que não podes dormir ao relento?

- Não é da tua conta! Não te vou dizer.

- Estou a perder a paciência! E não queria! Dá-me um bom motivo para não poderes dormir aqui, só um, e eu prometo que hei-de arranjar uma solução. Não sei como, mas arranjarei!

Se ele arranjasse uma solução... Valia a pena arriscar.

- Eu... Eu tenho medo de aranhas.

Edínmtor ficou a olhar espantado para ela, mas não se riu.

- Se é só por isso, podes ficar descansada. Elas temem-nos. Não se aproximarão sequer. Podes estar tranquila, que não acordarás com nenhuma em cima de ti.

- Tens a certeza? - perguntou a medo.

- Absoluta - respondeu ele, e Ailura acreditou.

- Agora podemos comer? É bom que esta noite durmas bem, pois amanhã teremos de andar mais do que hoje!

Comeram e depois estenderam-se no chão, com as mantas por cima deles. Passado pouco tempo, Edínmtor tinha adormecido. Ele devia estar habituado àquilo, mas ela não! Deu várias voltas até que, finalmente, adormeceu também.

Era ainda de noite quando Ailura acordou.

Tinha sono, mas depressa percebeu que não podia dormir mais. Edínmtor estava a tirar alguns bolos para o pequeno-almoço e já tinha arrumado a sua manta.

- Bom dia - disse o elfo, amavelmente.

- "Boa noite", queres tu dizer! - retorquiu Ailura, de mau humor.

Ele encolheu os ombros e deu-lhe um bolo. Para

grande surpresa de Ailura, os bolos ainda estavam frescos, pareciam acabados de fazer. Comeu dois e bebeu um pouco de água. Ia arrumar as suas coisas mas o elfo já o tinha feito.

- Estás pronta para continuar?

- De maneira nenhuma - respondeu. - Estou cheia de sono.

- Receio que tenhas de dormir enquanto caminhas. Não podemos atrasar-nos mais!

- Ah! E tu sabes lá se eu consigo ou não andar? Se eu me recusar a sair daqui, o que é que tu fazes?

Aparentemente, continuava sem ela. Quando terminou a frase, já Edínmtor tinha começado a andar. Não teve outro remédio senão apressar-se a segui-lo.

- Pensei que eras o meu guia e protector. Não me podes deixar para trás! - sorriu sarcasticamente.

- Assim não me proteges.

Edínmtor parou bruscamente, o que fez com que Ailura chocasse com ele.

- Eu quero fazer esta viagem contigo, tanto quanto tu a queres fazer comigo - virou-se, profundamente irritado. - Por isso, Ailura, tenta não me aborrecer. Estou a tentar ser o mais simpático possível, mas, se preferes que me comporte como se fosse invisível, tudo bem. Só não me faças perder a paciência!

- Não preciso, Edínmtor. Já a perdeste.

Ele levantou uma mão e, por momentos, ela pensou que ele lhe ia bater. Mas ele cerrou o punho e baixou, lentamente, o braço.

- Tens toda a razão, Ailura. Por isso, se achas que consegues fazer esta viagem sozinha, podes ir. Está descansada que não vou tentar impedir-te.

- Óptimo! - disse secamente. - Adeus, Edínmtor. Até nunca.

- Até nunca, Ailura.

Ailura não fazia a mínima ideia onde estava, para onde ia. Estava sem dúvida perdida. Há muito se arrependera de ter deixado Edínmtor. Pelo menos ele conhecia aquele lugar e sabia por onde deviam ir. Se ao menos lhe tivesse pedido um mapa, podia voltar para a casa de Elianor e pedir-lhe ajuda. Mas, infelizmente, não se tinha lembrado de o fazer, pelo que tinha de se desembaraçar sozinha. Não ia desistir, não era pessoa para isso.

Chegou a uma pequena clareira e, como o seu estômago acabara de se queixar e o sol já ia bem alto, decidiu sentar-se para comer qualquer coisa. Quando tivesse a barriga cheia, pensaria no que havia de fazer. Tirou um bocado de carne e começou a comer.

Uma brisa agitou-lhe os cabelos. Ailura assustou-se. Mas não foi o vento que a sobressaltou. Uma sombra movia-se no meio das árvores. Levantou-se com o coração a bater muito depressa.

- Quem está aí? - perguntou. No entanto, a resposta não chegou e a sombra desapareceu. Voltou a sentar-se, decidida a esquecer a sombra. Provavelmente, era só um animal que tinha muito mais medo dela do que ela dele.

Suspirou fundo, mas foi empurrada. Caiu no chão. Levantou a cabeça para ver o que a tinha feito cair. À sua frente estava uma horrível criatura de pele acinzentada e olhos vermelhos. Tinha um ar extremamente feroz. Grunhiu alto e dirigiu-se a ela. Ailura tentou correr, mas a criatura agarrou-a pelo pescoço.

Estava a sufocá-la. "Está a tentar matar-me", pensou Ailura, com uma estranha clareza. Instintivamente, atirou as pernas para trás, na tentativa de lhe acertar. Mas nada parecia magoá-la. Sentiu que estava quase a desmaiar. Mais um pouco e não sentiria qualquer dor. A visão estava a ficar enublada. E então algo aconteceu. A pressão no seu pescoço abrandou e a criatura largou-a. Ailura ouviu a criatura grunhir novamente, mas este era um grito de desespero e profunda dor. Finalmente, caiu, com um estrondo. Estava morta. Ailura virou- se, com dificuldade, para ver o que tinha acontecido.

A criatura tinha um corte profundo na parte lateral do pescoço e outro nas costas. Um pouco mais atrás estava Edínmtor, com um comprido punhal ensanguentado na mão. Ofegava, mas estava ileso. Correu até ela e levantou-a.

- Estás bem?

- Estou. O que era aquilo?

- Um Magdul - respondeu o elfo. - Os Magdul são criaturas hediondas, guerreiros brutais, mas, felizmente, muito burros. Atacam todos os que encontram pela frente, e têm prazer em destruir. - Foi até à mochila dela e começou a arrumá-la. - Infelizmente para nós, nunca viajam sozinhos. Este deve ter-se afastado para caçar qualquer coisa.

Ailura arrepiou-se. Teria estado quase a transformar-se na refeição dum grupo de criaturas feias malcheirosas? Edínmtor estava a olhar para ela.

- Não sei, Ailura, e estou contente por não ter descoberto. - Ela tinha a certeza de que ele percebera o que ela estava a pensar. - Temos que nos apressar. Os restantes já devem estar a procurá-lo. Também não me agrada que eles andem por este lado da floresta. Geralmente, eles evitam-na. Se vieram para aqui é porque andam à procura de alguma coisa... E eu temo que essa coisa sejamos nós.

O elfo ajudou-a a pôr a mochila às costas. Entregou-lhe um pouco de carne e uma maçã.

- Receio que tenhas de comer enquanto andamos.

- Edínmtor - chamou -, não cumpriste o que disseste!

Ele sorriu e Ailura deu por si a admirar o seu rosto iluminado por um sorriso tão puro!

- Eu disse que não ia impedir-te de continuares sozinha. Mas não disse que não ia seguir-te!

- No entanto, disseste-me adeus. Disseste "até nunca".

- Bem, então vamos chamar a esta clareira "nunca". Assim nem eu nem tu mentimos. - E começou a andar.

- Edínmtor! - chamou novamente. - Sim...

- Estou contente por me teres seguido. Obrigada.

Ele virou-se. O seu rosto reflectia uma expressão

de total incredulidade.

- Foi um prazer - respondeu por fim. - Agora temos mesmo de ir. Já perdemos todo o tempo reservado a um cessar de hostilidades. Eu não quero ter de enfrentar os Magdul outra vez, e desconfio que tu também não.

Caminharam durante um bom bocado sem trocarem uma palavra, mas sentia- se um ar mais leve entre eles. Parecia a Ailura que tinha sido uma parvoíce o conflito que tinham criado entre si. Mas existem coisas que tornam duas pessoas amigas. E salvar alguém dum monstro como aquele era, sem dúvida, uma delas.

Finalmente, Ailura apercebeu-se de que estavam

numa estrada.

- Vamos a algum lado em especial?

- Sim. Mas porque perguntas? Certamente não

pensaste que estávamos a fazer esta viagem só para apreciar a paisagem!

- A verdade é que não pensei sequer nisso. Sabia que tinha de a fazer e... - hesitou um pouco, não estava certa se o devia dizer, mas apetecia-lhe ser honesta novamente, dizer o que realmente achava. - Acho que estava demasiado ocupada a chatear-me contigo. - soltou uma gargalhada. - Além disso, é a primeira vez que caminhamos por uma estrada!

- Tens toda a razão. O lugar onde vamos agora é conhecido, respeitado e tem algumas visitas ocasionais como a nossa. Acho que é natural que tenha uma estrada. Não concordas?

- Claro. No meu Mundo... - parou. Há tanto tempo que não pensava nele! Era como se aquele começasse também a ser o seu Mundo. Podia estar ali sem ter saudades do outro. Bem, talvez tivesse saudade dum bom banho, seguido duma sessão de cinema em casa. E, mesmo assim, parecia que conseguiria encontrar ali algo que substituísse esses pequenos e deliciosos prazeres da vida citadina. - Sabes Edínmtor, é fascinante...

Mas Edínmtor nunca chegou a saber o que era fascinante porque naquele preciso momento ouviram-se passos apressados atrás deles e ambos estacaram. Em menos de um segundo, o elfo pegou na sua mão e saíram os dois da estrada. Enquanto corriam por entre as árvores, Ailura olhou para o caminho. Cerca de vinte guerreiros Magdul corriam pela estrada com espadas e arcos grotescos. Era uma das visões mais aterr adoras que Ailura já tinha tido.

Edínmtor correu para uma das margens da estrada e empurrou-a para uma pequena gruta que o amontoado de terra e raízes criara. Pegou no comprido punhal e cobriu o corpo de Ailura com o seu próprio corpo. Fechou-lhe os olhos com uma mão e depois desceu a mão até lhe tapar a boca, para que o som da respiração entrecortada dela não fosse tão audível.

Ela apercebeu-se de todos os seus sentidos a apurarem-se. Conseguia sentir os minúsculos grãos de terra que caíam em cima da sua cabeça e rolavam pela sua cara, sentia o cheiro da terra húmida misturado com o pestilento cheiro dos Magdul, ouvia os seus passos como se fossem tambores. Sabia que, por muito bom guerreiro que o elfo fosse, não teriam qualquer hipótese contra todos aqueles Magdul. Se tinha de morrer, só esperava que fosse rápido e o mais indolor possível.

No entanto, os passos deixaram de se ouvir e o hediondo cheiro das criaturas diminuiu. O perigo tinha passado. Estava viva! Era a segunda vez que escapava à morte num só dia. E naquele momento sentia-se a mais afortunada das pessoas.

 

                       AQUILAD

Tinham abandonado a estrada, mas já há algum tempo que não ouviam nada que os preocupasse. De facto, apenas o chilrear dos pássaros e o som dos seus próprios pés a caminhar nas folhas secas eram audíveis.

O verde das folhas das árvores ficava gradualmente mais claro. A quantidade de flores aumentara. Toda a floresta parecia ainda mais viva do que antes. Havia também uma estranha claridade, uma claridade que não tinha nada de assustador. Era sem dúvida misteriosa, muito provavelmente mágica, no entanto, parecia oferecer uma certa protecção.

Ailura atreveu-se por fim a suspirar. Estava a ficar mais aliviada. Era verdade que ainda tinha bem presente a imagem do Magdul morto que a tinha tentado matar, assim como a do exército de guerreiros Magdul, os quais não se tinham, com certeza, evaporado. No entanto, era como se isso tivesse acontecido num outro lugar qualquer. Parecia a Ailura que não era possível que criaturas tão horrendas caminhassem numa terra tão magnífica.

Agora que o medo estava finalmente a abandoná-la, Ailura começava a sentir-se novamente enso nada. Abriu a boca num bocejo e, instintivamente, levou a mão à boca. Ao tocar-lhe, hesitou. Há não muito tempo, Edínmtor cobrira-a com a sua mão; quase assustada, Ailura deu-se conta do quanto tinha apreciado esse toque. Estaria a apaixonar-se por ele? Não. Muito simplesmente, estava aterrorizada e o gesto dele fizera-a sentir-se segura, como se fosse uma criança pequena protegida pelo irmão mais velho com quem passa o tempo a discutir, mas que sabe que a protegerá sempre.

Chegaram a um grande lago de águas calmas límpidas. O sol criava reflexos extremamente bonitos na água. As margens do lago revestiam-se de verde e flores de várias cores suaves com pequeninas gotas de orvalho sobre as suas pétalas. Também estas pareciam estar cobertas de ouro, devido à luminosidade criada pelo sol.

- Vem, Ailura - disse Edínmtor, enquanto entrava no lago. - Não tenhas medo! Não te vais afogar.

- Mas não tiro sequer as botas? - perguntou ela, admirada por ele entrar na água sem tirar ao menos os sapatos.

- Claro que não. Não vamos tomar banho! Anda, dá-me a tua mão.

Ailura agarrou a mão que ele lhe estendia e ambos entraram no lago. Para grande surpresa sua, caminharam normalmente até ao meio das calmas águas, sem molharem mais do que a sola das botas.

- Edínmtor, o lago é uma ilusão? - perguntou, desconfiada. Tinha de haver uma explicação para eles não terem ficado cada vez mais mergulhados dentro de água.

- Que ideia, Ailura! É claro que não - respondeu o elfo. Depois, ao olhar para a expressão dela, compreendeu a razão da sua questão. - Se souberes por onde ir, não te molhas. E felizmente eu sei o caminho certo.

Largou a mão dela e declamou:

Aquilad, onde morou Nessya, a bela,

Palácio da calma,

Guardiã do Rei que espera a sua amada,

Deixa-nos entrar

As águas à volta deles elevaram-se, lenta e progressivamente, e fecharam-se sobre as suas cabeças. E, enquanto o círculo à sua volta estreitava e a cúpula baixava, desceram, suavemente, para o interior do lago.

Quando as águas deixaram de envolvê-los e desapareceram, Ailura deu por si num grande e amplo corredor com várias portas do lado direito. As paredes eram perfeitamente transparentes e podiam-se ver as águas do lago por cima, por baixo e ao lado deles.

Ocasionalmente, até se via um peixe multicolor a nadar. Havia plantas de folhas verde muito claro com pequeninas flores rosa-forte enroladas à volta das colunas e a cair dos diversos castiçais de cristal pendurados nas paredes. Cada castiçal tinha três velas brancas, nenhuma estava acesa.

- Bem-vinda a Aquilad, o Palácio de Cristal! - disse Edínmtor.

- É o sítio mais bonito onde eu alguma vez estive! - exclamou Ailura, ainda espantada com tamta

beleza

- Não duvido! - respondeu o elfo. - Mas garanto-te que verás outro local ainda mais belo.

- Acho que isso é impossível. Não lhe parecia que fosse possível encontrar um lugar mais maravilhoso do que aquele, mesmo que procurasse por ambos os Mundos! Por outro lado, Edínmtor tinha razão. O palácio era totalmente de cristal. Os castiçais, as paredes, as portas, as colunas, tudo era de cristal, até os dois bancos baixos e compridos que estavam no corredor!

Rodeada de tanta água, Ailura deu-se conta que já não tomava banho desde que tinham saído de casa de Elianor. Seria verdadeiramente maravilhoso se o pudesse fazer.

- Edínmtor, achas que posso tomar banho? - e mal terminou a pergunta, uma das portas abriu-se.

- Parece que sim, Ailura - respondeu o elfo, apontando para a porta que se tinha aberto.

Ailura passou pela porta e esta fechou-se imediatamente atrás de si. Encontrava-se num compartimento com uma grande banheira de cristal, cheia de água quente com três nenúfares a flutuar. Havia um grande espelho numa das paredes, uma toalha dobrada perto da banheira, um vestido comprido, verde-esmeralda e bordado com fio de ouro, pendurado num bonito cabide e um par de sapatos por baixo dele.

Ailura tirou a roupa e subiu os degraus que davam para a banheira, sem, no entanto, desfazer o penteado. A água parecia massajar o seu corpo dorido. Mergulhou a cabeça debaixo de água, lavou-se e sentou-se a pensar.

Onde estaria no seu próprio Mundo? Provavelmente no hospital. A sua mãe devia estar preocupadíssima! Gostava de lá voltar só para a tranquilizar, mas para já queria ficar mais um pouco naquele Mundo. Iria alguém acreditar no que lhe estava a acontecer? Provavelmente, não. De facto, não estava bem segura de que ela própria acreditasse! Não lhe custava nada imaginar-se a achar que tudo não passara de um sonho, era mesmo típico dela! Por outro lado... Havia algo que cada dia a prendia mais e mais àquele Mundo. Não se importava nada de ficar a viver naquele Palácio de Cristal. Só tinha um problema! O jornal. Poderia abandoná-lo, embora lhe fosse custar bastante; afinal era o trabalho de toda a sua vida! Mas uma coisa era certa. Mesmo que o abandonasse, não podia fechá-lo, tinha de o deixar a alguém que fosse capaz de continuar o trabalho como ela o teria continuado. E só havia uma pessoa capaz de o fazer... Pedro! Da maneira como as coisas tinham ficado, ia custar-lhe, mas, se decidisse ficar naquele Mundo, não havia outra hipótese. Tinha de pensar no melhor para o jornal, e não nos seus sentimentos.

No entanto, para já, não via a mínima possibi lidade de voltar ao seu Mundo. Supunha que primeiro tinha de completar aquela viagem. Portanto, o melhor era não pensar nisso por agora e apreciar ao máximo fosse o que fosse que estivesse para acontecer.

Enrolou-se na toalha e olhou à volta, à procura das suas roupas. Mas elas tinham desaparecido; só estavam ali o vestido e os sapatos. Não fazia a mínima ideia a quem pertenciam as roupas, mas, como ainda não tinha visto ninguém para além deles desde que ali chegara, decidiu vesti-las. O vestido era feito dum tecido muito leve e confortável, e assentava-lhe na perfeição.

Quando estava pronta, uma outra porta abriu-se. Ailura atravessou-a e deu por si num amplo quarto.

Também aqui todos os móveis eram de cristal. A grande cama de casal tinha uma colcha branca com plantas, idênticas às que caíam das colunas e castiçais, finamente bordadas, e duas almofadas, igualmente brancas, com apenas três flores de tom rosa-forte bordadas nos cantos superior esquerdo e direito. Em cima do toucador

estavam vários frascos de perfume de diversas formas e tamanhos, bem como um pente e uma escova de ouro branco, um espelho redondo e um arranjo de dálias brancas e cor-de-rosa. Por cima do toucador, havia um quadro com a figura duma jovem de cabelos da cor do sol e olhos intensamente azuis, vestida de verde e rosa; atrás dela, podia ver-se um lago extremamente parecido com aquele em que se encontravam. Uma taça com fruta, um jarro de água e um copo, repousavam numa pequena mesa.

As suas roupas, assim como a sua mochila, estavam pousadas num banco comprido, forrado com um tecido semelhante ao da colcha. Portanto, aquele quarto devia ser o seu, pelo menos para aquela noite. Era agradável pensar que ia ficar a dormir ali, num local tão belo, tão protegido e numa verdadeira cama!

As velas nos castiçais acenderam-se e uma nova porta abriu- se. Ailura transpô-la e deparou-se com um novo corredor. Ao fundo havia duas grandes portas, como as da entrada, que davam para um grande salão e que se abriram. Caminhou até lá com o vestido a esvoaçar atrás de si.

Dentro da sala, encontrava-se uma grande mesa recheada de numerosas iguarias. Ouvia-se uma suave melodia, misturada com o murmúrio das águas do lago. No entanto, ela não percebia donde vinha a música, pois não havia um único músico em toda a sala.

Entrou e aproximou-se da mesa. Havia uma cadeira em cada uma das extremidades. A cadeira atrás de si foi arrastada. Ela virou-se, sobressaltada, mas era apenas Edínmtor. Também ele tinha uma nova roupa, bastante mais cerimonial do que aquela com que viajava.

- Senta-te, Ailura - e ela sentou-se. Ele foi a outra extremidade da mesa e sentou-se.

Ailura ficou a olhar para a mesa recheada de maravilhosos pratos. Mas como é que eles iam servir-se, se estavam ambos sentados? Não precisou de esperar muito pela resposta. Os seus pratos levantaram-se e foram servidos com um pouco de comida de cada prato.

Aparentemente, estavam a ser servidos por seres invisíveis.

- Edínmtor, como é que tudo isto é possível?

- perguntou admirada.

- Bem - começou ele -, temos de agradecer a Aquilad.

- Mas Aquilad é, segundo o que tu me disseste, um palácio. Não tem vontade própria! Ou tem?

- começava a acreditar em tudo.

- Não. Não propriamente. A vontade de Nessya vive, assim como ela viveu, em Aquilad. Deste modo, a sua vontade é, de certo modo, também a vontade de Aquilad.

- Quem era Nessya?

Era a segunda vez que ele pronunciava o seu

nome, assim como era a segunda vez que ele dizia que ela tinha vivido ali.

- Nessya era uma das filhas dos Elementos. Chamavam-lhe "a bela", pois era considerada a mais formosa dos seres que caminhavam sobre este Mundo naquela altura; além disso, era extremamente bondosa.

- O que é que lhe aconteceu?

Edínmtor suspirou, olhou para o tecto e depois

para o seu prato.

- Morreu... - disse por fim. - Mas isso é uma história muito triste que não me apetece contar agora. Não aqui, no meio de tanta beleza. - Olhou para ela com uma expressão grave no seu belo rosto. - Se não queres chamar o mal, não o menciones.

Começou a comer, deixando Ailura muito confusa. O que seria assim tão terrível para que Edínmtor não quisesse falar disso? Acabou por deixar esse problema de parte. Ele tinha razão. Aquele não era o lugar indicado para falar de coisas tristes. Pegou nos talheres (também de cristal) e começou igualmente a comer.

Durante toda a refeição foram servidos por seres invisíveis. Eram provavelmente esses mesmos seres que tocavam aquelas belas e harmoniosas músicas. No final Ailura despediu-se de Edínmtor e seguiu as portas até ao seu quarto.

Tinha vestida uma comprida camisa verde-clara, de tecido esvoaçante. Estava sentada no banquinho rectangular do toucador a olhar para o quadro da rapariga loira.

Seria aquele um quadro de Nessya? Se fosse, aquele teria sido provavelmente o seu quarto. Era, de certo modo, uma honra estar no seu quarto. Edínmtor tinha falado dela com tanta reverência: ... Ela devia ter sido uma pessoa importante. Ter-se-iam conhecido?

Ele ficara tão triste quando a conversa tinha chegado à morte dela! Talvez ele a tivesse amado. No entanto, aquele era o palácio dela, então ela devia ter sido importante, talvez mesmo poderosa. Edínmtor dissera que ela fora uma das filhas dos Elementos. Mas o que queria isso dizer? Se bem se lembrava, os elementos

eram ar, água, terra e fogo. Contudo, não lhe parecia que pudessem ter filhos. Estaria a pensar nos mesmos elementos a que ele se referira? Efectivamente, tinha muitas perguntas a fazer, muitas dúvidas para esclarecer. Ao olhar para o quadro, teve a certeza de que aquela era Nessya, e soube que de certo modo estavam relacionadas.

- Porque me proteges, Nessya? Porque me tratas como se fósse uma rainha? - perguntou, a olhar para a imagem da rapariga. Durante alguns segundos pareceu-lhe que ela sorriu.

Estranhamente, Ailura não se assustou. Estava

simplesmente a habituar-se a que tudo fosse misterioso e improvável. Tinha a certeza de que, quando regressasse ao seu Mundo, se algum dia regressasse, ia ter dificuldade em se habituar à normalidade. "E como é que sabes que é aquilo a normalidade e não isto? Ou melhor ainda, como é que sabes que não são ambas a normalidade? ", perguntou uma vozinha dentro da sua cabeça.

Foi até à cama que já estava aberta, embora não tivessem tirado a colcha. Não fazia mal, provavelmente não era mesmo para tirar e, de qualquer modo, ela estava demasiado cansada para o fazer. Deitou-se e as velas apagaram-se.

Todas as perguntas, todas as dúvidas podiam certamente esperar. Agora era tempo de dormir e

esquecer todas as preocupações. Já que estavam a tratá-la como uma rainha, ia gozar aquela noite como se o fosse. Por isso, deixou-se afundar nas almofadas, apreciou o suave toque da seda de que era feita a colcha e esvaziou a sua mente de todo e qualquer problema.

- Boa noite, Nessya - disse, olhando uma última vez para o quadro. Depois fechou os olhos e adormeceu.

 

                       MORGRIFF

Ailura caminhava pela floresta. Podia ver a figura duma mulher ao fundo. À medida que se aproximava, as suas feições tornavam-se mais nítidas. Era a sua mãe. Precipitou-se para ela, numa corrida desenfreada. Mas, quanto mais corria, mais longe a sua mãe parecia estar. Exausta, parou a ofegar. Então, muito lentamente, a sua mãe começou a aproximar-se. Ailura estendeu os braços para a acolher. Estava cada vez mais próxima, mais um pouco e a mãe estaria a abraçá-la. Cada vez mais próxima, cada vez mais próxima... Fechou os olhos, pronta para receber o abraço, mas tudo o que recebeu foram cinzas a esvoaçar pelos céus, a pousarem nas suas roupas e nas ramagens das altas árvores. Cinzas, como se a sua mãe se tivesse reduzido a cinzas, que voavam agora, finalmente livres, pelo Mundo.

Acordou sobressaltada, encharcada em suor.

Estava ainda no quarto de cristal de Aquilad. Tinha tido um sonho, um estranho sonho. No entanto, certamente não passara disso. Um sonho influenciado pelo medo que sentira naquele último dia e pelas saudades que tinha da mãe. Ultimamente, andara tão absorvida com o jornal que mal falara com ela; e agora, que tantas coisas estranhas estavam a acontecer-lhe, sentia a falta dum abraço de mãe. Um daqueles abraços em que se podem afogar as mágoas e esquecer os medos. Um abraço que só uma mãe pode dar.

Virou-se de lado e fechou os olhos, na tentativa de voltar a adormecer. Mas, por mais que tentasse, não conseguia. Portanto, limitou-se a ficar muito quieta numa semi-sonolência, visitando variadas vezes aquele lugar onde a realidade ainda não terminou e os sonhos ainda não começaram, e em que ambos se fundem indistintamente. Por fim, as velas acenderam-se e Ailura, estranhamente aliviada, levantou-se.

Após tomar um banho rápido e vestir as roupas de viagem, comeu algumas fatias de pão que barrou com compota, um bolo de passas e uma peça de fruta. Bebeu dois copos de água e regressou ao corredor ao qual no dia anterior tinham chegado.

Mal a última porta se fechou, Ailura lembrou-se de que não se tinha despedido de Nessya, ou do seu quadro. Mas, por mais que tentasse abrir a porta, esta não se mexeu.

Foi a meio destas tentativas falhadas para abrir a

porta que Edínmtor a encontrou.

- É escusado cansares-te, Ailura - disse ele, afastando-a da porta. - Ela não vai abrir-se.

Ailura teve uma expressão de desapontamento, mas acabou por segui-lo pelo comprido corredor.

O palácio parecia estranhamente deserto. Não que qualquer um deles tivesse visto alguém, mas no dia anterior ele parecia repleto de vida, acolhedor, seguro. Agora estava silencioso de mais, até as águas do lago estavam quietas e caladas, não se via um peixe e a luz do sol parecia penetrar as águas tristemente. Apenas os seus passos no chão de cristal eram audíveis.

Quando estavam quase a chegar ao fundo do corredor, uma das portas abriu-se. Entraram numa sala, que dava para um outro corredor.

Durante um bom bocado do dia, limitaram-se a andar a direito e a entrar por todas as portas que se abriam. Era como se elas lhes indicassem o caminho. De facto, Ailura começava a ter a certeza de que elas sabiam realmente qual o caminho que eles deviam seguir. Só não sabia onde esse caminho a levaria.

Mal Ailura começou a ter fome uma porta abriu-se, revelando uma mesa repleta de iguarias que eles comeram agradecidamente. E assim aconteceu durante todo o dia. Sempre que precisavam de alguma coisa, uma porta abria-se e atrás dessa porta encontrava-se aquilo de que precisavam.

O dia devia estar a acabar. Há muito tempo que percorriam os corredores e as salas daquele palácio labiríntico, e agora a claridade estava a diminuir. Aqui e acolá, uma ou outra vela acendeu-se.

Ailura sentiu-se novamente aconchegada e deixou-se mergulhar nas profundezas dos seus pensamentos. Forçou-se a recordar os seus onze primeiros anos de vida, os anos que passara com o pai. Mas dele só se lembrava dumas quantas fotografias antigas que possuía e duma voz melodiosa que contava histórias de terras encantadas e maravilhosas. Gostaria de se lembrar de mais, mas era ainda demasiado pequena quando ele desaparecera. Apercebia-se agora que ele tinha sido um pai, dum estranho modo, ausente. Apesar de raramente permanecer muito tempo seguido em casa, estava sempre lá quando ela precisava. No entanto, recordava apenas uma visita ao jardim zoológico, uma daquelas visitas em família, com a mãe e o pai. As suas colegas costumavam ir com os pais visitar os avós, ir às compras, ir à praia. Mas a esses lugares ela fora sempre sozinha com a mãe; de facto, quando iam, o pai estava sempre a viajar. Com o pai ia para o campo, correr, ouvir histórias, aprender o nome das plantas.

- Como é que se chama aquela árvore, Ailura? - Carvalho. "

- Muito bem! E aquela planta? " - Feto. "

- Sim, senhora. Só mais uma, Ailura, só mais uma. Depressa! Qual é o nome daquela flor? "

- Orquídea. Que tal? Estive bem? "

- Muito bem. "

- Então acaba lá de contar. O que é que aconteceu depois? "

- Ah! Depois, ele ganhou coragem e... "

Fora há tanto tempo! E lembrava-se de tão pouco! Metade dessas memórias nem sequer o eram. Eram mais episódios que a sua mãe lhe contara e para os quais ela inventara um tempo e um espaço. Mesmo das histórias, mal se recordava das personagens. Sabia que eram personagens encantadas: fadas, elfos, gnomos.

Mas como eram, ela não se lembrava.

Suspirou profundamente. Sentiu os olhos a ficarem molhados. Não podia dar nem mais um passo. Não queria chorar, mas para isso tinha de parar e descansar um pouco.

- Edínmtor... - sussurrou, certa que um tom de voz mais alto provocaria uma avalancha de lágrimas.

No entanto, ele não se virou. Em vez disso, olhou para o tecto, perfeitamente transparente. Ailura seguiu o seu olhar e o que viu secou qualquer lágrima que estivesse prestes a escorrer pela sua cara, substituiu toda a tristeza que tivesse enchido o seu coração e deu lugar a um terror que ela nunca tinha experimentado ou imaginado.

As águas do lago, por cima das suas cabeças, ficavam lentamente mais negras que a própria noite, cheias de um negro viscoso e demoníaco. Tornando-se cada vez mais densas, até que nem um raio de sol conseguia atravessá-las. Aquilad acendeu todas as suas velas e encheu-se da mais pura luz. Uma luz branca, límpida e maravilhosa. Era como se o palácio estivesse a tentar lutar contra toda a escuridão que o envolvia. Edínmtor tirou de dentro da sua mochila o embrulho que Elianor lhe tinha dado e desembrulhou-o. Continha um pequeno e elegante ceptro de ouro maciço, que se abria em duas ovais, uma mais pequena e outra maior que alojava uma grande esmeralda, igualmente oval. O elfo apertou o ceptro com força e a pedra brilhou timidamente. Um riso gelado elevou-se do nada e toda a luz desapareceu. Estavam no meio da mais profunda e tenebrosa escuridão.

Ficaram algum tempo parados até que, ao fundo do corredor, uma ténue luz começou a brilhar. Lentamente, muito lentamente, foi-se aproximando, até que revelou um homem vestido com um manto vermelho-sangue. Parecia ser jovem (mas ali qualquer um podia parecer jovem) e tinha um belo rosto. No entanto, os seus olhos pareceram a Ailura extremamente desagradáveis. Estavam cheios de maldade, uma maldade que crescera com o tempo até se tornar indescritível.

- Bom dia - disse o homem. A sua voz soou harmoniosa e hipnotizante.

- Bom dia - responderam ambos.

- Pareceis em apuros, amigos. Quereis ajuda?

- Primeiro gostaríamos de saber o teu nome

- disse Edínmtor, antes que ela tivesse tempo de dizer fosse o que fosse.

- O meu nome! Sim, quereis saber o meu nome - disse ele, enquanto acariciava a pedra, no topo do seu bastão, donde provinha a luz. - Mas vocês devem sabê-lo. Pelo menos tu, filho de Glordil, sabe- lo. NÃO SABES?

- Penso que sei - respondeu Edínmtor. A sua voz

era firme, mas calma, contrariamente à do outro, que soara terrível e irada.

- Sabes, eu sei que sabes. Quem empunha o Ceptro tem de saber quem eu sou. - Virou-se de costas.

- E agora vou provar-te que não tens poder suficiente para isso.

Virou-se rapidamente e apontou o bastão a

Edínmtor.

- Kedrre - e ao som desta palavra o elfo caiu com um som abafado.

Por um segundo, os aterrorizantes olhos do homem encontraram-se com os de Ailura. Depois, instintivamente, ela apanhou o Ceptro e ele apontou-lhe o bastão.

- Ajuda-me, Nessya - pediu Ailura, fechando os olhos e apertando o Ceptro. Concentrou todo o seu pensamento na débil luz que o ceptro há momentos produzira e toda a sua vontade em expulsar aquele homem e aquela escuridão dali. A pedra brilhou intensamente e uma luz muito branca jorrou dela, iluminando tudo.

Quando Ailura abriu os olhos tudo estava novamente normal. As águas do lago eram de novo azuis e transparentes, o sol de fim de tarde brilhava através delas, uma ou outra vela voltara a acender-se e aquele desagradável homem tinha desaparecido. Só Edínmtor continuava caído no chão.

Ailura, tomada dum súbito pânico, correu para ele. Só queria que ele estivesse vivo. Depois de tudo por que tinham passado juntos, não queria perdê-lo, pelo menos não daquela maneira. Ajoelhou-se à beira dele e colocou dois dedos no pescoço dele. Estava vivo.

Ela molhou-lhe a cara com água e esperou.

Estava apenas desmaiado, por isso, mais cedo ou mais tarde, teria de acordar. Tinha apenas que ser paciente e aguardar. Durante um bom bocado, nada aconteceu e Ailura começou a ficar novamente preocupada. Não sabia ao certo o que o homem lhe fizera. Sem dúvida que lhe tinha lançado um feitiço; mas que tipo de feitiço, ela não sabia. De facto, não percebia nada desse

género de coisas, até há bem pouco tempo nem sabia que existiam! Mas, quando ela já imaginava o pior, Edínmtor abriu os olhos.

Ele sentou-se e olhou à sua volta, espantado. Os seus olhos acabaram por pousar no Ceptro caído ao lado dela. Uma expressão de total compreensão iluminou-lhe o lindo rosto.

- Toma - disse ela, entregando-lhe o Ceptro.

- Desculpa ter-lhe pegado.

- Não faz mal - respondeu o elfo, enquanto embrulhava o Ceptro novamente no tecido de veludo.

- Agora ele pertence-te. Guarda-o.

Entregou-lhe o Ceptro, mas Ailura não o aceitou.

- Não posso. Isto é, o que é que eu faria com ele? Não sei como utilizá-lo!

- Há bocado, parece que soubeste exactamente o que fazer.

- Eu... Eu não sei porque o fiz - respondeu, corando. - Fica com ele. Como é que eu posso ficar com algo que nem sequer sei o que é?

Edínmtor suspirou e levantou-se.

- Isso é algo que eu tenho de te explicar. Para já guarda-o. Se quando sairmos de Aquilad ainda achares que não deves ficar com ele, então eu guardo-o.

- Está bem - anuiu ela, depois duns momentos de consideração. - Mas, antes de me explicares seja o que for, quero saber quem era aquele.

- Aquele - disse Edínmtor - era Morgriff, o último filho dos Elementos.

Lá estava ele a falar outra vez nos elementos! Era melhor que lhe explicasse essa história toda duma vez por todas. Sempre achara extremamente desagradável quando as pessoas falavam com ela sobre algo que ela desconhecia e não se davam ao trabalho de a esclarecer.

Abriu a boca para protestar, mas ele levantou a mão com a palma virada para ela.

- Paz - pediu ele. - Tudo te será explicado em devido tempo. Deixa-me contar a minha história.

- Está bem! Conta a tua história e eu ouvi-la-ei.

Recomeçaram a andar, num passo lento. As águas ondulavam e produziam um suave som ao baterem nas paredes do Palácio de Cristal. Lá fora devia estar vento e o dia começava a cair.

Edínmtor ainda não tinha começado a sua história. Parecia estar a decidir-se pela melhor maneira de a contar. Olhava várias vezes para Ailura e novamente para o comprido corredor. Ela começava a achar que ele não acabaria a história antes do dia findar, talvez nem sequer a começasse. Mas então ele começou, muito calmamente, como alguém que recorda algo de que já não se lembra muito bem.

- Há muitos, muitos anos, quando este Mundo foi concebido, os Elementos - e ao ver a cara dela de desentendimento -, uma espécie de estranhas divindades, criaram quatro seres de aparência humana. Eles deviam preparar o Mundo para a chegada dos Elfos, das Fadas, dos Duendes e dos Gnomos. Os seus nomes eram Aerzis, Valindra, Nessya e Morgriff. Enquanto as Fadas, os Elfos, os Gnomos e os Duendes dormiam, eles construíram uma grande cidade dentro de Caladmiron, Omnirion. Assim que os Duendes, Elfos, Gnomos e Fadas acordassem, era seu dever ajudá-los, e ao rei que eles escolhessem, a tornarem-se independentes e autónomos. No entanto, Morgriff não concordava. Ele achava que, como tinham sido os primeiros a acordar neste Mundo e eram, sem dúvida, os mais poderosos, deviam ser eles, os filhos dos Elementos, a governar.

Mas Aerzis, Nessya e Valindra não estavam de acordo.

Sozinho, Morgriff fugiu e construiu um lugar maldito, onde apenas o medo e a escuridão são reais.

Chamou-lhe Morniran. Por seu lado, Nessya criou Aquilad, onde passou a viver; Valindra construiu Névila, envolta em brumas e perdida no interior da floresta Brumívium, onde agora vivem as suas sacerdotisas; e Aerzis permaneceu em Omnirion, a ajudar o Rei elfo. Este Rei chamava-se Fiman e os seus descendentes governaram este Mundo desde então; e se tudo correr bem, assim continuará.

Entretanto, em Morniran, Morgriff criou seres terríveis aos quais deu o nome de Magdul. A sua intenção era governar este Mundo no lugar do Rei Fiman, e estava disposto a tudo para o conseguir. Ciente da ameaça que Morgriff constituía, Aerzis criou um ceptro onde encarcerou, não só todo o seu poder, mas também o de Caladmiron, a Grande Floresta. E esse ceptro, o Ceptro de Aerzis, o mesmo que tu tens agora guardado dentro da tua mochila, é a única coisa que pode destruir Morgriff.

Estavam agora no fim dum pequeno corredor. À sua frente erguiam-se, imponentes, duas grandes portas.

Estas, dum cristal menos transparente, estavam divinamente trabalhadas com flores e folhas entrelaçadas. As águas que envolviam agora o Palácio de Nessya eram vermelhas, com pinceladas de dourado: Era o Sol que, antes de se pôr, decidira dar uma última e maravilhosa tonalidade ao lago. Edínmtor parara de contar a sua história, ou melhor, a história daquele Mundo. Sem dúvida tinha esclarecido muitas das dúvidas de Ailura, mas ainda não lhe dissera por que razão devia ela guardar o Ceptro, ou porque fora ali parar.

- Senta-te - disse ele, e a sua voz soou cansada.

- Tenho de acabar a minha história antes de entrarmos ali dentro.

Sentaram-se ambos no chão, com as costas encostadas à parede transparente, de frente um para o outro.

- Assim que Morgriff teve conhecimento da existência do Ceptro - continuou Edínmtor -, veio até Aquilad para tentar que Nessya lhe dissesse onde estava Aerzis ou o próprio Ceptro. Só que ela não sabia. De facto, ninguém sabia. Furioso, Morgriff matou Nessya. Depois, encaminhou-se para Brumívium. Foi a meio do caminho que Aerzis o encontrou. Tiveram uma grande discussão, à qual se seguiu um duelo, um duelo de feiticeiros. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, mas parece que Morgriff utilizou o seu bastão e Aerzis o Ceptro. No entanto, Aerzis não venceu Morgriff, apenas o enfraqueceu. De facto, enfraqueceu-o tanto que ele desapareceu por muitos milhares de anos.

Mas Aerzis também ficou fraco. Ficou mesmo mais fraco que Morgriff, e só teve forças para regressar a Omnirion. Lá, deu o Ceptro ao Rei Fiman, dizendo-lhe que ele era a única coisa que podia destruir Morgriff e que, em caso algum, devia cair nas mãos deste. Depois, tal como Nessya, morreu. Desde então o Ceptro tem passado de geração em geração na família real, sendo um símbolo do seu poder.

O que aconteceu a Valindra não se sabe. Ela desapareceu na altura em que os seus dois irmãos morreram e nunca mais foi vista. Alguns pensam que ela morreu, também morta por Morgriff; outros acham que ela ainda caminha por entre as brumas de Brumívium, à espera de se tornar suficientemente poderosa para enfrentar Morgriff. Sinceramente, não sei, mas confesso que gostaria que ela estivesse viva.

Fez uma pausa, olhou para o lado e soltou um leve suspiro. Tinha os olhos cheios de tristeza e Ailura percebeu que não era nenhum pormenor em particular que o magoava. Nunca tinha conhecido Nessya, Aerzis ou mesmo Valindra e não eram as suas mortes em particular que o magoavam, mas sim a história do seu povo.

Um povo que vivera sempre em paz, mas que podia ver a sua paz acabar com a chegada de Morgriff.

- Edínmtor... - chamou a medo. - Aquele homem de há bocado era Morgriff, não era...

- Era - respondeu o elfo. - Eu disse-te.

- Sim, eu sei que disseste. Mas então... O que é

que eu lhe fiz? Matei-o?

Ele soltou uma gargalhada triste.

- Não, Ailura. Confesso que teria sido bom que o tivesses feito. Mas, infelizmente, não o podes fazer, pelo menos para já não. A única coisa que fizeste foi assustá-lo e enfraquecê-lo um pouco. Ele estará de volta em breve, talvez nem demore um mês.

Ailura sentiu-se ligeiramente desapontada. De certo modo, gostava de ter destruído Morgriff. E então uma pergunta formou-se na sua cabeça.

- Edínmtor? Afinal como é que o Ceptro funciona?

- Não sei - respondeu ele, como se fosse perfeitamente natural. - Ninguém sabe, nem nunca ninguém soube.

- Estás a dizer-me que vocês possuem a única coisa que pode destruir Morgriff e nem sequer sabem como funciona? - Ele ficou a olhar para ela como quem não percebe o porquê da sua admiração. - Desculpa, mas é preciso ser-se muito burro.

- Ailura... O Mundo onde viveste até agora pode ser linear, mas este Mundo não. Este Mundo é complexo...

- O meu Mundo também é complexo. - Estava outra vez a ficar irritada com ele. Ele não tinha o direito de dizer que o seu Mundo era pior que o dele!

- Tudo bem - disse ele com um tom de voz de quem está a perder a paciência. - Só estou a dizer que este Mundo está envolto em magia; ele próprio foi criado com magia. Por isso, se não sabemos algo desta importância, não é por não tentarmos, mas porque, pura e simplesmente, não conseguimos descobrir. Talvez o Ceptro não queira que saibamos, talvez esteja à espera da pessoa certa... Não sei, Ailura. Estou cansado. Olhou para ela e depois fez uma cara de desespero. Suspirou profundamente, fechou os olhos e encolheu os ombros.

- O Ceptro é um objecto mágico e, como todos

os objectos mágicos, tem uma vontade própria, que muito dificilmente pode ser vergada. É evidente que alguém como Morgriff o poderia fazer e é por isso que é tão perigoso que ele o apanhe. Imagina o que ele poderia fazer se tivesse na sua posse algo tão poderoso como o Ceptro! Eu concordo que temos poucas respostas para tantas perguntas, mas as pessoas aqui também não passam a vida a questionar-se sobre tudo e mais alguma coisa. Pelo menos a maior parte delas - e como Ailura parecia estar a ficar novamente aborrecida, acrescentou rapidamente: - Não me interpretes mal. Não estou a dizer que não seja bom que faças perguntas. De facto, acho que até é importante que te interrogues e tentes procurar resposta para as tuas perguntas. O único problema é que, como eu não tenho resposta para todas elas, acabas por destruir toda a minha paciência. E a minha paciência até costuma ser bastante grande!

Ambos se riram com gosto. Ele levantou-se e estendeu-lhe a mão para a ajudar a levantar.

- Vamos entrar? - perguntou ele, ainda a rir. Ela assentiu com a cabeça, também a rir. E os dois empurraram as magnificentes portas.

 

                   O TÚMULO

Mal entraram, as portas atrás de si fecharam-se. Era um aposento amplo, sem qualquer outra porta para além das duas que acabavam de fechar-se. Todas as paredes estavam totalmente revestidas pelas plantas de folhas verde-claras e flores rosa-forte que se encontravam por todo o palácio, o chão estava coberto de folhas verdes e douradas e a luz era muito suave. Ailura achou aquele quarto extremamente agradável; parecia um jardim interior, sereno e acolhedor.

Mesmo no centro do compartimento estava um túmulo feito do mais transparente dos cristais. Estava soberbamente decorado com desenhos de pequenas flores e folhas que caíam de altas árvores. A cobertura tinha apenas inscritos os seguintes versos:

 

Muito jovem foste Rei,

Muito cedo nos deixaste.

Mas sempre alegre,

Por Caladmiron caminhaste.

Oh, Rei tão amado,

Tão tristemente fadado,

Nunca mais o teu riso

Em Omnírion será escutado.

Rei que espera a sua amada,

Só por ela aguarda o fogo sagrado.

Por este Mundo, juntos voarão,

E para sempre os nossos corações habitarão.

 

Dentro do túmulo estava o corpo do Rei, perfeitamente conservado. Tinha uma expressão serena, parecia até estar a sorrir. Ailura, ao olhar para o seu rosto, ficou como que petrificada. Um arrepio gelado percorreu-a da cabeça aos pés. Era impossível, mas por outro lado estava mesmo ali à sua frente. Não podia ser uma ilusão, a menos que tudo aquilo por que passara desde o acidente também o fosse! Não, definitivament não era uma ilusão. Aquele Rei era sem dúvida o seu pai.

- Há alguns anos, dezassete, para ser mais preciso, Morgriff regressou. - Edínmtor retomara a história. - Glordil, o meu pai, que era o regente, mandou alguém ao Mundo onde viveste até agora chamar o Rei, o teu pai. Ele, evidentemente, veio rapidamente em nosso socorro. Confrontou-se com Morgriff, conseguiu mesmo afastá-lo por um tempo... até agora. Mas infelizmente morreu. Era muito novo e tu eras ainda uma criança, pequena de mais para reinares. Glordil continuou como regente, à espera que tu estivesses pronta para conhecer a verdade. Compreendes agora por que estás aqui? Por que razão deves ser tu a guardar o Ceptro?

Mas Ailura não respondeu. Continuou parada a olhar para o rosto do pai. Uma coroa de flores secas repousava na sua cabeça e duas orelhas arrebitadas espreitavam por entre os seus cabelos. E subitamente compreendeu. O pai era um elfo, assim como o era Edínmtor. Mas se o pai era um elfo... então o que era ela?

- Tu és uma fada, Ailura - disse Edínmtor, em resposta aos seus pensamentos. - Quando um Elfo e um Humano se juntam, nasce uma Fada.

Ailura olhou para ele. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Nem sabia bem porque estava a chorar. Só sabia que se sentia melhor assim. Quando as lágrimas se soltaram e começaram a escorrer pela sua cara, ela sentiu-se aliviada. Era como se de repente um enorme peso tivesse desaparecido. Então, para grande espanto de Edínmtor, ela riu alto, muito alto, desvairadamente.

- É um sonho. É isso! - Ailura parecia completamente louca. - Um sonho estúpido, como a maior parte dos sonhos. Não tarda, vou acordar.

- Ailura, lamento desiludir-te, mas isto não é um sonho e tu não vais acordar.

- Vou sim - berrou descontroladamente. - E tu vais desaparecer, tu e todo este Mundo.

- Ailura, pára! - Ele estava muito sério. – Estás a agir como uma louca.

- Não faz mal! Estou a sonhar. Até podia espetar uma faca no meu peito que não acontecia nada.

Ele avançou para ela. Ailura tinha agora começado a dançar e a entoar uma música. Edínmtor agarrou-lhe os braços e ela parou.

- Ailura, olha para mim. Olha para os meus olhos! - E ela olhou. - Isto não é um sonho. Não se dorme em sonhos, nem se sonha em sonhos. Por isso, como é que isto pode ser um sonho? - perguntou ele, suavemente.

Mas ela continuou a berrar: É um sonho, é um sonho". Ele olhou, exasperado, para ela, como alguém que tem de fazer uma criança compreender o que ela não quer compreender.

- Ailura, peço muita desculpa pelo que vou fazer - e, sem mais uma palavra deu-lhe um estalo.

Imediatamente ela parou de berrar e ficou a olhar para ele muito séria. - Desculpa, mas foi a única forma de te acalmar. Eu sei que é complicado. Pensares que eras uma coisa e de repente descobrires que és outra.

Ela desprendeu-se das mãos dele e encaminhou-se para um canto do compartimento. Estava muito séria, com os braços cruzados e os seus olhos tinham uma expressão de completa fúria.

- Estás desculpado. Mas não te atrevas a dizer que sabes "que é complicado". Não sabes nem nunca vais saber. Durante toda a tua vida sempre soubeste que eras um elfo, soubeste que os teus pais eram elfos. Mas eu não! Eu nunca soube que era uma fada, ou que o meu pai era um elfo. Eu nunca soube... Tudo aquilo em que sempre acreditei é mentira. As pessoas em quem eu mais acreditava mentiram-me. E tu dizes-me que sabes; "que é complicado".

Edínmtor ficou calado. Foi até um canto e sentou-se. Ela podia ver que ele não ia dizer mais nada. Queria que ele dissesse qualquer coisa, só para poder continuar a discutir. Enquanto discutia, sentia- se melhor!

- Ouviste bem? - Ele não respondeu. - Edínmtor...

- chamou, mas ele continuou sem responder.

Ailura sentou-se com a cabeça nos joelhos, as lágrimas a escorrerem, silenciosas, pela cara. Sentia uma fúria e um ódio terríveis dentro de si. Em parte chorava por causa da situação gerada, mas também chorava pelos sentimentos que tão furiosamente a assaltavam. Não gostava daqueles sentimentos, faziam-na sentir maldisposta e a sua cabeça começava a doer. Por um lado, apetecia- lhe partir tudo, por outro, tinha medo de o fazer. Compreendia a razão por que não lhe tinham contado, mas gostava que lho tivessem dito. Estava num caos, sentia-se a cair aos bocados. Fechou os olhos, talvez se dormisse um bocadinho ficasse mais calma.

Era um bonito fim de tarde. Corria uma leve brisa e o sol banhava as planícies daquele campo suave onde passavam as férias. A grande casa de campo erguia-se sozinha no meio da calmaria. Ficava vazia durante a maior parte do ano, mas na Páscoa e nas férias de Verão ganhava vida, enchia- se de alegria, de risos e de chocolate quente. Era uma casa velha que os avós tinham deixado à Mamã. Durante um ano fora deixada perdida, esquecida no meio daquele campo. Mas depois o Papá mandara arranjá-la e desde então, três dias antes de saírem, a Mamã mandava a menina Ana e o senhor Jacinto prepararem- na. Quando lá chegavam, a casa brilhava, as colchas de retalhos repousavam nas camas de madeira e na Páscoa a lareira estava acesa. Se o tempo estava agradável, o Papá levava-a a passear no campo ali perto. Era sempre agradável, mas ela tinha sempre medo de ir por causa das aranhas. Não gostava nem das suas patas, nem dos seus olhos, nem do seu corpo, nem do seu pêlo, nem das suas teias, que a Mamã dizia serem verdadeiras obras de arte! Em suma, não gostava de aranhas. Aquilo tornava-se um verdadeiro problema para a menina Ana que tinha de fazer constantes verificações à casa, e principalmente ao quarto da "princesinha", para que esta não encontrasse nenhum dos desagradáveis bichos. Ninguém sabia ao certo donde vinha semelhante medo (ou, nas palavras da Mamã, embirração); afinal a "princesinha" até gostava de formigas, borboletas, libelinhas, louva-a-deus e outros animais facilmente detectados na Natureza! Ninguém sabia explicar e ela também não; só sabia que não gostava e era uma berraria de cada vez que vislumbrava alguma. No entanto, toda a família ansiava que chegasse o dia de ir para a casa de campo. Só aí se descansava verdadeiramente. Podia-se correr toda a tarde e no dia seguinte dormir toda a manhã, ou ouvir as histórias do Papá durante todo o dia, ou percorrer a casa pela milésima vez à procura da passagem secreta que levava à igreja da aldeia mais próxima e à grande casa senhorial, no topo da aldeia, que todos juravam estar assombrada. Era ainda ali que a Mamã e a "princesinha" decidiam o feitio dos vestidos das bonecas para a próxima estação. Enfim, podia-se dizer que a vida girava em torno da casa de campo. Contavam-se os dias e os meses para láir, e, uma vez lá, contava-se o tempo que faltava para lá regressar.

Naquele dia, Ailura estava contente. Fazia anos, onze anos, e parecia-lhe que era uma data importante.

Mas também o achara quando fizera seis, e depois nove e, ainda no ano anterior, dez! Era pequena e um pouco magra de mais para a idade, situação que a Mamã achava um pouco preocupante. O filho da sua melhor amiga era roliço, mas o Papá achava que ele não tinha alegria nos olhos e era sem dúvida muito carente de imaginação, um bem essencial, especialmente nas crianças.

A Mamã concordava, o menino só queria "estudar ser Senhor Engenheiro, como o paizinho"; ela não dizia que estudar não fosse necessário, claro que era, mas também não era tudo; além disso, Ailura era até das melhores alunas da turma. Enfim, a menina havia de crescer e engordar. Afinal, ela também era assim na idade dela.

Já tinham apagado as velas e comido o bolo.

Agora o Papá estava a sugerir que fossem caminhar um pouco pelo campo.

- Está bem. Vou só buscar a Joana - a Joana era a boneca mais querida de Ailura. Fora a Mamã que a comprara quando ela tinha quatro anos e, apesar dos seus fortes onze anos, Ailura ainda gostava muito de brincar com ela. Era uma boneca de trapos, de cabelo de lã encaracolado, olhos verdes e boquinha vermelha, toda vestida de azul.

Ailura entrou na grande casa de campo, subiu a correr a escadaria de madeira escura, percorreu o corredor e entrou na terceira porta à direita: o seu quarto.

Era um quarto amplo, com uma cama de solteiro

e uma mesinha-de-cabeceira com um candeeiro redondo, um bauzinho, um armário e uma estante cheia de livros. As cortinas azuis estavam abertas e em cima do parapeito encontrava-se a Joana.

Ailura abriu o bauzinho e começou a remexê-lo à procura da boina e do casaquinho de Joana.

- Vou passear com o Papá e a Mamã! Vou passear! - cantarolava.

O Papá era alto, de feições suaves e olhos vivos. tinha umas orelhitas arrebitadas que faziam Ailura dizer que ele era um elfo, ele ria e ainda a sorrir respondia:

"Pois sou". Davam-se muito bem e eram muito pareci dos um com o outro. Para ela tudo o que o Papá dizia estava certo e obedecia a tudo o que ele mandava, bem: a quase tudo: O Papá gostava de contar histórias de terras encantadas, de lugares maravilhosos, de Elfos e de Fadas do tamanho de homens. Ele achava que ela devia estudar para se tornar sábia e não para ter boas notas e ser melhor que todos os outros. Mas nisso a Mamã tnão concordava! Ela achava que havia mais do que os estudos, mas eles eram essenciais para quem queria ser alguém na vida. E, esperta como era, sem dúvida que Ailura, caso se aplicasse, viria a ser alguém importante.

O Papá fazia sempre cara feia quando a Mamã começava a falar dessas coisas, mas como não gostava de discutir com ela, acabava por dizer que ainda havia muito tempo e que, na devida altura, Ailura decidiria o que queria fazer.

Finalmente, encontrou o casaco e a boina de Joana. Vestiu-lhos e, com ela apertada nos braços, desceu as escadas a correr e saiu da casa de campo.

Lá fora só encontrou a Mamã sentada no banco de baloiço branco, com os olhos perdidos no infinito; Ailura pousou a boneca ao lado da Mamã e procurou o Papá à volta da grande casa, depois na sala e na cozinha e finalmente no quarto de dormir. Mas não o encontrou. Voltou para junto da Mamã.

- O que aconteceu? Onde está o Papá? - perguntou, desconfiada.

- Ele já volta, amorzinho - disse, enquanto fazia uma festa pelo rosto suave. - Vai dormir. O Papá amanhã já cá está.

Só que quando ela acordou o Papá ainda não chegara, nem chegou nesse dia, nem no dia seguinte, nem nunca mais!

Um dia a Mamã explicou-lhe que o Papá não ia voltar porque... mas não conseguiu dizer a palavra! Disse-lhe depois que agora estavam sozinhas e que tinham de lutar para conseguirem o que queriam. Ailura devia apenas preocupar-se em estudar e tirar boas notas, para que mais tarde pudesse ser importante, poderosa mesmo. As histórias de encantar foram deixadas para a menina Ana, que dizia que os Elfos e as Fadas eram pequeninos, que as Fadas viviam em flores e tinham uma varinha de condão, e que os Duendes eram maus e travessos. Ailura passou a chamar à Mamã mãe, porque sentia que a sua infância, bem como a sua inocência, tinham acabado. O dia do desaparecimento do pai foi esquecido, assim como o foram, lentamente, as suas histórias e ensinamentos, e o próprio pai foi-se esmorecendo na sua memória, para que tudo se tornasse menos doloroso.

Não voltaram a passar férias na grande casa de campo e ela ficou novamente esquecida no meio daquele verdejante campo onde tinham passado tantas e tão divertidas férias. Ficou sozinha, tendo por único consolo os risos alegres e as histórias de lugares encantados, com criaturas estranhas, onde habitam Elfos, Fadas, Gnomos e Duendes, que ainda ecoavam por entre as suas paredes. E sobreviveu com a memória dum tempo em que se enchia de vida e ela própria vivia com as animadas conversas embaladas por uma chávena de chocolate quente.

Ailura abriu os olhos. Lembrava-se! Lembrava-se do pai, das suas histórias, do dia do seu desaparecimento.

Levantou a cabeça e deparou-se com o rosto de Edínmtor. Ele sorria tenuemente e tinha uma mão esticada para ela.

- Está a fazer-se tarde. Temos de ir - disse ele. Ela agarrou a mão dele e levantou-se.

- Então vamos.

Edínmtor foi até ao outro extremo do quarto e murmurou para a parede coberta de plantas uma palavra indecifrável. Imediatamente a parede se afastou, revelando a entrada dum comprido e escuro túnel.

As paredes eram de cristal transparente. No início ainda se viam as águas do lago, escuras e paradas, e o dia a tornar-se cada vez mais noite. Depois o túnel ficou ainda mais escuro e à sua volta só se via terra.

Percorreram o túnel durante aquilo que pareceu a Ailura uma eternidade. Não falaram mais até saírem de lá de dentro. E assim, a caminhada, além de longa, foi silenciosa e pesada.

Por fim, Edínmtor parou. À frente deles estava apenas algo parecido com uma parede. Por um segundo, Ailura ficou assustada a pensar que tinham chegado a um beco sem saída. Mas o elfo inclinou-se e murmurou uma outra palavra indecifrável. Acto contínuo, a obscuridade desapareceu e eles saíram. Ao olhar para trás Ailura viu que acabavam de sair de dentro duma árvore.

Caminharam ainda um bocado por entre a bela floresta. Felizmente estava lua cheia e eles podiam ver razoavelmente bem. Finalmente, ele parou e declarou que iam passar ali a noite.

Deitaram-se no chão e cobriram-se com as mantas.

Novamente sozinha com os seus pensamentos, Ailura recomeçou a chorar. Primeiro, um choro silencioso, depois, acompanhado por débeis soluços. Nem sequer sabia bem porque chorava, mas não conseguia evitá-lo.

Edínmtor levantou-se e sentou-se ao lado dela a entoar, numa voz límpida e harmoniosa, uma música suave.

Ailura ergueu-se, surpreendida. E sem que tivesse tempo de reagir, deu por si aconchegada nos braços de Edínmtor. Impulsivamente, soltou-se, mas depois deixou-se cair novamente para ele.

Sentia-se bem assim; sentia-se protegida. Chorou ainda mais, decidida a chorar naquela noite todas as mágoas passadas, e também todas as futuras. Lentamente, Edínmtor sentiu os seus soluços a diminuir. Ela estava a ficar mais calma. Levantou-lhe a cabeça para lhe dizer que ia ficar tudo bem e que agora ela devia descansar. Mas em vez disso os seus lábios uniram-se aos dela num tímido beijo.

Afastaram-se ambos a olhar um para o outro. Nenhum deles estava à espera daquilo. E mesmo depois de se passarem muitos anos Edínmtor continuou sem perceber por que razão a beijara naquela tépida e clara noite. Não que alguma vez o tenha lamentado, agradecia mesmo tê-lo feito, mas não tivera qualquer intenção de o fazer naquele momento.

Estiveram assim algum tempo, sentados muito próximos um do outro e sem dizerem nada. Finalmente ele quebrou o silêncio.

- Desculpa - disse calmamente. - Nunca o deveria ter feito.

Virou a cara para ela e Ailura viu que os seus olhos eram dum lindíssimo verde- líquido. Então, um tanto ou quanto estupidamente, inclinou-se para ele.

Inclinou-se tanto que voltaram a beijar-se e, finalmente, perderam-se ambos na profundidade do seu beijo.

Quando se separaram, nenhum deles murmurou sequer uma palavra. Limitaram-se a deitar-se novamente com os olhos postos no céu.

Ailura não sabia se ele já tinha adormecido.

E antes de adormecer, profunda e tranquilamente, soube que não queria sair daquela terra onde o pai pertencera, Edínmtor vivia e também ela pertencia.

Muito lá em cima, no céu de veludo azul-escuro a lua parecia sorrir.

Estava uma linda manhã. O sol entrava suavemente por entre as cortinas de linho bege, os pássaros chilreavam docemente e as gotas de orvalho insistiam ainda em beijar as folhas e as pétalas, suas eternas namoradas.

Isabel acordou cedo, quando a aurora se levantava. Estava um pouco nervosa e tinha uma incómoda dor de barriga que a preocupava ainda mais. Mas supunha que tudo aquilo era normal. Afinal era o dia do seu casamento e era compreensível que estivesse assim. Ainda não tinha a certeza de estar a tomar a decisão certa. Era verdade que gostava dele mais do que gostara de alguém em toda a sua vida. Mas casar com um elfo! Se não soubesse com todas as partes do seu ser que era verdade, acharia que tinha perdido o juízo. De facto, tinha a certeza de que, se alguma vez o dissesse a alguém, essa pessoa a acharia tão doida quanto ela própria se achava, ou mais ainda! Não tinha sido difícil convencer a família de que Angus era um vulgar rapaz inglês. Mas a ela não se podia convencer disso!...

Nunca, de maneira alguma, a sua vida seria normal.

Embora Angus tivesse nomeado Glordil como regente do seu Mundo, ela sabia que ele teria de lá ir muitas e diversas vezes. E os seus filhos? O que lhes aconteceria?

Angus tinha-lhe dito que os seus filhos seriam Fadas, tal como o era Elianor. Mas não era esse o seu problema. Quando crescessem certamente que ele os quereria levar para o seu Mundo. Ficaria ela sem os seus filhos?

Tinha medo e por outro lado queria desesperadamente fazê-lo. E ia sem dúvida fazê-lo!

Levantou-se, encheu a banheira com sais e entrou lá dentro. Tomou um banho lento e relaxante.

Saiu da banheira, enrolou uma toalha à volta da cabeça e vestiu um roupão de seda vermelha com flores pretas bordadas.

Tirou um livro da estante do quarto e sentou-se no parapeito da janela a ler.

A janela do seu quarto dava para o bosque que existia nas traseiras do enorme casarão dos tios onde estava a viver há dois meses. Tinham decidido realizar ali o casamento por ser um local sossegado e cheio de vegetação. Para além do bosque, à frente do qual se erguia imponente aquela mansão vermelha, havia um jardim, do qual os tios cuidavam com carinho e sabedoria, e montes repletos de verdejante erva e altas árvores. Era um lugar muito bonito onde Isabel passava férias desde os sete anos. Além disso, era ali que tinha descoberto o espelho que a transportava para o Mundo de Angus (de facto, pedira o espelho como prenda de casamento à tia e ela dera-lho com a única condição de que não fosse aquela a sua prenda de casamento, porque ao levá-lo até estava a fazer-lhe um favor). Por isso ambos tinham achado que aquele era o lugar ideal para se casarem.

Abriram a porta de repente. Isabel espreitou por entre as cortinas para ver quem tinha aberto a porta.

Era a sua prima Amélia.

Amélia e Isabel eram da mesma idade. Em pequenas nunca se tinham dado bem, mas com o tempo o seu relacionamento melhorara. Iam às compras juntas, conversavam e, inevitavelmente, discutiam e brigavam.

A prima já tinha vestido o comprido e elegante vestido rosa que ambas tinham escolhido. Isabel achara que aquela cor suave ficava bem à pele ebúrnea e aos cabelos de ouro de Amélia, realçando a sua beleza e dando-lhe um ar de suave deusa. O seu cabelo de estreitas ondas fora preso num rabo-de-cavalo alto que ajudava à ilusão. Estava muito bonita.

- Mas será possível que te tenhas esquecido que casas hoje? - perguntou Amélia com uma pontinha de malícia na voz. - Já está tudo pronto.

- Caso hoje? - perguntou Isabel a rir. - E eu que pensava que tinha sido ontem.

- Isabel, a Amélia tem razão. - A mãe e a tia acabavam de entrar, seguidas de perto pela menina Conceição. - Estás atrasada, mesmo para uma noiva.

Rapidamente Isabel saltou do parapeito da janela, arrumou o livro e foi buscar o vestido de noiva.

Era um vestido bege, bordado com pequenas flores vermelhas de folhas douradas. O modelo era simples e bonito. Depois de irem a muitas lojas e de terem experimentado muitos vestidos, acabaram por mandar fazê-lo a uma modista. Isabel desenhara o vestido e a mãe e a tia tinham-se encarregado de comprar os tecidos necessários e encontrar os sapatos apropriados. No final, saíra perfeito.

Vestiu-se e calçou os sapatos. Eram uns sapatos simples, da mesma cor do vestido, mas tão altos que Isabel tinha a certeza que ia ter imensa dificuldade em caminhar com eles. Mas fora o melhor que tinha encontrado para a ocasião.

A tia estava a arrastar a cadeira do toucador para ela se sentar e começarem a arranjar-lhe o cabelo.

Amélia, sentada na cama, relatava tudo o que faltava fazer. A mãe abanava-a com um leque encuanto lhe murmurava palavras tranquilizadoras e lhe fazia pequenas carícias. A menina Conceição ajudava-a a apertar o vestido e dava um jeitinho aqui e acolá.

Foi a meio destes delicados preparos que as primas, filhas da irmã do pai, entraram. Naquele dia seriam as meninas das alianças. Cada uma levaria uma das alianças. Mas Isabel recusara-se a confiar "às pestes" as alianças, algo que toda a família, aberta ou secretamente, apoiava. Em vez disso dera-as ao pai para que ele as guardasse até à hora precisa de a cerimónia começar.

- O que é que "as pestes" querem agora? - perguntou Amélia, que era de todas as pessoas que estavam naquela casa, a que tinha menos paciência para elas e para as suas diabruras.

- A Maria rasgou-me a saia.

- A Raquel abriu a minha almofada das alianças.

A tia e a mãe ergueram imediatamente as cabeças. A tia soltou um gritinho escandalizado. A mãe correu a chamar a cunhada.

- Mafalda. Mafalda, as tuas filhas estão a destruir a cerimónia e os fatos - clamava a mãe, enquanto descia as escadas. - Eu já sei que elas são uns autênticos diabos e te deixam mal em todo o lado. Mas hoje é o casamento da minha filha, e da tua sobrinha. Por isso é bom que as controles ou controlo-as eu. Nem que seja à chapada!

E no andar de baixo, em resposta à mãe, ergueu-se a voz embaraçada da Mafalda.

- Está bem, está bem. Eu já sei. Não te preocupes. Eu vou controlá-las! - No andar de cima, Isabel e Amélia desataram a rir. - Sim, eu arranjo o vestido e a almofada. Agora vai ajudar a Isabel. Não te preocupes, vai correr tudo lindamente.

A mãe subiu as escadas, ainda a praguejar contra "as pestes". Naquele dia corria tudo à frente dela se fosse preciso. A sua menina estava prestes a tornar- se numa mulher casada e tudo havia de ser perfeito. - Vocês as duas - disse, apontando para Maria e Raquel -, lá para baixo. A vossa mãe está à vossa espera. E é bom que hoje não arranjem mais problemas.

Entrou novamente no quarto e fechou a porta atrás de si. Ficou um bocadinho parada, de olhos fechados, a inspirar e expirar lentamente.

- Pronto. Estamos novamente em paz. Vamos lá tratar do teu cabelo.

Mas a paz não durou muito tempo. Não tinham passado sequer cinco minutos quando bateram à porta. A mãe de Isabel lançou ambos os braços ao ar, em sinal de desespero, e foi abrir.

Era Angus, que trazia um ramo de pequeninos botões de rosa vermelhos. A tia repreendeu-o imediatamente, dizendo logo que ver a noiva antes do casamento dava azar, e Amélia cumprimentou-o da maneira habitual, que tanto aborrecia Isabel:

- Olá, borracho.

Angus também já estava vestido. Isabel reparou com agrado que ele tinha tido o cuidado de pentear o cabelo de maneira a não se verem as orelhas pontiagudas. Embora as dele fossem muito mais pequenas do que era habitual nos Elfos, ela tinha sempre medo que alguém reparasse e estranhasse. Quando tinham decidido viver no Mundo dela, ele abdicara do seu longo cabelo, como todos os Elfos usavam, para que tudo parecesse mais normal. Mas mesmo assim teria sempre uma inexplicável auréola de mistério e sabedoria, característica dos Elfos e das Fadas.

Os botões-de-rosa vermelhos eram para entrançar com o cabelo de Isabel. Fora colhê-los precisamente naquele momento para que estivessem frescos e bonitos. Escolhera os vermelhos porque achara que ficavam bem com o tom de cabelo de Isabel e as flores do vesti do de noiva. A tia e a mãe ergueram uma sobrancelha e quiseram saber como sabia ele que o vestido tinha flores vermelhas bordadas.

- A culpada sou eu - disse Isabel, enquanto se interrogava onde ele fora arranjar os botões-de-rosa.

Angus saiu, deixando as flores ao cuidado da mãe e sorrindo suavemente a Isabel.

A menina Conceição entrançou o negro cabelo de Isabel com os botõezinhos-de-rosa, enquanto a tia vasculhava as gavetas do toucador à procura do estojo de maquilhagem.

Quando o cabelo ficou pronto, a tia pintou-lhe os olhos e os lábios, deu uma corzinha às faces e um jeitinho às sobrancelhas, sempre sob a supervisão da mãe. Entretanto, Amélia foi ao andar de baixo anunciar que Isabel já estava pronta e que se podia começar a cerimónia.

Quem tivesse entrado ali naquele momento pensaria que a casa estava a arder, tão grande foi a confusão que se gerou. Todos corriam dum lado para o outro. A Mafalda a dar as últimas reprimendas às filhas e a subir para ir buscar o chapéu e a carteira. Os amigos a precipitarem-se descontroladamente para a porta. As senhoras a comentarem o quanto Isabel se tinha atrasado. O pai a prender as alianças, um tanto ou quanto receoso, nas almofadas de Maria e Raquel, a dar um último jeito ao laço e a avisar Angus pela milionésima e última vez que, se ele alguma vez magoasse a sua única filha, tinha de se haver com ele.

Mas, por fim, toda a gente saiu, até mesmo a Amélia. No hall de entrada ficou apenas o pai com "as pestes", à espera de Isabel. Finalmente, ela desceu vestida de bege e vermelho, com um ramo de rosas brancas e vermelhas que repousavam no meio de folhagem muito verde.

A mãe saiu para se juntar aos convidados que esperavam a chegada da noiva. E, passados alguns minutos, também o pai e Isabel saíram seguidos pelas "pestes", que estavam demasiado calmas para o gosto de Isabel.

A cerimónia realizava-se ao ar livre, no meio da verde erva que rodeava a casa. Isabel percorreu a passadeira de flores, de braço dado com o pai. E ao vê-la assim, tão elegantemente vestida, sorridente e calma pareceu a Angus que ela era uma deusa-mulher, destinada, desde o começo dos Mundos, a ser Rainha do seu Mundo.

Assim, no fim daquela fresca manhã e no início daquela doce tarde, Angus, Rei de Omnirion, desposou Isabel.

Isabel e Angus dançavam tranquilamente uma valsa enquanto mais de metade dos convidados se serviam sofregamente dos variados doces que tinham acabado de ser colocados nas mesas e "as pestes" tentavam furiosamente destruir um bonito arranjo de flores. Amélia valsava alegremente pela pista de dança com um amigo de Isabel do qual ainda não tirara os olhos desde que ele chegara ao casarão vermelho. A mãe e a tia conversavam serenamente, sentadas à mesa e com um pratinho de bolo de casamento nas mãos. O pai discutia negócios com um grupo de respeitáveis senhores, no qual se incluía o tio. A Mafalda deixara-se cair, exausta, numa cadeira, demasiado cansada de tentar controlar as suas duas filhas para continuar de pé.

- Hoje de manhã estava um pouco receosa, mas agora tenho a certeza de que era isto que queria fazer - disse Isabel e soltou um pequeno suspiro. - Estou cansada e contente por estar a acabar.

- Oh! Mas ainda não acabou, Isabel – disse Angus com um pequeno sorriso. - Não te esqueças que para a próxima semana temos de voltar a casar, desta vez em Omnirion.

Isabel riu alto enquanto Angus a chegava mais para si. E ela soube que a sua vida nunca, nem mesmo por um segundo, seria "normal", mas de uma coisa estava certa: seria muito feliz.

 

                       LIDUVINE

Ailura estava parada a meio de um caminho serpenteante. Numa das extremidades do caminho encontrava-se uma grande cidade, erguida assim do nada, cheia de luzes e de altos prédios. Do outro lado podia ver-se uma floresta, sublime e majestosa nos seus tons de verde, vermelho e dourado.

Sem que ela fizesse fosse o que fosse, a imagem da cidade começou a ficar cada vez mais desfocada e longínqua, enquanto a floresta crescia mergulhando tudo nos seus magníficos tons. E por fim a cidade desapareceu, perdida algures na imensidão do Universo.

Ailura olhou à sua volta. Estava cercada por aquela floresta que lhe parecia tão familiar. O caminho serpenteava ainda entre o emaranhado de imponentes árvores. Muito ao longe, um vulto caminhava por entre os lindos tons. Ficou parada a observá-lo, e ele, como se tivesse visto que ela o observava, parou também a olhar para ela. Então, largou a correr desenfreadamente na direcção de Ailura e só parou mesmo à sua frente.

Era uma menina de olhos doces que sorria alegremente. A criança afastou os longos cabelos para trás de uma das orelhas, que era pontiaguda como as de Edínmtor, e abriu os braços para ela.

Ailura acordou sobressaltada. Voltara a ter um sonho estranho. Quem era a menina do seu sonho? Um elfo, sem dúvida. Mas porque parecia tão contente por vê-la? Por que razão abria os seus braços para ela como ela os abrira à sua mãe no sonho da noite anterior? Não sabia, e para ser sincera também não queria saber. Por um lado, ficava com dores de cabeça de tanto procurar uma resposta inacessível para si, por outro lado, tinha medo do que essa resposta pudesse significar. Estava a amanhecer e Ailura tinha a certeza que não lhe seria permitido dormir muito mais. Por isso resolveu levantar-se, arrumar as suas coisas e acordar Edínmtor. Ia ser extremamente divertido acordá-lo.

Levantou-se, entusiasmada. Mas Edínmtor não estava deitado, nem a arrumar as suas coisas, em parte alguma! Para além dela só ali estava uma jovem de compridos cabelos negros, toda vestida de azul. A rapariga avançou para ela a sorrir. Ailura recuou. Não sabia quem ela era e o facto de Edínmtor ter desaparecido não lhe agradava absolutamente nada.

- Bom dia, Ailura - disse a rapariga. - O meu nome é Liduvine e vou ser a tua nova guia e protectora.

- Onde está Edínmtor?

Liduvine encolheu os ombros numa atitude de perfeita indiferença. Mas Ailura queria uma resposta e voltou a perguntar onde estava o elfo. A rapariga, um pouco relutantemente, acabou por dizer:

- Regressou a Omnirion. Ele sabia que não podia tocar-te, mas mesmo assim fê-lo. Por isso foi mandado regressar e eu fui enviada para te proteger. De facto, eu devia estar contigo desde o início! Mas, enfim, ele é o filho de Glordil...

- E o que é que me garante que não estás a mentir?

- Nada - respondeu a rapariga, enquanto amarrava os seus longos cabelos e Ailura viu que ela era uma elfo. - Receio que vás ter de confiar em mim. Para além disso, se eu quisesse fazer-te mal, ou se quisesse roubar o Ceptro, não achas que já o poderia ter feito enquanto dormias?

Ailura ficou a olhar para ela e teve que reconhecer que ela tinha razão. E depois teve vontade de rir. Eles tinham mandado Edínmtor embora porque ele a tinha beijado. Era a maior idiotice que alguma vez vira!

Sentou-se a comer e olhou para a rapariga que mordiscava um bolo de mel. Tinha um ar simpático, bem mais simpático que o ar jocoso com que inicialmente Edínmtor a olhava sempre que ela colocava uma das suas questões ou fazia uma observação.

- Liduvine, posso fazer-te uma pergunta?

- Não vejo porque não.

- É impressão minha ou tu não gostas nem um bocadinho de Edínmtor? - A outra ficou a olhar para ela com um ar desconfiado. - Estás à vontade. Eu não vou dizer-lhe!

- Não, não gosto. - Olhou para Ailura e sorriu amável e divertidamente. - Desde pequenos competimos por tudo e por nada. E ele costuma levar sempre a melhor. E depois olha-me com aquele ar que ele tem de quem está a divertir-se imensamente com o que os outros dizem ou fazem. - Fez uma imitação da expressão de Edínmtor e ambas riram a grandes gargalhadas.

- Ele realmente pode ser extremamente irritante - disse Ailura. - Mas também consegue ser exttremamente simpático.

- Bem, talvez tu saibas melhor do que eu.

Mas, sinceramente, eu acho que com ele isso é impossível.

Liduvine provou ser uma companhia extraordinariamente agradável. Falaram das suas infâncias dos costumes dos Mundos onde tinham vivido. Ailura explicou-lhe o que era um jornal, o que ela fazia e como era importante o seu jornal na sociedade em que vivera até então. Liduvine contou-lhe que era a filha mais nova duma antiga e importante família. A sua irmã mais velha casara com um elfo filho duma família amiga da sua e tivera há pouco tempo um bebé gordinho e rosado. Era uma mãe dedicada e ela supunha que era feliz. A sua outra irmã era uma sacerdotisa em Névila. Durante algum tempo pensara em juntar-se-lhe, mas depois decidira que queria ser uma das guerreiras que normalmente protegem a Rainha. E fora então, quando começara o seu treino, que conhecera Edínmtor. Competiram sempre por tudo: pelos elogios do seu mestre, pelas vitórias em torneios, pelas ovações do povo que os via crescer.

- Uma vez - contava ela -, os nossos pais foram juntos assistir a um dos nossos treinos. O nosso mestre foi recebê-los e deixou-nos sozinhos. Um erro desastroso! Quando regressou, acompanhado pelos nossos pais, já nós estávamos envolvidos numa acesa briga. No meio da confusão da luta, ele rasgou-me a camisa do fato novo que a minha mãe me tinha dado e eu cortei-lhe os cabelos. Não é preciso descrever o estado em que ambos estávamos quando finalmente nos conseguiram separar. Os nossos pais obrigaram- nos a limpar o grande salão de baile do palácio de alto a baixo. No entanto, eu não me importei muito! Tinha conseguido cortar-lhe o cabelo que ele estava a deixar crescer para ficar parecido com todos os elfos adultos.

Ailura falou-lhe das memórias que tinha do pai, da grande casa de campo onde passavam férias até o pai morrer, da menina Ana, que enchia a casa de maias no dia das bruxas, e da mãe, a Rainha que Liduvine gostava de servir e conhecer. Contou- lhe que tinha um namorado que gostava dela, mas que ela inexplicável, e talvez estupidamente, não suportava (embora não tivesse sido sempre assim)! Disse-lhe que tivera uma discussão com ele antes do acidente porque ele a achava estranha. Revelou-lhe o seu desejo de continuar naquele Mundo que afinal era também o seu. E disse-lhe assim, num único dia de viagem, tudo o que havia para dizer da sua vida.

Ailura percebeu que aquilo que fazia Liduvin detestar Edínmtor era exactamente o mesmo que de início a fizera odiá-lo. E agora achava-o simpático, doce, compreensivo e alguém por quem estava indubitavelmente apaixonada. Mas ele era o mesmo. O mesmo Edínmtor, sempre com as mesmas qualidades e defeitos. E, no entanto, parecia-lhe que Liduvine estava cega, que só via o que nele era desagradável (e sem dúvida alguma ele tinha atitudes bem desagradáveis) e se recusava a ver tudo o que era agradável! Mas supunha que a embirração devia ser mútua. Além disso, era um problema deles que não a impedia de se dar bem com ambos.

O dia estava fantástico para viajar. Não havia muito sol, pelo que não estava demasiado quente. Corria uma suave brisa que fazia dançar as folhas das árvores ao som de uma serena e melodiosa música que elas próprias entoavam. Por vezes, um pássaro sobrevoava as suas cabeças ou uma borboleta pousava nos seus cabelos. Ao longe podia ouvir-se o som de água a correr. Era o som do Enyel, o Grande Rio que nascia nas grandes montanhas de Brumívium, cobertas de árvores de folhas verde-molhado e banhadas por brumas, percorria toda a floresta de Caladmiron e desaguava no mar.

Caminharam todo o dia, parando apenas para comer. A meio da tarde, Liduvine conduziu-a novamente para a estrada. Era uma estrada de pedrinhas claras que abria caminho suavemente por entre as árvores.

Era bastante larga, o suficiente para que duas carroças passassem ao mesmo tempo. Atravessaram uma lindíssima ponte de pedra branca que passava por cima do Enyel. As suas águas estavam calmas e límpidas, tão límpidas que se podia ver claramente o fundo do leito em que corriam. Beberam um pouco da sua fresca água e molharam o rosto. Liduvine disse-lhe que se acreditava que aquelas águas curavam os grandes males e aliviavam todos os cansaços, mesmo aqueles que perduravam desde que se tinha memória de ser.

Quando o dia começava a findar, avistaram as primeiras casas. Umas mais pequenas, outras maiores. Mas todas elas eram de madeira, com janelinhas qua drangulares e repletas de plantas que Ailura nunca tinha visto e das quais não sabia o nome. Algumas das casas tinham pequenas hortas, bem cuidadas e apinhadas de legumes. Às vezes, alguém que se encontrava à portà, cumprimentava-as com uma palavra alegre e simpática. Ao longe, por entre o cume das altas árvores, podia vislumbrar o topo duma torre de pedra branca.

À medida que caminhavam, encontravam casas e as árvores eram cada vez mais raras. Agora algumas casas eram de pedra branca e madeira e, quanto mais caminhavam, menos casas de madeira se via, mais eram as de pedra. Finalmente, chegaram a uma grande clareira, tão grande que era impossível saber onde terminava, salpicada de altas árvores e repleta de casas de pedra branca, enfeitadas com diversas flores multicolores, e onde se erguia um castelo, da mesma pedra extremamente branca e com magníficos enfeites de ouro e por onde trepavam, aqui e acolá, verdíssimas trepadeiras. Chamavam-lhe o Palácio do Ouro e do Verde. Era um lugar lindíssimo, cheio de maravilhosos detalhes e pormenores, talvez ainda mais belo que Aquilad! E àquela hora em que o Sol se punha, num clarão vermelho, as suas pedras ficavam vermelhas e brancas.

- Bem-vinda a Omnirion - disse Liduvine, e depois com um sorriso: - Bem-vinda a casa!

Percorreram as brancas ruas em silêncio. Nas janelas, nas portas e nas varandas, as pessoas olhavam-nas. Algumas riam da cara de espanto e admiração que Ailura fazia sempre que virava a cabeça para um dos lados. Outras corriam a chamar a família, os amigos, os vizinhos. E todos murmuravam entre si Ela chegou".

Fadas e Elfos esperavam-nas na entrada do castelo. Damas com esvoaçantes e delicados vestidos, guardas vestidos de verde-escuro com uma árvore bordada a ouro coroada por um sol igualmente bordado a ouro, elfos com sumptuosos fatos de diversas cores... E entre eles estava Edínmtor, calmo, sereno e altivo.

Pararam em frente daquela pequena multidão.

Um elfo alto, de longos cabelos louros e vestido de branco e verde, avançou para elas. Um pajem acompanhou-o. Trazia nas mãos uma almofada com uma discreta, mas finamente trabalhada, coroa de ouro que tinha apenas incrustados na frente três perfeitos diamantes, um grande, ladeado por dois mais pequenos.

- Bem-vinda, Ailura, filha dos Mundos - disse o elfo vestido de branco e verde. - Há muito que esperávamos impacientes a tua chegada. Neste dia em que, finalmente, chegas, tenho apenas a lamentar que não venhas só. Pois também o último filho dos Elementos despertou e a sua sombra jà começou a encobrir as Terras da Luz. - Ergueu o olhar para o povo de Omnirion que entretanto se tinha concentrado atrás delas. - Mas hoje é um dia de alegria, pois voltaremos a ter uma Rainha. E assim, aqui e agora, eu, Glordil, abandono agradecidamente o cargo de regente que nos últimos anos tem repousado sobre os meus ombros.

Virou-se para o pajem e retirou a coroa da almo fada. Liduvine fez um sinal a Ailura como que a indicar que se devia ajoelhar e ela assim fez. Glordil voltou-se para ela com a coroa nas mãos. Ocorreu a Ailura que não se parecia em nada com uma rainha. As suas roupas estavam imundas, cobertas de terra e mal se via as flores bordadas. Ela própria estava coberta de pó e seus cabelos tinham um ar rude e áspero. Mas ninguém, para além dela parecia reparar nisso.

- Que sejas Rainha no porte e na acção e possas reinar por muitos e longos anos - disse ele, enquanto lhe pousava a coroa nos cabelos.

Ailura esteve algum tempo calada à procura das palavras apropriadas para dizer. Não sabia o que dizer numa altura daquelas; nunca na sua vida fora preparada para ser coroada Rainha. Mas, finalmente, conseguiu pronunciar estas palavras:

- Que eu possa ser Rainha com a bênção e o amor do meu povo e daqueles que estão acima de mim. E que aqui fique para sempre, e a minha família depois de mim.

E assim Ailura, filha dos Mundos, que nunca sonhou ser Rainha, foi coroada em Omnirion, em frente ao Palácio do Ouro e do Verde onde no começo dos tempos viveu Aerzis.

 

                   A AMEAÇA

O palácio era ainda mais belo por dentro. As suas paredes eram de pedra branca e o seu chão de coloridos e alegres vitrais. A luz atravessava-os, projectando as suas cores nas paredes e no tecto. As janelas eram grandes e perfeitamente transparentes e apenas aquelas que davam para os quartos tinham cortinas.

O palácio tinha ainda várias estátuas, altas e majestosas, de Elfos e Fadas e lindos quadros de reis, rainhas, belas damas, corajosos cavaleiros e soberbas paisagens.

Entre esses quadros encontrava-se o retrato do pai, vestido de castanho e vermelho-escuro, com a mesma expressão afectuosa e sincera que ela sempre lhe conhecera. E por toda a parte viam-se árvores que roçavam as paredes do palácio e os telhados das casas, e enchiam de um maravilhoso e harmonioso verde aquela cidade de pedra branca.

Mas, para além dos Elfos e das Fadas, existiam outras criaturas em Omnirion e, principalmente, no palácio: Gnomos e Duendes.

Os Gnomos eram criaturas feias com cerca de um metro de altura, de grandes e largas orelhas pontiagudas, olhos pequeninos e geralmente castanhos, cabeça ligeiramente achatada, pouco cabelo e pequenos dentes cónicos e aguçados. Mas eram, como ela depressa aprendeu, muito espertos. Controlavam a entrada e a saída de todo o tipo de bens. Segundo Glordil, eles sabiam exactamente quantas couves, cenouras, tomates, grãos de arroz, barris de vinho, sacos de trigo, peixes fumados e muitas outras coisas havia em Omnirion. E conheciam, precisamente, o número de pedras preciosas e quantidade de metais, como o ouro, a prata e mesmo o ferro, que existiam no palácio. Tinham um carinho especial por esses metais, que reflectiam a luz de uma forma estranhamente sedutora e cortavam a carne dos inimigos do Povo da Luz. Eram carrancudos e mal dispostos, mas repartiam tudo pelo povo de Omnirion de forma justa e perfeitamente igual. Ailura não conhecia mais do que o elfo que vivia entre as árvores, numa casa de madeira antes da a grande clareira começar, todos os dias arranj ava o seu quintal com amor enquanto entoava, numa voz clara e límpida como as águas do Enyel, palavras que faziam a terra rejubilar.

Porque é assim que os Elfos lidam com a Natureza. Quando querem que ela cresça, pedem-lho através de canções que entoam na sua voz calma e melodiosa, e a Natureza, encantada, cresce.

Os Duendes eram muito parecidos com os Elfos, mas não tinham mais de trinta centímetros de altura. Podiam voar e, quando necessário, eram extremamente velozes. Eram eles que levavam os recados até Brumívium e algumas cartas mais urgentes. Tinham um ar mais cordial que os Gnomos e eram infinitamente mais belos. No entanto, a sua sabedoria não era grande. Gostavam de beber golinhos de vinho, comer doces, cantar e dançar pelos céus, principalmente nas noites em que as estrelas brilhavam. Gostavam muito dos Elfos e das Fadas, mas detestavam os Gnomos, com as suas feias caras e modos grosseiros. Assustavam-se muito facilmente, o que por vezes os podia matar. Eram um povo alegre, a quem as desgraças do Mundo não interessavam e que não suportava a escuridão que Morgriff arrastava como um manto atrás de si. Esta era-lhes mortal.

O quarto de Ailura era grande e agradável, todo em tons de verde e ouro. As suas mobílias eram de madeira escura, minuciosa e esplendidamente trabalhada. Havia uma grande cama de casal com um dossel dourado, que duas serenas estátuas de fadas, de asas abertas, seguravam. A colcha da cama era igualmente dourada e diversas folhas presas a curvilíneos caules estavam ricamente bordadas com um fio de um brilhante verde-esmeralda. Nas fronhas brancas das almofadas repousavam três folhas de carvalho, bordadas a ouro. Também a escrivaninha, o toucador, o armário, a mesa onde se podiam tomar pequenas refeições e a estante repleta de livros com bonitas encadernações tinha pintados, a verde e ouro, motivos relacionados com a Natureza. O quarto tinha o requinte de um quarto de Rainha. Duas grandes portas de vidro, cobertas por cortinas verdes e coroadas por um vitral nos mesmos tons do resto do quarto, abriam para uma grande e magnífica varanda de pedra da qual se tinha uma vista fabulosa de Omnirion. As folhas duma grande e velha árvore caíam por cima dela, criando um fresco e acolhedor recanto, onde repousava um elegante e comprido banco, para Ailura se sentar a ler.

E foi assim, nestas magníficas instalações, cuidadosa e longamente preparadas para ela, que Ailura ficou a viver.

Ailura levantava-se agora ainda mais cedo que antes. Liduvine acordava-a todos os dias antes de os primeiros raios de sol se erguerem no céu. E, depois de se alimentarem, iam para perto da floresta treinar esgrima com uma espada que parecia infinitamente maljeitosa. Ailura achou que nunca conseguiria manejá-la com elegância e eficácia. Mas com o passar dos dias ela parecia voar, cortando os ares, cada vez mais veloz, conduzida pelas suas mãos. Liduvine explicou-lhe que os Elfos eram exímios artífices e que as suas espadas eram leves e lindamente trabalhadas. Também aprendeu a utilizar uma estranha arma comprida, de linhas aerodinâmicas, com duas lâminas largas, uma em cima e outra em baixo, e um punho para as mãos a meio, que era da sua altura. Aquela era a arma preferida de Liduvine e ela manejava-a com uma perícia e elegância inigualáveis. Por vezes, ao anoitecer ou ao nascer do dia, elas passeavam pelas brancas e verdes ruas de Omnirion, cobertas com uma comprida capa de viagem com um grande capuz que lhes ocultava o rosto. Era assim que Ailura tentava conhecer o Povo da Luz. Mas depressa compreendeu que não podia conhecê-los apenas por observar as suas rotinas. Os Elfos e as Fadas eram seres de infinita sabedoria, altos e belos, com vozes harmoniosas e olhos brilhantes, calmos e gentis, mas que podiam ser extraordinariamente perigosos. E eles tinham perfeita consciência disso.

Edínmtor ensinava-lhe apenas uma coisa: a usar o arco. Mas, para isso, Ailura era pouco dotada. Nunca conseguia concentrar-se no alvo e os músculos dos braços pareciam sempre desaparecer. A única coisa que ela sentia era os intestinos a contorcerem-se como cobras dentro de si.

- Não afastes os pés de mais, Ailura. Mantém-te firme! - repetia mais uma vez Edínmtor. - Coloca a seta e retesa o arco. Deixa o braço esquerdo firme. Larga a corda com todos os dedos ao mesmo tempo. Fixa o alvo. Acima de tudo, não abrandes a concentração antes de a flecha ter abandonado o arco! - e depois acrescentava numa voz mais doce: - Vamos, tenta outra vez. Ela tentava, mas nunca conseguia. Os movimentos serpenteantes dentro da sua barriga desconcentravam-na sempre e de cada vez que armava o arco, um rubor subia-lhe à cara e ela olhava instintivamente para o chão, falhando uma vez mais o alvo. Por vezes, aborrecida de falhar constantemente, ela pedia-lhe que atirasse. E ele, com movimentos céleres, colocava a flecha, retesava o arco, atirava e, com uma precisão excepcional, cravava a flecha bem no centro do alvo. Mas a lição acabava, indubitavelmente, com ele a soltar um leve suspiro, enquanto murmurava um desconsolado Voltamos a tentar amanhã! e ela a amaldiçoava o saco de cobras vivas que parecia ter sido colocado no lugar onde, antes de a lição começar, estavam os seus intestinos. Não que ela não soubesse a razão disso acontecer, mas também não queria admiti-lo!

Tinha ainda lições de política, estratégia e história com Glordil. Liduvine prevenira-a que seriam lições longas e enfadonhas, bem diferentes das que tinha com ela ou Edínmtor. Mas Ailura, habituada às longas e complicadas reuniões do seu jornal, achou-as leves e interessantes. Glordil dizia-lhe frequentemente que ela tinha um dom natural para comandar, muito embora devesse controlá-lo.

- Se o controlares, serás uma grande Rainha, justa e amada. Se não o fizeres, tornar-te-ás tão louca e maléfica quanto o é Morgriff. É um grande dom, e no teu caso muito precioso. Mas, se não fores cuidadosa, ele apoderar-se-á de ti. E aí será maior o mal que farás do que o bem! - dizia ele, como quem faz um aviso vital.

Glordil falou-lhe ainda dum povo só de Elfos que vivia para além dos picos das Heniunel, as grandes montanhas brancas. Chamavam-lhes o Povo Branco e dizia-se que todos eles eram loiros e tinham olhos do mesmo azul que habita as profundezas do mar e do céu. Há muitos anos, pouco tempo depois de os Elfos acordarem, um grupo deles tinha partido, movido simultaneamente pelo desejo de ver o que se escondia atrás do puro branco das montanhas e pelo medo que Morgriff criava, cada vez com mais profundidade, em Morniran. Desde o dia da sua partida nunca mais se ouviu fosse o que fosse sobre eles, não se sabia sequer se alguma vez tinham atravessado as Heniunel. Mas como não ficaram nem em Caladmiron, nem em Brumívium, deram-lhes o nome de Povo Branco. Com o passar dos tempos eles tinham caído no esquecimento e a história tornou-se lenda!

- Mas muito do que foi esquecido nunca o deveria ter sido. E muitas das lendas são ainda tão reais quanto nós - disse nessa altura Minergue, mãe de Edínmtor, que era sábia entre os sábios. Ailura recebeu um conjunto de delicadas roupas. Também foram feitos mais dois fatos de viagem assim como três capas: uma prática discreta, as outras, esbeltas e, tal como os vestidos, ricamente trabalhadas.

Parado a meio dum grande campo estava Morgriff. Muito ao fundo, erguiam-se belas árvores. Tudo estava calmo e sereno. A figura de Morgriff umas vezes mais nítida e outras tão transparente, quase parecia desaparecer. As folhas das árvores caíam e voltavam a nascer, caíam e novamente nasciam; o tempo parecia correr acelerado e, quando finalmente as folhas permaneceram quietas, a ondular ao vento nos ramos das árvores, Ailura percebeu que muitos anos tinham passado. E com o passar dos anos duas raparigas tinham tinham surgido a seu lado. Uma tinha gravado nos olhos o saber de muitos e longos anos passados a caminhar nos estranhos caminhos da vida e do Mundo. A outra era jovem, talvez mais ou menos da sua idade, e por entre o olhar rebelde e decidido entrevia-se uma sabedoria que amadurecia lentamente com o passar do tempo. De certo modo, pareciam reflexos seus. Era como se fossem o seu futuro. Mas como o podiam ser? Ela não podia envelhecer para depois rejuvenescer!

A rapariga mais velha avançou para ela e deram as mãos. Enquanto avançavam para a terceira rapariga, Ailura viu que a figura de Morgriff se tornava cada vez mais nítida e ao mesmo tempo deformada. A rapariga uniu a sua mão à mão livre de Ailura e instintivamente ela olhou para Morgriff. Uma ligeira expressão trocista bailava-lhe no rosto e então, subitamente, desapareceu.

Ailura despertou. Há já algum tempo que deixara de ter aqueles estranhos sonhos!

Levantou-se, vestiu um roupão largo e comprido e foi até à varanda. A noite começava a morrer e estava agradavelmente fresco. Lá em baixo, a passear dum lado para o outro, estava Edínmtor.

Ela percorreu o palácio praticamente deserto e desceu para ir ao encontro dele. O elfo estava sentado num banco a olhar para a floresta. E, quando se aproximava, Ailura viu que lhe escorriam lágrimas silenciosas pela cara.

- Edínmtor... - chamou a medo.

Ele fez um gesto rápido para limpar as lágrimas e

virou-se.

- O que fazes aqui?

O mesmo que tu - respondeu ela, enquanto se

- Não consigo dormir.

Ficaram assim, a olhar. Durante algum tempo para as profundezas de Caladmiron sem dizerem fosse o que fosse. O próprio som das suas respirações parecia exageradamente alto. Até que por fim Ailura formulou a pergunta que bailava na sua cabeça.

- Porque estavas a chorar?

A pergunta feita assim de repente e com o tom de quem espera uma resposta, fê-lo olhá-la, surpreendido.

- Tive um pesadelo terrível.

- Então conta-mo, antes que acabe a noite.

Edínmtor ficou calado durante alguns momentos. Parecia não saber bem se o devia contar como se receasse que ele fosse terrível de mais, mesmo para ser contado à noite!

- Não havia nem dia, nem noite no Mundo.

Apenas escuridão e fogo negro. - A sua voz era profunda e triste, a sua expressão grave. - Todas as árvores tinham morrido e só os seus troncos, tristes, sombrios e queimados, eram ainda visíveis. O chão não era de relva folhas ou mesmo terra, mas sim de pútridas cinzas. Os Gnomos tinham partido e os últimos Duendes morrido de tristeza. Apenas os Elfos e as Fadas tinham permanecido nas Terras da Luz a defendê-las com as últimas armas que possuíam, as últimas forças, os últimos gritos de vida. Mas também eles tinham sido derrotados e subjugados a uma força cada vez maior, à qual há muito tinham deixado de conseguir resistir. Uma força que se alimentava das suas últimas forças. E, assim, os povos que em tempos tinham sido os mais poderosos de entre os poderosos, desapareciam para sempre, deixando apenas um Mundo de morte e dor, para a força demoníaca governar. Um Mundo onde viviam apenas os Magdul e o seu negro senhor. Um Mundo sem beleza nem alegria.

Um Mundo morto.

Quando ele acabou, Ailura olhava-o, aterrorizada. De certo modo, preferia ter ficado calada e não o ter encorajado a contar o seu tenebroso sonho.

- Há muito tempo que tenho este sonho. Há muito tempo mesmo! - continuou ele. - Ainda não aconteceu. E talvez nunca venha a acontecer. Mas eu sei que é o que acontecerá se Morgriff conseguir o Ceptro, pois ele contém toda a magia que as próprias Terras da Luz possuem. Imagina o terror que ele poderia criar se vergasse um poder tão antigo quanto os alicerces da Terra à sua tenebrosa vontade de controlar todos os povos e todas as terras livres!

Este Mundo existe há oitenta e nove mil milhões de anos. E muito mais antigo que o Mundo dos Homens e, em parte por isso, os nossos povos são muito mais sábios. Por outro lado, nós não negamos ou esquecemos desesperadamente os ensinamentos de há muitos milhares de anos. Os mais velhos de entre nós ainda se lembram da chegada dos Homens. Ao início, eles confiaram em nós e deixaram-nos ensiná-los. Nesse tempo passava-se dum Mundo para o outro com a mesma facilidade com que se cheira uma flor. Mas com o passar do tempo eles tornaram-se desconfiados e deixaram de confiar em nós. Estranhamente, passaram a preferir uma ajuda que não podiam ver e que nem mesmo sabiam bem se existia. E a passagem entre os Mundos fechou-se para sempre. Embora a minha mãe afirme que ainda existe um espelho pelo qual é possível passar dum Mundo para o outro e, é claro, os Elfos e as Fadas ainda consigam trazer alguém que está no outro Mundo para este, se assim o desejarem. De resto, foi assim que te trouxemos.

Mas durante todo esse tempo, durante todos os milhares de anos em que vivemos em paz, a nossa luz e a nossa felicidade foram sempre ameaçadas por uma sombra. Uma sombra que ultimamente tem vindo a crescer e a tornar- se mais escura. E eu temo que essa sombra, encarnada por Morgriff, venha a destruir-nos e a tudo o que, durante longos e belos anos, criámos. Parece-me agora que a nossa paz se equilibra no gume de uma faca e que, por mais esforços que façamos, ao mais pequeno abalo, cairá. No entanto, para o bem ou para o mal, sinto que rapidamente a resposta chegará.

Mais uma vez ficaram calados a olhar para o interior da floresta, sem saberem o que mais dizer. Ailura procurou a mão dele com a sua e, quando a encontrou pousada sobre o banco, pousou nela a sua. Simultaneamente, para o reconfortar e se reconfortar a si mesma.

- E tu? Porque não consegues dormir? - perguntou Edínmtor, quebrando assim o silêncio.

Ailura contou-lhe o seu sonho e ainda o da noite em que se tinham beijado. Mas omitiu o da mãe! Ele olhou para ela com um misto de espanto e compreensão.

- Então não foi só uma vez? - perguntou ele, suavemente, quase como se estivesse a afirmar.

- Não. Tenho-os desde que dormimos em Aquilad - respondeu ela. Mas arrependeu-se de imediato. Ela só lhe tinha contado o sonho de duas noites. E assim ele ia compreender que eram pelo menos três. E se ele perguntasse sobre que era o terceiro?

No entanto, ele não perguntou nada. Limitou-se a sorrir.

- Tu deves ter o dom da Visão - disse por fim Edínmtor. - Mas através dos sonhos. É um dom muito raro e precioso.

- Achas que devo fazer alguma coisa? - perguntou Ailura, sem ter bem a certeza de gostar de possuir aquele dom.

- Não. Apenas deves confiar neles. Mas, se quiseres, fala com minha mãe, Minergue. Ela pode ajudar-te melhor do que eu.

O sol começava a estender os seus brilhantes e flamejantes raios pelas terras e em breve seria dia. Ailura levantou-se para subir ao seu quarto e preparar-se para mais um dia repleto de lições.

- Ah! É verdade. A Finny desapareceu há dias. Se a vires, diz-me - pediu Ailura, antes de entrar no palácio.

À sua frente estava Morgriff. Estavam ambos parados a meio dum grande campo, um em frente do outro, prontos para se enfrentarem. Ailura tinha o Ceptro na sua mão; Morgriff tinha o seu bastão.

Subitamente, um grande clarão branco ergueu-se no ar, cobrindo tudo e todos. Por uns momentos, Ailura não conseguiu ver mais nada. Depois, a luz diminuiu e ela soube que Morgriff tinha mais uma vez desaparecido.

Podia ver Edínmtor a correr para ela. Sorriu para ele. No entanto, ele não sorriu. Tinha uma expressão preocupada e cada vez corria mais. Ela quis correr também, mas começou a cair, a cair, numa escuridão que não sabia explicar donde vinha. Viu-o estender a mão para a segurar. Mas ela não conseguia agarrá-la.

- Edínmtor - gritou.

No entanto, era inútil. Já não conseguia vê-lo. Nem sequer se via a si mesma. E continuava a cair, a cair sempre para a escuridão cada vez mais densa. Até que começou a ver as luzes duma cidade. Sem saber porquê, fechou os olhos. Sentiu algo a tocar-lhe na cara...

Alguém lhe fazia festas na cara e Ailura acordou.

Era Edínmtor, que estava sentado na sua cama, bem perto dela. Tinha uma expressão terna e quase agradecida no lindo rosto.

- Gritaste o meu nome - disse ele.

- Tive outro daqueles sonhos - respondeu ela. É por isso que estás aqui?

- Não. A Finny apareceu e traz uma notícia... Arranja- te depressa. - E depois acrescentou com um estranho tom de voz. - Veste um vestido, um dos mais bonitos que tiveres. Eu espero lá fora.

Ailura levantou-se rapidamente e foi até ao armário escolher um vestido. Perguntava a si mesma que notícia traria Finny.

Finny era uma duende que gostava muito de Ailura e de quem Ailura também gostava muito. Era ela que levava os seus recados a Elianor e lhe contava os segredos do palácio. Supostamente, existiam no mínimo sete passagens secretas escondidas no palácio. Mas Ailura não estava muito certa que isso fosse verdade porque, até ao momento, Finny ainda não conseguira mostrar-lhe uma única dessas passagens. Também era verdade que ainda não tinha perguntado nada sobre isso a Liduvine, Edínmtor ou mesmo Glordil. Enfim, talvez existissem, ou talvez não passassem de uma história, igual a tantas outras. Vestiu um lindíssimo vestido bege-claro, com flores vermelhas muito escuras e folhas e ramos verdes, delicadamente bordados. Era um vestido justo, sem mangas, com um grande decote, donde caía um folho para o seu peito, e uma pequena cauda. E, depois de um momento de consideração, colocou a coroa sobre os cabelos onde ainda persistiam três finas tranças. Saiu e seguiu acompanhada por Edínmtor até à sala do trono.

- Como é que ela está? - perguntou por fim Ailura.

- Muito abalada, mas penso que sobreviverá - respondeu ele, e imediatamente o seu rosto tornou-se gráve. - Foi capturada por Suresim, um elfo que no tempo do teu pai nos traiu e ajudou Morgriff a chegar a Omnirion. Também os Elfos e as Fadas podem ser corrompidos pelo desejo de poder - acrescentou, como se fosse simultaneamente terrível e improvável. - Morgriff exigiu que o recebesses. Tem cuidado. Suresim é uma pérfida raposa. Ele fará tudo para te seduzir, tem cuidado com a sua voz. Desconfia de tudo o que ele disser, pois raras são as verdades que profere.

Chegaram à sala do trono. Glordil, Minergue e Liduvine também lá estavam bem como alguns guardas. Ela sentou-se no trono e Glordil e Liduvine deram-lhe conselhos parecidos com os de Edínmtor. Mas Minergue permaneceu silenciosa, a fitá-la com os seus sábios olhos.

A noite ainda envolvia as Terras da Luz e o palá cio, assim mergulhado na luz bruxuleante das velas e repleto de caras preocupadas, pareceu a Ailura triste e sombrio.

Por fim, as portas abriram-se e um elfo de cabelos negros entrou. Aproximou-se do trono e curvou-se numa vénia perante Ailura. Liduvine colocou-se atrás do elfo e Edínmtor chegou-se mais para a frente. Mas Glordil e Minergue permaneceram junto dela, um de cada lado do trono.

- Senhora - disse o elfo -, é uma honra e um prazer conhecer a filha do Rei morto. - Ailura achou a saudação extremamente desagradável. - Eu sou Suresim.

- Eu sou Ailura, Rainha das Terras da Luz. Mas porquê estar com galanteios se nenhum de nós os pretende realmente proferir? Falai logo, Suresim, o enganador, que más novas nos trazeis. Suresim fez um trejeito como se o título o magoasse, mas não se incomodou a desmenti-lo. - Morgriff, o último e grandioso filho dos Elementos, pretende chegar a um acordo - disse com uma voz definitivamente muito mais desagradável. - Ele desej a que vós saibais que ele tem agora o tempo para tomar Caladmiron pela força. Mas está disposto a deixar que vocês a preservem... sob certas condições. - Fez uma pequena pausa, à espera da reacção dos outros, mas nada aconteceu. - Primeiro: Caladmiron ficará sob o domínio de Momiran. Segundo: os E Elfos e as Fadas serão autorizados a permanecer nas suas terras, mas não poderão utilizar quaisquer armas, sejam de que tipo forem. E, por fim, a mais importante de todas: o Ceptro será entregue ao glorioso Morgriff. Ailura não estava bem certa da resposta a dar. As condições pareciam-lhe inaceitáveis, mas... E se aquilo fosse o que o seu povo queria? Era uma decisão extremamente delicada que iria decidir o destino de todos os povos livres. Espontaneamente, olhou para Edínmtor e lembrou-se do sonho que ele tivera e das suas palavras eu sei que é o que acontecerá se Morgriff conseguir o Ceptro". Foi o suficiente para se decidir, para saber o que tinha de fazer.

- As Terras da Luz, assim como o Povo da Luz, não serão encobertas por qualquer sombra enquanto nós tivermos forças para o impedir - disse calmamente, como se desde o início tencionasse dizê-lo.

- Então - disse Suresim com um brilho terrível nos olhos -, a guerra virá até vós. Um por um, os Elfos e as Fadas serão destruídos. E tu lamentarás não ter sido mais sábia.

- Chamais então sabedoria a confiar em dois traidores, um que traiu os seus irmãos e outro que traiu o seu povo?

Suresim não respondeu. Irado, saiu da sala sem

mais uma palavra.

- A guerra virá bater à nossa porta. Mas talvez nunca chegue a entrar - disse Minergue.

Ailura sentia-se extremamente cansada. Não percebera muito bem o que Minergue quisera dizer ou como realizá-lo. Mas estava disposta a tudo para evitar uma guerra que inevitavelmente iria destruí-los.

 

                   A BATALHA

As noites que se seguiram à visita de Suresim foram mais escuras do que era habitual e durante o dia, o sol mal se atrevia a brilhar e o ar era pesado e triste.

Omnirion despertara para a guerra; a paz mantida até então fora quebrada por um terror que se deslocava, rapidamente, vindo do Leste.

Os Duendes voaram, rápidos como o vento irado, em todas as direcções que se conhecem. Levavam pedidos de ajuda para Elfos e Fadas que viviam no interior da floresta e para as sacerdotisas em Névia.

As espadas, arcos e estranhas armas, como a de Liduvine, foram retiradas dos panos que cuidadosamente as guardavam. Em dois dias, o Povo da Luz preparou-se para a guerra. Ailura e Liduvine seriam as únicas mulheres a partir de Omnirion para a guerra.

A elfo ofereceu a Ailura um presente que, segundo ela, mandara fazer para quando acabassem o treino.

- No entanto, parece-me que será mais precisa agora.

Era uma espada. Leve como uma pluma, nem demasiado grande, nem demasiado pequena. O cabo tinha o tamanho perfeito para as mãos de Ailura e a lâmina era trabalhada com motivos élficos. Seria a única arma que Ailura levaria consigo. Mas, evidentemente, levaria também o Ceptro.

Liduvine levava a sua estranha e elegante arma; assim como uma espada de lâmina estreita. Levava o comprido punhal e o seu belo arco.

Ailura já estava pronta, mas olhava ainda da varanda do seu quarto para Omnirion. Lá em baixo havia um pequeno mar de Elfos e Fadas montados a cavalo. Já muitos tinham partido, num passo necessária e desesperadamente apressado, para Ranthlin, nos campos verdes.

Perguntava a si própria se voltaria àquela varnda, ou se alguma vez o sol brilharia em Caladmiron sob a ameaça de uma qualquer sombra, quando ouviu passos. Passos que se encaminharam para a varanda.

- O que acontecerá daqui para diante depende apenas de ti - disse, atrás de si, a voz profunda e melodiosa de Minergue. - Nós cumprimos a nossa parte. Agora serão as tuas decisões e os teus actos que determinarão o nosso futuro.

- Tanto depende de mim... E é tanto o que eu ignoro!

- Ignoras menos do que julgas ignorar – disse Minergue e tomou nas suas mãos as de Ailura. - E és ainda muito nova. Nova de mais para teres o conhecimento dos anos, como eu e Elianor temos.

- Esta é uma estrada demasiado longa, e que eu nunca pensei ter de percorrer - comentou Ailura.

- É de facto uma longa estrada. Mas não serás ainda tu a ver o seu fim. No entanto, o fim está próximo. Mais próximo do que alguma vez esteve.

- Minergue cobriu os cabelos de Ailura com o capuz da capa. - Agora apressa-te. O tempo urge. Eu ficarei aqui, como me pediste, a tomar conta de Omnirion até que tu ou Glordil regressem. Tem confiança.

Ailura gostaria de ter ficado ali a falar com Minergue e não ter que ir defrontar Morgriff nos campos Ranthlin, mas sabia que não podia. Por mais medo que tivesse do que poderia acontecer, tinha de fazê-lo.

Mesmo que o sonho se tornasse realidade, mesmo que morresse: Por isso, saiu do quarto, atravessou o palácio onde agora só eram visíveis mulheres, montou o seu corcel castanho e partiu para se confrontar com os seus medos.

Na varanda do seu quarto, Minergue, vestida de branco e com os cabelos de ouro soltos ao vento, via-os partir. Dos seus lábios saía uma suave e triste melodia, pois ela há muito que sabia...

Cavalgaram velozmente durante todo o dia e toda a noite, sem mesmo pararem para comer. Quando tinham fome, comiam em cima dos cavalos. Ailura aprendera a cavalgar quando tinha dez anos, ainda antes de o pai morrer. E, embora não cavalgasse há doze anos, era ainda uma exímia cavaleira.

Caladmiron parecia, nesse dia, mais resplandecente que nunca. Era como se ela soubesse que entre as suas magníficas árvores cavalgavam as últimas esperanças das Terras da Luz e, para relembrar ao povo da Luz o porquê do seu nome, brilhasse ainda mais do que era costume. E Ailura, embora cavalgasse para o fim e provavelmente para a dor, achou a floresta mais linda que nunca. Também os restantes cavaleiros pareciam achar o mesmo, porque os seus rostos iluminaram-se e, pela primeira vez desde a visita de Suresim, houve risos nas suas belas faces.

Quando a manhã do dia seguinte começou debilmente a nascer, eles chegaram ao acampamento que entretanto tinha sido montado em Ranthlin.

Uma multidão esperava- os ansiosamente e assim que os avistaram saudaram-nos com palmas.

Os cavalos foram levados para poderem descansar e saciar a sua fome e sede. Mas foram os únicos a quem tal foi concedido.

No acampamento havia muitos elfos e fadas com o emblema de Omnirion, uma árvore dourada coroada por um sol, bordado nas roupas. Mas também se podiam ver algumas sacerdotisas de Névila vestidas de azul-escuro como a noite onde brilhava, bordado a prata, o símbolo de Valindra: uma lua em quarto crescente rodeada por três estrelas.

Ailura foi levada, juntamente com Glordil, Edínmtor e Liduvine, para uma grande tenda onde já estavam reunidos os vários capitães: Muitos deles ostentavam uma cara de profundo desespero e, embora os Elfos e as Fadas nunca deixem a esperança morrer, alguns pareciam certos de que não seria uma batalha que pudessem vencer. Mas um deles ergueu-se numa voz clara e forte, disse:

- Negra é a nossa hora. Mas não consideremos a batalha perdida antes mesmo de ela começar. Se não confiamos em nós próprios, então o inimigo já venceu - calou-se um pouco, à espera de ver o efeito das suas palavras. Alguns berraram: Isso nunca! e outros elevaram os olhos para aquele capitão como se vissem uma nova luz, embora pequena, a nascer. E ele continuou:

- Se lutarmos, temos uma hipótese, se não o fizermos nunca apagaremos a sombra que durante milhares de anos ensombrou e ameaçou a Luz. Além disso não estamos sós, pois a nossa Rainha veio em nosso auxílio. E ela traz a nossa última e derradeira esperança... o Ceptro de Aerzis.

Os capitães olharam para a entrada da tenda e os seus olhos repousaram na figura de Ailura. E foi assim que pela primeira vez eles a viram: alta, bela, com os cabelos soltos onde eram apenas visíveis algumas: pequenas tranças e os olhos cor de bronze a brilhare estranhamente. Talvez por que precisassem de acreditar, talvez por ser essa a verdade, eles viram nela a esperança e o fim de todas as dúvidas e de todos os medos como se de repente soubessem que ela era o princípio do fim e que, bom ou mau, ele depressa chegaria.

Isso era já muito bom! Estavam cansados de combater uma sombra que por vezes se tornava na mais profunda escuridão e que não conseguiam apagar.

Ocapitão que estivera a falar avançou para Ailura, fez uma ligeira vénia e apresentou-se:

- Senhora, sou Ilmaran. E estes são os capitães de todas as pequenas comunidades do Povo da Luz. Eles vivem espalhados por Caladmiron, a Grande Floresta.

Não eram muitos, mas também não precisavam de o ser. Ailura sabia que eles esperavam que os comandasse a todos, pois eles representavam o Povo da Luz, o seu povo. E era isso que devia fazer, mas esperava também que eles dessem a sua opinião e não deixassem que a sua pouca prática lhes fosse a todos fatal.

- Quantos são os nossos adversários? - perguntou Ailura.

- Um exército bem treinado de cerca de dez mil guerreiros Magdul, liderados pelo próprio Morgriff

- respondeu Ilmaran.

Ailura não poderia afirmar quantos Elfos e Fadas se encontravam fora da tenda, mas duvidava muito que fossem mais de quatro mil. De facto; nem tinha a certeza que fossem quatro mil. Estavam definitivamente em inferioridade numérica, e algo teria de ser feito para compensar essa desvantagem.

A manhã e parte da tarde foram passadas dentro da tenda a discutir estratégias. A opinião geral era que, antes dum verdadeiro combate corpo a corpo, se devia tentar abater o maior número possível de guerreiros Magdul com setas certeiras e velozes. Os Elfos eram arqueiros notáveis; a sua pontaria era inigualável e seria deveras estranho que uma seta não atingisse o seu alvo. Só depois de todas as setas terem sido gastas é que as espadas deviam ser então desembainhadas. Depois, restava- lhes apenas combater até a vitória chegar ou até não haver um único Elfo ou Fada com um sopro de vida em Ranthlin.

Quando Ailura saiu, por fim, da tenda, já mal conseguia aguentar-se em pé. Desde que saíra de Omnirion que não dormia e naquele momento esqueceu a guerra que se aproximava, esqueceu Morgriff e concentrou todo o seu pensamento em chegar à tenda onde ela e Liduvine poderiam descansar. Mal lá chegou, deitou-se, sem mesmo tirar a capa ou as botas, e caiu de imediato num sono profundo.

Quando Ailura finalmente acordou já o Sol se pusera, levantara e se preparava novamente para deitar-se. Liduvine também já lá não estava. Por isso, levantou-se e saiu da tenda.

Atravessou o acampamento sem saber bem para onde se dirigia. Não havia caras desesperadas por entre a multidão, apenas uma tristeza acumuladas durante muitos e longos anos. Alguns até sorriam, certos de que cedo o sofrimento dos anos acabaria.

E então, sem que disso se apercebesse, chegou ao local onde os arqueiros se tinham concentrado. Muitos deles estavam ali, mas alguns tinham-se escondido na floresta para atacarem o exército pelos lados. As suas aljavas estavam repletas de variadas setas, mas mesmo assim eles tinham muitas ao seu lado. Alguns estavam de pé, outros sentados, a maioria tinha os olhos fechados e estavam muitosmente concentrados. Por isso, foi natural que, quando Ailura se aproximou, muitos deles se virassem repentinamente e abrissem os olhos. Um deles avançou para ela, com o arco numa das mãos. Era Edínmtor.

- Preciso de falar contigo - disse ele.

E sem mais uma palavra levou-a com ele até um lugar relativamente sossegado. Ninguém pareceu reparar neles. Pensaram provavelmente que se tratava apenas de mais dois que se dirigiam para as suas posições.

- Ailura, é provável que ainda não saibas isto - a sua voz e o seu rosto estavam estranhamente graves.

- Os Elfos e as Fadas podem morrer com a idade ou serem mortos em combate, mas também podem morrer de amor. - Ailura olhou para ele, admirada. O que queria ele dizer com aquilo? E o que queria aquilo dizer?

- Quando eles amam alguém de verdade e essa pessoa morre, eles limitam-se a deixar a sua alma voar para o mesmo lugar para onde voou a alma da pessoa que amavam. Não sei o que vai acontecer a partir de agora.

Mas, se sobreviver a esta batalha, seria verdadeiramente triste que depois morresse.

Ela percebeu exactamente o que ele queria dizer.

Mas, talvez por querer ter a certeza ou simplesmente por querer ouvi-lo, disse:

- Edínmtor, nunca fui boa com meias palavras.

- Aquela era uma grande mentira. - Por isso.

se queres dizer alguma coisa, diz-mo simplesmente. Ele sorriu e Ailura soube que Edínmtor percebera que ela o compreendera perfeitamente. No entanto, ele respondeu:

- Quero dizer-te que mesmo um Elfo se pode enganar a julgar uma pessoa e assim mudar os seus sentimentos para com ela. Ailura, se outrora te detestei, agora amo-te a ponto de morrer de amor por ti. - E com um ar divertido acrescentou: - Não te atrevas a morrer!

Ela olhou para ele e não conseguiu evitar que um enorme sorriso lhe iluminasse o rosto.

- Edínmtor, eu sou uma fada. E isso quer dizer que posso morrer de amor. Portanto, não morras.

E no começo daquela longa noite eles beijaram-se, sem mesmo se importarem com os muitos que poderiam estar a vê-los. E foram de facto muitos os que os viram, assim como os viu Glordil, que procurava Ailura para a levar para junto de Liduvine. Mas Glordil não ficou aborrecido ou admirado. Porque, se não sabia que os dois se amavam, há muito que suspeitava.

Então, muito ao longe, soou o som de tambor. As bandeiras de Omnirion e Névila foram desfraldadas, e a árvore dourada coroada por um sol e um quarto crescente rodeada por três estrelas brilhou lado a lado como uma luz na escuridão. Os arqueiros retesaram os arcos e ficaram atentamente à espera; os restantes guerreiros ocuparam as suas posições e Ailura subiu com Glordil para um baixo monte onde já se encontravam Liduvine e Ilmaran com um pequeno grupo de espadachins. O som suave e profundo das trompas de Omnirion ressoou por Ranthlin. A batalha ia começar!

Lentamente, os verdes campos de Ranthlin foram inundados por um tenebroso mar cinzento. O exército de Morniran era liderado por dois cavaleiros montados em negros corcéis: Suresim e Morgrif. Os Magdul avançavam furiosamente pelos campos, berrando e grunhindo assustadora e selvaticamente. Mas os Magdul não eram as únicas criaturas vindas da podridão de Morniran. Também de lá vinham Trolls gigantescos, de pele escamosa e dura e incontrolável fúria de destruição. Os Trolls eram ainda mais azémolas que os Magdul, mas também causavam muito mais desordem e destruição. Os Magdul traziam arcos e espadas grotescas enquanto os Trolls traziam apenas uma gigantesca moca com a qual esmagavam os seus adversários.

Os arqueiros de Caladmiron dispararam as suas flechas certeiras. Os Magdul imitavam-nos, mas a sua pontaria era péssima e, como estavam ainda muito longe dos arqueiros élficos, foram poucas as setas que atingiram o alvo. No entanto, os Elfos e as Fadas não desperdiçaram uma única seta, pois a sua visão é extremamente apurada, principalmente de noite. Furiosos e confusos, os Magdul encaminharam-se para as árvores onde estavam alguns arqueiros. E muitas antigas e belas árvores foram maldosamente abatidas.

Quando todas as setas do Povo da Luz tinham sido gastas, as tropas de Morniran estavam já muito reduzidas. Os Trolls, confusos e sem saberem o que fazer, atiraram cegamente as suas mocas, o que matou ainda mais guerreiros Magdul. Era evidente que estavam desorientados e a sua pequena inteligência não lhes permitia organizarem-se.

Durante alguns momentos, Ailura pensou que tudo iria acabar rapidamente. Os Magdul e os Trolls, no meio da sua confusão, seriam veloz e eficazment abatidos. Mas então a voz de Morgriff ergueu-se, cruel e autoritária, no meio daquela noite sem estrelas e o exército de Morniran precipitou-se sobre eles com a força duma avalancha.

As lâminas élficas brilharam intensa e desesperadamente no meio da noite e a verdadeira batalha começou. As tropas de Morniran eram ainda muito numerosas e estavam dispostas a chacinar todos os Elfos e Fadas. Mas estes batiam-se, não pela chacina, mas pela liberdade. E muitas vezes, quando a batalha já estava perdida, eles descobriram forças para continuar.

Ailura desembainhou a sua espada e viu a lâmina élfica brilhar. Olhou para os desenhos nela gravados e soube que ela tinha sido mandada fazer para momentos como aquele. Tinha medo, muito medo mesmo. Ainda há relativamente pouco tempo ignorava todos aqueles problemas, toda aquela herança que o pai, para o bem ou para o mal, lhe deixara. E no entanto, ali estava ela, longe da casa onde crescera, num Mundo estranho e pelo qual estava prestes a bater-se. Enfim, era também o seu Mundo. O mais certo era morrer no meio da confusão, mas antes abateria o maior número possível de guerreiros Magdul.

- Tem confiança - disse Liduvine, ao seu lado.

- Olhai: - gritou Ilmaran. - A espada da Rainha vem para a guerra. Olhai! Não percamos ainda a esperança.

O exército de Morniran abateu-se sobre eles e rapidamente Ailura viu-se separada de Liduvine, Ilmaran e Glordil. Estava por sua conta.

Um Magdul particularmente grande atacou-a. Ailura atirou a sua espada para a frente e ela penetrou a carne da criatura. Ailura sentiu o sangue negro e pesti lento da criatura a espirrar para a sua cara. Mas não teve tempo de pensar nisso pois jà outra criatura a atacava.

Com um movimento largo de espada, Ailura decepou a cabeça do Magdul que foi cair mesmo em cima dos seus pés. Tinha ainda os horríveis olhos vermelhos abertos, fixos no rosto de Ailura. Ela sentiu as pernas a perderem as forças e teve vontade de vomitar. Abriu a boca num grito silencioso. De repente foi atingida pelo golpe desajeitado duma espada de Morniran, na perna direita. Virou-se e matou o adversário, ainda enjoada com a visão da cabeça arrancada do corpo.

Ailura gostaria de ter parado mas não pôde. E, um a um foi matando todos os guerreiros adversários que encontrava. Até que um troll, com mais de quarenta e 5 metros de altura, apareceu a agitar ameaçadoramente a sua moca. O troll tinha uma cabeça calva e pele escalada e era visivelmente corcunda. Mas isso em pouco diminuía o seu incrível tamanho. Ailura avançou destemida, para ele. A sua espada cortou a escamosa pele do troll. Então ela pegou na aguçada lança de ferro que estava caída e, com toda a sua força, espetou-a no peito do troll. Ele soltou um grande grunhido e agitou descontroladamente a cabeça em todas as direcções. Ailura, atingida pela moca projectada pelo ar, acabou por cair mesmo no caos do campo de batalha. Caiu sobre o seu braço direito e a violenta dor que sentiu disse-lhe que tinha o braço partido. Com a mão esquerda procurou dentro da roupa o embrulho com o Ceptro. Ainda lá estava com uma certa dificuldade conseguiu pôr-se de pé. Agarrou a espada caída com a mão esquerda e foi então que o viu.

Morgriffestava a pouco mais de três metros de si, com o bastão nas mãos. Estava parado, como se estivesse à sua espera. Ailura avançou, com a perna ferida a escorrer sangue e o braço a doer horrivelmente, matando mais alguns Magdul, até que finalmente se encontrou frente a frente com Morgriff. Embainhou a espada coberta de sangue negro.

- Tinha esperança que nos encontrássemos aqui,

Ailura - disse Morgriff baixinho, com os olhos a brilhar maldosamente. - Bater-nos-emos, Ailura. Mas não com espadas. Eu terei o meu bastão e tu, pelo menos por agora, terás o Ceptro.

E ao som das suas palavras a batalha parou. Os Magdul e os Trolls olhavam estupidamente para Morgriff, os Elfos e as Fadas olhavam para Ailura simultaneamente cheios de esperança e medo. Liduvine olhou para Ailura. Gostava de poder ajudá-la, mas sabia que nada do que fizesse a poderia ajudar.

Lentamente, Ailura retirou o Ceptro de dentro das suas roupas, desembrulhou-o e deixou cair o tecido que o envolvia junto de si. Morgriff inclinou o bastão para ela, o rosto desfigurado por um tenebroso sorriso.

Ailura virou o Ceptro para ele e concentrou toda a sua vontade em acabar com Morgriff para sempre. O seu pensamento estava fixo nos longos anos de dor e preocupação que ele causara ao Povo da Luz. Tudo o que ela queria naquele momento era fazer com que o seu povo fosse feliz por vários milhares de anos. E, cheia de amor e ódio, fechou os olhos.

Edínmtor, que não estava muito longe de Ailura, rompeu numa correria desenfreada. Sabia que Morgriff o mataria, mas mesmo assim tencionava atingi-lo com um forte golpe do seu comprido punhal. Não ia permitir que ele matasse Ailura. E então, quando estava mesmo a chegar, uma grande luz branca cobriu tudo e ele não conseguiu ver mais nada.

Depois de se ter mantido durante algum tempo, a luz branca, tão depressa como tinha aparecido, desapareceu. À frente de Edínmtor não havia nada. Morgrif e Ailura tinham desaparecido! Apenas o Ceptro lá estava caído junto do tecido que há momentos o protegia.

O elfo apressou-se a apanhá-lo e a guardá-lo.

Não teve sequer tempo para se perguntar o que acontecera a Ailura e se ela ainda estaria viva. Os Magdul atacavam ainda com mais violência, mas já eram menos que os Elfos e as Fadas. A luz branca assustara-os de tal maneira que muitos tinham fugido. Quanto aos Trolls, os que ainda não tinham fugido depressa o fizeram, pois o ceptro começava a erguer-se, glorioso, no céu, a saudar do Povo da Luz. E os Trolls, imundas criaturas vivas, detestavam a luz, o dia e, principalmente, o Ceptro.

Edínmtor e Liduvine abateram ainda muitos guerreiros Magdul. Liduvine manejava a sua arma de dois gumes com movimentos circulares e matava dois e três adversários de cada vez. Edínmtor, rápido e ágil como um gato, foi abrindo caminho por entre o confuso exército de Momiran com o seu comprido punhal. E, de súbito, encontrou Suresim que, com um movimento brusco da espada, o desarmou. Edínmtor esquivou-se a um novo golpe e, ligeiro, apanhou o punhal caído. Rodou para se esquivar a outro golpe e fez um corte profundo e largo no pescoço de Suresim, que caiu no chão. Fora vencido.

Não tardou que as hediondas criaturas fugissem apressadamente. Ilmaran organizou rapidamente os seus homens e estes partiram em perseguição dos Magdul. Nessa longa noite muitos Magdul foram mortos, mas mesmo assim foram ainda muitos os que escaparam.

A batalha fora ganha. Ilmaran e os seus homens regressaram vitoriosos. Tinham abatido no mínimo mais de uma centena de guerreiros Magdul, antes mesmo deles conseguirem chegar à Floresta Queimada. E aí tinham entregue ao fogo sagrado, que tudo purifica, os seus: imundos corpos. Perto do acampamento foi também feita uma grande fogueira onde os corpos dos inimigos mortos foram queimados. Não havia prisioneiros pois os Elfos e as Fadas detestam os Magdul e todas as criaturas das trevas e, embora sejam normalmente gente pacífica, quando se confrontam com eles não os poupam. Mas também muitos Elfos e Fadas jaziam mortos nos campos Ranthlin. As sacerdotisas de Névila foram levadas de volta para serem sepultadas debaixo da verde relva de Brumívium, porque é assim que as sacerdotisas tratam os seus mortos. Mas os restantes elfos e fadas foram cerimoniosamente entregues ao fogo. E quando os seus corpos se converteram em cinzas e foram calorosamente retirados da pira onde os corpos tinham ardido e as almas lançadas ao ar. É assim que o Povo da Luz faz, quando a alma voa para longe, finalmente livre de todas as dúvidas e preocupações, as suas cinzas enviadas pelos ares para acompanharem a alma na sua maior e derradeira aventura.

Duma forma geral, embora tivessem ganho a batalha, os Elfos e as Fadas estavam tristes. Mas entre eles o mais triste de todos era Edínmtor, que não sabia o que fazer. Se Ailura morrera, então ele devia deixar a sua alma voar para junto da dela. Mas se não morrera... o que lhe acontecera? E o que podia ele fazer para que ela regressasse? Ao ver a grande tristeza do seu filho, e temendo que ele acabasse por morrer de amor, Glordil ordenou a Edínmtor que regressasse a Omnirion, mesmo antes de qualquer outro. Devia falar com a sua mãe Minergue, que sabia o que muitos não sabem e que talvez tivesse uma resposta para as suas dúvidas e a sua tristeza. Devia também informar o povo que ficara em Omnirion de tudo o que ocorrera na batalha. Ele, Glordil, regressaria mais tarde com todos os outros, quando os feridos estivessem sarados. E assim fez Edínmtor.

Edínmtor contou primeiro ao Povo da Luz que ficara em Omnirion tudo o que acontecera em Ranthlin.

Talvez aquele não fosse o fim perfeito, mas era suficientemente bom para que pudessem voltar a admirar o céu azul onde o luminoso sol brilhava, e caminhar por entre a maravilhosa natureza vermelha, verde e fresca da floresta. A preocupação nunca os abandonaria, porque os povos sábios não conseguem viver em completa paz se sentirem uma sombra, por mais ténue que seja, a pairar no ar. Eles sabem que uma sombra pode sempre crescer até se tornar numa completa e tenebrosa escuridão e que crescerá, a menos que seja travada. No entanto, a sombra era agora de facto extremamente ténue e a preocupação não era tão terrivelmente urgente como o fora há dias.

Só depois de contar as novas que trazia do campo de batalha é que Edínmtor procurou a sua mãe. Mas Minergue não estava no palácio, nem em Omnirion. Alguns tinham-na visto dirigir-se para as margens do Enyel, no lugar onde a bela ponte de pedra branca cruza o seu leito.

Minergue estava efectivamente lá, sentada na margem do rio, muito calma, muito bela. Os cabelos soltos ondulavam ao vento, o vestido branco reflectia os raios dourados do sol. Parecia uma grande luz, suave e sábia. Mas algo nela fez estremecer Edínmtor, e ele achou que ela parecia uma grande luz que lentamente se apagava, até que por fim deixaria de iluminar o Mundo.

- O meu tempo está a acabar - disse ela na voz profunda, mas na qual não havia qualquer dor. - sonhos avisaram-me, e agora as águas disseram-mo. Por isso, as dúvidas devem ser esclarecidas. Mesmo aquelas que o não seriam se a mente não estivesse cega.

Edínmtor aproximou-se e sentou-se ao lado da mãe.

- A minha mente está então cega? - perguntou ele.

- Todas as mentes que amam o ficam algum tempo - respondeu ela. - Mas não te preocupes. A cegueira passará e continuarás a amar.

Fez uma pequena pausa. Os dedos longos desenhavam pequenos círculos na água, não estava distraída nem procurava as palavras para proferir. Apenas se demorava um pouco depois de muitos anos em que mesmo os assuntos importantes não precisam de ser explicados depressa e com palavras atabalhoadas, umas a seguir às outras.

- Ailura regressou ao Mundo da sua mãe. Ela tinha de regressar antes de poder ficar aqui a viver. A altura do seu regresso não foi nem tarde, nem cedo de mais. Foi a altura certa. Acalma o teu espírito, Edínmtor. Ela regressará. Assim o vi e assim o senti.

- Fez novamente uma pausa. - A sombra ainda não morreu, mas não voltará até que a alma da filha dos Mundos voe livre pelos céus. Há uma profecia, que não te contarei, mas que será cumprida. Àqueles que devem conhecê-la, ela revelar- se-á, e se eles forem deveras sábios compreendê-la-ão. Se não a compreenderem é porque afinal não devem conhecê-la. - Parou mais uma vez. - Ailura tem muitas dúvidas. Esclarece-as quando souberes de facto a resposta, e quando não souberes pede conselho a Elianor. Ela será agora a mais sábia de entre os sábios. - E mais uma vez parou. - Agora vai, Edínmtor. Nas estrelas habitará para sempre a luz dos meus olhos e eles estarão sempre fixos no Povo da Luz.

Edínmtor sabia que a mãe não diria mais nada, por isso regressou a Omnirion.

Minergue ficou ainda algum tempo a observar as claras e límpidas águas do Enyel, suas conselheiras. Até que, por fim, naquelas verdes margens, a sua alma deixou para sempre o corpo que por dois mil e oitocentos anos habitara.

Estava um fim de tarde lindo. Os campos verdes brilhavam com a luz vermelha do pôr do Sol e corria um ventozinho suave.

Angus e Isabel estavam sentados no banco de baloiço branco, à espera da sua pequena princesa. Olhavam para a imensidão daquele verde campo, ainda mal tocado pelo Homem. Era sem dúvida um lugar agradável, principalmente para Angus. Até havia um bosque ali perto onde ele podia caminhar sentindo o cheiro e o encanto das árvores, como os Elfos gostam de fazer.

Isabel olhou para ele. Não mudara nem um pouco desde o dia em que se tinham casado. Continuava com os mesmos cabelos castanhos, cortados curtos, lisos e brilhantes, sem um único toque de geada, os mesmos olhos vivos, o mesmo porte sereno e sublime, as mesmas orelhas pontiagudas de elfo a espreitarem por entre o cabelo. Não envelhecera nem um dia, nem um minuto.

Isabel tinha já uma pequena ruga no meio das sobrancelhas, mas Angus não. Estava igual ao que sempre fora:

e continuaria assim até morrer.

E então, pela primeira vez, uma preocupação percorreu todo o seu ser. O que aconteceria quando tivesse sessenta anos? Ela estaria velha, os cabelos cobertos pela geada, a face moldada por uma inccrível série de rugas, os olhos lentamente a ficarem pouco luminosos. Mas ele permaneceria igual, como se tivesse apenas trinta anos. Não seria normal ou natural! Todos se perguntariam como era possível. Até aos quarenta limitar-se- iam a dizer que ele estava "bem conservado."

Mas depois começariam a achar estranho e as perguntas incómodas e desagradáveis chegariam.

Os seus pensamentos foram interrompidos por passos que chegavam do interior da casa. Era naturalmente a filha que encontrara a boneca e vinha ter com eles para irem passear pelo campo. Felizmente as Fadas não tinham orelhas pontiagudas e as suas asas revelavam-se quando elas realmente precisavam o que, afortunadamente, nunca acontecera.

Mas não era a sua filha. Era um elfo, alto como todos os elfos, com uma longa cabeleira. A sua expressão era triste e preocupada.

Angus levantou-se imediatamente, admirado por vê-lo ali. Afinal ainda na semana anterior estivera em Omnirion. Mas se ele estava ali... Então algo muito grave se estava a passar!

- O que se passa, Irldar? - apressou-se a perguntar.

- Lamento muito vir estragar este dia. - E virando-se para Isabel: - Desculpai, eu sei que é o dia de anos da nossa pequena princesa. Mas... - inspirou como se estivesse a ganhar coragem para dizer o que tinha de dizer. - Morgriff regressou e ajudado por Suresim, essa vil serpente, entrou em Caladmiron e dirige-se para Omnirion.

Angus deu um beijo apressado a Isabel e sem mais uma palavra entrou apressadamente dentro de casa com Irldar.

Isabel ficou sozinha, sentada no banco de baloiço branco, os olhos fixos no infinito, com a terrível certeza de que não voltaria a ver Angus.

Angus e Irldar subiram rapidamente a escadaria de madeira escura, percorreram o corredor e entraram no quarto de Isabel e Angus. Encostado a uma parede, perto do armário, estava o espelho pelo qual tantas vezes Isabel passara para o Mundo de Angus.

Os dois elfos encostaram-se ao espelho e murmuraram as palavras adequadas. Imediatamente sentiram-se escorregar para dentro do espelho. Passado algum tempo estavam no quarto de Elianor. A fada esperava-os e, sem uma única palavra, conduziu-os até ao exterior da sua casa. Lá fora estavam dois magníficos cavalos. Os elfos montaram e puxaram as rédeas.

- Angus - chamou Elianor e ele virou-se.

- Aconteça o que acontecer, eu olharei sempre pela tua filha.

A expressão de Angus suavizou-se um pouco e ele esboçou um sorriso. Depois, com uma palavra meiga e melodiosa, os cavalos partiram, rápidos e velozes, para Omnirion, deixando para trás a casa de Elianor onde a fada ficou com a certeza de que ali começava o fim.

Durante todo o caminho que separava a casa de Elianor de Omnirion, Angus sentiu uma sombra aparecer e o ar a tornar-se pesado. O sol parecia brilhar palidamente e naquele dia toda a brancura de Omnirion era triste e melancólica. O Palácio do Ouro não brilhava como era habitual e até mesmo as trepadeiras que subiam, serpenteantes, pelas paredes do palácio, estavam mais escuras e secas. Nas cidades não havia risos, apenas caras preocupadas. No ar não ondulava a suave melodia duma música e só se ouvia o grasnar dos corvos, essas detestáveis aves que anunciam a morte.

Angus parou o cavalo em frente à entrada do palácio e saltou, ágil e ligeiro, da sela. Glordil, seu grande amigo, esperava-o. Entraram juntos no palácio enquanto Irldar levava os cavalos para os estábulos.

- Morgriff chegará aqui em menos de duas horas. Não temos outra solução senão utilizar o Ceptro – disse Glordil. - E, é claro, serás tu quem o empunhará.

- Claro...

- Glordil, preciso dum lugar sossegado onde possa escrever uma carta para a minha filha.

Glordil olhou-o, um pouco espantado, mas apressou-se a arranjar uma pequena e sossegada divisão onde Angus pudesse escrever a sua carta. Era uma carta em que ele explicava tudo o que achou ser importante.

Enfiou a carta num sobrescrito e endereçou-a à filha.

Depois lacrou o envelope e entregou-o a Glordil.

- Entrega-o a Isabel com as seguintes palavras:

só deve ser entregue quando a nossa filha souber toda a verdade e estiver decidida a vir viver para este Mundo, como estou certo que acontecerá. – Recomendou Angus. - E, Glordil, por favor, não a tragas para já para este Mundo. Deixa-a ficar a viver com Isabel até que ela tenha a idade e a sabedoria suficientes para saber a verdade.

- Não te preocupes, meu amigo – respondeu Glordil. E ficou ainda algum tempo calado até que por fim ganhou coragem suficiente para formular a pergun ta que invadira toda a sua mente. - Tiveste algum sinal?

Os sonhos avisaram-te.

- Não. Mas senti-o assim que calquei o chão dourado de Caladmiron. O meu tempo está a chegar ao fim.

Glordil não respondeu. Tinha pena de perder o amigo, mas se a sua hora chegara então não havia nada a fazer. Angus, embora fosse ainda muito jovem, era considerado sábio. Se ele sentira o seu tempo a findar; era porque brevemente a sua alma voaria livre pelo Mundo. E Glordil sorriu. Um dia as suas almas voariam juntas nessa que é a última grande aventura que espera todos os seres vivos: a morte.

O céu escureceu, a luz diminuiu, o vento da noite caiu e só o rouco grasnar dos corvos era ouvido.

O povo de Omnirion concentrara-se na guarda do castelo, com Angus à sua frente. Ele tinha o ceptro nas mãos. Olhou para trás, para Glordil.

- Glordil! Até a minha filha se tornar rainha, confio-te o cargo de regente - disse Angus, e não voltou a falar. Todos eles esperavam. Até que por fim viram um vulto vestido com um manto vermelho, que se aproximava lentamente da entrada do palácio. Era Morgriff e vinha só. Suresim não se atrevera a entrar na sua antiga cidade. A sua traição era ainda recente e, embora o seu coração de elfo estivesse corrompido, ele ainda podia ouvir as pedras da cidade onde crescera a murmurarem "Suresim, porque nos traíste tu? Filho da Luz, porque te entregaste às trevas? ". E ele não suportava esse lamento.

Morgriff avançou com o seu bastão na mão. Um sorriso horrível e trocista a bailar-lhe no rosto. Olhou à sua volta como quem aprecia um lugar que muito bem conhece e do qual esteve durante muito tempo afastado. Os seus olhos retiveram-se durante algum tempo na fachada do palácio, naquele dia, tão triste e sombrio. Uma expressão de posse iluminou-lhe o rosto.

- Aerzis não me matou. - Disse, numa voz gélida e triunfante. - E durante todos estes longos milhares de anos eu fui-me fortalecendo. Recuperei as minhas forças, tornei-me tão poderoso quanto o fui outrora. E agora... regressei. Ranthlin e Caladmiron, bem como Omnirion, pertencem-me e estão agora sobre o domínio de Morniran. Por isso, tu, a quem chamam Rei, entrega-me o Ceptro - disse, olhando para Angus com desdém.

Mas Angus não lhe respondeu e muito menos lhe entregou o Ceptro. Limitou-se a segurá-lo com ambas as mãos na sua frente. Morgriff riu alto.

- Idiota - disse. - São todos uns idiotas. Mas não é de admirar. Elfos e Fadas sempre foram fracos.

Preferem os cânticos e as árvores ao poder. E Suresim afirma que são perigosos. É mais tonto do que eu julgava. Se pensas que me podes vencer elfo, estás enganado. A tua ousadia custar-te-á a vida - Angus sorriu -, e o Povo da Luz cessará os cânticos. Os Elfos e as Fadas tornar-se-ão meus escravos e como castigo abaterão metade das árvores desta floresta.

Os Elfos e as Fadas ficaram mais sérios. As palavras cruéis não tinham neles, sábios e de espírito forte, o mesmo efeito que tinham nas horríveis criaturas que Morgriff criara e comandava. As palavras não os tinham assustado, mas eles sabiam que, se Morgriff não conseguisse o que queria, ele cumpriria a sua palavra.

Furioso, Morgriff apontou o seu bastão a Angus.

Oelfo concentrou a sua vontade em fazer com que tudo acabasse rapidamente, mas o seu pensamento estava fixo na simples ideia de que seria Morgriff o responsável pela sua morte, seria ele que para sempre o afastaria de Isabel e da sua filha. A pedra do Ceptro brilhou e uma luz branca jorrou dela; a cidade ficou durante alguns minutos coberta por aquela luz.

Mas Angus não voltou a ver Omnirion. Os seus olhos fecharam-se para sempre e a sua alma fugiu do seu corpo para muito longe, finalmente livre de todas as dúvidas e de todos os medos. Levava ainda com ele a memória de Isabel no seu vestido de noiva, naquele dia em que pareceu a Angus uma deusa-mulher.

 

               ALGUMAS DESPEDIDAS

Ailura caiu durante muito tempo na escuridão. Não era uma escuridão terrível como a que Morgriff arrastava consigo, apenas uma escuridão inexplicável e cada vez mais densa. Tão densa que ela não conseguia ver as suas próprias mãos. E continuava a cair...

A cair... Cada vez mais rapidamente.

A cair... Para o nada, envolto em escuridão. A cair...

Não havia nada para ver, ouvir ou sentir, por isso, fechou os olhos e não se preocupou mais.

Alguém lhe mexia nos cabelos. Abriu os olhos para ver quem era, mas a luz ofuscou-a. Estivera tanto tempo mergulhada em escuridão que a luz lhe feria os olhos!

Entreabriu ligeiramente os olhos para se habituar novamente à luz. E, finalmente, abriu-os. As festas no seu cabelo pararam e o silêncio foi total. Durante algum tempo ela fixou o tecto branco, cheio de rachas, onde jazia esquecido um velho candeeiro de metal, sujo e enferrujado.

Tinha regressado ao seu Mundo, ou melhor, ao Mundo da sua mãe.

- Ailura. - chamou a medo uma vozinha ao seu lado.

Ela virou-se. Ao seu lado, sentado numa cadeira e debruçado sobre a cama onde estava deitada, encon trava-se Pedro. E naquele momento ela odiou-o mais que tudo. Não era ele quem ela queria ali, não era a cara que ela queria ver, nem os seus cabelos lisos castanho-claros, nem os seus olhos cor de avelã. Ela queria Edínmtor! Queria ter acordado e ter visto a sua longa e radiosa cabeleira dourada, os seus olhos verde-líquido, as suas orelhas pontiagudas, o seu belo e harmonioso rosto de elfo. Porque não estava ele ali a fazer-lhe festas e a tomar conta dela? Um pensamento horrível atravessou a sua mente. E se ele tivesse morrido na batalha? Ela queria morrer, cumprir o prometido, deixar a sua alma voar para junto da dele. Mas não sabia como fazê-lo.

A porta do quarto abriu-se e a sua mãe entrou, seguida por um homem de bata branca.

Tentou levantar-se e só então se apercebeu que o seu braço direito, o braço que partira durante a batalha, estava engessado e a sua perna também ainda doía.

Pedro forçou-a a deitar-se novamente. O homem de bata branca avançou para ela. Tinha um ar simpático. Era uma pessoa alta e corpulenta, com uma cara rosada onde sobressaía o bigode preto. Usava uns óculos de metal pretos e rectangulares que escondiam os seus brilhantes olhos negros. Não devia ser muito velho.

- Este é o Doutor Neves - disse a sua mãe. Não deixava de ser um nome engraçado, principalmente para quem tinha cabelos e olhos extremamente pretos.

- Bom dia - cumprimentou Ailura.

- Bom dia - respondeu o médico. - Como se sente? Esteve a dormir durante muito tempo.

Ailura riu com gosto. A coisa que menos fizera naqueles atribulados dias fora dormir. E, quando dormira, os seus sonhos tinham sido inquietantes e muito pouco relaxantes.

- Sinto-me bem, mas podia estar melhor.

- Isso, todos nós podíamos - replicou o médico.

- Claro - concordou Ailura. - Mas eu podia não ter o braço partido, nem a perna magoada...

O médico, a mãe e Pedro olharam espantados para ela. E ela apercebeu-se, já tarde de mais, que não era possível, pelo menos no entender deles, que ela sou besse que tinha a perna ferida.

- A perna dói-me imenso! - disse rapidamente, para disfarçar. - Como é que me magoei?

- Foi ontem à noite... - começou o médico.

- Mas não sabemos como te magoaste! – disse Pedro.

- Pois... - O Doutor Neves parecia um pouco incomodado. - Encontrámo-la no chão. Deve ter caído da cama.

- Mas é estranho que se parta um braço e se faça um golpe tão profundo na perna só por se cair da cama! - continuou Pedro.

"Pois é. Mas é perfeitamente natural quando se luta numa batalha, se enfrentam as tropas de Morniv e se é atingido pela moca de um troll", pensou Ailura.

O médico examinou-a demorada e cuidadosamente, depois aconselhou Pedro e a sua mãe a saírem.

Pedro inclinou-se para a beijar. Mas Ailura desviou a cara. Não queria beijar mais ninguém para além de Edínmtor! Por isso, ele saiu. Mas a sua mãe deixou-se ficar.

Durante uns minutos olharam uma para a outra, até que a mãe sorriu. Sentou-se na borda da cama e pegou na mão esquerda de Ailura.

- Quando tiveres alta, teremos uma grande conversa. Mas por agora peço-te apenas que esperes. Não to podia dizer quando o teu pai desapareceu depois, quando já eras suficientemente crescida, sabia que nunca acreditarias. Tenho sem dúvida culpa nisso, mas enfim... Fiz o melhor que pude e que achei. Tenta compreender. - Levantou-se e foi até à porta.

- Agora descansa. Deves estar a precisar.

E saiu, deixando Ailura sozinha.

Os seus dias no hospital foram tristes e enfadonhos. A mãe deixou de ir visitá-la e Pedro ia lá todos os dias, para grande desespero de Ailura, que tentava a todo o custo fugir às suas carícias. Não lhe podia dizer que estava apaixonada por outra pessoa porque, antes do acidente, essa questão nem sequer se punha e, depois do acidente, para ele, ela estivera sempre a dormir, pelo que não podia ter-se apaixonado. Por outro lado, doía-lhe ter que rejeitar todos os seus beijos e não conseguir disfarçar o desconforto que as suas carícias lhe provocavam, pois podia ver como isso o magoava.

E, para agravar a situação, não conseguia deixar de pensar em Edínmtor. Revia constantemente a noite do primeiro beijo e o amanhecer em que o encontrara sentado num banco, ao relento, com a cara coberta de lágrimas silenciosas. Às vezes dava por si a chamar o nome dele baixinho, na esperança que ele aparecesse, vindo do nada.

O hospital era velho e estava a precisar, urgentemente, de obras. Os corredores, de deteriorada tijoleira branca e castanha, eram sombrios e estavam repletos de rostos cansados por uma doença que lentamente lhes amargurava o espírito. A janela do quarto onde estava, dava para as traseiras onde ficava o parque de estacionamento. A comida não era propriamente a melhor. E nas casas de banho Ailura mal se atrevia a entrar.

Para quem acabava de chegar de Caladmiron, a Grande Floresta, cheia de risos, altas e verdes árvores, belas casas de pedra branca e magnificentes palácios de cristal e vitrais, onde habitam Fadas e Elfos de rostos alegres e harmoniosos, altos e belos, sábios e quase tão poderosos como os alicerces da Terra, aquele não era propriamente o lugar ideal para se ficar. E, assim, ela tinha saudades das árvores, do verde e do dourado, da luz, dos Elfos, das Fadas, dos Duendes... Tinha saudades daquele Mundo tão belo e puro do qual ela também fazia parte.

O Doutor Neves examinava-a todos os dias. Achava aquela doença muito estranha! Ailura ficou a saber que tinha sido atropelada pelo camião e estivera a dormir durante um mês. O que, evidentemente, não era normal. Além disso, mais estranho que ter partido o úmero, era o profundo golpe que tinha na perna. Enfim, o Doutor Neves tinha todo um mundo de curiosas situações que a sua ciência não conseguia explicar. E Ailura, por mais que quisesse, não lhe podia contar a verdade. Ele era um homem persistente e estava decidido a encontrar uma explicação para tudo aquilo (talvez fosse uma doença desconhecida). Por isso, ela continuava retida naquele triste hospital para fazer mais e mais exames. Mas, finalmente, depois duma semana e meia, o Doutor Neves deu-lhe alta.

Pedro foi buscá-la e Ailura tinha esperanças que a mãe também fosse. Mas ela não foi! Apenas mandara um pequeno bilhete onde estava escrevinhada a seguinte mensagem: "Quando souberes em que Mundo vais ficar, procura-me na casa de campo".

A intenção de Ailura era telefonar à mãe assim que chegasse a casa e dizer-lhe que decidira regressar ao Mundo do pai. Mas, durante a longa viagem de carro do hospital para sua casa, as suas certezas começaram a dissipar-se. Enquanto estava parada nas longas filas de trânsito, com as buzinas a soarem, impacientes, no ar, observava os bancos de jardim, os prédios, as cabinas telefónicas, as lojas, os cafés pelos quais costumava passar todos os dias. Viu o cinema onde tanto gostava de ir e relembrou o sabor doce das pipocas quentes e estaladiças que lá comiam. Nas ruas já se podiam ver os vendedores de castanhas a anunciar a chegada do Inverno as pessoas aconchegavam mais para si os sobretudos, calçavam as luvas e apressavam o passo para chegarem secos a casa. E, lentamente, um sentimento nostálgico começou a crescer dentro de si.

Por isso, quando chegou a casa, não telefonou à mãe. Limitou-se a sentar-se no parapeito da janela do seu alto apartamento, a olhar lá para fora. E, assim, foi adiando essa decisão tão importante, tornando-a cada vez mais difícil e penosa.

Só quando tirou o gesso é que voltou à redacção do jornal. Pedro acompanhou-a e foi ele que conduziu o carro até ao grande edifício onde ficava a redacção.

Estava um daqueles dias cinzentos em que a luz do sol é mais calma e agradável para os olhos, as nuvens se tornam cada vez mais pesadas e escuras, prevenindo os transeuntes de que, se não se abrigam, em breve ficarão encharcados, e corre um vento calmo e frio, pelo ar já de si gelado. Embora ainda não fosse muito tarde, já começara a anoitecer e as luzes dos candeeiros e das lojas acendiam-se, enchendo tudo de néons.

Pedro ligou o rádio. Estava na hora das notícias e eles ficaram a ouvir. O noticiário dividia-se entre as desgraças do dia (atentados, mortes, acidentes, guerras iminentes), as reformas políticas (subida dos impostos, aumento das horas de trabalho semanal, nova discussão sobre a legalidade ou ilegalidade de um qualquer projecto que é discutido no mínimo há dois anos) e as notícias desportivas não menos interessantes ou estúpidas; a novela que passa todos os dias à noite na televisão.

Ailura não percebia por que razão aquelas notícias a irritavam tanto. Antes do acidente, ela lidava diariamente com elas e não se aborrecia, muito pelo contrário! Mas agora... Era certo que num jornal havia sempre crónicas, críticas, destacáveis de música, cinema e artes; notícias sobre acontecimentos locais, informação económica, banda desenhada. Por isso, era possível lidar com mais do que as desgraças e coscuvilhices mundiais. Mas ela não se lembrava de ficar tão irritada só de as ouvir. Parecia-lhe que o Mundo estava a ruir, a ficar podre e que nada era feito para o evitar. E, no entanto, continuava a achá-lo belo e cheio de qualidades. Talvez fossem qualidades desaproveitadas, mas mesmo assim estava cheio delas. E não era mais belo ou mais feio que o Mundo do pai. Era apenas diferente. Desenvolvera-se, assim como os seus valores, de forma diferente e por isso não podiam ser iguais. Ambos tinham defeitos (talvez um mais do que o outro, mas enfim... ) e ambos tinham qualidades.

Chegaram finalmente. Pedro estacionou o carro no parque subterrâneo e subiram juntos para o quinto andar onde ficava o escritório de Ailura e o local de trabalho da maioria dos jornalistas. O elevador parou e a porta abriu-se.

O pequeno corredor para o qual abria a porta do elevador estava completamente deserto e às escuras. Ailura e Pedro percorreram-no em silêncio. Ela abriu a porta que dava para a grande e comprida sala onde estavam as secretárias dos jornalistas. Também a sala estava mergulhada no silêncio e na escuridão.

- O que se passa, Pedro? - perguntou, espantada.

- Está tudo deserto e às escuras! Hoje é quarta-feira e, se bem me lembro, à quarta-feira trabalha-se.

- Pois é - disse Pedro, como se estivesse a lembrar-se de algo óbvio, mas do qual, por algum estranho motivo, se esquecera. - Faça-se luz!

E ao som das suas palavras todas as luzes da sala se acenderam. Toda a equipa jornalística estava reunida ao fundo da sala, com chapéus de festa nas cabeças. A sala estava repleta de balões multicolores, as secretárias tinham sido encostadas às paredes e uma grande mesa redonda, repleta de doces e bebidas, fora colocada no meio da sala, as paredes tinham sido decoradas com jornais emoldurados por flores e na parede do fundo estava um gigantesco cartaz onde se podia ler, em letras brilhantes:

Bem-vinda, Ailura. Já não era sem tempo!

Elisa avançou para ela com uma coroa de rosas nas mãos que lhe colocou na cabeça.

- Bem-vinda, Ailura, nossa grande senhora e rainha - saudou Elisa, com um ar excessivamente sério.

Então Ailura desatou a rir. Como era engraçado Elisa chamar- lhe rainha! Se eles ao menos soubessem metade do que lhe acontecera durante o tempo em que supostamente estivera no hospital a dormir... Mas nunca saberiam. Se lhes contasse, eles não acreditariam (ela própria não acreditara) e ela sentia que a existência daquele Mundo devia permanecer secreta.

Aproximou-se da mesa redonda. No centro, estava um bolo enorme e rectangular de maçapão branco onde estava escrito, em letras castanhas e bem desenhadas, "Ailura, finalmente voltaste! Já não o conseguíamos aturar mais". Eles esperaram pela reacção dela e, assim que ela começou a rir, riram alto com ela. Até Pedro se riu (de facto, a ideia fora sua):

O jornal estava basicamente na mesma. O seu sucesso continuava a ser enorme. Não havia dúvida que Pedro fizera um excelente trabalho como director do jornal. E todos pareciam contentes e felizes com o seu trabalho. Talvez ele até fosse melhor director do que ela, pois, no fundo, ele era um deles e tratava-os como tal. Ela era a "sua rainha", a quem deviam obediência e a quem temiam, já que ela tinha o poder para os despedir. Era certo que naquele último mês ela mudara muito. Mas também não tinha a certeza de querer, e conseguir, continuar ali para sempre...

Ailura estava parada no meio da rua, incapaz de se mover. O camião vinha direito a ela. Fechou os olhos, mas rapidamente os voltou a abrir porque ouviu o som metálico de espadas a chocarem. Estava no meio da batalha travada em Ranthlin e Morgriff encontrava-se à sua frente. De repente, um grande clarão branco ergueu-se no ar e tudo o que ela viu depois foi a escuridão simples e densa do vazio. O mesmo vazio em que caíra, durante tanto tempo, depois de se confrontar com Morgriff pela última vez. E durante muito tempo não viu mais nada. Até que, por fim, uma outra imagem surgiu.

Era uma imagem desfocada em que as diversas cores se misturavam, impedindo-a de perceber onde estava. Semicerrou os olhos para ver melhor e a imagem tornou-se um pouco mais nítida. Agora via que estava em Omnirion e à sua frente erguia-se o Palácio do Ouro e do Verde. Em cima, na varanda do seu quarto, alguém caminhava de um lado para o outro, olhando ocasionalmente para o interior da floresta como se aguardasse há muito a chegada de alguma pessoa que lhe era querida. Ailura sabia que era Edínmtor quem caminhava na varanda do seu quarto e que ela era a pessoa que ele esperava. Mas não conseguia ver as suas feições.

A sua longa cabeleira loura e os seus brilhantes e profundos olhos verde-líquido. E, no entanto, não conseguia distinguir os traços que formavam o seu belo rosto.

Acordou. Tivera novamente um desses estra nhos sonhos, o primeiro desde que regressara ao Mundo - da sua mãe. Mas aquele não era uma visão do que iria acontecer. Era um aviso. Já tinham passado quase dois meses desde o seu confronto com Morgriff e estava a começar a esquecer-se desse outro Mundo que também era seu. Até o rosto de Edínmtor, que tanto amava e do qual tanto sentia a falta, estava a começar a desvanecer-se na sua memória. Tinha adiado a decisão tempo de mais. Estava na altura de decidir. A verdade era que só as recordações a prendiam ao Mundo em que crescera. Também lhe custava separar-se da mãe e do seu jornal que tanto trabalho lhe dera a erguer. Mas, por outro lado, era Rainha do Mundo do seu pai. Tinha obrigações para com o Povo da Luz, ao qual também pertencia, que a amava e que ela também amava. Além disso, e mais importante que tudo o resto, Edínmtor estava à sua espera. O pai abdicara do seu Mundo repleto de amor e sabedoria, do conforto da sua vida para ficar com a sua mãe. Tinha deixado os seus amigos para trás, a sua família e, provavelmente, muitas outras coisas a que estava habituado e que lhe tinham custado abandonar. Mas mesmo assim fizera-o. Por isso, ela também o podia fazer e fá-lo-ia! Levantou-se, envolveu-se num quente e confortável roupão e foi telefonar à mãe. Marcou o número e aguardou.

Na rua começavam a colocar as iluminações de Natal. Como ela gostava do Natal e de toda a magia nostálgica que o envolvia! As ruas cobriam-se de pinheiros repletos de luzes multicolores, anjos papudos, estrelas douradas e prateadas, sinos, bolas coloridas e pinhas. As montras das lojas eram decoradas com neve a fingir, cristais de gelo, pais natais sentados em cadeiras de baloiço com uma lista repleta de nomes, renas a puxarem trenós atulhados de prendas embrulhadas em papéis coloridos e brilhantes, meninos a brincarem à beira de um lago gelado. As portas das casas enfeitavam-se com coroas de Natal vermelhas e verdes. Por todo o lado ouviam-se belas e festivas canções de Natal. E as pessoas, envoltas em quentes sobretudos, com os cachecóis bem aconchegados ao pescoço e as luvas calçadas, aceleravam o passo para chegarem mais rapidamente a casa, onde estava quente.

Ailura, ao contrário da maioria das pessoas, adorava o Inverno. Amava a sua luz perfeita e suave, as suas chuvas melodiosas, as suas tempestades aterradoras, o seu vento suave ou irado com as suas fortes e estranhas melodias, a sua calma superior, o seu barulho aconchegante. Como era bom sentir-se quente no meio do frio! No Verão, nunca se sentia quente, apesar de suada. Mas no Inverno havia aquela sensação tão especial de se estar confortavelmente aconchegada numa camisola de lã fofa e quente, enquanto tudo o resto à sua volta estava frio. Ou, então, podia estar comodamente deitada no meio dos cobertores enquanto ouvia a chuva a cair e a bater contra a janela do seu quarto. Como era belo o Inverno!... E que pena tinha de esses dias cinzentos serem tão raros nas Terras da Luz!

- Bom dia. Faça o favor de dizer.

- Menina Ana? É a Ailura. A minha mãe já está levantada?

- Está sim. Quer que a vá chamar?

- Sim, se não se importar.

- Só um minuto.

Ailura aguardou e, passado pouco tempo, ouviu a voz da mãe do outro lado do telefone.

- Então, Ailura, já decidiste?

- Já - respondeu firmemente.

- E tens a certeza de que não te vais arrepender de abandonar seja o que for que estás a deixar para trás?

- A mãe estava a pô-la à prova. Queria ter a certeza de que ela estava a escolher aquilo que verdadeiramente queria.

- Não vou dizer que não terei saudades, mas tenho a certeza do que decidi. Vou regressar a Caladmiron.

- Ficaria surpreendida se não fosse essa a tua decisão - disse a mãe. - Vens amanhã para cá?

- Ainda não - respondeu Ailura. - Primeiro tenho de tratar de uns assuntos. Vou para aí na véspera de Natal.

A primeira coisa que Ailura fez depois de telefonar à mãe foi contactar o seu advogado. Queria redigir o seu testamento. Por isso, como precisava de duas testemunhas, pediu à Elisa e à Lúcia que a acompanhassem. A sua ideia era regressar a Caladmiron e nunca mais voltar ao Mundo em que crescera. Assim, ao fim de alguns anos, ela seria dada como desaparecida ou morta e a sua herança distribuída pela família de acordo com a lei. Isso não a preocupava, apenas queria deixar o jornal a Pedro. Ele seria o novo director da redacção do jornal e, quando chegasse a devida altura, seria ele quem procuraria um novo director, apropriado para o jornal e as suas necessidades.

Durante a última semana que passou na cidade que a vira crescer, Ailura aproveitou para se despedir de tudo e de todos os que amava. Passeou pelas ruas apinhadas de gente apressada, com um passo lento e sonhador, observando tudo já com um sentimento nostálgico. Entrou nalgumas das suas lojas preferidas apenas para fazer compras (de que não precisava) pela última vez, para reviver esse estranho ritual de escolher uma quantidade infindável de roupas, experimentá-las e por fim levar apenas uma ou duas, pela milésima e derradeira vez. Viu quase todos os filmes que estavam no cinema, chorou e riu, e quase ficou doente com a astronómica quantidade de pipocas que comeu.

Na quinta-feira à noite, organizou um gigantesco jantar para todas as pessoas que trabalhavam no jornal. Mas não lhes disse qual era a verdadeira razão desse jantar. Disse-lhes apenas que naquele ano decidira fazer um jantar de Natal, mas pediu que ninguém levasse prendas. O objectivo do jantar não era trocarem prendas, mas sim divertirem-se e conviverem uns com os outros. Foi o melhor jantar em que ela alguma vez estivera. Todos estavam alegres e contentes, comeram e beberam bem, conversaram e por uma noite estiveram todos juntos, unidos numa perfeita felicidade. No final do jantar, Ailura ofereceu um presente a cada convidado. E, quando se estava a despedir de Elisa, a sua melhor amiga desde os quinze anos, as lágrimas molharam-lhe os olhos pela primeira vez desde que decidira voltar às Terras da Luz. "Bem, alguma vez tinhas de chorar por causa disto. Não tinhas, palerminha? ", perguntou para si própria.

Na sexta-feira, dia 23 de Dezembro, à hora de almoço, Ailura encontrou-se com Pedro pela última vez na pequena pizzaria em que se tinham conhecido por causa de uma entrevista informal de trabalho, no dia em que a sua amizade começara, onde mais tarde tinham começado a namorar e onde tinham almoçado juntos mesmo antes do acidente que mudara para sempre a vida de Ailura.

Ela sabia que aquela seria uma despedida difícil. Talvez já não o amasse como amava Edínmtor, mas ainda gostava muito dele porque tinham sido, durante muitos anos, antes de começarem a namorar, grandes amigos, e essa amizade mantivera-se sempre. Ailura

compreendia agora que fora um grande erro terem namorado. Há amigos que nunca se devem tornar namorados, assim como há namorados que nunca se devem tornar amigos. Eles eram apenas mais um desses casos que devia ter ficado pela amizade profunda e desinteressada. Não o tinham feito e, lentamente, a sua relação caíra numa rotina enfadonha, fazendo esquecer o quanto outrora se tinham divertido juntos. Se ela tivesse decidido ficar naquele Mundo, talvez voltassem a ser amigos. Mas supunha que nunca o viria a saber:

Pediram o habitual: uma pizza de frango, molho picante, peperoni e extra mozzarela para Pedro, e de atum, milho, bacon e ovo cozido para Ailura.

- Vou viajar - disse Ailura. Decidira que era a melhor forma de explicar a sua ausência. Depois, podiam pensar que ela tivera um acidente fatal ou qualquer outra coisa que quisessem.

- Vais viajar? Para onde? – perguntou Pedro, admirado.

- Não sei. Vou sem destino. Quero apenas viajar. Parto amanhã.

- Amanhã? E então o jornal? Precisamos de ti.

- Deixo-to. Fica em muito boas mãos.

Pedro abanou a cabeça e suspirou, profundamente, repetidas vezes.

- Eu não posso dirigir o jornal. Não sou capaz!

- Durante o mês em que estive no hospital foste perfeitamente capaz! Diria mesmo que o fizeste tão bem ou melhor que eu...

- O jornal sem ti não é a mesma coisa.

- Pedro, não podes esperar que o Mundo fique eternamente igual. Tudo muda, umas vezes para melhor, outras para pior, mas muda. E nada o pode impedir. De facto, não devemos sequer tentar impedi-lo. Lembra-te das histórias gregas. Sempre que um rei tentava impedir uma terrível profecia, acabava sempre por provocá-la.

- Nunca pensei que acreditasses no destino - disse ele, espantado.

- E não acredito. Acredito apenas que determinadas coisas têm de acontecer e que nos é permitido traçar o nosso percurso dentro desse grande e universal caminho traçado no começo dos tempos.

Ele olhou para ela simultaneamente espantado e divertido.

- Ailura, converteste-te a alguma religião esquisita ou estás apenas a gozar comigo? - perguntou Pedro, a rir.

- Nem uma coisa nem outra - disse ela encolhendo os ombros. - Isto é apenas uma filosofia de vida. Tudo o que podemos fazer na nossa vida resume-se a isto: escolher o que fazer com o tempo que nos foi concedido.

- Ah! Estou a ver... Então tu decidiste que a tua vida deve ser passada a viajar por um qualquer lugar.

- Não sejas irónico - disse ela, suspirando também.

As pizzas chegaram, quentes e fumegantes, com o queijo derretido a brilhar à luz das lâmpadas. Ailura inspirou profundamente como se estivesse a absorver todo o cheiro que emanava das apetitosas pizzas. Era quase estranho pensar que aquela seria a última piza que alguma vez comeria. E mais uma vez a tristeza nostálgica invadiu-a.

- Desculpa - disse Pedro, enquanto cortava um pedaço grande de mais de pizza. - Se queres ir viajar tens todo o direito de ir. Mas continuo a achar um erro deixares-me como director do jornal.

Ela encolheu mais uma vez os ombros e sorriu.

- Tenho a certeza de que escolhi o melhor director que alguém podia escolher. Mas como posso provar... Receio que vás ter de o constatar por ti próprio. O rosto de Pedro contorceu-se numa tentativa falhada de conter o riso. Em menos de um minuto, ambos riam alegremente.

- Há ainda mais uma coisa que te quero pedir - disse Ailura.

- Tudo o que quiseres.

- Se, por acaso, me acontecer alguma coisa, quando achares que não consegues continuar, faz o que for preciso fazer, procura o que tiveres que procurar, mas encontra alguém que tome bem conta do nosso jornal.

Ele olhou-a de relance e a sua cara ganhou uma expressão séria.

- O que queres dizer com isso de "se te acontecer alguma coisa"? - perguntou.

- Nada, absolutamente nada - respondeu ela, muito calmamente. - As probabilidades de me acontecer alguma coisa durante a minha viagem são mínimas. Mas os azares acontecem e eu só quero ter a certeza de que o meu querido jornal vai ficar sempre muito bem entregue.

Comeram as pizzas com um apetite sôfrego. Quando acabaram Pedro ainda insistiu em levá-la no dia seguinte ao aeroporto, mas ela, por sua vez, insistiu que não valia a pena porque, de mais a mais, ela ainda nem sequer tinha a certeza de partir, para um outro país, já

no dia seguinte; talvez ainda visitasse primeiro um pouco mais do seu país. Por isso, com um último adeus, cada um seguiu o seu caminho e nunca mais se voltaram a ver.

No outro dia de manhã, Ailura levantou-se cedo. Lá fora, o dia ainda não tinha nascido. As luzes nas ruas da cidade ainda estavam acesas e as iluminações de Natal ainda estavam animadas com as suas luzes festivas e multicolores. Lentamente, as persianas das janelas dos prédios abriam-se. A cidade despertava para esse dia de véspera de Natal.

Ailura fez a sua cama, tomou banho, vestiu-se, tomou o pequeno-almoço e arrumou a cozinha. Tentava agir como se tudo fosse normal, como se estivesse realmente apenas a preparar-se para viajar. Tirou uma pequena mala do armário e abriu-a, enfiou lá dentro as últimas recordações que levava do Mundo em que crescera e voltou a fechá-la.

Depois foi até à sala de estar. Lentamente, leu títulos de todos os livros que estavam na estante, tentando lembrar-se da história de cada um deles. Passou os olhos pela comprida prateleira repleta de cassetes de vídeo e DVD's. As horas alegres e divertidas que passara a ver esses filmes onde tudo era possível: desde romances, com um fim trágico ou feliz, aventuras inimagináveis, comédias hilariantes, dramas tristes e angustiantes, guerras terríveis, musicais fantásticos, desenhos animados maravilhosos! Sentou-se no moderno sofá branco e ligou a gigantesca televisão, essa caixinha que se tornou um fenómeno de massas. E ficou assim algum tempo a olhar para esse fantástico ecrã e a passar canais à procura de algo interessante. Num outro dia qualquer, numa situação diferente, teria achado aquilo uma incrível perda de tempo (era bem mais preferível ver um bom filme do que procurar desesperadamente algo para ver naquela caixinha). Mas naquele dia era diferente. Queria fazer tudo o que era normal fazer naquele Mundo e assim despedir-se dele definitivamente.

Por fim, levantou-se, desligou a televisão, pegou na pequenina mala e saiu de casa. Desceu até à garagem de elevador e entrou no carro.

Andou ainda durante muito tempo de carro às voltas na cidade. Faltava-lhe a coragem para fazer o que

sabia ter de fazer. Por isso, durante uma hora, vagueou pelas ruas da cidade, naquela véspera de Natal pouco movimentada, a rever pela última vez todos os lugares que tão bem conhecia e que durante tanto tempo tinham feito parte da sua vida. Mas, finalmente, ganhou coragem. Guiou o carro em direcção à grande casa de campo onde costumavam passar férias antes de o pai morrer e onde a mãe se instalara há pouco tempo.

A viagem foi bastante agradável. A estrada corria sempre por entre os montes verdes de grandes árvores, o céu estava escuro e pronto a largar uma enorme tempestade e, como era véspera de Natal, praticamente não se viam carros.

Ailura passou pela aldeia próxima da casa de campo. Não mudara absolutamente nada desde a última vez que ela ali estivera. Apenas a grande casa senhorial, no topo da aldeia, estava mais degradada e parecia cada vez mais assombrada. Ela perguntou a si própria se existiria mesmo uma passagem secreta a ligar a casa de campo à igreja e à casa senhorial; mas nunca o descobriu.

Quando chegou à casa de campo, a tempestade começou. Mas, felizmente, a mãe já estava à sua espera com um guarda-chuva preparado para a abrigar. A casa estava esplêndida e acolhedora, tal como Ailura se lembrava dela. Sobrevivera ao tempo e agora enchia-se novamente de vida. Ailura ficou contente. Não gostaria que aquela casa ficasse eternamente perdida no meio daquele verde campo. Aparentemente, a mãe ultrapassara o terrível desgosto que tivera naquela casa e decidira ir viver definitivamente para lá.

Entraram para a sala de estar onde a menina Ana dava os últimos retoques a uma enorme árvore de Natal. A lareira estava acesa e em cima da mesa uma chávena de chocolate quente esperava por ela.

Ailura acedeu ao pedido da mãe e adiou o seu regresso às Terras da Luz para o dia seguinte. A verdade era que, depois de ter chegado novamente àquela casa onde passara tantas e tão alegres férias, as recordações tinham emergido numa autêntica avalancha. Lembrava-se dos desenhos que fazia para os vestidos das bonecas, das histórias do pai, do arroz feito no forno a lenha, dos bolos caseiros da menina Ana, do caminhar sereno do senhor Jacinto que morrera há poucos anos, do cheiro a campo das madeiras, das colchas de retalhos. Até se lembrava de olhar bem para o tecto antes de se deitar para verificar se nenhuma aranha estava lá a tecer a sua teia! Por isso, foi quase um alívio quando a mãe lhe pediu para ficar ali a celebrar aquele último Natal.

A menina Ana, com a ajuda da menina Natália que viera recentemente trabalhar para ali, preparou um jantar de Natal magnífico. Comeram o tradicional bacalhau cozido com batatas e couves, que estava delicioso. Mas o melhor foram as sobremesas. Havia rabanadas, sonhos, bilharacos, frutos secos, frutas cristalizadas e, é claro, bolo-rei.

- Eu sei que tu não estás à espera de presente algum - disse a mãe quando acabaram de comer. - Mas, agora que nos separamos, dar-te-ei dois presentes porque sou tua mãe.

Foram até à sala de estar e sentaram-se no antigo sofá verde em frente à lareira onde o fogo crepitava.

A mãe retirou os dois únicos presentes que estavam debaixo do pinheiro e entregou-os a Ailura.

O primeiro era uma lindíssima touca de renda de ouro onde brilhavam pequenas e perfeitas pedras tão vermelhas que parecia que dentro delas ardia realmente um pouco do fogo sagrado. A mãe colocou-lha na cabeça.

- O teu pai deu-ma quando casámos. Foi feita pelos Elfos - disse a mãe. - Agora é tua. É um presente apropriado para uma Rainha.

- Obrigada, mãe - disse Ailura, sinceramente agradecida.

O segundo era uma pequeníssima caixa onde estava apenas uma carta lacrada. Na frente do envelope estava escrito Para a minha adorada filha Ailura. Era sem dúvida uma carta do pai. Ailura abriu-a ansiosamente; tinha a data do seu décimo primeiro aniversário e dizia o seguinte:

Querida Ailura:

Se estás a ler esta carta é porque já morri. E isso significa que, infelizmente, não estarei presente no dia em que acabares o curso que vais escolher nesse Mundo, ou no dia do teu casamento (que espero sinceramente venha a realizar-se), ou no dia em que te tornarás mãe, ou em qualquer outro dia igualmente importante da tua vida. Por outro lado, se estás a ler esta carta isso significa que já conheces toda a verdade e decidiste viver para sempre em Caladmiron, o que, devo dizer não me surpreende.

Peço-te que compreendas a razão pela qual nunca te contei a verdade. No entanto, também nunca ta escondi. Lembras-te quando costumavas dizer que eu era um elfo por causa das minhas orelhas pontiagudas? Eu respondia sempre que sim. De certo modo, disse-to várias vezes, embora, é claro, não esperasse que fosses pensar que estava de facto a dizer a verdade.

Poderia tentar explicar-te a origem deste Mundo e como apareceu pela primeira vez nos céus das Terras da Luz a sombra que desde então sempre os ameaça. No entanto, estou certo que Glordil, ou outro qualquer que a conheça bem, já o fez. Gostaria muito que nunca tivesses de enfrentar essa sombra, mas o meu coração diz-me que não será assim.

Que o teu olhar espelhe a beleza que vive no teu pensamento e as tuas palavras expressem com simplicidade o amor que habita o teu jovem e bondoso coração.

Beijos do teu pai que te ama e que estará sempre a guardar-te.

PS.: Por favor, pede desculpa à tua mãe por não me ter despedido realmente dela e por tudo quanto a minha morte a possa ter feito sofrer. Diz-lhe também que esperarei por ela para que as nossas almas, assim como as nossas cinzas, voem juntas pelo Mundo.

P S: A maneira de regressares a este Mundo é simples. Existem dois espelhos que são a única passagem que agora existe entre os dois Mundos. Um no quarto de Elianor, em quem poderás sempre confiar, o outro é a tua mãe que o tem. Ela sabe quais as palavras que devem ser proferidas. Pergunta-lhas.

Quando acabou de ler a carta, Ailura tinha lágrimas nos olhos. Entregou a carta à mãe para que ela também a pudesse ler, mas Isabel recusou.

- A carta está endereçada a ti e não a mim - disse ela. - É para ser lida apenas por ti.

- Há uma parte que se te destina - disse Ailura.

- Então, por favor, lê-ma - pediu a mãe.

Ailura leu-lhe o pedido de desculpas do pai e a parte relativa ao espelho.

- Foi por esse espelho que conheci o teu pai, quando tinha apenas sete anos. E era por esse espelho que o teu pai ia para o Mundo dele. Nunca estranhaste as repetidas viagens que o teu pai fazia? - perguntou Isabel.

- Não. Sempre pensei que fossem viagens de negócios. Aliás era isso que tu me dizias.

- É verdade - concordou a mãe. - Mas na realidade não eram. Eram apenas viagens até esta casa onde o espelho está desde que a recebi como herança.

Estiveram algum tempo caladas a olhar para a lenha que ardia na lareira. As chamas vermelhas e alaranjadas crepitavam e produziam estranhas sombras nas paredes da sala de estar.

- Diz-me uma coisa, Ailura - pediu Isabel. - Qual foi o maior motivo que te levou a decidir regressar a Caladmiron?

Ailura corou um pouco e olhou para a mãe com um sorriso tímido no rosto. Ela riu, divertida.

- Bem me parecia - acabou por dizer. - Quem é ele?

- O filho de Glordil...

- Edínmtor? Mas ele é quase da minha idade! Nasceu pouco tempo depois de eu conhecer o teu pai.

- Bem, mas para os Elfos ele é quase uma criança. E lá é perfeitamente normal e aceitável a nossa diferença de idades.

Isabel ficou um tempo calada.

- Pois é - disse por fim. - Tinha-me esquecido que os Elfos e as Fadas não envelhecem e, comparativamente aos Humanos, são quase eternos. Angus e Glordil também sempre foram grandes amigos apesar da diferença de idades, que não os parecia preocupar minimamente. O próprio Glordil era casado com uma elfo bastante mais velha do que ele, na minha opinião. Como é que ela se chamava?

- Minergue - respondeu Ailura. - Também a conheci. É muito sábia e muito bela. Ela é verdadeiramente um Elfo. Temo que nunca serei uma verdadeira Fada. Tudo o que aprendi aqui parece-me insignificante, comparado com a sabedoria deles. Às vezes sentia-me tão ignorante!

A mãe colocou-lhe a mão no rosto e olhou-a nos olhos.

- Como tu acabaste de dizer, lá és apenas uma criança. Ainda te esperam muitos e longos anos.

A sabedoria chega com a idade e tenho a certeza de que um dia serás considerada sábia. Já o és, embora não te apercebas disso.

Ailura olhou para a mãe como se pela primeira vez em muitos anos a visse realmente. Era velha, para os Homens, a sua pele estava coberta de rugas, o seu cabelo fora quase completamente coberto pela neve.

Indubitavelmente a idade começara a apoderar-se desse corpo durante tanto tempo enérgico e saudável e os anos pesavam-lhe. Mas os seus olhos não tinham ganho uma cor cada vez mais baça como Isabel previra.

Muito pelo contrário, estavam cada vez mais brilhantes. E Ailura percebeu que ela era, assim como Minergue e Elianor, sábia. Talvez não o fosse como elas eram, mas à sua maneira também ela era sábia.

- É melhor ires deitar-te - disse a mãe, ao fim de algum tempo. - Amanhã tenho a certeza de que vais querer levantar-te cedo.

Ailura subiu calmamente a grande escadaria de madeira escura e entrou na terceira porta à direita. O seu quarto estava exactamente igual ao que se lembrava. Exausta, deitou-se e adormeceu profundamente.

Na manhã seguinte, quando Ailura acordou, estava tudo coberto de branco. Durante a noite nevara.

Ailura sorriu. Há muito tempo que não via neve. Agora até da neve se podia despedir.

Depois de se arranjar, desceu rapidamente à cozinha para comer qualquer coisa.

Na cozinha, o fogão a lenha estava aceso e sentia-se no ar um confortável calorzinho acompanhado pelo cheiro de pão cozido. A menina Ana serviu-lhe uma grande caneca fumegante de chocolate quente acompanhada por um pão acabado de sair do forno, barrado com manteiga, e uma sumarenta rabanada. Ailura comeu tudo rapidamente e, quando acabou, repetiu a dose.

- Sabe onde está a minha mãe? - perguntou, quando acabou.

- Está lá em cima no quarto dela à sua espera

- respondeu a menina Ana.

- Obrigada - respondeu Ailura e saiu da cozinha para ir ter com a mãe. Mas voltou para trás. Com um grande abraço, beijou a menina Ana na face. - Adeus. E mais uma vez obrigada por tudo - disse, enquanto saía apressadamente para não chorar.

Voltou a subir a escadaria de madeira escura, entrou no seu quarto pela última vez, agarrou a malinha onde iam as suas recordações e foi ter com a mãe. Isabel estava sentada na cama a olhar para o velho espelho. Quando a filha entrou, virou-se e ficou a olhar para ela.

- O que levas aí dentro? - perguntou, ao olhar para a mala.

- Apenas algumas recordações – respondeu Ailura.

A mãe aproximou-se dela e levou-a até ao espelho.

- Encosta-te ao espelho e murmura "Leva-me, para Caladmiron, estranho espelho".

Ailura encostou-se ao espelho, mas não murmurou as palavras.

- Eu não tardo muito a juntar-me a ti - disse inesperadamente Isabel. - Estou velha e vou morrer muitos séculos antes de ti, mas, antes de morrer, tenciono voltar às Terras da Luz. E lá ficarei até que a minha alma se junte à do teu pai. Por isso, não é verdadeiramente uma despedida. Até breve, Ailura.

- Até breve, mãe - respondeu Ailura, a sorrir. Aproximou-se do espelho e murmurou:

- Leva-me para Caladmiron, estranho espelho.

- Imediatamente sentiu-se a escorregar para dentro do espelho. Ia regressar.

Isabel ficou novamente sozinha, mas desta vez já não teria de esperar muito. Afinal também ela fazia parte do Povo da Luz e muito em breve juntar-se-lhe-ia.

 

                     UMA NOVA VIDA

Depois de ter escorregado para dentro do espelho, Ailura viu-se novamente envolvida pela escuridão.

Mas esta escuridão tinha diversos tons, uns mais claros, outros mais escuros, que rodopiavam à sua volta. Não se vislumbrava qualquer luz, no entanto, corria uma fresca e agradável brisa.

Mas ao fim de algum tempo Ailura começou a sentir-se enjoada. Por isso, fechou os olhos. E continuou a rodopiar durante muito tempo agarrada à sua mala onde iam os presentes da mãe, um livro de História Universal para a biblioteca do Palácio do Ouro e do Verde, um romance, um livro de ficção científica, o CD preferido de Ailura (que ela sabia perfeitamente que nunca mais conseguiria ouvir), uma revista de cinema, uma cassete de vídeo, um DVD e uma fotografia dela com os seus pais tirada em frente à casa de campo. Enfim, levava dentro daquela pequena mala as suas recordações pessoais e as daquele a que chamavam "o Mundo civilizado". E continuou a rodopiar até que a sua mente perdeu a noção do tempo.

Passado algum tempo, Ailura sentiu-se a parar. Os seus pés tocaram em chão firme e ela abriu os olhos.

Atrás de si encontrava-se um espelho em tudo parecido com o da mãe. Ansiosa, abriu a porta do quarto e espreitou. A porta dava para o corredor da casa de Elianor. Tinha regressado.

Muito calmamente, Ailura percorreu a casa até chegar à cozinha. Estava tudo calmo e silencioso. De facto, Elianor não parecia estar em casa. Mas quando entrou na cozinha viu que algo cozia dentro do fogão a lenha. Era um apetitoso rolo de carne rodeado por diversos legumes. Parecia já estar pronto, por isso, tirou-o do forno. Cheirava divinamente.

- Obrigada, Ailura - disse a voz suave de Elianor atrás de si. - Tenho estado à tua espera.

Ailura pousou a travessa em cima da mesa e olhou para a fada com um grande e alegre sorriso no rosto.

- É bom estar de volta - disse, enquanto se abanava com a mão. - Está calor!

- Não muito - respondeu Elianor. - Mas acredito que com essas roupas tenhas calor. Se ainda te lembrares do quarto em que ficaste e quiseres ter a gentileza de lá ir, descobrirás que umas novas roupas, mais apropriadas que as que trazes, esperam por ti.

Ailura foi até ao quarto. Dobradas em cima da cama estavam umas novas roupas de viagem, verdes e douradas, e ao seu lado estava o fato de saia e casaco cinzento-claro que ela tinha vestido no dia do acidente. Arranjou- se, dobrou as suas roupas e, com elas nas mãos, regressou à cozinha.

Quando lá chegou, Elianor estava a acabar de pôr a mesa para duas pessoas. Ailura foi até ao canto onde tinha deixado a malinha das recordações e arrumou lá dentro as roupas.

- Está à espera de visitas?

- Agora já não - respondeu a fada. - Edínmtor esperou durante dois meses. Mais algumas horas não farão diferença.

Ailura compreendeu o que a fada queria dizer. Ela tinha razão, podia esperar mais algumas horas. Além disso, apetecia-lhe ficar a conversar. Por isso, sentou-se.

Comeram tranquilamente. Ailura contou a Elianor tudo o que lhe tinha acontecido depois da batalha de Ranthlin. Contou-lhe as suas indecisões, os seus medos, as suas certezas e as saudades que sentia do que deixara para trás, só de pensar nisso. Era estranho como, quando ali estivera da primeira vez, a certa altura não lhe parecera necessário regressar ao Mundo da mãe, uma altura em que o pensamento de não voltar lá mais não lhe era penoso ou saudoso. Mas, depois de ter regressado, custara-lhe abandoná-lo!

- Sou uma fada tão imperfeita - desabafou.

- Não, não és. És apenas uma fada jovem, muito jovem mesmo. Foste criada num Mundo aparentemente muito diferente deste, mas ainda tens muito tempo para aprender tudo o que este Mundo tem para te ensinar. - Fez uma pausa e pousou os seus olhos nos dela. - terás o conhecimento e sabedoria de ambos, serás sábia, talvez mais sábia do que algum Elfo ou Fada alguma vez foi.

- A minha mãe disse-me algo do género.

- Então eu não devia precisar de to dizer novamente - repreendeu docemente a fada.

Quando acabaram de comer, Elianor levou-a para a sala. Sentaram-se no sofá azul a mordiscar uns biscoitos de passas.

- Antes de ires, há ainda mais uma coisa de que quero falar-te. Mas presta bem atenção às minhas palavras, pois nunca mais durante o tempo em que caminhar por este Mundo voltarei a proferi-las - disse Elianor.

Ailura parou de comer o biscoito que tinha na mão e ficou muito atenta às palavras da fada.

- Depois de Aerzis morrer, Valindra fez uma profecia antes de desaparecer, a qual não te direi qual é. A profecia revela-se apenas àqueles que a devem conhecer e cabe a esses poucos escolhidos terem a sabedoria para a compreender, pois, se a não compreenderem, então nunca deveriam tê-la sabido. Ela revela-se de muitas formas, mas nunca ninguém para além de Valindra viu, leu ou ouviu os versos em que foi escrita. Eu conheço-a, e Minergue também a conhecia. Dir-te-ei apenas que ela fala da queda de Morgriff e de quem o fará cair. E Morgriff ainda não caiu.

Elianor calou-se e durante muito tempo não disseram mais nada. Até que por fim Ailura falou:

- O que queria dizer com Minergue também a conhecia?

- Minergue morreu pouco tempo depois da batalha de Ranthlin, nas margens do Enyel. Edínmtor foi o último a estar com ela - explicou Elianor.

- Pobre Edínmtor. Deve estar muito triste - disse Ailura.

- Sim, a sua tristeza é grande. E também o Povo

da Luz está triste, pois uma grande luz desapareceu do Mundo. No entanto, Edínmtor sabia que isso teria de acontecer. Ninguém é eterno, nem deve ser. A eternidade corrompe. Apenas o Mundo é eterno, e mesmo ele está em constante modificação. - Fez uma pausa e sorriu. - Não te preocupes com Edínmtor. Em breve a sua tristeza findará, pois uma grande alegria, há já algum tempo esperada, virá expulsar a tristeza que ainda subsiste, e apenas a saudade que sempre existe lá ficará.

- Este Mundo é tão estranho, e a sua magia tão

subtil!

- Não, Ailura. A magia é subtil, não só aqui como em qualquer outro lado. Ou julgavas que magia era as pessoas a lançarem raios luminosos das pontas dos dedos? - Ailura sorriu, essa era a ideia do comum dos Homens. - Se este Mundo é estranho não sei. Para mim ele é tão estranho quanto eu própria ou tu. Mas muitas vezes as pessoas do teu outro Mundo te acharam estranha. São Mundos diferentes e por isso, são necessariamente estranhos um ao outro.

Elianor levantou-se e saiu da sala deixando Ailura sozinha. Ela tinha razão, aquele Mundo era tão estranho quanto ela própria. A fada regressou, trazendo nas mãos uma capa verde-esmeralda grande e larga, de forro dourado.

- Este é o último dos meus presentes - disse, enquanto lhe colocava a capa nos ombros e a apertava, dando um laço às duas fitas largas.

A capa era suave e leve, o seu tecido macio e agradável ao toque, e o verde brilhava, adquirindo diversos tons, conforme Ailura se mexia. O capuz pendia-lhe para as costas, mas ela mal sentia o seu peso.

- É esplêndida, Elianor. Obrigada – agradeceu Ailura.

Ainda bem que gostas. É uma capa muito diferente da outra que te dei. Esta é uma capa cerimonial, apropriada para uma Rainha. Da primeira vez que entraste em Omnirion, as tuas roupas estavam cobertas de terra, por isso, achei que desta vez gostarias de entrar com um vestuário mais adequado. As roupas que te dei, embora sejam roupas de viagem, são apropriadas para a tua chegada a Omnirion. A capa dá um toque final.

Ailura pegou na sua malinha e saíram ambas para a clareira. O dia estava frio, embora não estivesse tanto frio como no Mundo da sua mãe. Mas, para grande surpresa de Ailura, as árvores conservavam a sua folhagem, agora de um verde mais escuro, onde ainda brilhavam uma ou outra folha vermelha ou amarela. O chão estava quase totalmente coberto por folhas secas de tons vermelhos e castanhos.

- As árvores de Caladmiron são maravilhosas e não encontrarás outras iguais, mesmo que viajes para além das Heniunel - disse Elianor, olhando à sua volta.

- No Outono, as suas folhas mudam do verde para o vermelho, o amarelo e o castanho, e caem. Mas, no início do Inverno, nascem novas folhas de um verde muito escuro. E na Primavera essas folhas ficam mais claras, mantendo a sua cor até o final do Verão, altura em que o ciclo recomeça.

Ficaram um pouco paradas a contemplar a beleza de Caladmiron e a inspirar o seu puro ar.

- Bem - disse por fim Ailura -, tenho de ir. Esperam-me alguns dias de viagem. Não quer vir comigo, Elianor? Eu não estou bem certa do caminho que deverei seguir.

- Sim, minha querida, irei contigo - concordou a fada. - Mas não caminharemos. Voaremos, como fadas que somos.

Ailura ficou a olhar, assustada, para Elianor. Nunca, durante toda a sua vida, voara. Não sabia como fazê-lo, nem como abrir as suas asas. Iria doer? Rasgar-lhe-ia a roupa? Ela não sabia e, de certo modo, tinha medo de tentar. E se não conseguisse. Se não conseguisse então não era uma fada. E se não era uma fada, como também não podia ser um elfo, porque não tinha orelhas pontiagudas, então não pertencia àquele Mundo! E se não pertencia àquele Mundo, não tinha o direito de ali estar ou de ser sua Rainha. O que lhe aconteceria? Muito provavelmente, mandavam-na embora. Nunca mais veria Edínmtor... Os pensamen tos sucederam-se rapidamente na sua cabeça, cada um mais terrível que o anterior e, naturalmente, sem qualquer razão de ser. Os povos sábios nunca coroariam como sua Rainha alguém que não pertencesse ao seu Mundo.

- Acalma-te, minha querida. Vai correr tudo bem - tranquilizou-a Elianor.

Ailura concentrou-se e várias vezes esticou o seu

corpo em direcção ao céu, esperando que subitamente ele se elevasse no ar. Mas nada acontecia.

- Minha querida, não tentes voar. Limita-te a fazê-lo - disse Elianor.

Ailura inspirou profundamente e mais uma vez tentou voar, mas nada aconteceu. Então, chegou um vento vindo de Omnirion que lhe afastou os cabelos e fez esvoaçar a sua capa. E um único pensamento formou-se na mente de Ailura: ir ter com Edínmtor, precisava de ir ter com ele. Ele esperava-a e ela queria ficar ao lado dele.

Sentiu uma sensação estranha, como se duas flores desabrochassem rapidamente do interior das suas costas. Olhou e viu que um lindíssimo par dourado de asas de borboleta lhe nascia das costas. Tinha conseguido e não doera, nem rasgara as roupas!

Elevou-se no ar, seguida de Elianor.

Voar era maravilhoso. Podia ver tudo duma perspectiva que nunca imaginara ter. Podia roçar nas suaves folhas das altas árvores de Caladmiron e fazer parte da sua música. Sentia-se a cortar o ar frio como se se tratasse do próprio vento. As suas pernas tinham perdido todo o peso. De facto, mal sentia o seu corpo. Era como se estivesse a navegar num sonho.

Elianor indicava-lhe o caminho e chamava-lhe a atenção para um ou outro obstáculo no seu caminho que Ailura, tão maravilhada e deliciada com a experiência, mal via.

Voavam rapidamente e, ao fim de algumas horas, Elianor desceu e parou a meio da estrada de pedrinhas claras por onde Ailura tinha viajado com Liduvine.

- Deixo-te aqui, Ailura. Segue sempre pela estrada e em breve estarás na ponte de pedra branca que atravessa o Enyel - e sem mais uma palavra elevou-se novamente no ar, desaparecendo rapidamente do olhar de Ailura.

As asas de Ailura desapareceram e ela começou a andar. Não tardou a chegar à bela ponte de pedra branca. E do outro lado, sentado na margem do rio, estava Edínmtor. Estava vestido com roupas brancas onde brilhavam lindíssimos desenhos prateados.

Calmamente, Ailura atravessou a ponte, sempre com o olhar fixo na esbelta figura do elfo.

- Edínmtor... - chamou, quando chegou ao outro lado da ponte. - Regressei.

Ele levantou-se. No seu rosto havia uma expressão de quem vê enfim confirmadas todas as suas certezas, todos os seus desejos. E durante alguns encantadores minutos ficaram assim, a contemplarem-se um ao outro. Até que muito lentamente se aproximaram.

As suas mãos uniram-se, os seus rostos roçaram um no outro, eles inspiraram profundamente, sentindo o cheiro um do outro, e por fim beijaram-se longamente como se daquele beijo dependessem as suas vidas.

- O que acontecerá agora, Edínmtor? - perguntou Ailura quando finalmente se separaram.

- Regressaremos ambos a Omnirion, onde tu reinarás por muitos e gloriosos anos. Casaremos e um dia teremos filhos - respondeu Edínmtor.

Ailura olhou para ele e então uma nova dúvida formou-se no seu espírito.

- Edínmtor, o que serão os nossos filhos? - perguntou.

Oelfo riu.

- Tinha-me esquecido de como és hábil a formular questões - disse ainda a rir. - Bem, quando duas fadas se unem, naturalmente nasce uma Fada. Mas quando um elfo e uma fada se juntam nasce um Elfo.

Respondi à tua pergunta?

Ailura riu também.

- Perfeitamente. Os nossos filhos serão elfos e nós nunca mais nos separaremos.

Edínmtor beijou-a na testa e sorriu. Pertenciam um ao outro e agora eram um só, porque os Elfos e as Fadas têm essa capacidade. Quando amam verdadeiramente, sentem tudo o que o outro sente, sabem o que lhe está a acontecer e, como são um só, não se podem separar, nem mesmo na morte.

E, enquanto caminhavam juntos em direcção a Omnirion naquele doce fim de tarde, Ailura teve a certeza que, mesmo que a sombra de Morgriff ainda ameaçasse as Terras da Luz, eles seriam certamente mais felizes do que algum Elfo ou Fada jamais havia sido.

 

                                                                       Inês Botelho

 

 

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