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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FLOR OCULTA / Pearl S Buck
A FLOR OCULTA / Pearl S Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A FLOR OCULTA

 

O jardim era silencioso. Além dos seus muros nenhum eco de passos podia ser ouvido acima do suave, incessante chapinhar da cascata. O silêncio fora organizado, como todas as coisas neste jardim o haviam sido, embora tudo parecesse disposto pela própria natureza. Assim, do lado da rua, a água fora elevada pelo mais moderno sistema de canalização, oculto atrás de rochas, para criar um riacho que desse a impressão de correr das alturas. Um pequeno outeiro, truncado, meio escondido por bambus, erigido contra o alto muro de pedras, fora projectado de tal maneira que assumia a dignidade de um contraforte das montanhas atrás da cidade. Sobre o lado rochoso do outeiro, o riacho espargia-se em sucessivas quedas para um lago profundo e transparente. Três grandes pinheiros, curvados pela idade, inclinavam-se para o lago e nele reflectiam a sua imagem. Mesmo em número tão reduzido, criavam a atmosfera de uma floresta ao longe.

A casa, situada ao norte do jardim, era inteiramente japonesa. Grande, mas de telhados baixos. Bambus suavizavam os seus ângulos inclinados, e, quais cortinas apanhadas, deixavam aparecer os tabiques de rótulas, recobertos de papel. A casa, que era construída de madeira, sem pintura, tomara uma cor prateada, produzida pela pátina do tempo. Reinava a Primavera e, contra o suave acinzentado da madeira, florescia grande número de azáleas. O sol acendia nas flores um brilho escarlate, laranja e amarelo-dourado.

Era meio-dia. No seu gabinete, o Dr. Sotan Sakai ergueu a cabeça do manuscrito em que trabalhava, olhando pelas portas abertas. O jardim estava irresistìvelmente belo. Pousou a caneta de tinta permanente e, ao levantar-se da esteira do soalho, percebeu com orgulho íntimo que as suas longas pernas não estavam entorpecidas. Custara-lhe o esforço de alguns anos retornar aos costumes e hábitos do seu próprio povo, após a juventude passada nos Estados Unidos. De início fora-lhe insuportável cruzar as pernas diante da mesa baixa e, permanecendo nessa posição, escrever durante horas consecutivas. Tinha, no entanto, decidido que venceria as dificuldades, do mesmo modo como se resolvera a abandonar aquele país para regressar à sua terra natal. Tomara essa decisão por ser um homem orgulhoso e não suportar a ideia de um campo de concentração e o regresso ao Japão. Escolhera o Japão.

O orgulho férreo fê-lo volver de todo aos seus ancestrais. Comprara a velha residência de família do Barão Kazuko, fora da cidade de Kyoto. A família Kazuko, empobrecida pela guerra, passara a viver em retiro total depois que seus filhos pereceram na China. O barão recolhera-se a um mosteiro budista no topo da montanha próxima a Unzen, na Ilha de Kyushu, e a esposa voltou para a sua própria família. Os Kazuko já não existiam. Em seu lugar e na sua casa viviam agora Sotan Sakai, sua mulher e a filha, Josui. Tinham tido um filho, Kensan, cinco anos mais velho que Josui ao saírem da América. Kensan, porém, não se mostrara disposto a voltar, indo para o campo de concentração, onde se oferecera espontâneamente para o serviço de guerra. Perecera na Itália.

A morte do filho solidificou a intenção do Dr. Sakai de ser japonês. Kyoto fora poupada pela guerra. A velha capital permanecia a mesma de há uns mil anos ou mais, tendo apenas surgido alguns edifícios modernos. Estes, todavia, não conseguiam impor-se a construções antigas e veneráveis como o templo Higachi-Hongan-ji ou aos palácios cujos grossos telhados de colmo tinham sido o orgulho de gerações de colmeiros imperiais. Eram os jardins dos palácios que constituíam agora para o Dr. Sakai a fonte de descobertas do seu secular país, e deles tirara ideias de rochas, lagos, árvores anãs e musgos. Sobretudo o jardim da Casa Shokintei, no Palácio Imperial Katsura, pareceu-lhe especialmente belo com o seu manso correr das águas, a ponte de pedestres, as rochas, as árvores esparsas e os arbustos, conjugando intimidade e extensão.

Quando chegou afinal o termo da guerra, o Dr. Sakai manteve-se afastado das tropas de ocupação e dos seus comandantes. Desde que se firmara na cidade como primeiro clínico de medicina ocidental, a sua posição estava assegurada. O povo não podia dispensá-lo. Tratava a todos que o procuravam com igual carinho, ou quase igual. Era porém cauteloso quanto a situações que se lhe deparavam, considerando um dever ressuscitar a antiga cortesia para com os aristocratas, as tradicionais famílias que viviam agora em isolamento. Não considerava incongruente a confiança que nele depositavam.

Finalizado o seu trabalho diário num hospital moderno e amplo, regressava a sua casa, trocava o vestuário e recomeçava a escrever o seu livro intitulado "Enfermidades por Carência". Acumulara vastos conhecimentos neste sector, durante os anos do seu regresso. Secou agora cuidadosamente a caneta, antes de dirigir-se lentamente para o jardim. Ela representava, em sua casa, a única concessão aos hábitos americanos. O tradicional pincel era por demais lento. Mas talvez não se devesse considerá-la uma concessão, já que a maior parte dos japoneses usava caneta e lápis em lugar do pincel. Eram fabricados no Japão e o Dr. Sokai considerava a pena de qualidade superior às americanas. A grafia dos lápis, porém, era dura de mais.

Parado junto à ampla porta que era apenas o tabique de rótulas, corrido para trás como uma cortina, Sakai regozijava-se de novo com o seu jardim ou, antes, quase se regozijava. Conhecendo cada um dos seus pormenores, não resistia à tentação de procurar folhas caídas ou um provável formigueiro, maldosamente surgido durante a noite, capaz de prejudicar-lhe a perfeição. Não desejava aborrecer-se procurando o jardineiro para exigir explicações por não ter removido tais acidentes. Cerrou as pálpebras e meditou por alguns instantes, murmurando parte de uma sutra. Ao abrir os olhos novamente, viu o seu jardim com nova perceptibilidade, resplandecente à luz do sol, exactamente como desejava vê-lo.

A meditação não era fácil para ele. Passara a mocidade nas ruas agitadas de Los Angeles, vendendo verduras e, flores que ajudara seus pais a plantar em cinco acres de terra fora da cidade. O dinheiro para frequentar a escola obtivera-o trabalhando, e ganhara bolsas de estudos para a Faculdade de Medicina. Na América não havia tempo para a meditação. Tinha sido impelido para ela ao voltar ao Japão e aí aprendera a meditar em como se aprende a tocar um instrumento musical, a flauta de cinco orifícios, por exemplo, com que se deleitava ao anoitecer.

Passada a guerra, só lhe ficara uma única preocupação e esta dizia respeito a sua filha Josui. Quando os pais escolheram voltar para o Japão, Josui era uma criança - uma adolescente de quinze anos. Apenas a perplexidade e o medo a fizeram sair da América sem oferecer resistência, pois, quanto ao resto, nem sempre fora dócil e obediente. Ficara apavorada com a atitude das suas companheiras de estudo, sempre tão agradáveis e amigas, até o dia em que, de repente, se tornaram inimigas. Os seus rostos encantadores transformaram-se em semblantes ríspidos e um aspecto severo tomou o lugar dos sorrisos. Josui não conseguira compreender essa mudança repentina e queixara-se à sua melhor amiga, Polly Andrews, filha do merceeiro que comprava verduras ao seu avô:

- Mas, Polly, eu sou a mesma pessoa de antes!

- Não, não és! - retorquira Polly. - Es uma japonesa e eu odeio-te.

Josui não dissera mais nada. Não voltara a frequentar a escola e poucos dias depois, quando seus pais embarcaram no navio, acompanhara-os num silêncio angustiado. A terra que considerava como sua, onde nascera, e cujo idioma era o único que falava, tinha-a rejeitado e desprezado. No entanto, ainda não estava apta a aceitar o Japão, porque sua avó lhe falara de mais na condição das mulheres de lá. Permanecia em estado de dúvida; sentia-se a salvo enquanto vivesse em casa do pai, porém incerta quanto ao futuro.

O próprio Dr. Sakai adivinhava o estado de alma da filha e era esta a causa da sua inquietação. Agora que Josui contava vinte anos, que fariam com ela? O casamento não podia estar longe, especialmente para uma moça tão linda, mas que espécie de casamento? Ele recebera propostas, mas fora bastante prudente para não as apresentar à filha, pois era quase certo que Josui as recusaria imediatamente. Jamais lhe falara em casamento e proibira sua esposa Hariko de fazê-lo. O caso era delicado, e pretendia tratar dele sòzinho. Uma palavra fora de propósito poderia fazer com que Josui recusasse casar-se.

Permaneceu algum tempo à porta e depois, trocando os seus chinelos de palha por tamancos, desceu pelo caminho até ao lago e aí ficou a observar o espargir da cascata. O ar primaveril estava impregnado de vida nova. Ele era um homem que controlava fèrreamente a sua imaginação e não se permitia o prazer de sentir a estação do ano. Sòmente as preocupações em torno de Josui se tornavam mais acentuadas. Que influência iria ter sobre sua filha a Primavera deste ano? No ano passado tomara-se de certa agitação, que o Dr. Sakai compreendera perfeitamente, pois estudara psicologia como parte necessária à medicina. Corpo e alma eram inseparáveis, tanto na saúde como na doença. Ministrara-lhe sedativos inócuos e incumbira-a de dactilografar as primeiras cem páginas do seu manuscrito, diàriamente, ao voltar da escola. O calor começara cedo e a inquietação de Josui transformara-se em apatia. O Dr. Sakai convencera-se, contudo, de que sob a aparente doçura de sua filha se escondia uma natureza ardente. O casamento impunha-se, portanto, e sem demora.

Olhou para o relógio de ouro, encoberto pela manga larga das suas vestes. No hospital trajava à moda do Ocidente; em casa, porém, aprendera a preferir a ampla veste de seda escura, com faixas na cintura, chinelos sem tacão e, no jardim, tamancos grosseiros. Assim vestido sentia-se mais à vontade.

Era quase uma hora. Josui estava atrasada. Por onde andaria? O almoço já devia estar pronto, embora os criados, certamente obedecendo às ordens da dona da casa, ainda não o tivessem chamado. Estavam à espera de Josui.

Franziu as sobrancelhas, esquecendo o jardim. Se ela não chegasse dentro de quinze minutos, não esperaria mais. Amava sua esposa simples e silenciosa, mas quando Josui estava também presente, as refeições tornavam-se mais agradáveis. Mesmo assim, não seria indulgente para com a filha. Dentro de quinze minutos entraria em casa e faria a sua refeição. Se, ao terminá-la, Josui não tivesse aparecido, ordenaria que fossem retirados os pratos da mesa. A ordem dentro de sua casa não devia sofrer alterações. Às duas horas voltaria ao hospital a fim de visitar os seus doentes.

Não teve, porém, de tomar aquela providência, porque exactamente dez minutos após, Josui chegava. Ouviu soar a sineta de bronze presa do lado de fora do portão que se abriu e tornou a fechar. Os sapatos ocidentais de Josui ressoaram vivamente no caminho de pedras, e, logo depois, a criada saudou a jovem.

O Dr. Sakai ficou à espera, ainda a fitar o lago, com as costas voltadas para a casa. Era dever da filha ir procurar o pai. Um momento depois ouviu-lhe a voz suave:

- Estou em casa, pai!

O dr. Sakai voltou-se sem sorrir.

- Chegaste tarde, minha filha.

- A culpa não foi minha, pai -replicou ela.

Vendo-a ali no jardim, toda iluminada pelos raios do sol, chegou a sentir medo da sua beleza. Ela viera assim pelas ruas, da Universidade para casa! Os seus cabelos negros luziam, os grandes olhos escuros brilhavam: o calor dera um colorido rosado às suas faces e tornara-lhe rubros os lábios. Tinha mudado de roupa nos poucos minutos que passara no interior da casa e vestia um quimono verde de fazenda macia. Pelo menos não andara assim vestida pelas ruas da cidade. As suas vestes escolares eram desgraciosas.

- Como não foi tua a culpa? - interrogou com voz severa.

- Havia soldados americanos nas ruas - explicou ela. - Eram muitos. Todas as pessoas tiveram de esperar. - E tu, onde esperaste?

- Parei no vão de entrada do hospital para não ficar no caminho.

O Dr. Sakai resolveu não falar mais no assunto.

- Entremos para almoçar. Tenho pouco tempo. Não gosto de chegar tarde ao hospital. É um mau exemplo para os médicos mais jovens.

Josui conhecia o rigoroso sentido de responsabilidade do pai e apressou-se a apresentar desculpas.

- Sinto muito, meu pai! - disse em japonês, sabendo quanto ele gostava de a ouvir falar a sua língua. Ela, porém, dava preferência ao inglês.

-já explicaste que a culpa não foi tua -replicou.

Adiantou-se, caminhando na frente, com as mãos atrás das costas, passeando o olhar de um para outro lado do caminho.

-Observa esta azálea - disse. - Nunca esteve tão linda!

- É maravilhosa - concordou Josui.

Prestou atenção ao timbre de voz da filha, assim como iria observar mais tarde a sua fisionomia e cada um dos seus movimentos, para sondar, se possível, o que lhe ia no coração.

Não teria sossego enquanto não a visse casada e não suportaria passar outra Primavera com essa preocupação. Uma filha representa um fardo mais precioso que qualquer outro, e também mais pesado.

Josui percebera a secreta observação de que era alvo por parte de seu pai, durante o almoço. Notara-lhe a constante atenção, sabia que se preocupava com ela e reconhecia intimamente as razões dessa preocupação. Ocultava-lhe a sua verdadeira personalidade. Ele nada sabia acerca dos seus pensamentos ou do que ela era na realidade. Embora se comportasse de maneira impecável na sua presença, ele suspeitava, sem fazer da suspeita uma acusação, que esse procedimento correcto não revelava a sua verdadeira natureza. E nisso o Dr. Sakai tinha razão. Josui vivia uma vida dupla naquela casa, não por insatisfação, mas por excesso de energia. Muitas vezes pensava que essa energia provinha do facto de ter vivido na Califórnia até aos quinze anos, bebendo leite de vacas nutridas com trevo e cereais, e comendo frutas, legumes e carne. O seu corpo transbordava de sensibilidade e vigor. O seu espírito era vivo, atento e curioso. Era inteiramente diferente das demais raparigas japonesas, pálidas e silenciosas, que a observavam com admiração e desagrado. Chamavam-lhe "a americana" e Josui não protestava.

- Você tem o andar das mulheres americanas - dissera Haru - Mishima.

De vez em quando viam-se algumas americanas na cidade, ainda que não em tão grande número como em Tóquio e Osaka. Observando-as, Josui chegara à conclusão de que, realmente, o seu caminhar se assemelhava ao delas. Não, andava com as pontas dos pés viradas para dentro e as suas pernas eram direitas. No entanto, adorava a pequena Haru com o seu passinho saltitante de pomba, embora não soubesse por que motivo, excepto que costumava simpatizar fàcilmente com as pessoas, talvez pelo próprio excesso de vitalidade. Ainda que a sua alimentação já não constasse de leite, pão, manteiga, ovos e carne, como acontecia na América, servia-se abundantemente de arroz, peixe e hortaliças. Sua mãe, observando-a nesse dia começou a rir.

- Quem diria que és filha de um homem culto? - disse. Comes como a filha de um camponês.

Estavam sentados no chão, com os joelhos dobrados, em redor da mesa baixa onde estavam colocados os alimentos. A criada pusera diante de cada um uma tigela laqueada, contendo uma sopa fina em que boiavam uma fatia recortada de rabanete e uma folhinha verde de alface do mar. Três tigelas com peixe e legumes estavam dispostas no centro da mesa e Yumi, a empregada, passava arroz seco e branco de um recipiente de madeira para outras tigelas, também de madeira, laqueadas de preto e ouro. Inclinava-se apenas ligeiramente ao pôr cada uma das tigelinhas no seu lugar. Uma inclinação mais profunda tornara-se despropositada desde a ocupação e a democracia. O Dr. Sakai, no entanto, exigia uma ligeira reverência. A criada sentia-se satisfeita com essa imposição, pois evidenciava que naquela casa havia um amo, embora não fosse costume o chefe comer em companhia da esposa e da filha. Os Americanos é que tinham esse hábito, assim ouvira Yumi das outras serviçais, no mercado. Seu amo era, portanto, um pouco menos que um legítimo japonês, porém algo mais que um americano. Assim o classificava e sentia-se satisfeita.

Observando secretamente a filha, o Dr. Sakai inquietou-se com o colorido das suas faces. Habitualmente rosadas, agora estavam rubras.

- Estiveste parada ao sol enquanto passavam os americanos? - perguntou.

- Sim - respondeu Josui. - Deixei a sombrinha em casa esta manhã. Não imaginei que o sol se tornasse tão forte. Quando tomámos a primeira refeição, havia nuvens sobre as montanhas.

- Essas nuvens anunciam sempre um céu límpido para o meio-dia - declarou o Dr. Sakai. - É do lado do mar que devemos esperar chuva.

A Srª Sakai olhou para Josui.

- De facto estás muito vermelha. Depois do almoço deves aplicar um pouco de pó de arroz. O rosto assim vermelho dá um aspecto vulgar às raparigas.

- Antes não fosse filha única! - exclamou Josui, entre sorridente e amuada. - Os pais não fazem outra coisa senão analisar-me.

Ambos desviaram o olhar.

- O tokonoma (') precisa ser arranjado novamente amanhã - disse a Srª Sakai.

O tokonoma estava situado em frente do jardim. Da extremidade da sala onde estavam sentados à mesa podia ver-se o ramo de salgueiro em botão e as flores de ameixieira que se inclinavam sobre a pequena urna de incenso. Na véspera, Josui colocara um sapo de bronze sob as flores pendentes da ameixieira. Sòmente se podiam colocar três objectos no tokonoma, não mais. O Dr. Sakai contratara uma das melhores professoras da cidade para instruí-la nestes assuntos. Era uma viúva, baixa e franzina, que vivia com o filho e a família deste numa pequena casa cinzenta, junto ao Rio Katsura.

- Amanhã colherei flores de pessegueiro - disse Josui.

- A tigela de quartzo cor-de-rosa seria apropriada para as flores de pessegueiro - observou o Dr. Sakai.

A atmosfera, que se tornara um pouco tensa, voltou assim à tranquilidade. Josui não disse mais nada; passava-lhes atenciosamente os pratos, mantendo-se em silêncio para lhes evitar a desaprovação. Se o irmão fosse vivo, teria podido repartir com ele o peso do intenso amor dos pais. E teria, igualmente, compartilhado com ele as suas recordações da América. Talvez até a tivesse convidado a ir visitá-lo, pois já então ele e a noiva

 

(1) Tokonoma: Recanto onde se dispõem os objectos de adorno na sala duma casa japonesa. (N. do T.)

 

estariam casados e com filhos. A noiva casara com outro homem, depois de transcorrido o período de luto, e nunca mais tiveram notícias dela. Não obstante, Josui ainda se recordava muito bem dela. Era uma jovem delicada, viva, que usava os cabelos negros densamente anelados em redor do rosto redondo e pálido. Vestia roupas americanas de cores alegres, calçava sapatinhos de salto alto e uma vez fora eleita rainha da Primavera no Ginásio de Los Angeles. Sempre que Josui pensava nela, era como rainha da Primavera, usando um vestido prateado com lantejoulas e uma coroa de latão sobre os cabelos recém-ondulados. O pai era o ministro da igreja cristã. A família Sakai sempre fora budista, o que causava sérias preocupações à família dela. Não era o budismo uma espécie de paganismo? Isso provocara atritos entre o irmão e os pais de Josui. O Dr. Sakai não desejava ver o filho casado numa igreja. Nada disso, porém, tinha importância agora, pois o casamento nunca se realizara. No dia marcado para a cerimónia, o irmão já estava morto, a família cristã encontrava-se no Arizona, atrás de arames farpados, e a família Sakai vivia ali, em Kyoto. Ninguém em casa se referia àquela data, mas Josui sabia que os pais se lembravam. Quanto a ela, fora ao jardim e, escondida atrás de um penhasco, chorara pelo irmão.

- Takashi Matsui convidou-me para tomar chá em sua companhia - observou o Dr. Sakai neste momento. – Como o convite foi feito há cinco dias, a tarde de hoje é indicada para aceitá-lo. -Terminara a refeição e saboreava o chá de cor verde desmaiada que tanto apreciava.

Takashi Matsui era o seu doente mais abastado. Sofria de uma vesícula biliar rebelde, mas opunha-se a uma operação. Não era, ainda, um homem velho; dos seus três filhos, um encontrava-se prisioneiro na Rússia, outro fora morto durante o ataque a Nanquim e o terceiro era hoje um jovem. A existência do último filho dava ânimo ao Sr. Matsui. Acreditava que o Japão nunca mais entraria em guerra e, portanto, ele poderia conservar ao menos esse filho. Não estava escrito na nova constituição que o Japão nunca mais se rearmaria? Fora exigência dos conquistadores americanos. Por esse motivo Takashi Matsui prodigalizava o seu dinheiro e o seu amor ao filho mais novo. Parecera-lhe inútil dar educação aos outros dois filhos, pois era inevitável que fossem convocados para as forças armadas e provàvelmente pereceriam durante as grandes guerras preparadas pelos homens que então se encontravam no poder; mas Kobori estava agora na Universidade de Tóquio.

A família Matsui era muito antiga. O ramo de Kyoto, embora não fosse o mais importante, era o mais conservador;

Takashi Matsui era sem dúvida o primeiro, e ainda, a bem dizer, o único homem que reiniciara a cerimónia do chá, após o final da guerra. Uma vez passado o período de ocupação e restaurada a independência do país, o Dr. Sakai planeava construir, sob as indicações dO Sr. Matsui, uma casa de chá própria, no mais afastado recanto do seu jardim, onde reinava silêncio. Muitos japoneses modernos ridicularizavam a antiga cerimónia do chá, mas o Dr. Sakai não tolerava essa atitude na sua presença. Considerava muito importante ressuscitar, o mais cedo possível, os velhos rituais e costumes do país, a fim de que o espírito japonês pudesse também reviver. Na cerimónia do chá, a meditação sobre a arte e a natureza estava conjugada ao agradável convívio social e ao prazer de pratos deliciosos. O Dr. Sakai servira-se com moderação ao almoço porque sabia que à tarde o esperava um lauto jantar, que começaria com uma sopa cremosa de feijão, continuaria com pratos de peixe, caça e verduras, e terminaria com outra sopa leve e doces. Haveria também o chá verde, consistente e de suave aroma, feito de folhas pulverizadas, seleccionadas entre as mais tenras colhidas de velhas árvores que vegetavam à sombra.

Transcorrida a cerimónia, cuja duração era de quatro horas, talvez se apresentasse a oportunidade para uma palestra reservada com o seu anfitreão e, se tal acontecesse, deixaria o

velho cavalheiro falar nos filhos. Isso o levaria, seguramente, a mencionar o precioso terceiro filho, e dele a conversa se encaminharia, como já acontecera duas vezes, para Josui, sua única e preciosa filha.

Nem o pai nem a filha fizeram qualquer referência ao que lhes ia na mente enquanto terminavam o almoço em silencio. Kobori, o filho dO Sr. Matsui, estava agora em idade de casar. Contava dois anos mais que Josui. Nos velhos tempos, os dois pais teriam arranjado tudo, mas sabiam que isso já não era possível na época actual. As bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki tinham destruído mais que tijolos e argamassa, ou mesmo vidas humanas. O Dr. Sakai ainda não falara à filha a respeito do rapaz, mas informara a esposa de que Kobori desejava o matrimónio e que Josui devia pensar no assunto. A mãe repetira essas palavras à filha. Josui pensara, mas não conseguia chegar a uma decisão. Sentia-se intimamente inquieta e sem o menor desejo de pensar em Kobori. Não o odiava, isso era certo. Nenhuma jovem seria capaz de odiar um rapaz de físico tão apresentável, educação cuidada, sério e altivo. Josui via-o muitas vezes, nunca com encontro marcado, apenas por mero acaso. Ele frequentava a Universidade em Tóquio, mas ia passar os feriados a casa. Ainda havia poucas semanas o encontrara na festa das flores de cerejeira; um jovem alto de olhos castanhos. Josui sentia-se perfeitamente à vontade na sua companhia, tanto mais que ele enrubescia ao vê-la. Tinha a pele extraordinàriamente clara, a testa muito alta e percebia-se logo quando corava. Ela admirara-lhe o rosado das faces, a alvura da pele, e, com a franqueza americana que lhe era própria, elogiara a roupa ocidental de cor cinza clara que vestia. Mas, apesar de admirá-lo, não se apaixonara por ele, facto que lhe causava surpresa, pois andava ansiosa por apaixonar-se. O seu coração palpitava, pronto para o amor. Nada mais queria senão amar um homem e tornar-se sua esposa. Sentia o desejo e o anseio de ser subjugada pelo amor, de entregar-se inteiramente. Quando, todavia, olhava para Kobori, o seu coração teimoso afastava-se dele e o desejo morria.

Precisara dominar uma estranha vontade de responder bruscamente à sua voz suave e de desviar o rosto daqueles olhos grandes e oblíquos que brilhavam de amor. Que direito lhe assistia de amá-la tanto e tão abertamente, quando ela nunca lhe dera o menor sinal de estímulo?

Pensamentos rebeldes como esses se digladiavam no seu íntimo enquanto terminava silenciosamente a refeição e se levantava da mesa, inclinando-se diante dos pais. Tinha que voltar imediatamente ao colégio, pois já estava um pouco atrasada. O Dr. Sakai e sua esposa aceitaram a reverência da filha e permaneceram ainda à mesa por algum tempo tomando o seu chá. Josui deixou-os, dirigiu-se para o seu quarto e trocou o quimono pelas roupas escolares. Não pôs chapéu mas, lembrada dos comentários sobre o rubro das suas faces, levou a sombrinha de seda verde para proteger o rosto do sol. O seu vestuário consistia numa saia-e-blusa, de listas verdes e brancas, à maneira americana, mas Josui duvidava que correspondesse à moda usada então pelas raparigas de vinte anos na América. As mangas eram longas, abotoadas nos punhos, e a saia ia quase até aos tornozelos. A gola era alta, mas, mal ultrapassou o portão da casa, desabotoou-a para sentir um pouco mais de ar.

A rua estava em silêncio quando atravessou o portão do jardim. Os americanos, provavelmente, tinham-se espalhado pela cidade desejosos de visitar os pontos mais interessantes. Muitas vezes chegavam em grupos barulhentos, de Tóquio ou Osaka, com a intenção de passar um feriado em Kyoto; possìvelmente, pensava ela, porque os seus guias de turismo diziam que ali prevalecia ainda intacta a antiga cultura japonesa. Ouvira dizer que os bombardeiros americanos durante a guerra, tinham recebido ordens para não destruir Kyoto, assim como os japoneses haviam poupado Pequim. Seu pai não acreditara que Kyoto escapasse à destruição, porque não julgava os americanos capazes de dar valor à cultura. "Somos obrigados a escolher entre a selvajaria do comunismo e a vulgaridade da América", queixava-se às vezes. .

Seu pai era um extremista nas opiniões, pensava Josui repetidas vezes e sempre com satisfação, certa de que, acima de todas as acusações, essa era a que o Dr. Sakai negaria com maior violência, caso ela tivesse a coragem de expressá-la abertamente. Empenhava-se em obter tranquilidade; lutava pela paz espiritual; queria punir a América, imaginava Josui, por tê-los mandado embora, e o castigo era amar ùnicamente o Japão e todos os seus velhos hábitos e crenças. Que tolice representava a cerimónia do chá e quão infantil parecia o procedimento de homens adultos que se sentavam, solenemente, numa pequenina casa no jardim, o olhar perdido no espaço, à espera de que lhes fosse servida uma sopa verde de folhas de chá pulverizadas! O pai dissera-lhe que o chá continha muitas vitaminas e, além da beleza e do sentido espiritual da cerimónia, representava um alimento para o corpo. Josui não gostava do ritual. No Outono anterior, acompanhara seus pais à cerimónia do chá em casa dO Sr. Matsui, cerimónia à qual seu pai insistia em chamar Cha-no-Yu, embora não passasse de um simples chá, qualquer que fosse a denominação que lhe dessem. A conversa, conduzida com tanto espírito, inteligência e solenidade, só servira para aborrecê-la. O Sr. Matsui recitara pequenas poesias de quatro versos como se as tivesse composto no momento, embora Josui soubesse muito bem que despendera horas inteiras na sua elaboração. Se algum dia se tornasse mais íntima de Kobori, não deixaria de dizer-lho. Mas para que esperar? Dir-lhe-ia na primeira oportunidade em que o encontrasse.

Descia a rua entregue a estes pensamentos, divertindo-se com eles, dando-lhes ênfase no seu íntimo porque sabia perfeitamente que jamais teria a coragem de exteriorizá-los em voz alta. Nem mesmo sua mãe lhes daria atenção e, se ela insistisse, sacudiria a cabeça e taparia os ouvidos com ambas as mãos, esperando pacientemente que Josui acabasse de falar. Às vezes tinha vontade de gritar com a mãe, arrancar-lhe as mãos dos ouvidos, mas não podia fazê-lo. A americana terna e impulsiva que havia no seu íntimo estava recoberta por uma dura crosta japonesa. Era como um vulcão, fechado pela própria lava endurecida, mas fervendo e tumultuando no seu interior.

Josui olhava as ruas enquanto caminhava ao sol, projectando com a sombrinha um círculo de sombra que se movia com ela. Chovera na véspera e o verde das velhas árvores e dos arbustos nodosos, a beleza irradiante das azáleas, florescidas em todos os parques e jardins, davam maior ênfase à Primavera. Josui caminhava serenamente, a cabeça bem erguida, enquanto respirava o ar saturado de doçura. Uma vibrante energia impregnava-lhe o sangue, impelindo-a para a frente. Sentia ímpetos de correr pelas ruas, com os braços bem abertos. Costumava correr assim na América, com um grupo de outras meninas da mesma idade. De braços abertos como asas, corriam quais pássaros em voo, rindo de coisa nenhuma. Josui nunca correra assim no Japão e tão-pouco vira outras meninas correrem, nem mesmo as pequeninas. Caminhavam lentamente nos seus tamancos ou pesados sapatos de couro, ou então deslizavam em sandálias de fazenda com sola de borracha, que se teriam prestado òptimamente para correr.

Josui alcançou o portão do hospital, atrás do qual ficava o colégio. Aí estivera parada pela manhã enquanto passavam os jovens americanos. A não ser um rápido relance de curiosidade, não se detivera a observá-los. Todos se assemelhavam. todos riam, falavam ao mesmo tempo, empurravam-se. As pessoas diziam que os americanos eram como colegiais, sempre aos empurrões uns aos outros, rindo e fazendo de conta que brigavam.

"Os americanos não passam de crianças?" perguntavam.

As glicínias sobre o portão do hospital estavam em plena florescência. Pencas de flores roxas, pesadas como cachos de uvas, pendiam entre as folhas verde-pálido. Era a época das glicínias; íris e peónias, e Josui amava-as. Seu pai não dava grande importância às flores. A beleza do seu jardim era austera, com as suas rochas, pinheiros e lagos; sòmente os bambus lhe emprestavam uma nota mais amena. As flores que enfeitavam o interior da casa eram plantadas por sua mãe na horta, excepto um grupo de íris azuis, do lado norte da casa.

Como sempre quando pensava no pai, Josui sentiu-se invadida por um estranho amor em que se misturavam a admiração e o ressentimento. O seu desejo constante era que nunca tivessem saído da América. O pai não compreendia nem tentaria compreender como a vida de uma mulher no Japão era muito mais difícil que na América. Quando Josui relembrava as raparigas da Califórnia, pareciam-lhe jovens rainhas. Aqui, porém, as mulheres nunca eram rainhas. Eram sòmente vassalas que esperavam pacientemente, cumprindo as suas obrigações. Era duvidoso que algum dia chegassem a ser soberanas, pois, quando os americanos tivessem ido embora - costumava, dizer o Dr. Sakai - o velho Japão readquiriria os seus direitos primitivos ou, pelo menos, grande parte deles. Não seria então permitido à mocidade portar-se como agora-afirmava. Os americanos eram como hóspedes dentro de casa; na presença de pessoas estranhas é-se obrigado a permitir aparente liberdade às crianças, mas, depois que as visitas se retiram, impõe-se o castigo aos desobedientes.

Josui suspirou, depois sentiu o intenso mas suave aroma das glicínias. Alcançara o portão do hospital e fechou a sombrinha. Alguém estava parado ali, um jovem alto, delgado, um americano em uniforme. Encostara-se à parede, com os pés cruzados, as mãos nos bolsos. josui olhou-o com assombro e ele sorriu-lhe.

- Estive à sua espera - disse o rapaz.

Demasiadamente surpreendida para poder falar, ela olhava-o fixamente, de boca aberta. Era jovem, louro e de bela aparência. Sim, era um belo tipo de rapaz! Os olhos eram azuis como a flor da íris, a tez, clara e lisa. Possuía dentes fortes, brancos, e boca de desenho agradável. Tinha um aspecto robusto e sadio, ombros largos e cintura fina, embora o cinturão de couro estivesse bastante apertado.

Com um sorriso nos olhos, indagou:

E então, fui aprovado?

Josui corou. Estivera a olhá-lo fixamente como se se tratasse de uma estranha aparição. Mas era por ele lhe não ter parecido um estranho que o olhara tão demoradamente. Lembrava-lhe tudo o que já havia esquecido, os rapazes na escola da Califórnia, aqueles rapazes que mal começava a notar quando seu pai resolveu tão abruptamente abandonar para sempre a América. A voz dele parecia-se com a do irmão, a maneira de falar era tal como ela a recordava.

-Ou por acaso não fala inglês? - prosseguiu o jovem.

- Falo, sim-respondeu Josui com facilidade.

O rapaz tirou reverentemente o quépi.

- Nunca fui tão bem atendido numa prece - disse. - Chega a ser incrível.

- O que é incrível? - perguntou ela.

- Que a única jovem no Japão a quem eu queria conhecer saiba falar a minha língua.

Josui sorriu.

- Como podia querer conhecer-me, se nunca o vi antes?

- Esta manhã você olhou para mim, mas não me viu - disse ele. - Eu, porém, vi-a. Estava parada aqui, debaixo desse arco. No jardim de minha casa há também um arco assim, coberto de glicínias, e hoje de manhã olhei para este aqui porque me fez lembrar minha mãe. Foi então que a vi parada sob ele e... bem, você estava linda.

- Estava à espera que os americanos passassem,

Nós passámos, mas eu voltei. Os outros estão agora a caminho de Nara. É uma excursão, como sabe. Estamos de licença. Poderei ir a Nara a qualquer hora. Mas calculei que, se voltasse para cá e esperasse o tempo suficiente você apareceria outra vez.

- Estou a caminho da escola.

-Ainda frequenta o colégio?

-A Universidade. E agora tenho de ir, senão chego atrasada.

Ele continuou parado ali, com o quépi na mão e o sol brilhando sobre os seus cabelos louros ondulados; eram de um louro muito claro, e os olhos azuis. O rosto era de forma estreita, o queixo anguloso e as maçãs do rosto um pouco altas. A aparência geral era de limpeza.

- Desejo muito conhecê-la - disse. A sua voz era forte e grave, mas falava com suavidade.

- Não posso-replicou Josui, simplesmente. -Tenho de ir embora, por favor.

- E porque não? - insistiu ele. Começou a caminhar ao lado dela. Muito perturbada, Josui abriu novamente a sombrinha. Que faria agora? Se algum conhecido a visse acompanhada desse americano e relatasse o facto a seu pai, ele zangar-se-ia terrivelmente.

- Por favor, vá embora - pediu ela, e apressou o passo, sem voltar a olhar para a figura esbelta a seu lado.

- Deve existir um meio de travar conhecimento com uma jovem atraente no Japão - insistiu ele. - Quem sabe se eu vou visitá-la a sua casa, entrego o meu cartão e me apresento a seus pais?

- Oh, não! - exclamou Josui. - Meu pai ficaria muito zangado!

- Porquê?

- Porque sim -respondeu ela, fora de si.

- Ele não gosta da América? - indagou o rapaz com certa severidade.

- Conhece muito bem a América. - Sim?

-já morámos lá. Depois que principiou a guerra, saímos do país para vir morar aqui.

Tinham chegado às portas da Universidade e agora era preciso livrar-se dele. Tivera sorte em ninguém a ter visto àquela hora do princípio da tarde, quando a maior parte das pessoas se entregava à sesta por uma ou duas horas.

- Não continue a acompanhar-me, por favor - disse com desespero. - Terei aborrecimentos se insistir.

- Então vou deixá-la - respondeu o rapaz imediatamente. - Mas amanhã estarei aqui de novo. Este é o meu nome.

Tirou do bolso uma pequena carteira de couro, de onde retirou um cartão. Estendeu-o a Josui até que ela não teve outro remédio senão aceitá-lo. "Segundo-Tenente Allen Kennedy".

- Quer dizer-me o seu nome? - perguntou o rapaz.

Josui quis recusar, mas levantou os olhos para ele. Era tão simpático, pensou, tão cortês, tinha uma boca tão meiga no seu sorriso. Intimamente andava ansiosa por conhecer alguns americanos. Sentia-se só. Era difícil encontrar amigas entre as japonesas, quando nenhuma delas tinha o menor conhecimento da vida que levara por tanto tempo na Califórnia. Até lhe tinham antipatia por isso, invejavam-na, embora fingissem gostar dela.

- Chamo-me Josui Sakai.

- Josui Sakai - repetiu ele. - Não quer dizer-me onde mora?

Ela sacudiu a cabeça, tomada de pânico, mas depois não pôde resistir à expressão suplicante daqueles belos olhos. Sentiu um calor invadir-lhe o corpo, teve vontade de rir e, não atinando com o que fazer, fechou a sombrinha, correu pelo portão aberto e foi esconder-se atrás de uma moita de bambus. O rapaz aproximou-se do portão e pôs-se a olhar para todos os lados. Depois, passado um momento de hesitação, afastou-se, mas deteve-se ainda sob o arco de glicínias. A suave fragrância das flores tornara-se repentinamente intensa. Não se apercebera antes. Como era possível que não a tivesse notado? Aspirou profundamente aquele aroma de inebriante doçura, que ficaria sempre, eternamente, ligado à encantadora jovem desaparecida. Deixou-se ficar, hesitante, tomado de um pressentimento para o qual não encontrava explicação. Porque caminhos iria enveredar agora, envolvido em que fragrâncias de desejo?

Do seu esconderijo, ela viu-o olhar para cima com uma expressão de surpresa na fisionomia, depois afastar-se de súbito.

Saiu então de trás dos bambus, quase esperando encontrá-lo escondido na proximidade do portão. Mas ele não estava ali. Sentiu-se decepcionada e experimentou ao mesmo tempo uma sensação de alívio. Convencida de que nunca mais o veria, passou as aulas da tarde relembrando o seu rosto jovem e belo, que, embora em cada um dos seus traços fosse diferente do seu, lhe parecia tão familiar, trazendo-lhe à mente uma parte da sua infância que jamais esquecera.

O Dr. Sakai, reanimado como sempre pela cerimónia do chá, estava sentado junto com os outros convidados, imerso num silêncio meditativo. Eram poucas, agora, as casas em que se realizava a cerimónia do chá em toda a sua significação espiritual. Ele considerava-se um amador, pois, no lar onde passara a infância, na Califórnia, não havia casas de chá ou coisa semelhante. Seus pais tinham andado demasiadamente ocupados, procurando adaptar-se ao novo país e, em consequência, por demais fatigados para ensinar aos filhos aquilo de que ainda se lembravam. Por isso, fora com humildade que o Dr. Sakai se tornara amigo dos Matsui, ao mesmo tempo que médico da família. Confessou ao velho cavalheiro japonês que voltara como um estranho ao seu próprio país e que precisava aprender de novo a ser um japonês.

- Não que eu tenha esquecido - explicara o Dr. Sakai. - Durante toda a minha vida li sobre o Japão e estudei a sua História, de modo que, no momento da decisão, sabia que tinha de voltar para a pátria. Infelizmente, agora que estou aqui, há muita coisa que preciso aprender a fazer.

- O senhor possui a necessária disposição de espírito e tudo o mais pode ser vencido -respondera O Sr. Matsui.

Ele próprio nunca deixara as plagas do Japão, e fora com uma intensa curiosidade que acolhera o médico de porte alto e aspecto algo severo, o qual, apesar de todo o seu empenho em ser inteiramente japonês, continuaria americano sem o saber. Nessa mesma tarde, por exemplo, notou o zelo excessivo do Dr. Sakai. O espírito contemplativo não obedece à vontade. Porém, em lugar de fazer qualquer observação nesse sentido, O Sr. Matsui tratou de dar à palestra um rumo tranquilo. Portanto, tirou de uma caixinha forrada de seda a sua taça para chá, um tesouro que estimava acima de qualquer dos demais objectos que possuía.

- Esta taça - disse - pertenceu a um dos meus amigos, já falecido. Era um mestre do Cha-no-Yu e era nesta taça que bebia sempre. Legou-ma ao morrer, porque seu filho, embora fosse filho único, não queria aprender o ritual.

O Dr. Sakai recebeu a taça com exagerada cautela, apoiando devidamente os cotovelos sobre a esteira. Não se segura com a mão livre uma peça de valor. Quando O Sr. Matsui bebia naquela taça, colocava-a na palma da mão esquerda e segurava-a com a direita. O Dr. Sakai pôs-se a contemplar a taça, de um verde desmaiado, sem quaisquer entalhes ou desenhos. Era repousante como as águas paradas - puro círculo e curva. Ao passá-la novamente às mãos dO Sr. Matsui, suspirou e deixou vagar os olhos em redor. O rolo de pergaminho, a lata do chá, o vaso, o braseiro da chaleira, a bandeja e todos os demais objectos usados na cerimónia, eram belos na sua simplicidade. Os cinco convidados, todos eles homens, sentavam-se direitos sobre as pernas dobradas, e, não obstante, à vontade, com o espírito serenado pela perfeição do ambiente. Eram homens que possuíam o senso da beleza. Eram conhecedores, compreendiam que a forma sem o espírito é coisa vã, e       essa compreensão conduzia-os passo a passo, em busca da beleza por amor ao espírito, até ao ponto em que o homem e a natureza se fundem em absoluta unidade. Desse modo, acreditavam que os princípios da beleza deveriam penetrar cada pormenor, cada coisa da vida: arquitectura, cerâmica, decoração. Dois ramos de íris enfeitavam nesse dia a casa de chá dO Sr. Matsui, um em botão, o outro em flor, combinados com uma folha longa e outra curta. Folhas e flores haviam sido arranjadas com reverente cuidado; não aparentavam artifício algum, mas todos sabiam que, embora aquela simplicidade parecesse natural, chegava a ultrapassar a da natureza. Alcançar a simplicidade era o supremo grau do refinamento. O espírito plenamente amadurecido atinge a simplicidade como última fase da sua evolução.

Durante a longa cerimónia e o banquete, não houvera um único assunto que perturbasse os presentes. Agora que o cerimonial chegara ao fim e o Sol se punha no horizonte, os amigos ergueram-se e, fazendo a devida mesura de agradecimento ao dono da casa, saíram da casa de chá e passaram à sala de espera. Ali podiam conversar à vontade e poucos minutos depois, O Sr. Matsui reuniu-se a eles.

Aquela palestra, entre homens que nunca haviam deixado o seu país e estavam agora empenhados em preservar a cultura do seu povo durante os anos de ocupação estrangeira, era profundamente agradável ao Dr. Sakai. Desligara-se intimamente da América. Nesse particular sentia vazio o coração e a alma, as palestras longas e serenas acerca do velho Japão, dos seus antigos costumes, maus e bons, criavam nele outro homem.

Foi assim que chegou a entender de que modo os japoneses se tinham deixado induzir a um modo de vida que não era o deles.

- Todos os povos têm os seus maus espíritos - explicou O Sr. Tanaka, enquanto estavam na sala de espera. - Em todos os países nascem algumas criaturas de alma rude, que não é possível educar. São bravias desde o nascimento, sentenciadas, sem dúvida, por crimes cometidos numa existência anterior. Não se deixam dominar. Fazem sofrer os pais e a família, representam uma ameaça à sociedade, e atraem a si os fracos e os irrequietos. E aqui, esses indivíduos rebeldes, há mais de cem anos, aproveitaram a disposição maligna da época; disseram ao nosso povo que as potências ocidentais, que estavam dividindo a Ásia entre si, também se apossariam do Japão. Talvez tivessem razão. Quem poderá julgar? A verdade é que incutiram o medo na nossa gente, e esse medo permitiu que prosseguissem o seu caminho. Organizaram o Exército e a Marinha, apoderaram-se da Manchúria, esperavam criar um império para sua própria defesa. Foi esse o início da grande transformação. Se tivéssemos ousado resistir ao medo, talvez permanecêssemos invulneráveis. O medo é o princípio de toda a fraqueza.

O Sr. Tanaka era um velhinho encarquilhado, que atravessara setenta anos da grande transformação. Nunca vestira trajes ocidentais e em sua casa não havia nenhuma cadeira, nenhuma carpa de tipo ocidental. Herdara uma pequena fortuna e com ela se mantinha, embora com crescentes dificuldades. Tinha perdido todos os filhos na última guerra e seu próprio pai fora morto, décadas atrás, no primeiro conflito com a China. Detestava as guerras e dessa repulsa nascera a decisão de fazer-se budista, rejeitando o xintoísmo porque esta crença insiste no cultivo de um patriotismo que ele negava. Declarava-se humanista, amigo de todos os homens, e era escrupuloso até para com os americanos.

-Tem havido tanta crueldade durante os anos da minha vida - disse O Sr. Tanaka, pensativo.

Ninguém o interrompeu. Estava ali sentado sobre as pernas dobradas, uma figurinha delicada a olhar a porta aberta para o jardim, nesse instante totalmente iluminado pelos raios amarelos do sol poente.

- Quando caiu a bomba atómica sobre Nagasaki, fui até lá para ver o que tinha acontecido. Os senhores sabem que minha família vivia em Nagasaki. A velha casa já não existe. Tornou-se o túmulo dos meus parentes mais velhos, que eram seis e residiram ali a vida inteira. Desde essa visita, não tenho podido suportar a menor crueldade. Não sou, por exemplo, capaz de abrir caminho para entrar num eléctrico, mesmo que haja bastantes lugares. É um gesto de crueldade tão insignificante e tão breve que, praticado por mim, um homem já idoso, de maneira nenhuma poderia magoar alguém. Apesar disso, não sou capaz de fazê-lo. Seria, aos meus olhos, a última crueldade, que tornaria o mundo insuportável para mim. Não posso esmagar uma formiga, matar uma mosca ou deixar chorar uma criança. Qualquer crueldade além das que já foram cometidas, não só aqui como noutras partes do mundo, eu já não poderia suportá-la. Nunca mais, ó Deus Buda!

Ergueu o rosto magro, envelhecido, cerrando os olhos. O Dr. Sakai baixou a cabeça. Sentiu, no fundo do coração, uma tristeza dolorida e ao mesmo tempo revigoradora.

Quando, finalmente, se levantaram para as despedidas finais, ele não tivera oportunidade de conversar com O Sr. Matsui a respeito de Kobori e Josui, e não desejava fazê-lo agora. A tarde fora perfeita. Banhara a sua alma no passado e aprendera, ainda mais, o que significava ser japonês. Nesse momento não queria pensar nos jovens ou no futuro. Havia tempo para isso.

Dirigiu-se para casa, lentamente e em paz.

No aposento principal, a Srª Sakai aguardava o marido. Como iria contar-lhe o que sucedera naquela tarde, durante a sua ausência? Ela temia-o porque o admirava acima de todos os seres humanos e, se se atrevesse, tê-lo-ia amado sem restrições. Mas era-lhe impossível amar alguém a quem tanto admirava. Uma inteligência como a dele percebia todas as imperfeições e ela era humilde. Além do mais, trazia guardado no silêncio do seu coração um pecado secreto que jamais poderia confessar. Não gostava do Japão. Por ela, não teria deixado a América. Teria até preferido o campo de concentração, para onde haviam ido todos os seus amigos. Naturalmente, lá não havia conforto. Ela temia-o porque o admirava acima de todos os seres humanos e, obstante, teria ficado em companhia dos amigos, cozinhando e lavando a roupa juntamente com eles, e haveria muito tempo para conversarem. Ter-lhe-ia sobrado mais tempo que antes, pois não havia necessidade de ganhar o sustento. A alimentação, embora simples, era ministrada a todos. Além disso, o clima no deserto era seco e quente. Aqui em Kyoto, o tempo era húmido e a casa fria. A água no jardim, as neblinas do mar e das montanhas, traziam humidade para dentro de casa.

Vestindo um dos seus melhores quimonos, arroxeado, com gola de seda branca, muito alva, estava correctamente sentada sobre as pernas cruzadas, à espera do marido. Usava meias de algodão impecàvelmente brancas, de solas duplas e pespontadas. Confeccionava-as ela própria. Sabia fazer tudo bem porque fora criada no Japão, filha de uma família pobre, que vivia numa pequena fazenda nas altas colinas acima de Nagasaki. A sua casa era tão perto de Unzen e das fontes termais que, às vezes, na Primavera ou no Outono, quando a família aproveitava um feriado para ir admirar as flores e folhagens coloridas das árvores, se detinha junto às fontes para cozinhar o seu peixe nos vapores quentes que se levantavam por entre as pedras.

Seu pai era tão pobre e tinha tantas filhas que, um dia, ao ler num jornal que se procuravam noivas para jovens japoneses na América, enviara a sua fotografia e registara o seu nome. Assim ela fora para os Estados Unidos. A mãe do Dr. Sakai escolhera-a e o filho sentira ternura pelo seu rostinho meigo. Em nova fora graciosa, embora não bonita. Nunca lhe ocorrera tornar-se a esposa de um médico, que, por isso mesmo, não iria gostar das suas pernas tortas e dos seus pés e mãos curtos e grossos. Ele fizera-lhe perguntas a respeito da sua alimentação, que sempre consistira em arroz, peixe e algumas verduras. Mais tarde, ao nascerem os filhos, Sotan Sakai irritava-se fàcilmente quando ela não tinha o cuidado de observar à letra as suas prescrições quanto à alimentação deles. Embora no caso do filho, estas medidas se tivessem tornado inúteis, pois estava morto. Como forçara o menino a tomar o abominável leite de vaca e como ele chorara! Desejava não o ter nunca obrigado a fazer qualquer coisa que detestasse, já que tudo fora em vão. Nem o seu túmulo ela podia visitar. Como sempre, ao lembrar-se de Kensan, seu filho, vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Limpou-as cuidadosamente com o forro das largas mangas e assoou-se a um dos lencinhos de papel que costumava guardar no fundo da manga esquerda. A seguir fez dele uma bola que atirou para dentro de uma jarra que servia de cesto para papéis. Adoptara diversos costumes americanos, menos o do uso pouco higiénico de lenços de pano.

Nesse instante ouviu os passos do marido e a criada apressar-se em ir ao seu encontro para tirar-lhe os sapatos. Levantou-se e, caminhando em direcção à porta, fez uma inclinação. Ele acenou com a cabeça e cumprimentou-a com palavras que faziam alusão ao seu nome sem, todavia, o pronunciar em presença da criada. Ela seguiu-o à sala onde estivera à sua espera e, depois que ele se sentou, ajoelhou-se, colocando a mão no bule de chá, que se encontrava no seu abafador acolchoado. O bule estava quente e ela dispunha-se a servir-lhe uma taça quando ele levantou a mão.

- Não quero chá agora. Bebi do melhor.

Num particular, Hariko Sakai estava grata ao Japão. O quimono escondia as suas pernas tortas. Na América, usava vestidos caseiros de algodão, como as outras mulheres, mas sempre preocupada com aquelas pernas expostas ao desagrado do marido, embora ele nunca mais tivesse falado nelas. Afastava simplesmente o olhar, e isso era mais cruel do que palavras.

Como iria contar-lhe o que acontecera naquela tarde? Tossiu por detrás da mão espalmada.

Ele levantou vivamente os olhos.

- Que há, Hariko? - perguntou.

- Mal sei como dizer-lhe - redarguiu ela. Olhou-a e ele notou-lhe a perturbação no olhar. A Srª Sakai era ainda uma mulher de aparência agradável, isto é, tinha uma fisionomia meiga e olhos redondos, de expressão infantil. Embora esse formato de olhos não fosse considerado dos mais bonitos no rosto de uma japonesa, agradava-lhe.

- Quebraram o vaso Sung? - indagou, alarmado.

-Oh! Não foi coisa tão horrível -respondeu ela prontamente.

-A carpa grande morreu?

-Oh, não! -tornou ela. - Não houve mortes. - Vamos, vamos. Não vou matá-la, nem espancá-la.

Isso era sinal de bom humor da sua parte e Hariko sentiu-se encorajada.

- Hoje à tarde esteve aqui um rapaz à sua procura disse ela, com cuidado.

-Um doente?

- Não, não foi um doente. - Hesitou, depois disse de um só fôlego: - Um soldado americano.

O rosto fino e atraente do Dr. Sakai perdeu toda a expressão.

- Não conheço nenhum americano.

- Ele não disse que o conhecia -respondeu Hariko. Apenas queria conhecê-lo.

- Como sabia o meu nome?

- Foi-lhe dado por um amigo - disse. - E que lhe respondeu?

- Que não estava em casa. Ele quis esperar, mas não o permiti. Fiquei com receio que Josui chegasse de um momento para o outro. Não teria ficado bem.

- Certamente que não.

- Disse-lhe que ia transmitir-lhe o recado e ele respondeu que voltaria. Perguntou a que horas estava em casa. Respondi que seria melhor procurá-lo no hospital às dez horas da manhã.

Disse-lhe, então, que não costumava receber pessoas estranhas aqui em casa.

- Muito bem. - Fez uma pausa e franziu os lábios. - Um americano! Provàvelmente alguém na América lhe deu o meu nome.

-Sim - concordou ela. Sentiu o coração mais leve. Procedera bem, contara-lhe tudo e ele não se zangara. Não devia pensar em vê-lo zangado, pois jamais lhe ouvira uma palavra de cólera; no entanto, ela era tão sensível à sua desaprovação que percebia quando a mais leve sombra de descontentamento lhe nublava o espírito. O domínio que exercia sobre si mesmo era absoluto, mas não lograva esconder-lhe a mínima coisa.

Apesar das suas pernas curtas, Hariko levantou-se com graciosidade.

- Preciso retirar-me agora. Há muita coisa a fazer.

Ele inclinou a cabeça sem falar. Não desejava perder a boa disposição daquela tarde passada com os amigos. Permaneceu sentado, imóvel, de frente para o jardim, depois que Hariko saiu do aposento, e deliberadamente afastou de si a lembrança do americano intruso. O jardineiro borrifara as pedras com água e molhara as rochas e os arbustos.

A Srª Sakai, observando-o, empurrou suavemente os tabiques de rótula, depois de passar. Seu marido não lhe perguntara que espécie de homem era o americano e ela nada dissera; e isso, pensou agora, talvez fosse uma espécie de insinceridade. Gostara do rapaz. Tinha visto muitos rapazes ricos na Califórnia, mas, quando lhe perguntou se era de lá, ele respondeu que não. Tinha indagado quase imediatamente:

- O senhor é da Califórnia?

- A senhora fala inglês? - exclamara ele.

-Um pouco- redarguira, esforçando-se para não sorrir por causa dos dentes estragados. Os americanos gostavam de dentes bons e brancos, mas a mesma deficiência que lhe entortara as pernas parecia ter também prejudicado a sua denta= dura. Na sua mocidade isso não chamava a atenção de ninguém, pois as mulheres do campo costumavam enegrecer os dentes ao casarem. Sua própria mãe tinha os dentes pretos como laca.

- O senhor também é da Califórnia? - perguntara novamente.

- Porquê também? - indagara ele. - A senhora é da Califórnia?

- Viemos de lá.

-Sou da Virgínia, um belo lugar.

- Não conheço.

Nessa altura interrompera a palestra tão pouco cerimoniosa. Mostrava-se sempre amável de mais para com os americanos. Tornara-se reservada, mas continuava a gostar do rapaz. Era tão jovem, de aparência tão saudável. Entregara-lhe um cartão onde estava escrito o seu nome: Allen Kennedy. Pronunciara-o e ela repetira-o. Não tinha aprendido a ler o inglês.

Hariko adiantou-se com pequenos passos silenciosos, ao longo de um corredor estreito e entrou no aposento onde dormiam. As paredes eram corrediças e, uma vez afastadas, uniam a peça ao todo da casa. Ela, porém, conservava-as habitualmente fechadas. Tinha, assim, um refúgio para si. Na realidade nada havia para ela fazer, desde que Sotan lhe dissera que suspendesse a refeição da noite. Josui comia pão, uma geleia estrangeira e chá com leite enlatado. Quanto a ela, tomava uma tigelinha de mingau de arroz antes de ir para a cama. Abriu as gavetas de uma cómoda tão pequena que podia ser colocada sobre o seu conteúdo: jóias, fitas, alguns retratos de Kensan e uma fotografia da sua casa em Los Angeles, que já não lhes pertencia. Era habitada por negros, agora.

A parede foi afastada um pouco e ela viu Josui sorrindo-lhe.

- Mamma-san, está aí! - Viste o teu pai? - Não.

Josui entrou no aposento. Sua mãe percebeu imediatamente que algo lhe acontecera, algo de agradável. Os olhos oblíquos muito abertos, grandes de mais para olhos de japonesa, brilhavam de secreta alegria. Josui ainda não aprendera a ocultar os sentimentos por detrás de uma fisionomia serena.

- Pareces muito contente- disse a Srª Sakai. - Aconteceu-te alguma coisa boa.

-Só a Primavera, minha mãe! -respondeu Josui, sacudindo a cabeça.

Mas poderia só a Primavera ter imprimido tanta doçura a cada traço daquele macio e belo rosto? A Srª Sakai duvidava. Continuou a olhar para a filha, pensativa, procurando recordar como ela própria sentira a Primavera aos vinte anos. Nessa idade trabalhava tanto como um homem na fazenda de seu pai; a Primavera significava lavrar, arrastar a pesada grade sobre a terra e espargir a semente. No início do Verão, os campos eram inundados para a plantação do arroz e, atolada na água barrenta, ela ajudava a plantar as pequenas mudas. Não, a Primavera não lhe recordava nada.

Não insistiu com a filha. Josui pertencia ao pai; Kensan é que fora mais seu. Se o filho estivesse vivo, ela teria agora netos, ricas criancinhas, com jeito de americanos, coisa com que ela se não aborreceria absolutamente nada. Na América as mulheres usavam máquinas de lavar roupa e fogões eléctricos.

Josui estava de pé a seu lado e pegou nos retratos de Kensan. Havia diversos, alguns tirados quando ainda era menino. Num deles aparecia com Setsu, sua noiva, ela de cabelo curto e ondulado.

- Ele não permitirá - disse-lhe a mãe. Estava agora a olhar também para Setsu. - Com certeza ela já tem filhos.

- Nascidos no campo de concentração- lembrou Josui.

-Sim -respondeu a Srª Sakai. Mas, se Kensan estivesse vivo e todos reunidos, teria sido agradável ter netos, mesmo num campo de concentração. Os americanos não matavam ninguém. Não era como na Alemanha. Havia o suficiente para comer. - Não creio que o campo de concentração fosse muito ruim.

- Oh, não sei! - suspirou Josui, irrequieta. Franziu a testa e, apesar da Primavera, o brilho desapareceu-lhe do rosto.

A Srª Sakai tentou compreender a razão daquele suspiro. Deveria falar-lhe na visita do americano? Achou melhor calar-se, embora fosse uma novidade interessante. Começou a repor as jóias e fotografias nos seus lugares, cada uma cuidadosamente enrolada em papel de seda.

- Vou mudar de roupa - disse Josui.

Saiu, fechando o tabique de rótulas atrás de si. A Srª Sakai sentiu-se satisfeita por não ter dito nada. O silêncio era sempre preferível.

No canto da extensa casa que era particularmente seu, Josui olhava-se no espelho. Estava ajoelhada de frente para o jardim e os raios do sol poente atingiam-na em cheio. O espelho estava em cima de uma cómoda chinesa, de cerca de trinta centímetros de altura, feita de madeira negra polida. Josui trocara as roupas escolares por um quimono rosa-pálido, em cuja saia estava bordado um ramo de flores de pessegueiro de um cor-de-rosa-escuro.

A que chamavam os americanos bonito? Bem, ao menos ela era clara, de uma pele branca como a noz da amêndoa. Talvez o lábio inferior fosse um pouco cheio de mais e ela apresentasse um aspecto demasiadamente saudável. As suas faces eram rosadas como as flores do pessegueiro, mais rosadas que a seda do seu quimono. Os olhos tinham o feitio característico dos japoneses, mas as pálpebras eram largas, coisa pouco comum entre eles. Certamente o seu nariz era talvez um pouco achatado para o gosto de um americano. Se agora estivesse na América, pensou, faria novas amizades? Todos tinham já saído dos campos de concentração e dizia-se que os americanos estavam, de novo, a tratar bem os japoneses. Não ocorriam perturbações, ou então muito poucas. Diversos jornais tinham relatado factos que mostravam a bravura do batalhão de Kensan, na Itália. Alguns tinham feito referências ao próprio Kensan. Estivera entre os primeiros quando fora ordenado o ataque à colina. Conduzira outros e nessa ocasião fora morto.

- É melhor não ser bravo de mais - dissera sua mãe, entre lágrimas, ao olhar o retrato dele nos jornais americanos que lhes haviam sido enviados.

Se amanhã o americano a encontrasse outra vez, que faria ela? Não devia ter-lhe dito o seu nome. No entanto, se tivesse recusado isso ter-lhe-ia parecido descortês. Tirou do seio o pequeno cartão que ele lhe dera, e pronunciou o seu nome, suavemente - Allenn Kennedy. Em sua casa, certamente o tratavam por Alenn. Que significava esse nome? Não tinha a menor ideia. O sobrenome Kennedy também deveria ter algum significado. E Virgínia? Sabia que ficava muito longe da Califórnia. Era um estado distante, situado na parte oriental da América. Não conseguiu lembrar-se já do que aprendera nos livros escolares. Amanhã procuraria no atlas da Universidade. Guardou de novo o cartão no seio e olhou-se mais uma vez ao espelho. Viu a curva dos seus lábios e as pálpebras caídas. Levou as mãos às faces, que estavam quentes. As suas mãos eram pequenas e frias. Tinha sempre as mãos frias. Se ele quisesse tocar uma delas, apertá-la como faziam os americanos para cumprimentar, ela não permitiria. A palma da mão de uma rapariga é algo íntimo. Não deve ser tocada displicentemente, ou por um estranho. Só ao marido é permitido acariciá-la.

Enquanto cismava, a parede deslizou e Yumi apareceu, impassível no seu quimono de algodão azul. Olhou fixamente para Josui, sentada defronte do espelho.

-Seu pai deseja falar-lhe- disse em voz alta. - Está junto aos pinheiros.

Josui baixou a tampa da pequena cómoda, em cuja parte interior estava embutido o espelho.

- Diga-lhe que vou já.

O Dr. Sakai passeava no jardim, debaixo dos pinheiros, quando Yumi voltou para dar-lhe o recado. O musgo verde era alto e macio sob os seus pés e o ar estava impregnado do cheiro puro da resina fresca, aquecida ao sol.

- A nobre filha virá imediatamente- disse Yumi, inclinando-se ligeiramente.

- Que fazia ela? - perguntou o Dr. Sakai.

-Olhava o seu rosto no espelho- retrucou Yumi.

Afastou-se e o médico interrompeu os passos. Josui a ver-se ao espelho! Não era isso significativo? Teria ela também visto o americano? Talvez se tivessem encontrado aquela manhã, trocado algumas palavras! Os soldados americanos achavam natural falar com uma jovem que vissem na rua, e Josui era bonita - bonita de mais. Precisava descobrir. Não devia haver segredos. Tratando-se de mulheres, não se podia confiar nos americanos. Josui, sua filha, não devia ser tomada por uma gueixa ou por uma leviana.

Foi assim que Josui, caminhando a passos muito lentos em direcção ao pai, deu com os seus olhos escuros, penetrantes, cujas sobrancelhas estavam erguidas. Tinha a testa franzida, e um vinco entre os olhos, donde as duas linhas escuras subiam como asas de um pássaro ou de uma borboleta. Mas, quem poderia imaginar uma borboleta pousada nos olhos pretos de seu pai?

Ela principiou a falar, impetuosamente, incapaz de se conter.

-Sinto que estás a esconder-me alguma coisa!

Josui estava pouco habituada a um ataque tão súbito e ficou aturdida. Na América ele fora um homem de génio arrebatado, zangava-se com frequência e, embora se arrependesse depressa, não podia dominar a ira quando se irritava. Sòmente depois de regressar ao Japão se transformara num homem silencioso e comedido, empenhado em obter o domínio de si mesmo através da meditação.

Ele levantou a cabeça.

- Que estou a esconder do pai?

- Não sou tolo - declarou ele, violentamente. - Além de médico sou psicólogo. Houve uma transformação em ti. Já não és a mesma rapariga de ontem. Algo te aconteceu.

Obedecia a um instinto, mas Josui ficou impressionada com a sua perspicácia. Estaria ela revelando ao pai, tão claramente, os seus sentimentos íntimos?

- Nada de especial aconteceu - disse. - No entanto, talvez o senhor tenha razão. A vista dos americanos, hoje, lembrou-me muita coisa que pensava ter esquecido há muito tempo. Afinal de contas, passei lá quinze anos da minha vida e só cinco aqui.

Com um movimento de cabeça, ele ordenou-lhe que caminhasse a seu lado. Sentia-se irritado, esgotado, inquieto de mais para poder sentar-se. Ela compreendeu e ambos começaram a andar por entre os pinheiros. Anoitecia e o arrebol da tarde sobre o musgo verde dava-lhe um brilho quase fosforescente.

- Podes confiar em mim- disse o pai. - Na verdade deves confiar em mim. De certo modo, tu és tudo quanto tenho, e até mesmo o que sempre tive. Tua mãe tem sido boa esposa, mãe excelente. Que mais pode um homem desejar? Mas o teu espírito é igual ao meu. Tu és mais que filha, és uma companheira. Teu irmão era como tua mãe, mas tu pareces-te comigo.

-Sou muito diferente- disse ela, num ímpeto de rebeldia.

-És mais diferente agora do que o serás no futuro - concordou ele. - Hoje sentes com agudeza, dentro de ti, a diversidade das gerações. Mais tarde, quando a tua vida estiver estabilizada e não tiveres necessidade de rebelar-te contra mim para mostrar a tua independência, então descobrirás quanto te pareces comigo.

Josui sentiu a teia forte do seu amor envolvê-la com demasiada intensidade. Procurou libertar-se, empregando todas as forças: no entanto, com a sua superioridade, o pai cingia-a mais fortemente ainda. Ela ocultava no seio uma arma, um pequeno punhal, capaz de cortar a rede que ele estendia em seu redor, embora parecesse tão suave como uma nuvem. Tirou o cartão e entregou-lho sem dizer uma palavra. Ele inclinou-se para ler o nome e, percebendo logo o que era, retirou do peito um outro exactamente igual.

- Onde obteve esse cartão? - exclamou ela, cheia de surpresa.

- Posso fazer-te a mesma pergunta - redarguiu o pai com seriedade.

- Alguém... mo deu - disse Josui.

- Ele esteve aqui durante a minha ausência e entregou este cartão a tua mãe - declarou o Dr. Sakai, mais sério ainda.

Fitaram-se, ele baixando para a filha o sobrecenho feroz, ela erguendo os olhos, decidida a não ter medo.

- Ah, Josui! - disse o pai com voz grave.

Ela esmoreceu e, em silêncio, colocou o cartãozinho na sua mão. O Dr. Sakai guardou-o no quimono juntamente com o seu.

- como vês, eu tinha razão. - Falou com ternura e ao mesmo tempo tristemente. -Agora conta, minha filha, o que te aconteceu.

Ela não podia contar-lhe, porém. As lágrimas principiaram a cair, deslizando-lhe pelas faces. Os dois recomeçaram a caminhar e ela ergueu a manga do quimono para enxugar os olhos.

- Não escondas nada aos teus pais, peço-te- disse, após um longo silêncio. - Não proibirei nada que for para o teu bem. Penso, agora, que ficarei de coração partido se tu nos deixares, mas sem dúvida assim não será. O meu coração já se partiu uma vez.

Ela levantou a cabeça.

- Quando Kensan morreu?

- Não. Muito antes de tu e Kensan nascerem. Quando era ainda jovem, eu... mas deixemos isso. Já não tem importância.

De facto, não tinha já importância. Ele estava com cerca de cinquenta anos e o que acontecera na sua juventude, pensou Josui, não podia ter importância agora. Recuava diante da ideia de ficar a saber o que fora. Sentia que o pai só podia ter sido como sempre o conhecera, autoritário, violento no seu carinho, obstinado, dominando todos que o cercavam. Ela queria pensar em si mesma.

- Diz-me, porque guardaste o cartão? - dizia ele, quase suplicante.

A ternura dele comoveu-a e ela começou a soluçar e a falar simultâneamente, tentando abafar os soluços com as mangas.

- Eu mesma não sei. Não há nada que contar. Ele falou comigo sob o arco de glicínias e perguntou o meu nome. Eu... eu... disse-lho. E foi só.

- Quantas vezes o viste?

-Só essa vez, juro. Viu-me esta manhã e voltou. Eram tantos... eu não o notei a primeira vez que passaram.

Agora que ela dissera a verdade, o pai tornou-se amável.

- Não te culpo pelo que ele fez. Talvez devesses ter recusado- dizer-lhe o nome. Mas, afinal de contas, conforme disseste, viveste de mais na América.

- Eu não disse isso.

-Muitos anos, então- concordou ele. - Mas nunca voltaremos para lá. Vamos ficar aqui para sempre. A tua vida desenrolar-se-á aqui, minha filha, e aqui casarás. Não te forçarei ao casamento, prometo. Tens muito tempo à tua frente, ainda que, do ponto de vista psicológico - esforçava-se por falar em tom mais leve diante dela -seja melhor casar cedo, ao despertar o primeiro desejo. Não é bom esperar muito, principalmente para a mulher. O anseio natural desaparece, dando lugar a outras preocupações. Na América conheci muitas mulheres que tinham perdido todo o desejo natural.

Tinham-se deixado absorver pelas suas carreiras profissionais, o que de certa forma é muito elogiável, mas destrutivo no efeito que produz sobre a sua feminilidade. Vejamos, portanto, o que se pode fazer. Se não for Kobori Hatsui, vamos procurar outro. Tu escolherás; não quero ser julgado um bicho-papão.

Josui ficou tão comovida com a preocupação do pai em apaziguá-la, entrevendo nisso o seu imenso amor, que não teve coragem para se opor a ele.

- Falta-me só um ano de colégio, e gostaria de terminar.

- Certamente, concordo - disse ele. - E agora não falemos mais nesse assunto. Nós entendemo-nos, não é verdade?

-Sim -murmurou ela, embora contra vontade.

- Nesse caso... - fez uma pausa e, enquanto ela o olhava, tirou os cartões do quimono e rasgou-os em pedacinhos. Feito isso, baixou-se e levantou um punhado de musgo do chão; ali colocou os pedaços de papel, como se fosse numa pequena sepultura. Tornando a ajustar o musgo sobre eles, ergueu-se novamente. - Vamos- disse. - Voltemos para dentro. A noite chegou.

De facto, anoitecera. Sob os pinheiros começavam a luzir os primeiros vaga-lumes.

Allen Kennedy virou-se, agitado, sobre os grossos acolchoados. As camas japonesas enganavam. Quando a gente se deitava nelas, pareciam macias, com os acolchoados de pena recobertos de seda, sob os quais havia esteiras altas e fofas. Mas, depois de deitado algum tempo, o soalho duro de madeira polida fazia-se sentir por baixo das esteiras e acolchoados, num desafio aos ossos. O desejo queimava-lhe o sangue, proporcionando-lhe suplício e arrebatamento ao mesmo tempoA linda jovem perturbara-lhe o cuidadoso contrôle íntimo, transtornara-lhe os planos, os hábitos. Abominava o procedimento grosseiro e displicente dos homens comuns em tempo de guerra e, não obstante, sentia em si os mesmos apetites sensuais. Custava-lhe acreditar que fosse capaz de possuir uma mulher, embora refinada, na sofreguidão de se satisfazer ùnicamente a si próprio; no entanto, isso era verdade. O permanente desejo que sentia, e que decidira nunca mais aplacar num bordel, por mais premente que se tornasse, rebelara-se contra ele nesta noite. Queria pensar na jovem como um belo quadro, mas só conseguia lembrar-se dela como mulher, como uma criatura feita sòmente para ser possuída.

Sentou-se abruptamente, encolheu os joelhos e, envolvendo-os com os braços apoiou neles a cabeça. Desejava que os seus pensamentos não estivessem tão baralhados, pelo menos não confundir tanto o desejo. Certa delicadeza, que provàvelmente lhe fora incutida por sua mãe-aquela criatura pequena e graciosa mas de imensa força de vontade tornara o amor e o desejo inseparáveis para ele. Quando se encontrava em frente de uma prostituta, como fizera de propósito diversas vezes, tornava-se impotente. Era assim mesmo. Precisava amar para poder corresponder aos seus instintos. Sentia-se horrivelmente envergonhado. De todo o coração invejava os indivíduos rudes que se atiravam sedentos e saíam vangloriando-se. O que mais lhe causava inveja era o facto de nem se darem conta de que não passavam de grosseirões. O exército estava cheio desses tipos que viviam alegres e satisfeitos. Mas ele era feito de outro metal. Ariel não podia transformar-se em Caliban.

Levantou-se, por demais inquieto para fingir que precisava dormir. Vestiu o roupão que todo o hotel japonês põe à disposição dos seus hóspedes. O bom gosto dos japoneses era insuperável, e talvez fosse essa a razão por que tanto gostava daquele país. O roupão, feito de algodão barato, ostentava um belo desenho azul e branco. Somente quando tentavam imitar o Ocidente esse bom gosto falhava. Sua mãe, sem dúvida admiraria a cerâmica primorosa, as belas gravuras, as sedas delicadas e, sobretudo, as casas. A Srª Sakai não o convidara a entrar, mas ele vira, para além da sua cabeça inclinada, uma série de aposentos iluminados pelos raios de sol que, ao atravessar as paredes de rótulas, forradas de papel, tomavam uma coloração de pérola. Esse correr de peças dava para um jardim e Allen notara a faixa prateada de uma cascata. Até àquele momento não tivera ocasião de conhecer japoneses pertencentes às classes educadas. Regulamentos severos proibiam trazer qualquer japonês para os alojamentos ocupados por americanos. Mesmo nos comboios não era permitido misturarem-se. Allen não tinha vontade de entrar em contacto com os de classe mais ínfima. Na sua opinião, um japonês de baixa categoria, principalmente do sexo feminino, ficava um grau abaixo de um americano do mesmo nível.

Mas a linda jovem sob as glicínias devia morar justamente numa casa assim. E o seu nome, Josui - não teria sabido pronunciá-lo se ela não lhe houvesse ensinado. Não podia esquecer a fisionomia tão pura e tão linda, os olhos grandes e os lábios cheios. Aprendera a gostar de olhos de feitio oriental. E ela falava inglês como uma americana, embora com certo embaraço. A sua pronúncia era boa e a voz suave. Era muito educada, facto igualmente pouco comum. As raparigas japonesas de educação aprimorada ocultavam-se e não davam ocasião aos americanos de travarem conhecimento com elas. Mas Josui vivera na América e tinha um espírito mais esclarecido. Mesmo assim, mostrava-se esquiva. Não lhe teria agradado se o não fosse.

Estava parado na porta que dava para um pequenino jardim, não mais que um canto criado pela curva existente no muro externo do hotel. Não obstante, havia ali um lago do tamanho de uma banheira e uma ou duas árvores anãs. Precisava esclarecer consigo mesmo o que desejava daquela jovem, Josui. Se deixasse aquele desejo aumentar-ou melhor, se não o suprimisse completa e imediatamente - como terminaria? Seria um caso complicado e até doloroso. Não poderia ser diferente. Ela não era uma Madame Butterfly, pensou, para ser amada e depois abandonada.

A noite estava escura e silenciosa. Os contornos indistintos das montanhas, ainda mais negras que o céu, elevavam-se além do muro baixo. Fora a Kyoto em busca de beleza histórica e nada vira. Porque não seguir os seus planos iniciais? Não valia a pena decidir nada àquela hora da madrugada, uma hora imprópria, como bem sabia, para tomar qualquer decisão, hora melancólica e deprimente, a pior das vinte e quatro do dia, quando o que também havia de pior nele despertava, fazendo-o duvidar da sua própria alma. Encolheu os ombros. No dia seguinte, ao levantar-se, pegaria no guia-turístico para estudar um plano. Ficaria o tempo necessário para ver Kyoto e depois voltaria a Tóquio. Talvez a esquecesse se tivesse em que se ocupar. Podia acontecer, também, que ela se escondesse, como faziam as outras.

Sentiu-se melhor quando tomou essa decisão. Tornou a deitar-se nos acolchoados e cerrou os olhos. Os seus músculos distenderam-se e os ossos não ofereceram mais resistência à dureza do chão. Os acolchoados de pena eram leves e quentes. Parado naquela porta aberta, ficara com frio.

Se tivesse chovido, no dia seguinte, teria sido fácil permanecer em casa. Josui só tinha uma aula, de matemática, de que não gostava. Apanhara até um leve resfriado, ou pelo menos podia imaginar que assim acontecera, pois o seu sono fora inquieto e, ao acordar de madrugada, os acolchoados tinham escorregado. Dormia com travesseiro macio. Se usasse um travesseiro duro, como era hábito no Japão, a cabeça encontraria apoio firme, o que a impediria de virar-se. Outras raparigas aprendiam a dormir assim, mas Josui não conseguira. Era esse o seu mal: não se decidia a aceitar inteiramente o modo de viver 'no Japão. Seus pais tinham, ambos, demonstrado mais coragem do que ela. Isto é, seu pai insistia e sua mãe obedecia. Por isso mesmo ela mantinha as suas pequenas rebeldias, uma das quais era o travesseiro. Rebelava-se não só por si própria como também por sua mãe.

Mas o dia estava esplêndido. O Sol surgiu num céu sem nuvens e sòmente ao longe, no topo das montanhas, havia uma grinalda de neblina que dentro em breve se iria desfazer sob os raios do sol. Josui sentiu-se compelida a levantar-se e, estando o dia tão lindo, a usar um vestido amarelo-claro. Por um capricho qualquer, teria preferido vestir um quimono, mas isso causaria surpresa aos seus colegas de classe. A vida quotidiana estava nitidamente dividida.

O vestido amarelo, contudo, era de fazenda macia, e não havia nele botões brancos e duros. A gola estreita, de bordado branco, ia bem com o seu cabelo preto. Não usava óleos e isso também a tornava diferente das demais. Do seu penteado caíam sobre as têmporas alguns cabelinhos macios, que não eram crespos, nem tão-pouco lisos.

Seu pai dirigiu-lhe um olhar perscrutador quando ela desceu para a refeição da manhã.

- Não vou para o colégio à hora habitual - disse ela. - Irei mais cedo para estudar geometria por uma hora.

Ele compreendeu que, dessa forma, queria evitar um possível encontro com o americano. Se o estrangeiro pretendesse encontrá-la, seria à mesma hora em que a vira na véspera.

- A manhã estará mais fresca se saíres cedo - replicou ele. - O dia de hoje vai ser mais quente que o de ontem.

Tomaram a refeição em silêncio. A mãe não proferiu uma só palavra. Levantaram-se calados e Josui foi logo ao jardim, colher flores, galhos, folhas, qualquer coisa que a estação tivesse trazido, para o tokonoma. Era uma tarefa que lhe cabia executar, e ao mesmo tempo um prazer. O pai manifestava sempre a sua opinião a respeito dos arranjos que ela fazia, mas era sóbrio nos elogios, de modo que, quando os concedia, as suas palavras representavam um tesouro a ser guardado com carinho. Caminhando pelo vasto jardim, Josui pôs-se a procurar plantas adequadas. Era Primavera e por isso não devia usar muitas flores. Só no Verão elas existiam em abundância e o arranjo do nicho devia sugerir sempre a estação do ano. Decidiu-se pela disposição pouco cerimoniosa da moribana, rejeitou as plantas aquáticas. Estas nunca deviam ser combinadas com flores que nascem em terra seca. Encontrou o que procurava, mirta azul, florescendo nos seus ramos acetinados, meio escondida pela ramagem avermelhada de um bordo pendente. Josui cortou um galho de bordo com muito cuidado, para que a falha não se fizesse notar, depois dois ramos de mirta. Isso era suficiente e, durante meia hora, ficou diante duma mesa, na varanda junto à cozinha, a combinar as flores. Conforme lhe haviam ensinado, parou exactamente em frente ao vaso de louça verde, baixo e alongado, que escolhera para esse dia, a fim de dispor os galhos, ramagens e flores como se estivessem a olhar o Sol, para o qual todas as plantas se voltam por natureza. O seu arranjo constava de três coisas: o galho de bordo, maior, atrás dos dois ramos de mirta, as flores azuis dispostas em nível mais baixo de um lado que do outro. Completamente absorvida no seu trabalho, não percebera que o pai a observava, sentado na sala de meditação, onde permanecia algum tempo antes de ir para o hospital, e pela mãe, que lidava na cozinha. Sùbitamente satisfeita com a posição que o menor dos ramos tomara por si mesmo, Josui levou o vaso com todo o cuidado para o nicho, colocando-o um pouco de lado. Não trocaria o pergaminho, onde estavam representados salgueiros envoltos na neblina. Mudou, porém, o objecto de adorno, escolhendo uma peça de jade, de feitio irregular, com base de pau-rosa. A seguir, recuou uns passos para olhar o seu trabalho.

-Muito bem -ouviu seu pai dizer.

Voltou-se sorrindo. Ele estava parado ali, no seu traje ocidental, pronto para sair de casa. Ficava bem com aquelas vestes severas, o chapéu de feltro na mão, a bengala, as luvas e o fato cuidadosamente passado. Mas ele não era inteiramente japonês. Nenhum japonês seria capaz de usar com tanta naturalidade aqueles trajes. Ele próprio fazia com que se mantivesse viva, dentro dela, a lembrança da América, mas isso era coisa em que não se devia falar e Josui nunca dissera nada.

- Muito bonito - disse o Dr. Sakai. - Não tenho a certeza de que o azul da mirta e o vermelho do bordo... mas está bem. E original. E o verde do jade harmoniza-os com os salgueiros na neblina.

Acenou-lhe com a cabeça, sorrindo de leve, e saiu.

Assim começou o dia, e assim continuou. Se Josui não queria confessar a si mesma que esquadrinhava as ruas, ao entrar numa após outra, pelo menos não alterou o seu caminho habitual. Chegou cedo ao colégio e foi para a classe das raparigas, onde se sentou à sua carteira e se pôs a estudar atentamente. Traçou com cuidado os círculos, estudou os triângulos dentro deles e calculou os ângulos. As figuras geométricas eram formais, frias e, ainda que belas em si, não tinham vida. Os cristais compostos desse modo eram inanimados, fósseis daquilo que existira um dia, formas simétricas que o espírito abandonará; todavia, tinham efeito tranquilizador sobre a imaginação febril e o coração agitado. Josui trabalhou com afinco, interrompendo-se ùnicamente para responder a uma ou outra saudação. Assistiu às aulas, sentindo-se distante, isolada, indiferente. No fim do dia, um pouco mais cedo que habitualmente, voltou para casa. As ruas estavam desertas. Sem dúvida, disse consigo mesma, ele tinha ido a Nara reunir-se aos seus amigos. Não havia razão para que o não fizesse. Com certeza nunca mais o veria.

No dia seguinte não se sentiu bem. A manhã estava ainda mais linda que a da véspera; no entanto, acordou abatida e com calafrios. Ficou no quarto. Ao ver que ela não aparecia, sua mãe mandou Yumi saber o que se passava.

- Sinto-me triste - disse Josui. - Acho que estou doente.

Yumi levou a alarmante notícia aos pais e eles entre olharam-se.

- Foste muito severo com ela - observou a Srª Sakai. Era tão meiga que até mesmo essa censura foi feita em voz suave.

- Não fui severo -redarguiu o Dr. Sakai. - Mal falei com ela ontem, a não ser para elogiar o arranjo das flores. Bem sabes que voltei muito tarde a noite passada.

- Foi no dia anterior- insistiu a Srª Sakai.

- Estávamos de pleno acordo- disse o Dr. Sakai, Com firmeza. - Lembra-te do aspecto que tinha ontem de manhã e como arranjou bem as flores para o tokonoma. Achei-a perfeitamente calma.

-As flores hoje estão murchas. Vai ver tu mesmo. Isso significa que as suas mãos ontem já estavam febris.

Levantou-se enquanto falava e saiu no seu passo miúdo, pisando quase imperceptivelmente os tapetes. Entrou no quarto de Josui e pôs-se a observar a filha. As mãos dela estavam sobre os cobertores de seda, os dedos crispados e imóveis. A Srª Sakai ajoelhou-se e, com trás dedos, tocou a palma direita da sua mão.

-Tens febre, a tua pele está seca, Vou chamar o teu pai - Ele vai dar-me um remédio amargo - disse Josui, num murmúrio.

- É para teu próprio bem.

A Srª Sakai ergueu-se e continuou a olhar com ansiedade aquele rostinho lindo sobre o travesseiro branco.

- Diz-me o que te aflige - Implorou a mãe.

- Nada - suspirou Josui, - Aí é que está: não sinto nada, nada. Estou completamente insensível a tudo.

- Isso é mau sinal - observou a Srª Sakai. - Na tua idade deverias sentir alguma coisa, ainda que fosse apenas descontentamento, Josui não respondeu e a Srª Sakai saiu, agitada, para chamar o marido.

- Deves ir vê-la tu mesmo. Ela diz que não sente nada. As palmas das mãos estão quentes e ela mesma não sabe o que se passa consigo.

Então não é nada - disse o Dr. Sakai, com vivacidade. Ergueu-se e saiu, pegando de passagem na sua maleta profissional. Tudo nela estava em perfeita ordem e pronto para o uso: o termómetro em álcool, todos os instrumentos esterilizados. Dirigiu-se para o aposento da filha; bateu de leve na parede de rótulas de madeira e entrou.

- Então não sentes nada? - perguntou afàvelmente.

- Nada - disse Josui, sem olhar para o pai.

- Não estás a ocultar-me alguma coisa outra vez? - indagou com severidade.

- Nada - repetiu ela.

O pai colocou-lhe o termómetro na boca e ajoelhou-se junto dela, preocupado.

- Não viste o americano ontem? - perguntou bruscamente.

Impossibilitada de falar, Josui sacudiu a cabeça.

Ele esperou e depois retirou o termómetro.

- Não vi ninguém - disse ela. - Fui ao colégio, estudei, depois vim para casa.

- Quando começaste a sentir esse estranho abatimento? - interrogou. - Não tens febre.

- Hoje de manhã, quando acordei. Não tive vontade de levantar-me.

Por prudência, o Dr. Sakai não lhe revelou o que pensava. A razão daquele abatimento seria o não ter visto o americano no dia anterior?

- É aconselhável ficar de cama se não te sentes bem - disse. -Toma alimentos leves, dorme, se possível, e deixa a cabeça descansar. Virei para casa imediatamente, se me mandares chamar.

- Obrigada, pai.

Ele levantou-se e continuou a olhar para o rosto abatido da filha. Josui não o olhou. Baixou lentamente as pálpebras até cerrar os olhos.. Estava pálida, reconheceu o Dr. Sakai. Portanto, um dia de repouso só lhe faria bem. Pegou na maleta e saiu. Ao encontrar a esposa do outro lado da parede de rótulas, disse despreocupado:

- Ela não está doente. É cansaço, talvez devido à intensidade da Primavera. Sabes bem quanto tempo durou o Inverno desta vez e como o ar mudou de repente. Para uma rapariga com a sensibilidade de Josui, uma mudança tão brusca é sempre exaustiva. Disse-lhe que ficasse de cama.

- Obrigada - disse a Srª Sakai com gratidão. - Agora sei o que devo fazer.

Depois que ele saiu a casa ficou silenciosa. A Srª Sakai começou a mudar as mirtas azuis, mas, sùbitamente, todo o arranjo deixou de lhe agradar e, esvaziando o vaso alongado, lavou-o e pô-lo de lado. Em seu lugar escolheu um vaso alto, delgado, no qual colocou um ramo solto de bambus com folhas tenras, muito verdes, e duas flores em forma de estrela, que cresciam na sombra do tufo de taquaras. Nunca aprendera a arrumar flores, e raramente o fazia. Desta vez, porém, gostou da combinação que escolhera, especialmente porque seu marido não estava ali para apontar-lhe os defeitos.

Estava parada em frente do nicho, admirando o arranjo por alguns instantes, quando Yumi entrou.

- Não temos peixe-anunciou, sem rodeios.

- Que está a dizer? - perguntou a Srª Sakai em súbita agitação. - Ontem havia um peixe. Eu mesma o coloquei no pequeno lago. Seria o suficiente.

- Está morto- declarou Yumi.

- Impossível! - exclamou a Srª Sakai.

Mas era verdade. Por algum motivo desconhecido, o peixe morrera. Yumi retirara-o do pequeno lago, que, na realidade, era apenas um pote grande enterrado no chão, perto da cozinha, usado para conservar frescos e vivos os peixes comprados no mercado. O peixe estava imóvel na mão de Yumi, os olhos baços, as escamas sem brilho e o corpo inchado.

- Enterre-o - disse a Srª" Sakai, tristemente. Irei eu mesma ao mercado para me queixar ao vendedor. Deve ter-lhe dado comida de mais para aumentar o peso.

O mercado não ficava longe e Yunü estava em casa. Contudo, foi até ao aposento de Josui para dizer-lhe que pretendia sair. Ao afastar a parede de rótulas, viu que a filha adormecera. Estava deitada de costas, os olhos fechados, respirando calmamente. A Srª Sakai não quis acordá-la. Afastou-se em silêncio, satisfeita por verificar que, fosse qual fosse a preocupação de Josui, não lhe fazia perder o sono.

- Adeus, senhora -respondeu Yumi. Dirigiu-se ao quintal para lavar algumas peças de roupa. Assim estaria pronta para limpar o peixe e as verduras quando a Srª Sakai voltasse do mercado.

Era um dia esplêndido. O sol, no quintal, estava quente e Yumi levantara-se cedo, como de costume. A lavagem da roupa durou poucos minutos e, quando terminou, sentiu-se vencida pelo sono. A casa estava silenciosa. Poderia dormir um instante atrás do fogão da cozinha e ninguém a descobriria naquele lugar. Se a patroa entrasse sem ela o perceber, diria simplesmente que estava ali à espera para acender o fogo. Assim, deitou-se no chão, com a cabeça apoiada num pedaço de madeira, e Adormeceu no mesmo instante. Yuma era uma rapariga do campo, sadia e sempre disposta a comer ou dormir, e, quando adormecia, o seu sono era tão profundo que se tornava difícil acordá-la. Por isso não ouviu bater à porta da       frente. O portão do jardim nunca ficava fechado e a Srª Sakai deixara-o entreaberto.

Foi Josui quem acordou. Tinha o sono leve e o seu aposento ficava num dos lados da casa, a poucos passos da porta da entrada. Ouviu bater fortemente com o punho cerrado, depois com a palma da mão na porta de rótulas de madeira, e a seguir tocar A campainha. Acordou, ficou à escuta, e chamou primeiro a mãe, depois a criada. Ninguém respondeu. As pancadas continuavam, mais fortes do que nunca. Foi obrigada a levantar-se. Vestiu o quimono cor-de-rosa, alisou o cabelo, saiu e deu volta à casa pela varanda estreita, para poder ver sem ser vista. evitava fazer ruído e, quando chegou ao canto da casa, espiou sem que realmente a avistassem.

Era ele! Estava ali, batia à porta, e não havia ninguém para lha abrir. Josui recuou, conservando-se rente à parede de rótulas de madeira da casa, onde não poderia ser vista. Se permanecesse imóvel, ele não ficaria a saber que estava em casa e iria embora. Manteve-se assim até as pancadas cessarem. Depois quis ver se ele já se afastara. Esticou a cabeça, com todo o cuidado, o suficiente para poder olhar. Ele não tinha ido embora. Ainda lá estava sentado num degrau, olhando de um- para outro lado. Ela encolheu a cabeça instantâneamente, mas não foi bastante rápida. Ouviu-o rir, ouviu-o falar na sua voz profunda e risonha, pronunciando zombeteiro e lentamente as palavras:

- Eu vi-a, Josui Sakai!

Ela não se moveu. Não ousava respirar. Se voltasse a correr para o seu quarto, ele segui-la-ia? Isso seria horrível! Em hipótese alguma devia entrar no seu quarto. Onde estava sua mãe? Onde estava Yumi? Impossível que ambas tivessem saído, deixando-a sõzinha a dormir.

A voz profunda fez-se ouvir de novo, indolentemente, ainda risonha:

- Virá ter comigo ou terei de ir procura-la?

A estas palavras Josui procurou compor-se. Apertou mais o quimono na cintura e fechou bem a gola. O vestuário comprido não lhe deixaria ver os pés nus, metidos em chinelos cor-de-rosa. Apareceu cheia de dignidade.

- Minha mãe saiu por um momento. Dentro em breve estará de volta. Vou-lhe mandar a criada.

Dizendo isso, afastou-se ràpidamente e entrou em casa, à procura de Yumi.

- Yumi! - chamou, em voz baixa, mas não obteve resposta. Na cozinha parecia não haver ninguém. Não encontrava Yumi em parte alguma. Que poderia fazer senão ir ela mesma à porta da frente?

- Minha mãe não tarda - balbuciou de novo, com as faces em fogo.

- Não quero ver sua mãe - disse ele, levantando-se. Tirou o quépi e ficou parado, fazendo-o rodar entre as mãos. Josui estava sem acção. Que faria? Não era possível convidá-lo a entrar. Sua mãe não compreenderia. Ninguém compreenderia.

- Não foi à aula, Josui Sakai? - perguntou ele.

- Não, eu... eu estava um pouco cansada - gaguejou. - Você parece uma rosa disse o rapaz. Josui apertou as mãos, torcendo-as sem se aperceber. -julgo que não me quer aqui - disse ele, vendo o movimento agitado das suas mãos.

- Não é isso - protestou ela. - É que de momento estousòzinha e assim...

-Sendo uma rapariga distinta não sabe o que fazer comigo.

Cometera um grande erro dizendo-lhe que se encontrava só em casa. Falara sem pensar.

- Por favor, vá embora -murmurou.

Ela não sabia, por certo, que os seus olhos brilhavam, os seus lábios eram macios e vermelhos e o seu pequeno rosto se voltava para ele como uma flor aberta para o sol. O rapaz deu um passo na sua direcção e toda a tortura do seu desejo, tanto tempo reprimido, o invadiu de repente. Não conseguiu dominar-se. A emoção cegou-o sùbitamente. Já não lhe via o rosto e ficou impossibilitado de conter os passos. Inclinou-se sobre ela, tentando opor-se àquele anseio incontido e sabendo que não iria resistir. Seria suficiente beijar-lhe os lábios, os lábios duma jovem, delicada e pura, naquele jardim maravilhoso, onde o próprio ar era impregnado de fragrância e só se ouvia o ruído da cascata. Ela dissera-lhe que estava só. Suspirou e, passando ràpidamente os braços ao redor de Josui, com imensa ternura, estreitou-a lentamente contra si. Viu o seu rosto junto ao dele, a proximidade dos seus lábios. Baixou a cabeça e sobre eles colocou os seus, sorvendo-lhe a respiração arquejante, libertando uma das mãos para segurar-lhe a cabeça enquanto ela procurava desviá-la para um e outro lado. De repente Cessou de lutar, e ficou imóvel.

Era esse o longo momento com que sonhara a noite inteira, o momento de que nada sabia e que nem ao menos podia Imaginar. Josui quase desfaleceu nos seus braços e ele, então, levantou o rosto continuando, porém, a segurá-la.

Ela não o olhou. Não tentou desprender-se, mas virou a cabeça e encostou a face no seu ombro para esconder o rosto. O rapaz baixou a cabeça sobre os seus cabelos, tão negros, tão macios.

-Tinha que ser -murmurou.

Ela não podia falar. Percebendo isso, ele ergueu-lhe o rosto novamente, segurando-a pelo queixo redondo e macio.

- Sabia que tinha que ser? - perguntou.

- Não sei - murmurou ela. - Nunca fiz isto.

Ouvi-la confessar, assim, a sua inocência, encheu-o outra vez de ternura.

- Oh, minha querida! - disse baixinho, inclinando a cabeça.

Não - implorou a jovem. - Chega... para a primeira vez. Que farei? Preciso pensar, para ver o que significa. -Significa que a amo.

Nem sequer me conhece!

- Um homem não precisa conhecer uma mulher para amá-la. Amando-a aprende a conhecê-la. - Mas estamos no Japão!

- Você e eu... um homem e uma mulher.

Josui olhou para o portão. A mãe devia estar a chegar. Com certeza fora ao mercado, como fazia sempre, e talvez Yumi a tivesse acompanhado.

- Não posso ficar aqui. Minha mãe voltará dentro em pouco.

- Apresente-me a ela - pediu Allen, sem hesitar.

Não, não - respondeu Josui prontamente. - Não é tão fácil. Meu pai odeia os americanos. Ama-me de mais.

Ao mencionar o pai, afastou-se e ele soltou-a, sentindo a mudança que se operara nela.

- Você obedece sempre a seu pai, Josui? - Desejo obedecer-lhe sempre. - Quer dar-me uma oportunidade? - Uma oportunidade? -Sim, de deixar que me conheça. Josui suspirou.

- como seria possível isso?

- Encontrei um meio, querida.

Ela esquecera aquela palavra "querida". Agora, porém, voltou-lhe à memória. Kensan chamara a sua noiva assim. Era uma palavra de amor. Ao ouvi-la pronunciada por aquela voz grave, cheia de ternura, estremeceu. Onde encontraria um amor como aquele? Só na América se poderia encontrar. Lá ninguém temia o amor.

Olhou-o sùbitamente nos olhos.

- Vou confiar em si, Allen... Pronunciei bem o seu nome?

- Gosto de ouvir a maneira como o pronuncia.

Viu-o inclinar-se, novamente, para ela. - Não! Precisa ir...

-Onde nos encontraremos? Devo vir aqui? - Não, não... preciso pensar agora. - Amanhã, novamente, sob as glicínias? -Sim.

Ele inclinou a cabeça e ela sentiu de novo os seus lábios, ternos mas poderosamente exigentes. Estavam apaixonados um pelo outro. Agora ela sabia. Amava-o! Sùbitamente houve um farfalhar de folhas. Os dois ouviram, sobressaltados. Separaram os lábios e olharam para os ramos de bambus que pendiam sobre a porta. A folhagem verde e nova oscilava e dançava movida por uma leve brisa circular, um pequeno remoinho de vento,

Que estranho! - exclamou Josui.

- Há alguma coisa ali? - perguntou ele, admirado.

Por um instante esqueceram-se um do outro e ficaram a observar o bailado das folhas. Depois, lembrando-se de que continuava nos braços dele, Josui desprendeu-se e correu para dentro de casa.

O seu procedimento era inconcebível! Como pudera concordar com aquilo?

Miraculosamente restabelecida, saiu no dia seguinte para a escola, com o mesmo vestido amarelo e uma sombrinha branca bordada de flores amarelas. Seus pais nada disseram e ela também não falou, visto que sobraçava livros e uma caixa de lápis todos afiados. Evidentemente ia estudar com afinco. E era o que de facto pretendia fazer.

No entanto, ele veio ao seu encontro ainda antes que alcançasse o portão. Muito cedo já se postara ali à espera, e, envergando o seu uniforme muito limpo, estava mais atraente que nunca. Os seus olhos eram tão azuis como o mar num dia de sol.

- Estou aqui para tentá-la - disse com audácia, ao vê-la.

Josui teve medo. Num dia como aquele, quem poderia resistir à tentação? Era preciso não esquecer que ela era uma rapariga ponderada. Fez um esforço para assumir um aspecto severo. Lamentou não usar óculos, como muitas outras jovens.

- Gosto de vê-la bonita - prosseguiu ele. - Assim a tentação torna-se mais fácil.

- Por favor, preciso de ir para a aula -rogou ela. Ele tomou um ar sério.

- Josui Sakai, só me restam cinco dias de licença. Não vi coisa alguma de Kyoto, uma das mais famosas cidades do mundo. Quer vir comigo hoje e mostrar-me o que eu deveria ter visto? Como um dever patriótico?

Ela ficou muda de horror.

- Não é uma causa verdadeiramente nobre? - insistiu ele. - Sou um americano ignorante... Não quero lembrar-lhe o facto de fazer parte da ocupação do seu país. Digamos que sou um visitante. Desejo levar comigo uma boa recordação do Japão. Por isso vim à mais bela de todas as cidades. Quando voltar à América, para nunca mais ver o Japão, vou dizer a todos que visitei Kyoto, que passei aqui os dias mais felizes da minha vida e que vi todas as maravilhas desta cidade, que jamais esquecerei.

Diante dos seus risonhos olhos azuis ela deixou-se vencer, não imediatamente, mas com um pequeno sorriso preliminar que ia aumentando, como em resposta à sua risada.

- A tentação é realmente grande, mas não posso. Que direi ao meu professor? Imagine se nos vissem juntos. Meu pai ficaria zangadíssimo.

Ele sacudiu os ombros impecáveis.

- Perdoe-me, sim? Como sempre, é a mulher quem corre o risco. Vamos esquecer a tentação. Você deve ir para a escola.

O riso desapareceu dos seus olhos. Caminharam lado a lado em direcção ao portão. Ele tomou-lhe os livros e Josui lembrou-se de que, na América, os colegas de aula às vezes a tinham ajudado a levá-los. Era costume, lá. Foi andando a seu lado, envergonhada de sentir o desejo de que ele não tivesse desistido tão depressa. Ela agia correctamente, mas preferia não ter tanta capacidade para distinguir entre o que era correcto e o que o não era. Se a gente não fizesse tais distinções, seria agradável proceder mal, de vez em quando.

Olhou-o com o canto dos olhos amendoados e viu que ele a fitava. Novamente o seu olhar brilhou com aquele azul intenso, e os lábios se contraíram como se tivesse vontade de rir.

- Eu podia colocar estes livros de baixo da raiz da glicínia - sugeriu ele. - É tão grossa e retorcida que dá até para a esconder a si. Já estive a examiná-la.

- É o que vou fazer! - exclamou ela. Palavras incríveis!

Mas foi realmente esconder os livros. Ninguém a viu. Era ainda muito cedo. Colocou-os sob as raízes da glicínia e depois começaram a caminhar ràpidamente por uma das estreitas ruas transversais.

- Fale-me de Kyoto - disse ele, como se estivesse, de facto, interessado. Ela respondeu-lhe com seriedade, para acalmar a consciência agitada.

- É uma cidade muito antiga, que foi a nossa capital durante mil anos. Tem catorze mil velhos templos budistas e mais de um milhão de habitantes. Há os antigos palácios imperiais, e os velhos jardins, os mais belos do mundo,

- Mostre-me os jardins, minha pequena guia - pediu Allen.

Num jardim, pensou ele, haverá esconderijos, grutas, rochas, lagos tranquilos, sebes e moitas de arbustos. Quando viu que Josui não o levava a um lugar assim, imaginou que estivesse a divertir-se com ele.

- O Templo Ryoanji - explicou ela. - E este é o jardim de Pedra. É um dos mais famosos.

Josui olhou para um rectângulo árido, um deserto cercado por um muro baixo. Rochas calvas se erguiam como ilhas dentro de um mar de areias brancas, sem vida. Um ancinho enorme desenhara ali ondas estáticas, longas linhas curvas, imóveis.

- Um jardim? - perguntou ele. Por instantes esqueceu os seus propósitos do momento. Havia ali qualquer coisa que não entendia, uma dignidade imensa e incompreensível.

- Vai ver - disse Josui, com seriedade. - Conte as pedras, por favor.

Havia quinze grupos de cinco e duas, de cinco e três, e de três e três.

- Nem todas são ilhas - explicou ela. - Algumas sugerem aves aquáticas em repouso. - Apontou com o dedinho para um grupo. - Ali, veja, patos selvagens.

As pedras eram como a natureza as criara, sem entalhes, cinzeladas apenas pelo vento e pela água, trazidas ali para dormir, mas efectivamente lembravam aves selvagens.

- Você entende este jardim? - perguntou ele.

- Não inteiramente - confessou. - Sei alguma coisa por que meu pai me trouxe aqui. Ele entende. Pelo menos, sabe. Este jardim reflecte a alma pura do homem que o criou. E famoso e muito antigo. Se ficássemos aqui muitas horas, em silêncio, começaríamos a entendê-lo.

Ele sacudiu a cabeça.

- Eu, não! Prefiro mais vida.

Pacientemente ela levou-o ao jardim verde de um velho palácio, um lugar encantador, onde outeiros baixos uniam antigas árvores ao céu. Ainda assim, não era um lugar para o amor. Tratava-se de um jardim vigiado, em que cada folha era observada. Allen não viu empregados, só visitantes como eles, que pareciam ter vindo para olhar, mas não havia a natureza primitiva que permite a liberdade. Caminhava ao lado de Josui, constrangido, impressionado, admirado, mas sentindo-se enclausurado. Não ousava pegar na mão da jovem. Ela também parecia remota. Sentiu que Josui pertencia àquele lugar, mas ele não.

Por volta do meio-dia, estava saturado de palácios e templos, jardins e deuses.

- Estou com fome - disse de repente. - Andei quilómetros sobre pedra polida. Vamos a algum lugar para comer, depois alugarei uma carruagem e iremos para fora da cidade. Quero ver um pouco de terra inculta.

Ela aquiesceu quase como em sonho. Tendo cedido tanto, cometido o pecado monstruoso de um dia roubado, parecia agora disposta a tudo. A esse pensamento o sangue de Allen pulsou-lhe mais rápido nas veias.

Durante o almoço ela esteve bastante alegre, correspondendo às suas brincadeiras e perguntas, procurando adivinhar quem poderiam ser as poucas pessoas que havia no pequeno restaurante. Josui nunca estivera naquele lugar obscuro, situado numa ruela, e onde só a excelente tempura de camarão, o chá verde-pálido e o arroz seco e branquíssimo tornavam a permanência suportável. Um caixeiro, sugeriu ela, quando Allen lhe apontou um homenzinho pálido, metido num traje de linho cinzento, talvez o caixeiro de uma pequena loja; uma empregada doméstica, que entrava para comprar alguns cantares; um velho solitário que preferia comer ali a fazê-lo em casa; um homem de meia-idade ávido por saborear um bom prato, prazer que não podia permitir-se na sua residência por causa dos muitos filhos.

Mais tarde, porém, na encosta da montanha, sentiu-a novamente distante.

Desceram da carruagem desengonçada, ao pé do outeiro, deixando o velho e sonolento pónei branco e o cocheiro que não demonstrava curiosidade, mudo pelo menos na presença de um americano em uniforme. Subiram a vertente por um caminho de tijolos que seguia por entre grupos de bambus. .Parecia um lugar ermo; não obstante, Allen desconfiou. Os tijolos do caminho estavam limpos de mais, as samambaias tinham sido plantadas em lugares demasiado escolhidos, no meio dos bambus, e não havia vegetação rasteira nem matagais. Encontrou um canteiro de musgo e parou.

- Está bom aqui. Macio como uma almofada, não é? Sente-se, Josui.

Ela obedeceu, sentando-se um pouco distante, apoiada nos joelhos. Os cabelos finos, sobre a sua testa, estavam húmidos e colados à pele lisa e molhada. Os lábios estavam vermelhos. Olhou-a por um instante, imaginando o meio de vencer a distância que Josui cavara entre ambos. De súbito pegou-lhe na mão.

- Josui!

Ela voltou para ele os olhos grandes e límpidos. - Fale-me da América- pediu.

A América! Estava bem longe dos seus pensamentos naquele instante.

- Passei a manhã inteira a mostrar-lhe o Japão- disse ela. - Agora mostre-me um pouca a América. Da Califórnia ainda me recordo. Mas fale-me da Virgínia, de sua casa, de seus pais. Eles ainda vivem?

Não retirou a mão nem tão-pouco se afastou dele. Mas falar na Virgínia e fazer-lhe perguntas a respeito de sua casa era "o mesmo que afastá-lo de si.

- Estou tão curiosa - implorou.

- Bem - disse ele contra vontade. - Moro numa cidadezinha; isto é, a nossa casa fica numa cidade pequena, perto de Richmond.

- Richmond?

- É como Tóquio - explicou ele - mas não tão grande.

É a capital só da Virgínia.

- Conte-me como é a sua casa- insistiu ela, com suavidade.

Ele olhou para a mão dela e começou a brincar delicadamente com os dedos, com a pequenina mão esquerda, despida de anéis. Ela não usava jóias de espécia alguma.

- É uma casa grande, de madeira - começou – pintada de branco. Seis grandes colunas brancas, uma casa velha, de meu bisavô. Em redor, muitos hectares de terra, uns mil, calculo eu, matas e colinas, um rio.

- Parece lindo-suspirou Josui.

- Dentro há um vestíbulo, uma escada larga de caracol que vai até ao sótão, e todos os aposentos usuais.

-Onde é o seu quarto? - perguntou ela. - Em cima, do lado esquerdo, na frente.

-Lembro-me dos tapetes na América, quadros, cortinas e coisas assim - disse ela.

- Coisas assim - concordou Allen.

- Camas e cadeiras com pés, e mesas também? - Também, e tudo com pés. -Sua família é composta de... pai e mãe? - E de mim; só.

- É filho único?

- Sim.

Josui tomou um ar sério.

Talvez seja precioso demais -sugeriu.

Ele riu.

- Houve ocasiões em que pensei o mesmo. A jovem reflectiu por algum tempo.

- E sua mãe? Como é ela?

- Boa, acho eu.

- Quero dizer, quanto ao aspecto?

- Ah! - Ele compreendeu. - Um pouco pequena, esbelta, bem bonita. Mas é forte, muito' forte.

- E seu pai?

- Um homem grande, calmo... preguiçoso. É o que diz minha mãe.

- Ele tem algum trabalho?

-É advogado, mas não exerce a profissão. Acredito que não precise, desde que meu avô morreu.

Josui compreendeu que isso significava riqueza, mas delicadamente evitou falar em dinheiro. Olhou por cima das pontas dos bambus que cresciam abaixo de um pequeno penhasco, a poucos metros do lugar onde estavam sentados. A cidade de Kyoto ficava lá em baixo, mas na realidade não tão longe quanto parecia.

- Preciso ir para casa imediatamente - disse ela de súbito. - Devo ir para casa quando as aulas tiverem terminado.

Essa observação lembrou a Allen que o dia se escoava ràpidamente. Deitou-se de costas sobre o musgo, fazendo travesseiro dos braços cruzados sob a cabeça.

- Aínda não, Josuí!

Ela fitou-o com uma expressão que ele não pôde entender. Seria medo?

- Deite-se ao meu lado, Josui.

Ela sacudiu a cabeça e o rubor subiu-lhe do alvo pescoço ao rosto.

- Porque não, querida?

Josui não respondeu, mas ele viu-lhe tremer o lábio inferior, que ela apertou com os dentes.

- Está com medo de mim? - perguntou ternamente.

-Um pouco - confessou ela.

- Não a magoarei, querida. Ela sacudiu de novo a cabeça.

- Esquece-se de que a amo? - perguntou com maior ternura na voz.

- Não-respondeu ela baixinho. - Lembro-me disso. Mas porque me ama?

Voltou-se e olhou-o com os seus olhos grandes e graves.

Allen sentou-se de repente. Porque a amava, na verdade? Ela tornara impossível a realização dos seus propósitos.

- Não sei - disse. - Pergunto a mim mesmo. Acho que estou... faminto, digamos. Não encontrei aqui ninguém a quem pudesse amar. Só você!

- Dentro de alguns dias irá embora. - Mas voltarei.

Ela sorriu.

- Então podemos esperar - exclamou. - Não é necessário decidir agora por que razão me ama.

Ergueu-se quase abruptamente e ficou a olhar aquele rosto que a fitava ansioso. A seguir, de súbito, deitou a correr encosta abaixo, leve, ágil, e ele não teve outro remédio senão segui-la, meio zangado, meio divertido. Ela não parou a não ser junto à carruagem, quando exclamou, arfante:

-Oh, nunca corri tanto desde que estou no Japão! Costumava correr assim na Califórnia, mas aqui nunca.

O velho cocheiro olhou-a, espantado. O cavalo acordou com um relincho.

- É este o final do dia? - perguntou Allen.

- Deste, sim - retrucou ela. - Um dia consigo, Allen Kennedy!

Até então nunca pronunciara o seu nome completo e agora disse-o, destacando as sílabas, acentuando graciosamente cada uma delas, como uma promessa, talvez, de muitas futuras.

O dia, que ao começar parecera tão impossível a Josui, terminava assim numa alegria de sonho. Encontrou os livros intactos debaixo da raiz da glicínia. Era tarde e todos tinham voltado para casa, com excepção do velho porteiro. Dormia, sentado no seu cubículo, como fazia muitas vezes quando os alunos se tinham ido embora e o pátio do colégio ficava silencioso. Não a viu chegar nem sair, e ela parou só mais um instante na rua, para se despedir de Allen.

- Mas eu ainda não vi o suficiente - protestou ele. - Não vi a cidade de Nara. Todos precisam conhecer Nara.

- Devia ter ido com os seus amigos - disse ela formalmente. - Não foi por minha culpa.

- Foi por sua culpa, sim - retrucou ele. - Vi-a e tive que descobrir quem era.

Tratava-a de maneira meio brincalhona, meio infantil, mais em sua própria defesa que por causa dela. Começava a sentir-se amedrontado diante da intensidade e da perseverança dos seus propósitos, e pouco inclinado a descobrir as verdadeiras razões. Não desejava fazer o que via outros homens fazerem todos os dias. Não queria acreditar que era como eles. Tão-pouco acreditava que Josui fosse igual às jovens japonesas comuns, que em Tóquio costumavam imitar as americanas mais vulgares.

Admirou-se ao notar uma expressão de surpresa triste no seu rosto sério.

- Quer que eu o acompanhe a Nara amanhã? - perguntou Josui.

- É o que desejo humildemente.

Ela continuou a olhá-lo.

- Preciso pensar - disse por fim.

- E como saberei o que pensa, Josui?

- Se eu resolver acompanhá-lo, virei aqui amanhã de manhã, mas sem os livros.

- Ficarei à espera.

Separaram-se sem trocar um aperto de mão sequer, como se cada um soubesse do desejo relutante e temeroso do outro.

Josui sentia-se aturdida com a sua perversidade, pois foi para casa como se tivesse voltado da escola normalmente. O pai estava atrasado, pois atendera uma chamada urgente, e ela jantou só com a mãe. Essa circunstância tornou as coisas mais difíceis. Se o pai estivesse presente, como de costume, teria sido bem simples a sua reserva habitual. A mãe era tão complacente, tão gentil e boa, sempre ansiosa por vê-la feliz! Era na realidade difícil responder às suas perguntas, insistentes e ao mesmo tempo amáveis. Detestava mentir, e, no entanto, como evitá-lo agora?

- Devia ter estado muito quente na sala de aula, hoje - disse a mãe.

- A classe fica do lado norte-respondeu Josui.

Tirou os pratinhos da bandeja de sua mãe.

- Por favor, não te incomodes- pediu a Srª Sakai. - Estou com muito pouco apetite. Nem tenho coragem de te contar.

- Contar-me o quê, mãe? - perguntou Josui.

- A chamada urgente foi da família Matsui. Trata-se de Kobori. Teu pai teme que seja apendicite.

Josui teve que demonstrar interesse.

- Kobori? Oh, espero que não seja grave! É o último filho daquela casa.

- E um filho tão bom!

- Sempre ouvi dizer que é - replicou Josui. Baixou a cabeça e principiou a comer, sem levantar os olhos.

- Teu pai tem tanta responsabilidade - continuou a mãe. - O Sr. Matsui é o seu melhor amigo - replicou Josui. - Não é só isso - disse a Srª Sakai, - Teu pai também pensa em Kobori. Gosta muito dele, e às vezes deseja... muitas coisas.

Josui sabia o que o pai desejava, mas não conseguiu encontrar uma resposta adequada. Estava imersa num sonho de amor secreto, longe daquele lugar, de sua casa e de seus pais. Já os deixara, voltando-se inteira, corpo e coração, para o jovem americano. De nada servia fingir. Só conseguiria esconder a verdade até ao momento de saber o que ele pretendia fazer. Conhecera muitos rapazes americanos, mas nenhum como ele. Os que vira tinham sido os tipos barulhentos das ruas, os atrevidos, os soldados bêbedos que importunavam e zombavam das pessoas. Durante as paradas pareciam limpos, eram silenciosos, sempre obedientes. Marchavam em linha perfeita, erguendo e baixando os pés em precisa uniformidade. Nas paradas não olhavam nem para a direita nem para a esquerda, a não ser que se lhes ordenasse e então todas as cabeças se voltavam como uma só. Quando não estavam em parada, no entanto, passavam a ser fragmentos de um todo, e cada fragmento se transformava numa unidade barulhenta, sempre igual às outras. Desprezava-os, fugia deles, escondia-se na entrada de algum portão até que passassem. As japonesas que andavam com eles eram ainda mais desprezíveis. Realmente, ela não era como aquelas raparigas; era diferente. E ele também era diferente. Por isso o amor de ambos não podia ser como outros amores. Mas que deviam fazer?

Josui respondia distraidamente às perguntas de sua mãe, às vezes mentindo. Ao terminarem a refeição, viu que ela a olhava com ar perplexo.

- Existe alguma coisa que sintas e não me queiras dizer? - perguntou a mãe.

É sòmente um problema que surgiu durante as aulasdisse Josui. Surpreendeu-a a facilidade com que lhe ocorriam respostas como aquela. Embora verdadeiras no sentido literal, não passavam de mentiras. Um dia ficaria triste ao reconhecer que era uma mentirosa, mas nesse momento, quando o seu espírito e o seu sangue estavam inundados de doce deslumbramento, a nada ligava.

Recolheu-se cedo, dizendo que se sentia muito cansada, e deitou-se imediatamente. A noite estava clara, e, da sua esteira no chão, fitou o céu cheio de estrelas, através da abertura deixada pela parede de papel corrida para um lado. O ar parecia conter humidade, ou talvez fosse só a quietude da noite que fazia as estrelas parecerem grandes e suaves. Não cintilavam, mas delas fluía uma luz amarelada, como lanternas de seda suspensas ao longe. Estaria ele também pensando no que deveriam fazer? Seria possível não acontecer nada quando duas pessoas se amavam? Acontecia sempre alguma coisa. Lembrou-se das histórias das revistas que costumavam ler na Califórnia. Nelas, o casamento sempre se seguia ao amor. Primeiro vinha o beijo, depois a declaração e a seguir marcava-se a data do casamento. Recebera o beijo, e ele fizera-lhe a declaração. Só restava agora que lhe pedisse para fixar o dia do casamento, caso este costume ainda permanecesse. No Japão muita coisa mudara. Talvez o mesmo tivesse acontecido na América, especialmente na Virgínia.

Suspirou, pensou no rosto dele e sorriu; mal podia esperar pelo dia seguinte.

O tempo cooperou, novamente, com uma manhã cheia de sol. Despertada pela luz do dia, Josui levantou-se cedo; viu a mãe, mas não se encontrou com o pai. Chegara tarde, disse-lhe a mãe. Tinha operado Kobori, que ainda não estava fora de perigo, pois o apêndice supurara, e o Dr. Sakai continuava preocupado. Só voltara para casa de madrugada, mas dera ordem para que o chamassem às nove horas se ainda não tivesse acordado.

Josui saiu de casa às oito e meia. Deixou saudades ao pai e depois esqueceu tudo. Durante a noite caíra um pequeno temporal. As ruas ainda estavam molhadas e o céu era de um azul esplendoroso. Allen já estava à sua espera. Desta vez o velho porteiro ficara parado no portão olhando, pensativo, para a rua. Josui viu-o e estacou. Allen, avistando-a, aproximou-se. Encontraram-se na rua estreita a oeste da Universidade.

- Ele não a viu - disse o rapaz.

- É melhor irmos pelas ruas laterais até à estação - disse ela. - Nara fica a menos de uma hora daqui.

Deram-se as mãos e assim foram andando, em silêncio, pelas ruas molhadas. Dos galhos das árvores caíam sobre eles gotinhas de chuva. Ela vestia uma saia de algodão azul e uma blusa leve, branca, e as gotas produziam pequenos círculos transparentes na fazenda, deixando entrever a pele. Nunca usava chapéu e os pingos de água caíam-lhe sobre o rosto e os cabelos.

-Orvalho sobre uma flor - disse Allen.

Ela sorriu-lhe com os olhos inundados de amor.

O comboio, àquela hora matinal, não estava muito cheio e Allen insistiu para que viajassem ao menos em segunda classe. Josui notara, mas fingia não perceber, os olhares curiosos dos passageiros, admirados de ver uma japonesa de boa família ao lado de um americano. Nada se podia fazer contra isso, mas ninguém aprovava. As mulheres olhavam-na altaneiras e os homens, com severidade. Ela procurava ignorar o facto e, falando inglês límpido e fluente, explicava com rapidez a Allen todos os lugares, à medida que o comboio passava.

- Nara foi a primeira capital permanente do Japão - disse em voz clara e um tanto alta. - No princípio não tivemos uma capital fixa. Cada soberano a estabelecia no lugar onde residia. No primeiro século, porém, Nara foi escolhida para capital, e continuou assim durante sete reinados. Mais tarde foi escolhida Nagaoka, também situada perto de Kyoto.

- Que veremos em Nara? - perguntou Allen, percebendo que a jovem prestava esses esclarecimentos tanto em benefício dos outros como dele.

- O que quiser - respondeu. - Lá existem lojas, palácios, templos, santuários, o grande Buda, o Parque Imperial... - O parque - disse ele, prontamente. - É grande? - Tem mais de mil e duzentos hectares. - Então o parque.

Ela continuou a falar, prudentemente afastada dele, até que o apito agudo do comboio indicou a chegada a Nara. Desceram e, ainda bastante formal, ela contratou jinriquixás, com que foram até ao parque. Era necessário que algum tempo se passasse para apagar da memória a desagradável lembrança dos olhares acusadores dos passageiros. No parque ficaram a passear durante uma hora. Quando, porém, chegaram a um lugar ermo, ele não resistiu mais ao desejo. Caminhavam por uma passagem estreita e Allen ia à frente. De súbito voltou-se e tomou-a nos braços.

Agora Josui não tinha já quaisquer dúvidas em entregar-se ao beijo. Beijar já não lhe era estranho. Era alguma coisa conhecida, de uma doçura imensa, e ela ansiava pela sua repetição. Era ainda uma experiência, uma consumação em si mesmo.

Para ele, todavia, o beijo era mera introdução, a pergunta feita por vezes até mesmo a uma estranha, um convite que conduzia a novas explorações. Beijou-a repetidamente, atraindo-a cada vez mais a si, com maior intimidade, envolvendo-lhe a cintura com um braço e com o outro segurando-lhe o queixo. Depois, tendo chegado ao fim dos beijos e impelido de maneira incontrolável ao que devia seguir-se então, Allen levantou-a nos braços e deitou-a sobre o musgo debaixo dos pinheiros que lançavam sombra sobre eles. Deixou-se cair junto a ela, as mãos trémulas, audaciosas.

Imediatamente Josui compreendeu o motivo daquele movimento brusco. Levantou as mãos e afastou-lhe o rosto, com força.

- Pare! -murmurou. - Assim não, Allen Kennedy! Não!

O tom de censura da sua voz teve efeito irresistível.

A consciência do rapaz, sensibilizada por uma infância longa e feliz na grande casa branca da Virgínia, despertou contra a sua vontade. O enrijecimento dos anos de guerra não era profundo. Tentara cultivar um certo cinismo inexperiente dos jovens de hoje, que são obrigados a enfrentar a vida e a morte

a um só tempo. Mas o seu cinismo não passava de um tênue verniz e os anos tinham sido poucos para solidificá-lo. O desejo esmoreceu ao som daquela voz cheia de tristeza; escondeu o rosto no peito de Josui e ficou quieto.

Ela permaneceu imóvel durante alguns minutos, deixando a cabeça de Allen pesar-lhe sobre o colo. Depois afastou-se brandamente e, como no dia anterior, ficou sentada enquanto ele continuava deitado de costas, olhando para a copa das árvores. Foi ela quem começou a falar, resolutamente.

- Não sei bem o que sou, se mais japonesa ou mais americana. Penso que sou, acima de tudo, a filha de meu pai. Sou uma Sakai. Nós não somos gente comum. Somos algo melhor. E preciso que você e eu examinemos quanto nos amamos. Precisamos decidir se devemos dizer-nos adeus, ou...

Não pôde prosseguir. Não suportava a ideia do que seria dela se ele respondesse: "Vamos dizer-nos adeus." Tinha de pensar no pai. Devia lembrar-se da sua fisionomia boa, severa, e tirar forças para si do orgulho dos Sakai. A aceitar a ignomínia de um campo de concentração, seu pai preferia o regresso à pátria.

- Precisamos decidir tudo hoje? - perguntou Allen. Ela inclinou a cabeça enèrgicamente. - Precisamos!

- Porquê?

Josui hesitou e depois disse com firmeza:

- Porque cada vez que estamos a sós você me agride. Ele ficou chocado com a sua franqueza. - Oh, Josui!

- E não é_ uma agressão? - perguntou, voltando para ele os olhos grandes, brilhantes.

- Suponho que sim, já que quer expressar-se com tanta clareza - concordou° ele, relutante.

- Também não quero desculpar-me a mim mesma - disse ela vivamente. - Se concordo em ficar a sós consigo, cabe-me aceitar a responsabilidade.

- Que palavras difíceis lhe ensinaram na Califórnia!

- Não aprendi isto na Califórnia. Foi meu pai quem me ensinou, aqui no Japão. - Um pai rigoroso? - Talvez.

Como ele não respondesse, acrescentou:

-Talvez isso seja muito bom... para uma rapariga.

Josui passou os braços em redor dos joelhos e baixou a cabeça. A sua nuca era cor de marfim pálido. Alguns fios de cabelo liso e macio se tinham desprendido do rolo e esvoaçavam, soltos, no ar impregnado do aroma dos pinheiros. A cabeça assentava graciosamente sobre o pescoço. Os braços eram brancos e redondos; as mangas da blusa só os encobriam até aos cotovelos. As mãos eram também bonitas. A maioria das japonesas não tinha mãos e pés bem formados. Usava meias brancas e sandálias, e Allen não lhe pôde ver os pés.

- Tire os sapatos - disse ele, repentinamente. - Deixe-me ver os seus pés. São tão bonitos como as mãos?

Para grande surpresa sua, ela enrubesceu. Levantou-se de súbito, afastou-se dele alguns passos.

-Agora já não posso ficar aqui consigo- disse, quase com violência. - Não ficarei! Você ofende-me muito fàcilmente, Allen Kennedy! Mas eu ao menos tenho respeito a mim mesma. Agora sei o que sente. Amor! O que é isso? Não quero um amor assim.

Começou a caminhar, afastando-se dele. Allen ergueu-se de um pulo, correu para ela e pegou-lhe a mão.

- Josui, que foi que eu disse? Porque se ofendeu, querida? Existe alguma coisa que eu não entenda? - Segurou-a pelos ombros. - Josui, responda-me.

Ela fulminou-o com olhos chamejantes, as faces rubras, os lábios trémulos de cólera.

- Você não me dá uma resposta, Allen Kennedy. Eu perguntei-lhe: "Que faremos?" E você responde: "Mostre-me os seus..."

Interrompeu-se, voltou a cabeça para o lado e as lágrimas encheram-lhe os olhos.

Allen sentiu-se comovido e obrigado a usar de sinceridade. - Querida, se não respondi é porque não sei o que responder.

- Se não sabe, então não devia... não devia ter-me tocado.

Ele baixou as mãos.

-Tem razão.

Ela prosseguiu:

- Se não sabe, então, por favor, volte hoje ainda para Tóquio e de lá para a América, para sua casa. Esqueça, por favor, que me viu e deixe-me esquecer...

- Você pode, Josui?

-Sim, agora ainda posso. Mais tarde... não sei.

Ele ficou a olhar para aquela figurinha esbelta e desconsolada. Como permanecesse calado, ela disse baixinho: - Quero ir para casa.

Tomaram o primeiro comboio para Kyoto e na estação separaram-se, porque ele insistiu que assim fosse. - Nunca a esquecerei, Josui.

- Esquecerá, sim.

- E se não conseguir... posso escrever-lhe? - Você não escreverá.

Deixou-o sem lhe dizer adeus, olhando-o apenas longamente e de maneira insondável. Depois, embora ele ficasse parado a segui-la com o olhar até perdê-la de vista entre a multidão nas ruas, não se voltou uma só vez.

Quanto a ele, dirigiu-se para o hotel, arrumou as malas e tomou o primeiro comboio para Tóquio. Não queria mais saber de licenças. Quanto mais cedo voltasse ao trabalho, tanto melhor.

- Kobori está melhor- disse o Dr. Sakai. - Tem boa saúde e reagiu muito bem aos novos medicamentos. - Folgo em saber- disse Josui, apática.

O Dr. Sakai percebia que alguma coisa se passava com a filha, e nessa manhã consultara sua mulher a esse respeito.

- Não me disse nada - replicara a Srª Sakai. - Fica zangada comigo se lhe pergunto porque anda triste. Afirma que não está.

- Ela própria não sabe o que tem- disse o Dr. Sakai, resoluto como sempre. - A sua agitação é de origem biológica. Está em idade de casar e não o percebe. Eu mesmo vou tomar conta deste assunto.

Em qualquer outra ocasião a Srª Sakai ter-lhe-ia pedido que tivesse paciência, mas nessa manhã, limitou-se a responder:

- Tens razão, sem dúvida.

- Kobori - disse o Dr. Sakai mais tarde, em continuação da sua conversa com Josui - pode ser chamado um modelo de rapaz japonés. No entanto é moderno. Nunca vai a extremos. Respeita o pai, mas irá bem mais longe que ele. Um dia Kobori será um homem muito importante. Queria que tivesses visto como tem o organismo sadio. Quando fiz a incisão, o sangue era de um vermelho muito claro e puro.

- Não obstante, o seu apêndice estava infeccionado - lembrou Josui, com certa crueldade.

O Dr. Sakai ficou indignado.

- O apêndice é um remanescente do homem primitivo, e já não exerce qualquer função. Por isso não se pode culpar Kobori. De agora em diante não terá mais contratempos.

Ela queria desviar o pensamento de Kobori, mas um instinto que a impelia a castigar-se, e até a correr ao encontro do seu destino, fez com que prosseguisse.

- Pai, porque não diz o que pensa? - perguntou arrojadamente. - Quer que eu case com Kobori. Porque não o diz?

O Dr. Sakai perdeu completamente a calma.

- És uma filha teimosa e desobediente! - gritou. - Sabes muito bem porque não ouso falar-te com franqueza. Tu és igual às raparigas americanas. Quando souberes das minhas esperanças, tratarás de destruí-las!

Ficou consternado com o seu acesso de cólera e preparou-se para o contra-ataque de Josui. Tudo estava perdido, sem dúvida. Ela nunca cederia. Para surpresa sua, a filha respondeu com meiguice.

- Começo a modificar-me, pai. Tenho pensado muito e acho que seria melhor casar-me com um japonês, como tantas vezes me aconselhou. Em diversas ocasiões pensei que gostaria de voltar à América, mas agora nunca mais irei. O meu lugar é aqui. Assim, tanto faz ser Kobori como outro qualquer. Como o pai diz, ele é bom; e eu quero, acima de tudo, um homem bom.

Falava de modo tão ponderado, quase meditativo, e até triste, que o pai mal pôde acreditar que era ela quem falava. Já sem cólera, gaguejou:

- Josui, minha filha... que bom-senso... sinto-me surpreendido. Devo... queres que fale com o pai de Kobori? Diz-me, que queres que faça por ti?

Ela olhou-o com olhos grandes e tristes. - O que achar melhor, pai.

O Dr. Sakai ficou deveras alarmado.

-Tu não estás doente, minha filha?

- Não, pai. Sinto-me muito bem, melhor que nunca.

Depois, vendo-o apreensivo, tentou sorrir. - Até que enfim estou a sentir-me adulta. Sabe que tenho vinte anos?

As suas palavras alegraram-no, embora não lhe tivessem restituído a completa tranquilidade.

- Podes ter a certeza de que não quero apressar-te - disse solenemente. - Também não permitirei nem mesmo a Kobori que te apresse.

- Obrigada, pai.

Fez uma leve mesura e saiu para o jardim, com a intenção de dar uma nova disposição às pedras dentro do lago. Escolheu algumas de forma redonda, lisas e lavradas pela água. Nunca apanhava mais do que umas vinte e atirava sempre fora as menos bonitas. Sob as águas claras as cores intensificavam-se. Pedras que pareciam opacas à luz do dia muitas vezes adquiriam brilho sob a água. Josui movia-as tão delicadamente, que mal agitava a sua imagem reflectida no lago.

Allen nunca lhe escrevera. Já passava um mês desde o seu último encontro e não chegara nenhuma carta dele. Josui sentia-se satisfeita por não saber o seu endereço e, por isso mesmo, não poder escrever-lhe. Durante noites de insónia tinha havido horas em que, num impulso de fraqueza e desespero, seria capaz de lhe escrever implorando que voltasse ou até mesmo que a deixasse ir ao seu encontro. Mas se lhe tivesse escrito e ele tivesse respondido, mais cedo ou mais tarde isso seria o fim de tudo entre eles, pois, ainda que transcorressem muitos anos, um dia o seu orgulho, agora prostrado, se levantaria novamente. Dessa forma, o germe da destruição já estaria alojado nas raízes daquele amor.

Gradualmente, através das semanas de espera, das muitas noites de vigília vencidas uma após outra, o seu futuro se delineara de maneira nítida, um futuro simples, o caminho inevitável de todas as mulheres japonesas: casamento, marido, filhos, lar. Tudo o que se dizia a respeito da mulher em nada alterava nem podia alterar o inevitável. Assim, como dissera ao pai, porque não Kobori? Aos poucos ia-se acostumando a esse pensamento. Lembrava-se da sua fisionomia pálida, do rosto um tanto largo, as feições um pouco pesadas, mas de expressão amável e bondosa. E recordava também nitidamente a sua voz agradável, lenta, pronunciando as palavras de forma um pouco indistinta, com um leve gaguejar. Falava mal o inglês. "Sou uma nulidade em questão de línguas", confessara-lhe um dia, mas isto não parecia preocupá-lo. Pelo menos não era repelente. E não era agressivo. Não se imporia a ela. Com o tempo, talvez conseguisse amá-lo o suficiente. Poderia ter-lhe respeito, ao menos. O que desejava, acima de tudo, era apenas bondade, e essa ele possuía-a em grau mais elevado que qualquer homem do seu conhecimento.

Josui esfregou uma pedra redonda, esverdeada, nas palmas das mãos e depois deixou-a cair na água. O verde tornou-se claro, uma cor suave e agradável, sem brilho ou esplendor excessivo.

O Verão em Tóquio era muito quente. As ruas modernas de asfalto desprendiam o intenso calor armazenado e, de vez em quando, a central eléctrica falhava e os ventiladores paravam, quase sempre nas horas de maior calor do dia ou da noite. A única maneira de suportar o insuportável era afundar-se no trabalho.

- Tenente Kennedy!

À porta estava um soldado, trazendo a correspondência. - Cartas de casa, tenente.

- Ponha-as em cima daquela mesinha. Preciso terminar este relatório primeiro.

- Sim, senhor.

O soldado fez a continência, pousou com cuidado um maço de dez ou doze cartas sobre a mesa e retirou-se.

A família! Pai, mãe, tias, tios, primos, todos lhe escreviam devotadamente, considerando-o um mártir por ter de permanecer num país tão longínquo e pagão. "Querido, quando te deixarão voltar para casa?" Todas as cartas de sua mãe começavam assim, nesse tom queixoso.

Continuou a bater, ràpidamente, no teclado da máquina de escrever portátil. Tenente era uma categoria muito cómoda que abrangia uma série de obrigações, especialmente aquelas das quais os oficiais superiores se queriam ver livres, ou para que não tinham competência. Conhecera até generais que não sabiam escrever -ou mesmo falar correctamente. Quando descobriam que ele era graduado pela Universidade, encarregavam-no do serviço exaustivo de escrita. Ele, por sua vez, sentia uma satisfação muito especial em transformar relatórios insípidos como aquele que estava a elaborar, e que se relacionava com certas organizações civis dos japoneses durante a ocupação, em pequenas obras de arte estilística. Naturalmente, os que chegassem a ler tal relatório não teriam capacidade para apreciá-lo! No entanto, percebeu que começava a tomar um novo interesse pelo que escrevia agora sobre os japoneses, e isso, reconhecia-o, era devido a Josui. Por intermédio dela, entrara numa espécie de contacto mais real com esse povo, embora Josui continuasse para ele uma pessoa à parte, a mais bela rapariga que jamais vira. Não só era bonita como possuía coragem. Amara-o, fora-lhe difícil resistir, e mesmo assim tinha-se mostrado forte.

Como sempre quando a lembrança de Josui lhe voltava ao espírito, e isso acontecia umas vinte vezes durante o dia e inúmeras à noite, ele avaliava todas as possibilidades. Supondo que o fim tivesse sido diferente, supondo que a tivesse pedido em casamento, como teria feito, sem vacilar, se se tratasse de uma americana a quem amasse... e depois? Perdeu-se num labirinto de pensamentos, com os dedos imóveis sobre o teclado. Poderia viver ali no Japão. Estaria disposto a passar a vida no Japão? Ou, quem sabe, iriam morar na América? Lá havia muitos lugares onde viver feliz com ela e os filhos... ah, os filhos! Seria preciso terem filhos? Certamente ela os quereria e, para ser sincero, ele também. Sempre imaginara casar, um dia, e ter filhos, não um filho único, criado cheio de mimos como ele, naquela casa imensa que devia conter um grupo grande de crianças. Tinha a certeza de que os seus filhos iriam ser criados naquela casa. Não fosse a guerra, já estaria casado e com certeza seria muito feliz, pois nunca teria visto Josui. Talvez tivesse casado com Cynthia Levering, da qual sua mãe passava o tempo a dizer que era como uma filha para ela, "uma filha muito querida". Pronunciava essa frase com uma ênfase especial quando ele estava perto.

- Não procure impingir-me Cynthia com tanta insistência, mãe - dissera, trocista. - Talvez eu queira desposá-la um dia, por minha própria vontade.

-Ora, cala a boca! - respondera-lhe a mãe com a sua voz suave e alegre. - Depois que cresceste tornaste-te um rapazinho bastante malcriado.

Na correspondência, provàvelmente, haveria uma carta de Cynthia. Ela não escrevia com frequência, só o suficiente, e geralmente eram cartas longas e agradáveis, cheias de pequenas novidades do lugar. Cynthia morava não muito longe de sua casa, na mesma rua larga e quieta. Conhecia-a desde que nascera. Três gerações atrás, as suas famílias haviam sido ligadas por casamento.

- Há quanto tempo foi isso? - indagou um dia à mãe, sem qualquer intenção.

- Bastante tempo para não teres receios de espécie alguma fora a resposta rápida e significativa.

Estendeu o braço comprido, pegou nas cartas e passou os olhos pelos sobrescritos. Uma era da mãe, uma do ministro da igreja episcopal onde sua família ia todos os domingos havia gerações, duas não identificou e... sim, um envelope grande de Cynthia. Não havia nada de pequeno em Cynthia, a não ser a cintura graciosa. Era alta e bem proporcionada, boa, generosa e compreensiva. Um dia, talvez se apaixonasse por ela. De momento, porém, e por absurdo que parecesse, desejava poder falar-lhe de Josui.

- Aposto que ela compreenderia - murmurou.

Cortou o envelope de papel creme, grosso de mais para ser rasgado. Dentro havia três folhas duplas, dobradas e cobertas com a letra negro-azulada, grande mas regular, de Cynthia.

"Allen querido". (As cartas dela começavam sempre assim). Correspondiam-se irregularmente havia anos, desde os tempos em que ela terminava os estudos no internato e ele na Universidade. "Allen querido, jamais houve uma Primavera como esta. Talvez eu nunca tenha observado realmente a Primavera. Este ano parece que vou ter tempo."

Continuou a ler com vagar, revendo a cidade natal, as ruas familiares, as fisionomias conhecidas dos vizinhos e parentes. No entanto, estavam todos tão longe dele, ali sentado, sòzinho, em Tóquio, como se vivessem num outro mundo. Era isso mesmo. Viviam num outro mundo e nunca poderiam entender aquele cuja capital era Tóquio, o Japão. Por mais que explicasse, por mais que fizesse ou deixasse de fazer, não entenderiam. Não havia possibilidade de fazê-los compreender. Só lhe restaria uma escolha, a do mundo em que desejaria viver - e com quem.

Dobrou cuidadosamente as cartas, colocando cada qual no respectivo envelope, depois ficou sentado com o olhar fixo na máquina de escrever.

Sòmente seu pai não escrevera. Fazia-o raramente, como raramente falava. Que se lembrasse, Allen nunca o tinha ouvido conversar por muito tempo, dizer alguma coisa substancial ou que, pelo menos, ficasse retida na memória. Durante toda uma refeição, muitas vezes não dizia mais que "por favor, passa-me a manteiga, filho" - ou, mais expansivamente - "os biscoitos saíram hoje melhores que de costume, Doçura". Doçura era sua mãe, que na realidade se chamava Josephine, um nome que seu pai declarava ser inaceitável por qualquer homem, excepto um Napoleão da França.

-Ora essa, Sr. Kennedy! - respondia a mãe, com vivacidade. - Como se os nossos biscoitos não fossem sempre os melhores!

- Por isso mesmo, Doçura, é que insisto em dizer que estes estão ainda melhores.

Quando, às vezes, era censurado pelo seu indolente silêncio, esboçava um sorriso amigável, declarando que Doçura falava por dois, além de que a conversação dela era muito

mais interessante que a sua.

Allen não pretendia compreender o pai, e jamais lhe ocorrera que talvez devesse ter-se esforçado para isso. Neste momento desejava tê-lo conhecido melhor a fim de poder escrever-lhe sobre Josui, perguntar-lhe...

O quê?

Só havia uma pergunta a fazer, e essa devia fazê-la a si mesmo. Amava Josui suficientemente para casar com ela? Aquilo que sentia, aquele anseio inextinguível a persegui-lo dia e noite, seria o verdadeiro amor? Nunca se apaixonara. Estaria apaixonado agora?

Colocou as cartas na gaveta da escrivaninha. Depois foi tomar um banho e vestir-se cuidadosamente. Recebera um convite para jantar com o coronel e sua esposa, um estimável casal que evidentemente não sabia o que fazer com os rapazes joviais e temerários que serviam sob o comando do coronel. "Não levam nada a sério", queixara-se a esposa do comandante, a última vez que Allen jantara em casa deles. "Portam-se como se vivessem nos dias de Madame Butterfly."

Allen sabia ao que ela se referia. Ele próprio sentira qualquer coisa de semelhante, lá no Parque Imperial de Nara. Às vezes era impossível acreditar que estes japoneses fossem os mesmos homens que ainda bem pouco tempo antes tinham massacrado impiedosamente os americanos. Allen percebeu que começava a esquecer tudo aquilo, embora tivesse lutado duramente na guerra. Porém, aqueles homenzinhos cruéis, que surgiam de rojo de dentro das selvas das ilhas para atacá-los, não tinham nada em comum - pelo menos assim parecia agora - com as ladeiras verdes, dispostas em terraços, os lavradores vestidos de azul, as lindas jovens de quimono e tamancos, e certamente nada tinham em couro com Josui, a qual, na realidade, era mais americana que japonesa, em tudo menos na fisionomia e, talvez, na perfeição um tanto amaneirada com que se expressava em inglês.

Quando permitia que o nome dela subisse à tona no seu espírito, as pancadas do seu coração aceleravam-se e o seu desejo era abrir os braços como se ela estivesse ali. Pensava, com certa ansiedade, se teria a coragem de abordar o assunto com o coronel quando estivessem a sós, depois do jantar. A esposa do comandante possuía uma educação esmerada e deixava sempre os cavalheiros palestrarem uma meia hora a sós enquanto tomavam o cafèzinho, mesmo que fosse ela a única senhora presente. Quando acontecia haver mais algumas senhoras e ser ele o único homem, então aquela meia hora prolongava-se, às vezes, por mais uns quinze minutos.

Mas não teve coragem para falar com franqueza. O máximo que conseguiu, depois de uma refeição excelente, preparada pelo cozinheiro japonês e servida por um criado todo de branco, foi perguntar ao coronel, um tanto abruptamente, quantos americanos tinham casado com japonesas durante o período de ocupação. A fisionomia do coronel tornou-se tristonha.

-Suponho que temos os dados por aí. Mas prefiro até nem sabê-los. Você quer dizer os que se casaram ou só...

- Falo nos que se casaram.

- Não muitos, provàvelmente - disse o coronel, mais animado. - Quanto às uniões ilegais, quem poderá saber? Suponho que mesmo as centenas de crianças mestiças que existem por aí não serviriam de base para avaliar o que acontece na realidade. Para ser franco, não compreendo por que razão os nossos homens parecem tão... sexualizados, digamos. Isso até a mim tem causado surpresa, embora seja um oficial já de bastante idade.

- Que acontecerá às crianças? - inquiriu Allen, com excessivo interesse.

No rosto do coronel estampou-se uma expressão aflita.

- Não sei. Barclay, o meu ajudante, contou-me que há dias sua mulher achou uma criança escondida na casa de um vizinho. Gente respeitável, diz ele. O homem é comerciante ou coisa parecida. Barclay e a esposa tinham sido perturbados a noite inteira pelo choro de uma criança e a Srª Barclay, na manhã seguinte, foi ver o que se passava. O bebé fora encerrado num pequeno quartinho pela avó, que se envergonhava dele.

- Que fez Barclay?

- Creio que informou do caso um orfanato católico, que depois tomou conta do pequeno. A família ficou contentíssima, até a mãe, que é uma jovem bonita. A criança tinha um aspecto esquisito, disse Barclay. Uma mistura abominável, na verdade. Não me conformo com isso, de maneira alguma, mas que se há- De fazer?

Portanto, não era possível falar em Josui. Allen demorou-se pouco tempo com o casal e bem cedo se despediu, apresentando a desculpa de ter que terminar o relatório.

Não quis pedir férias no Karuizawa, e só raramente ia a uma sessão de cinema à noite. Durante o Verão dançou algumas vezes, mas não encontrou nenhuma rapariga que o atraísse e tão-pouco pôde lembrar-se de alguma jovem na sua pátria capaz de fazê-lo sentir saudades. Embora tivesse gostado de Cynthia, nem ela poderia despertar-lhe amor agora. A vida para ele já não encerrava magia alguma.

Quando, porém, chegava a esse ponto das suas reflexões, vinha-lhe a certeza de saber onde estava a magia. Sentira-lhe a chama electrizante em companhia de Josui e assim, numa noite quente e solitária, pôs-se a recordar todos os encontros que tivera com ela. Viu-a de novo, parada sob o arco de glicínias, naquela manhã em que chegara à velha cidade e deixara vaguear os olhos indefinidamente, até se fixarem em Josui. Lembrou-se de cada uma das vezes em que a vira, especialmente da ocasião em que ela o espiara da esquina da casa. Como estava bonita naquele dia, com o seu quimono! Fora a única vez que a vira nas vestes típicas, na amplidão da sua residência tão parcamente mobilada e, não obstante, encantadora na sua simplicidade. Talvez o mundo em que ela vivia fosse melhor, um mundo de dignidade e tradições. Tinha preferido ficar nele e negar as suas elevadas imposições. Era mais que uma simples "boa menina". Mesmo ao beijá-la, obedecendo a um impulso irresistível, sentira que ela o permitia com relutância, apesar do evidente anseio que também a dominava. Coitada, pensou: sentia-se aturdida com o seu próprio amor e não sabia como fazer face à sua confusão íntima. Ele deixara-a entregue a si mesma e a sua única desculpa era que se separara dela antes que fosse tarde de mais.

Sabia que era loucura pensar assim continuamente em Josui, pois, à medida que os dias iam passando, esse hábito se arreigava mais e mais nele, sobretudo durante o continuado isolamento do Verão, quando todos os homens a quem melhor conhecia partiram, um a um, para as montanhas ou para a praia, e o próprio coronel fechou a sua casa e foi passar uma quinzena na América. Em meados de Agosto sentiu que precisava vê-la mais uma vez, para pôr-se à prova, para estar seguro de que realmente poderia esquecê-la e casar-se um dia com outra mulher. Sem dúvida ela nem era tão bonita como a recordava.

O Verão também fora quente em Kyoto, mas o Dr. Sakai não teve tempo de pensar nisso. Sem aparentar pressa, providenciou logo o noivado de Josui. Quão profundamente lamentava os anos passados na América! Agora, em vez de conhecer por instinto os hábitos referentes ao casamento no Japão, via-se obrigado a estudar velhos livros, indagar de um e outro - procurando não chamar a atenção sobre a sua ignorância - como deviam ser celebradas as bodas de sua filha com o filho de uma família rica e tradicional. Apesar das suas ocupações diárias, cada vez mais numerosas devido à sua fama de médico, sentia que ele próprio devia decidir a respeito do modelo para o novo quimono, das sedas e dos cetins bordados. Exigia a presença de Josui nessas compras, pois não desejava parecer arbitrário. Ela devia escolher o que lhe agradasse, contanto que estivesse dentro da tradição, e, em atenção à etiqueta social, também sua mãe devia estar presente. Contudo, apesar da presença de ambas, era ele quem tomava a decisão final, sempre visando a família Matsui e aquilo que sabia dos seus gostos e costumes.

Tão-pouco exigia de sua filha, declarava ele, a obediência cega do tempo dos seus ancestrais. Se Josui o desejasse, estava perfeitamente disposto a permitir que ela visse Kobori em sua casa, sem maiores formalidades. Não consentiria que fossem vistos juntos em público antes do casamento, mas Kobori podia visitá-la quando os pais estivessem ambos em casa. E assim, por diversas vezes antes do dia do casamento, que fora marcado para meados de Setembro, Kobori veio à sua casa depois de comunicar antecipadamente a visita e indagar se o dia e a hora fixados convinham à família Sakai.

O Dr. Sakai e sua esposa sempre o recebiam. A primeira vez ficaram presentes durante toda a visita. Observaram, porém, que Josui falava muito pouco. Inclinava-se levemente a tudo quanto Kobori dizia, murmurando "sim" ou "não" às suas perguntas, mas abstendo-se de qualquer observação própria.

-Seria melhor deixá-los a sós? - perguntou o Dr. Sakai à esposa naquela noite, quando estavam nos seus aposentos.

-Afinal de contas, morámos tantos anos na Américasugeriu a Srª Sakai.

-Agora estamos no Japão-retorquiu o Dr. Sakai, levemente irritado. Nada devia ser como fora na Califórnia. Inúmeras vezes lembrava a amigos e à família os campos de concentração para japoneses na América; continuava a fazê-lo, ainda que esses campos já não existissem havia muito tempo e os japoneses se tivessem espalhado, sem grande dificuldade, por todos os Estados Unidos.

- Josui lembra-se da América- disse a Srª Sakai. - Talvez lhe pareça estranho não poder conversar a sós com o homem que vai desposar.

Na próxima visita, portanto, depois de alguns minutos de palestra sobre o tempo e a perspectiva de uma bela floração de crisântemos nesse ano, sempre evitando qualquer referência à ocupação, o Dr. Sakai fez um sinal à esposa e ambos se retiraram. Depois que saíram, Kobori sorriu e voltou-se para Josui com amável alegria.

-Seu pai é tão extraordinário! - disse com a sua voz suave de baixo, uma voz que, se a elevasse poderia ser muito possante. Mas Kobori nunca a elevava.

- Por que razão o considera extraordinário? - perguntou Josui.

- Ele é mais japonês do que qualquer um de nós, e apesar disso não sabe que há nele algo que nunca será japonês, por mais que se esforce. A América deixou-o marcado.

- Penso que também me deixou marcada a mim - observou Josui.

-Sim, a si também - concordou Kobori - mas eu gosto dos americanos.

- Até dos que estão aqui com a ocupação? - perguntou Josui em tom de dúvida.

- Até deles - disse Kobori. - Nem sempre me agrada o que fazem, e muitas vezes me causam dó. A tarefa que têm a cumprir é tão vasta.

- Qual é a tarefa?

Kobori riu.

-É transformar-nos em americanos. Coisa impossível!

- Ainda assim estão a transformar-nos - observou Josui.

- Alguns de nós - concordou Kobori.

- Acha que, depois de eles partirem, tudo será novamente como era antes? - indagou Josui.

A princípio sê-lo-á até de maneira exagerada - respondeu Kobori. - Tornar-nos-emos intensamente japoneses, procurando encontrar-nos, antes de mais nada, a nós mesmos, ao nosso antigo espírito. Depois, passada uma geração ou duas, talvez mudemos de novo. O que rejeitámos, começaremos a examinar e a aceitar em parte. Serão precisos cinquenta anos para sabermos o que devemos ser. Mas até lá quem sabe o que será o próprio mundo?

Josui ficou a ouvir. Kobori falava bem, meditativamente, sem a arrogância do Dr. Sakai.

- Não sente medo? - perguntou ela.

- Porque havia de sentir? -replicou ele. - Pertenço a uma família antiga, conservadora, como sabe. Viveremos muito bem no período conservador que está para vir. O que me causa piedade são os milhares de crianças actualmente abrigadas nos orfanatos, filhas de pais americanos e de mães japonesas, e portanto órfãs.

Era estranho que ela nunca tivesse pensado naquelas crianças! Se Allen Kennedy tivesse desejado casar com ela, também teriam tido filhos assim. Teria ele - e ela - abandonado os filhos? Não, era impossível que o fizessem!

- Pobres criancinhas! - disse Kobori na sua voz profunda, cheia de piedade. - Seria melhor para elas que não tivessem nascido.

Repentinamente Josui experimentou o desejo de poder contar tudo a Kobori. Ele era tão amável! Isso fazia parte da sua bondade. Podia imaginá-lo escutando penalizado, talvez até compreendendo como viera a acontecer aquilo. Não deveria contar-lhe, uma vez que ia ser sua esposa? Olhou-o, sem saber que havia uma expressão interrogativa nos seus olhos.

Ele sorriu.

- E agora, que há? Está com vontade de perguntar alguma coisa.

- como sabe? - Josui ficou surpreendida.

- O seu rosto é como um livro aberto. Quase consigo ler o que está a pensar.

- Estou a pensar?

Disse isso para ganhar tempo, não sabendo se seria aquele o momento adequado, mas a verdade era que devia contar-lhe para que não houvesse segredos entre eles.

- Está a perguntar a si mesma: Que espécie de homem é este com quem estou comprometida? - sugeriu Kobori.

- Não é o que todas as mulheres perguntam? - tornou ela, esquivando-se desse modo a uma resposta.

-Sim, estou certo de que é.

Estavam ajoelhados à maneira japonesa. Ele colocara-se a uma certa distância dela, o que a fazia sentir-se à vontade. Kobori jamais se permitiria tocá-la antes do casamento. No entanto dissera a seu pai que achava aconselhável conhecerem-se melhor através da conversação.

Kobori reflectiu um momento. Depois disse:

- Creio não ser um indivíduo muito complexo. Os anos durante os quais fui obrigado a ser soldado fizeram de mim exactamente o contrário de tudo quanto me ensinaram a ser. Agora já não posso matar. Não espere que eu elimine nem sequer um rato. Deixo-os correr por aí. Ouvi durante anos o berreiro rude dos oficiais que, às vezes, sinto que não gostaria de elevar a voz acima de um murmúrio, pelo resto da minha vida. Vi homens espancados e crivados de pontapés por terem cometido pequenas faltas; assim, peço-lhe, nunca espere que eu bata numa criança. Vi tanta crueldade que, para mim, a única maneira de suportar a vida é esforçar-me por ser bondoso. Faço-o para o meu próprio bem. Pode ser que considerem isso uma fraqueza. Mas a crueldade é uma doença contagiosa que fàcilmente se transmite de um para outro. Sei que eu próprio consigo resistir à sua influência maléfica, e tenho a esperança de que haja outros iguais a mim e de que um dia desapareça a crueldade humana.

Josui nunca o ouvira falar por tanto tempo ou tão sériamente e ficou-lhe grata. Ele tentava, dessa forma, revelar-lhe o seu carácter, como tinha por obrigação. Mas, sem o saber, respondera à sua pergunta. Por bondade, se ela lhe contasse do seu amor por outro homem, ele poderia insistir para que cedesse aos seus sentimentos, ou, pelo menos, proporia afastar-se até que ela esquecesse ou se modificasse. Certamente ela esqueceria Allen, e sem dúvida podia modificar-se. Mas não queria esperar. Queria casar-se, pois o casamento ocuparia o seu espírito, ou pelo menos, o seu tempo.

- Agradeço-lhe por ter-me falado como o fez- disse ela. Eu respeito-o, Kobori Matsui. Acho que a bondade é a maior das qualidades, no homem ou na mulher. Também eu, segundo espero, sou bondosa.

Levantou os olhos para ele, sentindo como que o despontar da afeição. Durante centenas de anos os casamentos no Japão tinham-se realizado sem amor. Respeito e afeição bastavam. Assim, pelo menos, pensavam os seus antepassados.

Ele respondeu-lhe com uma ligeira inclinação. Era o fim da segunda visita.

O calor, nesse mês de Agosto, continuou tão forte que pessoas velhas, na cidade, o consideravam como resultado das bombas atómicas lançadas pelos americanos sobre Hiroshima e Nagasaki. Na noite de dezasseis de Agosto, quando no topo do Monte Daimonjii, acima de Kyoto, se acendem fogueiras,

o calor era tão intenso que as pessoas encarregadas de guardar o fogo nem sentiam os ventos frescos que normalmente correm nas colinas.

O Dr. Sakai estava extenuado. O hospital, de um dia para outro, ficara cheio de uma multidão de doentes chegados das duas cidades sobre as quais haviam caído as bombas atómicas; sofriam de antigos ferimentos que não saravam. A fama do médico fora-se espalhando de boca em boca, e os incuráveis tinham ido procurá-lo em última e desesperada tentativa. Fizera um esforço demasiado grande por salvar-lhes as vidas, e a esse zelo acrescia uma cólera cada vez maior contra os americanos.

Com a intensidade do calor ele próprio adoeceu durante vários dias, foi obrigado a permanecer em casa. Era, como sabia muito bem, um péssimo doente e, apesar de lutar contra a irritabilidade e ter conhecimento de que deveria estar de cama, só parecia obter a paz através da meditação e da alegria que lhe proporcionava o seu jardim. Mas até o jardim sofrera os efeitos da canícula. Em vez de contemplar a sua beleza, o Dr. Sakai via a cascata minguar com o racionamento da água, as samambaias murchas e amareladas, os peixinhos dourados morrendo nas águas aquecidas pelo sol.

Num dia, em que não se encontrava em boa disposição de ânimo ouviu o toque insistente da sineta de bronze do portão. Evidentemente o porteiro adormecera. Embora longe de sentir-se bem, foi caminhando a passos largos até ao portão e abriu-o. Deparou-se-lhe um americano alto, com uniforme de oficial.

O         Dr. Sakai fixou os olhos nele.

- Que deseja?

- É o Dr. Sakai? - perguntou o rapaz. - Sim, sou.

Carregou o sobrecenho para desencorajar o americano.

Aqueles homens iriam meter-se até mesmo nas residências particulares dos cidadãos?

- Sou Allen Kennedy - disse o estranho.

Aquele nome estava gravado nitidamente na memória do Dr. Sakai. Tentara esquecê-lo, mas em vão. - Não o conheço - disse obstinadamente.

O         homem sorriu.

- Não, mas eu conheci sua filha. -Minha filha não tem tempo.

- Posso então conversar com o senhor, Dr. Sakai?

- Dr. Sakai não respondeu logo. Ràpidamente estudou a possibilidade de uma recusa. Não era fácil, certamente, apresentar uma desculpa a um oficial.

- Não estou bem de saúde- disse. - De contrário, estaria no hospital. Prefiro não ser importunado.

Os dois homens olharam fixamente um para o outro, estudando-se.

- Voltarei outra vez - disse Allen.

- Não é preciso - respondeu o Dr. Sakai em tom altaneiro.

- Acho que é - retrucou Allen. - Na verdade insisto em dizer que é.

Horrorizou-se ao sentir dentro de si uma verdadeira cólera contra aquela fisionomia atraente, mas fria, de japonês. Que direito tinha de proibir-lhe a entrada em sua casa? Era o lar de Josui. Não esquecia que se encontrava no Japão, cujo povo estava agora submetido.

- O senhor não pode insistir - disse o Dr. Sakai, com imensa dignidade.

- Insisto em ver sua filha-redarguiu Allen Kennedy.

O génio irascível do Dr. Sakai manifestou-se, rompendo as cadeias do contrôle. Ele percebeu-o, reconhecendo nisso o resultado de ter vivido muito tempo na América, onde não recebera os necessários ensinamentos de autodisciplina, na infância ou nas escolas públicas. Mas era tarde de mais. Impossível conter a crescente indignação, não só contra o americano, mas também contra si mesmo por não poder ser integralmente japonês.

- Não admito americanos em minha casa - gritou, tentando fechar o portão com violência.

Em Allen também se verificava um conflito íntimo. Apesar do desagrado que sentia em pertencer à raça dos vencedores, os efeitos da situação tinham-se insinuado no seu espírito. Não se permitiu lembrar ao Dr. Sakai os seus direitos, mas encostou o ombro contra o portão e, para vergonha dos dois - e ambos o sentiam -lutaram, o japonês para fechar o portão, o americano para abri-lo.

A parte da casa mais próximo ao portão era a cozinha. Yumi dormia, pacificamente, depois de ter lavado os pratos do jantar e varrido o chão. Acordou ouvindo vozes altas que falavam o idioma estrangeiro dos vencedores e correu para a porta. Aí viu, com horror, que seu amo lutava com um jovem e forte oficial americano, empenhando-se por manter o portão fechado.

Yumi irrompeu como um furacão naquele silêncio pacífico.

- Oh, senhora, o patrão está a lutar com um oficial americano!

A Srª Sakai ergueu-se e saiu apressadamente do aposento, seguida por Yumi.

Josui não se moveu. Compreendeu imediatamente que Allen voltara. Que infelicidade a sua presença nesse momento! Porque viera a sua casa? Porque não lhe escrevera? Ela não podia ficar ali, porém. Qualquer que fosse a batalha, devia tomar parte, ou estabelecer a paz.

E foi assim que Allen Kennedy viu a sua amada, a jovem esbelta, aproximar-se envergando um quimono floreado azul e branco, mais linda do que a lembrança que dela guardava. O seu rosto estava pálido e suplicante, e, como ele já se encontrava do lado de dentro do portão, foi-lhe ao encontro.

O Dr. Sakai lá estava, exausto, comprimindo fortemente os lábios. Na sua frente, como guardas, encontravam-se a Srª Sakai e Yumi. Estava derrotado. Viu a filha hesitar e, de repente, os braços do americano envolverem-na. Ela resistia, é verdade, mas adivinhou que era só por causa da presença dele, da mãe e da criada. Se estivesse sòzinha, provàvelmente não teria havido resistência alguma. Perdera-a, quanto a isso não tinha dúvidas. Restava, agora, encontrar uma estratégia.

Voltou-se para a sua fiel esposa.

-Traz a tua filha à minha presença -ordenou, e, com renovada dignidade, dirigiu-se para o interior da casa.

Antes de tudo, necessitava de alguns minutos a sós. Estava decidido a derrotar ainda aquele americano. Não seria difícil. Perguntaria, simplesmente, quais eram as verdadeiras intenções do visitante. Não acreditava em pretensões honestas da sua parte. Os americanos não casavam com japonesas. Sabia disso, tinha provas. Se necessário, apresentá-las-ia. No entanto, como poderia fazê-lo na presença da esposa? Gemeu e sentou-se sobre uma almofada baixa, com as pernas dobradas por baixo do corpo, na posição que levara tanto tempo a aprender. Asim estava quando eles entraram. O rapaz mostrou-se, agora, bastante cortês.

- Dr. Sakai, lamento muito o ocorrido. Não sei mesmo o que se passou comigo. Não tinha nenhum direito de me impor ao senhor.

O Dr. Sakai não respondeu. Apontou para uma almofada destinada às visitas, e observou com certo prazer que o rapaz tinha dificuldade em sentar-se adequadamente sobre ela. Permitiu a Josui ficar de pé e franziu o sobrolho para Yumi, fazendo com que a criada saísse. A Srª Sakai ajoelhou-se discretamente atrás do marido.

De súbito o rapaz levantou-se outra vez. As pernas, provavelmente... mas não, era para oferecer um lugar a Josui. - Onde vai sentar-se? - perguntou em voz baixa.

- Por favor, não pense em mim - implorou ela, angustiada.

- Penso, sim-replicou ele.

-Senta-te! -trovejou o Dr. Sakai para a filha.

Ela ajoelhou junto à mãe e Allen sentou-se novamente, com dificuldade, na almofada.

O Dr. Sakai ficou à espera. O outro que tomasse a iniciativa. Não fora ele quem provocara aquela situação. Tinham-no ofendido. Ao mesmo tempo, pretendia ser ponderado, paciente, porém inexorável, uma vez que o assunto fosse abordado.

- Pai - começou Josui, com voz tímida.

Imediatamente ele lhe lançou um olhar tão feroz, que ela se calou.

O americano veio logo em sua defesa.

- Não é a si que cabe falar, Josui, mas a mim.

Assim, Allen foi obrigado a falar. Quando chegara a Kyoto nesse dia, trazia o espírito em confusão. A sua única ideia clara era que tinha de ver Josui mais uma vez e julgar, se pudesse, quanto a amava e se suportaria uma separação definitiva. Agora sabia que isso era impossível. A decisão tinha-lhe sido imposta, em parte pela luta com o pai, mas sobretudo pela visão do rosto pálido e lívido de Josui. - Fale, então- disse o Dr. Sakai, friamente. - Gostaria

de saber porque veio aqui.

- Vim ver sua filha.

O Dr. Sakai virou-se para Josui. - Conheces este homem?

- Conhecemo-nos - disse Allen. E a seguir contou, fluentemente, a história breve do seu encontro e como, depois de poucas horas, tinham resolvido separar-se.

- Então, porque voltou? - quis saber o Dr. Sakai. - Porque sei quanto a amo - disse Allen. O Dr. Sakai ficou impiedoso.

- O senhor não pode amá-la! Ela está noiva do filho de um amigo meu, Kobori Matsui. O casamento realiza-se dentro de quinze dias.

O rapaz permaneceu imóvel por alguns instantes. Depois voltou-se para Josui.

- É verdade?

Ela inclinou a cabeça afirmativamente e começou a chorar.

- Quisera que me tivesse contado - disse Allen.

Ficou mais um momento em silêncio, pensativo. Depois falou novamente à jovem.

- Josui, sei que não posso vê-la a sós, por isso tenho de falar-lhe como se estivéssemos sòzinhos e peço-lhe que me responda da mesma maneira. Ama o homem de quem está noiva?

- Não-respondeu ela em voz baixa. - Mas é um homem muito bom.

- Josui, continue a responder com sinceridade? Ama-me? Ela levantou o rosto, inundado de lágrimas. -Oh, sim, Allen Kennedy! - Então quer casar comigo?

"O método americano", pensou o Dr. Sakai furioso; "sempre o ataque, a eterna ofensiva!"

- - Um noivado não pode ser rompido- declarou. - Não no Japão.

- Mas se os próprios noivos decidem que já não querem casar, Dr. Sakai, suponho que poderão desfazê-lo... no Japão moderno - observou Allen.

O Dr. Sakai estava abalado. Limpou a garganta e, colocando as mãos sobre os joelhos, olhou para o chão, à sua frente.

- Quero contar-lhe um facto.

- Por favor, pai - implorou Josui.

Trata-se de algo que nunca contei a ninguém - prosseguiu o Dr. Sakai, com voz embargada. - Nem sequer à minha esposa.

Por baixo das espessas sobrancelhas, lançou um olhar para aquela bondosa criatura.

- Perdoa-me, Hariko! Nunca to contei. Esqueci isso há muitos anos. Lembro-me agora sòmente por causa de nossa filha.

- Não penses em mim-murmurou a Srª Sakai.

- Josui, minha única filha- começou ele. - Tu não podes casar com um americano. Digo-te isso porque sei. Nem mesmo este jovem sabe o que eu sei. Pode ser verdade que ele te ame, ou mesmo tu o ames, mas o amor não encerra nenhuma sabedoria, apenas uma emoção. Ele passa, mas a vida continua.

Falara com tanta gravidade e tristeza que todos lhe prestaram a máxima atenção. O silêncio na casa era tão profundo que os pequenos ruídos, que habitualmente passavam despercebidos, se fizeram notar de repente. Lá fora, no jardim, uma cigarra esfregava uma na outra as asas rijas, um tordo chilreava, o rumorejar da cascata sùbitamente pareceu muito alto.

- Quando eu era novo, na América- disse o Dr. Sakai, com mágoa, amei uma jovem americana. Posso dizer que ela também me amou. Confessámo-lo um ao outro, Meus pais opuseram-se, mas eu fora educado como um americano e achava que não lhes assistia o direito de me negarem o que eu desejava de todo o coração.

A Srª" Sakai, de repente, tornou-se rígida. Juntou as mãos e ficou a olhá-las. O Dr. Sakai não voltou os olhos para ela.

-Oh, mãe! - exclamou Josui, a meia voz.

Seu pai continuou:

- Eu estava pronto a renunciar a tudo - disse em voz firme e fria. - Até mesmo a abandonar meus pais. E então aconteceu algo. O irmão dela ameaçou-me com um revólver. Foi numa noite em que eu voltava tarde da Universidade. Como podia ele saber que eu passaria por ali? Ela deve ter-lhe contado. Encostou-me o revólver ao peito e disse:

" - Escute aqui, você!" - Foi assim que . ele falou. " - Deixe minha irmã em paz! Não queremos um maldito japonês na família, entendeu?" - Nunca mais voltei a vê-la.

- Foi tudo? - perguntou Allen.

- como pode perguntar se foi tudo? - inquiriu o Dr. Sakai, com veemência. - Naquela ocasião, significava tudo para mim. E significa outra vez tudo para mim, hoje. =- Ergueu a mão sacudindo o dedo em riste. - Pois, asseguro-lhe eu, isso acontecerá novamente com a minha filha.

- A minha família não ameaça ninguém com revólveres - disse Allen, com altivez.

- Acontecerá a mesma coisa - insistiu o Dr. Sakai. Não será talvez com uma pistola. Será de outra maneira. Asseguro-lhe que jamais admitirão um "maldito japonês" na família!

- Compreendo o que o senhor sente - disse Allen, com simpatia. - Mas isso aconteceu há muito tempo, Sr. Sakai, antes de Josui nascer. As coisas, hoje, estão mudadas.

- Ah! exclamou o Dr. Sakai. - Eu leio os jornais. A diferença não é assim tanta. Muitos Estados não permitem o casamento a pessoas de cor. Diga-me uma coisa: a sua família senta-se à mesa com gente de cor?

Allen mostrou-se surpreendido:

- Não me passaria pela cabeça considerar Josui como uma pessoa de cor.

As faces de Josui tornaram-se rubras.

- Quero falar a sós com Allen Kennedy! - declarou sùbitamente. -Tudo agora está confuso. Antes de qualquer coisa devemos esclarecer o assunto entre nós dois, pai.

Levantou-se com tanta decisão que o pai não pôde impedi-la, e talvez não o tivesse feito se pudesse. Eles que fossem ao jardim e conversassem. Os jovens tinham sempre de conversar. Mas ele revelara-lhes o segredo amargo da sua existência; não poderiam esquecer-se disso.

Ficou a sós com a esposa. Ela continuava sentada, imóvel. Depois, olhando-a de soslaio, ele percebeu que as suas mãos, fortemente entrelaçadas, estavam trémulas. Estendeu a mão direita e cobriu-as.

- Abençoo o dia em que vi o teu retrato - disse. - No momento em que olhei para ele, senti que serias uma boa esposa, apesar de ser uma fotografia mal tirada, que nem de longe te mostrava tão atraente como na realidade eras. Só me trouxeste boa sorte. Que infeliz teria sido a minha vida se tivesse seguido outro caminho! Só penso ser grato àquele miserável que encostou o cano do revólver no meu peito.

Ela lutava com os soluços.

- Estou certa de que não tiveste medo dele - disse, com lealdade.

- Tive - afirmou o Dr. Sakai. - Recuei imediatamente, assegurando-lhe que em nenhuma circunstância casaria com sua irmã. Essa foi a verdade.

- Por favor, esquece - implorou a esposa. Retirou delicadamente as mãos de sob a dele e secou os olhos com a ourela da comprida manga. - Estamos no nosso país. Não é necessário recordar outras coisas.

- Tens razão - disse ele. - Mas compreendes porque eu tinha de contar o que já esquecera?

- Por favor! - volveu ela em tom de súplica.

- Se não tivesse esquecido - continuou ele obstinadamente -já te teria contado há muito tempo.

A situação exigiu mais forças do que ela estava em condições de demonstrar. Levantou-se graciosamente, apesar das suas pernas curtas, e inclinou-se diante do marido.

- Desculpa-me, por favor - disse em voz sumida - tenho alguns deveres a cumprir.

Saiu da sala em passos miúdos e, caminhando silenciosamente com as suas pantufas, foi para o aposento em que ela e Josui tinham estado a costurar. Pegou no pano de fina seda branca e começou a coser, tendo o cuidado de enxugar os olhos de cada vez que se enchiam de lágrimas, para não manchar o tecido de seda. Nunca fora bonita. Recordava ainda muito bem como era nesse tempo: uma camponesa baixota, de rosto anguloso e queimado pelo sol. Ele não a escolhera. Seus pais haviam feito a escolha, tendo em vista que ela parecia forte e obediente, como de facto era, mas ele, ferido com a perda do seu amor, pouco se importava com quem fosse ela. De repente largou a agulha. Aquelas roupas talvez nem fossem necessárias. De que adiantava, pois costurar?

Lá fora, no jardim, os dois jovens tinham-se refugiado atrás dos bambus, que formavam então grossos tufos perto do muro. Sentados lado a lado sobre um banco rústico de madeira, enlaçavam-se, serenada por um momento a sua angústia. Allen não se sentia capaz de compreender a natureza do seu amor por Josui. Sabia, somente, que a amava como nunca amara antes e que iria até ao fim para possuí-la.

- Você sabe que não poderá casar a não ser comigo - murmurou junto aos lábios dela.

-Agora sei-respondeu Josui, em voz entrecortada.

- Fugiremos - disse ele arrojadamente. - Você é americana, Josui. Vamos proceder como americanos. Não precisamos de obedecer como crianças.

- Não, não podemos fugir-tornou a jovem com firmeza. Passou os braços pela cintura dele e inclinou a cabeça para trás a fim de poder olhá-lo bem. - Você não conhece Kobori Matsui. É realmente um homem bom. Devo dizer-lhe tudo honestamente. Ele compreenderá.

Allen desejou que esse homem não fosse bom. Teria sido mais fácil tirar Josui das mãos de um japonês cabeçudo como o era seu pai.

- Não quero conhecê-lo- disse abruptamente.

- Por favor - implorou ela - deixe este assunto comigo. Preciso conversar com meus pais. Devemos obedecer a meu pai nas menores coisas, você compreende, Allen Kennedy.

- Escute, Josui, não continue a chamar-me assim. Diga apenas Allen.

- Allen - repetiu ela, e continuou como se não tivesse sido interrompida: - Naquilo que é mais importante, não podemos obedecer a meu pai. Não desejamos separar-nos. Mas quando ele compreender isso, e eu o farei compreender, então será nosso dever atendê-lo em tudo o mais.

Agora que se resolvera a casar com Josui, Allen estava disposto a fazer qualquer concessão.

-Tudo quanto quiser, querida. Mas que seja depressa! Depressa -repetiu ela, encostando a cabeça no seu peito.

Era estranho que, depois de ter tomado uma decisão tão importante, não pudessem continuar a acariciar-se mutuamente. Ficaram sentados, sérios, bem juntos um do outro. Allen brincando distraidamente com a mão de Josui, como se fora um brinquedo. Principiava a perceber a existência de imensos problemas, problemas cuja forma não era capaz de distinguir, mas que nasciam daquele encontro no silencioso jardim japonês e, atravessando o oceano, iam centralizar-se na grande casa branca da sua terra natal. Que pensaria sua família? Decidiu não lhes contar nada. Esperaria até que conhecessem Josui. Não era assunto para ser discutido. Tinham que ver aquela criatura adorável, aquela jovem terna e delicada que, apesar de toda a doçura, possuía uma forte personalidade. E ela era tão atilada, embora jovem, excessivamente jovem, e esse era o único ponto que lhe causava preocupação. Mas era corajosa, também. Podia imaginá-la dirigindo-se à mãe dele com o seu ar de suave orgulho e resoluta docilidade. Seria irresistível.

Allen ocultou de Josui as suas dúvidas; não diziam respeito a ela ou a ele, mas à própria vida, cujos moldes estavam actualmente sendo rompidos. Antes dele, outros americanos tinham casado com japonesas, levando-as para a pátria. Alguns desses casamentos tinham sido felizes, outros não. Não havia razão para que o deles não fosse bem sucedido, contanto que tivessem a necessária coragem. Mas não ia sobrecarregar a mente de Josui com tudo isso. Tinha preocupações bastantes com a família e com o noivado que era preciso romper imediatamente. Não suportava o pensamento de que Josui estava comprometida com outro homem.

- Como pôde prometer casar-se com outro? - perguntou de repente.

- Porque não? - indagou ela. - No Japão é preciso casar com alguém. Você não me pediu em casamento, Allen.

A culpa era sua, naturalmente, e nunca deveria esquecer isso.

- Quando poderemos casar? - perguntou com impaciência.

- Como havemos de fazer? - disse Josui, suspirando. - Primeiro preciso falar com Kobori. Ele fará tudo da melhor maneira.

- Bem - tornou Allen, levantando-se. - Ainda que me desagrade, tenho que deixar essas coisas para você resolver. Entende disso muito mais do que eu.

De repente, sentiu ciúmes.

Tem a certeza de que não prefere casar com o seu japonês? Seria muito menos incómodo.

Ela cobriu-lhe os lábios com a mão.

Cale-se. Você disse-me que sou americana. Se é assim, quero casar com um americano. - Fitou-o, trémula de amor. - Quero casar consigo!

Novamente se lançaram nos braços um do outro. O velho e terrível anseio apossou-se dele, fez-lhe o sangue correr mais rápido nas veias, acelerou-lhe o bater do coração. Quase sufocado disse:

- Que não demore muito, Josui. Pela minha parte, começarei a agir amanhã. Tenho que falar com o meu coronel, obter a sua ajuda. Talvez possa evitar algumas formalidades. Vamos agir o mais depressa possível, querida. Você aqui junto de seu pai... não o deixe influenciá-la.

- Oh, não! - exclamou ela. - Depois que Kobori souber, ele não oporá mais obstáculos.

Bem, tenho que apanhar o comboio das cinco horas. Saí sem licença, apesar de que a minha ausência só por um dia não será notada.

- Escreva-me, Allen!

- E você a mim, querida.

- Não sei escrever cartas muito bem, mas farei o melhor que puder.

Separaram-se relutantes. Ela temendo que o pai a chamasse para adverti-la de que já tinham conversado de mais, e Allen com medo de perder o comboio. Trocaram um beijo longo, depois outro.

Já quase sabe beijar como uma verdadeira americana, Josui.

- Oh, então sabe como elas beijam?

- Tolinha, toda a gente que vai ao cinema sabe.

- Sim, mas aqui a cena do beijo é cortada antes de apresentarem o filme.

- Mas na América não. Escreva-me ainda hoje à noite, sim, Josui?

- Vou tentar. E você também, Allen.

- Não se incomode se eu escrever à máquina.

-Oh, nã-ão! - Foi um "não" prolongado, suave como um suspiro.

Separaram-se. Ficando outra vez sòzinha, ela viu a sua imagem reflectida no lago. Porque havia o amor de encerrar tanta tristeza? Amava-o de mais. Seria melhor que tivesse amado Kobori, trazendo assim a felicidade a todos. Se, naquela manhã, não tivesse parado sob o arco de glicínias ao passarem os soldados, não teria visto Allen, nem ele a ela, e tudo teria corrido normalmente, como já não era possível agora. Seus pais também estavam magoados com aquele amor que a enchia de dor e êxtase. E da parte da família dele, lá na Virgínia, quem poderia saber? Mas ela seria uma nora tão boa, que não poderiam odiá-la.

Finalmente entrou em casa, surpreendida por seu pai não a ter chamado. Não o viu em parte alguma. Poucos minutos depois sua mãe saiu do quarto onde ele estudava e dormia, e cujas paredes nunca eram movidas.

- O teu pai não está a sentir-se bem, de novo - disse a mãe. - Este dia foi muito cansativo para ele. Não lhe fales mais hoje. Se tiveres alguma coisa para dizer, diz-mo a mim.

Mãe e filha ficaram hesitantes, uma em frente da outra. De que maneira, pensou Josui, poderia infligir-lhe mais mágoa, como sabia que era obrigada a fazer? O amor era uma terrível força propulsora que a impelia à extrema crueldade. Odiava a crueldade e fora uma criança muito carinhosa. E agora via-se obrigada a ferir até sua mãe, que nunca lhe dissera senão palavras de bondade e cuja vida inteira tinha sido devotada à família. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Fitou a mãe, penalizada, sem poder falar.

Foi a mãe que falou por ela:

- Queres casar com aquele americano, não é?

-Sim, mãe! Mas, oh!, antes não fosse assim. Antes nunca o tivesse visto. Poderia então casar com Kobori e ser feliz, pois nunca teria conhecido outra coisa. E, com o tempo, teria aprendido a amá-lo, como a mãe amou meu pai. Não chegou a ver meu pai antes de casar, não foi?

Sua mãe não' sorriu. A minha vida foi completamente diferente da tua. Eu não fiz mais que obedecer. Esse era o meu destino.

- Mas tem sido feliz! - exclamou Josui.

- Sim - respondeu a mãe. - Mas a minha felicidade foi fácil de obter. Nunca esperei ter tão boa sorte como a que tive.

Continuavam de pé e Josui colocou a mão no braço da mãe.

- Mãe, compreende-me quando digo que o amo tanto que só faço o que sou obrigada a fazer?

A mãe olhou-a com estranha e inexprimível tristeza.

- Ontem eu não teria compreendido. Hoje, posso compreender.

Desviou o olhar do rosto da filha. Os seus lábios pálidos tremiam.

- Oh, mãe, não! exclamou Josui. - Já passou tanto tempo... E o pai já esqueceu tudo.

- Não esqueceu - insistiu sua mãe, com voz sumida.

- Foi só o orgulho -respondeu a mãe com a mesma voz presa. - O amor é que foi ferido. Por isso quis deixar a América. O seu amor ferido, sim. Ele amava a América e quando se voltaram contra ele, como... como fez a jovem americana, novamente o amor é que foi ferido, esse amor que principiou na sua mocidade e aumentou sempre até que, por fim, ele deixou a pátria. Era a América a sua pátria.

- Oh, mãe, mãe! -sussurrou Josui. Não sabia como consolá-la.

- É natural que ames o americano - prosseguiu a Srª Sakai. - E, sendo assim, deves casar com ele. Não deves casar com Kobori. Deves fazer o que teu pai nunca pôde fazer, e voltar para a América. Sou eu quem pertence ao Japão, sòmente eu. E por isso te ajudarei.

Pela primeira vez nas suas vidas, as duas mulheres se abraçaram, chorando nos braços uma da outra.

Na manhã seguinte, o Dr. Sakai levantou-se cedo e sombrio. Sua esposa, que ele julgava ser o que sempre parecera, uma mulher simples e dócil, revelara-se, durante a noite, uma criatura inteiramente diferente. Tomara o partido de Josui contra ele, declarando, injustamente, que era ele próprio a causa daquela deserção. Com uma lógica singularmente deformada, dissera que, por não ter ele conseguido casar com a americana a quem amara quando jovem e inexperiente, Josui devia agora casar com um americano.

Tinham discutido horas a fio.

- Acredita, Hariko, sinto-me realmente feliz por o destino me ter preservado de tal casamento. Que teria sido de mim quando quiseram mandar-me para o campo de concentração' Suponho que teria tido filhos. Para onde iriam? Também para o campo de concentração? Eu não poderia ter trazido para o Japão crianças mestiças. Sabes como são encaradas neste país. Teriam sido criaturas sem pátria, exiladas no mundo. Não, eu estou contente por não ter cometido essa loucura. Vou tentar salvar também minha filha.

A mulher fizera-lhe, então, uma declaração completamente inexplicável.

- E eu salvarei Kobori Matsui! Salvarei um jovem e bom japonês de casar-se com uma rapariga que ama um americano! Josui não será sua esposa. Eu irei dizer-lho, se tu não o fizeres.

Nunca sonhara que aquela criatura calma, que vivera tantos anos a seu lado, pudesse ocultar tanta rebeldia, tanta decisão. E, por não tê-la conhecido sob esse aspecto, sentiu medo do seu desespero. Conhecia a tendência funesta da sua raça, a fácil transição do desespero ao suicídio. Para o japonês havia uma ponte larga e sempre pronta entre a vida e a morte. Não era preciso vacilar muito para realizar uma jornada tão curta. Com o seu modo de pensar obstinado, instintivo e pouco esclarecido, Hariko não compreendera absolutamente a finalidade da revelação que ele fizera no' dia anterior. Dera ao caso uma significação totalmente diversa, uma significação pessoal, feminina, e ele sabia que jamais conseguiria dissuadi-la. Era muito provável que ela fosse procurar pessoalmente o Sr. Matsui ou Kobori e, caso ele não o permitisse, ou quisesse impedir-lhe de qualquer forma a saída de casa, bem poderia pôr termo à vida em sinal de protesto.

Assim, o Dr. Sakai levantou-se pela manhã gemendo e convencido de que a sua única esperança era a filha, que ao menos tivera instrução.

Mas Josui não se encontrava em parte alguma. Era tarde, perto do meio-dia, quando ele se sentiu bastante bem para poder levantar-se, e ela saíra; segundo lhe disse Yumi, pelas dez horas. A criada serviu-lhe o almoço em silêncio, pois sabia do alvoroço da casa. Quando ele perguntou pela patroa, que se levantara cedo, Yumi respondeu-lhe que estava ocupada, nessa manhã, a preparar uma nova provisão de cho-yu. A Srª Sakai recusava-se a comprar esse indispensável molho de soja, preferindo o sistema a que fora habituada na fazenda, isto é, comprar o melhor feijão soja e deixá-lo passar pelo longo processo da fermentação. Durante esse trabalho não gostava de ser importunada.

Em tais circunstâncias a casa não oferecia repouso. Decidiu ir para o hospital trabalhar.

- A sua jovem patroa disse aonde ia? - perguntou a Yumi, quando esta lhe estendeu o chapéu e a bengala.

- Ela disse que ia buscar alguns livros à escola.

Era mentira. Josui tinha saído sem dizer a ninguém aonde tencionava ir. No entanto, ao ver o rosto lívido do seu patrão, Yumi sentiu que mentir era um acto de caridade. Ele saiu sem mais uma palavra.

Naquele momento Josui conversava com Kobori. Dormira pouco, mas, deitada calmamente no leito, deixara passar as horas e ao amanhecer tinha tomado uma decisão. Quanto mais cedo visse Kobori, tanto melhor. Desejava, acima de tudo vê-lo antes de falar com seu pai novamente. Queria dizer-lhe: "Pai, está terminado. Em vista das circunstâncias, Kobori já não quer casar comigo. Não é possível voltar atrás."

Depois de ter falado assim ao pai, escreveria então a Allen dando-lhe a mesma notícia, embora por outras palavras. Dir-lhe-ia que estava livre. Ele devia indicar-lhe onde se encontrariam.

Depois de ter tomado esta decisão ficou mais calma e adormeceu. Era cedo ainda quando acordou. Levantou-se, lavou-se e envergou um vestido de seda, azul-escuro, que sabia não a tornar muito atraente. Penteou os cabelos com simplicidade e não aplicou rouge nem baton. Penteou os cabelos. Tomou o alimento que Yumi lhe serviu e saiu sem sequer ter visto a mãe.

Falando-lhe no seu trabalho quotidiano, -Kobori tinha dito que costumava chegar tarde ao escritório, de modo que entrou num parque e ficou sentada por algum tempo num dos bancos à beira dum pequeno lago, Alguns crisântemos prematuros floresciam já nos canteiros e os peixinhos dourados nadavam alegremente. Havia no ar uma brisa mais fresca; o calor passara, por fim. Sòzinha e rodeada daquele silêncio geral, Josui pôde sentir na natureza a interrupção do crescimento, a quietação da terra, o mergulho no sono. Uma parte da sua própria vida se acabara também, a primeira mocidade. Escolhera o seu destino como mulher. Se fosse tímida ou medrosa por natureza, talvez aquela solidão momentânea lhe houvesse incutido medo, mas não era tímida ou medrosa por natureza, Sentia em si uma força imensa, a capacidade de enfrentar todas as dificuldades que viessem a surgir. A sua coragem natural dava-lhe também a aptidão de confiar, não só em si própria como em todo aquele que o merecesse, e em Allen ela confiava inteiramente. O mundo modificava-se e, juntos, poderiam encarar sem medo tudo quanto o futuro lhes reservasse.

Um pouco antes do meio-dia levantou-se, caminhou para a rua principal da cidade e entrou num edifício alto, moderno, onde funcionavam os escritórios da firma Matsui. O elevador levou-a ao sexto andar e ela deteve-se em frente à entrada da Casa Matsui. Um jovem japonês, trajando roupas ocidentais, aproximou-se.

- Posso servi-la em alguma coisa? - perguntou em inglês. Ela respondeu, também em inglês: - Faça o favor de dizer ao Sr. Kobori que a Sr Sakai deseja falar com ele por alguns minutos,

Se tivesse respondido em japonês, talvez, não tivesse sido anunciada com tanta presteza. O rapaz afastou-se logo e pouco depois ela viu Kobori, com aparência muito cuidada e agradável, no seu fato ocidental de flanela cinzenta, que a saudou com o grau adequado de cordialidade e afecto. Curvaram-se um diante do outro, sem se apertarem as mãos.

- Entre, por favor- pediu Kobori.

- Receio que esteja muito ocupado- disse Josui em japonês.

- Eu nunca estou muito ocupado volveu Kobori, com um leve sorriso. - Devo chamar o meu secretário?

Fez essa pergunta em consideração a Josui, que poderia não gostar de ser vista entrar a sós com ele no escritório.

- Não, por favor - respondeu Josui.

Conduziu-a então ao seu gabinete e deixou a porta entreaberta.

- Sente-se, por favor - disse, oferecendo-lhe uma confortável poltrona ocidental. O aposento era amplo e todos os móveis pesados. As paredes brancas ostentavam apenas alguns belos caquemonos pendurados atrás da escrivaninha.

Kobori não se sentou à sua mesa. Tomou lugar noutra poltrona e assim ficaram como se estivessem numa sala de visitas, talvez em casa dos Matsui, onde havia salas de estar mobiladas à moda japonesa e também à ocidental. Frente a frente com ele, Josui sentiu uma profunda tristeza por ter ido à sua presença com tão cruel objectivo. Ali estava ele sentado, um homem alto e bondoso, com o rosto oval liso e pálido a sorrir, os olhos castanhos a fitá-la, radiantes. Josui sentiu a confiança simples, que nela depositava, o prazer que lhe dava o noivado, a fé absoluta que tinha na sua própria boa sorte. Era fácil perceber que nunca soubera o que significava uma decepção ou experiência amarga, filho bem-amado que era de um homem rico, e herdeiro de todos os bens do pai. Quão agradável poderia ter sido o seu amor, se ela nunca tivesse conhecido Allen!

Josui censurou-se então. Como poderia ter sido agradável? O clímax da vida' era .o amor, e jamais teria conhecido o que ele significava se tivesse simplesmente casado com Kobori.

Segurando a bolsa de couro com ambas as mãos, inclinou-se para a frente e disse:

- Kobori, vim aqui com um intuito estranho e cruel difícil dizê-lo.

Ele permaneceu imóvel.

Não precisa ter medo de mim, Josui.

Sem maiores preâmbulos ela desferiu o golpe. - Não posso casar consigo, Kobori.

Ele olhou-a; ainda imóvel, aguardando. "Oh", pensou ela,

"vai sentir de mais".           

- A culpa é toda minha -acrescentou ràpidamente. Nunca deveria ter me comprometido consigo. Esse foi o meu

erro. Eu sabia o que se ocultava no meu coração. Mas julguei que estivesse morto. É agora, inesperadamente e até contra o meu desejo, reviveu.

Kobori falou, escolhendo as palavras, um tanto secamente até.

- Quer expressar-se de modo mais concreto?

Josui olhou para a bolsa.

- Na Primavera passada, conheci um americano. Descobrimos logo que nos amávamos, mas chegámos à conclusão de que seria melhor separarmo-nos, e ele partiu. Pensei poder esquecer essa experiência, porém ontem ele voltou. Também não resistiu. Sabemos, agora, que não nos é possível esquecer. Seria uma injustiça contra si esconder a verdade.

Kobori humedeceu os lábios pálidos.

-Agradeço-lhe por ter-me contado- disse.

Josui esperou que continuasse a falar e não ousou levantar os olhos. Mas parecia que ele nada mais tinha para lhe dizer.

- Que dizem seus pais a isso? - perguntou, finalmente.

- Não aprovam-replicou ela. - Minha mãe, no entanto, pensa como eu: que tenho de fazer o que estou a fazer. Meu pai está zangado, simplesmente. Não sugere nada de construtivo. Odeia a América, como sabe. É-lhe horrível pensar que voltarei para lá.

- Mas você gosta da América - observou Kobori, com ar pensativo. - Eu mesmo nunca duvidei disso. Tinha feito planos de, uma vez por outra, levá-la comigo para passar umas férias lá. Temos negócios com firmas americanas e teremos muito mais quando a ocupação do país tiver terminado. Planeava passar, talvez, diversos meses na Califórnia.

Inclinou-se para a frente, de súbito, escondendo o rosto entre as mãos.

Lamento muito, muito! -murmurou ela.

Sim- disse Kobori, com o rosto ainda oculto nas mãos. Bem, nada se pode fazer. Foi muito louvável da sua parte ter vindo pessoalmente contar-me. Sem dúvida, por algum tempo eu terei de... reordenar os meus pensamentos.

- Espero que encontre outra pessoa- observou ela, e percebeu logo o deslize que cometera.

- Nem posso pensar nisso-redarguiu ele.

Baixou as mãos e Josui viu, aliviada, que não estava a chorar, embora a fitasse com olhos tristes e cheios de amor. -Suponho que não tornaremos a ver-nos a sós, Josui.

- Não haverá necessidade, penso - replicou ela. - Assim será mais fácil para ambos.

- Então é melhor que lhe diga agora o que desejo dizer-lhe, se me permite.

- Certamente eu não lhe proibiria isso -tornou ela.

Josui sentia mais leve o coração e ansiava por retirar-se. Mas devia ao menos esperar para ouvir o que ele desejava dizer-lhe.

Kobori inclinou-se ainda mais, apoiando os cotovelos nos joelhos, para olhá-la com maior intensidade.

- Josui, é pouco o que tenho para dizer. Só isto: se algum dia precisar de mim, seja qual for a razão, procure-me. Não deixe que o seu orgulho a impeça de fazer isso.

- Oh, Kobori! - exclamou ela, - Serei muito feliz, não haverá necessidade disso; mas como é bondoso!

Ele tentou sorrir.

- Deixe o caminho aberto, é só o que lhe peço.

Ela pusera-se de pé, inquieta, ansiosa por ir embora.

- Prometo-lhe, Kobori.

Era uma palavra pouco adequada e ela sentiu-o, mal a pronunciou. Prometer! Não tinha mantido a promessa que lhe fizera antes. Mas, agora, estendeu a mão e, pela primeira vez, sentiu o aperto daquela mão larga, macia e quente a cobrir inteiramente a sua, que ficava tão pequena e firme dentro dela.

Ele pareceu emocionado, e de repente brilharam lágrimas nos seus olhos. Mas sorriu e inclinou-se; Josui inclinou-se também. Tudo estava terminado.

Depois que ela saiu, Kobori ficou sentado algum tempo na poltrona. Deixou que a catástrofe o inundasse como uma onda imensa. Muito tempo atrás, quando menino, seu pai ensinara-lhe como devia lutar com o mar. Tinham, então, uma casa na praia de Kyushu, e durante o Verão passava a maior parte do dia dentro de água. Cedo aprendera a nadar, mas fora seu pai quem lhe ensinara como devia fazer para não ficar extenuado.

- Não se pode vencer o mar - dissera-lhe. - O mar é imenso como a eternidade e imutável como o destino, Em comparação com o mar, o homem é menor que um pequeno peixe. Não lutes contra o oceano. Não queiras combater as vagas. Entrega-te e, à medida que as ondas fluírem, vai acompanhando o seu movimento. Serás então sustentado pelo próprio mar.

Estas palavras vieram-lhe à mente. Aquilo que acabara de ouvir prostrara-o. Permitira-se confiar plenamente na segurança do seu amor a Josui. Nunca amara outra mulher. Como a maior parte dos homens, também ele fora a casas de prazer, tomara parte nas orgias que os homens proporcionam 'uns aos outros, rira com jovens bonitas e escutara a sua música. Mas não tinha desejado para esposa outra mulher senão Josui. Agora ela nunca seria sua esposa. Esse pensamento era tão monstruoso que, por um momento, sentiu-se atordoado, como se a areia fosse sugada sob os pés e as ondas rebentassem da poltrona e assim permaneceu, completamente inerte, deixando que as vagas da dor revoluteassem em seu redor. Assim tinha de ser - assim tinha de ser!

Quase uma hora depois abriu os olhos, ergueu-se, foi buscar um bule que estava sob o abafador, em cima de uma pequena mesa perto da sua escrivaninha, e encheu uma taça de chá quente. Sorveu-o com vagar, sentindo frio e cansaço, como se realmente tivesse estado no mar. Não poderia vencer tão depressa aquela sensação de frio.

No entanto, transcorrida outra meia hora, tocou a campainha da sua mesa. O secretário apareceu e ele começou a ditar-lhe as cartas daquela manhã. Enquanto se ocupava disso, pensou que à noite, mal chegasse a casa, teria de dizer a seu pai. Os preparativos para o casamento tinham de ser interrompidos imediatamente. Os convites deviam ser cancelados. Já não era possível devolver ao joalheiro o presente de núpcias que escolhera para Josui, um jogo de pérolas rosadas, legítimas, colhidas ao largo da costa da India.

- Eu já contei a Kobori - disse Josui.

Sei pai só chegara à meia-noite, porém ela tinha ficado à sua espera. A mãe estava a par do ocorrido. Tinham guardado as vestes de casamento, que não iam ser usadas agora. Josui não sabia o que se passava no íntimo de sua mãe. A Srª Sakai dobrara as roupas com todo o cuidado, não permitindo que a filha as tocasse. Os tecidos preciosos foram guardados no depósito, numa cómoda de madeira de cânfora. Tinham levado a tarde inteira ocupadas com essa tarefa e a mãe não lhe dirigira nenhuma pergunta, nem mesmo sobre o que Kobori dissera.

- É muito tarde - respondeu o pai, quando Josui lhe disse que precisava falar com ele.

- Não conseguirei dormir enquanto não lhe contar o que fiz - insistiu Josui.

Ocultando o desespero e a fadiga, o Dr. Sakai sentara-se e ela, de pé, declarara-lhe que estava resolvida a casar com o americano.

- Não sei como dizer ao meu amigo Takashi Matsui, nem como ele o dirá ao filho -observara o pai.

Foi então que Josui lhe comunicou que Kobori já sabia, pois ela lho contara.

- Disseste-lhe? - perguntou o pai, incrédulo. - Como pudeste ser tão audaciosa? Vê como já estás mudada!

- Kobori é tão bom que pude contar-lhe - respondeu ela, baixando a cabeça.

- Ele é tão bom!... É tão bom! - arremedou o pai. - Mas parece não ser bastante bom para casar contigo.

- É bastante bom, sim- exclamou Josui com coragem.Acontece apenas que amo outro homem e Kobori compreende a situação.

- Isso não diminui o escândalo -afirmou o pai.

Ficou sentado ali, de sobrancelhas franzidas e taciturno, mas exausto, como Josui bem o percebeu. O seu belo rosto estava pálido como cera e os olhos fundos nas órbitas. De repente bateu com as palmas das mãos, três vezes, com força.

- Esse americano nunca casará contigo!

- Casará, sim! - exclamou Josui.

- como poderá casar? - perguntou o pai. - Na América os casamentos são sempre realizados numa igreja. O casamento civil não é suficiente. Não o considerarão como tal. E como poderá haver festas e convidados? Quem servirá de testemunha? As testemunhas são necessárias do ponto de vista americano.

- Não quero festas nem convidados - disse Josui. - E qual é a nossa religião, pai? Nós não temos igreja.

- Eu sou budista - declarou ele. - Os americanos têm os seus deuses e sacerdotes e nós temos os nossos. A cerimónia teria de ser realizada no templo budista, na presença dos deuses e dos sacerdotes.

- Estou certa de que meu... que ele... estará de acordo com isso. Deseja fazer tudo que o pai exigir- disse Josui.

- Excepto deixar-te em minha casa - observou o Dr. Sakai, com amargura. - Isso não fará. Entrou aqui como um ladrão, roubou o meu tesouro e nega-se a devolvê-lo. Que mais posso exigir dele?

Josui baixou ainda mais a cabeça. No entanto, observando-lhe o rosto, ele não notou ,nenhum sinal de que estivesse disposta a ceder. O seu lábio inferior, rubro e cheio, não tremia. Foi ele quem cedeu repentinamente e, levantando-se de um salto, afastou-a com o braço, num gesto que era quase um golpe.

Faz o que entenderes - disse àsperamente. - Vai para a América. Mas quando te correrem de lá, como correram a todos nós, não queiras voltar para junto de mim.

Ela levantou a cabeça, tão orgulhosa e encolerizada como ele.

- Não voltarei para junto de si, isso prometo-lhe pai!

Em Tóquio, Allen falava com o seu comandante. Estavam os dois sentados a sós no gabinete do coronel. Havia pilhas de papéis à espera sobre a mesa e, de quando em quando, o coronel lançava um olhar furtivo para eles. Enquanto Allen falava, o monte avolumava-se na sua imaginação, tomando proporções cada vez maiores.

- Naturalmente, é assunto pessoal seu - disse o coronel com relutância. - Ainda assim, admiro-o. Você tem alguma coisa mais que o simples espírito militar. Não há nele nada de mal, mas os melhores homens são sempre os que têm algo mais que a mentalidade comum do soldado. Na minha opinião, se você quisesse, poderia subir muito, obter até cinco estrelas. Naturalmente que, casado com uma japonesa, não terá a oportunidade. A esposa é muito importante para o homem que pretende fazer carreira nesta profissão.

- Sei que o senhor tem razão - disse Allen Kennedy. Cynthia, por exemplo, teria sido a esposa ideal, bonita na sua loura plenitude, cheia de tacto, amável, simples por natureza, sem ser tola. Mas ele não estava apaixonado por Cynthia.

Você não poderia fazer um arranjinho? - insistiu o coronel. - Os japoneses não encaram esse assunto como nós. Os homens aqui encontram muitas oportunidades para isso. Elas nem contam com o casamento. Os homens japoneses casam com o melhor partido que lhes aparece, sem pensar em amor. O amor é coisa diferente.

O coronel era um homem instruído. Sabia que o sexo, embora constituído sempre do mesmo desejo instintivo, encontra satisfação de maneiras tão diversas quanto é diverso o temperamento dos próprios homens. O rosto bem talhado, expressivo, talvez um pouco delicado de mais, do jovem que o fitava com olhos azuis resolutos, revelava uma natureza mais complexa que a do soldado da rua. O apetite sexual poderia arder numa compleição como a sua, porém sòmente a magia da imaginação romântica era capaz de aplacá-lo. Não sendo o impulso do touro, era, contudo, um impulso igualmente definido, embora com ramificações tanto na mente como na alma e, portanto, muitíssimo mais difícil de satisfazer.

Suponho - disse Allen, com relutância - que, se eu fosse um dos que entram em "arranjos", como diz o senhor, teria sido melhor. Mas, por infelicidade, eu... não posso...

O coronel inclinou a cabeça afirmativamente.

Bem, os homens não são iguais. Dê-me alguns dias para pensar.

Allen levantou-se imediatamente, compreendendo que o coronel dera a entrevista por terminada. Devo...

- Mandarei chamá-lo quando tiver chegado a uma conclusão - disse o comandante, já ocupado em separar os papéis.

- Mais uma coisa, coronel disse Allen, permanecendo no lugar. - Estamos ambos decididos. Não se trata de "querer" ou "não querer". A questão é simplesmente como fazer o que pretendemos. Em poucas palavras, que deve fazer um americano quando deseja casar com uma japonesa de boa família? só o que vim perguntar-lhe, coronel.

O outro exasperou-se.

- Deixe isso comigo, sim, Keneddy? Não posso ver o meu melhor oficial dar um passo desses, sem pensar mais maduramente. Agora é impossível ocupar-me deste assunto... olhe para isto! - E agitou um punhado de papéis.

- Sim, coronel! - respondeu Allen, e retirou-se.

Na verdade, o que o coronel pretendia era ir para casa e falar com sua esposa, mas um homem solteiro não seria capaz de entender isso. Assim que Allen saiu do aposento, deixou de fingir que trabalhava. Fumou vários cigarros enquanto reflectia, depois chamou a esposa ao telefone. Ela respondeu-lhe que não estava a fazer nada de especial.

- Pensei que ias jogar bridge, hoje - disse ele. - Hoje não, amanhã.

- Ah, sim? Bem, acho que vou chegar cedo para almoçar. Acabo de ter notícias desagradáveis.

Deixou o gabinete, lamentando não ter trazido um sobretudo leve naquela manhã. O ar estava cheio de uma luminosidade cintilante e nas ruas já se encontravam por toda a parte vendedores de crisântemos precoces. Nunca tinha visto flores assim, maiores até que as amarelas, enormes, que costumava comprar para Edna usar quando iam assistir aos jogos de futebol em New Haven. Ela, tinha sido um verdadeiro sucesso como esposa de um oficial. Sabia sempre o que estava bem e agia de acordo. Tratava as mulheres dos oficiais de categoria inferior sem arrogância, e as de posição superior à sua exactamente com o devido grau de deferência, sem exagero. Possuía senso de humor, mas, graças a Deus, também sem exagero. Levava a sério a vida militar, como cumpria a uma mulher casada com um coronel.

Estava à sua espera. Vestia um fato de lã, cor de avelã, que parecia quente sem ser pesado. Era uma mulher de olhos e cabelos castanhos e, embora o marido suspeitasse que ela tingia os cabelos para ocultar os fios grisalhos, em hipótese alguma teria tentado desvendar os seus pequenos segredos. Não tinha nada de pudica. Compreendia os homens. Não obstante, gostava de estar só enquanto se vestia, e o coronel já percebera que não era bem-vindo quando ela estava "a arranjar-se" como ele costumava dizer. Sorriu agora ao ver a esposa.

- Estás bonita. É novo esse fato?

- Céus, não! Tem pelo menos dez anos. Não recordas que o comprei em Londres quando estávamos lá?

- Nunca sei o que tu compras -redarguiu ele. - O almoço está pronto?

- Preparei uns coktails,

-Muito bem.

Enquanto tomavam os aperitivos na ampla e ensolarada sala de estar da casa que fora requisitada a um milionário japonês, ele relatou-lhe, a triste novidade.

- Kennedy envolveu-se com uma japonesa de classe elevada - começou abruptamente. - Quer casar com ela.

- Oh, Robert! - gritou a esposa, como se fosse culpa dele.

- Eu sei - volveu o coronel - mas que podemos fazer?

já lhe disse tudo o que tu estás a pensar.

- Ele não poderá fazer uma coisa... temporária? - Foi o que lhe sugeri.

- E?...

O coronel estalou levemente os lábios após um gole do aperitivo e secou com um guardanapo minúsculo o bigode aparado.

- Não é que Kennedy seja pudico de mais para uma solução dessas - disse cuidadosamente. - Não creio que se trate de uma questão de moral.

- Que é então?

- Ele é excessivamente refinado. Entendes o que eu quero dizer? Não é capaz de ter relações com mulheres para depois abandoná-las simplesmente. A espécie de mulher com que se pode fazer isso não o interessa. E as que o atraem são do feitio das que não querem ser tratadas assim.

- Oh, é romântico! - exclamou ela com ênfase.

- Pode ser - admitiu o coronel. - Dá a isso o nome que preferires. Conheci homens incapazes de realizar o acto sem preâmbulos românticos. É uma maçada, para não dizer mais. Falta de realismo. Não se pode contar com homens assim. Prefiro um camarada que se ponha na fila até chegar a sua vez, pague o seu par de dólares e depois volte ao trabalho.

Ela era uma mulher extraordinàriamente compreensiva. Podia-se falar em assuntos como aquele, sem que se sentisse chocada. Sabia o que queria dizer. E, como conhecia bem os homens, não se entusiasmava por eles, criando-lhes situações embaraçosas.

- Não tomes mais que dois, Robert - advertiu-o quando ele encheu o copo de novo. -Sabes qual é o efeito quando bebes ao meio-dia.

- Sim, com os diabos! - disse o coronel, com ar sombrio. Sua mulher sabia preparar um bom cocktail, saboroso e seco. Detestava a bebida adocicada. - E então?

- Estou a pensar - replicou ela.

Bebia muito pouco, mas nunca se recusava a acompanhá-lo. Estava sempre disposta, ainda que raramente mostrasse entusiasmo. Era sensata de mais para isso.

- Vou dizer-te - exclamou alguns instantes depois. - Porque não lhe arranjas uma licença?

- Agora? Quando a situação na Coreia está a tornar-se ameaçadora?

- Manda-o para casa, para a atmosfera do seu lar. Ele mora na Virgínia, não é? Lembras-te das fotografias que nos mostrou, da grande casa branca com os pilares? Vê se o mandas para casa, quanto antes. Põe todos os meios em acção, Bob! Ele há-de encontrar por lá uma pequena que o faça esquecer. Aposto que é um simples caso de continência, não de consciencia.

- Rapariga esperta! - disse ele com convicção.

Sentia-se aquecido pelo álcool, pelo sol que inundava a ampla sala, e pela sensação geral de conforto, segurança e superioridade da sua vida. Estendeu o braço, prendeu a esposa pela nuca e atraiu-a para si, dando-lhe um grande beijo.

- És a melhor esposa do mundo -murmurou, junto aos seus lábios condescendentes.

Kobori não foi mais cedo para casa, embora estivesse terrivelmente fatigado. Apesar do seu corpo mole e pesado, era um homem sadio e forte, que nunca sentia cansaço físico, mas de fácil fadiga mental. Se tinha alguma religião, era a de que a expressão de felicidade e contentamento devia ser conservada a todo o custo. Considerava isso a sua obrigação filial, como único filho que restava aos pais. Admirava seu pai mais que qualquer outro homem, porque sabia que tinha sacrificado muito pelos seus princípios. Assim, seu pai, antes da guerra, fora quase o único entre os magnates do comércio do Japão a declarar que a política dos militaristas que controlavam o governo estava errada.

- Não é possível mantermos um império pela força - declarara Takashi Matsui, quando chateado perante um comité da Dieta.

- A Inglaterra fê-lo - objectou um general.

- Mas os tempos mudaram - lembrou o Sr. Matsui. - A India de há trezentos anos atrás não pode ser tomada como exemplo da China de hoje. Os chineses não se deixarão dominar pelo Japão. Nunca foram um povo subjugado.

- Se não levarmos avante a nossa política de construção de um império - insistiu o general - mergulharemos nós próprios na colonização. Não acredite que o Ocidente tenha renunciado à ideia imperial. Os Estados Unidos só agora se estão transformando numa potência. Os americanos sonham com o império.

- Sonham com o comércio! - observou o Sr. Matsui, com teimosia.

- Comércio! Comércio! - retorquiu o general com desdém. - Todos os impérios nascem do comércio. Os ingleses foram à India para comerciar e o resultado foi um império de trezentos anos. Se não nos apoderarmos da Ásia, os americanos o farão.

- Não esqueça que hoje também temos de contar com a Rússia - disse o Sr. Matsui, com brandura. - A Rússia representa um perigo maior que a América.

O general respondeu tão alto que as suas palavras ressoaram pelo salão.

Enfrentaremos um de cada vez, se nos dá licença!

Takashi Matsui afastou-se sem ter propriamente caído em desfavor, pois era muito rico, e a sua família muito antiga e respeitável. Mas retirou-se prudentemente da actividade. Os interesses dos Matsui foram postos de lado e sòmente após a ocupação começaram a erguer-se de novo. Nesse intervalo o irmão mais velho de Kobori foi morto e o outro encontrava-se perdido pela Rússia. Vendo a profunda tristeza dos pais, Kobori procurou confortá-los por todos os meios, e descobriu que o melhor conforto era o de parecer sempre feliz e contente na presença deles. Nunca lhes revelara, portanto, os aborrecimentos próprios e esta disciplina severa fizera dele um homem controlado e amadurecido.

O seu primeiro pensamento, ao dirigir-se agora para casa, prendia-se, como de costume, ao pai e à maneira mais suave de comunicar-lhe o golpe que o atingira, fazendo-lhe sentir que não tinha sido esmagador. Sua mãe compartilharia dos sentimentos do pai. Era uma japonesa à moda antiga, subjugada suavemente e havia tanto tempo, que hoje representava apenas a sombra do marido e já não um ser independente.

A tarde estava clara e fresca, e as ruas orladas pelos cestos dos vendedores de crisântemos. Olhou-os de passagem para ver se havia alguma variedade de crisântemos que o pai ainda não possuísse. Finalmente avistou uma, cor-de-rosa pérola, muito pálida, cujas pétalas se encrespavam em redor de um centro amarelo como ouro. Parou a fim de adquirir o vaso e mandou enrolá-lo num pedaço de jornal velho. A seguir transportou-o, cuidadosamente, pelo pequeno trecho que o separava do portão de sua casa. Antes da ocupação, nenhum homem teria sequer pensado em carregar assim um vaso de flores, mas agora isso era considerado uma prova de espírito democrático. Kobori gostava da conveniência que esta liberdade proporcionava.

Seria agradável apresentar ao pai a nova variedade de crisântemo, pensou. Serviria de introdução, após a qual, mais tarde ou talvez imediatamente, pudesse relatar a triste notícia. Esperaria pelo momento oportuno, mas desejava que surgisse quanto antes, pois teria menos dificuldade em controlar-se depois que o pai soubesse; seria então obrigado a assegurar-lhe que não estava tão abalado quanto era de esperar e que certamente não iria querer para esposa uma mulher que dava o seu consentimento contra vontade.

Conforme tinha por hábito a essa hora da tarde, seu pai passeava no jardim. Tal como acontece com a maior parte dos cultivadores de jardins, nunca conseguia deleitar-se tanto quanto desejava com a perfeição do seu, pois Os seus olhos demasiado zelosos enxergavam sempre algum defeito, muito insignificante para ser notado por uma pessoa estranha.

Kobori viu o pai entre os canteiros regulares de crisântemos, com os lábios franzidos, inclinando-se sobre uma maravilhosa touceira de flores vermelhas e cor de ouro.

- Kobori! - exclamou o pai. - Acho que estes não são tão lindos quanto os do ano passado!

O rapaz inclinou-se.

- Irei vê-los. Mas em primeiro lugar, meu pai, nós temos esta variedade crespa, cor-de-rosa? Não consigo lembrar-me de a ter visto.

O Sr. Matsuí estendeu as mãos com avidez. Foram aquelas duas mãos estendidas que causaram um choque em Kobori. Eram tão transparentes que deixavam aparecer cada um dos ossos. Como estava magro seu pai! Olhou para aquele rosto querido e observou nele a mesma magreza. O Sr. Matsui trajava, como habitualmente, roupas japonesas e o pescoço estava descoberto. Kobori pôde ver as cavidades da clavícula, as têmporas fundas. Ele era mais alto que o pai, mais corpulento e forte do que O Sr. Matsui nunca fora, e sentiu agora intensa compaixão por esse homem idoso, colocando-se quase na sua posição. Forçou-se a rir.

- O senhor não tem esta variedade? Descobri realmente um novo crisântemo para si!

O rosto moreno e magro do seu pai cobriu-se de inúmeras rugas.

- Não imaginaria isso possível!

Os crisântemos do Sr. Matsui eram famosos.

Ambos se inclinaram sobre a nova flor, absortos na sua beleza frágil.

- Onde iremos plantá-lo? - perguntou O Sr. Matsui, impaciente. - De certo que não entre estes vermelhos e cor do ouro. Tua mãe vai gostar do novo tipo. Parece-se com ela. Vou plantá-lo aqui, onde ela poderá vê-lo da janela do seu quarto.

Colocou cuidadosamente a planta num outro canteiro e depois esfregou as mãos para limpá-la da terra. A cena era tão agradável, o ar estava tão delicioso, que Kobori resolveu aproveitar aquele momento feliz.

- Pai, estou contente por ter encontrado este crisântemo para o senhor. Isso me facilita a tarefa de lhe contar uma coisa menos agradável! O casamento não se realizará.

O Sr. Matsui voltou-se rapidamente para o filho.

- Que dizes?

Sakai decidiu não casar comigo-tornou Kobori, com calma.

Takashai Matsui pestanejou; por um instante ficou impossibilitado de falar. Kobori aproveitou o choque momentâneo do pai.

Não deve aborrecer-se, pai - disse suavemente. - Sempre pressenti que este casamento não se realizaria. Penso que, dada a afeição que dedica ao senhor, o Dr. Sakai se empenhou de mais em convencer a filha. Sabe quanto ele o admira. Vai sofrer muito. Devemos pensar como poupá-lo. Estou de facto agradecido a Sakai por ter-me avisado a tempo.

Ela, pessoalmente... - tartamudeou o pai.

- Sim-respondeu Kobori, com serenidade- Ela é muito americana, o pai sabe. Veio simplesmente ao meu escritório e expôs-me os seus sentimentos. Prefere casar com um americano.

Há um americano? - quis saber O Sr. Matsui.

- Parece que sim- disse Kobori. - E, nessas Circunstâncias, estou certo de que assim é melhor.

Já então O Sr. Matsui se refizera o suficiente para ficar zangado.

Certamente que é melhor assim, certamente! Uma jovem que se porta dessa maneira nunca serviria para entrar na nossa antiga família. Mas e tu, meu filho?

Kobori sorriu.

- O pai está vendo. Sinto-me perfeitamente satisfeito!

Takashi Matsui estendeu a mão e segurou um dos braços do filho. Tranquilizou-o sentir os músculos fortes por debaixo da manga de flanela.

- Que embaraçoso para ti, meu filho, que ela te tenha procurado pessoalmente!

- De forma alguma -redarguiu Kobori em tom despreocupado. - Gostei até da sua franqueza. Foi algo de novo. Ela é uma jovem inteligente. Penso que será mais feliz na América do que aqui. Afinal de contas, passou os primeiros quinze anos da sua vida na Califórnia. Depois disso, suponho que nunca poderá ser inteiramente japonesa. Temos de pensar sòmente em seu pai. É um homem extraordinário que muito sofre, segundo creio, porque perdeu uma pátria e não consegue tornar a viver a sua vida na outra,

Foram caminhando lentamente, de braço dado, em direcção à casa.

- Como diremos a tua mãe? - murmurou O Sr. Matsui.

- Não lhe digamos nada agora - sugeriu Kobori. - Vamos jantar como habitualmente. Então, à noite, depois que se recolherem, talvez o pai possa dizer-lhe a sós, Amanhã decidiremos como nos comportaremos com relação ao Dr. Sakai. Não devemos ser precipitados. Temos que lhe dar tempo para superar a sua decepção e criar um estado de espírito adequado. Devemos esperar por esse estado de espírito a fim de adoptarmos uma atitude correspondente,

O Sr. Matsui apoiou-se no braço de Kobori.

- Penso 'unicamente em ti, meu filho. Contanto que não estejas ferido...

Não há nada que me possa ferir -afirmou Kobori e olhou sorrindo para o rosto erguido do pai.

Tão límpidos eram os seus olhos castanhos, tão tranquilizador o tom da sua voz suave, que O Sr. Matsui acreditou nele.

- Portanto - disse o coronel - você pode ir para casa na quinta-feira, meu rapaz. Fique o tempo que quiser, dentro dos limites razoáveis, naturalmente.

Allen repuxou os lábios num sorriso.

Não pense que me deixo enganar, coronel!

O comandante não levantou os olhos dos papéis que assinava. Sentia-se animado e eficiente naquela manhã, cheio de confiança em si próprio.

- Quem está a querer enganá-lo? - retrucou. - Não me importa saber se você se deixa enganar ou não. Quero que vá para casa e pense. Volte para a atmosfera do seu lar, veja a sua família e olhe para as garotas.

- Isto não vai alterar coisa alguma, senhor.

-Talvez . altere- disse o coronel. - E se assim não acontecer, não Volte para cá.

Acrescentara a última frase movida por uma repentina cólera diante da teimosia do jovem oficial. Dera muitos conselhos a Kennedy, tinha gostado do rapaz e despendido muito tempo e atenção com ele. A raiva apossou-se do coronel ao pensar que tudo isso talvez fosse esforço perdido, por causa de uma jovem japonesa. Que fosse requintada, pensou, mas não havia também americanas requintadas? Não acreditava em mistura de raças. Já havia milhares de crianças mestiças americano-japonesas, milhares de crianças americano-chinesas, assim como na India havia centenas de milhares de crianças anglo-indianas. Era uma das malditas consequências da guerra e nem mesmo o Pentágono conseguia resolver o problema. Enquanto tratavam de preservar a América para os americanos, os próprios soldados minavam o plano todo. E até Kennedy! A satisfação do instinto era compreensível, quando os homens se encontravam em país estrangeiro, mas o casamento!

- Muito obrigado, senhor! - disse Allen, formal.

- Oh, você voltará! -rosnou o coronel.

Allen saiu. Três dias! Que poderia fazer em três dias?

Estava furioso com a armadilha que o coronel lhe preparara e na qual se via forçado a cair. Certamente tinha havido telefonemas através do Pacífico. De quem teria partido a ideia? Da esposa do coronel, naturalmente! Só uma mulher seria capaz de um plano tão ardiloso. Na Primavera anterior, teria ficado louco de alegria com a oportunidade de ir a casa. Agora a única coisa que desejava era permanecer no Japão- Para sempre, se essa fosse a única maneira de ficar com Josui. Sentiu-se chocado com a sua própria infidelidade, pois naquele momento teria, de bom grado, feito o juramento de nunca mais voltar a casa, de jamais rever seus pais, se isso lhe desse a certeza de poder passar o resto da vida com Josui. Havia algo mais do que amor na sua cólera. Nunca fora contrariado daquela maneira. Muito pouco lhe fora negado na vida. Filho único, fora sempre querido de mais para sentir-se frustrado, e não estava disposto a submeter-se agora à frustração. Conseguira sempre aquilo que desejava.

Três dias!

-Arrume as suas coisas - dissera-lhe o coronel. - Não vou pedir-lhe nada, mas aconselho-o a embarcar sem ver de novo a rapariga.

Bem, isso não faria. Iria a Kyoto no primeiro comboio que pudesse apanhar. Naturalmente, tinha de partir para a América. Deixar de ir seria insubordinação, em tal grau que preferia nem sequer pensar nisso. Mas, de qualquer maneira, precisava convencer Josui de que voltaria. Se ao menos o rapaz japonês não estivesse tão próximo dela... A dúvida era se Josui seria capaz de resistir.

Essa dúvida perturbava-o de tal maneira que chegava a ser intolerável. Não teria prazer em estar em casa, se não estivesse seguro a respeito de Josui e o único caminho, bem o sabia, era casar imediatamente. Casariam agora, tão depressa quanto fosse possível. Mas como? Levaria uma eternidade para conseguir a permissão e, de qualquer forma, provàvelmente o coronel bloqueara esse caminho. Como casavam os japoneses? Ou quem sabe se poderia convencê-la a...

Telegrafou a Josui, dizendo que chegaria no dia seguinte no comboio da tarde. Já não poderia ir hoje no da manhã. Faria as malas e preparar-se-ia para passar todos os momentos com ela. Oh, havia de convencer a sua querida, apertá-la nos braços, cativá-la e demonstrar-lhe tanto amor que ela não seria capaz de recusar-se a ser toda sua, com ou sem casamento. E, depois que o seu amor tivesse sido selado Pela consumação, poderia viajar e voltar quanto antes.

Havia uma solução ainda melhor! O seu cérebro trabalhava com rapidez enquanto se dirigia para casa. Pediria a transferência. Ficaria na América e talvez pudesse obter um trabalho nos escritórios do Pentágono. Possuía muitos anos de experiência, passados nas ilhas do Pacífico, no Japão, na Coreia e agora novamente no Japão. Sem dúvida poderiam aproveitar os seus serviços. E então Josui iria reunir-se a ele. Era cidadã americana por nascimento, e não haveria dificuldades com respeito à sua entrada no país.

Sentiu o coração mais leve. Talvez até fosse melhor assim, apesar da cilada do coronel. Poderia precisar de algum tempo para convencer a família. Sabe-se lá que ideias obscuras não teriam a respeito dos japoneses! Estava satisfeito por ter-se dado ao trabalho de, quando escrevia à mãe, descrever-lhe as paisagens, contar-lhe as aventuras divertidas que lhe aconteciam e os prazeres da vida que levava no país. Caso tudo se resolvesse de maneira satisfatória, gostaria de viver ali. Era um país agradável, onde se vivia bem e o povo era encantador. Sim, com o tempo chegara a essa conclusão. Era estranho acordar às vezes, no meio da noite, de um sonho horrível, um pesadelo das selvas onde o terror, pronto a saltar sobre eles de um instante para o outro, era um japonês nu, pintado de matizes verdes que o tornavam invisível a poucos metros de distância. Naqueles dias aprendera a dormir semidesperto, a ouvir, a sentir a presença do inimigo. Certa vez, ainda quase adormecido, erguera-se de um salto e enterrara o seu punhal curto no corpo musculoso de um japonês. Mas nunca conseguira habituar-se àquilo. Não era um matador por instinto. O pesadelo recordava o momento em que a lâmina penetrara na maciez da carne, através da pele. Esta, a princípio, oferecia resistência à ponta do punhal, e depois...

Entrou abruptamente num posto telegráfico e escreveu a sua mensagem a Josui.

CHEGO AMANHÃ À TARDE. RECEBI ORDEM DE IR PARA CASA.

Escreveu até aí e então parou. A notícia iria amedrontá-la, e era preciso evitar isso. Mordeu o lápis e acrescentou:

TEU ATÉ A MORTE, ALLEN.

O telegrama chegou à noite. O Dr. Sakai recebeu-o do mensageiro e leu-o antes de entregá-lo a Josui. Ela ouvira soar a sineta. Avistara o mensageiro e suspeitara "de que o telegrama lhe era endereçado. Nem lhe ocorrera a ideia de opor-se a que o pai o lesse em primeiro lugar. Mais cedo ou mais tarde ela lho teria dado a ler.

O Dr. Sakai estendeu-lhe o telegrama sem comentários, mas com uma expressão animada.

Josui leu-o duas vezes, devagar, deduzindo precisamente o que Allen tencionara dizer. Fora mandado para a América por sua causa. Como oficial, tinha o seu valor. Seria obrigado a ir, mas queria dar-lhe a entender que estava resolvido a casar com ela.

Mas como poderiam levar isso a efeito? A sua mente rápida reuniu os factos e examinou-os.

- Precisamos casar imediatamente - disse ao pai.

- Proíbo-o- gritou ele. - Deixa-o ir. Esperaremos para ver se volta.

-Se não casarmos, irei com ele de qualquer maneira - declarou a jovem.

- Fechar-te-ei no quarto! - berrou o Dr. Sakai.

Ela riu-se, de modo muito pouco agradável. O pai ficou chocado ao ouvi-la rir assim. O lindo rosto de Josui tornara-se desdenhosamente duro. Olhou de lado para o pai, os cantos da boca crispados para baixo.

- E o pai acha que ele irá permitir que me feche no quarto? Quebrará a casa toda. Não viu como são capazes de se portar os americanos? Acha que pode atravessar-se no caminho deles? Não se esqueça de que são nossos conquistadores!

- Nada mais terei a ver contigo!

- E eu irei com ele!

Sua mãe, ouvindo as vozes exaltadas, acudiu à pressa. Yumi encontrou-a no corredor e apontou com o dedo para a porta de entrada.

- A gente da rua! - sussurrou.

- Josui! Josui! - gritou a Srª Sakai. - Teu pai! Oh, não sejas má.

Colocando-se entre os dois, empurrou o marido com uma mão e a filha com a outra. Nenhum deles lhe prestou atenção. Continuaram a desafiar-se com os olhos.

-Uma oportunidade enviada por Deus para experimentar este estrangeiro - esbravejava o Dr. Sakai. - Mas esta criatura desavergonhada insiste em casar-se com ele antes da sua partida, para que não lhe possa escapar. Começo a crer que não foi ele, mas sim ela que provocou todo o mal. Ela, postada ao portão para se fazer olhar. Ela, encontrando-se secretamente com ele... devo pedir desculpas pelo procedimento de minha filha.

Ergueu o rosto para o tecto e levantou os braços.

A Srª Sakai voltou-se para Josui.

- Não podes casar tão depressa. Leva algum tempo. Ele precisa arranjar permissão.

- Irei com ele - insistiu Josui.

Olhou para o pai, para a mãe, e viu-os sùbitamente unidos contra ela. Era uma coisa que nunca tinha visto, pelo menos desde que Kensan morrera na Itália e ela se tornara filha única.

- Farei o que muito bem entender - gritou e correu pela casa até ao quarto.

Deixados a sós, os pais olharam-se com uma expressão de amargura.

- Que vamos fazer? - perguntou o Dr. Sakai, com desusada humildade.

- Ela é tão teimosa- disse a Srª Sakai, tristemente.Lembra-te de que foi criada na América. Não a podemos modificar agora.

- Irei ao tempo falar com o sacerdote budista, o Hosshu - declarou o Dr. Sakai com igual tristeza. -Teremos de casá-la.

Allen Kennedy fez soar a sineta de bronze da porta. Temia a hora que tinha à sua frente, mas estava decidido. Se o Dr. Sakai lhe proibisse a entrada, não cederia terreno. Se ao menos Josui não fosse tão jovem! Era difícil dizer a um homem que sua filha de vinte anos tinha idade bastante para saber o que queria. Mas o próprio Dr. Sakai devia conhecer a decisão, a firmeza, a calma, a força de vontade de Josui. O seu rostinho doce e sereno ocultava um génio arrebatado. Allen contava com esse génio. Quantas vezes na vida ele próprio fora capaz de afastar os obstáculos que lhe haviam posto no caminho, quando ficava bastante irritado como estava agora. Nem o coronel nem o Dr. Sakai, isoladamente ou em conjunto, o fariam mudar de ideias.

Mergulhado nesses pensamentos, esperou diante da porta. Um momento depois abriram e Yumi, a criada baixa e atarracada, apareceu. Disse algumas palavras em japonês que ele entendeu como um convite para entrar. Atravessou a soleira e ela não deu mostras de apreensão; portanto, compreendera bem. A criada inclinou-se, fazendo-lhe sinal para que a acompanhasse. Ficou surpreendido, mas obedeceu. A casa estava em silêncio. Não ouviu som de vozes nem passos. Uma armadilha? Ideia fantástica; no entanto ocorreu-lhe.

Não havia armadilha alguma. Foi introduzido num aposento amplo e belo, cujas paredes de rótulas recobertas de papel, corridas para um lado, deixavam aparecer um jardim primorosamente cuidado, com uma cascata a cair de degrau em degrau pela encosta de um pequeno outeiro que imitava uma montanha.

O Dr. Sakai e a esposa estavam sentados, ele à direita e ela à esquerda, diante do nicho onde havia uma tigela rasa com galhos de folhas outonais um pouco para o lado de um pergaminho que representava uma paisagem. Levantaram-se à sua entrada. Ambos trajavam roupas japonesas e meias de seda reforçada, brancas. O quimono de crepe de seda pesada, vermelha, que a Srª Sakai usava, tinha um desenho de glicínias em flor. O do Dr. Sakai era de cor escura e por cima dele vestia uma sobrecasaca curta. Tudo muito formal na verdade! Mas porquê?

-Sente-se, por favor- disse o Dr. Sakai em inglês perfeito. - Ou prefere uma cadeira ocidental?

- Estou acostumado com os hábitos japoneses - respondeu Allen.

Respondeu às suas mesuras, depois dobrou as longas pernas com destreza, embora desgraciosamente, e sentou-se sobre os tapetes do soalho. Onde estava Josui? Ficou à espera. Caso a tivessem mandado para longe iria à sua procura. Toda aquela formalidade se destinava, sem dúvida, a fazer-lhe compreender que não era bem-vindo.

Para sua surpresa, o Dr. Sakai começou a falar com desembaraço e sem cólera.

- Vivi muitos anos na América, Sr. Kennedy, e sei que os americanos gostam da franqueza. Sejamos francos.

- Perfeitamente - murmurou Allen.

- Depois de conversar com minha filha - continuou o Dr. Sakai - convenci-me de que a ela cabe, em parte, a culpa desta situação infeliz. É muito embaraçoso para a nossa família, pois está ou, melhor, estava noiva, oficialmente, do filho de um dos meus mais íntimos e prezados amigos. Tenho andado muito perturbado para poder renovar essa amizade. Agora, compelido pelo seu telegrama repentino, apenas tenho podido pensar no que fazer por minha filha. Quais são as suas intenções, Sr. Kennedy?

Formulou a pergunta em tom de altivez. Allen, respondeu-lhe com simplicidade e imediatamente.

- Quero casar com Josui antes de ir para os Estados Unidos, Dr. Sakai. O que quer dizer, hoje ou amanhã.

- como é possível isso? - perguntou o Dr. Sakai. -O senhor não poderá obter a permissão necessária.

- Sei disso, senhor. Mas existem muitos meios, em diversos países, de estabelecer um casamento legal. Lembro-me de que um amigo meu, na Formosa, queria casar-se com uma jovem japonesa. O casamento foi realizado de acordo com as leis japonesas e sòmente um ano depois conseguiu repetir a cerimónia legal na França. Mas, ainda assim, o casamento foi reconhecido por todos como válido. Pensei em qualquer coisa semelhante, senhor.

A seriedade de Allen, a sua simplicidade, esobretudo a cortesia e o inglês excelente que usava, confundiram um pouco o Dr. Sakai. Este tipo de americano ainda não o encontrara no Japão. Ali estava um homem muito diferente da turba de soldados que costumava ver nas ruas e da qual se esquivava, nunca dirigindo um cumprimento a quem quer que fosse.

- Ainda assim é irregular! - exclamou com dúvida.

- Tudo, hoje em dia, é irregular - disse Allen. - Os costumes e normas entre os países encontram-se em grande desordem.

Allen inclinou-se para a frente, persuasivo.

-Senhor, amo sua filha e desejo casar com ela. Pretendo levá-la a minha casa e apresentá-la a meus pais. Quero que a vejam como ela é. Não tenho licença para a levar agora comigo e por isso me vejo forçado a deixá-la aqui até arranjar a sua ida. Embora não tenha ainda falado a ninguém, resolvi não voltar ao Japão para viver. Tratarei de conseguir uma nomeação para Washington em vez de Tóquio. Quero ser livre e viver a minha própria vida com sua filha. Penso que no meu país atingiremos melhor este propósito do que aqui. Espero que o senhor e a Srª Sakai nos irão visitar e que também nós possamos visitá-los. Mas antes de partir, Josui tem que se tornar minha esposa, senhor. Será mais fácil para ela ir reunir-se a mim se o casamento já tiver sido realizado.

Não se pode saber o que o Dr. Sakai teria respondido, porque, nesse instante, Josui afastou um biombo. Este caiu ao chão e ela, entrando impetuosamente no aposento, postou-se diante dos pais.

- Pai, mãe, farei o que Allen disse!

Ficou ali parada, radiosa num quimono branco, os braços abertos, parecendo um belo pássaro, uma criatura alada, de cabeça erguida, faces rubras, olhos escuros e brilhantes. Allen nunca vira tanta beleza. Levantou-se e ficou a olhá-la, enlevado.

Josui, então, voltou-se para ele com as mãos estendidas. Allen aproximou-se e prendeu-as. Permaneceu assim sòmente um segundo, um luminoso segundo de hesitação, e depois, vendo a expressão dos olhos dela, envolveu-a nos braços. Atrás deles, o pai e a mãe continuaram sentados, imóveis. A Srª Sakai desviou o olhar mas o médico manteve-o fixo neles.

Nos braços do seu amado, Josui virou-se para os pais.

- Pai, mãe, estamos prontos!

Os pais levantaram-se e o Dr. Sakai falou:

-Sr. Kennedy, isto estava previsto. Somos budistas e eu tomei as providências necessárias no templo budista. É tudo irregular, o senhor compreende. Não há precedentes, mas o Hosshu compreende a situação especial destes dias de ocupação. Realizará a cerimónia de acordo com o ritual japonês. Quanto à cerimónia no seu país, devemos confiar na sua honra.

Baixou a cabeça e, sem esperar pela resposta de Allen, dirigiu-se para a porta. A Srª Sakai seguiu-o, passando pelo rapaz sem fitá-lo.

Josui acompanhou os pais com o olhar. Depois voltou-se para Allen e ele viu brilharem lágrimas nos seus olhos.

- Não deve ficar magoado com meus pais - disse ela, suplicante. - É tão difícil para eles. Não pode imaginar! Eles não têm outro filho. Meu marido deveria ser um filho para eles.

- E não posso ser eu esse filho? - perguntou Allen.

Josui sacudiu a cabeça.

- Não estão em condições de recebê-lo... ainda não - disse simplesmente.

Encostou por um momento a cabeça no peito de Allen e ouviu-lhe o bater do coração contra a sua testa. Oh, poderia confiar nesse coração!

-Talvez eles aprendam - disse Allen.

Agarrou-lhe a cabeça com ambas as mãos e apertou-a ao peito.

Quem poderá conhecer os primeiros momentos da alma de uma criança que ainda não nasceu? Agita-se com o vento suave entre as flores da glicínia que destilam a sua fragrância. Fulgura no cintilar dos primeiros vaga-lumes da Primavera sob os pinheiros e ao primeiro beijo no jardim. Adquire forma nas lágrimas e sofrimentos dos corações apartados; aproxima-se com o beijo final e aguarda a sanção dos deuses.

No grande templo, sob o espesso colmo secular, estava reunida a pequena comitiva nupcial. Yumi e o jardineiro eram as testemunhas. Estavam em pé atrás dos amos, aturdidos e sem entender. O Hosshu olhava o casal, tendo, à direita e à esquerda, dois sacerdotes de categoria inferior. Não trazia a consciência tranquila, pois não aprovava aquele casamento. Mas o Dr. Sakai insistira com ele, chamando-lhe a atenção para os tempos mudados.

-Será necessário que a nossa religião se adapte, se quiser sobreviver - dissera obstinado.

A fisionomia do Hosshu tinha deixado transparecer dúvida. Era um homem velho, erudito e eremitão. Nunca aprovara os imitadores do cristianismo que inventavam hinos budistas parodiando os dos cristãos. Desagradava-lhe, também, a Associação Budista de jovens. Não eram esses os meios de servir aos deuses.

- Não pode imaginar quanto eu sofro-observara o Dr. Sakai, sombriamente. -Só me resta uma alternativa: ou perco minha filha ou encontro algum meio de realizar esse casamento.

- O senhor concedeu-lhe demasiada liberdade -sugerira o Hosshu.

- Todos os meus erros do passado não modificam o presente - fora a resposta sensata do Dr. Sakai.

Uma dádiva considerável para o templo, a promessa de lealdade do próprio Dr. Sakai e também a crescente impaciência do médico tinham, finalmente, convencido o ministro de que, pelo menos naquele caso, devia modificar a sua opinião. Consentira, portanto, em realizar a cerimónia que o aguardava agora. Cheio de dignidade, entrou para o vestíbulo do templo e, batendo um grande gongo, esperou que o som morresse no tecto alto. A seguir dirigiu-se ao altar e fez um sinal para que os noivos, pais e testemunhas se aproximassem. Ali esperou, parecendo ainda mais alto nas suas vestes sacerdotais. O americano não usava um traje negro como devia, mas o Dr. Sakai dissera que, em virtude da ocupação, muitas coisas estranhas tinham de ser aceites. A mulher, ao menos, trajava um quimono branco.

Fitou longamente o jovem americano à sua frente e depois afastou os olhos. Não olhou para a jovem. Iniciou a cerimónia com a exortação, que entoou em japonês com a sua voz clara e alta.

- Estamos aqui reunidos sob o olhar do nosso Compassivo Buda para conduzir este casal a uma perfeitíssima união matrimonial. O casamento é a fonte mais sagrada de toda a vida, a que as sucessivas gerações da humanidade devem a sua existência e de onde todos os sucessivos códigos de moralidade derivam a sua origem. Nada acontece sem causa. Saibam, portanto, que a união sagrada de duas pessoas, a qual deverá durar a vida inteira, não sucede por acaso. E, na realidade, a consequência preestabelecida de muitas vidas passadas e o fruto da benevolente orientação de Buda.

Deixou pender sùbitamente a cabeça e a sua voz desceu ao murmúrio de uma prece:

- Que este novo casal que entra no sagrado estado do matrimónio guarde este abençoado momento nos seus corações, permanecendo eternamente fiel aos juramentos, preservando o amor e o respeito mútuo, auxiliando-se na dor e no sofrimento, mantendo-se puro de corpo e mente e encorajando-se um ao outro na observância de todas as virtudes. São essas as condições essenciais para uma vida matrimonial feliz e o verdadeiro modo de viver conforme os ensinamentos do Buda.

Levantou novamente a cabeça e fitou em cheio os dois jovens, fixando o olhar em Allen.

- Portanto - disse com voz autoritária - antes de proferirem estes juramentos, lembrem-se que é dever do marido manter e amar a esposa, ser-lhe fiel no pensamento e nas acções, confortá-la na doença e na dor e auxiliá-la na educação dos filhos.

E, dirigindo-se a Josui:

- É dever da esposa amar e ajudar o marido, ser paciente,

amável e fiel em todas as circunstâncias.

Depois, falando a um de cada vez, prosseguiu:

- Declara solenemente que não conhece impedimento

algum que os proíba de se unirem legalmente pelo matrimónio? Josui olhou para Allen e disse-lhe em voz baixa o signifi

cado daquelas palavras.

- Não conheço nenhum impedimento -respondeu Allen em inglês.

- Declaro solenemente que não conheço impedimento algum - disse Josui, com firmeza, em japonês. Não haviam já sido vencidos todos os impedimentos?

O Hosshu voltou-se novamente para Allen.

- Allen Kennedy, aceita esta mulher, Josui Sakai, como sua legítima esposa?

Josui olhou de novo para ele.

-Sim -respondeu Allen em inglês. Ao pronunciar essa palavra, a sua voz tremeu, apesar do esforço que fez para mantê-la firme.

- Josui Sakai - disse o Hosshu à jovem-aceita este homem, Allen Kennedy, como seu legítimo esposo?

-Sim -respondeu Josui em japonês.

Allen, que já fora instruído antes de entrar no templo, tirou do dedo mínimo o anel de sinete e entregou-o ao Hosshu, que o colocou no dedo de Josui.

- Desde que concordaram em casar de conformidade com o ritual budista - disse gravemente - declaro-os marido e mulher. Que estejam sempre cercados de infinito amor e compaixão.

Ficou parado um instante e depois, voltando-se, conduziu-os até ao altar onde Allen, orientado por gestos, colocou bastõezinhos de incenso nas cinzas da urna, diante dos deuses que se inclinavam sobre eles, e Josui encostou a torcida de papel acesa ao incenso de aroma adocicado.

E o Hosshu, em pé, abaixo do grande Buda dourado, que se destacava dos demais deuses de menos categoria, falou assim:

- O abençoado Buda disse: "Sustenta pai e mãe, ama esposa e filhos e segue uma profissão pacífica. É esta a maior das bênçãos".

Estas palavras foram dirigidas a Allen. Terminada então a Cerimónia, voltou-se e ficou de frente para os deuses; quatro sacerdotes postaram-se às suas costas, formando uma barreira que o ocultava aos olhos dos demais.

O Hosshu agora falou ao Buda a sós, em voz tão baixa que não se podiam ouvir as suas palavras. Era uma explicação, um pedido de perdão, uma prece implorando a bênção se fosse possível; se não fosse, pedia então o regresso da jovem sã e salva à sua terra e ao seu povo.

O Buda, de um dourado tão intenso que o fazia parecer de ouro maciço, permaneceu imóvel como sempre, as mãos postas num gesto de bênção eterna e universal, o olhar fixo e impassível.

Estranha irrealidade, pensou Allen, que não baixara a cabeça. Olhou para os vultos paramentados e curvados do Hosshu e dos sacerdotes, e para a imagem acima deles. A presença sólida do Buda não o fazia parecer mais real que a deidade invisível numa igreja cristã, mas também não o fazia parecer menos real. Pois o ar do templo tinha algo de sagrado, não pela presença dos deuses mas pelas preces e lamentos daqueles que lá iam implorar, pedir, e procurar aquilo que não podia ser encontrado. A atmosfera da humanidade estava encerrada ali, procurando alcançar o além inatingível, suplicando a resposta que nunca é dada. Ali estava ele também, com Josui, e lentamente, afinal, baixou a cabeça. Renunciara havia muito tempo à oração e à crença. Mas quando estava em casa, ia à igreja com seus pais, cantava hinos que aprendera na infância e inclinava a cabeça. Neste dia a oração brotou espontâneamente dentro dele, impelida por uma necessidade pessoal. Estremeceu ao sentir a sua premência, e naquela prece muda, aquele ser que seria dado ao mundo, aproximou-se mais da vida e do nascimento.

No quarto em que Josui passara a meninice, Allen estava deitado agora ao lado dela como seu esposo. Os pais tinham-se retirado. Tinham voltado após a cerimónia no templo e, numa breve alocução de boas-vindas, o Dr. Sakai dissera a Allen que ele era agora aceite na casa. Ninguém mais lhe recusaria a entrada; podia entrar e sair conforme lhe agradasse.

Antes que Allen pudesse agradecer, retirara-se. A Srª Sakai não aparecera. Yumi servira o jantar aos noivos no quarto de Josui e depois da refeição, ainda em silêncio e sem um sorriso, estendera sobre o tapete os acolchoados de seda que lhes serviriam de cama. Feito isso, inclinou-se profundamente diante de cada um, empurrou as paredes de rótulas, fechando-as, e apagou as luzes dos corredores. Estavam finalmente a sós e ninguém mais se interpunha entre eles.

Não pensavam na criança, naquela noite. Os amantes não pensam. Só sentem o seu amor, que nasce tão vasto, tão vago, impregnando o mundo inteiro, e tudo quanto vêem é amor e tudo o que sentem é amor. E então aquilo que é difuso e sem forma concretiza-se, mas é a própria forma deles que toma o contorno de um homem e uma mulher, os seus próprios contornos que se estreitam e ganham em força e ritmo, no frémito do sangue e na exigência exclusiva do corpo. O ser que aguardava no espaço foi chamado à vida, mas eles não sabiam. A mãe era jovem e virgem, e nem toda a virgem pode conceber tão fàcilmente como as mães dos deuses concebem. A primeira visitação nem sempre é suficiente. Ou talvez a causa seja o pai. Nem todos os homens são deuses. Aqueles dois jovens não sonhavam com a alma da criança, uma nebulosa que a cada instante se aproximava mais de um ponto fixo, de uma forma definida.

Os pais não tinham consciência do ser que esperava, daquele ente que viria ao mundo. Só tinham consciência um do outro, das suas mãos trémulas, dos corpos que palpitavam até consumar a revelação do amor.

Aparentemente, continuavam sòzinhos na casa. Era espaçosa e, sem dúvida, em algum lugar, nos aposentos separados por biombos, viviam, à parte, os mais velhos. Mas a qualquer parte que se dirigissem, Allen não via ninguém, com excepção da criada silenciosa.

- É maravilhoso isso da parte dos teus pais - disse a Josui no dia seguinte - mas não quero que pensem que é necessário. Tu e eu poderíamos ir para uma hospedaria.

- Oh, não! - exclamou ela. - Para um lugar estranho? Não. Como não temos casa própria, meus pais assim o desejaram. Mais tarde lhes demonstraremos a nossa gratidão de alguma forma.

Nenhum deles falava em filhos. Naturalmente era melhor que não houvesse filhos. Dentro de poucas horas ele partiria e ela ficaria sòzinha.

- Não por muito tempo, meu amor- disse-lhe Allen. - Talvez só por algumas semanas.

Mas as semanas parecem anos, quando há apenas poucas horas, um dia ou dois para o amor. Ela chorou durante a segunda noite, a última noite, e o amor seguia-se ao carinho. Estava cheia de estranhos pressentimentos; de que não o veria mais, de que ele desapareceria no alto mar, de que o avião se despedaçaria de encontro a uma montanha, ou de que alguém da sua família os separaria. Aquela seria toda a sua vida em comum e não haveria mais continuação, estava convencida disso.

Allen tomou-a nos braços e Josui encolheu-se contra ele, pequena, chorando sobre o seu peito nu. Não havia meio de fazê-la acreditar nas suas promessas. Ela consumia-se de medo. A separação do inevitável amanhã talvez jamais tivesse fim, insistia. Iam ser separados para nunca mais se unirem. Ela sabia.

- Mas como podes saber, Josui? - perguntou ele finalmente, contrariado. - Por que razão justamente eu, entre tantas centenas de milhares de pessoas que atravessam o oceano em aviões, estaria destinado a afogar-me ou espatifar-me contra uma montanha? E como podes suspeitar da minha família, se nem sequer a conheces, ou então suspeitar de mim, se já me conheces bem?

Por fim, teve de ser até um pouco cruel.

- Josui, pensas que foi fácil para mim? Se não te amasse, estaria agora aqui?

Só havia uma resposta a essas perguntas e temores. Renovaram o seu amor uma e muitas vezes, carne contra carne, coração contra coração, enquanto o futuro ser esperava.

No dia seguinte deu-se a temida separação. Ele não deixou que Josui o acompanhasse até ao comboio, nem ela se animava a ir. O pai e a mãe apareceram por alguns instantes. Inclinaram-se, os homens trocaram um aperto de mão e depois os pais afastaram-se, deixando os dois sòzinhos. Allen teria jurado que a sua carne sangrava quando se afastou de Josui. Sentiu a dor de uma ferida em carne viva ao desprender as suas mãos das dela.

- Escreverei todos os dias - prometeu.

- E eu também - murmurou ela, com o rosto desfigurado e banhado em lágrimas.

- Contaremos tudo um ao outro - prometeu ele. - Pensa em mim, querida. Trabalharei dia e noite para levar-te à América. Agora um sorriso, querida... só para este último instante! Pensa na noite que passou. Ah, isso, minha querida!

Afastou-se depressa, voltou a cabeça para vê-la apoiada à porta, quase a desmaiar; sùbitamente, voltou e abraçou-a fortemente, mais uma vez.

- Não devo olhar para trás -murmurou com a voz entrecortada.

Esforçou-se para não voltar a cabeça e chegou apenas a tempo de apanhar o comboio, que já saía da estação.

 

 

A Srª Kennedy já estava preparada para a vinda do filho. A esposa do coronel, a quem não conhecia, escrevera-lhe relatando tudo.

- Deixa-me escrever à mãe dele- dissera ao coronel. Se fores tu a fazê-lo, pensará que tive com ele um caso amoroso e por isso estás a querer livrar-te do rapaz.

Assim, escrevera à Sr. Kennedy como uma mulher de idade suficiente para ser a mãe de Allen, e que fazia ùnicamente o que gostaria que lhe fizessem, caso se tratasse de um filho seu. Era um jovem oficial de qualidades extraordinárias, declarara, o braço direito de seu marido e um rapaz que devia ser salvo a todo custo. Era difícil dispensá-lo naquele momento, quando, em consequência de novas ordens do comando superior, muitos planos de acção estavam a ser experimentados. Mas seu marido estava disposto a fazer sacrifícios.

"Seu filho encontra-se tão acima do nível médio, que os métodos habituais não dariam resultado - escrevera. - Seria inútil falar numa ligação passageira, em fins-de-semana ou coisa parecida. Seu filho foi educado nas tradições do Sul. É um gentleman e olha até uma japonesa com sentimentos cavalheirescos. Decerto julga tratar-se de uma rapariga de alta classe, que não admite outra solução a não ser o casamento. Mas eu duvido que lhe tenha proposto uma situação diferente, e é claro que os japoneses estão todos ávidos para entrar nos Estados Unidos. Pensam que é o céu na terra e, em comparação com o seu próprio país, acredito mesmo que o seja."

A Srª Kennedy, que era uma mulher de temperamento reservado, respondera à carta com a gratidão devida, mas com inteira confiança no bom-gosto e capacidade de julgamento do seu filho. Tratava-se de uma carta discreta e cautelosa. A esposa do coronel, que não conhecia reservas, e talvez nem fosse uma senhora no sentido estrito da palavra, leu-a em Tóquio, surpresa, e atirou-a com impaciência por cima da mesa para que o coronel a lesse.

- Olha para isto - disse, autoritária. - Ela quer ou não quer uma nora japonesa?

O coronel leu a carta com atenção.

- Diabos me levem se consigo saber. É melhor não te meteres nessa história. De qualquer forma, Kennedy falou em não voltar mais. Vou substituí-lo.

A Srª Kennedy mostrou a carta da esposa do coronel ao marido e depois, em segredo, a Cynthia, porque O Sr. Kennedy lhe dissera que não a exibisse perante ninguém.

- Esta cidade é tagarela que nem uma comadre - declarou. - Pelo amor de Deus, Doçura, guardemos os assuntos da nossa família dentro destas quatro paredes. Além do mais, ainda não conhecemos a versão do rapaz.

Cynthia falou pouco. Leu a carta cuidadosamente e entregou-a à Sr Kennedy.

-As esposas dos coronéis não são tidas por um tanto...

Fez uma pausa.

-Um tanto quê? - perguntou a Sr Kennedy.

- Faladeiras - disse Cynthia por fim, esforçando-se por encontrar a palavra adequada, mas sem consegui-lo inteiramente.

-Talvez - concordou a Sr Kennedy. - Por outro lado, Allen é homem. Foi uma criança adorável. Eu costumava pensar que ele sempre havia de ser diferente dos outros. Mas isso não aconteceu. E exactamente como o pai. E esteve afastado tanto tempo do convívio normal da sociedade. Gostaria que me ajudasse, Cynthia.

Cynthia abriu muito os seus olhos azuis.

- Certamente, Sr. Kennedy. Faria qualquer coisa por Allen.

A Srª Kennedy beijou-a, pondo-se nas pontas dos pés para alcançar a jovem. Depois que Cynthia saiu, deu uma volta pela vasta e linda residência para certificar-se de que tudo estava na mais perfeita ordem. Teria mandado decorar novamente os aposentos de Allen, se houvesse tempo. Mas não era possível. Só lhe restava cuidar que os lençóis de linho fossem mudados, os cobertores arejados e vasos com pequenos crisântemos claros fossem colocados sobre a lareira e em cima da escrivaninha. No último momento ainda colheu uma rosa amarela que pós dentro de um pequeno vaso de prata, sobre a cómoda. Queria criar ambiente, o ambiente familiar, de tradição doce e envolvente, enquanto o seu amor tudo esperava do único filho e herdeiro. Sabia, desde há muito, que contrariá-lo, opor-se a ele, seria pôr tudo a perder. Não devia suscitar-lhe a cólera. Não tornou a falar na japonesa, nem mesmo ao marido. Trataria de esquecê-la. Como se não existisse.

Quando, finalmente, Allen chegou, ela estava parada no vestíbulo, trajando o seu vestido de tarde de chiffon cinza prata, e estendeu-lhe os braços. O rapaz correu para ela, envolveu-a nos longos braços juvenis e encostou o rosto ao seu. Como precisava curvar-se, aquele seu filho tão alto!

-Acho que cresceste! - exclamou A Srª Kennedy, rindo e afastando-o ligeiramente.

- E a mãe está perfumada como sempr disse ele. Nunca ficavam sérios um com o outro, graças a Deus. Ela troçava de tudo e o seu toque era leve como o das asas de um beija-flor.

- Oh, o teu rosto! - exclamou esfregando a face. - Não fizeste a barba desde que saíste do Japão.

De facto, a sua pele delicada estava vermelha no lugar em que o filho encostara o rosto.

- Dê-me cinco minutos - disse ele e precipitou-se pela escada acima.

Seu pai descia ao seu encontro e os dois estreitaram-se num forte abraço. O Sr. Kennedy nunca deixara que o filho abandonasse, ao crescer, essa expressão de afecto.

- A mãe mandou-me fazer a barba- disse Allen. - Isso faz com que me sinta em casa novamente.

- Então não te reterei - observou o pai, com brandura.

Eram sempre assim. Quando regressava a casa, por mais tempo que tivesse ficado ausente, seus pais continuavam os mesmos. Era como se nunca tivesse partido. Allen entrou impetuosamente nos seus aposentos e ficou a olhar com carinho a sua sala de estar, o amplo dormitório com a vista maravilhosa para o Oeste e, mais além, o seu confortável quarto de banho. Ele e Josui poderiam ter o seu próprio lar dentro do lar da família. Talvez seu pai tivesse agido inteligentemente ao decidir viver ali sem labutas e aborrecimentos. Allen nunca o vira feliz. Num mundo conturbado, aquele era o lugar que mais se aproximava do paraíso, e não havia razões para que ele e Josui não pudessem viver nele.

"Querida- escreveu-lhe naquela noite. - Estou sentado na minha saleta de estar, a sala que irás compartilhar comigo. Deixa-me descrevê-la para que te sintas em tua casa quando te trouxer ao colo para ela. Já conhecerás essa superstição?"

E passou a descrever os quartos e a casa, a aparência de seus pais, os morros e vales que, da janela perto da sua mesa, podiam ser vislumbrados também ao luar. Havia crisântemos sobre a escrivaninha, não grandes como os do Japão, mas pequenos, alegres, de pétalas mais fechadas. Contou-lhe que jantara sòzinho com os pais e Cynthia - Cynthia Levering, sua amiga de infância, quase uma irmã, somente não usava o nome da família. Agora, ela também era filha única, pois os irmãos tinham morrido na guerra, um no Pacífico e outro na Alemanha.

"Será boa amiga tua - escreveu. - E, acima de tudo, uma óptima pessoa e só dois ou três anos mais velha do que tu".

Allen sentira surpresa ao ver como Cynthia se tornara bonita. A beleza viera-lhe tarde. Lembrava-se dela, desajeitada e pálida, os louros cabelos lisos, a expressão tímida e humilde, com a humildade de uma rapariga que se vê alta de mais em relação aos seus amiguinhos. A timidez desaparecera e a humildade tinha-se transformado em doce modéstia. O cabelo sedoso era curto e anelado, a cútis perfeita, a boca de linhas suaves e os lábios não excessivamente vermelhos. Esguia e graciosa, aprendera a conformar-se tom a sua altura e mantinha a cabeça sempre erguida.

Era agradável, também, notar que estava contente em revê-lo, contente e sem receio de demonstrá-lo. Teve vontade de falar-lhe logo a respeito de Josui, mas ainda não contara a seus pais e não lhe pareceu justo dizer-lho em primeiro lugar. Além disso, Cynthia não se empenhou em vê-lo a sós e ele teria chamado a atenção se procurasse uma oportunidade para falarem em particular.

Terminou a longa carta e ficou sentado um instante com os olhos fechados, relembrando e imaginando Josui. Oh, fizera bem em casar com ela antes de partir! Agora pertencia-lhe, viria reunir-se a ele e ninguém os poderia separar. Recordou-a, movendo-se furtivamente naquela casa grande, metida nos seus pequenos quimonos japoneses se quisesse, a querida, pois ficavam-lhe tão bem que a faziam parecer uma verdadeira pintura. Não desejava que fosse inteiramente americana. Queria conservá-la como era, um tesouro oriental, alguém que compartilhasse a parte da sua vida que não podia dividir com mais ninguém naquela casa.

Dirigiu-se á longa porta envidraçada que abria para o balcão e ali ficou, olhando a noite enluarada. Havia anos inteiros da sua vida a respeito dos quais não podia falar, os anos de guerra, quando, muito jovem, fora separado cruelmente da existência normal; cenas que se haviam gravado na sua mente, experiências que o tinham moldado tão profundamente que jamais se livraria delas. Tinha a impressão de sentir ainda os miasmas das selvas húmidas, o horrível pulular de serpentes e insectos, o constante perigo de morte, não só proveniente do inimigo, como também de doenças, e a putrefacção naquelas paragens que os raios do sol nunca atingiam. Mas a pior das recordações ainda era a da lâmina vencendo a leve resistência da epiderme humana e afundando-se na carne macia e palpitante abaixo dela. Mesmo ali, onde a morte nunca chegara, não conseguia esquecer.

Voltou-se bruscamente e foi para o quarto de banho. Abriu as torneiras de água fria e quente ao mesmo tempo e deixou a água cachoar na vasta banheira. Purificar-se-ia de tudo aquilo e depois iria dormir.

- Como o achaste? - perguntou A Srª Kennedy ao marido.

- Parece muito bem, e muito feliz -replicou ele.

Iam preparar-se para a noite, ela no seu amplo quarto de dormir e ele no seu. Vestindo um casaquinho de rendas por cima da camisa de dormir, estava parada na porta aberta pela qual comunicavam os dormitórios. Ele amarrava o cinto do pijama.

- Não direi uma palavra - declarou A Srª Kennedy. Ele que pense que não sei de nada.

- Acho isso muito prudente- observou O Sr. Kennedy.

Nunca acreditei em discutir as coisas.

Foi até à porta e beijou-a gentilmente.

- É melhor ires deitar-te - aconselhou. - Tiveste um dia agitado.

A esposa ficou parada, indecisa.

- Ele é um belo rapaz - disse, pensativa. - Quando era menino, não pensei que viesse a ser tão bonito. Estou satisfeita por se parecer contigo.

- Nada disso -retorquiu o marido. - Não se parece comigo. Sai à minha mãe e aos Lamberts. Parece-se com meu pai.

Beijaram-se mais uma vez e foram deitar-se nas suas camas separadas. A porta de comunicação ficava aberta. A certa hora da noite, A Srª Kennedy costumava acordar e ir, na ponta dos pés, fechar a porta. Ele nunca sabia quando isso acontecia. Mas pela manhã encontrava-a sempre fechada. Por que razão a Srª Kennedy procedia dessa maneira, jamais indagara. Não acreditava em discutir as coisas e evitava-o sempre que lhe era possível.

- Eles sabem- disse Cynthia.

Encontrara-se com Allen por acaso na manhã seguinte, enquanto fazia compras para sua mãe, que costumava esquecer sempre os artigos mais essenciais para o uso diário da casa. Desde o seu tempo de menina, Cynthia fazia essa caminhada até ao centro da cidade para completar as compras da mãe. Não ficava muito longe. Andando quinze minutos por uma rua sombreada de árvores, depressa chegava à parte da cidade onde ficavam as lojas. Mesmo depois de ter o seu carro próprio, costumava fazer o trajecto a pé. Isso proporcionava-lhe uma oportunidade de falar com as pessoas. E assim encontrara Allen e ambos seguiram juntos, conversando com todos que encontravam pelo caminho. Cynthia não chegava a ser tão alta como Allen.

Ele falara-lhe a respeito de Josui. Sentira necessidade de desabafar. Era impossível pensar nela constantemente, escrever-lhe todas as noites e não contar nada a ninguém. Mais cedo ou mais tarde devia revelar tudo aos pais, mas isso tinha de ser feito com precaução, no momento oportuno. Estava convencido de que a mãe não receberia fàcilmente sua esposa, fosse ela quem fosse. Não havia razão para pensar que Josui seria menos bem-vinda que outra qualquer, mormente quando a mãe soubesse que já estavam casados; mas, por outro lado, também não havia motivo para imaginar que isso a faria mais condescendente.

O que não admitia nem perante si próprio era que falava com Cynthia a respeito de Josui em benefício dela mesma. Desprezava os homens que imaginavam estarem as mulheres apaixonadas por eles e, assim, o subconsciente dizia-lhe que teria sido fácil voltar para Cynthia, se não tivesse conhecido Josui. A maneira agradável e a genuína doçura com que o tratava podiam significar tudo, ou coisa alguma. Ele nunca se esforçara por descobrir a profundeza dos seus sentimentos. Era possível que procedesse com todos da mesma maneira.

Allen estacou.

- Eles sabem? -repetiu, incrédulo.

- A esposa do coronel escreveu a tua mãe- disse Cynthia na sua voz calma e macia, arrastando um pouco as palavras à maneira das pessoas do Sul. Esforçara-se por perder esse modo de falar, que no entanto lhe era inato.

- Mas o próprio coronel não sabe! - exclamou o rapaz.

- Não fiques aí parado, Allen - disse Cynthia. - As pessoas começam a reparar.

Ele então moveu-se apressado, e ela foi obrigada a fazer um esforço para alcançá-lo. Riu-se.

- Também não precisamos correr. Que é que o coronel não sabe?

Allen diminuiu os passos.

- Casei-me com Josui. Ninguém sabe disto a não seres tu. Queria dizer-to porque preciso da tua ajuda. Fui directamente a Kyoto e casei com ela para que ninguém mais nos separasse. Sei por que razão fui licenciado: para que esquecesse Josui. O coronel e a esposa imaginaram que, se voltasse para casa e tornasse a ver tudo isto aqui - o seu olhar abrangeu a rua arborizada, as lojas, as grandes casas brancas recuadas dos passeios - esqueceria. Então aquela mulher dos diabos escreveu a minha mãe!

Franziu as sobrancelhas. Cynthia olhou-o de soslaio, com um rancor que chegava a envergonhá-la. Que direito tinha ele de ir para um país estrangeiro e arranjar uma esposa estrangeira? E as mulheres como ela, que envelheciam em todas as pequenas cidades e aldeias da América? As estrangeiras que casassem com homens da sua terra. Allen pertencia-lhe. Se não o tivessem mandado embora à força - que era o recrutamento senão isso? - agora estariam casados, com certeza, e ela viveria na casa dos Kennedy, o lugar que era quase o seu desde que nascera. Se ele não fosse tão atraente, se a sua cabeça não se elevasse acima da dela -jamais casaria com um homem mais baixo, e quase todos eram de menor estatura que a sua - talvez não tivesse tomado a decisão que tomou tão repentina e instintivamente como se não fosse uma mulher civilizada que vivia num país civilizado. Resolveu aliar-se à mãe de Allen e não a ele. Faria o que estivesse ao seu alcance para impedir que a japonesa viesse.

Allen continuava a falar, ràpidamente e em voz baixa:

- Vou mandá-la vir assim que puder. Por sorte é cidadã americana. Nasceu aqui. Na verdade, Cynthia, só aos quinze anos é que foi para o Japão. Até estudou aqui. O seu inglês é perfeito... ou quase perfeito. Quando não presta muita atenção, chama-me Allen Kennedy.

- Pensei que fosse um tanto difícil casar com uma japonesa- disse Cynthia. Sob o seu chapéu de feltro claro, sorria constantemente, observando a rua, acenando de vez em quando a algum conhecido.

A todo o momento eram interrompidos no caminho por pessoas que ambos conheciam, e agora, antes que Allen conseguisse responder à pergunta de Cynthia, foram forçados a parar novamente.

- Allen Kennedy, não é?

Um grupo de lindas jovens, a caminho de uma reunião matinal no clube de bridge, circundou-os.

- Certamente não a veremos no clube esta manhã, Cynthia!

- E não podemos criticá-la por isso!

As suas vozes juvenis e claras ressoavam no ar frio outonal; trajes novos de Outono, casaquinhos claros, saias esvoaçantes, chapéus pequenos de cores alegres, cabelos lustrosos, olhos brilhantes e curiosos e pequenas mãos irrequietas cercaram Allen e Cynthia com um entusiasmo que era inocente e ao mesmo tempo cheio de astúcia feminina. Olhos jovens e femininos observavam Allen, lábios vermelhos se entreabriam. Em cada um daqueles rostos maquilhados havia o olhar penetrante da fêmea que espreita a caça sòzinha, pronto para, a qualquer momento, desertar das companheiras quando surge o macho desejado. Era cada mulher por si, mas Cynthia era a afortunada, em cuja companhia ele andava. Um impulso vingativo se apoderou do coração de Cynthia, habitualmente generoso. Sorriu a todas e disse com a sua bela voz:

-Allen acaba de me dar uma notícia maravilhosa. Casou-se com uma linda jovem japonesa, pouco antes de voltar para cá.

Dava pena ver a súbita mudança nas fisionomias e a luta para dissimulá-la, o instantâneo esforço de contrôle, a artificial expressão de alegria e as falsas congratulações.

"Oh, Allen, que maravilha!"

"Fale-nos dela."

"Tem um retrato?"

O rapaz lançou um olhar indignado a Cynthia.

- Bem, eu não tencionava anunciá-lo desta maneira - conseguiu dizer.

Tinha uma pequena fotografia que Josui lhe dera antes da partida, um instantâneo que a mostrava em roupas escolares. Não era um bom retrato. A sua expressão era de seriedade, o vestido não lhe assentava bem, o cabelo estava liso. Mas as jovens pegaram no retrato, passaram-no de uma para outra e, ao verem aquele jovem rosto austero, exclamaram aliviadas e cheias de triunfante piedade:

- Ela é um amor, Allen!

Entregaram a fotografia a Cynthia com meneios e sorrisos, e afastaram-se, enquanto a jovem continuava a caminhar, estudando as feições de Josui. Os olhos_ eram estranhos. - Não está nada parecida- observou Allen. - Ela é muito bonita e fica linda nos seus trajes japoneses.

- Mas não vai poder usar roupas japonesas aqui, não é? -sugeriu Cynthia. - Chamaria muito a atenção. Não achas? -Suponho que sim- disse Allen. Tirou a fotografia das suas mãos e tornou a guardá-la na carteira.

Continuaram a caminhar por alguns minutos.

- Não me contaste como se casaram-lembrou Cynthia. - Casámos num templo budista. O budismo é a religião da família.

- Que interessante! Diz-me, é como a cerimónia da nossa Igreja Episcopal?

- Não... quer dizer, sim. Suponho que as coisas essenciais são as mesmas em todas as religiões. Havia um ministro e sacerdotes, e os deuses.

- Deuses?

-Sim, imagens, como as dos católicos. Naturalmente não adoram as estátuas, elas só servem para melhor concentração do pensamento em algum grande santo ou em Deus.

- E tu prometeste amar... e tudo o mais?

- Fiz todas as promessas - disse ele com firmeza. “Porque", pensou, "fazia tantas perguntas? Seria realmente sua amiga?"

- Que ideia foi essa de contar a todas aquelas moças? - perguntou. - Vão espalhar a notícia por toda a cidade.

- Foi por isso mesmo que contei -respondeu ela com mais calma que habitualmente. - Quanto mais cedo todos souberem, tanto melhor. Até logo, Allen, preciso ficar aqui. É uma loja de chapéus e creio que não queres entrar.

Então ela não era sua amiga!

Josui tinha recebido a sua primeira carta. Continuava a frequentar a Universidade e ninguém sabia de coisa alguma. O pai declarara que só permitiria a participação do casamento depois de chegarem os papéis da América, A carta veio enquanto ela estava ausente de casa. A Srª Sakai recebeu-a, viu de quem era e deu-a ao marido. O Dr. Sakai guardou a carta na gaveta de cima da sua escrivaninha. Durante dois dias não a entregou a Josui. Enquanto ia e vinha do hospital, e se ocupava com os seus doentes, pensava na carta e não lhe tocava. Ultimamente visitava O Sr. Matsui todos os dias, pois o seu velho amigo sofria de inflamação da vesícula biliar e piorara por ter abusado de caranguejos no Outono. O Sr. Matsui era um homem bastante moderado, mas todos os anos, naquela época, não resistia à tentação de comer alguns caranguejos, acompanhados de vinho. Tratava-se de um prato que apreciava sobremaneira. Algumas vezes os caranguejos faziam-lhe mal, outras não; dependia do que os crustáceos tivessem comido antes. Nesse Outono, tinham sido perniciosos. O Sr. Matsui adoecera seriamente; por vários dias o Dr. Sakai estivera apreensivo e Kobori mantivera-se sempre a seu lado. Por fim o doente melhorou e, embora o filho ficasse em casa trabalhava no seu gabinete e já não permanecia constantemente à cabeceira do pai.

O Sr. Matsui estava deveras grato por ter escapado à morte e, envergonhado pela sua falta de comedimento, afirmou ao Dr. Sakai que esse ano lhe servira de lição e que não tornaria a comer caranguejos. Sentia-se tão bem que pediu ao amigo que viesse fazer-lhe uma visitinha para uma palestra amigável após o seu trabalho no hospital. O Dr. Sakai atendeu-o com prazer. Sentia-se cansado, mas achava que jamais poderia reparar o comportamento de sua filha diante da família Matsui, nem demonstrar suficiente gratidão pela sua magnanimidade. Quando tentara expressar esse sentimento, O Sr. Matsui limitara-se a sorrir e dizer, com um aceno de mão:

- Essas coisas não são importantes.

Nunca deixava transparecer o menor sinal de aborrecimento ou vingança no seu modo de proceder. Talvez o assunto não fosse realmente importante. Mesmo assim, o Dr. Sakai era orgulhoso de mais para esquecer o incidente.

Naquele dia, à tardinha, sentado junto ao leito do amigo, sentiu vontade de fazer-lhe confidências. A casa estava silenciosa e as portas fechadas; devido ao frio outonal, um braseiro de bronze, de três pés, no meio do soalho, difundia um calor suave. Uma leve corrente de ar passava pelo aposento, proveniente de uma janela, entreaberta para purificar o ar do fumo.

O Sr. Matsui estava deitado na sua esteira, a cabeça e os ombros cobertos com um casaco curto de seda cinzenta, cruzado no peito e amarrado sob os braços. Parecia quase completamente restabelecido. O tom amarelo da sua tez desaparecera e a fisionomia, que estivera torturada pela dor, recobrara a expressão de paz.

- Devo-lhe a minha vida - disse.

-Só cumpri com a minha obrigação - afirmou o Dr. Sakai. - Fez mais do que isso - insistiu O Sr. Matsui. – Agora todas as dívidas estão saldadas.

O Dr. Sakai compreendeu e sentiu-se comovido. Curvou-se para a frente e falou em voz baixa:

- Necessito do seu conselho. Chegou uma carta para minha filha. Está dentro da minha escrivaninha. Cometeria um erro, se não lha entregasse? É para sua própria felicidade que ainda espero vê-la separada do americano. É no seu interesse, o senhor compreende? Estou certo de que será infeliz na América, assim como eu o fui.

O Sr. Matsui pôs-se a reflectir, ùnicamente como amigo. De forma alguma aceitaria mais aquela jovem na sua família, pois, pelo que ouvira dizer, o casamento consumara-se, e para seu filho só serviria uma virgem.

- Sou de opinião que deve dar-lhe a carta - disse. - Afinal de contas, ela é sua filha. Concordo plenamente com o senhor; mas no seio da família, as relações correctas devem ser mantidas.

O Dr. Sakai inclinou-se levemente.

Em seguida O Sr. Matsui mudou de assunto. - Penso ampliar o vestíbulo da casa de chá.

Mais tarde, quando Josui foi dar boa-noite aos pais, o Dr. Sakai abriu a gaveta da escrivaninha.

- Chegou esta carta para ti, durante a tua ausência disse.

Não disse em que dia a carta chegara e Josui também não indagou. Inclinou-se profundamente diante do pai e da mãe e dirigiu-se para o seu quarto. Oh, uma carta! Não pôde abri-la logo. Encostou-a ao rosto, ao peito, e depois aos lábios. A seguir passou a examiná-la com atenção. O seu nome estava escrito bem nitidamente: Srª Allen Kennedy e, em baixo, Josui Sakai, na dúvida; depois o nome da rua, Kyoto, Japão, e os selos de cor viva. Tinha chegado por via aérea e a que preço! Mas ele queria que a recebesse logo e portanto devia lê-la cuidadosamente, mas não antes de se ter lavado. Colocou a carta sobre a pequena cómoda enquanto se preparava. Só depois de vestir a macia roupa de dormir de seda azul e branca, de ter escovado e entrançado o cabelo, pegou na tesoura, cortou o envelope com cuidado, sem tocar nos selos, e retirou de dentro as folhas de papel.

Leu palavra por palavra, cuidadosamente, considerando cada uma delas indispensável e preciosa. Durante a leitura tentou ver exactamente o que ele via, com o auxilio das suas recordações de Los Angeles. Mas na Virgínia tudo era melhor do que as coisas que recordava, e foi-lhe preciso forçar a imaginação para ver os morros ondulados, os jardins e a mansão que era o seu lar. Demorou-se mais ternamente na descrição dos seus aposentos nos quais, um dia, iria viver com ele. Allen contava-lhe tudo, falava na grande cama coberta com uma colcha de cetim castanho-dourado, os mesmos tons dourados nas cortinas e nos tapetes, e desenhos em vermelho intenso e amarelo-pálido; mesmo assim era um quarto simples, dizia ele. Mas como podia ser simples? Na sala de estar havia uma lareira. Ele tinha dois aposentos só para si - e para ela - e eram tão grandes, quase como o jardim da casa ali em Kyoto. Imaginava a janela grande, os livros na estante perto da lareira e as poltronas macias, cada uma de tamanho suficiente para dar lugar a ambos, escrevia Allen. Leu e releu a descrição dos quartos, pois seriam o seu lar e devia familiarizar-se com eles para que, ao ocupá-los, se sentisse em sua casa. Seus pais estavam bem. Ainda não lhes contara. Ela, porém, não devia ter medo, pois estavam mais do que nunca amáveis com ele. Iriam recebê-la com satisfação, primeiro por causa dele, depois por ela própria. Devia trazer muitos dos seus lindos quimonos, não para usá-los na rua, naturalmente, mas dentro de casa.

Finalmente, Josui apagou a luz, aconchegou-se sob os cobertores e, com a carta apertada de encontro ao peito, chorou mansamente durante longo tempo, porque estava tão longe dele, tão sòzinha e tão feliz.

Allen precisava contar aos pais - agora, imediatamente! Quando pensava em seus pais, era sempre a mãe que tinha em vista. Aquele homem complacente que era seu pai escutaria fàcilmente a voz da razão. Ficou indeciso ao separar-se de Cynthia. O problema era se deveria contar primeiro ao pai e pedir-lhe ajuda, ou procurar logo a mãe e falar-lhe abruptamente, sem rodeios, partindo do pressuposto de que o que fizera seria aprovado. Ponderou as relações existentes entre o homem e a mulher que eram seus pais. Por intuição sabia em que consistiam. Durante toda a sua vida, quando se tratava de coisas menos importantes, ponderara a mesma questão. Quando menino, um pouco por covardia, ou porque sempre desejara ardentemente aquilo que queria, a ponto de considerar insuportável uma recusa, às vezes dirigia-se ao pai e então ambos, juntos, iam falar com a mãe. Mais tarde, já adolescente, também só por meio da intuição e da experiência, percebera que o pai não representava um auxílio para ele. Pelo contrário, sua mãe assumia uma atitude hostil quando o pedido era feito por intermédio dele. Era aconselhável falar directamente com ela, tal como quando frequentava a Universidade em Charlottesville e desejara intensamente um carro conversível. Fora o pai que hesitara, e as suas dúvidas fizeram com que a mãe tomasse uma atitude firme. "Acho que Allen deve ter o carro", declarara. "Precisa de independência".

Suspirou profundamente. Bem, era o que precisava agora. Iria directamente a ela, imediatamente, pois dentro de pouco tempo os telefones começariam a retinir e. a mãe o receberia com frieza por ele não lhe ter contado. Subiu correndo a escada de mármore branco, chegou à ampla varanda de colunas e entrou em casa, gritando:

-Mãe, onde está?

Ela gostava de o ouvir chamá-la.

- Estou aqui! -respondeu uma voz distante. - Aqui, no jardim de inverno.

A casa tinha um jardim de inverno de formato octogonal, antigo, que seu avô mandara construir atrás da ala esquerda. Comunicava, por meio de uma porta, com a actual sala de jantar, que naquele tempo fazia parte do salão de bailes. Este fora dividido mais tarde; construíra-se ali uma biblioteca e aproveitara-se o espaço excedente para aumentar as salas do andar térreo. Seu pai considerava o salão de bailes antiquado e por demais ostentoso.

A mãe cavava a terra dum grande vaso de samambaias. A pàzinha de cobre reluzia nas suas mãos enluvadas. O sol da manhã brilhava sobre as samambaias e os crisântemos.

- Que crisântemos! - exclamou ele. - São quase tão grandes como os do Japão.

Ela não demonstrou interesse algum pelo Japão.

- Eu estava a pensar que devíamos organizar uma reunião dançante - disse. - Todos querem ver-te. O telefone não pára de tocar.

Allen aproveitou a ocasião.

- É melhor que lhe fale num assunto antes que o telefone se encarregue disso. Cynthia disse-me que a mãe já sabe. Mas suponho que não saiba tudo. Ela contou-me que a esposa do coronel se sentiu na obrigação de lhe escrever.

Sua mãe continuou a cavar cuidadosamente entre as raízes musgosas.

- Referes-te àquela japonesa?

- Sim.

- Oh, não levei o caso a sério - disse ela, no seu tom de voz mais despreocupado. - Compreendo o que deve ter acontecido. Estavas longe, e decerto lá não havia americanas atraentes. Mas agora estás aqui e...

- Espere, mãe.

Ela levantou os olhos e viu-lhe o rosto pálido, a boca seca e contraída.

- Ora, o que há Allen?

- Está completamente enganada a respeito de Josuí. É esse o seu nome. Ela é minha esposa.

- Allen Kennedy.

Era assim que o repreendia desde a sua mais tenra infância, de cada vez que ele não se portava bem: quando lhe tinha mordido o seio, quando atirava os brinquedos ao chão, quando enlameara o seu primeiro fatinho ou faltara à aula, quando lhe tirara uma nota de dólar da bolsa ou fumara o seu primeiro cigarro, quando voltara embriagado de um baile.

- Estamos casados, mãe - disse. - Quero trazê-la para cá o mais depressa possível.

Ela largou a pàzinha e tirou as luvas.

- Vamos para a biblioteca - disse. - Temos que discutir o assunto.

- Não há muito que discutir, mãe. Já está feito. - Mas seguiu-a e sentaram-se um de cada lado da lareira, onde não havia fogo.

- Conta-me tudo- insistiu ela. Estava sentada, as mãos entrelaçadas; a voz perfeitamente calama e um leve sorriso nos lábios, mas os olhos... notou a perturbação nos seus olhos.

   Contou-lhe tudo, furioso consigo mesmo e com ela, por sentir-se, já homem, perseguido por fantasmas de velhas culpas, pecados infantis pelos quais, naquela mesma sala, tantas vezes ela o repreendera. Tinha sempre de pedir desculpas, dizer que estava arrependido e nunca mais faria aquilo, e que a amava muito. O processo era imutável: primeiro a sua cólera, a sua aflição, depois o perdão, a necessidade de ouvi-lo dizer que daí por diante seria um bom rapaz porque a amava.

   Não seguiria o mesmo caminho desta vez, prometeu a si mesmo. Contar-lhe-ia tudo, simplesmente. Se não o quisesse mais em casa, que o dissesse. O mundo era grande e ele viajara muito.

   Ela porém, não se comportou como de costume. Depois de ter contado tudo, com excepção das horas profundamente sagradas das duas noites que passara com Josui, Allen foi obrigado a reconhecer que sua mãe estava a ser muito generosa. Ouvira sem se zangar, embora ele pudesse ver que ficara extremamente abalada. O facto de ela lutar consigo mesma de maneira tão evidente amolecia-o contra sua vontade. Teria preferido que a mãe se zangasse, pois assim se sentiria fortalecido pela sua própria cólera.

     Vai gostar de Josui - disse, odiando a entonação quase suplicante da sua voz. -Ela não é como as outras japonesas, mãe. Fala correctamente inglês e conhece a nossa maneira de viver.

- Disseste que ela é inteiramente japonesa? – perguntou a Srª Kennedy.

   - Sim, mas nasceu na Califórnia. Não lhe tinha dito ainda?

Já lhe falara nisso, mas desejava repeti-lo.

-Então ela tem o tipo japonês? -disse a mãe.

-Eles não são escuros, mãe. Quero dizer, não são nada parecidos com as pessoas de cor daqui.

- Mas certamente não são brancos - exclamou ela, com dureza. A isso não tinha que responder. Houve um momento de silêncio entre ambos. Depois ela prosseguiu, com a mesma aspereza na voz: - Parece tão estranho que tivéssemos lutado contra os japoneses. Eram nossos inimigos ainda não há muito tempo, e agora pedes-me para receber aqui uma japonesa.

- Mãe, sei o que sente. Eu sentia a mesma coisa, confesso. Antes de conhecer bem Josui, costumava pensar nisso e perguntava a mim próprio por que razão não a colocava ao mesmo nível... dos outros. A resposta é que não a coloco ao nível de pessoa alguma que tenha conhecido até agora, Josui é simplesmente ela mesma, a mulher que eu amo, e de quem fiz minha esposa. Acontece apenas que os seus antepassados vieram de umas ilhas do Oriente em vez do Ocidente. Poderia ter nascido na Inglaterra, por exemplo.

-Os nossos antepassados vieram da Inglaterra.

- Um grupo de ilhas, apenas - repetiu ele. - Depois lembrou-se de qualquer coisa e teve um sorriso contrafeito. - O pai dela pensava exactamente como a mãe. Não me queria para genro por eu ser branco.

Isso não a interessou. Não podia imaginar como era o Dr. Sakai. Allen continuou a olhar fixamente para o tapete vermelho a seus pés.

- A Srª Sakai foi muito correcta - prosseguiu. - É uma verdadeira japonesa... uma dessas noivas de anúncio... A mãe ergueu sùbitamente a cabeça. - Noivas de anúncio?

O rapaz desejou não ter pronunciado a expressão.

- Oh, isso foi há muito tempo. As nossas leis de imigração proibiam a entrada de asiáticos e os homens que aqui viviam eram forçados a escolher as esposas no Japão por meio de fotografias e casar por procuração ou coisa parecida.

- Não pode ter sido de muito boa família, mesmo no Japão - respondeu ela, friamente. Ainda assim, não demonstrava interesse algum.

Ele inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos nos joelhos e tentou sorrir, procurando no rosto da mãe um sinal de simpatia.

- Então mãe?

Novamente os seus olhos se encontraram. -Se já está feito, como disseste... - Está, sim -repetiu ele com firmeza. -Só nos resta...

- O quê, mãe?

Sua mãe não quis prosseguir.

- Não, nada. Uma ideia absurda que me ocorreu. - Mas, minha mãe...

Ela, então exclamou com arrebatamento:

- Não, Allen, deixa-me ficar um pouco sòzinha. Terei que contar a teu pai. Será um golpe para ele. Tínhamos pensado que casarias com alguém daqui... Cynthia, talvez... e sonhávamos ver os nossos netos correndo pela casa.

Nunca tive tantos filhos como desejava. Não foi possível, bem sabes.

-Talvez tenhamos filhos, mãe.

Sua intenção era confortá-la, mas viu logo que cometera um erro deplorável. Agora sim, ela já não conseguiu controlar-se.

-Oh, não Allen! - gritou pondo-se de pé.

- Mãe! - exclamou ele, alarmado. De um salto estava a seu lado para ampará-la. Ela caiu-lhe nos braços, chorando. Não havia nada que pudesse fazer para conter-lhe os terríveis soluços. Nunca a tinha visto chorar; não costumava recorrer às lágrimas e ele sabia que aquelas não eram derramadas em defesa própria. Segurou-lhe a mão, murmurando continuamente:

-Minha mãe... não faça isso. Vai ver.

Mas a mãe desprendeu-se e saiu da sala, correndo.

O Sr. Kennedy, que voltava de um tranquilo passeio pela cidade, percebeu logo a alteração na atmosfera da casa. A caminhada matinal era um hábito adquirido depois da morte de seu pai, que o deixara herdeiro único de considerável fortuna acumulada no comércio de algodão em Nashville, Tennessee, e com a criação de cavalos no Kentucky. Todas as manhãs, depois da sua primeira refeição, O Sr. Kennedy visitava alguns amigos, nunca os mesmos em dias consecutivos, e falando pouco e ouvindo muito, tornou-se um dos homens mais bem informados das redondezas. Várias vezes por ano, empreendia viagens a diferentes lugares do país para descobrir o que o povo dizia e pensava. Os seus conhecimentos gerais tê-lo-iam habilitado a concorrer a um lugar no Congresso, e até no Senado, mas não tinha o desejo de fazer uso do seu cabedal de informações ou de transmiti-las. Se tivesse sido criado noutro meio, teria sido professor de Filosofia, ou, se possuísse talento verbal, poderia ter-se tornado poeta. Dadas as circunstâncias, era apenas um homem benigno com um acervo de sabedoria que raramente vinha à luz, mas da qual no seu íntimo usufruía imensa satisfação.

Tinha uma natureza tão sensível que lhe bastou cruzar os umbrais da casa naquela bela manhã, por volta do meio-dia, para notar que algo de anormal acontecera. Dirigiu-se de mansinho ao armário de cabides, pendurou o sobretudo cinzento e o chapéu e colocou a bengala dentro do grande vaso chinês de porcelana azul que se encontrava a um canto do vestíbulo. Logo depois sentiu os passos do filho no andar de cima e a seguir ouviu-o descer a escada.

- Ainda bem que chegou- disse Allen, surgindo da última curva da larga escadaria. - Não sabia onde procurá-lo. Acho que perturbei horrivelmente a mãe. Ela fechou-se no quarto.

A porta fechada era um sinal. Olharam-se.

- Não sei como dizer-lhe - disse Allen.

- Creio que posso adivinhar - replicou O Sr. Kennedy.

Conduziu-o para a sala de estar, onde se sentou.

- Eu previa que isto iria acontecer mais cedo ou mais tarde - prosseguiu. - Sabíamos, já há algum tempo, que tu tinhas um interesse pessoal no Japão. O coronel...

Allen interrompeu-o, com impaciéncia febril.

- Pai, o que transtornou a mãe foi o facto de eu ter casado com Josui.

Sentou-se no braço de uma grande poltrona de veludo, contrariando inconscientemente uma das primeiras normas que lhe haviam sido inculcadas na infância.

O rosto grande e pálido, de bochechas caídas, do Sr. Kennedy tornou-se levemente rosado. A sua pele era macia, e a barba ruiva estava sempre cuidadosamente escanhoada com excepção de um pequeno cavanhaque abaixo do lábio Inferior saliente. As pálpebras dos seus olhos cinzentos-claros eram cor de cera e estavam quase sempre semicerradas. Só quando se sentia perturbado costumava levantá-las. Fê-lo agora.

- Filho, devias ter-nos dito- disse em tom de censura.

- Não esperava casar imediatamente - retrucou Allen. - Porém, de repente, pareceu-me a coisa mais acertada a fazer. E continuo a pensar assim. Ela é de boa família. Além do mais, não sou do tipo dos que agem de maneira diferente. Pelo menos, penso que não. Talvez seja simplesmente porque presenciei muitos casos desses e fiquei repugnado.

O Sr. Kennedy nada respondeu. As relações entre ele e o filho eram estreitas mas inteiramente formais, sem lugar para sentimentalismo.

- Que espécie de rapariga é ela- perguntou. As suas mãos grandes e brancas, colocadas sobre os braços da cadeira, pareciam singularmente impotentes como se nunca tivessem sido muito utilizadas, e de facto não o haviam sido.

- A mãe gostaria de Josui, se pelo menos se permitisse encarar essa possibilidade- disse Allen, argumentando. - A verdade é que sou feliz, pai. Apaixonámo-nos à primeira vista. Poderia ser simplesmente uma rapariga bonita. Mas é muito mais do que isso.

- Há quanto tempo a conheces?

- Não muito, mas o suficiente para saber que tem mais qualidades ainda por descobrir.

Levantou-se e começou a andar pela sala, continuando a falar sem olhar para o pai.

- Não lhe posso dizer porquê e como aconteceu. Trabalhei muito este ano, e especialmente depois das alterações no comando. Um dia, alguns dos meus colegas resolveram visitar Kyoto e Nara e, como eu não tinha tirado nenhum dia de licença durante meses, resolvi ir com eles. Casualmente vi Josui no portão dum colégio. Creio que os nossos olhares se encontraram no momento psicológico. Sabe Deus! Eu poderia ter passado adiante sem pensar mais nela. Mas não aconteceu. Voltei de tarde e foi assim que nos conhecemos. Não é só ser bonita, pai, garanto-lhe. Ela tem qualquer coisa fora do comum, e talvez fosse isso que me chamou a atenção. Não se parece com nenhuma mulher que eu tenha conhecido. Ou talvez seja porque é uma oriental; como posso saber? Andei três anos lá e pode ser que isso se tenha infiltrado no meu sangue. Muitos homens dizem que assim acontece, e que depois disso nunca mais se pode casar com uma americana.

O Sr. Kennedy, sentado ali, com a boca descorada e grande ligeiramente aberta, parecia desorientado, mas não o estava. Ouvia e reflectia. Sabia perfeitamente o que a sua Josephine, a sua pequena imperatriz, podia pensar daquilo tudo. E compreendia de que falava seu filho. Os homens do Sul por acaso não sabiam há muito tempo? Suas esposas deixavam-nos ir até certo ponto, mas nunca além. As marés do oceano não eram mais bem reguladas que a preponderância das mulheres brancas no Sul.

- A tua mãe nunca há- De gostar disso - observou com voz inexpressiva. - Uma ligação de outra espécie ter-lhe-ia sido indiferente. Suponho que as nossas mulheres estão acostumadas a isso. Mas receber aqui uma rapariga, e que não é branca, vê bem, como nora... é coisa séria, e não sei se poderá conformar-se. É melhor eu ir lá para cima.

Ergueu-se pesadamente, apoiando-se nas mãos grandes, e atravessou a sala com passos lentos até à escada. Subiu devagar, assentando firmemente os pés em cada degrau. Ao chegar à porta do quarto de dormir da esposa, sacudiu de leve a maçaneta.

- Abre a porta, Doçura! - pediu.

Esperou e, alguns instantes depois, ouviu-a atravessar o quarto. A porta abriu-se e ele tomou-a nos braços com um gesto de paciente intimidade. Ela encostou a cabeça no seu ombro e o marido ficou a acariciar-lhe os cabelos.

- Ele contou-te? - inquiriu, com o rosto contra o seu casaco.

- Sim, Doçura.

- Que faremos?

- Eu acho que o melhor é não fazer nada. Deixa que as coisas sigam o seu curso.

- Mas ele vai trazê-la para cá! - Teremos que deixá-la vir. - Não permitirei!

- Bem, se não queres permitir, então já é outra coisa.

Acho que, nesse caso, ele sairá daqui e irão morar noutro lugar.

Ela afastou-o de si. O marido suspirou e ficou à espera, enquanto a esposa andava de um lado para outro, comprimindo as têmporas com um lenço embebido em água-de-colónia.

- Estou com uma terrível dor de cabeça.

- É o que eu temia.

Sentou-se com cuidado numa poltrona baixa forrada a tafetá cor-de-rosa. Era pequena de mais para ele e não se sentia confortàvelmente instalado, mas sabia que não existia no aposento outra onde pudesse sentar-se.

Esperou, enquanto ela humedecia as fontes, sentindo que a amava, que apesar da sua impertinência, da sua vontade de domínio, do seu constante império, era uma boa mulher, uma boa esposa, e que nela se personificava a força da nação. Se todos fossem como ele, não haveria ordem e nem talvez decência. A casa seria uma balbúrdia e as pessoas da cidade tirariam vantagem da sua fraqueza. Desejaria que ela pudesse amá-lo com um pouco mais de paixão, mas nenhum homem pode ter uma boa esposa e uma amante ao mesmo tempo. Se tivesse sido mais activo, talvez tivesse caído nas tentações em que caíam os outros homens, mas isso acarretava muitos incómodos. Amava a paz e disfrutava-a em casa, à sua maneira.

- Doçura - começou delicadamente -tu és uma mulher superior e não devias afligir-te dessa maneira. Sei o que sentes. Também sinto qualquer coisa de parecido. Sempre desejei que Cynthia fosse a mãe dos nossos netos. Mas o nosso rapaz quis uma coisa diferente e agora está feito. Nada podemos modificar. Devemos conformar-nos. Vejamos o que se pode fazer para que seja bem sucedido.

Ela torcia o lenço, atando-o e desatando-o, com o rosto em fogo, ainda tão belo sob os cabelos levemente grisalhos, caído sobre a nervosa actividade das mãos.

- como pode ser bem sucedido? - perguntou. - O casamento representa mais do que a simples união de duas pessoas, Tom. É a constituição de uma família. Eles não devem ter filhos. Não devem!

O marido não respondeu. Sabia o que a esposa queria dizer. A imagem de pequenos mestiços japoneses correndo pela casa era realmente enervante.

-Talvez não tenham filhos- observou sem convicção.

- Bem sabes que hão-de ter-retrucou ela. - Não leste as cifras de natalidade no Japão? Todas essas mulheres orientais procriam como coelhos. Não! É preciso evitar isso!

Ele era de espírito muito delicado no trato com as mulheres para pedir uma explicação mais clara das palavras da esposa e, portanto, calou-se. Ficou ali sentado, com um aspecto lasso, o rosto da mesma cor acinzentada do cavanhaque, dos cabelos e das sobrancelhas.

- Allen precisa ser chamado à realidade - disse ela. Deve ver por si mesmo que, simplesmente, não é possível.

- Mas se já está casado! - lembrou o marido. - Pode divorciar-se.

O seu rosto iluminou-se com uma ideia, uma esperança que surgia. Deixou cair o lenço.

- Tom, talvez nem estejam realmente casados! - Ele afirma que sim, Doçura.

- Mas talvez não estejam. O que é o budismo, afinal de contas? Não é uma religião verdadeira. E certamente um templo não é uma igreja; está cheia de ídolos. Aqueles japoneses com certeza o fizeram cair na armadilha.

O Sr. Kennedy sentiu pena da esposa.

- Isso não quer dizer nada para Allen. Prefere acreditar que está casado com ela.

- Não quer dizer nada, agora, mas espera. Quando se convencer pura e simplesmente de que não dá certo... Oh,

Tom, podes imaginar uma mulher de olhos oblíquos a passear na nossa casa ou mesmo na cidade? Quem irá convidá-la para uma festa? Será o fim da nossa vida!

Ela era capaz de tudo, tanto para o bem como para o mal. - Doçura, continuo a pensar que uma mulher com a tua personalidade ajustaria as coisas perfeitamente no lugar. Faz o melhor que puderes e todos te terão em mais alta estima por isso.

Ela sacudiu a cabeça, mordeu os lábios trémulos e levou as mãos ao cabelo para ocultar o rosto.

- Não posso, Tom. Vou fazer de conta que nada disso é verdade... e depois tratarei de fazer Allen ver as coisas como eu as vejo.

O Sr. Kennedy levantou-se.

- Bem, dei-te o meu conselho, bom ou mau. Vou dizer-te só uma coisa mais. Toma cuidado. Doçura, conheces bem o teu filho!

Retirou-se, sentindo que o que mais precisava naquele momento era uma boa dose de whisky.

Depois de preparar a bebida, sentou-se na varanda e começou a beber lentamente, reflectindo sobre os problemas que envolvem as criaturas quando atribuem importância pessoal à ambição, aos padrões vigentes, à opinião pública, à posição social e a todos os preconceitos comuns da humanidade. Se a pequena japonesa viesse para aquela casa, ele não alteraria os seus hábitos em coisa alguma. Ela nada poderia fazer que o aborrecesse. Se não era possível ver felizes a esposa e o filho, então ao menos ele o seria, pois a sua felicidade assentava no significado espiritual de uma boa alimentação, da regular função do fígado, do leito mais confortável que podia existir, e da possibilidade de dormir a noite inteira. Sabia que perdera algumas emoções estimulantes da vida, mas agora não fazia questão de se sentir estimulado.

De qualquer modo, estava aliviado por terem sido reveladas as más notícias e porque sua esposa as enfrentara, embora ainda não soubesse com que consequências. Conhecendo-lhe o temperamento, estava certo de que não tocaria mais no assunto. Iria articular os seus planos e pô-los em execução. Mais cedo ou mais tarde tomaria conhecimento deles, apesar de que, provàvelmente, isto só aconteceria quando fosse tarde de mais para fazer alguma coisa. Era demasiado bem educado para permitir que se estabelecesse uma atmosfera de hostilidade na casa, e nessa noite, quando descesse para o jantar, a sua atitude seria a de sempre. Allen herdara muito de sua mãe e também ele, provàvelmente, se portaria como de costume. A simples passagem do tempo não apenas cura como traz novas revelações e, quem sabe, um facto consumado não acabaria, com o tempo, por fazer parte integrante das suas vidas? Talvez se acostumassem até à presença de olhos oblíquos.

Quando Allen saiu de casa, encontrou o pai dormitando,

O copo vazio no chão. Os passos acordaram O Sr. Kennedy que viu o filho de maleta na mão, sobretudo no braço e chapéu na cabeça.

- Vou passar uns dias fora - disse Allen ao pai. O Sr. Kennedy mal abriu os olhos sonolentos. - Onde?

- Em Washington.

- Que pretendes fazer naquela cidade infernal?

- Talvez procure um emprego. E quero saber o que é necessário para mandar vir Josui imediatamente. - Contaste a tua mãe?

- Não. Diga-lhe adeus por mim, sim? É possível que só me demore alguns dias. Se conseguir emprego, terei de voltar para levar as minhas coisas.

- Está bem, meu filho.

As suas pálpebras fecharam-se novamente, mas Allen continuou parado.

- como está a mãe, agora?

-Melhor -respondeu o pai, sonolento. (O whisky dava-lhe sempre sono).

Ficou a ver o filho entrar no carro, guardado cuidadosamente para ele durante os anos de ausência. Depois adormeceu profundamente.

A Srª Kennedy nunca acreditara no inevitável e, não acreditando, nunca o aceitava. Entre as muitas amigas que possuía, nenhuma era sua confidente, embora cada uma delas se julgasse suficientemente íntima para imaginar que conhecia todos os pensamentos e acções de Josephine. Nunca dizia ao marido senão o que desejava que ele soubesse e O Sr. Kennedy estava-lhe grato por isso. Conhecer todos os pensamentos e sentimentos daquela mulher voluntariosa só o teria horrorizado. Ela adivinhou que ele preferia saber o menos possível e que a sua simpatia - até onde se permitisse tomar partido - talvez fosse para a jovem japonesa inocente que esperava ir viver naquela casa. Ocultaria essa simpatia como um capricho seu, já que nada podia fazer, mas Intimamente estaria ao lado de Allen. Os homens deixavam-se influenciar mais pela rebelião do que pelo amor. A Srª Kennedy pensava às vezes que a rebelião era o sentimento mais forte. Bem, ela também saberia rebelar-se.

A vida na casa continuou normalmente durante a ausência de Allen e O Sr. Kennedy habituou-se a ouvir a esposa responder ao telefone com voz amável: "Oh, minha querida, não levamos isso a sério. Você sabe que nós, as mães, devemos estar preparadas para enfrentar incidentes dessa ordem na vida dos nossos filhos. Não há nada a fazer, creia; são os percalços da guerra. Não, ele não está realmente casado. Penso que foi uma espécie de cerimónia de noivado num templo budista e duvido muito que tenha algum valor aqui. Seja como for, já nem falamos no assunto."

Os dias, maravilhosos, seguiam-se uns aos outros. As roseiras, no jardim, começaram a florescer novamente e embora as rosas tardias exalassem um perfume mais intenso que as rosas da Primavera, não chegavam a alcançar o tamanho nem o viço destas. Allen enviava postais de vez em quando declarando sempre que voltaria em breve para levar as suas malas, mas não aparecia. Havia demoras que não conseguia compreender. Washington era um labirinto onde se' sentia perdido. Até àquele momento só obtivera uma promessa, que talvez nada significasse.

A Srª Kennedy lia os postais ao marido em voz alta, às refeições, com a fisionomia impassível. Enviara cartas por avião à esposa do coronel em Tóquio, agradecendo-lhe as advertências e solicitando novo auxílio. - "Haveria possibilidades", perguntava, "de Allen ser enviado para a Europa? Essa seria a melhor solução. Se pudesse ser mandado imediatamente, para não ter tempo de trazer a jovem, todos nós seríamos poupados."

Por essa razão, Allen, em Washington, de departamento em departamento, encontrava uma estranha e desconcertante dificuldade. Não voltar ao Japão era fácil. Conseguiu-o quase imediatamente. Recebeu então a inesperada proposta de ir para a Europa, ocupando exactamente o mesmo posto que tivera no Japão. Reconheciam nele a capacidade pouco comum de elaborar análises da situação política em países estrangeiros, e algumas nações ao redor da Alemanha apresentavam aspectos que requeriam uma tal análise.

O oficial corpulento e sagaz, mas bastante iletrado, que abordou o assunto, falou-lhe da seguinte maneira:

- O senhor escreve com clareza e isso é coisa que a maioria dos outros graduados das Universidades não são capazes de fazer. Quando leio os seus relatórios, fico logo a saber o que quer dizer.

- Obrigado! - disse Allen, decidindo que jamais iria para a Europa, pelo menos enquanto Josui não se reunisse a ele para irem juntos. A Europa era um mundo diferente, e ele já vivera em tantos...

Voltou para casa depois de chegar a um entendimento provisório. Davam-lhe tempo para pensar, e, enquanto isso, continuaria em gozo de licença extra-oficial pelo tempo que necessitasse. Se não queria ir para a Europa... bem, no momento não havia outro lugar para ele em Washington. Allen ruminou a noticia com incredulidade e desconfiança. Parecia que alguém trabalhava contra ele, mas não podia acreditar que fosse o seu velho coronel, pois este certamente estava ansioso por vê-lo regressar ao Japão. Não lhe ocorria nenhuma outra pessoa que tivesse influência em Washington. De qualquer maneira, pensou, enquanto atravessava os férteis campos vermelhos da Virgínia, faria vir Josui imediatamente. Ao menos isso era-lhe possível realizar, pois tomara as providências necessárias durante a sua estada em Washington. Como Josui nascera na América, não havia nenhuma barreira que pudesse impedir-lhe a entrada no país. Trechos esquecidos da Sagrada Escritura, que ouvira a contragosto na igreja, quando menino, surgiram de novo na sua mente. Lembrou-se de S. Paulo, o proscrito, perante um oficial romano:

"Comprei a minha liberdade por preço elevado", dissera o arrogante oficial romano.

"Eu, porém -retorquira Paulo, erguendo a cabeça com orgulho - nasci livre."

Josui também nascera livre, tal como ele, Allen Kennedy. Perante a lei americana. Apegar-se-ia a este facto inalterável.

Quando chegou a casa, certa noite, ainda cedo, seus pais jogavam xadrez na sala de estar. Ambos eram bons jogadores, mas sua mãe jogava um pouco melhor porque queria ganhar, enquanto seu pai não se esforçava por isso.

- Vivam, campeões! - exclamou ao entrar.

Ambos o olharam surpresos, contentes, mas sua mãe pareceu-lhe um tanto reservada. Não permitiu, porém, que os seus sentimentos afectassem a cordialidade com que deu as boas-vindas ao filho. Levantou-se impulsivamente, beijou-o no rosto e com ambas as mãos segurou-lhe o braço.

- Oh, como estou satisfeita por teres voltado! Espero que não tenhas conseguido um emprego, querido, ao menos por enquanto! A casa parece tão vazia sem ti.

- De facto, não consegui. Ou antes, não quis o que me ofereceram. Propuseram-me ir para a Europa. Imagine! Por que razão iria eu para a Europa, onde não posso aproveitar coisa alguma do que aprendi na Ásia? Quem ganha? Aposto que é a mãezinha.

- Senta-te e diz-me o que devo fazer - disse o pai. A rainha encurralou-me, como sempre.

- Oh, deixa-te disso! - exclamou a mãe. - Allen está com fome. Já comeste alguma coisa, meu filho? - Nem uma migalha.

Sùbitamente Allen sentiu-se alegre. Aqueles não seriam rigorosos com ele. A mãe, naquele seu modo indirecto, estava a procurar dar-lhe a entender que não o seriam. Nunca pediria desculpas, disso não seria capaz, mas era esse o seu modo de proceder. Relaxou o corpo e, de repente, sentiu-se muito cansado. Tudo neste mundo era tão complexo, tão- intrincado, arrastando-se em cem direcções ao mesmo tempo; mas ali, pelo menos, a existência continuava como sempre fora. A pequena Josui poderia atravessar a soleira daquela porta aberta e a vida não sofreria qualquer alteração. Enquanto vivessem, cabia a seus pais manter a paz; uma vez desaparecidos, ele tomaria o seu lugar. Com força de vontade e decisão, conservaria aquela casa como era e sempre fora, por todos os séculos dos séculos, amém.

Josui leu a carta como estava habituada a fazê-lo, primeiro ràpidamente, detendo-se em cada palavra de amor. Isso era importantíssimo. A seguir releu-a com muito cuidado para compreender todas as instruções, descrições e notícias. Depois disso, leu-a diversas vezes por dia, de modo a sentir-se mais perto dele, em comunicação com o seu coração. Através das cartas chegara a conhecê-lo. Era estranho como a proximidade da carne constituía uma barreira para a compreensão mútua. Quando estava nos seus braços, ou mesmo ao vê-lo aproximar-se dela, todo o pensamento cessava. Mas agora que o mar os separava, era por intermédio do espírito que podiam viver na presença um do outro. O pensamento fluía livremente, a compreensão crescia.

Naquelas semanas de separação, aprendera a vê-lo como era na realidade. Não era tão forte com o julgara a princípio. Também ele dependia até certo ponto dos pais. Esta descoberta surpreendeu-a, pois imaginara que os jovens na América eram totalmente independentes das suas famílias e faziam o que entendiam, sem que ninguém exigisse ou prestasse obediência. Agora via que, apesar de ser assim, havia contudo exigências familiares, e na casa dele era a mãe quem exigia, ao contrário do pai, como ali. Pensou nisso durante muito tempo. Não era ao pai de Allen, mas à mãe que devia agradar. Bem, isso não era difícil de entender pois até no Japão a sogra podia fazer a felicidade ou a tristeza de uma jovem esposa. Allen enviara-lhe pequenas fotografias da casa e de seus pais. Josui estudou longamente e por várias vezes a fisionomia de ambos. Trouxe para casa a sua lente usada nas aulas de biologia e com ela examinou-lhes os traços e expressões fisionómicas. Pertencendo a uma raça antiga, herdara certa sabedoria humana e, com

longa e secreta meditação, chegou a formar um juízo surpreendentemente acertado dos pais de Allen. Em determinada ocasião ficara apreensiva por causa de uma jovem de nome Cynthia. Cynthia soubera do seu casamento em primeiro lugar, mas ,josui esperava que se tornariam amigas. Ele não lhe enviara nenhum retrato dela e já não a mencionava.

As cartas falavam todas da sua ida para a América e aquela, finalmente, dava-lhe instruções definidas para a partida e, acima de tudo, continha a passagem aérea. Era um tesouro. Examinou cada detalhe, lendo todas as palavras. Era tão simples e, contudo, tão valiosa; a sua permissão para entrar no paraíso, As instruções eram bem claras. Nada seria difícil. Tinha o seu passaporte. Devia obter o visto e tomar o avião em Tóquio. Ele estaria à sua espera em São Francisco com o carro, e fariam a lua-de-mel enquanto atravessavam o país, juntos, a 545.

Depois de ter lido a carta diversas vezes foi procurar a mãe. Ambas dariam a notícia ao pai quando, à noite, ele regressasse a casa. Encontrou-a junto ao pequeno lago, alimentando os peixes dourados de cauda em leque e agitando suavemente a água com um pedaço de bambu para fazê-los subirem à tona. Estavam entorpecidos pelo frio, mas era ainda cedo de mais para se ocultarem no barro.

A silhueta frágil e curvada de sua mãe no jardim, de quimono azul prateado, à luz nevoenta do sol matinal, surgiu sùbitamente como um quadro aos olhos de Josui. Iria sentir a falta daquela sua mãezinha! A ansiedade de unir-se a Allen fizera com que mal pensasse nisso. Sua mãe era tão silenciosa e tão retraída, passava despercebida tantas vezes; agora, porém, pensando em ficar longe dela, sentiu uma relutância que era quase dor. Ajoelhou-se a seu lado sobre a grama amarelada e por um momento não retirou a carta que guardara no seio.

   Os peixes começaram a surgir debaixo das pedras, movendo as caudas e barbatanas largas e finas, sem se Importarem com o alimento.

- Querem dormir -- observou Josui.

     Eles sabem que o Inverno está próximo - retorquiu a mãe.

Absorvida na sua tarefa, não olhou para Josui. Depois, como se soubesse que a filha a procurara com alguma finalidade, levantou os olhos de repente.

Há alguma coisa?

     Sim -respondeu Josui, tirando a carta do peito. Ele quer que eu vá. Mandou a passagem.

Retirou o bilhete do envelope e enttregou-o à mãe. A Srª Sakai virou-o de um lado para outro, incapaz de lê-lo. Devolveu a carta, o envelope e a passagem à filha.

   -- Que dirá meu pai? -- perguntou Josui. -- Nunca chegou a acreditar que Allen mandaria buscar-me.

   -Acreditará agora. A mãe ergueu-se e apertou bem a tampa do pequeno pote que continha o alimento dos peixes.

   Ficaram olhando a água. Os peixinhos animaram-se de repente ao sentir o gosto da comida. Já se haviam esquecido de que gostavam de alimento, Mas lembraram-se novamente. Ainda lhes restava tempo para comer antes de entrarem no sono.

   - Vai passar muito tempo até que eu torne a ver-te - disse a mãe. - Talvez nunca mais te veja. Teu pai não irá à América. Ele disse-me.

- Virei vê-la - prometeu Josui. Fechou a mão e introduziu-a na de sua mãe como costumava fazer quando pequenina. - Se tiveres um filho... - começou a Srª Sakai e interrompeu-se.

A criança! Que iria ser? O seu nascimento era inevitável. Mas queriam eles que nascesse? Todas as mulheres faziam essa pergunta a si mesmas. Quando há amor, não deve haver também um filho? A Srª Sakai sabia da existência de um amor que nunca experimentara, mas cuja magia observara em Josui. Por intermédio da filha sentira o seu poder, uma força transformadora que fizera de Josui uma mulher pronta a abandonar seus pais. Ela própria jamais o sentira. Quando, porém, os seus progenitores a enviaram à América para casar-se com um homem a quem nunca tinha visto, obedecera cegamente. Era o seu destino. Josui fora mais afortunada que ela, ia ao encontro de um homem a quem já conhecia. No entanto, poderia uma japonesa chegar a conhecer realmente um americano? Era preciso esperar para ver. Afinal de contas, Sakai era japonês e não se diferençava dos demais japoneses de cabelos negros, olhos negros e pele dourada, mas de que modo poderia Josui saber como seria o seu filho? Era possível, até, que tivesse olhos claros como o pai. Que se havia de fazer então? Essa possibilidade trouxe-lhe ao rosto uma expressão de alarme, que Josui percebeu.

- Que há, mãe?

- Ocorreu-me uma ideia - retorquiu a Srª Sakai, aturdida. - Josui, estive a pensar numa coisa! - Em quê, mãe?

- As mulheres americanas... nunca podem saber de que cor serão os olhos e os cabelos de seus filhos! Não achas embaraçoso?

-Mãe, isso terá importância para mim? - perguntou

Josui.

-Acho que tem- disse a Srª Sakai com seriedade.Para mim teria sido horrível se, quando te vi, tu não tivesses os olhos negros. Como posso sentir que a criança é meu neto se os seus olhos não são pretos?

Oh, mãe!

Josui tentou rir, mas também ela se sentiu infeliz por um momento. Se seu filho tivesse olhos azuis, não estranharia? E, por outro lado, se se parecesse totalmente com ela, talvez Allen estranhasse. Isso seria, de facto, embaraçoso, como dissera sua mãe.

- Pode ser que eu não tenha filhos - disse.

A mãe sacudiu a cabeça.

- Não podes dizer uma coisa dessas declarou em tom objectivo. - Quando é tempo de uma criança ser concebida, ela é concebida e nada a impedirá de viver. O espírito aguarda no limiar a sua hora predeterminada. Quando é tempo de viver, nós vivemos, assim como morremos quando chega a nossa hora. O ciclo não pode ser apressado e tão-pouco retardado. A vida de alguns é curta, e a de outros longa, mas é sempre o destino.

Explicava-se, assim, a paciência da mãe, a sua docilidade, a sua resignação, a fonte da sua força imensa e simples. Josui não soube o que responder-lhe e, sentindo a dignidade de sua mãe, curvou-se diante dela, retirando-se a seguir.

Pela primeira vez, depois deste momento em que vislumbrara o íntimo de sua mãe, sentiu a inevitabilidade do filho.

Quando o pai não fez qualquer objecção à sua viagem, Josui ficou surpreendida, ou sentiu que deveria ter ficado, mas também isso estava incluído na sua convicção de inevitabilidade. Ele conseguiu-lhe o visto do passaporte, acompanhando-a ao competente departamento em Tóquio. Disse-lhe que tinha algum dinheiro depositado numa Caixa Económica de São Francisco. Destinava-se a Kensan e, depois da morte dele, permanecera lá. Faria agora a transferência para o seu nome.

Tudo se resolvia com tanta facilidade que lhe parecia estarem os deuses a aplanar-lhe o caminho. A sua certidão de nascimento, que provava ter nascido em Los Angeles; o seu passaporte incluído no de seus pais, e que agora só precisava ser extraído separadamente com uma nova fotografia, tudo estava em ordem. A única dificuldade, ela mesma a criara. Queria usar no passaporte o seu novo nome, Srª Allen Kennedy.

O pai opôs-se.

- Não, não o permitirei. Deverás usar o meu nome e o teu, Josui Sakai. Talvez um dia necessites novamente deste nome.

Ela zangou-se.

- Pai, como pode dizer uma coisa dessas? Não quer acreditar em mim. Não tem confiança em mim.

É na vida que eu não confio -respondeu ele.

Ela cedeu. A própria vida deveria provar que tinha razão. Ele veria por si mesmo, quando tudo acontecesse como ela sabia que havia de acontecer. Os velhos eram descrentes. Depois de tudo arranjado, voltaram para casa e ela comoveu-se ao ver o esforço do pai em tornar-se amável. Não falou da sua partida, mas da janela do comboio chamou-lhe a atenção para certas coisas-um homem com um tumor no pescoço, Uma criança que sofria de uma doença dos olhos. Abriu a janela para chamar o homem, um simples carregador.

Você aí, com o tumor no pescoço. Isso pode ser operado. Porque não vai ao hospital de Tóquio ou não me procura em Kyoto?

O homem era um sujeito ignorante e gritou:

A minha vida está neste caroço. Devo cortar a minha vida?

O Dr. Sakai suspirou ao fechar a janela. A tarefa do médico é árdua. Primeiro tem de dizer a um homem que pode ser curado, depois precisa forçá-lo a acreditar. O processo da cura é a última parte do trabalho e a mais fácil.

Por algum tempo comentou com Josui a teimosia da mente humana, principalmente a das pessoas ignorantes, entre as quais incluía a maior parte dos seres humanos e muito em particular, sentiu Josui, os jovens e as mulheres.

Nada, porém, era capaz de diminuir a sua felicidade. Agora que a data estava marcada e conhecida a hora exacta do embarque, o tempo escoava-se ràpidamente. As manhãs surgiam rápidas e as horas voavam nas asas da alegria. Sentia-se tão feliz que chegava a ser cruel sem percebê-lo. Não via as frutinhas vermelhas do jardim, que tanto prazer causavam todos os anos a seu pai. Por duas vezes se esqueceu de enfeitar o tokonoma, mas os pais não a repreenderam. Para eles, a filha já não lhes pertencia.

Percebeu aquela tristeza, mas sentia-se incapaz de compartilhá-la. Estava transbordante de amor e alvoroço; o seu coração já atravessara o oceano, esperando, impaciente, na outra margem.

Quando chegou o momento da partida, quando se despediu da casa e do jardim, de Yumi e, por último da mãe, quando saiu com o pai para o aeroporto, sabendo que sòmente poucas horas a separavam de Allen, ainda se sentia entorpecida de alegria. Era impossível pensar ùnicamente em seus pais ou naquilo que ia deixar.

Poucos dias antes da partida recebera uma cartinha de Kobori Matsui. Era cordial e amável. Desejava-lhe felicidades e dizia que pretendia remeter-lhe um pequeno presente de casamento para a América. Caso os negócios corressem como ele e o pai esperavam, era até possível que fosse aos Estados Unidos durante o próximo ano e, se ela estivesse de acordo, gostaria de visitá-la e conhecer os seus novos parentes. Daria sempre grande valor à sua amizade e assegurava-lhe a dele, quer viesse a necessitá-la, quer não. Josui leu a carta sabendo que fora ditada pela bondade de Kobori, mas até mesmo essa bondade se sentia incapaz de sentir. Como não desejava guardar a carta, nem deixá-la, queimou-a na urna de incenso.

Por um momento, quando o avião levantou voo, teve uma rápida percepção do que fazia. Olhou pela pequena janela e viu seu pai, parado do lado de fora, alto e erecto, com o casaco folgado agitando-se ao vento. Tinha as mãos juntas sobre a bengala, os pés, um pouco separados, firmemente plantados no solo, a cabeça erguida na sua direcção. Não tinha a certeza se o pai podia vê-la, mas naquele momento viu-o nitidamente. O dia estava lindo. Após três dias de chuva e tempestade, o Sol brilhava intensamente e a sua luz banhava o rosto enrugado e belo do Dr. Sakai. Josui percebeu nele uma nobre tristeza, um pesar digno, uma mágoa inexorável, que a aparente tranquilidade dissimulava. Um sentimento de pungente compreensão trespassou-lhe o peito.

Não podia durar muito. As asas grandes e brilhantes elevaram-na para o céu, e a terra foi-se tornando cada vez menor. Dentro de pouco tempo voava sobre o mar, e os seus pensamentos, os seus sonhos, voavam já muito à frente.

 

 

No aeroporto de São Francisco, Allen viu-a descer e hesitar um instante, olhando de um para outro lado, à sua procura. Apressadamente abriu caminho entre o pequeno grupo de pessoas, envergonhado de chegar à última hora por ter acordado tarde; justamente naquele dia.

- josui!

Ela avistou-o e um sorriso modificou-lhe o semblante. No primeiro momento, a expressão grave, de ansiedade, naquela fisionomia que ele pensava recordar tão bem, fez-lhe sentir uma leve mas pungente decepção. Não era tão bonita quanto a recordava, ou seria devido ao traje cinzento que usava? Mas o sorriso, tão encantador na sua reserva, fê-la voltar a ser como antes. Aquele sorriso e a graciosa timidez com que ia ao seu encontro distinguiam-na entre' os demais. Tomou-a nos braços, a salvo no meio daquela gente estranha. Contudo, logo percebeu olhares curiosos, de gente - que observava um jovem americano alto a abraçar uma japonesa. Ninguém disse uma palavra; todos continuaram o seu caminho, por demais ocupados para dispensar mais de um segundo ou dois à sua curiosidade. Allen conduziu Josui, enlaçando-a, sem fazer caso da observação dos estranhos. Mas também - Ela notara os olhares de surpresa e desprendeu-se delicadamente, só permitindo que lhe segurasse a mão.

- Vamos directamente para o hotel, onde aluguei um apartamento - disse Allen. - Ficaremos nele alguns dias, querida. Não há pressa. Quero ficar bastante tempo a sós contigo. Vamos demorar-nos muito por aí antes de chegarmos a casa.

Até lá saberia como agir. Pretendia dizer a Josui qual era, exactamente, a situação em sua casa. Naturalmente, só podia revelar aquilo que ele próprio sabia e isso era quase nada, embora pressentisse muita coisa. Sua mãe decidira, simplesmente, ignorar tudo. Mas como ignorar Josui, quando estivesse parada diante da porta de sua casa? E ele estaria lá, a seu lado.

Afastou esses pensamentos. Durante as semanas seguintes estariam a sós. Desejou que Cynthia não tivesse decidido passar a temporada em Nova Iorque. Poderia ter sido um grande auxílio para eles. Bem, não necessitava de ajuda!

- Estás muito silenciosa, querida.

- Há tanta coisa para ver.

Ele trouxera o carro e ambos tomaram lugar.

- É teu, Allenn?

- É nosso, querida. Tudo o que é meu te pertence também.

Ela sorriu e ele pegou-lhe na mão.

- É melhor guiares com cautela- disse josui, após alguns momentos de ansiedade. Allen riu.

- Estamos na América, Josui. já não te lembravas?

Passou, porém, a dirigir com menos pressa, porque assim podia acariciar a pequenina mão que trazia o seu anel de sinete, de ouro, o anel que lhe colocara no dedo durante a cerimónia no templo. Nessa noite, quando estavam a sós na penumbra do belo aposento da casa, agora tão distante de ambos, tirara-lhe o anel do dedo para, a seguir colocando-lo outra vez. Repetira então as palavras sagradas: "Com este anel, torno-te minha esposa."

Ela não entendera bem, mas agora fá-la-ia compreender.

Chegaram ao hotel, Josui ainda muito silenciosa, provàvelmente um pouco aturdida, pensou Allen. Entregou a bagagem a um servente e depois tomaram o elevador até ao décimo sétimo andar, onde as janelas dos seus aposentos davam para o mar. Deu uma gorjeta ao rapaz e fechou a porta. Quando tirou o chapèuzinho de Josui, que, em sua opinião, não lhe assentava bem, fez também deslizar o casaco dos ombros e tomou-a nos braços. Oh, a fragrância da sua pele, a curva suave do pescoço, a pressão dos pequenos seios contra o seu corpo! Não pôde esperar. E porque havia de esperar? Viu-lhe os olhos tão escuros, tão luminosos, a maciez dos seus lábios jovens. Ela compreendeu-lhe o anseio. Era a essência de tudo o que é uma mulher, uma mulher do Oriente, que obedece ao instinto nas coisas do coração.

-Ainda me amas? - Deteve-se para fazer-lhe essa pergunta, para ouvir a resposta dos seus lábios.

- Amo-te - respondeu ela, não num murmúrio, mas com voz agradável e clara. - Vim de muito longe por amor a ti Allen.

Quando se iniciou a vida terrena daquele ser? Ignoravam em que momento luminoso do dia ou em que sombras da noite o seu espírito transpusera os umbrais da eternidade que antecede o nascimento, para entrar no mundo da vida. Não sabiam se fora naquele primeiro aposento de biombos do outro lado do mar, ou lá em cima no quarto com vistas para o Ocidente; se fora na cabana das montanhas onde passaram alguns dias, recusando-se a deixar os picos cobertos de neve, ou no pequeno hotel de uma cidadezinha da planície imensa, ou em meio das colinas ondulantes do Centro-Oeste. Em qualquer parte no decorrer desses meses maravilhosos, em algum lugar naquela cadeia de dias e noites de amor, vivia já o ser que viria ao mundo, mas eles não sabiam ainda. Não pensavam nele, só em si mesmos.

- Devemos comunicar a teus pais o dia exacto da nossa chegada - disse Josui. Ambos tinham pensado nisso, secretamente, resistindo a admitir o facto de que um dia acabaria aquela viagem sublime, terminariam os dias maravilhosos e as noites de sonho. O céu era-lhes favorável e o calor outonal propiciava a atmosfera mística em que estavam vivendo. Sabiam que tudo havia de chegar ao fim; aquilo não era a vida, era sòmente o amor, e a fusão. de ambas as coisas teria que ocorrer. Josui, de natureza mais prática, mencionou em primeiro lugar aquele último dia. Sensível a todas as mudanças de expressão dele, já percebera que Allen temia esse momento. Pressentia que alguma coisa assomava diante deles, não sabia o quê, mas preparou-se o melhor que podia para enfrentá-la. Se fosse muito prudente, muito respeitosa e prestável, pensando em primeiro lugar nos pais de Allen, talvez pudessem ser felizes juntos. Compreendia que estava nela a chave da situação. À noite, quando Allen dormia, Josui ficava a pensar no conhecimento cada vez maior que ia tendo daquele homem e, embora o amasse sempre mais, entregando-se de todo a ele, começava a compreender vagamente que uma mulher não pode dar mais do que o homem deseja. A capacidade de receber deve igualar a de dar. Desejá-la-ia ele inteiramente? Josui não tinha a certeza.

- Se não pararmos alguns dias por aí - disse ele - não poderemos deixar de estar em casa depois de amanhã.

- Não queres ir para casa? - indagou ela.

-Oh, sim, naturalmente. Temos que nos fixar. Preciso pensar em arranjar trabalho. Talvez deixe definitivamente o Exército. Posso fazê-lo, pois já terminei o meu tempo de serviço há alguns anos. Talvez me contente com ser o que é meu pai: um cavalheiro estabelecido no campo.

Ela acompanhava cada uma das suas palavras com a máxima atenção, mas nem sempre compreendia as entrelinhas, o sentido adicional, as alusões próprias do idioma. Para ela, cada palavra inglesa não representava mais do que a definição contida no dicionário.

- Devemos comunicar-lhes a hora da nossa chegada - disse, voltando ao seu conceito de dever.

- Depois de amanhã à tarde, pelas seis horas -redarguiu Allen.

- Então, por favor, Allen, telefona amanhã a teus pais pediu, carinhosa.

Ele achava as suas tentativas de controlá-lo tão encantadoras como as imposições de uma criança. Mostrava-se cativantemente ansiosa em guiá-lo, ao mesmo tempo que o adorava e lhe obedecia. A seu ver, era 'indispensável que Allen se portasse sempre da melhor maneira possível, pelo menos com relação aos outros. Ria nas ocasiões em que ele era "mau", como lhe chamava quando não queria levantar-se pela manhã, quando deixava o pijama em desalinho no soalho, quando lhe desarranjava o penteado ou amarrotava o vestido, quando a provocava para obrigá-la a discutir, o que ela fazia com tanta seriedade e compenetração que o olhar de Allen acabava por o trair. Ao ver o riso despontar na sua fisionomia ela gritava: "Allen mau!" e levava a pequena mão à própria boca para esconder o próprio sorriso. Tratava-o com excesso de mimos, dizia ele. Josui nunca esperava que Allen a auxiliasse nas pequenas obrigações domésticas, que surgiam nos lugares por onde passavam. Servia-o como uma coisa natural, segurando a toalha para quando terminasse o banho e lavando-lhe a máquina de barbear após o uso. A princípio Allen protestara contra isso. - Olha cá, querida, tu és minha esposa e não minha escrava!

Ela, porém, não desistiu e ele acabou por ceder, pois essa era a sua maneira de expressar-lhe amor. Allen teve de reconhecer que era agradável ser servido. Dava-lhe uma sensação de comodidade e libertação das minúcias. Josui mostrava que no fundo era inteiramente japonesa. Uma americana jamais o teria servido assim. Começava a compreender por que razão diziam ser impossível casar com uma americana após ter conhecido uma mulher do Oriente.

- Vais então telefonar a teus pais, hoje de manhã?perguntou Josui, meigamente, na manhã seguinte.

-Sim, mais tarde respondeu ele, vagamente. Na bruma purpúrea dos Alleghenies nascera um novo e incomparável dia. Não queria pensar no seu fim.

Em breve, porém, percebeu que Josui estava preocupada. Sentada a seu lado no carro, procurava conter-se, e Allen sentiu a sua angústia.

- Acalma-te, Josui; eu vou telefonar - disse.

-Sim -respondeu ela - ; seria tão bom que o fizesses agora, não achas? Allen riu.

- Está bem. Vamos parar no primeiro telefone público. Presta atenção para ver a sineta azul.

Dez minutos depois ela viu o sinal no meio de um grupo de casas que mal chegava a ser uma aldeia.

- Ali! Ali! - gritou, apontando com o dedo médio da mão direita.

Allen viu-se obrigado a ir naquela direcção. Parou o carro.

- Espera-me aqui.

Agora, chegado o momento, sentia-se preocupado e relutante. Não era tão infantil que sentisse medo, acontecesse o que acontecesse? Poderia ir viver com Josui em qualquer parte do mundo que lhes agradasse. Mas não desejava abandonar a sua casa. Os anos passados no estrangeiro tinham aprofundado o seu amor pela pátria, pelo seu Estado, pela sua cidade, e pela casa grande que seu bisavô construíra para abrigar as gerações futuras. Esse modo de vida talvez estivesse condenado, mas perduraria pelo tempo que ele vivesse, ao menos na América. Desejava viver desse modo, poder tornar-se um homem como seu pai, sábio, despreocupado, satisfeito.

Enquanto na cabina esperava a ligação, esses pensamentos passavam-lhe pela mente. E seria Josui capaz de tomar o lugar de sua mãe?

- A sua ligação! - entoou a voz da telefonista através do fio.

- Está, pai? Aqui é Allen!

Pedira ligação pessoal para o pai, temendo o efeito que a notícia, dada assim ao telefone, poderia causar em sua mãe.

-Sim, filho! - A voz do pai chegou-lhe aos ouvidos surpreendentemente forte e vibrante. -Onde é que estás?

- Nos Alleghenies. Queria avisá-lo de que provàvelmente chegaremos a casa amanhã à noite, ou na manhã seguinte se nos demorarmos pelo caminho, como é bem possível.

- Ah, sim! Bem... - o pai hesitou. - Allen talvez seja melhor ficarem a primeira noite num hotel. Precisamos ter uma conversa, meu filho.

Que é que há?

- Não te posso dizer agora. Precisamos conversar. Sugiro-te que fiques em Richmond. À tarde irei para lá e esperarei por ti. Quando chegares, telefona-me para o clube.

- Muito bem, estaremos lá.

Qualquer que fosse o assunto que seu pai achava necessário discutir com ele, desejava saber de que se tratava e enfrentar a situação.

- Adeus, pai. Até amanhã.

- Até amanhã, filho.

Desligou o aparelho e demorou-se um pouco na pequena casa de comércio. Comprou algumas barras de chocolate e esperou o troco. Queria ganhar tempo, para deixar desaparecer a expressão de ansiedade do seu rosto. O olhar de Josui era tão penetrante que conseguia ler os seus pensamentos e adivinhar o seu estado de espírito. Não pretendia esconder-lhe nada, a não ser para poupar-lhe aborrecimentos. Ele também começara a conhecê-la melhor e descobrira a facilidade com que se desesperava, a tendência para acreditar sempre no pior, em que discernia uma característica do temperamento japonês. Ela não devia perder as esperanças agora, logo de início. Quando voltou para o carro, sorria e ofereceu-lhe o chocolate.

- Oh, muito obrigada! - exclamou ela. Allen gostava de fazer-lhe pequenos presentes para ouvi-la agradecer com voz terna e doce. - Falaste com os pais?

- Sim, com meu pai. Passaremos a primeira noite em Richmond num bom hotel. Meu pai disse que irá lá ter connosco.

- Oh, quanta gentileza! - tornou ela. Os seus olhos, sùbitamente, encheram-se de lágrimas. - Espero que não esteja muito velho. Tanto incómodo! E tua mãe?

   - Há-de querer ficar em casa para preparar tudo - inventou ele.

Josui sentiu-se muito feliz depois disso. Pôs-lhe na boca pedacinhos de chocolate enquanto ele dirigia; quanto a ela, pouco comeu. A seguir enrolou o resto no papel prateado e depois em papel de jornal, colocando-o no compartimento das luvas para outra oportunidade. Os seus hábitos de economia sensibilizavam-no. Era cuidadosa com as sobras de alimentos, com o seu vestuário e o dela guardava as meias folhas de papel de escrever, os selos de centavo e todas as pequenas miudezas que podiam ser desperdiçadas. Vivera no meio de um povo ensinado a aproveitar ao máximo todos os bens materiais. Allen perguntava a si mesmo qual seria a sua reacção diante do enorme esbanjamento da casa grande, dos quatro criados, dos cestos de comida que levavam para casa, da quantidade de alimentos que eram deitados fora, da despreocupação com o dinheiro, as roupas e todos os objectos que na América podiam ser substituídos tão fàcilmente. Ficou preocupado com a ideia. Havia algo de inflexível nela. Sob aquela aparente condescendência tinha princípios que não podiam ser alterados. Para o seu espírito jovem, de ideias claras e mesmo rígidas, a noção do que era correcto possuía um valor absoluto. Embora se deixasse arrastar pelo seu amor, aquela noção permanecia. Zelava por tudo o que considerava acertado, em atitudes, na linguagem e no comportamento. Não esperava o mesmo da parte dele, mas consigo própria era implacável. Ele podia prever um futuro em que ela o defenderia com fervor, zelaria pelo seu dinheiro, pelos seus alimentos, pela sua felicidade. Não lograria convencê-la de que o desperdício pudesse ser justificável, ou que os furtos insignificantes de velhos criados não eram roubos. Tudo seria feito para o seu bem, mas ele previa que o amor de Josui, embora apaixonadamente terno poderia ser também inexorável.

Em Richmond escolheu um pequeno hotel, situado numa rua sossegada, e foi bastante sincero consigo mesmo para reconhecer que o fizera com o propósito de chamar menos a atenção quando entrasse com Josui. Tinha que acostumar-se aos olhares curiosos, às perguntas não formuladas. A mesma curiosidade e as mesmas perguntas deviam também ter surgido no Japão a seu respeito, mas ele não notara. Teria Josui percebido, sem nada lhe dizer? Não a interrogaria agora porque, se ela não o tivesse notado, poderia causar-lhe sofrimentos a que era preferível poupá-la.

O hotel era agradável. Josui gostou do ambiente tranquilo, um pouco antiquado, e, depois de se instalarem no pequeno apartamento cujas janelas davam para um parquezinho quadrado, onde algumas árvores ostentavam ainda as cores outonais, Allen telefonou para o clube de seu pai.

O Sr. Kennedy aguardava a chamada. Chegara no dia anterior e passara o tempo a visitar velhos amigos, não nas suas residências, o que evitava sempre que possível, mas nos seus escritórios. Aparentemente, todos tinham tempo disponível, e se alegravam em vê-lo porque trazia consigo um repertório de novidades. Tom Kennedy era melhor que um jornal.

- Estarei aí em breve, filho-respondeu à pergunta de Allen.

Colocou o auscultador no lugar, atravessou o quarto amplo e confortável que alugara no clube, vestiu o sobretudo de tweed castanho-acinzentado, pôs o chapéu de feltro castanho um pouco disforme e desceu a escadaria larga e curva. Não havia elevador, e, se houvesse, não o teria utilizado.

Lá fora, uma onda retardada de calor húmido tornava o ar sufocante, e O Sr. Kennedy chamou um táxi.

- Leve-me ao Mansfield ordenou, e ficou imóvel, alheado, enquanto o carro percorria o caminho tortuoso através da cidade. Não tencionava esconder do filho a longa conversa que tivera com Josephine. Quanto antes Allen soubesse o que devia enfrentar, tanto melhor. Havia de passar algum tempo até que se chegasse a conhecer o fim de tudo aquilo. Desceu do carro em frente ao hotel, pagou e sacudiu a cabeça negativamente para o rapazinho preto parado diante da porta.

- Não me vou hospedar. Só vim visitar uma pessoa.

Surpreendeu-se consigo mesmo. Porque não disse: "Vim visitar o meu filho?" Haveria nele, também, aquela maldita relutância? Se assim fosse, exterminá-la-ia. Desprezava os preconceitos. No íntimo, estava convencido de que chegaria inevitàvelmente o dia - e quanto antes melhor - em que todas as pessoas seriam da mesma cor. Que tivessem todos pele parda! Que importava? Só assim se eliminaria pelo menos uma fonte de aborrecimentos no emaranhado dos assuntos humanos. Certa vez estivera em Nova Iorque e lá encontrara, num jantar público, uma dessas fervorosas redentoras da nação.

- Mas, Sr. Kennedy, que faremos com o problema da cor? - perguntava a mulher, com insistência.

Longe do seu Sul natal e a salvo entre estranhos, ocupado em trinchar a mais dura galinha assada que lhe fora servida na vida, respondera alegremente: “É clareá-la, é clareá-la!" A mulher não lhe dirigira mais a palavra.

Encaminhou-se para a portaria do hotel.

- Diga ao Sr. Allen Kennedy que seu pai vai subir - ordenou ao pálido empregado.

- Sim, senhor-redarguiu este, fitando-o demoradamente.

"Então os outros olhavam assim, hem? Pois não tomaria conhecimento."

- O elevador é ali, senhor - indicou o empregado.

- Irei pela escada - replicou O Sr. Kennedy. Só precisava de subir um andar. Como odiasse exercícios físicos, tranquilizava a consciência subindo as escadas. Os degraus eram cômodos e o corredor do primeiro andar atapetado. Os seus passos não faziam ruído e ele bateu com força na porta - número vinte e dois, dissera Allen. Ouviu um gritinho feminino através da bandeira aberta e, depois, a resposta de Allen.

- É meu pai.

A porta abriu-se imediatamente. No aposento só estava Allen, que lhe sorria.

- Josui foi ao quarto de dormir arranjar os cabelos. Está ansiosa por se apresentar da melhor maneira possível. Entre, pai.

-Acho que as mulheres são todas iguais nessa questão de cabelos - disse O Sr. Kennedy.

Entrou e deixou que Allen o auxiliasse a tirar o casaco e a guardar o chapéu e a bengala. Depois sentou-se na cadeira mais confortável e passeou os olhos pela pequena sala de estar. Não devia perder tempo, mas ainda se demorou a acender um charuto.

- Antes que ela entre, filho, preciso dizer-te que tua mãe não anda de muito bom humor. Não gostaria de falar nisso diante de tua esposa, mas tu e eu teremos de reflectir na situação.

Allen ficou onde estava, petrificado ante a expressão de seriedade e desalento de seu pai.

- Quer dizer que ela não deseja ver-nos em casa?

Na fisionomia do Sr. Kennedy estampou-se um ar desconsolado. Virou a cabeça e chupou o charuto.

-Receio que não, filho. Pelo menos, ainda não está preparada para receber tua esposa em casa. Naturalmente sempre terá prazer em ver-te. Aliás, até me recomendou expressamente que te dissesse que serás sempre bem-vindo e que o teu quarto será conservado tal como está, pronto para receber-te quando quiseres.

-Um momento...

Allen saiu ràpidamente da sala e dirigiu-se para o quarto de dormir, fechando a porta de comunicação. Houve um longo silêncio, uma espera prolongada. O Sr. Kennedy continuou a fumar o seu charuto. Era comprido e fino e, quando o segurava entre os dedos, uma longa e ténue espiral de fumo se elevava da ponta. Fez votos por que Allen não tivesse ido contar à jovem. Era mais fácil encontrar uma solução quando as mulheres ignoravam o assunto. Mas, como a maior parte dos maridos recém-casados, Allen provàvelmente achava que devia contar tudo à esposa. Os homens levavam algum tempo para aprender e um pai também não podia ensinar nada ao filho.

Os seus pensamentos voltaram-se para a sua própria esposa e para a noite infeliz que havia passado. Contara-lhe a verdade, dizendo que ia a Richmond para encontrar-se com Alen e sua mulher. Em vez de mostrar-se grata, censurara-o acerbamente, por coisas que ele de modo nenhum podia evitar.

-Temos de nos conformar da melhor maneira possível com a situação - argumentara. - Do contrário, quem sairá prejudicado? Tu e eu, ùmicamente. Os jovens podem ir embora e viver a sua vida em qualquer outro lugar. Tu e eu é que ficaremos sòzinhos nesta casa. Não podemos renegar o nosso único filho, Doçura!

- Nem estou a pedir isso-tornou ela. - Digo, simplesmente, o que sempre tenho dito, que ele não poderá trazê-la aqui.

- Estão casados, Doçura -lembrara.

No bonito rosto de sua esposa aparecera uma expressão que muito tempo antes já percebera ser de desdém. Notara-a pela primeira vez durante a lua-de-mel, e já não recordava o motivo. Lembrava-se, apenas, do choque que tivera ao ver aquela linda boca, feita para os seus beijos, torcida num esgar desagradável até para o seu amor. Naquele tempo, não sabia que o amor não modifica nem mesmo a pessoa amada. Nos anos seguintes não deixara de amá-la, mas já não a amava sem restrições. Havia dias, horas e, sem dúvida, muitos momentos em que preferia não pensar nela e durante os quais o seu amor ficava à espera.

- Não estão casados! - declarara ela firmemente. Falava com voz arrastada, terna e macia, a mais delicada das mulheres quando o desejava ser, mas de vez em quando usava aquele tom áspero e decidido que ele temia.

- Doçura, porque dizes isso novamente? Eu já te expliquei que um templo é a mesma coisa que_ uma igreja. - O templo não me interessa.

O Sr. Keneddy não gostara da expressão de triunfo que lhe percebia no rosto. Já a vira por duas ou três vezes, uma delas quando a esposa matriculara Allen no colégio militar contra a vontade dele e do filho. Deixara-a fazer o que queria porque, se insistisse na retirada do rapaz, teria provocado um escândalo.

- A questão não é o que lhe interessa... - começou.

Ela interrompera-lhe os rodeios com uma exclamação cortante.

-Tens razão! O que importa não é a minha opinião nem a tua. É a lei. A lei deste Estado proíbe os casamentos entre pessoas brancas e de cor.

Encarara o marido de frente, obrigando-o a olhá-la.

- Josephine! - protestara ele. - Sabes bem que a lei foi feita contra os negros!

- É a lei repetiu a esposa.

Ele levantara-se, deixando-a sòzinha, mas antes de poder conciliar o sono, telefonara ao seu advogado, Bancroft Haynes. Era verdade. A lei do Estado proibia o casamento de Allen porque a jovem tinha sangue asiático. E agora precisava dizê-lo ao rapaz de qualquer maneira.

A porta abriu-se e Allen entrou com Josui. O Sr. Kennedy temera aquele momento. Levantou-se vagamente da poltrona, olhando fixamente para a jovem que seu filho trazia pela mão, uma jovem tímida, linda, cuja tez cor de marfim se tornara rubra e cujos grandes olhos escuros estavam húmidos de medo. "Que rosto adorável", pensou, "que criança tímida, torturada, ansiosa por agradar, implorando ser compreendida!" Toda a sua compaixão o impeliu para ela.

- Esta é Josui - disse Allen.

O Sr. Kennedy atravessou pesadamente a sala e estendeu-lhe a mão grande e macia.

- Tenho muito prazer em conhecê-la, minha senhora - disse com a maior cortesia. - Vem de muito longe e apresento-lhe as minhas boas-vindas.

Sentiu a pequena mão na sua, firme, e apertou-a suavemente.

- Deve estar cansada e talvez com um pouco de saudades.

- Oh, não, obrigada - respondeu Josui, numa voz que era quase um murmúrio. Estava impressionada com a estatura do Sr. Kennedy. Era tão alto! Mas percebeu-lhe imediatamente a bondade. Sorriu; os seus lábios tremiam e os olhos tornaram-se ainda maiores quando os levantou para ele.

O Sr. Kennedy fitou-a quase com ternura, satisfeito por Verificar que, decididamente, ela não era de cor. Ora, havia muitas raparigas das melhores famílias do Sul que tinham a tez bem mais escura. Havia de dizer isso a Josephine.

- A senhora é muito pequenina, hem? - comentou; e, voltando-se para o filho: - São todas tão pequenas como ela?

- Josui não é assim tão pequena, pai -respondeu Allen.

Estava reanimado. Seu pai logo se mostrara sensível ao encanto delicado e quase comovente de Josui. Sentia-se orgulhoso por isso. O pai havia de compreender que um homem se apaixonasse por ela, e estaria do lado deles.

Parada entre os dois homens altos, Josui sorriu de repente. Já não sentia medo. Aquele homem grande e robusto, que era seu sogro, os ajudaria e tudo correria bem. Gostava dele, não havia razão para temê-lo e seria muito feliz em sua casa. Não admirava que Allen fosse maravilhoso, sendo filho de tal pai. E ela também seria uma nora perfeita.

Afastou-se de Allen.

- Por favor, queira sentar-se, pai - exclamou. - Allen, não temos chá. Pede lá em baixo, por favor, um chá e qualquer coisinha para comer.

- Não quero comer nada - disse O Sr. Kennedy, com a mesma ternura na voz. Como era graciosa! -Tomei agora mesmo a minha refeição da manhã e Allen lhe dirá como me alimento bem nessa ocasião. Durante o dia como pouco e só à noite costumo jantar.

Sentou-se e ela inclinou-se para ele.

- Um whisky com soda - ofereceu amàvelmente - ou uma coca talvez?

Durante a viagem aprendera a beber e dizer "coca", porque não gostava de álcool.

- Bem, um whisky com soda, então - respondeu O Sr. Kennedy, para ser amável.

Allen teve de pedir o whisky e ela não sossegou enquanto o empregado não o trouxe numa bandeja. Não permitiu que Allen tocasse no copo ou no gelo, queria fazer tudo sòzinha. Só ficou tranquila quando, depois de tê-lo servido e de ter posto a seu lado uma mesinha onde colocou tudo, viu O Sr. Kennedy com o copo na mão. Ficou de pé, esperando ansiosa, até que ele sorvesse o primeiro golo.

- Está bom?

- Perfeito -afirmou O Sr. Kennedy, cordialmente, disposto a dizer qualquer coisa que lhe agradasse. -Agora sente-se também, minha querida, e descanse. Quero ouvi-la conversar. Quero saber como a trata o meu filho. E ele que a trate muito bem!

-Senta-te, Josui - ordenou Allen.

Ela sentou-se imediatamente, sem responder, com o seu corpinho gracioso ainda tenso, olhando ora para um, ora para outro.

- Ela enche-te sempre assim de mimos? - perguntou O Sr. Kennedy ao filho.

- É a noção japonesa do que deve fazer uma mulher - disse Allen, sorrindo.

Então lembrou-se. O longo hábito fazia com que lhe fosse fácil esquecer as coisas tristes, difíceis ou perturbadoras e, por um momento, esquecera-as. Mas, naturalmente, não podia falar diante daquela criaturinha. Partir-lhe-ia o coração e isso não devia acontecer. Era preciso ajudar o filho a encontrar a solução acertada. Mas qual era, exactamente, a solução acertada?

Ficou sério e Josui, que reflectia logo o estado de ânimo das pessoas mais chegadas, olhou para Allen e sentiu medo novamente. Desejou que ele soubesse japonês, pois assim poderia perguntar-lhe se fizera alguma coisa mal. Allen não a olhava; então, sùbitamente, não suportou mais o silêncio e o olhar triste do pai, não para ela ou para Allen, mas para o copo que tinha na mão, o tapete a seus pés e a janela. Aproximou-se furtivamente de Allen e pós-lhe a mão no ombro.

- Fiz alguma coisa errada? - perguntou num murmúrio.

- Não, claro que não -respondeu Alen na sua voz natural. - Mas acho que meu pai quer conversar a sós comigo, Josui. Vai para o outro quarto, sim?

Ela percebeu, instantâneamente, que havia algo muito errado, mas obedeceu como uma criança. Foi até à porta do dormitório, abriu-a e entrou, fechando-a a seguir sem fazer ruído.

O Sr. Kennedy compreendeu que precisava enfrentar a situação. Não havia possibilidade de o evitar. Pôs o copo em cima da mesinha.

- Filho, tenho más notícias, muito más. Allen esperou, sem responder.

- Posso falar-te sem rodeios? - perguntou O Sr. Kennedy. - Naturalmente, pai.

- Esperava que dissesses isso mesmo.

Inclinou-se para a frente na poltrona e apoiou os cotovelos nos joelhos, deixando pender entre eles as grandes mãos macias. Juntou-as, entrelaçando os dedos.

- Filho, acho que tua mãe tem razão. O teu casamento não é legal.

- Que quer dizer com isso? - perguntou Allen.

- No nosso Estado, não é -respondeu o pai pesarosamente. - Existe uma velha lei que proíbe casamentos entre as raças. Tua mãe descobriu-a, não sei como. Suponho que alguma amiga tenha ouvido falar disso em qualquer parte. Talvez já soubesse, mas não acredito.

- Essa velha lei foi feita para as pessoas de cor - disse Allen com frieza.

- É verdade-tornou o pai. Transpirava abundantemente; grossas gotas se formavam sobre a testa alta escorrendo-lhe pelas faces. - Mas parece... perdoa-me, filho... que inclui qualquer pessoa que não seja branca.

- Quem disse isso?

- Perguntei a Bancroft Haynes e ele confirmou. Levantou-se e foi à janela ficou a olhar para fora, dando alguns minutos para se refazer.

- Não precisamos viver neste Estado - disse o rapaz.

- É claro que não. - O Sr. Kennedy voltou-se, aliviado com a saída que o filho encontrara. - O que deves fazer é ir para outro Estado e realizar o casamento civil. Aí estarão seguros. Se tens a certeza do que pretendes fazer...

- Porque me pergunta se eu tenho a certeza? - volveu Allen, sùbitamente encolerizado com o pai, ofendido com a manifestação de dúvida.

O Sr. Kennedy respondeu, apaziguador:

- Tu é que sabes quais as tuas intenções, filho. Eu disse por dizer.

- Certamente iremos para outro Estado - continuou Allen no mesmo tom de cólera. - Iremos para Nova Iorque. Hei- De encontrar um emprego lá. Pode dizer à mãe que nunca mais voltarei para casa.

- Não vou dizer-lhe uma coisa dessas -retorquiu O Sr. Kennedy, com censura na voz. Tornou a sentar-se, pegou no copo, bebeu metade e colocou-o de novo sobre a mesa. - Acho que nem deves pensar nisso. Espero que apareças em casa muitas vezes. Es o único filho.

- Ela não me trata como se o fosse.

- Estás a comportar-te como uma criança. Ela quer-te de mais, acho eu. Não consegue separar-se de ti, aí é que está o mal; é como se a placenta ainda sangrasse. Não é apenas por ti, é pela própria vida que ela espera encontrar em ti. Quando soube que não poderia ter outro filho, pensei que morresse de tanto chorar e que jamais se conformaria. Sentado naquela velha cadeira do meu quarto, segurei-a nos braços a noite inteira. Nenhum de nós pôde dormir. Acho que nunca perdoou a Deus. Não voltou a rezar à noite, há já muitos anos, apesar de ir à igreja todos os domingos. Guarda consigo esse ressentimento. De certo modo que não entendo, recrimina-me até a mim, embora, sabe Deus, eu não tenha culpa.

- Ela qer impor a sua vontade em tudo-resmungou Allen.

O Sr. Kennedy evitou discutir o assunto.

- É uma criatura maravilhosa, infantil e digna de compaixão - disse com meditativa ternura. Pela primeira vez falava ao filho como a um homem. - E tão forte, capaz, activa e autoritária que ás vezes mal a suporto. E então lembro-me da outra faceta do seu carácter, da criança castigada que é. Não posso esperar que compreendas isto, filho. Mas eu compreendo. Faz tudo a seu modo, e confesso que a achei interessante. Não poderia ter amado uma mulher que não fosse interessante.

Olhou para o filho com ar tímido, quase implorativo, como se a revelação contivesse uma súplica silenciosa. Allen estava comovido e ao mesmo tempo embaraçado. Não conseguia imaginar sua mãe no papel de esposa. Era uma nudez que devia ser coberta imediatamente. Levantou-se quase bruscamente, ansioso por fugir àquilo.

- Vejo que fez tudo quanto pôde por nós - disse. -O resto é comigo, pai. Ficará para almoçar connosco, não é? Penso que esta tarde continuaremos a viagem. Mandarei buscar as minhas roupas e os meus livros.

- Não vou ficar hoje - declarou O Sr. Kennedy. Sentia-se muito cansado e não tinha a certeza de querer tornar a ver aquela graciosa menina. - Irei visitá-los outra vez quando estiverem instalados.

-Avisá-lo- ei, pai-respondeu Allen.

Apertaram-se as mãos com força e ele resistiu ao impulso de pousar a cabeça no ombro curvado do seu velho pai. Em vez disso, ergueu-a bem alto e disse com voz forte e decidida:

- Estou satisfeito por me ter falado sem rebuços. Ficou tudo esclarecido. Agora sei qual é a situação.

O Sr. Kennedy pigarreou, procurando encontrar qualquer coisa que valesse a pena dizer. Sentia tremerem-lhe os joelhos e desejou poder deitar-se um pouco.

- Bem, filho, adeus. Procura-me se precisares de mim. Sou sempre o mesmo.

- Eu sei- disse Allen. Aquela frase familiar estava carregada de lembranças patéticas. Seu pai pronunciara as mesmas palavras em todas as despedidas. Mas, na realidade, nunca havia nada que pudesse fazer.

Manteve-se sorridente até fechar a porta após a saída do pai; depois sentou-se e segurou a cabeça entre as mãos.

Josui aguardava no outro quarto. A honra proibia-a de espiar ou escutar enquanto pai e filho conversavam. Não obstante, sabia que algo fora dito que para ela encerrava um perigo. Estava parada, imóvel, no meio do quarto de dormir do hotel. Sentia-se cansada, não somente por causa da viagem mas porque havia muitos anos que não se sentava em cadeiras nem dormia em camas altas. Os músculos das pernas doíam-lhe da tensão e as costas estavam doloridas dos colchões macios. Estava, além disso, exausta do constante esforço para não se sentir aturdida e principalmente para não o deixar transparecer. Quão pouco, na realidade, ela e Allen se conheciam! Um pesado fardo é imposto ao amor quando nele deve apoiar-se igualmente a compreensão. O seu amor era bastante forte, mas sé-lo-ia também o dele? Já o tinha pensado e continuava a pensar da mesma forma.

Ouviu fechar-se a porta do outro aposento. Quando viu que Allen não a chamava, abriu mansamente a porta de comunicação, e olhou para a sala. Estava sentado ali, com a cabeça entre as mãos. Que mágoa terrível se abatera sobre ele?

- Allen!

O rapaz sobressaltou-se ao ouvir a voz de Josui, como se tivesse esquecido a sua presença. Deixou cair as mãos.

Allen, que foi? - gritou ela. Entrou ràpidamente e ajoelhou a seu lado. - Diz-me, Allen! Que há?

Ele sentiu vergonha de contar-lhe. Como iria explicar-lhe a necessidade, que acreditava ser real, daquela lei que lhes proibia a união? Como explicar uma coisa que não podia ser explicada- Que uma rede estendida para outros a apanhara a ela, a quem não se destinava originàriamente? Era como explicar que uma teia erguida contra as vespas impedia também a passagem de uma borboleta.

- Minha mãe não está bem - disse, contrafeito. - Meu pai diz que devemos esperar até que se sinta melhor. Por enquanto, teremos de procurar um lugar para morarmos sós.

Notou que a expressão de Josui se alterara e apressou-se a acrescentar:

- Bem sabes, Pittysing - era esse o apelido carinhoso que lhe dera, inventado nas horas alegres do amor - na América não vivemos em casa com os pais. Asseguro-te que não é costume. A maior parte dos jovens daqui não suportariam a situação e acho que os velhos também não gostariam disso por muito tempo. Talvez no Natal seja possível passarmos uns tempos lá. Enquanto isso...

Levantou-se, meteu as mãos nos bolsos e pós-se a caminhar pela sala. Falava enquanto ela permanecia ajoelhada, observando-o, o rosto pálido mas sereno, os grandes olhos negros a segui-lo, inexpressivos.

- Nova Iorque é o lugar indicado para nós, uma grande cidade onde vive gente de toda a espécie. Vê, Pittysing, a minha cidade natal é um lugarejo onde as pessoas vivem há gerações, uma dúzia de famílias, mais ou menos, com os seus criados e outros dependentes. Creio que nunca viram um japonês.

- Então é por minha causa- observou Josui.

Ele dissera mais do que tencionava. Parou diante dela, tentando sorrir, enquanto olhava o seu rosto erguido. -Lembras-te do que teu pai sentia com relação a mim?

Pois bem!

- Mas aqui, na América?

-Ah, isso mesmo, na América, meu amor! Especialmente .na América! Esqueceste-te? Tu viveste em Los Angeles até muito tarde. Já te não lembras? -A sua voz revelava amargura.

Josui lembrava-se. Deixou pender a cabeça e lágrimas apareceram nos seus longos cílios negros.

- Pensei que tivesse mudado -murmurou.

-Talvez esteja a mudar-admitiu ele. - Eú sou parte dessa modificação e tu também.

A essas palavras ela levantou novamente a cabeça e olhou-o temerosa.

- Isso faz com que eu me sinta muito só - disse com voz sumida.

- Duas estrelas errantes a tentar construir o seu próprio universo - concordou ele. - É possível consegui-lo, Pittysing.

Pegou-lhe nas mãos e forçou-a a levantar-se.

- Não voltes a ajoelhar-te, peço-te, Srª Kennedy- disse. E agora não voltarei a chamar-te Pittysing. Foi um nome de lua-de-mel. E a lua-de-mel acabou, minha querida. A vida começa. Vou passar a chamar-te Jo Kennedy. Que tal? É muito americano, não é?

A cólera tornava-o ousado, a rebeldia encorajava-o. "Ao inferno", pensou, "com as coisas velhas do passado." Deixaria o Exército, iria para Nova Iorque e arranjaria um emprego.

- Vamos, Jo - disse, apertando-a resolutamente contra o peito, num abraço em que a única paixão era a cólera. - Arruma as tuas coisas. Vamos para o Norte.

Exteriormente, a mudança operou-se com facilidade. Allen conseguiu logo um emprego numa revista semanal. Possuía excelentes referências, boa aparência, bastante prática, e apresentara o seu certificado de disponibilidade do Exército com menção de louvor. O ordenado era suficiente para as despesas do pequeno apartamento que alugou em Riverside Drive. Josui até arranjou amigos: uma chinesa casada com um estudante da Universidade de Colúmbia e um casal de japoneses que estudavam didáctica e psicologia infantil.

Mas, entre eles, as coisas haviam mudado. Ela e Allen começaram a ter, cada qual, uma vida de secreta solidão, conquanto se apegassem um ao outro com amor desesperado e, durante algum tempo, com paixão mais intensa do que até então haviam conhecido. Não provinham de bairros pobres para que aquele apartamento pequeno, mas bem arrumado, pudesse representar uma espécie de paraíso terrestre. Nem sequer tinham sido criados em edifícios de apartamentos, com elevadores, terraços pequenos e altos telhados enfarruscados Eram filhos do espaço e da abundância. Ela arrumava a minúscula cozinha e pensava na amplidão da sua casa em Kyoto, nos aposentos que, afastados os tabiques de rótulas, comunicavam uns com os outros a perder de vista. Allen pendurava a roupa no estreito armário e lembrava-se dos seus quartos na casa de grandes colunas, sua por herança, uma propriedade que a lei lhe assegurava. Em segredo, pensavam em jardins e lagos, e Josui, quando dormia, sonhava com o chapinhar da cascata a milhares de quilómetros de distância. A ela, igualmente, pertencia a cascata, os lagos e a casa de paredes de rótulas, os tesouros do tokonoma. Nenhum dos dois teria       renunciado, nem por um instante, ao seu amor, mas cada qual sonhava com o que não tinha e talvez nunca viesse a ter.

E ambos guardavam também no íntimo um ódio cada vez mais profundo à cidade. Era uma vida transitória. Quem poderá viver numa colmeia de celas e chamar a isso vida? Um embrião, talvez, mas nunca um ser humano, vivo, que se movimenta e sente, pensava Josui naquela sua vida secreta, tão bem dissimulada diante de Allen que ele nunca lhe suspeitara a existência, possuído como estava dos seus próprios sonhos furtivos. Ele não podia renunciar às suas esperanças, à sua indecisão, mesmo, de encontrar um meio de reaver o seu lar.

O amor frustrado à casa paterna, à infância e aos pais, provocava crescente irritação em Allen. Pensava constantemente nos pais, vivendo na casa que ele amava, e irritava-se ainda mais com o pai do que com a mãe. O homem é que devia insistir e exigir, impor a sua vontade à mulher. O contrário não passava de fraqueza. Ignorava que ele próprio era um homem em tudo diferente do pai. Embora sensível de mais para encontrar prazer numa prostituta que se entrega a qualquer um, a sujeição de um país conquistado modificara-o como  costuma modificar todos os homens. Alguns sentem-se impelidos a obrigar as mulheres conquistadas a submeterem-se; é a última fase da guerra, a confirmação da vitória pessoal. Allen teria negado que pertencesse a esse tipo de homens; não obstante, era um deles. Era arrogante e teimoso, ao contrário do pai. Pertencia a uma geração fisicamente dominadora, que conquistara pela força, e, assim, diferia radicalmente de Tom Kennedy, que nunca desejava dominar ou impor-se a quem quer que fosse.

Pensando assim, dia a dia Allen se tornava inconscientemente mais obstinado, autoritário e exigente, até com Josui. Ela ficava surpreendida, incapaz de entender porque era tão passível de erro o que fazia. Amava a perfeição, empenhando-se de tal forma em fazer tudo bem, que passava horas arranjando um vaso de flores sobre a mesa, ao canto da pequena sala de estar que servia também de sala de jantar. No entanto, a atenção dispensada a um só pormenor não a impedia de terminar tudo antes que Allen chegasse. Não tinha nem desejava ter empregada, pois sabia que, na América, poucas mulheres dispunham de serviçais. Além disso, como iria passar o tempo? Pensou frequentar algum colégio durante o Inverno, quando não pudesse ir passear nos parques. A cidade estava cheia de colégios. Encomendou catálogos e estudou-os enquanto esperava por Allen nas noites em que ele trabalhava até tarde. Todas as semanas havia dessas noites e sempre uma última noite de agitação febril, quando a revista "entrava na máquina", como ele dizia. Algumas vezes amanhecia já quando Allen chegava a casa, e ela ficava sempre à espera.

Se frequentasse um colégio, poderia estudar durante essas horas. Por enquanto, contentava-se em ler os livros que alugava na biblioteca do bairro. Algumas vezes eram livros bons, outras não. Não havia ninguém que a orientasse, com excepção da velha bibiotecária a quem se dirigia pedindo, polidamente, livros sobre a vida na América. Lia-os com crescente surpresa e perplexidade. Qual seria o seu lugar entre aquelas mulheres e os seus múltiplos problemas? A sua vida limitava-se ao pequeno apartamento, com o homem a quem amava.

No entanto, poderia a situação durar sempre? Havia horas em que a casa era como uma caixa pequena de mais, em que o seu espírito era presa de inquietação. Resumir-se-ia tudo naquilo?

- Allen - disse ela um dia. - Tu não tens amigos, querido?

Preparara-lhe um agradável jantar, um prato de sukiyaki, que ele tanto apreciava, e uma travessa de arroz, leve como uma pluma.

-Amigos? -repetiu ele.

- Para conversar um pouco - prosseguiu ela. - Eu poderia preparar um bom jantar como este, talvez para dois amigos, um casal, e conversaríamos.

- Não tenho tido tempo para cuidar de outra coisa além do trabalho, Jo - respondeu ele. - Mais tarde, talvez.

Ela convidou o casal que conhecera um dia no parque, dois jovens nipo-americanos, nascidos e criados em Seattle, e que frequentavam agora a Universidade de Colúmbia. Eram afáveis, mas reservados. Sentiam que o marido de Josui se mantinha, ainda, o jovem oficial americano. Era difícil esquecer que eles próprios tinham vivido num árido campo de concentração no Arizona, atrás de arame farpado. Mesmo assim, a noite foi agradável. Os jovens japoneses, quando prisioneiros, tinham-se distraído a esculpir as raízes retorcidas das artemísias do deserto e, a pedido de Josui, trouxeram alguns dos seus melhores trabalhos. Nenhum deles porém, estava à venda.

- Guardámo-lo como recordação - disse a mulherzinha atarracada.

A conversa, foi, por vezes, forçadamente animada, com muitos elogios à arte culinária de Josui, mas o casal retirou-se cedo. Ela não tornou a convidá-los.

-Tu achas que não são pessoas do teu género, não é, Allenn? - indagou, depois que saíram.

- Isso não tem importância - disse ele com bondade. - São muito simpáticos. Quero que tu tenhas amigos.

Depois, repentinamente, toda a inquietação se dissipou. Um dia, ao voltar do mercado onde fazia as suas compras diárias, Josui sentiu-se muito cansada e deitou-se na cama. Tinham aparecido sinais que a assustaram, atrasos, pequenas alterações no seu organismo, que, no entanto, julgou serem imaginários. Nunca fora regular na sua vida física feminina. Certa vez um médico, no Japão, dissera-lhe que o choque ocasionado pela partida da América e pelo fim de tudo quanto conhecera, numa época em que deixava de ser menina para transformar-se em mulher, o rompimento de ligações emocionais profundas, não sòmente com os amigos mas com as paisagens a que estava habituada, a necessidade de enquadrar-se no ambiente japonês, que lhe era familiar e ao mesmo tempo estranho, lhe haviam produzido certa inibição no espírito, que sem dúvida lhe afectara o organismo. Algumas semanas antes, pensara se não estaria grávida, temera e duvidara, tentara evitar com a sua própria relutância a concepção de um filho. Pois que espécie de lar era aquele para proporcionar a uma criança? Não era só a casa, que parecia uma caixa de fósforos, sem jardim para uma criança brincar, era também o parque, onde vira muitas mulheres brancas afastarem os filhos dos meninos de cor mais escura. Não legaria o seu filho àquele parque. Um filho!

- Não, não - murmurou.

E, agora, de repente, enquanto descansava, notou uma agitação dentro de si, movimentos muito leves, que não eram seus. Os sinais que se recusara a reconhecer ajustaram-se imediatamente ao molde da certeza. Sentiu no interior do seu corpo o impulso de outra vida. Lá estava, tinha começado, era tarde de mais, A criança vivia.

Ficou imóvel, horrorizada. Depois, afundou o rosto no travesseiro e chorou.

Felizmente, a criança por nascer não sabe quando a mãe chora. Desejada ou não, inicia a vida com alegria e a dor da mãe não a afecta. Vive, sabiamente, sòzinha e à parte, preparando-se para um mundo de sua própria criação, desenvolvendo-se àvidamente, dormindo o sono profundo dos que estão por nascer, só comparável, em paz e esquecimento, ao derradeiro sono, o da morte. Cada dia, porém, acorda um pouco mais, dorme um pouco menos, estende as perninhas, a primeira

grande separação da eternidade. Inicia-se para ela o tempo.

Assim acontecia com o filho do mundo, Lenie. Ele não sabia que sua mãe chorava muito. Absorvido na sua própria evolução, não pensava, apenas crescia. Ignorava de quem iria nascer e isso tão-pouco lhe causava desassossego; não tinha consciência da poderosa fusão que se operava no seu corpinho minúsculo. Dormia, absorvia o alimento pelo umbigo, movia-se uma vez por outra, com crescente inquietação, e ignorava que a sua existência era um segredo profundo entre ele e sua mãe.

Josui não quis revelar a Allen o que descobrira. Percebia que aquele americano com quem casara cheia de paixão, e a quem ainda amava com ardor, não se sentia feliz. Trabalhava com afã, era delicado com ela, amava-a; tinha a certeza disso, pois havia horas de imensa ternura, em que se demorava nos seus braços, totalmente entregue a ele, horas em que todos os pensamentos cessavam e os sentimentos se perdiam na fusão cósmica dos corpos. No entanto, agora sentia sempre a presença secreta do terceiro. Estaria aquele ser tomando parte na fusão? Sentir-se-ia surpreso e perceberia que o seu mar próprio era agitado por tempestades externas?

- Que se passa contigo? - perguntou Allen. - Em que pensas? Volta para mim.

- Estou aqui - respondeu ela, estendendo-lhe as mãos. - Vê, estou aqui, contigo.

Não, não lhe diria nada. Não representava para ele toda a sua vida. Sabia há muito tempo que Allen tinha segredos para ela. Vivia à parte, tinha pensamentos que não podia compartilhar. Não eram apenas recordações da casa, da família de que Josui o separara e da infância de que, agora, ela não podia participar. Havia muita coisa que não conseguia entender no mundo que era o dele. Allen interessava-se por política e ela não compreendia esse interesse. Lia livros que ela não podia ler, e às vezes ficava zangado quando ouvia as notícias no pequeno rádio ou franzia as sobrancelhas ao ler os jornais. Para ela nada disso era importante, mas se para Allen significava tanto, não era sua obrigação interessar-se também? Quando fazia tentativas para compreender de que se tratava e lhe dirigia perguntas - pois quem poderia esclarecê-la senão ele? -Allen respondia-lhe com uma impaciência que procurava ocultar. Nada doía tanto a Josui como essa impaciência mal reprimida, que se acentuava cada vez mais.

- É muito penoso para ti ensinar-me - concluiu um dia, em voz alta.

- Não, não é isso-argumentou ele. - Sinto-me cansado quando chego a casa,

Mas era verdade. Se ela tivesse podido frequentar um curso como pretendera, ter-se-ia familiarizado com os problemas da América. Mas isso já não entrava em causa. De nada serviria, agora que a criança estava a caminho. Não podia evitá-la, embora um dia tivesse tentado. Falara com a sua amiga japonesa e ambas procuraram um médico, mas este declarou que a criança tinha que nascer. Era tarde de mais. Além disso, ele não se envolvia em casos desses. Josui sentiu-se quase satisfeita. Não era justo destruir a criança antes de ter nascido. Não tinha culpa de ser um filho do mundo. Era o seu destino.

O Outono passou e chegou o Inverno. Josui emagreceu, preocupada com o segredo, e diversas vezes esteve a ponto de revelá-lo a Allen, mas nunca chegava a fazê-lo. Quando as palavras lhe pesavam sobre a língua, não conseguia pronunciá-las, não porque tivesse medo dele, que na verdade não tinha, mas porque sentia a instabilidade da sua vida. Até o aluguel do pequeno apartamento era pago mensalmente. Como seria possível viver mês a mês?

- Um dia destes iremos para casa - disse Allen. - Há-de chegar o momento. Embora minha mãe se oponha enquanto for viva, um dia há- De morrer, Mas não se oporá.

- Allenn! - exclamou Josui, horrorizada. - Não fales assim dos teus pais. Serás castigado!

Ele mostrou uma estranha insensibilidade.

- A morte é uma coisa natural. É até bom que os velhos morram. Enquanto vivem não há progresso.

- Allenn, ela é tua mãe! - e Josui colocou-lhe sobre os lábios a mão macia.

- E uma mulher de mentalidade estreita - prosseguiu ele, afastando-lhe a mão. - Nasceu e foi criada naquela cidadezinha. Não quer ou não pode entender que tudo se modifica. - Tu amas aquela cidadezinha.

- Eu sei, e acho difícil perdoar que minha mãe não me deixe viver lá.

- Não lhe desejo a morte - disse Josui, com firmeza. - Não posso desejar a morte a ninguém. Teria medo de fazê-lo.

Allen continuou a falar no mesmo tom estranho:

- É porque nunca mataste ninguém. Olha, Josui, eu fui ensinado a matar gente. Não é difícil. Às vezes, quando estou sentado a ouvir o nosso chefe de redacção, não posso deixar de pensar como o mataria se fosse o inimigo. Chego a ver os pontos vulneráveis do seu corpo enorme. Saberia exactamente como defender-me dele, o lugar macio aqui no pescoço ou abaixo das costelas. A baioneta não encontraria resistência.

Ela fitava-o petrificada de horror. Amarrara um pequeno avental rosado na cintura e enxugava uma travessa de vidro. De repente as mãos crisparam-se em torno da travessa.

Allen pôs-se a rir.

- Não te assustes, Jo, nunca farei uma coisa dessas. Foi, simplesmente, parte do meu treino e só falei nisso para te explicar por que razão a morte nada tem de horripilante para mim.

Ela não respondeu. Voltou-se e começou a lavar novamente os pratos na água quente cheia de sabão.

Allen amava sua mãe, era evidente. Não estaria tão furioso com ela se a não amasse. "Eu devia ir embora - pensou Josui humildemente. - Afasto-o de tudo quanto ele ama".

Como poderia ir embora? Possuía aquele dinheiro no banco de São Francisco, mas não tinha para onde ir. Se escrevesse ao pai, talvez ele lhe mandasse mais dinheiro; mas dissera-lhe que não voltasse para casa. E que vida seria agora a sua junto dos pais? E aquela criança, quem havia de querê-la, senão ela sòmente? Era impossível que seu filho e o Dr. Sakai vivessem na mesma casa. Ela seria sempre o pára-choques entre os dois.

Josui chegava a ver a criança diante de si. Certamente se pareceria com Allen, pois ouvira dizer que o sangue branco era sempre mais forte e predominava sobre qualquer outro. Poderia essa criança crescer feliz numa terra onde todos tinham olhos e cabelos negros e a pele dourada? Não iria sentir-se extremamente infeliz? Era preciso permanecer ali, entre pessoas que se lhe assemelhassem. Portanto, como poderia ir embora?

Até o convívio com os amigos japoneses se lhe tornou difícil e aos poucos foi-se afastando deles. Não podia dizer à amiga o que pensava dia e noite. Desculpou-se dizendo que não se sentia bem, que precisava descansar muito. O casal estava ocupado com os seus estudos e gradualmente Josui Passou a não ver mais ninguém.

Um dia, Allen telefonou dizendo que levaria uma amiga a casa, a jovem de quem lhe falara, sua companheira de infância. Cynthia fora vê-lo à redacção e manifestara vontade de conhecer Josui. Levá-la-ia a jantar naquela noite, e pedia-lhe que preparasse um bom sukiyaki. A sua voz soava alegre ao telefone e Josui ficou satisfeita ao ouvi-la, pois havia muitos meses que isso não acontecia.

Limpou e arrumou o pequeno apartamento, comprou um ramo de pequenos crisântemos e não resistiu à tentação de adquirir três grandes, amarelos, como os que seu pai cultivava às centenas no jardim da casa, no Outono. Passou duas horas a dispor as flores, esforçando-se por obter uma impressão de espaço naqueles aposentos tão pequenos. Conseguiu-o por fim, colocando-as no peitoril da janela e usando como fundo uma nesga de céu e alguns telhados.

Oh, e a comida que tinha de ser preparada com tanto carinho - o arroz, que devia ser lavado dezenas de vezes até desaparecer a última partícula de amido, para não ficar pegajoso depois de cozido no vapor até à perfeição; os rabanetes, cortados em forma de flores; os pedacinhos de agrião e endívia, para enfeitar o caldo claro de galinha; e o peixe, que ela queria com cabeça e tudo, pois não se conformava com o corpo decapitado que os americanos apresentavam. Um peixe era belo inteiro, mas horroroso sem a cabeça. Como podiam deixar de percebê-lo? Poliu as tigelas e pratos e esfregou a cozinha até que a criança protestou, obrigando a mãe a deitar-se para acalmá-la.

Já lhe dera um nome. Era preciso dar nome a uma criança, antes mesmo que nascesse. Pensara muito nisso. Como se havia de chamar um filho do mundo? Certamente devia ter um nome que fosse seu, não o de seu pai ou parecido com o de sua mãe. Havia um nome americano, Joseph, mas não lhe agradava. Pensara em chamar-lhe Kensan, como seu irmão morto. Mas teria a criança direito ao nome dele? Não queria usá-lo sem permissão e não havia ninguém para dá-la. Imaginou o rostinho do filho; não se parecia com pessoa alguma sua conhecida, e, não obstante, parecia-se com todos, um verdadeiro filho do Mundo! Não poderia chamar-lhe Allen, pois a mãe de Allen não lhe aprovava a existência. Allenn... Allenn! Porque não lhe dar então, simplesmente, uma parte do nome do pai, chamando-lhe Lennie? No instante em que pronunciou esse nome, ele passou a ser o da criança. Viu um rostinho vívido, de grandes olhos cuja cor não pôde distinguir; mas em tudo e por tudo era uma criança a quem o nome de Lennie se ajustava perfeitamènte. Assim, ficou sendo Lennie e ela conversava com ele chamando-o pelo nome. Quando Josui andava muito pelo apartamento, limpando o pó, quando ficava muito tempo de pé cortando as hortaliças para o sukiyaki, e Lennie se mostrava impaciente, recriminava-o com doçura:

- Eu poderia sentar-me, Lennie, é verdade. Mas nunca vi uma mulher sentar-se para cortar as hortaliças em pedacinhos. A gente corta-as sempre de pé. Portanto, fica quieto, por favor.

Mas ele não ficava quieto e obrigava-a a deitar-se para descansar.

Aquela jovem, Cynthia, descobriria o que Allen ainda não notara? Seria amiga ou inimiga?

No momento em que a viu, percebeu que era amiga. Uma bela jovem alta, loura e graciosa, entrou em companhia de Allen, e Josui olhou para ela com humildade e instantânea admiração. Sem dúvida era aquela a jovem que Allen devia ter desposado. Via-se logo e Josui compreendeu perfeitamente a mãe de Allen. Oh, era evidente, Cynthia era a mulher indicada; tivesse ela sabido que havia uma mulher assim, e teria recusado Allen pelo muito que o amava.

Estendeu a mão, incapaz de falar, e Cynthia prendeu-a nas suas.

- Queria tanto conhecê-la - disse com voz cheia e amável. - Conheço Allen desde pequena. Somos como irmãos. Espero que lhe tenha contado.

- Ele falou-me - respondeu Josui.

Ficou hesitante; não conseguia afastar os olhos daquela maravilhosa rapariga loura, de olhos tão azuis, pele tão clara e macia, boca cheia e meiga.

-Tira o chapéu, Cynthia - pediu Allen. Tratava-a despreocupadamente, mas tinha prazer em vê-la. - Fica à vontade, Cynthia. A casa é modesta, mas nossa. Josui, onde estão as tuas boas maneiras?

- Estou tão surpreendida - murmurou Josui.

- Surpreendida de quê? - perguntou Allen.

- Tão bonita! - volveu Josui, ainda desconcertante. - Não esperava. Tu não me disseste.

Riram dela, entreolhando-se com prazenteira compreensão.

- Oh, você é encantadora! - exclamou Cynthia, com fervor. - Allen, tu não me disseste que era tão graciosa. Não me admira que sejas louco por ela. Eu poderia até pregá-la na lapela, como uma flor.

Josui, então, riu também, e imediatamente gostou de Cynthia. Estava contente por ver que era assim, uma rapariga alta e bondosa, apesar de tão bonita.

- Por favor, sente-se - disse, voltando a si. - Vou trazer chá. Allenn disse que esta noite tudo deve ser japonês. Com licença, sim?

Retirou-se da sala fazendo uma leve inclinação e foi para a cozinha, onde fechou a porta. Aí sentou-se um instante no banquinho para tomar fôlego. "Lennie censurou, em silêncio - por favor, não comeces a saltar. O avental cobre alguma coisa mas não tudo. Tu não foste convidado. Ajuda a tua mãe, por favor".

Ele aquietou-se logo, ao mesmo tempo que o seu coração, e ela então levantou-se para preparar o chá.

Para além da porta fechada, a sala também estava muito quieta. Josui podia ouvir as vozes, mas não distinguia as palavras. Conversavam, talvez a respeito da casa de Allen, da Srª Kennedy, coisas que não diriam na sua presença. Era natural, apesar de fazê-la sentir-se um pouco isolada, e ela demorou-se a preparar o chá para lhes dar mais tempo.

- ...Allen, ela é adorável! - dizia Cynthia. - Se tua mãe a visse ao menos uma vez, acredito que as coisas mudariam.

- Pensei que talvez no Natal... - Allen interrompeu-se.

- Também pensei nisso - respondeu Cynthia, com imensa simpatia. Estava inundada desse sentimento que lhe fulgurava nos olhos e no meio sorriso, no ardor com que se inclinava para ele na sua poltrona. Mostrava-se completamente absorvida e ele, percebendo-o, ficou a imaginar, ausente e no entanto um pouco triste, se Cynthia o teria amado e ele a ela, caso nunca tivesse visto Josui. Se conseguissem convencer sua mãe de que ele e Cynthia nunca poderiam ter-se amado um ao outro, talvez esse facto agora a tornasse menos intransigente.

-Sinto que posso falar francamente contigo- disse a Cynthia.

- Podes, sim-respondeu ela.

-Sabes das esperanças que minha mãe sempre teve a nosso respeito.

- Oh, sei, sim. - A resposta de Cynthia foi imediata. Não corou e seus olhos brilhantes permaneceram tranquilos como sempre.

- Ainda que eu nunca tivesse conhecido Josui? - perguntou ele.

- Oh, nunca pensei em ti dessa maneira - disse Cynthia, com segurança. - Gosto imensamente de ti, Allen, como bem sabes. Céus não poderia imaginar a vida sem ti, nem antes, nem agora, mas não creio que esse espécie de afeição possa transformar-se no amor que leva ao casamento. Sinceramente, não és da mesma opinião?

-Suponho que tens razão -respondeu Allen, quase contra vontade.

- Porque me falaste nisso?

-Se tu conseguisses convencer minha mãe... – sugeriu ele. - Achas que adianta?

Ela ficou pensativa, as belas e alvas mãos entrelaçadas sobre os joelhos.

- Entendo o que queres dizer- exclamou depois. – Porque não farei? Farei o possível. Vou trata de conciliar tua mãe, contra a própria vontade dela, contando-lhe que amor é criatura é a pequena... josui... é assim que se pronuncia o nome? E veremos... Veremos.

- Cynthia, se o fizeres...

- Hei-de fazer- disse ela com calor. - Aqueles olhos, Allen! Tão grandes e negros, e as pestanas longas. São todas assim como ela?

- Josui é muito mais bonita que qualquer outra que eu tenha visto no Japão- declarou ele, com a reserva adequada a um marido.

- E mais bonita do que qualquer rapariga que eu tenha visto na América- disse Cynthia, generosamente. - Não admira que a ames. Estou inteiramente do teu lado. Declaro guerra à oposição.

-Tu vales por um exército, Cynthia!

Allen estava entusiasmado. A declaração de Cynthia justificava o seu modo de agir, e talvez conseguisse realmente o que nem ele nem o pai haviam conseguido.

- Se tua mãe não ceder - disse Cynthia - convidarei Josui para ir visitar-me e darei uma festa. Então veremos.

- Oh, não sei... - começou ele, alarmado.

- Allen, nada de covardias! Forçaremos o jogo. Tu estarás lá no Natal.

A sua firmeza, optimismo e cálida energia empolgaram-no. Talvez, talvez!

Nesse instante Josui entrou com o chá. Cynthia começou a fazer-lhe perguntas sobre a cerimónia do chá, a respeito da qual tinha lido e ouvido falar, mas que não compreendia, e Josui perdeu a timidez, explicando-lhe. Ninguém ainda lhe perguntara coisa alguma a respeito do Japão e ela gostou de falar em sua casa, em seu pai e sua mãe, nas flores e no tokonoma. Allen observou, surpreendido, que Cynthia era encantadora na sua curiosidade, no seu interesse sincero. Ele sabia o que Josui queria dizer quando afirmava que até então ninguém lhe perguntara nada. Era verdade, os americanos não faziam perguntas. Falavam, porém nada indagavam. Era coisa que não lhes ocorria. Allen ficou a ouvir a voz doce e um pouco hesitante da esposa, que se esquecera completamente dele. Conversara apenas com Cynthia, deleitada. Ter-se-ia sentido só? Quedou-se a observá-la enternecido, cheio de remorsos por se ter mostrado tantas vezes taciturno. Compreenderia ela a tortura das suas dúvidas a respeito do que fizera? Talvez Cynthia os ajudasse. Tinha que terminar bem.

A fragrância difundida pela presença de Cynthia manteve-se por muito tempo depois que ela saiu. A sua profunda sinceridade produziu em Allen um calor de ternura, e, pela primeira vez há muitas semanas, ele se voltou para Josui com algo tão próximo de humildade como jamais sentira.

- Estavas adorável- disse-; o sukiyaki foi o melhor que provei. Cynthia achou lindas as flores e eu disse-lhe que ninguém as sabe arranjar como tu. Jo, és tão bonita!... Cynthia também acha.

Tornou a vê-la como era na realidade. A dúvida escurecera-lhe a vista, mas agora via-a com os olhos de Cynthia. josui era bonita. Tinha a graça de um gatinho; o seu corpo frágil, as pequeninas mãos tão débeis nos seus movimentos precisos, a compenetração com que se dedicava a qualquer coisa que fazia, tudo lhe pareceu novamente encantador. Podia confiar em Cynthia. Era simples questão de tempo. Sua mãe acreditaria nela.

Nesses dias voltaram a ser felizes. Allen mostrava se tão amável, que por pouco Josui lhe não falou a respeito da Lennie. Ter-lhe-ia contado tudo se não percebesse que a sua felicidade estava ainda ligada à casa paterna, à família, à cidade, ao mundo que o abrigara na infância. Não poderia ter a certeza da felicidade enquanto ele não construísse um mundo à parte para ambos. Quando o fizesse, quando tivesse a certeza de que Allen se transplantara do passado para o presente, quando lhes fosse possível abandonar aquela caixinha onde viviam, para encontrar em qualquer parte uma pequena casa com jardim que ele passasse a considerar o seu lar, então lhe diria. Mas tudo isso aconteceria alguma vez?

-Tenho comido de mais- disse ela, tentando rir.Estou a ficar muito gorda. O ar, aqui na América, é bom de mais para mim.

Assim disfarçava, ocultando-se atrás desse disfarce enquanto esperava. Mas até quando? Cynthia escrevera uma carta a Allen. Estava em cima da mesa junto à porta e Josui não ousou abri-la. Havia algo entre os dois, antigas recordações da infância, e não tinha o direito de intrometer-se. Confiava em Cynthia com toda a sua alma, mas havia aquelas recordações. Quando Allen chegou, entregou-lhe a carta.

- Veio hoje, e para ti, Allenn.

Ele rasgou vivamente o envelope e Josui observou-o enquanto percorria com os olhos as grandes páginas de papel grosso cor de marfim. Era uma carta importante - percebeu-o no seu rosto. Sùbitamente Allen amarfanhou o papel, atirou-o para o cesto e dirigiu-se a passos largos para o quarto de dormir.

- Não é para eu ler? - perguntou Josui enquanto ele se afastava.

- Lê, se quiseres -respondeu Allen sem voltar a cabeça. "Algum dia terá de saber", pensou amargamente.

Ela retirou então a carta do cesto e alisou-a com cuidado antes de ler. Era um papel tão bonito, tão macio, quase como se fosse feito à mão, simplesmente nada na América era feito

à mão, segundo acreditava.

"Caro Allen - escrevia Cynthia, com tinta roxo-escura, numa caligrafia larga e forte. - Fui ver tua mãe, conforme prometi. Falei-lhe da nossa pequena e querida Josui, descrevi-a, disse tudo o que pensava. Não permiti que me interrompesse -tu sabes como ela é, a sua voz corre como um rio prateado e, quando quer, não deixa ninguém falar. Desta vez falei e ela foi obrigada a ouvir. Julguei que estava a fazer grandes progressos e já planeava mentalmente a nossa festa de Natal. Ela esperou que eu terminasse, sem dizer uma palavra. Mas eu devia ter suspeitado de que, durante todo esse tempo, estava a guardar o trunfo nas mãos. Tu conheces aquela expressão tão sua, aquele brilho de certeza inflexível que lhe aparece nos olhos quando sabe que a razão está do seu lado.

"Allen, porque não falaste na lei? Há uma lei. Era o seu trunfo. (Minha querida)- disse ela-(mesmo que fizesse o que me pede, existe a lei).

"Não acreditei até falar com teu pai. Não é estranho que possamos nascer e viver num lugar sem nunca tomarmos conhecimento das leis? Há uma lei, Allen. No nosso Estado tu não podes casar com Josui. Teu pai disse que seria impossível alterar a lei, que as pessoas têm de estar preparadas para essas alterações. As leis nascem dos sentimentos e estes é que devem mudar. Mas na nossa cidade nada mudou desde a fundação, há duzentos anos.

"Penso sempre em Josui. Tu és um homem e estás na tua própria terra. Acho que seria melhor construíres o teu' lor em qualquer outra parte, Allen. Que mundo complicado este!

Sinceramente

Cynthia."

Josui leu cuidadosamente, palavra por palavra e a compreensão do que lera cresceu-lhe no espírito e invadiu todo o seu ser como um veneno. Uma vez mais as portas da América se tinham fechado para ela. Nem sequer estava casada com Allen. A lei proibia-o. Nunca poderiam casar. Lennie, Lennie!

Guardou a carta na gaveta da escrivaninha. Foi para a cozinha e molhou o pequeno assado que comprara pela manhã, depois levantou a tampa das duas panelas onde as verduras esperavam, fumegantes. Por que razão Allen não lhe dissera nada? Não tivera coragem para isso. Então também ele tinha o seu segredo, um segredo angustiante. Compreendia tudo agora, sabia por que razão Allen andava tão triste, tão impaciente. Era muito irrequieto, e Josui perguntara a si mesma se todos os americanos seriam assim. Nunca ficava tranquilamente sentado à noite, nem na sua companhia. A sua impaciência era uma energia crescente que, por fim, explodia numa tormenta de paixão quase feroz. Depois dormia, exausto. Mas o ciclo repetia-se. Quantas vezes quisera descobrir porque não havia paz no seu amor. Agora sabia. As lágrimas brotavam-lhe dos olhos, e caíam no soalho. O seu amor transformara-se em angústia. Que fariam?

Quando ele saiu do quarto de dormir, vestindo umas calças usadas, camisa velha e- chinelos, Josui correu ao seu encontro com os braços estendidos.

- Oh, pobre Allenn! -soluçou. - Estou tão triste. A culpa foi minha por ter casado contigo. Trago-te a infelicidade quando gostaria que fosses feliz. Que posso fazer?

Ele apertou-a contra o peito:

- Vamos viver em qualquer parte, Pittysing. - Oh, havia tantas semanas que não lhe dava esse nome tão docemente ingénuo! - Construiremos outro lar para nós. Esqueceremos a velha casa da Virgínia.

- Mas os teus antepassados construíram-na para timurmurou ela. (Os antepassados eram como deuses. E seria possível esquecer os deuses?)

Ele afagou-lhe as costas, acariciou-lhe os ombros com movimentos rápidos, nervosos.

- Desconfio de que a construíram para si próprios, e da mesma forma podemos construir uma para nós. Serei rico. Farei uma casa maior e envergonhá-los-ei a todos.

Josui sentiu-lhe o coração bater contra a sua face. Estava encolerizado, ofendido. Queria impor a sua vontade. Sentiu que o coração de Allen não batia por ela, mas por si próprio, e ficou imóvel, as lágrimas secaram. Devia continuar a guardar o seu segredo. Um mundo de paz e segurança não pode ser construído sobre a cólera. Não, precisava pensar, aguardar, ver o que devia fazer. Seu filho nasceria fora da lei. O amor fizera dele um pequeno criminoso, apesar da sua inocência. Eram todos inocentes, mas o castigo recaía sobre ele. Poderiam separar-se, esquecer-se até um ao outro, mas Lennie não teria onde descansar a cabeça. Oh, precisava pensar muito nisso!

- Vem - pediu, e afastou-se daquele coração que batia encolerizado. Secou os olhos no avental largo e curto que, por qualquer motivo, não tirava nunca. Usava agora aventaizinhos graciosos, guarnecidos de renda, que pareciam feitos só para enfeitar-lhe os vestidos. - Fiz um bom assado, Allenn. Vamos comer e depois nos sentiremos melhor. Vem.

Entrelaçou os dedos nos dele e sentaram-se. Depois colocou a comida quente na mesa; gostava de cozinhar e cada prato que servia era arranjado cone gosto, guarnecido com frutas ou verduras, pequenos pontos coloridos, um artifício para agradar aos olhos. Allen notou, o que poucas vezes acontecia, e tomou-a nos braços.

- Josui, juro que não fará diferença!

Ela fez o seu suave protesto habitual. Colocou-lhe a mãozinha quente sobre os lábios.

- Por favor, não jures. Nós vivemos, nada mais.

Para surpresa de Allen, Josui parecia a mesma de sempre. Não podia acreditar que ela tivesse compreendido inteiramente o significado da carta de Cynthia. Nunca sabia até que ponto ela entendia, jamais medira a extensão do conhecimento que Josui tinha do modo de vida americano. Parecia compreender tudo, aceitar tudo e, de repente, via que ela não percebera um detalhe essencial ou, se o percebera, o rejeitava como insignificante. Com o seu forte sentido da vida, talvez a própria lei não fizesse diferença para ela. Sùbitamente sentiu-se aliviado. Estava satisfeito por ela saber. Daí por diante pretendia esperar, viver, como dissera ela, e trabalhar. Talvez o simples facto de viver trouxesse uma solução. Comeu com vontade e, após a refeição, sentiu-se dominado pelo sono.

- Um jantar maravilhoso, Pittysing - murmurou. Deitou-se no divã e adormeceu.

Josui nunca lhe perguntara o que pretendia fazer. Não se referia nunca ao dia nefasto em que chegara a carta de Cynthia. Continuava tranquila, supunha ele, mostrando-se sempre solícita, e, como agora já não alimentava dúvidas, parecia imersa em calma. Allen sentiu-se imensamente aliviado. A sua maneira de japonesa, Josui compreendia. Era-lhe grata e não exigia nada. Ao aproximar-se o Natal, O Sr. Kennedy escreveu ao filho dizendo que ficariam contentes se ele pudesse ir a casa, sòzinho, ainda que fosse por um dia.

"Suponho que tua esposa, sendo budista, não observa essa data como nós", escrevia O Sr. Kennedy, como justificação. "Se eu estivesse só iria passá-lo convosco. Mas tua mãe ficaria muito satisfeita com a tua vinda. Não foi ela quem deu a sugestão. A ideia foi minha."

Allen mostrou a carta a Josui, que a leu sem se alterar.

- Naturalmente - disse. - É teu dever. Tens de ir. Ficarei muito bem aqui. Talvez peça ao casal Sato que me convide para jantar. Por favor, faz-me feliz, Allenn; obedece a teu pai.

Mas Josui não foi visitar O Sr. e a Srª Sato, embora Allen estivesse ausente por muitos dias. Ninguém foi vê-la e ela ficou sòzinha com Lennie. E assim, a sós, conversava com o filho,

explicando-lhe que não sabia o que fazer por ele. Pediu-lhe perdão, de joelhos, como se ele já houvesse nascido e estivesse agora diante dela, homem feito.

- Compreendes, meu Lennie, não era isto que eu queria. -Assim lhe falou no silêncio do seu ser, em comunicação directa com ele, e as suas palavras sentidas infiltravam-se na mente adormecida da criança. - Há duas boas casas em que tens o direito de nascer, a casa de meu pai e a casa do pai de teu pai. Não te posso explicar a razão por que não há lugar para ti em nenhuma delas. No Japão, meu pai, teu avô Sakai, está zangado comigo. Quando souber que a religião budista não tem valor algum aqui, onde existe uma lei, ficará certamente muito zangado. Não terei resposta para dar-lhe, porque ele está com a razão e eu estou errada. Pensei que, tendo nascido aqui, eu tivesse razão. Mas há uma lei contra ti e contra mim, Lennie. Não poderei mudá-la e teu pai também não. Portanto, não lhe posso falar de ti. Não perguntes porquê. Por favor, perdoa-me.

Quase todos os dias lhe dirigia, em silêncio, palavras como essas. A lei, esse era o grande bloco de pedra no caminho, o- impedimento, o obstáculo irremovível, que nem mesmo o amor lograva destruir. Josui compreendia agora que Allen não amava sòmente a ela; amava também os seus antepassados, os seus pais, a sua casa, o lugar onde nascera. Eram todos amores dignos e não podia culpá-lo por isso. Mas separavam-no dela; era uma estranha ante esses velhos amores. Para ela, era indispensável amar nos moldes do seu povo, em que ela não se enquadrava. Josui sabia, agora, que Allen não era suficientemente forte para abandonar as coisas passadas e apegar-se ùnicamente a ela, e com ela construir um mundo novo que nenhum dos dois conhecera antes. Ela teria sido capaz, mas ele não. No entanto, não devia ser censurado por isso, como explicava a Lennie.

Apesar de estar só, não se sentia isolada. Alimentava-se bem, lembrando-se de que, dentro de si, Lennie se transformava numa criança forte. Mas que faria quando Allen voltasse? Impossível continuar a esconder-lhe o segredo. Não encontrava resposta a essa pergunta e, assim, continuava simplesmente a viver.

Na véspera do Ano Novo, embora Allen ainda não tivesse voltado, ouviu bater à porta. Foi atender, pé ante pé, um tanto alarmada, embora talvez se tratasse apenas do casal Sato que lhe viesse trazer um pequeno presente de festas. Abriu a porta cautelosamente. No limiar estava Kobori! Viu-o, alto e elegante nas suas roupas ocidentais, de bengala, chapéu e luvas, com um sorriso no rosto comprido e liso, trazendo na mão uma caixa de flores.

- Kobori! - exclamou, incrédula e sùbitamente feliz.

- Eu tinha-lhe dito que viria a Nova Iorque em negócios -respondeu ele.

- Oh, entre, entre! - disse Josui, satisfeita por ter vestido quimono. Vestira-se assim depois que Allen saíra de casa, obedecendo a um impulso que não procurava compreender. Acabara de escovar os cabelos, pois dormira a maior parte da tarde. Mas não havia nada para comer no apartamento, nem mesmo quaisquer gulodices.

Kobori entrou, tirando o sobretudo e o chapéu, a bengala e as luvas.

- Está só? - perguntou em voz amável.

- Allenn foi passar uns dias a casa - disse ela desembaraçadamente.

- E você?

- Oh, eu estou bem-respondeu Josui, animada -Muito bem!

- Mas não o acompanha quando ele vai a casa? Ela sacudiu a cabeça.

-Ainda não.

- Ah! - exclamou Kobori.

Sentou-se, e ela deixou-se cair no pequeno divã.

- Então! - murmurou ele, continuando a fitá-la, bondosamente. - Diga-me a verdade, Josui, por favor. Somos velhos amigos.

- Primeiro vou pôr as flores no vaso - tornou ela. Pegou na caixa que Kobori ainda segurava e viu que lhe trouxera lírios chineses, de delicada fragrância. Nessa época do ano já se podiam comprar em Kyoto grandes molhos de raízes bulbosas onde brotavam folhas de um creme claro com extremidade verde-jade.

- Tive receio de que fossem rosas vermelhas - confessou. Ele sacudiu a cabeça.

-Acha que seria tão tolo?

Então, naturalmente, viu o que Allen não vira ainda. Percebeu a existência da criança.

- Ah! - disse de novo. - Afinal não está sòzinha, aqui. Há um pequeno terceiro personagem.

Ela inclinou a cabeça sobre as flores enquanto as arranjava.

- Allen não sabe.

Kobori olhou-a com surpresa. Abriu muito os olhos e franziu os lábios um pouco grossos.

- como é possível que um marido não saiba? Ele não deseja um filho?

Josui sentou-se junto à mesa em que colocara o jarro com as flores e, aspirando-lhes o perfume, falou a respeito da lei.

Disse tudo em poucas palavras. Tudo era simples, claro, imutável. Sentiu que podia contá-lo calmamente e sem lágrimas. Ele compreendia, e escutou sem interromper, movendo ligeiramente a cabeça de vez em quando.

Quando ela terminou, Kobori suspirou fundo e recostou-se no espaldar da cadeira.

- Ainda assim, será justo não contar a seu marido? Pode ser que, sabendo da existência da criança, ele se modifique completamente.

- Oh, não! - acudiu ela. - Você não compreende. Aqui uma criança não tem grande importância. Não modifica tudo como acontece entre nós. Aqui as gerações não dependem umas das outras.

-Mesmo assim...

- Não - disse ela, impetuosa e inflexível. Descobriu que tinha tomado uma resolução definitiva. Jamais falaria a Allen sobre Lennie.

- Josui, que pretende fazer? - perguntou Kobori, suavemente. Estava emocionado, consternado com a descoberta que acabava de fazer.

Amara Josui a seu modo, plàcidamente, e sofrera ao saber que a perdera, mas não com revolta, nem por muito tempo. Daquela dor só lhe restava uma profunda aversão ao casamento. Esperava que também isso passasse e que, depois de ver Josui feliz uma vez mais, poderia entregar o coração a um casamento adequado e prudente com alguma jovem que seus pais lhe escolheriam. Queria dar-lhes netos e estabelecer uma família da sua própria geração. Um homem deve ter filhos.

Vendo agora a situação de Josui, os seus planos ficaram destruídos e sentiu-se de súbito profundamente agitado.

- Não sei o que devo fazer - disse ela, inclinando de novo a cabeça sobre os lírios. - Só sei o que não farei.

Kobori suspirou.

- Seria melhor voltar para a casa de seu pai. Pelo menos, que a criança nasça no Japão. Há crianças assim nos orfanatos, bem sabe. Os americanos deixaram muitos filhos como esse. Será, simplesmente, mais um.

- Não -repetiu ela.

-Também não? - murmurou Kobori.

Ficaram algum tempo em silêncio, sentindo ambos o peso terrível daquele nascimento inevitável. Josui viu a agitação, a luta interna de Kobori.

- E você minha cara, ainda o ama? - perguntou ele depois, sempre em voz baixa.

Josui ergueu ràpidamente a cabeça. A pergunta partia de Kobori, porém ela própria já a fizera muitas vezes a si' mesma. Sim, amava Allen, mas era um sentimento morto. Amá-lo-ia sempre, mas sem esperança. Não deviam ter-se conhecido. Tinham nascido longe um do outro, e deviam ter vivido e morrido em partes opostas do mundo. Não tinham sido feitos um para o outro, mas haviam desobedecido às leis eternas dos deuses. Josui não sentia revolta e quase nunca era invadida pelo desespero. Sentia, apenas, uma tristeza tão profunda como a sua vida.

- De nada me serve amá-lo - disse, simplesmente. Permaneceram de novo em silêncio por longo tempo, pensativos. Por fim ele falou, hesitante e com muita delicadeza. - Quero dizer-lhe uma coisa, Josui, mas não sei como fazê-lo. Perdoe-me se falo quando talvez devesse calar.

- Por favor, fale-retorquiu Josui, sem voltar a cabeça. Ele humedeceu os lábios.

-Se algum dia quiser regressar sòzinha ao Japão, por favor, volte para mim.

O doce aroma dos lírios tornou-se de repente excessivo, e ela afastou o jarro. Compreendeu imediatamente. Se não tivesse a criança, ele desejava-a para sua esposa.

-Tenho a criança- disse Josui.

Kobori não a olhou. Baixou os olhos para as mãos, grandes e pálidas entrelaçadas sobre os joelhos.

- Desejaria poder ficar com ela - disse. - Sinceramente, desejaria que assim pudesse ser. Por mim, se fosse só, sem obrigações para com pais nem antepassados, fazia-o. Pelo menos, creio que poderia fazê-lo.

Falava com honestidade, perturbado, procurando ser generoso e bom. Josui compreendeu tudo isso, mas a sua mágoa não se abrandou.

- Agradeço-lhe - disse. - Talvez um dia me lembre do que acaba de dizer. Não sei.

Levantou-se resolutamente. Uma palavra para além daquilo teria sido de mais. A aflição inundava-a. Se trocassem mais uma palavra, não poderia conter-se.

- Vou preparar-lhe um chá - disse em voz animada, dirigindo-se para a cozinha. - Pelo menos chá tenho. Ando com tanta preguiça que nem saí para comprar doces.

Ele deixou-a preparar o chá, observando-a através da porta aberta. Não lhe teria ocorrido ajudá-la, porque estava habituado a ser servido e ela não esperava outra coisa. Josui trouxe o bule laqueado e duas taças de perfumado chá verde, um pequeno luxo que proporcionava a si mesma. O chá verde, o chá japonês era rico em vitaminas e ela tomava-o em grande quantidade. Depois de servi-lo, bebeu, segurando a taça dourada e preta na mão em concha.

- Fale-me de meus pais - disse. - Não me escreveram, embora eu lhes tenha enviado duas cartas.

- Eu sei - respondeu ele. - Fui visitar seu pai antes de embarcar e ele disse-me que ainda está amargurado. Acha que não devia ter-lhe desobedecido. pousou a taça.

- Por favor, - disse corajosamente - por favor, diga-lhe que ele tem razão.

Kobori ficou assombrado.

- Josui, você que é tão orgulhosa!

-já não sou - volveu ela com humildade. - Não posso lutar contra a lei da América. Está no coração do povo. E um __sentimento. Fazem as leis conforme o coração lhes ordena, e é isso o que sentem. Que posso fazer? Aonde irei esperar o nascimento da criança? Ela não tem onde encostar a cabeça.

Ao dizer isso perdeu sùbitamente todo o orgulho e todo o domínio de si. A calma mortal em que passara aqueles dias abandonou-lhe o coração e ela começou a chorar alto, de maneira terrível, escondendo o rosto nas mãos enquanto o seu corpo era sacudido pelos soluços.

Kobori perturbou-se profundamente. Pouso a taça, e ficou de pé torcendo as mãos. Não lhe passou pela mente tocá-la. - Vamos - disse -, vamos, isso é perigoso para si. Por favor, Josui, no seu interesse; isso prejudica-a muito.

Esperou, suspirando e murmurando, até que, de repente, ela parou envergonhada. Enxugou os olhos com as mangas e, com grande alívio de Kobori, passou a falar normalmente. - Vai ficar na América?

- Por vários meses - respondeu ele, mais tranquilo. - Agora, naturalmente, ficarei até você decidir o que vai fazer. Por favor comunique-me o que tiver resolvido. Peço-lhe que faça pelo menos isso. Aqui está o meu endereço. Se eu me ausentar será só para ir a uma cidade vizinha por alguns dias. Deixarei o nome do lugar para que possa avisar-me.

Ela pegou no cartão e colocou-o sob uma caixinha vazia em cima da mesa do canto.

- Se não receber notícias minhas - disse - é porque não tive necessidade de escrever-lhe.

- Mas, de qualquer maneira, deve pôr-me ao corrente de tudo - insistiu ele.

Josui prometeu, sentindo que, de contrário, ele não partiria.

- Muito bem, Kobori. Escrever-lhe-ei a avisar do que tiver decidido, mas talvez não seja já.

-Acredito na sua promessa.

Partiu então, segurando com cuidado o chapéu, as luvas e a bengala. À porta, inclinaram-se profundamente um diante do outro. Josui ficou à espera até que o elevador subisse, depois curvaram-se novamente, várias vezes, enquanto o empregado do ascensor os olhava perplexo. A seguir, entrou para o apartamento e fechou a porta. Agora sabia perfeitamente o que devia fazer no interesse de Lennie. Na verdade não havia no mundo lugar para ele.

Corando de embaraço, Josui dissera:

- Allenn, não te escreverei enquanto estiveres em tua casa.

Ele arrumava na mala a camisa de peitilho engomado.

- E porque não?

-Acho que é uma desobediência a tua mãe - disse Josui. – É introduzir-me secretamente na casa onde ela me proíbe entrar.

Allen protestou.

- Isso é absurdo. Tu não estás zangada por eu ir a casa?

- Oh, não, Allenn! Só não quero escrever, para ser cortês com tua mãe. Desejo obedecer-lhe.

Portanto, ele não esperava carta. A princípio nem pensou nisso. Quando entrou no grande vestíbulo acolhedor, sentiu a antiga excitação infantil, o mesmo alívio, a convicção de que ali tudo estava bem. Lembrou-se da sensação de desafogo de espírito, de abençoado repouso, que sempre sentira quando vinha da escola militar de Lexington para passar o Natal em casa. Ali havia paz e aprovação, ali era querido.

Tudo se assemelhava tanto aos velhos tempos que, quando a mãe veio ao seu encontro, atravessando com a sua graça vivaz as portas abertas da grande sala de estar, ele se voltou com o antigo amor impulsivo.

Ela aproximou-se de braços estendidos, com a fazenda leve do seu vestido de chiffon cinzento prateado a esvoaçar-lhe em volta dos braços.

- Meu querido filho!

Os seus braços envolveram-no e ele sentiu novamente a fragrância do seu perfume.

- Então, mãe... - A sua voz forte de homem não revelava a alma trémula de menino no seu íntimo. - Sê bem-vindo, querido!...

- Como soube que eu vinha? Pensei que fosse surpresa.

Ela afastou-o um pouco, rindo, com o rosto gracioso, tão jovem sob os cabelos prateados, cheio de alegria triunfante.

-Teu pai não sabe fingir, nem por um instante, principalmente comigo. Oh, eu sabia! E depois... Logo no Natal? Querido!

O chiffon cinzento envolveu-o outra vez como uma leve teia de aranha. Sentiu-lhe os dedos finos, fortes, segurar a sua mão direita.

- Vem para perto da lareira. Ainda não terminámos a árvore. Precisas de ir pôr a estrela na ponta, como sempre fazias. Nunca mais tive uma estrela ali enquanto estiveste fora. Cynthia está aqui para o chá.

Pronunciou o nome de Cynthia despreocupadamente, sem lhe dar tempo a imaginar razões ocultas. "Cynthia está aqui para o chá".

- Cynthia, aqui está ele. Eu bem disse que viria. Tinha a certeza!

A jovem usava uma blusa de malha vermelha com o vestido preto e tinha um molho de vagas de azevinho nos cabelos louros. Cumprimentaram-se como se se tivessem separado dez minutos antes; sempre fora assim.

-Senta-te - disse Cynthia. - Estive a servir o chá. Tua mãe está com um dos seus ataques de preguiça, hoje.

- É porque me sinto muito feliz- exclamou a mãe.

Ouviram o ranger da pesada porta da biblioteca, o arrastar de chinelos de couro, e seu pai entrou.

- Quem falou em chá? Água quente, nada mais! Diga a Harry que me prepare um martini. Allen, tomas um comigo? Deixa o chá para as damas.

- Com todo o gosto, pai.

Apertaram-se as mãos com força e afastaram-se logo.

Harry trouxe os martinis, tão depressa que já devia tê-los preparado com antecedência. Cumprimentou o jovem com voz macia.

- como vai, senhor Allen? É bom vê-lo em casa novamente. Feliz Natal, senhor Allen...

Bem, naquela cidadezinha situada logo depois de Richmond, no Estado de Virgínia, ainda existe a perfeiçãopensou Allen, e decidiu empregar todo o seu esforço para conservá-la, num mundo cheio de imperfeições. A perfeição era coisa rara, preciosa, que não devia ser desperdiçada, era uma ilha no meio do mar revolto, a segurança no torvelinho da catástrofe. De súbito, Allen percebeu intensamente, uma a uma, as belezas daquela sala: as rosas amarelas, rosas de estufa que sua mãe cultivava num mundo onde também se fabricava a bomba atómica; as cortinas de azul-desmaiado, afastadas da janela de Oeste para que se pudessem apreciar os últimos raios do pôr do Sol hibernal; o fogo que crepitava nos toros de madeira sustentados por grossas barras de cobre polido; os sofás e poltronas estofados de cetim, o piso lustroso e os tapetes espessos; uma sala após outra, tudo era brilhante e limpo, como se não custasse trabalho ou dinheiro, embora ele soubesse muito bem o que aquilo representava. Tinha direito à sua herança, a menos que preferisse desistir dela. Loucura!

E Cynthia estava ali, sentada junto à pequena mesa tauxiada de pau-rosa sobre a qual se encontrava a bandeja de chá, de prata, também herança de família, e que devia pertencer-lhe como tudo o mais. Cynthia teria sempre a mesma aparência, em qualquer idade, pois também ela era dotada de beleza duradoura, e o seu lugar era naquela casa. A lei lá estava, a protectora lei proibitiva; poderia escudar-se nela se fosse preciso.

Os dias passaram na sua tradicional marcha solene. Allen prendeu a estrela no ramo mais alto da árvore e voltou a ser criança. Penduraram as meias sob o consolo de mármore branco da lareira, que seu trisavô trouxera da França, havia muitíssimos anos; riram, na manhã do Natal, dos presentes engraçados, do macaco de brinquedo e do pequeno urso de Berna, mas, no fundo da sua meia, Allen encontrou o alfinete de gravata com pérola negra que fora de seu avô e representava um tesouro.

Sua mãe retribuiu-lhe com um sorriso o olhar reprovador.

- Mais tarde ou mais cedo seria teu, e porque não agora? Sou de opinião que não se deve dar tudo de uma só vez. Já disse a teu pai que pretendo passar para o teu nome tudo o que tenho para dar-te, querido. Falaremos nisso um dia destes.

Esse dia era sempre o seguinte, e novamente o seguinte, e por fim adiou-se o assunto porque o advogado da família fora passar o Natal em Miami e só estaria de volta depois do Ano Novo. E, sem dúvida, disse sua mãe, a véspera do Ano Novo era tão importante como o Natal, por causa do baile. Cynthia reservara inúmeras danças.

Foi enquanto dançava com Cynthia que tiveram o seguinte diálogo:

- Conseguimos não falar no assunto- disse ela.

- Eu até consegui não pensar nele-retorquiu Allen- Ainda não tens nenhum plano? - Nenhum.

Enquanto tua mãe vai tecendo as teias? - Ela está a tecer?

- É claro! Quando uma mulher ama um homem, embora seja seu filho - mas, naturalmente, tua mãe ama-te porque tu és o filho dela, e ama-te mais do que a qualquer outra pessoa no mundo - essa mulher tece as suas teias.

- E tu também não teces?

- Procuro não o fazer - respondeu ela, quase bruscamente.

Pareceu-lhe ver uma estranha hostilidade nos seus olhos azuis. Fitava-o impàvidamente, sem dissimulação, mas o seu olhar não era suave.

Enquanto dançavam com o antigo desembaraço, ele dizia a si mesmo que já devia ter voltado para Nova Iorque, que não devia ter esperado pela herança; mas, por outro lado, alimentava no íntimo, com avareza, a ideia de que, se agora tivesse mais dinheiro, lhe seria mais fácil insistir no casamento com Josui, ou, talvez, construir a sua casa em qualquer parte, transplantar-se, desenvolver-se num mundo por ele criado. Isso justificava a demora, mas, naquela noite escreveu a Josui, depois do baile, sinceramente inquieto por ter-se sentido perturbado com a proximidade de Cynthia, tentado talvez pela reserva insólita com que o tratara, pela atitude firme, cuidadosamente mantida, com que lhe dera a entender que ele era casado e, portanto, não entrava em causa.

Josui não lhe respondeu à carta, mas ele não esperava que o fizesse. Dentro de poucos dias estaria com ela. O Ano Novo decorreu numa troca de visitas, de casa em casa, com amigos que entravam e saíam, e Allen a correr de um lado para outro, fazendo visitas por sua conta, sem ouvir nunca, onde quer que estivesse, uma pergunta sobre Josui ou sobre os motivos por que vivia longe de casa; nenhuma pergunta, apenas a velha e acolhedora aceitação da sua presença, as habituais exclamações de alegria: "Então, Allen, há anos que não nos vimos!" Vozes femininas, claras como sinetas de prata, sem significado algum porque soavam à chegada de quem quer que fosse, e que, contudo, representavam tanto porque exprimiam uma cordialidade sincera.

Aquele era o seu sistema de vida. Não podia ser excluído dele, nem mesmo pelo amor. No entanto, que havia de fazer para salvar-se?

Após outro dia em que também não viera carta de Josui e ele não telefonara, o que poderia ter feito se ela não lhe tivesse dito que isso também seria desobediência, Allen, deitado na cama da sua meninice, considerou desesperadamente o que poderia fazer. De nada adiantava agora suplicar a sua mãe ou incitar seu pai. A lei estava, inexorável, acima de todos, escudando sua mãe. Ela lançaria toda a sua culpa e má vontade sobre a lei. Podia imaginá-la exclamando, com os lindos olhos muito abertos: "Mas Allen, querido, a culpa não é minha! Não fui eu que fiz a lei". Outros como ela, porém, a tinham feito.

Acolheu-se ao único refúgio que conhecia, e que era deixar de pensar. Afundou-se no conforto e na beleza da sólida e antiga mansão.

Quando O Sr. Haynes, o advogado, voltou de Miami, Allen foi chamado à biblioteca e ali ficou a saber o que sua mãe determinara. Ela estava lá, tensa, sentada junto à extremidade da longa mesa de mogno, no aposento iluminado pelo sol de Inverno, através das cortinas de veludo dourado que desciam do tecto.

O Sr. Haynes parecia morder o ar quando falava; era um velhinho de rosto miúdo e nariz vermelho, cuja pele parecia agora descascada pela acção do sol da Florida.

- Allen, sua mãe tomou uma decisão generosa. Pôs a casa em seu nome. É sua, agora.

Ele ficou atordoado, balbuciou:

- Mas eu pensei que a casa lhe pertencesse, pai...

Seu pai estava sentado perto de uma das janelas altas, grisalho e murcho no aposento luminoso. Respondeu secamente:

- Dei esta casa a tua mãe quando nos casámos. Ambos sabíamos, naturalmente, que passaria ao filho mais velho, assim como eu a recebi de meu pai. Achei que uma mulher precisa de ter a sua casa. É uma salvaguarda na vida.

- Tu deixar-me-ás no meu canto, querido. Tenho a certeza - disse sua mãe.

- Não aprovo isto - observou o pai.

- Eu não quero a casa - declarou Allen.

- Por favor, querido - pediu sua mãe. - Eu quero que seja assim.

- Não me agrada isto - insistiu Allen.

Mas agradava-lhe. Passeou o olhar pelo grande aposento que agora lhe pertencia. Devia ter suspeitado de que sua mãe tecia a sua teia, mas, fizesse ela o que fizesse, lá estava a lei como estivera antes, a resguardá-lo tanto do bem como do mal.

- Não posso viver aqui - disse abruptamente.

-Talvez possas algum dia-redarguiu a mãe em voz alegre.

Assim, contra o seu desejo e contra a opinião do pai, como lhe acontecera tantas vezes na vida, fez-se o que sua mãe desejava. E, consumado o facto, sentiu uma estranha e revoltante sensação de posse. A casa ter-lhe-ia pertencido de qualquer forma, pensou, procurando não exultar. Tornara-se sua apenas um pouco antes do tempo. Mesmo que tivesse construído uma casa para si noutro lugar, aquela teria sido sua e então seria preciso decidir, de uma vez por todas, onde iria viver.

Partiu naquela tarde para Nova Iorque. Era noite quando chegou à cidade e o táxi parou em frente do edifício de apartamentos. Um empregado desconhecido levou-o para cima, um homem a quem nunca vira antes, alguém contratado recentemente, supôs Allen, e não falou com ele. Tocou a campainha do apartamento, esperando que Josui abrisse a porta, e o seu coração cheio de remorsos bateu mais depressa. Oh, tinha de encontrar o meio de compensá-la por uma porção de coisas.

Mas a porta não se abriu. Tocou novamente, pois era possível que estivesse a dormir. Josui tinha a faculdade de dormir a qualquer hora, como um gatinho, enroscado em cima de um sofá ou mesmo entre as almofadas do soalho. Mas a porta continuou fechada. Por fim, teve de procurar a chave de sua casa, e abrir ele mesmo a porta. O apartamento estava às escuras. Sentiu o ar abafado e seco, por causa do aquecimento central. O silêncio era absoluto.

- Josui! - chamou alto.

Não teve resposta. Acendera a luz, ao entrar, e correu para o quarto de dormir. Ela não estava lá. A cama estava cuidadosamente feita, o soalho limpo. Abriu as portas do armário embutido e viu sòmente as suas próprias roupas penduradas. Ela fora embora.

A convicção dessa realidade caiu sobre ele com um peso aterrador. josui partira! Como poderia encontrá-la? Conhecia bem as possibilidades de desespero do seu coração de japonesa. Ela chegara a alguma resolução extrema, que lhe ocultara com a sua animação deliberada, com a sua doçura submissa. O que vira, o que conseguira compreender, jamais saberia. Deixou-se cair na beira da cama, sùbitamente abatido, esmagado pela dor e pelo remorso. Ocultou o rosto nas mãos e amaldiçoou-se intimamente, não porque Josui o abandonara, mas porque, acabrunhado de remorso, consternação e vergonha, sentiu que estava satisfeito por ela ter partido.

 

 

Josui desceu lentamente a rua. Todos os dias, enquanto esperava o nascimento de Lennie, dava longas e tranquilas caminhadas sem falar com ninguém e sem que pessoa alguma lhe falasse. Lembrava-se daquela rua. Era surpreendente como se recordava ainda de Los Angeles, como tudo lhe voltava à memória. A cidade era-lhe familiar e todavia não representava para ela a terra natal pois descobrira que a lembrança mais nítida era a da partida súbita, a cólera de seu pai quando soube que deviam sair dali. Um dia foi ver a casa de que se recordava tão bem. Estava agora ocupada por uma família de negros, limpos e sossegados. Josui não entrou, mas viu as crianças brincarem no pequeno pátio onde ela mesma costumava brincar com Kensan. Até o velho balouço lá estava; seu pai empregara nele cabos de metal que continuavam tão fortes como naquela época. Os negrinhos gritavam de alegria, apinhados no balouço.

   Naquele dia, porém, Josui ia dar mais um passo obrigatório. Levantara-se cedo, tomara banho cuidadosamente, vestira um fato azul-marinho que tinha adquirido havia pouco tempo e cujo casaco pregueado lhe disfarçava o corpo. O dinheiro que seu pai deixara no banco de São Francisco era suficiente para comprar a roupa e pagar o quarto na pensão barata de uma mexicana que mal falava inglês, e também para a sua alimentação. Quanto ao resto, tinha que depender da caridade.

Que a caridade fizesse o que o amor não podia fazer; que a caridade permitisse, igualmente, o que a lei proibia. Indagara de uma pessoa estranha onde ficava uma instituição de amparo à criança e agora aproximava-se da casa, situada numa rua lateral onde os aluguéis eram baratos. A porta estava aberta. Entrou, e sentou-se na sala de espera. Havia ali mais duas mulheres - mulheres não, crianças. Uma delas, talvez de catorze anos, era uma rapariga pálida de olhos cansados. Estava grávida, o corpo inchado, os lábios descorados. Não tinha encanto nem beleza, nada além da simples feminilidade que entregara a algum rapaz em troca de um pequeno prazer, talvez um encontro no cinema, ou um simples sorvete. Quem poderia saber? O seu vestuário compunha-se de farrapos. Um pedaço de renda rasgada e suja aparecia sob a saia.

A outra chorava; era loura, de cabelos platinados, o baton sujo pelas lágrimas. Magra, tossia ao chorar. As pernas, metidas em meias baratas de nylon, eram muito finas e as mãos estavam carregadas de jóias de fantasia, mas não usava aliança.

Josui sentou-se, entrelaçou as mãos e ficou à espera. A menina foi chamada ao escritório e algum tempo depois saiu, parecendo mais animada. A seguir entrou a rapariga loura e Josui ouviu-a chorar alto. Passado muito tempo apareceu, escondendo sob o véu o rosto inchado, e também ela se retirou. A secretária olhou indecisa para Josui.

- O seu nome, por favor?

- Sakai.

- Entre.

Foi introduzida num pequeno escritório onde viu uma senhora de idade madura e fisionomia branda, sentada atrás de uma velha escrivaninha.

-Josui Sakai? - Sim, senhora.

- Em que posso ajudá-la?

-Ouvi dizer que tomam conta de crianças - disse Josui, com hesitação. Como dar início ao que tinha para contar?

- Espera um filho? - perguntou a senhora, profissional e bondosa.

- Sim... não imediatamente. Mas preciso preparar-me. Não tem família?

- Ninguém - respondeu Josui.

A velha senhora ia escrevendo com letra clara e elegante o que ela dizia.

- Pretende ficar com o filho?

- Não - disse Josui. - Estou sòzinha. Não posso ficar com ele.

Ensaiara tanto aquela frase que as palavras agora lhe saíam quase com facilidade.

Oh, Lennie, Lennie que trazia no fundo do seu ser. Estava tão quieto como se compreendesse o que ela dissera.

- Sou a Srª Bray - disse a mulher amàvelmente. - Pode contar-me alguma coisa a seu respeito?

- Estou sòzinha - repetiu Josui. - Não há nada mais para dizer.

- Pode revelar-me quem é o pai? - perguntou a Srª Bray. -Só quero ajudá-la.

- É americano, branco - respondeu Josui. - Eu sou americana de ascendência japonesa.

- Compreendo - disse a Srª Bray com relutância. Demorou-se a olhar a visitante. Uma jovem linda, de atitude reservada, quase fria. Um caso lamentável, pois quem iria querer uma criança em parte branca, em parte japonesa? Isso, porém, começava a tornar-se uma história vulgar, em face das guerras que irrompiam nos lugares mais incríveis. Dois dias antes, fora obrigada a aceitar uma criança coreana de dois meses de idade. Quem iria querer uma criança dessas? Até os asilos as rejeitavam. A Srª Kisch era uma das melhores directoras de asilo, mas dissera que o pequeno coreano, com aqueles olhos estranhos, lhe dava arrepios. A Srª Bray colocara-o num orfanato de negros e desde então sentia remorsos, pois, na verdade, um coreano não era um negro,

- Esse homem não assumirá uma parte da responsabilidade? - perguntou.

- Não quero que saiba - disse Josui.

A Srª Bray protestou.

- Oh, mas isso não está certo, minha querida. Os homens deviam ficar a saber. Saem-se sempre bem destes problemas, e não devia ser assim. Por favor! Posso falar com ele em seu lugar.

- Não, obrigada - disse Josui, com decisão.

A Srª Bray perdeu a paciência. Nunca tivera um namorado em toda a sua vida, e não podia compreender as raparigas que não queriam que os homens soubessem o que tinham feito. Largou o lápis e ajeitou os óculos no nariz fino.

- Escute, Srª...

- Sakai - completou Josui.

-Ah, sim. Os nomes estrangeiros são tão difíceis de recordar. O que eu ia dizer é que vai ser extremamente difícil colocar o seu filho em alguma casa. A adopção é quase impossível, a senhora compreende. Ninguém quer uma criança de sangue misto. Já tentei muitas vezes, mas sem resultado. Nenhuma das partes a quer.

- Eu sei-murmurou Josui.

- Com certeza tem algum parente - insistiu a Srª Bray.

- Ninguém - insistiu Josui em voz apagada.

- Não querem a criança, não é verdade?

Ela não pôde responder. Estava decidida a não chorar e o esforço imenso fechara-lhe a garganta.

A Srª Bray suspirou.

- Bem, veremos o que se pode fazer. Talvez ele não saia muito esquisito, já que é em parte branco. Pode ser que eu encontre uma ama.

- Ama?

-Alguém que aceite a criança contra remuneração - explicou a Srª Bray. - A senhora poderia contribuir para o seu sustento?

- Penso que sim - disse Josui.

Sentia-se atordoada. Nunca pensara seriamente no que iria acontecer a Lennie, apenas imaginara que devia haver em qualquer parte um orfanato onde as crianças brincassem na relva à sombra de grandes árvores. Lembrava-se de ter visto, muito tempo antes, um lugar assim, perto de Los Angeles. As crianças pareciam felizes, mas naquela ocasião não as vira de perto.

- Se a senhora puder pagar, facilitará as coisas - disse a Srª Bray. Pegou no lápis e começou a escrever novamente.

-Onde pretende ter a criança? - perguntou.

- Não sei - respondeu Josui. Conseguira vencer as lágrimas e tinha a garganta livre. - Farei o que a senhora me indicar.

- É melhor ir para um hospital. Vou dar-lhe um endereço. Pergunte pela Drª Steiner; é uma médica refugiada, mas boa e atenciosa. Iremos buscar a criança ao hospital. Suponho que não quererá vê-lo...

- Quero, sim- disse Josui.

A Srª Bray encolheu os ombros e acabou de escrever. -Se tem a certeza de que não vai ficar com o seu filho. aconselho-a a não o ver antes.

- Preciso vê-lo - disse Josui.

A Srª Bray encolheu os ombros e acabou de escrever. - Qual a data provável?

- Em junho, creio.

- O seu endereço?

Ela forneceu-o.

- Procure a Drª Steiner, de vez em quando - aconselhou a Srª Bray. - Convém fazer um exame regularmente. Se mudar de ideia, por qualquer motivo, avise-me.

Estava terminada a entrevista que Josui tanto temera. Lennie podia nascer, alguém tomaria conta dele. Levantou-se e fez uma graciosa reverência.

-Obrigada, Srª Bray.

- Não tem de quê - respondeu a outra cortêsmente, pensando já noutro assunto.

Lá fora, na sala, havia mais três mulheres à espera; jovens, infelizes, não olhavam umas para as outras. Josui passou ràpidamente por elas e saiu para a rua naquela manhã suave. Faltava agora procurar a Drª Steiner, a quem devia ver, mas não quis fazê-lo nesse dia. Sentia-se cansada, estava apreensiva por Lennie continuar tão quieto. Saberia que seriam obrigados a separar-se?

Dirigiu-se a um pequeno parque e sentou-se para descansar. Ali estavam duas ou três mães com seus filhos. Pôs-se a observar. Eram brancas e os filhos também, o que era agradável, pois mães e filhos podiam ficar juntos. Josui não se permitia pensar em Allen. Cada vez que a sua imagem lhe vinha ao espírito, afastava-a logo, apagava-a. Ele já devia saber que nunca mais se veriam. Não lhe deixara nenhum bilhete, nada. Partira, simplesmente, levando as suas roupas e os seus objectos, tudo o que trouxera, as poucas coisas que lhe pertenciam. A essa hora Allen já teria entregado o apartamento e devia estar em casa com os pais. Só Kobori sabia o seu paradeiro; mas proibira-o de ir vê-la até que tudo tivesse passado e ela soubesse o que fazer. "Quero viver Sòzinha até ter visto o rosto de meu filho", escrevera Josui. Mas dera-lhe o seu endereço, pedindo, no entanto, que não a procurasse.

Pensou novamente na desesperada possibilidade de ficar com Lennie. Mas como? Poderia viver sem lar e sem família, só com a criança? Compreendia muito bem o que Allen sentira. Não o culpava. O que ele ambicionava era natural, em si uma coisa louvável. Apenas na sua ambição não havia lugar para Lennie, assim como não havia lugar para ele em casa do Dr. Sakai. Ninguém era culpado, senão a lei. Era a lei que proibia e, no entanto, não pudera evitar o nascimento de Lennie, porque não fora capaz de impedir o amor que levara à sua concepção. A lei nunca tomava em consideração o amor. Josui ainda amava Allen. Sempre o amaria, assim como nós amamos os mortos, que os vivos não podem substituir.

A Drª Steiner observou a bela japonesinha com curiosidade. O rosto jovem e pálido era inexpressivo, quase uma máscara do teatro Noh, e podiam imaginar-se os olhos como os buracos vazios da máscara. Era um rosto vigoroso, apesar dos traços suaves e da pele delicada que parece comum aos povos orientais. Talvez o vigor estivesse na calma resoluta dessa jovem que, evidentemente, se preparara para a tragédia. A Srª Bray falara-lhe em Josui Sakai e ela esperava a visita com interesse. Não conhecia nenhum japonês, embora a Alemanha, seu país natal, tivesse considerado o Japão a sua esperança no Oriente durante a guerra.

- Então não me quer dizer nada? – peguntou pela quinta vez.

- Por favor, não - respondeu Josui, plácida mas irredutível.

A Drª Steiner, era baixa, gorda, e tinha plena consciência do seu rosto anguloso e feio. Não alimentava qualquer ressentimento contra os outros pela sua aparência. Cedo na vida se conformara com a sorte. Dificilmente se poderia esperar que um homem quisesse casar com uma mulher que mais parecia uma escultura primitiva talhada em rocha cor de cinza. Por isso, sinceramente grata à boa sorte que lhe dera um cérebro excelente, renunciara a todas as ideias românticas e tornara-se uma cientista, mas de grande coração. O último resquício da tristeza do seu íntimo só se traía na humildade e admiração com que olhava a beleza de qualquer ser humano, homem, mulher ou criança. E foi esse o olhar que dedicou à sua visitante.

Josui, no entanto, depois de muitas semanas, estava impermeável a quaisquer sentimentos de admiração ou piedade. Sentia sempre frio espiritual, e mentalmente, e esse frio penetrava-lhe o ser de tal modo que lhe gelava o próprio sangue.

Naquele momento as suas mãos e pés estavam gelados e a Drª Steiner percebeu-o ao mover-se pesadamente em torno da mesa em que Josui estava deitada sob um lençol.

- Porque está tão fria, minha querida? - perguntou. Faz calor hoje, pelo menos eu sinto-o.

-Sinto sempre frio-replicou Josui.

- Fique à vontade, por favor- pediu a Drª Steiner. Não posso examiná-la com os músculos contraídos.

Mas Josui não conseguia relaxar o corpo. Permaneceu hirta como uma estátua de mármore, a que, na realidade, se assemelhava. Estava sob a tensão da espera. Não pensava, não sentia, não queria lembrar-se de coisa alguma. Todas as semanas recebia uma carta de Kobori, longa, amável, cheia de detalhes interessantes e de inalterada bondade. Não lhe exigia uma decisão, mas Josui sabia da sua esperança e punha-a de lado. Tinha primeiro de realizar a grande tarefa de trazer a criança ao mundo. Enquanto não estivesse separada de Lennie, não poderia decidir para onde iria e o que faria da vida. Na medida do possível, esperava sem pensar nem sentir. Contudo, às vezes, quando à noite não conseguia conciliar o sono, deitada no colchão fino e duro da cama estreita, incapaz de tomar um sedativo porque, afinal de contas, Lennie tinha direito a todas as oportunidades de vida, começava de repente a sentir, não a pensar, a sentir sòmente, como se o sangue lhe jorrasse de uma ferida coberta de ligaduras. Então todos os seus sentimentos se transformavam numa agonia, não pelo passado, mas porque jamais poderia ver Lennie, viver com ele, acompanhar-lhe o crescimento, ouvi-lo falar ou vê-lo sorrir, banhar-lhe o corpinho irrequieto, conhecê-lo como viria a ser, pois convencera-se, após longa meditação, de que a Srª Bray tinha razão. Não deveria ver Lennie; caso contrário, seria incapaz de separar-se dele. Sabia, ou receava que, se lhe visse o rosto ainda que uma só vez, isso aconteceria. E afligia-se, sentindo uma dor que ultrapassava todas as dores que a mulher conhece; tinha o coração partido, na verdade, mas principalmente porque era obra sua, e à dor unia-se o sentimento de injustiça feita a Lennie. Tão pequeno, desamparado e inocente, era obrigada a entregá-lo à própria sorte. Pois aí estava: ainda que o conservasse consigo, prejudicá-lo-ia, a ele que nada fizera de mal. As leis da natureza tinham-no chamado à vida, o amor cumprira a sua missão, a voz de apelo alcançara-o entre as sombras e ele atendera-a alegremente. Era uma criança alegre, tinha a certeza disso; os movimentos do seu pequeno corpo dentro dela davam-lhe a convicção da sua intensa felicidade. Nadava como um peixinho na alvorada, quando as montanhas estremecem aos primeiros raios de sol. Acordava-a depois de uma noite de lágrimas para consolá-la com o seu riso, esperando para libertar-se. Esse era o maior dos seus pesares: ela nunca ouviria o riso de Lennie.

- Corre tudo muito bem - disse a Drª Steiner. - A sua saúde é boa. O seu organismo funciona normalmente apesar de tudo.

-Muito obrigada -respondeu Josui.

Desceu da mesa e começou a vestir-se. O pudor fê-la voltar-se de costas e a Drª Steiner ficou a observar a sua figura bem torneada, a pele cor de marfim, o cabelo macio, denso e negro.

- Venha ver-me todos os meses - disse bruscamente, com forte sotaque alemão. - Estarei ao seu lado na hora do parto. Acho que tudo correrá bem.

- Obrigada - tornou a dizer Josui na sua voz suave. Vestiu apressadamente as últimas peças de roupa, ajeitou de novo os cabelos e saiu.

Depois que ela partiu, a Drª Steiner telefonou à Srª- Bray.

- Examinei a jovem japonesa - disse em voz bem alta, como fazia sempre que falava ao telefone. - É uma criatura extraordinária, muito bela e muito sadia. Certamente alguém adoptará a criança. Vê-se logo que é uma aristocrata, e uma mulher assim não escolhe um homem estúpido. De modo que a criança, além de bela e sadia, será inteligente. Na sua lista de pessoas que desejam adoptar um filho, não haverá alguém que saiba dar valor a esse tesouro?

A voz nasal da Srª Bray soou ao telefone, seca e pessimista como sempre:

- Vai ficar surpreendida. Temos uma lista de trezentos e dezassete casais, todos a pedir crianças que não existem, e a culpar-me porque não lhes posso arranjar filhos, mas aposto um dólar em como nenhum deles quererá essa criança.

A Drª Steiner começou a gritar.

-Ah! Uma democracia destas faz-me lembrar o maldito Hitler! Eu tenho um oitavo de sangue judeu, mas para Hitler era cem por cento judia.

A Srª Bray não respondeu. Era prudente e, aprendera há muito tempo a acreditar o pior a respeito de todos os seres humanos. Gostava bastante daquela médica atarracada e desgraciosa, que dizia exactamente o que pensava, e sabia que a Drª Steiner também simpatizava com ela, à sua maneira um tanto distraída. Tinham frequentes oportunidades de trabalhar juntas, e a médica protestava sempre quando crianças mexicanas ou negras eram impiedosamente entregues a orfanatos superlotados.

- Ninguém os quer - explicava a Srª Bray, pacientemente. - Os brancos nem pensam em aceitá-los e os mexicanos e negros já têm filhos de mais. Não compreende isso?

- Não - berrava a Drª Steiner. - Uma criança, é uma criança, não é? - E, em vez dum sorriso, fazia uma careta. Mas a Srª Bray nunca ouvira falar em Gertrude Steiner e imaginava que a Drª Steiner estava apenas a ser alemã de modo obscuro e pessoal.

Certa ocasião, a Drª Steiner perguntara-lhe de chofre: - Nunca teve um filho, pois não, Bray? A outra corara e logo empalidecera.

- Depois de tudo quanto vi, não pensaria em trazer uma criança ao mundo, ainda que pudesse. Por mim, poria um termo a isto durante cem anos.

- E depois começaria novamente? - perguntara a Drª Steiner, com interesse.

- Só com permissão legal e mediante prova de que a criança poderia ser sustentada - respondeu a Srª Bray, com mais vivacidade que de costume.

A Drª Steiner pusera-se a rir.

- Depois de cem anos talvez já não houvesse um só casal.

- Alguém teria arranjado um filho às escondidas declarara a Srª Bray, com a sua hostilidade habitual contra a reprodução.

- E então? - dizia neste momento a Drª Steiner, ásperamente. - Não diz nada?

- Estou a pensar - disse a outra, em tom hesitante. - Não me ocorre nenhuma solução. Acho que a criança terá mesmo de ir para o orfanato da zona oeste.

- Lá não há nem um metro de espaço para colocar outra criança - gritou a médica.

- Bem, que hei- De fazer então?

- Isso é consigo, Bray - berrou a Drª Steiner. - Encarrego-me de trazer a criança ao mundo viva e sadia. É essa a minha função, e nada mais.

Pousou o auscultador com violência e passou a manga na testa. Suava sempre que ficáva furiosa, o que acontecia frequentemente. Devia evitá-lo, porque era muito gorda. Na América há muita coisa boa para comer e ela comia bem, depois da fome que passara nos campos de concentração da Alemanha. As suas formas não interessavam a ninguém e não fazia questão de viver muito tempo, nem mesmo na América.

Gritou para a sua tímida enfermeira:

- O caso seguinte... depressa!

Os meses estranhos foram passando. Os dias eram vazios e as noites, abismos de escuridão. Josui chorava menos à medida que se aproximava a hora da separação. A mente recolhia-se e o coração dormia enquanto o corpo se preparava para a prova. O nascimento é uma batalha entre a mulher e a criança. A criança luta pela sua liberdade contra a mãe, a mulher entesoura a própria vida. Protege-se para, no futuro, poder dar à luz outra vez, ou simplesmente para subsistir. A sua tarefa está concluída, o seu corpo cumpriu o dever para com a sua geração. Afasta-se, desfalece.

- Ah, ah! - exclamou a Drª Steiner, exultante.

Pegou na criança que aguardava, um menino pequeno e rechonchudo, nascido com alguns dias de atraso, mas fisicamente perfeito. Esperara com surpreendente interesse e até com impaciência aquela criança. Durante toda a Primavera notara, a princípio achando graça a si mesma e depois com excitação, o interesse que tomava por aquela criança indesejada. Seria extraordinário esse pequeno ser, esse filho do mundo, como passara a chamá-lo - um aventureiro, nascido a despeito de todas as leis e ódios, uma criança arrojada, criadora de um mundo novo.

- Ah! - disse suavemente, olhando o garoto. Sabia que os seus olhos ainda não conseguiam ver, mas davam a impressão de a olhar. Tinha grandes olhos negros e um rostinho alegre. - Um menino! - gritou para Josui.

Josui, que ainda dormia sob o efeito do anestésico, não respondeu.

- Não leve a criança - ordenou a Drª Steiner à enfermeira. - Quero atendi-la eu mesma.

A enfermeira embrulhou o recém-nascido num velho lençol limpo e deitou-o numa cama vazia. A Drª Steiner aproximou-se e ficou a olhar para Lennie. A jovem mãe falava muito pouco, mas, nessa manhã, antes de lhe ser aplicado o éter, afastara a máscara delicadamente por alguns segundos e dissera à médica em voz baixa:

- Por favor, duas coisas que é preciso recordar. Não quero ver a criança, e o seu nome deverá ser Lennie.

- Nenhum sobrenome? - perguntara a Drª Steiner.

-Nenhum -respondeu Josui. Depois, torcendo-se de dor, colocara resolutamente a máscara sobre o rosto.

- Lennie! - disse a médica, por experiência. O nome adaptava-se bem a ele. Tinha o rostinho liso, muito pálido, sem nenhuma vermelhidão, e o seu corpinho miúdo era perfeito. A criança era pequena, um pouco mais de cinco libras, e nascera com facilidade. Libertara-se da sua prisão quase a brincar, despreocupadamente, confiadamente.

Olhou para ela agora, impaciente por rir, ou pelo meno foi o que a Drª Steiner imaginou. A médica espantou-se, pois não era verdade que os recém-nascidos, simplesmente continuavam o seu longo sono? Lennie era diferente. Estava maduro para a vida, e aquela mulher feia, de coração terno, sentiu um movimento no peito, uma palpitação, um anseio. Não era do tipo maternal, nem fora dada a gostar de crianças, talvez porque ela própria nunca se tivesse permitido esperar um filho. A sua atitude diante dos recém-nascidos era de respeito ao ser humano desconhecido, que era preciso preparar, tão cuidadosa e meticulosamente quanto possível, para uma vida longa e saudável. Cuidar do corpo era a sua função, o seu dever, e nunca permitiria que os seus pensamentos e a sua curiosidade fossem além disso. Mas Lennie era uma criatura como ela nunca vira igual. Embrulhado no lençol branco, as mãozinhas contraídas sob o queixo, os olhos negros, grandes e já límpidos, olhavam-na com interesse. "Então você - parecia pensar - você é um ser humano!"

Pena que aquele olhar não fosse dirigido à jovem mãe! Voltou-se para a doente e observou o trabalho da enfermeira. Nada fora do comum. Josui dormia como se não tivesse vontade de despertar. Estava inconsciente, com o corpo completamente relaxado, e tão pálida que a médica lhe tomou de novo o pulso. Não, era forte, juvenil. Tudo perfeitamente normal. Não tinha vontade de acordar e esse desejo tornava a anestesia mais poderosa.

- Leve-a - ordenou a médica. - Ela não quer ver a criança.

Duas serventes aguardavam do lado de fora da sala. A um sinal da enfermeira, entraram e, a seguir, saíram, empurrando a cama de rodas. Outra enfermeira apareceu para levar o menino. A Drª Steiner ordenou que esperasse.

- Quero examinar detidamente esta criança - disse. - Eu própria lhe darei banho.

A enfermeira não respondeu. Todos no hospital conheciam a teimosia da médica, essa alemã incompreensível, a exigir sempre tal perfeição no trabalho que criava descontentamento por toda a parte e, ao mesmo tempo, tão competente que se impunha à admiração e obrigava à obediência. Com esse misto de sentimentos opostos, a jovem enfermeira americana, desdenhosa e ao mesmo tempo compreensiva, trouxe uma bacia de água morna, sabonete, gase e uma toalha esterilizada. Sem a menor pressa e esquecendo as outras doentes que esperavam, a Dr. Steiner; banhou cuidadosamente o garotinho, notando cada pormenor da sua constituição diminuta mas vigorosa, os ombros quadrados, a bela forma de cabeça inteligente, a pequena boca e, ainda e sempre, os olhos extraordinários.

-Uma criança notável - observou, dirigindo-se à enfermeira. - Há qualquer coisa de excepcional nela. É mais do que o simples indivíduo, compreende, enfermeira? É a personificação de uma munificência racial, que se observa frequentemente quando as raças se fundem. Foi isso que Hitler nunca entendeu. Quando velhas raças se cruzam, nasce algo novo. Ah, sim!

A enfermeira mal prestava atenção. Era uma jovem de cabelos cor de fogo, e bonito rosto rosado, absorvida nos seus próprios assuntos. Faltava-lhe ainda uma hora de trabalho para terminar o seu turno de oito horas. Depois disso tinha um programa até à meia-noite, horas deliciosas em companhia do actual namorado, com quem talvez casasse ou não. Ele certamente não era japonês, judeu, alemão ou de qualquer outra daquelas raças esquisitas. Era um americano legítimo.

No entanto não era uma criatura cruel e quando a Drª Steiner lhe colocou a criança nos braços, recebeu-a com a semiternura que o seu adestramento lhe ensinara como atitude própria para com os recém-nascidos. Era doutrina aceita que uma criança se desenvolve melhor quando há pelo menos uma imitação de carinho nos primeiros dias da sua vida. Cada um dos recém-nascidos no hospital era embalado diariamente, durante quinze minutos, por enfermeiras escolhidas, para que, dessa maneira, tivesse a impressão do calor materno.

- Ponha a criança na caminha do canto-ordenou a médica. - Virei vê-la pessoalmente todos os dias.

-Muito bem, Drª Steiner - respondeu a enfermeira, obediente. Levou Lennie, tirou de um berço situado no canto da sala uma menina, sétima filha de um polícia irlandês, e colocou a criança no seu lugar. Devia ter mudado o lençol, mas o recém-nascido era meio japonês, não morreria fàcilmente e a pequena irlandesa também era sadia. A hora escoava-se ràpidamente, e ainda tinha muito que fazer antes de poder passar pela enfermaria-chefe sem o perigo de ser retida. Vestiu à pressa as poucas roupas necessárias a Lennie, cobriu-o com o cobertor de flanela cor-de-rosa que agasalhara a menina e deixou-o dormir. Quando a outra enfermeira se apresentasse, informá-la-ia da troca das crianças, dir-lhe-ia que a Drª Steiner vinha pessoalmente ver o bebé e que por isso tudo tinha de ser feito com o máximo cuidado para evitar uma explosão do génio sempre irritável da médica. A alemã não temia ninguém e, quando se zangava, gritava longas e ásperas palavras no seu idioma, que ninguém entendia e eram irreproduziveis tanto no som como no sentido.

Naquela noite, antes de ir para casa, a Drª Steiner foi ao berçário, dirigindo-se logo para a caminha do canto da sala. Lá estava a incomparável criança, agora dormindo serenamente. Mantinha o corpo estendido a todo o seu comprimento, não encolhido como a maior parte dos recém-chegados ao mundo. Pegou uma daquelas mãos, tão pequenas e perfeitas. Sim, estavam abertas. Lera que as crianças da Ásia não cerravam as mãozinhas como as do Ocidente. Aqueles dedos, delicados, afilados, eram tão macios e soltos como pétalas de uma flor. Talvez essas crianças viessem ao mundo aceitando o seu destino, sem resistência, trazendo no sangue a sabedoria dos povos antigos. Possibilidades interessantes sobre as quais a médica se pôs a meditar. Havia tanta coisa, além do corpo, que só se podia imaginar, mas que talvez um dia viesse a ser conhecida, quando a inteligência do homem passasse a ocupar-se da vida, em vez da morte. E então, continuando a olhar para lennie, ocorreu-lhe a ideia do abandono do menino; a ninguém no mundo importava que ele vivesse ou morresse, não havia ninguém para esperá-lo, agora que nascera. Para onde iria, quando terminasse o seu breve estágio no hospital?

Afastou-se abruptamente do berço e foi para casa, seguindo o itinerário habitual que a obrigava a tomar dois eléctricos. O seu lar era uma moradia pequena e feia situada fora da cidade. Tentara morar num apartamento, mas achara-o insuportável. Precisava ter uma casa, embora não fosse boa dona de casa. Fechava a porta à chave quando saía, e abriu-a agora, emperrando a chave como de costume, pois metia-a com muita força na fechadura. Levantava-se sempre cedo para deixar a casa razoàvelmente limpa. Encontrou-a como a deixara, e como gostava que fosse, absolutamente sem graça para qualquer pessoa, menos para ela: a mesa apinhada de livros e folhetos, excepto no lugar onde havia uma toalhinha de ráfia com um prato, colher, garfo, faca e uma chávena. Percorreu a pequena casa, os dois quartos, a cozinha minúscula e a casa de banho onde era obrigada a entrar de lado. Falava alto em alemão enquanto andava de um lado para outro, tomava banho, vestia roupão de algodão desbotado, aquecia a sopa e passava a manteiga nas grossas fatias de pão preto que completavam o seu jantar. Resmungando em voz gutural, perguntava a si mesma se estava doida, o que faria com uma criança, como iria pagar uma pessoa capaz de entender que aquele menino era um milagre, um ser humano que não devia ser desperdiçado, uma criatura preciosa de mais para ser posta de lado. Sentou-se à mesa e tirou com cuidado a dentadura postiça, tanto a placa inferior como a superior, depois mastigou confortàvelmente, com as gengivas, o pão amolecido na sopa. Perdera todos os dentes no campo de concentração. Alguns tinham sido quebrados à força, os outros haviam caído naturalmente. Usava dentadura em consideração às pessoas que precisavam olhá-la, mas, quando queria estar à vontade, retirava-a. Por vezes, .quando ia realizar uma operação difícil, perigosa, surpreendia as enfermeiras ao tirar a dentadura, que entregava à que estivesse mais próximo. "Tome cuidado- recomendava severamente. - Custou muito dinheiro, uma fortuna!"

Depois de comer, escovou cuidadosamente os dentes e colocou-os num copo de anti-séptico junto à banca da cozinha. Lavou os pratos, arrumou a toalhinha de ráfia novamente para a refeição da manhã e sentou-se na ampla poltrona coberta de veludo vermelho desbotado. Ao lado da poltrona havia uma mesa quadrada e sobre ela um telefone, revistas, livros, folhetos, manuscritos, uma caixa de charutos, um pires com fósforos da cozinha e um prato rachado que servia de cinzeiro. Abriu a caixa, tirou um charuto, acendeu-o e fumou com aparente calma, mas reflectindo furiosamente.

Passados uns dez minutos, pegou no auscultador, marcou e, prendendo firmemente o charuto num dos cantos da boca larga, iniciou uma palestra.

- Bray; é você?

De longe, a voz cansada da Srª Bray chegou-lhe aos ouvidos.

- Sim, Drª Steiner.

- A criança nasceu hoje.

- Que criança?

- Bray, por favor, não seja estúpida! O filho da linda japonesa que me mandou. Como pode ter esquecido? - Ah, sim!

- Poderia ouvir melhor se não gritasse tanto.

A Dr Steinerr adivinhou que a Srª Bray estava cansada e por isso, impertinente.

Como poderá ouvir melhor se eu não falar alto? Tolice!

Levantou mais a voz. - Bray, estou resolvida. Vou ficar com a criança!

Esperou pelo efeito da tremenda notícia. A Srª Bray continuou em silêncio.

- Está a ouvir-me, Bray?

- Sim - respondeu a outra, muito longe. - Estou a ouvir muito bem. Mas acontece que não temos autorização para entregar crianças a mulheres sem marido.

A Drª Steiner bufou.

Quantos maridos existem no orfanato? Você disse-me que poria a criança naquele orfanato. Vai ter diarreia e morrer. Foi o que aconteceu a dez crianças este ano. Não quero que seja o décimo-primeiro caso. Ficarei com o menino. Se tiver alguma dificuldade, mande-os falar comigo.

O dia fora longo e quente, e houvera um número excepcionalmente grande de raparigas grávidas e deprimidas. A Srª Bray estava cansada da sexualidade e suas consequências, e naquele Momento pouco lhe importava perder o emprego. Pensava há algum tempo em pedir trabalho no asilo municipal, onde os homens e as mulheres eram velhos e, embora ainda se apaixonassem de vez em quando, pelo menos não havia possibilidade de gravidez.

- Oh! Está bem! - disse de mau humor. - Acho que não vão notar uma criança a mais ou a menos. Sei que não poderei encontrar quem a adopte.

- Eu vou adoptá-la! - berrou a Drª Steiner.

- Muito bem - respondeu a Srª Bray em voz seca. - Espero que não se arrependa. Obterei a desistência da mãe e mandarei entregar-lhe os papéis.

- Óptimo! - trovejou a médica. Pendurou o auscultador no gancho e, recostando-se na poltrona, continuou a fumar pensativamente o seu charuto.

Quando lhe apresentaram o instrumento de desistência, Josui hesitou. Fora isso que decidira, e tinha de assinar. Contudo, sentia-se incapaz de fazê-lo, presa como estava de um estranho sentimento de frustração. No papel não constava nenhum nome, apenas o da agência, e ela ignorava para onde iria a criança. Parecia-lhe uma tarefa além das suas forças assinar uma declaração que entregava Lennie, simplesmente, a uma agência.

- Não há ninguém para ficar com a criança? - perguntou Josui.

- É melhor que não saiba-redarguiu a Srª Bray, secamente.

Josui não respondeu. Depois, com um esforço repentino, baixou a cabeça e assinou apressadamente na linha marcada Mãe. Os seus olhos fixaram-se naquela palavra. Sim, ela era a mãe, só ela podia dar o filho a outrem, e era o que acabava de fazer. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, que ficaram presas nos longos cílios. A Srª Bray não ergueu os olhos. Pegou no mata-borrão e secou a assinatura.

- Acho que é tudo - disse. - Se algum dia quiser saber como passa o menino, pode-nos escrever, e qualquer coisa que lhe aconteça nós comunicaremos. Mas, como sabe, a falta de notícias é boa notícia, e eu aconselho-a a esquecer tudo.

- Obrigada - respondeu Josui, com voz sumida. Levantou-se, enxugou os olhos e pegou na bolsa. Adeus! - exclamou, em voz ainda mais fraca.

- Adeus! - disse a Srª Bray.

E Josui saiu para a rua cheia de sol, sentindo-se roubada, apesar de ter sido aquela a sua vontade. Prometera voltar a procurar a médica, para um exame final; no entanto, não teria cumprido a promessa se a Drª Steiner não fosse uma pessoa excepcional, forte mas bondosa, apesar do mau génio, e, acima de tudo, uma mulher. Por uma ou duas vezes pensara em falar-lhe sobre si mesma, mas desistira da ideia. Era melhor permanecer desconhecida. Mal terminasse o exame, escreveria a Kobori. Ele viria procurá-la e, quando se encontrassem, decidiria o que fazer. De uma coisa, porém, não tinha dúvida: nunca escreveria a Allen, não tornaria a vê-lo, pois, embora ainda o amasse, o seu amor era como o que se dedica a um morto, ou a alguém que talvez nunca tivesse existido. A vida que a aguardava seria uma vida simples. Não lhe ocorreu que se pudesse viver uma vida de renúncias ali na Califórnia. A Califórnia era agora algo remoto para ela, embora caminhasse pelas suas ruas e sob o seu céu.

Entrou no consultório, pálida mas serena. A Drª Steiner esperava-a com impaciência. A Srª Bray dissera-lhe que a jovem nada sabia do filho e que nada devia saber. Excepcionalmente a médica, bufando, usara de prudência; não concordara nem discordara. Tinha decidido o que iria fazer e pôs em prática a sua intenção assim que a jovem se sentou diante dela, segurando firmemente a bolsa com ambas as mãos.

- Vou dizer-lhe uma coisa - começou a Drª Steiner, animadamente, olhando com renovado prazer a beleza pálida de Josui. - Quero que saiba, mas por favor, não conte nada à Srª Bray. Não desejo nenhum desentendimento com aquela alma boa, sempre tão tola. - Inclinou-se para a frente e baixou a voz com ar importante. - Vou ficar com o seu filho! Quero que saiba que ele está comigo e que é uma criança extraordinária. Não pode ser entregue a pessoas que não lhe dêem o devido valor. Vou ficar com ele e ensiná-lo a compreender o muito que vale, e como reúne o mundo inteiro no seu pequeno ser. -A Drª Steiner abriu os curtos braços roliços, formando um círculo em redor do mundo. - Farei dele um grande homem. Como? É muito simples, pois ele já é algo de grande!

Josui ouviu tudo aquilo com surpresa e emoção. Também ela se inclinou para a frente, sentindo os seios doerem-lhe sob o peso do leite inútil, uma fonte invulgar, suficiente para alimentar trigémeos, como observara a enfermeira no hospital.

- Então posso saber -suspirou: -sei onde ele está!

- Pode saber - disse a Drª Steiner, com firmeza. - Deve saber, minha querida. Creia, é um menino maravilhoso. E quero que fique algum tempo com o seu filho, se o desejar. Vá à minha casinha e fique com ele o tempo que quiser.

- Oh, muito obrigada! - exclamou Josui. Toda a sua decisão se esboroou ante o desejo louco de ver o filho. - Não posso ficar muito tempo, mas talvez por uma noite?

- Vá - repetiu a Drª Steiner. - Aqui está a chave. Pode ir agora, que eu o levarei mais tarde. Dormirá no quarto, onde já está o berço que lhe comprei. Eu posso dormir no sofá da sala de estar. Fique pelo menos dois dias com ele. Estou muito ocupada aqui. Fique mais tempo se quiser.

- Mas como é que a senhora... - Josui passeou o olhar pelo consultório abarrotado.

- Já consegui - disse a Drª Steiner. - Tenho uma boa vizinha, prestimosa, já avó, mas não muito velha. Os filhos não moram com ela. Tomará conta do menino enquanto estou no trabalho. Vai correr bem. As mulheres idosas são as que mais gostam de crianças; nós sabemos que elas são o verdadeiro sentido da vida, o elo entre o passado e o futuro. Agora vá e prepare-se para recebê-lo. Eu mesma o levarei à hora do almoço.

Josui recebeu a chave da mão rechonchuda da médica. Baixou por um momento a cabeça e encostou a face no dorso daquela mão, depois saiu, incapaz de pronunciar uma palavra, Caminhou lentamente, procurando pensar no que ia Então, afinal de contas, ia segurar o seu filho, seu e de Allen? Ia embalá-lo, dar-lhe banho, alimentá-lo? E enquanto dormia, que faria ela? Poderia costurar-lhe umas roupinhas, pequenos presentes que, possivelmente, aquela mulher rude e boa guardaria até ele crescer, para que soubesse que sua mãe o amava. Entrou numa loja, comprou flanela cor-de-rosa e azul, agulhas e linhas de seda de lindas cores. Depois, com o embrulho sob o braço, tomou um eléctrico. Chegou finalmente à casa, cujo exterior não lhe pareceu estranho, pois de algum modo, se assemelhava à médica. Abriu a porta e entrou. Era aquele o lar de Lennie. Ficou a olhar em redor, para nunca mais esquecer a impressão daquela sala ampla, com as estantes de livros na parede, o lugar solitário à mesa, a grande poltrona surrada junto à lareira de tijolos, cheia de cinzas. A porta que dava para o quarto de dormir estava aberta. Viu uma velha cama de ferro, muito limpa, e um berço novo, pintado de azul claro. Ainda não fora arrumado e nele estavam empilhados pequenos lençóis e cobertores novos. O seu coração dilatou-se, a emoção sufocou-a, mas não queria chorar. Tirou o chapéu, o casaco, e, com a sua habitual segurança e precisão de movimentos, começou a estender a roupa da cama, preparando asim o primeiro lugar onde Lennie repousaria.

Assim começou a divina semana. Sim, porque passou uma semana até que as duas mulheres conseguissem separar-se. Lennie chegou a casa nos braços da Drª Steiner, que o deitou no berço preparado por Josui. Era meio-dia e o calor abrasava, mas no interior da casa a temperatura era agradável. Josui ligara o ventilador e pusera sob ele uma panela com gelo. Colocou mais um prato na mesa, abriu o frigorífico e compôs uma refeição com os alimentos que encontrou: um prato que se assemelhava ao sukiyaki, uma salada fria e algumas torradas finas. Descobriu também uma caixa com mamadeiras, um esterilizados e latas de leite e dextrose. Eram para Lennie, porém ela não sabia preparar o alimento. Então, sentiu novamente a dor nos seios. Não poderia deixá-lo beber do seu peito? Quando ele chegou, Josui, implorando à médica com os olhos, colocou a mão sobre o seio e desabotoou a blusa.

- Sim, pobrezinha - disse a Drª Steiner, afàvelmente. - Quando chegar a hora, farei com que seque a fonte. Leve-o.

Josui recebeu-o num deslumbramento de felicidade, levou-o para o quarto, fechou a porta e, sòzinha com ele, deu-lhe a beber o seu leite. Lennie parecia quase contrafeito com ela, tocando-lhe o bico do seio, muito mais macio que o da borracha e vidro duro que conhecia. De repente, porém, compreendeu e começou a sorver a longos haustos o leite abençoado, com os grandes olhos negros fixos no rosto de Josui. E ela, fitando aqueles olhos, sentiu a tristeza avolumar-se dentro de si, atingiu a plenitude do sofrimento: chorou, e as suas lágrimas caíram sobre o rostinho do filho. Enxugou-as com a palma da mão e continuou a olhá-lo, trémula de amor.

Satisfeito com o leite, Lennie dormiu logo e ela deitou-o no berço. Debruçada sobre ele, estudou-lhe o rosto, as mãos, o corpo, os pèzinhos nus. Reconheceu a boca de Allen, a curva suave dos seus lábios. Contudo, o queixo firme desmentia aquela suavidade; herdara o queixo do Dr. Sakai. Mas as mãos eram como as suas, e os ombros quadrados deviam ser herança de algum desconhecido, pois os dela eram ligeiramente arredondados e os de Allen também não tinham aquele formato. Reparou então nas pestanas. Assemelhavam-se às dos americanos; nenhum japonês as tinha assim, longas e curvas. Os olhos eram asiáticos, cingidos por aquelas pestanas ocidentais. De quem as teria herdado? Não de Allen, mas de um dos seus antepassados, cujo nome ela nunca saberia, os cílios extravagantes de alguma bela mulher americana, já morta ou talvez ainda viva, que ela nunca havia de conhecer.

A porta abriu-se e a Drª Steiner entrou silenciosamente. As duas mulheres ficaram a adorar a criança.

Assim começou a divina semana. Pois uma noite e dois dias foram apenas o início de uma comunhão entre as três pessoas. Josui acabou por contar a breve história da vida de Lenníe. Enquanto falava, lembrou-se de coisas que já esquecera ou que nem notara na ocasião.

- Quando estivemos parados pela primeira vez sob as glicínias, quer dizer, quando nos... beijámos pela primeira vez... a senhora sabe...

- Não sei nada - tornou a Drª Steiner. - Nunca beijei um homem. Que lhe aconteceu?

-Sentimos um movimento no ar, uma brisa leve, embora não houvesse vento naquele dia - disse Josui, recordando. - Sentimos outra presença junto de nós. A senhora acredita que pudesse ter sido a alma de Lennie ainda por nascer?

- Não duvido - retorquiu a Drª Steiner.

Não era só Josui que falava. Desde que viera para a América, a médica tinha silenciado em presença daqueles que jamais poderiam compreender o sofrimento porque quase não o conheciam, dos que não sabiam o que era a morte porque não tinham visto morrer milhares de inocentes, novos e velhos. Mas_ agora contou a Josui o que recordava e seria obrigada a recordar até ao último dia da sua vida.

- De início, não podíamos conceber que eles realmente matassem criancinhas de sangue misto. Não eram criaturas do seu sangue, 'mas do meu, que se misturara com o dos alemães. Devia haver unicamente sangue puro, diziam, como se o sangue humano não fosse sempre puro, onde quer que se encontre O seu sangue, minha querida, não é diferente do meu. Nas nossas veias corre o mesmo líquido vermelho, embora eu seja uma judia velha e feia, e você uma delicada jovem oriental.

Segurando Lennie no seu amplo regaço, a saia larga estendida entre os joelhos grossos, tentou explicar a Josui de que maneira ele representava o triunfo daquilo em que ela acreditava.

- E tão lindo, este menino! Prova o que eu sei: que os seres humanos em qualquer cruzamento ou mistura podem ser soberbos. Compreende o sentido da palavra soberbo, minha querida? É o mais alto grau!

Lennie não tinha tempo de dormir no berço a não ser à noite, quando a médica e Josui eram obrigadas a interromper a palestra para dormir, a Drª Steiner por medo de que no dia seguinte a sua mão tremesse de cansaço durante uma operação, e Josui porque era jovem e se via crucificada entre o amor e a renúncia. O menino dormia ora nos braços macios e delgados, ora nos curtos e fortes que o seguravam. Dormia quando o levavam pelos aposentos da casa, quando estava deitado num regaço amplo e confortável ou contra um seio transbordante que o amamentava. Rodeava-o uma atmosfera de amor. Era adorado por aquelas duas mulheres, todas as suas primeiras recordações ocultas, suficientes para lhe durarem a vida inteira, eram de amor, amor e amor. Lennie era a criança mais bem-vinda do mundo.

E assim, chegou o último dia da semana e Josui preparou-se para partir. Nos primeiros dias temera este momento, mas agora sentia-se capaz de enfrentá-lo. Não desejaria tirar Lennie daquela casa. Ali, ele estava em segurança. Fora daquele lugar não havia quem o quisesse, quem esperasse por ele. Ali não tinha rival. O grande coração daquela mulher, que conhecera a vida e a morte, não amava senão a humanidade e Lennie. Ele estava em segurança.

- Fique, minha querida - insistiu a Drª Steiner. - Viveremos juntos, os três. Eu ganho o suficiente. Mas Josui não quis ficar.

- Ele não me pertence - respondeu. - Se eu ficar, um dia perguntará pelo pai. Não poderia ouvir essa pergunta a que não posso responder. Deixe-me partir.

Estava decidida a ir-se embora, a libertar-se de Allen, mesmo naquela criança em quem, às vezes, notava, surpreendida, uma expressão que lhe lembrava outra, muito semelhante, no rosto de Allen, uma felicidade risonha que lhe partia o coração por haver terminado tão cedo.

Tomou o medicamento para secar o leite e preparou-se para deixar a casa. Iria para São Francisco, onde Kobori a esperava, e quando o visse saberia o que fazer. Levava a paz na alma, a paz do amor extinto. Quando chegou o momento da partida, tomou Lennie nos braços. Calçara-lhe os sapatinhos de cor rosa e azul que ela lhe fizera e nos quais bordara umas borboletas. Pôs o menino nos braços da Drª Steiner e, recuando, inclinou-se profundamente à maneira japonesa.

- Agradeço-lhe, agora e durante toda a minha vida, o que fez por Lennie e por mim.

- Volte - disse a Drª Steiner, apoiando Lennie contra o ombro.

Josui inclinou-se novamente.

- Agradeço-lhe -repetiu. Mas não disse o que sabia, que nunca mais voltaria. A sua dádiva era definitiva. Entre o passado e o futuro não restava nenhum elo.

Na estação de São Francisco, Kobori esperava. Vestira-se com cuidado e isso fizera-o rir de si próprio. Não obstante, era agradável ter a melhor aparência possível, e fosse qual fosse a decisão que lhe reservava o destino, poderia aceitá-la melhor sentindo-se mais seguro da sua pessoa. Havia tantas coisas que escapavam ao domínio da sua vontade, que tinha certa satisfação em poder, pelo menos, aperfeiçoar pequenos detalhes que dependiam apenas dele. Escolhera um fato feito por medida, de grosso chantung de seda creme, adequado para o dia um pouco quente. Havia neblina sobre as montanhas distantes e, à tarde, talvez descesse para a praia, mas por enquanto o Sol brilhava em todo o seu esplendor.

O comboio chegou dentro do horário e ele viu Josui antes que ela o avistasse. Estava bonita e novamente delgada, e, embora o seu coração o impelisse para ela, Kobori sabia muito bem que era preciso refrear a impaciência. Esperava que Josui se tivesse refeito da experiência do amor, mas os convalescentes não podem ser apoquentados e ele devia, por uma questão de decência, proporcionar-lhe todas as oportunidades para recusá-lo. Sentia-se deprimido pela sua própria honestidade, pois seria incapaz de alegrar-se com a boa sorte enquanto não contasse a Josui a notícia publicada pelos jornais depois do seu último encontro. Depois de alguma hesitação decidira não lhe contar a notícia por grita, mas transmiti-la pessoalmente, para poder observar face a face aqueles belos olhos e ver se descobria neles um fulgor de esperança, por menor que fosse.

Tirou o chapéu e, aproximando-se dela sossegadamente, estendeu-lhe a mão à maneira ocidental. Ali, na plataforma da estação, aquele gesto seria menos estranho do que cumprimento à moda japonesa.

- Josui! - disse.

Ela não o tinha visto, mas voltou-se ao ouvir o seu nome. - Kobori! Que gentileza ter vindo esperar-me.

Apertou-lhe a mão ligeiramente, mas logo retirou a sua. - Pensei que tivesse ficado entendido que viria esperá-la retorquiu ele.

Caminharam lado a lado ao longo da plataforma e atravessaram a estação, seguidos pelo carregador com a mala de Josui. Kobori não podia deixar de olhar-lhe o rosto. Não estava pálida como temera. Parecia calma e bem disposta, as suas faces tinham uma cor delicada, nos olhos escuros havia uma expressão distante- Mas-alegre. Estava mais velha, mais tranquila e comedida, mas para ele essas qualidades acentuavam-lhe a beleza.

Chamou um táxi, ajudou-a a entrar e sentou-se a seu lado.

- Encomendei um almoço para nós- disse hesitante, receoso de ter ido longe de mais.

-Será agradável -replicou Josui.

Deu o nome do restaurante ao motorista e depois recostou-se no assento do carro. Josui estava a alguma distância dele, com as mãos enluvadas sobre a bolsa de couro castanho. Trazia um fato castanho-amarelado, muito simples, uma blusa branca franzida no peito e um chapèuzinho de palha também castanho. Parecia, de certo modo, mais americana do que antes e isso fê-lo sentir algum desgosto, até lembrar-se de que nunca a vira em trajes ocidentais. Notou depois, com surpresa, que aquelas roupas não diminuíam em nada a sua beleza, como acontecia à maior parte das japonesas. A nota de severidade harmonizava-se com as suas feições, e o seu perfil delineava-se nítido sob o estranho chapèuzinho.

Kobori não encontrava que dizer. Que havia de dizer? Não queria fazer perguntas sobre a criança. Nem sequer desejava + saber se ela estava viva ou o que Josui decidira a seu respeito. A criança agora nada tinha que ver com ele nem com a mãe, a não ser, naturalmente, se a notícia que tinha para dar a fizesse mudar de planos, quaisquer que eles fossem.

Passados alguns minutos, Josui voltou-se para ele com um leve sorriso.

-Tem passado bem? - perguntou cortêsmente. -Muito bem-respondeu Kobori. - E seus pais?

- Estão bem.

-São boas notícias- disse ela.

- O seu aspecto também é óptimo- observou ele. Josui riu.

- Então estamos todos bem!

Por sorte o restaurante ficava perto e o carro parou. Kobori pagou, dando uma gorjeta exagerada, e saíram. Gostaria

de conduzir Josui pelo braço como via os americanos fazerem com as senhoras que acompanhavam, mas para isso era acanhado de mais. Entrou no local, pequeno mas bastante dispendioso, onde já reservara uma mesa e escolhera almoço. Era um restaurante crioulo, especializado em pratos de Nova Orleães, pois, embora Kobori tivesse preferido um restaurante japonês, com bons pratos japoneses, achara melhor não manifestar essa preferência enquanto não conhecesse o modo de pensar de Josui.

A mesa ficava ao lado de uma janela com vista para a baía; a toalha era branca, a prata polida e os pratos muito limpos. Tudo estava impecável e sobre a mesa havia flores que ele comprara, àsteres roxo-pálidos e lantanas cor de limão.

Kobori reclinou-se na cadeira, um pouco pequena para ele, e pela primeira vez sentiu-se alegre e à vontade.

- Agora disse -terá de comer o que eu encomendei. É considerada a melhor comida crioula. Não difere muito da dos países asiáticos, embora seja mais condimentada que a nossa.

- Estou com fome - confessou Josui. - O apetite voltou desde que deixei de me sentir triste.

Ele gostou de ouvir aquilo e abriu a boca num sorriso largo. Depois lembrou-se da notícia que, por honestidade, devia transmitir-lhe. Mas decidiu esperar até vir a sopa. Naquele momento o criado trazia a terrina de prata, não muito grande, duas tigelas e a concha. Servidas as tigelas, os dois entreolharam-se, ele convidou-a a comer e comeram a sopa em silêncio. Tinham aprendido ambos que não se desvia de um bom prato a atenção do convidado ou do anfitrião.

Houve, no entanto, uma longa pausa até que o prato seguinte fosse servido.

- Os camarões, que vão ser o prato principal, não podem ser preparados com antecedência - explicou Kobori.

- Não estamos com pressa, pois não? - tornou Josui.

- Não - respondeu ele. Passou o guardanapo de linho branco pelos lábios. Clareou a voz. - Para ser franco, gosto até deste intervalo. Tenho uma notícia para si. Não sei se vai considerá-la boa.

- Notícia? - repetiu Josui. Pensou logo em Allen. Mas que notícia poderia vir dele? Que talvez fosse de seus pais.

- Nestes últimos quinze dias- disse com cuidado, para facilitar-lhe a compreensão - vim a saber que os juízes do tribunal deste Estado da Califórnia decidiram que as pessoas de cor branca podem casar com japoneses.

Fitou-a com um olhar profundo e penetrante. Ela compreendeu a pergunta apaixonada que havia nos seus olhos e retribuiu-lhe serenamente o olhar.

- Que significa isso para mim? - perguntou.

- Achei que devia saber. Pensei que talvez fizesse diferença para si. Quero dizer, se assim o deseja, poderá transmitir essa notícia ao americano cujo nome não desejo pronunciar. Agora será possível viverem juntos aqui.

- Não é possível vivermos juntos em parte alguma retorquiu ela. - Já não é possível.

Kobori sentiu o coração pesar-lhe no peito e diminuir as pulsações. Podia sentir as contracções do músculo compacto.

- Quer dizer que não o deseja?

- Não se trata de um desejo -redarguiu ela com voz tranquila. - Trata-se de uma impossibilidade. - Depois perdeu um pouco da sua calma. - Não vê, Kobori, que não posso? A lei já não importa. Conheço-o agora como ele é na realidade. E não basta para uma vida Inteira.

O coração de Kobori começou a bater fortemente.

- Quer dizer que já não sente...

Josui terminou a frase por ele.

-Amor? Talvez não... talvez sim. Mas isso também não importa. O amor não é suficiente. Pelo menos para mim. Talvez seja suficiente para os americanos, mas para mim não é. Sei agora.

Ele respirou profundamente, com ruído.

- Isso quer dizer que vai regressar ao Japão?

-Sim, Kobori, do mesmo modo que meu pai.

Naquele instante o criado apareceu inesperadamente, trazendo uma bandeja sobre a qual estava um belo prato de camarões. Colocou-o diante de Kobori, com orgulho, apresentando-lhe a colher e o garfo.

- Monsieur, quererá servir pessoalmente Madame - disse.

Kobori, apanhado de surpresa, pegou nos talheres desajeitadamente, depois olhou desorientado para Josui.

- Nunca fiz isto em toda a minha vida.

- Com licença. - josui estendeu as mãos delgadas e pegou, rápida e graciosamente, no garfo de prata e na colher rasa. Era hábil e tinha paciência. - Dê-me o seu prato, Kobori. Vou servi-lo.

Cheio de gratidão, ele estendeu-lhe o prato.

-Muito obrigado - murmurou. "Que sorte”, pensou enquanto a observava, "ter guardado as pérolas rosadas, legítimas, da India", e com voz carinhosa disse: - Embora eu a tenha convidado, você sabe fazer tudo melhor do que eu.

Ela sorriu sem responder. Achava muito natural servir aquele homem grande e desajeitado. E sentiu que o faria pelo resto da sua vida.

Também fazia calor na pequena cidade da Virgínia. Era um dia silencioso de Verão, inanimado, embora as árvores estivessem cobertas de folhas verdes e flores luzissem as suas cores vivas e quentes ao longo do muro.

A Srª Kennedy acabava de dormir a sesta. Esbelta no seu vestido azul-pálido, desceu a escada polida e parou para olhar a piscina. Fora despertada pelo som de vozes e pelo chapinhar da água, e por um momento sentira-se irritada por a terem acordado. Logo, porém, reconhecera as vozes de Allen, e Cynthia e a sua indignação dissipara-se. Os dois jovens começavam a aproximar-se. Tivera o cuidado de não falar muito em Cynthia desde que Allen voltara no Inverno anterior, doente, com um resfriado horrível, um cansaço inexplicável e um enfado aflitivo. Tinham partido imediatamente para White Sulfur Springs com o propósito de ficarem lá um mês e não lhe fizera perguntas enquanto ele não falou com o pai. Mesmo depois, nada indagara. Tom dissera-lhe, simplesmente, que a japonesa arrumara as malas e partira sem deixar ao menos um bilhete. Allen tinha pedido demissão do emprego, entregue o apartamento e voltado para casa.

-Tom, foi uma benção! -limitara-se a dizer.

Ele não respondera, mas a Srª" Kennedy estava habituada ao seu silêncio. Estava, agora, tàcitamente assente que nada mais havia para dizer. Ninguém era culpado, e talvez a jovem, embora estrangeira, tivesse compreendido que uma mulher não podia renunciar ao seu único filho. Mostrava-se de uma paciência que jamais tivera com Allen, pois o seu amor fora sempre Impaciente, crítico, exigindo acatamento. Oh, bem percebia quando magoava alguém, porque, se, a contrariavam, sabia ofender intencionalmente. Mas, agora, permitia que Allen a contrariasse, tratando-a até com dureza.

"Por favor, deixe-me decidir sbzinho", repetia ele sempre, a propósito das coisas mais insignificantes, como, por exemplo, quando ela insistia em fazê-lo experimentar o manjar branco. Allen não gostava do prato, porém ela tentara uma receita nova que ficava deliciosa, com o leite e os ovos tão indicados para ele no seu estado de fraqueza. Andava muito insubmisso e importuno, quase tanto como em criança, mas ela cedia em tudo porque ele voltara para casa.

Ficou parada à janela, olhando com ternura os dois jovens que se tinham estendido no terraço, sob o sicômoro. Estavam completamente molhados, mas, num dia quente como aquele, isso não tinha importância. Ambos de estatura alta, eram belas criaturas, no entanto devia prevenir Cynthia de que não devia deixar-se aumentar de peso com a idade. As mulheres casadas, especialmente depois de terem filhos, tinham tendência para engordar. ela, no entanto, nunca aumentara o seu peso uma libra sequer.

Deixou cair a cortina de seda, atravessou a sala, grande, arejada e fresca, e tocou a campainha. Harry, o velho mordomo, apareceu imediatamente, fresco e limpo no seu traje branco.

            Harry, prepare algumas bebidas e leve-as para O Sr. Allen e a -menina Cynthia - ordenou.

- Sim, senhora.

O criado saiu e a Srª Kennedy sentou-se. Ficou a reflectir se, caso Tom e ela se reunissem a Allen e Cynthia, não dificultariam um possível pedido de casamento. Durante o último mês não cessara de pensar que, qualquer dia ou qualquer noite, Allen viria dizer-lhe: "Minha mãe, Cynthia prometeu..."

Reclinou-se para trás, cuidadosamente, para não estragar o penteado, e fechou os olhos, sorrindo, esperando.

Cynthia enxugava os cabelos com uma toalha verde, de banho. Allen, deitado na relva a seus pés, fez-lhe uma pergunta ociosa:

-Tu escolhes uma toalha verde porque gostas da cor, porque sabes que o verde te fica bem, porque o teu fato de banho é verde?...

- Peguei nesta toalha ao passar pelo banheiro - disse Cynthia. - Talvez a tenha trazido por ser verde. De qualquer maneira, não escolheria uma azul, digamos. Pode ser que tenha sido consciente.

- Inteiramente consciente como sempre - sugeriu. Allen, ainda zombeteiro.

- Talvez.

Ele soergueu o corpo, apoiando-se nos cotovelos. - Quanta tolice dizemos!

- Sempre foi assim - concordou Cynthia. - Lembro-me de que, quando tinhas dez anos, eu pensava que eras o rapaz mais tolo que conhecia.

- Mas gostavas de mim?

Ela hesitou, sempre cautelosa.

-Talvez gostasse, às vezes.

A cautela da jovem começou a irritá-lo e, de repente, resolveu terminar com aquilo, esmagar a resistência como se esmaga um cardo quando é preciso.

- Escuta, Cynthia, acho que já é tempo de nos entendermos.

Ela esfregou o cabelo louro e curto com violência, sem responder.

- Cynthia, larga essa maldita toalha! - exigiu ele. Inclinou-se para ela, pegou numa ponta da toalha e arrancou-lha das mãos. Ela agarrou-a de novo e ficaram a puxá-la de um lado para outro.

- Estamos a ser tolos outra vez! - gritou ela.

Allen largou abruptamente a ponta que segurava.

- Está bem, mas ando cansado da maneira como te portas comigo. Sabes perfeitamente o que pretendo dizer e, no entanto, não me deixas falar. Tu não consegues iludir-me; conheço-te de mais.

- Está bem, fala! Terminemos duma vez com isto.

- Cynthia !

Os olhos azuis da jovem chispavam, os seus lábios estavam fortemente comprimidos e Allen sentiu uma vaga sensação de medo. Teria tido demasiada confiança?

- Fala! -ordenou ela.

- Com os diabos, falo mesmo- disse sùbitamente zangado. - Quero que cases comigo. Sabes disso, há muito tempo.

- Está bem, e eu não quero casar contigo. Já é tempo de o saberes.

Atirou-lhe ao rosto aquelas palavras, mas Allen não pôde aceitá-las; ouvira, mas não podia acreditar. Contara com a sua aquiescência, havia já semanas estava convencido de que ela o aceitaria. Por sua causa, pensava, Cynthia rejeitara todos os outros pretendentes.

- Não posso acreditar que estejas a falar sério- disse, tomando de repente um ar de dignidade. Sentou-se e limpou os raminhos de capim das pernas nuas.

Cynthia parou de enxugar o cabelo, deixou cair a toalha e, olhando-o com tristeza, ficou a pensar por que razão a possibilidade de amá-lo desaparecera. Nunca analisara as suas próprias reacções, não examinava os seus sentimentos, nem mesmo quando estava só; era uma pessoa que se deixava levar pelos seus impulsos, e há meses que já não o achava atraente. O velho hábito de camaradagem continuava, mas já não havia prazer nem excitação com a sua presença.

- Estou a falar a sério- disse melancolicamente. - Antes não estivesse.

Ele compreendeu então que Cynthia não o amava, por mais impossível que parecesse, pois eram feitos um para o outro-sua mãe sempre o dissera, e tinha razão.

- Não posso aceitar a tua recusa- disse com seriedade.

Sòmente agora percebo que vivi todos estes anos à espera do nosso casamento. Se, por acaso, estás a pensar em Josui...

- Estou a pensar nela, sim - disse Cynthia.

- Não é preciso - redarguiu ele. - Aquilo já passou. É como se nunca tivesse acontecido. Hoje não consigo entender como me deixei levar. Estive muito tempo fora de casa, e vou dizer-te uma coisa, que talvez não te interesse, embora eu espere o contrário: nunca andei com outras japonesas, como alguns ou quase todos os homens faziam.

Não podia ter a certeza de que ela o escutasse. Os seus cabelos, ao secar, formavam pequenos anéis que lhe caíam pelo rosto, dando-lhe um ar de graça quase infantil. Estava imóvel como uma estátua, segurando a toalha verde que rojava pelo chão.

Com o olhar perdido para além do relvado, Cynthia disse: -Acho que sei por que razão Josui te abandonou. Penso que ela descobriu que ia ter um filho.

- Não! - exclamou ele. - Não, pelo menos isso não é verdade. Se assim fosse tinha-me dito.

- Não creio que dissesse - tornou Cynthia, com ar quase sonhador. - Acho que ela quis ir embora para ficar sòzinha em qualquer parte, pois já devia saber que, se tua mãe a rejeitava tão-pouco iria aceitar a criança.

- Deixa de censurar minha mãe! - exclamou ele, exaltado. - Não foi culpa dela, bem o sabes. Sabes que existe uma lei...

- Oh, cala-te! - Atirou a toalha ao chão e, encostando-se no sicômoro, cruzou os braços. - como se a Virgínia fosse o único Estado da União!

O meu lar é aqui - disse ele.

- Oh, cala-te! - repetiu Cynthia, mas os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

Quando Allen a viu chorar, levantou-se e aproximou-se dela com os braços estendidos.

- Cynthia, querida...

Ela recuou e gritou:

- Não me toques! Não posso suportar isso!

Curvou-se e, apanhando a toalha verde, atravessou correndo o relvado em direcção ao portão do muro baixo que dava para o terreno da casa de seu pai.

Allen ficou a vê-la correr sobre a relva, sentindo um desgosto tão grande como nunca imaginara. O seu mundo, agora, tinha realmente terminado. Naquele dia em que deixara o apartamento, meses atrás, sentira-se infeliz, a cabeça doía-lhe de tal maneira que mal conseguira arrastar-se para casa em busca de lenitivo. Cynthia, pensara ele, Cynthia estava em casa à sua espera. Depois de um intervalo conveniente, algumas semanas para esquecer e convencer-se de que, na realidade, nunca amara Josui, passaria a cortejar Cynthia, voltaria a viver como antigamente e recuperar-se-ia. Isso agora tornara-se impossível. Como podería continuar a viver, ela de um lado do muro de pedras e ele do outro?

A situação era insuportável. Atravessou vagarosamente o relvado em direcção à casa e quase chocou com Harry, que trazia uma bandeja de prata cheia de copos grandes. Suspeitou ali o dedo de sua mãe e ordenou bruscamente ao velho criado.

-Leve isso para dentro, Harry. A menina Cynthia foi para casa.

Continuou a caminhar a passos largos e encontrou a mãe parada à porta, visivelmente ansiosa. Era melhor liquidar o assunto imediatamente.

-Minha mãe, quero dizer-lhe, de uma vez por todas, que pedi Cynthia em casamento e ela recusou. Por favor, nunca mais me fale nisso.

- Allen! - exclamou A Srª Kennedy, com voz estrangulada. - Porquê?

- Não deu nenhum motivo. - E, esboçando um leve sorriso, acrescentou: - Talvez eu não lhe agrade. Ficou a olhá-la, alto, belo e garboso de partir o seu coração de mãe, pensou ela, e viu o sofrimento que se ocultava atrás do seu orgulho.

-Acho que voltarei para o Exército, mãe- disse Allen, vacilante.

- Oh! meu querido! - soluçou ela e estendeu-lhe as mãos. - Por favor! - tornou ele e, afastando-se, subiu as escadas para o seu quarto.

A Drª Steiner estava sentada com uma enorme toalha branca de banho estendida sobre os joelhos.

- Agora - ordenou. - Levante-o, Srª Markey, e -sente-o aqui nos meus joelhos. Eu enxugo-o, e ponho-lhe o talco... assim!

A Srª Markey, uma mulher magra, um tanto idosa, de vestido de algodão cinzento com pequenas flores brancas, ergueu cuidadosamente Lennie da sua banheira e colocou-o no amplo regaço pronto para recebê-lo. Ele sentou-se o mais aprumado que pôde e sorriu alegre, embora com hesitação, para a Drª Steiner. A menos que sentisse alguma dor, o que só acontecia quando uma daquelas duas mulheres desajeitadas e boas o picavam por descuido com um alfinete, ou demoravam a dar-lhe a mamadeira, sorria sempre para uma delas ou mesmo para ambas. Os seus olhos asiáticos, grandes e suavemente negros, cuja leve obliquidade lhes acentuava o tamanho, eram guarnecidos de pestanas extravagantemente longas e Curvas, nunca vistas em olhos orientais. O seu corpinho robusto e erecto, pequeno mas rechonchudo, os ombros quadrados, as delicadas mãos que pareciam pétalas, o rosto simpático e alegre, a boca irrequieta e o nariz arrebitado provocavam verdadeiro êxtase na Drª Steiner. Esta interrompeu o seu trabalho de enxugar, meticulosa e cientificamente, a criança adorada.

-Srª Markey - disse em tom professoral -observe as mãos de Lennie, por favor. Veja as posições assumidas pelos dedos, o primeiro e o quarto estendidos, assim como o polegar, enquanto o segundo e o terceiro ficam dobrados, os movimentos da dança na Birmânia e no Sião, de onde foi levada para outros países e, sem dúvida, também para o Japão. Quer dizer que os criadores de bailados asiáticos tomaram os primeiros movimentos da criança como expressão fundamental da mão humana.

A Srª Markey era uma mulher inculta, mas olhou respeitosamente para as mãos de Lennie. Voavam como pássaros pelo ar, e o menino quase dançava sobre a base segura daquele regaço, parecendo querer arremessar-se no espaço. Todo ele resplandecia, cheio de covinhas e sorrisos, vivido como a água corrente e a luz do sol, diferente, ela bem o sabia, dos seus próprios filhos um tanto desgraciosos, um dos quais, depois de homem feito, fora apodrecer insepulto nas selvas de alguma ilha. Quando ela gabava Lennie, os vizinhos diziam-lhe:

- Como pode ser tão louca por um menino japonês?

- Lennie não é japonês - respondia ela. - É diferente de qualquer criança que já vi em toda a minha vida.

- Ainda por cìma o seu filho foi morto por um japonés -diziam com crueldade.

O seu coração ainda sangrava quando lhe falavam em seu filho, sam, mas respondera:

- Não foi Lennie que o matou, tenho a certeza.

Como poderiam os estúpidos vizinhos entender o que ela sentia?

Uma mudança inquietante se fez notar agora em Lennie. Um momento atrás, estava radiante como uma manhã de sol, mas, de repente, uma expressão aflita sombreou-lhe o rosto inteligente. Olhou com ar reprovador para a Drª Steiner, em quem já reconhecia a figura central do seu mundo. A boquinha cor-de-rosa começou a tremer e grossas lágrimas surgiram nas pestanas - uma nova dádiva, o aparecimento dessas lágrimas!

- Depressa! - gritou a Drª Steiner, agitada. - Está com fome. Perdemos muito tempo, sim, meu amor! A mamadeira, Srª Markey!

A Srª Markey correu a buscá-la. Ao receber a garrafa, a médica apalpou-a cuidadosamente. Não estava fria nem quente demais. Pousou-a, enfiou uma camisa de mangas curtas em Lennie e pregou a fralda em redor das suas coxas grossas e fortes. Ele mal suportou a demora, empregando o máximo esforço da vontade, agitando violentamente as mãos' e os pés.

- Ora, ora! - disse a Drª Steiner, como a desculpar-se.

Sou muito vagarosa, eu sei. Aqui está a mamadeira.

Ele estendeu as mãozinhas num gesto muito precoce, segundo observou a médica, e, agarrando aquela forma que lhe trazia alimento, enfiou-a na boca, onde se concentrava agora toda a tortura da sua fome. Reclinou-se sobre o cómodo travesseiro que era o antebraço da Drª Steiner, com o corpo imobilizado na consumação, e fitou contemplativamente o rosto grande e bondoso curvado sobre ele. Pequenos ruídos, dos quais não tomava conhecimento, eram produzidos pela Srª Markey, que esvaziava a banheira e removia os restos do ritual diário de limpeza, enquanto a Drª Steiner, como de costume quando tudo estava em ordem, dissertava sobre Lennie.

Completei os testes ontem, sabe, Srª Markey?

- Completou? - murmurou a outra, com revolta na voz. Considerava crueldade e até perversidade submeter a testes uma criaturinha tão pequena e perfeita. Como se Lennie precisasse de testes, como se qualquer pessoa não visse que era a criança mais perfeita que já existira.

-Terminei todos os testes, inclusive os neurológicosdisse a Drª Steiner na sua voz forte e decidida. O quociente de inteligência dele é o mais alto que encontrei num ser humano desta idade. É, de facto, maravilhosamente elevado.

- Gostaria que não chamasse a Lenie um ser humano - disse a Srª Markey, com aspereza.

A médica fitou-a de olhos arregalados. - Porque não? - perguntou.

- Dá a impressão de uma criatura comum - observou a Srª Markey. - Ele não é um simples ser humano. É o bebé mais gracioso, o menino mais querido do mundo!

Lennie, ouvindo-lhe a voz, olhou-a de esguelha e ela ficou arrebatada de amor.

A médica irrompeu numa gargalhada retumbante. - Markey, você não gosta nada dele!

A outra levou a mão à boca para esconder os dentes quebrados, num gesto que fazia sempre quando se via compelida a sorrir.

- Não sei porque é... não posso saber. Apesar de todos os filhos que tive, e de que um deles se foi para sempre, cada vez que o pequeno Lennie me olha, sinto como se se derretesse gelo dentro de mim.

Lennie afastou a madeira e o leite correu-lhe pelo queixo. Sorriu o sorriso de um anjo do céu e voltou-se com interesse para a mulher grandalhona. Que diria ela àquilo?

A Drª Steiner olhou-lhe o rostinho sorridente. De súbito pensou nas criancinhas mortas pela fome, assassinadas, enfiadas nas pontas das baionetas, atiradas aos montes, crianças que tinham morrido pelo que seus pais eram: judeus, católicos, rebeldes, os odiados, os temidos, os desprezados. Não suportou' a ideia de que Lennie pudesse ver nos seus olhos até mesmo uma sombra dessas lembranças. Era tão sensível, tão arguto, no seu cérebro entesouravam-se as dádivas do mundo inteiro. Deitou-o contra o ombro e sentiu os cabelos macios, de um castanho avermelhado, roçarem-lhe a face. Já aquele menino era forte, calmo, inteligente e brincalhão. Reconhecia-o pelo que era e curvava-se com humildade ante o que viria a ser um dia, ela, a escolhida, a virgem velha e feia. A ignorância não era capaz de discernir o que havia nele, a ignorância dos de espírito estreito e dos de coração pequeno, porém ela, ela saberia. Dentre todos os que estavam perdidos, salvara aquele menino.

- Que floração! -murmurou. - Que floração existe aqui!

E, triunfante, ficou a balançar-se de um lado para outro, batendo de leve nas costas de Lennie.

 

                                                                                 Pearl S. Buck  

 

                      

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