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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FORÇA DO DESEJO / Anne Mather
A FORÇA DO DESEJO / Anne Mather

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Helen não conseguia acreditar no que seus olhos viam: à sua frente estava um leopardo! Em meio a uma terrível tempestade de neve, com o carro enguiçado, sua situação não podia ser pior. Ela estava perdida, numa região isolada, ao norte da Inglaterra. Felizmente, o leopardo era manso, e o dono do animal, Dominic Lyall, surgiu para socorrê-la, oferecendo sua mansão para que ela se hospedasse. Mas a situação transformou-se num pesadelo, quando Helen descobriu que Dominic pretendia aprisioná-la ali. Como poderia fugir, se não tinha idéia do lugar onde estava? Pior ainda: como enfrentar seu próprio desejo de ficar ali, com ele?

 

 

 

 

Na primavera e no verão, os picos imponentes e os lagos escondidos entre as montanhas ecoam com a algazarra dos turistas que fogem da agitação e do barulho das cidades grandes. Eles chegam aos milhares, carro após carro, acampam ou fazem piquenique nos lugares pitorescos, arrastam atrás de si caravanas intermináveis pelas estradas de rodagem, como uma imensa invasão de lesmas gigantes. Alpinistas, que nunca usaram botas de pregos, sobem nos picos altos para apreciar a paisagem. O trânsito intenso paralisa as estradas estreitas que levam aos lagos mais freqüentados. Há uma infinidade de lojinhas minúsculas que vendem lembranças, cartões-postais e toda a coleção de objetos do artesanato local. Nos lagos propriamente ditos, as velas estufadas dos veleiros contrastam com as lanchas possantes que passam a toda velocidade, levantando um mundo de espuma. Em toda parte há esportistas de blusões de náilon e salva-vidas, e todos querem dar a impressão de que nasceram à beira do lago. Os hotéis estão sempre lotados, os bares e os cafés desfrutam de um movimento inusitado.

Os moradores do local, no entanto, aguardam com ansiedade o momento em que os turistas regressem as suas casas e deixem a região dos lagos para aqueles que a possuem por direito.

Era dessa temporada de verão que Helen se lembrava com saudade. Quando moravam no norte da Inglaterra, o pai tinha um barco a vela e ensinou a filha a navegar nas férias de verão. Pensando nisso agora, aquele parecia um período inesquecível na sua vida. Naquela época o pai não era o homem ambicioso que se tornou depois, e não pensava constantemente em ampliar os negócios da companhia de que era o proprietário. Isso foi antes de se casar com Isabel Thorpe e tornar-se um homem muito rico e influente, adepto de esportes mais sofisticados do que velejar no lago...

Agora, entretanto, as montanhas estavam cobertas de neve. O inverno rigoroso começara há alguns dias e até mesmo os lagos tinham uma película de gelo na superfície. Quando Helen parou no último lugarejo para informar-se sobre a estrada que levava a Bowness, descobriu que se afastara do seu destino original, o que não era de admirar, já que a maior parte das setas indicadoras estavam cobertas pela neve. Sentia calor e conforto no interior do carro; não quis sair e limpar a neve que encobria as setas. Fora preguiçosa, reconhecia agora, e não se lembrava mais das diversas estradas que se bifurcavam nas grandes e, como todas se pareciam umas com as outras naquelas condições, ela tomara certamente várias estradas erradas.

Consolou-se, porém, ao olhar o relógio de pulso. Eram apenas duas da tarde e, com um pouco de sorte, tinha tempo de sobra para chegar ao hotel antes de escurecer. Qualquer hotel serviria, contanto que a roupa de cama fosse limpa e a comida decente. Continuaria a viagem no dia seguinte. No dia seguinte!

Lembrou-se do pai. No dia seguinte, Philip teria descoberto que a filha fugira de casa. O que faria? Aceitaria os termos do bilhete que ela deixara, dizendo que precisava passar algum tempo sozinha, ou organizaria uma busca para descobrir seu paradeiro? A última alternativa parecia a mais provável. Philip não era o tipo de homem que gostava de ser contrariado e ficaria certamente furioso com o comportamento da filha, sua filha única, que o desafiara publicamente.

Entretanto, as perspectivas que ele tinha de descobrir seu paradeiro eram remotas. Helen podia congratular-se de haver partido em direção ao norte. Isso fora realmente uma inspiração providencial.

Nos últimos anos, ela freqüentara as ilhas do Caribe e o sul da França. Seu pai iria procurá-la certamente num local de clima quente, nunca numa região coberta de neve. Ele sabia que a filha adorava o sol, que gostava de nadar, esquiar no lago e velejar, todos esportes marítimos. Jamais imaginaria que Helen se lembraria do pequeno hotel onde costumava se hospedar quando era menina, nos anos que se seguiram à morte da mãe, quando o pai e a filha eram inseparáveis. Jamais lhe passaria pela cabeça que Helen iria aventurar-se a dirigir sob a neve que caía pesadamente nas estradas...

A neve estava cobrindo o vidro do carro e as varetas de borracha não davam conta do recado. Helen tinha a impressão que passara muito tempo desde que cruzara com outro veículo na estrada. Será que se perdera novamente? Aquela estrada levava aonde? Talvez fosse a entrada particular de alguma fazenda... Como faria agora para manobrar num caminho tão estreito?

Franziu a testa. Se fosse a estradinha de uma fazenda, bateria na porta e perguntaria a alguém a direção a seguir. Não contava mais chegar a Bowness naquela tarde. Podia hospedar-se em qualquer lugarejo do caminho.

O pára-brisa estava totalmente embaçado. Com uma exclamação de impaciência, brecou o carro, deixou o motor funcionando em marcha lenta e limpou a neve do vidro. A neve grudava nos dedos. Com um arrepio de frio, entrou novamente no carro, bateu a porta e ajeitou-se no banco. Talvez não devesse ter vindo de carro, pensou. Devia ter tomado o trem, ou o ônibus, teria sido mais prático. Tudo porque não queria correr o risco de ser reconhecida por alguém na estação...

Pouco depois, os limpadores de pára-brisa grudaram de novo e ela foi obrigada a sair novamente para endireitá-los. Estava dirigindo descalça, sem as botas de cano longo, que atrapalhavam os movimentos dos pés. Na primeira vez, ela se equilibrou na beira da porta para soltar as varetas. Agora, no entanto, achou preferível colocar as botas nos pés para fazer uma limpeza em regra no vidro. Enquanto estava ocupada com isso, o motor morreu.

Helen balançou a cabeça contrariada, levantou-se do banco e saiu. A neve, mesmo em cima do asfalto, batia na bainha da sua calça. Algumas gotas umedeceram seus ombros enquanto limpava rapidamente o vidro. Após verificar que as varetas estavam soltas e iriam funcionar normalmente, Helen entrou no carro e ajeitou-se no banco.

Levou alguns minutos para retirar as botas dos pés e dar novamente a partida. O motor de arranque girava velozmente, mas o carro não pegava. Xingando baixinho, Helen tentou diversas vezes. Manteve a chave virada mais tempo e ouviu o motor de arranque zumbir no interior silencioso do carro, mas nada do motor funcionar. Uma leve sensação de pânico percorreu-lhe o corpo. E agora? O carro ia deixá-la na mão, bem ali? Isso nunca acontecera antes. O carro era novinho, saíra há pouco da revisão. A verdade é que nunca enfrentara uma situação como aquela.

Vários minutos depois, desistiu finalmente de dar a partida. Estava escurecendo rapidamente e logo não enxergaria mais nada. Não podia correr o risco de ficar mais tempo ali, na esperança de que alguém passasse e lhe desse ajuda. Não havia sinais visíveis de que a estradinha fora usada durante o dia, embora a neve que caía impedisse qualquer inspeção mais exata. Mesmo assim, a decisão mais razoável seria deixar o carro ali e partir em busca de socorro. Se permanecesse onde estava e ninguém aparecesse, o carro podia ser coberto pela neve. Muitos motoristas haviam perdido a vida dessa forma.

Afastando esses pensamentos sinistros da cabeça, Helen apanhou as botas e começou a calçá-las pela terceira vez. Que amolação! pensou consigo. Quando poderia imaginar, ao sair de Londres de manhã, que estaria nessa situação ao entardecer? O pior era que ninguém ia pensar em procurá-la ali!

Seu otimismo de antes começou a esmorecer rapidamente. Balançou a cabeça e saiu do carro. O casaco grosso pelo menos era quente. Forrado de pêlo de carneiro e de camurça escura por fora, era bem visível na brancura da neve. Talvez alguém a avistasse de longe e viesse em seu auxílio. Levantou o capuz para proteger as orelhas e enfiou para dentro os fios compridos dos cabelos que o vento soprava sobre o rosto. Bem, não há de ser nada! murmurou consigo. Enfiou as luvas para aquecer as mãos, enrolou as pernas da calça até a altura dos joelhos e apanhou a bolsa no carro. Estava com tudo o que era essencial para uma situação de emergência.

Olhou para um lado e para o outro da estrada deserta. Não adiantava voltar para trás. Não havia nada naquela direção — pelo menos nos próximos quilômetros. Para a frente poderia encontrar uma fazenda ou um sítio.

A neve picava a face corada e o vento assobiava sinistramente entre os galhos desfolhados das árvores que ladeavam o caminho. Helen pensou em atravessar a cerca e subir no alto do morro, para ver se avistava alguma habitação por perto. Entretanto, ao tentar fazer isso, afundou na neve quase até os joelhos e recuou imediatamente, desistindo de qualquer tentativa nesse sentido. Se caminhasse algum tempo pela estradinha acabaria encontrando uma casa, pensou consigo, procurando se animar. A menos que o caminho servisse apenas para dar a volta no morro. Não havia dúvida que estava subindo o morro, como indicava o esforço de suas pernas, mas que outra alternativa havia?

Parou e olhou para trás. Era impossível avistar alguma coisa além de um raio de uma centena de metros. Estava total e completamente perdida. O tom acinzentado que avistava no céu não era neblina. Era a noite que descia rapidamente e se não encontrasse nenhuma casa até escurecer estava frita! Iria pagar dessa forma o fato de ter desobedecido ao pai e fugido de casa...

Algo se moveu na sua frente. Com o canto dos olhos, Helen avistou o movimento produzido por um vulto escuro à sua direita. Piscou os olhos. O que era aquilo? Um animal, provavelmente, procurando comida. Pobres criaturas do mato. O que podiam encontrar para comer embaixo daquele manto de neve?

Piscando sob a neve que caía em cima das pestanas e escorria pelos olhos, procurou identificar a forma que chamara sua atenção. Era um animal, certamente atraído pelo casaco escuro que vestia. Talvez um cachorro, pensou, mais animada. Se viesse acompanhado do seu dono, ela estaria salva!

O animal vinha pulando na sua direção. De longe, parecia um cachorro. Tinha o pêlo castanho e, quando o bicho chegou mais perto, Helen notou que tinha manchas escuras no corpo. Parecia um cão dálmata pintado de marrom, mas não havia nenhum dálmata dessa cor!

Foi então que suas pernas amoleceram. Sentiu uma contração na boca do estômago e o pânico ganhou-a no mesmo instante. Não era um cachorro, aquilo! Não era um animal doméstico. Era um leopardo! Um leopardo na neve!

No primeiro momento, ficou paralisada de medo. Estava hipnotizada pelo passo silencioso e ameaçador do animal. Balançou a cabeça de um lado para o outro, sem saber o que fazer. Não havia leopardos naquela região! Devia ser alguma alucinação terrível produzida pela luz ofuscante da neve. A criatura não fazia nenhum ruído. Não podia ser verdadeira!

Entretanto, quando o animal se aproximou mais alguns metros, Helen viu a compleição poderosa, os músculos que se moviam embaixo do pêlo sedoso, os dentes fortes e as orelhas levantadas. Ela tinha a impressão, inclusive, que podia sentir o bafo quente da fera.

Com uma exclamação de susto, fez exatamente o que não devia: deu meia-volta e começou a correr. Quando era menina de colégio, Helen costumava passar os fins de semana no sítio de uma amiga. Os pais da menina recomendaram-lhe que não corresse nunca de um animal, porque isso o excitava ainda mais. Naquele momento, contudo, ela obedeceu unicamente a um reflexo impulsivo de autoconservação.

Tropeçou na neve funda que se levantava ao lado da estrada e tentou passar por baixo da cerca. Os ramos grudaram nos cabelos e arranharam o rosto, mas tudo era preferível a ser devorada pelos dentes impiedosos do leopardo, e o pânico deu vida nova às pernas cansadas. O campo estava coberto de uma camada espessa de neve que dificultava a corrida. De um momento para o outro sentiria o hálito do animal na sua nuca, e as patas pesadas se abateriam impiedosamente sobre ela. Os soluços afogavam sua garganta, as lágrimas saltavam dos olhos. Ela não devia ter saído de Londres! Era isso que dava comportar-se de forma egoísta e irresponsável!

0 pé afundou num buraco de lebre, ela perdeu o equilíbrio e caiu. Soluçando, ofegante, tentou arrastar-se mas, ao fazer isso, ouviu o som bem-aventurado de uma voz humana, de uma voz que gritava:

— Sheba! Aqui! Aqui!

Com a respiração presa, olhou furtivamente na direção da voz. O leopardo tinha parado há alguns metros de distância e a observava com uma intensidade inquietante. Um homem alto e magro atravessava rapidamente a cerca, vestido todo de preto — casaco preto, calça preta, botas pretas de cano longo. A cabeça estava descoberta, porém, e Helen observou que os cabelos eram tão louros que pareciam prateados em alguns pontos. Apesar disso, a pele era bem morena e não tinha a cor clara que acompanha em geral esse tom de cabelo. Havia algo vagamente familiar nos traços angulosos do homem, nos olhos fundos sob as pálpebras pesadas, no nariz aquilino fortemente esculpido, na boca larga de lábios finos que, no momento, estava curvada com uma expressão de poucos amigos. Ela viu também que o homem mancava visivelmente, o que dava a seu andar um movimento característico dos quadris.

O leopardo voltou a cabeça na direção do homem, que o afagou com um gesto de carinho.

— Quieta, Sheba! — murmurou em voz baixa. No instante seguinte, levantou a cabeça na direção dela. — Desculpe o susto — disse, sem dar a impressão de que estivesse realmente incomodado com o incidente. — Mas você não devia ter corrido. Sheba não teria tocado em você.

O tom arrogante da voz irritou-a profundamente. Ela não estava habituada a correr para defender a vida, muito menos a mostrar-se apavorada diante de um homem. Pelo contrário, a beleza e o encanto dos cabelos negros, do rosto pequeno e bem feito tinham facilitado sempre seu relacionamento com os homens. Embora não fosse convencida, tinha consciência da atração que exercia sobre o outro sexo. Entretanto, pela maneira como este homem a observava, sentia-se ridícula e assustada como uma criança que foi repreendida por um adulto.

Como você pode dizer uma coisa dessas? — retrucou por fim, com um leve tremor na voz. — Se você não tivesse chamado esse bicho, eu teria sido devorada!

Sheba foi treinada para trazer a presa, não para devorá-la — comentou o homem lentamente.

Eu não sabia que era presa de caça! — exclamou Helen, tirando a neve das mangas.

Você correu.

Ah, entendo. — Procurou dar uma inflexão sarcástica à voz. — Eu vou me lembrar disso no futuro!

O rosto do homem amoleceu com uma expressão divertida.

Eu não esperava encontrar nenhuma caça hoje.

E não encontrou, que eu saiba!

Como não? — Olhou em volta. — Você veio aqui apenas para admirar a paisagem?

        Helen corou com a pergunta.

Meu carro enguiçou e eu o deixei na estrada. — Apontou vagamente para longe. — Estava procurando socorro quando... quando seu leopardo...

Sheba? — O homem olhou para o grande felino que estava sentado ao seu lado. — Sheba não é leopardo. É a fêmea de um guepardo, mas eu creio que os dois são parentes próximos. Os guepardos são chamados algumas vezes de leopardos caçadores.

Ah, é bom eu saber disso — disse Helen com um arrepio nervoso. — No momento porém estou mais interessada em encontrar um telefone...

O homem fez uma festa na cabeça do animal.

Infelizmente não há nunhum telefone público por perto.

Então numa casa particular... Alguém que tenha telefone.

Há poucas casas na redondeza — disse o homem com um gesto de indiferença.

Helen apertou as mãos com força.

— Você está sendo propositalmente antipático ou essa é sua maneira de tratar os estranhos?

O homem não se abalou com a rispidez das palavras.

— Estou tentando explicar apenas que você se encontra numa região bastante isolada. Mas eu posso lhe oferecer minha casa, se você não se importar em passar mal...

Helen hesitou um instante.

Muito obrigada, mas eu não o conheço...

Eu também não a conheço.

Eu sei, mas... — Mordeu o lábio sem jeito. — Você é casado?

Não.

Você mora sozinho com esse... bicho?

Também não. — O homem deu um passo para o lado, como se a perna doesse de ficar parada no mesmo lugar. — Tenho um criado. Moramos os dois na mesma casa.

Helen refletiu rapidamente. Ah, que situação! Estava diante de duas alternativas igualmente desagradáveis. Continuar andando sozinha, na esperança de encontrar mais cedo ou mais tarde a cabana de um pastor ou uma fazenda nas montanhas, o que era certamente uma decisão arriscada. Ou então acompanhar esse homem — um perfeito desconhecido! — até sua casa, correndo o risco de passar a noite na companhia de dois indivíduos estranhos. Que dilema!

— Decida-se! — disse o homem com uma certa impaciência. Havia linhas de cansaço em volta da boca e dos olhos, e foi esse sinal visível de vulnerabilidade que levou Helen a tomar uma decisão.

Vou aceitar seu convite — murmurou sem jeito. — Só que tenho que voltar para apanhar as malas no carro...

Pode deixar. Meu criado irá buscá-las mais tarde — disse o homem, começando a descer o morrinho em direção à estrada de rodagem. — Vamos andando antes que escureça.

Não seria melhor nos apresentarmos um ao outro? — perguntou Helen, passando a língua nos lábios secos.

Vamos deixar isso para depois — respondeu o homem com o olhar cansado. — Ou você prefere ficar encharcada até os ossos?

Helen deu um suspiro. Não podia fazer objeção. Seguiu o desconhecido pelo barranco escorregadio e procurou manter uma distância razoável do corpo esguio e do rabo comprido do guepardo. Ao descerem para a estradinha, que estava coberta de neve nos dois lados, o guepardo tomou a dianteira e Helen caminhou ao lado do homem. Embora ele mancasse visivelmente, tinha certa elegância e leveza, como um ex-atleta. Por que seu rosto lhe parecera familiar à primeira vista? Conhecia-o de algum lugar? Ou era porque o homem a lembrava de outra pessoa... de alguém que conhecia? Helen não sabia dizer.

Logo depois da primeira curva, havia um caminho mais estreito que rumava para a direita. Por ali os dois seguiram, atrás do guepardo. Uma tabuleta, quase coberta de neve, indicava que estavam numa propriedade particular e Helen sentiu uma certa apreensão ao ver aquilo. Aquele homem podia ser alguém mal-intencionado. Podia levá-la para qualquer lugar perdido no mato... Podia, inclusive, ter mentido sobre a existência de telefone e outras casas nas redondezas.

— Se você preferir voltar, ainda está na hora — comentou o desconhecido, como se lesse seu pensamento. — Eu não vou mandar Sheba buscá-la, se é isso que você tem medo.

Helen balançou a cabeça com vivacidade.

Por que haveria de voltar?

Não sei — disse o homem encarando-a. Ela observou sem querer que o desconhecido tinha as pestanas mais compridas que já vira. Pretas e espessas, quase cobriam os olhos, que eram de um tom castanho-avermelhado, como os olhos do guepardo. E, como os olhos frios de Sheba, os do homem eram igualmente indecifráveis.

O caminho estreito subia, em curvas fechadas. Passaram por uma porteira, atravessaram um campo, onde uma picada fora aberta recentemente, e subiram em seguida uma pequena lombada, que estava semi-encoberta pela neve. Finalmente, Helen avistou um bosque de árvores desfolhadas e, mais adiante, a casa antiga. Tinha uma aparência bem rústica e as paredes de pedras estavam brancas de neve. A fumaça saía da chaminé no alto do telhado e havia luzes acesas na sala. O gramado da entrada era visível sob as pegadas do homem e do animal que caminhavam na sua frente. Logo depois, chegaram ao pátio de cascalho em frente da casa.

O desconhecido esfregou e bateu os pés na grade de ferro e aconselhou-a a fazer o mesmo, a fim de retirar a neve das botas. Em seguida, abriu a porta de madeira de lei, com tachas de cobre, e convidou-a a entrar. Helen olhou apreensivamente para Sheba. O animal a observava, sem piscar. Ela tomou coragem, encolheu-se junto à porta e entrou na sala.

Ao receber o bafo quente no corpo, percebeu que estava morta de frio. Sua solidão na estrada, o encontro assustador com o guepardo e a conversa inquietante com o desconhecido distraíram-na momentaneamente do frio. Mas ali, no ambiente gostoso da sala revestida de madeira, começou a tremer visivelmente e a bater os dentes.

Ao ouvir o ruído da porta da frente, um homem aproximou-se. Embora estivesse trêmula e nervosa, Helen observou atentamente o recém-chegado. Era da mesma altura que o dono da casa, mas duas vezes mais largo de peito; tinha o físico de um lutador, os ombros e a cabeça completamente raspada. Dirigiu-lhe um olhar de cortesia antes de voltar a atenção para o homem que estava em pé ao seu lado.

Estava começando a ficar preocupado com sua demora — disse, abaixando as mangas enroladas da camisa. — Aconteceu alguma coisa?

— O dono da casa desabotoou o casaco grosso de lã, enquanto examinava pensativamente a moça trêmula e assustada que estava a seu lado.

— Nós temos uma visita, Bolt. O carro desta moça enguiçou na estrada. Depois do chá, gostaria que você apanhasse as malas que ficaram lá.

A expressão de Bolt, ao ouvir o pedido do dono da casa, era semelhante à de Sheba, pensou Helen com maldade. Os dois se comportavam como se a segurança e o bem-estar do homem fossem a coisa mais importante do mundo.

— Pois não. — Bolt deu um sorriso em direção a Helen. — Vou arrumar seu quarto.

— Isso mesmo. — O homem tirou o casaco de couro, forrado de lã, e ficou apenas de camisa e colete. O criado apanhou o casaco e voltou-se em seguida para Helen. — Dê seu casaco a ele. Bolt vai secá-lo e pendurá-lo no cabide do corredor.

Helen estava tremendo tanto que não conseguia soltar os botões de couro. O dono da casa deu um passo à frente, inclinou-se e desabotoou num minuto o casaco. Retirou em seguida o casaco dos ombros dela e estendeu-o para o criado.

Helen começou a tremer mais ainda. Sentiu-se embaraçada diante da familiaridade do desconhecido. Não conhecia esse homem de cara fechada e não fazia a menor questão de conhecê-lo. Algo nele a assustava. Talvez fosse o fato de arrastar a perna, o jeito arrogante de falar, ou a maneira como o quadril se movia quando andava. Mesmo assim, o leve toque dos dedos morenos provocou uma sensação repentina de calor no seu braço. Imediatamente, sentiu-se ao mesmo tempo fascinada e repelida.

Bolt abriu uma porta à direita. Ao compreender que os dois homens aguardavam que ela passasse na frente, Helen caminhou rapidamente para a sala ao lado, esfregando os braços para fazer cessar o frio intenso que sentia. Foi dar numa enorme sala de estar, iluminada por duas lâmpadas comuns, e pelo brilho das chamas da lareira de tijolos. A madeira estava cuidadosamente empilhada num canto e a peça tinha o cheiro forte de pinho silvestre. O assoalho era par cialmente coberto de tapetes pequenos; além das diversas cadeiras e da escrivaninha de madeira escura, havia um sofá grande e antigo, que parecia muito confortável. As estantes perto da lareira estavam repletas de livros, revistas e jornais. Ao lado da cadeira de braço, diante da lareira, havia uma bandeja com uma garrafa de uísque e um frasco de cristal, provavelmente de conhaque. Havia apenas dois copos na bandeja.

A porta se fechou quando Helen indagava a si mesma para quem podiam ser os dois copos, e levou um susto quando Sheba roçou nas suas pernas e foi deitar-se defronte da lareira. Olhou em volta apreensivamente, com receio de ficar sozinha na companhia do animal, e viu o homem aproximar-se, puxando a perna.

— Sente-se, por favor — disse, apontando para o sofá confortável. Após um momento de hesitação, Helen sentou-se na beira de uma cadeira de braço.

0 homem foi sentar-se meio contrariado na cadeira em frente, esticou as pernas e deu um suspiro. Após um momento, voltou-se de lado e tirou a tampa do frasco de cristal.

— Você toma um conhaque? — perguntou em voz baixa. — Seria bom para passar o frio.

Helen balançou a cabeça e aceitou o copo que ele lhe estendeu. Conhaque não era sua bebida predileta, mas não queria ser indelicada e bebeu lentamente, sentindo a garganta arder. Pouco a pouco o tremor cessou por completo.

O dono da casa não bebeu nada. Reclinou-se na cadeira de braço, com os olhos entreabertos e fitou-a com uma intensidade penetrante. Pouco depois Bolt voltou com uma bandeja de chá. Expulsou o guepardo de sua posição confortável junto ao fogo e montou uma mesinha de dobrar naquele ponto, colocando a bandeja ao alcance do dono da casa.

Agora vou buscar as malas no carro — disse Bolt com animação. — O porta-malas está fechado?

Ah, sim! A chave está aqui! — exclamou Helen com um sorriso, enfiando a mão na bolsa. Retirou um chaveiro de couro e estendeu-o para o criado. — Muito obrigada. O carro está a um quilômetro mais ou menos daqui.

Não se incomode, vou encontrá-lo.

Muito obrigada.

Helen tornou a sorrir e ajeitou-se melhor na cadeira. O conhaque estava fazendo efeito e ela se sentia bem de novo. No dia seguinte, por essas horas, estaria em Bowness e esse contratempo no caminho seria apenas uma lembrança divertida para contar a seus amigos em Londres.

Depois que Bolt saiu da sala, o dono da casa endireitou-se na cadeira e examinou a bandeja. Além do bule de chá e de biscoitos, havia um pratinho de sanduíches e uma torta muito apetitosa de maçã.

— Com leite e açúcar, ou limão? — perguntou o homem, encarando-a com os olhos castanhos penetrantes. Helen, no entanto, não se deixou intimidar dessa vez.

— Com leite, mas sem açúcar, por favor. — Enquanto o dono da casa a servia, perguntou: — Você não acha que está na hora de nos apresentarmos?

Ele terminou de servir o chá, acrescentou leite e estendeu a xícara para ela.

— Se isso for importante para você...

Helen engoliu em seco.

— Quer dizer então que você convida uma pessoa estranha para dormir na sua casa e não tem a menor curiosidade em saber como ela se chama?

— Talvez eu considere a pessoa mais importante que o nome — observou o homem, encarando-a fixamente, sem piscar. — Por exemplo, eu não preciso saber seu nome para adivinhar que você é uma moça independente que não gosta de seguir os conselhos dos outros.

— Como você pode saber isso? — perguntou Helen, com o rosto vermelho.

— Bem, não é muito comum encontrar uma moça andando sozinha por esta região desolada. Você pretendia passar alguns dias aqui? Talvez tenha combinado encontrar-se com alguém mas, nem por isso, parece preocupada em passar a noite fora...

Helen bebeu um gole de chá.

— As mulheres hoje viajam sozinhas.

— Mas não em condições como estas, em pleno inverno!

— Eu posso estar a trabalho...

— E perdeu o caminho?

— É possível. Mas não é provável.

— Por que não?

— Porque você não tem cara de trabalhar.

Ah, não? — exclamou Helen, surpresa com o comentário.

Notei isso pela maneira como você falou com Bolt. Como se você estivesse acostumada a ter criados em volta fazendo todas as suas vontades.

Helen deu um suspiro. Tinha a impressão de que sairia sempre perdendo se discutisse com esse homem antipático e arrogante. Mas era sua convidada, afinal. Talvez pudesse ser um pouco mais delicada e não agredi-lo inutilmente. Havia no entanto alguma coisa no homem que provocava sua agressividade.

Está bem — admitiu por fim. — Você tem toda razão. Eu não trabalho em nenhuma companhia. Meu nome é Helen James e sou a filha única de Philip James.

Sinto muito, mas não tive o prazer de conhecer seu pai — comentou o homem com uma certa ironia na voz. Helen notou que ele não tinha tomado o chá até agora, mas comera um sanduíche. Tenho a impressão de que estou um pouco por fora das colunas sociais...

Ele deu um sorriso e, durante alguns segundos, pareceu anos mais jovem. Os lábios dela se entreabriram. O rosto dele! Algo na fisionomia dele era familiar. Tinha visto aquele rosto antes — em algum lugar! Mas onde? Quando? Em que circunstância?

Enquanto tentava solucionar mentalmente o enigma, procurou ganhar tempo.

— Meu pai é Sir Philip James. A campanhia dele recebeu menção honrosa este ano pela Câmara do Comércio.

O desconhecido assentiu com a cabeça.

Muito bem.

E você? Você ainda não me disse seu nome — insistiu Helen com uma certa indelicadeza que não combinava nada com suas maneiras educadas.

Diga-me primeiro o que você estava fazendo aqui... tão longe da civilização.

Ela mordeu o lábio de despeito.

Para falar a verdade, eu queria me afastar alguns dias da família. Precisava refletir sozinha e pensei que meu pai nunca me procuraria aqui.

Então você fugiu de casa? — indagou o homem, levantando as sobrancelhas.

Mais ou menos. Deixei um bilhete para meu pai. Ele não vai se inquietar com minha ausência.

Tem certeza?

— Bem, espero que não. — Helen mexeu-se sem jeito na cadeira. — De qualquer maneira, você não precisava se preocupar com isso. Eu lhe fico muito grata por você ter aparecido no momento exato. Mais alguns minutos e eu estaria em maus lençóis no meio daquela neve.

— Exatamente. Você podia ter morrido lá — A voz dele era baixa, sonora e no primeiro instante Helen sentiu um arrepio ao se lembrar do perigo por que passara. — Você fez muito mal de não avisar ninguém sobre seu paradeiro. Não lhe ocorreu que o carro podia ficar enterrado várias dias na neve, antes de ser encontrato? — Ele fitou-a com atenção. — Diga-me uma coisa... O que a levou a fugir repentinamente de casa?

Helen ouviu indignada a pergunta.

— Desculpe, mas acho que isso não é da sua conta!

— Eu sei que não é, mas estou curioso para saber. Satisfaça esse capricho de alguém que não reside mais no mundo de onde você veio...

Helen mirou-o atentamente, perplexa. Que palavras estranhas! Por mais que aquela região fosse isolada no inverno, não estava distante da civilização. A menos que fosse essa sua intenção.

— Meu pai quer dirigir minha vida — disse lentamente. — Mas eu tenho vinte e dois anos e sou muito independente, como você comentou há pouco. Nós dois discordamos sobre um determinado assunto.

— Imagino que seja algo importante para fazê-la viajar mais de quatrocentos quilômetros em pleno inverno! De qualquer maneira, respeito seu segredo...

Helen encarou-o sem saber o que dizer. Era uma pequena concessão, no fundo. Inclinando-se para repor a xícara vazia na bandeja, acrescentou:

— E você? Não acha muito triste viver sozinho aqui?

Os cílios espessos quase encobriam os olhos castanhos e ela não podia perceber melhor sua expressão.

— Sou uma pessoa muito desinteressante, que não aprecia o social. Aceita mais chá?

Helen balançou a cabeça negativamente.

— Por que você está se esquivando a responder minha pergunta? — insistiu, com impaciência.

— Estou mesmo? — repetiu o homem com voz delicada, se bem que os olhos castanhos tivessem uma expressão curiosamente atenta.

Você sabe que sim! — exclamou Helen franzindo a testa. — Eu conheço seu rosto de algum lugar. Posso jurar que já o vi antes... em carne e osso ou num filme.

Muito obrigado por essa quase lisonja — disse com ironia. — Você me deixa envaidecido. Pensei que isso fosse uma prerrogativa feminina.

Ele podia embaraçá-la facilmente, pensou Helen com irritação. Era uma experiência nova.

— Você entendeu perfeitamente o que eu quis dizer. Acho que eu já vi seu rosto em algum lugar.

O homem pareceu entediado com a insistência. Levantou-se e esfregou a coxa como se uma dor o incomodasse. Caminhou em seguida em direção à janela da sala e puxou a cortina cor de vinho sobre as vidraças.

Lá fora estava escuro e os flocos de neve caíam continuamente. A paisagem do inverno provocou um sentimento repentino de solidão em Helen. Pensou que teria sido preferível pedir ao dono da casa para consertar o carro, em vez de aceitar a hospitalidade que lhe oferecera. Informada por ele, chegaria facilmente a um lugarejo qualquer, onde passaria a noite. Procurou, no entanto, afastar esses pensamentos. Estava se comportando de maneira ridícula ao imaginar que havia algo estranho no convite do homem. Além disso, devia estar muito agradecida a ele, que lhe salvara praticamente a vida!

— Bolt não vai se demorar com sua bagagem — disse o dono da casa afastando-se da janela. — Ele vai lhe mostrar seu quarto quando voltar. O jantar aqui costuma ser servido às oito horas. Espero que você me dê o prazer de sua companhia.

Helen ajeitou-se na cadeira com nervosismo. O homem estava realmente decidido a não lhe responder. O movimento brusco que ela fez assustou o guepardo, que levantou a cabeça e olhou em sua direção. Os olhos que a encaravam eram curiosamente semelhantes aos do dono, e ela lembrou-se involuntariamente dos contos que ouvira em criança. Algumas bruxas moravam sozinhas na companhia de bichos. Quem era esse homem que vivia numa solidão suntuosa? Que mancava e criava um animal selvagem dentro de casa? Quem sabe ela tinha perdido os sentidos na neve e aquilo era algum pesadelo fantástico que antecedia a morte?

Mexeu-se nervosamente com esse pensamento e o guepardo deu um rugido baixo. O dono da casa aproximou-se da lareira e murmurou palavras carinhosas para o animal, enquanto olhava para Helen.

— O que foi? — indagou com a voz macia.

Helen balançou a cabeça e com a vista percorreu a sala. A peça era acolhedora e não inspirava absolutamente nenhuma sensação inquietante. Tinha uma austeridade masculina, uma total ausência de frivolidades. Havia troféus de caça pendurados nas paredes revestidas de madeira, espadas e armas antigas, diversas peças decorativas que Helen sabia serem antigüidades valiosas. A sala dava a impressão de tranqüilidade e conforto. Aquele homem, fosse quem fosse, era um indivíduo de gosto requintado, mas não podia entender como alguém vivia naquela solidão. Era pintor, escultor, artista? Quem mais podia desejar uma existência desse gênero?

Foi então que uma fotografia pendurada na parede, atrás da escrivaninha, chamou sua atenção. Não podia distinguir todos os detalhes, de onde estava, sobretudo na meia-luz da sala, mas o que viu foi suficiente para concluir que era uma ampliação fotográfica de um acidente de automóvel, um amontoado medonho de seres humanos e de máquinas que bloqueavam a pista, enquanto fragmentos de metal estavam espalhados por toda parte. Era uma foto em branco e preto, tão realista, que retratava perfeitamente toda a feiúra e brutalidade do acidente.

Helen dirigiu o olhar espantado para o homem que estava de pé, numa posição rígida, ao lado do sofá. Os olhos castanhos estavam frios. Ela sabia porque o homem assumira repentinamente um ar distante. Ele adivinhara que as suspeitas anteriores dela, referentes à sua identidade, estavam confirmadas. Era um dos automobilistas envolvidos no desastre. Não fora um acidente comum, dos que ocorrem diariamente nas estradas. Aquele acidente acontecera há seis anos numa pista de competição na Alemanha, em Nurburgring, exatamente.

— Eu sei quem você é — disse Helen lentamente, com a fisionomia pensativa, levantando-se da cadeira. — Você é Dominic Lyall, piloto de corridas!

A rigidez desapareceu do corpo magro. O homem apoiou-se no encosto do sofá, enquanto segurava as almofadas bordadas de veludo.

— Você acertou. Eu sou Dominic Lyall, mas não sou mais piloto de competição.

Mas foi. Lembro que meu pai falava muito de você. Ele o admirava tremendamente antes do... do...

Antes do desastre?

Ele pensou... as pessoas pensavam que você tinha desaparecido. Meu pai disse... muitas pessoas disseram...

Que eu tinha morrido? Ouvi esse boato. Meus ferimentos foram graves e eu preferi não desmentir os rumores. Não há nada mais triste do que um ídolo esquecido...

Mas não foi isso... negou Helen com vivacidade. — O acidente foi um acaso terrível. Ninguém foi culpado. Os jornais...

Eu disse que me culpava pelo acidente? — perguntou Dominic com a voz fria.

Não, não disse, mas... — Helen mordeu o lábio. — Meu pai era um grande admirador seu. Ele ainda tem algumas fotos suas na biblioteca lá de casa. E havia milhares de outros como ele. Você acha que foi correto deixar toda essa gente pensar que você morreu?

Dominic endireitou-se e fez massagem na perna dolorida.

— E eu, não conto? Eu não tenho o direito de levar uma vida tranqüila só porque numa época me exibi diante do público?

Helen ficou um momento indecisa, sem saber o que responder.

Não sei. Acho apenas que é uma pena não haver outros pilotos talentosos como você para servir de exemplo aos mais jovens...

Tudo isso acabou — disse Dominic, passando os dedos entre os cabelos louros. — Você não pode entender o que se passou.

Quem sabe? — disse Helen levantando a cabeça.

Bem, de qualquer maneira... — Ele deu um suspiro fundo. — De qualquer maneira, é uma pena que você tenha a memória tão boa. Eu pensei que uma menina de dezesseis anos estivesse mais in teressada nos ídolos da música popular do que nos pilotos de competição.

Como eu lhe disse antes, meu pai me levava às corridas.

Ah, sim, seu pai... — Dominic fechou os olhos, pensativamente. — Uma estranha ocorrência.

O que você quer dizer com isso?

Dominic Lyall balançou os ombros com um gesto de indiferença.

Eu pensei que fosse óbvio.

Oquê?

Fixou-a com seu olhar penetrante, sem piscar os olhos.

— O fato de você me reconhecer, evidentemente. Um fato muito... muito lamentável. Infelizmente, você não poderá partir daqui amanhã cedo, como pretendia...

 

CAPITULO II

 

Durante vários minutos não se ouviu um suspiro na sala. Helen não podia acreditar que entendera corretamente as palavras de Dominic, mas havia algo na fisionomia severa que confirmava sua suspeita.

— Você está brincando! — exclamou por fim.

— Não, não estou!

— Mas por quê? Por quê?

— Isso também é evidente. Eu não gostaria que ninguém soubesse que estou vivo e que moro neste lugar isolado.

Helen não quis admitir o sentimento de pânico que fermentava dentro de seu peito.

— Mas eu não vou contar isso a ninguém! — protestou, repetindo as palavras que já ouvira nos filmes, quando a mocinha se via encurralada por algum fugitivo da lei. Dominic, porém, não era um marginal...a não ser do mundo!

—Sinto muito, mas não posso correr esse risco. A tentação de contar a seu pai que estou vivo e morando na região dos lagos será muito forte...

— Juro que não! — negou Helen, torcendo as mãos com nervosismo. — De qualquer maneira, você não pode me manter presa aqui... isso é ilegal!

—Ah, é? — indagou Dominic com um sorriso exasperante.

— É uma loucura! Meu pai vai procurar por mim e acabará batendo aqui!

— Você disse antes que ele jamais iria procurá-la aqui. ~

— No começo, não. Mas se não me encontrar em outra parte..:

— Nesse meio tempo, você estará livre para voltar.

— Como? Não entendo!

Estou fazendo preparativos para sair do país. Até lá, você vai ficar aqui.

Mas isso pode levar meses! — exclamou Helen com a voz aflita.

Algumas semanas no máximo — concedeu Dominic secamente.

A porta abriu-se bruscamente atrás dela e Helen voltou-se com nervosismo. Bolt estava em pé junto à soleira, os ombros largos cobertos de neve.

Ah. você já está de volta! — disse Dominic com uma cordialidade que não demonstrara por Helen. — Encontrou o carro?

Encontrei. As malas estão no corredor. Vou tirar o capote e depois posso levar a moça ao quarto de hóspedes.

Perfeito. Por falar nisso, nossa convidada se chama Helen. Ela vai permanecer conosco mais tempo do que contava.

Helen não tinha idéia da mensagem trocada entre os dois. Mas a única demonstração de surpresa de Bolt foi um ligeiro movimento das sobrancelhas. Deixou as chaves do carro em cima da mesinha e balançou a cabeça.

Pois não.

Vou guardar as chaves — comentou Dominic. — Mais tarde eu explico a situação...

Pois não.

Bolt era irritantemente submisso e Helen, que observava em silêncio a troca de palavras entre os dois homens, estava a ponto de chorar. Impossível que aquilo fosse verdade. Não podia ser! Dominic não estava falando sério quando disse que pretendia mantê-la ali até embarcar para fora do país.

— Não quero ver meu quarto! — explodiu Helen por fim. Com a voz chorosa. — Você não pode me prender aqui!

Dominic deu um sorriso cruel.

Quem vai me impedir?

Eu vou fugir!

De novo?

Vou pedir socorro na casa de alguém. Vou telefonar de algum lugar!

Não há telefone por perto.

Na cidade tem que ter uma cabine telefônica!

Você sabe o caminho para chegar lá?

— Não, mas vou acabar achando.

— Com essa neve encobrindo a estrada?

Ela deu um soluço de desespero.

— Você está louco! Louco! — Tomou fôlego. — Olhe, eu não quero ficar aqui. Quero ir para um hotel. Prometo que não vou contar a ninguém que estive aqui. Deixe-me ir. Eu prometo!

— Impossível. — Dominic voltou-se para Bolt. — Precisamos rebocar o carro dela amanhã cedo. Antes que a neve endureça.

Bolt balançou a cabeça.

— Pode deixar. Farei isso logo que acordar.

Helen sentiu uma frustração medonha. Não havia maneira de sair daquela casa, fugir daquela situação absurda. Ela havia pronunciado sua própria condenação. Se não houvesse contado a Dominic que fugira de casa se não o tivesse reconhecido... se, se, se...

— Você não pode me impedir de fugir! — declarou de repente, com os olhos brilhantes.

— Eu não tentaria se fosse você — disse Dominic, flexionando os músculos das costas.

Havia um olhar de fadiga na fisionomia magra e Helen notou com uma sensação de alívio que ele estava exausto de ficar em pé. Felizmente, ele não era tão ivulnerável como dava a parecer. Por outro lado, quase sem perceber, ela começou a sentir compaixão por aquele homem indefeso, defeituoso, que fugira do mundo e procurara refugiar-se num lugar completamente isolado.

Bolt percebeu também o incômodo do patrão e, com a familiaridade de anos de serviço, adiantou-se ao seu desejo.

— Está na hora da massagem. Vou descer logo que levar a moça ao quarto de hóspedes.

Dominic voltou-se para Helen com uma espécie de resignação irônica no olhar.

— Está vendo? Sou como uma máquina velha que precisa o tempo todo de reparos. Não é mesmo, Bolt?

— Você não é velho! — exclamou Helen sem pensar.

— Como não? Tenho quase o dobro de sua idade — disse Dominic com uma careta, provocada por uma pontada forte no músculo. — Eu volto num minuto...

Ele saiu do quarto puxando a perna pesadamente. Bolt observou-o afastar-se com uma expressão de admiração no rosto e Helen sentiu-se uma intrusa naquela casa. O guepardo, por sua vez, levantou-se silenciosamente e acompanhou o dono.

— Um minutinho só — disse Bolt, desabotoando o capote. — Vou mostrar seu quarto.

Helen queria protestar. Devia protestar, repetir uma infinidade de vezes que aquilo era um absurdo, que os dois não podiam mantê-la ali contra sua vontade, que acabaria encontrando uma maneira de fugir. Mas não disse nada. Em vez disso, deixou que Bolt apanhasse as malas no corredor e o seguiu em direção à escada, coberta com uma passadeira marrom-escuro.

No fim do primeiro lance, havia uma janela circular que dava para os fundos da casa. Era difícil enxergar alguma coisa com os flocos de neve que caíam lentamente, mas o brilho ofuscante dava uma iluminação artificial à paisagem.

No alto da escada havia um corredor comprido que levava aos quartos. Helen admirou o belo lustre de cristal pendurado no teto. Bolt tomou a direita e passou por diversas portas fechadas antes de parar diante do quarto de hóspedes. Abriu a porta, acendeu a luz e afastou-se para ela entrar.

O assoalho estava coberto com um carpete verde-claro. A mesma cor, com tonalidades diferentes, repetia-se na colcha e nas cortinas pesadas que cobriam as janelas. A cama, o espelho de três faces na penteadeira, o armário grande, com diversas gavetas, eram de mogno escuro, ligeiramente mais altos que os móveis tradicionais a que Helen estava acostumada, mas ficavam bem no aposento de pé-direito alto. Um aquecedor estava ligado perto da janela e o quarto todo estava deliciosamente aquecido.

Bolt apontou para a porta junto do armário, na outra extremidade do quarto.

— O banheiro fica ali — explicou, olhando em volta para ver se estava tudo em ordem. — Coloquei garrafas.de água quente na cama para aquecer o lençol.

Helen mordeu o lábio.

— Muito obrigada, Bolt. — Ela não entendia como podia aceitar a situação com tanta calma! — Ah, uma pergunta! — exclamou, quando Bolt se preparava para sair do quarto. — Você vai fechar a porta a chave?

Bolt sorriu e apontou para a fechadura. Então ela percebeu que a chave estava por dentro.

Depois que Bolt saiu, Helen aproximou-se da janela, puxou as cortinas para os lados e espiou para fora. O quarto ficava no fundo da casa, mas tudo que avistou foram algumas árvores cobertas de neve. Soltou a cortina e voltou-se para observar seus domínios.

Nenhum quarto de hotel era mais luxuoso e confortável do que aquele. Parecia uma ironia! Quanto mais pensava nisso, tanto mais fantástica lhe parecia a situação. Passou as mãos úmidas nos lados da calça. Quanto tempo passaria ali? A tal viagem de Dominic seria para breve?

Andou nervosamente de um lado para o outro do quarto, procurando distrair o sentimento de pânico que voltava a persegui-la. Dominic estava falando seriamente ou queria apenas assustá-la, para divertir-se à sua custa? Era provável que sim, embora parecesse um homem educado e de boas maneiras. Como podia querer manté-la contra sua vontade ali? Que tipo de vida levara nos últimos anos que destruíra completamente seus escrúpulos de consciência?

Olhou o relógio de pulso. Passava das seis. Dominic dissera que o jantar era servido às oito. No momento, porém, não tinha o menor apetite. O que ele fora fazer? Que tipo de tratamento era esse que Bolt lhe aplicava?

Helen parou diante do espelho e observou sua aparência abatida sem o menor prazer. A calça estava amassada nos pontos em que enrolara para descer do carro, os cabelos, desgrenhados, o rosto tinha as marcas vermelhas dos galhos que roçaram sua cabeça quando se enfiou embaixo da cerca para fugir do animal que a perseguia. Levantou a mão trêmula e segurou um cacho de cabelos pretos. E agora, o que ia fazer?

Após certificar-se de que o banheiro fechava por dentro, decidiu-se por um banho de imersão, para relaxar os nervos. A banheira era imensa, de porcelana branca, com pés pretos de ferro fundido. A caixa estava cheia de água quente e Helen sentiu-se muito mais animada depois do banho gostoso com sais perfumados. Encontrara diversos frascos de sais numa estante de vidro, em cima da pia, e salpicara generosamente a água quente antes de entrar na banheira.

Depois de deixar a água suja escorrer pelo ralo e arrumar tudo nos seus devidos lugares, Helen enrolou-se numa toalha azul-escuro que a cobria da cabeça aos pés. Voltou para o quarto a fim de retirar as roupas limpas da mala.

Foi só então que se lembrou que as malas estavam fechadas a chave e que o chaveiro estava em poder de Dominic.

Permaneceu um instante no meio do quarto, descalça, embrulhada na toalha, sem saber o que fazer. Pensou em sair no corredor e chamar Bolt, mas o fato de estar naqueles trajes sumários fez com que desistisse da idéia. De má vontade, tornou a vestir as roupas que despira e contentou-se em escovar os cabelos e passar uma pintura leve no rosto. A escova, o pente e os cosméticos, felizmente, estavam na bolsa a tiracolo. Pelo menos não estava mais com a aparência medonha de antes. O pulôver branco, de gola rulê, que vestia com a calça comprida, era razoavelmente elegante, e talvez Dominic não prestasse atenção nessas coisas. De qualquer maneira, teria que reaver as chaves antes de dormir. Não tinha a intenção de deitar nua em pêlo, sem uma camisola pelo menos!

Uma certa apreensão percorreu-lhe o rosto ao pensar nessa eventualidade. Era pouco provável no entanto que alguém a incomodasse durante a noite. A porta fechava por dentro e era bastante pesada para desanimar o intruso mais insistente. Além disso, Bolt não lhe pareceu ser o tipo de homem que fizesse uma grosseria dessas. Quanto a Dominic...

Passou a língua nos lábios secos. Não queria pensar em Dominic, mas estava sempre pensando. Não queria lembrar-se da sensação esquisita que experimentou quando ele desabotoara o casaco de couro, nem da fascinação inquietante que inspirava nela. Era repulsa, repetiu corajosamente. Sentia nojo e desprezo por ele. Não podia interessar-se por um homem como ele, um aleijado, um homem que não hesitava em violentar a vontade dela unicamente para satisfazer seu egoísmo.

Por outro lado, lembrava-se de todos os detalhes de Dominic: a cor dos cabelos, dos olhos castanho-avermelhados, a pele morena, a musculatura do corpo, a maneira como os músculos das pernas estavam visíveis por baixo do tecido leve da calça, as botas de cano longo, a careta de dor quando sentira uma pontada no quadril. Helen prendeu a respiração. Não devia sentir pena dele, nenhuma! Mas sentia, mesmo assim.

Após balançar a cabeça para deixar os cabelos assentarem livremente em volta do rosto, abriu a porta do quarto e saiu para o corredor. Apagou a luz com um suspiro e caminhou de cabeça erguida em direção à escada.

Ao descer no hall, olhou em volta de si desorientada. Que porta levava à sala de estar? Não se lembrava mais. Aproximou-se de uma delas ao acaso, mas era apenas um armarinho para guardar roupa embaixo da escada. Fechou a porta rapidamente e tentou uma outra, sentindo-se um pouco como Alice em sua viagem maravilhosa pela toca do coelho. A peça seguinte era a sala de jantar, onde havia uma mesa redonda coberta com uma toalha branca. Era ali que iam jantar?

Deu um suspiro e, ao ouvir um ruído atrás de si, voltou-se assustada. Uma porta abrira do outro lado do hall e Dominic estava em pé na soleira, acompanhado de Sheba.

— Estava esperando por você — disse ele com a voz sonora que ela aprendera a reconhecer tão bem nos poucos minutos que estava na casa.

Dominic afastou-se para lhe dar passagem e fechou a porta atrás de si. Trocara de roupa e estava com uma camisa encarnada de seda, calça bege de couro, justa no corpo, e um colete marrom. Parecia bem disposto, completamente recuperado da fadiga anterior. Bolt, pelo visto, era um excelente massagista.

Helen dirigiu-se à lareira, sem desviar os olhos de Sheba, que a seguia de perto. O fogo consumia os troncos grandes e a mesa onde tinham tomado chá estava coberta agora com uma toalha xadrez.

Dominic apontou para a cadeira de braços onde ela sentara antes.

— Sente-se, por favor. Você toma alguma coisa antes do jantar?

Ele se comportava como se ela fosse uma convidada habitual da casa, pensou Helen furiosa. Esperava, porventura, que ela aceitaria de boa vontade seu papel? Como ele podia ter a audácia de supor que ela não ia se pronunciar sobre o assunto?

— Escute — começou Helen, dizendo a primeira coisa que lhe passou pela cabeça. — Eu não desci do quarto para lhe fazer companhia... Eu quero as chaves, as chaves das minhas malas. Você não tem o direito de guardá-las. Eu não pude nem trocar de roupa!

Dominic franziu a testa, enfiou a mão no bolso e retirou o chaveiro. Examino u detidamente as chaves e falou em voz baixa:

— Desculpe, não tinha pensado nisso. Quais são as chaves das malas?

Helen encarou-o em silêncio durante um instante, com a fisionomia tensa. Em seguida, sem pensar nas conseqüências, deu um passo à frente e tentou arrancar o chaveiro da mão dele. Ela não sabia exatamente o que pretendia fazer quando o tivesse consigo. Talvez saísse no meio da noite, desse partida no carro que estava afundado na neve, fugisse dali e nunca mais voltasse... fantasias bastante remotas e irrealizáveis no momento. Mas ela tinha que fazer alguma coisa, qualquer coisa, para mostrar ao homem arrogante e autoritário que não era tão indefesa quanto parecia à primeira vista.

Seu esforço contudo não teve êxito. Os dedos dele apertaram o chaveiro com força quando ela avançou sobre ele e a tentativa frenética para abrir os dedos contraídos foi inteiramente inútil. Apesar do defeito na perna, Dominic tinha uma força descomunal nas mãos, como Helen percebeu imediatamente. Quando saltou sobre ele, pensou que ia fazé-lo perder o equilíbrio, mas ele não perdeu, e ela encontrou apenas a resistência rija do corpo musculoso. Ela não percebeu que o guepardo acompanhava a cena com as orelhas em pé, os olhos atentos, e que só não a atacou graças a uma ordem do dono pronunciada em voz baixa. Enquanto lutava para arrancar o chaveiro dos dedos fechados, Helen tomou consciência do seu adversário, pela primeira vez, de uma forma íntima. Sentiu o calor do corpo moreno e seu perfume penetrante. Entretanto, quando levantou a cabeça e encontrou o sorriso irônico nos lábios finos, recuou um passo com uma exclamação de ódio.

Seu bruto! Essas chaves são minhas. Eu as quero de volta!

Você está se comportando como uma criança — disse Dominic levantando as sobrancelhas. — Eu me ofereci para lhe dar as chaves das malas.

Helen balançou a cabeça de um lado para o outro com um gesto de desânimo.

Por que você está fazendo isso? Por que não me deixa ir embora?

Agora?

Não. Amanhã cedo. — Encarou-o com os olhos suplicantes. — Por favor.

Não insista! — exclamou Dominic com impaciência. — Eu não gosto de fraqueza.

Helen teve a sensação exata de receber um tapa no rosto. Com a mão na garganta, afastou-se dele e apoiou-se no encosto do sofá, procurando recompor-se da humilhação. As lágrimas ardiam no fundo dos olhos e estava prestes a explodir no choro. Sentia-se tremendamente sozinha e perdida naquela casa, incapaz de qualquer pensamento coerente. Nem mesmo o olhar maldoso de Sheba foi capaz de despertar um sentimento de agressividade no seu íntimo.

— Tome. Beba isso!

Dominic colocou um copo na mão dela. Helen olhou para a bebida com os olhos arregalados, sem saber o que era.

O que é isso?

Conhaque. É bom para os nervos.

Ela se sentiu tentada a atirar o copo no chão, mas precisava urgentemente de um gole de álcool. Levou o copo aos lábios trêmulos e provou a bebida com hesitação, depois virou o resto com um movimento repentino da cabeça. O conhaque ardeu na garganta e ela tossiu, enquanto as lágrimas umedeciam os olhos, mas podia sentir o calor gostoso que começava a circular pelas veias.

Dominic deu a volta no sofá e, sem esperar por ela, sentou-se na cadeira de braço defronte da lareira. Serviu-se do uísque que estava na bandeja e apanhou uma cigarrilha preta na caixa de metal. Tirou uma brasa da lareira e fumou a cigarrilha com verdadeiro prazer. Helen observou-o em silêncio, atrás do sofá. Era incrível como ele se punha a vontade sabendo que ela estava um trapo!

Depois de puxar duas ou três tragadas, Dominic deixou a cigarrilha presa entre os dentes e enfiou novamente a mão no bolso, para pegar o chaveiro. Examinou-o cuidadosamente, retirou duas chaves do anel e atirou as outras na direção dela. Helen, porém, não foi suficientemente rápida para apanhá-las no ar e elas caíram a seus pés. Com um sentimento de humilhação, abaixou-se para pegá-las e notou que ele havia retirado a chave do carro e a chave menor que abria o porta-malas.

— Está satisfeita agora? — perguntou, esticando as pernas. — Vai sentar-se aqui?

Helen apertou os lábios com despeito.

— Não. Eu vou para o quarto. Espero que você mude de idéia amanhã.

— Não conte muito com isso — disse Dominic com um sorriso de zombaria.

— Você é odioso!

—Suas palavras não me ferem. — Observou-a afastar-se em direção à porta. — Você não ouviu dizer que a guerra é travada no estômago das tropas? Se você não jantar hoje, estará morta de fome amanhã cedo.

Helen levantou o queixo como se aceitasse o desafio. Nesse ponto pelo menos ela era livre. Ninguém podia forçá-la a comer.

— Eu não conseguiria engolir sua comida! — disse com raiva. — Você me enjoa.

Antes que saísse dignamente, após pronunciar essas palavras teatrais, Bolt entrou com a bandeja na mão. Ela não podia .ver o que havia, mas o cheiro do franguinho assado era inconfundível. Com água na boca, viu também o pote de creme de leite que acompanhava a torta de maçã. Bolt fitou-a com surpresa.

Achei melhor servir o jantar na sala, que está mais quente.

Boa idéia — disse Dominic alegremente. — Você me faz companhia, Bolt?

Bolt olhou boquiaberto para Helen. Ela estava parada perto da porta, hipnotizada pelo cheiro da comida. Não fazia idéia, até aquele minuto, que estava morta de fome, e arrependeu-se amargamente das palavras ásperas de antes.

Não vai jantar conosco? — perguntou Bolt por fim.

Ela não está com fome — disse Dominic. — Está meio enjoada, pelo visto.

Dominic voltou-se para Helen, que estava na dúvida se ia ou não voltar atrás, mas a crueldade do comentário levou-a a tomar uma decisão imediata.

— Muito enjoada, por sinal — disse com um ligeiro tremor na voz. — Não costumo comer com qualquer um!

Saiu da sala e bateu a porta com toda a força atrás de si. Parou um momento no corredor, com o coração batendo. Esperava que Dominic saísse ao seu encalço e a punisse pelas palavras rudes que dissera. Tudo que ouviu, porém, foi a gargalhada sonora, inconfundível, e ela sabia que o segundo copo na bandeja seria usado por Bolt...

 

A cama era muito confortável e as garrafas de água quente lembravam sua infância, quando a mãe se sentava na beira da cama e lhe contava uma história antes de dormir. Só que agora ninguém lhe fazia companhia...

Ela achou que ia passar a noite em claro, mas acabou sucumbindo ao cansaço e. ao abrir novamente os olhos, o quarto estava inundado pelo brilho intenso do sol refletido na neve. Durante alguns segundos, não soube onde estava. Logo depois, no entanto, as recordações da véspera acudiram atropeladamente na sua cabeça. Estava na região dos laços, ao norte da Inglaterra, hospedada na casa de um homem que mancava e que tinha um guepardo de estimação.

Passou o braço para fora do cobertor e olhou para o relógio de pulso. Quase nove e meia. Não era possível! Dormira quase doze horas!

Jogou para o lado as cobertas, pulou da cama e correu até a janela. Com a luz do dia podia enxergar onde estava, ter uma idéia melhor da casa.

A vista da janela, contudo, era bastante limitada. Avistava apenas o gramado coberto de neve e o fundo do quintal. Bem embaixo da janela uma área fora limpa recentemente, talvez por Bolt, e havia passos visíveis sugerindo que alguém saíra de casa.

Helen soltou a cortina e examinou o quarto com atenção. Era tão gostoso durante o dia quanto à noite, embora as roupas que saíam para fora da mala aberta dessem uma impressão desagradável de bagunça. Estava tão cansada na véspera, e tão preocupada com os acontecimentos recentes, que só tivera ânimo para procurar a roupa de dormir e cair na cama.

Helen achou preferível ignorar a desordem no momento e foi diretamente ao banheiro. Gostaria de tomar um banho de chuveiro, mas não havia boxe no banheiro e levaria muito tempo para encher a banheira com água quente. Contentou-se em escovar os dentes e lavar o rosto na água fria. Voltou em seguida para o quarto, à procura de uma roupa para vestir.

Tinha acabado de puxar o zíper da calça quando ouviu uma batida na porta. Imediatamente seu coração disparou. Permaneceu um momento em silêncio, com a respiração presa, pensando quem podia

ser.

— Você está acordada? — perguntou Bolt do outro lado.

— Sim, estou. O que você quer?

— Trouxe seu café. Achei que você devia estar com fome.

Helen hesitou um segundo. Sentiu a tentação de agradecer ao criado e recusar o café, como se estivesse numa greve de fome até receber a liberdade definitiva. No último instante, porém, achou que a tática não ia dar certo com um homem indiferente como Dominic Lyall. Ele a deixaria morrer de fome sem mexer um dedo.

— Num minuto! — exclamou, vestindo um pulôver e ajeitando os cabelos enquanto abria a porta.

Bolt estava do lado de fora, alto, forte, simpático. Com a camisa xadrez de algodão, cujas mangas estavam enroladas na altura dos cotovelos mostrando os músculos desenvolvidos dos braços, e a calça folgada de flanela, Bolt não tinha absolutamente a aparência de copeiro, mas a bandeja que trazia não podia estar mais bem arrumada e apetitosa.

— Cereais, ovos fritos com bacon, torradas, geléia e café — enumerou ele em voz alta, como se recitasse uma lição. — Você quer

mais alguma coisa?

Helen arregalou os olhos para a bandeja, como se fosse um sonho.

Voltou-se em seguida para Bolt, com o rosto levemente corado.

— Que maravilha! Eu estava faminta.

— Foi o que o patrão disse.

— Ah. é?

Bolt deu um suspiro.

— Você não vai querer comer por causa disso?

Helen hesitou um instante.

— Bem que gostaria — disse com rebeldia.

— Que adianta você passar fome por causa dele?

Helen levantou os ombros.

— Pois é. Eu sei que não adianta nada.

— Então, seja compreensiva. Tome seu café com calma. Venho buscar a bandeja depois.

Helen fitou o criado na dúvida.

— Escute, Bolt. Quanto tempo eu vou ficar presa aqui?

Bolt caminhou para a porta.

— Tome seu café primeiro. Depois a gente conversa sobre isso.

Ele fechou a porta atrás de si e Helen olhou com frustração para as almofadas na sua frente. Por que Bolt sentira pena de sua situação? Ele era um criado submisso que jamais desobedeceria às ordens do patrão!

No momento, porém, o cheiro do bacon torrado fez Helen esquecer sua resolução anterior. Levantou a tampa da bandeja e comeu tudo o que havia com enorme apetite. Em geral, torradas com geléia eram suficientes para ela, mas aquela manhã estava morta de fome. Raspou o prato e terminou com três fatias grossas de pão com manteiga. O café estava excelente e, depois da segunda xícara, sentiu-se gente de novo.

Limpou os dedos e a boca no guardanapo de papel, levantou-se e foi mais uma vez à janela. O que faria agora? Bolt dissera que voltaria para apanhar a bandeja. Isso queria dizer que devia ficar trancada no quarto?

Sua natureza rebelde revoltou-se contra essa idéia. A despeito dos aspectos desagradáveis de sua situação, a manhã estava linda e adoraria dar um passeio lá fora. Pensou no pequeno hotel onde pretendia hospedar-se. Tinha planejado fazer passeios a pé e de carro, desfrutar ao máximo a liberdade absoluta, longe das exigências paternas, mas agora estava numa situação ainda mais delicada e tinha menos liberdade do que na sua própria casa...

Ao pensar no pai, ficou curiosa em saber se recebera o bilhete que escrevera. Ela o pusera no correio em Londres, na véspera de viajar para o Norte. Não queria dar uma pista carimbando a carta numa cidadezinha do interior. Agora, porém, preferia que não tivesse ocultado tão bem seu paradeiro. Ninguém iria procurá-la nessa região e, mesmo que a procurassem, como a encontrariam naquela casa isolada? Se Dominic morara ali durante anos numa solidão completa, era pouco provável que alguém fosse encontrá-la tão cedo. Sobretudo porque, para todos os efeitos, ele era dado como morto.

Helen franziu a testa. Mas alguém devia saber que ele estava vivo. Alguém fornecia mantimentos para a casa, leite, ovos, sem falar no correio. Ela se animou com essa idéia. Se Dominic tinha a intenção de prendê-la ali, teria que aumentar as provisões da casa e talvez o fornecedor desconfiasse de alguma coisa ao notar o aumento nos pedidos.

Deu um suspiro. Bolt podia contar na cidade que eles tinham uma hóspede em casa. Quem iria duvidar ou suspeitar de alguma coisa? Sua única chance era alguém passar pela casa. O carteiro, por exemplo.

Mais animada com essa idéia, Helen pensou numa maneira de chamar a atenção do possível visitante. Dominic, naturalmente, faria todo o possível para ela não ser vista na casa, por isso tinha que usar de algum artifício para chamar alguém em seu socorro. Quem sabe jogar um bilhete da janela? Não, isso não! O bilhete podia afundar na neve ou ser levado pelo vento. Mas quem sabe essa não era uma boa idéia? Se tivesse seu nome e endereço... Um sentimento de desespero apoderou-se dela. Como podia pôr o endereço se não fazia idéia de onde estava? Onde ficava a casa? Não sabia. Não se lembrava nem mesmo do nome da cidadezinha onde pedira informações sobre o caminho a seguir.

Uma outra onda de esperança inundou-a. Os moradores da cidadezinha. O chefe do correio! Ele se lembrava certamente da moça que tomara informações. Afinal, não havia muitos turistas passando por ali naquela época do ano. Sim, se fosse interrogado, ele certamente se recordaria da moça de cabelos pretos e botas de cano longo que descera do carro, defronte, do correio, e pedira informações para chegar em Bowness. E ele indicaria a direção que ela tomara.

Helen apertou as mãos com força. Quanto trabalho para encontrar esperança numa situação desesperada! Quem ela estava querendo iludir? A si mesma? No fundo, tudo dependia do pai procurá-la, mas ele podia, em vez disso, esperar calmamente ela voltar para casa. Mas se procurasse por ela, se vasculhasse todos os lugares onde ela podia estar, se lembrasse das férias que os dois passaram na região dos lagos, se viajasse para o Norte e encontrasse a cidadezinha onde ela pedira informações...

Ah, tudo dependia de tantos ses! Era impossível. E à medida que os dias — as semanas! — passassem, o chefe do correio, naquela minúscula cidade perdida no mapa, iria certamente esquecê-la. E, mesmo que lembrasse, ela dera tantas voltas ao sair dali que podia estar em dezenas de outros lugares.

Restava finalmente a notícia nos jornais. O pai podia perder a cabeça e divulgar o caso. Se o retrato dela saísse na primeira página dos jornais, era possível que alguém...

Uma batida na porta interrompeu seu devaneio.

— Pode entrar!

Bolt abriu a porta e passou a cabeça pelo vão.

— Já terminou o café?

— Já, muito obrigado, Bolt. Estava uma delícia. Acho inclusive que comi demais.

Bolt deu um sorriso de satisfação.

— Ainda bem! Tudo se torna mais fácil com a barriga cheia.

— Você acha?

— Tenho certeza. Você vai descer?

— Eu posso?

— Você pode fazer o que tiver vontade.

— Ah, é? Onde está o patrão?

Helen se recusava a chamar Dominic pelo nome.

— Está no escritório — disse Bolt, apanhando a bandeja na mesinha de cabeceira.

— Ele está ocupado?

Bolt balançou os ombros como se não quisesse se pronunciar a respeito. Avistou então as malas abertas no chão.

— Vou arrumar sua roupa quando voltar para fazer a cama.

Helen ficou horrorizada com a idéia.

— Pode deixar! Não precisa se incomodar.

— Isso não me dá trabalho nenhum. Num instante eu arrumo tudo no armário.

— Prefiro arrumar pessoalmente — insistiu Helen.

Bolt não respondeu. Caminhou diretamente para a porta.

— A manhã está linda. Você não gostaria de dar uma volta lá fora?

— Lá fora? — exclamou Helen excitada. — O que ele vai dizer?

Eu posso fugir.

— Olha, acho bom você não arriscar — disse Bolt com um sorriso. — Sheba foi treinada para caçar veados. Ela poderia correr atrás

de você.

— Ah, você não sabe o que aconteceu ontem! — exclamou Helen com um calafrio, ao se lembrar de sua aventura no dia anterior.

— Me contaram — disse Bolt. saindo do quarto com um leve movimento da cabeça.

Helen lançou um olhar rápido para a cama desarrumada e acompanhou Bolt pelo corredor sombrio. Desceram para o andar térreo, atravessaram uma porta e foram dar numa cozinha enorme. O chão de azulejos estava imaculadamente limpo e brilhante. Embora a cozinha tivesse sido modernizada recentemente, com pias de aço inoxidável e escorredores de metal, havia ainda o fogão enorme que tinha sido no passado a peça principal da cozinha e uma lareira de ferro fundido, onde a lenha seca crepitava alegremente. Uma porta estreita comunicava com a despensa, mas não havia pernil pendurado no gancho, nem fieiras de cebolas, somente um congelador enorme que parecia um caixão de defunto. Mesmo assim, a cozinha era muito jeitosa e Helen examinou-a com interesse.

Bolt colocou a bandeja em cima da pia e começou a lavar os pratos sujos embaixo da torneira. Lançou um breve olhar para Helen.

— Você acha que o serviço de copeiro combina comigo?

Helen balançou os ombros e aproximou-se da mesa que ocupava o centro da peça. Correu a ponta do dedo entre os grãos que estavam espalhados em cima da tábua.

— Não sei... Talvez não combine muito com seu tipo físico. Você parece mais um atleta...

Bolt deu uma risada.

— Eu também acho.

— Mas você tem outras ocupações além dessa, não é mesmo?

— Eu faço um pouco de tudo — disse Bolt esfregando as mãos na água morna com detergente. — Servi o Exército quando era moço, depois lutei boxe durante algum tempo, mas desisti. Não leva a nada, pode crer. Depois trabalhei uns tempos como mecânico. — Fez uma pausa. — Agora sou copeiro e arrumadeira...

— Você deve gostar muito do seu patrão...

— Não posso me queixar. Ele é um camarada muito legal.

— Acredito. Faz muito tempo que você o conhece?

— Uns vinte anos, mais ou menos.

— Mas você trabalha para ele todo esse tempo?

— Para ele... com ele... que diferença faz? Seu pai foi meu comandante quando estava no Exército.

— Ah, é?

Helen aproximou-se da pia onde estava o escorredor. Janelas grandes davam para o pátio nos fundos da casa, onde havia árvores desfolhadas e as demais dependências.

— Diga uma coisa, Bolt. Onde vocês fazem as compras para a casa? Os mantimentos frescos, como leite, ovos, verduras... Sem falar no correio, naturalmente.

— Bem, nosso correio é mandado para a caixa postal — respondeu Bolt desfazendo as esperanças que Helen podia ter nesse sentido. — Fora isso, temos algumas vacas e galinhas. No verão, plantamos frutas e legumes que congelamos para o resto do ano. Somos bastante auto-suficientes, para falar a verdade. Eu asso inclusive o pão aqui.

— Ela está querendo passar a perna na gente — disse uma voz irônica atrás deles.

Helen voltou-se bruscamente e viu Dominic encostado no batente da porta. Estava novamente todo de preto e, apesar do tom claro dos cabelos, tinha uma aparência terrivelmente satânica! Inclinou a cabeça com um leve movimento em direção a Helen.

— Bom dia. Dormiu bem? Não estranhou a cama? Bolt me contou que você já tomou café. Gostou de nossa cozinha?

Helen preferia dizer que não tinha tocado na comida, mas era impossível. Em vez disso, assumiu uma posição de defesa.

— O que você acha que meu pai vai fazer quando souber que você me prendeu aqui contra minha vontade?

— Eu acho que isso só criaria dificuldades para você.

— Para mim? — exclamou Helen, apanhada de surpresa. — Para você, isso sim!

— Por que haveria de criar problemas para mim? Eu não estarei

mais no país. Você sim, estará.

— Você acha mesmo que ele vai deixar as coisas ficarem nesse

pé? Ele vai encontrá-lo, nem que seja no fim do mundo!

— Não diga! — zombou Dominic. — Se os jornalistas não descobriram meu paradeiro durante anos, não preciso me preocupar muito com os esforços do seu pai.

— Ele pode divulgar a história nos jornais! Pode pagar investigadores particulares!

— Ah, é? — Dominic balançou a cabeça pensativamente. — Isso é interessante. E dizer que ainda ontem você jurou que não ia revelar nada a ninguém .

— Ontem era diferente — disse Helen sem jeito.

— Mas agora você mudou de idéia?

— Sim, mudei. Ou melhor, estou lhe prevenindo apenas para não brincar com meu pai. Ele é uma fera quando se irrita.

— Isso é uma ameaça, porventura?

— É, é isso mesmo! — exclamou Helen, perdendo a paciência. — Se você me deixar ir embora, vou esquecer que estive aqui. Se não me deixar... bem, eu não me responsabilizo pelas conseqüências.

— Entendo. É bom você avisar. — Voltou-se para Bolt: — Você me faz um café? Vou descansar um pouco na sala.

— Pois não — disse Bolt com um sorriso.

Helen sentiu-se absolutamente ridícula e sobrando no meio dos dois homens. Dominic observou seu rosto tristonho com condescendência.

— Você toma um cafezinho comigo?

— Não, muito obrigada!

— Bem, como você preferir.

Ele balançou os ombros e saiu da cozinha, deixando a porta fechar sozinha nas suas costas. Logo depois Helen arrependeu-se de sua indelicadeza. Sua única chance de fugir era persuadi-lo a mudar de idéia e não iria conseguir isso enquanto se comportasse como uma criança mimada.

Sentou-se na beira do banquinho diante da mesa comprida, onde estavam espalhados os grãos de feijão e observou Bolt passar o café no coador, depois encher um pote com creme de leite fresco. Arrumou tudo numa bandeja de prata.

— Você quer levar para mim? — perguntou.

Helen levantou a cabeça.

— Levar o quê?

— Levar a bandeja à sala.

— Como você quiser — disse Helen com o rosto abatido.

— Posso dar uma sugestão?

- Qual é?

— Não fique triste. Leve a coisa na esportiva. Meu patrão não gosta de ser contrariado.

— Essa é boa! — exclamou Helen, sem conter por mais tempo sua irritação. — E o que você quer que eu faça? Que fique de braços cruzados até ele me mandar embora?

— Talvez.

— Você está sonhando!

— Por quê? Dominic não é menos homem por causa de seu defeito na perna. Ele continua saudável e forte como antes...

— Onde você quer chegar? — disse Helen, levantando-se da cadeira.

— Seja compreensiva — disse Bolt, despejando o café no bule escaldado previamente. — O fato dele viver sem mulher não significa que ele não tenha as necessidades normais de um homem viril.

Helen apertou as unhas na palma da mão.

— Ah, é? Pois eu pensava que você satisfizesse as necessidades

dele! — exclamou com raiva.

— Não, não é bem assim — disse Bolt sem se abalar. — Dominic

não é desse tipo.

Helen não sabia onde se enfiar. Ela nunca se comportara tão mal na vida e o fato de despejar em cima de Bolt a raiva que sentia por Dominic encheu-a de vergonha e de desprezo por seu comportamento injusto.

— Ah, desculpe o que eu disse, Bolt! —- exclamou, levando as mãos ao rosto vermelho. — Foi sem querer!

Bolt colocou a tampa no bule e empurrou a bandeja na direção dela.

— Não foi nada. Você está um pouco nervosa. Procure relaxar. Nada é tão mau quanto a gente imagina. Agora leve o café para Dominic. Ele está na sala. Eu pus duas xícaras no caso de você querer lhe fazer companhia.

Helen deixou as mãos caírem ao lado do corpo e torceu a boca.

— Você não volta atrás, não é mesmo?

— Sou otimista por natureza — comentou Bolt, fazendo massagem nos músculos dos ombros. — Sabe qual é a porta da sala?

— Acho que sim. — Helen apanhou a bandeja e caminhou em direção à porta da cozinha. Voltou-se de lá. — Muito obrigada pela sugestão, Bolt.

— Isso faz parte do serviço — disse Bolt balançando a cabeça.

Quando Helen abriu a porta da sala. Dominic estava deitado no sofá, com os olhos fechados. Ao ouvir seus passos, abriu os olhos e tentou levantar-se. Um espasmo de dor atravessou o rosto e ele deixou-se cair em cima das almofadas, com a mão na cabeça.

Helen colocou a bandeja em cima da mesa e aproximou-se dele.

— O que foi? Está sentindo alguma coisa?

Dominic retirou a mão da testa e fitou-a um instante com a fisionomia deformada pela dor.

— Não, não é nada. Já passou. Muito obrigado.

Helen ficou parada no meio da sala, esfregando as mãos com nervosismo. Dominic estava tão pálido e sem forças que sentiu vontade de fazer alguma coisa por ele. Embora fossem inimigos, não sentia prazer no mal que o abatia. Experimentava antes uma sensação perturbadora de compaixão, e a consciência mais aguda da atração que ele exercia sobre ela.

— Pelo amor de Deus! — exclamou Dominic com impaciência. — Não olhe para mim com essa cara! Eu sofro de enxaqueca... entre outras coisas.

Helen aproximou-se sem jeito e notou que ele suava pelo esforço de levantar-se do sofá.

— Posso fazer alguma coisa por você? — indagou, hesitante.

— O quê, por exemplo? Um tiro na cabeça ou uma facada no peito? O que você sugere?

— Nenhum dos dois — respondeu Helen, enquanto olhava em volta à procura de alguma coisa. — Você não tem nenhum comprimido? Um analgésico? Ou prefere que chame o Bolt?

— Eu tenho comprimidos — disse Dominic, fechando os olhos.

— Onde estão?

— Você não precisa se incomodar. Bolt pode apanhá-los para mim.

— Eu vou! — exclamou Helen. — Basta me dizer onde estão.

Ele entreabriu os olhos e apoiou a cabeça nas almofadas de veludo. Durante um instante, observou-a em silêncio, por baixo dos cílios compridos. Helen sentiu as pernas moles diante do olhar insistente e seu coração disparou dentro do peito. Dominic tornou a fechar os olhos.

— Estão num vidrinho em cima da mesa ou numa gaveta.

Helen deu um passo em frente e parou, na dúvida. Que mesa? Seria a escrivaninha no canto da sala, em cima da qual estava a fotografia do acidente? No momento em que atravessou a sala nessa direção, Dominic disse com a voz cansada:

— Minha mesa no escritório.

No escritório!

Helen ficou na dúvida. Onde era o escritório? Abriu a boca para perguntar e tornou a fechá-la. Devia dar no hall e não havia muitas outras portas ali. Lembrava-se de qual era a porta da cozinha, do quartinho embaixo da escada, onde Bolt pendurava os casacos, e da saia de jantar.

Dirigiu-se rapidamente ao hall e olhou em volta. Felizmente Sheba não estava por perto. Havia apenas uma outra porta que não conhecia. Helen sorriu de satisfação, virou a maçaneta e entrou. Era ali o escritório. Só podia ser. Uma mesa comprida de mogno dominava a área central. Estava literalmente empilhada de livros e papéis, sem falar na máquina de escrever, empurrada para o lado.

Mas não foi a mesa que chamou sua atenção. Ao lado da janela, no canto da sala, escondido atrás de uma cortina pesada de veludo, estava o telefone!

Seu primeiro impulso foi discá-lo e pedir socorro. Os acontecimentos recentes, porém, tornaram-na mais precavida. Se demorasse muito tempo ali, Dominic podia desconfiar de alguma coisa... Sem falar que Bolt podia passar na sala para apanhar a bandeja do café. Se descobrissem que ela sabia da existência do telefone, não teria outra oportunidade de usá-lo. Mas se fingisse não ter visto nada...

Após afastar os olhos do vínculo tentador com o mundo lá fora, Helen aproximou-se da mesa e sentou-se na poltrona de couro. A lembrança do rosto moreno, contorcido pela dor, levou-a a abrir rapidamente a primeira gaveta da direita. Não podia ignorar os sofrimentos dele, por mais revoltada que estivesse com sua situação na casa.

Percorreu com a vista a gaveta aberta e certificou-se de que não havia nenhum vidrinho de analgésico ali. Tornou a fechá-la e abriu a gaveta da direita. Estava cheia de papéis mas, lá no fundo, encontrou o que estava procurando: o pequeno vidro de comprimidos.

Lançou um olhar rápido para a massa de papéis que estava em cima da mesa, fechou a segunda gaveta e levantou-se. Tinha chegado à porta quando Bolt saiu da cozinha. Helen sentiu as pernas bambas ao pensar que, se tivesse usado o telefone, teria sido apanhada em flagrante.

Bolt franziu a testa ao vê-la sair do escritório.

— Está procurando alguma coisa?

Helen corou repentinamente. Sentia-se culpada de sua intenção. Sem jeito, como se fosse apanhada fazendo uma coisa proibida, mostrou o vidrinho que levava na mão.

— Seu patrão está com enxaqueca — explicou caminhando em direção à sala. — Fui apanhar o analgésico no escritório.

— Ah, bom — disse Bolt, muito preocupado. — Vou buscar um copo d'água.

— Seria ótimo.

Bolt voltou à cozinha e ela entrou na sala. Dominic continuava deitado no sofá, com os olhos fechados e ela forçou-se a lembrar que aquele homem era o inimigo que a prendia ali contra sua vontade.

Aproximou-se do sofá e estendeu o vidrinho.

— Olha, eu trouxe os comprimidos — disse em voz baixa. — Bolt foi apanhar um copo d'água na cozinha.

Dominic abriu os olhos, marcados por olheiras fundas.

— Muito obrigado — disse, erguendo-se e segurando o vidrinho. — A culpa é minha. Passei muitas horas trabalhando.

Tirou a tampa do vidro e apanhou dois comprimidos.

— Trabalhando? — perguntou surpresa, sem poder esconder a curiosidade.

— Pois é. Você pensa que eu passo os dias sem fazer nada?

Ela afastou-se do sofá, ligeiramente ferida com suas palavras.

— Não tinha pensado nisso.

No instante seguinte, Bolt entrou na sala com um copo e uma garrafa nas mãos. Foi diretamente ao sofá e olhou para Dominic com uma certa reprovação.

— Pronto, aqui está a água. Seria bom você descansar um pouco no quarto.

Dominic engoliu os dois comprimidos com um pouco d'água.

— Estou bem aqui — disse, secando a boca com as costas da mão.

— Por que não deita um pouco? — insistiu Bolt.

Dominic lançou um olhar em direção a Helen.

— E vou deixar minha hóspede tomar café sozinha?

— Depois do café, então — disse Bolt.

No entanto, Dominic limitou-se a fechar novamente os olhos, como se o esforço de mantê-los abertos o esgotasse.

— Eu chamo você, se for preciso.

Bolt deu um suspiro e olhou para Helen com um gesto de resignação. Ela se sentiu ridiculamente cúmplice na preocupação do criado pelo bem-estar do homem que estava deitado no sofá.

— Pelo amor de Deus! — exclamou Dominic de repente, como se tivesse surpreendido o que se passava entre os dois. — Parem de fazer sinal um para o outro como se eu fosse um inválido!

— Volto dentro de uns quinze minutos — disse Bolt, saindo da sala.

Depois que ele saiu, Helen ficou na dúvida se não devia sair também. Talvez Dominic fosse para a cama quando se visse sozinho na sala e isso era a melhor coisa para uma crise de enxaqueca. Ao imaginá-lo deitado na cama, de pijama, sentiu um arrepio no corpo. Sua vulnerabilidade era perigosamente atraente para ela e tinha que lembrar a todo instante que Dominic era seu adversário, que a mantinha ali como se ela fosse um animal de estimação. Ao vê-lo abrir a camisa no alto do peito, sentiu o desejo incontrolável de tocá-lo. Gostaria de fazer massagem na testa dolorida com as pontas dos dedos e ver a tensão diminuir sob o tratamento.

Ele abriu os olhos de repente e surpreendeu seu olhar.

— Sente-se — disse em voz baixa. — Está passando. Logo vou

estar bom...

Helen procurou ocultar a preocupação que sentia. Aproximou-se da cadeira defronte da lareira e sentou-se na beira, esfregando as mãos diante das chamas. A coisa mais importante no momento era poder usar o telefone, pensou. Estava começando a se interessar demais por Dominic e a esquecer-se de seus interesses.

Ao pensar no telefone, refletiu no que devia fazer para usá-lo sem perigo de ser surpreendida. O melhor momento seria depois de todos estarem dormindo, embora a idéia que Sheba pudesse estar solta dentro de casa representava um risco sério.

— Você não quer servir o café?

Helen levou um susto quando a voz de Dominic a acordou do seu devaneio.

— O quê? Ah, sim! — Voltou-se para a mesinha e apanhou as xícaras. O aroma forte do café era confortador, mas sua mão tremeu ligeiramente quando segurou o bule. — Com creme e açúcar?

— Isso — disse Dominic erguendo-se no sofá para segurar a xícara que ela lhe estendeu. — Obrigado.

Helen serviu-se uma xícara, acrescentou apenas açúcar e mexeu vigorosamente. Estava consciente de que era observada com o canto dos olhos e tinha receio de saber o que ele estava pensando.

— Por que você mudou de idéia?

— Mudei de idéia? — repetiu Helen, intrigada com a pergunta.

— Em que sentido?

— Você não queria tomar café antes.

Ela deu um suspiro fundo.

— Ah, sim. Talvez eu queira aproveitar a oportunidade e convencê-lo a me deixar partir.

— Você acha que pode me convencer? — indagou Dominic, recostando a cabeça no encosto do sofá.

— Não sei — disse Helen, colocando a xícara vazia na mesa.

— Mas você gostaria de tentar?

— Talvez eu consiga despertar seu sentimento de honra.

— Sentimento de honra? Que idéia mais antiquada! É isso que

você quer? Que eu me sinta grato a você?

— Não sei o que você quer dizer.

— Claro que sabe. Sua atenção há pouco foi proposital, naturalmente.

Helen, que evitara encontrar seus olhos, encarou-o fixamente.

— Você acha que eu faria uma coisa dessa?

— Por que não? Você quase me convenceu com sua falsa atenção. Mas achei que devia avisá-la que não me iludo com essa facilidade. Eu não gostaria que você chegasse a um ponto em que tivesse dificuldade de voltar atrás.

— O que você quer dizer com isso?

— Simplesmente isso: não atire seu charme feminino em cima de mim para conquistar minha simpatia.

Helen levantou-se bruscamente.

— Como você pode ser tão convencido?

— Eu não sou. É por isso exatamente que estou deixando as coisas bem claras. Por uma questão de decência... depois do que você fez por mim.

A ironia estava evidente na voz dele e ela fechou os pulsos com raiva. Estava disposta a berrar que tinha visto o telefone no escritório, para mostrar que não era uma mentirosa como ele. Em vez disso, achou mais prudente guardar o silêncio. O que a feria profundamente era Dominic ter percebido o interesse que despertava nela, embora o interpretasse da forma mais errada possível. Ele imaginava, pelo visto, que Helen pretendia persuadi-lo com sua juventude e beleza, enquanto nada era mais falso. Não queria sentir-se seduzida por ele. Não queria sofrer a atração de sua personalidade inquietante. E, acima de tudo, não desejava imaginar que essa atração podia concretizar-se fisicamente um dia.

— Você é odioso com suas suspeitas! — exclamou por fim, com os lábios trêmulos. — Você é um deformado mental. Você deixou que seu defeito físico influenciasse seus pensamentos!

Ele arregalou os olhos amarelados, como duas pedras de topázio.

— Você tem toda a razão. E é bom não se esquecer nunca disso!

Helen lançou um olhar rápido na direção dele e caminhou para a porta. Sentiu enjôo ao subir a escada e as têmporas latejavam horrivelmente. Durante um instante, Dominic parecera ser uma pessoa humana e generosa, e ela cometera o erro de responder a essa falsa impressão.

 

Helen passou o resto da manhã no quarto. Pendurou os vestidos nos cabides e arrumou as roupas nas gavetas. Embora repetisse que não adiantava desfazer as malas porque contava partir o mais cedo possível daquela casa, continuou mesmo assim a tirar as saias das malas e a pendurá-las no armário.

À uma da tarde Bolt bateu na porta e disse que o almoço estava pronto. Quando ela desceu, alguns minutos depois, encontrou-o na cozinha.

— Servi o almoço aqui. Dominic não vai comer nada. Você não se importa?

— Pelo contrário, é um prazer lhe fazer companhia. Mas eu também não estou com muita fome.

Helen sentou-se na mesa comprida da cozinha diante dos pratos apetitosos que Bolt tinha preparado. Tudo que ele fazia tinha um aspecto saudável e gostoso.

Naquele dia Bolt fez um bife de panela com cogumelos e um creme de tomate para esquentar o corpo. Havia ainda algumas fatias da torta de maçã que sobrara da véspera. Bolt serviu a torta acompanhada de uma colher de creme de leite que parecia um requeijão, de tão grosso que era. Helen comeu tudo com muito apetite, mas não aceitou repetir, quando Bolt lhe ofereceu uma segunda fatia.

— Estava ótima, Bolt — disse por fim, satisfeita, ao tomar a segunda xícara de café. — Você vai me engordar como uma baleia.

Bolt deu um sorriso de satisfação.

— Ah, não tem perigo! — comentou, observando os seios pequenos que marcavam os contornos do pulôver branco. — Você ainda pode engordar um pouquinho em certas partes...

Helen sorriu sem querer. Sentia-se bem pela primeira vez desde que acordara. Bolt era uma simpatia, muito diferente nesse ponto de Dominic.

Ao pensar nele, uma parte de sua alegria sumiu repentinamente. Não podia esquecer que estava ali contra sua vontade e, por mais simpático que fosse seu carcereiro, ela não tinha liberdade de fugir de sua tutela.

— Seu patrão está deitado? — perguntou após um momento, mexendo a colherinha no pires de café. Bolt balançou a cabeça afirmativamente, enquanto rodava a caneca nas mãos grandes.

— Está. Faz uma hora que ele foi para o quarto.

Helen devia ter deixado o assunto nesse pé, mas não controlou sua curiosidade.

— Que trabalho ele faz?

— Está escrevendo um livro.

— Um livro? — repetiu Helen, imediatamente interessada. — Sobre o quê?

— Olha, isso eu não sei dizer. Por que você não pergunta pessoalmente a ele?

— Boa idéia...

Bolt colocou a xícara em cima da mesa.

— Agora é minha vez de fazer uma pergunta. O que aconteceu exatamente hoje de manhã?

Helen concentrou-se na borra de café que estava no fundo da xícara.

— Nada muito especial — disse por fim.

— O que você disse a ele? — insistiu Bolt.

— Eu não disse nada. Simplesmente fui buscar os comprimidos no escritório.

— Eu pensei que você tinha dito alguma coisa que ele não gostou.

— Essa é boa! Eu faço um favor e ele ainda reclama! Seu patrão e um perfeito chato! — exclamou Helen indignada.

Bolt levantou-se e começou a recolher os pratos e talheres sujos.

— Você precisa entender...

— Por que eu tenho sempre que entender tudo? Bolas! Por que ele também não procura compreender o que eu sinto? Eu não pedi para ficar aqui. E não faço a menor questão, se você quer saber!

Bolt contemplou-a com a fisionomia preocupada.

— Eu não gostaria que você saísse ferida...

— Eu sair ferida? — exclamou Helen furiosa. — Por que você acha que isso ia acontecer? Na minha opinião, ele é um homem antipático, rude, completamente egoísta! Por que haveria de sair ferida?

Bolt levantou as sobrancelhas espessas.

— Bem, você é quem sabe...

Embora Bolt protestasse que não era preciso, Helen insistiu em ajudá-lo a lavar a louça e os talheres. Mais tarde, depois que estava tudo areado e a cozinha um brinco, Helen deu um suspiro de satisfação.

— Dominic vai ficar de cama o resto da tarde — disse Bolt para ela. — Você não gostaria de dar uma volta lá fora para conhecer o resto da casa?

Helen olhou para a janela. O sol claro da manhã estava parcialmente encoberto e parecia que ia nevar de novo, mas a tentação de respirar o ar fresco era irresistível.

— Eu gostaria muito — disse com sinceridade.

— Ótimo. Você tem botas impermeáveis? E um capote bem grosso para vestir?

— Trouxe minhas botas de borracha, vim prevenida para andar na neve. E se meu casaco forrado estiver seco...

— Ah, sim. Ele está pendurado no corredor.

— Ótimo. Eu volto num minuto — disse Helen, caminhando animadamente em direção à porta.

Ao subir correndo a escada que levava ao quarto, pensou se devia aproveitar a oportunidade para usar o telefone. Bolt estava ocupado na cozinha, aprontando-se para sair, e Dominic estava de cama, dormindo provavelmente.

Mas era melhor não arriscar. A perspectiva de estragar o bom relacionamento que mantinha com Bolt não era nada agradável e odiaria ser surpreendida por ele fazendo algo proibido. Podia esperar até a noite, depois que todos estivessem dormindo.

Depois de calçar as botas por cima da calça e vestir o pulôver grosso, tornou a descer a escada, apanhou o casaco forrado no cabide do corredor e examinou-o detidamente para ver se estava em ordem depois da aventura na neve. Finalmente, enfiou os cabelos compridos para dentro do capuz e saiu à procura de Bolt.

A tarde estava deliciosa, o tipo de tarde que Helen só se recordava vagamente de ter visto em criança. Em Londres, os invernos eram terríveis: com as calçadas sempre sujas de lama, não sentia o menor prazer em andar a pé e correr o risco de escorregar.

Ali, entretanto, era tudo uma beleza. A neve era limpa e branca, o ar tão puro que intoxicava. E não sentia frio, afinal. Era jovem, saudável, acabara de almoçar divinamente e o corpo inteiro exalava um sentimento de bem-estar e de disposição.

Bolt estava cuidando das vacas no estábulo. Limpou os cochos e colocou braçadas de feno para os animais comerem. Helen ajudou-o na medida do possível, mas sentiu-se mais à vontade no galinheiro coberto, onde apanhou os ovos frescos do dia, ainda quentes do ninho.

Então, avistou sem querer um trenó, encostado na parede de uma casinha e apontou-o com o queixo para Bolt.

— Eu uso esse trenó às vezes para levar o capim dos animais — explicou Bolt. — Encontrei-o quando nos mudamos. Provavelmente era das crianças que moravam aqui.

— Vamos dar uma volta? — perguntou Helen, com os olhos brilhantes de excitação.

— Como? Empurrando?

— Ué, podemos escorregar do morro!

— Ah, sim, como se fosse um escorregador — comentou Bolt com um sorriso de condescendência.

— Isso mesmo!

Bolt olhou para a paisagem em volta.

— Tem um morro do outro lado da casa. Termina num riacho, que está coberto de neve no momento, mas não agüenta o peso de um trenó e de uma pessoa em cima. Você não pode descer até lá.

— Eu tomo cuidado. Sei manobrar o trenó. Ah, vamos!

Bolt concordou finalmente e os dois deram a volta na casa. Ali a neve estava absolutamente imaculada e Helen sentiu um prazer infantil em andar em cima do tapete fofo e deixar a marca dos pés visível na superfície branca.

O trenó era suficientemente grande para duas pessoas, mas Bolt preferiu aguardar perto do rio, embaixo do morro, para evitar qualquer imprevisto. Entretanto, após certificar-se de que Helen podia manobrar facilmente o trenó, concordou em descer com ela e os dois escorregaram a toda velocidade pelo morro abaixo, rindo às gargalhadas quando o trenó virou e atirou-os sobre a neve macia.

A parte mais difícil era arrastar o trenó morro acima e as pernas dela estavam doendo quando Bolt sugeriu que era hora de encerrar a brincadeira. Voltaram para casa conversando animadamente, como dois velhos amigos, e Helen lembrou-se de que, nas duas últimas horas, não lhe ocorrera nenhuma vez a idéia de fugir.

Tomou um banho de imersão antes do jantar e escolheu o vestido longo de lã, estampado com tonalidades de azul e verde-escuro. A cor combinava com o tom azul-esverdeado dos olhos, e a saia comprida chamava atenção para a curva redonda das cadeiras. Embora não confessasse isso no momento, queria fazer-se bonita para Dominic e arrumou-se com o máximo cuidado. Adoraria que ele fizesse algum comentário sobre sua aparência e que ela pudesse salvar seu orgulho ferido anteriormente.

Sua esperança, porém, não se concretizou. A sala de estar estava vazia quando entrou ali alguns minutos depois. Ficou parada, balançando o corpo de um lado para o outro, sem saber o que fazer. Logo depois Bolt apareceu.

— Dominic não vem. Vou trazer seu jantar num minuto.

— Você vai me fazer companhia? — perguntou Helen com vivacidade. — Eu gostaria muito.

Bolt olhou para as mangas arregaçadas da camisa, para a calça amassada.

— Assim, desse jeito?

— Não faz mal. Ninguém vai ao teatro depois.

Bolt deu uma risada.

— Tudo bem. Sente-se então que eu volto num instante.

Bolt serviu aquela noite frango xadrez com molho de cebola, champignon e cenoura cortada em rodelinhas. Na sobremesa, pudim de chocolate com calda. Ele abriu também uma garrafa de vinho rose e os dois beberam vários copos.

Depois do jantar, Helen recostou-se na cadeira e sorriu de satisfação.

— Você é um cozinheiro estupendo, Bolt! Onde aprendeu a cozinhar? No Exército?

— Na Marinha, você quer dizer?

— Ué, pensei que você tinha servido o Exército! Mas como você aprendeu a cozinhar?

— Sozinho. Como lhe disse antes, eu faço um pouco de tudo.

— E agora está trabalhando para Dominic Lyall...

— Pois é.

— Você trabalhava com ele antes do acidente?

— Hummmm.

— Ah, você era o mecânico da equipe?

— Exatamente.

— Foi um acidente horrível, pelo que ouvi contar.

— Dois homens morreram na hora.

— Você os conhecia?

— Um deles era irmão de Dominic.

— Não! Isso eu não sabia!

— Muita gente não ficou sabendo — explicou Bolt. — Ele corria com outro nome. Para não ser confundido com o irmão...

— Que horror!

— Pois é. — Bolt colocou a garrafa de vinho vazia na bandeja e começou a recolher os pratos. — Você devia ser uma adolescente na época.

— Eu tinha dezesseis anos. Meu pai adorava as corridas e tinha todas as fotografias, bem como as reportagens que saíam nas revistas. Ele ficou muito abalado com o acidente.

— Todos nós ficamos — murmurou Bolt com um suspiro. — Mas vamos conversar sobre algo mais alegre. Conte-me como está Londres. Faz anos que não vou lá.

— Londres? — repetiu Helen batendo com a ponta do dedo nos braços forrados da cadeira. — Londres continua na mesma...

— Você não gosta de lá?

— Não muito — disse com um sorriso.

— Por quê? Não é sua casa?

— Bem, eu moro lá — corrigiu com delicadeza.

— Mas seus pais estão lá? Seu pai, pelo menos.

— Meu pai e minha madrasta. A madrasta tradicional, chata e implicante.

— Você não gosta dela?

— De quem? De Isabel? Deus me livre. Ela lá e eu aqui. A gente se tolera uma à outra porque não tem outro jeito.

— Ela tem outros filhos?

— Não.

— E seu pai?

— Também não. Sou a filha única, infelizmente. — Torceu o nariz. — Para desgosto de Isabel.

— Por quê?

— Ah, isso é uma história muito comprida... que não iria interessar a você.

— Quem sabe?

Helen franziu a testa, como se não lhe agradasse falar nesse assunto.

— Eu tinha doze anos quando papai casou pela segunda vez. Com Isabel. Ela queria naturalmente ter filhos, mas não houve jeito. Papai, por sua vez, não quis adotar uma criança. — Helen deu uma risadinha. Eu devia dar graças a Deus, mas não dou...

— Seu pai dirige uma companhia de engenharia?

— Exatamente. A Thorpe Engenharia. Ele é o diretor executivo. Ele teve muita sorte nos negócios, porque nós estávamos à beira da falência quando mamãe morreu.

— Como ele fez para ter sucesso?

— Casou-se com Isabel Thorpe.

— Ah, entendo. Com a filha do sócio...

— Exatamente. — Helen fez uma careta. — E eu fui mandada para o colégio interno, onde fiquei até terminar o ginásio.

— Seu pai julgava, naturalmente, que seria melhor para você...

— Melhor para mim?

— Para todos vocês, em suma.

— Não, não foi isso. Meu pai era... e continua sendo... um homem muito ambicioso. Mamãe o mantinha na linha enquanto estava viva... — Helen deu um suspiro. — Ele ainda tem ambições, só que agora precisa da minha colaboração.

— Foi por isso que você fugiu de casa?

— Hummm.

— 0 que ele pretendia desta vez? Casá-la com um homem rico?

— Exatamente! Como você adivinhou?

— Bem, só podia ser isso — disse Bolt com um risinho. — Quem é o felizardo?

— Alguém cujo pai é dono de uma companhia à qual meu pai tem interesse em associar-se. Sem falar que o avô dele é da aristocracia rural, como eles dizem.

— Annn! — murmurou Bolt com um movimento da cabeça. — Um partido e tanto!

Helen fez um gesto de condescendência.

— Mike é legal. Eu gosto dele. Nós nos divertimos muito na companhia um do outro. Mas não sinto amor por ele.

— Nem um pouquinho?

— Não, nem um pouquinho. Conheci muitos rapazes até hoje... e alguns homens maduros.. mas nunca encontrei ninguém com quem quisesse casar. Além disso... além disso... acho que não estou interessada nisso, no momento.

— Verdade?

— Juro por Deus! — disse Helen com um risinho. — Ah, a culpa é deste vinho que nós tomamos. Ele me soltou a língua. Eu não costumo me abrir desse jeito com os outros...

— Talvez esteja na hora — disse Bolt calmamente. — Você nunca conversa com sua madrasta?

— Com Isabel? Deus me livre! Não falaria nunca dessas coisas com ela.

— Porquê?

— Primeiro porque ela não se interessa a mínima! Ela é uma egoísta de marca maior...

— E seu pai?

— Papai conversa comigo, é verdade, mas nunca ouve o que eu digo. Especialmente quando é alguma coisa que ele não deseja ouvir.

Bolt apanhou a bandeja e levantou-se.

— É pena — comentou por fim.

Helen espreguiçou-se com um suspiro.

— Já disseram alguma vez que você é um grande papo?

Bolt deu um sorriso.

— Não, mas nunca é tarde para ouvir um elogio. — Deu alguns passos em direção à pia. — Olhe, agora vou lavar a louça e depois vou cair na cama. Estou meio pregado.

— Eu também — disse Helen com um bocejo comprido.

Foi então que ela se lembrou do que tinha a fazer.

— Por falar nisso, onde está Sheba? Eu não a vi hoje...

— Ué, onde ela se enfiou? Estava no quintal hoje de manhã. Talvez esteja no quarto de Dominic.

— Ela costuma dormir lá?

— Não, ainda bem. Eu a levo para fora antes de dormir. Ela precisa andar um pouco todos os dias.

— Ela toma conta da casa à noite?

Bolt lançou-lhe um olhar de curiosidade.

— Por que você pergunta? Está querendo dar o fora no meio da noite?

— Não, não é isso — disse Helen, corando ligeiramente. — Perguntei por perguntar

— Normalmente, Sheba dorme na cozinha.

— Ah, bom. Ela é um animal de estimação muito raro, você não

acha?

— Raro eu não sei, mas caro eu tenho certeza. Dominic recebeu-a de um amigo, mas vai devolvê-la em breve, por motivos de reprodução, eu creio...

— Ainda bem! — Helen foi até a porta. — Boa noite, Bolt. Durma bem.

— Você também.

Helen ficou um instante pensativa ao sair no hall. O que faria agora? Ficaria na sala até que Bolt subisse para o quarto? Não. Isso despertaria suspeitas. Era preferível deitar-se e esperar que todos estivessem dormindo.

Tomada essa decisão, subiu lentamente a escada. Despiu o vestido longo, vestiu a calça jeans e o pulôver branco e sentou-se na cama, à espera do momento oportuno para descer novamente.

O quarto não era tão quente quanto a sala de estar e, após um momento, começou a tremer de frio. Passou-se algum tempo antes de Bolt subir a escada pela primeira vez, provavelmente à procura de Sheba. Depois ouviu vozes no quarto que ficava no fundo do corredor. Dominic, pelo jeito, não estava dormindo ainda.

Levantou-se da cama e começou a andar de um lado para o outro, tentando esquentar, mas estava tiritando de frio. Tirou os sapatos, deitou-se na cama e puxou a coberta até o queixo. Estava gostoso ali e podia sentir o calorzinho do lençol que fora previamente aquecido pelas garrafas quentes que Bolt punha normalmente na sua cama.

A neve dava ao quarto uma iluminação feérica e podia ouvir o vento assobiar nas abas do telhado. O quarto estava aconchegante e ela bocejou várias vezes, com as pálpebras pesadas. Fora um dia muito agitado e era melhor tirar uma soneca antes que Bolt terminasse as obrigações do dia e fosse finalmente para o quarto.

Fechou os olhos. Bolt era realmente uma simpatia, se bem que ela falara a maior parte do tempo durante o jantar. Agora ele sabia tudo a seu respeito... inclusive sobre a existência de Mike. Tornou a bocejar. Ah, que importância tinha? O namoro dos dois não era segredo para ninguém.

Seus olhos estavam pesados, mal podia mantê-los abertos durante alguns minutos. Com um suspiro, virou a cabeça no travesseiro e afundou finalmente no sono.

Foi somente quando o sol iluminou o quarto na manhã seguinte que ela tornou a abrir os olhos e compreendeu, boquiaberta, que já era dia claro.

 

Helen lavou-se rapidamente e trocou de roupa antes que Bolt aparecesse com a bandeja do café. Não queria dar a entender que dormira vestida. Ele podia ter uma idéia completamente errada — sobretudo depois da conversa na cozinha. Estava escovando os cabelos no espelho de três faces da penteadeira, vestida com a calça cor de areia e a blusa encarnada, de mangas compridas, quando Bolt bateu de leve. Ela foi abrir.

— Bom dia! Dormiu bem, depois de nossa conversa de ontem?

Helen procurou esconder o sentimento de culpa que sentia.

— Muito bem, obrigada. E você?

— Como uma pedra — disse Bolt, colocando a bandeja em cima da mesinha de cabeceira. — Eu fiz um mingau para você...

— Humm, que delícia!

Helen afastou-se alguns passos e olhou para a janela.

— Nevou de novo esta noite?

— Acho que sim. De qualquer maneira, o céu não está limpo como ontem. Sem contar que está mais frio também...

— Que pena!— disse Helen com um suspiro. — Posso levar a bandeja para a cozinha, quando terminar?

— Se você quiser

— Pode deixar que eu levo, então. — Sentou-se na cama ao lado da bandeja. — E seu patrão? Melhorou?

— Está melhor — disse Bolt com uma satisfação evidente. — A gente se vê daqui a pouco.

— Combinado.

Helen tomou o café com apetite, mas não tanto quanto no dia anterior, quando estava realmente faminta. Hoje se sentia ligeiramente contrariada pelo fato de ter dormido profundamente na noite anterior, sem dar o telefonema que desejava. Mesmo assim, comeu tudo e levou a bandeja vazia para a cozinha.

Sheba estava deitada no tapete do hall, defronte ao escritório de Dominic, e levantou a cabeça quando ela desceu a escada.

Helen estremeceu ao passar diante do animal e dirigiu-se rapidamente à cozinha. Bolt não estava lá. Sem hesitar um segundo, colocou os pratos dentro da pia e abriu a torneira. Ela não lavava louça desde o tempo em que estudava no colégio interno e achou uma novidade jogar o detergente na água morna e ver as bolhas que fazia.

Apanhou um pouquinho de espuma na mão e a soprou de leve, sorrindo ao ver as bolhas coloridas flutuarem no ar.

— Bom dia. Você está ocupada?

Helen procurou não reagir diante da inflexão irônica da voz que ela conhecia tão bem. Com uma expressão de indiferença, voltou-se e cumprimentou o dono da casa.

— Bom dia, Dominic. Não, não estou ocupada. Você deseja alguma coisa?

De blue jeans e camisa aberta no peito, ele tinha uma aparência jovem e atraente. A calça justa acentuava os músculos das pernas e ninguém diria que mancava fortemente. Entretanto, quando ele deu alguns passos vacilantes na sua direção, Helen não ficou chocada com o defeito. Pelo contrário, a maneira de ele andar fazia parte de sua personalidade.

— Vim pedir desculpa — disse Dominic em voz baixa.— Fui muito grosseiro com você, ontem.

Helen levou um susto. Esperava tudo, raiva, grosseria, impaciência, mas nunca a desculpa. Preferia no fundo que ele não tivesse pedido perdão. Era mais fácil odiá-lo quando a tratava mal.

— Não foi nada — disse sem jeito.

— Eu sei que foi. — Havia apenas alguns passos entre os dois e os olhos castanhos dele a fitavam com atenção. — Eu podia pôr a culpa na minha enxaqueca. Mesmo assim, não tinha o direito de dizer o que disse. Apesar de sua opinião sobre mim, não costumo ser tão mal-educado assim.

Helen retirou as mãos da pia e enxugou-as vigorosamente na toalha de papel que estava pendurada na parede. A proximidade de Dominic mexia com seus nervos e ele percebia isso.

— Eu já esqueci. E sua enxaqueca, melhorou?

— Estou quase bom. — Estava apoiado na pia e os olhos dela estavam fixos em alguma parte entre a gola aberta da camisa e o cinto de couro em cima dos quadris.

— Ainda bem.

— Você não precisa lavar a louça.

— Eu sei. Mas eu me ofereci para lavar. — Obrigou-se a encará-lo nos olhos. — Você sabe onde Bolt foi?

— Humm.Porquê?

— Pensei que podíamos dar uma volta lá fora. Acho que vai nevar de novo.

— Você sabe fazer café?

— Posso tentar.

— Ótimo. Vamos tomar um café, então.

— Nós dois? — perguntou Helen, sem jeito.

— É, nós dois. — Dominic foi.mancando até a porta. — Ficarei no escritório. Podemos tomar lá.

Fechou a porta atrás de si e Helen ficou parada, como uma boba, olhando para o ponto onde ele estivera no momento anterior. Ela não sabia se devia sentir-se envaidecida ou indignada com o convite. Não estava habituada a receber ordens de ninguém, mas isso fazia parte da natureza feminina, pensou. Mas logo no escritório! Dominic queria que ela fosse até lá. E o telefonema que devia dar? Como ficava?

Voltou-se, sem saber o que fazer. Lembrava-se de que Bolt guardava o pó de café no armarinho. E usar o coador não tinha nenhum segredo para ela.

No íntimo, sentiu um prazer infantil em arrumar a bandeja com as duas xícaras pequenas de porcelana esmaltada a fogo. Descobriu, inclusive, o pequeno aquecedor elétrico que mantinha o bule em temperatura constante. Imaginava que Bolt iria aparecer de um momento para outro e perguntar o que estava fazendo, mas não havia sinal dele. Depois que tudo estava pronto, abriu a porta da cozinha com o ombro e levou a bandeja ao escritório.

Sheba tinha desaparecido novamente, mas Helen logo descobriu onde estava quando entrou no escritório e viu-a deitada ao lado de Dominic. Ao ouvir sua ordem, o animal saiu e voltou a deitar-se no tapete do hall.

Helen colocou a bandeja em cima da mesa, no espaço que ele tinha aberto entre os papéis. Seu olhar dirigiu-se instintivamente para a janela no canto da sala. Não havia sinal do telefone creme e ela sentiu um aperto no coração. "Mais essa!", pensou frustrada. Dominic desconfiara de alguma coisa e levara o telefone embora? Só depois de alguns instantes notou que a cortina vermelha de veludo encobria parcialmente a janela. O telefone podia estar atrás. Alguém o escondera ali. Propositalmente? Era impossível saber.

Dominic apontou para a cadeira que estava diante da sua, no outro lado da mesa, e foi sentar-se no seu lugar. Helen apressou-se dessa vez em servir o café.

— Muito obrigado — disse Dominic, segurando a xícara estendida. — Estava precisando mesmo tomar um gole de café...

Helen fez um esforço para comentar com naturalidade.

— Bolt me contou que você está escrevendo um livro.

— Ah, sim?

— Mas não quis entrar em detalhes...

— E você não insistiu em saber?

— Insisti. Estou interessada.

Dominic inclinou a cabeça.

— Por quê? Posso saber?

— Bem, afinal, escrever um livro representa um enorme desafio.

Dominic refletiu alguns segundos antes de responder.

— Depende do gênero de livro. Alguns são mais difíceis de escrever que outros.

— Você quer dizer que um ensaio é mais difícil que um romance?

— Não necessariamente. Se alguém está escrevendo um depoimento, tudo depende da maneira como o autor apresenta os fatos. A ficção exige um cuidado especial, sem idéias preconcebidas.

— Não tinha pensado nisso — disse Helen bebendo um gole do café, que lhe pareceu tão gostoso quanto o que Bolt fazia. — Você está escrevendo um romance ou um ensaio?

— Eu? — Dominic encarou-a no fundo dos olhos. — Um depoimento.

— Sobre carros de corrida?

— É, isso mesmo.

— Esse é o primeiro?

— Não, o segundo.

— Sobre o quê era o outro?

— Tenho certeza de que você não está interessada no assunto — disse Dominic com um sorriso de condescendência. — Você está querendo apenas ser gentil.

— Claro que estou — exclamou Helen com vivacidade. — Sinceramente.

Dominic hesitou e empurrou a xícara por cima da mesa em direção à bandeja.

— Eu escrevi a biografia do meu pai.

— Ele era oficial da Marinha?

— Como você sabe? — perguntou Dominic com uma certa impaciência. — Vai me dizer que Bolt contou isso também?

— Ele comentou apenas de passagem. Contou que tinha estado na Marinha e que seu pai era comandante. Você não tem razão para se irritar com ele.

— O que mais ele contou?

— Mais nada. Fale-me de seu pai. Estou interessada em saber quem ele era. Ou ele ainda está vivo?

— Não, ele já morreu. Morreu há seis anos.

— Na mesma época do acidente — comentou Helen sem pensar.

— Sim, na mesma época. Sobrou café?

— O bule está pela metade. — Helen ficou contente de ter alguma coisa para fazer. Falara impulsivamente e partira sem querer o fio tênue da comunicação que se estabelecera entre os dois. — Aqui está sua xícara... — Fez uma pausa, com a expressão interrogativa. — O que você estava falando a respeito de seu pai?

Dominic guardou silêncio durante alguns segundos e ela pensou que não fosse responder a sua pergunta.

— Meu pai comandou uma força de assalto no Extremo Oriente na Segunda Guerra Mundial. Recebeu uma condecoração por ter investido contra um posto avançado japonês, com inferioridade numérica de soldados.

— Que fantástico! Você deve ter muito orgulho dele.

— Minha mãe tinha. Eu não sou tão velho assim e Francis era apenas um bebê, na época.

— Ah, desculpe... Falei sem pensar.

"Francis era o irmão que morrera no acidente fatal?", pensou Helen, morrendo de vontade de fazer a pergunta em voz alta. Mas, se traísse o conhecimento que tinha da identidade de Francis, Dominic pensaria que Bolt comentara o assunto com ela quando, na realidade, ele fora muito reticente sobre o acidente.

Dominic terminou a segunda xícara de café e colocou-a de lado, puxando uma pilha de papéis na sua direção. Isso significava que a conversa tinha terminado e Helen sentiu-se ligeiramente frustrada. Levantou-se, porém, e apanhou as xícaras em cima da mesa.

— Bolt vai voltar logo — disse Dominic. — Você pode deixar a bandeja aí.

— Não custa nada...

Helen apanhou a bandeja e rumou para a porta. Dominic moveu-se com surpreendente agilidade e abriu-a antes dela, com a respiração ofegante pelo esforço repentino. Helen avistou a veia que pulsava no pescoço moreno, em cima do botão aberto da camisa. Os olhos abaixaram instintivamente para a mão que fazia massagem na perna dolorida. Durante um segundo, houve entre os dois uma consciência quase palpável da proximidade do outro e se Dominic tivesse dado um passo à frente, a reação dela seria imediata. Foi uma experiência inebriante e o olhar que ela lhe dirigiu revelava claramente a emoção que experimentava.

A fisionomia dele, no entanto, a esfriou. Era amarga, com uma rejeição selvagem da emoção que sua presença despertara nele. Dominic abriu a porta com um movimento brusco e permaneceu em silêncio, esperando ela passar.

Na cozinha, Helen deu vazão a suas emoções. Durante alguns instantes, comportou-se de maneira inteiramente impensada e ficou assustada com isso. O que acontecia com ela? Fazia três dias apenas que conhecia Dominic e já estava completamente tonta, a ponto de imaginar um contato físico entre os dois que nunca tinha existido, a não ser na sua imaginação... Ela levou as duas mãos ao rosto, que estava pegando fogo. Precisava sair urgentemente dali. Precisava fugir daquela casa antes que acontecesse o inevitável! Fechou os olhos e deu graças a Deus por Dominic não ter reagido à sua estúpida provocação. Estava absorta nesses pensamentos quando ouviu a voz de Bolt ao seu lado.

— Ei, o que aconteceu, menina? Você está chorando?

Helen arregalou os olhos.

— Chorando, eu? — exclamou, balançando a cabeça para afastar a sensação esquisita de tontura. — Onde você foi?

— Fui levar algumas cartas ao correio.

— Ao correio? Ah, por que você não me levou junto?

— Não sabia se você queria ir. — Bolt avistou a bandeja de café.

— Ué, você fez café?

— Fiz. Tive uma conversa com seu patrão no escritório. E mencionei sem querer a história que você me contou sobre o pai dele...

— Ah, sim? E daí?

— Ele achou, naturalmente, que nós dois estávamos comentando sua vida particular. — Helen deu um suspiro. — Ah, deixa pra lá. O que você vai fazer agora?

— Vou preparar o almoço.

Helen enfiou a mão no bolso da calça.

— E eu? O que eu vou fazer?

— O que você gostaria de fazer?

— Você está me gozando!

— Não, juro que não.

— Ah, não sei... — Ela arrastou a ponta do pé nos azulejos da cozinha. — Vocês nunca recebem visitas aqui?

— Às vezes.

— Quem?

— Amigos da casa.

— Homens ou mulheres?

— Ambos os sexos — disse Bolt com um risinho.

Helen se surpreendeu. Pensava que os dois não recebiam ninguém. Dominic devia ter amigos, naturalmente — parentes e conhecidos — que sabiam de seu paradeiro. Gostaria de fazer algumas perguntas sobre as mulheres que vinham visitá-lo, mas tinha receio que Bolt não se abrisse sobre esse assunto.

De qualquer maneira, a visão de Dominic rodeado de mulheres não foi especialmente agradável.

— Vou para o quarto — disse de repente.

— Escute aqui, você não precisa ficar o dia inteiro trancada como se fosse uma prisioneira! — exclamou Bolt, lavando as mãos embaixo da torneira.

Helen limitou-se a balançar a cabeça e saiu da cozinha. Ao entrar no quarto, deitou-se ao comprido na cama desarrumada e olhou de mau humor para o teto. Sentiu de repente uma grande depressão. Tudo a incomodava — a casa, as circunstâncias atuais e, acima de tudo, a proximidade constante de Dominic. O que havia nele que a perturbava tanto? Não era bonito, não tinha nem mesmo uma aparência atraente, embora algumas mulheres pudessem achar que os traços angulosos e os olhos fundos compensavam o resto. A atitude dele, porém, era imperdoável, sem contar que sabia ser cruel e insolente quando queria. Nesse caso, por que pensava o tempo todo nele, obsessivamente? Por que não pensava no pai, no efeito que seu desaparecimento podia causar? Isso não era natural, não era normal. Era justo que estivesse tão deprimida.

Procurou pensar deliberadamente em Mike, o bom partido com quem o pai queria casá-la. Jovem, rico, bonito — era a inveja das amigas. Mesmo assim, deixava-a fria, indiferente... Puxou distraidamente um cacho de cabelos, lembrando-se da repulsa que sentira quando Mike a beijara pela primeira vez. Os lábios dele eram grossos e úmidos, e Helen aguardara com impaciência que o beijo terminasse. Depois desse dia, Mike a beijara muitas outras vezes e ela acabara se habituando à idéia, mas nunca sentira nenhum prazer especial.

O que havia de errado na sua atitude?, pensou angustiada. Por que não sentia atração por Mike? Por que seu corpo se tornava rígido toda vez que a abraçava? Por que a idéia do casamento lhe era tão revoltante?

Pensara a princípio que o defeito era dela, que faltava algo em sua natureza, mas agora estava na dúvida. Ao se lembrar da maneira como reagira à proximidade de Dominic, sentiu uma onda de calor inundar seu corpo, e sabia que não recuaria diante de nada para satisfazer seu desejo. A verdade é que estava completamente indefesa diante do comportamento estranho do seu próprio corpo. Não controlava mais as emoções. Era isso que as pessoas queriam dizer quando se referiam a atração física? Era isso que havia de errado consigo? Estava apaixonada por aquele homem frio e arrogante? Impossível! Mas que outra explicação havia?

Sentou-se na cama com as pernas cruzadas. Não podia continuar desse jeito. Tinha que fazer alguma coisa para se curar. Passava o tempo todo pensando, imaginando coisas...

Levantou-se bruscamente e foi ao banheiro. Sentia-se esfogueada, inconfortável e resolveu tomar um banho pelando para relaxar a tensão. Isso a ocuparia durante algum tempo, até a noite, quando estava decidida a usar o telefone.

Dominic almoçou sozinho no escritório e Helen fez companhia a Bolt na cozinha. Depois de ajudá-lo a lavar a louça, Bolt sugeriu que fossem dar uma volta para conhecer os arredores e Helen notou que ele estava querendo desculpar-se por não tê-la levado ao correio pela manhã. Mesmo assim, estava curiosa em saber a que distância da casa ficava a agência do correio. Se Bolt podia ir e voltar em pouco mais de uma hora, não podia ser muito longe...

Ao saírem, Helen viu as marcas dos pneus em cima da neve. Iam na direção do caminho que seguira quando se aproximara da casa no primeiro dia com Dominic, e ela concluiu que deviam ter algum veículo em casa.

— Que carro vocês têm? — perguntou, olhando para as marcas deixadas no chão, enquanto Bolt limpava os estábulos. Se tinham carro, poderia usá-lo para fugir dali. Sheba não a atacaria se estivesse protegida no interior do automóvel.

Bolt apoiou-se na pá e voltou a cabeça na sua direção.

— Um jipe.

— Eu não o vi quando cheguei.

— Ele está guardado na garagem — explicou Bolt voltando a seu trabalho. — Você já dirigiu um jipe com tração nas quatro rodas?

— Não, nunca! Como é?

— Não é muito fácil, sobretudo se você não está habituada — disse Bolt apanhando um monte de lixo com a pá e depositando-o num balde.

Helen mudou de conversa. Tinha a impressão de que Bolt estava tentando sugerir alguma coisa que não gostaria de ouvir.

Mais tarde, os dois deram um passeio a pé pelo morro atrás da casa. Estava mais frio do que no dia anterior, como Bolt havia dito, mas o exercício fez o sangue circular mais rapidamente pelo corpo e Helen voltou para casa, sentindo-se alegre e bem disposta, fosse por causa do passeio na neve ou por causa do conhecimento de que havia um jipe na garagem.

Vestiu uma saia longa para o jantar. Era um dos seus vestidos prediletos, de veludo verde-azulado, com um decote fundo que mostrava a pureza de sua pele clara, e tinha mangas compridas que batiam em cima dos punhos. Prendeu os cabelos no alto da cabeça com um grampo e deixou dois cachos caírem em cima das orelhas. Habitualmente, usava pouca maquilagem e, naquela noite, acentuou apenas a cor dos olhos com sombra verde e passou batom acastanhado nos lábios.

Dominic estava na sala de visitas quando ela entrou. Seus olhos percorreram-na rapidamente de alto a baixo, sem demonstrar, porém, nenhuma surpresa, como ela imaginava. Não se levantou tampouco da cadeira e ela ficou um instante parada perto da porta, observando o guepardo, que estava deitado defronte da lareira.

— Sente-se — disse Dominic, expulsando o animal com a ponta da bota. — Desculpe não me levantar, mas não quero fazer nenhum esforço extra esta noite.

Helen aproximou-se lentamente da cadeira. Arrependeu-se de ter cuidado à toa de sua aparência. Estava vestida demais para a ocasião, ao contrário do dono da casa, que usava uma roupa esporte bem à vontade.

Depois de ajeitar-se na cadeira, Dominic serviu-lhe uma dose de uísque e acrescentou dois dedos de soda. Helen aceitou a bebida para não ser indelicada, porque não era muito apreciadora de uísque.

— Então? — perguntou Dominic, fitando-a com os olhos castanhos insolentes. — Você fez este penteado em minha honra?

Helen não aceitou a ironia.

— Eu estou acostumada a me vestir para o jantar — disse com frieza. — Papai sempre diz que isso levanta o moral.

— Ah, é? E como está seu moral essa noite?

Helen foi apanhada de surpresa pela pergunta.

— Por que você pergunta?

— Porque estou curioso para saber se você está aproveitando a estadia aqui.

— Você está farto de saber a resposta!

— Absolutamente. Bolt me contou que você passeou, andou de trenó e fez exercício ao ar livre. Não foi com essa intenção que você viajou para o norte?

— Eu viajei para me ver livre da família! — exclamou Helen com impaciência. — E não para trocar uma prisão por outra!

— Você está se sentindo muito presa aqui?

De repente a ironia desapareceu da voz dele e Helen sentiu de novo uma fraqueza enorme nas pernas. Encarou-o fixamente, procurando ler a expressão dos olhos castanhos por baixo dos cílios compridos. A boca tinha uma curva sensual, e a raiva que sentia por ele transformou-se de repente num desejo violento, como nunca experimentara antes na vida. Seu sangue corria à toda nas veias, sua respiração tornou-se mais curta e acelerada. Desejava correr para ele, atirar os braços em volta do pescoço e dizer-lhe que, se quisesse, nunca mais o deixaria, mas tudo isso era uma loucura! Os lábios dela se entreabriram e, antes que pudesse dizer alguma coisa, Dominic levantou-se bruscamente da cadeira, fazendo uma careta de dor enquanto arrastava a perna dolorida.

Atravessou a sala mancando e a dor que sentia transmitiu-se a ela com uma presença quase física. No impulso do momento, Helen levantou-se e aproximou-se dele. Dominic estava de pé, de costas para ela, apoiado na escrivaninha no canto da sala. A atitude dele era tão deprimente que Helen permaneceu parada atrás dele, sem saber o que fazer.

— Está doendo muito? — perguntou por fim, com a voz aflita.

— Não é nada — murmurou com os dentes cerrados, sem se voltar.

Ela torceu as mãos com nervosismo.

— Você não precisa de alguma coisa? Quer que eu chame Bolt?

Ele se voltou finalmente e apoiou-se de costas para a escrivaninha. O rosto magro refletia o desprezo por si mesmo que ela esperava encontrar.

— Muito obrigado por sua atenção. Especialmente depois do que se passou entre nós. Mas, infelizmente, você não pode fazer nada. Muito obrigado, mesmo assim.

Helen pensou insistir, mas notou que ele se afastava voluntariamente dela. A entrada de Bolt naquele instante, com os pratos do jantar, interrompeu bruscamente o possível diálogo.

Bolt ficou surpreso com a proximidade dos dois, mas limitou-se a colocar a bandeja em cima da mesinha perto da lareira sem fazer nenhum comentário. Dominic voltou mancando para sua cadeira e Helen sentou-se no lugar de sempre.

— Venha jantar conosco, Bolt — disse Dominic estendendo a perna. — Tenho certeza de que nossa convidada acha sua companhia mais divertida que a minha.

Bolt hesitou no primeiro instante, mas acabou aceitando o convite com um sorriso nos lábios.

— Muito obrigado.

— Ótimo. Vamos ter um jantar íntimo para três.

Dominic ajeitou-se na cadeira e colocou a perna dolorida em cima da grade de metal da lareira. Helen não entendia como aquele gesto tão simples podia fasciná-la tanto, e quando Dominic surpreendeu seu olhar enbevecido apressou-se em desviar a cabeça.

O jantar, afinal, não era tão íntimo assim, pensou Helen colocando o guardanapo em cima do colo. Provavelmente, Dominic convidara Bolt a fim de evitar uma repetição da cena anterior e ela se sentiu humilhada ao reconhecer que seu comportamento absurdo causava embaraço no dono da casa. Era ela que o provocava, no fundo!

Sentiu-se enjoada e deprimida com essa idéia. Bastava Dominic olhar de uma certa maneira para ela esquecer completamente a inimizade que havia entre os dois! Ele fazia isso de propósito? Ou era uma atração involuntária? A menos que ele se divertisse com sua ingenuidade...

Helen estava sem apetite e comeu apenas uma perna do frango assado e duas batatas coradas. Felizmente os dois homens conversaram com animação e não perceberam seu ar tristonho.

— Acho que vou trabalhar até tarde — disse Dominic depois do jantar, acendendo uma cigarrilha na chama da lareira. — Descansei bastante hoje à tarde enquanto vocês dois passeavam lá fora. Estou com disposição para passar a noite em claro...

Bolt balançou a cabeça reprovadoramente.

— Não é bom exagerar...

— Não tem perigo. — Dominic espreguiçou-se indolentemente, sem perceber a expressão frustrada de Helen.— Preciso terminar meu livro antes de mudar daqui.

 

Helen acordou na manhã seguinte com dor de cabeça, a garganta ardendo e o nariz escorrendo. Quando Bolt apareceu com o café, insistiu em tomar sua temperatura e recomendou que não saísse da cama, depois de constatar que estava com febre.

— Você pode apanhar uma pneumonia — disse, quando Helen protestou que não queria passar o dia todo trancada no quarto. — Essa gripe está vindo há alguns dias, desde a tarde em que você chegou aqui com a roupa ensopada. Fique na cama que eu vou buscar umas garrafas de água quente. Você não pode se levantar com febre.

Helen concordou, finalmente. Estava fraca, sem ânimo para nada e tinha um bom pretexto para obedecer às recomendações de Bolt. Não queria pensar qual seria a reação de Domínic quando soubesse que estava de cama. Mas, como passou a maior parte do dia dormindo, não teve muito tempo livre para se preocupar com esses pensamentos.

Na manhã seguinte, estava muito melhor, mas não completamente boa para se levantar da cama. Bolt levou as refeições no quarto e ouviu seus agradecimentos com o sorriso cordial de sempre. Levou também alguns livros para ela ler, os romances que estavam na estante da sala. Helen passou o dia inteiro lendo e cochilando. Uma ou duas vezes, ao ouvir passos na escada, prestou atenção, com o corpo tenso, imaginando que Dominic vinha lhe fazer uma visita, mas era apenas Bolt que vinha saber se ela precisava de alguma coisa.

Na manhã do terceiro dia estava praticamente curada. Vestiu o robe de seda e foi abrir a porta quando Bolt chegou com a bandeja do café.

— Estou boa! — exclamou, fitando-o com os olhos brilhantes. — Não sei como agradecer todo o trabalho que você teve comigo, os comprimidos que me deu, o xarope para a tosse, as garrafas de água quente, as comidinhas que você fez. Não sei o que seria de mim sem você.

— Foi um prazer — disse Bolt com um sorriso de satisfação. — Embora você esteja boa, sugiro que passe a manhã no quarto. Vamos ver como vai estar hoje à tarde. Não se precipite.

— Está bom, Bolt, está bom! — disse Helen obedientemente. — O que você preparou para o café? Ah, meu Deus, champignons com bacon! Eu vou engordar como uma baleia...

Depois que Bolt saiu do quarto, Helen foi espiar a paisagem da janela. A manhã estava muito bonita, se bem que ligeiramente encoberta, mas não nevava mais desde o dia em que adoecera com a gripe. Deu a volta no quarto e foi ao banheiro lavar o rosto e escovar os dentes. Estava cansada de ficar trancada, desejava sair e dar uma volta pela casa. Podia sentar na sala de estar e ficar deitada no sofá, olhando para a lareira, ou conversar com Bolt na cozinha. Dominic, pelo visto, não se importava a mínima com sua saúde, e não se dignara fazer uma visita para saber como estava passando.

Vestiu a calça jeans e a blusa cor de areia, apanhou a bandeja em cima da mesinha de cabeceira e desceu a escada em direção à cozinha. Bolt não estava lá. Deixou a bandeja na pia e olhou em volta. Era engraçado, mas a casa tinha um ar de família, sensação que nunca experimentara na casa onde morava com o pai e Isabel.

Depois de prender os cabelos atrás das orelhas, olhou pela janela da cozinha para ver se Bolt estava por perto. Ele fora fazer compras de novo, ou estava cuidando dos animais no estábulo.

A porta da despensa estava aberta e um ruído vindo lá de dentro levou-a a se voltar surpresa.

— Bolt! É você que está aí?

Aproximou-se da porta aberta e olhou para o interior. Havia uma outra porta menor no canto da peça, que estava igualmente escancarada. Intrigada com aquilo, Helen atravessou lentamente a segunda porta e viu um lance de escada que levava ao porão.

Um arrepio de excitação percorreu-lhe a espinha. Era como no romance policial que lera no dia anterior. Uma porta secreta... uma escada misteriosa... e além dela...

Ela desceu a escada pé ante pé. Tinha certeza agora de que Bolt estava lá embaixo. A escada levava provavelmente ao porão. Era ali que Bolt estocava os mantimentos.

Ao chegar embaixo, concluiu que estava certa. Foi dar de fato numa despensa iluminada por uma única lâmpada pendurada no teto. Bolt, porém, não estava lá. Ao olhar em volta, descobriu uma terceira porta ligeiramente entreaberta.

Com a sensação esquisita de fazer algo proibido, caminhou cautelosamente até a porta e abriu-a silenciosamente, prendendo a respiração quando viu o que havia do outro lado. Aquela não era uma despensa comum. Era um ginásio magnificamente equipado! Tinha barras, argolas suspensas no teto, tensores, halteres de diversos tamanhos, um punch-ball, além de muitos aparelhos de exercício. Helen caminhou até o meio do quarto, admirada com tudo que via e concluiu que aquele era o local onde Dominic fazia ginástica. Era por isso que tinha o corpo enxuto e musculoso, apesar de sua inatividade forçada.

No fundo do ginásio, uma outra porta pequena dava para um quartinho, revestido de compensado e com um chuveiro ao lado. Estava muito quente ali e Helen começou a transpirar profusamente. O calor vinha da outra porta que havia à esquerda. Girou a maçaneta de leve, sem fazer ruído, e espiou para dentro. Um sentimento de excitação assaltou-a. O quartinho era uma sauna, iluminado apenas por uma lâmpada laranja, e estava terrivelmente quente lá dentro. Um homem estava deitado de bruços sobre uma prancha revestida de courvin e, antes mesmo que o tivesse identificado, ela ouviu a voz sonora que conhecia tão bem.

— Pelo amor de Deus, Bolt, ande depressa! Tenho trabalho me esperando...

Helen prendeu a respiração. Dominic ouvira a porta abrir e pensou que era Bolt que estava de volta. Se ele se voltasse e a visse ali...

O rosto dela estava pegando fogo. Nunca tinha visto um homem completamente nu antes.

Enquanto hesitava entre fechar a porta e voltar para o outro quarto, viu Dominic apontar para um local nas costas.

— E aqui que está doendo.

Helen sentiu uma contração nervosa na boca do estômago. Se não fizesse algo imediatamente, Dominic se voltaria e a avistaria ali, parada e boquiaberta como uma idiota. Tinha que dar o fora enquanto era tempo, em vez de correr o risco de ser descoberta. Entretanto, algo mais forte que a vontade de ir embora fez com que permanecesse paralisada no lugar. Sabia que estava se comportando como uma perfeita idiota, que corria o perigo de ser humilhada novamente. Fechou no entanto a porta atrás de si e deu um passo em frente. Ela adivinhara corretamente. Bolt era massagista e talvez pudesse fazer uma massagem nas costas de Dominic sem ele perceber a diferença.

Suas mãos estavam trêmulas quando as colocou nas costas dele e começou a amassar os músculos que suportam a espinha. Houve um momento em que Dominic contraiu o corpo e Helen pensou que ele ia virar-se e avistá-la. No instante seguinte, porém, ele tornou a relaxar a musculatura e sua confiança lhe deu maior liberdade de movimento. Ela massageou a carne com firmeza, estimulando a circulação e afrouxando os músculos tensos. O calor da sauna era sufocante e começou a transpirar em bicas, sobretudo porque estava vestida. Estava ofegante, com os braços doendo, prestes a ceder ao cansaço, quando Dominic virou de lado e puxou a toalha em volta da cintura.

Helen encarou-o boquiaberta, mas a fisionomia dele não expressava a menor surpresa.

— Muito obrigado pela massagem — disse, sem o menor embaraço.

Helen estava vermelha e molhada de suor. Dominic era realmente irresistível quando estava de bom humor e ela sentira um prazer enorme em apalpar seus músculos.

— Como você sabia que era eu?

Dominic sorriu, com o sorriso indolente que ela conhecia tão bem.

— Bolt tem a mão pesada. Por que você fez isso?

Helen olhou para as mãos úmidas com um gesto involuntário.

— Porque estava com vontade.

Ele sentou-se na prancha com um movimento ágil.

— Você faz tudo que tem vontade? Mesmo algo provocante?

— Isso é provocante?

Felizmente a luz amarela da sauna encobria a expressão do rosto.

— Você sabe que é.

Gotinhas de suor rolavam pelo peito e pelos braços musculosos.

Os cabelos estavam mais escuros na atmosfera úmida do quarto. Helen não se moveu de onde estava. O rosto dele estava na mesma altura do seu e não havia nenhuma ironia nos olhos castanhos que a fitavam em silêncio. Pelo contrário, tinham uma maciez sensual inquietante, e ela sentiu um nó na garganta.

Dominic estendeu a mão e segurou-a pelo pescoço, por baixo dos cabelos soltos, enquanto acariciava o queixo com o polegar. Ela não se moveu, mesmo assim. Estava literalmente imobilizada naquele lugar.

— Ah, você! — murmurou Dominic com a voz rouca, puxando-a para perto de si, com a boca roçando de leve a face corada, os lábios vermelhos ligeiramente entreabertos.

Ela estava agachada junto dele, com os joelhos trêmulos, aguardando com ansiedade a sensação de náusea que ocorria normalmente quando era beijada por um homem. Mas não sentiu nada. Pelo contrário, aproximou ainda mais o rosto do dele, procurou sua boca e, quando seus lábios se encontraram finalmente, todas as idéias que tinha antes sobre o beijo se desfizeram diante da emoção que experimentou nos braços dele. A boca que entreabriu a sua não era mole e úmida como a de Mike. Era firme e possessiva, e a pressão da mão sobre a nuca cresceu até que ela caiu em cima da prancha e foi estreitada com força pelos braços suados. Dominic estendeu as pernas no chão e apertou-a contra si, enquanto a cobria de beijos.

— Ah, meu Deus! — balbuciou Dominic, abaixando a cabeça em direção à cavidade perfumada entre os seios, visível por baixo da gola aberta da blusa. — Isso é uma loucura!

Helen mal ouviu suas palavras. Abraçava-o sofregamente e apertava os cabelos que caíam sobre a nuca. Não pensava coisa com coisa. Somente Dominic e ela existiam naquele momento e era imperativo que ele continuasse a beijá-la de seu jeito ansioso e apaixonado, o que a fazia totalmente consciente da masculinidade palpitante dele.

As mãos dele afrouxaram finalmente e, com um esforço supremo, afastou-a de si. Levantou-se e passou a toalha em volta da cintura. Correu os dedos por entre os cabelos revoltos e recuou alguns passos, apoiando-se na perna dolorida.

Helen observou-o sem se mover.

— Dominic! — murmurou por fim. — O que foi?

Ele lançou um olhar de impaciência por cima dos ombros.

— Não é possível que você seja tão ingênua assim! Você sabe que isso está errado. Você não tem idéia do que se passa comigo?

— Eu sei o que se passa comigo — disse ela, com os lábios secos.

Dominic voltou-se com impaciência.

— Você não devia ter vindo aqui! Eu não devia ter deixado... Interrompeu o que ia dizer. — Olhe, é melhor você subir...

Helen contemplou-o perplexa, sem saber o que pensar. Não podia aceitar sua despedida sumária. Estava ardendo de emoção, cujo significado entendia vagamente, mas tinha certeza de que Dominic era o causador desse fogo que a consumia.

— Dominic — suplicou de novo. — Não fique com raiva de mim!

— Com raiva? Com raiva? Santo Deus, o que você espera de mim? — Fez um gesto brusco com a perna e um espasmo de dor atravessou seu rosto. — Helen, por favor, vá embora daqui! Agora! Antes que eu mude de idéia.

Helen não se moveu de onde estava. Nesse momento, a porta abriu e Bolt os surpreendeu juntos, como acontecera há três dias atrás. Dessa vez, porém, sua reação foi mais espontânea.

— Veja, você está ensopada de suor! — exclamou, ao se aproximar de Helen e pôr a mão na testa. — Você está pegando fogo! O que andou fazendo, criatura? Você quer ficar doente de novo?

Helen afastou com relutância o olhar de Dominic.

— Estou bem, Bolt. Não houve nada. Estou suando porque aqui dentro está um forno.

Bolt estalou a língua com impaciência.

— Acho bom você tomar um banho quente no chuveiro e trocar essa roupa molhada!

— Não é preciso!

— Como não é preciso? Você está ensopada e febril. Vá tomar um banho quente e trocar de roupa, como estou dizendo! — Colocou o vidro de óleo no chão e voltou-se para Dominic. — Volto num minuto!

Dominic assentiu com a cabeça e se afastou alguns passos. Bolt puxou Helen pelo braço e levou-a em direção ao quartinho para trocar de roupa.

— Ali é o chuveiro — disse, fechando a porta. — Onde estão suas roupas?

— No armário. Na gaveta estão as roupas de baixo. A calça comprida e o pulôver estão pendurados nos cabides.

— Bom — disse Bolt satisfeito. — Eu volto num minuto.

Era uma delícia tomar um banho de chuveiro pelando com o corpo suado e Helen demorou-se um instante embaixo do jato forte de água quente enquanto pensava nos acontecimentos recentes. Reviveu os últimos minutos em detalhe, sentindo um prazer muito especial ao lembrar os beijos trocados, a firmeza sensual do corpo enxuto e musculoso dele. Fechou os olhos e sentiu de novo o desejo violento que Dominic despertava nela. Nenhum homem até então provocara algo semelhante, deixando-a com uma fome que somente o abandono completo podia saciar.

O rosto estava em brasa. No fundo, admitia tranqüilamente o desejo de fazer amor com o homem que a mantinha presa naquela casa! Devia estar louca! Doida varrida, como Dominic dera a entender minutos antes.

Voltou pouco a pouco à sobriedade. O banheirinho estava começando a esfriar e ela também. Cometera o mesmo erro de novo. Permitira que Dominic a surpreendesse com a guarda abaixada. Ou isso era normal? Não era ela a culpada, no fundo? Não o provocara primeiro?

Alguém bateu na porta.

— Quem é? — perguntou, tiritando de frio.

— Sou eu, Bolt. Suas roupas estão aqui.

— Muito obrigada. Vou sair num minuto...

Depois de trocar de roupa, Helen sentiu-se outra. Como não queria dar mais trabalho a Bolt, pensou em lavar as roupas no tanque. Quando chegou ao andar térreo, no entanto, ocorreu-lhe um pensamento repentino: se Dominic estava na sauna e Bolt fazia massagem na perna dolorida, o escritório estava vazio.

Com o coração batendo, deixou as roupas empilhadas num canto da cozinha e correu em direção ao hall. Felizmente não havia sinal de Sheba por perto; mesmo assim, abriu a porta com todo cuidado. O escritório estava vazio, como esperava; depois de empurrar a porta atrás de si, correu até a última janela onde tinha visto o telefone alguns dias antes. Puxou a cortina para o lado. O telefone estava ali, como supunha, e seus dedos tremiam quando segurou o fone na mão. Para quem iria telefonar? Para o pai, em Londres, ou para a polícia local? Não, a polícia não, decidiu rapidamente. Não queria envolver a polícia nesse caso.

Levou o fone ao ouvido e, com a testa franzida de perplexidade, viu o que não tinha notado até então: o fio do telefone estava solto na parede. Estava balançando na sua mão. Fora desligado por alguém.

Largou o fone no gancho como se ele queimasse sua mão e deu um passo atrás, perplexa. Sentiu uma enorme sensação de culpa, fora de proporção com o que tinha feito. Afinal, Dominic não lhe proibira usar o telefone. Fora ela que o descobrira no canto da sala e imaginara que estava funcionando. Isso provava apenas que Dominic não mentira quando afirmara que não havia telefone na casa.

Desanimada, com os ombros caídos, puxou a cortina e escondeu o telefone da vista. Estava contente com o fato de ninguém ter presenciado sua tentativa inútil. Subiu lentamente a escada em direção ao quarto. Não podia mais contar com o telefone. Aquele caminho de fuga estava fora de cogitação. A única esperança agora era o jipe, que estava guardado na garagem.

Não teve ânimo para descer ao salão antes do almoço. Deu a si mesma a desculpa de que estava deprimida, mas a verdade é que não queria encontrar-se novamente com Dominic. Ainda não... Quando desceu finalmente para o almoço, encontrou Bolt ocupado na cozinha, preparando a mesa para os dois. Ele pareceu muito contente ao vê-la.

— Ah, você está aí! Estava começando a pensar que ia almoçar sozinho. Você dormiu um pouco?

— Não, estava descansando.

— Fez bem.

Enquanto Bolt terminava o almoço, Helen sentou-se no banquinho, com as mãos irrequietas em cima da mesa.

— Dominic não vem? — perguntou por fim.

— Ele vai comer um sanduíche no escritório — disse Bolt, escorrendo os legumes.

— Ah! — exclamou Helen, visivelmente contrariada com a notícia.

— Escute, você quer um conselho de amigo? — perguntou Bolt, voltando-se para ela. — Não se envolva enquanto estiver aqui. É para seu bem.

Helen concentrou o olhar na tábua gasta da mesa.

— Por que você diz isso?

— Você sabe muito bem por que. Eu não tenho nada com isso, e você pode me mandar pastar, mas eu não sou cego, filha. Posso adivinhar o que aconteceu hoje de manhã lá na sauna.

— Por quê? Isso já aconteceu alguma vez antes?

Bolt lançou-lhe um olhar de impaciência.

— Não, nunca. Mas eu conheço Dominic muito bem e espero que você tenha o bom senso de...

— Não foi culpa dele! — exclamou Helen vermelha. — Se é isso que você está querendo dizer...

Bolt sacudiu a cabeça incredulamente.

— Não é isso. Apenas não gostaria que você sofresse à toa.

— Por que haveria de sofrer?

— Porque você vai acabar se envolvendo.

— E que mal tem isso?

Bolt deu um suspiro e sentou-se na cadeira do outro lado da mesa.

— Olhe, vou lhe contar uma coisa que pouca gente sabe. Dominic se julga culpado pelo acidente... o desastre em que o irmão morreu.

— Por quê? — perguntou Helen surpresa.

— Não posso contar. Além disso, é uma história muito longa.

— Ah, não; conte!— suplicou Helen, com os cotovelos em cima da mesa. — Por favor, Bolt, eu preciso saber!

Bolt balançou a cabeça, indeciso.

— Dominic não gostaria que eu contasse.

— Ele não precisa saber.

— E depois, quando você sair daqui e voltar para casa?

— Juro que não vou contar nada a ninguém!

Bolt sacudiu a cabeça incredulamente.

— A gente sempre diz isso.

Helen encarou-o no fundo do olhos.

— Eu não tenho o costume de mentir.

— Não estou dizendo que sim. Mas você pode mencionar o fato sem querer, um dia...

— Ah, Bolt, por favor, conte! — exclamou, colocando o rosto entre as mãos.

Bolt contemplou-a em silêncio durante alguns segundos.

— É tarde demais — disse por fim. — Você já se deixou envolver.

— Não sei. Eu não quero me envolver com Dominic. Estou sempre dizendo a mim mesma que deveria odiá-lo por me manter presa aqui... mas não consigo. — Ela deu um suspiro. — E pensar que saí de casa para fugir dos homens!

— Você tem certeza de que não está confundindo simpatia com outra coisa?

Helen deu uma risada sem graça.

— Pode ser. Não sei o que pensar. Só sei que, quando ele chega perto de mim, fico toda arrepiada. Diga uma coisa, Bolt. O defeito na perna é para sempre?

— Provavelmente. Parte do quadril foi esmagada no acidente. Os médicos removeram as lascas do osso.

— Ah, que horror!

— Na época, quando ele se recuperou do ferimento inicial, o médico queria operá-lo de novo e enxertar um pedaço de osso para substituir o que foi removido, mas Dominic recusou terminantemente.

— Por quê?

— Não sei. Todos eram favoráveis à operação. Mas ele foi inflexível, como se quisesse conservar para sempre uma recordação do acidente. — Bolt deu um suspiro. — A perna começa a doer quando ele fica muito tempo em pé, e a dor se transmite à coluna. É por isso que ele faz massagem.

— Eu sei, tenho um pouco de experiência nessas coisas. Mamãe tinha enxaquecas terríveis e costumava fazer massagem nas têmporas e na nuca. — Levantou a cabeça e fitou-o com atenção. — Conte por que Dominic se julga culpado pelo acidente.

Bolt levantou-se da cadeira.

— Bem, ele pensa que o irmão tentou se suicidar quando descobriu que a mulher o traía.

— Não!

— Francis conheceu Christina quando estava servindo em Chipre. Casou-se lá sem contar nada a ninguém e voltou com ela para casa. Christina era totalmente desmiolada. Mal conheceu Dominic, apaixonou-se por ele. Convenceu Francis a sair do Exército e entrar para as provas de competição, como seu irmão. Francis, porém, não tinha jeito nenhum para piloto, mas estava completamente apaixonado pela mulher e teria feito qualquer coisa para agradá-la. Ele chegou a participar de algumas provas, mas isso não bastou, evidentemente. Dominic ganhava as corridas em que tomava parte e Christina queria que o marido fosse igualmente um campeão.

— E Dominic? Como reagiu a isso?

— Dominic, naturalmente, não estava interessado nela. Primeiro porque era a mulher do seu irmão, depois porque Christina não era seu tipo...

- E aí?

— Na véspera da corrida na Alemanha, nós todos estávamos hospedados no mesmo hotel, perto da pista. Naquela noite, Francis e Christina tiveram uma briga terrível. Estavam sempre brigando, por sinal. Christina queria sair, mas Francis precisava descansar antes da prova. As corridas de carro são um esporte violento e exigem uma forma física perfeita. No fim, ela acabou saindo sozinha. Como não tinha voltado até a meia-noite; Francis e Dominic resolveram sair à sua procura, cada um para um lado. Dominic encontrou-a, finalmente, numa cervejaria muito freqüentada, conversando com alguns homens. Christina estava de pileque e Dominic foi obrigado a se desembaraçar dos fãs antes de levá-la embora. Christina interpretou mal seu gesto. Quando Francis apareceu, pouco depois, disse que não gostava dele, que gostava de Dominic e que Dominic gostava dela. Por mais que Dominic negasse o fato, Francis acreditou na mulher.

— Ah, meu Deus!

— Está vendo por que eu não queria contar?

— Mas eu quero saber! O que aconteceu depois?

— O resto você já sabe. Francis derrapou na pista, perdeu o controle do carro e foi abalroado por dois outros competidores, sendo que um deles era Dominic. Francis e o outro corredor morreram na hora, Dominic ficou gravemente ferido.

Helen ouviu em silêncio o final da tragédia.

— E aí? O que aconteceu com Christina?

— Voltou para Chipre. Ela ainda queria casar com Dominic, mas ele não podia nem ouvir falar nela.

— Ela devia gostar dele, nesse caso.

— Pode ser, à sua maneira. — Bolt começou a cortar a carne assada. — Dominic não quis mais saber de mulheres, depois do acidente. A tragédia teve repercussões, mais sérias do que se podia esperar. O pai dele sofreu um ataque do coração e nunca mais se recuperou. A mãe morreu alguns meses depois do marido.

— Que horror!

Bolt voltou-se e encarou o rosto desfeito...

— Entende agora por que essa história não pode ser divulgada?

— Entendo. — Helen juntou as mãos em cima da mesa. — Mas

Dominic não foi culpado!

— Claro que não. A pista estava escorregadia e Francis não foi o único que derrapou. Foi um acidente. Mas quando uma coisa dessas acontece e você não está em bons termos com a pessoa que sofreu o acidente, acaba se julgando responsável pelo fato. Dominic não podia julgar o incidente com imparcialidade. Sobretudo em vista do que aconteceu depois. Foi por isso que ele decidiu sumir do mapa.

— E agora?

— Agora, felizmente, ele está ocupado com o livro. Ele escreveu um outro antes, sobre o pai. Foi filmado.

— Ele não me disse nada. O filme teve sucesso?

— Bastante. Ele ganhou muito dinheiro. Mas nem por isso mudou de atitude.

Bolt colocou a travessa de carne com legumes no meio da mesa.

— Você acha que ele vai mudar, algum dia? — insistiu Helen.

— Não sei... Tenho minhas dúvidas. Foi por isso que achei que devia avisá-la.

Helen olhou para as mãos abertas em cima da mesa.

— Eu não sou mais criança, Bolt. Entendo as coisas.

— Eu sei disso. Mas não adianta sonhar com o impossível. Não espere nada para não se decepcionar depois.

— Essa é uma atitude muito cômoda.

— Pode ser, mas, como disse antes, eu não gostaria que você sofresse à toa.

 

Nevou novamente à tarde. Helen estava de pé, diante da janela da cozinha, admirando a paisagem de inverno e lamentando que não pudesse dar um passeio lá fora. Quanto tempo ia durar a nevada? Ela tinha a impressão de que fazia muito tempo que estava naquela casa. Tanta coisa acontecera naquela semana que a vida em Londres parecia uma coisa remota e irreal.

Afastou-se da janela e olhou para a cozinha com os braços encolhidos em cima do peito. Bolt estava cuidando dos animais, mas não deixara que ela o acompanhasse. Não fizera objeção. Estava extremamente abatida e sem disposição para nada. A despeito do que Bolt dissera, sua imaginação voltava incessantemente à cena no quartinho da sauna, e agora que não podia telefonar pedindo socorro, não tinha outro pretexto para ocupar seus pensamentos. Sabia que se conduzira irrefletidamente, ao deixar que os desejos físicos tomassem conta de sua razão. Ela, que sempre fora uma criatura controlada e sensata, exibira uma falta completa de controle e de compostura diante de Dominic.

Deu um suspiro fundo e andou de um lado para o outro da cozinha. Fora tudo por culpa sua. Tomara a iniciativa, tocara primeiro na pele morena, usara a massagem como forma de carícia. Mas aquilo tinha sido um impulso irresistível e o que acontecera depois deixava seu rosto pegando fogo, só de lembrar. Com as pernas moles passou os dedos pela nuca, por baixo dos cabelos, e sentiu os músculos se contraírem sob a pressão dos dedos. Enfiou a mão por debaixo do pulôver e tocou no ponto entre os seios onde Dominic pousara os lábios. Arrepiou-se toda. Nunca sentira isso com mais ninguém, e o desânimo profundo atual decorria da frustração de seus desejos insatisfeitos. Sabia agora o que era desejar um homem, mas não qualquer homem. Um homem como Dominic.

Saiu da cozinha. Tinha receio de que Bolt voltasse e a encontrasse naquele estado. Seus sentimentos a assustavam um pouco e tinha vergonha da fraqueza que Dominic despertara nela. Foi para o quarto e atirou-se na cama, contemplando os flocos brancos que caíam sobre as árvores. Estava começando a admitir que não podia permanecer mais um minuto naquela casa. A estadia forçada do início se transformara pouco a pouco numa prisão doce-amarga de um tipo muito mais sutil. Não queria mais afastar-se dali, essa era a verdade! Ao pensar isso, levantou-se da cama com a fisionomia abalada. O que faria agora? O que podia fazer? O que desejava fazer?

Aproximou-se da janela e lembrou-se de tudo o que Bolt contara na hora do almoço. Bolt conhecia Dominic melhor do que ninguém, mas não podia adivinhar o que se passara exatamente entre os dois. Ela cruzou os braços em cima do peito e esfregou as palmas nos ombros. Mais cedo ou mais tarde ia encontrar-se novamente a sós com Dominic e saberia então se Bolt dissera ou não a verdade.

Helen permaneceu no quarto o resto da tarde. Pouco antes do jantar, porém, tomou banho e pôs o vestido longo de crepe preto que combinava com a brancura de sua pele. Era de um feitio simples, mas o caimento elegante chamava a atenção para as curvas do corpo. Soltou os cabelos em cima dos ombros e aprovou a imagem que viu quando se mirou no espelho da penteadeira.

Alguns minutos depois, dirigiu-se à sala de estar. Não havia ninguém ali, e seus lábios se contraíram de frustração. Dominic ia deixá-la mais uma vez sozinha na companhia de Bolt? Era essa sua maneira de dizer que não desejava que o incidente anterior se repetisse entre os dois? Permaneceu um instante no meio da sala, mordendo o lábio de despeito, até que ouviu a porta se abrir às suas costas. Voltou-se com um movimento brusco e avistou Dominic em pé junto à soleira.

Nessa noite ele estava com uma camisa azul-marinho, calça de veludo da mesma cor e um colete de couro desabotoado na frente. Os olhos castanhos a fixaram com insistência e Helen abaixou os seus, sem jeito.

Ele entrou mancando na sala e dirigiu-se à sua cadeira preferida, diante da lareira. Ao passar por perto dela, a bota roçou de leve em sua saia comprida.

— Por que você está me olhando com essa cara? — perguntou com impaciência. — Não vou pular em cima de você! Não precisa ter medo...

— Eu sei disso — murmurou Helen, com um suspiro. — Você melhorou?

— Depois da massagem que você me fez?

Helen corou violentamente.

— Não seja ruim.

— O que você sugere em vez disso?

— Você podia perguntar como estou passando.

— Para quê? Estou vendo que você está completamente curada.

— Você não foi me visitar nenhuma vez, quando eu estava de cama.

— Você gostaria que tivesse ido?

— Teria sido um gesto educado de sua parte — disse ela, abaixando a cabeça.

— E você espera que eu me conduza como um homem educado?

Se não estou enganado, você disse que eu era um homem deformado... física e mentalmente.

Helen contemplou-o com um tremor.

— Isso foi no início, antes de conhecê-lo.

— E quem disse que você me conhece?

Helen fez um gesto de súplica.

— Por favor, será que não podemos conversar como pessoas educadas?

— Claro que sim. Sobre o que você deseja conversar?

Ela apertou as mãos com nervosismo.

— Você está fingindo que não me entende de propósito.

— Pelo contrário. Estou entendendo perfeitamente aonde você quer chegar.

Nesse momento, felizmente, Bolt entrou na sala e interrompeu a conversa tensa entre os dois. Trazia na mão a bandeja, cheirosa com o jantar que tinha preparado. Helen esperava que Dominic fosse convidá-lo para fazer companhia aos dois, mas Dominic não o convidou, e ela não sabia dizer quem ficou mais surpreso com isso, se Bolt ou ela.

Durante o jantar, Dominic esforçou-se para conversar educadamente sobre livros, a vida na cidade, os lugares que tinha visitado, encorajando-a a contar, por sua vez, a vida que levava com o pai e Isabel em Londres. Helen repetiu o que havia dito a Bolt alguns dias antes e compreendeu, pela interpretação de Dominic, que o pai sentira muito sozinho, após a morte da mulher, e procurara ter sucesso nos negócios como uma forma de compensação. Dominic provavelmente estava usando sua experiência própria para explicar o comportamento do seu pai. A única coisa que Helen não abordou foi o namoro com Mike, como se esse fosse um assunto proibido entre os dois.

Em dado momento, ela comentou que as pessoas precisavam ouvir a opinião dos outros para entender seus problemas pessoais.

— Você, por exemplo, estava muito envolvido no caso para ter uma idéia exata do que aconteceu com seu irmão — concluiu Helen.

— Quem lhe falou a respeito disso? — perguntou Dominic com os olhos apertados. — Ah, não precisa dizer. Já sei. Foi Bolt, evidentemente. Eu sabia que ele não ia guardar segredo muito tempo.

Helen sentiu-se um trapo de repente.

— Ah, por favor, não ponha a culpa em Bolt. Fui eu que insisti em saber. Ele apenas respondeu às perguntas que eu fiz.

— Ele não devia comentar esse assunto com ninguém.

— Nós não comentamos o assunto. Ele simplesmente contou os fatos.

Dominic levantou-se, fez uma careta de dor devido ao movimento brusco da perna e ficou parado um instante, olhando para o chão com a cabeça inclinada. Em seguida, atravessou lentamente a sala. como se procurasse controlar a raiva que sentia. Helen levantou a cabeça ao vê-lo afastar-se e, no impulso do momento, ergueu-se da cadeira e ajoelhou-se em cima do sofá, voltada para ele. Desejando de todo o coração desfazer o mal-entendido.

— Dominic! — disse em voz alta. Ele se voltou e encarou-a com olhos frios. — Que diferença faz que Bolt tenha ou não me contado? Tudo isso aconteceu há tanto tempo... Não podemos conversar calmamente sem nos agredir?

Ele continuou apoiado pesadamente na perna defeituosa.

— Por que eu haveria de conversar sobre isso?

— Porque eu queria ajudá-lo.

— Realmente? — Aproximou-se do sofá. — De que maneira você pode me ajudar?

— Posso mostrar a você como as coisas aconteceram na realidade. Mostrar que as pessoas não são tão más como você supõe. Você precisa aprender a conviver de novo com os outros...

— E quem disse que não estou contente com a vida que levo? Quem disse que desejo voltar para o mundo?

Helen sentou-se em cima dos calcanhares, sentindo-se derrotada.

— Como você pode saber? Você não tentou. Você tem medo de experimentar.

Ela disse isso em voz baixa, como se pensasse consigo mesma, e ficou atônita com a reação que suas palavras produziram. Dominic aproximou-se do sofá com um movimento ágil das pernas, segurou-a pelos cabelos e torceu-os com toda força.

— O que você sabe da dor? — perguntou cruelmente. — Você fala de objetividade, de compreensão. Mas o que você sabe a respeito de passar meses deitado numa cama de um hospital, mais morto que vivo, desejando ter morrido no acidente? Alguém pode ser compreensivo a esse respeito? Alguém pode compreender a força que destrói um homem e deixa o outro aleijado a vida toda?

— Você podia ter feito a operação — protestou Helen, levando a mão à cabeça dolorida.

— Prefiro me lembrar do que aconteceu. Além disso, não quero andar com um pino de metal dentro de mim. Meu quadril estava deformado mas pelo menos é meu, não é nenhum aparelho estranho

— Dominic, você está me machucando!

— Procure ser objetiva sobre isso!— disse ele com um risinho cruel.

— Você não pensa isso! — exclamou Helen com voz sumida.

Dominic abaixou a cabeça e sentou-se ao lado dela no sofá. Segurou-a pelas mãos e levou as palmas abertas aos lábios.

— Por favor, não olhe para mim com essa cara! Eu não quis feri-la. Foi sem querer...

Helen olhou em silêncio para a cabeça inclinada na sua frente. A pressão dos lábios sobre a palma da mão era uma sedução silenciosa e sutil. Ela estremeceu quando Dominic lhe colocou a mão no pescoço e acariciou a pele sensível embaixo da orelha; afastou em seguida a gola do vestido e expôs a carne macia ao contato dos dedos.

Helen não podia mover-se, mesmo que quisesse. O poder dele era tanto que não conseguia lhe negar nada. Quando ele pousou as mãos dela no seu peito, ela se atrapalhou com os botões da camisa, de tão trêmula que estava.

— Ah,Helen — murmurou-lhe Dominic ao ouvido. — Você não sabe o que está fazendo comigo...

Ela não podia responder porque estava com a boca coberta pela dele, e não pensou em mais nada. Passou-lhe os braços em volta do pescoço e deitou-se ao comprido no sofá, abraçada com ele, as bocas e corpos colados. Os beijos que trocavam se tornavam mais longos, mais lânguidos e infinitamente mais inquietantes. Uma letargia crescente tomava conta dela. O fato de poder tocá-lo e acariciá-lo à vontade parecia aumentar mais ainda seu prazer. Não desejava outra coisa a não ser passar o resto da noite ali, naquela sala à meia-luz, fazendo amor com ele...

— Eu o amo, Dominic — murmurou, por baixo de sua boca, mas imediatamente o corpo dele se afastou. — Dominic — disse Helen, apoiando-se no cotovelo, fixando-o atentamente. — O que foi? Eu disse que gosto de você. É verdade. Eu gosto muito de você.

— Eu não quero saber — respondeu com impaciência, atirando as pernas no chão e levantando-se do sofá com um movimento ágil do tronco. — Você não sabe do que está falando.

— Eu sei! Eu sei! — exclamou Helen aflita. — O que foi que aconteceu? Por que você se levantou?

Ele a fitou com frieza, endireitou a camisa para dentro da calça, apanhou o colete caído no chão e vestiu-o lentamente.

— Eu não gosto de ninguém — disse com voz clara.— O amor não conta para mim.

Helen deu uma exclamação de espanto sem querer.

— Mas como? Você me beijou há pouco!

— Eu queria fazer amor com você e pensei que você também quisesse.

— Eu queria — exclamou Helen, com a respiração ofegante.

— Queria mesmo? E você estava preparada para esquecer o fato mais tarde?

— Esquecer que nós fizemos amor? — Helen sentou-se no sofá e ajeitou a gola do vestido. — Dominic... eu não acredito que você seja indiferente a mim.

Ele a fixou em silêncio durante alguns segundos, com o rosto fechado; caminhou em seguida para a cadeira, sentou-se, apanhou a garrafa de uísque e serviu-se de uma dose dupla.

— Eu a desejo... só isso.

O rosto dela refletiu a decepção profunda que essas palavras cruas produziram.

— Você não devia dizer isso! Não é verdade!

— O que você pode esperar de alguém deformado como eu?

— Por favor, Dominic...

— Pare de choramingar! Não quero mais falar nesse assunto. Eu não quero mais conversar com você, está bom? Você me cansa.

— É mentira! — exclamou Helen com a voz trêmula. — Você não pensa nada disso. Eu não acredito em você!

— Não? Você se julga irresistível, por acaso? Eu já tive antes essas intimidades, com outras mulheres... e senti um prazer maior, para seu governo!

Helen não suportou ouvir mais. Levantou-se com dignidade e fitou-o com uma expressão de angústia no olhar.

— Você é odioso! — balbuciou. — Odioso! Não sei como pude julgá-lo um homem decente como deixei você tocar em mim! Eu o desprezo. Eu o odeio de todo o coração!

— Ótimo — disse Dominic, encostando-se na cadeira com uma indiferença aparente. — É assim que eu gosto. Agora, como estamos na minha casa, eu lhe peço a gentileza de sair da sala. Quero me embebedar sozinho.

Helen saiu lentamente e subiu a escada que levava ao quarto. Ao chegar lá, jogou-se na cama e desabou num choro convulsivo. Depois que a crise passou, continuou deitada, completamente apagada de qualquer emoção.

Mais tarde, levantou-se da cama e rasgou o vestido preto de crepe que estava usando aquela noite. Nunca mais queria vê-lo na sua frente! Fez uma bola com o pano rasgado e jogou-a no fundo do guarda-roupa.

Depois ficou parada no meio do quarto, só com a roupa de baixo, imaginando como faria para suportar mais uma noite naquela casa. Não adiantava repetir consigo mesma que Dominic era odioso e desprezível. Era inútil dizer que o odiava de todo o coração. Ela sabia no íntimo que não era verdade. Continuava gostando dele como antes, talvez mais do que antes. E isso era pior de suportar do que a raiva e a frustração que sofrerá nos primeiros dias naquela casa.

Bolt tinha razão. Devia ter ouvido seu conselho. Naturalmente, não ia pedir socorro a Bolt agora, mas havia ainda a possibilidade do jipe guardado na garagem. Quanto mais pensava nisso, mais urgente se tornava a decisão de partir o quanto antes.

Deu um suspiro de cansaço. O que podia acontecer além do que tinha acontecido? Viver naquela casa com Dominic tinha efeitos estranhos sobre ela, e tinha medo de que, mais cedo ou mais tarde, não resistisse ao desejo de provar o fruto proibido da experiência sexual. Isso podia ocorrer inesperadamente. Apesar do que ele dissera, ela tinha certeza de que exercia uma atração forte sobre ele, embora a motivação dele não fosse semelhante à sua. Dominic apenas a desejava, enquanto ela...

Com um movimento de desânimo, retirou a combinação e apanhou no armário a calça comprida e o pulôver branco. Vestida de novo, refletiu sobre seu plano. Já passava das dez. Bolt ia subir dentro de alguns minutos e, se Dominic pretendia embebedar-se, como dissera, não teria problemas com ele. Restava apenas Sheba. Ela dormia na cozinha, como Bolt informara, e teria que sair pela porta da frente. Não havia outro jeito. Era agora ou nunca.

Pelas onze e meia, a casa estava completamente silenciosa. Helen olhou pela cortina e viu que continuava a nevar. Que diferença fazia? De qualquer maneira, a estrada estava coberta da neve dos dias anteriores.

Desceu em silêncio a escada e apanhou o casaco grosso no corredor. Além da bolsa a tiracolo, não levava mais nada consigo. Ia deixar todas as coisas na casa.

A porta da frente estava fechada com trinco. Felizmente, o brilho da neve, no lado de fora, iluminava suficientemente o corredor. Ela puxou silenciosamente o trinco e virou a chave na fechadura. A porta abriu-se sem fazer ruído.

Do lado de fora, procurou orientar-se. O ar da noite estava gelado e os flocos de neve caíam lentamente no seu rosto levantado para o alto. Com uma decisão súbita, afastou-se da porta e deu a volta à casa. Sabia que as demais dependências ficavam nos fundos e tinha que descobrir qual delas era a garagem.

Foi mais fácil do que tinha previsto. As marcas dos pneus ainda estavam visíveis no pátio e ela foi diretamente à uma espécie de galpão que ficava atrás do estábulo. A porta dupla não estava fechada a chave, mas simplesmente encostada e presa com um pedaço de pau. Levou um susto e quase fugiu apavorada, quando uma forma escura passou correndo por seu lado; só depois compreendeu que era apenas um dos gatos da casa que dormia do lado de fora.

Mesmo, assim, o pequeno incidente deixou-a nervosa. Fez uma careta quando a porta se abriu com um rangido. Olhou para dentro, procurando habituar a vista com a escuridão, e abafou um grito de surpresa quando percebeu que o carro guardado na garagem não era o jipe, mas seu carrinho esporte. Não tinha pensado mais nele desde o dia em que chegara e pensava que ainda estivesse afundado na neve. Lembrava-se agora de que Dominic pedira a Bolt para rebocá-lo na primeira oportunidade, e Bolt, pelo visto, conseguira trazê-lo até a casa. Ah, se ela estivesse com as chaves na bolsa! Ou se soubesse fazer uma ligação direta!

Tornou a fechar a porta da garagem. Não podia perder tempo.

Procurou mais uma vez o jipe. Havia muitas marcas de pneumáticos na neve e elas pareciam cruzar-se umas sobre as outras. Só havia, porém, um único lugar que podia abrigar o jipe, e Helen dirigiu-se para lá na esperança de encontrá-lo.

Dessa vez estava com sorte. Não só o jipe estava lá, como a chave estava no contato! Suas mãos tremiam quando subiu ao jipe e bateu a portinhola. Os botões eram semelhantes aos do seu carro. Com o rosto contraído, imaginando o barulho que o motor ia fazer, virou a chave lentamente. No primeiro instante, Helen pensou que o motor não ia funcionar, mas logo depois, com um pequeno toque no acelerador, o motor começou a girar com regularidade. Ela tinha apenas alguns minutos para dar o fora dali.

Engatou a marcha e o jipe saiu lentamente da garagem, em direção ao pátio interno. Dobrou a direita, fez a volta à casa, acendeu os faróis para não bater em nada e tomou o caminho de pedras que levava ao portão. Por que Bolt dissera que um carro com tração nas quatro rodas era difícil de dirigir? Que nada! Era mais fácil que o seu e não tinha o perigo, dessa vez, de ficar atolada na neve. O carro dela dava trancos e derrapava, numa estrada esburacada, mas o jipe se comportava divinamente. Helen estava seguindo as marcas dos pneus deixadas por Bolt no dia anterior, quando fora ao correio, e sua excitação era suficiente para esquecer-se dos outros problemas. Não queria nem pensar na cara que Dominic ia fazer quando descobrisse que tinha partido. Estava fugindo dele, e era só nisso que pensava, no momento. Tinha conseguido finalmente libertar-se daquela casa, para sempre.

Um banco de neve surgiu de repente na estrada e ela pisou automaticamente no acelerador para passar por cima. O jipe respondeu na hora, transpôs a pequena lombada e ganhou velocidade ao descer do outro lado. Helen sentiu os primeiros sinais de alarme quando tirou completamente o pé do acelerador. Estava indo mais depressa do que podia e tinha de reduzir rapidamente a velocidade para fazer a curva seguinte. Pisou de leve no freio, embora soubesse que era arriscado fazer isso numa estrada coberta de neve. O jipe imediatamente derrapou com a roda traseira e descreveu um semicírculo.

Sem perder a calma, ela desviou-o para o meio da estrada. O caminho, porém, era tão estreito, com a neve que cobria os dois lados, que a traseira do jipe bateu numa massa congelada. Com o rosto assustado, Helen tentou novamente dirigir o carro para o meio da pista. As rodas da frente patinaram, dessa vez, e ela bateu no lado oposto do banco de neve. Foi uma experiência terrível, especialmente porque o carro continuava descendo a ladeira com uma certa velocidade, batendo num lado e no outro da estrada. Ela avistou a curva que se aproximava e tentou virar a direção, mas, nessa altura, não tinha mais controle de nada, e o jipe mergulhou de bico na massa de neve, jogando-a para frente, de encontro à direção de madeira.

 

Quando abriu os olhos, estava deitada na estrada, e uma voz que não pensava nunca mais ouvir na vida repetia com ansiedade:

— Helen, Helen, você está bem?

Os olhos focalizaram o vulto que estava agachado ao seu lado; os cabelos louros caíam em cima da testa, os traços morenos e angulosos pareciam recortados sobre a brancura da neve, os olhos castanhos fitavam-na atentamente, angustiados.

— Ah, eu derrapei!

— Eu vi. Você é uma louca! Podia ter morrido.

— Que diferença faz? Você não se importaria a mínima, se eu morresse.

— Não seja criança! — ele murmurou, levantando-se do chão.

Enquanto Dominic olhava impacientemente para a estrada, Helen sentou-se com dificuldade em cima da neve. Além de uma forte dor de cabeça, não tinha sofrido nenhuma lesão grave. Ajeitou-se no chão e limpou a neve dos ombros.

Dominic voltou-se na sua direção.

— Fique deitada onde você estava! — disse com voz autoritária.

— Bolt vai trazer o trator para rebocar o jipe.

Ignorando sua ordem, Helen levantou-se, vacilante.

— Eu disse para você não se levantar! — repetiu Dominic com impaciência.

— Você não manda em mim! Eu não sou sua criada.

— Eu sei disso. Mas você me dá mais trabalho que Bolt.

— Foi sem querer. Desculpe.

Helen estava perdendo rapidamente a compostura. A emoção fora muito forte para ela, a conversa cruel na sala, a tensão de fugir de casa, agora, esse acidente que terminava com todas as suas esperanças. Fora a gota d'água. Estava trêmula e as lágrima rolavam livremente pelas faces. Estava se sentindo um trapo.

Dominic ouviu o soluço abafado e voltou a cabeça na sua direção. Os olhos dele se estreitaram quando viu sua expressão de desânimo. Ela estava com neve nas roupas e nos cabelos, e parecia tremendamente infeliz.

— Pelo amor de Deus, Helen, não faça essa cara! — exclamou Dominic com impaciência.

Antes que ela tomasse consciência do que estava acontecendo, levantou-a nos braços e partiu em direção da casa.

Ela lhe passou os braços em volta do pescoço e aninhou a cabeça no seu peito. Teve então a sensação deliciosa de calor e bem-estar. Alguns minutos depois, lembrou-se de repente de que Dominic não podia fazer força, por causa da perna dolorida.

— Ponha-me no chão! Eu posso andar! Você não deve me carregar.

— Eu não estou completamente inválido ainda — disse Dominic com o queixo tenso, sem olhar para ela.

Helen aceitou a explicação e abandonou-se ao prazer de estar de novo em seus braços. Durante alguns minutos, os dois andaram em silêncio pela estradinha coberta de neve.

Estavam subindo a ladeira onde Helen tivera seu problema com o jipe quando ouviram o ruído do trator que se aproximava. Bolt vinha na direção. Parou diante dos dois e pulou do banco com uma expressão de desagrado no rosto.

— Eu vim o mais rapidamente possível! — Aproximou-se de Dominic. — Pode deixar que eu a carrego. Ela está ferida?

— Estou bem — disse Helen, levantando a cabeça. Não foi nada.

Dominic estendeu-a para Bolt, que a segurou no colo.

— Eu posso andar — protestou Helen, mas nenhum dos dois prestou atenção às suas palavras.

Percorreram a pé a distância que os separava da casa. Dominic estava mancando pesadamente, devido ao esforço que fizera, e Helen recriminou-se por ser a culpada daquilo.

Bolt colocou-a no chão quando chegaram à sala da entrada.

— Deite-se, agora. Eu vou levar uma bebida quente ao seu quarto.

— Não é preciso — disse Helen. — Eu estou bem.

Bolt, porém já tinha partido em direção à cozinha. Helen subiu a escada com lágrimas nos olhos. Os dois não estavam absolutamente preocupados com o fato de que ela podia fugir de novo àquela noite. E por que haveriam de estar? Ela estava tão deprimida, depois de tudo o que acontecera, que não tinha desejo nem disposição para tentar fugir de novo.

 

Helen não ficou sabendo se Bolt levara ou não a bebida quente ao seu quarto. Adormeceu no mesmo instante em que afundou a cabeça no travesseiro. Acordou na manhã seguinte, com os raios do sol filtrando através da cortina. Felizmente a dor de cabeça tinha passado. Quando se examinou no espelho viu que estava apenas com um pequeno galo na testa, conseqüência da batida que dera no vidro da frente do jipe.

Tomou banho, vestiu a saia verde-limão, uma blusa da mesma cor e estava escovando os cabelos diante da penteadeira quando Bolt apareceu com a bandeja do café.

— Dominic quer conversar com você — disse Bolt, colocando a bandeja em cima da mesinha.

— Você tem idéia do que seja?

— Ele vai explicar pessoalmente — disse Bolt, afastando-se em direção à porta.

— Bolt! — exclamou Helen, correndo atrás dele. — O que aconteceu? Você está zangado comigo?

— Não.

— Eu sei que você está. — Ela deu um suspiro. — Procure entender, Bolt. Eu tinha que ir embora daqui, antes que fosse tarde demais.

— Eu entendo.

— Então por que você está com essa cara? A menos que seja porque eu não consegui fugir.

— Talvez.

— Você queria realmente que eu fosse embora?

— Teria sido melhor.

— E você sabia que eu ia tentar? Foi por isso que você deixou a chave no jipe?

— Eu sempre deixo a chave no contato. Não há ladrões aqui.

— Eu fiz o que pude.

— Não é bom você ficar aqui. Para ninguém.

Após este comentário enigmático, Bolt saiu do quarto.

 

Helen tomou o café com o coração pesado. Na última semana, Bolt fora seu amigo, naquela casa, e até mesmo isso lhe era negado agora. Sobre o que Dominic queria conversar com ela?

Examinou o conteúdo da bandeja. Cereais, ovos fritos com bacon, torradas e geléia. Nada disso lhe despertou apetite. A idéia de comer lhe causava náusea, mas bebeu, mesmo assim, uma xícara de café para acalmar os nervos.

Quando levou a bandeja à cozinha, ficou contente por não encontrar Bolt por perto. Jogou rapidamente os restos do café na lata de lixo para Bolt não perceber que não comera praticamente nada. Ao olhar para o lado, avistou uma pilha de roupa em cima da cadeira. Eram as roupas que trocara no dia anterior; estavam lavadas e passadas, à sua espera. Sentiu um nó na garganta. Como podia enfrentar a raiva de Dominic, quando se sentia tão comovida com esse pequeno gesto de Bolt?

Saiu de cabeça baixa da cozinha e atravessou o corredor em direção à sala de estar. Abriu a porta com cuidado e olhou para dentro, mas não avistou ninguém. Dominic devia estar trabalhando no escritório. Foi até lá, bateu na porta, mas não ouviu resposta. Uma espiada para dentro certificou-a de que ele não estava lá também. Onde podia estar?

— Dominic está de cama— disse Bolt, em pé junto da escada.

— Ele está doente?

— Mais ou menos— disse Bolt, subindo a escada.

Helen acompanhou-o em direção ao quarto no fundo do corredor. Bolt abriu a porta e afastou-se para lhe dar passagem. O quarto de dormir era austero, com poucos móveis, muito diferente do quarto de hóspedes. O assoalho era de madeira e havia apenas alguns tapetes pequenos espalhados pelo chão; as paredes eram lisas e nuas. A cama parecia-se com a de Helen, mas estava coberta apenas por uma colcha cor de areia, e o ar frio de fora entrava pela janela aberta. Helen voltou-se para o homem deitado na cama, apoiado no travesseiro, o rosto sombrio e abatido, vestido com um robe de chambre azul-marinho, visível junto à borda da colcha.

— Muito obrigado, Bolt. Você pode nos deixar sozinhos.

— Pois não.

Bolt retirou-se e Dominic voltou sua atenção para Helen.

— Por que você está de cama?— perguntou ela com ansiedade.— Sua perna está doendo muito?

— Isso não tem importância, no momento— disse Dominic com frieza.— Eu a chamei porque estou decidido a deixá-la partir.

— Deixar-me ir embora?— repetiu Helen perplexa.

— Exatamente. Bolt consertou seu carro e ele está funcionando perfeitamente. Neste momento ele está arrumando suas malas para você partir o mais depressa possível.

Helen não podia entender o que se passava.

— E você? Você também vai partir?

— Não, acho que não. Espero que você não revele meu paradeiro a ninguém.

Helen passou a língua pelos lábios ressequidos. Ah, Deus do céu, ela não queria ir embora naquelas condições! Não agora, com ele de cama!

— O que aconteceu? Por que você está de cama? Eu faço questão de saber.

— Para quê? Você gosta de saber que eu sou fraco?

— Você não é fraco...

— Ingênuo, então. Que diferença faz? Você vai logo se esquecer de mim e de meus males.

— Não, não vou. Dominic, eu...

— Por favor, Helen, vá embora.— A voz era fria e definitiva.— Adeus. Com as instruções que Bolt vai lhe dar, você não terá dificuldade em encontrar o caminho de volta.

Helen torceu as mãos com nervosismo.

— Eu posso ficar, se você quiser— murmurou com a voz suplicante.

— Eu nunca quis que você ficasse!— retrucou Dominic com dureza.

Bolt estava saindo do seu quarto quando ela se aproximou de cabeça baixa, na maior depressão de sua vida. Ele estava com as malas nas mãos e Helen pensou, no primeiro momento, que havia um brilho de simpatia nos olhos dele. Mas mesmo isso desapareceu, no instante seguinte, quando Bolt fez um gesto para dizer que podia descer a escada na sua frente.

— Guardei tudo o que estava no quarto— explicou, com a mesma voz apática que tinha usado antes.— Você vai apanhar o seu casaco ou quer que eu o pegue?

— Eu o pego.— Helen abriu o quartinho embaixo da escada.— Ah, esqueci uma pilha de roupa que estava na cozinha...

— Já a guardei na mala. Mais alguma coisa?

Helen balançou a cabeça e acompanhou-o ao pátio. O carro estava estacionado diante da porta, com o motor funcionando, os vidros limpos. Bolt inclinou-se, colocou as malas no interior, bateu a porta e lhe estendeu a chave do porta-malas.

— A outra chave está no contato— disse, enfiando as mãos nos bolsos da calça.— Você está pronta?

Helen balançou a cabeça em silêncio. Não conseguia dizer uma palavra.

— Bom.— Bolt tirou a mão do bolso e apontou na direção que ela tomara na noite anterior.— Siga esse caminho durante uns dois quilômetros. Você vai encontrar uma estradinha à sua esquerda. Siga sempre em frente e vai dar numa cidadezinha. Chama-se Hawksmere. Lá você poderá se informar com qualquer pessoa sobre onde fica a rodovia principal.

Helen tornou a balançar a cabeça.

— Muito obrigada— disse por fim, com a voz sumida.

— Não tem de quê. Boa viagem.

— Adeus, Bolt.

Helen olhou uma última vez para a casa e para o homem que estava em pé embaixo da porta, e, sem dizer mais uma palavra, entrou no carro e partiu.

 

Chegou à cidadezinha mencionada por Bolt em questão de minutos. O funcionário do correio indicou a direção da rodovia que levava a Londres e ela rumou para lá automaticamente, sem pensar em nada, a não ser nos problemas imediatos da estrada. Estava retornando a sua casa, isso pelo menos era certo. Não tinha mais o menor interesse em passar alguns dias na região dos lagos, como pretendia originalmente. No momento, até mesmo a casa paterna era um porto tranqüilo para suas emoções feridas.

Não parou para almoçar na estrada. Não estava com fome e aproveitou que o tempo tinha melhorado para manter uma boa velocidade média e chegar o quanto antes em casa.

Passava das duas da tarde quando fez a volta na pracinha e estacionou o carro defronte de casa, atrás do Mercedes cinza de seu pai. Seus nervos se contraíram automaticamente. Agora tinha que enfrentar a fúria paterna e isso não seria nada agradável.

Saiu do carro, bateu a porta e sentiu as pernas dormentes, após as quatro horas a fio na direção. Estava com dor de cabeça também, mas isso não tinha nada a ver com a viagem. Era pura tensão nervosa.

Subiu a escada de casa e abriu a porta da frente com a chave que tinha na bolsa. O ruído da porta chamou a atenção de uma mulher morena que estava no hall. Ela levantou as mãos para o alto quando avistou Helen.

— Ah, Virgem Santa!— exclamou com alegria.— Você está de volta!

Helen fechou a porta da entrada e apoiou-se um momento no batente, reunindo todas as forças que ainda tinha.

— Olá, Bessie. Tudo bem em casa?

— Tudo mal!— disse Bessie com uma risada.— Estão todos à sua procura!

— É você, Helen?

A voz, alta e sonora que vinha do alto da escada era inconfundível. Helen voltou-se naquela direção e viu o pai descer os degraus rapidamente, olhando para ela como se não pudesse acreditar nos seus olhos. Ela sentiu um movimento de vergonha quando avistou as olheiras fundas no rosto do pai. No instante seguinte, foi estreitada nos braços dele, afogada contra o peito largo.

— Ah, minha filha, graças a Deus você voltou!— exclamou Philip sem prestar atenção à presença da empregada.— Onde você estava?

Helen sentiu os olhos úmidos, mas não queria fazer uma cena diante do pai. Se ele percebesse que estava chorando porque o encontrava de novo, a pequena vantagem que tinha ganhado estaria perdida.

— Você não recebeu meu bilhete?— perguntou, enquanto o pai a examinava fixamente, como se não se fartasse de vê-la sã e salva.

— Bilhete? Claro que recebi seu bilhete! Se não o tivesse recebido estaria no hospício, a esta altura! Pelo amor de Deus, minha filha, onde você se enfiou? Eu contratei a metade dos investigadores de Londres para procurá-la!

Helen deu um sorriso.

— Ah, é?

— E Isabel está quase louca, com toda essa confusão. Onde você estava?

Helen soltou-se das mãos do pai e olhou para Bessie.

— Você me faz um chá, Bessie? Não comi nada desde hoje de manhã.

— Num minuto— disse Bessie, saindo às pressas em direção à cozinha.

Philip levou a filha ao escritório e fechou a porta dupla atrás de si.

— Agora me conte tudo nos mínimos detalhes— disse, após sentar-se numa poltrona confortável.

Helen deu um suspiro e olhou para as mãos em cima do colo.

— Bem, eu não tenho muito que contar...

— Como não tem? Você passou duas semanas fora!

— Fui para a região dos lagos.

— O quê? Neste inverno?

— Pois é. Fiquei hospedada naquele hotelzinho onde costumávamos passar as férias quando eu era menina.

Philip apertou os olhos e uma ruga se formou na testa larga.

— O Black Buli?

— Você lembra?— exclamou Helen com um sorriso sem graça.— Nós passamos umas férias maravilhosas lá!

Philip levantou-se da cadeira com impaciência e caminhou até a lareira. Dali voltou-se na direção dela, com um pé em cima da grade de ferro.

— E você ficou lá todo esse tempo?

— Fiquei— murmurou Helen, com os dedos cruzados.— Eu pensei que seria o último lugar onde seria procurada.

— De fato, o último lugar.— Philip tirou uma cigarreira do bolso e colocou um cigarro entre os lábios.— Por que você sumiu desse jeito?

Helen descontraiu-se. A conversa tomava a direção que desejava. Fora mais fácil do que tinha previsto. Philip ficaria com raiva, naturalmente, passado o primeiro momento de alegria, mas ela saberia enfrentá-lo sem maiores problemas.

Ela o contemplou com carinho. No fundo, o pai não era tão bravo assim... Depois da experiência traumatizante da última semana, em casa de Dominic, os problemas familiares pareciam insignificantes. Ao lembrar-se de Dominic, sentiu uma pontada no coração e apertou os lábios. Era preferível ouvir atentamente o que o pai estava dizendo e não pensar em mais nada.

— Eu queria refletir com calma sobre a situação— disse por fim.— Tirei umas férias para botar as idéias em ordem e decidir o que pretendo fazer com minha vida.

Philip afastou o pé da grade de ferro e endireitou o corpo. Era um homem de altura mediana, mas o corpo robusto fazia-o parecer mais alto do que era na realidade.

— Entendo— disse lentamente,— Suponho que essa decisão esteja ligada diretamente com Mike.

— Exatamente.

— Você não quer definitivamente casar com ele?

— Não.

— Então com quem você estava todo esse tempo?— perguntou Philip com impaciência.— Porque de uma coisa eu tenho certeza, você não se hospedou no Black Buli, em Bowness!

Helen deu um suspiro de alívio quando Bessie entrou no escritório com o carrinho de chá. Com a familiaridade de muitos anos de serviço, a velha empregada não batia na porta. Foi diretamente até perto de Helen, pousou a bandeja e apontou para o pratinho de sanduíches.

— Você emagreceu, menina— disse Bessie, examinando-a com atenção.— Está com cara de quem andou passando fome nesse tal lugar

— Você estava ouvindo nossa conversa, Bessie?— perguntou Philip de mau humor.

A pequena empregada levou um susto com a inflexão irritada da voz.

— Não, senhor. Não costumo ouvir a conversa dos outros. Mas ouvi o senhor dizer que sua filha não tinha ficado no hotel...

— Está bem, Bessie— disse Philip, balançando a cabeça com resignação.— Você pode sair agora. Helen vai se servir sozinha.

A empregada sacudiu a cabeça miúda e saiu da sala às pressas.

Helen apanhou o bule com toda naturalidade, como se não estivesse surpresa nem assustada com o desmentido do pai.

— Estou esperando, Helen— repetiu Philip, voltando a sentar-se na cadeira defronte da dela, após apagar o cigarro pela metade, no cinzeiro.— Quero saber onde você estava.

Helen encolheu os ombros.

— Como você sabe que não estava em Bowness?— perguntou, para ganhar tempo.

— Pelos métodos normais. Mandei saber e me informaram que você não estava registrada no hotel.

— Mas como você sabia que ia para lá?

— Eu não sabia. Mas quando concluímos que você não tinha saído do país pelos meios usuais, comecei a indagar comigo mesmo onde você poderia estar.

— Mas por que Bowness?

— Por que não? Foi lá que passamos umas férias muito agradáveis. Eu me lembro perfeitamente. Era uma possibilidade...

Helen balançou lentamente a cabeça de um lado para o outro. Se tivesse ido para o pequeno hotel na região dos lagos, teria sido descoberta em questão de dias. Era incrível! Devia prever que alguém tão astuto nos negócios não seria tapeado com essa facilidade... Devia ter pensado nisso e feito algo completamente ilógico. Mas, neste caso, não teria conhecido Dominic, não teria se apaixonado por ele e não teria sofrido toda a humilhação dos últimos dias...

O sentimento de desânimo aprofundou-se. Preferia sinceramente não ter conhecido Dominic? Não dividir nem por alguns dias a angústia de sua solidão?

Não. Aquilo tinha que acontecer. E agora ia experimentar uma angústia semelhante em sua própria casa!

— É incrível!— disse por fim.— Eu não posso me afastar alguns dias de casa sem criar toda essa confusão. Por que você queria tanto me encontrar? O que você teria feito se eu estivesse hospedada no hotel?

Philip fungou nervosamente, sem atinar, no momento, com o alcance da pergunta.

— Não me obrigue a demonstrar o que eu teria feito, filha— disse, controlando a impaciência que estava prestes a explodir.— Eu perguntei onde você passou todos esses dias. Você vai me responder ou não?

Helen levantou a cabeça, os olhos abatidos pelo cansaço da viagem.

— E seu eu disser não?

Philip ergueu-se com um pulo da cadeira, como se ficar sentado o irritasse, naquela circunstância.

— Helen, pela última vez...

— Eu não estava com ninguém.

— Você acha mesmo que vou acreditar nisso?

— Bem, se você não quer acreditar...

— Helen, não abuse de minha paciência!

— Ah, papai, por favor, vamos parar com essa conversa! Será que não posso tomar meu chá em paz?

Philip enfiou os dedos nos bolsinhos do colete.

— Muito bem, muito bem— disse, controlando-se com evidente dificuldade.— Tome seu chá. Eu tenho tempo.

Helen bebeu lentamente o líquido quente. Havia alguma coisa revitalizante numa xícara de chá. Mal terminou a primeira, serviu-se de uma segunda, acrescentou leite e uma colherinha de açúcar. Philip a observava com atenção, acompanhando seus menores gestos. Ela podia sentir o antagonismo que crescia dentro dele, mais intenso a cada minuto que passava. Se pudesse, arrancaria a filha à força da cadeira e a sacudiria com violência pelos braços, até ela confessar onde tinha estado. Mas Helen não era mais uma criança, para empregar essas táticas terroristas. Ele sabia disso. Ela tinha, por sinal, muito da teimosia e da determinação do pai.

Os sanduíches no carrinho não despertaram seu apetite. Estava vazia por dentro, é verdade. Mas era um vazio da alma, mais do que do corpo. A imagem de Dominic, pálido e abatido, apoiado no travesseiro da cama, não saía de sua cabeça. Sobretudo agora, que não estava mais com a atenção dirigida para a estrada. Sentia-se terrivelmente responsável por sua recaída, e o fato de saber que Dominic se negava a manter qualquer contato com ela era uma realidade insuportável.

— Então, Helen? Você vai me dizer onde esteve? A voz do pai trouxe-a de volta à triste realidade doméstica. Voltou-se para ele com relutância.

— Eu não vou discutir com você, papai— disse em voz baixa.— Não basta eu dizer que passei alguns dias fora?

— E onde você passou esses dias? Num hotel?

— Onde mais podia ser?

— É isso exatamente o que eu quero saber.

Helen deu um suspiro de impaciência.

— Prefiro não tocar nesse assunto, se você não se importa...

— Claro que me importo!— exclamou Philip com os punhos cerrados.— Helen, você me deve uma explicação. Não apenas a mim, como aos investigadores que eu contratei. O que vou dizer a eles?

— Diga que foi tudo um equívoco muito grande... que eu não estava desaparecida, como você pensava... Mostre o bilhete que eu deixei.

— Você acha mesmo que vou mostrar seu bilhete a eles? Você está ficando louca, filha!

Helen pousou a xícara vazia em cima da mesa.

— Olhe, eu peço desculpas por toda essa confusão que causei. Mas não quero mais falar nesse assunto.

— Por quê? O que aconteceu, Helen? Talvez eu não seja muito arguto, mas sei que você está escondendo alguma coisa. Alguma coisa aconteceu com você... ou com alguém! E estou disposto a tirar isso a limpo.— Os olhos dele se estreitaram.— O que é esse galo na testa?

Helen passou a mão no galo, com a ponta dos dedos.

— Não foi nada. Eu bati com a cabeça.

— Onde? Como?

— Como é que a gente bate com a cabeça? Ah, papai, pelo amor de Deus, estou cansada e farta desse interrogatório! Vou subir e descansar um pouco no meu quarto...

— Alguém bateu em você? Foi isso o que aconteceu? Ah, se foi isso o que aconteceu e eu descobrir quem foi esse patife...

— Não seja tão dramático, papai! Olhe, você se lembra do que eu disse a respeito de Mike antes de sair de casa? Pois bem, eu não quero ser forçada a casar. Não quero. Não adianta insistir.

Philip andou com nervosismo pela sala.

— Por que você não quer casar? O que há de errado nesse casamento? Você e Mike vêm namorando há um tempão. Eu estava certo de que gostavam um do outro. Aliás, o pai dele é da mesma opinião...

— Gostávamos, concordo. Mas gostar é muito diferente de amar e querer casar com alguém...

— Não vejo em quê. Você acha que Isabel e eu...

— O que Isabel e você decidiram não é da minha conta. Eu não tenho nada a ver com isso!

— Ei, espere um momento!— O rosto de Philip estava se tornando rubro de cólera.— Se você não quer casar com Mike só pode ser porque conheceu outra pessoa.

— Ah, essa é boa!

— Claro que sim!

— Como eu poderia conhecer alguém se você e Mike tomam conta de mim dia e noite?

Philip fungou sem jeito.

— Não sei. Você encontrou alguém sem a gente perceber.

— Não, não encontrei.

Ele a fixou no fundo dos olhos.

— Quer dizer então que você passou esses dias sozinha, sem a companhia de um homem?

Helen baixou a cabeça rapidamente, para ele não ver sua expressão.

— Foi.

— Eu não caio nessa. Não acreditei antes e não acredito agora. Olhe, filha, se você estiver mentindo para mim...

— 0 que está se passando aqui? Que gritaria é essa?

A voz fria e lânguida de Isabel foi como uma brisa num dia de verão. Pela primeira vez Helen sorriu de contentamento, ao avistar sua madrasta, embora as palavras seguintes de Isabel não fossem muito amáveis.

— Está vendo? Eu não disse que ela ia voltar?— comentou Isabel com frieza, dirigindo-se ao marido.— É assim que você recebe a filha pródiga, Philip?

Philip curvou os ombros diante da mulher.

— Estamos discutindo um assunto sério, Isabel. Você voltou mais cedo para casa? Não foi jogar golfe como tinha combinado?

— Sua atenção me comove, querido, mas estava frio demais. Friorenta como sou, não posso jogar golfe com os dedos gelados.— Lançou um olhar indagador na direção de Helen.— Então, onde você estava? Resolveu acampar no meio do mato?

— Isabel!

A voz do marido silenciou-a e Helen levantou-se sem graça da cadeira.

— Posso ir para o quarto, papai?— perguntou em voz baixa.

Philip fez um gesto de impaciência.

— Sim, pode ir. Mas não pense que terminamos nossa conversa!

— Está bem, papai.

Helen caminhou até a porta com toda a calma que podia exibir no momento. Estava tudo voltando a ser como antes. O mundo agressivo, em que fora criada estava tomando conta dela novamente e odiava a artificialidade de tudo aquilo. Dominic estava certo em escolher a solidão. Talvez fizesse o mesmo, um dia. Uma coisa pelo menos estava evidente: nada mais seria como antes.

Nas semanas seguintes, Helen procurou reatar as pontas de sua vida anterior. As amigas, ao saberem que estava de volta, convidaram-na para festas e jantares, mas ela perdera todo o entusiasmo por programas desse gênero. Desejava sentir-se novamente em paz consigo mesma. Queria esquecer todas as recordações amargas e doces da semana que passara na região dos lagos, mas era impossível. Dominic dominava todos os seus pensamentos. Perdeu o apetite e passou a sofrer de insônia, pela primeira vez na vida. Pouco a pouco, essa tensão do cotidiano começou a transparecer no seu físico.

Foi Mike quem notou primeiro a mudança.

Ela começara a vê-lo novamente, em parte porque ele e o pai esperavam isso dela; em parte porque Mike era uma companhia agradável e pouco exigente. Ele tinha curiosidade de saber o motivo de sua fuga, mas era suficientemente educado para não fazer nenhuma pergunta nesse sentido. Helen, no entanto, sabia que mais dia menos dia contaria tudo a ele. Podia confiar em Mike, mas tinha suas dúvidas se seria compreensivo nesse ponto.

Uma tarde em que foram visitar uma exposição de arte numa galeria, Mike convidou-a para tomar lanche numa casa de chá perto do rio Tamisa. Estava quente e gostoso para uma tarde de início de primavera, e havia muitas flores amarelas brotando nos jardins.

— Você pretende continuar muito tempo assim, Helen?— perguntou Mike em dado momento, depois que a garçonete trouxe o bule de chá e um pratinho com doces.

A pergunta inesperada assustou-a. Ela estava distraída, traçando o desenho da toalha com a ponta da unha, e não se lembrava mais da presença do rapaz na sua frente.

— Assim como?— perguntou, com o rosto subitamente corado.

— Você está sempre no mundo da Lua— disse Mike, servindo o chá em lugar dela.— Quanto tempo você vai agüentar essa solidão? Você não está comendo... e ouvi dizer que não está dormindo muito bem...

— Estou tão acabada assim?— indagou Helen surpresa.

Mike deu um suspiro antes de responder.

— Você não está acabada, nem um trapo... Mas a gente se conhece há muito tempo, Helen, e eu sei quando você está com algum problema...

— É esse inverno que não acaba mais— disse Helen, levando a xícara aos lábios.

— Ah, é? Pois eu nem tinha percebido que ele custou mais a passar que nos outros anos.

— Por que você está sempre ocupado e não nota essas coisas...

— Pode ser.— Mike bebeu um gole do chá.— Se você não quer falar a esse respeito, não tem importância...

Helen apoiou os cotovelos em cima da mesa, com as duas mãos no queixo, em forma de concha.

— Não foi isso que eu disse.

— Você reconhece então que há algo errado?

— Acho que sim— disse Helen, balançando lentamente a cabeça.

— É algum homem por acaso?

— Mais ou menos.— Ela não sabia como começar.— Mike, você sabe que papai... Você sabe que nossos pais desejam nosso casamento, não é verdade?

— Sim, eu sei disso.

— E você deve ter percebido... bem, você deve ter notado que eu não tenho a intenção de me casar no momento.

Mike inclinou a cabeça.

— Isto está evidente mesmo para mim.

— Ah, Mike!— exclamou Helen com gratidão.— Você é um amor! Eu gostaria tanto que a gente gostasse um do outro. Como tudo seria mais fácil!

— A vida nunca é muito fácil - comentou Mike, fitando-a nos olhos.— E eu acho que essa é uma maneira delicada de me dar o fora.

— É uma pena - disse Helen, colocando a mão sobre a dele em cima da mesa.— Porque você é bom, delicado, compreensivo.

— Que descrição horrível!— exclamou Mike com um sorriso.

— Você sabe que não é verdade.

— Pois eu tenho certeza que sim. Em outras palavras, você não perde a cabeça comigo. Mas perde com outro cara... É isso que você está querendo dizer?

Helen olhou para as mãos brancas e finas, tão diferentes dos dedos fortes e morenos de Dominic.

— É - confessou por fim.— É isso que estou tentando dizer.

— Foi com ele que você passou essa semana?

— Eu o conheci por acaso - corrigiu Helen em voz baixa.

— Sim...— murmurou Mike com a testa franzida.— E seu pai não quer que você tenha nada com ele?

— Não, não é isso! Papai não sabe nada a respeito dele. Por falar nisso, preferia que você guardasse segredo.

— Por quê?

— Porque ele não vai entender.

— Como não? Quem é o tal homem? Onde ele mora?

— Ah, Mike, por favor, não vamos falar nisso. Você está se parecendo com papai.

— Desculpe. Diga-me então com suas próprias palavras.

— Bem... ele é um escritor.

— Romancista?

— Não, necessariamente. Escreve ensaios, depoimentos...

— Eu o conheço?

— Acho que não.

— Quem sabe! Eu conheço muitos escritores.

— Ele não freqüenta a sociedade.

— Como ele se chama?

— Eu não posso dizer.

— Por que não, santo Deus? Escute, você sabe que eu costumo guardar segredo, caso contrário você não teria iniciado essa conversa.

— Eu sei, mas desta vez é diferente. Eu prometi não contar nada.

Mike encostou-se na cadeira com um movimento de impaciência.

— Estamos num impasse - comentou com frieza.

Helen levantou a xícara com as duas mãos.

— Bem, pelo menos você conhece agora a situação.

— Muito pouco. Você contou apenas que encontrou um homem que virou sua cabeça. O que você quer dizer com isso? Que está apaixonada por ele?

Helen hesitou um momento, apertando os lábios.

— Talvez.

— Então por que vocês não se casam?— perguntou Mike com um gesto de impaciência.

— Ele não gosta de mim.

O rosto de Mike refletiu seu espanto.

— Helen, você ficou louca?

— Porquê?

— Como você vai se apaixonar por um homem que não gosta de você?

— Muito fácil...

— Ah, Helen!— exclamou Mike, estendendo a mão para segurar na dela.— Você não acha que tudo isso é fruto da imaginação? Está bom... você encontrou um homem bonito, simpático, e achou que estava apaixonada por ele. Mas agora está tudo acabado, não é mesmo? O que se há de fazer? Não tem sentido arruinar a vida, não dormir nem comer decentemente por um motivo desses...

— Você pensa que já não me repeti isso uma centena de vezes?

— Além do mais, ele é provavelmente casado, noivo, ou desquitado. Você pensou nisso? De qualquer maneira, há uma mulher por perto...

— Não, ele não é casado - disse Helen com convicção.

— Noivo, então.

— Também não!

— Como você sabe?

— Porque eu fiquei na casa dele!

No mesmo instante, Helen arrependeu-se de ter dito isso. Mike olhou para ela com os olhos arregalados e sua face estava pegando fogo.

— Você ficou na casa dele?— repetiu Mike incredulamente.— Como é possível?

Helen balançou a cabeça lentamente.

— Não me pergunte nada, Mike. Eu não posso contar.

— Você morou com ele?

— Você quer saber se dormimos juntos? A resposta é não!

Mike pareceu momentaneamente aliviado.

— Mas você teve alguma forma de contato?

— Mais ou menos.

— Ah, Helen! Por que você não me conta a verdade? Eu quero ajudá-la.

Helen terminou de tomar o chá e afastou a xícara da frente, recusando tomar a segunda que Mike lhe ofereceu.

— Está bem - disse lentamente.— Vou contar o que aconteceu.

Meu carro enguiçou na neve...

— Que neve?

— Ué, no Norte, onde estava viajando.

— Ah, você foi realmente para o Norte?

— Fui.— Helen fez uma pequena pausa.— Como disse, meu carro parou no meio da neve e não quis andar mais... Esse homem me socorreu.

— E aí?

— Ele me ofereceu a casa para passar a noite e eu aceitei.

— E depois?

— Bem, na manhã seguinte, o tempo estava pior e eu fiquei lá.

— Sozinha... com esse homem?

— Não. Havia um criado na casa. Éramos três.

— E você passou a semana toda lá?

— Isso.

— E você se apaixonou por ele?

— Foi.

— Por que você voltou então?

— Porque ele me mandou embora.

— Não!— exclamou Mike com os olhos voltados para o alto.— Por quê? O que você fez?

— Eu não fiz nada.— Helen evitou encontrar os olhos dele.— Foi só isso que aconteceu.

— Uma parte do que aconteceu...

— Por que você diz isso?

— Ah, Helen, por que motivo esse homem ia convidá-la para ficar na casa dele se não gostasse de você? E por que ele mudou de idéia repentinamente? Alguma coisa deve ter acontecido Ele é bonito, pelo menos?

Helen deu um suspiro.

— Não. Ele tem um defeito na perna.

— É aleijado?— exclamou Mike espantado.

— Não aleijado exatamente. Mas necessita de repouso.

— E foi por esse homem que você se apaixonou?— Mike estava sinceramente espantado.— Um homem que não gosta de você e que é aleijado ainda por cima! Pelo amor de Deus, Helen, eu podia pensar tudo menos isso!

— Eu sei onde você está querendo chegar, Mike. Você não entende como fiquei fascinada por esse homem quando podia casar com alguém normal e que tem uma bela conta no banco!

— Mais ou menos isso.

— Pois é.— Helen balançou os ombros com resignação.— Meu pai diria exatamente a mesma coisa, se eu lhe contasse o que me aconteceu.

— Talvez.

— Foi por isso que não contei nada a ele.

— Entendi a indireta - disse Mike com um movimento da cabeça.— Mas diga uma coisa... Esse relacionamento que você teve com esse homem... foi puramente emocional?

— Você pode dar esse nome, se quiser.

— E ele não estava interessado nisso?

— Não.

— Você tem certeza?

Helen deu um suspiro fundo.

— Como disse antes, ele me pediu para sair de sua casa.

— Sim, eu sei.— Mike desenhou um rabisco na toalha com a colher.— Mas já lhe ocorreu que a razão para isso pode estar ligada ao tal defeito físico?

— O que você quer dizer exatamente?

— Bem... é possível que ele julgue sua incapacidade grande demais para ser partilhada por outra pessoa.

— Ah, não, não foi isso!

Helen não queria aceitar essa possibilidade perturbante. Não era possível. Mike não conhecia todos os fatos para fazer uma suposição correta. Ele não sabia, por exemplo, que Dominic não a convidara para morar na casa... que ele a prendera ali contra sua vontade. Ele não sabia também que, desde o desastre terrível de carro em que o irmão morrera, Dominic evitava a companhia das mulheres. Finalmente, Mike não sabia que Dominic desejava fazer amor com ela, desejo que fora perturbado por sua confissão repentina de amor. Amor que ele tinha rejeitado no mesmo instante. Ah, não, Dominic não era impotente como Mike estava sugerindo veladamente!

— E agora? O que você vai fazer?

A voz de Mike acordou-a do devaneio com um sobressalto.

— Nada! O que eu posso fazer?

— Você sabe que seu pai continua decidido a descobrir onde você estava?

— Ele disse isso? Ele pediu a você para me sondar?

— Hummm.

Helen balançou a cabeça pensativamente.

— Eu imaginava...

— Mas você pode confiar em mim.

Os dedos dele estavam por cima dos seus.

— Eu sei disso - murmurou Helen com um sorriso triste.— Se não soubesse, não estaria conversando com você sobre esse assunto.

 

Embora Helen negasse a sugestão de que Dominic podia ter um motivo sério para mandá-la embora, nos dias seguintes refletiu constantemente sobre essa possibilidade. Quem sabe se não havia um pouco de verdade na suspeita de Mike? Talvez Dominic aguardasse uma iniciativa sua nesse sentido. Ele dissera que Helen ia se esquecer de tudo quando voltasse para Londres. Talvez coubesse a ela provar que não havia esquecido.

Planos, todos abandonados, fatigavam sua mente. Foi somente quando Isabel expressou claramente sua opinião que Helen resolveu tomar uma decisão.

Fazia uma semana que voltara para casa. Philip já tinha saído para o trabalho, mas Helen e Isabel estavam terminando o café. Isabel estava especialmente bonita naquela manhã com o robe de chambre de seda, e olhava para Helen com o queixo apoiado na mão.

— Você está com uma péssima aparência - disse Isabel em dado momento, com a franqueza que lhe era habitual. — Por que não vai ver esse homem de uma vez?

— Que homem?— perguntou Helen surpresa.

— Ah, não se faça de sonsa!— Isabel apanhou um cigarro em cima da mesa, e olhando para Helen afirmou: — Esse homem que tirou seu sono e seu apetite. Não adianta esconder. Eu conheço perfeitamente os sintomas.

Helen abaixou os olhos em direção às mãos.

— Papai pediu para você conversar comigo?

— Imagine! Seu pai sabe perfeitamente que você não ouve meus conselhos.

— Nem sempre.

— Bem, não importa. Por que você não toma a iniciativa e vai procurar esse homem? Deve ser um homem como os outros. Eu nunca vi você assim...

— Falar é fácil.

— Ele é casado?

— Não.

— Então o que a impede de visitá-lo?

Helen olhou para Isabel no fundo dos olhos.

— Nada - disse em voz baixa, tomando uma decisão no mesmo instante. — Absolutamente nada.

— Você vai sumir de novo? — perguntou Isabel com um sorriso, ao ver a expressão alterada de Helen.

— Quem sabe?

— ótima idéia! Eu digo a seu pai que você foi passar alguns dias com uma amiga.

Helen levantou-se da mesa.

— Vou seguir seu conselho dessa vez.

— Querida, eu só quero que você seja feliz.

 

Helen só terminou os preparativos da viagem por volta do meio-dia. Levou uma sacola de mão porque podia estar muito cansada para voltar no mesmo dia. Tinha certeza de que acharia o caminho da casa de Dominic sem dificuldade. Agora, pelo menos, não havia neve para dificultar a viagem. A neve continuava visível no alto dos morros, mas as estradas estavam livres, e no norte, como em Londres, as árvores e as plantas renasciam para a vida.

Helen chegou no fim da tarde à cidadezinha de Hawksmere, o lugarejo mais próximo da casa de Dominic. Prestou atenção ao atravessar a praça principal para ver se avistava algum pequeno hotel onde pudesse passar a noite. Havia um, o Swan, e ela tomou nota mentalmente do endereço no caso de uma emergência. Dominic iria recusar-se a recebê-la depois de toda essa viagem? Ela não queria pensar nessa eventualidade e afastou-se rapidamente da cidadezinha antes que mudasse de idéia.

Era fácil encontrar o casarão durante o dia, mas a tarde estava caindo rapidamente e Helen aumentou a velocidade do carro até o momento em que avistou o grande portão de ferro no meio das árvores. Não havia sinal de vida quando atravessou a entrada estreita de pedras. Não saía fumaça pela chaminé, nem ouviu o ruído dos animais no fundo da casa.

Parou o carro e desceu, tremendo de apreensão quando olhou para as janelas fechadas. Ela estava ali finalmente e não havia motivo para prolongar por mais tempo a expectativa.

Sentiu a tentação de virar a maçaneta da porta e entrar na sala, mas a idéia de que Sheba podia estar no corredor dissuadiu-a disso. Bateu por isso levemente na porta e como não houve resposta tocou a campainha, aguardando pacientemente que Bolt viesse abrir.

Ninguém respondeu, contudo. O som da campainha ecoou lugubremente pela casa que parecia vazia e uma onda de frustração tomou conta dela. Suas suspeitas eram corretas. A casa estava vazia. Não havia ninguém.

Tentou girar a maçaneta na esperança de que pudesse estar enganada, mas a porta estava firmemente trancada. Uma volta rápida pelo quintal confirmou a suposição que não havia nenhum animal no estábulo. Para onde tinham ido? Quando? Por quê? Deu um suspiro de frustração. Dominic tinha medo de que ela revelasse seu paradeiro? Não confiava nem um pouco nela?

Deprimida, como se não pudesse entrar na casa por uma proibição formal do dono, tomou o carro e retornou rapidamente à cidadezinha. No trajeto só cruzou com um carro na estrada, um automóvel grande, cinzento, mas os dois ocupantes eram gordos, louros e pequenos, e não tinham nenhuma semelhança física com Dominic e Bolt.

O gerente do hotel ofereceu-lhe um quarto para passar a noite, um quartinho pequeno e gostoso, no último andar. Helen lavou o rosto e descansou alguns minutos na cama confortável de casal; em seguida, desceu ao salão de jantar. Havia apenas um outro hóspede no hotel, um homem baixo, louro, de bigode, e ela tinha quase certeza de que era o mesmo indivíduo que avistara na estrada ao sair da casa de Dominic. Estava muito preocupada no entanto com outros problemas mais urgentes para prestar atenção naquele homenzinho insignificante. Depois do jantar, puxou conversa com o gerente.

— Gostaria de saber uma coisa - disse Helen com um sorriso. — Aquele casarão antigo, a uns dois quilômetros daqui...

— O solar de dois andares?— perguntou o gerente com a fisionomia prestativa.

— Exatamente. Uma casa muito bonita por sinal...

— Está interessada em comprá-la?

— Bem, gostaria de examiná-la primeiro.

O gerente balançou a cabeça desconsoladamente.

— Infelizmente, ela não está à venda.

— Mas ela está vazia!

— Sim, eu sei. O dono viajou. Ouvi dizer que foi para o hospital.

— Hospital? — exclamou Helen sem querer. Fez um esforço para se controlar. — O que aconteceu? É alguma coisa séria?

— Não posso dizer com certeza. Não conheço muito bem os dois.

— Os dois?

— O dono tem um empregado de confiança. Um homem careca, muito forte, chamado Bolt. Ele vinha aqui fazer as compras para a casa. — Deu um sorriso. — Mas isso provavelmente são detalhes que não interessam...

— Pelo contrário, me interessam muito - disse Helen com vivacidade.

— Ah, conhece então o dono da casa? — indagou o gerente, com um olhar curioso. Helen contentou-se em abaixar os olhos para a xícara vazia de café. — Bem, de qualquer maneira, acho que os dois vão voltar dentro de alguns dias. E não creio que tenham a intenção de vender a casa.

— É pena - disse Helen, antes de fazer a pergunta seguinte: — Uma casa tão bonita, vazia desse jeito... Eu pensava que esse tal de como você disse?... Bolt... eu pensava que esse tal de Bolt fosse ficar tomando conta da casa, enquanto o patrão estivesse fora...

— Ah, sim. Mas segundo ouvi dizer, os dois foram para Londres. Talvez ele esteja internado lá.

— Foram para Londres?

Helen sentiu as pernas moles. Pensar que tinha feito toda essa viagem à toa! Dominic estava internado num hospital de Londres. Mas por quê? O que tinha acontecido com ele? Seu primeiro impulso foi entrar no carro e voltar imediatamente para Londres.

Mas não tinha condições para fazer uma viagem de quatro horas sozinha, à noite. Quando o gerente levantou da mesa e foi conversar com outros clientes, Helen aproveitou e subiu para o quarto. Dormiria cedo e, no dia seguinte, partiria nas primeiras horas da manhã.

 

Ela dormiu melhor naquela noite do que nas últimas semanas. Estava completamente exausta e deprimida por ter perdido a viagem e ter batido com o nariz na porta.

Na manhã seguinte, contudo, acordou animada e cheia de disposição. A viagem de volta foi bem mais rápida do que a de ida. Philip e Isabel não estavam em casa quando chegou. Helen comeu a omelete que Bessie lhe preparara antes de fechar-se na sala e tentar descobrir o hospital onde Dominic podia estar internado. Telefonou para diversos hospitais, clínicas e casas de saúde que encontrou na lista telefônica, mas não obteve nenhuma informação em nenhum deles.

Estava sentada na cadeira, cansada e desanimada, com os olhos ardendo de procurar nas páginas da lista telefônica, quando o pai entrou na sala. Helen percebeu imediatamente que ele estava furioso.

— O que você está fazendo? — perguntou Philip de mau humor, pisando sem querer na lista que estava caída em cima do tapete.

— Estou telefonando - disse Helen, mantendo a voz baixa.

— Isso eu estou vendo! Mas para quem você está telefonando?

— Para um conhecido meu. Por quê? Não posso mais telefonar?

— Não seja malcriada!— berrou Philip sem se conter. — Por que você viajou para o Norte?

— Como você sabe que eu viajei? — perguntou Helen boquiaberta. — Ah, não! Você está me seguindo?

— E daí? Faz três semanas que você está sendo seguida!

— Essa não!

Philip parou diante dela, com o olhar impaciente.

— O que você foi fazer em Hawksmere? Ou você prefere que lhe diga?

— Você sabe, por acaso?

— Claro que eu sei! Você foi ver o tal sujeito que mora lá. Dominic Lyall.

Helen cobriu os olhos com as mãos.

— Ah, meu Deus! Por que você não me deixa em paz?

— Helen, você é minha filha, minha filha única. Você acha que vou ficar de braços cruzados e deixar você arruinar sua vida, a vida que eu planejei com tanto cuidado para você?

— Eu tenho vinte e dois anos, papai!

— E daí? Você continua sendo minha filha e eu tenho o direito de saber o que você anda fazendo.

— Papai, você não entende!

— Entendo perfeitamente. Vamos, responda! O que você pretendia com essa visita a Dominic Lyall? Foi com ele que você passou a semana fora?

— Se você sabe, por que pergunta?

— Para comprovar a eficiência de Barclay.

— Que Barclay é esse?

— O investigador que eu contratei.

— Ah, então era ele que estava no restaurante ontem à noite?

— Exatamente. Um homem baixo, louro, que não chama a atenção de ninguém, como todos os bons investigadores. O trabalho deles exige o anonimato. Não adiantaria nada se chamassem a atenção aos outros e despertassem suspeitas.

— Não, não adiantaria nada.

— Quer dizer então que você bateu com o nariz na porta?

— Foi.

— Claro. Dominic está em Londres.

— Onde?— exclamou Helen com os olhos repentinamente brilhantes.— Você sabe onde ele está?

— Evidente que sei.

— Ah, papai, por favor, me diga onde ele está!— suplicou Helen.

Philip franziu as sobrancelhas.

— Por que eu haveria de dizer?

— Ah, seja bonzinho!

— Está certo, vou dizer. Ele está numa clínica particular.

— Como você descobriu?

— Barclay é mais eficiente que você, filha. Ele conseguiu no correio o endereço provisório de Dominic em Londres.

— Ah, eu me esqueci disso!— exclamou Helen.

— Provavelmente eles não teriam dado o endereço a você. Mas os investigadores conseguem tudo com suas carteirinhas

— Vou fazer uma visita a ele! — disse Helen com decisão.

— Talvez não seja boa idéia.

— Por quê?— Helen levantou-se impaciente da cadeira. — Olhe, se você não me disser onde ele está, vou sair de casa e nunca mais voltar!

— Não seja criança!— disse Philip, alarmado com a idéia. — O que esse homem significa afinal para você? O que você significa para ele? Como você o conheceu, antes de mais nada?

— Eu conto tudo se você me disser onde ele está!

— Combinado. Mas eu quero saber tudo nos menores detalhes.

Helen ajeitou-se na cadeira e contou lentamente os acontecimentos que a levaram a conhecer Dominic. Falou da tempestade de neve, do carro enguiçado, das condições em que foi parar na casa dele.

Explicou que tinha a impressão de conhecê-lo de algum lugar e como acabou identificando-o pela fotografia na parede.

— Não é possível!— interrompeu Philip, boquiaberto. — Não me diga que esse homem é o mesmo que corria de carro?

— O mesmo. Eu pensei que você soubesse.

— O nome de fato não é muito comum, mas nunca pensei... Bem, isso não vem ao caso. Continue.

Estimulada pela curiosidade do pai, Helen contou com mais animação o resto da aventura. Philip, que fora um fã incondicional do piloto famoso, ouviu a narrativa com o maior interesse. "Será que ainda o admirava depois de tantos anos?" pensou Helen consigo.

No momento em que terminou finalmente de contar a história, Philip deu uma exclamação prolongada de surpresa.

— Em que sinuca você se meteu, minha filha!

— Entende agora por que não podia contar?

— Você podia confiar em mim.

— Podia mesmo?— perguntou Helen, fitando-o nos olhos.

Philip abaixou a cabeça, envergonhado.

— Bem, talvez você tenha motivo para desconfiar de mim - admitiu por fim, balançando a cabeça. — Mas, seja como for, Dominic tem o dobro de sua idade! Deve estar com mais de quarenta anos!

— Ei, não exagera! Ele tem no máximo uns trinta e oito anos.

E que mal tem isso?

— Ele é velho demais para você, filha - disse Philip, balançando a cabeça. — Além disso, é aleijado...

— Ah, não use essa palavra! Ele tem apenas um defeito superficial. E você acha que eu me importo com isso? Ainda que ele passasse o resto da vida numa cadeira de rodas, eu gostaria dele mesmo assim!

Philip foi até o bar e serviu-se de uma dose de uísque.

— Não, muito obrigada - disse Helen, quando ele lhe estendeu o copo perguntando se queria tomar um gole. — Agora me diga onde ele está internado.

— Num minuto, num minuto. — Philip levou o copo aos lábios e virou o uísque num gole. — Você sabe por que ele está no hospital?

— Não. Você sabe?

— Não. Não chegamos até aí em nossas buscas. Eu mandei Barclay suspender as investigações.

— Ainda bem!

— Por que, ainda bem?

— Ah, você já imaginou o que ele vai pensar quando souber que você andou investigando a vida dele? Ele vai concluir que fui eu que o denunciei!

— E você não me contou tudo por acaso?

— Sim, mas com a condição de você guardar segredo. Você vai me dizer agora onde ele está? — insistiu Helen com impaciência.

— Vou. — Philip tirou um cartão de visita do bolsinho do casaco. — Essa é a clínica. É dirigida pelo Dr. Jorge Johannsen. Eu não sei muita coisa sobre ele, a não ser que é especialista em ortopedia.

— Ah, provavelmente ele vai operar a perna!

— Talvez. Se você está decidida a visitá-lo, poderá informar-se melhor no hospital.

— É o que eu vou fazer - disse Helen, correndo para a porta.

— Muito obrigada pela informação!

— Não vamos antecipar as coisas - disse Philip, afundando os ombros na poltrona. — Eu não prometi nada. Mas se você melhorar depois de ver esse homem, estou disposto a reconsiderar o assunto.

Helen hesitou um instante, como se fosse acrescentar alguma coisa; limitou-se porém a balançar a cabeça e saiu da sala.

A clínica ficava num bairro afastado. Fora no passado um palacete residencial, antes de ser transformado num centro de saúde particular. Helen desceu do táxi e subiu a meia dúzia de degraus que levavam à portaria. Como não havia ninguém na recepção, apertou o botão da campainha.

Olhou em volta de si com curiosidade, procurando distrair os pensamentos do motivo que a levara ali. As flores davam à saleta um toque de elegância e o perfume delas encobria o cheiro dos desinfetantes. O corredor que levava à escada tinha uma passadeira verde-oliva, e as paredes lisas, de cor bege, estavam cobertas com reproduções e estampas coloridas. O local parecia mais o saguão de um hotel de luxo do que uma sala de hospital.

— Helen!

A surpresa de ouvir seu nome pronunciado em voz alta acordou-a bruscamente do devaneio. Voltou-se rapidamente e avistou Bolt que descia os últimos degraus da escada.

— Ah, que bom encontrá-lo aqui!— exclamou Helen com a voz emocionada. — Como Dominic está passando?

Bolt estava muito diferente, de terno cinza e gravata azul, mas quando percebeu a ansiedade no rosto dela, aproximou-se com a mesma fisionomia bondosa e cordial de antes.

— Ele está bem.

— Por que ele foi internado?

Bolt olhou em volta, antes de responder a pergunta.

— Não tem ninguém na portaria?

— Não, ninguém. Eu toquei a campainha mas ninguém apareceu até agora.

Ele olhou para o relógio.

— Ah, são cinco horas. Devem estar tomando o cafezinho. — Fez sinal em direção à sala de espera, no fim do corredor. — Vamos conversar ali. Não deve ter ninguém a essa hora.

A sala estava vazia, de fato. Bolt fechou a porta e voltou-se para ela com a expressão simpática de sempre.

— O que você está fazendo aqui?

— Vim fazer uma visita a Dominic.

— Como você soube que ele estava internado aqui?

— Ah, é uma história muito comprida. Eu conto outra hora. Agora eu quero saber por que Dominic está internado.

Bolt enfiou as mãos nos bolsos.

— Ele decidiu operar finalmente, como os médicos tinham aconselhado na ocasião do acidente.

— Quer dizer que ele concordou era fazer o tal enxerto?— perguntou Helen surpresa com a notícia.

— Foi.

— Ah, que bom!— Ela levou as mãos ao rosto. — E quando vai ser a operação?

— Já foi, duas semanas atrás.

— Há duas semanas? Então logo depois que eu parti?

— Pouco depois.

— E por que ele mudou repentinamente de idéia? — perguntou Helen espantada.

Bolt abaixou a cabeça em direção aos sapatos brilhantes.

— Isso eu não sei.

— Não acredito! Você sabe mas não quer contar!

— E por que você quer saber? — perguntou Bolt, evitando seu olhar.

— Porque eu gosto dele, Bolt.

— Você tem certeza?— insistiu Bolt com incredulidade.

— Absoluta!— Helen mudou de inflexão. — Está bem, se você não quer me dizer por que ele operou, diga-me ao menos se a operação foi bem sucedida.

— Você promete que não vai comentar nada com ele?

— Prometo - disse Helen com a fisionomia repentinamente preocupada. Pela inflexão de sua voz, podia adivinhar a resposta a sua pergunta.

— Não foi possível fazer o tal enxerto.

— Por quê?— exclamou Helen atônita.

— Eu não entendi perfeitamente a explicação dos médicos mas ouvi dizer que a operação devia ter sido feita logo depois do acidente antes de haver deformação dos ossos vizinhos.

— Ah, meu Deus!— murmurou Helen, assaltada de compaixão pelo homem que amava. — Onde ele está? Eu preciso vê-lo imediatamente!

— Eu não sei se ele vai querer recebê-la...

— Mas eu vou tentar de qualquer maneira - disse Helen com decisão, caminhando em direção à porta. — E ninguém vai me impedir!

Quando os dois saíram novamente no saguão da entrada, a recepcionista estava na portaria.

— Essa moça é minha amiga - disse Bolt para a jovem. — Ela deseja fazer uma visita ao paciente do quarto 11.

Helen sentiu-se imensamente grata a Bolt por sua intervenção. Não precisava dessa forma explicar sua presença ali. A recepcionista sorriu, disse que estava bem e que podia subir. Chamou em seguida uma enfermeira para acompanhá-la ao quarto de Dominic. Bolt despediu-se dela com um sorriso de conforto antes que as duas tomassem o elevador no saguão. O corredor do segundo andar era com um piso de borracha, silencioso e macio, que abafava o ruído dos passos, e havia ali a atmosfera característica de hospital que não estava visível no térreo. O quarto de Dominic ficava no fim do corredor. A enfermeira abriu a porta e disse alegremente para dentro:

— Uma visita!— Voltou-se para Helen. — Pode entrar, por favor.

Helen entrou no quarto com um sentimento de culpa penoso, preparada para ser mal recebida. Entretanto, embora Dominic não demonstrasse nenhuma alegria especial ao vê-la, não disse nada que pudesse embaraçá-la diante da enfermeira. Estava reclinado na cama com um pijama encarnado e Helen permaneceu parada perto da cama, observando-o fixamente, até o momento em que a enfermeira os deixou a sós. Parecia fazer mais de três semanas desde a última vez que o vira, e ela estava morrendo de saudade. Mal reparou no quartinho atapetado de azul-claro, na colcha e nas cortinas da mesma cor, em tonalidades mais escuras, muito mais acolhedor que os quartos habituais dos hospitais. Quando a enfermeira fechou a porta, Dominic voltou se para ela.

— Como você me encontrou aqui?

Ela respirou fundo para acalmar os nervos tensos.

— Ah, você nem imagina como foi difícil!

O rosto magro refletia a irritação e o coração dela afundou.

— Foi Bolt que mandou chamá-la?

— Não. Claro que não. — Helen aproximou-se da cama, morrendo de vontade de tocar na mão morena que estava pousada em cima da colcha. O casaco do pijama estava aberto no pescoço e ela podia avistar os pêlos no alto do peito. Era um pensamento devastador lembrar-se que o abraçara há algumas semanas atrás, que estivera apertada contra seu corpo forte e musculoso, e desejava ardentemente que isso se repetisse de novo. — Fui até sua casa e fiquei sabendo que você estava em Londres.

— Você foi até minha casa? — perguntou Dominic surpreso, vencido pela curiosidade. Helen aproveitou isso e acrescentou:

— Eu queria vê-lo de novo.

— Por quê? Para quê?

— Você sabe por que. — Ela estendeu a mão para segurar nos seus dedos, mas ele recuou o braço.

— Você sabe que não adianta - disse Dominic com frieza. — Eu deixei as coisas bem claras da última vez. Você e eu não temos mais nada para dizer um ao outro.

— Eu não acredito. . .

— Isso não faz diferença!— Depois de uma pausa: — Como você encontrou o endereço do hospital? Eu não disse a ninguém, a não ser ao Bolt.

— Meu pai me seguiu quando eu voltei à sua casa - disse Helen hesitante.

— Seguiu? O que você quer dizer com isso?

— Ele mandou um investigador me seguir. Eu contei a você como papai é. Obrigou-me a dizer onde eu tinha estado quando voltei.

— Por que você não disse que se hospedara num hotel?

— Eu disse. Mas ele já tinha se informado no hotel. Depois disso... — ela fez um gesto de desânimo.

Dominic apertou as mãos com impaciência.

— Foi esse investigador que encontrou a clínica?

— Foi. Mas papai não sabia até então quem você era. Eu fui obrigada a contar.

— Você contou para ele?— exclamou Dominic com os olhos apertados.

— Não havia outro jeito. Se não contasse, ele não daria o endereço da clínica.

Dominic olhou para a janela aberta do quarto.

— Foi só isso que aconteceu?

— O que mais você queria?

— Não foi esse investigador que foi até minha casa, que descobriu o endereço do hospital e que tirou as devidas conclusões?

— Eu não entendo onde você quer chegar.

— Vamos falar claramente. Você não pensou que eu ia operar a perna por sua causa? Não foi por isso que você me procurou aqui?

— Como eu podia pensar uma coisa dessas?— exclamou Helen atônita.

Mas ela tinha pensado exatamente isso, como a expressão profunda do seu rosto dizia.

— Com quem você falou depois que chegou aqui?

— Com ninguém.

— Bom. Eu não quero que você comente minha doença com ninguém, estamos entendidos? Meu caso não diz respeito a ninguém. Sinto muito decepcioná-la, mas, quando sair daqui, não vou usar minha nova liberdade para procurá-la.

— Sua nova liberdade?

— Exatamente. Você não sabe, mas a operação foi um sucesso.

Eu vou estar novo daqui a alguns meses. É pena que você não esteja presente para tomar parte na festa... mas vou lhe mandar um cartão postal da Flórida... ou da Jamaica!

Helen estava completamente perplexa de espanto. O que ele estava dizendo? A operação fora realmente um sucesso? Não iria mais mancar quando saísse do hospital? Mas Bolt não dissera alguns minutos antes que a deformação do osso não podia mais ser endireitada?

Sentiu uma ânsia de vômito. Um dos dois estava mentindo deliberadamente. Mas qual dos dois? E que importância isso tinha de qualquer maneira? Dominic não a queria de volta, ele deixara isso perfeitamente claro, mas ela tinha que enfrentar a situação. Iria enfrentar. Não sucumbiria ao pranto diante dele. Isso seria a última coisa que faria.

Afastou-se vacilante sobre o tapete macio do quarto. Ao aproximar-se da porta, antes de girar a maçaneta, ouviu a voz dele nas suas costas.

— Não faz mal que seu pai tenha descoberto minha existência. Quando você contar o que aconteceu, ele não vai divulgar essa notícia a ninguém...

Helen lançou um último olhar por cima dos ombros. Havia linhas de cansaço em volta da boca e dos olhos. Dominic emagrecera nas últimas semanas e perdera muito de seu ar saudável de antes. Ah, que diferença fazia? Por que ela se importava tanto com ele? Que ele levasse a vida que quisesse! Não iria nunca mais procurá-lo.

 

Bolt felizmente não estava na entrada quando ela saiu. Com a cabeça tonta, tomou um táxi e deu o endereço de casa. No meio do caminho, no entanto, mudou de direção e foi diretamente para o cais do rio Tamisa. Notou que o motorista do táxi olhou-a com suspeita quando desceu do carro perto da ponte de Westminster, como se ela estivesse decidida a cometer uma loucura.

A tentação foi grande quando se debruçou sobre o parapeito da ponte e contemplou as águas turvas que corriam lentamente no leito do rio. Nunca se sentira tão deprimida na vida, e a lembrança de que o pai estava esperando por ela, aguardando uma decisão, encheu-a de angústia. Não queria conversar com ninguém sobre o encontro com Dominic, mas não parecia haver outro jeito.

O movimento dos carros nas ruas foi diminuindo lentamente, enquanto ela caminhava sem destino ao longo do cais. Entrou finalmente num bar e pediu um chá. Eram quase oito horas quando rumou para casa. No momento em que o táxi fez a volta na pracinha e parou diante do portão de casa, atrás do Mercedes cinza, Philip desceu correndo a escada e segurou-a pelos braços com o olhar aflito.

— Ah, graças a Deus!— exclamou, levando-a para dentro.— Você quer me matar do coração?

— O que aconteceu?

— O que aconteceu? — exclamou Philip com vivacidade.— Helen, faz duas horas que você saiu do hospital!

— Você telefonou para lá?

— Claro que telefonei. Onde você estava?

— Fui dar uma volta a pé... pelo cais do Tamisa.

— Pelo cais do Tamisa? — repetiu o pai, branco como cera. — Meu Deus, você não estava pensando em...

— Pensei exatamente isso - murmurou de cabeça baixa. — Ah, papai, estou tão infeliz!

E explodiu no choro.

Duas horas mais tarde, às dez e trinta da noite, a campainha da frente tocou. Helen estava deitada, sem conseguir dormir, contudo, apesar de ter tomado os dois comprimidos que o pai lhe dera antes de levar Isabel a um jantar de cerimônia em casa de uns amigos.

Depois da volta para casa, aquela noite, Helen mudara de opinião a respeito de seu pai. Ele fora tão delicado, atencioso e compreensivo que ela reconheceu com gratidão que Philip se interessava tanto por seu bem-estar quanto ela própria.

Ao ouvir a campainha da porta tocar, sentou-se na cabeceira da cama e olhou para o relógio. Eram quase dez e meia. Quem poderia ser? A menos que houvesse acontecido alguma coisa com seu pai e Isabel...

Levantou-se da cama às pressas, vestiu o robe verde-claro por cima da camisola e foi atender. Bessie tinha saído e ela estava sozinha em casa. Não lhe passou pela cabeça no momento que podia ser um ladrão ou alguém mal-intencionado.

Desceu rapidamente a escada, atravessou o hall de entrada e abriu a porta da frente, que tinha uma corrente de segurança. Deu uma exclamação de susto e de surpresa, ao mesmo tempo. Apoiado na bengala, do outro lado da porta, estava Dominic. O rosto estava mais abatido do que quando o vira algumas horas antes na clínica.

— Você estava dormindo? Eu a acordei? Desculpe... mas preciso muito conversar com você.

Helen passou a língua nos lábios ressequidos e levantou o trinco da porta. Afastou-se um passo e escondeu-se atrás do painel da porta, quando se lembrou que estava de camisola de dormir por baixo do robe.

— Eu me visto num minuto!— disse com afobação.

— Não precisa!— Ele estendeu a mão e segurou-a pelo pulso no momento em que ela passou na sua frente. Examinou-a rapidamente com um olhar de admiração. — Você está bem assim.

Ela corou e abaixou os olhos.

— Onde podemos conversar? Sentados, de preferência...

— Vamos até a sala. Você não quer se apoiar em mim?

Os olhos dela estavam muito abertos e aflitos quando notou a expressão de dor que estava latente no rosto dele.

— Não é preciso - disse Dominic, caminhando com dificuldade ao atravessarem o saguão.

Helen acendeu as luzes da sala e parou um instante perto da porta, enquanto Dominic dirigiu-se ao sofá de veludo e sentou-se ali com um suspiro de alívio. Examinou-a de novo, mais demoradamente, e Helen abaixou a cabeça, sem jeito.

— Vou vestir uma roupa - insistiu.

— Se você faz questão. Mas eu gosto mais assim.

Helen fitou-o atentamente, esquecendo-se no momento de sua aparência.

— Por que você me procurou?— perguntou com a voz hesitante.

Ele se ajeitou no sofá, com um sorriso irônico nos lábios, como se o sofrimento que lhe causava a posição vertical tivesse sido esquecido momentaneamente. Helen fitava-o em silêncio, pensando consigo mesma que nunca se fartaria de olhar para ele — para os traços angulosos do rosto, os cabelos louros quase prateados que caíam em cima da testa, para a curva sensual da boca...

— Sente-se aqui - disse Dominic, apontando para o lugar no sofá ao seu lado. — Vou contar por que vim aqui.

Helen deu dois passos hesitantes e depois parou. 0 que estava fazendo? O que ele pretendia? Por que fora à sua casa? Era uma outra maneira de magoá-la?

— Dominic... —balbuciou, com a voz sumida.

Ele estendeu o braço e segurou-a pelo pulso, puxando-a com firmeza na sua direção. Ela sentiu o calor de seu corpo, a força de suas mãos apertando sua carne; no instante seguinte, ele a cobriu de beijos e a deitou sobre as almofadas do sofá com uma urgência que não admitia recusa. O peso do seu corpo não causava dor nem incômodo; pelo contrário, era uma sensação de puro prazer sensual, e os lábios dela se abriram espontaneamente, enquanto todo seu corpo cedia à pressão do dele.

Os dois se esqueceram do tempo. Quando Dominic a soltou finalmente, seus olhos estavam vidrados com a intensidade da emoção que experimentava. Forçou-se a levantar do sofá e afastou-se alguns passos com relutância.

— Aqui não, Helen. Não desse jeito. Seu pai pode voltar a qualquer momento do jantar...

Helen moveu-se lentamente, como se acordasse de um sono profundo.

— Não tem importância - sussurrou, estendendo a mão para tocar no seu rosto. — Eu o amo, Dominic...

Ele segurou a mão estendida e beijou-a na palma, com carinho.

— Você tem certeza?

Ela balançou a cabeça. No momento seguinte, lembrou-se das palavras anteriores dele e abriu os olhos espantada, apoiando-se nos cotovelos.

— Foi papai que o convidou a vir aqui?

Dominic soltou a mão dela e sentou-se no sofá.

— Não. Pelo que eu saiba, ela não aprecia muito a idéia de nosso casamento.

Helen ajoelhou-se no sofá.

— O que foi que você disse?

— O que você ouviu, amor - murmurou Dominic com um sorriso irônico nos lábios.— Eu também gosto muito de você! Você duvida?

— Você... gosta... de mim? — Os lábios dela tremeram, o corpo inteiro estremeceu com uma emoção incontrolável. — Ah, Dominic, Dominic, por que você não me disse isso antes?

No momento em que ela se atirou nos braços dele, afundou o rosto no seu peito, agarrou-se sofregamente nele, as lágrimas de felicidade e de alívio rolaram espontaneamente pela,face.

— Não chore, não chore!— disse Dominic estreitando-a nos braços e beijando as lágrimas que escorriam dos olhos. — Nós precisamos conversar primeiro... temos muita coisa para acertar ainda.

Ela fungou e enxugou os olhos com as costas dos dedos.

— Está bem, não vou chorar mais. — Sentou-se no sofá com as pernas cruzadas, de frente para ele. — Pronto. O que você vai me contar? Como você encontrou com meu pai?

— Pois é, eu vi seu pai no fim da tarde. Ele estava muito aflito com o efeito do nosso relacionamento. Entendo agora como ele se sente. Ele gostaria que você encontrasse alguém mais conveniente para marido...

— Não diga isso!— exclamou Helen, colocando o dedo nos seus lábios. — Eu não quero saber como papai pensa. É você que eu amo. — Ela inclinou a cabeça. — Bolt me falou da operação...

— Eu sei - murmurou Dominic.

— Como você sabe? Ele disse?

— Ele acabou confessando...

— Você ficou com raiva dele?

— Só podia!— Dominic puxou-a para junto de si novamente. — Ah, Helen, eu fiz tudo para esquecê-la! Juro que fiz. Tentei me convencer de que não podia forçá-la a viver com um aleijado o resto da vida, mas depois... esta noite... — Ele balançou a cabeça e afundou o rosto no ombro dela. — Quando Bolt me contou que você sabia de tudo, antes de me visitar no quarto... — Ele Segurou o rosto dela nas duas mãos, em forma de concha. — Eu pensei realmente que você tinha a esperança que eu estivesse bom... curado... Helen escorregou o braço em volta do seu pescoço.

— Você está bom! Ah, Dominic, meu amor por você não depende de você mancar ou não! Eu não me importo. Eu amo você assim mesmo. — Seus lábios tremeram. — Apesar da maneira Como você me tratou...

A boca dele acariciou a sua.

— Foi tão ruim assim?

— Não, não foi - confessou Helen com um leve rubor no rosto.

— Houve momentos maravilhosos...

— Eu quase perdi a cabeça aquela manhã na sauna. Não devia ter deixado você me fazer massagem. Foi um golpe baixo...

— Você não gostou?

— Demais. Eu queria que você repetisse o tratamento de novo um dia...

— Todos os dias, se você quiser - murmurou, com os olhos brilhantes.

— Infelizmente, Bolt vai ter que continuar com essa obrigação... Você se importa?

— Não, nem um pouco. — Ela deu um suspiro fundo. Tudo parecia tão maravilhoso que não podia acreditar. — Onde vamos morar? Naquela casa?

— É muito longe de Londres.

— E daí?— acrescentou ela.

— Você não prefere estar mais perto?

— Não me diga que você quer morar na cidade!

— Se você preferir...

— E você? O que você prefere?

Ele tocou de leve com a ponta do dedo no queixo fino.

— Eu não quero afastá-la dos seus amigos e amigas, de sua família...

Pois eu gostaria de morar naquela casa! — disse Helen com sinceridade. — Não há nada mais gostoso do que morar lá no meio do mato... com você.

A expressão dos olhos dele se encobriu e, durante alguns instantes, o silêncio perdurou na sala sombria. Ele acordou finalmente de seu devaneio e afastou-a com relutância dos braços.

— Talvez fosse bom você se vestir. Seu pai deve estar de volta e não seria conveniente que a encontrasse nesses trajes. Quem sabe? Pode ser que ele concorde com o pedido...

 

Seis meses depois, Helen desceu a escada da casa antiga onde conhecera Dominic. Era uma tarde gloriosa de setembro. Ela estava especialmente encantadora aquele dia, e o vestido amplo que usava encobria a criança que esperava para breve. Olhou para o alto da escada, mas não viu sinal de Isabel nem de seu pai. Entrou por isso na sala de estar e mirou-se rapidamente no espelho do corredor com um sorriso de contentamento.

Dominic estava no escritório misturando alguns drinques no momento em que ela entrou, alto e atraente no dinner-jacket de veludo. Ele se recuperara completamente da operação e não necessitava mais andar de bengala, como no início. Fitou-a com um olhar penetrante e deixou de lado o que estava fazendo para aproximar-se dela e estreitá-la nos braços, com um gesto possessivo.

— Você está especialmente linda esta noite - murmurou no seu ouvido. — Vai contar a novidade aos dois?

Helen recuou um passo e sorriu.

— Que eles vão ser avós daqui a cinco meses?

— Isabel provavelmente já adivinhou. Você não percebeu o jeito como olhou para você no momento em que chegou? O vestido comprido pode ser acidental, mas você está começando a ter um ar diferente... um não sei o que...

— Você se importa com isso?

Ele a estreitou nos braços e afundou o pescoço no seu colo.

— Bem, eu confesso que preferia ter você para mim por mais algum tempo - disse com a voz abafada pelos cabelos soltos. — Mas como eu sou o culpado... — Desceu as mãos para as cadeiras. — Você me faz perder a cabeça. As precauções foram para o...

— Foram por água abaixo - corrigiu Helen passando os braços em volta do seu pescoço.

— Ainda bem que Bolt está aí para cuidar de mim!— disse Dominic, afastando a cabeça do seu colo. — Ah, tem alguém se aproximando. Por que voltamos para casa? Eu não gosto de dividir você com os outros...

- Querido, nós passamos quatro meses fora. Papai queria me visitar e ver pessoalmente se eu estava feliz.

— Eu sei. Não há de ser nada. — Voltou para perto do bar. — O que vamos dizer a ele? Que eu bato em você? Que eu tornei sua vida miserável?

— Como se ele fosse acreditar!— exclamou Helen, esticando os braços no alto da cabeça.

Os olhos de Dominic desceram para sua barriga.

— Talvez não.

Helen deu uma risada e. no instante seguinte, ouviram uma batida leve na porta.

— Pode entrar, Bolt.

O criado simpático entrou na sala com hesitação, mas o sorriso cordial que lançou para Helen transparecia sua aprovação pelo bom relacionamento dos dois.

— A que horas vou servir o jantar?— perguntou cerimoniosamente.

Dominic olhou para o relógio.

— Daqui a uma meia hora, por favor. Ah, por falar nisso, você já lavou fraldas na sua vida?

As sobrancelhas negras de Bolt, os únicos pêlos que tinha na cabeça, ergueram-se em sinal de surpresa.

— Não me diga que...

— Isso mesmo!— interveio Helen com um sorriso. — E nós queremos que você seja o primeiro a saber.

A expressão de Bolt foi de alegria visível.

— Parabéns e muitas felicidades aos dois!— exclamou, apertando a mão de Dominic.

Dominic estendeu-lhe um copo da bebida que preparava no bar.

— Vamos beber os três juntos. Não é todos os dias que posso me congratular de ser pai!

Bolt segurou o copo e levantou-o na direção dos dois.

— À nova geração que vem aí!

 

 

                                                                  Anne Mather

 

 

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