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A GUERRA DAS MULHERES Volume I / Alexandre Dumas
A GUERRA DAS MULHERES Volume I / Alexandre Dumas

 

 

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A GUERRA DAS MULHERES

Volume I

 

NANON DE LARTIGUES

Perto de Libourne, cidade tão alegre que se contempla nas rápidas águas do Dordonha, entre Fonsac e Saint-Michel-la-Rivière, erguia-se outrora uma linda aldeia de paredes brancas e telhados vermelhos, meio escondida sob as tílias e as faias. A estrada de Libourne a Saint-André-de-Cubzac passava entre as casas simetricamente alinhadas, e constituía a única vista que delas se desfrutava. Atrás de uma dessas fileiras de casas, pouco mais ou menos a cem passos, serpeava o rio, cuja largura e caudal começavam naquele sítio a dar indícios da vizinhança do mar.

A guerra civil, porém, passou por ali, e desde logo derribou as árvores; depois, despovoou as casas, as quais, expostas a todos os caprichosos furores da guerra, e não podendo fugir com os habitantes, se foram desmoronando sobre a relva, protestando, a seu modo, contra a barbaridade das revoluções intestinas. Mas a terra, que dir-se-ia ter sido criada para servir de sepultura a tudo quanto existe, a pouco e pouco foi cobrindo os cadáveres das casas, outrora tão alegres e tão festivas; finalmente, a erva cresceu sobre aquele chão artificial, e hoje, o viajante que segue a solitária estrada, longe está de suspeitar, ao ver pastar sobre essas elevações desiguais um dos grandes rebanhos que a cada passo se encontram no Midi, que pastor e carneiros pisam o cemitério onde dorme a aldeia.

Todavia, na época de que falamos - isto é: no mês de Maio do ano de 1650 - a aldeia em causa ocupava ambos os lados da estrada que qual grande artéria a alimentava, com um luxo de vegetação e de vida dos mais agradáveis. O viajante que então a houvesse atravessado, teria visto com prazer os camponeses ocupados em atrelar e desatrelar os cavalos da charrua, os barqueiros arrastando à praia as suas redes, nas quais saltava o peixe branco e rosado do Dordonha, e os ferradores, malhando vigorosamente na bigorna, debaixo de cujos malhos jorrava um repuxo divergente de centelhas, que alumiavam a forja a cada martelada.

O que todavia mais o teria encantado - sobretudo se a caminhada lhe abrisse o apetite que se tornou proverbial entre os que frequentam as estradas - seria, a quinhentos passos da aldeia, uma casa baixa e comprida, composta somente por um rés-do-chão e um primeiro andar, cuja chaminé exalava alguns vapores, e as janelas certos perfumes, denunciadores - ainda melhor do que o desenho de um bezerro dourado, pintado numa chapa de lata vermelha, que rangia, suspensa de um varão de ferro chumbado na cimalha do primeiro andar - que finalmente chegava a uma das casas hospitaleiras cujos moradores, mediante certa remuneração, chamam a si a tarefa de retemperar as forças dos viajantes.

Por que razão, perguntar-me-ão, estava a estalagem do Bezerro de Ouro situada a quinhentos passos da aldeia, em vez de ocupar o alinhamento natural das risonhas casas encavalitadas de ambos os lados da estrada?

Em primeiro lugar, porque, se bem que retirado naquele cantinho de terra, o respectivo proprietário, quanto à arte culinária, era um artista de primeira água. Logo, colocando-se no princípio, no meio, ou na extremidade de uma das duas compridas fileiras de casa que formavam a aldeia, arriscava-se a ser confundido com algum dos taberneiros que se via obrigado a admitir como colegas seus, mas a quem não podia resolver-se a considerar seus iguais. Pelo contrário, assim retirado, chamava a atenção dos

entendidos, os quais, logo que tivessem provado, uma só vez que fosse, os guisados da sua cozinha, diriam a quantos encontrassem :

"Quando for de Libourne a Saint-André-de-Cubzac, ou de Saint-André-de-Cubzac a Libourne, não se esqueça de parar para almoçar, jantar ou cear, na estalagem do Bezerro de Ouro, a quinhentos passos da aldeiazinha de Matifou."

E os entendedores detinham-se, saíam contentes, mandavam também outros conaisseurs, de sorte que o inteligente estalajadeiro ia insensivelmente fazendo fortuna própria, o que não o impedia

- coisa rara - de conservar a sua casa no mesmo nível gastronómico; isto prova, como já dissemos, que o senhor Biscarros era um verdadeiro artista.

Ora, numa das lindas tardes do mês de Maio, em que a natureza, já desperta nas regiões do Midi, começa a despertar no Norte, fumos mais densos e perfumes mais suaves do que os habituais saíam das chaminés e das janelas do Bezerro de Ouro, ao mesmo tempo que, à respectiva porta, o senhor Biscarros em pessoa, vestido de branco, conforme o uso dos sacrificadores de todos os tempos e de todos os países, depenava com as suas augustas mãos perdizes e codornizes, destinadas a algum dos delicados banquetes que tão habilmente sabia preparar, e a que costumava emprestar

- e isto sempre pelo amor que tinha à sua arte - todos os seus cuidados.

Começava, portanto, o dia a declinar, e as águas do Dordonha, que num dos tortuosos rodeios da sua corrente se afastavam da estrada cerca de um quarto de légua, para passarem junto do pequeno forte de Vayres, principiavam já a branquejar sob a folhagem escura das árvores; algo de sereno e de melancólico se espalhava sobre o campo, com a viração da tarde. Os lavradores deixavam-se ficar imóveis, com os cavalos desatrelados; os pescadores, faziam outro tanto, com as suas redes gotejantes os ruídos da aldeia iam findando; e, tendo ecoado a última badalada, pondo assim termo ao laborioso dia, principiou a ouvir-se o primeiro canto do rouxinol num bosque vizinho.

Logo que as primeiras notas saíram da garganta do músico emplumado, o senhor Biscarros cantou também, sem dúvida para acompanhá-lo. Em resultado desta rivalidade harmónica, e da atenção que o estalajadeiro dava ao seu trabalho, não viu um pequeno grupo, composto de seis cavaleiros, que surgia na extremidade da aldeia de Matifou, e caminhava para a estalagem.

Contudo, uma interjeição que partiu de uma janela do primeiro andar, e o movimento rápido e estrondoso com que esta se fechou, fizeram levantar o nariz ao digno estalajadeiro. Pousou então os olhos no cavaleiro que marchava à frente do grupo, o qual vinha directamente para ele.

Directamente não é o termo exacto, e apressamo-nos a emendar o nosso erro; porquanto o homem parava de vinte em vinte passos, lançando à direita e à esquerda olhos investigadores, examinando rapidamente atalhos, árvores, moitas, e segurando com uma das mãos um mosquete sobre o joelho, a fim de estar pronto para o ataque e para a defesa, e, de vez em quando, fazia sinal aos companheiros, que imitavam em tudo os seus movimentos, para que se pusessem em marcha. Então, arriscava-se a dar mais alguns passos, e a mesma manobra principiava de novo.

Biscarros seguiu com os olhos o cavaleiro, cuja singular marcha o preocupava tão furiosamente que, durante todo esse tempo, se esqueceu de arrancar do corpo da ave as penas que tinha entre o dedo polegar e o indicador.

"É um fidalgo que procura a minha casa - pensou Biscarros. - Aquele digno gentil-homem é sem dúvida míope; contudo, o meu Bezerro de Ouro está pintado de novo, e a tabuleta dá bastante na vista... Vamos, ponhamo-nos bem em evidência."

E o senhor Biscarros foi postar-se no meio da estrada, onde continuou a depenar a ave, com gestos graves e majestosos.

Este movimento produziu o resultado que esperava o estalajadeiro: mal o cavaleiro o avistou, logo se encaminhou para ele; e, saudando-o cortesmente, disse-lhe:

- Senhor Biscarros, não viu por aqui um grupo de militares, que são meus amigos, e que devem andar à minha procura?... Militares, não digo bem... Homens de espada... sim... Numa palavra: homens armados... Sim, homens armados, isto exprime melhor a minha ideia. Dar-me-á, pois, notícia de uma pequena tropa de homens armados?

Extremamente lisonjeado por se ouvir chamar pelo seu nome, Biscarros também saudou o outro afavelmente; não observara que, numa só vista de olhos que o forasteiro lançara à estalagem, lera o seu nome e a sua qualidade na tabuleta, do mesmo modo que acabava de ler a identidade da pessoa no rosto do proprietário.

- Quanto a homens armados, senhor - respondeu ele, depois de ter reflectido um instante - só vi um gentil-homem e o respectivo escudeiro, que há uma hora se acomodaram em minha casa.

- Ah!... - fez o forasteiro, passando a mão pelo imberbe rosto, onde, todavia, já se distinguia a virilidade - tem aqui na estalagem um gentil-homem e o seu escudeiro!... e ambos armados, dizia?...

- Não há dúvida, senhor, de que aqui estão; deseja que mande dizer àquele gentil-homem que lhe quer falar?

- Mas - replicou o forasteiro - não seria isso um tanto indecoroso?... Incomodar assim um desconhecido, seria talvez tratá-lo com demasiada familiaridade, mais ainda se o desconhecido é pessoa de condição. Não, não, senhor Biscarros, basta que me dê os sinais dele, ou, o que ainda melhor seria, que mo mostre sem que ele me veja.

- Mostrá-lo não será coisa fácil, senhor, visto que ele mesmo dá mostras de querer ocultar-se, pois fechou a sua janela no momento em que o senhor e os seus companheiros apareceram na estrada; dar-lhe os sinais dele será, assim, mais fácil. É um jovem louro e delicado, que poderá quando muito ter dezasseis anos, e que parece possuir justamente a força exigível para empunhar a pequena espada de salão que pende do seu boldrié.

A fronte do forasteiro enrugou-se, como se recordasse alguma coisa.

- Muito bem - disse ele. - Sei o que quer dizer: um rapaz louro e efeminado, montado num cavalo baio, e seguido de um escudeiro, velho, tão direito como o valete de espadas; não é esse a quem procuro.

- Ah! não é quem o senhor procura?... - perguntou Biscarros.

- Não.

- Pois bem, enquanto não chega aquele que o senhor procura, e que não pode deixar de passar por aqui, visto que não há outra estrada, poderia recolher-se a minha casa, para tomar algum refresco com os seus companheiros.

- O que me cumpre é dar-lhe os meus agradecimentos, e rogar-lhe que me diga que horas são.

- Estão a dar seis horas no relógio da aldeia; não ouve, senhor, as badaladas do sino grande?...

- Muito bem. Agora ainda tenho de pedir-lhe um obséquio, senhor Biscarros...

- Muito gosto terei em servi-lo.

- Faça o favor de dizer-me como poderei arranjar um barco e um barqueiro.

- Para atravessar o rio?

- Não, para dar um passeio.

- Nada mais fácil; o pescador que me abastece de peixe... Gosta de peixe, senhor?... -perguntou Biscarros, à laia de parêntesis, e tornando à sua ideia de fazer cear o forasteiro em sua casa.

- É uma comida medíocre-respondeu este.-Contudo, quando está bem temperado, não o rejeito.

- Eu tenho sempre excelente peixe.

- Por isso lhe dou os parabéns, senhor Biscarros. Falemos, porém, daquele que lhe fornece o peixe.

- Com toda a justiça. Deve a esta hora ter acabado a faina, e provavelmente está a jantar. Daqui pode ver o barco, amarrado além àqueles salgueiros, perto do ulmeiro... Quanto à casa, está encoberta com aqueles vimes... Sem dúvida alguma o encontrará à mesa.

- Obrigado, senhor Biscarros, obrigado - agradeceu o forasteiro.

E, fazendo sinal aos seus companheiros para que o seguissem, deu de esporas ao cavalo, encaminhou-se rapidamente para as árvores, e foi bater à porta da cabana designada. A mulher do pescador veio recebê-lo.

Tal como o senhor Biscarros havia dito, o pescador estava à mesa.

- Pega nos teus remos - ordenou o cavaleiro - e segue-me, se queres ganhar um escudo.

O pescador levantou-se com uma precipitação tal que bem dava a entender quão pouco generoso era o estalajadeiro do Bezerro de Ouro.

- É para ir desembarcar em Vayres? - perguntou ele.

- É unicamente para me levares até ao meio do rio, e ali te demorares comigo alguns minutos.

O pescador arregalou os olhos ao ouvir tão disparatada fantasia; mas como lhe era oferecido o lucro de um escudo, e a uns vinte passos atrás do cavaleiro que batera à porta viu desenharem-se os perfis dos companheiros, não opôs dificuldade alguma, pensando, com muito acerto, que a ausência da sua boa vontade provocaria o emprego da força, e que no conflito perderia a recompensa oferecida.

Apressou-se, portanto, a dizer ao forasteiro que estava às suas ordens, ele, o seu barco e os seus remos.

O pequeno grupo encaminhou-se logo para o rio; e enquanto o forasteiro se adiantava até à borda da água, os outros pararam no alto da ribanceira, colocando-se, sem dúvida com receio de alguma surpresa, de modo que pudessem vigiar para todos os lados. Do ponto em que se colocaram, podiam dominar ao mesmo tempo a planície que se estendia atrás deles, e proteger o embarque que se efectuava a seus pés.

Então, o forasteiro - um grande mancebo louro, pálido e nervoso, embora magro, e que tinha uma fisionomia inteligente, apesar das olheiras que circundavam os seus olhos azuis, e da expressão de cinismo vulgar que pairava nos seus lábios - o forasteiro, dizemos, inspeccionou as pistolas com cuidado, colocou o mosquete à bandoleira, fez mover uma comprida espada na respectiva bainha, e fixou os olhos atentos na margem oposta, constituída por um vasto prado cortado por uma vereda que partia da praia, e ia dar em linha recta à vila de Ison, cujo campanário denegrido, e um fumo branco, se divisavam entre a neblina dourada do entardecer.

Na outra margem também, e à distância de um quarto de légua, elevava-se, à direita, o pequeno Forte de Vayres.

- Então? - perguntou o forasteiro, que principiava a impacientar-se, dirigindo-se aos seus companheiros que estavam de sentinela - qual de vocês o vê, da direita ou da esquerda, à frente ou atrás?

- Creio - disse um dos homens - que vislumbro um grupo negro no caminho de Ison, mas ainda não estou muito certo, porque o sol me ofusca a vista. Espere... Sim... não há dúvida alguma; são eles. Um... dois... três... quatro... cinco homens: um deles de chapéu agaloado na cabeça, e capote azul. É o mensageiro que esperamos, e que para maior segurança terá arranjado escolta.

- Tem o direito de assim fazer - respondeu fleumaticamente o forasteiro. - Venha segurar-me o cavalo, Ferguzon.

O homem a quem se dava esta ordem, em tom meio amigável, meio imperativo, apressou-se a obedecer, e desceu a ribanceira; entretanto, o forasteiro apeava-se, e, no momento em que o outro chegou ao pé dele, pousou-lhe a rédea no braço e dispôs-se a entrar no barco.

- Escute - disse-lhe Ferguzon, pondo-lhe a mão no braço

- nada de afoitezas inúteis, Cauvignac! Se vir o mais pequeno movimento suspeito por parte do seu homem, principie por alojar-lhe uma bala na cabeça; bem vê que não vem mal acompanhado, o sujeito.

- Sim, mas a gente dele é menos numerosa do que a nossa. Portanto, além da nossa superioridade quanto à coragem, também a temos quanto ao número. Perante isto, nada há que temer. Ah! ah! eis as suas cabeças, que vão principiando a aparecer.

- Ora! Que irão eles fazer?... - disse Ferguzon. - Não poderão achar barco algum... Mas... ah! Avisto um, que ali se encontra como por encanto...

- É o do meu primo, o arrais da barca de Ison - informou o pescador, que parecia muito interessado nestes preparativos, e que, todavia, receava que tivesse lugar um combate naval a bordo do seu barco e do de seu primo.

- Bom, lá embarca o homem do capote azul - disse Ferguzon.

- Só, na realidade, segundo as escritas condições do ajuste.

- Não o façamos esperar-continuou o forasteiro.

E saltando por sua vez para o barco, fez sinal ao pescador que fosse ocupar o seu posto.

- Tenha todo o cuidado, Rolando - disse Ferguzon, renovando as suas prudentes recomendações. - O rio é muito largo. Não se aproxime tanto da outra margem que se exponha a receber uma descarga de mosquetaria a que não possamos responder; conserve-se, se for possível, aquém da linha de demarcação.

Aquele a quem Ferguzon chamava Rolando e Cauvignac, e que respondia a estes dois homens, sem dúvida porque um era o seu nome de baptismo, e o outro o de família - ou de guerra - fez um sinal com a cabeça.

- Nada tema - disse ele. - Pensava nisso agora mesmo: os que nada têm a arriscar, esses sim, podem cometer imprudências; o assunto, porém, é demasiado vantajoso, e por isso não devo expor-me a perder o fruto que dele devo usufruir. Portanto, se alguma imprudência se cometer nesta ocasião, não será da minha parte. Põe-te a caminho, barqueiro.

O pescador desamarrou o barco, mergulhou a comprida vara nas ervas, e principiou a distanciar-se da praia, ao mesmo tempo que da margem oposta partia o barco do barqueiro de Ison.

Havia, a meio da água, uma pequena estaca de três ramos que tinha no topo uma bandeira branca, e que servia de aviso aos compridos barcos de transporte que descem o Dordonha, por causa de um banco de rochedos cujo acesso era perigoso. Nas marés baixas, até se podia ver, negra e lisa acima da corrente do rio, a ponta desses rochedos. Mas àquela hora, que era a da preia-mar, só a pequena bandeira e uma ligeira ebulição da água, indicavam a presença do rochedo.

Os dois barqueiros sem dúvida alguma compreenderam que ali podia realizar-se a junção dos parlamentares, pelo que dirigiram para esse lado os seus barcos. O barqueiro de Ison foi o primeiro a chegar, e, de acordo com a ordem que lhe deu o seu passageiro, amarrou o barco a uma das argolas da estacada.

Nesse momento, o pescador que partira da margem oposta voltou-se para o seu viajante a fim de receber ordens, e qual não foi o seu espanto deparar com um homem mascarado e embuçado num capote.

O medo que dele se apossara, e o não deixara um só momento, redobrou então, e só a balbuciar se atreveu a pedir ordens à estranha personagem.

- Amarra o barco àquela argola - disse Cauvignac, estendendo a mão para um dos postes - o mais perto possível do barco daquele senhor.

E a sua mão estendida passou do poste designado para o gentil-homem conduzido pelo barqueiro de Ison.

O barqueiro obedeceu, e os dois barcos, que a corrente reunira bordo com bordo, permitiram aos dois plenipotenciários darem início à conferência que se segue.

 

- QUE quer isto dizer, senhor? Está mascarado!...-perguntou, com certo sobressalto à mistura de despeito, o recém-chegado, homem corpulento, que denotava ter cinquenta e cinco a cinquenta e oito anos de idade, olhos severos, fixos como os de uma ave de rapina, com bigodes e suíças encanecidas, e que, embora não tendo posto máscara, tinha pelo menos ocultado, o mais possível, os cabelos e o rosto debaixo de um grande chapéu agaloado, e o corpo e as vestes sob um amplo capote azul.

Considerando mais de perto a personagem que acabava de falar-lhe, Cauvignac não pôde deixar de denunciar o seu sobressalto, fazendo um movimento involuntário.

- Então, senhor? - perguntou o gentil-homem - que tem?

- Nada, senhor... por pouco não perdi o equilíbrio... O senhor, porém, segundo creio, dava-me a honra de me dirigir a palavra; o que era então que dizia?...

- Perguntava-lhe porque está mascarado.

- A sua pergunta é franca - disse o mancebo - e eu responderei com a mesma franqueza: mascarei-me para lhe ocultar o rosto.

- Então eu conheço-o?!...

- Não o creio; mas ao vê-lo uma vez, poderia mais tarde reconhecê-lo, o que, no meu entender pelo menos, é absolutamente inútil.

- Vejo que é franco, senhor.

- Não há dúvida de que o sou, quando da minha franqueza me não pode resultar mal algum.

- E essa franqueza chegará a ponto de revelar os segredos dos outros?...

- Sim, senhor! Quando uma tal revelação me pode render alguma coisa.

- É muito singular, o ofício que tem...

- Essa não é má, senhor! A gente faz o que pode. Tenho sido alternativamente letrado, médico, soldado, e partidário; vê por isso muito bem que por falta de profissão não serei mal sucedido.

- E agora, que faz?

- Sou seu criado - disse o mancebo, inclinando-se com afectado respeito.

- Tem o senhor a assinatura em branco que se pede?...

- Ei-la aqui.

- Quer que façamos a troca?

- Não se apresse tanto, senhor; a sua conversação agrada-me. E não quereria ver-me tão cedo privado do prazer que ela me dá.

- Não se verá, então, senhor! Ela e eu somos inteiramente seus. Conversemos, se nisso encontra prazer.

- Quer que passe para o seu barco, ou prefere passar para o meu, a fim de que no barco que ficar livre tenhamos os barqueiros afastados de nós?...

- Isso é inútil, senhor. Sem dúvida fala alguma língua estrangeira...

- Falo o espanhol.

- E eu também. Conversemos, pois, em espanhol, se é que pode fazê-lo nessa língua.

- Às mil maravilhas! Que razão - continuou o gentil-homem, adoptando desde esse momento o idioma convencionado - o decidiu a descobrir ao duque d’Épernon a infidelidade da senhora em causa?

- Quis prestar um serviço àquele digno fidalgo, e insinuar-me na sua graça.

- Então, quer mal à menina de Lartigues?...

- Quem? Eu! Muito pelo contrario! Antes lhe devo, há que confessá-lo, algumas obrigações; e muito me desgostaria se lhe acontecesse alguma desgraça.

- Então, é ao senhor barão de Canolles que tem por inimigo?

- Nunca o vi, e só o conheço pela reputação de que goza; e, devo dizê-lo, tem-na de ser honrado cavaleiro e bravo gentil-homem.

- Pelo que vejo, não é instigado por qualquer motivo de ódio...

- Nada disso! Se quisesse mal ao senhor barão de Canolles, rogar-lhe-ia que se dignasse bater-se comigo à pistola ou à espada, e ele é demasiado brioso para recusar um convite desse tipo.

- Tenho, portanto, de me cingir ao que disse...

- É, no meu entender, o que pode fazer de mais acertado.

- Muito bem! Tem então aquela carta que prova a infidelidade da menina de Lartigues, não é assim?

- Ei-la aqui! Não pretendo queixar-me, mas é a segunda vez que lha mostro.

O velho gentil-homem pousou tristemente e de longe os olhos sobre o fino papel, através do qual apareciam algumas letras. O mancebo foi abrindo vagarosamente a carta.

- Reconhece sem dúvida a letra?

- Reconheço.

- Então dê-me o papel assinado em branco, e receberá a carta.

- Assim farei. Mas permita-me que lhe faça uma pergunta...

- Fale, senhor.

E o mancebo tornou a dobrar muito sossegadamente o papel, que meteu na algibeira.

- Como conseguiu obter essa carta?

- De boa vontade lho direi.

- E eu presto-lhe atenção.

- Não ignora que a governação um tanto delapidadora do duque D’Épernon lhe tem granjeado grandes embaraços na Guiena...

- Muito bem, passemos adiante.

- Não ignora que o governo espantosamente avaro de Mazarino lhe granjeou enormes problemas na capital...

- E a que propósito são para aqui chamados Mazarino e D’Épernon?

- Espere, senhor. Destes dois governos opostos saiu um estado de coisas que muito se assemelha a uma guerra geral, na qual ninguém deixa de tomar partido. Mazarino combate neste momento pela rainha; o senhor combate pelo rei; o coadjutor pelo senhor de Beaufort; o senhor de Beaufort pela senhora de Mont-bazon; La Rochefoucaukl pela senhora de Longueville; o duque de Orleães pela menina Soyon; o Parlamento pelo povo. E, finalmente, encarceraram o senhor de Conde, que combatia pela França. Ora, a mim, que não ganhava grande coisa em combater pela rainha, pelo rei, pelo coadjutor, pelo senhor de Beaufort, pela senhora de Montbazon, pela senhora de Longueville, pela menina Soyon, pelo povo, ou pela França, ocorreu-me a ideia de não adoptar partido algum, mas sim de seguir aquele para o qual me sentisse momentaneamente impelido. Tudo, portanto, em mim, é negócio de conveniência. Que lhe parece esta ideia?

- É engenhosa.

- Em consequência, reuni um exército. Está a vê-lo, postado nas margens do Dordonha.

- Cinco homens?... Que fartura!...

- Mesmo assim mais um do que os seus. Optaria muito desacertadamente, pois, se os desprezasse.

- Muito mal vestidos - continuou o velho gentil-homem, que estava de mau humor, e por consequência disposto a tudo tratar com desprezo.

- Verdade seja dita - continuou o interlocutor - que se assemelham aos companheiros de Falstaff. Mas não se preocupe por isso. Falstaff é um gentil-homem inglês meu conhecido. Esta tarde receberam fardamento novo, e se amanhã os encontrar, verá que são na realidade belos rapazes.

- Falemos de si, nada tenho a ver com os seus homens.

- Ora, fazia eu a guerra por minha conta, encontrámos o cobrador do distrito, que andava de aldeia em aldeia enchendo a bolsa de sua majestade; enquanto não recebeu todos os tributos, sem que ficasse um único por cobrar, escoltámo-lo com toda a fidelidade; e, não posso deixar de confessá-lo, ao ver que a tal sacola se ia enchendo, tive desejo de tomar o partido do rei. Mas os acontecimentos cada vez nos vão deixando mais perplexos: um movimento de mau humor contra Mazarino, e as queixas que de todo o lado ouvíamos contra D’Épernon, fizeram-nos recobrar a razão. Pensávamos que havia algo de bom, muito até, na causa dos príncipes, e, pela minha fé, juro-vos que a abraçámos com ardor. O cobrador terminou o giro naquela casinha solitária que vê lá em baixo, no meio dos olmos e sicômoros.

- A de Nanon... - disse entre dentes o gentil-homem. - Sim, vejo-a muito bem.

- Esperámo-lo à saída, e seguimo-lo, como já fazíamos havia cinco dias; passámos com ele o Dordonha, um pouco acima de Saint-Michel, e, quando chegámos a meio do rio, dei-lhe a conhecer a nossa tendência política, convidando-o, com toda a cortesia de que sou capaz, a entregar-nos o dinheiro de que era portador. Acreditaria, senhor, que ele tanto se recusasse?... Os meus companheiros, então, revistaram-no; e como gritava de tal modo que podia dar escândalo, o meu tenente, rapaz a quem nunca faltam recursos - aquele que vê lá em baixo, de capote encarnado, segurando o meu cavalo pela rédea - reflectiu que se a água intercepta as correntes do ar, interrompe, pela mesma razão, a propagação do som (este um axioma de física, que eu, na minha qualidade de médico, compreendi e aplaudi). Então, aquele que emitira esta proposição curvou a cabeça do recalcitrante, fazendo-a entrar no rio, e conservou-a assim pelo menos palmo e meio sob a água; com efeito, não o ouviram gritar mais! Pudemos, portanto, apoderar-nos, em nome dos príncipes, de todo o dinheiro que levava, e da correspondência que lhe fora confiada. Dei o dinheiro aos meus soldados, que, como muito judiciosamente o senhor observa, têm muita necessidade de se fardarem de novo, e eu guardei os papéis; entre outros, este. Parece que o bravo cobrador servia de corretor à menina de Lartigues, nos seus amores.

- Era, com efeito - corroborou o velho gentil-homem - se não me engano, um colaborador de Nanon. E que foi feito desse

miserável?

- Ah! vai ver se fizemos bem em pôr de molho aquele miserável, como lhe chama... Teria, sem dúvida alguma, amotinado toda a terra! Imagine que, quando o tirámos do rio, apesar de não ter ficado lá mais do que um quarto de hora, morrera de raiva!

- E no rio o mergulharam de novo... certamente.

- Tal qual o diz.

- Mas se o mensageiro foi afogado...

- Eu não disse que foi afogado...

- Não alterquemos acerca de palavras; se o mensageiro morreu...

- Oh! Quanto a isso, sim, muito bem.

- O senhor de Canolles não terá recebido qualquer aviso, e, portanto, não virá ao ponto aprazado.

- Pondere bem no que lhe digo: faço guerra às potências, e não aos particulares. O senhor de Canolles recebeu uma cópia da carta que lhe aprazava o lugar onde deveria dirigir-se; não fiz mais do que guardar o manuscrito autografado, pensando que era de alguma importância.

- E que pensará ele quando não reconhecer a escrita?

- Que a pessoa que o convida a ir vê-lo, para maior precaução, se serviu de mão estranha.

O forasteiro olhou para Cauvignac com certo espanto, causado por tanta impudência aliada a tamanha firmeza de ânimo.

Tentou então encontrar meio de intimidar aquele atrevido velhaco.

- Mas, o governo?... as devassas?... - disse-lhe ele. - Não lhe dá isso algumas vezes cuidado?...

- As devassas... - replicou o mancebo rindo. - Pensa que o senhor D’Épernon não tem mais que fazer do que ocupar-se com devassas?... E, além disso, não lhe disse eu que tudo quanto fizera era para ganhar as suas graças?... Muito ingrato teria ele de ser para mas não conceder!

- Não posso compreendê-lo inteiramente - afirmou o velho gentil-homem, com ironia. - Como é possível que, tendo, como confessa, abraçado o partido dos príncipes, lhe ocorresse a estranha ideia de querer prestar serviços ao senhor D’Épernon?!

- Todavia, é a coisa mais simples do mundo: a inspecção dos papéis apanhados ao cobrador convenceu-me da pureza das intenções do rei; sua majestade está completamente justificado a meus olhos, e o duque d’Épernon tem mil razões contra os seus administradores. Deste lado, pois, é que está a boa causa, e é este o motivo por que tomei partido a favor dela.

"Aqui está um salteador que mandarei enforcar, se um dia me cair nas mãos" - murmurou o velho gentil-homem, puxando pelos eriçados bigodes.

- Dizia... ? - perguntou Cauvignac, piscando os olhos debaixo da máscara.

- Nada! Agora, mais uma pergunta: que fará da assinatura em branco que exige?

- Diabos me levem se já tomei alguma resolução a tal respeito! Pedi uma assinatura em branco, porque é a coisa mais cómoda, mais portátil e mais elástica. É provável que a guarde para dela me valer em alguma circunstância extrema, e também é muito possível que me desfaça dela por qualquer capricho, se me der na vontade fazê-lo. Talvez que eu mesmo lha apresente antes de terminar a semana, com uma dúzia de endossantes, como se fosse uma letra comercial. Mas, seja o que for, pode ficar descansado: não abusarei dela para fazer coisas de que o senhor e eu tenhamos de nos envergonhar. Em todo o caso, sou gentil-homem.

- É gentil-homem?...

- Sim, senhor, e dos melhores.

"Então, mandá-lo-ei rodar - disse consigo o desconhecido. - Para isso lhe servirá esta assinatura em branco."

- Está resolvido a dar-me essa assinatura em branco? - perguntou Cauvignac.

- Que remédio tenho senão dá-la - desabafou o velho gentil-homem.

- Não o obrigo a tanto; é necessário que nos entendamos: era uma troca que eu propunha; guarde o seu papel, e eu guardarei o meu.

- A carta?...

- A assinatura em branco?...

E com uma das mãos ofereceu a carta, enquanto na outra segurava a pistola.

- Deixe a sua pistola em paz - disse o forasteiro, desembuçando-se - pois eu também tenho pistolas; estamos igualmente armados. Jogo franco de parte a parte. Aqui está o seu papel assinado em branco.

- Aqui, a sua carta.

A troca dos papéis efectuou-se então com toda a lealdade, e cada uma das partes examinou em silêncio, com vagar e atenção, o que acabavam de receber.

- Agora, senhor - disse Cauvignac - que caminho toma? - Necessito passar para a margem direita do rio.

- E eu para a margem esquerda.

- Como faremos agora? Os meus homens estão do lado para onde vai, e os seus do lado para onde vou...

- Pois bem, nada mais fácil: mande-me os meus homens no seu barco, e eu mandar-lhe-ei os seus neste.

- Tem um espírito rápido e inventivo.

- Nasci para general de um exército.

- Já o é.

- Ah! é verdade! - disse o mancebo. - Tinha-me esquecido... O forasteiro fez sinal ao barqueiro para que desamarrasse o

barco, e o conduzisse para a margem oposta àquela de onde partira, e rumo a um bosquezinho que se prolongava até à estrada.

O mancebo, que talvez receasse qualquer traição, levantou então a cabeça para segui-lo com os olhos, o dedo sempre no gatilho da pistola, prestes a disparar, caso o forasteiro fizesse o mais pequeno movimento suspeito; mas este nem sequer se dignou criticar a desconfiança de que era objecto, e, voltando as costas ao mancebo, com uma indiferença real, ou afectada, principiou a ler a carta, ficando em breve absorto nessa leitura.

- Não se esqueça do momento aprazado - recordou Cauvignac. - Esta noite, às oito horas.

O forasteiro nada respondeu, e até não deu mostras de o ter ouvido.

"Ah! - murmurou Cauvignac, falando consigo, ao mesmo tempo que afagava a coronha da pistola. - Quando me lembro que só de mim depende deixar livre a sucessão do governador da Guiena, e pôr termo à guerra civil!... Mas uma vez morto o duque d’Épernon, de que me serviria o seu papel assinado em branco?... E terminada a guerra civil, de que viveria eu?... Na verdade, momentos há em que me parece que enlouqueço! Viva o duque d’Épernon e a guerra civil!..." - Vamos, barqueiro, toca a remar! E apressemo-nos a chegar à outra margem: é necessário que este digno senhor não tenha de esperar muito tempo pela sua escolta.

Pouco depois, Cauvignac chegava à margem esquerda do Dor-donha, justamente no momento em que o velho gentil-homem lhe mandava Ferguzon e os seus cinco bandidos, no barco de passagem de Ison. Não quis mostrar-se menos pontual do que ele, e ainda no rio renovou ao barqueiro a ordem de receber no seu barco, e conduzir para a margem direita, os quatro homens do desconhecido. Os dois grupos cruzaram-se e saudaram-se cortesmente, depois do que cada um chegou ao ponto onde era aguardado. Então, o velho gentil-homem embrenhou-se com a sua escolta na mata que se estendia das praias do rio à estrada real; e Cauvignac, à frente

do seu "exército", tomou a vereda que desembocava em Ison.

 

PASSADA meia hora sobre a cena que acabámos de referir, a mesma janela da estalagem do senhor Biscarros, que tão veementemente se fechara, abriu-se de novo, com precaução, e, no parapeito, depois de haver olhado à direita e à esquerda, apoiou os cotovelos um jovem de dezasseis a dezoito anos, vestido de preto, camisa de punhos, como então usavam; os folhos bordados da mesma, que eram de cambraia fina, saíam altaneiramente do casacão e caíam ondulando sobre as calças, adornadas de fitas. As pequenas mãos, elegantes e cheias, o que denunciava serem de raça nobre, amarrotavam com impaciência umas luvas de camurça bordadas nas costuras; um chapéu pardo, com uma magnífica pluma azul, sombreava-lhe o comprido cabelo, cintilante de reflexos dourados, que de forma maravilhosa emolduravam um rosto oval, de tez branca, lábios rosados, e sobrancelhas pretas. Haverá porém que dizer que todo este gracioso conjunto, o qual devia fazer do mancebo um dos mais encantadores cavaleiros que se pudessem ver, estava naquele momento ensombrado por um certo ar de mau humor, que sem dúvida provinha de uma espera em vão, visto que o mancebo interrogava com os seus atentos olhos a estrada, já mergulhada ao longe na bruma da noite.

Dada a impaciência em que estava, batia com as luvas na mão esquerda. Com o barulho que fazia, o estalajadeiro, que acabava de depenar as perdizes, levantou a cabeça, e, tirando o barrete, disse:

- A que horas quer cear, meu cavaleiro? Pois já só se esperam as suas ordens para ser servido.

- Bem sabe que não ceio só, e que espero um companheiro - retorquiu o mancebo. - Quando o vir chegar, poderá servir a ceia.

- Ah! senhor - respondeu Biscarros - não pretendo censurar o seu amigo, pois que sem dúvida poderá vir ou deixar de vir, como bem lhe aprouver; mas é um hábito muito mau fazer esperar tanto tempo.

- Contudo, ele não costuma fazer-se esperar, e muito me surpreende uma tal tardança.

- E a mim não só me causa espanto, senhor, mas muito me aflige: queimar-se-á o assado.

- Tire-o do espeto.

- Então arrefecerá.

- Ponha outro assado ao lume.

- Não haverá tempo para temperá-lo.

- Nesse caso, meu amigo, faça o que quiser - concluiu o mancebo, não podendo, apesar do seu mau humor, deixar de sorrir pelo desespero em que via o estalajadeiro. - Entrego o caso à sua suprema sabedoria.

- Não há sabedoria, ainda que fosse a do rei Salomão - respondeu o estalajadeiro - que possa tornar tragável um jantar requentado.

E sobre este axioma, que vinte anos mais tarde Boileau poria em verso, o senhor Biscarros tornou a entrar na estalagem, sacudindo dolorosamente a cabeça.

Então, como se quisesse distrair-se da sua impaciência, o jovem recolheu ao seu quarto; fez, por um momento, ranger as botas no sobrado retumbante, e, depois, parecendo-lhe ouvir ao longe passos de cavalos, voltou apressadamente para a janela. - Enfim! - exclamou. - Ei-lo que chega! Deus seja louvado! Com efeito, além da mata onde cantava o rouxinol, a cujos acentos melodiosos o mancebo, sem dúvida devido à sua preocupação, não ligara a mínima importância, viu aparecer a cabeça de um cavaleiro; mas ficou muito surpreendido por esperar em vão que o cavaleiro desembocasse na estrada; o recém-chegado tomou à direita, entrou na mata, e em breve o seu chapéu se sumiu, prova certa de que o cavaleiro se apeara. Passado um momento, o observador avistou, através dos ramos desviados com cautela, uma casaca esbranquiçada, e o fulgor de um dos últimos raios de sol no ocaso, reflectido no cano de um mosquete.

O mancebo deixou-se ficar pensativo à janela; evidentemente que o cavaleiro oculto na mata não era o companheiro que esperava, e a expressão de impaciência que enrugava o seu expressivo rosto deu lugar a uma máscara de curiosidade.

Em breve um segundo chapéu surgiu na curva da estrada; o jovem recuou de maneira a que o não vissem.

A mesma casaca clara, o mesmo manejo do cavalo, o mesmo mosquete brilhante. O recém-chegado dirigiu ao primeiro algumas palavras, que o nosso observador não pôde ouvir devido à distância, e, em consequência das informações que decerto lhe deu o companheiro, embrenhou-se no bosque paralelo à mata, apeou-se por seu turno, foi anichar-se atrás de um rochedo, e ficou à espera. Do ponto elevado em que estava, o mancebo divisava o chapéu por cima do rochedo. Ao lado do chapéu cintilava um ponto luminoso: era a extremidade do cano do mosquete.

Um sentimento de vago terror se apossou do espírito do gentil-homem, que olhava para esta cena ocultando-se cada vez mais.

"Oh! oh! - perguntou ele a si próprio - será a mim e aos mil luíses que levo comigo que quererão lançar mão?... Mas... não, porquanto, na suposição de que Richon chegue, e de que eu possa pôr-me a caminho esta noite, vou a Libourne, e não a Saint-André-de-Cubzac; por conseguinte, não passo por onde aqueles tratantes estão emboscados. Se o meu velho Pompeu aqui estivesse, consultá-lo-ia. Mas... se não me engano... sim, pela minha fé! são dois homens mais... vêm juntar-se aos outros dois... Olá... isto tem toda a aparência de uma emboscada!..."

E o jovem deu outro passo à retaguarda.

Na verdade, neste momento surgiam outros dois cavaleiros na mesma curva da estrada. Desta vez, porém, só um deles trazia casaca clara. O outro, montado num possante cavalo preto, e embuçado num amplo capote, usava o chapéu agaloado, adornado com uma pluma branca, e debaixo deste capote, que a brisa da tarde levantava, via-se refulgir um rico bordado numa sobrecasaca de cor nacarada.

Dir-se-ia que o dia se prolongava para iluminar esta cena, porque os últimos raios de sol, rompendo por entre uma daquelas densas brumas que às vezes se estendem de um modo tão pitoresco no horizonte, acenderam repentinamente milhares de rubis nas vidraças de uma linda casa situada a uns cem passos do rio, e na qual o mancebo não teria reparado não fora esta circunstância, uma vez que estava oculta entre os ramos de uma densa mata. Este reforce de luz desde logo deu a conhecer que os olhos dos espias se dirigiam alternativamente para a entrada da aldeia e para a pequena casa dos vidros refulgentes, e que os das casacas pareciam ter o maior respeito ao da pluma branca, a quem só falavam com o chapéu na mão. Por fim, tendo-se aberto uma das janelas iluminadas, uma mulher apresentou-se ao balcão, inclinou-se por um momento, como se esperasse alguém, e logo se recolheu, com receio sem dúvida de ser vista.

Ao mesmo tempo que se recolhia, o Sol baixava para além da montanha; à medida que ia baixando, o andar térreo da casa parecia sumir-se na escuridão, e a luz, abandonando pouco a pouco as janelas, subia ao telhado de ardósias e desaparecia de todo,

depois de ter refulgido por um momento num feixe de frechas de ouro que servia de grimpa.

Para qualquer espírito dotado de mediana inteligência, havia um número suficiente de indicios, e sobre esses indícios podiam estabelecer-se, senão certezas, pelo menos probabilidades.

Provável seria que aqueles homens vigiavam a pequena casa isolada, a cuja varanda uma mulher se apresentara momentaneamente. Era portanto viável que a mulher e os homens esperassem a mesma pessoa, mas com intenções muito diversas. Era também provável que a pessoa por quem esperavam viesse da aldeia e, por consequência, passasse diante da estalagem, situada a meio caminho entre a aldeia e a mata, da mesma forma que a própria mata se situava a meio caminho entre a estalagem e a casa. Finalmente, era provável que o cavaleiro da pluma branca fosse o chefe dos cavaleiros de casacas esbranquiçadas, e que, tendo em conta o ardor de que dava mostras, erguendo-se sobre os estribos para ver mais ao longe, este chefe tivesse ciúmes - e sem dúvida alguma andava à espreita por sua própria conta.

No momento em que o mancebo concluía mentalmente esta série de conjecturas, que se encandeavam umas nas outras, a porta do quarto abriu-se, e entrou o senhor Biscarros.

- Caro patrão - disse o jovem, sem dar tempo àquele que tão a propósito entrava no seu quarto para que lhe expusesse o motivo da sua visita (motivo que ele não deixava de adivinhar) - venha cá, e diga-me, se acaso não é indiscreta a minha pergunta, a quem pertence a pequena casa que se vê lá em baixo, como um ponto branco no meio dos olmos e dos sicômoros.

O estalajadeiro seguiu com os olhos a direcção do dedo e, coçando a testa, respondeu com um sorriso que tentava impregnar malícia:

- Pela minha fé! Ora a um, ora a outro. A si, se tem qualquer razão para desejar o isolamento... quer deseje ocultar a sua pessoa... quer deseje simplesmente esconder alguém...

O mancebo corou.

- Mas hoje - perguntou ele - quem habita essa casa?

- Uma jovem senhora, que se diz viúva, a quem a sombra do primeiro marido - e talvez que também a do segundo - vem visitar de vez em quando. Em tudo isto apenas um reparo: as duas sombras devem provavelmente estar combinadas, visto que nunca se apresentam ao mesmo tempo.

- E desde quando - perguntou o mancebo, sorrindo - habita a formosa viúva essa casa solitária e tão cómoda para as aparições?

- Haverá uns dois meses. Quanto ao resto, vive retirada de todo, e creio que há dois meses a esta parte ninguém pode gabar-se de a ter visto, porque sai raríssimas vezes, e sempre coberta com um véu. Uma pequena aia, muito linda, na realidade, vem todas as manhãs informar-me acerca das iguarias que pretende para o dia: lá se lhe levam; recebe os pratos no vestíbulo, paga generosamente a conta, e no mesmo instante bate com a porta nas ventas do moço. Esta noite, por exemplo, há um banquete, e era para ela que preparava as codornizes e as perdizes que me viu depenar.

- E a quem dá ela de cear?

- Sem dúvida a uma das suas sombras de que já falei.

- Viu alguma vez essas sombras?

- Sim, senhor; mas só passam à noite, depois do sol-posto, ou de madrugada, antes que seja dia.

- Mesmo assim tenho a certeza de que as distinguiu, meu caro Biscarros, pois assim que abre a boca, logo se vê que é um bom observador. Vejamos, que notou de especial no porte das duas sombras?

- Uma é a de um homem de sessenta a sessenta e cinco anos, e parece-me ser a do primeiro marido, porque se apresenta como uma sombra consciente da autoridade dos seus direitos. A outra, é a de um mancebo de vinte e seis a vinte e oito anos - e esta, cumpre-me dizê-lo, é mais tímida, e tem de todo em tudo os ares de uma alma que anda penando. E por isso juraria que é a do segundo marido.

- E para que horas lhe ordenaram que aprontasse a ceia de hoje?

- Para as oito.

- São sete e meia - afirmou o mancebo, puxando por um belo relógio que já por diferentes vezes havia consultado. - Não pode, portanto, perder tempo.

- Oh! estará pronta, sossegue a esse respeito. Subi apenas para lhe falar da ceia de vossa senhoria, e para lhe dizer que recomecei a confeccioná-la, completamente. Agora, já que o seu companheiro tanto tem tardado, trate de arranjar as coisas de modo a que não chegue aqui antes que se tenha passado uma hora.

- Preste-me atenção, meu amigo - disse o jovem cavaleiro, no tom de um homem para quem o grave negócio de uma ceia servida a hora certa é coisa de pouca monta - não se atormente por causa da nossa ceia, pois ainda que a pessoa por quem espero chegasse, como temos de conversar, se a ceia não estiver pronta, conversaremos antes; se, pelo contrário, estiver pronta, conversaremos depois.

- Na verdade, senhor - volveu o estalajadeiro - é um gentil-homem muito condescendente; e já que confia em mim, esteja certo de que ficará satisfeito.

Dito isto, o senhor Biscarros fez uma profunda vénia, a que o jovem correspondeu com um ligeiro aceno de cabeça, e saiu.

"E agora - pensou o mancebo, ocupando novamente, com toda a curiosidade, o seu posto na janela - tudo compreendo. A senhora espera alguém que deve vir de Libourne, e os homens do bosque propõem-se interceptar o visitante antes que este tenha tempo de bater à porta."

Ao mesmo tempo, como que a justificar as previsões do sagaz observador, ouviram-se à sua esquerda os passos de um cavalo. No mesmo instante, os olhos do mancebo volveram-se com a rapidez do raio, a examinar a atitude dos homens emboscados. Apesar de a noite começar a confundir os objectos numa meia escuridade, pareceu-lhe que uns desviavam os arbustos e outros levantavam as cabeças a fim de olharem por cima do rochedo, preparando-se, uns e outros, para um movimento que tinha toda a aparência de agressão. Ao mesmo tempo, o ruído de armar os mosquetes feriu-lhe por três vezes os ouvidos e fez-lhe estremecer o coração. Voltou-se então rapidamente para o lado de Libourne, a fim de ver se descobria o homem a quem este ruído mortífero ameaçava, " viu, montado num formoso cavalo, caminhando a trote, aparecer, bizarro e ufano, com ar triunfador, um belo mancebo, cujo curto capote, forrado de cetim branco, deixava elegantemente descoberto o ombro direito. De longe, esta figura parecia cheia de elegância, de terna poesia, e de forte orgulho. Vista de mais perto, era composta por um rosto regular e mimoso, de boas cores, olhos ardentes, boca um tanto aberta pelo hábito de sorrir, bigodes negros e delicados, dentes finos e brancos. Um elegante pingalim, um ligeiro assobiar, semelhante ao dos pintassilgos daquela época, divulgado e posto na moda pelo senhor Gastão de Orleães, completavam um perfeito cavaleiro, segundo as leis da elegância que estavam em vigor na corte de França, que já então começava a dar o tom a todas as outras cortes da Europa.

Cerca de cinquenta passos atrás dele, e montado num cavalo cuja passada regulava pela do cavalo do primeiro cavaleiro, vinha um lacaio, muito afectado e emproado, que parecia ocupar entre os criados uma distinção tão marcada como a do respectivo amo entre os gentis-homens.

O formoso adolescente que se conservava à janela da estalagem, sem dúvida demasiado jovem para assistir imóvel a uma cena semelhante àquela de que ia ser testemunha, não pôde deixar de estremecer ao pensar que os dois distintos homens que se aproximavam tão descuidados e com tamanha segurança, seriam mortos a tiro, com toda a probabilidade, logo que chegassem à emboscada onde os esperavam.

Então, um rápido combate pareceu ter lugar no ânimo do jovem, entre a timidez da idade, e o amor ao próximo. Por fim, venceu o sentimento generoso. E como o cavaleiro ia passar diante da porta da estalagem sem ao menos olhar para o lado onde se encontrava, o mancebo, cedendo a um súbito impulso, a uma resolução irresistível, debruçou-se da janela, e, dirigindo-se ao elegante viajante, bradou:

- Olá, senhor! Peço-lhe que pare, pois tenho de comunicar-lhe algo bastante importante.

Ouvindo a voz e estas palavras, o cavaleiro ergueu a cabeça, e ao ver o jovem à janela, deteve o cavalo com um movimento de mão de que não desdenharia o melhor cavaleiro.

- Não faça parar o seu cavalo, senhor - continuou o jovem. - Pelo contrário: aproxime-se de mim sem afectação e como se me conhecesse.

O cavaleiro hesitou um momento; mas reconhecendo pelo gesto daquele que lhe falara que se tratava de um gentil-homem de belo porte e boa fisionomia, tirou o chapéu, e adiantou-se sorrindo.

- Aqui me tem às suas ordens, senhor - disse ele. - Em que posso servi-lo?

- Aproxime-se ainda mais, senhor - continuou o desconhecido da janela - pois o que tenho que dizer-lhe não pode ser dito em voz alta. Torne a pôr o chapéu, porque é necessário que nos julguem conhecidos de há muito, e que é a mim quem veio procurar nesta estalagem.

- Mas, senhor... - estranhou o passageiro - não posso compreender. ..

- Não tardará a compreender. Entretanto, cubra-se... Muito bem. Chegue-se mais perto... mais perto ainda... Estenda-me a mão... isso mesmo. Estou encantado em vê-lo! Agora, não passe desta estalagem, pois se tal fizer está perdido.

- Mas então que novidade há? Na verdade, assusta-me!- disse, sorrindo, o cavaleiro.

- O que há de novo... Encaminha-se para aquela casinha onde se vê brilhar luz, não é assim?...

O cavaleiro fez um aceno.

- Mas no caminho dessa casa, ali, onde a estrada faz um cotovelo, naquele bosque sombrio, quatro homens estão emboscados à sua espera.

- Ah!... - fez o cavaleiro, cravando os olhos no pequeno e pálido mancebo. - Está bem certo disso?...

- Vi-os chegar uns atrás dos outros, apearem-se e ocultarem-se, uns atrás das árvores, outros para além dos rochedos. Finalmente, quando há pouco desembocou da aldeia, ouvi-os carregarem os mosquetes.

- Essa agora!...-exclamou o cavaleiro, que por seu turno começava a assustar-se.

- Sim, senhor, é como lhe digo - continuou o mancebo. - E se não estivesse tão escuro, talvez que os pudesse ver e reconhecer.

- Oh!-volveu o viajante - não tenho necessidade de reconhecê-los: sei muito bem quem são esses homens. Mas ao senhor, quem lhe disse que me dirigia àquela casa, e que era a mim que assim espreitavam?

- Adivinhei-o.

- É um adivinho muito encantador; eu agradeço-lho. Ah! querem arcabuzar-me, hem?... E quanto são eles, para levaram a efeito essa bela operação?

- Quatro, um dos quais deve ser o chefe.

- Esse chefe não parece mais idoso do que os outros?...

- Sim, senhor, tanto quanto pude julgar daqui.

- Curvado?...

- De espáduas largas e arqueadas, pluma branca no chapéu, casaco bordado, capote pardo; gesto não comum, mas severo e imperioso.

- Não há que duvidar: é o duque d’Épernon!... - exclamou o gentil-homem. - Pois bem, não posso deixar de lhe dar conta dos meus negócios... e a sorte sempre me reserva cada um! Mas não importa; o serviço que me rendeu é de suma importância, e, portanto, nenhum motivo posso ter de desconfiança a seu respeito. E os que o acompanhavam, qual era o respectivo trajo?

- Casacas pardas.

- É isso, justamente; são os seus porta-cacetes! Juro-lhe pela minha honra que lhe fico muito agradecido. E agora, meu gentil-homem, sabe o que deveria fazer?...

- Não, senhor; mas diga-me o seu parecer, e se o que eu faça puder ser-lhe útil, de antemão me sinto a isso absolutamente disposto.

- Tem armas?

- Mas... Sim, tenho a minha espada.

- Tem o seu lacaio?

- Sem dúvida; mas não está agora aqui; mandei-o ao encontro de uma pessoa por quem espero.

- Pois bem, deve ajudar-me num ataque repentino.

- Com que fim?

- Com o fim de cairmos sobre aqueles miseráveis, e fazer-lhes pedir misericórdia, tanto a eles, como ao seu chefe.

- Está louco, senhor! - exclamou o mancebo, com um acento que provava não estar de modo algum disposto a tal expedição.

- Com efeito... peço-lhe desculpa - disse o viajante. - Esquecia-me de que este assunto não lhe diz respeito.

Em seguida, voltando-se para o lacaio, que ao ver parar o amo, fizera por sua vez alto conservando-se a certa distância:

- Castorin! - disse ele. - Venha cá.

E ao mesmo tempo levou a mão aos coldres, como se quisesse certificar-se de que as suas pistolas estavam em bom estado.

- Ah! senhor - exclamou o jovem gentil-homem, estendendo o braço como para o deter. - Senhor, em nome do céu! Não vá arriscar a vida numa tal aventura! Entre antes na estalagem, a fim de não levantar suspeita alguma àqueles que o esperam. Lembre-se de que se trata da honra de uma mulher.

- Tem razão - condescendeu o cavaleiro - apesar de que nesta circunstância se não trate precisamente da honra, mas sim da riqueza. Castorin, meu amigo - continuou, dirigindo-se ao lacaio que se lhe havia reunido - não iremos mais longe, por ora.

- Como?...-exclamou Castorin, quase tão espantado como o amo. - Que diz o senhor?

- Digo que a menina Francineta ficará esta noite privada da honra de nos receber, visto que ficamos na estalagem do Bezerro de Ouro. Entre, pois; mande aprontar a ceia, e preparar uma cama para mim.

E como o cavaleiro sem dúvida percebeu que Castorin se dispunha a replicar, acompanhou estas últimas palavras com um movimento de cabeça que não admitia réplica. E, portanto, Castorin desapareceu sob o portal, de orelha murcha e sem se atrever a dizer palavra.

O cavaleiro seguiu Castorin um instante com os olhos, e, em seguida, depois de haver reflectido, pareceu tomar uma resolução. Apeou-se, entrou no portal atrás do lacaio, lançou-lhe a rédea do cavalo no braço, e em dois pulos chegou ao quarto do jovem gentil-homem; este, vendo abrir-se repentinamente a porta, deu mostras de sobressalto e susto, que o recém-chegado não pôde ver por causa da escuridão.

- Sim - disse o cavaleiro, aproximando-se alegremente do mancebo, pegando-lhe na mão, que sacudiu cordialmente, sem que o outro lha estendesse - não há a mínima dúvida: é a si que devo a vida.

- Ah! senhor, exagera o favor que lhe prestei - emendou o mancebo, recuando um passo.

- Não, senhor, nada de modéstia! É como lhe digo. Eu conheço o duque: é um homem sumamente brutal. Quanto a si, é um modelo de perspicácia, um modelo de caridade cristã. Mas, diga-me, já que é tão amável, tão compreensivo: chegaria a sua bondade ao ponto de mandar aviso à casa?...

- A qual casa?

- A qual casa havia de ser? À casa aonde me dirigia, à casa em que me esperam...

- Não, senhor - negou o jovem - de tal não me lembrei, confesso; além do que, mesmo que me tivesse lembrado, não tinha meios de fazê-lo. Ainda não há mais de duas horas que aqui cheguei, e não conheço ninguém nesta casa.

- Ai de mim! - queixou-se o viajante, fazendo um movimento de inquietação.-Pobre Nanon!... Contanto que não lhe aconteça mal algum!...

- Nanon?... Nanon de Lartigues?!... - exclamou o mancebo, estupefacto.

- Pelo que vejo, é decididamente feiticeiro! - admirou-se o passageiro. - Vê emboscarem-se uns tipos numa estrada, e adivinha a quem querem matar; digo-lhe um nome de baptismo, e adivinha o nome de família. Vamos, explique-se sem a mínima demora, senão vou denunciá-lo, e fazer com que o condenem à fogueira pelo Parlamento de Bordéus.

- Ah! desta vez, terá de concordar - replicou o mancebo - não era preciso ser muito esperto para chegar a saber quem era a pessoa que queria ocultar: uma vez que nomeou o duque d’Épernon como seu rival, era evidente que se nomeasse uma Nanon, não podia deixar de ser Nanon de Lartigues, tão formosa, tão rica, tão espirituosa, segundo dizem, que enfeitiçou o duque, e que governa o seu estado - o que faz com que em toda a Guiena seja tão execrada como ele... E para casa daquela mulher é que o senhor ia!... - continuou o mancebo, em tom de repreensão.

- Pela minha fé, que para lá ia, eu o confesso; e já que a nomeei, não me desdigo. Nanon é uma mulher encantadora, muito fiel às suas promessas enquanto sente prazer em guardá-las, e capaz do mais extremoso afecto para com aquele a quem ama, enquanto o ama. Eu devia cear com ela esta noite, mas o duque veio transtornar o plano. Quer que eu amanhã o apresente a ela?... Que remédio terá o duque, mais tarde ou mais cedo, senão voltar para AgenL.

- Obrigado - disse em tom seco o jovem gentil-homem. - Não conheço a menina de Lartigues, senão de nome, nem desejo conhecê-la de outro modo.

- Não tem por certo razão! Nanon é uma senhora digna de ser conhecida de todos os modos.

As sobrancelhas do mancebo franziram-se.

- Ah! peço-lhe desculpa - continuou o cavaleiro, espantado - mas eu acreditava que na sua idade...

- Sem dúvida que é na minha idade que normalmente se recebem semelhantes proposições - atalhou o jovem, dando-se conta do mau efeito produzido pelo seu rigor. - E eu de boa vontade aceitaria o seu oferecimento, se não estivesse aqui de passagem, e não me visse obrigado a pôr-me a caminho esta mesma noite.

- Oh! daqui não sairá sem que pelo menos eu saiba quem é o gentil cavaleiro que teve a bondade de salvar-me a vida.

O mancebo pareceu hesitar; passado, porém, um instante:

- Sou o visconde de Cambes.

- Ah!... - fez o interlocutor.-Tenho ouvido falar de uma linda viscondessa de Cambes, que tem grandes propriedades nas vizinhanças de Bordéus, e que é amiga da princesa.

- É minha parenta - disse com vivacidade o mancebo.

- Felicito-o por isso, senhor visconde, pois dizem ser uma senhora incomparável. Espero que, se a ocasião me favorecer neste ponto, ma apresentará. Eu sou o barão de Canolles, capitão no regimento de Navailles, e actualmente de licença, a qual o senhor duque d’Épernon foi forçado a conceder-me em virtude de uma recomendação da menina de Lartigues.

- O barão de Canolles!... - exclamou por seu turno o visconde, olhando para o interlocutor com curiosidade total, despertada por este nome, famoso pelas aventuras amorosas do tempo.

- Conhece-me?... - perguntou Canolles.

- De reputação, somente - respondeu o visconde.

- E má reputação, não é verdade?... Que quer?! Cada um tem o seu fadário; a mim, agrada-me a vida agitada.

- Tem toda a liberdade, senhor, para viver como lhe apraz - respondeu o visconde. - Permitir-me-á, todavia, que lhe faça uma observação...

- Qual?

- Que há uma senhora terrivelmente comprometida por sua causa, e que será o alvo da vingança do duque pelo desgosto que ela lhe dá, e por sua culpa.

- Julga que assim será?

- Sem dúvida. Apesar de... leviana... a menina de Lartigues não deixa de ser mulher, nem de ter sido comprometida pelo senhor: e, portanto, cumpre-lhe tratar da segurança dela.

- Pela minha fé, que tem razão, meu jovem Nestor! Esquecia-me, enlevado no encanto da sua conversa, dos meus deveres de gentil-homem. Fomos sem dúvida atraiçoados, e é muito provável que o duque saiba tudo. Na verdade, se Nanon pudesse ser informada a tempo do que se passa, seria suficientemente hábil e astuta para fazer com que o duque lhe pedisse perdão. Vejamos... vejamos, pois... Conhece a arte da guerra, jovem?...

- Ainda não - respondeu o visconde, rindo. - Mas creio que vou aprendê-la consigo.

- Pois bem, eis a primeira lição: sabe que na guerra, quando a força é inútil, é preferível empregar a astúcia. Para utilizar este meio, quer ajudar-me a urdir um plano?...

- De muito boa vontade. Mas de que maneira? Explique-se.

- A estalagem tem duas portas.

- Quanto a isso, nada sei.

- Mas sei-o eu muito bem; uma dá para a estrada real, a outra para o campo; saio por esta última, descrevo um semicírculo, e vou para junto de Nanon, entrando em casa por uma porta que também abre para o campo.

- Sim, para que o surpreendam naquela casa! - exclamou o visconde. - Vejo, na verdade, que de táctica sabe como ninguém!...

- Para que me surpreendam?... - estranhou Canolles.

- Sem dúvida! O duque, cansado de esperar, e não o vendo sair daqui, voltará para casa.

- Sim, mas eu não farei mais do que entrar e sair.

- Uma vez que entre... não tornará a sair.

- Não posso já duvidar, jovem - disse Canolles. - Você é um feiticeiro!

- Surpreendê-lo-ão, será talvez morto à frente dela. Eis como tudo terminará.

- Nada disso! - opôs-se Canolles. - Há os armários.

- Oh! - fez o visconde.

Este oh! foi pronunciado de tal forma, com entonação tão eloquente, continha tantas repreensões veladas, tanta vergonha pudica, tão suave delicadeza, que Canolles ficou subitamente comprometido, e apesar da escuridão cravou os seus penetrantes olhos no mancebo, que tinha o cotovelo encostado ao parapeito da janela.

O visconde sentiu todo o peso deste olhar, e continuou, com ar alegre:

- Na realidade, senhor barão, tem razão. Vá lá; mas oculte-se com todo o cuidado, a fim de não ser surpreendido.

- Ora, pois, não irei - disse Canolles. - Não tenho razão, o senhor é que a tem. Mas como a informarei sobre o que se passa?

- Parece-me que uma carta...

- Quem a levará?...

- Se não me engano, acompanha-o um lacaio. E, numa tal circunstância, o único risco que um lacaio corre é o de levar algumas pauladas, ao passo que um gentil-homem arrisca a vida.

- Na verdade que não sei onde tenho a cabeça! - exclamou Canolles. - Castorin poderá desempenhar às mil maravilhas a missão, tanto mais que tenho suspeitas de que aquele tratante tem suas inteligências lá na casa.

- Bem vê que tudo se pode arranjar assim - disse o visconde.

- Sim; tem tinta, papel e penas?

- Não - respondeu o visconde. - Mas lá em baixo há de tudo isso.

- Dê-me licença - disse Canolles. - Na verdade, não sei o que tenho esta noite, que não faço senão asneiras sobre asneiras! Não importa. Agradeço-lhe os seus bons conselhos, senhor visconde, e vou segui-los desde já.

Sem tirar os olhos do mancebo, a quem desde alguns momentos examinava com singular tenacidade, Canolles saiu do quarto, e desceu a escada, enquanto o visconde, inquieto e quase perturbado, dizia consigo:

"Como olha para mim!... Ter-me-á ele reconhecido?..." Contudo, Canolles tinha descido; e depois de haver olhado um momento, como homem profundamente magoado, para as codornizes, perdizes, e outras iguarias, que Biscarros ia arrumando num cesto colocado à cabeça do seu ajudante de cozinha, iguarias que outrem que não ele ia talvez comer- apesar de, sem a mínima dúvida, lhe serem destinadas - pediu que o encaminhassem ao quarto que devia ter-lhe preparado Castorin. Para ali mandou levar tinta, penas e papel, e escreveu a Nanon a carta que se segue:

Querida senhora:

A cem passos da sua porta, se a natureza dotou os seus belos olhos com a faculdade de ver à noite, pode distinguir, num arvoredo, o senhor duque d’Épernon, que está à minha espera, para me fazer arcabuzar e para a comprometer, depois, horrivelmente. Porém, não sinto o mínimo desejo de perder a vida, nem de fazer com que a senhora perca o seu descanso. Fique, pois, sossegada a este respeito. Quanto a mim, vou usufruir da licença que o fez assinar há dias, a fim de que me aproveitasse da minha liberdade para vir vê-la. Para onde vou, nem sequer eu sei, e até ignoro se vou para alguma parte. Aconteça, porém, o que acontecer, tome a chamar o seu fugitivo, quando a tormenta houver passado. No Bezerro de Ouro dir-lhe-ão que estrada segui. Alegro-me por saber que compreenderá o sacrifício que me imponho, mas os seus interesses são-me mais caros do que o meu prazer - pois não teria deixado de senti-lo ao desancar o senhor d’Épernon e os seus esbirros, escondidos sob o seu disfarce. Portanto, minha querida, creia que sou todo seu e que, sobretudo, lhe sou muito fiel.

Canolles assinou este bilhete, no qual reinava toda a jactância do gascão que sabia muito bem o efeito que produziria na gascoa Nanon; depois, chamando o seu lacaio:

- Venha cá, Castorin - disse-lhe ele - e confesse-me ingenuamente em que posição está, relativamente aos seus amores com Francineta.

- Mas, senhor... - respondeu Castorin, muito espantado com semelhante pergunta - não sei se devo...

- Nada receie. Não tenho qualquer intenção a respeito dela, e não terá a honra de ser meu rival. O que lhe peço não passa de uma simples informação.

- Ah! nesse caso, senhor, a coisa é muito diferente... A menina Francineta teve inteligência bastante para apreciar as minhas boas qualidades...

- Quer dizer que está como queria, senhor vilão ruim... Muito bem. Pegue neste bilhete, e depois dê uma volta pelo prado.

- Eu sei muito bem o caminho, senhor - disse Castorin, com certo ar de importância.

- Bata à porta que dá para o campo. Essa porta também não lhe deve ser desconhecida...

- Não, senhor.

- Cada vez melhor. Tome, pois, esse caminho, vá bater a essa porta, e entregue esta carta à menina Francineta.

- Em tal caso, senhor - disse Castorin muito satisfeito - posso...

- Pode partir imediatamente. Dou-lhe dez minutos para ir e voltar. É preciso que esta carta seja entregue imediatamente à menina Nanon de Lartigues.

- Mas, senhor... - objectou Castorin, que receava algum contratempo- e se não me abrirem a porta?...

- Passará por tolo, porquanto deve ter algum modo especial de bater, mercê do qual não se deixa no campo um homem sem lhe dar entrada; se assim não acontecesse, sou um gentil-homem muito digno de lástima, por ter ao meu serviço um semelhante imbecil.

- Sei como hei-de bater, senhor - volveu Castorin, com ar triunfante. - Bato logo duas pancadas seguidas e por fim uma terceira.

- Não lhe pergunto o modo como bate: isso é coisa que pouco me importa, contanto que lhe dêem entrada. Vá, pois; e se for surpreendido, mastigue o papel e engula-o; se assim o não fizer, mandarei cortar-lhe as orelhas, quando voltar.

Castorin partiu como um raio. Chegando ao fundo da escada, porém, e em detrimento de todas as regras, meteu o bilhete no alto da sua bota. Depois, saiu pela porta do pátio, e, dando um largo rodeio, atravessando as moitas como uma raposa, saltando os fossos como um galgo, foi bater à porta referida, daquele modo especial que tentara explicar ao amo, e que tanta eficácia tinha, que a porta lhe foi aberta no mesmo instante.

Passados dez minutos, Castorin estava de regresso, sem que tivesse sofrido qualquer contrariedade, e informava o amo que o bilhete fora entregue nas belas mãos da menina Nanon.

Canolles dedicara esses dez minutos a abrir a sua mala, a preparar o roupão, e a mandar pôr a mesa. Ouviu com visível satisfação o relatório de Castorin, foi dar uma volta pela cozinha, dando em voz alta as suas ordens para a noite e bocejando desmesuradamente, como homem que espera com impaciência o momento de se deitar. Esta manobra tinha por objectivo, caso d’Épernon o mandasse espreitar, dar-lhe a saber que o barão nunca tivera intenção de passar além da estalagem, onde, como simples e inofensivo passageiro, pedira ceia e pousada; e, com efeito, este plano obteve o resultado que o barão esperava: uma espécie de camponês, que pagou a despesa feita, levantou-se, e saiu, sem afectação e cantarolando uma redondilha. Canolles seguiu-o até à porta, e viu-o encaminhar-se para a mata; dez minutos depois, ouviu os passos de cavalos que se iam afastando. A emboscada fora levantada.

O barão recolheu então ao seu quarto com o espírito absolutamente sossegado a respeito de Nanon; tratou apenas de passar a noite do modo mais divertido possível. Em consequência, ordenou a Castorin que preparasse as cartas e os dados, e que, feito isso, fosse perguntar ao visconde de Cambes se queria dar-lhe a honra de receber a sua visita.

Castorin obedeceu, e encontrou no limiar do quarto um escudeiro, velho, de cabelos brancos, o qual, segurando a porta quase fechada, respondeu ao seu cumprimento em tom desabrido:

- Isso por ora é impossível; o senhor visconde está ocupado.

- Muito bem - disse Canolles. - Esperarei.

E, como ouvia grande ruído do lado da cozinha, foi ver o que se passava naquela importante parte da casa, a fim de distrair-se.

Era o pobre moço de cozinha, que voltava mais morto do que vivo. No sítio onde o caminho fazia cotovelo, fora detido por quatro homens, que o haviam interrogado acerca da finalidade do seu passeio nocturno. Ao saberem que ia levar a ceia à senhora da casa isolada, haviam-lhe tirado o barrete, a vestia branca e

o avental; o mais jovem desses quatro homens revestiu-se com as mesmas insígnias, colocou o cesto à cabeça, e encaminhou-se, em lugar do moço, para a pequena casa. Passados dez minutos, estava de volta, e falava em voz baixa com o homem que parecia ser o chefe da quadrilha. Então, restituíram ao moço de cozinha a vestia, o barrete e o avental; tornaram a pôr-lhe o cesto à cabeça, e, mandando-o voltar as costas, deram-lhe um pontapé, para lhe indicar o caminho que devia seguir. O pobre diabo não quis esperar mais: partiu às carreiras, e acabou por cair meio morto de susto no limiar da porta, onde acabavam de ajudá-lo a levantar-se.

Esta aventura era totalmente incompreensível para toda a gente, à excepção de Canolles: mas como este não tinha motivo algum para dar explicações, deixou o estalajadeiro, criados, criadas, cozinheiro, e moço de cozinha, fazerem as conjecturas que entendessem relativamente a este acontecimento, e enquanto todos disparatavam - e qual deles mais - subiu ao quarto do visconde; então, entendendo que a primeira pergunta, que dirigira por meio de Castorin, o dispensava de dar um segundo passo do mesmo género, abriu sem cerimónia a porta, e entrou.

Uma mesa com luzes e dois talheres estava posta no meio do quarto, faltando apenas para completá-la os pratos que a deviam ornar. Canolles reparou nestes dois talheres, e daí tirou uma conclusão festiva.

Contudo, dando com os olhos nele, o visconde levantou-se com um movimento tão arrebatado, que facilmente se percebia que a visita surpreendera o mancebo, e que, ao contrário do que ao entrar supusera, não fora destinado a Canolles segundo talher.

Esta suspeita foi confirmada pelas primeiras palavras que lhe dirigiu o visconde:

- Poderei saber, senhor barão - perguntou-lhe, adiantando-se para ele em tom de cerimónia - a que nova circunstância devo a honra da sua visita?

- A uma circunstância muito natural -respondeu Canolles. um tanto confuso perante esta desagradável recepção. - Apertou-me a fome; julguei que também por ela se sentiria apertado. Está só, eu também: quis ter a honra de convidá-lo a cear comigo.

O visconde olhou para Canolles com uma desconfiança visível, e pareceu experimentar algum embaraço ao responder-lhe.

- Pela minha honra! - disse Canolles a rir- dir-se-ia que tem medo!... Será acaso cavaleiro de Malta?... Tê-lo-ão destinado ao estado eclesiástico, ou tê-lo-á a sua família educado ins-pirando-lhe horror aos Canolles?... Vejamos, não quero perder a sua companhia de uma hora que podemos passar juntos, cada um do seu lado da mesa.

- É-me impossível descer ao seu quarto, senhor barão.

- Pois então, não desça ao meu quarto. Todavia, já que subi ao seu...

- Mais impossível ainda, senhor. Espero alguém.

Desta vez Canolles ficou embaraçado, sem saber o que responder.

- Ah! espera alguém? - disse ele.

- Sim, senhor.

- Juro-lhe... - prosseguiu Canolles, passado um momento de silêncio- sim, juro-lhe, que quase preferia que me tivesse deixado continuar o meu caminho, expondo-me a todo e qualquer perigo que daí pudesse resultar, a vê-lo deitar a perder com tal recusa o favor que me fez, e do qual eu ainda não lhe apresentei os devidos agradecimentos.

O mancebo corou, e aproximou-se de Canolles.

- Peço-lhe desculpa, senhor - disse ele com voz trémula.- Vejo qual é a minha descortesia, e por isso, se não estivessem em causa negócios sérios, negócios de família que preciso de tratar com a pessoa que espero, teria muita honra, e gosto ao mesmo tempo, em admiti-lo, apesar de...

- Oh! acabe - volveu Canolles- seja o que for que me diga, decidi não me escandalizar.

- ...Apesar de o nosso conhecimento - continuou o jovem - ser um desses efeitos imprevistos do acaso, um desses encontros fortuitos, uma dessas relações efémeras...

- E por que razão há-de ser assim? - perguntou Canolles. - Pelo contrário, é assim que se firmam duradouras e sinceras amizades; para tanto, nada mais é necessário do que considerar um favor da Providência aquilo que atribui ao acaso.

- A Providência, senhor - replicou o visconde, rindo - quer que eu parta dentro de duas horas, e que, segundo todas as probabilidades, siga uma estrada absolutamente oposta à sua; fique portanto, certo do grande desgosto que tenho por não poder aceitar, conforme eu desejaria, a amizade que tão cordialmente me oferece e cujo valor muito aprecio.

- É na realidade um rapaz muito singular- observou Canolles - e o impulso de generosidade deu-me ao princípio uma ideia muito diferente acerca do seu carácter. Mas enfim... faça-se como deseja; decerto não tenho o direito de ser exigente, pois que estou em dívida, e que fez em meu favor muito mais do que eu poderia esperar da parte de um desconhecido. Retiro-me, pois, para cear só; mas, na realidade, senhor visconde, isto não deixa de me custar muito: o monólogo não faz parte dos meus hábitos.

E, com efeito, apesar de tudo quanto dissera e da resolução de retirar-se, anunciada pelas suas palavras, Canolles ia-se deixando ficar; parecia que alguma coisa o havia pregado no lugar onde estava, sem que disso pudesse dar a si próprio uma razão; sentia-se atraído de um modo invencível para o visconde; mas este, pegando num castiçal, aproximou-se de Canolles, e com um sorriso amável, estendendo-lhe a mão, afirmou:

- Senhor, seja como for, e por muito curta que tenha sido a nossa entrevista, creia que estou encantado em ter podido ser-lhe útil em alguma coisa.

Canolles viu nisto apenas o cumprimento; pegou na mão que o visconde lhe apresentava, a qual, em vez de corresponder à varonil e amigável pressão da sua, se retirou frouxa e trémula. Depois, compreendendo que, apesar de disfarçada com uma frase lisonjeira, a despedida que lhe fazia o mancebo não deixava por isso de ser uma despedida, retirou-se, bastante desgostoso, e sobretudo muito pensativo.

À porta, encontrou o sorriso desdentado do velho criado, que pegou no castiçal que o visconde tinha na mão, acompanhou Canolles com toda a cerimónia até ao quarto, e tornou a subir no mesmo instante, reunindo-se ao amo, que o aguardava no alto da escada.

- Que faz ele? - perguntou o visconde em voz baixa.

- Creio que se resolve a cear só - respondeu Pompeu.

- Então, não tornará a subir.

- Pelo menos assim o espero.

- Mande aprontar os cavalos, Pompeu; sempre se ganhará algum tempo com isto. Mas - ajuntou o visconde, aplicando o ouvido - que bulha é essa que ouço?... Dir-se-ia a voz do senhor Richon...

- E a do senhor de Canolles.

- Estão altercando, segundo me parece.

- Pelo contrário, reconhecem-se; escute...

- Contanto que Richon não vá falar!...

- Oh! nada há que recear, é um homem muito circunspecto.

- Caluda...

Os dois calaram-se para escutar; e ouviu-se a voz de Canolles:

- Dois talheres, senhor Biscarros! -gritava o barão.- Dois talheres! O senhor Richon ceia comigo.

- Não, senhor - respondeu Richon - isso não é possível.

- Então quer cear só com aquele gentil-homem?...

- Que gentil-homem?

- Aquele que está lá em cima.

- Como se chama ele?

- O visconde de Cambes.

- Pelo que vejo, conhece o visconde...

- Se o conheço!... Salvou-me a vida.

- Quem? Ele?!...

- Sim, ele.

- E então, como foi isso?

- Ceie comigo, e contar-lhe-ei enquanto cearmos.

- Não posso; ceio com ele.

- Com efeito, está à espera de alguém.

- Espera por mim, e como estou atrasado, permitirá que me retire, senhor barão?

- Não, com todos os diabos! Tal não permitirei! -exclamou Canolles. - Meteu-se-me na cabeça que cearia na companhia de alguém, e, portanto, ou ceia o senhor comigo, ou ceio eu consigo. Senhor Biscarros, dois talheres.

Mas enquanto Canolles se voltava para ver se esta ordem era executada, Richon escapuliu-se pela escada e subiu rapidamente os degraus. Chegado ao último, a sua mão encontrou uma pequena mão, que o encaminhou para o quarto do visconde de Cambes, cuja porta se fechou depois de lhe dar entrada, e cujos dois ferrolhos foram corridos para maior segurança.

"Na realidade -rosnou Canolles, buscando debalde com os olhos o desaparecido Richon, e sentando-se à sua mesa solitária - não sei que má sorte me persegue nesta maldita terra: uns correm atrás de mim como se estivesse empestado; outros fogem de mim como do Diabo!... Não sei como me sinto... perco o apetite; a tristeza apossa-se de mim. Sou capaz de me embebedar esta noite como um soldadão alemão." - Olá Castorin! venha cá, quero dar-lhe uma tunda. Mas que é isso!?... Fecham-se lá em cima como quem conspira!... Ah! Que estúpido sou, com efeito! Isto agora dá-me a explicação de tudo. Na verdade, por quem conspiram eles? Será a favor daquele coadjutor? Dos príncipes? Do Parlamento? Do rei? Da rainha? De Mazarino? Ora! Conspirem contra quem quiserem, para mim é o mesmo; já não tenho fastio. Castorin, mande servir a ceia, deite-me vinho no copo; e eu perdoo.

E Canolles atacou filosoficamente a primeira ceia que havia sido preparada para o visconde de Cambes, e que, por falta de novas provisões, o senhor Biscarros se via obrigado a servir requentada.

 

ENQUANTO o barão de Canolles procurava inutilmente quem com ele ceasse, e, cansado das suas infrutuosas diligências, se decidira por fim a cear sozinho, verifiquemos, entretanto, o que se passava em casa de Nanon.

Apesar de quanto tenham dito e escrito os seus inimigos, e no número destes inimigos seja necessário contar a maior parte dos historiadores que dela se ocuparam, era nesta época uma encantadora criatura de vinte e cinco a vinte e seis anos, de pequena estatura, trigueira, porte ágil e airoso, vivas e frescas as cores, e olhos muito negros, cuja córnea límpida raiava, como a dos gatos, todos os fogos aí reflexos. Festiva à superfície, risonha na aparência, Nanon estava, todavia, bem longe de submeter o seu espírito a todos os caprichos : a todas as futilidades que marcam com loucos arabescos a trama macia e dourada de que ordinariamente se compõe a vida de uma mulher garrida. Antes pelo contrário, as mais graves deliberações, dura e largamente ponderadas na sua inquieta cabeça, assumiam um aspecto simultaneamente pleno de sedução e de lucidez, ao serem transmitidas por uma voz vibrante na qual estava profundamente impresso o acento gascão. Ninguém teria adivinhado, ao ver tal lascara rosada de feições finas e risonhas, que por detrás daquele olhar cheio de promessas voluptuosas e cintilante de vivos ardores, se encobrisse a perseverança infatigável, a tenacidade invencível e a profundidade dos intuitos, comuns ao homem de Estado. E, contudo, estas eram as qualidades -ou os defeitos- de Nanon, conforme lhe os quiserem examinar; ou então, reverso da medalha, tal era o espírito calculista e o coração ambicioso aos quais servia de invólucro um corpo cheio de elegância.

Nanon era natural de Agen. O duque d’Épernon, filho do inseparável amigo de Henrique IV que seguia na sege real no momento em que a faca de Ravaillac feriu o monarca, e a respeito de quem não deixaram de conceber-se suspeitas que chegaram aos ouvidos de Catarina de Médicis - o duque d’Épernon, nomeado governador da Guiena, onde a sua arrogância, as suas insolências e os seus exageros o tinham feito odiar, distinguira com o olhar esta pequena burguesa, filha de um simples advogado. Havia-o namorado, e dela triunfara a muito custo, depois de uma defesa sustentada com toda a habilidade de um grande táctico, que fizera sentir ao seu vencedor todo o preço da vitória. Em compensação pela reputação já perdida, porém, Nanon arrebatara ao duque o poder e a liberdade. Passados seis meses de ligação com o governador de Guiena, era ela quem na realidade governava esta bela província, fazendo pagar com usura aos que outrora a haviam ofendido, ou humilhado, os agravos e ofensas que deles recebera. Rainha por acaso, fez-se tirana por cálculo, pressentindo, com a sua subtil inteligência, que era necessário compensar por meio do abuso a provável brevidade do reinado.

Consequentemente, de tudo lançou mão, de tudo se apoderou - tesouros, influências e honras. Foi rica, deu empregos, recebeu as visitas de Mazarino e dos primeiros senhores da corte. Jogando com admirável destreza os diversos elementos de que dispunha, fez deles um conjunto útil ao seu crédito e proveitoso à sua fortuna. Cada favor que Nanon fazia tinha o seu preço. Um posto no exército, um emprego na magistratura, tudo tinha o seu preço. Nanon mandava criar determinado posto, ou emprego, mas pagavam-lhos em bela e corrente moeda, ou então com algum rico e real presente; de modo que, cedendo uma ínfima parte de poder em benefício de alguém, recuperava esse fragmento em outra espécie, dando a autoridade, mas guardando para si o dinheiro, que era o seu ídolo. Será esta a explicação para a duração do seu reinado; porquanto os homens, no seu ódio, hesitam em derrubar um inimigo a quem possa restar uma compensação. O que a vingança quer é uma ruína total, é uma prostração completa. Os povos expulsam com pesar um tirano que lhes leva o seu ouro e que se vai rindo. Nanon de Lartigues tinha dois milhões de francos. Este o motivo por que ela vivia com uma certa segurança em cima de um vulcão que, sem cessar, tudo abalava em torno dela; vira o ódio popular subir como a maré, crescer e ruir, com as suas vagas, o poder do senhor d’Épernon, que, expulso de Bordéus num dia de cólera, arrastara consigo Nanon, do mesmo modo que a lancha segue o navio. Nanon cedeu à tormenta, decidida a de novo se erguer, quando ela tivesse passado; tomara Mazarino por modelo e, humilde discípula, praticava à distância a política do astuto e flexível italiano. O cardeal atentou nesta mulher, que ia engrandecendo e enriquecendo à força dos mesmos meios que o haviam feito primeiro-ministro e possuidor de uma fortuna de cinquenta milhões. Admirou a pequena gascoa. e ainda fez mais: não se lhe opôs; e talvez que um dia se saiba o motivo por que assim o fez.

Apesar de tudo isso, e mau grado alguns - que diziam estar mais bem informados - pretenderem que ela se correspondia directamente com Mazarino, pouco se falava nas intrigas políticas da bela Nanon. O próprio Canolles, que era um belo moço e rico, não podia compreender que fosse preciso ser intrigante, nem sabia formar juízo a tal respeito. Quanto às intrigas amorosas de Nanon, quer porque, ocupada por mais graves cuidados, as adiasse para mais tarde, quer porque o clamor do amor que o senhorD’Épernon lhe tinha, houvesse absorvido o ruído que podiam fazer outros amores secundários, os seus próprios inimigos não haviam sido pródigos de escândalo para com ela. E Canolles podia com alguma razão, dominado pelo seu amor-próprio pessoal e nacional, acreditar que Nanon fora invencível antes da sua chegada. Quer tivesse Canolles sido na verdade objecto do primeiro impulso amoroso daquele coração, apenas acessível à ambição, quer houvesse a prudência aconselhado aos seus predecessores uma discrição absoluta, Nanon, a amante, devia ser uma encantadora mulher; mas Nanon, ofendida, devia ser uma terrível inimiga.

O conhecimento de Nanon e de Canolles fizera-se do modo mais natural. Tenente no regimento de Navailles, Canolles quisera ser capitão; para isso teve que escrever ao senhor d’Épernon, coronel-geral da infantaria. Foi Nanon quem leu a carta: respondeu como costumava, julgando ser mais um negócio a tratar, e para isso convidou Canolles a falar-lhe em sítio combinado. Canolles escolheu entre as jóias da sua família um anel magnífico, e que valeria cinco mil francos - o que sempre era mais barato do que comprar uma companhia- e dirigiu-se ao lugar determinado; mas desta vez o vencedor Canolles, precedido do seu pomposo acompanhamento de conquistas amorosas, derrotou os cálculos e a fiscalização da menina de Lartigues. Era a primeira vez que via Nanon; era a primeira vez que Nanon o via. Ambos jovens, formosos e espirituosos. A conferência passou-se em galanteios recíprocos; do negócio que tinham de tratar não se disse palavra, mas nem por isso deixou de ficar concluído. No dia seguinte, Canolles recebeu a sua patente de capitão, e quando o anel precioso passou do seu dedo para o de Nanon, não foi como preço da ambição satisfeita, mas como prenda do amor feliz.

 

QUANTO as razões para a residência de Nanon se situar perto da aldeia de Matifou, a história no-lo dirá. O duque d’Épernon, como já dissemos, era detestado na Guiena. Nanon, a quem haviam concedido a honra de lhe incutir mau génio, ali se tornara execranda. O tumulto do povo expulsou-os de Bordéus e impeliu-os para Agen. Mas em Agen o tumulto repetiu-se. Um dia, numa ponte, despistaram a carruagem dourada em que Nanon ia ter com o duque. Sem se saber como tal acontecera, Nanon achou-se no rio, e foi Canolles quem a salvou. Certa noite, incendiou-se a casa que ela ocupava na cidade, e foi também Canolles quem, muito a propósito, penetrou até ao quarto da jovem e a salvou do fogo. Nanon julgou que numa terceira tentativa os ageneses poderiam ser mais bem sucedidos, visto que apesar de Canolles se afastar dela o menos que lhe era possível, seria um milagre estar sempre em circunstâncias de a poder salvar. Aproveitou pois a partida do duque - que ia dar uma volta pelo seu governo, acompanhado por uma escolta de mil e duzentos homens, para a qual o regimento de Navailles havia fornecido a parte que lhe competia - e saiu da cidade juntamente com Canolles, olhando com desprezo, da portinhola da sua sege, para a populaça, que bem quisera fazer em pedaços a sege, mas que a isso se não atrevia.

Então, o duque e Nanon escolheram -ou para melhor dizer: Canolles escolheu secretamente- a pequena casa de campo, onde se combinou que Nanon ficaria enquanto não estivesse pronta uma casa em -Libourne. Canolles conseguiu uma licença para, segundo alegou, terminar em sua casa alguns negócios de família; na realidade, porém, obteve-a para ter o direito de se afastar do regimento, que voltava a Agen, e assim não se apartar demasiado de Matifou, onde a sua presença protectora era mais urgente do que nunca. Com efeito, os acontecimentos principiavam a tomar uma gravidade assustadora: os príncipes de Conde, de Conti, de Longue-ville, presos a 17 de Janeiro precedente e encerrados em Vincennes, ofereciam aos quatro ou cinco partidos em que então estava dividida a França, um excelente pretexto para uma guerra civil. A impopularidade do duque d’Épernon, que todos sabiam seguir o partido da corte, crescia sem cessar, se bem que a razão levasse a crer que não fosse possível ir mais além o descontentamento. Uma catástrofe desejada por todos os partidos, que. na estranha situação em que a França se encontrava, não sabiam em que ponto estavam, tornava-se iminente. Nanon, como as aves que de longe vêem o aproximar da tempestade, desapareceu e tornou a esconder-se entre a folhagem, para ali aguardar, obscura e ignorada, o desenrolar dos acontecimentos.

Fingiu ser uma viúva que procurava retiro: desta maneira - e decerto o recordamos- a havia designado o estalajadeiro Biscarros.

O senhor d’Épernon, portanto, havia visitado na véspera a linda reclusa, informando-a de que partia para dar uma volta pela província, no que empregaria uns oito dias. E mal ele seguira viagem, Nanon enviara pelo recebedor -que era seu protegido- duas linhas a Canolles, o qual, graças à sua licença, se conservava naqueles arredores. O bilhete original que continha aquelas duas linhas, havia desaparecido nas mãos do mensageiro, e convertera-se na cópia de convite escrita pela mão de Cauvignac. A este convite se apressava o mancebo a acudir, quando o visconde de Cambes o detivera a quatrocentos passos do ponto fatal.

O resto, já sabemos.

Portanto, Nanon esperava Canolles, como espera uma mulher que ama - isto é: consultando dez vezes em cada minuto o relógio, chegando a cada momento à janela, escutando o menor ruído, interrogando com os olhos o Sol, vermelho e exuberante, que se ocultava por detrás da montanha para dar lugar às primeiras sombras da noite. Em primeiro lugar bateram à porta da frente, e ela mandou Francineta abrir. Porém, era apenas o moço da cozinha que trazia a ceia, à qual faltava o convidado. Nanon lançou os olhos à antecâmara e viu o falso mensageiro de Biscarros, que, por seu turno, fixava os olhos no quarto de dormir, onde estava posta uma pequena mesa com dois talheres. Nanon recomendou a Francineta que conservasse as viandas quentes, fechou de novo a porta, com tristeza, e voltou à janela, que lhe mostrava, tanto quanto podia ver no meio das trevas, a estrada vazia.

Uma segunda pancada, uma pancada dada de um modo particular, retumbou na porta das traseiras, e Nanon exclamou:

- Ei-lo aí!

Todavia, com o receio de que ainda não fosse ele, deixou-se ficar de pé e imóvel no meio do corredor. Passado um instante, abre-se a porta, e Francineta aparece no lumiar desta com ar consternado, muda, tendo na mão um bilhete. A jovem senhora, vendo o papel, dá um salto para a criada, arrancando-lho da mão, abre-o rapidamente, e lê, angustiada.

Nanon ficou meio morta com a leitura. Verdade seja dita que muito amava Canolles; nela, porém, a ambição era um sentimento quase igual ao do amor e, perdendo o duque d’Épernon, perdia não só toda a sua fortuna futura, mas talvez que também a sua fortuna passada. Contudo, como era mulher sagaz, começou por apagar a vela, para que não fosse vista a sua sombra e correu à janela. Era mais que tempo: quatro homens aproximavam-se da casa de onde já não distavam mais de uns vinte passos. O homem de capote vinha à frente, e Nanon, sem a mínima dúvida, reconheceu o duque. Neste momento Francineta entrava com uma vela na mão. Nanon lançou um olhar de desespero à mesa, aos dois talheres, as duas cadeiras, às duas almofadas bordadas, cuja insolente alvura tanto sobressaía sobre o carmesim das cortinas de damasco e, por fim. ao seu encantador desalinho, que em tamanha harmonia estava com todos estes preparativos.

"Estou perdida" - disse ela consigo mesma.

Mas quase no mesmo instante caiu em si e um sorriso lhe deslizou pelos lábios. Mais lesta do que o relâmpago, lançou mão do simples copo de cristal destinado para Canolles, e atirou com ele para o jardim; tirou de um estojo o copo de ouro com as armas do duque, colocou ao pé do seu prato o talher de prata dourada e depois, fria de terror mas com um sorriso composto à pressa, desceu apressadamente os degraus da escada, e chegou à porta no momento em que acabava de retumbar uma pancada grave e solene.

Francineta quis abri-la; mas Nanon segurou-lhe o braço, empurrou-a para o lado, e com aquele rápido olhar que tão bem interpreta o pensamento das mulheres que assim se acham surpreendidas:

- É o senhor duque quem eu espero - disse ela - e não o senhor de Canolles. Serve a ceia.

Depois, correu ela mesma os ferrolhos, e, lançando-se ao pescoço do homem de pluma branca, que se dispunha a fazer-lhe uma carranca das mais ferozes, exclamou:

- Ah! O meu sonho não me enganou!... Venha, meu querido duque, está servido, vamos cear.

D’Épernon ficou estupefacto; mas como as caricias de uma linda mulher sempre são muito agradáveis, deixou-se abraçar. No mesmo instante, porém, lembrando-se das terríveis provas de que dispunha, opôs:

- Devagar, menina; será bom que nos expliquemos.

Com a mão fez um sinal aos seus acólitos, que se afastaram respeitosamente, sem todavia se retirarem de todo, e entrou só, e com passo grave e compassado.

- Que se passa, meu querido duque? - disse-lhe Nanon com uma alegria tão bem fingida que poderia julgar-se natural. - Dar-se-á o caso que esqueceu alguma coisa a última vez que aqui veio... olha para todos os lados com tanto cuidado...

- Sim - disse o duque. - Esqueceu-me dizer-lhe que não sou pateta, um idiota como aquele que Cyrano de Bergerac introduziu nas suas comédias. E por ter esquecido de dizer-lho, volto em pessoa para provar-lho.

- Não o compreendo, senhor - disse Nanon, no tom mais sereno e mais franco. - Peço-lhe que se explique.

Os olhos do duque fixaram-se nas duas cadeiras, das duas cadeiras passaram aos dois talheres, dos dois talheres aos dois travesseiros. Nestes se demoraram mais tempo, e a vermelhidão da cólera subiu-lhe ao rosto.

Nanon antevira tudo isto, e esperava o resultado do exame com um sorriso, que deixava ver os seus dentes tão brancos como pérolas - com a única diferença de que o sorriso muito se assemelhava a uma crispação, e aqueles dentes tão brancos teriam batido uns nos outros, se a angústia os não cerrasse.

O duque tornou a olhar para ela, colérico.

- Continuo a esperar as ordens de vossa senhoria - disse Nanon, com uma graciosa reverência.

- As ordens de minha senhoria - volveu ele - é que me explique qual é o motivo desta ceia.

- O motivo, como já disse, é que tive um sonho revelador de que, apesar de se ter despedido de mim ontem, voltaria hoje. Ora, os meus sonhos nunca me enganam; mandei, portanto, preparar esta ceia para nós.

O duque fez uma careta, pretendendo fazê-la passar por um sorriso irónico.

- E essas duas almofadas? - perguntou.

- Dar-se-á o caso de que vossa senhoria tem intenção de ir pernoitar a Libourne?... Em tal caso, o meu sonho ter-me-ia enganado, visto que anunciava que ficaria aqui.

O duque fez segunda careta, ainda mais significativa do que a primeira.

- E esse elegante desalinho, senhora? E esses esquisitos perfumes?. ..

- É o trajo que costumo usar quando espero por vossa senhoria. Estes perfumes procedem das almofadinhas de cueiro que meto nos armários, que vossa senhoria afirma preferir a todas as outras, visto ser também o gosto da rainha.

- Então esperava-me?... - continuou o duque, com um sorriso irónico.

- Ora, senhor - disse Nanon, franzindo as sobrancelhas por seu rumo - parece-me que deseja passar revista aos armários... Dar-se-á o caso de se ter tornado ciumento?

O duque compôs um ar majestoso:

- Eu, ciumento!... Oh, não! graças a Deus, não sou capaz de me tornar ridículo até tal ponto. Velho e rico, sei naturalmente que tenho de ser enganado; mas àqueles que me enganam, quero pelo menos provar-lhes que não deixo de conhecer o engano.

- E como lhes provará isso? - disse Nanon- Tenho muita curiosidade em sabê-lo.

- Oh! não será difícil; bastar-me-á mostrar-lhe este papel. O duque tirou um papel da algibeira.

- Não sou sonhador - prosseguiu. - Na minha idade já se não sonha, nem mesmo acordado; mas recebo cartas. Leia esta, que não deixa de ser interessante.

Nanon pegou a tremer no bilhete que lhe apresentava o duque, e estremeceu ao ver a escrita; mas este estremecimento foi imperceptível, e leu em voz alta:

O senhor duque d’Épernon saberá que um homem, há seis meses a esta parte senhor de grande familiaridade com a menina Nanon de Lartigues, deve ir a sua casa esta tarde, e nela ficará para cear e passar a noite.

Como se não quer que o senhor duque d’Épernon tenha a menor incerteza a este respeito, participa-se-lhe que o feliz rival é o senhor barão de Canolles.

Nanon embatucou; o golpe era terrível. "Ah! Rolando! Rolando!... - murmurou ela num sussurro.- E eu que me julgava desembaraçada de ti..."

- Estou bem informado?... - disse o duque, com ar triunfante.

- Muito mal informado - respondeu-lhe Nanon. - E se a sua polícia política não é mais competente do que a sua polícia amorosa, lastimo-o.

- Lastima-me?...

- Sim, senhor; porque, enfim, esse senhor de Canolles, a quem dá a honra gratuita de julgá-lo seu rival, não está aqui; e, além disso, pode esperar, a ver se ele vem.

- Ele já veio!

- Ele?! -exclamou Nanon- Isso não é verdade.

Desta vez, havia um acento de profunda verdade na exclamação da acusada.

- Quer dizer que veio, e chegou até uns quatrocentos passos daqui, e que parou na estalagem Bezerro de Ouro, o que foi uma felicidade para ele.

Nanon compreendeu que o duque não estava tão seguro como ela crera ao princípio; encolheu os ombros, porquanto outra ideia sem dúvida suscitada pela carta que voltava e tornava a voltar na mão, principiava a tomar forma no seu espírito.

- Será possível - disse ela - que um homem de génio, um dos mais hábeis políticos do século, tenha a indiscrição de dar crédito a cartas anónimas!?...

- Mas enfim: por mais anónima que seja, que explicação dá a esta?

- Oh! a explicação não é difícil: é uma consequência dos obséquios que nos fazem os nossos amigos de Agen. O senhor de Canolles. para ir tratar de alguns negócios de família pediu-lhe uma licença que lhe concedeu; souberam que passaria por aqui, e a sua viagem serviu de fundamento a essa ridícula acusação.

Nanon percebeu que a fisionomia do duque, longe de se desenrugar, cada vez se tornava mais carregada.

- A explicação seria boa - disse ele- se a famosa carta que atribui aos seus amigos, não tivesse um certo pós-escrito, que na turbação em que está se esqueceu de ler.

O corpo todo da jovem senhora arrepiou-se de susto; via perfeitamente que se o acaso não acudisse em seu socorro, não poderia sustentar muito tempo a luta.

- Um pós-escrito?... - repetiu.

- Sim, leia - disse o duque. - Tem a carta nas mãos.

Nanon diligenciou sorrir; mas sentia que as suas feições contraídas já não se prestavam a esta demonstração de serenidade; contentou-se em ler com a entoação mais firme que lhe foi possível:

Tenho nas minhas mãos a carta da menina de Lartigues ao senhor de Canolles, na qual o encontro de que falo está aprazado para hoje à noite. Devolverei esta carta em troca de uma assinatura em branco, que o senhor duque mandará entregar por um homem só, num batel do rio Dor-donha, defronte da aldeia de Saint-Michel-la-Rivière, às seis horas da tarde.

- E teve a imprudência...?! - disse Nanon.

- As suas letras são para mim tão preciosas, querida senhora, que entendi não haver pagamento demasiado caro para uma carta sua.

- Expor um tal segredo à indiscrição de um confidente!... Ah! senhor duque!...

- Esta espécie de confidências, senhora, recebe-se pessoalmente, e deste modo é que recebi esta. O homem que se dirigiu ao rio Dor-donha fui eu mesmo.

- Então, tem a minha carta?...

- Ei-la aqui.

Por um esforço rápido de memória, Nanon tentou lembrar-se de que se continha naquela carta. Mas não lhe foi possível; o seu cérebro principiava a turbar-se.

Assim, não teve outro remédio senão pegar na sua própria carta, e tornar a lê-la; apenas continha três linhas: Nanon lançou-lhe os olhos com avidez, e reconheceu com indizível alegria que a não comprometiam completamente.

- Leia em voz alta - disse o duque. - Sucede-me o mesmo que a si; esqueci-me do conteúdo dessa carta.

Nanon recobrou o sorriso que debalde buscara alguns segundos antes, e, acedendo ao convite do duque, leu:

Cearei às oito horas. Está livre? Eu estou. Em tal caso, seja pontual, meu querido Canolles, e nada receie relativamente ao nosso segredo.

- Parece-me que isto é bastante claro! - disse o duque, pálido de furor.

"Eis a minha absolvição" - murmurou intimamente Nanon.

- Ah!... - continuou o duque - tem um segredo com o senhor de Canolles...

 

NANON compreendeu que a mínima hesitação, ainda que de um segundo apenas, a deitava a perder. Além disso, tivera tempo para amadurecer no seu cérebro o plano que lhe inspirava a carta anónima.

- Ora, pois, saberá - disse ela, cravando os olhos no duque - que tenho um segredo com esse gentil-homem.

- Confessa-o?!...-exclamou o duque d’Épernon.

- Não posso deixar de assim o fazer, visto que não se lhe pode ocultar coisa alguma.

- Oh!... - bradou o duque.

- Sim, eu esperava o senhor de Canolles - continuou Nanon, com tranquilidade.

- Esperava?...

- Esperava.

- E atreve-se a declará-lo?...

- Com toda a franqueza. Agora, sabe quem é o senhor de Canolles?...

- É um presunçoso, cuja imprudência castigarei cruelmente.

- É um nobre e bravo gentil-homem, a quem continuarei a conceder os favores seus.

- Oh! juro-lhe que tal não acontecerá!

- Nada de juramentos, senhor duque; pelo menos, antes de eu ter falado - respondeu Nanon, sorrindo-se.

- Fale, pois, e sem mais demora..

- Não tem observado, o senhor que aprofunda o que há de mais recôndito no coração - continuou Nanon - todas as minhas preferências para com o senhor de Canolles, as instâncias que tenho feito a respeito dele, aquela patente de capitão que lhe obtive, o dinheiro que lhe dei para uma viagem à Bretanha com o senhor de La Milleraye, aquela licença recente, o meu constante desvelo em servi-lo?...

- Senhora, senhora!... - disse o duque- isso já passa dos limites!

- Por Deus, senhor duque! Espere que lhe tenha dito tudo.

- Que necessidade tenho de esperar mais tempo, e que lhe falta para dizer-me?...

- Que tomo pelo senhor de Canolles o mais terno interesse.

- Muito bem o sei, ah! muito bem!...

- Que lhe tenho o mais extremoso afecto.

- Senhora, abusa!...

- Que o servirei até à morte, e isto porque...

- Porque é seu amante... não é difícil de adivinhar.

- Porque -continuou Nanon, lançando mão com um movimento dramático ao braço do duque, que tremia de raiva - porque é meu irmão!

O duque d’Épernon deixou cair o braço.

- Seu irmão?!... - balbuciou ele.

Nanon fez um aceno afirmativo com a cabeça, acompanhado de um sorriso de triunfo. Depois, passado um momento:

- Isto exige uma explicação! - exclamou então o duque.

- E vou dar-lha - disse Nanon.- Em que época morreu meu pai?

- Haverá - disse o duque, fazendo o seu cálculo - uns oito meses.

- Em que época assinou aquela patente de capitão para o senhor de Canolles?

- Parece-me que foi pouco mais ou menos na mesma data - continuou o duque.

- Quinze dias depois - disse Nanon.

- Quinze dias depois... é possível.

- É para mim muito triste - continuou Nanon - ter de revelar a vergonha de outra mulher, de divulgar um tal segredo. Mas o seu estranho ciúme a isso me impele, as suas maneiras cruéis a isso me obrigam. Mas imitá-lo-ei, senhor duque: deixarei de ser generosa.

- Continue, continue! - exclamou o duque, que já principiava a sentir-se impressionado pelas fantasias e contos que forjava a formosa gascoa.

- Ora bem: meu pai era um advogado que não deixava de ter alguma celebridade: há vinte e oito anos, ainda ele era moço; meu pai sempre fora formoso. Amava, ainda antes do seu casamento, a mãe do senhor de Canolles, a qual lhe haviam recusado porque ela era nobre e ele mecânico. O amor, como muitas vezes acontece, chamou a si a emenda do erro da Natureza, e durante uma viagem do senhor de Canolles... Compreende agora?...

- Sim; mas como acontece que esta amizade da sua parte com o senhor de Canolles principiasse tão tarde?

- Porque só pela morte de meu pai vim a saber do vínculo que nos unia; porque este segredo estava depositado numa carta que o próprio barão me entregou, chamando-me sua irmã.

- E onde está essa carta? - perguntou o duque.

- Não se lembra do incêndio que tudo devorou em minha casa, as minhas jóias e alfaias mais preciosas, e os meus papéis mais secretos?...

- Não há dúvida - assentiu o duque.

- Muitas vezes lhe tenho querido contar esta história, tendo toda a certeza de que tudo faria em favor daquele a quem chamo em voz baixa meu irmão; mas ele sempre me deteve, e sempre me rogou e suplicou que poupasse a reputação de sua mãe, que ainda vive. Respeitei os seus escrúpulos, porque os compreendia.

- Ah! e fazia bem - disse o duque, enternecido.- Pobre Canolles!

- E contudo -continuou Nanon- era a fortuna o que ele rejeitava.

- Isso é próprio de uma alma delicada - continuou o duque - e esse escrúpulo só o honra.

- Mais ainda: eu jurava que este mistério nunca seria revelado a pessoa alguma neste mundo. As suas suspeitas, porém, obrigaram-me a falar. Desgraçada de mim! Faltei ao meu juramento; desgraçada de mim! Atraiçoei o segredo de meu irmão...

E Nanon rompeu em lágrimas.

O duque caiu de joelhos e beijou-lhe as lindas mãos, que ela, no estado de desalento em que se achava, lhe abandonava, enquanto os seus olhos elevados ao Céu, pareciam pedir a Deus perdão pelo perjúrio.

- A senhora diz: desgraçada de mim! - exclamou o duque. - Diga antes: quão felizes somos todos! Quero que aquele querido Canolles seja indemnizado do tempo perdido. Não o conheço, mas quero conhecê-lo. Apresentar-mo-á, e amá-lo-ei como se a meu filho.

- Diga de preferência: como se a meu irmão - replicou Nanon, sorrindo-se.

Passando depois a outra ideia:

- Malditos delatores: que monstros! - exclamou ela, amarrotando a carta, que fingiu deitar ao lume, mas que guardou com todo o cuidado na sua algibeira, para mais tarde pedir contas ao respectivo autor.

- Mas porque se não apresentará aquele mancebo? Porque o

não verei agora mesmo?.. Vou desde já mandá-lo chamar ao Bezerro de Ouro.

- Ah! sim - disse Nanon. - Para que ele saiba que nada posso ocultar-lhe, e que desprezado o meu juramento, tudo lhe disse...

- Serei discreto.

- Ora, senhor duque, saiba que tenho de zangar-me consigo - continuou Nanon, com aquele sorriso angélico que os demónios tão bem sabem compor.

- E porquê, minha querida?

- Porque outrora gostava mais de estar a sós comigo. Ceemos, e amanhã pela manhã mandaremos chamar Canolles ("Daqui até amanhã - dizia consigo Nanon - terei ocasião de preveni-lo.")

- Seja, embora - consentiu o duque. - Sentemo-nos à mesa. E, como quem ainda conserva alguma dúvida, ajuntou em voz

surda:

"Daqui até amanhã não a deixarei um só instante, e não encontrará meio de o informar de coisa alguma.. a não ser que seja feiticeira."

- Portanto - disse Nanon pousando o braço no ombro do duque - ser-me-á permitido interessar-me por meu irmão junto do meu amigo?

- Sem a mínima dúvida - continuou d’Épernon. - Tudo quanto quiser: dinheiro..

- Oh! dinheiro - disse Nanon- não precisa; foi ele quem me deu este magnífico anel, por si estranhado, e que foi da mãe dele.

- Então, promoção, nem? - acentuou o duque.

- Oh! sim, promoção. Fá-lo-emos coronel, não é assim?

- Logo coronel?... Isso não é coisa tão fácil, minha amiguinha - disse o duque. - Para isso seria preciso que tivesse feito algum serviço à causa de sua Majestade.

- Está pronto a fazer todos os serviços que se lhe indicarem.

- Oh!... - fez o duque, olhando de esguelha para Nanon.- Eu bem poderia encarregá-lo de uma comissão para a corte...

- Uma comissão para a corte?!... - exclamou Nanon.

- Sim - replicou o velho cortesão. - Mas isto separar-vos-ia um do outro...

Nanon viu que lhe era indispensável aniquilar este resto de desconfiança.

- Oh! quanto a isso, nada receie. Que importa a separação, uma vez que dela lhe resulte proveito?... De perto, eu servi-lo-ia mal, visto que tem ciúmes dele; mas de longe, protegê-lo-á, estendendo sobre ele a sua poderosa mão. Desterre-o, exile-o, se isso for para bem dele, e não se inquiete a meu respeito. Contanto que conserve o amor do meu querido duque, que mais posso precisar para ser feliz.?...

- Ora pois, está dito - replicou o duque. - Amanhã pela manhã mandá-lo-ei chamar, e dar-lhe-ei as minhas instruções. E agora, conforme o afirmou - continuou o duque, lançando os olhos já com mais serenidade às duas cadeiras, aos dois talheres, e às duas almofadas - minha querida menina, vamos cear.

E foram ambos sentar-se à mesa, de rostos risonhos, de tal forma que até Francineta, muito habituada que estava, na sua qualidade de camareira de confiança, às maneiras do duque e ao carácter da ama, acreditou mesmo que Nanon estava tranquilizada de todo, e o duque completamente desenganado.

 

O cavaleiro que Canolles saudara com o nome de Richon havia subido ao primeiro andar da estalagem Bezerro de Ouro, e ceava em companhia do visconde.

Era a ele quem o visconde esperava com impaciência, quando ocasionalmente fora testemunha dos preparativos hostis do senhor d’Épernon, o que lhe dera ocasião de prestar ao barão de Canolles o assinalável serviço a que nos referimos.

Havia uma semana que saíra de Paris, e, naquele mesmo dia de Bordéus; trazia, portanto, notícias recentes sobre os meandros um tanto embrulhados que de Paris até Bordéus se urdiam naquele momento, em tramas que davam cuidado. À medida que ia falando - ora da prisão dos príncipes, que era o assunto do dia, ora do Parlamento de Bordéus, que era a potência daquela zona, ora do senhor de Mazarino, que era o rei naquele momento - o mancebo observava em silêncio o rosto varonil e queimado, os olhos perspicazes, demonstradores da sua intrepidez, os dentes brancos e agudos, que apareciam debaixo dos compridos bigodes, sinais estes que faziam de Richon o protótipo do verdadeiro oficial bem sucedido. - Portanto - disse o visconde, passado um instante - a senhora princesa está agora em Chantilly...

Sabe-se que era deste modo que se designavam as duas duquesas de Conde, com a única diferença de que à mãe juntavam o título de viúva.

- Sim - respondeu Richon. - É lá que ela o espera o mais brevemente possível.

- E em que situação se encontra ela?

- Num verdadeiro desterro; é vigiada, assim como a sogra, com o maior cuidado, visto que na corte suspeitam de que elas não se contentam com a feitura de requerimentos ao Parlamento, e que maquinam alguma coisa de mais eficaz a favor dos príncipes. Desgraçadamente, como sempre acontece, o dinheiro... a propósito de dinheiro: recebeu o que lhe foi devido? Trata-se de uma pergunta que me foi muito recomendada.

- A muito custo -afirmou o visconde- pude cobrar umas vinte mil libras, que ali tenho, em ouro; e nada mais.

- E nada mais!... Encara assim essa soma como bagatela, senhor visconde?! Bem se vê que é milionário: fala com tamanho desprezo de uma tal quantia, e num momento como este!... Vinte mil libras! Não seremos tão ricos como Mazarino, mas seremos mais ricos do que o rei.

- Crê então, Richon, que este humilde oferecimento será bem recebido pela senhora princesa?

- E com reconhecimento: dar-lhe-á com que pagar a um exército.

- Crê, portanto, que precisamos dele?...

- De quê? De um exército?... Sem a mínima dúvida. E atarefemo-nos a reuni-lo. O senhor de La Rochefoucauld alistou quatro-centros gentis-homens, a pretexto de os fazer assistir às exéquias do pai. O duque de Bouillon vai partir com igual número, se não maior, para a Guiena. Turenne promete fazer uma incursão até Paris, com o fim de surpreender Vincennes e apoderar-se dos príncipes, beneficiando dessa súbita surpresa; terá uns trinta mil homens, todo o seu exército do Norte, ao qual fará abandonar o serviço real. Oh! as coisas vão tomando bom aspecto - continuou Richon. 76

 

Não esteja inquieto; não sei se da nossa obra recolheremos muito fruto, mas de certo faremos muita bulha.

- E não encontrou o duque d’Épernon?- interrompeu o mancebo, cujos olhos chamajeavam de contentamento ao ouvir a enumeração das forças que prometiam o triunfo do partido a que se vinculara.

- O duque d’Épernon?.. - perguntou o oficial, arregalando os olhos. - E onde quer que o tenha encontrado? Não venho de Agen, mas sim de Bordéus...

- Poderia tê-lo encontrado a poucos passos daqui - replicou o visconde, sorrindo.

- Ah! tem razão; não é nestes arredores que vive a formosa Nanon de Lartigues?...

- A dois tiros de mosquete desta estalagem.

- Muito bem! Eis o que me dá a explicação da presença do barão de Canolles na estalagem Bezerro de Ouro.

- Conhece-o?

- A quem? Ao barão? Sim. Até poderia dizer que sou amigo dele, se o senhor de Canolles não fosse de alta linhagem, enquanto eu não passo de um pobre plebeu.

- Os plebeus como você, Richon, valem tanto como príncipes, na situação em que nos encontramos. Creio que não deixará de saber que livrei de ser espancado, ou talvez de algo ainda pior, o seu amigo, o senhor barão de Canolles...

- Sim, senhor, ele disse-me duas palavras a esse respeito; porém, não lhe dei grande atenção. Tinha demasiada pressa de vir ter consigo. Está certo de que não o reconheceu?...

- Não é coisa fácil reconhecer as pessoas a quem nunca se viu.

- Tem razão; deveria ter perguntado se ele não adivinhara quem sois.

- Com efeito - replicou o visconde - não tirava os olhos de mim...

Richon sorriu.

- Acredito piamente - disse ele. - Não se encontram todos os dias gentis-homens do seu estofo.

- É um cavaleiro que me parece folgazão - opinou o visconde, passado um momento de silêncio.

- Folgazão e bom; um espírito encantador e um grande coração. Sabe-o muito bem: o gascão nunca é medíocre - ou excelente, ou nada vale. Aquele é de boa cepa. No amor, como na guerra, é ao mesmo tempo um galanteador e um bravo capitão. Tenho pena que siga o partido contrário. Na realidade, já que o acaso o pôs em comunicação com ele, deveria aproveitar-se desta circunstância para chamá-lo ao nosso partido.

Um vermilhão fugitivo deslizou como um meteoro pelas faces pálidas do visconde.

- Pareceu-me muito fútil, o seu amigo... - disse o visconde.

- Oh! meu Deus! - respondeu Richon, com aquela melancólica filosofia que de vez em quando se encontra nos homens de vigorosa têmpera - Acaso somos nós assim tão cegos e tão circunspectos, nós que manejamos com as nossas imprudentes mãos o facho da guerra civil como o faríamos com um círio?... Será homem muito sério o coadjutor, que sossega e amotina Paris com uma palavra?... Será homem sério aquele senhor de Beaufort, que exerce uma tal influência na capital, que lhe deram o nome de rei das praças e mercados?... Será mulher muito séria a senhora de Chevreuse, que faz e desfaz ministros a seu bel-prazer?... Será mulher muito séria a senhora de Longueville, que todavia reinou três meses na Casa da Câmara?... Será mulher muito séria a senhora princesa de Conde, que ainda ontem se não ocupava mais que de vestidos, de jóias e de diamantes?... Enfim: será chefe de partido muito sério, o senhor duque de Enghien, que se ocupava do manejo dos títeres, que está em mãos das mulheres, e que a primeira vez que vestir calções será talvez para alvoroçar toda a França?... E, afinal, eu mesmo, se levar a bem que o meu nome se siga a tantos nomes ilustres - serei eu uma personagem muito grave?... Eu, filho do moleiro de Angolema; eu, antigo criado do senhor de La Rochefoucauld; eu, a quem meu amo um dia, em vez de uma escova e um capote, deu uma espada, a qual pus bravamente à cintura, improvisando-me homem de guerra... E, contudo, eis o filho do moleiro de Angolema, o antigo criado do senhor de La Rochefoucauld, feito capitão; ei-lo que levanta uma companhia, que reúne quatrocentos ou quinhentos homens, cujas vidas, por seu turno, vai arriscar, jogando com elas, como se Deus lhe houvesse dado o direito de assim fazer. Ei-lo que caminha pela rota das grandezas; ei-lo que vai ser coronel, governador de praça. Que virá a ser?... Ei-lo que chegará talvez a ponto de ter durante dez minutos, uma hora, e até um dia inteiro, o destino de um reino nas suas mãos. Como bem vê, isto assemelha-se muito a um sonho, e, contudo, eu o tomarei por uma realidade, até ao dia em que alguma grande catástrofe venha despertar-me. ..

- E nesse dia -ajuntou o visconde- desgraçados daqueles que o despertarem, Richon, porquanto será um herói...

- Um herói ou um traidor, conforme formos mais fortes ou mais fracos. No tempo do outro cardeal, talvez me não houvesse afoitado a tanto, porque teria posto em jogo a minha cabeça.

- Deixe-se disso, Richon; para que haverá de querer persuadir-me de que semelhantes considerações são capazes de deter um homem como o senhor, um dos mais bravos soldados do exército?...

- Sim, não há dúvida - disse Richon, com um estranho movimento de ombros. - Fui bravo quando o rei Luís XIII, o rosto pálido, o seu cordão azul da Ordem do Espírito Santo e os olhos brilhantes como dois carbúnculos, bradava com voz estridente e mascando o bigode:-"O rei vos vê; adiante, senhores!" Mas quando tiver de encarar, não na retaguarda, mas defronte de mim, aquele mesmo cordão azul que ainda estou vendo no peito do pai, agora pendendo do peito do filho, e tenha de gritar aos meus soldados: "Fogo contra o rei da França!" - nesse dia – continuou Richon, abanando a cabeça - nesse dia, senhor visconde, tenho medo de fraquejar e de acabar por fazer fogo em sentido contrário. ..

- Por onde andou hoje, meu querido Richon, que tudo encara pelo lado mais desfavorável? -perguntou-lhe o mancebo.- A guerra civil é coisa triste, sei-o bem; porém, às vezes torna-se necessária.

- Sim, como a peste, como a febre amarela, como a febre negra, como as febres de todas as cores. Crê, por exemplo senhor visconde, ser necessário que eu, que esta noite apertei com tamanho gosto a mão daquele bravo Canolles, vá amanhã enterrar-lhe a espada na barriga, só porque sirvo a princesa de Conde - que de mim zomba - e ele Mazarino, que dele zomba igualmente?... E isso, todavia, é o que acontecerá.

O visconde fez um movimento de horror.

- A não ser - continuou Richon - que apesar de tudo eu me engane, e que seja ele quem me fure a barriga; mas seja de que maneira for - Ah! não compreende o que é a guerra.. Não vê senão um mar de intrigas, e nele mergulha como no seu elemento natural. Disse isto no outro dia, a sua alteza, e ela concordou. Vivem todos numa esfera de onde os fogos de artilharia - que nos matam - vos parecem simples fogos de artifício.

- Na verdade, Richon - disse o visconde- que me assusta: e se não tivesse a certeza de tê-lo a meu lado para proteger-me, não ousaria pôr-me a caminho; mas, protegido pela sua escolta - ajuntou o mancebo, estendo a delicada mão ao partidário - nada tenho a recear.

- A minha escolta... - recordou-se Richon. - Ah! agora por falar nisso: terá de passar sem ela, senhor visconde, pois não posso acompanhá-lo.

- Mas não deve voltar comigo para Chantilly?...

- Só no caso de aqui não ser necessário para lá devia voltar: mas, tal como lhe dizia, a minha importância tanto tem crescido.

que recebi ordem formal da princesa para me não afastar dos arredores do forte, acerca do qual parece que há algum projecto. O visconde fez uma exclamação de susto.

- Partir deste modo, sem si?!... - disse ele.- Partir com aquele digno Pompeu, que é cem vezes mais temeroso do que eu?! Atravessar assim metade da França só, ou quase só?!... Oh! não partirei, juro-lhe! Morreria de susto antes que chegasse!

- Oh! senhor visconde -replicou Richon, dando-uma gargalhada. - Então não se lembra já da espada que tem pendente ao lado?...

- Ria, ria... (tanto melhor); mas eu não partirei. A princesa prometeu-me que o senhor me acompanharia, e só sob essa condição dei a minha palavra.

- Fará o que lhe aprouver, senhor visconde - disse Richon, com afectada gravidade. - Contudo, em Chantilly contam consigo e - pondere isto bem - olhe que os príncipes perdem a paciência com grande facilidade, sobretudo quando esperam dinheiro.

- E para cúmulo da desgraça - lamentou-se o visconde - tenho de partir durante a noite...

- Tanto melhor - disse Richon, a rir. - Não verão que tem medo, e encontrará algum mais poltrão ainda, a quem fará fugir.

- Isso é o que julga - volveu o visconde, a quem esta promessa pouco alento dava.

- Além disso -acrescentou Richon- há um meio de tudo conciliar. Não é por causa do dinheiro que tem medo?... Ora bem: deixe-me o dinheiro; mandá-lo-ei por três ou quatro homens de confiança. Mas considerando bem, o meio mais seguro, aconteça o que acontecer, é ser o senhor o portador.

- Tem razão. Vou partir, Richon; e como cumpre ser completamente bravo, guardo o dinheiro. Creio que sua alteza, pelo que me diz, tem mais necessidade do dinheiro do que de mim; quem sabe se não seria mal recebido, caso chegasse sem ele...

- Eu bem lhe disse, quando entrei, que parecia um herói; além de que, por toda a parte, há soldados do rei, e ainda não estamos em guerra; mas não se fie muito nisso, e recomende a Pompeu que carregue as pistolas.

- É para me alentar que me diz isso?...

- Sem dúvida; quem tem consciência do perigo não se deixa surpreender. Parta, pois - continuou Richon, levantando-se. - A noite há-de estar boa, e antes que amanheça, pode chegar a Monlieu.

- E o nosso barão, não se porá à espreita da nossa partida?...

- Oh! neste momento faz o que nós acabámos de fazer - quer dizer: está ceando. E ainda que a ceia dele não valha tanto como a nossa, não é homem que se levante da mesa sem algum motivo poderoso. Além disso, vou ter com ele, e tratarei de demorá-lo.

- Então, apresente-lhe as minhas desculpas acerca da minha incivilidade para com ele. Não quero, caso o encontre algum dia em menos generosa disposição do que hoje estava, que tenha agravos comigo. Cá para mim, entendo que o seu barão não é para graças.

- Com razão o diz; seria muito capaz de segui-lo até ao fim do mundo, ainda que mais não fosse para medir a espada com a sua. Mas fique sossegado, eu o cumprimentarei da sua parte.

- Sim; mas peço-lhe somente que espere até que me tenha posto a caminho.

- Não deixarei de fazer assim.

- E para sua alteza, não tem nenhuma mensagem?...

- Olá, se tenho! Acabo de recordar-me o mais importante..

- Escreve-lhe?

- Não, senhor; o que é necessário transmitir-lhe não passa de duas palavras.

- Quais?

- Bordéus - Sim.

- Ela saberá o que querem dizer?.,.

- Na perfeição. E ouvidas estas duas palavras, pode partir com toda a segurança; dir-lhe-á que respondo por tudo.

- Vamos, Pompeu - ordenou o visconde ao criado, que nesse momento metia a cabeça pela abertura da porta, a qual estivera por abrir um tanto. - Vamos, meu amigo; é preciso partir.

- Oh! oh! partir!... - disse Pompeu.- O senhor decerto não repara que estamos ameaçados por uma horrorosa tempestade..

- Que dizes, Pompeu!?... -respondeu Richon.- Não vejo uma só nuvem no céu!...

- Mas durante a noite poderemos enganar-nos no caminho..

- Não seria fácil; basta que tenham o cuidado de seguir a estrada real; além disso, faz um luar magnífico.

- Luar! luar!... - rosnou Pompeu. - Compreenda, senhor Richon, que não é por amor de mim que assim falo.

- Sem dúvida; um velho soldado!...

- Quando um homem combateu contra os espanhóis, e foi ferido na batalha de Corbie... - continuou Pompeu, inchando o peito.

- Já se não tem medo de coisa nenhuma, não é assim? Ora, pois isso vem muito a propósito, porquanto o senhor visconde não deixa de ter alguns receios, previno-te disso.

- Oh! oh! - disse Pompeu, enfiado.- Tem medo?...

- Indo contigo, meu bravo Pompeu, não tenho - assegurou o mancebo. - Conheço-te bem, e sei que te farias matar antes que a mim chegassem.

- Sem dúvida, sem dúvida - replicou Pompeu. - Mas se tem demasiado receio, seria bom esperar até amanhã.

- Não é possível, meu bom Pompeu. Vai colocar este ouro na garupa do teu cavalo, que eu já vou ter contigo no mesmo instante.

- É uma quantia muito avultada para expô-la assim - sentenciou Pompeu, tomando o peso dos alforjes.

- Não há perigo algum; pelo menos assim o diz Richon. Vejamos: está tudo pronto? Pistolas, espadas, mosquetes?...

- Sem dúvida se esquece - respondeu o velho escudeiro - de que nunca deixa de ter tudo aprontado o homem que foi soldado toda a vida. Sim, senhor visconde, tudo está no devido lugar.

- Veja - disse Richon. - Não se pode ter medo com semelhante companheiro! Boa viagem, pois, senhor visconde.

- Agradeço-lhe o seu bom desejo; mas o caminho é longo - respondeu o visconde, com um resto de angústia que o ar marcial de Pompeu não podia dissipar.

- Qual! -volveu Richon.- Todo o caminho tem princípio e fim. Apresente os meus humildes obséquios à princesa; diga-lhe que sou todo dela, e do senhor de La Rochefoucauld, até à morte. E não se esqueça das duas palavras que lhe disse: "Bordéus - Sim." Eu vou ter com o senhor de Canolles.

- Diga-me, pois, Richon -replicou o visconde, segurando-o pelo braço no momento em que punha o pé no primeiro degrau da escada - se esse Canolles é tão bravo capitão e tão bom gentil-homem como me afirma, porque não faz você uma tentativa para chamá-lo ao nosso partido?... Poderia reunir-se-nos em Chantilly. ou durante a viagem; tendo já algum conhecimento dele, eu o apresentaria.

Richon olhou para o visconde com um tão singular sorriso, que este, lendo sem dúvida nos traços do partidário o que se passava no seu espírito, apressou-se a dizer-lhe:

- Quanto ao mais, Richon, dê por não dito o que lhe disse, e faça a este respeito o que entender. Adeus!

E, estendendo-lhe a mão, recolheu-se ao quarto, ou porque receasse que Richon visse o súbito vermelhão que assomara ao rosto, ou porque receasse ser ouvido por Canolles, cujas estrondosas gargalhadas chegavam ao primeiro andar.

Deixou pois o partidário descer as escadas, seguido de Pompeu, que levava a mala com uma negligência aparente, a fim de não dar lugar a que se suspeitasse o respectivo conteúdo; e, deixando passar alguns minutos, apressou-se a verificar se não esquecera coisa alguma; apagou as velas, desceu por seu turno com precaução, atreveu-se a lançar uma tímida vista de olhos através da fenda luminosa de uma porta no andar térreo; depois, embuçando-se num capote que Pompeu lhe pusera sobre os ombros, meteu o seu pezinho na mão do escudeiro, saltou com ligeireza para cima do cavalo, queixou-se, sorrindo, da lentidão do velho soldado, e desapareceu na escuridão.

No momento em que Richon entrava no quarto de Canolles. a quem havia de entreter enquanto o viscondezinho fizesse os seus preparativos de partida, um grito de alegria dado pelo barão, meio tombado na cadeira, provou que este não era homem que conservasse rancor.

Sobre a mesa, no meio de dois diáfanos corpos, que haviam sido garrafas cheias, elevava-se, rechonchudo e orgulhoso da sua rotundidade, um garrafão envolto num entrançado de vimes, por entre cujos interstícios a viva luz de quatro velas fazia despedir centelhas de topázios e de rubis: era um garrafão daquele vinho velho de Collioure, cujo suave gosto tão grato é a um paladar já calejado. Apetitosas passas de uvas e figos, amêndoas, biscoitos, queijos picantes, revelavam o cálculo interesseiro do estalajadeiro, cálculo por cuja sábia exactidão respondiam duas garrafas despejadas, e outra em meio. Com efeito, nenhuma dúvida havia de que todo aquele que tocasse em tão provocadora sobremesa, necessariamente faria, por muito sóbrio que fosse, um avultado consumo de líquido.

Ora Canolles não fazia gosto em passar por anacoreta. Talvez que também, na sua qualidade de huguenote (Canolles era de família protestante, e professava, bem ou mal, a religião do seu país), talvez, dizemos nós, que, na sua qualidade de huguenote, Canolles não acreditasse na canonização daqueles piedosos solitários que haviam ganho o Céu bebendo água e comendo raízes. Portanto, por muito triste ou por muito enamorado que estivesse, Canolles nunca era insensível à fragância de um bom jantar, ao aspecto daquelas garrafas com formato especial, nem daquelas rolhas encarnadas, amarelas ou verdes, que vedam o mais puro sangue da Gasconha. da Champanha, ou da Borgonha. Nestas circunstâncias, Canolles cedera, como costumava, aos encantos da vista; da vista passara ao olfacto, e do olfacto ao gosto. E, como dos cinco sentidos com que o dotara aquela boa mãe comum a que damos o nome de senhora Natureza, três estavam completamente satisfeitos, os outros dois. cheios de paciência, esperavam que chegasse a sua vez, com suma resignação.

Neste pé entrou Richon, e foi dar com Canolles bamboleando-se na cadeira.

- Ah! - exclamou este - chega muito a propósito, meu querido Richon. Bem precisava encontrar-me com alguém a quem fizesse o elogio do senhor Biscarros, e estava a ponto de me ver constrangido a gabá-lo àquele biltre do Castorin, que não sabe o que seja paladar e a quem nunca pude ensinar a comer. Olhe para esta prateleira, e lance os olhos a esta mesa, à qual o convido a sentar-se... Não é este estalajadeiro do Bezerro de Ouro um verdadeiro artista, um homem digno de que eu o recomende ao meu amigo o duque d’Épernon?... Observe a delicadeza dos pratos, pois ninguém mais do que o senhor é capaz de avaliar o seu merecimento. Além de tudo isto, uma boa sobremesa e aquela garrafa de vinho de Collioure, que parece querer resistir, mas que terá de ser vencida, como as demais, sobretudo se a acometermos ambos. Viva a alegria! Estou de muito bom humor, e não posso deixar de confessar que Biscarros é um eminente professor. Sente-se ali, Richon; já ceou, mas isso que importa?... Eu também já ceei, não é razão para impedimento: principiaremos de novo.

- Muito obrigado, senhor barão - disse Richon a rir.- Já não tenho fome.

- Convenho que assim seja: pode não haver fome. Mas sede, sempre a deve haver: prove este vinho de Collioure.

Richon aproximou o seu copo.

- Pelo que vejo - continuou Canolles - ceou com o biltrezinho do seu visconde... Ah! Richon, perdoe-me. Não, engano-me: um lindo moço, pelo contrário, a quem devo o prazer de saborear a vida nos seus melhores aspectos, em vez de deixar fugir a alma pelos três ou quatro buracos que tencionava abrir-me na pele aquele bravo duque d’Épernon. Devo, pois, estar muito agradecido ao lindo visconde, àquele encantador Ganimedes. Ah! Richon, parece-me bem que você é o que todos dizem - isto é: um verdadeiro servidor do senhor de Conde...

- Ora! Deixe-se disso, senhor barão! -exclamou Richon, soltando uma gargalhada. - Não tenha semelhantes ideias, far-me-ia morrer de riso.

- Morrer de riso!... Nem pense nisso, meu caro. O que, porém, lhe posso assegurar, meu caro Richon, é que me causa horror o seu pequeno gentil-homem, interessar-se daquela maneira pelo primeiro belo cavaleiro que vê passar!...

E Canolles deixou-se cair na cadeira rebentado de riso e retorcendo o bigode, com um extremo de hilaridade em que Richon não pôde deixar de tomar parte.

- Então - disse-lhe Canolles- não há dúvida, meu querido Richon, com serenidade lhe digo, que conspire...

Richon continuou a rir, mas com um sorriso menos franco.

- Talvez não saiba que eu tinha muito boa vontade de mandá-lo prender, tanto a si como ao seu gentil-homem.. Ora, não deixaria de ter a sua graça, e sobretudo seria muito fácil. Tinha à minha disposição os porta-cacetes do meu compadre d’Épernon. Ah! Richon para o corpo de guarda, e o pequeno gentil-homem também!...- E pôs-se a cantarolar.

Neste momento, ouviu-se o galope de dois cavalos que se iam afastando.

- OláL. - disse Canolles, aplicando o ouvido- que é isto, Richon!?... Sabe?...

- Creio saber o que seja.

- Fale, pois.

- É o pequeno gentil-homem que parte.

- Sem me dizer adeus?!... - exclamou Canolles. - Não há dúvida de que é um sevandija!

- Nada disso, meu querido barão: é um homem que tem muita pressa, e nada mais.

Canolles franziu as sobrancelhas.

- Que singulares maneiras! - disse ele.- E onde seria criado esse rapaz? Richon, meu amigo, pode ficar certo de que a amizade dele não o honra. Não é procedimento de um gentil-homem para com outros gentis-homens. Com todos os demónios! Parece-me que se lhe pudesse chegar, lhe esfregaria as orelhas.. O diabo leve o pobretanas do pai, que, sem dúvida por mesquinhez, nem um mestre lhe deu!

- Não se enfade, senhor barão - disse Richon a rir. - O visconde não é tão malcriado como supõe, visto que, no momento de partir, me encarregou de lhe exprimir o quanto lhe pesava não ter tempo para lhe apresentar as suas despedidas, e recomendou-me que lhe entregasse mil cumprimentos de sua parte.

- Bom, bom! - condescendeu Canolles, - Água benta da corte, que de uma grande insolência faz uma pequena descortesia; eis tudo. Estou levado dos diabos; brigue comigo, Richon! Não quer fazê-lo ?... Ora espere. Saberá, Richon, meu amigo, que o acho muito feio!

Richou desatou a rir.

- Com o mau humor por que está dominado, senhor barão - disse-lhe ele - seria capaz, se nos puséssemos a jogar, de ganhar esta noite mais de mil libras.

Richon conhecia bem o génio de Canolles, e sabia o que fazia ao oferecer uma escape ao mau humor do barão.

- Ah! sim, o jogo! - exclamou ele. - Sim, o jogo! Tem razão. Meu amigo, eis uma palavra que me reconcilia consigo. Richon, afinal, muito me agrada; Richon, é tão formoso como um adónis, e dou o meu perdão ao senhor de Cambes. Castorin, traz-nos cartas!

Castorin logo se apresentou, seguido de Biscarros: chegaram a banca de jogo, e os dois companheiros puseram-se a jogar. Castorin e Biscarros deixaram-se ficar de pé, um de cada lado da mesa. para vê-los jogar. Em menos de uma hora, apesar da previsão feita

a Canolles, Richon ganhou ao seu contrário uns oitocentos francos. Então Canolles, que não tinha já dinheiro consigo, ordenou a Castorin que o fosse buscar à sua mala.

- É escusado - disse Richon, que lhe ouvira dar a ordem. - Não tenho tempo para a desforra.

- Como assim!? Pois não tem tempo?!... - estranhou Canolles.

- Não, senhor. São onze horas - disse Richon- e à meia-noite tenho de estar no meu posto.

- Deixe-se de histórias! Está gracejando?... -vociferou Canolles.

- Senhor barão - disse Richon, com gravidade. - É militar, e, portanto, sabe muito bem qual é o rigor do serviço.

- Então, porque não partiu antes de ganhar-me o meu dinheiro?- replicou Canolles, meio risonho e meio zangado.

- Acaso me criticará por lhe haver feito uma visita? - perguntou Richon.

- Deus tal não permita! Contudo, vejamos: não tenho a menor vontade de dormir, e não poderei deixar de me aborrecer aqui. E se me propusesse que o acompanhasse, Richon?...

- Recusaria essa honra, senhor barão. Os negócios do género daqueles de que eu estou encarregado, tratam-se sem testemunhas.

- Muito bem! Vai... para que lado?

- Ia rogar-lhe que me não fizesse essa pergunta...

- E para que lado foi o visconde?

- É dever meu responder-lhe que nada sei a tal respeito. Canolles fixou os olhos em Richon, para ficar certo de que a

zombaria não entrava por coisa alguma nestas respostas, algum tanto incivis; mas os olhos de bondade e o sorriso tão franco do governador de Vayres desarmaram, senão a sua impaciência, pelo menos a sua curiosidade.

- Vamos - disse Canolles- esta noite está mergulhado em mistérios, meu querido Richon; haja, porém, liberdade completa; eu mesmo muito me teria zangado de que me houvessem seguido, ainda que, afinal de contas, o que me tivesse seguido se visse tão enganado como eu. Portanto, vá lá mais um copo deste vinho de Collioure, e boa viagem!

Dizendo isto, Canolles encheu os copos, e Richon, depois de haver tocado o seu com o do barão e bebido à saúde deste, saiu sem que este se lembrasse sequer de examinar qual era o caminho pelo qual se afastava. Todavia, vendo-se só no meio das velas quase consumidas, das garrafas vazias, das cartas espalhadas, o barão sentiu uma daquelas tristezas que só podem ser compreendidas depois de experimentadas, porquanto a sua alegria durante toda a noite fora acompanhada pelo pesar de ver malogradas todas as suas esperanças, e por mais que quisesse aturdir-se e esquecer esse desgosto, não o conseguira completamente.

Arrastou-se pois para o seu quarto, lançando através das vidraças do corredor um olhar pesaroso e colérico para a pequena casa isolada, na qual, uma janela, iluminada por um reflexo avermelhado, e de vez em quando atravessada por algumas sombras, indicava obviamente que a menina de Lartigues passava uma noite menos solitária do que a sua.

No primeiro degrau da escada, Canolles deu com a ponta do pé em alguma coisa; baixou-se, e apanhou uma das luvazinhas do visconde, que este deixara cair ao sair precipitadamente da estalagem de Biscarros, e sem dúvida não a julgara suficientemente preciosa para que perdesse o seu tempo a procurá-la.

Qualquer que fosse o conceito feito por Canolles num momento de misantropia - muito perdoável a um amante que se vê, como ele, tão contrariado - o certo é que na pequena casa solitária não reinava maior satisfação do que na estalagem Bezerro de Ouro.

Nanon, inquieta e agitada toda a noite, revolvendo no seu pensamento milhares de planos para prevenir Canolles, pusera em prática todo o espírito e velhacaria de que é capaz uma cabeça de mulher bem organizada, para sair da situação precária em que se encontrava.

Para isso não era preciso mais do que um momento surripiado ao duque para falar com Francineta, e dois minutos para escrever uma nota a Canolles num pedaço de papel.

Todavia, dir-se-ia que o duque, tendo suspeitado do que se passava e penetrado a inquietação do espírito dela através da máscara alegre com que cobrira o seu rosto, fizera propósito firme de lhe não permitir aquela liberdade de um momento, que todavia lhe era muito necessária.

Nanon queixou-se de uma dor de cabeça, mas o senhor D’Épernon não quis consentir que se levantasse para ir buscar o seu fraquinho de sais, e foi-lho buscar ele próprio.

Nanon picou-se com um alfinete, pelo que logo rebentou um rubi na ponta do seu dedo nacarado, e quis ir buscar à papeleira uma tira daquele famoso tafetá encerado que começava nessa época a ser apreciado. O senhor d’Épernon, infatigável na sua complacência, levantou-se, foi cortar a tirazinha do tal tafetá encerado, com uma destreza que muito a desesperava, e tornou a fechar a papeleira à chave.

Nanon fingiu que dormia profundamente: quase no mesmo instante o duque pôs-se a ressonar; então Nanon tornou a abrir os olhos e, ao clarão da lamparina que estava sobre uma mesa, tentou tirar o pequeno bloco de notas da algibeira do casaco do duque, que estava ao pé da cama, e ao alcance da sua mão; mas no momento em que já tinha o lápis na mão, e acabava de rasgar uma folha de papel, o duque abriu um dos olhos.

- Que faz, minha querida? - interrogou ele.

- Estava vendo se havia calendário no bloco de notas - respondeu Nanon.

- E para quê - perguntou o duque.

- Para ver em que dia calha a festa do santo com o seu nome.

- Eu chamo-me Luís, e o meu aniversário calha a 24 de Agosto, como sabe. Tem portanto bastante tempo para fazer os preparativos, minha querida.

E tornou a pegar no bloco que ela tinha nas mãos, e meteu-o de novo na algibeira do casaco.

Nesta última manobra, Nanon ganhara pelo menos um lápis e papel. Meteu uma e outra coisa debaixo da almofada, e apagou com toda a destreza a lamparina, esperando poder escrever nas trevas; mas o duque tocou no mesmo instante a campainha, e. acudindo Francineta, pediu-lhe em altos brados luz, asseverando que sem ela não poderia adormecer. Francineta chegou antes que que Nanon houvesse tido tempo de escrever metade da sua frase, e o duque, com receio de que se repetisse um acidente semelhante ao que acabava de acontecer, ordenou a Francineta que pusesse duas velas acesas sobre a lareira. Foi então que Nanon declarou que não podia dormir com luz, e, toda abrasada numa febre de impaciência, voltou a cara para a parede, esperando o dia com uma ansiedade fácil de compreender.

Aquele dia, tão temido, começou por fim a raiar por cima dos ulmeiros, e fez empalidecer a luz das velas. O duque d’Épernon. que se prezava de seguir os hábitos da vida militar, levantou-se ao primeiro raio que filtrou pelas janelas, vestiu-se sem ajuda de ninguém, para se não apartar um só momento da sua pequena Nanon, envergou um roupão, e tocou a campainha, para saber se não haveria alguma coisa de novo.

A resposta que Francineta deu a esta pergunta foi trazer-lhe um maço de despachos que Courtauvaux, o seu picador favorito, trouxera durante a noite.

O duque pôs-se a abri-los, e a lê-los com um dos olhos; o outro, a que o duque se esforçava por dar a expressão mais amorosa que lhe era possível, não o tirava de Nanon.

Nanon, caso isso estivesse na sua mão, teria feito em pedaços o duque.

- Sabe o que deveria fazer, minha cara amiga?... - perguntou-lhe o duque, depois de haver lido uma parte dos seus despachos.

- Não, senhor -respondeu Nanon.- Mas se quiser dar as suas ordens, serão pontualmente executadas.

- Mandar chamar o seu irmão - disse o duque.- Acabo justamente de receber uma carta de Bordéus, que contém as informações que desejava, e ele poderia partir neste mesmo instante; deste modo, quando voltasse, eu teria um pretexto para lhe dar o comando que deseja.

O rosto do duque exprimia a benevolência mais franca.

"Vamos - disse consigo Nanon - ânimo! Quem sabe se Canolles lerá nos meus olhos, ou me compreenderá à primeira palavra que eu lhe dê..."

Depois, em voz alta:

- Mande-o chamar o senhor mesmo, meu querido duque - respondeu ela, porque desconfiava que, caso se quisesse encarregar da comissão, ele se oporia.

O duque chamou Francineta, e despachou-a para a estalagem Bezerro de Ouro, sem lhe dar nenhuma outra instrução mais do que estas palavras:

- Diga ao barão de Canolles que a menina de Lartigues o espera para almoçar.

Nanon lançou uma vista de olhos a Francineta, mas, por muito eloquente que fosse esta vista de olhos, Francineta não podia adivinhar o que ela pretendia: "Diga ao barão de Canolles que eu sou sua irmã."

Francineta partiu, compreendendo que haveria pedra escondida no sapato, e que essa pedra seria talvez algum grande calhau. Neste ínterim, Nanon levantou-se, foi colocar-se atrás do duque, de modo que, mal pusesse os olhos em Canolles, pudesse convidá-lo a que procedesse com cautela, e ocupou-se a compor uma frase artificiosa, por meio da qual, logo às primeiras palavras, o barão ficasse inteirado de tudo o que devia saber, para não tocar em notas discordes no terceto de família que se ia executar.

Olhando de esguelha, podia abranger toda a estrada até àquele cotovelo onde na véspera o senhor d’Épernon se ocultara com os seus esbirros.

- Ah! - disse de súbito o duque - eis Francineta que está de volta.

E cravou os olhos nos de Nanon, que então se viu obrigada a desviar os seus da estrada, para corresponder ao olhar do duque.

O coração de Nanon palpitava com força no peito; não pudera ver mais que Francineta, quando quisera ver Canolles, para procurar na sua fisionomia algum gesto que lhe desse alento.

Subiram os degraus: o duque preparou um sorriso ao mesmo tempo nobre e amigável; Nanon repeliu o rubor que lhe assomava às faces, e alentou-se para o combate.

Francineta bateu ligeiramente à porta.

- Entre - disse o duque.

Nanon engatilhou a famosa frase com que devia saudar Canolles. A porta abriu-se; Francineta estava só. Nanon olhou para a antecâmara, e não viu nela vivalma.

- Senhora - disse Francineta, com a imperturbável serenidade de uma lacaia de comédia - o barão de Canolles não está já na estalagem Bezerro de Ouro.

O duque arregalou os olhos, e tornou-se sombrio. Nanon levantou a cabeça, e respirou.

- Como!? - disse o duque- o barão de Canolles já não está na estalagem do Bezerro de Ouro?...

- Engana-se, decerto, Francineta - ajuntou Nanon.

- Senhora - insistiu Francineta - repito o que o senhor Bis-carros em pessoa me disse.

"O meu querido Canolles terá sem dúvida adivinhado tudo - pensou Nanon.- É tão espirituoso e destro como bravo e formoso."

- Vá neste instante dizer ao senhor Biscarros que venha falar comigo - ordenou o duque, com a má catadura dos dias aziagos.

- Oh! presumo - disse Nanon precipitadamente- que terá

sabido que se encontra aqui, e terá receado incomodá-lo. Aquele pobre Canolles é tão tímido!...

- Ele, tímido?!... - estranhou o duque. - Não é essa a reputação de que goza, segundo me parece...

- Não, senhora - disse Francineta- o barão de Canolles partiu realmente.

- Mas, senhora - disse d’Épernon - como pode ser que o barão tenha medo de mim, visto que Francineta só estava encarregada de o chamar da sua parte?... Então, disseste-lhe que eu estava aqui, Francineta? Responde!

- Não podia dizer-lhe, senhor duque, visto que ele já lá não estava.

Apesar desta pronta resposta de Francineta, que se apresentava com toda a rapidez da franqueza e da verdade, o duque pareceu novamente dominado por toda a sua desconfiança. Nanon, contente, não tinha já vontade de dizer palavra.

- Sempre tenho de voltar para chamar o senhor Biscarros?... - perguntou Francineta.

- Mais do que nunca - disse o duque, com a sua voz grossa. - Mas talvez seja melhor que aqui fiques, pois a tua ama poderia precisar de ti. Eu mando lá Courtauvaux.

Francineta desapareceu. Passados cinco minutos, Courtauvaux estava entre portas.

- Vá dizer ao estalajadeiro do Bezerro de Ouro - disse o duque - que venha falar-me; e quando vier, que traga o que for preciso para um bom almoço. Dá-lhe estes dez luises de ouro para que a comida seja boa. Vai sem mais demora.

Courtauvaux guardou o dinheiro na aba do seu gibão, e logo saiu, para executar as ordens do amo.

Era um moço esperto, que sabia do seu ofício, e que podia dar lições a todos os criados do seu tempo. Foi ter com Biscarros.disse-lhe:

- Persuadi o meu senhor que lhe encomendasse um almoço fino; deu-me oito luíses; dois devo guardá-los, pois me pertencem como minha comissão; eis aqui, portanto, seis para si; vá sem perder tempo.

Não cabendo em si de contente, Biscarros atou em torno dos rins um avental branco, meteu na algibeira os seus luíses, e, apertando a mão a Courtauvaux, pôs-se a caminho após o picador, que o conduziu às carreiras até à pequena casa.

 

DESTA vez, Nanon não tremia: a certeza que lhe dera Francineta sossegara-a absolutamente; até sentia o mais vivo desejo de falar com Biscarros. Foi, portanto, introduzido logo que chegou. Biscarros entrou, com o avental elegantemente arregaçado e com o seu barrete na mão.

- Não é verdade - perguntou Nanon - que ontem tinha em sua casa um jovem gentil-homem, o senhor barão de Canolles?...

- Que foi feito dele? - perguntou o duque.

Biscarros, assaz inquieto, porque o picador e os seis luíses de ouro lhe faziam pressentir alguma grande personagem debaixo daquele roupão, deu logo uma resposta evasiva:

- Saiba, senhor, que ele partiu.

- Partiu? - disse o duque. - Partiu, realmente?...

- Realmente.

- Para onde foi? - perguntou Nanon, por sua vez.

- Isso não posso dizer, pois que na verdade o ignoro, minha senhora.

- Saberá pelo menos a estrada que tomou?...

- A estrada de Paris.

- E a que horas se pôs a caminho? - perguntou o duque.

- Seria meia-noite.

- E sem nada deixar dito? - perguntou Nanon, com timidez.

- Sem nada dizer; deixou somente uma carta, recomendando que fosse entregue à menina Francineta.

- E porque não entregastes essa carta? - disse o duque. - É esse o respeito que tem pela recomendação de um gentil-homem?...

- Eu entreguei-lha, senhor.

- Francineta!-bradou o duque.

Francineta, que estava escutando, não fez mais do que dar um salto da antecâmara para o quarto.

- Porque não entregaste a tua ama a carta que o senhor de Canolles deixara para ela? - perguntou o duque.

- Excelentíssimo senhor... - disse rosnando a criada, sumamente espantada.

"Excelentíssimo senhor!... - disse consigo Biscarros, consternado, e indo alapardar-se no ângulo mais retirado do quarto. - Excelentíssimo senhor!... é sem dúvida algum príncipe disfarçado!..."

- Eu não lhe pedi - apressou-se a dizer Nanon, toda enfiada.

- Dê-ma - ordenou o duque, estendendo a mão.

A pobre Francineta apresentou vagarosamente a carta, pondo em sua ama uns olhos que queriam dizer:

"Bem vê que a culpa não é minha.. Aquele estúpido do Biscarros é que deitou tudo a perder..."

Um duplo relâmpago saiu dos olhos de Nanon, e foi apunhalar Biscarros lá no seu ângulo.

O desgraçado alagava-se em suor, e de boa vontade daria os seis luíses que tinha na algibeira para se achar nos seus fornos, com o cabo de uma caçarola na mão. Durante este tempo, o duque pegara na carta, abrira-a, e estava lendo. Durante a leitura, Nanon, em pé, mais pálida e mais fria do que uma estátua, não sentia já em si vida senão no coração.

- Que quer dizer tudo isto? - perguntou o duque.

Nanon compreendeu, ao ouvir estas palavras, que a carta não a comprometia.

- Leia em voz alta, e talvez eu posso explicar - disse ela. "Querida Nanon..." - leu o duque.

E, depois destas palavras, voltou-se para a jovem senhora que, serenando-se cada vez mais, suportou o seu olhar com uma admirável audácia.

"Querida Nanon - continuou o duque - aproveito-me da licença que lhe devo, e vou, para distrair-me, passar algum tempo a galopar na estrada de Paris. Até à vista; recomendo-lhe a minha fortuna."

- Ora! Aquele Canolles não pode deixar de estar doido!...

- Doido?! Então porquê? - perguntou Nanon.

- Pois é lá possível que se parta assim à meia-noite, sem motivo algum! - perguntou o duque.

"Com efeito!..." - acrescentou Nanon, falando consigo mesma.

- Vejamos! Dê-me a explicação desta partida.

- Ah! meu Deus! - disse Nanon, com um sorriso encantador - nada é mais fácil, excelentíssimo senhor.

"Ela também o trata por excelentíssimo senhor!.. -rosnou Biscarros. - Não há dúvida de que é algum príncipe!"

- Vejamos, pois, fale!

- Será possível que não adivinhe de que se trata?...

- Decerto que nada adivinho.

- Ora, pois: Canolles tem vinte e sete anos... é jovem, formoso, leviano.. A que loucura julga que ele dá preferência?... Ao amor. Terá, portanto, visto passar pela estalagem de Biscarros alguma formosa forasteira, e tê-la-á seguido...

- Amoroso, julga-o?... -estranhou o duque, sorrindo-se com esta ideia muito natural: que se Canolles era amoroso para uma forasteira, qualquer que ela fosse, não estava enamorado de nada.

- Ah! amoroso, sem dúvida. Não é assim, senhor Biscarros?... - disse Nanon, encantada de ver que o duque adoptava esta ideia.- Vejamos, responda com franqueza: não lhe parece que adivinhei?...

Biscarros compreendeu que era chegado o momento de se aliar à jovem senhora, falando no sentido dela; e quando lhe assomava aos lábios um sorriso de quatro polegadas de largo, afirmou:

- Com efeito, parece-me que a senhora não deixa de ter razão. Nanon deu um passo para o estalajadeiro, e disse, estremecendo

a seu pesar:

- Não é assim?...

- Eu pelo menos assim o julgo, senhora - respondeu Biscarros, com certo ar de sagacidade.

- Assim o julga?...

- Sim, senhora. Espere um instante.. Com efeito, faz-me pensar no caso...

- Ah! conte-nos isso, senhor Biscarros -replicou Nanon, começando a deixar-se dominar pelos primeiros crivos do ciúme. - Vejamos: diga quantas forasteiras pernoitaram em sua casa esta noite.

- Sim, diga-o - disse d’Épernon, estirando as pernas e encostando os cotovelos numa poltrona.

- Não dei pousada a nenhuma forasteira - afirmou Biscarros. Nanon respirou.

- A única pessoa que lá passou a noite - continuou o estalajadeiro, sem reparar que cada uma das suas palavras fazia palpitar o coração de Nanon - foi um pequeno gentil-homem, louro, delicado, gordinho, que não comia, nem bebia, e que tinha medo de se pôr a caminho durante a noite. Um gentil-homem que tinha medo -continuou Biscarros, fazendo um leve movimento de cabeça cheio de sagacidade. - Bem me compreende, não é verdade?...

- Ah! ah! ah!- disse com soberba alegria o duque, caindo francamente na esparrela.

Nanon respondeu a este sorriso com um certo ranger de dentes.

- Continue - disse ela.- Isso não deixa de ter a sua graça! E sem dúvida o pequeno gentil-homem esperava pelo senhor de Canolles, não?

- Não, senhora; esperava para cear um corpulento senhor de bigode, e até tratou com alguma dureza o senhor de Canolles, quando este quis cear com ele; mas este bravo gentil-homem não se agastou por tão pouca coisa. É um camarada atrevido e empreendedor, segundo parece. E com verdade o digo! Depois da partida do grande, que seguiu pela direita, correu atrás do pequeno, que tomara à esquerda.

E após esta discussão, que nenhum esclarecimento dava, Biscarros, vendo pintada a satisfação no rosto do duque, entendeu que lhe era permitido dar gargalhadas tão estrondosas que fizeram tremer as vidraças.

O duque, absolutamente sossegado, teria abraçado Biscarros, se este tivesse a mais pequena dose de fidalguia. Quanto a Nanon, pálida, e com um sorriso convulsivo e gelado nos lábios, escutava cada palavra que saía da boca do estalajadeiro com aquela fé devoradora que impele os ciumentos a beberem a largos tragos, e até às fezes, o veneno que os mata.

- Mas que lhe permite pensar - disse ela- que o pequeno gentil-homem seja uma mulher, que o senhor de Canolles esteja enamorado dela, e que não siga a estrada real por capricho, para matar o tempo?

- O que me dá lugar a pensá-lo? - respondeu Biscarros, que se empenhava em fazer penetrar a convicção no espírito dos seus ouvintes. - Sejam pacientes, vou dizê-lo.

- Sim, diga-mo, meu querido amigo - replicou o duque.- Na realidade, dá-nos muito prazer.

- Vossa excelência tem demasiada bondade! - disse Biscarros. - Explico-me já.

O duque aplicou o ouvido. Nanon ouvia, apertando os punhos.

- Eu de nada desconfiava, e até tomara desde logo o pequeno cavaleiro louro por um homem, quando encontrei o senhor de Canolles no meio da escada, tendo na mão esquerda o seu castiçal, e na direita uma luvazinha, que examinava e cheirava apaixonadamente.

- Oh! oh! oh! - fez o duque, cuja vontade de rir era cada vez maior, à medida que se iam desvanecendo os receios relativamente à sua pessoa.

- Uma luva?... - repetia Nanon, fazendo diligência por se lembrar se não seria ela quem tivesse deixado tal penhor nas mãos do cavaleiro. - Uma luva do género desta?...

E apresentou ao estalajadeiro uma das suas luvas.

- Não - negou Biscarros. - Uma luva de homem.

- Uma luva de homem?!... O senhor de Canolles a olhar para uma luva de homem, e a cheirá-la com paixão!... Está louco!

- Não estou, não, pois era uma luva do pequeno gentil-homem; do lindo cavaleiro loiro, que não bebia, nem comia, e que tinha medo de se pôr a caminho de noite; uma luvazinha tão pequena, alguma, ter uma mão muito delicada.

Nanon deu um pequeno grito surdo, como se houvesse sido ferida por um dardo invisível.

- Congratulo-me - disse ela, fazendo um violento esforço - de que esteja bastante inteirado, senhor, e de que saiba tudo quanto desejava saber.

E com os lábios trémulos, dentes apertados e olhos fixos, apontava com o dedo a porta a Biscarros, que, observando no rosto da jovem senhora estes sinais de cólera, nada podia compreender em tudo isso, e estava de boca aberta e olhos arregalados.

"Se a ausência deste gentil-homem - disse ele lá consigo - é um tão supremo infortúnio, o seu regresso seria uma grande ventura. Lisonjeemos este nobre senhor, com uma doce esperança, a fim de que tenha boa vontade de comer."

Em virtude deste raciocínio, Biscarros revestiu-se do ar mais gracioso que lhe foi possível, e, lançando com um movimento cheio de graça a perna direita para diante, afirmou:

- O certo é que o cavaleiro partiu, enfim, mas também pode voltar a todo o momento...

O duque sorriu-se, quando ouviu isto.

- É verdade - disse - e porque não voltaria ele? Quem sabe se não estará já de volta... Vá ver, senhor Biscarros, e traga-me a resposta.

- Mas, o almoço?... - interpôs Nanon com vivacidade.- Cá por mim estou morrendo de fome.

- É muito justo - disse o duque- e Courtauvaux tratará disso. Venha cá Courtauvaux. Vá à estalagem do senhor Biscarros, e veja se o senhor de Canolles terá voltado. Se não o encontrar, pergunte por ele, informe-se, procure-o naquelas imediações. Tenho todo o empenho em almoçar com esse gentil-homem; parta sem mais detença.

Courtauvaux partiu. E Biscarros, que observava o silêncio e o enleio das duas personagens, deu mostras de querer emitir um novo expediente.

- Não percebe - atalhou Francineta - que a senhora lhe faz sinal para que se retire?...

- Mais um momento! - exclamou o duque. - Que indiscrição! Dir-se-ia que não sabe o que faz, minha cara Nanon; e então os assados!.. Sucede-me o mesmo que a si! Estou morrendo de fome. Venha, senhor Biscarros; junte estes seis luíses aos outros: é para pagar a história que acaba de contar-nos.

Após isto, deu ordem ao historiador para que cedesse o lugar ao cozinheiro: e, apressemo-nos a dizê-lo, o senhor Biscarros não brilhou na segunda ocupação menos que na primeira.

Contudo, Nanon tinha feito as suas reflexões e abrangido de um só relance toda a situação em que a colocava a suspeita de Biscarros: em primeiro lugar, seria exacta, essa suposição? E, afinal, se o fosse, Canolles não seria desculpável? Com efeito, que cruel logro não era para um bravo gentil-homem como ele, ver que não se realizava aquele encontro ajustado de antemão; que vexame, para ele, ver-se assim espiado e perseguido pelo duque d’Épernon, e reduzido à necessidade que lhe era imposta de assistir, por assim dizer, ao triunfo do rival! Era tal a paixão de Nanon, que, atribuindo esta fuga a um exagerado ciúme, não só desculpou, mas até lamentou Canolles, chegando a ponto de quase se aplaudir por ser suficientemente amada para provocar em Canolles esta pequena vingança. Mas também, primeiro do que tudo, era preciso deter os progressos desse novo amor apenas nascido.

Aqui, uma reflexão terrível deslizou pelo espírito de Nanon, produzindo nela o efeito de um raio que lhe caísse aos pés.

"Se aquele encontro de Canolles e do pequeno gentil-homem tivesse sido premeditado!..."

Mas isso era uma loucura da parte dela, visto que o pequeno gentil-homem esperava um cavaleiro de bigodes; visto que tratara Canolles com dureza; visto que o próprio Canolles não reconheceu talvez o sexo do desconhecido, senão quando, por acaso, encontrara uma das suas luvas.

Não importa: era preciso contrariar Canolles.

Então, armando-se de toda a sua energia, voltou para junto do duque, que acabava de despedir Biscarros, carregado de cumprimentos e de recomendações.

- Que desgraça, senhor - disse ela- ver-se aquele louco do Canolles privado, pelo seu estouvamento, de uma honra como a que se dignava conceder-lhe! Se estivesse presente, a sua sorte futura estava assegurada. Com a sua ausência, talvez que perca quanto podia esperar, i

- Mas - disse o duque - se tornarmos a encontrá-lo...

- Oh! tal não acontecerá - disse Nanon.- Se o negócio é de mulher, decerto não terá voltado.

- A isso não posso dar remédio, minha querida – respondeu o duque. - A juventude é a idade dos prazeres; é jovem, e diverte-se.

- Mas eu - disse Nanon - que sou mais razoável do que ele, sou de opinião de que se lhes deveria turbar um tanto aquela alegria intempestiva.

- Ah! irmã ralhadora... - exclamou o duque.

- Ele não levaria isso a bem, no primeiro momento -continuou Nanon- mas decerto ficar-me-ia mais tarde agradecido.

- Ora bem, vejamos: concebeu algum plano? Nada mais desejo, caso tenha algum, do que adoptá-lo eu mesmo.

- Está então decidido a isso?

- Sim, senhora; explique-se.

- Não quer mandá-lo à rainha, para lhe levar a toda a pressa uma notícia?..

- Sem dúvida; mas se ele não tiver voltado?...

- Ordene que corram atrás dele; e visto que segue a estrada de Paris, em todo o caso será outro tanto caminho ganho.

- Pela minha fé! Tem razão.

- Deixe isso por minha conta, e Canolles receberá esta ordem hoje à noite, ou amanhã, o mais tardar. Eu lho afianço.

- Mas quem mandará?

- Precisa de Courtauvaux?

- Nenhuma necessidade tenho dele.

- Ponha-o à minha disposição, e eu o enviarei com as minhas instruções.

- Oh! que boa cabeça de diplomata! Muitos progressos fará, Nanon.

- Fique eu eternamente na escola de um tão bom mestre - disse Nanon - é tudo quanto desejo.

E lançou o seu braço ao pescoço do velho duque, que estremeceu de alegria.

- Que deliciosa partida pregaremos ao nosso namorador! - disse ela.

- Há-de ser coisa digna de se contar, minha querida.

- Na verdade, bem quereria correr atrás dele, para ver a cara que fará ao mensageiro...

- Desgraçadamente... ou antes: felizmente, não é coisa possível, e tem de ficar a meu lado.

- Sim, mas não percamos tempo. Vamos, senhor duque, escreva a sua ordem, e coloque Courtauvaux à minha disposição.

O duque pegou na pena e escreveu num pedaço de papel:

Bordéus, não.

E assinou-o. Depois, no invólucro deste lacónico despacho, escreveu o seguinte endereço:

A Sua Majestade a Rainha Ana de Áustria, regente da França.

Nanon, da sua parte, escreveu duas linhas, que juntou ao papel, depois de as haver mostrado ao duque:

Meu querido barão:

Como muito bem vê, o despacho incluso é para Sua Majestade a Rainha. Fica responsável pela sua entrega. Leve-o sem a mínima demora; trata-se da salvação do reino.

Sua boa irmã, Nanon.

Ainda mal tinha acabado este bilhete, quando se ouviu no fundo da escada um ruído de passos, e Courtauvaux, subindo apressadamente, abriu a porta, com o risonho semblante do homem que traz uma notícia que sabe ser esperada com impaciência.

- Aqui está o senhor de Canolles, que encontrei a cem passos daqui - disse o picador.

O duque arrancou uma exclamação de benevolência e surpresa. Nanon engoliu em seco e correu para a porta, dizendo em voz baixa:

"Está pois escrito que não o evitarei!"

Neste momento, uma nova personagem se apresentou à porta, vestido com magnificência, de chapéu na mão, e sorrindo-se com o modo mais gracioso.

Um raio que tivesse caído aos pés de Nanon não lhe teria decerto causado maior sobressalto do que esta inesperada aparição, nem lhe teria provavelmente arrancado uma exclamação mais dolorosa do que aquela que a seu pesar lhe escapou da boca.

- Ele! - exclamou Nanon.

- Sem dúvida minha boa irmãzinha - respondeu uma voz muito meiga.- Mas perdoe -continuou o proprietário desta voz, dando com os olhos no duque d’Épernon- talvez que vos venha causar incómodo...

E fez a mais profunda cortesia ao governador da Guiena, que o recebeu com um gesto benévolo.

- Cauvignac... - disse Nanon, mas em voz tão baixa que este nome antes foi pronunciado pelo coração do que pelos lábios.

- Seja muito bem-vindo, senhor de Canolles - disse o duque, dando mostras de grande satisfação. - Sua irmã e eu não fizemos mais que falar de si desde ontem à noite, e desde ontem à noite muito o desejamos.

- Ah! desejavam-me, na verdade?.. - disse Cauvignac, fixando em Nanon os olhos onde transluzia uma indefinida expressão de ironia e dúvida.

- Sim - corroborou Nanon. - O senhor duque teve a bondade de desejar que lhe fosse apresentado.

- O receio de ser importuno, senhor - disse Cauvignac, inclinando-se diante do duque- é que unicamente me impediu de reclamar mais cedo essa honra.

- Com efeito, senhor barão - volveu o duque - tenho admirado a sua delicadeza; mas não posso deixar de estranhá-la.

- Amim, senhor!? Estranhar a minha delicadeza?!... Ah! ah!...

- Sim, porque se a sua boa irmã não tivesse tomado a peito os seus assuntos...

- Ah! - disse Cauvignac, lançando um olhar de eloquente repreensão a Nanon- Ah! minha boa irmã tomou a peito os assuntos., do senhor?...

- Seu irmão! - disse com viveza Nanon.- Que coisa pode haver mais natural?...

- E ainda hoje mesmo, a que devo eu o prazer de o ver?

- Sim - disse Cauvignac- a que deve, senhor, o prazer de ver-me?

- Ao acaso! Ao simples acaso, que contribuiu para que regressasse.

"Ah! -pensou Cauvignac- parece que eu tinha partido..."

- Sim, havia partido, mau irmão, sem disso me prevenir senão com duas palavras, que nada mais fizeram do que agravar a minha inquietação.

- Que quer, minha querida Nanon? É preciso perdoar alguma coisa aos enamorados - disse o duque, sorrindo.

"Oh! oh! isto vai-se complicando muito -murmurou Cauvignac consigo.- Estou enamorado, segundo parece..."

- Vamos - disse Nanon - confesse que o está.

- Não o negarei - replicou Cauvignac, com um sorriso triunfante, lidando por alcançar de todos os olhos algum sintoma da verdade, com o socorro do qual pudesse forjar uma alentada mentira.

- Sim, sim - disse o duque - mas almocemos, se for do seu agrado. Contar-nos-á os seus amores, senhor barão, enquanto almoçarmos. Francineta, um talher para o senhor de Canolles. Creio, capitão, que não terá almoçado...

- Não, senhor, e até confessarei que o fresco da manhã me deu boa vontade de comer.

- Diga que o da noite, travesso mancebo - emendou o duque - visto que desde ontem anda correndo pelas estradas.

"Pela minha fé! Que desta vez - ruminou em voz baixa Cauvignac- o cunhado adivinhou. Seja assim, embora eu confesse, o ar da noite..."

- Pois então - disse o duque, dando o braço a Nanon e passando para a sala de jantar, seguido por Cauvignac- aí tem, pelo menos assim o espero, com que satisfazer o seu apetite, por muito violento que seja.

Com efeito, Biscarros havia-se esmerado; as iguarias não eram numerosas, mas deliciosas e suculentas. O vinho branco de Guiena e o vinho tinto de Borgonha caíam da garrafa como pérolas de ouro e cascatas de rubis.

Cauvignac não comia; devorava.

- Este rapaz tem bom apetite - constatou o duque. - Mas a senhora, Nanon...

- Passou-me a vontade.

- Querida irmã! -exclamou Cauvignac.- Quando penso que foi o prazer de me ver que lhe tirou o apetite, não posso, na realidade, deixar de repreendê-la por tanto me amar.

- Nanon, esta asa de frango?... - incitou o duque.

- É para meu irmão, senhor, para meu irmão - disse a jovem senhora, que via despejar-se com medonha rapidez o prato de Cauvignac, e receava vê-lo renovar a farsa depois da desaparição dos víveres.

Cauvignac adiantou o seu prato com um sorriso de sumo agradecimento. O duque pôs a asa no seu prato, e Cauvignac colocou-o diante de si.

- Vamos lá: que nos conta de bom, Canolles? -perguntou o duque, com uma familiaridade que Cauvignac tomou por muito bom agouro. - Está entendido que não lhe falo de amores.

__Antes pelo contrário, fale deles, excelentíssimo senhor; nada

de constrangimento - disse o mancebo, a quem os vinhos de Bordéus e Borgonha, combinados em doses sucessivas e iguais, começavam a desaferrolhar a língua e que, tomando um nome emprestado, não receava ser desmascarado por quem conhecia a fraude.

- Oh! senhor, ele é muito galhofeiro - disse Nanon.

- Então podemos convidá-lo a dizer alguma coisa acerca do pequeno gentil-homem?... - perguntou o duque.

- Sim - prosseguiu Nanon - do pequeno gentil-homem que encontrou ontem de tarde.

- Ah! sim, no caminho que eu seguia - aventurou Cauvignac.

- E depois na estalagem de Biscarros - ajuntou o duque.

- E depois na estalagem de Biscarros! - replicou Cauvignac. - Não há dúvida de que assim foi!

- Então, encontrou-o, realmente?... - perguntou Nanon.

- Aquele pequeno gentil-homem?...

- Sim.

- Como é ele? Vejamos! Diga-me com franqueza.

- Pela minha fé - continuou Cauvignac - que era um mocinho encantador: louro, delicado e elegante, viajando com uma espécie de escudeiro.

- É isso mesmo - disse Nanon, mordendo os lábios.

- E está namorado dele?

- De quem?

- Do pequeno gentil-homem louro, delicado e elegante...

- Ora, essa não é má! - bradou Cauvignac. - Que quer dizer! ?

- Conserva sempre a luvazinha sobre o coração?...-continuou o duque, rindo sorrateiramente.

- A luvazinha?...

- Sim, aquela que ontem à noite cheirava e beijava tão apaixonadamente...

Cauvignac não .sabia já às quantas andava.

- Aquela, enfim, que lhe forneceu a suspeita do ardil, da me-ta-mor-fo-se - continuou o duque, carregando a cada sílaba.

Cauvignac tudo compreendeu ao ouvir esta única palavra.

- Ah!? -exclamou ele- o gentil-homem era então uma mulher?... ora, pois, dou-lhes a minha palavra de honra que tive algumas desconfianças.

"Já não resta a mínima dúvida" - murmurou Nanon.

- Dê-me pois de beber, minha mana - disse Cauvignac. - Não sei quem despejou a garrafa que está do meu lado, mas dentro dela já nada há.

- Vamos, vamos... -sentenciou o duque- a coisa ainda é remediável, visto que o seu amor não o impede de beber, nem de comer; e disso não resultará dano algum para os negócios do rei.

- Dano algum para os negócios do rei?!... - exclamou Cauvignac.- Isso nunca! Os negócios do rei estão primeiro do que tudo. Os negócios do rei, isso é coisa sagrada! À saúde de Sua Majestade, excelentíssimo senhor.

- Então, senhor barão, podemos confiar no seu zelo?

- No meu zelo em servir o rei?...

- Sim.

- Muito bem, creiam que podem confiar em mim. Eu, que me deixaria fazer em postas por amor a ele, e até...

- E assim é de esperar - disse Nanon, receando que, no entusiasmo que lhe davam os vinhos de Bordéus e de Borgonha, Cauvignac se esquecesse da personagem cujo papel representava para tornar a entrar na sua própria individualidade - e assim é de esperar: não é um capitão ao serviço de Sua Majestade, graças às bondades do senhor duque?...

- Jamais disso me esquecerei - assegurou Cauvignac, com uma comoção lacrimosa e pondo uma das mãos sobre o coração.

- Ainda mais faremos, barão, sim, ainda mais faremos para o futuro - disse o duque.

- Obrigado, senhor, muito obrigado!

- E nós já começámos a tratar disso.

- Sério?...

- Sim; é demasiado tímido, meu jovem amigo -continuou o duque d’Épernon.- Quando precisar de protecções, deverá recorrer a mim; agora, que é inútil usar de rodeios; agora, que nenhuma necessidade já tem de se ocultar, agora, que estou ciente de que é irmão de Nanon...

- Senhor -exclamou Cauvignac- de ora em diante, dirigir-me-ei a si directamente!

- Promete-mo?...

- A isso me obrigo.

- Fará muito bem. Entretanto, sua irmã dar-lhe-á a saber qual é o negócio de que se trata: ela entregar-lhe-á uma carta da minha parte. Talvez que o seu futuro dependa da mensagem que lhe confio, em virtude da sua recomendação. Siga os conselhos de sua irmã, mancebo; siga os seus conselhos. É uma boa cabeça, um espírito distinto, um coração generoso! Ame sua irmã, barão, e fique certo do meu afecto.

- Senhor -exclamou Cauvignac, com veemência- minha irmã sabe até que ponto a amo, e que nada desejo tanto como vê-la feliz, poderosa e... rica.

- Esse ardor agrada-me - disse o duque.- Fique então na companhia de Nanon, enquanto eu mesmo vou ocupar-me de um certo tratante. Mas, a propósito, barão - continuou o duque - talvez me possa dar algumas informações acerca daquele bandido...

- De boa vontade o farei - disse Cauvignac. - Basta que eu saiba quem é o bandido de que vossa excelência quer falar; há-os em grande número e de toda a espécie, neste desgraçado tempo.

- Tem razão, mas este é um dos mais impudentes que eu tenho encontrado.

- Palavra!? - disse Cauvignac.

- Aquele miserável, em troca da carta que sua irmã lhe escrevera ontem, e de que se apossou por uma violência infame, extorquiu-me um papel assinado em branco.

- Uma assinatura em branco é negócio muito sério! Mas que interesse tinha - perguntou Cauvignac, com ar de ingenuidade - em possuir uma carta de irmã para irmão?

- Esquece-se que eu ignorava um tal parentesco?...

- Ah! é verdade.

- E de que tinha a loucura (perdoa-mo, não é assim, Nanon?) - continuou o duque estendendo a mão à jovem senhora- de ter ciúmes de si..

- Na realidade?! Ciúmes de mim!... Ah! senhor, nenhuma razão tinha para isso.

- Desejava, pois, perguntar-lhe se tinha alguma suspeita de quem seria o sujeito que representou para mim o papel de delator.

- Nenhuma ideia, com efeito... Mas bem compreende, senhor, que tais acções não ficam impunes, e algum dia saberá quem a cometeu.

- Sim, por certo, algum dia o saberei - disse o duque - e para isso tenho tomado as minhas precauções: mas preferia sabê-lo já.

- Ah! -replicou Cauvignac, apurando o ouvido.- Tomou as suas precauções, excelentíssimo senhor...

- Sim, sim. E o tal tratante muito feliz será se a minha assinatura em branco o não fizer enforcar brevemente.

- Oh! -fez Cauvignac.- E como poderá distinguir aquela assinatura em branco das outras ordens que dá?

- Àquela eu pus-lhe um sinal.

- Um sinal?...

- Sim; invisível para todos, mas que eu poderei reconhecer mediante um processo químico.

- Ora essa! - disse Cauvignac- o que fez, excelentíssimo senhor, é uma prova de grande engenho; mas é mister tomar cuidado de que o poltrão não tenha alguma suspeita do laço.

- Oh! por isso não é de recear; quem quer que lho diga?...

- Ah! é verdade -replicou Cauvignac.- Não será Nanon. não serei eu...

- Nem eu - completou o duque.

- Nem o senhor! Portanto, tem razão, excelentíssimo senhor, não poderá deixar de saber, algum dia, quem é aquele homem, e então...

- E então, como estarei desobrigado da palavra que lhe dei, visto que em troca da assinatura em branco lhe terão dado o que desejava, mandá-lo-ei enforcar.

- Ámen!-finalizou Cauvignac.

- E agora -continuou o duque- visto que me não pode dar informação alguma relativamente àquele patife...

- Não, senhor; realmente nada lhe posso dizer a seu respeito.

- Ora, pois, como ia dizendo, deixo-o com sua irmã. Nanon - continuou o duque- dê a este mancebo as informações precisas, e sobretudo que não perca tempo!

- Pode ficar descansado, senhor.

- Assim, cá vos deixo a ambos.

E o duque fez com a mão uma saudação benévola a Nanon, um gesto amigável ao irmão, e desceu a escada, prometendo que provavelmente voltaria antes que anoitecesse.

Nanon acompanhou o duque até ao patamar.

"Em boa estava eu metido! - pensou Cauvignac. - Fez muito bem aquele digno senhor em prevernir-me. Vamos, vamos, não é tão tolo como parece! Mas que farei eu da assinatura em branco?... Com todos os diabos! farei o que se faz com uma letra de câmbio: negociá-la-ei."

- Agora, senhor - disse Nanon, tornando a entrar, e fechando a porta - como acaba de dizer o senhor duque dlheÉpemon, eis-nos aqui sós.

- Sim, minha querida irmãzinha -respondeu Cauvignac - eis-nos aqui sós. Eu vim unicamente para falar consigo; mas a fim de bem conversar é preciso estar sentado. Sente-se, pois, rogo-lhe.

E Cauvignac chegou uma cadeira para junto de si, e fez com a mão sinal a Nanon de que esta cadeira era destinada para ela.

Nanon sentou-se, com um franzimento de sobrancelhas que nada anunciava de bom.

- Em primeiro lugar - disse Nanon - porque não está onde devia estar?

- Ah! minha querida irmãzinha, essa pergunta, da sua parte, não me lisonjeia muito. Se me achasse onde deveria estar, não estaria aqui, e por consequência, não teria o prazer de me ver.

- Não havia desejado receber as Ordens sacras?...

- Eu não, senhora; diga que algumas pessoas que por mim se interessam (a senhora mesmo, em particular) tiveram vontade que eu as recebesse; mas quanto à minha pessoa, não tive uma vocação suficientemente intensa para a Igreja.

- Contudo, a sua educação foi toda religiosa...

- Sim, minha querida, e julgo ter-me aproveitado dela santamente.

- Nada de sacrilégios, senhor; nada de zombarias quando se trata de coisas santas.

- Eu não estou zombando, minha querida manazinha. Não faço mais do que narrar. Escute: enviou-me para o Convento dos Meninos de Angolana, a fim de ali fazer os meus estudos...

- E então?

- E então... eu fi-los. Sei grego como Homero, latim como Cícero, e teologia como João Huss. Portanto, não tendo já nada que aprender no convento daqueles dignos meninos, passei dali, sempre em cumprimento das suas ordens, para o dos Carmelitas de Ruão, a fim de ali professar.

- Esquece-se de dizer que eu tinha prometido estabelecer-lhe uma renda anual de mil francos, e que cumpri a minha promessa.

Mil francos para um carmelita, era, no meu entender, mais do que suficiente.

- Não o nego, querida irmã; mas, sob o pretexto de que eu não era ainda carmelita, o convento é que recebeu constantemente essa renda.

- E quando assim fosse? Não fez o senhor, consagrando-se à Igreja, voto de pobreza?...

- Minha irmã, se eu fiz voto de pobreza, juro-lhe que cumpri exactamente este voto: ninguém tem sido mais pobre do que eu.

- Mas, como saiu do convento?

- Ah! eu conto. Como Adão saiu do Paraíso; a ciência é que me deitou a perder, minha irmã. Era demasiado sábio.

- Como é que pode ser demasiado sábio?

- Sim; veja que entre esses carmelitas que bem longe estão de serem uns Erasmos e uns Descartes, eu passava por um prodígio. .. de ciência, bem entendido; de onde resultou, quando o senhor duque de Longueville foi a Ruão solicitar que esta cidade se declarasse a favor do Parlamento, de onde resultou, digo, enviarem-me àquele mesmo senhor de Longueville, para o cumprimentar, o que fiz em termos tão elegantes e tão selectos, que não só deu mostras de ficar muito satisfeito com a minha facúndia, mas até me perguntou se eu queria ser seu secretário. Isto aconteceu justamente no instante em que ia pronunciar os meus votos.

- Sim, disso estou bem lembrada; e até, sob pretexto de fazer as suas despedidas do mundo, pediu-me mil francos, que eu lhe mandei por mão própria.

- E dou-lhe a minha palavra de honra que foram os únicos que recebi.

- Mas devia renunciar ao mundo.

- Sim, senhora, essa era a minha intenção. Mas tal não foi a da Providência, que sem a mínima dúvida lá tem os seus desígnios a meu respeito; ela dispôs de mim de outro modo, pela mão do senhor de Longueville. Não quis que eu fosse frade. Conformei-me, pois, à vontade daquela boa Providência, e, cumpre-me confessá-lo, não me arrependo de assim ter feito.

- Então já não está na religião?

- Não, querida irmã; ao menos por ora. Dizer-lhe que nela não tornarei algum dia a entrar, é o que me não atreveria a fazer, porquanto qual é o homem que pode na véspera dizer o que fará no dia seguinte?... O senhor de Rance não acaba de fundar a Ordem de Cartuxa?... Quem sabe se não farei como o senhor de Rance, e se não inventarei alguma ordem nova. Mas neste momento estou aplicado à guerra, como bem vê, e por algum tempo, o que me tornou profano e impuro; na primeira ocasião que se me ofereça, purificar-me-ei.

- O senhor, homem de guerra?!... - volveu Nanon, encolhendo os ombros depreciativamente.

- E porque não?... Não lhe direi que sou um Dunois, um Dugues-clin, um Bayard, um cavaleiro sem medo e sem mancha. Não, não chega o meu orgulho a ponto de dizer que nada tenho de que possa arguir-me, e não perguntarei, como o ilustre cabo de partidários Sforza, que é isso de medo. Sou um homem, e, como diz Plauto: "Homo sum, et nihil humanum a me alienum puto"; o que quer dizer: "Eu sou homem, e nada do que é humano me é estranho." Tenho, pois, tanto medo como a todo o homem é permitido que o tenha; o que não obsta a que seja bravo quando a ocasião se oferece. Sei manejar assaz agradavelmente, quando a isso me vejo obrigado, a espada e a pistola; mas a minha verdadeira inclinação, a minha vocação decidida, é para a diplomacia, como bem vê. Se não estou muito enganado, minha querida Nanon, chegarei a ser um grande político, e a política é uma bela carreira; para isso, basta olhar para Mazarino, que, se não for enforcado, irá longe. Ora pois, eu sou como Mazarino; e por isso, um dos meus medos, o maior de todos, é que me enforquem. É uma felicidade para mim que aqui esteja, querida Nanon, o que me dá muita confiança e alento.

- Portanto, é homem de guerra?...

- E homem de corte, em caso de necessidade. Ah! a minha estada junto do senhor de Longueville foi-me muito útil.

- E que aprendeu, a seu lado?

- O que se aprende ao lado dos príncipes: a guerrear, a intrigar, e a atraiçoar.

- E onde o levou isso?

- À mais alta posição.

- Que perdeu...

- E então? Isso que tem?... O senhor de Conde também perdeu a sua. Ninguém tem os acontecimentos na mão. Querida irmã! Tal como me vê, governei Paris; eu mesmo!

- O senhor?!

- Sim, eu!

- Quanto tempo?

- Uma hora e três quartos, contados pelo relógio.

- Governou Paris?

- Como se fora um imperador.

- E como pôde tal suceder?

- De uma maneira muito simples. Não ignora que o coadjutor, o senhor de Gondy, o abade de Gondy...

- Muito bem.

- Era senhor absoluto da cidade. Ora, pois, naquele momento, eu estava com o senhor duque de Elboeuf. É um príncipe loronês, e nenhuma vergonha pode haver em estar com o senhor de Elboeuf. Ora, naquele momento, o senhor de Elboeuf era inimigo do coadjutor. Suscitei, pois, um motim a favor do senhor de Elboeuf, durante o qual lancei mão...

- De quem? Do coadjutor?

- Nada disso, não saberia que fazer dele, e ver-me-ia muito embaraçado. Lancei mão da sua amante, da senhora de Chevreuse.

- Mas isso é uma coisa horrorosa!... - exclamou Nanon.

- Não é coisa horrorosa que um padre tenha amante?... Foi justamente o que eu disse comigo. Portanto, o meu intento era apoderar-me dela e levá-la para tão longe que jamais ele a tornasse a ver. Mandei-o prevenir de qual era a minha intenção; mas aquele diabo de homem tem umas razões a que não é possível resistir: mandou-me dez mil francos.

- Pobre mulher! Ver-se assim posta em leilão!...

- Como assim!? Deveria, pelo contrário, dar-se por muito satisfeita; provou-lhe o quanto a amava o senhor de Gondy! Outro qualquer talvez não mostrasse tanto zelo em garantir-lhe a liberdade.

- Então, deve estar rico...

- Eu? - admirou-se Cauvignac.

- Sem dúvida, por meio dessas surripiaduras..

- Não me fale mais em tal; saiba, Nanon, que sou desgraçado! A circunspecta criada da senhora de Chevreuse, a quem ninguém tratara de resgatar, e que, por consequência, ficara comigo, roubou-me aquele dinheiro.

- Quanto mais não seja, resta-lhe, assim o espero, a amizade daqueles a quem serviu ofendendo o coadjutor...

- Ah! Nanon, é fácil ver que não conhece os príncipes! O senhor de Elboeuf reconciliou-se com o coadjutor. No tratado que fizeram entre si, fui eu o sacrificado. Vejo-me, portanto, obrigado a pôr-me ao serviço de Mazarino; mas este é um bigorrilha, e como não proporcionava a recompensa pelo serviço, aceitei a oferta que me foi feita, de tentar o novo motim em honra do conselheiro Broussel, e que tinha por objectivo dar cabo do senhor chanceler Séguier. Mas a minha gente, pouco destra, não o fez completamente. No meio do motim corri o maior perigo que jamais me ameaçara. O senhor de La Milleraye disparou contra mim um tiro de pistola, quase à queima-roupa. Quis a fortuna que nesse momento eu me abaixasse; a bala passou por cima da cabeça, e o ilustre marechal apenas matou uma velha.

- Que mão-cheia de horrores! - exclamou Nanon.

- Mas não querida irmã: são as consequências necessárias da guerra civil.

- Agora compreendo que um homem capaz de tais coisas se tenha atrevido a fazer o que ontem fez.

- Então, o que é que eu fiz? - perguntou Cauvignac, com o ar mais inocente do mundo. -A que me atrevi eu?...

- Atreveu-se a zombar, na sua própria presença, de uma personalidade tão considerada como o senhor d’Épernon! Mas o que não compreendo, o que nunca teria imaginado, confesso, é que um irmão, cumulado dos meus benefícios, tenha friamente concebido o projecto de arruinar a irmã.

- Arruinar minha irmã?... Eu?!... - admirou-se Cauvignac.

- Sim, o senhor! -replicou Nanon.- Não me foi preciso esperar pela narrativa que acaba de fazer, e que prova ser capaz de tudo, para reconhecer a letra deste bilhete. Veja! Negará que esta carta anónima seja escrita por si?...

E Nanon pôs debaixo dos olhos do irmão a carta de delação que o duque lhe entregara na véspera à noite. Cauvignac leu-a sem dar mostras de turbação.

- Ora, pois - disse ele- que tem contra esta carta? Acaso estará mal concebida?... Pena sentiria, se assim fosse... isso provaria que é uma iletrada.

- Não se trata da redacção, senhor; do conteúdo é que se trata. Foi ou não o senhor quem a escreveu?

- Nenhuma dúvida há de que fui eu. Se quisesse negar o facto, teria disfarçado a letra; mas isso era inútil. Nunca tive intenção de me ocultar a seus olhos; eu até desejava que soubesse que a carta era obra minha.

- Oh! - admirou-se Nanon, com um gesto de horror. - Confessa!?

- É uma réstia de humildade, querida irmã; não posso deixar de dizer-lho: eu fui impelido por uma espécie de vingança.

- De vingança?...

- Sim, muito natural.

- Vingança para comigo, desgraçado!? Mas, pondera o que diz! ?.. Que mal lhe fiz eu para que a ideia de se vingar de mim se apresente ao seu espírito!?...

- O que me fez?... Ah! Nanon, ponha-se no meu lugar. Saí de Paris, porque ali tinha muitos inimigos; desgraça esta que acompanha todos os homens políticos. Volto para si, imploro-lhe. Lembra-se disso?... Recebeu três cartas. Não dirá que não reconheceu a minha letra, que era absolutamente a mesma do bilhete anónimo. Além disso, as cartas estavam assinadas. Escrevi-lhe três, a pedir uns miseráveis mil francos. Mil francos, a si, que possui milhões! Era uma miséria. Ora, pois, minha irmã repele-me. Apresento-me em casa de minha irmã, e minha irmã não me quer receber. Era muito natural que me informasse, como eu o fiz. Talvez que ela ande na penúria - disse eu comigo. - É chegado o momento de lhe provar que os seus favores não caíram em terra ingrata; talvez que já não seja senhora de si: neste caso, é digna de desculpa. Como pode perceber, o meu coração tentava desculpá-la. E então soube que minha irmã estava livre, feliz, rica, riquíssima! E que um barão de Canolles, um estranho, usurpa os meus privilégios e se faz proteger em meu lugar. Então, os ciúmes transtornaram-me a cabeça.

- Diga antes que a cobiça. Vende-me ao senhor d’Épernon, do mesmo modo que vende a senhora de Chervreuse ao coadjutor. Que lhe importa, pergunto, que eu tivesse relações com o senhor barão de Canolles?...

- A mim?... Nada; nem me passaria pela ideia inquietar-me com isso, se tivesse continuado a ser diferente comigo.

- Não sabe que se eu dissesse uma única palavra ao senhor duque d’Épernon, se lhe fizesse uma confissão franca, ficaria perdido?...

- Com toda a certeza.

- O senhor mesmo bem o ouviu ainda agora, e da sua própria boca: qual é a sorte que destina àquele que lhe arrancou a assinatura em branco.

- Não me fale disso; estremeci até à medula dos ossos; foi-me preciso todo o poder que tenho sobre mim mesmo, para não me trair.

- E então não treme, o senhor, que todavia confessa saber o que é medo?!...

- Não, senhora, porque a tal confissão, feita com franqueza, provaria que o senhor de Canolles não é seu irmão; porque os termos da sua mensagem, se dirigidas a um estranho, oferecem um significado muito desagradável. Vale mais, creia, ter feito uma confissão capciosa, como a que acaba de fazer, ingrata (não me atrevo a chamar-lhe de^a. pois conheço-a demasiado para lhe dar tal nome); mas pondere, pois, quantas vantagens, por mim antevistas, resultam desta pequena altercação preparada pelos meus cuidados. Em primeiro lugar, estava sumamente embaraçada e receara imenso ver chegar o senhor de Canolles, que, não estando prevenido, teria um horrível papel no meio do seu romancezinho de família. A minha presença, pelo contrário, tudo salvou. Seu irmão não é já um mistério. O senhor d’Épernon adoptou-o, e até com muita bizarria, cumpre-me dizê-lo. Agora, o irmão não precisa ocultar-se, pois é da casa; daí resulta a facilidade da correspondência, e o poder encontrar-se consigo, tanto exterior, como interiormente - tendo, todavia, cuidado, para que o irmão de cabelos e olhos pretos não tenha a indiscrição de vir olhar cara a cara o senhor duque d’Épernon. Um capote assemelha-se enormemente a outro capote; e então, quando o senhor d’Épernon vir sair de sua casa um capote, quem lhe irá dizer se é ou não o capote do irmão? A única coisa que fiz, ao prestar-lhe este serviço, foi des-baptizar-me: chamo-me agora Canolles, o que não deixa de ser molesto. Deverá testemunhar-me agradecimento por este sacrifício que por si faço.

A este fluxo redundante, resultado de uma incrível ousadia, Nanon, estupefacta, não sabia que razões opusesse; e por isso Cauvignac, aproveitando-se desta vitória alcançada por assalto, continuou:

- E além disso, querida irmã, já que depois de uma longa ausência, nos vemos reunidos; já que, depois de tantos contratempos, tornou a achar um verdadeiro irmão - confesse que doravante poderá dormir descansada, graças ao escudo com que o amor a cobrirá; viverá tão sossegadamente como se toda a Guiena a adorasse, o que não acontece, como muito bem o sabe; mas que remédio terá ela, senão passar pelo que nós quisermos. Com efeito, não me arredarei do limiar da sua porta, o senhor d’Épernon far-me-á coronel, e em vez de seis homens terei dois mil às minhas ordens. Com estes dois mil homens renovo os doze trabalhos de Hércules; nomeiam-me duque e par; a senhora d’Épernon morre; o senhor d’Épernon casa consigo...

- Antes de tudo isso, duas coisas - atalhou Nanon, em tom um tanto desabrido.

- Quais, querida irmã? Fale, estou pronto a ouvi-la.

- Em primeiro lugar, restituirá a assinatura em branco ao duque, pois se o não fizer, está perdido. Bem ouviu a sentença da sua própria boca. Depois, sairá daqui no mesmo instante, pois de outro modo eu ficaria perdida, o que para si nada vale; mas perder-se-ia comigo, razão que, no meu entender, fará tomar a minha perda em consideração.

- Duas respostas, querida senhora: a assinatura em branco é propriedade minha, e não pode impedir-me de me fazer enforcar, se tal for a minha vontade.

- Nem eu a isso me oponho.

- Muito obrigado! Mas nada disso acontecerá, esteja sossegada. Ainda agora lhe exprimi a minha repugnância por esse género de morte. Guardarei a minha assinatura em branco, a não ser que tenha alguma vontadezinha de ma comprar, e, em tal caso, poderíamos chegar a um ajuste...

- Não tenho qualquer necessidade dela. As assinaturas em branco sou eu que as dou.

- Feliz Nanon!

- Portanto, conserva-a?

- Sim.

- Correndo o risco que daí pode resultar?

- Nada receie, sei o emprego que lhe devo dar. Quanto a retirar-me, não cometerei uma tal indelicadeza, estando aqui com autorização do duque. Ainda há outra coisa: nesse seu desejo de se desembaraçar de mim, esquece-se de uma coisa...

- Qual?

- Aquela comissão importante de que o duque me falou, pela qual ganharei a minha fortuna.

Nanon empalideceu.

- Mas, desgraçado homem - disse ela- sabe muito bem que essa comissão não lhe está destinada! Sabe muito bem que, apesar da actual situação, seria um crime, e um crime que mais cedo ou mais tarde não deixaria de ser castigado.

- E por isso não quero abusar. Só queria usar - eis tudo.

- Além disso, o senhor de Canolles está designado na comissão.

- E então, não me chamo eu barão de Canolles?...

- Sim, mas no destino conhecem muito bem não só o seu nome, mas também o seu rosto. O senhor Canolles já por diferentes vezes foi à corte.

- Seja então, eis uma boa razão; é a primeira que me dá, e portanto, bem o vê, e a ela cedo.

- Além do que, tornar-se-ia a encontrar com os seus inimigos políticos - acrescentou Nanon - e talvez que a vossa cara, se bem que por motivos diferentes, não seja menos conhecido do que a do senhor de Canolles.

- Oh! isso não obstaria se, como disse o duque, a comissão tem por objectivo prestar um grande serviço à França. A mensagem servirá de salvaguarda ao mensageiro. Um serviço desta importância torna um homem digno de ser agraciado, e a amnistia do passado é sempre a primeira condição das conversações políticas, portanto, acredite-me, querida irmã, não cabe a si impor-me condições, mas sim a mim propor-lhe as minhas. -Vejamos quais são elas...

- Desde logo, como ainda agora lhe dizia, o primeiro de todo e qualquer trabalho - isto é: amnistia geral.

- Nada mais?...

- Depois, o saldo das nossas contas.

- Então, segundo parece, sou-lhe devedora de alguma coisa..

- Devia-me os mil francos que eu lhe tinha pedido, e que tão desumanamente me recusou.

- Eis aqui dois mil.

- Seja então, aí está como já reconheço a sua generosidade,

Nanon.

- Mas sob uma condição...

- Qual?

- A de reparar o mal que fez.

- É muito justo. Que devo fazer para isso?

- Vai montar a cavalo e correr pela estrada de Paris, até que

tenha encontrado o senhor de Canolles.

- Nesse caso, perco o seu nome...

- Restituir-lho-á.

- E que devo dizer-lhe?

- Deve entregar-lhe esta ordem, e certificar-se de que partiu no mesmo instante para a executar.

- É tudo quanto determina?

- Tudo, absolutamente.

- Será necessário que ele saiba quem eu sou?

- Pelo contrário: é de suma importância que o ignore.

- Ah! Nanon, será que se envergonha de me ter por irmão?... Nanon nada respondeu e ficou pensativa.

- Mas - disse ela passado um momento - como poderei ter a certeza de que desempenhou fielmente a minha comissão? Se para si houvesse alguma coisa sagrada, exigiria um juramento.

- Faça ainda melhor...

- O quê?

- Prometa-me outros mil francos, depois de cumprida a comissão.

Nanon encolheu os ombros.

- Está combinado - disse ela.

- Ora, pois, olhe; eu não lhe peço juramento algum, e a sua palavra basta. Portanto, dará mil francos à pessoa que lhe entregar da minha parte o recibo do senhor de Canolles.

- Sim; mas fala de uma terceira pessoa: acaso tencionará não mais voltar?...

- Quem sabe?.. Um certo negócio chama-me a mim mesmo aos arredores de Paris.

Nanon não pôde reprimir um movimento de alegria involuntária.

- Ah! isso não lhe cai bem -observou Cauvignac, a rir.- Mas não importa, cara irmã; nada de rancores.

- Nada de rancores. Mas a cavalo.

- A cavalo, no mesmo instante: não peço mais do que o tempo necessário para beber um gole.

Cauvignac deitou no seu copo o resto da garrafa de vinho de Borgonha, saudou a irmã com um gesto muito respeitoso, e montando a cavalo de um pulo, desapareceu pouco depois, num turbilhão de poeira.

 

PRINCIPIAVA a Lua a levantar-se quando o visconde, seguido pelo fiel Pompeu, saiu da estalagem de Biscarros, e se lançou pela estrada de Paris.

Passado um quarto de hora, totalmente dedicado pelo visconde às suas reflexões, e durante o qual caminhou mais de uma légua, voltou-se para o escudeiro, que, montado com toda a gravidade, o seguia à distância de uns três passos. - Pompeu - perguntou o mancebo - terá por acaso a minha luva da mão direita?

- Não, senhor, que eu saiba - respondeu Pompeu.

- Então, que busca na sua mala?

- Verifico se está bem segura, e aperto-lhe as correias, para que não tilinte. O som do ouro é fatal, senhor, e atrai os maus encontros, sobretudo de noite.

- Faz muito bem, Pompeu - replicou o visconde - e muito me agrada ver que é tão cuidadoso e prudente.

- São estas as qualidades naturais num velho soldado, senhor visconde, e que admiravelmente se conciliam com a coragem; {contudo, como a coragem não é temeridade, confesso que sinto pena por o senhor Richon não ter podido acompanhar-nos; porque, vinte mil libras são difíceis de guardar, muito principalmente em tempos tão tempestuosos como os nossos.

- O que diz está correcto, Pompeu - respondeu o visconde - e eu sou totalmente do seu parecer.

- Eu até me atreveria a dizer - continuou Pompeu, reconfortado no seu medo pela aprovação do visconde - que não é prudente aventurarmo-nos como fazemos. Paremos, pois, se for do vosso agrado, para que eu inspeccione o meu mosquete.

- Então, Pompeu?

- Tudo está em bom estado, e aquele que quisesse cortar-nos o passo passaria um mau quarto de hora. Óh! oh! que vejo eu lá em baixo!?...

- Onde?

- Diante de nós, a uns cem passos para a nossa direita, nesta direcção...

- Vejo qualquer coisa branca.

- Oh! oh! -fez Pompeu - mochilas, talvez. Há que acautelarmo-nos. Pela minha honra, que tenho vontade, de entrar neste valado à esquerda; em termos de guerra chama-se a isto entrincheirar. Entricheiremo-nos, senhor visconde.

- Se são mochilas, Pompeu, são levadas por soldados do rei, e os soldados do rei não roubam viajantes.

- Desengane-se, senhor visconde, desengane-se; muito pelo contrário, não se ouve falar senão de partidários que tomam por égide a farda de Sua Majestade para cometer milhares de infâmias, e qual delas a mais escandalosa. Ultimamente, em Bordéus, arcabuzaram dois soldados de cavalaria ligeira que...

- Parece-me que me recordo da farda dos tais soldados de cavalaria ligeira; é azul, Pompeu, e o que nós vemos é branco.

- Sim; mas muitas vezes vestem uma camisola por cima do uniforme, e foi o que fizeram aqueles miseráveis que ultimamente foram castigados em Bordéus. Estes, segundo me parece, tomam atitudes ameaçadoras; esta é a sua táctica, como está vendo, senhor visconde. Emboscam-se assim ao lado da estrada, e, de longe, com a carabina nas mãos, obrigam o viajante a dar-lhes a bolsa.

- Mas, meu bom Pompeu - disse o visconde, que apesar de muito assustado conservava a presença de espírito - se eles ameaçam de longe com as carabinas, faça outro tanto com a sua.

- Sim, mas eles a mim não me vêem - disse Pompeu. - A minha demonstração seria, portanto, inútil.

- Se eles o não vêem, em tal caso não podem ameaçá-lo - disse

o visconde.

- De guerra nada entende, absolutamente - replicou o escudeiro, de mau humor. - Vai acontecer-me aqui o mesmo que me aconteceu em Corbie.

- Há que ter esperança em que assim não suceda, Pompeu, porque, se bem me lembro, em Corbie é que foi ferido....

- Sim, e sofri uma terrível ferida. Eu estava com o senhor de Cambes, que era um temerário. Andávamos patrulhando de noite para reconhecer o lugar onde havia de travar-se a batalha. Descobrimos umas mochilas. Convido-o a não fazer alguma valentia inútil, ele obstina-se, e caminha direito às mochilas. Eu volto costas, despeitado. Nesse momento, uma maldita bala... Senhor visconde, sejamos prudentes.

- Sejamos prudentes, Pompeu, não pretendo outra coisa. Contudo, parecem-me tão imóveis!...

- Estão varejando a presa. Esperemos.

 

Os viajantes - o que foi uma felicidade para eles - não tiveram de esperar muito tempo. Passado um instante, o luar rompeu através de uma nuvem negra, cujas franjas prateava, e alumiou esplendidamente, a uns cinquenta passos dos dois companheiros, duas ou três camisas que estavam a enxugar por detrás de um valado, com as mangas estendidas.

Eram estas as mochilas que haviam recordado a Pompeu a sua fatal patrulha de Corbie.

O visconde soltou uma gargalhada, esporeou o cavalo, e Pompeu seguiu-o, exclamando:

- Que felicidade não ter cedido à minha primeira inspiração!

Estava para dar um tiro para esse lado, e portar-me-ia como Dom Quixote. Veja, senhor visconde, de que servem a prudência e a experiência da guerra!

Depois de grandes comoções, sempre há algum tempo de repouso; passando além das camisas, os viajantes caminharam tranquilamente. Percorridas umas duas léguas já o tempo era magnífico; a sombra caía larga e negra como o ébano, ao longo de um bosque que guarnecia um dos lados do caminho.

- Decididamente, não me agrada nada o luar - disse Pompeu. - Quando nos avistam de longe, corremos o risco de sermos colhidos de súbito. Sempre ouvi dizer aos militares que quando dois homens mutuamente se buscam, o lugar só é favorável a um. Nós achamo-nos em plena luz, senhor visconde, o que é uma imprudência.

- Ora, então passemos para a sombra, Pompeu.

- Sim; mas se houvesse alguns homens emboscados na extremidade deste bosque, iríamos literalmente lançar-nos na goela.. Em campanha, ninguém se aproxima de um bosque sem que primeiro o tenha mandado reconhecer.

- Desgraçadamente - replicou o visconde - estamos falhos de exploradores. Não é este o nome que se dá aos que vão bater o mato, meu bravo Pompeu?

- É verdade, é verdade - rosnou o escudeiro. - Aquele maldito Richon, porque não havia de vir connosco? Tê-lo-íamos mandado adiante como vanguarda, enquanto nós teríamos formado o corpo de exército.

- Então, Pompeu, a que nos decidimos nós? Deixamo-nos ficar ao luar, ou passamos para a sombra?

- Passemos para a sombra, senhor visconde; no meu entender, é o que me parece mais prudente.

- Pois sim, passemos.

- Não é verdade que sente medo, senhor visconde?

- Não, decerto, meu querido Pompeu; juro-lhe que não.

- E faz muito bem em não o ter, pois eu estou aqui e não durmo.

Se eu estivesse só, como bem o compreende, isto pouco cuidado me daria. Um soldado não teme nem os santos nem os diabos. O senhor, porém, é um companheiro tão difícil de guardar como o tesouro que vai na garupa, e esta duplicada responsabilidade assusta-me. Ah!... que sombra negra é aquela que descubro lá em baixo!... Desta vez não há dúvida que ela marcha!

- É mais do que certo - disse o visconde.

- Cá está a vantagem que há na escuridão: vemos o inimigo sem que ele nos veja. Não lhe parece que aquele desgraçado tem uma espingarda!...

- Sim. Mas aquele homem, Pompeu, está só, e nós somos dois.

- Senhor visconde, os homens que viajam sós são mais de temer, porque a solidão é um índice dos caracteres resolutos. O famoso barão des Antres andava sempre só... Ei-lo, se me não engano, que faz pontaria para nós... Está pronto a descarregar: abaixe-se!

- Mas não, Pompeu: nada mais faz do que mudar a espingarda de um ombro para o outro.

- Não importa, abaixemo-nos, abaixemo-nos, esta é a prática constante; recebamos o tiro com o nariz sobre o arção.

; -Mas pode ver perfeitamente, Pompeu, que ele não atira.. i -Não atira!... - disse o escudeiro, empertigando-se.- Bom! Teve sem dúvida medo, e o nosso aspecto resoluto tê-lo-á intimidado. Ah! tem medo... Então, deixe-me falar-lhe; e o senhor falará depois de mim, engrossando a voz. A sombra vinha sempre adiantando-se.

- Olá, amigo! Quem sois? - gritou Pompeu.

A sombra parou, fazendo um movimento de terror muito visível.

- Grite também - acrescentou Pompeu.

 - É tempo perdido - disse o visconde. - O pobre diabo já está meio morto de medo.

- Ah! tem medo?...- disse Pompeu, arremessando-se a ele com a carabina em punho.

- Tenha compaixão de mim, senhor! - implorou o homem, pondo-se de joelhos. - Sou um pobre mercador ambulante que de oito dias a esta parte não vendeu um só lenço, e que nem um soldo sequer trago comigo.

O que Pompeu tomara por espingarda era a vara com que o pobre diabo media as fazendas.

- Fica sabendo, meu amigo - disse majestosamente Pompeu - que não somos ladrões, mas sim militares, que viajamos de noite porque nada receamos; segue, pois, o teu caminho: estás livre.

- Toma, amigo - ajuntou a voz mais meiga do visconde. - Aqui tens cinco libras pelo medo que te metemos; e que Deus te acompanhe!

E o visconde, com a sua branca mãozinha, deu cinco libras ao pobre diabo, que se afastou dando graças ao Céu pelo feliz encontro que tivera.

- Não procedeu bem, senhor visconde; antes muito mal...- disse Pompeu, depois de terem andado uns vinte passos.

- Então porquê? Em que fiz mal?

- Em dar cinco libras àquele homem. De noite nunca devemos confessar que temos dinheiro; não vê que o primeiro grito deste poltrão foi dizer que não tinha um soldo na algibeira?

- É verdade - reflectiu o visconde, sorrindo-se. - Mas era um poltrão, como o diz, enquanto nós, como disse, somos militares que nada tememos.

- Entre ter medo e ter desconfiança, senhor visconde, há tanta distância como do medo à prudência. Assim, não é prudente, repito-o, deixar perceber a um desconhecido que por acaso encontramos na estrada, que possuímos o ouro.

- Mesmo quando esse desconhecido está só e desarmado?...

- Pode pertencer a uma quadrilha armada, pode não ser mais do que um espião mandado adiante para reconhecer o terreno; pode voltar com gente armada; e que quer que façam dois homens sós. por muito bravos que sejam, contra tantos?...

O visconde reconheceu desta vez a razão para a admoestação que Pompeu lhe dava - ou antes: para pôr termo à discussão, deu-se por convencido. E chegaram às margens do riacho de Saye, próximo a Saint-Genés.

Não havia ponte, e havia que passar a vau. Pompeu apresentou então ao visconde uma sábia teoria da passagem dos rios; mas como uma teoria não é uma ponte, nem por isso, depois de ouvida a teoria, lhes foi menos preciso passar a vau. Por felicidade, o riacho não era profundo, e este novo incidente deu uma nova prova ao visconde de que as coisas, vistas de longe, e sobretudo de noite, são muito mais medonhas do que vistas de perto.

Principiava pois o visconde a sossegar-se realmente -e além disso dentro de uma hora, com pouca diferença, raiaria o dia - quando, chegados ao meio do bosque que rodeia Marsas, os dois viajantes pararam repentinamente; com efeito, acabavam de ouvir ao longe e atrás de si, mas distintamente, o galopar de cavalos. Ao mesmo tempo, os cavalos em que iam montados ergueram a cabeça e um deles relinchou.

- Desta vez - disse Pompeu com voz sufocada, lançando mão

à rédea do cavalo do companheiro - senhor visconde, espero que

se mostrará dócil e que deixará o acontecimento à experiência de um

soldado velho. Ouço um bando de gente a cavalo: perseguem-nos!

Apostaria em que é a quadrilha do falso mercador; eu bem lhe

havia dito, e a sua imprudência é que nos põe em perigo! Vamos,

nada de falsas bravuras! Salvemos a vida e o dinheiro; a fuga é

muitas vezes um meio de vencer. Horácio, o grande Horácio, fingiu

que fugia...

- Ora, pois, fujamos, Pompeu - disse o visconde, todo trémulo.

Pompeu meteu esporas ao cavalo; a sua montada, um excelente cavalo russo ruão, deu um pulo ao sentir-se picado, e com tal zelo o fez, que inflamou o ardor do cavalo barbo do visconde, e ambos, à porfia, fizeram retumbar a calçada com os golpes compassados das ferraduras, de onde saíam milhares de centelhas.

Esta correria durou cerca de uma hora; mas, longe de ganharem terreno, parecia aos dois fugitivos que os inimigos se iam aproximando.

De súbito, rebentou uma voz do meio das trevas, voz que, misturada com o sibilo produzido pelo vento que os dois cavaleiros iam fendendo, parecia a lúgubre ameaça dos espíritos da noite.

Esta voz fez eriçar os cabelos brancos na cabeça de Pompeu.

- Eles gritam: parai! - disse este em voz baixa. - Eles gritam: parai!

- Então, será preciso parar?... - perguntou o visconde.

- Muito pelo contrário! - exclamou Pompeu - apressemos o passo quanto for possível! Adiante! Adiante!

- Sim, sim, adiante! adiante - exclamava o visconde, tão assustado agora como o seu defensor.

- Eles adiantam-se! Ganham terreno! -dizia Pompeu;- não os ouve?...

- Ai! sim...

- São mais de trinta! Escute: eles ainda nos chamam... Estamos perdidos!

- Rebentemos os cavalos, se for preciso! - disse o visconde, mais morto do que vivo.

- Visconde! Visconde! -bradava a voz.- Pare! Pára, velho patife!

- É alguém que nos conhece, é alguém que sabe que levamos o dinheiro da princesa, é alguém que sabe que nós conspiramos: Vão rodar-nos vivos!

- Parai! parai! - continuava a voz.

- Gritam que nos façam parar - disse Pompeu. - Têm gente adiante de nós! Estamos cercados!

- E se tomássemos por este lado, neste campo, e deixássemos passar os que nos perseguem?...

- É uma boa ideia - disse Pompeu. - Vamos já, sem mais demora.

Os dois cavaleiros fizeram ao mesmo tempo voltar as cavalgaduras para a esquerda; o cavalo do visconde, habilmente conduzido, saltou o valado; mas o cavalo de Pompeu, menos destro, chegou-se demasiado à borda, a terra esboroou-se-lhe debaixo dos pés, e caiu, arrastando na queda o cavaleiro. O pobre escudeiro deu um grito de profundo desespero.

O visconde, que já tinha andado uns cinquenta passos pelas terras, ouviu este grito de angústia, e, apesar de sumamente assustado, fez voltar o cavalo e foi ter com o companheiro.

- Quem me acode! Misericórdia! - gritava Pompeu. - Eu pago o meu resgate! Rendo-me! Pertenço à Casa de Cambes!

Uma enorme gargalhada foi a única resposta a estes lamentos; e o visconde, chegando neste momento, deu com os olhos em Pompeu que abraçava o estribo do vencedor, o qual, falando-lhe com uma voz sufocada pelo riso, fazia diligência para o sossegar.

- Senhor barão de Canolles! - exclamou o visconde.

- Ora, isto não são coisas que se façam, senhor visconde! Obrigar as pessoas que o procuram a correr deste modo!...

- O senhor barão de Canolles! - disse Pompeu, que ainda duvidava da sua fortuna. - O senhor barão de Canolles e o senhor de Castorin!...

- Sim, somos nós, senhor Pompeu - disse Castorin, empertigando-se nos estribos para ver por cima do ombro do amo, que, não podendo deixar de rir, se debruçava sobre o arção da cela. - Então que faz neste valado?

- Está bem de crer- disse Pompeu. -O cavalo caiu no momento em que, tomando-os por inimigos, tratava de me entrincheirar para fazer uma vigorosa defesa. Senhor visconde - continuou Pompeu, levantando-se e sacudindo-se- é o senhor de Canolles.

- Quê, senhor!? Por aqui?!-rosnou o visconde, com uma certa alegria que, involuntariamente transparecia na entoação da sua voz.

- Por certo que sou eu! Sim, eu mesmo - respondeu Canolles, cravando os olhos no visconde com uma tenacidade a que o achado da luva servia de explicação. - Morria de aborrecimento naquela estalagem; Richon havia-se apartado de mim depois de me haver ganho o meu dinheiro. Soube que tinha partido e que seguia a estrada de Paris. Quis a fortuna que eu também tivesse que fazer para estes lados. Pus-me então a caminho para juntar-me a si, pois não suspeitava que, para alcançá-lo, me fosse preciso correr à desfilada. É na realidade, meu gentil-homem, um exímio cavaleiro!

O visconde sorriu-se, balbuciando algumas palavras.

- Castorin - continuou Canolles - ajude, pois, o senhor Pompeu a montar de novo; muito bem vê que, apesar de toda a sua destreza, não o pode fazer.

Castorin apeou-se e foi ajudar Pompeu, que, por fim, conseguiu sentar-se na sela.

- E agora - disse o visconde- tornemos, se lhe aprouver, a seguir o nosso caminho.

- Mais um instante -pediu Pompeu, bastante perturbado - mais um instante, senhor visconde... parece-me que me falta alguma coisa...

- Bem o creio - disse o visconde. - Falta-lhe a mala.

- Ai! Meu Deus - queixou-se Pompeu, fingindo um profundo espanto.

- Desgraçado! - exclamou o visconde. - Será que perdeu...! ?

- Não pode estar longe, senhor... - respondeu Pompeu.

- Não será isto?...-perguntou Castorin, levantando a custo do chão o objecto que buscavam.

- Justamente - disse o visconde.

- Justamente! - exclamou Pompeu.

- Não foi culpa dele - disse Canolles, que desejava granjear a amizade e o afecto do velho escudeiro. - Com a queda, rebentaram as correias e desprendeu-se a mala...

- As correias não estão rebentadas, senhor, mas cortadas - disse Castorin. - Olhe...

- Oh! oh! senhor Pompeu - disse Canolles- que quer isto dizer?...

- Isto quer dizer - replicou com severidade o visconde - que, receando ser perseguido por ladrões, o senhor Pompeu terá tido a resolução de cortar as correias da mala, para se livrar da responsabilidade de ser o tesoureiro dela. Em termos de guerra, que nome se dá a este ardil, senhor Pompeu.

Pompeu quis desculpar-se, referindo-se à faca de mato que "imprudentemente desembainhara"; como, porém, não pudesse dar uma explicação cabal, sempre ficou manchado, aos olhos do visconde, da suspeita de haver querido sacrificar a mala à sua segurança.

Canolles foi mais benigno para com ele.

- Bom! bom! bom! - disse ele- não é esta a primeira vez que tal acontece. Vamos, Castorin, ajude o senhor Pompeu. Tinha razão, amigo Pompeu, de recear os ladrões: a sacola tem o seu peso, e seria boa presa...

- Não graceje, senhor -volveu Pompeu, estremecendo.- Todo o gracejo nocturno é equívoco.

- Tem razão, Pompeu, e mais do que razão; e por isso - continuou Canolles - quero servir-lhes de escolta, a si e ao visconde: o reforço de dois homens não deixará de lhe ser útil.

- Sem dúvida que o será! -exclamou Pompeu.- O número sempre dá segurança.

- E o senhor Visconde, que pensa do meu oferecimento? - interrogou Canolles, vendo que o visconde aceitava com menos entusiasmo do que o seu escudeiro a oferta graciosa que lhe era feita.

- Eu, senhor - disse o visconde - reconheço a sua urbanidade habitual, e agradeço-lhe muito sinceramente; porém, não seguimos o mesmo caminho, e eu recearia incomodá-lo...

- Como! - estranhou Canolles, desgostoso de ver que a luta da estalagem ia recomeçar na estrada real - pois não seguimos nós o mesmo caminho?!... Não vai a...?

- A Chantilly - apressou-se Pompeu a dizer, todo trémulo com a ideia de continuar a viagem sem mais companhia do que a do visconde.

Quanto a este, fez um gesto de impaciência muito visível, e se fosse dia, fácil seria de ver um rubor da cólera assomar-lhe às faces.

- Ah! -exclamou Canolles, sem dar mostras de ter notado o olhar furibundo com que o visconde fulminava o pobre Pompeu.- Ah! Chantilly fica-me justamente no caminho que sigo. Eu vou a Paris, sim... ou para melhor dizer... - ajuntou, a rir. - Olhe, visconde, eu nada tenho que fazer, e não sei aonde vou. Se vai para Paris, eu vou para Paris; se vai para Lião, eu vou para Lião; se vai para Marselha, há já muito tempo que tenho grande desejo de ver a Provença, e vou para Marselha. Se vai para Stenay, onde estão os exércitos de Sua Majestade, vamos para Stenay. Sem embargo de haver nascido no Midi, não deixo de ter uma certa predilecção pelo Norte.

- Senhor - replicou o visconde, com uma certa firmeza, que sem dúvida era devida à irritação em que o pusera Pompeu - será preciso dizer-lho? Eu viajo sem companhia, por negócios pessoais da mais alta importância, por motivos muito sérios, e de antemão lhe peço perdão: se insistir, obrigar-me-á, como muito pesar meu. a dizer-lhe que me incomoda nos passos que tenho que dar.

Nada menos era preciso do que a lembrança da luvazinha que Canolles conservava oculta sobre o seu peito, entre o vestido e a camisa, para que o barão, vivo e impetuoso como um gascão, lhe não dissesse alguma graça. Contudo, pôde conter-se.

- Senhor -replicou ele seriamente- nunca ouvi dizer que a estrada real pertencesse mais particularmente a uma pessoa do que a outra. Por isso lhe dão o nome de real, para provar que todos os súbditos de Sua Majestade têm igual direito a se servirem dela.

Estou, pois, na estrada real, sem a mínima intenção de incomodá-lo: até nela me encontro para o ajudar, visto que é moço, fraco, e sem grande defesa. Eu julgava não ter ares de salteador de estrada. Mas já que a sua posição é essa, convirei em que não tenho boa cara. Perdoe-me, pois, senhor, a minha intromissão. Tenho a honra de lhe apresentar os meus cumprimentos. Boa viagem.

E Canolles, fazendo dar um ligeiro salto ao cavalo, passou, depois de haver saudado o visconde, para o outro lado da estrada, por onde Castorin o seguiu de facto, e Pompeu de intenção.

Canolles representou esta cena com tanta elegância, com um gesto tão sedutor, cobrindo com o seu largo chapéu uma espaçosa testa e uns finíssimos cabelos pretos, que o visconde não se sentiu tão comovido pelo modo com que o tratou, como pelo seu porte nobre e alta estatura; tinha-se ele afastado, como dissemos. Castorin seguia-o, direito e firme nos estribos. Pompeu, que ficara do outro lado do caminho, dava suspiros capazes de arrancar lágrimas às pedras; então, o visconde, que havia feito numerosas reflexões, apressou o passo do seu cavalo, e, pondo-se a par de Canolles, que não dava mostras de o ver, nem de o ouvir dirigir-lhe estas duas palavras com uma voz apenas inteligível:

- Senhor de Canolles...

Canolles voltou-se, sobressaltado; não cabendo em si de contentamento, parecia-lhe que todas as músicas das esferas celestes se reuniam para lhe oferecer um divino concerto.

- Senhor visconde... - disse ele, por seu turno.

- Escute, senhor - respondeu este, com voz doce e branda. - Receio, na verdade, ser descortês para com um gentil-homem com o seu merecimento; perdoe-me, portanto, a minha timidez. Recebi uma educação tímida, devido aos desvelos com que os meus pais me trataram; eu repito-lhe, perdoe-me, pois nunca tive a mínima intenção de o escandalizar; e como prova da nossa sincera reconciliação, permita-me que siga a seu lado.

- Então, porque não!... - exclamou Canolles. - Não uma só, mas cem vezes lho concederia! Não conservo rancor algum, senhor visconde; e para provar-lho...

E, dizendo isto, estendeu a mão, na qual se apoiou, ou antes escorregou, uma fina, ligeira e furtiva mão.

O resto da noite passou-se em práticas galhofeiras por parte do barão. O visconde escutava sempre, e ria-se algumas vezes.

Os dois criados seguiam atrás deles; Pompeu explicava a Castorin como fora perdida a batalha de Corbie, quando poderia ter sido completamente ganha, caso se não tivessem esquecido de chamá-lo ao conselho que tivera lugar pela manhã.

- Afinal - disse o visconde a Canolles, quando principiou a raiar o dia - como terminou o seu assunto com o senhor duque d’Épernon?

- Não foi muito difícil -respondeu Canolles.- À vista do que me disse, senhor visconde, era ele quem tinha de deslindar algo comigo, e não eu com ele; ou se cansou de esperar, e retirou-se, ou terá teimado, e ainda estará à espera...

- E a menina de Lartigues?... - adiantou o visconde, com uma ligeira hesitação.

- A menina de Lartigues, senhor visconde, não pode estar ao mesmo tempo em casa com o senhor d’Épernon, e no Bezerro de Ouro comigo. Das mulheres nunca se deve exigir o que não é possível.

- Isso não responde à minha pergunta, senhor barão. O que lhe pergunto é como, estando tão enamorado da menina de Lartigues, pode separar-se dela...

Canolles cravou no visconde os seus olhos perspicazes, porque já era dia claro, e no rosto do mancebo não havia qualquer outra sombra além da proporcionada pelo chapéu.

Sentiu-se então dominado por um louco desejo de responder o que lhe vinha à cabeça; mas Pompeu, Castorin, e o ar grave do visconde, contiveram-no. Além de tudo isto, era pressionado por uma dúvida em que estava.

"Se me enganasse - disse intimamente. - Se, apesar desta luvazinha e desta pequena mão, fosse homem; na verdade, nada mais seria preciso para me sentir esmagado pela minha simplicidade!"

Resolveu, pois, ser paciente, e respondeu à pergunta do visconde com um daqueles sorrisos que a tudo dão resposta.

Pararam em Barbezieux para almoçar e descansar os cavalos. Desta vez, Canolles, almoçou com o visconde, e teve então ocasião de admirar aquela mão, cujo envoltório almiscarado lhe causara uma tão viva comoção. Além de que, o visconde, no momento de se sentar à mesa, teve de tirar o chapéu, e deixou ver uns cabelos tão lisos, tão belos, e tão soberbamente dispostos numa pele tão fina, que outro qualquer que não fosse um homem enamorado, e, por conseguinte, já cego, não teria depois disso conservado a menor incerteza. Canolles, porém, tinha demasiado receio de despertar e de ficar desenganado, e por isso nada desejava tanto como prolongar a duração do seu sonho. Achava alguma coisa de encantador naquele disfarce do visconde, que lhe permitia um rol de familiaridadezinhas - que um desmascaramento ou uma confissão franca lhe teriam vedado. Não disse, porém, uma só palavra que pudesse levantar suspeitas no visconde de que havia penetrado o seu disfarce.

Depois do almoço, puseram-se de novo a caminho, e não pararam senão ao jantar. De vez em quando, o cansaço, que principiava a não poder já dissimular, espalhava no rosto do visconde uma cor afogueada, ou em todo o corpo uns leves estremecimentos, cuja causa Canolles lhe perguntava amigavelmente qual era. Então, o senhor de Cambes sorria, parecia já não se sentir incomodado, e até propunha que se apressasse o passo, o que Canolles recusava, dizendo que ainda tinham muito para percorrer e que, por conseguinte, era conveniente poupar os cavalos.

Depois do jantar, o visconde experimentou alguma dificuldade em levantar-se. Canolles acudiu logo em seu socorro. -Precisa de descanso, meu jovem amigo - disse-lhe ele.- Se assim continuasse a caminhar, morreria ao terceiro dia de jornada.

Esta noite não montaremos a cavalo; antes pelo contrário, deitar-nos-emos. Quero que durma bem, e São Pedro me leve, se o melhor quarto da estalagem não for para si!

O visconde olhou para Pompeu com um ar tão assustado, que Canolles não pôde reprimir a sua vontade de rir.

- Quando se empreende, como nós fazemos, uma larga viagem - disse Pompeu - deveria cada um ter a sua tenda.

- Ou uma tenda para dois - disse Canolles muito naturalmente. - Seria o bastante.

O visconde sentiu arrepiar-se-lhe todo o corpo.

O golpe estava dado, e Canolles não deixou de se aperceber. Viu que o visconde fazia um sinal a Pompeu, olhando para ele sorrateiramente. Este aproximou-se então do amo, que lhe disse algumas palavras em voz baixa, e em breve o criado, sob um suposto pretexto, tomou a dianteira e desapareceu.

Hora e meia depois desta partida, de que Canolles não pediu explicações, os viajantes entraram numa grande vila, e deram com os olhos no escudeiro, ao limiar da porta de uma estalagem com boa aparência.

- Ah! ah! - disse ele- parece que é aqui que passaremos a noite, senhor visconde...

- Sem dúvida alguma, senhor barão, se for do seu agrado.

- E porque não há-de ser?... Eu quero tudo quanto o senhor quiser. Já lhe disse, viajo por passatempo, enquanto o senhor. como mo disse, viaja por motivo dos seus negócios. A única coisa que receio é que fique mal alojado neste cubículo...

- Oh! - disse o visconde- uma noite depressa passa. Pararam então, e, mais pronto do que Canolles, Pompeu veio

às carreiras segurar no estribo do amo: pelo que Canolles reflectiu que uma tal pressa seria ridícula da parte de um homem para com outro homem.

- Vamos sem mais demora para o meu quarto - disse o visconde. - Realmente, tem muita razão, senhor de Canolles – continuou ele, virando-se para o companheiro. - Sinto-me sumamente fatigado.

- Aqui está - disse a estalajadeira, mostrando um grande quarto térreo, com janela para o pátio; todas as janelas tinham grades e, por cima, estavam os celeiros da casa.

- E o meu-perguntou Canolles-onde fica?

E lançava, ansioso, os olhos a uma porta contígua à do visconde, cujo delgado repartimento de tabique era resguardo demasiado frágil contra uma curiosidade tão aguçada como a sua.

- O seu? -perguntou a estalajadeira.- Venha por aqui, senhor, eu conduzo-o.

E, com efeito, sem reparar no desgosto de Canolles, conduziu-o até à extremidade de um corredor exterior, todo cheio de portas, e separado do quarto do visconde por toda a largura do pátio.

O visconde havia observado esta manobra do limiar da sua porta.

"Agora - disse Canolles - não tenho já dúvida alguma; estou absolutamente desenganado; tenho-me conduzido como um tolo! Vamos, vamos... se eu fizesse má cara seria malograr para sempre

o negócio. Afectemos, pelo contrário, muita indiferença e afabilidade."

E, voltando para aquela espécie de varanda que formava, como já o dissemos, o corredor exterior da casa:

- Boas-noites, querido visconde! -gritou-lhe ele.- Durma bem, pois na realidade bem precisa; quer que o acorde amanhã? Não?... Ora, pois, acordar-me-á então à hora que quiser. Boas-noites!

- Boas-noites, barão - volveu o visconde.

- A propósito - continuou Canolles. - Não lhe falta nada? Quer que deixe ficar Castorin consigo, para o ajudar a despir?

- Muito obrigado, cá tenho Pompeu; fica no quarto contíguo ao meu.

- Boa precaução; vou fazer outro tanto com Castorin. Não é verdade, Pompeu, que é uma medida de prudência?... Não se pode deixar de tomar demasiadas precauções numa estalagem... Boas-noites, visconde!

O visconde correspondeu-lhe desejando-lhe outro tanto, e a porta fechou-se de novo.

"Muito bem, muito bem, visconde - ruminou Canolles lá consigo- amanhã toca-me a mim preparar os alojamentos, e terei a minha desforra... Ah!... - continuou ele - como corre as duas cortinas!... E estende um lençol dobrado por diante até interceptar a sombra... Com todos os diabos! Que rapaz tão pudico é aquele gentil-homenzinho!... Mas não importa: amanhã nos veremos..."

E Canolles recolheu-se, resmungando, despiu-se de mau humor meteu-se na cama zangado, e sonhou que Nanon descobria na sua algibeira a luva almiscarada do visconde.

 

O outro dia, Canolles estava de humor ainda mais risonho do que na véspera. O visconde de Cambes, por seu turno, entregava-se também a uma alegria mais franca. O próprio Pompeu galhofava fazendo a narrativa das suas campanhas a Castorin. Toda a manhã se passou em gracejos de uma e outra parte.

No almoço, Canolles pediu ao visconde que não levasse a mal que dele se afastasse, visto que tinha - segundo dizia - de escrever uma extensa carta a um dos seus amigos, que residia naquelas redondezas; e, além disso, preveniu-o de que teria que fazer uma visita a outro amigo seu, cuja casa devia estar situada a três ou quatro léguas de Poitiers, quase junto à estrada real. Canolles informou-se sobre este amigo, cujo nome disse ao estalajadeiro, e este respondeu-lhe que antes de chegar à aldeia de Jaulnay encontraria a casa daquele amigo, e poderia reconhecê-la pelas suas duas torrezinhas. Então, como Castorin tinha de separar-se do pequeno grupo para levar a carta, e como Canolles em pessoa tinha também que fazer uma pequena digressão, pediu de antemão ao visconde que se dignasse designar o sítio onde pernoitariam; o visconde lançou os olhos a um mapazinho que Pompeu levava num estojo, e propôs a aldeia de Jaulnay. Canolles não lhe fez a mínima objecção; levou a perfídia ao ponto de dizer em voz alta: "Pompeu, se o enviarem, como ontem, na qualidade de aposentador, reserve para mim, se for possível, um quarto que fique contíguo ao do seu amo, para podermos conversar."

O sonso do escudeiro lançou uma vista de olhos ao visconde, que correspondeu, e sorriu-se, firmemente decidido a nada fazer do que Canolles lhe dizia. Quanto a Castorin, que antecipadamente recebera as suas ordens, tomou conta da carta, e foi insttuído para se lhes reunir em Jaulnay.

Quanto a enganar-se na estalagem, não havia perigo algum, porquanto em Jaulnay havia somente uma, a do Grande Carlos Martel.

Meteram-se à estrada de Poitiers, onde tinham jantado; Castorin tomou um caminho à direita; foram caminhando ainda umas duas horas; Canolles reconheceu, pelos indícios que lhe tinham dado, a casa do seu amigo; mostrou-a ao visconde, despediu-se dele, renovou a Pompeu o convite que lhe fizera de se ocupar do seu alojamento e tomou o caminho à esquerda.

O visconde estava completamente sossegado: a cena da véspera passara sem contestação, e vira escoar-se o dia sem a mais ligeira alusão; já não receava, pois, da parte de Canolles, o menor obstáculo às suas vontades; e desde o momento em que o barão não era para ele mais do que um simples companheiro de viagem, bom, folgazão e espirituoso, dava-se por muito satisfeito se acabasse a viagem em sua companhia. Resultando disto, ou porque o visconde julgasse que era uma precaução inútil, ou porque não quisesse separar-se do seu escudeiro e ficar só na estrada, Pompeu não foi mandado adiante.

Chegaram à aldeia ao anoitecer; chovia a cântaros. Quis a sorte que se arranjasse um quarto com bom lume. O visconde, que tinha pressa de mudar de roupa, ficou com o aposento, e recomendou a Pompeu que fosse tratar do alojamento de Canolles.

- Já está feito - disse o egoísta Pompeu, que ardia em desejos de se ir deitar. - A estalajadeira prometeu que isso ficava a seu cargo.

- Muito bem. O meu cofre de viagem?

- Ei-lo aqui.

- Os meus frasquinhos?

- Ei-los.

- Obrigado. Onde dorme, Pompeu?

- Lá no fundo do corredor.

- E se precisar de chamar por alguém?

- Está aqui uma campainha: a estalajadeira virá ter consigo.

- Chega. Esta porta fecha bem?

- O senhor pode verificar.

- Não tem ferrolho...

- Não, mas tem uma fechadura.

- Bom. Fechar-me-ei por dentro. Há aqui alguma outra entrada?

- Nenhuma outra, que eu saiba.

E Pompeu pegou no castiçal, e deu volta pelo quarto.

- Veja se os guarda-ventos são sólidos.

- Tudo está em boa ordem.

- Muito bem. Pode retirar-se, Pompeu.

Pompeu saiu, e o visconde deu uma volta à chave.

Passada uma hora, Castorin, que fora o primeiro a chegar à à estalagem, e que estava alojado ao pé de Pompeu, sem que este disso tivesse a mínima suspeita, saiu do seu quarto pé ante pé, e foi abrir a porta a Canolles.

Com o coração palpitante, Canolles introduziu-se na estalagem, deixando a Castorin o cuidado de tornar a fechar a porta; perguntou onde ficava o quarto do visconde, e subiu.

O visconde estava para se meter na cama, quando ouviu passos no corredor. Ora, como já tivemos ocasião de observar, o visconde era sumamente medroso. Esses passos fizeram-no estremecer, e aplicou o ouvido muito atentamente.

Os passos pararam junto à porta, e, passado um segundo, sentiu

bater.

- Quem está aí!? - perguntou numa voz tão assustada, que Canolles não teria reconhecido o respectivo timbre se por diferentes vezes não houvesse já tido ocasião de lhe estudar as suas variações.

- Sou eu!- disse Canolles.

- Como assim!? O senhor? - replicou o visconde, passando do

susto ao espanto.

- Sim. Calcule, visconde, que já não há lugar vago na nossa estalagem, nem sequer um quarto disponível. O seu mal-avisado Pompeu não se lembrou de mim! Não há nenhuma outra estalagem na aldeia; e como o seu quarto tem duas camas..

O visconde lançou com terror os olhos para as duas camas gémeas colocadas ao lado uma da outra na alcova, e sem outra separação além de uma mesinha.

- Ser-lhe-á fácil compreender - continuou Canolles-que venha reclamar uma delas; abra-me, depressa a porta, rogo-lhe, pois estou morrendo de frio.

Ouviu-se um grande desarranjo de móveis, uma roçadura de vestes e passos precipitados.

- Sim, sim, barão - disse cada vez mais assustada, a voz do visconde. - Sim, eu já lá vou, não tarda nada.

- Fico à espera. Mas, por especial favor, caro amigo, apresse-se, senão quer achar-me gelado!

- Desculpe-me; não vê que estava dormindo?...

- Ora essa! A mim parecia-me que tinha luz...

- Não, está enganado.

E a luz apagou-se no mesmo instante, facto de que Canolles se

não queixou.

- Eis-me aqui... Não dou com a porta.. -continuou o visconde.

- Bem me parece - disse Canolles. - Estou ouvindo a sua voz lá na outra extremidade do quarto... Venha, pois, para este lado..

- Ah! ando em busca da campainha para chamar Pompeu...

- Pompeu está lá no fundo do corredor, e não o ouvirá. Quis acordá-lo para dele saber alguma coisa, mas nada de novo. Dorme como um surdo!

- Então vou chamar a estalajadeira.

- Seria tempo perdido! A estalajadeira deu a respectiva cama a um viajante, e foi formir no celeiro. Além disso, para que é preciso chamar gente? Eu não preciso de pessoa alguma.

- Mas eu?...

- Abra-me a porta: eu agradeço-lhe, procuro a minha cama às apalpadelas, deito-me nela, e pronto.

- Mas enfim - disse o visconde, desesperado - deve haver outros quartos... embora não haja neles camas.. É impossível não haver outros quartos! Chamemos, busquemos...

- Mas, querido visconde, acabam de dar dez horas e meia. Vai acordar a estalagem toda; julgarão que pegou fogo na casa.. Isto dará lugar a que se não durma toda a noite, o que seria um aborrecimento, porque estou morrendo de sono.

Estas palavras pareceram dar alguma esperança ao visconde. Uns passozinhos aproximaram-se da porta, que por fim se abriu.

Canolles entrou, e fechou a porta sobre si. O visconde, depois de lha abrir, havia-se afastado apressadamente.

O barão achou-se então num quarto quase às escuras, porque as últimas réstias do luar, que ia desaparecendo, apenas davam um clarão insuficiente. A atmosfera estava tépida e perfumada de todos aqueles cheiros denunciadores do maior requinte em objectos de luxo.

- Ah! muito obrigado, visconde - disse Canolles - pois na realidade aqui está-se melhor do que no corredor.

- Tem vontade de dormir, barão? - perguntou o visconde.

- Olá, se tenho! Diga-me onde está a minha cama, visto que conhece os cantos do quarto, ou então deixe-me acender de novo a vela.

- Não! Não! Isso é inútil! - disse com viveza o visconde. - A sua cama é aqui, à esquerda.

Como a esquerda do visconde era a direita do barão, este encaminhou-se para a direita; encontrou uma janela, e ao pé desta uma banquinha, sobre a qual estava a campainha que o visconde fora de si tanto procurava. Acontecesse, porém, o que acontecesse, foi metendo a campainha na algibeira.

- Mas então que se passa? - exclamou ele. - Parece, visconde, que jogamos à cabra-cega... Cuidado, não escorregue! Mas o que anda assim procurando, na escuridão?

- Procuro a campainha para chamar Pompeu.

- Mas que diabo quer de Pompeu?

- Quero... quero que faça uma cama ao pé da minha.

- Para quem?

- Para ele.

- Para ele... de que se lembra, visconde!?... Lacaios no nosso quarto!.. Ora! deixe-se disso! Tem uns costumes, uns hábitos, só próprios de uma rapariguinha medrosa. Fora com isso! Somos rapazes suficientemente crescidos para nos defendermos nós mesmos. Não; dê-me apenas a mão, e encaminhe-me para a cama, com a qual não consigo acertar... ou. também... tornemos a acender a

vela...

- Não, não, não! - exclamou o visconde.

- Visto que não me quer dar a mão - disse Canolles - deveria pelo menos dar-me um fio, porque me vejo num verdadeiro labirinto...

E adiantou-se com os braços estendidos para o lado de onde vinha a voz; mas junto de si como que viu deslizar uma sombra, e sentiu passar um perfume; tornou a apertar os braços, mas, semelhante ao Orfeu de Virgílio, nada mais abraçara do que ar.

- Ali! Ali! - disse o visconde, da outra extremidade do quarto. ,- Está junto da sua cama, barão.

- Qual das duas é a minha?

- Isso é coisa que pouco importa! pois que eu me não deitarei.

- Como assim!? Não se há-de deitar?! - estranhou Canolles, voltando-se ao ouvir esta palavra indiscreta. - Então que vai fazer?

- Passarei a noite sentado numa cadeira.

- Deixe-se disso! - disse Canolles.- Não consentirei decerto numa tal criancice. Venha, visconde, venha!

E Canolles, guiado por um último raio do luar, que logo morreu, deu com os olhos no visconde alapardado a um canto, entre a janela e a cómoda, embuçado no seu capote.

Este raio não foi mais do que um relâmpago; mas tanto bastou para servir de guia ao barão, e para fazer compreender ao visconde que estava perdido. Canolles adiantou-se para ele em linha recta, com os braços estendidos, e, apesar da escuridão reinar de novo no quarto, o pobre gentil-homem compreendeu que desta vez não poderia escapar àquele que o perseguia.

- Barão, barão - balbuciou o visconde - não se aproxime, rogo-lhe! Barão, não saia do lugar em que está. Não dê um só passo, se é gentil-homem!

Canolles parou. O visconde estava tão próximo, que lhe ouvia palpitar o coração, e sentia o calor tépido da sua respiração anelante. Ao mesmo tempo, um perfume delicioso, embriagador, composto de todas as emanações que procedem da mocidade e da formosura, perfume mil vezes mais delicioso do que o das flores, pareceu envolvê-lo para lhe tirar toda a possibilidade de obedecer ao visconde, mesmo se tivesse desejos de assim o fazer.

Contudo, deteve-se, um momento no lugar onde estava, com as mãos estendidas para aquelas mãos que antecipadamente o repeliam, vendo que o mais pequeno movimento que fizesse seria bastante para tocar aquele corpo, cuja delicadeza e flexibilidade havia dois dias que tantas vezes admirara...

- Misericórdia! Misericórdia! - implorou o visconde, com uma voz na qual um princípio de voluptuosidade se misturava com o terror. -Misericórdia!

A voz expirou-lhe nos lábios, e Canolles sentiu aquele mimoso corpo deslizar-se ao longo da parede e cair de joelhos.

O seu peito dilatou-se; havia na voz que implorava um acento que lhe fez compreender que o seu adversário já estava meio vencido.

Deu um passo mais, estendeu as mãos, e encontrou as duas mãos juntas e suplicantes do mancebo, que, desta vez, não tendo já nem sequer a força de dar um grito, arrancou do peito um suspiro quase doloroso.

Repentinamente, ouviu-se o galope de um cavalo debaixo da janela, e precipitadas argoladas retumbaram na porta da estalagem, as quais foram seguidas de gritos e rumores. Chamavam e batiam alternativamente.

- Senhor barão de Canolles! - gritava uma voz.

- Oh! Deus seja louvado! Estou salvo! - balbuciou o visconde.

- Os diabos levem semelhante basbaque! -vociferou Canolles. - Não podia vir amanhã de manhã! ?...

- Senhor barão de Canolles! -bradava a voz.- Senhor barão de Canolles! É preciso que eu lhe fale neste mesmo instante.

- Vejamos: que há de novo? - perguntou o barão, recuando um passo.

- Senhor, senhor - disse Castorin da porta - perguntam por si... procuram por si.

- Mas quem é o biltre!?

- Um correio.

- Da parte de quem?

- Da parte do senhor duque d’Épernon.

- Que me quer ele?

- Serviço do rei.

Ao ouvir esta palavra mágica, a que tinha de obedecer, Canolles foi abrir a porta, praguejando, e desceu a escada.

Quanto a Pompeu, ouviram-no ressonar.

O correio havia entrado, e estava à espera numa sala térrea; Canolles foi ter com ele, e leu, empalidecendo, a carta de Nanon;

como o leitor já terá adivinhado, o correio era Courtauvaux em pessoa, que, tendo partido umas dez horas depois de Canolles, não pudera, por mais diligências que fizesse, alcançá-lo senão na segunda pousada.

Algumas perguntas que fez a Courtauvaux não deixaram a Canolles a mínima dúvida acerca da necessidade da diligência que tinha a fazer. Leu uma segunda vez a carta; e a assinatura Vossa boa irmã, Nanon, fez-lhe compreender o que acontecera - isto é: que a menina de Lartigues se salvara do perigo fazendo-o passar por seu irmão.

Por diferentes vezes ouvira a própria Nanon falar em termos pouco lisonjeiros acerca daquele irmão, cujo lugar tomara, o que não concorreu pouco para a má vontade com que ia obedecer a esta mensagem do duque.

- Muito bem - disse ele a Courtauvaux, sem lhe abrir crédito na estalagem, e sem lhe despejar a bolsa nas mãos, o que não teria deixado de fazer em qualquer outra ocasião.- Muito bem; diga a seu amo que me alcançou, e que obedeci no mesmo instante.

- E à menina de Lartigues, não lhe direi coisa alguma?...

- Sim; dir-lhe-á que o irmão sabe apreciar o sentimento por que foi impelida, e que lhe fica sumamente agradecido. Castorin, vá selar os cavalos!

E sem mais nada dizer ao mensageiro, que estava pasmado à vista de uma tal recepção, Canolles tornou a subir, e foi ter com o visconde, a quem encontrou pálido, trémulo, e já vestido. Duas velas estavam acesas sobre a lareira.

Canolles lançou um olhar de profunda mágoa para aquela alcova, e para as duas camas gémeas, numa das quais se divisava uma ligeira e curta pressão. O visconde observou este olhar com um sentimento de pudor que lhe fez subir o rubor ao rosto.

- Alegre-se, visconde - disse Canolles. - Eis que fica desembaraçado de mim para todo o resto da viagem. Parto pela posta, em serviço do rei.

- E quando? - perguntou o visconde, com voz ainda mal segura.

- Neste mesmo instante. Dirijo-me a Nantes, onde, segundo parece, está a corte.

- Adeus, senhor! -pôde apenas responder o mancebo, que atirou consigo para cima de uma cadeira, sem se atrever a levantar os olhos para o companheiro.

Canolles deu um passo para ele.

- Decerto não tornarei a vê-lo... - disse ele, com uma voz muito comovida.

__Quem sabe... - fez o visconde, esforçando-se por sorrir.

__Prometa uma coisa a um homem que se lembrará eternamente de si - disse Canolles, pondo a mão sobre o coração, e isto com uma harmonia de voz e de gesto, que não deixava a mínima dúvida acerca da sua sinceridade.

- Qual coisa?

- Que dele se lembrará algumas vezes.

- Eu prometo-lhe.

- Sem... cólera?...

- Sim.

__Dá-me uma prova em apoio desta promessa?.. - disse

Canolles.

O visconde estendeu-lhe a mão.

Canolles pegou naquela mão toda trémula, sem outra intenção que a de apertá-la entre as suas; mas, por um movimento mais forte que a sua vontade, colou-a com ardor aos seus lábios, e fugiu para fora do quarto, dizendo consigo:

"Ah! Nanon! Nanon!... Jamais poderá indemnizar-me do que me faz perder?..."

 

AGORA, se acompanharmos as princesas da casa de Conde ao desterro de Chantilly, de que Richon pintou ao visconde um quadro tão medonho, eis o que há para ver:

Sob belas áleas de castanheiros cobertos de flores, sobre tabuleiros de relva que se estendem até aos lagos azulados, agita-se, continuamente, um enxame de pescadores, rindo, conversando e cantando. Aqui e ali, no meio das plantas mais altas, aparecem alguns vultos de leitores, perdidos nas vagas de verdura, onde não se vê distintamente mais do que a página branca que eles devoram e que pertence ou à Cleópatra, do senhor de Calprenéde, ou à Astreia do senhor d’Urfé, ou ao Grande Ciro de Mademoiselle Scudéry; no fundo dos caramanchões de madressilvas e de clematites, ouviam-se as ressonâncias dos alaúdes e os cantos de vozes invisíveis. Finalmente, na rua principal que vai ter ao castelo, passa, de vez em quando, com a rapidez do relâmpago, um cavaleiro portador de algum despacho.

Durante este tempo, no terraço, duas mulheres vestidas de cetim, e seguidas a certa distância por escudeiros mudos e respeitosos, passeavam gravemente, com gestos cheios de cerimónia e majestade; no meio delas, uma dama de porte nobre, seguramente dos seus cinquenta e sete anos, discorria magistralmente acerca dos negócios do Estado; à sua direita, uma jovem senhora, muito direita, trajada de negro, escutava, franzindo as sobrancelhas, a douta teoria; à esquerda, enfim, outra senhora velha, a mais empertigada e a mais afastada das três, porque era de condição menos ilustre, falava, escutava e meditava, tudo ao mesmo tempo.

A dama do meio era a princesa viúva, mãe do vencedor de Rocroy. de Norlinga e de Lens, a quem, depois de perseguidos - e, em resultado dessa perseguição, encarcerado em Vincenas - começaram a dar o nome de Grande Conde, nome que a posteridade lhe conserva. Esta dama, em cujas feições se podiam ainda reconhecer os restos da formosura a que se dedicaram os últimos e talvez os mais loucos amores de Henrique IV, acabava de ser ferida, ao mesmo tempo, no seu amor de mãe e no seu orgulho de princesa, por um fradinho italiano, a que chamavam Mazarino, quando criado do cardeal Bentivoglio, e a quem agora chamavam sua eminência o cardeal Mazarino, depois de se tornar amante de Ana de Áustria, e primeiro-ministro do reino da França.

Foi ele quem se atreveu a encarcerar Conde, e a desterrar para Chantilly a mãe e a esposa do nobre preso.

A senhora à direita é Clara Clemência de Maillé, princesa de Conde, a quem, por um aristocrático costume daquele tempo, chamavam simplesmente Madame, para dar a entender que a mulher do chefe da família dos Condes era a primeira princesa de sangue, a princesa por excelência: nunca deixou de ser altiva; mas depois de ser perseguida, a sua altivez mais se agravou com a perseguição, de modo que se tornou orgulhosa. Razão por que, embora condenada a representar um papel secundário enquanto o príncipe gozava de liberdade, a prisão do marido a elevou à posição de heroína: chegou a ser mais lamentada do que uma viúva; e seu filho, o duque de Enghien, que estava para fazer sete anos, tinha mais simpatias do que um órfão. Todos os olhos estavam cravados nela; e se não fora o receio de se tornar ridícula, ter-se-ia vestido de luto. Desde o desterro imposto por Ana de Áustria a estas duas lacrimosas senhoras, os seus gritos agudos converteram-se em surdas ameaças: de

oprimidas que eram, tornaram-se rebeldes. A princesa "Temísto-cles", de touca, tem o seu "Milcíades" de saias, e os louros da senhora de Longueville, momentaneamente rainha de Paris, não lhe permitiam adormecer.

A senhora da esquerda era a marquesa de Tourville, que se não atrevia a escrever romances, mas que forjava planos em assuntos políticos; não fazia a guerra pessoalmente, como o bravo Pompeu, e, não recebera, como ele, uma bala na batalha de Corbie; mas seu marido, que era um capitão assaz estimado, fora ferido em Arrochela, e morto em Friburgo. De onde resultava que, sendo herdeira da fortuna patrimonial, entendera que devia também sê-lo do génio militar. Depois que veio reunir-se às princesas em Chantilly, já fizera três planos de campanha, que sucessivamente excitaram a admiração das mulheres em cuja companhia estava, e que, embora não abandonados, foram aprazados para o momento em que se desembainhasse a espada. Não se atrevia a vestir o uniforme do marido, apesar de às vezes bem desejar fazê-lo. Possuía, porém, a espada do defunto, que estava pendurada no seu quarto, à cabeceira do leito, e, de tempos a tempos, quando só, desembainhava-a com ar muito marcial.

Apesar da sua aparência festiva, Chantilly poderia bem não ser, na realidade, mais do que um vasto abarracamento; e caso se procurasse, ali se encontraria pólvora nos subterrâneos e baionetas nas ramadas.

Em cada percurso que faziam, no seu triste passeio, as três mulheres passavam junto à porta principal do castelo, e dir-se-ia que da escada espreitavam a chegada de algum mensageiro importante. Já por diversas vezes a princesa viúva dissera, abanando a cabeça e suspirando:

- Seremos mal sucedidas, minha filha; ver-nos-emos humilhadas.

- Não se pode alcançar glória sem algum preço - disse a senhora de Tourville, sem dar mostras de timidez; - e não há vitória sem combate!

- Se ficarmos mal, se formos vencidas - volveu a jovem princesa - vingar-nos-emos.

- Senhoras - sentenciou a princesa viúva - se nos sairmos mal, será unicamente Deus quem terá vencido o príncipe. Quererão acaso, vingar-se de Deus?...

A jovem princesa inclinou-se ante a soberba humildade da sogra, e as três personagens, altercando deste modo, e dando-se um mútuo incenso, assemelhavam-se a um bispo assistido por dois diáconos, que tomem a Deus por pretexto das homenagens que prestam uns

aos outros.

- Nem o senhor de Turenne, nem o senhor de La Rochefoucauld, nem o senhor de Bouillon!... - resmungou a princesa viúva.- Tudo falta, e ao mesmo tempo!

- Nem dinheiro! - acrescentou a senhora de Tourville.

- Nem em quem possamos confiar -replicou a princesa.- E se a própria Clara se esquece de nós?..

- Quem lhe diz, minha filha, que a senhora de Cambes se esquece de nós?

- Ela não volta!...

- Talvez que não o tenha podido fazer; as estradas estão fortemente guardadas pelo exército do senhor de Saint-Aignan, bem

o sabe.

- Poderia pelo menos escrever-nos...

- Desejaria que ela confiasse ao papel uma resposta tão importante?. .. A adesão de uma cidade inteira como Bordéus, ao partido dos príncipes!... Não, as diligências dessa banda não são as que mais me inquietam.

- Além disso - replicou a senhora de Tourville - um dos três planos que tive a honra de entregar a Vossa Alteza, tinha por finalidade a sublevação infalível da Guiena.

- Sim, sim, voltaremos a ocupar-nos disso, se for necessário - respondeu a princesa.- Mas declaro-me a favor do parecer de minha mãe e senhora, e começo a acreditar que terá acontecido alguma desgraça a Clara, pois se assim não fosse, já aqui estaria. Talvez que os seus rendeiros não tenham cumprido a respectiva palavra; um miserável aproveita sempre a ocasião de não pagar, quando pode furtar-se. Além de que, como sabemos nós o que a gente da Guiena terá feito ou não, apesar das promessas?... São gascões!..

- São uns conversadores! - disse a senhora de Tourville.- Verdade que são bravos, individualmente; mas reunidos em corpo, são maus soldados, que só prestam para bradar Viva o Príncipe quando têm medo dos espanhóis, e nada mais.

- Porém, detestavam o senhor d’Épernon - lembrou a princesa viúva - pois que em Agen o enforcaram em estátua, e prometeram enforcá-lo pessoalmente em Bordéus, se lá tornasse a entrar.

- E ele é capaz de lá ter voltado, e de os ter mandado enforcar a todos - observou a princesa, com despeito.

- E tudo isto - replicou a senhora de Tourville - é culpa de Lenet, do senhor Pedro Lenet- repetiu ela, com afectação - daquele conselheiro teimoso, que se obstina em conservar, e que mais não serve senão para transtornar todos os nossos planos. Se ele não rejeitasse o meu segundo plano, destinado, como se lembrará, a tomar de surpresa o Castelo de Vayres, a ilha de São Jorge, e o Forte de Blaye, teríamos agora sitiado Bordéus, e esta cidade não poderia deixar de capitular.

- Prefiro, salvo o parecer de suas altezas, que Bordéus se declare por nós voluntariamente - afirmou por detrás da senhora de Tourville uma voz em cujo acento respeitoso não deixava de transparecer algo de irónico. - Cidade que capitula, cede à força, e a nada se obriga; cidade que se declara voluntariamente, compromete-se, e vê-se obrigada a seguir até ao último extremo a fortuna daqueles por quem se declarou.

As três senhoras voltaram-se, e deram com os olhos em Pedro Lenet, que, enquanto elas davam uma das suas voltas em direcção àquele grande portão do castelo, de onde não tiravam os olhos, saíra por uma portazinha rente ao terrado, e delas se aproximara pela retaguarda.

O que a senhora de Tourville dissera não deixava, em parte, de ser verdade. Pedro Lenet, conselheiro do príncipe, homem frio, inteligente e grave, fora encarregado pelo prisioneiro de observar tantos os amigos como os inimigos, e, convém dizê-lo, encontrava muito maior dificuldade em obstar a que os amigos do príncipe comprometessem a sua causa, do que em combater as más intenções dos inimigos. No entanto, hábil e ardiloso com um causídico, habituado às rabulices e tretas dos demandistas, conseguia ordinariamente triunfar, ou por alguma feliz reacção, ou por uma inabalável inércia. Além do que era em Chantilly mesmo que travara as suas mais sábias batalhas. O amor-próprio da senhora de Tourville, a impaciência da princesa, a inflexibilidade aristocrática da princesa viúva, não deixavam de valer tanto como a astúcia de Mazarino, o orgulho de Ana de Áustria, e as indecisões do Parlamento.

Encarregado pelos príncipes de toda a correspondência Lenet pusera a si próprio a norma de não dar notícias às princesas senão na ocasião oportuna, e era ele quem se constituía juiz desta oportunidade; porquanto, não primando sempre a diplomacia feminina pelo segredo, que é o primeiro princípio da diplomacia masculina, um número não pequeno dos planos de Lenet haviam por isso sido entregues pelos seus amigos aos próprios inimigos.

As duas princesas, que nem por isso deixavam de reconhecer - sem embargo da oposição que nele encontravam - o ardente zelo e sobretudo a utilidade de Pedro Lenet, fizeram bom acolhimento ao conselheiro, e até um ligeiro sorriso deslizou pelos lábios da viúva.

- Então, meu caro Lenet? Bem ouvi - disse ela. - A senhora de Tourville lastimava-se... ou para melhor dizer: lastimava-nos; tudo vai de mal a pior! Ai, os nossos negócios, meu caro Lenet, os nossos negócios!...

- Senhora - disse Lenet- estou longe de ver as coisas tão

negras como Vossa Alteza as vê. Espero muito do tempo, e das variações da fortuna. Bem sabe o que diz o provérbio: "Quem espera sempre alcança."

- O tempo, as variações da fortuna!... Isso, senhor Lenet, é filosofia, e não política! - exclamou a princesa.

Lenet sorriu, por seu turno.

- A filosofia, senhora, é útil em todas as coisas, e sobretudo em política. Ensina-nos a não nos exagerarmos com o êxito feliz, e a não perder a paciência nos reveses.

- Não importa - disse a senhora de Tourville. - Preferíamos um bom correio a todas as suas máximas. Não é verdade, princesa?...

- Sim, confesso-o - respondeu a senhora de Conde.

- Vossa Alteza ficará, portanto, muito satisfeita, porque receberá hoje três - replicou Lenet, com o mesmo sangue-frio.

- Como assim!? Três?!...

, -Sim, senhora. O primeiro foi visto na estrada de Bordéus,

o segundo vem de Stenay, e o terceiro chega de La Rochefoucauld. As duas princesas soltaram exclamações de alegre sobressalto.

A senhora de Tourville mordeu os lábios.

 

1 -Parece-me, meu querido Pedro - disse ela, requebrando-se toda para dissimular o despeito e colorir dos melhores tons a amargura da palavra que ia proferir - que um hábil nigromante como

o senhor não deveria deter-se em tão boa fala, e que, depois de nos haver anunciado os correios, deveria dizer-nos o conteúdo dos despachos...

- A minha ciência, senhora não chega ao ponto que julga - disse ele, modestamente. - Limito-me a ser um fiel servidor. Anuncio, mas não adivinho.

No mesmo instante, como se com efeito Lenet fosse servido por algum demónio, avistaram-se dois cavaleiros, que, franqueada a cancela do castelo, se adiantavam à desfilada. Imediatamente, um bando de curiosos, desertando dos jardins e dos canteiros de relva, acudiu para saber a sua parte de notícias.

Os dois cavaleiros apearam-se, e um deles, largou ao outro - que parecia ser o lacaio - a rédea do cavalo alagado em suor, e, mais correndo do que andando, dirigiu-se para as princesas, que lhe saíam ao encontro numa extremidade da galeria, enquanto ele entrava pela outra.

- Clara! - exclamou a princesa.

- Sim, minha senhora; digne-se Vossa Alteza receber os meus humildes respeitos.

E pondo um joelho no chão, o mancebo quis segurar a mão da princesa, para a beijar respeitosamente.

- Venha a meus braços, querida viscondessa - exclamou a senhora de Conde, levantando-a.

E depois de se haver deixado abraçar, com todas as mostras de respeito possíveis, o cavaleiro voltou-se para a princesa viúva, a a quem saudou profundamente.

- Depressa! Fale, querida Clara - disse esta, não podendo conter a impaciência.

- Sim, fala - repetiu a senhora de Conde. - Viste Richon?

- Sim, senhora; e encarregou-me de uma comissão para Vossa Alteza.

- Boa ou má?

- Eu mesma o ignoro; compõe-se de duas palavras.

- Quais são elas? Depressa! Que eu morro de inquietação. E a mais viva ansiedade pintou-se no rosto das duas princesas.

- Bordéus - Sim! - disse Clara, inquieta ela mesma quanto ao efeito que produziriam estas duas palavras.

Mas em breve ficou sossegada, porque as princesas responderam a estas duas palavras com um grito de triunfo, o suficiente para que Lenet acudisse correndo na extremidade da galeria.

- Lenet, Lenet! - venha, venha! - exclamou a princesa. - Não sabe decerto que notícia nos traz a nossa boa Clara!...

- Olá, se sei, senhora!...-volveu Lenet, sorrindo - e por isso não me apressava.

- Como!? sabe?!...

- Bordéus - Sim! Não é isso?... - disse Lenet.

- Na realidade, meu querido Pedro, é feiticeiro! - espantou-se a princesa viúva.

- Mas se sabia - disse em tom de repreensão a princesa - por que razão, vendo a inquietação em que estávamos, não nos sossegou com essas duas palavras?...

- Porque eu queria deixar à senhora viscondessa de Cambes a recompensa das suas fadigas - respondeu Lenet, inclinando-se diante de Clara, sumamente comovida.- E, além disso, porque também receava a explosão de alegria de vossas altezas, no terraço, e à vista de toda a gente.

- Tem razão, sempre razão! Pedro! meu bom Pedro! - disse a princesa. - O melhor é calarmo-nos!

- E, contudo, àquele honrado Richon é que devemos isso - acrescentou a princesa viúva. - Não é verdade que está contente com ele, e pela bela maneira com que manobrou? Diga, compadre Lenet.

Compadre era a palavra carinhosa da princesa viúva, tendo-se habituado a empregá-la a exemplo do rei Henrique IV, que dela se servia com frequência.

- Richon, senhora, é homem de juízo e de acção - disse Lenet. - E creia Vossa Alteza que se eu não estivesse tão certo dele, como o estou de mim mesmo, não o teria recomendado.

- Que faremos nós por ele? - perguntou a princesa viúva.

- Algum posto importante!... Vossa Alteza não pondera isso devidamente - disse com azedume a senhora de Tourville. - Esquece-se de que o senhor Richon não é gentil-homem..

- Nem eu também o sou, senhora - respondeu Lenet - o que não obsta a que o príncipe tenha, como suponho, alguma confiança em mim. Decerto admiro e respeito a nobreza da França; mas circunstâncias há em que me atreverei a dizer que vale mais um grande coração do que um velho brasão.

- E porque não veio o bom Richon anunciar ele mesmo em pessoa esta rica notícia? - quis saber a princesa.

- Ficou na Guiena, para reunir um certo número de homens. Disse-me que podia já contar com uns trezentos soldados; e acrescenta somente que, por falta de tempo, não estarão bem exercitados para combaterem a descoberto, pelo que preferia que se obtivesse para ele o comando de uma praça, como Vayres, ou a ilha de São Jorge. Ali - disse ele - teria toda a certeza de ser muitíssimo útil a Suas Altezas.

- Mas como se poderia conseguir isso? -perguntou a princesa. - Não somos actualmente bem vistas na corte para podermos recomendar alguém, e aquele que recomendássemos tornar-se-ia desde logo suspeito.

- Talvez, senhora - disse a viscondessa- que houvesse um meio, e foi o próprio senhor Richon quem mo sugeriu.

- Qual?

- O senhor d’Épernon está, segundo parece - continuou a viscondessa, tornando-se vermelha- perdido de amores por uma certa menina...

- Ah! sim! A formosa Nanon - disse com desdém a princesa. - Sabemos muito bem.

- Ora, pois: parece que o duque d’Épernon nada pode recusar a essa mulher, e que ela concede tudo quanto lhe compram. Não se lhe poderia comprar uma patente para o senhor Richon?...

- Seria dinheiro bem empregado - disse Lenet.

- Sim, mas o cofre está seco; sabe-o muito bem, senhor conselheiro- disse a senhora de Tourville.

Lenet voltou-se sorrindo para o lado da senhora de Cambes.

- Eis o momento, minha senhora - disse-lhe - de provar as suas altezas que de nada se esqueceu.

- Que quer dizer, senhor Lenet?

- Ele quer dizer, senhora, que sou tão feliz que posso oferecer-lhe uma fraca quantia, que a muito custo pude arrancar aos

meus rendeiros; o oferecimento é muito modesto, mas não pude alcançar mais. Vinte mil libras... - continuou a viscondessa, baixando os olhos e hesitando, muito envergonhada por não poder oferecer uma quantia maior às duas primeiras senhoras do reino, depois da rainha.

- Vinte mil libras!... - exclamaram as duas princesas.

- Mas, em tempos tão desgraçados como estes em que vivemos, é uma fortuna! - continuou a princesa.

- Vossa Alteza mais tarde se ocupará disso.

- E onde está essa soma? - perguntou a senhora de Tourville.

- No quarto de Sua Alteza, para onde o meu escudeiro Pompeu recebeu ordem de a levar.

- Lenet - disse a princesa - lembrar-se-á de que devemos esta quantia à senhora de Cambes.

- Já está lançada em conta - disse Lenet, tirando da algibeira o seu bloco de notas, e mostrando na exacta data as vinte mil libras da viscondessa assentadas numa coluna, cujo total teria assustado um tanto as princesas, caso se tivessem dado ao trabalho de somá-la.

- Mas como conseguiu passar sã e salva, minha querida? - disse a princesa. - Asseguram-nos que o senhor de Saint-Aignan guarda a estrada, e passa revista a tudo, nem mais nem menos do que faz a guarda da alfândega.

- Graças à prudência de Pompeu - disse a viscondessa - evitámos, senhora, esse perigo, fazendo um enorme rodeio, o qual nos retardou cerca de dia e meio; mas a ele devemos a segurança com que viajámos. Se não fosse esse precalço, eu tinha chegado anteontem junto de Vossa Alteza.

- Sossegue, senhora - disse Lenet - ainda não houve tempo perdido. O que é agora necessário é empregar o dia de hoje, e o de amanhã. Hoje, disto devem lembrar-se vossas altezas, esperamos ter correios; um já chegou, faltam os outros dois.

- E pode saber-se, senhor, os nomes desses dois correios?

- perguntou a senhora de Tourville, esperando sempre colher em falta o conselheiro, a quem fazia guerra- que por não ser declarada, nem por isso era menos real.

- O primeiro, se as previsões me não enganam - respondeu Lenet- será Gourville; vem da parte do duque de La Rochefou-cauld.

- Da parte do príncipe de Marsillac, quer sem dúvida dizer - emendou a senhora de Tourville.

- O príncipe de Marsillac, senhora, é agora duque de La Roche-foucauld.

- Então o pai morreu?

- Há oito dias.

- E onde?

- Em Verteuil.

- E o segundo? - perguntou a princesa.

- O segundo é Blanchefort, capitão das guardas do príncipe. Chega de Stenay, e vem da parte do senhor de Turenne.

- Em tal caso, creio - disse a senhora de Tourville- que, para evitar toda a perda de tempo, poder-se-ia recorrer ao primeiro plano que eu tinha feito, no caso da provável adesão de Bordéus, e da aliança dos senhores de Turenne e de Marsillac.

Lenet, sorriu, como era seu costume.

- Perdoe-me, senhora - disse em tom sumamente cortês - mas os planos formados pelo príncipe em pessoa, estão a esta hora em vias de execução, e prometem um resultado feliz.

- Os planos formados pelo príncipe - disse com rispidez a senhora de Tourville - pelo príncipe, que está na prisão de Vincenas, e que não tem comunicação com pessoa alguma?!...

- Eis as ordens de Sua Alteza, escritas pelo seu próprio punho, e datadas de ontem - volveu Lenet, tirando da algibeira uma carta do príncipe de Conde. - Recebia-a esta manhã. É que mantemos correspondência.

O papel quase foi arrancado das mãos do conselheiro pelas duas princesas, que devoraram, derramando lágrimas de alegria, tudo quanto nele se continha.

- Ora, pelo que vejo, não se dirá que as algibeiras de Lenet contêm todo o reino da França?... - disse a princesa viúva.

- Ainda não, senhora, ainda não - respondeu o conselheiro. - Mas com a ajuda de Deus, farei diligência para alargá-las o suficiente. Agora -continuou ele, fitando os olhos na viscondessa- esta senhora deve precisar de descanso, porque o longo caminho...

A viscondessa compreendeu qual era o desejo que tinha Lenet de ficar só com as princesas, e, perante um sorriso da princesa viúva, que confirmou esta ideia, fez uma respeitosa saudação, e afastou-se.

A senhora de Tourville ia-se deixando ficar, e congratulava-se por fazer uma ampla colheita de informações secretas. Todavia, em consequência de um imperceptível aceno da princesa viúva à sua nora, as duas princesas, espontaneamente, e com uma augusta mesura, feita conforme com todas as regras da etiqueta, anunciaram à senhora de Tourville que era chegado o termo da sessão política a que fora convidada a assistir. A dama das teorias compreendeu perfeitamente o que dela se pretendia, fez as duas senhoras uma mesura ainda mais grave e mais cerimoniosa do que a que lhe haviam feito, e retirou-se, tomando a Deus por testemunha da ingratidão das princesas. Estas, recolheram-se ao seu gabinete, e Pedro Lenet entrou após elas.

- Agora - disse Lenet, depois de se haver certificado de que a porta estava bem fechada- se Vossas Altezas querem receber Gourville, que acaba de chegar, e está mudando de fato, pois não ousa apresentar-se com o trajo de viagem...

- E que notícia traz ele?

I - A notícia de que o senhor de La Rochefoucauld deve chegar aqui esta noite ou amanhã, com quinhentos gentis-homens.

- Quinhentos gentis-homens?! -exclamou a princesa.- Na realidade, é um exército!

- Que mais difícil tornará a nossa passagem. Preferia cinco ou seis servidores somente, a todo esse aparato; ter-nos-íamos mais facilmente subtraído ao senhor de Saint-Aignan, e evitado o seu encontro. Mas assim, será quase impossível chegar ao Midi sem sermos inquietados.

- Tanto melhor se nos inquietarem -exclamou a princesa - porque se nos inquietarem, combateremos e sairemos vencedores: o espírito do senhor de Conde marchará connosco.

Lenet olhou para a princesa viúva, como se para também ouvir o parecer desta; mas Carlota de Montmorency, criada durante as guerras civis, no reinado de Luís XIII, que vira curvarem-se tantas altas cabeças para entrarem na prisão, ou rolarem nos cadafalsos por haverem querido conservar-se direitas, passou com tristeza a mão pela fronte, carregada de penosas lembranças.

- Sim - disse ela - eis o triste estado a que nos vemos reduzidos! Ocultarmo-nos, ou combatermos! Vivíamos muito sossegados, à sombra da pouca glória que Deus se dignara conceder à nossa casa, e não procurávamos - pelo menos lisonjeio-me de que nenhum de nós tivesse outra intenção - outra glória que não fosse a de nos conservarmos na graduação em que havíamos nascido; e eis que as contingências destes desgraçados tempos nos impelem a combater o nosso amo...

- Senhora! -cortou com impetuosidade a jovem princesa - Encaro com menos desgosto do que Vossa Alteza a necessidade a que nos vemos constrangidos. Meu esposo e meu irmão estão sofrendo um indigno cativeiro; aquele esposo e aquele irmão são seus filhos. Além disso, a sua filha está proscrita. É mais do que necessário, sem dúvida alguma, para desculpar todas as empresas que pudermos tentar.

- Sim - disse a princesa viúva, com uma tristeza muito resignada. - Sim, senhora, eu suporto tudo isto com mais paciência do que a senhora; mas também não posso deixar de lamentar o triste destino - que parece ameaçar-nos - de sermos proscritos ou presos. Assim que fui esposa do pai de seu marido, logo tive de sair de França, perseguida por causa de Henrique IV. Mal havíamos para ela voltado, quando tivemos de entrar na prisão de Vincenas, perseguidos pelo ódio do cardeal de Richelieu. Meu filho, que hoje está preso, nasceu na prisão, e pôde, no fim de trinta e dois anos, tornar a ver o quarto onde nasceu.

"Ah! o seu sogro, o príncipe, tinha razão de sobra nas suas sombrias profecias, pois quando lhe anunciaram o desfecho da batalha de Rocroy, quando o conduziram à sala atapetada com as bandeiras tomadas aos espanhóis.. Deus sabe a alegria que esta acção de meu filho me causa - disse ele, voltando-se para mim. - Mas lembre-se, senhora, que quanto mais glória a nossa casa adquirir, tanto maiores desgraças terá de sofrer. Se as minhas armas não fossem as da França, brasão demasiado belo para que possa ser abandonado, preferiria tomar por armas um falcão, a quem as campainhas denunciam, e ajudam a ser de novo apanhado, com esta divisa: Fama dócil! - Temos feito muito ruído, minha filha, e alcançado demasiado renome - eis o que nos perde. Não é do meu parecer, Lenet?

- Senhora - replicou Lenet, aflito com as recordações que a princesa acabava de evocar- Vossa Alteza tem razão; mas adian-támo-nos demasiado, e, por isso, não podemos recuar. Mais ainda: em circunstâncias semelhantes àquelas em que nos encontramos, há que tomar uma resolução pronta: cumpre ver qual seja na realidade a nossa situação, e não a dissimularmos. Não estamos livres senão na aparência: a rainha tem os olhos fixos em nós, e o senhor de Saint-Aignan bloqueia-nos. Trata-se, pois, de sair de Chantilly apesar da vigilância da rainha, e do bloqueio do senhor de Saint-Aignan.

I-Saiamos de Chantilly, sim, mas de cabeça levantada! - exclamou a princesa.

- A minha opinião é esta - disse a princesa viúva. - Os Condes não são espanhóis, e não atraiçoam; não são italianos, e não enganam; o que fazem, fazem-no às claras, e de fronte erguida.

- Senhora - volveu Lenet, com acento de convicção. - Deus é testemunha de que serei o primeiro a executar a ordem de Vossa Alteza, seja ela qual for; mas para sair de Chantilly, como o quer fazer, é preciso dar batalha. Decerto não tenciona ser mulher no combate, depois de ter sido homem no conselho. Marchará à frente dos seus partidários, e será Vossa Alteza quem dará aos soldados o grito de guerra. Esquece-se, porém, de que ao lado das vossas preciosas existências começa a apontar uma existência não menos preciosa - é a do senhor duque de Enghien, filho e neto de Vossas Altezas. Irão arriscar-se a sepultar no mesmo túmulo o presente e o futuro da vossa casa?... Crêem que o pai não servirá de refém a Mazarino, quando se tentarem empresas temerárias em nome do filho? Não conhecem já os segredos da torre de Vincenas, onde estiveram encerrados o grão-prior de Vandoma, o marechal d’Ornano e Puy-Laurens?... Esqueceram-se daquele quarto fatal que, segundo diz a senhora de Rambouillet, é a habitação mais insuportável do mundo? Não, senhoras - continuou Lenet, juntando as mãos - não, hão-de dar ouvidos ao parecer deste vosso velho servidor, e sairão de Chantilly como convém que o façam senhoras que sofrem perseguição. Lembrem-se de que a vossa arma mais segura é a fraqueza; um menino a quem privam do pai, uma mulher a quem privam do marido, uma mãe a quem privam do filho, libertam-se, do melhor modo que podem, do laço que as prende. Para obrar e falar alto e bom som, aguardem que não sirvam já de reféns ao mais forte. Estando presas, os vossos partidaristas ficaram mudos; vendo-as livres, declarar-se-ão, visto já não recearem que lhes imponham as condições do vosso resgate. O nosso plano está apoiado por Gourville. Temos toda a certeza de ter uma boa escolta, com a qual evitaremos os perigos do caminho. Hoje, vinte partidos diferentes estão envolvidos, e todos vivem indistintamente à custa do amigo e do inimigo. Consintam no que lhes digo: tudo está para breve.

- Partimos às escondidas, partimos como malfeitores?!... - exclamou a jovem princesa. - Oh! que dirá o príncipe, quando souber que a mãe, a mulher e o filho, se sujeitaram a uma tal vergonha !?

- Não sei o que dirá. Mas se forem bem sucedidas, dever-lhes-á a liberdade; se não se saírem bem, não comprometem os vossos recursos, e sobretudo a vossa posição, como aconteceria arriscando-se a uma batalha.

A princesa viúva reflectiu um momento, e com o rosto cheio de afectuosa melancolia, afirmou:

- Meu querido senhor Lenet, trate de convencer minha filha, pois quanto a mim, vejo-me obrigada a ficar aqui. Até agora, tenho lutado, mas não me sinto já com forças para mais: a dor que me consome, e que em vão me esforço por ocultar, a fim de não desanimar as pessoas que me rodeiam, vai agrilhoar-me num leito de dor, que será talvez o meu leito de morte. É preciso, primeiro que tudo, salvar a fortuna dos Condes. Minha filha e meu neto sairão de Chantilly, e congratulo-me por terem bastante prudência para se conformarem aos seus conselhos - ou, para melhor dizer, às suas ordens. Ordene, Lenet, e executar-se-á o que ordenar.

- Perde a cor, senhora! - exclamou Lenet, segurando a princesa viúva, a quem já a jovem princesa, assustada com a sua palidez, tomara em seus braços.

- Sim... - disse a viúva, que cada vez se ia sentido mais fraca !• - sim... as boas notícias de hoje fizeram-me mais mal do que

as angústias dos últimos dias. Sinto-me devorada pela febre; não digamos a ninguém, pois que isto, em tal momento, poderia ser-nos muito nocivo.

- Senhora - disse Lenet em voz baixa - a indisposição de Vossa Alteza seria um benefício do Céu, se a sua pessoa não padecesse. Deixe-se ficar na cama, e faça correr a notícia da sua doença. A senhora - continuou ele, dirigindo-se à jovem princesa - mande chamar o vosso médico Bourdelot; e como em breve teremos de recorrer às estrebarias e às equipagens, espalhe por toda a parte que a vossa intenção é mandar correr um gamo no parque. Deste modo, ninguém se admirará de ver homens, armas e cavalos em actividade.

- Faça o que entender, Lenet. Mas como é possível que um homem tão previdente como o senhor não veja que poderão admirar-se desta estranha partida de caça, no mesmo momento em que minha mãe cai doente?...

- Tudo isso será prevenido, senhora. Não é depois de amanhã que o senhor duque de Enghien completa sete anos, e deve sair das mãos das mulheres?...

- Assim é.

- Ora bem; nós diremos que esta partida de caça tem lugar por motivo das primeiras calças que veste o jovem príncipe; que Sua Excelência não quis de modo algum que a sua moléstia fosse entrave para esta solenidade, e tanto insistiu que tiveram de ceder às suas instâncias.

- Excelente ideia! - exclamou com um alegre sorriso a princesa viúva, muito ufana com esta primeira proclamação da virilidade do neto. - Sim, o pretexto é bom, e, na realidade, Lenet, é um digno e bom conselheiro.

- Mas para correr atrás da caça, o senhor duque de Enghien não terá de ir numa sege?... - perguntou a princesa.

- Não, senhora: a cavalo. Que não tenha o mínimo susto, o seu coração maternal. Idealizei uma selazinha, que Vialas, seu escudeiro, assentará adiante do arção da dele; deste modo, todos poderão ver o senhor duque de Enghien, e à noite poderemos pôr-nos a caminho com toda a segurança. É que, na suposição de que tenhamos de fugir, indo a cavalo o senhor duque poderá passar por toda a parte; ao passo que, indo de sege, o primeiro obstáculo que encontrássemos far-nos-ia parar.

- Então sempre julga que devemos partir?

- Depois de amanhã, à noite, senhora, se Vossa Alteza não tem algum motivo para demorar a partida.

- Oh! não, muito pelo contrário: afastemo-nos quanto antes da nossa prisão, Lenet.

- E uma vez que tenha saído de Chantilly, que farão? - perguntou a princesa viúva.

- Passaremos através do exército do senhor de Saint-Aignan, para cujos olhos encontraremos processo de lançar poeira. Iremos reunir-nos ao senhor de La Rochefoucauld e à respectiva escolta, e chegaremos a Bordéus, onde estão à nossa espera. Assim que chegarmos à segunda cidade do reino, à capital do Midi, poderemos negociar ou combater, como melhor convier a vossas altezas; contudo, terei a honra de lhes lembrar, senhoras, que mesmo em Bordéus não poderemos aguentar-nos muito tempo, caso não tenhamos do nosso lado algumas praças, que obriguem as tropas reais a dividirem-se. Duas destas praças sobretudo são de enorme importância: Vayres, que domina o Dordonha, e facilita a chegada de víveres à cidade, e a ilha de São Jorge, que é considerada pelos próprios bordaleses a chave da cidade. Disto, porém, nos ocuparemos mais tarde; por agora, tratemos apenas da forma como havemos de sair daqui.

- Não há coisa mais fácil, senhora, a meu ver - disse a princesa. - Estamos aqui sós e à vontade, apesar de quanto possa dizer, Lenet.

- Não tenha qualquer certeza, senhora, antes de estarmos em Bordéus; não há coisa que seja fácil, como o espírito diabólico de Mazarino; e se esperei que ficássemos sós para expor o meu plano a vossas altezas, foi para descargo da minha consciência, juro, porquanto neste mesmo momento sinto grandes receios relativamente à segurança do projecto que a minha cabeça só por si concebeu, e que os vossos ouvidos foram os únicos a ouvir. O senhor Mazarino não só sabe das coisas, mas até as adivinha...

- Oh! eu o desafio a que faça malograr esta! - desafiou a princesa. - Mas ajudemos minha mãe a recolher-se a seu quarto; desde hoje mesmo vou propagar o boato da nossa partida de caça para depois de amanhã. Encarregue-se dos convites, Lenet.

- Fique descansada a esse respeito, senhora.

A princesa viúva recolheu-se aos seus aposentos, e meteu-se na cama. A presença de Bourdelot, médico da casa de Conde e mestre do duque de Enghien, foi pedida. A notícia desta inesperada indisposição espalhou-se no instante mesmo por Chantilly, e, meia hora depois, os bosques, as galerias, e os jardins, ficaram desertos, apinhando-se todos os hóspedes das princesas na antecâmara da princesa viúva.

Lenet passou o dia a escrever, e nessa mesma noite mais de cinquenta convites foram enviados em diferentes direcções pelos numerosos servidores da real casa.

 

O dia designado para levar a efeito os importantes planos de Pedro Lenet foi um dos mais escuros daquela Primavera, a que chamam por tradição a mais bela estação do ano, e que quase sempre, sobretudo na França, é a mais desagradável. O céu estava nublado, a mais profunda névoa reinava por toda a parte, e a chuva caía, fria e densa, nos jardins de Chantilly. Nos vastos pátios, presos às argolas, aguardavam cinquenta cavalos selados e enfreados, de orelha baixa, olhos tristes, e raspando impacientes a terra com as ferraduras; matilhas de cães atrelados e inquietos, tentavam, por um esforço comum, arrastar consigo o moço que enxugava aos que mais estimava as orelhas ensopadas em chuva.

Aqui e além vagueavam os picadores com as suas cornetas, e de mãos atrás das costas. Alguns oficiais, que se haviam acostumado a resistir às inclemências do tempo nos bivaques de Rocroy e de Lens, arrostavam a água do céu, e mitigavam o desagrado da demora conversando sob os terraços e escadas exteriores.

Toda a gente havia sido avisada de que era dia de cerimónia, e que deveriam munir-se de ar solene para verem o duque de Enghien, vestido com calças pela primeira vez, bater um gamo. Todos os oficiais que estavam ao serviço do príncipe, e todos os clientes da ilustre casa, convidados pelas circulares de Lenet, haviam cumprido, acudindo a Chantilly, o que entendiam ser um dever. Além disso, as inquietações que desde logo dera a saúde da princesa viúva haviam-se, dissipado, devido ao prognóstico, favorável de Bourdelot: a princesa, depois de sangrada, tomara pela manhã um emético, panaceia universal daquela época.

Às dez horas, todos os convidados pessoais da senhora de Conde haviam chegado, e cada qual fora introduzido apresentando a sua carta de convite; e os que por acaso a tinham esquecido, uma vez que fossem reconhecidos por Lenet, eram introduzidos em consequência de um sinal que este fazia ao porteiro. Estes convidados, reunidos aos servidores da casa, formavam um total de oitenta ou noventa pessoas, cujo maior número estava reunido à roda do magnifico cavalo branco, que, com uma espécie de orgulho, levava adiante da sua grande sela à francesa um pequeno assento de veludo com espaldar, destinado ao duque de Enghien, e onde este devia tomar lugar quando Vialas, seu escudeiro, se tivesse instalado devidamente na sela principal.

Contudo, ainda se não falava de dar princípio à caçada, e parecia que eram esperados outros convidados.

Pelas dez horas e meia, três gentis-homens seguidos dos respectivos criados, armados de ponto em branco, e portadores de malas tão abarrotadas que dir-se-ia irem dar a volta à Europa, entraram no castelo, e vendo no pátio uns postes que pareciam plantados ali para o efeito, quiseram prender a eles os seus cavalos. No mesmo instante, um homem vestido de azul, com um talabarte de prata e de alabarda na mão aproximou-se dos recém-chegados, que pela equipagem ensopada em água e pelas botas enlameadas, facilmente eram reconhecidos como viajantes que vinham de longe.

- De onde vêm, senhores? - disse aquela espécie de porteiro, atravessando a sua alabarda.

- Do Norte - respondeu um dos cavaleiros.

- E para onde vão?

- Vamos ao enterro.

- E que prova dão disso?

- Veja os nossos fumos.

Com efeito, os três amos tinham, cada um, o seu fumo na

espada.

- Rogo-lhes que me desculpem, senhores - disse o porteiro. O castelo está à vossa disposição: encontrarão a mesa posta, um quarto com lume, e criados que os sirvam; quanto aos que os acompanham, também se lhes acudirá com o que for preciso.

 

Os gentis-homens, que tinham fome e curiosidade, apearam-se, entregaram as rédeas dos cavalos aos lacaios, e, informando-se do caminho para a sala de jantar, dirigiram-se para esse lado. Um camareiro esperava-os à porta, e serviu-lhes de guia.

Enquanto isso, os cavalos foram tirados das mãos dos lacaios da casa, e levados para as estrebarias, onde lhes deram agasalho e ração.

Ainda os três gentis-homens mal se haviam sentado à mesa, quando outros seis cavaleiros, seguidos de seus lacaios, armados como os outros que já descrevemos, entraram, tal como eles, e, como eles, vendo os postes, quiseram prender às respectivas argolas as cavalgaduras. Mas o homem da alabarda, que tinha recebido ordens estritas, aproximou-se e renovou as perguntas:

- Donde vêm?

- Da Picardia. Somos oficiais do exército de Turenne.

- Para onde vão?

- Vamos ao enterro.

- E que provas dão?

- Veja os nossos fumos.

E, tal como os primeiros, mostraram os fumos que pendiam dos punhos das espadas.

Sendo tratados com a mesma cortesia, estes últimos foram tomar o seu lugar na mesa; e os mesmos cuidados se deram aos seus cavalos, que foram recolhidos na estrebaria.

Depois destes, apresentaram-se outros quatro, e ainda se renovou a mesma cena.

Das dez horas até ao meio-dia, dois a dois, quatro a quatro, cinco a cinco, sós, em grupos sumptuosos ou insignificantes, mas todos bem armados, chegaram uns cem cavaleiros, a quem o alabar-deiro interrogou do mesmo modo, e que responderam dizendo de onde vinham, ajuntando que iam ao enterro, e mostrando os seus fumos.

Depois que todos jantaram e travaram conhecimento, enquanto os criados tomavam algum refresco e os cavalos descansavam, Lenet entrou no salão e disse-lhes:

- Senhores, Sua Alteza agradece-lhes, por meu intermédio, a honra que lhe fazem de passar por sua casa ao encontro do senhor duque de La Rochefoucauld, que os espera para celebrar as exéquias do senhor seu pai. Considerem esta habitação como vossa, e dignem-se participar nos divertimentos de uma caçada que deve ter lugar esta tarde, em execução das ordens dadas pelo senhor duque de Enghien, que hoje pela primeira vez veste calças.

Um murmúrio de aprovação e de agradecimentos lisonjeiros correspondeu a esta primeira parte do discurso de Lenet, que, como hábil orador, se interrompera, à vista de um efeito certo.

- Concluída a caçada - continuou ele - encontrarão sentada a cear a senhora Princesa, que deseja ela mesma apresentar-lhes os agradecimentos, após o que terão toda a liberdade para continuar o vosso caminho.

Alguns dos gentis-homens prestaram uma atenção particular à exposição deste programa, que parecia de algum modo impedi-los de vontade própria. Contudo, prevenidos sem dúvida pelo senhor duque de La Rochefoucauld, esperavam alguma coisa semelhante, visto que ninguém fez reclamação alguma: uns foram ver os seus cavalos, e outros recorreram às suas malas, para se porem em estado de se apresentarem dignamente diante das princesas; outros, enfim, foram-se deixando ficar à mesa, conversando acerca dos negócios do tempo, que pareciam ter uma certa ligação com os acontecimentos daquele dia.

Muitos deles passeavam por baixo da varanda principal, na ala, depois de terminado o seu atavio, devia aparecer o senhor duque de Enghien, confiado pela última vez ao cuidado das mulheres. O jovem príncipe, no quarto, com as suas amas e as embaladeiras, ignorava qual fosse a sua importância. Mas, cheio de orgulho aristocrático, contemplava com olhos impacientes o rico e sever trajo que ia envergar pela primeira vez. Era um vestido de veludo preto, bordado de prata, e este efeite dava-lhe o ar sombrio do luto; a mãe queria a todo o preço ser considerada viúva, e tencionava mesmo inserir em certo discurso estas palavras: Pobre príncipe órfão...

Todavia, não era o príncipe quem olhava com maior avidez para os esplêndidos vestidos e insígnias da sua virilidade, tanto tempo esperada; a dois passos dele, outro menino, que apenas tinha mais alguns meses de idade, de faces rosadas, cabelo louro, todo replandescente de saúde, força e arrogância, devorava com os olhos o fausto de que se via rodeado o companheiro; até já por diferentes vezes, não podendo resistir à curiosidade, se atrevera a aproximar-se da cadeira sobre a qual estavam prontos os belos vestidos, e sorrateiramente havia apalpado o veludo e acariciado os bordados, enquanto o pequeno príncipe olhava para outro lado. Mas aconteceu que uma vez o duque de Enghien lançou os olhos a tempo, e Pierrot retirou a mão muito tarde.

- Toma sentido -exclamou o príncipe com enfado- toma, pois, Pedrito! Vais estragar as minhas calças... Olha que são de veludo bordado, e bem vês que se lhe tocares perderá o brilho. Proíbo-te, pois, que ponhas as mãos nas minhas calças.

Pedro ocultou a criminosa mão atrás das costas, encolhendo e tornando a encolher os ombros, com aquele movimento de mau humor que é familiar aos meninos de todas as condições.

- Não se agaste, Luís - disse a princesa ao filho, desfigurado por uma feia carantonha. - Se Pedro tornar a pôr mão na sua roupa, mandá-lo-emos açoitar.

Pedro substituiu a sua catadura amuada por uma catadura ameaçadora, e disse:

- Sua Alteza é príncipe, mas eu sou jardineiro; e se Sua Alteza me quer impedir de pôr a mão na sua roupa, eu, pela minha parte, não o deixarei brincar com as minhas pintadas. Eu tenho mais força de que Sua Alteza, e ele muito bem o sabe...

Ainda não tinha proferido totalmente estas imprudentes palavras, quando a ama do príncipe, mãe de Pedro, lançou mão ao braço da arrogante criança, e lhe disse:

- Pedrito, esquece-se de que Sua Alteza é seu amo, senhor de tudo o que há, tanto no castelo, como em torno dele, e que, por conseguinte, as suas pintadas são dele.

- Como eu estava enganado!... - disse Pedro - julgava que era meu irmão...

- Chamam-lhes irmãos porque foram criados com o mesmo leite.

- Então, se somos irmãos, é dever nosso repartirmos; e se as minhas pintadas são dele, os seus vestidos são meus.

A ama ia replicar, por meio de uma demonstração acerca da diferença que há entre o irmão uterino e um colaço; mas o jovem príncipe, querendo que Pedro assistisse a todo o seu triunfo, porque a ele sobretudo desejava excitar a admiração e a inveja, não lhe deu tempo para isso.

- Não tenhas receio, Pedrito - disse ele- não estou enfadado contra ti, e logo me verás em cima do meu grande cavalo branco, sentado na minha linda selazinha; hoje vou à caça, e eu é que matarei o gamo.

- Ah! sim?... -respondeu o irreverente Pedro, com o mais insolente gesto de ironia.- Não se conservará muito tempo a cavalo; quis outro dia montar no meu burro, e ele deitou-o por terra...

- É verdade o que dizes; mas hoje -replicou o jovem príncipe com toda a majestade que pôde chamar em seu socorro, e que não pôde encontrar nas suas recordações - represento o meu papá : e não cairei; além de que Vialas me aparará em seus braços.

- Vamos, vamos - disse a princesa, para atalhar a discussão entre Pedro e o duque de Enghien- vistam já o príncipe! Está dando uma hora, e todos os nossos gentis-homens se impacientam com tamanho atraso. Lenet, mande dar o sinal de partida.

 

NO mesmo instante, o som da trompa ecoou nos pátios e penetrou até ao fundo dos quartos. Então, cada qual correu em busca de um cavalo fogoso e descansado, graças aos cuidados que lhes haviam proporcionado, e nele montou. O monteiro, com os seus cães de caça, e os pica-dores com as suas matilhas, foram os primeiros a partir. Depois, os gentis-homens abriram alas, e o duque de Enghien, no seu cavalo branco, amparado pelo escudeiro Vialas, apareceu rodeado de damas de honor, escudeiros, gentis-homens, e seguido pela mãe, primorosamente ataviada, e montada num cavalo negro como azeviche; junto dela, num cavalo que evolucionava com encantadora graça, vinha a viscondessa de Cambes, adorável no seu trajo mulheril, com que, afinal, com suma satisfação sua, se vestira.

Quanto à senhora de Tourville, debalde a buscavam com os olhos; desde a antevéspera havia desaparecido como Aquilles: retirara-se para o fundo da sua barraca.

Esta brilhante cavalgada foi recebida com aclamações unânimes. Todos, erguendo-se nos estribos, tinham os olhos fitos na princesa e no duque de Enghien, desconhecidos da maior parte dos gentis-homens, que nunca tinham ido à corte, e para quem eram estranhas todas estas pompas reais. O menino saudava-os com um lindo sorriso, e a princesa, com uma meiga majestade; era a mulher e o filho daquele a quem os inimigos reconheciam como o primeiro capitão da Europa. Este primeiro capitão da Europa era perseguido e agrilhoado pelos mesmos a quem salvara do inimigo em Lens, e defendera contra os rebeldes em São Germano. Não seria preciso tanto para excitar o entusiasmo; e por isso o entusiasmo chegou ao seu maior auge.

A princesa saboreava a largos tragos todas estas provas da sua popularidade; depois, em consequência de algumas palavras que Lenet lhe disse ao ouvido, deu o sinal de partida, e em breve passaram dos jardins para o parque, cujas portas estavam guardadas por soldados do regimento de Conde. Depois de haverem passado os caçadores, fecharam-se as cancelas; e como se esta precaução ainda não fosse suficiente para que nenhum falso irmão tomasse parte na festa, os soldados ficaram de sentinela por detrás das cancelas, e a cada uma delas estava, de pé, um porteiro, trajado como o da corte, e como ele armado com uma alabarda, tendo recebido ordem de não deixar entrar senão os que pudessem responder às três perguntas convencionais.

Um momento depois de se haverem fechado as cancelas, o som da corneta e os latidos furiosos dos cães deram anúncio de que se corria atrás de um gamo.

Contudo, do outro lado do parque, em frente do muro do recinto construído pelo condestável Anne de Montmorency, e além da estrada, seis cavaleiros, aplicando o ouvido aos sons das cornetas e aos latidos dos cães, haviam parado, afagando os seus cavalos esbaforidos, e pareciam consultar-se mutuamente.

À vista do seu trajo absolutamente novo, dos brilhantes arreios dos seus cavalos, dos lustrosos capotes que dos ombros lhes caíam airosamente sobre as garupas dos fogosos animais em que iam montados, do luxo das armas que algumas aberturas dispostas com arte deixavam perceber, podia bem causar espanto a espécie de solidão em que se achavam aqueles gentis-homens, tão belos e tão nobres na hora em que toda a nobreza daqueles sítios estava reunida em Chantilly.

Estes gentis-homens tão brilhantes eram, contudo, eclipsados pelo luxo do seu chefe, ou daquele que o parecia ser: plumas no chapéu, boldrié dourado, botas finas com esporas de ouro, espada comprida de punhos lavrados e abertos - tal era, com o acompanhamento de um esplêndido capote azul-celeste à espanhola, a equipagem deste cavaleiro.

- Então? - disse ele, passado um momento de reflexão profunda, durante o qual os seis cavaleiros ficaram olhando uns para

os outros com certa perturbação - por onde é que se entra no parque? pela porta ou pela cancela?... Apresentemo-nos, pois, à primeira cancela, ou à primeira porta, e entraremos. Cavaleiros do nosso porte não se deixam na rua, quando se dá entrada a homens trajados como os que temos encontrado desde a manhã.

- Repito, Cauvignac - respondeu um dos cinco cavaleiros, a quem se dirigia o discurso do seu chefe- esses homens mal vestidos, e que, apesar do seu trajo e modos, se acham a esta hora no parque, tinham sobre nós uma vantagem: a de saberem qual é o santo. Nós não o sabemos, e, portanto, não nos deixarão entrar. I -Acredita, Ferguzon? - disse em tom de quem tinha certo respeito à opinião do seu tenente aquele que primeiro falara, e que os nossos leitores reconhecem pelo aventureiro que encontraram logo nas primeiras páginas desta história.

- Se o creio?... disso estou certo! Crê então que essa gente vai à caça pelo amor que tem às caçadas?... A mim não me enganam! eles conspiram, e isto é muito positivo.

- Ferguzon tem razão - disse um terceiro. - Eles conspiram, e nós não entraremos.

- Todavia, na caça ao gamo é fácil tomar parte, quando na estrada que seguimos nos encontrarmos com os caçadores.

- Sobretudo quando estamos cansados de dar caça aos homens, não é assim, Barrabás? - replicou Cauvignac. - Ora, pois, não se dirá que esta nos passou por baixo das ventas. Temos quanto nos é preciso para figurar dignamente nesta festa; estamos tão brilhantes como escudos novos. Se o senhor duque de Enghien precisa de soldados, onde poderia encontrá-los mais belos? Se precisa de conspiradores, onde poderia achá-los mais elegantes? O menos sumptuoso de nós tem a catadura de um capitão.

- Cauvignac -replicou Barrabás - em caso de necessidade, passaria por duque e par.

Ferguzon não dizia palavra.

- Quer a desgraça - continuou Cauvignac, sorrindo - que Ferguzon não seja de parecer que se vá hoje à caça.

- Nada disso! - disse Ferguzon.- Não sou homem de tão pouco gosto; a caça é divertimento próprio de gentis-homens que muito me convém. E por isso, não digo que não me apraz, nem dela dissuado os outros: digo simplesmente que a entrada deste parque onde andam à caça nos é vedada pelas portas e pelas cancelas.

- Oiçam! -exclamou Cauvignac.- Dão sinal de caça descoberta. ..

- Mas - continuou Ferguzon - isto não quer dizer que não caçaremos...

- E como queres tu que cacemos, cabeça de burro! se não podemos entrar?!

- Eu não digo que não podemos entrar - replicou Ferguzon.

- E como queres tu que entremos, se as portas e cancelas, que para os outros são abertas, estão, no teu entender, fechadas para nós?!...

- Porque não faríamos nós neste muro, e só para nosso uso, um rombo por onde pudéssemos passar, nós e os cavalos, e por detrás do qual de certo não encontraríamos quem nos pedisse satisfações?...

- Bravo! - exclamou Cauvignac, atirando o chapéu ao ar. - Dou-te totais parabéns, Ferguzon: és o nosso homem de recursos!

E quando eu tiver derrubado o rei da França do seu trono, para nele colocar o príncipe, pedirei para ti o lugar de Mazarino. Mãos a obra, camaradas, mãos à obra!

Dizendo estas palavras, Cauvignac apeou-se da sua cavalgadura, e, ajudado pelos companheiros, um só dos quais foi bastante para segurar os cavalos de todos, dedicou-se ao derrube das pedras ja abaladas do muro.

Num abrir e fechar de olhos, os cinco improvisados trabalhadores abriram uma brecha de três ou quatro pés de largo. Tornaram então a montar nos seus cavalos, e, guiados por Cauvignac arremeteram para dentro da praça. lhe

- Agora - disse-lhes este, dirigindo-se para o lado de onde vinha o som das cornetas - sejam corteses, e dêem provas de bom gosto, pois convido-os a cear em casa do senhor duque de Enghien.

 

JÁ dissemos que os seis gentis-homens estavam bem montados; além disso, os seus cavalos tinham sobre os dos cavaleiros que haviam chegado pela manhã a vantagem de estarem folgados. Em breve se juntaram e tomaram lugar entre os caçadores, sem a mínima contestação. A maior parte dos convidados vinha de diferentes províncias, e pouco ou nenhum conhecimento tinham entre si; uma vez no parque, os intrusos não encontravam qualquer dificuldade em passar por convidados.

Tudo teria, pois, ido às mil maravilhas, caso se tivessem conservado no seu posto, ou também caso se contentassem em adiantar-se aos outros, juntando-se aos picadores e monteiros. Mas não sucedeu assim. Passado um instante, Cauvignac pareceu convencer-se de que a caçada se realizava em honra da sua pessoa: arrancou a corneta das mãos de um dos moços que cuidavam dos cães, o qual se não atreveu a recusar-lha, brandiu-a à frente dos monteiros, atravessou-se por diante do capitão de caçadas em todas as direcções, rompeu através dos bosques, tocando desesperadamente a corneta, fazendo perder o rasto do gamo quando saiu dos bosques, ou neles se tornava a embrenhar, esmagando os cães, derrubando os moços, saudando garridamente as senhoras quando passava diante delas, praguejando, berrando, animando-se a si próprio quando as perdia de vista, e caindo sobre o gamo no momento em que o animal, depois de haver atravessado o grande lago, estava reduzido às últimas, não podendo já consigo.

- O gamo é nosso! -gritou Cauvignac.- Temo-lo, seguro! Não pode escapar-nos!

- Cauvignac! -dizia Ferguzon, que o seguia de perto - Cauvignac, tanto fará que por fim seremos todos expulsos! Modere-se, pelo santo nome de Deus lho peço!

Cauvignac a nada atendia, e vendo que o animal fazia frente aos cães, apeou-se e desembainhou a espada, gritando com toda a força dos pulmões:

- É nosso! É nosso!

E os companheiros, à excepção do prudente Ferguzon, alentados pelo exemplo de Cauvignac, apressavam-se a cair sobre a presa quando o capitão das caçadas, afastando Cauvignac com a sua faca de mato, lhe disse:

- Que vai fazer senhor? É a princesa quem dirige a caça. A ela, pois, pertence matar o gamo, ou conceder esse favor a quem bem lhe apetecer.

Cauvignac caiu em si ao ouvir esta áspera repreensão; e quando recuava com muito pouca graça, viu-se subitamente rodeado pelo tropel dos caçadores, a quem os cinco minutos da alta que fizeram havia permitido que chegassem junto dele, formando um grande círculo en torno do animal, encurralado junto ao tronco de um carvalho, e cercado por todos os cães reunidos e encarniçados no assalto.

No mesmo momento, avistou-se correndo para aquele lado a princesa, precedendo o duque de Enghien, os gentis-homens, e as damas, que faziam questão em não se apartarem dela. A princesa parecia muito animada, e bem se percebia que este simulacro de guerra era o prelúdio de uma guerra verdadeira.

Chegando ao meio do círculo, a princesa parou, pousou os olhos com soberania em torno de si, e fitou-os em Cauvignac e nos seus companheiros, estes devorados pelo olhar inquieto e desconfiado dos picadores e dos oficiais de caçada.

O capitão chegou junto dela com a sua faca de mato na mão; era uma faca de que ordinariamente se servia o príncipe, com folha do mais fino aço e punho em prata dourada.

- Vossa Alteza conhece este gentil-homem? - perguntou ele em voz baixa, olhando de soslaio para Cauvignac.

- Não - disse ela. - Mas visto que entrou, deve sem dúvida ser conhecido de alguém.

- Saiba Vossa Alteza que ninguém o conhece, e é a primeira vez que o vêem todas as pessoas a quem interroguei...

- Mas ele não podia franquear as cancelas sem saber o santo...

- Por certo que não - replicou o capitão. - Contudo, tomarei a liberdade de dar a Vossa Alteza o conselho de desconfiar dele.

- Cumpre em primeiro lugar saber quem é - disse a princesa.

- Não tardaremos a sabê-lo, senhora - respondeu Lenet com o seu sorriso habitual, na companhia da princesa. - Ordenei a um normando, a um picardo e a um bretão, que fossem ter com ele; será interrogado com toda a sagacidade. Mas por agora não dê Vossa Alteza a ideia de ter reparado nele, pois se visse que o observavam, escapar-se-nos-ia.

- Tem razão, Lenet; continuemos a nossa caçada.

- Cauvignac - disse Ferguzon- creio que se ocupa de nós aquela gente de alta distinção. Não faríamos mal se nos eclipsássemos.

- Julgas que sim?... - disse Cauvignac.- Ah! pela minha fé: tanto pior. Quero ver cair o veado, aconteça o que acontecer.

- É um belo espectáculo, bem sei - insistiu Ferguzon - mas pode muito bem acontecer que paguemos os nossos lugares mais caros do que na hospedaria da Borgonha.

- Senhora - disse o capitão das caçadas, apresentando a face à princesa - a quem quer Vossa Alteza conceder a honra de matar o animal?

- Reservo-a para mim, senhor - respondeu a princesa. - Uma mulher da minha posição deve acostumar-se a manejar o ferro e a ver correr sangue.

- Namur - disse o capitão das caçadas ao arcabuzeiro - prepare-se.

O arcabuzeiro saiu das filas e de arcabuz na mão, foi colocar-se a vinte passos do animal. Esta manobra tinha por objectivo matar o gamo com uma bala, se este, impelido pelo desespero, como às vezes acontece, em vez de esperar pela princesa, se arremessasse contra ela.

A princesa apeou-se, pegou na faca, e, de olhos fixos, faces ardentes e lábios meio levantados, adiantou-se para o animal, que, quase oculto sob os cães, parecia coberto de um tapete mesclado de mil cores. A besta não acreditou, sem dúvida, que a morte se apresentasse sob as feições daquela formosa princesa, a cuja mão talvez tivesse ido comer dez vezes; e por isso, caído como estava sobre os joelhos, tentou fazer um movimento, acompanhado daquela grossa lágrima que acompanha a agonia do gamo e do veado. Mas não teve tempo para tanto; a folha da faca, em que se reflectiu um raio de sol, desapareceu até aos copos na garganta, de onde esparrinhou o sangue, que foi cair no rosto da princesa. O gamo levantou então a cabeça, bramiu dolorosamente, e, lançando um último olhar de repreensão à sua bela senhora, caiu e morreu.

No mesmo instante, soaram todas as cornetas, e ouviram-se retumbar milhares de gritos de Viva a princesa! enquanto o jovem príncipe, agitando-se na sua sela, batia palmas de alegria.

A princesa tirou a faca da garganta do animal, correu com ares de amazona os olhos em torno de si, restituiu a arma ensanguentada ao capitão das caçadas, e montou de novo a cavalo.

Lenet aproximou-se dela, então.

- Quer a princesa que eu lhe diga - disse ele, com o seu sorriso habitual - em que pensava Vossa Alteza quando enterrava a sua faca na garganta daquele pobre animal?...

- Sim, Lenet, diga-me; dar-me-á muito prazer.

- Pensava em Mazarino, e bem desejou que ele estivesse ali, em lugar do gamo.

- Sim! - exclamou a princesa. - Não há dúvida de que assim foi; e tê-lo-ia degolado desapiedadamente, eu juro-lhe. Mas cumpre confessar, Lenet, que é um feiticeiro... Depois, voltando-se para o resto da comitiva:

- Agora que está concluída a caçada, senhores - disse ela - convido-os a que me sigam. É já muito tarde para correr outro gamo, e, além disso, a ceia está à nossa espera.

Cauvignac respondeu a este convite com um gesto sumamente recioso.

- Então que faz, capitão? - perguntou Ferguzon.

- Aceito o convite que se me faz. Não vês tu que a princesa acaba de nos convidar para cear, como eu vos tinha prometido a todos?...

- Cauvignac, acreditar-me-á, se quiser, mas no seu lugar, eu retirava-me pela mesma brecha por onde entrámos.

- Ferguzon, meu amigo, a sua natural perspicácia abandona-o neste momento. Não reparou nas ordens que deu aquele senhor vestido de preto, e que dá ares de raposa quando ri, e de texugo quando não ri?... Ferguzon, a brecha está guardada, e encaminharmo-nos para o lado dela é indicar que queremos sair por onde entrámos.

- Mas então, que será de nós?

- Sossegue, que eu respondo por tudo.

E, confiados nesta segurança, os seis cavaleiros tomaram lugar entre os gentis-homens, e com eles se dirigiram ao castelo.

Cauvignac não sabia se os havia enganado: não os perdia de vista. Lenet ia caminhando, tendo à sua direita o capitão das caçadas, e à esquerda o mordomo da casa de Conde.

- Estão certos - disse ele- de que ninguém conhece estes cavaleiros?

- Ninguém, absolutamente; interrogámos mais de cinquenta gentis-homens, e sempre a mesma resposta: são absolutamente

estranhos a toda a gente.

O normando, o picardo e o bretão voltaram, e reuniram-se a Lenet, sem nada mais poderem dizer. Só que o normando descobrira uma brecha no muro do parque, e, como homem inteligente, ali colocara guardas.

- Em tal caso - disse Lenet- temos de recorrer ao meio mais eficaz: não se diga que um punhado de espiões nos obriga a despedir cem bravos gentis-homens. Tenha cuidado, senhor mordomo, que ninguém possa sair do pátio, nem da arcada em que a cavalgada vai entrar; o senhor capitão, logo que se tenha tornado a fechar a porta da galeria, mantenha um piquete de doze homens com as armas carregadas, preparado para o que der e vier. Agora, podem ir, que não os perco de vista.

Acresce que Lenet não tinha dificuldade de maior em desempenhar o encargo que a si próprio impusera. Cauvignac e os companheiros não manifestavam o mínimo desejo de fugir. Cauvignac andava sempre na frente, afagando os bigodes; Ferguzon seguia-o, confiado na sua promessa, pois conhecia demasiado bem o seu chefe, e estava certo de que não se teria vindo meter numa toca, se a toca não tivesse outra saída; quanto a Barrabás e aos outros três companheiros, iam seguindo o tenente e o capitão sem pensar noutra coisa que não fosse na excelente ceia que os esperava. Eram, em suma, homens muito materiais, que abandonavam com um perfeito desleixo a parte intelectual das relações sociais aos seus dois chefes, em quem tinham plena e inteira confiança.

Tudo se passou conforme previra o conselheiro, e tudo se executou como ele ordenara. A princesa sentou-se sob um dossel que lhe servia de trono na grande sala de recepção; tinha junto de si o filho, trajado como já dissemos.

Todas as pessoas olharam umas para as outras: havia sido prometida uma ceia, e era evidente que se ia pronunciar um discurso.

Com efeito, a princesa levantou-se e pronunciou um discurso que comoveu os ouvintes. Desta vez, Clemência de Mailé Brézé não teve já a mínima prudência, e rompeu abertamente com Mazarino; os seus partidários, electrizados pela recordação da afronta feita a toda a nobreza de França nas pessoas dos príncipes, e talvez ainda mais pela esperança das boas condições que haviam de impor à corte, caso fossem bem sucedidos, interromperam duas ou três vezes o discurso da princesa, jurando alto e bom som servir fielmente a causa da ilustre Casa de Conde, e ajudá-la a sair da situação a que Mazarino a queria reduzir.

- Portanto, senhores -exclamou a princesa, terminando o seu discurso - o que o órfão que aqui vêem pede aos vossos corações generosos, é o concurso da vossa bravura, é o oferecimento de vosso fervoroso zelo. Sois nossos amigos, aqui se apresentam, pelo menos, como tal; que podem fazer a nossa favor?

Então, passado um momento de silêncio -silêncio cheio de solenidade- começou uma cena, que era ao mesmo tempo a mais grave e a mais tocante que pudesse ver-se.

Um dos gentis-homens inclinou-se, saudando respeitosamente a princesa.

- Chamo-me Geraldo de Montalent - disse ele. - Trago comigo quatro gentis-homens, meus amigos. Reunimos cinco boas espadas e vinte mil francos, que oferecemos ao serviço do príncipe. Eis aqui a nossa credencial, assinada pelo duque de La Roche-foucauld.

A princesa saudou-o, por seu turno, pegou na carta de confiança que lhe apresentavam, entregou-a a Lenet, e fez um sinal aos gentis-homens para que passassem à sua direita.

Assim que tomaram o lugar indicado, logo outro gentil-homem se levantou:

- Chamo-me Cláudio Raul de Lessac, conde de Clermont - disse ele. - Venho acompanhado por seis gentis-homens meus amigos. Temos cada um de nós dez mil francos, e pedimos o favor de participarmos com esta quantia no tesouro de Vossa Alteza; estamos armados e equipados, e um simples soldo diário é quanto nos bastará. Eis a nossa credencial, assinada pelo duque de Bouillon.

- Passem para a minha direita, senhores - disse a princesa, pegando na carta do senhor de Bouillon, de que tomou conhecimento, como fizera com a primeira, e que do mesmo modo entregou a Lenet. - Fiquem certos de todo o meu reconhecimento.

Os gentis-homens obedeceram.

- Chamo-me Luís Fernando de Lorges, conde de Duras - disse então um terceiro gentil-homem. - Chego sem amigos e sem dinheiro, rico e forte só com a minha espada, munido da qual abri caminho através do inimigo, pois estava sitiado em Bellegarde. Eis a minha carta de confiança, que recebi do visconde de Turenne.

- Venha, venha, senhor - disse a princesa, tomando numa das mãos a carta, e dando-lhe a outra a beijar. - Venha e deixe-se ficar junto de mim; nomeio-o um dos meus brigadeiros.

Este exemplo foi seguido por todos os gentis-homens; cada qual vinha com a sua credencial, ou do senhor de Bouillon, ou do senhor de Turenne; entregava a carta, e passava para a direita da princesa. Quando o lado direito se encheu, a princesa fê-los passar para a esquerda.

Deste modo, ia-se desguarnecendo o fundo da sala, e, por último, restaram apenas Cauvignac e os seus esbirros, formando um grupo solitário, sobre o qual todos, resmungando com desconfiança, lançavam olhares coléricos ou ameaçadores.

Lenet volveu os olhos para a porta, que estava bem fechada. Bem sabia que atrás dela se encontrava o capitão com dez soldados bem armados. Então, fitando os olhos nos desconhecidos, perguntou:

- E os senhores, quem são? Querem dar-nos a honra de nos revelar os vossos nomes e mostrar-nos as vossas cartas de confiança?

O início da cerimónia, cujo desfecho preocupara Ferguzon, dada a sua capacidade de raciocínio, derramara uma sombra de inquietação no seu rosto, e esta inquietação foi logo comunicada aos companheiros, que, tal como Lenet, não tiravam os olhos da porta; mas o chefe, cujo capote pendia majestosamente dos seus ombros, conservara-se impassível. E perante o convite de Lenet, deu dois passos em frente e, saudando a princesa com uma graça muito afectada, afirmou:

- Senhora, chamo-me Rolando de Cauvignac, e trago comigo para o serviço de Vossa Alteza estes cinco gentis-homens, que pertencem às primeiras famílias da Guiena, mas que desejam conservar-se incógnitos.

- Mas, senhores, decerto não se apresentaram em Chantilly sem serem recomendados por alguém... - disse a princesa, perturbada com a antevisão do medonho tumulto que produziria a prisão dos seis suspeitos. - Onde está a vossa credencial?

Cauvignac inclinou-se como homem que reconhece ser muito acertada a pergunta que se lhe faz, levou a mão à algibeira, e dela tirou um papel dobrado em quatro, que entregou a Lenet, fazendo-lhe uma profunda saudação.

Lenet abriu-o, leu, e a mais grata expressão espalhou-se-lhe nas feições, contraídas até aí por uma apreensão que era muito natural.

Enquanto Lenet lia, Cauvignac corria os olhos pelos circunstantes, com gesto triunfante.

- Senhora - disse Lenet em voz baixa ao ouvido da princesa - veja que fortuna! Uma assinatura em branco do senhor d’Épernon!...

- Senhor - afirmou a princesa com o mais gracioso sorriso - muito obrigada! Três vezes obrigada, por meu esposo, por mim, e por meu filho.

O sobressalto tornara mudos todos os espectadores.

- Senhor - disse Lenet- este papel é demasiado precioso para que tenha a intenção de dá-lo sem alguma condição. Esta noite, depois da ceia, conversaremos. Se assim lhe convier, dir-me-á em que poderemos ser-lhe prestável.

E Lenet meteu na algibeira a assinatura em branco, cuja restituição Cauvignac teve a delicadeza de não pedir.

- Ora, pois - disse Cauvignac aos seus companheiros - não lhes tinha eu dito que os convidava a cear com o duque de Enghien?...

- E agora, senhor, sente-se à mesa - disse a princesa.

Os dois batentes da porta lateral abriram-se ao serem pronunciadas estas palavras, e viu-se uma magnífica ceia servida na principal galeria do castelo.

A ceia foi uma das mais empolgantes. O brinde ao príncipe, proposto mais de dez vezes, foi sempre correspondido por todos os convidados, de joelhos, espada na mão, e acompanhado de imprecações estrondosas contra Mazarino.

Ninguém se coibiu de fazer honras às delicadas iguarias de Chantilly. O próprio Ferguzon, o prudente Ferguzon, deixou-se seduzir pelo atractivo dos vinhos de Borgonha, com os quais travara conhecimento pela primeira vez. Ferguzon era gascão, e por isso não tivera até então oportunidade de apreciar outros vinhos que não fossem os de sua terra, que achava excelentes, mas que naquela época, se dermos crédito ao duque de São Simão, ainda não tinham grande reputação.

Não acontecia, porém, o mesmo com Cauvignac. Este, sem embargo do justo apreço que fazia dos vinhos de Moulin à Vent, de Nuits e Chambertin, bebeu com moderação. Não se havia esquecido do sorriso sorrateiro de Lenet, e entendia que precisava de toda a sua razão para celebrar com o astuto conselheiro algum contrato do qual não tivesse que arrepender-se. Por esse motivo, excitou a admiração de Ferguzon, de Barrabás, e dos seus três companheiros, que, ignorando a causa de tal comportamento, foram suficientemente simples para julgar que o seu chefe se tornara sóbrio.

No fim do banquete, como os brindes se fossem amiudando, a princesa retirou-se, levando consigo o pequeno duque de Enghien, e deixando livre os seus convidados para prolongarem o banquete tanto quanto lhes aprouvesse pela noite adiante. Além disso, tudo se havia passado como ela o desejava, e fez uma narração circunstanciada da cena do salão e do banquete da galeria, omitindo unicamente uma circunstância, que era a palavra que Lenet lhe dissera ao ouvido, no momento em que ela se levantava da mesa.

- Não se esqueça Vossa Alteza de que partimos às dez horas. Soariam em breve as nove, e a princesa deu princípio aos seus

preparativos.

Neste ínterim, Lenet e Cauvignac olharam um para o outro. Lenet levantou-se, e Cauvignac igualmente; Lenet saiu por uma portinhola situada no ângulo da galeria, Cauvignac compreendeu a manobra, e seguiu-o.

Lenet conduziu Cauvignac ao seu gabinete; o aventureiro seguia atrás dele com ar de indiferença e confiança. Contudo, a sua mão, enquanto iam caminhando, afagava indiferentemente o punho de um comprido punhal que tinha à cinta, e os seus olhos examinavam com ardor e rapidez as portas meio abertas e as tapeçarias flutuantes.

Não receava precisamente que o atraiçoassem, mas tinha por princípio estar sempre pronto para repelir a traição.

Assim que entrou no gabinete, meio alumiado por uma lanterna, mas de cuja solidão ficou certo com uma só vista de olhos, Lenet designou com a mão uma cadeira a Cauvignac, que se sentou de um lado da mesa, onde ardia a lanterna, e Lenet do outro.

- Senhor - disse Lenet, para desde logo captar a confiança do gentil-homem- eis aqui em primeiro lugar, e antes de tudo,

a assinatura em branco, que eu lhe restituo. Creio que nenhuma dúvida pode nisso haver, e que lhe pertence... - Pertence, senhor, a quem a possui - respondeu Cauvignac  pois, como pode ver, não há nela outro nome senão o do duque d’Épernon.

- Quando pergunto se lhe pertence, o que pretendo saber é se a possui com o consentimento do duque d’Épernon.

- Recebi-a da sua própria mão, senhor.

- Portanto, não é subtraída, nem extorquida por violência... Não digo por si, mas por alguma outra pessoa de quem a tenha recebido; talvez que tenha chegado à sua mão por via de uma terceira pessoa...

- Foi-me dada, como lhe digo, pelo duque, muito voluntariamente, e a título de troca com um papel que lhe entreguei.

- Contraiu junto do duque d’Épernon a obrigação de fazer, com esta assinatura em branco, alguma coisa de preferência a outra?

- Não; nenhuma obrigação contraí.

- A pessoa que a possuir poderá, portanto, fazer uso dela com toda a segurança?

- De facto, assim pode fazer.

- Em tal caso, por que razão não faz o senhor uso dela?

- Porque, guardando eu esta assinatura em branco, só poderei beneficiar de uma coisa, ao passo que, se lha cedo, posso ganhar duas.

- E que duas coisas são essas?

- Dinheiro, em primeiro lugar.

- É coisa que não temos.

- Eu serei razoável.

- E a segunda?

- Um posto no exército dos príncipes.

- Os príncipes não têm exército.

- Estão para tê-lo.

- Não prefere uma patente para levar alguma companhia?...

- Ia mesmo propor-lhe esse ajuste.

- O dinheiro é só o que viria a faltar?...

- Sim, só o dinheiro.

- Que soma desejaria?

- Dez mil libras. Disse-lhe que seria razoável.

- Dez mil libras?

- Sim; são-me indispensáveis alguns avanços para armar e prover do necessário os meus homens.

- Com efeito, não é demasiado.

- Consente então nisso?

- É negócio concluído.

Lenet tirou da algibeira uma patente já assinada, preencheu-a com os nomes que lhe indicou o mancebo, apôs-lhe o selo da princesa, e entregou-lha; depois, abrindo uma espécie de cofre de segredo, onde estava encerrado o tesouro do exército rebelde, retirou dez mil libras em ouro, que alinhou em montinhos de vinte luíses cada um.

Cauvignac contou-os escrupulosamente, uns após os outros, e, quando chegou ao último, fez sinal a Lenet de que a assinatura em branco era sua.

Lenet pegou nela e fechou-a no cofre de segredo, entendendo sem dúvida que um papel tão precioso devia ser arrecadado com toda a cautela.

No momento em que Lenet tornava a meter na algibeira a chave do cofre, veio um criado a toda a pressa dizer-lhe que o chamavam para assunto de extrema importância.

Em consequência disto, saíram ambos do gabinete, Lenet para seguir o criado, e Cauvignac a fim de voltar à sala do banquete.

Entretanto, a princesa fazia todos os preparativos de partida, que consistiam em trocar o vestido de cerimónia por um de amazona, próprio portanto para andar de sege como para montar a cavalo, examinar os seus papéis, a fim de queimar os inúteis e levar consigo os de importância, reunir, enfim, os seus diamantes, que mandara desengastar, para que ocupassem menos espaço, e mais facilmente pudesse, em caso de urgência, utilizar-se deles.

Quanto ao duque de Enghien, devia partir no trajo com que fora à caça, visto que ainda não houvera tempo de fazer outra vestimenta. O escudeiro Vialas devia conservar-se constantemente à portinhola da carruagem, montado no seu cavalo branco, que era bom corredor, a fim de receber o duque na sua selazinha e levá-lo a galope, se assim fosse preciso. Ao princípio, tinham receado que adormecesse, e haviam mandado chamar Pedrito para o divertir, brincando com ele; mas esta precaução tornou-se inútil. O orgulho de se ver com trajos de homem conservava-o acordado.

As carruagens, aprontadas às escondidas, porque era preciso conduzir para Paris a viscondessa de Cambes, haviam sido levadas a uma sombria rua de castanheiros, onde era impossível que as vissem, e ali se conservavam, de portinholas abertas e cocheiros nos assentos, a uns vinte passos somente da cancela principal. Já só se esperava pelo sinal que deviam dar as cornetas. A princesa, com os olhos cravados no relógio de pêndulo, cujo ponteiro designava dez horas menos cinco minutos, levantava-se já e adiantava-se para o duque de Enghien, para o conduzir pela mão, quando de súbito se abriu a porta, e Lenet mais se precipitou do que entrou no quarto.

A princesa, vendo o seu rosto pálido e o seu olhar turbado, empalideceu e perturbou-se por seu turno.

- Oh! meu Deus! - disse, encaminhando-se para ele- que é que tem? que temos de novo?

- O que há - disse Lenet, com a voz sufocada pela comoção - é ter chegado um gentil-homem neste momento, que pretende falar-lhe, da parte do rei.

- Oh! meu Deus -exclamou a princesa- estamos perdidos! Meu caro Lenet, que faremos?

- Uma única coisa.

- Qual?

- Mandar despir o duque de Enghien sem a mínima demora, e ataviar Pedrito com as suas roupas.

- Mas eu não quero que me tirem os meus vestidos para os darem a Pedro! - exclamou o jovem príncipe, prestes a debulhar-se em lágrimas com esta única ideia, enquanto Pedrito, não cabendo em si de contentamento, receava não ter ouvido bem.

- Assim é preciso, senhor - disse Lenet, com aquele acento poderoso de que nas ocasiões graves fazemos uso, e que até é capaz de impressionar num menino- se não quer que o senhor e sua mãe sejam encarcerados na mesma prisão aonde jaz seu pai.

O duque de Enghien calou-se, enquanto Pedrito, incapaz de dominar os seus sentimentos, se entregava a uma visível explosão de alegria e orgulho. Depois, foram ambos levados para uma sala térrea, próxima à capela, onde se operaria a metamorfose.

- Quer a nossa fortuna - disse Lenet - que a princesa viúva se encontre aqui, pois se assim não fosse seríamos derrotados por Mazarino.

- Por que razão?

- Porque o mensageiro teve de principiar a sua visita pela princesa viúva, e neste momento está na sua antecâmara.

- Mas este mensageiro do rei não passa sem dúvida de um olheiro, um espião que a corte nos envia...

- Vossa Alteza não se engana no que diz.

- Hão-de ter-lhe dado ordem de nos guardar à vista...

- Sim. Mas que lhe importa isso, se não é a si a quem ele guarda?...

- Não o compreendo, Lenet. Lenet sorriu.

- Eu, senhora, compreendo-me a mim mesmo, e por tudo respondo. Mandei vestir Pedrito como príncipe, e o príncipe como jardineiro, e fica a meu cuidado dizer a Pedrito o que deve fazer.

- Oh! meu Deus! Deixar partir o meu filho só!...

- Seu filho, senhora, partirá com a mãe.

- Isso é impossível.

- Porquê? Se encontrámos um falso duque de Enghien, porque se não achará uma falsa princesa de Conde?...

- Oh! agora compreendo-vos muito bem, meu querido Lenet! Mas quem fará as minhas vezes, quem me representará? - ajuntou a princesa, com uma certa inquietação.

- Não lhe dê isso cuidado, senhora - respondeu o imperturbável conselheiro. - A princesa de Conde, de quem quero servir-me, e que tenho destinada para ser guardada à vista pelo espião de Mazarino, acaba de se despir à pressa, e neste momento mete-se na cama de Vossa Alteza.

Eis agora como se passou a cena de que Lenet acabava de dar conta à princesa.

Enquanto os gentis-homens iam continuando, na sala do banquete, a beber, fazendo brindes aos príncipes e amaldiçoando Mazarino; enquanto Lenet ajustava no seu gabinete com Cauvignac a troca da assinatura em branco; enquanto, finalmente, a princesa fazia os seus últimos preparativos de partida, um cavaleiro apresentara-se à cancela principal do castelo, seguido do seu lacaio, e tocara a sineta.

O porteiro abriu a porta, mas, por detrás dele, o recém-chegado vira o homem da alabarda de que já temos falado.

- De onde vem? - perguntou este.

- De Nantes - respondeu o cavaleiro. Até aqui tudo ia bem.

- Para onde vai? - continuou o alabardeiro.

- Para casa da princesa viúva de Conde, em primeiro lugar; para casa da princesa, e, por fim, para casa do duque de Enghien.

- Aqui não se entra! - disse o alabardeiro, atravessando a

alabarda.

- Venho por ordem do rei! - respondeu o cavaleiro, tirando

um papel da sua algibeira.

Ao soarem estas temíveis palavras, a alabarda baixara-se, a sentinela chamara, um oficial da casa acudira, e o mensageiro de Sua Majestade, tendo entregue a carta de recomendação, fora no mesmo instante introduzido nos quartos.

Por felicidade, Chantilly era muito grande, e os quartos da duquesa viúva estavam longe da galeria onde tinham lugar as últimas cenas do estrondoso banquete cuja primeira parte esboçámos.

Se o mensageiro tivesse dito que queria ver em primeiro lugar a princesa e seu filho, tudo se perderia irremediavelmente. A etiqueta, porém, determinava que desde logo cumprimentasse a princesa viúva. O camareiro fê-lo entrar num grande gabinete contíguo ao quarto de dormir de Sua Alteza.

- Rogo-lhe que espere um momento, senhor - disse-lhe ele. - Sua Alteza sentiu-se de súbito incomodada anteontem, e acaba de ser sangrada, ainda não há duas horas, pela terceira vez. Vou anunciar-lhe a sua chegada, e, dentro de um minuto, terei a honra de introduzi-lo.

O gentil-homem fez um aceno com a cabeça, como quem assentia ao que se lhe propunha, e ficou só, sem reparar que pelos buracos das fechaduras três cabeças curiosas o estavam espreitando, e faziam diligências para reconhecê-lo.

O primeiro era Pedro Lenet; depois Vialas, o escudeiro do príncipe; e o terceiro La Rossière, capitão das caçadas. Se algum deles tivesse reconhecido o gentil-homem, entraria logo, e sob o pretexto de lhe fazer companhia, trataria de diverti-lo, e ganhar tempo. Nenhum deles, porém, pudera reconhecer aquele que tanto interesse tinham em chamar ao seu partido. Era um formoso mancebo com a farda de infantaria; olhava com uma indiferença - que facilmente se tomaria como desagrado pela comissão de que vinha encarregado- para os retratos de família, e para os móveis do gabinete, cravando os olhos com afinco no retrato da princesa viúva, a cuja presença ia ser introduzido, e que fora tirado no mais belo momento da sua mocidade.

Fiel, contudo, à promessa feita, passados apenas alguns minutos o camareiro veio ter com o cavaleiro para conduzi-lo à presença da princesa viúva. Carlota de Montmorency havia-se sentado na cama; o seu médico Bourdelot acabava de se apartar da cabeceira, e, encontrando o oficial no limiar da porta, fez-lhe uma cortesia muito cerimoniosa, a que o oficial correspondeu do mesmo modo.

Quando a princesa ouviu os passos do visitante, e as palavras que dizia ao médico, fez um sinal rápido para os lados da parede, e então a tapeçaria de pesadas franjas que envolvia o leito, à excepção do lado que a princesa viúva queria deixar aberto para receber a visita, agitou-se imperceptivelmente durante dois ou três segundos.

Entre a parede e a cama da princesa viúva, estava a jovem princesa de Conde, que entrara por uma porta secreta que havia no entabuamento do quarto de Lenet, o qual estava impaciente por saber, logo no princípio da conversa, o que podia dar lugar a que viesse um mensageiro do rei procurar as princesas de Chantilly. O oficial deu três passos no quarto e inclinou-se, com um respeito que bem se via não ser somente ditado pela etiqueta.

A princesa viúva fitara nele os seus grandes olhos pretos, com o ar soberbo de uma rainha que está a ponto de se encolerizar; o seu silêncio ameaçava tempestades. A alva mão, que mais alva se tornara com a tripla sangria, fez sinal ao mensageiro para que entregasse o despacho de que era portador.

O capitão estendeu a mão para a princesa, e nela depositou respeitosamente a carta de Ana de Áustria. Depois, esperou que a princesa viúva tivesse lido as quatro linhas que nela se continham.

- Muito bem! - disse entre dentes a princesa, dobrando o papel com enorme sangue-frio, para não parecer afectada. - Compreendo qual é a intenção da rainha, apesar de envolvida em palavras polidas: o senhor é o meu carcereiro.

- Senhora!... - disse o oficial, perturbado.

- Presa fácil de guardar, senhor - replicou a princesa - visto que não estou em estado de fugir para muito longe; e tenho, como viu quando aqui entrou, um guarda severo, que é o meu médico, o senhor Bourdelot.

Dizendo estas palavras, a princesa viúva cravou mais fixamente os olhos no mensageiro, cuja fisionomia lhe pareceu agradável, e, portanto, entendeu que lhe cumpria mitigar um pouco o amargo acolhimento feito ao portador de uma tal ordem.

- Eu bem sabia -continuou ela- que Mazarino era capaz de muitas violências indignas; mas não julgava que fosse tão medroso para recear uma mulher velha e doente, uma pobre viúva, e um menino, pois presumo que a ordem de que é portador também diz respeito a minha filha e ao duque meu neto...

- Senhora - disse o mancebo - ficaria desesperado se vossa alteza me julgasse pela comissão que me vejo obrigado a desempenhar. Cheguei a Nantes sendo portador de uma mensagem para a rainha. O pós-escrito da mensagem recomendava o mensageiro a sua majestade; a rainha teve então a bondade de me dizer que ficasse junto dela, visto que, segundo toda a probabilidade, teria necessidade dos meus serviços. Passados dois dias, a rainha mandou-me aqui; mas, aceitando, como era dever meu, a comissão, qualquer que ela fosse, de que sua majestade se dignava encarregar-me, atrever-me-ei a dizer que não a solicitei, e que até a teria recusado, se os reis fossem pessoas capazes de sofrer uma recusa.

Proferindo estas palavras, o oficial inclinou-se segunda vez, tão respeitosamente como o fizera da primeira.

- Retiro bons indícios dessa explicação, e lisonjeio-me agora por poder ficar doente em repouso. Porém, nada, nada de falsa vergonha, senhor! Diga-me sem mais demora a verdade. Serei vigiada no meu quarto, como o fazem ao meu pobre filho em Vincenas? Terei o direito de escrever? E serão abertas ou não as minhas cartas? Se, contra toda a probabilidade, esta doença permitir que me levante, limitar-se-me-ão os meus passeios?...

- Senhora - respondeu o oficial - são estas as instruções que a própria rainha em pessoa se dignou dar-me: - Garanta a minha prima de Conde - disse-me sua majestade - que eu farei em favor dos príncipes tudo quanto a segurança do Estado me permitir que faça. Rogo-lhe, por esta carta, que receba um dos meus oficiais, que possa servir de intermediário entre ela e mim, para as mensagens que tenha de enviar-me. Este oficial -ajuntou a rainha- será o senhor. Eis, senhor - continuou o mancebo, sempre com as mesmas demonstrações respeitosas- quais foram as próprias palavras de sua majestade.

A princesa ouvira esta narração com o solícito cuidado que se emprega para surpreender uma nota diplomática nos sentidos que muitas vezes resultam de uma palavra colocada nesta ou naquela posição, ou de uma vírgula posta neste ou naquele lugar. Depois, passado um momento de reflexão, vendo sem dúvida na mensagem tudo quanto nela desde logo receara encontrar - isto é: uma espionagem à queima-roupa - a princesa mordeu os lábios, e disse:

- Alojar-se-á em Chantilly, senhor, conforme os desejos da rainha. Além disso, dirá qual é o quarto que mais lhe agrada, e mais cómodo lhe pareça para desempenhar o seu encargo - e esse quarto será o seu.

- Senhora - respondeu o gentil-homem, franzindo um tanto as sobrancelhas- tive a honra de expor a vossa alteza alguns pormenores, o que não foi mencionado nas instruções que me deram. Entre a cólera de vossa alteza e a vontade da rainha, estou perigosamente colocado, eu, que sou um pobre oficial e sobretudo um mau cortesão; parece-me, contudo, que vossa alteza poderia dar provas de generosidade, abstendo-se de mortificar um homem que não é mais do que um instrumento passivo. Para mim, senhora, é muito penoso ter de fazer o que faço. Todavia, uma vez que a rainha assim o ordenou, é meu dever obedecer religiosamente às suas ordens. Eu não teria pedido um tal emprego, e dar-me-ia por muito feliz se o tivessem dado a outrem; entendo que já disse o bastante...

E o oficial ergueu a cabeça com um vermelhão nas faces que fez subir ao rosto altivo da princesa uma igual cor.

- Senhor - replicou ela - seja qual for a graduação em que estejamos colocados, como bem o disse, devemos obediência a sua majestade. Eu seguirei o exemplo que me dá, e obedecerei como o senhor. No entanto, deve compreender quanto é cruel não poder uma pessoa receber em sua casa um digno gentil-homem como o senhor, e não ter a faculdade de fazer à sua vontade as honras da casa. A partir deste momento, é aqui o senhor. Dê as suas ordens.

O oficial saudou profundamente a princesa e replicou: - Senhora, não permita Deus que me esqueça da distância que me separa de vossa alteza, e do respeito que devo à sua casa. Vossa alteza continuará a dar as suas ordens como dantes, e eu serei o primeiro dos seus servidores.

E, proferindo estas palavras, o gentil-homem retirou-se, sem acanhamento, sem servilismo, sem altivez, deixando a princesa viúva agitada de uma cólera mais intensa, precisamente por não poder queixar-se de um mensageiro tão discreto e tão respeitoso. Este foi o motivo por que, durante aquela tarde, só de Mazarino se falou na conversa que se travou entre as pessoas que se encontravam entre cama e parede, conversa que teria fulminado o ministro, se as maldições tivessem a faculdade de matar como os projécteis.

O gentil-homem encontrou, na antecâmara, o lacaio que o havia introduzido.

- Agora, senhor - disse este, aproximando-se do mensageiro - a princesa de Conde, a quem pediu audiência da parte da rainha, consente em recebê-lo; tenha a bondade de seguir-me.

O oficial compreendeu este subterfúgio, que punha a salvo o orgulho das princesas, e mostrou-se tão agradecido ao favor que lhe fazia, como se este favor não fosse imposto por ordem superior. Atravessando os quartos, guiado pelo criado, chegou à porta da câmara da princesa.

Ali chegados, o criado voltou-se.

- A princesa - disse ela - meteu-se na cama, ao voltar da caça, e como está fatigada, recebê-lo-á deitada como está. Quem direi a sua alteza que a procura?

- Diga-lhe que é o barão de Canolles, da parte de sua majestade a rainha-regente - respondeu o mancebo.

Ao proferir este nome, que a suposta princesa ouviu da cama, fez esta um movimento de sobressalto, que, se fosse visto, teria excessivamente comprometido a sua identidade. Baixando precipitadamente com a mão direita a touca sobre os olhos, enquanto com a esquerda aproximava do queixo a cortina do seu leito, ordenou, com voz alterada:

- Mande entrar. O oficial entrou.

 

SENHORA DE CONDE

CANOLLES foi introduzido num vasto quarto guarnecido por uma tapeçaria sombria, e alumiado apenas por uma lamparina colocada em cima de um bufete entre as duas janelas; com o socorro da pouca luz que derramava, contudo, pôde distinguir por cima da lamparina um grande retrato representando uma mulher pintada, em pé, e dando a mão a um menino.

Nas cornijas dos quatro ângulos, cintilavam as três flores-de-lis de ouro, a que bastava tirar a banda para se fazer delas as três flores-de-lis de França. Enfim, no fundo de uma grande alcova, onde apenas penetrava a fraca e trémula luz, distinguia-se, debaixo das pesadas cortinas de um leito, a mulher em quem o nome do barão de Canolles produzira tão singular efeito.

O gentil-homem tornou a começar as formalidades do uso - isto é: deu os três passos de rigor, aproximando-se, saudou, e deu ainda outros três passos. Depois do que duas camareiras, que sem dúvida tinham ajudado a princesa a meter-se na cama, se retiraram, o camareiro tornou a fechar a porta, e Canolles ficou só com a princesa.

Não era a Canolles que pertencia encetar o diálogo; esperou, portanto, que lhe falassem. Como, porém, a princesa parecesse por seu turno querer guardar um obstinado silêncio, o jovem oficial entendeu que seria melhor pôr de parte as formalidades e não se conservar mais tempo numa posição tão incómoda; não deixava, contudo, de reconhecer que a tempestade que se continha neste desdenhoso silêncio rebentaria às primeiras palavras que o rompessem, e que tinha de expor-se a uma segunda cólera da parte daquela princesa, ainda mais temível do que a primeira, pois era moça e mais interessante.

Mas o próprio excesso da afronta que se lhe fazia deu alentos ao jovem gentil-homem, e, inclinando-se pela terceira vez, segundo a circunstância - isto é, com uma saudação compassada e pouco profunda, presságio de mau humor que queimava o seu cérebro de gascão, adiantou:

- Senhora, eu tive a honra de pedir, da parte de sua majestade a rainha-regente, uma audiência a vossa alteza, favor que se dignou conceder-me. Agora quererá vossa alteza levar ao cúmulo as suas bondades, dando-me a conhecer, por uma palavra, por um aceno, que se dignou fazer reparo em mim e que está pronta a ouvir-me?

Um movimento nas cortinas, e debaixo das cobertas, advertiu Canolles de que iam responder-lhe.

Com efeito, escutou-se uma voz que se deixou ouvir quase sufocada, tamanha era a sua comoção.

- Fale, senhor - disse esta voz - eu presto-lhe atenção. Canolles tomou o tom oratório e principiou:

- Sua majestade a rainha - disse ele - envia-me para junto de si, senhora, a fim de assegurar a vossa alteza o desejo que tem de continuar convosco as suas boas relações de amizade.

Um movimento visível teve lugar entre a parede e o leito, e a princesa, interrompendo o orador, afirmou, com voz comovida e palavras cortadas:

- Senhor, não me fale já da amizade que reina entre sua majestade a rainha e a casa de Conde; existem provas em contrário nas masmorras da torre de Vincenas.

"Pelo que vejo - disse Canolles consigo - parece que se combinaram, e que me repetirão todos a mesma coisa."

Neste lapso de tempo, um novo movimento, em que o mensageiro não reparou graças ao embaraço em que o punha a sua situação, registava-se entre o leito e a parede. A princesa continuou:

- Explique-se, senhor; que quer?

- Eu, quanto a mim, nada quero, senhora - disse Canolles endireitando-se. - Sua majestade a rainha é quem me ordena que entre neste castelo, que faça, por indigno que eu seja desta honra, companhia a vossa alteza, e que contribua quanto me seja possívelpara o estabelecimento da boa harmonia entre os príncipes de sangue real, desunidos sem motivo num tempo tão doloroso.

- Sem motivo?! -exclamou a princesa.- Entende que o [nosso rompimento seja sem motivo?...

- Perdoe-me, senhora - replicou Canolles. - Eu nada pretendo; não sou juiz, nem sou mais do que intérprete.

- E enquanto essa boa harmonia se não se restabeleça, a rainha manda-me espiar, sob o pretexto...

- Quer dizer - disse Canolles, exasperado - sou um espião! Eis em mim a palavra que proferiu! Agradeço a vossa alteza a sua

franqueza.

E com o desespero que principiava a apoderar-se dele, Canolles fez um daqueles belos movimentos que os pintores buscam com tanta avidez para os seus retratos inanimados, e os actores para os seus retratos vivos.

- Portanto, está decidido: sou um espião - continuou Canolles. - Ora, pois, senhora, trate-me como são tratados tais miseráveis: esqueça-se de que sou o enviado de uma rainha, de que esta rainha responde por todas as minhas acções, de que não sou mais que um átomo obediente ao seu sopro. Mande expulsar-me pelos seus lacaios, mande matar-me pelos seus gentis-homens, ponha diante de mim homens a quem eu possa responder com o bastão ou com a espada! Mas digne-se não insultar tão cruelmente um oficial que desempenha ao mesmo tempo o seu dever de soldado e de vassalo, senhora, que está colocada em tão alta graduação pelo nascimento, pelo merecimento e pela desgraça!

Estas palavras, escapadas do coração, dolorosas como um gemido, estridentes como uma repreensão, deviam produzir -e produziram - o seu efeito. Ouvindo-as, a princesa levantou-se um pouco, apoiada no cotovelo, com os olhos cintilantes, mão trémula, e fazendo um gesto angustioso ao mensageiro:

- Não permita Deus - disse ela- que seja intenção minha insultar um tão bravo gentil-homem como o senhor. Não, senhor de Canolles, não. Não desconfio da sua lealdade; dê por não ditas as palavras que proferi. São ofensivas, reconheço-o, e eu não queria ofendê-lo. Não, não, o senhor é um nobre cavaleiro, senhor barão, eu faço-lhe justiça plena e completa.

E como, para pronunciar estas palavras, arrastada sem dúvida por um instinto generoso que lhas arrancava do coração, a princesa se adiantara, involuntariamente, para além da sombra formada pelas densas cortinas; como fora possível ver-se a sua fronte branca sob a sua touca, os seus louros cabelos divididos em tranças, os lábios muito vermelhos, os olhos húmidos e meigos - Canolles estremeceu, porque acabava de lhe passar por diante dos olhos uma espécie de visão, e porque julgou respirar de novo um perfume cuja simples lembrança o embriagava. Pareceu-lhe que uma daquelas portas de ouro pelas quais passam os belos sonhos se abria, para dar passagem a um enxame de risonhos pensamentos e a todas as alegrias do amor, que dele fugira, e que de novo o vinha procurar. Os seus olhos fixaram-se mais segura e claramente no leito da princesa, e, no curto espaço de um segundo, durante o rápido clarão de um relâmpago que alumiava todo o passado, reconheceu na princesa que via deitada diante de si o visconde de Cambes.

Havia alguns momentos que a agitação de Canolles era tal, que a falsa princesa a atribuiu àquela penosa repreensão que tanto a fizera sofrer. E como o movimento que tinha feito não durara.

como deixámos dito, mais do que um instante; como tivera o cuidado de buscar, no mesmo momento, a sombra das cortinas, encobrindo de novo os olhos, ocultando sem a mínima demora a mão, tão branca e delicada que a teria podido dar a conhecer - tentou, não sem abalo, mas pelo menos sem inquietação, continuar a conversa no ponto em que a deixara.

- Dizia, pois, senhor?... - disse a jovem senhora. Canolles, porém, estava deslumbrado, fascinado; as visões passavam e repassavam por diante dos seus olhos, as ideias redemoinhavam-lhe na cabeça; perdia a memória, não sabia o que dizia;estava a ponto de faltar ao respeito e de interrogar. Um único instinto, aquele talvez que Deus pôs no coração das pessoas que amam, e a que as mulheres dão o nome de timidez - e afinal não é mais do que avareza - aconselhou Canolles a que ainda dissimulasse,que esperasse, que não perdesse o seu sonho, que não comprometesse, por uma palavra imprudente, e proferida com demasiada precipitação, a ventura de toda a sua vida.

Não ajuntou um único gesto, nem uma palavra mais, ao que

[desejara dizer ou fazer. O que seria dele, oh, grande Deus! se esta

magnânima princesa o reconhecesse repentinamente; se para ele

olhasse com horror, no seu castelo de Chantilly, como desconfiara

[na estalagem de Biscarros; se renovasse a acusação já esquecida,

e acreditasse que, graças a um título oficial, graças a um título real,

[ quereria continuar solicitações desculpáveis talvez para o visconde

ou viscondessa de Cambes, mas insolentes e quase criminosos,

quando se tratava de uma princesa de sangue?

(• "Mas - disse consigo subitamente- será possível que uma

princesa deste nome e desta graduação tenha andado a viajar só,

sem mais companhia do que a de um criado!?..."

E como sempre acontece em semelhantes ocasiões, em que o espírito vacilante e turbado busca alguma coisa que lhe sirva de apoio, Canolles, atónito, olhou em volta, e os seus olhos fixaram-se no retrato daquela mulher segurando o filho pela mão.

Quando tal viu, uma iluminação súbita lhe passou pelo espírito, e, mau grado seu, deu um passo para se aproximar do retrato.

A falsa princesa não pôde, por sua vez, deixar de dar um ligeiro grito, e quando, ao ouvir este grito, Canolles se voltou, viu que o seu rosto já velado, estava agora absolutamente mascarado.

"Oh! oh! -perguntou Canolles a si mesmo- que quer isto dizer!? Ou foi a princesa que encontrei na estrada de Bordéus, ou sou alvo de algum logro, e não é ela quem está na cama... Em todo o caso, cumpre-me deslindar este negócio."

- Senhora - disse ele de súbito - agora sei o que devo pensar do seu silêncio, e reconheci...

- Que é que reconheceu? - exclamou com vivacidade a senhora do leito.

- Reconheci - replicou Canolles - que tive a desgraça de lhe inspirar a mesma opinião que já tinha inspirado à senhora princesa viúva.

- Ah! - não pôde de deixar de dizer a voz da suposta princesa, dando um suspiro de alívio.

A frase de Canolles talvez não fosse muito lógica, e até não viesse muito a propósito; mas o golpe estava dado. Canolles observara o movimento de angústia que o interrompera, e o movimento de júbilo com que foram recebidas as suas últimas palavras.

- O que não posso - continuou o oficial - deixar de dizer a vossa alteza, apesar do desgosto que isto lhe possa dar, é que tenho de ficar no castelo, e de acompanhar vossa alteza a toda a parte para onde queira ir.

- Deste modo -exclamou a princesa- nem no meu quarto poderei estar só?... Oh! senhor, isso é mais do que indignidade!...

- Eu disse a vossa alteza quais eram as minhas instruções; fique, porém, vossa alteza sossegada - ajuntou Canolles cravando um olhar penetrante na senhora da cama, e carregando em cada palavra - pois deve saber melhor do que ninguém que eu sei obedecer à súplica de uma mulher...

- Eu? -exclamou a princesa, com um acento em que havia mais turbação do que espanto. - Na realidade, senhor, que não sei o que quer dizer; ignoro a que circunstâncias faz alusão.

- Senhora -continuou o oficial, inclinando-se- eu julgava que o criado da câmara que me introduzira tinha dito o meu nome a vossa alteza... Eu sou o barão de Canolles.

- Ora pois! - disse a princesa, com voz firme - que me importa isso, senhor?

- Eu acreditava que, havendo já tido a ventura de ser agradável a vossa alteza...

- A mim?! E como assim!? Rogo-lhe que mo diga - replicou a voz, com uma alteração que recordava a Canolles certa entoação muito irritada, mas muito receosa ao mesmo tempo, que se lhe não apagara da lembrança.

Canolles pensou que se havia adiantado bastante; além disso, quase que estava inteirado do que pretendia averiguar.

- Não executando estritamente as instruções que me deram - replicou ele, com ares do mais profundo respeito.

A princesa pareceu sossegada.

- Senhor - disse ela- eu não quero que incorra em falta; execute as suas instruções à risca, sejam elas quais forem.

- Senhora - replicou Canolles - por felicidade minha, ignoro como se persegue uma mulher; e, com maior razão ainda, como se ofende uma princesa. Tenho, pois, a honra de repetir a vossa alteza o que disse à senhora princesa viúva: que sou um seu muito humilde servidor... Digne-se dar-me a sua palavra de que não sairá do castelo sem que eu a acompanhe, e ficará livre da minha presença, que, muito bem compreendo, deve ser odiosa a vossa alteza.

- Mas em tal caso, senhor - disse a princesa com vivacidade - não executará as ordens que recebeu...

- Farei exactamente o que a minha consciência me disser que devo fazer.

- Senhor de Canolles - disse a voz - juro-lhe que não sairei de Chantilly sem que lho participe.

- Em tal caso, senhora -volveu Canolles- perdoe-me por haver sido a causa involuntária da sua cólera momentânea. Vossa alteza só tornará a ver-me quando me mandar chamar.

- Os meus agradecimentos, barão - disse a voz, com uma expressão de alegria que pareceu ecoar entre a cama e a parede. - Vá, vá, agradeço-lhe. Amanhã terei o gosto de tornar a vê-lo.

Desta vez, o barão reconheceu, sem já poder enganar-se, a voz, os sorrisos indizivelmente voluptuosos do ente encantador que, por assim dizer, lhe escapara das mãos, aquela noite em que o cavaleiro desconhecido lhe viera entregar a ordem do duque d’Épernon. Eram aquelas subtilíssimas emanações que perfumam o ar respirado pela mulher amada, era aquele tépido vapor semelhante a um corpo cujos contornos uma alma apaixonada julga abraçar, esforço superior da imaginação, fada caprichosa que se alimenta com a idealidade, tal como a matéria com o positivo.

Uma vista de olhos que por fim lançou ao retrato - por muito mal alumiado que este estivesse - mostrou ao barão, cujos olhos, além disso, se iam habituando àquela meia escuridão, o nariz aquilino dos Maillés, o cabelo negro e os olhos encovados da princesa, ao mesmo tempo que, diante dele, a mulher que acabava de representar o primeiro acto do papel tão difícil que tomara à sua conta, não tinha os olhos encovados, o nariz era direito, a boca um tanto aberta por hábito do sorriso, e aquelas faces arredondadas que afastam toda a ideia das laboriosas meditações.

Canolles sabia tudo quanto queria saber; saudou-a, pois, com o mesmo respeito devido na presença da princesa, e recolheu ao seu quarto.

 

CANOLLES não havia tomado qualquer resolução definitiva; e por isso, entrando no quarto, pôs-se a andarde um lado para outro, ao acaso, como costumam fazer as pessoas indecisas, sem reparar que Castorin, à espera que ele voltasse, se levantara quando o viu, e o seguia segurando nas mãos um roupão todo desdobrado, o qual lhe encobria o corpo. Castorin esbarrou num traste, e Canolles voltou-se.

- Então - disse-lhe ele- que faz aí com esse roupão?

- Espero que o senhor dispa o fato.

- Não sei quando largarei o meu fato. Ponha esse roupão numa cadeira, e espere.

- Então o senhor não quer despir o fato? -perguntou Castorin, que, sendo um criado caprichoso por natureza, estava naquela noite mais rabugento do que o costume. - O senhor não faz conta de se deitar?

- Não.

- Então quando faz o senhor conta de se deitar?

- Que lhe importa isso?

- Importa-me muito, porque estou bastante cansado.

- Ah, sim?... - disse Canolles, parando e encarando Castori - está muito cansado?...

O gentil-homem leu visivelmente no semblante do seu lacaio aquela expressão insolente dos criados desejosos de serem despedidos.

- Muito cansado! - disse Castorin. Canolles encolheu os ombros.

- Saia daqui - disse-lhe ele - e deixe-se ficar na antecâmara; quando precisar de si, tocarei a campainha.

- Previno o senhor de que se tardar muito tempo, não me encontrará já na antecâmara.

- Faça o favor de me dizer onde o encontrarei...

- Na minha cama: parece-me que depois de haver caminhado duzentas léguas, é muito razoável que me deite.

- Senhor Castorin - disse Canolles - é um patife.

- Se o senhor entende que um patife não é digno de ser seu lacaio, basta que o senhor diga uma única palavra, e eu desembaraçá-lo-ei do meu serviço - respondeu Castorin, compondo um ar majestoso.

Canolles não tinha nesse momento paciência, e se Castorin tivesse podido vislumbrar apenas a sombra da tempestade que ia engrossando no espírito do amo, decerto que, por muita pressa que tivesse de se ver em liberdade, teria esperado outro momento para lhe fazer a proposta que acabava de proferir. Por esta razão, o gentil-homem atirou-se ao lacaio, e tomando um dos botões do seu sobretudo entre o polegar e o índex, movimento que depois se tornou familiar a um homem mais célebre do que jamais o foi Canolles, ordenou:

- Repita o que disse!

- Repito - respondeu Castorin, com a mesma imprudência - que se o senhor não está contente comigo, eu o livrarei dos meus serviços.

Canolles largou Castorin, e foi com toda a gravidade pegar no seu bastão, Castorin compreendeu qual era a intenção.

- Senhor - exclamou ele - tome cuidado com o que vai fazer... Eu não sou já um simples lacaio. Estou ao serviço da princesa.

- Ah! ah! - disse Canolles, baixando o bastão - ah! está ao serviço da princesa?...

- Sim, senhor, há um quarto de hora - disse Castorin, endireitando-se.

- E quem o ajustou nesse serviço?

- O senhor Pompeu, seu mordomo.

- O senhor Pompeu?!

- Sim, senhor.

- Então porque não havia de dizer isso logo!?... - exclamou Canolles. - Sim, sim, faz muito bem em deixar o meu serviço; e eis aqui vinte libras para indemnizá-lo das bastonadas que estive a ponto de lhe dar.

- Oh! - disse Castorin, sem se atrever a pegar no dinheiro - que quer isto dizer?... O senhor quer zombar de mim?...

- Longe de mim tal pensamento! Antes pelo contrário: levo muito a bem que sejas lacaio da princesa, meu amigo. Diz-me somente quando é que deve começar o teu serviço.

- No momento em que o senhor me tenha dado a liberdade.

- Pois bem! Eu dou-te a liberdade a contar de amanhã pela manhã.

- E daqui até amanhã pela manhã?

- Daqui até amanhã pela manhã, continuas a ser meu lacaio, e deves obedecer-me.

- De muito bom grado! Que ordena o senhor? - disse Castorin, resolvendo-se a pegar nas vinte libras.

- Ordeno, visto que tens vontade de dormir, que te dispas e te deites na minha cama.

- Como!?... Que quer dizer com isso, senhor?... Não posso compreendê-lo.

- Nenhuma necessidade tens de compreender, mas sim de obedecer, eis aí tudo. Despe-te, que eu vou ajudar-te.

- Como!? O senhor quer ajudar-me?!...

- Sem dúvida, pois já que vais fazer o papel de cavaleiro de Canolles, cumpre-me fazer o de Castorin.

E sem esperar pelo acordo do seu lacaio, o barão despiu-lhe o casaco, que logo vestiu, tirou-lhe o chapéu, que pôs na sua cabeça, e, dando duas voltas à chave, deixou-o fechado no quarto antes que tornasse a si do sobressalto, e desceu rapidamente a escada.

Canolles começara finalmente a compreender todo este mistério, se bem que uma parte dos acontecimentos ainda se encontrassem para ele envolvidos numa densa nuvem. Tudo quanto vira, tudo quanto ouvira, de duas horas a essa parte, não lhe parecia perfeitamente natural. A atitude de toda a gente em Chantilly era compassada; parecia-lhe que quantas pessoas encontrava representavam um papel, e os incidentes tinham por base uma harmonia geral que dava a conhecer ao vigia enviado pela rainha que se não quisesse cair em algum engano, deveria ser cada vez mais vigilante.

A união de Pompeu com o visconde de Cambes aclarava muitas dúvidas. Se algumas ainda restavam a Canolles, acabaram por se dissipar quando, assim que entrou no quarto, viu, apesar da profunda escuridão da noite, adiantarem-se quatro homens, e dis-porem-se a entrar pela mesma porta que acabava de franquear; e estes quatro homens eram conduzidos pelo mesmo camareiro que o introduzira nos aposentos das princesas. Outro homem, embuçado num capote, ia atrás deles.

No limiar da porta, o pequeno grupo parou, esperando pelas ordens do homem encapotado.

- Sabe onde o alojaram - disse este, com voz imperiosa, dirigindo-se ao camareiro. - Conhece-o bem, visto que foi quem o introduziu. Vigie-o, pois, de maneira que não possa sair. Coloque os seus homens na escada, no corredor, onde quiser, isso pouco importa, contanto que ele, sem que disso tenha a mínima suspeita, esteja guardado, em vez de ser ele quem guarde a suas altezas.

Canolles ocultou-se cuidadosamente no ângulo em que a noite lançava a sua sombra mais densa; dali, sem que o enxergassem, viu desaparecer debaixo da abóbada os cinco guardas que lhe eram destinados, enquanto o homem encapotado, depois de se ter certificado de que executavam as suas ordens, voltou pelo mesmo caminho por onde viera.

"Isto nada me diz; preciso de muito mais para me esclarecer - pensou Canolles, seguindo-o com os olhos- pois talvez que o despeito os obrigue a pagarem-me na mesma moeda. O pior de tudo é se aquele diabo do Castorin se põe a gritar, a chamar, e se faz alguma asneira!... Fiz mal em não lhe pôr uma mordaça. Agora, desgraçadamente, já é tarde. Vamos, iniciemos a nossa ronda."

No mesmo instante, Canolles, depois de lançar em torno um olhar investigador, atravessou o pátio, e chegou à ala do edifício por detrás da qual estavam situadas as estrebarias.

Toda a vida do castelo parecia ter-se refugiado nesta parte do edifício. Ouvia-se o estrépito dos cavalos e os passos apressados da gente. A casa dos arreios retumbava com o tinido dos freios e dos jaezes. Tiravam as carroças das cocheiras; e algumas vozes, sufocadas pelo susto, mas cujo sentido se podia colher aprestando o ouvido, chamavam-se mutuamente e respondiam-se.

Canolles ficou um momento à escuta. Não podia ter a mínima dúvida: tudo se aprontava para uma partida.

Atravessou todo o espaço compreendido entre uma e outra ala, meteu-se por baixo de uma abóbada, e chegou à fachada do castelo, onde parou.

Com efeito, as janelas térreas brilhavam com uma luz muito viva, e, portanto, era fácil adivinhar que grande quantidade de tochas estavam acesas no interior delas; e como essas tochas se moviam de um lado para o outro, derramando grandes sombras e largas listras luminosas pela relva do jardim, Canolles compreendeu que ali estava o centro da actividade, e ali era o foco da empresa.

Ao princípio, Canolles hesitou em surpreender o segredo que lhe queriam ocultar, mas em breve reflectiu que o seu título de enviado da rainha, e a responsabilidade que lhe impunha esta comissão, o desculpavam, mesmo para com as consciências mais escrupulosas.

Adiantando-se, portanto, com precaução, e cosido à parede, cuja base era tanto mais escura quanto mais resplandecentes estavam as janelas à altura de seis ou sete pés do chão, subiu a um pilar, pousou os pés num ressalto da parede, agarrou-se com uma das mãos a uma argola, e com outra à borda da janela, e por um canto da vidraça lançou um olhar penetrante, e o mais atento que jamais tinha penetrado no recinto de uma conspiração.

Eis o que viu:

Junto de uma mulher em pé, e que pregava o último alfinete destinado a segurar na cabeça o seu chapéu de viagem, algumas criadas acabavam de vestir um menino em trajos de caça; o menino tinha as costas voltadas para Canolles, que apenas viu o seu cabelo louro. A senhora, porém, cujo rosto era alumiado pelo clarão de dois candelabros de seis braços que a ambos os lados do toucador dois criados em pé seguravam, semelhantes a cariátides, ofereceu aos olhos de Canolles o original exacto daquele retrato que há pouco vira na parede do quarto da princesa: era, na realidade, o rosto comprido, a boca severa, o nariz aquilino e imperioso de mulher cuja viva imagem Canolles agora reconhecia: o seu gesto atrevido, o seu olhar cintilante, os movimentos arrebatados da sua cabeça, tudo nela denunciava a soberania. Nos que a rodeavam, pelo contrário, as saudações, a precipitação em trazer-lhe o objecto pedido, a prontidão em responder à voz da sua soberana - tudo dava mostras de obediência.

Alguns oficiais da casa, entre os quais Canolles reconheceu o camareiro, metiam em malas, em baús e em caixotes, jóias, dinheiro, etc.; e outros guardavam o grande arsenal das mulheres, a que se dá o nome de toucador. O principezinho, durante este tempo, brincava e corria por entre os atarefados criados. Por uma fatal singularidade, porém, Canolles não pôde ver-lhe o rosto.

"Eu bem suspeitava - disse ele entre dentes. - Zombam comigo; esta gente faz preparativos de partida. Sim, mas eu, com um aceno, posso converter esta cena de logro em cena de luto, para isto não me é preciso mais do que subir ao terraço, tocar três vezes este apito de prata, e dentro de cinco minutos, ao áspero som que ele der, duzentos homens penetrarão neste castelo, prenderão as princesas, e darão garrote a todos estes oficiais que riem sorrateiramente. Pois é - continuou Canolles, e agora falava com o coração e não com os lábios - pois é, mas aquela que dorme lá em baixo, ou finge dormir, perdê-la-ia para sempre... olhar-me-ia com ódio, e desta vez com um ódio bem merecido. Mas ainda não é tudo: desprezar-me-ia, dizendo que levei até ao fim o meu ofício de espião, e, contudo, visto que ela obedece à princesa, por que razão não havia eu de obedecer à rainha?..."

Neste momento, como se o acaso tivesse querido combater este impulso de resolução, abriu-se uma porta do quarto de vestir da princesa, e duas pessoas, um homem de cinquenta anos e uma mulher de vinte, entraram muito alegres e apressados. Ao ver isto, o coração de Canolles parecia querer-lhe subir aos olhos. Acabava de reconhecer o belo cabelo, os lábios frescos, e os olhos inteligentes do visconde de Cambes, que, sorrindo ainda, foi beijar respeitosamente a mão de Clemência de Maillé, princesa de Conde. A única diferença consistia em que o visconde tinha o trajo próprio do seu verdadeiro sexo, e era agora a mais encantadora viscondessa que se poderia imaginar.

Canolles teria dado dez anos de vida para ouvir a conversa; mas em vão aplicava o ouvido à vidraça: nada mais ouvia do que um sussurro ininteligível. Viu que a princesa fazia um gesto de despedida à jovem senhora, e a beijava na testa, recomendando-lhe alguma coisa que fazia rir todas as pessoas que a rodeavam, e que, depois, esta última voltava para os quartos de cerimónia com alguns oficiais subalternos, que vestiram uniformes de oficiais superiores; até viu que o digno Pompeu, que, inchado de orgulho, com uma farda cor de laranja agaloada de prata, inclinando-se airosamente com uma enorme farrusca à cinta, acompanhava sua ama, a qual levantava com suma graça o longo vestido de cetim; depois, à esquerda, por uma porta oposta, principiou a desfilar sem ruido a escolta da princesa, e esta também começou a sua marcha, não parecendo uma mulher fugitiva, mas sim uma rainha; após ela, seguiu o escudeiro Vialas, levando ao colo o pequeno duque de Enghien, envolvido num capote, Lenet, tendo nas mãos um cofre lavrado, e alguns maços de papéis, e, por fim, o capitão do castelo, fechando a marcha, que era aberta por dois oficiais com as espadas desembainhadas.

Toda esta gente saiu por um corredor secreto; Canolles saltou logo do seu observatório, e correu para a abóbada, cujas luzes se haviam, entretanto, apagado; viu então passar todo o acompanhamento encaminhando-se em silêncio para as estrebarias; iam pôr-se a caminho.

Neste momento, a ideia dos deveres que lhe eram impostos pela comissão de que a rainha o encarregava apresentou-se ao espírito de Canolles. Esta mulher que estava ao ponto de sair era a guerra civil armada, que ele deixava escapar, e que de novo ia dilacerar as entranhas da França. Nenhuma dúvida havia que para um homem não era vergonhoso ser o espião e o carcereiro de uma mulher, porque também era uma mulher aquela senhora de Longueville que largara fogo aos quatro cantos de Paris.

Canolles voou para o terraço que dominava o parque e chegou aos lábios o apito de prata.

Gorados ficavam todos estes preparativos. A senhora de Conde não teria saído de Chantilly, ou, se o fizesse, não teria caminhado cem passos, sem que ela e a sua escolta fossem envolvidas por uma força três vezes superior; deste modo, Canolles desempenhava a sua comissão sem correr o menor risco; deste modo, de um só golpe, destruía a fortuna e a sorte futura da casa de Conde; e com este mesmo golpe, sobre as ruínas desta casa, estabelecia a sua própria fortuna, e fundava a sua sorte futura, como outrora o haviam feito os Vitrys e os Luynes, e, recentemente, os Guitauts e os Miossens. em circunstâncias talvez menos importantes para a salvação da realeza.

Canolles, porém, levantou os olhos para o quarto onde, debaixo de cortinas de veludo vermelho, brilhava, doce e melancólico,

o clarão da lâmpada nocturna que estava acesa na câmara da falsa princesa, e julgou que via desenhar-se aquela sombra querida no forro branco do cortinado. Então todas as resoluções do raciocínio, todos os cálculos do

egoísmo, desapareceram ante este raio de agradável luz, como à

primeira claridade do dia desaparecerem todos os sonhos e todos

(os fantasmas da noite.

"Mazarino - disse ele com um impulso apaixonado - é suficientemente rico para perder todos estes príncipes e todas estas princesas que lhe escapam; mas eu não sou tão rico que possa perder o tesouro que desde já me pertence, e que guardarei, zeloso como um dragão. Agora ela está só, em meu poder, e dependendo de mim;

a todas as horas do dia e da noite posso entrar no seu quarto; não fugirá sem que mo diga, porque assim mo prometeu, dando-me a sua palavra sagrada. Que me importa a mim que a rainha seja enganada e que Mazarino se enfureça! Disseram-me que guardasse a princesa de Conde; eu guardo-a. Por que razão não me deram os seus sinais, ou encarregaram algum espião mais hábil do que eu?..."

E Canolles tornou a meter o apito na algibeira. Ouviu ranger os gonzos, rodar as carruagens ao longe, na ponte do parque, e ir diminuindo o estrépito da cavalgada; depois, quando tudo tinha desaparecido, visão e rumores, sem se lembrar de que acabava de pôr em jogo a sua vida contra o amor de uma mulher, isto é, contra a sombra da ventura, introduziu-se no pátio deserto e subiu com cautela a escada, onde reinava, como na abóbada, a mais profunda escuridão.

Apesar, porém, de todas as suas precauções, Canolles não pôde evitar, ao chegar ao corredor, o encontro com alguém em quem esbarrou, e que parecia estar a escutar à porta - e que deu um grito de terror.

- Quem! ? Quem é! ? - perguntou a personagem, com voz assustada.

- E o senhor quem é - disse Canolles - que se introduz como um espião nesta escada?...

- Eu sou Pompeu.

- O mordomo da princesa?

- Sim! Sim! O mordomo da princesa.

- Ah! que feliz casualidade! - disse o gentil-homem; - eu sou Castorin.

- Castorin, o criado do barão de Canolles?...

- Ele mesmo em pessoa.

- Ah! meu caro Castorin - disse Pompeu- aposto que lhe meti grande susto...

- A mim?

- Sim; e não é de admirar, visto que nunca foi soldado! Posso ser-lhe útil em alguma coisa, meu querido amigo? - continuou Pompeu, tomando um certo ar de importância.

- Sim.

- Fale então.

- Pode ir anunciar agora mesmo à princesa que meu amo lhe deseja falar?

- A esta hora?

- Assim é preciso.

- É coisa impossível!

- Assim o julga?

- Estou certo disso.

- Então não quererá receber meu amo?...

- Não, decerto...

- Da parte do rei, Pompeu; vá dizer-lhe isto.

- Da parte do rei! - exclamou Pompeu. - Eu lá vou, eu lá vou.

E Pompeu desceu impetuosamente a escada, estimulado ao mesmo tempo pelo respeito e pelo medo - dois galgos que são capazes de fazer correr uma tartaruga.

Canolles foi continuando o seu caminho, e recolheu-se ao quarto, onde foi dar com Castorin, que ressonava estendido magistralmente numa grande poltrona. Tornou a vestir o seu uniforme de oficial, e aguardou o resultado do passo que ele próprio acabava de dar.

"Pela minha fé! - disse consigo- se não dou boa conta dos negócios de Mazarino, dos meus parece-me que não dou má."

Canolles esperou debalde a volta de Pompeu; mas, passados dez minutos, vendo que não chegava, nem pessoa alguma em lugar dele, tomou a resolução de se ir apresentar só.

Acordou portanto Castorin, cuja bílis uma hora de sono havia serenado, ordenou-lhe que estivesse pronto, sucedesse o que sucedesse, em tom que não admitia réplica, e encaminhou-se para os aposentos da princesa.

: O barão encontrou à porta um criado de muito mau humor, porque acabava de ouvir tocar a campainha no momento em que terminava o seu serviço, em que julgava por fim, como Castorin, que ia principiar um sono restaurador de um dia de tamanha fadiga.

- Que quer, senhor? - perguntou o criado ao ver aproximar-se Canolles.

- Quero fazer os meus cumprimentos à princesa de Conde.

- A esta hora, senhor?!

- Então que horas são?

- A mim parece-me que é muito tarde.

- Que diz, insolente?

- Contudo, senhor... - disse entre dentes o lacaio.

- Eu não peço, eu quero! - bradou Canolles, em tom de suprema altivez.

- O senhor quer... Aqui só a princesa governa.

- O rei governa em toda a parte... Da parte do rei! O lacaio estremeceu e baixou a cabeça.

- Perdoe-me, senhor - disse ele- mas eu não passo de um pobre criado; não posso, portanto, tomar a responsabilidade de abrir a porta do quarto da princesa; permita-me que vá acordar um camareiro.

- Os camareiros costumam deitar-se às onze horas no castelo de Chantilly…

- Andaram na caça todo o dia - balbuciou trémulo o lacaio. "É muito justo - disse em voz baixa Canolles. - É preciso dar-lhes tempo para que vistam a farda de camareiro a alguém." Depois, em voz alta:

- Muito bem; vá, que eu espero aqui.

O lacaio partiu a correr, e foi dar rebate no castelo, onde já Pompeu, assustado com o mau encontro que tivera, acabava de derramar um indizível espanto.

Canolles, ficando só, prestou ouvidos e abriu os olhos.

Ouviu então correr pelas salas e pelos corredores; viu, ao clarão das luzes quase apagadas, homens armados de mosquetes colocarem-se nos ângulos das escadas; enfim, sentiu em toda a parte um murmúrio ameaçador substituir o silêncio da estupefacção que um momento antes reinava no castelo.

Canolles levou a mão ao apito, e chegou-se a uma janela, através de cujos vidros descobria, destacando-se como uma sonora e nebulosa massa, o cimo das corpulentas árvores junto das quais mandara emboscar os duzentos homens que trouxera consigo.

"Não - disse ele. - Disto havia de resultar infalivelmente um combate, o que de modo nenhum me convém; vale mais esperar; o pior que me pode acontecer, esperando, é ser assassinado, ao passo que, se me apresso, posso deitá-la a perder..."

Ainda bem Canolles não tinha acabado de fazer esta reflexão, viu abrir-se uma porta e aparecer uma nova personagem.

- A princesa não está visível - disse o recém-chegado, com uma precipitação que nem sequer lhe deu tempo para saudar o gentil-homem. - Está na cama, e deu ordem para que não deixasse entrar na sua câmara pessoa alguma.

- Quem é você? - perguntou Canolles, medindo dos pés à cabeça esta estranha personagem - e quem lhe deu o atrevimento de falar a um gentil-homem com o chapéu na cabeça?...

E com a ponta do bastão, Canolles fez-lhe saltar o chapéu da cabeça.

- Senhor!... - exclamou o outro, recuando altivamente o passo.

- Perguntei-lhe quem é... - replicou Canolles.

- Sou... - respondeu ele - sou, como pode ver pelo meu uniforme, o capitão das guardas de Sua Alteza.

Canolles sorriu.

Com efeito, tivera tempo de apreciar com a vista o homem que assim lhe falava, e reconhecera que não podia deixar de ser algum despenseiro ou copeiro de barriga larga; algum robusto criado envolvido num sobretudo de oficial, a quem a falta de tempo, ou a sua barriga avantajada, não permitia que se compusesse devidamente.

- Muito bem, capitão da guarda - disse Canolles - levante o seu chapéu do chão e responda.

[ O capitão executou a primeira parte do mandado de Canolles, como homem que tinha estudado aquela bela máxima da disciplina militar: "Para saber comandar, é mister saber obedecer."

- Capitão da guarda... - continuou Canolles - cáspite! É um belo posto!

- Sim, senhor, não há dúvida que é belo; e que mais? - disse o indivíduo, empertigando-se.

- Não se enfune tanto, capitão - disse Canolles- se não quer rebentar o último dos seus atacadores, e ver caírem-lhe aos pés os calções, o que seria um desastre.

- Mas enfim, quem é o senhor? - perguntou o suposto capitão, interrogando, por seu turno.

- Senhor, seguirei o exemplo de urbanidade que me deu, e responderei à sua pergunta como respondeu à minha. Sou capitão no regimento de Navaille, e venho como embaixador em nome do rei, revestido de um carácter pacífico ou violento, segundo obedecerem ou desobedecerem às ordens de Sua Majestade.

- Violento, senhor?!... -exclamou o falso capitão.- Um carácter violento?!...

- Muito violento! Assim lhe asseguro!

- Até em sua casa Sua Alteza não é a primeira súbdita de Sua Majestade? Senhor, aconselho-o a que não queira valer-se da força: eu tenho cinquenta homens prontos a vingar a honra de Sua Alteza.

Canolles não lhe quis dizer que os seus cinquenta homens não eram mais do que outros tantos lacaios e ratos de cozinha, dignos de servirem sob as ordens de um tal capitão, e que, relativamente à honra da princesa, àquela hora ia correndo com ela pela estrada de Bordéus. Contentou-se em responder-lhe com aquele sangue-frio mais temível que uma ameaça, e que tão habitual é nos homens bravos e acostumados aos perigos:

- Se tem cinquenta homens de armas, capitão, eu tenho duzentos, que são a vanguarda de um exército real. Está decidido a pôr-se em rebelião aberta contra Sua Majestade?...

- Não, senhor, não! - respondeu com viveza o homem rechonchudo, muito humilhado.- Deus tal não permita! Mas peço-lhe que me sirva de testemunha em como eu só à força cedo.

- É na realidade o menos que lhe proporcionaria, na qualidade de camarada.

- Ora, pois, conduzi-lo-ei ao quarto da princesa viúva que ainda não pegou no sono.

Canolles não teve necessidade de reflectir para avaliar o medonho perigo que lhe oferecia esta cilada; mas dela se livrou arrebatadamente com o socorro da sua omnipotência.

- Não tenho ordem de procurar a princesa viúva, mas sim a princesa donzela.

O capitão das guardas abaixou outra vez a cabeça, imprimiu um movimento retrógrado às suas grossas pernas, arrastou a comprida espada pelo sobrado, e tornou a passar majestosamente o limiar da porta, por entre duas sentinelas que tremiam, durante esta cena. e a quem o anúncio da chegada de duzentos homens esteve a ponto de fazer abandonar o posto, tão pouco dispostos estavam a ser mártires da fidelidade no castelo de Chantilly.

Passados dez minutos, o capitão, seguido de dois guardas, voltava com inumeráveis cerimónias para acompanhar Canolles ao quarto da princesa, em cuja câmara foi introduzido sem ter de sofrer novas delongas.

Canolles reconheceu o quarto, os móveis, o leito e até o perfume daquela câmara, que muito bem havia observado. Mas em vão buscou duas coisas: o retrato da verdadeira princesa, que vira na sua primeira visita, e que abrira o seu pensamento à primeira suspeita do logro em que queriam fazê-lo cair, e o rosto da falsa princesa, pela qual acabava de fazer um tamanho sacrifício. O retrato, haviam-no tirado dali; e por uma precaução um tanto tardia, e sem dúvida em consequência desta mesma precaução, o rosto da pessoa deitada na cama estava voltado para a parede, como se tivesse em pouca conta quem a procurava.

Duas mulheres estavam em pé no espaço entre o leito e a parede.

O gentil-homem teria de boa vontade desculpado esta falta deatenção; mas, como receasse que alguma nova substituição permitisse à senhora de Cambes fugir como tinha fugido a princesa, os cabelos arrepiaram-se-lhe na cabeça, e quis no mesmo instante certificar-se da identidade da pessoa que ocupava o leito, chamando em seu socorro o poder supremo de que o revestia a sua comissão. - Senhora - disse ele, inclinando-se profundamente - peço perdão a Vossa Alteza de vir deste modo à sua presença, e sobretudo depois de haver dado a minha palavra de que esperaria pelas suas ordens: mas acabo de ouvir um ruído no castelo, e...

A pessoa deitada estremeceu, mas não respondeu. Canolles buscou algum sinal pelo qual pudesse reconhecer se na verdade a pessoa que buscava era a que tinha diante dos olhos; no meio das ondulações das rendas, na macia espessura dos colchões e das cortinas, foi-lhe todavia impossível reconhecer mais do que a forma de uma pessoa deitada.

- E - continuou Canolles - é dever meu, de que me não posso dispensar, certificar-me de que neste leito se encontra a mesma pessoa com quem tive a honra de conversar há meia hora.

Desta vez não foi já um simples estremecimento, mas sim um verdadeiro movimento de terror. Este movimento não escapou a Canolles, que com ele se assustou.

"Se ela me enganou - disse consigo- se apesar da palavra solene que me deu, fugiu, eu saio do castelo, monto a cavalo, ponho-me à frente dos meus duzentos homens, e alcanço decerto os fugitivos ainda que tenha de lançar fogo a trinta aldeias para alumiar o meu caminho!"

Canolles ainda esperou um momento, mas a pessoa deitada nem respondeu nem se voltou; era evidente que queria ganhar tempo.

- Senhora - disse por fim Canolles, com uma impaciência que não tinha já a coragem de dissimular- rogo a Vossa Alteza que se queira lembrar de que sou o enviado do rei, e que em nome do rei reclamo a honra de ver o seu rosto.

- Oh! que insuportável inquirição!- disse então uma voz trémula, e que fez estremecer de alegria o jovem oficial, porque acabava de reconhecer o som de uma voz, que nenhuma outra podia imitar. - Se, como diz, senhor, é o rei quem o obriga a proceder assim, o rei, que não é mais do que uma criança, ainda não sabe quais são os deveres de um gentil-homem; obrigar uma mulher a mostrar o rosto é fazer-lhe o mesmo insulto que, estando mascarada, se lhe arrancasse a máscara.

- Senhora, há uma palavra ante a qual se curvam os homens quando esta palavra vem do destino; é preciso.

- Ora, pois, já que é preciso - disse a jovem senhora - já que estou só e sem defesa contra a ordem do rei e a exigência do seu mensageiro, obedeço, senhor: olhe-me!

Então, um movimento arrebatado desviou o baluarte de travesseiros, de cobertas e de rendas que a defendia, e através da brecha improvisada, como o vermelhão mais de pudor do que de indignação, apareceu a cabeça loura e o rosto encantador que de antemão haviam sido denunciados pela voz. Com o rápido olhar do homem habituado a avaliar situações, senão semelhantes, pelo menos equivalentes, Canolles ficou certo de que não era a cólera o que conservava baixos aqueles olhos velados por pestanas de veludo, e que fazia tremer aquela mão que sustinha, sobre um pescoço de nácar, as ondas de um cabelo fugitivo e a cambraia dos lençóis perfumados.

A falsa princesa ficou um instante nesta posição, que teria desejado tornar ameaçadora, mas que só saíra irritada, enquanto Canolles fixava os olhos, respirando deliciosamente e comprimindo com ambas as mãos as pulsações do seu coração, que pulava de alegria.

- Ora, pois, senhor- disse, passados alguns segundos, a formosa perseguida- não será suficientemente grande a minha humilhação?. .. Examinou-me à sua vontade? Que mais quer? Não é completo o seu triunfo?... Seja, pois, um vencedor generoso, peço-lhe que se retire.

- Bem o quisera, senhora, mas cumpre-me desempenhar as minhas instruções até ao fim. Só preenchi, até agora, a parte da comissão que diz respeito a Sua Alteza; mas não é bastante tê-la visto, é preciso que veja agora o duque de Enghien.

A estas palavras, pronunciadas no tom do homem que tem o direito de mandar e quer ser obedecido, sucedeu um terrível silêncio. A falsa princesa levantou-se um pouco, apoiando-se na mão, e fixou em Canolles um daqueles olhares estranhos que pareciam ser somente próprios dela, tantas eram as coisas neles contidas ao mesmo tempo. Este queria dizer: "Reconheceu-me? Sabe quem eu sou, na realidade?... Se o sabe, poupe-me, perdoe-me; é o mais forte, compadeça-se de mim!"

Canolles compreendeu tudo quanto este olhar queria dizer, mas endureceu-se contra a sedutora eloquência, e respondeu-lhe de viva voz:

- É impossível, senhora - disse ele.- A ordem é precisa.

- Faça-se, pois, tudo à sua vontade, como o deseja, senhor, visto que não tem a mínima condescendência, nem para com a posição, nem para com a graduação; vá, estas senhoras o encaminharão ao príncipe meu filho.

- Estas senhoras - disse Canolles- não poderiam, em vez de encaminhar-me a seu filho, trazê-lo para junto de Vossa Alteza? Isto, no meu entender, seria infinitamente melhor. Porque, durante esse tempo, eu darei a saber a Vossa Alteza uma parte da minha comissão, que só a si pode ser comunicada.

- A mim só?...

- A si só - respondeu Canolles, com uma cortesia mais profunda do que nenhuma das que já fizera.

Desta vez, os olhos da princesa, que haviam sucessivamente passado da dignidade à súplica, e da súplica à inquietação, cravaram-se em Canolles com a fixidez do terror.

- Que pode haver nesta conferência privada entre nós que tanto a assuste, senhora? - disse Canoles. - Não é princesa, e não sou eu gentil-homem?

- Sim, tem razão, senhor, e eu não tenho de que recear. Sim, apesar de ser esta a primeira vez que tenho o gosto de vê-lo, a fama da sua cortesia e da sua lealdade tem chegado aos meus ouvidos. Vão buscar, senhoras, o duque de Enghien, e voltem aqui com ele.

As duas mulheres afastaram-se da cama, adiantaram-se para a porta, voltaram-se ainda uma vez, para saberem se esta ordem era bem positiva, e a um aceno que confirmava as palavras da ama, ou pelo menos da que fazia as suas vezes, saíram do quarto.

Canolles seguiu-as com a vista até que tivessem fechado a porta. Depois, fixou na suposta princesa os seus olhos cintilantes de alegria.

- Vejamos - disse esta, sentando-se na cama e cruzando os braços - senhor de Canolles, porque me persegue deste modo?

E, dizendo isto, encarava o jovem oficial, não com aquele olhar altivo de princesa, que ensaiara, e que não lhe fora de vantagem alguma, mas, pelo contrário, com uma expressão tão tocante e tão significativa, que todos os encantadores incidentes do primeiro encontro, todos os embriagantes episódios do caminho, todas as recordações daquele amor nascente, tudo, enfim, surgiu de tropel, envolvendo com embalsamados vapores o coração do barão.

- Senhora - disse ele, dando um passo para o leito - eu a quem persigo em nome do rei é à princesa de Conde, e não a si, que não é a senhora princesa.

Aquela a quem estas palavras eram dirigidas deu um leve grito, tornou-se muito pálida, e levou uma das mãos ao coração.

- Então, senhor, que quer dizer, e quem pensa que eu sou!? - exclamou ela.

- Oh! quanto a isso -replicou Canolles- ver-me-ia embaraçado se tivesse de lho explicar, pois seria talvez capaz de jurar que é o mais belo visconde, se não fosse a mais adorável viscondessa.

- Senhor! - disse a falsa princesa, com a esperança de impor respeito a Canolles, recordando-lhe a sua dignidade- de tudo o que me diz só compreendo uma coisa - e é que me desobedece, que me insulta!

- Senhora - volveu Canolles - não faltemos ao respeito que a Deus devemos quando o adoramos; não insultemos os anjos quando

l ante eles nos ajoelhamos.

E, dizendo estas palavras, Canolles inclinou-se como se quisesse ajoelhar.

- Senhor! - impediu-o com viveza a viscondessa, detendo Canolles. - Senhor! A princesa de Conde não pode consentir...

- A princesa de Conde, senhora - respondeu este- vai a estas horas correndo num cavalo, com o seu escudeiro Vialas, ao lado de Lenet, seu conselheiro, com os seus gentis-homens, com os seus capitães, e com toda a sua casa - enfim, vai correndo, digo, pela estrada de Bordéus, e nada tem com o que se passa agora entre o barão de Canolles e o visconde ou viscondessa de Cambes.

- Mas... que diz, senhor!?... Dar-se-á o caso de ter perdido o juízo!?...

- Não, senhora, eu só digo o que vi, nem faço mais do que contar o que ouvi.

- Então, se já viu e ouviu o que diz, a sua comissão deve estar terminada...

- Como pode crer em tal, senhora!? Será, pois, preciso que eu volte para Paris, e que vá confessar à rainha, que para não desagradar a uma mulher a quem amava (eu não nomearei ninguém, senhora: não me olhe, portanto, com olhos coléricos), não cumpri as suas ordens, consenti que fugisse a sua inimiga, fechei os olhos ao que via, atraiçoei enfim... sim, atraiçoei a causa do meu rei?!...

A viscondessa pareceu comovida e olhou o barão com uma compaixão quase terna.

- Não terá a melhor desculpa de todas - disse ela - que é a impotência? Podia, sozinho, deter a escolta respeitável da princesa?... Tinham-lhe ordenado que combatesse sozinho contra cinquenta gentis-homens...

- Não - volveu Canolles, abanando a cabeça. - Tinha, e tenho ainda, ali no bosque, a quinhentos passos de nós, duzentos soldados que posso reunir com uma só apitadela; nenhuma dificuldade, portanto, se me apresentava para deter a princesa, que, pelo contrário, nenhuma resistência podia opor. E, além disso, que a minha escolta fosse mais fraca do que a dela, em vez de ser quatro vezes mais forte, eu sempre podia combater, sempre podia fazer-me matar combatendo; isso ter-me-ia sido tão fácil -continuou o mancebo, inclinando-se cada vez mais- quanto seria doce tocar esta mão, se a isso me atrevesse.

Com efeito, aquela mão em que o barão cravava olhos ardentes, aquela mão fina, fofa e branca, aquela mão aristocrática que caía fora da cama, estremecia a cada palavra que saía da boca do mancebo. A viscondessa, cega ela mesma por aquela electricidade do amor, cujos efeitos ela sentira na pequena estalagem de Jaulnay, não pôde lembrar-se de que devia recolher a mão que proporcionara a Canolles um ponto tão feliz de comparação; esqueceu-se, portanto, dela, e o jovem oficial, deixando-se cair de joelhos, imprimiu a sua boca com voluptuosa timidez na mão, que ao sentir o contacto dos seus lábios, se retirou como se um ferro em brasa lhe houvesse Jocado.

- Eu agradeço-lhe, senhor de Canolles - disse a jovem senhora. - Sim, do íntimo do coração, agradeço-lhe quanto a meu favor fez; creia que jamais o esquecerei. Duplique, porém, o preço do serviço que me rendeu, e apreciando a minha melindrosa situação, retire-se. Não temos nós de separarmo-nos, visto que a sua comissão está terminada?...

Este nós, pronunciado com uma ênfase tão meiga que parecia ter alguma sombra de pesar, fez vibrar dolorosamente as fibras mais secretas do coração de Canolles. Com efeito, o sentimento de dor quase sempre existe no fundo das grandes alegrias.

- Obedeço-lhe, senhora - disse ele. - Far-lhe-ei somente observar, não para deixar de lhe obedecer, mas sim para talvez lhe evitar um remorso, que se lhe obedecer fico perdido. No momento em que eu confessar a minha falta, e ficarem certos de que não fui enganado, serei vítima da minha condescendência.. Declaram-me traidor; encerram-me na Bastilha... e quem sabe se não serei fuzilado... E tudo isso é coisa muito natural, porque fui um traidor.

Clara deu um grito, e pegou ela mesmo na mão de Canolles, que logo tornou a deixar cair com uma graça encantadora.

- Que faremos nós então? - disse ela.

O coração do mancebo dilatou-se: aquele bem-aventurado nós vinha a ser decididamente a fórmula favorita da senhora de Cambes.

- Perdê-lo, a si, que tão generoso é?! - continuou ela.243

 

Perdê-lo, eu?! Oh! nunca, nunca! A que preço posso eu salvá-lo? Fale, fale!

- Seria preciso, senhora, que me permitisse representar o meu papel até ao fim. Seria preciso, como lhe disse, que parecesse haver sido enganado por si, e que desse conta a Mazarino do que vejo, e não do que sei.

- Sim, mas se descobrissem que por amor de mim faz tudo isto, se chegassem a saber que nós já nos tínhamos encontrado noutra parte, que já me tinha visto, eu é que, por meu turno, ficaria perdida; pondere bem!

- Senhora - volveu Canolles, com uma melancolia perfeitamente representada - à vista do seu ar tão frio, da sua dignidade, que tão pouco lhe custa a manter na minha presença, não creio que deixasse escapar um segredo, que, além disso, no seu coração pelo menos, não existe.

Clara guardou silêncio, mas um olhar fugitivo, um imperceptível sorriso, que a seu pesar escapava à bela presa, responderam a Canolles, de modo, que este se convenceu de que era o mais feliz dos homens.

- Terei, pois, de aqui ficar? - perguntou ela, com um indizível sorriso. - Já que assim é preciso!...

- Nesse caso vou escrever a Mazarino.

- Sim, mas não perca tempo, vá já.

- Como assim?...

- Digo-lhe que trate de lhe escrever.

- Não posso fazê-lo: é preciso que eu lhe escreva daqui, do seu quarto; é preciso que eu date a minha carta de junto à sua cama.

- Mas isso não é decente...

- Eis as minhas instruções, senhora: leia-as...

E Canolles apresentou um papel à viscondessa, que leu:

O barão de Canolles guardará à vista a princesa, e o duque de Eughien seu filho.

- À vista - disse Canolles.

- À vista... não há dúvida que estas palavras estão aqui. Clara compreendeu todo o partido que um homem enamorado,

como estava Canolles, podia tirar de semelhantes instruções; mas compreendeu também que serviço rendia à princesa prolongando a seu respeito o engano da corte.

- Escreva pois - disse ela, em tom de mulher resignada. Canolles interrogou-a com os olhos, e ela também com os olhos

lhe mostrou um cofrezinho, onde se continha quanto era preciso para escrever; o mancebo abriu-o, retirou papel, pena e tinta, colocou tudo em cima de uma mesa, e chegou-a para o pé de si o mais que lhe foi possível; pediu, como se Clara fosse sempre a princesa, licença para sentar-se, a qual lhe foi concedida, e escreveu a Mazarino o seguinte despacho:

Senhor:

Cheguei ao Castelo de Chantilly as nove horas da noite, pelo que claramente verá que fiz toda a diligência, pois tive a honra de me despedir de Vossa Eminência às seis horas e meia.

Encontrei as duas princesas na cama; a princesa viúva gravemente enferma, e a princesa cansada de haver durante o dia assistido a uma grande caçada.

Segundo as instruções de Vossa Eminência, apresentei-me a Suas Altezas, que no mesmo instante despediram todos os convidados, e neste momento guardo à vista a senhora Princesa e seu filho.

- E seu filho... - replicou Canolles voltando-se para a viscondessa. - Ora, parece-me que minto... e, contudo, bem quisera não mentir...

- Sossegue - respondeu Clara a rir. - Se ainda não viu meu

filho, vai já vê-lo.

- E seu filho... - continuou Canolles a rir.

E continuando a carta no ponto em que a interrompera:

Do próprio quarto da princesa, e sentado à cabeceira do seu leito, tenho a honra de escrever esta carta a Vossa Eminência.

Depois assinou-a; e após ter pedido com todo o respeito licença a Clara, puxou pelo cordão da campainha: um criado de quarto entrou imediatamente.

- Vá chamar o meu lacaio - disse Canolles- e quando ele chegar à antecâmara, venha avisar-me.

Passados cinco minutos, vieram avisar o barão de que Castorin havia chegado.

- Aqui tem - disse-lhe Canolles.- Vá levar este bilhete ao oficial que comanda os meus duzentos homens; diga-lhe que o envie a Paris por um expresso.

- Mas, senhor barão -respondeu Castorin, a quem a execução de uma tal comissão, dada a meio da noite, parecia muito desagradável - julgava ter-lhe dito que o senhor Pompeu me ajustara para entrar no serviço da princesa...

- E também em nome da princesa é que lhe transmiti esta ordem. Vossa Alteza - disse Canolles, voltando-se - dignar-se-á confirmar as minhas palavras? Sabe muito bem qual a importância de que esta carta seja entregue imediatamente.

- Vá - disse a falsa princesa, em tom e gestos cheios de majestade.

Castorin inclinou-se até ao chão, e partiu.

- Agora - disse Clara, estendendo para Canolles as suas pequenas mãos juntas e suplicantes- retirar-se-á, não é assim?

- Perdoe... - respondeu Canolles - mas seu filho, senhora?... - Tem razão - respondeu Clara, sorrindo. - Vai vê-lo.

Com efeito, apenas acabou de proferir estas palavras, ouviu-se esgaravatar à porta, segundo o costume daqueles tempos. Foi o  [cardeal de Richelieu quem, sem dúvida por causa do amor que tinha aos gatos, pusera em voga este modo de bater à porta. Durante o seu dilatado valimento, tinham, portanto, esgaravatado à porta de Richelieu; depois à do senhor de Chavigny, que sem dúvida tinha direito a esta sucessão, ainda que só fosse a título de herdeiro natural; e, finalmente, à de Mazarino. Podia, pois, muito bem -esgaravatar-se à porta da princesa.

- Ei-lo que vem - disse a senhora de Cambes.

- Muito bem. Nesse caso, revisto-me do meu carácter oficial. i Canolles arredou a mesa, tirou a cadeira, tomou a pegar no chapéu, e deixou-se ficar respeitosamente a quatro passos do leito da princesa.

- Entre! - disse a viscondessa.

No mesmo instante, o mais cerimonioso acompanhamento que se podia ver entrou no quarto. Eram as mulheres, os oficiais, os camareiros, todos os que estavam empregados no serviço ordinário da princesa.

- Senhora - disse o primeiro criado da câmara - foi-se acordar o duque de Enghien; pode, portanto, receber agora o mensageiro de Sua Majestade.

Um olhar de Canolles à senhora de Cambes disse-lhe mais claramente do que o teria podido fazer a voz: "Era, pois, isto o que combinámos?"

Este olhar, em que se encerravam todas as súplicas de um coração angustiado, foi compreendido maravilhosamente, e, sem dúvida, em agradecimento de tudo quanto Canolles fizera, e talvez que também para de algum modo exercer aquela malícia eternamente oculta no mais íntimo do melhor dos corações femininos, ela ordenou:

- Tragam aqui o duque de Enghien. O senhor verá meu filho na minha presença.

Apressaram-se a obedecer, e, passado um momento, o jovem príncipe foi introduzido no quarto.

Dissemos que o barão, observando com todo o cuidado os últimos preparativos da partida da princesa, pusera os olhos no jovem príncipe, que andava brincando e correndo, mas sem que lhe visse o rosto. A única coisa em que reparara fora no seu trajo, que consistia num simples trajo de caça; pensou, pois, que não era em atenção a ele que lhe haviam vestido o esplêndido trajo em que o apresentavam aos seus olhos. A ideia que já tivera de que o príncipe partira com a mãe, tornou-se, portanto, quase em certeza: examinou, durante algum tempo e em silêncio, o herdeiro do ilustre príncipe de Conde, e, sem que o respeito que impusera a toda a sua pessoa sofresse a menor quebra, um imperceptível sorriso de ironia deslizou-lhe pelos lábios.

- Dou-me por muito feliz - disse ele, inclinando-se- ao ser-me dada a honra de apresentar as minhas homenagens ao duque de Enghien.

A senhora de Cambes, em quem o menino tinha cravado os olhos fez-lhe sinal com a cabeça para que saudasse, e como lhe pareceu que Canolles observava todos os incidentes desta cena com suma atenção:

- Meu filho - disse ela com um cálculo de maldade que fez estremecer Canolles, que já adivinhava, pelo movimento dos lábios da viscondessa, que ia ser vítima de alguma traição feminina - o oficial que vê diante de si é o senhor de Canolles, enviado por Sua Majestade; dê a sua mão a beijar ao senhor de Canolles.

Ao ouvir esta ordem, Pedrito, que fora convenientemente doutrinado por Lenet, que, tal como prometera à princesa, se encarregara da educação do garoto, estendeu a mão, que não tivera tempo nem modo para converter em mão de gentil-homem; e Canolles viu-se obrigado a imprimir, no meio do riso sufocado dos circunstantes, um beijo naquela mão, que um homem, ainda quando fosse menos esperto nesta matéria do que Canolles, teria facilmente reconhecido não pertencer à aristocracia.

"Ah! senhora de Cambes - disse Canolles consigo- pagar-me-á este beijo!..."

E inclinou-se respeitosamente ante o Pedrito, para lhe agradecer a honra que lhe concedera.

Entendendo então que depois de haver passado por uma tal prova, a última do programa, lhe era impossível ficar mais tempo na câmara de uma mulher, afirmou, voltando-se para o leito:

- Senhora, a minha comissão está terminada por esta noite; tenho, pois, de lhe pedir licença para me retirar...

- Vá, senhor - disse Clara. - Vê que estamos muito sossegados, aqui. Pode, portanto, dormir descansado.

- Antes disso, tenho de pedir-vos, senhora, um grande favor.

- Que favor? - perguntou a senhora de Cambes com inquietação, porque compreendia pela entoação da voz do barão que se dispunha a tirar a sua desforra.

- Que me conceda a mesma graça que acabo de receber do príncipe seu filho.

Desta vez, a viscondessa não podia escapar-lhe; não havia modo de recusar a um oficial do rei o cerimonioso favor que desta maneira pedia à vista de todos. A senhora de Cambes estendeu, pois, a sua trémula mão ao senhor de Canolles.

Este adiantou-se para a cama como se teria adiantado para o trono de uma rainha, pegou com a ponta dos dedos na mão que se lhe oferecia, pôs um joelho no chão, e imprimiu naquela pele fina, branca e estremecida, um comprido beijo, que todos atribuíram ao respeito, e que, para a viscondessa somente, foi um ardente penhor de amor.

- Prometeu-me, até me jurou - disse Canolles em voz submissa levantando-se - que não sairia do castelo sem que disso me prevenisse. Tenho toda a confiança na sua promessa e no seu juramento.

- E pode tê-la, senhor - disse a viscondessa de Cambes, tornando a cair sobre o travesseiro, quase desmaiada.

Canolles, a quem a expressão da voz fizera estremecer, tentou descobrir nos olhos da formosa prisioneira a confirmação da esperança que lhe dera o tom da voz. Mas os olhos da viscondessa estavam hermeticamente fechados.

Canolles pensou que os cofres fechados são os que encerram os mais preciosos tesouros, e retirou-se com o paraíso no coração.

Dizer como essa noite se passou para o gentil-homem, dizer como a vigília e o sono não passaram de um sonho constante, durante o qual ponderou e tornou a ponderar todas as circunstâncias da quimérica aventura que lhe dava a posse do mais precioso tesouro que avarento algum tenha jamais abrigado sob as asas do seu coração; dizer os projectos que fez para sujeitar o futuro aos cálculos do seu amor, e ao capricho da sua fantasia; dizer as razões que a si próprio deu para se convencer de que agia acertadamente - seria coisa impossível; pois a loucura é uma fadiga para qualquer outro espírito que não seja o de um louco.

Era tarde quando Canolles adormeceu, se é que pode chamar-se dormir ao febril delírio que sucedeu à vigília; e, contudo, apenas o dia alumiava os cumes dos álamos, sem que ainda tivesse baixado até à superfície das belas águas onde dormem os nenúfares de largas folhas, cujas flores só ao sol se abrem, já Canolles saltava da cama, vestindo-se à pressa, e descia para o jardim. A sua primeira visita foi ao lado do edifício ocupado pela princesa, o primeiro olhar para a janela do seu quarto; quer não tivesse ainda adormecido, quer tivesse já despertado, o certo é que uma luz demasiado viva para que fosse a de uma lamparina avermelhava as cortinas de damasco corridas hermeticamente. Canolles deteve-se perante a descoberta, a qual, sem dúvida, lhe inundou o espírito com um bom número de conjecturas insensatas, e, sem prolongar o passeio, procurou o abrigo do pedestal de uma estátua que o ocultava de forma conveniente, e encetou a sós com a sua fantasia, aquele eterno diálogo dos corações amorosos, que encontram o objecto amado em todas as poéticas emanações da Natureza.

Havia talvez meia hora que o barão estava no seu observatório, olhando com indizível ventura para aquelas cortinas, diante das quais qualquer outro que não ele teria passado com indiferença, quando viu abrir-se uma janela da galeria, e essa janela quase no mesmo instante servir de moldura ao honrado rosto do senhor Pompeu. Tudo quanto se relacionasse com a viscondessa inspirava um poderoso interesse em Canolles; assim, desviou os olhos das cortinas tão atractivas, e acreditou ver que Pompeu tentava estabelecer com ele uma correspondência de sinais. Ao princípio, Canolles duvidou de que os sinais lhe fossem dirigidos, e pôs-se a olhar em torno. Mas Pompeu, que observou a dúvida em que o barão estava, acompanhou os sinais, para lhe chamar a atenção, de um assobio - o qual teria parecido insolente da parte de um escudeiro para com um embaixador de Sua Majestade o rei da França, se esse assobio não fosse justificado por uma espécie de ponto branco quase imperceptível para todos e quaisquer olhos que não fossem os de um namorado, o qual desde logo reconheceu nesse ponto branco um papel enrolado.

"Um bilhete!... -exclamou Canolles consigo;- ela escreve-me... O que quer isto dizer?..."

E aproximou-se todo trémulo, embora o seu primeiro movimento fosse de uma grande alegria; mas nas grandes alegrias dos namorados nunca deixa de haver uma certa apreensão, a que talvez represente o maior encanto dela; estar convencido da sua felicidade, é não ser já feliz.

À medida que Canolles se aproximava, Pompeu mais se arriscava a mostrar o papel; por fim, Pompeu estendeu o braço, e Canolles o chapéu. Estes dois homens entendiam-se, pois, às mil maravilhas, como bem se vê; o primeiro deixou cair o bilhete; e o segundo recebeu-o com muita destreza, procurando logo o abrigo de um caramanchão para o ler à vontade; e Pompeu, que sem dúvida receava constipar-se, tornou a fechar logo a janela.

Todavia, nenhum homem pode ler sem algum receio o primeiro bilhete da mulher a quem ama, sobretudo quando este bilhete é inesperado não há razão alguma a temer, a não ser algum ataque à sua felicidade. Com efeito, que lhe poderia querer dizer a viscondessa, se não tivesse sofrido alguma alteração o programa entre eles concertado na véspera? Portanto, o bilhete em causa não podia deixar de conter alguma fatal notícia.

Canolles estava tão convencido disso que nem sequer chegou o papel aos lábios, como costumam fazer os amantes em tais circunstâncias. Antes pelo contrário, deu-lhe mil voltas, com um receio que cada vez mais crescia. Contudo, como mais tarde ou mais cedo acabaria por ver o que se lhe escrevia, socorreu-se de toda a sua coragem, abriu-o, e leu:

Senhor:

Ficarmos mais tempo na situação em que nos encontramos - e entendo que pensará como eu - é coisa absolutamente impossível; há-de magoá-lo muito passar aos olhos de toda a gente da casa por um desagradável vigia; por outro lado, receio recebê-lo melhor do que o faria a princesa, caso se encontrasse no meu lugar, e que adivinhem representarmos nós uma duplicada comédia, cujo desenlace seria a perda certa da minha reputação.

Canolles enxugou a testa: os seus pressentimentos não o tinham enganado. Com o dia, esse grande caçador de fantasmas, todos os sonhos dourados desapareciam. Abanou a cabeça, arrancou um suspiro do peito, e continuou:

Finja que descobriu o ardil de que nos servimos; para chegar a essa conclusão há um meio muito simples, e que eu mesma lhe oferecerei, se me prometer anuir à minha súplica. Bem o vê, eu não dissimulo, nem a si mesmo, o muito que dependo de si. Se aceder aos meus rogos, enviar-lhe-ei um retrato em que figuram o meu nome e as minhas armas. Dirá que este retrato foi por si descoberto numa das suas rondas nocturnas, e que por ele ficou a saber que eu não era a princesa.

Devo dizer-lhe que, em memória da dívida agradecida que guardarei no íntimo do coração, se partir esta mesma manhã, autorizo-o, supondo que lhe agradará, a guardar a miniatura.

Separe-se, pois, de mim, sem me tornar a ver, se assim for possível, e o meu reconhecimento acompanhá-lo-á a toda a parte, enquanto, do meu lado, a recordação da sua pessoa me acompanhará como a de um dos mais nobres e mais leais gentis-homens que conheci na minha vida.

Canolles leu de novo o bilhete e ficou atónito. Qualquer que seja o favor contido numa carta de despedida, por muito açucarada que seja uma recusa ou um adeus - adeus, recusa, despedida, não deixam por isso de ser um dos mais cruéis logros que se possam atirar ao coração. Não havia a mínima dúvida de que o retrato seria posse muito grata; mas o motivo pelo qual era oferecido roubava-lhe grande parte do seu valor. Além disso, qual o valor do retrato, quando o original ali se encontra, quando o temos à mão, e quando podemos não o largar?

Sim, mas Canolles, que não tinha recuado ante a cólera da rainha e de Mazarino, tremia ante um franzimento de sobrancelhas da senhora de Cambes.

Contudo, esta mulher zombara dele, em primeiro lugar na estrada, depois em Chantilly, fazendo as vezes da princesa, e, por fim, dando-lhe na véspera uma esperança que lhe roubava no dia seguinte! Mas de todos os desenganos este era o mais cruel. Na estrada ela não o conhecia, e desembaraçava-se de um companheiro incómodo, eis tudo. Tomando o lugar da princesa de Conde, obedecia a uma ordem que lhe davam, desempenhava um papel prescrito pela sua senhora e ama; não podia agir de outra maneira; mas, desta vez que o conhecia, depois de haver dado mostras de apreciar o seu fervoroso zelo, depois de ter pronunciado duas vezes aquele nós, cuja vibração se fizera sentir no íntimo do coração do mancebo - arrepiar caminho, não reconhecer a sua bondade, negar o seu agradecimento, escrever, enfim, uma tal carta, tudo isso era aos olhos de Canolles mais do que crueldade, quase que uma zombaria.

Foi esta a razão por que se agastou, por que se encolerizou, repassado de um doloroso despeito, sem observar que, por detrás daquelas cortinas, onde toda a luz se apagara, como se o dia a tivesse tornado inútil, uma espectadora oculta pelo damasco observava a pantomima do seu desespero e talvez se deleitasse.

"Sim, sim - pensava ele, acompanhando o seu pensamento de gestos análogos ao sentimento que o preocupava.- Sim, é uma despedida muito regular, muito formal, um grande acontecimento coroado de um desfecho vulgar, uma poética esperança convertida em brutal desengano. Eu, porém, não me prestarei a fazer o ridículo papel que me reservam. Prefiro o seu ódio a este suposto reconhecimento que me promete. Ah! sim, fiar-me agora na sua promessa!... O mesmo que fiar-me na constância do vento e na calmaria do mar! Ah! senhora, senhora -continuou Canolles, voltando-se para a janela - por duas vezes que me escapa. Mas eu lhe juro, se outra ocasião semelhante se me oferecer, não me escapará terceira."

E Canolles tornou a subir ao seu quarto, com a intenção de vestir-se e de entrar, por força ou às boas, na câmara da viscondessa. Todavia, ao entrar no quarto, e lançando os olhos ao pêndulo, viu que apenas eram sete horas.

Ninguém ainda estava levantado no castelo. Canolles atirou consigo para cima de uma poltrona, fechou os olhos para refrescar as ideias e expulsar, se possível, os fantasmas que dançavam em torno dele, e não os abria senão para consultar de cinco em cinco minutos o relógio.

Deram oito horas, e começaram a despertar no castelo, onde em breve tudo era movimento e ruído. A muito custo, Canolles ainda esperou coisa de meia hora; por fim, não pôde já conter-se, e desceu. Aproximou-se de Pompeu, que respirava muito ufano o ar fresco da manhã no grande pátio, rodeado de lacaios, a quem dava conta das suas campanhas na Picardia sob o comando do rei defunto:

- É você o mordomo de Sua Alteza? - disse-lhe ele, como se fosse a primeira vez que visse Pompeu.

- Sim, senhor - replicou Pompeu, atónito.

- Vá dar parte a Sua Alteza de que desejo ter a honra de lhe apresentar os meus respeitos.

- Mas, senhor... Sua Alteza...

- Está levantada.

- Contudo... -Vá.

- Eu julgava que a partida do senhor...

- A minha partida dependerá da conferência que vou ter com Sua Alteza.

- Digo isto porque não tenho ordem de minha ama.

- E eu digo isto porque tenho ordem do rei.

E Canolles, dizendo estas palavras, bateu majestosamente no bolso do seu casaco, gesto que adoptou como o mais satisfatório de quantos pudera empregar na véspera. Mas, ao mesmo tempo que tentava esta atrevida empresa, o nosso negociador via que lhe ia faltando o alento. Com efeito, desde a véspera, a sua importância sofrera grande quebra: havia perto de doze horas que a princesa - a verdadeira - partira; devia sem dúvida ter caminhado toda a noite, e estaria portanto a vinte ou vinte e cinco léguas de Chantilly. Por maior que fosse a diligência com que Canolles fizesse marchar a sua gente, não podia de modo algum alcançá-la; e caso a alcançasse, tendo partido com um cento de gentis-homens, quem lhe assegurava que a escolta da fugitiva não contasse àquela hora trezentos ou quatrocentos partidários? Restava sempre a Canolles, como na véspera dissera, o recurso de se fazer matar; mas teria ele o direito de consigo fazer matar os homens que o acompanhavam, e impor-lhes deste modo o sofrimento da sanguinolenta pena dos seus caprichos amorosos? Se na véspera se tivesse enganado relativamente aos sentimentos da senhora de Cambes para com ele, se a perturbação dela não fosse mais do que uma comédia, que lhe dava a certeza de que a senhora de Cambes não zombaria abertamente dele? Então, haveria apupada dos lacaios, apupada dos soldados ocultos na floresta, desvalimento para com Mazarino, cólera da rainha, e - muito pior que tudo isso - ruína para o seu amor nascente; porquanto, nunca mulher nenhuma amou aquele a quem por um só momento teve a intenção de tornar ridículo.

Enquanto volvia e revolvia todos estes pensamentos no seu espírito, Pompeu veio de cabeça baixa dizer-lhe que a princesa o aguardava.

Desta vez todo o cerimonial fora banido; a viscondessa esperava-o numa salazinha contígua ao quarto, vestida e em pé. Vestígios de insónia, que em vão diligenciara apagar, marcavam no seu belo rosto; grandes olheiras, sobretudo, denunciavam que os seus lindos olhos se não haviam fechado.

- Bem vê, senhor - disse-lhe ela, sem lhe dar tempo de ser quem primeiro falasse- inclino-me perante o seu desejo, mas com a esperança, confesso-o, de que esta entrevista seja a última, e de que o senhor, por seu turno, também cederá ao meu desejo.

- Perdoe-me, senhora - disse Canolles - mas em consequência da nossa conversa de ontem, esperava menos rigor nas suas exigências, e confiava em que, como remuneração pelo que fizera por amor de si (de si somente, pois que não conheço a princesa de Conde; creio que me compreenderá...), dignar-se-ia consentir em ficar mais tempo em Chantilly.

- Sim, senhor, confesso - disse a viscondessa- no primeiro momento... a perturbação inevitável da posição em que me encontrava, a grandeza do sacrifício que fez por mim... o interesse da princesa, a quem muito importava que eu ganhasse tempo, puderam arrancar da minha boca algumas palavras que não estavam de acordo com o meu pensamento; mas, durante esta longa noite, tenho reflectido: uma demora maior de si ou de mim neste castelo, é coisa que se torna impossível.

- Impossível, senhora?! -estranhou Canolles.- Esquece-se então de que tudo é possível, a quem fala em nome do rei?...

- Senhor de Canolles, congratulo-me que antes de tudo seja gentil-homem, e não abusará da posição em que me colocou o meu extremoso afecto a Sua Alteza.

- Senhora - respondeu Canolles - antes de tudo sou um louco; já percebeu isso muito bem, ai de mim! só um louco podia fazer o que eu fiz. Pois então compadeça-se da minha loucura: não me desterre da sua presença, suplico-lhe!

- Em tal caso, senhor, serei eu quem se ausentará daqui. Serei pois eu, senhor, quem, embora o contrarie, o restituo ao desempenho dos seus deveres. Veremos se me quer deter por força, e expor-nos ambos a um estrondoso escândalo. Não, não senhor - continuou a viscondessa, com um acento que Canolles ouvia vibrar pela primeira vez - não. Não deixará de ponderar que não pode ficar eternamente em Chantilly; lembrar-se-á de que em outra parte o esperam.

Esta insinuação, que brilhou como um relâmpago aos olhos de Canolles, recordou-lhe a cena da estalagem de Biscarros, a descoberta que a senhora de Cambes fizera sobre a ligação de Nanon com o mancebo, e então descobriu qual a razão para tudo aquilo.

Aquela insónia não era causada pelas ansiedades do presente, mas sim pelas recordações do passado. Aquela resolução matutina de fazer afastar Canolles, não era o resultado da reflexão, mas sim a expressão do ciúme.

Houve então entre os dois seres, de pé em frente um do outro, um silêncio momentâneo; mas, durante este silêncio, cada um deles escutava a palavra do seu próprio pensamento, que falava em seu peito com as palpitações do coração.

"Ciumenta! -dizia Canolles.- Ciumenta! Oh! desde este momento tudo compreendo. Sim, sim! Quer certificar-se de que a amo bastante para lhe sacrificar outro qualquer amor! Quer experimentar-me..."

Por sua vez, ela dizia consigo mesma:

"Sou para o senhor de Canolles uma distracção de espírito; encontrou-se comigo no momento, sem dúvida, em que se via obrigado a sair da Guiena, e seguiu-me como o viajante segue o fogo-fátuo; mas o seu coração ficou naquela pequena casa rodeada de árvores, para onde se encaminhava naquela tarde em que nos encontrámos. É portanto impossível que deixe ficar junto de mim um homem que ama outra mulher, e a quem eu, se com ele convivesse mais tempo, talvez tivesse a fraqueza de amar. Oh! não só atraiçoaria a minha honra, mas atraiçoaria também os interesses da princesa, se tivesse a baixeza de amar o agente dos seus perseguidores!"

E por isso exclamou subitamente, respondendo ao seu próprio pensamento:

- Oh! não, não, é preciso ausentar-se, senhor; se não se ausentar, ausento-me eu.

- Esquece-se, senhora - disse Canolles- de que me deu a palavra de não se ausentar sem primeiro me avisar da partida...

- Pois então, senhor, dou-lhe parte de que vou sair de Chantilly neste mesmo instante.

- E crê que eu consinta em tal?...- disse Canolles.

- Como!? -exclamou a viscondessa.- Deter-me-ia pela força?!...

- Senhora, eu não sei o que farei, mas o que sei é que não posso separar-me de si.

- Então estou presa e é o meu carcereiro, não é assim?

- A senhora é uma mulher que já por duas vezes perdi, e a quem não quero perder terceira vez.

- Em tal caso, temos violência, não?

- Sim, senhora, violência -respondeu Canolles- se não tiver outro processo de mantê-la aqui.

- Oh! - exclamou a senhora de Cambes - que felicidade, com efeito, a de guardar uma mulher que geme, que clama pela liberdade, que não o ama, que o detesta!...

Canolles estremeceu, e esforçou-se por distinguir rapidamente o que havia na palavra e o que havia no pensamento. Compreendeu que era chegado o momento de se aventurar a tudo ganhar, ou tudo perder.

- Senhora - disse ele - as palavras que acaba de pronunciar, com um acento tão verdadeiro que não é possível enganar-me quanto ao seu significado, põem termo a todas as minhas incertezas. Gemendo, escrava?... Eu, o guarda de uma mulher que me não ama, que me detesta?... Não, senhora, fique sossegada: tal não acontecerá. Eu acreditara, tamanha era a felicidade que experimentava quando a via, que lhe não era desagradável a minha presença; consolara-me com a ideia de que, depois de haver perdido a consideração, o repouso da consciência, o futuro, a honra talvez, me indemnizaria deste sacrifício concedendo-me o favor de algumas horas que sem dúvida nunca mais se me oferecerão. Tudo isso era possível, se me amasse... e até se olhasse com indiferença, porquanto é boa pessoa, e teria feito por compaixão o que outra faria por amor; mas agora não é já com a indiferença que tenho de lutar, mas com o ódio; e desde logo tudo muda. Tem razão. Perdoe-me somente, senhora, não ter compreendido que pudesse ser maçador um homem que ama com tanto ardor. A si cumpre ficar, rainha, senhora e livre, neste castelo como em qualquer outra parte; eu é que tenho de retirar-me e, portanto, retiro-me. Dentro de dez minutos terá reconquistado toda a liberdade. Adeus, senhora, adeus .para sempre!

E Canolles, numa perturbação que, de fingida que era no início, se tornara depois real e dolorosa, por fim saudou a senhora de Cambes, rodou nos calcanhares, procurando a porta com que não acertava, e repetindo a palavra adeus com um acento tão profundamente pesaroso, que, partindo do coração, penetrava o coração. As verdadeiras aflições têm, como as tempestades, uma voz que lhes é própria.

A senhora de Cambes não esperava uma tal obediência da parte de Canolles; chamara em seu socorro todas as suas forças para uma luta, e não para uma vitória; e, por seu turno, ficou confusa e atónita, vendo tanta resignação acompanhada de tanto amor; e quando o mancebo já dera dois passos para a porta, estendendo os braços ao acaso, e arrancando uma espécie de soluço, sentiu pousar-lhe no ombro uma firme mão, com pressão mais do que significativa; não lhe tocavam só, detinham-no. Voltou-se então. A senhora de Cambes estava diante dele. O seu braço, estendido com graça, ainda lhe tocava no ombro, e a momentânea expressão de dignidade que antes tinha impressa no rosto, tornara-se em delicioso sorriso.

- Então, senhor - disse ela - é assim que obedece à rainha?... Seria capaz de atraiçoá-la a ponto de partir quando tem ordem de ficar aqui?...

Canolles deu um grito, caiu de joelhos, e encostou a sua fonte ardente às duas mãos que ela lhe estendia.

- Oh! não sei como não morro de alegria! - exclamou ele.

- Ah! não se regozije ainda - disse a viscondessa - pois se eu o detenho é para que não nos separemos deste modo, é para que não vá com a ideia de que sou uma ingrata, é para que me desobrigue voluntariamente da palavra que lhe dei, é para que ao menos veja em mim uma amiga, visto que os nossos partidos opostos obstam a que eu jamais possa ser para si outra coisa.

- Oh! meu Deus! -queixou-se Canolles- será possível que ainda me tenha enganado outra vez?... não me ama!...

- Não falemos dos nossos sentimentos, senhor barão, mas sim dos perigos que ambos corremos se aqui ficarmos; vejamos: ou parte o senhor, ou deixa-me partir; assim é necessário.

- Que me diz, senhora!?

- A verdade. Deixe-me aqui; volte para Paris; diga a Mazarino, diga à rainha o que lhe aconteceu. Ajudá-lo-ei em tudo quanto de mim depender; parta, porém; parta!

- Mas... será preciso repetir-lho?... -exclamou Canolles.- Separar-me de si é morrer!

- Não, não, não morrerá, pois conservará a esperança de que nos tornaremos a encontrar em tempos mais felizes.

- O acaso colocou-me no seu caminho, senhora, ou, para melhor dizer, colocou-a já por duas vezes no que eu seguia; o acaso cansar-se-á, e se eu me separar de si, não tornarei jamais a encontrá-la.

- Pois então, se assim for eu é que o procurarei, senhor de Canolles.

- Oh! senhora, peça-me que morra por si; a morte é um instante de dor, nada mais. Mas não torne a pedir-me que me aparte de si. Com esta única ideia sinto despedaçar-se-me o coração. Mas peço-lhe que se lembre de que apenas a tenho visto, e pouco lhe tenho falado...

- Então, se eu lhe permitir que fique hoje aqui, se todo o dia puder ver-me e falar-me, dar-se-á por contente? Diga!

- Nada prometo.

- Em tal caso, nem eu tão-pouco. E o único compromisso que consigo tinha contraído era o de avisá-lo do momento em que tivesse de partir. Saiba pois que parto dentro de uma hora.

- Terei então que fazer tudo o que quiser? Terei de obedecer-lhe em tudo e por tudo? Terei de fazer abnegação de mim mesmo para seguir cegamente a sua vontade?... Sendo assim, já que tanto é preciso, ficará satisfeita. Já não tem diante de si mais do que um escravo pronto a obedecer-lhe. Dê-me as suas ordens, senhora.

Clara estendeu a mão ao barão, e com a voz mais doce e mais meiga, disse-lhe:

- Um novo acordo, em troca da minha palavra - disse ela. - Se eu não me separar de si desde este momento até às nove horas da noite, partirá às nove horas?...

- Juro-lhe que sim!

- Então, venha comigo! O céu azu! e sem nuvens, promete-nos um dia delicioso: há orvalho na relva, perfumes no ar, bálsamo nos bosques... Vem cá, Pompeu!

O digno mordomo, que sem dúvida recebera ordem de não se arredar da porta, entrou no mesmo instante.

- Os meus cavalos, para ir dar um passeio - disse a senhora de Cambes, com o seu ar de princesa. - Vou esta manhã aos lagos, e volto pela herdade, onde almoçarei... Acompanhar-me-á, senhor barão - continuou ela. - Isto faz parte das atribuições do seu cargo, visto que recebeu de sua majestade a rainha ordem de não me perder de vista.

Uma nuvem de júbilo sufocador cegava o mancebo, e envolvia-o como aqueles vapores que outrora arrebatavam os deuses do céu; deixou-se conduzir sem oposição, e quase sem vontade; estava arquejante, embriagado, louco. Em breve, no meio de um bosque encantador, à sombra de árvores misteriosas, cujos ramos caíam flutuantes na sua fronte descoberta, abriu de novo os olhos às coisas materiais. Estava de pé, mudo, com o coração apertado de uma alegria quase tão pungente como a dor; via-se caminhando de mãos dadas com a senhora de Cambes, que estava tão pálida, tão muda, e sem dúvida tão feliz como ele.

Pompeu caminhava após eles, bastante perto para tudo ver, e convenientemente longe para nada ouvir.

termo deste dia inebriante chegou como sempre chega o fim de um sonho; as horas haviam-se passado como segundos para o afortunado gentil-homem, e, contudo, parecia-lhe que adquiria neste simples dia recordações para três existências vulgares. Cada uma das ruas do parque fora enriquecida com uma palavra, com uma lembrança da viscondessa; um olhar, um gesto, um dedo posto na boca, tudo tinha o seu significado... Entrando no barco, ela apertara-lhe a mão; quando voltara para terra, encostara-se ao seu braço; costeando o muro do parque, sentira-se cansada, e sentara-se. A cada um destes deslumbramentos, que passavam como relâmpagos diante dos olhos do mancebo, a paisagem, iluminada por um clarão fantástico, conservara-se presente na sua memória, não só no seu todo, mas também nas mais ligeiras circunstâncias.

Canolles não devia separar-se da viscondessa durante todo o dia; ao almoço convidara-o a jantar, e ao jantar convidara-o a cear. No meio de todo o esplendor com que a falsa princesa devia receber o enviado de um rei, Canolles distinguiu as meigas atenções da mulher enamorada. O mancebo esqueceu-se dos criados, da etiqueta, do mundo; até se esquecera da promessa que fez de se retirar, e julgou-se estabelecido por toda a ditosa eternidade naquele paraíso terrestre, de que ele seria o Adão e ela a Eva.

Todavia, quando chegou a noite, quando a ceia também, por sua vez, acabou do mesmo modo que se tinham cumprido todos os outros actos desse dia - isto é: numa inefável alegria; quando à sobremesa uma dama de honor trouxe Pedrito, sempre disfarçado de duque de Enghien, e que se aproveitara da circunstância para comer tanto como o teriam feito quatro príncipes de sangue juntos; quando o som do pêndulo começou a ecoar, e a senhora de Cambes, levantando os olhos, ficou certa de que iam dar nove horas, disse-lhe, suspirando:

- Agora são horas.

- Horas de quê? - perguntou Canolles, diligenciando sorrir, e tentando rebater com um gracejo uma grande desgraça.

- Horas de cumprir a palavra que me deu.

- Ai! senhora -replicou Canolles, com tristeza- então de nada se esquece?...

- Talvez me tivesse esquecido, como o senhor - disse ela - mas eis algo que me restitui a memória...

E tirou da algibeira uma carta que recebera no momento de se sentar à mesa.

- De quem é essa carta? - perguntou Canolles.

- Da princesa, que me chama para junto dela.

- Quanto mais não seja, sempre é um pretexto, e tenho de agradecer-lhe a lisura com que me trata.

- Não se iluda, senhor de Canolles - respondeu a viscondessa, com uma tristeza que não tentava ocultar. - Ainda que não tivesse recebido esta carta, tê-lo-ia lembrado à hora combinada, como acabo de fazê-lo, da vossa partida. Crê que as pessoas que nos rodeiam deixariam em breve de observar a nossa mútua inteligência?. .. As nossas relações, e nisto não pode deixar de concordar, não são as de uma princesa perseguida com o seu perseguidor.

Mas agora, se esta separação é para si tão cruel como dá a entender, permita-me que lhe diga, senhor barão, que só de si depende que não nos separemos.

- Fale! oh! fale! - exclamou Canolles.

- Pois não adivinha?...

- Oh! senhora, pelo contrário, muito bem o adivinho! Quer falar-me em acompanhá-la, e que vá consigo reunir-me à princesa. Não é isso?

- Ela própria me fala disso, nesta carta - disse com viveza a senhora de Cambes.

- Agradeço que essa lembrança não lhe ocorresse a si, e também agradeço a perturbação com que me faz tal proposta. Não que a minha consciência se indigne com a ideia de servir este ou aquele partido. Não, eu, da minha parte, não me sinto dominado por convicção alguma; quem é que, nesta guerra, pondo de parte os interessados, a pode ter? Quando a espada estiver desembainhada, que me importa a mim que o golpe seja daqui ou dali? Eu não conheço a corte, não conheço os príncipes: independente pela minha fortuna, sem ambição, nada espero nem de uns nem de outros. Sou oficial, eís tudo.

- Nesse caso, consentiria em acompanhar-me?...

- Não, senhora.

- Mas porque não, se as coisas são como as diz?

- Porque baixaria na sua estimação.

- É esse o único obstáculo que o detém?

- Juro-lho.

- Oh! então nada receie.

- A senhora mesma não acredita no que diz neste momento - replicou Canolles, levantando o dedo e sorrindo. - Um trânsfuga é sempre um traidor; a primeira palavra não soa tão mal; porém, ambas têm o mesmo valor.

- Concordo consigo, tem razão - disse a senhora de Cambes - e, portanto, não insistirei mais. Caso se encontrasse numa posição neutra, teria tentado fazer com que abraçasse a causa dos príncipes; mas, sendo um enviado do rei, encarregado de uma missão de confiança por Sua Majestade a rainha-regente, e pelo primeiro-ministro, honrado com a benevolência do duque D’Épernon, que, apesar das desconfianças que eu logo concebera, o protege, segundo me asseguram, de um modo muito especial... (Canolles corou.) Serei portanto o mais discreta possível. Mas, preste-me atenção, senhor barão: nós não nos separamos para sempre, fique certo disso; tornar-nos-emos a encontrar, os meus pressentimentos assim mo dizem.

- E onde? - perguntou Canolles.

- Não o posso saber; mas decerto tornaremos a ver-nos. Canolles abanou tristemente a cabeça.

- Não o creio, senhora - disse ele.- Entre nós há guerra: isto é demasiado, quando ao mesmo tempo não há amor.

- E o dia de hoje? - perguntou num tom arrebatadora a viscondessa. - Não tem significado para si?...

- É o único em que eu tenho toda a certeza de haver vivido desde que existo no mundo.

- Então, vê perfeitamente que é um ingrato.

- Conceda-me um segundo dia semelhante a este - insistiu Canolles.

- Não posso, tenho de partir esta noite.

- Não peço para amanhã, para depois de amanhã; peço-lhe para o futuro, seja quando for. Marque o tempo que quiser, escolha o lugar que quiser, contanto que eu viva com uma certeza; muito teria ainda a sofrer se não tivesse mais do que uma esperança.

- Para onde vai agora?

- Para Paris, dar conta da minha missão.

- E depois?

- Talvez para a Bastilha.

- Mas supondo que não irá para lá...

- Volto para Libourne, onde deve estar o meu regimento.

- E eu para Bordéus, onde estará a princesa. Conhece alguma aldeia pouco frequentada no caminho de Bordéus para Libourne?

- Conheço uma, cuja recordação quase que me é tão cara como Chantilly.

- Jaulnay? - disse sorrindo a viscondessa.

- Jaulnay - repetiu Canolles.

- Pois então, são precisos quatro dias para chegar a Jaulnay; hoje é terça-feira; no domingo, demorar-me-ei lá todo o dia.

- Oh! muito agradecido! - exclamou Canolles, comprimindo nos lábios a mão da senhora de Cambes, que esta não tivera o ânimo de retirar.

Depois, passado um momento:

- E agora - disse ela- ainda temos de representar a nossa comediazinha.

- Ah, sim! a comédia que deve tornar-me ridículo aos olhos de toda a França. Mas não tenho de que me queixar: eu é que assim o quis, eu é que, se não escolhi o papel que nela represento, pelo menos preparei o desfecho que a coroa.

A senhora de Cambes baixou os olhos.

- Agora diga-me o que tenho de fazer - disse Canolles, impassivelmente.- Espero as suas ordens, e para tudo estou pronto.

Clara estava tão comovida que Canolles apercebia, sob o vestido de veludo, as palpitações desiguais e precipitadas do seu peito.

- Faz por mim um enorme sacrifício, bem o sei; mas pelo Santo Nome de Deus, pode acreditar-me! Ficar-lhe-ei eternamente agradecida. Sim, por amor de mim vai cair no desagrado da corte; sim, vai ser julgado com toda a severidade. O que lhe peço, senhor, é que tudo isso despreze, se lhe dá algum prazer o pensamento de me haver tornado feliz.

- Farei, senhora, tudo o que de mim depender.

- Creia-me, senhor barão - continuou a senhora de Cambes. - Essa fria dor a que o vejo entregue, causa-me um horrível remorso. Talvez que outras o recompensassem mais amplamente do que eu faço; mas, senhor, uma recompensa que se concedesse com tanta facilidade não seria uma paga digna dos seus sacrifícios.

E, dizendo estas palavras, Clara baixava os olhos, dando um suspiro de pudico sofrimento.

- É tudo quanto tinha que me dizer? - perguntou Canolles.

- Aqui tem - disse a viscondessa, tirando do peito um retrato, que apresentou a Canolles. - Leve-o, e a cada mágoa que lhe causar este desgraçado negócio, olhe para ele, diga que, quando sofre, é por amor daquela cuja imagem tem nas mãos, e que cada um dos seus sofrimentos é pago com pesares.

- E nada mais?...

- Com estimação. -É tudo?...

- E com simpatia.

- Ah! senhora, uma palavra mais! -exclamou Canolles.- Que dificuldade pode ter em fazer-me completamente feliz?...

Clara fez um movimento rápido para o mancebo, estendeu-lhe a mão, e abriu a boca para ajuntar: "E com amor."

Mas ao mesmo tempo que abria a boca, abriram-se as portas, e o suposto capitão dos guardas apresentou-se a uma delas, acompanhado de Pompeu.

- Em Jaulnay direi o resto - disse a viscondessa.

- Da frase, ou do pensamento?

- De ambos; a frase é sempre a expressão do pensamento.

- Senhora - disse o capitão das guardas- a carruagem de Vossa Alteza está pronta para partir.

- Dê mostras de espanto - disse em voz baixa Clara a Canolles. O gentil-homem teve um sorriso de lástima que a si próprio dirigia.

- Para onde vai Vossa Alteza? - perguntou ele.

- Vou partir.

- Mas Vossa Alteza não se lembra que recebi de Sua Majestade a comissão de me não separar de si um só momento?

- Senhor, a sua comissão terminou.

- Que quer dizer com isso?

- Que eu não sou Sua Alteza a princesa de Conde, mas tão-somente a viscondessa de Cambes, sua primeira dama de honor. A princesa partiu ontem à noite, e eu vou ter com ela.

Canolles ficou imóvel; era visível a sua repugnância em continuar a representação desta comédia diante de uma plateia de lacaios.

A senhora de Cambes, para dar alento a Canolles, envolveu-o então num terno olhar; olhar que lhe deu alguma coragem.

- Então o rei foi enganado?!... e o duque de Enghien onde está!?

- Ordenei a Pedrito que tornasse às suas mantilhas - disse uma voz grave, à entrada do quarto.

Esta voz era a da princesa viúva, que estava em pé à porta, encostada a duas damas.

- Volte para Paris, para Nantes, para São Germano, volte para a corte, enfim: a sua comissão terminou aqui. Dirá ao rei que as pessoas perseguidas recorrem à astúcia, o que malogra o emprego da força. Contudo, tem toda a liberdade de ficar em Chantilly, para me vigiar a mim, que não saí, nem sairei deste castelo, porque tal é o meu desígnio. É tudo quanto se me oferece dizer-lhe, senhor barão; receba a minha saudação de despedida.

Canolles, vermelho de vergonha, teve apenas força para se inclinar, olhando para a viscondessa, e resmungando em tom de repreensão:

- Oh! senhora! senhora!

A viscondessa compreendeu este olhar, e ouviu as palavras.

- Permita-me Vossa Alteza - disse ela, dirigindo-se à princesa viúva- que represente ainda no espaço de um segundo o papel da princesa. Quero agradecer ao barão de Canolles em nome das ilustres pessoas que saíram desta casa, o respeito e a delicadeza com que se houve no desempenho de uma comissão tão difícil; tenho o atrevimento, senhora, de crer que Vossa Alteza é deste parecer, e de esperar, por conseguinte, que se dignará juntar aos seus agradecimentos os meus.

A princesa viúva, abalada por ouvir estas palavras tão firmes, e a quem a sua profunda sagacidade talvez revelasse uma das faces deste novo segredo acrescentado ao anterior, pronunciou então, com uma voz não isenta de certa comoção, as seguintes palavras:

- De tudo o que fez contra nós, senhor, esquecimento; por tudo o que fez a favor da minha casa, reconhecimento.

Canolles pôs um joelho no chão, diante da princesa, que lhe deu a beijar aquela mão que Henrique IV tantas vezes beijara.

Era este o complemento da cena, era esta a despedida irremissível, nada mais, portanto, restava já a Canolles senão partir, tal como ia fazer a senhora de Cambes; recolheu pois, ao seu quarto, e foi à pressa escrever a Mazarino, dando-lhe parte de quanto se passara nos termos mais furibundos que lhe ocorreram: com este relatório esperava evitar os primeiros repentes do seu sobressalto ao receber tal notícia. Depois, atravessando, não sem algum receio de por eles ser insultado, as fileiras dos criados do castelo, chegou ao pátio, onde já tinham um cavalo pronto.

No momento de pôr um pé no estribo, uma voz imperiosa proferiu estas palavras:

- Façam as honras ao enviado de Sua Majestade o rei, nosso amo e senhor.

Estas palavras fizeram curvar todas as frontes diante de Canolles, que depois de se ter inclinado defronte da janela onde se encontrava a princesa viúva, deu de esporas ao cavalo e desapareceu de cabeça levantada.

Castorin, desencantado do belo sonho com que Pompeu o embalara no seu falso papel de mordomo, seguiu o amo, de cabeça baixa.

 

VOLTEMOS agora a falar de um dos intervenientes mais importantes desta história, que, montado num bom cavalo, percorre a estrada real de Paris a Bordéus, rodeado por cinco companheiros, cujos olhos se arregalam ao mais leve tinido de um saco recheado de escudos de ouro, e que o tenente Ferguzon leva o preso ao arção da sua cela. Tal "melodia" agrada e faz temer o grupo, tal como o som dos tambores e dos instrumentos alenta o soldado nas marchas.

- Não importa, não importa - dizia um dos seis homens. - Dez mil libras é uma boa soma.

- Sem dúvida -respondeu Ferguzon- que seria uma boa soma, caso daqui se não devesse nada a ninguém; mas deve-se uma companhia à princesa; "nimium satis est" -como dizia a Antiguidade o que se pode traduzir por estas palavras: - Só o demasiado-é bastante. Ora, meu querido Barrabás, nós não temos aquele famoso bastante que corresponda a demasiado.

- Sai muito caro, parecer homem de bem! - disse Cauvignac. - Toda a receita do cobrador régio se converteu em arreios, sobretudos e bordados: estamos tão brilhantes como fidalgos, e o nosso luxo chega a ponto de termos bolsas; verdade seja dita que nada tão dentro... Oh, aparência!...

- Assim será, capitão, quanto a nós; mas quanto a si... - replicou Barrabás - tem a bolsa e dentro dela dez mil libras.

- Amigo - disse Cauvignac- não ouviram, ou compreenderam mal o que acaba de dizer Ferguzon acerca das nossas obrigações para com a princesa... Eu não sou daqueles que se comprometem a uma coisa e fazem outra. O senhor Lenet deu-me dez mil libras para levantar uma companhia: hei-de levantá-la, que me leve o Diabo. E no dia em que ela estiver organizada, há-de dar-me outras quarenta mil. Então, se não pagar essas quarenta mil libras, veremos...

- Com dez mil libras?!... - exclamaram em coro quatro vozes irónicas. É que Ferguzon, que tinha toda a confiança no engenho do chefe, era único de toda a companhia que parecia convencido de que Cauvignac alcançaria o resultado prometido.- Espera, então, levantar uma companhia com dez mil libras?...

- Sim - disse Cauvignac - ainda que a essa quantia se tivesse de juntar alguma coisa.

- E quem é que lhe juntará alguma coisa? - perguntou uma voz.

- Não hei-de ser eu - disse Ferguzon.

- Então quem? - perguntou Barrabás.

- Ora essa não é má! O primeiro que aparecer! Ali vem um, mesmo a calhar... não o vêem lá em baixo, na estrada?... Não tardarão a vê-lo...

- Já compreendo - declarou Ferguzon.

- E nada mais? - perguntou Cauvignac.

- Sim - disse um dos cavaleiros, aproximando-se de Cauvignac- sim, compreendo muito bem que está empenhado em preencher as suas obrigações, capitão; contudo, quem sabe se não perderíamos algo ao sermos demasiado honrados. Hoje, somos necessários; mas se a companhia amanhã estivesse organizada, mandar-lhe-iam oficiais de confiança, e a nós, que tivemos o trabalho a levantá-la, despedir-nos-iam.

- Você é um grande pedaço de asno, meu amigo Carretel, e não é esta a primeira vez que lho digo - replicou Cauvignac. - O miserável raciocínio que acaba de fazer priva-o do posto que eu lhe destinava nesta companhia, pois é evidente que nós seremos os seis oficiais de um tal núcleo de exército. Eu, Garrotei, desde logo o nomearia alferes; e agora não será mais do que sargento. Graças à pobreza que acaba de ouvir, Barrabás, e já que nada disse, é você quem ocupará aquele posto, até que, sendo enforcado Fer-guzon, seja promovido por direito de antiguidade. Mas não percamos de vista o meu primeiro soldado, que já descubro lá em baixo.

- Tem alguma ideia de quem seja aquele homem, capitão? - perguntou Ferguzon.

- Nenhuma.

- Deve ser algum burguês: usa um capote preto.

- Está certo disso?

- Pois não o vê? O vento levanta-lho de um dos lados.

- Se traz capote negro, é algum burguês rico; em tal caso tanto melhor: recrutamos para o serviço dos príncipes, e é de suma importância que a companhia se componha de boa gente. Se fosse para aquele bigorrilha do Mazarino, qualquer coisa serviria; mas para os príncipes, isso já é outra coisa! Ferguzon, não se me tira da cabeça que a minha companhia me fará honra, como diz Falstaff.

O grupo deu de esporas para alcançar o burguês, que ia muito pacificamente seguindo o seu caminho pelo meio da estrada.

Quando aquele digno homem, que montava numa boa mula, deu pelos belos cavaleiros a galope, parou respeitosamente, chegando-se para o lado da estrada, e saudando Cauvignac.

- O homem é cortês - disse este. - Isto já é bom presságio. Mas não sabe fazer a continência militar; ensinar-lha-emos.

Cauvignac respondeu à sua saudação; depois, colocando-se ao seu lado, ombro com ombro:

- Digne-se dizer-nos, senhor, se ama o rei.

- Que dúvida pode haver nisso! ?... - respondeu o burguês.

- Às mil maravilhas! -volveu Cauvignac, arregalando os olhos arrebatados de júbilo. - E a rainha?

- A rainha!... Venero-a de todo o meu coração!

- Cada vez melhor! E Mazarino?

- Mazarino é um grande homem, senhor, e admiro-o!

- Cada vez melhor ainda. Então -continuou Cauvignac-tivemos a sorte de encontrar um bom servidor de Sua Majestade

- Disso, meu senhor, faço questão!

- E pronto a testemunhar-lhe o seu zelo...

- Em toda e qualquer ocasião.

- E como isto vem tanto a propósito! O certo é que só as estrelas reais podem oferecer tão felizes encontros.

- Que quer dizer com isso? - perguntou o burguês, principiando a olhar para Cauvignac com uma certa desconfiança.

- Quero dizer, senhor, que tem de acompanhar-nos. O burguês deu um salto na cela, de surpresa e susto:

- Acompanhá-los aonde, senhor?

- Para dizer a verdade, ainda não sei muito bem aonde vamos.

- Eu, senhor, só costumo viajar em companhia de pessoas a quem conheço!

- É muito justo, que assim deve fazer todo o homem prudente; vou, por conseguinte, dizer-lhe quem nós somos.

O burguês fez um movimento, que dava indício de já o haver adivinhado; Cauvignac continuou sem dar mostras de ter reparado nesse movimento.

- Eu sou - disse ele- Rolando de Cauvignac, capitão de uma companhia -ausente, verdade seja- mas dignamente representada por Luís Gabriel Ferguzon, meu tenente; por Jorge Guilherme Barrabás, meu alferes; por Zeferino Garrotei, meu sargento; e por estes dois senhores, um dos quais é meu furriel, e o outro meu quartel-mestre. Agora, senhor, ficou a conhecer-nos - continuou Cauvignac com ar muito risonho - e alegro-me de que nenhuma antipatia terá para connosco.

Mas, senhor, eu já servi Sua Majestade na guarda urbana e pago pontualmente os meus tributos, taxas, imposições, etc... - respondeu o burguês.

- E por isso, senhor -continuou Cauvignac- não é para o serviço de Sua Majestade que pretendo alistá-lo, mas sim para o dos príncipes, de quem sou indigno representante.

- Para o serviço dos príncipes inimigos do rei?!... -exclamou o burguês, cada vez mais atónito. - Qual é, pois, o motivo por que me perguntava se amava Sua Majestade?

- Porque, senhor, se não amasse o rei, se acusasse a rainha, se blasfemasse de Mazarino, eu de modo nenhum o teria desviado das suas ocupações; seria então para mim tão sagrado como se meu irmão.

- Mas enfim, senhor... eu não sou um escravo, não sou um servo!...

- Não, senhor: é soldado; isto é, tem inteira liberdade para chegar a ser capitão, como eu, ou marechal da França, como o senhor de Turenne.

- Senhor, tenho advogado muitas causas na minha vida.

- Ah! tanto pior, senhor, tanto pior; o hábito das demandas é um mau hábito. Eu nunca as tive, senhor, e o motivo disso talvez seja porque estudei para ser letrado.

- Eu, porém, advogando, aprendi as leis do Reino...

- Para isso é preciso muito tempo. Saiba, senhor, que desde as Pandectas de Justiniano até ao acento do Parlamento que declara, por motivo da morte do marechal d’Ancre, que nunca poderá um estrangeiro ser ministro de Estado em França, há dezoito mil setecentas e setenta e duas leis, sem contar os ordenanças; mas enfim há mentes privilegiadas que têm uma memória espantosa. Pico de Ia Mirandola falava doze línguas aos dezoito anos... E que fruto colheu do conhecimento dessas leis, senhor?

- O fruto, sim, o fruto de saber que sem autorização não se anda obrigando pelas estradas a assentar praça.

- Eu estou munido de uma autorização, senhor... Ei-la aqui.

- Da senhora princesa?...

- De Sua Alteza em pessoa.

E Cauvignac tirou o chapéu com todo o respeito.

- Pelo que vejo há dois reinos, na França!...-exclamou o burguês.

- Sim, senhor, e eis a razão por que tenho a honra de lhe pedir preferência, porque considero um dever alistá-lo para o seu serviço.

- Eu apelarei para o Parlamento!

- Não há dúvida de que é um terceiro rei, e também terá provavelmente ocasião de servi-lo. A nossa política é larga. Vamos, a caminho, senhor!

- Mas isto é impossível, senhor! Esperam-me para certos negócios. ..

- Onde?

- Em Orleães.

- E quem o espera?

- O meu procurador.

- E para que negócios?

- Para negócios de dinheiro.

- O primeiro negócio é o serviço do Estado, senhor!

- Acaso não podem passar sem mim?

- Nós contávamos consigo! E far-nos-á muita falta, na verdade! Contudo, se, como diz, se encaminhava a Orleães para negócios de dinheiro...

- Sim, senhor, para negócios de dinheiro.

- E que quantia?

- De quatro mil libras.

- Que ia receber?

- Não, que ia pagar.

- Ao seu procurador?

- Precisamente, senhor.

- Por alguma demanda que ganhou, não?

- Por uma demanda perdida.

- Com efeito, isso é coisa digna de consideração... Quatro mil libras!...

- Quatro mil libras.

- É justamente a quantia que desembolsaria, caso os príncipes consentissem que os seus serviços fossem substituídos pelos de um mercenário.

- Essa agora! Poderei achar um homem que me substitua por trezentas libras, eu...

- Quem substitua um homem da sua catadura, que monte uma mula com os pés para fora como o senhor, que saiba dezoito mil e setecentas e setenta e duas leis?!... Ora! Deixemo-nos disso, senhor! Se fosse algum homem comum, sim, trezentas libras seriam sem dúvida suficientes; mas se nos contentássemos com substitutos ordinários, não valeria a pena fazer concorrência ao rei. Precisamos de homens do seu mérito, da sua graduação, e da sua estatura. Que diabo! Não se menospreze: parece-me que vale bem as quatro mil libras!

- Vejo perfeitamente qual é o seu fito! - exclamou o burguês. - Um roubo à mão armada!

- Senhor, insulta-nos - disse Cauvignac- e esfolá-lo-íamos em vida para reparação desse insulto, se não nos gabássemos de que os exércitos dos príncipes conservam a boa reputação de que gozam. Não, senhor: dê-nos as suas quatro mil libras, mas não acredite que isto seja uma extorsão; nada mais é do que uma necessidade.

- E quem há-de então pagar ao meu procurador!? -Nós.

- Os senhores? Mas, entregar-me-ão um recibo dele?...

- Sim, senhor, um recibo em forma.

- Assinado por ele?

- Assinado por ele.

- Então, isso é outra coisa.

- Bem o vê. Aceita, então-.- Que remédio tenho eu, visto que o não posso evitar.

- Agora, diga-nos onde vive o procurador, e dê-nos algumas informações mais, que são indispensáveis.

- Já lhes disse que era uma condenação em resultado de uma demanda perdida.

- Contra quem?

- Contra um certo Biscarros, que é autor nesta demanda como herdeiro da mulher, que era orleanesa.

- O caso é digno de atenção! - disse Ferguzon. Cauvignac fez um aceno sorrateiro com os olhos, que queria

dizer: "Nada receies, que eu estou alerta."

- Biscarros - continuou Cauvignac - não é um estalajadeiro dos arredores de Libourne?

- É esse mesmo, que tem a sua habitação entre essa cidade e Saint-Martin de Cubzac.

- Na estalagem Bezerro de Ouro?

- Ali mesmo. Conhece-o? -Tenho ouvido falar dele.

- Que miserável! Fazer-me condenar ao reembolso de tal soma!...

- Que lhe não devia?...

- Não tanto assim... mas que tinha toda a esperança de nunca lhe pagar.

- Muito bem, compreendo que isso é coisa dura.

- E por isso dou-lhe a minha palavra que prefiro ver esse dinheiro nas vossas mãos do que nas dele.

- Sendo assim, julgo que ficará satisfeito.

- Mas, e o meu recibo?

- Venha connosco, e recebê-lo-á em boa firma.

- Como farão para almoçar?

- Isso fica por minha conta.

Foram continuando a caminhar para Orleães, aonde chegaram passadas duas horas. O burguês conduziu os angariadores de recrutas para a estalagem mais vizinha do seu procurador. Era um verdadeiro covil de bandoleiros, em cuja tabuleta se via pintada uma pomba com este letreiro: "A Pomba da Arca".

- Agora - disse o burguês - como faremos? Bem que eu não queria desapossar-me das minhas quatro mil libras, a não ser em troca do recibo.

- Nisso não haverá a mínima dúvida. Conhece a letra do seu procurador?

- Perfeitamente.

- Quando lhe apresentarmos o seu recibo, não terá então dificuldade alguma em nos entregar o dinheiro?

- Nenhuma! Mas sem dinheiro, o meu procurador não quererá passar recibo: eu conheço-o muito bem.

- Eu adiantarei esta quantia - disse Cauvignac.

E no mesmo instante, tirando dos alforjes quatro mil libras, parte em ouro e parte em prata, enfileirou as pilhas sob os olhos espantados do burguês.

- Agora - disse ele - como se chama o seu procurador?

- Chama-se Rabodin.

- Ora, pois, pegue numa pena e escreva. O burguês obedeceu.

Senhor Rabodin:

Envio-lhe as quatro mil libras de despesas e juros que fui condenado a pagar ao senhor Biscarros, e estou desconfiado que queira fazer delas mau uso. Tenha a bondade de entregar ao portador um recibo em forma...

- E que mais? - perguntou o burguês.

- E que mais!? Ponha-lhe a data e a assinatura. O burguês assim fez.

- Agora - disse Cauvignac a Ferguzon- pega nesta carta e neste dinheiro, disfarça-te em maleiro, e vai a casa do procurador.

- E que farei em casa do procurador?

- Entregar-lhe-ás esta quantia, e arrecadarás o recibo. -É tudo?

- É tudo.

- Não posso compreender.

- Tanto melhor, por isso mesmo será mais bem desempenhada a comissão.

Ferguzon tinha grande confiança no capitão, e por isso, sem mais réplica, encaminhou-se para a porta.

- Manda-nos trazer vinho, e do melhor - disse Cauvignac. - O senhor há-de ter sede.

Ferguzon fez uma cortesia em sinal de obediência e saiu. Meia hora depois, voltou, e encontrou Cauvignac sentado à mesa com o burguês, fazendo ambos honra ao famoso vinho de Orleães, que tão grato era ao paladar gascão de Henrique IV.

- E então? - perguntou Cauvignac.

- E então, eis o recibo.

- Virá na forma que pretendíamos?

E Cauvignac entregou ao burguês o pedaço de papel selado.

- Vem, sim.

- O recibo está então em forma...

- Sem dúvida alguma que está.

- Não tem, portanto, pejo algum em dar-me o seu dinheiro em troca deste recibo?

- Nenhum.

- Dê-mo então.

O burguês contou as quatro mil libras; Cauvignac arrecadou-as nos seus alforjes, onde foram ocupar o lugar das quatro mil libras ausentes.

- Bem... estou resgatado?...- disse o burguês.

- Oh! meu Deus, sim! A não ser que esteja absolutamente decidido a assentar praça.

- Eu pessoalmente não; mas...

- Mas o quê? Vejamos - disse Cauvignac.-Tenho cá um certo pressentimento de que não nos separaremos sem termos concluído outro negócio.

- É possível -aceitou o burguês, completamente sossegado com a posse do recibo. - Tenho, porém, um sobrinho...

- Hum... hum...

- Rapaz indócil e bulhento.

- E de quem quereria desembaraçar-se, não é assim?

- Tanto não quero dizer; mas de quem, no meu entender, se

poderia fazer um excelente soldado.

- Diga-lhe que venha ter comigo, que eu farei dele um herói.

- Alistá-lo-ia?

- Com todo o gosto.

- Tenho também um afilhado... um rapaz de mérito que quer tomar ordens sacras, e pelo qual me vejo obrigado a pagar uma avultada pensão...

- De maneira que preferia que ele tomasse uma espingarda, não é assim? Envie-me o afilhado com o sobrinho, isso custar-lhe-á apenas quinhentas libras por ambos, e nada mais.

- Quinhentas libras?! Não posso compreender...

- Sem dúvida; e é preciso pagar logo que entrarem no serviço.

- Então, porque quer que eu pague para não entrar nele?

- São razões particulares; o seu sobrinho e o afilhado pagam cada um deles duzentas e cinquenta libras, e nunca mais o importunarão.

- Realmente, é muito lisonjeiro o que me diz. E estarão eles bem?

- Uma vez que tenham tomado gosto ao serviço sob as minhas ordens, não trocarão a sua posição pela do imperador da China. Pergunte a estes senhores como eu os alimento. Responde, Bar-rabás; responde, Carrotel!

- Não há dúvida - disse Barrabás- que vivemos como uns fidalgos.

- Veja como andam bem vestidos.

Garrotei fez uma pirueta sobre si mesmo, a fim de mostrar por todos os lados o seu esplêndido trajo.

- O certo é que não se pode deixar de admirar o seu asseio.

- Então? Enviar-me-á os seus dois rapazes?

- Boa vontade tenho disso. Demorar-se-ão muito tempo aqui?

- Não; pôr-nos-emos a caminho amanhã de manhã. Mas, para lhes dar tempo de nos alcançarem, iremos caminhando a passo. Dê-nos as quinhentas libras, e é negócio concluído.

- Não tenho mais que duzentas e cinquenta.

- Dar-lhe-á a eles as outras duzentas e cinquenta libras, e isso servir-lhe-á de pretexto para mós enviar, pois se assim não fosse, se não tivéssemos algum pretexto para fazê-lo, como bem compreende, eles desconfiariam de alguma coisa.

- Mas - disse o burguês- talvez me respondam que basta um só para desempenhar essa comissão.

- Dir-lhe-á que os caminhos não estão seguros, e dará a cada um cento e vinte e cinco libras, de que depois será embolsado pelo respectivo soldado.

O burguês arregalou os olhos de maravilhado.

- Na verdade - disse ele- não há senão os militares para vencer quantas dificuldades possam apresentar-se!

E depois de ter contado as duzentas e cinquenta libras a Cau-vignac, retirou-se, encantado por haver arranjado processo de acomodar, pela diminuta soma de quinhentas libras, um sobrinho e um afilhado, com quem despendia mais de mil francos por ano.

 

- senhor Barrabás - disse Cauvignac - não tem (na sua mala algum fato menos elegante do que o que usa, e que lhe dê ares de algum empregado na cobrança dos impostos?... - Tenho o do cobrador, bem sabe, a quem nós...

- Bem, muito bem! E sem dúvida tem a patente dele...

- O tenente Ferguzon disse-me que não a perdesse, e, portanto, guardei-a com todo o cuidado.

- O tenente Ferguzon é o homem mais previdente que tenho conhecido. Vista o fato de recebedor, e pegue nessa patente.

Barrabás saiu e voltou passado dez minutos, completamente transformado.

Encontrou Cauvignac todo vestido de preto, parecendo um oficial de justiça.

Encaminharam-se ambos para casa do procurador; o senhor Rabodin vivia no terceiro andar, onde tinha uma antecâmara, um escritório e um gabinete; sem dúvida que mais alguns quartos ocupava, mas como não estavam abertos aos clientes, não falaremos deles.

Cauvignac atravessou a antecâmara, deixou Barrabás no escritório, e lançou ao passar um olhar de reconhecimento aos dois escreventes, que fingiam estar escrivinhando, mas que se divertiam a contar petas, e passou para o "sanctum sanctorum".

O senhor Rabodin estava sentado a uma mesa tão carregada de maços de papéis que o procurador parecia na realidade enterrado em meios de autos, escrituras e sentenças. Era um homem alto, seco e pálido, com uma casaca preta tão justa que parecia colada aos ombros, tal como a pele da enguia lhe está pegada ao corpo. Ouvindo o ruído dos passos de Cauvignac, endireitou as costas curvas, e levantou a cabeça, que então surgiu por entre a papelada de que estava rodeado.

Cauvignac acreditou por um momento ter encontrado o basilisco, animal que os sábios modernos olham como fabuloso, tanto refulgia nos pequenos olhos do procurador o sombrio esplendor da avidez e da cobiça.

- Senhor - disse Cauvignac - peço-lhe que me desculpe se me apresento deste modo diante de si sem primeiro anunciar a minha chegada; mas - acrescentou ele - é este um privilégio do meu emprego.

- Um privilégio do seu emprego? - disse Rabodin. - Tenha a bondade de dizer-me qual é o seu emprego.

- Eu, senhor, sou oficial de justiça de Sua Majestade.

- Oficial de justiça de Sua Majestade?! -Tenho essa honra.

- Não o compreendo, senhor.

- Em breve me compreenderá. Não é verdade que conhece o senhor Biscarros?

- Sem dúvida que o conheço: é meu cliente.

- Faça o favor de dizer-me o conceito que dele faz?

- O conceito que dele faço?...

- Sim, senhor.

- O conceito... o conceito... Sim, o conceito que dele faço é julgá-lo um homem muito honrado.

- Ora, pois, senhor, está muito enganado.

- Como assim!? Pois engano-me?!

- O seu honrado homem é um rebelde. -Um rebelde?! Será possível!?

- Sim, senhor, um rebelde que se valia da posição isolada da sua estalagem para dela fazer um foco de conspirações.

- Palavra!?

- Um homem que deu a sua palavra de envenenar o rei, a rainha e Mazarino, se por acaso se apeassem na sua estalagem.

- Quem havia de dizer!...

- E que eu acabo de prender, e conduzir à prisão de Libourne, como réu de crime de lesa-majestade.

- Senhor, aniquila-me! - disse Rabodin, deixando-se cair na sua poltrona.

- Ainda não é tudo, senhor - continuou o falso oficial de justiça. - Além disto, o senhor está comprometido neste negócio.

- Eu. senhor?! - exclamou o procurador, enfiado. - Eu, comprometido?! E como é possível!?

- Tem em seu poder uma certa soma, que aquele infame Bis-carros destinava ao pagamento de um exército de rebeldes.

- Verdade é, senhor, que recebi por conta dele...

- Uma soma de quatro mil libras; foi "tratado", aquele cobarde, e confessou, por fim, que essa soma devia estar nas suas mãos.

- E com efeito tenho-a em meu poder, senhor; mas há apenas um instante que a recebi.

- Tanto pior, senhor, tanto pior.

- E então porque será tanto pior?

- Porque me verei forçado a deter a sua pessoa. -A minha pessoa?!

- Sem dúvida: o acto de acusação designa-o como cúmplice. O procurador ficou sem pinga de sangue.

- Ah! se não tivesse recebido aquele dinheiro - continuou Cauvignac - o negócio seria muito diferente; porém, confessa que a recebeu, o que é uma prova contra si, como muito bem compreende.

- Diga-me, senhor: se eu consentir em restituí-la, se eu lha entregar, neste mesmo instante, se eu declarar que nenhumas relações tenho com aquele miserável do Biscarros, que não o conheço!...

- Não deixará por isso de haver graves suspeitas contra si. Contudo, devo dizer-lhe que a entrega imediata do dinheiro...

- Já agora, neste mesmo instante!-exclamou Rabodin.-Faço já a entrega. O dinheiro ainda ali está no saco em que mo entregaram. Mais não fiz do que examinar se estava certa a conta.

- E está certa?

- Conte-o, senhor, conte-o o senhor mesmo.

- Não, senhor, tal não farei, pois não estou autorizado a cobrar o dinheiro de Sua Majestade. Mas trago o cobrador de Libourne, que mandaram comigo para receber as diferentes quantias que o desgraçado Biscarros assim andava espalhando, para as reunir quando fosse preciso.

- E, com efeito, recomendou-me muito que logo que eu recebesse estas quatro mil libras, tratasse de as fazer chegar às suas mãos quanto antes.

- Está bem de ver, sabe já sem dúvida que a princesa fugiu de Chantilly e se encaminha para Bordéus; queira reunir todos os seus recursos para se fazer chefe de partido. Que miserável! E o senhor de nada desconfiava...

- De nada, senhor, de nada.

- Ninguém o havia avisado?

- Ninguém.

- Mas que me está dizendo?...- disse Cauvignac, apontando com o dedo para a carta do burguês, que ficara aberta na escrivaninha, no meio dos outros papéis. - Então que me está dizendo, quando o senhor mesmo me dá uma prova em contrário?...

- Como?... Que prova?

- Ora, essa não é má! Leia.

Rabodin leu com voz trémula: Senhor Rabodin:

Envio-lhe as quatro mil libras que fui condenado a pagar ao senhor Biscarros, e estou desconfiado de que queira fazer delas mau uso.

- Um mau uso! - repetiu Cauvignac. - Como muito bem vê, a horrorosa reputação do seu cliente já por cá havia chegado.

- Senhor, estou aterrado! - disse o procurador.

- Não posso ocultar-lhe, senhor, que as ordens de que sou portador são muito severas.

- Juro-lhe, senhor, que estou inocente.

- Outro tanto dizia Biscarros, enquanto lhe não deram tratos; mas, por fim, sempre mudou de linguagem.

- Digo-lhe que estou pronto a entregar-lhe o dinheiro! Ei-lo aqui, pegue nele; não quero mais vê-lo em minha casa.

- Façamos as coisas com toda a regularidade - disse Cauvignac. - Eu repito o que já lhe disse: que não estou encarregado de cobrar o dinheiro do rei.

Então, aproximando-se da porta:

- Venha cá, senhor recebedor - disse ele. - Cada qual deve desempenhar o seu ofício.

Barrabás entrou.

- O senhor confessa tudo - continuou Cauvignac.

- Como pode dizer tal!? Que confesso eu!? - exclamou o procurador.

- Sim, confessa que se corresponde com Biscarros.

- Eu, senhor, nunca recebi dele senão duas cartas, e só uma vez lhe escrevi.

- O senhor confessa que tem na sua mão dinheiro que pertence ao acusado.

- Ei-lo aqui, senhor. Nunca recebi por conta dele mais do que estas quatro mil libras, e estou pronto a entregar-lhes.

- Senhor recebedor - disse Cauvignac - mostre a sua patente, conte este dinheiro, e passe um recibo em nome de Sua Majestade.

Barrabás apresentou a sua patente ao procurador, que a repeliu com a mão, não querendo fazer a desfeita de a ler.

- Agora - disse Cauvignac, enquanto, com receio de algum engano, Barrabás contava o dinheiro - é preciso que me acompanhe.

- Que o acompanhe?...

- Sem dúvida; não lhe disse já que havia suspeitas contra si?

- Mas eu, senhor, juro-lhe que Sua Majestade não tem um súbdito mais fiel do que eu.

- O caso não está em afirmá-lo, sabe-o melhor que ninguém, o senhor, que sois procurador; em justiça não é bastante a afirmativa- são precisas provas.

- Provas, senhor, eu as darei.

- E quais?

- Toda a minha vida passada.

- Isso ainda não basta; seria precisa uma garantia para o futuro.

- Imdique-me o que posso fazer, e fá-lo-ei.

- Há um meio de provar de um modo incontestável o seu zelo pela causa real.

- Qual?

- Encontra-se neste mesmo momento em Orleães um capitão meu amigo que alista uma companhia para o serviço do rei...

- E então?

- E então, assentaria praça nessa companhia.

- Eu, senhor, um procurador?!...

- O rei tem muita necessidade de procuradores, porque os seus negócios estão muito embrulhados.

- De boa vontade o faria, senhor, mas, e o meu escritório?...

- Fá-lo-á reger pelos seus escrivães.

- Isso é impossível; e então as assinaturas?

- Perdoem-me, senhores - disse Barrabás - se tomo parte na discussão...

- E porque não? - disse o procurador. - Fale, senhor, fale.

- Parece-me que, se estivesse no seu lugar, o senhor, que seria um triste soldado...

- Sim, senhor, tem razão: muito triste - disse o procurador.

- Se o senhor oferecesse ao meu amigo, ou antes, ao rei...

- O quê, senhor! Que posso eu oferecer ao rei?

- Os seus dois escrivães.

- Mas decerto! - exclamou o procurador - mas decerto, e com sumo gosto eu lhos dou; são dois belos moços.

- Um deles pareceu-me uma criança.

- Tem quinze anos,, senhor, quinze anos! E toca tambor às mil maravilhas. Venha cá, Fricotin.

Cauvignac fez um sinal com a mão, para dar a entender que desejava que deixasse ficar Fricotin onde estava.

- E o outro? - continuou ele.

- Dezoito anos; cinco pés e seis polegadas. Prepara-se para assentar praça no corpo dos alabardeiros, e, por conseguinte, já sabe o manejo da alabarda. Venha cá, Chalumeau.

- Mas muito torto nos olhos, segundo me parece - disse Cauvignac, fazendo outro sinal semelhante ao primeiro.

- Tanto melhor, senhor, tanto melhor; pô-lo-á de sentinela, e como olho de esquerda, verá ao mesmo tempo para a direita e para a esquerda, enquanto os outros vêem para diante.

- É uma vantagem, bem sei; mas deve compreender que o rei se encontra em grande aperto quanto a dinheiro; a guerra a tiros de canhão custa mais cara do que a guerra de palavras. O rei não pode encarregar-se do armamento destes dois mancebos. Não faz pouco em se encarregar da sua instrução, do seu soldo.

- Senhor - disse Rabodin - se não é preciso mais do que isso para provar o meu zelo pela causa real... ora, pois, eu farei um sacrifício! Cauvignac e Barrabás olharam um para o outro.

- Que lhe parece, senhor recebedor? - perguntou Cauvignac.

- Penso que o senhor dá ares de quem fala com franqueza-respondeu Barrabás.

- E, por conseguinte, devemos tratá-lo com toda a consideração. Dê ao senhor um recibo de quinhentas libras.

- Um recibo em que se declare que são para o armamento de dois jovens soldados, os quais, instigado pelo zelo, oferece a Sua Majestade.

- Mas ao menos, mediante este sacrifício, poderei ficar sossegado?...

- Assim o creio.

- Não serei inquietado?

- Assim é de esperar.

- E se contra toda a justiça eu fosse perseguido?

- Apelaria para o meu testemunho. Mas estarão de acordo os seus dois escrivães?...

- Ficarão contentíssimos.

- Está certo disso?

- Sem dúvida que estou. Contudo, seria bom não lhes dizer...

- A honra que se lhes reserva, não é assim?

- Isso seria mais prudente.

- E então como se há-de fazer?

- A coisa é muito simples: envio-os ao vosso amigo. Como se chama ele?

- Capitão Cauvignac.

- Enviá-los-ei ao vosso amigo capitão Cauvignac, sob qualquer pretexto; seria melhor que fosse fora de Orleães, para permitir maior sigilo.

- Sim, e para que os orleaneses não se lembrassem de açoitá-lo como Camilo mandou fazer àquele mestre-escola da Antiguidade...

- Ordenar-lhes-ei que vão ter com ele fora da cidade.

- Na estrada real de Orleães e Turones, por exemplo.

- Na primeira estalagem.

- Sim; aí encontrarão o capitão Cauvignac, à mesa; oferecer-lhes-á um copo de vinho, aceitá-lo-ão, dir-lhes-á que façam uma saúde ao rei, beberão com entusiasmo: e ei-los soldados.

- Muito bem. Agora, pode chamá-los.

O procurador chamou os dois mancebos. Fricotin era um rapazinho que não tinha mais de quatro pés de altura, vivo, travesso, e reforçado; Chalumeau era um grande simplório de cinco pés e seis polegadas, delgado como um espargo e vermelho como uma cenoura.

- Senhores - disse Cauvignac - aqui o senhor Rabodin encarrega-os de uma comissão de confiança, a qual consiste em irem buscar, amanhã pela manhã, à primeira estalagem que se encontra na estrada de Orleães a Blois, um rolo de documentos relativos a uma demanda que o capitão Cauvignac tem com o senhor de La Rochefoucauld. O senhor Rabodin dará a cada um vinte e cinco libras de gratificação por este trabalho.

Fricotin, rapaz crédulo, deu um grande pulo. Chalumeau, de carácter desconfiado, olhou ao mesmo tempo para Cauvignac e para o procurador, com uma expressão de dúvida que o tornava ainda mais vesgo do que o costume.

- Repare, porém - disse com viveza Rabodin - que eu não me obriguei a dar as cinquenta libras...

- Cuja quantia - continuou o falso oficial de justiça - o senhor Rabodin se pagará lançando-a em conta nas despesas do processo do capitão Cauvignac com o duque de La Rochefoucauld.

Rabodin abaixou a cabeça: daqui não podia fugir, era necessário passar por esta porta ou pela prisão.

- Vamos - disse o procurador - consinto nisso, mas espero que me darão um recibo da dita quantia.

- Ei-lo aqui - disse o recebedor. - Veja se eu não havia previsto o seu desejo.

E entregou-lhe o papel, onde estavam escritas estas palavras:

Recebi do senhor Rabodin, mui fiel súbdito de Sua Majestade, a título de oferecimento voluntário, a quantia de quinhentas libras para ajuda na sua guerra contra os príncipes.

- Se lhe parece necessário - disse Barrabás - porei os dois escrivães no recibo.

- Não, não! - disse com viveza o procurador - está muito bem assim.

- A propósito-recordou Cauvignac ao senhor Rabodin.-Diga a Fricotin que pegue no seu tambor, e a Chalumeau que leve a sua alabarda; sempre será outra poupança.

- Mas sob que pretexto quer que lhes faça essa recomendação?

- Ora, essa não é má!... sob pretexto de se irem distraindo pelo caminho!

Dito isto, o falso oficial de justiça e o recebedor retiraram-se, deixando o senhor Rabodin espantado pelo perigo que correra, e dando-se por muito feliz ao sair dele por tão pouco.

 

No dia seguinte, tudo se passou como Cauvignac previra: o sobrinho e o afilhado não tardaram a chegar, ambos montados no mesmo cavalo; depois deles, chegaram Fricotin e Chalumeau, um com o seu tambor e o outro com a alabarda. Não deixaram de se levantar, no momento em que lhes declararam que tinham a honra de ser alistados para o serviço dos príncipes, algumas dificuldades, tanto de uma como de outra parte; mas estas mesmas se aplanaram ante as ameaças de Cauvignac, as promessas de Ferguzon, e a lógica de Barrabás. O cavalo em que o sobrinho e o afilhado vinham montados, foi destinado ao transporte da bagagem, e como era de infantaria a companhia que Cauvignac estava encarregado de organizar, os dois novos alistados nada tiveram que dizer.

Tornaram a pôr-se a caminho. A marcha de Cauvignac assemelhava-se a um triunfo. O engenhoso bandoleiro encontrava meio de conduzir para a guerra os mais obstinados partidaristas da paz. A uns fazia abraçar a causa do rei da Inglaterra, que falava de um desembarque na Escócia para reconquistar os seus estados. Ao princípio, não deixou de haver alguma disparidade nas cores, alguma discordância nas reclamações, que o tenente Ferguzon, apesar de toda a sua persuasão, só a custo pudera sujeitar às regras da obediência passiva. Contudo, ajudado por um certo mistério - contínuo e necessário, segundo dizia Cauvignac, ao feliz êxito da operação - soldados e oficiais iam avançando, sem saberem o que iam fazer. Quatro dias depois de sair de Chantilly, Cauvignac tinha reunido vinte e cinco homens, o que, como muito bem se vê, já compunha uma bela patrulha. Muitos rios, que fazem grande alvoroço ao lançarem-se ao mar, têm origens menos majestosas.

Cauvignac procurava um centro: chegou a uma aldeiazinha situada entre Chantellerault e Poitiers, e acreditou ter encontrado ali o que buscava. Era a aldeia de Jaulnay; reconheceu-a, porque já ali fora uma noite levar uma ordem a Canolles, e estabeleceu o seu quartel-general na estalagem, onde se recordava de haver ceado muito bem naquela noite. Além disso, não lhe era permitida a escolha, visto que a estalagem, como já dissemos, era a única que ali havia.

Situado deste modo a cavalo na principal estrada de Paris a Bordéus, Cauvignac tinha atrás de si as tropas do senhor de La Rochefoucauld, que sitiava Saumur, e pela frente as do rei, que se concentravam na Guiena. Estendendo, portanto, a mão a cada um deles, evitando arvorar bandeira alguma antes do momento ideal, o objectivo que se propunha era formar um núcleo de cem homens, pouco mais ou menos, para dele tirar o melhor partido que pudesse; ora, o recrutamento ia-se adiantando, e Cauvignac já havia levado a efeito quase metade do seu projecto.

Um dia em que Cauvignac, depois de haver andado toda a manhã à caça de homens, estava, como era seu costume, à espreita na porta da estalagem, conversando com o seu tenente e com o alferes, viu surgir na extremidade da rua uma jovem senhora a cavalo, seguida por um escudeiro, a cavalo como ela, e por dois machos carregados de bagagem.

O garbo com que a formosa amazona conduzia o seu cavalo, e o ar arrogante do escudeiro que a acompanhava, suscitaram a Cauvignac uma recordação. Pôs a mão no braço de Ferguzon, que, sentindo-se indisposto naquele dia, estava triste e de mau humor, e disse-lhe, apontando para a passageira:

- Eis o quinquagésimo soldado do regimento de Cauvignac, tão certo como estarmos aqui!

- Quem? Aquela senhora?

- Sim, ela, não o duvides.

- Isto não está nada mal! Já temos um sobrinho que havia de ser letrado, um afilhado que se destinava à Igreja, dois escreventes de procurador, dois droguistas, um médico, três padeiros e dois guardadores de perus; portanto, maus soldados já temos bastantes, no meu entender, sem que se lhes junte uma mulher; e o pior do negócio é que em breve teremos de combater.

- Sim, mas o nosso tesouro ainda não passa de vinte e cinco mil libras (fácil é de ver que o tesouro, assim como a tropa,crescendo todos os dias), e se pudéssemos arredondar essa quantia, e completar as trinta mil, parece-me que não teríamos que dar por mal empregue o nosso tempo.

- Ah! se é sob esse aspecto que encara a coisa, nada tenho que dizer, e aprovo completamente.

- Silêncio! Vais ver.

Cauvignac aproximou-se da jovem senhora, que, tendo parado defronte de uma das janelas da estalagem, interrogava a estalajadeira, a qual lhe respondia do quarto.

- Sou um seu criado, meu gentil-homem - disse ele com toda a urbanidade, levando a mão ao chapéu.

- Meu gentil-homem, eu!? - disse a senhora, sorrindo-se.

- O senhor mesmo, belo visconde. A senhora corou.

- Não sei o que quer dizer, senhor - respondeu ela.

- Oh! oh! bem o sabe, e a prova disso é que já tem nas faces bastantes cores.

- Pode ter a certeza de que se engana, senhor.

- Decerto que não me engano! Antes pelo contrário, sei maravilhosamente o que digo.

- Vamos, senhor, explique-se, nada de zombarias.

- Eu não zombo, senhora; e se quer uma prova, vou dar-lha. Tive a honra de encontrá-la haverá umas três semanas, com o trajo do seu sexo, uma noite, nas margens do Dordonha, seguido pelo seu fiel escudeiro, senhor Pompeu. Tem ainda consigo o senhor Pompeu? Ah! sim, ei-lo justamente aí! Diga também que eu não conheço aquele querido senhor...

O escudeiro e a jovem senhora olhavam estupefactos um para o outro.

- Sim, sim - continuou Cauvignac - para que são essas mostras de tamanho espanto? Atrever-se-á a dizer que não é aquele que encontrei, como muito bem o sabe, na estrada de Saint-Martin de Cubzac, a um quarto de légua da estalagem do senhor Biscarros?...

- Não nego esse encontro, senhor.

- Ah! então está a ver claro...

- Só naquele dia é que eu estava disfarçada.

- Não, senhora, não; hoje é que está. Além do que, visto que os sinais do visconde de Cambes foram mandados a toda a parte na Guiena, é fácil compreender que julgará mais prudente, para malograr todas as diligências, adoptar momentaneamente esse trajo - e além disso, assenta-lhe muito bem, como é de justiça confessar.

- Senhor - disse a viscondessa, com uma perturbação que em vão fazia por disfarçar - se a sua conversa não fosse misturada com algumas palavras sensatas, na realidade julgaria que está completamente louco.

- Não lhe farei o mesmo cumprimento, pois entendo que é coisa muito razoável uma pessoa disfarçar-se quando conspira.

A jovem senhora cravou os olhos em Cauvignac com uma inquietação que cada vez mais se acentuava.

- Com efeito, senhor- disse ela -parece-me que o vi em alguma parte; mas já não me lembra onde.

- A primeira vez, já lho disse, foi nas margens do Dordonha.

- E a segunda?

- A segunda, foi em Chantilly.

- No dia da caçada?

- Justamente, nesse dia.

- Em tal caso, senhor, já nada tenho a recear, pois é um dos nossos.

- E por que razão?

- Porque estava em casa da princesa.

- Dê-me licença que lhe diga que isso não é uma razão.

- Parece-me, contudo...

- Havia ali muita gente, e, portanto, não pode haver qualquer certeza de que fossem amigos todos os que ali estavam.

- Pondere as suas palavras, senhor, pois dar-me-ia uma singular ideia de si.

- Oh! pode fazer a ideia que quiser, eu não sou desconfiado.

- Mas, enfim: que deseja?

- Ter a honra de propor-lhe que descanse nesta estalagem.

- Agradeço, senhor; não posso aceitar o seu oferecimento, pois espero uma pessoa.

- Muito bem: apeie-se, e enquanto não chega essa pessoa, iremos conversando.

- Que quer que faça, senhora? - perguntou Pompeu.

- Que se apeie; peça um quarto, e mande aprontar a ceia - disse Cauvignac.

- Mas, senhor - replicou a viscondessa - creio que é a mim que compete dar essas ordens.

- Não é tanto assim, senhor visconde, visto que sou eu quem comanda em Jaulnay, e tenho cinquenta homens à minha disposição. Pompeu, faz o que eu disse.

Pompeu abaixou a cabeça, e entrou na estalagem.

- Então, senhor, pelo que vejo, prende-me... - perguntou a jovem senhora.

Talvez que assim seja.

- E como é possível que tal aconteça!?

- Isso, senhora, dependerá da conversação em que vamos entrar. Mas tenha a bondade de se apear, senhor visconde. Muito bem; agora, aceite o meu braço. Os criados da estalagem levarão o seu cavalo para a estrebaria.

- Obedeço, senhor, visto que, tal como disse, é o mais forte; não tenho meio algum de resistir. Mas sempre quero preveni-lo de uma coisa: é que a pessoa a quem espero não tardará a chegar, e essa pessoa é um oficial do rei.

- Em tal caso, senhor visconde, far-me-á a honra de me apresentar, e terei muito gosto em conhecê-lo.

A viscondessa compreendeu que nenhuma resistência podia opor, e deu alguns passos, fazendo sinal ao seu estranho interlocutor para que a seguisse, se quisesse.

Cauvignac acompanhou-a até à porta do quarto que Pompeu lhe mandara preparar, e ia entrar atrás dela, quando Ferguzon, subindo rapidamente a escada, se chegou a ele, e lhe disse ao ouvido:

- Capitão: uma sege tirada por três cavalos, um mascarado dentro, e dois lacaios às portinholas.

- Muito bem - disse Cauvignac. - É provavelmente o gentil-àomem por quem se espera.

- Ah! espera-se algum gentil-homem?...

- Sim, e vou descer ao seu encontro. Tu, deixa-te ficar neste corredor; não percas de vista a porta. Deixa entrar toda a gente, mas que ninguém saia.

- Assim farei, capitão.

Com efeito, uma sege de viagem acabava de deter-se à porta da estalagem, conduzida por quatro homens da companhia de Cauvignac, que a haviam encontrado a um quarto de légua da vila, e que desde logo a haviam escoltado.

Um gentil-homem, vestido de veludo azul, embrulhado num grande capote forrado, estava mais deitado do que sentado no fundo da sege. Desde o momento em que os quatro homens tinham rodeado a sege, não deixara de lhes fazer repetidas perguntas; vendo porém, que por mais instantes que fossem essas perguntas, não conseguia obter resposta alguma, parecia ter-se resignado a esperar, e só de vez em quando levantava a cabeça para ver acaso se aproximava algum chefe, a quem pudesse pedir a explicação para o modo singular como a sua gente o tratava.

Para além disto, não era possível avaliar a impressão que este acontecimento produziu no jovem viajante, em consequência de uma máscara de cetim preto que lhe ocultava metade do rosto, o que, aliás, estava muito em moda naquela época. Em todo o caso, o que a máscara deixava ver - isto é: a parte superior da fronte, e a inferior do rosto - revelavam mocidade, beleza e espírito; os dentes eram pequenos e brancos, e através da máscara viam-se cintilar os olhos.

Dois lacaios, pálidos e trémulos, apesar de armados com mosquetes, conservavam-se aos lados -da sege, e pareciam grudados aos seus cavalos, junto às duas portinholas. O quadro poderia passar por uma cena de salteadores acometendo algum viajante, a não ser o dia claro, a estalagem, a figura risonha de Cauvignac, e a serenidade dos supostos ladrões.

Fixando os olhos em Cauvignac - que, como dissemos, avisado por Ferguzon apareceu à porta - o mancebo detido deu um pequeno grito de sobressalto, e levou com vivacidade a mão ao rosto, como se quisesse certificar-se de que a sua máscara lho cobria, parecendo ficar mais sossegado logo que se certificou.

Por muito rápido que fosse este movimento, não havia escapado a Cauvignac; olhou para o viajante como homem acostumado a descobrir a intenção oculta, ainda que nos gestos mais dissimulados; depois, estremeceu, a seu pesar, com um espanto quase igual ao que manifestara o cavaleiro vestido de veludo azul. Logo serenou, porém, e, tirando o chapéu com uma graça muito especial, afirmou:

- Bela senhora, seja muito bem-vinda.

Os olhos do viajante brilharam de espanto através das aberturas da sua máscara.

- Para onde se encaminha desse mdo? - continuou Cauvignac.

- Para onde me encaminho?... - respondeu o viajante, não fazendo caso da saudação de Cauvignac; e respondeu somente à sua pergunta. - Para onde vou?... Deve saber melhor do que eu, visto que já me não é permitido continuar a minha viagem. Vou para onde me conduzir.

- Dê-me licença que.lhe observe - continuou Cauvignac, cada vez com mais urbanidade - que isso, bela senhora, não é responder. A sua detenção é só momentânea. Quando tivermos conversado um momento acerca dos nossos mútuos negócios, com franqueza e a rosto descoberto, tornará a continuar o seu caminho, sem embaraço algum.

- peço-lhe desculpa - replicou o jovem viajante. - Mas antes de irmos mais longe, principiaremos por rectificar um erro. Finge tomar-me por mulher, quando, pelo contrário, vê muito bem pelo meu trajo que sou um homem.

- Não ignora decerto o provérbio latino: "Ne nimium crede colori". O sábio não julga pelas aparências. Ora, eu faço questão de ser um sábio; e resulta daí que sob esse trajo enganador reconheci...

- O quê? - perguntou o viajante com impaciência.

- Eu não lhe disse já? Uma mulher.

- Mas se eu sou uma mulher, porque me detém?

- Essa não é má! Porque no tempo em que vivemos as mulheres são mais perigosas do que os homens; e, por isso, a nossa guerra, falando com propriedade, poderia chamar-se a Guerra das Mulheres. A rainha e a princesa de Conde são as duas potências beligerantes. Tomaram por tenentes-generais a senhora de Chevreuse, a senhora de Montbazon, a senhora de Longueville... e a si. A menina de Chevreuse é o general do senhor de Beaufort; senhora de Longueville é o general do senhor de La Roche-foucauld, e a senhora... tem todo o ar de ser o general do duque D’Épernon.

- Está louco, senhor - disse o jovem viajante, encolhendo os ombros.

- Não acreditarei mais em si, minha bela senhora, do que há um momento acreditava num belo mancebo que me fazia o mesmo cumprimento.

- Talvez tenha querido manter que ela era um homem...

- Justamente. Eu, que reconhecera o meu gentil-homenzinho, porque já o havia visto numa certa tarde dos princípios de Maio, girar à roda da estalagem do Biscarros, não me deixei enganar com as saias, toucas e voz aflautada; como também me não deixo enganar com o seu casaco azul, chapéu e botas; e disse-lhe: - Meu jovem amigo, tome o nome que quiser, adopte o trajo que

bem lhe parecer: não deixará por isso de ser o visconde de Cambes.

- O visconde de Cambes?! - exclamou o jovem viajante.

- Ah! vejo que este nome, segundo me parece, o impressiona; •dar-se o caso de o conhecer?

- Um homem muito jovem que quase parece uma criança?...

- Que terá, quanto muito, dezassete a dezoito anos.

- Muito louro?

- Muito louro.

- Olhos grandes e azuis?

- Muito grandes e muito azuis.

- Ele está aqui?

- Está ali.

- E diz que está...?

- Disfarçado de mulher, aquele malicioso, como a senhora, maliciosa, o está de homem.

- E que vem ele aqui fazer? - exclamou o jovem cavaleiro, com uma veemência e turbação que cada vez se tornavam mais visíveis, à medida que Cauvignac, pelo contrário, se tornara mais sóbrio de gestos e mais avaro de palavras.

- Ele - respondeu Cauvignac, carregando em cada uma das suas palavras - diz que tem de se encontrar aqui com um dos seus amigos.

- Um dos seus amigos?

- Sim.

- Um gentil-homem?

- É provável que o seja.

- Um barão? -Talvez que o seja.

- E como é que se chama?

A fronte de Cauvignac enrugou-se com um complicado pensamento que pela primeira vez se apresentava ao seu espírito, e que penetrando nele, produzia uma autêntica revolução no seu cérebro.

"Oh! oh!- disse ele consigo - será isto um enredo premeditado?"

- Como é que se chama? - repetiu o jovem viajante.

- Espere um momento-replicou Cauvignac-espere... O nome acaba em olles...

- O senhor de Canolles?! - exclamou o jovem viajante, cujos lábios se cobriam de uma palidez mortal, o que contribuía para que, de um modo sinistro, ainda mais sobressaísse o negro da sua máscara sobre a alvura da pele.

- É esse mesmo, senhor de Canolles - replicou Cauvignac, observando atentamente as partes visíveis do rosto, e a revolução que se operava em todo o corpo do mancebo.-O senhor de Canolles, disse muito bem. Então, conhece o senhor de Canolles? Pelo que vejo, conhece toda a gente!...

- Nada de gracejos - balbuciou o mancebo, a quem todo o corpo tremia, e que parecia estar a ponto de desmaiar. - Onde está essa senhora?

- Naquele quarto; olhe: é a terceira janela a contar desta, cujas cortinas são amarelas.

- Quero vê-la! - exclamou o viajante.

- Oh! oh! ter-me-ia eu enganado - disse Cauvignac - e será o senhor o tal Canolles que ela espera! Ou não será antes o senhor de Canolles aquele belo cavaleiro que aí vem chegando a trote, seguido por um lacaio que parece de papelão?...

O jovem viajante lançou-se ao vidro da frente da carruagem com tamanha precipitação, que o fez em pedaços.

- É ele! É ele! - exclamou, sem sequer reparar em que algumas gotas de sangue lhe saíam de uma ligeira ferida. - Oh! desgraçada! Ele chega, vai encontrá-la, estou perdida!...

- Ah! vê-se agora bem que é uma mulher!

- Eles tinham aprazado um ponto de reunião - continuou o mancebo, torcendo os braços... - Oh! vingar-me-ei.

Cauvignac queria ensaiar um novo gracejo, mas o mancebo fez-lhe um sinal imperioso com uma das mãos, enquanto com a outra arrancava a máscara, e então viu-se o rosto pálido de Nanon apresentar-se, todo ele ameaças, aos calmos olhos de Cauvignac.

 

- BONS-DIAS, manazinha - disse Cauvignac a Nanon, estendendo a mão à jovem senhora, com a fleuma mais imperturbável.

- Bons-dias. Não há dúvida de que me reconheceu...

- No mesmo instante em que a vi; não era suficiente ocultar o rosto, devia também encobrir esse lindo sinalzinho, e esses dentes de pérola; ponha uma máscara completa, pelo menos quando quiser disfarçar-se, minha garrida menina; mas isso não lhe serve...

- Basta! - disse Nanon em tom imperioso. - Falemos a sério.

- Isso é o que eu quero; só falando seriamente se concluem os bons negócios.

- Diz então que está aqui a viscondessa de Cambes?

- Ela mesma, em pessoa.

- E que o senhor de Canolles entra agora mesmo na estalagem?

- Ainda não; apeia-se, e dá a rédea ao seu lacaio. Ah! ele também foi visto daquele lado. Eis a janela de cortinas amarelas que se abre, e a cabeça da viscondessa que se mostra. Ah! dá um grito de alegria. O senhor de Canolles corre para a casa; oculte-se, mana-zinha, se não quer deitar tudo a perder.

Nanon deitou-se para trás, apertando convulsivamente a mão de Cauvignac, que olhava para ela com ar de paterna compaixão.

- E eu que ia ter com ele a Paris - exclamou Nanon. - Eu que a tudo me arriscava para tornar a vê-lo.

- Ah! fazer sacrifícios, mana, e por um ingrato! Na verdade, pode empregar melhor os seus favores.

- Agora que estão reunidos, o que dirão eles? O que farão?

- Na realidade, querida Nanon, incomoda-me com semelhante pergunta - disse Cauvignac. - Que quer que lhe diga? O que suponho é que vão amar-se muito.

- Oh! tal não acontecerá - exclamou Nanon, roendo com raiva as unhas, lisas como marfim.

- E eu, pelo contrário, entendo que tal acontecerá - respondeu Cauvignac - pois Ferguzon, que tinha ordem de não deixar sair ninguém, nenhuma recebeu para se opor à entrada. Neste mesmo instante, com toda a probabilidade, a viscondessa e o barão de Canolles estão dizendo mil gentilezas, e fazendo mil afagos e carícias um ao outro. Ah! minha querida Nanon, chegou muito tarde.

- Assim julga - replicou a jovem senhora, com uma expressão indefinida de profunda tristeza e malícia odienta. - Assim julga! Pois então, tome lugar na sege, junto de mim. Pobre diplomático !

Cauvignac obedeceu.

- Ouça, Bertrand - continuou Nanon, dirigindo-se a um dos seus porta-mosquetes - diga ao cocheiro que dê volta sem afectação, e vá colocar-se naquele arvoredo que deixamos à nossa direita quando entrámos na aldeia.

Depois, voltando-se para Cauvignac:

- Não estaremos nós ali bem para conversar? - disse ela.

- Muito bem; mas permita-me que eu também, por meu turno, tome as minhas precauções.

- É muito justo que assim faça.

Cauvignac fez sinal a quatro dos seus seis homens que andavam à roda da estalagem, conversando ao sol.

- Faz bem em levar consigo esses homens - disse Nanon - e, se me der crédito, leve seis de preferência a quatro; talvez que possamos dar-lhes que fazer.

- Bom - disse Cauvignac - que fazer é justamente o que se torna necessário.

- Então ficará satisfeito - respondeu a jovem senhora.

E a sege, rodando sobre si mesma, levou Nanon, a quem abra-zava o fogo do seu pensamento, e Cauvignac, sossegado e frio na aparência, mas nem por isso deixando de dar profunda atenção às propostas que tencionava fazer a sua irmã.

Durante este tempo, Canolles, atraído pelo grito de alegria que ao avistá-lo dera a senhora de Cambes, entrara correndo pela estalagem dentro, e chegara ao quarto da viscondessa, sem reparar em Ferguzon, que se encontrava de pé no corredor, mas que, não tendo recebido ordem alguma relativamente a Canolles, nenhuma dificuldade teve em deixá-lo entrar.

- Ah! senhor - exclamou a senhora de Cambes, dando com os olhos nele - venha depressa, que é grande a impaciência com que o espero.

- Eis palavras, senhora, que me tornariam o mais feliz dos homens, se a sua palidez e a sua perturbação me não dissessem claramente que não é só por amor de mim que me espera.

- Sim, senhor, tem razão - replicou Clara, com o seu encantador sorriso - e quero dever-lhe mais uma obrigação.

- Qual?

- A de me pôr a salvo de não sei que perigo que me ameaça.

- Um perigo?

- Sim. Espere.

Clara dirigiu-se à porta e correu o ferrolho.

- Fui reconhecida - disse ela, voltando-se da porta.

- E por quem?

- Por um homem, cujo nome ignoro, mas cujo rosto e voz me são estranhos. Parece-me ter ouvido a sua voz na noite e neste mesmo quarto, recebeu a ordem de partir sem a mínima demora para Nantes; creio ter reconhecido o seu rosto na caçada de Chantilly, no dia em que representei o papel de princesa de Conde.

- E que conceito faz de semelhante homem?

- O conceito que dele faço é ser um agente do duque D’Épernon e, por conseguinte, um inimigo.

- Será possível?! - disse Canolles. - E diz que foi conhecida?...

- Tenho a certeza. Chamou-me pelo meu nome, teimando unicamente em que eu era um homem. Estes arredores estão cheios de oficiais do partido real, sabem que sigo o partido dos príncipes, e talvez estejam resolvidos a inquietar-me. Mas ei-lo aqui, e já nada receio. O senhor mesmo é oficial, é do mesmo partido que eles seguem, e, portanto, será a minha salvaguarda.

- Ai! - disse Canolles. - Tenho grande receio de não poder oferecer-lhe outra defesa, nem outra protecção, a não ser a da minha espada.

- Como assim!?

- Desde este momento, senhora, deixei de estar ao serviço do rei.

- Fala verdade?! - exclamou Clara, não cabendo em si de alegria.

- Decidi mandar pedir a minha demissão, do lugar onde a encontrasse. E como a encontrei, a mimha demissão será datada de Jaulnay.

- Oh! livre! livre! está livre! Já pode abraçar o partido da justiça, da lealdade. Já pode servir a causa dos príncipes - isto é: a de toda a nobreza. Oh! eu sabia muito bem que era um muito digno gentil-homem, e que mais tarde ou mais cedo seria um dos nossos.

E Clara estendeu a Canolles a sua mão, que este beijou com transporte.

- Diga-me - disse-lhe ela - o que deu lugar a isso? O que é que se passou? Informe-me de tudo o mais circunstanciadamente possível.

- Oh! não será preciso muito tempo. Escrevi desde logo ao senhor Mazarino, a inteirá-lo do que se tinha passado; chegado a Nantes, recebi ordem de ir a casa dele. Disse-me que eu era uma cabeça sem miolos; respondi-lhe que a dele é que tinha falta de juízo. Pôs-se a rir, e eu agastei-me. Elevou a voz, e eu mandei-o para a terra dele, além dos montes. Recolhi-me à minha estalagem. Esperei que se dignasse mandar-me encerrar na Bastilha, e ele esperou que alguma boa reflexão me fizesse sair de Nantes. Ao cabo de vinte e quatro horas ocorreu-me aquela boa reflexão. E a si também a devo, porque me lembrei do que me havia prometido, e pensei que talvez me esperasse, ainda que não fosse senão o espaço de um segundo. Então, respirando o ar livre, desobrigado de toda a responsabilidade, de todo o dever, sem partido, sem empenho,

l e quase sem dar preferência a coisa alguma, de uma só me lembrei: e era de que a amava, senhora, e que lho podia agora dizer, alta e afoitamente.

- Deste modo, perdeu o posto, caiu em desagrado, e está arruinado por amor de mim! Querido senhor de Canolles, como

lhe pagarei jamais tamanhas obrigações? Que provas lhe darei

; do meu reconhecimento?

E com um sorriso, com uma lágrima - que restituíam ao jovem cem vezes mais do que perdera - a senhora de Cambes fez

Cair Canolles a seus pés.

- Ah! senhora - disse-lhe ele - desde este momento, muito pelo contrário, sou rico e feliz, visto que vou segui-la, visto que de si não mais me apartarei, visto que vou ser ditoso com a sua presença e rico com o seu amor.

- Então não há coisa alguma que o detenha?

- Não, senhora.

- É todo meu, e guardando para mim o seu coração, posso oferecer o seu braço à princesa?

- Sem dúvida que pode fazê-lo.

- Portanto, enviou a sua demissão?

- Ainda não. Queria tornar primeiro a vê-la. Mas, como lhe disse, agora que tornei a vê-la, vou escrevê-la aqui, neste mesmo momento. Reservava para mim a honra de ter de obedecer-lhe.

- Escreva, pois! Escreva antes de tudo! Se não escreve, será considerado um trânsfuga; até deve esperar, antes de dar algum passo decisivo, que a sua demissão seja aceite.

- Querida diplomaticazinha, nada receie, conceder-ma-ão, até de muito bom grado; a inaptidão que demonstrei em Chantilly não lhes deixa muitas saudades minhas. Não me disseram eles - ajuntou Canolles, rindo-se - que era um cabeça sem miolos?

- Sim, mas indemnizá-lo-emos do conceito que fizeram de si, não se preocupe. A sua acção em Chantilly será mais bem vista em Bordéus do que em Paris, pode acreditar-me. Mas escreva, barão, escreva depressa, a fim de que possamos pôr-nos a caminho; porquanto, confesso-lhe a estada nesta estalagem não me inspira a mínima confiança.

- Do passado é que sem dúvida quer falar, e não sei para que se há-de assustar tanto com meras recordações! - disse Canolles, volvendo os olhos em torno de si, e fixando-os numa alcovazinha com duas camas que já por diferentes vezes haviam chamado a sua atenção.

- Não, falo do presente, e não lhe cabe parte alguma nos terrores que sinto. Hoje, não é já de si que receio.

- Então quem receia? Que pode recear?

- Ah! meu Deus! Quem sabe?

Neste momento, como para justificar os receios da viscondessa, bateram três vezes na porta, com uma gravidade solene.

Canolles e a viscondessa guardaram silêncio olhando um para o outro, com inquietação, e interrogando-se mutuamente.

- Em nome do rei - disse uma voz - abram!

E a fraca porta voou logo em estilhaços. Canolles quis lançar mão à espada, mas já um homem lha tolhia, havendo-se arremessado de permeio.

- Que quer isto dizer!? - perguntou o barão.

- Não é o senhor de Canolles?

- Sem dúvida que o sou.

- Capitão do regimento de Navailles?

- Sim.

- Enviado com uma comissão pelo duque D’Épernon? Canolles fez um aceno afirmativo com a cabeça.

- Neste caso, em nome do rei e de Sua Majestade a rainha-regente, está preso.

- Onde está a ordem?

- Ei-la aqui.

- Mas, senhor - disse Canolles, restituindo o papel, depois de haver corrido por ele os olhos - se me não engano, parece-me

[que o conheço.

- Sem dúvida que me conhece! Não foi nesta mesma aldeia onde hoje lhe dou a voz de prisão, que lhe trouxe, da parte do

[duque d’Epernon, a comissão de partir para a corte? O seu futuro dependia do bom êxito desta comissão, meu gentil-homem; foi

, mal sucedido - tanto pior para si. Clara abateu-se e foi cair debulhada em lágrimas numa cadeira;

E ela, da sua parte, tinha conhecido o indiscreto interrogador.

- Mazarino vinga-se - resmungou Canolles.

- Vamos, senhor, partamos - disse Cauvignac.

Clara não se movia. Canolles, indeciso, parecia estar a ponto de enlouquecer. A sua desgraça era tamanha, tão acerba, tão inesperada, que o respectivo peso esmagava-o; curvou, portanto, a cabeça e resignou-se.

Naquela época, as palavras Em nome do rei ainda tinham toda a sua magia, e ninguém se atrevia a resistir-lhes.

- Para onde me conduz, senhor? - disse ele.-Ou também o proibiram de me dar a consolação de saber para onde vou?...

- Não, senhor, vou dizer-lho. Conduzimo-lo à fortaleza da Ilha de São Jorge.

- Adeus, minha senhora - disse Canolles, inclinando-se com respeito diante da senhora de Cambes.-Adeus!

"Vamos, vamos - disse Cauvignac consigo mesmo - as coisas não estão tão adiantadas como eu o julgara; di-lo-ei a Nanon, e isto dar-lhe-á prazer."

Depois, chegando-se à porta:

- Quatro homens para escoltar o capitão! - bradou ele - e os outros quatro para diante.

- E a mim? - exclamou a senhora de Cambes estendendo os braços para o preso. - E a mim, para onde me levam? Pois se o barão é culpado, oh! eu o sou muito mais do que ele!

- A senhora - respondeu Cauvignac - pode retirar-se; está livre.

E saiu, levando consigo o barão.

A senhora de Cambes levantou-se, reanimada por um raio de esperança, e preparou tudo para a partida, a fim de que não pudessem estas boas disposições dar lugar a ordens contrárias.

"Livre - disse ela - então poderei não o perder de vista; partamos."

E, chegando à janela, viu a guarda que acompanhava Canolles, disse-lhe adeus com a mão pela última vez, e, chamando Pompeu, que, contente por fazer um alto de dois ou três dias, havia já tomado posse do melhor quarto que pôde encontrar, ordenou-lhe que fosse preparar tudo para a partida.

 

O caminho tornou-se para Canolles ainda mais triste do que esperava. Com efeito, o cavalo, que dá ao preso, por muito guardado que esteja, um falso ar de liberdade, fora substituído por um velho e pesado carroção; além disso, tinha os joelhos travados nos de um homem que tinha nariz de águia, cuja mão estava pousada com uma espécie de amor-próprio na coronha de uma pistola. Algumas vezes, durante a : noite, tinha esperanças de surpreender a vigilância do novo Argos; mas, ao lado do nariz de águia, brilhavam dois grandes olhos de mocho, redondos, chamejantes, e muito próprios para as observações nocturnas. De modo que, para qualquer lado que se voltasse, Canolles via sempre aqueles dois olhos redondos luzirem na direcção do seu olhar.

Enquanto dormia, um dos dois olhos também dormia - mas um só; era uma faculdade que a Natureza dera àquele homem, de só dormir com um dos olhos.

Canolles passou assim dois dias e duas noites em fúnebres reflexões, porque a fortaleza da Ilha de São Jorge, fortaleza que não ; era para aterrar, tomava aos seus olhos umas proporções medonhas,à medida que o receio e os remorsos iam invadindo mais profundamente o seu coração.

Sentia remorsos, porque compreendia que a sua comissão junto da princesa fora uma comissão de confiança, a qual vendera barato aos seus amores, e que o resultado da falta que cometera nessa ocasião era terrível. Em Chantilly, a senhora de Conde não era mais do que uma mulher fugitiva. Em Bordéus, a senhora de Conde era uma princesa rebelde.

Sentia receio, porque sabia por tradição de que sombrias vinganças era capaz uma Ana de Áustria encolerizada.

Outro remorso ainda sentia mais secreto; porém, talvez mais pungente, do que o primeiro. Existia neste mundo uma mulher jovem, bela, espirituosa, uma mulher que não empregara a sua influência senão para promover a sua melhoria, que não empregara o seu crédito senão para protegê-lo, uma mulher que pelo amor que lhe tinha, vinte vezes pusera em risco a sua posição, o seu porvir, a sua fortuna. Pois esta mulher, não só a mais encantadora das amantes, mas ainda a mais ardente e extremosa das amigas, fora por ele brutalmente abandonada, sem desculpa, sem motivo, no momento em que o tinha na sua lembrança; e em vez de se vingar, concedera-lhe novas graças; e o seu nome, em lugar de se apresentar com o acento da repreensão, ressoara aos seus ouvidos com a doçura acariciadora de um favor quase régio. Verdade é que este favor chegara num mau momento, num momento em que decerto Canolles teria preferido um desfavor; mas era isso culpa de Nanon? Nanon, nesta comissão junto de Sua Majestade, outra coisa não vira do que um engrandecimento de fortuna e de consideração para o homem que trazia constantemente presente no seu espírito.

Por isso, todos aqueles que amaram duas mulheres ao mesmo tempo - peço perdão às minhas leitoras, este fenómeno, incompreensível para elas, que nunca tiveram senão um amor, é comum entre nós, os homens - por isso, digo eu, todos aqueles que amaram duas mulheres ao mesmo tempo, compreenderão que à medida que Canolles se engolfava nas suas reflexões, Nanon ia recobrando cada vez mais no seu espírito aquela influência que ele julgava perdida. As angulosas asperezas do carácter que ferem no contacto da intimidade, e dão lugar a passageiros despeitos, apagam-se com a distância, enquanto, pelo contrário, certas recordações mais doces recobram a sua intensidade com a ausência. Enfim, é triste ter de dizer-se que o amor etéreo que só promete favores se volatiliza quando isolado; ao passo que, nesse mesmo estado, pelo contrário, o amor material ocorre à memória, armado de todas as suas fruições terrestres, que não deixam de ter o seu preço. Bela e perdida, boa e enganada - eis o que parecia agora Nanon a Canolles.

Acontecia assim, porque Canolles mergulhava ao íntimo do seu coração com ingenuidade, e não com a má vontade daqueles acusados a quem obrigam a fazer uma confissão total. Que havia feito Nanon para que a abandonasse? Que havia feito a senhora de Cambes para que a seguisse? O que havia, pois, de tão apetecível, de tão magnificamente amoroso no engraçado cavaleiro da estalagem Bezerro de Ouro? Como podia a senhora de Cambes ultra-[ passar Nanon de um modo tão triunfante? Dar-se-ia o caso de os cabelos louros merecerem uma tal preferência sobre os cabelos pretos, para que um homem seja perjuro e ingrato para com a amante; traidor e desleal para com o seu rei - sem outro fim do que trocar tranças pretas por tranças louras? E, contudo, oh, miséria da condição humana! Canolles fazia para si mesmo todos estes raciocínios, muito assizados, como bem se vê, e não se dava por convencido.

O coração está cheio de mistérios semelhantes a estes, que fazem a ventura dos amantes e o desespero dos filósofos.

Todavia, isto não impedia que Canolles se indignasse contra si mesmo, e se repreendesse com aspereza.

"Vou ser punido - dizia consigo, pensando que a punição apaga a falta. -Tanto melhor! Irei encontrar-me com algum bom capitão, muito rude, muito insolente, muito brutal, que me lerá, do alto da sua dignidade de carcereiro-chefe, uma ordem de Mazarino; que me indicará com o dedo uma enxovia, e que me mandará sepultar num profundo subterrâneo em companhia dos ratos e dos sapos - enquanto poderia ter vivido em pleno dia, e florescer ao sol, nos braços de uma mulher que me amava, a quem eu amei, e a quem, pela minha fé! talvez que ainda ame. Maldito viscondezinho, que os espíritos diabólicos te levassem! Porque havias tu de servir de envoltório a uma tão encantadora viscondessa!? Sim; mas haverá no mundo uma viscondessa que valha o que esta me vai custar?... E o pior é que todo o mal não está no governador, e na sua enxovia subterrânea; se julgarem que sou traidor, tudo quererão investigar; causticar-me-ão acerca da minha estada em Chantilly, para a qual não haveria expiação bastante, convenho, se houvesse sido mais frutuosa; mas que, ao fim e ao cabo, nada mais me rendeu do que três beijos na mão. A verdade é que fui um grandíssimo toleirão, pois tendo a força, e podendo dela abusar, nenhum uso dela fiz. Cabeça desmiolada, como disse Mazarino. que foi traidora, e que não soube fazer-se recompensar pela traição! E agora, quem ma pagará?"

E Canolles encolhia os ombros, respondendo com desprezo, pelo movimento que fazia, à interrogação do seu pensamento.

O homem dos olhos redondos, que por muito perspicaz que fosse, não podia compreender esta pantomima, olhava-o com espanto.

"Se me interrogarem - prosseguiu Canolles - não responderei; que resposta poderia eu dar? Que não gostava de Mazarino? Então não devia servi-lo. Que amava a senhora de Cambes? Bela razão para dar a uma rainha e a um primeiro-ministro! Portanto, nada responderei. Mas os juizes são entidades muito susceptíveis; quando interrogam, querem que lhe respondam. Torturar-me-ão. Deslocar-me-ão estes delicados joelhos de que tanto me ufano, e enviar-me-ão todo desconjuntado para a companhia dos tais ratos e dos sapos. O resultado de tudo isso será ficar manco toda a vida, como o príncipe de Conti, o que é uma coisa muito feia, supondo ainda que a clemência de Sua Majestade me acuda - o que decerto não fará."

Além do governador, dos ratos, dos sapos, das torturas, restavam ainda certos cadafalsos onde eram decapitados os rebeldes, certas forcas onde eram enforcados os traidores, e certas praças de armas onde eram arcabuzados os desertores. Mas tudo isto nada era para um belo mancebo como Canolles - o que se compreende- em comparação com a hipótese de ficar manco.

Assim, decidiu esclarecer-se, e interrogar a este respeito o companheiro de viagem.

Os olhos redondos, o nariz de águia, e o ar carrancudo do indivíduo não encorajavam o preso a iniciar o diálogo. Contudo, dado que por muito impassível que seja um rosto, é impossível que não haja momentos em que se desenrugue um pouco, Canolles aproveitou-se do momento em que uma carantonha, que se assemelhava a um sorriso, passava pelo rosto do esbirro subalterno que tão cuidadosamente o guardava.

- Senhor... - disse ele.

- Senhor... - respondeu o esbirro.

- Desculpe-me, se o arranco às suas reflexões...

- Não tem de que pedir-me desculpa, senhor; nunca reflito.

- Olá! Possui, senhor, pelo que vejo, uma feliz organização.

- Não tenho razão de queixa.

- Ora pois, outro tanto não me acontece a mim, porque tenho boa vontade de me queixar.

- De quê, senhor?

- De que assim me levem à força, no momento em que menos pensava, a fim de me conduzirem não sei para onde.

- Bem o sabe, senhor, pois que já lho disseram.

- Tem razão. Vamos para a Ilha de São Jorge, não é assim, senhor?

- Isso mesmo.

- Crê que eu fique ali muito tempo?

- Ignoro, senhor; mas pelo modo como me foi recomendado, julgo que sim.

- Ah!... é coisa muito feia, a Ilha de São Jorge?

- Não conhece aquela fortaleza?

- Não conheço o interior, visto que nunca ali entrei.

- Posso assegurar-lhe, senhor, que não é coisa muito bela, e à excepção dos quartos do governador, que acabam de mandar renovar e que são muito confortáveis, o resto do edifício, ao que parece, forma uma habitação bem triste.

- Belo. Julga que me farão perguntas?

- Pelo menos, assim é costume.

- E se eu não responder?

- Se não responder?...

- Então?

- Em tal caso, bem o sabe, recorre-se à tortura.

- Normal?

- Ordinária ou extraordinária, conforme a gravidade da acusação.

- Receio - disse Canolles - ser acusado de crime de Estado.

- Ah! nesse caso, gozará das torturas extraordinárias... Água, e mais água...

- Como!? Água e mais água?...

- Sim, encher-lhe-ão a barriga de água.

- Então a água é o que está em moda, na Ilha de São Jorge?

- Não é de espantar, senhor; compreenda que no Garona...

- É muito justo; têm a coisa à mão. E que quantidade de água?

- Quanta puderem fazer-lhe beber.

- Então, incharei.

- Por certo que sim. Mas se tiver a cautela de suavizar o carcereiro. ..

- E então?

- Então, a coisa tornar-se-á mais suportável.

- E em que consiste, tenha a bondade de dizer-me, o serviço que o carcereiro pode prestar-me?

- Pode fazer-lhe beber azeite.

- Então o azeite é um tonificante?

- E soberano, senhor!

- Julga isso?

- Falo por experiência; vi um homem beber enorme quantidade de água com extrema facilidade, graças ao azeite que lhe havia preparado convenientemente as vias. Verdade é que inchou, como sempre acontece; mas com um bom fogo fizeram-no desinchar sem que sofresse grandes avarias. Nisto consiste o essencial da segunda parte da operação. Lembre-se bem destas palavras: Aquentar, sem queimar.

- Muito bem, compreendo - disse Canolles. - O senhor era talvez executor da Alta Justiça, não?

- Não, senhor! - replicou o interlocutor, com uma modéstia acompanhada de urbanidade.

- Ajudante, talvez...

- Não, senhor, não era mais do que um simples curioso.

- Ah! ah! E o senhor chama-se...

- Barrabás.

- Belo nome, antigo nome, muito bem conhecido nas Escrituras.

- Na Paixão, senhor.

- Isso é o que eu quero dizer; mas, por hábito, servi-me de outra palavra.

- O senhor prefere as Escrituras; então, o senhor é huguenote?

- Sim, mas huguenote muito ignorante. Acredita que apenas sei uns três mil versos dos salmos?...

- Na realidade, é muito pouca coisa.

- Eu aprendia melhor a música... Na minha família, houve muitos enforcados e queimados.

- Alegro-me de que ao senhor não o espere uma tal sorte!

- Não, hoje há mais tolerância; submergir-me-ão, e com isto se darão por contentes.

Barrabás desatou a rir.

O coração de Canolles estremeceu de alegria, porque havia conquistado o seu guarda. Com efeito, se este carcereiro interino viesse a ser o seu carcereiro permanente, tinha todas as probalidades de alcançar o azeite. Decidiu dar seguimento à conversa no ponto em que a deixara.

- Senhor Barrabás - disse ele - teremos nós em breve de nos separar, ou far-me-á a honra de continuar na minha companhia?

- Senhor, uma vez que cheguemos à Ilha de São Jorge, terei o vivo pesar de me separar de si, porque tenho de voltar para a companhia.

- Muito bem; então faz parte de uma companhia de guardas?

- Não, senhor, de uma companhia de soldados.

- Armada pelo ministro?...

- Não, senhor, pelo capitão Cauvignac, o mesmo que teve a honra de o prender.

- E servem o rei?

- Creio que sim, senhor.

- Que diabo está dizendo!? Não está certo disso?

- A gente de nada está certo neste mundo.

- Então, se tem dúvidas, deveria, a fim de se decidir, fazer uma coisa.

- Qual?

- Permitir que me evada.

- Isso não é possível, senhor.

- Mas eu pagar-lhe-ei muito honradamente a sua complacência.

- Com quê?

- Com que há-de ser? Com dinheiro!

- O senhor não o tem.

- Quem lhe disse que não o tenho?

- Assim o suponho.

Canolles levou a mão com viveza às algibeiras.

- Cem efeito - disse ele - a minha bolsa desapareceu; quem lançaria mão dela?

- Eu senhor - respondeu Barrabás, fazendo-lhe uma saudação respeitosa.

- E para quê?

- Para que o senhor não me pudesse corromper.

Canolles olhou para o digno esbirro com admiração, e como lhe parecesse que o argumento não tinha réplica, nada mais lhe disse.

Em resultado disto, tendo os dois viajantes mantido novamente o silêncio, a viagem reassumiu, ao aproximar-se do fim, aquele aspecto melancólico que tivera no início.

 

PRINCIPIAVA já a romper o dia quando o carroção chegou à aldeia mais próxima da ilha. Apenas Canolles o sentiu deter-se, passou a cabeça através de uma pequena seteira, postigo destinado a dar espaço às pessoas livres, e muito cómodo para o interceptar aos presos.

Uma linda aldeiazinha, composta por cem casas apinhadas em torno de uma igreja, no declive de uma montanha, e dominada por um castelo, oferecia-se à vista, no ar límpido da manhã dourada pelos raios de Sol, o qual afugentava uns restos de vapores semelhantes a gases ondulantes.

Nesse momento, o carroção subia uma encosta, e o respectivo cocheiro, tendo-se apeado, caminhava junto dele.

- Meu amigo - perguntou Canolles - é desta terra?

- Sim, senhor, sou de Libourne.

- Então deve conhecer esta aldeia. Que casa branca é esta? Que lindas choupanas são aquelas?

- Senhor - respondeu o camponês - aquele castelo é o de Cambes, e a aldeia é uma das suas propriedades.

Canolles estremeceu e passou num instante do mais vivo rubor a uma palidez quase lívida.

- Senhor - disse Barrabás, a cujos olhos redondos nada escapava - ter-se-á por acaso ferido nesse postigo?

- Não, agradeço-lhe o cuidado.

Depois, continuando a interrogar o camponês:

- E a quem pertence esta propriedade? - perguntou ele.

- À viscondessa de Cambes.

- A uma jovem viúva?

- Muito linda e muito rica.

- E por conseguinte, muito solicitada...

- Sem dúvida alguma: bom dote e bonita mulher. Com isso nunca faltam pretendentes.

- Boa reputação?

- Sim, mas fanática partidária dos príncipes.

- Efectivamente, parece-me que assim ouvi dizer.

- Um demónio, senhor, um verdadeiro demónio!

"Um anjo - disse consigo Canolles, que todas as vezes que se lembrava de Clara, nela pensava com transportes de adoração. - Um anjo."

Depois, em voz alta:

- Ela reside aqui algumas vezes?

- Raras vezes, senhor; porém, viveu muito tempo neste sítio. O marido nele a deixou, e enquanto ela aqui esteve foi a bênção da terra. Agora, segundo dizem, está com os príncipes.

O carroção, depois de ter subido a encosta, ia iniciar a descida, e o condutor fez um sinal com a mão para pedir licença de se sentar no seu lugar. Canolles, que receava levantar suspeitas continuando o interrogatório, recolheu a cabeça para o interior da portinhola; e continuaram o caminho a trote, que era o melhor andamento possível.

No fim de um quarto de hora, durante o qual, sempre sob a vigilância de Barrabás, Canolles ficara mergulhado nas mais sombrias reflexões, o carroção parou.

- Pararemos aqui para almoçar? - perguntou Canolles.

- Pararemos aqui definitivamente, senhor, estamos chegados. Eis a Ilha de São Jorge. Falta-nos somente atravessar o rio.

- É verdade - murmurou Canolles. - Tão perto, e tão longe!

- Senhor, lá vem gente ter connosco - disse Barrabás. - Apreste-se a apear-se.

O segundo guarda de Canolles, que estava sentado junto do cocheiro, saltou em terra, e abriu a portinhola, que tinha uma fechadura, cuja chave estava na mão do guarda.

Canolles voltou os olhos, do pequeno castelo branco, que não perdera de vista, para a fortaleza que ia ser a sua morada. Logo do outro lado de um braço do rio bastante caudaloso, viu uma barca, e, perto dela, um grupo de oito homens e um sargento.

Atrás do posto, elevavam-se as obras da cidadela.

"Bom - disse Canolles - esperam-me e tomaram precauções..."

- São esses os meus novos guardas? - perguntou ele em voz alta a Barrabás.

- Bem desejaria responder acertadamente ao senhor- disse Barrabás - mas na verdade não sei.

Nesse momento, depois de ter dado um sinal que foi repetido pela sentinela de guarda à porta do carroção, os oito soldados e o sargento entraram na barca, atravessaram o Garona, e desembarcaram no momento em que Canolles se apeava.

No mesmo instante, o sargento, vendo um oficial, aproximou-se dele, e saudou-o militarmente.

- É ao senhor barão de Canolles, capitão do regimento de Navailles, que tenho a honra de falar? - perguntou o sargento.

- A ele mesmo - respondeu Canolles, admirado pela polidez do homem.

O sargento voltou-se imediatamente para os seus homens, ordenou-lhes que aperrassem as armas, e mostrou com a ponta da sua lança a barca, a Canolles. Canolles entrou dentro dela e colocou-se no meio dos seus dois guardas: os dois soldados e o sargento entraram depois dele, e a barca afastou-se da praia enquanto pela derradeira vez Canolles lançava os olhos para Cambes, que estava a ponto de desaparecer por detrás de um outeiro.

Quase toda a ilha estava coberta de escarpas, contra-escarpas e bastiões; um pequeno forte, em muito bom estado, dominava todas aquelas obras. Entrava-se nela por uma porta arqueada, diante da qual passeava de um para outro lado a sentinela.

- Quem vive? - gritou ela.

A pequena tropa fez alto, o sargento separou-se, aproximou-se da sentinela, e disse-lhe algumas palavras.

- Às armas! - gritou a sentinela.

Sen a mínima demora, uns vinte homens, de que se compunha o posto, saíram de um corpo de guarda, e, acudindo muito apressados, puseram-se em linha diante da porta.

- Venha, senhor - disse o sargento a Canolles. O tambor principiou a tocar a marcha.

"Que quer isto dizer?" - disse o mancebo consigo.

E aproximou-se do forte, não compreendendo já nada do que ali se passava, pois todos aqueles preparativos mais pareciam honras feitas a um superior, do que cautelas tomadas contra um preso.

Ainda, porém, não estava aqui tudo: Canolles não observara que no momento em que se apeara da sege, uma janela da casa do governador se abrira, e que um oficial observara atentamente os movimentos da barca, e a recepção que se fizera ao preso e aos seus dois beleguins.

Aquele oficial, quando viu que Canolles acabava de pôr o pé na ilha, desceu rapidamente, e saiu-lhe ao encontro.

- Ah!...- disse Canolles ao vê-lo - eis o comandante da praça que vem reconhecer o inquilino.

- Na realidade - disse Barrabás - parece, senhor, que não se há-de enfastiar, como certas pessoas a quem deixam oito dias inteiros num vestíbulo. Arranjar-lhe-ão lugar imediatamente.

- Tanto melhor - disse Canolles.

Entretanto, o oficial ia-se aproximando. Canolles tomou a atitude altiva e digna de um homem perseguido.

À distância de alguns passos de Canolles, o oficial tirou o chapéu.

- É ao senhor barão de Canolles a quem tenho a honra de falar? - perguntou ele.

- Senhor - respondeu o preso - tanta urbanidade da vossa parte deixa-me na realidade confuso. Sim, sou o barão de Canolles; agora trate-me, peço-lhe, com a cortesia de um oficial para com outro, e aloje-me o menos mal que puder.

- Senhor - respondeu o oficial - a sua habitação é a melhor que possa ser; pois, como se quisessem prevenir os seus desejos, fizeram-se nele todos os reparos possíveis...

- E a quem devo eu agradecer estas precauções desusadas? - perguntou Canolles sorrindo-se.

- Ao rei, senhor, sem dúvida... Deus me livre de caluniar Sua Majestade, sobretudo nesta ocasião! Todavia, não me desgostaria obter certas informações...

- Se o ordenar, senhor, estou à sua disposição. Contudo, tomarei a liberdade de lhe observar que a guarnição o espera para o reconhecer.

"Que tal, hem?...- disse consigo Canolles - uma guarnição [inteira para reconhecer um preso." Depois, em voz alta:

- Eu é que estou às suas ordens, senhor - replicou ele - e pronto para segui-lo aonde quiser levar-me.

- Permita-me, pois - disse o oficial - que vá adiante de si, para fazer as honras.

Canolles seguiu-o, dando a si próprio os parabéns por haver caído nas mãos de um homem tão cortês.

Chegando ao pátio da cidadela, Canolles deparou com uma parte da guarnição em armas. Então, o oficial que o conduzia desembainhou a espada, e inclinou-se diante dele.

"Tantas cerimónias, meu Deus?" - murmurou Canolles.

No mesmo instante, ouviu-se o tambor na abóbada vizinha; Canolles voltou-se e uma grande fileira de soldados, saindo daquela abóbada, foi colocar-se atrás da primeira. Nesse momento, o oficial apresentou duas chaves a Canolles.

- Que quer isto dizer!? - perguntou o barão. - que faz?

- Não fazemos mais do que cumprir o cerimonial costumado, segundo as mais rigorosas leis da etiqueta.

- Então por quem me toma!? - perguntou Canolles, cujo espanto era indizível.

- Por quem é, e creio que me não engano: pelo senhor barão de Canolles.

- E que mais?

- Governador da Ilha de São Jorge.

Foi tal a perturbação de Canolles, que por pouco não saiu por terra.

- Daqui a um momento - continuou o oficial - terei a honra de entregar ao senhor governador os despachos que recebi esta manhã, acompanhados desta carta que me anuncia a sua chegada hoje mesmo.

Canolles olhou para Barrabás, cujos olhos fixos estavam plantados nele com uma expressão de estupefacção impossível de descrever.

- Então - balbuciou Canolles - sou governador da Ilha de São Jorge?...

- Sim, senhor - respondeu o oficial - e Sua Majestade fez-nos grande favor com uma tal escolha.

- Está bem certo de que não há engano?...-perguntou Canolles.

- Senhor - respondeu o oficial - digne-se acompanhar-me aos seus aposentos, e ali verá a sua nomeação.

Canolles não podia conceber semelhante acontecimento, que tão longe estava de se assemelhar ao que ele esperava; pôs-se em marcha, seguindo, sem dizer palavra, o oficial, que lhe mostrava o caminho, por entre o som dos tambores, e dos soldados que apresentavam as armas, e de todos os habitantes da fortaleza, que erguiam aos ares as aclamações; saudava, pálido e trémulo, para a direita e para a esquerda, e interrogava Barrabás com olhos espantados.

Finalmente, tendo chegado a uma sala bastante elegante, e de cujas janelas logo notou que se podia avistar o castelo de Cambes, leu a nomeação, escrita em boa forma, assinada pela rainha, e referendada pelo duque D’Épernon.

Quando tal viu, não pôde manter-se de pé, e caiu estupefacto numa poltrona.

Contudo, depois de todos os clarins, das descargas de mosquetaria, das estrondosas demonstrações, das homenagens militares, e sobretudo depois do primeiro sobressalto que estas demonstrações lhe haviam produzido, Canolles desejou saber a razão por que a rainha lhe confiava o posto, e levantou os olhos, que durante algum tempo tivera pregados no pavimento.

Viu então diante de si, não menos estupefacto do que ele, o seu ex-carcereiro, que se tornara em seu muito humilde servo.

- Ah! é você, senhor Barrabás - disse-lhe ele.

- Sou eu mesmo, senhor governador.

- Poderá explicar-me o que acaba de se passar, que muito me custa a não tomar por um sonho?

- A explicação que lhe posso dar, senhor, é que quando eu lhe falava de torturas extraordinárias, julgava, por quem sou, que lhe dourava a pílula...

- Estava então convencido de que...?

- De que o conduzia até aqui, senhor, para ser rodado.

- Muito obrigado - disse Canolles, estremecendo a seu pesar. - E agora formou alguma opinião acerca do que me acontece?

- Sim, senhor.

- Faça, pois, o favor de me dizer qual é.

- Ei-la, senhor: a rainha terá conhecido quão difícil era é comissão de que o encarregara. Passado o primeiro momento de cólera, ter-se-á arrependido, e como, ao fim e ao cabo, não é homem aborrecível, Sua Graciosa Majestade tê-lo-á recompensado por o haver castigado com demasiado rigor.

- Isso é inadmissível! - respondeu Canolles.

- Parece-lhe que seja inadmissível?...

- Pelo menos, inverosímil.

- Inverosímil?

- Sim.

- Nesse caso, senhor governador, o que me resta é apresentar-lhe os meus humildes respeitos. Pode ser feliz como um rei na Ilha de São Jorge; há nela excelente vinho, caça que fornecem os campos, bom peixe, que todas as marés trazem nos barcos de Bordéus... e as mulheres de São Jorge... Ah, senhor, tudo isto é milagroso!

- Muito bem. Tratarei de seguir os seus concelhos. Receba esta ordem assinada por mim, e vá a casa do pagador, que lhe entregará cem libras. Eu mesmo de boa vontade lhos daria em mão própria; porém, visto que por prudência me tirou o meu dinheiro...

- E fiz muito bem, senhor! - exclamou Barrabás - porque, ao fim e ao cabo, se me tivesse corrompido, teria fugido, e se tivesse fugido, teria naturalmente perdido a elevada posição a que chegou, do que nunca me teria consolado.

- Mil vezes bem pensado, senhor Barrabás. Já notei que era fortíssimo em lógica. Entretanto, receba lá este papel como testemunho da sua eloquência. Os Antigos, como muito bem o sabe, representavam a Eloquência com cadeias de ouro que lhe saíam dos lábios.

- Senhor - replicou Barrabás - ousaria observar que seria inútil passar por casa do pagador...

- Como!? Recusa?! - exclamou Canolles, admirado.

- Não, senhor, Deus me defenda disso! Não sou dotado, graças à Providência, de tão falsos orgulhos; porém, vejo alguns cordões que saem de um cofre colocado no seu fogão, e que me parecem ser de uma bolsa.

- É bom entendedor em matérias de cordões, senhor Barrabás - disse Canolles, muito admirado, pois efectivamente via-se embutido na lareira um cofre antigo, de prata e ornado de esmaltes. - Vejamos se as suas previsões são exactas.

Canolles levantou a tampa do cofre e, de facto, achou uma bolsa, e dentro desta dez mil libras, com este bilhetinho:

Para a caixa particular do senhor governador da Ilha de São Jorge.

- Cos diabos! - disse Canolles, corando.-A rainha faz as coisas muito bem feitas!

E, contra sua vontade, as recordações de Buckingham ocorreram-lhe à mente; talvez que a rainha tivesse visto, por trás de alguma cortina, a figura vitoriosa do formoso capitão... Talvez ela o protegesse com um interesse muito terno... Talvez... (lem-bremo-nos de que Canolles era gascão...)

Infelizmente, a rainha tinha então vinte anos mais do que no tempo de Buckingham.

Todavia, fosse lá como fosse, e viesse de onde viesse, Canolles meteu a mão na bolsa, e dela tirou cem libras, que entregou a Barrabás, o qual saiu fazendo as mais repetidas e respeitosas cortesias.

 

AL Barrabás saiu, Canolles chamou o oficial, e pediu-lhe que o guiasse na revista que queria passar aos seus novos domínios.

O oficial colocou-se imediatamente às suas ordens. À porta, deparou com uma espécie de estado-maior, composto pelas outras principais individualidades da cidadela; conduzido por eles, conversando com eles, pedindo explicações acerca de todos os recursos da localidade, viu os bastiões, as esplanadas, as meias-luas, as casamatas, os subterrâneos, e os celeiros. A escolta retirou-se então, e Canolles ficou só com o oficial que ao princípio encontrara.

- Agora - disse-lhe este aproximando-se misteriosamente - só falta ao senhor governador ver um quarto e uma só pessoa.

- Que diz? - perguntou Canolles.

- O quarto dessa pessoa é ali - disse o oficial, estendendo o dedo para uma porta que efectivamente Canolles ainda não tinha aberto.

- Ah, é ali? - disse Canolles. -É.

- E a pessoa também está ali? - Também.

- Óptimo. peço-lhe, porém, que me desculpe: estou muito cansado de ter viajado dia e noite, e esta manhã não me sinto muito bom da cabeça; faça, pois, o favor de se explicar um pouco mais claramente.

- Ora, pois, senhor governador - continuou o oficial, com o mais fino sorriso - o quarto...

- Da pessoa... - acrescentou Canolles.

- ... que o espera, é ali... Agora, creio que me percebe... Canolles fez um movimento como se voltasse do país das abstracções.

- Sim, sim, muito bem - disse ele.-E posso entrar ali?...

- Sem dúvida alguma, visto que o esperam.

- Então vamos!- disse Canolles.

E com extraordinárias palpitações de coração, não vendo já coisa alguma, sentindo-se confundirem-se os seus receios e os seus desejos a ponto de ter medo de enlouquecer, Canolles empurrou uma segunda porta, e viu atrás de uma tapeçaria a risonha e ardente Nanon, que deu um grande grito, como se quisesse assustá-lo, e foi lançar os braços ao pescoço do gentil-homem.

Canolles ficou inerte, de braços pendentes e olhos fixos.

- Você! - balbuciou ele.

- Eu! - disse ela, redobrando de risos e de beijos.

A recordação das suas culpas apresentou-se ao espírito de Canolles, que, adivinhando imediatamente o novo favor daquela fiel amante, ficou esmagado ao peso do remorso e do reconhecimento.

- Ah!- disse ele - foi quem me salvou, enquanto eu me perdia como um insensato; velava por mim; é o meu anjo da guarda.

- Não me chame o seu anjo, porque sou um demónio - disse Nanon. - Só apareço nos bons momentos, confesse-o!

- Tem razão, minha querida amiga, pois na verdade creio que me livra do cadafalso.

- Também assim penso. Mas, oh! barão, pois, o senhor, tão perspicaz, tão fino, como fez para se deixar enganar por aquelas delambidas princesas?

Canolles corou; porém, Nanon tomara o partido de não ver nada daquela confusão.

- Na verdade - disse ele - não o sei; ou mesmo não o posso compreender.

- Oh! é porque elas são astuciosas. Ah! meus senhores, querem fazer a guerra às mulheres!... Será verdade o que me contaram? Mostraram-lhe, em lugar da jovem princesa, uma dama de honor, uma camarareira... não sei o quê!...

Canolles sentia a febre subir dos trémulos dedos ao extravazado cérebro.

- Julguei ver a princesa - disse ele - não a conhecia.

- E então, quem era?

- Uma dama de honor, segundo creio.

- Ah! pobre rapaz! A culpa é daquele traidor de Mazarino. Pois, com todos os demónios! Quando se encarrega alguém de uma missão tão difícil como aquela, dá-se-lhe um retrato! Se tivesse possuído ou visto um retrato da princesa, decerto a teria reconhecido. Mas não falemos mais nisso. Não sabe que aquele indigno Mazarino, a pretexto de que havia atraiçoado o rei, queria dar-lhe cabo da pele?...

- Eu bem desconfiava disso.

- Mas eu disse: pois não há-de ser assim; quero-o para mim! Fiz bem? Diga.

Por muito preocupado que estivesse com a recordação da viscondessa, e apesar de trazer sobre o peito o seu retrato, Canolles, não pôde resistir a tão delicada bondade, ao espírito que refulgia nos mais lindos olhos do mundo; abaixou a cabeça, e aplicou os lábios na linda mão que se lhe oferecia.

- E veio esperar-me aqui?

- Ia ter consigo a Paris, para o trazer para aqui. Levara-lhe a nomeação; aquela ausência era muito grande; o senhor D’Épernon não fazia mais do que aumentar a monotonia da minha vida. Tive notícia da sua desventura. A propósito (tinha-me esquecido de dizer): é meu irmão; não sabia?...

- Parece-me adivinhá-lo, ao ler a sua carta.

- Não há dúvida, tinham-nos atraiçoado. A carta que lhe escrevi cairá em más mãos. O duque chegou furioso. Nomeei-o, e declarei-o meu irmão, pobre Canolles! E agora, estamos protegidos pela mais legítima união. Ei-lo quase casado, meu pobre amigo.

Canolles deixou-se arrastar pelo incrível atractivo desta mulher. Depois de haver beijado as suas brancas mãos, beijou os olhos pretos. A sombra da senhora de Cambes teve de fugir, cobrindo lugubremente a cabeça.

- Desde então - continuou Nanon - previ tudo e determinei tudo: fiz do senhor d’Épemon o seu protector, ou, para melhor dizer, o seu amigo; abrandei a ira de Mazarino. Finalmente, escolhi para meu retiro São Jorge, porque, como bem sabe, querido amigo, sempre me querem apedrejar. No mundo, só o senhor me ama um pouco, meu querido Canolles. Vejamos, diga que me ama!

E a encantadora sereia, lançando os braços ao pescoço de Canolles, cravou o seu olhar ardente nos olhos do mancebo, como se quisesse penetrar-lhe o pensamento no mais profundo do coração.

Canolles sentiu naquele coração, em que Nanon procurava ler, o que nele se passava, que não podia tornar-se insensível a tão extremoso zelo. Um secreto pressentimento dizia-lhe que havia alguma coisa mais do que amor em Nanon, que havia generosidade, e que não somente ela o amava, mas que também lhe perdoava.

O mancebo fez um sinal com a cabeça, que respondia à pergunta de Nanon, pois com a boca não ousaria dizer-lhe que a amava, ainda que no fundo do seu peito todas as recordações advogassem a seu favor.

- Escolhi, pois - continuou ela - a Ilha de São Jorge, para pôr em segurança o meu dinheiro, as minhas jóias, e a minha pessoa. Quem, a não ser o homem que me ama - disse eu comigo – poderá defender a minha vida? Quem melhor do que o meu senhor pode conservar os meus tesouros? Tudo está nas suas mãos, meu caro amigo, existência e riquezas; velará cuidadosamente por tudo isso? Será fiel amigo e fiel guarda?

Neste momento, uma trombeta retumbou no pátio e vibrou no coração de Canolles; tinha diante de si o amor mais eloquente que jamais existira, e a cem passos de distância a guerra ameaçadora, a guerra que inflama e que embriaga.

- Oh! sim, Nanon - exclamou ele - a sua pessoa e os seus bens estão em segurança junto de mim, e morrerei, eu juro-lhe, para a salvar do menor perigo.

- Muito obrigada - disse ela - meu nobre cavalheiro; tão certa estou do seu valor como da sua generosidade. Ah! -acrescentou ela, sorrindo - bem quereria estar igualmente certa do seu amor!

- Oh! - disse Canolles - pode ter toda a certeza...

- Bem, muito bem - cortou Nanon. - Amor não se prova com juramentos, mas sim, com obras; pelo que fizer, senhor, faremos ideia do seu amor.

E passando à roda do pescoço de Canolles os mais lindos braços do mundo, inclinou a cabeça sobre o peito arquejante do mancebo.

"Agora é preciso que ele esqueça... - disse ela consigo - e há-de esquecer."

 

NO dia em que Canolles fora preso em Jaulnay sob os olhos da senhora de Cambes, esta partira com Pompeu ao encontro da princesa, que estava à vista de Coutras.

O primeiro cuidado do digno escudeiro foi querer provar à ama que se o bando de Cauvignac não exigira resgate algum, nem cometera violência alguma contra a bela viajante, à sua catadura resoluta, e à sua experiência da guerra devia ela atribuir tal ventura. A senhora de Cambes, menos facilmente persuadível do que Pompeu julgara ao princípio, observou-lhe que durante mais de uma hora ele desaparecera de todo; porém, Pompeu explicou-lhe que durante aquela hora ficara escondido num corredor, onde, com o auxílio de uma escada, preparara uma fuga certa para a viscondessa - mas que precisara de fazer frente a dois soldados desenfreados que lhe disputavam a posse da escada, o que fizera, já se sabe, com aquele invencível denodo de que todos sabiam ser dotado. Esta conversação permitiu muito naturalmente a Pompeu fazer o elogio dos soldados do seu tempo, terríveis para o inimigo, como o tinham provado no assédio de Montauban e na batalha de Corbie; porém, meigos e corteses para com os compatriotas, qualidades em que, cumpria dizê-lo, não faziam empenho os soldados  contemporâneos. O facto é que, sem de tal desconfiar, Pompeu acabava de escapar a um imenso perigo: o de ser alistado por força. Como marchava por costume com olhos radiantes, peito largo, inteiramente militar, e ar marcial, salientara-se logo aos olhos de Cauvignac; porém, graças aos acontecimentos subsequentes, que tinham mudado o curso das ideias do capitão, graças às duas mil libras que recebera de Nanon para somente se ocupar do barão de Canolles, graças à reflexão filosófica de que o ciúme é a mais magnífica das paixões, e que é necessário aproveitá-lo quando o encontramos no nosso caminho, esquecera o querido Pompeu e deixara continuar a senhora de Cambes o seu caminho para Bordéus. Na realidade, Nanon bem quisera que Bordéus não estivesse tão perto de Canolles.

Ela bem teria querido que a viscondessa se achasse no Peru, nas índias, na Gronelândia.

Por outro lado, quando Nanon se lembrava de que, para o futuro, teria ela só, entre boas muralhas, o seu querido Canolles, e que excelentes fortificações, muito pouco acessíveis aos soldados do rei, encerrariam também a senhora de Cambes, prisioneira na sua rebelião, sentia-se dominada, e gozava com delícia aquelas alegrias infinitas que só as crianças e os amantes conhecem sobre a Terra.

Vimos como aquele sonho se realizara, e como Canolles e Nanon se tinham encontrado de novo na Ilha de São Jorge.

Ora, pelo seu lado, a senhora de Cambes viajava triste e trémula. Pompeu, apesar de todas as suas jactâncias, estava bem longe de tranquilizá-la, e não foi sem grande susto que, sobre a tarde do dia em que partira de Jaulnay, viu surgir, seguindo um caminho transversal, um considerável bando de cavaleiros.

Eram aqueles mesmos gentis-homens que voltavam do famoso enterro do duque de La Rochefoucauld, enterro que, com o fundamento de render as honras devidas ao pai, servira de pretexto ao príncipe de Marsillac para tirar da Picardia e outras províncias toda a nobreza que conseguia detestar Mazarino mais ainda do que era afeiçoada aos príncipes. Porém, uma coisa singular causou admiração à senhora de Cambes, e sobretudo a Pompeu: entre aqueles cavaleiros, uns traziam o braço ao peito e outros uma das pernas rodeada de chumaços; muitos tinham na fronte ligaduras ensanguentadas; era, pois, necessário olhá-los de muito perto para reconhecer naqueles gentis-homens, tão desfigurados, os ligeiros e formosos caçadores que haviam caçado o veado no parque de Chantilly.

Porém, o medo tem olhos penetrantes: Pompeu e a senhora de Cambes reconheceram sob daquelas tiras ensanguentadas alguns dos seus conhecimentos.

- Que lhe parece, senhora? - perguntou Pompeu. - Eis um enterro que teve lugar por bem maus caminhos. É forçoso que a maior parte deles tenham caído dos cavalos abaixo! Olhe como vão maltratados.

- É justamente o que estava a ver - disse a senhora de Cambes.

- Isto recorda-me o regresso de Corbie - volveu Pompeu com orgulho. - Porém, daquela vez não era os bravos que voltavam, mas sim os bravos a quem levavam.

- Mas - perguntou Clara, com um certo receio pela empresa que se apresentava sob de tão tristes auspícios - aqueles gentis-homens não são comandados por ninguém? Não têm um chefe? Esse chefe teria morrido, pois não o vemos... Olhe.

- Minha senhora - respondeu Pompeu, empertigando-se orgulhosamente na sua sela - nada há mais fácil do que reconhecer um chefe no meio da gente que comanda. Normalmente, no esquadrão, o oficial marcha no centro com os seus oficiais; na acção, marcha atrás, ou sobre o flanco da tropa. Lance, pois, os olhos para os diferentes lugares que designo, e ficará elucidada.

- Não vejo nada, Pompeu; mas parece-me que nos seguem; olhe para trás...

- Oh! não, senhora - disse Pompeu tossindo, mas sem se voltar, com medo de efectivamente ver alguém. - Não, ninguém.

Mas espere! O chefe não será aquele de penacho encarnado?... Não... Aquela espada dourada?... Não... Aquele cavalo malhado, semelhante ao do senhor de Turenne?... Não... Isto não deixa de ser singular; não há contudo perigo algum, e o chefe bem podia mostrar-se; aqui não é como em Corbie.

- Está enganado, senhor Pompeu - disse atrás do pobre escudeiro que esteve a ponto de cair de costas, uma voz estridente e trocista - está enganado: é pior do que em Corbie.

Clara voltou apressadamente a cabeça, e viu, a dois passos de si, um cavaleiro de mediana estatura, e em trajos de afectada simplicidade, que olhava para ela com uns olhos radiantes e encovados como os da raposa. Com os seus densos cabelos pretos, lábios delgados e móveis, palidez biliosa, a fronte carregada, aquele cavaleiro inspirava tristeza em pleno dia; de noite teria inspirado terror.

- Senhor príncipe de Marsillac! - exclamou Clara, muito agitada.- Ah! seja muito bem-vindo, senhor.

- Diga duque de La Rochefoucauld, minha senhora, porque, agora que o duque meu pai morreu, herdei o seu nome, sob o qual, boas ou más, vão inscrever-se as acções da minha vida.

- Regressa... - disse Clara, com hesitação.

- Voltamos derrotados, minha senhora.

- Derrotados?! Oh! céus!

- Digo que voltamos derrotados, senhora, porque eu sou pouco fanfarrão por natureza, e porque digo a verdade a mim mesmo, como a digo aos outros; se assim não fora, poderia dizer que voltávamos vencedores; mas, na realidade, fomos derrotados, visto que os nossos projectos acerca de Saumur se malograram. Cheguei muito tarde, perdemos aquela importante praça que Jarzé acabava de entregar. De agora em diante, supondo que a princesa tenha Bordéus, como se lhe prometeu, toda a guerra vai concentrar-se na Guiena.

- Mas, senhor - perguntou Clara - se, como me pareceu compreender, a capitulação teve lugar sem que se disparasse um tiro, o que significa o que vemos e porque é que todos esses cavaleiros estão assim feridos?

- Porque encontramos algumas tropas reais - disse La Roche-foucauld, com uma espécie de orgulho, que não pôde dissimular apesar do domínio que tinha sobre si mesmo.

- E houve combate? - perguntou com vivacidade a senhora de Cambes.

- Oh! meu Deus, sim, senhora.

- Quer dizer - murmurou a viscondessa - que o primeiro sangue francês já foi derramado por franceses, e foi o senhor duque quem deu o exemplo!

- Fui eu, senhora.

- O senhor, tão sossegado, tão frio e tão sisudo?!

- Quando se defende um partido injusto contra mim, à força de me apaixonar pela razão, torno-me por vezes muito pouco razoável.

- Ao menos não está ferido?

- Não. Desta vez fui mais feliz do que nas linhas de Paris. Então, julgava ter recebido lição suficiente da guerra civil para não me meter mais nisso. Porém, havia-me enganado. Que quer? O homem sempre forma projectos sem consultar a paixão, o único e verdadeiro arquitecto da sua vida, que reforma o seu edifício, quando não o derruba inteiramente.

A senhora de Cambes sorriu; lembrava-se de que o senhor de La Rochefoucauld dissera que, pelos lindos olhos da senhora de Longueville, fizera a guerra aos reis, e a faria aos deuses.

Este sorriso não escapou ao duque; e, não dando tempo à viscondessa de fazer seguir o pensamento àquele sorriso que lhe dera lugar:

- Mas, minha senhora - continuou ele - deixe-me fazer-lhe os meus cumprimentos, porque na verdade é um modelo de valor.

- E porquê?

- Viajar assim só, com um único escudeiro, como uma Clorinda ou uma Bradamante!... Oh! a propósito, contaram-me a sua linda actuação em Chantilly. Segundo me referiram, enganou admiravelmente um pobre diabo, oficial do exército real... Vitória fácil, não é assim? - juntou o duque, com aquele sorriso e olhar que nele queriam dizer tantas coisas.

- Como assim!? - perguntou Clara, muito agitada.

- Digo fácil - continuou o duque - porque não combatia com armas iguais consigo. Todavia, uma coisa me admirou no relato que me fizeram dessa aventura...

E com mais pertinácia do que nunca, o duque cravou os olhos na viscondessa.

Não havia meio algum para a senhora de Cambes fazer uma retirada honrosa. Preparou-se, por consequência, para uma defesa, que decidiu fazer com todo o vigor que pudesse.

- Fale, senhor duque - disse ela. - Que foi que o admirou tanto?

- A sua extrema habilidade, senhora, em fazer aquele pequeno papel cómico; com efeito, se é verdade o que me disseram, o oficial já tinha visto o seu escudeiro, e até me parece que a si mesma.

Estas últimas palavras, ainda que proferidas com toda a habilidade ciscunspecta de um homem de tacto, não deixaram de impor uma profunda sensação à senhora de Cambes.

- Já me tinha visto, diz o senhor?

- Tenha paciência, senhora, entendamo-nos; não sou eu quem o diz, eu não faço mais do que repetir o que outros dizem; e ao poder destes dizeres os reis estão sujeitos como os últimos dos seus súbditos.

- E onde me tinha ele visto?

- Dizem que foi na estrada de Libourne para Chantilly, numa aldeia chamada Jaulnay; mas que a entrevista não fora longa, tendo o mancebo recebido ordem do senhor D’Épernon para partir no mesmo instante rumo a Nantes.

- Mas se aquele gentil-homem me tinha visto, senhor duque, como não me reconheceu ele então?

- Ah! segundo o famoso dizer de que ainda agora lhe falava, e que para tudo tem resposta pronta, a coisa era impossível, visto que a entrevista tivera lugar nas trevas.

- Desta vez, senhor duque - replicou a viscondessa, sumamente agitada - já não sei na verdade o que quer dizer.

- Então - continuou o duque, com fingida ingenuidade - talvez tenha sido mal informado; além de que, supondo que assim seja, que significa o encontro de um instante?... Na verdade, senhora - ajuntou cortesmente o duque - tem um garbo e um rosto que devem deixar uma profunda impressão, ainda que na sequência de um encontro momentâneo.

- Mas isso não era possível - replicou a viscondessa - visto que o senhor mesmo diz que a entrevista teve lugar nas trevas...

- Tem razão, senhora, e é forçoso confessar que se defende habilmente; sou eu, pois, quem se engana... A não ser, todavia, que aquele mancebo, antes dessa entrevista, a tivesse já visto; então, a aventura de Jaulnay já não seria exactamente um encontro. ..

- E que será então? - respondeu Clara.-Pondere as suas palavras, senhor duque.

- Por isso, como vê, não vou mais longe; a nossa querida língua francesa é tão pobre, que em vão procuro uma palavra que exprima a minha ideia. Será... um "appuntamento", como dizem os italianos... uma "assignation", como dizem os ingleses.

- Mas, se não me engano, senhor duque - disse Clara - estas duas palavras traduzem-se em francês pela de "rendez-vous".

- E então? - replicou o duque - não digo eu uma parvoíce em duas línguas estrangeiras, e justamente diante de uma pessoa que entende essas duas línguas?... Minha senhora, perdoe-me; afinal, parece-me que o inglês e o italiano são tão pobres como o francês.

Clara apertou o coração com a mão esquerda para poder respirar mais livremente; estava quase sufocada; ocorria-lhe uma coisa de que sempre desconfiara: de que o senhor de La Rochefoucauld fizera, pelo menos em pensamento e em desejo e por amor dela, uma infidelidade à senhora de Longueville, e que ao falar assim era um sentimento de ciúme que o obrigara. Efectivamente, dois anos antes, o príncipe de Marsillac fizera-lhe a corte tão assiduamente quanto o permitiam aquele carácter dissimulado, aquelas perpétuas incertezas, e aqueles eternos acanhamentos, que faziam dele o mais rancoroso inimigo, quando não era o amigo mais reconhecido. Por isso a viscondessa preferiu não romper abertamente com um homem que tanto tomava a peito os negócios públicos como os interesses mais familiares.

- Não sabe senhor duque - disse ela - que é um homem precioso, sobretudo nas circunstâncias em que estamos, e que Mazarino, que se preza de ter uma boa polícia, não a tem, todavia, tão boa como a sua?...

- Se eu de nada soubesse, minha senhora - replicou o duque de La Rochefoucauld - parecer-me-ia muito com esse ministro, e então nenhum motivo teria para fazer guerra. E por isso é que trato de estar pouco mais ou menos inteirado de tudo.

- Até dos segredos das suas aliadas, se elas os tivessem?...

- Acaba de proferir uma palavra que se interpretaria muito mal se a ouvissem: um segredo de mulher. Aquela viagem e aquele encontro eram, então, um segredo?

- Entendamo-nos, senhor duque, porque só em parte tem razão. O encontro era um acaso. A viagem era um segredo, e até um segredo de mulheres, visto que, na realidade, só eu e a princesa sabíamos dela.

O duque sorriu. Esta boa defesa aguçava a sua perspicácia.

- E de Lenet? - disse ele - e de Richon? e do senhor de Tour-ville? e até de um certo visconde de Cambes, que não conheço, e de quem pela primeira vez ouvi falar naquela ocasião... Verdade é que quanto a este último, sendo seu irmão, dir-me-á que o segredo não saiu da família...

Clara pôs-se a rir para não irritar o duque, cujas sobrancelhas já começavam a franzir-se.

- Sabe uma coisa, senhor duque? - disse ela.

- Não, mas diga-me; e se é um segredo, senhora, prometo-lhe que serei tão discreto como a senhora e que o não direi senão ao meu estado-maior.

- Embora assim o faça, tanto melhor, ainda que com isso eu corra o risco de me tornar inimiga de uma grande princesa, em cujo ódio não é bom incorrer.

O duque corou imperceptivelmente.

- Então, esse segredo? - disse ele.

- Na viagem que me fizeram empreender, não sabe qual era o companheiro que a princesa me destinava?

- Não.

- Era o senhor mesmo.

- Com efeito, lembra-me que a princesa me mandou perguntar se podia servir de escolta a uma pessoa que voltava de Libourne para Paris.

- E recusou-se a isso.

- Encontrava-me então detido no Poitou, por negócios indispensáveis.

- Sim, tinha que receber os correios da senhora de Longueville. La Rochefoucauld olhou com vivacidade para a viscondessa,

como para sondar o íntimo do seu coração antes que o rasto dessas palavras tivesse desaparecido, e, aproximando-se dela, replicou:

- Censura-me por causa disso?

- De maneira nenhuma: está tão bem colocado naquele lugar, senhor duque, que, em vez de censuras, só tem direito a esperar louvores.

- Ah! - disse o duque, suspirando contra vontade - oxalá tivesse feito aquela viagem consigo!

- E porquê?

- Porque não teria ido a Saumur - respondeu o duque, num tom que dava a entender que tinha outra resposta pronta, mas que não ousava, ou não queria dá-la.

"Richon é que lhe há-de ter dito tudo" - pensou Clara.

- Porém - continuou ainda o duque - não me queixo da minha desgraça particular, visto que dela resulta uma felicidade pública.

- Que quer dizer, senhor duque? Não o compreendo.

- Quero dizer que se tivesse estado consigo, a senhora não terá encontrado aquele oficial, que a fortuna (tão evidente é que Deus protege a nossa causa) quis que fosse o mesmo que Mazarino enviou a Chantilly.

- Ah! senhor duque - exclamou Clara, com uma voz sufocada por dolorosa e recente recordação - não graceje acerca daquele infeliz oficial!

- Porquê? É alguma pessoa sagrada?

- Deve sê-lo agora, porque as grandes desgraças, para os corações nobres, são sagradas como as grandes fortunas. Esse oficial estará talvez morto a estas horas, senhor, e terá pago com a vida o seu erro, ou o seu ardente zelo.

- Morto de amor? - perguntou o duque.

- Falemos seriamente, senhor; sabe bem que, se desse o meu coração a alguém, não o faria a pessoas que se encontram pelas estradas. Digo-lhe que aquele infeliz foi preso hoje mesmo por ordem de Mazarino.

- Preso?! - admirou-se o duque.-E como sabe disso? Por algum novo encontro?

- Oh! meu Deus! sim. Eu passava por Jaulnay... Conhece Jaulnay?...

- Perfeitamente: recebi aí uma cutilada no ombro... Passava então por Jaulnay... Aliás, não é nessa mesma aldeia que segundo os boatos que correm...

- Deixemo-nos de boatos, senhor duque - respondeu Clara, corando. - Passava eu, pois, por Jaulnay, quando vi um grupo de gente armada que prendia um homem e o levava; esse homem era ele.

- Ele, diz a senhora? Ah! pondere, bem, senhora! - disse ele.

- Sim, ele, o oficial. Oh! meu Deus, senhor duque, como é profundo! Ponha de parte as suas espertezas e se não tem compaixão por aquele infeliz...

- Compaixão, eu?! -exclamou o duque. -Ah! senhora, porventura tenho eu tempo de ter compaixão, sobretudo por homens que não conheço?...

Clara olhou furtivamente para o pálido rosto de La Rochefou-cauld, e para os seus delgados lábios arrepiados por um sorriso sem irradiação, e não pôde deixar de estremecer.

- Senhora - continuou o duque - desejara ter a honra de escoltá-la mais longe. Porém, tenho de deixar uma guarnição em Montrond; desculpe-me, pois, se me separo de si. Vinte gentis-homens, mais felizes do que eu, servir-lhe-ão de guarda até que se tenha reunido à princesa, a quem lhe peço que tenha a bondade de apresentar os meus respeitos.

- Não vai para Bordéus? - perguntou Clara.

- Por ora não; vou-me reunir-me na Turenne com o senhor de Bouillon. Rivalizamos, a ver qual de nós será general desta guerra; o meu contrário é muito forte; porém, quero vencê-lo e ficar seu tenente.

Ditas estas palavras, o duque saudou cortesmente a viscondessa, e tomou, a passo lento, ao caminho da sua tropa de cavaleiros.

Clara seguiu-o com os olhos, murmurando:

"A sua compaixão! Eu invocava a sua compaixão!... Ele disse bem: não tem tempo para isso."

Viu então um grupo de cavaleiros destacar-se ao encontro dela, e com o resto da tropa ir, pensativo, com as rédeas lançadas no pescoço do cavalo, aquele homem de olhar falso e mãos brancas, que mais tarde inscreveria, no princípio das suas memórias, esta frase bastante singular num filósofo moralista:

"Creio que é necessário contentarmo-nos em mostrar compaixão, mas abstermo-nos de a ter. É esta uma paixão que para nada é útil no interior de uma boa alma; que só serve para enfraquecer o coração, e que se deve deixar ao povo, que nunca executa coisa alguma pela razão, e necessita da paixão para fazer as coisas."

Dois dias depois, a senhora de Cambes reunia-se à princesa.

 

A senhora de Cambes havia pensado muitas vezes, instintivamente, no que poderia resultar de um ódio como o do senhor de La Rochefoucauld; porém, reconhecendo ser jovem, bela e válida, não entendia que aquele ódio

- supondo, todavia, que existisse - pudesse ter uma influência

funesta na sua vida. Apesar disso, quando a senhora de Cambes soube, sem margem

para dúvidas, que ele se inquietara a seu respeito a ponto de estar

inteirado de tudo, antecipou-se-lhe, e deu conta disso à princesa.

- Senhora - disse à princesa, em resposta aos elogios que lhe eram feitos - não me lisonjeie muito acerca da suposta destreza que mostrei nessa ocasião, já que não deixa de haver quem assegure que o oficial enganado sabia muito bem a quantas andava, relativamente à verdadeira ou falsa princesa de Conde.

Como, porém, esta suposição retirava à princesa de Conde a parte de merecimento que julgava haver desenvolvido na execução do ardil, a nada quis dar crédito.

- Sim, sim, minha querida Clara - respondeu ela. - Sim, compreendo muito bem: hoje, que o nosso gentil-homem vê que o enganámos, quereria dar a entender que nos favoreceu; por infelicidade sua, acordou muito tarde, pois esperou por cair em desgraça para assim proceder. Mas, a propósito: não me disse que tinha encontrado o senhor de La Rochefoucauld por esses caminhos?

- Sim, senhora.

- Que lhe contou ele de novo?

- Que ia para a Turenne, a fim de se entender com o senhor de Bouillon.

- Sim, há uma luta entre eles, bem o sei; afectando recusarem essa honra, andam a competir, a ver qual dos dois será generalíssimo dos nossos exércitos. Com efeito, quando fizermos a paz, quanto mais temível tiver sido o rebelde, mais direito terá a fazer pagar cara a sua reconciliação. Mas para os reconciliar tenho um plano da senhora de Tourville.

- Oh! oh! - disse a viscondessa, sorrindo ao ouvir este nome. - Então Vossa Alteza reconciliou-se com a sua conselheira costumada?

- Não houve remédio; foi ter connosco a Montrond, trazendo o seu rolo de papel com uma tal gravidade, que eu e Lenet não pudemos deixar de rir. "Posto que Vossa Alteza - disse ela - nenhum caso faça destas reflexões, fruto de laboriosas vigílias, venho oferecer o meu tributo à associação generosa"...

- Mas então, era um verdadeiro discurso?

- Sobre três pontos.

- A qual deles respondeu Vossa Alteza?

- A nenhum; cedi a palavra a Lenet. "Senhora - disse ele - nós nunca duvidámos do seu zelo, e ainda menos das suas luzes; são para nós tão preciosas, que a princesa e eu todos os dias por elas suspirávamos"... Numa palavra: disse-lhe ainda um mar de coisas lindas, que a seduziram a ponto de acabar por lhe oferecer o plano.

- Qual é?...

- Não nomearmos generalíssimo nem o senhor de Bouillon, nem o senhor de La Rochefoucauld, mas sim o senhor de Turenne.

- Ora, pois - acrescentou Clara - parece-me desta vez que a conselheira aconselha assizadamente. Que diz a isso, senhor Lenet?

- Digo que a viscondessa tem razão, e que junta um voto mais às nossas deliberações - respondeu Lenet, que entrava justamente naquela hora com um rolo de papel, o qual segurava tão gravemente como teria feito a senhora de Tourville. - Infelizmente, o senhor de Turenne não pôde ausentar-se do exército do Norte, e o nosso plano exige que marche sobre Paris quando Mazarino e a rainha marcharem sobre Bordéus.

- Há-de reparar, minha querida amiga, que Lenet é o homem das impossibilidades. Por isso, não é nem o senhor de Bouillon, nem o senhor de La Rochefoucauld, nem o senhor de Turenne, o nosso generalíssimo; é Lenet! Que tem aí Vossa Excelência? Alguma proclamação?

- Sim, senhora.

- A da senhora de Tourville, bem entendido...

- Sim, senhora, salvo algumas necessidades de redacção. O estilo de chancelaria, bem sabe...

- Bom! Bom! - disse rindo a princesa. - Contanto que lá esteja o espírito, a letra pouco deve importar.

- O espírito está, minha senhora.

- E o senhor de Bouillon, onde deve assinar?

- Na mesma linha que o senhor de La Rochefoucauld.

- Isto não é dizer-me onde há-de assinar o senhor de La Rochefoucauld.

- O senhor de La Rochefoucauld há-de assinar a seguir ao duque de Enghien.

- O duque de Enghien não deve assinar um tal papel! É uma criança, pondere bem, Lenet.

- Já ponderei, senhora! Quando o rei morre, o delfim sucede-lhe. ainda que não tenha senão um dia... Porque não seria na casa dos Condes como na casa de França?...

- Mas o que dirá o senhor de La Rochefoucauld? O que dirá o senhor de Bouillon?

- O primeiro já disse, senhora, e foi-se embora depois de ter dito; o segundo, hâ-de saber a coisa quando ela estiver feita, e, portanto, dirá o que quiser, e isso pouco nos importa!

- Eis, pois, a causa da frieza que o duque lhe testemunhou?

- Deixe-o frio, senhora - disse Lenet. - Ele aquecerá com os primeiros tiros de artilharia que nos atirar o marechal de La Mille-raye. Esses senhores querem fazer a guerra: façam-na então!

- Tenhamos todo o cuidado em não os descontentar demasiado, Lenet - recomendou a princesa. - Não temos senão eles...

- E eles não têm senão o seu nome; que tentem combater por conta deles, e verá quanto tempo se aguentam. Nada de hesitações.

Havia já alguns segundos que a senhora de Tourville entrara, e ao ar radiante e alegre do seu rosto sucedera uma sombra de inquietação, que aumentou com as múltiplas palavras do conselheiro sem rival.

Adiantou-se com vivacidade, e afirmou:

- O plano que propus a Vossa Alteza teria a desgraça de não alcançar a aprovação do senhor Lenet?

- Pelo contrário, senhora - respondeu Lenet, sorrindo. - E até conservei cuidadosamente a maior parte da sua redacção; a única diferença é que em lugar de a proclamação ser assinada pelo duque de La Rochefoucauld, será assinada pelo duque de Enghien, e os nomes daqueles senhores seguir-se-ão ao do príncipe.

- Quer comprometer o jovem príncipe, senhor?

- É muito justo que se comprometa, senhora, visto ser por amor dele que combatemos.

- Mas os bordeleses amam o duque de Bouillon, adoram o duque de La Rochefoucauld, e nem sequer conhecem o duque de Enghien.

- Está enganada - respondeu Lenet, que segundo o seu costume, tirou um papel daquela algibeira cujo conteúdo sempre causava admiração à princesa - pois está aqui uma carta do presidente de Bordéus, na qual me roga que faça assinar as proclamações pelo jovem duque.

- Ora, deixe-se de parlamentos, Lenet! - exclamou a princesa. - Que vantagem nos traria escapar ao poder da rainha e de Mazarino, caso tornássemos a cair no dos parlamentos?...

- Vossa Alteza quer entrar em Bordéus? - perguntou Lenet.

- Sem dúvida.

- Pois essa é a condição "sine qua non", não dar um tiro por qualquer outro que não seja o duque de Enghien.

A senhora de Tourville mordeu os lábios.

- Quer dizer - disse a princesa - que nos fez fugir de Chantilly, fez-nos correr cento e cinquenta léguas, para recebermos uma afronta dos bordeleses?...

- O que toma por uma afronta, senhora, é uma honra. Que coisa, na verdade, pode haver de mais lisonjeira para a princesa de Conde, do que ver que a recebam a ela, e não aos outros?...

- Então, os bordeleses nem sequer receberão os dois duques?

- Só a Vossa Alteza receberão.

- O que posso eu fazer só?

- Ah, meu Deus! Entre, entre de um modo ou de outro; e, quando entrar, deixe as portas abertas, e os outros entrarão atrás de si.

- Não nos é possível passar sem eles.

.- Este é o meu parecer, e, dentro de quinze dias, será também o parecer do Parlamento. Bordéus repele o seu exército, de que tem medo, e daqui a quinze dias chamá-lo-á para se defender. Terá então o duplo merecimento de ter feito duas vezes o que os bordeleses lhe hajam pedido, e então - fique sossegada: far-se-ão matar pela sua causa, desde o primeiro até ao último.

- Bordéus está então ameaçada? - perguntou a senhora de Tourville.

- Muito ameaçada-respondeu Lenet. - É por isso que se torna indispensável tomar ali posição. Enquanto lá não estivermos, Bordéus pode, sem comprometer a honra, recusar abrir-nos as suas portas; uma vez que lá estejamos, Bordéus não pode, sem se desonrar, expulsar-nos dos seus muros.

- E quem ameaça Bordéus?

- O rei, a rainha e Mazarino. Neste momento estão recrutando para o exército real; os nossos inimigos tomam posição; a Ilha de São Jorge, que só dista umas três léguas da cidade, acaba de receber um reforço, um abastecimento de munições, e um novo governador. Os bordeleses tentarão apoderar-se da ilha, e é muito natural que sejam repelidos, visto que têm de se medir com as melhores tropas do rei. Devidamente desancados, como convém a paisanos que querem fazer as vezes de soldados, chamarão em altos brados pelos duques de Bouillon e de La Rochefoucauld. Então, senhora, terá esses dois duques nas suas mãos, e imporá as suas condições aos parlamentos.

- Mas não seria mais acertado chamar ao nosso partido o tal governador, antes que os bordeleses tenham sofrido uma derrota, que talvez os desanime?...

- Se estiver em Bordéus quando essa derrota se registar, nada terá que temer; quanto a subornar o governador, isso é coisa impossível.

- Impossível?! E porquê?

- Porque esse governador é inimigo pessoal de Vossa Alteza.

- Meu inimigo pessoal?

- Sim, senhora.

- E de onde procede a sua inimizade?

- Ele nunca perdoará a Vossa Alteza o logro de que foi vítima em Chantilly. Oh! Mazarino não é tolo, como o julgam, senhoras, apesar de que eu não cesse de repetir-lhes o contrário; e a prova é que mandou para a Ilha de São Jorge, isto é, para a melhor posição ao país, adivinham quem?

- Já lhe disse que ignorava completamente quem ele fosse.

- Ora, pois: é o tal oficial, de quem tanto se têm rido, e que, por uma inexplicável incúria, deixou fugir Vossa Alteza de Chantilly.

- O senhor de Canolles?! - exclamou Clara.

- Sim, senhora.

- O senhor de Canolles governador da Ilha de São Jorge?!

- Ele mesmo, em pessoa.

- Isso não é possível! Eu vi-o ser preso, na minha presença, perante meus olhos!

- É verdade. Mas deve sem dúvida ser poderosamente protegido. e a sua desgraça converteu-se em graça.

- E se o julgava já morto, minha pobre Clara! - disse rindo a princesa.

- Está bem certo disso, senhor? - perguntou Clara, atónita. Lenet, segundo o seu costume, meteu a mão na famosa algibeira, e dela retirou um papel.

- Está aqui uma carta de Richon - disse ele - que me dá todos os pormenores sobre a posse do novo governador, e na qual me exprime o seu pesar por Vossa Alteza o não ter despachado a ele próprio para a Ilha de São Jorge.

- A princesa despachar Richon para a Ilha de São Jorge?! - disse a senhora de Tourville, com um riso triunfante. - Acaso dispomos nós das nomeações de governador para as praças de Sua Majestade?

- Dispúnhamos de uma, senhora - respondeu Lenet - e é quanto basta.

- Então de qual?

A senhora de Tourville estremeceu vendo que Lenet aproximava a mão da algibeira.

- A assinatura em branco do duque D’Épernon! - exclamou a princesa. - É verdade, não me lembrava.

- Ora! Que vale isso? - disse desdenhosamente a senhora de Tourville. - Um pedaço de papel, e nada mais.

- Este pedaço de papel, senhora - disse Lenet - é a nomeação de que precisávamos para evitar, o que acaba de se fazer. E a posse da Ilha de São Jorge, é a nossa salvação: enfim: haverá alguma outra praça sobre o Dordonha, como a Ilha de São Jorge sobre o Garona?

- E está certo - replicou Clara, que nada ouvira do que há cinco minutos se dizia, e que só ficara ciente da notícia dada por Lenet, e confirmada por Richon - de que é o mesmo Canolles que foi preso em Jaulnay quem agora governa a Ilha de São Jorge?

- Tenho toda a certeza absoluta, senhora.

- Mazarino tem um modo singular - continuou ela - de encaminhar os governadores aos seus governos.

- Sim - disse a princesa - certamente que não deixa de haver algum mistério em tudo isto.

- Sem dúvida que há - corroborou Lenet. - E a chave desse mistério talvez nos possa ser dada pela menina Nanon de Lartigues.

- Nanon de Lartigues?! - exclamou a viscondessa de Cambes, a quem uma terrível lembrança acabava de trespassar o coração.

- Aquela rapariga?!- disse a princesa, com desprezo.

- Sim, senhora - respondeu Lenet. - Aquela rapariga que Vossa Alteza não quis ver, quando solicitava ser-lhe apresentada, e que a rainha, menos severa do que a senhora relativamente às leis da etiqueta, recebera; o que justificou que ela respondesse ao vosso camarista que era possível ser Sua Alteza de Conde senhora de mais distinção do que Ana de Áustria, mas que decerto em Ana de Áustria há mais prudência do que na princesa de Conde.

- A memória não o ajuda, Lenet, ou então quer poupar-me - exclamou a princesa. - Aquela insolente rapariga não se contentou em dizer: "Mais prudência", eu ouvi-a do princípio ao fim.

- Então fácil será compreender, senhora - disse Lenet – que será essa mulher que lhe fará a guerra mais encarniçada. A rainha ter-lhe-ia enviado soldados a quem combater; Nanon mandar-lhe-á inimigos a quem será preciso esmagar.

- Talvez que no lugar de Sua Alteza - disse com aspereza a senhora de Tourville a Lenet - a tivesse recebido com reverência. ..

- Não, senhora - negou Lenet. - Tê-la-ia recebido rindo, e tê-la-ia comprado.

- Ora, pois, se somente se trata de comprar, sempre estamos a tempo.

- Sem dúvida, sempre estamos a tempo; com a única diferença de que, a esta hora, o preço há-de provavelmente ser demasiado alto para a nossa bolsa.

- Então, quanto vale ela? - perguntou a princesa.

- Quinhentas mil libras, antes da guerra. - E hoje?

- Um milhão.

- Mas, por tal preço eu compraria Mazarino!

- É possível - disse Lenet. - As coisas já vendidas e revendidas baixam de preço.

- Mas - insistiu a senhora de Tourville, que sempre se inclinava aos meios violentos - se não a pudermos comprar, será necessário lançar mão dela!

- Senhora, faria um verdadeiro serviço a Sua Alteza, se conseguisse tal resultado; mas dificilmente será possível, visto que se ignora absolutamente onde se encontra. Todavia, não nos ocupemos agora disso; entremos desde já em Bordéus, e depois entraremos na Ilha de São Jorge.

- Não, não - exclamou Clara. - Entremos primeiro na Ilha de São Jorge.

Esta exclamação, saída do fundo do coração da viscondessa fez com que as duas mulheres se voltassem para ela, enquanto Lenet olhava para Clara com a mesma atenção como teria podido fazer o senhor de La Rochefoncauld, mas agora acompanhada de benevolência.

- Mas tu estás louca! - disse a princesa. - Bem vês que Lenet diz que a praça é inconquistável.

- É possível - disse Clara. - Porém, creio que a tomaremos. - Terá algum plano? - perguntou a senhora de Tourville, com

o ar de mulher que receia ver a casa assaltada. -Talvez - disse Clara.

- Mas - volveu a princesa, rindo - se a Ilha de São Jorge tem de custar tão cara como diz Lenet, talvez não sejamos suficientemente ricos...

- Não se comprará - esclareceu Clara - e, contudo, apoderar-nos-emos dela como se a tivéssemos comprado.

- Por meio da força, então - disse a senhora de Tourville.

- Minha querida amiga, adopte o meu plano.

- É isso - disse a princesa. - Ordenaremos a Richon que vá sitiar São Jorge; ele é desta terra, conhece as localidades, e se há alguém que seja capaz de tomar aquela fortaleza, que julgam ser tão importante, é ele!

- Antes de tentar esse meio - disse Clara - deixe-me tentar a aventura! E se eu for mal sucedida, então, farão o que entenderem.

- Como!? - disse a princesa admirada - atrever-te-ás a ir à Ilha de São Jorge?

- Irei, sim. -Só?

- Acompanhada por Pompeu.

- E não receia coisa nenhuma?

- Irei como parlamentar, se realmente Vossa Alteza quiser encarregar-me das suas instruções.

- Ah! eis uma coisa nova - exclamou a senhora de Tourville. - A mim parece-me que os diplomatas não se improvisam deste modo, e que é preciso fazer um longo estudo dessa ciência; o senhor de Tourville, um dos melhores diplomatas da sua época, da mesma forma que era um dos melhores guerreiros, entendia ser essa profissão a mais difícil de todas.

- Seja qual for a minha insuficiência, senhora - respondeu Clara - farei contudo a experiência, se a princesa o permitir.

- Sem dúvida alguma que a princesa lho permitirá - disse Lenet, lançando um olhar à princesa de Conde. - E estou convencido de que, se há no mundo pessoa alguma que possa sair-se bem de uma tal empresa, esse alguém é a senhora...

- Então, que fará a senhora que outros não possam fazer?

- Entrará francamente em ajuste com o senhor de Canolles, feito que um homem não poderia tentar sem correr o risco de ser lançado pela janela.

- Um homem... vá lá - replicou a senhora de Tourville - mas uma mulher...

- Se é uma mulher que vai à Ilha de São Jorge - disse Lenet - tanto faz, e até vale mais que seja a senhora do que outra, visto que foi a primeira a quem ocorreu essa ideia.

Neste momento, um mensageiro entrou no aposento da princesa. Era portador de uma carta do Parlamento de Bordéus.

- Ah! - exclamou a princesa - é sem dúvida a resposta à minha inquirição.

As duas mulheres aproximaram-se, movidas por um sentimento de curiosidade e interesse. Quanto a Lenet, ficou no mesmo lugar com a sua costumada fleuma, sabendo sem dúvida de antemão o que continha a carta.

A princesa leu avidamente.

- Querem-me, chamam-me, esperam-me! - exclamou ela.

- Ah! - disse a senhora de Tourville, com um acento de triunfo.

- Mas os duques, senhora? - disse Lenet - mas, o exército?...

- Não dizem palavra a este respeito.

- Então ficamos sem forças - disse a senhora de Tourville.

- Não - disse a princesa - porque, graças à assinatura em branco do duque D’Épernon, eu terei Vayres, que domina o Dordonha.

- E eu - disse Clara - terei São Jorge, que é a chave do Garona.

- E eu - disse Lenet - terei os duques e o exército, se, entretanto, me der tempo para isso.

 

(FIM DO VOLUME I)

 

                                                                                            Alexandre Dumas  

 

                      

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